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Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Centro de Educação e Humanidades
Instituto de Letras
Flávio de Aguiar Barbosa
Palavra de bamba: estudo léxico-discursivo
de pioneiros do samba urbano carioca
Rio de Janeiro
2009
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Flávio de Aguiar Barbosa
Palavra de bamba: estudo léxico-discursivo
de pioneiros do samba urbano carioca
Tese apresentada, como requisito parcial para a
obtenção do título de Doutor, ao Programa de
Pós-Graduação em Letras, da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração:
Língua Portuguesa.
Orientador: Professor Doutor André Crim Valente
Rio de Janeiro
2009
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CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/CEHB
B238 Barbosa, Flávio de Aguiar.
Palavra de bamba: estudo léxico-discursivo de pioneiros do
samba urbano carioca / Flávio de Aguiar Barbosa. – 2009.
494 f.
Orientador: André Crim Valente
Tese (doutorado) Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Instituto de Letras.
1. Análise do discurso Teses. 2. Sambistas Rio de Janeiro
Teses. 3. Linguística – Teses. 4. Lexicologia – Teses. 5. Cartola,
1908-1980 – Teses. 6. Silva, Ismael – Teses. 7. Portela, Paulo da,
1901-1949 – Teses. I. Valente, André. II. Universidade do Estado do
Rio de Janeiro. Instituto de Letras. III. Título.
CDU 82.085
Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta
dissertação
__________________________ __________________
Assinatura Data
Flávio de Aguiar Barbosa
Palavra de bamba: estudo léxico-discursivo
de pioneiros do samba urbano carioca
Tese apresentada como requisito parcial
para a obtenção do título de Doutor ao
Programa de Pós-Graduação em Letras, da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Área de concentração: Língua Portuguesa.
Aprovado em 27 de março de 2009.
Banca Examinadora:
________________________________________________
Prof. Dr. André Crim Valente (Orientador)
Instituto de Letras da UERJ
________________________________________________
Prof. Dr. Ricardo Stavola Cavaliere
Instituto de Letras da UFF
________________________________________________
Profa. Dra. Denise Salim Santos
Faculdade de Comunicação Social da FACHA
________________________________________________
Prof. Dr. João Baptista de Medeiros Vargens
Instituto de Letras da UERJ
________________________________________________
Prof. Dr. José Carlos Santos de Azeredo
Instituto de Letras da UERJ
Rio de Janeiro
2009
A Roberto M. Moura (in memoriam), com
quem aprendi muito, apesar de não ter tido
oportunidades de convivência, ou de
interlocução acadêmica.
AGRADECIMENTOS
A meus familiares, que contribuíram decisivamente na formação do meu gosto pela
palavra, pela música, pela palavra musicada.
À Elisa, que me ajuda a tirar harmonia da polifonia cotidiana.
A Paulo da Portela, Ismael Silva e Cartola, mestres cujo legado nos enriquece a todos.
Aos amigos interlocutores que contribuíram com motes, breques e modulações para as
ideias propostas neste estudo.
Ao meu orientador, André Valente, grande parceiro cujo acompanhamento atento e
generoso ajudou a preparar o caminho para pôr esta tese na rua.
A Roberto M. Moura, Carlos Sandroni, Sérgio Cabral, João Baptista Vargens, Carlos
Monte, Antônio Candeia Filho, Isnard Araújo, Nei Lopes, Lygia Santos, Muniz Sodré, André
Conforte, Sandra Fará, Maria Thereza Soares, Marília Barboza, Arthur Oliveira e Luiz
Fernando Carvalho, baluartes nos estudos do samba carioca.
Aos funcionários da Fundação Biblioteca Nacional, do Museu da Imagem e do Som, do
Instituto Moreira Salles, da biblioteca da UNIRIO, que com o seu trabalho garantiram acesso
a documentos essenciais para a apreciação das palavras de bambas.
A Denise Salim, Ricardo Cavaliere, João Baptista Vargens, José Carlos Azeredo e
André Valente, minha simpática e ilustre comissão julgadora, que me beneficiou com seus
comentários e sugestões.
Ao povo da arquibancada (familiares, amigos e colegas), cujo apoio uníssono e
entusiasmado ajudou-me a não atravessar na apresentação e na arguição.
A Monarco e Lygia Santos, cujas presenças fizeram da minha defesa de tese uma
verdadeira apoteose.
Orgulho, hipocrisia, vaidade e nada mais / São três coisas que em menos de um segundo se desfazem /
O mundo é mesmo assim, cheio de ilusão / Hás de te convencer, meu coração
(Quem espera sempre alcança. Paulo da Portela)
Cocorocó, o galo já cantou / Levanta, nego, tá na hora de tu ir pro batedor / Ô, nega, me deixa dormir
mais um bocado / Não pode ser, o senhorio está zangado com você / Ainda não pagaste a casa este
mês / Levanta, nego, que só faltam dez pras seis
(Cocorocó. Paulo da Portela)
Linda borboleta, não seja buliçosa / Deixa minha rosa que tão linda está no galho / É o meu prazer, ao
amanhecer / Fazer-lhe visita, vê-la banhada de orvalho / Quando vem o sol, cobre ela de ouro / No
jardim do pobre é um tesouro
(Linda borboleta. Paulo da Portela)
Existe muita tristeza na rua da Alegria / Existe muita desordem na rua da Harmonia / Analisando esta
história / Cada vez mais me embaraço / Quanto mais longe do circo / Mais eu encontro palhaço
(Contrastes. Ismael Silva)
De mim você não tem razão / de se queixar / Assim você faz confusão / No nosso lar / Se eu sou do
samba ninguém tem / que achar ruim / Você me conheceu / vivendo assim (tocando tamborim)
(Ninguém tem de achar ruim. Ismael Silva)
Se eu precisar algum dia / de ir pro batente / não sei o que será / Pois vivo na malandragem / e vida
melhor não há
(...)
Oi, não há vida melhor / e vida melhor não há / Deixa falar quem quiser / Deixa quem quiser falar / O
trabalho não é bom / Ninguém pode duvidar / Oi, trabalhar só obrigado / Por gosto ninguém vai lá
(O que será de mim. Ismael Silva, Nilton Bastos e Francisco Alves)
Se você jurar / Que me tem amor / Eu posso me regenerar / Mas se é / Para fingir, mulher, / A orgia
assim não vou deixar
(Se você jurar. Ismael Silva, Nilton Bastos e Francisco Alves)
Os tempos idos, nunca esquecidos, / Trazem saudades ao recordar / É com tristeza que relembro /
Coisas remotas que não vêm mais / Uma escola na praça Onze, testemunha ocular / E perto dela uma
balança onde os malandros iam sambar / Onde os malandros iam sambar
(Tempos idos. Cartola e Carlos Cachaça)
Tu és meu Brasil em toda parte / Quer na ciência ou na arte / Portentoso e altaneiro / Os homens que
escreveram tua história / Conquistaram tuas glórias, / Epopeias triunfais / Quero, neste pobre enredo, /
Revivê-los glorificando / Os nomes seus / Levá-los ao panteão dos grandes imortais / Pois merecem
muito mais
(Ciência e arte. Cartola e Carlos Cachaça)
Semente de amor / Sei que sou desde nascença / Mas sem ter vida e fulgor / Eis minha sentença /
Tentei pela primeira vez um sonho vibrar / Foi beijo que nasceu / E morreu sem se chegar a dar
(Não quero mais amar a ninguém. Cartola e Carlos Cachaça)
Dê-me graças, senhora, / Um sorriso a quem chora / Onde há ódio / Eu vos peço que ponha amor / E
assim / Eu serei mais feliz que sou
(Dê-me graças, senhora. Cartola)
RESUMO
BARBOSA, Flávio de Aguiar. Palavra de bamba: estudo léxico-discursivo de pioneiros do
samba urbano carioca. Brasil. 2009. 488 f. Tese (Doutorado em Língua Portuguesa) –
Instituto de Letras, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.
Este é um estudo das características lexicais das composições de sambistas pioneiros
do Rio de Janeiro, a partir de uma perspectiva discursiva alicerçada na constituição de um
corpus representativo da sua produção lítero-musical. Tal corpus contém composições de três
artistas nascidos na primeira década do século XX: Paulo da Portela, Ismael Silva e Cartola.
A realização da tarefa é embasada em estudos culturais e históricos sobre o samba e o Rio de
Janeiro na transição entre os séculos XIX e XX; em técnicas da Linguística de Corpus; em
princípios teóricos da Análise do Discurso; em princípios teóricos e técnicas dos Estudos
Lexicais (lexicologia, lexicografia e terminologia). O trabalho tem o propósito de contribuir
para a investigação das características lexicais da letra de samba, especialmente nas
composições típicas das primeiras décadas do século XX, que representam o período
inaugural do samba urbano carioca. Adicionalmente, nele se apresentam o universo discursivo
do samba, em suas práticas e valores, assim como as características textuais dos sambas do
período.
Palavras-chave: Samba urbano carioca. Léxico popular. Estudos Lexicais. Análise do
Discurso (linha Semiolinguística). Linguística de Corpus.
ABSTRACT
This is a study of the lexical characteristics of songs created by samba composers in
Rio de Janeiro, from a discoursive perspective based on a corpus which is representative of
their musical production. The corpus contains compositions of three artists who were born in
the first decade of 20th century: Paulo da Portela, Ismael Silva and Cartola. The
acomplishment of such task was based on cultural and historical studies about samba and Rio
de Janeiro during the last decades of 19th century and the first decades of 20th century; on
Corpus Linguistics techniques; on principles of Discourse Analysis; on techniques and
principles of lexical studies (lexicology, lexicography and terminology). The purpose of this
work is to contribute to the investigation of lexical characteristics of samba lyrics, specially in
compositions which are typical of the early 20th century, an important period in the
development of urban samba of Rio de Janeiro. Furthermore, the discoursive universe of
samba is also presented, in its practices and values.
Keywords: Urban samba of Rio de Janeiro. Popular lexicon. Lexical Studies. Semiolinguistic
Discourse Analysis. Corpus linguistics.
Sinopse
Estudo lexical das composições de
sambistas pioneiros do samba urbano
carioca. Constituição de corpus com
base em procedimentos da Linguística de
Corpus. Análise baseada em princípios
da Análise do Discurso de linha
Semiolinguística. Registro lexicográfico
do léxico popular brasileiro.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 12
1 — EMBASAMENTO TEÓRICO............................................................................ 19
1.1 – Pressupostos em Análise do Discurso.............................................................. 19
1.1.1 O ato de discurso: níveis explícito e implícito............................................ 19
1.1.2 – O signo........................................................................................................ 21
1.1.3 – O ato de linguagem como encenação......................................................... 22
1.2 – Características histórico-culturais do corpus em estudo................................ 24
1.2.1
O Rio de Janeiro na virada do século XX................................................... 24
1.2.2 – O núcleo metadiscursivo de samba............................................................ 29
1.2.3 – A institucionalização do samba carioca..................................................... 34
1.2.3.1
A primeira escola de samba; o samba como produto cultural e
comercial; o samba como símbolo de identidade musical brasileira....... 41
1.2.4
Três sambistas modelares.......................................................................... 53
1.2.5 – A letra de samba como subgênero do gênero textual letra de canção....... 65
1.2.5.1
Gêneros textuais............................................................................. 65
2 — METODOLOGIA.................................................................................................. 76
2.1 – Constituição do corpus...................................................................................... 76
2.2 – Consulta a acervos e obras de referência........................................................ 78
2.3 – Transcrição das composições............................................................................ 79
2.4 – Outras informações ........................................................................................... 82
2.5 – Processamento do corpus.................................................................................. 85
2.5.1 – Obtenção de listas de palavras................................................................... 86
2.5.2 – Depreensão de palavras-chave .................................................................. 87
2.5.3 – Elaboração de concordâncias.................................................................... 90
2.6 – Conceitos operacionais...................................................................................... 91
2.6.1 – Unidades lexicais complexas...................................................................... 91
2.6.2 – Campo semântico e campo lexical ............................................................. 98
2.6.3 – O vocabulário de especialidade do samba carioca...................................100
2.6.4 – Intertextualidade e interdiscursividade.....................................................103
3 — ANÁLISE DOS DADOS......................................................................................105
3.1 – Análise qualitativa do corpus...........................................................................105
3.1.1 – Relações amorosas....................................................................................105
3.1.1.1 – O amor analisado...........................................................................105
3.1.1.2 – O amor apaixonado........................................................................107
Cortejo amoroso ...............................................................................107
Inebriamento amoroso......................................................................109
Amor não correspondido ..................................................................110
Relação amorosa a dois ....................................................................111
3.1.1.3 – O Amor conflituoso.......................................................................112
Rompimento da relação....................................................................112
Suspeitas de traição ou de abandono................................................113
Discussões ........................................................................................115
Abandono e arrependimento.............................................................117
Reconciliação ...................................................................................117
Influência de terceiros ......................................................................118
Violência conjugal............................................................................119
3.1.1.4 – O amor desfeito .............................................................................120
Desgosto ...........................................................................................120
Desejo de reconciliação....................................................................121
Acusações.........................................................................................123
Arrependimento................................................................................124
Tripudiação.......................................................................................125
Fim do sentimento de amor ..............................................................127
Consolação .......................................................................................128
Recordações......................................................................................129
3.1.1.5 – Amor frustrado ..............................................................................130
3.1.1.6 – Amor harmonioso .........................................................................131
3.1.1.7 – Amor reticente ..............................................................................132
3.1.1.8 – Resistência ao amor ......................................................................133
3.1.2 – Metalinguagem..........................................................................................135
3.1.2.1 – Homenagem...................................................................................136
3.1.2.2 – Cotidiano da escola de samba .......................................................139
3.1.2.3 – Canto e dança ...............................................................................142
3.1.2.4 – Apresentação artística ...................................................................144
3.1.2.5 – Cartão de visitas ...........................................................................145
3.1.2.6 – Inatismo ........................................................................................146
3.1.2.7 – Instrumentos musicais ..................................................................147
3.1.2.8 – Habilidades do sambista ...............................................................148
3.1.3 – Cotidiano...................................................................................................149
3.1.3.1 – Perfis comportamentais .................................................................149
3.1.3.2 – Datas e eventos importantes .........................................................152
3.1.3.3 – Situações infelizes ........................................................................155
3.1.3.4 – Ambiente doméstico .....................................................................156
3.1.3.5 – Malandragem ................................................................................158
3.1.3.6 – Crônica social ...............................................................................159
3.1.3.7 – Propaganda ...................................................................................161
3.1.4 – Reflexões existenciais................................................................................162
3.1.4.1 – Sofrimento .....................................................................................162
3.1.4.2 – Análise da vida ..............................................................................164
3.1.4.3 – Esperança no futuro.......................................................................166
3.1.4.4 – Análise da sociedade .....................................................................168
3.1.4.5 – Direitos inalienáveis ......................................................................169
3.1.5 – Brasil .........................................................................................................170
3.1.5.1 – Rio de Janeiro................................................................................170
3.1.5.2 – Riquezas naturais...........................................................................172
3.1.5.3 – Regionalismo.................................................................................174
3.1.5.4 – Vultos nacionais ............................................................................175
3.1.5.5 – Patriotismo.....................................................................................177
3.1.6 – Natureza ....................................................................................................178
3.1.6.1 – Influência da natureza....................................................................178
3.1.6.2 – Beleza da paisagem natural ...........................................................180
3.1.6.3 – Diversidade natural........................................................................181
3.1.6.4 – Natureza e poesia...........................................................................182
3.1.7 – Religiosidade.............................................................................................183
3.2 – Análise léxico-discursiva do corpus baseada em critérios
quali-quantitativos...........................................................................................185
3.2.1 – Composição da nomenclatura...................................................................185
3.2.2 – Princípios de análise das ocorrências ......................................................186
3.2.3 – Alguns procedimentos de edição dos resultados.......................................186
3.2.4 – Formatação dos verbetes ..........................................................................187
3.2.5 – Letra A.....................................................................................................188
3.2.6 – Letra B.....................................................................................................215
3.2.7 – Letra C.....................................................................................................220
3.2.8 – Letra D.....................................................................................................245
3.2.9 – Letra E.....................................................................................................267
3.2.10 – Letra F.....................................................................................................276
3.2.11 – Letra G.....................................................................................................293
3.2.12 – Letra H.....................................................................................................296
3.2.13 – Letra I......................................................................................................299
3.2.14 – Letra J......................................................................................................309
3.2.15 – Letra L .....................................................................................................311
3.2.16 – Letra M....................................................................................................317
3.2.17 – Letra N.....................................................................................................337
3.2.18 – Letra O.....................................................................................................342
3.2.19 – Letra P.....................................................................................................353
3.2.20 – Letra Q.....................................................................................................372
3.2.21 – Letra R.....................................................................................................377
3.2.22 – Letra S .....................................................................................................388
3.2.23 – Letra T .....................................................................................................409
3.2.24 – Letra U.....................................................................................................422
3.2.25 – Letra V.....................................................................................................423
4 — CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................436
5 — REFERÊNCIAS ...................................................................................................442
ANEXO 1 — CORPUS DE ESTUDO.........................................................................451
12
INTRODUÇÃO
Este é um estudo das características lexicais das composições de sambistas pioneiros
do Rio de Janeiro, a partir de uma perspectiva discursiva alicerçada na composição de um
corpus representativo da produção lítero-musical desses sambistas. Tal corpus contém
composições concebidas por três artistas nascidos na primeira década do século XX: Paulo da
Portela, Ismael Silva e Cartola. A tarefa à qual me proponho será embasada em estudos
culturais e históricos sobre o samba e o Rio de Janeiro na transição entre os séculos XIX e
XX; em técnicas da Linguística de Corpus; em princípios teóricos da Análise do Discurso; em
princípios teóricos e técnicas dos Estudos Lexicais (lexicologia, lexicografia e terminologia).
Motivação
A elaboração de um corpus de composições de sambistas é um trabalho significativo
para os estudos lexicais, dada a parca documentação do léxico das variedades populares da
língua portuguesa do Brasil. Tal nível de uso linguístico foi objeto de poucos estudos
baseados em corpus, com processamento automático a partir de ferramentas computacionais
que forneçam quantificações das ocorrências, agrupamentos de lexias contextualizadas,
comparações estatísticas em relação a outros corpora etc. Alguns dos estudos existentes que
seguem princípios semelhantes a esses são os voltados para a elaboração de atlas linguísticos,
como o do projeto APERJ, que se propõe à investigação da linguagem falada dos pescadores
artesanais do norte fluminense
1
. Por outro lado, já se dispõe de levantamentos lexicais da
linguagem urbana culta falada em algumas capitais brasileiras, entre as quais a cidade do Rio
de Janeiro (tarefa realizada pelos integrantes do subprojeto O Léxico da Fala Carioca, do
Projeto NURC/RJ
2
); da linguagem de escritores, como Guimarães Rosa
3
, Camões
4
e
1
Cf. PEREIRA, Cilene da Cunha. A evolução dos estudos dialectológicos no Brasil. In PEREIRA, Cilene da Cunha (Org.).
Miscelânea de estudos linguísticos, filológicos e literários in memoriam Celso Cunha. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995.
Nesse artigo, a autora expõe os objetivos do projeto APERJ e o situa na tradição dos estudos dialectológicos. Ressalta, entre
outras, a proposta de documentar a linguagem profissional das comunidades de pescadores norte-fluminenses.
2
Cf. MARQUES, Maria Helena Duarte. O vocabulário da fala carioca – vol. I – O Corpo Humano; vol. II – Alimentação;
vol. III – vestuário; vol. IV – Casa; vol. V – Família; vol. VI Vida Social e Diversões; vol. VII – Cidade e Comércio; vol.
VIII – Transportes e Viagens; vol. IX – Meios de Comunicação; vol. X – Cinema, Televisão, Rádio, Teatro; vol. XI –
Comércio Exterior e Política Nacional; vol. XIII – Profissões e Ofícios; vol. XIV – Dinheiro, Banco e Finanças; vol. XV
Instituições, Ensino e Igreja; vol. XVI – Meteorologia; vol. XVII – Tempo Cronológico; vol. XVIII – Terreno; vol. XIX –
Vegetais e Agricultura; vol. XX – Animais. Rio de Janeiro: UFRJ, 1996.
3
Cf. MARTINS, Nilce S. O léxico de Guimarães Rosa. São Paulo: EdUsp, 2001.
4
Cf. CUNHA, Antônio Geraldo da. Índice analítico do vocabulário de 'Os Lusíadas'. 3 v. Rio de Janeiro: Instituto Nacional
do Livro, 1966. Do mesmo autor, cf. também Índice analítico do vocabulário dos sonetos da 1ª. edição (1595) da ‘Rhythmas
de Camões’. Rio de Janeiro: Lucerna, 1995.
13
Fernando Pessoa
5
; das linguagens características de áreas profissionais
6
e dos usos do
português escrito
7
(corpus que “compreende literatura romanesca, jornalística, dramática,
técnica e oratória”
8
; a partir do qual se elaborou o Dicionário de usos do português do
Brasil
9
). Fique claro que a existência desses levantamentos não significa que a documentação
de tais âmbitos linguísticos esteja esgotada; menciono-os apenas para demonstrar o maior
avanço do seu estudo.
Apesar da carência de investimentos na documentação do léxico popular, o registro do
mesmo é previsto em alguns dos principais dicionários gerais em circulação no Brasil:
No prefácio à primeira edição do Dicionário Aurélio
10
(que continuou a ser impresso
nas edições posteriores), o lexicógrafo escreve:
Pretendeu-se fazer um dicionário médio, ou inframédio, etimológico, com razoável
contingente vocabular (bem mais de cem mil verbetes e subverbetes), atualizado (dentro dos
seus limites), atento não só à língua dos escritores [nota: Vão a 770 os autores citados, e a
1.610 as respectivas obras. V., no fim do volume, a bibliografia.] (muito especialmente os
modernos, mas sem desprezo, que seria pueril, dos clássicos), senão também à língua dos
jornais e revistas, do teatro, do rádio e televisão, ao falar do povo, aos linguajares diversos –
regionais, jocosos, depreciativos, profissionais, giriescos...
Entre os autores, dos mais desvairados gêneros, figuram com certa frequência os cronistas,
por se mostrarem, em maior ou menor grau, bons espelhos da língua viva. São, aliás, vários
deles, mestres da prosa dos nossos dias. Nem foi esquecida outra classe de autores: a dos
letristas de sambas, marchas, canções. Eles – tal como, até certo ponto, também os cronistas
–, além de captarem a criação linguística popular, não raro são, ainda por cima, criadores,
inventores, de palavras. (grifo meu).
No Dicionário Houaiss da língua portuguesa, também se encontra a previsão desse
registro no item 11 do “Detalhamento dos verbetes e outras informações técnicas”
11
, no qual
se fornecem explicações sobre as rubricas utilizadas para indicação de nível de uso. Nesse
item, listam-se, entre os níveis contemplados no dicionário, a linguagem informal (na qual se
incluem popularismos ou coloquialismos, plebeísmos, gíria, linguagem familiar e linguagem
infantil), além da linguagem policial, do crime e da droga, dos tabuísmos, do uso impróprio,
5
Cf. BIDERMAN, Maria Tereza C. Análise computacional de Fernando Pessoa: ensaio de estatística léxica. 1969. Tese
(Doutorado em Filologia e Língua Portuguesa) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 1969.
6
Cf. DIRECTem direção à linguagem dos negócios. Disponível em http://lael.pucsp.br/direct/. Acesso em: mar. 2009.
7
Trata-se do banco de dados “Usos do Português”, do Centro de Estudos Lexicográficos da Universidade Estadual Paulista,
campus de Araraquara. Esse corpus é composto de 70 milhões de ocorrências de português escrito, organizadas por Francisco
da Silva Borba, para a publicação de dicionários e gramáticas. Cf. CASTILHO, Ataliba T. Corpus diacrônico do português
brasileiro. 2002. Disponível em www.fl.ul.pt/pessoais/ailp/encontro/ataliba.htm. Acesso em: mar. 2009.
8
NUNES, José Horta. Dicionarização no Brasil: condições e processos. In NUNES, José Horta e PETTER, Margarida (Org.).
História do saber lexical e constituição de um léxico brasileiro. São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP: Pontes, 2002, p. 117.
9
BORBA, Francisco da Silva. Dicionário de usos do português do Brasil. São Paulo: Ática, 2002.
10
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975.
11
HOUAISS, Antônio e VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. Versão 1.0. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2001. CD-ROM.
14
do eufemismo, da ironia, do nível pejorativo, do jocoso e do hiperbólico.
Os teóricos da lexicografia também ratificam a relevância desses registros nos
dicionários gerais. Biderman (1998, p. 166-167), após afirmar que o propósito principal dos
dicionários gerais é consignar “a linguagem aceita e valorizada em sua comunidade”, observa:
Além disso, numa sociedade muito diversificada socialmente como a nossa, estratificada em
classes sociais, coexistem variedades diastráticas diversas. Embora o dicionário privilegie a
língua escrita [...], ele deve descrever também os diferentes níveis de linguagem, os registros
sociais e, assim, não só identificar o vocabulário e os usos marcados como típicos da
linguagem culta e formal, mas também o da linguagem coloquial, apontando os itens lexicais
característicos de um uso popular, vulgar, chulo, as gírias, as palavras e expressões
obscenas.
Strehler (1998, p. 174-175) também destaca os registros lexicográficos do léxico
popular quando, em artigo dedicado ao estudo das marcas de uso nos dicionários, declara:
As marcas de uso sociais são as que exigem maior atenção dos lexicógrafos e dos usuários.
Na introdução ao DCP [Dicionário Contemporâneo do Português, de Maria Tereza
Biderman], lê-se que “esse tipo de informação [que se refere aos níveis de linguagem]
padece de um certo subjetivismo”. A veracidade desta afirmação observa-se consultando
uma mesma palavra de baixo calão no Aurélio, no DCP e no GDPF [Grande Dicionário de
Português/Francês]. A referida palavra é chula no primeiro dicionário, vulgar no segundo e
popular no terceiro.
A afirmação do autor, além de corroborar a importância das marcações de uso social,
ainda aponta incoerências nessas indicações. Outros estudos, que enfocam diferentes aspectos
da questão, também denunciam problemas no registro de variedades lexicais nos dicionários.
Tal é o caso dos textos de Oliveira
12
, que trata da inclusão de normas regionais e dialetais, e
de Petter
13
, que trata do registro de africanismos.
Do ponto de vista histórico, o interesse pelo aspecto social da diversidade linguística é
relativamente recente. É o que esclarece Nunes (2002), em seu artigo “Dicionarização no
Brasil: condições e processos”. Segundo o autor, o interesse maior pelo léxico que reflete
características da realidade brasileira data de meados do século XIX, quando se começaram a
produzir dicionários de brasileirismos (entendidos como “dicionários de complemento” aos
gerais preexistentes). O surgimento dessa linha de dicionários pode ser atribuído à busca de
construção de uma identidade nacional
14
, consoante ao desenvolvimento ocorrido no século
12
OLIVEIRA, Ana Maria P. P. Normas regionais e dialetais. In CARVALHO, Nelly Medeiros de e SILVA, Maria Emília
Barcellos da. Lexicologia, lexicografia e terminologia: questões conexas: anais do I Encontro Nacional do GT de
Lexicologia, Lexicografia e Terminologia da ANPOLL. Recife: UFPE/CNPq, 1998, p. 181-204.
13
PETTER, Margarida Maria Taddoni. Africanismos no português do Brasil. In ORLANDI, Eni P. (Org.). História das
ideias linguísticas: construção do saber metalinguístico e constituição da língua nacional. Campinas, SP / Cárceres, MT:
Pontes / Unemat Editora, 2001, p. 223-234.
14
Um exemplo dessa diferença de perspectiva no registro do léxico: as palavras próprias de línguas indígenas, que já eram
registradas desde o século XVI, em textos de viajantes e estudos de jesuítas, foram dicionarizadas no século XIX não mais
como pertencentes a uma língua estrangeira, com a qual os portugueses travaram contato, mas como parte integrante do
léxico do português brasileiro e fator significativo de diferenciação dessa variedade do português em relação à lusitana.
15
XIX e, mais especificamente, à emancipação política determinada pela proclamação da
independência e do regime republicano de governo. Os dicionários dessa época privilegiavam
o registro dos regionalismos e dos tupinismos – que, até hoje, são as particularidades mais
estudadas desse universo lexical –, além de “uma série de termos relativos à conjuntura
brasileira: designativos de raça e grupo social, termos culturais, termos do cotidiano das
cidades.” (NUNES, 2002, p. 113).
Já no século XX, o estudo dos brasileirismos refinou-se um pouco mais, e tornou-se
padrão o uso de marcas que dão conta não só da diversidade regional do português brasileiro,
mas também da sua diversidade social e de situações de uso: folclore, familiar, vulgar,
coloquial, gíria etc.
15
Objetivos do estudo
Considerando-se o reconhecimento, por parte de dicionaristas e teóricos da
lexicografia, da importância do registro das palavras de uso popular, assim como a condição
recente desse registro sistemático, pode-se dimensionar adequadamente a importância da
constituição de um corpus como este, de sambas do Rio de Janeiro, para a elaboração de
dicionários gerais – importância ainda mais notória dada a carência de documentação desse
nível de uso linguístico.
Neste trabalho se constitui uma base documental
16
a partir da qual é possível: 1)
depreender as palavras mais frequentes e representativas, que não podem deixar de constar em
dicionários gerais; 2) elaborar definições acuradas e não preconceituosas relativas à
linguagem e aos elementos característicos da cultura popular brasileira; 3) explicitar as
particularidades desse campo discursivo — o contrato de comunicação envolvido, as formas
de interação entre os participantes dos atos de discurso etc. Essas informações são importantes
tanto para a redação de definições lexicográficas quanto para a atribuição de marcas de uso.
Além da utilidade para a elaboração de dicionários gerais de língua portuguesa, este
corpus tem, ainda, outras aplicações.
Como focaliza a produção de compositores de uma geração específica, com datação
tão exata quanto possível das composições analisadas, é relevante para estudos lexicais de
15
Tal afirmação não significa que o uso dessas marcas para palavras do português brasileiro fosse, antes do século XX,
completamente inexistente; era, contudo, esporádico, assim como a própria dicionarização desse contingente lexical.
16
Essa é uma base documental parcial, pois a documentação do léxico popular deve contemplar, além dos sambas de todo o
país e de todas as épocas, outros textos, orais e escritos, de ampla difusão no Brasil, como as letras de outros gêneros de
música popular, a literatura de cordel, as adivinhações, parlendas, trava-línguas, lendas e histórias tradicionais etc. Todavia, o
presente estudo pode ser uma referência para outros levantamentos que aumentem a amplitude da documentação.
16
perspectiva histórica — serve como base documental para estudos etimológicos, de
cronologia lexical e de derivação semântica.
Num âmbito lexicográfico ainda mais específico, o levantamento dessas composições
representa o ponto de partida para a elaboração do Dicionário histórico do samba carioca,
obra que ainda está por fazer e que, seguindo o modelo do Dicionário histórico das palavras
portuguesas de origem tupi (CUNHA, 1989), conteria verbetes com abonações
cronologicamente progressivas dos registros. As análises discursivas rendem notas de uso
muito enriquecedoras para a obra, que com isso ofereceria mais do que definições abstratas e
excessivamente generalizadoras.
Adicionalmente, outras disciplinas da área das Ciências Humanas também podem se
beneficiar desse material, pois nele encontrariam alusões a fatos históricos e à vida no Rio de
Janeiro da época numa perspectiva geralmente pouco considerada na história oficial, além do
registro de um período importante da música popular brasileira.
Finalmente, talvez a contribuição mais abrangente deste trabalho seja a própria
documentação do repertório produzido no período em questão. Essa tarefa importa para o
registro de um legado cultural amplamente difundido e frequentemente considerado como um
elemento relevante na caracterização da identidade cultural carioca, e até mesmo nacional
17
.
Princípios teóricos e metodologia
O trabalho demanda referências provenientes de diferentes áreas de estudo:
1) Estudos culturais e históricos sobre samba e sobre o Rio de Janeiro do final do
século XIX e do início do século XX — são relevantes para a delimitação cronológica do
corpus estudado e para o levantamento dos compositores; para a compreensão das coerções
situacionais que determinam tanto a construção da significação do material linguístico quanto
as formas de interação presentes nas composições; para a apreciação da representatividade do
corpus.
2) Linguística de Corpus — a Linguística de Corpus é indicada como base para o
processamento computacional dos textos recolhidos e a geração de índices contextualizados
de palavras. Usei o software Wordsmith Tools, elaborado por Mike Scott, da Universidade de
17
Cf. VIANNA, Hermano. O mistério do samba. Rio de Janeiro: Jorge Zahar / UFRJ, 2002. Cf. também LOPES, Nei.
Partido-alto: samba de bamba. Rio de Janeiro: Pallas, 2005.
17
Liverpool, e publicado pela Oxford University Press
18
, para realizar essas tarefas — por meio
do programa, também pude obter cálculos de frequência vocabular e depreender as palavras-
chave do tipo de texto em questão.
3) Estudos Lexicais — esse embasamento é importante, primeiramente, por suscitar o
diagnóstico da necessidade de estudos do léxico popular do português do Brasil aplicáveis à
elaboração de obras lexicográficas. Ele tem, ainda, valia por embasar a classificação das
ocorrências lexicais a partir de critérios linguísticos ou não, o agrupamento e lematização de
ocorrências, a lematização de unidades lexicais complexas, o tratamento do vocabulário de
especialidade relacionado a esse campo discursivo.
4) Análise do Discurso — o embasamento nessa disciplina é fundamental para o
estabelecimento da perspectiva de análise segundo a qual a linguagem é um objeto não
transparente, ou seja, por um lado o ato de linguagem é “produzido por um emissor
determinado, em um dado contexto sócio-histórico”; por outro, “o processo de comunicação
não é o resultado de uma única intencionalidade, já que é preciso levar em consideração não
somente o que poderiam ser as intenções declaradas do emissor, mas também o que diz o ato
de linguagem a respeito da relação particular que une o emissor ao receptor”.
19
Em suma, essa perspectiva agrega à descrição lexical a consideração das
circunstâncias de produção do discurso, evitando que se limite a generalizações cuja
significação se esgota nelas mesmas e tornando essa descrição sensível aos implícitos dos atos
de linguagem.
20
Para a realização deste trabalho, adotei a vertente semiolinguística de estudo do
discurso, desenvolvida por Patrick Charaudeau e encampada, no Rio de Janeiro, pelo CIAD
(Círculo Interdisciplinar de Análise do Discurso), grupo de pesquisa que congrega professores
e alunos de três grandes universidades: UFRJ, UERJ e UFF. Ressalto que minha proposta
aqui não é me ater a debates teóricos sobre os conceitos envolvidos na disciplina, mas
18
Cf. ZAPPAROLI, Zilda Maria. Um pouco da história da análise informatizada do xico do Brasil. In NUNES, José Horta
e PETTER, Margarida (Org.). História do saber lexical e constituição de um léxico brasileiro. São Paulo:
Humanitas/FFLCH/USP: Pontes, 2002, p. 227.
19
Cf. CHARAUDEAU, Patrick. Linguagem e discurso: modos de organização. São Paulo: Contexto, 2008, p. 13-21.
20
Aos princípios da Análise do Discurso foram, ainda, articulados conceitos dos estudos estruturalistas, como lexia (Pottier,
1973) e campo semântico (Câmara Júnior, 1992 e Borba, 1972), que se mostraram úteis na sistematização da análise dos
dados. Veja-se o item 2.6 para mais informações sobre esses conceitos e seu uso neste trabalho.
18
aproveitá-los como instrumental valioso para o estudo do léxico de sambistas do Rio de
Janeiro.
Estrutura do trabalho
Inicialmente, faço a apresentação de conceitos da Análise do Discurso que nortearam
o tratamento do tema e a análise do corpus. Em seguida, em consonância com os princípios de
estudo das circunstâncias de produção do discurso, traço um histórico do desenvolvimento do
samba do Rio de Janeiro como prática cultural, gênero musical e instituição carioca de
projeção nacional. Esse histórico leva em conta as relações estabelecidas entre diferentes
grupos sociais na cidade, com intensas trocas culturais e desenvolvimento de identidades
relacionadas ao samba. Também são consideradas informações biográficas dos três sambistas
cujas composições comporão o corpus de estudo: Cartola, Ismael Silva e Paulo da Portela.
Na segunda parte, exponho os critérios que guiaram a seleção dos compositores em
estudo, assim como os cortes cronológicos e espaciais implicados nessa seleção. Os critérios
de composição do corpus também são explicitados, assim como os procedimentos para o seu
processamento computacional. Finalmente, alguns conceitos operacionais, como os de
unidade lexical complexa, campo semântico e vocabulário de especialidade, importantes para
a análise da terceira parte, são apresentados.
A terceira e última parte divide-se em duas seções: inicialmente, há uma análise
qualitativa de uma amostra de aproximadamente 180 composições, divididas entre os três
sambistas selecionados. Tal análise tem como ponto de partida a delimitação de sete áreas
temáticas, depreendidas indutivamente a partir das próprias letras: relações amorosas;
metalinguagem; cotidiano; reflexões existenciais; Brasil; natureza; religiosidade. As
categorias em observação são os valores implicados no desenvolvimento das letras; as
encenações discursivas entre os sujeitos representados; a recorrência de lexias referentes a
determinados campos semânticos.
A segunda seção consiste em uma análise quali-quantitativa. O aspecto quantitativo
baseia-se em quantificações de frequência vocabular e na depreensão automática de palavras-
chave, funcionalidades do software Wordsmith Tools. O aspecto qualitativo retoma elementos
da análise anterior, além de referências pertinentes ao estudo lexical na teoria
semiolinguística, como os níveis explícito e implícito do ato de discurso e a observação do
núcleo metadiscursivo, a partir do qual se desenvolve a significação dos signos em uma dada
situação comunicativa.
19
1 — EMBASAMENTO TEÓRICO
1.1 – Pressupostos em Análise do Discurso
1.1.1 – O ato de discurso: níveis explícito e implícito
Em seu estudo dos atos de linguagem, Charaudeau considera que há um duplo valor
nos mesmos, divididos em um componente explícito e um componente implícito.
No nível explícito, ocorre a simbolização referencial. Nesse processo, a partir de
recursos linguísticos, faz-se a atividade de referência à realidade que nos rodeia — como, por
exemplo, se faz pelo uso do demonstrativo isso, cuja referência se atualiza em função da
situação — e a atividade de simbolização — conceituação dessa realidade, como ocorre
quando se usa uma das lexias cadeira, assento ou lugar, traduzindo-se diferentes conceitos
para um mesmo referente; ou mesmo quando se usa a mesma lexia cadeira como assento,
como forma de escorar uma porta ou como base para se trocar uma lâmpada
(CHARAUDEAU, 2008, p. 24-6).
Nesse nível atuam as articulações paradigmática e sintagmática, para estruturação do
material linguístico. Aqui, uma característica importante é que diferentes estruturas
geralmente não podem ser cumulativas, havendo uma relação de exclusão entre as mesmas;
mesmo a articulação sintagmática é limitada por regras gramaticais e lógico-semânticas.
Segundo Charaudeau (2008, p. 25), essas articulações geram paráfrases estruturais, que não
podem ser concomitantes nem em relação à mesma instância de fala, nem mesmo quanto a
relações interfrásticas, como se verifica no exemplo “fecha a porta porque abre a porta”.
No nível implícito, entram em questão fatores como as intenções do sujeito falante e
as circunstâncias de produção do discurso. Com relação a esses fatores, há possibilidade de
sobreposição de informações — cada leitura possível de um enunciado, considerando-se as
intenções do seu produtor ou as circunstâncias discursivas, segundo Charaudeau, constitui
uma paráfrase serial do mesmo. As paráfrases seriais, diferentemente das estruturais, podem
coexistir relativamente a um mesmo enunciado.
Por exemplo: quando se diz a frase “compre este caderno”, pode-se supor que o
enunciador sabe que seu interlocutor precisa de um caderno novo e sugere a compra; que ele,
baseado em uma maior experiência, aconselha o interlocutor a comprar um determinado tipo
20
de caderno, mais adequado às suas necessidades (as do interlocutor); que ele está vendendo o
caderno e oferece-o enfaticamente ao interlocutor; que ele precisa do caderno para si e pede
que o interlocutor intermedeie a compra, ou faça a compra e lhe dê o caderno; que ele tem
uma relação de autoridade com o interlocutor e determina que a compra seja feita, em
benefício próprio ou do interlocutor; que ele na verdade está ameaçando o interlocutor e o
enunciado representa uma extorsão etc. Essas diferentes leituras não são necessariamente
exclusivas entre si — podem-se imaginar combinações das circunstâncias ou intenções
expostas, com alterações de nuances, dependendo de especificidades da situação de
comunicação.
Diz Charaudeau (2008, p. 25):
a produção dessas paráfrases permite que se efetue, na linguagem, um jogo de remissões
constantes a alguma coisa além do enunciado explícito, que se encontra antes e depois do ato
de proferição da fala. É um jogo construtor da significação de uma totalidade discursiva que
remete a linguagem a si mesma como condição de realização dos signos, de forma que estes
não signifiquem mais por si mesmos, mas por essa totalidade discursiva que os ultrapassa:
vamos, pois nomeá-la significação. (grifo do autor)
Para o autor, portanto, a significação não pode ser considerada como algo distanciado
da situação de comunicação, pois apenas a partir do uso se pode buscar a interpretação dos
enunciados. Tal busca, por sua vez, sempre se dá em meio a um conflito entre os níveis
explícito e implícito. Como afirma Charaudeau (2008, p. 27),
de um lado, a atividade serial põe em causa, incessantemente, as tentativas que a atividade
estrutural empreende para fixar o signo em um lugar definitivo de reconhecimento do
sentido; de outro lado, a atividade estrutural, por sua vez, tenta fixar, “congelar”, o sentido
comandado pela atividade serial.
O cálculo da significação de um ato de linguagem pressupõe necessariamente a
observação das circunstâncias de discurso, ou circunstâncias de produção/interpretação, em
que ocorre. Isso envolve uma negociação entre dois polos que implicam perspectivas
fundamentais — a do produtor do enunciado e a do seu interpretante.
Essa relação complexa envolve a construção de uma série de hipóteses,
primeiramente, por parte do produtor, sobre os conhecimentos que ele compartilha com o
interpretante (a respeito do assunto em questão, das diferentes crenças e perspectivas que
circulam sobre esse assunto no meio sociocultural em que estão envolvidos, da relação entre
produtor e interpretante, determinada pela situação, da percepção que um tem do outro). A
partir dessas avaliações, o produtor concretizará o seu ato de linguagem, decidindo a melhor
forma de fazer com que o interpretante recupere seu projeto de dizer.
Hipóteses semelhantes são construídas pelo interpretante de um enunciado, que tenta
recuperar os conhecimentos acionados pelo produtor, para entender qual era a sua perspectiva
na situação discursiva e as suas intenções com o enunciado produzido.
21
Eis a conclusão de Charaudeau (2008, p. 32), sistematizando essas informações:
Assim, voltamos a definir as Circunstâncias de discurso como o conjunto dos saberes
supostos que circulam entre os protagonistas da linguagem, ou seja:
– saberes supostos a respeito do mundo: as práticas sociais partilhadas;
– saberes supostos sobre os pontos de vista recíprocos dos protagonistas do ato de
linguagem: os filtros construtores do sentido.
A análise dessas circunstâncias pelos protagonistas do discurso, em busca de
cooperação para construir a significação, resulta na constituição de um contrato entre eles.
Esse contrato visa ao entendimento, a partir da observação das práticas e pressupostos que
norteiam as interações em um determinado grupo, assim como outros saberes compartilhados
pertinentes às circunstâncias de discurso presentes.
Uma constatação oportuna neste ponto é que, com base no que foi exposto, não se
pode conceber a significação de um ato de linguagem como algo transparente. A significação
é sempre fruto da construção negociada entre produtor e interpretante, tendo em vista
coerções de circunstâncias de discurso específicas.
1.1.2 - O signo
Para considerar o signo em consonância com os conceitos já apresentados, é preciso
distinguir dois níveis do mesmo: o de qualificação referencial e o de funcionalidade.
A qualificação referencial “resulta do valor de designação que atribui uma carga
semântica a uma determinada parte do mundo físico (inclusive para o que se convencionou
chamar palavras abstratas).” (Charaudeau, 2008, p. 34). Pertence, portanto, ao nível explícito
do ato de linguagem, conforme conceituação anterior.
A funcionalidade, também pertencente ao nível explícito do ato de linguagem, tem a
ver com a atualização do sentido de determinado(s) signo(s) a partir de um domínio de
experiência estabelecido, conforme as circunstâncias discursivas em questão. É a partir desse
processo que se pode entender “pé” como parte da anatomia humana, como unidade de
medida, como parte de uma peça de mobiliário, como a base de uma montanha (ou de outro
tipo de elevação), como vegetal em uma plantação, ou mesmo como elemento editorial onde
se registram notas em uma página.
A partir da observação de que existem essas constantes de sentido, construídas a partir
do emprego dos signos em contextos semelhantes ou diferentes, Charaudeau propôs a noção
22
de núcleo metadiscursivo. É ele que orienta a compreensão de signos em contextos
específicos e, não obstante esse papel referencial, está em constante transformação. A partir
do uso consagrado de um signo em determinadas circunstâncias, algumas marcas linguísticas
podem ser adicionadas ao núcleo metadiscursivo; outras, ainda, podem entrar em
obsolescência. Os futuros usos do signo em questão terão de levar em conta essas
transformações (Charaudeau, 2008, p. 38-9).
O conceito de marca linguística é outro que merece mais comentários. Ele é proposto
no lugar de significado. Não se concebe, na abordagem de Charaudeau, o significado como
algo abstrato, alheio ao uso linguístico. O autor rejeita essa ideia e também a de que o
significado é privativo de determinado signo, sendo formalmente segmentável; adota o termo
marca linguística, com as seguintes distinções importantes:
1) a interpretação de um signo leva em conta o saber sobre os usos historicamente
constituídos para ele em determinadas circunstâncias (núcleo metadiscursivo), articulados
com a sua significação, que depende dos conhecimentos partilhados pelos interlocutores em
determinadas circunstâncias de discurso (o contrato de comunicação que se estabeleceu);
2) o sentido não se esgota nos limites das palavras, mas depende dos contextos
linguístico e extralinguístico de ocorrência das mesmas. Não é possível buscar a compreensão
de um enunciado em partes específicas do material linguístico; essa busca deve se voltar para
o jogo de construção, por um lado, de uma estrutura que contém uma forma material à qual
corresponde um conteúdo semântico, e, por outro, das diversas nuances de sentido a partir de
fatores discursivos. Essas nuances são apreensíveis a partir de marcas presentes no enunciado.
1.1.3 - O ato de linguagem como encenação
O ato de linguagem realiza-se a partir de dois polos principais: o de produção e o de
interpretação. No polo de produção, atua um sujeito que, ao enunciar algo, faz uma aposta de
quais são os conhecimentos que compartilha com o sujeito do polo oposto, aquele que
interpretará o enunciado recebido. Por sua vez, o interpretante, ao tentar construir uma
significação para o ato de linguagem, também terá de recuperar uma série de conhecimentos
que o produtor tentou acionar.
Conforme essa perspectiva, não se concebe o ato de linguagem como um processo de
comunicação com um produtor ativo e um destinatário passivo. Eis como Charaudeau (2008,
p. 44) entende o fenômeno:
23
[o ato de linguagem] deve ser visto como um encontro dialético (encontro esse que
fundamenta a atividade metalinguística de elucidação dos sujeitos da linguagem) entre dois
processos:
– processo de Produção, criado por EU e dirigido a um TU-destinatário;
– processo de Interpretação, criado por um TU'-interpretante, que constrói uma imagem EU'
do locutor.
Como se percebe nessas palavras, a concepção dos protagonistas do ato de linguagem
resulta numa partição dos mesmos.
Externamente à encenação discursiva, o EU-comunicante (EU-c) cria um sujeito TU-
destinatário (TU-d), ser discursivo que representaria o seu interlocutor ideal, e produz o
enunciado a partir das hipóteses adotadas a respeito dele. Tais suposições podem ou não ser
apropriadas, correspondendo aos conhecimentos e posturas do TU-interpretante (TU-i), que
também está fora da encenação discursiva e tentará construir a significação do ato de
linguagem. Ao mesmo tempo em que tenta produzir essa imagem de um TU-d, na qual o
interpretante pode se enquadrar ou não, o produtor também tenta criar a imagem do ser
discursivo EU-enunciador (EU-e), que corresponde à representação de si que pretende
transmitir ao TU-d — como alguém que tem autoridade sobre ele, como quem tem por ele
muito respeito, como alguém que lhe faz um gracejo etc.
O TU-i, por sua vez, ao realizar a interpretação do enunciado recebido, tentará
recuperar a imagem do TU-destinatário proposto por EU-c, assim como construirá a sua
versão do ser discursivo EU-enunciador. Essas construções realizadas pelo TU-i serão
baseadas nas marcas apresentadas no enunciado e nos conhecimentos que, por meio deste, o
EU-c tentou acionar.
A aposta feita pelo produtor terá tanto mais sucesso quanto mais próximas forem as
construções do EU-e e do TU-d, feitas pelo interpretante, em relação ao seu projeto inicial.
Todo esse processo também é dirigido pelas circunstâncias de discurso que envolvem
EU e TU. Os conhecimentos compartilhados a respeito dessas condições de produção
representam um contrato de comunicação que subsidiará as trocas linguísticas.
A relação entre os sujeitos apresentados anteriormente pode ser representada da
seguinte forma (Charaudeau, 2008, p. 52):
24
1.2 – Características histórico-culturais do corpus em estudo
1.2.1 – O Rio de Janeiro na virada do século XX
Para abordar adequadamente as características discursivas desse corpus é preciso
inicialmente fazer uma exposição sobre o Rio de Janeiro da virada dos séculos XIX-XX,
especialmente na perspectiva das classes populares.
Um dos eventos mais marcantes, com impacto especial no Rio de Janeiro, então
capital do Império, foi a abolição da escravatura, em 1888.
Antes disso, na cidade já vivia um grande contingente de pessoas negras, escravizadas
ou forras. Com a Abolição, entretanto, a cidade foi alvo de migrações de muitos ex-escravos,
provenientes principalmente da Bahia. Além desses trabalhadores libertos, a cidade ainda
recebeu outros perfis de imigrantes:
A Abolição engrossa o fluxo de baianos para o Rio de Janeiro, liberando os que se
mantinham em Salvador em virtude de laços com escravos fundando-se praticamente uma
pequena diáspora baiana à capital do país, gente que terminaria por se identificar com a
nova cidade onde nascem seus descendentes e que, naqueles tempos de transição,
desempenharia notável papel na reorganização do Rio de Janeiro popular, em volta do cais e
das velhas casas do Centro.
O crescimento urbano-industrial e as migrações internas provocadas pela Abolição
acarretariam um crescimento populacional acelerado. Se em 1890 o Rio de Janeiro tinha
522.561 habitantes, 15 anos após já subira para 811.443, para chegar ao primeiro milhão no
final da Primeira Guerra Mundial, em 1917. Migrantes europeus vêm para a indústria,
25
migrantes internos chegam ao Rio de Janeiro ainda estropiados pelas secas, alguns soldados
das lutas de Canudos inventando suas casas no morro da Favela. Centenas de negros libertos
vindos de todas as partes aportam na cidade, procurando possibilidades num mercado de
trabalho onde teriam dificuldades, dadas as suas características raciais e culturais. (...) o
esforço de consolidação nacional com a República reforça a máquina burocrática e
repressiva estatal que se estrutura na cidade. Indivíduos heterogêneos quanto à origem
social, racial, cultural, ou quanto à sua experiência de trabalho, formariam uma classe
intersticial, prestadora de serviços ao complexo sócio-econômico que liderava o país. O Rio
de Janeiro “civiliza-se”. (MOURA, 1995: p. 43-4)
Quanto à concentração espacial, Moura (1995, p.44) esclarece em seu estudo sobre a
comunidade que se formou a partir dessas migrações:
O grupo baiano iria situar-se na parte da cidade onde a moradia era mais barata, na Saúde,
perto do cais do porto, onde os homens, como trabalhadores braçais, buscam vagas na
estiva. Com a brusca mudança no meio negro ocasionada pela Abolição, que extingue as
organizações de nação ainda existentes no Rio de Janeiro, o grupo baiano seria uma nova
liderança. A vivência de muitos como alforriados em Salvador — de onde trouxeram o
aprendizado de ofícios urbanos e às vezes algum dinheiro poupado —, e a experiência de
liderança de muitos de seus membros — em candomblés, irmandades, nas juntas ou na
organização de grupos festeiros —, seriam a garantia do negro no Rio de Janeiro. Com os
anos, a partir deles apareciam as novas sínteses dessa cultura negra no Rio de Janeiro, uma
das principais referências civilizatórias da cultura nacional moderna.
A Abolição não foi acompanhada de mecanismos eficientes de integração dos
trabalhadores negros no regime capitalista subsequente. Essas pessoas se viram, assim, sem
compensações pelo seu trabalho anterior, sem qualificação e perspectivas de trabalho,
ajustando-se à nova lógica de produção de uma sociedade preconceituosa, que preferia
empregar o imigrante europeu:
Muitas atividades seriam recusadas por negros, consideradas aviltantes, as tarefas mais
brutas e desagradáveis associadas à humilhação da escravatura. A presença dos imigrantes
desequilibraria a predominância do negro no trabalho subalterno, que italianos e
portugueses saídos das duras condições de vida na Europa não hesitam em aceitar. Achando
progressivamente vagas no trabalho regular oferecido pela indústria, pela construção e pelo
comércio, mas sempre em desvantagem com o concorrente branco, nacional ou estrangeiro,
a presença do negro no Rio de Janeiro se tornaria tradicional no cais do porto. A maioria,
entretanto, seria expelida para ocupações acessórias ou claramente marginais às órbitas
oficiais do trabalho, aparecendo secundariamente, e sendo mobilizada em maior número em
situações especiais, como nas obras da cidade, sempre servindo como um exército proletário
de segunda linha que, manipulado pelos empresários facilitaria a manutenção do baixo preço
pela mão de obra.
Muitos não procurariam uma relação regular com o trabalho, inconstantes em paradeiros e
ocupações, ainda redefinindo suas vidas, traumatizados pela experiência como escravos se
incorporando às rodas de vagabundagem e eventualmente da criminalidade, empurrados,
estereotipados, pela nova racionalidade social. O reconhecimento da própria dignidade
através da experiência da liberdade choca-se com a dramaticidade das condições de vida e
de expressão a que é exposto o ex-escravo na República brasileira. Seu amoldamento à
rotina do operário fabril é dificultada pela subestimação e pela suspeita, tornando frequentes
os casos de indisciplina agressiva ao sistema de supervisão e controle. Some-se a isso a
desmotivação inicial frente aos modestos horizontes oferecidos como recompensa à atividade
disciplinada e constante do trabalhador subalterno. (MOURA, 1995, p. 65-6)
Moura (1995, p. 66) prossegue com uma descrição da vida dessa população no morro
de Santo Antônio, citando Luiz Edmundo, em O Rio de Janeiro do meu tempo:
homens que não têm o que fazer e que trabalho não encontram devido à concorrência atroz
que lhes fazem certos elementos alienígenas, gente que [...] não quer saber do campo,
protegida que é pelos seus patrícios e que aqui se instala, a bem dizer, monopolizando os
26
serviços mais subalternos da cidade.
Sobre as características do mercado de trabalho à época Moura expõe o seguinte:
O recrutamento de trabalhadores nas obras de remodelação da cidade era realizado nas
esquinas pelo arregimentador que escolhia entre a pequena multidão que logo se formava
ávida pela oportunidade de trabalho. Pelas fotos de Augusto Malta, podemos perceber uma
presença significativa de trabalhadores negros. Entretanto, mesmo ali, perduravam as
preferências pelos braços mais alvos que se levantavam nas esquinas disputando uma diária.
D. Carmem, vizinha das obras da época, depõe: “quem trabalhava mais era mesmo o
português, essa gente, espanhóis, era mais essa gente. Não era fácil, eles não gostavam de
dar emprego pro pessoal preto da África, que pertencia assim à Bahia. Eles tinham aquele
preconceito.” (Depoimento de Carmem Teixeira da Conceição, Tia Carmem, arquivo
Corisco Filmes).
Por volta do mesmo período, a cidade do Rio de Janeiro passava por grandes
reformulações, buscando se modernizar, o que incluía uma série de medidas urbanísticas e
sanitárias realizadas no início do século XX:
o Rio, inchado abruptamente pela chegada da corte portuguesa e ao longo do século por
contínuas migrações, era ainda na virada para o novo século uma cidade obsoleta para suas
funções e foco de constantes epidemias. Assim, para a direção das obras de remodelação,
embelezamento e saneamento da capital, é indicado prefeito o engenheiro Pereira Passos,
que assume o cargo com poderes extraordinários, governando os primeiros meses com o
Conselho Municipal fechado. Em síntese, as obras visavam: à remodelação do porto da
cidade, facilitando seu acesso pelo prolongamento dos ramais da Central do Brasil e da
Leopoldina; à construção da avenida Central, atual Rio Branco, unindo diagonalmente, de
mar a mar, as partes sul e norte da península e atravessando o centro comercial e financeiro
do Rio, que seria reconstruído funcionalmente como parte das transformações; a melhoria do
acesso à Zona Sul, que se configura definitivamente como local de moradia das classes mais
prósperas, com a construção da avenida Beira-Mar; a reforma do acesso à Zona Norte da
cidade, assegurada pela abertura da avenida Mem de Sá e pelo alargamento das ruas Frei
Caneca e Estácio de Sá. Além disso, inúmeras ruas menores são abertas ou alargadas, a
reforma da cidade se completando com a ampliação dos serviços urbanos, com a
pavimentação da cidade, e com a realização de uma importante campanha de saneamento e
combate epidêmico realizada por Osvaldo Cruz, conjugada com grandes demolições
realizadas principalmente nos bairros centrais.
As obras que tornariam o Rio de Janeiro uma “Europa possível” mobilizam metade do
orçamento da União, e se valem da grande massa de trabalhadores disponível e subutilizada
na capital, disputando o “privilégio” do trabalho regular. A retórica elitista que justificava
essa remodelação, a estética art nouveau dos novos edifícios e mansões, como as medidas que
em nome da higiene e do saneamento urbano definem a demolição em massa, o “bota-
abaixo”, dos cortiços e do antigo casario habitados por populares, e as campanhas de vacina
obrigatória, se por um lado ajustam efetivamente a cidade às novas necessidades da
estrutura política e econômica montada e aos valores civilizatórios da burguesia, por outro,
não consideravam os problemas de moradia, abastecimento e transporte daqueles que são
deslocados de seus bairros tradicionais no Centro para a periferia, para o subúrbio, e para
as favelas que se formam progressivamente por todo o Rio de Janeiro, definindo um padrão
de ocupação e de convívio das classes na cidade que vai se tensionando ao longo do século.
(MOURA, 1995, p. 47)
Para a população que residia no centro da cidade (geralmente em cortiços), essas
reformulações urbanas significaram o despejo e a consequente mudança para outras zonas da
cidade, mais afastadas e menos valorizadas, como a vizinhança do cais do porto, a Cidade
Nova e os morros do Centro, ou mais próximos da região (Favela, Santo Antônio etc.).
Posteriormente, a partir de melhorias no sistema de transporte, os subúrbios também passaram
a ser mais procurados.
A região que engloba a zona portuária e a Cidade Nova, habitada por pessoas pobres e,
27
na maioria, negras, foi intitulada “Pequena África” por Heitor dos Prazeres. Lá, onde
passaram a conviver pessoas de procedências e heranças culturais variadas, firmou-se uma
liderança do grupo proveniente da Bahia. Uma das figuras mais representativas desse papel
social é a baiana Tia Ciata.
Hilária Batista de Almeida, a Tia Ciata, encarnava dois aspectos essenciais da
liderança exercida pelo grupo baiano no Rio de Janeiro: a atuação religiosa, exercendo
funções cerimoniais relevantes na casa de João Alabá, de candomblé; a função de anfitriã de
festas, comemorativas de orixás ou apenas para diversão coletiva.
O seguinte depoimento de João da Baiana descreve a organização dos eventos
musicais que se realizavam durante essas festas. Além disso, também introduz a questão da
interação entre grupos sociais propiciada pelas mesmas:
As nossas festas duravam dias, com comida e bebida, samba e batucada. A festa era feita em
dias especiais para comemorar algum acontecimento, mas também para reunir os moços e o
povo “de origem”. Tia Ciata, por exemplo, fazia festa para os sobrinhos se divertirem. A
festa era assim: baile na sala de visitas, samba de partido alto nos fundos da casa e batucada
no terreiro. A festa era de preto, mas branco também ia lá se divertir. No samba só entravam
os bons no sapateado, só a “elite”. Quem ia pro samba, já sabia que era da nata. Na época
eu era carpina (carpinteiro). Chegava do serviço em casa e dizia: mãe, vou pra casa da Tia
Ciata. A mãe já sabia que não precisava se preocupar, pois lá tinha de tudo e a gente ficava
lá morando dias e dias, se divertindo. Eu sempre fui responsável pelo ritmo, fui pandeirista.
Participei de vários conjuntos, mas era apenas para me divertir. Naquele tempo, não se
ganhava dinheiro com samba. Ele era muito mal visto. Assim mesmo às vezes nós éramos
convidados para tocar na casa de algum figurão. Eu me lembro que em certa ocasião, o
conjunto de que eu participava foi convidado para tocar no palacete do Senador Pinheiro
Machado, lá no morro da Graça. Quando o conjunto chegou, o senador foi logo perguntando
aos meus colegas: cadê o menino? O menino era eu. Aí meus companheiros contaram ao
senador que a polícia tinha tomado e quebrado o meu pandeiro, lá na Penha. O senador
mandou que eu passasse no Senado no outro dia. Passei e ganhei um pandeiro novo, com
dedicatória, peça que tenho até hoje (João Batista Borges Pereira, em Cor, profissões em
mobilidade/O negro e o rádio de São Paulo). (apud MOURA, 1995, p. 83)
A perseguição policial e a concomitante simpatia por parte de segmentos das classes
dominantes são aspectos curiosos de uma fase em que o próprio samba, como gênero musical,
ainda estava em desenvolvimento. Eventos como os promovidos por Tia Ciata ajudavam a
diminuir os preconceitos sociais e de cor que seu grupo sofria. Ela própria também tinha
interesse em buscar essa interação. Vivendo de atividades comerciais, principalmente da
venda de doces, tradição entre as baianas e atividade também ligada ao candomblé, Ciata
ainda comercializava roupas de baiana. Os papéis de festeira e vendedora facilitaram a
atuação como intermediária entre classes sociais:
Com o comércio de roupas, muita gente de Botafogo vai até a casa de Ciata. Se torna
folclórico para alguns assistir a um pagode na casa da baiana, onde só se entrava através de
algum conhecimento. Do mesmo modo, passa a interessar à alta sociedade da época a
consulta com os “feiticeiros” africanos, como eram estereotipados aqueles ligados aos cultos
negro-brasileiros [...], e mesmo a frequência aos candomblés, mais fechados à curiosidade
de estranhos. A partir dos conhecimentos do marido [funcionário público nomeado pelo
próprio presidente Wenceslau Brás] e de seu prestígio no meio negro, reconhecido mesmo
fora dele, Ciata começa a manter relações com gente do outro lado da cidade, a ponto de
28
eventualmente contar até “com os seis soldados do coronel Costa”, que ficavam garantindo
dubiamente a festa africana, provavelmente alguns deles negros, o que dá maior espanto à
situação. (MOURA, 1995, p. 101)
No âmbito musical mais estrito, o período de virada para o século XX caracterizou-se,
no Rio de Janeiro, pela convivência de diferentes tradições musicais, que se combinaram e
reformularam, gerando gêneros novos.
Sobre as tradições europeias, comenta Roberto Moura (1995, p. 76):
As companhias portuguesas, francesas e espanholas que nos visitaram em seu roteiro sul-
-americano de capitais, traziam polcas, xotes (do alemão Schottish), mazurcas, valsas e
cançonetas que se tornaram modismos populares, as músicas se impondo pela dança,
prenunciando a vocação mimética dessas novas camadas urbanas dos países dependentes.
Chega-se a poder estabelecer uma correspondência de fato entre a belle époque europeia, em
suas características de produção e consumo cultural, marcas estéticas e temáticas, e hábitos
de convívio e entretenimento, e o ambiente das elites, entre a guerra do Paraguai e o fim da
Primeira Guerra Mundial, no Rio de Janeiro. Teatros sérios ou quase sempre burlescos,
casas de jogo, casas de espetáculo caras ou francamente populares, progressivamente
frequentadas por um público mais heterogêneo, onde o mestiço [...] começava a se igualar
com o branco em atenções e preferências. E circos, palcos, levantados dentro de galpões,
chopes berrantes, cinemas, ao acesso dos negros, tanto no palco como na plateia, que se
misturavam à gente vinda de todas as partes atraídos pela variedade dos espetáculos baratos,
onde no meio da banalidade e do copismo reverente dos espetáculos chiques surgiam
novidades surpreendentes e alguns grandes talentos.
Quanto às tradições oriundas dos povos de origem africana, escravizados e trazidos ao
Brasil, Roberto Moura (1995, p. 78) diz o seguinte:
Mais do que em qualquer outra cidade brasileira, a diversificação da vida e o ritmo
cosmopolita do Rio de Janeiro permitiria que certos hábitos musicais dos negros, vindos dos
cerimoniais religiosos, dos batuques urbanos ou das dramatizações processuais, se
encontrassem com a música ocidental de feição popular veiculada já então definitivamente
fora dos salões de divertimento, onde um público social e racialmente heterogêneo se ajunta.
O lundu, oriundo do batuque, assume uma forma de canção já descrita pelos cronistas do
século XVIII. Músicos brancos o “sincretizaram” com outros gêneros musicais, chegando o
lundu a ter uma versão erudita que o desfiguraria a ponto de confundir com a modinha de
cunho camerístico.
Esse ambiente de convivência e fusão musical resultou no surgimento de gêneros
como o choro, o maxixe e, finalmente, o “samba maxixado”. Vejam-se os comentários de
Francisco Duarte sobre alguns desses novos gêneros, em citação feita por Roberto Moura
(1995, p. 80):
E o maxixe? E o samba maxixado? Produtos do meio da Cidade Nova (...) [nasceram] das
misturas sucessivas de gosto, ritmo, coreografia e sensualidade da baixa classe média que
ocupava a Cidade Nova e a Praça Onze. Nasceu nos muitos clubes dançantes musicais de lá,
e foi consagrado por Sinhô, por João da Baiana, por Aurélio Cavalcanti, por Manuel Luiz de
Santa Cecília [...]. Duque, Gaby, Mário Fontes, Asdrubal Burlamaqui, Pedro Dias,
Bugrinha, Jaime Ferreira, são os resultados consagradores daquela mesclagem de sons
negros e mulatos que se tocavam nos clubes de “mil e cem” da Cidade Nova. Sinhô, filho do
meio, foi o elemento de transição entre o maxixe que morria, morto a pau pelas investidas
moralizadoras da sociedade, e o samba que nascia perseguido pela polícia. Pioneiro, nasceu,
cresceu e viveu lá, até seu velório ocorreu na Cidade Nova. Mesclou o samba que nascia com
o maxixe que resistia às investiduras moralizadores, e criou o samba maxixado, do qual Jura,
Gosto que me enrosco, e outros, são exemplos. Donga seguiu seus passos e depois evoluiu
musicalmente. Caninha sedimentou-se no tempo e ficou maxixado. Pixinguinha cresceu e se
fez universal. Heitor dos Prazeres, apesar dos esforços, sempre foi maxixado em todas as
suas composições de vulto.
29
1.2.2 – O núcleo metadiscursivo de samba
Com relação a esse momento de desenvolvimento do gênero musical, é importante
recorrer ao trabalho de Roberto M. Moura, No princípio era a roda (2004). A partir da tese de
que a roda de samba antecede o próprio samba, o autor revisita o tema das tradições musicais
de origem africana para analisar o fenômeno da roda de samba e asseverar um dado
fundamental:
Para o antropólogo Edison Carneiro, a designação genérica “batuque” é de origem lusitana,
onomatopaica e depreciativa. Como aconteceu nos Estados Unidos com o jazz, ocorreu
também entre nós uma dobra — levando os músicos que faziam a batucada a se
incorporarem efetivamente como batuqueiros.
Ainda nesse momento inaugural, o olhar estrangeiro do português José Osório de Almeida
evidencia uma compreensão do fenômeno que escapava a seus patrícios:
“Os dançarinos, só homens, só mulheres, ou uns e outros misturados, formam uma roda e
vão andando de lado, a passos curtos, o corpo inclinado para a frente, mexendo os quadris e
batendo palmas, ritmicamente, acompanhadas pelo ruído incessante dos tambores ou pelo
som das marimbas. [...] O que impressiona é o ardor que os pretos põem na dança, como se
fosse qualquer coisa de essencial. O que inspira é muito mais um sentimento religioso que a
sensualidade, ao contrário dos que confundem com esta o impudor natural.”
21
Em seguida, o autor também se refere ao ambiente de intermediações musicais do
período, incorporando à sua análise a importância da roda de samba como evento essencial
para a promoção dessas intermediações, o que teve inclusive um impacto semântico que não
pode deixar de ser considerado:
É sabido que gente de origem e formação heterogênea se reuniu, numa aglutinação de forças
e talentos cuja repercussão seria impensável à época. De acordo com Felipe Trotta, “o meio
de encontro mais característico dessas pessoas, onde o samba é utilizado e praticado, é a
roda de samba. A roda é uma reunião em torno de uma mesa de bar (ou outro lugar
parecido), onde se localizam os músicos que tocam e cantam as canções do repertório. Em
torno desse local, as pessoas ficam sentadas ou em pé — dançando — e participam das
músicas cantando, batendo palmas e, eventualmente, batucando. Trata-se, portanto, de um
evento festivo, no qual as pessoas se relacionam a partir da música”.
Muito antes de Trotta, Oneyda Alvarenga já acentuava que a palavra samba [...] “viu seu
sentido ainda mais alargado que o do batuque, estendendo-se a nome de qualquer baile
popular, equivalente a função, pagode, forró e outros mais.
Em Chiquinha Gonzaga, uma história de vida, ao mencionar a estreia de Forrobodó, em 1912,
também Edinha Diniz deixa muito clara a antecedência da festa ao gênero, enfatizando que
“é muito interessante observar os vários vocábulos usados para designar um baile popular.
Choro, vocábulo mais comum nessa época, já o encontramos nas últimas décadas do século
XIX, só que na sua fase inicial estava restrito a ambientes domésticos. Com o alargamento da
vida urbana e a expansão das agremiações, essas festas passam a ter seus locais específicos e
21
Roberto M. Moura (2004) ainda acrescenta, em nota: “O mais curioso é o olhar pudico do lusitano, contrariando a
tendência nacional de ver sensualidade em tudo; em seu Samba — a dança do corpo, Muniz Sodré cita Machado de Assis:
‘Na realidade, todas as danças populares, europeias ou não, contêm elementos maliciosos ou sensuais em suas coreografias,
que podem ser reprimidas de acordo com as circunstâncias sociais. A polca, por exemplo, enquanto dança coreográfica, foi
mordazmente descrita por Machado de Assis: é muito simples, quatro compassos/e muito saracoteio/cinturas presas no
braço/gravatas cheirando o seio.’
De minha parte, gostaria de enfatizar a importância desta observação, que relativiza a “sensualidade natural” das danças de
origem africana.
30
se desvinculam dos espaços caseiros. [...] Quanto a samba, era também comum o seu uso no
sentido de dança de escravos ou das camadas mais baixas como rodas de dança, pois ainda
não aparecia como gênero musical.” (MOURA, Roberto M., 2004, p. 51-2)
A informação de que samba, antes de gênero musical, designava o evento festivo da
roda, a meu ver, ajuda a elucidar a polêmica sobre que o pode ser considerado samba ou
não
22
. Entendo ser possível adotar uma perspectiva diacrônica, entendendo processualmente a
construção dessa significação. O núcleo metadiscursivo em questão inclui usos que se foram
transformando com o tempo; acrescentando informações obtidas em Sandroni (2001) às
referências de Moura (2004), chega-se ao seguinte processo de desenvolvimento do conceito
de samba:
1) antes das últimas décadas do século XIX, a lexia já designava reuniões festivas com
canto e dança — a roda. Essa significação pode ser dividida em dois momentos:
1.1 — até o último quartel do século XIX, samba já designava eventos de canto e
dança, mais marcadamente dos negros escravizados nas zonas rurais, predominantemente do
Nordeste do Brasil (especialmente na Bahia). Era, entretanto, estranho ao Rio de Janeiro,
onde, à época esse tipo de divertimento popular era conhecido a partir de designações como
fado ou cateretê — Sandroni (2001, p. 86-90) menciona documentações de samba em 1859,
1870 e 1897, entre outras, sempre como evento característico dos meios rurais no Brasil.
Esse evento, que, conforme já foi dito, também recebia a denominação batuque, é
caracterizado por dança de par separado, no modelo da dança de umbigada, sobre a qual
observa Sandroni (2001, p. 96):
as danças de umbigada são consideradas no Brasil como pertencentes ao domínio do
folclore, enquanto o maxixe (urbano, dançado ao som de música impressa, de autor
conhecido) se classifica como popular. Ramos e Alvarenga expressam aqui o deslizar quase
imperceptível de uma área para outra: o samba que substitui batuque como termo genérico é
inequivocamente o samba folclórico; o samba de umbigada (...) Mas o samba que substitui o
maxixe é o samba popular, caracteristicamente urbano e de “par enlaçado” (sem umbigada
portanto).
O segundo tipo de samba, substituto do maxixe, será considerado em seguida. Sobre o
perfil social dos participantes do “samba-batuque”, convém mencionar a alusão, feita pelo
mesmo autor (Sandroni, 2001, p. 92-3), do romance Til, de José de Alencar, que contém uma
descrição de samba em uma fazenda em São Paulo: destaca-se a divisão entre os negros
trabalhadores do cultivo do café e os pajens e mucamas, que trabalhavam no âmbito
22
Refiro-me à posição segundo a qual só se podem considerar sambas as composições conformes ao gênero estabelecido pela
geração de bambas do Estácio (Ismael Silva, Bide e Marçal, Nilton Bastos, Brancura e outros), que está relatada, entre outras
fontes, em SANDRONI, Carlos. Feitiço decente: transformações do samba no Rio de Janeiro, 1917-1933. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar / EdUFRJ, 2001, p. 131-142
.
31
doméstico. O samba é representado como próprio dos primeiros, sendo a participação de um
dos últimos na roda um sinal de demérito, pois anularia a diferenciação social entre os dois
grupos de trabalhadores.
Deve-se ainda comentar que, entre as diferentes hipóteses registradas para a
controvertida etimologia de samba, a maioria ressalta aspectos diferentes assinalados nesse
primeiro momento do conceito em estudo:
a) para Arthur Ramos (apud Houaiss, 2001, s.v. samba), o étimo seria o quimbundo
(língua do grupo banto) samba 'umbigada, passo de dança semelhante ao batuque' — essa
hipótese é reforçada por Mendonça (1973, s.v. samba);
b) as duas hipóteses principais de Nei Lopes (apud Houaiss, 2001, s.v. samba) são o
quioco (também língua banta) samba 'cabriolar, brincar, divertir-se como cabrito' ou o
quicongo (língua banta) samba 'espécie de dança em que um bailarino bate contra o peito do
outro';
c) Ferreira (2004, s.v. samba) também diz que a origem é de uma língua banta,
estabelecendo três hipóteses, dentre as quais as duas mais específicas são o quimbundo semba
'umbigada'; o umbundo samba 'estar animado, excitado';
d) Castro (2001, s.v. samba) destoa da derivação semântica apresentada até aqui. No
seu entender, entre dois outros étimos com significados e âmbitos de uso diferentes, que
também resultaram no vocábulo samba, o étimo samba/semba viria de línguas do grupo banto
(quicongo e seu conjunto de dialetos; quimbundo e seu conjunto de dialetos; umbundo), mas a
sua referência seria à música ou dança que recebe esse nome. A festa popular homônima,
religiosa ou não, seria assim denominada por extensão de sentido.
1.2 – a partir da década de 1870, samba passa a ser uma palavra mais conhecida no
Rio de Janeiro, ainda em designação a festas populares (à roda, portanto). Com o tempo, a
palavra “começa a diluir as fronteiras que se mostravam tão nítidas até aqui; e assim, pouco a
pouco, o samba já não será mais só da Bahia, nem só da roça, nem só dos negros”
23
.
23
SANDRONI, Carlos. Feitiço decente: transformações do samba no Rio de Janeiro, 1917-1933. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar / EdUFRJ, 2001, p. 90.
32
Nesse transcurso, vai amadurecendo o que se tornaria o samba urbano carioca
24
.
Sandroni (2001, p. 90-7) cita documentações de samba no meio urbano carioca em
1878 e na década de 1880, inclusive no romance O Cortiço, de Aluízio Azevedo, cuja
descrição da roda de samba já envolve personagens como Firmo, Porfiro e Rita Baiana
(músicos e dançarina, participantes diretos da roda), Jerônimo (português inicialmente
diferenciado em termos culturais, mas que cada vez mais se deixa contagiar pelos usos dos
outros moradores do cortiço), os donos do cortiço e mesmo vizinhos mais abastados
(participantes talvez mais distanciados, mas que não eram alheios ao evento).
É também nesse sentido que se enquadram as festas de Tia Ciata — eventos que
congregam pessoas de origem baiana, a população pobre da zona portuária carioca e,
eventualmente, outros grupos sociais, atraídos pelas festas. Nesse meio processam-se as
mudanças aludidas por Sandroni, com as práticas musicais se tornando cada vez menos
marcadas como regionais e folclóricas, para ganharem paulatinamente o status de nacionais e
populares.
2) metonimicamente, samba também passa a ser lexia usada para designar
composições oriundas desse ambiente. É nesse sentido que a designação começa a disputar
com outras, como “tango” e “maxixe”, que apresentavam grande flutuação, sendo quase
sinônimas (Sandroni, 2001, p. 96). Com o tempo, “samba” se torna predominante para as
composições populares que hoje também são conhecidas como “samba maxixado”.
Algumas documentações essenciais desse uso para a lexia samba são as composições
Pelo Telefone (Donga e Mauro de Almeida, 1916), considerada por muitos o primeiro samba,
e Jura (Sinhô, 1928).
3) enfim, com o estabelecimento do gênero musical nas primeiras décadas do século
XX, samba passa a poder designar tanto o evento musical (alternativamente a roda de
samba), quanto o gênero musical ou a composição criada nesse gênero, tal como praticado
pelos compositores do Estácio.
24
Samba urbano carioca é uma expressão que admite duas leituras: uma composicional e uma não composicional.
Na leitura composicional, esse tipo de samba é qualificado como próprio do meio urbano e da cidade do Rio de Janeiro,
distinguindo-se, por exemplo, do samba rural paulista, ou do samba de roda do Recôncavo Baiano.
Na leitura não composicional, a expressão é um quase-frasema (ver 2.6.1), pois designa um gênero musical específico, que
se estabeleceu nas primeiras décadas do século XX, como se esclarecerá no terceiro momento característico do
desenvolvimento do núcleo metadiscursivo de samba — ver a seguir. Nesse caso, o quase-frasema seria em muitos casos
intercambiável com o lexema samba, especializado semanticamente a partir do estabelecimento do gênero — entretanto,
quando se considera a diversidade regional e os períodos anteriores da história do samba, torna-se necessário o uso do quase-
frasema, para referência específica à variedade carioca desse momento no século XX.
33
Duas outras citações de Roberto M. Moura ressaltam aspectos dignos de comentários
neste trabalho. A primeira diz respeito às diferentes referências musicais que influíram no
desenvolvimento do gênero:
O samba nasceu [...] em andamento dois por quatro, com marcação binária e ritmo
fortemente sincopado, cujos ingredientes somavam aos ritmos africanos, em graus variados,
influências procedentes do maxixe, do lundu, da polca e de outros gêneros da época. E em
casa, em contraponto à música branca que, pelo menos para aquelas comunidades negras,
vinha da rua.
Tão importante quanto essas influências musicais é o fato de que elas estavam imbricadas
com o modus vivendi do pessoal, com seus costumes e ritos. (MOURA, Roberto M., 2004, p.
103)
A segunda diz respeito ao próprio conceito de gênero musical e ao desenvolvimento
de um desses gêneros:
Para o musicólogo Franco Fabbri, “um gênero musical é um conjunto de eventos musicais
(reais ou possíveis) cujo curso é governado por um conjunto determinado de regras aceitas.
[...] Significa que podemos falar de subconjuntos como subgêneros”.
A noção de gênero implica “que uma dada comunidade concordou com um certo conjunto de
regras relativas ao curso de eventos musicais (real ou possível), e que esses eventos não
existiam: o que não é somente um paradoxo do ponto de vista lógico, mas quase do
sociológico. A situação mais próxima disto seria a proclamação de um manifesto, de um
programa estético” (Fabbri, 1998, 53). Para o musicólogo, a regra se aplica inclusive se o
gênero provém da cultura oral — o que é o caso do samba.
[...] Num primeiro momento, o que há “são somente transgressões das regras de outros
gêneros”. No samba, é amaxixada essa primeira etapa, de formato compreendido como em
Jura, produção de Sinhô, de 1928.
A gravação original é de Mário Reis e o que se percebe é que esse novo tipo de produção
musical já não é puramente europeu, nem genuinamente africano. Deixou de ser polca,
maxixe, lundu, habanera ou tango para ser outra coisa. Foi assim quando elementos musicais
europeus e africanos se fundiram nos Estados Unidos para gerar o jazz ou quando uma
classe média branca partiu do rhythim 'n blues para chegar ao rock. (MOURA, Roberto M.,
2004, p. 77-8)
E, dando sequência à apreciação da complexidade envolvida nessa fase do
desenvolvimento do samba carioca, o autor acrescenta:
não está nem na dança nem no ritmo maxixado da casa da Tia Ciata, em que as notas batem
mais em cima da cabeça dos compassos, o diferencial fundamental, incorporado ao samba
pelo Estácio. “Música, o samba caracteriza-se pelo emprego da síncopa. Preservar as
características tradicionais do samba significa, portanto, em resumo, valorizar a síncopa.”
Essa definição, que se pretendia douta e oficial, coonestada pelos principais pesquisadores e
estudiosos da época, consta da Carta do samba, cuja redação foi confiada ao folclorista
Edison Carneiro, no encerramento do I Congresso Nacional do Samba (28/11 a 2/12/1962).
É esse novo formato musical que se consolida como gênero musical e como linguagem. E isso
a despeito das restrições do Rio mais branco e preconceituoso.
(...)
Com a entrada em cena desse pessoal do Estácio, já no fim da segunda década do século XX,
acentuou-se o que Carlos Sandroni chama de “tendência à contrametricidade”, isto é, uma
valorização diferenciada do andamento e das alterações dos tempos fortes de cada
composição — que nada mais é senão a síncopa. Esse paradigma contramétrico configura,
em opinião de Sandroni acompanhada por inúmeros outros pesquisadores, uma
“africanização” dos modelos mais exercitados por aquela que seria a segunda geração do
samba.
O surgimento desse novo samba (produto acabado e logo radiofônico, com primeira e
segunda partes), com ênfase na síncopa e bem distinto do andamento do maxixe e da
cadência do lundu, não inibe entretanto o exercício do partido-alto e os versos de improviso
dentro da roda. De certo modo, é assim que a roda de samba permanece ainda hoje, num
convívio harmonioso do que é samba (ou samba-enredo) com o que é partido-alto ou ainda
tem traços do maxixe ou do lundu. (MOURA, Roberto M., 2004, p. 79-80)
34
Além de um importante arremate na descrição técnica de em que consistiu o
desenvolvimento do gênero, desde o samba maxixado da Pequena África até aquele mais
sincopado do Estácio, essas citações dão azo a um comentário importante:
Como já transpareceu em outras passagens desta seção, entendo que o samba urbano
carioca não é um gênero musical “genuinamente”, ou “puramente” africano. Mesmo entre
suas influências africanas, combinam-se práticas musicais diferentes. Há a musicalidade dos
bantos, festiva (origem do lundu) ou cerimonial (origem do cucumbi, cortejo ao rei Congo de
que tratarei mais adiante). Há também a influência assimilada nas cerimônias e festas de santo
do candomblé, de origem iorubá, das tias baianas da Pequena África.
Há, ainda, elementos assimilados de gêneros de origem europeia, como polca,
mazurca, schottish, valsa etc.
Como afirma Roberto M. Moura (e também já estava indicado nas citações de seu
quase homônimo Roberto Moura, em Tia Ciata e a Pequena África do Rio de Janeiro), o
samba, assim como outros produtos anteriores de fusões musicais, como o maxixe e o choro,
resulta desse ambiente de intercâmbio que então existiu no Rio de Janeiro, com a afluência de
um grande número de negros, provenientes principalmente da Bahia, assim como de outros
imigrantes europeus e nordestinos, e com a presença de companhias musicais estrangeiras.
É impossível negar a importância da participação majoritária dos negros nesse
processo, com a atuação das tias baianas, que proporcionou o ambiente da roda, aberto às
trocas musicais, e contribuições como a valorização da síncopa. Entretanto, também não se
pode omitir que, tanto na Pequena África como posteriormente, entre os bambas do Estácio, a
formulação do gênero foi um processo complexo, de intercâmbio entre culturas variadas dos
diferentes grupos populares que conviviam nas regiões do porto e da Cidade Nova, no Rio de
Janeiro.
1.2.3 - A institucionalização do samba carioca
Esse evento, que se concretizou com a fundação das escolas de samba, é um longo
processo que começarei a analisar, seguindo os passos de Maria Clementina Cunha (2001), a
partir de um período da história do Carnaval carioca.
As comemorações de Carnaval, durante a “belle époque no Rio de Janeiro”, foram
marcadas por um esforço dos grupos dominantes da sociedade — tanto autoridades quanto
35
jornalistas, intelectuais etc. — em coibir práticas de folia consideradas “bárbaras”,
instaurando outras, “civilizadas” em seu lugar.
As ditas “práticas bárbaras” consistiam nas diversas formas de diversão popular, que
já eram praticadas desde o entrudo português. Incluíam pregar peças em conhecidos ou
desconhecidos, brincadeiras de molhar os outros com bisnagas cheias d'água ou limões de
cheiro (nem sempre cheios de líquidos cheirosos), além de sair mascarado e, protegido pelo
anonimato, mexer com as pessoas, às vezes revelando segredos embaraçosos ou vingando-se
de desavenças.
Além dos mascarados, os defensores do “Carnaval civilizado” também se
preocupavam com os fantasiados de diabo, índio, pessoas com grandes cabeças de velho e
princeses, que dançavam com grande agilidade desenhando letras com as pernas, entre outras
figuras características da festa. Os disfarces diluíam as diferenças sociais, gerando
comportamentos considerados inadequados, como por exemplo, a guerra às cartolas — o
hábito de destruir esses símbolos de distinção social, de quem ousasse sair às vias públicas
usando-os durante o Carnaval. De acordo com a construção discursiva veiculada nos jornais e
em outros documentos, essas fantasias ocultavam capoeiristas e malandros que portavam
navalhas por baixo das vestes, o que favorecia atos violentos.
A prática do entrudo, entretanto, não era tão condenada quando se tratava das
brincadeiras das classes aristocráticas. O próprio imperador D. Pedro II era conhecido como
adepto do entrudo (Cunha, 2001, p. 21-53 passim). A prática de atos condenáveis, a
sensualidade e a violência não eram comportamentos atribuídos a esses grupos sociais.
Enfim, outro evento que não era bem visto eram os cucumbis, abordados da seguinte
maneira por Maria Clementina Cunha (p. 41-2):
A história contada pelos cucumbis representa um cortejo de príncipes, princesas, feiticeiros,
embaixadores de outras nações africanas e o povo, levando para o rei Congo seu filho
recém-circuncidado. A morte do príncipe, atacado por tribo inimiga que se veste de penas,
como os índios do Brasil, dá origem a uma série de peripécias, encerradas pela ressurreição
do jovem por intermédio da mágica do feiticeiro. Além das saudações em português, o enredo
fecha-se com louvações a São Benedito e à Virgem Maria, novamente cantadas no idioma
dos brancos ao ritmo de ganzás, agogôs, xerequê, tamborins, chocalhos, marimbas e adufes
— ao passo que todo o resto permanecia na língua africana. As fantasias envergadas pelos
participantes do cucumbi eram também bastante características: para os índios, círculos de
penas nos joelhos, cintura, braços e pulsos; cocares e plumas com palas vermelhas, colares
de miçangas, corais e dentes. Vestimentas mais ricas e caracteristicamente africanas
diferenciam o rei, a rainha, o embaixador e a Corte. Cobras, jabutis ou lagartos, às vezes
vivos, outras empalhados, adornavam o feiticeiro e evidenciavam seu poder de controlar a
natureza.
As práticas civilizadas de folia eram representadas principalmente pelas Grandes
Sociedades Carnavalescas (Democráticos, Tenentes do Diabo e Fenianos, entre outras), que
surgiram a partir de articulações com o intuito pedagógico de “civilizar o carnaval” e, além
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disso, divulgar ideias políticas de crítica ao Império e à escravatura. Eis a apresentação do seu
projeto, por Maria Clementina Cunha (2001, p. 98):
Na década de 1880, as sociedades com o apoio entusiástico da imprensa, de literatos,
intelectuais e homens públicos da Corte, queriam impor ao Carnaval um “programa” [...] e
um programa de caráter eminentemente “civilizador” para a “gente preta” das ruas e para
as famílias pouco educadas que, por um dá cá essa palha, retomavam os hábitos do passado.
Pretendiam não apenas superar o entrudo, fazê-lo cair no esquecimento em nome do
progresso e da elegância de uma cultura europeizada e autorrepresentada como superior às
tradições locais, mas dissolver o Carnaval individual dos máscaras avulsos na manifestação
coletiva das “ideias” que, segundo a aguda observação de Machado de Assis, ganhavam
naqueles três dias o privilégio de andar de carro.
Esses ideais civilizadores não conseguiram, entretanto, alcançar completamente o seu
objetivo de erradicar as práticas “bárbaras” de carnaval:
Quando seus préstitos modernos, politizados e críticos em relação ao que consideravam os
“maus costumes” da política da aristocracia e do comportamento da plebe adentravam a rua
do Ouvidor, dir-se-ia que seriam capazes de alcançar a vitória. O povo era tanto que o
trânsito se tornava difícil. “Feliz de quem tem a sua janela”, comentava a Gazeta de Notícias
na primeira página da edição de um domingo de Carnaval igual a todos os demais naquela
década, pois aquela “artéria da civilização” estava “a regurgitar de povo que se aperta, que
grita, que sua, que esbraveja, tudo porque cada um quer tratar de arranjar um lugarzinho”
para ver passar seus préstitos de luxo e “espírito”.
Se eram seguramente os senhores da folia naqueles anos e passavam em triunfo rente às
sacadas alugadas a peso de ouro pelas famílias mais abonadas, abrindo caminho entre a
multidão, sua vitória lhes parecia frágil diante do que presenciavam: a cada ano, a multidão
que se comprimia para aplaudi-las permanecia fiel aos limões de cera, trazia fantasias de
condenável tradição, destruíam cartolas senhoriais enquanto riam dos carros de crítica. O
estreito espaço da rua era ainda disputado por avulsos zé-pereiras, frequentado por índios de
cucumbi, servia de palco para as coreografias de velhos e princeses. Ainda que todos
parassem para vê-las e aplaudi-las com inegável simpatia, era inevitável perceber (e recear)
a presença constante de um inimigo que mostrava ter sete vidas. (CUNHA, 2001, p. 89)
Na virada para o século XX, após colaborar para disseminar as ideias de Abolição e de
proclamação da República, as sociedades apoiam as reformas urbanas de Pereira Passos, que
vão ao encontro de seu projeto modernizador e civilizador. Entretanto, esse período também
representa o seu declínio em direção à posterior extinção, devido a maiores dificuldades
financeiras para custear os desfiles que, desviados para a nova Avenida Central, perderam o
apoio financeiro dos comerciantes, desmotivados a contribuir, para poder lucrar com os
ajuntamentos em frente a suas lojas durante os desfiles. A transferência para a avenida
também encareceu o desfile, pois suas dimensões exigiam carros muito maiores. Ao mesmo
tempo, as sociedades também perderam seus motes unificadores de combate às marcas do
passado colonial; além disso, paulatinamente foram perdendo apoio ao divulgar ações
polêmicas e impopulares, como as reformas urbanas (Cunha, 2001, p. 148-9).
Na última década do século XIX, ao lado das Grandes Sociedades e das antigas formas
de brincar Carnaval, combatidas durante anos, surgem os cordões e ranchos carnavalescos.
Maria Clementina Cunha (2001, p. 151-2) estabelece diferenças entre as duas organizações:
Era cedo para temer seriamente pelo fim das sociedades, que ainda ostentavam notável vigor
em termos de luxo e prestígio: [...] o Carnaval elegante não estava de fato moribundo. Mas
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seu projeto civilizador já parecia a muitos um fracasso iminente em face dessa nova ameaça,
que crescia ano a ano nos noticiários da década de 1890. Uma infinidade de grupos,
pequenas sociedades e grêmios recreativos, brotava todos os dias, tratava de obter registros
e autorizações nos cartórios e distritos policiais e vinha juntar-se às formas novas e
tradicionais do Carnaval. A crônica indica a presença de variados grupos de manifestação
nas ruas — confundindo no mesmo desprezo práticas bastante diferenciadas entre si, que
conviviam na folia do início do século XX: antiquíssimos cucumbis e zé-pereiras, pobres
sociedades suburbanas, alguns vassourinhas de animados frevos nordestinos, cordões [...] e
ranchos que surgiram nos redutos baianos próximos ao cais do porto e ganhavam expressão
no carnaval carioca. Entre tais práticas, os ranchos e cordões assumiram uma importância
destacada, sendo apontados de forma unânime na bibliografia como matrizes dos atuais
blocos e escolas de samba.
Embora muitas semelhanças possam ser detectadas entre elas, em especial a origem social de
seus componentes, recrutados nos morros, subúrbios e arrabaldes ou entre as profissões
braçais, há diferenças marcantes entre as duas formas de brincar, facilmente perceptíveis nas
descrições de seus respectivos desfiles e ensaios empreendidas pela imprensa. Por exemplo:
ranchos usavam alegorias sobre carroças, mesmo que em escala menor que as sociedades,
enquanto os integrantes dos cordões, com suas variadas fantasias, seguiam invariavelmente
no chão, a pé; os cordões caracterizavam-se sobretudo pela percussão acompanhada de
cantoria, na qual um dos dois dançarinos vestidos de índios entoavam a copla, e o coro em
uníssono repetia o estribilho (ou chula), por vezes acompanhados apenas por cavaquinho e
violão, mas os ranchos harmonizavam seu canto, apresentavam-se com percussão leve
(pandeiros, castanholas etc.) e com um volume instrumental considerável, que incluía cordas
e sopro (do que resultava a diferença musical entre as marchas-ranchos e o batuque
sincopado dos cordões); a presença de mestres de canto ou de harmonia era, assim, marca
característica dos ranchos, tendo em vista a necessidade de ensaios mais estruturados para
as suas apresentações — ao passo que os cordões contavam muitas vezes com um mestre de
pancadaria, a quem cabia afinar o ritmo da percussão; nos ranchos, o destaque era dado
pela forte presença feminina — as saloias ou pastoras, que dominavam o diapasão do canto e
do desfile enquanto os cordões, embora nem sempre excluíssem as mulheres, eram
predominantemente masculinos em suas saídas à rua.
A autora, em seguida, aprofunda a consideração de aspectos musicais e visuais de cada
uma das duas agremiações, assim como o relato da reação da imprensa carioca às mesmas:
os ranchos desfilavam com enredos fixos que integravam o conjunto dos componentes, ao
passo que os cordões no máximo apresentavam uma cantiga unificada, composta para a
ocasião especial. Fotos posadas nas suas respectivas sedes, como as muitas publicadas pela
imprensa do período, confirmam essas diferenças — mas também enfatizam a semelhança.
Embora os personagens pareçam os mesmos — trabalhadores pobres da cidade, negros em
sua maioria —, os homens do cordão aparecem com seus bumbos e tambores, quando os do
rancho, acompanhados de meninos porta-machados, posam com instrumentos de corda e
sopro, sugerindo logo de início uma nada desprezível diferença sonora. A confusão entre as
duas formas de fazer o Carnaval, que emerge das páginas da imprensa, nos últimos anos do
século XIX, sintoniza a novidade que tomava conta da folia e o registro em que era
percebida: a presença de grupos que exibiam um ar suspeito aos olhos de muitos jornalistas,
espantados com a sua proliferação incontrolável. A própria suspeição que indiferenciava, a
seus olhos, os homens e as mulheres a desfilar alegremente nesses grupos carnavalescos
fazia com que vissem neles uma coisa só. [...] Por não reconhecer neles a mesma natureza e
o mesmo “espírito” que via nas Grandes Sociedades, a maior parte da crônica carnavalesca
atribuiu-lhes, por analogia negativa, a identidade em comum que juntava no mesmo pacote
coisas que se podiam perceber diferentes em uma observação mais atenta. Se havia no
período uma confusão de palavras para designar essas formas de brincar era decerto porque
elas, apesar de suas diferenças, deixavam atônitos e desconfortáveis críticos pouco
habituados a prestar atenção nas práticas do populacho. E também porque, na prática e
apesar de tudo, suas fronteiras podiam não ser tão nítidas em muitos momentos. (CUNHA,
2001, p. 152-4)
Essa indistinção permanece por alguns anos, até que os jornalistas passam a manifestar
franca simpatia pelos ranchos.
O fato é que, apesar de não corresponder ao projeto civilizador das Sociedades, a
organização de cordões e ranchos revela indubitavelmente que lições foram aprendidas a
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partir daquela “iniciativa pedagógica”:
É evidente que, à sua maneira, todos esses grupos tinham como referência o molde forjado
pelas Grandes Sociedades. Em parte, faziam-no devido às imposições do próprio aparato
policial republicano, cujas exigências se multiplicavam na concessão de autorização para
sair às ruas. Mas não se deve deixar de lado a astúcia dos foliões no esforço de garantir um
lugar autônomo na brincadeira, usando a seu favor instrumentos criados para controlá-los.
Seja como for, a própria imprensa da época relata que os chamados cordões — que surgiram
na segunda metade do século XIX, como manifestações espontâneas, capitaneadas por velhos
dançarinos de cabeça grande e irrequietos princeses — passaram paulatinamente a se
autointitular clubes, sociedades ou grêmios carnavalescos, adotando a forma organizativa de
Democráticos, Fenianos e Tenentes, com estatutos, sedes fixas e estrutura de cargos e
direções entronizadas, embora mantivessem viva dentro de si a herança de outros Carnavais.
Mas não se tratava apenas de papéis e formalidades legais ou burocráticas: a busca de
semelhança atinge também as atividades nas sedes e seus salões, decorados com capricho
segundo as posses de seus sócios para aproximar-se de um padrão supostamente refinado.
Detalhes como a adoção de apelidos semelhantes àqueles utilizados pelos sócios das Grandes
Sociedades, entre outros sinais, são muito significativos. Nessa direção, uma rápida olhada
nos estudos desses clubes e sociedades de bairro pode ser esclarecedora.
Seja qual for o tipo e a categoria do grupo, seus estatutos estabelecem hierarquias e regras
que tomam como base a forma padronizada das sociedades mais antigas e prestigiadas. Eles
podem ser mais ou menos elaborados e detalhados, dependendo do grau de exigência da
autoridade policial da circunscrição, mas articulam-se segundo as normas padronizadas.
Estabelecem, por exemplo, cargos de diretoria — presidente e vice, secretários, tesoureiros e
fiscais —, de modo totalmente calcado na estrutura de cargos das Grandes Sociedades;
estipulam o valor de mensalidades e joias para associados, e de forma semelhante
estabelecem as diferentes categorias de sócios (fundadores, beneméritos, e assim por diante)
e as condições de funcionamento aproximativo faz com que todos os estatutos, à primeira
vista, pareçam iguais: até mesmo erros de cópia em uma caligrafia muitas vezes dificultosa
evidenciam o esforço de seguir o modelo, mostrando que não se trata apenas da
padronização formal dada por escrivães de profissão. (CUNHA, 2001:158-9)
Analisando os cordões, percebe-se que, essa reformulação representava o meio
encontrado pelas classes populares de, atendendo à organização exigida pela sociedade,
preservar suas formas tradicionais de brincar o Carnaval: neles, ainda se encontravam
mascarados, elementos de cucumbis e do entrudo português.
Quanto aos ranchos, para entender a origem de sua organização voltaremos ao papel
da liderança baiana da Pequena África.
Sobressai, nesse aspecto, o nome de Hilário Jovino, que, assim como Tia Ciata,
também era uma importante liderança da comunidade de imigrados baianos.
Foi dele a iniciativa de deslocar a tradição dos pastoris e reisados do dia 6 de janeiro
para a época do Carnaval, incorporando elementos dos mesmos à festa carnavalesca (como a
porta-bandeira, as pastorinhas e saloias). Apesar da versão de Hilário, de que essa providência
foi para melhor se adaptar aos costumes locais, é provável que a razão esteja na menor
repressão que havia nos dias de Carnaval, em relação aos dias santos (CUNHA, 2001, p. 219).
Além dessas reformulações, outra característica dos organizadores de ranchos que
agradava aos reformadores do carnaval era a sua reprovação às tradições de brinquedo
carnavalesco cariocas, principalmente aos cucumbis. Hilário Jovino esforçou-se para integrar-
se nos padrões sociais vigentes, buscando, por exemplo, permissão da autoridade policial para
que o seu rancho, na época o Rei de Ouro, desfilasse. Isso foi feito ainda numa época em que
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o pedido de autorização policial não era prática entre os grupos populares. O próprio Hilário
integrou-se à Guarda Nacional, o que era um meio de legitimação social, principalmente com
relação à instituição responsável, entre outras coisas, pela fiscalização e repressão das práticas
de Carnaval.
Os trunfos dos ranchos para buscar maior aceitação eram, portanto, a ruptura com os
padrões de africanismos presentes em outras práticas carnavalescas, os contatos e alianças
cultivados por seus líderes (tanto Ciata quanto Hilário ocupavam-se disso) junto às classes
dominantes, a vivência comunitária dos terreiros de candomblé e das redes de ajuda mútua,
tecidas entre os imigrados baianos, o que fortalecia as lideranças, que geralmente eram figuras
centrais em vários desses aspectos.
O processo de aceitação dos ranchos pela sociedade e, principalmente, pela imprensa,
foi selado a partir do surgimento do Ameno Resedá, em 1907.
Esse rancho apresentava no seu quadro de associados uma certa variedade de grupos
sociais — o próprio Hilário Jovino era um deles, ao lado de operários do Arsenal da Marinha,
comerciantes, jornalistas (como Vagalume), integrantes da banda do corpo de bombeiros,
funcionários públicos etc. (Cunha, 2001, p. 223).
Musicalmente, mesmo pela presença dos integrantes da banda do corpo de bombeiros,
distanciava-se do batuque, da “pancadaria” (lexia cuja ambiguidade foi explorada pelos
jornalistas da época), aproximando-se da tradição do choro carioca.
A ênfase na performance musical; a elaboração de enredos rígidos, com características
de ópera da rua; a indispensável institucionalização, com estatuto e autorização policial para
desfilar; as relações cultivadas pelos membros, muitos deles funcionários subalternos de
instituições públicas, com contatos importantes para, por exemplo, angariar contribuições e
simpatia à iniciativa; tudo isso tornou o Ameno Resedá tão prestigiado que o rancho acabou
sendo convidado a apresentar-se ao marechal-presidente Hermes da Fonseca, no palácio das
Laranjeiras. O curioso, segundo relata Maria Clementina Cunha (2001, p. 224), é que o
enredo então apresentado foi “A corte de Belzebu”, com os integrantes fantasiados de diabo, o
que, entretanto, não provocou nenhuma associação com as “bárbaras” práticas carnavalescas
das ruas.
Por fim, após relatar esses eventos, Cunha (2001, p. 227) conclui, a respeito do
surgimento dos ranchos e das transformações ocorridas a partir disso:
Os ranchos acabaram assim substituindo as Grandes Sociedades na estima da imprensa, e
estão com sua imagem consolidada no final da década de 1900-10. Se a ideia podia ser
baiana e o crédito assinalado ao mítico Hilário Jovino, julgava-se que os cariocas eram
ainda melhores em pô-la em prática. Aparecia então uma espécie de afirmação de identidade
40
carioca no Carnaval — centrada nos mesmos elementos que ancoravam o prestígio de
Democráticos, Tenentes do Diabo e Fenianos: luxo, esplendor, aparência de erudição e
“espírito”, acrescidos de uma qualidade sonora genuinamente nativa. Aos olhos desses
cronistas, os ranchos cariocas pareciam ter perdido o viés negro e folclórico dos originais,
para tornar-se sobretudo um lugar da boa tradição musical e uma manifestação de gosto que
os aproximava das Grandes Sociedades. Mais que isso, os ranchos eram pintados como os
responsáveis pela “conversão” dos cordões e da gente rude que os frequentava aos signos da
civilização. Aquilo que as Grandes Sociedades não conseguiram com sua pedagogia era
agora realizado por dentro dos próprios espaços dos trabalhadores pobres: não era outro o
motivo da alegria incontida de alguns intelectuais, que chegaria ao ponto de Coelho Netto e
outros expressarem, na década de 1920, o mais profundo tédio pelo Carnaval das velhas
sociedades e um entusiasmo desmedido pelo caráter autêntico e nacional dos ranchos
carnavalescos.
Coelho Netto protagonizou, aliás, uma mudança de grande importância na ideologia
cultural da sociedade carioca, antes do surgimento das escolas de samba. Membro do Ameno
Resedá, ele propôs a abordagem de temas cívicos no desfile de 1923, em vez dos habituais
enredos exóticos, como os “Últimos dias de Pompeia”, a “Rainha de Sabá”, ou as
“Walkyrias”. Nesse ano, o Ameno Resedá desfilou homenageando o Hino Nacional Brasileiro
(Cunha, 2001, p. 240).
A ideia, que não rendeu o primeiro lugar ao Ameno Resedá naquele ano, ganhou
impulso posteriormente. A iniciativa de Coelho Netto ganhou apoio entusiasmado de
folcloristas como Sílvio Romero e Mello Moraes Filho e marca uma mudança de atitude
significativa em relação ao período anterior:
Sem dúvida, para os escritores brasileiros da belle époque, o tema da tradição revestia um
grande dilema. De um lado, décadas após a independência ainda parecia necessário definir
uma identidade para a nação. Desde os românticos, esta havia sido uma pauta central de
preocupação dos intelectuais brasileiros, que levara homens como José de Alencar a
consolidar um mito de origem para o país com base na figura do bom selvagem, configurado
à semelhança do branco. Porém, com os pés fincados em outro solo, o mesmo escritor
dedicou-se a desenvolver uma preocupação sistemática com o registro do cancioneiro
popular de várias formas “nacionais” de expressão, buscadas em toda parte — nos campos,
nas feiras do interior mas também nas grandes cidades, onde o carnaval se avolumava. Para
ele, “[...] onde não se propaga com rapidez a luz da civilização [...] encontra-se ainda em
sua pureza original [...] esse viver singelo de nosso país, como nas grandes cidades, até
mesmo na Corte, desses recantos, que guardam intacto, ou quase, o passado.
Mas por outro lado, e cada vez mais, à medida que o século XIX se aproximava de seu final,
o legado de um passado colonial e escravista não parecia um bom lugar para buscar
tradições nas quais ancorar tal identidade. Conforme as teias da dominação senhorial foram
se desfazendo e os conflitos se foram tornando agudos, essa concepção foi sendo substituída
por outra, que tratou de confinar tais tradições nos rincões do país, no campo ou nos
repertórios regionais. Nas décadas de 1870 e 1880 não era o passado, sob a forma de
tradições ou origens, que se escondia nas práticas rudes de negros e pobres das cidades —
mas uma sombria ameaça ao futuro. A chamada “geração boêmia”, em que Coelho Netto foi
formado e na que se projetou profissionalmente, experimentou como nenhuma outra esse
sentimento de urgência diante da aceleração da história e do fascínio do progresso.
Vislumbrando o que este último chamou a “cidade dos nossos sonhos”, em meio às brumas
que cercavam os anos finais da escravidão e do Império, a maior parte desses intelectuais
atribuiu a si a dura missão de educar o povo, ensinar-lhe a civilização e as belas-letras e
transformar-lhe a própria face, marcada pelas tradições de um passado abominável. Assim, o
Carnaval das ruas caracterizado pelo entrudo, pelas danças de negros, pelas zabumbas de
zé-pereiras e pelos diabinhos era visto como resíduo de um tempo antigo que devia ser
esquecido: “[...] Dentro em pouco, o Brasil analfabeto e ignaro seria um país de grandes
luzes porque as liras, vibradas como a de Orfeu na Trácia agreste, haviam de agitar as
almas, conclamando-as para a vida intelectual.” (CUNHA, 2001, p. 246-7)
A grande transformação, portanto, foi a revisão — mesmo parcial e baseada em um
41
Brasil remoto e idealizado — da pecha reservada à tradição, que era tida como algo
abominável e contrário ao progresso, com o intuito de viabilizar a sedimentação de uma
identidade brasileira que acolhesse a cultura popular:
Quando sugeriu o tema patriótico aos ranchos, Coelho Netto, como boa parte de seus
contemporâneos no início da década de 1920, estava imbuído desse espírito [de valorização
das festas populares]. Seu corolário parecia ser a tentativa de juntar as duas crenças — na
nação e no carnaval — para sedimentar uma identidade superior às demais, já recortada
pela fusão das ideias de nacional e de popular. De certa forma, esse grupo de intelectuais
buscava resolver os impasses legados por gerações anteriores: a tensão entre o desejo de
afirmar a peculiaridade e a originalidade brasileiras, definindo o país como uma nação
dotada de uma identidade forte e definida, e, ao mesmo tempo, operar com o registro racista
e elitista com o qual havia longo tempo se olhava para as práticas culturais das ruas (sem
falar no desejo de apagar o passado comprometedor). Nesse momento, se as tradições
“africanas” dos cordões não deviam ser valorizadas, os ranchos traziam a possibilidade de
uma outra leitura: manifestações originadas de antigas formas da religiosidade popular,
nascidas em recantos distantes do interior, os ternos de reis traduzidos para o Carnaval
carioca aparentavam um enraizamento no passado capaz de lhes conferir a vantagem de
pertencer a uma herança cultural “miscigenada”, exclusiva do país que tais intelectuais
buscavam redesenhar. Esse Carnaval podia comportar “todos” sem os riscos de antes,
transformando o folclore em uma arma política importante. Era precisamente essa a razão
pela qual Romero e Mello Moraes Filho podiam ser reabilitados em sua busca da cultura
nacional na década de 1920. (CUNHA, 2001, p. 258-9)
A valorização das tradições populares; o mote dos enredos nacionalistas; a iniciativa
de institucionalização das organizações carnavalescas; o hábito de cultivar boas relações com
a elite social, praticado desde Tia Ciata até os fundadores do Ameno Resedá; os bons olhos
com os quais os intelectuais e, principalmente, a imprensa passavam a ver o carnaval popular,
todos esses fatores pavimentaram o caminho para que a geração de bambas do Estácio criasse
a primeira escola de samba, reformulasse o próprio samba, transformando-o no gênero
praticado hoje em dia, e o afirmasse como a música de carnaval por excelência.
1.2.3.1 - A primeira escola de samba; o samba como produto cultural e comercial; o samba
como símbolo de identidade musical brasileira
A primeira instituição a ser denominada escola de samba foi a Deixa Falar, do Estácio
de Sá. Ismael Silva, um dos líderes do grupo, narrava assim a criação da denominação:
lá no bairro [no Estácio] existia a Escola Normal, que hoje não é mais lá e nem tem esse
nome. Hoje é Instituto de Educação e fica na rua Mariz e Barros, na Praça da Bandeira.
Naquele tempo as batalhas de confete eram um carnaval em miniatura. Começavam dois
meses antes do carnaval. No dia 31 de dezembro, véspera de primeiro do ano, já acontecia a
primeira batalha, que era na Avenida Rio Branco. Daí começava então o carnaval, o tal
carnaval em miniatura. Cada semana tinha uma batalha de confete num determinado bairro.
Nessas batalhas, esses agrupamentos, que seriam futuramente Escolas de Samba, se
encontravam: Portela, Mangueira, Salgueiro. Todos esses bairros iam para as batalhas e
cada um queria ser maior que o outro. Durante o ano, chegavam notícias assim,
pretensiosas, no Estácio. Eu recebia tantas notícias assim, desairosas, no Estácio, que acabei
respondendo: eles têm que respeitar, Escola de Samba é aqui, daqui é que saem os
42
professores, portanto é aqui a Escola de Samba. Daí saiu esse nome, por causa dos
professores, repito, que saíam da Escola Normal. Eis aí o nome e a Escola de Samba
formada. (MUSEU DA IMAGEM E DO SOM, 2002, p. 174)
A Deixa Falar trazia inovações importantes nos aspectos musical (o samba com a
formatação musical que apresenta até hoje) e instrumental (presença de novos instrumentos,
inventados pelos próprios sambistas, como o surdo e o tamborim). Essas inovações foram
com o tempo adotadas por outras agremiações e constituíram as grandes contribuições para as
escolas de samba.
Com relação às mudanças musicais que determinaram a fixação do que passaria a ser
considerado oficialmente samba pelos músicos e teóricos, Ismael Silva explica o seguinte:
esse ritmo de hoje, esse ritmo do samba, assim, estilo de Ataulfo, meu, Noel, essa coisa, não
era assim quando eu comecei. Antes tinha o estilo de Pelo Telefone, tipo samba-maxixe. Fui
eu que comecei a mostrar outro ritmo, quando compus, por exemplo, Se você jurar ou Nem é
bom falar. Fiz isso pensando no pessoal da rua, que precisava desfilar no chão e pedia uma
música que os facilitasse. Porque o grupo precisa andar, mas andar dentro da música, andar
com espalhafato, com vida, assim, conforme se vê hoje em dia. E aquele ritmo não deixava,
era um ritmo mais lento, que não dava margem para andar. Era necessário um ritmo que
facilitasse o surdo, até porque a batida do surdo não era assim, como está agora. (MUSEU
DA IMAGEM E DO SOM, 2002, p. 178)
25
Ademais, em entrevista concedida a Sérgio Cabral citada por Sandroni (2001, p. 218),
o compositor ainda sistematiza o novo padrão rítmico criado:
[Cabral:] — Vocês do Estácio tinham consciência de que estavam lançando um novo tipo de
samba?
[IS:]: — ... o samba era assim: tan tantan tan tantan. Não dava. ... Aí a gente começou a
fazer um samba assim: bum bum paticumbumprugurundum.
A respeito dessa declaração, observa Sandroni (2001, p. 218):
Ismael “mostra” os traços musicais que lhe parecem importantes para distinguir os dois
estilos: faz isso cantarolando os ritmos, como se batucasse cantando. É procedimento
perfeitamente adequado a suas necessidades. Se o tivesse levado um pouco mais longe, quem
sabe poderia até formalizá-lo seguindo o exemplo dos músicos indianos e outros que criaram
sistemas de sílabas musicais.
Cabral, por seu lado, traduz o cantarolar de Ismael em sílabas impressas, incapazes (na
ausência de outras informações) de nos devolver a totalidade do conteúdo musical. Mas
Cabral é um jornalista carioca e o público a que se dirige é o próprio público do samba:
nesse contexto, dizer mais do que ele disse seria, de alguma maneira, redundante. A eficácia
de seu discurso pode ser medida pelo fato de que a expressão
“bumbumpaticumbumprugurundum” foi reapropriada pelo mundo do samba e empregada
em 1982 no samba-enredo da Império Serrano, que venceu o desfile.
O autor desenvolve uma profunda análise das características rítmicas do samba do
Estácio em seu trabalho, Feitiço decente. Como não me cabe aprofundar a análise teórico-
musical, recorro ao mesmo artifício usado por Sérgio Cabral
26
, já destacado em Sandroni
25
Ressalte-se, porém, que essa responsabilidade exclusiva de Ismael em relação ao novo ritmo de samba não é ponto
pacífico. Sandroni (2001, p. 141) menciona um trecho da entrevista de Ismael a Sérgio Cabral, na qual ele narra uma das
primeiras vezes que ouviu esse novo estilo de samba, em uma composição de Rubem Barcellos.
26
CABRAL, Sérgio. As escolas de samba do Rio de Janeiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumiar, 1996.
43
(2001, p. 132), para diferenciar os dois estilos de samba: a comparação entre músicas
emblemáticas de cada um: assim, ao se ouvir as músicas Pelo telefone e Se você jurar, tem-se
uma boa ideia das diferenças entre o samba antigo, cultivado, por exemplo, na casa de Tia
Ciata, e o samba novo, dos compositores do Estácio.
Além da criação da Deixa Falar, a atuação do grupo de bambas do Estácio trouxe uma
série de novidades para o samba e seu entorno que considerarei a seguir, apoiado
principalmente em Sandroni (2001).
A primeira dessas novidades está no fato de esse grupo assumir uma identidade que
não era cultivada por grupos anteriores, como os frequentadores da casa da Tia Ciata (Donga,
João da Baiana, Pixinguinha, Caninha etc.). Os bambas do Estácio assumiam a identidade de
malandros e faziam disso tema de suas composições.
Assumir-se malandro, entretanto, não era um ato que pudesse ocorrer na sociedade
carioca de então sem alguns cuidados. Para ilustrar os discursos dominantes com relação à
malandragem, reproduzirei alguns sambas da famosa Polêmica entre Wilson Batista e Noel
Rosa, que, anos após esse período inaugural dos sambistas do Estácio, abordam a temática da
malandragem de forma significativamente ilustrativa:
Lenço no pescoço (1933)
Wilson Batista
Meu chapéu de lado, / Tamanco arrastando, / Lenço no pescoço, / Navalha no bolso, / Eu
passo gingando, provoco e desafio / Eu tenho orgulho em ser vadio.
Sei que eles falam deste meu proceder / Eu vejo quem trabalha andar no miserê / Sou vadio,
sempre tive inclinação / Desde o tempo de criança tirava samba-canção.
Rapaz folgado (1933)
Noel Rosa
Deixa de arrastar o teu tamanco / Pois tamanco nunca foi sandália / Tira do pescoço o lenço
branco, / Compra sapato e gravata, / Joga fora esta navalha que te atrapalha / Com chapéu
de lado deste rata / Da polícia quero que escapes / Fazendo samba-canção, já te dei papel e
lápis / Arranja um amor e um violão.
Malandro é palavra derrotista / Que só serve pra tirar / Todo o valor do sambista / Proponho
ao povo civilizado / Não te chamar de malandro / E sim de rapaz folgado.
(Cf. PAIVA e EGYDIO, 1956)
Lenço no pescoço, samba de Wilson Batista, constitui uma apresentação do malandro.
Assumindo essa identidade, o enunciador da letra faz uma autodescrição, em indumentária e
atitudes; nesse particular, destacam-se as menções à navalha e à vadiagem como traços mais
problemáticos para a sociedade, que acarretariam a perseguição dos que assumissem esse tipo
de comportamento.
O questionamento do trabalho como meio de ascensão social encontra ecos no passado
escravagista brasileiro e na maneira como esse regime terminou, sem formas de compensação
44
e inserção social para os que sofriam essa situação de extrema exploração (ver o que já foi
exposto anteriormente sobre o assunto, com base em Roberto Moura). Assim, é
compreensível que o trabalho ainda tivesse uma carga de exploração, de atividade que não
oferecia garantia de benefícios ao trabalhador. Essa perspectiva está presente naquela letra de
Wilson Batista e também nesta sua composição, em que destila ironia, dizendo: “Meu pai
trabalhou tanto / que eu nasci cansado / (...) trabalhar não quero mais / eu não sou caranguejo
/ que só sabe andar pra trás”.
27
Outro elemento importante nessa identidade é a facilidade para fazer samba, tirado de
ouvido, de forma improvisada e sem preocupação com registro. Esse traço, que é replicado
por Noel, ainda merecerá análise mais detida.
A resposta de Noel dá voz à ideologia dominante na sociedade carioca, que reprovava
a inclinação violenta do malandro, representada pela navalha, assim como o louvor à
vadiagem. Noel Rosa busca desconstruir o discurso de Wilson Batista, ponto a ponto,
propondo uma “versão civilizada” do malandro, nomeada a partir do eufemismo “rapaz
folgado”.
Ao mesmo tempo, sinaliza para uma nova forma de vida, representada pelo registro
das composições (“já te dei papel e lápis / um amor e um violão”).
Os elementos da temática da malandragem, muito bem sistematizados na Polêmica,
eram cultivados nas letras do grupo do Estácio. Ismael Silva, por exemplo, compôs em
parceria com Nilton Bastos os seguintes versos, interpretados por Mário Reis e Francisco
Alves:
O que será de mim (1931)
Ismael Silva, Nilton Bastos e Francisco Alves
Se eu precisar algum dia / De ir pro batente / Não sei o que será / Pois vivo na malandragem
/ E vida melhor não há
Minha malandragem é fina / Não desfazendo de ninguém / Deus é quem nos dá a sina / E o
valor dá-se a quem tem / Também dou a minha bola / Golpe errado ainda não dei / Eu vou
chamar Chico Viola / Que no samba ele é rei / Dá licença seu Mário
Oi, não há vida melhor / E vida melhor não há / Deixa falar quem quiser / Deixa quem quiser
falar / O trabalho não é bom / Ninguém pode duvidar
Oi, trabalhar só obrigado / Por gosto ninguém vai lá
Um aspecto que se observa na letra anterior é marcante nas composições sobre a
malandragem: uma forma de suavizar a estigmatização acarretada pelo louvor à vadiagem foi
mencionar a possibilidade de deixar a malandragem. A maioria desses sambas, portanto,
especula sobre essa possibilidade, ou analisa os resultados do fato consumado. Eis mais um
27
A canção citada é Nasci cansado, marcha de Wilson Batista e Henrique Alves, gravada por Os Copacabanas em 1952. Cf.
MATOS, Cláudia Neiva de. O malandro no samba (de Sinhô a Bezerra da Silva). In VARGENS, João Baptista M. (Org.)
Notas musicais cariocas. Petrópolis: Vozes, 1986, p. 45.
45
exemplo:
Nem é bom falar (1931)
Ismael Silva, Nilton Bastos, Francisco Alves e Noel Rosa
Nem tudo que se diz se faz / Eu digo e serei capaz / De não resistir / Nem é bom falar / Se a
orgia se acabar
(Tu, falas muito, meu bem / E precisas deixar / Tu falas muito, meu bem / E precisas deixar /
Senão eu acabo / Dando pra gritar na rua / Eu quero uma mulher bem nua.)
Mas esta vida / Não há quem me faça deixar / Por falares tanto / A polícia quer saber / Se eu
dou meu dinheiro todo a vo
Até que enfim / Eu agora estou descansado / Até que enfim / Eu agora estou descansado / Ela
deu o fora / Foi morar lá na Favela / E eu não quero saber mais dela
Em Nem é bom falar, mais um elemento significativo dos sambas que abordam a
malandragem se apresenta: os conflitos entre o malandro e as mulheres. Frequentemente elas
são apontadas como a causa do impasse com relação à vida na orgia. Ao mesmo tempo,
entretanto, em que se canta a dificuldade de ser malandro e viver com uma mulher que quer
que o enunciador “se regenere”, também são recorrentes referências depreciativas às mulheres
que vivem na orgia. A seguir, mais duas composições, uma que volta a ilustrar a possibilidade
de deixar a malandragem por causa do amor de uma mulher e outra que expressa o mau
conceito relativamente às mulheres que vivem na orgia.
Se você jurar (1931)
Ismael Silva e Nilton Bastos
Se você jurar / Que me tem amor / Eu posso me regenerar / Mas se é / Para fingir, mulher, /
A orgia assim não vou deixar
Muito tenho sofrido / Por minha lealdade / Agora estou sabido / Não vou atrás de amizade /
A minha vida é boa / Não tenho em que pensar / Por uma coisa à-toa / Não vou me regenerar
A mulher é um jogo / Difícil de acertar / E o homem como um bobo / Não se cansa de jogar /
O que eu posso fazer / É se você jurar / Arriscar a perder / Ou desta vez então ganhar.
Não é isso que eu procuro (1928)
Ismael Silva e Francisco Alves
Não é isso que eu procuro / Você não me dá futuro / Me deixe em paz / Tenho mais vantagem
/ Eu juro que, hoje em dia / Mulher dentro da orgia / Não quero mais
Toda mulher da orgia / Assim disse o Ismael, / Não se pode com certeza / Dizer que ela é fiel
/ Quero mulher pra mim só / Não quero saber de sócio / E você gosta de todos / Isso assim
não é negócio
Não digo que tenho raiva / Por você ser da orgia / Quero dizer que não serve / Para minha
companhia / Sei que você não é feia / Tu és linda criatura / Meu bem, que queres que eu faça
/ Não vou quebrar minha jura
Outra modificação importante que teve participação dos sambistas do Estácio foi a
mudança de forma dos sambas compostos no novo estilo. O samba antigo costumava ser
composto de estribilho intercalado por improvisações feitas por solistas. Não havia a
preocupação de fixar as segundas partes e, mesmo nas partes fixas, a variação era livre. Isso
facilitava a apropriação dessas criações pelos compositores que já tinham acesso à publicação
de partituras. Sandroni (2001, p. 146-8) menciona numerosos casos, envolvendo, entre outros,
Donga e Mauro de Almeida na composição de Pelo telefone, além das disputas por autoria
46
entre Sinhô e Heitor dos Prazeres.
A fixação da segunda parte dos sambas era uma necessidade gerada pela indústria
fonográfica que começava a funcionar no Brasil. O samba com duas partes era mais
apropriado para gravação em discos e era preciso haver uma versão definitiva para registro.
Essas modificações fortalecem as composições em parceria, com um sambista fazendo a
primeira parte e outro, a segunda. As parcerias nas quais um compõe música e outro, letra, só
se tornariam mais comuns a partir da bossa nova (Sandroni, 2001, p. 153).
A fixação das letras e do conceito de autoria modifica a mentalidade que levou Sinhô a
afirmar “samba é como passarinho, é de quem pegar”
28
. Essa modificação é a preconizada por
Noel Rosa, ao oferecer papel e lápis ao malandro, que “tira samba-canção”. Os sambistas,
profissionalizando-se, passam a ter a perspectiva de lucrar com suas composições.
Contudo, ainda havia na sociedade carioca entraves para pessoas de origem pobre,
geralmente negros, transitarem livremente. Muitas vezes era preciso que um intermediador
entrosado nos grupos dominantes divulgasse as músicas. Instituiu-se desse modo a compra de
parcerias, pois cantores como, por exemplo, Francisco Alves e Mário Reis, além de
interpretarem as canções ainda pagavam pelo direito de figurarem como compositores,
recebendo direitos autorais.
A compra de parceria é uma prática vista muito negativamente, nos dias de hoje.
Sandroni (2001, p. 149), por sua vez, tenta relativizar essa perspectiva, considerando que os
intérpretes compradores de parceria exerciam um papel ainda não estabelecido:
Quando uma vez tentei explicar o papel desempenhado por Francisco Alves junto aos
sambistas do Estácio a um amigo francês, ele surpreendeu-me com o seguinte comentário:
“Então, o que ele fazia é o que fazem hoje em dia as editoras musicais: possibilitam que a
música se torne conhecida e em troca ganham uma parte dos direitos autorais.” Se se adota
este ponto de vista, força é reconhecer que neste papel o cantor não ficou nada a dever às
editoras atuais.
Acresce-se o fato de que alguns compositores, ao receber para permitir que o
intérprete figurasse na autoria e recebesse direitos, não consideravam que estavam vendendo a
música, o que só aconteceria no caso de abrirem mão completamente do direito de ter seus
nomes registrados. É o que se percebe nesta passagem de entrevista de Bide e Ismael Silva a
Sérgio Cabral:
[Cabral:] – Você vendeu quantas músicas a ele [a Alves]?
[Ismael:] – Só duas... Nas outras ele entrou na parceria e a gente dividia o dinheiro que a
música rendia...
[Cabral:] – Você vendeu o samba por quanto?
28
MARCONDES, Marco Antônio (Org.). Enciclopédia da música brasileira: erudita, folclórica, popular. São
Paulo: Art, 1977. 2 v., s.v. Sinhô apud SANDRONI, Carlos. Feitiço decente: transformações do samba no Rio
de Janeiro, 1917-1933. Rio de Janeiro: Jorge Zahar / EdUFRJ, 2001, p. 146.
47
[Bide:] – Eu não vendi, não. ...
[Cabral:] – Mas o Francisco Alves entrou na parceria.
[Bide:] – Você queria que ele não entrasse? ...
[Cabral:] – Você vendeu música, Bide?
[Bide:] – Não, nunca. Sabia que muita gente vendia.
29
Também nas citações seguintes, Ismael Silva dá voz à surpresa do malandro que
descobre a possibilidade de ser profissional, sustentando-se a partir de suas composições. No
segundo fragmento, reconhece que Francisco Alves teve alguma importância para ele, sem
deixar de externar a existência do absurdo preconceito que tornou possível a atuação dos
intermediários:
Eu estava doente e fiquei hospitalizado por um mês. Lá recebi um portador dele, Chico
[Francisco Alves], perguntando se eu queria vender um determinado samba. Esse portador
era o Alcebíades Barcelos, compositor também, bom, tem vários sucessos. Então, já levou o
recibo, no caso de eu aceitar, conforme aceitei, para assinar imediatamente. O preço
oferecido era 100 mil réis. Eu fiquei muito satisfeito, todo entusiasmado pelo fato de saber
que aquilo que fiz interessou tanto a alguém, a ponto de querer pagar. Fiquei sonhando,
pensando uma porção de coisa. Dessa forma eu vendi o samba e ele gravou, sem me
conhecer. (MUSEU DA IMAGEM E DO SOM, 2002, p. 163)
MIS: Você se considera uma vítima do Francisco Alves?
IS: Não, porque talvez eu não fosse o que sou hoje, se não fosse ele. Ele me foi útil. Naquela
época eu era apresentado como “quem fez” o Francisco Alves. Imagina! Eu não “fiz” o
Francisco Alves, na verdade eles queriam se referir ao sucesso que ele fazia. Ele me
apresentava como o seu “braço direito”, como um preto de alma branca. E eu entrava no
palco. Ele queria se referir ao sucesso que estava fazendo. Um atrás de outro, um atrás do
outro, um atrás do outro. (MUSEU DA IMAGEM E DO SOM, 2002, p. 173)
A invenção de novos instrumentos também marcou a contribuição dos bambas do
Estácio para a musicalidade do samba conhecida até hoje. Bide é o criador que mais se
destaca, responsável por instrumentos como o surdo, usado para facilitar a marcação durante o
desfile. Eis a explicação de Ismael para essa função:
[desenhando um retângulo...] Pois bem: aqui está a escola de samba. Milhões de pessoas.
Um solista. Quando o samba entra na segunda parte, entra o solista. Pois bem, como é que,
naquela confusão toda, o pessoal vai saber quando deve atacar a primeira parte novamente?
Aí é que entra o 'surdo', que dá aquelas porradas fortes e o pessoal entra maciço, certinho.
(SOARES, 1985, p. 101)
Cuíca, surdo e tamborim são os principais instrumentos introduzidos por esse grupo.
Por outro lado, o acompanhamento por prato e faca, palmas e pandeiro (pelo menos na escola
de samba) tornaram-se menos comuns.
A última modificação relevante no samba trazida por esses músicos é relativa à
ambiência das práticas musicais. Os sambistas do Estácio deixaram de fazer samba em casa e
adotaram o botequim como principal local de diversão e trabalho. O do Apolo era o preferido
de Ismael Silva e seus companheiros; era, inclusive, o espaço propício para reuniões com
29
CABRAL, Sérgio. As escolas de samba do Rio de Janeiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumiar, 1996 apud SANDRONI, Carlos.
Feitiço decente: transformações do samba no Rio de Janeiro, 1917-1933. Rio de Janeiro: Jorge Zahar / EdUFRJ, 2001, p.
148.
48
cantores em busca de novas músicas, assim como para o encontro de parceiros para
composição e, é claro, para a roda de samba, evento coletivo de confraternização.
Essa modificação condiz com a inserção do samba na indústria cultural. Como passou
a ser atividade profissional, assumiu características de “rua”, precisando de espaços coletivos
desnecessários enquanto seu domínio era a “casa”.
Antes de aprofundar a análise desse aspecto, quero abordar os conceitos de “casa” e
“rua”, conforme a apresentação que Roberto M. Moura (2004, p. 29) faz desses conceitos
criados por Roberto DaMatta:
[um dos meus objetivos é,] partindo da familiaridade que decalca a roda através dos tempos,
ressaltar o quanto ela é mais “casa” do que “rua”, para usar a terminologia antropológica
de Roberto DaMatta:
“Quando digo então que “casa” e “rua” são categorias sociológicas para os brasileiros,
estou afirmando que, entre nós, essas palavras não designam simplesmente espaços
geográficos ou coisas físicas comensuráveis, mas acima de tudo entidades morais, esferas de
ação social, províncias éticas, dotadas de positividade, domínios culturais institucionalizados
e, por causa disso, capazes de despertar emoções, reações, leis, orações, músicas e imagens
esteticamente emolduradas”.
30
Essa oposição “casa/rua”, portanto, dá conta de duas ambiências diferentes para o
intercâmbio social que, basicamente, representam, do lado da “casa”, a prevalência das
relações familiares, de amizade e compadrio, a convivência descontraída entre pessoas que se
conhecem e compartilham códigos de conduta. De outro lado, a “rua” representa a prevalência
das relações institucionais, dos regulamentos rígidos e da burocracia, da impessoalidade.
Tanto a escola de samba como o uso do botequim como local de encontro representam
movimentos que conduzem o samba do domínio da casa em direção da rua. Nesse contínuo,
reformula-se o jogo de forças entre lazer/trabalho; amadorismo/profissionalismo;
malandro/compositor; valor de prestígio no grupo/valor de troca comercial;
improvisação/registro oficial.
A simples transferência da roda de casa para o botequim não é o mais importante na
transição para a “rua”. O principal nesse sentido é mesmo a inserção do samba no mercado
fonográfico. Entretanto, o mesmo botequim que servia de espaço para composição,
negociação de gravações e venda de parceiras e outros acertos profissionais, também era o
espaço da roda de samba. Era, portanto, “casa” e “rua”, dependendo da finalidade dos eventos
ocorridos.
A escola de samba, um símbolo de institucionalização, nasce como “casa”, mas, com o
tempo, se transforma em “rua”. Devido a esse ambiente de “casa”, as escolas não costumavam
desfilar com sambas de compositores profissionais. Ismael Silva faz referência a isso em
30
DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis. Rio de Janeiro: Zahar, 1997, p. 15 apud MOURA, Roberto M. No
49
depoimento:
MIS: E qual foi o samba que a Deixa Falar tocou, cantou, no carnaval de 1929, quando saiu
pela primeira vez? De quem era?
IS: Não me lembro. Parece que era do Alcebíades Barcelos.
MIS: Era do Alcebíades Barcelos. Quer dizer, o Alcebíades tem a honra de ter sido, dentro
da Escola de Samba, o primeiro compositor.
IS: Exato, e eu não. Eu já não teria porque eu já estava profissionalizado.
MIS: Já estava consagrado...
IS: Já fazia minha música para gravar e a Escola de Samba não canta nada que já esteja
gravado. (MUSEU DA IMAGEM E DO SOM, 2002, p. 176-7)
Esse é o mesmo código que determinou os seguintes eventos, relatados por Roberto
M. Moura (2004, p. 45):
Monarco conta, por exemplo, que Candeia, nos anos 70, chegou a proibir que João Nogueira
cantasse na quadra da escola sambas de sucesso e considerados “de rádio”. Na Mangueira,
lembra Nelson Sargento, Zé da Zilda (José Gonçalves ou Zé com Fome) enfrentou o mesmo
problema nos anos 50.
A transformação da escola de samba é narrada em No princípio era a roda. No
capítulo “Do terreiro à quadra”, o autor expõe o processo pelo qual a roda de samba se tornou
cada vez menos característica das quadras das escolas e o sambista foi se sentindo cada vez
menos “em casa”. Segue-se um trecho a respeito do ambiente inicial de familiaridade que
perdurou ao menos até a década de 1960:
[Nei Lopes] reforça a ideia de que a passagem do terreiro para a quadra resultou em
mudanças muito mais significativas para o destino das escolas do que o simples
recapeamento de cimento sobre o que antes era chão de terra batida.
“Antigamente, até ali pelos anos 60, a única vaidade do compositor de escola de samba era
ser admirado pelos seus camaradas e pelas mulheres. Admirado pelo seu talento de poeta ou
de músico. (...) Os heróis-fundadores foram sempre compositores, como é o caso de Cartola
na Mangueira, Antenor Gargalhada no Salgueiro, Paulo da Portela, Mano Elói no Império
Serrano, por aí afora. Porque escola de samba era coisa de parentes, amigos, vizinhos,
colegas de trabalho. Esse é o grande diferencial em relação a hoje. Uma ala de
compositores, nessa época de que estamos falando, era a elite intelectual da escola. Os
compositores eram intelectuais orgânicos, embora muitas vezes fossem iletrados e até
analfabetos. Havia um código de ética, nas escolhas do samba-enredo, que fazia com que se
renunciasse à disputa diante de um concorrente nitidamente superior”.
31
E, quanto ao processo de transformação, que levou o cultivo do samba mais
espontâneo a buscar outros espaços alheios à escola de samba, diz Roberto M. Moura (2004,
p. 69-70):
A união em torno do samba e da roda reforça a sensação de Nei Lopes — de que a escola
não é mais (ou não é mais exclusivamente) a instância de legitimação do sambista (assim
como o disco e o rádio também não o são). O que Nei faz é acentuar uma tendência que já
vinha-se notando desde os anos 60 e 70, com o crescimento de blocos como o Bafo da Onça e
o Cacique de Ramos e o surgimento das rodas semiprofissionalizadas. Hoje, essa tendência
encaminha-se para estruturas cada vez menos rígidas, como se vê nesse revival da Lapa, em
princípio era a roda: um estudo sobre samba, partido-alto e outros pagodes. Rio de Janeiro: Rocco, 2004, p. 29.
31
LOPES, Nei. Sambeabá: o samba que não se aprende na escola. Rio de Janeiro: Folha Seca, 2003 apud MOURA, Roberto
M. No princípio era a roda: um estudo sobre samba, partido-alto e outros pagodes. Rio de Janeiro: Rocco, 2004, p. 134.
50
pleno limiar do terceiro milênio.
Como o elemento mais sensível à institucionalização e crescimento das agremiações que
ajudou a criar, o sambista foi deixando paulatinamente de se sentir, nelas, num espaço
doméstico e íntimo. Ficou na “rua”, esvaziado pela progressiva importância que a diretoria
e o carnavalesco passaram a ter. E consciente do peso cada vez menor que tem na estrutura
que inventou. Vejamos.
Na roda, o que havia e há é uma hierarquia cita — que legitima os valores sintonizados
com a chamada raiz histórica do samba (compositores, ritmistas, passistas etc.). Na escola, a
hierarquia é burocratizada, subordinada ao conjunto de interesses sociais e institucionais da
agremiação nas suas múltiplas relações com autoridades, parceiros, patrocinadores e meios
de comunicação. Não creio que ainda se possa considerar esse segundo conjunto como
“mundo do samba”.
A transformação da escola de samba em “rua” passa, portanto, pela profissionalização,
pela imposição de preocupações comerciais, de gravação de discos de samba-enredo e
exigências técnicas de desfiles de carnaval, assim como pelo exercício de autoridade por
pessoas nem sempre sintonizadas com valores tradicionais.
Voltando aos primeiros tempos das escolas de samba, devo ressaltar o papel decisivo
dos sambistas do Estácio, não só na fundação da Deixa Falar, mas também na difusão do novo
estilo de samba e no incentivo à fundação de outras escolas. Esse papel é registrado no samba
Primeira escola, que ainda faz uma relação das escolas que foram surgindo a partir daquela
primeira:
Primeira escola (1942)
Hildebrando Pereira Mattos e Joel de Almeida
A primeira escola de samba / surgiu no Estácio de Sá / Eu digo isso e afirmo / E posso provar
/ Porque existiam, naquele tempo, / Os professores do lugar, / Mano Nilton, Mano Rubem,
Edgar / E ainda outros que eu não quero falar
Depois surgiu a Favela, / Mangueira e, mais tarde, a Portela / Ainda faltam muitas outras /
Que peço me desculpar por não falar / A não ser Vila Isabel / Em homenagem ao saudoso
Noel.
(ESTÁCIO E FLAMENGO, 1995)
Esse papel de professores é reconhecido por sambistas da Mangueira e da Portela. Eis
o que diz Cartola:
A gente desfilava nos domingos de Carnaval na praça Onze e, às segundas-feiras, o pessoal
do Estácio vinha aqui para o morro. Na terça-feira, a Mangueira ia ao Estácio. A amizade
era muita. O Estácio era a escola mais velha, não vamos discutir isso. Nós tínhamos assim
um certo respeito pelo Estácio. Fora do Carnaval mesmo, o pessoal do Estácio vinha pra cá
pro morro cantar samba, qualquer dia da semana. Houve até uma vez que fiz um samba em
homenagem ao pessoal do Estácio que nos visitava em Mangueira:
Muito velho, pobre velho / Vem subindo a ladeira / Com a bengala na mão
É o Estácio, velho Estácio / Vem visitar a Mangueira / E trazer recordação / Professor,
chegaste a tempo / Pra dizer neste momento / O que devemos fazer / Me sinto mais animado /
A Mangueira a teus cuidados / Vai à cidade descer. (BARBOZA DA SILVA e OLIVEIRA
FILHO, 2003, p. 80)
Depoimentos de portelenses, recolhidos em pesquisa de Lygia Santos e Marília
Barboza da Silva, asseveram igualmente a informação:
51
A Portela agradece ao pessoal do Estácio. Minha tia Benedita, que morava na Rua Maia
Lacerda, trazia o pessoal do Estácio para cá. Tomavam o trem em Lauro Muller. Eles
ensinavam a gente. Ficavam uma semana na casa do meu pai (Nozinho, filho de Napoleão e
irmão de Natal da Portela)
Aqui na Portela não tinha samba. Quem trouxe o samba para cá foi o pessoal do Estácio
(Cláudio Bernardo, um dos fundadores da escola).
Está certo, pelo seguinte: nós não fazíamos samba, não conhecíamos samba. Cantávamos os
sambas do Estácio porque gostávamos. Eu me lembro dos sambas que cantavam. Ia-se muito
à casa do seu Napoleão, porque naquela época ele já morava nessa casa grande, ali. Era um
bom senhor, muito simples, pai do Natalino. E ele, parentes dele, bem poucos, faziam parte lá
da Portela. A irmã dele, dona Benedita, que morava lá embaixo, quando subia pra roça
trazia o pessoal do Estácio, que ensinou o samba pra gente (Antonio Caetano)
32
Essa atuação foi fundamental para o crescimento do samba como movimento pela
cidade, servindo como marco no processo de transformação do gênero em principal música de
Carnaval, chegando a ser considerado música nacional por excelência ao longo da década de
1930. Hermano Vianna aborda esse fenômeno em O mistério do samba, investigando seus
fatores determinantes.
O autor relaciona alguns aspectos relevantes envolvidos nessa conversão do samba em
música nacional — o desenvolvimento das telecomunicações e da indústria fonográfica no
país; a instituição de uma identidade cultural nacional, a partir da qual se estabeleceram
diferenças, por exemplo, entre “música popular” de “música regional”; o apoio
governamental, pois principalmente durante o Estado Novo incentivou-se a construção de
uma identidade mestiça para o Brasil, ideia defendida, entre outros, por Gilberto Freyre
33
. O
samba fazia parte da “trilha sonora” dessa construção cultural.
Quanto ao aspecto das telecomunicações e da indústria fonográfica, gostaria de
ressaltar a seguinte passagem de O mistério do samba (VIANNA, 2002, p. 109-10):
Em 1923 foi inaugurada a primeira estação de rádio brasileira, a Rádio Sociedade do Rio de
Janeiro, iniciativa do antropólogo Roquette Pinto e do cientista Henrique Moriza. No início,
sua programação (“o que o povo precisa”) consistia apenas de música erudita e palestras
culturais (no sentido de “Alta Cultura”).
O panorama se modificou com a concorrência de outras rádios comerciais, como a Rádio
Mayrink Veiga, inaugurada em 1926, e a Rádio Educadora, em 1927. Apesar do crescente
número de emissoras, os primeiros programas de grande audiência só surgiram depois da
Revolução de 30. O pioneiro nesse estilo foi o Programa Casé, colocado no ar pela primeira
vez em 1932. A Rádio Nacional adotou a programação de música popular do Programa
Casé, tornando-se a emissora mais influente nos anos Getúlio Vargas, ouvida em ondas
médias e curtas em todo território nacional. Mesmo A hora do Brasil, programa de
propaganda criado durante o Estado Novo (e que até hoje é transmissão obrigatória para
todas as emissoras brasileiras) incluía a divulgação de música popular e sua programação.
Vale lembrar que os programas de maior audiência em todo o Brasil eram transmitidos do
Rio de Janeiro. [...]
O mercado de discos brasileiros, no final da década de 20, também estava em ritmo de
revolução, com o advento da gravação elétrica e a instalação de várias gravadoras no país.
32
BARBOZA DA SILVA, Marilia Trindade e SANTOS, Lygia. Paulo da Portela: traço de união entre duas culturas. Rio
de Janeiro: Funarte, 1989 apud MOURA, Roberto M. No princípio era a roda: um estudo sobre samba, partido-alto e outros
pagodes. Rio de Janeiro: Rocco, 2004, p. 63-4.
33
Para uma exposição detalhada da influência de Gilberto Freyre no debate sobre a mestiçagem no Brasil veja-se VIANNA,
Hermano. O mistério do samba. Rio de Janeiro: Jorge Zahar / UFRJ, 2002.
52
Até 1928 havia apenas uma gravadora lançando discos no Brasil, a Casa Edison, de
propriedade da empresa Odeon. Nesse ano são inauguradas a Parlophon, também da Odeon,
e a Columbia. No ano seguinte, 1929, é a vez da Brunswick e da RCA, todas com sede no Rio
de Janeiro e todas precisando de novos músicos para completar seus casts. Nada mais
propício para o samba carioca, mais tarde tido como brasileiro, finalmente se definir como
estilo musical. Em sua própria cidade, já havia as rádios, as gravadoras e o interesse político
que facilitariam (mas não determinariam — isso é outro problema) sua adoção como nova
moda em qualquer cidade brasileira. O samba tem “tudo” a seu dispor para se transformar
em música nacional.
O processo de estabelecimento de uma identidade nacional brasileira apresenta, em
sua feição musical, os eventos importantes da fixação do samba como gênero musical (já
abordada anteriormente) e da sua proeminência em relação a outros gêneros musicais de
grande popularidade, principalmente no período carnavalesco:
No início do século XX o campo da música popular ouvida no Brasil era regido por uma
extrema variedade de estilos e ritmos. O próprio carnaval, descrito por Oswald de Andrade
como “o acontecimento religioso da raça”, não era festa movida apenas por músicas que
poderiam ser classificadas como brasileiras. Ao contrário, os maiores sucessos da folia,
desde que ela se organizou em bailes (tanto os aristocráticos como os populares), eram
polcas, valsas, tangos, mazurcas, schottishes e outras novidades norte-americanas como o
charleston e o fox-trot. Do lado nacional, a variedade também imperava: ouviam-se maxixes,
modas, marchas, cateretês e desafios sertanejos. Nenhum desses estilos musicais, apesar de
suas modas passageiras, parecia ter fôlego suficiente para conquistar a hegemonia no gosto
popular da época. Nenhum deles era considerado o ritmo nacional por excelência.
Foi só nos anos 30 que o samba carioca começou a colonizar o carnaval brasileiro,
transformando-se em símbolo de nacionalidade. Os outros gêneros produzidos no Brasil
passaram a ser considerados regionais. Essa “colonização” interna feita pelo samba tem um
bom exemplo nas respostas do sambista gaúcho Lupicínio Rodrigues durante uma entrevista
ao jornal Pasquim, realizada em 1976. Distinguindo seu estilo musical daquele seu
conterrâneo Teixeirinha, compositor mais ligado às “tradições” da música gaúcha, Lupicínio
diz: “A diferença é que eu faço música popular, o Teixeirinha faz música regional.” À
pergunta sobre como conseguia afastar essa influência do Rio Grande do Sul de sua música,
a resposta é sugestiva: “Eu acho o ritmo brasileiro o melhor do mundo” (Rodrigues:
1976:68). Lupicínio nem precisa explicar que o ritmo brasileiro, considerado popular (...), só
pode ser o samba carioca. (VIANNA, 2002, p. 110-11)
Os desfiles de carnaval já contavam com apoio governamental antes da Era Vargas.
Essa prática foi, entretanto, intensificada e reorientada nesse período. Principalmente a partir
de 1937, buscou-se aproveitar a popularidade do samba em benefício do projeto político
estado-novista e incentivou-se a composição de sambas exaltando temas cívicos e elementos
da cultura nacional. A partir desse fato desenvolveu-se uma importante área temática,
principalmente para os sambas-enredo — a do nacionalismo:
O primeiro desfile da Deixa Falar, em 1929, tem seu “caminho aberto por uma comissão de
frente que montava cavalos cedidos pela polícia militar, e tocava clarins” (Tinhorão, s/d:82).
Quatro anos depois dessa estreia, o desfile de escolas de samba já ganhara ajuda financeira
da Prefeitura do Rio de Janeiro e o patrocínio do jornal O Globo, que também “formulou um
regulamento para o certame, no qual se estabelece a proibição dos instrumentos de sopro e a
obrigatoriedade da ala das baianas” (Santos & Silva, 1980:63). Já em 1935 o desfile passara
a constar do programa oficial do carnaval carioca elaborado pela Prefeitura. Seis anos não
é um tempo longo para a oficialização de uma prática cultural tão nova. Em 1937 o Estado
Novo determinou que os enredos das escolas de samba tivessem caráter histórico, didático e
patriótico (ver Matos, 1982). Os sambistas de morro aceitaram a determinação. E o carnaval
do Rio, exportado para o resto do Brasil (existem escolas de samba em Manaus e em Porto
Alegre), serviu de padrão de homogeneização para o carnaval de todo o país.
A atuação dos governos de Getúlio Vargas (incluindo o período ditatorial do Estado Novo)
foi firme em seu apoio, oficial ou não, ao samba e ao carnaval. Em 1932, ao mesmo tempo
53
em que o Teatro Municipal abria as portas para a realização de seu primeiro baile
carnavalesco, o interventor no Distrito Federal (Rio de Janeiro), Pedro Ernesto, contemplou
com “subvenções mínimas de dois contos de réis” todas “as chamadas Grandes Sociedades
(Tenentes do Diabo, Fenianos, Democráticos etc.), todos os ranchos carnavalescos, vários
blocos e escolas de samba” (Cabral, s/d:37), e no desfile de ranchos promovido pelo Jornal
do Brasil, a escola de samba Deixa Falar apresentou o enredo A Primavera e a Revolução de
Outubro (a revolução de 1930 no Brasil e não a de 1917 na Rússia). (VIANNA, 2002, p.
124-5)
O cultivo da imagem do samba como símbolo nacional é exemplificado por Vianna
(2002, p. 125-7) a partir de várias passagens, como se pode ver no trecho seguinte:
em 1936 um samba da escola Mangueira foi incluído na edição especial da Hora do Brasil
transmitida diretamente para a Alemanha nazista. Gostaria de saber qual foi a reação dos
ideólogos da “supremacia ariana” (que ainda acalentavam a esperança de algum pacto com
o governo brasileiro) diante daquela batucada afro-brasileira. Mas os radialistas brasileiros
não parecem ter pensado duas vezes: o samba já representaria a “nossa” cultura em
qualquer situação internacional.
O samba carioca já era apresentado como “delícia” nacional a todo visitante ilustre que
aqui aportava. [...] Em 1941 Walt Disney foi conhecer as escolas de samba, tendo como
cicerone Paulo da Portela (Efegê, 1980, vol. 1:63). [...]
O samba, em pouco tempo, [...] colocou em plano secundário os outros gêneros “regionais”.
Por exemplo: em 1932 a dupla Jararaca e Ratinho (ex-componentes dos Turunas
Pernambucanos) juntou-se ao dançarino de maxixe Duque, a Pixinguinha e à atriz Dercy
Gonçalves para criar, na Praça Tiradentes, do Rio de Janeiro, a Casa do Caboclo, também
chamada de “casa da canção nacional”. O cenário do primeiro espetáculo ali apresentado
era uma casa caipira. Em 35 o palco já era ocupado pela peça Reino do samba (ver
Rodrigues, 1983).
A vitória do samba era também a vitória de um projeto de nacionalização e modernização da
sociedade brasileira. O Brasil saiu do Estado Novo com o elogio (pelo menos em ideologia)
da mestiçagem nacional, a Companhia Siderúrgica Nacional, o Conselho Nacional do
Petróleo, partidos políticos nacionais, um ritmo nacional.
1.2.4 – Três sambistas modelares
Deixo agora de acompanhar cronologicamente a trajetória do samba para me
concentrar em três sambistas que tiveram atuação fundamental nesse período inicial: Ismael
Silva, Cartola e Paulo da Portela.
Todos os três são conhecidos como modelos entre seus pares, na habilidade de fazer
samba, nas funções de fundadores e líderes de escolas de samba e no comportamento cortês e
agregador, dentro da sua comunidade e em intercâmbio com outros grupos sociais.
Como a contribuição de Ismael Silva já foi bastante apreciada anteriormente, enfocarei
especialmente Paulo da Portela e Cartola.
Paulo da Portela, nascido em junho de 1901, mudou-se da Saúde para Oswaldo Cruz
por volta de 1920, com a mãe e um irmão.
João Baptista Vargens e Carlos Monte (2001, p. 31-2) apresentam uma descrição
54
relevante daquele bairro, no que tange à formação demográfica e cultural:
Tomando-se como amostra os antepassados dos componentes da Velha Guarda da Portela,
além dos descendentes diretos dos habitantes primitivos da freguesia de Irajá e suas
redondezas, podem-se reconhecer duas correntes principais e complementares de migrantes
que se deslocaram em busca de oportunidades de trabalho e melhores condições de vida. A
primeira corrente migratória, que surge a partir da abolição da escravatura, foi formada por
ex-escravos e seus descendentes, vindos principalmente de três regiões: uma parte desses
migrantes veio das fazendas de café do Vale do Paraíba, outros deslocaram-se do interior de
Minas Gerais, em especial das vilas e cidades que margeiam a Estrada União e Indústria, e
os demais vieram de propriedades rurais de Santa Cruz, Guaratiba, Campo Grande e
Itaguaí, chegando a Oswaldo Cruz pelos caminhos da roça, pela rotas do interior.
Juntamente com os habitantes primitivos, os migrantes do interior foram responsáveis pelas
características rurais que marcam a vida da população de Oswaldo Cruz. Seus folguedos,
suas festas, seus hábitos alimentares, sua música e sua dança marcaram de maneira
significativa a alma portelense. Os tambores que se ouviam nos jongos da casa de seu
Napoleão, seu Vieira e dona Ester têm aí a sua origem.
Dois fatores intensificaram o aumento populacional na região: a fundação da estação
ferroviária Rio das Pedras (hoje, Oswaldo Cruz), em 1898, que facilitou o deslocamento até a
região, e as reformas urbanas de Pereira Passos, que forçaram a retirada de populações pobres
do centro da cidade, muitas das quais foram viver no subúrbio.
Com isso, a convivência entre aquelas pessoas foi urdindo um novo sentimento de
comunidade com identidade própria, que também se manifestava nos dias de carnaval:
As populações vindas do interior do estado ou transferidas do centro do Rio de Janeiro, de
hábitos e culturas distintas, começavam a conviver no dia a dia, dividindo sofrimentos e
alegrias, encontrando-se na feira, na igreja e nos cultos religiosos de origem africana.
Buscando afirmação como cidadãos, trabalhavam, casavam-se, batizavam os filhos,
frequentavam festas e folguedos.
A música e a dança, expressões naturais de seus momentos de felicidade, começavam a
ressoar pelo bairro. Formavam-se grupos, modestos, organizados de modo incipiente, que
passavam a ser vistos nos dias de festas populares, notadamente durante o carnaval.
Estabelecia-se uma fusão: de um lado, o som das populações rurais de origem negra,
traduzido no uso dos instrumentos de percussão típicos de suas manifestações religiosas e
festivas, representadas pelos toques rituais, pelo batuque, pelo jongo e pelo caxambu; do
outro, as influências dos sons oriundos do centro da cidade, levados pelos habitantes da
Pedra do Sal, do morro da Favela e do Estácio: os desfiles de ranchos, os cordões, os sambas
de roda, os pastoris, os ternos de Reis e as rodas de capoeira.
Diversos grupos de características semelhantes, bastante modestos, de existência por vezes
efêmera, saíam nos dias de carnaval organizados em desfile. Deles se ouviu falar
imprecisamente pela voz dos que viviam em Oswaldo Cruz desde os primeiros tempos. Entre
outros, podem ser citados: Estrela Solitária, Baianinhas de Oswaldo Cruz, Cada Ano Sai
Melhor, Quem Fala de Nós Come Mosca e Vai como Pode. Esses conjuntos demonstravam a
força e o despertar de uma identidade musical própria da população. (VARGENS e
MONTE, 2001, p. 31-2)
A Vai como Pode, um dos grupos citados anteriormente, era liderada por Paulo da
Portela, Antônio Rufino e Antônio Caetano, três companheiros cuja atuação está nas bases da
Portela. O grupo já tinha título de “escola de samba”, devido à influência dos bambas do
Estácio, cujas músicas chegavam a ser executadas em ensaios.
Essa foi uma etapa anterior ao estabelecimento do nome definitivo, “Portela”. A escola
de samba, antes disso foi chamada “Conjunto Carnavalesco Escola de Samba Oswaldo Cruz”
(1926) e “Quem nos faz é o Capricho” (1929) e “Vai como pode” (1931). A denominação
55
“Portela” foi instituída em 1935, por sugestão do delegado Dulcídio Gonçalves, que não
gostava do nome anterior. Entretanto, antes disso o último nome já era conhecido. Marilia
Trindade Barboza e Lygia Santos (1989, p. 64) documentam a referência, usada
informalmente em 1933.
O próprio Paulo da Portela já tinha esse apelido bem antes de a escola receber o
mesmo nome. A denominação foi criada no início da década de 1920, para diferenciá-lo do
sambista Paulo Fernandes, que morava em Bento Ribeiro (BARBOZA DA SILVA e
SANTOS, 1989, p. 41). A referência do apelido é a Estrada do Portela, uma das principais
vias do bairro de Oswaldo Cruz, que serviu de base tanto para o nome do sambista quanto
para a designação da escola de samba.
A atuação de Paulo como líder de escola de samba foi marcante em seu aspecto
organizador e disciplinador. Em Paulo da Portela: traço de união entre duas culturas,
aventa-se uma explicação para seu comportamento rígido, em vestimenta, linguagem e
atitudes. Segue o relato de um depoimento de Cláudio Bernardo, portelense contemporâneo
de Paulo, sobre episódio ocorrido em uma festa realizada por Dona Esther, cuja residência em
Oswaldo Cruz era um espaço cultural da região:
certa vez “a rainha de Oswaldo Cruz” promoveu em sua casa uma festa de altíssimo nível,
para a qual convidou políticos, jornalistas e personalidades do mundo artístico-cultural da
cidade. A festa estava no auge, quando chegaram os sambistas do Estácio, muito à vontade,
malandros no bom sentido, de cuja imagem se orgulhavam. D. Esther impediu-lhes a entrada,
sob a alegação de que não estavam vestidos à altura dos convidados presentes. A cena,
assistida por Paulo, deve ter sido definitiva no sentido de exigir, a partir daí, que os
sambistas de Oswaldo Cruz cuidassem da indumentária. (BARBOZA DA SILVA e
SANTOS, 1989, p. 46)
Marilia Trindade e Lygia Santos (1989, p. 44) reforçam essa atitude de Paulo no
seguinte trecho, em que relatam a iniciativa tomada pelos fundadores da Portela, de vestir
terno, sapatos tipo carrapeta, gravatas e chapéus de palha:
O exemplo precisava vir de cima. Assim, quem sabe, os outros elementos do conjunto talvez
aderissem, ajudando a mudar, junto às classes mais altas, a imagem do sambista-marginal.
[...]
[o samba] era uma atividade [...] artística. Mas que dependia de um público para ser
consumida, transformar-se em meio de vida, atividade profissional. Para isso, necessário
dar-lhe embalagem conveniente, nos padrões exigidos pelas classes dominantes, onde o ser
negro, por si só, já possuía condições negativas. De chinelo e camiseta, então...
Essas providências do grupo de Paulo da Portela lembram nitidamente o conteúdo da
polêmica entre Wilson Batista e Noel Rosa, já comentada aqui. De fato, era necessário
adaptar-se às exigências daqueles que Noel, assumindo a ideologia dominante da época,
denominou “povo civilizado”, no seu samba Rapaz folgado.
O mesmo fundo está presente na seguinte passagem de Noel:
56
A princípio o samba... era considerado distração de vagabundo. Mas o samba estava bem
fadado. Desceu do morro, de tamancos, com o lenço ao pescoço, vagou pelas ruas com um
toco de cigarro apagado no canto da boca e as mãos enfiadas nas algibeiras vazias e, de
repente, ei-lo de fraque e luva branca nos salões de Copacabana.
34
Além de transformar a imagem do sambista, Paulo também se esforçou por mudar a
percepção relativa às escolas de samba, herdada daquela construída em torno dos blocos. Uma
de suas atitudes nesse sentido foi garantir a frequência e participação feminina nos ensaios,
empenhando sua própria reputação para garantir que isso ocorresse:
No princípio, era apenas um bloco de rapazes que gostava de samba, ritmo novo. A falta de
mulheres fazia com que os homens saíssem vestidos de baiana. Olívio Pereira de Almeida,
Nô, que começou a frequentar o Baianinhas em 1925, aos nove anos fala dos primeiros
tempos do Conjunto Oswaldo Cruz:
“Vários homens saíam de baiana. O Claudionor saiu de baiana, Angelino Poró, Cláudio
Bernardo, também, José da Costa, Ventura, Oswaldo e outros. Mesmo quando começaram a
sair mulheres, as pastoras, os homens continuaram a sair de baiana. Talvez para equilibrar o
número de mulheres, que eram poucas. As primeiras pastoras da Portela foram: Diva, que é
esposa do Caetano, sua irmã Jovenita, que nós chamamos de Ninita, Noêmia, que era esposa
do Zé da Costa, Dona Rosa, Leonora, Huga, Maria de Lourdes.”
Paulo jamais saiu de baiana. Mas conseguia arregimentar moças, saindo de porta em porta
pedindo autorização aos pais para que as moças desfilassem sob sua responsabilidade. Para
facilitar a permissão, prometia que, terminado o desfile, entregaria cada uma na própria
casa. E cumpria. Tal atitude condicionava uma seriedade e postura desconhecidas até então
num sambista jovem. Paulo jamais foi namorador, pois, caso fosse, como obter de todos a
confiança dos mais velhos? Além disso, exigia de todos um tratamento cerimonioso. Se
alguém se dirigia a ele chamando-o de Paulo, delicadamente corrigia: “Seu” Paulo, por
favor! (BARBOZA DA SILVA e SANTOS, 1989, p.59)
No desfile de carnaval propriamente dito, Paulo cuidava da harmonia: antes do
desenvolvimento do gênero “samba-enredo”, os sambas executados no desfile tinham apenas
estribilho e versadores improvisavam segundas partes. Eis o que dizia Olívio Pereira de
Almeida, o Nô:
O primeiro ano que eu desfilei, foi na Praça Onze. Sempre foi na Praça Onze. Os sambas não
tinham segunda parte. Só a primeira. Depois era versado. Os versadores cantavam de
improviso. No início era o “Seu” Paulo puxando o samba. O João da Gente, o Claudionor e
o Alcides versavam. O Cláudio, da outra ponta, segurava o samba para o Paulo. Tudo no
gogó, não tinha microfone. (BARBOZA DA SILVA e SANTOS, 1989, p. 60)
Mais tarde, também foi de Paulo o primeiro samba-enredo da Portela, Teste ao samba.
Essa foi a primeira vez que a Portela desfilava com um samba completamente integrado ao
enredo:
Vou começar a aula / Perante a Comissão: / Muita atenção, / Eu quero ver / Se diplomá-los
posso. / Salve o fessor / Dá a nota a eles, senhor / Quatorze com dois, doze / Noves fora, tudo
é nosso!
Cem divididos por mil / Cada um com quanto fica? / Não pergunte à caixa surda / Não peça
cola à cuíca / Lá no morro, / Vamos vivendo de amor / Estudando com carinho / O que nos
passa o professor. (VELHA GUARDA DA PORTELA, 2000)
Essa composição de 1939 integra a lista dos primeiros sambas-enredo, junto com
34
MÁXIMO, João e DIDIER, Carlos. Noel Rosa: uma biografia. Brasília: UnB, 1990, p. 357 apud SANDRONI, Carlos.
Feitiço decente: transformações do samba no Rio de Janeiro, 1917-1933. Rio de Janeiro: Jorge Zahar / EdUFRJ, 2001, p.
172.
57
composições de Nelson de Morais (Unidos da Tijuca, 1933), Carlos Cachaça (Homenagem,
composta para o desfile da Mangueira de 1934) e Antenor Gargalhada (Asas para o Brasil, no
desfile do Salgueiro, em 1938).
A atuação interna à escola de Oswaldo Cruz era complementada com outra, externa.
Paulo fazia questão de manter diálogo intenso com a imprensa e buscou projeção na
sociedade em geral. Nessa linha estão os seus títulos de maior compositor das escolas de
samba (1935), cidadão-momo (1936) e cidadão-samba (1937).
Tendo posição de relevo nos dois meios, ele pôde atuar como um mediador cultural,
favorecendo o intercâmbio entre as elites sociais e os grupos populares.
Um dos aspectos mais importantes dessa atividade era o papel de cicerone de pessoas
famosas e autoridades em visitas a escolas de samba e de organizador ou participante de
eventos que pusessem em relevo elementos da cultura popular. Alguns desses eventos foram:
a visita à Portela do educador francês Henri Wallon; a apresentação de música e dança
folclóricas para a dançarina Josephine Baker; a festa com execução de samba para o
musicólogo estadunidense Aaron Copland; o espetáculo de samba apresentado a Herbert
Hoover, Jr., filho de ex-presidente dos Estados Unidos. Entre outros nomes, tem especial
destaque no relato de Barboza da Silva e Santos (1989, p. 134-6) a visita do cineasta Walt
Disney à Portela.
Expostas todas essas facetas importantes da contribuição de Paulo para a Portela e
para o samba carioca, falta enfocar melhor a sua importância como compositor. Eis uma
apreciação sobre o assunto:
Por ocasião da morte de Paulo, Joel Silveira escreveu:
“Alguns de seus sambas foram miseravelmente roubados pela fauna do café Nice, mas o
velho Paulo nunca protestou: “Deixa eles”, me disse numa entrevista. “Os pobres vivem
disso. Eu não. Eu sou artista.”
O fato é que Paulo tinha consciência de si mesmo. Um artista que compôs valsas, marchas e
sambas.
Caetano e Rufino lembram-se de que Paulo compunha valsas. Nô ratifica a afirmação, mas a
memória já não lhes permite recordar a letra e música de qualquer delas.
Marchas, Paulo as compôs aos montes, ligado aos ranchos como sempre foi. Acontece que a
sua ascensão coincidiu com a queda dos ranchos e as marchas de Paulo, apesar de
superiores à média do gênero na época, não fizeram sucesso. Ernani Rosário lembrou a letra
e música de várias.
Quanto aos sambas, estes sim, apresentam o ponto alto de sua carreira de compositor.
Surgido numa fase em que os compositores tentavam substituir o simples refrão do samba por
um texto poético mais elaborado, Paulo muito concorreu com suas letras para a realização
desse processo. Sua primeira composição, o samba Tu me desprezas, composto, segundo
Rufino, em 1924, já é um pequeno poema, bem diferente dos refrões dos batuques que se
cantavam anteriormente. [...] Já em 1933, em entrevista ao Diário Carioca, Paulo afirmava
ter composto mais de cinquenta sambas. Os contemporâneos indiretamente confirmam a
afirmativa, pois são todos unânimes em declarar que ele compunha com muita facilidade e
era grande improvisador. (BARBOZA DA SILVA e SANTOS, 1989, p. 143)
58
Apresentam-se duas dificuldades principais relacionadas à constituição de um corpus
de sambas de Paulo da Portela: a apropriação por outros compositores e o esquecimento de
músicas concebidas há muito tempo e não registradas. Compilando diferentes referências,
entre livros sobre Paulo e sobre a Portela e gravações de suas composições, consegui recolher
cerca de sessenta composições.
De tudo o que foi relatado, os depoimentos da Velha Guarda da Portela no livro A
Velha Guarda da Portela (Vargens e Monte, 2001, p. 41) são uma boa sistematização do que
há de mais importante na contribuição de Paulo da Portela:
Oswaldo Cruz é um bairro disciplinado também. Creio que tudo isso seja efeito da liderança
de Paulo. (Surica)
Todos seguem os ensinamentos do Paulo da Portela. Todos os portelenses são finos. Na
Portela não há brigas. É uma casa em que sempre se está bem. (Guaracy)
Oswaldo Cruz era um lugar perigoso, com gente de navalha no bolso. A Portela é
disciplinada. Até ladrão ia à Portela e se comportava bem. Ia lá para paquerar, ouvir música
e beber cerveja. (Monarco)
Os valentões do bairro eram ordeiros dentro da escola. (Casquinha)
Paulo saía de casa pedindo aos pais para que as filhas fossem à Portela e, depois, as
devolvia ao final dos ensaios. (Jair do Cavaquinho)
Yolanda de Almeida Andrade, a querida dona Neném, viúva de Manacéa, não poupa elogios
a Paulo da Portela: “A Portela era uma escola familiar. Seu Paulo ia à casa da mãe da
Bolinha e da Odete, que eram brancas, para pedir que fossem à Portela. Ele as levava e,
depois, deixava-as em casa. Até os valentes respeitavam as meninas”.
Angenor de Oliveira, o Cartola, nasceu em 1911. Em 1922, aos onze anos, mudou-se
com a família do bairro de Laranjeiras para a Mangueira. Lá conheceu o ambiente do samba
e, aos dezesseis anos de idade, já tinha composições próprias.
Em Cartola, os tempos idos, encontra-se uma boa exposição sobre como era a
Mangueira à época:
Para situar melhor a família Oliveira no tempo e no espaço, vai ser preciso falar um pouco
da Mangueira de 1919. O próprio Cartola, em entrevista concedida mais de sessenta anos
depois, recordou: “minha impressão é que em Mangueira só havia uns cinquenta barracos”.
Na verdade, devia ser isso mesmo.
A Mangueira fica entre os bairros do Engenho Novo e da São Cristóvão. Já no tempo do
Império, o morro começou a ser povoado pelo lado que dá para os fundos da Quinta da Boa
Vista [...]
O outro lado, onde fica o palácio do Samba, só passou a adquirir certa evidência quando
entrou em funcionamento a Estrada de Ferro Dom Pedro II, inaugurada pelo próprio, a 16
de maio de 1861. Mesmo assim, cinquenta anos mais tarde ainda era um povoado incipiente,
enquanto o lado acima citado já estava repleto de ruas calçadas, residências confortáveis,
clientela pequeno-burguesa.
A maior parte das terras [do lado menos desenvolvido] pertencia a Francisco de Paula
Negreiros Saião Lobato, cujos dois últimos sobrenomes, Saião Lobato, figuram na topografia
da cidade, como nome oficial do Buraco Quente, justo a rua para onde Cartola se mudou
com a família [...]
Carlos [Moreira de Castro, o Carlos Cachaça], era afilhado de batismo e filho de criação do
português Tomás Martins, locador de parte das terras da família Saião Lobato. Tomás era
59
gente fina do morro, como tudo que era português ali chegado. [...] Segundo Carlos Cachaça
e Neuma Gonçalves, foram os lusos os responsáveis pela chegada do comércio e da indústria
à Mangueira. (BARBOZA DA SILVA e OLIVEIRA FILHO, 2003, p. 40-1)
Essas informações podem ser complementadas pelas encontradas na Geografia do
samba carioca, estas últimas referentes a um momento mais próximo da fundação da
Mangueira:
O morro é muito grande e tem vários bairros, cada um (ao menos naquela época) com suas
histórias, suas referências culturais, seus líderes. Como lembra Tantinho, grande cantor e
partideiro, “A Mangueira sempre foi um refúgio de pessoas que vinham de fora, do interior
do estado, de outros estados até. Então havia várias culturas. Tinha o pessoal do samba, do
calango, do xaxado...”
Entre esses bairros estão Candelária, Joaquina, Vacaria, Olaria, o Pindura-saia e um muito
especial, onde nasceu Tantinho: Santo Antônio. A Área ganhou esse nome depois de receber
muitas famílias desabrigadas pelo incêndio do morro de Santo Antônio, no Centro, em 1916.
Ela teve um rancho, o Príncipe das Matas, cujas cores eram verde e rosa. Cartola sempre
afirmou que não sabia disso, o que reforça a distância que havia entre os bairros.
Por muito tempo, Santo Antônio não teve laços com o Buraco Quente, a área dos principais
líderes, na parte mais baixa do morro, do lado da estação do trem. (VIANNA, 2004, p. 57)
Nesse período em que Cartola ainda se entrosava nas rodas de samba de Mangueira, o
morro apresentava diferentes blocos, ranchos e cordões. Um dos mais importantes para este
estudo, por ser integrado pelo próprio Cartola, é o bloco dos Arengueiros. Eis o seu
depoimento sobre o assunto:
o bloco dos Arengueiros era o seguinte: a Mangueira tinha uns seis blocos, todos familiares.
Então eles escolhiam aquela rapaziada perfeita, direitinho, que não bebia, não fumava, não
namorava... esses saíam naqueles blocos.
O resto, a turma da bagunça, nós fazíamos o nosso bloco só de homem. Chamava
Arengueiros porque a gente saía disposto a tudo, a bater, a apanhar, a quebrar botequim,
qualquer negócio a gente fazia.
A maioria está morta. Vivos, desse bloco, só tem três: eu, o Chico Porrão e o Marcelino José
Claudino. O resto está morto.
A Mangueira foi fundada em 1927 para 1928. Depois daquela bagunça, a gente já era
malquisto no morro por causa daquilo. Aí resolvemos: vamos fazer uma escola de samba —
já tinha o Estácio — vamos fazer uma escola de samba. Então fizemos nossa escolazinha, só
tinha barbado, né?
No outro ano, já foram aparecendo umas meninazinhas daquelas que gostam de bagunça,
mas a gente foi fazendo um negócio sério, sério, confirmando a coisa, acabaram os outros
blocos todos cedendo.
Fizemos a Estação Primeira e no ano seguinte já saímos com umas quarenta pessoas. Depois
foi crescendo, crescendo, hoje é isso que você vê. (CARTOLA, 2000)
Além de participar das reuniões de fundação da Mangueira, Cartola compôs o samba
Chega de demanda, que exortava os grupos do morro a deixar de disputar entre si para formar
uma só agremiação:
Chega de demanda (1928)
Cartola
Chega de demanda, chega / Com este time temos que ganhar / Somos da Estação Primeira /
Salve o morro de Mangueira
(História das escolas de samba, 1974)
Neste samba curto, um dos executados no primeiro desfile de 1929, Cartola deu nome
à nova escola de samba que surgia: “Estação Primeira”. Além disso, participando de reuniões
60
junto com Euclides Roberto dos Santos (seu Euclides), Saturnino Gonçalves (Satur),
Marcelino José Claudino (Massu), José Gomes da Costa (Zé Espinguela), Pedro Caim e
Abelardo da Bolina, ainda propôs verde e rosa como as cores da Mangueira (BARBOZA DA
SILVA e OLIVEIRA FILHO, 2003, p. 55-6).
Além de fundador da escola, Cartola também foi um dos primeiros integrantes da ala
de compositores:
[Cartola:] Agora, vou dizer uma coisa: eu sou fundador da ala de compositores. A primeira
escola de samba que teve ala de compositores foi a Mangueira. Eu fiz uma escolinha de
compositores.
[Entrevistador:] Isto que eu queria saber. Então houve uma escola de samba?
[Entrevistador:] Agora essa palavra escola se chamava assim?
[Cartola:] Bom, escola veio do Estácio, porque conta o Ismael que eles fundaram o Estácio
perto de uma escola. [...] eu fiz uma escola para compositores, que é a ala dos compositores,
porque, no morro de Mangueira, só quem fazia samba naquela época éramos eu e o Carlos
Cachaça. Então, aquela meninada queria fazer samba, mas não sabia como é que fazia.
Então, fazia uma bobagem qualquer, então a gente chegava, eu ou o Carlos remendava tudo,
colocava música nova. Dizia para ele: “– Toma, o samba é seu.” E lá no ensaio cantava: “—
De quem é esse samba?” “— De fulano.” Então, fiz uma ala de compositores para ensinar
como é que se fazia samba, assim os garotos aprenderam a fazer samba. “É assim, isto você
faz assim, a música você faz assim...” ensinando muita gente. Inclusive [Babaú].
[Entrevistador:] [Babaú]?
[Cartola:] Inclusive [Babaú], inclusive Zé com Fome, inclusive Geraldo Pereira. Isto tudo
saiu da ala dos compositores da Mangueira e ainda tem muito garoto bom lá saindo.
(CARTOLA, 1998, p. 22)
Cartola também era diretor de harmonia da Mangueira:
[Entrevistador:] Diz uma coisa, qual a função, numa escola de samba, do diretor de
harmonia?
[Cartola:] Na minha época, o diretor de harmonia tomava conta da harmonia e bateria. [...]
[Entrevistador:] Da harmonia e bateria? E você, já exerceu alguma vez esta função?
[Cartola:] Fui toda a vida, enquanto eu quis ser fui diretor de harmonia em Mangueira.
[Entrevistador:] Enquanto você quis ser?
[Cartola:] Enquanto eu quis ser, nunca me tiraram e, graças a Deus, nunca perdi ponto na
minha época. (CARTOLA, 1998, p. 23)
Um dos aspectos mais festejados da atuação de Cartola é o de compositor. Como tal,
assim como Ismael Silva e muitos outros da mesma geração, ele não escapou do assédio dos
intérpretes profissionais querendo comprar direitos de sambas:
[Cartola:] — Esse negócio de Infeliz sorte... naquele tempo eu não conhecia a cidade, esse
negócio de música, nem nada. Então me apareceu lá no morro o Mário Reis pra comprar
música, ele e um outro rapaz. Ele não foi, ficou da ponte. O rapaz foi lá e falou: “— Cartola,
vem cá. O Mário Reis tá aí e quer comprar um samba teu.” “— O quê? comprar samba?
Você tá maluco, rapaz? Isso é coisa que vai dar até polícia. Quem é que vai comprar samba?
Pra que o homem quer samba? Eu não vou vender coisa nenhuma.” “— Não, mas lá embaixo
o negócio é assim.” “— Não vou vender.”
Foi uma luta pra ele me convencer. Aí, no dia seguinte ele voltou, e disse: “vou te levar pro
Mário Reis te conhecer.”
Ele me levou e o Mário disse: “não, Cartola, o negócio é o seguinte: eu compro o teu samba,
vou gravar, que é pra depois você ouvir o seu nome no rádio”... no rádio não, naquele tempo
era na vitrolazinha, né?
Eu, meio escabreado, meio com medo... ele disse: “quanto você quer pelo samba?”
Virei pro cara no cantinho e disse assim: “vou pedir uns cinquenta mil réis.” Ele disse: “que
que é, rapaz? Pede quinhentos.” Eu disse: “você tá louco?”
Isso em 1932, era dinheiro, né? Tá louco, não vai dar quinhentos contos. “Não, mas você
pede, não custa nada.” Eu, com muito medo, pedi quinhentos contos. Ele falou assim: “não,
61
eu dou trezentos. Tá bom?”
[Eu aceitei], mas com medo, sabe como é? Depois de uns dias, o discozinho lá na vitrola. Ele
botou o meu nome direitinho, coisa e tal. Mas não foi ele quem gravou. Ele comprou, mas
não deu pra voz dele. Então, gravou o Chico, Francisco Alves. (CARTOLA, 2000)
As vendas que Cartola fazia, entretanto, obedeciam a termos diferentes dos praticados,
por exemplo, por Ismael Silva: Cartola não vendia a parceria, mas sim os direitos de disco.
Ele relata ainda por que deixou de vender samba:
[Entrevistador:] Qual foi o seu primeiro sucesso, que você considera já ter dado uma certa
notoriedade ao seu nome?
[Cartola:] “Divina dama”.
[Entrevistador:] “Divina dama”, criado pelo Francisco Alves?
[Cartola:] Foi. Foi a versão de “Divina Dama”, que eu vendi ao Chico.
[Entrevistador:] Vendeu ao Chico? Ele aparece na parceria também?
[Cartola:] Não, vendi os direitos autorais de disco, mas o nome é meu. O samba é meu,
puramente meu. (...)
[Entrevistador:] Me diga uma coisa, você não sentiu um constrangimento natural em vender
uma música que era sua e que você sabia que faria sucesso com o nome de outro? Como você
se sentia?
[Cartola:] Não, não, o nome era meu sempre. Todos os que eu vendi só vendi os direitos, mas
o nome é meu.
[Entrevistador:] Ah, bom, você vendeu os direitos.
[Cartola:] Bom aí me apareceu o falecido Baiaco no morro. Se lembram do Baiaco de
“Arrasta a sandália”? Aí o Baiaco me abriu as vistas, me levou para a cidade, foi me
ensinando. Aí, deixei de vender. O sujeito ia lá... “Não, não vendo nada” (CARTOLA, 1998,
p. 12-14)
O compositor declara sua predileção por sambas-canção e critica a aceleração do
andamento dos sambas. Ainda menciona a composição de sambas-enredo:
Eu gosto mais de fazer samba-canção porque, não sei, é o estilo que eu acho bonito, sabe?
Eu não gosto muito desses sambas corridos, tem que ser uma coisa muito boa. Eu mesmo fiz
alguns, já fiz muitos, mas fui caindo mais pro lado do samba-canção, da canção. Não tenho
jeito de fazer outro tipo de música.
Eu já fiz samba-enredo pra Mangueira. Até tá gravado, “O vale do São Francisco”. Nesse
elepê novo tem um outro samba-enredo que me pediram pra fazer e depois me deram uma
nota baixa lá. Se chama “Ciência e arte”. É meu e do Carlos Cachaça, também.
(CARTOLA, 1982)
É possível que Cartola tenha se confundido nessa referência. Segundo Luiz Fernando
Vianna (2004, p. 58), Ciência e arte foi o samba da Mangueira no desfile de 1947
35
. O
problema ao qual o compositor alude teria acontecido em 1961, com o samba Tempos idos:
Em 1960 [Cartola] compôs com o amigo Carlos [Cachaça] um samba para a escola
[Mangueira] cantar no carnaval de 1961. Para surpresa da dupla, o samba ficou em terceiro
lugar e um dos julgadores, segundo Carlos, deu nota zero. Mais surpresas com o resultado
foram ficando, nos anos seguintes, as pessoas que ouviam Tempos idos:
Os tempos idos, nunca esquecidos/ Trazem saudades ao recordar / É com tristeza que
relembro / Coisas remotas que não vêm mais / Uma escola na praça Onze / Testemunha
ocular / E perto dela uma balança / Onde os malandros iam sambar.
Depois aos poucos / O nosso samba / Sem sentirmos se aprimorou / Pelos salões da
sociedade / Sem cerimônia ele entrou / Já não pertence mais à praça / Já não é samba de
terreiro / Vitorioso, ele partiu para o estrangeiro.
E muito bem representado por inspiração / De geniais artistas / O nosso samba, humilde
samba / Foi de conquistas em conquistas / Conseguiu penetrar no Municipal / Depois de
35
A mesma informação também é confirmada no site da Mangueira (www.mangueira.com.br, consultado em 20/06/08).
62
percorrer todo o universo / Com a mesma roupagem que saiu daqui / Exibiu-se pra duquesa
de Kent no Itamaraty.
A derrota dessa obra-prima foi uma vitória da metalinguagem. Samba cadenciado, cheio de
desvios não-convencionais na melodia, era uma composição de tempos idos, de uma escola
na Praça Onze, não servindo mais a um desfile que ganhava velocidade na avenida Rio
Branco. Magoado, Cartola decidiu nunca mais compor um samba-enredo para a Mangueira.
Passou os 20 anos que lhe restaram de vida criando sambas-canções, aqueles que hoje são os
maiores responsáveis por sua fama: “As rosas não falam”, “O mundo é um moinho”,
“Acontece”, “Autonomia” e outros. (VIANNA, 2004, p. 59)
Em seus depoimentos, o sambista menciona, ainda, um dado que torna difícil a
documentação da sua obra por completo: a falta de registros das composições, que
inicialmente não eram gravadas, nem mesmo anotadas. Essa mesma dificuldade deve se
aplicar a Paulo da Portela e a Ismael Silva
36
.
Muitas eu esqueci, porque naquela época não existia gravadora. A gente fazia e tinha que
decorar, decorar, decorar, até... Às vezes, decorava, decorava, mas acabava esquecendo.
Então, tem muita coisa que eu esqueci. Às vezes, um amigo meu, um conhecido, lembra um
samba... “você lembra desse samba assim, assim, assim?” “Não. De quem é?” “É seu.”
“Ah!” Faz tanto tempo que já não me lembro mais. (CARTOLA, 1982)
Três eventos ainda merecem espaço neste breve relato da trajetória de Cartola: a
eleição ao título de melhor compositor das escolas de samba, realizada pelo jornal A Pátria,
em 1937; a amizade entre Cartola e Villa-Lobos; as gravações a bordo do navio Uruguay.
Cartola resistia a participar de concursos promovidos por jornais na década de 1930.
Ele era contrário ao sistema de escolha do vencedor a partir do envio de cupons em jornais
comprados pelos simpatizantes. Alegava que, por esse sistema, qualquer um, mesmo não
tendo composto um único samba, poderia sair vencedor. A sua participação no concurso de
1937 deveu-se a um diferente sistema adotado nesta ocasião: o concurso contou com uma
comissão julgadora especializada.
O mangueirense, que apresentou duas músicas, Partiu e Sei chorar, venceu o
concurso. Das duas músicas apresentadas, uma merecia a predileção de Villa-Lobos:
Partiu (Cartola)
Partiu / E não me disse mais nada / Já ia distanciada / Quando ela parou e acenou com a
mão / Morreu
Nem notícias eu tenho / Da mulher que tanto venero / Deus meu, foi embora / Não sei onde
mora / Notícias espero / É tão triste um adeus, uma despedida / Vê se apieda-te, Deus / Cura-
me esta ferida
Há uma nódoa escura / Na parede do meu quarto / Que a todos entristece / E a mim tortura /
É o teu retrato / Esta nódoa é o símbolo / De consolação / A ela sempre pergunto / Se voltas
ou não.
(BARBOZA DA SILVA e OLIVEIRA FILHO, 2003, p. 108)
O maestro, que conhecera Cartola em uma festa, simpatizou muito com ele e o visitou
36
Essas dificuldades aumentam o valor de trabalhos como os de Marilia Trindade Barboza (com Lygia Santos, 1989 e com
Arthur de Oliveira Filho, 2003), João Baptista Vargens e Carlos Monte (2001) e Candeia e Araújo (1978; 1980) assim como
dos depoimentos registrados pelo Museu da Imagem e do Som. Nessas oportunidades, recolheram-se composições inéditas
desses e de outros sambistas antigos. Muitas dessas composições teriam sido perdidas sem tais estudos de campo.
63
algumas vezes. Teve, então, oportunidade de conhecer a Mangueira, ciceroneado pelo amigo.
Por sua vez, também convidava Cartola para eventos culturais e festas, assim como também o
chamou para participar do filme Descobrimento do Brasil (1938), realizado pelo governo
Vargas num estúdio em São Januário.
Palavras de Cartola:
Eu me dava muito com o maestro Villa-Lobos. Ele foi ao morro algumas vezes. Lá ele me
conheceu e gostou muito de mim. Achou que minhas músicas eram muito boas, que eu era
muito inteligente, tal.
Ele começou a me acompanhar. Sempre eu ia lá procurar ele, no escritório dele, telefonava
pra mim e eu ia lá conversar com ele, tal.
Foi na época em que chegou esse navio, com a orquestra de Stokowski, e queriam gravar
umas músicas brasileiras. Chorinho, macumba, tudo isso. E queriam um compositor de
samba. Aí o maestro me apontou. Eu fui gravar a bordo do navio Uruguay, parece que no
armazém quatro. Eu gravei com as pastoras lá do morro, fiz a gravação.
Eu só vim a ouvir esse samba gravado na casa do Lucio Rangel. Um dia cheguei lá, me
mostrou o disco. Ele disse que tava na América, ouviu tocar, “É Cartola.” Comprou o disco.
(CARTOLA, 1982)
A participação de Cartola nas gravações que seriam levadas pelo maestro Stokowski
ao Congresso Pan-Americano de Folclore também foi, portanto, viabilizada por Villa-Lobos.
Nessa ocasião, em 1940, quatro composições de Cartola foram gravadas: Meu amor (com
Aluísio Dias), Primeiro amor (com Aluísio Dias), Quem me vê sorrir (com Carlos Cachaça) e
Tristeza.
Das quarenta músicas gravadas, dezesseis foram lançadas pela gravadora Columbia,
no disco Columbia presents — Native Brazilian music — Leopold Stokowski. Quem me vê
sorrir é uma dessas composições.
O Congresso Pan-Americano de Folclore não chegou a acontecer. A participação de
Cartola, ao menos financeiramente, não foi muito compensadora: “Um ano e meio depois,
Cartola recebeu pela gravação a quantia de 1$500, o preço de três maços de cigarros baratos,
muito menos do que com a venda de um único de seus sambas dez anos antes.” (BARBOZA
DA SILVA e OLIVEIRA FILHO, 2003, p. 139)
A jornalista Daniella Thompson, no artigo Caçando Stokowski, relata suas tentativas
de conseguir informações sobre as 24 faixas que foram gravadas naquela noite e ainda
permanecem inéditas. No artigo Tesouros nos cofres da Columbia, que dá sequência ao
primeiro, afirma que as gravações ainda existem e estão em poder da gravadora Sony (da qual
a Columbia Records é subsidiária, atualmente). Seria importante que, ao menos, o público
pudesse conhecer essas gravações, raridades interpretadas, além de Cartola, por Pixinguinha e
os Oito Batutas, Zé Espinguela, Zé da Zilda, Jararaca e Ratinho, Luz Americano. Não houve
64
até hoje, entretanto, a iniciativa de publicá-las.
37
Ainda importa falar no Zicartola, a casa de samba aberta por Zica e Cartola à Rua da
Carioca, nº 53, em 1963. Em entrevista concedida ao MIS, ele e Zica, que desde 1953 era a
sua companheira, relatam o início da casa:
[Entrevistador:] Mas, Cartola, como nasceu esta ideia? Você foi procurado por quem? A
ideia foi sua? Em suma, nos conte a história.
[Cartola:] Eu tenho uns amigos em Botafogo, doutores, né, e frequentam muito a minha casa,
na Rua dos Andradas. E toda a sexta-feira, tinha uma farra lá em casa. Na farra de sexta-
feira juntava, reunia, fazia qualquer coisa.
[Zica:] Eles prometeram: “– Vamos abrir um restaurante para você, traz a cozinheira”,
gosto muito de cozinhar, “vamos fazer um restaurante para você”. Eu dizia que o meu ideal
era ter uma pensão ou coisa assim, né? Não podia, que minhas posses não davam. Então,
eles disseram: “– Vou arrumar um negócio para você. Cartola vai com a música e você vai
com as panelas.” (CARTOLA, 1998, p. 31)
A programação da casa foi atraindo cada vez mais pessoas e se tornou referência na
cidade. Roberto M. Moura (2004, p. 179) faz a seguinte apreciação do período de maior
sucesso do Zicartola:
A fusão de música e comida deu certo tão logo a casa abriu a porta, principalmente porque
ela permitia uma revelação de mão e contramão: os frequentadores mais jovens se
extasiavam ao conhecer Clementina de Jesus (ainda inédita) e Nelson Cavaquinho,
praticamente confinado às rodas suburbanas e aos pés-sujos da Praça Tiradentes; em
compensação, sambistas da Velha Guarda, como Ismael Silva, Padeirinho, Preto Rico e
Manuelzinho da Flauta, ganhavam alento ao descobrir que uma plateia jovem e bem-
informada se encantava com as suas criações.
Em suma, no Zicartola, estava todo mundo em casa — o sambista mais velho e o estudante
mais moço podiam se considerar gente da mesma família.
O sucesso da casa levou os frequentadores a instituírem uma noite de homenagem aos mais
importantes nomes da música popular brasileira. Era a Noite da Cartola Dourada e, a cada
quarta-feira, o Zicartola recebeu e homenageou, entre outros, nomes como Tom Jobim,
Haroldo Lobo, Elizeth Cardoso, Nara Leão, Dorival Caymmi e Aracy de Almeida.
Com o tempo, devido a problemas de gerenciamento que levaram a dificuldades
financeiras, o Zicartola acabou fechando. Entretanto, marcou época, serviu de modelo para
outras casas noturnas e representou o ponto de partida para grandes empreendimentos
culturais:
O musical Rosa de Ouro e o espetáculo Opinião, este reunindo Nara Leão, Zé Keti e João do
Valle, saíram de lá e foram fundamentais para o Rio, porque valorizavam artistas populares,
dando-lhes voz e trazendo para um público maior aspectos da vida carioca, “de nossos
gestos íntimos e de nosso realismo ultra-social” confinados ao gueto.
Valeu a pena? Em entrevista gravada para a Corisco Filmes, em 1973, Cartola acha que
sim:
“Fiz muitos amigos e é isso que interessa. Naquele tempo ninguém pensava em ficar rico com
uma casa de samba. Muita gente que hoje está aí começou no Zicartola. O primeiro cachê do
Paulinho da Viola quem pagou fui eu. Os meninos estudantes eram gente muito boa. Não
tenho saudades, mas foi um tempo muito bom”. (MOURA, Roberto M., 2004, p. 181)
37
Cf. THOMPSON, Daniella. Caçando Stokowski, 2000 e Tesouros nos cofres da Columbia, 2003, ambos disponíveis em
http://daniellathompson.com/Texts/Stokowski/Stowski.portugues.htm. Acesso em: 21 jun. 2008. Os artigos foram traduzidos
em 2005 por Alexandre Dias.
65
Por fim, o trecho seguinte ressalta a significação da contribuição de Cartola para a
cultura popular nacional, principalmente no seu aspecto mais festejado: o talento como
compositor.
Não são poucos os que se dizem tocados pela poética de Cartola. O poeta Waly Salomão
lembra a persistência involuntária de certo verso que o dominou certa vez. Elton Medeiros
afirma: “Cartola tinha uma vida muito simples, mas sua obra, sua música e seus versos eram
de uma sofisticação de gênio”. O professor de literatura brasileira Victor Giudice, ao
criticar a edição de uma coletânea de poesias brasileiras e estrangeiras tendo rosas como
tema, afirmou: “Infelizmente, faltou à seleção o mais belo pensamento poético já expresso a
respeito de rosas: 'Queixo-me às rosas / mas que bobagem / as rosas não falam /
simplesmente as rosas exalam / o perfume que roubam de ti'.” (BARROS, 1998, p. 91)
1.2.5 - A letra de samba como subgênero do gênero textual letra de canção
Feita a contextualização histórico-cultural do desenvolvimento do samba carioca e dos
seus principais protagonistas, volto ao embasamento mais especificamente de Análise do
Discurso para apresentar o conceito de gênero textual, que será útil no estudo de
características textuais da letra de samba.
1.2.5.1 - Gêneros textuais
Uma definição fundamental para esse conceito é a de Bakhtin, que estabeleceu que os
gêneros são “tipos relativamente estáveis de enunciados”
38
. Segundo ele,
O emprego da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos) concretos e únicos,
proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo de atividade humana. Esses enunciados
refletem as condições específicas e as finalidades de cada referido campo, não só por seu
38
Cf. BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. Deve-se registrar que o autor
não falava de gêneros textuais, mas sim de gêneros discursivos. Os termos gênero do discurso e gênero textual são usados
nos estudos de semiótica, análise do discurso e linguística do texto conforme o posicionamento teórico do autor e sua
perspectiva de favorecer determinadas características dos atos de significação, sejam aspectos funcionais, estruturais, textuais
ou comunicacionais. Eis o que dizem a respeito Charaudeau e Maingueneau (2004, s.v. gênero de discurso):
A diversidade dos pontos de vista mostra a complexidade da questão dos gêneros, incluindo as denominações, já que
alguns falam de “gêneros do discurso”, outros de “gêneros de textos”, outros ainda de “tipos de textos” [...]
para definir essa noção, ora leva-se em conta, de um modo preferencial, a ancoragem social do discurso, ora as
regularidades composicionais dos textos, ora as características formais dos textos produzidos. Pode-se pensar que
esses diferentes aspectos estão ligados, o que cria, aliás, afinidades em torno de duas orientações principais: aquela
que está mais voltada para os textos, justificando a denominação “gêneros de texto”, e a mais voltada para as
condições de produção do discurso, que justifica a denominação “gêneros do discurso”.
Minha intenção neste estudo é principalmente enfatizar as características que fazem da letra de samba um produto cultural
específico, reconhecível como texto com traços de identidade que a diferenciam de outros textos, assim como lhe garantem o
status de subgênero de letra de canção. Por isso, adoto a denominação gênero textual.
66
conteúdo (temático) e pelo estilo da linguagem, ou seja, pela seleção dos recursos lexicais,
fraseológicos e gramaticais da língua, mas, acima de tudo, por sua construção
composicional. Todos esses três elementos — o conteúdo temático, o estilo, a construção
composicional — estão indissoluvelmente ligados no todo do enunciado e são igualmente
determinados pela especificidade de um determinado campo da comunicação. (BAKHTIN,
2003, p. 261-2)
Para Bakhtin, portanto, a depreensão de um gênero é condicionada por três fatores: o
tema, o estilo e o modo de composição. Os dois últimos fatores correspondem à interseção de
condicionamentos histórico-discursivos e formais: a intermediação que ocorre entre a tradição
de usos linguísticos associados a um determinado gênero — “tipo de estruturação e de
conclusão de um todo, tipo de relação verbal (relação com o ouvinte, ou com o leitor, com o
interlocutor, com o discurso do outro etc.)” (Bakhtin, 2003, p. 266) — e a relativa liberdade
que um determinado enunciador tem de fazer escolhas pessoais ao produzir um texto neste
mesmo gênero. O próprio Bakhtin observa, também, que a intensidade dessas coerções varia
conforme o gênero produzido (no domínio jurídico, por exemplo, a liberdade individual é
bem menor do que no das cartas informais).
Um traço da definição de gênero que permeia a exposição de Bakhtin é retomado e
desenvolvido por Marcuschi (2003): o aspecto funcional dos gêneros textuais.
Quando dominamos um gênero textual, não dominamos uma forma linguística e sim uma
forma de realizar linguisticamente objetivos específicos em situações sociais particulares.
Pois, como afirmou Bronckart (1999:103), “a apropriação dos gêneros é um mecanismo
fundamental de socialização, de inserção prática nas atividades comunicativas humanas”, o
que permite dizer que os gêneros textuais operam, em certos contextos, como formas de
legitimação discursiva, já que se situam numa relação sócio-histórica com fontes de
produção que lhes dão sustentação muito além da justificativa individual. (MARCUSCHI,
2003, p. 29)
A passagem anterior, mesmo considerada ao lado de outras, nas quais Marcuschi
assevera que os aspectos formais do gênero não podem ser desconsiderados, ilustra
claramente a perspectiva sócio-histórica do estudo do fenômeno. Essa compreensão dos
gêneros como “artefatos linguísticos concretos” é um elemento que, já presente na abordagem
bakhtiniana, é efetivamente uma contribuição para o estudo de textos. Ainda segundo Bakhtin
(2003, p. 264-5),
um trabalho de pesquisa acerca de um material linguístico concreto — a história da língua, a
gramática normativa, a elaboração de um tipo de dicionário, a estilística da língua etc. —
lida inevitavelmente com enunciados concretos (escritos e orais), que se relacionam com as
diferentes esferas da atividade e da comunicação: crônicas, contratos, textos legislativos,
documentos oficiais e outros, escritos literários, científicos e ideológicos, cartas oficiais ou
pessoais, réplicas do diálogo cotidiano em toda a sua diversidade formal, etc. É deles que os
pesquisadores extraem os fatos linguísticos de que necessitam. Uma concepção clara da
natureza do enunciado em geral e dos vários tipos de enunciados em particular (primários e
secundários), ou seja dos diversos gêneros do discurso, é indispensável para qualquer
estudo, seja qual for a sua orientação específica. Ignorar a natureza do enunciado e as
particularidades de gênero que assinalam a variedade do discurso em qualquer área de
estudo linguístico leva ao formalismo e à abstração, desvirtua a historicidade do estudo,
enfraquece o vínculo existente entre a língua e a vida. A língua penetra na vida através dos
67
enunciados concretos que a realizam, e é também através dos enunciados concretos que a
vida penetra na língua.
Aproveitando, portanto, esses subsídios teóricos, proponho-me aqui a estudar o gênero
das letras de samba considerando suas seguintes facetas:
1) características sócio-históricas — o que há na situação de comunicação, no
modo de interação entre produtor(es) e receptor(es) do texto, ou mesmo na identidade social
desses atores discursivos, que condiciona a produção do texto;
2) características macroestruturais — as temáticas abordadas, o nível de
linguagem, características estruturais genéricas das letras de samba;
3) características microestruturais — o que há de específico no uso dos recursos
gramaticais no gênero em questão; neste estudo, enfatizarei o aspecto lexical.
Os fatores sócio-históricos que influenciaram no desenvolvimento do gênero letra de
samba já foram suficientemente expostos anteriormente. Gostaria apenas de recuperar a
dicotomia básica empregada por Roberto M. Moura (2004), a partir das categorias de Roberto
DaMatta: “casa” e “rua”. Essas duas ambiências constituem polos essenciais das práticas de
samba, determinando o desenvolvimento de gêneros.
O ambiente da casa, das relações de intimidade, sem preocupações de formalidade,
mas nem por isso descomprometida com padrões de comportamento, é sistematizado na
seguinte citação:
Sentaram-se, lado a lado, Paulão (violão 7 cordas), Cláudio Jorge (violão), Henrique Cazes
(cavaquinho), Moacyr Luz (violão) e, completando a roda, Dorina, Beto Cazes (pandeiro),
Djalma Corrêa (tamborim), Luiz Carlos da Vila (que preferiu ficar batendo com um garfo
numa garrafa e na mesa) e Cláudio Camunguelo, que se revezava cantando, tocando
tamborim e solando com sua flauta.
Bem, esses estavam sentados em volta da grande mesa. Atrás deles, em pé, ficaram os
simpatizantes. Notava-se um clima saudável e amistoso de competição. Todos se engajavam
com naturalidade e improvisavam diante da criação alheia — mas todos pareciam o tempo
todo aguardar o momento de mostrar algo seu também. Na euforia geral, percebia-se que o
compositor ou músico que estava em determinado momento no centro da roda regozijava-se
com a aprovação geral.
Como de hábito, havia certo clima de “julgamento” no ar, tanto com relação à performance
quanto com relação à legitimação de uma nova canção. Nenhum sambista abre mão de fazer
o “teste” das novas produções com os pares. É junto a eles que se vai buscar a certeza do
acerto, a confirmação de integração da música com os seus ideais de vida e arte.
Aconteceu exatamente assim quando Moacyr cantou O tocador é bom (CD Mandingueiro,
Dabliú Discos, 1998). Todos pareciam muito felizes repetindo “bate a caixa, bate no tambor /
Santa Cecília protege o tocador”. Quando Moacyr terminou, o cavaquinista e produtor
fonográfico Henrique Cazes disse que “uma roda de samba tipicamente carioca, assim como
essa, é algo que oscila entre uma coisa extremamente simples, como pode ser o samba de
partido-alto, versado, e uma coisa muito sofisticada”.
Foi neste momento que Camunguelo começou um solo dolente em sua flauta — e os outros
instrumentos foram rapidamente se somando a ela, os músicos embevecidos a cada frase
melódica enunciada. Com algum atraso, Pedro Amorim, músico de várias cordas e muitos
arranjos e produções, empunhou o cavaquinho e foi se acomodando à flauta de Camunguelo.
Antes de começar a tocar, emocionado com a reunião, definiu o samba como algo agregador.
“O samba une as pessoas — e, quando as pessoas se unem por causa do samba, elas estão se
juntando por causa de muitas outras coisas também, trocando impressões, sentimentos e
68
criatividade.”
Uma dessas muitas coisas é a tradição, como demonstra a adesão contagiante de toda a roda
ao samba em que Cláudio Jorge proclamava “eu não quero saber o que você vai fazer
amanhã / já peguei meu cavaco, cuíca, pandeiro, viola e tantã / o que você vai fazer, já fiz. /
Já cantei partido-alto na Vila, Portela e na Imperatriz / vi Candeia e Dona Ivone cantando o
melhor samba de raiz / vi Paulinho da Viola tirando da mala o taco e o giz / o que você vai
fazer, já fiz”. (MOURA, 2004, p. 24-25.)
O outro ambiente importante para a composição e circulação de sambas é o que
corresponderia à “rua”, representado principalmente pela escola de samba como instituição
oficial do universo do samba carioca, combinada a outros âmbitos, como os da apresentação
artística e da gravação profissional de composições para comercialização. Eis a sistematização
de Moura (2004, p. 30-1):
É (...) dentro de casa que, durante todo o século XX, os principais sambistas aprendem, desde
cedo, a ter aquele tipo de música como paisagem sonora — a soundscape de Murray Schafer.
Só com a escola de samba é que se pode afirmar que o samba chega efetivamente à rua, no
sentido sociológico do termo, chega a um espaço não apenas externo mas estranho.
Do mesmo modo que “é possível ler o Brasil de um ponto de vista da casa” (DaMatta), é
possível lê-lo através da roda. Inclusive para separá-la da escola de samba, que nasce como
“casa” mas se transforma em “rua”. Assim, na casa/roda, “as leituras ressaltam a pessoa”.
Já na escola/rua, há uma ênfase no indivíduo, os discursos são muito mais rígidos e
instauradores de novos processos sociais. É o idioma do decreto, da letra dura da lei, da
emoção disciplinada que, por isso mesmo, permite a exclusão, a cassação, o banimento, a
condenação.
[...] a roda, em si, não é vendável, passível de se transformar em produto. O samba, sim —
ainda mais fazendo da escola o seu veículo, como percebe Samuel Araújo, numa “interação
— muitas vezes tensa — entre a expressão comunitária do samba e seu aspecto comercial”. É
essa interação, que caminha numa direção na escola (mais pragmática e mercantil) e noutra
na roda (mais utópica e amadora), que instaura “uma questão teórica de dimensões mais
sérias do que poder-se-ia pensar em princípio”.
A atividade dos bambas do Estácio, na direção do disco, e Paulo da Portela, na direção da
mídia e da institucionalização do desfile, com sua consequente aceitação do samba pelas
autoridades, impõe essa visão de mão dupla ao conceito de Araújo. Provavelmente o samba-
enredo seja o exemplo máximo dessa interação. A escola aceita submeter-se às regras
institucionais, infundindo caráter histórico e nacionalista às músicas do desfile, mas formata-
as segundo sua própria experiência musical, fiel à “expressão comunitária do samba”.
Uma das principais diferenças determinadas com a circulação mais ampla das letras de
samba é que os sambistas não mais compunham para uma audiência restrita, que
compartilhava os mesmos referenciais culturais. Passaram a se comunicar com diversos
grupos sociais, que ao mesmo tempo não compartilhavam os mesmos códigos de valores e
tinham curiosidade (que por vezes descambava para o gosto do pitoresco) relativamente ao
universo sociocultural do samba. A influência dessa mudança de contrato discursivo será
apreciada em diferentes lugares da seção de análise de dados deste trabalho.
As diferentes ambiências nas quais sambas eram apresentados também motivaram a
formulação de modalidades dessas composições, a partir de suas funções e das temáticas
abordadas. Relacionarei a seguir algumas delas:
samba de partido-alto: uma das modalidades mais tradicionais. Muito cultivado na
69
roda de samba, constitui-se basicamente de um refrão cantado em coro e de partes
improvisadas por dois ou mais versadores. As partes improvisadas podem seguir o
tema do refrão, ou guardar menos relação com ela; podem, ainda, tornar-se
provocações entre os disputantes — essa prática frequentemente tem tom de desafio.
Eis um exemplo:
Bagaço da Laranja (Arlindo Cruz e Zeca Pagodinho)
Fui no pagode / Acabou a comida / Acabou a bebida / Acabou a canja / Sobrou pra mim / O
bagaço da laranja / Sobrou pra mim / O bagaço da laranja (BIS) //
Me disseram que no céu / A mulher do anjo é anja / Eu falei pra você / Sobrou pra mim / O
bagaço da laranja / Sobrou pra mim / O bagaço da laranja //
Vou engomar meu vestido / Todo enfeitado de franja / Eu falei pra você / Sobrou pra mim / O
bagaço da laranja / Sobrou pra mim / O bagaço da laranja //
Fui no pagode / Acabou a comida / Acabou a bebida / Acabou a canja / Sobrou pra mim / O
bagaço da laranja / Sobrou pra mim / O bagaço da laranja //
Eu te dou muito dinheiro / E tudo você esbanja / Eu já disse a você / Sobrou pra mim / O
bagaço da laranja / Sobrou pra mim / O bagaço da laranja //
Olha lá seu Coronel / O soldado que é peixe, se enganja / E o que sobrô pra mim / O bagaço
da laranja / Sobrô pra mim / O bagaço da laranja //
Toma cuidado Pretinha / Que a polícia já te manja / Eu já disse a você / Sobrou pra mim / O
bagaço da laranja / Sobrou pra mim / O bagaço da laranja //
Não lhe dou mais um tostão / Vê se você se arranja / Eu falei pra você / Sobrou pra mim / O
bagaço da laranja / Sobrou pra mim / O bagaço da laranja //
Só caroço de azeitona / Que veio na minha canja / Eu já disse a você / Sobrou pra mim / O
bagaço da laranja / Sobrou pra mim / O bagaço da laranja //
Vou vender minha fazenda / Vou vender a minha granja / Eu falei pra você / Sobrou pra mim
/ O bagaço da laranja / Sobrou pra mim / O bagaço da laranja //
Você sempre foi solteira / Um marido não arranja / Eu já disse a você / Sobrou pra mim / O
bagaço da laranja / Sobrou pra mim / O bagaço da laranja //
Fui no pagode / Acabou a comida / Acabou a bebida / Acabou a canja / Sobrou pra mim / O
bagaço da laranja / Sobrou pra mim / O bagaço da laranja (BIS)
A prática do partido-alto costuma tornar os sambistas grandes improvisadores. Um
caso famoso do exercício dessa destreza é o da composição da segunda parte de Recado,
samba de terreiro que foi apresentado, ainda com apenas uma parte, por Paulinho da Viola em
um encontro de compositores da Portela. O padrinho da Velha Guarda da Portela cantou
algumas vezes a primeira parte e, após um curto espaço de tempo, Casquinha completou-a, de
improviso:
Recado (Paulinho da Viola e Casquinha)
Leva o meu recado / A quem me deu tanto desamor / Diz que eu vivo bem melhor assim / E
que no passado eu fui um sofredor / Agora já não sou... O que passou, passou / Agora já não
sou... O que passou, passou //
Vai dizer a minha ex-amada / Que é feliz o meu coração / Mas que nas minhas madrugadas /
Eu não esqueço dela não / Leva o recado!
(CASQUINHA, 2001)
samba duro, batucada ou pernada: outra modalidade tradicional. Nesta, dois
participantes enfrentam-se, tentando desequilibrar o oponente com pernadas; enquanto
isso, a assistência, geralmente em roda, canta refrões populares. Esta composição de
70
Candeia descreve o ambiente:
Batuqueiro (Candeia)
Abre a roda, moçada, que o samba é pesado / Sim, meu senhor / Batuqueiro que é bamba não
é derrubado / Sim, meu senhor / Se cair, se levanta de bico calado / Sim, meu senhor /
Batuqueiro de roda não fica sentado / Sim, meu senhor
Quem sai na chuva vai se molhar / Quem vai pro samba / Vai pra sambar / A batucada já
começou / O samba é duro, / Mas sambar eu vou
Abre a roda, moçada, que eu vim da favela / Sim, meu senhor / Sai da porta, menino, e não
abre a janela /
Sim, meu senhor / Este samba é pra homem, não é pra donzela / Sim, meu senhor / O Marçal
está pensando, esperando por ela / Sim, meu senhor
Quem sai na chuva vai se molhar...
Abre a roda, moçada, que o samba é pesado...
Abre a roda, moçada, que eu vim da favela / Sim, meu senhor / Levo para a comadre uma
rosa amarela / Sim, meu senhor /
Venho lá de Mangueira e ainda vou na Portela / Sim, meu senhor / Vi o nego comendo farofa
amarela / Sim, meu senhor
Quero ver a comida que tem na panela...
(PAULINHO DA VIOLA, 1968.)
samba de terreiro: o terreiro é um espaço fundamental para a prática do samba,
conceituado da seguinte forma no Dossiê das matrizes do samba no Rio de Janeiro,
elaborado pelo Centro Cultural Cartola (2007, p. 31):
O terreiro, amplamente definido, foi e é um espaço sociocultural de grande importância para
o samba. ‘Terreiro’ pode ser o quintal de Tia Ciata, do mesmo modo como a palavra designa
popularmente a casa de candomblé, e pode se referir também aos fundos de quintal dos
subúrbios cariocas. As rodas de samba que agregavam (e ainda agregam) parentes, amigos,
vizinhos num grande congraçamento afetivo e musical funcionavam (e ainda funcionam)
também como momentos de intensas trocas culturais, realizadas sobretudo através da
música. Assim, o terreiro do samba é um espaço de sociabilidade, no qual os sambistas se
encontram, trocam ideias, histórias e sambas.
Mas o terreiro, num sentido mais restrito, designa especificamente a área comum de uma
escola de samba. Dado o papel fundamental (propriamente matricial) das escolas, desde os
anos 1930, na constituição do samba, o samba de terreiro define-se como aquele feito para
consumo interno das mesmas, ou, por assim dizer, como o lado de dentro do samba
organizado. A roda de samba, quando no terreiro, é, então, mais específica do que outras
rodas de samba, pois está associada à estrutura das escolas de samba e às suas formas de
organização social e musical.
O terreiro de escola de samba (ou quadra, como passou a ser chamado após o
calçamento, pois deixou de ser um espaço de terra) é, portanto, o local de reunião coletiva de
um grupo integrante de uma dessas agremiações. O samba de terreiro é prática que atende à
função sociomusical de ser um elemento favorecedor da recreação e da fruição musical do
grupo que se reúne nesse espaço. Ainda segundo o dossiê mencionado, esse tipo de
composição não tem características estilísticas fixas, sendo reconhecido pelos sambistas a
partir da sua finalidade.
Apesar disso, distinguem-se no documento dois subtipos principais: um que é mais
próximo do samba de partido-alto, com uma primeira parte fixa e a segunda aberta a
improvisações — a diferença é que a primeira costuma ser mais extensa do que no partido-
71
alto
39
; um que tem partes fixas, sendo uma composição elaborada previamente, geralmente
sem improviso.
Há uma grande liberdade temática nessas composições, mas a exaltação das escolas de
samba é uma das mais frequentes. Eis um exemplo, dedicado à Mangueira:
Capital do samba (José Ramos)
Chegou a capital do samba / Dando boa noite com alegria / Viemos apresentar o que
Mangueira tem / Mocidade, samba e harmonia / Nossas baianas com seus colares e guias /
Até parece que estou na Bahia / Até parece que estou na Bahia
Da cidade alta da Mangueira / Avisto a Vila tenho saudades de alguém / Até parece que eu
estou em São Salvador / Avistando o que a Bahia tem / É minha maior alegria / Até parece
que estou na Bahia / Até parece que estou na Bahia
(CENTRO CULTURAL CARTOLA, 2007)
samba-canção: modalidade de grande difusão, caracterizada por andamento lento e
temática frequentemente amorosa — é um dos tipos de samba em que comumente o
sambista se dedica ao lirismo, à expressão de aspectos do sentimento de amor. Foi
muito difundido em gravações fonográficas a partir da década de 1930. Eis um célebre
exemplo composto por Cartola:
As rosas não falam
Bate outra vez / Com esperanças o meu coração / Pois já vai terminando o verão, enfim
Volto ao jardim / Com a certeza que devo chorar / Pois bem sei que não queres voltar para
mim
Queixo-me às rosas, mas que bobagem / As rosas não falam / Simplesmente as rosas exalam /
O perfume que roubam de ti, ai
Devias vir / Para ver os meus olhos tristonhos / E, quem sabe, sonhava meus sonhos / Por fim
(CARTOLA, 1976)
samba de breque: variedade caracterizada por ritmo sincopado e paradas na música,
nas quais o intérprete encaixa comentários falados. Esse tipo de samba é associado à
figura do malandro e geralmente aborda assuntos ligados ao mesmo universo —
crônicas do cotidiano, narração de valentias, problemas com a polícia etc.; um traço
lexical conforme aos já registrados é o emprego de gírias. Segue um exemplo,
registrado como de Moreira da Silva, mas possivelmente comprado de Geraldo
Pereira, o verdadeiro compositor
40
:
Na subida do morro
Na subida do morro, me contaram (breque) / Que você bateu na minha nega / Isto não é
39
Esses sambas, com o tempo, tiveram a segunda parte fixada, no mesmo processo já descrito em 1.2.3.1. É interessante,
entretanto, que apesar da fixação, ainda resiste um “potencial de improviso”, com inclusão de outras estrofes a partir de
motivações surgidas em ocasiões específicas (cf. CENTRO CULTURAL CARTOLA, 2007, p. 33).
40
Cf. SOUZA, Tárik de (Org.). O som do Pasquim. Rio de Janeiro: Desiderata, 2009, p. 206.
72
direito / Bater numa mulher que não é sua (breque) / Deixou a nega quase crua (breque) / No
meio da rua / A nega quase que virou presunto (breque) / Eu não gostei daquele assunto
(breque) / Hoje venho resolvido / Vou lhe mandar para a cidade de pé junto (breque) / Vou
lhe tornar em um defunto
Você mesmo sabe que já fui um malandro malvado (breque) / Somente estou regenerado
(breque) / Cheio de malícia / Dei trabalho à polícia pra cachorro (breque) / Dei até no dono
do morro (breque) / Mas nunca abusei de uma mulher que fosse de um amigo (breque) /
Agora me zanguei consigo (breque) / Hoje venho animado / A lhe deixar todo cortado / Vou
dar-lhe um castigo (breque) / Meto-lhe o aço no abdome e tiro fora / o seu umbigo (breque)
“Aí meti-lhe o aço, hum! Quando ele ia caindo disse: Moringueira você me feriu. Eu então
disse-lhe: É claro, você me desrespeitou, mexeu com a minha nega. Você sabe quem em casa
de vagabundo malandro não pede emprego. Como é que você vem com xavecada, está
armado; eu quero é ver gordura que a banha está cara. Aí meti a mão lá na duana, na
peixeira, é porque eu sou de Pernambuco, cidade pequena, porém decente, peguei o
Vargolino pelo abdome, desci pelo duodeno, vesícula biliar e fiz-lhe uma tubagem; ele caiu,
bum, todo ensanguentado. E as senhoras como sempre nervosas: Meu Deus esse homem
morre, moço. Coitado olha aí está se esvaindo em sangue. Ora minha senhora, dê-lhe óleo
canforado, penicilina, estreptomicina crebiosa, engrazida e até vacina Salk. Mas o homem já
estava frio; agora o malandro que é malandro não denuncia o outro, espera para tirar a
forra. Então diz o malandro:”
Vocês não se afobem que o homem desta vez não vai morrer (breque) / Se ele voltar dou pra
valer (breque) / Vocês botem terra nesse sangue / Não é guerra / É brincadeira (breque) /
Vou desguiando na carreira (breque) / A jungusta já vem / E vocês digam que eu estou me
aprontando (breque) / Enquanto eu vou me desguiando (breque) / Vocês vão ao distrito / Ao
delerusca, se desculpando (breque) / Foi um malandro apaixonado / Que acabou se
suicidando.
(MACALÉ, 2001)
samba sincopado: tipo de samba muito relacionado ao samba-choro. Ambos os tipos
costumam enfatizar o virtuosismo musical, com melodias elaboradas e ritmo
quebrado. Tem circulação comercial, mas também é muito associado à roda de samba
(e até mesmo à roda de choro, exclusivamente instrumental). Com relação às temáticas
e à inflexão linguística, costuma aproximar-se do samba de breque. Eis uma
composição de Geraldo Pereira, grande expoente do gênero:
Escurinho (Geraldo Pereira)
O escurinho era um escuro direitinho / Que agora tá com essa mania de brigão / Parece
praga de madrinha ou macumba / De alguma escurinha que lhe fez ingratidão
Saiu de cana ainda não faz uma semana / Já a mulher do Zé Pretinho carregou / Botou
embaixo o tabuleiro da baiana / Porque pediu fiado e ela não fiou
Já foi no Morro da Formiga procurar intriga / Já foi no Morro do Macaco e lá bateu num
bamba / Já foi no Morro dos Cabritos provocar conflitos / Já no foi no Morro do Pinto pra
acabar com o samba
(PEREIRA, 1980)
samba-enredo: modalidade intrinsecamente relacionada à escola de samba, é composta
para servir de base musical para o desfile da escola de samba. A letra desse samba
deve ser coerente com o tema abordado no desfile; assim, os elementos plásticos
presentes nas fantasias e alegorias devem complementar os lítero-musicais do samba-
enredo. A letra costuma ser grandiloquente, associando-se ao samba-exaltação, outra
variedade que se diferencia por não ter o propósito de ser executado no desfile de
73
carnaval. Eis um exemplo, composto por Silas de Oliveira:
Aquarela Brasileira (Silas de Oliveira)
Vejam essa maravilha de cenário / É um episódio relicário / Que o artista num sonho genial /
Escolheu para este carnaval
E o asfalto como passarela / Será a tela do Brasil em forma de aquarela / Passeando pelas
cercanias do Amazonas / Conheci vastos seringais / No Pará, a ilha de Marajó / E a velha
cabana do Timbó / Caminhando ainda um pouco mais / Deparei com lindos coqueirais /
Estava no Ceará, terra de Irapuã / De Iracema e Tupã
Fiquei radiante de alegria / Quando cheguei na Bahia / Bahia de Castro Alves, do acarajé /
Das noites de magia, do candomblé / Depois de atravessar as matas do Ipu / Assisti em
Pernambuco / A festa do frevo e do maracatu
Brasília tem o seu destaque / Na arte, na beleza, arquitetura / Feitiço de garoa pela serra /
São Paulo engrandece a nossa terra / Do leste, por todo o Centro-Oeste / Tudo é belo e tem
lindo matiz / No Rio dos sambas e batucadas / Dos malandros e mulatas / De requebros
febris
Brasil, essas nossas verdes matas / Cachoeiras e cascatas / De colorido sutil / E este lindo
céu azul de anil / Emoldura em aquarela o meu Brasil
As temáticas abordadas são outro elemento macroestrutural relevante para a
caracterização do gênero letra de samba. Neste estudo, discriminam-se sete áreas temáticas
principais, que serão consideradas sistematicamente na análise dos dados
41
:
Relações amorosas: diversos aspectos do amor entre duas pessoas — o cortejo e o
inebriamento amoroso; a convivência conjugal; os ciúmes e conflitos; o rompimento e
as desilusões; o lamento e o desejo de não se apaixonar novamente etc.
Cotidiano: crônicas de acontecimentos; perfis de comportamento; o anseio pela justiça
social; crítica de valores.
Metalinguagem: homenagens ao samba e a sambistas afamados; a ambiência da roda
de samba e da escola e samba; manifestos artísticos relacionados às práticas do samba;
criações expressivas a partir de recursos de linguagem, principalmente verbal.
Reflexões existenciais: considerações a respeito da vida, das experiências; balanço dos
aprendizados e conquistas, assim como das desilusões; extravasamento de emoções
relacionadas a episódios de vida.
Brasil: nacionalismo; elementos da cultura brasileira; paisagem natural brasileira;
homenagem a cidades, principalmente o Rio de Janeiro.
Natureza: elementos da paisagem natural, geralmente numa abordagem poética, que se
diferencia da nacionalista, pois esta retrata a natureza como patrimônio nacional.
Aqui, a natureza é capaz de comover e inspirar o compositor.
74
Religiosidade: perspectiva mística, envolvendo entes de diferentes culturas. Louvor a
santos, orixás, exposição de princípios morais etc.
Fique claro que as áreas temáticas delimitadas não são estanques. Há possibilidade de
certas letras abordarem mais de uma delas.
Duas outras características macroestruturais desse subgênero, que o inscrevem no
gênero dominante “letra de canção”, são 1) a sua natureza intersemiótica — a letra e a música
são interdependentes; devem ser complementares; nessa relação, frequentemente a música é
condicionante, pois costuma ser composta primeiro, e a letra adequada à música já existente.
Assim, a métrica e, por vezes o esquema de rimas da letra tem de estar em consonância com
traços musicais (esses fatores são apontados como importantes para distinguir a letra de
canção do poema); 2) uma ligação com a oralidade, pois a linha melódica da canção é
associada às curvas entonacionais da fala, o que confere à canção popular um “sabor
prosaico”. Esses são elementos explorados no estudo de Costa (2003).
Quanto ao nível microestrutural, mais especificamente às características lexicais das
letras de samba, gostaria de ressaltar três traços empiricamente conhecidos do léxico do
samba, que serão observados ao longo da análise de dados:
As letras (principalmente as que têm o próprio samba como temática) apresentam
vocábulos que constituem um “vocabulário de especialidade do samba” —
designações de instrumentos musicais, modos de dançar, instituições como a escola de
samba ou outros elementos relacionados a esse universo referencial.
Também há vocábulos que não são típicos dessa atividade, mas que denotam outros
elementos socioculturais relacionados ao samba. Tal é o caso, por exemplo, das
palavras que remetem à cultura popular, ou a elementos da cultura afro-brasileira
.
Finalmente, há vocábulos que não são especializados, mas constituem subsistemas
semânticos empregados nesse gênero textual. Palavras como, por exemplo, orgia,
amizade e malandro não costumam ter nesses textos o mesmo valor que se observa no
uso geral da língua: orgia refere-se a reuniões festivas e não a eventos de prática
sexual, como costuma ser a referência mais comum. Da mesma forma, amizade em
muitos sambas não é o sentimento de afeição ou simpatia, mas sim a própria relação
41
Para informações sobre os critérios de delimitação das áreas temáticas, veja-se a seção de metodologia deste trabalho.
75
amorosa, ou o sentimento entre amantes. Malandro, mais do que alguém avesso ao
trabalho ou de comportamento malicioso, é um dos grandes protagonistas desse meio,
caracterizado, além dos traços mencionados anteriormente, pelas habilidades musicais
e pela sua condição social.
Com relação a esses itens, considera-se que, principalmente no que diz respeito à
identificação da letra de samba com traços mais marcantes da cultura popular, a
caracterização precisa ter em conta os diferentes contratos discursivos em pauta — quando o
ato de discurso se dirige a um público do mesmo grupo social, ou tem espaço em uma
situação marcada pela valorização da cultura popular, parece esperável que se encontrem os
traços mencionados.
Entretanto, em situações mais formais e marcadas por um público socialmente
heterogêneo, os usos lexicais, além de serem comedidos em relação a esses traços, podem até
mesmo revelar rebuscamento, numa busca por corresponder a padrões linguísticos mais
aceitos na sociedade.
As observações aqui registradas sobre o subgênero textual letra de samba trazem
diretrizes que nortearão a análise de dados. No terceiro capítulo, serão consideradas em mais
detalhes as características aqui delimitadas.
76
2 — METODOLOGIA
2.1 - Constituição do corpus
Conforme já foi esclarecido anteriormente, o corpus projetado neste estudo é
constituído de composições de sambistas atuantes no Rio de Janeiro, representativos de um
período inaugural do gênero musical na cidade. Há, portanto, três variáveis principais que
foram consideradas:
1) Musical e de representatividade – só foram consideradas letras de composições de
sambistas. A conceituação de sambista que adotei é baseada no seguinte arrazoado de Moura
(2004, p. 67-8):
Sambista não é só quem faz samba. Aliás, sequer se precisa fazer samba para ser sambista. O
mestre-sala Delegado, da Mangueira, é sambista. A falecida pastora Paula do Salgueiro era.
Em contrapartida, há compositores de sambas geniais, como Dorival Caymmi ou o já citado
Ary Barroso cuja história não se dá exclusivamente dentro do samba ou das escolas de
samba.
O sambista canta, toca e dança o samba com uma naturalidade de berço, muito mais,
portanto, do que as noções dicionarizadas e incompletas (no Aurélio, confunde-se sambista
com sambeiro, o que é inaceitável numa roda de samba; a segunda palavra tem conotação
declaradamente pejorativa e quase sempre se refere a algum “estrangeiro”; e sambista é
apenas o “exímio dançarino de samba” e/ou “compositor de samba”; no Houaiss, é “pessoa
que samba”, “componente de escola de samba” e/ou “compositor de samba”).
42
Esse conjunto de sentimentos e vivências, enfim, faz do samba uma forma de expressão que
extrapola os limites musicais.
Essas considerações reforçam a percepção, já explicitada na introdução, da
necessidade de as obras lexicográficas abordarem os conceitos relativos ao samba em
particular, e à cultura popular em geral, mais abalizadamente. Moura (2004, p. 68) prossegue
seu raciocínio:
Mais: mesmo que se possa circunscrevê-lo nos limites estritos do gênero musical, o samba
pode e deve ser inscrito para além do especificamente musical, na categoria mais abrangente
42
Tanto o sufixo -eiro quanto -ista podem indicar, entre outras possibilidades, o agente de uma determinada atividade, como
se vê em leiteiro, porteiro, copeiro, lixeiro etc. e em dentista, romancista, maquinista, cartunista etc. Como se pretende
demonstrar nessas listas, -ista costuma ser mais usado para atividades com maior nível de especialização (mas não só, como
se vê em balconista, por exemplo), enquanto -eiro é reservado majoritariamente a atividades de menos especialização (mas
não exclusivamente, como se vê em engenheiro, por exemplo). Em certos casos, como em manobrista/manobreiro, há
possibilidade de uso indistinto entre os dois, como sinônimos; já em sambista/sambeiro, há uma carga pejorativa no segundo
elemento do par, que pode se reproduzir em outros casos relativos ao exercício de habilidades musicais, como
pianista/pianeiro e flautista/flauteiro. Violonista/violeiro não necessariamente revela pejoratividade no segundo elemento —
nesse caso marca-se principalmente a distinção entre músico erudito e popular.
Esses valores de -eiro e -ista estão analisados em mais detalhes no artigo Sufixos formadores de profissões em português: -
ista X –eiro: uma oposição, de Cláudia Assad Álvares (disponível em: http://www.filologia.org.br/viiicnlf/anais/caderno04-
14.html).
77
do evento múltiplo.
Por permitir que todos se sintam “em casa”, é simultaneamente reunião social, apresentação
coreográfica, exercício lúdico de criação e improviso de versos, espaço de ouvir e cantar, de
comer e beber, de interação, enfim. Diversos sambas, repito, dão conta dessas funções
secundárias da roda de samba [...]. Embora ligado ao prazer e ao divertimento, o samba
forma valores, estabelece normas de conduta e referências comportamentais.
Neste estudo, portanto, sambistas não são apenas aqueles que compõem ou são
dançarinos de samba. A despeito de a habilidade de composição ser muito relevante no
presente estudo, alia-se a ela a integração íntima com o universo do samba, com um sistema
de vivências e valores que institui um ethos do sambista, como foi esclarecido por Moura.
Adicionalmente, sambista também não é quem compõe obrigatoriamente sambas. Seu
enquadramento na categoria passa prioritariamente pelo desenvolvimento de uma identidade
sociocultural afinada ao universo do samba, o que costuma determinar que as composições
desses artistas sejam majoritariamente sambas, mas isso não é uma condição sine qua non.
Essa diversidade musical se verifica no corpus, onde se encontram, além de sambas, marchas
de carnaval, xotes, lundus e outros gêneros.
Os três sambistas estudados aqui atendem aos critérios que acabaram de ser propostos:
são pessoas integradas à vida de suas comunidades (o Estácio no caso de Ismael, a
Mangueira, no de Cartola, Oswaldo Cruz, no de Paulo da Portela); são fundadores e líderes de
escolas de samba (quem menos se dedicou a esse tipo de instituição foi Ismael, que apesar de
ser um dos fundadores da Deixa Falar, via incompatibilidade entre a vida de compositor
profissional e a participação em escolas de samba, principalmente como autor de sambas); são
compositores em cuja obra encontram-se majoritariamente sambas.
Devo esclarecer que o levantamento dessas composições não foi exaustivo, mas
indispensavelmente representativo da produção de cada autor (contempla os principais
parceiros e temáticas, as músicas de maior projeção etc.).
2) Geográfica – os sambistas cujas composições integram o corpus não são
necessariamente cariocas, mas as letras registradas foram produzidas depois que passaram a
residir na cidade do Rio de Janeiro.
Ismael Silva nasceu em Jurujuba, Niterói. Cartola e Paulo da Portela, apesar de não
terem nascido exatamente na região onde se notabilizaram como compositores, são cariocas.
3) Cronológica – este último critério também ajudou a orientar a escolha dos sambistas
em estudo. Tentou-se selecionar compositores nascidos aproximadamente no mesmo período.
Considerando-se as precondições expostas nos dois itens anteriores, a primeira década do
78
século XX foi delimitada como a época de nascimento de sambistas que tiveram atuação
fundamental na institucionalização do samba urbano carioca e participaram do
desenvolvimento da indústria fonográfica brasileira na década de 30, com composições que
contribuiram para firmar o gênero como produto cultural e, num contexto político propício,
expressão musical profundamente identificada com a cultura brasileira. Essa é a década de
nascimento de Paulo da Portela (1901-1949), Ismael Silva (1905-1978) e Cartola (1908-
1980).
2.2 – Consulta a acervos e obras de referência
Partindo da seleção dos compositores, o estudo passou à fase de consulta a acervos de
instituições de referência, biografias dos sambistas estudados e registros fonográficos que
deveriam integrar o corpus de estudo.
As instituições de referência visitadas foram a Biblioteca Nacional, o Museu da
Imagem e do Som, a biblioteca da UNIRIO (Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro) e o Instituto Moreira Salles.
A consulta ao acervo de música da Biblioteca Nacional foi frutífera, principalmente no
que concerne ao acervo de partituras. Por meio da consulta a esse acervo, foi possível anotar
letras de composições de Ismael Silva e Cartola. Não foram encontradas partituras de
composições de Paulo da Portela.
O acervo discográfico da Biblioteca Nacional também foi consultado, mas esse
material não trouxe novidades em relação às outras fontes discográficas disponíveis.
A consulta à discoteca do Museu da Imagem e do Som trouxe novidades,
principalmente no que diz respeito a gravações de composições de Ismael Silva. Não havia
gravações de músicas compostas por Paulo da Portela e as de Cartola eram redundantes às
obtidas por outras fontes.
O acervo de fonogramas do Instituto Moreira Salles está digitalizado e foi consultado
pela internet. Essas consultas trouxeram informações novas relativas aos três compositores
pesquisados.
A consulta à biblioteca da UNIRIO não foi frutífera no que concerne ao acervo de
partituras. Nessa instituição foi possível, entretanto, pesquisar algumas obras de referência,
como O Brasil do samba-enredo, de Monique Augras, para apuração de elementos que
79
ajudaram a elucidar dúvidas relativas à letra de composições e à sua datação.
Foi de fundamental importância a consulta a biografias dos compositores estudados,
elaboradas por Barboza da Silva e Lygia Santos (Paulo da Portela: traço de união entre duas
culturas), Barboza da Silva e Oliveira Filho (Cartola: os tempos idos), Candeia e Araújo
([Monografia sobre Paulo da Portela apresentada ao concurso de monografias da Funarte]),
Carvalho (Ismael Silva: samba e resistência) e Soares (São Ismael do Estácio: o sambista que
foi rei). A partir dessas obras, foi possível obter letras de composições inéditas e também
anotar discografias e relações de composições, para referência sobre a extensão da obra de
cada um deles.
Por fim, o acesso pela internet a páginas pessoais de colecionadores que deixam suas
discotecas digitalizadas disponíveis para consulta foi um recurso riquíssimo para
conhecimento de discos esgotados e verdadeiras raridades que, de outro modo, provavelmente
não teriam sido encontrados.
2.3 - Transcrição das composições
Para a transcrição das canções que compõem o corpus, hierarquizaram-se as fontes
como mais ou menos prioritárias para o registro das letras. Inicialmente, a ordem de
prioridades seguida seria a seguinte:
teriam prioridade máxima os fonogramas que trouxessem gravações do próprio
compositor interpretando uma composição sua. Essa seria a situação ideal de
documentação;
em segundo lugar, teriam prioridade registros das biografias, cujos autores tivessem
recolhido uma letra de determinada canção, de preferência citando o depoente que
informara a letra, ou o acervo em que foi obtida;
em terceiro lugar, seriam aproveitadas partituras que registrassem a letra da canção, ou
gravações feitas por outros intérpretes que não o próprio compositor, com preferência para
as mais antigas, realizadas por cantores identificados com o universo do samba.
Esse sistema de prioridades foi seguido dentro do possível, mas em alguns casos teve
de ser alterado. Eis como funcionou na prática:
Cartola é o sambista para cuja obra os princípios funcionaram melhor: ele foi um
80
intérprete razoavelmente assíduo das próprias composições, teve um número considerável de
discos gravados e manteve grande consistência na interpretação das letras, que dificilmente
varia.
A biografia Cartola: os tempos idos, já mencionada, traz outras composições, que na
época da publicação permaneciam inéditas — muitas ainda o são. Além disso, a obra de
Cartola mereceu ampla documentação, com edição de partituras, gravações de diversos
intérpretes e obras comemorativas publicadas com frequência.]
Entre os intérpretes que gravaram composições suas, algumas delas inéditas, estão
Nelson Sargento, Elton Medeiros, Paulinho da Viola, Clementina de Jesus, a Velha Guarda da
Mangueira e o conjunto A voz do morro. Adicionalmente, há disponibilidade de obras
comemorativas confiáveis, como os discos História das escolas de samba — Mangueira
(1974); Cartola entre amigos (1984); Cartola: documento inédito (1982); A música brasileira
deste século por seus autores e intérpretes: Cartola (2000).
A consulta a essas fontes resultou na recolha de aproximadamente 130 letras que
compõem o corpus.
A pesquisa das letras de Ismael Silva trouxe alguns problemas. Ismael não foi o
intérprete preferencial de suas composições: elas geralmente eram registradas pelos principais
cantores da época, como Francisco Alves e Mário Reis. As gravações com Ismael Silva
cantando geralmente trazem discrepâncias em relação às originais, seja na supressão de
alguma estrofe, seja em reformulações da letra feitas pelo compositor, seja em montagens
decorrentes de pot-pourris. Percebendo isso, decidi dar prioridade às gravações originais, que
traziam uma versão mais segura.
Ismael gravou menos discos do que Cartola. Segundo as discografias consultadas
43
,
apenas três são integralmente do compositor: O samba na voz do sambista (1955), Ismael
canta... Ismael (1957) e Se você jurar (1973).
A biografia de Ismael também traz registros de letras do compositor e uma discografia,
com a relação de gravações das suas composições, apesar de não ter uma seção destinada a
composições inéditas, como ocorre com as obras dedicadas a Cartola e Paulo da Portela.
43
DICIONÁRIO CRAVO ALBIN DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA. Disponível em www.dicionariompb.com.br;
CLIQUEMUSIC EDITORA LTDA. Disponível em www.cliquemusic.com.br
; INSTITUTO MEMÓRIA MUSICAL
BRASILEIRA (IMMUB). Disponível em www.memoriamusical.com.br
.
81
Há gravações de canções de Ismael Silva (também menos numerosas do que as
dedicadas a composições de Cartola), feitas por intérpretes como Alcione, Cristina Buarque,
Elton Medeiros, Monarco, MPB-4 e Hermínio Bello de Carvalho. Também são encontráveis
algumas homenagens — A música brasileira deste século por seus autores e intérpretes:
Ismael Silva (2000), Ismael Silva: peçam bis (1988).
A ordem de prioridade das fontes para composições de Ismael Silva foi, portanto: 1)
gravações originais de outros intérpretes; 2) registros de biografias e partituras; 3) gravações
do próprio compositor; 4) gravações de intérpretes contemporâneos.
A consulta a essas fontes resultou na coleta de cerca de 80 composições de Ismael
Silva.
A obra de Paulo da Portela foi aquela de documentação mais problemática. Sua
biografia só registra 17 composições gravadas até 1978, nenhuma delas pelo próprio autor. A
escassez de registros se explica pelas causas já mencionadas na primeira parte deste trabalho:
apropriação por terceiros e falta de documentação adequada, principalmente.
Diante disso, as biografias de Paulo da Portela assumem tremenda importância. São
esforços fundamentais de recolha de composições do sambista, a partir de depoimentos de
contemporâneos. Posteriormente, muitas das composições registradas foram gravadas,
principalmente pela Velha Guarda da Portela.
As gravações disponíveis para sambas de Paulo da Portela, não muito numerosas, são
devidas, além da já mencionada Velha Guarda da Portela, a Monarco, Candeia, Clementina de
Jesus, Paulinho da Viola, Cristina Buarque, João Nogueira e conjunto A voz do morro.
O levantamento da obra de Paulo da Portela resultou em aproximadamente 70 letras
transcritas que integram o corpus.
Quanto à transcrição propriamente dita, cabe esclarecer alguns códigos usados:
para compactar as letras e facilitar o processamento automático, representaram-se as
mudanças de verso com barras ( / ), suprimindo-se as quebras de linha;
a mudança de estrofe foi indicada por barras duplas ( // ), com quebra de linha;
trechos que são objeto de dúvida estão transcritos entre parênteses. Indica-se dessa
forma a necessidade de posterior estabelecimento da versão definitiva, a partir de
informações mais precisas;
trechos que foram considerados ininteligíveis estão indicados com reticências entre
parênteses: (...). Também são pendências para elucidação posterior.
82
2.4 – Outras informações
Em todas as transcrições estabelecem-se a fonte e uma delimitação cronológica, entre
outros esclarecimentos. Segue uma relação dessas informações:
a) Título: o nome da música, apurado a partir das mesmas fontes detalhadas no item (f)
adiante.
Quando se encontrou discrepância nos títulos de algumas canções, registraram-se
todas as variantes, com a mais frequentemente registrada em primeiro lugar.
No caso de músicas sem título, registrou-se o primeiro verso, ou, dependendo da
extensão, os dois primeiros versos, para identificação da canção.
b) Autor: o(s) nome(s) daquele(s) que foi(foram) registrado(s) como compositor(es) da
música. Nos casos de discrepâncias, deu-se preferência às informações contidas nas biografias
impressas.
Cabe aqui um esclarecimento sobre o registro de autoria nos casos de compra de
parceria, assunto já abordado em 1.2.3.1. Conforme já foi dito, essa era uma prática corrente
nas primeiras décadas de atuação dos compositores pesquisados e geralmente não era atitude
condenada, ou considerada anti-ética — como já se esclareceu, intérpretes como Francisco
Alves e Mário Reis pagavam para ter seu nome registrado como autores, para divulgar a
música e garantir o recebimento de direitos pela comercialização das gravações.
Sérgio Cabral (1996, p. 272-3) ilustra essa relação narrando um encontro de Mário
Reis com Cartola, décadas depois de o cantor ter comprado parceria de Infeliz sorte, por 300
mil réis (evento já narrado em 1.2.4):
num jantar em homenagem ao crítico e historiador Lúcio Rangel, que fazia 60 anos,
informei ao cantor Mário Reis, sentado ao meu lado, que Cartola estava chegando. “Quem?
O mestre Cartola?”, espantou-se o cantor. Levantou-se e, espalhafatosamente — apesar de
discretíssimo para cantar —, saudou Cartola assim:
– Mestre Cartola! Há 35 anos tenho uma notícia para lhe dar: sabe aquele samba que lhe
comprei por 300 mil-réis? Só me rendeu 250 mil-réis!
A citação mostra como a relação comercial era publicamente reconhecida, assim como
as passagens citadas em 1.2.3.1 mostram que compositores declaravam abertamente que os
compradores de parceria não tinham participação nas composições.
83
Neste estudo, os registros de autoria são feitos tal como estão nos catálogos das
gravadoras e nos acervos das instituições de referência consultadas — com os nomes dos
compradores de parcerias. Só é importante ter em mente que, nas composições que integram
este corpus, nomes como Francisco Alves e Mário Reis geralmente só indicam a compra da
parceria por esses cantores e não indicam participação efetiva na composição.
Quanto às parcerias póstumas, caracterizadas pela composição de segundas partes para
sambas compostos no modelo antigo — apenas com a primeira parte fixa e com a segunda
destinada ao improviso —, decidi desconsiderar os acréscimos posteriores, entendendo que
representam outro momento de criação, fora do escopo deste estudo.
c) Data: delimitação cronológica mais aproximada possível da composição. Na maioria das
vezes, a informação disponível era a data da primeira gravação.
Quando essa data não estava disponível, buscaram-se indicações que pudessem trazer
especificações cronológicas, como por exemplo, o tema da música.
Eis um exemplo: a composição Cadeira vazia, de Cartola e Nuno Veloso, feita em
homenagem a Noel Rosa, é registrada por Barboza da Silva e Oliveira Filho (2003, p. 110-
111) sem data especificada. A primeira parte foi feita por Cartola, “anos depois da morte de
Noel”; a datação ficou sendo, portanto, “d1937”.
Quando nenhuma referência presente na letra ou esclarecida sobre a concepção da
música ajudava a delimitar uma datação, adotou-se um período delimitado pelo início da vida
artística do compositor e pela sua morte.
Para Paulo da Portela, o período adotado foi 1922-1949 — o momento inicial é a
fundação do bloco Baianinhas de Oswaldo Cruz.
Para Ismael Silva, delimitou-se o período 1922-1978 — o momento inicial é quando,
segundo a sua biógrafa, começou a frequentar o meio dos sambistas.
Para Cartola, o período é 1928-1980 — o marco inicial é a fundação da Mangueira.
d) Suporte: base física na qual as informações consultadas estão registradas. Pode ser, neste
caso, um disco, um livro ou uma partitura.
e) Tema: esse rótulo simplificado corresponde, na verdade, a áreas temáticas amplas
delimitadas indutivamente, a partir da análise do conteúdo das letras, e também
dedutivamente, a partir da leitura de Lopes (2003), Vianna (2002), Vargens e Monte (2001),
Sandroni (2001), Cabral (1996) e Conforte (2007), entre outros. Elas são sete ao todo:
84
relações amorosas; metalinguagem; reflexões existenciais; cotidiano; Brasil; natureza;
religiosidade. Essas áreas temáticas são a base do estudo feito na análise qualitativa do
corpus.
f) Obra: no caso de livros ou discos, o título correspondente. No caso de partituras, apenas o
registro “partitura”; os títulos das partituras coincidem com os das músicas, que são
registrados em outro campo.
As seguintes fontes foram usadas para apuração de títulos, principalmente de discos e
canções:
discografias publicadas nas biografias dos três compositores, já mencionadas
anteriormente;
o livro A canção no tempo: 85 anos de músicas brasileiras, de Jairo Severiano e Zuza
Homem de Mello, especialmente o vol. 1, dedicado à produção do período 1901-1957;
o Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira (disponível em
www.dicionariompb.com.br);
a discografia do site do Instituto de Memória Musical Brasileira
(www.memoriamusical.com.br);
a discografia do site da pesquisadora Maria Luiza Kfouri
(www.discosdobrasil.com.br);
a discografia do site da empresa CliqueMusic Editora Ltda, especializada em música
brasileira (www.cliquemusic.com.br);
as discografias publicadas do site da jornalista Daniella Thompson
(http://daniv.blogspot.com/);
a discografia de Cartola, publicada no site do Centro Cultural Cartola
(www.cartola.org.br).
Essas mesmas fontes também foram importantes para apurar outras informações
relativas às composições, também registradas como observações.
g) Editora ou gravadora: a empresa responsável pela publicação.
As editoras em questão podem se dedicar à publicação de material textual (impresso
ou digital) ou de material musical (impresso em partitura ou gravado em áudio, para
85
publicação em disco ou em formato digital)
44
:
A editora de publicações textuais é a empresa responsável pela editoração do texto, o
que inclui a preparação do original para reprodução, além da publicação e distribuição do
livro, revista, jornal etc.
Há uma polissemia envolvida na conceituação de editoras de publicações musicais e
ela retrata o desenvolvimento da indústria musical — 1) inicialmente, editora era a empresa
responsável pela publicação de partituras musicais; 2) posteriormente, com o
desenvolvimento das técnicas de gravação de discos, passou a ser também a empresa que os
edita (ou seja, prepara as matrizes, faz a reprodução e distribuição dos discos); nessa acepção,
a atuação da editora equivale à da gravadora — nome da empresa especializada encarregada
dessas atividades; 3) enfim, a editora também é a empresa que administra os direitos dos
autores das composições que publica, controlando a arrecadação e repassando percentuais a
quem tem direito pela composição e pela gravação. Essa função de administração de direitos
autorais também é exercida pela editora de publicações textuais.
Neste estudo, dependendo de se a letra de determinada composição foi retirada de um
livro, de uma partitura ou de um disco, a informação se aplica a um dos casos estabelecidos
anteriormente.
h) Intérprete: quem canta a música registrada no disco. Como já foi dito, buscou-se dar
preferência a intérpretes mais identificados com o meio do samba.
Mais uma vez as fontes que ajudaram a estabelecer o intérprete das canções são as do
item (f), além da própria audição das gravações.
Nos casos dos registros retirados de livros e partituras, não se registra essa informação.
2.5 - Processamento do corpus
Para essa etapa do estudo, vali-me de procedimentos preconizados pela Linguística de
Corpus, para o processamento automático da grande quantidade de dados recolhidos.
A maior parte do processamento dos dados foi feita por meio do software Wordsmith
Tools, um programa computacional que contém uma série de ferramentas úteis para análise
44
Cf. RABAÇA, Carlos Alberto e BARBOSA, Gustavo Guimarães. Dicionário de comunicação. 2. ed. rev. e atual. Rio de
Janeiro: Campus, 2001, s.v. editora; editoração; gravadora.
86
das características lexicais de corpora de grande extensão.
Duas obras foram usadas como referência para uso do programa: Linguística de
corpus, de Tony Berber Sardinha (2004) e o manual Oxford Wordsmith Tools - version 4.0,
elaborado por Mike Scott (2007).
Os procedimentos realizados foram os seguintes:
2.5.1 - Obtenção de listas de palavras
Usando-se a ferramenta wordlist, obtive listas de palavras do corpus como um todo e
de cada uma das áreas temáticas separadamente. O wordlist sempre fornece três resultados
diferentes para cada conjunto de dados: uma lista de palavras ordenada por frequência de
ocorrência, outra lista ordenada alfabeticamente e uma terceira tela, com dados estatísticos
gerais, como o número de palavras de cada texto, o número de itens lexicais aos quais essas
ocorrências correspondem (aqui o programa agrupa as repetições de ocorrências,
apresentando o número total sem as repetições — por exemplo, em “O João viu o Pedro”,
haveria cinco ocorrências e quatro itens lexicais — [cf. BEBER SARDINHA, 2004, p. 94-5]).
Com o intuito de alcançar os objetivos deste estudo, a análise enfocará as unidades
lexicais, em detrimento das gramaticais
45
. Serão considerados, assim, os substantivos,
adjetivos, verbos e advérbios em “-mente”. As demais unidades só terão parte no estudo se
integrarem unidades lexicais complexas, ou representarem marcas discursivas relevantes para
a elucidação da significação daqueles outros elementos.
Além dessas unidades lexicais, incorporei também as interjeições e expressões
interjetivas na análise. Elas são interessantes pelo forte ancoramento situacional e pela função
eminentemente expressiva (AZEREDO, 2000, p. 149).
Excluí da análise os verbos instrumentais, que exprimem noções gramaticais e têm
conteúdo lexical esvaziado. É o caso dos verbos de ligação (ser, parecer, estar, ficar, tornar-
se, continuar etc.), dos auxiliares aspectuais (começar a, pôr-se a, acabar de seguidos de
infinitivo; estar, ficar, viver seguidos de gerúndio etc.) e dos auxiliares modais (poder, dever,
ter de, ir, seguidos de infinitivo)
46
. Entretanto, outros usos desses verbos, não correspondentes
45
Cf. AZEREDO, José Carlos de. Fundamentos de gramática do português. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000, p. 33-4 para
uma exposição das diferenças entre essas unidades.
46
Ibidem, p. 177. Os exemplos relacionados acima também são do autor.
87
aos instrumentais, foram contemplados.
Feitas essas delimitações, preparou-se uma lista das unidades a eliminar, para que o
programa as excluísse automaticamente da lista de palavras. Eis uma tela de resultados, já
com as eliminações feitas.
Trata-se da lista criada a partir das letras da área temática “metalinguagem”. Essa é a
tela que apresenta as ocorrências por ordem de frequência. Ao lado de cada item lexical,
segue-se o número total de ocorrências no corpus; o percentual que relaciona esse número de
ocorrências ao total de palavras dos textos nos quais foram encontradas; o número de textos
com ocorrências; o percentual dos textos em que houve ocorrências em relação ao universo
total de textos do corpus; a lista de ocorrências agrupadas em uma entrada principal, por
lematização.
2.5.2 - Depreensão de palavras-chave
Esse procedimento foi realizado a partir da ferramenta keywords do programa
utilizado. A ferramenta executa uma comparação estatística entre o corpus de estudo e um
88
outro corpus, de referência, usado para, por contraste, realçar as características relevantes dos
dados estudados.
Há duas recomendações relevantes para a constituição do corpus de referência: 1) que
ele seja de um gênero diferente do estudado — o que é especialmente relevante no presente
caso, pois o que se quer é depreender o que há de mais característico em um corpus
especializado, composto majoritariamente por letras de samba —; 2) que seja pelo menos
cinco vezes maior do que o corpus principal (BERBER SARDINHA, 2004, p. 96-105).
Tendo isso em vista, compôs-se um corpus de estudo a partir de artigos de opinião e
editoriais dos jornais O Globo e Folha de São Paulo, recolhidos entre setembro e dezembro
de 2007.
A cada fim de semana, com exceção apenas das semanas entre 03 e 09 de dezembro e
entre 24 e 30 de dezembro, os artigos dos colunistas fixos do jornal O Globo, que são
publicados ao longo da semana, foram copiados, assim como os editoriais de sábado e de
domingo. No caso da Folha de São Paulo, recolhiam-se todos os artigos e editoriais do
sábado e do domingo. Essa diferença se deve ao fato de a quantidade de artigos de opinião nas
edições de fim de semana da Folha ser maior do que a encontrável n'O Globo — isso fazia
com que, no caso daquele jornal, se conseguisse um volume maior de textos que atendessem
aos critérios estabelecidos por buscas apenas no sábado e no domingo. A obtenção dos artigos
foi feita por cópia e colagem a partir das edições dos jornais publicadas na internet.
A escolha de textos jornalísticos para o corpus de referência justifica-se por esse
domínio discursivo apresentar gêneros textuais caracterizados por um registro linguístico e
por temáticas razoavelmente diferentes do que se encontra na letra de canção popular. O
contraste cronológico também é produtivo — a maioria das canções estudadas foi composta
na primeira metade do século XX e os textos jornalísticos são do início do século XXI.
Para obter palavras-chave a partir do keywords, é preciso criar listas de palavras dos
dois corpora mencionados e, em seguida, acionar a comparação estatística. A seguir, a tela
com os resultados obtidos a partir da comparação da lista de palavras da área temática
“metalinguagem” com o corpus de referência:
89
A primeira coluna traz a lista de palavras-chave depreendidas pela confrontação dos
corpora. Na segunda, registra-se a frequência do item no corpus de estudo; em seguida,
encontra-se a porcentagem desse item relativamente a todo o corpus de estudo. Na coluna
posterior, encontra-se a frequência do item no corpus de referência. A coluna seguinte,
destinada ao registro do percentual correspondente à representatividade do item em relação ao
corpus de referência, está em branco; isso deve ser porque nesse caso o percentual é muito
baixo: esse corpus conta com 26.019 itens. Dessa forma, as palavras-chave listadas
representam menos de 0,1% das ocorrências nele.
As duas colunas seguintes representam informações estatísticas mais aprofundadas
(cálculo de log-likelihood e de significância estatística) que não cabe aqui abordar.
Para a análise léxico-discursiva prevista para a próxima seção, além da depreensão de
palavras-chave, serão considerados outros itens lexicais de alta frequência que não figuram no
resultado dessa confrontação estatística; também serão incorporados alguns dos hápax
legomena
47
encontrados, ocorrências mais raras que podem merecer atenção. O conhecimento
empírico do corpus e o estudo desenvolvido na análise qualitativa (principalmente sobre a
47
Os hápax são unidades lexicais que ocorrem apenas uma vez em um determinado universo documental. Cf. HOUAISS e
VILLAR, 2001, s.v. hápax.
90
recorrência de lexias relacionadas a determinados campos semânticos) nortearão a seleção
dessas unidades.
2.5.3 - Elaboração de concordâncias
Em Linguística de Corpus, “concordância”, decalque do inglês concordance, é uma
listagem “das ocorrências de um item específico (chamado palavra de busca ou nódulo, que
pode ser formado por uma ou mais palavras) acompanhado do texto ao seu redor (o cotexto).”
(BERBER SARDINHA, 2004, p. 105).
Essas listas, elaboradas pela ferramenta Concord, são úteis para a análise das
ocorrências contextualizadas, assim como para a obtenção automática dos exemplos que serão
apresentados na análise léxico-discursiva.
A seguinte tela de concordância traz os resultados para a lexia samba, na área temática
“metalinguagem”:
Essa tela de resultados teria outras colunas, com espaços para anotações do
pesquisador, informações sobre a posição da ocorrência no texto em estudo, informações
sobre o arquivo de texto de onde saiu o registro etc. Entretanto, neste trabalho, esse tipo de
91
resultado será usado apenas para observação da ocorrência no cotexto e para obtenção de
abonações.
2.6 – Conceitos operacionais
Esclarecidos os procedimentos de estruturação e transcrição do corpus, assim como os
de processamento automático dos dados, resta ainda abordar alguns conceitos operacionais
que serão úteis na análise dos dados: a unidade lexical complexa; o campo semântico; a
existência de um vocabulário de especialidade característico do samba carioca; a
intertextualidade e a interdiscursividade.
2.6.1 – Unidades lexicais complexas
O embasamento para tratar desse assunto implicou o exame de três vertentes teóricas
principais: os estudos de morfologia lexical, os estudos lexicológicos tradicionais e os novos
estudos lexicais.
Morfologia lexical
Busquei referências desse domínio teórico em Sandmann (1992), Monteiro (1987) e
Petter (2003).
A morfologia lexical ocupa-se, entre outros temas, do estudo dos processos de
formação de palavras. Como o morfema é a unidade teórica básica considerada nesses estudos
— ao menos naqueles de linha estruturalista —, a descrição dos processos de formação de
palavras não costuma extrapolar o limite da lexia composta.
As unidades lexicais complexas, formadas a partir da combinação de outras unidades
lexicais, estaria, assim, fora do escopo da morfologia lexical.
Estudos lexicais tradicionais
No que diz respeito a esse domínio de estudo, busquei embasamento na obra de
Bernard Pottier:
92
a lexia é uma unidade lexical da língua que se opõe às reuniões fortuitas no discurso; por
exemplo: cavalo, cavalo-vapor, cavalo-marinho, cavalo de frisa são unidades já dadas na
língua e não foram criadas pelo locutor no momento da elaboração de seu discurso.
48
O conceito de lexia de Pottier admite, portanto, três variedades:
1 lexias simples: cadeira, para, comia;
2 lexias compostas: saca-rolhas, verde-garrafa, rés-do-chão;
3 lexias complexas: guerra fria, complexo industrial, tomar medidas;
Além desses tipos principais, o autor ainda menciona a existência de lexias textuais,
como os hinos, preces, provérbios etc.
Pottier diferencia lexias rígidas, sequências memorizadas invariáveis, como “meter a
mão”, “caso de honra”, “onde vai a corda vai a caçamba”, de lexias variáveis, compostas de
“um quadro estável e de uma zona instável”, como “tudo leva a pensar/crer/supor que”.
Nessa abordagem encontram-se princípios fundamentais para o estudo das unidades
pluriverbais, que outros teóricos também levariam em conta posteriormente: 1) o caráter fixo
de algumas combinatórias lexicais — o fato de serem unidades pré-fabricadas, usadas pelos
falantes sem a necessidade de combinação palavra a palavra —; 2) o fato de o significado das
lexias complexas não corresponder exatamente à soma dos significados das suas unidades
componentes — o que alguns autores denominam idiomaticidade
49
.
Novos estudos lexicais
Os autores nos quais me baseei foram Sanromán (2001), Tagnin (2005) e Borba
(2003).
Do estudo das três abordagens, podem-se depreender alguns pontos gerais de
concordância:
1 – o uso de critérios formais e semânticos para delimitar unidades lexicais —
procedimentos usados desde Pottier;
2 – a concepção de que as unidades lexicais complexas formam um contínuo, que vai
das combinações completamente livres até as de maior fixidez;
3 – a convicção de que é preciso compor um corpus e tratá-lo a partir de ferramentas
computacionais automáticas, com o objetivo de alcançar uma abordagem indutiva para o
estudo e conseguir observar padrões em grandes quantidades de dados.
48
“la lexie est une unité lexicale de langue qui s’oppose à ce qu’il appelle une réunion fortuite de discours; par exemple:
cheval, cheval-vapeur, cheval marin, cheval de frise sont des unités données en langues et n’ont pas à être créées par le
locuteur au moment de l’élaboration de son discours.” POTTIER, Bernard (Ed.). Le Langage. Paris: Denoel, 1973, s.v. lexie,
apud Sanromán (2001, p. 152) [tradução minha].
49
Cf. TAGNIN, Stella E. O jeito que a gente diz. São Paulo: Disal, 2005, p. 15-16.
93
Ao lado desses pontos de confluência entre as abordagens, também se observa que
1) o secionamento do contínuo de unidades lexicais complexas em categorias difere de
um autor para outro — tal fato é coerente com a ideia de que a delimitação das variedades de
lexias complexas não é completamente regular;
2) a terminologia empregada também varia de autor para autor.
Com base nessas constatações, decidi seguir mais de perto, neste estudo, a
categorização de Sanromán para o agrupamento das unidades encontradas.
Categorização das unidades lexicais complexas
Com base em Sanromán (2000, p.169-183; 253-260), exporei as características
principais de quatro tipos dessas lexias:
Frasemas completos
Trata-se de combinações regulares de dois ou mais lexemas, no nível gramatical — a
combinação é feita segundo os princípios da língua.
Quanto ao caráter restrito ou irrestrito da combinação, percebe-se que ela não é livre
— o significado do todo só é expresso pela união desses elementos, que não podem ser
substituídos.
No nível semântico, percebe-se que o significado do frasema como um todo não
corresponde à soma regular dos significados dos seus lexemas componentes. O significado
não é depreensível componencialmente (significado A + significado B significado 'AB').
Eis alguns exemplos, colhidos no corpus estudado:
O meu nome já caiu no esquecimento / O meu nome não interessa a mais ninguém
[Paulo da Portela, O meu nome já caiu no esquecimento]
Ele está mesmo dançando na corda bamba
/ Ele é aquele que na escola de samba / Toca
cuíca, toca surdo e tamborim [Ismael Silva, Antonico]
O subúrbio está é bom, / Venham ver, não é história / Se por ventura estou errado / Dou
a mão à palmatória. [Paulo da Portela, Para que havemos de mentir]
Juca Malvado para completar o crime / Não consentiu que a cabocla / Visse mais a luz
do dia. [Cartola, Juca Malvado]
Esses são os casos de maior grau de idiomaticidade. É mais fácil perceber a carga
semântica desses frasemas se se observa seu cunho metafórico, ou metonímico:
frequentemente trata-se de metáforas e metonímias estereotipadas, que já se tornaram usuais
para a comunidade de falantes.
94
Quase-frasemas
No nível gramatical, os quase-frasemas também são formados por combinação regular
de dois ou mais lexemas.
Quanto ao significado, os combinados mantêm seus conteúdos individuais. Surge,
entretanto, um outro significado específico para a combinação, que não corresponde
simplesmente à soma dos significados das unidades, mas a uma especialização dessa
articulação de significados.
Devido a essa especialização semântica, a combinatória dos lexemas torna-se bastante
restrita — geralmente não pode sofrer modificações sem perder a especificação.
Seguem alguns exemplos depreendidos do corpus:
Aceite um conselho de amigo / Não queiras ter tão triste fim / Eu sei que a vida de quem
ama é assim [Lincoln de Almeida e Paulo da Portela, Conselho]
Ele é aquele que na escola de samba
/ Toca cuíca, toca surdo e tamborim [Ismael Silva,
Antonico]
Festa da Penha Uma camisa e um terno usado / Alguém me empresta [Cartola, Festa da
Penha]
Orgulho, hipocrisia, vaidade e nada mais / São coisas que em menos de um segundo
se
desfazem [Paulo da Portela, Quem espera sempre alcança]
Percebe-se que conselho de amigo, mais do que simplesmente um aconselhamento
feito por um amigo, torna-se, especificamente, um novo tipo de conselho, mais valioso do que
os triviais.
Da mesma forma, em vários lugares se pode ensinar samba. Entretanto, uma escola de
samba é uma instituição específica, cuja caracterização vai além do ensino de samba.
O mesmo tipo de especialização se verifica nos outros exemplos apresentados.
Semi-frasemas ou colocações
As colocações também são combinações gramaticalmente regulares de dois ou mais
lexemas. Seu significado inclui a carga semântica regular de um dos elementos, somada à
irregular do(s) outro(s) elemento(s). Assim como nas outras unidades pluriverbais, a
combinação entre esses elementos não é completamente livre, apesar de esta ser a modalidade
menos restritiva das três analisadas até aqui.
Há quatro subtipos de semi-frasemas:
a) Um dos lexemas tem significado esvaziado e funciona principalmente como suporte
sintático para o outro lexema. O elemento semanticamente esvaziado é geralmente um verbo:
Ninguém te dá valor / Ninguém de ti tem dó/ Não queres o amor / De uma pessoa só
[Ismael Silva, Com a vida que pediste a Deus]
95
Quem faz esse apelo / É um pobre trovador / Que se inspira na rosa / Pra fazer canções
de amor [Paulo da Portela, Linda borboleta]
Compare essa falsa amizade / Com a tempestade, não perca a esperança
[Lincoln de
Almeida e Paulo da Portela, Conselho]
Eu sou tão infeliz – bem sei! / Mas ainda tenho fé
/ Que hei de te ver chorar / Quando
souberes amar / Como eu te amei!... [Ismael Silva, Novo amor]
Percebe-se, nesses exemplos, que, com o esvaziamento do significado, os verbos-
suporte mantêm uma carga semântica mais abstrata: o verbo dar traz a noção de transferência;
fazer traz a ideia de agentividade; ter e perder trazem noções contrárias — aquele indica um
tipo de experimentação (ter carinho, ter vontade de [fazer algo], ter saudades...), enquanto
este indica o fim dessa experimentação (perder a vontade, perder a esperança, perder a
graça). Contudo, o significado principal está nos elementos nominais que se ligam a esses
verbos.
b) Um dos lexemas tem significado diferente dos primitivos que são considerados, por
exemplo, nos dicionários. Essa unidade só apresenta o significado específico observado
quando em combinação com o outro lexema em questão. Não é incomum que os dicionários
considerem que esses são significados figurados, quando os registram. Na proposta de
Sanromán, entretanto, não se trata de uso figurado, mas de combinatória de palavras — o
assunto deixa, portanto, de ser puramente semântico para se tornar lexical.
Viemos de Bento Ribeiro para batizar / Unidos do Morro Azul em primeiro lugar / Esse é
o nosso ideal / Queremos ver brilhar no carnaval. [Paulo da Portela, Homenagem ao
Morro Azul]
Chora, cavaquinho, chora / Chora, violão
, também / O Paulo no esquecimento não
interessa a mais ninguém [Paulo da Portela, O meu nome já caiu no esquecimento]
Se algum dia tiver de mim compaixão / Que alegria vai ser no meu coração
[Paulo da
Portela e Heitor dos Prazeres, Cantar para não chorar]
Pequena, tu vais ao samba
/ Ver as línguas que falam de mim / Sem razão [Cartola, Tu
vais ao samba]
Samba, no exemplo, não é o gênero musical, mas sim o evento festivo durante o qual
se cantam e dançam sambas, além de outros gêneros musicais; esse significado é selecionado
pela combinação do substantivo com o verbo ir. O mesmo se dá com o verbo chorar em
combinação com instrumentos musicais, como violão e cavaquinho: seu significado, em vez
de verter lágrimas, passa a ser o de soar plangentemente.
c) Um dos lexemas mantém o significado dicionarizado, mas, na combinação em
questão, é a palavra preferencial para veicular aquele significado:
Assim é o amor, / Quando é fiel de parte a parte [Paulo da Portela e Monarco, Este
mundo é uma roleta]
96
Porque teu beijo / Ou molhado ou enxuto / Uma dúzia por minuto / Ainda não me satisfaz
[Ismael Silva, Coisa louca]
Não Não, não // Toda a culpa cabe a nós dois / Insistimos nesse amor / Sabendo que
íamos sofrer / Depois [Cartola e Aluísio Dias, Não]
Cocorocó, o galo
cantou / Levanta, nego, tá na hora de tu ir pro batedor [Paulo da
Portela, Cocorocó]
Rolam nos meus olhos / Lágrimas
sentidas / Somente em saber / Que te perdi por toda a
vida [Cartola, Rolam nos meus olhos]
A existência de combinações preferenciais entre substantivos e adjetivos, verbos e
advérbios etc. é uma das grandes dificuldades experimentadas por quem vai aprender uma
segunda língua. Nos exemplos acima, por exemplo, a voz do galo, em vez de cantar, não
deveria ser gritar, ou urrar. O beijo, por sua vez, pode ser qualificado como molhado, mas
não é usual dizer que é encharcado ou úmido; o adjetivo babado, apesar de possível, traz uma
carga pejorativa não correspondente à de molhado.
d) Um dos lexemas mantém o significado dicionarizado, mas sua carga semântica
inclui necessariamente o lexema combinado — o colocado só costuma ser usado com
referência ao núcleo da colocação:
É tão triste um adeus, uma despedida / Vê se apieda-te, Deus / Cura-me esta ferida
[Cartola, Partiu]
Rolam nos meus olhos / Lágrimas sentidas / Somente em saber / Que te perdi por toda a
vida [Cartola, Rolam nos meus olhos]
Não vivo só de carinho / Fizeste boa promessa / Foi assim nessa conversa / Que me
enganei direitinho
[Ismael Silva, Nilton Bastos e Francisco Alves, Ironia]
Pra que foste embora / Por ti tudo chora / Sem teu amor / Esta vida mão tem mais valor
[Ismael Silva, Noel Rosa e Francisco Alves, Adeus]
O verbo apiedar-se, além de ter Deus como sujeito, só admite alguns substantivos que
impliquem relações muito assimétricas de poder.
Entre outras possibilidades, o verbo ir integra o lexema complexo ir embora; já o
advérbio embora ocorre quase exclusivamente nessa combinação — a única outra
possibilidade é a de mandar embora.
A combinação dos colocados com as bases nesses casos é, portanto, crescentemente
restritiva.
Pragmatemas
Diferentemente dos casos expostos anteriormente, no dos pragmatemas tanto a
combinação dos componentes como a formação do significado da lexia podem ou não ser
regulares — há combinações cristalizadas cuja articulação gramatical pode ser considerada
irregular, assim como a formação do significado do todo a partir das partes.
Essas unidades lexicais têm como característica marcante a restrição situacional. Seu
97
uso é condicionado pela situação e traz indicações sobre a relação entre os falantes, ou suas
intenções comunicativas.
Outro ponto importante é que os pragmatemas em alguns casos podem ser
monoverbais.
Esse grupo inclui marcadores conversacionais, fórmulas de rotina, provérbios,
citações, slogans etc.
a) Fórmulas de rotina:
O teu orgulho / Algum dia há de acabar / Tudo com o tempo passa / A sorte é Deus
quem dá [Ismael Silva e Francisco Alves, Me faz carinhos]
Vai-se um amor e vem outro
/ Nunca vi coisa tão certa [Ismael Silva e Francisco Alves,
Me faz carinhos]
Ele é aquele que na escola de samba / Toca cuíca, toca surdo e tamborim / Faça por ele
como se fosse por mim [Ismael Silva, Antonico]
Se não gostarem / Não digam nada a ninguém
/ Senão os outros não vão me escutar
também [Ismael Silva, Peçam bis]
Aqui no meu sertão / esses casos nunca vi
/ Pois foi o primeiro e talvez o derradeiro / Só
em vê-lo, francamente / Eu também me comovi [Cartola, Juca Malvado]
Retratos meus / eu sempre tenho que dar! / Quem lhe contou / Interpretou muito mal... /
Só mesmo Deus / É capaz de escapar / Da língua desse pessoal!...
[Ismael Silva, Não vá
atrás de ninguém]
b) Marcadores conversacionais e fórmulas de tratamento:
Nem notícias eu tenho / Da mulher que tanto venero / Deus meu, foi embora / Não sei
onde mora / Notícias espero [Cartola, Partiu]
Cantando um hino em louvor / O mano Paulo dando viva ao Claudionor [Paulo da
Portela, Cantar de um rouxinol]
Levanta, nego
, tá na hora de tu ir pro batedor [Paulo da Portela, Cocorocó]
ô, nega
, me deixa dormir, eu hoje estou muito cansado [Paulo da Portela, Cocorocó]
c) Provérbios e citações (ou paremias):
Nesta bandeira afamada / Não falta mais nada / Pede estudo, / Ordem e
Progresso [Cartola, Carlos Cachaça e Arthur Faria, Brasil, terra adorada]
Analisando essa história / Cada vez mais me embaraço / Quanto mais longe do
circo / Mais eu encontro palhaço. [Ismael Silva, Contrastes]
Levando em conta as informações decorrentes deste estudo das unidades lexicais
complexas, entendo que a consideração de fatores como o uso frequente de “unidades pré-
fabricadas”, assim como de combinações preferenciais entre lexemas, é uma contribuição
importante para um melhor entendimento do funcionamento dos usos lexicais.
O tratamento lexicográfico das unidades lexicais complexas também precisa de uma
abordagem baseada em corpus, para que se enfatizem as mais frequentes, que devem ter
prioridade para tratamento nos dicionários.
98
2.6.2 – Campo semântico e campo lexical
Esses conceitos, amplamente utilizados em análises lexicais, apresentam algumas
diferenças de uma abordagem para outra. Apresentarei aqui algumas conceituações, para me
situar com relação aos procedimentos deste trabalho.
Para Genouvrier e Peytard (1985, p. 318-36), campo lexical refere-se ao agrupamento
de palavras, sintagmas ou lexias a partir de uma determinada experiência humana, seja
técnica, prática ou racional. Como lembra Valente (1999, p. 57), tal conceito se aproxima do
de jargão: haveria o campo lexical da aviação, o da navegação fluvial, o da indústria etc.
Alguns dos fenômenos que teriam importância no estudo dos campos lexicais, a partir
dessa conceituação, seriam 1) os empréstimos a línguas estrangeiras e a outras áreas técnicas,
determinadas pela existência de palavras e expressões especializadas que têm seu uso
ampliado nesses âmbitos — por exemplo, há o caso das palavras de língua inglesa,
características da informática, que são apropriadas por outras línguas e em outras áreas
técnicas como, por exemplo, a tecnologia da informação e a educação à distância; 2) as
mudanças de domínio lexical de palavras que originalmente eram de um campo específico e,
posteriormente, passaram a ser usadas por toda a comunidade de falantes — é o caso, por
exemplo, do verbo abordar, que da marinha passou, ao uso comum, em colocação com um
elemento nominal que designe um assunto a ser tratado; 3) as relações de oposição, identidade
ou associação de uma unidade lexical com outras que lhe são relacionadas semanticamente ou
contextualmente — por exemplo, as associações entre aluno, professor, aula, livro, teste e
escola, ou entre os verbos falar, dizer, comunicar, explicar, afirmar, reafirmar, avisar,
argumentar, omitir, contradizer-se, desdizer e negar, ou ainda entre amor e verdadeiro, de
carnaval, não-correspondido, romântico, perfeito, inabalável, prova de..., mensagem de...,
declaração de... etc.
Os mesmos autores entendem que campo semântico é o conjunto de significações
assumidas por uma palavra, sintagma ou lexia, a partir do emprego em diferentes contextos
observáveis. Constituído um corpus de estudo, é possível, por exemplo, estudar o campo
semântico do verbo passar, considerando-se 1) os seus usos interjectivos, para espantar
animais (Passa, cachorro!) ou pedir a bola em um jogo de futebol (Passa!); 2) seus sentidos
de deslocar-se (algo ou alguém), tendo em vista um ponto de referência ou a perspectiva de
um observador (o carro passou por aqui), de transpor um limite, considerando-se as
99
dimensões do objeto e as do próprio limite (a estante passou pela porta), de perder o efeito (a
febre passou) etc.; 3) características sintáticas, como a estrutura de argumentos selecionados
pelo verbo em cada sentido e os traços semânticos desses argumentos — humano, não-
humano, agente, paciente, locativo etc.; 4) transformações sintáticas possíveis, como
apagamento do sujeito, preenchimento do sujeito pelo paciente, em vez do agente (a carta
passou rapidamente às mãos do diretor); 5) características morfológicas e lexicais, como a
possibilidade de nominalização do verbo em determinados contextos (a passagem do carro)
50
.
Na abordagem de Câmara Júnior (1992, s.v. léxico), os conceitos são um pouco
diferentes.
Para o autor, campo semântico é uma das formas pelas quais as palavras se
distribuem no léxico. Trata-se de “associações de significação para um certo número de
semantemas, como os termos para cor, para partes do corpo animal, para os fenômenos
meteorológicos etc.”
Família léxica ou família de palavras, segundo a terminologia do autor, é “um
agrupamento classificatório de determinadas palavras de uma língua consideradas cognatas
em sua forma radical e significação, como consequência de possuírem uma raiz comum”
(Câmara Júnior, 1992, s.v. família léxica).
A conceituação de campo semântico de Borba (1972, p. 283) é correspondente à de
Câmara Júnior. Segundo aquele autor, campo semântico “é o conjunto das significações
correlatas em que se associam as palavras. Ele compensa a complexidade e a fluidez da
significação linguística, pois precisa e limita a significação de cada vocábulo”. Borba
exemplifica o conceito, mencionando os nomes das cores, os nomes de parentesco, os de
partes do corpo etc.
Garcia (1977, p. 165) fala em famílias etimológicas, referindo-se à utilidade de se
conhecer os radicais da língua para, assim, perceber que palavras formadas a partir desses
radicais têm uma mesma origem e ser capaz de perceber seu significado, mesmo sem
conhecê-las previamente. Exemplifica sua alegação a partir do radical latino loqu(i) 'falar',
com a variante loc(u), que está presente em loquaz, circunlóquio, colóquio, locutor etc.
O autor menciona ainda as famílias ideológicas, como “séries de sinônimos afiliados
50
Esses exemplos foram adaptados a partir do conteúdo exposto em GENOUVRIER e PEYTARD, 1985, p. 334.
100
por uma noção fundamental comum.” Seu exemplo para o conceito, apresentado, com base
em Celso Cunha, é
a) casa, domicílio, habitação, lar, mansão, morada, residência, teto, vivenda;
b) mar, oceano, pego, pélago, ponto. (GARCIA, 1977, p. 167)
Garcia ainda apresenta o conceito de campo associativo ou constelação semântica,
que seria estabelecido a partir de
uma espécie de imantação semântica: muito frequentemente, uma palavra pode sugerir uma
série de outras que, embora não sinônimas, com elas se relacionam, em determinada situação
ou contexto, pelo simples e universal processo de associação de ideias, pelo processo de
palavra-puxa-palavra ou de ideia-puxa-ideia. (GARCIA, 1977, p. 167)
Exemplifica o conceito com a palavra mar, que sugere as ideias de vastidão; amplidão;
imensidade; infinito; mobilidade; horizonte etc.
O conceito de campo semântico que adotarei neste trabalho é compatível com os de
Câmara Júnior (1992) e Borba (1972). Considerarei que integram um mesmo campo
semântico unidades lexicais associáveis a partir de um mesmo traço semântico, sendo que ao
conjunto dos elementos agrupados a partir desse critério é possível atribuir um hiperônimo
que compreenda todos — por exemplo, nomes de aves; educação formal; competição;
batalha.
Quanto ao conceito de campo lexical para Genouvrier e Peytard (1985), como
agrupamento de palavras a partir de um aspecto técnico ou de experiência humana, voltarei a
essa particularidade no próximo item, dedicado ao estudo do vocabulário de especialidade.
2.6.3 - O vocabulário de especialidade do samba carioca
Inicialmente, convém justificar a não-adoção do termo língua de especialidade,
corrente na Terminologia.
Segundo o Dicionário de análise do discurso
51
, o conceito de língua de especialidade
se baseia na ideia de que os domínios técnicos e científicos desenvolvem sistemas linguísticos
particulares, distintos da língua comum. Cada uma das línguas de especialidade constituiria
51
CHARAUDEAU, Patrick e MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2004,
s.v. especialidade (discurso de __/língua de__).
101
um “subsistema linguístico que utiliza uma terminologia e outros meios terminológicos que
visam à não-ambiguidade da comunicação em um domínio particular”
52
Segundo Krieger e Finatto (2004, p. 35-39), essas concepções da terminologia
tradicional já passaram por revisões a partir de formulações como a Teoria Comunicativa da
Terminologia, de um grupo liderado por Maria Teresa Cabré.
Entre os princípios terminológicos reformulados por esse grupo estão
a própria finalidade da teoria, limitada a estudar os termos com vistas à sua padronização; o
modo de conceber a unidade terminológica, separando conceito (elemento independente das
línguas e de valor universal) e significado (ligado a línguas particulares); o desinteresse
pelas estruturas morfológicas, pelos aspectos sintáticos das unidades lexicais, além da
supervalorização da função denominativa. (KRIEGER e FINATTO, 2004, p. 35)
De acordo com essa linha de estudos terminológicos, portanto, os termos reintegram-
se às línguas naturais, deixando de ser vistos como alheios à gramática das línguas e como
parte de subsistemas linguísticos apartados da língua comum.
Também para lexicólogos como Quemada
53
, faz mais sentido fazer referência a
vocabulários de especialidade, visto que a base fonológica, morfológica, sintática desses
vocabulários é a mesma da língua comum, mudando apenas a construção das significações,
que se torna própria de uma área de especialidade, com características temáticas e situacionais
específicas.
Por fim, no verbete do Dicionário de análise do discurso, esclarece-se o
posicionamento próprio da área: nessa perspectiva, fala-se em discurso de especialidade, por
considerar que as unidades estudadas não são próprias de uma língua diferente da comum,
mas sim características de um uso específico das possibilidades dessa língua — a grande
especificidade, portanto, seria de situação comunicativa: trata-se de
um discurso limitado por uma situação de enunciação particular, não espontânea, que supõe
a transmissão de conhecimentos teóricos ou práticos (...) [esses discursos] são
caracterizados pelo estatuto socioprofissional do enunciador inscrito no quadro de uma certa
instituição, pela natureza do conteúdo e pela finalidade pragmática da mensagem, e não em
função de critérios linguísticos. (CHARAUDEAU e MAINGUENEAU, 2004, p. 206)
No presente estudo, considera-se que o discurso do samba pode ser considerado
especializado na medida em que, conforme foi possível demonstrar na primeira parte do
trabalho, com a institucionalização desse movimento cultural, a atividade do sambista, tanto o
compositor quanto o músico e o integrante de escola de samba, formalizou-se como técnica e,
em muitos casos, modo de vida. Assim, uma série de palavras foi incorporada nesse universo
52
ISO [International Standardization Organization] 1087. Terminologie-vocabulaire, Genève, Organisation Internationale de
Terminologie, 1990 apud CHARAUDEAU, Patrick e MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de análise do discurso. São
Paulo: Contexto, 2004, s.v. especialidade (discurso de __/língua de__).
53
Ibidem.
102
discursivo para designar instrumentos musicais, modos de dançar, tocar e cantar, as funções
relacionadas à escola de samba e ao desfile de carnaval etc. Essas especificidades vocabulares
merecerão atenção na análise quali-quantitativa do corpus.
Outro aspecto digno de menção relativo ao vocabulário especializado do samba é que,
analogamente ao que Genouvrier e Peytard (1985) estabelecem em sua conceituação de
campo lexical, o discurso especializado do samba dialoga com outros vocabulários de
especialidade, como o da música e o da literatura, apropriando-se de vocábulos desses meios e
às vezes reelaborando suas significações.
O último esclarecimento diz respeito ao emprego do termo vocabulário de
especialidade, em vez de léxico de especialidade, que é comum em outras abordagens
linguísticas. Mais uma vez segundo o Dicionário de análise do discurso
54
, a distinção
defendida por lexicólogos entre léxico e vocabulário consiste em que o léxico seria o
inventário de palavras à disposição dos locutores em uma língua, enquanto o vocabulário
compreenderia aquelas palavras efetivamente empregadas por um locutor em uma dada
situação.
Para a Análise do Discurso,
é o funcionamento das palavras no discurso que interessa essencialmente aos analistas. Os
vocábulos, isto é, as unidades lexicais especializadas em um discurso — em oposição aos
lexemas que são unidades virtuais — constituem, nessa perspectiva, um dado observável
pertinente. (CHARAUDEAU e MAINGUENEAU, 2004, p. 495)
Essa primazia da observação do vocabulário para a Análise do Discurso não elimina,
entretanto, a consideração de dados do sistema da língua, próprios do nível do léxico. O que
se tipifica aqui é a indispensabilidade da observação dos usos lexicais a partir de um corpus
textual, com consideração dos fatores situacionais envolvidos na construção do significado,
em vez de generalizações que não dão conta das especificidades de um determinado universo
discursivo.
54
CHARAUDEAU, Patrick e MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2004,
s.v. vocabulário/léxico.
103
2.6.4 – Intertextualidade e interdiscursividade
Intertextualidade é o recurso de produção textual por meio do qual se retoma um texto
preexistente para o enriquecimento da interpretação da mensagem de um novo; o benefício da
intertextualidade é o estabelecimento desse “diálogo entre textos”. A sinalização de tal
conexão pode ser feita de duas formas, basicamente: pode ser explícita (por citação de um
trecho na íntegra, por exemplo), ou implícita (por paráfrase de outro texto, entre outras
maneiras)
55
.
Comparando-se os dois tipos de intertextualidade, percebe-se que a implícita é mais
elaborada do que a explícita. Segundo André Valente (2002, p. 181-2), a intertextualidade
implícita
exige muito mais do leitor no jogo intertextual, pressupondo maior grau de informatividade,
mais “conhecimento de mundo”: “mundo partilhado”. Constitui fator importante para a
coerência do texto, pois o leitor, não possuindo as referências ou não identificando as
citações, pode encontrar dificuldades para decodificação da mensagem.
O processo de construção da intertextualidade é realizado intencionalmente. É a isso
que Laurent Jenny (apud Valente, 2002) se refere ao afirmar:
a intertextualidade designa não uma soma confusa e misteriosa de influências, mas o
trabalho de transformação e assimilação de vários textos, operado por um texto
centralizador, que detém o comando do sentido.
Cabe ainda diferenciar intertextualidade de interdiscursividade: segundo Charaudeau,
esta última é a retomada, em um texto, de referências culturais que não chegam a ter um
suporte textual identificável:
Charaudeau (1993d) vê no “interdiscurso” um jogo de reenvios entre discursos que tiveram
um suporte textual, mas de cuja configuração não se tem memória; por exemplo, no slogan
“Danoninho vale por um bifinho”, é o interdiscurso que permite inferências do tipo “os bifes
de carne têm um alto valor protéico, portanto devem ser consumidos”. Por sua vez, o
“intertexto” seria um jogo de retomadas de textos configurados e ligeiramente
transformados, como na paródia.
56
As retomadas por interdiscursividade, portanto, acionam informações correntes em
uma determinada cultura, conforme um determinado posicionamento ideológico. Devem,
55
A base para a distinção entre intertextualidade explícita e implícita é o trabalho de Laurent Jenny (JENNY, Laurent. A
estratégia da forma. Poétique. Coimbra: Almedina, n. 27, 1979), apud VALENTE, André. Intertextualidade: aspecto da
intertextualidade e fator de coerência. In HENRIQUES, Claudio Cesar e PEREIRA, Maria Teresa Gonçalves (Org.). Língua
e transdisciplinaridade: rumos, conexões, sentidos. São Paulo: Contexto, 2002, p. 177-193. O mesmo autor também propõe a
distinção entre intertextualidade externa (conexão entre textos de autores diferentes) e interna (conexão de textos de um
mesmo autor).
56
CHARAUDEAU, Patrick e MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de análise do discurso. São Paulo:
Contexto, 2004, s.v. interdiscurso.
104
assim como o intertexto, fazer parte do conhecimento de mundo do destinatário.
Ambos os recursos de produção textual serão considerados na análise do corpus. A
interdiscursividade tem relevância especial devido ao emprego frequente de máximas do
senso comum e provérbios nas letras de samba, para transferir a autoridade do senso comum
às ideias desenvolvidas nesses textos.
105
3 — ANÁLISE DOS DADOS
3.1 – Análise qualitativa do corpus
Estudarei nesta seção uma amostra de 180 composições (algumas entre as 60 mais
antigas de Cartola, Ismael Silva e Paulo da Portela) a partir das seguintes características
discursivas: os valores implicados no desenvolvimento das letras, a encenação discursiva e a
recorrência de vocábulos relacionados a determinados campos semânticos. As letras das
composições analisadas estão transcritas no Anexo 1 – Corpus de estudo.
3.1.1 - Relações amorosas
O tema “relações amorosas” é o que ocupa a maior porção do corpus em estudo. É um
assunto tradicional na lírica musical, que desperta empatia com todos os perfis de público.
As letras dessa área temática abordam aspectos variadíssimos do envolvimento
amoroso, com duas marcas constantes: a predominância da perspectiva masculina na
enunciação e a relação amorosa heterossexual.
Os diferentes aspectos da experiência amorosa foram divididos em oito agrupamentos:
3.1.1.1 - O amor analisado
A experiência amorosa é considerada genericamente — fala-se em tese sobre
vivências e percepções do amor. O tom das análises costuma ser categórico e racional. Às
vezes a análise também apresenta marcas de irreverência.
Não quero mais amar a ninguém é o único caso de composição mais subjetiva nesse
agrupamento.
Composições
a) de Cartola: Não quero mais amar a ninguém (c/ Carlos Cachaça e Zé da Zilda);
106
Todo amor (c/ Carlos Cachaça);
b) de Ismael Silva: Amar (c/ Nilton Bastos e Francisco Alves); É bom evitar (c/ Nilton
Bastos e Francisco Alves); Tristezas não pagam dívidas;
c) de Paulo da Portela: “As mulheres são as rosas...”
57
.
Valores
É inútil sofrer por amor. Às vezes o enunciador chega à conclusão de que também é
melhor deixar de amar, pois se apaixonar só traz desilusão e é preciso se precaver contra isso.
Assim, para não sofrer, o homem deve se acautelar contra o amor interesseiro e as
mulheres falsas. Essas são considerações machistas que povoam as composições relacionadas
ao envolvimento amoroso. Não é um valor absoluto, mas decididamente, como se perceberá
ao longo dos agrupamentos temáticos, trata-se de uma tônica do tratamento lírico-musical
destinado ao amor por esses compositores.
“As mulheres são as rosas...”, por sua vez, fala do arrefecimento do sentimento
amoroso com o passar do tempo. Constrói-se uma analogia entre mulheres e flores, e entre o
emurchecimento das flores e o envelhecimento das mulheres. Com o desgaste, o desvelo dos
jardineiros (homens) também não seria mais o mesmo. Esse processo é apresentado como
inevitável, mas não como a única possibilidade; ao lado dele também haveria os
envolvimentos amorosos que são fruto de dissimulação — no fim, ainda nesse caso, prevalece
a postura já comentada, segundo a qual o amor mais cedo ou mais tarde resulta em desilusão.
Encenação discursiva
Às vezes os parceiros amorosos são representados genericamente (ele/ela; a mulher/o
homem), para ressaltar que o que se diz tem aplicação universal. Por outras vezes, o
enunciador se posiciona subjetivamente, empenhando-se para alcançar maior efeito nas
proposições — jura, diz que fala por experiência própria etc.
Ele também pode se constituir como alguém que já sofreu por amor e presentemente
vive bem com a decisão de não amar mais. Afirma-se feliz, vivendo com tranquilidade, graças
a essa decisão — ênfase à racionalidade da decisão, que acaba implicando que se entregar aos
sentimentos não é uma atitude desejável.
Também se representa a experiência do amor malsucedido a partir de uma terceira
pessoa, genérica ou específica, que seria a do homem sofrendo por ser enganado.
57
Conforme já foi estabelecido na metodologia, identificarei as composições sem título pela transcrição do(s) primeiro(s)
verso(s).
107
A mulher também é representada, na maioria das vezes genericamente. Apesar de
reconhecer que isso não se aplica a todas, é comum o enunciador ressaltar exclusivamente o
perfil das mulheres enganadoras, inconstantes, contra as quais é preciso se acautelar. Uma
exceção a isso é o caso de “As mulheres são as rosas...”, no qual são os homens que perdem o
interesse com o tempo.
Características lexicais — recorrência de vocábulos ligados aos seguintes campos
semânticos:
– amor (amar, amizade, beijos, coração, ciúme);
– percepção e análise (desconhecer, convencido, pensar, saber, desconhecer);
– sofrimento (penar, tristeza, desprezo, amargor, sofrimento, maldição, interesse,
sepultura, fingimento);
– valores positivos (alegria, feliz, zelar, viçoso, cheiroso);
– verdade/mentira (mentir, jurar, fingimento).
3.1.1.2 - O amor apaixonado
Representam-se os momentos de paixão, geralmente característicos do envolvimento
amoroso inicial, em quatro aspectos:
Cortejo amoroso
O enunciador declara-se e tenta conquistar a amada. O tom dos textos costuma ser
emotivo e galanteador. Em um dos casos em questão, a configuração textual é dialógica —
“Chego quase a não saber...”. Esse texto é marcado também pela irreverência.
Composições
a) de Cartola: Fita meus olhos (c/ Osvaldo Vasquez);
b) de Ismael Silva: Anda, vem cá (c/ Nilton Bastos e Francisco Alves); ; Me diga o
teu nome (c/ Nilton Bastos e Francisco Alves);
c) de Paulo da Portela: “Chego quase a não saber...”.
Valores
A mulher é elogiada por sua beleza e sensualidade, assim como pela receptividade ao
cortejo do enunciador. É, por outro lado, criticada por frieza (não corresponder aos
sentimentos do enunciador) e vaidade. Também é possível que o amor seja idealizado e sem
108
investidas diretas de conquista. Neste caso, sobressai o sentimento de que a amada é alma
gêmea, de que nasceram um para o outro; outra crença é a de que o amor é capaz de modificar
a vida do enunciador, fazendo-o fiel, motivando-o a mudar de vida.
Às vezes a declaração de amor é confiante; em outros casos, percebe-se receio de fazê-
la, para evitar o risco de mágoas. Em certos casos, ainda, o enunciador deve desconstruir
intrigas de terceiros, feitas contra ele (ou, em outra perspectiva, a sua própria má fama), para
ser bem-sucedido.
Nessas composições, o homem é sempre o responsável pela iniciativa amorosa. A
mulher recebe a tentativa e tem a prerrogativa de aceitá-la ou não. Se não aceita, pode ser
representada negativamente.
Encenação discursiva
O enunciador tenta demonstrar sua paixão à mulher e também exalta suas qualidades,
com vistas a conquistá-la. Faz promessas de fidelidade, regeneração (se assume a identidade
de malandro) etc.
Às vezes, se mostra determinado e autoconfiante, outras vezes, ressabiado, com receio
de sofrer uma desilusão. Nesse segundo caso, pode fazer promessas de assumir compromissos
e dizer que pode voltar atrás se ela não corresponder ao seu empenho.
Em Fita meus olhos, ele não se declara, mas espera que a receptora perceba seus
sentimentos pelo olhar, o que representaria uma grande prova de sintonia amorosa entre os
dois, assim como uma afirmação de que o sentimento do enunciador é tão profundo que não
precisa ser afirmado verbalmente.
A receptora pode ser representada como alguém que corresponde ao cortejo amoroso,
merecendo, assim, qualificações positivas. Por outro lado, se ela não se mostra receptiva às
declarações amorosas, pode ser acusada de frieza e vaidade, ou então ser mesmo assim
considerada positivamente. Pode, ainda, não ser considerada, se o texto enfocar apenas os
sentimentos e atitudes do enunciador.
A mulher raramente tem voz nessas composições. Sua representação é toda feita a
partir da perspectiva do enunciador.
Características lexicais — recorrência de vocábulos ligados aos seguintes campos
semânticos:
– declaração amorosa (confissão, relatar, declarar, fã, falar, dizer, moreninha, uvinha,
por caridade);
– obstáculos ao envolvimento amoroso (otário, contra, essa gente);
109
– percepção e análise (saber, ver, compreender);
– relacionamento amoroso (pra toda a vida, casar);
– valores negativos (zombar, desassossegar, medo);
– valores positivos (prazer, louco, dançar, cantar, sambar, querer).
Inebriamento amoroso
O principal aqui são os efeitos, geralmente positivos, que o amor tem sobre o
apaixonado. O tom é altamente emotivo, com marcas de embevecimento, felicidade, doação à
amada.
Composições
a) de Cartola: Corra e olhe o céu (c/ Dalmo Castello); Ordene e farei (c/ Aluisio
Dias);
b) de Paulo da Portela: “Lábios doces...”; Ópio.
Valores
O amor é tido como força capaz de mudar a vida e as percepções do apaixonado. A
amada é idealizada, posta em um plano superior ao do amante. O sentimento predominante é
o prazer que se sente ao estar apaixonado — a paixão é um valor positivo, diferentemente do
que se lê em outras letras, que tratam o amor de forma mais desiludida.
Encenação discursiva
O enunciador se apresenta como alguém tocado pelo amor, que vive como em um
sonho, que tem esperanças no sucesso da relação amorosa e em ser feliz. É comum que ele
prometa doação e dedicação completa a ela, se dizendo capaz de enfrentar até mesmo a morte
pela amada.
Em alguns casos, ele pode se colocar numa posição de expectativa pelo enlace
amoroso. É uma situação em que a mulher tem a iniciativa final, de viabilizar a sua felicidade.
A destinatária é representada de forma idealizada, com atributos positivos, apenas a
partir da perspectiva do enunciador. É descrita como alguém de grande influência sobre ele,
mas não tem voz própria.
Características lexicais — recorrência de vocábulos ligados aos seguintes campos
semânticos:
– caracterização da mulher (flor, reluzir, lindo, doce);
110
– envolvimento emocional (ópio, sonho, desejo, dormir, sonhar, inspirar, calor);
– influência da mulher sobre o homem (ordenar, escravizado);
– valores negativos (sofrer, morte, só, dor, triste);
– valores positivos (felicidade, amor, alegria).
Amor não correspondido
O que chama mais atenção nesse caso são os efeitos negativos que a rejeição tem no
enunciador que sofre a desilusão amorosa. O tom dessas composições costuma ser emotivo e
de sofrimento.
Composições
a) de Ismael Silva: Vejo amanhecer (c/ Noel Rosa e Francisco Alves);
b) de Paulo da Portela: Mulher, tu és orgulhosa.
Valores
Mais uma vez, ressaltam-se a vaidade e o desprezo de uma mulher como fatores de
sofrimento. A solução também é, uma vez mais, a vida sem amor, que significa sossego.
Também se insinua a possibilidade de a mulher tamm vir a sofrer no futuro, como resultado
de ter feito o enunciador sofrer.
O envolvimento amoroso é uma experiência desnorteadora a abalar o amante, que vive
um tormento.
É possível, ainda, que transpareça alguma esperança de que a mulher mude de ideia.
Enunciação discursiva
O enunciador é quem ama e é rejeitado. Por isso, sofre intensamente e se queixa da
mulher; a ênfase a esse sofrimento pode também denunciar o desígnio de “amolecê-la”, por
piedade. Ela, que o rejeita, geralmente é representada como orgulhosa e fria.
Características lexicais — recorrência de vocábulos ligados aos seguintes campos
semânticos:
– atitudes do apaixonado (pensar, pensamento, esquecer, esperar, suportar);
– caracterização da mulher (vaidade, beleza, orgulhosa, golpe);
– sofrimento (sofrer, padecer, descrente, compungido, amargura, sofrer, pagar,
tormento, paz);
– valores positivos (risonho, esperança).
111
Relação amorosa a dois
A ênfase é ao amor harmonioso entre o casal. O tom costuma ser afetuoso e feliz.
Composições
a) de Cartola: Tenho um novo amor;
b) de Ismael Silva: Antes não te conhecesse (c/ Francisco Alves);
c) de Paulo da Portela: Serei teu ioiô.
Valores
O compromisso de relação estável está presente nessas composições. Por vezes se
ressalta que apenas na presente relação é possível prometer ou esperar a constância, pois
outras parceiras não tornariam esse compromisso viável, geralmente por culpa das mesmas.
Fala-se de riscos ao amor estável, como infortúnios do destino ou intrigas de terceiros.
Além da satisfação pela harmonia do casal, também está presente em composições
com esse teor o receio de que a felicidade termine um dia, com o rompimento da relação. A
solução, nesse caso, é a mesma já explicitada anteriormente: esquecer o passado e ir adiante.
Encenação discursiva
Em Serei teu ioiô, o enunciador masculino fala por experiência própria de infortúnios
amorosos, tentando prevenir a parceira dos riscos à harmonia do amor conjugal.
Em Tenho um novo amor, é uma enunciadora que fala do amor. Ela ressalta a
felicidade do casal e revela receio de que o amor do parceiro acabe um dia.
Na primeira composição, a receptora é representada como menos experiente do que o
enunciador. Ela não conhece os dissabores amorosos e cabe ao enunciador precavê-la contra a
inveja e o azar.
Na segunda, o parceiro a princípio não é o receptor (a enunciadora fala dele). Na
terceira parte, ele se torna receptor. É interessante notar que isso acontece um pouco depois
que a enunciadora deixa de falar da sua satisfação pelo novo amor e começa a relatar seu
receio de que um dia ele deixe de amá-la.
Características lexicais — recorrência de vocábulos ligados aos seguintes campos
semânticos:
– valores negativos (receio, inveja);
– valores positivos (gostar, feliz);
112
– vida a dois (ioiô, iaiá, meu bem).
3.1.1.3 - O amor conflituoso
Rompimento da relação
Essas composições costumam ter um tom emocional e falar das insatisfações de um
dos envolvidos na conjunção amorosa.
Às vezes o tom é mais cordato e caracteriza-se a separação amigável.
Composições
a) de Cartola: Desta vez eu vou; Que sejas bem feliz;
b) de Ismael Silva: A razão dá-se a quem tem (c/ Noel Rosa e Francisco Alves); Com
a vida que pediste a Deus; Me faz carinhos (c/ Francisco Alves); Para me livrar do mal (c/
Noel Rosa); Para mim perdeste o valor; Sofrer é da vida (c/ Francisco Alves).
Valores
Entre as razões para a separação estão o mau comportamento da mulher que é infiel ou
não trabalha; a falta de sintonia entre o casal; o preconceito de cor, que causa o desinteresse
da mulher pelo parceiro. Na maioria das vezes, é o enunciador quem toma a decisão do
rompimento.
Entre os casos em que é a mulher que deixa o parceiro está Que sejas bem feliz, a
decisão é informada sem explicação das causas — a composição enfoca o momento da
despedida. Em A razão dá-se a quem tem, o enunciador reconhece que a parceira tem razão
em deixá-lo, mas não fica muito claro que razão é essa — as expressões “sem vintém” e
“golpe de azar” sugerem falta de dinheiro.
Presente em uma série de outros casos, o machismo fica bem marcado em Desta vez
eu vou. Nessa composição, o enunciador, querendo desfazer a relação, diz que levará a
parceira de volta à casa dos seus pais. Essa é uma expressão do modelo patriarcal, segundo a
qual a mulher sai da casa do pai para ir morar com o marido. A passividade feminina está em
outras letras em estudo. Além de se falar de passividade, também é frequente a alusão a uma
inclinação que a mulher teria à traição, o que chegaria a tornar o enunciador desiludido, a
fazê-lo preferir ficar só e feliz do que se envolver com mulheres.
Esporadicamente, encontram-se marcas de religiosidade cristã nas composições,
113
notadamente nas de Cartola — veja-se a análise sobre enunciação discursiva a seguir.
Outro elemento encontradiço nas argumentações de rompimento são provérbios e
máximas populares. O recurso à sabedoria popular é uma forma de se justificar, avalizando as
próprias atitudes a partir do senso comum (vejam-se exemplos disso em Me faz carinhos).
Encenação discursiva
Nas letras analisadas, o enunciador costuma ser um homem. Uma das atitudes mais
comuns é queixar-se da mulher, acusando-a de falsidade, de um comportamento reprovável
— infidelidade, vadiagem, falta de atenção etc.
O enunciador, nesse caso, assume a posição de julgar, de apontar os erros da parceria
e, sentindo-se prejudicado, terminar a relação.
No caso de Com a vida que pediste a Deus, o enunciador aponta as falhas da parceira,
mas deixa espaço para sua “regeneração”, circunstância na qual tornaria a aceitá-la.
Outras vezes, ele apenas constata de forma mais ponderada que o casal não tem
sintonia e propõe o rompimento, sem acusações — é o que ocorre em Desta vez eu vou, já
comentada anteriormente.
Conforme já foi dito, a mulher, na maioria das letras que falam em rompimento, é
apenas a interlocutora, a destinatária da iniciativa de terminar o envolvimento entre os dois.
Uma das exceções a isso é a composição Que sejas bem feliz. Nela, apesar de só se conhecer a
reação do enunciador, depreende-se que a parceira tomou a iniciativa do rompimento e ele
aceita a proposta serenamente, prometendo inclusive rezar por ela.
No caso de Se meu amor me deixar, já mencionado antes, apresenta-se a possibilidade
de a parceira romper o relacionamento. Entretanto, em nenhum caso a parceira é enunciadora.
Não se fala, portanto, do rompimento amoroso da perspectiva feminina.
Características lexicais — recorrência de vocábulos ligados aos seguintes campos
semânticos:
– rompimento e suas causas (partir, ir, largar [alguém] de mão, endireitar, falsidade,
tapear);
– sofrimento amoroso (aborrecido, contrariada, martírio, suportar).
Suspeitas de traição ou de abandono
Nesse grupo o tema principal são as incertezas sobre a sinceridade do(a) parceiro(a),
ou sobre a sua real disposição de levar adiante o envolvimento amoroso.
114
O tom dessas composições costuma ser de advertência, desassossego e acusação ou
contemporização.
Composições
a) de Cartola: Alegria; Não faz, amor; Qual foi o mal que eu te fiz?;
b) de Ismael Silva: Ando cismado (c/ Noel Rosa); Não vá atrás de ninguém; Sonhei (c/
Nilton Bastos e Francisco Alves); Você gosta de mim (c/ Francisco Alves);
c) de Paulo da Portela: “Eu que vivia satisfeito...”.
Valores
Novamente, uma das figuras predominantes nas letras em questão é a mulher traidora,
em cuja sinceridade não se pode ter confiança absoluta.
A atitude do homem diante da suspeita costuma ser a ameaça de rompimento. Em
Alegria, por exemplo, o enunciador chega a sugerir que reconquistou a alegria ao se desligar
emocionalmente de uma relação insincera; a partir desse desligamento, promete abandoná-la
no futuro.
Quando as suspeitas recaem sobre o homem, vemos recriminações a pessoas
intrigueiras e tentativas de expor outra versão para a suposta traição.
Algumas vezes, ainda, manifesta-se o sobressalto do enunciador diante da suspeita.
Nesse caso, a atitude não costuma ser de acusação, mas de receio pelo fim do amor.
Encenação discursiva
O enunciador assume frequentemente a posição do acusador e generaliza o
comportamento feminino como tendente à traição.
Em outros casos, ele se mostra preocupado com a possibilidade de perder a
companheira. No caso de Não faz, amor, decide testá-la para confirmar ou não seus receios.
O enunciador também é apresentado como quem sofre com a possibilidade do fim da
união, mas se diz impotente para impedir que isso ocorra.
Ainda há o enunciador alegre por não estar mais apegado a uma relação falsa e,
portanto, disposto a terminá-la.
Um recurso interessante para que se tome conhecimento da traição é o do sonho.
Tanto em Não faz, amor quanto em Sonhei é dessa forma que, alegadamente, se soube de
abalos no relacionamento. Esse recurso contrasta com o aplicado quando o enunciador sofre a
115
suspeita — nesse caso, as suspeitas são resultantes de fofoca (ver em seguida).
Outra possibilidade com razoável recorrência é a de o enunciador ser o alvo de
suspeita. Nesse caso, sua estratégia costuma ser reclamar de intrigas feitas por terceiros e
pedir que a parceria não dê atenção a elas. Ele reafirma o seu amor e, como acontece em Não
vá atrás de ninguém, por exemplo, oferece outra explicação para o evento que ocasionou as
intrigas.
Características lexicais — recorrência de vocábulos ligados aos seguintes campos
semânticos:
– atributos negativos de um dos parceiros (ambição, vaidade);
– relação amorosa (amor, amar, amizade);
– abandono (abandonar, deixar);
– suspeita (cismado, enganar, mentira, descrer);
Discussões
Nesse caso, a ênfase principal é à insatisfação com algum aspecto da relação amorosa.
A possibilidade de rompimento às vezes ainda se faz presente, mas com menos força do que
nos agrupamentos anteriores. O tom das letras costuma ser de insatisfação, ou por vezes, de
tentativa de conciliação. Em alguns casos também é perceptível a ironia.
Composições
a) de Ismael Silva: Aliás; Não faltará ocasião; Oleleô (c/ Nilton Bastos e Francisco
Alves);
b) de Paulo da Portela: O grande fingimento; É preciso saber.
Valores
As diferenças entre os parceiros são as causas mais frequentemente apontadas para os
conflitos. Essa falta de sintonia é tida como inviabilizadora do consórcio amoroso. Os
desdobramentos para essa situação são principalmente um eventual rompimento ou a tentativa
de entendimento.
A falsidade da parceira volta a figurar como causa de insatisfações. Entretanto, como
acontece em O grande fingimento, por exemplo, não se chega à ameaça de rompimento — a
composição se restringe à queixa pela maldade da mulher enganadora.
116
Em Aliás, a família da parceira é tida como indício de que pode vir a haver
desentendimentos entre os dois — esse grupo é considerado indigno e a mulher seria a única
que dele se salvaria. Isso entretanto é motivo de desconfiança, pois, conforme o senso
comum, “quem sai aos seus não degenera”.
Encenação discursiva
O enunciador em muitos casos assume a posição de quem está com a razão, não
transigindo na discussão. Uma exceção é a seguinte letra sem título de Paulo da Portela:
É preciso saber / Qual de nós tem razão / Desta maneira assim / Não pode continuar / Tu te
queixas de mim / Eu me queixo de ti / Depois que será de nós dois / Quando a justiça chegar.
Em Oleleô, usa-se a ironia para desqualificar as posturas destoantes da mulher. O
enunciador encaixa comentários de estranhamento e reprovação nas descrições das atitudes da
parceira. Chega a dirigir-se à assistência, com a exclamação “vejam vocês!”, para ressaltar o
pasmo diante do fato de ela não gostar de samba ou de carnaval.
O enunciador também pode se dizer prejudicado pela parceira, como acontece em O
grande fingimento, música já mencionada, na qual ele ressalta que a mulher o faz sofrer por
maldade, apesar de um juramento de amor eterno.
Em Aliás, o enunciador vê a potencialidade de desentendimentos entre os dois, a julgar
pela família da companheira. Assume a posição de adverti-la com relação a contrariedades
que ela possa lhe causar e chega a aconselhá-la a omitir a sua origem, considerando que a
mesma depõe até contra ele mesmo, como seu parceiro. Nesse caso, a parceira é apresentada
em situação inferiorizada — é alguém com quem o envolvimento amoroso representa uma
aposta de risco, pela potencial falta de sintonia.
Características lexicais — recorrência de vocábulos ligados aos seguintes campos
semânticos:
– caracterização da mulher (risonha, riso, artista, chorar, fingimento);
– contrariedade (contrariar, prevenção, desilusão, acostumar, convir, desigual);
– determinismo (conformar, sorte, ser de família);
– discussão (tresilha, estar com a razão, provar, razão, queixar-se, justiça);
– relacionamento amoroso/rompimento (amor, viver [com alguém], deixar, ter amor
[por alguém], mulher, juramento);
– religiosidade (promessa, muamba, Deus, inferno, paraíso, santo);
– samba e música em geral (samba, baile de carnaval, oleleô);
– valores negativos (prevenção, teimar, chorar, morte, essa gente, cismar, maldade).
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Abandono e arrependimento
A música que se enquadra nesse grupo é Aconteceu, de Cartola:
Aconteceu / Eu não esperava mais acontecer / Todo o bem que fiz se quiser esquecer /
Revelando a sua imprudência / Construí o lar, o lar que ela pedia / Exigiu-me coisas que ela
não queria //
Aconteceu / Hoje ela chora tudo o que perdeu / E chorando veio me pedir perdão / Fica para
ela a lição
Ressalta-se a volta da parceira, que havia rompido a relação e depois se arrependeu.
Há um certo tom de satisfação e desforra na composição.
Valores
A imprudência da parceira é destacada: sua vaidade e futilidade são desaprovadas. Há
ainda a ideia de justiça pelos esforços sinceros empreendidos pelo enunciador.
Encenação discursiva
O enunciador assume uma posição de superioridade diante dos desenganos da mulher.
Ela é apresentada como a exclusiva responsável pelos dissabores que ele teve enquanto
estavam juntos. Assim, justifica-se a sua satisfação com a lição aprendida por ela.
Características lexicais — recorrência de vocábulos ligados aos seguintes campos
semânticos:
– abandono e arrependimento (lar, perder, perdão, lição);
– sofrimento (chorar);
– valores negativos (imprudência, exigir);
– valores positivos (bem).
Reconciliação
A música que se enquadra nesse grupo é Perdão, meu bem, de Cartola:
Perdão, meu bem perdão / atacou-me o coração, / Falei demais / sou bom rapaz / no modo de
proceder / perdão, porque / se acabar nossa amizade / eu vou morrer / sinto dores, / são
saudades. //
Se você não reconhece / O meu arrependimento / Podes crer, meu amor / Que o que eu digo /
É sem fingimento //
Às vezes, cheio de ódio, / fala-se o que não se deve / são palavras de amor ofendido / Que não
se escrevem
Sobressai o pedido de perdão do enunciador, que reconhece a culpa por algo ofensivo
que disse. O tom é de arrependimento e minimização da ofensa.
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Valores
Alguns dos valores acionados nesse caso são a impulsividade em momentos de
discussão e a insignificância do que se diz então, pelo próprio fato de ser um ato impulsivo.
Também é notória a declaração hiperbólica, segundo a qual o rompimento acarretaria
a morte do enunciador. Essa afirmação apaixonada revelaria tanto a profundeza do
arrependimento quanto a do próprio amor.
Encenação discursiva
O enunciador se apresenta inferiorizado, suplicante, diante da amada. Não deixa,
entretanto, de ressaltar suas qualidades, afirmando tamm que as ofensas passadas não se
comparam aos seus sentimentos por ela.
Características lexicais — recorrência de vocábulos ligados aos seguintes campos
semânticos:
– arrependimento (perdão);
– relação amorosa (meu bem, amizade);
– sofrimento (morrer, dor, saudade);
– valores negativos (falar demais, ódio, ofendido);
– valores positivos (bom rapaz).
Influência de terceiros
A música que se enquadra nesse grupo é Preconceito, de Cartola:
Crime, é mais que um crime / É desumanidade, esta perseguição / É o cúmulo da maldade /
Se todo mundo sabe que nós nos casaremos, / Quer queiram, quer não //
Oh, maldito preconceito / Afasta-te no ajeito, aqui nada conseguirás / Porque recebemos dos
céus a bênção de Jesus, / Que é mensagem de paz //
Nosso amor não acaba mais / Viveremos sempre em paz
É marcante a indignação do enunciador com a situação de preconceito sofrida por ele e
pela parceira. Neste caso, a relação entre os dois é harmoniosa e eles precisam vencer
barreiras para viabilizá-la.
Valores
O preconceito em questão impediria os dois de casarem-se. Assim, afirma-se a força
do amor diante das convenções sociais, tese do amor romântico.
Adicionalmente, a religiosidade cristã figura como outro valor em favor dos amantes,
trazendo-lhes proteção e paz.
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Encenação discursiva
Neste caso, os amantes aparecem entrosados, comungando a mesma opinião diante do
preconceito. Esse posicionamento fica marcado pelo uso da primeira pessoa do plural.
Características lexicais — recorrência de vocábulos ligados aos seguintes campos
semânticos:
– indignação (maldito);
– relacionamento amoroso (amor);
– religiosidade (céus, bênção, Jesus, mensagem);
– valores negativos (crime, desumanidade, preconceito);
– valores positivos (paz).
Violência conjugal
A música que se enquadra nesse grupo é Amor de malandro, de Ismael Silva:
Vem, vem / Que eu dou tudo a você / Menos vaidade / Tenho vontade / Mas é que não pode
ser //
Amor é o de malandro / Oh! Meu bem / Melhor do que ele ninguém / Se ele te bate é porque
gosta de ti / Pois bater em quem não se gosta / Eu nunca vi.
O que se destaca neste caso é a associação entre amor e violência, numa estranha
relação de causalidade. O tom do texto é terno e de justificação.
Valores
Recuperando-se a expressão “amor de malandro”, presente no título, percebe-se que o
sistema de valores acionado é o da malandragem, identidade especialmente forte na fase
inicial do samba urbano carioca, no início da década de XX (ver informações da primeira
parte deste estudo).
A conjunção do malandro com a mulher, além do machismo, inclui a relação entre
amar e bater, que justifica a conhecida máxima segundo a qual “mulher de malandro gosta de
apanhar”.
Ainda se depreende da composição a construção de uma imagem de pobreza que se
opõe à vaidade e se associa a valores imateriais, além do amor violento de que fala a letra.
Encenação discursiva
O enunciador, afetuoso, acolhe a amada, prometendo-lhe felicidade. Na sua
perspectiva, não há incompatibilidades entre gostar e bater, atos encarados com naturalidade
por ele.
120
Características lexicais — recorrência de vocábulos ligados aos seguintes campos
semânticos:
– malandragem (malandro, amor de malandro);
– relação amorosa (amor, gostar);
– violência (bater).
3.1.1.4 - O amor desfeito
Nesse agrupamento encontram-se diferentes representações de uniões amorosas já
terminadas, com as reações dos ex-companheiros a isso. Os tipos depreendidos foram oito:
Desgosto
O conteúdo mais representativo encontrado nas letras que falam do amor desfeito é o
desgosto pelo insucesso da união. O tom dessas composições costuma ser amargurado,
desiludido.
Composições
a) de Cartola: Autonomia; Injúria (c/ Elton Medeiros); Minha; Peito vazio (c/ Elton
Medeiros); Sei chorar;
b) de Ismael Silva: Assim sim (c/ Noel Rosa e Francisco Alves); Uma jura que fiz (c/
Noel Rosa e Francisco Alves);
c) de Paulo da Portela: Cantar para não chorar (c/ Heitor dos Prazeres).
Valores
Alguns elementos já presentes em outros agrupamentos que dão conta de desventuras
amorosas estão novamente presentes aqui: a responsabilização de terceiros por intrigas que
minaram o amor; a afirmação de que depois da desventura a solução é esquecer o que se
passou, ou mesmo desistir de amar; a mágoa pelo amor sincero retribuído com ingratidão etc.
Em certas composições aparece a bebida como refúgio para “afogar as mágoas”. Em
Peito vazio, por exemplo, fala-se disso, concluindo-se depois que não é a solução para o
sofrimento, cuja única forma de abrandamento é a passagem do tempo.
A descrença na ideia de destino determinando a sorte dos amantes é marcante em
121
Minha, composição na qual esses fatores são simbolizados por cartomantes, bolas de cristal
etc.
Já em Autonomia, surge a representação do amante que se vê forçado partir, a
abandonar o amor por fatores alheios à sua vontade, que não ficam bem esclarecidos.
Enfim, também permanece em alguns casos a esperança da reconciliação, geralmente
configurada como apelo à amada, ou como expressão subjetiva de um desejo.
Encenação discursiva
Também semelhantemente ao que acontece em outros agrupamentos, o enunciador
costuma se apresentar como quem sofre por ter investido no amor, sendo pago com desilusão.
A parceira nem sempre é a destinatária do ato discursivo. Por vezes, em composições
marcadas pelo lirismo, o enunciador fala do seu próprio sofrimento, apenas dando vazão ao
sentimento.
Quando é a interlocutora, a ex-companheira pode ser acusada de ingratidão e traição,
ou ter a si endereçada a esperança de reatamento amoroso.
Situação algo diferente é a apresentada em Minha. Nesse samba, o enunciador canta a
sua descrença em uma reconciliação, que é predita por uma cigana. Insiste enfaticamente no
desengano que teve e na falsidade do destino que lhe é enunciado.
Já em Autonomia, a postura do enunciador, contrariado com as circunstâncias que o
obrigam a se separar da companheira, não envolve acusações a ela. Ele jura a sinceridade do
seu amor, mas afirma não ter autonomia para decidir ficar com ela.
Características lexicais — recorrência de vocábulos ligados aos seguintes campos
semânticos:
– amor (amar, adoro, amizade);
– sofrimento amoroso (chorar, decepção, ilusão, dor);
– valores negativos (mentira, vulgar, escravizar).
Desejo de reconciliação
Neste caso, o conteúdo mais marcante das canções é o desejo de reatar o amor. As
composições costumam ser apelativas, às vezes melancólicas, marcadas pela desilusão ou
pelo arrependimento por uma falta, às vezes esperançosas no sucesso da tentativa.
Sem teu carinho como é que vou ficar / Era pouquinho, mas me fez acostumar / Se desta vez
não te botaram na muamba, / Macaco me lamba (oba), macaco me lamba //
Andas fugindo de mim / Como o diabo da cruz / Não queres mais nem me dar atenção /
Teimei, gastei meu latim, / Da discussão nasce a luz, / Mas nem assim tu me deste razão.
122
É interessante notar que esta é uma marcha carnavalesca. Nas composições deste
gênero musical prepondera um tom jocoso, debochado, típico da ambiência de carnaval.
Assim, a configuração discursiva de Macaco me lamba destoa das demais composições com o
mesmo teor recolhidas nesta amostra do corpus.
Também é marcante que essa composição seja uma das poucas em que se fala de
elementos de religiosidade afro-brasileira (botar alguém na muamba). Geralmente é mais
marcante a religiosidade cristã, que tem mais aceitação social. Eis aí um indício de que a
circulação das composições de sambistas por grupos sociais mais amplos determinou uma
adequação temática e vocabular, para que pudessem ser consumidas pelo “povo civilizado”,
nas palavras de Noel Rosa. Compositores de gerações anteriores, como João da Baiana e
Pixinguinha, falavam na religiosidade afro-brasileira e chegavam a compor macumbas. Essas
referências são muito raras nas obras dos compositores em estudo — na verdade, são mais
numerosas nas obras de Ismael Silva, mas em situações enunciativas marcadas pela
jocosidade.
Um outro elemento digno de nota é o instrumento musical como refúgio para a
saudade. Em Festa da vinda, o violão é apresentado não só como companheiro nessas horas
difíceis, mas também como aliado que ajuda o enunciador a cantar seus rogos pelo regresso
da mulher.
Encenação discursiva
Nessas composições, o enunciador tenta frequentemente mostrar-se paciente, amante e
esperançoso, mesmo sofrendo com desilusão ou ingratidão. Em certos casos, ele também
busca valorizar seus esforços passados para fazer a relação dar certo, no que não obteve êxito.
A receptora pode ser apresentada como cruel ou ingrata por tê-lo abandonado, mas é
perdoada e recebe promessas de acolhimento se decidir voltar.
Às vezes, é construída uma imagem idealizada e distante da ex-companheira,
inacessível devido ao rompimento.
Características lexicais — recorrência de vocábulos ligados aos seguintes campos
semânticos:
– amor (benzinho, carinho, beijo);
– caracterização da mulher (desprezar, abandonar, fingida, malvada, trair);
– reconciliação (perdoar, voltar, regresso);
– rompimento (fugir, abandonar);
– sofrimento (dor, cruciar, saudade).
123
Acusações
Nesse agrupamento de composições, prevalece o sentimento de revolta com a ex-
parceira. O tom é predominantemente censurador e depreciativo.
Composições
a) de Cartola: Na floresta (c/ Silvio Caldas);
b) de Ismael Silva: Agradeças a mim; Boa viagem (c/ Noel Rosa); Ironia (c/ Nilton
Bastos e Francisco Alves); Não há (c/ Nilton Bastos e Francisco Alves).
Valores
Algumas crenças já detectadas anteriormente voltam a se aplicar nestas letras. Um
exemplo: a tendência da mulher à traição.
Além disso, encontra-se o desejo de vingança pelo mal cometido. Também surge
novamente o machismo, na figura do homem provedor, que dá tudo à mulher para depois ser
pago com ingratidão. Em Agradeças a mim, por exemplo, o grande benefício que ela recebe
do enunciador é sair do morro e estar na cidade. O desejo de uma condição menos pobre é
proporcionada pela conjunção amorosa. Elementos semelhantes são encontrados em Na
floresta.
Mesmo quando a inflexão não é de cobrança pelo que a mulher recebeu, também
ocorre a avaliação de que o amor não compensou. Prevalece, portanto, uma percepção
negativa da experiência amorosa.
Encenação discursiva
É comum que o enunciador assuma a posição do grande prejudicado na relação, que
investiu tudo para fazer a parceira feliz, mas sofreu uma grande ingratidão. Por isso, ele
alimenta profundo ressentimento pela ex-amada, que pode ser generalizado a todas as
mulheres. Também pode prometer vingança, ou desprezo quando ela decidir voltar.
Diante do abandono, ele pode se dizer precavido contra amores falsos, mostrando-se
auto-suficiente e imune a futuras desilusões. Nesse caso, diz-se feliz vivendo sozinho, livre de
falsidade.
No caso de Boa viagem, o enunciador tenta “ficar por cima” depois do rompimento,
dizendo que só não terminou antes da interlocutora porque não teve coragem. Faz questão,
ainda, de demonstrar indiferença pelo rompimento, marcada, por exemplo, pela expressão “vá
124
pela sombra”:
Se não mandei você embora, / Enfim, foi porque / Me faltou a coragem... / Mas, se você vai
dar o fora, / Então passe bem: / Boa viagem! //
O amor é como a chama; / Tem princípio, meio e fim; / Se você já não me ama, / Para que
fingir assim... / Não mandei você embora / Porque sou benevolente / Para que você agora /
Quer sair ocultamente? //
Seu desejo não me assombra, / Ofereço meu auxílio... / Passe bem, vá pela sombra, / Acabou-
se o nosso idílio... / Seu amor e o seu nome, / Eu também vou esquecer: / Desta vez, juntou-se
a fome / Com a vontade de comer!
A receptora é geralmente representada de modo muito negativo, como perigosa e
traidora, merecedora de retribuição pelo mal que causou.
Características lexicais — recorrência de vocábulos ligados aos seguintes campos
semânticos:
– caracterização da mulher (traidora, má intenção, brio, fingir);
– caracterização do homem (ninho, conselho, opinião, benevolente);
– desforra (vingança, pecado);
– ilusão/desilusão (iludir, prestar atenção, confiar, enganar);
– sedução (sorriso, carinho, conversa).
Arrependimento
O mais marcante nessas composições é o pesar por uma decisão de rompimento na
qual se voltou atrás. O tom dos textos costuma ser de sofrimento e reconhecimento de erros.
Composições
a) de Cartola: Sofreguidão (c/ Elton Medeiros); Vai, amigo;
b) de Ismael Silva: Arrependido (c/ Nilton Bastos e Francisco Alves).
Valores
A lamentação pelo engano e a tentativa de reconciliação são as duas motivações
principais das composições em questão. Ainda há a constatação de que o amor resulta quase
inevitavelmente em sofrimento.
Diferentemente de outros agrupamentos temáticos já analisados, aqui é comum o
enunciador reconhecer suas faltas e sua responsabilidade no insucesso do amor. Em
Sofreguidão, essa mea culpa é acompanhada do relato de que o amadurecimento determinado
por outras experiências negativas fez com que se avaliasse a união anterior com mais clareza.
Em Arrependido, encontra-se a refutação de um princípio existente em várias outras
composições: o de que é melhor ficar só do que amar: “Quem diz fazer o que quer / Eu digo
125
não ser verdade / Enquanto existir mulher / Há de existir saudade”. Essa refutação, entretanto,
continua imputando às mulheres uma atuação indesejável, desestabilizadora, nos homens.
Enunciação discursiva
O enunciador geralmente reconhece suas falhas e busca o perdão da receptora.
Assume, portanto, a posição de quem depende de um juízo favorável dela para voltar a ser
feliz.
O enunciador também valoriza o seu sofrimento, dizendo-se atordoado, arrependido,
desejoso de emendar-se e de dedicar-se ao amor. Em Vai, amigo, pede ajuda a um
intermediário para convencê-la a aceitá-lo de volta. O intermediário é um amigo a quem ele
confia a sua absolvição.
Outra estratégia usada é dizer-se amadurecido, mais centrado devido a sofrimentos que
o levaram a perceber que era feliz com a ex-consorte.
Reconhece-se que a receptora, nesses casos, está na posição de prejudicada, de credora
dos maus atos do enunciador. Ela fica, assim, em condição superior, de viabilizar ou não a
relação desejada — é uma posição semelhante, apesar de mais exacerbada, àquela atribuída à
mulher no cortejo amoroso.
Características lexicais — recorrência de vocábulos ligados aos seguintes campos
semânticos:
– amor (amar, fervor);
– arrependimento (arrependido, chorei, perdão, castigar, saudade);
– rompimento (esquecer, ingratidão, deixar);
– sofrimento (chorar, magoar).
Tripudiação
A intenção nesses casos é desmerecer ao máximo a ex-companheira, ressaltando seus
vícios e faltas. O tom é de indiferença ou de desprezo. Não se abre qualquer possibilidade
para reconciliações.
Composições
a) de Ismael Silva: Liberdade (c/ Francisco Alves); Novo amor.
Valores
Em Liberdade, a mulher é representada como um fardo, uma companhia muito
indesejável, cujo afastamento é razão para alegria. Também é interessante notar que não se
126
reconhece que a relação foi significativa o bastante para trazer desilusão — o sentimento
dominante é o alívio.
Em Novo amor, há algum reconhecimento de sofrimento com o fim da relação, mas o
mais relevante é que, depois daquela desilusão, o enunciador encontrou um amor verdadeiro
que é muito mais forte e, portanto, traz a felicidade não encontrada com a relação passada.
Enunciação discursiva
O enunciador busca ressaltar o seu desligamento afetivo em relação ao passado. Diz-se
feliz na sua condição presente e, se há algum desejo de dissabores para a ex-amada, o mais
forte é o sentimento de satisfação com o fim da união, ou com uma nova união, mais
satisfatória.
A ex-parceira ainda é acusada de falhas e seus defeitos são declarados. Entretanto, o
mais importante é mostrar-lhe que se deu a volta por cima.
Características lexicais — recorrência de vocábulos ligados aos seguintes campos
semânticos:
– felicidade (liberdade, feliz, favor, gozar, independência);
– mulher, na condição de ex-amada (amor, meu bem);
– rompimento (saudade, novo amor, há males que vêm pra bem);
– sofrimento (infeliz, chorar).
Outras características linguístico-discursivas
A composição Liberdade merece alguns comentários adicionais:
Liberdade, liberdade / O meu amor foi-se embora / Pensando deixar saudades / Eu nunca fui
tão feliz / Agora sou eu quem diz... / Foi uma felicidade (Eu vou gritar...) //
Meu bem querer / Não mais me quis / Foi um favor que me fez / Posso dizer que sou feliz / E
que chegou a minha vez (Eu vou gritar...) //
Se eu já gozei / Mais vou gozar / Com essa separação / Nunca pensei sem esperar / Ter tanta
satisfação / (Independência ou morte!).
O texto é cheio de ironia. Nele, misturam-se referências afetivas — “meu amor”, “meu
bem querer” — com a alegação de que ela não deixa saudades, faz um favor ao enunciador o
abandonando.
Também é significativa a intertextualidade com o Hino da Proclamação da República
(“Liberdade, liberdade”) e com o grito do Ipiranga (“Independência ou morte”). Essas
referências trazem uma grandiloquência ao texto que reforçam o entusiasmo do enunciador e
contrastam com o tema amoroso, particular e subjetivo, destoante do significado cívico,
coletivo, dos hinos e símbolos pátrios — isso ressalta o efeito de ironia.
127
Fim do sentimento de amor
O principal aqui é a constatação de que a relação se tornou inviável, porque um dos
amantes deixou de ter amor pelo outro, ou isso ocorreu com ambos. O tom é de despedida,
mas sem mágoas, ou de justificativa pela decisão, também sem sobressaltos.
Composições
a) de Cartola: Acontece; Fim de estrada.
Valores
No caso de Acontece, um dos parceiros assume a iniciativa de terminar — para ele, o
sentimento é mais forte do que as conveniências. Mesmo querendo continuar a relação, a falta
de amor impede que isso aconteça. Já em Fim de estrada, a separação ocorreria por consenso.
Não restam ressentimentos e o enunciador deseja felicidade à mulher. A maior preocupação
expressa é com a memória do amor que existiu — ela deve ser respeitada e não negada.
Geralmente prevalece a racionalização, a avaliação de que, considerado com
sinceridade, o consórcio amoroso não tem futuro. Tanta racionalidade seria outra indicação de
que não há paixão a influenciar o julgamento.
Encenação discursiva
A perspectiva à qual temos acesso, mais uma vez, é a do enunciador. Ele se dirige
respeitosa e afetuosamente à companheira para justificar o fim da união. Em Fim de estrada,
deixa expresso que a decisão é consensual, apesar de ela não ter voz para confirmar o que é
dito.
Em Acontece, o enunciador se mostra contrariado com a iniciativa, mas deixa claro
que é o que a sinceridade o leva a fazer. Não acha que a parceira mereça o rompimento e se
diz pesaroso pelo seu ato, mas entende que causará mais sofrimento se fingir amor a ela.
Características lexicais — recorrência de vocábulos ligados aos seguintes campos
semânticos:
– contrariedade (infelizmente);
– envolvimento amoroso/rompimento (amar, coração, frio, vazio, perdido, ninho de
amor, nome, esquecer, estrada, cansar);
– sinceridade/falsidade (fingir, negar, respeitar);
– sofrimento (sofrer, chorar).
128
Consolação
A música que se enquadra aqui é Conselho, de Paulo da Portela e Lincoln Washington
de Almeida:
Aceite um conselho de amigo / Não queiras ter tão triste fim / Eu sei que a vida de quem ama
é assim / Manda embora essa tristeza / Esqueça alguém que não te quis / Canta e serás feliz /
Cantando muito facilmente irás esquecer / Aquela que só por maldade te fez padecer /
Compare essa falsa amizade / Com a tempestade, não perca a esperança / Que um dia com
muita alegria terás a bonança.
O marcante neste caso é que, na situação retratada, temos um amigo consolando o
amante desenganado e tentando transmitir-lhe uma perspectiva otimista da vida. O tom é de
aconselhamento e esperança.
Valores
Entende-se que é normal sofrer por amor — essa experiência é comum àqueles que
amam. A solução do suicídio para o sofrimento também é insinuada e rechaçada pelo
conselheiro.
O canto é exposto como a solução para os dissabores, pois proporciona o
esquecimento das mágoas. Há, no final da canção, um recurso à interdiscursividade com a
sabedoria popular — a menção estilizada à máxima segundo a qual após a tempestade vem
sempre a bonança; com isso, busca-se avalizar a asserção de que as dificuldades amenizam-se
com o tempo.
Encenação discursiva
O enunciador é um amigo que tenta consolar o amante em sofrimento. Ele se
posiciona como alguém bem próximo do receptor, que também tem vivências amorosas e se
solidariza com ele em sua dor. Toma partido do interlocutor e acusa a ex-parceira de maldade.
A partir da fala do conselheiro, infere-se que o sofrimento do abandonado é intenso e
que ele cogitaria no suicídio como solução (“não queiras ter tão triste fim”). De resto, não se
dispõe de muitas outras marcas das suas disposições — é o esforço de consolação do
enunciador, eivado de imperativos, que mais aparece na letra.
Características lexicais — recorrência de vocábulos ligados aos seguintes campos
semânticos:
– aconselhamento (conselho de amigo, esquecer);
– canto (cantar);
– consolação e felicidade futura (feliz, bonança);
– sofrimento (tristeza, tempestade).
129
Recordações
Encontra-se nesse grupo o samba Tive sim, de Cartola:
Tive sim / Outro grande amor antes do teu / Tive sim / O que ela sonhava eram os meus
sonhos / E assim íamos vivendo em paz / Nosso lar, em nosso lar sempre houve alegria / Eu
vivia tão contente / Como contente ao teu lado estou / Tive sim / Mas comparar com teu amor
seria o fim / E vou calar pois não pretendo amor te magoar.
A composição é retrospectiva; fala de um amor antigo. Nela sobressai uma certa
nostalgia, assim como afeição à interlocutora — o amor presente. Também há um cuidado
para não melindrar a companheira.
Valores
A importância da harmonia amorosa e do ambiente familiar são os dois valores
principais a ser destacados. A sintonia do casal é um elemento importante, garantia de vida
em paz.
A inadequação de falar em nostalgia de amores passados com a companheira atual
também acaba ocorrendo ao enunciador. É mesmo de se esperar que esse tipo de
comportamento cause ciúmes, principalmente no modelo de amor romântico, que pressupõe
fidelidade e paixão entre os parceiros.
Encenação discursiva
O enunciador relembra uniões anteriores, com o cuidado de não ferir os melindres da
companheira. Faz questão de esclarecer que o amor anterior não supera o atual (apesar de
também não dizer que era menos importante) e acaba desistindo de fazer comparações, para
enfim decidir calar, percebendo o risco de causar um desgosto.
A destinatária é apenas ouvinte das recordações do enunciador. É possível atribuir a
mudança de atitude do enunciador no final da canção a uma manifestação de contrariedade
dela, mas isso não está completamente claro.
Características lexicais — recorrência de vocábulos ligados aos seguintes campos
semânticos:
– amor (amor);
– valores positivos (sonhar, sonho, paz, contente);
– vida a dois (lar);
– mágoa (magoar).
130
3.1.1.5 - Amor frustrado
Esse grupo de composições caracteriza-se pela abordagem de paixões mal-sucedidas,
amores impossíveis ou frustrados antes de chegarem a se concretizar. Também se fala na
incapacidade de encontrar um amor verdadeiro. O tom das letras é melancólico e amargurado.
Composições
a) de Cartola: Amor proibido; Desfigurado; Disfarça e chora (c/ Dalmo Castello);
Divina dama.
Valores
O desengano do amor ainda nascente é uma das referências principais das letras em
estudo. Ele pode ser devido a ilusões alimentadas pelo apaixonado que criou expectativas
falsas relativamente à reciprocidade do seu sentimento, ou ao excesso de timidez de quem não
conseguiu demonstrar seu interesse por alguém.
Também está presente a ânsia pelo amor verdadeiro, o amor que traz a felicidade e
cura as mágoas do passado. Ainda há o sentimento de remorso pelo envolvimento amoroso
com a mulher de um amigo. Nesse caso, o enunciador se encontra no outro polo da recantada
traição amorosa e há o cuidado de explicitar devidamente o seu arrependimento pelo ato.
Em Desfigurado, também há manifestações de religiosidade cristã — pode-se aos céus
um amor verdadeiro.
Encenação discursiva
No caso de Desfigurado, o enunciador fala de suas próprias desventuras, sem
destinatário específico. Em certo ponto, dirige-se apelativamente a Deus pedindo intercessão
para alcançar o seu desejo. Caracteriza-se como alguém farto de sofrer e ansioso pelo amor.
Também há referências à percepção de terceiros, que confirmariam o abatimento do
enunciador diante desse sofrimento.
Em Divina dama, o enunciador manifesta o seu embevecimento diante de uma mulher
que conhece em um baile. A caracterização dedicada a ela destaca a intensidade da paixão e
da comoção do amante. Em seguida, ele se mostra desiludido pelo fato de o amor não ter sido
correspondido e sublima a mágoa por meio da música. O enunciador relata esses extremos
emocionais sem estender-se em acusações à destinatária — predominam as fortes impressões
131
despertadas nele pela mulher idealizada.
Em Amor proibido, a destinatária é acusada, mais do que de falsidade, de ludibriar o
enunciador, fazendo-o trair um amigo. Ele se caracteriza como quem cometeu a traição
involuntariamente, insistindo na sua inocência e na indignidade da interlocutora. Chega a se
dizer malfadado, tentando marcar a extensão do seu arrependimento.
Já em Disfarça e chora, o enunciador é alguém que aconselha uma mulher que viu
suas expectativas frustradas. Ele se condói com o seu sofrimento, mas não deixa de adverti-la
de que precisa demonstrar mais claramente seu amor. O objeto do amor da destinatária é
aludido genericamente; o foco principal é a desilusão da “triste senhora”.
Características lexicais — recorrência de vocábulos ligados aos seguintes campos
semânticos:
– amor (amor, gostar, atordoado, pasmado, amizade, emoção);
– desilusão (olhos rasos d'água, coração partido, amor proibido, presa, deserto);
– religiosidade (Deus, céus, Senhor);
– sofrimento (chorar, desfigurado, nostalgia, lamento, triste, pranto).
3.1.1.6 - Amor harmonioso
O denominador comum aqui é a felicidade amorosa. Ostenta-se a satisfação e
imortalizam-se momentos emblemáticos como o do casamento. O tom é de contentamento e
entrosamento entre o casal.
Composições
a) de Cartola: Nós dois;
b) de Ismael Silva: Alegria.
Valores
Em Alegria, fala-se no encontro do amor após longa procura. O fato de encontrar o
amor, entretanto, é considerado sem muita idealização, pois é preciso insistência para alcançar
esse sucesso — o amor não é entendido como encontro de almas gêmeas, fadadas uma à
outra.
Em Nós dois, a iminência do casamento é marcada por momentos de reflexão a dois
132
(embora a voz seja do enunciador e as reações da consorte não sejam descritas). Pretende-se
que o casamento marque o fim definitivo das incertezas amorosas, o assentamento do casal
em uma vida conjugal duradoura.
Também é relevante a preocupação com o entrosamento dos companheiros, que
devem chegar ao maior entendimento possível, para viver harmoniosamente.
Encenação discursiva
No primeiro caso comentado anteriormente, o enunciador exulta com o amor bem-
sucedido. Ele se mostra como o conquistador que conseguiu contornar o comportamento
reticente da amada para viabilizar a união. Ela seria a mulher cortejada que não correspondia
às investidas, mas também não as rechaçava com convicção. Ainda há referência às reações
de admiração de terceiros diante dessa relação — isso pode inclusive ser uma alusão a tantas
outras representações lírico-musicais de amores desfeitos, desenganos e traições.
Características lexicais — recorrência de vocábulos ligados aos seguintes campos
semânticos:
– felicidade (alegria, feliz);
– amor (união, eternamente).
3.1.1.7 - Amor reticente
Aqui o que chama atenção é o receio em se entregar a uma relação amorosa. O tom é
reticente, cauteloso.
Composições
a) de Ismael Silva: Receio; Se você jurar.
Valores
Não é incomum que sejam propostos testes para confirmar que o projeto de união dará
certo. Voltam a se manifestar a desconfiança na sinceridade da parceira e o receio de intrigas
de terceiros.
Em Se você jurar, há ainda a questão da possibilidade de o enunciador “se regenerar”
a partir do compromisso com a parceira, deixando a vida de malandro (orgia). A vida de
133
malandro é tida como incompatível com compromissos amorosos estáveis. A possibilidade de
mudança de vida é pesada com atenção, por causa de desilusões anteriores: retomam-se,
então, as reflexões recorrentes a respeito de uma suposta natureza inconstante das mulheres,
que são comparadas a um jogo de azar.
Receio toca em um assunto delicado: a insinuação de uma relação sexual antes da
estabilização da relação. A natureza do tema faz com que se recorra à imagem do espetáculo
teatral para dar outra roupagem à sugestão.
Encenação discursiva
O enunciador mostra-se cuidadoso, arredio. Quer garantias de que não sofrerá uma
desilusão ao entregar-se amorosamente. Entretanto, em última análise, ele se mostra disposto
a arriscar mais uma vez, para tentar ser feliz no amor.
Em Se você jurar, o enunciador se diz tranquilo, satisfeito com a vida que leva. Esse é
mais um motivo para que pondere bem as vantagens em fazer o movimento de assumir um
amor sério.
A destinatária é alvo das desconfianças do enunciador, que lhe pede um compromisso
ou mostras de sinceridade do seu envolvimento.
Características lexicais — recorrência de vocábulos ligados aos seguintes campos
semânticos:
– sinceridade/falsidade (mudar de ideia, jurar, fingir);
– amor (amor, amante, amizade);
– incerteza (arriscar, receio).
3.1.1.8 - Resistência ao amor
Nesse caso, um dos dois (geralmente o enunciador masculino) não quer se envolver
amorosamente e declara isso mais ou menos enfaticamente. O tom pode ser desdenhoso ou
apelativo, dependendo da posição discursiva em pauta.
Composições
a) de Ismael Silva: Gosto, mas não é muito (c/ Noel Rosa e Francisco Alves); Não é
isso que eu procuro (c/ Francisco Alves); Quem não quer sou eu (Noel Rosa);
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b) de Paulo da Portela: Olhar assim.
Valores
O desinteresse pela relação pode ser justificado pelo fato de o enunciador não
compartilhar do sentimento da destinatária (pelo menos não na mesma intensidade). Ela
também pode ser desqualificada por ser mulher da orgia, indigna de uma relação estável. A
recusa pode ser ainda justificada como uma desforra devido ao desinteresse diante de uma
investida do enunciador, manifestado anteriormente pela mesma mulher que busca o
envolvimento.
No caso de Não é isso que eu procuro, há marcas claras da canção composta para
intérpretes da indústria fonográfica: Francisco Alves e Mário Reis cantam a canção, mas, ao
dizer que não se pode ter certeza de que a mulher da orgia é fiel, precisam atribuir a
declaração a Ismael Silva, enunciador mais autorizado para esse tipo de juízo. Os dois
intérpretes, não pertencendo ao meio da roda de samba, não sendo sambistas, no conceito
preconizado por Roberto M. Moura, não teriam conhecimento de causa para tirar tais
conclusões.
Em Olhar assim, a indiferença ao amor é da destinatária. O “instinto de mulher”, que a
levaria a magoá-lo, é evocado, assim como o poder dos versos, de conquistá-la, ou ao menos
de torná-la mais acessível.
Encenação discursiva
O enunciador geralmente se posiciona superiormente, como aquele que, experiente,
aprendeu a não confiar nas mulheres, ou em certos tipos de mulheres. Também pode se dizer
magoado por desilusão anterior, que o levaria a não querer se envolver com a destinatária.
Em Gosto, mas não é muito, a indiferença do enunciador vem revestida de ironia. A
própria forma de tratar a mulher apresenta um falso tom de afetividade: “neném”, “meu bem”.
Há ainda sarcasmo no modo de rejeitá-la — “eu vou ver o que posso fazer por você”.
No caso de Olhar assim, inversamente, é o enunciador que se mostra desprezado e
suplicante, em posição tão fragilizada que o olhar da amada pode feri-lo. Usa a força dos
versos para tentar reverter a situação em seu favor.
A mulher, portanto, ou é indigna e inferiorizada, ou é cruel e poderosa aos olhos do
enunciador.
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Características lexicais — recorrência de vocábulos ligados aos seguintes campos
semânticos:
– amor (amor, gostar);
– mulher (meu bem, neném, mulher);
– rejeição (amofinar, não dar futuro, deixar em paz, valor);
– sinceridade/falsidade (insensato, fiel, jura, desiludido, hipocrisia).
3.1.2 - Metalinguagem
Roberto M. Moura (2004, p. 253) oferece-nos uma apreciação importantíssima sobre os
sambas que falam de samba, característicos desta área temática:
Os gêneros musicais, de modo geral, apresentam uma parcela de produção autorreferente.
Fados que falam de fados, criações da bossa-nova que giram em volta do próprio umbigo
(Desafinado, Samba de uma nota só etc.). Só que o volume com que esse tipo de produção
aparece no samba impõe uma citação especial.
A princípio, essa produção poderia ter ficado restrita às gerações pioneiras, para as quais o
samba era uma experiência visceral, mais que musical. Não foi o que ocorreu, já que não só
aquele samba “negro”, de raiz, se apresenta assim. Na obra de Noel Rosa, há dezenas de
títulos cujos versos tratam de samba ou são em homenagem a ele. E Noel (1910-1937) era um
estudante de medicina, branco, filho de classe média de Vila Isabel. Mais recentemente, Tom
Jobim e Chico Buarque trilharam o mesmo caminho em Piano na Mangueira [...]
O fato é que os compositores brasileiros jamais deixaram de relacionar a palavra “samba”
tanto ao gênero como à festa. [...]
Além de falar de si, [o samba] fala muito também do evento que lhe deu origem e da
instituição que o projetou.
O autor indica nessa passagem uma peculiaridade dos sambas que falam de samba:
além de apresentarem características metalinguísticas, usando os recursos lítero-musicais do
gênero para abordar as características do próprio gênero, também desenvolvem o
metadiscurso, usando a enunciação para comentar as condições de produção da letra de
samba, ou as intenções do compositor ao fazer o samba. Conforte (2007, p. 38) sistematiza
essa diversidade de possibilidades nas seguintes categorias:
1) Os chamados metassambas narram a história do samba e descrevem a vivência dos
sambistas e o universo que os rodeia;
2) os sambas metapoéticos, por seu turno, descrevem o fazer poético que se considera ser a
feitura de uma letra de samba;
3) já os sambas metalinguísticos propriamente ditos constituem um comentário sobre a
língua em que foram compostos, no caso, o português.
Para dar conta de toda a complexidade desse quadro, decidi incorporar à área temática
metalinguagem também os casos de metadiscurso. A análise das letras resultou na delimitação
dos oito seguintes sugbrupos.
136
3.1.2.1 - Homenagem
O propósito principal destas composições é homenagear pessoas e instituições dignas
disso no meio do samba. A maioria das composições é em louvor ao próprio samba e os
textos costumam ser elogiosos, idealizadores.
Composições
a) de Cartola: Fiz por você o que pude; Pudesse meu ideal (c/ Carlos Cachaça); Sala
de recepção; Tempos idos (c/ Carlos Cachaça); Verde que te quero rosa (c/ Dalmo Castello);
b) de Paulo da Portela: Cantar de um rouxinol; Coleção de passarinhos; “Mangueira,
velha escola...”; “Sambar / Salve a folia...”; Teste ao samba.
Valores
Sambistas são frequentemente homenageados nessas composições. É comum que
sejam associados a aves canoras, como acontece em duas composições de Paulo da Portela
(Coleção de Passarinhos e Cantar de um rouxinol). Também se proclama em alguns casos
um código de comportamento compartilhado, do qual os homenageados seriam modelos;
alguns valores em questão, nesse caso, seriam habilidade artística, modéstia, liderança e
fidelidade à agremiação.
Esses mesmos valores podem ser expandidos a todo o grupo que integrava uma escola
de samba — é preciso lembrar que o modelo de escola de samba, para compositores dessa
geração, ainda é o de agrupamentos de pessoas que viviam na mesma região e eram
intimamente entrosadas à vida da comunidade. Sala de recepção é uma composição que
traduz esse espírito.
O sambista, em composições como Teste ao samba, é visto como autoridade,
“professor de samba”, para usar o título que essa composição valeu a Paulo da Portela. A
mesma ideia motivou Ismael Silva a intitular os novos grupos carnavalescos que surgiam,
tendo o samba como base, de “escolas de samba”.
As próprias escolas de samba costumam ser homenageadas. Cantam-se a sua história,
o começo modesto e o crescimento posterior. Valorizam-se os baluartes, pessoas que
fundaram e atuaram como líderes e viabilizadores das atividades. É comum a afirmação de
que esses deixam um legado à posterioridade e ao país — o samba, patrimônio da cultura
brasileira.
137
Em composições como Verde que te quero rosa, canta-se a simbologia das cores que
representam a escola, associando-as a valores e a elementos da natureza. Esse tipo de
associação, aliás, é frequente e empresta ao samba um sentido de harmonia e pureza próprias
das coisas naturais.
Encenação discursiva
O enunciador costuma se preocupar em assumir uma posição de autoridade, de quem,
portanto, está autorizado para falar com conhecimento de causa do samba, dos bambas, da
escola de samba etc.
Em muitos casos, ele também assume a posição de contribuinte relevante para a
história dessas instituições. Em Fiz por você o que pude, por exemplo, o sambista afirma a
sua contribuição para a história da escola de samba e aprecia o legado que fica para o futuro.
Em seguida, usa a imagem da transfusão de sangue para falar na formação de novos sambistas
com os mesmos ideais.
Também cabe ao enunciador testemunhar belezas naturais e associá-las a personagens
e instituições do samba. Ele toma a iniciativa de construir o paralelo entre os dois elementos,
emprestando os valores idealizados atribuíveis à natureza aos elementos do universo do
samba.
Outra posição comum a quem assume o “eu discursivo” é louvar seus pares, outros
sambistas, e as outras escolas de samba. Essa é uma função diplomática, de aumentar a coesão
entre os grupos, afirmando a harmonia entre eles. Também era usual que sambistas tomassem
a iniciativa de compor músicas com esse tipo de postura discursiva em visitas de grupos de
uma escola de samba a outra. O samba era, dessa forma, usado para apresentar os visitantes e
enfatizar seus ideais de fraternidade. Paulo da Portela, como veremos mais detalhadamente
adiante, destacou-se na composição de sambas com essa função.
Em sambas destinados a públicos mais amplos do que seus pares, como é o caso dos
sambas-enredo, o enunciador pode assumir uma postura mais cautelosa. Identificando-se
como sambista, pode mostrar-se mais modesto, já que fala a outros grupos sociais, com outros
valores; não deixa, entretanto, de afirmar seu valor, auferido a partir da contribuição cultural
do samba, que, a partir das primeiras décadas do século XX e ainda mais intensamente na
década de 1930, passa a ser entendido como gênero musical nacional. Essas são posturas
identificáveis em Pudesse meu ideal.
Enfim, o enunciador também pode afirmar o seu amor ao samba em si, mostrando-se
comovido e entusiasmado pelo gênero musical, que identifica com a folia, a alegria e a orgia.
138
É oportuno observar que, nesse domínio discursivo, a lexia orgia não tem carga negativa — é
uma referência à ambiência festiva da roda de samba (veja-se o estudo léxico-discursivo da
próxima seção).
Os destinatários podem ser os pares, sambistas, pessoas com os mesmos ideais. Pode
ser a coletividade de uma outra escola de samba, caso das composições que marcam visitas
entre agremiações. Nesses casos, a representação desses seres discursivos enfatiza a
comunhão a partir de ideais semelhantes, o valor e a habilidade dos sambistas e as glórias das
escolas de samba.
A própria escola de samba pode ser destinatária de sambas. É comum o sambista se
dirigir a ela para falar da sua importância e de suas conquistas, carnavalescas e culturais num
sentido mais amplo.
Em Teste ao samba, o destinatário é a audiência da aula, aqueles a quem se fazem as
perguntas e se passa a lição. Essa posição dos alunos reforça a autoridade dos professores de
samba.
Nas composições em estudo, alguns elementos ocupam a terceira pessoa do discurso
— são mencionados, ou mesmo glorificados, fora do par enunciador/destinatário. O samba e a
escola de samba também ocupam esse lugar em composições como Pudesse meu ideal.
Os instrumentos musicais característicos das escolas de samba são citados em Teste ao
samba como fontes de conhecimento, aos quais os aprendizes não deveriam pedir cola. Já em
Verde que te quero rosa, as cores que simbolizam a Mangueira são abordadas e associadas a
valores positivos e a elementos da natureza.
Características lexicais — recorrência de vocábulos ligados aos seguintes campos
semânticos:
– bambas (Mano Paulo, Claudionor, malandro, bamba, compositor, lira, cantar,
Cartola, baluarte, poesia, melodia, Alfaiate, Zé com Fome);
– escolas de samba (Mangueira, escola);
– natureza (romper do sol, rouxinol, passarinho, canário, curió, gota de orvalho);
– outros elementos do samba (caixa surda, cuíca, carnaval);
– roda de samba (folia, orgia).
139
3.1.2.2 - Cotidiano da escola de samba
Essas composições enfocam diversos momentos das atividades de uma escola de
samba: a eleição de um presidente, a conquista de um campeonato, a morte de um integrante
querido etc. As letras costumam ser informais e elogiosas.
Composições
a) de Cartola: Ao amanhecer; Chega de demanda;
b) de Paulo da Portela: A homenagem ao Morro Azul; “A Portela está contente...”;
“Avante, mocidade, é hora...”; “Dona Cegonha, venho com muita vergonha...”; O meu nome
já caiu no esquecimento; “Ouvi dizer, / ouvi falar...”; Para que havemos de mentir.
Valores
Um dos elementos principais perceptíveis nessas letras é o uso do samba para falar de
situações cotidianas próprias desse mesmo universo. Caracteriza-se uma relação discursiva
que Muniz Sodré (1979, p. 34-5) denomina transitividade do discurso do samba:
o texto verbal da canção não se limita a falar sobre (discurso intransitivo) a existência social.
Ao contrário, fala a existência, na medida em que a linguagem aparece como um meio de
trabalho direto, de transformação imediata ou utópica (a utopia é também uma linguagem de
transformação) do mundo — em seu plano de relações sociais. [...]
Nas letras de samba de gente como Wilson Batista, Geraldo Pereira (dois dos mais
importantes sambistas dos anos 40) e outros de idêntica posição cultural, o que se diz é o que
se vive, o que se faz. Não se entenda com isto que haja uma correspondência biunívoca entre
o sentido do texto e as ações na vida real, mas que as palavras têm no samba tradicional uma
operacionalidade com relação ao mundo, seja na insinuação de uma filosofia da prática
cotidiana, seja no comentário social, seja na exaltação de fatos imaginários, porém
inteligíveis no universo do autor e do ouvinte.
Assim, os temas das letras desses sambas são os próprios acontecimentos que
envolvem o dia a dia da escola de samba, abordados por pessoas do próprio grupo, que falam
da sua vida, geralmente se dirigindo também a pessoas do grupo.
Chega de demanda, como já esclarecido anteriormente, é uma exortação aos diferentes
blocos da Mangueira, a congregarem-se na escola de samba que fora fundada. A composição
enaltece os valores locais e promete grandes sucessos ao grupo, unido em uma só instituição.
Os sambas Homenagem ao Morro Azul e “A Portela está contente...” são composições
usadas como cartões de apresentação em visitas a outras agremiações. Ambos os sambas são
marcados por palavras de incentivo e desejo de sucesso.
Ao amanhecer foi composto em homenagem a uma ala da Mangueira, a dos
periquitos. Assim, permanece uma ambiguidade na letra, a partir da qual se transferem
140
características das aves aos integrantes da ala, aumentando a associação entre sambista e
elementos naturais, já comentada.
Em Para que havemos de mentir, tem-se a afirmação do valor de uma escola que ainda
se consolidava nos redutos do samba. Daí a necessidade de exaltar a vitalidade do subúrbio,
parte da cidade que não tinha tradição na produção de samba, como Estácio e Cidade Nova.
A composição “Avante, mocidade, é hora...” é em favor da candidatura de Claudionor
à presidência da Portela. Os valores exaltados são a mocidade como grupo disposto a
mudanças e progressos; o subúrbio como polo produtor de samba; a beleza do samba bem
feito como valor a ser cultivado.
A composição sem título de Paulo da Portela, que começa com os versos “Dona
Cegonha, venho com muita vergonha / Por meio desta cartinha te solicitar um favor”, marca a
comemoração de um campeonato da Portela. Nela também se enfatiza que já há um legado
nobilitante a ser transmitido a novas gerações.
Uma referência que chama atenção na composição é a denominação “crioulinho” ao
rebento trazido pela dona cegonha. Três observações são cabíveis a partir desse uso lexical: 1)
a designação “crioulinho”, que pode ter peso pejorativo em muitos contextos
58
, não o tem
nesse — a lexia “crioulo(a)”, assim como “nego(a)”, “escurinho(a)” etc., quando usada sem a
intenção de estabelecer relações assimétricas, mas, pelo contrário, com o intuito de marcar
familiaridade, ou mesmo envolvimento amoroso, não é considerada ofensiva nesse meio. Ao
longo do estudo de outras áreas temáticas, tive oportunidade de registrar mais exemplos desse
comportamento linguístico; 2) a cor da pele da criança representaria a maior parte dos
participantes da agremiação, visto que as escolas de samba historicamente têm uma
participação majoritária de negros (embora hoje em dia isso não seja mais tão seguro); 3) há
um grau de crença em habilidades inatas envolvendo a evocação ao destino e a habilidade de
fazer samba, fatores presentes na composição. Esses elementos dialogam com a ideologia
segundo a qual determinadas habilidades são atribuíveis a algo “que se traz no sangue”.
O meu nome já caiu no esquecimento marca uma experiência de grande desilusão que
o enunciador sofrera. Nesse caso, pode-se dizer seguramente que Paulo da Portela compôs a
58
A intenção pejorativa está na origem da designação: “crioulo” era lexia usada para qualificar as pessoas escravizadas com
relação à sua origem — era denominado crioulo aquele que havia nascido no Brasil ou em países sul-americanos, em
oposição ao que fora aprisionado em terras africanas. A palavra, com uma carga forte de coisificação, era aplicável a
qualquer tipo de gado, vegetal ou objeto. Cf. HOUAISS, Antônio e VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário eletrônico
Houaiss da língua portuguesa. Versão 1.0. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. CD-ROM.
141
canção dando vazão ao seu sofrimento por ter sido impedido de desfilar na Portela
59
. O
incidente, que fez Paulo da Portela deixar a sua escola, marcou-o profundamente, o que se
pode constatar no tom pungente da letra.
A velhice é uma das razões indicadas para o desinteresse pelo nome do sambista. Esse
é um valor infelizmente ainda em vigor na nossa sociedade, apesar de alguns avanços.
A composição sem título com versos iniciaisOuvi dizer / Ouvi falar” é dedicada a
um dos integrantes da Lira do Amor, que falecera trabalhando pela escola de samba, durante o
desfile de carnaval. O apreço dos companheiros é traduzido pela decisão de suspender o
desfile do ano seguinte.
Encenação discursiva
O enunciador de A homenagem ao Morro Azul e de “A Portela está contente...” é o
visitante mais experiente, cuja habilidade é comprovada por títulos e reconhecimento de seus
pares, que vai desejar sucesso a um grupo menos conhecido, ou que ainda começa suas
atividades no mundo do samba.
No caso de Ao amanhecer, ele é a testemunha embevecida com o canto dos periquitos,
cuja descrição que combina o comportamento dos integrantes da ala com o das aves canoras
cria uma impressão de grande identificação entre os dois.
Já em Chega de demanda é quem assume a posição de convocador eloquente dos
sambistas do morro para se unirem em torno da Estação Primeira de Mangueira. Nesse caso e
em “Avante, mocidade, é hora / De mostrar o nosso progresso”, o enunciador faz questão de
mostrar que comunga dos valores e vivências do grupo, para melhor persuadir todos a segui-
lo.
Em “Dona cegonha, venho com muita vergonha...”, o enunciador se apresenta
confiante, como quem conquistou algo valioso que tem a transmitir a outras gerações, que
poderão compartilhar dos mesmos valores. Já em “Para que havemos de mentir...”, o
enunciador hipoteca sua própria credibilidade para reforçar a afirmação de que o subúrbio já
integra legitimamente as atividades do samba carioca.
59
Apesar de até hoje haver versões diferentes para explicar o impedimento da participação de Paulo, o relato mais aceito, por
ser feito por Yolanda de Almeida Andrade (a dona Neném), testemunha do ocorrido, é que Paulo não teria sido proibido de
desfilar, mas sim seus acompanhantes (Cartola e Heitor dos Prazeres) que, convidados por ele, também participariam da
apresentação. Paulo, sentindo-se desprestigiado diante do impedimento de seus convidados, desistiu de desfilar, em protesto.
Veja-se, a respeito do episódio, BARBOZA DA SILVA, Marilia Trindade e SANTOS, Lygia. Paulo da Portela: traço de
união entre duas culturas. Rio de Janeiro: Funarte, 1989, p. 123-5; o depoimento de dona Neném encontra-se no
documentário PAULO DA PORTELA: o seu nome não caiu no esquecimento. Direção de Dermeval Netto. Rio de Janeiro:
Museu da Imagem e do Som/Secretaria Estadual de Cultura, 2001.
142
Em O meu nome já caiu no esquecimento, ele se apresenta solitário e amargurado, mas
apesar disso, ainda tem a convicção de conquistas inalienáveis, Chega a se dirigir aos
instrumentos musicais, comandando-os, o que marca a sua intimidade e autoridade no meio.
Em “Ouvi dizer / ouvi falar...”, é quem comenta a notícia da morte do Caquera e
compartilha do pesar pelo acontecimento.
Em “Dona cegonha...”, o destinatário é a ave-símbolo da fertilidade que, num
momento profícuo da Portela, é solicitada a trazer uma criança, que simboliza o futuro
promissor da escola de samba.
Quanto a O meu nome já caiu no esquecimento, após uma passagem mais lírica, os
destinatários passam a ser os próprios instrumentos musicais com os quais o enunciador tem
grande intimidade e que se lamentam pelo seu afastamento, tocando plangentemente.
Características lexicais — recorrência de vocábulos ligados aos seguintes campos
semânticos:
– escolas de samba (Unidos do Morro Azul, carnaval, Portela);
– música (cantar, acorde, violão, harmonia, cavaquinho);
– natureza (periquito, lua, cegonha, gaturamo, curió, canário, rouxinol);
– Rio de Janeiro (Bento Ribeiro, subúrbio, morro de Mangueira);
– sucesso (primeiro lugar, brilhar, sucesso, fama);
– valores positivos (harmonia, avante, ordem e progresso).
3.1.2.3 - Canto e dança
Essas composições enfatizam os efeitos que a música e a dança têm sobre as pessoas,
principalmente no sentido de se animarem e de se sentirem seduzidas. Também há menção ao
ambiente da roda de samba, que compartilha das mesmas representações. As letras são alegres
e irreverentes.
Composições
a) de Ismael Silva: Maestro, toque aquela (c/ José de Almeida);
b) de Paulo da Portela: “Canta, meu bem...”; “Vamos embora, ó, flor...”
143
Valores
A beleza e sensualidade da dança da mulher é um elemento enfatizado nas
composições. Também se mencionam os instrumentos musicais, os arranjos das músicas e os
músicos que as executam.
O ambiente criado pela música e pela dança feminina é mostrado como sedutor. O
carnaval é considerado um período especialmente propício para a criação desse ambiente.
Outro meio perfeito para os prazeres do samba é a roda de samba. Nela, entretanto, há
o risco de discussões entre casais, motivadas por ciúme, devido justamente à influência que a
dança feminina tem sobre os homens.
No caso de “Vamos embora, ó, flor...”, a composição que enfoca essa última situação,
há mais um tópico digno de nota: o machismo revelado na postura autoritária do homem, que
é desmascarado pelas afirmações da mulher, segundo as quais essa autoridade não é absoluta.
Encenação discursiva
Duas das composições deste agrupamento têm formatação dialógica, em que os dois
interlocutores têm voz, trocam as posições enunciador/destinatário. Em ambos os casos, é um
casal que dialoga.
Em “Canta, meu bem...”, o homem se mostra maravilhado com a sensualidade e as
habilidades musicais da mulher. Ele está completamente tomado por ela. A mulher mostra-se
aberta aos elogios do homem e disposta a atender os seus pedidos para que cante e dance. A
relação entre os dois é caracterizada como um amor de carnaval, de duas pessoas dispostas a
gozar os prazeres desse período.
Já em “Vamos embora, ó, flor...”, o homem mostra-se enciumado e tenta levar a
mulher embora, para que pare de atrair atenções. Ela sente grande prazer em participar do
pagode e não se preocupa com os ciúmes dele. Em certo ponto o parceiro tenta exercer a
autoridade masculina para levá-la embora e até mesmo proibi-la de voltar à roda de samba.
Ela ironiza a sua pretensa autoridade e adverte-o a não tentar proibi-la de sambar.
Em Maestro, toque aquela, composição monológica, o enunciador manifesta o desejo
de ouvir uma música que lhe traz boas lembranças e que considera gostosa para dançar. Ele
associa a música com momentos positivos e, portanto, a saudade não lhe traz nostalgia, mas
sim animação. O destinatário, maestro, é o viabilizador da execução; sua presença também
caracteriza o evento como um tipo de baile.
144
Características lexicais — recorrência de vocábulos ligados aos seguintes campos
semânticos:
– música (cantar, requebrar, voz, cavaquinho, introdução, cadência, maestro, tocar,
dançar, sapatear);
– sensualidade (mexer, loucura, formosura, tentação, desassossegar);
– samba (carnaval, pagode, batuque).
3.1.2.4 - Apresentação artística
O que chama atenção aqui são as referências ao próprio evento do espetáculo musical.
As canções desse grupo foram compostas para interagir com o público. Podem ser jocosas,
alegres e informais.
Composições
a) de Ismael Silva: Peçam bis:
A todos que estão me ouvindo / Eu agradeço / Esta atenção dispensada / É mais do que
mereço / Se não gostarem / Não digam nada a ninguém / Senão os outros não vão me aturar
também //
Não vão fazer / O que aconteceu certo dia / Foi tanto bis / Que eu já não podia atender / No
entretanto
O que a plateia queria / É que eu cantasse / Cantasse até aprender.
Valores
Há traços de modéstia e até mesmo de autodepreciação no texto. A modéstia pode ser
devida à situação mais formalizada, que pressupõe a presença de pessoas não pertencentes ao
ambiente da roda de samba. Essa disparidade, inclusive social, é um das causas possíveis do
tom comedido da enunciação.
Ao mesmo tempo, em certos momentos o comedimento se torna autodepreciação, um
recurso de comicidade. Esse jeito de fazer graça visaria à produção de um clima descontraído,
mais propício à apresentação.
A iniciativa de simular um diálogo com o público também favorece uma atmosfera de
intimidade. Esse tipo de ambiente é característico da roda de samba, como já se demonstrou a
partir de citações de Roberto M. Moura (2004), na primeira parte deste trabalho.
Encenação discursiva
O enunciador assume uma postura modesta e brincalhona, tentando se aproximar do
público em uma apresentação artística. A iniciativa de se referir negativamente ao modo de
145
cantar também pode ser um modo de se defender, pelo fato de não ser um cantor profissional.
O destinatário é abordado com simpatia e comicidade. Há uma tentativa de envolvê-lo
e conquistar a sua cooperação para a produção de um ambiente ameno e benevolente.
Características lexicais — recorrência de vocábulos ligados aos seguintes campos
semânticos:
– julgamentos/percepções (gostar, aturar, aprender);
– música (ouvir, atenção, bis, cantar, plateia).
3.1.2.5 - Cartão de visitas
A composição de sambas que servissem como apresentação para o sambista era uma
prática característica de Paulo da Portela. Ele os compunha, muitas vezes de improviso, para
fazer gracejos, conquistando simpatia tanto no meio do samba quanto fora dele.
Composições
a) de Paulo da Portela: Pauliceia (c/ Cartola):
Todos que pertencem ao samba / No Rio te mandam um abraço. / Pauliceia, ô / Pauliceia, ô /
Queremos com este samba / Estreitar os nossos laços / Esse samba traduz a nossa união. /
Pauliceia, ô / Pauliceia, ô / Seja ele a voz do coração / Ele é o reduto destas rimas sinceras /
Tiradas da alma em doces quimeras / Esperamos guardá-las como recordação / E sendo
assim nada mais poderá dissolver / Esta nossa união, / Paulistas do meu coração.
Valores
A composição marca uma tentativa de aproximação dos sambistas visitantes ao
público de São Paulo. O samba é apresentado como uma prenda de valor oferecida aos
paulistas numa demonstração de afeto.
A composição é marcada por forte transitividade, segundo o conceito estabelecido por
Muniz Sodré (1979). Ela tem a função de apresentar os enunciadores e iniciar uma interação
amistosa com os destinatários.
Encenação discursiva
Os enunciadores posicionam-se afetuosamente, identificando-se como sambistas e
apresentando, como prova disso, a própria composição em estudo. A maneira de se dirigir aos
paulistas é afetuosa, desejosa do intercâmbio positivo.
Os destinatários são pessoas geograficamente distantes dos enunciadores, sambistas
146
cariocas. A composição propõe a confraternização entre cariocas e paulistas.
Características lexicais — recorrência de vocábulos ligados aos seguintes campos
semânticos:
– Brasil (Rio de Janeiro, pauliceia, paulista);
– envolvimento emocional (abraço, estreitar laços [entre pessoas], união, voz do
coração, sincero, doce);
– samba (samba, rimas).
3.1.2.6 - Inatismo
Neste grupo estão composições que atribuem habilidades, especialmente as de
compor, tocar e dançar samba, a capacidades inatas ou que são atribuíveis a fatores como
raça, nacionalidade etc. Elas costumam fazer afirmações categóricas e laudatórias.
Composições
a) de Paulo da Portela: “Não é lá muito difícil / acertar a marcação...”:
Não é lá muito difícil / acertar a marcação / o samba nasce com a gente / está dentro do
coração
Valores
Detecta-se a crença de que quem nasceu com a capacidade de fazer samba executa
essa atividade naturalmente, sem dificuldade. Não se desenvolve a argumentação a ponto de
atribuir esse dom inato a outras características, como grupo social, etnia etc.
Encenação discursiva
O enunciador firma sua autoridade como sambista, manifesta na facilidade de executar
o samba, capacidade que traz dentro do coração, desde o nascimento.
O destinatário é apenas a testemunha dessa habilidade. É chamado a constatá-la e se
engajar a esses valores.
Características lexicais — recorrência de vocábulos ligados aos seguintes campos
semânticos:
– habilidade (difícil, acertar);
– inatismo (nasce, coração);
– samba (marcação, samba).
147
3.1.2.7 - Instrumentos musicais
Prepondera neste caso o sentimento de amor ao instrumento musical. O tom do texto é
afetivo e idealizado.
Composições
a) de Cartola: Cordas de aço:
Ai, essas cordas de aço / Este minúsculo braço / Do violão que os dedos meus acariciam //
Ai, esse bojo perfeito/ Que trago junto ao meu peito / Só você, violão, compreende porque /
Perdi toda a alegria //
E, no entanto, meu pinho, / Pode crer, eu adivinho, / Aquela mulher até hoje está nos
esperando / Solte o seu som da madeira / Eu, você e a companheira / Na madrugada iremos
pra casa cantando.
Valores
A beleza, delicadeza e sonoridade do violão são cantadas com muito carinho nessa
composição.
O instrumento é valorizado, tanto como meio de extravasar sofrimentos, como
também por sua sonoridade ao envolver a mulher em sentimentos amorosos e criar um
ambiente de harmonia.
Encenação discursiva
O enunciador se mostra maravilhado com o seu instrumento. Aprecia sua constituição
e o tem como um companheiro, que além de amenizar a solidão e as desilusões também ajuda
a trazer a companhia da mulher amada.
O destinatário é o próprio instrumento, personificado e elogiado pelo enunciador. É
descrito detalhadamente, com grande afeição.
A mulher amada aparece na segunda parte da letra, como complementação do clima
terno, em sintonia com os ideais do enunciador.
Características lexicais — recorrência de vocábulos ligados aos seguintes campos
semânticos:
– envolvimento emocional (acariciar, peito);
– harmonia (perfeito, cantar);
– instrumento musical (cordas de aço, braço, violão, bojo, pinho, som, madeira);
– mulher (mulher, companheira).
148
3.1.2.8 - Habilidades do sambista
Neste caso, as habilidades do sambista são exaltadas para enaltecer o seu valor e a
dignidade até mesmo da sua posição social. O tom do texto é elogioso e idealizado.
Composições
a) de Ismael Silva, Antonico:
Ô Antonico / Vou lhe pedir um favor / Que só depende da sua boa vontade / É necessário uma
viração pro Nestor / Que está vivendo em grande dificuldade / Ele está mesmo dançando na
corda bamba / Ele é aquele que na escola de samba / Toca cuíca, toca surdo e tamborim /
Faça por ele como se fosse por mim //
Até muamba já fizeram pro rapaz / Porque no samba ninguém faz o que ele faz / Mas hei de
vê-lo muito bem, se Deus quiser / E agradeço pelo que você fizer.
Valores
As habilidades do sambista são apresentadas como credenciais que o qualificariam a
receber o auxílio de alguém que pode proporcionar-lhe vantagens, tirando-o de uma situação
desfavorável.
As mesmas habilidades tamm são apresentadas como causa de inveja e de tentativas
de desestabilizar o sambista (muamba).
A destreza musical em causa é principalmente a de instrumentista, que “toca cuíca,
toca surdo e tamborim”.
Encenação discursiva
O enunciador se apresenta como amigo que se empenha para conseguir beneficiar o
sambista em dificuldades (Antonico). Seu empenho é tanto que faz questão de hipotecar a
consideração de que goza junto ao destinatário em seu favor.
Empenha-se, ainda, em valorizar tanto a capacidade artística do Nestor quanto as
dificuldades que enfrenta, para despertar a empatia do Antonico.
O Antonico é representado como amigo próximo do enunciador e como alguém que
está em posição social favorável para ajudá-lo. Aparentemente, compartilha da valorização do
samba como patrimônio cultural, crença sem a qual a argumentação não seria adequada.
Características lexicais — recorrência de vocábulos ligados aos seguintes campos
semânticos:
– dificuldades (dificuldade, corda bamba, muamba);
149
– favor (favor, boa vontade, viração, faça por ele como se fosse por mim, agradeço);
– samba (escola de samba, toca, cuíca, surdo, tamborim, samba).
3.1.3 - Cotidiano
Seguem considerações de Fará (2001, p. 80-1) sobre essa modalidade temática de
samba:
Muitos compositores de samba do Rio de Janeiro foram verdadeiros cronistas dos morros,
dos subúrbios e da vida boêmia. Cronistas que narraram e cantaram os fatos dos quais
participaram como personagens e testemunhas. Tal qual os cronistas dos jornais, que se
alimentaram do cotidiano da cidade, os sambistas-cronistas também focalizaram o jeito de
viver carioca. Os moradores e frequentadores das esquinas da cidade protagonizaram as
letras de inúmeros sambas. [...]
Certas letras de samba são crônicas da cidade e da vida nacional, ao observarem as
profundas mudanças da vida urbana, principalmente a partir dos anos 20. Os temas eram os
mais variados. Utilizaram-se a sátira, o comentário político, o cotidiano o banal, o popular,
as notícias de maior repercussão, as provocações, o amor, o romantismo e a mulher.
As composições que se enquadram nessa área temática foram divididas em oito
subgrupos:
3.1.3.1 - Perfis comportamentais
Nessas composições, descreve-se o comportamento das pessoas, como que criando
personagens, com determinadas características marcantes. O tom das letras costuma ser
jocoso, caricatural.
Composições
a) de Ismael Silva: Cara feia é fome; Comilão; Deus sabe o que faz; Entrada franca;
Eu sou um; Não apoiado; Ninguém faz fé (c/ Paulo Medeiros);
b) de Paulo da Portela: “Andas bancando a modista”.
Valores
Mais uma vez, constata-se que muitas dessas músicas são marchas de carnaval. Como
já se disse, o fato de as marchinhas serem destinadas aos dias de carnaval abre-as à
150
jocosidade, para a abordagem de temas de maneira mais zombeteira, que seria imprópria em
vários outros gêneros textuais.
Assim, em Comilão, zomba-se de um glutão; em Não apoiado e em Ninguém faz fé, de
pessoas avaras, ou que usam de meios ilícitos para ganhar dinheiro. Em Eu sou um, não há
exatamente um traço de personalidade envolvido; a marcha fala de ressentimentos entre
pessoas — o enunciador deseja o mal do destinatário, sem explicar exatamente o motivo
desse desejo.
Outras composições que não são marchinhas também falam de perfis de
comportamento, geralmente de forma desabonadora: Cara feia é fome apresenta a figura do
brigão; já Entrada franca fala de uma pessoa dissimulada, que esconde um aspecto pouco
louvável da sua vida, gozando de alto conceito na sociedade.
Na composição “Andas bancando a modista...”, faz-se a crítica do comportamento de
uma mulher cujo convencimento não condiz com a sua real condição social. Essa antítese fica
bem assinalada em “A vaidade te arrasta / Vestir seda, andar de pasta / Para ir catar café”. É
importante observar que, em seguida ao registro da disparidade entre o comportamento e a
atividade profissional, há o cuidado de não desmerecer o trabalho humilde: “Meu bem,
trabalhes / Que não é mau / Só tu não banques / Coser no Parc Royal”. A desaprovação,
portanto, é relativa ao comportamento vaidoso, não ao trabalho.
Também em Deus sabe o que faz, a mulher retratada é considerada muito convencida
para a sua condição social. Ela é acusada pela dissimulação e espera-se que, com a
experiência adquirida com o tempo de vida, perceba que esse comportamento não é aceitável.
O orgulho é condenado mesmo entre os que gozam de status social e atribui-se à sabedoria
divina o fato de algumas pessoas muito geniosas e vaidosas não poderem ofender os outros,
porque lhes falta status para isso.
Encenação discursiva
Na maior parte das letras desse agrupamento, o enunciador assume a posição de quem
está em condições de julgar o procedimento dos outros. É portanto, uma posição de assimetria
em relação aos destinatários.
Em “Andas bancando a modista” e Deus sabe o que faz, o enunciador desaprova o
comportamento da interlocutora, denunciando que a sua vaidade não tem fundamento. Ela
seria vaidosa, afetando uma condição social que não é real. Na segunda composição, o eu
discursivo ainda se embasa na crença na providência divina para ser ainda mais categórico na
acusação da interlocutora.
151
Em Cara feia é fome, o enunciador diz-se provocado pelo destinatário, que estaria
procurando briga. O EU discursivo é representado como pacífico; entretanto, ao mesmo
tempo evoca o dito popular “pagar para não entrar em uma briga e também para não sair
dela”, para não parecer covarde — o ditado em si já demonstra que esse é o comportamento
aprovado pelo senso comum. O destinatário é representado negativamente, desqualificado
pelo intuito de provocar briga.
Em Comilão, o enunciador desaprova brejeiramente a falta de controle do destinatário
ao comer. Representa-o como alguém que só tem essa preocupação. O destinatário é mostrado
como descontrolado, obcecado pela comida.
Em Entrada franca, o enunciador constrói a imagem de quem sabe algo sobre o
destinatário, que o prejudicaria se fosse revelado. Essas insinuações são usadas num
mecanismo de chantagem, pois, no dizer do enunciador, o destinatário tem de tratá-lo melhor
se não quer seu segredo revelado. O interlocutor afetaria virtude, mas na verdade teria um
comportamento condenável.
Em Eu sou um, o enunciador é quem afirma de modo chistoso o seu desejo de mal ao
interlocutor. Pela situação carnavalesca implicada no gênero musical em questão, não se pode
tomar a intensidade desse desejo ao pé da letra, mas é perceptível que há ressentimentos entre
eles. A composição acaba sendo sobre esse desejo forte do enunciador, que não chega a
esclarecer o que o faz sentir-se assim.
Em Não apoiado, o enunciador seria amigo do interlocutor e o aconselharia a ser
menos ambicioso e compartilhar mais seus bens com os outros. Está implícita na letra uma
tentativa de justificação do interlocutor, que não é aceita pelo enunciador. Esse texto
apresenta uma postura discursiva bastante diferente por parte do enunciador, que se apresenta
mais como conselheiro do que como zombeteiro.
Já em Ninguém faz fé a intervenção do enunciador também acusa alguma intimidade
com o destinatário — há referências a conversas anteriores entre eles e o brincalhão tem o
cuidado de dizer que sua intenção é meramente fazer troça. A despeito disso, o destinatário é
apresentado como uma pessoa que não cumpre o que diz, principalmente no aspecto de
colaborar em despesas.
Características lexicais — recorrência de vocábulos ligados aos seguintes campos
semânticos:
– aprovação/desaprovação (cresça e apareça, cara feia é fome, sustentar burro a pão de
ló, pecado, apoiar, acreditar, fazer fé);
152
– defeitos/virtudes (bancar, arriar a crista, vaidade, decência, artificial, altivez, valor,
tapeação, [alguém] quanto mais tem mais quer);
– dinheiro (ganhar, réis, algum, nenhum);
– valores negativos (aborrecer, bater, brigar, ofender, discussão, desmoralizar, dar
pontapé, ver a caveira [de alguém], lastimar-se, queixar-se).
3.1.3.2 - Datas e eventos importantes
Este grupo de composições tem a função de assinalar momentos relevantes, sendo
marcadas por grande transitividade (SODRÉ, 1979). São boas documentações da vida cultural
do grupo social ao qual os compositores pertencem e têm um tom festivo e irreverente.
Composições
a) de Cartola: Festa da Penha;
b) de Ismael Silva: Bico da cegonha;
c) de Paulo da Portela: “Não se deve cantar glória...”; “O azul e branco...”;
Quitandeiro.
Valores
A marchinha Bico da cegonha é significativa por representar o ambiente de carnaval,
com fantasias, irreverência e deboche ao conservadorismo. Usam-se marcas do universo
infantil para criar uma atmosfera de inocência e brincadeira, mas também cheia de malícia. A
malícia é marcante, por exemplo, na referência à explicação que costumava ser dada às
crianças para a reprodução humana, a de que os filhos são trazidos por cegonhas, que o
enunciador ironicamente finge adotar.
Festa da Penha traz uma abordagem dos festejos que ainda hoje ocorrem no mês de
outubro, no bairro suburbano carioca. A festividade, que inicialmente era marcada pela
presença de portugueses, foi se modificando à medida que diferentes grupos populares
passaram a participar dela. É o que Roberto M. Moura (2004) explica, a partir de citação de
Melo Moraes Filho:
Até as primeiras décadas do século XX, a festa da Penha no Rio de Janeiro era uma
verdadeira romaria portuguesa, com as características do arraial, romeiros enfeitados com
flores de papel, chapéus desabados, cantos, danças de roda, muito vinho, abundância de
acepipes de Portugal. A multidão enchia de rumor o alto penedo onde se abrem os 365
degraus simbolizando os dias do ano, subidos às vezes de joelhos. O dia 3 de outubro era
festa nacional para a colônia portuguesa e para os numerosos devotos brasileiros. Depressa,
153
o elemento nacional influiu, social e musicalmente, com os sambas e as entradas dos ranchos
no recinto do arraial, e a velha romaria foi-se modificando, com turbulência e excessos
repelidos pelas autoridades religiosas. A Irmandade proibiu o acesso dos ranchos e grupos
fantasiados ao perímetro destinado aos romeiros
60
.
Com o tempo, o samba e outros gêneros musicais populares passaram a fazer parte da
festa. Ao mesmo tempo, esse evento ganhou importância para os músicos. Seu significado
nesse aspecto era muito maior do que o atual: a festa da Penha funcionava como uma prévia
do carnaval. Os principais compositores testavam possíveis sucessos nessa ocasião, para ver
como eram acolhidos pelo público.
A importância da festividade é documentada na composição de Cartola, que traz um
enunciador que se prepara para comparecer ao evento, buscando se vestir em conformidade
com a ocasião e planejando realizar rituais típicos, alguns dos quais já mencionados na
citação anterior.
“O azul e branco...” e “Não se deve cantar glória...” são mais dois sambas que ilustram
a estratégia de Paulo da Portela, de improvisar composições e usá-las como cartões de
apresentação. No primeiro caso, a música foi concebida durante a partida de futebol Portela
versus Rio e funciona como testemunho da participação dos portelenses no evento. No
segundo caso, a composição comemora a eleição do próprio sambista ao título de Cidadão-
Samba em 1937. Traz uma postura enunciativa triunfante, de quem venceu apesar de bravatas
alheias e experimenta a satisfação “de quem ri por último”.
Quitandeiro também serve a esse tipo de propósito: foi composto por ocasião do
aniversário do Chocolate, um portelense amigo. A composição retrata o ambiente do pagode,
com comida, grande afluência de pessoas e convivência irreverente e intimista. A continuação
concebida por Monarco, da mesma linhagem de grandes compositores portelenses, enfatiza o
aspecto musical da festa, com a indispensável menção à Portela.
Mais uma vez, deve-se assinalar que, nesse ambiente igualitário e íntimo, a referência
às pessoas pela cor da pele (“nego”, “crioulo”), que em outras situações de trocas discursivas
pode ser extremamente ofensiva, não tem essa valoração.
Encenação discursiva
Em No bico da cegonha, o enunciador mostra-se irreverente e evoca elementos
característicos das crianças aproveitando-os como motivo para fantasias e brincadeiras de
carnaval. Identifica-se com o clima da festa e aproveita para brincar como uma criança, sem
60
MORAES FILHO, Alexandre José de Mello. Festas e tradições populares do Brasil. Rio de Janeiro: Briguiet & Cia.
Editor, 1946 apud MOURA, Roberto M. No princípio era a roda: um estudo sobre samba, partido-alto e outros pagodes.
Rio de Janeiro: Rocco, 2004, p. 120.
154
abrir mão de outra característica carnavalesca: a malícia e o escarnecimento de
comportamentos conservadores. Esses comportamentos são representados por figuras de
autoridade, como o “professor Noronha”, e por explicações fantasiosas que são dadas para
fenômenos cuja abordagem não se considera apropriada para crianças, como a história de que
o nascimento acontece quando a cegonha traz um bebê aos pais.
Em Festa da Penha, o enunciador está engajado nos festejos, procura se preparar para
comparecer a eles. Caracteriza-se como uma pessoa pobre, que precisa pegar roupas usadas
emprestadas para ir vestido a contento; um devoto, que compra velas e flores para a santa,
executando rituais esperados na festa religiosa; uma pessoa responsável, zelosa com as coisas
que obtém por empréstimo. Não se caracteriza explicitamente como sambista, entretanto.
Em “Não se deve cantar glória...”, o enunciador se posiciona como alguém que levou a
melhor em uma disputa, na qual teria sido desmerecido pelos oponentes. Constrói uma
imagem de desilusão para os destinatários, que teriam experimentado uma derrota inesperada,
pois achavam que o enunciador não tinha chances.
Em “O azul e branco...”, o enunciador identifica-se como portelense, receptivo ao time
visitante, e desejoso do sucesso do evento que reúne os dois times de futebol.
Em Quitandeiro, o enunciador se identifica como organizador e participante da festa
do Chocolate. Dirige-se a outros que estariam participando, principalmente da preparação da
refeição que seria servida aos participantes. Mostra-se motivado com o evento e promete boa
comida e pagode animado aos convivas.
Características lexicais — recorrência de vocábulos ligados aos seguintes campos
semânticos:
– comida (cheiro, tomate, macarrão, boia, uca, cebola, queijo parmesão);
– cultura popular (bloco, festa, brincar, Penha, bandeira, festival, pagode, partido-alto,
verso, homenagem);
– indumentária (touca, camisa, terno);
– infância (papai, mamãe, cegonha, mamadeira, chupeta);
– relações de amizade (macacada, nego, crioula);
– religiosidade cristã (oração, santa padroeira).
155
3.1.3.3 - Situações infelizes
Essas composições assinalam momentos pesarosos do cotidiano: a morte de um
amigo, uma experiência desagradável, uma frustração. O tom das letras pode ser condoído,
um pouco consternado ou ainda irônico.
Composições
a) de Ismael Silva: Adeus (c/ Noel Rosa e Francisco Alves);
b) de Paulo da Portela: Deus te ouça (c/ Cartola); Perdoa (c/ Cartola); “Quem nos
trouxe por aqui...”.
Valores
A letra de Adeus aborda a separação, sem explicar a causa da mesma. Também não
caracteriza exatamente quem parte. É uma despedida genérica, mas carregada de afeição.
Apesar de muitos interpretarem que a música foi feita em homenagem ao falecido
Nilton Bastos, parceiro de Ismael na fase inicial da sua carreira, Maria Thereza Soares (1985,
p. 17-8), biógrafa de Ismael, refuta essa informação, dizendo que não há registro impresso
dessa dedicatória, nem o tom amoroso se encaixaria numa relação de amizade entre bambas.
Deus te ouça retrata a interação entre dois amigos, um tentando consolar o outro por
causa de uma desilusão. Alguns elementos já vistos nos sambas que falam de relações
amorosas estão novamente presentes neste caso, como a mágoa pela lealdade paga com ações
más. O recurso à religiosidade cristã em busca de consolo é também marcante: segundo a
letra, é preciso ter fé em Deus e continuar buscando a felicidade.
Perdoa é parceria de Cartola e Paulo da Portela. Teria sido composta quando Cartola,
que trabalhava com o amigo em um programa da rádio, decidiu deixar o programa, por
desentendimentos com um novo produtor
61
. A letra, que fala no rompimento de uma relação
(não fica completamente claro que se trate de uma relação amorosa, embora essa leitura não
seja descartável), justifica a iniciativa a partir do sentimento de não pertencimento e da
nostalgia do grupo junto do qual o enunciador se sente em casa, mesmo reconhecendo as
dificuldades da vida nesse meio.
“Quem nos trouxe por aqui...” é uma brincadeira que fala de forma bem-humorada de
61
Cf. BARBOZA DA SILVA, Marilia Trindade e SANTOS, Lygia. Paulo da Portela: traço de união entre duas culturas.
Rio de Janeiro: Funarte, 1989, p. 153.
156
uma situação desfavorável. Não há na composição, entretanto, maiores detalhes a respeito da
situação representada.
Encenação discursiva
O enunciador de Adeus experimenta profundo sofrimento devido a uma separação. O
sentimento pode ser atribuído à morte da pessoa querida ou a um rompimento amoroso. O
fato é que quem fala se revela desesperado com o acontecido e chega a afirmar que perdeu a
razão de viver devido a essa separação.
Deus te ouça é uma composição dialógica. Um dos enunciadores é alguém que sofre
por uma desilusão; o outro é um amigo que tenta consolá-lo. Percebe-se ao longo do diálogo
um momento inicial no qual o sofredor valoriza sua mágoa, adiando o relato do ocorrido
diante da insistência do confidente. Os argumentos religiosos são efetivos para aliviar as
mágoas do sofredor.
A letra de Perdoa é cuidadosa: não se fazem acusações e atribui-se a iniciativa da
separação ao sentimento de deslocamento experimentado pelo enunciador, que reconhece que
teve benefícios junto ao destinatário. O sentimento de pertencer a um outro grupo, entretanto,
seria mais forte e faria o enunciador querer voltar à sua vida anterior; é um sentimento tão
forte que o faz aceitar essa vida incondicionalmente, mesmo sabendo das dificuldades
envolvidas nela. Ele se mostra um pouco consternado e obrigado a justificar a sua atitude.
Características lexicais — recorrência de vocábulos ligados aos seguintes campos
semânticos:
– envolvimento emocional (afeto, carinho, amizade, coração, amor);
– lealdade/ingratidão (leal, fazer o mal, ingratidão, perdoar);
– religiosidade cristã (Deus, Mestre, fé);
– separação (adeus, ir embora, seguir o caminho [de alguém], voltar);
– sofrimento/alegria (sofrimento, triste, em paz, chorar, contrariar-se, feliz, sofrer,
chorar, cantar, sorrir).
3.1.3.4 - Ambiente doméstico
Estas composições enfocam a vida privada, com espaço para aspectos da vida conjugal
e pequenos incidentes domésticos. O tom das letras é informal e espontâneo.
Composições
a) de Paulo da Portela: Cocorocó; Pam-pam-pam-pam.
157
Valores
Cocorocó enfoca o relacionamento de um casal diante de questões cotidianas, como a
necessidade de pagar, por exemplo, o aluguel da casa, e a necessidade de trabalhar para poder
honrar essas obrigações. A resistência do homem a acordar cedo para ir ao trabalho é
retratada, assim como a atuação da mulher, chamando-o às obrigações e tentando acordá-lo.
A onomatopeia cocorocó, assim como a menção às horas marcadas pelo relógio,
enfatizam o esforço de acordar cedo, com os primeiros cantares do galo. Além disso, as
desculpas dadas pelo homem para não levantar dão comicidade à cena descrita na
composição.
Pam-pam-pam-pam é outro título dado por onomatopeia. Nesse caso, trata-se de uma
representação de batidas na porta de alguém. A letra retrata o incômodo com essas batidas
insistentes e de pessoa não identificada. Mais uma vez, constrói-se uma cena cômica, com a
indignação de quem não consegue identificar a origem das batidas e diz impropérios, se
aborrece e faz ameaças.
Encenação discursiva
Em Cocorocó, tem-se o diálogo entre um casal. Ela assume a posição de quem lembra
ao companheiro suas responsabilidades de trabalhar e conseguir dinheiro para honrar dívidas.
Sua atitude é de cobrança; vê-se que ela exerce autoridade sobre ele, não aceitando as suas
desculpas. Ele tenta se desvencilhar dessa obrigação, pedindo para dormir mais um pouco.
Busca contornar as cobranças dando desculpas pouco verossímeis. Chega a ser qualificado
como malandro por ela, o que reforça os traços de vida boêmia e resistência ao trabalho,
próprias da representação do malandro.
No caso de Pam-pam-pam-pam, o enunciador reage a batidas insistentes em sua casa.
Ele aventa diferentes causas para as batidas e se mostra cada vez mais irritado com a repetição
dos sons. Só se tem acesso à perspectiva do enunciador, e o fato fica sem explicação. A ênfase
é mesmo nas reações do enunciador, no seu incômodo por ser abordado em casa e nas suas
respostas ao mesmo tempo agressivas e cômicas.
Características lexicais — recorrência de vocábulos ligados aos seguintes campos
semânticos:
– casa (casa, porta da frente, porta de trás);
– dívidas/trabalho (pagar, senhorio, batedor, malandro, batente);
– envolvimento emocional (aborrecer-se, perder a cabeça, bater com a cabeça, nego,
158
nega);
– onomatopeias (cocorocó, pam-pam-pam-pam).
3.1.3.5 - Malandragem
Estas letras abordam um assunto importante nos primeiros tempos do samba urbano
carioca, cultivado principalmente pelo grupo do Estácio: o elogio à malandragem, ou mesmo
o dilema de deixar a malandragem para atender a pressões sociais. Costumam revelar alguma
apreensão, mas também são marcadamente descontraídas.
Composições
a) de Ismael Silva: Nem é bom falar (c/ Nilton Bastos e Francisco Alves); O que será
de mim (c/ Nilton Bastos e Francisco Alves).
Valores
Ambas as canções fazem o elogio da malandragem, do modo de vida
descompromissado com o trabalho formal e dedicado ao prazer, à vida boêmia que, nesse
domínio discursivo, é chamada de “orgia”.
Em Nem é bom falar, apresenta-se uma discussão conjugal na qual a mulher cobra do
homem que ele deixe a orgia. É muito frequente que a mulher seja apresentada
negativamente, principalmente nos sambas de Ismael Silva. Ou ela não é digna de
compromisso afetivo, por ser da orgia, ou é um empecilho para que se viva na orgia. Esse
compositor também costuma apresentar o relacionamento amoroso como fonte de decepção,
sendo melhor viver sem as mulheres do que sofrer desilusões — esse sistema de crenças já foi
abordado na área temática “relações amorosas”.
O que será de mim é uma reflexão mais voltada ao trabalho em si. Ele é representado
negativamente, como algo que só se faz por obrigação e não pode ser fonte de prazer. Aqui se
tem mais uma vez a contestação do valor do trabalho como meio de realização, ou mesmo de
ascensão social, já comentada em Lenço no pescoço, de Wilson Batista (ver a primeira parte
deste estudo).
Também são dignas de nota as referências contidas na letra à própria gravação da
música — Mário Reis e Francisco Alves, os intérpretes, referem-se um ao outro na letra e,
assim, aproximam-se da identidade malandra do enunciador da canção. Esse elemento de
159
metalinguagem mostra como, nos sambas do Estácio, a malandragem era um valor cultivado e
compartilhado com os consumidores das gravações. Só se tomava o cuidado de falar na
dúvida em deixar a malandragem, ou no pesar que suscita o pensamento em ter de trabalhar
— geralmente não se arriscava louvar abertamente a identidade do malandro, sem esse tipo de
ressalva.
Encenação discursiva
Em Nem é bom falar, o enunciador se mostra aborrecido com as tentativas da
destinatária, no sentido de fazê-lo deixar a vida de malandro. Ele se queixa por ela falar
demais, insistindo no assunto, e não gosta nem mesmo de pensar na hipótese de deixar a
malandragem. Após ameaçar trocá-la por outra e reclamar que a sua indiscrição lhe causaria
problemas com a polícia, na última parte da letra o enunciador se diz satisfeito porque ela
deixou a casa e foi morar na Favela.
Já em O que será de mim, o enunciador faz um elogio irreverente da malandragem,
questionando o valor do trabalho. Considera-se fadado a essa vida e não se importa com
opiniões alheias. A atmosfera irreverente e o tom elogioso à malandragem reforçam a
satisfação do enunciador com a vida que leva.
Como já foi comentado, a menção explícita dos nomes dos intérpretes na letra ajuda a
transferir a caracterização do enunciador para eles, que cultivam a fama de malandros e bons
de samba.
Características lexicais — recorrência de vocábulos ligados aos seguintes campos
semânticos:
– malandragem (orgia, polícia, malandragem, samba, dar golpe errado);
– mulher (meu bem, mulher, nua);
– trabalho (batente, trabalho, trabalhar).
3.1.3.6 - Crônica social
Nestes casos, fazem-se comentários a respeito de variados aspectos do comportamento
das pessoas. Também se comentam problemas da época (que, inclusive, podem ainda ser
sensíveis nos dias atuais). O tom das letras é analítico e às vezes irônico.
160
Composições
a) de Ismael Silva: Tradição;
b) de Paulo da Portela: “Meninas, também senhoras...”.
Valores
Em “Meninas, também senhoras”, fala-se na moda de as mulheres cortarem o cabelo
bem curto, “à garçonne”. Manifesta-se desaprovação a esse costume, com a sugestão de que
seja feito “a demi”, não tão curto. Vale mencionar que esse corte de cabelo também
representava a independência feminina — era considerado próprio de mulheres emancipadas,
que ousavam assumir uma aparência semelhante à dos homens.
Ao mesmo tempo, a letra também incorpora expressões francesas, documentando o
modismo linguístico da época, nesse caso aplicado ao vocabulário da moda feminina.
Quanto a Tradição, o assunto em pauta é a violência no morro. Faz-se uma
confrontação entre as percepções da violência por quem mora no morro e por quem mora na
cidade, dois espaços usualmente contrastados no discurso do samba. Os moradores do morro
convivem com a rotina de assassinatos semanais e estão acostumados com ela. Quem é de
fora aterroriza-se por isso. A composição funciona como um questionamento aos princípios
de cidadania, visto que parâmetros como segurança e direito à vida, que deveriam valer para
todos, tornam-se relativos dependendo do meio social de cada um.
Encenação discursiva
O enunciador de “Meninas, também senhoras...” se põe na posição de dar conselhos às
destinatárias, manifestando sua opinião de que o corte de cabelo mencionado só fica bem se
não for tão curto. Busca amenizar a sua intervenção, reconhecendo não ser grande conhecedor
do assunto. As destinatárias seriam as mulheres que se enquadram no perfil das que adeririam
à moda do corte de cabelo — portanto, mulheres sintonizadas com valores modernos, ou
apenas permeáveis ao padrão de comportamento.
O enunciador de Tradição é um morador do morro, acostumado com a rotina de
assassinatos do local. Ele se dirige a um destinatário que não é desse meio e, portanto, diz que
não sabe se seu interlocutor se acostumaria a viver lá. É marcante a afeição que o enunciador
sente pelo morro, pelo ambiente, pela sua moradia, referida como “choupana”; considera que
tem boa sorte em viver lá.
A menção dos assassinatos rotineiros como “tradição” sugere que o enunciador aceita
as ocorrências como normais e se conforma com elas.
161
Características lexicais — recorrência de vocábulos ligados aos seguintes campos
semânticos:
– modismos (cabelo à la garçone);
– morro (morro, barracão);
– mulher (menina, senhora);
– violência (crime de morte, aterrorizado, civilizado, pacato).
3.1.3.7 - Propaganda
Estas composições divulgam estabelecimentos comerciais e outras instituições. Seu
tom é apelativo, buscando a persuasão.
Composições
a) de Paulo da Portela, “Vestir bem, pagando pouco...” (c/ Cartola):
Vestir bem, pagando pouco / Eis um problema louco / Que nós temos a resolver / Prestem
atenção / Estou autorizado a dizer / Pagando só o feitio / Eis o plano inteligente / De uma
casa aqui no Rio / Não pode haver maior facilidade / Só na alfaiataria A Cidade
Valores
A composição exerce o papel de uma peça de propaganda: exalta as facilidades e a
qualidade do serviço da casa comercial, qualificando-a como a melhor opção entre as
concorrentes. Trata-se realmente de um jingle composto pelos dois sambistas para o
patrocinador do seu programa na Rádio Cruzeiro do Sul.
Encenação discursiva
O enunciador se apresenta como alguém autorizado para divulgar as promoções da
loja — um representante que se dirige aos destinatários falando em nome do patrocinador.
Inicialmente, expõe o problema de se obter um serviço de qualidade pagando pouco; dessa
forma se solidariza com as aspirações do público. Em seguida, louva as qualidades da
alfaiataria A Cidade, empenhando-se na afirmação de que não há melhor escolha no Rio de
Janeiro.
Características lexicais — recorrência de vocábulos ligados aos seguintes campos
semânticos:
– dinheiro (pagar);
162
– ramo comercial (vestir, feitio, casa, alfaiataria);
– valores positivos (inteligente, facilidade).
3.1.4 - Reflexões existenciais
Esses sambas são dedicados à reflexão sobre as experiências da vida. São
característicos de momentos de introspecção, nos quais o compositor se volta à sua história,
pesando vivências, falando de dificuldades e conquistas, buscando um denominador comum
para o que experimentou e tentando ajuizar sobre a sabedoria de viver bem.
Há cinco subgrupos de composições enquadradas nessa temática:
3.1.4.1 - Sofrimento
Fala-se de fatores que causam sofrimento na vida. As apreciações costumam ser
subjetivas, com o enunciador expondo as suas percepções a respeito desse sentimento.
Quando fala do sentimento amoroso, a ênfase não é tanto na relação entre os amantes, mas no
seu penar diante da desilusão. As letras costumam ser tristes, cheias de nostalgia pelo que se
perdeu, arrependimento por erros cometidos, ou mesmo sem explicações da causa do
sofrimento.
Composições
a) de Cartola: A mesma estória (c/ Elton Medeiros); Quem me vê sorrir (c/ Carlos
Cachaça); Sim (c/ Oswaldo Martins);
b) de Ismael Silva: Ao romper da aurora (c/ Lamartine Babo e Francisco Alves);
Choro sim; Nunca dei a perceber;
c) de Paulo da Portela: Arma perigosa (c/ Paquito).
Valores
É frequente que se recorra a imagens poéticas para criar uma correlação entre o mundo
exterior e os sentimentos do enunciador. Em Ao romper da aurora, por exemplo, o sol e a lua
são comparados com a mocidade e a saudade. Em Arma perigosa, o desprezo é considerado
163
uma arma tão perigosa quanto as que causam dores físicas, mas que traz sofrimentos morais;
essa arma pode ser usada contra quem praticou ingratidões amorosas. O fato é que o mundo
exterior é apresentado conforme a perspectiva peculiar de quem sofre.
São comuns apreciações da intensidade do sofrimento. Em letras como Ao romper da
aurora e Choro sim, essa dor é considerada mais poderosa do que eventuais forças positivas.
Em A mesma estória, aborda-se do desconforto causado pela curiosidade dos outros
relativamente à causa do sofrimento. A evasão da companhia dos conhecidos é a solução
encontrada para evitar esse desconforto.
Nunca dei a perceber e Quem me vê sorrir exprimem uma tese comum,
principalmente quando se trata do sofrimento amoroso: a de que não vale a pena se entregar
às dores. É melhor disfarçá-las para não sofrer mais ainda.
Sim fala dos desenganos amorosos do enunciador, que se sente injustiçado por não
encontrar a felicidade junto a uma companheira. Há elementos de religiosidade cristã na letra:
os insucessos são atribuídos a blasfêmias proferidas diante de desenganos e fazem-se apelos a
Deus para que o sofrimento, entendido como punição, acabe.
Encenação discursiva
Nas letras desse grupo, constroem-se diferentes enunciadores que têm
comportamentos diversos diante do sofrimento.
Em Ao romper da aurora, o enunciador mistura a dor da saudade da amada com uma
pequena esperança de um novo dia trazer a felicidade Suas esperanças, entretanto, não se
concretizam, e prevalece o sentimento de saudade.
Em Arma perigosa, a enunciadora se reconhece como merecedora do desprezo de
alguém, por também já ter feito outros sofrerem.
Em Choro sim, o enunciador não tem reservas em demonstrar seu sofrimento diante de
intensa nostalgia. O mesmo não acontece em Quem me vê sorrir e Nunca dei a perceber, pois
nessas composições o enunciador afirma que a melhor forma de amenizar o sofrimento é
disfarçá-lo, para não se entregar às lamentações. Já em A mesma estória, a solução encontrada
é afastar-se dos conhecidos para não ter de lembrar desilusões.
Por fim, em Sim, o enunciador não só demonstra seu sofrimento, como também
expressa revolta por se sentir assim. Sente-se injustiçado por Deus, por não considerar que
erra mais do que outros, que conseguem encontrar a felicidade no amor.
164
Características lexicais — recorrência de vocábulos ligados aos seguintes campos
semânticos:
– agressividade (arma, matar, ferir, castigar, fazer sofrer);
– amor (amor, querer bem, companheira);
– natureza (aurora, dia, natureza, sol, céu, lua);
– religiosidade cristã (céus, blasfemar, Senhor);
– valores negativos (tristeza, saudade, desprezo, sofrer, chorar, errar, pranto,
dissabores);
– valores positivos (alegria, mocidade, felicidade, sorrir, sossegado, perdão, chorar,
aflição, nostalgia, dor, calado, desilusão).
3.1.4.2 - Análise da vida
Essas composições são dedicadas à reflexão sobre a vida, seja retrospectivamente,
numa avaliação de erros, acertos e aprendizado, seja prospectivamente, especulando sobre o
futuro. As letras podem ser taxativas, com teses e conselhos sobre o significado da existência
e sobre o que esperar dela; ainda podem ser um pouco amarguradas devido a percepções
negativas do passado, ou mesmo do presente.
Composições
a) de Cartola: A canção que chegou (c/ Nuno Veloso); O mundo é um moinho; O que é
feito de você; Silêncio de um cipreste;
b) de Paulo da Portela: Este mundo é uma roleta; Quem espera sempre alcança.
Valores
A canção que chegou revela o sentimento de satisfação com o presente e percepção de
que as tristezas passadas valeram a pena, pois conduziram a essa satisfação. A música e o
talento artístico reconhecido podem ser esses fatores positivos que trazem o sentimento de
realização no presente, representados pela “canção que chegou”. Se for assim, a composição
pode ter um tom autobiográfico, abordando as dificuldades passadas por Cartola e a
consolidação da sua carreira como compositor e músico, após os 60 anos de idade. Caso
diferente é o de Silêncio de um cipreste, canção na qual o passado difícil ainda traz sofrimento
a quem está preso a essas dificuldades e ao que não conseguiu realizar.
Esse mundo é uma roleta apresenta a vida como um tanto mais incerta do que no caso
anterior. As imagens da roleta e do jogo de azar, usadas como símbolos da incerteza da
165
felicidade no amor, aplicam-se também para falar na incerteza da felicidade na vida. A
conformação com os fatos da vida é tida como fundamental, pois o destino é entendido como
desígnio de Deus, que está além das escolhas de cada um.
Já em O mundo é um moinho, a perspectiva é francamente desiludida com a vida, que
destrói os sonhos dos inexperientes, deixando um saldo de desesperança e degradação.
Diferentemente dessa obra, em Quem espera sempre alcança também se compreende que o
tempo destrói as ilusões, mas o resultado final é a conquista da sabedoria — descobre-se que
sentimentos vãos, como orgulho e hipocrisia, não devem ser cultivados.
Em O que é feito de você é o passado que é valorizado em detrimento do presente.
Percebe-se o envelhecimento como um processo negativo, que traz a doença, a ingratidão dos
pares e a troca da fertilidade criativa por glórias imobilizadoras. O violão e os versos
simbolizam a força da criação lírico-musical e o “simples bastão”, a imobilidade de quem
ostenta um troféu, entretanto não produz mais.
Há traços de religiosidade cristã em algumas dessas composições. Ou se atribui a Deus
o comando do destino dos homens, ou se pede a ele ajuda diante das dificuldades, ou ainda se
compara o sofrimento à paixão de Cristo (simbolizada pela cruz e reforçada pelo cipreste, que
pode simbolizar melancolia e sofrimento). Também se atribui à providência divina a
felicidade que se goza no presente, depois de um passado de sofrimento.
Encenação discursiva
O enunciador é quem avalia a própria existência subjetivamente, ou fazendo
generalizações válidas para outras pessoas. Geralmente assume a posição de alguém
experiente, que já passou por dissabores e, portanto, conhece as dificuldades da vida — tem
autoridade para fazer essa avaliação.
O enunciador de A canção que chegou reflete sobre a sua própria vida, dizendo-se
satisfeito com o que conseguiu realizar. Atribui a Deus a sua felicidade e se mostra tranquilo,
em paz com o passado e com o presente. O enunciador de Quem espera sempre alcança,
apesar de menos entusiasmado com o passar do tempo, também o entende como positivo.
Orientando uma interlocutora muito vaidosa, ele recorre à experiência adquirida com a vida
para aconselhá-la a mudar de atitude, para não ter de aprender a ser mais ponderada devido às
desilusões da vida.
Em Este mundo é uma roleta, o enunciador não tem tanta certeza do caráter positivo
da existência. Falando da vida em geral, ele se mostra incerto quanto às possibilidades de ser
feliz no amor, por exemplo. Entretanto, não é completamente descrente e confia a Deus a sua
166
sorte.
Em O mundo é um moinho, o enunciador é francamente desiludido. Ele se dirige a
uma mulher apresentada como mais jovem, com quem tem forte envolvimento emocional e
que teria tomado a iniciativa de partir, buscando trilhar seu próprio caminho. O locutor tenta
aconselhá-la a não se precipitar, e retrata a vida como desintegradora de sonhos; sua intenção
seria protegê-la das desilusões.
O enunciador de O que é feito de você também tem uma percepção negativa da
passagem do tempo; contudo, ressalva que a sua juventude teria sido uma época muito
positiva, profícua, um período em que ele se sentia confiante e respeitado. Na velhice, ele
assume a posição de alguém que está acabado, só teria as glórias passadas como consolo; a
impressão causada por essa sua situação é reforçada pela reação de espanto dos mais jovens
(“gurizada”) diante do seu aspecto, que ele próprio considera fantasmagórico.
Em Silêncio de um cipreste, o enunciador diz-se preso ao passado, com pensamentos
fixos em frustrações da vida. Feita essa constatação, ele passa a refletir sobre a força do
pensamento e sobre a sua dificuldade em controlar suas predisposições mentais. Para este, o
passado é fonte de paralisia no presente, pois não consegue se desvencilhar da rememoração
das derrotas que sofreu ao longo da vida.
Características lexicais — recorrência de vocábulos ligados aos seguintes campos
semânticos:
– corpo/atributos físicos (esqueleto, cambalear, pé, passo em falso, olhar);
– incerteza (roleta, jogador, sorte, azar, artimanha, jogo de perde e ganha, seja o que
Deus quiser);
– música (canção, cantar, violão, verso);
– passagem do tempo (manhã, noite, nascer, tardio, vida, morte, mocidade, quem
espera sempre alcança);
– religiosidade (Jesus, fé, Deus, Senhor, cruz);
– valores negativos (tristeza, fingido, fracasso, perdido, cinismo, moinho, abismo,
ilusão, ingratidão, saudade, orgulho, hipocrisia, vaidade);
– valores positivos (felicidade, esperança, contente, confiante, amor, fiel, sonho).
3.1.4.3 - Esperança no futuro
Aqui prevalece uma perspectiva otimista, com expectativas de que no futuro haverá
novas oportunidades de realização. As composições costumam ser exultantes e convictas.
167
Composições
a) de Cartola: A cor da esperança (c/ Roberto Nascimento); O sol nascerá (c/ Elton
Medeiros);
b) de Ismael Silva: Rir para não chorar (c/ Francisco Alves).
Valores
A cor da esperança e O sol nascerá exprimem uma grande esperança no futuro. Em
ambos os casos, a tônica é que, mesmo o passado tendo trazido problemas, o futuro traz novas
oportunidades e deve ser encarado de forma construtiva. A importância da persistência é
proclamada nas composições e na simbologia da esperança, representada pelo alvorecer e pela
cor verde — é o que acontece na composição de Cartola. Deve-se lembrar ainda que há uma
referência metalinguística na alusão ao verde, cor que também é uma das que simbolizam a
escola de samba Mangueira.
Rir pra não chorar traz uma percepção mais ponderada a respeito do futuro. Nesse
caso, o riso e a esperança são encarados como as melhores opções diante dos sofrimentos,
pois as lamentações não os resolvem. Contudo, os dissabores do presente têm peso bem maior
nesse caso do que nas outras duas composições que praticamente enfocam com exclusividade
a felicidade do porvir.
Os ditados da sabedoria popular são evocados nessas composições para justificar a fé
presente nas letras. Assim, em O sol nascerá lembra-se, com algumas adaptações, a máxima
segundo a qual “depois da tempestade vem sempre a bonança”. Em Rir pra não chorar,
afirma-se que “quem espera sempre alcança”.
Encenação discursiva
Em A cor da esperança, o enunciador irmana-se com outros nesse sentimento. Ele se
mostra plenamente confiante no futuro, que espera “de peito aberto”. A mesma postura,
apesar de mais individualizada, é sensível em O sol nascerá. Nesse segundo caso, mantém-se
a certeza na felicidade futura, apesar de haver a lembrança da mocidade perdida com o
sofrimento. O enunciador está convicto de que se encontra em um ponto de virada, a partir do
qual encontrará a alegria e o amor.
O enunciador de Rir pra não chorar, como já se disse, apesar de esperançoso no
futuro, é mais cauteloso. Afirma a necessidade de se consolar no presente, cultivando a
alegria, mesmo que não completamente sincera. A postura desse enunciador é mais voltada à
168
necessidade de construir a felicidade futura a partir do presente, cultivando o riso e a canção;
tal é para ele a receita de saber viver.
Características lexicais — recorrência de vocábulos ligados aos seguintes campos
semânticos:
– música (canto, cantar);
– natureza (sol, cor, céu, tempestade);
– passagem do tempo (amanhã, dia, vida, mocidade, noite e dia);
– valores negativos (tristeza, chorar, perdido, saudade);
– valores positivos (alegria, peito aberto, felicidade, amor, fantasia, esperança, sorrir,
quem espera sempre alcança, reagir, saber viver).
3.1.4.4 - Análise da sociedade
Nessas composições encontram-se comentários relativas às desigualdades sociais e
vícios que as causariam, como a ganância. As letras são alegóricas, desiludidas e críticas.
Composições
a) de Ismael Silva: Contrastes;
b) de Paulo da Portela: Ouro, desça do seu trono.
Valores
Em Contrastes, aborda-se o descompasso entre o plano dos ideais e a realidade, a
partir de antíteses — aproveitam-se topônimos concebidos a partir de valores abstratos como
“alegria”, “harmonia” e “glória” para se produzir o efeito de coexistência espacial desses
valores com seus opostos, experimentados pelas pessoas que vivem nesses lugares.
Em Ouro, desça do seu trono, personificam-se pedras e metais preciosos e atribuem-se
a eles traços de caráter condenáveis. Essa atribuição seria feita por metonímia a partir das
reações que os mesmos metais provocariam nas pessoas.
Fala-se também em inversão de valores, pois diante de tanta exacerbação da ganância,
as pessoas começariam a ter vergonha das virtudes. Defende-se também a prevalência do
amor à mulher e da empatia com os aflitos em relação aos valores materiais.
169
Encenação discursiva
O enunciador de Contrastes diz-se constrangido com as disparidades entre os ideais
defendidos na sociedade e o modo de vida das pessoas, que não reflete esses ideais. Ele
sintetiza esse sentimento de desconforto a partir da máxima “quanto mais longe do circo, mais
eu encontro palhaço”.
O enunciador de Ouro, desça do seu trono também se mostra desconcertado por causa
da ambição, frieza e crueldade que os valores materiais geram nas pessoas. Reafirma a sua
crença em valores como honra, amor e honestidade e, a partir desse posicionamento, autoriza-
se para condenar a inversão de valores que percebe na sociedade.
Em nenhum dos dois casos, todavia, há um destinatário específico. Fala-se em tese,
sem atribuir características condenáveis a pessoas ou perfis sociais específicos.
Características lexicais — recorrência de vocábulos ligados aos seguintes campos
semânticos:
– valores materiais (ouro, prata, vil metal, diamante, safira, rubi);
– valores negativos (desordem, fracasso, embaraçar-se, quanto mais longe do circo mais
eu encontro palhaço, abandono, majestade, ingrato, indiferente, frio, guerra, hipocrisia);
– sofrimento (tristeza, aflito, agonia);
– valores positivos (alegria, harmonia, glória, amor, honestidade).
3.1.4.5 - Direitos inalienáveis
Esse grupo é composto de composições que louvam direitos e valores essenciais ao ser
humano. A composição que aqui se enquadra é laudatória e busca a universalidade.
Composições
a) de Paulo da Portela: “Bendita sejas tu, ó, liberdade...”:
Bendita sejas tu, oh! Liberdade! / Rainha absoluta do sucesso, / Sem ti não haverá felicidade,
/ Sem ti não sorrirá todo o universo!
Valores
Afirma-se a liberdade como valor universal, indispensável ao sucesso e à felicidade.
Encenação discursiva
O enunciador enaltece a liberdade e afirma a sua indispensabilidade de forma taxativa.
170
Características lexicais — recorrência de vocábulos ligados aos seguintes campos
semânticos:
– valores positivos (liberdade, sucesso, felicidade).
3.1.5 - Brasil
Nestes cinco subgrupos, abordam-se diferentes aspectos da cultura nacional, dos
patrimônios naturais, da vida em regiões do país e em cidades emblemáticas, principalmente o
Rio de Janeiro.
O amor à pátria e aos vultos nacionais também são elementos presentes nas
composições. Não por acaso, este é um agrupamento com grande incidência de sambas-
enredo, que costumam ser voltados para esses temas, com a postura discursiva da exaltação
— esses são traços marcantes principalmente a partir da década de 1930, com os incentivos
oficiais do Estado Novo aos temas históricos e nacionalistas
62
.
3.1.5.1 - Rio de Janeiro
Exaltam-se nessas canções a cidade do Rio de Janeiro, por sua paisagem, cultura,
importância como centro urbano nacional etc. As letras desse grupo costumam ser elogiosas,
traduzindo o amor do enunciador pela cidade.
Composições
a) de Paulo da Portela: Cidade mulher; “Favela dos meus amores...”; Linda
Guanabara; “Quando o estrangeiro elogia...”; “Sua praia é custoso mobiliário...”.
Valores
Predominam composições de Paulo da Portela, caracterizadas por uma forte
62
Veja-se a respeito a periodização temática dos enredos de escolas de samba apresentada por FARIAS, Julio Cesar. Para
tudo não se acabar na quarta-feira: a linguagem do samba-enredo. Rio de Janeiro: Litteris, 2002, p. 30.
171
transitividade com as circunstâncias de produção. São, conforme já foi comentado, cartões de
visita do sambista que, a partir das músicas, se apresenta, mostrando-se afável e conquistando
simpatias.
Algumas canções, como “Favela dos meus amores...”, “Quando o estrangeiro
elogia...” e “Sua praia é custoso mobiliário...”, são características de situações de mediação
cultural — o compositor, em contato com grupos não oriundos da ambiência do samba,
procura ser elogioso relativamente ao meio em que se encontra. Os sambas trazem referências
a bairros cariocas, como Copacabana e Ipanema, e ao tema de filmes, como Favela dos meus
amores.
As canções em homenagem a Copacabana e Ipanema trazem alusões à admiração que
a paisagem causa nos estrangeiros e, mais especificamente à imponência do mar e da
paisagem urbana. Recupera-se ainda o título de Cidade Maravilhosa atribuído ao Rio de
Janeiro.
Já “Favela dos meus amores...” propõe uma visão idealizada da favela, apresentada
pelo apreço de que ela seria alvo e pela beleza das mulheres que nela vivem.
Cidade mulher e Linda Guanabara mantêm a tendência do elogio às belezas naturais.
Novamente, em Cidade mulher, a beleza do espaço é comparada à beleza da mulher, ambas
sendo dignas do amor do sambista. Menciona-se também a admiração dos estrangeiros diante
dessa beleza, motivo de orgulho para os cariocas.
Linda Guanabara traz cumulativamente referências à imponência da natureza,
concretizada pelo Pão de Açúcar, que é considerado guardião da Guanabara. As belezas
naturais são representadas como um patrimônio de riquezas a ser protegido.
Cidade mulher traz mais uma marca da mediação cultural — tendência a uma maior
modéstia na representação da figura do sambista. Em outros casos, marcados por
circunstâncias de produção diversas, percebe-se um orgulho maior pelo status de compositor;
neste caso, o sambista é “anteprojeto de artista”. A mesma tendência será assinalada em
outras composições desta área temática.
Encenação discursiva
O enunciador geralmente está em relação assimétrica com a paisagem da cidade.
Reconhece-se como admirador, amante das belezas naturais e urbanas que observa. Faz
descrições que demonstram seu envolvimento afetivo com o espaço e o orgulho pelo valor
atribuído à cidade pelos estrangeiros. Sua postura é de modéstia com relação ao próprio valor
e exaltação aos valores da paisagem.
172
Nas descrições do enunciador, estão presentes as imagens da cidade como mulher e
como joia, da paisagem urbana tão preciosa como um custoso mobiliário etc.
A destinatária é geralmente a própria cidade, muitas vezes exaltada como num cortejo
amoroso.
Características lexicais — recorrência de vocábulos ligados aos seguintes campos
semânticos:
– caracterização do enunciador (sambista, anteprojeto de artista, poeta, sonhador);
– cidade (cidade, favela, edifício, Posto Seis);
– envolvimento emocional (admirador, boquiaberto, esplendor, deslumbrar-se, dama,
beleza, formosa, sedutor, admirar-se, orgulhar-se, amor, elogiar, prosa, bonita, maravilhosa);
– natureza (natural, mata, riacho, cascata, cor de rosa, cenário, Guanabara, céu, azul,
resplandecer, estrela, Cruzeiro do Sul, Pão de Açúcar, baía, Ipanema, praia);
– passagem do tempo (manhã, anoitecer);
– valores materiais (joia, bordado, vigilante, guardar, riqueza, custoso, mobiliário,
moldura, estilo inglês).
3.1.5.2 - Riquezas naturais
Esse agrupamento fala das belezas do Brasil, da abundância da paisagem e das suas
riquezas naturais, enfocadas como patrimônio nacional. Mais uma vez, o tom é exultante,
elogioso.
Composições
a) de Cartola: Vale do São Francisco (c/ Carlos Cachaça);
b) de Paulo da Portela: “És tu, Brasil, que nos seduz...” (c/ Ernani Rosário); “Se a
bandeira brasileira é linda...”.
Valores
Aqui o mesmo sentimento de admiração e embevecimento, já comentado
relativamente à cidade do Rio de Janeiro, é endereçado ao Brasil, valorizado principalmente a
partir das suas belezas naturais.
Em “És tu, Brasil, que nos seduz...”, relacionam-se as belezas naturais aos ideais de
progresso e ao amor e à admiração que os brasileiros sentiriam pelo país.
Aproveita-se o mote de comparação dessas riquezas com as cores da bandeira
nacional, símbolo pátrio louvado em “Se a bandeira brasileira é linda...”. Eis um elemento de
173
interdiscursividade, pois a relação das cores da bandeira com as riquezas do Brasil é um valor
circulante na sociedade, como se pode constatar na exposição que o Inmetro faz com respeito
à padronização das medidas e das cores da bandeira.
63
Em Vale do São Francisco, encontra-se uma abordagem mais bucólica das belezas do
Brasil, enfocando o vale do rio, que percorre o interior do Brasil, desde Minas Gerais,
passando por Bahia, Pernambuco, Sergipe e Alagoas. O vocabulário poético (“campestre”,
“invernoso”, “estio”, “espraiar” etc.) marca a perspectiva idealizada das descrições.
Igualmente, a atribuição das belezas naturais à criação divina dá um toque de religiosidade
cristã ao texto.
Vale registrar que esta última música é um samba-enredo, caracteristicamente uma
composição dirigida a um público heterogêneo, de diversos grupos sociais. A grandiloquência
da letra e o rebuscamento do vocabulário vão ao encontro dos padrões culturais das classes
dominantes na sociedade, que, portanto, também são referência para as demais.
Encenação discursiva
O enunciador mantém a postura de embevecimento e orgulho já comentada
anteriormente. Considera-se co-herdeiro das belezas do país, junto com todos os brasileiros;
diz-se guiado a um futuro grandioso, a partir de tanta riqueza.
Em Vale do São Francisco, o enunciador cria uma cena na qual sobressai o espanto de
um dos personagens (o poeta) diante das belezas desta terra. Outro personagem (o campestre),
mais familiarizado com a paisagem, atribui as belezas a Deus e ressalta especificamente a
grandiosidade do vale do São Francisco, destacada principalmente pela sua extensão.
Características lexicais — recorrência de vocábulos ligados aos seguintes campos
semânticos:
– artes (canção, pintor, poeta, tela);
– envolvimento emocional (seduzir, sem par, coração, emoção, euforia, admirado,
amado, alegria, risonho, fragor, festa, esplendor);
– nacionalismo (Brasil, conduzir, ideal, resoluto, marchar, glória, bandeira, verde, azul,
amarelo, Pernambuco, Sergipe, Alagoas, Bahia, Minas Gerais, Tiradentes);
– natureza (verde, monte, céu, mar, estrela cadente, brilhar, sol, luar, fonte, borbulhante,
floresta, aroma, flor, lindo, matas, céu, ouro, vário, tesouro, vale, rio, invernoso, estio);
– religiosidade cristã (santo, Seus, Mestre, catedral).
63
Cf. INMETRO. Bandeira do Brasil. Disponível em www.inmetro.gov.br/consumidor/produtos/bandeira_nacional.asp.
Acesso em 29 jul 08.
174
3.1.5.3 - Regionalismo
Essas composições retratam realidades regionais do país, geralmente em seu aspecto
rural. As letras podem ser idealizadoras, ou reveladoras de dificuldades da vida nesses
lugares.
Composições
a) de Cartola: Ensaboa, mulata;
b) de Ismael Silva: Afina a viola.
Valores
O caráter regional dessas composições e de suas temáticas é reforçado, inicialmente
pelos gêneros musicais: Afina a viola é um xote; Ensaboa, mulata, por sua vez, é um lundu,
conforme classificação encontrada no Dicionário Cravo Albin da MPB
64
. Esses gêneros são
mais característicos de outras regiões brasileiras. O lundu, mais antigo do que o próprio
samba, remonta ao passado rural dos escravos que sofriam os trabalhos forçados nas fazendas.
O xote, mais recente, remonta ao nordeste brasileiro, onde se absorveu o Schottish alemão e
engendrou-se esse gênero musical (HOUAISS e VILLAR, 2001).
Além dos gêneros musicais, a seleção lexical e as grafias das palavras também
reforçam esse caráter regional. Nas duas composições, encontram-se ocorrências como pru
mó de, sertão, magina (por imagina), comê (por comer), fio (por filho) etc.
Afina a viola fala das habilidades do compositor popular, principalmente no que diz
respeito à improvisação. A canção, que metalinguisticamente refere-se à própria execução
instrumental, também faz uso de fórmulas poéticas do repente.
Ensaboa, mulata fala do ambiente doméstico e das dificuldades da vida da família
representada na letra. Alguns dos elementos presentes são os muitos filhos, deixados sós em
casa pelos pais que trabalham; a seca; o trabalho duro; dificultado por condições climáticas
desfavoráveis.
A mulher, nesse caso, é caracterizada pela cor da pele, além da profissão de lavadeira.
64
DICIONÁRIO CRAVO ALBIN DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA. s.v. Cartola (Angenor de Oliveira). Disponível
em www.dicionariompb.com.br
. Acesso em: 29 jul 2008.
175
Encenação discursiva
Em Afina a viola, o enunciador é o compositor popular que afirma a sua autoridade de
improvisador, que “canta sem imaginar”, assim como “come sem mastigar”. A partir dessa
comparação, valoriza o seu ato de cantar sem premeditação. No início da composição, deixa
clara sua intenção de mostrar, didaticamente, como se canta no sertão. Os destinatários,
portanto, seriam alheios a essas práticas e aprenderiam com o enunciador.
Em Ensaboa, mulata, há dois enunciadores: um casal, em cuja interação se percebem
características da sua vida. Ela, lavadeira, tem de sair de casa, deixando os filhos para
trabalhar. Ele enfatiza o esforço da mulher a partir da exclamação “Ensaboa, mulata”.
Características lexicais — recorrência de vocábulos ligados aos seguintes campos
semânticos:
– música (cantar, viola, sanfona);
– regionalismo (sertão);
– relação conjugal (fio, casa);
– trabalho (ensaboar, lavar).
3.1.5.4 - Vultos nacionais
Nesses casos, é marcante a exaltação a personagens importantes para o país, em vários
âmbitos. Busca-se realçar o significado da contribuição dada por cada um, e o orgulho que
seus feitos devem inspirar nos brasileiros.
Composições
a) de Cartola: Ciência e arte (c/ Carlos Cachaça);
b) de Paulo da Portela: Cavaleiro da esperança.
Valores
Cavaleiro da esperança é uma composição em homenagem a Luiz Carlos Prestes, que
em 1946 havia sido eleito senador pelo partido comunista, naquele momento, na legalidade. O
samba comemora o evento e expressa, com forte nacionalismo, a grande esperança dos
eleitores na atuação do político no senado.
A obra menciona o sofrimento do povo que o senador deveria amenizar. É uma
percepção que se coaduna com o título de cavaleiro da esperança que, de forma paternalista,
176
lutaria pelo povo. A honradez desses atos é traduzida como levar alto as cores do Brasil.
Ciência e arte exalta ícones brasileiros nessas áreas de atuação, como Pedro Américo
e Cesar Lattes. É interessante que, assim como em algumas das composições exaltando o Rio
de Janeiro, percebe-se mais uma vez o comedimento dos enunciadores, que se intitulam
“pobres vates”, compositores de um “pobre enredo”. Entre outros fatores, isso pode mais uma
vez ser devido às condições envolvidas na execução da composição — um evento público em
homenagem ao senador, com presença de autoridades e outras pessoas de diferentes meios.
Esse ambiente heterogêneo, no qual não imperam exclusivamente os valores do samba, parece
ser o determinante para não se assumir plenamente a autoridade de sambista. Isso não
impediu os locutores, entretanto, de fazer referência à sua composição como “poema”.
Há traços marcantes de metalinguagem no samba, justamente para estabelecer a
hierarquia dos “pobres vates” em relação aos vultos nacionais. A ênfase à importância desses
vultos é ainda mais reforçada a partir do uso de elementos da cultura grega (epopeia, panteão,
vate), outra vez referências correspondentes aos padrões culturais dominantes.
Entre uma canção e a outra, há diferenças no tom da homenagem: aquela dedicada a
Prestes é feita em uma ocasião específica e exprime anseios provocados por esse evento — é
menos idealizada e suavemente chega a fazer uma cobrança com relação à atuação do senador
recém-eleito. Aquela dedicada a Pedro Américo e Cesar Lattes é mais extremada, louvando a
contribuição dessas pessoas de forma atemporal; consagra-os como grandes vultos da história
do Brasil.
Encenação discursiva
Em Cavaleiro da esperança, o enunciador festeja a eleição de Prestes, comungando,
com o povo que o elegeu, das esperanças na sua atuação como senador. Põe-se na posição de
potencialmente beneficiado, pessoa sofrida como o povo em geral, que espera ter suas dores
amenizadas a partir desse evento.
Em Ciência e arte, os enunciadores, apesar de se reconhecerem como poetas,
assumem postura modesta para exaltar o valor dos homenageados.
Em ambos os casos, os destinatários são homenageados nas composições. Têm seus
méritos muito destacados e considera-se que estão inscritos na história do Brasil, pois sua
atuação os teria tornado imortais.
177
Características lexicais — recorrência de vocábulos ligados aos seguintes campos
semânticos:
– arte (arte, epopeia, enredo, artista, cultural, poema);
– exaltação (portentoso, altaneiro, triunfal, cume);
– mitologia grega (panteão, vate);
– patriotismo (bandeira do Brasil; Brasil);
– política (urnas, senador);
– povo (povo, esperar, dores, pobre);
– vultos nacionais (Prestes, cavaleiro da Esperança, história, glória, imortal, sábio,
Pedro Américo, Cesar Lattes).
3.1.5.5 - Patriotismo
Aqui o amor à pátria é a tônica, principalmente em ocasiões extremas, como as
guerras. As letras costumam exaltar os símbolos e os valores nacionais, como fonte de
orgulho e mobilização.
Composições
a) de Paulo da Portela: Brasil, terra da liberdade:
Brasil, terra da liberdade / Brasil, não teme a falsidade, / Nós estamos em guerra / Em defesa
da nossa terra / Se a pátria nos chama / Eu vou, eu vou / Serei mais um defensor. //
Ó meu Brasil / Ó meu país amado / Meu verde amarelo / À bandeira consagrado / Ó meu
Brasil / Meu Brasil pioneiro / Te darei a minha vida / Por eu ser um brasileiro.
Valores
Percebe-se a aplicação de toda uma retórica de guerra nesta composição, pela
intitulação da pátria como “terra da liberdade”, em contraposição ao país contra o qual se
guerreia, ao qual se atribui falsidade; pela personificação da pátria como aquela que deve ser
defendida contra ofensas alheias e convoca os brasileiros para irem em sua defesa; pela
exaltação aos símbolos nacionais e aos valores que eles representam; pela sobreposição do
valor da pátria ao valor da vida individual.
Encenação discursiva
O enunciador afirma o seu amor à pátria e deixa clara sua disposição de ir em sua
defesa, morrendo para isso, se for preciso. Mostra-se convicto de suas intenções e reage
apaixonadamente, inflamado pelos valores patrióticos. Assume a identidade de brasileiro e as
obrigações cívicas que essa identidade implicaria, conforme os valores enunciados
178
Características lexicais — recorrência de vocábulos ligados aos seguintes campos
semânticos:
– guerra (guerra, dar a vida);
– nacionalismo (Brasil, terra, pátria, defensor, brasileiro, país, verde amarelo,
bandeira);
– valores negativos (falsidade);
– valores positivos (liberdade, amado, pioneiro).
3.1.6 - Natureza
Nos quatro subgrupos dessa área temática, a natureza ocupa o centro das atenções,
como mobilizadora do compositor, que se sente emocionado e inspirado diante da beleza e
diversidade dos cenários que aprecia. As letras, descritivas e emotivas, costumam apresentar
um vocabulário marcadamente poético, que explora diferentes sentidos — visão e audição,
principalmente.
3.1.6.1 - Influência da natureza
Aqui a ênfase é na influência, geralmente positiva, que a natureza exerce sobre o
enunciador. A beleza da natureza proporciona sensações de harmonia, alegria, consolação. O
tom dos textos é geralmente de embevecimento e exaltação.
Composições
a) de Cartola: Alvorada; Que sejam bem-vindos;
b) de Paulo da Portela: “Quando desperta a cidade...”; “Quando silencia a voz das
aves...”.
Valores
Descreve-se frequentemente a beleza da natureza: a alvorada, o entardecer, o
anoitecer, a formosura das borboletas, do canto das aves, das flores. Esses elementos
proporcionam alegria e consolo às dores.
179
O uso de cores e de referências à luminosidade do ambiente ajuda a construir as
descrições dos quadros naturais. Além dessas referências visuais, outras, táteis (acetinado),
olfativas (aroma) ou auditivas (aves cantando) contribuem no envolvimento do interpretante
no ambiente de harmonia que se tenta criar na descrição.
O quadro natural também pode ser associado à mulher amada. Seus atributos se
confundem com os da natureza, e ela, então, é comparada à alvorada; sua influência sobre o
enunciador é inebriante, como a da natureza.
A natureza como consolo ao enunciador pode ser representada em contraposição às
dificuldades da vida. Significaria um âmbito mais amplo a partir do qual se pode considerar a
vida, não se atendo a dificuldades mesquinhas. É, nesse caso, protetora e fonte de esperanças.
A intenção de louvor à natureza também se torna patente nos usos lexicais, geralmente
mais formais, com ocorrência de lexias características de linguagem poética rebuscada — por
exemplo, “Febo” em referência ao sol.
Encenação discursiva
O enunciador pode ser o observador extasiado com a beleza que vê no cenário natural.
Em Alvorada, ele compara essa beleza e o efeito que tem sobre si com o que sente na
presença da mulher amada. Comparação semelhante é feita pelo enunciador de “Quando
silencia a voz das aves...”; este último, entretanto, além de associar a natureza à amada, ainda
afirma que o cenário natural é ideal para as glórias do rei Momo, uma das autoridades
máximas do Carnaval — dessa forma, empresta a harmonia da natureza à amada e a sua
majestade ao Carnaval.
Em “Quando desperta a cidade...”, o enunciador considera-se em perfeita harmonia
com a natureza — descreve as transições das fases do dia e se diz sempre alegrado por elas.
Conclui que deve extravasar essa alegria em homenagem à benevolência da natureza.
Em Que sejam bem-vindos, o enunciador, dirigindo-se à sua companheira, argumenta
que eles não têm razões para sofrer diante da magnanimidade da natureza. Ele se diz perplexo
entre as durezas da vida e a amenização trazida pelos efeitos da natureza que, conforme a sua
percepção, chegaria a tentar interagir com eles, amenizando a existência.
Características lexicais — recorrência de vocábulos ligados aos seguintes campos
semânticos:
– existência (caminho, estrada);
180
– luz e cor (colorir, tingir, iluminar, raiar, Febo, raio de luz, verdejante, anil);
– natureza (sol, natureza, passarada, flor, florir, lua, céu, ave, roseiral, selva,
borboleta);
–sentidos corporais (acetinado, silenciar, voz, aroma);
– passagem do tempo (alvorada, despertar, tarde, noite);
– valores negativos (chorar, tristeza, dissabor, amortalhar);
– valores positivos (sorrir, alegria, manso, sereno, suave, ameno, grandeza, bailar,
homenagem, harmonia...).
3.1.6.2 - Beleza da paisagem natural
Aqui a ênfase é mais na descrição da paisagem em si e em seus elementos. Não é tão
forte a exposição dos efeitos que a paisagem tem sobre o enunciador, a não ser em algumas
marcas da própria descrição. O tom dos textos é de exaltação, com riqueza de detalhes.
Composições
a) de Paulo da Portela: “Qual um farol...”:
Qual um farol / o astro sol / na ascensão de mais sublime luz / na amplidão sim reluz / qual
um crisol que seduz / e no azul / surge taful / qual um crisol a rutilar mais luz / na sedução /
na amplidão / do astro rei que seduz / calmo ascender / do astro sol resplandecer / no arrebol
Valores
A composição em questão é em louvor ao sol, à sua luminosidade e imponência
durante todo o período do dia. Destaca-se o uso de lexias formais, próprias da linguagem
poética, para valorizar a descrição com um comportamento linguístico consoante aos
preceitos do padrão linguístico da época.
As imagens poéticas empregadas ressaltam as ideias de luminosidade, alegria,
grandeza e comoção do observador.
Encenação discursiva
O enunciador é testemunha da grandeza da natureza e louva a sua beleza.
Características lexicais — recorrência de vocábulos ligados aos seguintes campos
semânticos:
– luminosidade (farol, crisol, reluzir, rutilar, luz, resplandecer);
– natureza (sol, astro rei, azul);
– valores positivos (taful, amplidão, sublime, seduzir, sedução, amplidão, ascender,
astro).
181
3.1.6.3 - Diversidade natural
Nestes casos enfatiza-se a riqueza dos recursos naturais. Essa ênfase é com frequência
associada ao nacionalismo, mas essa não é a tônica desse agrupamento de composições. O
tom das letras pode ser de embevecimento com esse aspecto da natureza; as descrições são
enumerativas e detalhadas.
Composições
a) de Cartola: Garças pardas:
Ouvi falar nas garças pardas / mas pensei que era brinquedo / nas florestas onde andei
encontrei / tantas que até tive medo / Lá nas matas tudo é segredo //
Eu bem sei, estou arrependido / Lá nas matas passei anos bem vividos / Eu vi garça parda,
borboleta / De um colorido tão sutil / Que saudade que eu tenho da floresta do meu Brasil.
Valores
A diversidade da natureza é exaltada, com um sentimento de respeito aos mistérios
que a natureza guarda. Essa crença nos poderes da natureza é frequente em grupos que têm
mais contato com ela; encontra-se, por exemplo, entre muitas pessoas do interior, povos
indígenas e adeptos do candomblé, entre outros.
Nesta composição, entretanto, o respeito e enaltecimento à natureza não são atribuídos
a características étnicas ou religiosas. Desenvolvem-se a partir de experiências vividas num
contato mais próximo com ela. Assim, a descrença relativamente a descrição de animais
incomuns, como as garças pardas, se desfaz, convertendo-se em admiração.
Após toda essa exposição, a admiração converte-se em saudade das florestas e surge
um elemento de patriotismo: as florestas, com sua riqueza são caracterizadas como próprias
do Brasil.
Encenação discursiva
O enunciador passa por uma transformação: inicialmente representado como
descrente, mas também pouco familiarizado com a paisagem natural, passa a valorizá-la mais
a partir da observação da diversidade da fauna.
Características lexicais — recorrência de vocábulos ligados aos seguintes campos
semânticos:
– crença/descrença (brinquedo, arrependido);
182
– espanto (medo, segredo);
– experiência (vivido, saudade);
– natureza (garça parda, borboleta, floresta, mata, Brasil);
– valores positivos (colorido, sutil).
3.1.6.4 - Natureza e poesia
Aqui o que predomina é a influência da natureza sobre o enunciador, no sentido de
proporcionar-lhe a inspiração poética. O tom dos textos é de envolvimento emocional com
marcas de preocupações estéticas no uso dos recursos linguísticos.
Composições
a) de Paulo da Portela: Linda borboleta.
Linda borboleta, não seja buliçosa / Deixa minha rosa que tão linda está no galho / É o meu
prazer, ao amanhecer / Fazer-lhe visita, vê-la banhada de orvalho / Quando vem o sol, cobre
ela de ouro / No jardim do pobre é um tesouro / Linda borboleta, por favor, / Deixa o meu
tesouro de real valor / Quem faz esse apelo / É um pobre trovador / Que se inspira na rosa /
Pra fazer canções de amor.
Valores
Percebe-se uma profunda valorização da natureza, da sua beleza e influência positiva
sobre o observador. O enaltecimento à beleza pode ser apreciado, por exemplo, a partir da
repetição do adjetivo “lindo” por três vezes na letra.
Também há preocupação com a beleza da expressão linguística. Esse cuidado, no nível
lexical, é perceptível no uso de lexias características de uma linguagem mais rebuscada, como
“buliçoso” e “trovador”. Ao mesmo tempo também está marcada em imagens como “banhada
de orvalho” e “cobrir de ouro”.
A natureza é representada como tesouro de real valor. Isso, adicionado à representação
do enunciador como uma pessoa pobre, revela uma conceituação dos bens imateriais como
superiores aos materiais.
Encenação discursiva
O enunciador põe-se em uma relação assimétrica com os elementos naturais. Ele se
dirige suplicantemente à borboleta e se refere à rosa que cultiva em seu jardim como o
verdadeiro tesouro que possui. Entretanto, assim como em casos já comentados
anteriormente, não deixa de marcar seu próprio valor como criador de textos poéticos, mesmo
183
que o mesmo seja atribuído à inspiração ocasionada por elementos naturais. O contato com a
natureza, somado à habilidade poética, se contrapõe à pobreza material e adiciona
complexidade à identidade que o trovador constrói para si.
Características lexicais — recorrência de vocábulos ligados aos seguintes campos
semânticos:
– envolvimento emocional (lindo, prazer, visita, sol, apelo);
– natureza (borboleta, rosa, galho, banhada de orvalho, cobrir [algo] de ouro);
– poesia (trovador, inspirar-se, canção);
– valores negativos (buliçoso);
– valores positivos (pobre, tesouro, valor, amor).
3.1.7 – Religiosidade
O compositor que tem produções exclusivamente dedicadas a essa área temática é
Cartola.
Barboza da Silva e Oliveira Filho (2003, p. 280-1) apresentam da seguinte forma o
posicionamento do compositor:
Outro traço bem marcante em Cartola é a religiosidade sincera. [Em entrevista] a Otávio
Ribeiro, houve o seguinte diálogo:
“Otávio: Você é católico?
Cartola: Graças a Deus.
Otávio: Não gosta de ir a alguma macumbinha?
Cartola: Não frequento. Já fui à macumba, já andei nisso aí.
Otávio: Já fez despacho, acendeu vela?
Cartola: Já fiz isso, mas não vi resultado nenhum, não desfaço, cada um com sua religião. O
final de todas as religiões, a finalidade, é Deus. Mas eu não frequento macumba não
frequento nada. Eu sou católico a meu jeito.
Otávio: Como é seu jeito?
Cartola: Pouco frequento a igreja. Acredito em Deus, só. Igreja eu só vou por necessidade,
entende? Ou então quando faço minha promessazinha, vou lá e pago, corretamente, tal, tal,
com todo o respeito. Mas Deus está em toda parte, não está só na Igreja. [...]
Em outra entrevista, esta ao Pasquim, Cartola confirmou tudo isso:
Pasquim: Escuta, estamos vendo ali na parede um quadro muito bonito com uma cachoeira
ali, um grupo de filhas de santo, você também acredita e pratica essa religião?
Cartola: Olha, eu não pratico nada, sou católico, não pratico nada, mas não desfaço de
nada. Eu acho que em toda a religião, seja ela qual for, a finalidade é Deus. Macumbeiro é
Deus, espiritismo é Deus, católico, crente, tudo é Deus. [...] O quadro está ali porque é
bonito.
Pasquim: Na sua outra casa havia duas imagens enormes, na sala, de Cristo e uma santa.
Você anda citando muito Deus nas suas composições, Cartola, Deus é mesmo uma presença
importante na sua vida?
Cartola: Eu acho que pra todo mundo. Eu estou sempre com Deus, apesar de não viver
rezando, nem pedir demais, porque eu não vou chatear ele.”
184
Composições
a) de Cartola: Dê-me graças, Senhora; Grande Deus.
Valores
As composições em análise são caracterizadas pela representação da fé do enunciador
na divindade e nos santos católicos. Essa representação pode associar a grandiosidade dessas
entidades à grandiosidade da natureza. Pode também atribuir uma influência protetora, ou
mesmo punitiva a essas forças superiores. Independentemente disso, pode-se dizer que esses
elementos sempre são positivamente valorados.
Encenação discursiva
O enunciador se põe em posição inferiorizada diante da grandeza das entidades às
quais se dirige. Essa inferioridade é marcada pelo louvor e pelos pedidos de benefícios a
Maria (Dê-me graças, Senhora), ou pelos apelos contritos a Deus, visando ao perdão dos
pecados (Grande Deus).
O enunciador se mostra irmanado com toda a humanidade, no primeiro caso, pedindo
benefícios a Maria em favor de todos; no segundo caso, não se considerando mais pecador do
que as demais pessoas.
Maria sempre é representada como uma influência benévola, que deslumbra o
enunciador e da qual ele pode se valer como reforço aos pedidos de perdão. Essa
representação de Maria revela interdiscursividade com as crenças católicas, e
intertextualidade especificamente com a oração da Ave, Maria.
A relação do enunciador com Maria é tão estreita que, em Dê-me graças, Senhora, ela
chega a dirigir-se a ele: diante da estupefação do fiel, pela grandeza e beleza da figura
feminina, ela se identifica como “A mãe de Deus, Virgem Maria”; essa identificação ressalta
ainda mais a sua grandeza.
Características lexicais — recorrência de vocábulos ligados aos seguintes campos
semânticos:
– contrição (perdoar, errar, cair, pelo amor de Maria);
– envolvimento emocional (olhar, indelével, sonho);
– louvor (graças, grande, traçar, de joelhos, implorar);
– natureza (sol, lua, terra, mar, estrelas, brisa, flor);
– religiosidade cristã (Deus, mãe de Deus, Virgem Maria, Senhora);
– valores negativos (chorar, ódio);
– valores positivos (cintilar, ameno, sorriso, amor, feliz).
185
3.2 — Análise léxico-discursiva do corpus baseada em critérios quali-quantitativos
3.2.1 - Composição da nomenclatura
As unidades lexicais aqui estudadas foram selecionadas em duas etapas.
A seleção privilegiou, inicialmente, as letras da área temática “metalinguagem”, uma
vez que esta contém composições que tratam diretamente do samba, da sua ambiência,
personagens característicos etc. Essas letras foram processadas de acordo com três critérios:
1) a depreensão de palavras-chave por meio da ferramenta keywords do programa Wordsmith
Tools — a tela com os resultados dessa funcionalidade do programa está reproduzida na
metodologia; 2) a contagem de frequências a partir da ferramente wordlist, do mesmo
programa já mencionado — todas as lexias com mais de cinco ocorrências no corpus foram
incluídas nesta análise; 3) ainda a partir dos resultados de wordlist, a avaliação da pertinência
de inclusão de certas unidades menos frequentes, mas relevantes para o universo discursivo
em estudo.
As lexias depreendidas por esse procedimento tiveram a análise estendida para todo o
corpus — os verbetes aqui apresentados incluem ocorrências de todas as áreas temáticas. A
restrição à área “metalinguagem” foi, portanto, apenas um procedimento inicial para obtenção
da lista de palavras.
A segunda etapa para composição da nomenclatura consistiu na obtenção automática
de uma lista de palavras de todo o corpus de estudo, incluindo todas as áreas temáticas.
Também obtive outra lista de palavras do corpus de controle (ver a metodologia) e,
posteriormente, fiz a comparação estatística das duas listas a partir da ferramenta keywords,
do Wordsmith Tools, o que resultou na seguinte relação com 75 palavras-chave:
ADEUS CORAÇÃO INGRATIDÃO ORGIA SALVE
AI DEUS JARDIM PAÍS SAMBA
ALEGRIA DIA LÁBIO PAM-PAM-PAM-PAM SAMBAR
ALVORADA DOR LAMBER PAZ SAUDADE
AMAR DOUTOR LAR PEDIR SOFRER
AMIZADE ENSABOAR LUA PEITO SOL
AMOR ESPERANÇA MAL PENSAR SORRIR
AURORA ESQUECER MANGUEIRA PERDÃO SORRISO
AZUL FELICIDADE MOCIDADE PRANTO TEIMAR
CANTAR FELIZ MULHER PRAZER TRISTE
CARINHO FINGIMENTO NOITE QUERER TRISTEZA
CÉU FLOR Ó RAZÃO VER
CHORAR GANDAIA Ô RISO VERDE
CIÚME IAIÁ OH ROSA VIOLÃO
CONTENTE INFELIZ OLHAR SABER VIVER
A lista, que contém algumas redundâncias em relação ao rol obtido inicialmente, foi a
186
segunda fonte de entradas consideradas para a lista de verbetes que são estudados nesta seção.
3.2.2 - Princípios de análise das ocorrências
A análise das ocorrências considera características discursivas, gramaticais, lexicais e
semânticas. No nível discursivo, principal para este estudo, consideram-se fatores como o
núcleo metadiscursivo dos vocábulos, o contrato comunicativo em questão, a encenação
discursiva, já abordada na análise qualitativa, e características relativas ao gênero textual.
Com relação à delimitação de unidades plurivocabulares, veja-se o que foi
estabelecido na metodologia. É necessário explicar apenas que, ao representá-las usaram-se
colchetes para indicar elementos variáveis, conforme a situação de uso.
Por fim, deve-se esclarecer que o propósito aqui não é apresentar definições
lexicográficas dos lexemas selecionados, mas depreender informações de uso que devem
figurar na descrição da significação dessas unidades, no universo discursivo em pauta,
elucidando-se assim as particularidades léxico-discursivas que caracterizam a produção de
sambas dos compositores selecionados.
3.2.3. - Alguns procedimentos de edição dos resultados
Para manter controle da extensão ocupada por esta parte do estudo, foi necessário, nos
casos com maior número de ocorrências, selecionar exemplos para análise. Isso foi feito
sempre que havia mais de 20 ocorrências de um lexema. A seleção buscou diminuir a
recorrência dos fatos mais comuns, mantendo a diversidade dos fenômenos verificados.
Conforme também já foi estabelecido na metodologia, eliminaram-se ocorrências de
verbos com valores gramaticais, como os de ligação, transobjetivos, auxiliares aspectuais e
auxiliares modais. Verbos-suporte (dar, fazer, ter, perder etc.) não foram analisados na
entrada correspondente — esses elementos, sempre ligados a uma unidade nominal que é o
núcleo semântico da colocação, foram comentados no verbete correspondente a esse núcleo,
quando a ocorrência se mostrou quantitativamente representativa, ou qualitativamente
relevante.
187
3.2.4 - Formatação dos verbetes
Por fim, convém esclarecer alguns procedimentos de apresentação das informações
nos verbetes:
as entradas estão em caixa alta, negrito;
remissões a outros verbetes estão em caixa baixa, negrito;
citações de ocorrências do corpus, ao longo da análise dos dados, estão em itálico;
citações de títulos de composições estão entre aspas;
nos verbetes com ocorrências mais numerosas, geralmente separaram-se as
unidades lexicais simples das complexas; entre estas, as colocações são listadas primeiro,
seguidas dos frasemas, quase-frasemas e por fim, dos pragmatemas (ver item 2.6.1);
colchetes são usados para delimitar elementos variáveis em unidades lexicais
complexas. O mesmo sinal também aparece após os lemas dos verbetes, delimitando
quantificações das ocorrências válidas e do número de letras nas quais foram encontradas.
188
3.2.5 – Letra A
ACADEMIA [1 ocorrência no corpus]
1928-1980
Vamos apertar / Mais o ferrolho / Vai ser dente por dente / Olho por olho
/ E nós vamos / Demonstrar com harmonia / Que a Mangueira / Ainda é
a academia
/ Levanta gigante.
Levanta gigante; Cartola, Carlos
Cachaça e Nuno Veloso
A qualificação da Mangueira como “academia” corresponde à intenção de afirmar o
valor do samba e das escolas de samba como instituições de referência na cultura popular.
ACORDE [2 ocorrências em 2 letras do corpus]
1
1938-1940
Ao amanhecer, ao anoitecer / Cantam em bando aves
fazendo verão / Ouvem-se acordes de um violão
Ao amanhecer; Cartola
2
1928-1980
No camarim as rosas vão murchando / E o contrarregra dá o
último sinal / As luzes da plateia vão se amortecendo / E a
orquestra ataca o acorde
inicial
Camarim; Cartola e Hermínio Bello
de Carvalho
Acorde, que integra o vocabulário de especialidade da música, é usada no trecho (1)
para compor uma ambiência para o momento do amanhecer, descrito na composição. Os
acordes do violão são o primeiro indício dos “periquitos”, integrantes do bloco que é
homenageado no samba.
Na citação (2), o acorde inicial da orquestra é dos elementos usados na construção do
ambiente de camarim, antes do início de um espetáculo musical. Juntamente com a
intervenção do contrarregra, é um indício de que chega o momento da entrada no palco.
ADEUS [15 ocorrências em 7 letras do corpus]
1
1931
Sofrer é da vida / Eu já me convenci / Adeus, minha querida,
/ Não foi pra você que eu nasci... //
Sofrer é da vida; Ismael Silva e
Francisco Alves
2
1932
Adeus // Adeus! Adeus! Adeus! / Palavra que faz chorar /
Adeus! Adeus! Adeus! / Não há quem possa suportar //
Adeus; Ismael Silva, Noel Rosa e
Francisco Alves
3
1932
Adeus é tão triste / Que não se resiste / Ninguém jamais /
Com adeus pode viver em paz //
Adeus; Ismael Silva, Noel Rosa e
Francisco Alves
4
1937
Nem notícias eu tenho / Da mulher que tanto venero / Deus
meu, foi embora / Não sei onde mora / Notícias espero / É
tão triste um adeus, uma despedida / Vê se apieda-te, Deus /
Cura-me esta ferida //
Partiu; Cartola
5
1939
Entre os defeitos teus / Este é o principal! / Vou dar-te um
adeus / Sem ser meu ideal / Pra não me colocar / Em má
situação / Prefiro declinar / Da pretensão.
Com a vida que pediste a Deus;
Ismael Silva
6
déc.1950
Apesar de todo erro, espero ainda / Que a festa do adeus
seja a festa da vinda //
Festa da vinda; Cartola e Nuno
Veloso
7
1928-1980
Meu primeiro amor / Não me olhe assim / Eu já te disse
adeus / E os olhos teus não cansam / De fitar os meus // A
tristeza / Do teu olhar / Juro que encanta e traduz / Tanta
beleza / É uma promessa de amor / Que até nos faz sonhar.
Meu primeiro amor; Cartola e
Aluísio Dias
8
1928-1980
Orgia, hoje és minha inimiga / Os sofrimentos me obrigam / A
me afastar de você / Adeus, violão / Amigo leal / Estes
versos que eu fiz / Devem ser / A rima final
Orgia; Cartola
Em (1-3, 7-8), adeus é o pragmatema que marca momentos de despedida. Essa
despedida muitas vezes é relacionada ao fim do envolvimento amoroso. A lexia geralmente
contribui para marcar um sentimento de melancolia do enunciador.
189
Em (2) e (3), ocorrências provenientes do samba “Adeus”, esse sentimento é
enfatizado a partir da repetição da unidade lexical. A reiteração também é favorecida por
características rítmico-melódicas do samba, em que recorrem conjuntos de duas notas
(correspondentes às sílabas de adeus), cada vez mais agudas, que reforçam a intensidade do
sentimento.
A citação (8) é marcante por fugir à referência do envolvimento amoroso. Nesse caso
o adeus é ocasionado pelo afastamento em relação ao ambiente da roda de samba (a orgia). O
violão é personificado como destinatário da despedida do locutor contrariado.
Em (4-6), ocorre o substantivo adeus, ainda com a mesma referência predominante à
separação amorosa. No primeiro caso, há uma qualificação da desventura como circunstância
triste — reforça-se nesse caso a significação de adeus por coordenação do sinônimo
despedida. No segundo, a colocação com verbo-suporte “dar-te um adeus” é uma maneira
indireta de registrar que o enunciador toma a iniciativa de terminar a relação entre os dois. No
terceiro, a lexia ocorre como qualificação de festa, marcando as disposições otimistas do
enunciador. A lexia festa, junto com o conteúdo musical da composição, alegre e expansiva,
marca as suas esperanças de reconciliação — nessa perspectiva, mesmo no adeus há festa,
devido à perspectiva de que a despedida será convertida em reencontro.
ADMIRADO [1 ocorrência no corpus]
1934
Brasil do coração / A palpitar de emoção / Em grande euforia /
Admirado, és Brasil amado //
És tu, Brasil, que nos seduz; Paulo
da Portela e Ernani Rosário
O Brasil é qualificado a partir da admiração dos brasileiros pelo próprio país. Tal
admiração é determinada pelo sentimento patriótico e pelas riquezas e belezas naturais do
Brasil. Construções discursivas como esta são próprias da área temática “Brasil”, marcada por
forte nacionalismo.
ADMIRADOR [1 ocorrência no corpus]
1932
Cidade, quem te fala é um sambista, / Anteprojeto de artista, / Teu
grande admirador / Me confesso boquiaberto, / De manhã, quando
desperto / Com tamanho esplendor /
Cidade mulher; Paulo da Portela
Nesse caso, a cidade do Rio de Janeiro é alvo da admiração do enunciador, que se
identifica como sambista. Essa postura discursiva é reforçada por lexias como boquiaberto,
esplendor e formosura e justifica-se por meio da descrição das belezas da cidade e das reações
de embevecimento dos cariocas e também dos estrangeiros. A composição é característica da
área temática “Brasil”, na qual são frequentes exaltações dedicadas ao país, a estados, cidades
etc.
190
ADMIRAR [3 ocorrências em 3 letras do corpus]
1
1932
Quando a tarde é cor de rosa / Ainda é mais formosa / Tem
cenários sedutores / Te admiram os estrangeiros / Se
orgulham os brasileiros / Teus poetas sonhadores
Cidade mulher; Paulo da Portela
2
1973
Alguém pensa que é mentira / Esta nossa união / Todo
mundo se admira / Todo mundo mas eu não //
Alegria; Ismael Silva
3
1928-1980
Quando souberem / Que abandonei esta mulher / E não
chorei / Eu já pensei, que vão se admirar / É que mesmo
sempre fui / Muito indiferente / Jamais conheci paixão / Meu
coração não sente //
Não quero chorar; Cartola
Em (1), assim como já foi comentado s.v. admirador, a cidade do Rio de Janeiro é
destacada pela sua beleza e pelo embevecimento que causa, tanto nos moradores quanto nos
estrangeiros. A reação dos estrangeiros é valorizada e faz os cariocas orgulhosos.
Em (2) e (3) a admiração é apresentada como reação de terceiros diante do
relacionamento amoroso entre duas pessoas. No primeiro caso, a admiração é devida à união
do casal, inesperada segundo opiniões alheias. No segundo, é causada pelo rompimento entre
os dois. As opiniões de terceiros geralmente não são representadas positivamente nos sambas
que falam de relações amorosas. São, entretanto, frequentemente mencionadas, como fator de
interferência na vida a dois.
ADVERSÁRIO [1 ocorrência no corpus]
1944
Silenciar a Mangueira, não / Disse alguém / Uma andorinha só não faz
verão também / Devemos ter adversários / Como Oswaldo Cruz
Silenciar a Mangueira; Cartola
A colocação do substantivo com o verbo-suporte ter faz com que esse conceito lembre
o comportamento de verbo, modificado pelo auxiliar modal devemos.
Lexias como adversário fazem alusão à disputa entre as escolas de samba nos desfiles
de carnaval. Outras unidades lexicais próprias do campo semântico da competição, ou até
mesmo da batalha, reforçam esse universo referencial, que é usado para motivar os integrantes
da escola a se dedicar a ela ou a se animar durante o desfile de carnaval. Não se encontram no
corpus, nem no repertório de samba conhecido por este pesquisador, composições que
aproveitem essa atmosfera de competição para incentivar a animosidade entre as escolas de
samba; pelo contrário, composições como “Homenagem ao Morro Azul” e “Sala de recepção”
afirmam intenções opostas a essa.
Algumas outras ocorrências que pertencem a esse campo semântico são campeão,
concorrer, coragem, e ganhar, entre outras (ver essas entradas). As principais composições
que lançam mão do presente recurso discursivo são “Meu batalhão” (Ismael Silva, Francisco
Alves e Nilton Bastos, 1930-1931); “Levanta, gigante” (Cartola, Nuno Veloso e Carlos
Cachaça, 1928-1980); “Pudesse meu ideal” (Cartola e Carlos Cachaça, 1932).
191
AFINAR [3 ocorrências em 2 letras do corpus]
1
1965
Pedro afine os tambores / E diz a Dolores / Que vai ter
ensaio de rua / Vê se reúne a turma inteirinha / Vamos que é
noite de lua //
Ensaio de rua; Barbosa da Silva,
José Lima e Cartola
2
1973
Afina a viola // Afina a viola, Mané / Pega na sanfona, Tião /
Pru mó de mostrá como é / Que se brinca no nosso sertão
Afina a viola; Ismael Silva
As ocorrências fazem parte do vocabulário de especialidade da música. Costuma ser
mais usada em referência a instrumentos melódicos, como se verifica em (2), mas também
ocorre tendo como complemento instrumentos percussivos, muito comuns no samba; tal é o
caso de (1).
Ainda no que diz respeito a (1), é interessante observar os agentes do ato de afinar a
viola (Mané) e de pegar na sanfona (Tião). Essas identificações contribuem para a construção
do contrato discursivo da canção sertaneja, reforçada por expressões regionais como pru mó
de e mostrá.
Igualmente, o uso de fórmulas como “Pra cantá eles magina / Eu canto sem maginá”
ajuda a caracterizar composições regionais. Nei Lopes (2005, p. 117) registra esses mesmos
versos na voz de Clementina de Jesus, considerando-os próprios da tradição oral. São muito
usados em gêneros regionais que compreendem refrões intercalados por improvisação de
solistas, como o samba baiano, o coco e o calango.
AFIRMAR [1 ocorrência no corpus]
d1941
Eu digo e afirmo que a felicidade aqui mora / E as outras escolas até
choram / Invejando a tua posição / Minha Mangueira, és a sala de
recepção / Aqui se abraça o inimigo como se fosse irmão.
Sala de recepção; Cartola
O acúmulo de verbos introdutores de asserção (“digo e afirmo”), em primeira pessoa,
é recurso do enunciador para empenhar fortemente sua própria credibilidade no que diz.
AGOGÔ [1 ocorrência no corpus]
1965
Tem tem tem pandeiro agogô / Vê vê vê se falta ganzá / O rei vem vem
/ vem de Luanda / vamos saravá saravá / A rainha também / Não vai
demorar / Hoje vai ter samba Dolores / Vamos que eu quero sambar.
Ensaio de rua; Barbosa da Silva,
José Lima e Cartola
O instrumento integra o vocabulário de especialidade do samba, assim como de outras
práticas culturais afro-brasileiras, como a capoeira e o candomblé. É usado nas baterias das
escolas de samba, entre outras situações.
Os nomes de instrumentos musicais são de fato uma parte significativa do vocabulário
de especialidade do samba. Eles são às vezes mencionados em função da habilidade do
sambista em tocá-los, em função da descrição do desfile da escola de samba (conforme foi
comentado), ou pelo seu valor simbólico, de representação da instituição cultural que é o
samba.
Apesar de esta divisão não ser rígida, percebe-se que, na prática discursiva em
192
questão, a referência a instrumentos de percussão é mais comum nos eventos coletivos ou nas
atividades da escola de samba. Os instrumentos melódicos costumam ser associados à
atividade do compositor e a uma atmosfera de lirismo, assim como à roda de samba.
AGRADECER [7 ocorrências em 5 letras do corpus]
1
1934
Agradeças a mim // Se saíste do morro, / Se tens felicidade, /
Agradeças a mim, / Porque se não fosse assim, / Não
estarias na cidade! //
Agradeças a mim; Ismael Silva
2
1945
Agradeço comovido / E muito sentido / Por tudo que faço / Ao
bem que me fez / Perdoa / Mas quero voltar / Para junto
daqueles que a vida / Sofrendo ou chorando, / Cantando,
sorrindo, / É boa. //
Perdoa; Paulo da Portela e Cartola
3
1950
Até muamba já fizeram pro rapaz / Porque no samba
ninguém faz o que ele faz / Mas hei de vê-lo muito bem, se
Deus quiser / E agradeço pelo que você fizer.
Antonico; Ismael Silva
4
1966
Eu agradeço // A todos que estão me ouvindo / Eu agradeço /
Esta atenção dispensada / É mais do que mereço / Se não
gostarem / Não digam nada a ninguém / Senão os outros não
vão me aturar também //
Eu agradeço; Ismael Silva
5
1977
Nunca uses a injúria como arma de defesa / Agradeça
sempre a Deus / ( ) / Ampara os inocentes / Se for cego, dê-
lhe luz / Sem contar com a recompensa / Do grande mestre
Jesus
Enquanto Deus consentir; Cartola
Os agradecimentos, nas composições em questão, têm significados e funções
diferentes: na letra de “Antonico”, onde se constrói o contrato de comunicação de uma carta
dirigida a um amigo do enunciador, para pedir em favor de alguém que está em dificuldades,
a fórmula “agradeço pelo que você fizer” é um pragmatema, mais especificamente uma
fórmula de rotina, que reforça o encarecimento do pedido feito. A força discursiva do
pragmatema, mais do que o agradecimento em si, é o destaque ao interesse que o enunciador
tem no benefício pedido.
“Eu agradeço” reproduz o contrato de comunicação da apresentação artística. Nessa
situação, espera-se que o artista execute esse ato discursivo: agradecer à plateia pelo interesse
no seu trabalho. Neste caso específico, esse pressuposto vem acompanhado do recurso
humorístico da autodepreciação.
Em “Enquanto Deus consentir”, há o domínio do discurso religioso, segundo o qual os
crentes devem reconhecer o que ocorre de bom em suas vidas como graças divinas, pelas
quais devem ficar agradecidos.
Em “Perdoa”, o sentimento de gratidão é direcionado a alguém que teria beneficiado o
enunciador. Trata-se de uma demonstração de reconhecimento a um benefício prestado por
uma pessoa.
Em “Agradeças a mim”, o verbo no imperativo marca as disposições discursivas do
enunciador que, após uma desilusão amorosa, queixa-se da destinatária, cobrando
reconhecimento por benefícios materiais prestados a ela.
193
AGRADECIDO [1 ocorrência no corpus]
1977
E confiante despeço-me / Todo feliz a cantar / Agradecido ao bom
Senhor / Por me ajudar
A canção que chegou; Cartola e
Nuno Veloso
Assim como foi comentado no caso de “Enquanto Deus consentir” (s.v. agradecer), a
lexia agradecido mais uma vez integra o domínio discursivo da religiosidade cristã. A
qualificação do enunciador como “agradecido ao bom Senhor” caracteriza-o como alguém
humilde e religioso. O reconhecimento a Deus por benefícios experimentados pelo enunciador
torna-se mais eloquente no fechamento de uma composição dedicada a reflexões existenciais.
Esse sentimento de gratidão religiosa é reiterado em outros trechos da letra.
AI [24 ocorrências em 19 letras do corpus]
1
1924
Ai daquele como eu / Que tiver a desdita de te conhecer / Na
sua arte de perder / Com este modo de olhar / Sorrindo estás
fingindo / Jurando estás sentindo / Se o teu maior prazer é
escravizar.
Podes gargalhar; Paulo da Portela
2
1929
Ai, como é triste viver assim / Enganado por seu bem / Sei
que jamais terei piedade / Não quero amor de ninguém
Para mim perdeste o valor; Ismael
Silva
3
1932
Ai quem me dera agora / Esse viver de outrora!... / Quem na
gandaia andar / Pode ter a certeza que sabe gozar... /
Gandaia sempre foi o meu desejo / Quanto tempo que eu
não vejo / Essa vida que eu vivia!...
Gandaia; Ismael Silva
4
1933
O chiquê é feio pra quem pode ter / Quanto mais pra quem
não tem nada de seu / Ai de quem não sabe se reconhecer /
Nunca vi um gênio igual ao teu //
Deus sabe o que faz; Ismael Silva
5
1933
Não é só quem vive em pranto / Que sabe o que é sofrer... /
Eu sofro e no entanto / Nunca dei a perceber! // E são tristes
meus ais... / Pois quando a gente sente / E não chora / Sofre
muito mais //
Nunca dei a perceber; Ismael Silva
6
1938-1940
Quando a tarde vai morrendo (ai, meu Deus) / O crepúsculo
vem descendo / Reúne-se o bando na rua / E, cheios de
harmonia, / Entoam uma melodia que faz dançar a própria
lua
Ao amanhecer; Cartola
7
1941
Tive que contar a minha vida / A esta mulher fingida / Que
me faz sofrer / Esta dor que tanto me crucia, / Roubou toda
alegria do meu viver / Pode ser que ela ouvindo os meus ais /
Volte ao lar para viver em paz //
Não posso viver sem ela;
Alcebiades Barcellos e Cartola
8
1941
O meu nome já caiu no esquecimento / O meu nome não
interessa a mais ninguém // E o tempo foi passando / A
velhice vem chegando / Já me olham com desdém / Ai,
quanta saudade de um passado / Que se vai lá no além //
O meu nome já caiu no
esquecimento; Paulo da Portela
9
1943
Maestro, toque aquela / Aquela que me traz recordação / Do
ano que já passou / E deixou saudades no meu coração // Ai
,
ai
, ai, ai / Eu nem posso me lembrar / Que música boa pra
gente dançar
Maestro, toque aquela!; Ismael
Silva e José de Almeida
10
1945
Ai, meu Deus, tenho fé / Quem tem fé não cansa / E nunca
perde a esperança.
Deus te ouça; Paulo da Portela e
Cartola
11
1946
Se eu tiver de escolher / Entre o samba e você / Vai ser de
amargar / Sem você eu não vivo / E também sem o samba /
Não posso passar / Ai
meu Deus!
Se eu tiver de escolher; Arlindo
Marques Junior, Roberto Roberti e
Ismael Silva
12
1950
Ai! quando eu era criancinha / Ai que carinho / Todos os dias
me lavavam o corpinho / Por isso entrei no bloco do
camisolão / Com uma touca, uma chupeta / E a mamadeira
na mão.
Bico da cegonha; Ismael Silva
14
1968
Ai, esse bojo perfeito/ Que trago junto ao meu peito / Só
você, violão, compreende porque / Perdi toda a alegria //
Cordas de aço; Cartola
15
1968
Ai, essas cordas de aço / Este minúsculo braço / Do violão
que os dedos meus acariciam //
Cordas de aço; Cartola
16
1972
Acontece que meu coração / Ficou frio / E nosso ninho de
amor está vazio / Se eu ainda pudesse fingir que te amo / Ai,
se eu pudesse / Mas não quero, não devo fazê-lo / Isso não
acontece.
Acontece; Cartola
17
1976
Queixo-me às rosas / Que bobagem, as rosas não falam /
Simplesmente as rosas exalam / O perfume que roubam de
ti, ai...
As rosas não falam; Cartola
18
1977
É impossível nesta primavera, eu sei / Impossível, pois longe
estarei / Mas pensando em nosso amor, amor sincero... / Ai
se eu tivesse autonomia / Se eu pudesse gritaria / Não vou,
não quero //
Autonomia; Cartola
194
19
1928-1980
Tu não sabes amar / Para que tens um coração? / Ai, meu
Deus, o melhor entre nós dois / É a separação //
Consideração; Cartola e Heitor dos
Prazeres
20
1928-1980
Desperta querida / E vem ouvir meus ais / Procure ouvir
agora / Ou não ouvirás jamais / Vem ouvir a voz / Deste teu
trovador / Desperta querida / Pelo nosso amor //
Desperta querida; Cartola
21
1928-1980
Eu bem sei, não sou mais do que um covarde / Mas para
corrigir-me é bem tarde / Sofri tanto, senti em saber / Ai meu
Deus, eu não sei o que fazer
Por você eu chorei; Cartola
A interjeição ai funciona, nas abonações (1-4, 6, 8, 12, 14, 19, 21) como pragmatema,
pois sua significação é intimamente condicionada a fatores situacionais envolvidos na
produção do discurso.
Em (14) e (15), a lexia assinala o envolvimento emocional do enunciador com o
violão. Em combinação com a descrição detalhada das partes do instrumento, marcada por
adjetivos afetivos (bojo perfeito; minúsculo braço), o pragmatema contribui para construir um
tom de embevecimento do compositor com o seu instrumento.
Em (6, 10-11, 19, 21) o pragmatema ai, meu Deus, exprime diferentes sentimentos. No
primeiro caso, dá vazão ao prazer experimentado com a observação da beleza da natureza. Aí,
entretanto, há uma outra função relacionada ao gênero textual “letra de canção popular”:
nesse gênero, caracterizado pela conjunção entre a linguagem musical e a verbal, a letra deve
corresponder às intenções e características melódicas, rítmicas e de outros níveis do material
musical. A fórmula ai, meu Deus, no caso observado, marca um contracanto, que pode ser
executado por um coro, ou por um cantor diferente do intérprete principal.
Em “Deus te ouça”, o pragmatema destaca a fé do enunciador na reversão do seu
quadro de sofrimento. Em “Se eu tiver de escolher”, ressalta a perplexidade e indecisão diante
do dilema de ficar com a mulher ou ir ao samba. Em “Consideração”, exprime a contrariedade
diante do reconhecimento de que a união com a mulher não tem futuro. Já em “Por você eu
chorei”, trata-se da expressão da contrariedade devido aos sofrimentos experimentados em
nome de uma mulher amada.
As mesmas características do gênero lítero-musical ressaltadas anteriormente estão
presentes nas ocorrências do item (9), que, além de marcarem o envolvimento emocional do
enunciador com uma música encomendada ao maestro, também assinala um trecho destinado
ao canto em coro. O uso de interjeições ou de palavras curtas repetidas também ressalta a
animação ou a beleza de determinada frase melódica.
Em (1) e (4) encontra-se o pragmatema ai de [alguém], usado com valor modalizador,
para dizer que, conforme avaliação do enunciador, quem experimentar determinado tipo de
evento há de sofrer. Em (1) tal evento é simplesmente travar conhecimento com a
interlocutora; já em (4) é ter um comportamento afetado, não reconhecendo que sua condição
social não permite esse comportamento.
195
Nas demais ocorrências do pragmatema, repetem-se expressões de emotividade
relacionadas ao tema abordado. Essas expressões não raro são de sofrimento.
Em (5, 7, 20) a lexia ocorre como substantivo plural, ainda com a significação de
sofrimento, construída metonimicamente: a interjeição usada em situações de dor,
substantivando-se, passa a representar o sofrimento. O plural tem valor intensivo nesses
casos.
ALEGRIA [34 ocorrências em 29 letras do corpus]
1
1924
Bendigo a dor que vem para ensinar / Bendigo a resignação
que enobrece / Da tristeza passada farei o meu altar / Da
alegria presente farei minha prece.
Dor que ensina; Paulo da Portela
2
1929
Ciúme de fingimento / Dando a outra o coração / Mas riso
nem sempre é alegria / Chorar nem sempre é sentimento /
No mundo tem criaturas / Quando faz as suas juras / Chora
de fingimento
As mulheres são as rosas; Paulo
da Portela
3
1931
Amor, quanto menos ou nenhum é melhor / Porque só se
vive a sofrer por amar / E quem pensar nisso hoje em dia,
não terá alegria / É bom evitar //
É bom evitar; Ismael Silva, Nilton
Bastos e Francisco Alves
4
1931
Não tenho nota nem faço questão / Mas tenho enfim muita
satisfação / Com alegria eu estou muito bem / Muita gente
quer ter mas não tem
É bom evitar; Ismael Silva, Nilton
Bastos e Francisco Alves
5
1931
Nem sempre o riso é alegria / Quantas vezes noite e dia /
Nós levamos a cantar / Pra não chorar, / Mas como há um
ditado / "Quem espera sempre alcança" / Nós vamos
alimentando / Essa esperança. //
Ri pra não chorar; Ismael Silva e
Francisco Alves
6
1932
Antes não te conhecesse / Talvez eu nunca sofresse / Por
esse mundo sem fim / Já não tenho alegria / Em que penso
noite e dia / E tu não pensas em mim //
Antes não te conhecesse; Ismael
Silva e Francisco Alves
7
1932
Aurora vem raiando anunciando o nosso amor, ô, ô / Chega
o dia, desaparece a tristeza, / fica a alegria pela própria
natureza, ô.
Ao romper da aurora; Ismael Silva,
Lamartine Babo e Francisco Alves
8
1932
E muita gente / Que a tristeza desconhece / Chora às vezes
de alegria / Quando ri de quem padece / Nas tuas juras / Eu
sorrindo acreditei / Hoje eu choro já descrente / Vendo
quanto me enganei
Assim, sim; Ismael Silva, Noel
Rosa e Francisco Alves
9
1932
Se algum dia tiver de mim compaixão / Que alegria vai ser no
meu coração / A tua volta será meu sonho dourado / Eu
viverei e esquecerei meu passado.
Cantar para não chorar; Paulo da
Portela e Heitor dos Prazeres
10
1932
Gandaia é o que me faz saudade, / No tempo da mocidade /
Era a minha alegria
. / Gandaia, palavra bem proferida, / Que
não me fica esquecida / nem de noite nem de dia.
Gandaia; Ismael Silva
11
1932
Não creias nestas mentiras / que roubam nossa alegria / Os
invejosos se vingam / armados de hipocrisia / A mentira
infelizmente / o mais forte amor destrói / Mas se eu não
tenho remorso / O meu coração não dói. //
Qual foi o mal que eu te fiz?;
Cartola
12
1933
Ainda há de chegar o dia / Que eu hei de ter grande alegria /
Quando você souber compreender / Num olhar o que eu
quero dizer
Fita meus olhos; Cartola e Osvaldo
Vasquez
13
1933
Quando desperta a cidade / Numa alegria sem par / Ao raiar
da passarada / Quando começa a cantar / Ao longe Febo a
sorrir / Derrama raios de luz / Sobre os quadros verdejantes /
Fazendo as flores florir //
Quando desperta a cidade; Paulo
da Portela
14
1934
O teu céu, o teu mar / É diferente / E as estrelas candentes /
Brilham mais / Alto dia o sol / Convida a gente / E à noite o
luar / Que alegria nos traz
És tu, Brasil, que nos seduz; Paulo
da Portela e Ernani Rosário
15
d1935
Quando o estrangeiro elogia / Por que não ter alegria / Como
não se sentir prosa? / Ipanema é a sala de visita / Da cidade
mais bonita / Que se diz maravilhosa
Quando o estrangeiro elogia...;
Paulo da Portela
16
1939
Se existe alguém que queira ver / Você um ano em jejum / E
sem ter onde adormecer / Eu sou um, eu sou um // Eu sei
que toda essa alegria / Não vai durar a vida inteira / Talvez,
da noite para o dia, / Eu possa ver sua caveira
Eu sou um; Ismael Silva
17
déc.1930
Alegria // Alegria era o que faltava em mim / Uma esperança
vaga eu já encontrei / Pelos carinhos que me faz me deixa
em paz / Não te quero ver para nunca mais //
Alegria; Cartola
18
1941
Tive que contar a minha vida / A esta mulher fingida / Que
me faz sofrer / Esta dor que tanto me crucia, / Roubou toda
alegria do meu viver / Pode ser que ela ouvindo os meus ais /
Volte ao lar para viver em paz //
Não posso viver sem ela;
Alcebiades Barcellos e Cartola
196
19
1947
Foi num dia de alegria / Que essa tragédia se deu / Foi no
carnaval passado / Que o Caquera morreu / Já não se ouve
o canto mais / Daquele sabiá / Toda Lira está em pranto /
Todo mundo a chorar.
Ouvi dizer; Paulo da Portela
20
1922-1949
Cantando muito facilmente irás esquecer / Aquela que só por
maldade te fez padecer / Compare essa falsa amizade / Com
a tempestade, não perca a esperança / Que um dia com
muita alegria terás a bonança.
Conselho; Lincoln Washington
Pereira de Almeida e Paulo da
Portela
21
1922-1949
Sonhei que voltaste a ser minha / E aquela alegria que eu
tinha / Minha vida tornou a iluminar
Sonho; Lincoln Washington Pereira
de Almeida e Paulo da Portela
22
1922-1949
Quisera viver deste sonho / Que me dá prazer / A ter que
despertar risonho / E logo sofrer / A dor com saudade
daquela / Que tanto queria / É melhor viver-se de um sonho /
Que traz alegria / Ah se tu voltasses
Sonho; Lincoln Washington Pereira
de Almeida e Paulo da Portela
23
1965
Tudo de alegrias e de tristezas conheci, / Coisas do amor e
do sofrer, eu já senti, / Nada me transforma a alegria de
viver, / Ver a noite vir e sorrir, ao sol nascer, / Vivo esperando
o novo dia, / Que irá trazer a luz, que sempre ficará!
Canção da saudade; Cartola e
Cacá Diegues
24
1968
Ai, esse bojo perfeito/ Que trago junto ao meu peito / Só
você, violão, compreende porque / Perdi toda a alegria //
Cordas de aço; Cartola
25
1968
Nosso lar, em nosso lar sempre houve alegria / Eu vivia tão
contente / Como contente ao teu lado estou / Tive sim / Mas
comparar com teu amor seria o fim / E vou calar pois não
pretendo amor te magoar.
Tive sim; Cartola
26
déc.1960
O vento, de quando em quando, / Num sussurro ameno /
Obriga toda a floresta a nos fazer aceno / É um festival de
alegrias / Que me põe a imaginar / Não sei se devemos rir ou
chorar
Que sejam bem-vindos; Cartola
27
1973
Alegria // Foi-se a tristeza / Veio a alegria / Tinha certeza / De
ser feliz algum dia //
Alegria; Ismael Silva
28
1973
Existe muita tristeza na rua da Alegria / Existe muita
desordem na rua da Harmonia / Analisando esta história /
Cada vez mais me embaraço / Quanto mais longe do circo /
Mais eu encontro palhaço //
Contrastes; Ismael Silva
29
1974
Linda / No que se apresenta / O triste se ausenta / Fez-se a
alegria / Corra e olhe o céu / Que o sol vem trazer / Bom dia /
Ah! Corra e olhe o céu / Que o sol vem trazer bom dia...
Corra e olhe o céu; Cartola e
Dalmo Castello
30
1977
Amanhã / A tristeza vai transformar-se em alegria / E o sol
vai brilhar no céu de um novo dia / Vamos sair pelas ruas,
pelas ruas da cidade / Peito aberto, cara ao sol da felicidade
//
A cor da esperança; Cartola e
Roberto Nascimento
31
1928-1980
Nos braços de uma, só alegria / Com a outra, passatempo
em vão / Por isso a minha vida é tão vazia / Que eu tenho
que fazer a opção.
Opção; Cartola e Evandro Bóia
Itens (3-4, 6, 9, 11-12, 17-18, 21-22, 25, 27, 29, 31): a lexia se relaciona às
experiências amorosas. Na maioria dos casos, a alegria se relaciona à conjunção amorosa, ou
à virtualidade da sua realização. Há, entretanto, outros nos quais a alegria é determinada pelo
rompimento, apresentado como o fim dos sofrimentos causados por um amor fingido. Já em
“Qual foi o mal que eu te fiz?”, o fim da alegria do casal é causado por mentiras de terceiros.
Itens (1-2, 5, 8, 16, 20, 23-24, 28, 30): ocorrências que trazem apreciações do
sentimento de alegria próprias da área temática “reflexões existenciais”. São avaliações mais
genéricas, sobre os motivos de alegria, muitas vezes contrapostos aos de tristeza. Também
análises sobre a superficialidade de algumas demonstrações de alegria, nem sempre sinceras.
Encontram-se composições francamente otimistas, como “Corra e olhe o céu”, ao lado de
outras melancólicas, como “Ri pra não chorar”.
Itens (7, 13-15, 26): ocorrências ligadas ao prazer causado pela contemplação da
beleza da natureza. Em (15), o sentimento é reforçado por causa do reconhecimento dessa
mesma beleza pelos estrangeiros.
197
Itens (10) e (19): a ênfase, nesses casos é à alegria experimentada na vida boêmia. A
colocação dia de alegria, encontrada na composição “Ouvi dizer”, é uma referência a um dos
dias de carnaval, no qual o homenageado faleceu. O destaque à ideia de alegria ajuda a
construir o contraste entre a tristeza pela perda do componente da Lira do Amor e a animação
própria do carnaval.
Itens (3, 6, 11, 15, 18, 24): sobressaem nesses casos as colocações de alegria com os
verbos-suporte ter, perder e roubar. É interessante observar como esses verbos-suporte
possibilitam a expressão de nuances de significado mais variadas do que as disponíveis nos
verbos alegrar-se e entristecer-se.
ALVORADA [6 ocorrências em 3 letras do corpus]
1
1930
(1ª parte)
Alvorada // Alvorada lá no morro, que beleza / Ninguém
chora, não há tristeza / Ninguém sente dissabor / O sol
colorindo é tão lindo, é tão lindo / E a natureza sorrindo,
tingindo, tingindo (alvorada) //
Alvorada (no morro); Cartola,
Carlos Cachaça e Hermínio Bello
de Carvalho
2
1938-1940
Como é belo ouvir cantar a passarada / Que vou saudar com
harmonia / A fresca alvorada, que melodia /
Corações em festa; Cartola
3
1967
(2ª parte)
Você também me lembra a alvorada / Quando chega
iluminando meus caminhos tão sem vida / E o que me resta é
bem pouco, quase nada, / Do que ir assim, vagando numa
estrada perdida
Alvorada (no morro); Cartola,
Carlos Cachaça e Hermínio Bello
de Carvalho
4
1977
Surge a alvorada, folhas a voar / E o inverno do meu tempo /
Começa a brotar, minar / E os sonhos do passado, do
passado / Estão presentes no amor / Que não envelhecem
jamais / Eu não tenho a paz e ela tem paz
O inverno do meu tempo; Cartola e
Roberto Nascimento
Nessas ocorrências, a significação de alvorada costuma ser relacionada ao seu valor
simbólico de renovação, de momento esperançoso do nascer de um novo dia. Em (1), há uma
descrição que ressalta o efeito positivo e a beleza dessa fase do dia, especificamente em uma
comunidade que habita um morro. Em (4), a ocorrência tem significação mais alegórica,
representando uma fase positiva da vida. Já em (3) a beleza e os efeitos da alvorada são
comparados à influência da amada sobre o enunciador. As descrições da alvorada costumam
enfatizar elementos naturais, como pássaros e vegetação; é o que ocorre em (1) e (4).
AMAR [56 ocorrências em 34 letras do corpus]
Ocorrências do verbo com complementação referente a relações amorosas
4
1931
Eu fiz tudo / Pra esquecer a quem amei / Hoje estou
arrependido / Sem querer eu já chorei / Eu já chorei / sem
querer. //
Arrependido; Ismael Silva, Nilton
Bastos e Francisco Alves
9
1931
Todo o meu ideal é só sempre te amar / Você faz muito mal
em tudo acreditar
Você gosta de mim?; Ismael Silva
e Francisco Alves
10
1932
Eu vou chorar só em lembrar / (Se meu amor me deixar) /
Dei sempre golpe de azar / (Eu não posso me queixar) / Pra
parecer que vivo bem / (Vou sofrendo sem dizer nada a
ninguém) / A esconder que amo
alguém / (A razão dá-se a
quem tem)
A razão dá-se a quem tem; Ismael
Silva, Noel Rosa e Francisco Alves
13
1932
Aquela que eu mais amava / Só pensava em me trair /
Quando eu menos esperava / Partiu sem se despedir / Essa
mesma criatura / Quis voltar, mas eu não quis / E hoje,
cumprindo a jura, / Vivo só e sou feliz //
Uma jura que fiz; Ismael Silva, Noel
Rosa e Francisco Alves
15
1933
Não abuses por eu te confessar / Que nasceste só para eu te
amar / Gosto tanto, tanto de você / Que os meus olhos falam
o que não vê //
Fita meus olhos; Cartola e Osvaldo
Vasquez
198
16
1934
O amor é como a chama; / Tem princípio, meio e fim; / Se
você já não me ama, / Para que fingir assim... / Não mandei
você embora / Porque sou benevolente / Para que você
agora / Quer sair ocultamente? //
Boa viagem; Ismael Silva e Noel
Rosa
20
1936
Não quero mais amar a ninguém // Não quero mais / Amar a
ninguém / Não fui feliz / O destino não quis / O meu primeiro
amor / Morreu como a flor / Ainda em botão / Deixando
espinhos / Que dilaceram meu coração //
Não quero mais amar a ninguém;
Cartola, Carlos Cachaça e Zé da
Zilda
21
1938
Ele bem cedo te deixou / E na lama da vida caíste / Ele te
abandonou / Após cenas bem tristes / Bateu-te e escorraçou
/ Deixou-te sem carinho / Bem vês nunca te amou / Aquele
por quem / Deixaste sozinho / E sem ninguém.
Pecadora mulher; Paulo da Portela
24
1962
A sorrir / Eu pretendo levar a vida / Pois chorando / Eu vi a
mocidade perdida // Fim da tempestade, / O sol nascerá /
Fim desta saudade, / Hei de ter outro alguém para amar
O sol nasce; Cartola e Elton
Medeiros
25
1968
Pois é, / Só Deus sabe o quanto amei / Por te amar tanto
chorei / E, chorando, levo a cruz até o fim //
Injúria; Cartola e Elton Medeiros
26
1968
Sofri a maior decepção / Tentarei te esquecer / Pois te amar
foi ilusão //
Injúria; Cartola e Elton Medeiros
28
1968
Vai amigo / E diga-lhe, por favor, / Que não sei o que faço /
que já nem sei quem sou / Diga que terminou / Toda aquela
vaidade e que sinto saudade / Quero amá-la com mais fervor
Vai amigo; Cartola
29
1972
Acontece que meu coração / Ficou frio / E nosso ninho de
amor está vazio / Se eu ainda pudesse fingir que te amo / Ai,
se eu pudesse / Mas não quero, não devo fazê-lo / Isso não
acontece.
Acontece; Cartola
32
1979
Quando você partiu, me disse: "Chora!", não chorei /
Caprichosamente fui esquecendo que te amei / Hoje me
encontras tão alegre e diferente / Jesus não castiga o filho
que está inocente
Basta de clamares inocência;
Cartola
33
1979
Só peço que respeites / O nome que te dei / E pelo amor de
Deus / Não negues que te amei //
Fim de estrada; Cartola
39
1928-1980
Quisera eu eternamente / Que me pertencesses / Mas se ao
outro que amas / Pra sempre esquecesses / Eu farei todo o
possível / Quando te abandonar / De nunca te esquecer / Só
não quero chorar.
Não quero chorar; Cartola
41
1928-1980
Podes perguntar e indagar / A quem quiser / Eu sou incapaz /
De amar outra mulher / Eu não amo outra mulher / Porque eu
não quero / Porque eu tenho amizade
Tu vais ao samba; Cartola
42
1928-1980
Eu não amo outra mulher / Porque eu não quero / Porque eu
tenho amizade / A você / Sabes que o mulato é sincero / E
tem critério até morrer.
Tu vais ao samba; Cartola
Na maioria dessas ocorrências a significação corresponde ao sentimento de amor
direcionado a outra pessoa. Há caracterizações de um dos sujeitos discursivos como amante
— em (9) e (15), por exemplo —, como quem deixou de ser amante — em (16) e (32) — ou
como quem não corresponde ao sentimento do amante — em (21) e (39), entre outras
possibilidades. Também se encontram afirmações categóricas relativas às posturas do
enunciador quanto ao ato de amar, como em (20) e (24); nessas ocorrências, os pronomes
indefinidos contribuem para a significação genérica.
Ocorrências do verbo sem complementação explícita
3
1931
Amar // Amar, amar / Sem ser amado, isso não / Penar,
penar / Antes quero viver só, então //
Amar; Ismael Silva , Nilton Bastos
e Francisco Alves
5
1931
Amor, quanto menos ou nenhum é melhor / Porque só se
vive a sofrer por amar / E quem pensar nisso hoje em dia,
não terá alegria / É bom evitar //
É bom evitar; Ismael Silva, Nilton
Bastos e Francisco Alves
6
1931
Passas por mim, rindo, cantando / Dás com os ombros,
arrastando o sapato / Me debochando / E ainda dizes pros
outros / Só pra moer / Em amar não acho prazer //
Infeliz sorte; Cartola
7
1931
Contigo eu me enganei / Pelo amor que te dei / Fui direitinho
no teu carinho / Na tua conversa eu andei / Podes ficar
descansada / Não vou mais te procurar / Para amar tanto /
Nunca ter nada / Sozinho eu quero ficar.
Ironia; Ismael Silva, Nilton Bastos e
Francisco Alves
8
1931
Quero viver sempre descansado / embora abandonado / até
morrer / porque a vida de quem ama / é sofrer / é sofrer //
Quero sossego; Ismael Silva, Nilton
Bastos
199
14
1932
Não tenho amor / Nem posso amar / Pra não quebrar / Uma
jura que fiz / E pra não ter / Em quem pensar / Eu vivo só / E
sou muito feliz. //
Uma jura que fiz; Ismael Silva, Noel
Rosa e Francisco Alves
17
1935
Liberdade / Para um coração que sofrendo / Está quase
morrendo / Porque quer amar / Liberdade / Solta-me desta
prisão / Porque meu coração / Não pode suportar
Liberdade; Paulo da Portela e
Dengo
19
1936
Às vezes dou gargalhada / Ao lembrar do passado / Nunca
pensei em amor, / nunca amei nem fui amado / Se julgas que
estou mentindo jurar sou capaz / Foi simples sonho que
passou e nada mais.
Não quero mais amar a ninguém;
Cartola, Carlos Cachaça e Zé da
Zilda
27
1968
Lembro-me bem / Um dia eu lhe disse uma grande tolice / E
nosso lar deixei / Todos têm o seu drama / Só não sofre
quem não ama / Amenizar meu castigo só você poderá,
amigo.
Vai amigo; Cartola
30
1972
Esquece nosso amor / Vê se esquece / Porque tudo no
mundo acontece / E acontece que já não sei mais amar / Vai
chorar, vai sofrer / E você não merece / Mas isso acontece //
Acontece; Cartola
34
1928-1980
Acabaram de ouvir / Quase um louco/ Um homem que não /
Amou pouco / Amou demais e sofreu / Quem ama assim / É
covarde / Termina fazendo alarde / Quando por uma mulher /
se venceu //
Acabaram de ouvir; Cartola, Carlos
Cachaça, Aluísio Dias e Manuel da
Leiteira
35
1928-1980
Esta famosa tragédia / Passou-se um dia / Comigo / Amei
demais / E não fui correspondido / Acreditei no amor / E
também na criatura / Nas suas juras / E no amor fingido.
Acabaram de ouvir; Cartola, Carlos
Cachaça, Aluísio Dias e Manuel da
Leiteira
36
1928-1980
Amar, amar, amar / Para sofrer / De você esquecerei // Teu
amor de sentimento / Quantos tormentos passei / Eu passei
Amar, amar; Cartola e Maciste
37
1928-1980
Amar, amar // Amar, amar / Amar para sofrer / Eu de ti
esquecerei // Teu amor de fingimento / Quantos tormentos
passei / Eu passei
Amar, amar; Cartola e Maciste
40
1928-1980
Eu fui infeliz enquanto quis dar-te atenção / Sei quanto sofri,
se desisti foi com razão / Se o amor é isso, o que encontrei, /
Nunca mais eu amarei //
Se o amor é isso; Aluísio Dias e
Cartola
A significação dessas ocorrências tem relação com avaliações mais subjetivas e
categóricas do sentimento de amor. Geralmente expressa-se a postura do enunciador diante
dessa experiência, seja manifestando o desejo de apaixonar-se (17), a desilusão com o amor
(3, 40), a relação entre amor e sofrimento (5, 36, 37), ou avaliações da intensidade do
sentimento de amor (7, 34). Prevalece uma perspectiva negativa em relação a essa experiência
— na maioria dos casos o enunciador vê uma relação direta entre amor e sofrimento, ou
decide deixar de amar, para poder viver em paz.
As repetições encontráveis em 3, 36 e 37, além da função de enfatizar o sentimento,
também são favorecidas por fatores lírico-musicais, como a repetição de sequências de notas
adequadas, em número e duração, às sílabas de amar. Tais repetições também são desejáveis
no refrão do samba, pois facilitam a memorização do trecho, que costuma ser cantado em
coro.
Ocorrência com referência à natureza
18
1935
Quando silencia a voz das aves / (De harmonias tão suaves)
/ a noite vem a terra amortalhar / (Para em sono se engolfar)
/ Nos roseirais as flores segredando / (Graciosas baloiçando)
/ Ensaiam, se estreitando, O verbo amar
//
Quando silencia a voz das aves;
Paulo da Portela
Nessa ocorrência o verbo contribui para a personificação das flores. O fato de as flores
se aproximarem ao balançar é metaforicamente associado ao ato de amar. A metáfora
favorece a construção de um ambiente harmônico na descrição da paisagem natural.
200
Ocorrência com referência patriótica
23
déc.1940
Amo-te demais, ó, Pátria minha / Tua bandeira, ó, meus
irmãos, / O lábaro estrelado, o verde esperança, / O
amarelo ouro, o azul do céu, / E o branco da paz //
Amo-te demais, ó, Pátria
minha...; Cartola
A pátria é objeto do amor do enunciador, que fundamenta esse sentimento a partir da
descrição da bandeira nacional e de suas cores, com a simbologia envolvida nas mesmas. O
registro discursivo do patriotismo é caracterizado pelo emprego de lexias como lábaro.
Ocorrência com referência religiosa
31
1977
Enquanto Deus consentir, vou vivendo / E, cada dia que
passa, / aprendendo / A amar ao próximo como eu amo
os meus / Pois se todos os que existem na Terra / São
filhos de Deus //
Enquanto Deus consentir;
Cartola
A ocorrência traz intertextualidade relativamente à máxima evangélica “Ama a teu
próximo como a ti mesmo”, caracterizando o enunciador como cristão seguidor dos preceitos
dessa religião.
Colocação saber amar
1
1929
Arranjaste um novo amor, meu bem! / Eu sou um infeliz,
bem sei! / Mas ainda tenho fé / Que hei de te ver chorar /
Quando souberes amar / Como eu te amei!... //
Novo amor; Ismael Silva
2
1930
Quando souberes amar // O perdão eu te darei / Quando
souberes amar / Mulher porque jamais pensei / Em você
me abandonar //
Quando souberes amar; Ismael
Silva
11
1932
Amor sem penar é bem raro / O verbo cumprir custa caro
/ Amor é bem fácil de achar / O que eu acho mais difícil /
É saber amar //
Não faz, amor; Cartola e Noel
Rosa
12
1932
Tristezas não pagam dívidas / Não adianta chorar /
Deve-se dar o desprezo / A toda mulher que não sabe
amar //
Tristezas não pagam dívidas;
Ismael Silva
38
1928-1980
Tu não sabes amar / Para que tens um coração? / Ai,
meu Deus, o melhor entre nós dois / É a separação //
Consideração; Cartola e Heitor
dos Prazeres
A colocação saber amar faz referência às expectativas do enunciador de ter seu amor
correspondido (o que fica totalmente explícito em 1), ou de que a amada lhe seja fiel, como se
lê em 11.
AMARGAR [2 ocorrências em 2 letras do corpus]
1
1946
Se eu tiver de escolher / Entre o samba e você / Vai ser
de amargar / Sem você eu não vivo / E também sem o
samba / Não posso passar / Ai meu Deus!
Se eu tiver de escolher; Arlindo
Marques Junior, Roberto Roberti
e Ismael Silva
2
1928-1980
É quente que nem pimenta / Amarga que nem jiló /
Mulatinha faceira / Vem morar em Mangueira / Que aqui
é melhor
Que nem pimenta; Cartola
O frasema ser de amargar, característico de um registro linguístico informal, ajuda a
caracterizar a relação construída na letra entre o enunciador e a sua parceira. Pontua, ao
mesmo tempo, o desgosto que ele experimenta diante da possibilidade de ter de escolher entre
o samba e a amada.
No caso de (2), o verbo amargar, junto com o atributo de ser quente, qualifica a vida
em Mangueira. As referências a sensações corporais fortes dão um toque de sensualidade à
201
descrição, dando apelo ao convite para a interlocutora ir viver no morro. É interessante que o
amargor como qualificação geralmente não tem valor meliorativo, como é o caso nessa letra.
AMIZADE [22 ocorrências em 21 letras do corpus]
1
1929
Eu vou deixar certa amizade / Que para mim não
convém / Ela só usa de falsidade / Dizendo me querer
bem //
Para mim perdeste o valor;
Ismael Silva
2
1929-1930
O meu perdão / tu não terás / o teu amor não quero mais
/ a tua ausência / não me maltrata / tua amizade a mim
não faz falta //
Não te dou perdão; Ismael Silva
3
1931
Há muita gente que desconhece / A amizade por
interesse / Existe amor interesseiro / E muitos pensam
ser verdadeiro //
Amar; Ismael Silva, Nilton Bastos
e Francisco Alves
4
1931
Muito tenho sofrido / Por minha lealdade / Agora estou
sabido / Não vou atrás de amizade / A minha vida é boa /
Não tenho em que pensar / Por uma coisa à-toa / Não
vou me regenerar /
Se você jurar; Ismael Silva ,
Nilton Bastos e Francisco Alves
5
1932
Infelizmente / Este mundo é sempre assim / Quem ri
muito no começo / Chora quando chega o fim / Em mar
de rosas / Começou nossa amizade / E depois tu me
entregaste / A tristeza e a saudade
Assim, sim; Ismael Silva, Noel
Rosa e Francisco Alves
6
1932
Só tens ambição e vaidade / Não pensas na felicidade /
E eu não descanso um momento / Por pensar que o teu
amor / É só fingimento / Mas eu vou entrar com o meu
jogo / E vou pôr à prova de fogo / A tua sincera amizade
/ Para ver se tu falaste verdade //
Não faz, amor; Cartola e Noel
Rosa
7
1932
Perdão, meu bem perdão / atacou-me o coração, / Falei
demais / sou bom rapaz / no modo de proceder / perdão,
porque / se acabar nossa amizade / eu vou morrer / sinto
dores, / são saudades. //
Perdão, meu bem; Cartola
8
1932
Diz, qual foi o mal que eu te fiz? / Eu não te farei esta
ingratidão / Foi um falso contra a nossa amizade / não
creias, não pode ser verdade //
Qual foi o mal que eu te fiz?;
Cartola
9
1932
Disseste que te enganei / Não sou tão fingido assim /
Talvez queiras um pretexto / pra viver longe de mim /
Disseram que eu traía / a nossa grande amizade / E tão
criminosa a culpa / que não pode ser verdade
Qual foi o mal que eu te fiz?;
Cartola
10
1933
Fiquei louco / Pasmado por completo / Quando me vi tão
perto / De quem tenho amizade / Na febre da dança /
Senti tamanha emoção / Devorar-me o coração / Divina
dama //
Divina dama; Cartola
11
1933
Se a nossa amizade teve fim / Tu bem sabes que fui
mesmo eu quem quis / Eu não sei porque tu mentes /
pois mentira não ( ) //
Não digas; Ismael Silva
12
1939
Pra mim você é um mau elemento / que vem já desde a
outra encarnação / critério, amizade
, sentimento / São
coisas que você não faz questão.
Não vejo jeito; Ismael Silva
13
1938-1940
Ou você acaba com essa economia / Ou então acaba-se
nossa amizade
/ Já reclamo isso quase todo dia / Você
me responde com simplicidade //
Como é que eu posso; Cartola
14
1941
Você quer eu não dou, ô, ô / Eu não dou liberdade a
mulher / Porque vou confessar / A nossa amizade / Pode
acabar // Até aqui nosso amor / Tem um certo sabor /
Que me faz tanto bem, / Eu construí nosso lar / Mas você
quer acabar!...
Não dou liberdade a mulher;
Ismael Silva
15
1943
Essa sua amizade / para mim é indiferente / digo toda a
verdade / e quem diz assim não mente.
Me deixa sossegado; Ismael
Silva, Nilton Bastos e Francisco
Alves
16
1945
Não, / não vivo bem a seu lado / Apesar de ser tratado /
Com todo afeto e carinho / Não, não lhe tenho amizade, /
Bem vês / Deixa-me seguir o meu caminho / Reconheço
todos os feitos seus / Mas deixa-me voltar / Para junto
aos meus //
Perdoa; Paulo da Portela e
Cartola
17
1922-1949
Cantando muito facilmente irás esquecer / Aquela que
por maldade te fez padecer / Compare essa falsa
amizade / Com a tempestade, não perca a esperança /
Que um dia com muita alegria terás a bonança.
Conselho; Lincoln Washington
Pereira de Almeida e Paulo da
Portela
18
1922-1978
Se a nossa amizade teve fim, / tu bem sabes que fui eu
mesmo quem quis / Eu não sei porque tu mentes tanto
assim / Pois, mentira não se diz. //
Sei, você anda sofrendo; Ismael
Silva
19
1928-1980
Eu sei que vou sentir muita saudade / Com todos os
defeitos teus / Ainda te tenho amizade / E, forçado, dou-
te este castigo, / Jamais farás a outro o que fizeste
comigo
Consideração; Cartola e Heitor
dos Prazeres
202
20
1928-1980
E quando vejo a torre bem alta / Daquela linda catedral, /
Fujo da tua amizade / Infernal. //
Devia ser condenada; Cartola e
Nelson Cavaquinho
22
1928-1980
Eu não amo outra mulher / Porque eu não quero /
Porque eu tenho amizade / A você / Sabes que o mulato
é sincero / E tem critério até morrer.
Tu vais ao samba; Cartola
A lexia, nas ocorrências listadas, tem uma significação própria do universo discursivo
do samba: designa o envolvimento amoroso entre duas pessoas, ou o próprio sentimento de
amor em relação a alguém.
O comportamento lexical de amizade, nesses casos, guarda semelhança com o que é
observado s.v. amor (ver esse verbete). Quando a referência é à relação entre duas pessoas, há
alusões à duração da mesma (começar, acabar, ter fim etc.), determinações que indicam o
envolvimento de ambos no consórcio amoroso (nossa amizade), ou colocações que afirmam a
solidez da união (grande amizade). Quando a referência é ao sentimento de um em relação ao
outro, há determinações que focalizam o experienciador (tua amizade, minha amizade);
estruturas que, através de verbo-suporte, destacam o direcionamento do sentimento a alguém
(ter amizade [a alguém]); qualificações que expressam avaliações do enunciador em relação à
natureza do sentimento de amor (falsa amizade, amizade por interesse, amizade infernal etc.).
AMOR [166 ocorrências em 104 letras do corpus]
Referência ao relacionamento amoroso entre duas pessoas, ou à vida a dois
2
1928
Se eu fosse homem branco / Ou por outra mulatinho /
Talvez eu tivesse sorte / De gozar do seu carinho / A
maré que enche vaza / Deixa a praia descoberta / Vai-se
um amor e vem outro / Nunca vi coisa tão certa //
Me faz carinhos; Ismael Silva e
Francisco Alves
7
1929
Juro, não nego, / Levo saudades / Deste meu único amor
/ Sei que jamais terei piedade / Pra mim perdeste o valor
//
Para mim perdeste o valor;
Ismael Silva
25
1932
Aurora vem raiando anunciando o nosso amor, ô, ô /
Desperta a cidade, o sol no céu flutua / Ele é a
mocidade, a saudade é a lua, ô //
Ao romper da aurora; Ismael
Silva, Lamartine Babo e
Francisco Alves
32
1932
Supliquei humildemente / Pra você endireitar / Mas agora
infelizmente / Nosso amor
vai se acabar / Vou embora
afinal / Você vai saber por que / É pra me livrar do mal /
Que eu fujo de você //
Para me livrar do mal; Ismael
Silva e Noel Rosa
35
1932
Não creias nestas mentiras / que roubam nossa alegria /
Os invejosos se vingam / armados de hipocrisia / A
mentira infelizmente / o mais forte amor destrói / Mas se
eu não tenho remorso / O meu coração não dói. //
Qual foi o mal que eu te fiz?;
Cartola
47
1934
O amor é como a chama; / Tem princípio, meio e fim; /
Se você já não me ama, / Para que fingir assim... / Não
mandei você embora / Porque sou benevolente / Para
que você agora / Quer sair ocultamente? //
Boa viagem; Ismael Silva e Noel
Rosa
56
1936
O pranto que verti por esse amor talvez / Não
compreendeste e se eu disser não crês / Depois de
derramado, ainda soluçando, / Tornei-me alegre, estou
cantando //
Quem me vê sorrir; Cartola e
Carlos Cachaça
85
déc.1950
Já perdi tantos amores, não notei diferença / Pensei que
passava um século sem a sua presença / Misturada
entre as pedras preciosas do mundo, / Com um simples
olhar, a você não confundo
Festa da vinda; Cartola e Nuno
Veloso
100
1976
Preste atenção, querida / De cada amor tu herdarás só o
cinismo / Quanto notares estás à beira do abismo /
Abismo que cavaste com teus pés.
O mundo é um moinho; Cartola
102
1976
O fim de todo amor, é tão triste que juro / Despedaça-se
ao vê-lo o coração mais duro / Ela fica aos beijos com
qualquer criatura / E ele procura a paz na paz da
sepultura.
Todo amor; Carlos Cachaça e
Cartola
203
103
1976
Todo amor principia com beijos e risos / Mesmo com
hipocrisia forma um paraíso / Mas com o tempo um dos
dois vem a se arrepender / Um amor para gozar, o outro
para sofrer //
Todo amor; Carlos Cachaça e
Cartola
138
1928-1980
Não te culpo, nem me culpes / Aceitemos nosso destino /
Esse amor quando nasceu / Eu era menino // Se eu
teimar / Teus próprios pais / Irão dizer / Tudo aquilo que
você / Comigo sofreu.
Não; Cartola e Aluísio Dias
Nesse tipo de ocorrência, o enunciador costuma fazer declarações sobre a experiência
amorosa junto à parceira. Com essa significação, a lexia amor costuma apresentar
determinações que indicam os envolvidos na relação (nosso amor), referências genéricas ou
específicas a diferentes experiências (este amor, cada amor, todo amor, único etc.), ou marcas
da duração do envolvimento amoroso (princípio, meio, fim, nascer, perder etc.). O amor,
nesse caso, também pode ser qualificado como forte, grande etc.
Colocação grande amor
28
1932
Vivo cantando / Para esquecer a minha dor / Conservo
ainda / No meu peito um grande amor / E o meu pranto
parece não ter mais fim / No entanto eu padeço e não
tens pena de mim //
Cantar para não chorar; Paulo da
Portela e Heitor dos Prazeres
78
c1947
Para ter uma companheira / Até promessas fiz /
Consegui um grande amor / Mas eu não fui feliz / E com
raiva para os céus / Os braços levantei, blasfemei / Hoje
todos são contra mim //
Sim; Cartola e Oswaldo Martins
90
1968
A sofreguidão por que passei / Fez-me reconhecer que o
teu amor / Foi grande amor / Não vacilo em dizer não,
não... /
Sofreguidão; Cartola e Elton
Medeiros
91
1968
Tive sim / Outro grande amor antes do teu / Tive sim / O
que ela sonhava eram os meus sonhos / E assim íamos
vivendo em paz
Tive sim; Cartola
Conforme já foi comentado, essa colocação ocorre quando a significação da lexia
amor tem a ver com o envolvimento entre duas pessoas. O adjetivo grande tem valor
intensivo.
Colocação novo amor
5
1929
Novo amor // Arranjaste um novo amor, meu bem! / Eu
sou um infeliz, bem sei! / Mas ainda tenho fé / Que hei
de te ver chorar / Quando souberes amar / Como eu te
amei!... //
Novo amor; Ismael Silva
38
1932
Tenho um novo amor // Tenho um novo amor... / Tenho
um novo amor... / Que vive a pensar em mim. / Não quer
me ver / Triste nem zangada / Gosta que eu ande /
Assim meio engraçada //
Tenho um novo amor; Cartola
Essa combinatória lexical também é muito recorrente e costuma designar o
relacionamento amoroso que se segue a um anterior, que serve como referência (5). Quando
não é esse o caso, a referência pode ser apenas a uma união amorosa que está no início.
Referências abstratas ao sentimento de amor
12
1931
Carinho sem a nota / não adianta mulher / diz que amor
é lorota / é bom para quem quiser / Eu não aceito / sou
espertinho / Eu acho direito / amor, nota e carinho
Carinho eu tenho; Ismael Silva
13
1931
Amor, quanto menos ou nenhum é melhor / Porque só se
vive a sofrer por amar / E quem pensar nisso hoje em
dia, não terá alegria / É bom evitar //
É bom evitar; Ismael Silva, Nilton
Bastos e Francisco Alves
204
14
1931
Olha, escuta, meu bem / É com você que estou falando,
neném / Esse negócio de amor não convém / Gosto de
você, mas não é muito... / Muito... //
Eu gosto, mas não é muito;
Ismael Silva, Noel Rosa e
Francisco Alves
30
1932
Amor sem penar é bem raro / O verbo cumprir custa caro
/ Amor é bem fácil de achar / O que eu acho mais difícil /
É saber amar //
Não faz, amor; Cartola e Noel
Rosa
39
1932
Nunca se deixa a mulher / Fazer o que ela entender /
Pois ninguém deve chorar / Só por causa de amor / E
nem se lastimar
Tristezas não pagam dívidas;
Ismael Silva
133
1928-1980
Eu fui infeliz / enquanto quis dar-te atenção / Sei quanto
sofri se desisti / Foi com razão / Se amor é isso que você
/ Soube me dar / Saiba de uma vez / Tudo o que fez / Foi
me afastar //
Justa razão; Cartola e Aluísio
Dias
144
1928-1980
No meu jardim tive flores belas / Nunca fiz questão / Mas
a flor dos meus amores / Mora no meu coração.
Você é uma flor; Cartola e Nuno
Nessas ocorrências, o enunciador se posiciona genericamente com relação ao
sentimento amoroso, expressando desilusão ou ansiedade por amar, ou simplesmente tecendo
avaliações em tese sobre o amor. É comum associar amor e sofrimento (13, 30); também se
lança mão de diferentes metáforas para representar o sentimento, ou a sua potencialidade,
como flor e semente (55, 144). Ainda há avaliações do significado do amor e das suas
manifestações (12, 133). A ocorrência 50o necessariamente faz alusão à experiência
amorosa entre duas pessoas. A referência pode ser essa e, nesse caso, o plural indicaria a
existência de várias delas; também pode ser simplesmente ao envolvimento emocional do
enunciador com a favela e, nesse caso, o plural seria intensivo.
Referência ao sentimento de afeto por alguém, ou a demonstrações desse sentimento
6
1929
Ai, como é triste viver assim / Enganado por seu bem /
Sei que jamais terei piedade / Não quero amor de
ninguém
Para mim perdeste o valor;
Ismael Silva
8
1929-1930
O meu perdão / tu não terás / o teu amoro quero mais
/ a tua ausência / não me maltrata / tua amizade a mim
não faz falta //
Não te dou perdão; Ismael Silva
9
1931
Há muita gente que desconhece / A amizade por
interesse / Existe amor
interesseiro / E muitos pensam
ser verdadeiro //
Amar; Ismael Silva, Nilton Bastos
e Francisco Alves
11
1931
Em viver junto de ti / Ainda tenho esperança / O teu
amor, eu já vi / Não me sai mais da lembrança / Quem
diz fazer o que quer / Eu digo não ser verdade /
Enquanto existir mulher / Há de existir saudade
Arrependido; Ismael Silva, Nilton
Bastos e Francisco Alves
15
1931
Teu amor é insensato / Me amofinou de fato / Não leve a
mal / Eu prefiro a lei marcial
Eu gosto, mas não é muito;
Ismael Silva, Noel Rosa e
Francisco Alves
17
1931
Contigo eu me enganei / Pelo amor que te dei / Fui
direitinho no teu carinho / Na tua conversa eu andei /
Podes ficar descansada / Não vou mais te procurar /
Para amar tanto / Nunca ter nada / Sozinho eu quero
ficar.
Ironia; Ismael Silva, Nilton Bastos
e Francisco Alves
18
1931
Tu não me tens amor, meu bem (oleleô) // Você diz que
não me quer / Você diz que me adora / Quando tu me
vê, mulher, / Por que é que você chora (será promessa?)
//
Oleleô; Ismael Silva, Nilton
Bastos e Francisco Alves
34
1932
Às vezes, cheio de ódio, / fala-se o que não deve / são
palavras de amor ofendido / Que não se escrevem
Perdão, meu bem; Cartola
40
1932
Um amor pra ser traído / Só depende da vontade / Mas
existe amor
fingido / Que nos traz felicidade / A mulher
vive mudando / De ideia e de ação / E o homem vai
penando / Sem mudar de opinião.
Uma jura que fiz; Ismael Silva,
Noel Rosa e Francisco Alves
61
1939
Ninguém te dá valor / Ninguém de ti tem dó / Não queres
o amor / De uma pessoa só / Se a regeneração / Vier te
interessar / Com a minha proteção / Podes contar //
Com a vida que pediste a Deus;
Ismael Silva
63
1939
Tristeza / quanta tristeza tenho eu / Só em saber / Que
vivo longe dos carinhos teus / A quem eu dediquei / O
meu sincero amor / E com tantas muitas falsidades / Me
abandonou
Tristeza; Cartola e Orlando
Batista
205
83
1955
Aqui se beijaram ela e outro amante / Neste jardim
juraram amor constante / Interroguei uma rosa / E a rosa
se foi desbotando / E a cada pergunta, negando //
Interroguei uma rosa; Cartola
95
1975
Pouco importa que me trates com desprezo / Que me
negues amor, carinhos, beijos / Pouco importa, porque
somente você, / Com você, eu vivo iludido / Mas, se lhe
perder, naturalmente, eu fico perdido //
Pouco importa; Cartola
130
1928-1980
Devias ser condenada ou crucificada, / Pois juraste falso,
/ Beijaste a cruz do Senhor / E disseste que me tinha
amor. //
Devia ser condenada; Cartola e
Nelson Cavaquinho
As ocorrências com essa significação frequentemente fazem menção ao parceiro
amoroso a quem se atribui o sentimento. Essa atribuição pode ser marcada pronominalmente
(meu amor, teu amor...), ou por meio de verbos-suporte (ter amor, dar amor...). Também se
fazem avaliações das intenções e da profundidade do sentimento, que pode ser qualificado
como fingido, sincero, constante, insensato etc.
Referência a fraternidade, envolvimento emocional ou disposição positiva em relação a outrem
1
1927
Uma luta vencida por amor e glória / São linhas traçadas
/ Nas páginas da história / Gravado com as cores de
nosso país / Em seu castelo Portela feliz
Uma luta vencida por amor e
glória; Paulo da Portela
72
1945
Sinto minha alma tristonha / de tanto ver falsidade / e
muitos já sentem vergonha / do amor e honestidade
Ouro, desça do seu trono; Paulo
da Portela
73
1946
És o cavaleiro que sonhamos / De ti muito esperamos /
Com todo amor febril / Para amenizar nossas dores / E
levar bem alto as cores / Da bandeira do Brasil
Cavaleiro da esperança; Paulo
da Portela e Monarco
81
déc.1940
Tiveram algumas conquistas / Atacando friamente, sem
respeitar / A neutralidade / A fé, a paz, o amor, a
liberdade / E pensaram que este céu, estas matas sem
fim / Seriam conquistadas tão fácil assim //
Nazista, quem és?; Cartola e
Carlos Cachaça
115
1979
Dê-me graças, senhora, / Um sorriso a quem chora /
Onde há ódio / Eu vos peço que ponha amor / E assim /
Eu serei mais feliz que sou
Dê-me graças, senhora; Cartola
Nessas ocorrências, o amor é marca de virtude ou do envolvimento emocional do
enunciador. O envolvimento emocional está presente em (1), com referência a esforços
empreendidos em prol da Portela, assim como em (73), com motivações patrióticas.
O amor como virtude aparece em (72, 81, 115), em reflexões sobre valores relevantes
na vida, ou em rogos religiosos pela interseção da Virgem Maria.
Pragmatemas amor e meu amor, como formas de tratamento entre amantes
21
1932
Se meu amor me deixar / Eu não posso me queixar / Vou
sofrendo sem dizer nada a ninguém / A razão dá-se a
quem tem //
A razão dá-se a quem tem;
Ismael Silva, Noel Rosa e
Francisco Alves
31
1932
Não faz, amor // Não faz, amor, / Deixa-me dormir / Ó
minha flor, tenha dó de mim / Sonhei, acordei assustado,
/ Receoso que tivesses me enganado / Eu não durmo
sossegado //
Não faz, amor; Cartola e Noel
Rosa
33
1932
Se você não reconhece / O meu arrependimento / Podes
crer, meu amor / Que o que eu digo / É sem fingimento //
Perdão, meu bem; Cartola
36
1932
Eu não quero dar a perceber / Que gosto demais, do
meu amor
/ Se ele compreender / Vai se convencer /
Que tem pra mim / Um grande valor. //
Tenho um novo amor; Cartola
52
1935
Aí vem a primavera / Alegrar a nossa vida / banhar de
aroma / o lívido das selvas / Teu sorriso, ó amor, //
Quando silencia a voz das aves;
Paulo da Portela
Esses pragmatemas, muito recorrentes, aplicam-se à pessoa amada. São usados tanto
para referência à terceira pessoa, quanto à segunda; este último caso é o mais comum. Trata-
206
se de um uso próximo da oralidade, usado em letras que reproduzem diálogos, ou naquelas
em que se quer dar mais dramaticidade à situação amorosa reproduzida.
Pragmatema pelo amor de [Deus/Maria]
75
c1946
Julguei, Senhor, / Que deste sonho eu jamais
despertaria / Se errei, perdoai-me, pelo amor de Maria
Grande Deus; Cartola
80
1922-1949
Seus olhos são dois flocos, / luminosos e sedutores / Se
com desprezo me olhas, me causas doenças, dores /
Pelo amor de Deus te peço / tenhas compaixão de mim /
veja as rimas destes versos / Meu bem, não olhes assim
Olhar assim; Paulo da Portela
119
1979
Só peço que respeites / O nome que te dei / E pelo amor
de Deus / Não negues que te amei //
Fim de estrada; Cartola
Esse pragmatema tem valor intensivo e é usado para aumentar a carga apelativa dos
pedidos que os acompanham.
Quase-frasema amor de carnaval
48
1935
Vamos avante cantando e sambando, / Este é o nosso
ideal, / Por entre perfumes e flores / Loucuras de amores
de carnaval.
Canta, meu bem; Paulo da
Portela
A unidade lexical significa 'relacionamento amoroso geralmente passageiro, iniciado
por impulso devido à empolgação e à sensualidade implicadas nos festejos de carnaval'.
Haveria a possibilidade da leitura composicional do sintagma, como 'relacionamento amoroso
iniciado durante o carnaval', sem a especialização semântica envolvida no quase-frasema.
Entretanto, a lexia loucuras, à qual a expressão se subordina sintaticamente, seleciona o
significado do quase-frasema.
Quase-frasema amor de malandro
3
1929
Amor de malandro // Vem, vem / Que eu dou tudo a você
/ Menos vaidade / Tenho vontade / Mas é que não pode
ser //
Amor de malandro; Ismael Silva,
Freire Júnior e Francisco Alves
Na composição em questão, o amor de malandro é caracterizado como violento e
associado a dificuldades materiais. Apesar da violência, também se afirma que há
envolvimento afetivo nesse tipo de amor.
Quase-frasema amor proibido
88
1968
Amor proibido // Sabes que vou partir / Com os olhos
rasos d'água / E o coração partido / Quando lembrar de ti
/ Me lembrarei também / Deste amor proibido //
Amor proibido; Cartola
Essa unidade não designa necessariamente uma relação amorosa que alguém tenta
proibir, mas mais amplamente as relações que não são bem vistas segundo padrões sociais,
principalmente por envolverem pessoas de classes diferentes, ou, como no caso da citação,
pessoas casadas.
207
Quase-frasema primeiro amor
53
1936
Não quero mais / Amar a ninguém / Não fui feliz / O
destino não quis / O meu primeiro amor / Morreu como a
flor / Ainda em botão / Deixando espinhos / Que
dilaceram meu coração //
Não quero mais amar a ninguém;
Cartola, Carlos Cachaça e Zé da
Zilda
136
1928-1980
Meu primeiro amor // Meu primeiro amor / Não me olhe
assim / Eu já te disse adeus / E os olhos teus não
cansam / De fitar os meus // A tristeza / Do teu olhar /
Juro que encanta e traduz / Tanta beleza / É uma
promessa de amor / Que até nos faz sonhar.
Meu primeiro amor; Cartola e
Aluísio Dias
A expressão geralmente diz respeito à primeira experiência amorosa, como se vê em
(53). Pode, entretanto, designar especificamente a pessoa com quem se tem essa experiência,
como em (136).
Quase-frasema confissão de amor
49
1935
Deixe que te confesse, ó flor / Tenho medo, é confissão
de amor / Não é bem isso que eu te venho relatar / Ora
meu bem é que fico louco em te ver sambando //
Confissão de amor; Paulo da
Portela
A expressão diz respeito à revelação do sentimento em relação a alguém. Ao que
parece, nem sempre a confissão revela um sentimento reprimido ou disfarçado; também pode
ser simplesmente uma declaração de amor. No caso em questão, entretanto, há de fato uma
confissão, que a enunciadora supõe ser de amor. Há realmente uma revelação, motivada pela
sensualidade da dança.
Frasema ninho de amor
94
1972
Acontece que meu coração / Ficou frio / E nosso ninho
de amor está vazio / Se eu ainda pudesse fingir que te
amo / Ai, se eu pudesse / Mas não quero, não devo fazê-
lo / Isso não acontece.
Acontece; Cartola
O frasema geralmente é uma referência poética à moradia do casal enamorado. No
caso em questão, entretanto, parece ter ligação com o próprio relacionamento amoroso, que se
considera desgastado.
Veja-se o verbete viver para análise do frasema viver de amor. Veja-se também o
verbete lira para análise do frasema Lira do Amor.
ANDORINHA [1 ocorrência no corpus]
1944
Silenciar a Mangueira, não / Disse alguém / Uma andorinha só não faz
verão também / Devemos ter adversários / Como Oswaldo Cruz
Silenciar a Mangueira; Cartola
O provérbio uma andorinha só não faz verão (um pragmatema) é usado nessa
composição para justificar a importância de existirem diversas escolas de samba. A
composição foi feita como resposta a “Mangueira, não”, samba de Herivelto Martins e Grande
Otelo (1943), que, ao fazer referência ao arrasamento da praça Onze para construção da
avenida Presidente Vargas, diz: “Podem até acabar com o Estácio / o velho Estácio de Sá /
208
Derrubem todos os morros / Derrubem meu barracão / Silenciar a mangueira, não!”
65
.
O uso de provérbios nas letras de samba, recurso de interdiscursividade que dá mais
força às teses defendidas, já foi comentado na análise qualitativa do corpus.
ANIL [4 ocorrências em 4 letras do corpus]
1
1932
Quando nosso infinito / Se apresenta tão bonito /
Trajando azul anil / Baila o sol lá nas alturas / Dando
maior formosura / À mais linda dama do Brasil //
Cidade mulher; Paulo da Portela
2
1932
Pudesse meu ideal / Que é o carnaval / De encantos mil
/ Imortalizar neste poema / Cor de anil / Verossímil / E
levá-lo coroado / Pelas galas da história / Relembrando a
memória / Do meu querido Brasil
Pudesse meu ideal; Cartola e
Carlos Cachaça
3
1933
A tarde chega / Mansa e serena / Esta grandeza / Suave
e amena / Acetinada / Surge a lua, / Descortinando / O
céu de anil / Esta grandeza / No céu flutua / E nos
convida / Sempre a bailar / Em homenagem / À natureza
/ A noite vem / Nos saudar.
Quando desperta a cidade; Paulo
da Portela
4
1935
Quando à tardinha / Surge o pálido / Clarão da lua /
Outro céu de anil cintila / Na superfície / Tranquila do
mar / Ardendo em fulgor / E as ondas não vozeam / Vem
morrer na branca areia / Orlando-a de espuma em flor
Clarão da lua; Paulo da Portela
Anil é a cor frequentemente usada para representar o céu, o que acontece, por
exemplo, na bandeira nacional. É uma lexia usada para conferir valor poético à letra (3, 4), ou
para, por interdiscursividade, construir um tom laudatório, patriótico (1, 2). Considerando-se a
referência cromática comentada, justifica-se que a ocorrência da lexia ocorra muitas vezes em
colocação com céu.
No item 2, a caracterização cor de anil é adequada à intenção de afirmar o samba
como patrimônio nacional, que aumenta a preciosidade da história do Brasil. Esse tom de
exaltação e afirmação cultural também é marcado pela identificação da letra como poema.
APRIMORAR [1 ocorrência no corpus]
1960
Depois, aos poucos, o nosso samba / Sem sentirmos se aprimorou /
Pelos salões da sociedade / Sem cerimônia ele entrou / Já não pertence
mais à praça, / Já não é samba de terreiro / Vitorioso, ele partiu para o
estrangeiro //
Tempos idos; Cartola e Carlos
Cachaça
Conforme as marcas discursivas da letra, esse verbo, que tem como sujeito o próprio
samba, não faz necessariamente referência a aprimoramento musical. A melhoria pela qual o
samba passou na história narrada ao longo da letra traduz-se como ascensão social: entrar nos
salões da sociedade, no Municipal, no Itamaraty.
ARRASTAR [3 ocorrências em 3 letras do corpus]
1
1922
Andas bancando a modista / Deixe disto, arreia a crista /
Modista você não é / A vaidade te arrasta / Vestir seda,
andar de pasta / Para ir catar café / Meu bem, trabalhes /
Que não é mau / Só tu não banques / Coser no Parc
Royal
Modista; Paulo da Portela
65
Cf. THOMPSON, Daniella. Praça Onze in popular song, part 2: destruction in the name of progress. June 2003.
Disponível em http://daniellathompson.com/Texts/Praca_Onze/praca_onze.pt.2.htm
. Acesso em 10 set. 2008.
209
2
1931
Passas por mim, rindo, cantando / Dás com os ombros,
arrastando o sapato / Me debochando / E ainda dizes
pros outros / Só pra moer / Em amar não acho prazer //
Infeliz sorte; Cartola
3
1933
Lá vem ela, lá vem ela / Com o ioiô do seu lado /
Arrastando a chinela / Dizendo samba raiado //
Dona do lugar; Ismael Silva e
Francisco Alves
Em (3),o frasema arrastar a chinela é usado em referência ao ato de dançar. Uma
variante possível é arrastar a sandália, como se encontra no título do samba de Osvaldo
Vasques, o Baiaco, e Aurélio Gomes (“Arrasta a sandália”, 1933). A habilidade para a dança é
traço capaz de conferir destaque à mulher na roda de samba.
Já em (2), há a leitura composicional da expressão, numa caracterização de um modo
de andar da mulher. Essa caracterização reforça a descrição do seu comportamento
debochado.
Em (1), o verbo arrastar é apresentado como efeito da intensa vaidade da mulher
descrita na letra; trata-se de um elemento qualificador que figura como o mais marcante na
caracterização da interlocutora. O efeito da vaidade seria irresistível, sobressaindo no
comportamento de alguém que visivelmente não teria meios de manter essa atitude.
ARTISTA [6 ocorrências em 6 letras do corpus]
1
1932
Cidade, quem te fala é um sambista, / Anteprojeto de
artista, / Teu grande admirador / Me confesso
boquiaberto, / De manhã, quando desperto / Com
tamanho esplendor /
Cidade mulher; Paulo da Portela
2
1922-1949
És artista do chorar / vai depressa acreditar / que o teu
grande sofrimento / como um juramento santo /
entretanto não passa / de um grande fingimento
O grande fingimento; Paulo da
Portela
3
1960
E muito bem representado / Por inspiração de geniais
artistas
, / O nosso samba, humilde samba, / Foi de
conquistas em conquistas
Tempos idos; Cartola e Carlos
Cachaça
4
1973
Em Mangueira vêm vários artistas / Do exterior até
turistas / Só pra ver o que a Mangueira tem / Sambar
como nossas cabrochas ninguém //
A Mangueira é muito grande;
Cartola e Ataliba
5
1928-1980
No camarim nem sempre há euforia / Artista de mim
mesmo nem posso fracassar / Releio os bilhetes
pregados no espelho / Me pedem que jamais eu deixe de
cantar
Camarim; Cartola e Hermínio
Bello de Carvalho
6
1928-1980
Sou doutor / Sou doutor, mas sou sambista / Tenho
sangue de artista / Também sei tamborinar / Sou doutor /
Sei que sou advogado / Não me faço de rogado /
Quando preciso sambar //
Sou doutor; Cartola
Em (3) e (6) afirma-se o status dos sambistas como pessoas dedicadas à arte. No
primeiro caso, a atuação artística é mais relacionada à composição; no segundo, é relacionada
à capacidade de tocar instrumentos de percussão.
Em (4), ressalta-se o intercâmbio da escola de samba com pessoas de outros grupos
sociais — artistas e turistas do exterior —, que afluem à instituição, interessadas nas suas
atividades. Isso contribui para reforçar o valor da escola de samba e, assim como nas
ocorrências anteriores, para reafirmar o teor artístico do samba.
Em (1), a qualificação do sambista como “anteprojeto de artista” é marca de
210
humildade do enunciador diante da grandeza da cidade. Além disso, assim como já foi
comentado na análise qualitativa, em produções como as transcritas em (1) e (4), em cujo
contrato discursivo está implicado o intercâmbio entre grupos sociais diferentes, o sambista
costuma assumir um posicionamento discursivo mais modesto do que aquele adotado quando
se dirige apenas àqueles do seu meio.
Em (5), reafirma-se a identidade do enunciador como artista. Nessa composição
marcadamente metalinguística, que descreve o ambiente do camarim antes do início de uma
apresentação musical, mais do que artista, o enunciador se considera artista de si mesmo,
numa imagem poética que o apresenta como artífice da própria identidade de artista, alguém
que não vê a identidade de artista como uma essência, mas como uma construção para a
apresentação no palco.
A colocação artista no chorar (2) confere a artista a carga pejorativa da afetação de
comportamentos reprováveis. A lexia caracteriza a mulher como falsa e manipuladora no
amor.
ATENÇÃO [14 ocorrências em 12 letras do corpus]
1
1933
Quando eu queria o teu amor / Não davas atenção ao
meu / Pra mim tu não tens mais valor / Agora quem não
quer sou eu //
Quem não quer sou eu; Ismael
Silva e Noel Rosa
2
1934
Tu andavas de má intenção / e eu nunca prestei
atenção, / mas, até que afinal, / Já me livrei desse mal!
Agradeças a mim; Ismael Silva
3
1937
Vou começar a aula / Perante a comissão, muita atenção
/ Eu quero ver se diplomá-los posso / Salve o fessor, dá
nota a eles, senhor / Quatorze com mais doze noves fora
tudo é nosso //
Teste ao samba; Paulo da
Portela
4
1939
Estou sempre lhe chamando atenção / com calma como
todo o mundo vê / pois tudo que se diz de má fé / é
sempre preferido por você //
Não vejo jeito; Ismael Silva
5
1945
Vestir bem, pagando pouco / Eis um problema louco /
Que nós temos a resolver / Prestem atenção
/ Estou
autorizado a dizer / Pagando só o feitio / Eis o plano
inteligente / De uma casa aqui no Rio / Não pode haver
maior facilidade / Só na alfaiataria A Cidade /
Alfaiataria A Cidade; Paulo da
Portela e Cartola
6
1950
Andas fugindo de mim / Como o diabo da cruz / Não
queres mais nem me dar atenção
/ Teimei, gastei meu
latim, / Da discussão nasce a luz, / Mas nem assim tu me
deste razão
Macaco me lamba; Ismael Silva
7
1966
A todos que estão me ouvindo / Eu agradeço / Esta
atenção dispensada / É mais do que mereço / Se não
gostarem / Não digam nada a ninguém / Senão os outros
não vão me aturar também //
Eu agradeço; Ismael Silva
8
1976
Preste atenção, querida / De cada amor tu herdarás só o
cinismo / Quanto notares estás à beira do abismo /
Abismo que cavaste com teus pés.
O mundo é um moinho; Cartola
9
1976
Ouça-me bem, amor / Preste atenção o mundo é um
moinho / Vai triturar teus sonhos tão mesquinhos / Vai
reduzir as ilusões a pó //
O mundo é um moinho; Cartola
10
1976
Preste atenção, querida / Embora eu saiba que estás
resolvida / Em cada esquina cai um pouco a tua vida, / E
em pouco tempo não serás mais o que és //
O mundo é um moinho; Cartola
11
1979
Eu fiz mil promessas de joelho jurei / que jamais brigaria
/ a cada palavra / ela impassiva e fria notei / não me
dava a menor atenção
Bem feito; Cartola
12
1928-1980
Lua! / Eu com raiva / Quebrei o violão / Julguei que você
/ Não me dava atenção / Distante eu olhei / Outra vez
para a estrada / E vi tua luz prateada //
Eu e a lua; Cartola e Aluísio Dias
211
13
1928-1980
Eu fui infeliz enquanto quis dar-te atenção / Sei quanto
sofri, se desisti foi com razão / Se o amor é isso, o que
encontrei, / Nunca mais eu amarei //
Se o amor é isso; Aluísio Dias e
Cartola
Em (3), trecho de uma composição que reproduz uma situação de ensino formal, o
pragmatema muita atenção, fórmula típica dos atos de fala praticados por professores, há a
afirmação da autoridade de quem comanda a “aula de samba”. O uso de elementos do campo
semântico da educação formal é frequente nas letras do corpus. O próprio quase-frasema
escola de samba é uma ilustração disso.
Em (7), a situação reproduzida é a da apresentação artística e a atenção à qual se alude
é a do público em relação ao artista que faz o show. Já em (12), associa-se metaforicamente a
atenção da lua à inspiração para fazer samba, numa exploração do valor simbólico da lua
como astro que acompanha os boêmios e beneficia a inspiração, o fazer poético.
A maior parte das referências (1, 6, 11 e 13) diz respeito à atenção concernente à
relação amorosa. Nesse caso, a colocação com verbo-suporte dar atenção tem a significação
de corresponder às intenções amorosas de alguém.
Em (2, 5, 8-10) há a unidade prestar atenção. No primeiro caso, é uma colocação que
diz respeito à consciência quanto a um determinado fato; no segundo, é o pragmatema preste
atenção, marcador discursivo de função apelativa usado para introduzir um anúncio
publicitário. Finalmente, nas três últimas ocorrências também há o pragmatema apelativo, que
recursivamente pontua os conselhos de um enunciador mais experiente a uma jovem moça;
segundo a perspectiva dele, a jovem tem uma série de ilusões diante da vida, que o locutor
busca desfazer para evitar que ela sofra.
A colocação chamar atenção (4) também diz respeito ao aconselhamento feito por
alguém a outrem. Nesse caso a combinatória lexical traz uma carga mais repreensiva do que a
verificada em preste atenção.
AULA [1 ocorrência no corpus]
1937
Vou começar a aula / Perante a comissão, muita atenção / Eu quero ver
se diplomá-los posso / Salve o fessor, dá nota a eles, senhor / Quatorze
com mais doze noves fora tudo é nosso //
Teste ao samba; Paulo da Portela
A lexia aula é própria do campo semântico da educação formal. Como já foi
comentado s.v. atenção, esse campo semântico é recorrente nas letras de samba. Isso se deve
à intenção de aproximar os conhecimentos decorrentes das práticas do samba dos
conhecimentos característicos do ensino formal. Tal estratégia visa a afirmar o valor dos
saberes relacionados ao samba e está presente na origem das agremiações carnavalescas que,
não gratuitamente, foram denominadas escolas de samba. Sobre isso, veja-se, na primeira
parte deste estudo, o relato de Ismael Silva sobre o que motivou a denominação.
212
AURORA [7 ocorrências em 4 letras do corpus]
1
1932
Ao romper da aurora // Aurora vem raiando anunciando o
nosso amor, ô, ô / Chega o dia, desaparece a tristeza, /
fica a alegria pela própria natureza, ô. //
Ao romper da aurora; Ismael
Silva, Lamartine Babo e
Francisco Alves
2
1932
Aurora vem raiando anunciando o nosso amor, ô, ô / A
felicidade promete, mas não vem / Só vem a saudade,
saudade é querer bem, ô
Ao romper da aurora; Ismael
Silva, Lamartine Babo e
Francisco Alves
3
1932
Aurora vem raiando anunciando o nosso amor, ô, ô /
Desperta a cidade, o sol no céu flutua / Ele é a
mocidade, a saudade é a lua, ô //
Ao romper da aurora; Ismael
Silva, Lamartine Babo e
Francisco Alves
4
d1937
Na Vila / onde ele morava / Todos os seres cantavam /
As glórias do seu poeta / Hoje a Vila é triste e muda / Ao
bater Ave-Maria / Quando a aurora desperta
A Vila emudeceu; Cartola
5
1974
Chora / Disfarça e chora / Aproveita a voz do lamento /
Que já vem a aurora / A pessoa que tanto querias /
Antes mesmo de raiar o dia / Deixou a escola com outro /
Oh! Triste senhora //
Disfarça e chora; Cartola e
Dalmo Castello
6
1975
Se ela não voltar / Hei de preferir a morte / Não foi
preciso o relógio despertar / Pois esta noite não dormi /
Não quis me deitar / Como soldado do amor / Fiz
sentinela / A aurora me pilhou / Esperando por ela.
Soldado do amor; Cartola e Nuno
Veloso
Assim como foi comentado s.v. alvorada, também a lexia aurora traz a carga
simbólica do recomeço, da renovação de esperanças. É interessante perceber que,
diferentemente das ocorrências da alvorada, que são mais descritivas, as de aurora trazem
uma força narrativa importante, inclusive com a personificação da própria aurora, que
desperta, como se também dormisse durante a noite, aproxima-se trazendo a lembrança do
amor ou surpreende o enunciador sem que tenha conseguido realizar seus projetos amorosos.
O raiar da aurora geralmente é comparado à aproximação de alguém que chega e interfere nas
ações dos demais sujeitos discursivos.
AVANTE [2 ocorrências em 2 letras do corpus]
1
1935
Vamos avante cantando e sambando, / Este é o nosso
ideal, / Por entre perfumes e flores / Loucuras de amores
do carnaval.
Canta, meu bem; Paulo da
Portela
2
1922-1949
Avante, mocidade é hora / De mostrar o nosso progresso
/ Vamos deixar correr / A fama suburbana / Por todo este
universo, universo
Avante, mocidade, é hora...;
Paulo da Portela
Em (2), a interjeição avante é uma exortação que inicia a letra da canção. A exortação
em posição inicial é apropriada à intenção da composição, que é convencer os jovens a votar
em Claudionor para presidente da Portela.
Em (1), encontra-se a colocação ir avante. É interessante observar que, nesse caso, a
referência não é necessariamente à continuidade de um deslocamento, mas principalmente à
continuidade de atos e posturas dos interlocutores envolvidos na folia carnavalesca.
AVE [4 ocorrências em 4 letras do corpus]
1
1935
Quando silencia a voz das aves / (De harmonias tão
suaves) / a noite vem a terra amortalhar / (Para em sono
se engolfar) / Nos roseirais as flores segredando /
(Graciosas baloiçando) / Ensaiam, se estreitando, O
verbo amar //
Quando silencia a voz das aves;
Paulo da Portela
213
2
1938-1940
Ao amanhecer, ao anoitecer / Cantam em bando aves
fazendo verão / Ouvem-se acordes de um violão / E são
eles, verdes periquitos, / Têm um peito forte tal qual um
granito / E são lindas as suas canções //
Ao amanhecer; Cartola
3
déc.1960
Por Deus, não posso entender / Por que vamos
chorando / Se os nossos cicerones / São aves cantando
/ Lateralmente, as flores / Deitam aroma sorrindo / E
ouço da natureza: / Que sejam bem-vindos //
Que sejam bem-vindos; Cartola
4
1975
Que Deus e a natureza / As aves nos seus ninhos / As
flores pela estrada / Perfumem todos os caminhos //
Que sejas bem feliz; Cartola
Encontra-se em (2) mais um exemplo da associação recorrente entre sambistas e aves.
O uso da lexia aves no início da letra ajuda a construir uma ambiguidade entre os sambistas
componentes da Ala dos Periquitos na Mangueira e as próprias aves que têm esse nome —
com base nisso, transferem-se atributos das aves aos sambistas, enriquecendo-se a letra com a
polissemia. Veja-se também o verbete rouxinol.
Nos demais casos, as aves figuram em construções de um cenário natural, geralmente
como elementos positivos. Em (3) e (4), são elementos benfazejos que integram metáforas da
vida em harmonia. Já em (1), o silêncio das aves é usado como índice do anoitecer, ainda em
um cenário harmonioso.
AVENIDA [2 ocorrências em 2 letras do corpus]
1
1977
Verde como o céu azul, a esperança / Branco como a
cor da Paz a se encontrar / Rubro como o rosto fica junto
à rosa mais querida / É negra toda tristeza se há
despedida na avenida / É negra toda tristeza desta vida
//
Verde que te quero rosa; Cartola
e Dalmo Castello
2
1928-1980
Rico panorama... / Tem o Rio de Janeiro... / As praias de
Copacabana / Centro de todos estrangeiros / A linda
Avenida Central / Corcovado e Pão de Açúcar / E o
cassino que falta / É o Cassino da Urca
Cassino da Urca; Cartola
A lexia avenida tem, em (1), significação específica, de espaço para desfile de escolas
de samba. Algumas marcas que influem na seleção dessa significação são a escola de samba
Mangueira, à qual a composição é dedicada, e a menção às cores verde e rosa, que
simbolizam a Mangueira e são usadas no desfile de carnaval.
Trata-se de um uso de avenida característico do vocabulário de especialidade do
samba, no domínio do desfile carnavalesco.
Já em (2), a menção à Avenida Central integra uma enumeração das belezas do Rio de
Janeiro. Essa enumeração busca caracterizar a cidade como rica em patrimônio arquitetônico
e natural, antes de festejar mais uma das suas riquezas, que seria o Cassino da Urca.
AZUL [9 ocorrências em 8 letras do corpus]
1
1928
Se a bandeira brasileira é linda / A sua descrição vale
um tesouro / O verde representa as nossas matas / O
azul, o nosso céu / O amarelo o nosso ouro
Se a bandeira brasileira é linda...;
Paulo da Portela
2
1931
Como é linda nossa Guanabara / Jóia rara que beleza /
Quando nosso céu está todo azul, anoitece / O céu se
resplandece / Em seu bordado de estrela vê-se o
Cruzeiro do Sul //
Linda Guanabara; Paulo da
Portela
214
3
1932
Quando nosso infinito / Se apresenta tão bonito /
Trajando azul anil / Baila o sol lá nas alturas / Dando
maior formosura / À mais linda dama do Brasil //
Cidade mulher; Paulo da Portela
4
1922-1949
A homenagem ao Morro Azul // Viemos de Bento Ribeiro
para batizar / Unidos do Morro Azul em primeiro lugar /
Esse é o nosso ideal / Queremos ver brilhar no carnaval.
A homenagem ao Morro Azul;
Paulo da Portela
5
1922-1949
O azul e branco / Cores da nossa bandeira / O Rio
estamos aqui para abrilhantar o nosso festival
O azul e branco...; Paulo da
Portela
6
1922-1949
Qual um farol / o astro sol / na ascensão de mais sublime
luz / na amplidão sim reluz / qual um crisol que seduz / e
no azul / surge taful / qual um crisol a rutilar mais luz / na
sedução / na amplidão / do astro rei que seduz / calmo
ascender / do astro sol resplandecer / no arrebol
Qual um farol; Paulo da Portela
7
déc.1940
Amo-te demais, ó, Pátria minha / Tua bandeira, ó, meus
irmãos, / O lábaro estrelado, o verde esperança, / O
amarelo ouro, o azul do céu, / E o branco da paz //
Amo-te demais, ó, Pátria
minha...; Cartola
8
1977
Verde como o céu azul, a esperança / Branco como a
cor da Paz a se encontrar / Rubro como o rosto fica junto
à rosa mais querida / É negra toda tristeza se há
despedida na avenida / É negra toda tristeza desta vida
//
Verde que te quero rosa; Cartola
e Dalmo Castello
A abonação (8) constitui um uso curioso da colocação céu azul. O compositor
combina a simbologia da cor verde, que significa “esperança”, com o céu azul, imagem que
pode suscitar o mesmo sentimento no observador.
Na composição “Verde que te quero rosa”, exploram-se a simbologia das cores, a
presença da combinação verde e rosa no estandarte da Mangueira e, adicionalmente, a
presença de determinadas cores em elementos da realidade, geralmente descritas a partir de
características positivas. O uso da lexia negro apresenta características próprias, que serão
analisadas no verbete específico.
A colocação azul e branco (5) é característica léxico do samba, pois essas são as cores
que identificam a Portela, presentes na bandeira da escola de samba. Assim, na abonação a
presença dos portelenses é representada pelas cores da bandeira.
Em (1-3, 6-7), o uso da lexia é bem semelhante ao que já foi observado s.v. anil. A
referência é à cor do céu; em 3, anil chega a ser usado como qualificador do azul do
firmamento. Assim como naquela entrada, as intenções discursivas do louvor à bandeira
nacional e da exaltação à beleza da natureza são detectadas nas ocorrências em análise.
Os frasemas Morro Azul e Unidos do Morro Azul (4) devem ser consultados nos
verbetes homônimos.
215
3.2.6– Letra B
BALUARTE [1 ocorrência no corpus]
1941
Mangueira, velha escola / Onde Cartola tem sido baluarte / Lindas
poesias, belas melodias / Têm todo valor de nossa parte
Homenagem à Mangueira; Paulo
da Portela
A lexia é característica do léxico do samba. Geralmente designa os sambistas mais
antigos, considerados modelos em seus grupos. Também pode ter traços que dizem respeito
ao papel de fundador da escola de samba, em referência à acepção 'base, sustentáculo', uma
das previstas para o lexema.
BAMBA [5 ocorrências em 3 letras do corpus]
1
déc.1930
Chegando eu quero recebê-lo com carinho / Tratá-lo
como reizinho / Enveredarei pelos caminhos dos bambas
/ Talvez será herdeiro / De uma coroa do samba.
Senhora Dona Cegonha; Paulo
da Portela
2
déc.1930
Quando trouxer deve pedir ao destino / Que mande pelo
menino recomendação de um bamba / Mais tarde eu
quero que como todo lero-lero / Ele seja professor de
uma Escola de Samba. //
Senhora Dona Cegonha; Paulo
da Portela
3
1940
Nega bamba // Tem um prêmio para quem / descobrir a
nega bamba / da escola de samba / que compra barulho
/ por qualquer dinheiro / faz o dó maior / bem direitinho /
no cavaquinho / toca cuíca / bate tamborim / enfrenta um
pandeiro
Nega bamba; Paulo da Portela
4
1950
Ele está mesmo dançando na corda bamba / Ele é
aquele que na escola de samba / Toca cuíca, toca surdo
e tamborim / Faça por ele como se fosse por mim //
Antonico; Ismael Silva
A lexia faz referência aos sambistas mais habilidosos em composição, canto ou dança,
geralmente. Sua atuação é notoriamente valorizada entre seus pares. Nas ocorrências 1 e 2,
expressa-se o desejo de que o bebê que representa o futuro da escola de samba campeã seja
fadado a ser bamba, garantindo a continuidade do legado conquistado pelos mais antigos.
Em (3), qualifica-se a mulher descrita na letra como bamba, principalmente pela sua
habilidade em tocar instrumentos musicais, além da disposição para valentias, que também
pode ser característica do bamba. Vejam-se os comentários sobre o frasema dançar na corda
bamba (4) s.v. dançar.
BAMBAQUERÊ [1 ocorrência no corpus]
1922-1949
Quatro malandros chamados Bambaquerê / eles não comem, não
bebem / E não deixam ninguém comer / amanhã que vou-me embora /
que me dão para levar / levo penas e saudades / E no caminho vou
chorar
Coleção de passarinhos; Paulo da
Portela
A lexia bambaquerê, apresentada como se fosse um segundo nome dos malandros
apresentados na canção, é de uso informal e pode significar, entre outras possibilidades
66
,
'dança' ou 'confusão'. Trata-se, portanto, de uma forma de caracterizar os homenageados da
66
Cf. HOUAISS, Antônio e VILLAR, Mauro. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. Versão 1.0. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2001. CD-ROM. s.v. bambaquerê.
216
letra, fazendo ainda um trocadilho com bamba, 'sambista habilidoso' ou 'valentão'.
BATERIA [1 ocorrência no corpus]
1931
Vou apresentar o meu batalhão / Uma bateria e não (...) dá sopa, não //
Favela, Estácio, Oswaldo e Salgueiro / todos te respeitam quando
pegam o seu pandeiro / (Então volver / Ordinário marche / Oba!) //
Meu batalhão; Ismael Silva, Nilton
Bastos e Francisco Alves
A ocorrência destaca o agrupamento de percussionistas, componentes da bateria, como
um dos elementos principais de uma instituição carnavalesca. A alusão à bateria, portanto, é
parte importante na descrição do desfile de carnaval.
BATIZAR [1 ocorrência no corpus]
1922-1949
A homenagem ao Morro Azul // Viemos de Bento Ribeiro para batizar /
Unidos do Morro Azul em primeiro lugar / Esse é o nosso ideal /
Queremos ver brilhar no carnaval.
A homenagem ao Morro Azul;
Paulo da Portela
A lexia ocorre em colocação com Unidos do Morro Azul, uma escola de samba. O
verbo assume, então, uma significação específica, não mais relacionada a uma cerimônia
religiosa, mas sim a um ritual de inauguração de outro tipo de instituição social, que ganha
um nome a partir desse ritual. É importante destacar que a combinatória lexical, para
acionamento desse sentido é restrita — o verbo batizar só tem esse comportamento semântico
em combinação com lexias referentes a esse tipo de instituição.
BATUQUE [2 ocorrências em 1 letra do corpus]
1940
Jamais tu irás a um samba / E tenho as minhas razões / Quando
entras no batuque / Esqueces as obrigações. / Pense o caso bem
direito / Te aconselho a que não faça / Proibir-me do batuque / Tradição
de nossa raça.
Vamos embora, ó, flor; Paulo da
Portela
Ambas as ocorrências, provenientes da mesma composição, fazem referência à roda de
samba, ao evento de canto, dança e congregação social. A colocação entrar no batuque refere-
se à integração no evento, geralmente a partir da dança.
É importante lembrar que, historicamente, batuque remete ao passado escravagista
brasileiro (veja-se a primeira parte deste trabalho) — é uma designação genérica e
depreciativa às práticas musicais dos negros escravos, que, aos olhos etnocêntricos dos
descritores, não tinham diferenças e eram associadas a confusão e sensualidade.
Contemporaneamente no universo discursivo do samba, entretanto, o sentido da lexia
se alterou — conforme já foi comentado, faz referência ao ambiente da roda de samba, com
ênfase ao toque dos instrumentos de percussão.
BENTO RIBEIRO [1 ocorrência no corpus]
1942-1949
A homenagem ao Morro Azul // Viemos de Bento Ribeiro para batizar /
Unidos do Morro Azul em primeiro lugar / Esse é o nosso ideal /
Queremos ver brilhar no carnaval.
A homenagem ao Morro Azul;
Paulo da Portela
217
Bento Ribeiro é o bairro carioca onde ficava a sede da escola de samba Lira do Amor,
à qual Paulo da Portela se integrou após se afastar da Portela, devido a um desentendimento
no carnaval de 1941.
A localização espacial do deslocamento dos integrantes da escola de samba serve para
identificá-los, antes da afirmação das intenções amistosas da visita.
BIS [1 ocorrência no corpus]
1966
Não vão fazer / O que aconteceu certo dia / Foi tanto bis / Que eu já
não podia atender / No entretanto O que a plateia queria / É que eu
cantasse / Cantasse até aprender.
Eu agradeço; Ismael Silva
Essa ocorrência faz parte do vocabulário especializado da música, pois refere-se à
apresentação artística. Costuma ser interpretada como indicação de sucesso na apresentação
— o público, tendo gostado do que assistiu, pede uma repetição de algum dos números
apresentados — o bis também pode ser um número original preparado para esse momento, ou
mesmo improvisado.
Nessa composição específica, o enunciador quebra a expectativa, afirmando bem-
humoradamente que, pedindo bis, o público na verdade queria lhe dar novas chances de
aprender a cantar.
BOJO [1 ocorrência no corpus]
1968
Ai, esse bojo perfeito/ Que trago junto ao meu peito / Só você, violão,
compreende porque / Perdi toda a alegria //
Cordas de aço; Cartola
Essa ocorrência integra o vocabulário especializado da música, pois se refere à parte
mais proeminente do corpo do violão. É a partir da colocação com violão que se aciona o
sentido especializado.
Para mais informações sobre a descrição do violão feita nesta composição, ver
também braço.
BRAÇO [9 ocorrências em 8 letras do corpus]
1
1935
Brasil, terra adorada / Jardim de todo estrangeiro / És a
estrela que mais brilha / No espaço / – Brasileiro, braço
é
braço!
Brasil, terra adorada; Cartola,
Arthur Faria e Aluísio Dias
2
1937
Hoje eu choro / E a mulher que adoro talvez / Caída em
braços de outro sorrindo / Repete as mesmas promessas
mentindo //
Sei chorar; Cartola
3
c1947
Para ter uma companheira / Até promessas fiz /
Consegui um grande amor / Mas eu não fui feliz / E com
raiva para os céus / Os braços levantei, blasfemei / Hoje
todos são contra mim //
Sim; Cartola e Oswaldo Martins
4
1968
Ai, essas cordas de aço / Este minúsculo braço / Do
violão que os dedos meus acariciam //
Cordas de aço; Cartola
5
1979
Evite meu amor / Recuse os braços meus / Evitarei os
beijos teus / Culpado foi o destino / Se somos dois
feridos / Pois preparou a trama / E entregou ao cupido
Evite meu amor; Cartola
6
1928-1980
Ajoelhaste no altar / Juraste, me fizeste jurar / E o
Senhor de braços abertos / Com o olhar cheio de ternura
/ Compreendeu por certo / Que era falsa a jura
Me fizeste jurar; Cartola e Nelson
Cavaquinho
218
7
1928-1980
Nos braços de uma, só alegria / Com a outra,
passatempo em vão / Por isso a minha vida é tão vazia /
Que eu tenho que fazer a opção.
Opção; Cartola e Evandro Bóia
8
1928-1980
De que servem os olhos meus / Se não veem os olhos
teus / Muito embora estejamos lado a lado / Pra que
servem os braços meus / Se não entrelaçam os teus /
Como se eu fosse um mutilado
Pesadelo; Cartola e Nuno Veloso
A ocorrência (4) integra o vocabulário especializado da música, pois se refere à parte
alongada do violão, pela qual passam as cordas, que se fixam nas cravelhas, localizadas na
extremidade do instrumento (também denominada “mão”). É a partir da colocação com violão
que se aciona o sentido especializado. O enunciador explicita seu envolvimento afetivo com o
instrumento descrevendo-o minuciosamente e com adjetivos ternos e elogiosos.
Em (5) e (8) a alusão aos braços tem significação amorosa, pois sugerem o abraço
entre enamorados. Em (8) a associação é explícita e em (5) a rejeição amorosa figura como a
recusa aos braços do enunciador. O frasema [cair] nos braços de [alguém], encontrado em
(2) e (7) aciona a mesma significação de enamoramento.
Em (3) a revolta do enunciador diante de injustiças divinas é manifestada pelo gesto de
levantar os braços, num gesto de protesto — a significação desse gesto dramático é
explicitada pelo verbo blasfemar, logo em seguida.
Enfim, o pragmatema braço é braço (1) tem o valor interjetivo de afirmação de força,
poder; a exclamação está em consonância com a descrição do Brasil que se faz na letra,
atribuindo-se-lhe grande esplendor e prosperidade.
BRANCO [6 ocorrências em 5 letras do corpus]
1
1928
Se eu fosse homem branco / Ou por outra mulatinho /
Talvez eu tivesse sorte / De gozar do seu carinho / A
maré que enche vaza / Deixa a praia descoberta / Vai-se
um amor e vem outro / Nunca vi coisa tão certa //
Me faz carinhos; Ismael Silva e
Francisco Alves
2
1935
Na superfície / Tranquila do mar / Ardendo em fulgor / E
as ondas não vozeam / Vem morrer na branca
areia /
Orlando-a de espuma em flor
Clarão da lua; Paulo da Portela
3
1922-1949
O azul e branco / Cores da nossa bandeira / O Rio
estamos aqui para abrilhantar o nosso festival
O azul e branco...; Paulo da
Portela
4
déc.1940
Amo-te demais, ó, Pátria minha / Tua bandeira, ó, meus
irmãos, / O lábaro estrelado, o verde esperança, / O
amarelo ouro, o azul do céu, / E o branco da paz //
Amo-te demais, ó, Pátria
minha...; Cartola
5
1977
É branco o sorriso das crianças / São verdes, os
campos, as matas / E o corpo das mulatas quando
vestem verde e rosa, é / Mangueira / É verde o mar que
me banha a vida inteira //
Verde que te quero rosa; Cartola
e Dalmo Castello
6
1977
Verde como o céu azul, a esperança / Branco como a
cor da Paz a se encontrar / Rubro como o rosto fica junto
à rosa mais querida / É negra toda tristeza se há
despedida na avenida / É negra toda tristeza desta vida
//
Verde que te quero rosa; Cartola
e Dalmo Castello
Em (4) e (6), a lexia assume a carga semântica simbólica da cor branca — a cor da
paz. Na abonação (5), a cor dos dentes é metonimicamente atribuída ao sorriso das crianças.
Esse emprego mais descritivo da lexia repete-se em (2), onde se refere à coloração da areia.
Como já foi comentado s.v. azul, a colocação azul e branco (3), que faz referência às
219
cores da bandeira da Portela, identificando essa escola de samba, é característica do léxico do
samba.
Em (1) a referência é à cor da pele. O enunciador denuncia o preconceito da
destinatária, que o rejeita por ele ser negro. A colocação com homem seleciona essa
significação epidérmica.
Para mais informações sobre as referências a cores nas letras do corpus e sobre o uso
dessas referências nesta composição, veja-se cor.
BRILHAR [4 ocorrências em 4 letras do corpus]
1
1934
O teu céu, o teu mar / É diferente / E as estrelas
candentes / Brilham mais / Alto dia o sol / Convida a
gente / E à noite o luar / Que alegria nos traz
És tu, Brasil, que nos seduz;
Paulo da Portela e Ernani
Rosário
2
1935
Brasil, terra adorada / Jardim de todo estrangeiro / És a
estrela que mais brilha / No espaço / – Brasileiro, braço é
braço!
Brasil, terra adorada; Cartola,
Arthur Faria e Aluísio Dias
3
1942-1949
A homenagem ao Morro Azul // Viemos de Bento Ribeiro
para batizar / Unidos do Morro Azul em primeiro lugar /
Esse é o nosso ideal / Queremos ver brilhar no carnaval.
A homenagem ao Morro Azul;
Paulo da Portela
4
1977
Amanhã / A tristeza vai transformar-se em alegria / E o
sol vai brilhar no céu de um novo dia / Vamos sair pelas
ruas, pelas ruas da cidade / Peito aberto, cara ao sol da
felicidade //
A cor da esperança; Cartola e
Roberto Nascimento
Em (3), a lexia brilhar, em colocação com carnaval, deixa de ter a referência da
emissão de luz para assumir a ideia de ser bem-sucedido. Essa significação se aplica a
qualquer situação na qual o desempenho de alguém possa ser avaliado em determinada
atividade.
Em (1, 2, 4) a referência é mesmo à emissão de luz — a origem do brilho é o sol ou
uma estrela. Isso não impede que a referência acumule os traços positivos da significação
simbólica. Em (4), por exemplo, o brilho do sol reforça a ideia de alegria depois do
sofrimento. A leitura simbólica também é patente em (2), pois nesse caso o Brasil é
representado metaforicamente como uma estrela — a prosperidade do Brasil é representada
pelo brilho do astro.
220
3.2.7 - Letra C
CADÊNCIA [1 ocorrência no corpus]
1935
Sim, cantarei / Espere um pouquinho / Tenha paciência / Deixe que o
cavaquinho / Faça a introdução / Com toda cadência //
Canta, meu bem; Paulo da Portela
Essa ocorrência integra o vocabulário especializado da música, pois se refere à
expressividade da interpretação, neste caso específico, do instrumentista que executa a
introdução de uma composição.
CAIXA [1 ocorrência no corpus]
1937
Cem divididos por mil / Cada um com quanto fica / Não pergunte à caixa
surda / Não peça cola à cuíca / Lá no morro vamos vivendo de amor /
Estudando com carinho o que nos passa o professor.
Teste ao samba; Paulo da Portela
O quase-frasema caixa surda, permutável por surdo, é designação de um dos
instrumentos que fazem parte da bateria das escolas de samba. Integra, portanto, o
vocabulário especializado do samba.
É interessante perceber que, nessa composição, que simula uma situação de sala de
aula, com avaliação dos conhecimentos dos alunos, os instrumentos musicais são
apresentados como fontes potenciais de saber, que estariam em condição de “dar cola” aos
examinados. Trata-se de mais uma construção que aproxima os conhecimentos da educação
formal daqueles transmitidos na cultura popular, conforme já foi comentado em aula e em
atenção.
CAMPEÃO [1 ocorrência no corpus]
d1941
Pois então saiba que não desejamos mais nada, / A noite, a lua
prateada / Silenciosa, ouve as nossas canções / Tem lá no alto um
cruzeiro / Onde fazemos nossas orações / E temos orgulho de ser os
primeiros campeões
//
Sala de recepção; Cartola
Essa lexia remete à competição que ocorre durante o carnaval, no desfile das escolas
de samba. É comum que as composições que louvam as escolas de samba façam remissão a
glórias conquistadas em vitórias de carnavais passados. Para mais considerações a respeito
desse campo semântico, veja-se adversário.
CANÁRIO [1 ocorrência no corpus]
1922-1949
Quiseram me comprar / eu não vendi / uma linda coleção de
passarinhos / Bernardo é gaturamo / Aurélio é rouxinol / Lino é o
canário / Mano Rubens, o curió
Coleção de passarinhos; Paulo da
Portela
Esse é mais um exemplo da associação entre sambistas e aves canoras, encontrada
com razoável frequência no corpus. Veja-se também ave e rouxinol.
221
CANÇÃO [8 ocorrências em 7 letras do corpus]
1
1934
E muito além dos verdes montes / Terás esta canção /
Falando de glórias, sim
És tu, Brasil, que nos seduz;
Paulo da Portela e Ernani
Rosário
2
1938-1940
E são eles, verdes periquitos, / Têm um peito forte tal
qual um granito / E são lindas as suas canções //
Ao amanhecer; Cartola
3
d1941
Pois então saiba que não desejamos mais nada, / A
noite, a lua prateada / Silenciosa, ouve as nossas
canções / Tem lá no alto um cruzeiro / Onde fazemos
nossas orações / E temos orgulho de ser os primeiros
campeões //
Sala de recepção; Cartola
4
1965
Canção da saudade // Tudo de alegrias e de tristezas
conheci, / Coisas do amor e do sofrer, eu já senti, / Nada
me transforma a alegria de viver, / Ver a noite vir e sorrir,
ao sol nascer, / Vivo esperando o novo dia, / Que irá
trazer a luz, que sempre ficará!
Canção da saudade; Cartola e
Cacá Diegues
5
1977
A canção que chegou // Na manhã que nascia encontrei /
O que na noite tardia desejei / E vou feliz a cantar por aí
A canção que chegou; Cartola e
Nuno Veloso
6
1977
Toda tristeza que havia / Agora expulsei / Com a canção
que chegou / E vou cantando alegre / A felicidade que
Jesus mandou //
A canção que chegou; Cartola e
Nuno Veloso
7
1928-1980
Sim / Estou sentindo amor / E arrependido de tudo que
fiz estou / A ternura que eu guardava, vai / Com este
resto de amor / Que se esvai na canção / Que eu
compus sem querer
Estou sentindo; Cartola
8
1955-1980
É assunto meu sei que ninguém dá solução / Tudo
quanto sofro vou dizer nesta canção //
Deixa; Cartola e Nelson Sargento
Canção é o produto da composição lírico-musical. Em (2), as canções resultam da
passagem dos “periquitos” (veja-se nesse verbete a explicação da ambiguidade envolvida no
uso da lexia); são um índice da sua presença. Em (3), as canções são endereçadas à
Mangueira, como uma espécie de retribuição pela harmonia que se afirma existir no local.
As referências costumam ser metalinguísticas: o enunciador refere-se ao seu próprio
canto, identificando-se como autor da canção. Em (7) e (8) a canção é demonstração de amor
a alguém, uma forma de extravasar esse amor, ou seus efeitos positivos e negativos. Em (1), é
testemunho do amor patriótico do enunciador; é uma espécie de oferenda em louvor à pátria.
Em (4), é uma forma de registrar as experiências de vida do enunciador; resulta de um
balanço que faz das suas experiências. Finalmente, em (5) e (6), novamente tendo as
experiências de vida como tema, a canção é a atividade musical, tornando a existência mais
amena e o enunciador, mais esperançoso.
CANTADO [2 ocorrências em 2 letras do corpus]
1
d1937
Era o rei / Da filosofia / Fez da musa o que queria /
Zombou da inspiração / Os seus versos ritmados / Por
ele mesmo cantados / Tinham bela entoação //
A Vila emudeceu; Cartola
2
1922-1949
Por todo este universo, universo / O samba bem cantado
é lindo / Voltamos na linha de frente / Para presidente o
mano Claudionor
Avante, mocidade, é hora...;
Paulo da Portela
Em (1), o adjetivo se refere à composição musical, dizendo que o próprio autor
cantava suas músicas. Para informações sobre a significação construída para versos a partir
dessa colocação, veja-se o verbete correspondente a essa última lexia.
Em (2), a referência é ao samba como gênero musical. Em ambos os casos, portanto, a
222
significação da lexia diz respeito à execução musical, no aspecto vocal.
CANTAR [46 ocorrências em 32 letras do corpus]
1
1927
Não se deve cantar glória / Antes da vitória / Vocês que
sorriam de mim / Na esperança do mais alto pedestal / O
seu castelo ruiu / Numa poeira infernal
Não se deve cantar glória; Paulo
da Portela
2
1931
Passas por mim, rindo, cantando / Dás com os ombros,
arrastando o sapato / Me debochando / E ainda dizes
pros outros / Só pra moer / Em amar não acho prazer //
Infeliz sorte; Cartola
3
1931
Nem sempre o riso é alegria / Quantas vezes noite e dia /
Nós levamos a cantar
/ Pra não chorar, / Mas como há
um ditado / "Quem espera sempre alcança" / Nós vamos
alimentando / Essa esperança. //
Ri pra não chorar; Ismael Silva e
Francisco Alves
4
1932
Vivo cantando / Para esquecer a minha dor / Conservo
ainda / No meu peito um grande amor / E o meu pranto
parece não ter mais fim / No entanto eu padeço e não
tens pena de mim //
Cantar para não chorar; Paulo da
Portela e Heitor dos Prazeres
5
1932
Cantar para não chorar // Rir para iludir / Cantar para não
chorar / Beber para esquecer / O nome daquela ingrata
que me fez sofrer //
Cantar para não chorar; Paulo da
Portela e Heitor dos Prazeres
6
1933
Quando desperta a cidade / Numa alegria sem par / Ao
raiar da passarada / Quando começa a cantar / Ao longe
Febo a sorrir / Derrama raios de luz / Sobre os quadros
verdejantes / Fazendo as flores florir //
Quando desperta a cidade; Paulo
da Portela
7
1934
Cocorocó, o galo já cantou / Levanta, nego, tá na hora
de tu ir pro batedor / Ô, nega, me deixa dormir mais um
bocado / Não pode ser, o senhorio está zangado com
você
Cocorocó; Paulo da Portela
8
1935
Vamos avante cantando e sambando, / Este é o nosso
ideal, / Por entre perfumes e flores / Loucuras de amores
do carnaval.
Canta, meu bem; Paulo da
Portela
9
1935
Sim, cantarei / Espere um pouquinho / Tenha paciência /
Deixe que o cavaquinho / Faça a introdução / Com toda
cadência //
Canta, meu bem; Paulo da
Portela
10
1935
// Então vá logo se declarando / Ó, vamos dançar, ó,
vamos cantar.
Confissão de amor; Paulo da
Portela
11
1935
Vem, borboleta, brejeira, voar / Em teu reino imperar, /
Ruflam suas asas / Nas manhãs cantar / Vem, borboleta,
brejeira, voar / Em teu reino imperar / Ele, o Rei Momo /
a glória conquistar.
Quando silencia a voz das aves;
Paulo da Portela
12
1936
O pranto que verti por esse amor talvez / Não
compreendeste e se eu disser não crês / Depois de
derramado, ainda soluçando, / Tornei-me alegre, estou
cantando //
Quem me vê sorrir; Cartola e
Carlos Cachaça
13
d1937
Na Vila / onde ele morava / Todos os seres cantavam /
As glórias do seu poeta / Hoje a Vila é triste e muda / Ao
bater Ave-Maria / Quando a aurora desperta
A Vila emudeceu; Cartola
14
1939
Guardo a tristeza porque / Dela sou o maior amigo /
Depois que perdi você / Eu não canto
, eu não danço /
Acabou tudo pra mim / Se eu cantar
essa tristeza / Terás
ciúme de mim. //
Tristeza; Cartola e Orlando
Batista
15
déc.1930
Todo mundo tem o direito / De viver cantando / O meu
único defeito / É viver pensando / Em que não realizei / E
é difícil realizar / Se eu pudesse dar um jeito, / Mudaria
meu pensar //
Silêncio de um cipreste; Cartola e
Carlos Cachaça
16
1940
Cantar de um rouxinol // Ao romper do sol / Ouvi cantar
um rouxinol / Cantando um hino em louvor / O mano
Paulo dando viva ao Claudionor.
Cantar de um rouxinol; Paulo da
Portela
17
1938-1940
Ao amanhecer, ao anoitecer / Cantam em bando aves
fazendo verão / Ouvem-se acordes de um violão
Ao amanhecer; Cartola
18
1938-1940
Eles cantam a natureza / O riacho, a correnteza / Os
segredos da Floresta / Fazem festa / Alta ainda a
madrugada / Entre as folhas orvalhadas
Corações em festa; Cartola
19
1938-1940
Como é belo ouvir cantar a passarada / Que vou saudar
com harmonia / A fresca alvorada, que melodia /
Corações em festa; Cartola
20
d1941
Habitada por gente simples e tão pobre / Que só tem o
sol que a todos cobre, / Como podes, Mangueira,
cantar? //
Sala de recepção; Cartola
21
1945
Agradeço comovido / E muito sentido / Por tudo que faço
/ Ao bem que me fez / Perdoa / Mas quero voltar / Para
junto daqueles que a vida / Sofrendo ou chorando, /
Cantando
, sorrindo, / É boa. //
Perdoa; Paulo da Portela e
Cartola
22
1922-1949
Cantando muito facilmente irás esquecer / Aquela que
por maldade te fez padecer / Compare essa falsa
amizade / Com a tempestade, não perca a esperança /
Que um dia com muita alegria terás a bonança.
Conselho; Lincoln Washington
Pereira de Almeida e Paulo da
Portela
223
23
1922-1949
Sambar! / Salve a folia / Cantar! / Salve a orgia Então
cantaremos todos / em voz geral / Só meu samba / É o
nosso ideal.
Sambar / Salve a folia...; Paulo
da Portela
24
1957
Sonhava desde menino / Tinha um desejo felino / De
contar toda a tua história / Este sonho realizei / Um dia, a
lira empunhei / E cantei todas as tuas glórias
Fiz por você o que pude; Cartola
25
1966
Não vão fazer / O que aconteceu certo dia / Foi tanto bis
/ Que eu já não podia atender / No entretanto O que a
plateia queria / É que eu cantasse / Cantasse até
aprender.
Eu agradeço; Ismael Silva
26
1968
E, no entanto, meu pinho, / Pode crer, eu adivinho, /
Aquela mulher até hoje está nos esperando / Solte o seu
som da madeira / Eu, você e a companheira / Na
madrugada iremos pra casa cantando.
Cordas de aço; Cartola
27
déc.1960
Por Deus, não posso entender / Por que vamos
chorando / Se os nossos cicerones / São aves cantando
/ Lateralmente, as flores / Deitam aroma sorrindo / E
ouço da natureza: / Que sejam bem-vindos //
Que sejam bem-vindos; Cartola
28
1973
Pra comê eles mastiga / Eu como sem mastigá / Pra
cantá eles magina / Eu canto sem maginá
Afina a viola; Ismael Silva
29
1977
Lembro dos tempos de outrora / Que quase me roubam /
A esperança e a fé / E hoje me volto contente / Cantando
pra Deus / Que tanto me ajudou
A canção que chegou; Cartola e
Nuno Veloso
30
1977
Toda tristeza que havia / Agora expulsei / Com a canção
que chegou / E vou cantando alegre / A felicidade que
Jesus mandou //
A canção que chegou; Cartola e
Nuno Veloso
31
1977
E confiante despeço-me / Todo feliz a cantar /
Agradecido ao bom Senhor / Por me ajudar
A canção que chegou; Cartola e
Nuno Veloso
32
1977
Na manhã que nascia encontrei / O que na noite tardia
desejei / E vou feliz a cantar por aí / Assim...
A canção que chegou; Cartola e
Nuno Veloso
33
1922-1978
Se eu tivesse me sentido mal / Não estava sorrindo,
cantando a esmo / Que pergunta besta desse pessoal /
Pois quem é que não vê que eu / Sou feio assim mesmo.
Nome feio; Ismael Silva
34
1979
Ontem me contaram / que ela vive cantando /
lamentando o tempo perdido que comigo passou, / vim
saber de tanta coisa / confesso chorei magoado / eu fui
culpado / de ter terminado tão cedo nosso grande amor
Bem feito; Cartola
35
1980
Vem / Tudo é belo por onde eu passei / Será onde eu
passar / Vem / Ao meu lado eu sei / Vais sorrir, vais
cantar / Não me convence essa tua tristeza / Vem / Há
um Deus, há uma natureza //
Vem; Cartola e Arthur de Oliveira
36
1928-1980
No camarim nem sempre há euforia / Artista de mim
mesmo nem posso fracassar / Releio os bilhetes
pregados no espelho / Me pedem que jamais eu deixe de
cantar
Camarim; Cartola e Hermínio
Bello de Carvalho
37
1928-1980
O corpo se agita e chove pelos olhos / E um aplauso
escorre em cada refletor / Pisando esta ribalta, cantando
pra vocês / De nada sinto falta, sou eu mais uma vez / As
rosas vão murchar, mas outras nascerão / Cigarras
sempre cantam
, seja ou não verão
Camarim; Cartola e Hermínio
Bello de Carvalho
38
1928-1980
Pisando esta ribalta, cantando pra vocês / De nada sinto
falta, sou eu mais uma vez / As rosas vão murchar, mas
outras nascerão / Cigarras sempre cantam, seja ou não
verão
Camarim; Cartola e Hermínio
Bello de Carvalho
39
1928-1980
Hoje sem querer / Que vim a saber / Que gostas de ouvir
/ Quando canto, ó flor / Ficas comovida / Derramando
pranto / Achas um encanto / Neste teu cantor //
Hoje sem querer; Cartola e
Babau
40
1928-1980
Não quero mais / Ver o teu pranto / Eu canto não é / Pra
ninguém chorar / Vou te dar meu coração / Para tuas
lágrimas secar / Vou te dar meu coração / Como emoção
/ Para tuas lágrimas secar.
Hoje sem querer; Cartola e
Babau
41
1928-1980
E muito bom violeiro / Era o maior seresteiro / Na
fazenda da Trindade // Cantava bem / Um desafio de
viola / No sertão até agora / Outro igual não apareceu /
Quem fez aquilo / Foi um tal Juca Malvado
Juca Malvado; Cartola
A maior parte das ocorrências traz o sentido de entoar canções. É interessante observar
que frequentemente o canto está associado à alegria e ao prazer; menos frequentemente
representa o consolo diante da tristeza ou o extravasamento de mágoas. Destaque-se o item
(20), no qual se diz que a própria Mangueira canta; essa metáfora é a expressão do
estranhamento do enunciador diante da pobreza dos moradores do morro, que contrasta com a
beleza da sua produção musical.
224
Merecem atenção as citações (8-10, 23, 25-27, 36-41), que se referem ao canto na roda
de samba, em apresentações artísticas ou na execução musical dirigida à mulher amada, ou
mesmo àquela que se deseja conquistar. Nesse último caso, as abonações (38-39) são
interessantes, pois apresentam a comoção da mulher diante do canto do enunciador, sem que
ele tivesse a intenção de conquistá-la. Essa ilustração exemplifica a representação, nesse
universo discursivo, do influxo que o ato de cantar tem sobre o estado de ânimo das pessoas.
Em (13), em colocação com glória, cantar assume o sentido de entoar canções em
homenagem a algo ou a alguém. Já em (1), há a leitura não composicional da expressão e
cantar glória significa gabar-se, vangloriar-se pela vitória em uma competição.
Sentido semelhante ao de (13) é encontrado em (29-30), com a diferença de que a
colocação de Jesus e Deus como argumentos do verbo cantar transformam a significação,
fazendo o canto se tornar um louvor religioso.
As citações (6-7, 16-19, 27) referem-se a vozes de aves, às vezes associadas ao canto
dos sambistas. Vejam-se mais informações sobre essa associação s.v. ave e rouxinol. Em
outros casos, o canto das aves é índice da harmonia da natureza; o canto do galo em (7) é
elemento de localização temporal do evento na letra — a ação que se desenrola envolve os
esforços de uma mulher para acordar seu companheiro, dizendo que está na hora de ir
trabalhar.
CANTO [2 ocorrências em 2 letras do corpus]
1
1947
Foi num dia de alegria / Que essa tragédia se deu / Foi
no carnaval passado / Que o Caquera morreu / Já não
se ouve o canto
mais / Daquele sabiá / Toda Lira está
em pranto / Todo mundo a chorar.
Ouvi dizer; Paulo da Portela
2
1977
E num canto de amor assim / Sempre vão surgir em mim
novas fantasias / Sinto vibrando no ar e sei que não é vã
/ A cor da esperança, a esperança do amanhã / Do
amanhã, do aman
A cor da esperança; Cartola e
Roberto Nascimento
A referência em (1), é à voz das aves (cf. cantar). A atuação do integrante falecido da
Lira do Amor é associada ao canto de um sabiá.
Em (2) a lexia refere-se à própria canção que é entoada, caracterizando-a como
amorosa; subsequentemente, a significação desse canto terá acrescidos outros traços positivos,
como o da esperança, numa caracterização das disposições otimistas do enunciador.
CANTOR [1 ocorrência no corpus]
1928-1980
Hoje sem querer / Que vim a saber / Que gostas de ouvir / Quando
canto, ó flor / Ficas comovida / Derramando pranto / Achas um encanto
/ Neste teu cantor //
Hoje sem querer; Cartola e Babaú
Na ocorrência, conforme já foi comentado em cantar, destaca-se o efeito que o canto
tem sobre a destinatária. O cantor, portanto, é o responsável pela sua comoção.
225
CARINHO [23 ocorrências em 17 letras do corpus]
1
1924
Tu me desprezas / Tu me abandonas / Tens o prazer /
De me ver abandonado / Não faz mal, / Ó meu benzinho,
/ O mundo gira / E na virada / Ainda te espero / Com
carinho
Tu me desprezas; Paulo da
Portela
2
1928
Me faz carinhos // Mulher, tu não me faz carinho / Seu
prazer é de me ver aborrecido / Ora vai, mulher, se estás
contrariada / Tu não és obrigada a viver comigo //
Me faz carinhos; Ismael Silva e
Francisco Alves
3
1928
Se eu fosse homem branco / Ou por outra mulatinho /
Talvez eu tivesse sorte / De gozar do seu carinho / A
maré que enche vaza / Deixa a praia descoberta / Vai-se
um amor e vem outro / Nunca vi coisa tão certa //
Me faz carinhos; Ismael Silva e
Francisco Alves
4
1931
Anda, vem cá / Se tu soubesses os carinhos de amor /
Que eu tenho pra te dar / Se você provar cairá vencida /
E minha será pra toda vida //
Anda, vem cá; Ismael Silva,
Nilton Bastos e Francisco Alves
5
1931
Carinho eu tenho // Carinho eu tenho até demais / e a
nota é como eu te digo / O meu desejo é uma ordem
meu bem / quando Deus quer não há castigo //
Carinho eu tenho; Ismael Silva
6
1931
Carinho sem a nota / não adianta mulher / diz que amor
é lorota / é bom para quem quiser / Eu não aceito / sou
espertinho / Eu acho direito / amor, nota e carinho //
Carinho eu tenho; Ismael Silva
7
1931
Desses carinhos não quero saber / Pra não andar só a
me maldizer / É preferível viver com a paz / Porque se
não faz bem, mal não faz //
É bom evitar; Ismael Silva, Nilton
Bastos e Francisco Alves
8
1931
Não tens nada de beleza / Além disso és dureza / Não
vivo só de carinho / Fizeste boa promessa / Foi assim
nessa conversa / Que me enganei direitinho //
Ironia; Ismael Silva, Nilton Bastos
e Francisco Alves
9
1931
Contigo eu me enganei / Pelo amor que te dei / Fui
direitinho no teu carinho / Na tua conversa eu andei /
Podes ficar descansada / Não vou mais te procurar /
Para amar tanto / Nunca ter nada / Sozinho eu quero
ficar.
Ironia; Ismael Silva, Nilton Bastos
e Francisco Alves
10
1937
Cem divididos por mil / Cada um com quanto fica / Não
pergunte à caixa surda / Não peça cola à cuíca / Lá no
morro vamos vivendo de amor / Estudando com carinho
o que nos passa o professor.
Teste ao samba; Paulo da
Portela
11
1938
Ele bem cedo te deixou / E na lama da vida caíste / Ele
te abandonou / Após cenas bem tristes / Bateu-te e
escorraçou / Deixou-te sem carinho / Bem vês nunca te
amou / Aquele por quem / Deixaste sozinho / E sem
ninguém.
Pecadora mulher; Paulo da
Portela
12
1939
Tristeza / quanta tristeza tenho eu / Só em saber / Que
vivo longe dos carinhos teus / A quem eu dediquei / O
meu sincero amor / E com tantas muitas falsidades / Me
abandonou
Tristeza; Cartola e Orlando
Batista
13
déc.1930
Alegria era o que faltava em mim / Uma esperança vaga
eu já encontrei / Pelos carinhos
que me faz me deixa em
paz / Não te quero ver para nunca mais //
Alegria; Cartola
14
déc.1930
Chegando eu quero recebê-lo com carinho / Tratá-lo
como reizinho / Enveredarei pelos caminhos dos bambas
/ Talvez será herdeiro / De uma coroa do samba.
Senhora Dona Cegonha; Paulo
da Portela
15
1941
Aos meus vizinhos / Eu agrado também!... / Mas meus
carinhos
/ Só você é que tem! / Os meus rivais / Fazendo
o mal se entretêm... / Não chores mais... / Não vá atrás
de ninguém //
Não vá atrás de ninguém; Ismael
Silva
16
1945
Não, / não vivo bem a seu lado / Apesar de ser tratado /
Com todo afeto e carinho / Não, não lhe tenho amizade, /
Bem vês / Deixa-me seguir o meu caminho / Reconheço
todos os feitos seus / Mas deixa-me voltar / Para junto
aos meus //
Perdoa; Paulo da Portela e
Cartola
17
1950
Ai! quando eu era criancinha / Ai que carinho / Todos os
dias me lavavam o corpinho / Por isso entrei no bloco do
camisolão / Com uma touca, uma chupeta / E a
mamadeira na mão.
Bico da cegonha; Ismael Silva
18
1950
Sem teu carinho como é que vou ficar / Era pouquinho,
mas me fez acostumar / Se desta vez não te botaram na
muamba, / Macaco me lamba (oba), macaco me lamba //
Macaco me lamba; Ismael Silva
19
1975
Pouco importa que me trates com desprezo / Que me
negues amor, carinhos, beijos / Pouco importa, porque
somente você, / Com você, eu vivo iludido / Mas, se lhe
perder, naturalmente, eu fico perdido //
Pouco importa; Cartola
20
1928-1980
Estou sentindo amor / Toda amargura / Que desejava
esquecer / E todo carinho que tinha acabou / E assim
termina um grande amor.
Estou sentindo; Cartola
Em (2, 4-9, 11-13, 15, 18-20), carinho é a manifestação amorosa e, mais do que isso,
226
uma força capaz de influenciar o comportamento do parceiro. A mobilização provocada pelos
carinhos de alguém, segundo as ocorrências em análise, pode ser sentir falta dos mesmos,
querer evitá-los, por não considerá-los sinceros ou benfazejos, oferecê-los à amada como
forma de corte etc. É importante assinalar que nesse sentido há a possibilidade da ocorrências
no plural, com valor intensivo da manifestação ou da sua influência.
Em (1, 3) trata-se do sentimento amoroso e não de suas manifestações. A afirmação da
existência desse sentimento é uma declaração de amor a alguém.
Em (14, 16, 17), há o sentimento de afeto mais genérico, próprio das relações
familiares e de amizade. A afirmação desse carinho corresponde às expectativas da
caracterização de uma relação desse tipo.
Em (10) a lexia corresponde a dedicação. Essa ocorrência de valor adverbial serve
para caracterizar a maneira de estudar; a caracterização é um recurso para demonstrar
reverência ao professor.
CARNAVAL [7 ocorrências em 7 letras do corpus]
1
1931
O meu batalhão que a ninguém faz mal / ele se reúne /
quando chega o Carnaval.
Meu batalhão; Ismael Silva,
Nilton Bastos e Francisco Alves
2
1931
Até parece muamba / Eu assim não vi igual / Você não
gosta de samba / Nem baile de carnaval (vejam vocês) //
Oleleô; Ismael Silva, Nilton
Bastos e Francisco Alves
3
1932
Pudesse meu ideal / Que é o carnaval / De encantos mil
/ Imortalizar neste poema / Cor de anil / Verossímil / E
levá-lo coroado / Pelas galas da história / Relembrando a
memória / Do meu querido Brasil
Pudesse meu ideal; Cartola e
Carlos Cachaça
4
1934
Você não deve me ofender / Eu não lhe dei razão / nem
ando atrás de discussão / Se eu procurasse me
esconder / de cara anormal / não assistia o carnaval.
Cara feia é fome; Ismael Silva
5
1935
Vamos avante cantando e sambando, / Este é o nosso
ideal, / Por entre perfumes e flores / Loucuras de amores
do carnaval.
Canta, meu bem; Paulo da
Portela
6
1947
Foi num dia de alegria / Que essa tragédia se deu / Foi
no carnaval
passado / Que o Caquera morreu / Já não
se ouve o canto mais / Daquele sabiá / Toda Lira está
em pranto / Todo mundo a chorar.
Ouvi dizer; Paulo da Portela
7
1942-1949
A homenagem ao Morro Azul // Viemos de Bento Ribeiro
para batizar / Unidos do Morro Azul em primeiro lugar /
Esse é o nosso ideal / Queremos ver brilhar no carnaval
.
A homenagem ao Morro Azul;
Paulo da Portela
A maioria das ocorrências reafirma o carnaval como período especial para as
atividades das escolas de samba. É um dos eventos principais para o samba carioca, durante o
qual ocorre a disputa do desfile das escolas de samba. Em (1), apesar de não ficar
completamente claro que a referência é aos desfiles, a menção a escolas de samba — “Favela,
Estácio, Oswaldo e Salgueiro” — direciona a interpretação para esse conceito.
Em (6), a alusão ao carnaval serve tanto para localizar no tempo o falecimento do
Caquera quanto para criar um contraste entre a tristeza ocasionada pelo acontecimento e a
alegria dos dias de carnaval. Em (4), a menção do carnaval também situa no tempo o evento
narrado, caracterizando o carnaval como período atípico, propício, entre outros
acontecimentos, à ação de provocadores de brigas.
227
O quase-frasema baile de carnaval (2) apresenta o evento noturno muito popular, que
ocorre geralmente em lugares fechados, com uma orquestra e cantores, que executam músicas
carnavalescas para um público dançar e brincar o carnaval. Na letra, o fato de a interlocutora
não gostar de baile de carnaval é mencionado como prova da falta de sintonia entre os dois; o
enunciador estranha muito essa postura dela, deixando implícito que gostar de baile de
carnaval seria praticamente um pressuposto para todos.
O quase-frasema amor de carnaval (5) está analisado s.v. amor.
CARTOLA [1 ocorrência no corpus]
1941
Mangueira, velha escola / Onde Cartola tem sido baluarte / Lindas
poesias, belas melodias / Têm todo valor de nossa parte
Homenagem à Mangueira; Paulo
da Portela
Como foi destacado na análise qualitativa, muitas composições da área temática
“metalinguagem” são dedicadas à homenagem de pessoas que se destacam no meio do samba
— os baluartes. São geralmente líderes em escolas de samba, além de pessoas cujo
comportamento serve de modelo aos seus pares. A abonação em questão homenageia Cartola,
destacando-o entre os mangueirenses.
CAVAQUINHO [3 ocorrências em 3 letras do corpus]
1
1935
Sim, cantarei / Espere um pouquinho / Tenha paciência /
Deixe que o cavaquinho / Faça a introdução / Com toda
cadência //
Canta, meu bem; Paulo da
Portela
2
1940
Tem um prêmio para quem / descobrir a nega bamba /
da escola de samba / que compra barulho / por qualquer
dinheiro / faz o dó maior / bem direitinho / no cavaquinho
/ toca cuíca / bate tamborim / enfrenta um pandeiro
Nega bamba; Paulo da Portela
3
1941
Chora, cavaquinho, chora / Chora, violão, também / O
Paulo no esquecimento não interessa a mais ninguém /
Chora, Portela, minha Portela querida / Eu que te fundei,
serás minha toda a vida.
O meu nome já caiu no
esquecimento; Paulo da Portela
Essa ocorrência integra o vocabulário de especialidade da música. Em (1), destaca-se a
função de acompanhamento do instrumento melódico-harmônico. A construção da
significação implica o apagamento do agente da execução da introdução, permanecendo o
cavaquinho como sujeito da colocação fazer a introdução.
Tal processo sintático é comum no domínio discursivo da música, assim como o
processo metonímico que denomina os músicos a partir dos instrumentos que tocam. Também
é possível que o instrumento passe a integrar o nome artístico do músico – Nelson
Cavaquinho, Paulinho da Viola, Paulão Sete Cordas etc.
Em (3) há a possibilidade de leitura ambígua do verbo chorar em colocação com
cavaquinho e violão (ver a análise do fenômeno s.v. chorar).
Em (2), conforme já comentado s.v. bamba, a habilidade de tocar cavaquinho e outros
instrumentos musicais característicos do samba é usada como forma de qualificar a mulher
descrita na letra como bamba.
228
CERIMÔNIA [2 ocorrências em 2 letras do corpus]
1
1960
Depois, aos poucos, o nosso samba / Sem sentirmos se
aprimorou / Pelos salões da sociedade / Sem cerimônia
ele entrou / Já não pertence mais à praça, / Já não é
samba de terreiro / Vitorioso, ele partiu para o
estrangeiro //
Tempos idos; Cartola e Carlos
Cachaça
2
1964
Está chegando o momento / De irmos pro altar, nós dois
/ Mas, antes da cerimônia, / Devemos pensar: e depois?
/ Terminam nossas aventuras / Chega de tanta procura /
Nenhum de nós deve ter / Mais alguma ilusão //
Nós dois; Cartola
O quase-frasema sem cerimônia, de função adverbial, indica que determinado ato foi
executado espontaneamente, sem constrangimentos ou percalços. Destaca, portanto, que a
ascensão social do samba teria ocorrido de forma harmoniosa, não causando desconfortos aos
sambistas, nem a outros grupos sociais.
Em (2), a lexia faz referência ao ritual religioso do casamento, leitura reforçada pelo
frasema ir pro altar.
CÉU [19 ocorrências em 14 letras do corpus]
1
1928
Se a bandeira brasileira é linda / A sua descrição vale
um tesouro / O verde representa as nossas matas / O
azul, o nosso céu / O amarelo o nosso ouro
Se a bandeira brasileira é linda...;
Paulo da Portela
2
1931
Como é linda nossa Guanabara / Jóia rara que beleza /
Quando nosso céu está todo azul, anoitece / O céu se
resplandece / Em seu bordado de estrela vê-se o
Cruzeiro do Sul //
Linda Guanabara; Paulo da
Portela
3
1932
Aurora vem raiando anunciando o nosso amor, ô, ô /
Desperta a cidade, o sol no céu flutua / Ele é a
mocidade, a saudade é a lua, ô //
Ao romper da aurora; Ismael
Silva, Lamartine Babo e
Francisco Alves
4
1933
A tarde chega / Mansa e serena / Esta grandeza / Suave
e amena / Acetinada / Surge a lua, / Descortinando / O
céu de anil / Esta grandeza / No céu flutua / E nos
convida / Sempre a bailar / Em homenagem / À natureza
/ A noite vem / Nos saudar.
Quando desperta a cidade; Paulo
da Portela
5
1934
O teu céu, o teu mar / É diferente / E as estrelas
candentes / Brilham mais / Alto dia o sol / Convida a
gente / E à noite o luar / Que alegria nos traz
És tu, Brasil, que nos seduz;
Paulo da Portela e Ernani
Rosário
6
1935
Quando à tardinha / Surge o pálido / Clarão da lua /
Outro céu
de anil cintila / Na superfície / Tranquila do
mar / Ardendo em fulgor / E as ondas não vozeam / Vem
morrer na branca areia / Orlando-a de espuma em flor //
Clarão da lua; Paulo da Portela
7
1935
O céu fez da noite um manto / A terra do céu a riqueza /
O mar encanto laraialaiá / Que dá-lhe a natureza.
Clarão da lua; Paulo da Portela
8
c1947
Para ter uma companheira / Até promessas fiz /
Consegui um grande amor / Mas eu não fui feliz / E com
raiva para os céus / Os braços levantei, blasfemei / Hoje
todos são contra mim //
Sim; Cartola e O Martins
9
déc.1940
Amo-te demais, ó, Pátria minha / Tua bandeira, ó, meus
irmãos, / O lábaro estrelado, o verde esperança, / O
amarelo ouro, o azul do céu, / E o branco da paz //
Amo-te demais, ó, Pátria
minha...; Cartola
10
déc.1940
Tiveram algumas conquistas / Atacando friamente, sem
respeitar / A neutralidade / A fé, a paz, o amor, a
liberdade / E pensaram que este céu, estas matas sem
fim / Seriam conquistadas tão fácil assim //
Nazista, quem és?; Cartola e
Carlos Cachaça
11
déc.1940
Saibam que este céu, este mar / Este lindo cenário /
Temos a defendê-lo os nossos expedicionários /
Oriundos da raça de Caxias / de Barroso e dos
Tamandarés / Diante desta gente, tão pura e tão forte, /
Nazista, quem és?
Nazista, quem és?; Cartola e
Carlos Cachaça
12
1959
Oh, maldito preconceito / Afasta-te no ajeito, aqui nada
conseguirás / Porque recebemos dos céus a bênção de
Jesus, / Que é mensagem de paz // Nosso amor não
acaba mais / Viveremos sempre em paz
Preconceito; Cartola
13
1974
Linda / No que se apresenta / O triste se ausenta / Fez-
se a alegria / Corra e olhe o céu / Que o sol vem trazer /
Bom dia / Ah! Corra e olhe o céu / Que o sol vem trazer
bom dia...
Corra e olhe o céu; Cartola e
Dalmo Castello
229
14
1974
Corra e olhe o céu // Linda / Te sinto mais bela / E fico na
espera / Me sinto tão só mas / O tempo que passa / Em
dor maior, bem maior //
Corra e olhe o céu; Cartola e
Dalmo Castello
15
1977
Amanhã / A tristeza vai transformar-se em alegria / E o
sol vai brilhar no céu de um novo dia / Vamos sair pelas
ruas, pelas ruas da cidade / Peito aberto, cara ao sol da
felicidade //
A cor da esperança; Cartola e
Roberto Nascimento
16
1977
Dizem que estou desfigurado, com razão / Estou
cansado de pedir / A Deus, aos céus enfim / Um amor,
onde encontrarei, Senhor? / Livrai-me desta nostalgia /
Confiante ainda espero um dia //
Desfigurado; Cartola
17
1977
Verde como o céu azul, a esperança / Branco como a
cor da Paz a se encontrar / Rubro como o rosto fica junto
à rosa mais querida / É negra toda tristeza se há
despedida na avenida / É negra toda tristeza desta vida
//
Verde que te quero rosa; Cartola
e Dalmo Castello
Em (2, 4-7, 13-15, 17), as ocorrências figuram em descrições de belezas naturais. Há
duas intenções discursivas principais nesses casos — louvar a beleza da natureza e o cenário
natural do Brasil ou da cidade do Rio de Janeiro; usar a beleza e amplidão do céu em seu
valor simbólico de tranquilidade e esperança. Em ambos os casos o céu compõe um pano de
fundo propício à idealização pretendida pelo enunciador.
Em (1, 9, 10-11), o céu figura em composições patrióticas, que recuperam a
interdiscursividade do azul do céu com a cor da bandeira nacional, ou então afirmam o
fundamento da simbologia das cores da bandeira: o céu, as matas e riquezas naturais como
valores a ser defendidos pelos brasileiros diante de qualquer ameaça.
Em (8, 12, 16), o uso da lexia tem significação religiosa, em intertextualidade com os
textos bíblicos, segundo os quais o céu é o lugar do paraíso, habitado por Deus. As
ocorrências nesse caso costumam ser pluralizadas; o enunciador remete súplicas ou queixas
aos céus e pode atribuir aos mesmos suas venturas ou desventuras.
Em (3), o uso da lexia é menos simbólico e funciona como índice da passagem do
tempo — a presença do sol no céu é marca da descrição do despertar da cidade.
CHINELA [1 ocorrência no corpus]
1933
Lá vem ela, lá vem ela / Com o ioiô do seu lado / Arrastando a chinela /
Dizendo samba raiado //
Dona do lugar; Ismael Silva e
Francisco Alves
Veja-se a análise do frasema arrastar a chinela s.v. arrastar.
CHORAR [96 ocorrências em 61 letras do corpus]
Chorar por emoção
72
1928-1980
Não quero mais / Ver o teu pranto / Eu canto não é / Pra
ninguém chorar / Vou te dar meu coração / Para tuas
lágrimas secar / Vou te dar meu coração / Como emoção
/ Para tuas lágrimas secar.
Hoje sem querer; Cartola e
Babaú
Nesse caso, o choro é motivado pela emoção diante da beleza do canto do enunciador.
Ele faz referência a esse efeito que exerceu sobre a interlocutora para declarar-se a ela.
230
Colocação com violão e cavaquinho
39
1941
Chora, cavaquinho, chora / Chora, violão, também / O
Paulo no esquecimento não interessa a mais ninguém /
Chora, Portela, minha Portela querida / Eu que te fundei,
serás minha toda a vida.
O meu nome já caiu no
esquecimento; Paulo da Portela
A ocorrência em colocação com esses instrumentos musicais passa a fazer referência a
um modo de tocar plangente, que foi inclusive a base para denominação do choro como
gênero musical. Além dessa significação específica do domínio discursivo da música, o verbo
chorar também personifica os instrumentos que passam assim a comungar das mágoas do
sambista.
Chorar por amor
1
1926
Chorar de fingimento // Não sei qual a razão que tu /
Lastimas a sorte meu bem / Chorar de fingimento é triste
/ São bem poucos os que resistem / iludir não convém
Chorar de fingimento; Paulo da
Portela
2
1929
Mas riso nem sempre é alegria / Chorar nem sempre é
sentimento / No mundo tem criaturas / Quando faz as
suas juras / Chora de fingimento
As mulheres são as rosas; Paulo
da Portela
5
1929
Arranjaste um novo amor, meu bem! / Eu sou um infeliz,
bem sei! / Mas ainda tenho fé / Que hei de te ver chorar
/
Quando souberes amar / Como eu te amei!... //
Novo amor; Ismael Silva
10
1931
Devias pagar por fazer chorar / a quem te tratava tão
bem / mas eu aprendi / o que fiz por ti / não hei de fazer
por mais ninguém //
Isso não se faz; Ismael Silva
17
1932
Pra que foste embora / Por ti tudo chora / Sem teu amor /
Esta vida não tem mais valor.
Adeus; Ismael Silva, Noel Rosa e
Francisco Alves
19
1932
Infelizmente / Este mundo é sempre assim / Quem ri
muito no começo / Chora quando chega o fim / Em mar
de rosas / Começou nossa amizade / E depois tu me
entregaste / A tristeza e a saudade
Assim, sim; Ismael Silva, Noel
Rosa e Francisco Alves
20
1932
E muita gente / Que a tristeza desconhece / Chora às
vezes de alegria / Quando ri de quem padece / Nas tuas
juras / Eu sorrindo acreditei / Hoje eu choro já descrente /
Vendo quanto me enganei
Assim, sim; Ismael Silva, Noel
Rosa e Francisco Alves
21
1932
Cantar para não chorar // Rir para iludir / Cantar para não
chorar / Beber para esquecer / O nome daquela ingrata
que me fez sofrer //
Cantar para não chorar; Paulo da
Portela e Heitor dos Prazeres
24
1932
Tristezas não pagam dívidas / Não adianta chorar /
Deve-se dar o desprezo / A toda mulher que não sabe
amar //
Tristezas não pagam dívidas;
Ismael Silva
29
c1933
Rir, não se ri de quem padece / Sofre, meu coração sabe
dizer / Ri, quando vê alguém chorar
/ Deus é justo e
verdadeiro / Por quem eu tenho chorado / Tenho fé em
me vingar //
Rir; Cartola e Noel Rosa
35
1937
Sei chorar // Sei chorar / Eu também já sei sentir a dor /
Estou cansado de ouvir dizer / Que aprende-se a sofrer
no amor //
Sei chorar; Cartola
48
déc.1940
Os teus olhos tão lindos / Da cor do luar / Os teus olhos
que fazem meus olhos chorar
/ Escravizado para sempre
serei / Estarei ao teu lado / O que precisares / Ordenes,
farei.
Ordenes e farei; Cartola e Aluísio
Dias
51
1968
Pois é, / Só Deus sabe o quanto amei / Por te amar tanto
chorei / E, chorando, levo a cruz até o fim //
Injúria; Cartola e Elton Medeiros
56
1974
Disfarça e chora // Chora / Disfarça e chora / Aproveita a
voz do lamento / Que já vem a aurora / A pessoa que
tanto querias / Antes mesmo de raiar o dia / Deixou a
escola com outro / Oh! Triste senhora //
Disfarça e chora; Cartola e
Dalmo Castello
64
1979
Quando você partiu, me disse: "Chora!", não chorei /
Caprichosamente fui esquecendo que te amei / Hoje me
encontras tão alegre e diferente / Jesus não castiga o
filho que está inocente
Basta de clamares inocência;
Cartola
66
1979
Ontem me contaram / que ela vive cantando /
lamentando o tempo perdido que comigo passou, / vim
saber de tanta coisa / confesso chorei magoado / eu fui
culpado / de ter terminado tão cedo nosso grande amor
Bem feito; Cartola
69
1979
Naquela hora minha vista ficou escura / Minha mão foi à
cintura e dois tiros disparei / E me encontraram com a
arma fumegando / Seu doutor, rindo e chorando / Se
morreram os dois, não sei
Feriado na roça; Cartola
231
71
1928-1980
Comovido fiquei / Quando entrei / No hospital / Soube
que o meu amor / Passava muito mal / Chorei de dor /
Não resisti / Só em saber / Que meu filho vivia / Mas a
mulher / Talvez fosse morrer //
Comovido; Cartola e Babau
73
1928-1980
Mas na hora da partida / fiz uma investida / quase
implorei para ela ficar / mas não tive a ousadia / que era
covardia / aos pés de uma mulher chorar.
Meu amor já foi embora; Zé com
Fome e Cartola
O choro em situações amorosas tem várias causas ou finalidades, segundo as
ocorrências apuradas. Pode significar arrependimento por erros cometidos que levaram ao
fracasso do amor (5), ou mágoa, devido ao comportamento da consorte (66); pode ser devido
à nostalgia da união terminada (informalmente, “dor de cotovelo”— 64); pode ser sofrimento
por desavenças em plena relação amorosa (10); pode ser considerado fingimento, uma
estratégia de manipulação da companheira (2); pode ser causado por emoção diante da paixão
(48), ou por desilusão devido a um projeto amoroso frustrado (56); pode, enfim, ser luto pela
morte da parceira (71), ou demonstração de descontrole de um assassino passional (69).
Geralmente, um dos amantes é responsabilizado pelo sofrimento amoroso; apesar de haver
casos nos quais o enunciador faz um mea-culpa, majoritariamente a mulher é considerada
responsável pelo sofrimento.
Chorar como demonstração genérica de tristeza
4
1929
Não chora, não chora / Vai como pode, cai na farra / está
na hora // Quem tem seda vai de seda / quem não tem
vai de estopa / o nome do nosso bloco / faz qualquer um
calar a boca
Não chora; Paulo da Portela
6
1930 (1ª
parte)
Alvorada lá no morro, que beleza / Ninguém chora, não
há tristeza / Ninguém sente dissabor / O sol colorindo é
tão lindo, é tão lindo / E a natureza sorrindo, tingindo,
tingindo (alvorada) //
Alvorada (no morro); Cartola,
Carlos Cachaça e Hermínio Bello
de Carvalho
43
1945
Agradeço comovido / E muito sentido / Por tudo que faço
/ Ao bem que me fez / Perdoa / Mas quero voltar / Para
junto daqueles que a vida / Sofrendo ou chorando, /
Cantando, sorrindo, / É boa. //
Perdoa; Paulo da Portela e
Cartola
50
1962
A sorrir / Eu pretendo levar a vida / Pois chorando / Eu vi
a mocidade perdida // Fim da tempestade, / O sol
nascerá / Fim desta saudade, / Hei de ter outro alguém
para amar
O sol nasce; Cartola e Elton
Medeiros
52
déc.1960
O vento, de quando em quando, / Num sussurro ameno /
Obriga toda a floresta a nos fazer aceno / É um festival
de alegrias / Que me põe a imaginar / Não sei se
devemos rir ou chorar
Que sejam bem-vindos; Cartola
53
déc.1960
Por Deus, não posso entender / Por que vamos
chorando / Se os nossos cicerones / São aves cantando
/ Lateralmente, as flores / Deitam aroma sorrindo / E
ouço da natureza: / Que sejam bem-vindos //
Que sejam bem-vindos; Cartola
67
1979
Dê-me graças, senhora, / Um sorriso a quem chora /
Onde há ódio / Eu vos peço que ponha amor / E assim /
Eu serei mais feliz que sou
Dê-me graças, senhora; Cartola
Nessas citações costuma-se mencionar o sofrimento manifestado pelo choro para
enfatizar as razões para não sofrer, ou a possibilidade de consolação na folia carnavalesca (4),
na beleza da natureza (6), na maturidade, que ensina a viver com serenidade (50), na
consolação religiosa (67). Em (43), usa-se esse verbo em coordenação com sofrer, cantar e
sorrir para caracterizar a relação de companheirismo incondicional que existe no grupo
descrito pelo enunciador.
232
Chorar por sofrimento existencial
13
1931
Ri pra não chorar // Nem sempre o riso é alegria /
Quantas vezes noite e dia / Nós levamos a cantar / Pra
não chorar, / Mas como há um ditado / "Quem espera
sempre alcança" / Nós vamos alimentando / Essa
esperança. //
Ri pra não chorar; Ismael Silva e
Francisco Alves
14
1931
Mesmo sem prazer / Rindo sem querer / Nós devemos /
Disfarçar / Pra não chorar
Ri pra não chorar; Ismael Silva e
Francisco Alves
22
1932
Não sei porque tu és tão orgulhosa / Por isso muito ainda
hás de chorar / Pois na verdade és bela e formosa / Mas
um dia a formosura há de te abandonar //
Quem espera sempre alcança;
Paulo da Portela
26
1933
Eu faço por não chorar / Para não demonstrar / Minha
grande aflição; / Só para desabafar, / Não quero enganar
/ Meu pobre coração.
Nunca dei a perceber; Ismael
Silva
27
1933
Não é só quem vive em pranto / Que sabe o que é
sofrer... / Eu sofro e no entanto / Nunca dei a perceber! //
E são tristes meus ais... / Pois quando a gente sente / E
não chora
/ Sofre muito mais //
Nunca dei a perceber; Ismael
Silva
30
1934
Choro sim // Choro sim, com razão, / Não tem fim minha
aflição... / Me acompanha noite e dia / Uma grande
nostalgia! //
Choro sim; Ismael Silva
33
1936
Compreendi o erro em toda a humanidade / Uns choram
por prazer e outros por saudade / Jurei e a minha jura
jamais eu quebrarei / E todo o pranto esconderei
Quem me vê sorrir; Cartola e
Carlos Cachaça
36
d1937
A Vila emudeceu / Dolorosamente chora / O que perdeu /
Ninguém é imortal / Morrer é natural / Ó Deus, perdoa /
Se é que estou pecando / Que mal te fez a Vila / Que lhe
estás torturando //
A Vila emudeceu; Cartola
40
d1941
Eu digo e afirmo que a felicidade aqui mora / E as outras
escolas até choram / Invejando a tua posição / Minha
Mangueira, és a sala de recepção / Aqui se abraça o
inimigo como se fosse irmão.
Sala de recepção; Cartola
45
1947
Foi num dia de alegria / Que essa tragédia se deu / Foi
no carnaval passado / Que o Caquera morreu / Já não
se ouve o canto mais / Daquele sabiá / Toda Lira está
em pranto / Todo mundo a chorar.
Ouvi dizer; Paulo da Portela
61
1977
Preciso andar pra não pensar / No que passou e não
chorar / Viver em paz e sepultar de vez / A minha grande
dor / Confiante despeço-me dos meus amigos / E da
cidade / Só voltarei quando encontrar felicidade
A mesma estória; Cartola e Elton
Medeiros
Em (36) e (45), a causa do choro é o pesar pelo falecimento de figuras do meio do
samba: Noel Rosa e Caquera, integrante da escola de samba Lira do Amor. No primeiro caso,
o próprio bairro de Vila Isabel surge personificado, lamentando-se pela morte de Noel.
As motivações do choro nos demais casos são as desilusões e aflições da vida (13), a
emoção ocasionada por um acontecimento positivo (33), a inveja das conquistas da escola de
samba concorrente (40). Ainda em (40), mais uma vez, as escolas de samba estão
personificadas; a própria Mangueira, nesse mesmo caso, tanto é personificada quanto é a
destinatária da enunciação.
Com relação ao choro por desilusões da vida, é marcante a postura discursiva de que é
preciso disfarçar esse sofrimento. Nega-se a possibilidade de chorar, considerando-se que a
alegria, mesmo que apenas aparente, ameniza o sofrimento.
Chorar como manifestação infantil
59
1976
Os fio que é meu, que é meu / E que é dela / Rebenta a
goela de tanto chorá / O rio tá seco, o sol não vem não /
Vortemos pra casa / Chamando Dondon
Ensaboa; Cartola
O choro infantil é mencionado como elemento da descrição do cenário doméstico e
também para que a mulher, identificada como lavadeira, seja vista como muito atarefada,
233
tendo de dividir a atenção entre o trabalho e os filhos.
CIÚME [8 ocorrências em 6 letras do corpus]
1
1929
Uma vez emurchecidas / Tombam para toda a vida / No
seu leito de agonia que é o chão / Enquanto o jardineiro
ciumento / Ciúme de fingimento / Dando a outra o
coração
As mulheres são as rosas; Paulo
da Portela
2
1929
As mulheres são as rosas / E nós somos jardineiros /
Que tratamos e zelamos com ciúme / Quando estão
viçosas e cheirosas / Ficamos narcotizados / Em sentir o
seu perfume.
As mulheres são as rosas; Paulo
da Portela
3
1939
Guardo a tristeza porque / Dela sou o maior amigo /
Depois que perdi você / Eu não canto, eu não danço /
Acabou tudo pra mim / Se eu cantar essa tristeza / Terás
ciúme
de mim. //
Tristeza; Cartola e Orlando
Batista
4
1941
Alfaiate, Zé Com Fome, / Também são dois nomes de
valor / Comparo suas letras com gotas de orvalho / Que
eu as bebo sem ciúme, com sabor
Homenagem à Mangueira; Paulo
da Portela
5
1975
O ciúme e o desprezo são armas de dois gumes /
Quanto mais se digladiam, / Aumentam os queixumes /
Felizmente eu sou dotado de resignação / Para não ferir
meu coração.
Pouco importa; Cartola
6
1928-1980
A nossa vida era calma / Havia paz em minha alma / Mas
você foi além da imaginação / Brigas e tantos queixumes
/ E o fantasma do ciúme
/ Foram a causa crescente da
separação
Se o amor é isso; Aluísio Dias e
Cartola
7
1955-1980
Todo mundo dizia que Ana Maria era muito legal / Eu me
apaixonei e com ela casei este foi o meu mal / Brigas
permanente um ciúme doente nunca vi coisa assim / Se
eu voltar em Mangueira sei que a turma inteira vai
zombar de mim
Ciúme doentio; Cartola e Nelson
Sargento
8
1955-1980
Ciúme doentio // Ah meu Deus se eu soubesse quem ela
era / Juro que jamais faria esta união / Bonita mulher
mas de gênio é uma fera
Ciúme doentio; Cartola e Nelson
Sargento
A absoluta maioria das ocorrências diz respeito às relações amorosas. A exceção é (4),
em composição feita por Paulo da Portela para homenagear os compositores da Mangueira.
Nesse caso, ciúme corresponde a inveja; o enunciador diz reconhecer o valor das composições
do mangueirenses sem reservas.
Nos outros casos, (1-3, 5-6), a referência é ao comportamento possessivo nas relações
amorosas, geralmente apresentado negativamente, comparado a uma arma, associado a
fantasmas. Apenas em (1-2) fica sugerido que o ciúme faz bem à relação amorosa —
relaciona-se metaforicamente o ciúme do homem em relação à mulher ao cuidado que
jardineiro tem ao cuidar de flores.
As colocações ciúme doente/doentio (7-8) também estão alinhadas com a
representação negativa do ciúme. O modificador, nesse caso é um intensificador dos atributos
negativos do ciúme.
CLAUDIONOR [2 ocorrências em 2 letras do corpus]
1
1940
Ao romper do sol / Ouvi cantar um rouxinol / Cantando
um hino em louvor / O mano Paulo dando viva ao
Claudionor.
Cantar de um rouxinol; Paulo da
Portela
2
1922-1949
O samba bem cantado é lindo / Voltamos na linha de
frente / Para presidente o mano Claudionor
Avante, mocidade, é hora...;
Paulo da Portela
Ambas as composições evidenciam um portelense afamado no passado da Portela: o
Claudionor, que se destacava principalmente como passista. Em (1), ele é homenageado por
234
Paulo, que, em (2), promove a sua candidatura à presidência da escola de samba. O emprego
do pragmatema mano é uma marca da camaradagem entre os sambistas, que será abordada no
verbete homônimo.
COLA [1 ocorrência no corpus]
1937
Cem divididos por mil / Cada um com quanto fica / Não pergunte à caixa
surda / Não peça cola à cuíca / Lá no morro vamos vivendo de amor /
Estudando com carinho o que nos passa o professor.
Teste ao samba; Paulo da Portela
A colocação pedir cola é mais um elemento usado para construir a associação entre os
conhecimentos envolvidos no universo do samba e aqueles próprios da educação formal.
Esses recursos estão abordados s.v. atenção e aula.
COMISSÃO [1 ocorrência no corpus]
1937
Vou começar a aula / Perante a comissão, muita atenção / Eu quero ver
se diplomá-los posso / Salve o fessor, dá nota a eles, senhor / Quatorze
com mais doze noves fora tudo é nosso //
Teste ao samba; Paulo da Portela
A lexia comissão tem valor ambíguo nessa passagem — com relação ao universo do
ensino formal, construído na letra pelas referências próprias de uma situação de sala de aula,
pode dizer respeito a uma comissão avaliadora; com relação ao universo do samba, é a
comissão julgadora do desfile de carnaval.
COMPOSITOR [2 ocorrências em 1 letra do corpus]
1
1957
Perdoa-me a comparação, / Mas fiz uma transfusão / Eis
que Jesus me premeia / Surge outro compositor / Jovem
de grande valor / Com o mesmo sangue na veia
Fiz por você o que pude; Cartola
2
1957
Continuam nossas lutas / Podam-se os galhos, / Colhem-
se as frutas / E outra vez se semeia / E, no fim deste
labor, / Surge outro compositor
/ Com o mesmo sangue
na veia //
Fiz por você o que pude; Cartola
A lexia compositor corresponde à identidade do criador de canções, função de grande
importância no meio do samba. Em “Fiz por você o que pude”, samba dedicado à reflexão
sobre os esforços empreendidos na criação da Mangueira e sobre as conquistas decorrentes
desses esforços, a descrição de eventos culmina com o surgimento de outro sambista
habilidoso na composição e com o mesmo código de valores do enunciador — esse outro
compositor está na posição de beneficiário das lutas de seus antecessores. Conforme foi
comentado na análise qualitativa, a letra está entre aquelas que afirmam que o samba é um
patrimônio, transferido para as novas gerações, que são herdeiras desse valor cultural.
CONCORRER [1 ocorrência no corpus]
1932
Pudesse um dia / Juro faria / Do samba o maior herói / Concorrerias /
Com as vitórias / Que existiam entre nós / Seriam páginas de intenso
fulgor / E o passado teria maior valor
Pudesse meu ideal; Cartola e
Carlos Cachaça
A lexia concorrer remete às disputas de carnaval entre as escolas de samba. Vejam-se
mais informações sobre o assunto s.v. adversário.
235
CONQUISTA [3 ocorrências em 2 letras do corpus]
1
déc.1940
Exterminemos de uma vez para sempre / Os nazistas /
Que mediocremente / Tiveram algumas conquistas /
Atacando friamente, sem respeitar / A neutralidade
Nazista, quem és?; Cartola e
Carlos Cachaça
2
1960
E muito bem representado / Por inspiração de geniais
artistas, / O nosso samba, humilde samba, / Foi de
conquistas em conquistas / Conseguiu penetrar no
Municipal
Tempos idos; Cartola e Carlos
Cachaça
A abonação (2) remete às disputas de carnaval entre as escolas de samba. Veja-se ir
para mais informações sobre o frasema ir de conquistas em conquistas. Quanto a (1) a
referência também é a disputas, mas nesse caso fala-se em batalhas durante a Segunda Guerra
Mundial. A letra destaca-se por grande hostilidade, própria do discurso patriótico em tempos
de guerra.
CONTENTE [9 ocorrências em 8 letras do corpus]
1
1929
A Portela está contente / Para frente / Com fé e coragem
/ Que eu quero ver / Quero saber do sucesso / Dentro da
ordem e progresso / Salve então a rua B
A Portela está contente...; Paulo
da Portela
2
1932
Até já ando descrente / de meu viver compungido / e
cheio de amargura / Eu vivia bem contente / e hoje sou
perseguido / por tão grande desventura.
Antes não te conhecesse; Ismael
Silva e Francisco Alves
3
1968
Nosso lar, em nosso lar sempre houve alegria / Eu vivia
tão contente / Como contente ao teu lado estou / Tive
sim / Mas comparar com teu amor seria o fim / E vou
calar pois não pretendo amor te magoar.
Tive sim; Cartola
4
1975
Que sejas bem feliz / Mas leves-me na mente / Que
cresçam suas glórias / E as minhas lágrimas contente
Que sejas bem feliz; Cartola
5
1977
Lembro dos tempos de outrora / Que quase me roubam /
A esperança e a fé / E hoje me volto contente / Cantando
pra Deus / Que tanto me ajudou
A canção que chegou; Cartola e
Nuno Veloso
6
1979
Quando eu soube que Maria Rosa vinha / Da cidade
onde tinha ido há dias passear / Gritei contente graças a
nosso senhor / Eu pensei que meu amor não queria mais
voltar
Feriado na roça; Cartola
7
1979
Faz o que te digo, amor / Vai, voltes daqui / Eu quero te
ver contente / Te ver alegre / Sempre a sorrir.
Fim de estrada; Cartola
8
1928-1980
Numa manhã lá no alto, / Bem no alto / Onde ouço a
passarada / No romper da madrugada / A gorjear / Eu
me sinto alegre / Me sinto contente
/ Me sinto feliz / Em
ouvir a passarada / No romper das madrugadas / Em
meu país
Manhã de primavera; Cartola
Em (1) o sentimento de contentamento é atribuído à Portela, na pessoa dos seus
integrantes. A causa desse sentimento é a fundação de uma nova agremiação carnavalesca,
que recebe a visita dos portelenses.
Em (2-4, 6-7) o sentimento está associado a relações amorosas. Pode ser devido à
união com a amada (3), ou à iminência do encontro com ela (6); também pode representar
uma lembrança do estado de ânimo do enunciador antes da relação, o que a caracteriza como
insatisfatória (2); pode ser um voto positivo à ex-companheira, no momento da separação (7).
Em (5) o contentamento resulta da conclusão do enunciador que, após um balanço de
experiências, entende que a sua vida foi satisfatória. Já em (8), o estado de espírito resulta da
influência da natureza, sempre representada harmoniosamente.
236
COR [11 ocorrências em 10 letras do corpus]
1
1927
Uma luta vencida por amor e glória / São linhas traçadas
/ Nas páginas da história / Gravado com as cores de
nosso país / Em seu castelo Portela feliz
Uma luta vencida por amor e
glória; Paulo da Portela
2
1932
Quando a tarde é cor de rosa / Ainda é mais formosa /
Tem cenários sedutores / Te admiram os estrangeiros /
Se orgulham os brasileiros / Teus poetas sonhadores
Cidade mulher; Paulo da Portela
3
1932
Pudesse meu ideal / Que é o carnaval / De encantos mil
/ Imortalizar neste poema / Cor de anil / Verossímil / E
levá-lo coroado / Pelas galas da história / Relembrando a
memória / Do meu querido Brasil
Pudesse meu ideal; Cartola e
Carlos Cachaça
4
1938-1940
Quantas vezes eu ouvi / Pássaros verdes e amarelos /
Da cor da nossa bandeira / Que seduz o mundo inteiro /
O orgulho dos brasileiros.
Corações em festa; Cartola
5
1946
És o cavaleiro que sonhamos / De ti muito esperamos /
Com todo amor febril / Para amenizar nossas dores / E
levar bem alto as cores / Da bandeira do Brasil
Cavaleiro da esperança; Paulo
da Portela e Monarco
6
1922-1949
O azul e branco / Cores da nossa bandeira / O Rio
estamos aqui para abrilhantar o nosso festival
O azul e branco...; Paulo da
Portela
7
déc.1940
Os teus olhos tão lindos / Da cor do luar / Os teus olhos
que fazem meus olhos chorar / Escravizado para sempre
serei / Estarei ao teu lado / O que precisares / Ordenes,
farei.
Ordenes e farei; Cartola e Aluísio
Dias
8
1952
Não é preciso se assustar / Não quero o seu algum / Eu
gosto é de brincar / o seu não se espera nenhum / Até a
cor nunca se vê / Nem para um café / Por isso em você
ninguém faz fé
Ninguém faz; Ismael Silva e
Paulo Medeiros
9
1977
E num canto de amor assim / Sempre vão surgir em mim
novas fantasias / Sinto vibrando no ar e sei que não é vã
/ A cor da esperança, a esperança do amanhã / Do
amanhã, do aman
A cor da esperança; Cartola e
Roberto Nascimento
10
1977
A cor da esperança // Amanhã / A tristeza vai
transformar-se em alegria / E o sol vai brilhar no céu de
um novo dia / Vamos sair pelas ruas, pelas ruas da
cidade / Peito aberto, cara ao sol da felicidade //
A cor da esperança; Cartola e
Roberto Nascimento
11
1977
Verde como o céu azul, a esperança / Branco como a
cor da Paz a se encontrar / Rubro como o rosto fica junto
à rosa mais querida / É negra toda tristeza se há
despedida na avenida / É negra toda tristeza desta vida
//
Verde que te quero rosa; Cartola
e Dalmo Castello
As alusões a cores são frequentes no corpus. Elas ocorrem seja em menções à sua
simbologia, seja em referências às bandeiras das escolas de samba, ou mesmo à bandeira
nacional. Uma composição de destaque nesse aspecto é “Verde que te quero rosa”, na qual
combinam-se a simbologia das cores, a sua presença no estandarte da Mangueira e alusões a
cores das coisas, com apresentação poética.
A maioria das ocorrências traz a noção de cor a partir do seu valor simbólico. Em (1,
4-5) faz-se referência às cores da bandeira nacional, em composições de cunho nacionalista.
No item (1) usa-se a metáfora de escrever um feito importante nas páginas da história, para
dizer que tal feito alcançou a imortalidade; para aumentar o apelo patriótico da metáfora,
qualifica-se o registro, que seria feito com as cores da bandeira. Já em (4), estabelece-se uma
sintonia entre o sentimento nacionalista e as riquezas naturais do Brasil, dizendo-se que as
aves que compõem o cenário natural são das cores da bandeira nacional. Duas colocações
comuns nessa significação são cores da [nossa] bandeira, ou cores do [nosso] país.
Em (6), está mantida a significação simbólica das cores e seu emprego para
representar instituições em uma bandeira; nesse caso, entretanto, não se trata da bandeira
nacional, mas a da Portela. As cores azul e branco são mencionadas para representar a
237
presença dos portelenses em um evento esportivo. Aqui mantém-se a colocação cores da
[nossa bandeira], mas mudam as cores, assim como a situação discursiva.
Em (3), relaciona-se a própria composição à cor anil, uma das presentes na bandeira
nacional, o que reforça a afirmação contida na letra, de que o samba é um patrimônio
nacional. Em (11), aciona-se a simbologia da cor branca, qualificada a partir do quase-
frasema cor da paz. Associações semelhantes encontram-se em (9-10), que relacionam o
verde ao seu valor simbólico a partir do quase-frasema cor da esperança.
(2) e (7) são ocorrências que trazem a lexia cor com intenções mais estritamente
descritivas. Assim mesmo, há associações poéticas que relacionam os olhos da destinatária à
cor do luar (talvez pelo seu brilho).
Em (8), encontra-se um uso da lexia que guarda interdiscursividade com o
pragmatema não ver a cor do dinheiro, usado em situações nas quais se espera receber
dinheiro por algum motivo, mas essa expectativa não se concretiza. Na abonação, evoca-se a
carga discursiva da expressão para enfatizar o desagrado com o comportamento do
interlocutor, que é qualificado como avaro.
CORAÇÃO [66 ocorrências em 54 letras do corpus]
Referência à sede do sentimento
1
1924
Depois que magoaste bem meu coração / Partiste e
agora voltaste / A clamar inocência / Sinto-me refeito de
paixão
Dor que ensina; Paulo da Portela
10
1932
O meu coração padece / Com a tua vaidade / Mas só
culpa a natureza / Quem tem em mim o interesse / e sem
ter necessidade / foi te dar tanta beleza //
Antes não te conhecesse; Ismael
Silva e Francisco Alves
11
1932
Se algum dia tiver de mim compaixão / Que alegria vai
ser no meu coração / A tua volta será meu sonho
dourado / Eu viverei e esquecerei meu passado.
Cantar para não chorar; Paulo da
Portela e Heitor dos Prazeres
12
1932
Perdão, meu bem / atacou-me o coração, / Falei demais /
sou bom rapaz / no modo de proceder / perdão, porque /
se acabar nossa amizade / eu vou morrer / sinto dores, /
são saudades. //
Perdão, meu bem; Cartola
13
1932
Não creias nestas mentiras / que roubam nossa alegria /
Os invejosos se vingam / armados de hipocrisia / A
mentira infelizmente / o mais forte amor destrói / Mas se
eu não tenho remorso / O meu coração não dói. //
Qual foi o mal que eu te fiz?;
Cartola
15
1933
Tudo acabado / E o baile encerrado / Atordoado fiquei /
Eu dancei com você / Divina dama / Com o coração /
Queimando em chama //
Divina dama; Cartola
18
c1933
Rir, não se ri de quem padece / Sofre, meu coração sabe
dizer / Ri, quando vê alguém chorar / Deus é justo e
verdadeiro / Por quem eu tenho chorado / Tenho fé em
me vingar //
Rir; Cartola e Noel Rosa
19
1934
Brasil do coração / A palpitar de emoção / Em grande
euforia / Admirado, és Brasil amado //
És tu, Brasil, que nos seduz;
Paulo da Portela e Ernani
Rosário
20
1935
Ó que loucura, quanta formosura / Que tentação / Veja
que isso não desasossegue o meu coração //
Canta, meu bem; Paulo da
Portela
22
1935
Liberdade / Para um coração que sofrendo / Está quase
morrendo / Porque quer amar / Liberdade / Solta-me
desta prisão / Porque meu coração
/ Não pode suportar
Liberdade; Paulo da Portela e
Dengo
23
1936
Não quero mais / Amar a ninguém / Não fui feliz / O
destino não quis / O meu primeiro amor / Morreu como a
flor / Ainda em botão / Deixando espinhos / Que
dilaceram meu coração //
Não quero mais amar a ninguém;
Cartola, Carlos Cachaça e Zé da
Zilda
238
24
1936
Quem me vê sorrindo pensa que estou alegre / O meu
sorriso é por consolação / Porque sei conter para
ninguém ver / O pranto do meu coração //
Quem me vê sorrir; Cartola e
Carlos Cachaça
25
1938-1940
Que estranha sinfonia / Ao ambiente empresta / Este
bando irrequieto / De alegres periquitos / Deixam os
corações em festa //
Corações em festa; Cartola
27
1941
Esta malvada bem sabe o mal que me fez / Mas não faz
mal, eu lhe perdoo outra vez / Meu coração vive
reclamando noite e dia / Por isso eu peço que ela volte
para minha companhia
Não posso viver sem ela;
Alcebiades Barcellos e Cartola
29
1943
Maestro, toque aquela / Aquela que me traz recordação /
Do ano que já passou / E deixou saudades no meu
coração // Ai, ai, ai, ai / Eu nem posso me lembrar / Que
música boa pra gente dançar
Maestro, toque aquela!; Ismael
Silva e José de Almeida
32
c1947
Desde o dia em que partiste / A saudade morou em meu
peito / Eu já procurei alguém / Mas não há jeito /
Coração, o que é que esperas / De um amor tão desleal?
/ Não estás vendo, coração, ela partiu, / Causando tanto
mal.
Rolam nos meus olhos; Cartola
39
1972
Acontece que meu coração / Ficou frio / E nosso ninho
de amor está vazio / Se eu ainda pudesse fingir que te
amo / Ai, se eu pudesse / Mas não quero, não devo fazê-
lo / Isso não acontece.
Acontece; Cartola
43
1976
Todo mundo sabe que em meu coração / quase não
cabe tanta ingratidão / gostaria de ouvir / o que é que
você diz / quando alguém pergunta / o que é que eu fiz
Ingratidão; Ismael Silva
51
1979
Ó meu coração, coração / Quem, quem verá que vem /
Sinto que ninguém / Vai me dar perdão / Eis a prova dos
meus grandes erros / Erros estes que eu soube julgar /
Não importa, mas vou do desterro / Desabrochar
Motivação; Cartola e Dalmo
Castelo
60
1955-1980
Foi a saudade que me trouxe aqui / depois que te perdi /
mergulhei na sofreguidão / ao cair na realidade /
descobri que a felicidade / está na bondade do seu
coração
Vim lhe pedir; Nelson Sargento e
Cartola
Coração, na grande maioria das abonações listadas, faz referência não ao órgão do
corpo humano, mas tem o valor simbólico de sede da emoção e da afetividade.
A ocorrência (29) evidencia a imagem segundo a qual o coração é a sede do
sentimento. Nesse caso, a colocação deixar saudades é combinada com o locativo no meu
coração. A expressão “deixar [sentimento] no coração” é provavelmente uma fórmula de
rotina; seria desejável, entretanto, corroborar essa suposição em um corpus mais amplo.
O trecho transcrito em (20) traz a colocação desassossegar o meu coração que, mais
uma vez, estabelece que o órgão é diretamente afetado por estados emocionais. Em outros
casos, o coração é tomado por emoções como mágoa (1), alegria (11), emoção patriótica (19),
saudades (29), desgosto pela ingratidão (43). Outras vezes, transferem-se metonimicamente
para o coração estados de ânimo e reações do experienciador, como sofrimento (10, 22),
descontrole (12), dor emocional (13), calor (15), pranto (24), euforia (25), frieza (39) e
bondade (60). Em certos casos, ainda, o coração ganha autonomia, e o enunciador conversa
com ele, num reconhecimento metafórico de que não se pode controlar racionalmente os
sentimentos. É o que acontece em (18), quando se reconhece que o coração é capaz de
expressar emoções que o enunciador não pode; em (27), quando se atribui às suas
reclamações a iniciativa de buscar uma reconciliação; em (32), quando o enunciador tenta
convencê-lo a desligar-se da mulher que o abandonou.
239
Colocação pobre coração
17
1933
Eu faço por não chorar / Para não demonstrar / Minha
grande aflição; / Só para desabafar, / Não quero enganar
/ Meu pobre coração.
Nunca dei a perceber; Ismael
Silva
46
1977
Escravizaram assim um pobre coração / É necessária
nova abolição / Pra trazer de volta a minha liberdade / Se
eu pudesse gritaria, amor, / Se eu pudesse brigaria,
amor, / Não vou, não quero.
Autonomia; Cartola
47
1977
Meu coração é pobre e magoado / É infeliz como um
menor abandonado / Vive sempre nesta ilusão, /
Procurando outro coração.
Desfigurado; Cartola
58
1928-1980
Deixei-me envolver num grande drama / Estou
procurando a solução / E cada vez é mais ardente a
chama / No meu sofrido e pobre coração
Opção; Cartola e Evandro Bóia
Essa colocação enfatiza o sofrimento ao qual o coração, como sede da emoção, estaria
sujeito. A qualificação pobre só ocorre, portanto, em contextos de emoções negativas, como
intensificador do sofrimento.
Colocações coração duro e coração frio
44
1976
O fim de todo amor, é tão triste que juro / Despedaça-se
ao vê-lo o coração mais duro / Ela fica aos beijos com
qualquer criatura / E ele procura a paz na paz da
sepultura.
Todo amor; Carlos Cachaça e
Cartola
39
1972
Acontece que meu coração / Ficou frio / E nosso ninho
de amor está vazio / Se eu ainda pudesse fingir que te
amo / Ai, se eu pudesse / Mas não quero, não devo fazê-
lo / Isso não acontece.
Acontece; Cartola
As qualificações duro e frio têm, nessas colocações, a significação metafórica de
insensibilidade.
Colocação coração partido
37
1968
Sabes que vou partir / Com os olhos rasos d'água / E o
coração partido / Quando lembrar de ti / Me lembrarei
também / Deste amor proibido //
Amor proibido; Cartola
A colocação alia o valor simbólico de coração com a significação metafórica de
partido, que sugere que o excesso de sofrimento pode quebrar um coração.
Referência ao órgão corporal
42
1976
Bate outra vez / com esperanças o meu coração / Pois já
vai terminando o verão, enfim / Volto ao jardim / Com a
certeza que devo chorar / Pois bem sei que não queres
voltar / Para mim
As rosas não falam; Cartola
48
1979
ela impassiva e fria notei / não me dava a menor atenção
/ e o meu coração
batendo acelerado / de segundo a
segundo / caindo no abismo / e ela com um leve sorriso
nos lábios / talvez criticasse todo o meu cinismo
Bem feito; Cartola
50
1979 Bate outra vez / Com esperanças o meu coração, enfim.
Motivação; Cartola e Dalmo
Castelo
Em todos os casos, a ação de bater é atribuída ao coração, em seu comportamento
como órgão corporal. Mesmo nesses casos, entretanto, as caracterizações não deixam de
atribuir emoções ao coração — em (42) e (50), ele é qualificado como esperançoso; em 48, o
coração que bate acelerado é inserido em uma metáfora de queda em um abismo, que
representa emoções negativas.
240
Referência a pessoas
52
1979
Nosso romance teve senões / E se separam dois
corações / Posso chorar até esquecer / Mas o meu
desejo é viver longe de você //
Senões; Cartola e Nuno Veloso
A separação de dois amantes é representada como a de dois corações; isso enfatiza a
carga emocional envolvida no evento.
Frasema estar dentro do coração
34
1922-1949
Não é lá muito difícil / acertar a marcação / o samba
nasce com a gente / está dentro do coração
Não é lá muito difícil; Paulo da
Portela
A partir desse frasema, afirma-se que o samba está introjetado nos sambistas e lhes é
uma prática natural, também carregada de afetividade. Tal afirmação é coerente com a
ideologia inatista, abordada na análise qualitativa. Há uma variante: estar no sangue (ver
sangue).
Frasema dar o coração [a alguém]
2
1929
Uma vez emurchecidas / Tombam para toda a vida / No
seu leito de agonia que é o chão / Enquanto o jardineiro
ciumento / Ciúme de fingimento / Dando a outra o
coração
As mulheres são as rosas; Paulo
da Portela
3
1929
Arranjei outra, / Que não troco por ninguém, / Já que tu
me abandonaste, / Há males que vêm pra bem... / Hoje
em dia sou feliz / Sem a tua ingratidão / Encontrei outro
benzinho / A quem dei meu coração!... //
Novo amor; Ismael Silva
5
1930
Sei que estás arrependida / Por isso pedes perdão / Já
que tu segues nova vida / Eu te darei meu coração
Quando souberes amar; Ismael
Silva
9
1932
Eu, cismado, espero agora / Ver você a qualquer hora /
Dando a outro o coração / Quando chegar esse dia /
Deixo sua companhia / Sem explicar por que razão.
Ando cismado; Ismael Silva e
Noel Rosa
56
1928-1980
Não quero mais / Ver o teu pranto / Eu canto não é / Pra
ninguém chorar / Vou te dar meu coração / Para tuas
lágrimas secar / Vou te dar meu coração / Como emoção
/ Para tuas lágrimas secar.
Hoje sem querer; Cartola e
Babau
O frasema faz referência ao envolvimento amoroso com alguém. Pode se tratar da
constatação de que esse envolvimento ocorre, ou ocorreu, ou então equivaler a uma
declaração de amor. Os tempos verbais do presente e do futuro são predominantes neste
último caso, enquanto os do pretérito costumam ser empregados naquele primeiro.
Frasema dono(a) do meu coração
4
1930
Mulher assim, / Deus me livre, não preciso, / Meu
benzinho, tu pensavas / Me iludir com teu sorriso, / Já
julgavas ser / Dona do meu coração, / Queres me ver
sofrer, / Desiste da pretensão.
Não há; Ismael Silva, Nilton
Bastos e Francisco Alves
A significação desse frasema é correspondente àquela de dar o coração a alguém,
apenas com uma perspectiva diferente: o fato de dar o coração a alguém é usado para enfocar
a qualificação da amada como destinatária do amor, e não do amante como experienciador do
amor.
Frasema [não] ter coração
6
1930
Tenho um coração / Poderei lhe perdoar / Mas da sua
ingratidão / Sempre hei de me lembrar //
Quando souberes amar; Ismael
Silva
241
55
1928-1980
Tu não sabes amar / Para que tens um coração? / Ai,
meu Deus, o melhor entre nós dois / É a separação //
Consideração; Cartola e Heitor
dos Prazeres
Nesse frasema aciona-se mais uma vez a carga simbólica do coração para dizer que as
pessoas sensíveis e compassivas têm coração, enquanto as insensíveis não o têm.
Comportamentos como a capacidade de perdoar e de corresponder ao amor de outra pessoa
são correlacionados com ter um coração.
Pragmatema meu coração
14
1932
Orgulho, hipocrisia, vaidade e nada mais / São três
coisas que em menos de um segundo se desfazem / O
mundo é mesmo assim, cheio de ilusão / Hás de te
convencer, meu coração //
Quem espera sempre alcança;
Paulo da Portela
Essa é uma forma de tratamento usada para se dirigir a alguém, geralmente de forma
carinhosa. No caso em questão, além do carinho, também se percebe um tom um pouco
professoral, que marca uma relação assimétrica entre quem tem experiência de vida e quem é
menos experiente.
Frasemas morar no coração [de alguém] e trazer [alguém] no coração
26
1941
Eu sempre lhe tratei / Com bastante respeito / Mesmo
assim não deixei / De levar fama sem proveito //
Aproveito o lugar / E a ocasião / Para lhe perguntar / Se
posso morar no seu coração.
Fama sem proveito; Ismael Silva
e Heitor Catumby
40
1972
Eu agora só tenho você / Na minha ilusão / Eu queria,
apesar de saber, / De ser um desprezado / Algum dia
poderia trazê-la / No meu coração.
Eu queria viver com você; Valdir
Villarinho e Ismael Silva
59
1928-1980
No meu jardim tive flores belas / Nunca fiz questão / Mas
a flor dos meus amores / Mora no meu coração.
Você é uma flor; Cartola e Nuno
Os frasemas expressam o afeto que se sente por alguém, pontuando mais uma vez a
relação entre coração e afetividade.
Frasema do meu coração
28
1941
E sendo assim nada mais poderá dissolver / Esta nossa
união, / Paulistas do meu coração.
Pauliceia; Paulo da Portela e
Cartola
O frasema qualifica o elemento sintaticamente principal como destinatário do afeto do
enunciador.
Frasema atender a voz do coração
31
1945
Não consideres isso / uma ingratidão / Atendo a voz do /
meu coração.
Perdoa; Paulo da Portela e
Cartola
Além de acionar o simbolismo do coração como sede de afetividade, esse frasema
recupera a perspectiva segundo a qual o coração teria autonomia para governar o
comportamento do enunciador, que em alguns casos seria governado pelas emoções.
Frasema de coração
36
1961
Berço nobre de um presidente / A quem felizmente / Dá-
se o seu valor / Campo és o progresso / Pra quem de
coração peço / Um futuro promissor.
Cidade morena; Cartola
A unidade lexical tem valor de advérbio, cuja significação envolve um grande
242
envolvimento emocional com a ação verbal modificada. Nessa abonação, o enunciador deseja
ardentemente que a cidade do Rio de Janeiro tenha um bom futuro.
CORAGEM [5 ocorrências em 5 letras do corpus]
1
1929
A Portela está contente / Para frente / Com fé e coragem
/ Que eu quero ver / Quero saber do sucesso / Dentro da
ordem e progresso / Salve então a rua B
A Portela está contente...; Paulo
da Portela
2
1934
Se não mandei você embora, / Enfim, foi porque / Me
faltou a coragem... / Mas, se você vai dar o fora, / Então
passe bem: / Boa viagem! //
Boa viagem; Ismael Silva e Noel
Rosa
3
1935
Batem na porta da frente / Corro na porta de trás / Um
homem perde a cabeça / Sem saber bem o que faz / Se
tiver coragem, venha / Assombração que apareça
Pam-pam-pam-pam; Paulo da
Portela
4
1979
Daí a duas ou três horas já passadas / Chegou ela
acompanhada com um rapaz de uns trinta anos / E foi
chegando, foi entrando, que coragem / Arrumando a
bagagem, me dizendo vou voltar
Feriado na roça; Cartola
5
1928-1980
Eu vivo tão magoado, / Não sei viver mais ao teu lado, /
Só peço a Deus que me dê coragem, / Eu preciso
esquecer / A tua grande mentira que me faz sofrer.
Devia ser condenada; Cartola e
Nelson Cavaquinho
Em (1), a lexia remete ao campo semântico da disputa ou da batalha, já analisado s.v.
adversário.
Em (2) e (5) coragem equivale a disposição para tomar atitudes desagradáveis,
penosas para o enunciador.
Em (3) e (4) ocorrem os pragmatemas que coragem e se tiver coragem venha. O
primeiro é um marcador discursivo que ressalta o desagrado do enunciador com a atitude da
amada, que para ele é uma grande ousadia. O segundo é uma fórmula de rotina equivalente a
um desafio feito pelo enunciador ao desconhecido que bate à sua porta. Trata-se de uma
manifestação de exasperação que contribui para a comicidade da situação apresentada na
letra.
CORDA [4 ocorrências em 3 letras do corpus]
1
1933
Quando eu vi / Que a festa estava encerrada / E não
restava mais nada / De felicidade / Vinguei-me nas
cordas / Da lira de um trovador / Condenando o teu amor
/ Divina dama
Divina dama; Cartola
2
1950
Ele está mesmo dançando na corda bamba / Ele é
aquele que na escola de samba / Toca cuíca, toca surdo
e tamborim / Faça por ele como se fosse por mim //
Antonico; Ismael Silva
3
1968
Cordas de aço // Ai, essas cordas de aço / Este
minúsculo braço / Do violão que os dedos meus
acariciam //
Cordas de aço; Cartola
Em (3) encontram-se duas ocorrências do quase-frasema corda de aço, que é um tipo
de encordoamento para violão. Não se trata, portanto, de qualquer tipo de corda de aço, mas
das fabricadas especificamente para o instrumento. Tal unidade integra o vocabulário
especializado da música.
Em (1), as cordas referidas também são de um instrumento musical — a lira, símbolo
do fazer poético. Esse elemento contribui para afirmar a habilidade poética do compositor.
Quanto à ocorrência (2), veja-se a análise do frasema dançando na corda bamba s.v.
243
dançar.
COROA [2 ocorrências em 2 letras do corpus]
1
déc.1930
Chegando eu quero recebê-lo com carinho / Tratá-lo
como reizinho / Enveredarei pelos caminhos dos bambas
/ Talvez será herdeiro / De uma coroa do samba.
Senhora Dona Cegonha; Paulo
da Portela
2
1952
Você me disse que, / Se acaso eu morresse, / Mandaria
uma coroa / Até cem mil réis / Pois então faça de conta
que eu morri / E, em vez de cem, você me empresta dez
//
Ninguém faz; Ismael Silva e
Paulo Medeiros
Em (1), a lexia coroa, que simboliza uma relação hierárquica entre a realeza e as
classes sociais mais baixas, é usada para representar a proeminência conquistada pelo
enunciador, que goza dessa posição entre seus pares e está em condição de transferi-la a um
herdeiro. Já em (2), fala-se em uma coroa de flores, que é enviada como homenagem a um
falecido, durante o enterro. Essa significação é selecionada pela colocação de mandar uma
coroa com o verbo morrer.
COROADO [1 ocorrência no corpus]
1932
Pudesse meu ideal / Que é o carnaval / De encantos mil / Imortalizar
neste poema / Cor de anil / Verossímil / E levá-lo coroado / Pelas galas
da história / Relembrando a memória / Do meu querido Brasil
Pudesse meu ideal; Cartola e
Carlos Cachaça
Assim como já foi explicado s.v. coroa, a lexia coroado transfere marcas de
proeminência à lexia poema, identificação atribuída à própria composição. Conforme se pode
ver na análise qualitativa, a afirmação do valor poético do samba e da identidade dos
sambistas como poetas é uma tônica das letras do corpus.
CRIOULINHO [2 ocorrências em 2 letras do corpus]
1
1931
Umas crioulinha / uns português / (...) quero ver de uma
vez // um dois / um dois / um dois / um dois//
Meu batalhão; Ismael Silva,
Nilton Bastos e Francisco Alves
2
déc.1930
Dona Cegonha venho com muita vergonha / Por meio
desta cartinha te solicitar um favor / Deve trazer um
crioulinho gorduchinho / de olhinhos regalados parecido
com o meu amor
Senhora Dona Cegonha; Paulo
da Portela
Em (2), o crioulinho é um bebê que seria trazido pela cegonha e representaria um
herdeiro da “coroa do samba”, conquistada pelo enunciador. Em (1) as crioulinhas são
mulheres, cuja participação é destacada no desfile da escola de samba.
A menção à cor da pele das pessoas nessas abonações tanto busca a representatividade
com relação às comunidades populares do Rio de Janeiro quanto atende à crença de que
haveria uma propensão inata ao samba entre as pessoas de pele negra, herdeiros diretos da
cultura afro-brasileira. Esse sistema de crenças e, especificamente, a origem do samba
carioca, foram assuntos abordados na primeira parte deste estudo.
Na análise qualitativa do corpus, também já se esclareceu que as menções à cor da
pele, no contrato discursivo em questão, não acarreta necessariamente uma atitude
discriminatória do enunciador. Nesse caso, o produtor do discurso, que participa da mesma
244
comunidade e tem traços de identidade semelhantes, pode usar a referência em tom afetivo, de
companheirismo etc., apesar de não ser impossível que em certos casos o uso de fato veicule
preconceito de cor.
CUÍCA [3 ocorrências em 3 letras do corpus]
1
1937
Cem divididos por mil / Cada um com quanto fica / Não
pergunte à caixa surda / Não peça cola à cuíca / Lá no
morro vamos vivendo de amor / Estudando com carinho
o que nos passa o professor.
Teste ao samba; Paulo da
Portela
2
1940
Tem um prêmio para quem / descobrir a nega bamba /
da escola de samba / que compra barulho / por qualquer
dinheiro / faz o dó maior / bem direitinho / no cavaquinho
/ toca cuíca / bate tamborim / enfrenta um pandeiro
Nega bamba; Paulo da Portela
3
1950
Ele está mesmo dançando na corda bamba / Ele é
aquele que na escola de samba / Toca cuíca, toca surdo
e tamborim / Faça por ele como se fosse por mim //
Antonico; Ismael Silva
Essa ocorrência integra o vocabulário especializado do samba. É um instrumento
criado especificamente para a escola de samba e, nas ocorrências, está representado em
situações que envolvem as práticas dessa instituição. Vejam-se, s.v. agogô, observações sobre
os instrumentos musicais no léxico do samba.
CURIÓ [1 ocorrência no corpus]
1922-1949
Quiseram me comprar / eu não vendi / uma linda coleção de
passarinhos / Bernardo é gaturamo / Aurélio é rouxinol / Lino é o
canário / Mano Rubens, o curió
Coleção de passarinhos; Paulo da
Portela
Esse é mais um exemplo da associação entre sambistas e aves canoras, encontrada
com razoável frequência no corpus. Vejam-se também ave e rouxinol.
CURSO [1 ocorrência no corpus]
1928-1980
É difícil estudar / Advocacia, arquitetura, engenharia / Tudo isso é difícil,
eu sei / Mas o samba está no sangue brasileiro / Não precisa fazer
curso / Pra tocar o meu pandeiro.
Sou doutor; Cartola
A ocorrência envolve a comparação entre o ensino formal e os conhecimentos
relacionados ao universo do samba. Segundo o que se afirma nessa passagem, as habilidades
com os instrumentos de percussão seriam inatas, não precisando de educação formal para se
desenvolverem. Sobre o uso de elementos do campo semântico da educação formal nas letras
de samba, veja-se o que se diz s.v. aula.
Sobre o inatismo usado para justificar as habilidades do sambista, veja-se a análise
qualitativa feita anteriormente.
245
3.2.8 – Letra D
DANÇAR [7 ocorrências em 7 letras do corpus]
1
1933
Tudo acabado / E o baile encerrado / Atordoado fiquei /
Eu dancei com você / Divina dama / Com o coração /
Queimando em chama //
Divina dama; Cartola
2
1935
Então vá logo se declarando / Ó, vamos dançar, ó,
vamos cantar.
Confissão de amor; Paulo da
Portela
3
1939
Guardo a tristeza porque / Dela sou o maior amigo /
Depois que perdi você / Eu não canto, eu não danço /
Acabou tudo pra mim / Se eu cantar essa tristeza / Terás
ciúme de mim. //
Tristeza; Cartola e Orlando
Batista
4
1938-1940
Quando a tarde vai morrendo (ai, meu Deus) / O
crepúsculo vem descendo / Reúne-se o bando na rua /
E, cheios de harmonia, / Entoam uma melodia que faz
dançar
a própria lua
Ao amanhecer; Cartola
5
1943
Maestro, toque aquela / Aquela que me traz recordação /
Do ano que já passou / E deixou saudades no meu
coração // Ai, ai, ai, ai / Eu nem posso me lembrar / Que
música boa pra gente dançar
Maestro, toque aquela!; Ismael
Silva e José de Almeida
6
1950
Ele está mesmo dançando na corda bamba / Ele é
aquele que na escola de samba / Toca cuíca, toca surdo
e tamborim / Faça por ele como se fosse por mim //
Antonico; Ismael Silva
7
1957
Vai dançar twist / Procurar sua gente / Deixa-me seguir
porque estou atrasado / Tenho uma mina / Que de jeito
nenhum por ti trocaria / Que dá mais petróleo / Muito
mais petróleo do que tem na Bahia.
É matéria que estudei demais...;
Cartola
As ocorrências (4) e (5) ressaltam a qualidade de certas composições que as faz
propícias à dança. No caso de (4), uma hipérbole faz com que a própria lua seja contagiada e
dance ao som da música. Dançar, portanto, é parte importante da fruição musical, segundo
essas construções discursivas.
Em (1), o ato de dançar é esperado no contrato discursivo do baile. A dança com a
mulher é um recurso de aproximação entre os sujeitos do discurso, relevante principalmente
pelo envolvimento amoroso do enunciador em relação a ela.
Em (2) e (3), a dança é apresentada como manifestação de alegria. No primeiro caso,
mais uma vez além da alegria, a dança resulta da empolgação causada pela música e pela
folia. No segundo caso, o fato de não dançar é usado como forma de caracterizar a tristeza do
enunciador.
Em (6), encontra-se o frasema dançar na corda bamba, forma metafórica de fazer
referência às dificuldades vividas pelo sambista mencionado na letra.
Em (7), a colocação dançar twist serve para qualificar a destinatária, caracterizando-a
como alguém que não está em sintonia com o enunciador e cultiva padrões culturais
diferentes dos dele. Tal caracterização é muito significativa, considerando-se o forte discurso
nacionalista cultivado no samba e em outras manifestações culturais, principalmente a partir
do Estado Novo.
246
DAR [30 ocorrências em 25 letras do corpus]
Referência à transferência de coisas materiais a alguém
3
1929
Vem, vem / Que eu dou tudo a você / Menos vaidade /
Tenho vontade / Mas é que não pode ser
Amor de malandro; Ismael Silva,
Freire Júnior e Francisco Alves
9
1931
Mas esta vida / Não há quem me faça deixar / Por falares
tanto, / A polícia quer saber / - Oh! Se eu dou meu
dinheiro todo a você //
Nem é bom falar; Ismael Silva,
Nilton Bastos e Francisco Alves
15
1933
Na floresta dei-te um ninho / E mostrei-te o bom caminho
/ Mas quando a mulher não tem brio / Dizem que / É
malhar em ferro frio //
Na floresta; Cartola e Sílvio
Caldas
20
1941
Retratos meus / Eu sempre tenho que dar! / Quem lhe
contou / Interpretou muito mal... / Só mesmo Deus / É
capaz de escapar / Da língua desse pessoal!...
Não vá atrás de ninguém; Ismael
Silva
25
1979
E tratei logo de enfeitar minha paioça / Parei toda minha
roça, lá ninguém mais trabalhou / Mandei um cabra na
taberna de João Bento / Comprar encordoamento para
dar aos tocador //
Feriado na roça; Cartola
Essa é a significação básica do verbo dar. Em (3) e (15) há versões um pouco
desviantes do objeto material que é transferido a alguém. No primeiro caso, o indefinido tudo
pode englobar tanto coisas materiais quanto imateriais; na verdade, trata-se de uma colocação,
na qual dar tudo a alguém é o modo de expressar devoção à pessoa amada, com disposição de
fazer todos os sacrifícios por ela. No segundo caso, ninho é uma identificação metafórica para
uma moradia, que transfere traços de idealização e harmonia para a significação.
Referência à ocorrência de um evento
22
1947
Foi num dia de alegria / Que essa tragédia se deu / Foi
no carnaval passado / Que o Caquera morreu / Já não
se ouve o canto mais / Daquele sabiá / Toda Lira está
em pranto / Todo mundo a chorar.
Ouvi dizer; Paulo da Portela
26
1928-1980
Cantava bem / Um desafio de viola / No sertão até agora
/ Outro igual não apareceu / Quem fez aquilo / Foi um tal
Juca Malvado / A maior perversidade / Que no sertão já
se deu //
Juca Malvado; Cartola
Com essa significação, o verbo é sempre pronominal e seleciona para a posição de
sujeito o evento de cuja ocorrência se fala.
Referência ao resultado de um processo
19
1940
Este mundo é uma roleta / E nós somos jogadores /
Jogamos com a sorte / Dá
o azar / Assim é o amor, /
Quando é fiel de parte a parte / Vem a morte pra nos
separar
Este mundo é uma roleta; Paulo da
Portela
Essa significação é própria do universo discursivo do jogo e é selecionada, na
ocorrência anterior, pela colocação com azar. Outras marcas do universo discursivo em
questão são lexias como jogo, além da metáfora inicial, que afirma a equivalência do mundo
com uma roleta.
Frasemas dar golpe errado e dar golpe de azar
10
1931
Também dou a minha bola / Golpe errado ainda não dei /
Eu vou chamar Chico Viola / que no samba ele é rei / (Dá
licença, seu Mário?) //
O que será de mim; Ismael Silva,
Nilton Bastos e Francisco Alves
11
1931
Não hei de dar mais golpe errado / eu também sofri / eu
tenho me enganado / hoje vivo sem pensar / porque não
quero mais esse golpe baixo //
Quero sossego; Ismael Silva,
Nilton Bastos
247
12
1932
Eu vou chorar só em lembrar / (Se meu amor me deixar)
/ Dei sempre golpe de azar / (Eu não posso me queixar) /
Pra parecer que vivo bem / (Vou sofrendo sem dizer
nada a ninguém) / A esconder que amo alguém / (A
razão dá-se a quem tem)
A razão dá-se a quem tem;
Ismael Silva, Noel Rosa e
Francisco Alves
24
1922-1949
Quem nos trouxe por aqui / Foi quem deu o golpe errado
/ Pois agora nossas pastoras / Estão com os pés
molhados
Quem nos trouxe por aqui; Paulo
da Portela
Tais frasemas têm relação com o sucesso ou insucesso dos empreendimentos de
alguém. Em (11) e (12), fala-se de insucessos no amor. Em (10) fala-se genericamente da
astúcia do enunciador, identificado como malandro. Finalmente, em (24) destaca-se uma
providência tomada por outrem que resultou em insucesso. É possível que a ideia de golpe
seja uma referência proveniente da malandragem, pois a identidade malandra envolve a
aplicação de golpes para enganar otários; o golpe errado ocorreria na ocasião em que esse tipo
de iniciativa terminasse em malogro.
Frasema dar a mão à palmatória
1
1925
Para que havemos de mentir / O subúrbio está é bom, /
Venham ver, não é história / Se por ventura estou errado
/ Dou a mão à palmatória.
Para que havemos de mentir;
Paulo da Portela
O frasema é um recurso usado pelo enunciador para afirmar a relevância das escolas
de samba do subúrbio, como a Portela, demonstrando confiança no que diz. A composição
tem outras marcas dessa disposição discursiva, como o pragmatema para que havemos de
mentir (ver mentir).
Pragmatema o mundo dá muita volta
4
1929
Tu não deves / De ter tanta pretensão / Olha que o
tempo muda, / A vida é uma ilusão... / Tu fazes pouco
em mim / Mas isto que bem me importa... / Ficas
sabendo, meu bem, / Que o mundo dá muita volta!
Novo amor; Ismael Silva
Esse pragmatema, uma frase da sabedoria popular, associa as voltas que o mundo dá
às reviravoltas pelas quais as vidas das pessoas passam. Funciona, assim, como uma
advertência, geralmente a pessoas pretensiosas, que não veem que as suas vantagens podem
acabar e, consequentemente, também as razões para a pretensão. É nesse sentido que o
pragmatema é usado na citação.
Frasema dar-se bem
5
1931
Tu nem deve teimar / pois não vai me / convencer / que
eu quero a vida gozar / e não me aborrecer / sempre me
dei bem / vivendo assim / Tu não me convence / que isso
é contra mim.
Carinho eu tenho; Ismael Silva
A significação do frasema diz respeito a um resultado considerado satisfatório com
algum tipo de comportamento. No caso em questão, o enunciador considera satisfatória a vida
que leva, tentando combinar amor e dinheiro, reconhecendo que há mais disponibilidade do
primeiro do que do segundo.
248
Frasema dar com os ombros
6
1931
Passas por mim, rindo, cantando / Dás com os ombros,
arrastando o sapato / Me debochando / E ainda dizes
pros outros / Só pra moer / Em amar não acho prazer //
Infeliz sorte; Cartola
Dar com os ombros é uma expressão de desdém, que qualifica o comportamento da
mulher descrita na canção — ela seria cruel com o enunciador, pois o teria enganado e, além
disso, faz pouco dele.
Frasema dar o fora
7
1931
Até que enfim / Eu agora estou descansado / Ela deu o
fora, / Foi morar lá na Favela / E eu não quero saber
mais dela
Nem é bom falar; Ismael Silva,
Nilton Bastos e Francisco Alves
17
1934
Se não mandei você embora, / Enfim, foi porque / Me
faltou a coragem... / Mas, se você vai dar o fora, / Então
passe bem: / Boa viagem! //
Boa viagem; Ismael Silva e Noel
Rosa
Em ambos os casos a referência é à iniciativa de terminar o envolvimento amoroso.
Geralmente o frasema envolve deslocamento físico do agente. A partir do frasema, também se
costuma atribuir a essa ação uma carga um tanto pejorativa, pois ela é frequentemente
apresentada como uma deserção.
Frasema dar para [fazer algo]
8
1931
Tu falas muito, meu bem, / E precisas deixar / Senão eu
acabo dando pra gritar na rua: / - Oh! Eu quero uma
mulher bem nua //
Nem é bom falar; Ismael Silva,
Nilton Bastos e Francisco Alves
O frasema ressalta o fato de a ação que acompanha ocorrer de uma forma
intempestiva. Sua carga de significação tem a ver, portanto, principalmente com o aspecto
verbal pontual e repentino da ação.
Pragmatema dar licença
10
1931
Também dou a minha bola / Golpe errado ainda não dei /
Eu vou chamar Chico Viola / que no samba ele é rei / (Dá
licença, seu Mário?) //
O que será de mim; Ismael Silva,
Nilton Bastos e Francisco Alves
Essa é uma fórmula de rotina, usada à chegada em um determinado lugar. Usando-a, o
enunciador marca a sua chegada e busca receptividade à sua presença.
Pragmatema quem me dera
13
1932
Ai quem me dera agora / Esse viver de outrora!... / Quem
na gandaia andar / Pode ter a certeza que sabe gozar... /
Gandaia sempre foi o meu desejo / Quanto tempo que
eu não vejo / Essa vida que eu vivia!...
Gandaia; Ismael Silva
Essa é a expressão de um desejo intenso do enunciador. Geralmente o objeto do
desejo, no momento da enunciação, é algo difícil de conseguir, razão pela qual essa fórmula
de rotina tem uma carga discursiva de idealismo.
249
Frasema dar a perceber
14
1932
Eu não quero dar a perceber / Que gosto demais, do
meu amor / Se ele compreender / Vai se convencer /
Que tem pra mim / Um grande valor. //
Tenho um novo amor; Cartola
16
1933
Nunca dei a perceber // Não é só quem vive em pranto /
Que sabe o que é sofrer... / Eu sofro e no entanto /
Nunca dei a perceber! // E são tristes meus ais... / Pois
quando a gente sente / E não chora / Sofre muito mais //
Nunca dei a perceber; Ismael
Silva
O frasema explicita a revelação de um sentimento ou estado íntimo que se queria
ocultar, ou pelo menos que foi manifestado involuntariamente. Como geralmente a intenção é
não revelar o dito sentimento, é comum que o frasema ocorra na negativa.
Frasema dar um jeito
18
déc.1930
Todo mundo tem o direito / De viver cantando / O meu
único defeito / É viver pensando / Em que não realizei / E
é difícil realizar / Se eu pudesse dar um jeito, / Mudaria
meu pensar //
Silêncio de um cipreste; Cartola e
Carlos Cachaça
A expressão refere-se à providência de uma solução ou equacionamento de um
problema ou situação de desarranjo. É marcadamente informal.
Frasema dar pra trás
21
1942
Do meu amor nada posso dizer / Porque com ela eu fico
em paz / Tudo que eu peço pra ela fazer / se bem eu
digo / melhor ela faz / sem dar pra trás //
Não tenho queixa; Ismael Silva e
David Raw
A significação é não corresponder às expectativas de alguém. No caso em análise, o
elogio feito pelo enunciador à companheira é justamente que ela não dá pra trás em nada que
ele determina, ou seja, corresponde sempre às suas expectativas.
Frasema dar sopa
7
1931
Vou apresentar o meu batalhão / Uma bateria e não (...)
sopa, não //
Meu batalhão; Ismael Silva,
Nilton Bastos e Francisco Alves
Nessa ocorrência, o frasema dar sopa faz referência a um comportamento pouco
diligente na realização de um dever. No caso da bateria da escola de samba, o frasema a
caracteriza como muito eficiente, composta por músicos habilidosos, excelentes no toque do
samba, que “não dão sopa”.
Para a análise dos pragmatemas a sorte é Deus quem dá e a razão dá-se a quem tem,
vejam-se, respectivamente, os verbetes deus, razão. Quanto ao pragmatema amanhã que vou-
me embora, que me dão para levar, veja-se ir.
DEMANDA [2 ocorrências em 1 letra do corpus]
1928
Chega de demanda // Chega de demanda, chega / Com este time
temos que ganhar / Somos da Estação Primeira / Salve o morro de
Mangueira
Chega de demanda; Cartola
A lexia, nessas ocorrências, faz referência às disputas e confrontos entre os blocos que
havia no morro de Mangueira antes da fundação da escola de samba. O samba é um pedido
pela união entre os sambistas do lugar, prevendo sucesso para o grupo, se isso acontecesse.
250
DESFILAR [1 ocorrência no corpus]
1947
Ouvi dizer / Ouvi falar / Que a Lira do Amor / Este ano não desfilará /
Porque a tristeza lhe impera / Por causa da morte / Do nosso amigo
Caquera //
Ouvi dizer; Paulo da Portela
A ocorrência faz remissão às apresentações das escolas de samba durante o carnaval,
denominadas desfiles. Ela integra o vocabulário especializado do samba.
Na composição, relata-se o cancelamento do desfile da escola de samba Lira do Amor,
devido ao luto pelo falecimento do Caquera, integrante estimado do grupo, durante os
preparativos para o desfile do ano anterior. Destaque-se que a ocorrência traz uma afirmação
metonímica, pois o nome da escola engloba todos os seus integrantes, que são os que de fato
desfilam. Essa é uma construção muito costumeira, em alusão aos desfiles de carnaval.
DESTINO [11 ocorrências em 11 letras do corpus]
1
1933
Ao ouvir tua proposta, / Tão fingidas frases juntas / Achei
uma só resposta / Que responde a mil perguntas / Hás
de ter, em tua vida, / Um destino igual ao meu / Podes ir
desiludida, / Hoje quem não quer sou eu
Quem não quer sou eu; Ismael
Silva e Noel Rosa
2
1933
De esperar a minha amada / A minh'alma não se cansa /
Pois até quem não tem nada / Tem ainda a esperança /
Esperança nos ilude / Ajudando a suportar / Do destino o
golpe rude / Que eu não canso de esperar
Vejo amanhecer; Ismael Silva,
Noel Rosa e Francisco Alves
3
1935
Liberdade / Para este pobre infeliz / Que o destino assim
quis / É sofrer de amor / Liberdade / Não posso mais
ocultar tanta dor //
Liberdade; Paulo da Portela e
Dengo
4
1936
Não quero mais / Amar a ninguém / Não fui feliz / O
destino não quis / O meu primeiro amor / Morreu como a
flor / Ainda em botão / Deixando espinhos / Que
dilaceram meu coração //
Não quero mais amar a ninguém;
Cartola, Carlos Cachaça e Zé da
Zilda
5
déc.1930
Quando trouxer deve pedir ao destino / Que mande pelo
menino recomendação de um bamba / Mais tarde eu
quero que como todo lero-lero / Ele seja professor de
uma Escola de Samba. //
Senhora Dona Cegonha; Paulo
da Portela
6
1941
Se todos que nos castigam / Nos reclamam e nos o
brigam / Querendo sofrer-nos só / É mais perfeito que
eles saibam / Que o destino nos afague / Vivendo este
amor só
Não esqueça de mim; Paulo da
Portela
7
1942
Oh! para que chorar / Só para enganar / Sentida quando
eu sei / Que és fingida / Só para iludir / Fazer pensar / E
depois tu sorrir // Ora vai mulher / Já que teu destino
quer / Vai não te desejo mal / Sei que teu pesar / Um dia
será fatal
Oh, pra que chorar; Paulo da
Portela
8
c1946
Deus, grande Deus, / Meu destino, bem sei, foi traçado /
Pelos dedos teus / Grande Deus, / De joelhos aqui eu
voltei / Para te implorar, / Perdoai-me, sei que errei um
dia
Grande Deus; Cartola
9
1922-1978
Sei... você anda sofrendo. / Está arrependida / do que já
me fez. / É seu destino, mulher; / eu não lhe perdoo /
porque vai me enganar outra vez. //
Sei, você anda sofrendo; Ismael
Silva
10
1979
Evite meu amor / Recuse os braços meus / Evitarei os
beijos teus / Culpado foi o destino / Se somos dois
feridos / Pois preparou a trama / E entregou ao cupido
Evite meu amor; Cartola
11
1928-1980
Não te culpo, nem me culpes / Aceitemos nosso destino /
Esse amor quando nasceu / Eu era menino // Se eu
teimar / Teus próprios pais / Irão dizer / Tudo aquilo que
você / Comigo sofreu.
Não; Cartola e Aluísio Dias
Uma das tônicas nessas abonações é a personificação do destino (2-7, 10). É comum,
inclusive, a ocorrência em colocação com o verbo querer (3 e 4), como se as pessoas
vivessem ao sabor dos caprichos do destino. Em (5), o destino é destinatário de um pedido
cujo portador é a cegonha: pede-se que o bebê trazido pela ave seja fadado a ser bamba.
251
Atribui-se, portanto, a pendores inatos a habilidade do sambista (sobre o assunto, veja-se
também a análise qualitativa).
As ocorrências (1, 8, 11), apesar de não trazerem personificação, também reforçam a
ideia de que o destino independe da vontade das pessoas. Em (1) e (11), o destino não é
representado como um ente com caprichos próprios, que decide afagar ou golpear as pessoas
— o destino é tido como algo já traçado, que muitas vezes é preciso simplesmente aceitar. Já
em (8), atribui-se a Deus a responsabilidade pelo estabelecimento do destino do enunciador.
DEUS [50 ocorrências em 38 letras do corpus]
Referência à divindade cristã
3
1931
Carinho eu tenho // Carinho eu tenho até demais / e a
nota é como eu te digo / O meu desejo é uma ordem
meu bem / quando Deus quer não há castigo //
Carinho eu tenho; Ismael Silva
4
1931
Minha malandragem é fina / não desfazendo de ninguém
/ Deus
é quem nos dá a sina / e o valor dá-se a quem
tem
O que será de mim; Ismael Silva,
Nilton Bastos e Francisco Alves
5
1931
Não vale a pena teimar / Me conformo com a sorte / Por
isso não vou chorar / Nem pedir a Deus a morte (meu
santo é forte)
Oleleô; Ismael Silva, Nilton
Bastos e Francisco Alves
6
1933
Deus sabe o que faz // Tu, sendo infeliz como se vê, /
Bancas tanto chiquê / Que a mim até já faz horror /
Quanto mais se tivesses valor / Não teve e nem terás /
Deus sabe o que faz... //
Deus sabe o que faz; Ismael
Silva
7
c1933
Rir, não se ri de quem padece / Sofre, meu coração sabe
dizer / Ri, quando vê alguém chorar / Deus é justo e
verdadeiro / Por quem eu tenho chorado / Tenho fé em
me vingar //
Rir; Cartola e Noel Rosa
9
1936
Olha que um dia, Deus lhe pode castigar... / Tapeação, é
um pecado; / Não há motivo pra você se lastimar... / Isto
é que não: não apoiado!... //
Não apoiado; Ismael Silva
10
1937
Nem notícias eu tenho / Da mulher que tanto venero /
Deus meu, foi embora / Não sei onde mora / Notícias
espero / É tão triste um adeus, uma despedida / Vê se
apieda-te, Deus
/ Cura-me esta ferida //
Partiu; Cartola
11
d1937
A Vila emudeceu / Dolorosamente chora / O que perdeu /
Ninguém é imortal / Morrer é natural / Ó Deus
, perdoa /
Se é que estou pecando / Que mal te fez a Vila / Que lhe
estás torturando //
A Vila emudeceu; Cartola
15
1945
– Confiança em Deus, rapaz / Das mãos do Mestre o
bem terás / – Apesar de ser tão pobre / Tive um coração
tão nobre
Deus te ouça; Paulo da Portela e
Cartola
16
c1946
Grande Deus // Deus, grande Deus, / Meu destino, bem
sei, foi traçado / Pelos dedos teus / Grande Deus
, / De
joelhos aqui eu voltei / Para te implorar, / Perdoai-me, sei
que errei um dia
Grande Deus; Cartola
17
c1946
Eu errei, grande Deus, / Mas quem é que não erra /
Quando vê seu castelo / Cair sobre a terra? //
Grande Deus; Cartola
18
1948
Pergunta o poeta esquecido / Quem fez esta tela / De
riquezas mil / Responde soberbo o campestre / Foi Deus,
foi o mestre / Quem fez meu Brasil! / Meu Brasil! Meu
Brasil! //
Vale do São Francisco; Cartola e
Carlos Cachaça
24
1974
Deus me inventou pra desespero do diabo / Eu fiz do
samba Catedral do Inferno / Louca, muito louca,
endoidecida / Vou fazendo desta vida / Tudo aquilo que
bem quero
Catedral do inferno; Cartola e
Hermínio Bello de Carvalho
25
1975
Que Deus e a natureza / As aves nos seus ninhos / As
flores pela estrada / Perfumem todos os caminhos //
Que sejas bem feliz; Cartola
26
1977
Lembro dos tempos de outrora / Que quase me roubam /
A esperança e a fé / E hoje me volto contente / Cantando
pra Deus / Que tanto me ajudou
A canção que chegou; Cartola e
Nuno Veloso
27
1977
Dizem que estou desfigurado, com razão / Estou
cansado de pedir / A Deus, aos céus enfim / Um amor,
onde encontrarei, Senhor? / Livrai-me desta nostalgia /
Confiante ainda espero um dia //
Desfigurado; Cartola
252
28
1977
Nunca uses a injúria como arma de defesa / Agradeça
sempre a Deus / ( ) / Ampara os inocentes / Se for cego,
dê-lhe luz / Sem contar com a recompensa / Do grande
mestre Jesus
Enquanto Deus consentir;
Cartola
29
1977
Enquanto Deus consentir // Enquanto Deus consentir,
vou andando / Em cada esquina que paro pregando / O
pouco que aprendi no livro de catecismo / E quantos
seres humanos eu tiro do abismo //
Enquanto Deus consentir;
Cartola
30
1977
Nossas vidas muito sofridas / Caminhos tortuosos entre
flores e espinhos demais / Já não sinto saudades /
Saudades de nada que fiz / No inverno do tempo da vida
/ Oh! Deus, eu me sinto feliz.
O inverno do meu tempo; Cartola
e Roberto Nascimento
33
1980
Vem / Tudo é belo por onde eu passei / Será onde eu
passar / Vem / Ao meu lado eu sei / Vais sorrir, vais
cantar / Não me convence essa tua tristeza / Vem / Há
um Deus, há uma natureza //
Vem; Cartola e Arthur de Oliveira
Como já foi comentado s.v. destino, reputa-se frequentemente a Deus o poder de
definir o destino das pessoas (3-4, 11, 29). Essa crença, conforme ao discurso religioso,
também determina as ocorrências nas quais o enunciador faz apelos a Deus, querendo
benefícios ou o cessamento de males, ou ainda pedindo perdão por ofensas e agradecendo por
alegrias (5, 10-11, 16-17, 26-28, 30).
Em consonância com essa mesma linha de pensamento estão os itens nos quais se
afirma que as pessoas devem ter confiança na justiça divina, assim como na divina
providência, que garantem a harmonia na vida das pessoas (6-7, 9, 15, 18, 25, 33).
Já em (30), a lexia tem valor de pragmatema, pois funciona como uma expressão de
emotividade e satisfação do enunciador, que também pode ser interpretada como um
agradecimento a Deus.
Algumas características lexicais e semântico-discursivas podem ser depreendidas do
que foi dito: 1) Deus está frequentemente no papel de agente dos eventos aos quais se atribui
a sua participação (em outras situações, substitui-se Deus por destino); 2) Também é comum
que ele seja destinatário dos atos de discurso quando o enunciador explicita seus anseios ou
sua gratidão, lançando mão de marcas de religiosidade cristã; 3) a colocação grande Deus é
muito usada para marcar a intenção de louvor.
Referência a outras divindades
35
1928-1980
Fui pela estrada / Caminhando / Pensativo indagando /
Ó! Lua Deusa / Da inspiração / Por que / Não tenho você
/ Nem meu violão.
Eu e a lua; Cartola e Aluísio Dias
31
1979
Que brisa amena ao te fitar / És indelével como a flor /
Qual foi o deus teu escultor? / Ouvi a voz e a voz dizia /
"Eu sou a mãe de Deus, Virgem Maria"
Dê-me graças, senhora; Cartola
Nessas ocorrências há referências a outros entes considerados superiores, por
diferentes perspectivas. A lua, comumente associada à inspiração, é personificada em (35) e
elevada à condição de divindade, a quem o compositor se queixa de adversidades.
Em (31), o enunciador atribui a beleza da imagem que o maravilha à criação divina,
mas a princípio não especifica a que divindade se refere. No desenvolvimento da encenação
253
discursiva, cabe à própria imagem, que passa de destinatária a enunciadora, a identificação
como a Virgem Maria, mãe de Deus, segundo o Catolicismo.
Referência à mulher
8
1935
Só tu ó deusa / Poderá dar lenitivo / Tudo quanto há de
mais belo / somente em tu eu vejo / Libertai a alma /
Desse pobre cativo / Oh liberdade és tu que adoro / És tu
que almejo.
Liberdade; Paulo da Portela e
Dengo
Nesse caso, a mulher é tratada reverentemente, pelo vocativo deusa. Quando referente
à mulher, a lexia marca a assimetria criada pelo enunciador, geralmente por motivações
amorosas — ele se sente submetido a ela, por estar apaixonado.
Pragmatema a sorte é Deus quem dá
1
1928
Oh! meu bem o teu orgulho / Algum dia há de acabar /
Tudo com o tempo passa / A sorte é Deus quem dá /
Vou-me embora, vou-me embora / Como já disse que
vou / Eu aqui não sou querido / Mas na minha terra eu
sou.
Me faz carinhos; Ismael Silva e
Francisco Alves
A frase, comum na sabedoria popular, marca a intenção de conformar-se com o
destino, que é tido como alheio à vontade humana (ver as considerações do início deste
verbete e também o verbete destino).
Pragmatema Deus me livre
2
1930
Mulher assim, / Deus me livre, não preciso, / Meu
benzinho, tu pensavas / Me iludir com teu sorriso, / Já
julgavas ser / Dona do meu coração, / Queres me ver
sofrer, / Desiste da pretensão.
Não há; Ismael Silva, Nilton
Bastos e Francisco Alves
A expressão explicita a rejeição do enunciador em relação a algum elemento
envolvido na situação de comunicação. No caso em estudo, ele rejeita a mulher,
considerando-a maléfica, interessada em lhe fazer mal.
Pragmatema [alguém] estar com a vida que pediu a Deus
12
1939
Com a vida que pediste a Deus // Eu queria te fazer
feliz!... / Mas me surpreendi / Com os defeitos teus / Se é
conforme todo mundo diz / Estás com a vida / Que
pediste a Deus
... //
Com a vida que pediste a Deus;
Ismael Silva
Esse pragmatema geralmente traz uma carga de ironia. É usado para afirmar que o
interlocutor goza de grandes benefícios, talvez até não merecidos; a expressão pode
eventualmente marcar o despeito do enunciador. Em (12), parece haver uma sugestão de que a
ex-parceira da união amorosa malfadada já teria perspectiva de outra união, mais vantajosa.
Pragmatema só Deus escapa da língua desse pessoal
13
1941
Retratos meus / Eu sempre tenho que dar! / Quem lhe
contou / Interpretou muito mal... / Só mesmo Deus / É
capaz de escapar / Da língua desse pessoal!...
Não vá atrás de ninguém; Ismael
Silva
A fórmula de rotina assinala a rejeição do enunciador em relação à intervenção de
terceiros na sua vida amorosa. Ele acusa genericamente outras pessoas, considerando-as
254
fofoqueiras e mal intencionadas. O recurso a uma fórmula reforça, por interdiscursividade, o
efeito discursivo da objeção, reconhecida no senso comum.
Pragmatema Deus te ouça
14
1945
Deus te ouça // – Me contrariei / – Por que razão? / – Só
eu mesmo sei / – Diga, então! / – Eu que sempre fui leal /
A quem só me fez o mal / Devo ser feliz
Deus te ouça; Paulo da Portela e
Cartola
O marcador discursivo, característico da linguagem oral, é um recurso de construção
da encenação do diálogo entre dois amigos, contrato discursivo desta composição. Por meio
dele, um interlocutor afirma o seu desejo de que o outro alcance seus anseios, reputando Deus
como capaz de realizá-los.
Pragmatema pelo amor de Deus
19
1922-1949
Seus olhos são dois flocos, / luminosos e sedutores / Se
com desprezo me olhas, me causas doenças, dores /
Pelo amor de Deus
te peço / tenhas compaixão de mim /
veja as rimas destes versos / Meu bem, não olhes assim
Olhar assim; Paulo da Portela
32
1979
Só peço que respeites / O nome que te dei / E pelo amor
de Deus / Não negues que te amei //
Fim de estrada; Cartola
Veja-se a análise deste pragmatema s.v. amor.
Pragmatema se Deus quiser
20
1950
Até muamba já fizeram pro rapaz / Porque no samba
ninguém faz o que ele faz / Mas hei de vê-lo muito bem,
se Deus quiser / E agradeço pelo que você fizer.
Antonico; Ismael Silva
O marcador discursivo destaca o envolvimento do enunciador, que deseja
profundamente o bem do amigo em prol de quem pede no texto da carta que constitui a letra
do samba.
Pragmatema meu Deus
21
1957
Ó que audácia / me chamar de pretinho / Meu bem, é o
fim / Se minha mina souber, / Meu Deus, que horror /
Vou dormir no porão / Continuo cheirando a óleo
queimado //
É matéria que estudei demais...;
Cartola
37
1955-1980
Ah meu Deus se eu soubesse quem ela era / Juro que
jamais faria esta união / Bonita mulher mas de gênio é
uma fera / Depois da briga eu fiquei nesta condição
Ciúme doentio; Cartola e Nelson
Sargento
O marcador discursivo ressalta o envolvimento emocional do enunciador com o que
afirma: no primeiro caso, os ciúmes da parceira; no segundo, o arrependimento pelo
envolvimento com uma mulher.
Pragmatema só Deus sabe
22
1968
Pois é, / Só Deus sabe o quanto amei / Por te amar tanto
chorei / E, chorando, levo a cruz até o fim //
Injúria; Cartola e Elton Medeiros
A fórmula de rotina expressa a grande intensidade de um evento, pois caracteriza-o
como algo que só pode ser devidamente avaliado por Deus.
255
Pragmatema por Deus
23
déc.1960
Por Deus, não posso entender / Por que vamos
chorando / Se os nossos cicerones / São aves cantando
/ Lateralmente, as flores / Deitam aroma sorrindo / E
ouço da natureza: / Que sejam bem-vindos //
Que sejam bem-vindos; Cartola
O marcador discursivo marca o envolvimento emocional do enunciador com o que
afirma. Nesse caso, dá um tom pungente à dúvida existencial que é tema do samba.
Veja-se, ainda, a análise do pragmatema ai, meu Deus s.v. ai.
DIA [62 ocorrências em 58 letras do corpus]
Referência a um marco temporal genérico
6
1931
Ainda não sosseguei / Desde o dia que sonhei / Pois eu
não tenho satisfação / Por causa dessa impressão.
Sonhei; Ismael Silva, Nilton
Bastos e Francisco Alves
8
1932
Eu, cismado, espero agora / Ver você a qualquer hora /
Dando a outro o coração / Quando chegar esse dia
/
Deixo sua companhia / Sem explicar por que razão.
Ando cismado; Ismael Silva e
Noel Rosa
17
1933
Ainda há de chegar o dia / Que eu hei de ter grande
alegria / Quando você souber compreender / Num olhar
o que eu quero dizer
Fita meus olhos; Cartola e
Osvaldo Vasquez
19
1933
Eu ainda fico triste a lembrar / apesar de ter deixado já
de ti / lamentando aquele dia de azar / em que eu te
conheci.
Não digas; Ismael Silva
27
1938-1940
É que a cebola, minha filha, está soberba / O alho e o
vinagre cada vez subindo mais / Peça emprestado cada
dia a uma vizinha / Ou continua fazendo sempre como
você faz
Como é que eu posso; Cartola
28
1938-1940
Ou você acaba com essa economia / Ou então acaba-se
nossa amizade / Já reclamo isso quase todo dia / Você
me responde com simplicidade //
Como é que eu posso; Cartola
34
c1947
Desde o dia em que partiste / A saudade morou em meu
peito / Eu já procurei alguém / Mas não há jeito /
Coração, o que é que esperas / De um amor tão desleal?
/ Não estás vendo, coração, ela partiu, / Causando tanto
mal.
Rolam nos meus olhos; Cartola
36
1950
Ai! quando eu era criancinha / Ai que carinho / Todos os
dias me lavavam o corpinho / Por isso entrei no bloco do
camisolão / Com uma touca, uma chupeta / E a
mamadeira na mão.
Bico da cegonha; Ismael Silva
38
1957
Sonhava desde menino / Tinha um desejo felino / De
contar toda a tua história / Este sonho realizei / Um dia
, a
lira empunhei / E cantei todas as tuas glórias
Fiz por você o que pude; Cartola
41
1966
Não vão fazer / O que aconteceu certo dia / Foi tanto bis
/ Que eu já não podia atender / No entretanto O que a
plateia queria / É que eu cantasse / Cantasse até
aprender.
Eu agradeço; Ismael Silva
42
1968
Lembro-me bem / Um dia eu lhe disse uma grande tolice
/ E nosso lar deixei / Todos têm o seu drama / Só não
sofre quem não ama / Amenizar meu castigo só você
poderá, amigo.
Vai amigo; Cartola
52
1922-1978
Eu ainda fico triste ao lembrar, / apesar de ter deixado já
de ti, / relembrando aquele dia de azar / em que eu te
conheci.
Sei, você anda sofrendo; Ismael
Silva
54
1928-1980
Esta famosa tragédia / Passou-se um dia / Comigo /
Amei demais / E não fui correspondido / Acreditei no
amor / E também na criatura / Nas suas juras / E no
amor fingido.
Acabaram de ouvir; Cartola,
Carlos Cachaça, Aluísio Dias e
Manuel da Leiteira
56
1928-1980
Foi num dia um sonho e eu sonhei / demais seu doutor /
Na cidade grande eu vim / tentar vencer / Joaninha
coitadinha tão / sozinha ficou / E o que aconteceu foi /
triste de doer //
Nada vale a pena; Cartola e
Roberto Nascimento
57
1928-1980
Um dia eu voltei ansioso pra ver / o meu amor / Esqueci
o sofrimento que passei / Dinheiro no banco. Terno novo
/ Quase doutor / Só que a Joaninha não encontrei
Nada vale a pena; Cartola e
Roberto Nascimento
A referência temporal genérica dessas ocorrências faz com que em muitos casos a
lexia dia possa ser substituída por momento, hora, instante etc., conforme as características de
significação de cada caso. Usa-se frequentemente a lexia com essa significação para
256
estabelecer uma referência temporal pretérita como apoio para uma narrativa (6, 19, 34, 38,
41-42, 52, 54, 56-57). Também pode fazer referência à expectativa de um momento futuro
indeterminado (8, 17), uso relacionado ao da colocação algum dia (vê-la a seguir).
A ocorrência (42) possibilita outra análise relacionada à colocação algum dia. Naquele
caso, a referência é a um momento indeterminado, mas, conforme foi comentado
anteriormente, a referência é ao pretérito; isso diferencia a ocorrência (42) das agrupadas na
colocação, que costumam fazer referência ao futuro.
O determinante de dia exerce o papel de adicionar nuances semânticas de
indeterminação (certo dia, um dia), recorrência (todo dia, cada dia) etc.
Referência ao período que se reveza com a noite
10
1932
Ao romper da aurora // Aurora vem raiando anunciando o
nosso amor, ô, ô / Chega o dia, desaparece a tristeza, /
fica a alegria pela própria natureza, ô. //
Ao romper da aurora; Ismael
Silva, Lamartine Babo e
Francisco Alves
22
1934
O teu céu, o teu mar / É diferente / E as estrelas
candentes / Brilham mais / Alto dia o sol / Convida a
gente / E à noite o luar / Que alegria nos traz
És tu, Brasil, que nos seduz;
Paulo da Portela e Ernani
Rosário
46
1974
Linda / No que se apresenta / O triste se ausenta / Fez-
se a alegria / Corra e olhe o céu / Que o sol vem trazer /
Bom dia / Ah! Corra e olhe o céu / Que o sol vem trazer
bom dia...
Corra e olhe o céu; Cartola e
Dalmo Castello
47
1974
Chora / Disfarça e chora / Aproveita a voz do lamento /
Que já vem a aurora / A pessoa que tanto querias /
Antes mesmo de raiar o dia / Deixou a escola com outro /
Oh! Triste senhora //
Disfarça e chora; Cartola e
Dalmo Castello
Como, nesses casos, o período ao qual se refere a lexia é aquele no qual o sol está no
céu, são frequentes as referências a esse astro, assim como ao campo semântico relacionado a
ele (aurora, raiar). Destaque-se também a colocação alto dia (22), que, juntamente com a
referência à noite, ajuda a caracterizar o Brasil como sempre belo, independentemente do
período cronológico.
Em (46), a ocorrência bom dia é ambígua pois, ao lado da leitura composicional, da
qualificação positiva atribuída ao dia, há a não composicional, do pragmatema com função de
saudação.
Referência a um período de 24 horas, ou de duração específica
33
1947
Foi num dia de alegria / Que essa tragédia se deu / Foi
no carnaval passado / Que o Caquera morreu / Já não
se ouve o canto mais / Daquele sabiá / Toda Lira está
em pranto / Todo mundo a chorar.
Ouvi dizer; Paulo da Portela
39
déc.1950
Se o operário soubesse / Reconhecer o valor que tem
seu dia / Por certo que valeria // Duas vezes mais o seu
salário / Mas como não quer reconhecer / É ele escravo
sem ser / De qualquer usuário //
O samba do operário; Cartola,
Alfredo Português e Nelson
Sargento
50
1977
Enquanto Deus consentir, vou vivendo / E, cada dia que
passa, / aprendendo / A amar ao próximo como eu amo
os meus / Pois se todos os que existem na Terra / São
filhos de Deus //
Enquanto Deus consentir;
Cartola
53
1979
Quando eu soube que Maria Rosa vinha / Da cidade
onde tinha ido há dias passear / Gritei contente graças a
nosso senhor / Eu pensei que meu amor não queria mais
voltar
Feriado na roça; Cartola
257
58
1928-1980
Hoje acompanhado / A tristeza persiste / Dias que se vão
/ Um alegre, outro triste / Se outro amor tentasse / E
outra vez falhasse / Solidão, a você / Voltaria.
Se outro amor tentasse; Cartola
e Nuno Veloso
60
1928-1980
Ele sai para a orgia / Passa três, quatro dias / Sem me
aparecer / Quando vem está zangado / Está contrariado /
E eu não sei por que //
Vou contar tintim por tintim;
Cartola
A ideia presente em (50) e (58) é a da sucessão dos dias, ressaltando o fluxo da
passagem do tempo. Também há quantificações de dias (60), ou referências genéricas à
quantidade de dias passados (53).
Em (33) há referência a um dia específico: um dos quatro dias de carnaval, qualificado
como dia de alegria — a referência fica clara posteriormente, na mesma letra, quando se
menciona o carnaval explicitamente. Já em (39), fala-se do período de trabalho do operário,
significação reforçada por marcas lexicais como operário, valor, salário.
Colocações algum dia e um dia
1
1928
Oh! meu bem o teu orgulho / Algum dia há de acabar /
Tudo com o tempo passa / A sorte é Deus quem dá /
Vou-me embora, vou-me embora / Como já disse que
vou / Eu aqui não sou querido / Mas na minha terra eu
sou.
Me faz carinhos; Ismael Silva e
Francisco Alves
4
1931
Se eu precisar algum dia / de ir pro batente / não sei o
que será / Pois vivo na malandragem / e vida melhor não
há //
O que será de mim; Ismael Silva,
Nilton Bastos e Francisco Alves
7
1932
Mulher, eu ando cismado / Que me enganei com você /
Se algum dia não ficar mais a seu lado / Não precisa
perguntar por quê. //
Ando cismado; Ismael Silva e
Noel Rosa
11
1932
Se algum dia tiver de mim compaixão / Que alegria vai
ser no meu coração / A tua volta será meu sonho
dourado / Eu viverei e esquecerei meu passado.
Cantar para não chorar; Paulo da
Portela e Heitor dos Prazeres
13
1932
Pudesse um dia / Juro faria / Do samba o maior herói /
Concorrerias / Com as vitórias / Que existiam entre nós /
Seriam páginas de intenso fulgor / E o passado teria
maior valor
Pudesse meu ideal; Cartola e
Carlos Cachaça
14
1932
Ainda tenho alguma esperança / Que um dia hás de
perder a pretensão / Por isso eu digo: quem espera
sempre alcança / E mais tarde hás de ver quem é que
tem razão.
Quem espera sempre alcança;
Paulo da Portela
15
1932
Não sei porque tu és tão orgulhosa / Por isso muito ainda
hás de chorar / Pois na verdade és bela e formosa / Mas
um dia a formosura há de te abandonar //
Quem espera sempre alcança;
Paulo da Portela
16
1932
Se acaso um dia se apagar / No teu pensamento o meu
amor / Para não chorar / E não mais penar / Mando
embora a saudade / Pra livrar-me da dor.
Tenho um novo amor; Cartola
18
1933
Tudo eu fiz por você / Não quiseste atender / Os meus
conselhos e a minha opinião / Algum dia vais ver / Como
é triste sofrer / E de joelhos vens pedir o meu perdão. //
Na floresta; Cartola e Sílvio
Caldas
23
1936
Olha que um dia, Deus lhe pode castigar... / Tapeação, é
um pecado; / Não há motivo pra você se lastimar... / Isto
é que não: não apoiado!... //
Não apoiado; Ismael Silva
26
déc.1930
Eu sei que teus beijos e abraços / Tudo isso não passa
de pura hipocrisia / Já que tu não és sincera / Eu vou te
abandonar um dia
Alegria; Cartola
30
1942
Oh! para que chorar / Só para enganar / Sentida quando
eu sei / Que és fingida / Só para iludir / Fazer pensar / E
depois tu sorrir // Ora vai mulher / Já que teu destino
quer / Vai não te desejo mal / Sei que teu pesar / Um dia
será fatal
Oh, pra que chorar; Paulo da
Portela
31
1943
Algum dia hás de ver / que és muito arengueira / que
nunca podes viver / com ninguém desta maneira //
Me deixa sossegado; Ismael
Silva, Nilton Bastos e Francisco
Alves
32
c1946
Deus, grande Deus, / Meu destino, bem sei, foi traçado /
Pelos dedos teus / Grande Deus, / De joelhos aqui eu
voltei / Para te implorar, / Perdoai-me, sei que errei um
dia
Grande Deus; Cartola
258
35
1922-1949
Cantando muito facilmente irás esquecer / Aquela que
por maldade te fez padecer / Compare essa falsa
amizade / Com a tempestade, não perca a esperança /
Que um dia com muita alegria terás a bonança.
Conselho; Lincoln Washington
Pereira de Almeida e Paulo da
Portela
43
1972
Eu agora só tenho você / Na minha ilusão / Eu queria,
apesar de saber, / De ser um desprezado / Algum dia
poderia trazê-la / No meu coração.
Eu queria viver com você; Valdir
Villarinho e Ismael Silva
44
1973
Foi-se a tristeza / Veio a alegria / Tinha certeza / De ser
feliz algum dia //
Alegria; Ismael Silva
45
1973
Se algum dia você por acaso cismar / De arranjar entre
nós qualquer uma tresilha / Pelo que vejo eu não poderei
estranhar / Nada mesmo direi pois sei que é de família.
Aliás; Ismael Silva
49
1977
Dizem que estou desfigurado, com razão / Estou
cansado de pedir / A Deus, aos céus enfim / Um amor,
onde encontrarei, Senhor? / Livrai-me desta nostalgia /
Confiante ainda espero um dia //
Desfigurado; Cartola
59
1928-1980
Se algum dia / Essa flor murchar ou morrer / Sem ela eu
não posso viver //
Você é uma flor; Cartola e Nuno
As colocações algum dia e um dia fazem referência ao futuro. Essa referência pode ser
hipotética, caso em que são frequentemente articuladas a orações com verbo no subjuntivo ou
no futuro do pretérito do indicativo; podem também conter uma previsão, caso em que
costumam ser articuladas a orações com verbo no futuro do indicativo.
Colocação noite e dia
5
1931
Nem sempre o riso é alegria / Quantas vezes noite e dia /
Nós levamos a cantar / Pra não chorar, / Mas como há
um ditado / "Quem espera sempre alcança" / Nós vamos
alimentando / Essa esperança. //
Ri pra não chorar; Ismael Silva e
Francisco Alves
9
1932
Antes não te conhecesse / Talvez eu nunca sofresse /
Por esse mundo sem fim / Já não tenho alegria / Em que
penso noite e dia / E tu não pensas em mim //
Antes não te conhecesse; Ismael
Silva e Francisco Alves
12
1932
Gandaia é o que me faz saudade, / No tempo da
mocidade / Era a minha alegria. / Gandaia, palavra bem
proferida, / Que não me fica esquecida / nem de noite
nem de dia.
Gandaia; Ismael Silva
21
1934
Choro sim, com razão, / Não tem fim minha aflição... / Me
acompanha noite e dia / Uma grande nostalgia! //
Choro sim; Ismael Silva
29
1941
Esta malvada bem sabe o mal que me fez / Mas não faz
mal, eu lhe perdoo outra vez / Meu coração vive
reclamando noite e dia
/ Por isso eu peço que ela volte
para minha companhia
Não posso viver sem ela;
Alcebiades Barcellos e Cartola
51
1978
Se a gente andasse / Se beijando noite e dia / Nem
assim eu poderia / Conseguir viver em paz / Porque teu
beijo / Ou molhado ou enxuto / Uma dúzia por minuto / /
Ainda não me satisfaz / Não é demais.
Coisa louca; Ismael Silva
A colocação é uma forma de reforçar a duração longa e constante de um processo.
Aplica-se, nos casos destacados, a processos psicológicos e a ações artísticas ou amorosas.
Colocação novo dia
40
1965
Tudo de alegrias e de tristezas conheci, / Coisas do amor
e do sofrer, eu já senti, / Nada me transforma a alegria
de viver, / Ver a noite vir e sorrir, ao sol nascer, / Vivo
esperando o novo dia, / Que irá trazer a luz, que sempre
ficará!
Canção da saudade; Cartola e
Cacá Diegues
48
1977
Amanhã / A tristeza vai transformar-se em alegria / E o
sol vai brilhar no céu de um novo dia / Vamos sair pelas
ruas, pelas ruas da cidade / Peito aberto, cara ao sol da
felicidade //
A cor da esperança; Cartola e
Roberto Nascimento
A referência da colocação é sempre a um momento futuro, com carga semântica
positiva, muitas vezes com a ideia de consolação de tristezas e renovação de esperanças.
259
Frasema hoje em dia
2
1929
Arranjei outra, / Que não troco por ninguém, / Já que tu
me abandonaste, / Há males que vêm pra bem... / Hoje
em dia sou feliz / Sem a tua ingratidão / Encontrei outro
benzinho / A quem dei meu coração!... //
Novo amor; Ismael Silva
3
1931
Amor, quanto menos ou nenhum é melhor / Porque só se
vive a sofrer por amar / E quem pensar nisso hoje em
dia, não terá alegria / É bom evitar //
É bom evitar; Ismael Silva, Nilton
Bastos e Francisco Alves
20
1933
Observo que, hoje em dia, / Quem não quis diz que me
quer / Cabe muita hipocrisia / Num capricho de mulher /
Vou viver desiludido, / Sem amor, sem ideal / Pra não ser
submetido / A desejo tão banal //
Quem não quer sou eu; Ismael
Silva e Noel Rosa
24
1936
Não é isso que eu procuro / Você não me dá futuro / Me
deixe em paz / Tenho mais vantagem // Eu juro que, hoje
em dia / Mulher dentro da orgia / Não quero mais //
Não é isso que eu procuro;
Ismael Silva e Francisco Alves
37
1954
Porém quem conhece ele desde outrora / Diz que está
civilizado / Lá hoje em dia qualquer um novato / Vive
sem preocupação / Não é um morro pacato / Porque se
conserva a tal tradição.
Tradição; Ismael Silva
O frasema traz uma referência temporal durativa, que envolve o momento presente.
Ocorre muitas vezes em afirmações generalizantes e asseverativas.
Frasema da noite para o dia
25
1939
Se existe alguém que queira ver / Você um ano em jejum
/ E sem ter onde adormecer / Eu sou um, eu sou um //
Eu sei que toda essa alegria / Não vai durar a vida inteira
/ Talvez, da noite para o dia, / Eu possa ver sua caveira
Eu sou um; Ismael Silva
Nesse caso, a referência é a um acontecimento abrupto, inesperado. Na abonação,
contrapõe-se uma expectativa durativa, a da permanência de um estado de alegria do
interlocutor, com um evento repentino, um acontecimento infeliz, que corresponde ao desejo
do enunciador.
Frasema não ver a luz do dia
55
1928-1980
E a mulher / Culpada desse suplício / Passa o mesmo
sacrifício / Talvez a maior agonia / Juca Malvado para
completar o crime / Não consentiu que a cabocla / Visse
mais a luz do dia
.
Juca Malvado; Cartola
A referência é à situação de quem não tem liberdade; está confinado e, portanto, não
vê a luz do dia, pois não sai ao ar livre. É geralmente usada para presidiários mas, na
abonação em questão, alude à mulher que é oprimida pelo personagem Juca Malvado.
DIFÍCIL [7 ocorrências em 6 letras do corpus]
1
1931
A mulher é um jogo / Difícil de acertar / E o homem como
um bobo / Não se cansa de jogar / O que eu posso fazer
/ É, se você jurar, / Arriscar a perder / Ou desta vez
então ganhar.
Se você jurar; Ismael Silva, Nilton
Bastos e Francisco Alves
2
1932
Amor sem penar é bem raro / O verbo cumprir custa caro
/ Amor é bem fácil de achar / O que eu acho mais difícil /
É saber amar //
Não faz, amor; Cartola e Noel
Rosa
3
déc.1930
Todo mundo tem o direito / De viver cantando / O meu
único defeito / É viver pensando / Em que não realizei / E
é difícil realizar / Se eu pudesse dar um jeito, / Mudaria
meu pensar //
Silêncio de um cipreste; Cartola e
Carlos Cachaça
4
1942
Na nossa vida não há desprazer / O nosso amor é difícil
ter fim / Não tenho queixa do meu bem querer / Ela
também não tem queixa de mim / Antes assim.
Não tenho queixa; Ismael Silva e
David Raw
5
1922-1949
Não é lá muito difícil / acertar a marcação / o samba
nasce com a gente / está dentro do coração
Não é lá muito difícil; Paulo da
Portela
260
6
1928-1980
É difícil estudar / Advocacia, arquitetura, engenharia /
Tudo isso é difícil, eu sei / Mas o samba está no sangue
brasileiro / Não precisa fazer curso / Pra tocar o meu
pandeiro.
Sou doutor; Cartola
As abonações (5) e (6) qualificam, direta ou indiretamente, o samba como prática
musical fácil para aqueles que têm o pendor para tocá-lo.
Em (5), nega-se a dificuldade de tocar samba. Em (6), qualifica-se como difícil a
formação em carreiras tradicionais, como advocacia; o samba, por contraste, não
compartilharia dessa qualificação, pois é considerado uma habilidade inata ao sambista.
Sobre o inatismo usado para justificar as habilidades do sambista, veja-se a análise
qualitativa feita anteriormente.
(1) e (2) dizem respeito à dificuldade de ter sucesso no amor, enquanto (4) afirma a
força da relação amorosa e a crença de que é difícil ela terminar. Já em (3), atribui-se
dificuldade à realização de projetos de vida.
DIPLOMAR [1 ocorrência no corpus]
1937
Vou começar a aula / Perante a comissão, muita atenção / Eu quero ver
se diplomá-los posso / Salve o fessor, dá nota a eles, senhor / Quatorze
com mais doze noves fora tudo é nosso //
Teste ao samba; Paulo da Portela
O ato de diplomar, conferir um certificado, atestando que alguém desenvolveu,
mediante ensino formal, determinados conhecimentos e habilidades, é usado nesse caso como
mais uma marca para criar um ambiente de sala de aula, correspondente ao enredo
apresentado pela Portela ao som deste samba.
O uso de elementos do campo semântico da educação formal é frequente nas letras do
corpus. Veja-se s.v. aula mais considerações sobre esse fato.
DIZER [115 ocorrências em 84 letras do corpus]
Colocação dizer samba raiado
28
1933
Lá vem ela, lá vem ela / Com o ioiô do seu lado /
Arrastando a chinela / Dizendo samba raiado //
Dona do lugar; Ismael Silva e
Francisco Alves
Nessa ocorrência encontra-se um uso de dizer mais particular do léxico do samba.
Considerando-se que samba raiado é uma variedade de samba composta de partes
improvisadas intercaladas por um refrão (ver samba), dizer nesse caso corresponde a versar,
improvisar a parte solada do samba raiado.
Referência ao ato de fazer uma enunciação, ou à informação enunciada
2
1927
Meu bem, é preciso mudar / Esse modo de viver / Quase
sempre tem barulho / Arranjado por você / Uma hora
Fulana quem disse / Outra hora Fulana falou / Vivemos
uma agonia / Quase sempre um leleô
Eu que vivia satisfeito; Paulo da
Portela
261
3
1928
Oh! meu bem o teu orgulho / Algum dia há de acabar /
Tudo com o tempo passa / A sorte é Deus quem dá /
Vou-me embora, vou-me embora / Como já disse que
vou / Eu aqui não sou querido / Mas na minha terra eu
sou.
Me faz carinhos; Ismael Silva e
Francisco Alves
6
1930
É o velho, velho Estácio / Vem visitar a Mangueira / E
trazer recordação / Professor, chegaste a tempo / Pra
dizer neste momento / O que devemos fazer / Me sinto
mais animado / A Mangueira a teus cuidados / Vai à
cidade descer
Velho Estácio; Cartola
7
1931
Em viver junto de ti / Ainda tenho esperança / O teu
amor, eu já vi / Não me sai mais da lembrança / Quem
diz fazer o que quer / Eu digo não ser verdade /
Enquanto existir mulher / Há de existir saudade
Arrependido; Ismael Silva, Nilton
Bastos e Francisco Alves
14
1931
Me diga o teu nome // O teu olhar que me consome / Por
caridade, iaiá, me diga teu nome. //
Me diga o teu nome; Ismael
Silva, Nilton Bastos e Francisco
Alves
15
1931
Nem tudo que se diz se faz / Eu digo e serei capaz de
não resistir / Nem é bom falar / se a orgia se acabar //
Nem é bom falar; Ismael Silva,
Nilton Bastos e Francisco Alves
18
1931
Com você não me acostumo / Eu vou dizer por que é /
Você não faz o que eu faço / Nem eu faço o que tu quer
(pra que teimar?) //
Oleleô; Ismael Silva, Nilton
Bastos e Francisco Alves
26
1932
Diz, qual foi o mal que eu te fiz? / Eu não te farei esta
ingratidão / Foi um falso contra a nossa amizade / não
creias, não pode ser verdade //
Qual um farol; Paulo da Portela
27
1932
Ainda tenho alguma esperança / Que um dia hás de
perder a pretensão / Por isso eu digo: quem espera
sempre alcança / E mais tarde hás de ver quem é que
tem razão.
Quem espera sempre alcança;
Paulo da Portela
29
1933
Ainda há de chegar o dia / Que eu hei de ter grande
alegria / Quando você souber compreender / Num olhar
o que eu quero dizer
Fita meus olhos; Cartola e
Osvaldo Vasquez
30
1933
Fita os meus olhos, / Vê como eles falam / Vê como
reparam / O seu proceder / Não é preciso dizer, / Deve
compreender / E até mesmo notar, / Só no meu olhar //
Fita meus olhos; Cartola e
Osvaldo Vasquez
32
1933
Não digas // Oh / não digas que ainda eu não te
esqueci... / quem não sabe há de pensar que eu ando
atrás de ti //
Não digas; Ismael Silva
37
1936
Não digo que tenho raiva / Por você ser da orgia / Quero
dizer que não serve / Para minha companhia // Sei que
você não é feia / Tu és linda criatura / Meu bem, que
queres que eu faça / Não vou quebrar minha jura
Não é isso que eu procuro;
Ismael Silva e Francisco Alves
43
1939
Eu queria te fazer feliz!... / Mas me surpreendi / Com os
defeitos teus / Se é conforme todo mundo diz / Estás
com a vida / Que pediste a Deus... //
Com a vida que pediste a Deus;
Ismael Silva
48
1942
Do meu amor nada posso dizer / Porque com ela eu fico
em paz / Tudo que eu peço pra ela fazer / se bem eu
digo / melhor ela faz / sem dar pra trás //
Não tenho queixa; Ismael Silva e
David Raw
100
d1941
Eu digo e afirmo que a felicidade aqui mora / E as outras
escolas até choram / Invejando a tua posição / Minha
Mangueira, és a sala de recepção / Aqui se abraça o
inimigo como se fosse irmão.
Sala de recepção; Cartola
As ocorrências relacionadas nesse agrupamento trazem sentidos de dizer que são
usuais no vocabulário comum da língua. Ressaltem-se alguns recursos discursivos, como
empregar a lexia Fulana para indeterminar pejorativamente o agente desse ato, com gênero
feminino deliberadamente aplicado, para acionar o preconceito de que as mulheres são
essencialmente dadas a fofocas (2); o uso do verbo que indica enunciação antes da afirmação
propriamente dita (18, 27, 54), como numa pausa de espera para criar suspense, conseguir
atenção e/ou afirmar autoridade; a conjugação no imperativo, introduzindo uma pergunta e
dando-lhe maior força apelativa (26); apreciações sobre o próprio enunciado, com espaço para
modalizações e reformulações (37, 83, 97), para marcar indecisão ou demonstrar cuidado em
não melindrar interlocutores próximos e caros ou, pelo contrário, alheios e socialmente
assimétricos; alusão a outros dizeres, marcados a partir de determinações como todo mundo
262
(43); acúmulo de verbos de afirmação, para enfatizar a convicção do enunciador no que
assevera (100).
Com relação à significação, dependendo do contexto e das relações entre os sujeitos
discursivos envolvidos, o verbo pode equivaler a afirmar (3), orientar (6), informar (14),
determinar (48).
Verbo dicendi
1
1926
Dizem que os teus beijos é igual ao ópio / Que sonhos
de luz fazem gozar / Mata meu desejo neste instante /
Dai-me teu beijo importante / Quero dormir e sonhar
Ópio; Paulo da Portela
5
1930
Não há, / Não há quem não se iluda / Com teu sorriso
traidor / Dizem que vingança é pecado / Então tu podes
crer / Que eu serei um pecador. //
Não há; Ismael Silva, Nilton
Bastos e Francisco Alves
9
1931
Carinho sem a nota / não adianta mulher / diz que amor
é lorota / é bom para quem quiser / Eu não aceito / sou
espertinho / Eu acho direito / amor, nota e carinho //
Carinho eu tenho; Ismael Silva
11
1931
Passas por mim, rindo, cantando / Dás com os ombros,
arrastando o sapato / Me debochando / E ainda dizes
pros outros / Só pra moer / Em amar não acho prazer //
Infeliz sorte; Cartola
12
1931
Tu não mereces / Ser recompensada / Me enganaste,
ainda dizes pros outros / Estou vingada / E também é
bem falso o juízo teu / Em acreditar no amor meu
Infeliz sorte; Cartola
17
1931
Tu não me tens amor, meu bem (oleleô) // Você diz que
não me quer / Você diz que me adora / Quando tu me
vê, mulher, / Por que é que você chora (será promessa?)
//
Oleleô; Ismael Silva, Nilton
Bastos e Francisco Alves
24
1932
Disseste que te enganei / Não sou tão fingido assim /
Talvez queiras um pretexto / pra viver longe de mim /
Disseram que eu traía / a nossa grande amizade / E tão
criminosa a culpa / que não pode ser verdade
Qual foi o mal que eu te fiz?;
Cartola
31
1933
Na floresta dei-te um ninho / E mostrei-te o bom caminho
/ Mas quando a mulher não tem brio / Dizem que / É
malhar em ferro frio //
Na floresta; Cartola e Sílvio
Caldas
33
1933
Observo que, hoje em dia, / Quem não quis diz que me
quer / Cabe muita hipocrisia / Num capricho de mulher /
Vou viver desiludido, / Sem amor, sem ideal / Pra não ser
submetido / A desejo tão banal //
Quem não quer sou eu; Ismael
Silva e Noel Rosa
38
1936
Toda mulher da orgia / Assim disse o Ismael, / Não se
pode com certeza / Dizer
que ela é fiel // Quero mulher
pra mim só / Não quero saber de sócio / E você gosta de
todos / Isso assim não é negócio //
Não é isso que eu procuro;
Ismael Silva e Francisco Alves
52
1944
Silenciar a Mangueira, não / Disse alguém / Uma
andorinha só não faz verão também / Devemos ter
adversários / Como Oswaldo Cruz
Silenciar a Mangueira; Cartola
53
1944
Devemos ter adversários / Como Oswaldo Cruz / Diz o
provérbio / Da discussão é que nasce a luz / Outra
escola que não poderia acabar / É o velho Estácio de Sá
Silenciar a Mangueira; Cartola
57
1950
Não dei trabalho a papai / Não dei trabalho a mamãe /
Me disse o professor Noronha / Eu vim no bico da
cegonha, / Eu vim no bico da cegonha. //
Bico da cegonha; Ismael Silva
58
1952
Você me disse que, / Se acaso eu morresse, / Mandaria
uma coroa / Até cem mil réis / Pois então faça de conta
que eu morri / E, em vez de cem, você me empresta dez
//
Ninguém faz; Ismael Silva e
Paulo Medeiros
69
1973
Toda essa gente que te dá tanto valor / Não sabe ainda
que não vales um vintém / Há pouco tempo me disseste
por favor / Que eu não contasse a tua crônica a
ninguém.
Entrada franca; Ismael Silva
75
1977
Dizem que estou desfigurado, com razão / Estou
cansado de pedir / A Deus, aos céus enfim / Um amor,
onde encontrarei, Senhor? / Livrai-me desta nostalgia /
Confiante ainda espero um dia //
Desfigurado; Cartola
76
1977
Tinhas pela frente Um grande futuro / E eu dizia, crente,
o nosso amor é puro / Mas a realidade chegou afinal / E
o nosso amor termina de um modo tão banal
Desta vez eu vou; Cartola
78
1979
Quando você partiu, me disse: "Chora!", não chorei /
Caprichosamente fui esquecendo que te amei / Hoje me
encontras tão alegre e diferente / Jesus não castiga o
filho que está inocente
Basta de clamares inocência;
Cartola
263
Esses casos também são próprios do vocabulário comum: neles, o verbo é usado como
dicendi, ou seja, com a função de introduzir uma citação, feita, em discurso direto ou indireto.
Muitas das ocorrências são características de controvérsias entre amantes ou ex-amantes.
Além dessas, destaquem-se alguns usos mais próximos do universo do samba, como (52) e
(53) — no primeiro caso, recupera-se por intertextualidade outra composição, para refutar
suas teses; no segundo, o verbo introduz a citação de um provérbio, usado como argumento
para defender a ideia de que deve haver várias escolas de samba disputando o título no
carnaval. Veja-se o que foi esclarecido sobre a composição “Silenciar a Mangueira” na
análise qualitativa.
Referência à atribuição de uma qualidade
99
d1935
Quando o estrangeiro elogia / Por que não ter alegria /
Como não se sentir prosa? / Ipanema é a sala de visita /
Da cidade mais bonita / Que se diz maravilhosa
Quando o estrangeiro elogia...;
Paulo da Portela
Nesse caso, o verbo é sempre pronominal e tem significação reflexiva. É usado para
afirmar uma autoavaliação que o enunciador faz — nesse caso, a cidade do Rio de Janeiro,
personificada como uma enunciadora vaidosa da sua beleza.
Colocações sem dizer nada a ninguém e não digam nada a ninguém
20
1932
Sei que não posso suportar / (Se meu amor me deixar) /
Se de saudades eu chorar / (Eu não posso me queixar) /
Abandonado sem vintém / (Vou sofrendo sem dizer nada
a ninguém) / Quem muito riu chora também / (A razão
dá-se a quem tem) //
A razão dá-se a quem tem;
Ismael Silva, Noel Rosa e
Francisco Alves
21
1932
Eu vou chorar só em lembrar / (Se meu amor me deixar)
/ Dei sempre golpe de azar / (Eu não posso me queixar) /
Pra parecer que vivo bem / (Vou sofrendo sem dizer
nada a ninguém) / A esconder que amo alguém / (A
razão dá-se a quem tem)
A razão dá-se a quem tem;
Ismael Silva, Noel Rosa e
Francisco Alves
22
1932
Se meu amor me deixar / Eu não posso me queixar / Vou
sofrendo sem dizer nada a ninguém / A razão dá-se a
quem tem //
A razão dá-se a quem tem;
Ismael Silva, Noel Rosa e
Francisco Alves
61
1966
A todos que estão me ouvindo / Eu agradeço / Esta
atenção dispensada / É mais do que mereço / Se não
gostarem / Não digam nada a ninguém / Senão os outros
não vão me aturar também //
Eu agradeço; Ismael Silva
Não digam nada a ninguém é uma fórmula de rotina para pedir segredo de algum
assunto. Em (61) o dito é uma troça do enunciador, pedindo cumplicidade da plateia no
sentido de não divulgarem se não tiverem gostado do show apresentado. As três outras
ocorrências são de sem dizer nada a ninguém, unidade recorrente no samba A razão dá-se a
quem tem, que ressalta o sofrimento do enunciador diante da possibilidade de ser abandonado
pela companheira.
Os dois pragmatemas têm em comum o fato de haver uma informação que poderia ser
compartilhada, mas é omitida. A omissão pode ser resultado de um acordo no sentido de não
revelar a informação, ou decisão do enunciador, por conveniência ou impedimento de
264
comunicar o que sabe.
Pragmatema ser como eu te digo
10
1931
Carinho eu tenho até demais / e a nota é como eu te
digo / O meu desejo é uma ordem meu bem / quando
Deus quer não há castigo //
Carinho eu tenho; Ismael Silva
O pragmatema implica o compartilhamento de uma afirmação prévia do enunciador,
que é ratificada a partir da fórmula de rotina. Tem a função discursiva de valorizar a
confiabilidade do enunciador, coerente em seus dizeres, dando peso às suas palavras.
Pragmatema eu digo
93
1928-1980
Passei fome e sede vendo água, / arroz e feijão / Fome
aqui eu digo
é bem mais doída / E é bem diferente da
fome lá / do meu sertão / A barriga ronca e os óio vê
comida //
Nada vale a pena; Cartola e
Roberto Nascimento
O marcador discursivo focaliza o posicionamento seguro do enunciador quanto àquilo
que fala. Também produz um efeito de afirmação por experiência própria, a partir da
marcação de que o que especificamente aquele enunciador diz tem relevância diferenciada.
Pragmatema quem disse [algo]
73
1976
Minha, quem disse que ela foi minha / Se fosse seria a
rainha / Que sempre vinha aos sonhos meus //
Minha; Cartola
A expressão traz um tom desiludido à afirmação, anulando completamente o sentido
de verdade da mesma. O fato de o verbo ser empregado no pretérito destaca que a informação
já foi testada e comprovada como falsa.
Veja-se também a análise do pragmatema ouvi dizer s.v. ouvir.
DOR [28 ocorrências em 22 letras do corpus]
Referência ao sofrimento emocional
1
1924
Bendigo a dor que vem para ensinar / Bendigo a
resignação que enobrece / Da tristeza passada farei o
meu altar / Da alegria presente farei minha prece.
Dor que ensina; Paulo da Portela
2
1924
Dor que ensina // Depois que magoaste bem meu
coração / Partiste e agora voltaste / A clamar inocência /
Sinto-me refeito de paixão
Dor que ensina; Paulo da Portela
3
1931
Infeliz sorte! / Que infeliz sorte! / Que infeliz sorte! / Que
vale que meu coração / Pra resistir a essa paixão é forte!
/ Se não passava as maiores dores / Pela ingratidão que
me fez Dolores. //
Infeliz sorte; Cartola
4
1932
Vivo cantando / Para esquecer a minha dor / Conservo
ainda / No meu peito um grande amor / E o meu pranto
parece não ter mais fim / No entanto eu padeço e não
tens pena de mim //
Cantar para não chorar; Paulo da
Portela e Heitor dos Prazeres
5
1932
Perdão, meu bem / atacou-me o coração, / Falei demais /
sou bom rapaz / no modo de proceder / perdão, porque /
se acabar nossa amizade / eu vou morrer / sinto dores
, /
são saudades. //
Perdão, meu bem; Cartola
6
1932
Se acaso um dia se apagar / No teu pensamento o meu
amor / Para não chorar / E não mais penar / Mando
embora a saudade / Pra livrar-me da dor.
Tenho um novo amor; Cartola
7
1934
Minha dor, na verdade, é moral, / Porém me faz chorar, /
Por ser tão pertinaz!... / Até parece que é imortal, / Pois
este desprazer não me deixa mais em paz!
Choro sim; Ismael Silva
265
8
1934
Mas esta mágoa / Que deve jamais persistir / Creio que
paixão nenhuma / Pode o riso resistir / Põe de lado esta
dor / Que tanto atormenta / Só porque não és amado / A
vida muito lamentas / Laraiá, laraiá, laraiá.
O riso e a dor; Paulo da Portela
9
1934
É sempre consolação / Se iludir conseguimos / A
concepção / Por este alguém / Por quem sofremos / E a
nossa dor / Assim escondemos //
O riso e a dor; Paulo da Portela
10
1934
O riso e a dor // O riso que nossa face / às vezes
trazemos / por mero disfarce / Nós a esconder
procuramos / Lágrimas que já choramos
O riso e a dor; Paulo da Portela
11
1935
Liberdade / Para este pobre infeliz / Que o destino assim
quis / É sofrer de amor / Liberdade / Não posso mais
ocultar tanta dor //
Liberdade; Paulo da Portela e
Dengo
12
1937
Sei chorar / Eu também já sei sentir a dor / Estou
cansado de ouvir dizer / Que aprende-se a sofrer no
amor //
Sei chorar; Cartola
13
1937
Fui iludido / Sim, pela primeira vez no amor / E quase
sempre seu nome repito / Em cada frase um suspiro de
dor.
Sei chorar; Cartola
14
1939
A quem eu dediquei / O meu sincero amor / E com tantas
muitas falsidades / Me abandonou / Aumentando a
minha dor / Aumentando a minha dor / Guardo a tristeza
comigo / Guardo a tristeza porque / Dela sou o maior
amigo
Tristeza; Cartola e Orlando
Batista
15
1941
Deixa que todo mundo fale / Cada um diz o que quer /
Sem saber o que dizer / Estamos sempre juntos / E o
mundo num conjunto / suavizando a nossa dor //
Não esqueça de mim; Paulo da
Portela
16
1941
Tive que contar a minha vida / A esta mulher fingida /
Que me faz sofrer / Esta dor que tanto me crucia, /
Roubou toda alegria do meu viver / Pode ser que ela
ouvindo os meus ais / Volte ao lar para viver em paz //
Não posso viver sem ela;
Alcebiades Barcellos e Cartola
17
1946
És o cavaleiro que sonhamos / De ti muito esperamos /
Com todo amor febril / Para amenizar nossas dores / E
levar bem alto as cores / Da bandeira do Brasil
Cavaleiro da esperança; Paulo
da Portela e Monarco
18
1922-1949
Seus olhos são dois flocos, / luminosos e sedutores / Se
com desprezo me olhas, me causas doenças, dores /
Pelo amor de Deus te peço / tenhas compaixão de mim /
veja as rimas destes versos / Meu bem, não olhes assim
Olhar assim; Paulo da Portela
19
1922-1949
Quisera viver deste sonho / Que me dá prazer / A ter que
despertar risonho / E logo sofrer / A dor com saudade
daquela / Que tanto queria / É melhor viver-se de um
sonho / Que traz alegria / Ah se tu voltasses
Sonho; Lincoln Washington
Pereira de Almeida e Paulo da
Portela
21
1968
Tudo que sofri e que vivi / Depois que te deixei / Causou-
me um mal confortador / Sentir as dores que senti / Por
teu amor //
Sofreguidão; Cartola e Elton
Medeiros
Nesses casos, a dor experienciada não é física, mas sim um sofrimento emocional,
provocado na maioria das vezes por desventuras amorosas; também pode ser devida a
desilusões e dificuldades na vida. Como já foi comentado anteriormente, atitudes que surgem
como maneiras de lidar com esse tipo de dor são cantar, entregar-se a atividades prazerosas
(4), sorrir para não transparecer o sofrimento (8-10), ou desligar-se do amor e da saudade,
para garantir a tranquilidade (6). Muitas vezes, porém, o que se expressa é a dor emocional
em si, sem sugestão desses artifícios.
Referência a um sofrimento inespecífico (físico ou emocional)
20
déc.1950
Abafa-se a voz do oprimido / Com a dor e o gemido /
Não se pode desabafar / Trabalho feito por minha mão /
Só encontrei a exploração / Em todo lugar.
O samba do operário; Cartola,
Alfredo Português e Nelson
Sargento
Aqui, a dor, que tanto pode ser física quanto emocional, tem a função de calar os
oprimidos. Isso corresponde à ideia de exploração de operários por patrões, cantada na letra
— o sofrimento seria uma forma de garantir a exploração e desencorajar contestações a ela.
266
DOUTOR [7 ocorrências em 3 letras do corpus]
1
1979
Naquela hora minha vista ficou escura / Minha mão foi à
cintura e dois tiros disparei / E me encontraram com a
arma fumegando / Seu doutor, rindo e chorando / Se
morreram os dois, não sei
Feriado na roça; Cartola
2
1928-1980
Um dia eu voltei ansioso pra ver / o meu amor / Esqueci
o sofrimento que passei / Dinheiro no banco. Terno novo
/ Quase doutor / Só que a Joaninha não encontrei
Nada vale a pena; Cartola e
Roberto Nascimento
3
1928-1980
Foi num dia um sonho e eu sonhei / demais seu doutor /
Na cidade grande eu vim / tentar vencer / Joaninha
coitadinha tão / sozinha ficou / E o que aconteceu foi /
triste de doer //
Nada vale a pena; Cartola e
Roberto Nascimento
4
1928-1980
Sou doutor // Sou doutor / Sou doutor, mas sou sambista
/ Tenho sangue de artista / Também sei tamborinar / Sou
doutor / Sei que sou advogado / Não me faço de rogado /
Quando preciso sambar //
Sou doutor; Cartola
A lexia que ocorre repetidamente em (4) não apresenta a significação acadêmica,
formal, que se lhe atribui nas universidades; também não faz referência a um médico, outra
significação corrente no vocabulário comum. Doutor, nesse caso, corresponde a uma
significação circulante nos usos populares: pode ser tanto alguém de um grupo social
dominante quanto alguém que tem um pouco mais de instrução, geralmente graduação em
qualquer área.
Essa identificação é usada para construir um contraste com outro traço a partir do qual
o enunciador se identifica: o de sambista. O uso de elementos do campo semântico da
educação formal é frequente nas letras do corpus. Veja-se s.v. aula mais considerações sobre
esse fato.
Em (1) e (3), a lexia aparece como forma de tratamento para pessoa de grupo social
dominante. Em (2), ela qualifica o enunciador como alguém que estaria conseguindo ingressar
nesse grupo social. É uma forma de caracterizá-lo como bem-sucedido, tendo cumprido o
propósito que o fez deixar a cidade do interior para ir à cidade, em busca de sucesso. Também
sobressai o cuidado que transparece no sintagma “quase doutor”, usado para relativizar o
sucesso da busca por ascensão social.
DUQUESA [1 ocorrência no corpus]
1960
Conseguiu penetrar no Municipal / Depois de percorrer todo o universo /
E com a mesma roupagem que saiu daqui / Exibiu-se pra Duquesa de
Kent no Itamaraty
Tempos idos; Cartola e Carlos
Cachaça
A apresentação de sambistas à duquesa de Kent é mencionada como marca da sua
ascensão social. Esse é o tema da canção “Tempos idos”, em que se faz um histórico do
samba, com ênfase para o fato de que o gênero conquistou cada vez mais aceitação social,
chegando a ter sua fama difundida no estrangeiro.
267
3.2.9 – Letra E
EDUCAÇÃO [1 ocorrência no corpus]
1922-1978
Apesar de eu ter educação / Para participar do melhor ambiente /
Quando me fazem dizer palavrão / Digo: inconstitucionalissimamente
Nome feio; Ismael Silva
A colocação com verbo-suporte ter educação refere-se à capacidade de agir conforme
um código de condutas valorizado socialmente. Essa identidade assumida pelo enunciador
motiva um jogo metalinguístico de releitura do quase-frasema nome feio e da lexia palavrão
por ter educação, o enunciador seria incapaz de reconhecer os significados estigmatizados
dessas unidades lexicais, recorrendo às leituras metalinguísticas: palavrão seria uma palavra
longa; nome feio seria um nome próprio cacofônico.
EMUDECER [2 ocorrências em 1 letra do corpus]
d1937
A Vila emudeceu // A Vila emudeceu / Dolorosamente chora / O que
perdeu / Ninguém é imortal / Morrer é natural / Ó Deus, perdoa / Se é
que estou pecando / Que mal te fez a Vila / Que lhe estás torturando //
A Vila emudeceu; Cartola
A morte de Noel Rosa é representada pelo emudecimento metafórico do bairro de Vila
Isabel. É interessante comparar esse uso de emudecer com o uso também metafórico de
cantar, encontrado, por exemplo, em “Sala de recepção”.
ENCANTO [3 ocorrências em 3 letras do corpus]
1
1932
Pudesse meu ideal / Que é o carnaval / De encantos mil
/ Imortalizar neste poema / Cor de anil / Verossímil / E
levá-lo coroado / Pelas galas da história / Relembrando a
memória / Do meu querido Brasil
Pudesse meu ideal; Cartola e
Carlos Cachaça
2
1935
O céu fez da noite um manto / A terra do céu a riqueza /
O mar encanto
laraialaiá / Que dá-lhe a natureza.
Clarão da lua; Paulo da Portela
3
1928-1980
Hoje sem querer / Que vim a saber / Que gostas de ouvir
/ Quando canto, ó flor / Ficas comovida / Derramando
pranto / Achas um encanto
/ Neste teu cantor //
Hoje sem querer; Cartola e
Babaú
Em (1) e (3), a sensação de encanto é proporcionada pelo carnaval e pelo canto de um
artista talentoso, que arrebata a atenção de uma mulher. A colocação de encantos mil é uma
qualificação intensamente meliorativa para o carnaval.
Em (2), encontra-se a rotina discursiva de louvor à grandiosidade da natureza e às suas
belezas.
ENSABOAR [13 ocorrências em 1 letra do corpus]
1
1976
Tô lavando a minha roupa / Lá em casa estão me
chamando Dondon / Ensaboa mulata, ensaboa /
Ensaboa / Tô ensaboando //
Ensaboa; Cartola
2
1976
Ensaboa mulata, ensaboa / Ensaboa / Tô ensaboando /
Ensaboa
mulata, ensaboa / Ensaboa / Tô ensaboando //
Ensaboa; Cartola
3
1976
Ensaboa // Ensaboa mulata, ensaboa / Ensaboa / Tô
ensaboando / Ensaboa mulata, ensaboa / Ensaboa / Tô
ensaboando //
Ensaboa; Cartola
4
1976
Tô lavando a minha roupa / Lá em casa estão me
chamando Dondon / Ensaboa mulata, ensaboa /
Ensaboa; Cartola
268
Ensaboa / Tô ensaboando //
A lexia faz referência ao trabalho da lavadeira, que faz parte da caracterização de um
dos enunciadores. Sua repetição tem dois efeitos discursivos: primeiramente, reforça o efeito
do trabalho intenso e repetitivo de lavar roupa; adicionalmente, quanto ao subgênero textual
letra de samba, é um recurso eficiente para criar um refrão simples, adequado ao canto em
coro.
ENSAIO [1 ocorrência no corpus]
1965
Ensaio de rua // Pedro afine os tambores / E diz a Dolores / Que vai ter
ensaio de rua / Vê se reúne a turma inteirinha / Vamos que é noite de
lua //
Ensaio de rua; Barbosa da Silva,
José Lima e Cartola
Esse quase-frasema integra o vocabulário especializado do samba, pois se refere à
organização do desfile de carnaval. Ensaio de rua não é simplesmente um ensaio que
acontece na rua, mas caracteriza-se por reproduzir as condições do desfile na avenida.
Costuma ser complementado com ensaios técnicos, que ocorrem na quadra da escola de
samba.
ENTOAÇÃO [1 ocorrência no corpus]
d1937
Era o rei / Da filosofia / Fez da musa o que queria / Zombou da
inspiração / Os seus versos ritmados / Por ele mesmo cantados /
Tinham bela entoação //
A Vila emudeceu; Cartola
A lexia refere-se às composições de Noel Rosa, o homenageado na letra. Assim como
na poesia em geral, as letras de samba devem atender a padrões estéticos de sonoridade, que
nesse caso são específicos, pois, diferentemente da poesia em geral, precisam funcionar em
diálogo com a linguagem musical que é parte importante da canção.
No trecho analisado há um duplo elogio a Noel: o da sonoridade dos seus versos e o da
sua habilidade em cantá-los.
ENTOAR [1 ocorrência no corpus]
1938-1940
Quando a tarde vai morrendo (ai, meu Deus) / O crepúsculo vem
descendo / Reúne-se o bando na rua / E, cheios de harmonia, / Entoam
uma melodia que faz dançar a própria lua
Ao amanhecer; Cartola
A beleza e harmonia do canto dos periquitos é caracterizada como uma força da
natureza, capaz de exercer influência sobre a própria lua. Aqui permanece a ambiguidade com
relação ao agente do entoar, que acumula traços das aves e dos integrantes da Ala dos
Periquitos da Mangueira (ver o que se diz sobre a música na análise qualitativa do corpus).
ESCOLA [9 ocorrências em 9 letras do corpus]
1
1937
Eu quisera esquecer o passado / Eu quisera mas sou
obrigado / A lembrar o grande Noel / Ainda resta a
cadeira vazia / Da escola de filosofia / No bairro de Vila
Isabel
Cadeira vazia; Cartola e Nuno
Veloso
269
2
déc.1930
Quando trouxer deve pedir ao destino / Que mande pelo
menino recomendação de um bamba / Mais tarde eu
quero que como todo lero-lero / Ele seja professor de
uma Escola de Samba. //
Senhora Dona Cegonha; Paulo
da Portela
3
1940
Tem um prêmio para quem / descobrir a nega bamba /
da escola de samba / que compra barulho / por qualquer
dinheiro / faz o dó maior / bem direitinho / no cavaquinho
/ toca cuíca / bate tamborim / enfrenta um pandeiro
Nega bamba; Paulo da Portela
4
1941
Mangueira, velha escola / Onde Cartola tem sido
baluarte / Lindas poesias, belas melodias / Têm todo
valor de nossa parte
Homenagem à Mangueira; Paulo
da Portela
5
d1941
Eu digo e afirmo que a felicidade aqui mora / E as outras
escolas até choram / Invejando a tua posição / Minha
Mangueira, és a sala de recepção / Aqui se abraça o
inimigo como se fosse irmão.
Sala de recepção; Cartola
6
1944
Devemos ter adversários / Como Oswaldo Cruz / Diz o
provérbio / Da discussão é que nasce a luz / Outra
escola que não poderia acabar / É o velho Estácio de Sá
Silenciar a Mangueira; Cartola
7
1950
Ele está mesmo dançando na corda bamba / Ele é
aquele que na escola de samba / Toca cuíca, toca surdo
e tamborim / Faça por ele como se fosse por mim //
Antonico; Ismael Silva
8
1960
Uma escola na praça Onze, testemunha ocular / E perto
dela uma balança onde os malandros iam sambar / Onde
os malandros iam sambar //
Tempos idos; Cartola e Carlos
Cachaça
9
1974
Chora / Disfarça e chora / Aproveita a voz do lamento /
Que já vem a aurora / A pessoa que tanto querias /
Antes mesmo de raiar o dia / Deixou a escola com outro /
Oh! Triste senhora //
Disfarça e chora; Cartola e
Dalmo Castello
A maioria das ocorrências (2-9), como era esperável, fazem referência à escola de
samba, que à época dos sambistas estudados foi criada como a principal instituição de cultivo
dos valores culturais do samba.
Os itens (2, 3, 7) trazem exatamente o quase-frasema escola de samba. Em (2), ele
ocorre articulado a professor, vocábulo que retoma os dizeres de Ismael Silva, de que nessas
instituições se encontravam os professores de samba, pessoas detentoras de conhecimentos
valorizados no grupo e com autoridade para transmiti-los. Já em (3), a instituição entra na
caracterização da nega bamba, figurando como o lugar próprio do sambista habilidoso.
Em (4-8), ocorrem reduções desse quase-frasema, referido apenas como escola. A
seleção do sentido especializado se dá pelo universo discursivo em questão, além da co-
ocorrências de marcas específicas do léxico do samba, como baluarte, nomes de bambas
(Cartola), de escolas de samba (Mangueira, Estácio de Sá), de bairros cariocas tidos como
redutos de bambas (Oswaldo Cruz), de instrumentos musicais específicos (cuíca, surdo,
tamborim) etc.
Já em (1) encontra-se referência a Vila Isabel como escola de filosofia. O sintagma,
que até onde se pôde observar não constitui uma unidade lexical complexa, afirma que Vila
Isabel já teria uma tradição de filosofia popular, cultivada pelo compositor falecido.
ESPERANÇA [22 ocorrências em 18 letras do corpus]
1
1927
Não se deve cantar glória / Antes da vitória / Vocês que
sorriam de mim / Na esperança do mais alto pedestal / O
seu castelo ruiu / Numa poeira infernal
Não se deve cantar glória; Paulo
da Portela
2
1931
Em viver junto de ti / Ainda tenho esperança / O teu
amor, eu já vi / Não me sai mais da lembrança / Quem
diz fazer o que quer / Eu digo não ser verdade /
Enquanto existir mulher / Há de existir saudade
Arrependido; Ismael Silva, Nilton
Bastos e Francisco Alves
270
3
1931
Nem sempre o riso é alegria / Quantas vezes noite e dia /
Nós levamos a cantar / Pra não chorar, / Mas como há
um ditado / "Quem espera sempre alcança" / Nós vamos
alimentando / Essa esperança. //
Ri pra não chorar; Ismael Silva e
Francisco Alves
4
1932
Ainda tenho alguma esperança / Que um dia hás de
perder a pretensão / Por isso eu digo: quem espera
sempre alcança / E mais tarde hás de ver quem é que
tem razão.
Quem espera sempre alcança;
Paulo da Portela
5
1933
De esperar a minha amada / A minh'alma não se cansa /
Pois até quem não tem nada / Tem ainda a esperança /
Esperança nos ilude / Ajudando a suportar / Do destino o
golpe rude / Que eu não canso de esperar
Vejo amanhecer; Ismael Silva,
Noel Rosa e Francisco Alves
6
c1933
Às vezes é um sorriso / Que acompanha uma esperança
/ Outras vezes é um riso / Que provoca uma vingança //
Rir; Cartola e Noel Rosa
7
déc.1930
Alegria era o que faltava em mim / Uma esperança vaga
eu já encontrei / Pelos carinhos que me faz me deixa em
paz / Não te quero ver para nunca mais //
Alegria; Cartola
8
1945
Ai, meu Deus, tenho fé / Quem tem fé não cansa / E
nunca perde a esperança.
Deus te ouça; Paulo da Portela e
Cartola
9
1946
Cavaleiro da esperança // Prestes, Cavaleiro da
Esperança / És o homem que pelo povo relutou / Seu
nome foi consagrado dentro das urnas / Oh! Carlos
Prestes / Foi merecida a cadeira de Senador //
Cavaleiro da esperança; Paulo
da Portela e Monarco
10
1922-1949
Cantando muito facilmente irás esquecer / Aquela que
por maldade te fez padecer / Compare essa falsa
amizade / Com a tempestade, não perca a esperança /
Que um dia com muita alegria terás a bonança.
Conselho; Lincoln Washington
Pereira de Almeida e Paulo da
Portela
11
déc.1940
Amo-te demais, ó, Pátria minha / Tua bandeira, ó, meus
irmãos, / O lábaro estrelado, o verde esperança, / O
amarelo ouro, o azul do céu, / E o branco da paz //
Amo-te demais, ó, Pátria
minha...; Cartola
12
1973
Essa hora eu esperava / Sempre com perseverança /
Você nunca me aceitava / Mas deixava uma esperança
Alegria; Ismael Silva
13
1976
Bate outra vez / com esperanças o meu coração / Pois já
vai terminando o verão, enfim / Volto ao jardim / Com a
certeza que devo chorar / Pois bem sei que não queres
voltar / Para mim
As rosas não falam; Cartola
14
1977
Lembro dos tempos de outrora / Que quase me roubam /
A esperança e a fé / E hoje me volto contente / Cantando
pra Deus
A canção que chegou; Cartola e
Nuno Veloso
15
1977
A cor da esperança // Amanhã / A tristeza vai
transformar-se em alegria / E o sol vai brilhar no céu de
um novo dia / Vamos sair pelas ruas, pelas ruas da
cidade / Peito aberto, cara ao sol da felicidade //
A cor da esperança; Cartola e
Roberto Nascimento
16
1977
E num canto de amor assim / Sempre vão surgir em mim
novas fantasias / Sinto vibrando no ar e sei que não é vã
/ A cor da esperança, a esperança do amanhã / Do
amanhã, do aman
A cor da esperança; Cartola e
Roberto Nascimento
17
1977
Verde como o céu azul, a esperança / Branco como a
cor da Paz a se encontrar / Rubro como o rosto fica junto
à rosa mais querida / É negra toda tristeza se há
despedida na avenida / É negra toda tristeza desta vida
//
Verde que te quero rosa; Cartola
e Dalmo Castello
18
1979 Bate outra vez / Com esperanças o meu coração, enfim.
Motivação; Cartola e Dalmo
Castelo
19
1928-1980
A minha primeira providência / Foi pedir clemência / Ao
criador / Que me salvasse a criança / E me desse
esperança
/ Na mulher que é o meu amor.
Comovido; Cartola e Babau
Nas abonações (3, 6, 13-14, 18), a referência é à perspectiva de melhora das condições
de vida em geral. Essa referência vem apoiada por citações de provérbios (Quem espera
sempre alcança); alusões ao riso, que pode significar ocasionar esperança ou desejo de
vingança; atribuições de qualidades (nesse caso, a esperança) ao coração, símbolo da emoção
humana; associações do passado a sofrimentos que ameaçaram as esperanças do enunciador.
Quanto ao nível lexical, destaquem-se colocações como alimentar a esperança, e
roubar a esperança, cujos verbos-suporte adicionam traços semânticos positivos ou
negativos, além de modificar o comportamento morfossintático da lexia em estudo.
Em (7-8, 10), a referência é à perspectiva de consolação do sofrimento amoroso. Ela é
271
apresentada como motivo de exultação daquele que começa a se desligar emocionalmente da
consorte insincera; valor intimamente relacionado à fé do enunciador; vaga promessa de
felicidade, apoiada por citação estilizada de provérbio (depois da tempestade vem sempre a
bonança). Há ocorrências de colocações com o verbo-suporte perder, que ressaltam a postura
do enunciador, que resiste diante das razões que tem para desesperar.
Nos itens (2, 5), a referência é à perspectiva de reconciliação amorosa. Nesses casos,
há paráfrases do ditado segundo o qual a esperança é a última que morre; o enunciador se
caracteriza como quem não desistiu da relação, apesar dos desgostos que experimenta.
Item (1): a referência é à perspectiva de sucesso em um projeto. O objeto da esperança
seria a vitória no concurso de cidadão samba, simbolizada como um alto pedestal, contraposto
à ruína de um castelo em poeira infernal.
Item (12): a referência é à perspectiva de sucesso de investidas amorosas do
enunciador. À destinatária cabe a decisão que viabiliza o romance; seu comportamento é
qualificado como dúbio, o que é interpretado como um teste à perseverança do apaixonado.
Item (4): a referência é à mudança do comportamento de alguém. O enunciador
aconselha uma destinatária tentando convencê-la a ser mais modesta; seu otimismo é
reforçado pelo pragmatema quem espera sempre alcança.
Item (19): a referência é à sobrevivência de alguém em risco de vida. A esperança,
nessa situação extrema, é sustentada pela religiosidade do enunciador e originada de Deus,
que é sujeito da colocação com verbo-suporte dar esperança, da qual o enunciador é o objeto
afetado.
Itens (11, 17): a colocação verde esperança é usada em descrições para, a partir do
valor simbólico da cor, qualificar objetos como a bandeira nacional e a bandeira da
Mangueira.
Itens (15-16): ocorre o quase-frasema cor da esperança. A composição atribui à cor o
comportamento feliz das pessoas, motivadas por perspectivas de um futuro melhor. À cor da
esperança, portanto, atribui-se a força de contagiar todos, influenciando o seu proceder. Essa
imagem poética é mais eloquente na composição de um mangueirense, cuja bandeira leva as
cores verde e rosa.
Item (9): ocorre o quase-frasema cavaleiro da esperança, antonomásia de Luís Carlos
Prestes. A canção é uma homenagem a ele, já comentada na seção destinada à análise
qualitativa do corpus (ver).
272
ESQUECER [36 ocorrências em 28 letras do corpus]
1
1924
Fingiste não compreender / Que por mim foste amada /
Esqueci tudo, tudo, tudo / E o quanto te quis //
Dor que ensina; Paulo da Portela
2
1929-1930
Não te darei perdão / porque eu já aturei / tanta
ingratidão / eu jamais esquecerei //
Não te dou perdão; Ismael Silva
3
1931
Eu fiz tudo / Pra esquecer a quem amei / Hoje estou
arrependido / Sem querer eu já chorei / Eu já chorei /
sem querer. //
Arrependido; Ismael Silva, Nilton
Bastos e Francisco Alves
4
1932
Vivo cantando / Para esquecer a minha dor / Conservo
ainda / No meu peito um grande amor / E o meu pranto
parece não ter mais fim / No entanto eu padeço e não
tens pena de mim //
Cantar para não chorar; Paulo da
Portela e Heitor dos Prazeres
5
1932
Se algum dia tiver de mim compaixão / Que alegria vai
ser no meu coração / A tua volta será meu sonho
dourado / Eu viverei e esquecerei meu passado.
Cantar para não chorar; Paulo da
Portela e Heitor dos Prazeres
6
1932
Rir para iludir / Cantar para não chorar / Beber para
esquecer
/ O nome daquela ingrata que me fez sofrer //
Vivo cantando / Para esquecer
a minha dor
Cantar para não chorar; Paulo da
Portela e Heitor dos Prazeres
7
1933
Amanhece e anoitece / Sem parar o meu tormento / Por
saber que quem me esquece / Não me sai do
pensamento / Já não durmo, já não sonho / De pensar
fugiu-me a paz / Num passado tão risonho / Que não
volta nunca mais //
Vejo amanhecer; Ismael Silva,
Noel Rosa e Francisco Alves
8
1934
Seu desejo não me assombra, / Ofereço meu auxílio... /
Passe bem, vá pela sombra, / Acabou-se o nosso idílio...
/ Seu amor e o seu nome, / Eu também vou esquecer: /
Desta vez, juntou-se a fome, / Com a vontade de comer!
Boa viagem; Ismael Silva e Noel
Rosa
9
1934
Não adianta se aborrecer / porque você não vai me bater
/ Você cresça e apareça / eu peço que não se esqueça /
Você é quem se consome / para mim cara feia é fome //
Cara feia é fome; Ismael Silva
10
1935
Enquanto contigo eu viver, / terei a maior prevenção... /
Eu quero saber, / se vais me esquecer... / Me dê uma
desilusão!... //
Não faltará ocasião; Ismael Silva
11
1937
Eu quisera esquecer o passado / Eu quisera mas sou
obrigado / A lembrar o grande Noel / Ainda resta a
cadeira vazia / Da escola de filosofia / No bairro de Vila
Isabel
Cadeira vazia; Cartola e Nuno
Veloso
12
1938
Jamais te esquecerei / Pecadora mulher / Com os beijos
que te dei / Eu fiz-te meu querer / Meu amor desprezaste
/ Em busca de aventura / Mas bem caro pagaste / O
teres sido tão perjura //
Pecadora mulher; Paulo da
Portela
13
1939
Você já se esqueceu / que se comprometeu / que ia
proceder direito / E eu acreditei / por isso perdoei / Fiz
mal / porque não vejo jeito //
Não vejo jeito; Ismael Silva
14
1940
Jamais tu irás a um samba / E tenho as minhas razões
/ Quando entras no batuque / Esqueces as obrigações. /
Pense o caso bem direito / Te aconselho a que não
faça / Proibir-me do batuque / Tradição de nossa raça.
Vamos embora, ó, flor; Paulo da
Portela
18
1922-1949
Cantando muito facilmente irás esquecer / Aquela que só
por maldade te fez padecer / Compare essa falsa
amizade / Com a tempestade, não perca a esperança /
Que um dia com muita alegria terás a bonança.
Conselho; Lincoln Washington
Pereira de Almeida e Paulo da
Portela
19
1922-1949
Aceite um conselho de amigo / Não queiras ter tão triste
fim / Eu sei que a vida de quem ama é assim / Manda
embora essa tristeza / Esqueça
alguém que não te quis /
Canta e serás feliz
Conselho; Lincoln Washington
Pereira de Almeida e Paulo da
Portela
21
1972
Esquece nosso amor / Vê se esquece / Porque tudo no
mundo acontece / E acontece que já não sei mais amar /
Vai chorar, vai sofrer / E você não merece / Mas isso
acontece //
Acontece; Cartola
22
1976
Aconteceu / Eu não esperava mais acontecer / Todo o
bem que fiz se quiser esquecer
/ Revelando a sua
imprudência / Construí o lar, o lar que ela pedia / Exigiu-
me coisas que ela não queria //
Aconteceu; Cartola
24
1979
Quando você partiu, me disse: "Chora!", não chorei /
Caprichosamente fui esquecendo que te amei / Hoje me
encontras tão alegre e diferente / Jesus não castiga o
filho que está inocente
Basta de clamares inocência;
Cartola
25
1979
Nosso romance teve senões / E se separam dois
corações / Posso chorar até esquecer / Mas o meu
desejo é viver longe de você //
Senões; Cartola e Nuno Veloso
Nas abonações (3, 6-8, 10, 12, 18-19): a referência é à pessoa amada. Evidencia-se
dessa forma a desvinculação emocional de alguém em relação a outra pessoa, a quem amava.
As perspectivas e posturas em relação a esse esquecimento são muito variadas, mas
273
majoritariamente trazem relação com a necessidade de desligar-se daquela que rompeu o
consórcio amoroso. Por vezes, o enunciador se lamenta por não conseguir ignorar a amada, ou
por se arrepender de ter tentado fazê-lo; há casos nos quais se estabelece que o canto e a
bebida são artifícios para ajudar a conseguir ser indiferente a quem desmanchou a relação; por
outras vezes, manifesta-se a insegurança do enunciador relativamente ao amor da
companheira — ele acha que ela o esquecerá; também pode ser que ele se sinta vingado
porque ela o esqueceu e depois se desiludiu.
Itens (1, 2, 25): a referência é a experiências amorosas negativas. O verbo esquecer,
nesse caso, pode selecionar complementos de valor semântico indefinido (esquecer tudo), ou
explicitamente negativo (esquecer a ingratidão). Pode, ainda, não apresentar complementos,
dado que o contexto já explicitaria o que é esquecido.
Em (4, 5, 11): a referência é ao sofrimento, inclusive amoroso. Os núcleos dos
complementos de esquecer, nesses casos, são passado e dor. Fica claro, a partir do contexto,
que o passado é tido como fator negativo, seja pela saudade que se sente do que não se pode
reviver, seja devido a desentendimentos amorosos que se tentam superar.
Nas citações (9, 13-14): a referência é a uma determinada informação ou a um
compromisso. Em todos esses casos, o verbo ganha a carga discursiva de cobrança ou
advertência, pois o enunciador geralmente recorre a uma informação compartilhada tentando
influir no comportamento do(a) destinatário(a), ou, com a mesma intenção, avisa-lhe que um
determinado procedimento terá efeitos negativos. A força de cobrança dessas ocorrências fica
marcada pela colocação de lexias como compromisso e obrigação.
Itens (21, 24): a referência é à relação amorosa. Essas ocorrências são semelhantes às
do primeiro agrupamento apresentado. Aqui, entretanto, a referência ao desligamento
amoroso é mais impessoal, visto que, sintaticamente, o objeto do esquecimento é a relação e
não a pessoa amada. Também nesses casos, o verbo pode ocorrer sem complemento, pois a
informação é depreensível pelo contexto.
Item (22): a referência é a experiências positivas. Essa ocorrência serve para
caracterizar a ex-parceira como ingrata, pois teria desvalorizado os benefícios que o
enunciador lhe prestara no passado.
ESTAÇÃO [1 ocorrência no corpus]
1928
Chega de demanda, chega / Com este time temos que ganhar / Somos
da Estação
Primeira / Salve o morro de Mangueira
Chega de demanda; Cartola
O quase-frasema Estação Primeira, que se integrou ao nome da escola de samba da
Mangueira, foi criado por Cartola, a partir do fato de que esta é a primeira estação do trem a
274
partir da Central do Brasil. É possível que o nome tenha tido boa aceitação inclusive porque,
além da motivação simplesmente descritiva, a denominação dava margem a outra, valorativa,
que põe a Mangueira em primeiro lugar entre as concorrentes.
ESTÁCIO [5 ocorrências em 4 letras do corpus]
1
1930
É o velho, velho Estácio / Vem visitar a Mangueira / E
trazer recordação / Professor, chegaste a tempo / Pra
dizer neste momento / O que devemos fazer / Me sinto
mais animado / A Mangueira a teus cuidados / Vai à
cidade descer
Velho Estácio; Cartola
2
1930
Velho Estácio // Muito velho, pobre velho, / Vem subindo
a ladeira / Com a bengala na mão //
Velho Estácio; Cartola
3
1931
Favela, Estácio, Oswaldo e Salgueiro / todos te
respeitam quando pegam o seu pandeiro / (Então volver
/ Ordinário marche / Oba!) //
Meu batalhão; Ismael Silva ,
Nilton Bastos e Francisco Alves
4
1932
O homem deve saber conhecer o seu valor / Pra não
fazer como o Inácio / Que andou muito tempo /
Bancando o Estácio. //
Tristezas não pagam dívidas;
Ismael Silva
5
1944
Devemos ter adversários / Como Oswaldo Cruz / Diz o
provérbio / Da discussão é que nasce a luz / Outra
escola que não poderia acabar / É o velho Estácio de Sá
Silenciar a Mangueira; Cartola
Um dos bairros cariocas mais tradicionais na cultura do samba, o Estácio de Sá é
homenageado nas composições listadas acima. É frequentemente referido, por abreviação,
apenas como Estácio.
As citações (1-2) são significativas, por representarem o reconhecimento explícito dos
mangueirenses à anterioridade do samba no Estácio, assim como à condição dos bambas
daquele bairro como professores de samba. A identificação do Estácio, personificado como
um velho de bengala, incorpora tanto a significação de antiguidade e anterioridade às outras
escolas de samba, quanto a de sabedoria e condição de ensinar.
Em (4) a referência não é à escola de samba. Trata-se de um gracejo voltado aos
homens que insistem em relações malfadadas; o enunciador, com a troca dos nomes Inácio
para Estácio, talvez insinue que tais homens teriam de se disfarçar para escapar de remoques.
ESTRANGEIRO [5 ocorrências em 5 letras do corpus]
1
1932
Quando a tarde é cor de rosa / Ainda é mais formosa /
Tem cenários sedutores / Te admiram os estrangeiros /
Se orgulham os brasileiros / Teus poetas sonhadores
Cidade mulher; Paulo da Portela
2
1935
Brasil, terra adorada / Jardim de todo estrangeiro / És a
estrela que mais brilha / No espaço / – Brasileiro, braço é
braço!
Brasil, terra adorada; Cartola,
Arthur Faria e Aluísio Dias
3
1960
Sem cerimônia ele entrou / Já não pertence mais à
praça, / Já não é samba de terreiro / Vitorioso, ele partiu
para o estrangeiro //
Tempos idos; Cartola e Carlos
Cachaça
4
1928-1980
Rico panorama... / Tem o Rio de Janeiro... / As praias de
Copacabana / Centro de todos estrangeiros / A linda
Avenida Central / Corcovado e Pão de Açúcar / E o
cassino que falta / É o Cassino da Urca
Cassino da Urca; Cartola
5
d1935
Quando o estrangeiro elogia / Por que não ter alegria /
Como não se sentir prosa? / Ipanema é a sala de visita /
Da cidade mais bonita / Que se diz maravilhosa
Quando o estrangeiro elogia...;
Paulo da Portela
Em (2-3), a lexia tem o sentido de espaço externo ao Brasil. Conforme foi comentado
s.v. duquesa, o acesso ao público estrangeiro (3) é um dos indícios mais fortes da aceitação e
275
ascensão social do samba na cultura nacional. Na ocorrência em questão, ao ser veiculado no
estrangeiro, o samba é qualificado como vitorioso. Já ao se qualificar o Brasil como jardim de
todo o estrangeiro (2), usa-se a metáfora do jardim como lugar belo e agradável para
caracterizar o país com essas marcas positivas de significação.
Já em (1, 4-5), a referência é a pessoas de outras nacionalidades. Elas são apresentadas
como testemunhas importantes das belezas do Rio de Janeiro e também do Brasil. Tal
reconhecimento recebe grande destaque e é mencionado como motivo de orgulho para
cariocas e brasileiros.
ESTUDAR [3 ocorrências em 3 letras do corpus]
1
1937
Cem divididos por mil / Cada um com quanto fica / Não
pergunte à caixa surda / Não peça cola à cuíca / Lá no
morro vamos vivendo de amor / Estudando com carinho
o que nos passa o professor.
Teste ao samba; Paulo da
Portela
2
1957
É matéria que estudei demais / Por isso me formei ainda
rapaz / Por isso sou professor, sou diretor, sou instrutor.
//
É matéria que estudei demais...;
Cartola
3
1928-1980
É difícil estudar / Advocacia, arquitetura, engenharia /
Tudo isso é difícil, eu sei / Mas o samba está no sangue
brasileiro / Não precisa fazer curso / Pra tocar o meu
pandeiro.
Sou doutor; Cartola
A lexia, nas ocorrências em análise, é complementada, em (1), a partir do conteúdo
relacionado aos conhecimentos do samba; em (3) é complementada com conteúdos próprios
do ensino formal. O uso de elementos do campo semântico da educação formal é frequente
nas letras do corpus. Veja-se s.v. aula mais considerações sobre esse fato.
Em (2) a significação de estudar é mais genérica tendo matéria como complemento.
Dado o conteúdo do resto da letra, nesse caso a lexia aparentemente indica a experiência de
vida que faz o enunciador ter discernimento e não se deixar levar por tentações de amores
passageiros.
276
3.2.10 – Letra F
FAMA [3 ocorrências em 2 letras do corpus]
1
1941
Fama sem proveito // Eu sempre lhe tratei / Com
bastante respeito / Mesmo assim não deixei / De levar
fama
sem proveito // Aproveito o lugar / E a ocasião /
Para lhe perguntar / Se posso morar no seu coração.
Fama sem proveito; Ismael Silva
e Heitor Catumby
2
1922-1949
Avante, mocidade é hora / De mostrar o nosso progresso
/ Vamos deixar correr / A fama suburbana / Por todo este
universo, universo
Avante, mocidade, é hora...;
Paulo da Portela
Em (2), a lexia faz referência ao sistema de valores do meio do samba. A fama, nesse
caso, é aquela desfrutada pelo grupo que obtém reconhecimento entre as outras escolas de
samba. A qualificação suburbano ressalta a condição da Portela, de escola da periferia carioca
— por essa não ser considerada uma região tradicional para o samba, cuja história era
relacionada à região central da cidade, há algumas composições, como, por exemplo, essa e
“Para que havemos de mentir”, que destacam a Portela e inscrevem-na entre as principais
instituições sambistas.
Em (1), ocorre o pragmatema levar fama sem proveito, que, em composição de
temática amorosa, co-ocorrendo com tratar com respeito, sugere que o enunciador se
incomodaria por outras pessoas dizerem que ele tem envolvimento amoroso com a
destinatária, sem que efetivamente aproveite essa experiência. O pragmatema costuma ter
como constante discursiva a expressão de incômodo de quem é objeto de insinuações de que
desfruta algum benefício, às vezes ilícito, sem efetivamente fazê-lo — receberia o ônus, sem o
bônus. Também pode ser usado como blefe por quem quer afetar inocência a respeito de
ilícito que realmente cometeu.
FASCINAR [1 ocorrência no corpus]
1957
Todo tempo que eu viver / Só me fascina você, Mangueira / Guerreei na
juventude, / Fiz por você o que pude, Mangueira //
Fiz por você o que pude; Cartola
Essa exaltação à Mangueira tem marcas de profundo envolvimento emocional do
enunciador. A lexia fascinar é uma delas e ocorre logo antes da relação de esforços
empreendidos em prol da escola de samba, como uma prova desse fascínio.
FAVELA [3 ocorrências em 3 letras do corpus]
1
1931
Favela, Estácio, Oswaldo e Salgueiro / todos te
respeitam quando pegam o seu pandeiro / (Então volver
/ Ordinário marche / Oba!) //
Meu batalhão; Ismael Silva ,
Nilton Bastos e Francisco Alves
2
1931
Até que enfim / Eu agora estou descansado / Ela deu o
fora, / Foi morar lá na Favela
/ E eu não quero saber
mais dela
Nem é bom falar; Ismael Silva,
Nilton Bastos e Francisco Alves
3
1935
Favela de meus amores / Todo mundo te quer bem /
Favela que tem morenas / Que outros não têm
Favela de meus amores; Paulo
da Portela
277
Em (1), Favela refere-se à escola de samba situada no morro homônimo, atualmente o
morro da Providência, no Centro do Rio de Janeiro. A relação de escolas de samba encontrada
aqui corresponde ao reconhecimento do seu valor como instituições de referência no samba,
angariando-lhes o respeito geral, como se enuncia na própria letra.
As ocorrências (2-3) são ambíguas: tanto podem ser relativas ao morro da Favela
quanto a outra localidade que passou a receber o mesmo nome a partir daquela primeira, por
analogia. Em (3), a lexia serve para identificar o espaço homenageado na composição, que
guarda intertextualidade com o filme homônimo de Humberto Mauro (1935).
FAZER [189 ocorrências em 125 letras do corpus]
Referência genérica ao papel de agente de processos verbais
10
1930
É o velho, velho Estácio / Vem visitar a Mangueira / E
trazer recordação / Professor, chegaste a tempo / Pra
dizer neste momento / O que devemos fazer / Me sinto
mais animado / A Mangueira a teus cuidados / Vai à
cidade descer
Velho Estácio; Cartola
15
1931
Em viver junto de ti / Ainda tenho esperança / O teu
amor, eu já vi / Não me sai mais da lembrança / Quem
diz fazer o que quer / Eu digo não ser verdade /
Enquanto existir mulher / Há de existir saudade
Arrependido; Ismael Silva, Nilton
Bastos e Francisco Alves
25
1931
Devias pagar por fazer chorar / a quem te tratava tão
bem / mas eu aprendi / o que fiz por ti / não hei de fazer
por mais ninguém //
Isso não se faz; Ismael Silva
31
1931
Nem tudo que se diz se faz / Eu digo e serei capaz de
não resistir / Nem é bom falar / se a orgia se acabar //
Nem é bom falar; Ismael Silva,
Nilton Bastos e Francisco Alves
32
1931
Com você não me acostumo / Eu vou dizer por que é /
Você não faz o que eu faço / Nem eu faço o que tu quer
(pra que teimar?) //
Oleleô; Ismael Silva, Nilton
Bastos e Francisco Alves
35
1931
A mulher é um jogo / Difícil de acertar / E o homem como
um bobo / Não se cansa de jogar / O que eu posso fazer
/ É, se você jurar, / Arriscar a perder / Ou desta vez
então ganhar.
Se você jurar; Ismael Silva, Nilton
Bastos e Francisco Alves
51
1932
O homem deve saber conhecer o seu valor / Pra não
fazer como o Inácio / Que andou muito tempo /
Bancando o Estácio. //
Tristezas não pagam dívidas;
Ismael Silva
52
1932
Nunca se deixa a mulher / Fazer o que ela entender /
Pois ninguém deve chorar / Só por causa de amor / E
nem se lastimar
Tristezas não pagam dívidas;
Ismael Silva
66
1936
Não digo que tenho raiva / Por você ser da orgia / Quero
dizer que não serve / Para minha companhia // Sei que
você não é feia / Tu és linda criatura / Meu bem, que
queres que eu faça
/ Não vou quebrar minha jura
Não é isso que eu procuro;
Ismael Silva e Francisco Alves
76
1939
Eu tive vontade, tive / De dar fim à minha vida / Mas
encontrei-te tristeza / Em pé na estrada perdida /
Seguimos o mesmo rumo / E me sinto bem feliz / Mas,
sei dizem que é o cúmulo / Fazer o que você diz.
Tristeza; Cartola e Orlando
Batista
83
1938-1940
É que a cebola, minha filha, está soberba / O alho e o
vinagre cada vez subindo mais / Peça emprestado cada
dia a uma vizinha / Ou continua fazendo sempre como
você faz
Como é que eu posso; Cartola
93
1942
Do meu amor nada posso dizer / Porque com ela eu fico
em paz / Tudo que eu peço pra ela fazer / se bem eu
digo / melhor ela faz / sem dar pra trás //
Não tenho queixa; Ismael Silva e
David Raw
107
déc.1940
Ordenes e farei // Meu amor / Minha flor / Teu olhar reluz
/ Inspira amor, seduz / Quanto te vejo / Sinto em mim um
calor ô ô / Só por ti sofrerei / Até condenado à morte
serei / Meu amor //
Ordenes e farei; Cartola e Aluísio
Dias
109
déc.1940
Os teus olhos tão lindos / Da cor do luar / Os teus olhos
que fazem meus olhos chorar / Escravizado para sempre
serei / Estarei ao teu lado / O que precisares / Ordenes,
farei.
Ordenes e farei; Cartola e Aluísio
Dias
123
1966
Não vão fazer / O que aconteceu certo dia / Foi tanto bis
/ Que eu já não podia atender / No entretanto O que a
plateia queria / É que eu cantasse / Cantasse até
aprender.
Eu agradeço; Ismael Silva
278
130
1972
Acontece que meu coração / Ficou frio / E nosso ninho
de amor está vazio / Se eu ainda pudesse fingir que te
amo / Ai, se eu pudesse / Mas não quero, não devo fazê-
lo / Isso não acontece.
Acontece; Cartola
141
1976
Todo mundo sabe que em meu coração / quase não
cabe tanta ingratidão / gostaria de ouvir / o que é que
você diz / quando alguém pergunta / o que é que eu fiz
Ingratidão; Ismael Silva
169
1939
Eu bem sei, não sou mais do que um covarde / Mas para
corrigir-me é bem tarde / Sofri tanto, senti em saber / Ai
meu Deus, eu não sei o que fazer
Meu amor, por você eu chorei;
Cartola
A lexia pode figurar em reflexões sobre a compatibilidade ou incompatibilidade entre
discurso e atos. Faz-se referência à coerência entre o que alguém diz e o que faz (15, 31) ou
aos atos de alguém em relação às determinações de outra pessoa (10, 32, 52, 76, 93, 107,
109).
Outras vezes, a ocorrência retoma referências explicitadas anteriormente, ou então
antecipa genericamente referências que serão especificadas depois — (51, 83, 123, 130, 141).
Em certos casos, o verbo ocorre em orações nas quais o enunciador se posiciona sobre
sua forma de agir. Esses posicionamentos podem revelar limitação de possibilidades (35),
indisposição para mudar de comportamento (66), indecisão sobre como proceder em uma
dada situação (169).
Referência à criação ou construção de algo
105
1948
Pergunta o poeta esquecido / Quem fez esta tela / De
riquezas mil / Responde soberbo o campestre / Foi Deus,
foi o mestre / Quem fez meu Brasil! / Meu Brasil! Meu
Brasil! //
Vale do São Francisco; Cartola e
Carlos Cachaça
A abonação, que revela interdiscursividade com valores da religiosidade cristã, atribui
à criação divina as belezas do Brasil, representadas metaforicamente como uma pintura farta
em riquezas naturais.
Referência à produção ou experimentação de uma circunstância abstrata
135
1974
Linda / No que se apresenta / O triste se ausenta / Fez-
se a alegria / Corra e olhe o céu / Que o sol vem trazer /
Bom dia / Ah! Corra e olhe o céu / Que o sol vem trazer
bom dia...
Corra e olhe o céu; Cartola e
Dalmo Castello
142
1976
Um vazio se faz em meu peito / E de fato eu sinto em
meu peito um vazio / Me faltando as tuas carícias / As
noites são longas e eu sinto mais frio //
Peito vazio; Elton Medeiros e
Cartola
O verbo, que com essa significação é sempre pronominal, introduz uma sensação
motivada por dadas circunstâncias — em (135), a alegria causada pela chegada da amada; em
(142), a sensação de vazio causada pela saudade da ex-companheira. Nesse segundo caso, faz-
se referência ao peito para metonimicamente recuperar o valor simbólico do coração como
sede dos sentimentos humanos (veja-se a entrada coração).
Colocações fazer tudo, fazer todo o possível
16
1931
Chorei por ter me lembrado / De tudo quanto eu fazia /
Era tanta ingratidão, / E você não merecia / Muito eu te
fiz chorar / Não mereço o teu perdão / Tu deves me
castigar / Magoei seu coração. //
Arrependido; Ismael Silva, Nilton
Bastos e Francisco Alves
279
17
1931
Eu fiz tudo / Pra esquecer a quem amei / Hoje estou
arrependido / Sem querer eu já chorei / Eu já chorei /
sem querer. //
Arrependido; Ismael Silva, Nilton
Bastos e Francisco Alves
57
1933
Tudo eu fiz por você / Não quiseste atender / Os meus
conselhos e a minha opinião / Algum dia vais ver / Como
é triste sofrer / E de joelhos vens pedir o meu perdão. //
Na floresta; Cartola e Sílvio
Caldas
103
1945
Agradeço comovido / E muito sentido / Por tudo que faço
/ Ao bem que me fez / Perdoa / Mas quero voltar / Para
junto daqueles que a vida / Sofrendo ou chorando, /
Cantando, sorrindo, / É boa. //
Perdoa; Paulo da Portela e
Cartola
124
1968
Faço tudo pra evitar o mal, / Sou pelo mal perseguido /
Só me faltava era esta: / Fui trair meu grande amigo /
Mas vou limpar a mente, / Sei que errei, errei inocente.
Amor proibido; Cartola
165
1928-1980
Quisera eu eternamente / Que me pertencesses / Mas se
ao outro que amas / Pra sempre esquecesses / Eu farei
todo o possível / Quando te abandonar / De nunca te
esquecer / Só não quero chorar.
Não quero chorar; Cartola
Geralmente, quando fazer está em colocação com tudo, enfatiza-se o esforço do
enunciador por um resultado, que pode ser o sucesso de uma relação amorosa (16), (103),
benefícios para alguém que ele ama (57); o desligamento emocional relativamente a alguém
(17) etc.
Já na citação (103), a ocorrência ganha valor negativo, principalmente pela colocação
com a qualificação sentido. A referência é à partida do enunciador, que volta para junto dos
seus, tomando o cuidado de reconhecer os benefícios que obteve com seus atuais
companheiros. A composição faz referência veladamente à saída de Cartola do elenco de
programa de rádio do qual os dois participavam na rádio Cruzeiro do Sul
67
.
Frasema fazer por [um resultado]
58
1933
Eu faço por não chorar / Para não demonstrar / Minha
grande aflição; / Só para desabafar, / Não quero enganar
/ Meu pobre coração.
Nunca dei a perceber; Ismael
Silva
O frasema destaca o esforço do enunciador para alcançar um objetivo — nesse caso,
esconder seu sofrimento diante das desilusões que experimenta.
Frasema não faz mal
3
1924
Tu me desprezas / Tu me abandonas / Tens o prazer /
De me ver abandonado / Não faz mal, / Ó meu benzinho,
/ O mundo gira / E na virada / Ainda te espero / Com
carinho
Tu me desprezas; Paulo da
Portela
88
1941
Esta malvada bem sabe o mal que me fez
/ Mas não faz
mal, eu lhe perdoo outra vez / Meu coração vive
reclamando noite e dia / Por isso eu peço que ela volte
para minha companhia
Não posso viver sem ela;
Alcebiades Barcellos e Cartola
A ocorrência explicita a disposição do enunciador em desconsiderar um evento
negativo, mantendo suas disposições positivas quanto a um assunto. Nos casos em questão,
ele desconsidera o desprezo ou os males causados pela amada e prefere perdoá-la e continuar
lhe dedicando seu amor.
67
Cf. BARBOZA DA SILVA, Marilia Trindade e SANTOS, Lygia. Paulo da Portela: traço de união entre duas culturas.
Rio de Janeiro: Funarte, 1989, p. 153.
280
Frasemas fazer bem e fazer mal
12
1929-1930
Eu não podia ter imaginado / agora é tarde / (...) / fizeste
mal / sem ter razão / por isso mesmo / não darei meu
perdão.
Não te dou perdão; Ismael Silva
18
1931
Desses carinhos não quero saber / Pra não andar só a
me maldizer / É preferível viver com a paz / Porque se
não faz bem, mal não faz //
É bom evitar; Ismael Silva, Nilton
Bastos e Francisco Alves
27
1931
Em perguntar penso que não faço mal / Tens um olhar
que nunca vi outro igual. //
Me diga o teu nome; Ismael
Silva, Nilton Bastos e Francisco
Alves
75
1939
Você já se esqueceu / que se comprometeu / que ia
proceder direito / E eu acreditei / por isso perdoei / Fiz
mal / porque não vejo jeito //
Não vejo jeito; Ismael Silva
Em (12, 27, 75), os frasemas contêm avaliações do enunciador sobre a conveniência
do seu comportamento ou do comportamento de alguém. Já em (18), a avaliação considera os
possíveis efeitos de uma decisão.
É preciso registrar que essas ocorrências diferem das colocações com verbo-suporte
fazer o bem a alguém e fazer o mal a alguém. Veja-se a análise dessas ocorrências s.v. bem e
mal.
Frasema fazer pouco de [alguém]
8
1929
Tu não deves / De ter tanta pretensão / Olha que o
tempo muda, / A vida é uma ilusão... / Tu fazes pouco
em mim / Mas isto que bem me importa... / Ficas
sabendo, meu bem, / Que o mundo dá muita volta!
Novo amor; Ismael Silva
A expressão qualifica a enunciatária como indiferente ao enunciador. Em outros
trechos da letra, fica esclarecido que ela tomou a iniciativa de romper a relação e já tem um
novo amor.
Frasema fazer [de alguém] o que [alguém] quer
9
1930
Nunca se deve / Confiar numa mulher / Porque quando
não se espera / Faz
do homem o que ela quer / Por isso,
a nenhuma / Eu não darei confiança / Pois ela ilude o
homem / Como fosse uma criança. //
Não há; Ismael Silva, Nilton
Bastos e Francisco Alves
O frasema expressa uma crença genérica do enunciador no poder das mulheres em
manipular os homens. Tal unidade lexical tem sempre essa carga, de profundo controle
exercido por alguém sobre outrem, principalmente em relações amorosas.
Frasema [alguém] fazer da musa o que quer
67
d1937
Era o rei / Da filosofia / Fez da musa o que queria /
Zombou da inspiração / Os seus versos ritmados / Por
ele mesmo cantados / Tinham bela entoação //
A Vila emudeceu; Cartola
O elemento lexical ressalta a habilidade poética de Noel, que compunha sem
dificuldades — musa é uma forma simbólica de fazer referência à inspiração poética.
Expressa-se assim intenso controle, destreza, ao desempenhar essa atividade.
Frasema não fazer nada
139
1975
Não há coisa melhor / Fico às vezes até sem comer / Só
pra não mastigar / Não há coisa melhor / Do que não
fazer nada / E depois descansar
Todo mundo quer; Ismael Silva
281
A unidade lexical faz parte da qualificação do enunciador, que assume a identidade de
malandro, avesso ao trabalho e, nesse caso, além de vadio, francamente preguiçoso.
Pragmatema vou ver o que posso fazer por você
20
1931
Fica firme, não estrila / Traz o retrato e a estampilha /
Que eu vou ver / O que posso fazer por você //
Eu gosto, mas não é muito;
Ismael Silva, Noel Rosa e
Francisco Alves
A expressão ressalta a postura de indiferença do enunciador em relação à destinatária.
Assinala a falta de motivação dele, que displicentemente promete considerar a possibilidade
de dar-lhe atenção, como se ela se inscrevesse em um processo burocrático, marcado pelas
lexias retrato e estampilha.
Pragmatema isso não se faz
24
1931
Isso não se faz // Assim poderei te perdoar / se é que
mudaste de pensar / se tens prazer em me ver chorar, /
por favor, me deixe em paz / isso não se faz //
Isso não se faz; Ismael Silva
A fórmula de rotina marca a desaprovação do enunciador em relação a um ato da
destinatária que lhe causou mágoa.
Pragmatema não faz [assim]
28
1931
Não faz assim, / Minha iaiá, meu querer, / Você pra mim
está bancando o chiquê.
Me diga o teu nome; Ismael
Silva, Nilton Bastos e Francisco
Alves
40
1931
Você gosta de mim e eu gosto de você / Meu bem, não
faz assim, briga não sei pra que //
Você gosta de mim?; Ismael
Silva e Francisco Alves
45
1932
Não faz, amor // Não faz, amor, / Deixa-me dormir / Ó
minha flor, tenha dó de mim / Sonhei, acordei assustado,
/ Receoso que tivesses me enganado / Eu não durmo
sossegado //
Não faz, amor; Cartola e Noel
Rosa
A unidade corresponde a um apelo afetuoso à amada para que mude de
comportamento, dando-lhe atenção (28), desistindo de brigar (40), ou não o enganando (45).
Pragmatema nada posso fazer
38
1931
Eu, sem me justificar, / Não quero te desprezar / Mas, se
tal coisa acontecer, / Eu nada posso fazer //
Sonhei; Ismael Silva, Nilton
Bastos e Francisco Alves
A ocorrência marca a impotência do enunciador diante da perspectiva de rompimento
entre os dois, que lhe é revelada em um sonho.
Pragmatema Deus sabe o que faz
55
1933
Deus sabe o que faz // Tu, sendo infeliz como se vê, /
Bancas tanto chiquê / Que a mim até já faz horror /
Quanto mais se tivesses valor / Não teve e nem terás /
Deus sabe o que faz... //
Deus sabe o que faz; Ismael
Silva
A frase, uma máxima do senso comum, é usada para atribuir à providência divina o
fato de a destinatária não ter muitas posses — a sabedoria divina é afirmada porque o
comportamento arrogante da mulher seria prova de que, se ela fosse rica, sua postura se
282
agravaria.
Pragmatema [alguém] saber o que faz
65
1935
Batem na porta da frente / Corro na porta de trás / Um
homem perde a cabeça / Sem saber bem o que faz / Se
tiver coragem, venha / Assombração que apareça
Pam-pam-pam-pam; Paulo da
Portela
71
1939
Meu amor, por você eu chorei / Eu não sei o que eu fiz /
Eu não sei / Por você eu serei bem capaz / de fazer o
que ninguém faz
Meu amor, por você eu chorei;
Cartola
128
1968
Vai amigo / E diga-lhe, por favor, / Que não sei o que
faço / que já nem sei quem sou / Diga que terminou /
Toda aquela vaidade e que sinto saudade / Quero amá-
la com mais fervor
Vai amigo; Cartola
131
1973
Você saiu tão diferente / Que nem deve dizer que
pertence a essa gente / Enfim você sabe o que faz / Mas
isso é contra mim, contra nós aliás. //
Aliás; Ismael Silva
Nas abonações (65, 71, 128), destaca-se a desorientação do enunciador. Nos dois
últimos casos, por causa do sofrimento amoroso, ele se diz consternado e até mesmo capaz de
reformar suas atitudes. No primeiro, incomodado com uma situação incômoda e inusitada, ele
adverte que pode se exasperar e tornar-se violento; perder a cabeça é uma marca que reforça
seu estado emocional.
Em (131), o enunciador usa o pragmatema para transferir a responsabilidade por uma
atitude à companheira. A expressão, entretanto, não deixa de expressar o seu desagrado, que é
reforçado logo em seguida com a advertência mas isso é contra mim.
Pragmatema faça por ele como se fosse por mim
110
1950
Ele está mesmo dançando na corda bamba / Ele é
aquele que na escola de samba / Toca cuíca, toca surdo
e tamborim / Faça por ele como se fosse por mim //
Antonico; Ismael Silva
Faça por ele como se fosse por mim é uma fórmula de rotina usada, assim como
agradeço pelo que você fizer, para encarecer um pedido feito a alguém. É uma marca do tom
intensamente conativo da linguagem usada na letra de “Antonico”, na qual se reproduz uma
carta em que se pede um favor em benefício de um amigo em dificuldades.
Pragmatema ninguém faz o que ele faz [em uma atividade]
112
1950
Até muamba já fizeram pro rapaz / Porque no samba
ninguém faz o que ele faz / Mas hei de vê-lo muito bem,
se Deus quiser / E agradeço pelo que você fizer.
Antonico; Ismael Silva
No samba ninguém faz o que ele faz é uma fórmula de rotina usada para enfatizar as
habilidades de Antonico como sambista. A argumentação da carta é toda baseada nos seus
méritos artísticos, que justificariam o pedido de ajuda.
Pragmatema fazer de conta [que algo acontece/aconteceu]
117
1952
Você me disse que, / Se acaso eu morresse, / Mandaria
uma coroa / Até cem mil réis / Pois então faça de conta
que eu morri / E, em vez de cem, você me empresta dez
//
Ninguém faz; Ismael Silva e
Paulo Medeiros
A fórmula de rotina costuma propor experiências de suspensão da realidade, com
283
possibilidade de novas vivências baseadas na fantasia. No caso em questão, o enunciador
propõe, brincando, que, baseado na sua morte fantasiosa, o destinatário, caracterizado como
avaro, cumpra uma promessa que envolve gasto de dinheiro.
Pragmatema [alguém] fazer o que pode por [alguém]
121
1957
Fiz por você o que pude // Todo tempo que eu viver / Só
me fascina você, Mangueira / Guerreei na juventude, /
Fiz por você o que pude, Mangueira //
Fiz por você o que pude; Cartola
Fazer por alguém o que se pode é outra fórmula de rotina usada pelo enunciador para
ressaltar a sua aplicação nos esforços em benefício de alguém. Nesse caso, o beneficiário é a
própria Mangueira, personificada como destinatária e homenageada na canção.
Pragmatema [alguém] não se fazer de rogado
173
1928-1980
Sou doutor / Sou doutor, mas sou sambista / Tenho
sangue de artista / Também sei tamborinar / Sou doutor /
Sei que sou advogado / Não me faço de rogado /
Quando preciso sambar //
Sou doutor; Cartola
Não se fazer de rogado é uma expressão da disposição permanente para uma
atividade, desempenhada com gosto e sem titubeios.
Uma andorinha só não faz verão está analisado s.v. andorinha. O mesmo ocorre com
agradeço pelo que você fizer, analisado s.v. agradecer.
FEIO [8 ocorrências em 4 letras do corpus]
1
1933
O chiquê é feio pra quem pode ter / Quanto mais pra
quem não tem nada de seu / Ai de quem não sabe se
reconhecer / Nunca vi um gênio igual ao teu //
Deus sabe o que faz; Ismael
Silva
2
1934
Cara feia é fome // Não adianta se aborrecer / porque
você não vai me bater / Você cresça e apareça / eu peço
que não se esqueça / Você é quem se consome / para
mim cara feia
é fome //
Cara feia é fome; Ismael Silva
3
1936
Não digo que tenho raiva / Por você ser da orgia / Quero
dizer que não serve / Para minha companhia // Sei que
você não é feia
/ Tu és linda criatura / Meu bem, que
queres que eu faça / Não vou quebrar minha jura
Não é isso que eu procuro;
Ismael Silva e Francisco Alves
4
1922-1978
Nome feio a que me refiro / Não é nada disso que já
estão pensando / É Brás, Fedegoso, Pancrácio, Belmiro /
Adão, Brederodes, Pafúncio, Rolando //
Nome feio; Ismael Silva
5
1922-1978
Nome feio // A vocês vou fazer um pedido / Não é de
dinheiro / Não tenham receio / Se o meu nome ficar
esquecido / Para não me chamarem / De nenhum nome
feio
Nome feio; Ismael Silva
6
1922-1978
Se eu tivesse me sentido mal / Não estava sorrindo,
cantando a esmo / Que pergunta besta desse pessoal /
Pois quem é que não vê que eu / Sou feio assim mesmo.
Nome feio; Ismael Silva
O quase-frasema nome feio repete-se três vezes em (4) e (5). O enunciador joga com o
sentido não composicional e eufêmico, da palavra de baixo calão, e com o composicional, de
palavra cacofônica. Assumindo a identidade de pessoa muito educada, ele só reconhece o
sentido composicional.
Na ocorrência (6), a lexia deixa de fazer referência ao julgamento valorativo sobre as
palavras, ou sobre a sua sonoridade, e passa ao julgamento da aparência do próprio
284
enunciador — desfaz-se o quase-frasema e a partir do pragmatema eu sou feio assim mesmo,
ele brinca com os destinatários a partir da autodepreciação.
Em (3) a lexia volta a se aplicar à aparência de pessoas; nesse caso, qualifica a
destinatária como fisicamente bela, o que faz com que o enunciador se esforce para não se
envolver com ela. Já em (1) a qualificação se aplica ao comportamento das pessoas
convencidas, que merece a censura do locutor.
Em (2), ocorre o pragmatema cara feia é fome, usado para desqualificar a atitude de
alguém que tenta provocar o enunciador, com comportamento agressivo. A expressão
caracteriza a postura de não dar eco às provocações, buscando contornar as hostilidades sem,
entretanto, aparentar intimidação.
FELICIDADE [15 ocorrências em 15 letras do corpus]
1
1932
Aurora vem raiando anunciando o nosso amor, ô, ô / A
felicidade promete, mas não vem / Só vem a saudade,
saudade é querer bem, ô //
Ao romper da aurora; Ismael
Silva, Lamartine Babo e
Francisco Alves
2
1932
Só tens ambição e vaidade / Não pensas na felicidade /
E eu não descanso um momento / Por pensar que o teu
amor / É só fingimento / Mas eu vou entrar com o meu
jogo / E vou pôr à prova de fogo / A tua sincera amizade
/ Para ver se tu falaste verdade //
Não faz, amor; Cartola e Noel
Rosa
3
1932
Um amor pra ser traído / Só depende da vontade / Mas
existe amor fingido / Que nos traz felicidade / A mulher
vive mudando / De ideia e de ação / E o homem vai
penando / Sem mudar de opinião.
Uma jura que fiz; Ismael Silva,
Noel Rosa e Francisco Alves
4
1931-1932
Liberdade, liberdade / O meu amor foi-se embora /
Pensando deixar saudades / Eu nunca fui tão feliz /
Agora sou eu quem diz... / Foi uma felicidade (Eu vou
gritar...) //
Liberdade; Ismael Silva e
Francisco Alves
5
1933
Quando eu vi / Que a festa estava encerrada / E não
restava mais nada / De felicidade / Vinguei-me nas
cordas / Da lira de um trovador / Condenando o teu amor
/ Divina dama
Divina dama; Cartola
6
1934
Se saíste do morro, / Se tens felicidade, / Agradeças a
mim, / Porque se não fosse assim, / Não estarias na
cidade! //
Agradeças a mim; Ismael Silva
7
d1941
Eu digo e afirmo que a felicidade aqui mora / E as outras
escolas até choram / Invejando a tua posição / Minha
Mangueira, és a sala de recepção / Aqui se abraça o
inimigo como se fosse irmão.
Sala de recepção; Cartola
8
1949
Lábios doces / Beijos eu ganhei de alguém / Ó que
felicidade trouxe / Teu amor, meu bem.
Lábios doces; Paulo da Portela
9
1922-1949
Bendita sejas tu, oh! Liberdade! / Rainha absoluta do
sucesso, / Sem ti não haverá felicidade, / Sem ti não
sorrirá todo o universo!
Bendita sejas tu...; Paulo da
Portela
10
1922-1949
Momentos felizes passei / Porém quando despertei /
Senti que a felicidade / Estava de mim a zombar / Por
isso quero acordado / Continuar a sonhar / E deste
sonho / Nunca despertar //
Sonho; Lincoln Washington
Pereira de Almeida e Paulo da
Portela
11
1972
Eu queria viver com você / Pra ter felicidade / Eu queria
viver com você / Pra não sentir saudade / Eu queria viver
com você / Você minha querida
Eu queria viver com você; Valdir
Villarinho e Ismael Silva
12
1977
Toda tristeza que havia / Agora expulsei / Com a canção
que chegou / E vou cantando alegre / A felicidade
que
Jesus mandou //
A canção que chegou; Cartola e
Nuno Veloso
13
1977
Amanhã / A tristeza vai transformar-se em alegria / E o
sol vai brilhar no céu de um novo dia / Vamos sair pelas
ruas, pelas ruas da cidade / Peito aberto, cara ao sol da
felicidade //
A cor da esperança; Cartola e
Roberto Nascimento
14
1977
Preciso andar pra não pensar / No que passou e não
chorar / Viver em paz e sepultar de vez / A minha grande
dor / Confiante despeço-me dos meus amigos / E da
cidade / Só voltarei quando encontrar felicidade
A mesma estória; Cartola e Elton
Medeiros
285
15
1955-1980
Foi a saudade que me trouxe aqui / depois que te perdi /
mergulhei na sofreguidão / ao cair na realidade /
descobri que a felicidade / está na bondade do seu
coração
Vim lhe pedir; Nelson Sargento e
Cartola
Nas abonações (1-3, 8, 10, 12, 16): a referência é à relação amorosa, que nem sempre,
contudo, é caracterizada como feliz — além da efetiva felicidade que se experimenta estando
em harmonia com a amada, fala-se na expectativa de felicidade com a sua chegada, que pode
se transformar em saudade se ela não chegar; na ambição e vaidade como obstáculos à
felicidade do casal; na possibilidade de ter uma felicidade passageira, mesmo em um amor
fingido. A felicidade também pode ser personificada, fazendo pouco das esperanças do
enunciador em conseguir realizar um projeto amoroso.
Em (7, 13-15): a referência é a um modo harmonioso de viver, relacionado à
solidariedade entre as pessoas e a uma vida simples, em sintonia com a natureza; à consolação
encontrada na fé religiosa; à esperança de um futuro melhor; ao apaziguamento dos conflitos
internos experimentados por alguém, conseguido com isolamento e com a passagem do
tempo.
Em “Sala de recepção” (7), a lexia contrasta com as dificuldades mencionadas
anteriormente na mesma letra, vividas pelos mangueirenses. A intenção é descrever um
ambiente harmonioso e ditoso, apesar das dificuldades determinadas pela pobreza.
Itens (4-5): a referência é ao fim ou à frustração da relação amorosa. Pode-se falar da
perda da felicidade a partir do fracasso amoroso ou, pelo contrário, afirmar uma intensa
felicidade experimentada com a iniciativa de rompimento tomada pela parceira, mesmo que
isso seja apenas uma forma de não transparecer a saudade.
Em (9): a referência é às condições ideais da vida humana. Na ocorrência afirma-se a
liberdade como condição indispensável para se alcançar a felicidade.
Em (6): a referência é à ascensão social. O enunciador associa a felicidade da consorte
à saída do morro para ir morar na cidade.
FELIZ [33 ocorrências em 27 letras do corpus]
1
1924
Não devo ouvir / Teu falso grito de clemência / melhor
será continuar / tua jornada / seguirei por outra estrada
mais feliz
Dor que ensina; Paulo da Portela
2
1927
Uma luta vencida por amor e glória / São linhas traçadas
/ Nas páginas da história / Gravado com as cores de
nosso país / Em seu castelo Portela feliz
Uma luta vencida por amor e
glória; Paulo da Portela
3
1929
Arranjei outra, / Que não troco por ninguém, / Já que tu
me abandonaste, / Há males que vêm pra bem... / Hoje
em dia sou feliz / Sem a tua ingratidão / Encontrei outro
benzinho / A quem dei meu coração!... //
Novo amor; Ismael Silva
5
1932
Você teve a minha ajuda / Sem pensar em trabalhar /
Quem se zanga é que se muda / E eu já tenho onde
morar / Nunca mais você encontra / Quem lhe faça o
bem que eu fiz / Levei muito golpe contra / Passe bem,
seja feliz
Para me livrar do mal; Ismael
Silva e Noel Rosa
286
7
1932
Aquela que eu mais amava / Só pensava em me trair /
Quando eu menos esperava / Partiu sem se despedir /
Essa mesma criatura / Quis voltar, mas eu não quis / E
hoje, cumprindo a jura, / Vivo só e sou feliz //
Uma jura que fiz; Ismael Silva,
Noel Rosa e Francisco Alves
8
1931-1932
Liberdade, liberdade / O meu amor foi-se embora /
Pensando deixar saudades / Eu nunca fui tão feliz /
Agora sou eu quem diz... / Foi uma felicidade (Eu vou
gritar...) //
Liberdade; Ismael Silva e
Francisco Alves
10
1936
Não quero mais / Amar a ninguém / Não fui feliz / O
destino não quis / O meu primeiro amor / Morreu como a
flor / Ainda em botão / Deixando espinhos / Que
dilaceram meu coração //
Não quero mais amar a ninguém;
Cartola, Carlos Cachaça e Zé da
Zilda
11
1936
Serei teu ioiô / Serás minha iaiá / Vida feliz, bem longe
daqui / Iremos gozar //
Serei teu ioiô; Paulo da Portela
12
1939
Eu queria te fazer feliz!... / Mas me surpreendi / Com os
defeitos teus / Se é conforme todo mundo diz / Estás
com a vida / Que pediste a Deus... //
Com a vida que pediste a Deus;
Ismael Silva
13
1939
Eu tive vontade, tive / De dar fim à minha vida / Mas
encontrei-te tristeza / Em pé na estrada perdida /
Seguimos o mesmo rumo / E me sinto bem feliz / Mas,
sei dizem que é o cúmulo / Fazer o que você diz.
Tristeza; Cartola e Orlando
Batista
15
1946
A velhice chega / Vai-se a mocidade / Apenas resta a
saudade / Aqueles bons tempos / Risos tão felizes /
Resta em meu peito / A cicatriz, a cicatriz //
A velhice chega; Paulo da
Portela e Rufino
16
c1947
Para ter uma companheira / Até promessas fiz /
Consegui um grande amor / Mas eu não fui feliz / E com
raiva para os céus / Os braços levantei, blasfemei / Hoje
todos são contra mim //
Sim; Cartola e O Martins
17
1922-1949
Aceite um conselho de amigo / Não queiras ter tão triste
fim / Eu sei que a vida de quem ama é assim / Manda
embora essa tristeza / Esqueça alguém que não te quis /
Canta e serás feliz
Conselho; Lincoln Washington
Pereira de Almeida e Paulo da
Portela
18
1922-1949
Momentos felizes passei / Porém quando despertei /
Senti que a felicidade / Estava de mim a zombar / Por
isso quero acordado / Continuar a sonhar / E deste
sonho / Nunca despertar //
Sonho; Lincoln Washington
Pereira de Almeida e Paulo da
Portela
19
1964
Devemos trocar ideias / E mudarmos de ideias, nós dois
/ E, se assim procedermos, / Seremos felizes depois /
Nada mais nos interessa / Sejamos indiferentes / Só nós
dois, apenas dois, / Eternamente
Nós dois; Cartola
20
1968
Não sei / Porque foste derrubar / O castelo que eu fiz /
Em meu castelo era tão feliz
Injúria; Cartola e Elton Medeiros
23
1975
Que sejas bem feliz // Se bom pra você for, / Podes
partir, amor / E que sejas feliz, / E muito bem feliz //
Que sejas bem feliz; Cartola
24
1977
E confiante despeço-me / Todo feliz a cantar /
Agradecido ao bom Senhor / Por me ajudar
A canção que chegou; Cartola e
Nuno Veloso
26
1977
Nossas vidas muito sofridas / Caminhos tortuosos entre
flores e espinhos demais / Já não sinto saudades /
Saudades de nada que fiz / No inverno do tempo da vida
/ Oh! Deus, eu me sinto feliz
.
O inverno do meu tempo; Cartola
e Roberto Nascimento
27
1979
Dê-me graças, senhora, / Um sorriso a quem chora /
Onde há ódio / Eu vos peço que ponha amor / E assim /
Eu serei mais feliz que sou
Dê-me graças, senhora; Cartola
Nas citações (3, 7, 10, 13, 16, 20, 24, 26-27): a referência é ao próprio enunciador, que
pode estar satisfeito com um novo amor, ou com a decisão de viver só, sem envolvimentos
amorosos; pode se dizer esfuziante com o fim de um amor que o fazia sofrer; pode reconhecer
que o amor nunca lhe trouxe felicidade; pode reconhecer que a felicidade era resultado da
ilusão de uma união duradoura. O caso de (13) é interessante, pois a tristeza é personificada
como a companheira que o enunciador escolheu, dizendo-se feliz com essa decisão, num
paradoxo bastante pessimista sobre as possibilidades de satisfação na vida. Além da felicidade
amorosa, há aquela trazida pela serenidade que se experimenta na idade madura (24) e aquela
proporcionada pela fé religiosa (26-27).
Em (12, 17, 23): a referência é ao(à) interlocutor(a). As ocorrências trazem a
colocação fazer alguém feliz (12), característica do discurso amoroso, expressando o desejo
287
do enunciador em ver a amada satisfeita com a relação entre os dois; estabelecem que o canto
é uma forma de alguém buscar compensar o sofrimento amoroso e ter felicidade (17); marcam
a postura do enunciador, de querer o bem da ex-companheira, mesmo quando a relação é
desfeita (23).
Itens (1, 11, 18): a referência é à vida como um todo, ou a momentos determinados. A
vida pode ser representada por um caminho desviante do da amada, que o enunciador decide
trilhar por acreditar que assim estará melhor; a vida feliz pode, ao contrário, ser considerada
resultante da união conjugal. Em (18), os momentos felizes mencionados são resultantes de
um sonho. A felicidade, portanto, é ilusória e aumenta a sensação de saudade da amada que
partiu.
Em (2): a referência é a instituições como a escola de samba (a Portela, nesse caso),
cujos integrantes estão felizes devido a vitórias glorificantes que entraram na escola do grupo.
Item (15): a referência é a manifestações físicas. A colocação risos felizes intensifica a
significação de felicidade já presente em riso. Essa é a caracterização do período da
mocidade, em contraposição com a velhice, que nessa composição se caracteriza pela
nostalgia do período anterior.
Em (19): a referência é ao casal e, mais especificamente, à relação harmoniosa entre os
dois, que resultaria do entendimento conquistado a partir do diálogo franco.
No item (5), ocorre o pragmatema passe bem, seja feliz, usado pelo enunciador para
marcar seu desligamento em relação à ex-amada. A expressão, mais do que uma despedida, é
uma forma de demonstrar indiferença.
FICAR [13 ocorrências em 13 letras do corpus]
1
1920-1922
Meninas, também senhoras / Queiram nos dar o vosso
nome / Eu aconselho a não cortar / Seu cabelo à la
garçonne / Peço perdão pelo que digo / Embora não
saiba o que vi / Mas o cabelo assim cortado / Só fica
bem mesmo é à demie
Cabelo à la garçonne; Paulo da
Portela
2
1932
Mulher, eu ando cismado / Que me enganei com você /
Se algum dia não ficar
mais a seu lado / Não precisa
perguntar por quê. //
Ando cismado; Ismael Silva e
Noel Rosa
3
1932
Ao romper da aurora // Aurora vem raiando anunciando o
nosso amor, ô, ô / Chega o dia, desaparece a tristeza, /
fica a alegria pela própria natureza, ô. //
Ao romper da aurora; Ismael
Silva, Lamartine Babo e
Francisco Alves
4
1937
Cem divididos por mil / Cada um com quanto fica / Não
pergunte à caixa surda / Não peça cola à cuíca / Lá no
morro vamos vivendo de amor / Estudando com carinho
o que nos passa o professor.
Teste ao samba; Paulo da
Portela
5
1948
Espraiando beleza / Por entre montanhas / Que ficam e
que passam / Em terras tão boas / Pernambuco, Sergipe
/ Majestosa Alagoas / E a Bahia lendária / Das mil
catedrais / Da terra do ouro / Berço de Tiradentes / Que
é Minas Gerais
Vale do São Francisco; Cartola e
Carlos Cachaça
6
1950
Sem teu carinho como é que vou ficar / Era pouquinho,
mas me fez acostumar / Se desta vez não te botaram na
muamba, / Macaco me lamba (oba), macaco me lamba //
Macaco me lamba; Ismael Silva
288
7
1965
Tudo de alegrias e de tristezas conheci, / Coisas do amor
e do sofrer, eu já senti, / Nada me transforma a alegria
de viver, / Ver a noite vir e sorrir, ao sol nascer, / Vivo
esperando o novo dia, / Que irá trazer a luz, que sempre
ficará!
Canção da saudade; Cartola e
Cacá Diegues
8
1975
Eu aqui ficarei / Por você rezarei / Todas as tardes, / Ao
bater a Ave-Maria //
Que sejas bem feliz; Cartola
9
1976
Aconteceu / Hoje ela chora tudo o que perdeu / E
chorando veio me pedir perdão / Fica para ela a lição
Aconteceu; Cartola
10
1980
Dispara coração / Desanda a recordar / Ah, pretextos
não te faltam, não / Obediente, teu coração vai entender
/ Mas é preciso regressar / Ao fundo desse meu quintal /
Ao passaraio que ficou / Nas pipas soltas pelo ar
Fundo de Quintal; Cláudio Jorge,
Cartola e Hermínio Bello de
Carvalho
11
1980
Vem / Caminhar para além de todo mal / O bem / É a
meta final da estrada universal / Vem / Dar-me a paz e
ter paz junto de mim / Vem / Fica comigo assim / Até o
fim / Vem
Vem; Cartola e Arthur de Oliveira
12
1928-1980
Mas na hora da partida / fiz uma investida / quase
implorei para ela ficar / mas não tive a ousadia / que era
covardia / aos pés de uma mulher chorar.
Meu amor já foi embora; Zé com
Fome e Cartola
13
1928-1980
Mas eu vou ao distrito / Está mais do que visto / Isto não
fica assim / Vou contar tintim por tintim / Tudo nele eu
aturo / Menos tapas e murros / Isto não é para mim //
Vou contar tintim por tintim;
Cartola
Itens (5, 8): a referência é à permanência de algo/alguém em determinada posição no
espaço. No primeiro caso, tendo como ponto de vista o deslocamento do rio, constrói-se a
oposição com a imobilidade das montanhas, que ficam pelo percurso do curso d'água. No
segundo, a permanência do enunciador contrapõe-se à partida da destinatária, numa
representação do rompimento amoroso.
Em (3, 7, 10): a referência é à experimentação de sentimentos ou lembranças — pode
ser a alegria diante do clarão da aurora, ou a nostalgia das brincadeiras infantis ocasionada por
um cenário familiar. Em (7), há menção à perenidade da luz de um novo dia, numa
representação metafórica da vivência de um período positivo e duradouro, em sequência a
outro, negativo.
Itens (2, 11-12): a referência é à continuidade da relação amorosa. Nesses casos,
portanto, mais do que à permanência física, alude-se à permanência da disposição amorosa.
Também se costuma expressar isso a partir de colocações como fica com alguém e ficar ao
lado de alguém, como se vê nesses casos.
Em (1), ocorre o pragmatema ficar bem. A expressão destina-se à avaliação sobre a
adequação de um comportamento ou de um modo de vestir. No caso em questão, refere-se à
propriedade de um corte de cabelo.
Item (4): pragmatema cada um com quanto fica. Tem-se nesse caso a fórmula de
rotina cada um com quanto fica, pragmatema característico dos problemas de matemática,
usado para construir uma situação de sala de aula, correspondente ao enredo apresentado pela
Portela ao som deste samba.
Item (6): pragmatema como é que eu vou ficar. É uma expressão da dependência
emocional do enunciador em relação a algo, nesse caso, o carinho da mulher.
289
Item (9): pragmatema ficar a lição para [alguém]. Marca o sentimento de revanche do
enunciador diante da desdita de alguém cujo comportamento reprovava — nesse caso, a
mulher que o abandonou.
Item (13): pragmatema isto não fica assim. Marca a inconformação do enunciador
diante de um ato alheio que o prejudicou e a disposição para conseguir a desforra. Nesse caso,
trata-se da revolta da mulher diante da violência do companheiro.
FILOSOFIA [2 ocorrências em 2 letras do corpus]
1
1937
Eu quisera esquecer o passado / Eu quisera mas sou
obrigado / A lembrar o grande Noel / Ainda resta a
cadeira vazia / Da escola de filosofia / No bairro de Vila
Isabel
Cadeira vazia; Cartola e Nuno
Veloso
2
d1937
Era o rei / Da filosofia / Fez da musa o que queria /
Zombou da inspiração / Os seus versos ritmados / Por
ele mesmo cantados / Tinham bela entoação //
A Vila emudeceu; Cartola
Ambas as ocorrências, encontradas em homenagens a Noel Rosa compostas por
Cartola, apresentam filosofia como profundidade no desenvolvimento de um conteúdo,
característica que o enunciador atribui às composições de Noel. Não é incomum que se diga
que determinado samba “tem filosofia”, em referência à mencionada profundidade no
tratamento de algum assunto, relacionado a questões existenciais, à análise do cotidiano ou a
outra área temática.
FINGIMENTO [8 ocorrências em 5 letras do corpus]
1
1926
Chorar de fingimento // Não sei qual a razão que tu /
Lastimas a sorte meu bem / Chorar de fingimento é triste
/ São bem poucos os que resistem / iludir não convém
Chorar de fingimento; Paulo da
Portela
2
1929
Uma vez emurchecidas / Tombam para toda a vida / No
seu leito de agonia que é o chão / Enquanto o jardineiro
ciumento / Ciúme de fingimento / Dando a outra o
coração
As mulheres são as rosas; Paulo
da Portela
3
1929
Mas riso nem sempre é alegria / Chorar nem sempre é
sentimento / No mundo tem criaturas / Quando faz as
suas juras / Chora de fingimento
As mulheres são as rosas; Paulo
da Portela
4
1932
Só tens ambição e vaidade / Não pensas na felicidade /
E eu não descanso um momento / Por pensar que o teu
amor / É só fingimento / Mas eu vou entrar com o meu
jogo / E vou pôr à prova de fogo / A tua sincera amizade
/ Para ver se tu falaste verdade //
Não faz, amor; Cartola e Noel
Rosa
5
1932
Se você não reconhece / O meu arrependimento / Podes
crer, meu amor / Que o que eu digo / É sem fingimento //
Perdão, meu bem; Cartola
6
1922-1949
És artista do chorar / vai depressa acreditar / que o teu
grande sofrimento / como um juramento santo /
entretanto não passa / de um grande fingimento
O grande fingimento; Paulo da
Portela
7
1922-1949
O grande fingimento // Quem te vê assim risonha /
Naturalmente nem sonha / a maldade do teu riso / com
um juramento eterno / vai me levando ao inferno /
dizendo que é paraíso //
O grande fingimento; Paulo da
Portela
Na quase totalidade das ocorrências, a lexia diz respeito à insinceridade amorosa,
muitas vezes atribuída à mulher. Os dois únicos casos nos quais a atribuição é a homens são
(2), onde o ciúme do homem é considerado falso e ele é revelado como traidor, e (5), onde o
enunciador justamente nega a possibilidade de o seu arrependimento por uma ofensa à
companheira ser fingimento.
290
FLOR [25 ocorrências em 18 letras do corpus]
1
1932
Não faz amor, / Deixa-me dormir / Ó minha flor, tenha dó
de mim / Sonhei, acordei assustado, / Receoso que
tivesses me enganado / Eu não durmo sossegado //
Não faz, amor; Cartola e Noel
Rosa
2
1933
Quando desperta a cidade / Numa alegria sem par / Ao
raiar da passarada / Quando começa a cantar / Ao longe
Febo a sorrir / Derrama raios de luz / Sobre os quadros
verdejantes / Fazendo as flores florir //
Quando desperta a cidade; Paulo
da Portela
3
1934
Tuas fontes risonhas e borbulhantes / Com imenso fragor
/ Pelas florestas / Sempre em ares de festa / Reacende o
aroma / Da mais linda flor
És tu, Brasil, que nos seduz;
Paulo da Portela e Ernani
Rosário
4
1935
Vamos avante cantando e sambando, / Este é o nosso
ideal, / Por entre perfumes e flores / Loucuras de amores
do carnaval.
Canta, meu bem; Paulo da
Portela
5
1935
Na superfície / Tranquila do mar / Ardendo em fulgor / E
as ondas não vozeam / Vem morrer na branca areia /
Orlando-a de espuma em flor //
Clarão da lua; Paulo da Portela
6
1935
Do teu sino / A luz vibrando / O sol na esfera flutua /
Meigas flores / Parecem bailando / Quando a tardinha /
Surge o pálido / Clarão da lua / Outro céu de anil cintila
Clarão da lua; Paulo da Portela
7
1935
Deixe que te confesse, ó flor / Tenho medo, é confissão
de amor / Não é bem isso que eu te venho relatar / Ora
meu bem é que fico louco em te ver sambando //
Confissão de amor; Paulo da
Portela
8
1935
Quando silencia a voz das aves / (De harmonias tão
suaves) / a noite vem a terra amortalhar / (Para em sono
se engolfar) / Nos roseirais as flores segredando /
(Graciosas baloiçando) / Ensaiam, se estreitando, O
verbo amar //
Quando silencia a voz das aves;
Paulo da Portela
9
1936
Não quero mais / Amar a ninguém / Não fui feliz / O
destino não quis / O meu primeiro amor / Morreu como a
flor / Ainda em botão / Deixando espinhos / Que
dilaceram meu coração //
Não quero mais amar a ninguém;
Cartola, Carlos Cachaça e Zé da
Zilda
10
1940
Vamos embora, ó flor // Vamos embora, ó flor / Ora,
muito cedo, amor / A lua estará gostando de me ver
sapatear / Mas quem é que dá as ordens? / É você. /
Mas quando pode! /
Vamos embora, ó, flor; Paulo da
Portela
11
déc.1940
Meu amor / Minha flor / Teu olhar reluz / Inspira amor,
seduz / Quanto te vejo / Sinto em mim um calor ô ô / Só
por ti sofrerei / Até condenado à morte serei / Meu amor
//
Ordenes e farei; Cartola e Aluísio
Dias
12
1955
Este jardim foi palco de grande tragédia / Mas dentro de
mim transformei / Tudo em comédia / Razões bastantes
eu tenho / Para as flores odiar / Pois a flor tombou,
murchou, / Mas sem querer falar.
Interroguei uma rosa; Cartola
14
1958
Levarei dinheiro pra comprar / Velas de cera / Quero
levar flores / Para a santa padroeira / Só não subirei / A
escadaria ajoelhado / Pra não estragar / O terno que
tenho emprestado.
Festa da Penha; Cartola e
Asobert
15
déc.1960
Por Deus, não posso entender / Por que vamos
chorando / Se os nossos cicerones / São aves cantando
/ Lateralmente, as flores
/ Deitam aroma sorrindo / E
ouço da natureza: / Que sejam bem-vindos //
Que sejam bem-vindos; Cartola
16
1975
Que Deus e a natureza / As aves nos seus ninhos / As
flores
pela estrada / Perfumem todos os caminhos //
Que sejas bem feliz; Cartola
17
1977
Nossas vidas muito sofridas / Caminhos tortuosos entre
flores e espinhos demais / Já não sinto saudades /
Saudades de nada que fiz / No inverno do tempo da vida
/ Oh! Deus, eu me sinto feliz.
O inverno do meu tempo; Cartola
e Roberto Nascimento
18
1979
Que brisa amena ao te fitar / És indelével como a flor /
Qual foi o deus teu escultor? / Ouvi a voz e a voz dizia /
"Eu sou a mãe de Deus, Virgem Maria"
Dê-me graças, senhora; Cartola
19
1928-1980
Hoje sem querer / Que vim a saber / Que gostas de ouvir
/ Quando canto, ó flor / Ficas comovida / Derramando
pranto / Achas um encanto / Neste teu cantor //
Hoje sem querer; Cartola e
Babau
Itens (2, 3, 6, 8-9, 12-16, 18): a referência é à estrutura vegetal. Pode ser usada para a
caracterização de um cenário natural, com a carga de harmonia comumente associada à
natureza (2-3, 15-16). Também pode ser empregada na construção de uma alegoria, como a
imagem da morte da flor em botão associada ao fim do primeiro amor (9) ou a associação do
impacto da beleza da flor ao da beleza da amada (18).
291
As flores também são muito personificadas (6, 8, 12), com movimentos comparados
com um bailado, sua beleza descrita como meiguice; podem ainda aparecer interagindo com o
enunciador, que as trata como interlocutoras em seus devaneios amorosos.
Há ainda a colocação levar flores (14), que, na situação da Festa da Penha, de cunho
religioso, ganha a significação de ritual de adoração. Outra marca dessa significação é a
apresentação da santa padroeira como destinatária das flores levadas pelo enunciador.
Em (4, 17), a referência é ao valor simbólico de experiência amena e prazerosa. A
menção a flores, nesses casos, tem a função de transmitir aquela carga positiva aos dias de
carnaval e à vida como um todo, sendo que neste segundo caso o valor positivo das flores é
contrabalançado pelo negativo dos espinhos, estabelecendo que o casal já passara
intensamente por esses dois tipos de experiências.
Em (5), ocorre o frasema em flor. É usado para caracterizar coisas que se desenvolvem
ou se expandem como uma flor desabrocha. O fundamento da metáfora, na ocorrência em
destaque, é o movimento de expansão da espuma das ondas em paralelo com o desabrochar de
uma flor.
Itens (1, 7, 10-11, 19): pragmatemas flor e minha flor. Trata-se de formas de
tratamento carinhoso, próprias de pessoas envolvidas amorosamente. São empregadas sempre
pelo homem, em relação à mulher, ressaltando a sua beleza.
FOLIA [1 ocorrência no corpus]
1922-1949
Sambar! / Salve a folia / Cantar! / Salve a orgia Então cantaremos todos
/ em voz geral / Só meu samba / É o nosso ideal.
Sambar / Salve a folia...; Paulo da
Portela
A lexia é característica do léxico do samba, pois é um elemento convencionalmente
enfatizado nas referências aos dias de carnaval. Seu uso é um recurso eficiente para a criação
de uma ambiência correlata ao samba e ao carnaval.
FULGOR [3 ocorrências em 3 letras do corpus]
1
1932
Pudesse um dia / Juro faria / Do samba o maior herói /
Concorrerias / Com as vitórias / Que existiam entre nós /
Seriam páginas de intenso fulgor
/ E o passado teria
maior valor
Pudesse meu ideal; Cartola e
Carlos Cachaça
2
1935
Surge o pálido / Clarão da lua / Outro céu de anil cintila /
Na superfície / Tranquila do mar / Ardendo em fulgor / E
as ondas não vozeam / Vem morrer na branca areia /
Orlando-a de espuma em flor //
Clarão da lua; Paulo da Portela
3
1936
Semente de amor / Sei que sou desde nascença / Mas
sem ter vida e fulgor / Eis minha sentença / Tentei pela
primeira vez um sonho vibrar / Foi beijo que nasceu / E
morreu sem se chegar a dar //
Não quero mais amar a ninguém;
Cartola, Carlos Cachaça e Zé da
Zilda
A lexia em (1) é afinada às práticas discursivas de louvor às conquistas do samba, que
ascendeu socialmente, tornando-se patrimônio da cultura nacional. Seu uso, portanto, é
valorativo, não dizendo respeito a efeitos visuais, como ocorre em (2).
292
Em (3), o fulgor pode ser associado à fertilidade latente na semente, assim como à
luminosidade do sol, importante para o desenvolvimento vegetal.
293
3.2.11 – Letra G
GANDAIA [6 ocorrências em 1 letra do corpus]
1
1932
Ai quem me dera agora / Esse viver de outrora!... / Quem
na gandaia andar / Pode ter a certeza que sabe gozar... /
Gandaia
sempre foi o meu desejo / Quanto tempo que
eu não vejo / Essa vida que eu vivia!...
Gandaia; Ismael Silva
2
1932
Gandaia sempre foi o meu desejo / Quanto tempo eu
não vejo / Essa vida que eu vivia //
Gandaia; Ismael Silva
3
1932
Gandaia // Gandaia é o que me faz saudade, / No tempo
da mocidade / Era a minha alegria. / Gandaia, palavra
bem proferida, / Que não me fica esquecida / nem de
noite nem de dia.
Gandaia; Ismael Silva
A referência é ao ambiente festivo encontrado, por exemplo, na roda de samba. O
enunciador relembra com nostalgia o tempo passado, quando participava frequentemente
dessas reuniões. A repetição enfatiza a ideia central da composição, assim como representa a
lembrança constante que assalta o enunciador.
GANHAR [5 ocorrências em 5 letras do corpus]
1
1928
Chega de demanda, chega / Com este time temos que
ganhar / Somos da Estação Primeira / Salve o morro de
Mangueira
Chega de demanda; Cartola
2
1931
A mulher é um jogo / Difícil de acertar / E o homem como
um bobo / Não se cansa de jogar / O que eu posso fazer
/ É, se você jurar, / Arriscar a perder / Ou desta vez
então ganhar.
Se você jurar; Ismael Silva, Nilton
Bastos e Francisco Alves
3
1949
Lábios doces / Beijos eu ganhei de alguém / Ó que
felicidade trouxe / Teu amor, meu bem.
Lábios doces; Paulo da Portela
4
1950
Você come tanto / Você come tanto / Que tudo que
ganha é pra esse fim / É mais negócio sustentar um
burro a pão de ló / Do que você a capim //
Comilão; Ismael Silva
5
1928-1980
Mas eu agora vou saber / Eu sou tão camarada / A ele
não falta nada / Ganha um terno por mês / Ainda agora
pancada / Piorou a maçada / Eu parei desta vez / Vou
arranjar um português.
Vou contar tintim por tintim;
Cartola
Em (1), a lexia faz referência às disputas dos desfiles de carnaval. Vejam-se mais
referências sobre o campo semântico da disputa e até mesmo da batalha s.v. adversário.
Em (2), o verbo integra a metáfora que associa o envolvimento amoroso com mulheres
a um jogo de azar. Segundo essa imagem, tentar o amor é arriscar a sorte, como em uma
aposta de jogo.
Em (3), ocorre a colocação com verbo-suporte ganhar beijos. Essa é uma
demonstração de carinho relembrada gostosamente pelo enunciador.
Em (4) a referência é à remuneração do trabalhador. O destinatário é identificado
como glutão e isso é demonstrado pela afirmação de que consome todos os seus ganhos com
alimentação.
Em (5) a referência é à recepção de um presente. Ganhar um terno por mês é um forte
indício da identificação do malandro, que, sem trabalhar, pode ser sustentado por mulheres. A
294
enunciadora menciona o evento para comprovar que o trata bem, vivificando a injustiça que
sofre ao apanhar do parceiro.
GANZÁ [1 ocorrência no corpus]
1965
Tem tem tem pandeiro agogô / Vê vê vê se falta ganzá / O rei vem vem
/ vem de Luanda / vamos saravá saravá / A rainha também / Não vai
demorar / Hoje vai ter samba Dolores / Vamos que eu quero sambar.
Ensaio de rua; Barbosa da Silva,
José Lima e Cartola
Essa ocorrência, referente a um instrumento de percussão que é peça integrante das
baterias de escolas de samba e, na letra em análise, figura na descrição de um ensaio de rua,
integra o vocabulário especializado do samba.
GATURAMO [1 ocorrência no corpus]
1922-1949
Quiseram me comprar / eu não vendi / uma linda coleção de
passarinhos / Bernardo é gaturamo / Aurélio é rouxinol / Lino é o
canário / Mano Rubens, o curió
Coleção de passarinhos; Paulo da
Portela
Esse é mais um exemplo da associação entre sambistas e aves canoras, encontrada
com razoável frequência no corpus. Veja-se também ave e rouxinol.
GLÓRIA [9 ocorrências em 9 letras do corpus]
1
1927
Não se deve cantar glória / Antes da vitória / Vocês que
sorriam de mim / Na esperança do mais alto pedestal / O
seu castelo ruiu / Numa poeira infernal
Não se deve cantar glória; Paulo
da Portela
2
1927
Uma luta vencida por amor e glória / São linhas traçadas
/ Nas páginas da história / Gravado com as cores de
nosso país / Em seu castelo Portela feliz
Uma luta vencida por amor e
glória; Paulo da Portela
3
1934
E muito além dos verdes montes / Terás esta canção /
Falando de glórias, sim
És tu, Brasil, que nos seduz;
Paulo da Portela e Ernani
Rosário
4
1935
Vem, borboleta, brejeira, voar / Em teu reino imperar, /
Ruflam suas asas / Nas manhãs cantar / Vem, borboleta,
brejeira, voar / Em teu reino imperar / Ele, o Rei Momo /
a glória
conquistar.
Quando silencia a voz das aves;
Paulo da Portela
5
d1937
Na Vila / onde ele morava / Todos os seres cantavam /
As glórias
do seu poeta / Hoje a Vila é triste e muda / Ao
bater Ave-Maria / Quando a aurora desperta
A Vila emudeceu; Cartola
6
1957
Sonhava desde menino / Tinha um desejo felino / De
contar toda a tua história / Este sonho realizei / Um dia, a
lira empunhei / E cantei todas as tuas glórias
Fiz por você o que pude; Cartola
7
1960
Tu é meu Brasil em toda parte / Quer na ciência ou na
arte / Portentoso e altaneiro / Os homens que
escreveram tua história / Conquistaram tuas glórias
, /
Epopéias triunfais
Ciência e arte; Cartola e Carlos
Cachaça
8
1973
Cada vez mais me embaraço / Analisando essa história /
Existe muito fracasso / Dentro do largo da Glória /
Analisando essa história / Cada vez mais me embaraço /
Quanto mais longe do circo / Mais eu encontro palhaço.
Contrastes; Ismael Silva
9
1975
Que sejas bem feliz / Mas leves-me na mente / Que
cresçam suas glórias / E as minhas lágrimas contente
Que sejas bem feliz; Cartola
Em (1, 4-5), a lexia se refere à importância de sambistas e outras figuras ligadas ao
carnaval, valorizando as conquistas que ajudam a notabilizá-los; em (6), a referência é à
Mangueira e em (2), à Portela. Conforme o estudo feito na análise qualitativa do corpus, as
homenagens a pessoas ou instituições proeminentes no meio do samba estão entre as
intenções comunicativas mais frequentes da área temática “metalinguagem”. Essas
ocorrências de glória servem a esse propósito discursivo.
295
Em (3) e (7), a lexia é usada para exaltar o valor do Brasil. Já em (9), há o desejo de
que a ex-consorte tenha sucesso na vida, mesmo distante do enunciador. Em (8), o quase-
frasema largo da Glória é usado tanto para designar a localidade quanto para construir uma
antítese do fracasso que se diz existir em abundância no largo que tem glória no nome — essa
é uma das antíteses presentes na letra, intitulada “Contrastes” que, por meio de oposições
semânticas, busca demonstrar as desigualdades e a inconstância da vida.
296
3.2.12 – Letra H
HARMONIA [5 ocorrências em 5 letras do corpus]
1
1938-1940
Quando a tarde vai morrendo (ai, meu Deus) / O
crepúsculo vem descendo / Reúne-se o bando na rua /
E, cheios de harmonia
, / Entoam uma melodia que faz
dançar a própria lua
Ao amanhecer; Cartola
2
1938-1940
Como é belo ouvir cantar a passarada / Que vou saudar
com harmonia / A fresca alvorada, que melodia /
Corações em festa; Cartola
3
1935
Quando silencia a voz das aves / (De harmonias tão
suaves) / a noite vem a terra amortalhar / (Para em sono
se engolfar) / Nos roseirais as flores segredando /
(Graciosas baloiçando) / Ensaiam, se estreitando, O
verbo amar //
Quando silencia a voz das aves;
Paulo da Portela
4
1973
Existe muita tristeza na rua da Alegria / Existe muita
desordem na rua da Harmonia / Analisando esta história
/ Cada vez mais me embaraço / Quanto mais longe do
circo / Mais eu encontro palhaço //
Contrastes; Ismael Silva
5
1928-1980
Vamos apertar / Mais o ferrolho / Vai ser dente por dente
/ Olho por olho / E nós vamos / Demonstrar com
harmonia
/ Que a Mangueira / Ainda é a academia /
Levanta gigante.
Levanta gigante; Cartola, Carlos
Cachaça e Nuno Veloso
Em (1), a lexia traz um sentido ligado ao modo de cantar, que pode ser qualificado
como esteticamente agradável ou mesmo como entrosado, em comunhão. Em (5), essa ideia
de integração é mais forte — ela fortalece a exortação do enunciador, tentando motivar os
mangueirenses a ter um bom desempenho no desfile de carnaval.
Em (2), a referência é a um modo de saudar, que marca a sintonia entre o enunciador e
o cenário natural que descreve. A harmonia da natureza também é louvada em (3); manifesta-
se, entre outros elementos, pela voz das aves.
Em (4), como já foi comentado s.v. glória (ver), a lexia é usada na designação de uma
localidade, que é aproveitada para construir um efeito de contraste entre o nome da rua e a sua
caracterização como um lugar de desordem.
HERDEIRO [1 ocorrência no corpus]
déc.1930
Chegando eu quero recebê-lo com carinho / Tratá-lo como reizinho /
Enveredarei pelos caminhos dos bambas / Talvez será herdeiro
/ De
uma coroa do samba.
Senhora Dona Cegonha; Paulo da
Portela
A lexia colabora para a construção da ideia de que o samba é um patrimônio a ser
transmitido às novas gerações pelas antigas, que conseguiram conquistas importantes para
constituir esse patrimônio, tanto em títulos carnavalescos quanto em valorização do samba em
outros grupos sociais.
HINO [1 ocorrência no corpus]
1940
Ao romper do sol / Ouvi cantar um rouxinol / Cantando um hino em
louvor / O mano Paulo dando viva ao Claudionor.
Cantar de um rouxinol; Paulo da
Portela
A lexia hino é consistente com a intenção de homenagear pessoas e instituições de
297
vulto no meio do samba, neste caso o portelense Claudionor (ver o verbete homônimo).
HISTÓRIA [8 ocorrências em 6 letras do corpus]
1
1925
Para que havemos de mentir / O subúrbio está é bom, /
Venham ver, não é história / Se por ventura estou errado
/ Dou a mão à palmatória.
Para que havemos de mentir;
Paulo da Portela
2
1927
Uma luta vencida por amor e glória / São linhas traçadas
/ Nas páginas da história / Gravado com as cores de
nosso país / Em seu castelo Portela feliz
Uma luta vencida por amor e
glória; Paulo da Portela
3
1932
Pudesse meu ideal / Que é o carnaval / De encantos mil
/ Imortalizar neste poema / Cor de anil / Verossímil / E
levá-lo coroado / Pelas galas da história / Relembrando a
memória / Do meu querido Brasil
Pudesse meu ideal; Cartola e
Carlos Cachaça
4
1957
Sonhava desde menino / Tinha um desejo felino / De
contar toda a tua história / Este sonho realizei / Um dia, a
lira empunhei / E cantei todas as tuas glórias
Fiz por você o que pude; Cartola
5
1960
Tu é meu Brasil em toda parte / Quer na ciência ou na
arte / Portentoso e altaneiro / Os homens que
escreveram tua história
/ Conquistaram tuas glórias, /
Epopéias triunfais
Ciência e arte; Cartola e Carlos
Cachaça
6
1973
Existe muita tristeza na rua da Alegria / Existe muita
desordem na rua da Harmonia / Analisando esta história
/ Cada vez mais me embaraço / Quanto mais longe do
circo / Mais eu encontro palhaço //
Contrastes; Ismael Silva
7
1973
Cada vez mais me embaraço / Analisando essa história /
Existe muito fracasso / Dentro do largo da Glória /
Analisando essa história / Cada vez mais me embaraço /
Quanto mais longe do circo / Mais eu encontro palhaço.
Contrastes; Ismael Silva
Em (2) e (4), trata-se da história interna ao samba. No primeiro caso, a vitória dos
portelenses no carnaval é inscrita no patrimônio da escola; no segundo caso, o enunciador
assume o papel de registar o percurso de Mangueira como instituição emblemática do samba
carioca.
Em (3) e (5), a referência é à história do Brasil. A primeira ocorrência encontra-se em
uma composição que afirma a ascensão do samba como valor cultural inscrito na história
nacional. O tom laudatório da referência é enfatizado pela colocação galas da história, uma
forma grandiloquente de exaltar esse valor. A segunda ocorrência louva brasileiros que
atuaram na áreas da ciência e da arte, enriquecendo a cultura brasileira.
Em (6) e (7) há a colocação analisar esta história, cuja função é de referência
anafórica ao que foi dito antes. Trata-se de um marcador textual, que retoma sinteticamente as
considerações anteriores, encaminhando o posicionamento do enunciador quanto a elas. A
repetição de analisando essa história, cada vez mais me embaraço, aumenta a sensação de
confusão, que também é ilustrada pela inversão de ordem, em cada vez mais me embaraço,
analisando essa história (7).
Em (1) encontra-se o pragmatema não ser história, que é usado pelo enunciador para
dar credibilidade ao que afirma. Esse esforço ainda é enfatizado pelo frasema dou a mão à
palmatória (ver o verbete dar).
298
HOMENAGEM [2 ocorrências em 2 letras do corpus]
1
1933
A tarde chega / Mansa e serena / Esta grandeza / Suave
e amena / Acetinada / Surge a lua, / Descortinando / O
céu de anil / Esta grandeza / No céu flutua / E nos
convida / Sempre a bailar / Em homenagem / À natureza
/ A noite vem / Nos saudar.
Quando desperta a cidade; Paulo
da Portela
2
1942-1949
A homenagem ao Morro Azul // Viemos de Bento Ribeiro
para batizar / Unidos do Morro Azul em primeiro lugar /
Esse é o nosso ideal / Queremos ver brilhar no carnaval.
A homenagem ao Morro Azul;
Paulo da Portela
A ocorrência (2) é uma documentação explícita de uma intenção discursiva muito
frequente na área temática “metalinguagem”: a de louvar pessoas e instituições relevantes no
meio do samba. No caso em análise, a própria composição intitula-se homenagem, e tem a
função de cartão de visitas dos portelenses que visitavam a Unidos do Morro Azul.
Em (1), a intenção laudatória direciona-se à natureza. Na letra, as belezas naturais
transmitem ao enunciador o anseio de bailar, como demonstração de apreciação a essas
belezas.
299
3.2.13 – Letra I
IAIÁ [6 ocorrências em 3 letras do corpus]
1
1931
O teu olhar que me consome / Por caridade, iaiá, me
diga teu nome. //
Me diga o teu nome; Ismael
Silva, Nilton Bastos e Francisco
Alves
2
1931
Não faz assim, / Minha iaiá, meu querer, / Você pra mim
está bancando o chiquê.
Me diga o teu nome; Ismael
Silva, Nilton Bastos e Francisco
Alves
3
1933
Chegou, chegou a dona do lugar, chegou / pelo modo de
pisar / se vê que é iaiá de ioiô //
Dona do lugar; Ismael Silva e
Francisco Alves
4
1933
Vou pedir, vou implorar / A meu Senhor do Bonfim / Pra
fazer essa iaiá
/ Se apaixonar por mim.
Dona do lugar; Ismael Silva e
Francisco Alves
5
1933
E essa bela iaiá / Não acredita em muamba / Ela tem um
patuá / Que é todo o nosso samba //
Dona do lugar; Ismael Silva e
Francisco Alves
6
1936
Serei teu ioiô / Serás minha iaiá / Vida feliz, bem longe
daqui / Iremos gozar //
Serei teu ioiô; Paulo da Portela
As lexias iaiá/ioiô, alterações fonológicas de sinhá e sinhô, com queda dos fonemas
consonânticos e reduplicação do encontro vocálico resultante, são usos populares,
considerados característicos do português rural falado por escravizados ao se dirigirem aos
seus escravizadores.
As ocorrências de iaiá, nas abonações listadas, não apresentam, entretanto, essa carga
semântico-discursiva. Ainda são pragmatemas, mas dessa vez são usados como formas
galanteadoras de se dirigir à mulher, mantendo talvez uma sugestão de relação assimétrica,
que estabeleceria que o enunciador está amorosamente subjugado pela destinatária.
Na ocorrência (3), além dessa possibilidade de significação, a menção à iaiá
acompanhada por um ioiô sugere uma condição assimétrica em relação a um casal de grupo
social diferente. Mesmo assim, permanece o tom de cortejo amoroso.
Em (6), o uso traz referência à relação conjugal — trata-se de formas de tratamento
usadas pelos consortes, iaiá e ioiô.
IDEAL [9 ocorrências em 8 letras do corpus]
1
1931
Todo o meu ideal é só sempre te amar / Você faz muito
mal em tudo acreditar
Você gosta de mim?; Ismael
Silva e Francisco Alves
2
1932
Pudesse meu ideal // Pudesse meu ideal / Que é o
carnaval / De encantos mil / Imortalizar neste poema /
Cor de anil / Verossímil / E levá-lo coroado / Pelas galas
da história / Relembrando a memória / Do meu querido
Brasil
Pudesse meu ideal; Cartola e
Carlos Cachaça
3
1933
Observo que, hoje em dia, / Quem não quis diz que me
quer / Cabe muita hipocrisia / Num capricho de mulher /
Vou viver desiludido, / Sem amor, sem ideal / Pra não ser
submetido / A desejo tão banal //
Quem não quer sou eu; Ismael
Silva e Noel Rosa
4
1934
És tu, Brasil, que nos seduz / És tu que nos conduz / Ao
caminho ideal
, sem par / Resoluto, sempre a marchar
És tu, Brasil, que nos seduz;
Paulo da Portela e Ernani
Rosário
5
1935
Vamos avante cantando e sambando, / Este é o nosso
ideal
, / Por entre perfumes e flores / Loucuras de amores
do carnaval.
Canta, meu bem; Paulo da
Portela
6
1939
Entre os defeitos teus / Este é o principal! / Vou dar-te
um adeus / Sem ser meu ideal / Pra não me colocar / Em
má situação / Prefiro declinar / Da pretensão.
Com a vida que pediste a Deus;
Ismael Silva
300
7
1942-1949
A homenagem ao Morro Azul // Viemos de Bento Ribeiro
para batizar / Unidos do Morro Azul em primeiro lugar /
Esse é o nosso ideal / Queremos ver brilhar no carnaval.
A homenagem ao Morro Azul;
Paulo da Portela
8
1922-1949
Sambar! / Salve a folia / Cantar! / Salve a orgia Então
cantaremos todos / em voz geral / Só meu samba / É o
nosso ideal.
Sambar / Salve a folia...; Paulo
da Portela
Nos itens (1-3, 5-8), a lexia ideal, sozinha ou integrando o pragmatema ser o ideal [de
alguém], ocorre com o sentido de objetivo ardorosamente desejado. É uma seleção lexical
bastante frequente no meio do samba, provavelmente para conferir grandiloquência à
expressão dos anseios do enunciador. Na maioria dos casos, a referência da lexia é
relacionada à vivência no samba, às intenções de enaltecer a escola de samba, homenagear
outra agremiação, louvar o carnaval etc. Já em (3) e (6) referem-se à relação amorosa.
Em (4), a lexia, com função adjetiva, modifica caminho, qualificando positivamente a
vida pautada pelo nacionalismo.
INCONSTITUCIONALISSIMAMENTE [1 ocorrência no corpus]
1922-1978
Apesar de eu ter educação / Para participar do melhor ambiente /
Quando me fazem dizer palavrão / Digo: inconstitucionalissimamente
Nome feio; Ismael Silva
O enunciador, mantendo o jogo discursivo, já descrito s.v. feio, que o caracteriza como
pessoa extremamente polida, não reconhece o sentido de palavrão como palavra de baixo
calão. Assim, a única possibilidade de significação para essa palavra, em seu entendimento,
seria inconstitucionalissimamente, a partir da leitura metalinguística, de 'palavra grande'.
INGRATIDÃO [13 ocorrências em 12 letras do corpus]
1
1929
Arranjei outra, / Que não troco por ninguém, / Já que tu
me abandonaste, / Há males que vêm pra bem... / Hoje
em dia sou feliz / Sem a tua ingratidão
/ Encontrei outro
benzinho / A quem dei meu coração!... //
Novo amor; Ismael Silva
2
1930
Tenho um coração / Poderei lhe perdoar / Mas da sua
ingratidão / Sempre hei de me lembrar //
Quando souberes amar; Ismael
Silva
3
1929-1930
Não te darei perdão / porque eu já aturei / tanta
ingratidão / eu jamais esquecerei //
Não te dou perdão; Ismael Silva
4
1931
Chorei por ter me lembrado / De tudo quanto eu fazia /
Era tanta ingratidão, / E você não merecia / Muito eu te
fiz chorar / Não mereço o teu perdão / Tu deves me
castigar / Magoei seu coração. //
Arrependido; Ismael Silva, Nilton
Bastos e Francisco Alves
5
1931
Infeliz sorte! / Que infeliz sorte! / Que infeliz sorte! / Que
vale que meu coração / Pra resistir a essa paixão é forte!
/ Se não passava as maiores dores / Pela ingratidão
que
me fez Dolores. //
Infeliz sorte; Cartola
6
1932
Diz, qual foi o mal que eu te fiz? / Eu não te farei esta
ingratidão / Foi um falso contra a nossa amizade / não
creias, não pode ser verdade //
Qual foi o mal que eu te fiz?;
Cartola
7
1945
Não consideres isso / uma ingratidão / Atendo a voz do /
meu coração.
Perdoa; Paulo da Portela e
Cartola
8
D1952
Pés inchados, passos em falso, / Olhar embaçado, / Nem
um amigo a meu lado / Não há por mim compaixão / A
tudo vou assistindo / À ingratidão resistindo / Só sinto
falta / Dos meus versos, / Da mocidade e do meu violão
O que é feito de você?; Cartola
9
1976
Ingratidão // Você não se cansa / de me maltratar / por
sua causa quase choro / sei que uma vingança pode lhe
ensinar / mas infelizmente eu lhe adoro //
Ingratidão; Ismael Silva
10
1976
Todo mundo sabe que em meu coração / quase não
cabe tanta ingratidão / gostaria de ouvir / o que é que
você diz / quando alguém pergunta / o que é que eu fiz
Ingratidão; Ismael Silva
301
11
1928-1980
Uma falsidade é triste / sem a gente merecer / Tudo eu
posso relevar / mas esta ingratidão / não poderei
esquecer //
Meu amor já foi embora; Zé com
Fome e Cartola
12
1928-1980
Era solidão / Na solidão eu vivia / E sem confusão / Eu
em paz prosseguia / Veio o amor / E no amor encontrei /
Muita ingratidão / E assim mesmo gostei
Se outro amor tentasse; Cartola
e Nuno Veloso
13
1955-1980
Deixa / A razão dizer quem tem razão / E o fantasma da
ingratidão / Se retira com desfaçatez
Deixa; Cartola e Nelson Sargento
Itens (1-6, 9-13): a referência é à relação amorosa. Na maioria desses casos, o
enunciador atribui à mulher a responsabilidade pelo fracasso da união, dizendo-se vítima da
falta de consideração aos seus esforços pela harmonia do casal. Em poucos casos (4 e 6), ele
reconhece que pode ser o culpado pelo fim do amor, considerando a hipótese de ter sido
ingrato. Também pode ser que a percepção da ingratidão seja explicitada genericamente (12),
relacionada por princípio à experiência amorosa.
Itens (7-8): a referência é a um ato que lesa ou desrespeita o interlocutor. A percepção
de ingratidão, nesses casos, também se associa à retribuição de atos em favor de alguém com
outros que prejudicam o beneficiador. Esse conceito não se restringe à relação amorosa, mas
se aplica a favores pessoais recebidos, ou à experiência da vida em geral.
INSPIRAÇÃO [4 ocorrências em 4 letras do corpus]
1
d1937
Era o rei / Da filosofia / Fez da musa o que queria /
Zombou da inspiração / Os seus versos ritmados / Por
ele mesmo cantados / Tinham bela entoação //
A Vila emudeceu; Cartola
2
1960
E muito bem representado / Por inspiração de geniais
artistas, / O nosso samba, humilde samba, / Foi de
conquistas em conquistas
Tempos idos; Cartola e Carlos
Cachaça
3
1976
Nada consigo fazer / Quando a saudade aperta / Foge-
me a inspiração / Sinto a alma deserta //
Peito vazio; Elton Medeiros e
Cartola
4
1928-1980
Fui pela estrada / Caminhando / Pensativo indagando /
Ó! Lua Deusa / Da inspiração / Por que / Não tenho você
/ Nem meu violão.
Eu e a lua; Cartola e Aluísio Dias
Na ocorrência (1), a colocação zombar da inspiração ressalta as habilidades de
composição do homenageado, que teria muita facilidade para criar.
Já em (2), atribui-se à inspiração de compositores talentosos as conquistas do samba,
que se tornou expressão cultural relevante no Brasil. A habilidade da composição é, portanto,
elemento muito valorizado no universo discursivo do samba, sendo usada como
caracterização essencial do sambista.
Em (3), o desgosto amoroso interfere na capacidade de criação do enunciador e em
outros aspectos da sua vida. O mesmo tipo de crise é abordado em (4), sem determinação da
causa, mas enfatizando a inquietação do compositor diante da falta de inspiração.
INTRODUÇÃO [1 ocorrência no corpus]
1935
Sim, cantarei / Espere um pouquinho / Tenha paciência / Deixe que o
cavaquinho / Faça a introdução / Com toda cadência //
Canta, meu bem; Paulo da Portela
Essa ocorrência integra o vocabulário especializado da música, pois é relacionada à
302
interpretação musical — refere-se à parte inicial, geralmente instrumental, que antecede a
música propriamente dita.
IOIÔ [4 ocorrências em 2 letras do corpus]
1
1933
Lá vem ela, lá vem ela / Com o ioiô do seu lado /
Arrastando a chinela / Dizendo samba raiado //
Dona do lugar; Ismael Silva e
Francisco Alves
2
1933
Chegou, chegou a dona do lugar, chegou / pelo modo de
pisar / se vê que é iaiá de ioiô //
Dona do lugar; Ismael Silva e
Francisco Alves
3
1936
Serei teu ioiô // Serei teu ioiô / Serás minha iaiá / Vida
feliz, bem longe daqui / Iremos gozar //
Serei teu ioiô; Paulo da Portela
Para a formação da palavra e algumas particularidades envolvidas no seu uso, veja-se
iaiá. Além daquelas informações, convém acrescentar que as ocorrências de ioiô em (2-3)
trazem um elemento de indefinição para a cena que é narrada: a mulher exaltada, chamada de
iaiá, chega a uma roda de samba acompanhada de um homem, referido como ioiô. É provável
que isso se deva a eles pertencerem a um grupo social diferente do característico do samba —
as lexias marcariam uma relação assimétrica entre os sujeitos representados. Outra marca que
reforçaria essa leitura é a identificação dona do lugar, atribuída a ela, que tanto pode ressaltar
o seu magnetismo pessoal quanto realçar o fato de que há uma relação de poder envolvendo
os sujeitos apresentados.
O ioiô representa um obstáculo à conquista da iaiá, determinando uma postura mais
reservada do enunciador, que a admira e espera que se apaixone por ele, mas não faz menção
de intervir, tentando conquistá-la.
IR [208 ocorrências em 126 letras do corpus]
Referência à movimentação com deslocamento espacial
4
1929
Não chora, não chora / Vai como pode, cai na farra / está
na hora // Quem tem seda vai
de seda / quem não tem
vai
de estopa / o nome do nosso bloco / faz qualquer um
calar a boca
Não chora; Paulo da Portela
5
1931
Oi, não há vida melhor / e vida melhor não há / Deixa
falar quem quiser / Deixa quem quiser falar / O trabalho
não é bom / Ninguém pode duvidar / Oi, trabalhar só
obrigado / Por gosto ninguém vai lá.
O que será de mim; Ismael Silva,
Nilton Bastos e Francisco Alves
11
1933
Vejo amanhecer, vejo anoitecer / E não me sais do
pensamento, ó mulher! / Vou para o trabalho, passo em
tua porta / Me metes o malho, mas que bem me importa
//
Vejo amanhecer; Ismael Silva,
Noel Rosa e Francisco Alves
16
1935
Vamos avante cantando e sambando, / Este é o nosso
ideal, / Por entre perfumes e flores / Loucuras de amores
do carnaval.
Canta, meu bem; Paulo da
Portela
25
1922-1949
Brasil, terra da liberdade / Brasil, não teme a falsidade, /
Nós estamos em guerra / Em defesa da nossa terra / Se
a pátria nos chama / Eu vou, eu vou / Serei mais um
defensor.
Brasil, terra da liberdade; Paulo
da Portela
27
1958
Não brincarei / Quero fazer uma oração / Pedir à santa
padroeira proteção / Entre os amigos / Encontrarei
alguém que tenha / Hoje é domingo / E eu preciso ir à
Penha //
Festa da Penha; Cartola e
Asobert
28
1958
Uma camisa e um terno usado / Alguém me empresta /
Hoje é domingo / E eu preciso ir
à festa
Festa da Penha; Cartola e
Asobert
30
1965
Pedro afine os tambores / E diz a Dolores / Que vai ter
ensaio de rua / Vê se reúne a turma inteirinha / Vamos
que é noite de lua //
Ensaio de rua; Barbosa da Silva,
José Lima e Cartola
303
31
1968
E, no entanto, meu pinho, / Pode crer, eu adivinho, /
Aquela mulher até hoje está nos esperando / Solte o seu
som da madeira / Eu, você e a companheira / Na
madrugada iremos pra casa cantando.
Cordas de aço; Cartola
32
1968
Vai amigo // Vai amigo / E diga-lhe, por favor, / Que não
sei o que faço / que já nem sei quem sou / Diga que
terminou / Toda aquela vaidade e que sinto saudade /
Quero amá-la com mais fervor
Vai amigo; Cartola
34
1973
Os vizinhos ao teu lado / São uns caladões / De tal modo
reservados / Que não vão nem aos portões //
Para quem quer sossego; Cartola
35
1977
Na manhã que nascia encontrei / O que na noite tardia
desejei / E vou feliz a cantar por aí / Assim...
A canção que chegou; Cartola e
Nuno Veloso
42
1979
Infelizmente / Não iremos ao fim da estrada / Eu bem sei,
estás cansada / E eu também cansei //
Fim de estrada; Cartola
Nessas ocorrências a significação do verbo envolve algum tipo de deslocamento; é um
uso corrente no vocabulário comum da língua. A seguir, destacam-se algumas
particularidades dos usos detectados no corpus.
Nos itens (4, 16, 27-28, 30), a referência é à participação em um evento, como o
desfile de escolas de samba — o evento seria o propósito do deslocamento. Pode-se enfatizar
que o ato de desfilar é praticado nas mais diversas condições, marcadas pelo pragmatema vai
como pode (ver a seguir), e pelas lexias seda e estopa, que explicitam o custo das fantasias. O
verbo ir, principalmente em textos que retratam situações carnavalescas, tem a função
discursiva de incentivar animação e a disposição à folia. Nos casos de (27-28), o enunciador
identifica-se, a um só tempo, como religioso devoto de Nossa Senhora da Penha e como
sambista, que vai à festa por convicção religiosa.
Nos itens (5, 11, 31, 34), a referência é a um deslocamento com ênfase ao destino.
Uma colocação frequente nos casos apurados é ir para o trabalho, o que pode caracterizar o
enunciador como malandro, se contesta o hábito de fazer esse deslocamento, ou como
trabalhador, se se identifica a partir do mesmo deslocamento. Em outros casos, caracteriza-se
a cena familiar, do casal que se dirige à casa, ou ilustra-se a reclusão de pessoas que não
chegam a ir ao portão.
No item (25), a referência é ao deslocamento motivado por engajamento a uma
proposta. Na ocorrência apurada, trata-se do apelo patriótico da defesa à pátria, em momentos
de guerra, o que qualifica o enunciador como alguém imbuído dos valores nacionalistas que
costumam exacerbar-se nessas horas.
No item (31), a referência é à convocação para uma atividade. O enunciador solicita ao
amigo que vá ao encontro da amada como emissário dos seus apelos de reconciliação.
No item (35), a referência é genérica a um deslocamento espacial. A informação
principal, nesse caso, não é tanto a do deslocamento, mas sim do modo sereno como ocorre, o
que qualifica o estado de espírito do enunciador.
304
Referência à dissolução da relação amorosa
3
1928
Mulher, tu não me faz carinho / Seu prazer é de me ver
aborrecido / Ora vai, mulher, se estás contrariada / Tu
não és obrigada a viver comigo //
Me faz carinhos; Ismael Silva e
Francisco Alves
10
1933
Ao ouvir tua proposta, / Tão fingidas frases juntas / Achei
uma só resposta / Que responde a mil perguntas / Hás
de ter, em tua vida, / Um destino igual ao meu / Podes ir
desiludida, / Hoje quem não quer sou eu
Quem não quer sou eu; Ismael
Silva e Noel Rosa
22
1942
Oh! para que chorar / Só para enganar / Sentida quando
eu sei / Que és fingida / Só para iludir / Fazer pensar / E
depois tu sorrir // Ora vai mulher / Já que teu destino
quer / Vaio te desejo mal / Sei que teu pesar / Um dia
será fatal
Oh, pra que chorar; Paulo da
Portela
23
1943
Oi, vai, mulher cruel, / pra você eu sou pesado / leva tua
riqueza / e me deixa sossegado //
Me deixa sossegado; Ismael
Silva, Nilton Bastos e Francisco
Alves
36
1977
Escravizaram assim um pobre coração / É necessária
nova abolição / Pra trazer de volta a minha liberdade / Se
eu pudesse gritaria, amor, / Se eu pudesse brigaria,
amor, / Não vou, não quero.
Autonomia; Cartola
37
1977
É impossível nesta primavera, eu sei / Impossível, pois
longe estarei / Mas pensando em nosso amor, amor
sincero... / Ai se eu tivesse autonomia / Se eu pudesse
gritaria / Não vou, não quero //
Autonomia; Cartola
38
1977
Desta vez eu vou // Perdoai, amor, / Mas desta vez eu
vou / Vou te levar de volta / À casa dos teus pais //
Desta vez eu vou; Cartola
39
1977
Então perdoai, amor, / Mas desta vez eu vou / Vou te
dizer que nunca mais / Hei de chorar por ti / Nada perdes
e nada perdi //
Desta vez eu vou; Cartola
43
1979
Faz o que te digo, amor / Vai, voltes daqui / Eu quero te
ver contente / Te ver alegre / Sempre a sorrir.
Fim de estrada; Cartola
A ênfase, nesses casos, é à partida (mesmo que metafórica) de um dos consortes, que
tipifica o fim do envolvimento entre os dois. Em muitos dos casos é o enunciador quem
manda a mulher embora; outras vezes, ele decide partir, ou expressa seu desgosto por ter de
fazê-lo, devido a fatores alheios à sua vontade. A separação é frequentemente conflituosa,
mas também pode ser consensual ou involuntária.
Referência ao fim de um sentimento, ou de um período de tempo
2
1928
Se eu fosse homem branco / Ou por outra mulatinho /
Talvez eu tivesse sorte / De gozar do seu carinho / A
maré que enche vaza / Deixa a praia descoberta / Vai-se
um amor e vem outro / Nunca vi coisa tão certa //
Me faz carinhos; Ismael Silva e
Francisco Alves
21
1941
O meu nome já caiu no esquecimento / O meu nome não
interessa a mais ninguém // E o tempo foi passando / A
velhice vem chegando / Já me olham com desdém / Ai,
quanta saudade de um passado / Que se vai
lá no além
//
O meu nome já caiu no
esquecimento; Paulo da Portela
24
1946
A velhice chega / Vai-se a mocidade / Apenas resta a
saudade / Aqueles bons tempos / Risos tão felizes /
Resta em meu peito / A cicatriz, a cicatriz //
A velhice chega; Paulo da
Portela e Rufino
33
1973
Foi-se a tristeza / Veio a alegria / Tinha certeza / De ser
feliz algum dia //
Alegria; Ismael Silva
44
1928-1980
Sim / Estou sentindo amor / E arrependido de tudo que
fiz estou / A ternura que eu guardava, vai / Com este
resto de amor / Que se esvai na canção / Que eu
compus sem querer
Estou sentindo; Cartola
46
1928-1980
Hoje acompanhado / A tristeza persiste / Dias que se vão
/ Um alegre, outro triste / Se outro amor tentasse / E
outra vez falhasse / Solidão, a você / Voltaria.
Se outro amor tentasse; Cartola
e Nuno Veloso
Nesses casos o verbo ir costuma estar em colocação com substantivos abstratos, como
mocidade, tristeza e amor. A cessação dessas experiências é, assim, representada como
deslocamento espacial.
305
Colocação ir ao samba
18
1940
Jamais tu irás a um samba / E tenho as minhas razões
/ Quando entras no batuque / Esqueces as obrigações. /
Pense o caso bem direito / Te aconselho a que não
faça / Proibir-me do batuque / Tradição de nossa raça.
Vamos embora, ó, flor; Paulo da
Portela
47
1928-1980
Tu vais ao samba // Pequena, tu vais ao samba / Ver as
línguas que falam de mim / Sem razão / Tu sabes que o
mulato é sincero / E tem critério / E sabes meu leal
procedimento / Como é
Tu vais ao samba; Cartola
Essa combinatória seleciona o sentido de roda de samba para a lexia samba — ver
mais detalhes nesse verbete. Ir ao samba é, portanto, integrar-se às atividades de canto, dança
e confraternização da roda de samba.
Colocação ir[-se] embora
1
1928
Oh! meu bem o teu orgulho / Algum dia há de acabar /
Tudo com o tempo passa / A sorte é Deus quem dá /
Vou-me embora, vou-me embora / Como já disse que
vou / Eu aqui não sou querido / Mas na minha terra eu
sou.
Me faz carinhos; Ismael Silva e
Francisco Alves
7
1932
Pra que foste embora / Por ti tudo chora / Sem teu amor /
Esta vida não tem mais valor.
Adeus; Ismael Silva, Noel Rosa e
Francisco Alves
8
1932
Supliquei humildemente / Pra você endireitar / Mas agora
infelizmente / Nosso amor vai se acabar / Vou embora
afinal / Você vai saber por que / É pra me livrar do mal /
Que eu fujo de você //
Para me livrar do mal; Ismael
Silva e Noel Rosa
9
1931-1932
Liberdade, liberdade / O meu amor foi-se embora /
Pensando deixar saudades / Eu nunca fui tão feliz /
Agora sou eu quem diz... / Foi uma felicidade (Eu vou
gritar...) //
Liberdade; Ismael Silva e
Francisco Alves
19
1940
Vamos embora, ó flor // Vamos embora, ó flor / Ora,
muito cedo, amor / A lua estará gostando de me ver
sapatear / Mas quem é que dá as ordens? / É você. /
Mas quando pode! /
Vamos embora, ó, flor; Paulo da
Portela
26
1922-1949
Quatro malandros chamados Bambaquerê / eles não
comem, não bebem / E não deixam ninguém comer /
amanhã que vou-me embora / que me dão para levar /
levo penas e saudades / E no caminho vou chorar
Coleção de passarinhos; Paulo
da Portela
41
1979
Basta de clamares inocência / Eu sei todo o mal que a
mim você fez / Você desconhece consciência / Só deseja
o mal a quem o bem te fez / Basta, não ajoelhes, vá
embora / Se estás arrependida, vê se chora
Basta de clamares inocência;
Cartola
O sentido desse pragmatema, na maioria desses casos, é análogo ao já mencionado
anteriormente, de dissolução da relação amorosa. Quem vai embora é aquele que toma a
iniciativa de terminar a união.
Em (19), o pragmatema é um convite que, conforme a natureza da relação entre os
sujeitos envolvidos na enunciação, pode ser uma imposição. O enunciador masculino usa esse
artifício inicialmente apenas como convite e, na sequência da letra, tenta ser mais impositivo;
acaba por fim sendo completamente desarmado na sua intenção.
Quanto a (26), essa ocorrência é parte de uma fórmula tradicional de versificação da
poesia popular e, especificamente, do partido-alto. A esse respeito comenta Lopes (2005, p.
140):
O “Vou-me embora, vou-me embora” e o “Que me dão para levar?” são os tristes versos do
êxodo, da retirada, chegando até o Rio de Janeiro. Joaquim Ribeiro (…) escrevendo sobre a
vida socioeconômica nas regiões agrícolas, ressalta seu caráter sedentário. Ao contrário do
pastor e do caçador, o homem agricultor — escreve ele — se confunde com seu meio
ambiente e faz parte dele. Então, mesmo nas zonas mais próximas dos grandes centros
urbanos e por isso mais sensíveis à tentação do êxodo rural (…) o trabalhador da lavoura,
306
quando se vê forçado a emigrar, o faz levando suas “penas e saudades”.
Colocações ir pro batente e ir pro batedor
6
1931
Se eu precisar algum dia / de ir pro batente / não sei o
que será / Pois vivo na malandragem / e vida melhor não
há //
O que será de mim; Ismael Silva,
Nilton Bastos e Francisco Alves
13
1934
Cocorocó, o galo já cantou / Levanta, nego, tá na hora
de tu ir pro batedor / Ô, nega, me deixa dormir mais um
bocado / Não pode ser, o senhorio está zangado com
você
Cocorocó; Paulo da Portela
14
1934
Ô, nega, me deixa dormir, eu hoje estou muito doente /
Deixa de fita, malandro, você não quer ir pro batente.
Cocorocó; Paulo da Portela
A colocação, característica do registro informal, apresenta assuntos diretamente
relacionados à identidade malandra assumida por muitos sambistas da geração aqui enfocada:
o trabalho e a vadiagem. Nas ocorrências listadas, o enunciador tende a rejeitar o trabalho e
afirmar a malandragem como meio de vida. Em (13) e (14), há um debate entre homem e
mulher, ela mandando-o trabalhar e ele resistindo e procurando desculpas para evitar a
obrigação; diante da sua atitude, a mulher, numa constatação definitiva, qualifica-o como
malandro e desconsidera as suas desculpas.
Frasema ir pro altar
29
1964
Está chegando o momento / De irmos pro altar, nós dois
/ Mas, antes da cerimônia, / Devemos pensar: e depois?
/ Terminam nossas aventuras / Chega de tanta procura /
Nenhum de nós deve ter / Mais alguma ilusão //
Nós dois; Cartola
A partir do ato simbólico de ir pro altar, designa-se o evento do casamento em
cerimônia religiosa do cristianismo católico.
Frasema ir para o alto
45
1928-1980
Levanta gigante adormecido / Vamos para o alto / Que
nem tudo está perdido / Põe na tua frente / Os velhos
generais / Que eles mostrarão / Do que serás capaz / O
teu valor / Ninguém pode tirar / Levanta-te Mangueira / E
vem lutar //
Levanta gigante; Cartola, Carlos
Cachaça e Nuno Veloso
Nesse caso, a ascensão aludida não é física, mas figurada. A expressão está em
consonância com o uso do verbo ir para encorajar os integrantes da escola de samba,
comentado há pouco.
Frasema ir de conquistas em conquistas
1960
O nosso samba, humilde samba, / Foi de conquistas em conquistas /
Conseguiu penetrar no Municipal / Depois de percorrer todo o universo /
E com a mesma roupagem que saiu daqui
Tempos idos; Cartola e Carlos
Cachaça
A função desse frasema é ressaltar a ocorrência de uma sucessão de eventos
semelhantes, com ou sem gradação de intensidade (no caso em questão, há essa gradação). É
um frasema que admite a possibilidade de substituição do elemento nominal, que pode ser
qualquer experiência humana que possa ocorrer reiteradamente (vitória, fracasso, luta, paixão
etc.).
307
Pragmatema vai como pode
4
1929
Não chora, não chora / Vai como pode, cai na farra / está
na hora // Quem tem seda vai de seda / quem não tem
vai de estopa / o nome do nosso bloco / faz qualquer um
calar a boca
Não chora; Paulo da Portela
A unidade lexical, que enfatiza o caráter cooperativo e eventuais limitações na
organização de desfiles de carnaval, chegou a ser nome de bloco carnavalesco integrado por
Paulo, entre outros fundadores da Portela. As possíveis limitações financeiras para a
confecção de fantasias não impedem a animação da participação no desfile, conforme está
afirmado nessa composição.
Pragmatema ir pela sombra
12
1934
Seu desejo não me assombra, / Ofereço meu auxílio... /
Passe bem, vá pela sombra, / Acabou-se o nosso idílio...
/ Seu amor e o seu nome, / Eu também vou esquecer: /
Desta vez, juntou-se a fome, / Com a vontade de comer!
Boa viagem; Ismael Silva e Noel
Rosa
A ocorrência mais uma vez faz referência à dissolução do relacionamento amoroso. O
pragmatema, entretanto, expressa essa significação de forma intensamente irônica, destacando
a indiferença do enunciador em relação à destinatária.
Pragmatema onde vais parar?
15
1935
Houve já um curioso / Que perguntou nervoso / – Brasil,
onde vais parar? / E respondo sempre a todos / Com o
mesmo orgulho Irei para um lindo futuro.
Brasil, terra adorada; Cartola,
Arthur Faria e Aluísio Dias
A fórmula de rotina, mais do que preocupação, expressa uma postura algo descrente
em um futuro positivo daquele elemento que é o foco da pergunta. Essa postura em relação ao
Brasil é desqualificada pela resposta do enunciador, que afirma o futuro promissor do país.
Pragmatema não ir atrás de ninguém
20
1941
Não vá atrás de ninguém // Aos meus vizinhos / Eu
agrado também!... / Mas meus carinhos / Só você é que
tem! / Os meus rivais / Fazendo o mal se entretêm... /
Não chores mais... / Não vá atrás de ninguém //
Não vá atrás de ninguém; Ismael
Silva
A fórmula de rotina contém uma advertência para que a destinatária não acredite em
insinuações alheias. A postura discursiva declarada é, portanto, a de prevenir que tais
maledicências prejudiquem a relação. Ao mesmo tempo, também pode representar uma
tentativa de despistar, negando antecipadamente acusações fundamentadas a respeito de erros
cometidos.
Pragmatema ir ao infinito com alguém
40
1922-1978
Por mais que eu queira passar despercebido / sempre
sou surpreendido por um olhar interesseiro. / Das
aventuras a pior é a Otília / Diz que comigo iria até o
infinito. / Mesmo enganando-se o chefe de família / Mas
como é chato a gente ser bonito.
Aventuras amorosas; Ismael
Silva
308
A fórmula de rotina é própria do discurso amoroso, tendo a força de uma declaração
de amor e dedicação ao(à) amado(a). Seu caráter hiperbólico está a serviço da expressão do
arrebatamento amoroso por alguém.
Pragmatema vai-se um amor e vem outro
1928
Se eu fosse homem branco / Ou por outra mulatinho / Talvez eu tivesse
sorte / De gozar do seu carinho / A maré que enche vaza / Deixa a praia
descoberta / Vai-se um amor e vem outro / Nunca vi coisa tão certa //
Me faz carinhos; Ismael Silva e
Francisco Alves
A citação dessa máxima marca a postura desapegada do enunciador em relação ao
envolvimento com determinada mulher. O dizer, próprio do senso comum, afirma que os
amores não são insubstituíveis, servindo como mote para uma certa indiferença em relação a
insucessos afetivos.
ITAMARATY [1 ocorrência no corpus]
1960
Conseguiu penetrar no Municipal / Depois de percorrer todo o universo /
E com a mesma roupagem que saiu daqui / Exibiu-se pra Duquesa de
Kent no Itamaraty
Tempos idos; Cartola e Carlos
Cachaça
A alusão ao Palácio do Itamaraty é mais um elemento a simbolizar a ascensão social
do samba, abordada em “Tempos idos”. Veja-se o que se disse s.v. duquesa para um
desenvolvimento dessas informações.
309
3.2.14 – Letra J
JARDIM [8 ocorrências em 6 letras do corpus]
1
1935
Brasil, terra adorada / Jardim de todo estrangeiro / És a
estrela que mais brilha / No espaço / – Brasileiro, braço é
braço!
Brasil, terra adorada; Cartola,
Arthur Faria e Aluísio Dias
2
1935
Linda borboleta, não seja buliçosa / Deixa minha rosa
que tão linda está no galho / É o meu prazer, ao
amanhecer / Fazer-lhe visita, vê-la banhada de orvalho /
Quando vem o sol, cobre ela de ouro / No jardim do
pobre é um tesouro
Linda borboleta; Paulo da Portela
e Monarco
3
1935
No teu jardim florido, encantadoramente / aí vem a
primavera alegrar a uma vida / o teu sorriso / narcotiza o
ambiente / E as lindas borboletas / Voejando
alegremente. //
Quando silencia a voz das aves;
Paulo da Portela
4
1955
Aqui se beijaram ela e outro amante / Neste jardim
juraram amor constante / Interroguei uma rosa / E a rosa
se foi desbotando / E a cada pergunta, negando //
Interroguei uma rosa; Cartola
5
1955
Este jardim foi palco de grande tragédia / Mas dentro de
mim transformei / Tudo em comédia / Razões bastantes
eu tenho / Para as flores odiar / Pois a flor tombou,
murchou, / Mas sem querer falar.
Interroguei uma rosa; Cartola
6
1976
Bate outra vez / com esperanças o meu coração / Pois já
vai terminando o verão, enfim / Volto ao jardim / Com a
certeza que devo chorar / Pois bem sei que não queres
voltar / Para mim
As rosas não falam; Cartola
7
1928-1980
No meu jardim tive flores belas / Nunca fiz questão / Mas
a flor dos meus amores / Mora no meu coração.
Você é uma flor; Cartola e Nuno
8
1928-1980
Você é uma flor / Que eu plantei para mim / É a flor mais
bela / Do meu jardim //
Você é uma flor; Cartola e Nuno
As referências a jardim representam, em muitos casos, mais uma marca de
significação que retoma a ambiência campestre, com os efeitos de sentido envolvidos (ver o
verbete flor para mais informações).
Assim como as flores, os jardins também têm valor simbólico de harmonia e
amenidade. É essa a significação acionada em (1), onde se qualifica o Brasil a partir da
colocação jardim de todo estrangeiro.
Além das imagens poéticas que envolvem flores, outros elementos podem ser
explorados na ambiência do jardim, como por exemplo as borboletas (2) e a primavera (3).
JOVEM [1 ocorrência no corpus]
1957
Perdoa-me a comparação, / Mas fiz uma transfusão / Eis que Jesus me
premeia / Surge outro compositor / Jovem de grande valor / Com o
mesmo sangue na veia
Fiz por você o que pude; Cartola
A lexia identifica o continuador dos esforços do compositor tradicional como um
jovem. Isso se afina com as representações do samba como um patrimônio a ser transmitido
às novas gerações. A satisfação do enunciador é especialmente direcionada ao fato de esse
jovem compartilhar dos valores tradicionais do samba, o que é expresso pela imagem de ter o
mesmo sangue nas veias.
310
JUVENTUDE [1 ocorrência no corpus]
1957
Todo tempo que eu viver / Só me fascina você, Mangueira / Guerreei na
juventude, / Fiz por você o que pude, Mangueira //
Fiz por você o que pude; Cartola
A lexia refere-se à fase da vida anterior à idade madura. O enunciador se legitima
como quem se esforçou pela escola de samba, valendo-se de metáforas bélicas para descrever
esses esforços (ver mais a respeito s.v. adversário). Essa menção aumenta o efeito de
harmonia em relação ao jovem que surge, afinado com os valores enunciados, como
continuador da obra do sambista mais antigo.
311
3.2.15 – Letra L
LÁBIO [5 ocorrências em 4 letras do corpus]
1
1929
Beijos, ainda quero / Mais beijos dos lábios teus / Beijos,
para satisfazer os meus / Beijos, nem que sejam de
falsidade / Beijos, melhor que fossem de verdade
Beijos, ainda quero...; Cartola
2
1946
Só me resta ruga / e nada mais / Os meus lábios choram
/ eu sou capaz / o que me maltrata / é pensar atrás / a
velhice chega / e nada mais
A velhice chega; Paulo da
Portela e Rufino
3
1949
Lábios doces / Beijos eu ganhei de alguém / Ó que
felicidade trouxe / Teu amor, meu bem.
Lábios doces; Paulo da Portela
4
1979
e o meu coração batendo acelerado / de segundo a
segundo / caindo no abismo / e ela com um leve sorriso
nos lábios
/ talvez criticasse todo o meu cinismo
Bem feito; Cartola
5
1979
hoje procurei-a / mas foi tudo em vão / com um leve
sorriso nos lábios
respondeu-me não / foi bem feito eu
bem sei / que mereço esse castigo / ainda é pouco o que
tenho por ela sofrido //
Bem feito; Cartola
Em (1) e (3) encontra-se a associação entre lábio e beijo, lexias que ocorrem
frequentemente no mesmo contexto, como marcas da demonstração de amor. Os lábios
podem ser mencionados como a origem dos beijos (1), ou simplesmente ser enunciados em
primeiro lugar, para na sequência haver a menção aos beijos (3). A qualificação doce é
colocação comum para caracterizar o prazer experimentado com o beijo de determinados
lábios.
Em (2) os lábios são citados em sua expressividade durante o choro. Já em (4) e (5), a
expressão em destaque é o sorriso. Ressalte-se que a colocação com um sorriso nos lábios
pode ser usada em uma descrição para marcar as intenções maliciosas do personagem
descrito; tal é o caso, na descrição da mulher na composição “Bem feito”.
LAMBER [9 ocorrências em 2 letras do corpus]
1
1950
Macaco me lamba // Sem teu carinho como é que vou
ficar / Era pouquinho, mas me fez acostumar / Se desta
vez não te botaram na muamba, / Macaco me lamba
(oba), macaco me lamba //
Macaco me lamba; Ismael Silva
2
1928-1980
Eu vi você lambendo // Eu já vi tu lambendo a sarjeta / E
lambendo um poste na Lapa / Comeu todo o orvalho que
tinha / Eu vi você lambendo um cachorro vira-lata.
Eu vi você lambendo; Cartola
3
1928-1980
Eu já vi tu lambendo a sarjeta / E lambendo um poste na
Lapa / Comeu todo o orvalho que tinha / Eu vi você
lambendo um cachorro vira-lata.
Eu vi você lambendo; Cartola
As ocorrências (2) e (3) fazem referência indireta ao sexo oral, significação reforçada
pelo formato fálico de objetos como picolé e poste. O ato caracteriza o comportamento da
mulher envolvida na narrativa como dissoluto, desmerecendo-a em tom jocoso.
Em (1), o pragmatema macaco me lamba é uma exclamação popular que, nesse caso,
expressa a convicção do enunciador de que há interferência sobrenatural no desinteresse da
amada por ele. O emprego do pragmatema costuma obedecer a este mecanismo: faz-se uma
suposição, sendo a exclamação macaco me lamba o efeito previsto para o caso de o que se
312
disse estar errado.
LAR [8 ocorrências em 6 letras do corpus]
1
1941
Você quer eu não dou, ô, ô / Eu não dou liberdade a
mulher / Porque vou confessar / A nossa amizade / Pode
acabar // Até aqui nosso amor / Tem um certo sabor /
Que me faz tanto bem, / Eu construí nosso lar / Mas você
quer acabar!...
Não dou liberdade a mulher;
Ismael Silva
2
1941
Tive que contar a minha vida / A esta mulher fingida /
Que me faz sofrer / Esta dor que tanto me crucia, /
Roubou toda alegria do meu viver / Pode ser que ela
ouvindo os meus ais / Volte ao lar para viver em paz //
Não posso viver sem ela;
Alcebiades Barcellos e Cartola
3
1968
Nosso lar, em nosso lar sempre houve alegria / Eu vivia
tão contente / Como contente ao teu lado estou / Tive
sim / Mas comparar com teu amor seria o fim / E vou
calar pois não pretendo amor te magoar.
Tive sim; Cartola
4
1968
Lembro-me bem / Um dia eu lhe disse uma grande tolice
/ E nosso lar deixei / Todos têm o seu drama / Só não
sofre quem não ama / Amenizar meu castigo só você
poderá, amigo.
Vai amigo; Cartola
5
1975
De mim você não tem razão / de se queixar / Assim você
faz confusão / No nosso lar / Se eu sou do samba
ninguém tem / que achar ruim / Você me conheceu /
vivendo assim (tocando tamborim) //
Ninguém tem de achar ruim;
Ismael Silva
6
1976
Aconteceu / Eu não esperava mais acontecer / Todo o
bem que fiz se quiser esquecer / Revelando a sua
imprudência / Construí o lar, o lar que ela pedia / Exigiu-
me coisas que ela não queria //
Acontece; Cartola
A lexia traz a carga simbólica da vida familiar em harmonia. Em (2) e (3), enfatiza-se
a vida feliz situada espacialmente no lar. Em (1, 5-6), usa-se o lar como argumento para
reprovar o comportamento da mulher, que abandonou o enunciador, ou prejudica a paz do
ambiente doméstico. Também se faz alusão a esse lugar para acusar a ex-companheira de
ingratidão, por ter abandonado o lar que o enunciador lhe ofereceu. Em (4) é ele quem
reconhece que foi um erro ter deixado o lar, mostrando-se arrependido com o ato.
LEMBRAR [12 ocorrências em 11 letras do corpus]
1
1930
Tenho um coração / Poderei lhe perdoar / Mas da sua
ingratidão / Sempre hei de me lembrar
//
Quando souberes amar; Ismael
Silva
2
1932
Eu vou chorar só em lembrar / (Se meu amor me deixar)
/ Dei sempre golpe de azar / (Eu não posso me queixar) /
Pra parecer que vivo bem / (Vou sofrendo sem dizer
nada a ninguém) / A esconder que amo alguém / (A
razão dá-se a quem tem)
A razão dá-se a quem tem;
Ismael Silva, Noel Rosa e
Francisco Alves
3
1933
Eu ainda fico triste a lembrar / apesar de ter deixado já
de ti / lamentando aquele dia de azar / em que eu te
conheci.
Não digas; Ismael Silva
4
1936
Às vezes dou gargalhada / Ao lembrar do passado /
Nunca pensei em amor, / nunca amei nem fui amado /
Se julgas que estou mentindo jurar sou capaz / Foi
simples sonho que passou e nada mais.
Não quero mais amar a ninguém;
Cartola, Carlos Cachaça e Zé da
Zilda
5
1937
Eu quisera esquecer o passado / Eu quisera mas sou
obrigado / A lembrar o grande Noel / Ainda resta a
cadeira vazia / Da escola de filosofia / No bairro de Vila
Isabel
Cadeira vazia; Cartola e Nuno
Veloso
6
1943
Maestro, toque aquela / Aquela que me traz recordação /
Do ano que já passou / E deixou saudades no meu
coração // Ai, ai, ai, ai / Eu nem posso me lembrar / Que
música boa pra gente dançar
Maestro, toque aquela!; Ismael
Silva e José de Almeida
7
1967 (2ª
parte)
Você também me lembra a alvorada / Quando chega
iluminando meus caminhos tão sem vida / E o que me
resta é bem pouco, quase nada, / Do que ir assim,
vagando numa estrada perdida
Alvorada (no morro); Cartola,
Carlos Cachaça e Hermínio Bello
de Carvalho
8
1968
Sabes que vou partir / Com os olhos rasos d'água / E o
coração partido / Quando lembrar de ti / Me lembrarei
também / Deste amor proibido //
Amor proibido; Cartola
313
9
1968
Lembro-me bem / Um dia eu lhe disse uma grande tolice
/ E nosso lar deixei / Todos têm o seu drama / Só não
sofre quem não ama / Amenizar meu castigo só você
poderá, amigo.
Vai amigo; Cartola
10
1976
Minha repete agora esta cigana / Lembrando fatos
envelhecidos / Que já não ferem mais os meus ouvidos
Minha; Cartola
11
1977
E vou cantando alegre / A felicidade que Jesus mandou
// Lembro dos tempos de outrora / Que quase me
roubam / A esperança e a fé
A canção que chegou; Cartola e
Nuno Veloso
Em (5), a lembrança do passado surge como mote para a homenagem a Noel Rosa. Tal
lembrança é carregada de nostalgia, por um enunciador que vivenciou eventos e amizades que
considera preciosos.
Em (1) e (3), há lembranças negativas relacionadas à relação amorosa, que fazem o
enunciador se precaver futuramente, naquele mesmo envolvimento, ou em um novo.
Em (2, 4, 8), há a lembrança de uma desventura amorosa, que geralmente faz o
enunciador sofrer, mas que também podem diverti-lo, por estar desligado emocionalmente da
lembrança.
Em (7), a lembrança é uma associação entre dois elementos que o enunciador
considera semelhantes — a mulher amada e a alvorada no morro; a associação se baseia nos
efeitos causados por ambos nele, de iluminação e esperança.
Em (11), o que se recorda são experiências de vida negativas, que abalam o
enunciador. Ele, então, se consola na religiosidade, que lhe devolve a esperança.
O pragmatema eu nem posso me lembrar (6), é expressão de nostalgia, motivada por
uma música querida pelo enunciador. Essa unidade lexical significa, portanto, que a
lembrança da música é carregada de emoção.
LETRA [1 ocorrência no corpus]
1941
Alfaiate, Zé Com Fome, / Também são dois nomes de valor / Comparo
suas letras com gotas de orvalho / Que eu as bebo sem ciúme, com
sabor
Homenagem à Mangueira; Paulo
da Portela
A lexia letra refere-se ao material linguístico que integra uma canção. A comparação
feita na abonação ressalta a beleza dessas criações e o prazer ocasionado pela sua fruição. O
enunciador toma, ainda, o cuidado de expressar a admiração sadia que sente, sem marcas de
ciúme.
LIRA [4 ocorrências em 3 letras do corpus]
1
1933
Quando eu vi / Que a festa estava encerrada / E não
restava mais nada / De felicidade / Vinguei-me nas
cordas / Da lira de um trovador / Condenando o teu amor
/ Divina dama
Divina dama; Cartola
2
1947
Foi num dia de alegria / Que essa tragédia se deu / Foi
no carnaval passado / Que o Caquera morreu / Já não
se ouve o canto mais / Daquele sabiá / Toda Lira está
em pranto / Todo mundo a chorar.
Ouvi dizer; Paulo da Portela
314
3
1947
Ouvi dizer / Ouvi falar / Que a Lira do Amor / Este ano
não desfilará / Porque a tristeza lhe impera / Por causa
da morte / Do nosso amigo Caquera //
Ouvi dizer; Paulo da Portela
4
1957
Sonhava desde menino / Tinha um desejo felino / De
contar toda a tua história / Este sonho realizei / Um dia, a
lira empunhei / E cantei todas as tuas glórias
Fiz por você o que pude; Cartola
Em (1) e (4), a lexia é usada por seu valor simbólico, de representar a habilidade de
criação poética. Em (2) e (3) ocorre na designação da escola de samba Lira do Amor, à qual
Paulo da Portela se integrou após deixar a Portela — a ocorrência em (2) é uma forma
abreviada, tornando-se apenas Lira. Além da metonímia de a Lira do Amor ... não desfilará,
já comentada s.v. desfilar, há personificação em a Lira está em pranto e o sentimento
atribuído à instituição é logo em seguida transferido aos integrantes: todo mundo a chorar.
LOUCURA [2 ocorrências em 1 letra do corpus]
1
1935
Vamos avante cantando e sambando, / Este é o nosso
ideal, / Por entre perfumes e flores / Loucuras de amores
do carnaval.
Canta, meu bem; Paulo da
Portela
2
1935
Ó que loucura, quanta formosura / Que tentação / Veja
que isso não desasossegue o meu coração //
Canta, meu bem; Paulo da
Portela
A lexia, nas ocorrências apresentadas, refere-se ao arrebatamento provocado pelo
carnaval (1) ou pela sedução de uma mulher (2). O pragmatema que loucura exprime
justamente o entusiasmo e excitação sentidos pelo enunciador.
LOUVOR [1 ocorrência no corpus]
1940
Ao romper do sol / Ouvi cantar um rouxinol / Cantando um hino em
louvor / O mano Paulo dando viva ao Claudionor.
Cantar de um rouxinol; Paulo da
Portela
A lexia colabora para criar um tom grandiloquente à intenção de homenagear o
portelense Claudionor (ver este verbete), projeto muito frequente nas composições da área
temática “metalinguagem” (ver a seção dedicada à análise qualitativa, neste estudo).
LUA [12 ocorrências em 9 letras do corpus]
1
1932
Aurora vem raiando anunciando o nosso amor, ô, ô /
Desperta a cidade, o sol no céu flutua / Ele é a
mocidade, a saudade é a lua, ô //
Ao romper da aurora; Ismael
Silva, Lamartine Babo e
Francisco Alves
2
1933
A tarde chega / Mansa e serena / Esta grandeza / Suave
e amena / Acetinada / Surge a lua
, / Descortinando / O
céu de anil / Esta grandeza / No céu flutua / E nos
convida / Sempre a bailar / Em homenagem / À natureza
/ A noite vem / Nos saudar.
Quando desperta a cidade; Paulo
da Portela
3
1935
O sol na esfera flutua / Meigas flores / Parecem bailando
/ Quando a tardinha / Surge o pálido / Clarão da lua /
Outro céu de anil cintila / Na superfície / Tranquila do
mar / Ardendo em fulgor
Clarão da lua; Paulo da Portela
4
1935
Clarão da lua // Do teu sino / A luz vibrando / O sol na
esfera flutua / Meigas flores / Parecem bailando
Clarão da lua; Paulo da Portela
5
1940
– Vamos embora, ó flor / – Ora, muito cedo, amor / A lua
estará gostando de me ver sapatear / – Mas quem é que
dá as ordens? / – É você. / Mas quando pode! /
Vamos embora, ó, flor; Paulo da
Portela
6
1938-1940
Quando a tarde vai morrendo (ai, meu Deus) / O
crepúsculo vem descendo / Reúne-se o bando na rua /
E, cheios de harmonia, / Entoam uma melodia que faz
dançar a própria lua
Ao amanhecer; Cartola
315
7
d1941
Pois então saiba que não desejamos mais nada, / A
noite, a lua prateada / Silenciosa, ouve as nossas
canções / Tem lá no alto um cruzeiro / Onde fazemos
nossas orações / E temos orgulho de ser os primeiros
campeões //
Sala de recepção; Cartola
8
1965
Pedro afine os tambores / E diz a Dolores / Que vai ter
ensaio de rua / Vê se reúne a turma inteirinha / Vamos
que é noite de lua //
Ensaio de rua; Barbosa da Silva,
José Lima e Cartola
9
1979
O sol, a lua, a terra, o mar, / É um mundo novo em teu
olhar / Estrelas vejo a cintilar
Dê-me graças, senhora; Cartola
10
1928-1980
Fui pela estrada / Caminhando / Pensativo indagando /
Ó! Lua Deusa / Da inspiração / Por que / Não tenho você
/ Nem meu violão.
Eu e a lua; Cartola e Aluísio Dias
11
1928-1980
Eu e a lua // Lua! / Eu com raiva / Quebrei o violão /
Julguei que você / Não me dava atenção / Distante eu
olhei / Outra vez para a estrada / E vi tua luz prateada //
Eu e a lua; Cartola e Aluísio Dias
As ocorrências listadas ressaltam a carga simbólica da lua, como motivo poético,
cantado em muitas composições líricas, e como emblema do fato de a maioria dos eventos de
samba ocorrerem à noite, assim como de os sambistas serem afamados como boêmios e
notívagos.
Em (5-6, 10-11), a lua surge personificada, no primeiro caso como apreciadora da
beleza da dança da mulher; no segundo caso, como personagem que comunga da apreciação
ao samba, dançando ela própria ao som da música; no terceiro e no quarto, como interlocutora
do compositor e favorecedora da sua inspiração.
Outras ocorrências que trazem a lua com significação mais simbólica são encontradas
em (1), onde ela se contrapõe ao sol, ele com valor positivo e ela, negativo; em (9), onde a
natureza é ressignificada a partir do olhar da Virgem Maria.
Em (2, 4-5), o astro surge integrando a descrição de um belo cenário natural, que pode
caracterizar lugares específicos, como a cidade do Rio de Janeiro
Em (7), a lua figura na descrição da paisagem do morro de Mangueira, como riqueza
natural que contrasta com a pobreza dos moradores do morro.
Veja-se a análise do quase-frasema noite de lua (8) s.v. noite.
LUANDA [1 ocorrência no corpus]
1965
Tem tem tem pandeiro agogô / Vê vê vê se falta ganzá / O rei vem vem
/ vem de Luanda / vamos saravá saravá / A rainha também / Não vai
demorar / Hoje vai ter samba Dolores / Vamos que eu quero sambar.
Ensaio de rua; Barbosa da Silva,
José Lima e Cartola
A lexia faz referência à capital da atual República de Angola, que também já
pertenceu ao antigo reino do Congo. Essa letra traz referências próprias da congada, dança
dramática em que se encenam cortejos a reis congos, com danças e música. A encenação
316
inclui coroações e embaixadas, por vezes com encenações de lutas e disputas, que podem ser
pelo trono do reino, pela sua defesa contra os portugueses etc.
68
.
68
Cf. LOPES, Nei. Enciclopédia brasileira da diáspora africana. São Paulo: Selo Negro, 2004 (s.v. congo e congada) e
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. 10 ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1998 (s.v. congadas,
congados, congos).
317
3.2.16 – Letra M
MADEIRA [1 ocorrência no corpus]
1968
E, no entanto, meu pinho, / Pode crer, eu adivinho, / Aquela mulher até
hoje está nos esperando / Solte o seu som da madeira / Eu, você e a
companheira / Na madrugada iremos pra casa cantando.
Cordas de aço; Cartola
A lexia se refere à matéria-prima do violão. A madeira figura como a origem da
sonoridade do instrumento. O trecho analisado é consistente com a estratégia usada na
composição, já mencionada anteriormente (ver a análise feita no verbete ai), de expressar o
envolvimento afetivo com o violão por meio de uma descrição esmiuçada e marcada pela
emotividade.
MAESTRO [2 ocorrências em 1 letra do corpus]
1943
Maestro, toque aquela // Maestro, toque aquela / Aquela que me traz
recordação / Do ano que já passou / E deixou saudades no meu
coração // Ai, ai, ai, ai / Eu nem posso me lembrar / Que música boa pra
gente dançar
Maestro, toque aquela!; Ismael
Silva e José de Almeida
Essa ocorrência integra o vocabulário especializado da música, pois se refere ao
regente de uma orquestra. O enunciador dirige-se a ele para pedir a execução de uma
determinada canção. O maestro ocupa a posição de agente do verbo tocar. Trata-se de uma
metonímia, pois se enfocam os atos do condutor da orquestra como atos da orquestra.
MAL [36 ocorrências em 30 letras do corpus]
Referência à relação amorosa
1
1924
Reclamo com muita razão / O mal que me causaste /
Não é porque não tenho forças / Para resistir / Sinto-me
fugir a calma / Doer em cheio dentro d'alma / Para poder
zombar / E com prazer sorrir
Podes gargalhar; Paulo da
Portela
2
1924
Porém tu podes gargalhar / Porque o teu prazer /
Também terá seu fim / Agora podes rir de mim / A
sentir-se bem / Em saber do meu mal
Podes gargalhar; Paulo da
Portela
7
1931
Eu só quero ver o seu proceder / e a tua promessa é
fatal / eu tenho razão / não digas que não / porque tu já
me fizeste mal.
Isso não se faz; Ismael Silva
10
1932
Para me livrar do mal // Estou vivendo com você / Num
martírio sem igual / Vou largar você de mão / Com razão
/ Para me livrar do mal //
Para me livrar do mal; Ismael
Silva e Noel Rosa
11
1932
Supliquei humildemente / Pra você endireitar / Mas agora
infelizmente / Nosso amor vai se acabar / Vou embora
afinal / Você vai saber por que / É pra me livrar do mal /
Que eu fujo de você //
Para me livrar do mal; Ismael
Silva e Noel Rosa
14
1934
Tu andavas de má intenção / e eu nunca prestei
atenção, / mas, até que afinal, / Já me livrei desse mal
!
Agradeças a mim; Ismael Silva
18
1941
Esta malvada bem sabe o mal que me fez / Mas não faz
mal
, eu lhe perdoo outra vez / Meu coração vive
reclamando noite e dia / Por isso eu peço que ela volte
para minha companhia
Não posso viver sem ela;
Alcebiades Barcellos e Cartola
22
1945
– Me contrariei / – Por que razão? / – Só eu mesmo sei /
– Diga, então! / – Eu que sempre fui leal / A quem só me
fez o mal / Devo ser feliz / – Tu serás! / – O bem que eu
fiz / Ninguém faz
Deus te ouça; Paulo da Portela e
Cartola
318
25
c1947
Desde o dia em que partiste / A saudade morou em meu
peito / Eu já procurei alguém / Mas não há jeito /
Coração, o que é que esperas / De um amor tão desleal?
/ Não estás vendo, coração, ela partiu, / Causando tanto
mal.
Rolam nos meus olhos; Cartola
27
1968
Tudo que sofri e que vivi / Depois que te deixei / Causou-
me um mal confortador / Sentir as dores que senti / Por
teu amor //
Sofreguidão; Cartola e Elton
Medeiros
32
1955-1980
Deixa / Meu sofrimento um dia vai ter fim / Os meus
poemas vão falar por mim / De todo mal que o amor me
fez //
Deixa; Cartola e Nelson Sargento
Essas ocorrências dizem respeito a algum prejuízo que o enunciador alega ter sofrido
com a relação amorosa malsucedida. Ele pode se sentir enganado e considerar a mulher
insincera; pode ter saudades da ex-companheira, por ter se apegado a ela; pode se sentir
usado, alegando que deu muito à mulher e não foi correspondido. Três colocações recorrentes
nesses casos são fazer mal e causar mal, que ocorrem nas acusações contra a mulher, e livrar-
se do mal, nos casos em que o enunciador se diz aliviado com o fim do envolvimento.
Referência ao sofrimento
13
1933
Pra fingir que vivo bem / Não conto a ninguém / Este
meu mal sem fim. / Mas, a calma não me vem / E eu
mesmo não sei / O que será de mim. //
Nunca dei a perceber; Ismael
Silva
Fala-se nesse caso do sofrimento existencial, atribuído diretamente ao enunciador, por
meio do pronome meu. A ênfase aqui não é conferir a responsabilidade do sofrimento a
alguém, como se comentou anteriormente, mas confessar o sofrimento e a sua perenidade,
apesar das tentativas de disfarçá-lo.
Referência a algum tipo de prejuízo ou ofensa pessoal
8
1931
O meu batalhão que a ninguém faz mal / ele se reúne /
quando chega o Carnaval.
Meu batalhão; Ismael Silva,
Nilton Bastos e Francisco Alves
15
1935
Pam-pam-pam-pam / Quem é que está batendo aí /
Pam-pam-pam-pam / Ora bate com a cabeça / Antes que
o mal cresça / Antes que eu me aborreça / Pam-pam-
pam-pam / Ora bate com a cabeça //
Pam-pam-pam-pam; Paulo da
Portela
19
1941
Aos meus vizinhos / Eu agrado também!... / Mas meus
carinhos / Só você é que tem! / Os meus rivais / Fazendo
o mal se entretêm... / Não chores mais... / Não vá atrás
de ninguém //
Não vá atrás de ninguém; Ismael
Silva
Em (8) e (19) ocorre a colocação com verbo-suporte fazer mal [a alguém]. No
primeiro caso, afirma-se que o grupo carnavalesco enfocado na composição é inofensivo, e
tem o único propósito de festejar o carnaval; no segundo, acusam-se os vizinhos de
interferência mal-intencionada na vida do casal, por meio de maledicência. Já em (15), a
referência é ao incômodo causado com as batidas na porta da casa, sem uma origem definida.
Referência genérica ao que é nocivo, traz desvantagens
23
1945
Diamantes, safiras e rubis / São pedras valiosas / Mas eu
não troco por ti / Por que és mais preciosa / De tanto ver
o poder / Prevalecer na mão do mal / O homem deixa-se
vender / A honra pelo vil metal //
Ouro, desça do seu trono; Paulo
da Portela
319
26
1968
Faço tudo pra evitar o mal, / Sou pelo mal perseguido /
Só me faltava era esta: / Fui trair meu grande amigo /
Mas vou limpar a mente, / Sei que errei, errei inocente.
Amor proibido; Cartola
30
1980
Vem / Caminhar para além de todo mal / O bem / É a
meta final da estrada universal / Vem / Dar-me a paz e
ter paz junto de mim / Vem / Fica comigo assim / Até o
fim / Vem
Vem; Cartola e Arthur de Oliveira
Nesses casos, considera-se o mal como alheio às pessoas, muitas vezes personificado
como força contrária aos homens (23 e 26), ou então apresentado como um obstáculo que se
deve suplantar para alcançar o bem como meta universal (30).
Colocações desejar mal a [alguém] e querer mal a [alguém]
20
1942
Oh! para que chorar / Só para enganar / Sentida quando
eu sei / Que és fingida / Só para iludir / Fazer pensar / E
depois tu sorrir // Ora vai mulher / Já que teu destino
quer / Vai não te desejo mal / Sei que teu pesar / Um dia
será fatal
Oh, pra que chorar; Paulo da
Portela
28
1973
Tua decência sendo artificial / Não há motivo para tanta
altivez / Tu sabes bem que se eu / Quisesse o teu mal /
Entrada franca só terias no xadrez. //
Entrada franca; Ismael Silva
29
1979
Basta de clamares inocência / Eu sei todo o mal que a
mim você fez / Você desconhece consciência / Só deseja
o mal a quem o bem te fez / Basta, não ajoelhes, vá
embora / Se estás arrependida, vê se chora
Basta de clamares inocência;
Cartola
Essas combinatórias são usadas para expressar o posicionamento de alguém em
relação a outra pessoa. Esse posicionamento pode ser afirmado como forma de relevar
eventuais problemas de relacionamento (20); tamm pode ser enunciado e depois
demonstrado com relatos de eventos ilustrativos (28); pode, enfim, ser uma constatação sobre
o comportamento alheio, que encerra críticas à incapacidade de retribuir os benefícios
recebidos de outras pessoas (29).
Frasema não ser por mal
9
1932
A mentira é fatal / Sei-o que não é por mal / Que a
mulher nos faz descrer / Mas se é realidade / Sua grande
falsidade, / Eu hei de ver você sofrer //
Ando cismado; Ismael Silva e
Noel Rosa
A unidade costuma ser usada para afirmar a não-intencionalidade de atos que podem
ser prejudiciais a outras pessoas. Nesse caso, a afirmação é carregada de ironia e da
insinuação de que a mulher engana sem querer.
Pragmatema não levar a mal
6
1931
Teu amor é insensato / Me amofinou de fato / Não leve a
mal / Eu prefiro a lei marcial
Eu gosto, mas não é muito;
Ismael Silva, Noel Rosa e
Francisco Alves
24
1946
Como e que vai ser, / se eu tiver de escolher / Entre o
samba e você / Amor / Não é tudo que se possa desejar
/ O samba / Também merece ter o seu lugar / Você não
leve a mal / Se eu me descuidar / E for sambar.
Se eu tiver de escolher; Arlindo
Marques Junior, Roberto Roberti
e Ismael Silva
O pragmatema é usado como forma de desagravo para um ato que o enunciador sabe
desgostar o(a) enunciatário(a). Em (6), é usado com ironia, preparando uma afirmação
hiperbólica de rejeição à mulher. Já em (24), usa-se o frasema para amenizar a saída,
320
deixando a mulher para ir ao samba. Demonstra-se nesse caso a polarização entre a relação
estável com uma mulher e participação em rodas de samba, já comentada na primeira parte
deste estudo.
Pragmatemas há males que vêm pra bem e existe mal que vem pra bem
4
1929
Arranjei outra, / Que não troco por ninguém, / Já que tu
me abandonaste, / Há males que vêm pra bem... / Hoje
em dia sou feliz / Sem a tua ingratidão / Encontrei outro
benzinho / A quem dei meu coração!... //
Novo amor; Ismael Silva
21
1942
Existe mal que vem pra bem / conforme há bem que vem
pra mal / por ti fiquei sem um vintém / tu logo ficaste meu
rival // Meteste-me aos pés / por causa de alguém /
agora não és um joão-ninguém / ( ) parou de uma vez /
tu tiraste o pão de muitos, talvez
Por causa de alguém; Ismael
Silva
A citação de frase de senso comum ocorre com referência a desilusões amorosas ou a
disputas por mulheres. Nesses casos, o enunciador considera que o fato de não ter sido bem-
sucedido foi providencial; dessa forma, desqualifica o que não pôde conseguir e consegue
afirmar que não sofre pelo insucesso.
Pragmatemas qual foi o mal que eu te fiz? e que mal te fez [alguém]?
12
1932
Qual foi o mal que eu te fiz? // Diz, qual foi o mal que eu
te fiz? / Eu não te farei esta ingratidão / Foi um falso
contra a nossa amizade / não creias, não pode ser
verdade //
Qual foi o mal que eu te fiz?;
Cartola
16
d1937
A Vila emudeceu / Dolorosamente chora / O que perdeu /
Ninguém é imortal / Morrer é natural / Ó Deus, perdoa /
Se é que estou pecando / Que mal te fez a Vila / Que lhe
estás torturando //
A Vila emudeceu; Cartola
A fórmula de rotina é usada pelo enunciador que se considera injustiçado, pois é
maltratado por alguém a quem julga não ter prejudicado. Em (12), a percepção se aplica à
amada, que teria desconfianças contra o enunciador; em (16), o questionamento direciona-se a
Deus, pois se apresenta a morte de Noel Rosa como castigo divino à Vila Isabel.
Pragmatema esse ser o mal de [alguém]
31
1955-1980
Todo mundo dizia que Ana Maria era muito legal / Eu me
apaixonei e com ela casei este foi o meu mal
/ Brigas
permanente um ciúme doente nunca vi coisa assim
Ciúme doentio; Cartola e Nelson
Sargento
A fórmula de rotina é uma expressão de arrependimento por um ato pretérito. No caso
da abonação, o enunciador lamenta ter se envolvido com uma determinada mulher.
O frasema fazer mal e o pragmatema não faz mal estão analisados s.v. fazer (ver).
MALANDRO [5 ocorrências em 4 letras do corpus]
1
1929
Amor é o de malandro / Oh! Meu bem / Melhor do que
ele ninguém / Se ele te bate é porque gosta de ti / Pois
bater em quem não se gosta / Eu nunca vi.
Amor de malandro; Ismael Silva,
Freire Júnior e Francisco Alves
2
1929
Amor de malandro // Vem, vem / Que eu dou tudo a você
/ Menos vaidade / Tenho vontade / Mas é que não pode
ser //
Amor de malandro; Ismael Silva,
Freire Júnior e Francisco Alves
3
1934
Ô, nega, me deixa dormir, eu hoje estou muito doente /
Deixa de fita, malandro
, você não quer ir pro batente.
Cocorocó; Paulo da Portela
321
4
1922-1949
Quatro malandros chamados Bambaquerê / eles não
comem, não bebem / E não deixam ninguém comer /
amanhã que vou-me embora / que me dão para levar /
levo penas e saudades / E no caminho vou chorar
Coleção de passarinhos; Paulo
da Portela
5
1960
Uma escola na praça Onze, testemunha ocular / E perto
dela uma balança onde os malandros iam sambar / Onde
os malandros iam sambar //
Tempos idos; Cartola e Carlos
Cachaça
Conforme já foi explicado na primeira parte deste trabalho, o malandro é um
personagem emblemático do meio do samba, principalmente na fase inicial do
desenvolvimento do gênero. A ocorrência (5) dá conta dessa participação dos malandros na
história do samba, situando-os na praça Onze; o samba, aí, ainda não é o gênero, mas sim o
evento musical. A ocorrência (4) relaciona explicitamente sambistas com malandros, pois os
homenageados da canção são identificados dessa forma. A caracterização do malandro nesses
exemplos passa pela habilidade para cantar e dançar, por uma certa propensão a festas ou
mesmo a confusões.
Em (3) o pragmatema malandro é uma forma de tratamento usada pela enunciadora
para desqualificar as desculpas que o parceiro dá para não levantar e ir trabalhar. Recupera-se
nesse caso a identificação do malandro como avesso ao trabalho formal.
Veja-se a análise do quase-frasema amor de malandro (1-2) s.v. amor.
MANGUEIRA [23 ocorrências em 11 letras do corpus]
1
1928
Chega de demanda, chega / Com este time temos que
ganhar / Somos da Estação Primeira / Salve o morro de
Mangueira
Chega de demanda; Cartola
2
1930
É o velho, velho Estácio / Vem visitar a Mangueira / E
trazer recordação / Professor, chegaste a tempo / Pra
dizer neste momento / O que devemos fazer / Me sinto
mais animado / A Mangueira a teus cuidados / Vai à
cidade descer
Velho Estácio; Cartola
3
1941
Homenagem à Mangueira // Mangueira, velha escola /
Onde Cartola tem sido baluarte / Lindas poesias, belas
melodias / Têm todo valor de nossa parte
Homenagem à Mangueira; Paulo
da Portela
4
d1941
Eu digo e afirmo que a felicidade aqui mora / E as outras
escolas até choram / Invejando a tua posição / Minha
Mangueira
, és a sala de recepção / Aqui se abraça o
inimigo como se fosse irmão.
Sala de recepção; Cartola
5
d1941
Habitada por gente simples e tão pobre / Que só tem o
sol que a todos cobre, / Como podes, Mangueira
,
cantar? //
Sala de recepção; Cartola
6
1944
Silenciar a Mangueira // Silenciar a Mangueira, não /
Disse alguém / Uma andorinha só não faz verão também
/ Devemos ter adversários / Como Oswaldo Cruz
Silenciar a Mangueira; Cartola
7
1957
Todo tempo que eu viver / Só me fascina você,
Mangueira / Guerreei na juventude, / Fiz por você o que
pude, Mangueira //
Fiz por você o que pude; Cartola
8
1973
A Mangueira é muito grande A Mangueira é muito
grande / Dá galhos pra todo lado / E os frutos que ela dá
/ Todos são aproveitados / Vem gente de muito longe /
Para ver se é verdade o que ouvem dizer //
A Mangueira é muito grande;
Cartola e Ataliba
9
1973
Em Mangueira vem vários artistas / Do exterior até
turistas / Só pra ver o que a Mangueira tem / Sambar
como nossas cabrochas ninguém //
A Mangueira é muito grande;
Cartola e Ataliba
10
1973
A Mangueira, minha gente / Dá galhos pra todo lado / E
oferece a semente
A Mangueira é muito grande;
Cartola e Ataliba
11
1977
É branco o sorriso das crianças / São verdes, os
campos, as matas / E o corpo das mulatas quando
vestem verde e rosa, é / Mangueira / É verde o mar que
me banha a vida inteira //
Verde que te quero rosa; Cartola
e Dalmo Castello
12
1977
Verde que te quero rosa (é a Mangueira) / Rosa que te
quero verde (é a Mangueira)
Verde que te quero rosa; Cartola
e Dalmo Castello
322
13
1928-1980
Levanta gigante adormecido / Vamos para o alto / Que
nem tudo está perdido / Põe na tua frente / Os velhos
generais / Que eles mostrarão / Do que serás capaz / O
teu valor / Ninguém pode tirar / Levanta-te Mangueira / E
vem lutar //
Levanta gigante; Cartola, Carlos
Cachaça e Nuno Veloso
14
1928-1980
Vamos apertar / Mais o ferrolho / Vai ser dente por dente
/ Olho por olho / E nós vamos / Demonstrar com
harmonia / Que a Mangueira / Ainda é a academia /
Levanta gigante.
Levanta gigante; Cartola, Carlos
Cachaça e Nuno Veloso
15
1928-1980
É quente que nem pimenta / Amarga que nem jiló /
Mulatinha faceira / Vem morar em Mangueira / Que agui
é melhor
Que nem pimenta; Cartola
16
1955-1980
Os ternos melhores que eu tinha estão rasgados / Os
nossos móveis ela fez uma fogueira / Meu rosto até hoje
está todo arranhado / Envergonhado jamais voltei em
Mangueira //
Ciúme doentio; Cartola e Nelson
Sargento
17
1955-1980
Eu me apaixonei e com ela casei este foi o meu mal /
Brigas permanente um ciúme doente nunca vi coisa
assim / Se eu voltar em Mangueira sei que a turma
inteira vai zombar de mim
Ciúme doentio; Cartola e Nelson
Sargento
As ocorrências (1-2, 5, 15-17) trazem a Mangueira como espaço geográfico. Fala-se
no morro de Mangueira, que é exaltado como espaço harmonioso e destacado no meio do
samba. Em (15) essa significação é construída por meio da colocação com o verbo morar e
em (16-17), pela colocação com o verbo voltar. Em (5), o morro aparece personificado, pois
se atribui a ele o ato de cantar.
Em (3, 6, 9, 13) fala-se mais diretamente na escola de samba, na instituição
carnavalesca. A Mangueira é identificada como escola e como academia, enfim, como
instituição de referência no meio cultural em questão; é também objeto de homenagens e de
louvores pela harmonia que existe na agremiação. Em (6), mais uma vez é personificada, pois
se fala no risco de a Mangueira ser silenciada, devido a intervenções feitas na praça Onze,
interpretadas como uma agressão às instituições de samba.
Em (11-12) a Mangueira é identificada a partir da sua simbologia, mais
especificamente, pelas cores da sua bandeira. Esse tratamento é encontrado em “Verde que te
quero rosa”, de Cartola, que, após uma dissertação sobre as cores e sua simbologia, apresenta
e louva as cores da Mangueira.
Em (4) e (7), a escola de samba é tratada de uma forma muito mais subjetiva. O amor
do sambista pela sua escola tem voz nesses casos. O enunciador se dirige à Mangueira,
personificada como interlocutora. Seu discurso contém marcas de afetividade, como o
possessivo em minha Mangueira ou o advérbio em só me fascina você, que particulariza o
conteúdo de fascina, verbo cujo conteúdo já é afetivo.
Em (14) pode-se entender que uma conclamação se dirige aos componentes da escola,
referidos metonimicamente como Mangueira. O recurso discursivo tem a função de ressaltar
a identidade dos integrantes, afinando-os em torno de propósitos comuns.
Em (8) e (10), aproveita-se a ambiguidade do nome da escola de samba com o da
árvore frutífera para construir uma metáfora na qual, a partir da descrição de uma árvore
323
frondosa e fecunda, louva-se a coesão e a produtividade cultural do grupo de sambistas.
MANO [3 ocorrências em 3 letras do corpus]
1
1940
Ao romper do sol / Ouvi cantar um rouxinol / Cantando
um hino em louvor / O mano Paulo dando viva ao
Claudionor.
Cantar de um rouxinol; Paulo da
Portela
2
1922-1949
O samba bem cantado é lindo / Voltamos na linha de
frente / Para presidente o mano Claudionor
Avante, mocidade, é hora...;
Paulo da Portela
3
1922-1949
Quiseram me comprar / eu não vendi / uma linda coleção
de passarinhos / Bernardo é gaturamo / Aurélio é
rouxinol / Lino é o canário / Mano Rubens, o curió
Coleção de passarinhos; Paulo
da Portela
O pragmatema mano é uma forma de tratamento que ressalta a fraternidade entre
sambistas. É destinado àqueles julgados como merecedores da identificação, que funciona
como um atestado de aceitação nesse universo discursivo.
MÃO [11 ocorrências em 11 letras do corpus]
1
1925
Para que havemos de mentir / O subúrbio está é bom, /
Venham ver, não é história / Se por ventura estou errado
/ Dou a mão à palmatória.
Para que havemos de mentir;
Paulo da Portela
2
1930
Muito velho, pobre velho, / Vem subindo a ladeira / Com
a bengala na mão //
Velho Estácio; Cartola
3
1932
Estou vivendo com você / Num martírio sem igual / Vou
largar você de mão / Com razão / Para me livrar do mal //
Para me livrar do mal; Ismael
Silva e Noel Rosa
4
1937
Partiu / E não me disse mais nada / Já ia distanciada /
Quando ela parou e acenou com a mão / Morreu //
Partiu; Cartola
5
1945
– Confiança em Deus, rapaz / Das mãos do Mestre o
bem terás / – Apesar de ser tão pobre / Tive um coração
tão nobre
Deus te ouça; Paulo da Portela e
Cartola
6
1945
Diamantes, safiras e rubis / São pedras valiosas / Mas eu
não troco por ti / Por que és mais preciosa / De tanto ver
o poder / Prevalecer na mão do mal / O homem deixa-se
vender / A honra pelo vil metal //
Ouro, desça do seu trono; Paulo
da Portela
7
1950
Ai! quando eu era criancinha / Ai que carinho / Todos os
dias me lavavam o corpinho / Por isso entrei no bloco do
camisolão / Com uma touca, uma chupeta / E a
mamadeira na mão.
Bico da cegonha; Ismael Silva
8
déc.1950
Abafa-se a voz do oprimido / Com a dor e o gemido /
Não se pode desabafar / Trabalho feito por minha mão /
Só encontrei a exploração / Em todo lugar.
O samba do operário; Cartola,
Alfredo Português e Nelson
Sargento
9
1979
Naquela hora minha vista ficou escura / Minha mão foi à
cintura e dois tiros disparei / E me encontraram com a
arma fumegando / Seu doutor, rindo e chorando / Se
morreram os dois, não sei
Feriado na roça; Cartola
10
1928-1980
Eu pedi ao grande Deus / Que viesse aos sonhos meus /
Sonhos estes, puro, eterno / E deitei-me satisfeito /
Repousei as mãos ao peito / Olhos fixos no teto
Pesadelo; Cartola e Nuno Veloso
11
1955-1980
Deixa / Eu mesmo quero resolver os meus dilemas /
Deixa / Quero escrever embora esteja com as mãos
trêmulas
Deixa; Cartola e Nelson Sargento
Em (2), o fato de portar uma bengala na mão é recurso de qualificação do Estácio
como grupo mais antigo, identificado como um velho que vai visitar a Mangueira na condição
de professor, para orientar os mangueirenses sobre como devem proceder para ir desfilar na
cidade. Em (7), novamente, caracteriza-se o enunciador, participante do bloco do camisolão,
por portar uma mamadeira na mão, além de usar touca e chupeta.
Em (4), menciona-se a mão como instrumento do aceno de despedida. Em (9),
descreve-se indiretamente o ato de sacar um revólver a partir do gesto de levar a mão à
cintura. Em (10), repousar as mãos ao peito é um gesto que indica o relaxamento físico do
324
enunciador, preparando-se para adormecer.
Em (6) a mão representa simbolicamente um determinado domínio — o do mal, nesse
caso, personificado como quem tem monopólio sobre o poder. Em (8), o valor simbólico da
mão é o de instrumento de trabalho.
A colocação mãos trêmulas (11) caracteriza a emotividade do enunciador ao escrever
poemas desabafando suas dores de amor e suas queixas do comportamento da ex-
companheira.
O frasema largar [alguém] de mão ocorre em (3), significando tomar a iniciativa de
rompimento da relação amorosa. Trata-se de um modo informal e algo desqualificador da
companheira, que fica representada como objeto de descarte.
O pragmatema das mãos do Mestre o bem terás (5) apresenta interdiscursividade com
as crenças da religiosidade cristã. Afirma que o interlocutor deve acreditar na providência
divina e é usado pelo enunciador como argumento para consolação do amigo em sofrimento.
Veja-se a análise do pragmatema dar a mão à palmatória (1) no verbete dar.
MARCAÇÃO [1 ocorrência no corpus]
1922-1949
Não é lá muito difícil / acertar a marcação / o samba nasce com a gente
/ está dentro do coração
Não é lá muito difícil; Paulo da
Portela
Essa ocorrência integra o vocabulário especializado do samba, pois se refere à batida
que define o andamento musical, função basicamente do surdo, na bateria de escola de samba.
Na ocorrência, atribui-se a habilidade musical a aptidões inatas do músico. Veja-se a análise
qualitativa para uma discussão das crenças inatistas.
MELODIA [3 ocorrências em 3 letras do corpus]
1
1938-1940
Quando a tarde vai morrendo (ai, meu Deus) / O
crepúsculo vem descendo / Reúne-se o bando na rua /
E, cheios de harmonia, / Entoam uma melodia
que faz
dançar a própria lua
Ao amanhecer; Cartola
2
1938-1940
Como é belo ouvir cantar a passarada / Que vou saudar
com harmonia / A fresca alvorada, que melodia /
Corações em festa; Cartola
3
1941
Mangueira, velha escola / Onde Cartola tem sido
baluarte / Lindas poesias, belas melodias / Têm todo
valor de nossa parte
Homenagem à Mangueira; Paulo
da Portela
A ocorrência (1) traz melodia como designação metonímica para a canção como um
todo. Trata-se de um uso comum, que não configura o vocabulário de especialidade da
música.
A ocorrência (3) corresponde ao vocabulário especializado da música, pois o que se
elogia nesse caso é o aspecto melódico, dos efeitos sonoros criados pelas sequências de notas,
nas composições. Significação análoga a essa ocorre em (2), quando se elogia a sonoridade do
canto dos pássaros.
325
MENINO [3 ocorrências em 3 letras do corpus]
1
déc.1930
Quando trouxer deve pedir ao destino / Que mande pelo
menino recomendação de um bamba / Mais tarde eu
quero que como todo lero-lero / Ele seja professor de
uma Escola de Samba. //
Senhora Dona Cegonha; Paulo
da Portela
2
1957
Sonhava desde menino / Tinha um desejo felino / De
contar toda a tua história / Este sonho realizei / Um dia, a
lira empunhei / E cantei todas as tuas glórias
Fiz por você o que pude; Cartola
3
1928-1980
Não te culpo, nem me culpes / Aceitemos nosso destino /
Esse amor quando nasceu / Eu era menino // Se eu
teimar / Teus próprios pais / Irão dizer / Tudo aquilo que
você / Comigo sofreu.
Não; Cartola e Aluísio Dias
Na primeira ocorrência, o menino representa o futuro da escola de samba. Ele está na
posição de beneficiário das conquistas do grupo, tornando-se herdeiro de uma tradição. O
enunciador pede que o destino faça-o fadado a ser bamba.
Na segunda ocorrência, há a colocação desde menino, que localiza o início de um
processo psicológico (o sonho de registrar a história da Mangueira) na infância do enunciador.
Na terceira ocorrência, usa-se a identificação como menino novamente para marcar a
antiguidade de um evento que, no caso, é o envolvimento amoroso do enunciador com a
destinatária.
MENTIR [8 ocorrências em 7 letra do corpus]
1
1925
Para que havemos de mentir // Para que havemos de
mentir / O subúrbio está é bom, / Venham ver, não é
história / Se por ventura estou errado / Dou a mão à
palmatória.
Para que havemos de mentir;
Paulo da Portela
2
1931
Seu amor ninguém atura / Quem me disse não mentiu /
Você me fez uma jura / E até então não cumpriu.
Sofrer é da vida; Ismael Silva e
Francisco Alves
3
1933
Se a nossa amizade teve fim, / tu bem sabes que fui eu
mesmo quem quis / Eu não sei porque tu mentes
tanto
assim / Pois, mentira não se diz. //
Não digas; Ismael Silva
4
1936
Às vezes dou gargalhada / Ao lembrar do passado /
Nunca pensei em amor, / nunca amei nem fui amado /
Se julgas que estou mentindo jurar sou capaz / Foi
simples sonho que passou e nada mais.
Não quero mais amar a ninguém;
Cartola, Carlos Cachaça e Zé da
Zilda
5
1937
Hoje eu choro / E a mulher que adoro talvez / Caída em
braços de outro sorrindo / Repete as mesmas promessas
mentindo
//
Sei chorar; Cartola
6
1943
Essa sua amizade / para mim é indiferente / digo toda a
verdade / e quem diz assim não mente
.
Me deixa sossegado; Ismael
Silva, Nilton Bastos e Francisco
Alves
7
1976
Minha / Ela não foi um só instante / Como mentiam as
cartomantes / Como eram falsas as bolas de cristal //
Minha; Cartola
Em (3), o enunciador diz que a destinatária mente ao dizer que ela teve a iniciativa de
romper o envolvimento entre os dois. Em (5), mais uma vez atribui-se a mentira à mulher, que
repetidamente faz falsas promessas de amor. Em (4) e (6), o enunciador afirma a sua
sinceridade no que diz, chegando a prontificar-se a jurar, para dar mais credibilidade ao dito.
Em (7), a mentira é atribuída a cartomantes que teriam predito o sucesso de uma
relação malsucedida do enunciador com uma mulher que, conforme a sua percepção, nunca o
amara.
O pragmatema para que havemos de mentir (1) expressa a postura discursiva
326
predominante na composição em questão: o empenho do enunciador em dar credibilidade às
suas afirmações da relevância do subúrbio no cenário cultural do samba. Essa expressão é
marca enfática de uma postura de sinceridade que se quer construir.
O pragmatema quem me disse não mentiu (2) é fórmula de rotina usada tanto para
marcar que algum problema é alvo de comentários de terceiros quanto para mostrar que o
enunciador já convivia com essa dificuldade há algum tempo e desistiu de buscar uma
solução. O problema, nesse caso, seria a dificuldade de se manter uma relação amorosa com a
destinatária.
MOCIDADE [7 ocorrências em 6 letras do corpus]
1
1932
Aurora vem raiando anunciando o nosso amor, ô, ô /
Desperta a cidade, o sol no céu flutua / Ele é a
mocidade, a saudade é a lua, ô //
Ao romper da aurora; Ismael
Silva, Lamartine Babo e
Francisco Alves
2
1932
Gandaia é o que me faz saudade, / No tempo da
mocidade / Era a minha alegria. / Gandaia, palavra bem
proferida, / Que não me fica esquecida / nem de noite
nem de dia.
Gandaia; Ismael Silva
3
1946
A velhice chega / Vai-se a mocidade / Apenas resta a
saudade / Aqueles bons tempos / Risos tão felizes /
Resta em meu peito / A cicatriz, a cicatriz //
A velhice chega; Paulo da
Portela e Rufino
4
1962
A sorrir / Eu pretendo levar a vida / Pois chorando / Eu vi
a mocidade perdida // Fim da tempestade, / O sol
nascerá / Fim desta saudade, / Hei de ter outro alguém
para amar
O sol nasce; Cartola e Elton
Medeiros
5
1922-1949
Avante, mocidade é hora / De mostrar o nosso progresso
/ Vamos deixar correr / A fama suburbana / Por todo este
universo, universo
Avante, mocidade, é hora...;
Paulo da Portela
6
d1952
Pés inchados, passos em falso, / Olhar embaçado, / Nem
um amigo a meu lado / Não há por mim compaixão / A
tudo vou assistindo / À ingratidão resistindo / Só sinto
falta / Dos meus versos, / Da mocidade e do meu violão
O que é feito de você?; Cartola
7
d1952
O que é feito de você, / Oh, minha mocidade / Oh, minha
força, / A minha vivacidade / O que é feito dos meus
versos / E do meu violão? / Troquei-os sem sentir / Por
um simples bastão //
O que é feito de você?; Cartola
Em (5), a lexia refere-se às pessoas jovens, que são conclamadas a se identificar com
ideais de progresso e difusão da fama do samba. O projeto discursivo é conquistar esse
público para a eleição do mano Claudionor à presidência da Portela.
Em (2-4, 6-7), mocidade é a fase da vida, geralmente apresentada de forma positiva. É
o período no qual o enunciador aproveitava a gandaia; aquele em que se tem vigor e
produtividade; aquele do qual tem saudade na velhice. A ocorrência (4) é uma exceção, pois
nesse caso a velhice é o tempo da alegria, enquanto a mocidade foi passada em sofrimento.
Em (1), as representações são mais simbólicas: o sol é associado à mocidade,
provavelmente pelas significações de vida e calor.
MORRER [18 ocorrências em 16 letras do corpus]
1
1931
Quero viver sempre descansado / embora abandonado /
até morrer / porque a vida de quem ama / é sofrer / é
sofrer //
Quero sossego; Ismael Silva,
Nilton Bastos
327
2
1932
Perdão, meu bem / atacou-me o coração, / Falei demais /
sou bom rapaz / no modo de proceder / perdão, porque /
se acabar nossa amizade / eu vou morrer / sinto dores, /
são saudades. //
Perdão, meu bem; Cartola
3
1935
Quando à tardinha / Surge o pálido / Clarão da lua /
Outro céu de anil cintila / Na superfície / Tranquila do
mar / Ardendo em fulgor / E as ondas não vozeam / Vem
morrer na branca areia / Orlando-a de espuma em flor //
Clarão da lua; Paulo da Portela
4
1935
Liberdade / Para um coração que sofrendo / Está quase
morrendo / Porque quer amar / Liberdade / Solta-me
desta prisão / Porque meu coração / Não pode suportar
Liberdade; Paulo da Portela e
Dengo
5
1936
Não quero mais / Amar a ninguém / Não fui feliz / O
destino não quis / O meu primeiro amor / Morreu como a
flor / Ainda em botão / Deixando espinhos / Que
dilaceram meu coração //
Não quero mais amar a ninguém;
Cartola, Carlos Cachaça e Zé da
Zilda
6
1936
Semente de amor / Sei que sou desde nascença / Mas
sem ter vida e fulgor / Eis minha sentença / Tentei pela
primeira vez um sonho vibrar / Foi beijo que nasceu / E
morreu sem se chegar a dar //
Não quero mais amar a ninguém;
Cartola, Carlos Cachaça e Zé da
Zilda
7
1937
Partiu / E não me disse mais nada / Já ia distanciada /
Quando ela parou e acenou com a mão / Morreu //
Partiu; Cartola
8
d1937
A Vila emudeceu / Dolorosamente chora / O que perdeu /
Ninguém é imortal / Morrer é natural / Ó Deus, perdoa /
Se é que estou pecando / Que mal te fez a Vila / Que lhe
estás torturando //
A Vila emudeceu; Cartola
9
1938-1940
Quando a tarde vai morrendo (ai, meu Deus) / O
crepúsculo vem descendo / Reúne-se o bando na rua /
E, cheios de harmonia, / Entoam uma melodia que faz
dançar a própria lua
Ao amanhecer; Cartola
10
1947
Foi num dia de alegria / Que essa tragédia se deu / Foi
no carnaval passado / Que o Caquera morreu / Já não
se ouve o canto mais / Daquele sabiá / Toda Lira está
em pranto / Todo mundo a chorar.
Ouvi dizer; Paulo da Portela
11
déc.1940
Falo com orgulho dos heróis do passado / Que
tombaram por nós / Para que houvesse paz / Mas, se
necessário, pegarei em armas / Para defender-te /
Jamais fugirei à luta / Morrerei com orgulho pela Pátria
Mãe
Amo-te demais, ó, Pátria
minha...; Cartola
12
1952
Você me disse que, / Se acaso eu morresse, / Mandaria
uma coroa / Até cem mil réis / Pois então faça de conta
que eu morri / E, em vez de cem, você me empresta dez
//
Ninguém faz; Ismael Silva e
Paulo Medeiros
13
1952
Você me disse que, / Se acaso eu morresse, / Mandaria
uma coroa / Até cem mil réis / Pois então faça de conta
que eu morri / E, em vez de cem, você me empresta dez
//
Ninguém faz; Ismael Silva e
Paulo Medeiros
14
1922-1978
Eu já gostei de você / Para de novo gostar / é preferível
morrer
. / Se o desprezo é pecado / serei um pecador /
recordando o passado. //
Sei, você anda sofrendo; Ismael
Silva
15
1979
Naquela hora minha vista ficou escura / Minha mão foi à
cintura e dois tiros disparei / E me encontraram com a
arma fumegando / Seu doutor, rindo e chorando / Se
morreram
os dois, não sei
Feriado na roça; Cartola
16
1928-1980
Comovido // Comovido fiquei / Quando entrei / No
hospital / Soube que o meu amor / Passava muito mal /
Chorei de dor / Não resisti / Só em saber / Que meu filho
vivia / Mas a mulher / Talvez fosse morrer
//
Comovido; Cartola e Babaú
17
1928-1980
Eu não amo outra mulher / Porque eu não quero /
Porque eu tenho amizade / A você / Sabes que o mulato
é sincero / E tem critério até morrer.
Tu vais ao samba; Cartola
18
1928-1980
Se algum dia / Essa flor murchar ou morrer / Sem ela eu
não posso viver //
Você é uma flor; Cartola e Nuno
Em (8) e (10), menciona-se a morte de pessoas de destaque entre os sambistas, em
composições destinadas a homenageá-las. Tanto em relação a Noel Rosa quanto a Caquera,
destaca-se a consternação no bairro de Vila Isabel, personalizado como uma personagem
emudecida, ou entre os integrantes da Lira do Amor, referidos metonimicamente.
Em (1), a lexia é usada para registrar a longa duração do período de paz desejado pelo
enunciador (até morrer), mesmo efeito encontrado em (17).
Em (3), ocorre a colocação com ondas, que modifica a significação do verbo para a
328
ideia de perder a força, desfazendo-se na areia.
Em (4), a colocação é com coração, o que tipifica o mote da morte por amor,
hipérbole característica do arrebatamento do enunciador que sofre intensamente por uma
desventura amorosa. Em (5), a colocação é com amor, e a morte simboliza o fim do
envolvimento amoroso. Em (7), o afastamento da ex-amada é apresentado como uma partida,
acompanhada pelo enunciador até quando a vista o permitiu e que, depois, culminou com a
morte, separação suprema. As referências de morte por amor se repetem em (14).
Em (6), há outras colocações, geralmente com elementos personificados, que tem o
início e o final do seu efeito, ou da sua existência, representados pelos verbos nascer e
morrer.
Quanto à ocorrência (9), nesse caso se encontra uma colocação entre o substantivo
tarde e o verbo morrer, conferindo uma significação particular a esse último elemento: a dos
momentos finais da transição entre a tarde e a noite.
Em (11), a lexia ocorre no registro discursivo do nacionalismo, em interdiscursividade
com valores segundo os quais patriotas devem estar dispostos a morrer pela pátria. Trata-se
realmente da morte biológica, significação que também ocorre, sem o tom patriótico, em (12-
13, 15-16, 18).
Em (2) há o pragmatema vou morrer, de significação análoga à comentada em (4):
trata-se mais uma vez da hipérbole dramática do amante que representa seu sofrimento
intenso como morte, também numa tentativa de sensibilizar a enunciatária e fazê-la aceitá-lo
novamente.
MORRO [9 ocorrências em 6 letras do corpus]
1
1928
Chega de demanda, chega / Com este time temos que
ganhar / Somos da Estação Primeira / Salve o morro de
Mangueira
Chega de demanda; Cartola
2
1930 (1ª
parte)
Alvorada lá no morro, que beleza / Ninguém chora, não
há tristeza / Ninguém sente dissabor / O sol colorindo é
tão lindo, é tão lindo / E a natureza sorrindo, tingindo,
tingindo (alvorada) //
Alvorada (no morro); Cartola,
Carlos Cachaça e Hermínio Bello
de Carvalho
3
1934
Se saíste do morro, / Se tens felicidade, / Agradeças a
mim, / Porque se não fosse assim, / Não estarias na
cidade! //
Agradeças a mim; Ismael Silva
4
1937
Cem divididos por mil / Cada um com quanto fica / Não
pergunte à caixa surda / Não peça cola à cuíca / Lá no
morro vamos vivendo de amor / Estudando com carinho
o que nos passa o professor.
Teste ao samba; Paulo da
Portela
5
1942-1949
A homenagem ao Morro Azul // Viemos de Bento Ribeiro
para batizar / Unidos do Morro
Azul em primeiro lugar /
Esse é o nosso ideal / Queremos ver brilhar no carnaval.
A homenagem ao Morro Azul;
Paulo da Portela
6
1954
No morro onde eu moro / Tem um barracão para se
alugar / O ambiente eu adoro / Mas é que não sei se
você vai gostar
Tradição; Ismael Silva
7
1954
Quem ouve falar desse morro agora / Fica aterrorizado /
Porém quem conhece ele desde outrora / Diz que está
civilizado
Tradição; Ismael Silva
8
1954
Lá hoje em dia qualquer um novato / Vive sem
preocupação / Não é um morro
pacato / Porque se
conserva a tal tradição.
Tradição; Ismael Silva
329
Na maior parte das ocorrências, morro refere-se efetivamente a um espaço
topográfico, uma elevação de terra. Entretanto, mais do que isso, em (1) a referência é à
comunidade de residentes no morro de Mangueira; em (5) a ocorrência compõe o quase-
frasema, Morro Azul, denominação de uma favela da zona sul da cidade do Rio de Janeiro —
a referência, portanto, é à escola de samba fundada na favela.
A ocorrência (4), entretanto, tem uma referência mais simbólica, de morro como
comunidade pobre do Rio de Janeiro. Essa referência ocorre, por exemplo, nesse samba da
Portela, escola de subúrbio, mas não de morro, literalmente falando. Outras ocorrências nas
quais, mais do que ao espaço, a referência é à comunidade de moradores, são (2, 6-8).
Pelo que se depreende de (4), mais do que comunidade pobre, o morro muitas vezes
representa, no universo discursivo do samba, um espaço idealizado, que seria originalmente o
mais legítimo do samba e do sambista. É um espaço muitas vezes contraposto à cidade (3),
que identifica outros grupos sociais alheios aos sambistas.
MORTE [7 ocorrências em 7 letras do corpus]
1
1931
Não vale a pena teimar / Me conformo com a sorte / Por
isso não vou chorar / Nem pedir a Deus a morte (meu
santo é forte)
Oleleô; Ismael Silva, Nilton
Bastos e Francisco Alves
2
1931-1932
Se eu já gozei / Mais vou gozar / Com essa separação /
Nunca pensei sem esperar / Ter tanta satisfação /
(Independência ou morte!).
Liberdade; Ismael Silva e
Francisco Alves
3
1940
Este mundo é uma roleta / E nós somos jogadores /
Jogamos com a sorte / Dá o azar / Assim é o amor, /
Quando é fiel de parte a parte / Vem a morte pra nos
separar
Este mundo é uma roleta; Paulo
da Portela
4
1947
Ouvi dizer / Ouvi falar / Que a Lira do Amor / Este ano
não desfilará / Porque a tristeza lhe impera / Por causa
da morte / Do nosso amigo Caquera //
Ouvi dizer; Paulo da Portela
5
déc.1940
Meu amor / Minha flor / Teu olhar reluz / Inspira amor,
seduz / Quanto te vejo / Sinto em mim um calor ô ô / Só
por ti sofrerei / Até condenado à morte serei / Meu amor
//
Ordenes e farei; Cartola e Aluísio
Dias
6
1954
Não posso me maldizer / Vivo com muita sorte / Na
minha choupana / Lá é bem raro haver / Mais de um
crime de morte / Em cada semana. // Quem ouve falar
desse morro agora /
Tradição; Ismael Silva
7
1975
Se ela não voltar / Hei de preferir a morte / Não foi
preciso o relógio despertar / Pois esta noite não dormi /
Não quis me deitar / Como soldado do amor / Fiz
sentinela / A aurora me pilhou / Esperando por ela.
Soldado do amor; Cartola e Nuno
Veloso
Assim como se observou s.v. morrer (ver), o sofrimento amoroso muitas vezes ocorre
em referências hiperbólicas à possibilidade da morte por amor. É o que se vê em (1) e em (7),
nesse último caso, na colocação preferir a morte. Em (5) há novamente a disposição de
morrer por amor, mas dessa vez expressada como jura de devoção à amada.
Em (2), há o pragmatema independência ou morte, que em intertextualidade com o
grito do Ipiranga traz um tom jocoso para a alegria do enunciador diante do amor que teve
fim.
Em (3), a morte é personificada integrando uma metáfora da vida como jogo de azar
330
— nessa representação, a morte é uma força que atua em nome do azar, separando amantes
fiéis.
A morte de uma pessoa benquista no meio do samba é relatada em (4). Esse evento
tem a força de suspender o desfile de carnaval, tamanha é a comoção do luto entre os seus
companheiros.
Em (6) há o quase-frasema crime de morte, que tipifica a violência do morro, abordada
pelo enunciador.
MUAMBA [4 ocorrências em 4 letras do corpus]
1
1931
Até parece muamba / Eu assim não vi igual / Você não
gosta de samba / Nem baile de carnaval (vejam vocês) //
Oleleô; Ismael Silva, Nilton
Bastos e Francisco Alves
2
1933
E essa bela Iaiá / Não acredita em muamba / Ela tem um
patuá / Que é todo o nosso samba //
Dona do lugar; Ismael Silva e
Francisco Alves
3
1950
Até muamba já fizeram pro rapaz / Porque no samba
ninguém faz o que ele faz / Mas hei de vê-lo muito bem,
se Deus quiser / E agradeço pelo que você fizer.
Antonico; Ismael Silva
4
1950
Sem teu carinho como é que vou ficar / Era pouquinho,
mas me fez acostumar / Se desta vez não te botaram na
muamba, / Macaco me lamba (oba), macaco me lamba //
Macaco me lamba; Ismael Silva
Nas práticas discursivas de religiões afro-brasileiras, como o candomblé, muamba faz
referência ao uso de forças sobrenaturais para alcançar um objetivo, geralmente prejudicial a
alguém. Essas são algumas das raras ocorrências de referências à religiosidade afro-brasileira
no corpus, fato que foi atribuído, na análise qualitativa, à forte estigmatização que essas
religiões sofriam no momento em que as composições surgiram.
Em (2), atribui-se ao patuá trazido pela iaiá o poder de livrá-la de qualquer efeito
malfazejo da muamba. Em (3), menciona-se a possibilidade de as dificuldades pelas quais o
personagem Nestor passa serem decorrentes desse tipo de efeito.
Em (1), o enunciador atribui à muamba as incompatibilidades com a amada. O mesmo
tipo de explicação é oferecido para o insucesso da relação em (4)
MUDO [2 ocorrências em 2 letras do corpus]
1
d1937
Na Vila / onde ele morava / Todos os seres cantavam /
As glórias do seu poeta / Hoje a Vila é triste e muda / Ao
bater Ave-Maria / Quando a aurora desperta
A Vila emudeceu; Cartola
2
1922-1949
Papagaio linguarudo / Se deixar eu falar / De muita coisa
/ ficarás mudo
Papagaio linguarudo; Paulo da
Portela
Em (1) a lexia é atribuída a uma Vila Isabel personificada, cuja mudez, além de
tristeza, traduz metaforicamente a perda de uma presença musical importante, com a morte de
Noel Rosa.
Já em (2), aproveita-se o nome de uma agremiação carnavalesca adversária da Portela,
“Papagaio linguarudo”, para contrapor a qualificação linguarudo à mudez resultante de
revelações que o enunciador ameaça fazer a respeito do grupo.
331
MULATA [4 ocorrências em 2 letras do corpus]
1
1976
Tô lavando a minha roupa / Lá em casa estão me
chamando Dondon / Ensaboa mulata, ensaboa /
Ensaboa / Tô ensaboando //
Ensaboa; Cartola
2
1976
Ensaboa mulata, ensaboa / Ensaboa / Tô ensaboando /
Ensaboa mulata, ensaboa / Ensaboa / Tô ensaboando //
Ensaboa; Cartola
3
1977
É branco o sorriso das crianças / São verdes, os
campos, as matas / E o corpo das mulatas quando
vestem verde e rosa, é / Mangueira / É verde o mar que
me banha a vida inteira //
Verde que te quero rosa; Cartola
e Dalmo Castello
A lexia, em sua forma feminina, tem uma significação muito particular no meio do
samba — não designa simplesmente o filho de uma pessoa de pele preta com outra de pele
branca. As mulatas são geralmente dançarinas (passistas) que têm posição de destaque no
desfile de uma escola de samba. A alusão às cores verde e rosa vestindo o corpo das mulatas
(3) é, portanto, sensual e lisonjeira às dançarinas.
Em (1) e (2), ocorre a significação própria do vocábulo no uso comum da língua, já
mencionada anteriormente. A personagem da narrativa construída na composição é
caracterizada epidermicamente como mulata.
Conforme se comentou na análise qualitativa, há uma tendência de, nesse universo
discursivo, usar-se a caracterização pela cor de pele como recurso para o tratamento afetivo
entre as pessoas. É o que se verifica nessas ocorrências.
MULATINHA [1 ocorrência no corpus]
1928-1980
É quente que nem pimenta / Amarga que nem jiló / Mulatinha faceira /
Vem morar em Mangueira / Que aqui é melhor
Que nem pimenta; Cartola
A lexia caracteriza a interlocutora da mesma forma como já foi comentado no verbete
anterior. A diferença é o emprego do diminutivo cujo valor, mais do que afetivo, é de
expressão da intenção sedutora do enunciador.
MULHER [49 ocorrências em 37 letras do corpus]
Referência ao envolvimento amoroso
1
c1922
Já desisti de mulher / Já desisti do trabalho / Agora
me falta / Desistir do baralho.
Já desisti; Ismael Silva
23
1936
Não é isso que eu procuro / Você não me dá futuro / Me
deixe em paz / Tenho mais vantagem // Eu juro que, hoje
em dia / Mulher dentro da orgia / Não quero mais //
Não é isso que eu procuro;
Ismael Silva e Francisco Alves
25
1937
Nem notícias eu tenho / Da mulher que tanto venero /
Deus meu, foi embora / Não sei onde mora / Notícias
espero / É tão triste um adeus, uma despedida / Vê se
apieda-te, Deus / Cura-me esta ferida //
Partiu; Cartola
26
1937
Hoje eu choro / E a mulher que adoro talvez / Caída em
braços de outro sorrindo / Repete as mesmas promessas
mentindo //
Sei chorar; Cartola
29
1941
Tive que contar a minha vida / A esta mulher fingida /
Que me faz sofrer / Esta dor que tanto me crucia, /
Roubou toda alegria do meu viver / Pode ser que ela
ouvindo os meus ais / Volte ao lar para viver em paz //
Não posso viver sem ela;
Alcebiades Barcellos e Cartola
332
33
1968
E, no entanto, meu pinho, / Pode crer, eu adivinho, /
Aquela mulher até hoje está nos esperando / Solte o seu
som da madeira / Eu, você e a companheira / Na
madrugada iremos pra casa cantando.
Cordas de aço; Cartola
36
1928-1980
A minha primeira providência / Foi pedir clemência / Ao
criador / Que me salvasse a criança / E me desse
esperança / Na mulher que é o meu amor.
Comovido; Cartola e Babaú
37
1928-1980
Comovido // Comovido fiquei / Quando entrei / No
hospital / Soube que o meu amor / Passava muito mal /
Chorei de dor / Não resisti / Só em saber / Que meu filho
vivia / Mas a mulher / Talvez fosse morrer //
Comovido; Cartola e Babau
42
1928-1980
Quando souberem / Que abandonei esta mulher / E não
chorei / Eu já pensei, que vão se admirar / É que mesmo
sempre fui / Muito indiferente / Jamais conheci paixão /
Meu coração não sente //
Não quero chorar; Cartola
43
1928-1980
Podes perguntar e indagar / A quem quiser / Eu sou
incapaz / De amar outra mulher / Eu não amo outra
mulher / Porque eu não quero / Porque eu tenho
amizade / A você /
Tu vais ao samba; Cartola
44
1955-1980
Ah meu Deus se eu soubesse quem ela era / Juro que
jamais faria esta união / Bonita mulher mas de gênio é
uma fera / Depois da briga eu fiquei nesta condição
Ciúme doentio; Cartola e Nelson
Sargento
Quando o uso da lexia mulher serve como referência a relações amorosas, (1, 23), as
ocorrências podem vir em colocação com verbos como querer e desistir, para indicar o desejo
ou rejeição aos envolvimentos amorosos. A colocação mulher dentro da orgia, de
significação relacionada à de mulher da orgia (ver a seguir), estabelece um subgrupo para
essas relações amorosas — as que acontecem no meio do samba.
As demais ocorrências, que fazem referência ao envolvimento com mulheres
específicas, dividem-se em carinhosas e depreciativas.
Entre as carinhosas (25-6, 33, 36-37, 43), há colocações com verbos como venerar e
adorar; qualificações como meu amor; juras de fidelidade (pragmatema ser incapaz de amar
outra mulher). No caso de (33), a menção à mulher é feita em um ambiente carregado de
afetividade e ela figura como mais um objetivo para a emoção do enunciador, além do seu
instrumento. Nem sempre, entretanto, o ambiente é harmonioso; em (26), a afetividade do
enunciador torna-se frustração diante da menção da suspeita de que ela o trai.
Entre as depreciativas (29, 42, 44), há qualificações como fingida e uma fera (apesar
de concessões como bonita); ações como abandonar, designando iniciativas do enunciador;
expressões de arrependimento pelo envolvimento afetivo e do sofrimento causado
anteriormente pela mulher. Basicamente, o que se encontra, portanto, são as justificativas do
enunciador para os fracassos amorosos específicos, a partir dos defeitos da consorte.
Referência genérica
4
1929
As mulheres são as rosas / E nós somos jardineiros /
Que tratamos e zelamos com ciúme / Quando estão
viçosas e cheirosas / Ficamos narcotizados / Em sentir o
seu perfume.
As mulheres são as rosas; Paulo
da Portela
5
1930
Nunca se deve / Confiar numa mulher / Porque quando
não se espera / Faz do homem o que ela quer / Por isso,
a nenhuma / Eu não darei confiança / Pois ela ilude o
homem / Como fosse uma criança. //
Não há; Ismael Silva, Nilton
Bastos e Francisco Alves
333
6
1930
Mulher assim, / Deus me livre, não preciso, / Meu
benzinho, tu pensavas / Me iludir com teu sorriso, / Já
julgavas ser / Dona do meu coração, / Queres me ver
sofrer, / Desiste da pretensão.
Não há; Ismael Silva, Nilton
Bastos e Francisco Alves
8
1931
Em viver junto de ti / Ainda tenho esperança / O teu
amor, eu já vi / Não me sai mais da lembrança / Quem
diz fazer o que quer / Eu digo não ser verdade /
Enquanto existir mulher / Há de existir saudade
Arrependido; Ismael Silva, Nilton
Bastos e Francisco Alves
10
1931
Tu falas muito, meu bem, / E precisas deixar / Senão eu
acabo dando pra gritar na rua: / Oh! Eu quero uma
mulher bem nua //
Nem é bom falar; Ismael Silva,
Nilton Bastos e Francisco Alves
13
1931
A mulher é um jogo / Difícil de acertar / E o homem como
um bobo / Não se cansa de jogar / O que eu posso fazer
/ É, se você jurar, / Arriscar a perder / Ou desta vez
então ganhar.
Se você jurar; Ismael Silva, Nilton
Bastos e Francisco Alves
14
1932
A mentira é fatal / Sei-o que não é por mal / Que a
mulher nos faz descrer / Mas se é realidade / Sua grande
falsidade, / Eu hei de ver você sofrer //
Ando cismado; Ismael Silva e
Noel Rosa
17
1932
Tristezas não pagam dívidas / Não adianta chorar /
Deve-se dar o desprezo / A toda mulher que não sabe
amar //
Tristezas não pagam dívidas;
Ismael Silva
18
1932
Nunca se deixa a mulher / Fazer o que ela entender /
Pois ninguém deve chorar / Só por causa de amor / E
nem se lastimar
Tristezas não pagam dívidas;
Ismael Silva
19
1932
Um amor pra ser traído / Só depende da vontade / Mas
existe amor fingido / Que nos traz felicidade / A mulher
vive mudando / De ideia e de ação / E o homem vai
penando / Sem mudar de opinião.
Uma jura que fiz; Ismael Silva,
Noel Rosa e Francisco Alves
20
1933
Na floresta dei-te um ninho / E mostrei-te o bom caminho
/ Mas quando a mulher não tem brio / Dizem que / É
malhar em ferro frio //
Na floresta; Cartola e Sílvio
Caldas
21
1933
Observo que, hoje em dia, / Quem não quis diz que me
quer / Cabe muita hipocrisia / Num capricho de mulher /
Vou viver desiludido, / Sem amor, sem ideal / Pra não ser
submetido / A desejo tão banal //
Quem não quer sou eu; Ismael
Silva e Noel Rosa
28
1941
Não dou liberdade a mulher // Você quer eu não dou, ô,
ô / Eu não dou liberdade a mulher / Porque vou
confessar / A nossa amizade / Pode acabar // Até aqui
nosso amor / Tem um certo sabor / Que me faz tanto
bem, / Eu construí nosso lar / Mas você quer acabar!...
Não dou liberdade a mulher;
Ismael Silva
32
1922-1949
Olhar assim com desdém para mim / representa
apunhalar sem ter certeza / que fere sem a menor
compaixão no coração / Que instinto de mulher / Que
natureza //
Olhar assim; Paulo da Portela
35
1928-1980
Acabaram de ouvir / Quase um louco / Um homem que
não / Amou pouco / Amou demais e sofreu / Quem ama
assim / É covarde / Termina fazendo alarde / Quando por
uma mulher
/ se venceu //
Acabaram de ouvir; Cartola,
Carlos Cachaça, Aluísio Dias e
Manuel da Leiteira
39
1928-1980
Sempre a mulher / É o alvo de toda questão / Mas aqui
no meu sertão / Desses casos nunca vi / Pois foi o
primeiro e talvez o derradeiro / Só em vê-lo, francamente
/ Eu também me comovi
Juca Malvado; Cartola
40
1928-1980
E a mulher / Culpada desse suplício / Passa o mesmo
sacrifício / Talvez a maior agonia / Juca Malvado para
completar o crime / Não consentiu que a cabocla / Visse
mais a luz do dia.
Juca Malvado; Cartola
41
1928-1980
Mas na hora da partida / fiz uma investida / quase
implorei para ela ficar / mas não tive a ousadia / que era
covardia / aos pés de uma mulher chorar.
Meu amor já foi embora; Zé com
Fome e Cartola
Entre as referências genéricas à mulher, também há considerações que dizem respeito
ao amor, mas não relativas a mulheres específicas. Aqui, fala-se em tese, enunciando-se
crenças sobre o comportamento feminino.
Também aqui há julgamentos positivos e negativos relativamente às mulheres. Os
negativos predominam e serão abordados primeiro. Antes, deve-se apenas esclarecer que
essas afirmações são quase todas oriundas da área temática “relações amorosas” e
características de enunciadores arrebatados pela paixão frustrada, o que ajuda a explicar seu
tom exacerbado.
334
Em (5-6, 14), a mulher é tida como indigna de confiança, pois o intuito de muitas seria
dominar o homem, para satisfazer os seus caprichos; também se alega uma tendência à
falsidade e à inconstância amorosa para justificar a desconfiança. A ideia é análoga em (35),
onde se usa a colocação se vencer por uma mulher.
Em (8) afirma-se a impossibilidade de ser feliz com a mulher; a crença é de que todos
esses relacionamentos resultam em saudade. O mesmo tipo de crença está expresso em (13,
19, 21, 32) onde se compara a mulher a um jogo de azar, se afirmam a volubilidade e o
comportamento caprichoso femininos, se estabelece que a natureza feminina é dada a fazer
sofrer. Em (39-40) considera-se que a mulher provoca desentendimentos entre homens e,
também dessa forma, causaria sofrimento.
Em (17-18, 20), não se é tão radical na generalização, mas se defende que é necessário
desprezar aquelas que se mostrarem indignas de confiança, para depois se pregar uma atitude
de dominação por parte do homem, que deve controlar a mulher para não ter decepções. Em
(28) volta-se à necessidade de não dar liberdade a mulher. A mesma postura machista está
expressa em (41), onde se atribui à covardia o ato de chorar aos pés de uma mulher,
expressão que também marca a assimetria da relação.
A referência genérica positiva às mulheres está em (4), quando são comparadas a
rosas, sendo os homens jardineiros; nesse caso, afirma-se a necessidade de tratá-las com
desvelo e mesmo com um pouco de ciúme. A referência não deixa, todavia, de ser
marcadamente assimétrica.
Em (10), há uma afirmação de virilidade do enunciador, que ameaça ir em busca de
uma mulher bem nua, ressaltando a sua disponibilidade sexual, numa advertência diante das
tentativas de interferência da parceira.
Colocação cidade mulher
16
1932
Cidade mulher // Cidade, quem te fala é um sambista, /
Anteprojeto de artista, / Teu grande admirador / Me
confesso boquiaberto, / De manhã, quando desperto /
Com tamanho esplendor /
Cidade mulher; Paulo da Portela
A colocação desde o início personifica a cidade do Rio de Janeiro, tornando-a
interlocutora do enunciador, que a trata com devoção, explorando as significações de beleza e
exuberância, também atribuíveis às mulheres.
Colocação mulher da orgia
24
1936
Toda mulher da orgia / Assim disse o Ismael, / Não se
pode com certeza / Dizer que ela é fiel // Quero mulher
pra mim só / Não quero saber de sócio / E você gosta de
todos / Isso assim não é negócio //
Não é isso que eu procuro;
Ismael Silva e Francisco Alves
A mulher da orgia costuma ser tida como indigna de compromissos amorosos, pelo
335
risco de traição. Essa conceituação corresponde à ideologia machista segundo a qual é
necessário buscar uma “mulher direita” para dedicar-se a uma relação duradoura, enquanto é
normal para o homem ter outros relacionamentos antes e mesmo depois de encontrar a
“mulher direita”.
Colocação mulher pecadora
27
1938
Pecadora mulher // Jamais te esquecerei / Pecadora
mulher / Com os beijos que te dei / Eu fiz-te meu querer /
Meu amor desprezaste / Em busca de aventura / Mas
bem caro pagaste / O teres sido tão perjura //
Pecadora mulher; Paulo da
Portela
A mulher pecadora é a infiel. Essa colocação tem o efeito discursivo de ressaltar a
assimetria do amante correto, comparado à amante pecadora.
Pragmatema mulher
2
1924
Mulher, tu és orgulhosa / E tens o jeito / de me fazer
sofrer. / Mulher, esse mundo não é nosso / Aqui a gente
paga sem querer.
Mulher, tu és orgulhosa; Paulo da
Portela
3
1928
Mulher, tu não me faz carinho / Seu prazer é de me ver
aborrecido / Ora vai, mulher, se estás contrariada / Tu
não és obrigada a viver comigo //
Me faz carinhos; Ismael Silva e
Francisco Alves
7
1930
O perdão eu te darei / Quando souberes amar / Mulher
porque jamais pensei / Em você me abandonar //
Quando souberes amar; Ismael
Silva
9
1931
Carinho sem a nota / não adianta mulher / diz que amor
é lorota / é bom para quem quiser / Eu não aceito / sou
espertinho / Eu acho direito / amor, nota e carinho //
Carinho eu tenho; Ismael Silva
11
1931
Tu não me tens amor, meu bem (oleleô) // Você diz que
não me quer / Você diz que me adora / Quando tu me
vê, mulher, / Por que é que você chora (será promessa?)
//
Oleleô; Ismael Silva, Nilton
Bastos e Francisco Alves
12
1931
Se você jurar / Que me tem amor / Eu posso me
regenerar / Mas se é / Para fingir, mulher, / A orgia assim
não vou deixar //
Se você jurar; Ismael Silva, Nilton
Bastos e Francisco Alves
15
1932
Mulher, eu ando cismado / Que me enganei com você /
Se algum dia não ficar mais a seu lado / Não precisa
perguntar por quê. //
Ando cismado; Ismael Silva e
Noel Rosa
22
1933
Vejo amanhecer // Vejo amanhecer, vejo anoitecer / E
não me sais do pensamento, ó mulher! / Vou para o
trabalho, passo em tua porta / Me metes o malho, mas
que bem me importa //
Vejo amanhecer; Ismael Silva,
Noel Rosa e Francisco Alves
30
1942
Oh! para que chorar / Só para enganar / Sentida quando
eu sei / Que és fingida / Só para iludir / Fazer pensar / E
depois tu sorrir // Ora vai mulher / Já que teu destino
quer / Vai não te desejo mal / Sei que teu pesar / Um dia
será fatal
Oh, pra que chorar; Paulo da
Portela
31
1943
Oi, vai, mulher cruel, / pra você eu sou pesado / leva tua
riqueza / e me deixa sossegado //
Me deixa sossegado; Ismael
Silva, Nilton Bastos e Francisco
Alves
34
1922-1978
Sei... você anda sofrendo. / Está arrependida / do que já
me fez. / É seu destino, mulher; / eu não lhe perdoo /
porque vai me enganar outra vez. //
Sei, você anda sofrendo; Ismael
Silva
O pragmatema é uma fórmula de tratamento que não ressalta uma postura carinhosa
do enunciador. É um tratamento quase neutro, que pode ganhar diferentes cargas discursivas
conforme as marcas que co-ocorrem com ele. Também carreia uma tendência à generalização,
sugerindo que o comportamento das mulheres tem constantes, assim como as atitudes do
enunciador em relação a elas.
336
MUNICIPAL [1 ocorrência no corpus]
1960
O nosso samba, humilde samba, / Foi de conquistas em conquistas /
Conseguiu penetrar no Municipal / Depois de percorrer todo o universo /
E com a mesma roupagem que saiu daqui
Tempos idos; Cartola e Carlos
Cachaça
A lexia, forma abreviada do nome do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, é uma
marca da ascensão social do samba carioca, que a composição em questão busca demonstrar.
Veja-se o que se disse s.v. duquesa para um desenvolvimento dessas informações.
MUSA [1 ocorrência no corpus]
d1937
Era o rei / Da filosofia / Fez da musa o que queria / Zombou da
inspiração / Os seus versos ritmados / Por ele mesmo cantados /
Tinham bela entoação //
A Vila emudeceu; Cartola
Veja-se a análise do frasema fazer da musa o que quer s.v. fazer.
MÚSICA [2 ocorrências em 2 letras do corpus]
1
1943
Maestro, toque aquela / Aquela que me traz recordação /
Do ano que já passou / E deixou saudades no meu
coração // Ai, ai, ai, ai / Eu nem posso me lembrar / Que
música boa pra gente dançar
Maestro, toque aquela!; Ismael
Silva e José de Almeida
2
1975
Não vá pensar / Que dança, música e bebida enfim /
apareceram exclusivamente para mim / Você também se
por acaso / Numa farra entrar / Talvez até ocupe o meu
lugar (E sem se demorar)
Ninguém tem de achar ruim;
Ismael Silva
Em (1), ressalta-se a influência da música sobre as pessoas, principalmente ao motivar
a dança. Além desse aspecto, também se demonstra o poder da música em trazer lembranças e
provocar a nostalgia do ouvinte.
Em (2), a lexia entra em uma enumeração de elementos do ambiente da farra — no
universo discursivo em estudo, trata-se da ambiência da roda de samba. O enunciador se
identifica como alguém em perfeita harmonia com esses elementos, estando à vontade ao
fazer música.
337
3.2.17 – Letra N
NASCER [3 ocorrências em 3 letras do corpus]
1
1944
Devemos ter adversários / Como Oswaldo Cruz / Diz o
provérbio / Da discussão é que nasce a luz / Outra
escola que não poderia acabar / É o velho Estácio de Sá
Silenciar a Mangueira; Cartola
2
1922-1949
Não é lá muito difícil / acertar a marcação / o samba
nasce com a gente / está dentro do coração
Não é lá muito difícil; Paulo da
Portela
3
1950
Andas fugindo de mim / Como o diabo da cruz / Não
queres mais nem me dar atenção / Teimei, gastei meu
latim, / Da discussão nasce a luz, / Mas nem assim tu me
deste razão
Macaco me lamba; Ismael Silva
A ocorrência (2) reproduz a crença segundo a qual certas habilidades, como, neste
caso, a de tocar samba, são inatas. Sobre o inatismo usado para justificar as habilidades do
sambista, veja-se o que foi dito na análise qualitativa feita anteriormente.
Na ocorrência (1), encontra-se o pragmatema da discussão é que nasce a luz, um
ditado evocado para justificar a necessidade de existirem várias escolas de samba. Segundo a
máxima, a diversidade é benéfica e traz avanços para todas as escolas. O mesmo ditado é
empregado em (3), para qualificar o enunciador como disposto ao diálogo com a mulher,
diante de um entrevero entre os dois.
NEGRO [2 ocorrências em 1 letra do corpus]
1977
Verde como o céu azul, a esperança / Branco como a cor da Paz a se
encontrar / Rubro como o rosto fica junto à rosa mais querida / É negra
toda tristeza se há despedida na avenida / É negra toda tristeza desta
vida //
Verde que te quero rosa; Cartola e
Dalmo Castello
A lexia faz referência a uma carga simbólica que a cor negra pode ter na nossa cultura
— nessas ocorrências, associa-se a cor à tristeza.
É interessante observar que, nesse caso, a afirmação pode ser também referente à cor
da pele das pessoas negras. Nesse trecho, haveria uma alusão ao sofrimento dessas pessoas,
que foram escravizadas e até os dias de hoje sofrem reflexos dessa exploração, no Brasil.
NOEL [1 ocorrência no corpus]
1937
Eu quisera esquecer o passado / Eu quisera mas sou obrigado / A
lembrar o grande Noel / Ainda resta a cadeira vazia / Da escola de
filosofia / No bairro de Vila Isabel
Cadeira vazia; Cartola e Nuno
Veloso
O nome de Noel Rosa ocorre aqui em forma abreviada. Como já foi esclarecido na
análise qualitativa, homenagear pessoas consideradas emblemáticas por seus pares é uma das
principais finalidades das composições da área temática “metalinguagem. Tal é o caso de
Noel Rosa, que teve duas composições de Cartola dedicadas à sua memória: “Cadeira vazia” e
“A Vila emudeceu”. No trecho reproduzido acima, a lembrança de Noel é representada como
inescapável, por ser muito marcante.
338
NOITE [20 ocorrências em 18 letras do corpus]
1
1931
Nem sempre o riso é alegria / Quantas vezes noite e dia /
Nós levamos a cantar / Pra não chorar, / Mas como há
um ditado / "Quem espera sempre alcança" / Nós vamos
alimentando / Essa esperança. //
Ri pra não chorar; Ismael Silva e
Francisco Alves
2
1932
Antes não te conhecesse / Talvez eu nunca sofresse /
Por esse mundo sem fim / Já não tenho alegria / Em que
penso noite e dia / E tu não pensas em mim //
Antes não te conhecesse; Ismael
Silva e Francisco Alves
3
1932
Gandaia // Gandaia é o que me faz saudade, / No tempo
da mocidade / Era a minha alegria. / Gandaia, palavra
bem proferida, / Que não me fica esquecida / nem de
noite nem de dia.
Gandaia; Ismael Silva
4
1933
A tarde chega / Mansa e serena / Esta grandeza / Suave
e amena / Acetinada / Surge a lua, / Descortinando / O
céu de anil / Esta grandeza / No céu flutua / E nos
convida / Sempre a bailar / Em homenagem / À natureza
/ A noite vem / Nos saudar.
Quando desperta a cidade; Paulo
da Portela
5
1934
Choro sim, com razão, / Não tem fim minha aflição... / Me
acompanha noite
e dia / Uma grande nostalgia! //
Choro sim; Ismael Silva
6
1934
O teu céu, o teu mar / É diferente / E as estrelas
candentes / Brilham mais / Alto dia o sol / Convida a
gente / E à noite o luar / Que alegria nos traz
És tu, Brasil, que nos seduz;
Paulo da Portela e Ernani
Rosário
7
1935
O céu fez da noite um manto / A terra do céu a riqueza /
O mar encanto laraialaiá / Que dá-lhe a natureza.
Clarão da lua; Paulo da Portela
8
1935
Quando silencia a voz das aves / (De harmonias tão
suaves) / a noite vem a terra amortalhar / (Para em sono
se engolfar) / Nos roseirais as flores segredando /
(Graciosas baloiçando) / Ensaiam, se estreitando, O
verbo amar //
Quando silencia a voz das aves;
Paulo da Portela
9
1939
Se existe alguém que queira ver / Você um ano em jejum
/ E sem ter onde adormecer / Eu sou um, eu sou um //
Eu sei que toda essa alegria / Não vai durar a vida inteira
/ Talvez, da noite para o dia, / Eu possa ver sua caveira
Eu sou um; Ismael Silva
10
1941
Esta malvada bem sabe o mal que me fez / Mas não faz
mal, eu lhe perdoo outra vez / Meu coração vive
reclamando noite e dia / Por isso eu peço que ela volte
para minha companhia
Não posso viver sem ela;
Alcebiades Barcellos e Cartola
11
d1941
Pois então saiba que não desejamos mais nada, / A
noite, a lua prateada / Silenciosa, ouve as nossas
canções / Tem lá no alto um cruzeiro / Onde fazemos
nossas orações / E temos orgulho de ser os primeiros
campeões //
Sala de recepção; Cartola
12
1948
E se vires poeta o vale / O vale do rio / Em noite
invernosa / Em noite
de estio / Como um chão de prata /
Riquezas estranhas / Espraiando beleza / Por entre
montanhas
Vale do São Francisco; Cartola e
Carlos Cachaça
13
1965
Tudo de alegrias e de tristezas conheci, / Coisas do amor
e do sofrer, eu já senti, / Nada me transforma a alegria
de viver, / Ver a noite vir e sorrir, ao sol nascer, / Vivo
esperando o novo dia, / Que irá trazer a luz, que sempre
ficará!
Canção da saudade; Cartola e
Cacá Diegues
14
1965
Pedro afine os tambores / E diz a Dolores / Que vai ter
ensaio de rua / Vê se reúne a turma inteirinha / Vamos
que é noite
de lua //
Ensaio de rua; Barbosa da Silva,
José Lima e Cartola
15
1975
Se ela não voltar / Hei de preferir a morte / Não foi
preciso o relógio despertar / Pois esta noite não dormi /
Não quis me deitar / Como soldado do amor / Fiz
sentinela / A aurora me pilhou / Esperando por ela.
Soldado do amor; Cartola e Nuno
Veloso
16
1975
Passei a noite inteira esperando / Ao tédio perguntando /
Onde anda minha companheira / Nesta vigília triste, selei
minha sorte
Soldado do amor; Cartola e Nuno
Veloso
17
1976
Um vazio se faz em meu peito / E de fato eu sinto em
meu peito um vazio / Me faltando as tuas carícias / As
noites são longas e eu sinto mais frio //
Peito vazio; Elton Medeiros e
Cartola
18
1977
A canção que chegou // Na manhã que nascia encontrei /
O que na noite
tardia desejei / E vou feliz a cantar por aí
A canção que chegou; Cartola e
Nuno Veloso
19
1978
Se a gente andasse / Se beijando noite e dia / Nem
assim eu poderia / Conseguir viver em paz / Porque teu
beijo / Ou molhado ou enxuto / Uma dúzia por minuto /
Ainda não me satisfaz / Não é demais.
Coisa louca; Ismael Silva
Nos itens (4, 6-8, 11-13): a lexia é usada para indicar a passagem do tempo. Em (4), a
intenção do enunciador é mostrar que o cenário que descreve é sempre agradável, tendo
339
aspectos encantadores em todas as fases do dia. Intenção semelhante é encontrada em (6),
com uma descrição das belezas do Brasil. Em (8), o enunciador mais uma vez constrói o
cenário do anoitecer com índices harmoniosos, desde o silenciamento tranquilo das aves até o
romantismo das flores, efeito também alcançado em (11), a partir de marcas como lua
prateada. As marcas dessa intenção em (12) são as colocações noite invernosa e noite de
estio, usos lexicais próprios de um registro discursivo poético.
Em (15-18), a lexia designa o período cronológico do passar da noite. Em (15-16), o
enunciador qualifica-se como alguém devotado à amada, capaz de passar a noite em claro à
sua espera, com a disciplina de um soldado. Em (18), a colocação com o adjetivo tardia
ressalta o transcurso de um longo período noturno; nesse caso, há uma carga simbólica tanto
para noite (negatividade) quanto para manhã (positividade). Assim, noite tardia, nesse caso
também pode significar um período muito negativo para o enunciador.
Em (14) ocorre o quase-frasema noite de lua, que, mais do que simplesmente uma
noite enluarada, é representada como uma noite especialmente propícia às práticas artísticas.
Em (1-2, 5, 10, 19), há ocorrências do frasema noite e dia. Essa unidade enfatiza a
duração incessante de um processo, como o esforço por não se deixar levar pelas tristezas da
vida e a memória da amada que abandonou o enunciador. O frasema tem o equivalente
negativo nem de noite nem de dia (3), usado para caracterizar a saudade inescapável que o
enunciador sente do tempo em que vivia na gandaia.
Item (9): ocorrência do frasema da noite para o dia. A unidade lexical marca o caráter
repentino da ocorrência de um evento. Nesse caso, o enunciador espera que, repentinamente,
seu desafeto sofra um revés.
NOME [19 ocorrências em 13 letras do corpus]
1
1920-1922
Meninas, também senhoras / Queiram nos dar o vosso
nome / Eu aconselho a não cortar / Seu cabelo à la
garçonne / Peço perdão pelo que digo / Embora não
saiba o que vi / Mas o cabelo assim cortado / Só fica
bem mesmo é à demie
Cabelo à la garçonne; Paulo da
Portela
2
1929
Quem tem seda vai de seda / quem não tem vai de
estopa / o nome do nosso bloco / faz qualquer um calar a
boca
Não chora; Paulo da Portela
3
1931
Me diga o teu nome // O teu olhar que me consome / Por
caridade, iaiá, me diga teu nome. //
Me diga o teu nome; Ismael
Silva, Nilton Bastos e Francisco
Alves
4
1932
Rir para iludir / Cantar para não chorar / Beber para
esquecer / O nome
daquela ingrata que me fez sofrer //
Cantar para não chorar; Paulo da
Portela e Heitor dos Prazeres
5
1934
Seu desejo não me assombra, / Ofereço meu auxílio... /
Passe bem, vá pela sombra, / Acabou-se o nosso idílio...
/ Seu amor e o seu nome, / Eu também vou esquecer: /
Desta vez, juntou-se a fome, / Com a vontade de comer!
Boa viagem; Ismael Silva e Noel
Rosa
6
1937
Fui iludido / Sim, pela primeira vez no amor / E quase
sempre seu nome repito / Em cada frase um suspiro de
dor.
Sei chorar; Cartola
7
1941
Alfaiate, Zé Com Fome, / Também são dois nomes de
valor / Comparo suas letras com gotas de orvalho / Que
eu as bebo sem ciúme, com sabor
Homenagem à Mangueira; Paulo
da Portela
340
8
1941
O meu nome já caiu no esquecimento // O meu nome
caiu no esquecimento / O meu nome não interessa a
mais ninguém
O meu nome já caiu no
esquecimento; Paulo da Portela
9
1946
Prestes, Cavaleiro da Esperança / És o homem que pelo
povo relutou / Seu nome foi consagrado dentro das
urnas / Oh! Carlos Prestes / Foi merecida a cadeira de
Senador //
Cavaleiro da esperança; Paulo
da Portela e Monarco
10
c1946
Oh, perdoai-me pelo nome de Maria / E nunca mais direi
o que não devia //
Grande Deus; Cartola
11
1960
Quero, neste pobre enredo, / Revivê-los glorificando / Os
nomes seus / Levá-los ao panteão dos grandes imortais /
Pois merecem muito mais //
Ciência e arte; Cartola e Carlos
Cachaça
12
1922-1978
Nome feio a que me refiro / Não é nada disso que já
estão pensando / É Brás, Fedegoso, Pancrácio, Belmiro /
Adão, Brederodes, Pafúncio, Rolando //
Nome feio; Ismael Silva
13
1922-1978
Nome feio // A vocês vou fazer um pedido / Não é de
dinheiro / Não tenham receio / Se o meu nome ficar
esquecido / Para não me chamarem / De nenhum nome
feio
Nome feio; Ismael Silva
14
1979
Só peço que respeites / O nome que te dei / E pelo amor
de Deus / Não negues que te amei //
Fim de estrada; Cartola
Em (7-9, 11), a lexia nome ocorre em referência não só ao antropônimo em si. O
sentido de nome, nesses casos, tem a ver também com a notoriedade, o reconhecimento da
importância das pessoas mencionadas no seu meio de atividade. Em (1, 3-6) há ocorrências
com referência ao antropônimo propriamente dito, muitas delas relacionadas à experiência
amorosa, com o nome da amada suscitando recordações e, por vezes, sofrimento.
Em (14), alude-se não ao primeiro nome de alguém, mas sim ao nome de família. O
enunciador, ao consensualmente terminar a relação com a consorte, faz-lhe alguns pedidos,
entre os quais está o respeito ao nome que lhe deu. Dar o nome a alguém é colocação com
verbo-suporte que faz referência à tradicional incorporação do nome de família do marido ao
da esposa, por ocasião do casamento civil.
Em (10), acionando o registro discursivo religioso, o enunciador evoca o nome de
Maria para aumentar o impacto do pedido de perdão que faz a Deus, por erros cometidos em
momentos de desespero.
Em (2), a referência é à denominação de uma instituição, como um grupo
carnavalesco. Nessa ocorrência, o nome Vai como pode é considerado autoexplicativo das
intenções dos participantes, de brincar o carnaval sem a preocupação de ostentar riqueza.
O quase-frasema nome feio (12-13) é usado no jogo discursivo proposto na
composição homônima — tem seu sentido não-composicional, de palavra de baixo calão,
substituído pelo composicional, de nome cacofônico, porque esse seria o único reconhecível
pelo enunciador, pretensamente muito educado para conhecer aquele primeiro.
NOTA [4 ocorrências em 3 letras do corpus]
1
1931
Carinho sem a nota / não adianta mulher / diz que amor
é lorota / é bom para quem quiser / Eu não aceito / sou
espertinho / Eu acho direito / amor, nota e carinho //
Carinho eu tenho; Ismael Silva
2
1931
Carinho eu tenho até demais / e a nota é como eu te
digo / O meu desejo é uma ordem meu bem / quando
Deus quer não há castigo //
Carinho eu tenho; Ismael Silva
341
3
1931
Não tenho nota nem faço questão / Mas tenho enfim
muita satisfação / Com alegria eu estou muito bem /
Muita gente quer ter mas não tem
É bom evitar; Ismael Silva, Nilton
Bastos e Francisco Alves
4
1937
Vou começar a aula / Perante a comissão, muita atenção
/ Eu quero ver se diplomá-los posso / Salve o fessor, dá
nota a eles, senhor / Quatorze com mais doze noves fora
tudo é nosso //
Teste ao samba; Paulo da
Portela
A colocação com verbo-suporte dar nota (4) é expressão típica das situações de ensino
formal tradicional, nas quais o professor tem a autoridade de avaliar seus alunos, atribuindo-
lhes notas numéricas correspondentes ao seu rendimento acadêmico.
O uso de elementos do campo semântico da educação formal é frequente nas letras do
corpus. Veja-se s.v. aula mais considerações sobre esse fato.
Em (1-3) a lexia significa dinheiro, um fator que influi nas relações amorosas. O
posicionamento do enunciador varia com relação ao assunto, às vezes considerando a nota
indispensável (1), às vezes sendo reticente quanto a isso (2), às vezes considerando-a
dispensável (3). Seus posicionamentos podem estar correlacionados com a sua preocupação
com a satisfação da companheira.
342
3.2.18 – Letra O
Ó [22 ocorrências em 15 letras do corpus]
1
1924
Tu me desprezas / Tu me abandonas / Tens o prazer /
De me ver abandonado / Não faz mal, / Ó meu benzinho,
/ O mundo gira / E na virada / Ainda te espero / Com
carinho
Tu me desprezas; Paulo da
Portela
2
1935
Chego quase a não saber / Por que tamanho prazer /
Quando meus olhos te veem / Ó que tentação //
Confissão de amor; Paulo da
Portela
3
1935
Deixe que te confesse, ó flor / Tenho medo, é confissão
de amor / Não é bem isso que eu te venho relatar / Ora
meu bem é que fico louco em te ver sambando //
Confissão de amor; Paulo da
Portela
4
1935
// Então vá logo se declarando / Ó, vamos dançar, ó,
vamos cantar.
Confissão de amor; Paulo da
Portela
5
1935
Só tu ó deusa / Poderá dar lenitivo / Tudo quanto há de
mais belo / somente em tu eu vejo / Libertai a alma /
Desse pobre cativo / Oh liberdade és tu que adoro / És tu
que almejo.
Liberdade; Paulo da Portela e
Dengo
6
1935
Ó Brasil, és tão amado / Teu povo é honrado / Invejado
no universo / Nesta bandeira afamada / Não falta mais
nada / Pede estudo, / Ordem e Progresso //
Brasil, terra adorada; Cartola,
Arthur Faria e Aluísio Dias
7
1935
Ó que loucura, quanta formosura / Que tentação / Veja
que isso não desasossegue o meu coração //
Canta, meu bem; Paulo da
Portela
8
1935
Aí vem a primavera / Alegrar a nossa vida / banhar de
aroma / o lívido das selvas / Teu sorriso, ó amor, //
Quando silencia a voz das aves;
Paulo da Portela
9
d1937
A Vila emudeceu / Dolorosamente chora / O que perdeu /
Ninguém é imortal / Morrer é natural / Ó Deus, perdoa /
Se é que estou pecando / Que mal te fez a Vila / Que lhe
estás torturando //
A Vila emudeceu; Cartola
10
déc.1940
Amo-te demais, ó, Pátria minha // Amo-te demais, ó,
Pátria minha / Tua bandeira, ó, meus irmãos, / O lábaro
estrelado, o verde esperança, / O amarelo ouro, o azul
do céu, / E o branco da paz //
Amo-te demais, ó, Pátria
minha...; Cartola
11
1940
Vamos embora , ó, flor // Vamos embora, ó flor / Ora,
muito cedo, amor / A lua estará gostando de me ver
sapatear / Mas quem é que dá as ordens? / É você. /
Mas quando pode! /
Vamos embora, ó, flor; Paulo da
Portela
12
1949
Lábios doces / Beijos eu ganhei de alguém / Ó que
felicidade trouxe / Teu amor, meu bem.
Lábios doces; Paulo da Portela
13
1922-1949
Ó meu Brasil / Ó meu país amado / Meu verde amarelo /
À bandeira consagrado / Ó
meu Brasil / Meu Brasil
pioneiro / Te darei a minha vida / Por eu ser um
brasileiro.
Brasil, terra da liberdade; Paulo
da Portela
14
1957
Ó que audácia / me chamar de pretinho / Meu bem, é o
fim / Se minha mina souber, / Meu Deus, que horror /
Vou dormir no porão / Continuo cheirando a óleo
queimado //
É matéria que estudei demais...;
Cartola
15
1979
Ó meu coração, coração / Quem, quem verá que vem /
Sinto que ninguém / Vai me dar perdão / Eis a prova dos
meus grandes erros / Erros estes que eu soube julgar /
Não importa, mas vou do desterro / Desabrochar
Motivação; Cartola e Dalmo
Castelo
16
1928-1980
Fui pela estrada / Caminhando / Pensativo indagando /
Ó
! Lua Deusa / Da inspiração / Por que / Não tenho você
/ Nem meu violão.
Eu e a lua; Cartola e Aluísio Dias
17
1928-1980
Hoje sem querer / Que vim a saber / Que gostas de ouvir
/ Quando canto, ó flor / Ficas comovida / Derramando
pranto / Achas um encanto / Neste teu cantor //
Hoje sem querer; Cartola e
Babau
Na maioria das ocorrências, a lexia é um pragmatema que funciona como um
marcador discursivo introdutor de um vocativo.
Em (1, 3, 5, 8, 11, 17) percebe-se que a situação comunicativa empresta à ocorrência
uma carga afetiva, pois o enunciador se dirige à companheira, ou a uma mulher por quem
sente carinho.
Os tratamentos meu benzinho (1) e flor (3), por exemplo, são marcas que reforçam
essa significação. Na ocorrência (15), mantém-se a afetividade, mas o evocado é o próprio
343
coração do enunciador, personificado como um ente que representa as suas emoções.
Em (6, 10, 13) o pragmatema introduz louvores ao Brasil, marcando o tom de
exaltação patriótica ao país.
Em (9), assume tom mais reverente, por figurar em uma interpelação a Deus, em busca
de uma explicação pela morte de Noel Rosa. Em (16) também há um pouco dessa reverência,
pois a Lua personifica-se como a deusa da inspiração, a quem o enunciador direciona seus
protestos por ter perdido a facilidade para compor.
Em (2, 4, 7, 12), a lexia assume uma carga de inebriamento diante de fatores como a
sensualidade da mulher, a animação do ambiente carnavalesco ou a paixão pela mulher.
Nesses casos, sua função não é de introduzir vocativos, mas sim de marcar o arrebatamento
do enunciador.
Em (14), a ocorrência assemelha-se às do parágrafo anterior, com a diferença de que,
nesse caso, expressa a inconformação com algo: ter sido chamado de pretinho por uma
mulher.
Ô [21 ocorrências em 6 letras do corpus]
1
1932
Aurora vem raiando anunciando o nosso amor, ô, ô / A
felicidade promete, mas não vem / Só vem a saudade,
saudade é querer bem, ô
Ao romper da aurora; Ismael
Silva, Lamartine Babo e
Francisco Alves
2
1932
Aurora vem raiando anunciando o nosso amor, ô, ô /
Desperta a cidade, o sol no céu flutua / Ele é a
mocidade, a saudade é a lua, ô //
Ao romper da aurora; Ismael
Silva, Lamartine Babo e
Francisco Alves
3
1932
Aurora vem raiando anunciando o nosso amor, ô, ô /
Chega o dia, desaparece a tristeza, / fica a alegria pela
própria natureza, ô.
Ao romper da aurora; Ismael
Silva, Lamartine Babo e
Francisco Alves
4
1934
Ô, nega, me deixa dormir, eu hoje estou muito cansado /
O relógio da parede talvez esteja enganado / Ô
, nega,
me deixa dormir, eu hoje estou muito doente / Deixa de
fita, malandro, você não quer ir pro batente.
Cocorocó; Paulo da Portela
5
1934
Cocorocó, o galo já cantou / Levanta, nego, tá na hora
de tu ir pro batedor / Ô
, nega, me deixa dormir mais um
bocado / Não pode ser, o senhorio está zangado com
você
Cocorocó; Paulo da Portela
6
1941
Todos que pertencem ao samba / No Rio te mandam um
abraço. / Pauliceia, ô / Pauliceia, ô / Queremos com este
samba / Estreitar os nossos laços / Esse samba traduz a
nossa união.
Pauliceia; Paulo da Portela e
Cartola
7
1941
Pauliceia, ô / Pauliceia, ô / Seja ele a voz do coração /
Ele é o reduto destas rimas sinceras / Tiradas da alma
em doces quimeras
Pauliceia; Paulo da Portela e
Cartola
8
1941
Você quer eu não dou, ô, ô / Eu não dou liberdade a
mulher / Porque vou confessar / A nossa amizade / Pode
acabar // Até aqui nosso amor / Tem um certo sabor /
Que me faz tanto bem, / Eu construí nosso lar / Mas você
quer acabar!...
Não dou liberdade a mulher;
Ismael Silva
9
déc.1940
Meu amor / Minha flor / Teu olhar reluz / Inspira amor,
seduz / Quanto te vejo / Sinto em mim um calor ô ô / Só
por ti sofrerei / Até condenado à morte serei / Meu amor
//
Ordenes e farei; Cartola e Aluísio
Dias
10
1950
Ô Antonico / Vou lhe pedir um favor / Que só depende da
sua boa vontade / É necessário uma viração pro Nestor /
Que está vivendo em grande dificuldade
Antonico; Ismael Silva
Assim como já foi comentado s.v. ó, a maioria dessas ocorrências tem função de
ressaltar a força de vocativos. Em (4-7), conforme a intenção comunicativa da composição, a
344
interjeição assume um tom laudatório, de exaltação aos paulistas. Ao mesmo tempo, a
repetição da evocação ao longo da letra em (6-7), além de ser enfática, é um lugar propício ao
canto em coro, que favorece o envolvimento do público na apresentação musical.
Em (1-3) e (8-9) a função principal é marcar pontos para o canto em coro, ou servir de
alongamento das sílabas finais de versos, para completar frases melódicas.
Na ocorrência (10), que integra um texto que reproduz o contrato discursivo de uma
carta escrita a um amigo para pedir favores em benefício de outrem, a interjeição funciona
como o vocativo inicial, que esclarece quem é o destinatário do texto. Também confere um
tom informal, próximo da oralidade e intimista, ao tratamento entre os dois.
OBA [2 ocorrências em 2 letras do corpus]
1
1931
Favela, Estácio, Oswaldo e Salgueiro / todos te
respeitam quando pegam o seu pandeiro / (Então volver
/ Ordinário marche / Oba
!) //
Meu batalhão; Ismael Silva,
Nilton Bastos e Francisco Alves
2
1950
Sem teu carinho como é que vou ficar / Era pouquinho,
mas me fez acostumar / Se desta vez não te botaram na
muamba, / Macaco me lamba (oba), macaco me lamba //
Macaco me lamba; Ismael Silva
Em (1), a interjeição expressa animação, em uma composição que reproduz o
ambiente de carnaval. Ao mesmo tempo, tem a função discursiva de quebrar o tom marcial
acarretado pelas ordens volver e ordinário marche. Ajuda, portanto, a balancear os motes de
disciplina militar e de animação carnavalesca.
Em (2), a intenção também é expressar animação, marcando o auge do refrão da
marcha carnavalesca, propícia ao extravasamento de empolgação, durante o canto em coro.
Mais uma vez, há o efeito de transmitir um tom jocoso à letra, que fala de desventuras
amorosas; o pragmatema macaco me lamba é outra marca de jocosidade e informalidade que
contribui para esse efeito.
OBRIGAÇÃO [1 ocorrência no corpus]
1940
Jamais tu irás a um samba / E tenho as minhas razões / Quando
entras no batuque / Esqueces as obrigações. / Pense o caso bem
direito / Te aconselho a que não faça / Proibir-me do batuque / Tradição
de nossa raça.
Vamos embora, ó, flor; Paulo da
Portela
Esquecer as obrigações é um frasema que alude principalmente ao compromisso
amoroso e ao arrebatamento da roda de samba, que traz o risco de dissolução desse
compromisso. Isso é dedutível a partir das marcas do discurso do enunciador masculino, que
se esforça por levar a parceira embora, chegando a tentar ser autoritário, proibindo-a de ir ao
samba.
345
OLHAR (subst.) [11 ocorrências em 9 letras do corpus]
1
1931
O teu olhar que me consome / Por caridade, iaiá, me
diga teu nome. //
Me diga o teu nome; Ismael
Silva, Nilton Bastos e Francisco
Alves
2
1931
Em perguntar penso que não faço mal / Tens um olhar
que nunca vi outro igual. //
Me diga o teu nome; Ismael
Silva, Nilton Bastos e Francisco
Alves
3
1933
Fita os meus olhos, / Vê como eles falam / Vê como
reparam / O seu proceder / Não é preciso dizer, / Deve
compreender / E até mesmo notar, / Só no meu olhar //
Fita meus olhos; Cartola e
Osvaldo Vasquez
4
1933
Ainda há de chegar o dia / Que eu hei de ter grande
alegria / Quando você souber compreender / Num olhar
o que eu quero dizer
Fita meus olhos; Cartola e
Osvaldo Vasquez
5
déc.1940
Meu amor / Minha flor / Teu olhar reluz / Inspira amor,
seduz / Quanto te vejo / Sinto em mim um calor ô ô / Só
por ti sofrerei / Até condenado à morte serei / Meu amor
//
Ordenes e farei; Cartola e Aluísio
Dias
6
d1952
Pés inchados, passos em falso, / Olhar embaçado, / Nem
um amigo a meu lado / Não há por mim compaixão / A
tudo vou assistindo / À ingratidão resistindo / Só sinto
falta / Dos meus versos, / Da mocidade e do meu violão
O que é feito de você?; Cartola
7
déc.1950
Já perdi tantos amores, não notei diferença / Pensei que
passava um século sem a sua presença / Misturada
entre as pedras preciosas do mundo, / Com um simples
olhar, a você não confundo
Festa da vinda; Cartola e Nuno
Veloso
8
1922-1978
Por mais que eu queira passar despercebido / sempre
sou surpreendido por um olhar interesseiro. / Das
aventuras a pior é a Otília / Diz que comigo iria até o
infinito. / Mesmo enganando-se o chefe de família / Mas
como é chato a gente ser bonito.
Aventuras amorosas; Ismael
Silva
9
1979
O sol, a lua, a terra, o mar, / É um mundo novo em teu
olhar / Estrelas vejo a cintilar
Dê-me graças, senhora; Cartola
10
1928-1980
Ajoelhaste no altar / Juraste, me fizeste jurar / E o
Senhor de braços abertos / Com o olhar cheio de ternura
/ Compreendeu por certo / Que era falsa a jura
Me fizeste jurar; Cartola e Nelson
Cavaquinho
11
1928-1980
Meu primeiro amor / Não me olhe assim / Eu já te disse
adeus / E os olhos teus não cansam / De fitar os meus //
A tristeza / Do teu olhar / Juro que encanta e traduz /
Tanta beleza / É uma promessa de amor / Que até nos
faz sonhar.
Meu primeiro amor; Cartola e
Aluísio Dias
Em (1-5, 9) a lexia é empregada com referência à sedução e beleza da expressão do
olhar de alguém. Em (3-4), o enunciador afirma que o seu olhar é capaz de comunicar à
destinatária sua paixão por ela. Podem-se encontrar em colocação com a lexia marcas com
referências a luminosidade, como reluzir e cintilar.
Em (6), fala-se justamente do inverso em relação ao observado anteriormente. O olhar
continua sendo um recurso de expressividade pessoal, mas nesse caso, enfatiza-se falta de
vivacidade que o olhar do enunciador expressa. Nessa ocorrência, a colocação detectada
indica falta de luminosidade: embaçado.
Em (8, 10-11) a referência é à capacidade do olhar em expressar sentimentos ou
disposições íntimas das pessoas. No primeiro caso, a colocação olhar interesseiro explicitaria
a intenção de tirar vantagem de alguma facilidade proporcionada por alguém; no contexto em
causa, entretanto, o interesse seria amoroso. Nos demais casos, as expressões são de ternura
ou tristeza.
Em (7), associa-se o olhar ao sentido de visão e também ao discernimento de
informações a partir da visão.
346
OLHAR (vb.) [17 ocorrências em 12 letras do corpus]
1
1924
Ai daquele como eu / Que tiver a desdita de te conhecer
/ Na sua arte de perder / Com este modo de olhar /
Sorrindo estás fingindo / Jurando estás sentindo / Se o
teu maior prazer é escravizar.
Podes gargalhar; Paulo da
Portela
2
1929
Tu não deves / De ter tanta pretensão / Olha que o
tempo muda, / A vida é uma ilusão... / Tu fazes pouco
em mim / Mas isto que bem me importa... / Ficas
sabendo, meu bem, / Que o mundo dá muita volta!
Novo amor; Ismael Silva
3
1931
Olha, escuta, meu bem / É com você que estou falando,
neném / Esse negócio de amor não convém / Gosto de
você, mas não é muito... / Muito... //
Eu gosto, mas não é muito;
Ismael Silva, Noel Rosa e
Francisco Alves
4
1936
Olha que um dia, Deus lhe pode castigar... / Tapeação, é
um pecado; / Não há motivo pra você se lastimar... / Isto
é que não: não apoiado!... //
Não apoiado; Ismael Silva
5
déc.1930
Se eu tivesse / Com que fizesse / Que você deixasse /
De olhar pra mim / Não vivia sofrendo / Nem de mim
maldizendo / Porque os seus olhos malvados / Querem
assim
Se eu tivesse...; Cartola
6
1941
O meu nome já caiu no esquecimento / O meu nome não
interessa a mais ninguém // E o tempo foi passando / A
velhice vem chegando / Já me olham com desdém / Ai,
quanta saudade de um passado / Que se vai lá no além
//
O meu nome já caiu no
esquecimento; Paulo da Portela
7
1922-1949
Seus olhos são dois flocos, / luminosos e sedutores / Se
com desprezo me olhas, me causas doenças, dores /
Pelo amor de Deus te peço / tenhas compaixão de mim /
veja as rimas destes versos / Meu bem, não olhes assim
Olhar assim; Paulo da Portela
9
1922-1949
Olhar assim // Olhar assim com desdém para mim /
representa apunhalar sem ter certeza / que fere sem a
menor compaixão no coração / Que instinto de mulher /
Que natureza //
Olhar assim; Paulo da Portela
10
1974
Corra e olhe o céu // Linda / Te sinto mais bela / E fico na
espera / Me sinto tão só mas / O tempo que passa / Em
dor maior, bem maior //
Corra e olhe o céu; Cartola e
Dalmo Castello
11
1974
Linda / No que se apresenta / O triste se ausenta / Fez-
se a alegria / Corra e olhe o céu / Que o sol vem trazer /
Bom dia / Ah! Corra e olhe o céu / Que o sol vem trazer
bom dia...
Corra e olhe o céu; Cartola e
Dalmo Castello
12
1974
Olhar, gostar, só de longe / Não faz ninguém chegar
perto / E o seu pranto / Oh! Triste senhora / Vai molhar o
deserto...
Disfarça e chora; Cartola e
Dalmo Castello
13
1928-1980
Lua! / Eu com raiva / Quebrei o violão / Julguei que você
/ Não me dava atenção / Distante eu olhei
/ Outra vez
para a estrada / E vi tua luz prateada //
Eu e a lua; Cartola e Aluísio Dias
14
1928-1980
Hoje ao olhar para a torre / Daquela linda catedral / Fujo
de tua amizade infernal //
Me fizeste jurar; Cartola e Nelson
Cavaquinho
15
1928-1980
Meu primeiro amor / Não me olhe assim / Eu já te disse
adeus / E os olhos teus não cansam / De fitar os meus //
A tristeza / Do teu olhar / Juro que encanta e traduz /
Tanta beleza / É uma promessa de amor / Que até nos
faz sonhar.
Meu primeiro amor; Cartola e
Aluísio Dias
Em (1, 5-9, 15), a referência é à expressividade percebida nos olhos de alguém. Assim
como foi comentado em olhar (subst.), em muitos casos essa expressividade é relacionada à
sedução amorosa. É interessante que em (5) o modo de olhar seria desdenhoso e em (6-9)
também haveria desdém no olhar; contudo, como nesse último caso a expressão parte da
mulher amada, mobiliza o enunciador de forma bem diferente. Em (5), ele se diz desiludido e
magoado; já em (6-9), sua reação é mais intensa, com afirmação de profundo sofrimento
amoroso, comparável ao efeito de punhaladas.
Em (10-11, 13-14) a referência é à apreciação visual de algo por meio do sentido da
visão; trata-se da significação básica, corrente no vocabulário comum da língua. Em (12),
fala-se do ato de dirigir o olhar a alguém, nesse caso, como forma de demonstrar
347
enamoramento.
Em (2-4), há o pragmatema que funciona como marcador discursivo chamando a
atenção do interlocutor para um aviso ou aconselhamento, ou simplesmente com função
fática, de despertar atenção para depois iniciar o enunciado propriamente dito.
ORA [9 ocorrências em 6 letras do corpus]
1
1928
Me faz carinhos // Mulher, tu não me faz carinho / Seu
prazer é de me ver aborrecido / Ora vai, mulher, se estás
contrariada / Tu não és obrigada a viver comigo //
Me faz carinhos; Ismael Silva e
Francisco Alves
2
1935
Deixe que te confesse, ó flor / Tenho medo, é confissão
de amor / Não é bem isso que eu te venho relatar / Ora
meu bem é que fico louco em te ver sambando //
Confissão de amor; Paulo da
Portela
3
1935
Pam-pam-pam-pam / Quem é que está batendo aí /
Pam-pam-pam-pam / Ora bate com a cabeça / Antes que
o mal cresça / Antes que eu me aborreça / Pam-pam-
pam-pam / Ora
bate com a cabeça //
Pam-pam-pam-pam; Paulo da
Portela
4
1935
Pam-pam-pam-pam / Ora bate com a cabeça / Pam-
pam-pam-pam / Ora bate com a cabeça
Pam-pam-pam-pam; Paulo da
Portela
5
1936
Serei teu ioiô / Serás minha iaiá / Vida feliz, bem longe
daqui / Iremos gozar // Mas tem duas coisas / Que
podem impedir / E tu, a sorrir, / Me perguntarás: / Meu
bem, que será? // Ora, eu que bem sei / Te responderei /
A sombra da inveja, meu bem, / Ou golpe de azar
Serei teu ioiô; Paulo da Portela
6
1940
Vamos embora, ó flor / Ora, muito cedo, amor / A lua
estará gostando de me ver sapatear / Mas quem é que
dá as ordens? / É você. / Mas quando pode! /
Vamos embora, ó, flor; Paulo da
Portela
7
1942
Oh! para que chorar / Só para enganar / Sentida quando
eu sei / Que és fingida / Só para iludir / Fazer pensar / E
depois tu sorrir // Ora vai mulher / Já que teu destino
quer / Vai não te desejo mal / Sei que teu pesar / Um dia
será fatal
Oh, pra que chorar; Paulo da
Portela
A lexia é um pragmatema usado como marcador discursivo que expressa o
desconforto do enunciador com algo. Em (1) e (7) são os desgostos que tem com uma mulher;
em (3-4) são as batidas na porta de casa, de origem desconhecida. Em (6), a lexia é mais uma
marca do embate entre os enunciadores na letra, ele querendo levá-la embora por temer que a
sua empolgação resulte em dissolução da relação amorosa, ela querendo divertir-se e
desvencilhar-se das imposições que ele tenta fazer. Essa interjeição é usada para desqualificar
a proposta do enunciador masculino, que a chama para ir embora. É acompanhada de uma
alegação de que ainda é cedo para ter de partir.
Em (2) e (5) a carga é diferente. No primeiro caso, trata-se de uma marca de
envolvimento afetivo do enunciador com o que diz — a confissão do arrebatamento
provocado pela dança da mulher. No segundo caso, a função é principalmente marcar a
tomada de turno de fala por um dos enunciadores, que responde uma pergunta feita pela
interlocutora.
ORGIA [9 ocorrências em 6 letras do corpus]
1
1931
Nem tudo que se diz se faz / Eu digo e serei capaz de
não resistir / Nem é bom falar / se a orgia se acabar //
Nem é bom falar; Ismael Silva,
Nilton Bastos e Francisco Alves
2
1931
Se você jurar / Que me tem amor / Eu posso me
regenerar / Mas se é / Para fingir, mulher, / A orgia
assim
não vou deixar //
Se você jurar; Ismael Silva ,
Nilton Bastos e Francisco Alves
348
3
1936
Não digo que tenho raiva / Por você ser da orgia / Quero
dizer que não serve / Para minha companhia // Sei que
você não é feia / Tu és linda criatura / Meu bem, que
queres que eu faça / Não vou quebrar minha jura
Não é isso que eu procuro;
Ismael Silva e Francisco Alves
4
1936
Não é isso que eu procuro / Você não me dá futuro / Me
deixe em paz / Tenho mais vantagem // Eu juro que, hoje
em dia / Mulher dentro da orgia / Não quero mais //
Não é isso que eu procuro;
Ismael Silva e Francisco Alves
5
1936
Toda mulher da orgia / Assim disse o Ismael, / Não se
pode com certeza / Dizer que ela é fiel // Quero mulher
pra mim só / Não quero saber de sócio / E você gosta de
todos / Isso assim não é negócio //
Não é isso que eu procuro;
Ismael Silva e Francisco Alves
6
1922-1949
Sambar! / Salve a folia / Cantar! / Salve a orgia Então
cantaremos todos / em voz geral / Só meu samba / É o
nosso ideal.
Sambar / Salve a folia...; Paulo
da Portela
7
1928-1980
Orgia // Orgia, hoje és minha inimiga / Os sofrimentos me
obrigam / A me afastar de você / Adeus, violão / Amigo
leal / Estes versos que eu fiz / Devem ser / A rima final
Orgia; Cartola
8
1928-1980
Ele sai para a orgia / Passa três, quatro dias / Sem me
aparecer / Quando vem está zangado / Está contrariado /
E eu não sei por que //
Vou contar tintim por tintim;
Cartola
Diferentemente do vocabulário comum da língua, no universo discursivo do samba,
orgia não costuma fazer referência à licenciosidade sexual. A referência nesses usos é à vida
boêmia e ao ambiente da roda de samba. A lexia, portanto, não apresenta marcas de
estigmatização e remete a um conceito positivo.
Em (1-2) e (6-7) o enunciador expressa seu amor por esse ambiente e sua preocupação
com a possibilidade de ele deixar de existir, ou então fala no seu franco pesar por ter
abandonado o meio. Conforme já foi explicado na primeira parte deste trabalho, a afirmação
dessa preocupação e desse pesar é estratégia usada pela geração de sambistas do Estácio, que
assumiam a identidade de malandros, com o cuidado de sempre falar na possibilidade de “se
regenerar” e “deixar a orgia”; praticavam assim um discurso mais aceitável aos grupos
dominantes da sociedade, que não viam a figura do malandro vadio com bons olhos.
Em (3-5), há o posicionamento do enunciador com relação às mulheres da orgia.
Conforme já foi observado s.v. mulher, essas mulheres não eram bem vistas e menos ainda
tidas como dignas de envolvimento amoroso estável, pois eram consideradas infiéis.
Em (8), há a perspectiva da mulher cujo companheiro vive na orgia. Ela se queixa das
longas ausências dele e de que, quando volta, às vezes é violento. Essa é uma das raras
composições que dão voz à perspectiva feminina, enfocando uma enunciadora que toma a
atitude de denunciar o companheiro que lhe bate. Ela, portanto, desfaz o estereótipo que
motivou o quase-frasema mulher de malandro, em referência àquela que suporta a violência
doméstica sem se queixar.
ORGULHO [7 ocorrências em 6 letras do corpus]
1
1928
Oh! meu bem o teu orgulho / Algum dia há de acabar /
Tudo com o tempo passa / A sorte é Deus quem dá /
Vou-me embora, vou-me embora / Como já disse que
vou / Eu aqui não sou querido / Mas na minha terra eu
sou.
Me faz carinhos; Ismael Silva e
Francisco Alves
349
2
1932
Orgulho, hipocrisia, vaidade e nada mais / São três
coisas que em menos de um segundo se desfazem / O
mundo é mesmo assim, cheio de ilusão / Hás de te
convencer, meu coração //
Quem espera sempre alcança;
Paulo da Portela
3
1935
Houve já um curioso / Que perguntou nervoso / – Brasil,
onde vais parar? / E respondo sempre a todos / Com o
mesmo orgulho Irei para um lindo futuro.
Brasil, terra adorada; Cartola,
Arthur Faria e Aluísio Dias
4
1938-1940
Quantas vezes eu ouvi / Pássaros verdes e amarelos /
Da cor da nossa bandeira / Que seduz o mundo inteiro /
O orgulho dos brasileiros.
Corações em festa; Cartola
5
d1941
Pois então saiba que não desejamos mais nada, / A
noite, a lua prateada / Silenciosa, ouve as nossas
canções / Tem lá no alto um cruzeiro / Onde fazemos
nossas orações / E temos orgulho de ser os primeiros
campeões //
Sala de recepção; Cartola
6
dc.1940
Falo com orgulho dos heróis do passado / Que
tombaram por nós / Para que houvesse paz / Mas, se
necessário, pegarei em armas / Para defender-te /
Jamais fugirei à luta / Morrerei com orgulho pela Pátria
Mãe
Amo-te demais, ó, Pátria
minha...; Cartola
Em (5), a lexia se aplica às conquistas alcançadas na escola de samba. De fato, como
já se pôde verificar em verbetes como campeão, glória e herdeiro, as vitórias obtidas com a
escola de samba nos desfiles de carnaval são preciosas para os sambistas, pois a partir dessas
memórias constitui-se um patrimônio da comunidade envolvida na instituição.
Em (3-4, 6), a referência é à ufania patriótica do enunciador diante das riquezas e do
potencial de progresso do Brasil; outro aspecto desse sentimento é a admiração por heróis da
história nacional.
Em (1), a referência é ao comportamento condenável da mulher que não corresponde
ao afeto do enunciador. O mesmo tipo de comportamento condenável é mencionado em (2),
mas de forma mais genérica, como um defeito humano.
OSWALDO CRUZ [2 ocorrências em 2 letras do corpus]
1
1931
Favela, Estácio, Oswaldo e Salgueiro / todos te
respeitam quando pegam o seu pandeiro / (Então volver
/ Ordinário marche / Oba!) //
Meu batalhão; Ismael Silva ,
Nilton Bastos e Francisco Alves
2
1944
Devemos ter adversários / Como Oswaldo Cruz / Diz o
provérbio / Da discussão é que nasce a luz / Outra
escola que não poderia acabar / É o velho Estácio de Sá
Silenciar a Mangueira; Cartola
As ocorrências trazem menções ao bairro carioca onde se situa a sede da Portela. Os
registros, encontrados em composições de sambistas do Estácio e da Mangueira, documentam
que os esforços dos portelenses, de fazer a Portela reconhecida entre as principais instituições
sambistas da época (por exemplo, em composições como “Para que havemos de mentir”),
foram frutíferos.
Em um dos casos acima, a referência é feita apenas pelo primeiro nome do bairro,
provavelmente por limitações lírico-musicais.
350
OUVIR [34 ocorrências em 27 letras do corpus]
Referência à percepção de sons
3
1935
Canta meu bem / Requebra macio de forma / Que mexas
com todos nós / Queremos ouvir / A sorrir, a candura da
tua voz //
Canta, meu bem; Paulo da
Portela
5
1940
Ao romper do sol / Ouvi cantar um rouxinol / Cantando
um hino em louvor / O mano Paulo dando viva ao
Claudionor.
Cantar de um rouxinol; Paulo da
Portela
6
1938-1940
Ao amanhecer, ao anoitecer / Cantam em bando aves
fazendo verão / Ouvem-se acordes de um violão
Ao amanhecer; Cartola
7
1938-1940
Como é belo ouvir cantar a passarada / Que vou saudar
com harmonia / A fresca alvorada, que melodia /
Corações em festa; Cartola
8
1938-1940
Quantas vezes eu ouvi / Pássaros verdes e amarelos /
Da cor da nossa bandeira / Que seduz o mundo inteiro /
O orgulho dos brasileiros.
Corações em festa; Cartola
15
1947
Foi num dia de alegria / Que essa tragédia se deu / Foi
no carnaval passado / Que o Caquera morreu / Já não
se ouve
o canto mais / Daquele sabiá / Toda Lira está
em pranto / Todo mundo a chorar.
Ouvi dizer; Paulo da Portela
22
1979
Que brisa amena ao te fitar / És indelével como a flor /
Qual foi o deus teu escultor? / Ouvi
a voz e a voz dizia /
"Eu sou a mãe de Deus, Virgem Maria"
Dê-me graças, senhora; Cartola
26
1928-1980
Quando eu ouço as badaladas / Do sino daquela
igrejinha, / Julgo-me ainda feliz, / E que és toda minha. //
Devia ser condenada; Cartola e
Nelson Cavaquinho
Nessas ocorrências, a lexia faz referência a alguma percepção auditiva, significação
prevista para o vocabulário da língua comum.
Em (5) e (15), essa percepção volta-se para o canto de aves, que na verdade simboliza
a atuação de sambistas — o portelense Claudionor e o falecido Caquera, da Lira do Amor,
homenageado neste último exemplo. Em (7-8) também se menciona o canto de aves, mas sem
essa significação; nesses casos, a sonoridade é índice da alvorada, ou índice da própria
presença dos pássaros, que têm as cores da bandeira nacional, caracterização que contribui
para a intenção nacionalista da composição.
Em (3), a percepção auditiva refere-se a um canto, o de uma mulher, que maravilha o
enunciador. Já em (6), a audição direciona-se à sonoridade de uma música, que é percebida
como acordes de um violão. Esse som é um índice da aproximação do grupo dos periquitos e,
portanto, cria uma ambiência inicial para a cena que será descrita na letra.
Em (22), a audição da voz da santa indica a sua presença ao fiel que admira a imagem
religiosa; em (26), o bimbalhar dos sinos de uma igreja reporta o enunciador a recordações de
felicidade amorosa, em um relacionamento malsucedido. Esta última composição apresenta
uma série de marcas referentes à cerimônia católica do casamento — igrejinha, beijar a cruz
do Senhor etc.
Referência ao ato de prestar atenção em expressões sonoras ou aceitar proposições feitas por alguém
1
1924
Não devo ouvir / Teu falso grito de clemência / melhor
será continuar / tua jornada / seguirei por outra estrada
mais feliz
Dor que ensina; Paulo da Portela
9
1941
Não esqueça de mim / fui o primeiro / não ouça as
injustiças / Que me fazem / Porque o nosso amor / É
verdadeiro / Esquecer-me de ti / Não posso mais / Basta
de tanta injúria / E todas estas falsidades / Maior será o
nosso amor //
Não esqueça de mim; Paulo da
Portela
351
10
1941
Tive que contar a minha vida / A esta mulher fingida /
Que me faz sofrer / Esta dor que tanto me crucia, /
Roubou toda alegria do meu viver / Pode ser que ela
ouvindo os meus ais / Volte ao lar para viver em paz //
Não posso viver sem ela;
Alcebiades Barcellos e Cartola
11
d1941
Pois então saiba que não desejamos mais nada, / A
noite, a lua prateada / Silenciosa, ouve as nossas
canções / Tem lá no alto um cruzeiro / Onde fazemos
nossas orações / E temos orgulho de ser os primeiros
campeões //
Sala de recepção; Cartola
17
1966
A todos que estão me ouvindo / Eu agradeço / Esta
atenção dispensada / É mais do que mereço / Se não
gostarem / Não digam nada a ninguém / Senão os outros
não vão me aturar também //
Eu agradeço; Ismael Silva
21
1976
Ouça-me bem, amor / Preste atenção o mundo é um
moinho / Vai triturar teus sonhos tão mesquinhos / Vai
reduzir as ilusões a pó //
O mundo é um moinho; Cartola
25
1928-1980
Desperta querida / E vem ouvir meus ais / Procure ouvir
agora / Ou não ouvirás jamais / Vem ouvir a voz / Deste
teu trovador / Desperta querida / Pelo nosso amor //
Desperta querida; Cartola
27
1928-1980
Hoje sem querer / Que vim a saber / Que gostas de ouvir
/ Quando canto, ó flor / Ficas comovida / Derramando
pranto / Achas um encanto / Neste teu cantor //
Hoje sem querer; Cartola e
Babau
30
1955-1980
Deixa / Quando ela ouvir os meus poemas vai chorar / A
consciência vai lhe castigar / Perdão não quero nem vou
perdoar
Deixa; Cartola e Nelson Sargento
Em (17), a significação combina percepção auditiva com atenção dispensada à
apresentação musical. O enunciador agradece a atenção do público, realizando um ato que
pode ser entendido como abertura ou fechamento da apresentação, momentos mais propícios
para esse tipo de intervenção.
Em (27), a percepção auditiva refere-se ao impacto do canto do enunciador, que
comove a destinatária. A audição tem intensa influência emocional sobre a experienciadora.
Em (1, 9-10, 21, 25, 30), a referência é à postura de levar em consideração algo que se
diz: podem ser apelos por reconciliação amorosa; ditos desfavoráveis ao enunciador, de
origem indefinida; aconselhamentos a respeito da melhor forma de viver; lamentos e
desagravos de mágoas de amor.
Em (11), o apelo para que a Mangueira ouça as canções dos mangueirenses é uma
forma de personificá-la e homenageá-la como destino dos louvores do grupo.
Referência à recepção de uma mensagem verbal
2
1933
Ao ouvir tua proposta, / Tão fingidas frases juntas / Achei
uma só resposta / Que responde a mil perguntas / Hás
de ter, em tua vida, / Um destino igual ao meu / Podes ir
desiludida, / Hoje quem não quer sou eu
Quem não quer sou eu; Ismael
Silva e Noel Rosa
20
1976
Todo mundo sabe que em meu coração / quase não
cabe tanta ingratidão / gostaria de ouvir / o que é que
você diz / quando alguém pergunta / o que é que eu fiz
Ingratidão; Ismael Silva
24
1928-1980
Acabaram de ouvir / Quase um louco/ Um homem que
não / Amou pouco / Amou demais e sofreu / Quem ama
assim / É covarde / Termina fazendo alarde / Quando por
uma mulher / se venceu //
Acabaram de ouvir; Cartola,
Carlos Cachaça, Aluísio Dias e
Manuel da Leiteira
As ocorrências enfatizam a participação de um dos sujeitos discursivos apresentados
em uma situação de comunicação, como testemunha ou destinatário de um ato de discurso.
Geralmente há menção do enunciador responsável pelo que se ouve e também um
posicionamento sobre o conteúdo da enunciação.
352
Pragmatemas ouvir dizer e ouvir falar
4
1937
Sei chorar / Eu também já sei sentir a dor / Estou
cansado de ouvir dizer / Que aprende-se a sofrer no
amor //
Sei chorar; Cartola
12
1942
Eu não posso lhe esquecer / Isso é que não há talvez /
Sempre ouvi dizer / Que otário nunca teve vez //
; Ismael Silva
14
1947
Ouvi dizer // Ouvi dizer / Ouvi falar / Que a Lira do Amor /
Este ano não desfilará / Porque a tristeza lhe impera /
Por causa da morte / Do nosso amigo Caquera //
Ouvi dizer; Paulo da Portela
16
1954
Quem ouve falar desse morro agora / Fica aterrorizado /
Porém quem conhece ele desde outrora / Diz que está
civilizado
Tradição; Ismael Silva
18
1966
Ouvi falar nas garças pardas / mas pensei que era
brinquedo / nas florestas onde andei encontrei / tantas
que até tive medo / Lá nas matas tudo é segredo //
Garças pardas; Cartola e Zé da
Zilda
19
1973
Desde criança / Que eu ouço dizer que em geral / Que
na família sempre sai alguém que não convém / Porém a
sua saiu mesmo bem desigual / Pois tirando você não se
aproveita ninguém
Aliás; Ismael Silva
23
1922-1978
Como é que eu posso acreditar / que tu não és / de mais
ninguém? / Eu mesmo é que ouvi falar, / entre outras
coisas / que tu beijas muito bem.
Como é que eu posso acreditar;
Ismael Silva
Essas são fórmulas de rotina que indicam a difusão de uma notícia por boca a boca.
São usadas para marcar o impacto da notícia da morte do Caquera nos outros componentes da
escola de samba (14); crenças de senso comum a respeito do sofrimento amoroso (4), dos
comportamentos que caracterizam o malandro e o otário (12), da vida em família (19);
rumores a respeito da vida em um morro (16), ou da vida amorosa de determinada mulher
(23).
Veja-se também a análise do pragmatema Deus te ouça s.v. deus.
353
3.2.19 – Letra P
PAGODE [2 ocorrências em 2 letras do corpus]
1
1938
Quitandeiro, leva cheiro e tomate / Pra casa do
Chocolate que hoje vai ter macarrão / Prepara a barriga
macacada / Que a boia tá enfezada e o pagode
fica bom
//
Quitandeiro; Paulo da Portela
2
1940
Vamos embora, ó flor / Ora, muito cedo, amor / A lua
estará gostando de me ver sapatear / Mas quem é que
dá as ordens? / É você. / Mas quando pode! / Só
deixarei o pagode / Quando o sol raiar.
Vamos embora, ó, flor; Paulo da
Portela
A referência é à roda de samba, assim como ocorre com batuque, samba e até mesmo
orgia. Em muitos casos, caracteriza-se o evento como noturno, estendendo-se até o sol raiar
(2). Também são comuns as alusões a comida e bebida (1), além de canto e dança e da
animação dos participantes, que identificam o ambiente do pagode.
PAÍS [3 ocorrências em 3 letras do corpus]
1
1927
Uma luta vencida por amor e glória / São linhas traçadas
/ Nas páginas da história / Gravado com as cores de
nosso país / Em seu castelo Portela feliz
Uma luta vencida por amor e
glória; Paulo da Portela
2
1922-1949
Ó meu Brasil / Ó meu país amado / Meu verde amarelo /
À bandeira consagrado / Ó meu Brasil / Meu Brasil
pioneiro / Te darei a minha vida / Por eu ser um
brasileiro.
Brasil, terra da liberdade; Paulo
da Portela
3
1928-1980
Numa manhã lá no alto, / Bem no alto / Onde ouço a
passarada / No romper da madrugada / A gorjear / Eu
me sinto alegre / Me sinto contente / Me sinto feliz / Em
ouvir a passarada / No romper das madrugadas / Em
meu país
Manhã de primavera; Cartola
Todas as referências ao país são acompanhadas de possessivo, marcando o
envolvimento afetivo do enunciador, em sua postura patriótica. Outras marcas dessa postura
discursiva são pragmatemas como ó, lexias como amado e a menção às cores da bandeira
nacional. As posturas assumidas pelo enunciador são considerar as vitórias da escola de
samba como valores a abrilhantar a história nacional (1); louvar os símbolos nacionais e
afirmar a sua disposição de lutar pela pátria (2); enaltecer as riquezas naturais do Brasil,
dizendo-se comovido com elas (3).
PAM-PAM-PAM-PAM [6 ocorrências em 1 letra do corpus]
1
1935
Pam-pam-pam-pam // Pam-pam-pam-pam / Quem é que
está batendo aí / Pam-pam-pam-pam / Ora bate com a
cabeça / Antes que o mal cresça / Antes que eu me
aborreça / Pam-pam-pam-pam / Ora bate com a cabeça
//
Pam-pam-pam-pam; Paulo da
Portela
2
1935
Batem na porta da frente / Corro na porta de trás / Um
homem perde a cabeça / Sem saber bem o que faz / Se
tiver coragem, venha / Assombração que apareça //
Pam-pam-pam-pam / Ora bate com a cabeça / Pam-
pam-pam-pam / Ora bate com a cabeça
Pam-pam-pam-pam; Paulo da
Portela
A lexia é uma onomatopeia que indica batidas na porta de alguém. Ela se repete em
354
vários pontos da composição e o enunciador reage a elas com crescente irritação. As
ocorrências da onomatopeia têm uma interface rítmica que acentua a sugestão das batidas à
porta em diferentes momentos da música.
PANDEIRO [4 ocorrências em 4 letras do corpus]
1
1931
Favela, Estácio, Oswaldo e Salgueiro / todos te
respeitam quando pegam o seu pandeiro / (Então volver
/ Ordinário marche / Oba!) //
Meu batalhão; Ismael Silva,
Nilton Bastos e Francisco Alves
2
1940
Tem um prêmio para quem / descobrir a nega bamba /
da escola de samba / que compra barulho / por qualquer
dinheiro / faz o dó maior / bem direitinho / no cavaquinho
/ toca cuíca / bate tamborim / enfrenta um pandeiro
Nega bamba; Paulo da Portela
3
1965
Tem tem tem pandeiro agogô / Vê vê vê se falta ganzá /
O rei vem vem / vem de Luanda / vamos saravá saravá /
A rainha também / Não vai demorar / Hoje vai ter samba
Dolores / Vamos que eu quero sambar.
Ensaio de rua; Barbosa da Silva,
José Lima e Cartola
4
1928-1980
É difícil estudar / Advocacia, arquitetura, engenharia /
Tudo isso é difícil, eu sei / Mas o samba está no sangue
brasileiro / Não precisa fazer curso / Pra tocar o meu
pandeiro.
Sou doutor; Cartola
Essas ocorrências integram o vocabulário especializado da música, pois designam um
instrumento de percussão. O pandeiro é especialmente emblemático para o samba e também
para outras práticas musicais. Chega a ser usado para representar a música brasileira em geral
(cf., por exemplo, “Brasil pandeiro”, de Assis Valente, 1940 — nesse caso a associação com o
samba é bastante forte).
Costuma ser mais relacionado à roda de samba do que ao desfile de escola de samba,
pois geralmente não se usam pandeiros nas baterias das escolas. No máximo, esse instrumento
é usado por passistas para fazer evoluções.
Pelo que já foi exposto, o pandeiro é um dos instrumentos musicais mais mencionados
nos sambas que falam do ambiente do próprio samba. A caracterização do sambista muitas
vezes também passa pela habilidade de tocar esse instrumento.
PASSADO (adj.) [3 ocorrências em 3 letras do corpus]
1
1924
Bendigo a dor que vem para ensinar / Bendigo a
resignação que enobrece / Da tristeza passada
farei o
meu altar / Da alegria presente farei minha prece.
Dor que ensina; Paulo da Portela
2
1947
Foi num dia de alegria / Que essa tragédia se deu / Foi
no carnaval passado / Que o Caquera morreu / Já não
se ouve o canto mais / Daquele sabiá / Toda Lira está
em pranto / Todo mundo a chorar.
Ouvi dizer; Paulo da Portela
3
1979
Daí a duas ou três horas já passadas / Chegou ela
acompanhada com um rapaz de uns trinta anos / E foi
chegando, foi entrando, que coragem / Arrumando a
bagagem, me dizendo vou voltar
Feriado na roça; Cartola
As ocorrências encontradas condizem com os usos do vocabulário comum da língua: a
lexia localiza a referência temporal no pretérito, caracterizando o elemento modificado pelo
adjetivo como próprio dessa localização temporal indefinida (1), ou de referência especificada
por quantificações (3), ou por alusão a eventos recorrentes ao longo dos anos (2).
355
PASSADO (subst.) [12 ocorrências em 11 letras do corpus]
1
1932
Pudesse um dia / Juro faria / Do samba o maior herói /
Concorrerias / Com as vitórias / Que existiam entre nós /
Seriam páginas de intenso fulgor / E o passado teria
maior valor
Pudesse meu ideal; Cartola e
Carlos Cachaça
2
1932
Se algum dia tiver de mim compaixão / Que alegria vai
ser no meu coração / A tua volta será meu sonho
dourado / Eu viverei e esquecerei meu passado.
Cantar para não chorar; Paulo da
Portela e Heitor dos Prazeres
3
1933
Amanhece e anoitece / Sem parar o meu tormento / Por
saber que quem me esquece / Não me sai do
pensamento / Já não durmo, já não sonho / De pensar
fugiu-me a paz / Num passado tão risonho / Que não
volta nunca mais //
Vejo amanhecer; Ismael Silva,
Noel Rosa e Francisco Alves
4
1936
Às vezes dou gargalhada / Ao lembrar do passado /
Nunca pensei em amor, / nunca amei nem fui amado /
Se julgas que estou mentindo jurar sou capaz / Foi
simples sonho que passou e nada mais.
Não quero mais amar a ninguém;
Cartola, Carlos Cachaça e Zé da
Zilda
5
1937
Eu quisera esquecer o passado / Eu quisera mas sou
obrigado / A lembrar o grande Noel / Ainda resta a
cadeira vazia / Da escola de filosofia / No bairro de Vila
Isabel
Cadeira vazia; Cartola e Nuno
Veloso
6
1941
E o tempo foi passando / A velhice vem chegando / Já
me olham com desdém / Ai, quanta saudade de um
passado / Que se vai lá no além //
O meu nome já caiu no
esquecimento; Paulo da Portela
7
déc.1940
Falo com orgulho dos heróis do passado / Que
tombaram por nós / Para que houvesse paz / Mas, se
necessário, pegarei em armas / Para defender-te /
Jamais fugirei à luta / Morrerei com orgulho pela Pátria
Mãe
Amo-te demais, ó, Pátria
minha...; Cartola
8
1966
Meu amor, / O que importa é recomeçar / E cai o pano
do passado / Ninguém acerta sem primeiro errar
Eu sei; Cartola
9
1977
Surge a alvorada, folhas a voar / E o inverno do meu
tempo / Começa a brotar, minar / E os sonhos do
passado, do passado / Estão presentes no amor / Que
não envelhecem jamais / Eu não tenho a paz e ela tem
paz
O inverno do meu tempo; Cartola
e Roberto Nascimento
10
1922-1978
Eu já gostei de você / Para de novo gostar / é preferível
morrer. / Se o desprezo é pecado / serei um pecador /
recordando o passado. //
Sei, você anda sofrendo; Ismael
Silva
11
1979
Meu interesse é viver sem você / Nosso passado eu
procuro esquecer / Ao grande protetor eu peço em uma
prece / Senhor, por piedade, vê se ela me esquece //
Senões; Cartola e Nuno Veloso
Em (1), a referência é à história das escolas de samba e também do Brasil, ambas
consideradas como patrimônio cultural. Em (5), a lembrança do passado conduz à memória de
Noel Rosa, que é homenageado na canção; a homenagem é carregada de nostalgia por parte
do enunciador.
Nos casos que dizem respeito a relações amorosas, o passado assume diferentes
significações, predominando as marcadamente negativas, por terem relações com desilusões
amorosas (2). Entretanto, quando o sofrimento ocorre no presente, o passado pode ser refúgio
do enunciador em busca de lembranças positivas (3); nesse caso, destaca-se a colocação
passado risonho, como indicação de positividade. Em (10), o enunciador, que diz já ter
superado uma desilusão amorosa, evita a rememoração de momentos desagradáveis; o mesmo
tipo de superação é buscado em (11).
Em outros casos (4), o passado é objeto de reflexões existenciais, nas quais o
enunciador avalia suas posturas pretéritas em relação à vida, ao amor etc. Também ocorre a
expressão da nostalgia de momentos de maior produtividade e notoriedade do enunciador, que
356
se considera menos prestigiado no presente (6). Outra postura ocorre quando o enunciador se
considera feliz e retoma o passado como instância em nexo de continuidade com o presente
(9), enfatizando a harmonia da sua experiência de vida.
Em (7), louvam-se os heróis nacionais e os seus feitos, que enriqueceriam a história do
Brasil.
O pragmatema cai o pano do passado (8) é usado para dizer que uma percepção que
estaria obscurecida pela passagem do tempo seria revelada a partir da rememoração e da
reflexão sobre o histórico de vida dos enunciadores.
PATUÁ [1 ocorrência no corpus]
1933
E essa bela iaiá / Não acredita em muamba / Ela tem um pat / Que é
todo o nosso samba //
Dona do lugar; Ismael Silva e
Francisco Alves
A lexia refere-se a um objeto de devoção que anula influências externas negativas,
servindo como defesa espiritual. Trata-se de uma referência sincrética, comum na cultura
popular. O patuá, na ocorrência em questão, é oposto à muamba (ver este verbete) e
neutraliza os seus efeitos. Ainda nesse caso, o amuleto é identificado com o próprio samba, ao
qual se transfere o poder de proteger e angariar boa sorte.
PAULICEIA [5 ocorrências em 1 letra do corpus]
1
1941
Pauliceia // Todos que pertencem ao samba / No Rio te
mandam um abraço. / Pauliceia, ô / Pauliceia, ô /
Queremos com este samba / Estreitar os nossos laços /
Esse samba traduz a nossa união.
Pauliceia; Paulo da Portela e
Cartola
2
1941
Pauliceia, ô / Pauliceia, ô / Seja ele a voz do coração /
Ele é o reduto destas rimas sinceras / Tiradas da alma
em doces quimeras / Esperamos guardá-las como r
Pauliceia; Paulo da Portela e
Cartola
A lexia refere-se à cidade de São Paulo, personalizada como destinatária da
composição. Repete-se várias vezes ao longo da letra, para enfatizar a quem se destina a
enunciação e também tem função lírico-musical (ver a análise no verbete destinado à
interjeição ô).
PAULISTA [1 ocorrência no corpus]
1941
E sendo assim nada mais poderá dissolver / Esta nossa união, /
Paulistas do meu coração.
Pauliceia; Paulo da Portela e
Cartola
Assim como no caso de pauliceia, esta lexia estabelece os destinatários da elocução,
em um contexto marcado pelo afeto e pela busca de integração harmoniosa e amistosa.
PAULO [2 ocorrências em 2 letras do corpus]
1
1941
Chora, cavaquinho, chora / Chora, violão, também / O
Paulo no esquecimento não interessa a mais ninguém /
Chora, Portela, minha Portela querida / Eu que te fundei,
serás minha toda a vida.
O meu nome já caiu no
esquecimento; Paulo da Portela
357
2
1940
Cantar de um rouxinol // Ao romper do sol / Ouvi cantar
um rouxinol / Cantando um hino em louvor / O mano
Paulo dando viva ao Claudionor.
Cantar de um rouxinol; Paulo da
Portela
A menção a Paulo da Portela, nessas ocorrências, é feita pela forma abreviada “Paulo”.
A referência confere ao sambista portelense a posição de responsável pela homenagem ao
Claudionor, projeto discursivo da canção (2). A proposta amigável é reforçada pelo
tratamento mano, que destaca a relação afetuosa entre os dois.
As habilidades musicais de Paulo são também ressaltadas na apresentação como um
rouxinol (ver no verbete destinado a essa ave observações sobre a estratégia de associar
sambistas a aves canoras).
Em (1), a menção é feita em terceira pessoa pelo próprio Paulo como sujeito
comunicante, provavelmente para fazer menção à notoriedade de que já desfrutava, com a
intenção de ressaltar a injustiça do seu desprestígio no momento presente. O sentimento de
tristeza resultante dessa situação é valorizado a partir da imagem dos instrumentos musicais
em pranto.
PAZ [27 ocorrências em 24 letras do corpus]
4
1933
Amanhece e anoitece / Sem parar o meu tormento / Por
saber que quem me esquece / Não me sai do
pensamento / Já não durmo, já não sonho / De pensar
fugiu-me a paz / Num passado tão risonho / Que não
volta nunca mais //
Vejo amanhecer; Ismael Silva,
Noel Rosa e Francisco Alves
10
1945
Nesta terra sem paz / com tanta guerra / a hipocrisia se
venera / o dinheiro é quem impera //
Ouro, desça do seu trono; Paulo
da Portela
11
déc.1940
Exterminemos de uma vez para sempre / Os nazistas /
Que mediocremente / Tiveram algumas conquistas /
Atacando friamente, sem respeitar / A neutralidade / A fé,
a paz, o amor, a liberdade / E pensaram que este céu,
estas matas sem fim / Seriam conquistadas tão fácil
assim //
Nazista, quem és?; Cartola e
Carlos Cachaça
12
déc.1940
Amo-te demais, ó, Pátria minha / Tua bandeira, ó, meus
irmãos, / O lábaro estrelado, o verde esperança, / O
amarelo ouro, o azul do céu, / E o branco da paz //
Amo-te demais, ó, Pátria
minha...; Cartola
13
déc.1940
Falo com orgulho dos heróis do passado / Que
tombaram por nós / Para que houvesse paz / Mas, se
necessário, pegarei em armas / Para defender-te /
Jamais fugirei à luta / Morrerei com orgulho pela Pátria
Mãe
Amo-te demais, ó, Pátria
minha...; Cartola
17
1976
O fim de todo amor, é tão triste que juro / Despedaça-se
ao vê-lo o coração mais duro / Ela fica aos beijos com
qualquer criatura / E ele procura a paz na paz da
sepultura.
Todo amor; Carlos Cachaça e
Cartola
18
1977
Verde que te quero rosa // Verde como o céu azul, a
esperança / Branco como a cor da Paz a se encontrar /
Rubro como o rosto fica junto à rosa mais querida
Verde que te quero rosa; Cartola
e Dalmo Castello
20
1977
Surge a alvorada, folhas a voar / E o inverno do meu
tempo / Começa a brotar, minar / E os sonhos do
passado, do passado / Estão presentes no amor / Que
não envelhecem jamais / Eu tenho a paz e ela tem paz
O inverno do meu tempo; Cartola
e Roberto Nascimento
22
1922-1978
Aventuras amorosas // Nem mesmo em casa eu consigo
me livrar / das aventuras amorosas / me roubando a paz
.
//
Aventuras amorosas; Ismael
Silva
23
1980
Vem / Caminhar para além de todo mal / O bem / É a
meta final da estrada universal / Vem / Dar-me a paz e
ter paz junto de mim / Vem / Fica comigo assim / Até o
fim / Vem
Vem; Cartola e Arthur de Oliveira
24
1928-1980
Era solidão / Na solidão eu vivia / E sem confusão / Eu
em paz prosseguia / Veio o amor / E no amor encontrei /
Muita ingratidão / E assim mesmo gostei
Se outro amor tentasse; Cartola
e Nuno Veloso
358
25
1928-1980
A nossa vida era calma / Havia paz em minha alma / Mas
você foi além da imaginação / Brigas e tantos queixumes
/ E o fantasma do ciúme / Foram a causa crescente da
separação
Se o amor é isso; Aluísio Dias e
Cartola
Em (4, 17, 20, 22-25) a referência é a um quadro psicológico de tranquilidade
experimentado por alguém. Muitas vezes, fala-se da falta de paz acarretada por desventuras
amorosas, ou do esforço do enunciador magoado no amor para voltar a esse estado de
tranquilidade; também se pode enfocar o bem-estar do casal feliz na vida a dois. A
perturbação da paz pode ser expressa pela colocação com verbo-suporte roubar a paz, assim
como a obtenção da sensação de tranquilidade pode ser formulada como ter paz; dar paz é
outra colocação usada para enfatizar o efeito harmônico exercido no enunciador por um fator
externo.
Em (10, 13), a referência é à convivência pacífica entre pessoas. A falta de paz é
mencionada em enumerações dos males da atualidade; a paz também é mencionada como
conquista de heróis nacionais que lutaram por ela.
Em (12), a referência é à carga simbólica do branco como cor da paz e como uma das
cores da bandeira nacional.
A colocação cor da paz (18) foi objeto de análise s.v. cor.
Colocações viver em paz e viver com a paz
2
1931
Desses carinhos não quero saber / Pra não andar só a
me maldizer / É preferível viver com a paz / Porque se
não faz bem, mal não faz //
É bom evitar; Ismael Silva, Nilton
Bastos e Francisco Alves
3
1932
Adeus é tão triste / Que não se resiste / Ninguém jamais
/ Com adeus pode viver em paz //
Adeus; Ismael Silva, Noel Rosa e
Francisco Alves
8
1941
Tive que contar a minha vida / A esta mulher fingida /
Que me faz sofrer / Esta dor que tanto me crucia, /
Roubou toda alegria do meu viver / Pode ser que ela
ouvindo os meus ais / Volte ao lar para viver em paz
//
Não posso viver sem ela;
Alcebiades Barcellos e Cartola
14
1959
Oh, maldito preconceito / Afasta-te no ajeito, aqui nada
conseguirás / Porque recebemos dos céus a bênção de
Jesus, / Que é mensagem de paz // Nosso amor não
acaba mais / Viveremos sempre em paz
Preconceito; Cartola
16
1968
Tive sim / Outro grande amor antes do teu / Tive sim / O
que ela sonhava eram os meus sonhos / E assim íamos
vivendo em paz
Tive sim; Cartola
19
1977
Preciso andar pra não pensar / No que passou e não
chorar / Viver em paz
e sepultar de vez / A minha grande
dor / Confiante despeço-me dos meus amigos / E da
cidade / Só voltarei quando encontrar felicidade
A mesma estória; Cartola e Elton
Medeiros
21
1978
Se a gente andasse / Se beijando noite e dia / Nem
assim eu poderia / Conseguir viver em paz / Porque teu
beijo / Ou molhado ou enxuto / Uma dúzia por minuto /
Ainda não me satisfaz / Não é demais.
Coisa louca; Ismael Silva
As expressões fazem referência ao mesmo estado de bem-estar psicológico já
mencionado anteriormente. Viver em paz é o objetivo enunciado constantemente pelo
enunciador, podendo ser uma experiência individual ou de consortes. Os fatores que
perturbam o bem-estar são as desventuras amorosas, a separação de pessoas queridas, a
inquietação causada pela paixão. Por outro lado, ele é proporcionado pela vida harmoniosa a
dois ou pela vida solitária de quem percebe estar mais tranquilo sozinho.
359
Colocação ficar em paz
9
1942
Não tenho queixa // Do meu amor nada posso dizer /
Porque com ela eu fico em paz / Tudo que eu peço pra
ela fazer / se bem eu digo / melhor ela faz / sem dar pra
trás //
Não tenho queixa; Ismael Silva e
David Raw
15
1966
Fica em paz / E pouco importa os comentários / Como
nós / Por este mundo existem vários //
Eu sei; Cartola
Novamente, a sensação dominante transmitida pela colocação é a de tranquilidade
pessoal. É empregada como constatação do próprio enunciador (9), ou como voto dirigido a
um destinatário (15).
PEDIR [17 ocorrências em 16 letras do corpus]
1
1933
Vou pedir, vou implorar / A meu Senhor do Bonfim / Pra
fazer essa iaiá / Se apaixonar por mim.
Dona do lugar; Ismael Silva e
Francisco Alves
2
1934
Não adianta se aborrecer / porque você não vai me bater
/ Você cresça e apareça / eu peço
que não se esqueça /
Você é quem se consome / para mim cara feia é fome //
Cara feia é fome; Ismael Silva
3
1938-1940
É que a cebola, minha filha, está soberba / O alho e o
vinagre cada vez subindo mais / Peça emprestado cada
dia a uma vizinha / Ou continua fazendo sempre como
você faz
Como é que eu posso; Cartola
4
déc.1930
Quando trouxer deve pedir ao destino / Que mande pelo
menino recomendação de um bamba / Mais tarde eu
quero que como todo lero-lero / Ele seja professor de
uma Escola de Samba. //
Senhora Dona Cegonha; Paulo
da Portela
5
1941
Esta malvada bem sabe o mal que me fez / Mas não faz
mal, eu lhe perdoo outra vez / Meu coração vive
reclamando noite e dia / Por isso eu peço que ela volte
para minha companhia
Não posso viver sem ela;
Alcebiades Barcellos e Cartola
6
1942
Não tenho queixa // Do meu amor nada posso dizer /
Porque com ela eu fico em paz / Tudo que eu peço pra
ela fazer / se bem eu digo / melhor ela faz / sem dar pra
trás //
Não tenho queixa; Ismael Silva e
David Raw
7
1922-1949
Seus olhos são dois flocos, / luminosos e sedutores / Se
com desprezo me olhas, me causas doenças, dores /
Pelo amor de Deus te peço / tenhas compaixão de mim /
veja as rimas destes versos / Meu bem, não olhes assim
Olhar assim; Paulo da Portela
8
déc.1950
Eu e meu violão / Vamos rogando em vão / O seu
regresso / Se soubesses como choro e como peço / Pra
que nosso fracasso / Se transforme em progresso
Festa da vinda; Cartola e Nuno
Veloso
9
1976
Aconteceu / Eu não esperava mais acontecer / Todo o
bem que fiz se quiser esquecer / Revelando a sua
imprudência / Construí o lar, o lar que ela pedia / Exigiu-
me coisas que ela não queria //
Aconteceu; Cartola
10
1979
Dê-me graças, senhora, / Um sorriso a quem chora /
Onde há ódio / Eu vos peço
que ponha amor / E assim /
Eu serei mais feliz que sou
Dê-me graças, senhora; Cartola
11
1979
Só peço que respeites / O nome que te dei / E pelo amor
de Deus / Não negues que te amei //
Fim de estrada; Cartola
12
1979
Meu interesse é viver sem você / Nosso passado eu
procuro esquecer / Ao grande protetor eu peço em uma
prece / Senhor, por piedade, vê se ela me esquece //
Senões; Cartola e Nuno Veloso
13
1928-1980
No camarim nem sempre há euforia / Artista de mim
mesmo nem posso fracassar / Releio os bilhetes
pregados no espelho / Me pedem que jamais eu deixe de
cantar
Camarim; Cartola e Hermínio
Bello de Carvalho
14
1928-1980
Eu vivo tão magoado, / Não sei viver mais ao teu lado, /
Só peço a Deus que me dê coragem, / Eu preciso
esquecer / A tua grande mentira que me faz sofrer.
Devia ser condenada; Cartola e
Nelson Cavaquinho
15
1928-1980
Eu pedi ao grande Deus / Que viesse aos sonhos meus /
Sonhos estes, puro, eterno / E deitei-me satisfeito /
Repousei as mãos ao peito / Olhos fixos no teto
Pesadelo; Cartola e Nuno Veloso
16
1955-1980
Vim lhe pedir // Vim lhe pedir / me perdoa / reconheço,
errei / se aqui voltei / foi para lhe dizer, então, / que há
motivos de força maior / que às vezes prende a gente /
me disseste que voltei cinicamente / pra zombar de te
ver chorar //
Vim lhe pedir; Nelson Sargento e
Cartola
Os usos, na maioria desses casos, são típicos do vocabulário comum da língua,
360
marcando a postura do enunciador que solicita algo a um destinatário, em tom mais ou menos
apelativo, buscando influenciar o comportamento do destinatário para obter resultados
desejados.
Destaquem-se os pedidos a divindades, que caracterizam o enunciador religioso, que,
nos casos aqui detectados, age segundo os preceitos católicos.
Os pedidos podem ser intensificados por coordenação com sinônimos como implorar,
ou por pragmatemas como pelo amor de Deus.
Em (3) a colocação pedir emprestado, sem explicitação do objeto do pedido, enfoca o
ato de fazer empréstimos em si e a sua recorrência, caracterizando tanto a relação entre
marido e mulher quanto a relação entre a mulher e as vizinhas.
PEITO [10 ocorrências em 9 letras do corpus]
1
1932
Vivo cantando / Para esquecer a minha dor / Conservo
ainda / No meu peito um grande amor / E o meu pranto
parece não ter mais fim / No entanto eu padeço e não
tens pena de mim //
Cantar para não chorar; Paulo da
Portela e Heitor dos Prazeres
2
1938-1940
E são eles, verdes periquitos, / Têm um peito forte tal
qual um granito / E são lindas as suas canções //
Ao amanhecer; Cartola
3
1946
A velhice chega / Vai-se a mocidade / Apenas resta a
saudade / Aqueles bons tempos / Risos tão felizes /
Resta em meu peito / A cicatriz, a cicatriz //
A velhice chega; Paulo da
Portela e Rufino
4
c1947
Desde o dia em que partiste / A saudade morou em meu
peito / Eu já procurei alguém / Mas não há jeito /
Coração, o que é que esperas / De um amor tão desleal?
/ Não estás vendo, coração, ela partiu, / Causando tanto
mal.
Rolam nos meus olhos; Cartola
5
1968
Ai, esse bojo perfeito / Que trago junto ao meu peito / Só
você, violão, compreende porque / Perdi toda a alegria //
Cordas de aço; Cartola
6
1976
Peito vazio // Nada consigo fazer / Quando a saudade
aperta / Foge-me a inspiração / Sinto a alma deserta //
Peito vazio; Elton Medeiros e
Cartola
7
1976
Um vazio se faz em meu peito / E de fato eu sinto em
meu peito
um vazio / Me faltando as tuas carícias / As
noites são longas e eu sinto mais frio //
Peito vazio; Elton Medeiros e
Cartola
8
1977
Amanhã / A tristeza vai transformar-se em alegria / E o
sol vai brilhar no céu de um novo dia / Vamos sair pelas
ruas, pelas ruas da cidade / Peito aberto, cara ao sol da
felicidade //
A cor da esperança; Cartola e
Roberto Nascimento
9
1928-1980
E se despertares / Vais trazer conforto / A um pobre peito
/ Triste semimorto / As frases saídas / com tanto calor /
No espaço perdidas / Não deixes querida / Pelo nosso
amor
Desperta querida; Cartola
10
1928-1980
Eu pedi ao grande Deus / Que viesse aos sonhos meus /
Sonhos estes, puro, eterno / E deitei-me satisfeito /
Repousei as mãos ao peito / Olhos fixos no teto
Pesadelo; Cartola e Nuno Veloso
Em (2), a associação a aves canoras e a colocação com o adjetivo forte sugerem que o
sentido de peito é relacionado metonimicamente à potência do canto. O frasema trazer [algo]
junto ao peito (5) é mais uma marca da ligação afetiva do enunciador com o violão,
explicitado em vários pontos da descrição feita em “Cordas de aço”. A localização do
instrumento junto ao peito, além de ser de fato a sua posição esperável quando é tocado por
alguém, indica envolvimento emocional, pois, metonimicamente, o peito compartilha da carga
simbólica atribuída ao coração (ver), tido como sede dos sentimentos e emoções.
A significação do peito como centro da afetividade repete-se em (1, 3-4, 6-9).
361
Algumas colocações dignas de nota nesses casos são [um sentimento] morar no peito (4), que
alia à carga metafórica de peito a personificação do sentimento em questão, para expressar
que o experienciador vivencia o sentimento intensamente; peito vazio (6-7), que afirma a
ausência de sentimento para demonstrar o incômodo do enunciador diante da ausência da
amada; peito aberto (8), que indica a satisfação do enunciador e a sua disposição otimista;
pobre peito (9) é uma expressão do sofrimento que ele experimenta, usada às vezes numa
tentativa de comover a destinatária.
Em (10), a referência é à parte do corpo, numa designação do ato de repousar as mãos
no peito, que indica relaxamento físico.
PENSAR [24 ocorrências em 22 letras do corpus]
1
1930
Quando souberes amar // O perdão eu te darei / Quando
souberes amar / Mulher porque jamais pensei
/ Em você
me abandonar //
Quando souberes amar; Ismael
Silva
2
1931
Amor, quanto menos ou nenhum é melhor / Porque só se
vive a sofrer por amar / E quem pensar nisso hoje em
dia, não terá alegria / É bom evitar //
É bom evitar; Ismael Silva, Nilton
Bastos e Francisco Alves
5
1932
Antes não te conhecesse / Talvez eu nunca sofresse /
Por esse mundo sem fim / Já não tenho alegria / Em que
penso noite e dia / E tu não pensas em mim //
Antes não te conhecesse; Ismael
Silva e Francisco Alves
6
1932
Só tens ambição e vaidade / Não pensas na felicidade /
E eu não descanso um momento / Por pensar que o teu
amor / É só fingimento / Mas eu vou entrar com o meu
jogo / E vou pôr à prova de fogo / A tua sincera amizade
/ Para ver se tu falaste verdade //
Não faz, amor; Cartola e Noel
Rosa
7
1932
Você teve a minha ajuda / Sem pensar em trabalhar /
Quem se zanga é que se muda / E eu já tenho onde
morar / Nunca mais você encontra / Quem lhe faça o
bem que eu fiz / Levei muito golpe contra / Passe bem,
seja feliz
Para me livrar do mal; Ismael
Silva e Noel Rosa
8
1932
Tenho um novo amor // Tenho um novo amor... / Tenho
um novo amor... / Que vive a pensar em mim. / Não quer
me ver / Triste nem zangada / Gosta que eu ande /
Assim meio engraçada //
Tenho um novo amor; Cartola
9
1932
Aquela que eu mais amava / Só pensava em me trair /
Quando eu menos esperava / Partiu sem se despedir /
Essa mesma criatura / Quis voltar, mas eu não quis / E
hoje, cumprindo a jura, / Vivo só e sou feliz //
Uma jura que fiz; Ismael Silva,
Noel Rosa e Francisco Alves
11
1931-1932
Se eu já gozei / Mais vou gozar / Com essa separação /
Nunca pensei sem esperar / Ter tanta satisfação /
(Independência ou morte!).
Liberdade; Ismael Silva e
Francisco Alves
12
1933
Amanhece e anoitece / Sem parar o meu tormento / Por
saber que quem me esquece / Não me sai do
pensamento / Já não durmo, já não sonho / De pensar
fugiu-me a paz / Num passado tão risonho / Que não
volta nunca mais //
Vejo amanhecer; Ismael Silva,
Noel Rosa e Francisco Alves
13
1936
Às vezes dou gargalhada / Ao lembrar do passado /
Nunca pensei em amor, / nunca amei nem fui amado /
Se julgas que estou mentindo jurar sou capaz / Foi
simples sonho que passou e nada mais.
Não quero mais amar a ninguém;
Cartola, Carlos Cachaça e Zé da
Zilda
14
déc.1930
Silêncio de um cipreste // Todo mundo tem o direito / De
viver cantando / O meu único defeito / É viver pensando /
Em que não realizei / E é difícil realizar / Se eu pudesse
dar um jeito, / Mudaria meu pensar //
Silêncio de um cipreste; Cartola e
Carlos Cachaça
15
1940
Jamais tu irás a um samba / E tenho as minhas razões
/ Quando entras no batuque / Esqueces as obrigações. /
Pense o caso bem direito / Te aconselho a que não
faça / Proibir-me do batuque / Tradição de nossa raça.
Vamos embora, ó, flor; Paulo da
Portela
16
1942
Oh! para que chorar / Só para enganar / Sentida quando
eu sei / Que és fingida / Só para iludir / Fazer pensar / E
depois tu sorrir // Ora vai mulher / Já que teu destino
quer / Vai não te desejo mal / Sei que teu pesar / Um dia
será fatal
Oh, pra que chorar; Paulo da
Portela
362
17
1946
Só me resta ruga / e nada mais / Os meus lábios choram
/ eu sou capaz / o que me maltrata / é pensar atrás / a
velhice chega / e nada mais
A velhice chega; Paulo da
Portela e Rufino
18
1964
Está chegando o momento / De irmos pro altar, nós dois
/ Mas, antes da cerimônia, / Devemos pensar: e depois?
/ Terminam nossas aventuras / Chega de tanta procura /
Nenhum de nós deve ter / Mais alguma ilusão //
Nós dois; Cartola
19
1977
Preciso andar pra não pensar / No que passou e não
chorar / Viver em paz e sepultar de vez / A minha grande
dor / Confiante despeço-me dos meus amigos / E da
cidade / Só voltarei quando encontrar felicidade
A mesma estória; Cartola e Elton
Medeiros
20
1977
É impossível nesta primavera, eu sei / Impossível, pois
longe estarei / Mas pensando em nosso amor, amor
sincero... / Ai se eu tivesse autonomia / Se eu pudesse
gritaria / Não vou, não quero //
Autonomia; Cartola
21
1977
Eu não posso mais sofrer / És um caso perdido / Tu não
pensas como eu penso / Não desejas um bom marido //
Desta vez eu vou; Cartola
22
1922-1978
Nome feio a que me refiro / Não é nada disso que já
estão pensando / É Brás, Fedegoso, Pancrácio, Belmiro /
Adão, Brederodes, Pafúncio, Rolando //
Nome feio; Ismael Silva
23
1928-1980
Se eu pudesse dividia a tua dor / A metade eu resistia
com o maior sabor / Se eu pudesse não pensava mais /
Neste alguém / Quem te fez sofrer alma não tem
Colombina; Cartola
Em (1-2, 5-6, 8, 11-14, 16-20, 23) a lexia significa 'imaginar uma possibilidade', ou
'ocupar-se mentalmente de um assunto'. Nesses casos, o sujeito costuma ser ocupado por um
experienciador e o complemento costuma ser o assunto em questão. Tais assuntos
caracterizam o experienciador como surpreso com um acontecimento (1, 11), obcecado com
algo (5, 14), dedicado a uma cogitação (18, 20), inconsequente em suas preocupações (6),
despreocupado com um assunto (13). Diferentes marcas indicam a intensidade dessa
experiência (noite e dia, viver pensando), a surpresa diante dela (jamais pensei, nunca pensei)
etc.
Há outras ocorrências da lexia sem complementação em (12, 16, 19), que enfatizam os
efeitos da experiência psicológica no enunciador, ou seu posicionamento diante dessa
experiência. Em (16), a colocação com o verbo suporte fazer, sem complementação, ressalta o
impacto da mulher que, fingindo, provoca a comiseração dele; a ausência de complementação
mais uma vez enfatiza a experiência psicológica.
Em (7, 9), a ocorrência significa 'ter a intenção de fazer algo'. A determinação das
intenções de alguém caracteriza essa pessoa. Em ambas as ocorrências, caracteriza-se a
mulher negativamente, como avessa ao trabalho ou traidora.
Em (15), o uso significa 'ponderar um assunto'. No primeiro caso, o uso no imperativo,
com o modificador bem direito, funciona como uma advertência da enunciadora ao parceiro,
diante de uma ameaça que ele lhe fez.
Em (21), a significação é 'ter uma determinada opinião' e é enfatizada pela colocação
tu não pensas como eu penso, que também exprime o posicionamento intransigente do
enunciador.
O pragmatema não é nada disso que já estão pensando (22) é uma fórmula de rotina
363
que, maliciosamente, sugere que o que foi dito tem duplo sentido. Apesar de ter dado azo a
uma interpretação maliciosa do que disse, o enunciador nega essa interpretação, brincando
com seus destinatários.
Nas três ocorrências seguintes, há os pragmatemas vivo sem pensar e não tenho em
que(m) pensar
Pragmatemas vivo sem pensar e não tenho em que(m) pensar
3
1931
Não hei de dar mais golpe errado / eu também sofri / eu
tenho me enganado / hoje vivo sem pensar / porque não
quero mais esse golpe baixo //
Quero sossego; Ismael Silva,
Nilton Bastos
4
1931
Muito tenho sofrido / Por minha lealdade / Agora estou
sabido / Não vou atrás de amizade / A minha vida é boa /
Não tenho em que pensar / Por uma coisa à-toa / Não
vou me regenerar /
Se você jurar; Ismael Silva, Nilton
Bastos e Francisco Alves
10
1932
Não tenho amor / Nem posso amar / Pra não quebrar /
Uma jura que fiz / E pra não ter / Em quem pensar / Eu
vivo só / E sou muito feliz. //
Uma jura que fiz; Ismael Silva,
Noel Rosa e Francisco Alves
Nessas três ocorrências, as fórmulas de rotina enfatizam a despreocupação do
enunciador, direcionada em todos os casos a relações amorosas. Ele se diz tranquilo por não
estar ligado a mulheres.
PERDÃO [19 ocorrências em 14 letras do corpus]
1
1920-1922
Meninas, também senhoras / Queiram nos dar o vosso
nome / Eu aconselho a não cortar / Seu cabelo à la
garçonne / Peço perdão pelo que digo / Embora não
saiba o que vi / Mas o cabelo assim cortado / Só fica
bem mesmo é à demie
Cabelo à la garçonne; Paulo da
Portela
2
1929-1930
Eu não podia ter imaginado / agora é tarde / (...) / fizeste
mal / sem ter razão / por isso mesmo / não darei meu
perdão.
Não te dou perdão; Ismael Silva
3
1929-1930
Não te dou perdão // Não te darei perdão / porque eu já
aturei / tanta ingratidão / eu jamais esquecerei //
Não te dou perdão; Ismael Silva
4
1930
Quando souberes amar // O perdão eu te darei / Quando
souberes amar / Mulher porque jamais pensei / Em você
me abandonar //
Quando souberes amar; Ismael
Silva
5
1930
Sei que estás arrependida / Por isso pedes perdão / Já
que tu segues nova vida / Eu te darei meu coração
Quando souberes amar; Ismael
Silva
6
1931
Chorei por ter me lembrado / De tudo quanto eu fazia /
Era tanta ingratidão, / E você não merecia / Muito eu te
fiz chorar / Não mereço o teu perdão / Tu deves me
castigar / Magoei seu coração. //
Arrependido; Ismael Silva, Nilton
Bastos e Francisco Alves
7
1932
Perdão, meu bem // Perdão, meu bem / atacou-me o
coração, / Falei demais / sou bom rapaz / no modo de
proceder / perdão, porque / se acabar nossa amizade /
eu vou morrer / sinto dores, / são saudades. //
Perdão, meu bem; Cartola
8
1933
Tudo eu fiz por você / Não quiseste atender / Os meus
conselhos e a minha opinião / Algum dia vais ver / Como
é triste sofrer / E de joelhos vens pedir o meu perdão. //
Na floresta; Cartola e Sílvio
Caldas
9
1945
Eu não durmo sossegada / Parece que estou sendo
castigada / Confesso que já fiz alguém sofrer, / Sem
merecer, mereço perdão / Eu errei sem saber (podes
crer)
Arma perigosa; Paulo da Portela
e Paquito
10
c1947
Rolam dos meus olhos // Rolam nos meus olhos /
Lágrimas sentidas / Somente em saber / Que te perdi por
toda a vida / Nem ajoelhada te darei perdão / Só porque
você / Magoou meu coração //
Rolam nos meus olhos; Cartola
11
c1947
Todos erram neste mundo / Não há exceção / Quando
voltam à realidade / Conseguem perdão / Por que é que
eu, Senhor, / Que errei pela vez primeira / Passo tantos
dissabores / E luto contra a humanidade inteira?
Sim; Cartola e O Martins
12
c1947
Sim / Deve haver o perdão / Para mim / Senão nem sei
qual será / O meu fim //
Sim; Cartola e O Martins
364
13
1966
Eu sei // Sim, eu sei / A vida horrível que você levou / Se
vens pedir o meu perdão, eu dou / Se prometeres não
errar jamais //
Eu sei; Cartola
14
1976
Aconteceu / Hoje ela chora tudo o que perdeu / E
chorando veio me pedir perdão / Fica para ela a lição
Aconteceu; Cartola
15
1979
Bem vejo estás chorando / Por certo chorarei / Ferido
está teu coração / E peço-te perdão / Das vezes que
errei / Mas este amor evitarei
Evite meu amor; Cartola
16
1979
Ó meu coração, coração / Quem, quem verá que vem /
Sinto que ninguém / Vai me dar perdão / Eis a prova dos
meus grandes erros / Erros estes que eu soube julgar /
Não importa, mas vou do desterro / Desabrochar
Motivação; Cartola e Dalmo
Castelo
17
1955-1980
Deixa / Quando ela ouvir os meus poemas vai chorar / A
consciência vai lhe castigar / Perdão não quero nem vou
perdoar
Deixa; Cartola e Nelson Sargento
Em quase todas as ocorrências, a referência é à desculpa de erros relativos à relação
amorosa, relacionados à infidelidade ou ao abandono; muitas vezes tais erros são atribuídos à
mulher, embora o enunciador masculino às vezes também reconheça seus próprios erros. São
comuns colocações com verbos-suporte como dar perdão, pedir perdão e conseguir perdão,
dependendo da perspectiva em questão — se o sujeito é beneficiário ou agente do perdão.
Em (11-12), apesar de o arrependimento ser relacionado a experiências amorosas, o
pedido de perdão tem carga religiosa, e Deus é o destinatário selecionado na enunciação.
Outras marcas lexicais do universo discursivo religioso são promessa e blasfemar.
Em (1), a ocorrência é do pragmatema peço perdão pelo que digo, fórmula de rotina
usada para suavizar um enunciado que o enunciador entenda que possa ser considerado
ofensivo.
PERIQUITO [2 ocorrências em 2 letras do corpus]
1
1938-1940
E são eles, verdes periquitos, / Têm um peito forte tal
qual um granito / E são lindas as suas canções //
Ao amanhecer; Cartola
2
1938-1940
Que estranha sinfonia / Ao ambiente empresta / Este
bando irrequieto / De alegres periquitos / Deixam os
corações em festa //
Corações em festa; Cartola
Em (1), a referência da lexia, como já foi comentado s.v. ave, torna-se ambígua, pois
tanto pode ser à ala dos periquitos, que integrava a Mangueira, quanto às aves que têm esse
nome. Na letra há marcas que remetem a ambas as leituras: a alusão às aves fazendo verão
indica a segunda; a alusão aos acordes do violão indica a primeira.
Em (2), a referência é indubitavelmente às aves, identificadas a partir da sonoridade do
seu canto e à alegria que transmitem aos observadores.
PINHO [1 ocorrência no corpus]
1968
E, no entanto, meu pinho, / Pode crer, eu adivinho, / Aquela mulher até
hoje está nos esperando / Solte o seu som da madeira / Eu, você e a
companheira / Na madrugada iremos pra casa cantando.
Cordas de aço; Cartola
A lexia, que metonimicamente faz referência ao violão (ver), é uma forma poética e
afetuosa de designá-lo.
365
PLATEIA [3 ocorrências em 3 letras do corpus]
1
1966
Não vão fazer / O que aconteceu certo dia / Foi tanto bis
/ Que eu já não podia atender / No entretanto O que a
plateia queria / É que eu cantasse / Cantasse até
aprender.
Eu agradeço; Ismael Silva
2
1922-1978
Eu bem sei que os concorrentes / Andam sempre de
alcateia / Sejamos indiferentes / Ao critério da plateia.
Receio; Ismael Silva
3
1928-1980
No camarim as rosas vão murchando / E o contrarregra
dá o último sinal / As luzes da plateia vão se
amortecendo / E a orquestra ataca o acorde inicial
Camarim; Cartola e Hermínio
Bello de Carvalho
As ocorrências são típicas do vocabulário especializado da música, pois se referem à
audiência da apresentação musical. Em (1), há uma brincadeira metalinguística com as
circunstâncias do espetáculo; o enunciador atribui à plateia o desejo de vê-lo aprender a cantar
por repetição. Em (3), há a mesma referência, com uma sucessão de índices de que se
aproxima o início da apresentação, como os três sinais sonoros e a diminuição das luzes da
plateia.
Em (2), a referência é metafórica e irônica, a outros homens que desejam o fim da
relação por também terem interesse na mulher.
POEMA [4 ocorrências em 3 letras do corpus]
1
1932
Pudesse meu ideal / Que é o carnaval / De encantos mil
/ Imortalizar neste poema / Cor de anil / Verossímil / E
levá-lo coroado / Pelas galas da história / Relembrando a
memória / Do meu querido Brasil
Pudesse meu ideal; Cartola e
Carlos Cachaça
2
1960
Não querendo levá-los ao cume da altura / Cientistas tu
tens e tens cultura / E, neste rude poema destes pobres
vates, / Há sábios como Pedro Américo e Cesar Lattes
Ciência e arte; Cartola e Carlos
Cachaça
3
1955-1980
Deixa / Meu sofrimento um dia vai ter fim / Os meus
poemas vão falar por mim / De todo mal que o amor me
fez //
Deixa; Cartola e Nelson Sargento
4
1955-1980
Deixa / Quando ela ouvir os meus poemas vai chorar / A
consciência vai lhe castigar / Perdão não quero nem vou
perdoar
Deixa; Cartola e Nelson Sargento
Nas ocorrências (1-2) encontra-se a defesa do estatuto poético das letras de canção.
Trata-se da busca pela afirmação do valor dessas criações, num período em que a
profissionalização dos compositores se consolidava, assim como se consolidava a condição do
samba como instituição cultural e produto comercial perante a indústria fonográfica. Outros
exemplos dessa intenção discursiva podem ser vistos s.v. artista e coroado.
Em (3-4), o enunciador atribui aos poemas que escreve o poder de extravasar a sua
mágoa e provocar o arrependimento da ex-amada. Ele próprio se identifica como poeta, numa
intenção discursiva análoga à comentada no parágrafo anterior.
POESIA [1 ocorrência no corpus]
1941
Mangueira, velha escola / Onde Cartola tem sido baluarte / Lindas
poesias, belas melodias / Têm todo valor de nossa parte
Homenagem à Mangueira; Paulo
da Portela
O valor poético dos sambas da Mangueira, lado a lado com a beleza das suas
366
melodias, é apresentado como fator importante de identificação da escola de samba, em um
samba dedicado à sua homenagem. Sobre a intenção de afirmação cultural do samba, veja-se
o que é dito s.v. poema.
POETA [4 ocorrências em 3 letras do corpus]
1
1932
Quando a tarde é cor de rosa / Ainda é mais formosa /
Tem cenários sedutores / Te admiram os estrangeiros /
Se orgulham os brasileiros / Teus poetas sonhadores
Cidade mulher; Paulo da Portela
2
d1937
Na Vila / onde ele morava / Todos os seres cantavam /
As glórias do seu poeta / Hoje a Vila é triste e muda / Ao
bater Ave-Maria / Quando a aurora desperta
A Vila emudeceu; Cartola
3
1948
E se vires poeta o vale / O vale do rio / Em noite
invernosa / Em noite de estio / Como um chão de prata /
Riquezas estranhas / Espraiando beleza / Por entre
montanhas
Vale do São Francisco; Cartola e
Carlos Cachaça
4
1948
Pergunta o poeta esquecido / Quem fez esta tela / De
riquezas mil / Responde soberbo o campestre / Foi Deus,
foi o mestre / Quem fez meu Brasil! / Meu Brasil! Meu
Brasil! //
Vale do São Francisco; Cartola e
Carlos Cachaça
Em (2), a lexia é empregada na identificação de Noel Rosa em uma composição em
sua homenagem, destaca o seu talento artístico, em um contexto de harmonia entre o bairro
carioca de Vila Isabel e o homenageado.
Em (1) e (3-4) enfatiza-se a sensibilidade estética dos poetas. No primeiro caso, os
brasileiros recebem essa identificação por sua admiração das belezas do Brasil, assim como
pela exaltação que fazem das mesmas. Nos últimos casos, mais uma vez cria-se um poeta
enunciador que se maravilha com as belezas do vale do rio São Francisco e quer saber quem
as criou.
PORTELA [3 ocorrências em 3 letras do corpus]
1
1927
Uma luta vencida por amor e glória / São linhas traçadas
/ Nas páginas da história / Gravado com as cores de
nosso país / Em seu castelo Portela feliz
Uma luta vencida por amor e
glória; Paulo da Portela
2
1929
A Portela está contente / Para frente / Com fé e coragem
/ Que eu quero ver / Quero saber do sucesso / Dentro da
ordem e progresso / Salve então a rua B
A Portela está contente...; Paulo
da Portela
3
1941
Chora, cavaquinho, chora / Chora, violão, também / O
Paulo no esquecimento não interessa a mais ninguém /
Chora, Portela
, minha Portela querida / Eu que te fundei,
serás minha toda a vida.
O meu nome já caiu no
esquecimento; Paulo da Portela
Em (1-2), a lexia apresenta a escola de samba metonimicamente, como o conjunto dos
seus componentes, comemorando uma vitória do grupo ou reunidos em uma visita a outra
agremiação. A alegria atribuída à Portela é motivada pela fundação de um novo grupo
carnavalesco, incentivado pela escola mais antiga.
Em (3), a referência é à instituição, personificada e evocada por seu fundador, para
compartilhar o seu sofrimento diante da ingratidão que sofreu.
367
PORTUGUÊS [2 ocorrências em 2 letras do corpus]
1
1931
Umas crioulinha / uns português / (...) quero ver de uma
vez // um dois / um dois / um dois / um dois//
Meu batalhão; Ismael Silva,
Nilton Bastos e Francisco Alves
2
1928-1980
Mas eu agora vou saber / Eu sou tão camarada / A ele
não falta nada / Ganha um terno por mês / Ainda agora
pancada / Piorou a maçada / Eu parei desta vez / Vou
arranjar um português.
Vou contar tintim por tintim;
Cartola
A menção a portugueses no desfile de escolas de samba em (1) pode ter relação com
dois fatos: a) a presença de portugueses entre os participantes das escolas de samba, usada na
letra para ressaltar a diversidade do grupo, que não seria composto apenas por pessoas negras;
b) a participação de portugueses, que geralmente estavam à frente do comércio, no
financiamento dos desfiles, a partir do livro de ouro, recurso usado pelas escolas para angariar
fundos — anotava-se no livro o valor doado por cada um que, assim, ganhava notoriedade
como apoiador da instituição.
Em (2), novamente se registra a convivência de portugueses entre os grupos populares
do Rio de Janeiro. A referência dessa vez é como opção de envolvimento amoroso da
enunciadora, que é infeliz com um companheiro violento.
PRAÇA ONZE [2 ocorrências em 1 letra do corpus]
1
1960
Uma escola na praça Onze, testemunha ocular / E perto
dela uma balança onde os malandros iam sambar / Onde
os malandros iam sambar //
Tempos idos; Cartola e Carlos
Cachaça
2
1960
Depois, aos poucos, o nosso samba / Sem sentirmos se
aprimorou / Pelos salões da sociedade / Sem cerimônia
ele entrou / Já não pertence mais à praça, / Já não é
samba de terreiro / Vitorioso, ele partiu para o
estrangeiro //
Tempos idos; Cartola e Carlos
Cachaça
As ocorrências mencionam a praça Onze como local inaugural para o samba carioca.
Ela é personificada como testemunha ocular do nascimento do samba. Em seguida, com o
desenvolvimento, o gênero é apresentado como não mais circunscrito à praça, mas de
abrangência internacional e, hiperbolicamente, universal.
Ressalta-se, portanto, a importância histórica da praça Onze como localização
privilegiada das primeiras rodas de samba no Rio de Janeiro.
PRANTO [12 ocorrências em 7 letras do corpus]
1
1932
Vivo cantando / Para esquecer a minha dor / Conservo
ainda / No meu peito um grande amor / E o meu pranto
parece não ter mais fim / No entanto eu padeço e não
tens pena de mim //
Cantar para não chorar; Paulo da
Portela e Heitor dos Prazeres
2
1933
Não é só quem vive em pranto / Que sabe o que é
sofrer... / Eu sofro e no entanto / Nunca dei a perceber! //
E são tristes meus ais... / Pois quando a gente sente / E
não chora / Sofre muito mais //
Nunca dei a perceber; Ismael
Silva
3
1936
Compreendi o erro em toda a humanidade / Uns choram
por prazer e outros por saudade / Jurei e a minha jura
jamais eu quebrarei / E todo o pranto esconderei
Quem me vê sorrir; Cartola e
Carlos Cachaça
4
1936
O pranto que verti por esse amor talvez / Não
compreendeste e se eu disser não crês / Depois de
derramado, ainda soluçando, / Tornei-me alegre, estou
cantando //
Quem me vê sorrir; Cartola e
Carlos Cachaça
368
5
1936
Quem me vê sorrindo pensa que estou alegre / O meu
sorriso é por consolação / Porque sei conter para
ninguém ver / O pranto do meu coração //
Quem me vê sorrir; Cartola e
Carlos Cachaça
6
1947
Foi num dia de alegria / Que essa tragédia se deu / Foi
no carnaval passado / Que o Caquera morreu / Já não
se ouve o canto mais / Daquele sabiá / Toda Lira está
em pranto / Todo mundo a chorar.
Ouvi dizer; Paulo da Portela
7
1974
Disfarça e chora / Todo o pranto tem hora / E eu vejo seu
pranto cair / No momento mais certo
Disfarça e chora; Cartola e
Dalmo Castello
8
1974
Olhar, gostar, só de longe / Não faz ninguém chegar
perto / E o seu pranto / Oh! Triste senhora / Vai molhar o
deserto...
Disfarça e chora; Cartola e
Dalmo Castello
9
1928-1980
Ela ri, ela pula e canta / E assim a dor espanta / Se
fingindo Colombina / Me comove ver o pranto cair /
Daquela pobre menina / Que teve a má sina de se deixar
seduzir //
Colombina; Cartola
10
1928-1980
Há no mundo quem te adore tanto, tanto / Eu por ti, e tu
por outro derramamos pranto / Somos dois entes a subir
o mesmo calvário / Mas com o pensamento contrário.
Colombina; Cartola
11
1928-1980
Não quero mais / Ver o teu pranto / Eu canto não é / Pra
ninguém chorar / Vou te dar meu coração / Para tuas
lágrimas secar / Vou te dar meu coração / Como emoção
/ Para tuas lágrimas secar.
Hoje sem querer; Cartola e
Babau
12
1928-1980
Hoje sem querer // Hoje sem querer / Que vim a saber /
Que gostas de ouvir / Quando canto, ó flor / Ficas
comovida / Derramando pranto / Achas um encanto /
Neste teu cantor //
Hoje sem querer; Cartola e
Babau
Em (6), o frasema estar em pranto diz respeito ao sentimento de pesar pela morte do
Caquera, da escola de samba Lira do Amor. Em (12), o frasema derramar pranto refere-se ao
choro decorrente da emoção provocada pelo canto do enunciador sobre a destinatária; a
ocorrência (11) também qualifica a destinatária como profundamente tocada pela música do
enunciador.
As colocações derramar pranto e verter pranto voltam a ocorrer em (4) e (10),
caracterizando o sofrimento dos experienciadores de desilusões amorosas ou existenciais.
O mesmo tipo de caracterização ocorre nas demais ocorrências, às vezes com o
enunciador se posicionando no sentido de que o melhor é tentar esconder o sofrimento, para
viver tranquilo.
PRAZER [16 ocorrências em 14 letras do corpus]
1
1924
Porém tu podes gargalhar / Porque o teu prazer /
Também terá seu fim / Agora podes rir de mim / A
sentir-se bem / Em saber do meu mal
Podes gargalhar; Paulo da
Portela
2
1924
Ai daquele como eu / Que tiver a desdita de te conhecer
/ Na sua arte de perder / Com este modo de olhar /
Sorrindo estás fingindo / Jurando estás sentindo / Se o
teu maior prazer é escravizar.
Podes gargalhar; Paulo da
Portela
3
1924
Reclamo com muita razão / O mal que me causaste /
Não é porque não tenho forças / Para resistir / Sinto-me
fugir a calma / Doer em cheio dentro d'alma / Para poder
zombar / E com prazer sorrir
Podes gargalhar; Paulo da
Portela
4
1924
Tu me desprezas / Tu me abandonas / Tens o prazer /
De me ver abandonado / Não faz mal, / Ó meu benzinho,
/ O mundo gira / E na virada / Ainda te espero / Com
carinho
Tu me desprezas; Paulo da
Portela
5
1928
Mulher, tu não me faz carinho / Seu prazer é de me ver
aborrecido / Ora vai, mulher, se estás contrariada / Tu
não és obrigada a viver comigo //
Me faz carinhos; Ismael Silva e
Francisco Alves
6
1930
Se alguma coisa acontecer / Embora saia nos jornais /
Qualquer desgraça é prazer
/ Você merece muito mais
Você merece muito mais; Ismael
Silva
7
1931
Passas por mim, rindo, cantando / Dás com os ombros,
arrastando o sapato / Me debochando / E ainda dizes
pros outros / Só pra moer / Em amar não acho prazer //
Infeliz sorte; Cartola
369
8
1931
Assim poderei te perdoar / se é que mudaste de pensar /
se tens prazer em me ver chorar, / por favor, me deixe
em paz / isso não se faz //
Isso não se faz; Ismael Silva
9
1931
Embora eu abandonado / tenha mais prazer / não vivo
amofinado / agora eu sou bem feliz ( ) ter a vida que eu
quis //
Quero sossego; Ismael Silva,
Nilton Bastos
10
1931
Mesmo sem prazer / Rindo sem querer / Nós devemos /
Disfarçar / Pra não chorar
Ri pra não chorar; Ismael Silva e
Francisco Alves
11
1934
Eu já notei que o seu prazer / é só me provocar / Eu
pago para não brigar / mas se na briga me meter / eu
quero decidir e / pago para não sair //
Cara feia é fome; Ismael Silva
12
1935
Chego quase a não saber / Por que tamanho prazer /
Quando meus olhos te veem / Ó que tentação //
Confissão de amor; Paulo da
Portela
13
1935
Linda borboleta, não seja buliçosa / Deixa minha rosa
que tão linda está no galho / É o meu prazer, ao
amanhecer / Fazer-lhe visita, vê-la banhada de orvalho /
Quando vem o sol, cobre ela de ouro / No jardim do
pobre é um tesouro
Linda borboleta; Paulo da Portela
e Monarco
14
1936
Compreendi o erro em toda a humanidade / Uns choram
por prazer e outros por saudade / Jurei e a minha jura
jamais eu quebrarei / E todo o pranto esconderei
Quem me vê sorrir; Cartola e
Carlos Cachaça
15
1922-1949
Quisera viver deste sonho / Que me dá prazer / A ter que
despertar risonho / E logo sofrer / A dor com saudade
daquela / Que tanto queria / É melhor viver-se de um
sonho / Que traz alegria / Ah se tu voltasses
Sonho; Lincoln Washington
Pereira de Almeida e Paulo da
Portela
16
1972
Você é meu prazer / Meu viver / E toda a minha vida / Eu
queria estar com você / Você sempre ao meu lado
Eu queria viver com você; Valdir
Villarinho e Ismael Silva
A determinação das fontes de prazer dos sujeitos discursivos qualifica-os,
estabelecendo o que os mobiliza, gerando a sensação de bem-estar.
Em (1-3), atribui-se à mulher o prazer por ver o enunciador sofrendo. Assim, ela é
qualificada como cruel e pouco confiável em relações amorosas. O mesmo tipo de
qualificação da mulher se encontra em (4-5, 7-8). Em (6) mantém-se uma postura de
superioridade da mulher, alheia a qualquer adversidade na vida a dois.
Em (9) o enunciador qualifica-se a partir da crença de que vive bem sozinho, numa
postura discursiva muito comum diante de desilusões amorosas. Já em (10), não há afirmação
de que a vida solitária é melhor, mas a defesa da necessidade de se fingir prazer, para tornar a
solidão mais fácil.
Em (12), o enunciador qualifica-se como o apaixonado, para quem a simples visão da
amada é razão de prazer; sentimento semelhante é caracterizado em (16). Em (15), contrapõe-
se o prazer do sonho, em que o enunciador está em harmonia com a amada, com o sofrimento
da realidade, em que ele vive só, com saudades dela.
Em (11), qualifica-se a postura do encrenqueiro, que gosta de provocar os outros e se
envolver em brigas. Já em (13), a fonte de prazer do enunciador é a beleza das flores do seu
jardim.
Em (14), o prazer é mencionado genericamente, como uma das possíveis motivações
para o choro; o enunciador demonstra a sua compreensão da natureza humana a partir dessa
constatação, de que o choro nem sempre ocorre por sofrimento.
370
PRESIDENTE [2 ocorrências em 2 letras do corpus]
1
1922-1949
Vamos deixar correr / A fama suburbana / Por todo este
universo, universo / O samba bem cantado é lindo /
Voltamos na linha de frente / Para presidente o mano
Claudionor
Avante, mocidade, é hora...;
Paulo da Portela
2
1961
Berço nobre de um presidente / A quem felizmente / Dá-
se o seu valor / Campo és o progresso / Pra quem de
coração peço / Um futuro promissor.
Cidade morena; Cartola
Em (1), a ocorrência integra o vocabulário especializado do samba, pois se refere a um
cargo que compõe o organograma de uma escola de samba. A criação de escolas de samba,
com estatutos e organogramas, é um marco de institucionalização do samba carioca, uma
providência que tornava o movimento cultural mais aceitável para os grupos sociais
dominantes.
Em (2), a referência é ao cargo executivo da política nacional. A cidade de Campo
Grande (MS), também conhecida como Cidade Morena, é qualificada positivamente pelo fato
de ter sido local de nascimento de um presidente (o político em questão deve ser Jânio
Quadros, nascido na cidade a 25/01/1917).
PROFESSOR [6 ocorrências em 5 letras do corpus]
1
1930
É o velho, velho Estácio / Vem visitar a Mangueira / E
trazer recordação / Professor, chegaste a tempo / Pra
dizer neste momento / O que devemos fazer / Me sinto
mais animado / A Mangueira a teus cuidados / Vai à
cidade descer
Velho Estácio; Cartola
2
1937
Cem divididos por mil / Cada um com quanto fica / Não
pergunte à caixa surda / Não peça cola à cuíca / Lá no
morro vamos vivendo de amor / Estudando com carinho
o que nos passa o professor.
Teste ao samba; Paulo da
Portela
3
1937
Vou começar a aula / Perante a comissão, muita atenção
/ Eu quero ver se diplomá-los posso / Salve o fessor, dá
nota a eles, senhor / Quatorze com mais doze noves fora
tudo é nosso //
Teste ao samba; Paulo da
Portela
4
déc.1930
Quando trouxer deve pedir ao destino / Que mande pelo
menino recomendação de um bamba / Mais tarde eu
quero que como todo lero-lero / Ele seja professor de
uma Escola de Samba. //
Senhora Dona Cegonha; Paulo
da Portela
5
1950
Não dei trabalho a papai / Não dei trabalho a mamãe /
Me disse o professor
Noronha / Eu vim no bico da
cegonha, / Eu vim no bico da cegonha. //
Bico da cegonha; Ismael Silva
6
1957
É matéria que estudei demais / Por isso me formei ainda
rapaz / Por isso sou professor, sou diretor, sou instrutor.
//
É matéria que estudei demais...;
Cartola
Muitas ocorrências referem-se à condição de sambistas que têm posição destacada no
âmbito da escola de samba, de autoridades na instituição. Há, nesse título, alusão à função de
magistério nas instituições de ensino formal. O uso de elementos do campo semântico da
educação formal é frequente nas letras do corpus. Vejam-se s.v. aula mais considerações
sobre esse fato.
Em (3), a forma fessor, com supressão da sílaba inicial, é uma marca de oralidade e de
informalidade, além de tornar a lexia adequada a coerções musicais.
Em (5), a referência jocosa à figura do professor Noronha faz parte do deboche da
composição carnavalesca ao conservadorismo de instituições tradicionais. Nesse caso, zomba-
371
se de autoridades do ensino formal, às quais se atribuem explicações fantasiosas para a
reprodução humana.
Já em (6), o enunciador considera que a sua experiência de vida o qualifica como
autoridade no assunto. Trata-se de um raciocínio semelhante ao que motiva as titulações de
sambistas valorosos com professores de escolas de samba.
PROVÉRBIO [1 ocorrência no corpus]
1944
Devemos ter adversários / Como Oswaldo Cruz / Diz o provérbio / Da
discussão é que nasce a luz / Outra escola que não poderia acabar / É
o velho Estácio de Sá
Silenciar a Mangueira; Cartola
O uso de provérbios nas letras de samba, recurso de interdiscursividade que dá mais
força às teses defendidas, já foi comentado na análise qualitativa do corpus. Nesse caso, a
citação do provérbio é anunciada explicitamente, numa evocação da autoridade da sabedoria
popular a dar mais força enunciativa ao princípio afirmado.
372
3.2.20 – Letra Q
QUERER (vb.) [165 ocorrências em 102 letras do corpus]
3
1929
Beijos, ainda quero / Mais beijos dos lábios teus / Beijos,
para satisfazer os meus / Beijos, nem que sejam de
falsidade / Beijos, melhor que fossem de verdade
Beijos, ainda quero...; Cartola
5
1929
Ai, como é triste viver assim / Enganado por seu bem /
Sei que jamais terei piedade / Não quero amor de
ninguém
Para mim perdeste o valor;
Ismael Silva
7
1931
És para mim uma uvinha / Uma linda moreninha / Que eu
quero guardar / Eu sei que você está querendo / Anda,
assim não me arrependo / Acho bom aproveitar.
Anda, vem cá; Ismael Silva,
Nilton Bastos e Francisco Alves
12
1931
Carinho sem a nota / não adianta mulher / diz que amor
é lorota / é bom para quem quiser / Eu não aceito / sou
espertinho / Eu acho direito / amor, nota e carinho //
Carinho eu tenho; Ismael Silva
14
1931
Tu falas muito, meu bem, / E precisas deixar / Senão eu
acabo dando pra gritar na rua: / Oh! Eu quero uma
mulher bem nua //
Nem é bom falar; Ismael Silva,
Nilton Bastos e Francisco Alves
17
1931
Não hei de dar mais golpe errado / eu também sofri / eu
tenho me enganado / hoje vivo sem pensar / porque não
quero mais esse golpe baixo //
Quero sossego; Ismael Silva,
Nilton Bastos
18
1931
Quero sossego // Quero viver sempre descansado /
embora abandonado / até morrer / porque a vida de
quem ama / é sofrer / é sofrer //
Quero sossego; Ismael Silva,
Nilton Bastos
21
1932
Disseste que te enganei / Não sou tão fingido assim /
Talvez queiras um pretexto / pra viver longe de mim /
Disseram que eu traía / a nossa grande amizade / E tão
criminosa a culpa / que não pode ser verdade
Qual foi o mal que eu te fiz?;
Cartola
29
1936
Não é isso que eu procuro / Você não me dá futuro / Me
deixe em paz / Tenho mais vantagem // Eu juro que, hoje
em dia / Mulher dentro da orgia / Não quero mais //
Não é isso que eu procuro;
Ismael Silva e Francisco Alves
33
1939
Ninguém te dá valor / Ninguém de ti tem dó / Não queres
o amor / De uma pessoa só / Se a regeneração / Vier te
interessar / Com a minha proteção / Podes contar //
Com a vida que pediste a Deus;
Ismael Silva
34
déc.1930
Se eu tivesse / Com que fizesse / Que você deixasse /
De olhar pra mim / Não vivia sofrendo / Nem de mim
maldizendo / Porque os seus olhos malvados / Querem
assim
Se eu tivesse...; Cartola
37
1941
Você quer eu não dou, ô, ô / Eu não dou liberdade a
mulher / Porque vou confessar / A nossa amizade / Pode
acabar // Até aqui nosso amor / Tem um certo sabor /
Que me faz tanto bem, / Eu construí nosso lar / Mas você
quer acabar!...
Não dou liberdade a mulher;
Ismael Silva
41
1943
Já sei que tu tens sem riqueza / mas assim eu não
preciso / pra dizer-te com franqueza / antes quero
prejuízo //
Me deixa sossegado; Ismael
Silva, Nilton Bastos e Francisco
Alves
45
1952
Não é preciso se assustar / Não quero o seu algum / Eu
gosto é de brincar / o seu não se espera nenhum / Até a
cor nunca se vê / Nem para um café / Por isso em você
ninguém faz fé
Ninguém faz; Ismael Silva e
Paulo Medeiros
50
1975
Todo mundo quer // Trabalho igual ao meu / Todo mundo
quer / Mas nem todos podem arranjar / Pego às onze
horas / Largo ao meio-dia / E tenho uma hora pra
almoçar //
Todo mundo quer; Ismael Silva
51
1976
Aconteceu / Eu não esperava mais acontecer / Todo o
bem que fiz se quiser
esquecer / Revelando a sua
imprudência / Construí o lar, o lar que ela pedia / Exigiu-
me coisas que ela não queria
//
Aconteceu; Cartola
58
1929-1930
O meu perdão / tu não terás / o teu amor não quero mais
/ a tua ausência / não me maltrata / tua amizade a mim
não faz falta //
Não te dou perdão; Ismael Silva
62
1955-1980
Deixa / Quando ela ouvir os meus poemas vai chorar / A
consciência vai lhe castigar / Perdão não quero nem vou
perdoar
Deixa; Cartola e Nelson Sargento
Essas ocorrências correspondem à expressão de desejos, significação corrente no
vocabulário comum da língua. Seguem-se alguns comentários de casos peculiares.
Em (7), a lexia indica a disponibilidade da mulher para ligações amorosas. A ausência
de complementação para o verbo faz com que o desejo seja identificado pelo contexto, que é
373
de cortejo amoroso do enunciador em relação a ela.
Em (34), a colocação querer assim é atribuída aos olhos da mulher, personificados
como os experienciadores do desejo de sofrimento do enunciador. Nesse caso, entretanto,
mais do que um desejo, a colocação expressa uma determinação proveniente de uma relação
assimétrica — querer é poder.
A combinação antes quero prejuízo (41) é uma expressão de rejeição de uma
possibilidade (nesse caso, ter uma relação conturbada com uma mulher rica) e de preferência
por outra, aparentemente não vantajosa à primeira vista (ficar no prejuízo). O enunciador
sugere, por meio dela, que as condições da primeira possibilidade são insatisfatórias para ele,
que se considera melhor em uma situação alternativa.
Em (45), há a colocação não quero o seu algum, uma gíria em que algum faz
referência indireta a dinheiro. Outras colocações, também giriescas, que acionam a mesma
significação de algum, são pedir algum, dar algum etc.
Colocação querer [alguém]
1
1924
Fingiste não compreender / Que por mim foste amada /
Esqueci tudo, tudo, tudo / E o quanto te quis //
Dor que ensina; Paulo da Portela
15
1931
Tu não me tens amor, meu bem (oleleô) // Você diz que
não me quer / Você diz que me adora / Quando tu me
vê, mulher, / Por que é que você chora (será promessa?)
//
Oleleô; Ismael Silva, Nilton
Bastos e Francisco Alves
23
1933
Observo que, hoje em dia, / Quem não quis diz que me
quer / Cabe muita hipocrisia / Num capricho de mulher /
Vou viver desiludido, / Sem amor, sem ideal / Pra não ser
submetido / A desejo tão banal //
Quem não quer sou eu; Ismael
Silva e Noel Rosa
42
1922-1949
Aceite um conselho de amigo / Não queiras ter tão triste
fim / Eu sei que a vida de quem ama é assim / Manda
embora essa tristeza / Esqueça alguém que não te quis /
Canta e serás feliz
Conselho; Lincoln Washington
Pereira de Almeida e Paulo da
Portela
43
1922-1949
Quisera viver deste sonho / Que me dá prazer / A ter que
despertar risonho / E logo sofrer / A dor com saudade
daquela / Que tanto queria / É melhor viver-se de um
sonho / Que traz alegria / Ah se tu voltasses
Sonho; Lincoln Washington
Pereira de Almeida e Paulo da
Portela
49
1974
Chora / Disfarça e chora / Aproveita a voz do lamento /
Que já vem a aurora / A pessoa que tanto querias /
Antes mesmo de raiar o dia / Deixou a escola com outro /
Oh! Triste senhora //
Disfarça e chora; Cartola e
Dalmo Castello
54
1922-1978
Creio que me queres cegamente / Eu porém tenho
receio / De que fiques diferente / Antes que tu mudes de
ideia / Já que somos tão amantes / Façamos a nossa
estreia. //
Receio; Ismael Silva
60
1931-1932
Meu bem querer / Não mais me quis / Foi um favor que
me fez / Posso dizer que sou feliz / E que chegou a
minha vez (Eu vou gritar...) //
Liberdade; Ismael Silva e
Francisco Alves
Querer alguém é uma expressão de envolvimento amoroso de uma pessoa com outra
que é paciente do desejo expresso pelo verbo. Esse desejo pode ser intensificado por marcas
como cegamente (54). Outras expressões de intensidade são o quanto [alguém] quer
[alguém] (1) e [alguém] querer tanto [alguém] (43, 49).
374
Frasema sem querer
2
1924
Mulher, tu és orgulhosa / E tens o jeito / de me fazer
sofrer. / Mulher, esse mundo não é nosso / Aqui a gente
paga sem querer.
Mulher, tu és orgulhosa; Paulo da
Portela
10
1931
Eu fiz tudo / Pra esquecer a quem amei / Hoje estou
arrependido / Sem querer eu já chorei / Eu já chorei /
sem querer. //
Arrependido; Ismael Silva, Nilton
Bastos e Francisco Alves
19
1931
Mesmo sem prazer / Rindo sem querer / Nós devemos /
Disfarçar / Pra não chorar
Ri pra não chorar; Ismael Silva e
Francisco Alves
56
1928-1980
Sim / Estou sentindo amor / E arrependido de tudo que
fiz estou / A ternura que eu guardava, vai / Com este
resto de amor / Que se esvai na canção / Que eu
compus sem querer
Estou sentindo; Cartola
57
1928-1980
Hoje sem querer // Hoje sem querer / Que vim a saber /
Que gostas de ouvir / Quando canto, ó flor / Ficas
comovida / Derramando pranto / Achas um encanto /
Neste teu cantor //
Hoje sem querer; Cartola e
Babau
Sem querer é um frasema de uso larguíssimo, que chega a constituir uma unidade
gramatical cristalizada — sua função é adverbial e a significação corresponde a um modo de
agir não intencional, não controlado pelo agente.
Colocação querer bem
4
1929
Eu vou deixar certa amizade / Que para mim não
convém / Ela só usa de falsidade / Dizendo me querer
bem //
Para mim perdeste o valor;
Ismael Silva
20
1932
Aurora vem raiando anunciando o nosso amor, ô, ô / A
felicidade promete, mas não vem / Só vem a saudade,
saudade é querer bem, ô //
Ao romper da aurora; Ismael
Silva, Lamartine Babo e
Francisco Alves
26
1935
Favela de meus amores / Todo mundo te quer bem /
Favela que tem morenas / Que outros não têm
Favela de meus amores; Paulo
da Portela
35
déc.1930
Existe neste reduto / Alguém que eu venero / E quero
tanto bem / Fiquei triste / Porque me disseste / Que essa
pessoa que eu quero / Não pode gostar de ninguém.
Se eu tivesse...; Cartola
Essa é uma colocação que tanto pode expressar o amor quanto a afinidade entre duas
pessoas. A maioria das ocorrências corresponde ao primeiro caso. Em (26) há a afirmação do
gosto generalizado das pessoas pela favela, que é destinatária da enunciação — a posição da
favela como paciente do querer bem é uma marca de personificação.
Colocação Deus/o destino quer
11
1931
Carinho eu tenho até demais / e a nota é como eu te
digo / O meu desejo é uma ordem meu bem / quando
Deus quer não há castigo //
Carinho eu tenho; Ismael Silva
27
1935
Liberdade / Para este pobre infeliz / Que o destino assim
quis / É sofrer de amor / Liberdade / Não posso mais
ocultar tanta dor //
Liberdade; Paulo da Portela e
Dengo
31
1936
Não quero mais / Amar a ninguém / Não fui feliz / O
destino não quis / O meu primeiro amor / Morreu como a
flor / Ainda em botão / Deixando espinhos / Que
dilaceram meu coração //
Não quero mais amar a ninguém;
Cartola, Carlos Cachaça e Zé da
Zilda
40
1942
Oh! para que chorar / Só para enganar / Sentida quando
eu sei / Que és fingida / Só para iludir / Fazer pensar / E
depois tu sorrir // Ora vai mulher / Já que teu destino
quer / Vai não te desejo mal / Sei que teu pesar / Um dia
será fatal
Oh, pra que chorar; Paulo da
Portela
Vejam-se s.v. Deus e destino mais informações sobre essas colocações.
Frasema querer o mal de [alguém]
47
1973
Tua decência sendo artificial / Não há motivo para tanta
altivez / Tu sabes bem que se eu / Quisesse o teu mal /
Entrada franca só terias no xadrez. //
Entrada franca; Ismael Silva
375
O frasema expressa a atitude desfavorável do enunciador em relação a alguém. É
comum que figure em estruturas condicionais, com uma decorrência esclarecida
posteriormente.
Pragmatema quem não quer sou eu
24
1933
Ao ouvir tua proposta, / Tão fingidas frases juntas / Achei
uma só resposta / Que responde a mil perguntas / Hás
de ter, em tua vida, / Um destino igual ao meu / Podes ir
desiludida, / Hoje quem não quer sou eu
Quem não quer sou eu; Ismael
Silva e Noel Rosa
25
1933
Quem não quer sou eu // Quando eu queria o teu amor /
Não davas atenção ao meu / Pra mim tu não tens mais
valor / Agora quem não quer sou eu //
Quem não quer sou eu; Ismael
Silva e Noel Rosa
O pragmatema expressa uma atitude de desforra do enunciador que por algum tempo
teve de lidar com a indiferença de alguém em relação a assunto que era do seu interesse e
presentemente está em posição de demonstrar a mesma indiferença diante do interesse alheio.
Nas ocorrências em questão o interesse é pelo envolvimento amoroso.
Pragmatema que queres que eu faça
30
1936
Não digo que tenho raiva / Por você ser da orgia / Quero
dizer que não serve / Para minha companhia // Sei que
você não é feia / Tu és linda criatura / Meu bem, que
queres que eu faça / Não vou quebrar minha jura
Não é isso que eu procuro;
Ismael Silva e Francisco Alves
A fórmula de rotina expressa a impotência do enunciador diante de circunstâncias
impositivas que fazem com que aja de determinada forma — nesse caso, tais circunstâncias
seriam uma jura que ele teria feito, de não se envolver com mulheres da orgia. Também é
possível que a expressão seja uma demonstração velada de desprezo, com o enunciador
dizendo, na verdade, que não quer fazer nenhum esforço para modificar suas disposições.
Os pragmatemas se Deus quiser e verde que te quero rosa estão analisados,
respectivamente nas entradas Deus e verde. Veja-se também s.v. fazer a análise do
pragmatema fazer de [algo/alguém] o que [alguém] bem quer.
Já o frasema fez da musa o que queria está analisado s.v. fazer.
QUERER (subst.) [4 ocorrências em 4 letras do corpus]
Pragmatema meu [bem] querer
13
1931
Não faz assim, / Minha iaiá, meu querer, / Você pra mim
está bancando o chiquê.
Me diga o teu nome; Ismael
Silva, Nilton Bastos e Francisco
Alves
32
1938
Jamais te esquecerei / Pecadora mulher / Com os beijos
que te dei / Eu fiz-te meu querer / Meu amor desprezaste
/ Em busca de aventura / Mas bem caro pagaste / O
teres sido tão perjura //
Pecadora mulher; Paulo da
Portela
39
1942
Na nossa vida não há desprazer / O nosso amor é difícil
perder? / Não tenho queixa do meu bem querer
/ Ela
também não tem queixa de mim / Antes assim.
Não tenho queixa; Ismael Silva e
David Raw
59
1931-1932
Meu bem querer / Não mais me quis / Foi um favor que
me fez / Posso dizer que sou feliz / E que chegou a
minha vez (Eu vou gritar...) //
Liberdade; Ismael Silva e
Francisco Alves
376
Em (13, 39, 59), essa é uma fórmula de tratamento para alusão à pessoa amada. Na
maior parte dos casos, esse tratamento é usado em referências à relação harmoniosa entre duas
pessoas. Em (59), entretanto, detecta-se um tom de ironia, com o trocadilho meu bem querer
não mais me quis, em que se joga com o verbo querer para marcar a dessintonia do casal.
Em (32), na estrutura com o verbo fazer transobjetivo, fazer de [alguém] o bem querer
de [alguém], ressalta-se a mudança de qualificação da destinatária, que se torna especial aos
olhos do enunciador, e intensidade da experiência amorosa do próprio enunciador.
377
3.2.21 – Letra R
RAÇA [2 ocorrências em 2 letras do corpus]
1
1940
Jamais tu irás a um samba / E tenho as minhas razões
/ Quando entras no batuque / Esqueces as obrigações. /
Pense o caso bem direito / Te aconselho a que não
faça / Proibir-me do batuque / Tradição de nossa raça.
Vamos embora, ó, flor; Paulo da
Portela
2
déc.1940
Saibam que este céu, este mar / Este lindo cenário /
Temos a defendê-lo os nossos expedicionários /
Oriundos da raça de Caxias / de Barroso e dos
Tamandarés / Diante desta gente, tão pura e tão forte, /
Nazista, quem és?
Nazista, quem és?; Cartola e
Carlos Cachaça
A lexia raça ocorre em (1) com a função de justificar o gosto pela diversão do
batuque, considerado característico de um determinado grupo — não fica completamente
claro se o grupo em questão são os negros ou todos os brasileiros.
Em (2) a referência é a um outro tipo de agrupamento — o dos heróis nacionais,
tomados como se constituíssem um grupo privilegiado de pessoas mais “puro” e “forte”,
conforme as palavras da composição.
O acionamento desses valores condiz com a ideologia do início do século XX,
principalmente do período estado-novista, quando se buscou instituir uma identidade cultural
brasileira a partir do conceito de mestiçagem racial (veja-se a primeira parte deste trabalho).
Na época de produção desse samba, portanto, a justificativa racial para traços culturais e
feitos históricos era razoável, por ser condizente com a ideologia dominante.
Entretanto, é necessário dizer que, com base nos conhecimentos que se tem
atualmente, o uso da raça para justificar fatos como a afinidade com o samba revela
concepção determinista da identidade cultural. O próprio conceito de raça, que não se sustenta
biologicamente, costuma ser, hoje, preterido em benefício de concepções que admitam mais
maleabilidade na consideração dos traços que distinguem as pessoas, consideradas
socioculturalmente, sem a crença em uma essência, de base biológica, que defina
temperamento e tendências de comportamento
69
.
RAIADO [1 ocorrência no corpus]
1933
Lá vem ela, lá vem ela / Com o ioiô do seu lado / Arrastando a chinela /
Dizendo samba raiado //
Dona do lugar; Ismael Silva e
Francisco Alves
Veja-se a análise do quase-frasema samba raiado s.v. samba.
69
Para um histórico dos conceitos de raça e racismo e uma apreciação das implicações ideológicas do seu uso, vejam-se os
trabalhos de MUNANGA, Kabengele. Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia.
Disponível em www.acaoeducativa.org.br/downloads/09abordagem.pdf e de ZARUR, George de Cerqueira Leite. Raça:
biologia e construção social. Nota técnica da Consultoria Legislativa da Câmara dos Deputados, 2005. Disponível em
www2.camara.gov.br/publicacoes/estnottec/tema11/2005_10517.pdf.
378
RAINHA [3 ocorrências em 3 letras do corpus]
1
1922-1949
Bendita sejas tu, oh! Liberdade! / Rainha absoluta do
sucesso, / Sem ti não haverá felicidade, / Sem ti não
sorrirá todo o universo!
Bendita sejas tu...; Paulo da
Portela
2
1965
Tem tem tem pandeiro agogô / Vê vê vê se falta ganzá /
O rei vem vem / vem de Luanda / vamos saravá saravá /
A rainha também / Não vai demorar / Hoje vai ter samba
Dolores / Vamos que eu quero sambar.
Ensaio de rua; Barbosa da Silva,
José Lima e Cartola
3
1976
Minha, quem disse que ela foi minha / Se fosse seria a
rainha / Que sempre vinha aos sonhos meus //
Minha; Cartola
Como já foi observado s.v. Luanda, em (2) a referência a rei e rainha acrescenta ao
conteúdo da composição elementos próprios da congada. Sem as marcas da referência à
cidade africana e da interjeição saravá, por exemplo, a lexia rainha poderia pertencer
exclusivamente ao universo discursivo do samba, pois nas escolas de samba também há, por
exemplo, rainhas de bateria.
Em (3), a lexia faz referência à condição da amada na perspectiva do enunciador
apaixonado. A alusão à mulher como rainha comporta significações de entrega do amante,
como se estivesse submetido a ela.
Em (1), a liberdade, valor humano essencial, é personificada como uma rainha, o que
também aciona a significação de superioridade desse valor para os homens.
RAZÃO [28 ocorrências em 27 letras do corpus]
1
1924
Reclamo com muita razão / O mal que me causaste /
Não é porque não tenho forças / Para resistir / Sinto-me
fugir a calma / Doer em cheio dentro d'alma / Para poder
zombar / E com prazer sorrir
Podes gargalhar; Paulo da
Portela
2
1926
Não sei qual a razão que tu / Lastimas a sorte meu bem /
Chorar de fingimento é triste / São bem poucos os que
resistem / iludir não convém
Chorar de fingimento; Paulo da
Portela
3
1929-1930
Eu não podia ter imaginado / agora é tarde / (...) / fizeste
mal / sem ter razão / por isso mesmo / não darei meu
perdão.
Não te dou perdão; Ismael Silva
4
1931
Eu só quero ver o seu proceder / e a tua promessa é
fatal / eu tenho razão
/ não digas que não / porque tu já
me fizeste mal.
Isso não se faz; Ismael Silva
5
1931
Sonhei que vais me abandonar / Se é verdade, não tens
razão
/ E, se foi sonho, / Eu não sei se será ou não //
Sonhei; Ismael Silva, Nilton
Bastos e Francisco Alves
9
1932
Eu, cismado, espero agora / Ver você a qualquer hora /
Dando a outro o coração / Quando chegar esse dia /
Deixo sua companhia / Sem explicar por que razão.
Ando cismado; Ismael Silva e
Noel Rosa
10
1932
Assim, sim / Mas assim também, não / Já não gostas
mais de mim / Mas eu não te dei razão //
Assim, sim; Ismael Silva, Noel
Rosa e Francisco Alves
11
1932
Estou vivendo com você / Num martírio sem igual / Vou
largar você de mão / Com razão / Para me livrar do mal //
Para me livrar do mal; Ismael
Silva e Noel Rosa
12
1932
Ainda tenho alguma esperança / Que um dia hás de
perder a pretensão / Por isso eu digo: quem espera
sempre alcança / E mais tarde hás de ver quem é que
tem razão.
Quem espera sempre alcança;
Paulo da Portela
13
1934
Você não deve me ofender / Eu não lhe dei razão / nem
ando atrás de discussão / Se eu procurasse me
esconder / de cara anormal / não assistia o carnaval.
Cara feia é fome; Ismael Silva
14
1934
Choro sim, com razão, / Não tem fim minha aflição... / Me
acompanha noite e dia / Uma grande nostalgia! //
Choro sim; Ismael Silva
15
1934
A razão eu não conto a ninguém / Até faço questão de
sempre ocultar / Porque eu sei que existe alguém / Que
da minha aflição muito vai se gloriar
Choro sim; Ismael Silva
17
déc.1930
É preciso saber / Qual de nós tem razão / Desta maneira
assim / Não pode continuar / Tu te queixas de mim / Eu
me queixo de ti / Depois que será de nós dois / Quando
a justiça chegar.
É preciso saber; Paulo da Portela
379
19
1945
Me contrariei / Por que razão? / Só eu mesmo sei
/ Diga, então! / Eu que sempre fui leal / A quem só
me fez o mal / Devo ser feliz / Tu serás! / O bem que
eu fiz / Ninguém faz
Deus te ouça; Paulo da Portela e
Cartola
20
1950
Andas fugindo de mim / Como o diabo da cruz / Não
queres mais nem me dar atenção / Teimei, gastei meu
latim, / Da discussão nasce a luz, / Mas nem assim tu me
deste razão
Macaco me lamba; Ismael Silva
23
1977
Não vou culpar os amigos / Fingidos que outrora eu tive /
Na vida / Nem vou dizer / Que a razão do fracasso / Se
prende a batalhas perdidas
A canção que chegou; Cartola e
Nuno Veloso
24
1977
Dizem que estou desfigurado, com razão / Estou
cansado de pedir / A Deus, aos céus enfim / Um amor,
onde encontrarei, Senhor? / Livrai-me desta nostalgia /
Confiante ainda espero um dia //
Desfigurado; Cartola
26
1928-1980
Pequena, tu vais ao samba / Ver as línguas que falam de
mim / Sem razão / Tu sabes que o mulato é sincero / E
tem critério / E sabes meu leal procedimento / Como é
Tu vais ao samba; Cartola
27
1955-1980
Deixa / A razão dizer quem tem razão / E o fantasma da
ingratidão / Se retira com desfaçatez
Deixa; Cartola e Nelson Sargento
A referência, na maioria dos casos, é à perspectiva de um dos parceiros em uma
relação amorosa conflituosa, segundo a qual as atitudes que assumem são justas diante das
circunstâncias da relação; também pode dizer respeito ao julgamento do comportamento do(a)
parceiro(a), geralmente considerado injusto. É isso que se vê em (1, 3-5, 10-14, 15, 17, 20, 24,
26-27). Nesses casos são comuns unidades sintáticas de valor adverbial como com/sem razão,
além das colocações com verbo-suporte dar razão e ter razão, com suas formas negativas.
É interessante observar que em (27) um trocadilho é usado para enfatizar que o senso
de justiça independe das opiniões dos litigantes, e a demonstração de quem agiu corretamente
em um desentendimento é uma questão de tempo e de racionalidade. Para dar voz a essa tese,
personifica-se a própria razão como juíza do comportamento dos dois; a redundância de a
razão dizer quem tem razão ressalta essa ideia de resultado inescapável e evidente.
Em (2, 9, 15, 19, 23), a referência é à causa determinante de um evento, ou do
comportamento de alguém. Nas três primeiras ocorrências, o enunciador afirma ignorar a
causa de um evento (principalmente uma reação desfavorável da mulher), ou que prefere
ocultar o motivo de determinado comportamento seu. Em (19), a ocorrência na verdade
integra o pragmatema por que razão?, fórmula de rotina interrogativa, marcadamente oral,
usada para caracterizar o diálogo entre dois amigos, em que um quer saber a causa do
sofrimento do interlocutor. Em (23), a lexia figura em uma composição da área temática
“reflexões existenciais”, na qual o enunciador afirma sua disposição de não considerar que
reveses do pretérito, representados metaforicamente como batalhas perdidas, são causa de
dificuldades presentes. Qualifica-se, assim como alguém esperançoso e em harmonia com a
vida, traços marcantes da postura discursiva de “A canção que chegou”.
Frasema estar com a razão
16
1935
Por querer me contrariar, / Não queres dizer / Que eu
estou com a razão
... / Eu ainda vou te provar... / Não
faltará ocasião. //
Não faltará ocasião; Ismael Silva
380
O conteúdo desse frasema é semelhante ao comentado anteriormente: por meio dele, o
enunciador afirma que a justiça o favorece em sua disputa com a parceira. Assume uma
postura de tranquilidade, reforçada por marcas como provar e pelo pragmatema não faltará
ocasião.
Pragmatema a razão dá-se a quem tem
6
1932
Sei que não posso suportar / (Se meu amor me deixar) /
Se de saudades eu chorar / (Eu não posso me queixar) /
Abandonado sem vintém / (Vou sofrendo sem dizer nada
a ninguém) / Quem muito riu chora também / (A razão
dá-se a quem tem) //
A razão dá-se a quem tem;
Ismael Silva, Noel Rosa e
Francisco Alves
7
1932
Eu vou chorar só em lembrar / (Se meu amor me deixar)
/ Dei sempre golpe de azar / (Eu não posso me queixar) /
Pra parecer que vivo bem / (Vou sofrendo sem dizer
nada a ninguém) / A esconder que amo alguém / (A
razão dá-se a quem tem)
A razão dá-se a quem tem;
Ismael Silva, Noel Rosa e
Francisco Alves
8
1932
A razão dá-se a quem tem // Se meu amor me deixar /
Eu não posso me queixar / Vou sofrendo sem dizer nada
a ninguém / A razão dá-se a quem tem //
A razão dá-se a quem tem;
Ismael Silva, Noel Rosa e
Francisco Alves
O pragmatema costuma ser usado para enfatizar, semelhantemente a casos anteriores,
que não há como contestar a justiça e que, portanto, deve-se aceitar a autoridade de quem está
correto. Essa fórmula do senso comum, entretanto, costuma ser usada mais frequentemente
(como é o caso de todas as ocorrências dessa canção) para reconhecer a correção da posição
alheia, ao invés da do enunciador.
Pragmatemas tenho as minhas razões e tenho bastantes razões para [fazer algo]
18
1940
Jamais tu irás a um samba / E tenho as minhas razões
/ Quando entras no batuque / Esqueces as obrigações. /
Pense o caso bem direito / Te aconselho a que não
faça / Proibir-me do batuque / Tradição de nossa raça.
Vamos embora, ó, flor; Paulo da
Portela
21
1955
Este jardim foi palco de grande tragédia / Mas dentro de
mim transformei / Tudo em comédia / Razões bastantes
eu tenho / Para as flores odiar / Pois a flor tombou,
murchou, / Mas sem querer falar.
Interroguei uma rosa; Cartola
A tônica desses pragmatemas é autorizar o enunciador, dizendo que a justiça lhe
permite tomar determinada atitude. Em (18), ele tenta proibir a mulher de participar da roda
de samba, por recear a possibilidade de infidelidade.
Em (21), entretanto, enfatizam-se as causas de um evento psicológico experienciado
pelo enunciador: uma desilusão amorosa sofrida em um determinado jardim que teria lhe
ocasionado uma aversão a flores. Essa afirmação deve ser interpretada à luz das práticas do
discurso amoroso, cujo arrebatamento emocional dá espaço a declarações hiperbólicas.
RECORDAÇÃO [3 ocorrências em 3 letras do corpus]
1
1930
É o velho, velho Estácio / Vem visitar a Mangueira / E
trazer recordação / Professor, chegaste a tempo / Pra
dizer neste momento / O que devemos fazer / Me sinto
mais animado / A Mangueira a teus cuidados / Vai à
cidade descer
Velho Estácio; Cartola
381
2
1941
Pauliceia, ô / Pauliceia, ô / Seja ele a voz do coração /
Ele é o reduto destas rimas sinceras / Tiradas da alma
em doces quimeras / Esperamos guardá-las como
recordação / E sendo assim nada mais poderá dissolver /
Esta nossa união
Pauliceia; Paulo da Portela e
Cartola
3
1943
Maestro, toque aquela / Aquela que me traz recordação /
Do ano que já passou / E deixou saudades no meu
coração // Ai, ai, ai, ai / Eu nem posso me lembrar / Que
música boa pra gente dançar
Maestro, toque aquela!; Ismael
Silva e José de Almeida
Em (3), traz recordação, colocação com verbo-suporte, diz respeito a uma música que
faz o enunciador experimentar emoções relacionadas a eventos passados. A mesma colocação
ocorre em (1), dessa vez para destacar o papel do velho Estácio, o bairro personificado,
representando o grupo de sambistas que, assumindo o papel de transmitir a tradição do samba,
afirma valores tradicionais do grupo. A referência de recordação é relacionada a essa
tradição.
Em (2), a lexia refere-se à experiência de intercâmbio com os paulistas, que os
enunciadores prometem manter como símbolo de amizade.
RECORDAR [3 ocorrências em 3 letras do corpus]
1
1960
Os tempos idos, nunca esquecidos, / Trazem saudades
ao recordar / É com tristeza que relembro / Coisas
remotas que não vêm mais
Tempos idos; Cartola e Carlos
Cachaça
2
1922-1978
Eu já gostei de você / Para de novo gostar / é preferível
morrer. / Se o desprezo é pecado / serei um pecador /
recordando o passado. //
Sei, você anda sofrendo; Ismael
Silva
3
1980
Dispara coração / Desanda a recordar / Ah, pretextos
não te faltam, não / Obediente, teu coração vai entender
/ Mas é preciso regressar / Ao fundo desse meu quintal /
Ao passaraio que ficou / Nas pipas soltas pelo ar
Fundo de Quintal; Cláudio Jorge,
Cartola e Hermínio Bello de
Carvalho
A lexia, cuja significação implica a experiência de retomar experiências passadas, é,
na ocorrência (1), o mote inicial da composição, cujo propósito é narrar as transformações
ocorridas no samba, desde a época da praça Onze até quando passou a ter projeção
internacional. O enunciador mostra-se nostálgico ao iniciar esse esforço de memória.
Também há uma carga nostálgica em (3). O coração é personificado e, aproveitando-
se a sua simbologia de emotividade, torna-se o experienciador das lembranças de infância
enumeradas na letra.
Já em (2), o enunciador recorre à lembrança do passado para justificar sua cautela
diante do arrependimento de uma ex-companheira que o teria prejudicado.
REI [4 ocorrências em 4 letras do corpus]
1
1931
Também dou a minha bola / Golpe errado ainda não dei /
Eu vou chamar Chico Viola / que no samba ele é rei
/ (Dá
licença, seu Mário?) //
O que será de mim; Ismael Silva,
Nilton Bastos e Francisco Alves
2
1935
Vem, borboleta, brejeira, voar / Em teu reino imperar, /
Ruflam suas asas / Nas manhãs cantar / Vem, borboleta,
brejeira, voar / Em teu reino imperar / Ele, o Rei Momo /
a glória conquistar.
Quando silencia a voz das aves;
Paulo da Portela
3
d1937
Era o rei / Da filosofia / Fez da musa o que queria /
Zombou da inspiração / Os seus versos ritmados / Por
ele mesmo cantados / Tinham bela entoação //
A Vila emudeceu; Cartola
382
4
1965
Tem tem tem pandeiro agogô / Vê vê vê se falta ganzá /
O rei vem vem / vem de Luanda / vamos saravá saravá /
A rainha também / Não vai demorar / Hoje vai ter samba
Dolores / Vamos que eu quero sambar.
Ensaio de rua; Barbosa da Silva,
José Lima e Cartola
Conforme já foi assinalado em Luanda e rainha, a alusão a um rei na ocorrência (4),
somada às outras marcas já analisadas nesses verbetes, confere ao ensaio de rua descrito na
letra uma caracterização com traços congêneres aos da congada. Vejam-se aqueles verbetes.
Nas ocorrências (1) e (3) há o frasema ser o rei de [atividade / área de conhecimento],
usado para caracterizar alguém como muito habilidoso em algo. Seu uso, portanto, identifica
no segundo caso Noel Rosa como um compositor de letras profundas, ricas em conteúdo
(veja-se filosofia para uma exposição da sua significação no universo discursivo do samba).
No primeiro caso, o frasema serve para autorizar Francisco Alves como alguém versado no
samba e digno do convite para interpretar a composição O que será de mim. Nesse caso, o
credenciamento é, além de musical, também comportamental, pois autorizaria o intérprete a
dizer-se malandro.
Em (2), ocorre o quase-frasema rei momo, que integra o vocabulário especializado do
samba, visto que designa o personagem que exerce o papel de comandante da folia
carnavalesca. A menção ao rei momo na letra, portanto, localiza temporalmente a cena
descrita, relacionando-a aos dias de carnaval.
REQUEBRAR [1 ocorrência no corpus]
1935
Canta meu bem / Requebra macio de forma / Que mexas com todos
nós / Queremos ouvir / A sorrir, a candura da tua voz //
Canta, meu bem; Paulo da Portela
A lexia refere-se a uma maneira de dançar, valorizando os movimentos dos quadris.
Seu uso ajuda a qualificar a destinatária como uma boa dançarina de samba. A colocação do
verbo com o adjetivo macio empresta a esta última lexia traços particulares, de graciosidade e
sensualidade.
RIMA [3 ocorrências em 3 letras do corpus]
1
1941
Pauliceia, ô / Pauliceia, ô / Seja ele a voz do coração /
Ele é o reduto destas rimas sinceras / Tiradas da alma
em doces quimeras / Esperamos guardá-las como
recordação
Pauliceia; Paulo da Portela e
Cartola
2
1922-1949
Seus olhos são dois flocos, / luminosos e sedutores / Se
com desprezo me olhas, me causas doenças, dores /
Pelo amor de Deus te peço / tenhas compaixão de mim /
veja as rimas
destes versos / Meu bem, não olhes assim
Olhar assim; Paulo da Portela
3
1928-1980
Orgia, hoje és minha inimiga / Os sofrimentos me
obrigam / A me afastar de você / Adeus, violão / Amigo
leal / Estes versos que eu fiz / Devem ser / A rima final
Orgia; Cartola
Em (1), a lexia refere-se metonimicamente à própria canção, com ênfase ao seu
componente linguístico. As rimas são qualificadas a partir de marcas presentes em outras
partes da canção: da intenção amigável dos sambistas, que querem confraternizar com os
383
paulistas (adjetivo sinceras), e de afetividade (frasema voz do coração).
Em (2-3), a referência é à recorrência sonora presente nos versos; em ambos os casos,
há menção tanto a versos quanto a rimas como componentes dos mesmos. No primeiro caso,
usa-se a beleza desse efeito sonoro para conseguir a simpatia da mulher indiferente que se
tenta conquistar. No segundo caso, a colocação rima final destaca a intenção do enunciador,
de abandonar a orgia, o violão e a composição; a ocorrência carrega o tom melancólico da
despedida, reforçado pela qualificação amigo, atribuída ao violão.
RIO [6 ocorrências em 6 letras do corpus]
1
1941
Todos que pertencem ao samba / No Rio te mandam um
abraço. / Pauliceia, ô / Pauliceia, ô / Queremos com este
samba / Estreitar os nossos laços / Esse samba traduz a
nossa união.
Pauliceia; Paulo da Portela e
Cartola
2
1945
Vestir bem, pagando pouco / Eis um problema louco /
Que nós temos a resolver / Prestem atenção / Estou
autorizado a dizer / Pagando só o feitio / Eis o plano
inteligente / De uma casa aqui no Rio / Não pode haver
maior facilidade / Só na alfaiataria A Cidade /
Alfaiataria A Cidade; Paulo da
Portela e Cartola
3
1948
E se vires poeta o vale / O vale do rio / Em noite
invernosa / Em noite de estio / Como um chão de prata /
Riquezas estranhas / Espraiando beleza / Por entre
montanhas
Vale do São Francisco; Cartola e
Carlos Cachaça
4
1922-1949
O azul e branco / Cores da nossa bandeira / O Rio
estamos aqui para abrilhantar o nosso festival
O azul e branco...; Paulo da
Portela
5
1976
Os fio que é meu, que é meu / E que é dela / Rebenta a
goela de tanto chorá / O rio tá seco, o sol não vem não /
Vortemos pra casa / Chamando Dondon
Ensaboa; Cartola
6
1928-1980
Rico panorama... / Tem o Rio de Janeiro... / As praias de
Copacabana / Centro de todos estrangeiros / A linda
Avenida Central / Corcovado e Pão de Açúcar / E o
cassino que falta / É o Cassino da Urca
Cassino da Urca; Cartola
Na maioria desses casos, a lexia faz referência à cidade do Rio de Janeiro,
abreviadamente (1-2, 4) ou não (6). A ocorrência localiza os enunciadores geograficamente,
além de identificá-los culturalmente. Em (1) descreve-se um encontro entre cariocas
identificados com o samba e paulistas que recebem a composição como prova das boas
intenções dos enunciadores. Em (6), valorizam-se as belezas da cidade, mencionando-se seus
efeitos nos turistas, recursos discursivos recorrentes na área temática Brasil (ver a análise
qualitativa do corpus).
Em (3) e (5), a referência é ao curso d'água. No primeiro caso, a ocorrência está em
um samba-enredo dedicado à exaltação do vale do rio São Francisco; tal exaltação também
envolve marcas de riquezas e belezas da natureza. No segundo caso, a menção do rio seco
ajuda a qualificar os enunciadores como pessoas que enfrentam grandes dificuldades — as
condições adversas da natureza, os muitos filhos, o trabalho árduo etc.
RISO [9 ocorrências em 7 letras do corpus]
1
1929
Mas riso nem sempre é alegria / Chorar nem sempre é
sentimento / No mundo tem criaturas / Quando faz as
suas juras / Chora de fingimento
As mulheres são as rosas; Paulo
da Portela
384
2
1931
Nem sempre o riso é alegria / Quantas vezes noite e dia /
Nós levamos a cantar / Pra não chorar, / Mas como há
um ditado / "Quem espera sempre alcança" / Nós vamos
alimentando / Essa esperança. //
Ri pra não chorar; Ismael Silva e
Francisco Alves
3
c1933
Às vezes é um sorriso / Que acompanha uma esperança
/ Outras vezes é um riso / Que provoca uma vingança //
Rir; Cartola e Noel Rosa
4
1934
Mas esta mágoa / Que deve jamais persistir / Creio que
paixão nenhuma / Pode o riso resistir / Põe de lado esta
dor / Que tanto atormenta / Só porque não és amado / A
vida muito lamentas / Laraiá, laraiá, laraiá.
O riso e a dor; Paulo da Portela
5
1934
O riso e a dor // O riso que nossa face / às vezes
trazemos / por mero disfarce / Nós a esconder
procuramos / Lágrimas que já choramos
O riso e a dor; Paulo da Portela
6
1946
A velhice chega / Vai-se a mocidade / Apenas resta a
saudade / Aqueles bons tempos / Risos tão felizes /
Resta em meu peito / A cicatriz, a cicatriz //
A velhice chega; Paulo da
Portela e Rufino
7
1922-1949
Quem te vê assim risonha / Naturalmente nem sonha / a
maldade do teu riso / com um juramento eterno / vai me
levando ao inferno / dizendo que é paraíso //
O grande fingimento; Paulo da
Portela
8
1976
Todo amor principia com beijos e risos / Mesmo com
hipocrisia forma um paraíso / Mas com o tempo um dos
dois vem a se arrepender / Um amor para gozar, o outro
para sofrer //
Todo amor; Carlos Cachaça e
Cartola
O uso da lexia é relacionado ao seu valor de índice de alegria. Em certos casos (1-2, 5)
questiona-se essa associação, dizendo-se que o riso pode disfarçar a tristeza e o sofrimento. Já
em (4, 6, 8), a associação é mesmo com a força consoladora da alegria diante das desventuras
amorosas; as lembranças dos momentos felizes da mocidade, que causam nostalgia na
velhice; o bem-estar experimentado pelos amantes apaixonados.
Em (3) e (7), o riso é associado à maldade e à zombaria; nesses casos, o
posicionamento do enunciador é de reprovação desses comportamentos.
RITMADO [1 ocorrência no corpus]
d1937
Era o rei / Da filosofia / Fez da musa o que queria / Zombou da
inspiração / Os seus versos ritmados / Por ele mesmo cantados /
Tinham bela entoação //
A Vila emudeceu; Cartola
A lexia que, modificando versos, teria em outros domínios discursivos relação com a
métrica literária, assume, nesse caso, um sentido próprio da métrica lítero-musical, com
consideração da combinação de fatores rítmicos linguísticos e também musicais. Elogia-se,
portanto, a habilidade de Noel Rosa em combinar esses dois códigos para criar efeitos
rítmicos em suas composições.
ROSA [16 ocorrências em 9 letras do corpus]
1
1929
As mulheres são as rosas / E nós somos jardineiros /
Que tratamos e zelamos com ciúme / Quando estão
viçosas e cheirosas / Ficamos narcotizados / Em sentir o
seu perfume.
As mulheres são as rosas; Paulo
da Portela
2
1932
Infelizmente / Este mundo é sempre assim / Quem ri
muito no começo / Chora quando chega o fim / Em mar
de rosas / Começou nossa amizade / E depois tu me
entregaste / A tristeza e a saudade
Assim, sim; Ismael Silva, Noel
Rosa e Francisco Alves
3
1932
Quando a tarde é cor de rosa / Ainda é mais formosa /
Tem cenários sedutores / Te admiram os estrangeiros /
Se orgulham os brasileiros / Teus poetas sonhadores
Cidade mulher; Paulo da Portela
385
4
1935
Linda borboleta, não seja buliçosa / Deixa minha rosa
que tão linda está no galho / É o meu prazer, ao
amanhecer / Fazer-lhe visita, vê-la banhada de orvalho /
Quando vem o sol, cobre ela de ouro / No jardim do
pobre é um tesouro
Linda borboleta; Paulo da Portela
e Monarco
5
1955
Interroguei uma rosa // Aqui se beijaram ela e outro
amante / Neste jardim juraram amor constante /
Interroguei uma rosa / E a rosa se foi desbotando / E a
cada pergunta, negando //
Interroguei uma rosa; Cartola
6
1976
Queixo-me às rosas / Que bobagem, as rosas não falam
/ Simplesmente as rosas exalam / O perfume que
roubam de ti, ai...
As rosas não falam; Cartola
7
1976
As rosas não falam // Bate outra vez / com esperanças o
meu coração / Pois já vai terminando o verão, enfim /
Volto ao jardim / Com a certeza que devo chorar / Pois
bem sei que não queres voltar / Para mim
As rosas não falam; Cartola
8
1977
É branco o sorriso das crianças / São verdes, os
campos, as matas / E o corpo das mulatas quando
vestem verde e rosa, é / Mangueira / É verde o mar que
me banha a vida inteira //
Verde que te quero rosa; Cartola
e Dalmo Castello
9
1977
Verde que te quero rosa // Verde como o céu azul, a
esperança / Branco como a cor da Paz a se encontrar /
Rubro como o rosto fica junto à rosa mais querida
Verde que te quero rosa; Cartola
e Dalmo Castello
10
1977
Verde que te quero Rosa (é a Mangueira) / Rosa que te
quero Verde (é a Mangueira)
Verde que te quero rosa; Cartola
e Dalmo Castello
11
1979
Quando eu soube que Maria Rosa vinha / Da cidade
onde tinha ido há dias passear / Gritei contente graças a
Nosso Senhor / Eu pensei que meu amor não queria
mais voltar
Feriado na roça; Cartola
12
1928-1980
Pisando esta ribalta, cantando pra vocês / De nada sinto
falta, sou eu mais uma vez / As rosas vão murchar, mas
outras nascerão / Cigarras sempre cantam, seja ou não
verão
Camarim; Cartola e Hermínio
Bello de Carvalho
13
1928-1980
No camarim as rosas vão murchando / E o contrarregra
dá o último sinal / As luzes da plateia vão se
amortecendo / E a orquestra ataca o acorde inicial
Camarim; Cartola e Hermínio
Bello de Carvalho
Em (1, 4-7, 9, 12-13), a lexia faz referência à flor, recurso poético que simboliza
beleza e romantismo, muito usado principalmente por Cartola. Em (9), a beleza da rosa faz o
rosto enrubescer; a imagem é interessante pelo fato de a cor do rosto coincidir com a da flor, o
que sugere a ideia de transferência, e porque rosa também pode ser uma forma de referir-se
metaforicamente à mulher, como se vê em (1). A associação entre rosa e mulher também é
demonstrada significativamente pelo antropônimo Rosa, encontrado em (11).
As rosas podem ser interlocutoras do enunciador apaixonado, geralmente em
sofrimento, como se vê em (5-7). Em (12-13), a imagem das rosas murchando sugere tanto a
passagem do tempo quanto o arrefecimento do entusiasmo e do encanto em uma atividade.
Em (3) há o quase-frasema cor de rosa, do qual rosa é abreviação. A qualificação da
tarde como cor de rosa é usada para ressaltar a beleza visual do cenário descrito.
Em (2), há o frasema mar de rosas, que designa uma situação muito favorável e
harmoniosa para alguém. Nesse caso, fala-se do início do amor entre o enunciador e a
enunciatária, que se caracterizou por essa condição; produz-se assim um contraste com o fim
conflituoso da relação, abordado na canção.
O quase-frasema verde e rosa (8-10), assim como o pragmatema verde que te quero
rosa, estão analisados s.v. verde.
386
ROUXINOL [3 ocorrências em 2 letras do corpus]
1
1940
Cantar de um rouxinol // Ao romper do sol / Ouvi cantar
um rouxinol / Cantando um hino em louvor / O mano
Paulo dando viva ao Claudionor.
Cantar de um rouxinol; Paulo da
Portela
2
1922-1949
Quiseram me comprar / eu não vendi / uma linda coleção
de passarinhos / Bernardo é gaturamo / Aurélio é
rouxinol / Lino é o canário / Mano Rubens, o curió
Coleção de passarinhos; Paulo
da Portela
Esse é mais um exemplo da associação entre sambistas e aves canoras, encontrada
com razoável frequência no corpus. O rouxinol, ave de grande valor simbólico, é uma das
preferidas para esse fim:
O rouxinol é universalmente famoso pela perfeição de seu canto. Foi, segundo Platão, o
emblema de Tamiras, bardo da Trácia antiga.
(...)
Pela beleza de seu canto, que enfeitiça as noites de vigília, o rouxinol é o mágico que faz
esquecer os perigos do dia
70
Outras aves referidas na área temática “metalinguagem” são, além do rouxinol,
periquito, canário, sabiá, gaturamo e curió. Algumas das principais composições nas quais se
aplica esse recurso de representação de sambistas são Coleção de passarinhos (Paulo da
Portela), Ao amanhecer (Cartola) Ouvi dizer... (Paulo da Portela) e Cantar de um rouxinol
(Paulo da Portela).
RUA [9 ocorrências em 6 letras do corpus]
1
1929
A Portela está contente / Para frente / Com fé e coragem
/ Que eu quero ver / Quero saber do sucesso / Dentro da
ordem e progresso / Salve então a rua B
A Portela está contente...; Paulo
da Portela
2
1931
Tu falas muito, meu bem, / E precisas deixar / Senão eu
acabo dando pra gritar na rua: / Oh! Eu quero uma
mulher bem nua //
Nem é bom falar; Ismael Silva,
Nilton Bastos e Francisco Alves
3
1938-1940
Quando a tarde vai morrendo (ai, meu Deus) / O
crepúsculo vem descendo / Reúne-se o bando na rua /
E, cheios de harmonia, / Entoam uma melodia que faz
dançar a própria lua
Ao amanhecer; Cartola
4
1965
Ensaio de rua // Pedro afine os tambores / E diz a
Dolores / Que vai ter ensaio de rua
/ Vê se reúne a turma
inteirinha / Vamos que é noite de lua //
Ensaio de rua; Barbosa da Silva,
José Lima e Cartola
5
1973
Existe muita tristeza na rua da Alegria / Existe muita
desordem na rua da Harmonia / Analisando esta história
/ Cada vez mais me embaraço / Quanto mais longe do
circo / Mais eu encontro palhaço //
Contrastes; Ismael Silva
6
1977
Amanhã / A tristeza vai transformar-se em alegria / E o
sol vai brilhar no céu de um novo dia / Vamos sair pelas
ruas, pelas ruas da cidade / Peito aberto, cara ao sol da
felicidade //
A cor da esperança; Cartola e
Roberto Nascimento
Na ocorrência (1), o quase-frasema rua B, ao mesmo tempo que é a denominação de
uma nova agremiação carnavalesca que acabara de ser fundada, também traz a sua localização
espacial. Em (3) a rua é representada como espaço de boemia, de reuniões musicais coletivas.
Em (2), a localização “na rua” qualifica o ato do enunciador como público, patente
para testemunho de todos. O mesmo tipo de significação é encontrável em (6), caso em que as
ruas da cidade são o cenário para a demonstração pública da felicidade coletiva abordada na
70
CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. 13.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1999, s.v.
Rouxinol.
387
composição.
Em (5), conforme já foi comentado na análise qualitativa do corpus, há uma
ambiguidade entre possíveis nomes de ruas e os valores presentes nas suas designações. O
enunciador usa essa ambiguidade para insinuar contrastes presentes na vida, intenção presente
desde o título do samba.
O quase-frasema ensaio de rua (4) está analisado s.v. ensaio.
RUBRO [1 ocorrência no corpus]
1977
Verde como o céu azul, a esperança / Branco como a cor da Paz a se
encontrar / Rubro como o rosto fica junto à rosa mais querida / É negra
toda tristeza se há despedida na avenida / É negra toda tristeza desta
vida //
Verde que te quero rosa; Cartola e
Dalmo Castello
A cor rubra do rosto diante de uma rosa pode ser devida ao amor, se a rosa é
representação metafórica de uma mulher; no caso de a referência ser a uma flor, o
enrubescimento seria causado pela sensibilização diante da sua beleza. Vejam-se outras
considerações sobre o uso das cores nas letras do corpus s.v. cor.
388
3.2.22 – Letra S
SABER [151 ocorrências em 101 letras do corpus]
2
1924
Porém tu podes gargalhar / Porque o teu prazer /
Também terá seu fim / Agora podes rir de mim / A
sentir-se bem / Em saber
do meu mal
Podes gargalhar; Paulo da
Portela
3
1926
Não sei qual a razão que tu / Lastimas a sorte meu bem /
Chorar de fingimento é triste / São bem poucos os que
resistem / iludir não convém
Chorar de fingimento; Paulo da
Portela
8
1929
Ai, como é triste viver assim / Enganado por seu bem /
Sei que jamais terei piedade / Não quero amor de
ninguém
Para mim perdeste o valor;
Ismael Silva
9
1929
Juro, não nego, / Levo saudades / Deste meu único amor
/ Sei que jamais terei piedade / Pra mim perdeste o valor
//
Para mim perdeste o valor;
Ismael Silva
13
1930
Há tanta gente que faz fé / Na sua face de cetim / Que
eu até nem sei / Como é / Que você foi gostar de mim //
Você merece muito mais; Ismael
Silva
14
1931
Anda, vem cá / Se tu soubesses os carinhos de amor /
Que eu tenho pra te dar / Se você provar cairá vencida /
E minha será pra toda vida //
Anda, vem cá; Ismael Silva,
Nilton Bastos e Francisco Alves
15
1931
Eu gosto muito de você / Tenho mesmo certo que / Não
sei
como explicar / Já modifiquei a minha vida, / Com
você, minha querida, / Sou capaz de me casar. //
Anda, vem cá; Ismael Silva,
Nilton Bastos e Francisco Alves
16
1931
És para mim uma uvinha / Uma linda moreninha / Que eu
quero guardar / Eu sei que você está querendo / Anda,
assim não me arrependo / Acho bom aproveitar.
Anda, vem cá; Ismael Silva,
Nilton Bastos e Francisco Alves
18
1931
Mas esta vida / Não há quem me faça deixar / Por falares
tanto, / A polícia quer saber / Oh! Se eu dou meu
dinheiro todo a você //
Nem é bom falar; Ismael Silva,
Nilton Bastos e Francisco Alves
24
1932
Sei que não posso suportar / (Se meu amor me deixar) /
Se de saudades eu chorar / (Eu não posso me queixar) /
Abandonado sem vintém / (Vou sofrendo sem dizer nada
a ninguém) / Quem muito riu chora também / (A razão
dá-se a quem tem) //
A razão dá-se a quem tem;
Ismael Silva, Noel Rosa e
Francisco Alves
25
1932
A mentira é fatal / Sei-o que não é por mal / Que a
mulher nos faz descrer / Mas se é realidade / Sua grande
falsidade, / Eu hei de ver você sofrer //
Ando cismado; Ismael Silva e
Noel Rosa
27
1932
O mundo tem suas surpresas / Mas nós temos nossas
defesas / Por isso eu estou prevenido / Pra saber se sou
ou não traído
Não faz, amor; Cartola e Noel
Rosa
29
1932
Supliquei humildemente / Pra você endireitar / Mas agora
infelizmente / Nosso amor vai se acabar / Vou embora
afinal / Você vai saber
por que / É pra me livrar do mal /
Que eu fujo de você //
Para me livrar do mal; Ismael
Silva e Noel Rosa
37
1933
Oh / não digas se ainda eu não te perdi / quem não sabe
há de pensar que eu ando atrás de ti //
Não digas; Ismael Silva
44
1935
Enquanto contigo eu viver, / terei a maior prevenção... /
Eu quero saber
, / se vais me esquecer... / Me dê uma
desilusão!... //
Não faltará ocasião; Ismael Silva
50
1936
Ora, eu que bem sei / Te responderei / A sombra da
inveja, meu bem, / Ou golpe de azar
Serei teu ioiô; Paulo da Portela
53
1939
Se existe alguém que queira ver / Você um ano em jejum
/ E sem ter onde adormecer / Eu sou um, eu sou um //
Eu sei que toda essa alegria / Não vai durar a vida inteira
/ Talvez, da noite para o dia, / Eu possa ver sua caveira
Eu sou um; Ismael Silva
63
d1941
Pois então saiba que não desejamos mais nada, / A
noite, a lua prateada / Silenciosa, ouve as nossas
canções / Tem lá no alto um cruzeiro / Onde fazemos
nossas orações / E temos orgulho de ser os primeiros
campeões //
Sala de recepção; Cartola
73
déc.1940
Saibam que este céu, este mar / Este lindo cenário /
Temos a defendê-lo os nossos expedicionários /
Oriundos da raça de Caxias / de Barroso e dos
Tamandarés / Diante desta gente, tão pura e tão forte, /
Nazista, quem és?
Nazista, quem és?; Cartola e
Carlos Cachaça
111
1979
Quando eu soube que Maria Rosa vinha / Da cidade
onde tinha ido há dias passear / Gritei contente graças a
Nosso Senhor / Eu pensei que meu amor não queria
mais voltar
Feriado na roça; Cartola
114
1979
Ó meu coração, coração / Quem, quem verá que vem /
Sinto que ninguém / Vai me dar perdão / Eis a prova dos
meus grandes erros / Erros estes que eu soube julgar /
Não importa, mas vou do desterro / Desabrochar
Motivação; Cartola e Dalmo
Castelo
389
116
1928-1980
Comovido fiquei / Quando entrei / No hospital / Soube
que o meu amor / Passava muito mal / Chorei de dor /
Não resisti / Só em saber / Que meu filho vivia / Mas a
mulher / Talvez fosse morrer //
Comovido; Cartola e Babaú
120
1928-1980
Eu vivo tão magoado, / Não sei viver mais ao teu lado, /
Só peço a Deus que me dê coragem, / Eu preciso
esquecer / A tua grande mentira que me faz sofrer.
Devia ser condenada; Cartola e
Nelson Cavaquinho
130
1928-1980
Sou doutor / Sou doutor, mas sou sambista / Tenho
sangue de artista / Também sei tamborinar / Sou doutor /
Sei que sou advogado / Não me faço de rogado /
Quando preciso sambar //
Sou doutor; Cartola
Em (130), saber significa 'ter adquirido determinada habilidade'. Na primeira
ocorrência, a habilidade é a de reproduzir o toque de instrumentos de percussão. Trata-se de
um saber bem afinado com o universo discursivo em estudo.
Em (63) e (73), há anúncios direcionados a destinatários aos quais o enunciador faz
comunicados. No primeiro caso, o que se anuncia é uma declaração de amor à Mangueira,
personificada como interlocutora; no segundo, os brasileiros são destinatários de uma
exaltação dos heróis nacionais, que defenderiam o Brasil e seriam matrizes de valor para os
expedicionários que lutavam na Segunda Guerra Mundial.
Em (3, 13, 15), há referências à compreensão que se tem a respeito das causas de um
evento. O enunciador pode não compreender o que causa o sofrimento da companheira, ou
mesmo o amor que ela tem por ele; pode ainda não conseguir chegar a uma constatação sobre
o que determina seu amor pela mulher.
Em (27, 29, 37), há referência ao conhecimento ou à ignorância de determinadas
informações. O enunciador pode estar abalado, querendo descobrir se a companheira o trai,
pode dar-lhe ciência dos seus motivos para abandoná-la, ou ainda preocupar-se com o
julgamento que os outros fazem de si, sem conhecerem suas atitudes perante ela.
Em (8, 24-25) há a expressão da convicção do enunciador a respeito do que diz. Suas
declarações podem ser relativas à importância que o amor tem para ele ou, ao contrário,
podem dizer respeito à sua decisão de não voltar a se envolver amorosamente; também podem
trazer julgamentos taxativos sobre o comportamento das mulheres.
Em (50) e (53), há a manifestação da experiência de vida do enunciador que, com essa
base, declara seus conhecimentos, sobre o que pode desestabilizar a vida de um casal, ou
sobre a alternância de momentos alegres e tristes durante a vida.
Em (2, 111, 116), há a veiculação de notícias, introduzidas pelo verbo em questão. Há
ênfase às reações dos sujeitos do discurso às notícias recebidas, seja de maldosa satisfação
com o sofrimento de um ex-amor, de satisfação pela volta de uma pessoa querida que estava
distante, ou de pesar por saber do mau estado de saúde de alguém.
Em (9, 14, 16), expressam-se percepções hipotéticas sobre disposições de outras
pessoas, como o seu sentimento amoroso, ou sobre possibilidades de eventos vindouros, como
390
as chances de perdão futuro a determinada ofensa.
Em (18) e (44), encontram-se interrogações indiretas. Nesse caso, é comum a
colocação querer saber.
Em (114) e (120), a referência é à propriedade com que se realiza determinada
atividade. Aqui se enfatiza o comportamento conforme expectativas que determinam a
adequação das atitudes.
Colocações saber amar e saber viver
6
1929
Arranjaste um novo amor, meu bem! / Eu sou um infeliz,
bem sei! / Mas ainda tenho fé / Que hei de te ver chorar /
Quando souberes amar / Como eu te amei!... //
Novo amor; Ismael Silva
10
1930
Quando souberes amar // O perdão eu te darei / Quando
souberes amar / Mulher porque jamais pensei / Em você
me abandonar //
Quando souberes amar; Ismael
Silva
21
1931
Vamos reagir / No que possa vir, / Pois lutar, / Pra
vencer, / É saber viver. //
Ri pra não chorar; Ismael Silva e
Francisco Alves
28
1932
Amor sem penar é bem raro / O verbo cumprir custa caro
/ Amor é bem fácil de achar / O que eu acho mais difícil /
É saber amar //
Não faz, amor; Cartola e Noel
Rosa
32
1932
Tristezas não pagam dívidas / Não adianta chorar /
Deve-se dar o desprezo / A toda mulher que não sabe
amar //
Tristezas não pagam dívidas;
Ismael Silva
88
1972
Esquece nosso amor / Vê se esquece / Porque tudo no
mundo acontece / E acontece que já não sei mais amar /
Vai chorar, vai sofrer / E você não merece / Mas isso
acontece //
Acontece; Cartola
118
1928-1980
Tu não sabes amar / Para que tens um coração? / Ai,
meu Deus, o melhor entre nós dois / É a separação //
Consideração; Cartola e Heitor
dos Prazeres
Esses casos são semelhantes a (114) e (120), analisados anteriormente. São, entretanto,
especialmente significativos, tanto pela frequência quanto pela vinculação com o discurso
amoroso e o das reflexões existenciais. A colocação saber amar está analisada em mais
detalhes s.v. amar.
Pragmatema não querer saber de [algo/alguém]
17
1931
Desses carinhos não quero saber / Pra não andar só a
me maldizer / É preferível viver com a paz / Porque se
não faz bem, mal não faz //
É bom evitar; Ismael Silva, Nilton
Bastos e Francisco Alves
19
1931
Até que enfim / Eu agora estou descansado / Ela deu o
fora, / Foi morar lá na Favela / E eu não quer saber mais
dela
Nem é bom falar; Ismael Silva,
Nilton Bastos e Francisco Alves
46
1936
Toda mulher da orgia / Assim disse o Ismael, / Não se
pode com certeza / Dizer que ela é fiel // Quero mulher
pra mim só / Não quero saber de sócio / E você gosta de
todos / Isso assim não é negócio //
Não é isso que eu procuro;
Ismael Silva e Francisco Alves
Expressa-se o desligamento e mesmo rejeição do enunciador em relação a algo ou
alguém. Em todas as ocorrências, a ruptura enunciada tem relação com assuntos amorosos.
Pragmatema não sei o que será
20
1931
Se eu precisar algum dia / de ir pro batente / não sei o
que será / Pois vivo na malandragem / e vida melhor não
há //
O que será de mim; Ismael Silva,
Nilton Bastos e Francisco Alves
O enunciador utiliza-se dessa expressão para dizer-se desacorçoado diante de um
evento. Nesse caso, ele, identificando-se como malandro, manifesta esse estado de espírito
391
diante da possibilidade de ter de ir trabalhar.
Pragmatema saber o que é sofrer
39
1933
Não é só quem vive em pranto / Que sabe o que é
sofrer... / Eu sofro e no entanto / Nunca dei a perceber! //
E são tristes meus ais... / Pois quando a gente sente / E
não chora / Sofre muito mais //
Nunca dei a perceber; Ismael
Silva
O pragmatema é usado para identificar alguém como pessoa autorizada para falar em
sofrimento, por ter experiência própria no assunto. Na ocorrência, o enunciador coloca-se
nessa posição, esclarecendo que seu sofrimento é discreto, não sendo percebido por outros.
Pragmatema só eu mesmo sei
68
1945
Me contrariei / Por que razão? / Só eu mesmo sei
/ Diga, então! / Eu que sempre fui leal / A quem só
me fez o mal / Devo ser feliz / Tu serás! / O bem que
eu fiz / Ninguém faz
Deus te ouça; Paulo da Portela e
Cartola
A fórmula conversacional é usada por um enunciador para postergar uma resposta a
pergunta sobre a causa do seu sofrimento. Aliada à postergação está o lamento sentido, que
valoriza o suspense da resposta.
Pragmatema você sabe o que faz
91
1973
Você saiu tão diferente / Que nem deve dizer que
pertence a essa gente / Enfim você sabe o que faz / Mas
isso é contra mim, contra nós aliás. //
Aliás; Ismael Silva
O enunciador usa essa fórmula de rotina para manifestar sua desaprovação ao
comportamento do destinatário, assumindo a atitude de quem desiste de advertir sobre seu
desagrado nesse assunto.
Vejam-se também as análises dos pragmatemas Deus sabe o que faz e só Deus sabe
s.v. Deus.
SABIÁ [1 ocorrência no corpus]
1947
Foi num dia de alegria / Que essa tragédia se deu / Foi no carnaval
passado / Que o Caquera morreu / Já não se ouve o canto mais /
Daquele sabiá / Toda Lira está em pranto / Todo mundo a chorar.
Ouvi dizer; Paulo da Portela
Sobre o recurso poético de representar sambistas como aves canoras, vejam-se ave e
rouxinol.
SALGUEIRO [1 ocorrência no corpus]
1931
Favela, Estácio, Oswaldo e Salgueiro / todos te respeitam quando
pegam o seu pandeiro / (Então volver / Ordinário marche / Oba!) //
Meu batalhão; Ismael Silva, Nilton
Bastos e Francisco Alves
A enumeração de escolas de samba tem a função de estabelecer modelos de
instituições sambistas, que já têm posição de autoridade nesse meio. As escolas mencionadas
são efetivamente algumas das mais antigas e, portanto, mais tradicionais do samba carioca.
392
SALVE [5 ocorrências em 4 letras do corpus]
1
1928
Chega de demanda, chega / Com este time temos que
ganhar / Somos da Estação Primeira / Salve o morro de
Mangueira
Chega de demanda; Cartola
2
1929
A Portela está contente / Para frente / Com fé e coragem
/ Que eu quero ver / Quero saber do sucesso / Dentro da
ordem e progresso / Salve então a rua B
A Portela está contente...; Paulo
da Portela
3
1937
Vou começar a aula / Perante a comissão, muita atenção
/ Eu quero ver se diplomá-los posso / Salve o fessor, dá
nota a eles, senhor / Quatorze com mais doze noves fora
tudo é nosso //
Teste ao samba; Paulo da
Portela
4
1922-1949
Sambar! / Salve a folia / Cantar! / Salve a orgia Então
cantaremos todos / em voz geral / Só meu samba / É o
nosso ideal.
Sambar / Salve a folia...; Paulo
da Portela
Conforme foi estabelecido na análise qualitativa, um dos projetos discursivos mais
frequentes da área temática “metalinguagem é a homenagem a sambistas e instituições
dedicadas ao samba, ou ainda ao próprio samba. Isso explica o grande número de ocorrências
da interjeição salve, pragmatema que funciona como marcador discursivo. Essa expressão
também tem a característica de, além de exaltar o elemento subsequente, expressar o
entusiasmo do enunciador, avivando a animação da letra.
SAMBA [33 ocorrências em 21 letras do corpus]
1
1931
Também dou a minha bola / Golpe errado ainda não dei /
Eu vou chamar Chico Viola / que no samba ele é rei / (Dá
licença, seu Mário?) //
O que será de mim; Ismael Silva,
Nilton Bastos e Francisco Alves
2
1931
Até parece muamba / Eu assim não vi igual / Você não
gosta de samba / Nem baile de carnaval (vejam vocês) //
Oleleô; Ismael Silva, Nilton
Bastos e Francisco Alves
3
1932
Pudesse um dia / Juro faria / Do samba o maior herói /
Concorrerias / Com as vitórias / Que existiam entre nós /
Seriam páginas de intenso fulgor / E o passado teria
maior valor
Pudesse meu ideal; Cartola e
Carlos Cachaça
4
1933
Lá vem ela, lá vem ela / Com o ioiô do seu lado /
Arrastando a chinela / Dizendo samba raiado //
Dona do lugar; Ismael Silva e
Francisco Alves
5
1933
E essa bela Iaiá / Não acredita em muamba / Ela tem um
patuá / Que é todo o nosso samba //
Dona do lugar; Ismael Silva e
Francisco Alves
6
1937
Teste ao samba // Vou começar a aula / Perante a
comissão, muita atenção / Eu quero ver se diplomá-los
posso / Salve o fessor, dá nota a eles, senhor / Quatorze
com mais doze noves fora tudo é nosso //
Teste ao samba; Paulo da
Portela
7
déc.1930
Quando trouxer deve pedir ao destino / Que mande pelo
menino recomendação de um bamba / Mais tarde eu
quero que como todo lero-lero / Ele seja professor de
uma Escola de Samba. //
Senhora Dona Cegonha; Paulo
da Portela
8
déc.1930
Chegando eu quero recebê-lo com carinho / Tratá-lo
como reizinho / Enveredarei pelos caminhos dos bambas
/ Talvez será herdeiro / De uma coroa do samba.
Senhora Dona Cegonha; Paulo
da Portela
9
1940
Tem um prêmio para quem / descobrir a nega bamba /
da escola de samba / que compra barulho / por qualquer
dinheiro / faz o dó maior / bem direitinho / no cavaquinho
/ toca cuíca / bate tamborim / enfrenta um pandeiro
Nega bamba; Paulo da Portela
10
1940
Jamais tu irás a um samba / E tenho as minhas razões
/ Quando entras no batuque / Esqueces as obrigações. /
Pense o caso bem direito / Te aconselho a que não
faça / Proibir-me do batuque / Tradição de nossa raça.
Vamos embora, ó, flor; Paulo da
Portela
11
1941
Todos que pertencem ao samba / No Rio te mandam um
abraço. / Pauliceia, ô / Pauliceia, ô / Queremos com este
samba / Estreitar os nossos laços / Esse samba traduz a
nossa união.
Pauliceia; Paulo da Portela e
Cartola
12
1946
Como é que vai ser, / se eu tiver de escolher / Entre o
samba e você / Amor / Não é tudo que se possa desejar
/ O samba / Também merece ter o seu lugar / Você não
leve a mal / Se eu me descuidar / E for sambar.
Se eu tiver de escolher; Arlindo
Marques Junior, Roberto Roberti
e Ismael Silva
13
1946
Se eu tiver de escolher / Entre o samba e você / Vai ser
de amargar / Sem você eu não vivo / E também sem o
samba / Não posso passar / Ai meu Deus!
Se eu tiver de escolher; Arlindo
Marques Junior, Roberto Roberti
e Ismael Silva
393
14
1922-1949
Vamos deixar correr / A fama suburbana / Por todo este
universo, universo / O samba bem cantado é lindo /
Voltamos na linha de frente / Para presidente o mano
Claudionor
Avante, mocidade, é hora...;
Paulo da Portela
15
1922-1949
Não é lá muito difícil / acertar a marcação / o samba
nasce com a gente / está dentro do coração
Não é lá muito difícil; Paulo da
Portela
16
1922-1949
Sambar! / Salve a folia / Cantar! / Salve a orgia Então
cantaremos todos / em voz geral / Só meu samba / É o
nosso ideal.
Sambar / Salve a folia...; Paulo
da Portela
17
1950
Até muamba já fizeram pro rapaz / Porque no samba
ninguém faz o que ele faz / Mas hei de vê-lo muito bem,
se Deus quiser / E agradeço pelo que você fizer.
Antonico; Ismael Silva
18
1950
Ele está mesmo dançando na corda bamba / Ele é
aquele que na escola de samba / Toca cuíca, toca surdo
e tamborim / Faça por ele como se fosse por mim //
Antonico; Ismael Silva
19
déc.1950
O samba do operário // Se o operário soubesse /
Reconhecer o valor que tem seu dia / Por certo que
valeria // Duas vezes mais o seu salário
O samba do operário; Cartola,
Alfredo Português e Nelson
Sargento
20
1960
Depois, aos poucos, o nosso samba / Sem sentirmos se
aprimorou / Pelos salões da sociedade / Sem cerimônia
ele entrou / Já não pertence mais à praça, / Já não é
samba de terreiro / Vitorioso, ele partiu para o
estrangeiro //
Tempos idos; Cartola e Carlos
Cachaça
21
1960
E muito bem representado / Por inspiração de geniais
artistas, / O nosso samba, humilde samba, / Foi de
conquistas em conquistas
Tempos idos; Cartola e Carlos
Cachaça
22
1965
Tem tem tem pandeiro agogô / Vê vê vê se falta ganzá /
O rei vem vem / vem de Luanda / vamos saravá saravá /
A rainha também / Não vai demorar / Hoje vai ter samba
Dolores / Vamos que eu quero sambar.
Ensaio de rua; Barbosa da Silva,
José Lima e Cartola
23
1974
Deus me inventou pra desespero do diabo / Eu fiz do
samba Catedral do Inferno / Louca, muito louca,
endoidecida / Vou fazendo desta vida / Tudo aquilo que
bem quero
Catedral do inferno; Cartola e
Hermínio Bello de Carvalho
24
1975
De mim você não tem razão / de se queixar / Assim você
faz confusão / No nosso lar / Se eu sou do samba
ninguém tem / que achar ruim / Você me conheceu /
vivendo assim (tocando tamborim) //
Ninguém tem de achar ruim;
Ismael Silva
25
1928-1980
É difícil estudar / Advocacia, arquitetura, engenharia /
Tudo isso é difícil, eu sei / Mas o samba está no sangue
brasileiro / Não precisa fazer curso / Pra tocar o meu
pandeiro.
Sou doutor; Cartola
26
1928-1980
Tu vais ao samba // Pequena, tu vais ao samba / Ver as
línguas que falam de mim / Sem razão / Tu sabes que o
mulato é sincero / E tem critério / E sabes meu leal
procedimento / Como é
Tu vais ao samba; Cartola
Em (1, 3, 5, 6, 8, 11, 17, 20-21, 23) o samba é instituição cultural, considerada em
diversos aspectos. Em (1) é o meio de atividade no qual o sambista pode se notabilizar e,
quando isso acontece, recebe identificações como “rei no samba” (vejam-se mais detalhes
sobre a colocação s.v. rei); em (3) é elemento de valor, capaz de abrilhantar ainda mais a
história do Brasil; em (5), é fonte de energias positivas para os sambistas; em (8) é um legado
a ser herdado por gerações futuras; em (6) é área de conhecimentos que produz relações
paralelas às da educação formal; em (20-21) é expressão de importância, que alcança difusão
por diferentes grupos sociais, alcançando cada vez mais notoriedade na cultura brasileira e
mesmo no âmbito internacional; em (23) é a atividade cultural do enunciador, que joga com a
imagem sensual e arrebatadora do samba para associá-lo ao inferno, reelaborando logo em
seguida tal valor simbólico para dar-lhe carga positiva, a partir da qualificação antitética
catedral do inferno.
Nas ocorrências (10, 12-13, 22, 24, 26) a lexia equivale à roda de samba, evento
festivo de música, canto, dança e confraternização. Em (10) figura como evento contagiante,
394
capaz de provocar ciúmes entre casais; em (12-13) é prática extremamente apreciada pelo
enunciador, que está num dilema, tendo de escolher entre o samba e a mulher; em (16) o
ambiente da roda de samba é apresentado como um grande ideal de convivência; em (17) é
área de expressão de artistas habilidosos, que ganham fama por sua maestria musical. Em
(26), encontra-se o frasema ser do samba, que expressa a profunda identificação de alguém
com esse meio e com os seus preceitos.
Em (22), o samba é o evento coletivo, público, relacionado ao desfile de escolas de
samba. Esta ocorrência é um pouco mais desviante do contrato discursivo da roda de samba,
que não costuma ter objetivos tão pragmáticos, nem organização tão formalizada quanto os
ensaios de rua (vejam-se na primeira parte deste trabalho, as distinções entre “casa” e “rua”, a
partir da apresentação de Roberto M. Moura para as categorias de Roberto DaMatta).
É com a significação do samba como evento festivo, que se encontra a colocação ir ao
samba (10, 26), pois nesses casos o evento pode ser entendido como um destino do
deslocamento do enunciador. Quando essa é a referência, é frequente encontrarem-se nas
letras muitas marcas discursivas de entusiasmo, do ambiente alegre característico da roda de
samba.
O samba é apresentado como gênero musical, ou composição criada nesse gênero, nas
ocorrências (11, 14-15, 19, 25). Em (11), ele é o cartão de visitas dos sambistas, que o
apresentam como atestado de intenções fraternas no contato com os paulistas; em (14), exalta-
se a beleza do gênero, quando bem cantado; em (15) e (25), seria talento inato ao sambista,
que encontra facilidade na sua prática; em (19), a ocorrência surge no título da composição
identificando-a como exemplar do gênero musical em questão.
Em (2) há uma ocorrência ambígua, pois não gostar de samba tanto pode ser
compreendido como não gostar do gênero musical quanto não gostar de outros aspectos
relacionados às práticas do samba — as reuniões musicais, os valores partilhados pelo grupo,
os temas das composições etc. A enumeração de baile de carnaval, ao lado de samba, associa
a leitura desta lexia a um domínio mais amplo do que o estritamente musical.
Em (4, 7, 9, 18, 21) encontram-se os quase-frasemas samba raiado; escola de samba e
samba de terreiro. Samba raiado é uma variedade do gênero em que se entremeiam partes
fixas e improvisadas (LOPES, 2005, p. 25). É próximo do partido-alto, uma das práticas mais
características da roda de samba, com valorização da improvisação, da interação entre os
versadores e também deles com a assistência, que canta o refrão. A mulher apresentada em
“Dona do lugar”, portanto, mostra-se boa dançarina e versadora, atributos que lhe dão grande
destaque.
395
Samba de terreiro é definido da seguinte forma por Nei Lopes:
Samba sem compromisso de enredo, que os compositores de escola de samba produzem para
animar os ensaios e outras festas de suas comunidades. Outrora eram típicos sambas de meio
de ano. Depois, alguns se tornaram sucessos carnavalescos.
71
A ocorrência em “Tempos idos” desconstrói o sentido do quase-frasema, recuperando
a significação da localização espacial, para dizer que, atingindo âmbitos sociais mais amplos,
o domínio do samba deixara de ser exclusivamente o terreiro da escola de samba.
O quase-frasema escola de samba (7, 9, 18) está analisado s.v. escola.
SAMBAR [9 ocorrências em 9 letras do corpus]
1
1933
Quando ela pega a sambar / Com o seu sapateado /
Todos ficam a gritar / Dando viva ao Cais / Dourado //
Dona do lugar; Ismael Silva e
Francisco Alves
2
1935
Vamos avante cantando e sambando, / Este é o nosso
ideal, / Por entre perfumes e flores / Loucuras de amores
do carnaval.
Canta, meu bem; Paulo da
Portela
3
1935
Deixe que te confesse, ó flor / Tenho medo, é confissão
de amor / Não é bem isso que eu te venho relatar / Ora
meu bem é que fico louco em te ver sambando //
Confissão de amor; Paulo da
Portela
4
1946
Como é que vai ser, / se eu tiver de escolher / Entre o
samba e você / Amor / Não é tudo que se possa desejar
/ O samba / Também merece ter o seu lugar / Você não
leve a mal / Se eu me descuidar / E for sambar.
Se eu tiver de escolher; Arlindo
Marques Junior, Roberto Roberti
e Ismael Silva
5
1922-1949
Sambar! / Salve a folia / Cantar! / Salve a orgia Então
cantaremos todos / em voz geral / Só meu samba / É o
nosso ideal.
Sambar / Salve a folia...; Paulo
da Portela
6
1960
Uma escola na praça Onze, testemunha ocular / E perto
dela uma balança onde os malandros iam sambar / Onde
os malandros iam sambar //
Tempos idos; Cartola e Carlos
Cachaça
7
1965
Tem tem tem pandeiro agogô / Vê vê vê se falta ganzá /
O rei vem vem / vem de Luanda / vamos saravá saravá /
A rainha também / Não vai demorar / Hoje vai ter samba
Dolores / Vamos que eu quero sambar.
Ensaio de rua; Barbosa da Silva,
José Lima e Cartola
8
1973
Em Mangueira vem vários artistas / Do exterior até
turistas / Só pra ver o que a Mangueira tem / Sambar
como nossas cabrochas ninguém //
A Mangueira é muito grande;
Cartola e Ataliba
9
1928-1980
Sou doutor / Sou doutor, mas sou sambista / Tenho
sangue de artista / Também sei tamborinar / Sou doutor /
Sei que sou advogado / Não me faço de rogado /
Quando preciso sambar
//
Sou doutor; Cartola
A princípio, a referência desse verbo é a dançar samba. É esse o sentido presente na
maioria dos casos acima, usado para ressaltar a habilidade dos sambistas nessa atividade, ou
para caracterizar o ambiente da roda de samba.
Em certos casos, entretanto, a referência parece ser apenas à participação na roda de
samba. Isso justificaria a colocação ir sambar, paralela a ir ao samba, que foi analisada s.v.
samba.
SAMBISTA [2 ocorrências em 2 letras do corpus]
1
1932
Cidade mulher // Cidade, quem te fala é um sambista, /
Anteprojeto de artista, / Teu grande admirador / Me
confesso boquiaberto, / De manhã, quando desperto /
Com tamanho esplendor /
Cidade mulher; Paulo da Portela
71
LOPES, Nei. Sambeabá: o samba que não se aprende na escola. Rio de Janeiro: Folha Seca, 2003, p. 22.
396
2
1928-1980
Sou doutor / Sou doutor, mas sou sambista / Tenho
sangue de artista / Também sei tamborinar / Sou doutor /
Sei que sou advogado / Não me faço de rogado /
Quando preciso sambar //
Sou doutor; Cartola
A lexia é associada em (2) às habilidades de tocar instrumentos de percussão e de
dançar o samba. A ocorrência envolve uma polarização entre os conhecimentos da cultura
popular e os da educação formal — manifesta-se uma oposição, inclusive sintática, entre ser
doutor e ser sambista.
Em (1), a ocorrência identifica o enunciador como alguém intimamente ligado ao meio
do samba, que se dirige à cidade, fazendo um samba em seu louvor.
SANGUE [4 ocorrências em 2 letras do corpus]
1
1957
Continuam nossas lutas / Podam-se os galhos, / Colhem-
se as frutas / E outra vez se semeia / E, no fim deste
labor, / Surge outro compositor / Com o mesmo sangue
na veia //
Fiz por você o que pude; Cartola
2
1957
Perdoa-me a comparação, / Mas fiz uma transfusão / Eis
que Jesus me premeia / Surge outro compositor / Jovem
de grande valor / Com o mesmo sangue na veia
Fiz por você o que pude; Cartola
3
1928-1980
É difícil estudar / Advocacia, arquitetura, engenharia /
Tudo isso é difícil, eu sei / Mas o samba está no sangue
brasileiro / Não precisa fazer curso / Pra tocar o meu
pandeiro.
Sou doutor; Cartola
4
1928-1980
Sou doutor / Sou doutor, mas sou sambista / Tenho
sangue de artista / Também sei tamborinar / Sou doutor /
Sei que sou advogado / Não me faço de rogado /
Quando preciso sambar //
Sou doutor; Cartola
A lexia é muito relacionada à ideia de que o samba é um talento inato às pessoas (veja-
se a respeito, o que se diz na análise qualitativa). Em (1) e (2), é usada para assinalar a
comunhão de valores e habilidades entre o compositor antigo e o novo, representado como
continuador da sua obra.
Nos frasemas estar no sangue de [alguém] e ter sangue de [atributo] também se
aplica a mesma significação simbólica de sangue. Em (3) e (4), o que “está no sangue” são as
habilidades relacionadas ao samba e os pendores artísticos.
SAPATEADO [1 ocorrência no corpus]
1933
Quando ela pega a sambar / Com o seu sapateado / Todos ficam a
gritar / Dando viva ao Cais / Dourado //
Dona do lugar; Ismael Silva e
Francisco Alves
A lexia refere-se genericamente ao ato de dançar. O sapateado da mulher descrita em
“Dona do lugar” entusiasma a assistência da roda de samba, arrancando-lhes exclamações de
aprovação.
SAPATEAR [1 ocorrência no corpus]
1940
Vamos embora, ó flor / Ora, muito cedo, amor / A lua estará
gostando de me ver sapatear / Mas quem é que dá as ordens? / É
você. / Mas quando pode! /
Vamos embora, ó, flor; Paulo da
Portela
A referência, assim como em sapateado, é genérica e corresponde a dançar. A alusão
397
à lua caracteriza o evento do qual os enunciadores participam como noturno, além de falar da
habilidade de dança da enunciadora a partir de um apreciador não humano, personificado,
talvez uma estratégia da enunciadora para não dar razão aos ciúmes do companheiro.
SARAVÁ [1 ocorrência no corpus]
1965
Tem tem tem pandeiro agogô / Vê vê vê se falta ganzá / O rei vem vem
/ vem de Luanda / vamos sara saravá / A rainha também / Não vai
demorar / Hoje vai ter samba Dolores / Vamos que eu quero sambar.
Ensaio de rua; Barbosa da Silva,
José Lima e Cartola
O pragmatema, que tem força de saudação, é originário do português salvar, com
inserção da vogal /a/, desfazendo o grupo consonantal /lv/, e alteração de /l/ para /r/.
Essas alterações fonológicas costumam ser atribuídas à influência da pronúncia da
língua portuguesa por falantes de línguas africanas, provavelmente do grupo linguístico
banto
72
.
O uso da interjeição confere à enunciação marcas culturais próprias da herança
cultural afro-brasileira. Isso está em conformidade com as marcas que remetem à prática da
congada — ver rei, rainha, Luanda.
SAUDADE [32 ocorrências em 27 letras do corpus]
1
1929
Juro, não nego, / Levo saudades / Deste meu único amor
/ Sei que jamais terei piedade / Pra mim perdeste o valor
//
Para mim perdeste o valor;
Ismael Silva
2
1931
Em viver junto de ti / Ainda tenho esperança / O teu
amor, eu já vi / Não me sai mais da lembrança / Quem
diz fazer o que quer / Eu digo não ser verdade /
Enquanto existir mulher / Há de existir saudade
Arrependido; Ismael Silva, Nilton
Bastos e Francisco Alves
3
1932
Sei que não posso suportar / (Se meu amor me deixar) /
Se de saudades
eu chorar / (Eu não posso me queixar) /
Abandonado sem vintém / (Vou sofrendo sem dizer nada
a ninguém) / Quem muito riu chora também / (A razão
dá-se a quem tem) //
A razão dá-se a quem tem;
Ismael Silva, Noel Rosa e
Francisco Alves
4
1932
Aurora vem raiando anunciando o nosso amor, ô, ô / A
felicidade promete, mas não vem / Só vem a saudade
,
saudade
é querer bem, ô
Ao romper da aurora; Ismael
Silva, Lamartine Babo e
Francisco Alves
5
1932
Aurora vem raiando anunciando o nosso amor, ô, ô /
Desperta a cidade, o sol no céu flutua / Ele é a
mocidade, a saudade é a lua, ô //
Ao romper da aurora; Ismael
Silva, Lamartine Babo e
Francisco Alves
7
1932
Gandaia é o que me faz saudade, / No tempo da
mocidade / Era a minha alegria. / Gandaia, palavra bem
proferida, / Que não me fica esquecida / nem de noite
nem de dia.
Gandaia; Ismael Silva
8
1932
Perdão, meu bem / atacou-me o coração, / Falei demais /
sou bom rapaz / no modo de proceder / perdão, porque /
se acabar nossa amizade / eu vou morrer / sinto dores, /
são saudades. //
Perdão, meu bem; Cartola
9
1932
Se acaso um dia se apagar / No teu pensamento o meu
amor / Para não chorar / E não mais penar / Mando
embora a saudade / Pra livrar-me da dor.
Tenho um novo amor; Cartola
10
1931-1932
Liberdade, liberdade / O meu amor foi-se embora /
Pensando deixar saudades
/ Eu nunca fui tão feliz /
Agora sou eu quem diz... / Foi uma felicidade (Eu vou
gritar...) //
Liberdade; Ismael Silva e
Francisco Alves
12
1941
O meu nome já caiu no esquecimento / O meu nome não
interessa a mais ninguém // E o tempo foi passando / A
velhice vem chegando / Já me olham com desdém / Ai,
quanta saudade de um passado / Que se vai lá no além
//
O meu nome já caiu no
esquecimento; Paulo da Portela
72
Cf. HOUAISS, Antônio e VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. Versão 1.0.
Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. CD-ROM, s.v. saravá.
398
13
1943
Maestro, toque aquela / Aquela que me traz recordação /
Do ano que já passou / E deixou saudades no meu
coração // Ai, ai, ai, ai / Eu nem posso me lembrar / Que
música boa pra gente dançar
Maestro, toque aquela!; Ismael
Silva e José de Almeida
14
1946
A velhice chega / Vai-se a mocidade / Apenas resta a
saudade / Aqueles bons tempos / Risos tão felizes /
Resta em meu peito / A cicatriz, a cicatriz //
A velhice chega; Paulo da
Portela e Rufino
15
c1947
Desde o dia em que partiste / A saudade morou em meu
peito / Eu já procurei alguém / Mas não há jeito /
Coração, o que é que esperas / De um amor tão desleal?
/ Não estás vendo, coração, ela partiu, / Causando tanto
mal.
Rolam nos meus olhos; Cartola
16
1922-1949
Quatro malandros chamados Bambaquerê / eles não
comem, não bebem / E não deixam ninguém comer /
amanhã que vou-me embora / que me dão para levar /
levo penas e saudades / E no caminho vou chorar
Coleção de passarinhos; Paulo
da Portela
18
1960
Os tempos idos, nunca esquecidos, / Trazem saudades
ao recordar / É com tristeza que relembro / Coisas
remotas que não vêm mais
Tempos idos; Cartola e Carlos
Cachaça
20
1965
Canção da saudade // Tudo de alegrias e de tristezas
conheci, / Coisas do amor e do sofrer, eu já senti, / Nada
me transforma a alegria de viver, / Ver a noite vir e sorrir,
ao sol nascer, / Vivo esperando o novo dia, / Que irá
trazer a luz, que sempre ficará!
Canção da saudade; Cartola e
Cacá Diegues
21
1966
Eu bem sei, estou arrependida / Lá nas matas passei
anos bem vividos / Eu vi garça parda, borboleta / De um
colorido tão sutil / Que saudade que eu tenho da floresta
do meu Brasil.
Garças pardas; Cartola e Zé da
Zilda
22
1968
Vai amigo / E diga-lhe, por favor, / Que não sei o que
faço / que já nem sei quem sou / Diga que terminou /
Toda aquela vaidade e que sinto saudade / Quero amá-
la com mais fervor
Vai amigo; Cartola
24
1976
Nada consigo fazer / Quando a saudade aperta / Foge-
me a inspiração / Sinto a alma deserta //
Peito vazio; Elton Medeiros e
Cartola
28
1928-1980
Saudades do interior / Cidade onde me criei / Saudade
da Joaninha / Onde ela anda não sei //
Nada vale a pena; Cartola e
Roberto Nascimento
A referência é a mesma do vocabulário comum da língua, de melancolia ou sofrimento
experimentados por alguém devido à ausência de uma pessoa, ou devido à recordação de
eventos pretéritos. Em muitos casos, o sentimento tem relação com a experiência amorosa e
majoritariamente tem carga negativa. Já em (7, 12-14, 16, 18, 20-21, 28), a lexia assume
diferentes significações: pode referir-se ao sentimento ocasionado pela audição de uma
música que remete a momentos agradáveis; a recordações de momentos prazerosos vividos; à
lembrança de um passado mais remoto, importante para a formação do enunciador; ao
afastamento de amigos queridos.
Diferentes colocações ajudam a expressar variadas perspectivas do sentimento de
saudade: as colocações com verbos-suporte deixar saudades, trazer saudade, ter saudade,
levar saudade e fazer saudade enfocam diferentes nuances do sentimento, seja considerado
exclusivamente a partir do experienciador, seja focalizando o fenômeno do engatilhamento
desse sentimento, o fator que o causou, a persistência do sentimento que perdura como se
acompanhasse o experienciador aonde vai. A colocação sentir saudades também focaliza a
experiência saudosa de um determinado sujeito.
O evento de passar a sentir saudade, já mencionado, também pode ser representado
metaforicamente, como se a saudasse se deslocasse em direção do experienciador, ou se
alojasse nele; isso se faz por colocação com verbos como vir (4), morar (15) e trazer (18).
399
Inversamente, o fim dessa experiência pode ser expresso por colocações como mandar
embora (9).
A colocação do verbo apertar com saudade (24) confere a esse verbo um valor
intensificador do sentimento, que ressalta a impressão forte dessa emoção sobre o
experienciador.
Observe-se a ocorrência, em alguns casos, da forma pluralizada do substantivo, que
deve funcionar como uma forma intensiva.
SENHOR [10 ocorrências em 10 letras do corpus]
1
1933
Vou pedir, vou implorar / A meu Senhor do Bonfim / Pra
fazer essa iaiá / Se apaixonar por mim.
Dona do lugar; Ismael Silva e
Francisco Alves
2
1937
Vou começar a aula / Perante a comissão, muita atenção
/ Eu quero ver se diplomá-los posso / Salve o fessor, dá
nota a eles, senhor / Quatorze com mais doze noves fora
tudo é nosso //
Teste ao samba; Paulo da
Portela
3
c1946
Julguei, Senhor, / Que deste sonho eu jamais
despertaria / Se errei, perdoai-me, pelo amor de Maria
Grande Deus; Cartola
4
c1947
Todos erram neste mundo / Não há exceção / Quando
voltam à realidade / Conseguem perdão / Por que é que
eu, Senhor, / Que errei pela vez primeira / Passo tantos
dissabores / E luto contra a humanidade inteira?
Sim; Cartola e O Martins
5
1977
E confiante despeço-me / Todo feliz a cantar /
Agradecido ao bom Senhor / Por me ajudar
A canção que chegou; Cartola e
Nuno Veloso
6
1977
Dizem que estou desfigurado, com razão / Estou
cansado de pedir / A Deus, aos céus enfim / Um amor,
onde encontrarei, Senhor? / Livrai-me desta nostalgia /
Confiante ainda espero um dia //
Desfigurado; Cartola
7
1979
Quando eu soube que Maria Rosa vinha / Da cidade
onde tinha ido há dias passear / Gritei contente graças a
Nosso Senhor / Eu pensei que meu amor não queria
mais voltar
Feriado na roça; Cartola
8
1979
Meu interesse é viver sem você / Nosso passado eu
procuro esquecer / Ao grande protetor eu peço em uma
prece / Senhor, por piedade, vê se ela me esquece //
Senões; Cartola e Nuno Veloso
9
1928-1980
Devias ser condenada ou crucificada, / Pois juraste falso,
/ Beijaste a cruz do Senhor
/ E disseste que me tinha
amor. //
Devia ser condenada; Cartola e
Nelson Cavaquinho
10
1928-1980
Ajoelhaste no altar / Juraste, me fizeste jurar / E o
Senhor de braços abertos / Com o olhar cheio de ternura
/ Compreendeu por certo / Que era falsa a jura
Me fizeste jurar; Cartola e Nelson
Cavaquinho
Na grande maioria das ocorrências, a referência é religiosa, dizendo respeito à
divindade cristã, evocada pelo enunciador, seja para lamentar-se de desventuras, pedir ajuda,
agradecer por benefícios. Em (7) há o pragmatema graças a Nosso Senhor, fórmula de rotina
que funciona como uma exclamação de entusiasmo diante de uma notícia auspiciosa. O
quase-frasema cruz do Senhor (9) representa o crucifixo, imagem de Jesus crucificado,
sagrada para o cristianismo; o ato de beijar essa imagem representa uma marca eloquente de
reforço a um juramento, que também aumenta a gravidade da quebra da jura, acusação feita
pelo enunciador à ex-consorte. O mesmo tipo de jura, feita pelos noivos na cerimônia do
casamento é mencionado em (10) e, mais uma vez, a referência ao Senhor de braços abertos
faz alusão ao crucifixo.
Na ocorrência (2), a lexia é um pragmatema, uma forma de tratamento que assinala
400
uma relação assimétrica entre pessoas — segundo a intenção comunicativa da composição,
esse tipo de relação se aplica tanto à autoridade do professor em relação aos alunos no ensino
formal quanto à do sambista consagrado na escola de samba em relação à assistência.
O quase-frasema Senhor do Bonfim (1) contém uma referência à Bahia, reforçada
tanto pela alusão ao Cais Dourado (localidade de Salvador) quanto pelo tratamento iaiá. Tais
referências são comuns a sambas que guardam influências de uma fase anterior ao surgimento
do samba urbano carioca e que tem importância seminal para o gênero. Esse período é
marcado pelas composições dos baianos chegados ao Rio de Janeiro, que se instalaram no
Centro da cidade, na região que ficou conhecida como Pequena África (ver a primeira parte
deste trabalho).
SILENCIAR [3 ocorrências em 2 letras do corpus]
1
1935
Quando silencia a voz das aves / (De harmonias tão
suaves) / a noite vem a terra amortalhar / (Para em sono
se engolfar) / Nos roseirais as flores segredando /
(Graciosas baloiçando) / Ensaiam, se estreitando, O
verbo amar //
Quando silencia a voz das aves;
Paulo da Portela
2
1944
Silenciar a Mangueira // Silenciar a Mangueira, não /
Disse alguém / Uma andorinha só não faz verão também
/ Devemos ter adversários / Como Oswaldo Cruz
Silenciar a Mangueira; Cartola
Em (2), a lexia faz referência ao arrasamento da praça Onze, para construção da
avenida Presidente Vargas, interpretado como um golpe ao movimento cultural do samba, por
essa ser uma localidade de profunda ligação com a história do seu desenvolvimento.
O ato recebido como agressão às escolas de samba, instituições eminentemente
musicais, é representado metaforicamente como seu silenciamento (veja-se também praça
Onze e andorinha).
Já em (1), a significação é mais propriamente a de deixar de emitir sons, atribuída a
aves. Essa caracterização das aves é usada como índice na construção de uma cena na qual
anoitece.
SOCIEDADE [1 ocorrência no corpus]
1960
Depois, aos poucos, o nosso samba / Sem sentirmos se aprimorou /
Pelos salões da sociedade / Sem cerimônia ele entrou / Já não pertence
mais à praça, / Já não é samba de terreiro / Vitorioso, ele partiu para o
estrangeiro //
Tempos idos; Cartola e Carlos
Cachaça
Na ocorrência em questão, a lexia sociedade tem significação restritiva, referindo-se
ao grupo de mais status, que também costuma ser denominado “alta sociedade”. A referência
contribui para caracterizar a ascensão social do samba, característico de grupos geralmente
menos prestigiados, que conseguiu penetração em outros âmbitos.
401
SOFRER [51 ocorrências em 39 letras do corpus]
1
1924
Assim não sofrerei mais desventuras / Nem alimentarei
sonhos fictícios / Acreditei demais em vãs ternuras /
Base fundamental dos seus suplícios //
Dor que ensina; Paulo da Portela
2
1924
Mulher, tu és orgulhosa / E tens o jeito / de me fazer
sofrer. / Mulher, esse mundo não é nosso / Aqui a gente
paga sem querer.
Mulher, tu és orgulhosa; Paulo da
Portela
3
1930
Mulher assim, / Deus me livre, não preciso, / Meu
benzinho, tu pensavas / Me iludir com teu sorriso, / Já
julgavas ser / Dona do meu coração, / Queres me ver
sofrer, / Desiste da pretensão.
Não há; Ismael Silva, Nilton
Bastos e Francisco Alves
4
1931
Amor, quanto menos ou nenhum é melhor / Porque só se
vive a sofrer por amar / E quem pensar nisso hoje em
dia, não terá alegria / É bom evitar //
É bom evitar; Ismael Silva, Nilton
Bastos e Francisco Alves
5
1931
Quero viver sempre descansado / embora abandonado /
até morrer / porque a vida de quem ama / é sofrer / é
sofrer //
Quero sossego; Ismael Silva,
Nilton Bastos
6
1931
Não hei de dar mais golpe errado / eu também sofri / eu
tenho me enganado / hoje vivo sem pensar / porque não
quero mais esse golpe baixo //
Quero sossego; Ismael Silva,
Nilton Bastos
8
1932
Eu vou chorar só em lembrar / (Se meu amor me deixar)
/ Dei sempre golpe de azar / (Eu não posso me queixar) /
Pra parecer que vivo bem / (Vou sofrendo sem dizer
nada a ninguém) / A esconder que amo alguém / (A
razão dá-se a quem tem)
A razão dá-se a quem tem;
Ismael Silva, Noel Rosa e
Francisco Alves
11
1932
A mentira é fatal / Sei-o que não é por mal / Que a
mulher nos faz descrer / Mas se é realidade / Sua grande
falsidade, / Eu hei de ver você sofrer //
Ando cismado; Ismael Silva e
Noel Rosa
15
1933
Não é só quem vive em pranto / Que sabe o que é
sofrer... / Eu sofro e no entanto / Nunca dei a perceber! //
E são tristes meus ais... / Pois quando a gente sente / E
não chora / Sofre muito mais //
Nunca dei a perceber; Ismael
Silva
19
1934
É sempre consolação / Se iludir conseguimos / A
concepção / Por este alguém / Por quem sofremos / E a
nossa dor / Assim escondemos //
O riso e a dor; Paulo da Portela
20
1935
Liberdade / Para um coração que sofrendo / Está quase
morrendo / Porque quer amar / Liberdade / Solta-me
desta prisão / Porque meu coração / Não pode suportar
Liberdade; Paulo da Portela e
Dengo
22
1937
Sei chorar / Eu também já sei sentir a dor / Estou
cansado de ouvir dizer / Que aprende-se a sofrer no
amor //
Sei chorar; Cartola
24
1941
Se todos que nos castigam / Nos reclamam e nos
obrigam / Querendo sofrer-nos só / É mais perfeito que
eles saibam / Que o destino nos afague / Vivendo este
amor só
Não esqueça de mim; Paulo da
Portela
28
1945
Agradeço comovido / E muito sentido / Por tudo que faço
/ Ao bem que me fez / Perdoa / Mas quero voltar / Para
junto daqueles que a vida / Sofrendo ou chorando, /
Cantando, sorrindo, / É boa. //
Perdoa; Paulo da Portela e
Cartola
29
déc.1940
Meu amor / Minha flor / Teu olhar reluz / Inspira amor,
seduz / Quanto te vejo / Sinto em mim um calor ô ô / Só
por ti sofrerei / Até condenado à morte serei / Meu amor
//
Ordenes e farei; Cartola e Aluísio
Dias
31
1968
Sofri a maior decepção / Tentarei te esquecer / Pois te
amar foi ilusão //
Injúria; Cartola e Elton Medeiros
33
1968
Procurei viver novas emoções / Talvez animado pela
vaidade / De fazer sofrer outros corações / E bati na
porta da infelicidade.
Sofreguidão; Cartola e Elton
Medeiros
34
1968
Lembro-me bem / Um dia eu lhe disse uma grande tolice
/ E nosso lar deixei / Todos têm o seu drama / Só não
sofre
quem não ama / Amenizar meu castigo só vo
poderá, amigo.
Vai amigo; Cartola
37
1977
Eu não posso mais sofrer / És um caso perdido / Tu não
pensas como eu penso / Não desejas um bom marido //
Desta vez eu vou; Cartola
39
1922-1978
Sei... você anda sofrendo. / Está arrependida / do que já
me fez. / É seu destino, mulher; / eu não lhe perdoo /
porque vai me enganar outra vez. //
Sei, você anda sofrendo; Ismael
Silva
A maior parte das ocorrências refere-se ao sofrimento amoroso, embora em dois casos
também se fale no sofrimento existencial — (15) e (28). Quanto ao sofrimento no amor, é
representado em variadas perspectivas: fala-se no pesar de quem terminou uma relação e se
arrependeu; nas desventuras de quem está ligado a alguém infiel (geralmente uma mulher,
segundo as abonações); em uma pretensa inclinação de certas pessoas a causar sofrimentos
402
em consórcios amorosos; na paixão de alguém que busca conquistar alguém cujo amor anseia;
na tristeza de quem reconhece a culpa pelo fracasso do amor etc.
A colocação fazer sofrer é recorrente nas situações em que o enunciador acusa a
parceira de maltratá-lo prejudicando a relação entre os dois e causando-lhe desprazer.
Pragmatemas como a vida de quem ama é sofrer (5) e só não sofre quem não ama (34)
são fórmulas de rotina oriundas do senso comum, que reforçam com a autoridade do consenso
coletivo a tese frequente nas letras de samba que falam de amor, segundo a qual a felicidade
no amor é muito rara. O desdobramento natural dessa tese, implícito em (34), é que é melhor
desistir de amar para viver tranquilo.
SOL [19 ocorrências em 16 letras do corpus]
1
1930 (1ª
parte)
Alvorada lá no morro, que beleza / Ninguém chora, não
há tristeza / Ninguém sente dissabor / O sol
colorindo é
tão lindo, é tão lindo / E a natureza sorrindo, tingindo,
tingindo (alvorada) //
Alvorada (no morro); Cartola,
Carlos Cachaça e Hermínio Bello
de Carvalho
2
1932
Aurora vem raiando anunciando o nosso amor, ô, ô /
Desperta a cidade, o sol no céu flutua / Ele é a
mocidade, a saudade é a lua, ô //
Ao romper da aurora; Ismael
Silva, Lamartine Babo e
Francisco Alves
3
1932
Quando nosso infinito / Se apresenta tão bonito /
Trajando azul anil / Baila o sol lá nas alturas / Dando
maior formosura / À mais linda dama do Brasil //
Cidade mulher; Paulo da Portela
4
1934
O teu céu, o teu mar / É diferente / E as estrelas
candentes / Brilham mais / Alto dia o sol / Convida a
gente / E à noite o luar / Que alegria nos traz
És tu, Brasil, que nos seduz;
Paulo da Portela e Ernani
Rosário
5
1935
Do teu sino / A luz vibrando / O sol na esfera flutua /
Meigas flores / Parecem bailando / Quando a tardinha /
Surge o pálido / Clarão da lua
Clarão da lua; Paulo da Portela
6
1935
Linda borboleta, não seja buliçosa / Deixa minha rosa
que tão linda está no galho / É o meu prazer, ao
amanhecer / Fazer-lhe visita, vê-la banhada de orvalho /
Quando vem o sol, cobre ela de ouro / No jardim do
pobre é um tesouro
Linda borboleta; Paulo da Portela
e Monarco
7
1940
Ao romper do sol / Ouvi cantar um rouxinol / Cantando
um hino em louvor / O mano Paulo dando viva ao
Claudionor.
Cantar de um rouxinol; Paulo da
Portela
8
1940
Vamos embora, ó flor / Ora, muito cedo, amor / A lua
estará gostando de me ver sapatear / Mas quem é que
dá as ordens? / É você. / Mas quando pode! / Só
deixarei o pagode / Quando o sol
raiar.
Vamos embora, ó, flor; Paulo da
Portela
9
D1941
Habitada por gente simples e tão pobre / Que só tem o
sol que a todos cobre, / Como podes, Mangueira,
cantar? //
Sala de recepção; Cartola
10
1922-1949
Qual um farol / o astro sol / na ascensão de mais sublime
luz / na amplidão sim reluz / qual um crisol que seduz / e
no azul / surge taful / qual um crisol a rutilar mais luz / na
sedução / na amplidão / do astro rei que seduz / calmo
ascender / do astro sol
resplandecer / no arrebol
Qual um farol; Paulo da Portela
11
1962
A sorrir / Eu pretendo levar a vida / Pois chorando / Eu vi
a mocidade perdida // Fim da tempestade, / O sol
nascerá / Fim desta saudade, / Hei de ter outro alguém
para amar
O sol nasce; Cartola e Elton
Medeiros
12
1965
Tudo de alegrias e de tristezas conheci, / Coisas do amor
e do sofrer, eu já senti, / Nada me transforma a alegria
de viver, / Ver a noite vir e sorrir, ao sol nascer, / Vivo
esperando o novo dia, / Que irá trazer a luz, que sempre
ficará!
Canção da saudade; Cartola e
Cacá Diegues
13
1974
Linda / No que se apresenta / O triste se ausenta / Fez-
se a alegria / Corra e olhe o céu / Que o sol
vem trazer /
Bom dia / Ah! Corra e olhe o céu / Que o sol
vem trazer
bom dia...
Corra e olhe o céu; Cartola e
Dalmo Castello
14
1976
Os fio que é meu, que é meu / E que é dela / Rebenta a
goela de tanto chorá / O rio tá seco, o sol não vem não /
Vortemos pra casa / Chamando Dondon
Ensaboa; Cartola
403
15
1977
Amanhã / A tristeza vai transformar-se em alegria / E o
sol vai brilhar no céu de um novo dia / Vamos sair pelas
ruas, pelas ruas da cidade / Peito aberto, cara ao sol da
felicidade //
A cor da esperança; Cartola e
Roberto Nascimento
16
1979
O sol, a lua, a terra, o mar, / É um mundo novo em teu
olhar / Estrelas vejo a cintilar
Dê-me graças, senhora; Cartola
O sol figura nessas ocorrências, como índice do período diurno, caracterizado pela sua
luminosidade, com referência ao seu próprio brilho e ao efeito que tem sobre as coisas e sobre
o enunciador, em suas cargas simbólicas de alegria, energia e poder (13, 15).
O momento do amanhecer é referido por meio das colocações romper do sol, raiar do
sol e nascer do sol (7-8, 12). No segundo caso, o raiar do sol é mencionado como momento
de término da roda de samba.
Em (11), as menções a tempestade e sol compõem uma metáfora para sofrimento e
alegria.
SONHAR [15 ocorrências em 12 letras do corpus]
1
1926
Dizem que os teus beijos é igual ao ópio / Que sonhos
de luz fazem gozar / Mata meu desejo neste instante /
Dai-me teu beijo importante / Quero dormir e sonhar
Ópio; Paulo da Portela
2
1931
Sonhei // Sonhei que vais me abandonar / Se é verdade,
não tens razão / E, se foi sonho, / Eu não sei se será ou
não //
Sonhei; Ismael Silva, Nilton
Bastos e Francisco Alves
3
1931
Ainda não sosseguei / Desde o dia que sonhei / Pois eu
não tenho satisfação / Por causa dessa impressão.
Sonhei; Ismael Silva, Nilton
Bastos e Francisco Alves
4
1932
Não faz amor, / Deixa-me dormir / Ó minha flor, tenha dó
de mim / Sonhei, acordei assustado, / Receoso que
tivesses me enganado / Eu não durmo sossegado //
Não faz, amor; Cartola e Noel
Rosa
5
1933
Amanhece e anoitece / Sem parar o meu tormento / Por
saber que quem me esquece / Não me sai do
pensamento / Já não durmo, já não sonho / De pensar
fugiu-me a paz / Num passado tão risonho / Que não
volta nunca mais //
Vejo amanhecer; Ismael Silva,
Noel Rosa e Francisco Alves
6
1946
És o cavaleiro que sonhamos / De ti muito esperamos /
Com todo amor febril / Para amenizar nossas dores / E
levar bem alto as cores / Da bandeira do Brasil
Cavaleiro da esperança; Paulo
da Portela e Monarco
7
1922-1949
Quem te vê assim risonha / Naturalmente nem sonha / a
maldade do teu riso / com um juramento eterno / vai me
levando ao inferno / dizendo que é paraíso //
O grande fingimento; Paulo da
Portela
8
1922-1949
Momentos felizes passei / Porém quando despertei /
Senti que a felicidade / Estava de mim a zombar / Por
isso quero acordado / Continuar a sonhar / E deste
sonho / Nunca despertar //
Sonho; Lincoln Washington
Pereira de Almeida e Paulo da
Portela
9
1922-1949
Sonhei que voltaste a ser minha / E aquela alegria que
eu tinha / Minha vida tornou a iluminar
Sonho; Lincoln Washington
Pereira de Almeida e Paulo da
Portela
10
1957
Sonhava desde menino / Tinha um desejo felino / De
contar toda a tua história / Este sonho realizei / Um dia, a
lira empunhei / E cantei todas as tuas glórias
Fiz por você o que pude; Cartola
11
1968
Tive sim / Outro grande amor antes do teu / Tive sim / O
que ela sonhava eram os meus sonhos / E assim íamos
vivendo em paz
Tive sim; Cartola
12
1976
Devias vir para ver os meus olhos tristonhos / E quem
sabe sonhavas meus sonhos por fim.
As rosas não falam; Cartola
13
1928-1980
Meu primeiro amor / Não me olhe assim / Eu já te disse
adeus / E os olhos teus não cansam / De fitar os meus //
A tristeza / Do teu olhar / Juro que encanta e traduz /
Tanta beleza / É uma promessa de amor / Que até nos
faz sonhar.
Meu primeiro amor; Cartola e
Aluísio Dias
14
1928-1980
Foi num dia um sonho e eu sonhei / demais seu doutor /
Na cidade grande eu vim / tentar vencer / Joaninha
coitadinha tão / sozinha ficou / E o que aconteceu foi /
triste de doer //
Nada vale a pena; Cartola e
Roberto Nascimento
Em (2-5, 9), a referência é às experiências que se tem durante o sono. Nos três
404
primeiros casos, o enunciador justifica suas dúvidas sobre a fidelidade da destinatária a partir
do conteúdo de um sonho que teve. Em (5), o enunciador caracteriza a sua perturbação
dizendo que não consegue dormir, nem sonhar, condição que vivifica a descrição do seu
sofrimento. Em (9), o conteúdo do sonho, diferentemente de casos anteriores, é favorável à
realização amorosa e é mencionado para caracterizar quão profundo é o desejo amoroso do
enunciador.
Em (1, 6, 8, 10-14), a significação da lexia é relacionada a desejos intensos de alguém.
Especificamente em (10), tais desejos são relativos a cultuar a história da sua escola de samba.
Essa valorização da escola também acarreta uma valorização do próprio enunciador como
sambista, que tem talento para fazer uma homenagem à altura da Mangueira. Na maioria dos
demais casos, o sonho tem a ver com ideais amorosos.
A colocação sonhar demais (14) sugere que o experienciador anela conquistas muito
extensas, além de suas possibilidades, e assim pode não ter sucesso em seus projetos.
O pragmatema sonhar os sonhos de [alguém] (11-12) marca a afinidade entre um
casal, que tem os mesmos ideais. É interessante que nessa expressão há uma subordinação
entre os sonhos, e um dos amantes fica condicionado aos desejos do outro.
Em (7) a referência é à consciência que alguém tem a respeito de um fato. Geralmente
nesse caso, usa-se a lexia em frases na negativa, para qualificar alguém como completamente
inadvertido em relação a algo. Nessa ocorrência, a informação ignorada é a maldade da
destinatária quando se trata de amor.
SONHO [19 ocorrências em 14 letras do corpus]
1
1924
Assim não sofrerei mais desventuras / Nem alimentarei
sonhos fictícios / Acreditei demais em vãs ternuras /
Base fundamental dos seus suplícios //
Dor que ensina; Paulo da Portela
2
1926
Dizem que os teus beijos é igual ao ópio / Que sonhos
de luz fazem gozar / Mata meu desejo neste instante /
Dai-me teu beijo importante / Quero dormir e sonhar
Ópio; Paulo da Portela
3
1931
Sonhei // Sonhei que vais me abandonar / Se é verdade,
não tens razão / E, se foi sonho, / Eu não sei se será ou
não //
Sonhei; Ismael Silva, Nilton
Bastos e Francisco Alves
4
1932
Se algum dia tiver de mim compaixão / Que alegria vai
ser no meu coração / A tua volta será meu sonho
dourado / Eu viverei e esquecerei meu passado.
Cantar para não chorar; Paulo da
Portela e Heitor dos Prazeres
5
1936
Às vezes dou gargalhada / Ao lembrar do passado /
Nunca pensei em amor, / nunca amei nem fui amado /
Se julgas que estou mentindo jurar sou capaz / Foi
simples sonho
que passou e nada mais.
Não quero mais amar a ninguém;
Cartola, Carlos Cachaça e Zé da
Zilda
6
1936
Semente de amor / Sei que sou desde nascença / Mas
sem ter vida e fulgor / Eis minha sentença / Tentei pela
primeira vez um sonho vibrar / Foi beijo que nasceu / E
morreu sem se chegar a dar //
Não quero mais amar a ninguém;
Cartola, Carlos Cachaça e Zé da
Zilda
7
1922-1949
Quisera viver deste sonho / Que me dá prazer / A ter que
despertar risonho / E logo sofrer / A dor com saudade
daquela / Que tanto queria / É melhor viver-se de um
sonho
/ Que traz alegria / Ah se tu voltasses
Sonho; Lincoln Washington
Pereira de Almeida e Paulo da
Portela
8
1922-1949
Sonho // Sonhei que voltaste a ser minha / E aquela
alegria que eu tinha / Minha vida tornou a iluminar
Sonho; Lincoln Washington
Pereira de Almeida e Paulo da
Portela
405
9
1922-1949
Momentos felizes passei / Porém quando despertei /
Senti que a felicidade / Estava de mim a zombar / Por
isso quero acordado / Continuar a sonhar / E deste
sonho / Nunca despertar //
Sonho; Lincoln Washington
Pereira de Almeida e Paulo da
Portela
10
1957
Sonhava desde menino / Tinha um desejo felino / De
contar toda a tua história / Este sonho realizei / Um dia, a
lira empunhei / E cantei todas as tuas glórias
Fiz por você o que pude; Cartola
11
1968
Tive sim / Outro grande amor antes do teu / Tive sim / O
que ela sonhava eram os meus sonhos / E assim íamos
vivendo em paz
Tive sim; Cartola
12
1976
Devias vir para ver os meus olhos tristonhos / E quem
sabe sonhavas meus sonhos por fim.
As rosas não falam; Cartola
13
1976
Minha, quem disse que ela foi minha / Se fosse seria a
rainha / Que sempre vinha aos sonhos meus //
Minha; Cartola
14
1976
Ouça-me bem, amor / Preste atenção o mundo é um
moinho / Vai triturar teus sonhos tão mesquinhos / Vai
reduzir as ilusões a pó //
O mundo é um moinho; Cartola
15
1977
Surge a alvorada, folhas a voar / E o inverno do meu
tempo / Começa a brotar, minar / E os sonhos do
passado, do passado / Estão presentes no amor / Que
não envelhecem jamais / Eu não tenho a paz e ela tem
paz
O inverno do meu tempo; Cartola
e Roberto Nascimento
16
1928-1980
Foi num dia um sonho e eu sonhei / demais seu doutor /
Na cidade grande eu vim / tentar vencer / Joaninha
coitadinha tão / sozinha ficou / E o que aconteceu foi /
triste de doer //
Nada vale a pena; Cartola e
Roberto Nascimento
17
1928-1980
Eu pedi ao grande Deus / Que viesse aos sonhos meus /
Sonhos estes, puro, eterno / E deitei-me satisfeito /
Repousei as mãos ao peito / Olhos fixos no teto
Pesadelo; Cartola e Nuno Veloso
Em grande parte, as observações feitas s.v. sonhar aplicam-se aqui.
Em (3, 8-9, 13), a referência é às experiências que alguém tem durante o sono. Em (1-
2, 4-7, 10-12, 14-17) a referência é a desejos do enunciador.
Destaque-se a colocação sonho dourado (4), que destaca o forte envolvimento
emocional do experienciador com o que deseja; a colocação simples sonho que passou (5), em
que a qualificação simples ressalta a fragilidade do desejo em questão, enquanto passar, nesse
contexto, significa 'deixar de ter efeito'. A colocação viver de um sonho (7) põe em questão a
postura do enunciador que acredita piamente na possibilidade de realizar um desejo, mas que,
segundo determinada perspectiva, acaba perdendo contato com a realidade e iludindo-se.
A colocação realizar um sonho (10) diz respeito, ao contrário do caso anterior, ao
sucesso na realização de um desejo.
SORRIR [20 ocorrências em 18 letras do corpus]
1
1924
Ai daquele como eu / Que tiver a desdita de te conhecer
/ Na sua arte de perder / Com este modo de olhar /
Sorrindo
estás fingindo / Jurando estás sentindo / Se o
teu maior prazer é escravizar.
Podes gargalhar; Paulo da
Portela
2
1924
Reclamo com muita razão / O mal que me causaste /
Não é porque não tenho forças / Para resistir / Sinto-me
fugir a calma / Doer em cheio dentro d'alma / Para poder
zombar / E com prazer sorrir
Podes gargalhar; Paulo da
Portela
3
1927
Não se deve cantar glória / Antes da vitória / Vocês que
sorriam de mim / Na esperança do mais alto pedestal / O
seu castelo ruiu / Numa poeira infernal
Não se deve cantar glória; Paulo
da Portela
4
1930 (1ª
parte)
Alvorada lá no morro, que beleza / Ninguém chora, não
há tristeza / Ninguém sente dissabor / O sol colorindo é
tão lindo, é tão lindo / E a natureza sorrindo, tingindo,
tingindo (alvorada) //
Alvorada (no morro); Cartola,
Carlos Cachaça e Hermínio Bello
de Carvalho
5
1932
E muita gente / Que a tristeza desconhece / Chora às
vezes de alegria / Quando ri de quem padece / Nas tuas
juras / Eu sorrindo acreditei / Hoje eu choro já descrente /
Vendo quanto me enganei
Assim, sim; Ismael Silva, Noel
Rosa e Francisco Alves
406
6
1933
Quando desperta a cidade / Numa alegria sem par / Ao
raiar da passarada / Quando começa a cantar / Ao longe
Febo a sorrir / Derrama raios de luz / Sobre os quadros
verdejantes / Fazendo as flores florir //
Quando desperta a cidade; Paulo
da Portela
7
1935
Canta meu bem / Requebra macio de forma / Que mexas
com todos nós / Queremos ouvir / A sorrir, a candura da
tua voz //
Canta, meu bem; Paulo da
Portela
8
1936
Quem me vê sorrindo pensa que estou alegre / O meu
sorriso é por consolação / Porque sei conter para
ninguém ver / O pranto do meu coração //
Quem me vê sorrir; Cartola e
Carlos Cachaça
9
1936
Quem me vê sorrir // Quem me vê sorrindo pensa que
estou alegre / O meu sorriso é por consolação / Porque
sei conter para ninguém ver / O pranto do meu coração //
Quem me vê sorrir; Cartola e
Carlos Cachaça
10
1936
Mas tem duas coisas / Que podem impedir / E tu, a
sorrir, / Me perguntarás: / Meu bem, que será? //
Serei teu ioiô; Paulo da Portela
11
1937
Hoje eu choro / E a mulher que adoro talvez / Caída em
braços de outro sorrindo / Repete as mesmas promessas
mentindo //
Sei chorar; Cartola
12
1942
Oh! para que chorar / Só para enganar / Sentida quando
eu sei / Que és fingida / Só para iludir / Fazer pensar / E
depois tu sorrir // Ora vai mulher / Já que teu destino
quer / Vai não te desejo mal / Sei que teu pesar / Um dia
será fatal
Oh, pra que chorar; Paulo da
Portela
13
1945
O desprezo, arma perigosa / Para quem sabe sentir / Faz
sofrer, faz chorar, faz sorrir / Fere sem sangrar, mata
sem sentir //
Arma perigosa; Paulo da Portela
e Paquito
14
1945
Ouro, desça do seu trono / Venha ver o abandono / De
milhões de almas aflitas / como gritam / Sua majestade,
a prata, / Mãe ingrata indiferente e fria / Sorri da nossa
agonia //
Ouro, desça do seu trono; Paulo
da Portela
15
1945
Agradeço comovido / E muito sentido / Por tudo que faço
/ Ao bem que me fez / Perdoa / Mas quero voltar / Para
junto daqueles que a vida / Sofrendo ou chorando, /
Cantando, sorrindo, / É boa. //
Perdoa; Paulo da Portela e
Cartola
16
1922-1949
Bendita sejas tu, oh! Liberdade! / Rainha absoluta do
sucesso, / Sem ti não haverá felicidade, / Sem ti não
sorrirá todo o universo!
Bendita sejas tu...; Paulo da
Portela
17
déc.1960
Por Deus, não posso entender / Por que vamos
chorando / Se os nossos cicerones / São aves cantando
/ Lateralmente, as flores / Deitam aroma sorrindo / E
ouço da natureza: / Que sejam bem-vindos //
Que sejam bem-vindos; Cartola
18
1962
A sorrir / Eu pretendo levar a vida / Pois chorando / Eu vi
a mocidade perdida // Fim da tempestade, / O sol
nascerá / Fim desta saudade, / Hei de ter outro alguém
para amar
O sol nasce; Cartola e Elton
Medeiros
19
1965
Tudo de alegrias e de tristezas conheci, / Coisas do amor
e do sofrer, eu já senti, / Nada me transforma a alegria
de viver, / Ver a noite vir e sorrir, ao sol nascer, / Vivo
esperando o novo dia, / Que irá trazer a luz, que sempre
ficará!
Canção da saudade; Cartola e
Cacá Diegues
20
1979
Faz o que te digo, amor / Vai, voltes daqui / Eu quero te
ver contente / Te ver alegre / Sempre a sorrir
.
Fim de estrada; Cartola
As ocorrências costumam fazer referência à expressão facial que denota alegria ou
prazer. Entretanto, em determinados casos, fala-se em outras intenções que podem estar por
trás do sorriso, como zombaria (2), disfarce de dores (8), dissimulação de más intenções (1)
etc.
Também há casos nos quais a ocorrência traz a personificação de elementos da
natureza, como em (4, 6, 14, 16, 17, 19). Nessas ocorrências o verbo qualifica a natureza
como acolhedora, agradável ao observador, que a representa sorridente.
A colocação sorrir de [algo/alguém] encontra-se em (3, 14). Sua significação
corresponde a zombar do elemento que ocupa a posição sintática de objeto da colocação. Na
primeira ocorrência, o ato qualifica o descrédito que os interlocutores atribuíam ao enunciador
em uma disputa; na segunda, caracteriza a atitude da prata, personificada para simbolizar a
407
ambição por riquezas materiais, de desprezo pelo sofrimento humano.
SORRISO [10 ocorrências em 8 letras do corpus]
1
1930
Mulher assim, / Deus me livre, não preciso, / Meu
benzinho, tu pensavas / Me iludir com teu sorriso, / Já
julgavas ser / Dona do meu coração, / Queres me ver
sofrer, / Desiste da pretensão.
Não há; Ismael Silva, Nilton
Bastos e Francisco Alves
2
1930
Não há, / Não há quem não se iluda / Com teu sorriso
traidor / Dizem que vingança é pecado / Então tu podes
crer / Que eu serei um pecador. //
Não há; Ismael Silva, Nilton
Bastos e Francisco Alves
3
c1933
Às vezes é um sorriso / Que acompanha uma esperança
/ Outras vezes é um riso / Que provoca uma vingança //
Rir; Cartola e Noel Rosa
4
1935
No teu jardim florido, encantadoramente / aí vem a
primavera alegrar a uma vida / o teu sorriso / narcotiza o
ambiente / E as lindas borboletas / Voejando
alegremente. //
Quando silencia a voz das aves;
Paulo da Portela
5
1935
Aí vem a primavera / Alegrar a nossa vida / banhar de
aroma / o lívido das selvas / Teu sorriso, ó amor, //
Quando silencia a voz das aves;
Paulo da Portela
6
1936
Quem me vê sorrindo pensa que estou alegre / O meu
sorriso é por consolação / Porque sei conter para
ninguém ver / O pranto do meu coração //
Quem me vê sorrir; Cartola e
Carlos Cachaça
7
1977
É branco o sorriso das crianças / São verdes, os
campos, as matas / E o corpo das mulatas quando
vestem verde e rosa, é / Mangueira / É verde o mar que
me banha a vida inteira //
Verde que te quero rosa; Cartola
e Dalmo Castello
8
1979
E o meu coração batendo acelerado / de segundo a
segundo / caindo no abismo / e ela com um leve sorriso
nos lábios / talvez criticasse todo o meu cinismo
Bem feito; Cartola
9
1979
Hoje procurei-a / mas foi tudo em vão / com um leve
sorriso nos lábios respondeu-me não / foi bem feito eu
bem sei / que mereço esse castigo / ainda é pouco o que
tenho por ela sofrido //
Bem feito; Cartola
10
1979
Dê-me graças, senhora, / Um sorriso a quem chora /
Onde há ódio / Eu vos peço que ponha amor / E assim /
Eu serei mais feliz que sou
Dê-me graças, senhora; Cartola
Assim como em sorrir, a lexia nessas ocorrências pode significar uma expressão de
alegria ou simpatia (como geralmente é o esperável); entretanto, também externa outras
disposições íntimas, como a falsidade da mulher que diz amar, mas trai o companheiro (1-2);
o desdém de quem não confia no interlocutor (8-9); o disfarce de quem sofre, mas não quer
deixar isso transparecer (6).
Também é comum o enunciador elogiar o sorriso de uma mulher amada, exaltando a
sua beleza ou os efeitos positivos que têm sobre si (3-5).
Em (8-9) encontra-se o frasema com um (leve) sorriso nos lábios, que, mais do
caracterizar alguém como sorridente, na verdade qualifica a sua expressão como desdenhosa,
desmerecedora de algo, ou de alguém.
A menção ao sorriso das crianças em (7) é um recurso poético usado nessa letra, que,
além da simbologia das cores, também aproveita descrições de elementos da realidade com
determinadas cores para chegar ao verde e rosa, combinação que simboliza a Mangueira.
Já em (10), a lexia simboliza simpatia e consolo aos que sofrem. Nesse caso,
aproveita-se a contraposição entre sorriso e chorar para avivar a significação religiosa do
consolo aos aflitos.
408
SUBURBANO [1 ocorrência no corpus]
1922-1949
Avante, mocidade é hora / De mostrar o nosso progresso / Vamos
deixar correr / A fama suburbana / Por todo este universo, universo / O
samba bem cantado é lindo
Avante, mocidade, é hora...; Paulo
da Portela
A lexia tem relação com a identidade da Portela, escola do subúrbio do Rio de Janeiro.
A afirmação dessa identidade era especialmente importante em uma época durante a qual o
subúrbio não era visto como região com tradição na cultura do samba.
SUBÚRBIO [1 ocorrência no corpus]
1925
Para que havemos de mentir / O subúrbio está é bom, / Venham ver,
não é história / Se por ventura estou errado / Dou a mão à palmatória.
Para que havemos de mentir;
Paulo da Portela
Conforme já foi comentado s.v. suburbano, a referência ao subúrbio e a afirmação de
que há interesse em dar-lhe destaque corresponde ao projeto de afirmar a Portela como
instituição de referência no samba carioca.
SUCESSO [2 ocorrências em 2 letras do corpus]
1
1929
A Portela está contente / Para frente / Com fé e coragem
/ Que eu quero ver / Quero saber do sucesso / Dentro da
ordem e progresso / Salve então a rua B
A Portela está contente...; Paulo
da Portela
2
1922-1949
Bendita sejas tu, oh! Liberdade! / Rainha absoluta do
sucesso, / Sem ti não haverá felicidade, / Sem ti não
sorrirá todo o universo!
Bendita sejas tu...; Paulo da
Portela
Em (1), a exclamação quero saber do sucesso! é um pragmatema de incentivo ao novo
grupo de sambistas da rua B. Em (2), a Liberdade está personificada e é qualificada como
rainha do sucesso, o que significa que a liberdade é considerada precondição indispensável
para a plenitude e realização humana.
409
3.2.23 – Letra T
TAMBOR [1 ocorrência no corpus]
1965
Pedro afine os tambores / E diz a Dolores / Que vai ter ensaio de rua /
Vê se reúne a turma inteirinha / Vamos que é noite de lua //
Ensaio de rua; Barbosa da Silva,
José Lima e Cartola
A lexia é usada para referência genérica a instrumentos de percussão. Tal é o caso
desta ocorrência, que ocorre no sintagma “afine os tambores”, uma providência que
caracteriza um momento anterior ao ensaio de rua, de preparação dos instrumentos para o uso;
tal providência identifica Pedro como alguém integrado no grupo sambista, com
responsabilidades de zelar pelos instrumentos de percussão, essenciais para as atividades do
grupo.
TAMBORIM [3 ocorrências em 3 letras do corpus]
1
1940
Tem um prêmio para quem / descobrir a nega bamba /
da escola de samba / que compra barulho / por qualquer
dinheiro / faz o dó maior / bem direitinho / no cavaquinho
/ toca cuíca / bate tamborim / enfrenta um pandeiro
Nega bamba; Paulo da Portela
2
1950
Ele está mesmo dançando na corda bamba / Ele é
aquele que na escola de samba / Toca cuíca, toca surdo
e tamborim / Faça por ele como se fosse por mim //
Antonico; Ismael Silva
3
1975
De mim você não tem razão / de se queixar / Assim você
faz confusão / No nosso lar / Se eu sou do samba
ninguém tem / que achar ruim / Você me conheceu /
vivendo assim (tocando tamborim) //
Ninguém tem de achar ruim;
Ismael Silva
Essas ocorrências são do vocabulário especializado do samba, pois se referem a um
instrumento musical que compõe as baterias de escolas de samba. Em (1-2), a enumeração de
diversos instrumentos diferentes, tocados pelos sambistas mencionados, caracteriza-os como
músicos habilidosos. Em (2), suas habilidades são o principal argumento usado pelo
enunciador para caracterizar o sambista como merecedor da ajuda do destinatário.
Em (3), o ato de tocar tamborim mais uma vez identifica o enunciador como alguém
que é do samba, ou seja, está perfeitamente entrosado nesse meio musical e tem a habilidade
de tocar samba.
TAMBORINAR [1 ocorrência no corpus]
1928-1980
Sou doutor / Sou doutor, mas sou sambista / Tenho sangue de artista /
Também sei tamborinar / Sou doutor / Sei que sou advogado / Não me
faço de rogado / Quando preciso sambar //
Sou doutor; Cartola
A ocorrência não deixa claro se o sentido do verbo é tocar tamborim ou batucar com
os dedos. No segundo caso, seria uma variação de “tamborilar”, com troca do /l/ pelo /n/, por
assimilação à nasal anterior. Apesar de essa ser uma formação morfologicamente regular e de
estar registrada no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, “tamborinar” não está
registrado em dicionários, como o Houaiss (2001), o Aurélio (2004) e o Dicionário de usos
410
do português do Brasil (Borba, 2002).
Em todo caso, a ocorrência é um dos argumentos usados pelo enunciador para assumir
a identidade de sambista — ele afirma que tem a habilidade de tocar instrumentos de
percussão, além de se reconhecer como artista.
TEIMAR [6 ocorrências em 5 letras do corpus]
1
1931
Tu nem deve teimar / pois não vai me / convencer / que
eu quero a vida gozar / e não me aborrecer / sempre me
dei bem / vivendo assim / Tu não me convence / que isso
é contra mim.
Carinho eu tenho; Ismael Silva
2
1931
Não vale a pena teimar / Me conformo com a sorte / Por
isso não vou chorar / Nem pedir a Deus a morte (meu
santo é forte)
Oleleô; Ismael Silva, Nilton
Bastos e Francisco Alves
3
1931
Com você não me acostumo / Eu vou dizer por que é /
Você não faz o que eu faço / Nem eu faço o que tu quer
(pra que teimar
?) //
Oleleô; Ismael Silva, Nilton
Bastos e Francisco Alves
4
1935
Eu não deixarei de falar, / por isso, não há nem talvez! /
Se queres teimar / e continuar, / me deixas então duma
vez!
Não faltará ocasião; Ismael Silva
5
1950
Andas fugindo de mim / Como o diabo da cruz / Não
queres mais nem me dar atenção / Teimei, gastei meu
latim, / Da discussão nasce a luz, / Mas nem assim tu me
deste razão
Macaco me lamba; Ismael Silva
6
1928-1980
Não te culpo, nem me culpes / Aceitemos nosso destino /
Esse amor quando nasceu / Eu era menino // Se eu
teimar / Teus próprios pais / Irão dizer / Tudo aquilo que
você / Comigo sofreu.
Não; Cartola e Aluísio Dias
Em todas as ocorrências a significação é basicamente a do vocabulário comum, de
insistir em uma determinada linha de comportamento, mesmo em situações desfavoráveis.
Em (1) fala-se da interlocutora que diverge do enunciador e este, assumindo postura
orgulhosa, qualifica aquela interlocutora como teimosa. Em (4), novamente há um enunciador
que acusa a interlocutora, dessa vez por entender que ela persiste em um comportamento
amoroso desleal.
Em (2-3 e 6), fala-se da inutilidade de insistir em um amor sem perspectivas. Já em
(5), a referência é à reiteração das tentativas do enunciador em conquistar alguém.
TEMPO [24 ocorrências em 19 letras do corpus]
1
1928
Oh! meu bem o teu orgulho / Algum dia há de acabar /
Tudo com o tempo passa / A sorte é Deus quem dá /
Vou-me embora, vou-me embora / Como já disse que
vou / Eu aqui não sou querido / Mas na minha terra eu
sou.
Me faz carinhos; Ismael Silva e
Francisco Alves
2
1929
Tu não deves / De ter tanta pretensão / Olha que o
tempo muda, / A vida é uma ilusão... / Tu fazes pouco
em mim / Mas isto que bem me importa... / Ficas
sabendo, meu bem, / Que o mundo dá muita volta!
Novo amor; Ismael Silva
3
1930
É o velho, velho Estácio / Vem visitar a Mangueira / E
trazer recordação / Professor, chegaste a tempo
/ Pra
dizer neste momento / O que devemos fazer / Me sinto
mais animado / A Mangueira a teus cuidados / Vai à
cidade descer
Velho Estácio; Cartola
4
1932
Gandaia sempre foi o meu desejo / Quanto tempo eu
não vejo / Essa vida que eu vivia //
Gandaia; Ismael Silva
5
1932
Gandaia é o que me faz saudade, / No tempo da
mocidade / Era a minha alegria. / Gandaia, palavra bem
proferida, / Que não me fica esquecida / nem de noite
nem de dia.
Gandaia; Ismael Silva
411
6
1932
Ai quem me dera agora / Esse viver de outrora!... / Quem
na gandaia andar / Pode ter a certeza que sabe gozar... /
Gandaia sempre foi o meu desejo / Quanto tempo que
eu não vejo / Essa vida que eu vivia!...
Gandaia; Ismael Silva
7
1932
O homem deve saber conhecer o seu valor / Pra não
fazer como o Inácio / Que andou muito tempo /
Bancando o Estácio. //
Tristezas não pagam dívidas;
Ismael Silva
8
1933
Mas o mundo nos ensina a viver / Tudo isso com o
tempo há de ter fim / Porque mesmo tu tens que
reconhecer / Que nunca se deve ser assim
Deus sabe o que faz; Ismael
Silva
9
déc.1930
Mas vejo agora não és o fulano / Que há muito tempo /
Eu venho procurando / Nossas ideias são do mesmo
pano / Dois bicudos não se beijam / Até a vista, eu vou
andando.
Dois bicudos; Cartola e Aluísio
Dias
10
1941
O meu nome já caiu no esquecimento / O meu nome não
interessa a mais ninguém // E o tempo foi passando / A
velhice vem chegando / Já me olham com desdém / Ai,
quanta saudade de um passado / Que se vai lá no além
//
O meu nome já caiu no
esquecimento; Paulo da Portela
11
1946
A velhice chega / Vai-se a mocidade / Apenas resta a
saudade / Aqueles bons tempos / Risos tão felizes /
Resta em meu peito / A cicatriz, a cicatriz //
A velhice chega; Paulo da
Portela e Rufino
12
1957
Todo tempo que eu viver / Só me fascina você,
Mangueira / Guerreei na juventude, / Fiz por você o que
pude, Mangueira //
Fiz por você o que pude; Cartola
13
1960
Tempos idos // Os tempos idos, nunca esquecidos, /
Trazem saudades ao recordar / É com tristeza que
relembro / Coisas remotas que não vêm mais
Tempos idos; Cartola e Carlos
Cachaça
14
1973
Toda essa gente que te dá tanto valor / Não sabe ainda
que não vales um vintém / Há pouco tempo me disseste
por favor / Que eu não contasse a tua crônica a
ninguém.
Entrada franca; Ismael Silva
15
1974
Linda / Te sinto mais bela / E fico na espera / Me sinto
tão só mas / O tempo que passa / Em dor maior, bem
maior //
Corra e olhe o céu; Cartola e
Dalmo Castello
17
1976
Procuro afogar no álcool a tua lembrança / Mas noto que
é ridícula a minha vingança / Vou seguir os conselhos de
amigos / E garanto que não beberei nunca mais / E, com
o tempo, esta imensa saudade que eu sinto se esvai
Peito vazio; Elton Medeiros e
Cartola
19
1977
Lembro dos tempos de outrora / Que quase me roubam /
A esperança e a fé / E hoje me volto contente / Cantando
pra Deus
A canção que chegou; Cartola e
Nuno Veloso
20
1977
O inverno do meu tempo // Surge a alvorada, folhas a
voar / E o inverno do meu tempo / Começa a brotar,
minar / E os sonhos do passado, do passado / Estão
presentes no amor / Que não envelhecem jamais / Eu
não tenho a paz e ela tem paz
O inverno do meu tempo; Cartola
e Roberto Nascimento
22
1979
Ontem me contaram / que ela vive cantando /
lamentando o tempo
perdido que comigo passou, / vim
saber de tanta coisa / confesso chorei magoado / eu fui
culpado / de ter terminado tão cedo nosso grande amor
Bem feito; Cartola
Em (4, 6, 7-9, 12, 14, 17) a referência das ocorrências é a uma duração indeterminada.
Todo tempo, quanto tempo e muito tempo são indicadores do grande volume de tempo
transcorrido, enquanto pouco tempo indica o inverso. A colocação com o tempo enfatiza a
continuidade com o processo que gradativamente vai se efetivando.
O pragmatema Todo tempo que eu viver (12) é uma marca de comprometimento, de
dedicação à intenção enunciada posteriormente. Nessa ocorrência trata-se de um grande
intensificador e de uma promessa de constância do amor que o enunciador tem pela
Mangueira.
Em (5, 19) a referência é a uma determinada fase da vida. As colocações tempo da
mocidade e tempos de outrora localizam a referência cronológica, em um caso na juventude
do enunciador e, no outro, em um momento passado indefinido, visto com nostalgia (esta
última inflexão discursiva se dá pela seleção lexical de outrora).
412
Em (2), encontra-se a colocação o tempo muda, que a princípio indica alteração de
condições meteorológicas, mas, nesse caso, tem a significação metafórica de mudança na
sorte de alguém. Em (3), a colocação é chegar a tempo, que determina que a chegada de
alguém se deu em um momento propício para a realização de uma atividade. Em (10, 15),
trata-se de o tempo passar, em que o verbo faz referência ao alongamento de um período de
tempo; geralmente usa-se essa colocação para confrontar o momento anterior e o posterior à
passagem do tempo, ou para valorizar o caráter durativo de um processo, que transcorre em
conformidade com a passagem do tempo. Em (11), tem-se bons tempos, com referência
sempre a momentos pretéritos, agradáveis a alguém e dos quais ele tem saudades. Em (13), há
tempos idos, mais uma vez um modo melancólico de aludir a momentos passados. Em (22),
trata-se de tempo perdido, que contém um julgamento de um período passado como
improdutivo, considerando-se determinadas intenções do avaliador.
O frasema o inverno do meu tempo ocorre em (20) e faz referência à velhice, com
expressão poética. Trata-se da localização temporal primordial para as reflexões que o
enunciador desenvolve sobre a sua vida.
Em (1) há o pragmatema tudo com o tempo passa, máxima do senso comum que
afirma a efemeridade das experiências existenciais, geralmente usada como argumento para
recomendar uma postura comedida diante da vida.
TENTAÇÃO [2 ocorrências em 2 letras do corpus]
1
1935
Ó que loucura, quanta formosura / Que tentação / Veja
que isso não desasossegue o meu coração //
Canta, meu bem; Paulo da
Portela
2
1935
Chego quase a não saber / Por que tamanho prazer /
Quando meus olhos te veem / Ó que tentação
//
Confissão de amor; Paulo da
Portela
As ocorrências qualificam a visão da mulher a partir do forte efeito que produz no
enunciador; ressaltam-se, assim, a sensualidade da dançarina e o fascínio do enunciador por
ela, ou o simples impacto da sua beleza sobre ele.
TER [255 ocorrências em 152 letras do corpus]
13
1929
Não chora, não chora / Vai como pode, cai na farra / está
na hora // Quem tem seda vai de seda / quem não tem
vai de estopa / o nome do nosso bloco / faz qualquer um
calar a boca
Não chora; Paulo da Portela
31
1931
Contigo eu me enganei / Pelo amor que te dei / Fui
direitinho no teu carinho / Na tua conversa eu andei /
Podes ficar descansada / Não vou mais te procurar /
Para amar tanto / Nunca ter
nada / Sozinho eu quero
ficar.
Ironia; Ismael Silva, Nilton Bastos
e Francisco Alves
78
1933
O chiquê é feio pra quem pode ter / Quanto mais pra
quem não tem nada de seu / Ai de quem não sabe se
reconhecer / Nunca vi um gênio igual ao teu //
Deus sabe o que faz; Ismael
Silva
83
1933
E essa bela Iaiá / Não acredita em muamba / Ela tem um
patuá / Que é todo o nosso samba //
Dona do lugar; Ismael Silva e
Francisco Alves
98
1935
Favela de meus amores / Todo mundo te quer bem /
Favela que tem
morenas / Que outros não têm
Favela de meus amores; Paulo
da Portela
413
111
1938
Quitandeiro, leva cheiro e tomate / Pra casa do
Chocolate que hoje vai ter macarrão / Prepara a barriga
macacada / Que a boia tá enfezada e o pagode fica bom
//
Quitandeiro; Paulo da Portela
118
déc.1930
Eu quando vi você todo frisado / Mudei meu passo e quis
/ andar faceiro / Pois eu julguei seres bem empregado /
Ou que os parentes teus tinham / dinheiro
Dois bicudos; Cartola e Aluísio
Dias
123
1940
Tem um prêmio para quem / descobrir a nega bamba /
da escola de samba / que compra barulho / por qualquer
dinheiro / faz o dó maior / bem direitinho / no cavaquinho
/ toca cuíca / bate tamborim / enfrenta um pandeiro
Nega bamba; Paulo da Portela
125
1938-1940
E são eles, verdes periquitos, / Têm um peito forte tal
qual um granito / E são lindas as suas canções //
Ao amanhecer; Cartola
133
d1941
Habitada por gente simples e tão pobre / Que só tem o
sol que a todos cobre, / Como podes, Mangueira,
cantar? //
Sala de recepção; Cartola
140
1943
Já sei que tu tens riqueza / mas assim eu não preciso /
pra dizer-te com franqueza / antes quero prejuízo //
Me deixa sossegado; Ismael
Silva, Nilton Bastos e Francisco
Alves
159
déc.1940
Saibam que este céu, este mar / Este lindo cenário /
Temos a defendê-lo os nossos expedicionários /
Oriundos da raça de Caxias / de Barroso e dos
Tamandarés / Diante desta gente, tão pura e tão forte, /
Nazista, quem és?
Nazista, quem és?; Cartola e
Carlos Cachaça
162
1957
Vai dançar twist / Procurar sua gente / Deixa-me seguir
porque estou atrasado / Tenho uma mina / Que de jeito
nenhum por ti trocaria / Que dá mais petróleo / Muito
mais petróleo do que tem na Bahia.
É matéria que estudei demais...;
Cartola
165
1958
Não brincarei / Quero fazer uma oração / Pedir à santa
padroeira proteção / Entre os amigos / Encontrarei
alguém que tenha / Hoje é domingo / E eu preciso ir à
Penha //
Festa da Penha; Cartola e
Asobert
168
1960
Não querendo levá-los ao cume da altura / Cientistas tu
tens e tens cultura / E, neste rude poema destes pobres
vates, / Há sábios como Pedro Américo e Cesar Lattes
Ciência e arte; Cartola e Carlos
Cachaça
170
1965
Tem tem tem pandeiro agogô / Vê vê vê se falta ganzá /
O rei vem vem / vem de luanda / vamos saravá saravá /
A rainha também / Não vai demorar / Hoje vai ter samba
Dolores / Vamos que eu quero sambar.
Ensaio de rua; Barbosa da Silva,
José Lima e Cartola
182
1972
Eu agora só tenho você / Na minha ilusão / Eu queria,
apesar de saber, / De ser um desprezado / Algum dia
poderia trazê-la / No meu coração.
Eu queria viver com você; Valdir
Villarinho e Ismael Silva
183
1973
Em Mangueira vem vários artistas / Do exterior até
turistas / Só pra ver o que a Mangueira tem / Sambar
como nossas cabrochas ninguém //
A Mangueira é muito grande;
Cartola e Ataliba
221
1928-1980
Fui pela estrada / Caminhando / Pensativo indagando /
Ó! Lua Deusa / Da inspiração / Por que / Não tenho você
/ Nem meu violão.
Eu e a lua; Cartola e Aluísio Dias
232
1928-1980
No meu jardim tive flores belas / Nunca fiz questão / Mas
a flor dos meus amores / Mora no meu coração.
Você é uma flor; Cartola e Nuno
233
1955-1980
Bonita mulher mas de gênio é uma fera / Depois da briga
eu fiquei nesta condição / Os ternos melhores que eu
tinha estão rasgados / Os nossos móveis ela fez uma
fogueira / Meu rosto até hoje está todo arranhado
Ciúme doentio; Cartola e Nelson
Sargento
Em (13, 31, 78, 83, 118, 133, 140, 165, 232, 233) o verbo equivale a 'possuir', sentido
corrente no vocabulário comum da língua. Entre as ocorrências, seda e estopa (13) são
objetos possuídos significativos, pois caracterizam o poder aquisitivo de cada um a partir do
material que compra para fazer a fantasia de carnaval e sair no bloco.
A riqueza é expressa por colocações como ter dinheiro, ter riqueza e ter seda. A
pobreza, inversamente, é marcada pela colocação não ter nada e pela expressão poética só ter
o sol. Essas são referências frequentes do verbo com a significação de possuir coisas.
Em (98, 125, 159, 162, 168) também usos presentes no vocabulário comum, a lexia
introduz elementos usados para caracterizar algo ou alguém em descrições, ou para ressaltar
aspectos relevantes em determinada circunstância. É o que acontece com as favelas povoadas
414
por morenas; com os cantores de “peito forte” (ou seja, de potência vocal); com os brasileiros
que contam com a defesa dos expedicionários em hora de guerra; com a namorada do
enunciador, mencionada diante de investidas de outra mulher; com o Brasil, onde há cientistas
que aumentam a importância cultural do país.
Em (111, 123, 170), o verbo equivale a 'existir', ou 'acontecer'. Pode anunciar um
evento, como uma festa ou uma premiação, e introduz a enumeração dos instrumentos usados
no ensaio de rua. Ressalte-se em (170) a repetição dos verbos ter e ver, que deve ser motivada
por fatores lírico-musicais — ainda não me foi possível ouvir uma gravação dessa música,
mas posso supor que a repetição reforça aspectos rítmicos desse trecho da canção.
Em (182, 221) há a colocação ter alguém, que tem significação afetiva, geralmente
fazendo referência ao envolvimento amoroso. Em (221), fala-se em ter a lua porque o astro
está personificado, e o enunciador serve-se da colocação para marcar o mencionado
envolvimento afetivo com a interlocutora e com o violão.
O pragmatema ver o que [algo/alguém] tem (183) é usado para destacar os valores do
que é abordado, pois geralmente os observadores acorrem para ver esses atributos movidos
pela fama do elemento em questão. É o que ocorre na abonação, onde turistas vão à
Mangueira, curiosos com o samba que se faz lá.
Colocação ter onde morar
65
1932
Você teve a minha ajuda / Sem pensar em trabalhar /
Quem se zanga é que se muda / E eu já tenho onde
morar / Nunca mais você encontra / Quem lhe faça o
bem que eu fiz / Levei muito golpe contra / Passe bem,
seja feliz
Para me livrar do mal; Ismael
Silva e Noel Rosa
A expressão corresponde a estar alojado em algum lugar. Por meio dela, enunciador
qualifica-se como alguém que pode romper a relação, pois não fica sem moradia por causa
disso. Trata-se de uma informação importante, após o pragmatema quem se zanga é que se
muda.
Frasema ter vez
136
1942
Eu não posso lhe esquecer / Isso é que não há talvez /
Sempre ouvi dizer / Que otário nunca teve vez //
; Ismael Silva
O frasema corresponde a ser bem-sucedido em algo, ou ser digno de consideração em
um determinado meio. Nesse caso, pode ser que o “otário” seja algum concorrente que
também estaria cortejando a mulher, mas que não deve “ter vez”.
Frasema ter o seu lugar
148
1946
Como é que vai ser, / se eu tiver de escolher / Entre o
samba e você / Amor / Não é tudo que se possa desejar
/ O samba / Também merece ter o seu lugar / Você não
leve a mal / Se eu me descuidar / E for sambar.
Se eu tiver de escolher; Arlindo
Marques Junior, Roberto Roberti
e Ismael Silva
415
O frasema é usado quando se quer afirmar a importância de algo, mesmo sabendo que
não há como conseguir que seu valor seja reconhecido como preponderante em determinada
situação. É o que faz o enunciador, que, diante da pressão da companheira para abandonar o
samba, tenta resguardar a importância de ir às rodas de samba, com o cuidado de não dizer
que isso é mais importante do que a relação amorosa.
Pragmatema ter tão triste fim
152
1922-1949
Aceite um conselho de amigo / Não queiras ter tão triste
fim / Eu sei que a vida de quem ama é assim / Manda
embora essa tristeza / Esqueça alguém que não te quis /
Canta e serás feliz
Conselho; Lincoln Washington
Pereira de Almeida e Paulo da
Portela
O pragmatema contém uma avaliação do enunciador sobre a situação digna de
comiseração de alguém. Nesse caso, há inclusive a insinuação de que o interlocutor pensaria
em atos drásticos para livrar-se da desilusão amorosa.
Pragmatema ter alguém para amar
169
1962
A sorrir / Eu pretendo levar a vida / Pois chorando / Eu vi
a mocidade perdida // Fim da tempestade, / O sol
nascerá / Fim desta saudade, / Hei de ter outro alguém
para amar
O sol nasce; Cartola e Elton
Medeiros
Assim como a colocação ter alguém (ver anteriormente), esse pragmatema faz
referência ao envolvimento amoroso, desta vez deixando explícita a finalidade “para amar”. O
enunciador lança mão dele também para enfatizar a sua solidão.
Veja-se a análise dos pragmatemas a razão dá se a quem tem e tenho as minhas razões
s.v. razão.
TERREIRO [2 ocorrências em 2 letras do corpus]
1
1938-1940
Pois fique sabendo / Que o feijão bichado / E o arroz
quebrado / Que alguém lhe vendeu / Já despejei todinho
no terreiro / Veja bem o dinheiro / Que você perdeu //
Como é que eu posso; Cartola
2
1960
Depois, aos poucos, o nosso samba / Sem sentirmos se
aprimorou / Pelos salões da sociedade / Sem cerimônia
ele entrou / Já não pertence mais à praça, / Já não é
samba de terreiro / Vitorioso, ele partiu para o
estrangeiro //
Tempos idos; Cartola e Carlos
Cachaça
Em (1), a lexia faz referência a uma área externa à residência, cujo chão é de terra. O
ato praticado pela enunciadora, de jogar os mantimentos imprestáveis trazidos pelo
companheiro no terreiro, é um protesto agressivo, que qualifica a sua relação com ele, assim
como as condições de vida dos dois, aos quais falta dinheiro para mantimentos melhores —
isso fica mais caracterizado na resposta do homem, mencionando o preço alto da comida.
Veja-se a análise do quase-frasema samba de terreiro (2) s.v. samba.
416
TESTE [1 ocorrência no corpus]
1937
Teste ao samba // Vou começar a aula / Perante a comissão, muita
atenção / Eu quero ver se diplomá-los posso / Salve o fessor, dá nota a
eles, senhor / Quatorze com mais doze noves fora tudo é nosso //
Teste ao samba; Paulo da Portela
Considerando-se todo o contexto da ocorrência, percebe-se que a lexia remete ao
campo semântico da educação formal. O uso de elementos desse campo semântico é frequente
nas letras do corpus. Vejam-se s.v. aula mais considerações sobre esse fato.
TOCAR [6 ocorrências em 5 letras do corpus]
1
1940
Tem um prêmio para quem / descobrir a nega bamba /
da escola de samba / que compra barulho / por qualquer
dinheiro / faz o dó maior / bem direitinho / no cavaquinho
/ toca cuíca / bate tamborim / enfrenta um pandeiro
Nega bamba; Paulo da Portela
2
1943
Maestro, toque aquela // Maestro, toque aquela / Aquela
que me traz recordação / Do ano que já passou / E
deixou saudades no meu coração // Ai, ai, ai, ai / Eu nem
posso me lembrar / Que música boa pra gente dançar
Maestro, toque aquela!; Ismael
Silva e José de Almeida
3
1950
Ele está mesmo dançando na corda bamba / Ele é
aquele que na escola de samba / Toca cuíca, toca surdo
e tamborim / Faça por ele como se fosse por mim //
Antonico; Ismael Silva
4
1975
De mim você não tem razão / de se queixar / Assim você
faz confusão / No nosso lar / Se eu sou do samba
ninguém tem / que achar ruim / Você me conheceu /
vivendo assim (tocando tamborim) //
Ninguém tem de achar ruim;
Ismael Silva
5
1928-1980
É difícil estudar / Advocacia, arquitetura, engenharia /
Tudo isso é difícil, eu sei / Mas o samba está no sangue
brasileiro / Não precisa fazer curso / Pra tocar o meu
pandeiro.
Sou doutor; Cartola
Na maioria das ocorrências — (1, 3-5) —, a significação do verbo é relacionada à
capacidade de usar instrumentos musicais com destreza, para acompanhamento ou solo. O
complemento verbal, portanto, é sempre um nome que designa um instrumento musical. As
ocorrências, portanto, identificam o agente do tocar como sambista, a partir da habilidade da
execução instrumental do gênero musical.
Em (2), o verbo é usado metaforicamente, fazendo referência à função do maestro de
comandar os músicos que efetivamente tocam a música conforme as suas indicações de
interpretação. Cabe ressaltar que, nesse caso, o verbo integra o pragmatema toque aquela, que
traz uma referência dêitica a uma informação compartilhada pelos interlocutores, que a
recuperam de eventos passados. Trata-se de uma marca de envolvimento emocional do
enunciador com a música pedida e de uma certa intimidade entre o mesmo enunciador e o
destinatário.
TRADIÇÃO [3 ocorrências em 2 letras do corpus]
1
1940
Jamais tu irás a um samba / E tenho as minhas razões
/ Quando entras no batuque / Esqueces as obrigações. /
Pense o caso bem direito / Te aconselho a que não
faça / Proibir-me do batuque / Tradição de nossa raça.
Vamos embora, ó, flor; Paulo da
Portela
2
1954
Lá hoje em dia qualquer um novato / Vive sem
preocupação / Não é um morro pacato / Porque se
conserva a tal tradição
.
Tradição; Ismael Silva
3
1954
Tradição // No morro onde eu moro / Tem um barracão
para se alugar / O ambiente eu adoro / Mas é que não
sei se você vai gostar
Tradição; Ismael Silva
417
Em (1), a lexia é usada para caracterizar as práticas da roda de samba como uma
herança cultural proveniente de tempos passados. Essa qualificação reforça o valor das
mesmas, pois as práticas tradicionais são muito importantes na cultura popular, assim como
também são uma referência significativa para cultura em geral.
Portanto, referindo-se ao caráter tradicional da roda de samba, a enunciadora lança
mão de um forte argumento para desqualificar a proibição que seu parceiro tenta lhe impor. O
uso da noção de raça na argumentação é analisado no verbete homônimo.
Em (2-3), a referência é a eventos costumeiros em determinado lugar. Por meio dessas
ocorrências qualifica-se o espaço do morro descrito pelo enunciador como violento; os
próprios moradores são qualificados como pessoas acostumadas à violência, que chegam a
fazer alusão a esse cotidiano como uma tradição, reagindo com relativa naturalidade, que
contrasta com a rejeição experimentada por quem é de fora do morro.
TRAZER [6 ocorrências em 5 letras do corpus]
1
1922-1949
Quem nos trouxe por aqui / Foi quem deu o golpe errado
/ Pois agora nossas pastoras / Estão com os pés
molhados
Quem nos trouxe por aqui; Paulo
da Portela
2
1931
Fica firme, não estrila / Traz o retrato e a estampilha /
Que eu vou ver / O que posso fazer por você //
Eu gosto, mas não é muito;
Ismael Silva, Noel Rosa e
Francisco Alves
3
déc.1930
Dona Cegonha venho com muita vergonha / Por meio
desta cartinha te solicitar um favor / Deve trazer um
crioulinho gorduchinho / de olhinhos regalados parecido
com o meu amor
Senhora Dona Cegonha; Paulo
da Portela
4
déc.1930
Quando trouxer deve pedir ao destino / Que mande pelo
menino recomendação de um bamba / Mais tarde eu
quero que como todo lero-lero / Ele seja professor de
uma Escola de Samba. //
Senhora Dona Cegonha; Paulo
da Portela
5
1968
Ai, esse bojo perfeito/ Que trago junto ao meu peito / Só
você, violão, compreende porque / Perdi toda a alegria //
Cordas de aço; Cartola
6
1955-1980
Foi a saudade que me trouxe aqui / depois que te perdi /
mergulhei na sofreguidão / ao cair na realidade /
descobri que a felicidade / está na bondade do seu
coração
Vim lhe pedir; Nelson Sargento e
Cartola
Em (1-2) os usos são corriqueiros no vocabulário comum — encontram-se as
significações de conduzir pessoas, ou de portar objetos até algum lugar.
As ocorrências (3-4) referem-se à crença de que a cegonha traz os bebês recém-
nascidos aos pais. Esse mito é usado para simbolizar um momento de fertilidade da Portela,
com a conquista de um campeonato. Transferem-se, assim, ao bebê atributos dos sambistas
vitoriosos.
O pragmatema [um sentimento] me trouxe aqui é uma forma de o enunciador dizer
que as suas motivações são muito fortes e emocionais. Por essa expressão, constrói-se a
representação de que o enunciador foi passivo no ato de ir até determinado lugar e que,
portanto, esse ato não tem a ver com a sua vontade, mas com um sentimento que seria mais
forte do que ele.
418
O frasema trazer [algo] junto ao peito, que ocorre em (5), está analisado s.v. peito.
TRISTE [23 ocorrências em 22 letras do corpus]
1
1926
Não sei qual a razão que tu / Lastimas a sorte meu bem /
Chorar de fingimento é triste / São bem poucos os que
resistem / iludir não convém
Chorar de fingimento; Paulo da
Portela
2
1929
Ai, como é triste viver assim / Enganado por seu bem /
Sei que jamais terei piedade / Não quero amor de
ninguém
Para mim perdeste o valor;
Ismael Silva
3
1932
Adeus é tão triste / Que não se resiste / Ninguém jamais
/ Com adeus pode viver em paz //
Adeus; Ismael Silva, Noel Rosa e
Francisco Alves
4
1932
Tenho um novo amor... / Tenho um novo amor... / Que
vive a pensar em mim. / Não quer me ver / Triste nem
zangada / Gosta que eu ande / Assim meio engraçada //
Tenho um novo amor; Cartola
5
1933
Tudo eu fiz por você / Não quiseste atender / Os meus
conselhos e a minha opinião / Algum dia vais ver / Como
é triste sofrer / E de joelhos vens pedir o meu perdão. //
Na floresta; Cartola e Sílvio
Caldas
6
1933
Eu ainda fico triste a lembrar / apesar de ter deixado já
de ti / lamentando aquele dia de azar / em que eu te
conheci.
Não digas; Ismael Silva
7
1933
Não é só quem vive em pranto / Que sabe o que é
sofrer... / Eu sofro e no entanto / Nunca dei a perceber! //
E são tristes meus ais... / Pois quando a gente sente / E
não chora / Sofre muito mais //
Nunca dei a perceber; Ismael
Silva
8
1937
Nem notícias eu tenho / Da mulher que tanto venero /
Deus meu, foi embora / Não sei onde mora / Notícias
espero / É tão triste um adeus, uma despedida / Vê se
apieda-te, Deus / Cura-me esta ferida //
Partiu; Cartola
9
d1937
Na Vila / onde ele morava / Todos os seres cantavam /
As glórias do seu poeta / Hoje a Vila é triste e muda / Ao
bater Ave-Maria / Quando a aurora desperta
A Vila emudeceu; Cartola
10
1938
Ele bem cedo te deixou / E na lama da vida caíste / Ele
te abandonou / Após cenas bem tristes / Bateu-te e
escorraçou / Deixou-te sem carinho / Bem vês nunca te
amou / Aquele por quem / Deixaste sozinho / E sem
ninguém.
Pecadora mulher; Paulo da
Portela
11
déc.1930
Existe neste reduto / Alguém que eu venero / E quero
tanto bem / Fiquei triste / Porque me disseste / Que essa
pessoa que eu quero / Não pode gostar de ninguém.
Se eu tivesse...; Cartola
12
1922-1949
Aceite um conselho de amigo / Não queiras ter tão triste
fim / Eu sei que a vida de quem ama é assim / Manda
embora essa tristeza / Esqueça alguém que não te quis /
Canta e serás feliz
Conselho; Lincoln Washington
Pereira de Almeida e Paulo da
Portela
13
1974
Linda / No que se apresenta / O triste se ausenta / Fez-
se a alegria / Corra e olhe o céu / Que o sol vem trazer /
Bom dia / Ah! Corra e olhe o céu / Que o sol vem trazer
bom dia...
Corra e olhe o céu; Cartola e
Dalmo Castello
14
1974
Olhar, gostar, só de longe / Não faz ninguém chegar
perto / E o seu pranto / Oh! Triste
senhora / Vai molhar o
deserto...
Disfarça e chora; Cartola e
Dalmo Castello
15
1974
Chora / Disfarça e chora / Aproveita a voz do lamento /
Que já vem a aurora / A pessoa que tanto querias /
Antes mesmo de raiar o dia / Deixou a escola com outro /
Oh! Triste senhora //
Disfarça e chora; Cartola e
Dalmo Castello
16
1975
Passei a noite inteira esperando / Ao tédio perguntando /
Onde anda minha companheira / Nesta vigília triste, selei
minha sorte
Soldado do amor; Cartola e Nuno
Veloso
17
1976
O fim de todo amor, é tão triste que juro / Despedaça-se
ao vê-lo o coração mais duro / Ela fica aos beijos com
qualquer criatura / E ele procura a paz na paz da
sepultura.
Todo amor; Carlos Cachaça e
Cartola
20
1928-1980
E se despertares / Vais trazer conforto / A um pobre peito
/ Triste semimorto / As frases saídas / com tanto calor /
No espaço perdidas / Não deixes querida / Pelo nosso
amor
Desperta querida; Cartola
22
1928-1980
Foi num dia um sonho e eu sonhei / demais seu doutor /
Na cidade grande eu vim / tentar vencer / Joaninha
coitadinha tão / sozinha ficou / E o que aconteceu foi /
triste de doer //
Nada vale a pena; Cartola e
Roberto Nascimento
23
1928-1980
Hoje acompanhado / A tristeza persiste / Dias que se vão
/ Um alegre, outro triste
/ Se outro amor tentasse / E
outra vez falhasse / Solidão, a você / Voltaria.
Se outro amor tentasse; Cartola
e Nuno Veloso
Em (9), atribui-se a Vila Isabel, personificada nesse trecho, um grande pesar devido ao
419
falecimento de Noel Rosa. A Vila também é caracterizada como muda, o que também é
sugestivo, dada a morte do sambista.
Em (1-2, 8, 11-12, 14-17) o sentimento é provocado por desenganos amorosos. Por
vezes o enunciador se considera triste por esse motivo, às vezes avalia momentos específicos
ligados ao tema, como a despedida ou a condição daquele que foi enganado por seu amor.
Em (20), a tristeza é causada pela paixão ainda não realizada de quem anseia pela
amada. Essa condição de tristeza, exacerbada por qualificações como semimorto, ajudam a
comover a amada para que tenha simpatia pelo enunciador.
Em (3) e (22), fala-se de despedidas e outros acontecimentos desfavoráveis. Ressalte-
se a colocação triste de doer, uma forma de intensificar o sentimento de tristeza, antes de
explicar a sua causa, valorizando a narrativa subsequente.
Em (4, 13, 23) há a caracterização genérica do estado de ânimo de pessoas, sem
esclarecimento das causas. Nesses casos o foco maior não é na tristeza em si, mas sim à
reação de alguém ao ver a pessoa amada nessa condição (4); ao impacto da pessoa amada, que
tem o poder de desfazer esse estado de espírito do enunciador (13); à sucessão de momentos
positivos e negativos na vida (23).
Em (10) há julgamentos do enunciador a respeito de acontecimentos. A lexia, nesse
caso, expressa a desaprovação do enunciador a respeito do que ocorreu. Na ocorrência em
questão, ele qualifica assim o rompimento de um casal, que envolveu violência física e alarde.
TRISTEZA [25 ocorrências em 16 letras do corpus]
1
1924
Bendigo a dor que vem para ensinar / Bendigo a
resignação que enobrece / Da tristeza
passada farei o
meu altar / Da alegria presente farei minha prece.
Dor que ensina; Paulo da Portela
2
1930 (1ª
parte)
Alvorada lá no morro, que beleza / Ninguém chora, não
há tristeza / Ninguém sente dissabor / O sol colorindo é
tão lindo, é tão lindo / E a natureza sorrindo, tingindo,
tingindo (alvorada) //
Alvorada (no morro); Cartola,
Carlos Cachaça e Hermínio Bello
de Carvalho
3
1932
Aurora vem raiando anunciando o nosso amor, ô, ô /
Chega o dia, desaparece a tristeza
, / fica a alegria pela
própria natureza, ô. //
Ao romper da aurora; Ismael
Silva, Lamartine Babo e
Francisco Alves
4
1932
E muita gente / Que a tristeza desconhece / Chora às
vezes de alegria / Quando ri de quem padece / Nas tuas
juras / Eu sorrindo acreditei / Hoje eu choro já descrente /
Vendo quanto me enganei
Assim, sim; Ismael Silva, Noel
Rosa e Francisco Alves
5
1932
Infelizmente / Este mundo é sempre assim / Quem ri
muito no começo / Chora quando chega o fim / Em mar
de rosas / Começou nossa amizade / E depois tu me
entregaste / A tristeza e a saudade
Assim, sim; Ismael Silva, Noel
Rosa e Francisco Alves
6
1932
Tristezas não pagam dívidas // Tristezas não pagam
dívidas / Não adianta chorar / Deve-se dar o desprezo /
A toda mulher que não sabe amar //
Tristezas não pagam dívidas;
Ismael Silva
7
1939
Eu tive vontade, tive / De dar fim à minha vida / Mas
encontrei-te tristeza / Em pé na estrada perdida /
Seguimos o mesmo rumo / E me sinto bem feliz / Mas,
sei dizem que é o cúmulo / Fazer o que você diz.
Tristeza; Cartola e Orlando
Batista
8
1939
Tristeza // Tristeza / quanta tristeza tenho eu / Só em
saber / Que vivo longe dos carinhos teus / A quem eu
dediquei / O meu sincero amor / E com tantas muitas
falsidades / Me abandonou
Tristeza; Cartola e Orlando
Batista
420
9
1939
Guardo a tristeza porque / Dela sou o maior amigo /
Depois que perdi você / Eu não canto, eu não danço /
Acabou tudo pra mim / Se eu cantar essa tristeza / Terás
ciúme de mim. //
Tristeza; Cartola e Orlando
Batista
10
1947
Ouvi dizer / Ouvi falar / Que a Lira do Amor / Este ano
não desfilará / Porque a tristeza lhe impera / Por causa
da morte / Do nosso amigo Caquera //
Ouvi dizer; Paulo da Portela
11
1922-1949
Aceite um conselho de amigo / Não queiras ter tão triste
fim / Eu sei que a vida de quem ama é assim / Manda
embora essa tristeza / Esqueça alguém que não te quis /
Canta e serás feliz
Conselho; Lincoln Washington
Pereira de Almeida e Paulo da
Portela
12
1960
Os tempos idos, nunca esquecidos, / Trazem saudades
ao recordar / É com tristeza que relembro / Coisas
remotas que não vêm mais
Tempos idos; Cartola e Carlos
Cachaça
13
1965
Tudo de alegrias e de tristezas conheci, / Coisas do amor
e do sofrer, eu já senti, / Nada me transforma a alegria
de viver, / Ver a noite vir e sorrir, ao sol nascer, / Vivo
esperando o novo dia, / Que irá trazer a luz, que sempre
ficará!
Canção da saudade; Cartola e
Cacá Diegues
14
1973
Foi-se a tristeza / Veio a alegria / Tinha certeza / De ser
feliz algum dia //
Alegria; Ismael Silva
15
1973
Existe muita tristeza na rua da Alegria / Existe muita
desordem na rua da Harmonia / Analisando esta história
/ Cada vez mais me embaraço / Quanto mais longe do
circo / Mais eu encontro palhaço //
Contrastes; Ismael Silva
16
1977
Toda tristeza que havia / Agora expulsei / Com a canção
que chegou / E vou cantando alegre / A felicidade que
Jesus mandou //
A canção que chegou; Cartola e
Nuno Veloso
17
1977
Amanhã / A tristeza vai transformar-se em alegria / E o
sol vai brilhar no céu de um novo dia / Vamos sair pelas
ruas, pelas ruas da cidade / Peito aberto, cara ao sol da
felicidade //
A cor da esperança; Cartola e
Roberto Nascimento
18
1977
Verde como o céu azul, a esperança / Branco como a
cor da Paz a se encontrar / Rubro como o rosto fica junto
à rosa mais querida / É negra toda tristeza se há
despedida na avenida / É negra toda tristeza desta vida
//
Verde que te quero rosa; Cartola
e Dalmo Castello
20
1928-1980
Meu amor já foi embora / Na tristeza eu fiquei / E não
podendo conter / A dor do meu padecer / foi por isso que
eu chorei
Meu amor já foi embora; Zé com
Fome e Cartola
21
1928-1980
Meu primeiro amor / Não me olhe assim / Eu já te disse
adeus / E os olhos teus não cansam / De fitar os meus //
A tristeza / Do teu olhar / Juro que encanta e traduz /
Tanta beleza / É uma promessa de amor / Que até nos
faz sonhar.
Meu primeiro amor; Cartola e
Aluísio Dias
]
Em quase todas as ocorrências, há referência genérica ao estado emocional de alguém,
muitas vezes sem alusão exata às causas do mesmo.
Quando não se fala da causa da tristeza, pode-se ressaltar as atitudes do enunciador
diante dela, como avaliá-las distanciadamente no tempo e considerá-la relacionada à alegria
presente (1); chorar de alegria por desconhecer esse sentimento, em contraste com quem sofre
(4); considerar que vive tantos momentos infelizes que é íntimo da tristeza, personificando-a
como uma grande amiga (7-9); considerar-se conhecedor tanto da alegria quanto da tristeza,
tendo conquistado o equilíbrio diante dessas experiências (13); abordar os contrastes da vida a
partir da coexistência de valores opostos, como tristeza e alegria (15), etc. Em outros casos, a
tristeza é negada ou neutralizada, como em (2-3), ocorrências em que se descreve o momento
da alvorada como isento de tristeza; em (14), onde um amor bem-sucedido substitui a tristeza
do enunciador pela alegria; em (16), onde uma canção desfaz a tristeza do enunciador.
Nos casos em que se esclarece a causa da tristeza, essa pode ser a morte de alguém
querido (10), as desilusões amorosas (5), a nostalgia diante de lembranças saudosas (12).
421
Em (6) há o pragmatema tristezas não pagam dívidas, usado para enfatizar que não
adianta se abalar diante de problemas financeiros. Na verdade, ele é aproveitado na ocorrência
para afirmar a mesma ideia diante do fracasso amoroso.
Em (11) há a colocação mandar a tristeza embora, que destaca a disposição
psicológica do experienciador, que, ao se alegrar, tem a percepção de expulsar a tristeza.
422
3.2.24 – Letra U
UNIÃO [4 ocorrências em 3 letras do corpus]
1
1941
Todos que pertencem ao samba / No Rio te mandam um
abraço. / Pauliceia, ô / Pauliceia, ô / Queremos com este
samba / Estreitar os nossos laços / Esse samba traduz a
nossa união.
Pauliceia; Paulo da Portela e
Cartola
2
1941
E sendo assim nada mais poderá dissolver / Esta nossa
união, / Paulistas do meu coração.
Pauliceia; Paulo da Portela e
Cartola
3
1973
Alguém pensa que é mentira / Esta nossa união / Todo
mundo se admira / Todo mundo mas eu não //
Alegria; Ismael Silva
4
1955-1980
Ah meu Deus se eu soubesse quem ela era / Juro que
jamais faria esta união
/ Bonita mulher mas de gênio é
uma fera / Depois da briga eu fiquei nesta condição
Ciúme doentio; Cartola e Nelson
Sargento
Em (1-2), a lexia reforça as intenções dos enunciadores, de confraternização com os
paulistas. Tal união é sacramentada a partir do samba que a traduz e se apresenta como
indissolúvel, nos votos dos sambistas cariocas.
Em (3) e (4), a lexia se refere à ligação amorosa entre duas pessoas, no primeiro caso
bem-sucedida, e no segundo, malfadada.
UNIDOS DO MORRO AZUL [1 ocorrência no corpus]
1942-1949
A homenagem ao Morro Azul // Viemos de Bento Ribeiro para batizar /
Unidos do Morro Azul em primeiro lugar / Esse é o nosso ideal /
Queremos ver brilhar no carnaval.
A homenagem ao Morro Azul;
Paulo da Portela
O quase-frasema Unidos do Morro Azul é o nome da escola de samba visitada pelos
portelenses. Para informações sobre as peculiaridades semânticas envolvidas na colocação
com o verbo batizar, veja-se este verbete.
UNIVERSO [5 ocorrências em 4 letras do corpus]
1
1935
Ó Brasil, és tão amado / Teu povo é honrado / Invejado
no universo
/ Nesta bandeira afamada / Não falta mais
nada / Pede estudo, / Ordem e Progresso //
Brasil, terra adorada; Cartola,
Arthur Faria e Aluísio Dias
2
1960
Conseguiu penetrar no Municipal / Depois de percorrer
todo o universo
/ E com a mesma roupagem que saiu
daqui / Exibiu-se pra Duquesa de Kent no Itamaraty
Tempos idos; Cartola e Carlos
Cachaça
3
1922-1949
Vamos deixar correr / A fama suburbana / Por todo este
universo, universo / O samba bem cantado é lindo /
Voltamos na linha de frente / Para presidente o mano
Claudionor
Avante, mocidade, é hora...;
Paulo da Portela
4
1922-1949
Bendita sejas tu, oh! Liberdade! / Rainha absoluta do
sucesso, / Sem ti não haverá felicidade, / Sem ti não
sorrirá todo o universo!
Bendita sejas tu...; Paulo da
Portela
A lexia revela a intenção de enfatizar hiperbolicamente o alcance da notoriedade, seja
do samba, que conquistava o estrangeiro depois de ser reconhecido nacionalmente (2), seja da
Portela, escola de subúrbio, que se afirmava no cenário do samba carioca (3), seja do Brasil e
dos brasileiros, cuja relevância também tem essa abrangência (1).
Em (4), o efeito da liberdade sobre os homens também é exacerbado a partir da
imagem de que esse valor “faz sorrir todo o universo”.
423
3.2.25 – Letra V
VALOR [18 ocorrências em 15 letras do corpus]
1
1929
Para mim perdeste o valor // Eu vou deixar certa amizade
/ Que para mim não convém / Ela só usa de falsidade /
Dizendo me querer bem //
Para mim perdeste o valor;
Ismael Silva
2
1929
Juro, não nego, / Levo saudades / Deste meu único amor
/ Sei que jamais terei piedade / Pra mim perdeste o valor
//
Para mim perdeste o valor;
Ismael Silva
3
1931
Minha malandragem é fina / não desfazendo de ninguém
/ Deus é quem nos dá a sina / e o valor dá-se a quem
tem / Também dou a minha bola / Golpe errado ainda
não dei
O que será de mim; Ismael Silva,
Nilton Bastos e Francisco Alves
4
1932
Pra que foste embora / Por ti tudo chora / Sem teu amor /
Esta vida não tem mais valor
.
Adeus; Ismael Silva, Noel Rosa e
Francisco Alves
5
1932
Pudesse um dia / Juro faria / Do samba o maior herói /
Concorrerias / Com as vitórias / Que existiam entre nós /
Seriam páginas de intenso fulgor / E o passado teria
maior valor
Pudesse meu ideal; Cartola e
Carlos Cachaça
6
1932
Eu não quero dar a perceber / Que gosto demais, do
meu amor / Se ele compreender / Vai se convencer /
Que tem pra mim / Um grande valor. //
Tenho um novo amor; Cartola
7
1932
O homem deve saber conhecer o seu valor / Pra não
fazer como o Inácio / Que andou muito tempo /
Bancando o Estácio. //
Tristezas não pagam dívidas;
Ismael Silva
8
1933
Tu, sendo infeliz como se vê, / Bancas tanto chiquê /
Que a mim até já faz horror / Quanto mais se tivesses
valor / Não teve e nem terás / Deus sabe o que faz... //
Deus sabe o que faz; Ismael
Silva
9
1933
Quando eu queria o teu amor / Não davas atenção ao
meu / Pra mim tu não tens mais valor / Agora quem não
quer sou eu //
Quem não quer sou eu; Ismael
Silva e Noel Rosa
10
1939
Ninguém te dá valor / Ninguém de ti tem dó / Não queres
o amor / De uma pessoa só / Se a regeneração / Vier te
interessar / Com a minha proteção / Podes contar //
Com a vida que pediste a Deus;
Ismael Silva
11
1941
Mangueira, velha escola / Onde Cartola tem sido
baluarte / Lindas poesias, belas melodias / Têm todo
valor de nossa parte
Homenagem à Mangueira; Paulo
da Portela
12
1941
Alfaiate, Zé Com Fome, / Também são dois nomes de
valor / Comparo suas letras com gotas de orvalho / Que
eu as bebo sem ciúme, com sabor
Homenagem à Mangueira; Paulo
da Portela
13
1957
Perdoa-me a comparação, / Mas fiz uma transfusão / Eis
que Jesus me premeia / Surge outro compositor / Jovem
de grande valor
/ Com o mesmo sangue na veia
Fiz por você o que pude; Cartola
14
déc.1950
Se o operário soubesse / Reconhecer o valor que tem
seu dia / Por certo que valeria // Duas vezes mais o seu
salário / Mas como não quer reconhecer / É ele escravo
sem ser / De qualquer usuário //
O samba do operário; Cartola,
Alfredo Português e Nelson
Sargento
15
1961
Berço nobre de um presidente / A quem felizmente / Dá-
se o seu valor
/ Campo és o progresso / Pra quem de
coração peço / Um futuro promissor.
Cidade morena; Cartola
16
1961
És "Cidade Morena" / Muito embora pequena / De valor
tradicional / Do oeste és a fronteira / Modesta e bem
brasileira / Graciosa e sem rival
Cidade morena; Cartola
17
1973
Toda essa gente que te dá tanto valor / Não sabe ainda
que não vales um vintém / Há pouco tempo me disseste
por favor / Que eu não contasse a tua crônica a
ninguém.
Entrada franca; Ismael Silva
18
1928-1980
Levanta gigante adormecido / Vamos para o alto / Que
nem tudo está perdido / Põe na tua frente / Os velhos
generais / Que eles mostrarão / Do que serás capaz / O
teu valor / Ninguém pode tirar / Levanta-te Mangueira / E
vem lutar //
Levanta gigante; Cartola, Carlos
Cachaça e Nuno Veloso
A referência é à notoriedade ou aos méritos de alguém, ou de algo.
Em (11-13, 18) fala-se dos méritos de pessoas ou instituições no meio do samba, cuja
menção dá mais vivacidade às letras destinadas à homenagem de vultos desse meio. Em (13),
fala-se do valor do jovem que substitui o sambista mais antigo para qualificá-lo como alguém
capaz de continuar à altura a tarefa de continuar essa atividade cultural.
424
Em (1-2, 6-10, 17) trata-se da importância que alguém tem aos olhos de outrem, a
partir do envolvimento afetivo. Muitas vezes a consideração ou desconsideração dessa
importância é estruturada pelas colocações com verbo-suporte ter valor e perder o valor; já o
fato de alguém atribuir essa condição especial a alguém é estruturado pela colocação com
verbo-suporte dar valor.
Em (5) a referência é à importância da história do Brasil, que, segundo a ocorrência,
seria ainda mais abrilhantada a partir do samba como patrimônio cultural. Já em (15-16),
exalta-se Campo Grande, a “cidade morena”, por sua significação histórica e pelas suas
tradições.
Em (14) fala-se da quantia de dinheiro equivalente a um período de trabalho de um
operário. Esse é o mote inicial da composição, dedicada a questionar a exploração do
trabalho, não remunerado conforme o que é produzido pelo trabalhador.
O pragmatema o valor dá-se a quem tem (3) é expressão da convicção de que os
méritos de alguém são inalienáveis e de que não se pode ignorá-los. Essa é uma forma,
portanto, de o enunciador afirmar a sua própria autoridade, solicitando que reconheçam seu
valor.
O pragmatema esta vida não tem mais valor (4) é uma expressão de extrema
desilusão. O enunciador coloca-se na situação de quem foi tão magoado (geralmente por
desventuras amorosas) que não vê mais por que viver. Trata-se de uma fórmula muito usada
para tentar mobilizar a simpatia e a piedade da pessoa amada.
VELHO [9 ocorrências em 5 letras do corpus]
1
1930
Velho Estácio // Muito velho, pobre velho, / Vem subindo
a ladeira / Com a bengala na mão //
Velho Estácio; Cartola
2
1930
É o velho, velho Estácio / Vem visitar a Mangueira / E
trazer recordação / Professor, chegaste a tempo / Pra
dizer neste momento / O que devemos fazer / Me sinto
mais animado / A Mangueira a teus cuidados / Vai à
cidade descer
Velho Estácio; Cartola
3
1941
Mangueira, velha escola / Onde Cartola tem sido
baluarte / Lindas poesias, belas melodias / Têm todo
valor de nossa parte
Homenagem à Mangueira; Paulo
da Portela
4
1944
Devemos ter adversários / Como Oswaldo Cruz / Diz o
provérbio / Da discussão é que nasce a luz / Outra
escola que não poderia acabar / É o velho Estácio de Sá
Silenciar a Mangueira; Cartola
5
1980
Vontade eu tenho de voltar / Ao pé do antigo pé de abio /
À sombra do meu velho pai: / Caramboleira que partiu... /
Partiu... //
Fundo de Quintal; Cláudio Jorge,
Cartola e Hermínio Bello de
Carvalho
6
1928-1980
Levanta gigante adormecido / Vamos para o alto / Que
nem tudo está perdido / Põe na tua frente / Os velhos
generais / Que eles mostrarão / Do que serás capaz / O
teu valor / Ninguém pode tirar / Levanta-te Mangueira / E
vem lutar //
Levanta gigante; Cartola, Carlos
Cachaça e Nuno Veloso
O uso da lexia é meliorativo em todas as ocorrências observadas. Refere-se a duas das
mais tradicionais escolas de samba e aos sambistas mais antigos, representados como
generais, que ocupam posição de primeiro plano na defesa da escola; também faz referência
425
ao pai do enunciador, de modo afetivo. A carga simbólica dessa qualificação revela
principalmente a importância da tradição no meio do samba.
VER [122 ocorrências em 85 letras do corpus]
10
1931
Em viver junto de ti / Ainda tenho esperança / O teu
amor, eu já vi / Não me sai mais da lembrança / Quem
diz fazer o que quer / Eu digo não ser verdade /
Enquanto existir mulher / Há de existir saudade
Arrependido; Ismael Silva, Nilton
Bastos e Francisco Alves
13
1931
Eu só quero ver o seu proceder / e a tua promessa é
fatal / eu tenho razão / não digas que não / porque tu já
me fizeste mal.
Isso não se faz; Ismael Silva
14
1931
Como é linda nossa Guanabara / Joia rara que beleza /
Quando nosso céu está todo azul, anoitece / O céu se
resplandece / Em seu bordado de estrela vê-se o
Cruzeiro do Sul //
Linda Guanabara; Paulo da
Portela
17
1931
Tu não me tens amor, meu bem (oleleô) // Você diz que
não me quer / Você diz que me adora / Quando tu me
, mulher, / Por que é que você chora (será promessa?)
//
Oleleô; Ismael Silva, Nilton
Bastos e Francisco Alves
27
1932
Ainda tenho alguma esperança / Que um dia hás de
perder a pretensão / Por isso eu digo: quem espera
sempre alcança / E mais tarde hás de ver
quem é que
tem razão.
Quem espera sempre alcança;
Paulo da Portela
31
1933
Quando eu vi / Que a festa estava encerrada / E não
restava mais nada / De felicidade / Vinguei-me nas
cordas / Da lira de um trovador / Condenando o teu amor
/ Divina dama
Divina dama; Cartola
33
1933
Chegou, chegou a dona do lugar, chegou / pelo modo de
pisar / se que é iaiá de ioiô //
Dona do lugar; Ismael Silva e
Francisco Alves
34
1933
Fita os meus olhos // Fita os meus olhos, / Vê como eles
falam / Vê como reparam / O seu proceder / Não é
preciso dizer, / Deve compreender / E até mesmo notar, /
Só no meu olhar //
Fita meus olhos; Cartola e
Osvaldo Vasquez
38
c1933
Meu juízo se revolta / Quando vejo alguém zombar / O
mundo dá muita volta / Quem zombou pode chorar
Rir; Cartola e Noel Rosa
42
1935
Chego quase a não saber / Por que tamanho prazer /
Quando meus olhos te veem / Ó que tentação //
Confissão de amor; Paulo da
Portela
48
1937
Vou começar a aula / Perante a comissão, muita atenção
/ Eu quero ver se diplomá-los posso / Salve o fessor, dá
nota a eles, senhor / Quatorze com mais doze noves fora
tudo é nosso //
Teste ao samba; Paulo da
Portela
51
1939
Estou sempre lhe chamando atenção / com calma como
todo o mundo / pois tudo que se diz de má fé / é
sempre preferido por você //
Não vejo jeito; Ismael Silva
54
déc.1930
Eu quando vi você todo frisado / Mudei meu passo e quis
/ andar faceiro / Pois eu julguei seres bem empregado /
Ou que os parentes teus tinham / dinheiro
Dois bicudos; Cartola e Aluísio
Dias
55
déc.1930
Mas vejo agora não és o fulano / Que há muito tempo /
Eu venho procurando / Nossas ideias são do mesmo
pano / Dois bicudos não se beijam / Até a vista, eu vou
andando.
Dois bicudos; Cartola e Aluísio
Dias
68
1922-1949
Seus olhos são dois flocos, / luminosos e sedutores / Se
com desprezo me olhas, me causas doenças, dores /
Pelo amor de Deus te peço / tenhas compaixão de mim /
veja as rimas destes versos / Meu bem, não olhes assim
Olhar assim; Paulo da Portela
76
1965
Tem tem tem pandeiro agogô / Vê se falta ganzá /
O rei vem vem / vem de Luanda / vamos saravá saravá /
A rainha também / Não vai demorar / Hoje vai ter samba
Dolores / Vamos que eu quero sambar.
Ensaio de rua; Barbosa da Silva,
José Lima e Cartola
80
1973
Em Mangueira vêm vários artistas / Do exterior até
turistas / Só pra ver o que a Mangueira tem / Sambar
como nossas cabrochas ninguém //
A Mangueira é muito grande;
Cartola e Ataliba
81
1973
A Mangueira é muito grande / Dá galhos pra todo lado /
E os frutos que ela dá / Todos são aproveitados / Vem
gente de muito longe / Para ver se é verdade o que
ouvem dizer //
A Mangueira é muito grande;
Cartola e Ataliba
Em (14, 17, 42), fala-se do que se percebe a partir da visão. Nas abonações, enfatizam-
se as reações (positivas ou negativas) de enunciador e/ou do enunciatário diante da beleza da
natureza, ou diante da aproximação da pessoa com que tem vínculo amoroso.
426
Em (10, 31, 33, 55) referência é a percepções cognitivas de um dos sujeitos do
discurso. Tais percepções relacionam-se a disposições íntimas do próprio enunciador, à
ocorrência de eventos e à identidade de outras pessoas.
Em (34, 54, 76) a referência é às observações que se faz a respeito de algo, que pode
ser a expressividade de olhares apaixonados, o comportamento característico de alguém, a
disponibilidade de equipamentos para determinado fim.
Em (27, 80-81) há referência a constatações a partir de fatos; incluem a correção do
posicionamento de pessoas que estão em desacordo e a fama de instituições ligadas ao samba.
Em (38, 51) o foco é a eventos que alguém testemunha. Podem-se enfatizar as reações
daquele que testemunha uma injustiça, ou o caráter pretensamente patente de um aspecto do
comportamento do enunciador.
Em (13, 48, 68) fala-se no ato de avaliar algo, julgando os méritos envolvidos no
comportamento de alguém, no desempenho de um grupo em situação análoga à de sala de
aula, em uma composição poética oferecida como mostra de amor.
Colocação ver [pessoa amada]
53
déc.1930
Alegria era o que faltava em mim / Uma esperança vaga
eu já encontrei / Pelos carinhos que me faz me deixa em
paz / Não te quero ver para nunca mais //
Alegria; Cartola
105
1928-1980
Um dia eu voltei ansioso pra ver / o meu amor / Esqueci
o sofrimento que passei / Dinheiro no banco. Terno novo
/ Quase doutor / Só que a Joaninha não encontrei
Nada vale a pena; Cartola e
Roberto Nascimento
108
1928-1980
E qual foi a surpresa maior / E pior tive um pesadelo /
Onde tu gritava horrorizada / Não desejo vê-lo.
Pesadelo; Cartola e Nuno Veloso
Nessas colocações o verbo corresponde ao encontro amoroso, ou ao rompimento da
relação. Em dois dos casos, as ocorrências na negativa marcam a iniciativa do enunciador de
distanciar-se, rompendo o envolvimento. Em (105), expressa-se a vontade do enunciador que
anseia pelo encontro com a companheira.
Frasema ver a luz do dia
103
1928-1980
E a mulher / Culpada desse suplício / Passa o mesmo
sacrifício / Talvez a maior agonia / Juca Malvado para
completar o crime / Não consentiu que a cabocla / Visse
mais a luz do dia.
Juca Malvado; Cartola
Essa expressão geralmente é usada para caracterizar a condição de pessoas
encarceradas, que não têm a oportunidade de ficar ao ar livre. Na ocorrência, ela tipifica a
condição da mulher que foi confinada por um dos personagens que a subjugou.
Pragmatema venham ver
3
1925
Para que havemos de mentir / O subúrbio está é bom, /
Venham ver, não é história / Se por ventura estou errado
/ Dou a mão à palmatória.
Para que havemos de mentir;
Paulo da Portela
Os pragmatemas venham ver e não é história são marcas de confiança do enunciador
427
no que diz — ele se apresenta tão convicto do que afirma que convida outros a constatar isso.
A certeza é ainda mais avivada a partir do pragmatema dou a mão à palmatória.
Pragmatema nunca vi coisa tão certa
4
1928
Se eu fosse homem branco / Ou por outra mulatinho /
Talvez eu tivesse sorte / De gozar do seu carinho / A
maré que enche vaza / Deixa a praia descoberta / Vai-se
um amor e vem outro / Nunca vi coisa tão certa //
Me faz carinhos; Ismael Silva e
Francisco Alves
Novamente, eis uma expressão de convicção do enunciador no que afirma. Nesse caso,
o enunciador aplica a fórmula de rotina a afirmações taxativas sobre a experiência amorosa.
Pragmatema quero ver
6
1929
A Portela está contente / Para frente / Com fé e coragem
/ Que eu quero ver / Quero saber do sucesso / Dentro da
ordem e progresso / Salve então a rua B
A Portela está contente...; Paulo
da Portela
16
1931
Umas crioulinha / uns português / (...) quero ver de uma
vez // um dois / um dois / um dois / um dois//
Meu batalhão; Ismael Silva ,
Nilton Bastos e Francisco Alves
As unidades exprimem a intenção do enunciador, de incentivar outros, animando-os,
nesses casos, a desempenhar com brilhantismo papéis em desfiles de carnaval, ou em
instituições sambistas recém-fundadas.
Pragmatema vou ver o que posso fazer por você
11
1931
Fica firme, não estrila / Traz o retrato e a estampilha /
Que eu vou ver / O que posso fazer por você //
Eu gosto, mas não é muito;
Ismael Silva, Noel Rosa e
Francisco Alves
A expressão manifesta o posicionamento do enunciador que quer demonstrar
indiferença em relação a alguém. Na abonação, sua atitude é a de quem faz um favor à
destinatária, levando em conta o seu interesse por ele.
Pragmatema nunca vi [algo] assim/igual
15
1931
Em perguntar penso que não faço mal / Tens um olhar
que nunca vi
outro igual. //
Me diga o teu nome; Ismael
Silva, Nilton Bastos e Francisco
Alves
29
1933
O chiquê é feio pra quem pode ter / Quanto mais pra
quem não tem nada de seu / Ai de quem não sabe se
reconhecer / Nunca vi
um gênio igual ao teu //
Deus sabe o que faz; Ismael
Silva
110
1955-1980
Eu me apaixonei e com ela casei este foi o meu mal /
Brigas permanente um ciúme doente nunca vi coisa
assim / Se eu voltar em Mangueira sei que a turma
inteira vai zombar de mim
Ciúme doentio; Cartola e Nelson
Sargento
O enunciador lança mão dessa fórmula de rotina para destacar as qualidades positivas
ou negativas daquilo que aprecia. Exalta por meio dela as singularidades do que é comentado
— a beleza do olhar de uma mulher ou o mau gênio de outras.
Pragmatema vejam vocês
18
1931
Até parece muamba / Eu assim não vi igual / Você não
gosta de samba / Nem baile de carnaval (vejam vocês) //
Oleleô; Ismael Silva, Nilton
Bastos e Francisco Alves
Por meio desse marcador discursivo, o enunciador se dirige aos destinatários,
428
buscando angariar a sua cumplicidade com relação ao que diz. Geralmente a expressão
também marca o seu espanto diante de algo inesperado ou desagradável.
Pragmatema vê se [faz algo]
47
1937
Nem notícias eu tenho / Da mulher que tanto venero /
Deus meu, foi embora / Não sei onde mora / Notícias
espero / É tão triste um adeus, uma despedida / Vê se
apieda-te, Deus / Cura-me esta ferida //
Partiu; Cartola
77
1965
Pedro afine os tambores / E diz a Dolores / Que vai ter
ensaio de rua / Vê se reúne a turma inteirinha / Vamos
que é noite de lua //
Ensaio de rua; Barbosa da Silva,
José Lima e Cartola
79
1972
Esquece nosso amor / Vê se esquece / Porque tudo no
mundo acontece / E acontece que já não sei mais amar /
Vai chorar, vai sofrer / E você não merece / Mas isso
acontece //
Acontece; Cartola
87
1979
Basta de clamares inocência / Eu sei todo o mal que a
mim você fez / Você desconhece consciência / Só deseja
o mal a quem o bem te fez / Basta, não ajoelhes, vá
embora / Se estás arrependida, vê se chora
Basta de clamares inocência;
Cartola
93
1979
Meu interesse é viver sem você / Nosso passado eu
procuro esquecer / Ao grande protetor eu peço em uma
prece / Senhor, por piedade, vê se ela me esquece //
Senões; Cartola e Nuno Veloso
Essa marca discursiva ressalta o tom apelativo do enunciador, que tenta influenciar o
interlocutor. Em (87), a expressão é mais de indiferença diante da destinatária — ele
manifesta sua indiferença diante do arrependimento dela, mesmo que culmine em choro.
Em (93), o apelo é feito a Deus e, nesse caso, não diz respeito ao comportamento do
destinatário, mas sim ao de uma terceira pessoa; esse é um contrato discursivo em que faz
sentido pedir a alguém a mudança de comportamento de uma terceira pessoa — o enunciador
pede a intercessão divina.
Pragmatema ver jeito
52
1939
Não vejo jeito // Você já se esqueceu / que se
comprometeu / que ia proceder direito / E eu acreditei /
por isso perdoei / Fiz mal / porque não vejo jeito //
Não vejo jeito; Ismael Silva
O pragmatema expressa a desilusão do enunciador diante de algo que considera
errado, mas em cuja reformulação não acredita — nesse caso, fala do comportamento da
parceira.
Pragmatema veja bem
57
1938-1940
Pois fique sabendo / Que o feijão bichado / E o arroz
quebrado / Que alguém lhe vendeu / Já despejei todinho
no terreiro / Veja
bem o dinheiro / Que você perdeu //
Como é que eu posso; Cartola
O pragmatema destaca determinada informação, chamando a atenção do interlocutor
para isso. Na ocorrência, corresponde a uma provocação, pois ressalta o prejuízo do
destinatário.
Pragmatema bem vês
62
1945
Não, / não vivo bem a seu lado / Apesar de ser tratado /
Com todo afeto e carinho / Não, não lhe tenho amizade, /
Bem vês / Deixa-me seguir o meu caminho / Reconheço
todos os feitos seus / Mas deixa-me voltar / Para junto
aos meus //
Perdoa; Paulo da Portela e
Cartola
429
Nesse caso, o pragmatema é usado para buscar a concordância de alguém,
apresentando determinada afirmação como patente à sua verificação.
VERDE [13 ocorrências em 7 letras do corpus]
1
1928
Se a bandeira brasileira é linda / A sua descrição vale
um tesouro / O verde representa as nossas matas / O
azul, o nosso céu / O amarelo o nosso ouro
Se a bandeira brasileira é linda...;
Paulo da Portela
2
1934
E muito além dos verdes montes / Terás esta canção /
Falando de glórias, sim
És tu, Brasil, que nos seduz;
Paulo da Portela e Ernani
Rosário
3
1938-1940
E são eles, verdes periquitos, / Têm um peito forte tal
qual um granito / E são lindas as suas canções //
Ao amanhecer; Cartola
4
1938-1940
Quantas vezes eu ouvi / Pássaros verdes e amarelos /
Da cor da nossa bandeira / Que seduz o mundo inteiro /
O orgulho dos brasileiros.
Corações em festa; Cartola
5
1922-1949
Ó meu Brasil / Ó meu país amado / Meu verde amarelo /
À bandeira consagrado / Ó meu Brasil / Meu Brasil
pioneiro / Te darei a minha vida / Por eu ser um
brasileiro.
Brasil, terra da liberdade; Paulo
da Portela
6
déc.1940
Amo-te demais, ó, Pátria minha / Tua bandeira, ó, meus
irmãos, / O lábaro estrelado, o verde esperança, / O
amarelo ouro, o azul do céu, / E o branco da paz //
Amo-te demais, ó, Pátria
minha...; Cartola
7
1977
É branco o sorriso das crianças / São verdes, os
campos, as matas / E o corpo das mulatas quando
vestem verde
e rosa, é / Mangueira / É verde o mar que
me banha a vida inteira //
Verde que te quero rosa; Cartola
e Dalmo Castello
8
1977
Verde que te quero Rosa (é a Mangueira) / Rosa que te
quero Verde (é a Mangueira)
Verde que te quero rosa; Cartola
e Dalmo Castello
9
1977
Verde que te quero rosa // Verde como o céu azul, a
esperança / Branco como a cor da Paz a se encontrar /
Rubro como o rosto fica junto à rosa mais querida
Verde que te quero rosa; Cartola
e Dalmo Castello
É comum as ocorrências terem referência simbólica, que recupera por
interdiscursividade a representação das matas brasileiras, presente na bandeira nacional
brasileira; em alguns outros casos, a simbologia da cor remete à ideia de esperança (6, 9),
também associada à imagem do céu azul (9). Quando a ocorrência é marca de nacionalismo, é
comum a colocação verde amarelo, combinação cromática predominante na bandeira.
A lexia também é usada para qualificar elementos da realidade que apresentam essa
cor, como os periquitos (3) e os montes (2).
Ainda em (8-9), ocorre o pragmatema verde que te quero rosa, expressão consagrada
por Cartola, com interdiscursividade em relação ao dizer “verde que te quero verde”, de
exaltação à natureza. O compositor transformou-o em uma exaltação à Mangueira, jogando
ainda com a posição das cores — “verde que te quero rosa”, “rosa que te quero verde”.
Por fim, há o pragmatema verde e rosa, que ocorre em (7). Nesse contexto, não se
trata de uma combinação fortuita de cores, mas aquela que simboliza a Mangueira.
VERSO [6 ocorrências em 5 letras do corpus]
1
d1937
Era o rei / Da filosofia / Fez da musa o que queria /
Zombou da inspiração / Os seus versos ritmados / Por
ele mesmo cantados / Tinham bela entoação //
A Vila emudeceu; Cartola
2
1922-1949
Seus olhos são dois flocos, / luminosos e sedutores / Se
com desprezo me olhas, me causas doenças, dores /
Pelo amor de Deus te peço / tenhas compaixão de mim /
veja as rimas destes versos / Meu bem, não olhes assim
Olhar assim; Paulo da Portela
430
3
d1952
O que é feito de você, / Oh, minha mocidade / Oh, minha
força, / A minha vivacidade / O que é feito dos meus
versos / E do meu violão? / Troquei-os sem sentir / Por
um simples bastão //
O que é feito de você?; Cartola
4
d1952
Pés inchados, passos em falso, / Olhar embaçado, / Nem
um amigo a meu lado / Não há por mim compaixão / A
tudo vou assistindo / À ingratidão resistindo / Só sinto
falta / Dos meus versos, / Da mocidade e do meu violão
O que é feito de você?; Cartola
5
1928-1980
Caminho lentamente e entro em contraluz / E a garganta
acende um verso sedutor / O corpo se agita e chove
pelos olhos / E um aplauso escorre em cada refletor
Camarim; Cartola e Hermínio
Bello de Carvalho
6
1928-1980
Orgia, hoje és minha inimiga / Os sofrimentos me
obrigam / A me afastar de você / Adeus, violão / Amigo
leal / Estes versos que eu fiz / Devem ser / A rima final
Orgia; Cartola
Na literatura em geral, a lexia versos, pluralizada, pode representar metonimicamente
a totalidade de um poema; tal é o caso na maioria das ocorrências. Em (1), entretanto, dados o
contexto e a colocação com adjetivos como ritmados e cantados, a lexia passa a representar a
composição lírico-musical — a referência, nesse caso, ainda afirma o caráter poético da
composição.
Nas ocorrências, enfatiza-se o potencial da criação poética para comover a pessoa
amada ou expressar sentimentos íntimos do enunciador. Destaca-se também a importância da
capacidade de criação como traço de identidade fundamental do compositor.
VILA ISABEL [6 ocorrências em 2 letras do corpus]
1
1937
Eu quisera esquecer o passado / Eu quisera mas sou
obrigado / A lembrar o grande Noel / Ainda resta a
cadeira vazia / Da escola de filosofia / No bairro de Vila
Isabel
Cadeira vazia; Cartola e Nuno
Veloso
2
d1937
Na Vila / onde ele morava / Todos os seres cantavam /
As glórias do seu poeta / Hoje a Vila é triste e muda / Ao
bater Ave-Maria / Quando a aurora desperta
A Vila emudeceu; Cartola
3
d1937
A Vila emudeceu // A Vila emudeceu / Dolorosamente
chora / O que perdeu / Ninguém é imortal / Morrer é
natural / Ó Deus, perdoa / Se é que estou pecando / Que
mal te fez a Vila / Que lhe estás torturando //
A Vila emudeceu; Cartola
As referências são ao bairro carioca de Vila Isabel, localidade privilegiada na vida de
Noel Rosa. É representado como castigado por Deus com a morte do compositor, emudecido
de tristeza. Os moradores do bairro são tidos como testemunhas do valor de Noel, ou
potenciais seguidores que eventualmente podem preencher a lacuna deixada pelo mestre. O
nome do bairro é frequentemente reduzido para Vila.
VIOLÃO [10 ocorrências em 7 letras do corpus]
1
1938-1940
Ao amanhecer, ao anoitecer / Cantam em bando aves
fazendo verão / Ouvem-se acordes de um violão
Ao amanhecer; Cartola
2
1941
Chora, cavaquinho, chora / Chora, violão, também / O
Paulo no esquecimento não interessa a mais ninguém /
Chora, Portela, minha Portela querida / Eu que te fundei,
serás minha toda a vida.
O meu nome já caiu no
esquecimento; Paulo da Portela
3
d1952
O que é feito de você, / Oh, minha mocidade / Oh, minha
força, / A minha vivacidade / O que é feito dos meus
versos / E do meu violão? / Troquei-os sem sentir / Por
um simples bastão //
O que é feito de você?; Cartola
4
d1952
Pés inchados, passos em falso, / Olhar embaçado, / Nem
um amigo a meu lado / Não há por mim compaixão / A
tudo vou assistindo / À ingratidão resistindo / Só sinto
falta / Dos meus versos, / Da mocidade e do meu violão
O que é feito de você?; Cartola
431
5
déc.1950
Eu e meu violão / Vamos rogando em vão / O seu
regresso / Se soubesses como choro e como peço / Pra
que nosso fracasso / Se transforme em progresso
Festa da vinda; Cartola e Nuno
Veloso
6
1968
Ai, essas cordas de aço / Este minúsculo braço / Do
violão que os dedos meus acariciam //
Cordas de aço; Cartola
7
1968
Ai, esse bojo perfeito / Que trago junto ao meu peito / Só
você, violão, compreende porque / Perdi toda a alegria //
Cordas de aço; Cartola
8
1928-1980
Fui pela estrada / Caminhando / Pensativo indagando /
Ó! Lua Deusa / Da inspiração / Por que / Não tenho você
/ Nem meu violão.
Eu e a lua; Cartola e Aluísio Dias
9
1928-1980
Lua! / Eu com raiva / Quebrei o violão / Julguei que você
/ Não me dava atenção / Distante eu olhei / Outra vez
para a estrada / E vi tua luz prateada //
Eu e a lua; Cartola e Aluísio Dias
10
1928-1980
Orgia, hoje és minha inimiga / Os sofrimentos me
obrigam / A me afastar de você / Adeus, violão / Amigo
leal / Estes versos que eu fiz / Devem ser / A rima final
Orgia; Cartola
A lexia, que integra o vocabulário de especialidade da música, visto que nomeia um
instrumento musical, tem ocorrências carregadas de positividade. Em (1), tem sua função
harmônica valorizada e a menção a seus acordes cria uma ambiência para a descrição do
desfile dos periquitos. Em (2), é interlocutor personificado, em sintonia com o enunciador,
que comunga da sua tristeza; em (3-4), é um valor muito caro ao enunciador, que se ressente
do distanciamento em relação ao instrumento, assim como lamenta a passagem da mocidade.
Em (5), é o companheiro que, em sintonia com o enunciador, ajuda a conquistar a simpatia da
amada; em (6-7), as ocorrências integram uma composição inteiramente dedicada ao elogio
do violão e à expressão do amor ao instrumento. Em (8-9), é o objeto dos lamentos do
enunciador, pesaroso por ter quebrado o instrumento em uma crise de inspiração; em (10), é o
representante personificado da orgia, considerado como um amigo querido a quem se dirigem
despedidas.
VIR [81 ocorrências em 52 letras do corpus]
1
1924
Bendigo a dor que vem para ensinar / Bendigo a
resignação que enobrece / Da tristeza passada farei o
meu altar / Da alegria presente farei minha prece.
Dor que ensina; Paulo da Portela
4
1929
Vem, vem / Que eu dou tudo a você / Menos vaidade /
Tenho vontade / Mas é que não pode ser
Amor de malandro; Ismael Silva,
Freire Júnior e Francisco Alves
6
1930
Muito velho, pobre velho, / Vem subindo a ladeira / Com
a bengala na mão //
Velho Estácio; Cartola
8
1931
Anda, vem cá // Anda, vem cá / Se tu soubesses os
carinhos de amor / Que eu tenho pra te dar / Se você
provar cairá vencida / E minha será pra toda vida //
Anda, vem cá; Ismael Silva,
Nilton Bastos e Francisco Alves
9
1931
Vamos reagir / No que possa vir, / Pois lutar, / Pra
vencer, / É saber viver. //
Ri pra não chorar; Ismael Silva e
Francisco Alves
10
1932
Aurora vem raiando anunciando o nosso amor, ô, ô / A
felicidade promete, mas não vem / Só vem a saudade,
saudade é querer bem, ô
Ao romper da aurora; Ismael
Silva, Lamartine Babo e
Francisco Alves
13
1933
Lá vem ela, lá vem ela / Com o ioiô do seu lado /
Arrastando a chinela / Dizendo samba raiado //
Dona do lugar; Ismael Silva e
Francisco Alves
14
1933
Tudo eu fiz por você / Não quiseste atender / Os meus
conselhos e a minha opinião / Algum dia vais ver / Como
é triste sofrer / E de joelhos vens pedir o meu perdão. //
Na floresta; Cartola e Sílvio
Caldas
15
1933
Pra fingir que vivo bem / Não conto a ninguém / Este
meu mal sem fim. / Mas, a calma não me vem / E eu
mesmo não sei / O que será de mim. //
Nunca dei a perceber; Ismael
Silva
16
1933
A tarde chega / Mansa e serena / Esta grandeza / Suave
e amena / Acetinada / Surge a lua, / Descortinando / O
céu de anil / Esta grandeza / No céu flutua / E nos
convida / Sempre a bailar / Em homenagem / À natureza
/ A noite vem / Nos saudar.
Quando desperta a cidade; Paulo
da Portela
432
17
1935
Na superfície / Tranquila do mar / Ardendo em fulgor / E
as ondas não vozeam / Vem morrer na branca areia /
Orlando-a de espuma em flor
Clarão da lua; Paulo da Portela
18
1935
Por favor, não diga assim / Julgo que zombas de mim /
Não venhas desassossegar o meu coração //
Confissão de amor; Paulo da
Portela
19
1935
Deixe que te confesse, ó flor / Tenho medo, é confissão
de amor / Não é bem isso que eu te venho relatar / Ora
meu bem é que fico louco em te ver sambando //
Confissão de amor; Paulo da
Portela
21
1935
Batem na porta da frente / Corro na porta de trás / Um
homem perde a cabeça / Sem saber bem o que faz / Se
tiver coragem, venha / Assombração que apareça
Pam-pam-pam-pam; Paulo da
Portela
22
1935
Quando silencia a voz das aves / (De harmonias tão
suaves) / a noite vem a terra amortalhar / (Para em sono
se engolfar) / Nos roseirais as flores segredando /
(Graciosas baloiçando) / Ensaiam, se estreitando, O
verbo amar //
Quando silencia a voz das aves;
Paulo da Portela
30
1940
Este mundo é uma roleta / E nós somos jogadores /
Jogamos com a sorte / Dá o azar / Assim é o amor, /
Quando é fiel de parte a parte / Vem a morte pra nos
separar
Este mundo é uma roleta; Paulo
da Portela
35
1942-1949
A homenagem ao Morro Azul // Viemos de Bento Ribeiro
para batizar / Unidos do Morro Azul em primeiro lugar /
Esse é o nosso ideal / Queremos ver brilhar no carnaval.
A homenagem ao Morro Azul;
Paulo da Portela
61
1955-1980
Vim lhe pedir // Vim lhe pedir / me perdoa / reconheço,
errei / se aqui voltei / foi para lhe dizer, então, / que há
motivos de força maior / que às vezes prende a gente /
me disseste que voltei cinicamente / pra zombar de te
ver chorar //
Vim lhe pedir; Nelson Sargento e
Cartola
Em (4, 6, 8, 13-14, 17, 21, 35) a ocorrência corresponde à aproximação de algo ou de
alguém. Trata-se de significação recorrente no vocabulário comum da língua.
Em (1, 9, 10, 15, 16, 22, 30) a referência é à experimentação de sentimentos e
sensações, à ocorrência de eventos ou à sucessão de períodos cronológicos. Essa significação,
também recorrente no vocabulário comum, costuma envolver a personificação do elemento
experienciado, ou do evento que influi sobre as pessoas envolvidas.
Em (18-19, 61) a referência é à influência exercida por alguém sobre outra pessoa, ou
à interação entre pessoas. O verbo, nesses casos, nem sempre exprime deslocamento espacial,
mas sim a tomada de iniciativa de quem assume o papel de agente de uma intervenção.
Veja-se a análise do pragmatema vai-se um amor e vem outro s.v. ir. Já os
pragmatemas há males que vêm pra bem e venham ver devem ser consultados s.v. mal e ver,
respectivamente.
Pragmatema se [algo] vier a te interessar
26
1939
Ninguém te dá valor / Ninguém de ti tem dó / Não queres
o amor / De uma pessoa só / Se a regeneração / Vier te
interessar / Com a minha proteção / Podes contar //
Com a vida que pediste a Deus;
Ismael Silva
O pragmatema serve para marcar a atitude do enunciador, de deixar ao encargo do
destinatário determinada iniciativa que é esperada pelo mesmo enunciador, deixando que
tome o seu tempo na ação.
Pragmatema vir por meio desta
29
déc.1930
Dona Cegonha venho com muita vergonha / Por meio
desta cartinha te solicitar um favor / Deve trazer um
crioulinho gorduchinho / de olhinhos regalados parecido
com o meu amor
Senhora Dona Cegonha; Paulo
da Portela
433
O pragmatema é uma fórmula de rotina que tipifica o contrato discursivo das cartas: é
usada frequentemente como abertura desse gênero textual, onde o enunciador esclarece qual é
o seu propósito ao produzir o texto.
Pragmatema não vir mais
37
1960
Os tempos idos, nunca esquecidos, / Trazem saudades
ao recordar / É com tristeza que relembro / Coisas
remotas que não vêm mais
Tempos idos; Cartola e Carlos
Cachaça
Essa é uma expressão da nostalgia do enunciador em relação a momentos passados. A
constatação de que o passado não volta, nesses casos, soa como um lamento, reforçado, por
exemplo, por marcas como nunca esquecidos e trazem saudades.
VIRAÇÃO [1 ocorrência no corpus]
1950
Ô Antonico / Vou lhe pedir um favor / Que só depende da sua boa
vontade / É necessário uma viração pro Nestor / Que está vivendo em
grande dificuldade
Antonico; Ismael Silva
A lexia, uma referência informal ao trabalho, tem função eufêmica no texto. Ameniza
o pedido feito ao Nestor, sugerindo inclusive que não há exigências quanto ao trabalho que
possa ser oferecido ao sambista em dificuldades.
VITÓRIA [2 ocorrências em 2 letras do corpus]
1
1927
Não se deve cantar glória / Antes da vitória / Vocês que
sorriam de mim / Na esperança do mais alto pedestal / O
seu castelo ruiu / Numa poeira infernal
Não se deve cantar glória; Paulo
da Portela
2
1932
Pudesse um dia / Juro faria / Do samba o maior herói /
Concorrerias / Com as vitórias / Que existiam entre nós /
Seriam páginas de intenso fulgor / E o passado teria
maior valor
Pudesse meu ideal; Cartola e
Carlos Cachaça
Em (2), a lexia refere-se a conquistas do samba como movimento cultural. Essas
conquistas são apresentadas como um patrimônio valioso inclusive para a história do Brasil.
Em (1), mais uma vez fala-se na primazia em uma disputa, mas nesse caso a conquista
é pessoal, comemorada por quem teria sido menosprezado, conseguindo vencer o confronto.
VITORIOSO [1 ocorrência no corpus]
1960
Depois, aos poucos, o nosso samba / Sem sentirmos se aprimorou /
Pelos salões da sociedade / Sem cerimônia ele entrou / Já não pertence
mais à praça, / Já não é samba de terreiro / Vitorioso, ele partiu para o
estrangeiro //
Tempos idos; Cartola e Carlos
Cachaça
A lexia qualifica o samba, destacando o seu sucesso, principalmente com relação à
conquista de projeção internacional.
VIVA [2 ocorrências em 2 letras do corpus]
1
1933
Quando ela pega a sambar / Com o seu sapateado /
Todos ficam a gritar / Dando viva ao Cais / Dourado //
Dona do lugar; Ismael Silva e
Francisco Alves
434
2
1940
Ao romper do sol / Ouvi cantar um rouxinol / Cantando
um hino em louvor / O mano Paulo dando viva ao
Claudionor.
Cantar de um rouxinol; Paulo da
Portela
Em ambas as ocorrências, encontra-se a colocação com verbo-suporte dar viva. A
expressão veicula a exaltação de algo ou alguém que se tem em grande conta. Em (1), o
elemento aclamado é uma localidade da Bahia, usada para caracterizar a mulher descrita na
composição a partir dessa referência. Em (2), o enunciador, identificado como Paulo da
Portela, enaltece o sambista Claudionor, homenageando-o com aquela composição.
VIVER [4 ocorrências em 4 letras do corpus]
1
1937
Ô Antonico / Vou lhe pedir um favor / Que só depende da
sua boa vontade / é necessário uma viração pro Nestor /
que está vivendo em grande dificuldade / ele está
mesmo dançando na corda bamba
Antonico; Ismael Silva
2
1939
Não pergunte à caixa surda / Não peça cola à cuíca / Lá
no morro vamos vivendo de amor / Estudando com
carinho o que nos passa o professor.
Teste ao samba; Paulo da
Portela
3
1946
Se eu tiver de escolher / entre o samba e você / vai ser
de amargar / sem você eu não vivo / e também sem o
samba / não posso passar / ai meu Deus!
Se eu tiver de escolher; Ismael
Silva, Arlindo Marques Junior e
Roberto Roberti
4
1974
Todo tempo que eu viver / só me fascina você,
Mangueira / guerrear na juventude, / fiz por você o que
pude
Fiz por você o que pude; Cartola
Na ocorrência (2), a expressão viver de amor remete a uma existência harmoniosa
entre os que vivem no morro. Há, entretanto, uma ambiguidade nesse uso, pois o sentido não
composicional do frasema viver de amor sugere que não se tem condições materiais para o
sustento. Nesse caso, a vida no morro seria caracterizada pela pobreza.
As demais ocorrências integram pragmatemas.
Em (1), está vivendo em grande dificuldade é fórmula de rotina eufêmica geralmente
usada para dizer que alguém está com problemas financeiros.
Em (3), sem você eu não vivo é uma declaração de amor intensificada pela sugestão de
que a relação amorosa é essencial para o enunciador, como a própria vida.
Em (4), o pragmatema todo tempo que eu viver também tem função intensificadora,
sugerindo um grande comprometimento do enunciador com o que está para afirmar.
VOZ [12 ocorrências em 11 letras do corpus]
1
1935
Canta meu bem / Requebra macio de forma / Que mexas
com todos nós / Queremos ouvir / A sorrir, a candura da
tua voz //
Canta, meu bem; Paulo da
Portela
2
1935
Quando silencia a voz das aves / (De harmonias tão
suaves) / a noite vem a terra amortalhar / (Para em sono
se engolfar) / Nos roseirais as flores segredando /
(Graciosas baloiçando) / Ensaiam, se estreitando, O
verbo amar //
Quando silencia a voz das aves;
Paulo da Portela
3
1941
Pauliceia, ô / Pauliceia, ô / Seja ele a voz do coração /
Ele é o reduto destas rimas sinceras / Tiradas da alma
em doces quimeras / Esperamos guardá-las como
recordação
Pauliceia; Paulo da Portela e
Cartola
4
1945
Não consideres isso / uma ingratidão / Atendo a voz do /
meu coração.
Perdoa; Paulo da Portela e
Cartola
435
5
1922-1949
Sambar! / Salve a folia / Cantar! / Salve a orgia Então
cantaremos todos / em voz geral / Só meu samba / É o
nosso ideal.
Sambar / Salve a folia...; Paulo
da Portela
6
déc.1950
Abafa-se a voz do oprimido / Com a dor e o gemido /
Não se pode desabafar / Trabalho feito por minha mão /
Só encontrei a exploração / Em todo lugar.
O samba do operário; Cartola,
Alfredo Português e Nelson
Sargento
7
1974
Chora / Disfarça e chora / Aproveita a voz do lamento /
Que já vem a aurora / A pessoa que tanto querias /
Antes mesmo de raiar o dia / Deixou a escola com outro /
Oh! Triste senhora //
Disfarça e chora; Cartola e
Dalmo Castello
8
1922-1978
Quando acabei de cear / que queria pagar / tive uma
surpresa: / disse o garçom com voz gaga / que já estava
paga / a minha despesa.
Surpresa; Ismael Silva
9
1979
Que brisa amena ao te fitar / És indelével como a flor /
Qual foi o deus teu escultor? / Ouvi a voz e a voz dizia /
"Eu sou a mãe de Deus, Virgem Maria"
Dê-me graças, senhora; Cartola
10
1928-1980
Desperta querida / E vem ouvir meus ais / Procure ouvir
agora / Ou não ouvirás jamais / Vem ouvir a voz / Deste
teu trovador / Desperta querida / Pelo nosso amor //
Desperta querida; Cartola
11
1928-1980
Eu queria dizer-te baixinho / Quanto és bela, és pura, és
santa / Quando chego ao teu lado / Me foge a voz da
garganta
Pesadelo; Cartola e Nuno Veloso
Em (1, 5, 10) a referência é ao canto de alguém. Geralmente, nessas ocorrências,
identificam-se pessoas a partir da habilidade para cantar. Em (5), a colocação em voz geral
qualifica o grupo cantor como entrosado, comungando dos mesmos ideais.
Em (9), fala-se na emissão sonora da fala de alguém. Nesse caso, o enunciador alude à
emissão sonora que ouve antes de identificar a sua origem — a imagem da santa cuja beleza
exalta.
Em (3-4) encontra-se o frasema voz do coração, que expressa uma correspondência o
mais perfeita possível entre uma forma de expressão e os sentimentos do enunciador.
Em (2), a ausência da voz das aves é índice do anoitecer, ajudando a compor
poeticamente um quadro que serve de cenário para os eventos narrados na letra.
Em (6-7), a referência é à expressão das opiniões, sentimentos e anseios de alguém.
No primeiro caso, a colocação com abafar tipifica a situação de subjugação, em que as
pessoas não têm direito à livre expressão. No segundo caso, valoriza-se o sofrimento da
destinatária, representando-se poeticamente a sua expressão como a voz do lamento.
Em (8), a colocação com voz gaga qualifica o garçom, caracterizando a sua maneira de
falar.
Em (11), o frasema, a voz fugir da garganta [de alguém] é forma de representar a
mudez do enunciador diante da forte impressão que nele exerce a presença da mulher amada.
436
4 — CONSIDERAÇÕES FINAIS
O trabalho que aqui se finaliza tem o propósito de contribuir para a investigação das
características lexicais da letra de samba, especialmente nas composições típicas das
primeiras décadas do século XX, que representam o período inaugural do samba urbano
carioca. Adicionalmente, nele também se apresentam o universo discursivo do samba, em
suas práticas e valores, assim como as características textuais dos sambas cariocas do período
em questão.
Os contratos discursivos principais que se estabeleceram nesse momento da história do
samba merecem uma breve sistematização. Há variações, ou mesmo combinações das
condições de produção do discurso descritas a seguir, mas estes são os polos principais:
Roda de samba
Conforme ensina Moura (2004), a roda de samba é anterior ao próprio samba. Esse
entorno para as práticas musicais passou por diferentes momentos no período estudado.
Esses eventos recreativos eram realizados em vários lugares do centro do Rio de
Janeiro e dos subúrbios da cidade – inicialmente, ocorriam geralmente em residências
particulares, abertas aos participantes. Estes eram principalmente pessoas das classes
populares – imigrantes de origem nordestina, do interior do estado do Rio e de outros lugares,
pessoas libertas com o fim da escravatura e seus descendentes, portugueses pobres etc.;
também havia a participação de pessoas da elite social, mais na assistência do que dentro da
roda em si, apesar da estigmatização de que essas reuniões ainda eram alvo. É o que se atesta,
por exemplo, em Samba de fato, de Pixinguinha e Baiano (Cícero de Almeida) – gravado em
Pixinguinha 100 anos (1997):
Samba de partido-alto
Só vai cabrocha que samba de fato
Samba de partido-alto
Só vai cabrocha que samba de fato
Só vai mulato filho de baiana
E a gente rica de Copacabana
Dotô formado de ané de oro
Branca cheirosa de cabelo louro, olé
(refrão)
Também vai nego que é gente boa
Crioula prosa, gente da coroa
Porque no samba nego tem patente
Tem melodia que maltrata a gente, olé
437
(refrão)
Ronca o pandeiro, chora o violão
Até levanta poeira do chão
Partido-alto é samba de arrelia
Vai na cadência até raiar o dia, olé
(refrão)
E quando o samba tá mesmo enfezado
A gente fica com os óio virado
Se por acaso tem desarmonia
Vai todo mundo pra delegacia, olé
(refrão)
De madrugada quando acaba o samba
A gente fica com as perna bamba
Corpo moído só pedindo cama
A noite toda só cortando grama, olé
Nessas reuniões, executavam-se diversos gêneros musicais: choro, polca, lundu e
maxixe entre outros, assim como samba, que ainda era o samba maxixado característico do
período anterior à geração do Estácio (conforme foi explicado em 1.2.2), ou o samba de
partido-alto, já ilustrado. A batucada ou samba duro também podia ser praticada,
principalmente por homens mais identificados com a imagem tradicional do malandro.
As rodas de samba dos bambas do Estácio representam um outro momento, marcado
pelo desenvolvimento do samba como gênero musical. Esses sambistas costumavam se reunir
em botequins em vez de casas particulares, para fazer samba.
Finalmente, na década de 1960, inicia-se com o Zicartola a roda de samba como
espetáculo em casas noturnas, formato ainda reproduzido até hoje. Nesse caso, há um esforço
para reproduzir a espontaneidade e o ambiente intimista que caracterizam esse entorno.
A criação musical na roda de samba era feita por pessoas dos grupos populares para
outros do seu mesmo grupo, que compartilhavam valores semelhantes. Havia simetria das
relações entre enunciadores e enunciatários – reconhecia-se a notoriedade dos sambistas a
partir da inspiração musical, da habilidade no canto e na dança, ou de outros valores, mas
isso, apesar de conferir autoridade, não criava hierarquização formal entre as pessoas.
Além do samba de partido-alto, variedade característica dessa situação, também eram
comuns os sambas do modelo antigo, com primeira parte fixa e segunda improvisada, com
afinidades em relação ao que hoje se conhece como samba de terreiro.
A linguagem nesses casos é informal, valendo-se de referências compartilhadas pelo
grupo e de recursos como citações de máximas de senso comum, para falar de temas
cotidianos, das vivências amorosas, da própria ambiência do samba etc.
Algumas composições características dessa situação são Pelo telefone (Donga e Mauro
438
de Almeida), O sol nascerá (Cartola e Elton Medeiros), Quitandeiro (Paulo da Portela) e Se
você jurar (Ismael Silva, Nilton Bastos e Francisco Alves).
Escola de samba
Essa ambiência, inicialmente muito identificada com a roda de samba, com o tempo e a
gradual formalização das instituições carnavalescas, vai se diferenciando dela.
As escolas de samba, que a princípio eram frequentadas por pessoas
predominantemente do mesmo grupo social, foram atraindo outras de diferentes classes; ao
mesmo tempo, a crescente visibilidade à qual os desfiles de carnaval foram fazendo jus
determinou que a composição dos sambas destinados aos mesmos considerasse que os
enunciatários não necessariamente compartilhavam dos mesmos referenciais dos
enunciadores – o sambista, na escola de samba, se dirigia a um grupo cada vez mais amplo.
Com o crescimento da especialização das atividades nas escolas de samba também se
estabeleceram diferenças nas trocas discursivas. No lugar do meio de convivência em que um
mesmo participante podia, em diferentes momentos, ser compositor, dançarino, participar do
coro e tocar um instrumento, surge uma instituição em que os papéis tornam-se mais rígidos,
assim como a hierarquia mais formalizada.
Não só o público ao qual a escola de samba se dirigia tornou-se socialmente
diversificado, mas também os próprios participantes e mesmo dirigentes com o tempo
deixaram de ser exclusivamente de vizinhos, parentes e pessoas do mesmo meio, como
acontecia inicialmente.
A princípio, as temáticas das composições diziam respeito à competição entre as
agremiações (Chega de demanda, de Cartola), ou a temas como relações amorosas (Não
quero mais amar a ninguém, de Cartola e Carlos Cachaça). Principalmente a partir do Estado
Novo, consolida-se a tendência à abordagem de temas nacionalistas, com tom grandiloquente
e conforme o padrão linguístico dominante. Os dois tipos de samba mais característicos desse
entorno são o samba-enredo, concebido para o desfile de carnaval e ancorado ao enredo
escolhido para a escola de samba, e samba de terreiro, que tem os propósitos de recrear e
animar o grupo, em momentos de convivência mais aproximados da roda de samba.
Algumas composições características dessa ambiência são Ciência e arte (Cartola e
Carlos Cachaça), Cavaleiro da esperança (Paulo da Portela), Vale do São Francisco (Cartola
e Carlos Cachaça) e Teste ao samba (Paulo da Portela).
439
Samba na indústria fonográfica
O evento que possibilitou esse terceiro contrato discursivo para o samba foi o
desenvolvimento dos meios de gravação e difusão de músicas, principalmente a partir da
década de 1930. Esses avanços resultaram na criação de uma indústria cultural, com
comercialização de produtos e realização de espetáculos musicais dedicados ao samba.
Com a fundação de emissoras de rádio e gravadoras no Rio de Janeiro, empresas que
facilitaram a difusão musical, além do favorecimento político e ideológico proporcionado
pelo Estado Novo, o samba ganha projeção nacional.
A geração do Estácio e outros sambistas da época souberam aproveitar essa conjuntura
para profissionalizar-se, fazendo da música um modo de vida – a profissionalização também
implicou o comércio de parcerias com intérpretes em condições de pagar e com mais trânsito
nos grupos sociais dominantes, para divulgar as composições. O próprio samba ganhou forma
fixa, mais propícia à gravação fonográfica, que não comportava a possibilidade de
improvisações e variações de letra. O grupo do Estácio cultivava a imagem de malandros,
avessos ao trabalho, habilidosos no samba, boêmios e sempre com muitos envolvimentos
amorosos, abordando esses elementos em suas composições.
Toda essa difusão do samba resultou na formação de um público heterogêneo, que
podia abranger todo o país, ou mesmo o exterior. Muitas vezes as composições abordam os
temas tradicionais do samba (malandragem, cotidiano da população pobre, exaltação ao Rio
de Janeiro) para satisfazer as expectativas compartilhadas por esse público a respeito do meio
do samba.
Por outro lado, a maior projeção e a comunicação com um público de grupos sociais
dominantes também determinam uma postura discursiva de afirmação do valor cultural dessa
expressão musical, por estratégias como a valorização dos saberes nela envolvidos, que são
comparados com os saberes da educação formal. A conquista de títulos e de notoriedade em
competições de carnaval também contribuem para a afirmação dessa importância cultural.
Em termos lexicais, há duas possibilidades de comportamento dos enunciadores nesse
contrato discursivo: se assumem a identidade de malandros, podem fazer uso de vocábulos
próprios dos grupos populares ligados ao samba à época; se têm a intenção de afirmação
cultural, podem buscar a aproximação aos padrões linguísticos dominantes, para aumentar a
aceitação dessa proposta pelo grande público – todos os grupos sociais costumam valorizar a
capacidade de se comportar conforme os padrões linguísticos estabelecidos.
Nome Feio (Ismael Silva), Eu agradeço (Ismael Silva), Camarim (Cartola e Hermínio
Bello de Carvalho), Cidade mulher (Paulo da Portela), Como é que eu posso (Cartola), As
440
rosas não falam (Cartola) e Alfaiataria a Cidade (Paulo da Portela e Cartola) são
composições que revelam os traços descritos aqui.
Sistematização de características léxico-discursivas
Quanto às características léxico-discursivas mais marcantes detectadas na análise dos
dados, destaquem-se os seguintes eixos de referência especialmente significativos – essas
informações estão detalhadas nos verbetes correspondentes da análise dos dados:
1) sistemas semânticos específicos desse universo discursivo: amizade; baluarte;
bambaquerê; iaiá; ioiô; malandro; mano; morro; muamba; mulata; orgia;
2) roda de samba: batuque; folia; gandaia; pagode;
3) canto e dança: arrastar (a chinela); cantar; canto; cantor; dançar; entoar; entoação;
requebrar; sambar; sapateado; sapatear; voz;
4) disputas e êxitos, principalmente no carnaval: adversário; avante; brilhar; campeão;
concorrer; conquista; coroa; fama; ganhar; glória; herdeiro; história; homenagem; nome;
salve; sucesso; valor; vitória; vitorioso; viva;
5) educação formal e importância cultural do samba: academia; aula; cola (pedir); curso;
diplomar; doutor; estudar; professor; teste;
6) sambistas de destaque: bamba; Cartola; Claudionor; Noel; Paulo;
7) bairros e localidades: Bento Ribeiro; Estácio; Mangueira; Oswaldo Cruz; Praça Onze;
Rio; subúrbio; Vila Isabel;
8) atores dos ambientes de samba: crioulinho; português; suburbano;
9) aves, principalmente canoras: andorinha; ave; canário; curió; gaturamo; periquito;
rouxinol; sabiá;
10) cores: anil; azul; branco; cor; negro; rubro; verde;
11) marcas de oralidade usadas como base para frases melódicas de refrões: ai; ô;
12) outras marcas de oralidade: ó; oba; ora; salve; viva;
13) valores significativos na construção do discurso do samba: alegria; amor; carinho;
chorar; ciúme; coração; coragem; destino; Deus; dor; esperança; felicidade; filosofia;
fingimento; ideal; ingratidão; juventude; lar; mal; mentir; mocidade; morte; mulher; orgulho;
país; passado; paz; perdão; pranto; prazer; razão; recordação; riso; saber; sangue; saudade;
sofrer; sonhar; sorriso; tempo; tradição; tristeza; viver;
14) Vocabulário de especialidade do samba
- instrumentos musicais: agogô; bojo; braço; caixa surda, cavaquinho; corda de aço;
cuíca; ganzá; pandeiro; pinho; tambor; tamborim; violão;
441
- atuação do músico: artista; bis; maestro; plateia; sambista; tocar;
- samba: cadência; marcação; samba; samba raiado; samba de terreiro; tamborinar;
- composição: canção; compositor; inspiração; letra;
- escola de samba: bateria; escola de samba; Estação Primeira; Favela; Mangueira;
Portela; presidente; Salgueiro; Unidos do Morro Azul;
- desfile de escolas de samba: avenida; comissão; carnaval; desfilar; ensaio; harmonia;
- em comum com a música: acorde; afinar; harmonia; hino; introdução; melodia; música;
ritmado;
- em comum com a literatura: lira; musa; poema; poesia; poeta; rima; ritmado; verso.
Possíveis desdobramentos
Este estudo representa, além da contribuição sistematizada anteriormente, o ponto de
partida para a elaboração do dicionário da obra dos autores estudados, representativo do
período inicial do samba na cidade do Rio de Janeiro. Com esse intuito, será preciso planejar
a disposição lexicográfica definitiva dos dados apurados, além da adequação de algumas
informações técnicas, como por exemplo as referentes às unidades lexicais complexas.
Ademais, a nomenclatura definitiva precisará de acréscimos – neste estudo, a área temática
“metalinguagem” teve atenção diferenciada, pois recebeu inclusões decorrentes de critérios
quantitativos e também do exame qualitativo das letras assim enquadradas. Já no caso das
outras áreas, a inclusão foi feita exclusivamente por critérios quantitativos – isso se deveu ao
propósito de dar atenção especial aos sambas que falam de samba e à intenção de controlar a
extensão dos resultados, para adequá-los a este trabalho de base.
Um aprofundamento do projeto será a preparação do Dicionário histórico do samba
carioca, que contemplará os períodos e os autores mais representativos do gênero. Mais uma
vez, os critérios e procedimentos estabelecidos neste estudo são a base a partir da qual esse
projeto deverá ser realizado.
Enfim, resta dizer que meu intuito neste trabalho é contribuir para o conhecimento do
léxico popular do português brasileiro. Como já foi exposto desde a introdução, a
documentação desse universo lexical deve contemplar, além dos sambas de todo o país e de
todas as épocas, outros textos, orais e escritos, de ampla difusão no Brasil, como as letras de
outros gêneros de música popular, a literatura de cordel, as adivinhações, parlendas, trava-
línguas, lendas e histórias tradicionais etc. Este, em última análise, é o grande projeto para o
qual o presente estudo, somado a outros, pode contribuir.
442
5 — REFERÊNCIAS
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452
ANEXO 1 — CORPUS DE ESTUDO
Título Compositor Letra Outras informações
A canção que
chegou
Cartola e
Nuno Veloso
Na manhã que nascia encontrei / O que na noite tardia
desejei / E vou feliz a cantar por aí / Assim... //
Toda tristeza que havia / Agora expulsei / Com a canção
que chegou / E vou cantando alegre / A felicidade que
Jesus mandou //
Lembro dos tempos de outrora / Que quase me roubam / A
esperança e a fé / E hoje me volto contente / Cantando pra
Deus / Que tanto me ajudou //
Não vou culpar os amigos / Fingidos que outrora eu tive /
Na vida / Nem vou dizer / Que a razão do fracasso / Se
prende a batalhas perdidas //
E confiante despeço-me / Todo feliz a cantar / Agradecido
ao bom Senhor / Por me ajudar
Datação
: 1977
Tema
: reflexões existenciais
Disco
: Verde que te quero rosa
Gravadora
: RCA Victor
Intérprete
: Cartola
A cor da
esperança
Cartola e
Roberto
Nascimento
Amanhã / A tristeza vai transformar-se em alegria / E o sol
vai brilhar no céu de um novo dia / Vamos sair pelas ruas,
pelas ruas da cidade / Peito aberto, cara ao sol da
felicidade //
E num canto de amor assim / Sempre vão surgir em mim
novas fantasias / Sinto vibrando no ar e sei que não é vã /
A cor da esperança, a esperança do amanhã / Do amanhã,
do amanhã
Datação
: 1977
Tema
: reflexões existenciais
Disco
: Cartola 70 anos
Gravadora
: RCA Victor
Intérprete
: Cartola
Observação
: datação feita a
partir do registro pela editora
Irmãos Vitale (cf. CANÇADO,
Beth. Aquarela brasileira. vol. 1.
Brasília: Corte, 1995.)
A homenagem
ao Morro Azul
Paulo da
Portela
Viemos de Bento Ribeiro para batizar / Unidos do Morro
Azul em primeiro lugar / Esse é o nosso ideal / Queremos
ver brilhar no carnaval.
Datação
: 1922-1949
Tema
: metalinguagem
Disco
: Homenagem a Paulo da
Portela
Gravadoras
: Nikita Music /
Office Sambinha (Japão)
Intérprete
: Velha Guarda da
Portela
Observação
: datação
aproximada estabelecida a
partir da biografia do
compositor
A Mangueira é
muito grande
Cartola e
Ataliba
A Mangueira é muito grande / Dá galhos pra todo lado / E
os frutos que ela dá / Todos são aproveitados /Vem gente
de muito longe / Para ver se é verdade o que ouvem dizer
//
Em Mangueira vêm vários artistas / Do exterior até turistas
/ Só pra ver o que a Mangueira tem / Sambar como nossas
cabrochas ninguém //
A Mangueira, minha gente / Dá galhos pra todo lado / E
oferece a semente
Datação
: 1973
Tema
: metalinguagem
Disco
: Só Cartola (Elton
Medeiros, Nelson Sargento e
Galo Preto)
Gravadora
: Rob Digital
Intérprete
: Nelson Sargento
Observação
: datação a partir
da gravação mais antiga
encontrada, em Raízes da
Mangueira (Copacabana.
1973). Essa gravação,
entretanto, é um pot-pourri com
apenas a primeira parte da
canção. A transcrição foi feita a
partir do disco aqui registrado.
453
A mesma
estória
Cartola e
Elton
Medeiros
Quem me vê passar calado e triste / Não resiste / Vem me
perguntar o que causou / Esta transformação / Já estou
cansado de contar aquela estória / É sempre a mesma
estória / Que resume-se em desilusão //
Preciso andar pra não pensar / No que passou e não
chorar / Viver em paz e sepultar de vez / A minha grande
dor / Confiante despeço-me dos meus amigos
E da cidade / Só voltarei quando encontrar felicidade
Datação
: 1977
Tema
: reflexões existenciais
Disco
: Cartola 70 anos
(Cartola)
Gravadora
: RCA Victor
Intérprete
: Cartola
Observação
: datação a partir
do disco Celia (Continental
1.01.404.167), a primeira
gravação que consta nas
discografias. Para a
transcrição, preferiu-se uma
interpretação de Cartola.
A Portela está
contente...
Paulo da
Portela
A Portela está contente / Para frente / Com fé e coragem /
Que eu quero ver / Quero saber do sucesso / Dentro da
ordem e progresso / Salve então a rua B
Datação
: 1929
Tema
: metalinguagem
Livro
: Paulo da Portela, traço
de união entre duas culturas, p.
153
Editora
: Funarte
A razão dá-se
a quem tem
Ismael Silva,
Noel Rosa e
Francisco
Alves
Se meu amor me deixar / Eu não posso me queixar / Vou
sofrendo sem dizer nada a ninguém / A razão dá-se a
quem tem //
Sei que não posso suportar / (Se meu amor me deixar) /
Se de saudades eu chorar / (Eu não posso me queixar) /
Abandonado sem vintém / (Vou sofrendo sem dizer nada a
ninguém) / Quem muito riu chora também / (A razão dá-se
a quem tem) //
Eu vou chorar só em lembrar / (Se meu amor me deixar) /
Dei sempre golpe de azar / (Eu não posso me queixar) /
Pra parecer que vivo bem / (Vou sofrendo sem dizer nada
a ninguém) / A esconder que amo alguém / (A razão dá-se
a quem tem)
Datação
: 1932
Tema
: relações amorosas
Disco
78 rpm, lado A (10939)
Gravadora
: Odeon
Intérpretes
: Francisco Alves e
Mário Reis
A velhice
chega
Paulo da
Portela e
Rufino
A velhice chega / Vai-se a mocidade / Apenas resta a
saudade / Aqueles bons tempos / Risos tão felizes / Resta
em meu peito / A cicatriz, a cicatriz //
Só me resta ruga / e nada mais / Os meus lábios choram /
eu sou capaz / o que me maltrata / é pensar atrás / a
velhice chega / e nada mais
Datação
: 1946
Tema
: reflexões existenciais
Monografia
: [Monografia sobre
Paulo da Portela], Candeia e
Araújo, 1980
A Vila
emudeceu
Cartola
A Vila emudeceu / Dolorosamente chora / O que perdeu /
Ninguém é imortal / Morrer é natural / Ó Deus, perdoa / Se
é que estou pecando / Que mal te fez a Vila / Que lhe
estás torturando //
Era o rei / Da filosofia / Fez da musa o que queria /
Zombou da inspiração / Os seus versos ritmados / Por ele
mesmo cantados /
Tinham bela entoação //
Na Vila / onde ele morava / Todos os seres cantavam / As
glórias do seu poeta / Hoje a Vila é triste e muda / Ao bater
Ave-Maria / Quando a aurora desperta
Datação
: 1937 (depois de)
Tema
: metalinguagem
Livro
: Cartola, os tempos idos,
p. 98
Editora
: Gryphus
Observação
: datação
aproximada a partir da morte
de Noel Rosa
Acabaram de
ouvir
Cartola,
Carlos
Cachaça,
Aluísio Dias,
Manuel da
Leiteira
Acabaram de ouvir / Quase um louco/ Um homem que não
/ Amou pouco / Amou demais e sofreu / Quem ama assim /
É covarde / Termina fazendo alarde / Quando por uma
mulher / se venceu //
Esta famosa tragédia / Passou-se um dia / Comigo / Amei
demais / E não fui correspondido / Acreditei no amor / E
também na criatura / Nas suas juras / E no amor fingido.
Datação
: 1928-1980
Tema
: relações amorosas
Livro
: Cartola, os tempos idos,
p. 315
Editora
: Gryphus
Observação
: datação
aproximada estabelecida a
partir da biografia do
compositor
454
Acontece Cartola
Esquece nosso amor / Vê se esquece / Porque tudo no
mundo acontece / E acontece que já não sei mais amar /
Vai chorar, vai sofrer / E você não merece / Mas isso
acontece //
Acontece que meu coração / Ficou frio / E nosso ninho de
amor está vazio / Se eu ainda pudesse fingir que te amo /
Ai, se eu pudesse / Mas não quero, não devo fazê-lo / Isso
não acontece.
Datação
: 1972
Tema
: relações amorosas
Disco
: Cartola
Gravadora
: Marcus Pereira
Intérprete
: Cartola
Observação
: datação a partir
do disco Dança da solidão, de
Paulinho da Viola (Odeon,
SMOFB 3718). Para a
transcrição, preferiu-se uma
interpretação de Cartola.
Aconteceu Cartola
Aconteceu / Eu não esperava mais acontecer / Todo o bem
que fiz se quiser esquecer / Revelando a sua imprudência /
Construí o lar, o lar que ela pedia / Exigiu-me coisas que
ela não queria //
Aconteceu / Hoje ela chora tudo o que perdeu / E chorando
veio me pedir perdão / Fica para ela a lição
Datação
: 1976
Tema
: relações amorosas
Disco
: Cartola
Gravadora
: Marcus Pereira
Intérprete
: Cartola
Adeus
Ismael Silva,
Noel Rosa e
Francisco
Alves
Adeus! Adeus! Adeus! / Palavra que faz chorar / Adeus!
Adeus! Adeus! / Não há quem possa suportar //
Adeus é tão triste / Que não se resiste / Ninguém jamais /
Com adeus pode viver em paz //
Pra que foste embora / Por ti tudo chora / Sem teu amor /
Esta vida não tem mais valor.
Datação
: 1932
Tema
: cotidiano
Disco
: Ismael Silva: peçam bis
Gravadora
: Funarte
Intérprete
: Dalva Torres
Afina a viola Ismael Silva
Afina a viola, Mané / Pega na sanfona, Tião / Pru mó de
mostrá como é / Que se brinca no nosso sertão
Pra comê eles mastiga / Eu como sem mastigá / Pra cantá
eles magina / Eu canto sem maginá
Datação
: 1973
Tema
: Brasil
Disco
: Se você jurar
Gravadora
: RCA Victor
Intérprete
: Ismael Silva
Agradeças a
mim
Ismael Silva
Se saíste do morro, / Se tens felicidade, / Agradeças a
mim, / Porque se não fosse assim, / Não estarias na
cidade! //
Tu andavas de má intenção / e eu nunca prestei atenção, /
mas, até que afinal, / Já me livrei desse mal!
Datação
: 1934
Tema
: relações amorosas
Disco
78 rpm, lado B (11194)
Gravadora
: Odeon
Intérprete
: Sílvio Caldas
Alegria Cartola
Alegria era o que faltava em mim / Uma esperança vaga
eu já encontrei / Pelos carinhos que me faz me deixa em
paz / Não te quero ver para nunca mais //
Eu sei que teus beijos e abraços / Tudo isso não passa de
pura hipocrisia / Já que tu não és sincera / Eu vou te
abandonar um dia
Datação
: década de 1930
Tema
: relações amorosas
Disco
: Cartola
Gravadora
: Marcus Pereira
Intérprete
: Cartola
Observação
: datação atribuída
a partir de Barboza da Silva e
Oliveira Filho, 2003, p. 292
Alegria Ismael Silva
Foi-se a tristeza / Veio a alegria / Tinha certeza / De ser
feliz algum dia //
Alguém pensa que é mentira / Esta nossa união / Todo
mundo se admira / Todo mundo mas eu não //
Essa hora eu esperava / Sempre com perseverança / Você
nunca me aceitava / Mas deixava uma esperança
Datação
: 1973
Tema
: relações amorosas
Disco
: Se você jurar
Gravadora
: RCA Victor
Intérprete
: Ismael Silva
Observação
: datação
aproximada estabelecida a
partir da biografia do
compositor
Alfaiataria A
Cidade
Paulo da
Portela e
Cartola
Vestir bem, pagando pouco / Eis um problema louco / Que
nós temos a resolver / Prestem atenção / Estou autorizado
a dizer / Pagando só o feitio / Eis o plano inteligente / De
uma casa aqui no Rio / Não pode haver maior facilidade /
Só na alfaiataria A Cidade /
Datação
: 1945
Tema
: cotidiano
Livro
: Paulo da Portela, traço
de união entre duas culturas, p.
153
Editora
: Funarte
Aliás
[Degeneração]
Ismael Silva
Desde criança / Que eu ouço dizer que em geral / Que na
família sempre sai alguém que não convém / Porém a sua
saiu mesmo bem desigual / Pois tirando você não se
aproveita ninguém / Você saiu tão diferente / Que nem
deve dizer que pertence a essa gente / Enfim você sabe o
que faz / Mas isso é contra mim, contra nós aliás. //
Se algum dia você por acaso cismar / De arranjar entre
nós qualquer uma tresilha / Pelo que vejo eu não poderei
estranhar / Nada mesmo direi pois sei que é de família.
Datação
: 1973
Tema
: relações amorosas
Disco
: Se você jurar
Gravadora
: RCA Victor
Intérprete
: Ismael Silva
455
Alvorada (no
morro)
Cartola,
Carlos
Cachaça e
Hermínio
Bello de
Carvalho
Alvorada lá no morro, que beleza / Ninguém chora, não há
tristeza / Ninguém sente dissabor / O sol colorindo é tão
lindo, é tão lindo / E a natureza sorrindo, tingindo, tingindo
(alvorada) //
Você também me lembra a alvorada / Quando chega
iluminando meus caminhos tão sem vida / E o que me
resta é bem pouco, quase nada, / Do que ir assim,
vagando numa estrada perdida
Datação
: 1930 (primeira parte) /
1967 (segunda parte)
Tema
: natureza
Disco
: Cartola
Gravadora
: Marcus Pereira
Intérprete
: Cartola
Observação
: informações
cronológicas de Barboza da
Silva e Oliveira Filho, 2003, p.
292
Amar
Ismael Silva
, Nilton
Bastos e
Francisco
Alves
Amar, amar / Sem ser amado, isso não / Penar, penar /
Antes quero viver só, então //
Há muita gente que desconhece / A amizade por interesse
/ Existe amor interesseiro / E muitos pensam ser
verdadeiro //
Isso acontece com o convencido / Que nunca pensa ser
iludido / E vai vivendo sempre enganado / Pensando
mesmo em ser amado
Datação
: 1931
Tema
: relações amorosas
Disco
78 rpm, lado B
Gravadora
: Odeon
Intérprete
: Francisco Alves
Amar, amar
Cartola e
Maciste
Amar, amar / Amar para sofrer / Eu de ti esquecerei //
Teu amor de fingimento / Quantos tormentos passei / Eu
passei //
Amar, amar, amar / Para sofrer / De você esquecerei //
Teu amor de sentimento / Quantos tormentos passei / Eu
passei
Datação
: 1928-1980
Tema
: relações amorosas
Disco
: Mangueira - sambas de
terreiro e outros sambas
Gravadora
: Arquivo Geral da
Cidade do Rio de Janeiro
Intérprete
: Cartola
Observação
: datação
aproximada estabelecida a
partir da biografia do
compositor
Amor de
malandro
[Malandro]
Ismael Silva,
Freire Júnior
e Francisco
Alves
Vem, vem / Que eu dou tudo a você / Menos vaidade /
Tenho vontade / Mas é que não pode ser // Amor é o de
malandro / Oh! Meu bem / Melhor do que ele ninguém / Se
ele te bate é porque gosta de ti / Pois bater em quem não
se gosta / Eu nunca vi.
Datação
: 1929
Tema
: relações amorosas
Disco
78 rpm, lado B
Gravadora
: Odeon
Intérpretes
: Francisco Alves e
Mário Reis
Amor proibido Cartola
Sabes que vou partir / Com os olhos rasos d'água / E o
coração partido / Quando lembrar de ti / Me lembrarei
também / Deste amor proibido //
Fácil demais fui presa / Servi de pasto em tua mesa / Mas
fique certa que jamais terás o meu amor / Porque não tens
pudor //
Faço tudo pra evitar o mal, / Sou pelo mal perseguido / Só
me faltava era esta: / Fui trair meu grande amigo / Mas vou
limpar a mente, / Sei que errei, errei inocente.
Datação
: 1968
Tema
: relações amorosas
Disco
: Paulinho da Viola
Gravadora
: Odeon
Intérprete
: Paulinho da Viola
Amo-te
demais, ó,
Pátria minha...
Cartola
Amo-te demais, ó, Pátria minha / Tua bandeira, ó, meus
irmãos, / O lábaro estrelado, o verde esperança, / O
amarelo ouro, o azul do céu, / E o branco da paz //
Falo com orgulho dos heróis do passado / Que tombaram
por nós / Para que houvesse paz / Mas, se necessário,
pegarei em armas / Para defender-te / Jamais fugirei à luta
/ Morrerei com orgulho pela Pátria Mãe
Datação
: década de 1940
Tema
: nacionalismo
Livro
: Cartola, os tempos idos,
p. 122
Gravadora
: Gryphus
Observação
: datação atribuída
a partir de Barboza da Silva e
Oliveira Filho, 2003, p. 122
Anda, vem
Ismael Silva,
Nilton
Bastos e
Francisco
Alves
Anda, vem cá / Se tu soubesses os carinhos de amor /
Que eu tenho pra te dar / Se você provar cairá vencida / E
minha será pra toda vida //
Eu gosto muito de você / Tenho mesmo um certo quê /
Não sei como explicar / Já modifiquei a minha vida, / Com
você, minha querida, / Sou capaz de me casar. //
És para mim uma uvinha / Uma linda moreninha / Que eu
quero guardar / Eu sei que você está querendo / Anda,
assim não me arrependo / Acho bom aproveitar.
Datação
: 1931
Tema
: relações amorosas
Disco
78 rpm, lado B (10824)
Gravadora
: Odeon
Intérpretes
: Francisco Alves e
Mário Reis
456
Ando cismado
Ismael Silva
e Noel Rosa
Mulher, eu ando cismado / Que me enganei com você / Se
algum dia não ficar mais a seu lado / Não precisa
perguntar por quê. //
A mentira é fatal / Sei-o que não é por mal / Que a mulher
nos faz descrer / Mas se é realidade / Sua grande
falsidade, / Eu hei de ver você sofrer //
Eu, cismado, espero agora / Ver você a qualquer hora /
Dando a outro o coração / Quando chegar esse dia / Deixo
sua companhia / Sem explicar por que razão.
Datação
: 1932
Tema
: relações amorosas
Disco
78 rpm, lado A (10396)
Gravadora
: Odeon
Intérprete
: Francisco Alves
Antes não te
conhecesse
Ismael Silva
e Francisco
Alves
Antes não te conhecesse / Talvez eu nunca sofresse / Por
esse mundo sem fim / Já não tenho alegria / Em que
penso noite e dia / E tu não pensas em mim //
O meu coração padece / Com a tua vaidade / Mas só culpa
a natureza / Quem tem em mim o interesse / e sem ter
necessidade / foi te dar tanta beleza //
Até já ando descrente / de meu viver compungido / e cheio
de amargura / Eu vivia bem contente / e hoje sou
perseguido / por tão grande desventura.
Datação
: 1932
Tema
: relações amorosas
Livro
: Minhas serestas, vol. 2,
Lóris R. Pereira
Editora
: Cultural CEJUP, 1990
Intérpretes
: Francisco Alves e
Mário Reis
Antonico Ismael Silva
Ô Antonico / Vou lhe pedir um favor / Que só depende da
sua boa vontade / É necessário uma viração pro Nestor /
Que está vivendo em grande dificuldade / Ele está mesmo
dançando na corda bamba / Ele é aquele que na escola de
samba / Toca cuíca, toca surdo e tamborim / Faça por ele
como se fosse por mim //
Até muamba já fizeram pro rapaz / Porque no samba
ninguém faz o que ele faz / Mas hei de vê-lo muito bem, se
Deus quiser / E agradeço pelo que você fizer.
Datação
: 1950
Tema
: metalinguagem
Disco
78 rpm, lado A (12993)
Gravadora
: Odeon
Intérprete
: Alcides Ferardi
Ao amanhecer Cartola
Ao amanhecer, ao anoitecer / Cantam em bando aves
fazendo verão / Ouvem-se acordes de um violão / E são
eles, verdes periquitos, / Têm um peito forte tal qual um
granito / E são lindas as suas canções //
Quando a tarde vai morrendo (ai, meu Deus) / O
crepúsculo vem descendo / Reúne-se o bando na rua / E,
cheios de harmonia, / Entoam uma melodia que faz dançar
a própria lua
Datação
: 1938-1940
Tema
: metalinguagem
Disco
: Mangueira - sambas de
terreiro e outros sambas
Gravadora
: Arquivo Geral da
Cidade do Rio de Janeiro
Intérprete
: Cartola
Observação
: datação atribuída
a partir de Barboza da Silva e
Oliveira Filho, 2003, p. 127
Ao romper da
aurora
Ismael Silva,
Lamartine
Babo e
Francisco
Alves
Aurora vem raiando anunciando o nosso amor, ô, ô /
Chega o dia, desaparece a tristeza, / fica a alegria pela
própria natureza, ô. //
Aurora vem raiando anunciando o nosso amor, ô, ô /
Desperta a cidade, o sol no céu flutua / Ele é a mocidade,
a saudade é a lua, ô //
Aurora vem raiando anunciando o nosso amor, ô, ô / A
felicidade promete, mas não vem / Só vem a saudade,
saudade é querer bem, ô
Datação
: 1932
Tema
: reflexões existenciais
Disco
78 rpm, lado A (10881)
Gravadora
: Odeon
Intérprete
: Mário Reis
Arma
perigosa
Paulo da
Portela e
Paquito
O desprezo, arma perigosa / Para quem sabe sentir / Faz
sofrer, faz chorar, faz sorrir / Fere sem sangrar, mata sem
sentir //
Eu não durmo sossegada / Parece que estou sendo
castigada / Confesso que já fiz alguém sofrer, / Sem
merecer, mereço perdão / Eu errei sem saber (podes crer)
Datação
: 1945
Tema
: reflexões existenciais
Disco
78 rpm, lado A (15423)
Gravadora
: Odeon
Intérprete
: Linda Rodrigues
Arrependido
Ismael Silva,
Nilton
Bastos e
Francisco
Alves
Eu fiz tudo / Pra esquecer a quem amei / Hoje estou
arrependido / Sem querer eu já chorei / Eu já chorei / sem
querer. //
Chorei por ter me lembrado / De tudo quanto eu fazia / Era
tanta ingratidão, / E você não merecia / Muito eu te fiz
chorar / Não mereço o teu perdão / Tu deves me castigar /
Magoei seu coração. //
Em viver junto de ti / Ainda tenho esperança / O teu amor,
eu já vi / Não me sai mais da lembrança / Quem diz fazer o
que quer / Eu digo não ser verdade / Enquanto existir
mulher / Há de existir saudade
Datação
: 1931
Tema
: relações amorosas
Disco
78 rpm, lado A (10780)
Gravadora
: Odeon
Intérprete
: Francisco Alves e
Mário Reis
457
As mulheres
são as rosas
Paulo da
Portela
As mulheres são as rosas / E nós somos jardineiros / Que
tratamos e zelamos com ciúme / Quando estão viçosas e
cheirosas / Ficamos narcotizados / Em sentir o seu
perfume. / Uma vez emurchecidas / Tombam para toda a
vida / No seu leito de agonia que é o chão / Enquanto o
jardineiro ciumento / Ciúme de fingimento / Dando a outra
o coração / Mas riso nem sempre é alegria / Chorar nem
sempre é sentimento / No mundo tem criaturas / Quando
faz as suas juras / Chora de fingimento
Datação
: 1929
Tema
: reflexões existenciais
Livro
: Paulo da Portela, traço
de união entre duas culturas, p.
154
Editora
: Funarte
As rosas não
falam
Cartola
Bate outra vez / com esperanças o meu coração / Pois já
vai terminando o verão, enfim / Volto ao jardim / Com a
certeza que devo chorar / Pois bem sei que não queres
voltar / Para mim / Queixo-me às rosas / Que bobagem, as
rosas não falam / Simplesmente as rosas exalam / O
perfume que roubam de ti, ai... //
Devias vir para ver os meus olhos tristonhos / E quem
sabe sonhavas meus sonhos por fim.
Datação
: 1976
Tema
: relações amorosas
Partitura
Editora
Musical RCA Ltda.
Assim, sim
Ismael Silva,
Noel Rosa e
Francisco
Alves
Assim, sim / Mas assim também, não / Já não gostas mais
de mim / Mas eu não te dei razão //
Infelizmente / Este mundo é sempre assim / Quem ri muito
no começo / Chora quando chega o fim / Em mar de rosas
/ Começou nossa amizade / E depois tu me entregaste / A
tristeza e a saudade //
E muita gente / Que a tristeza desconhece / Chora às
vezes de alegria / Quando ri de quem padece / Nas tuas
juras / Eu sorrindo acreditei / Hoje eu choro já descrente /
Vendo quanto me enganei
Datação
: 1932
Tema
: relações amorosas
Disco
78 rpm, lado A (33581)
Gravadora
: Odeon
Intérprete
: Carmen Miranda
Autonomia Cartola
É impossível nesta primavera, eu sei / Impossível, pois
longe estarei / Mas pensando em nosso amor, amor
sincero... / Ai se eu tivesse autonomia / Se eu pudesse
gritaria / Não vou, quero //
Escravizaram assim um pobre coração / É necessária nova
abolição / Pra trazer de volta a minha liberdade / Se eu
pudesse gritaria, amor, / Se eu pudesse brigaria, amor, /
Não vou, não quero.
Datação
: 1977
Tema
: relações amorosas
Disco
: Verde que te quero rosa
Gravadora
: RCA Victor
Intérprete
: Cartola
Avante,
mocidade, é
hora...
Paulo da
Portela
Avante, mocidade é hora / De mostrar o nosso progresso /
Vamos deixar correr / A fama suburbana / Por todo este
universo, universo / O samba bem cantado é lindo /
Voltamos na linha de frente / Para presidente o mano
Claudionor
Datação
: 1922-1949
Tema
: metalinguagem
Livro
: Paulo da Portela, traço
de união entre duas culturas, p.
152
Editora
: Funarte
Observação
: datação
aproximada estabelecida a
partir da biografia do
compositor
Aventuras
amorosas
Ismael Silva
Nem mesmo em casa eu consigo me livrar / das aventuras
amorosas / me roubando a paz. //
O telefone até parece um azar / e assim mesmo há quem
diga que tudo isto é cartaz / É no teatro, no cinema, em
qualquer festa / até mesmo na igreja / não é exagero. //
Por mais que eu queira passar despercebido / sempre sou
surpreendido por um olhar interesseiro. / Das aventuras a
pior é a Otília / Diz que comigo iria até o infinito. / Mesmo
enganando-se o chefe de família / Mas como é chato a
gente ser bonito.
Datação
: 1922-1978
Tema
: relações amorosas
Livro
: São Ismael do Estácio: o
sambista que foi rei, p. 77
Editora
: Funarte
Observação
: datação
aproximada estabelecida a
partir da biografia do
compositor
Basta de
clamares
inocência
Cartola
Basta de clamares inocência / Eu sei todo o mal que a mim
você fez / Você desconhece consciência / Só deseja o mal
a quem o bem te fez / Basta, não ajoelhes, vá embora / Se
estás arrependida, vê se chora //
Quando você partiu, me disse: "Chora!", não chorei /
Caprichosamente fui esquecendo que te amei / Hoje me
encontras tão alegre e diferente / Jesus não castiga o filho
que está inocente
Datação
: 1979
Tema
: relações amorosas
Disco
: Elis, Essa mulher
Gravadora
: WEA
Intérprete
: Elis Regina
458
Beijos, ainda
quero...
Cartola
Beijos, ainda quero / Mais beijos dos lábios teus / Beijos,
para satisfazer os meus / Beijos, nem que sejam de
falsidade / Beijos, melhor que fossem de verdade
Datação
: 1929
Tema
: relações amorosas
Livro
: Cartola: Os tempos idos,
p. 85-6
Editora
: Gryphus
Bem feito Cartola
Ontem me contaram / que ela vive cantando / lamentando
o tempo perdido que comigo passou, / vim saber de tanta
coisa / confesso chorei magoado / eu fui culpado / de ter
terminado tão cedo nosso grande amor / hoje procurei-a /
mas foi tudo em vão / com um leve sorriso nos lábios
respondeu-me não / foi bem feito eu bem sei / que mereço
esse castigo / ainda é pouco o que tenho por ela sofrido //
Eu fiz mil promessas de joelho jurei / que jamais brigaria /
a cada palavra / ela impassiva e fria notei / não me dava a
menor atenção / e o meu coração batendo acelerado / de
segundo a segundo / caindo no abismo / e ela com um
leve sorriso nos lábios / talvez criticasse todo o meu
cinismo
Datação
: 1979
Tema
: relações amorosas
Disco
: Cartola 70 anos
Gravadora
: RCA Victor
Intérprete
: Cartola
Bendita sejas
tu ó,
liberdade...
Paulo da
Portela
Bendita sejas tu, oh! Liberdade! / Rainha absoluta do
sucesso, / Sem ti não haverá felicidade, / Sem ti não
sorrirá todo o universo!
Datação
: 1922-1949
Tema
: reflexões existenciais
Livro
: Paulo da Portela, traço
de união entre duas culturas, p.
151
Editora
: Funarte
Observação
: datação
aproximada estabelecida a
partir da biografia do
compositor
Bico da
cegonha (No)
Ismael Silva
Não dei trabalho a papai / Não dei trabalho a mamãe / Me
disse o professor Noronha / Eu vim no bico da cegonha, /
Eu vim no bico da cegonha. //
Ai! quando eu era criancinha / Ai que carinho / Todos os
dias me lavavam o corpinho / Por isso entrei no bloco do
camisolão / Com uma touca, uma chupeta / E a mamadeira
na mão.
Datação
: 1950
Tema
: cotidiano
Partitura
Editora
: Irmãos Vitale
Boa viagem
[Dá o fora]
Ismael Silva
e Noel Rosa
Se não mandei você embora, / Enfim, foi porque / Me
faltou a coragem... / Mas, se você vai dar o fora, / Então
passe bem: / Boa viagem! //
O amor é como a chama; / Tem princípio, meio e fim; / Se
você já não me ama, / Para que fingir assim... / Não
mandei você embora / Porque sou benevolente / Para que
você agora / Quer sair ocultamente?//
Seu desejo não me assombra, / Ofereço meu auxílio... /
Passe bem, vá pela sombra, / Acabou-se o nosso idílio... /
Seu amor e o seu nome, / Eu também vou esquecer: /
Desta vez, juntou-se a fome, / Com a vontade de comer!
Datação
: 1934
Tema
: relações amorosas
Disco
: Ismael Silva, se você
jurar
Gravadora
: RCA Victor
Intérprete
: Ismael Silva
Observação
: datação atribuída
a partir de Soares, 1985, p. 114
Brasil, terra
adorada
Cartola,
Arthur Faria
e Aluísio
Dias
Brasil, terra adorada / Jardim de todo estrangeiro / És a
estrela que mais brilha / No espaço / – Brasileiro, braço é
braço! //
Ó Brasil, és tão amado / Teu povo é honrado / Invejado no
universo / Nesta bandeira afamada / Não falta mais nada /
Pede estudo, / Ordem e Progresso //
Houve já um curioso / Que perguntou nervoso / – Brasil,
onde vais parar? / E respondo sempre a todos / Com o
mesmo orgulho Irei para um lindo futuro.
Datação
: 1935
Tema
: Brasil
Disco
: Cartola entre amigos
Gravadora
: Funarte
Intérprete
: coro
Observação
: datação atribuída
a partir de Barboza da Silva e
Oliveira Filho, 2003, p. 99-100
Brasil, terra
da liberdade
Paulo da
Portela
Brasil, terra da liberdade / Brasil, não teme a falsidade, /
Nós estamos em guerra / Em defesa da nossa terra / Se a
pátria nos chama / Eu vou, eu vou / Serei mais um
defensor. //
Ó meu Brasil / Ó meu país amado / Meu verde amarelo / À
bandeira consagrado / Ó meu Brasil / Meu Brasil pioneiro /
Te darei a minha vida / Por eu ser um brasileiro.
Datação
: 1922-1949
Tema
: Brasil
Livro
: Paulo da Portela, traço
de união entre duas culturas, p.
149
Editora
: Funarte
Observação
: datação
aproximada estabelecida a
partir da biografia do
compositor
459
Cabelo à la
garçonne
Paulo da
Portela
Meninas, também senhoras / Queiram nos dar o vosso
nome / Eu aconselho a não cortar / Seu cabelo à la
garçonne / Peço perdão pelo que digo / Embora não saiba
o que vi / Mas o cabelo assim cortado / Só fica bem
mesmo é à demie
Datação
: 1920-1922
Tema
: cotidiano
Livro
: Paulo da Portela, traço
de união entre duas culturas, p.
154
Editora: Funarte
Observação
: datação atribuída
a partir de Barboza da Silva e
Santos, 1989, p. 154
Cadeira vazia
[Eu quisera
esquecer o
passado...]
Cartola
Eu quisera esquecer o passado / Eu quisera mas sou
obrigado / A lembrar o grande Noel / Ainda resta a cadeira
vazia / Da escola de filosofia / No bairro de Vila Isabel
Datação
: 1937
Tema
: metalinguagem
Livro
: Cartola, os tempos idos,
p. 325
Editora
: Gryphus
Camarim
Cartola e
Hermínio
Bello de
Carvalho
No camarim as rosas vão murchando / E o contrarregra dá
o último sinal / As luzes da plateia vão se amortecendo / E
a orquestra ataca o acorde inicial / No camarim nem
sempre há euforia / Artista de mim mesmo nem posso
fracassar / Releio os bilhetes pregados no espelho / Me
pedem que jamais eu deixe de cantar //
Caminho lentamente e entro em contraluz / E a garganta
acende um verso sedutor / O corpo se agita e chove pelos
olhos / E um aplauso escorre em cada refletor / Pisando
esta ribalta, cantando pra vocês / De nada sinto falta, sou
eu mais uma vez / As rosas vão murchar, mas outras
nascerão / Cigarras sempre cantam, seja ou não verão
Datação
: 1928-1980
Tema
: metalinguagem
Disco
: Traço de união
Gravadora
: RCA Victor
Intérprete
: Beth Carvalho
Observação
: datação
aproximada estabelecida a
partir da biografia do
compositor
Canção da
saudade
Cartola e
Cacá
Diegues
Tudo de alegrias e de tristezas conheci, / Coisas do amor e
do sofrer, eu já senti, / Nada me transforma a alegria de
viver, / Ver a noite vir e sorrir, ao sol nascer, / Vivo
esperando o novo dia, / Que irá trazer a luz, que sempre
ficará!
Datação
: 1965
Tema
: reflexões existenciais
Disco
: Novas vozes do Rio
Gravadora
: Musidisc
Intérprete
: Antônio Chaves
Canta, meu
bem...
Paulo da
Portela
Canta meu bem / Requebra macio de forma / Que mexas
com todos nós / Queremos ouvir / A sorrir, a candura da
tua voz //
Sim, cantarei / Espere um pouquinho / Tenha paciência /
Deixe que o cavaquinho / Faça a introdução / Com toda
cadência //
Ó que loucura, quanta formosura / Que tentação / Veja que
isso não desasossegue o meu coração //
Vamos avante cantando e sambando, / Este é o nosso
ideal, / Por entre perfumes e flores / Loucuras de amores
de carnaval.
Datação
: 1935
Tema
: metalinguagem
Livro
: Paulo da Portela, traço
de união entre duas culturas, p.
154-5
Editora
: Funarte
Cantar de um
rouxinol
Paulo da
Portela
Ao romper do sol / Ouvi cantar um rouxinol / Cantando um
hino em louvor / O mano Paulo dando viva ao Claudionor.
Datação
: 1940
Tema
: metalinguagem
Livro
: Paulo da Portela, traço
de união entre duas culturas, p.
152
Editora
: Funarte
Cantar para
não chorar
Paulo da
Portela /
Heitor dos
Prazeres
Rir para iludir / Cantar para não chorar / Beber para
esquecer / O nome daquela ingrata que me fez sofrer //
Vivo cantando / Para esquecer a minha dor / Conservo
ainda / No meu peito um grande amor / E o meu pranto
parece não ter mais fim / No entanto eu padeço e não tens
pena de mim //
Se algum dia tiver de mim compaixão / Que alegria vai ser
no meu coração / A tua volta será meu sonho dourado / Eu
viverei e esquecerei meu passado.
Datação
: 1932
Tema
: relações amorosas
Disco
78 rpm, lado B (34278)
Gravadora
: Odeon
Intérprete
: Mário Reis
Cara feia é
fome
Ismael Silva
Não adianta se aborrecer / porque você não vai me bater /
Você cresça e apareça / eu peço que não se esqueça /
Você é quem se consome / para mim cara feia é fome //
Eu já notei que o seu prazer / é só me provocar / Eu pago
para não brigar / mas se na briga me meter / eu quero
decidir e / pago para não sair //
Você não deve me ofender / Eu não lhe dei razão / nem
ando atrás de discussão / Se eu procurasse me esconder /
de cara anormal / não assistia o carnaval.
Datação
: 1934
Tema
: cotidiano
Disco
78 rpm, lado A (11194)
Gravadora
: Odeon
Intérprete
: Silvio Caldas
460
Carinho eu
tenho
Ismael Silva
Carinho eu tenho até demais / e a nota é como eu te digo /
O meu desejo é uma ordem meu bem / quando Deus quer
não há castigo //
Carinho sem a nota / não adianta mulher / diz que amor é
lorota / é bom para quem quiser / Eu não aceito / sou
espertinho / Eu acho direito / amor, nota e carinho //
Tu nem deve teimar / pois não vai me / convencer / que eu
quero a vida gozar / e não me aborrecer / sempre me dei
bem / vivendo assim / Tu não me convence / que isso é
contra mim.
Datação
: 1931
Tema
: relações amorosas
Disco
78 rpm, lado A (10949)
Gravadora
: Odeon
Intérprete
: Ismael Silva
Cassino da
Urca
Cartola
Rico panorama... / Tem o Rio de Janeiro... / As praias de
Copacabana / Centro de todos estrangeiros / A linda
Avenida Central / Corcovado e Pão de Açúcar / E o
cassino que falta / É o Cassino da Urca
Datação
: 1928-1980
Tema
: Brasil
Livro
: Cartola: Os tempos idos,
p. 349
Editora
: Gryphus
Observação
: datação
aproximada estabelecida a
partir da biografia do
compositor
Catedral do
inferno
Cartola e
Hermínio
Bello de
Carvalho
Deus me inventou pra desespero do diabo / Eu fiz do
samba Catedral do Inferno / Louca, muito louca,
endoidecida / Vou fazendo desta vida / Tudo aquilo que
bem quero
Datação
: 1974
Tema
: reflexões existenciais
Disco
: Te pego pela palavra
Gravadora
: Odeon
Intérprete
: Marlene
Cavaleiro da
esperança
Paulo da
Portela
Prestes, Cavaleiro da Esperança / És o homem que pelo
povo lutou / Seu nome foi consagrado dentro das urnas /
Oh! Carlos Prestes / Foi merecida a cadeira de Senador //
És o cavaleiro que sonhamos / De ti muito esperamos /
Com todo amor febril / Para amenizar nossas dores / E
levar bem alto as cores / Da bandeira do Brasil
Datação
: 1946
Tema
: Brasil
Disco
: Monarco, inéditas
Gravadora
: CCSP
Intérprete
: Monarco
Chega de
demanda
Cartola
Chega de demanda, chega / Com este time temos que
ganhar / Somos da Estação Primeira / Salve o morro de
Mangueira
Datação
: 1928
Tema
: metalinguagem
Disco
: História das escolas de
samba, Mangueira
Gravadora
: Marcus Pereira
Intérprete
: Cartola
Observação
: datação atribuída
a partir de Barboza da Silva e
Oliveira Filho, 2003, p. 55
Chorar de
fingimento
Paulo da
Portela
Não sei qual a razão que tu / Lastimas a sorte meu bem /
Chorar de fingimento é triste / São bem poucos os que
resistem / iludir não convém
Datação
: 1926
Tema
: relações amorosas
Monografia
: [Monografia sobre
Paulo da Portela], Candeia e
Araújo, 1980
Choro sim Ismael Silva
Choro sim, com razão, / Não tem fim minha aflição... / Me
acompanha noite e dia / Uma grande nostalgia! //
Minha dor, na verdade, é moral, / Porém me faz chorar, /
Por ser tão pertinaz!... / Até parece que é imortal, / Pois
este desprazer não me deixa mais em paz!
A razão eu não conto a ninguém / Até faço questão de
sempre ocultar / Porque eu sei que existe alguém / Que da
minha aflição muito vai se gloriar
Datação
: 1934
Tema
: reflexões existenciais
Disco
78 rpm B (33946)
Gravadora
: Odeon
Intérprete
: Francisco Alves
Cidade
morena
Cartola
És "Cidade Morena" / Muito embora pequena / De valor
tradicional / Do oeste és a fronteira / Modesta e bem
brasileira / Graciosa e sem rival / Berço nobre de um
presidente / A quem felizmente / Dá-se o seu valor /
Campo és o progresso / Pra quem de coração peço / Um
futuro promissor.
Datação
: 1961
Tema
: Brasil
Livro
: Cartola: os tempos idos,
p. 328
Gravadora
: Gryphus
461
Cidade mulher
Paulo da
Portela
Cidade, quem te fala é um sambista, / Anteprojeto de
artista, / Teu grande admirador / Me confesso boquiaberto,
/ De manhã, quando desperto / Com tamanho esplendor /
Quando nosso infinito / Se apresenta tão bonito / Trajando
azul anil / Baila o sol lá nas alturas / Dando maior
formosura / À mais linda dama do Brasil //
Como é linda suas matas, / Seus riachos e cascatas, /
Deslumbrar-me é natural / Diante de tal beleza / Que lhe
deu a natureza / Se há outra, não vi igual / Quando a tarde
é cor de rosa / Ainda é mais formosa / Tem cenários
sedutores / Te admiram os estrangeiros / Se orgulham os
brasileiros / Teus poetas sonhadores
Datação
: 1932
Tema
: Brasil
Disco
: História das escolas de
samba, Portela
Gravadora
: Marcus Pereira
Intérprete
: Velha Guarda da
Portela
Observação
: datação atribuída
a partir de Candeia e Araújo,
1980, p. 5
Ciência e arte
Cartola e
Carlos
Cachaça
Tu és meu Brasil em toda parte / Quer na ciência ou na
arte / Portentoso e altaneiro / Os homens que escreveram
tua história / Conquistaram tuas glórias, / Epopéias
triunfais / Quero, neste pobre enredo, / Revivê-los
glorificando / Os nomes seus / Levá-los ao panteão dos
grandes imortais / Pois merecem muito mais //
Não querendo levá-los ao cume da altura / Cientistas tu
tens e tens cultura / E, nestes rudes poemas destes pobres
vates, / Há sábios como Pedro Américo e Cesar Lattes
Datação
: 1947
Tema
: Brasil
Disco
: Cartola 70 anos
Gravadora
: RCA Victor
Intérprete
: Cartola
Observação
: datação atribuída
a partir de Barboza da Silva e
Oliveira Filho, 2003, p. 367
Ciúme doentio
Cartola e
Nelson
Sargento
Ah meu Deus se eu soubesse quem ela era / Juro que
jamais faria esta união / Bonita mulher mas de gênio é uma
fera / Depois da briga eu fiquei nesta condição / Os ternos
melhores que eu tinha estão rasgados / Os nossos móveis
ela fez uma fogueira / Meu rosto até hoje está todo
arranhado / Envergonhado jamais voltei em Mangueira //
Todo mundo dizia que Ana Maria era muito legal / Eu me
apaixonei e com ela casei este foi o meu mal / Brigas
permanente um ciúme doente nunca vi coisa assim / Se eu
voltar em Mangueira sei que a turma inteira vai zombar de
mim
Datação
: 1955-1980
Tema
: relações amorosas
Disco
: Historia das escolas de
samba, Mangueira
Gravadora
: Rob Digital
Intérprete
: Nelson Sargento
Observação
: datação atribuída
a partir de informações
biográficas dos dois
compositores
Clarão da lua
Paulo da
Portela
Do teu sino / A luz vibrando / O sol na esfera flutua /
Meigas flores / Parecem bailando / Quando a tardinha /
Surge o pálido / Clarão da lua / Outro céu de anil cintila /
Na superfície / Tranquila do mar / Ardendo em fulgor / E as
ondas não vozeam / Vem morrer na branca areia /
Orlando-a de espuma em flor //
O céu fez da noite um manto / A terra do céu a riqueza / O
mar encanto laraialaiá / Que dá-lhe a natureza.
Datação
: 1935
Tema
: natureza
Monografia
: [Monografia sobre
Paulo da Portela], Candeia e
Araújo, 1980
Cocorocó
Paulo da
Portela
Cocorocó, o galo já cantou / Levanta, nego, tá na hora de
tu ir pro batedor / Ô, nega, me deixa dormir mais um
bocado / Não pode ser, o senhorio está zangado com você
/ Ainda não pagaste a casa este mês / Levanta, nego, que
só faltam dez pras seis //
Ô, nega, me deixa dormir, eu hoje estou muito cansado / O
relógio da parede talvez esteja enganado / Ô, nega, me
deixa dormir, eu hoje estou muito doente / Deixa de fita,
malandro, você não quer ir pro batente.
Datação
: 1934
Tema
: cotidiano
Disco
: Homenagem a Paulo da
Portela
Gravadoras
: Nikita Music /
Office Sambinha (Japão)
Intérprete
: Velha Guarda da
Portela
Coisa louca Ismael Silva
Aquele beijo / Foi uma coisa tão louca / Que te confesso
com toda sinceridade / Seu eu pudesse jamais / Lavaria a
boca / Pra não perder aquela sensibilidade //
Se a gente andasse / Se beijando noite e dia / Nem assim
eu poderia / Conseguir viver em paz / Porque teu beijo / Ou
molhado ou enxuto / Uma dúzia por minuto / Ainda não me
satisfaz / Não é demais.
Datação
: 1978
Tema
: relações amorosas
Disco
: Ismael Silva: peçam bis
Gravadora
: Funarte
Intérprete
: Dalva Torres
Coleção de
passarinhos
Paulo da
Portela
Quiseram me comprar / eu não vendi / uma linda coleção
de passarinhos / Bernardo é gaturamo / Aurélio é rouxinol /
Lino é o canário / Mano Rubens, o curió
Quatro malandros chamados Bambaquerê / eles não
comem, não bebem / E não deixam ninguém comer /
amanhã que vou-me embora / que me dão para levar / levo
penas e saudades / E no caminho vou chorar
Datação
: 1922-1949
Tema
: metalinguagem
Disco
: Clementina de Jesus
Gravadora
: Odeon
Intérprete
: Clementina de Jesus
Observação
: datação
aproximada estabelecida a
partir da biografia do
compositor
462
Colombina Cartola
Ela ri, ela pula e canta / E assim a dor espanta / Se
fingindo Colombina / Me comove ver o pranto cair /
Daquela pobre menina / Que teve a má sina de se deixar
seduzir //
Se eu pudesse dividia a tua dor / A metade eu resistia com
o maior sabor / Se eu pudesse não pensava mais / Neste
alguém / Quem te fez sofrer alma não tem //
Há no mundo quem te adore tanto, tanto / Eu por ti, e tu
por outro derramamos pranto / Somos dois entes a subir o
mesmo calvário / Mas com o pensamento contrário.
Datação
: 1928-1980
Tema
: relações amorosas
Livro
: Cartola: Os tempos idos,
p. 339
Editora
: Gryphus
Observação
: datação
aproximada estabelecida a
partir da biografia do
compositor
Com a vida
que pediste a
Deus
Ismael Silva
Eu queria te fazer feliz!... / Mas me surpreendi / Com os
defeitos teus / Se é conforme todo mundo diz / Estás com
a vida / Que pediste a Deus... //
Ninguém te dá valor / Ninguém de ti tem dó / Não queres o
amor / De uma pessoa só / Se a regeneração / Vier te
interessar / Com a minha proteção / Podes contar //
Entre os defeitos teus / Este é o principal! / Vou dar-te um
adeus / Sem ser meu ideal / Pra não me colocar / Em má
situação / Prefiro declinar / Da pretensão.
Datação
: 1939
Tema
: relações amorosas
Disco
78 rpm, lado B (11803)
Gravadora
: Odeon
Intérprete
: J. B. de Carvalho
Comilão
[Boa boca]
Ismael Silva
Você come tanto / Você come tanto / Que tudo que ganha
é pra esse fim / É mais negócio sustentar um burro a pão
de ló / Do que você a capim //
Qualquer comida você acha boa / Não se preocupa com
qualidade / E, mesmo em casa de qualquer pessoa, /
Você faz questão é de quantidade.
Datação
: 1950
Tema
: codiano
Disco
78 rpm, lado B (0000032)
Gravadora
: Capitol
Intérprete
: Ismael Silva
Como é que
eu posso
Cartola
Como é que eu posso / Cozinhar sem banha / Sem cebola
e alho / Sem vinagre e cheiro / Como é que eu posso / Ter
bom paladar / Sem você deixar / A grana pros temperos //
Pois fique sabendo / Que o feijão bichado / E o arroz
quebrado / Que alguém lhe vendeu / Já despejei todinho
no terreiro / Veja bem o dinheiro / Que você perdeu //
Ou você acaba com essa economia / Ou então acaba-se
nossa amizade / Já reclamo isso quase todo dia / Você me
responde com simplicidade //
É que a cebola, minha filha, está soberba / O alho e o
vinagre cada vez subindo mais / Peça emprestado cada
dia a uma vizinha / Ou continua fazendo sempre como
você faz
Datação
: 1938-1940
Tema
: cotidiano
Livro
: Cartola: Os tempos idos,
p. 273
Editora
: Gryphus
Observação
: datação atribuída
a partir de informações sobre o
início da carreira de Creuza
Francisca dos Santos, filha
adotiva do compositor, que fez
o samba para que ela cantasse
Como é que
eu posso
acreditar
Ismael Silva
Como é que eu posso acreditar / que tu não és / de mais
ninguém? / Eu mesmo é que ouvi falar, / entre outras
coisas / que tu beijas muito bem. / Te abandonei sem te
avisar / para evitar complicação / Foi bem melhor me
separar / sem barafunda e sem discussão.
Datação
: 1922-1978
Tema
: relações amorosas
Livro
: São Ismael do Estácio: o
sambista que foi rei, p. 77
Editora
: Funarte
Observação
: datação
aproximada estabelecida a
partir da biografia do
compositor
Comovido
Cartola e
Babaú
Comovido fiquei / Quando entrei / No hospital / Soube que
o meu amor / Passava muito mal / Chorei de dor / Não
resisti / Só em saber / Que meu filho vivia / Mas a mulher /
Talvez fosse morrer //
A minha primeira providência / Foi pedir clemência / Ao
criador / Que me salvasse a criança / E me desse
esperança / Na mulher que é o meu amor.
Datação
: 1928-1980
Tema
: relações amorosas
Livro
: Cartola, os tempos idos,
p. 334
Editora
: Gryphus
Observação
: datação
aproximada estabelecida a
partir da biografia do
compositor
Confissão de
amor
Paulo da
Portela
Chego quase a não saber / Por que tamanho prazer /
Quando meus olhos te veem / Ó que tentação //
Por favor, não diga assim / Julgo que zombas de mim /
Não venhas desassossegar o meu coração //
Deixe que te confesse, ó flor / Tenho medo, é confissão de
amor / Não é bem isso que eu te venho relatar / Ora meu
bem é que fico louco em te ver sambando //
Então vá logo se declarando / Ó, vamos dançar, ó, vamos
cantar.
Datação
: 1935
Tema
: relações amorosas
Livro
: Paulo da Portela, traço
de união entre duas culturas, p.
155
Editora
: Funarte
463
Conselho
Lincoln
Washington
Pereira de
Almeida e
Paulo da
Portela
Aceite um conselho de amigo / Não queiras ter tão triste
fim / Eu sei que a vida de quem ama é assim / Manda
embora essa tristeza / Esqueça alguém que não te quis /
Canta e serás feliz / Cantando muito facilmente irás
esquecer / Aquela que só por maldade te fez padecer /
Compare essa falsa amizade / Com a tempestade, não
perca a esperança / Que um dia com muita alegria terás a
bonança.
Datação
: 1922-1949
Tema
: relações amorosas
Livro
: Paulo da Portela, traço
de união entre duas culturas, p.
149
Editora
: Funarte
Observação
: datação
aproximada estabelecida a
partir da biografia do
compositor
Consideração
Cartola e
Heitor dos
Prazeres
Eu não gostei / Me faltaste a consideração / O que tu me
fizeste / Não tem classificação //
Tu não sabes amar / Para que tens um coração? / Ai, meu
Deus, o melhor entre nós dois / É a separação //
Eu sei que vou sentir muita saudade / Com todos os
defeitos teus / Ainda te tenho amizade / E, forçado, dou-te
este castigo, / Jamais farás a outro o que fizeste comigo
Datação
: 1928-1980
Tema
: relações amorosas
Disco
: Traço de união
Gravadora
: RCA Victor
Intérprete
: Beth Carvalho
Observação
: datação
aproximada estabelecida a
partir da biografia do
compositor
Contrastes Ismael Silva
Existe muita tristeza na rua da Alegria / Existe muita
desordem na rua da Harmonia / Analisando esta história /
Cada vez mais me embaraço / Quanto mais longe do circo
/ Mais eu encontro palhaço //
Cada vez mais me embaraço / Analisando essa história /
Existe muito fracasso / Dentro do largo da Glória /
Analisando essa história / Cada vez mais me embaraço /
Quanto mais longe do circo / Mais eu encontro palhaço.
Datação
: 1973
Tema
: reflexões existenciais
Disco
: Se você jurar
Gravadora
: RCA Victor
Intérprete
: Ismael Silva
Corações em
festa
Cartola
Como é belo ouvir cantar a passarada / Que vou saudar
com harmonia / A fresca alvorada, que melodia / Que
estranha sinfonia / Ao ambiente empresta / Este bando
irrequieto / De alegres periquitos / Deixam os corações em
festa //
Eles cantam a natureza / O riacho, a correnteza / Os
segredos da Floresta / Fazem festa / Alta ainda a
madrugada / Entre as folhas orvalhadas / Quantas vezes
eu ouvi / Pássaros verdes e amarelos / Da cor da nossa
bandeira / Que seduz o mundo inteiro / O orgulho dos
brasileiros.
Datação
: 1938-1940
Tema
: natureza
Livro
: Cartola, os tempos idos,
p. 327
Editora
: Gryphus
Observação
: datação
estabelecida a partir de
informações sobre as relações
entre Villa-Lobos e Cartola e
sobre as gravações para
Stokowski, em 1940 (ver
Barboza da Silva e Oliveira
Filho, 2003, p. 128, 327
Cordas de aço Cartola
Ai, essas cordas de aço / Este minúsculo braço / Do violão
que os dedos meus acariciam //
Ai, esse bojo perfeito / Que trago junto ao meu peito / Só
você, violão, compreende porque / Perdi toda a alegria //
E, no entanto, meu pinho, / Pode crer, eu adivinho, /
Aquela mulher até hoje está nos esperando / Solte o seu
som da madeira / Eu, você e a companheira / Na
madrugada iremos pra casa cantando.
Datação
: 1968
Tema
: metalinguagem
Disco
: Cartola
Gravadora
: Marcus Pereira
Intérprete
: Cartola
Observação
: datação atribuída
a partir de informações de
Barboza da Silva e Oliveira
Filho, 2003, p. 293
Corra e olhe o
céu
Cartola e
Dalmo
Castello
Linda / Te sinto mais bela / E fico na espera / Me sinto tão
só mas / O tempo que passa / Em dor maior, bem maior //
Linda / No que se apresenta / O triste se ausenta / Fez-se
a alegria / Corra e olhe o céu / Que o sol vem trazer / Bom
dia / Ah! Corra e olhe o céu / Que o sol vem trazer bom
dia...
Datação
: 1974
Tema
: relações amorosas
Disco
: Cartola
Gravadora
: Marcus Pereira
Intérprete
: Cartola
464
Deixa
Cartola e
Nelson
Sargento
Deixa / Eu mesmo quero resolver os meus dilemas / Deixa
/ Quero escrever embora esteja com as mãos trêmulas / É
assunto meu sei que ninguém dá solução / Tudo quanto
sofro vou dizer nesta canção //
Deixa / Quando ela ouvir os meus poemas vai chorar / A
consciência vai lhe castigar / Perdão não quero nem vou
perdoar / Deixa / Quando ela ouvir os meus poemas vai
chorar / A consciência vai lhe castigar / Perdão não quero
nem vou perdoar //
Deixa / Meu sofrimento um dia vai ter fim / Os meus
poemas vão falar por mim / De todo mal que o amor me
fez //
Deixa / A razão dizer quem tem razão / E o fantasma da
ingratidão / Se retira com desfaçatez
Datação
: 1955-1980
Tema
: relações amorosas
Disco
: Só Cartola
Gravadora
: Rob Digital
Intérprete
: Nelson Sargento
Observação
: datação atribuída
a partir de informações
biográficas dos dois
compositores
Dê-me graças,
senhora
Cartola
O sol, a lua, a terra, o mar, / É um mundo novo em teu
olhar / Estrelas vejo a cintilar / Que brisa amena ao te fitar /
És indelével como a flor / Qual foi o deus teu escultor? /
Ouvi a voz e a voz dizia / "Eu sou a mãe de Deus, Virgem
Maria" //
Dê-me graças, senhora, / Um sorriso a quem chora / Onde
há ódio / Eu vos peço que ponha amor / E assim / Eu serei
mais feliz que sou
Datação
: 1979
Tema
: religiosidade
Disco
: Cartola 70 anos
Gravadora
: RCA Victor
Intérprete
: Cartola
Desfigurado Cartola
Dizem que estou desfigurado, com razão / Estou cansado
de pedir / A Deus, aos céus enfim / Um amor, onde
encontrarei, Senhor? / Livrai-me desta nostalgia /
Confiante ainda espero um dia //
Meu coração é pobre e magoado / É infeliz como um
menor abandonado / Vive sempre nesta ilusão, /
Procurando outro coração.
Datação
: 1977
Tema
: relações amorosas
Disco
: Verde que te quero rosa
Gravadora
: RCA Victor
Intérprete
: Cartola
Observação
: datação atribuída
a partir de Barboza da Silva e
Oliveira Filho, 2003, p. 380
Desperta
querida
Cartola
Desperta querida / E vem ouvir meus ais / Procure ouvir
agora / Ou não ouvirás jamais / Vem ouvir a voz / Deste
teu trovador / Desperta querida / Pelo nosso amor //
E se despertares / Vais trazer conforto / A um pobre peito /
Triste semimorto / As frases saídas / com tanto calor / No
espaço perdidas / Não deixes querida / Pelo nosso amor
Datação
: 1928-1980
Tema
: relações amorosas
Livro
: Cartola, os tempos idos,
p. 324
Editora
: Gryphus
Intérprete
: Cartola
Observação
: datação
aproximada estabelecida a
partir da biografia do
compositor
Desta vez eu
vou
Cartola
Perdoai, amor, / Mas desta vez eu vou / Vou te levar de
volta / À casa dos teus pais //
Eu não posso mais sofrer / És um caso perdido / Tu não
pensas como eu penso / Não desejas um bom marido //
Então perdoai, amor, / Mas desta vez eu vou / Vou te dizer
que nunca mais / Hei de chorar por ti / Nada perdes e nada
perdi //
Tinhas pela frente Um grande futuro / E eu dizia, crente, o
nosso amor é puro / Mas a realidade chegou afinal / E o
nosso amor termina de um modo tão banal
Datação
: 1977
Tema
: relações amorosas
Disco
: Verde que te quero rosa
Gravadora
: RCA Victor
Intérprete
: Cartola
Deus sabe o
que faz
Ismael Silva
Tu, sendo infeliz como se vê, / Bancas tanto chiquê / Que
a mim até já faz horror / Quanto mais se tivesses valor /
Não teve e nem terás / Deus sabe o que faz... //
O chiquê é feio pra quem pode ter / Quanto mais pra quem
não tem nada de seu / Ai de quem não sabe se reconhecer
/ Nunca vi um gênio igual ao teu //
Mas o mundo nos ensina a viver / Tudo isso com o tempo
há de ter fim / Porque mesmo tu tens que reconhecer /
Que nunca se deve ser assim
Datação
: 1933
Tema
: cotidiano
Disco
: Noel pela primeira vez
Gravadora
: Velas
Intérprete
: Jonjoca e Castro
Barbosa
465
Deus te ouça
Paulo da
Portela e
Cartola
– Me contrariei / – Por que razão? / – Só eu mesmo sei / –
Diga, então! / – Eu que sempre fui leal / A quem só me fez
o mal / Devo ser feliz / – Tu serás! / – O bem que eu fiz /
Ninguém faz / – Confiança em Deus, rapaz / Das mãos do
Mestre o bem terás / – Apesar de ser tão pobre / Tive um
coração tão nobre / Ai, meu Deus, tenho fé / Quem tem fé
não cansa / E nunca perde a esperança.
Datação
: 1945
Tema
: cotidiano
Livro
: Paulo da Portela, traço
de união entre duas culturas, p.
153
Editora
: Funarte
Devia ser
condenada
Cartola e
Nelson
Cavaquinho
Devias ser condenada ou crucificada, / Pois juraste falso, /
Beijaste a cruz do Senhor / E disseste que me tinha amor.
//
Quando eu ouço as badaladas / Do sino daquela igrejinha,
/ Julgo-me ainda feliz, / E que és toda minha. //
E quando vejo a torre bem alta / Daquela linda catedral, /
Fujo da tua amizade / Infernal. //
Eu vivo tão magoado, / Não sei viver mais ao teu lado, / Só
peço a Deus que me dê coragem, / Eu preciso esquecer /
A tua grande mentira que me faz sofrer.
Datação
: 1928-1980
Tema
: relações amorosas
Disco
: As flores em vida
Gravadora
: Eldorado
Intérprete
: Nelson Cavaquinho
Observação
: datação
aproximada estabelecida a
partir da biografia do
compositor
Disfarça e
chora
Cartola e
Dalmo
Castello
Chora / Disfarça e chora / Aproveita a voz do lamento /
Que já vem a aurora / A pessoa que tanto querias / Antes
mesmo de raiar o dia / Deixou a escola com outro / Oh!
Triste senhora //
Disfarça e chora / Todo o pranto tem hora / E eu vejo seu
pranto cair / No momento mais certo / Olhar, gostar, só de
longe / Não faz ninguém chegar perto / E o seu pranto /
Oh! Triste senhora / Vai molhar o deserto...
Datação
: 1974
Tema
: relações amorosas
Disco
: Cartola
Gravadora
: Marcus Pereira
Intérprete
: Cartola
Divina dama Cartola
Tudo acabado / E o baile encerrado / Atordoado fiquei / Eu
dancei com você / Divina dama / Com o coração /
Queimando em chama //
Fiquei louco / Pasmado por completo / Quando me vi tão
perto / De quem tenho amizade / Na febre da dança / Senti
tamanha emoção / Devorar-me o coração / Divina dama //
Quando eu vi / Que a festa estava encerrada / E não
restava mais nada / De felicidade / Vinguei-me nas cordas
/ Da lira de um trovador / Condenando o teu amor / Divina
dama
Datação
: 1933
Tema
: relações amorosas
Disco
78 rpm, lado B (10977)
Gravadora
: Odeon
Intérprete
: Francisco Alves
Dois bicudos
Cartola e
Aluísio Dias
Eu quando vi você todo frisado / Mudei meu passo e quis /
andar faceiro / Pois eu julguei seres bem empregado / Ou
que os parentes teus tinham / dinheiro / Mas entretanto eu
errei no golpe / Você no golpe também tinha errado / Você
julgando que eu desse moleza / Atrás de moleza também /
tenho andado //
Francamente em tua atitude / Cheio de pose empertigado /
Pareceste bem / Cheguei até a ficar convencido / Ia tirar
um bom partido / E ia ser alguém / Mas vejo agora não és
o fulano / Que há muito tempo / Eu venho procurando /
Nossas ideias são do mesmo pano / Dois bicudos não se
beijam / Até a vista, eu vou andando.
Datação
: década de 1930
Tema
: relações amorosas
Livro
: Cartola, os tempos idos,
p. 320
Editora
: Gryphus
Dona do lugar
Ismael Silva
e Francisco
Alves
Chegou, chegou a dona do lugar, chegou / pelo modo de
pisar / se vê que é iaiá de ioiô //
Lá vem ela, lá vem ela / Com o ioiô do seu lado /
Arrastando a chinela / Dizendo samba raiado //
Quando ela pega a sambar / Com o seu sapateado / Todos
ficam a gritar / Dando viva ao Cais / Dourado //
E essa bela Iaiá / Não acredita em muamba / Ela tem um
patuá / Que é todo o nosso samba //
Vou pedir, vou implorar / A meu Senhor do Bonfim / Pra
fazer essa iaiá / Se apaixonar por mim.
Datação
: 1933
Tema
: metalinguagem
Disco
: Noel pela primeira vez
Gravadora
: Velas
Intérprete
: Jonjoca e Castro
Barbosa
466
Dor que
ensina
Paulo da
Portela
Depois que magoaste bem meu coração / Partiste e agora
voltaste / A clamar inocência / Sinto-me refeito de paixão /
Não devo ouvir / Teu falso grito de clemência / melhor será
continuar / tua jornada / seguirei por outra estrada mais
feliz / Fingiste não compreender / Que por mim foste
amada / Esqueci tudo, tudo, tudo / E o quanto te quis //
Assim não sofrerei mais desventuras / Nem alimentarei
sonhos fictícios / Acreditei demais em vãs ternuras / Base
fundamental dos seus suplícios //
Bendigo a dor que vem para ensinar / Bendigo a
resignação que enobrece / Da tristeza passada farei o meu
altar / Da alegria presente farei minha prece.
Datação
: 1924
Tema
: relações amorosas
Monografia
: [Monografia sobre
Paulo da Portela], Candeia e
Araújo, 1980
É bom evitar
Ismael Silva
, Nilton
Bastos e
Francisco
Alves
Amor, quanto menos ou nenhum é melhor / Porque só se
vive a sofrer por amar / E quem pensar nisso hoje em dia,
não terá alegria / É bom evitar //
Desses carinhos não quero saber / Pra não andar só a me
maldizer / É preferível viver com a paz / Porque se não faz
bem, mal não faz //
Não tenho nota nem faço questão / Mas tenho enfim muita
satisfação / Com alegria eu estou muito bem / Muita gente
quer ter mas não tem
Datação
: 1931
Tema
: relações amorosas
Disco
78 rpm, lado A (10837)
Gravadora
: Odeon
Intérprete
: Francisco Alves
É matéria que
estudei
demais...
Cartola
É matéria que estudei demais / Por isso me formei ainda
rapaz / Por isso sou professor, sou diretor, sou instrutor. //
Acho muito engraçado / Você se encarnar / Logo em
quem, logo em mim / Ó que audácia / me chamar de
pretinho / Meu bem, é o fim / Se minha mina souber, / Meu
Deus, que horror / Vou dormir no porão / Continuo
cheirando a óleo queimado //
Vai dançar twist / Procurar sua gente / Deixa-me seguir
porque estou atrasado / Tenho uma mina / Que de jeito
nenhum por ti trocaria / Que dá mais petróleo / Muito mais
petróleo do que tem na Bahia.
Datação
: 1957
Tema
: Brasil
Livro
: Cartola, os tempos idos,
p. 276
Editora
: Gryphus
É preciso
saber
Paulo da
Portela
É preciso saber / Qual de nós tem razão / Desta maneira
assim / Não pode continuar / Tu te queixas de mim / Eu me
queixo de ti / Depois que será de nós dois / Quando a
justiça chegar.
Datação
: década de 1930
Tema
: relações amorosas
Livro
: Paulo da Portela, traço
de união entre duas culturas, p.
150
Editora
: Funarte
Enquanto
Deus
consentir
Cartola
Enquanto Deus consentir, vou vivendo / E, cada dia que
passa, / aprendendo / A amar ao próximo como eu amo os
meus / Pois se todos os que existem na Terra / São filhos
de Deus //
Enquanto Deus consentir, vou andando / Em cada esquina
que paro pregando / O pouco que aprendi no livro de
catecismo / E quantos seres humanos eu tiro do abismo //
Nunca uses a injúria como arma de defesa / Agradeça
sempre a Deus / ( ) / Ampara os inocentes / Se for cego,
dê-lhe luz / Sem contar com a recompensa / Do grande
mestre Jesus
Datação
: 1977
Tema
: religiosidade
Disco
: Cartola 70 anos
Gravadora
: RCA Victor
Intérprete
: Cartola
Ensaboa Cartola
Ensaboa mulata, ensaboa / Ensaboa / Tô ensaboando /
Ensaboa mulata, ensaboa / Ensaboa / Tô ensaboando //
Tô lavando a minha roupa / Lá em casa estão me
chamando Dondon / Ensaboa mulata, ensaboa / Ensaboa /
Tô ensaboando //
Os fio que é meu, que é meu / E que é dela / Rebenta a
goela de tanto chorá / O rio tá seco, o sol não vem não /
Vortemos pra casa / Chamando Dondon
Datação
: 1976
Tema
: Brasil
Disco
: Cartola
Gravadora
: Marcus Pereira
Intérprete
: Cartola e Creusa
Ensaio de rua
Barbosa da
Silva, José
Lima e
Cartola
Pedro afine os tambores / E diz a Dolores / Que vai ter
ensaio de rua / Vê se reúne a turma inteirinha / Vamos que
é noite de lua //
Tem tem tem pandeiro agogô / Vê vê vê se falta ganzá / O
rei vem vem / vem de luanda / vamos saravá saravá / A
rainha também / Não vai demorar / Hoje vai ter samba
Dolores / Vamos que eu quero sambar.
Datação
: 1965
Tema
: metalinguagem
Partitura
Editora
Rio Musical
467
Entrada
franca
[Não me faças
falar / Não faz
eu falar]
Ismael Silva
Se eu disser quem tu és / Eu sei que vou te desmoralizar /
Não me dê pontapés / Já te avisei não me faças falar //
Tua decência sendo artificial / Não há motivo para tanta
altivez / Tu sabes bem que se eu / Quisesse o teu mal /
Entrada franca só terias no xadrez. //
Toda essa gente que te dá tanto valor / Não sabe ainda
que não vales um vintém / Há pouco tempo me disseste
por favor / Que eu não contasse a tua crônica a ninguém.
Datação
: 1973
Tema
: cotidiano
Disco
: Se você jurar
Gravadora
: RCA Victor
Intérprete
: Ismael Silva
És tu, Brasil,
que nos seduz
Paulo da
Portela e
Ernani
Rosário
És tu, Brasil, que nos seduz / És tu que nos conduz / Ao
caminho ideal, sem par / Resoluto, sempre a marchar / E
muito além dos verdes montes / Terás esta canção /
Falando de glórias, sim
Brasil do coração / A palpitar de emoção / Em grande
euforia / Admirado, és Brasil amado //
O teu céu, o teu mar / É diferente / E as estrelas candentes
/ Brilham mais / Alto dia o sol / Convida a gente / E à noite
o luar / Que alegria nos traz / Tuas fontes risonhas e
borbulhantes / Com imenso fragor / Pelas florestas /
Sempre em ares de festa / Reacende o aroma / Da mais
linda flor
Datação
: 1934
Tema
: Brasil
Livro
: Paulo da Portela, traço
de união entre duas culturas, p.
156
Editora
: Funarte
Este mundo é
uma roleta
Paulo da
Portela
Este mundo é uma roleta / E nós somos jogadores /
Jogamos com a sorte / Dá o azar / Assim é o amor, /
Quando é fiel de parte a parte / Vem a morte pra nos
separar
Datação
: 1940
Tema
: reflexões existenciais
Disco
: Homenagem a Paulo da
Portela
Gravadoras
: Nikita Music /
Office Sambinha (Japão)
Intérprete
: Velha Guarda da
Portela
Estou
sentindo
Cartola
Sim / Estou sentindo amor / E arrependido de tudo que fiz
estou / A ternura que eu guardava, vai / Com este resto de
amor / Que se esvai na canção / Que eu compus sem
querer / Estou sentindo amor / Toda amargura / Que
desejava esquecer / E todo carinho que tinha acabou / E
assim termina um grande amor.
Datação
: 1928-1980
Tema
: relações amorosas
Livro
: Cartola, os tempos idos,
p. 323
Editora
: Gryphus
Observação
: datação
aproximada estabelecida a
partir da biografia do
compositor
Eu agradeço
[Peçam bis]
Ismael Silva
A todos que estão me ouvindo / Eu agradeço / Esta
atenção dispensada / É mais do que mereço / Se não
gostarem / Não digam nada a ninguém / Senão os outros
não vão me escutar também //
Não vão fazer / O que aconteceu certo dia / Foi tanto bis /
Que eu já não podia atender / No entretanto
O que a plateia queria / É que eu cantasse / Cantasse até
aprender.
Datação
: 1966
Tema
: metalinguagem
Disco
O samba pede
passagem
Gravadora
: Polydor
Intérprete
: Ismael Silva
Eu e a lua
Cartola e
Aluísio Dias
Lua! / Eu com raiva / Quebrei o violão / Julguei que você /
Não me dava atenção / Distante eu olhei / Outra vez para a
estrada / E vi tua luz prateada //
Fui pela estrada / Caminhando / Pensativo indagando / Ó!
Lua Deusa / Da inspiração / Por que / Não tenho você /
Nem meu violão.
Datação
: 1928-1980
Tema
: natureza
Livro
: Cartola, os tempos idos,
p. 318
Editora
: Gryphus
Observação
: datação
aproximada estabelecida a
partir da biografia do
compositor
Eu gosto, mas
não é muito
(...)
Ismael Silva,
Noel Rosa e
Francisco
Alves
Olha, escuta, meu bem / É com você que estou falando,
neném / Esse negócio de amor não convém / Gosto de
você, mas não é muito... / Muito... //
Fica firme, não estrila / Traz o retrato e a estampilha / Que
eu vou ver / O que posso fazer por você //
Teu amor é insensato / Me amofinou de fato / Não leve a
mal / Eu prefiro a lei marcial
Datação
: 1931
Tema
: relações amorosas
Disco
78 rpm, lado A (13375)
Gravadora
: Odeon
Intérprete
: Francisco Alves
468
Eu que vivia
satisfeito...
[Ri para não
chorar /
Bafafá]
Paulo da
Portela
Eu que vivia satisfeito / Tudo que você tem feito / Pra me
contrariar / Não quero e não posso me amofinar //
Meu bem, é preciso mudar / Esse modo de viver / Quase
sempre tem barulho / Arranjado por você / Uma hora
Fulana quem disse / Outra hora Fulana falou / Vivemos
uma agonia / Quase sempre um leleô
Datação
: 1927
Tema
: relações amorosas
Livro
: Paulo da Portela, traço
de união entre duas culturas, p.
152
Editora
: Funarte
Eu queria
viver com
você
Valdir
Villarinho e
Ismael Silva
Eu queria viver com você / Pra ter felicidade / Eu queria
viver com você / Pra não sentir saudade / Eu queria viver
com você / Você minha querida / Você é meu prazer / Meu
viver / E toda a minha vida / Eu queria estar com você /
Você sempre ao meu lado / Eu agora só tenho você / Na
minha ilusão / Eu queria, apesar de saber, / De ser um
desprezado / Algum dia poderia trazê-la / No meu coração.
Datação
: 1972
Tema
: relações amorosas
Partitura
Editora
de Música Lyra Ltda
Eu sei Cartola
Sim, eu sei / A vida horrível que você levou / Se vens pedir
o meu perdão, eu dou / Se prometeres não errar jamais //
Fica em paz / E pouco importa os comentários / Como nós
/ Por este mundo existem vários //
Meu amor, / O que importa é recomeçar / E cai o pano do
passado / Ninguém acerta sem primeiro errar
Datação
: 1966
Tema
: relações amorosas
Disco:
E vamos à luta
Gravadora
: Polygram
Intérprete
: Alcione e Cartola
Eu sou um Ismael Silva
Se existe alguém que queira ver / Você um ano em jejum /
E sem ter onde adormecer / Eu sou um, eu sou um //
Eu sei que toda essa alegria / Não vai durar a vida inteira /
Talvez, da noite para o dia, / Eu possa ver sua caveira
Datação
: 1939
Tema
: cotidiano
Disco
78 rpm, lado A (34529)
Gravadora
: Victor
Intérprete
: Francisco Alves
Eu vi você
lambendo
Cartola
Eu vi você lambendo / Eu vi você lambendo / Eu vi você
lambendo um sorvete picolé, mulher //
Eu já vi tu lambendo a sarjeta / E lambendo um poste na
Lapa / Comeu todo o orvalho que tinha / Eu vi você
lambendo um cachorro vira-lata.
Datação
: 1928-1980
Tema
: cotidiano
Livro
: Cartola, os tempos idos,
p. 345
Editora
: Gryphus
Observação
: datação
aproximada estabelecida a
partir da biografia do
compositor
Evite meu
amor
Cartola
Evite Meu Amor / Recuse os braços meus / Evitarei os
beijos teus / Culpado foi o destino / Se somos dois feridos /
Pois preparou a trama / E entregou ao cupido / bem vejo
estás chorando / Por certo chorarei / Ferido está teu
coração / E peço-te perdão / Das vezes que errei / Mas
este amor evitarei
Datação
: 1979
Tema
: relações amorosas
Disco
: Cartola 70 anos
Gravadora
: RCA Victor
Intérprete
: Cartola
Ismael Silva
Deixe lá que contem / De você eu sou fã / Hoje mais do
que ontem, / Menos do que amanhã //
Eu não posso lhe esquecer / Isso é que não há talvez /
Sempre ouvi dizer / Que otário nunca teve vez //
Essa gente é contra mim / Até mesmo a sua irmã / Mas
comigo é assim: / De você cada vez mais sou fã.
Datação
: 1942
Tema
: relações amorosas
Disco
: Ismael canta... Ismael
Gravadora
: Intercd Records
Intérprete
: Ismael Silva
Observação
: datação atribuída
a partir de Soares, 1985, p. 115
Fama sem
proveito
Ismael Silva
e Heitor
Catumby
Eu sempre lhe tratei / Com bastante respeito / Mesmo
assim não deixei / De levar fama sem proveito //
Aproveito o lugar / E a ocasião / Para lhe perguntar / Se
posso morar no seu coração.
Datação
: 1941
Tema
: relações amorosas
Partitura
Editora
Musical Brasileira
Favela de
meus
amores...
Paulo da
Portela
Favela de meus amores / Todo mundo te quer bem /
Favela que tem morenas / Que outros não têm
Datação
: 1935
Tema
: cotidiano
Livro
: Paulo da Portela, traço
de união entre duas culturas, p.
153
Editora
: Funarte
469
Feriado na
roça
Cartola
Quando eu soube que Maria Rosa vinha / Da cidade onde
tinha ido há dias passear / Gritei contente graças a Nosso
Senhor / Eu pensei que meu amor não queria mais voltar /
E tratei logo de enfeitar minha paioça / Parei toda minha
roça, lá ninguém mais trabalhou / Mandei um cabra na
taberna de João Bento / Comprar encordoamento para dar
aos tocador //
Daí a duas ou três horas já passadas / Chegou ela
acompanhada com um rapaz de uns trinta anos / E foi
chegando, foi entrando, que coragem / Arrumando a
bagagem, me dizendo vou voltar / Naquela hora minha
vista ficou escura / Minha mão foi à cintura e dois tiros
disparei / E me encontraram com a arma fumegando / Seu
doutor, rindo e chorando / Se morreram os dois, não sei
Datação
: 1979
Tema
: relações amorosas
Disco
: Cartola 70 anos
Gravadora
: RCA Victor
Intérprete
: Cartola
Festa da
Penha
Cartola e
Asobert
Uma camisa e um terno usado / Alguém me empresta /
Hoje é domingo / E eu preciso ir à festa / Não brincarei /
Quero fazer uma oração / Pedir à santa padroeira proteção
/ Entre os amigos / Encontrarei alguém que tenha / Hoje é
domingo / E eu preciso ir à Penha //
Levarei dinheiro pra comprar / Velas de cera / Quero levar
flores / Para a santa padroeira / Só não subirei / A
escadaria ajoelhado / Pra não estragar / O terno que tenho
emprestado.
Datação
: 1958
Tema
: cotidiano
Disco
: Cartola entre amigos
Gravadora
: Funarte
Intérprete
: Padeirinho
Observação
: datação atribuída
a partir de Barboza da Silva e
Oliveira Filho, 2003, p. 377
Festa da vinda
Cartola e
Nuno Veloso
Eu e meu violão / Vamos rogando em vão / O seu regresso
/ Se soubesses como choro e como peço / Pra que nosso
fracasso / Se transforme em progresso / Apesar de todo
erro, espero ainda / Que a festa do adeus seja a festa da
vinda //
Já perdi tantos amores, não notei diferença / Pensei que
passava um século sem a sua presença / Misturada entre
as pedras preciosas do mundo, / Com um simples olhar, a
você não confundo
Datação
: década de 1950
Tema
: relações amorosas
Disco
: Cartola
Gravadora
: Marcus Pereira
Intérprete
: Cartola
Observação
: datação atribuída
a partir de Barboza da Silva e
Oliveira Filho, 2003, p. 292
Fim de
estrada
Cartola
Infelizmente / Não iremos ao fim da estrada / Eu bem sei,
estás cansada / E eu também cansei //
Só peço que respeites / O nome que te dei / E pelo amor
de Deus / Não negues que te amei //
Já me convenço / Bem melhor não ter partido / Vejo agora
o resultado / Nós somos dois perdidos //
Faz o que te digo, amor / Vai, voltes daqui / Eu quero te
ver contente / Te ver alegre / Sempre a sorrir.
Datação
: 1979
Tema
: relações amorosas
Disco
: Cartola 70 anos
Gravadora
: RCA Victor
Intérprete
: Cartola
Fita (os) meus
olhos
Cartola e
Osvaldo
Vasquez
Fita os meus olhos, / Vê como eles falam / Vê como
reparam / O seu proceder / Não é preciso dizer, / Deve
compreender / E até mesmo notar, / Só no meu olhar //
Não abuses por eu te confessar / Que nasceste só para eu
te amar / Gosto tanto, tanto de você / Que os meus olhos
falam o que não vê //
Ainda há de chegar o dia / Que eu hei de ter grande alegria
/ Quando você souber compreender / Num olhar o que eu
quero dizer
Datação
: 1933
Tema
: relações amorosas
Disco
: Verde que te quero rosa
Gravadora
: RCA Victor
Intérprete
: Cartola
Fiz por você o
que pude
Cartola
Todo tempo que eu viver / Só me fascina você, Mangueira
/ Guerreei na juventude, / Fiz por você o que pude,
Mangueira //
Continuam nossas lutas / Podam-se os galhos, / Colhem-
se as frutas / E outra vez se semeia / E, no fim deste labor,
/ Surge outro compositor / Com o mesmo sangue na veia //
Sonhava desde menino / Tinha um desejo felino / De
contar toda a tua história / Este sonho realizei / Um dia, a
lira empunhei / E cantei todas as tuas glórias
Perdoa-me a comparação, / Mas fiz uma transfusão / Eis
que Jesus me premeia / Surge outro compositor / Jovem
de grande valor / Com o mesmo sangue na veia
Datação
: 1957
Tema
: metalinguagem
Disco
: História das escolas de
samba, Mangueira
Gravadora
: Marcus Pereira
Intérprete
: Cartola
Observação
: datação atribuída
a partir de Barboza da Silva e
Oliveira Filho, 2003, p. 166
470
Fundo de
Quintal
Cláudio
Jorge,
Cartola e
Hermínio
Bello de
Carvalho
Carambola, manga e abio, marraio / Passa-anel e
samambaias rondam / Coração roda-pião / Lentamente
abro o portão do meu quintal //
Dispara coração / Desanda a recordar / Ah, pretextos não
te faltam, não / Obediente, teu coração vai entender / Mas
é preciso regressar / Ao fundo desse meu quintal / Ao
passaraio que ficou / Nas pipas soltas pelo ar / Vontade eu
tenho de voltar / Ao pé do antigo pé de abio / À sombra do
meu velho pai: / Caramboleira que partiu... / Partiu... //
Pai, diz se tu és feliz / Tão longe desse pé de abio / E diz
se vais voltar / Voltar aqui //
Carambola, não me enrola a vida não
Datação
: 1980
Tema
: reflexões existenciais
Disco
: Cláudio Jorge
Gravadora
: EMI-Odeon
Intérprete
: Cartola
Gandaia Ismael Silva
Gandaia é o que me faz saudade, / No tempo da mocidade
/ Era a minha alegria. / Gandaia, palavra bem proferida, /
Que não me fica esquecida / nem de noite nem de dia. /
Gandaia sempre foi o meu desejo / Quanto tempo eu não
vejo / Essa vida que eu vivia //
Ai quem me dera agora / Esse viver de outrora!... / Quem
na gandaia andar / Pode ter a certeza que sabe gozar... /
Gandaia sempre foi o meu desejo / Quanto tempo que eu
não vejo / Essa vida que eu vivia!...
Datação
: 1932
Tema
: metalinguagem
Dissertação:
Em feitio de
samba: as crônicas de Paulo
da Portela e Ismael Silva
Garças pardas
Cartola e Zé
da Zilda
Ouvi falar nas garças pardas / mas pensei que era
brinquedo / nas florestas onde andei encontrei / tantas que
até tive medo / Lá nas matas tudo é segredo //
Eu bem sei, estou arrependida / Lá nas matas passei anos
bem vividos / Eu vi garça parda, borboleta / De um colorido
tão sutil / Que saudade que eu tenho da floresta do meu
Brasil.
Datação
: 1966
Tema
: natureza
Disco
: Clementina de Jesus
Gravadora
: Odeon
Intérprete
: Clementina de Jesus
Grande Deus Cartola
Deus, grande Deus, / Meu destino, bem sei, foi traçado /
Pelos dedos teus / Grande Deus, / De joelhos aqui eu
voltei / Para te implorar, / Perdoai-me, sei que errei um dia
/ Oh, perdoai-me pelo nome de Maria / E nunca mais direi
o que não devia //
Eu errei, grande Deus, / Mas quem é que não erra /
Quando vê seu castelo / Cair sobre a terra? //
Julguei, Senhor, / Que deste sonho eu jamais despertaria /
Se errei, perdoai-me, pelo amor de Maria
Datação
: 1946 (cerca de)
Tema
: religiosidade
Disco
78 rpm, lado A (17573)
Gravadora
: Continental
Intérprete
: Jamelão
Observação
: datação atribuída
a partir de Barboza da Silva e
Oliveira Filho, 2003, p. 153, 282
Hoje sem
querer
Cartola e
Babaú
Hoje sem querer / Que vim a saber / Que gostas de ouvir /
Quando canto, ó flor / Ficas comovida / Derramando pranto
/ Achas um encanto / Neste teu cantor //
Não quero mais / Ver o teu pranto / Eu canto não é / Pra
ninguém chorar / Vou te dar meu coração / Para tuas
lágrimas secar / Vou te dar meu coração / Como emoção /
Para tuas lágrimas secar.
Datação
: 1928-1980
Tema
: metalinguagem
Livro
: Cartola, os tempos idos,
p. 330
Editora
: Gryphus
Observação
: datação
aproximada estabelecida a
partir da biografia do
compositor
Homenagem à
Mangueira
Paulo da
Portela
Mangueira, velha escola / Onde Cartola tem sido baluarte /
Lindas poesias, belas melodias / Têm todo valor de nossa
parte / Alfaiate, Zé Com Fome, / Também são dois nomes
de valor / Comparo suas letras com gotas de orvalho / Que
eu as bebo sem ciúme, com sabor
Datação
: 1941
Tema
: metalinguagem
Livro
: Paulo da Portela, traço
de união entre duas culturas, p.
152
Editora
: Funarte
Infeliz sorte Cartola
Que infeliz sorte! / Que infeliz sorte! / Que vale que meu
coração / Pra resistir a essa paixão é forte! / Se não
passava as maiores dores / Pela ingratidão que me fez
Dolores. //
Passas por mim, rindo, cantando / Dás com os ombros,
arrastando o sapato / Me debochando / E ainda dizes pros
outros / Só pra moer / Em amar não acho prazer //
Tu não mereces / Ser recompensada / Me enganaste,
ainda dizes pros outros / Estou vingada / E também é bem
falso o juízo teu / Em acreditar no amor meu
Datação
: 1931
Tema
: relações amorosas
Disco
: Cartola - música
brasileira deste século por seus
autores e intérpretes
Gravadora
: SESC -SP
Intérprete
: Cartola
Observação
: datação atribuída
a partir de Barboza da Silva e
Oliveira Filho, 2003, p. 85-6
471
Ingratidão Ismael Silva
Você não se cansa / de me maltratar / por sua causa
quase choro / sei que uma vingança pode lhe ensinar /
mas infelizmente eu lhe adoro //
Todo mundo sabe que em meu coração / quase não cabe
tanta ingratidão / gostaria de ouvir / o que é que você diz /
quando alguém pergunta / o que é que eu fiz
Datação
: 1976
Tema
: relações amorosas
Disco
: Encontro com a Velha
Guarda
Gravadora
: Fontana/Philips
Intérprete
: Ismael Silva
Injúria
Cartola e
Elton
Medeiros
Pois é, / Tudo começou assim / Alguém se vingou em mim
/ Inventando o que eu não pratiquei //
Pois é, / Só Deus sabe o quanto amei / Por te amar tanto
chorei / E, chorando, levo a cruz até o fim //
Não sei como foste acreditar / Em mentira tão vulgar / De
um sujeito tão vulgar também //
Sofri a maior decepção / Tentarei te esquecer / Pois te
amar foi ilusão //
Não sei / Porque foste derrubar / O castelo que eu fiz / Em
meu castelo era tão feliz
Datação
: 1968
Tema
: relações amorosas
Disco
: Roda de samba
Gravadora
: Musidisc
Intérprete
: conjunto A voz do
morro
Interroguei
uma rosa
Cartola
Aqui se beijaram ela e outro amante / Neste jardim juraram
amor constante / Interroguei uma rosa / E a rosa se foi
desbotando / E a cada pergunta, negando //
Este jardim foi palco de grande tragédia / Mas dentro de
mim transformei / Tudo em comédia / Razões bastantes eu
tenho / Para as flores odiar / Pois a flor tombou, murchou, /
Mas sem querer falar.
Datação
: 1955
Tema
: relações amorosas
Disco
: Cartola entre amigos
Gravadora
: Funarte
Intérprete
: Cláudia Savaget
Ironia
Ismael Silva
, Nilton
Bastos e
Francisco
Alves
Não tens nada de beleza / Além disso és dureza / Não vivo
só de carinho / Fizeste boa promessa / Foi assim nessa
conversa / Que me enganei direitinho //
Contigo eu me enganei / Pelo amor que te dei / Fui
direitinho no teu carinho / Na tua conversa eu andei /
Podes ficar descansada / Não vou mais te procurar / Para
amar tanto / Nunca ter nada / Sozinho eu quero ficar.
Datação
: 1931
Tema
: relações amorosas
Disco
78 rpm, lado B (10767)
Gravadora
: Odeon
Intérprete
: Francisco Alves
Isso não se
faz
Ismael Silva
Assim poderei te perdoar / se é que mudaste de pensar /
se tens prazer em me ver chorar, / por favor, me deixe em
paz / isso não se faz //
Devias pagar por fazer chorar / a quem te tratava tão bem /
mas eu aprendi / o que fiz por ti / não hei de fazer por mais
ninguém //
Eu só quero ver o seu proceder / e a tua promessa é fatal /
eu tenho razão / não digas que não / porque tu já me
fizeste mal.
Datação
: 1931
Tema
: relações amorosas
Disco
: Noel pela primeira vez
Gravadora
: Velas
Intérprete
: João Petra de
Barros
Já desisti Ismael Silva
Já desisti de mulher / Já desisti do trabalho / Agora só me
falta / Desistir do baralho.
Datação
: 1922 (cerca de)
Tema
: cotidiano
Livro
: São Ismael do Estácio: o
sambista que foi rei, p. 47
Editora
: Funarte
Observação
: datação
aproximada estabelecida a
partir da biografia do
compositor
Juca Malvado Cartola
Você está vendo / Aquele cabra aleijado / Na sarjeta
sentado / Implorando a caridade / Pois já foi forte / E muito
bom violeiro / Era o maior seresteiro / Na fazenda da
Trindade / Cantava bem / Um desafio de viola / No sertão
até agora / Outro igual não apareceu / Quem fez aquilo /
Foi um tal Juca Malvado / A maior perversidade / Que no
sertão já se deu //
Sempre a mulher / É o alvo de toda questão / Mas aqui no
meu sertão / Desses casos nunca vi / Pois foi o primeiro e
talvez o derradeiro / Só em vê-lo, francamente / Eu
também me comovi / E a mulher / Culpada desse suplício /
Passa o mesmo sacrifício / Talvez a maior agonia / Juca
Malvado para completar o crime / Não consentiu que a
cabocla / Visse mais a luz do dia.
Datação
: 1928-1980
Tema
: cotidiano
Disco
: Cartola entre amigos
Gravadora
: Funarte
Intérprete
: Paulo Marquez
Observação
: datação
aproximada estabelecida a
partir da biografia do
compositor
472
Lábios doces
[Beijos eu
ganhei de
alguém]
Paulo da
Portela
Lábios doces / Beijos eu ganhei de alguém / Ó que
felicidade trouxe / Teu amor, meu bem.
Datação
: 1949
Tema
: relações amorosas
Livro
: Paulo da Portela, traço
de união entre duas culturas, p.
151
Editora
: Funarte
Levanta
gigante
Cartola,
Carlos
Cachaça e
Nuno Veloso
Levanta gigante adormecido / Vamos para o alto / Que
nem tudo está perdido / Põe na tua frente / Os velhos
generais / Que eles mostrarão / Do que serás capaz / O
teu valor / Ninguém pode tirar / Levanta-te Mangueira / E
vem lutar//
Vamos apertar / Mais o ferrolho / Vai ser dente por dente /
Olho por olho / E nós vamos / Demonstrar com harmonia /
Que a Mangueira / Ainda é a academia / Levanta gigante.
Datação
: 1928-1980
Tema
: metalinguagem
Livro
: Cartola, os tempos idos,
p. 326
Editora
: Gryphus
Observação
: datação
aproximada estabelecida a
partir da biografia do
compositor
Liberdade
Paulo da
Portela e
Dengo
Liberdade / Para um coração que sofrendo / Está quase
morrendo / Porque quer amar / Liberdade / Solta-me desta
prisão / Porque meu coração / Não pode suportar /
Liberdade / Para este pobre infeliz / Que o destino assim
quis / É sofrer de amor / Liberdade / Não posso mais
ocultar tanta dor //
Só tu ó deusa / Poderá dar lenitivo / Tudo quanto há de
mais belo / somente em tu eu vejo / Libertai a alma / Desse
pobre cativo / Oh liberdade és tu que adoro / És tu que
almejo.
Datação
: 1935
Tema
: relações amorosas
Monografia
: [Monografia sobre
Paulo da Portela], Candeia e
Araújo, 1980
Liberdade
Ismael Silva
e Francisco
Alves
Liberdade, liberdade / O meu amor foi-se embora /
Pensando deixar saudades / Eu nunca fui tão feliz / Agora
sou eu quem diz... / Foi uma felicidade (Eu vou gritar...) //
Meu bem querer / Não mais me quis / Foi um favor que me
fez / Posso dizer que sou feliz / E que chegou a minha vez
(Eu vou gritar...) //
Se eu já gozei / Mais vou gozar / Com essa separação /
Nunca pensei sem esperar / Ter tanta satisfação /
(Independência ou morte!).
Datação
: 1931-1932
Tema
: relações amorosas
Disco
78 rpm, lado B (10871)
Gravadora
: Odeon
Intérpretes
: Francisco Alves e
Mário Reis
Linda
borboleta
Paulo da
Portela
Linda borboleta, não seja buliçosa / Deixa minha rosa que
tão linda está no galho / É o meu prazer, ao amanhecer /
Fazer-lhe visita, vê-la banhada de orvalho / Quando vem o
sol, cobre ela de ouro / No jardim do pobre é um tesouro
Datação
: 1935
Tema
: natureza
Disco
: Homenagem a Paulo da
Portela
Gravadoras
: Nikita Music /
Office Sambinha (Japão)
Intérprete
: Velha Guarda da
Portela
Observação
: datação
aproximada estabelecida a
partir da biografia do
compositor
Linda
Guanabara
[Guanabara]
Paulo da
Portela
Como é linda nossa Guanabara / Jóia rara que beleza /
Quando nosso céu está todo azul, anoitece / O céu se
resplandece / Em seu bordado de estrela vê-se o Cruzeiro
do Sul //
Pão de Açúcar, poderoso / Fiel companheiro de nossa baía
/ Vigilante, não dorme um só instante / Guardando a
riqueza que a natureza cria.
Datação
: 1931
Tema
: Brasil
Livro
: Paulo da Portela, traço
de união entre duas culturas, p.
150
Editora
: Funarte
Macaco me
lamba
Ismael Silva
Sem teu carinho como é que vou ficar / Era pouquinho,
mas me fez acostumar / Se desta vez não te botaram na
muamba, / Macaco me lamba (oba), macaco me lamba //
Andas fugindo de mim / Como o diabo da cruz / Não
queres mais nem me dar atenção / Teimei, gastei meu
latim, / Da discussão nasce a luz, / Mas nem assim tu me
deste razão
Datação
: 1950
Tema
: relações amorosas
Disco
78 rpm, lado B (26)
Gravadora
: Odeon
Intérprete
: Heleninha Costa
Maestro,
toque
aquela!...
Ismael Silva
e José de
Almeida
Maestro, toque aquela / Aquela que me traz recordação /
Do ano que já passou / E deixou saudades no meu
coração //
Ai, ai, ai, ai / Eu nem posso me lembrar / Que música boa
pra gente dançar
Datação
: 1943
Tema
: metalinguagem
Disco
78 rpm, lado B (12390)
Gravadora
: Odeon
Intérprete
: Moreira da Silva
473
Manhã de
primavera
Cartola
Numa manhã lá no alto, / Bem no alto / Onde ouço a
passarada / No romper da madrugada / A gorjear / Eu me
sinto alegre / Me sinto contente / Me sinto feliz / Em ouvir a
passarada / No romper das madrugadas / Em meu país
Datação
: 1928-1980
Tema
: natureza
Livro
: Cartola, os tempos idos,
p. 346
Editora
: Gryphus
Observação
: datação
aproximada estabelecida a
partir da biografia do
compositor
Me deixa
sossegado
Ismael Silva
, Nilton
Bastos e
Francisco
Alves
Oi, vai, mulher cruel, / pra você eu sou pesado / leva tua
riqueza / e me deixa sossegado //
Já sei que tu tens sem riqueza / mas assim eu não preciso
/ pra dizer-te com franqueza / antes quero prejuízo //
Algum dia hás de ver / que és muito arengueira / que
nunca podes viver / com ninguém desta maneira //
Essa sua amizade / para mim é indiferente / digo toda a
verdade / e quem diz assim não mente.
Datação
: 1943
Tema
: relações amorosas
Disco
78 rpm, lado B (10858)
Gravadora
: Odeon
Intérprete
: Ismael Silva
Me diga o teu
nome
Ismael Silva
, Nilton
Bastos e
Francisco
Alves
O teu olhar que me consome / Por caridade, iaiá, me diga
teu nome. //
Em perguntar penso que não faço mal / Tens um olhar que
nunca vi outro igual. //
Não faz assim, / Minha iaiá, meu querer, / Você pra mim
está bancando o chiquê.
Datação
: 1931
Tema
: relações amorosas
Disco
78 rpm, lado B (10858)
Gravadora
: Odeon
Intérprete
: Ismael Silva
Me faz
carinhos
Ismael Silva
e Francisco
Alves
Mulher, tu não me faz carinho / Seu prazer é de me ver
aborrecido / Ora vai, mulher, se estás contrariada / Tu não
és obrigada a viver comigo //
Se eu fosse homem branco / Ou por outra mulatinho /
Talvez eu tivesse sorte / De gozar do seu carinho / A maré
que enche vaza / Deixa a praia descoberta / Vai-se um
amor e vem outro / Nunca vi coisa tão certa //
Oh! meu bem o teu orgulho / Algum dia há de acabar /
Tudo com o tempo passa / A sorte é Deus quem dá / Vou-
me embora, vou-me embora / Como já disse que vou / Eu
aqui não sou querido / Mas na minha terra eu sou.
Datação
: 1928
Tema
: relações amorosas
Disco
78 rpm, lado B (10100)
Gravadora
: Odeon
Intérprete
: Francisco Alves
Meu amor já
foi embora
Zé com
Fome e
Cartola
Meu amor já foi embora / Na tristeza eu fiquei / E não
podendo conter / A dor do meu padecer / foi por isso que
eu chorei / Uma falsidade é triste / sem a gente merecer /
Tudo eu posso relevar / mas esta ingratidão / não poderei
esquecer //
Mas na hora da partida / fiz uma investida / quase implorei
para ela ficar / mas não tive a ousadia / que era covardia /
aos pés de uma mulher chorar.
Datação
: 1928-1980
Tema
: relações amorosas
Disco
: Mangueira - sambas de
terreiro e outros sambas
Gravadora
: Arquivo Geral da
Cidade do Rio de Janeiro
Intérprete
: Cartola
Observação
: datação
aproximada estabelecida a
partir da biografia do
compositor
Meu amor, por
você eu
chorei...
Cartola
Meu amor, por você eu chorei / Eu não sei o que eu fiz / Eu
não sei / Por você eu serei bem capaz / de fazer o que
ninguém faz
Datação
: 1939
Tema
: relações amorosas
Livro
: Cartola, os tempos idos,
p. 113
Editora
: Gryphus
Meu batalhão
Ismael Silva
, Nilton
Bastos e
Francisco
Alves
Vou apresentar o meu batalhão / Uma bateria e não (...) dá
sopa, não //
Favela, Estácio, Oswaldo e Salgueiro / todos te respeitam
quando pegam o seu pandeiro / (Então volver / Ordinário
marche / Oba!) //
Umas crioulinha / uns português / (...) quero ver de uma
vez //
um dois / um dois / um dois / um dois//
O meu batalhão que a ninguém faz mal / ele se reúne /
quando chega o Carnaval.
Datação
: 1931
Tema
: metalinguagem
Disco
78 rpm, lado B (10748)
Gravadora
: Odeon
Intérprete
: Francisco Alves
474
Meu primeiro
amor
Cartola e
Aluísio Dias
Meu primeiro amor / Não me olhe assim / Eu já te disse
adeus / E os olhos teus não cansam / De fitar os meus //
A tristeza / Do teu olhar / Juro que encanta e traduz / Tanta
beleza / É uma promessa de amor / Que até nos faz
sonhar.
Datação
: 1928-1980
Tema
: relações amorosas
Livro
: Cartola, os tempos idos,
p. 314
Editora
: Gryphus
Observação
: datação
aproximada estabelecida a
partir da biografia do
compositor
Meu único
desejo
Ismael Silva
Tu devolveste meus retratos, / Minhas cartas e os
presentes; / Nada disso eu aceitei! / O que eu só faço
questão / De receber e devolver / São os beijos que te dei.
//
Se não é esse o meu único desejo, / Não quero mais poder
me retirar daqui. / Quanto mais fecho os meus olhos, mais
te vejo... / Quanto mais foges, mais me sinto junto a ti...
Datação
: 1950
Tema
: relações amorosas
Disco
78 rpm, lado B (800694)
Gravadora
: RCA Victor
Intérprete
: Gilberto Alves
Minha Cartola
Minha, quem disse que ela foi minha / Se fosse seria a
rainha / Que sempre vinha aos sonhos meus //
Minha / Ela não foi um só instante / Como mentiam as
cartomantes / Como eram falsas as bolas de cristal //
Minha repete agora esta cigana / Lembrando fatos
envelhecidos / Que já não ferem mais os meus ouvidos
Datação
: 1976
Tema
: relações amorosas
Disco
: Cartola
Gravadora
: Marcus Pereira
Intérprete
: Cartola
Modista
Paulo da
Portela
Andas bancando a modista / Deixe disto, arreia a crista /
Modista você não é / A vaidade te arrasta / Vestir seda,
andar de pasta / Para ir catar café / Meu bem, trabalhes /
Que não é mau / Só tu não banques / Coser no Parc Royal
Datação
: 1922
Tema
: cotidiano
Livro
: Paulo da Portela, traço
de união entre duas culturas, p.
154
Editora
: Funarte
Motivação
Cartola e
Dalmo
Castello
Quem / Esperar por quem? / Se tão só e sei / Sem
motivação / E prossegue este imenso conflito / Me rodeia
este grande infinito / Não tem eco este meu sofrimento / Ó
meu coração, coração / Quem, quem será que vem / Sinto
que ninguém / Vai me dar perdão / Eis a prova dos meus
grandes erros / Erros estes que eu soube julgar / Não
importa, mas vou do desterro / Desabrochar //
Bate outra vez / Com esperanças o meu coração, enfim.
Datação
: 1979
Tema
: reflexões existenciais
Partitura
Editora
Musical RCA Ltda.
Mulher, tu és
orgulhosa
Paulo da
Portela
Mulher, tu és orgulhosa / E tens o jeito / de me fazer sofrer.
/ Mulher, esse mundo não é nosso / Aqui a gente paga
sem querer.
Datação
: 1924
Tema
: relações amorosas
Livro
: Paulo da Portela, traço
de união entre duas culturas, p.
150
Editora
: Funarte
Na floresta
Cartola e
Sílvio
Caldas
Na floresta dei-te um ninho / E mostrei-te o bom caminho /
Mas quando a mulher não tem brio / Dizem que / É malhar
em ferro frio //
Tudo eu fiz por você / Não quiseste atender / Os meus
conselhos e a minha opinião / Algum dia vais ver / Como é
triste sofrer / E de joelhos vens pedir o meu perdão. //
O teu procedimento / Foi o meu sofrimento / Não importa;
tudo isso há de acabar / E assim me contento / Esperando
o momento / Que a minha porta pra você há de fechar
Datação
: 1933
Tema
: relações amorosas
Disco
78 rpm, lado A (33712)
Gravadora
: Victor
Intérprete
: Sílvio Caldas
Nada vale a
pena
Cartola e
Roberto
Nascimento
Saudades do interior / Cidade onde me criei / Saudade da
Joaninha / Onde ela anda não sei //
Foi num dia um sonho e eu sonhei / demais seu doutor /
Na cidade grande eu vim / tentar vencer / Joaninha
coitadinha tão / sozinha ficou / E o que aconteceu foi /
triste de doer //
Passei fome e sede vendo água, / arroz e feijão / Fome
aqui eu digo é bem mais doída / E é bem diferente da fome
lá / do meu sertão / A barriga ronca e os óio vê comida //
Um dia eu voltei ansioso pra ver / o meu amor / Esqueci o
sofrimento que passei / Dinheiro no banco. Terno novo /
Quase doutor / Só que a Joaninha não encontrei
Vale a pena nada. Nada vale / a pena não / Se eu me
matei tanto e não / sei para quê / Se eu soubesse não
sairia nunca / do meu sertão / Minha Joaninha onde está
você?
Datação
: 1928-1980
Tema
: cotidiano
Livro
: Cartola, os tempos idos,
p. 337
Editora
: Gryphus
Observação
: datação
aproximada estabelecida a
partir da biografia do
compositor
475
Não
Cartola e
Aluísio Dias
Não, não // Toda a culpa cabe a nós dois / Insistimos
nesse amor / Sabendo que íamos sofrer / Depois // Não te
culpo, nem me culpes / Aceitemos nosso destino / Esse
amor quando nasceu / Eu era menino // Se eu teimar /
Teus próprios pais / Irão dizer / Tudo aquilo que você /
Comigo sofreu.
Datação
: 1928-1980
Tema
: relações amorosas
Disco
: Cartola entre amigos
Gravadora
: Funarte
Intérprete
: Aluísio Dias
Observação
: datação
aproximada estabelecida a
partir da biografia do
compositor
Não apoiado Ismael Silva
Olha que um dia, Deus lhe pode castigar... / Tapeação, é
um pecado; / Não há motivo pra você se lastimar... / Isto é
que não: não apoiado!... //
Não adianta se queixar, / Porque não vou acreditar / Em
nada que você disser... / Essa conversa não tem fim, / A
vida inteira, é sempre assim; / Você quanto mais tem, mais
quer! //
Escuta a minha opinião / Deixa de tanta ambição; / Você
assim, não vive bem... / Até na hora de comer / Você
procura se esconder / Para não convidar ninguém!
Datação
: 1936
Tema
: cotidiano
Disco
78 rpm, lado B (11327)
Gravadora
: Victor
Intérprete
: Aurora Miranda
Não chora
Paulo da
Portela
Não chora, não chora / Vai como pode, cai na farra / está
na hora //
Quem tem seda vai de seda / quem não tem vai de estopa
/ o nome do nosso bloco / faz qualquer um calar a boca
Datação
: 1929
Tema
: metalinguagem
Livro
: Escola de samba: árvore
que esqueceu a raiz, p. 63
Editora
: Lidador/SEEC-RJ
Não digas Ismael Silva
Oh / não digas se ainda eu não te perdi / quem não sabe
há de pensar que eu ando atrás de ti //
Se a nossa amizade teve fim / Tu bem sabes que fui
mesmo eu quem quis / Eu não sei porque tu mentes / pois
mentira não ( ) //
Eu ainda fico triste a lembrar / apesar de ter deixado já de
ti / lamentando aquele dia de azar / em que eu te conheci.
Datação
: 1933
Tema
: relações amorosas
Disco
: Noel pela primeira vez
Gravadora
: Velas
Intérprete
: Francisco Alves
Não dou
liberdade a
mulher
Ismael Silva
Você quer eu não dou, ô, ô / Eu não dou liberdade a
mulher / Porque vou confessar / A nossa amizade / Pode
acabar //
Até aqui nosso amor / Tem um certo sabor / Que me faz
tanto bem, / Eu construí nosso lar / Mas você quer
acabar!...
Datação
: 1941
Tema
: relações amorosas
Dissertação
Em feitio de
samba: as crônicas de Paulo
da Portela e Ismael Silva
Não é isso
que eu
procuro
Ismael Silva
e Francisco
Alves
Não é isso que eu procuro / Você não me dá futuro / Me
deixe em paz / Tenho mais vantagem //
Eu juro que, hoje em dia / Mulher dentro da orgia / Não
quero mais //
Toda mulher da orgia / Assim disse o Ismael, / Não se
pode com certeza / Dizer que ela é fiel //
Quero mulher pra mim só / Não quero saber de sócio / E
você gosta de todos / Isso assim não é negócio //
Não digo que tenho raiva / Por você ser da orgia / Quero
dizer que não serve / Para minha companhia //
Sei que você não é feia / Tu és linda criatura / Meu bem,
que queres que eu faça / Não vou quebrar minha jura
Datação
: 1936
Tema
: relações amorosas
Disco
78 rpm, lado B (10251)
Gravadora
: Odeon
Intérprete
: Francisco Alves
Não é lá muito
difícil...
Paulo da
Portela
Não é lá muito difícil / acertar a marcação / o samba nasce
com a gente / está dentro do coração
Datação
: 1922-1949
Tema
: metalinguagem
Livro
: Paulo da Portela, traço
de união entre duas culturas, p.
151
Editora
: Funarte
Observação
: datação
aproximada estabelecida a
partir da biografia do
compositor
476
Não esqueça
de mim
Paulo da
Portela
Não esqueça de mim / fui o primeiro / não ouça as
injustiças / Que me fazem / Porque o nosso amor / É
verdadeiro / Esquecer-me de ti / Não posso mais / Basta
de tanta injúria / E todas estas falsidades / Maior será o
nosso amor //
Deixa que todo mundo fale / Cada um diz o que quer / Sem
saber o que dizer / Estamos sempre juntos / E o mundo
num conjunto / suavizando a nossa dor //
Se todos que nos castigam / Nos reclamam e nos obrigam
/ Querendo sofrer-nos só / É mais perfeito que eles saibam
/ Que o destino nos afague / Vivendo este amor só
Datação
: 1941
Tema
: relações amorosas
Monografia
: [Monografia sobre
Paulo da Portela] Candeia e
Araújo, 1980
Não faltará
ocasião
Ismael Silva
Por querer me contrariar, / Não queres dizer / Que eu
estou com a razão... / Eu ainda vou te provar... / Não
faltará ocasião. //
Enquanto contigo eu viver, / terei a maior prevenção... / Eu
quero saber, / se vais me esquecer... / Me dê uma
desilusão!... //
Eu não deixarei de falar, / por isso, não há nem talvez! / Se
queres teimar / e continuar, / me deixas então duma vez!
Datação
: 1935
Tema
: relações amorosas
Partitura
Editora
Musical RCA Ltda.
Não faz, amor
Cartola e
Noel Rosa
Não faz mal amor, / Deixa-me dormir / Ó minha flor, tenha
dó de mim / Sonhei, acordei assustado, / Receoso que
tivesses me enganado / Eu não durmo sossegado //
Só tens ambição e vaidade / Não pensas na felicidade / E
eu não descanso um momento / Por pensar que o teu
amor / É só fingimento / Mas eu vou entrar com o meu jogo
/ E vou pôr à prova de fogo / A tua sincera amizade / Para
ver se tu falaste verdade //
Amor sem penar é bem raro / O verbo cumprir custa caro /
Amor é bem fácil de achar / O que eu acho mais difícil / É
saber amar //
O mundo tem suas surpresas / Mas nós temos nossas
defesas / Por isso eu estou prevenido / Pra saber se sou
ou não traído
Datação
: 1932
Tema
: relações amorosas
Disco
: Mangueira e Portela:
velhas companheiras
Gravadoras
: Nikita Music
Intérprete
: Monarco
Não há
Ismael Silva,
Nilton
Bastos e
Francisco
Alves
Não há, / Não há quem não se iluda / Com teu sorriso
traidor / Dizem que vingança é pecado / Então tu podes
crer / Que eu serei um pecador. //
Nunca se deve / Confiar numa mulher / Porque quando
não se espera / Faz do homem o que ela quer / Por isso, a
nenhuma / Eu não darei confiança / Pois ela ilude o
homem / Como fosse uma criança. //
Mulher assim, / Deus me livre, não preciso, / Meu
benzinho, tu pensavas / Me iludir com teu sorriso, / Já
julgavas ser / Dona do meu coração, / Queres me ver
sofrer, / Desiste da pretensão.
Datação
: 1930
Tema
: relações amorosas
Disco
78 rpm, lado A (10747)
Gravadora
: Odeon
Intérprete
: Francisco Alves
Observação
: datação atribuída
a partir de Soares, 1985, p. 117
Não posso
viver sem ela
Alcebiades
Barcellos e
Cartola
Tive que contar a minha vida / A esta mulher fingida / Que
me faz sofrer / Esta dor que tanto me crucia, / Roubou toda
alegria do meu viver / Pode ser que ela ouvindo os meus
ais / Volte ao lar para viver em paz //
Esta malvada bem sabe o mal que me fez / Mas não faz
mal, eu lhe perdoo outra vez / Meu coração vive
reclamando noite e dia / Por isso eu peço que ela volte
para minha companhia
Datação
: 1941
Tema
: relações amorosas
Disco
: Cartola
Gravadora
: Marcus Pereira
Intérprete
: Cartola
Observação
: datação atribuída
a partir de Barboza da Silva e
Oliveira Filho, 2003, p. 377
Não quero
chorar
Cartola
Quando souberem / Que abandonei esta mulher / E não
chorei / Eu já pensei, que vão se admirar / É que mesmo
sempre fui / Muito indiferente / Jamais conheci paixão /
Meu coração não sente //
Quisera eu eternamente / Que me pertencesses / Mas se
ao outro que amas / Pra sempre esquecesses / Eu farei
todo o possível / Quando te abandonar / De nunca te
esquecer / Só não quero chorar.
Datação
: 1928-1980
Tema
: relações amorosas
Livro
: Cartola, os tempos idos,
p. 347
Editora
: Gryphus
Observação
: datação
aproximada estabelecida a
partir da biografia do
compositor
477
Não quero
mais (amar a
ninguém)
Cartola,
Carlos
Cachaça e
Zé da Zilda
Não quero mais / Amar a ninguém / Não fui feliz / O
destino não quis / O meu primeiro amor / Morreu como a
flor / Ainda em botão / Deixando espinhos / Que dilaceram
meu coração //
Semente de amor / Sei que sou desde nascença / Mas
sem ter vida e fulgor / Eis minha sentença / Tentei pela
primeira vez um sonho vibrar / Foi beijo que nasceu / E
morreu sem se chegar a dar //
Às vezes dou gargalhada / Ao lembrar do passado / Nunca
pensei em amor, / nunca amei nem fui amado / Se julgas
que estou mentindo jurar sou capaz / Foi simples sonho
que passou e nada mais.
Datação
: 1936
Tema
: relações amorosas
Disco
: Nervos de aço
Gravadora
: Odeon
Intérprete
: Paulinho da Viola
Não se deve
cantar glória...
Paulo da
Portela
Não se deve cantar glória / Antes da vitória / Vocês que
sorriam de mim / Na esperança do mais alto pedestal / O
seu castelo ruiu / Numa poeira infernal
Datação
: 1927
Tema
: cotidiano
Livro
: Paulo da Portela, traço
de união entre duas culturas, p.
152
Editora
: Funarte
Não te dou
perdão
Ismael Silva
Não te darei perdão / porque eu já aturei / tanta ingratidão /
eu jamais esquecerei //
O meu perdão / tu não terás / o teu amor não quero mais /
a tua ausência / não me maltrata / tua amizade a mim não
faz falta //
Eu não podia ter imaginado / agora é tarde / (...) / fizeste
mal / sem ter razão / por isso mesmo / não darei meu
perdão.
Datação
: 1929-1930
Tema
: relações amorosas
Disco
78 rpm, lado A (10579)
Gravadora
: Odeon
Intérprete
: Jonjoca
Não tenho
queixa
Ismael Silva
e David Raw
Do meu amor nada posso dizer / Porque com ela eu fico
em paz / Tudo que eu peço pra ela fazer / se bem eu digo /
melhor ela faz / sem dar pra trás //
Na nossa vida não há desprazer / O nosso amor é difícil ter
fim / Não tenho queixa do meu bem querer / Ela também
não tem queixa de mim / Antes assim.
Datação
: 1942
Tema
: relações amorosas
Disco
78 rpm, lado A (800050)
Gravadora
: RCA Victor
Intérprete
: Nelson Gonçalves
Não vá atrás
de ninguém
Ismael Silva
Aos meus vizinhos / Eu agrado também!... / Mas meus
carinhos / Só você é que tem! / Os meus rivais / Fazendo o
mal se entretêm... / Não chores mais... / Não vá atrás de
ninguém //
Retratos meus / Eu sempre tenho que dar! / Quem lhe
contou / Interpretou muito mal... / Só mesmo Deus / É
capaz de escapar / Da língua desse pessoal!...
Datação
: 1941
Tema
: relações amorosas
Disco
78 rpm, lado B (34822 )
Gravadora
: RCA Victor
Intérprete
: Ciro Monteiro
Não vejo jeito Ismael Silva
Você já se esqueceu / que se comprometeu / que ia
proceder direito / E eu acreditei / por isso perdoei / Fiz mal
/ porque não vejo jeito //
Estou sempre lhe chamando atenção / com calma como
todo o mundo vê / pois tudo que se diz de má fé / é sempre
preferido por você //
Pra mim você é um mau elemento / que vem já desde a
outra encarnação / critério, amizade, sentimento / São
coisas que você não faz questão.
Datação
: 1939
Tema
: relações amorosas
Disco
78 rpm, lado B (34519)
Gravadora
: Victor
Intérprete
: Aurora Miranda
Nazista, quem
és?
Cartola e
Carlos
Cachaça
Exterminemos de uma vez para sempre / Os nazistas /
Que mediocremente / Tiveram algumas conquistas /
Atacando friamente, sem respeitar / A neutralidade / A fé, a
paz, o amor, a liberdade / E pensaram que este céu, estas
matas sem fim / Seriam conquistadas tão fácil assim //
Saibam que este céu, este mar / Este lindo cenário /
Temos a defendê-lo os nossos expedicionários / Oriundos
da raça de Caxias / de Barroso e dos Tamandarés / Diante
desta gente, tão pura e tão forte, / Nazista, quem és?
Datação
: década de 1940
Tema
: nacionalismo
Livro
: Cartola, os tempos idos,
p. 123
Editora
: Gryphus
Nega bamba
Paulo da
Portela
Tem um prêmio para quem / descobrir a nega bamba / da
escola de samba / que compra barulho / por qualquer
dinheiro / faz o dó maior / bem direitinho / no cavaquinho /
toca cuíca / bate tamborim / enfrenta um pandeiro
Datação
: 1940
Tema
: metalinguagem
Monografia
: [Monografia sobre
Paulo da Portela], Candeia e
Araújo, 1980
478
Nem é bom
falar
Ismael Silva,
Nilton
Bastos e
Francisco
Alves
Nem tudo que se diz se faz / Eu digo e serei capaz de não
resistir / Nem é bom falar / se a orgia se acabar //
Tu falas muito, meu bem, / E precisas deixar / Senão eu
acabo dando pra gritar na rua: / - Oh! Eu quero uma
mulher bem nua //
Mas esta vida / Não há quem me faça deixar / Por falares
tanto, / A polícia quer saber / - Oh! Se eu dou meu dinheiro
todo a você //
Até que enfim / Eu agora estou descansado / Ela deu o
fora, / Foi morar lá na Favela / E eu não quero saber mais
dela
Datação
: 1931
Tema
: cotidiano
Disco
78 rpm, lado A (10745)
Gravadora
: RCA Victor
Intérprete
: Francisco Alves
Ninguém faz
Ismael Silva
e Paulo
Medeiros
Você me disse que, / Se acaso eu morresse, / Mandaria
uma coroa / Até cem mil réis / Pois então faça de conta
que eu morri / E, em vez de cem, você me empresta dez //
Não é preciso se assustar / Não quero o seu algum / Eu
gosto é de brincar / o seu não se espera nenhum / Até a
cor nunca se vê / Nem para um café / Por isso em você
ninguém faz fé
Datação
: 1952
Tema
: cotidiano
Disco
78 rpm, lado A (801039)
Gravadora
: Odeon
Intérprete
: Linda Batista
Ninguém tem
de achar ruim
Ismael Silva
De mim você não tem razão / de se queixar / Assim você
faz confusão / No nosso lar / Se eu sou do samba ninguém
tem / que achar ruim / Você me conheceu / vivendo assim
(tocando tamborim) //
Não vá pensar / Que dança, música e bebida enfim /
apareceram exclusivamente para mim / Você também se
por acaso / Numa farra entrar / Talvez até ocupe o meu
lugar (E sem se demorar)
Datação
: 1975
Tema
: relações amorosas
Disco
: Claridade
Gravadoras
: Odeon
Intérprete
: Clara Nunes
Nome feio Ismael Silva
A vocês vou fazer um pedido / Não é de dinheiro / Não
tenham receio / Se o meu nome ficar esquecido / Para não
me chamarem / De nenhum nome feio / Nome feio a que
me refiro / Não é nada disso que já estão pensando / É
Brás, Fedegoso, Pancrácio, Belmiro / Adão, Brederodes,
Pafúncio, Rolando //
Apesar de eu ter educação / Para participar do melhor
ambiente / Quando me fazem dizer palavrão / Digo:
inconstitucionalissimamente / Se eu tivesse me sentido mal
/ Não estava sorrindo, cantando a esmo / Que pergunta
besta desse pessoal / Pois quem é que não vê que eu /
Sou feio assim mesmo.
Datação
: 1922-1978
Tema
: metalinguagem
Disco
: Ismael Silva: peçam bis
Gravadora
: Funarte
Intérprete
: Dalva Torres
Nós dois Cartola
Está chegando o momento / De irmos pro altar, nós dois /
Mas, antes da cerimônia, / Devemos pensar: e depois? /
Terminam nossas aventuras / Chega de tanta procura /
Nenhum de nós deve ter / Mais alguma ilusão //
Devemos trocar ideias / E mudarmos de ideias, nós dois /
E, se assim procedermos, / Seremos felizes depois / Nada
mais nos interessa / Sejamos indiferentes / Só nós dois,
apenas dois, / Eternamente
Datação
: 1964
Tema
: relações amorosas
Disco
: Verde que te quero rosa
Gravadora
: RCA Victor
Intérprete
: Cartola
Novo amor Ismael Silva
Arranjaste um novo amor, meu bem! / Eu sou um infeliz,
bem sei! / Mas ainda tenho fé / Que hei de te ver chorar /
Quando souberes amar / Como eu te amei!... //
Tu não deves / De ter tanta pretensão / Olha que o tempo
muda, / A vida é uma ilusão... / Tu fazes pouco em mim /
Mas isto que bem me importa... / Ficas sabendo, meu bem,
/ Que o mundo dá muita volta!
Arranjei outra, / Que não troco por ninguém, / Já que tu me
abandonaste, / Há males que vêm pra bem... / Hoje em dia
sou feliz / Sem a tua ingratidão / Encontrei outro benzinho /
A quem dei meu coração!... //
Datação
: 1929
Tema
: relações amorosas
Disco
78 rpm, lado A (10357)
Gravadora
: Odeon
Intérprete
: Mário Reis
Nunca dei a
perceber
Ismael Silva
Não é só quem vive em pranto / Que sabe o que é sofrer...
/ Eu sofro e no entanto / Nunca dei a perceber! //
E são tristes meus ais... / Pois quando a gente sente / E
não chora / Sofre muito mais //
Pra fingir que vivo bem / Não conto a ninguém / Este meu
mal sem fim. / Mas, a calma não me vem / E eu mesmo
não sei / O que será de mim. //
Eu faço por não chorar / Para não demonstrar / Minha
grande aflição; / Só para desabafar, / Não quero enganar /
Meu pobre coração.
Datação
: 1933
Tema
: reflexões existenciais
Livro
: São Ismael do Estácio: o
sambista que foi rei, p. 35
Editora
: Funarte
479
O azul e
branco...
Paulo da
Portela
O azul e branco / Cores da nossa bandeira / O Rio
estamos aqui para abrilhantar o nosso festival
Datação
: 1922-1949
Tema
: cotidiano
Livro
: Paulo da Portela, traço
de união entre duas culturas, p.
152
Editora
: Funarte
Observação
: datação
aproximada estabelecida a
partir da biografia do
compositor
O grande
fingimento
Paulo da
Portela
Quem te vê assim risonha / Naturalmente nem sonha / a
maldade do teu riso / com um juramento eterno / vai me
levando ao inferno / dizendo que é paraíso //
És artista do chorar / vai depressa acreditar / que o teu
grande sofrimento / como um juramento santo / entretanto
não passa / de um grande fingimento
Datação
: 1922-1949
Tema
: relações amorosas
Livro
: Paulo da Portela, traço
de união entre duas culturas, p.
151
Editora
: Funarte
O inverno do
meu tempo
Cartola e
Roberto
Nascimento
Surge a alvorada, folhas a voar / E o inverno do meu
tempo / Começa a brotar, a minar / E os sonhos do
passado, do passado / Estão presentes no amor / Que não
envelhece jamais / Eu tenho a paz e ela tem paz / Nossas
vidas muito sofridas / Caminhos tortuosos entre flores e
espinhos demais / Já não sinto saudades / Saudades de
nada que fiz / No inverno do tempo da vida / Oh! Deus, eu
me sinto feliz.
Datação
: 1977
Tema
: reflexões existenciais
Disco
: Verde que te quero rosa
Gravadora
: RCA Victor
Intérprete
: Cartola
O meu nome
já caiu no
esquecimento
Paulo da
Portela
O meu nome já caiu no esquecimento / O meu nome não
interessa a mais ninguém // E o tempo foi passando / A
velhice vem chegando / Já me olham com desdém / Ai,
quanta saudade de um passado / Que se vai lá no além //
Chora, cavaquinho, chora / Chora, violão, também / O
Paulo no esquecimento não interessa a mais ninguém /
Chora, Portela, minha Portela querida / Eu que te fundei,
serás minha toda a vida.
Datação
: 1941
Tema
: reflexões existenciais
Livro
: Paulo da Portela, traço
de união entre duas culturas, p.
149
Editora
: Funarte
O mundo é um
moinho
Cartola
Ainda é cedo, amor / Mal começaste a conhecer a vida / Já
anuncias a hora de partida / Sem saber mesmo o rumo
que irás tomar //
Preste atenção, querida / Embora eu saiba que estás
resolvida / Em cada esquina cai um pouco a tua vida, / E
em pouco tempo não serás mais o que és //
Ouça-me bem, amor / Preste atenção o mundo é um
moinho / Vai triturar teus sonhos tão mesquinhos / Vai
reduzir as ilusões a pó //
Preste atenção, querida / De cada amor tu herdarás só o
cinismo / Quanto notares estás à beira do abismo / Abismo
que cavaste com teus pés.
Datação
: 1976
Tema
: reflexões existenciais
Disco
: Cartola
Gravadora
: Marcus Pereira
Intérprete
: Cartola
O que é feito
de você?
Cartola
O que é feito de você, / Oh, minha mocidade / Oh, minha
força, / A minha vivacidade / O que é feito dos meus
versos / E do meu violão? / Troquei-os sem sentir / Por um
simples bastão //
E hoje, quando passo, / A gurizada pasma / Horrorizada, /
Como quem vê um fantasma / E um esqueleto humano
assim vai / Cambaleando, quase cai, / Não cai //
Pés inchados, passos em falso, / Olhar embaçado, / Nem
um amigo a meu lado / Não há por mim compaixão / A
tudo vou assistindo / À ingratidão resistindo / Só sinto falta
/ Dos meus versos, / Da mocidade e do meu violão
Datação
: 1952 (depois de)
Tema
: reflexões existenciais
Disco
: Verde que te quero rosa
Gravadora
: RCA Victor
Intérprete
: Cartola
Observação
: datação atribuída
a partir de Barboza da Silva e
Oliveira Filho, 2003, p. 160
O que será de
mim
Ismael Silva
, Nilton
Bastos e
Francisco
Alves
Se eu precisar algum dia / de ir pro batente / não sei o que
será / Pois vivo na malandragem / e vida melhor não há //
Minha malandragem é fina / não desfazendo de ninguém /
Deus é quem nos dá a sina / e o valor dá-se a quem tem /
Também dou a minha bola / Golpe errado ainda não dei /
Eu vou chamar Chico Viola / que no samba ele é rei / (Dá
licença, seu Mário?) //
Oi, não há vida melhor / e vida melhor não há / Deixa falar
quem quiser / Deixa quem quiser falar / O trabalho não é
bom / Ninguém pode duvidar / Oi, trabalhar só obrigado /
Por gosto ninguém vai lá.
Datação
: 1931
Tema
: cotidiano
Disco
78 rpm, lado B (19780)
Gravadora
: Odeon
Intérpretes
: Francisco Alves e
Mário Reis
480
O riso e a dor
Paulo da
Portela
O riso que nossa face / às vezes trazemos / por mero
disfarce / Nós a esconder procuramos / Lágrimas que já
choramos / É sempre consolação / Se iludir conseguimos /
A concepção / Por este alguém / Por quem sofremos / E a
nossa dor / Assim escondemos //
Mas esta mágoa / Que deve jamais persistir / Creio que
paixão nenhuma / Pode o riso resistir / Põe de lado esta
dor / Que tanto atormenta / Só porque não és amado / A
vida muito lamentas / Laraiá, laraiá, laraiá.
Datação
: 1934
Tema
: relações amorosas
Monografia
: [Monografia sobre
Paulo da Portela], Candeia e
Araújo, 1980
O samba do
operário
Cartola,
Alfredo
Português e
Nelson
Sargento
Se o operário soubesse / Reconhecer o valor que tem seu
dia / Por certo que valeria // Duas vezes mais o seu salário
/ Mas como não quer reconhecer / É ele escravo sem ser /
De qualquer usuário // Abafa-se a voz do oprimido / Com a
dor e o gemido / Não se pode desabafar / Trabalho feito
por minha mão / Só encontrei a exploração / Em todo
lugar.
Datação
: década de 1950
(início)
Tema
: cotidiano
Livro
: Cartola: Os tempos idos,
p. 278-9
Editora
: Gryphus
O sol nascerá
Cartola e
Elton
Medeiros
A sorrir / Eu pretendo levar a vida / Pois chorando / Eu vi a
mocidade perdida //
Fim da tempestade, / O sol nascerá / Fim desta saudade, /
Hei de ter outro alguém para amar
Datação
: 1962
Tema
: reflexões existenciais
Disco
: Cartola
Gravadora
: Marcus Pereira
Intérprete
: Cartola
Observação
: datação atribuída
a partir de Barboza da Silva e
Oliveira Filho, 2003, p. 292
Oh, pra que
chorar
Paulo da
Portela
Oh! para que chorar / Só para enganar / Sentida quando
eu sei / Que és fingida / Só para iludir / Fazer pensar / E
depois tu sorrir //
Ora vai mulher / Já que teu destino quer / Vai não te
desejo mal / Sei que teu pesar / Um dia será fatal
Datação
: 1942
Tema
: relações amorosas
Monografia
: [Monografia sobre
Paulo da Portela], Candeia e
Araújo, 1980
Oleleô
Ismael Silva,
Nilton
Bastos e
Francisco
Alves
Tu não me tens amor, meu bem (oleleô) //
Você diz que não me quer / Você diz que me adora /
Quando tu me vê, mulher, / Por que é que você chora
(será promessa?) //
Até parece muamba / Eu assim não vi igual / Você não
gosta de samba / Nem baile de carnaval (vejam vocês) //
Com você não me acostumo / Eu vou dizer por que é /
Você não faz o que eu faço / Nem eu faço o que tu quer
(pra que teimar?) //
Não vale a pena teimar / Me conformo com a sorte / Por
isso não vou chorar / Nem pedir a Deus a morte (meu
santo é forte)
Datação
: 1931
Tema
: relações amorosas
Disco
78 rpm, lado B (10745)
Gravadora
: Odeon
Intérpretes
: Francisco Alves e
Mário Reis
Olhar assim
Paulo da
Portela
Olhar assim com desdém para mim / representa apunhalar
sem ter certeza / que fere sem a menor compaixão no
coração / Que instinto de mulher / Que natureza //
Seus olhos são dois flocos, / luminosos e sedutores / Se
com desprezo me olhas, me causas doenças, dores / Pelo
amor de Deus te peço / tenhas compaixão de mim / veja as
rimas destes versos / Meu bem, não olhes assim
Datação
: 1922-1949
Tema
: relações amorosas
Disco
: Clementina de Jesus
Gravadora
: Odeon
Intérprete
: Clementina de Jesus
Observação
: datação
aproximada estabelecida a
partir da biografia do
compositor
Opção
Cartola e
Evandro
Bóia
Deixei-me envolver num grande drama / Estou procurando
a solução / E cada vez é mais ardente a chama / No meu
sofrido e pobre coração / Sei que preciso optar /
Escolhendo uma só pra viver / E a outra terá que se
conformar / Por certo vai tentar me esquecer //
Nos braços de uma, só alegria / Com a outra, passatempo
em vão / Por isso a minha vida é tão vazia / Que eu tenho
que fazer a opção.
Datação
: 1928-1980
Tema
: relações amorosas
Livro
: Cartola: Os tempos idos,
p. 348
Editora
: Gryphus
Observação
: datação
aproximada estabelecida a
partir da biografia do
compositor
Ópio
[Beijo de ópio]
Paulo da
Portela
Dizem que os teus beijos é igual ao ópio / Que sonhos de
luz fazem gozar / Mata meu desejo neste instante / Dai-me
teu beijo importante / Quero dormir e sonhar
Datação
: 1926
Tema
: relações amorosas
Livro
: Paulo da Portela, traço
de união entre duas culturas, p.
151
Editora
: Funarte
481
Ordene(s) e
farei
Cartola e
Aluísio Dias
Meu amor / Minha flor / Teu olhar reluz / Inspira amor,
seduz / Quanto te vejo / Sinto em mim um calor ô ô / Só
por ti sofrerei / Até condenado à morte serei / Meu amor //
Os teus olhos tão lindos / Da cor do luar / Os teus olhos
que fazem meus olhos chorar / Escravizado para sempre
serei / Estarei ao teu lado / O que precisares / Ordenes,
farei.
Datação
: década de 1940
Tema
: relações amorosas
Disco
: Cartola
Gravadora
: Marcus Pereira
Intérprete
: Cartola
Observação
: datação atribuída
a partir de Barboza da Silva e
Oliveira Filho, 2003, p. 292
Orgia Cartola
Orgia, hoje és minha inimiga / Os sofrimentos me obrigam /
A me afastar de você / Adeus, violão / Amigo leal / Estes
versos que eu fiz / Devem ser / A rima final
Datação
: 1928-1980
Tema
: metalinguagem
Livro
: Cartola: Os tempos idos,
p. 340
Editora
: Gryphus
Observação
: datação
aproximada estabelecida a
partir da biografia do
compositor
Ouro, desça
do seu trono
Paulo da
Portela
Ouro, desça do seu trono / Venha ver o abandono / De
milhões de almas aflitas / como gritam / Sua majestade, a
prata, / Mãe ingrata indiferente e fria / Sorri da nossa
agonia //
Diamantes, safiras e rubis / São pedras valiosas / Mas eu
não troco por ti / Por que és mais preciosa / De tanto ver o
poder / Prevalecer na mão do mal / O homem deixa-se
vender / A honra pelo vil metal //
Nesta terra sem paz / com tanta guerra / a hipocrisia se
venera / o dinheiro é quem impera //
Sinto minha alma tristonha / de tanto ver falsidade / e
muitos já sentem vergonha / do amor e honestidade
Datação
: 1945
Tema
: reflexões existenciais
Disco
: Axé, gente amiga do
samba
Gravadora
: WEA / Atlantic
Intérpretes
: Candeia e Velha
Guarda da Portela
Ouvi dizer /
Ouvi falar...
Paulo da
Portela
Ouvi dizer / Ouvi falar / Que a Lira do Amor / Este ano não
desfilará / Porque a tristeza lhe impera / Por causa da
morte / Do nosso amigo Caquera //
Foi num dia de alegria / Que essa tragédia se deu / Foi no
carnaval passado / Que o Caquera morreu / Já não se
ouve o canto mais / Daquele sabiá / Toda Lira está em
pranto / Todo mundo a chorar.
Datação
: 1947
Tema
: metalinguagem
Livro
: Paulo da Portela, traço
de união entre duas culturas, p.
151
Editora
: Funarte
Pai João Cartola
Abre a porta, nego / Por ordem do inspetor / A minha
fantasia / Vai ser de pierrô //
Pai João / Onde está mãe Maria / Pai João / Onde está tua
fia / Que até hoje não mais voltou / A minha fantasia / Vai
ser de pierrô
Datação
: 1928-1980
Tema
: cotidiano
Livro
: Cartola: Os tempos idos,
p. 344
Editora
: Gryphus
Observação
: datação
aproximada estabelecida a
partir da biografia do
compositor
Pam-pam-
pam-pam
[Bata com a
cabeça]
Paulo da
Portela
Pam-pam-pam-pam / Quem é que está batendo aí / Pam-
pam-pam-pam / Ora bate com a cabeça / Antes que o mal
cresça / Antes que eu me aborreça / Pam-pam-pam-pam /
Ora bate com a cabeça //
Batem na porta da frente / Corro na porta de trás / Um
homem perde a cabeça / Sem saber bem o que faz / Se
tiver coragem, venha / Assombração que apareça / Pam-
pam-pam-pam / Ora bate com a cabeça / Pam-pam-pam-
pam / Ora bate com a cabeça
Datação
: 1935
Tema
: cotidiano
Livro
: Paulo da Portela, traço
de união entre duas culturas, p.
148
Editora
: Funarte
Papagaio
linguarudo
Paulo da
Portela
Papagaio linguarudo / Se deixar eu falar / De muita coisa /
ficarás mudo
Datação
: 1922-1949
Tema
: metalinguagem
Monografia
: [Monografia sobre
Paulo da Portela], Candeia e
Araújo, 1980
Observação
: datação
aproximada estabelecida a
partir da biografia do
compositor
482
Para me livrar
do mal
Ismael Silva
e Noel Rosa
Estou vivendo com você / Num martírio sem igual / Vou
largar você de mão / Com razão / Para me livrar do mal //
Supliquei humildemente / Pra você endireitar / Mas agora
infelizmente / Nosso amor vai se acabar / Vou embora
afinal / Você vai saber por que / É pra me livrar do mal /
Que eu fujo de você //
Você teve a minha ajuda / Sem pensar em trabalhar /
Quem se zanga é que se muda / E eu já tenho onde morar
/ Nunca mais você encontra / Quem lhe faça o bem que eu
fiz / Levei muito golpe contra / Passe bem, seja feliz
Datação
: 1932
Tema
: relações amorosas
Disco
78 rpm, lado A (10922)
Gravadora
: Odeon
Intérprete
: Francisco Alves
Para mim
perdeste o
valor
Ismael Silva
Eu vou deixar certa amizade / Que para mim não convém /
Ela só usa de falsidade / Dizendo me querer bem //
Juro, não nego, / Levo saudades / Deste meu único amor /
Sei que jamais terei piedade / Pra mim perdeste o valor //
Ai, como é triste viver assim / Enganado por seu bem / Sei
que jamais terei piedade / Não quero amor de ninguém
Datação
: 1929
Tema
: relações amorosas
Disco
78 rpm, lado B (10441)
Gravadora
: Odeon
Intérprete
: Francisco Alves
Para que
havemos de
mentir
[Por que
havemos de
mentir]
Paulo da
Portela
Para que havemos de mentir / O subúrbio está é bom, /
Venham ver, não é história / Se por ventura estou errado /
Dou a mão à palmatória.
Datação
: 1925
Tema
: metalinguagem
Disco
: Homenagem a Paulo da
Portela
Gravadoras
: Nikita Music /
Office Sambinha (Japão)
Intérprete
: Velha Guarda da
Portela
Para quem
quer sossego
Cartola
Para quem gosta de sossego / Eis a solução / Corretor
papa-defuntos / Vende pedaços de chão / Livra-te da
barulhada / Que fere os teus ouvidos / Ainda tem outras
vantagens / Não há ares poluídos //
Os vizinhos ao teu lado / São uns caladões / De tal modo
reservados / Que não vão nem aos portões //
Por um grupo de amigos / Eu também fui convidado / Mas
mandei dizer a eles / Para esperar sentados.
Datação
: 1973
Tema
: cotidiano
Livro
: Cartola, os tempos idos,
p. 275-6
Editora
: Gryphus
Partiu Cartola
Partiu / E não me disse mais nada / Já ia distanciada /
Quando ela parou e acenou com a mão / Morreu //
Nem notícias eu tenho / Da mulher que tanto venero /
Deus meu, foi embora / Não sei onde mora / Notícias
espero / É tão triste um adeus, uma despedida / Vê se
apieda-te, Deus / Cura-me esta ferida //
Há uma nódoa escura / Na parede do meu quarto / Que a
todos entristece / E a minha tortura / É o teu retrato / Esta
nódoa é o símbolo de consolação / A ela sempre pergunto
/ Se voltas ou não.
Datação
: 1937
Tema
: relações amorosas
Disco
: Cartola entre amigos
Gravadora
: Funarte
Intérprete
: Cláudia Savaget
Pauliceia
Paulo da
Portela e
Cartola
Todos que pertencem ao samba / No Rio te mandam um
abraço. / Pauliceia, ô / Pauliceia, ô / Queremos com este
samba / Estreitar os nossos laços / Esse samba traduz a
nossa união. / Pauliceia, ô / Pauliceia, ô / Seja ele a voz do
coração / Ele é o reduto destas rimas sinceras / Tiradas da
alma em doces quimeras / Esperamos guardá-las como
recordação / E sendo assim nada mais poderá dissolver /
Esta nossa união, / Paulistas do meu coração.
Datação
: 1941
Tema
: metalinguagem
Livro
: Paulo da Portela, traço
de união entre duas culturas, p.
150
Editora
: Funarte
Pecadora
mulher
Paulo da
Portela
Jamais te esquecerei / Pecadora mulher / Com os beijos
que te dei / Eu fiz-te meu querer / Meu amor desprezaste /
Em busca de aventura / Mas bem caro pagaste / O teres
sido tão perjura //
Ele bem cedo te deixou / E na lama da vida caíste / Ele te
abandonou / Após cenas bem tristes / Bateu-te e
escorraçou / Deixou-te sem carinho / Bem vês nunca te
amou / Aquele por quem / Deixaste sozinho / E sem
ninguém.
Datação
: 1938
Tema
: relações amorosas
Monografia
: [Monografia sobre
Paulo da Portela] Candeia e
Araújo, 1980
483
Peito vazio
Elton
Medeiros e
Cartola
Nada consigo fazer / Quando a saudade aperta / Foge-me
a inspiração / Sinto a alma deserta //
Um vazio se faz em meu peito / E de fato eu sinto em meu
peito um vazio / Me faltando as tuas carícias / As noites
são longas e eu sinto mais frio //
Procuro afogar no álcool a tua lembrança / Mas noto que é
ridícula a minha vingança / Vou seguir os conselhos de
amigos / E garanto que não beberei nunca mais / E, com o
tempo, esta imensa saudade que eu sinto se esvai
Datação
: 1976
Tema
: relações amorosas
Disco
: Cartola
Gravadora
: Marcus Pereira
Intérprete
: Cartola
Perdão, meu
bem
Cartola
Perdão, meu bem perdão / atacou-me o coração, / Falei
demais / sou bom rapaz / no modo de proceder / perdão,
porque / se acabar nossa amizade / eu vou morrer / sinto
dores, / são saudades. //
Se você não reconhece / O meu arrependimento / Podes
crer, meu amor / Que o que eu digo / É sem fingimento //
Às vezes, cheio de ódio, / fala-se o que não deve / são
palavras de amor ofendido / Que não se escrevem
Datação
: 1932
Tema
: relações amorosas
Disco
: Cristina Buarque e
Terreiro Grande ao vivo
Gravadora
: Dançapé
Intérpretes
: Cristina Buarque e
Terreiro Grande
Observação
: datação atribuída
a partir de Barboza da Silva e
Oliveira Filho, 2003, p. 377
Perdoa
[Agradeço
todos os
feitos seus]
Paulo da
Portela e
Cartola
Não, / não vivo bem a seu lado / Apesar de ser tratado /
Com todo afeto e carinho / Não, não lhe tenho amizade, /
Bem vês / Deixa-me seguir o meu caminho / Reconheço
todos os feitos seus / Mas deixa-me voltar / Para junto aos
meus //
Agradeço comovido / E muito sentido / Por tudo que faço /
Ao bem que me fez / Perdoa / Mas quero voltar / Para
junto daqueles que a vida / Sofrendo ou chorando, /
Cantando, sorrindo, / É boa. //
Não consideres isso / uma ingratidão / Atendo a voz do /
meu coração.
Datação
: 1945
Tema
: cotidiano
Livro
: Paulo da Portela, traço
de união entre duas culturas, p.
153
Editora
: Funarte
Pesadelo
Cartola e
Nuno Veloso
De que servem os olhos meus / Se não veem os olhos
teus / Muito embora estejamos lado a lado / Pra que
servem os braços meus / Se não entrelaçam os teus /
Como se eu fosse um mutilado / Eu queria dizer-te
baixinho / Quanto és bela, és pura, és santa / Quando
chego ao teu lado / Me foge a voz da garganta / Eu pedi ao
grande Deus / Que viesse aos sonhos meus / Sonhos
estes, puro, eterno / E deitei-me satisfeito / Repousei as
mãos ao peito / Olhos fixos no teto / E qual foi a surpresa
maior / E pior tive um pesadelo / Onde tu gritava
horrorizada / Não desejo vê-lo.
Datação
: 1928-1980
Tema
: relações amorosas
Livro
: Cartola, os tempos idos,
p. 335
Editora
: Gryphus
Observação
: datação
aproximada estabelecida a
partir da biografia do
compositor
Podes
gargalhar
Paulo da
Portela
Reclamo com muita razão / O mal que me causaste / Não
é porque não tenho forças / Para resistir / Sinto-me fugir a
calma / Doer em cheio dentro d'alma / Para poder zombar /
E com prazer sorrir / Porém tu podes gargalhar / Porque o
teu prazer / Também terá seu fim / Agora podes rir de mim
/ Até sentir-se bem / Em saber do meu mal / Mesmo assim
não te odeio / Porém tu deves ter receio / Porque o teu
cruel instinto / Pode ser fatal //
Ai daquele como eu / Que tiver a desdita de te conhecer /
Na sua arte de perder / Com este modo de olhar / Sorrindo
estás fingindo / Jurando estás sentindo / Se o teu maior
prazer é escravizar.
Datação
: 1924
Tema
: relações amorosas
Monografia
: [Monografia sobre
Paulo da Portela], Candeia e
Araújo, 1980
Por causa de
alguém
Ismael Silva
Existe mal que vem pra bem / conforme há bem que vem
pra mal / por ti fiquei sem um vintém / tu logo ficaste meu
rival //
Meteste-me aos pés / por causa de alguém / agora não és
um joão-ninguém / ( ) parou de uma vez / tu tiraste o pão
de muitos, talvez
Datação
: 1942
Tema
: cotidiano
Disco
78 rpm, lado B (12157)
Gravadora
: Odeon
Intérprete
: Odete Amaral
484
Por você eu
chorei
Cartola
Meu amor, por você eu chorei / Eu não sei o que fiz, eu
não sei / Por você eu serei bem capaz / De fazer o que
ninguém faz //
Eu bem sei, não sou mais do que um covarde / Mas para
corrigir-me é bem tarde / Sofri tanto, senti em saber / Ai
meu Deus, eu não sei o que fazer
Datação
: 1928-1980
Tema
: relações amorosas
Livro
: Cartola, os tempos idos,
p. 336
Editora
: Gryphus
Observação
: datação
aproximada estabelecida a
partir da biografia do
compositor
Pouco
importa
Cartola
Pouco importa que me trates com desprezo / Que me
negues amor, carinhos, beijos / Pouco importa, porque
somente você, / Com você, eu vivo iludido / Mas, se lhe
perder, naturalmente, eu fico perdido //
O ciúme e o desprezo são armas de dois gumes / Quanto
mais se digladiam, / Aumentam os queixumes / Felizmente
eu sou dotado de resignação / Para não ferir meu coração.
Datação
: 1975
Tema
: relações amorosas
Disco
: Maria Creuza e os
Grandes Mestres do Samba
Gravadora
: RCA Victor
Intérprete
: Maria Creuza
Preconceito Cartola
Crime, é mais que um crime / É desumanidade, esta
perseguição / É o cúmulo da maldade / Se todo mundo
sabe que nós nos casaremos, / Quer queiram, quer não //
Oh, maldito preconceito / Afasta-te no ajeito, aqui nada
conseguirás / Porque recebemos dos céus a bênção de
Jesus, / Que é mensagem de paz //
Nosso amor não acaba mais / Viveremos sempre em paz
Datação
: 1959
Tema
: relações amorosas
Disco
: Nova história da música
popular brasileira
Gravadora
: Abril Cultural
Intérprete
: Cartola
Observação
: datação atribuída
a partir de Barboza da Silva e
Oliveira Filho, 2003, p. 382
Pudesse meu
ideal
Cartola e
Carlos
Cachaça
Pudesse meu ideal / Que é o carnaval / De encantos mil /
Imortalizar neste poema / Cor de anil / Verossímil / E levá-
lo coroado / Pelas galas da história / Relembrando a
memória / Do meu querido Brasil / Pudesse um dia / Juro
faria / Do samba o maior herói / Concorrerias / Com as
vitórias / Que existiam entre nós / Seriam páginas de
intenso fulgor / E o passado teria maior valor
Datação
: 1932
Tema
: metalinguagem
Livro
: Cartola, os tempos idos,
p. 98-9
Editora
: Gryphus
Qual foi o mal
que eu te fiz
(Diz)?
Cartola
Diz, qual foi o mal que eu te fiz? / Eu não te farei esta
ingratidão / Foi um falso contra a nossa amizade / não
creias, não pode ser verdade //
Não creias nestas mentiras / que roubam nossa alegria /
Os invejosos se vingam / armados de hipocrisia / A mentira
infelizmente / o mais forte amor destrói / Mas se eu não
tenho remorso / O meu coração não dói. //
Disseste que te enganei / Não sou tão fingido assim /
Talvez queiras um pretexto / pra viver longe de mim /
Disseram que eu traía / a nossa grande amizade / E tão
criminosa a culpa / que não pode ser verdade
Datação
: 1932
Tema
: relações amorosas
Disco
78 rpm, lado B (10995)
Gravadora
: Odeon
Intérprete
: Francisco Alves
Qual um
farol...
Paulo da
Portela
Qual um farol / o astro sol / na ascensão de mais sublime
luz / na amplidão sim reluz / qual um crisol que seduz / e
no azul / surge taful / qual um crisol a rutilar mais luz / na
sedução / na amplidão / do astro rei que seduz / calmo
ascender / do astro sol resplandecer / no arrebol
Datação
: 1922-1949
Tema
: natureza
Livro
: Paulo da Portela, traço
de união entre duas culturas, p.
156
Editora
: Funarte
Quando
desperta a
cidade...
[Por teu amor]
Paulo da
Portela
Quando desperta a cidade / Numa alegria sem par / Ao
raiar da passarada / Quando começa a cantar / Ao longe
Febo a sorrir / Derrama raios de luz / Sobre os quadros
verdejantes / Fazendo as flores florir //
A tarde chega / Mansa e serena / Esta grandeza / Suave e
amena / Acetinada / Surge a lua, / Descortinando / O céu
de anil / Esta grandeza / No céu flutua / E nos convida /
Sempre a bailar / Em homenagem / À natureza / A noite
vem / Nos saudar.
Datação
: 1933
Tema
: natureza
Livro
: Paulo da Portela, traço
de união entre duas culturas, p.
155-6
Editora
: Funarte
Quando o
estrangeiro
elogia...
Paulo da
Portela
Quando o estrangeiro elogia / Por que não ter alegria /
Como não se sentir prosa? / Ipanema é a sala de visita /
Da cidade mais bonita / Que se diz maravilhosa
Datação
: 1935 (depois de)
Tema
: Brasil
Livro
: Paulo da Portela, traço
de união entre duas culturas, p.
154
Editora
: Funarte
485
Quando
silencia a voz
das aves...
Paulo da
Portela
Quando silencia a voz das aves / (De harmonias tão
suaves) / a noite vem a terra amortalhar / (Para em sono
se engolfar) / Nos roseirais as flores segredando /
(Graciosas baloiçando) / Ensaiam, se estreitando, O verbo
amar //
Aí vem a primavera / Alegrar a nossa vida / banhar de
aroma / o lívido das selvas / Teu sorriso, ó amor, //
No teu jardim florido, encantadoramente / aí vem a
primavera alegrar a uma vida / o teu sorriso / narcotiza o
ambiente / E as lindas borboletas / Voejando alegremente.
//
Vem, borboleta, brejeira, voar / Em teu reino imperar, /
Ruflam suas asas / Nas manhãs cantar / Vem, borboleta,
brejeira, voar / Em teu reino imperar / Ele, o Rei Momo / a
glória conquistar.
Datação
: 1935
Tema
: natureza
Livro
: Paulo da Portela, traço
de união entre duas culturas, p.
149
Editora
: Funarte
Quando
souberes
amar
Ismael Silva
O perdão eu te darei / Quando souberes amar / Mulher
porque jamais pensei / Em você me abandonar //
Tenho um coração / Poderei lhe perdoar / Mas da sua
ingratidão / Sempre hei de me lembrar //
Sei que estás arrependida / Por isso pedes perdão / Já que
tu segues nova vida / Eu te darei meu coração
Datação
: 1930
Tema
: relações amorosas
Livro
: Ismael Silva: samba e
resistência, p. 90
Editora
: José Olympio
Que nem
pimenta
Cartola
É quente que nem pimenta / Amarga que nem jiló /
Mulatinha faceira / Vem morar em Mangueira / Que aqui é
melhor
Datação
: 1928-1980
Tema
: metalinguagem
Livro
: Cartola: Os tempos idos,
p. 289-90
Editora
: Gryphus
Observação
: datação
aproximada estabelecida a
partir da biografia do
compositor
Que sejam
bem-vindos
Cartola
Por Deus, não posso entender / Por que vamos chorando /
Se os nossos cicerones / São aves cantando /
Lateralmente, as flores / Deitam aroma sorrindo / E ouço
da natureza: / Que sejam bem-vindos //
O vento, de quando em quando, / Num sussurro ameno /
Obriga toda a floresta a nos fazer aceno / É um festival de
alegrias / Que me põe a imaginar / Não sei se devemos rir
ou chorar
Datação
: década de 1960
Tema
: natureza
Disco
: Cartola, documento
inédito
Gravadora
: Eldorado
Intérprete
: Cartola
Que sejas
bem feliz
Cartola
Se bom pra você for, / Podes partir, amor / E que sejas
feliz, / E muito bem feliz //
Que Deus e a natureza / As aves nos seus ninhos / As
flores pela estrada / Perfumem todos os caminhos //
Eu aqui ficarei / Por você rezarei / Todas as tardes, / Ao
bater a Ave-Maria //
Que sejas bem feliz / Mas leves-me na mente / Que
cresçam suas glórias / E as minhas lágrimas contente
Datação
: 1975
Tema
: relações amorosas
Disco
: Cartola, documento
inédito
Gravadora
: Eldorado
Intérprete
: Cartola
Quem espera
sempre
alcança
[Orgulho,
hipocrisia]
Paulo da
Portela
Orgulho, hipocrisia, vaidade e nada mais / São três coisas
que em menos de um segundo se desfazem / O mundo é
mesmo assim, cheio de ilusão / Hás de te convencer, meu
coração //
Não sei porque tu és tão orgulhosa / Por isso muito ainda
hás de chorar / Pois na verdade és bela e formosa / Mas
um dia a formosura há de te abandonar //
Ainda tenho alguma esperança / Que um dia hás de perder
a pretensão / Por isso eu digo: quem espera sempre
alcança / E mais tarde hás de ver quem é que tem razão.
Datação
: 1932
Tema
: reflexões existenciais
Disco
78 rpm, lado B (10837)
Gravadora
: Odeon
Intérprete
: Mário Reis
Quem me
sorrir
[Quem me vê
sorrindo]
Cartola e
Carlos
Cachaça
Quem me vê sorrindo pensa que estou alegre / O meu
sorriso é por consolação / Porque sei conter para ninguém
ver / O pranto do meu coração //
O pranto que verti por esse amor talvez / Não
compreendeste e se eu disser não crês / Depois de
derramado, ainda soluçando, / Tornei-me alegre, estou
cantando //
Compreendi o erro em toda a humanidade / Uns choram
por prazer e outros por saudade / Jurei e a minha jura
jamais eu quebrarei / E todo o pranto esconderei
Datação
: 1936
Tema
: reflexões existenciais
Disco
: Native Brazilian Music
Gravadora
: Columbia
Intérprete
: Cartola
Observação
: datação atribuída
a partir de Barboza da Silva e
Oliveira Filho, 2003, p. 292
486
Quem não
quer sou eu
Ismael Silva
e Noel Rosa
Quando eu queria o teu amor / Não davas atenção ao meu
/ Pra mim tu não tens mais valor / Agora quem não quer
sou eu //
Observo que, hoje em dia, / Quem não quis diz que me
quer / Cabe muita hipocrisia / Num capricho de mulher /
Vou viver desiludido, / Sem amor, sem ideal / Pra não ser
submetido / A desejo tão banal //
Ao ouvir tua proposta, / Tão fingidas frases juntas / Achei
uma só resposta / Que responde a mil perguntas / Hás de
ter, em tua vida, / Um destino igual ao meu / Podes ir
desiludida, / Hoje quem não quer sou eu
Datação
: 1933
Tema
: relações amorosas
Disco
: Cartola - música
brasileira deste século por seus
autores e intérpretes
Gravadora
: SESC -SP
Intérprete
: Ismael Silva
Observação
: datação verificada
em www.dicionariompb.com.br
Quem nos
trouxe por
aqui...
Paulo da
Portela
Quem nos trouxe por aqui / Foi quem deu o golpe errado /
Pois agora nossas pastoras / Estão com os pés molhados
Datação
: 1922-1949
Tema
: cotidiano
Livro
: Paulo da Portela, traço
de união entre duas culturas, p.
151
Editora
: Funarte
Observação
: datação
aproximada estabelecida a
partir da biografia do
compositor
Quero
sossego
Ismael Silva
e Nilton
Bastos
Quero viver sempre descansado / embora abandonado /
até morrer / porque a vida de quem ama / é sofrer / é sofrer
//
Não hei de dar mais golpe errado / eu também sofri / eu
tenho me enganado / hoje vivo sem pensar / porque não
quero mais esse golpe baixo //
Embora eu abandonado / tenha mais prazer / não vivo
amofinado / agora eu sou bem feliz ( ) ter a vida que eu
quis //
Datação
: 1931
Tema
: relações amorosas
Disco
78 rpm, lado A (10158)
Gravadora
: Odeon
Intérprete
: Araci Cortes
Quitandeiro
Paulo da
Portela
Quitandeiro, leva cheiro e tomate / Na casa do Chocolate
que hoje vai ter macarrão / Prepara a barriga macacada /
Que a boia tá enfezada e o pagode fica bom //
Chega só 30 litros de uca / Para fechar a butuca / Desses
negos beberrão / Chocolate, tu avisa à crioula / Que
carregue na cebola e no queijo parmesão
Datação
: 1938
Tema
: cotidiano
Disco
: História das escolas de
samba, Portela
Gravadora
: Marcus Pereira
Intérprete
: Velha Guarda da
Portela
Observação
: datação atribuída
a partir de Candeia e Araújo,
1980, p. 5
Receio Ismael Silva
Creio que me queres cegamente / Eu porém tenho receio /
De que fiques diferente / Antes que tu mudes de ideia / Já
que somos tão amantes / Façamos a nossa estreia. //
O teatro improvisado / Seria meu barracão / Muito bem
ornamentado / Com a sua apresentação. //
Eu bem sei que os concorrentes / Andam sempre de
alcateia / Sejamos indiferentes / Ao critério da plateia.
Datação
: 1922-1978
Tema
: relações amorosas
Disco
: Se você jurar
Gravadora
: RCA Victor
Intérprete
: Ismael Silva
Observação
: datação
aproximada estabelecida a
partir da biografia do
compositor
Ri pra não
chorar
Ismael Silva
e Francisco
Alves
Nem sempre o riso é alegria / Quantas vezes noite e dia /
Nós levamos a cantar / Pra não chorar, / Mas como há um
ditado / "Quem espera sempre alcança" / Nós vamos
alimentando / Essa esperança. //
Vamos reagir / No que possa vir, / Pois lutar, / Pra vencer, /
É saber viver. //
Mesmo sem prazer / Rindo sem querer / Nós devemos /
Disfarçar / Pra não chorar
Datação
: 1931
Tema
: reflexões existenciais
Disco
78 rpm, lado A (10850)
Gravadora
: Odeon
Intérpretes
: Francisco Alves e
Mário Reis
Rir
Cartola e
Noel Rosa
Rir, não se ri de quem padece / Sofre, meu coração sabe
dizer / Ri, quando vê alguém chorar / Deus é justo e
verdadeiro / Por quem eu tenho chorado / Tenho fé em me
vingar //
Às vezes é um sorriso / Que acompanha uma esperança /
Outras vezes é um riso / Que provoca uma vingança //
Meu juízo se revolta / Quando vejo alguém zombar / O
mundo dá muita volta / Quem zombou pode chorar
Datação
: 1933 (cerca de)
Tema
: relações amorosas
Disco
: Noel pela primeira vez
Gravadora
: Velas
Intérpretes
: Francisco Alves e
Mário Reis
487
Rolam nos
meus olhos
Cartola
Rolam nos meus olhos / Lágrimas sentidas / Somente em
saber / Que te perdi por toda a vida / Nem ajoelhada te
darei perdão / Só porque você / Magoou meu coração //
Desde o dia em que partiste / A saudade morou em meu
peito / Eu já procurei alguém / Mas não há jeito / Coração,
o que é que esperas / De um amor tão desleal? / Não
estás vendo, coração, ela partiu, / Causando tanto mal.
Datação
: 1947 (cerca de)
Tema
: relações amorosas
Disco
: Cartola entre amigos
Gravadora
: Funarte
Intérprete
: Creusa
Observação
: datação atribuída
a partir de Barboza da Silva e
Oliveira Filho, 2003, p.154
Sala de
recepção
Cartola
Habitada por gente simples e tão pobre / Que só tem o sol
que a todos cobre, / Como podes, Mangueira, cantar? //
Pois então saiba que não desejamos mais nada, / A noite,
a lua prateada / Silenciosa, ouve as nossas canções / Tem
lá no alto um cruzeiro / Onde fazemos nossas orações / E
temos orgulho de ser os primeiros campeões //
Eu digo e afirmo que a felicidade aqui mora / E as outras
escolas até choram / Invejando a tua posição / Minha
Mangueira, és a sala de recepção / Aqui se abraça o
inimigo como se fosse irmão.
Datação
: 1941 (depois de)
Tema
: metalinguagem
Disco
: Cartola
Gravadora
: Marcus Pereira
Intérpretes
: Cartola e Creusa
Observação
: datação atribuída
a partir de Barboza da Silva e
Oliveira Filho, 2003, p. 148
Sambar /
Salve a folia...
Paulo da
Portela
Sambar! / Salve a folia / Cantar! / Salve a orgia
Então cantaremos todos / em voz geral / Só meu samba /
É o nosso ideal.
Datação
: 1922-1949
Tema
: metalinguagem
Livro
: Paulo da Portela, traço
de união entre duas culturas, p.
155
Editora
: Funarte
Observação
: datação
aproximada estabelecida a
partir da biografia do
compositor
Se a bandeira
brasileira é
linda...
Paulo da
Portela
Se a bandeira brasileira é linda / A sua descrição vale um
tesouro / O verde representa as nossas matas / O azul, o
nosso céu / O amarelo o nosso ouro
Datação
: 1928
Tema
: Brasil
Livro
: Paulo da Portela, traço
de união entre duas culturas, p.
154
Editora
: Funarte
Se eu tiver de
escolher
Arlindo
Marques
Júnior,
Roberto
Roberti e
Ismael Silva
Se eu tiver de escolher / Entre o samba e você / Vai ser de
amargar / Sem você eu não vivo / E também sem o samba
/ Não posso passar / Ai meu Deus! / Como é que vai ser, /
se eu tiver de escolher / Entre o samba e você / Amor /
Não é tudo que se possa desejar / O samba / Também
merece ter o seu lugar / Você não leve a mal / Se eu me
descuidar / E for sambar.
Datação
: 1946
Tema
: metalinguagem
Partitura
Editora
E. S. Mangione
Se eu
tivesse...
Cartola
Se eu tivesse / Com que fizesse / Que você deixasse / De
olhar pra mim / Não vivia sofrendo / Nem de mim
maldizendo / Porque os seus olhos malvados / Querem
assim / Existe neste reduto / Alguém que eu venero / E
quero tanto bem / Fiquei triste / Porque me disseste / Que
essa pessoa que eu quero / Não pode gostar de ninguém.
Datação
: década de 1930
Tema
: relações amorosas
Livro
: Cartola: Os tempos idos,
p. 95-6
Editora
: Gryphus
Se o amor é
isso
[Justa razão]
Aluísio Dias
e Cartola
Eu fui infeliz enquanto quis dar-te atenção / Sei quanto
sofri, se desisti foi com razão / Se o amor é isso, o que
encontrei, / Nunca mais eu amarei //
A nossa vida era calma / Havia paz em minha alma / Mas
você foi além da imaginação / Brigas e tantos queixumes /
E o fantasma do ciúme / Foram a causa crescente da
separação
Datação
: 1928-1980
Tema
: relações amorosas
Disco
: Mangueira - sambas de
terreiro e outros sambas
Gravadora
: Arquivo Geral da
Cidade do Rio de Janeiro
Intérprete
: Dona Zélia da
Mangueira
Observação
: datação
aproximada estabelecida a
partir da biografia do
compositor
Se outro amor
tentasse
Cartola e
Nuno Veloso
Era solidão / Na solidão eu vivia / E sem confusão / Eu em
paz prosseguia / Veio o amor / E no amor encontrei / Muita
ingratidão / E assim mesmo gostei / Hoje acompanhado / A
tristeza persiste / Dias que se vão / Um alegre, outro triste /
Se outro amor tentasse / E outra vez falhasse / Solidão, a
você / Voltaria.
Datação
: 1928-1980
Tema
: relações amorosas
Disco
: Cartola entre amigos
Gravadora
: Funarte
Intérprete
: Nuno Veloso
Observação
: datação
aproximada estabelecida a
partir da biografia do
compositor
488
Se você jurar
Ismael Silva
, Nilton
Bastos e
Francisco
Alves
Se você jurar / Que me tem amor / Eu posso me regenerar
/ Mas se é / Para fingir, mulher, / A orgia assim não vou
deixar //
Muito tenho sofrido / Por minha lealdade / Agora estou
sabido / Não vou atrás de amizade / A minha vida é boa /
Não tenho em que pensar / Por uma coisa à-toa / Não vou
me regenerar /
A mulher é um jogo / Difícil de acertar / E o homem como
um bobo / Não se cansa de jogar / O que eu posso fazer /
É, se você jurar, / Arriscar a perder / Ou desta vez então
ganhar.
Datação
: 1931
Tema
: relações amorosas
Disco
78 rpm, lado B (10747)
Gravadora
: Odeon
Intérpretes
: Francisco Alves e
Mário Reis
Sei chorar Cartola
Sei chorar / Eu também já sei sentir a dor / Estou cansado
de ouvir dizer / Que aprende-se a sofrer no amor //
Hoje eu choro / E a mulher que adoro talvez / Caída em
braços de outro sorrindo / Repete as mesmas promessas
mentindo //
Fui iludido / Sim, pela primeira vez no amor / E quase
sempre seu nome repito / Em cada frase um suspiro de
dor.
Datação
: 1937
Tema
: relações amorosas
Disco
: Cartola
Gravadora
: Marcus Pereira
Intérprete
: Cartola
Observação
: datação atribuída
a partir de Barboza da Silva e
Oliveira Filho, 2003, p.107
Sei... você
anda sofrendo
Ismael Silva
Sei... você anda sofrendo. / Está arrependida / do que já
me fez. / É seu destino, mulher; / eu não lhe perdoo /
porque vai me enganar outra vez. //
Eu já gostei de você / Para de novo gostar / é preferível
morrer. / Se o desprezo é pecado / serei um pecador /
recordando o passado. //
Oh! Não digas / que ainda eu não te esqueci... / Quem não
sabe / há de pensar que eu ando atrás de ti //
Se a nossa amizade teve fim, / tu bem sabes que fui eu
mesmo quem quis / Eu não sei porque tu mentes tanto
assim / Pois, mentira não se diz. //
Eu ainda fico triste ao lembrar, / apesar de ter deixado já
de ti, / relembrando aquele dia de azar / em que eu te
conheci.
Datação
: 1922-1978
Tema
: relações amorosas
Livro
: São Ismael do Estácio: o
sambista que foi rei, p. 65
Editora
: Funarte
Observação
: datação
aproximada estabelecida a
partir da biografia do
compositor
Senhora Dona
Cegonha
Paulo da
Portela
Dona Cegonha venho com muita vergonha / Por meio
desta cartinha te solicitar um favor / Deve trazer um
crioulinho gorduchinho / de olhinhos regalados parecido
com o meu amor / Quando trouxer deve pedir ao destino /
Que mande pelo menino recomendação de um bamba /
Mais tarde eu quero que como todo lero-lero / Ele seja
professor de uma Escola de Samba. //
Chegando eu quero recebê-lo com carinho / Tratá-lo como
reizinho / Enveredarei pelos caminhos dos bambas /
Talvez será herdeiro / De uma coroa do samba.
Datação
: década de 1930
Tema
: metalinguagem
Livro
: Paulo da Portela, traço
de união entre duas culturas, p.
154
Editora
: Funarte
Senões
Cartola e
Nuno Veloso
Nosso romance teve senões / E se separam dois corações
/ Posso chorar até esquecer / Mas o meu desejo é viver
longe de você //
Meu interesse é viver sem você / Nosso passado eu
procuro esquecer / Ao grande protetor eu peço em uma
prece / Senhor, por piedade, vê se ela me esquece //
O nosso amor / Um grande amor / Termina assim / Todo
romance tem princípio e tem fim
Datação
: 1979
Tema
: relações amorosas
Disco
: Cartola 70 anos
Gravadora
: RCA Victor
Intérprete
: Cartola
Serei teu ioiô
Paulo da
Portela
Serei teu ioiô / Serás minha iaiá / Vida feliz, bem longe
daqui / Iremos gozar //
Mas tem duas coisas / Que podem impedir / E tu, a sorrir, /
Me perguntarás: / Meu bem, que será? //
Ora, eu que bem sei / Te responderei / A sombra da inveja,
meu bem, / Ou golpe de azar
Datação
: 1936
Tema
: relações amorosas
Disco
: Boca do povo
Gravadora
: Polydor
Intérprete
: João Nogueira
Observação
: datação atribuída
a partir de Barboza da Silva e
Santos, 1989, p. 152
Silenciar a
Mangueira
Cartola
Silenciar a Mangueira, não / Disse alguém / Uma
andorinha só não faz verão também / Devemos ter
adversários / Como Oswaldo Cruz / Diz o provérbio / Da
discussão é que nasce a luz / Outra escola que não
poderia acabar / É o velho Estácio de Sá
Datação
: 1944
Tema
: metalinguagem
Livro
: Cartola: Os tempos idos,
p. 81
Editora
: Gryphus
489
Silêncio de
um cipreste
Cartola e
Carlos
Cachaça
Todo mundo tem o direito / De viver cantando / O meu
único defeito / É viver pensando / Em que não realizei / E é
difícil realizar / Se eu pudesse dar um jeito, / Mudaria meu
pensar //
O pensamento é uma folha desprendida / Do galho de
nossas vidas / Que o vento leva e conduz / É como a luz
vacilante e cega / É o silêncio do cipreste / Escoltado pela
cruz.
Datação
: década de 1930
Tema
: reflexões existenciais
Disco
: Cartola 70 anos
Gravadora
: RCA Victor
Intérprete
: Cartola
Observação
: datação atribuída
a partir de Barboza da Silva e
Oliveira Filho, 2003, p. 293
Sim
Cartola e
Oswaldo
Martins
Sim / Deve haver o perdão / Para mim / Senão nem sei
qual será / O meu fim //
Para ter uma companheira / Até promessas fiz / Consegui
um grande amor / Mas eu não fui feliz / E com raiva para
os céus / Os braços levantei, blasfemei / Hoje todos são
contra mim //
Todos erram neste mundo / Não há exceção / Quando
voltam à realidade / Conseguem perdão / Por que é que
eu, Senhor, / Que errei pela vez primeira / Passo tantos
dissabores / E luto contra a humanidade inteira?
Datação
: 1947 (cerca de)
Tema
: reflexões existenciais
Disco
: Cartola
Gravadora
: Marcus Pereira
Intérprete
: Cartola
Observação
: datação atribuída
a partir de Barboza da Silva e
Oliveira Filho, 2003, p. 154-5
Sofreguidão
Cartola e
Elton
Medeiros
A sofreguidão por que passei / Fez-me reconhecer que o
teu amor / Foi grande amor / Não vacilo em dizer não,
não... / Tudo que sofri e que vivi / Depois que te deixei /
Causou-me um mal confortador / Sentir as dores que senti
/ Por teu amor //
Procurei viver novas emoções / Talvez animado pela
vaidade / De fazer sofrer outros corações / E bati na porta
da infelicidade.
Datação
: 1968
Tema
: relações amorosas
Disco
: Samba na madrugada
Gravadora
: Premier
Intérprete
: Elton Medeiros
Sofrer é da
vida
Ismael Silva
e Francisco
Alves
Sofrer é da vida / Eu já me convenci / Adeus, minha
querida, / Não foi pra você que eu nasci... //
Você tem boa conversa / Mas não vai me tapear / Pode até
fazer promessa / Porque eu não torno a voltar //
Seu amor ninguém atura / Quem me disse não mentiu /
Você me fez uma jura / E até então não cumpriu.
Datação
: 1931
Tema
: relações amorosas
Disco
78 rpm, lado A (10872)
Gravadora
: Odeon
Intérprete
: Mário Reis
Soldado do
amor
Cartola e
Nuno Veloso
Passei a noite inteira esperando / Ao tédio perguntando /
Onde anda minha companheira / Nesta vigília triste, selei
minha sorte / Se ela não voltar / Hei de preferir a morte /
Não foi preciso o relógio despertar / Pois esta noite não
dormi / Não quis me deitar / Como soldado do amor / Fiz
sentinela / A aurora me pilhou / Esperando por ela.
Datação
: 1975
Tema
: relações amorosas
Disco
: Maria Creuza e os
Grandes Mestres do Samba
Gravadora
: RCA Victor
Intérprete
: Maria Creuza
Sonhei
Ismael Silva,
Nilton
Bastos e
Francisco
Alves
Sonhei que vais me abandonar / Se é verdade, não tens
razão / E, se foi sonho, / Eu não sei se será ou não //
Eu, sem me justificar, / Não quero te desprezar / Mas, se
tal coisa acontecer, / Eu nada posso fazer //
Ainda não sosseguei / Desde o dia que sonhei / Pois eu
não tenho satisfação / Por causa dessa impressão.
Datação
: 1931
Tema
: relações amorosas
Disco
78 rpm, lado A (13377)
Gravadora
: Odeon
Intérprete
: Francisco Alves
Sonho
Lincoln
Washington
Pereira de
Almeida e
Paulo da
Portela
Sonhei que voltaste a ser minha / E aquela alegria que eu
tinha / Minha vida tornou a iluminar / Momentos felizes
passei / Porém quando despertei / Senti que a felicidade /
Estava de mim a zombar / Por isso quero acordado /
Continuar a sonhar / E deste sonho / Nunca despertar //
Quisera viver deste sonho / Que me dá prazer / A ter que
despertar risonho / E logo sofrer / A dor com saudade
daquela / Que tanto queria / É melhor viver-se de um
sonho / Que traz alegria / Ah se tu voltasses
Datação
: 1922-1949
Tema
: relações amorosas
Livro
: Paulo da Portela, traço
de união entre duas culturas, p.
149
Editora
: Funarte
Observação
: datação
aproximada estabelecida a
partir da biografia do
compositor
Sou doutor Cartola
Sou doutor / Sou doutor, mas sou sambista / Tenho
sangue de artista / Também sei tamborinar / Sou doutor /
Sei que sou advogado / Não me faço de rogado / Quando
preciso sambar //
É difícil estudar / Advocacia, arquitetura, engenharia / Tudo
isso é difícil, eu sei / Mas o samba está no sangue
brasileiro / Não precisa fazer curso / Pra tocar o meu
pandeiro.
Datação
: 1928-1980
Tema
: metalinguagem
Livro
: Cartola, os tempos idos,
p. 332
Editora
: Gryphus
Observação
: datação
aproximada estabelecida a
partir da biografia do
compositor
490
Sua praia é
custoso
mobiliário...
Paulo da
Portela
Sua praia é custoso mobiliário, / Seus edifícios, paisagens
em moldura estilo inglês, / Quando se reflete o rosto do
soberbo Posto Seis...
Datação
: 1922-1949
Tema
: Brasil
Livro
: Paulo da Portela, traço
de união entre duas culturas, p.
151
Editora
: Funarte
Observação
: datação
aproximada estabelecida a
partir da biografia do
compositor
Surpresa Ismael SIlva
Quando acabei de cear / que queria pagar / tive uma
surpresa: / disse o garçom com voz gaga / que já estava
paga / a minha despesa. / Juro que não esperava / mas lá
se encontrava / alguém conhecido. / Por falta de sorte a
minha / era quem já tinha / a mim pertencido.
Datação
: 1922-1978
Tema
: relações amorosas
Livro
: São Ismael do Estácio: o
sambista que foi rei, p. 78
Editora
: Funarte
Observação
: datação
aproximada estabelecida a
partir da biografia do
compositor
Tempos idos
Cartola e
Carlos
Cachaça
Os tempos idos, nunca esquecidos, / Trazem saudades ao
recordar / É com tristeza que relembro / Coisas remotas
que não vêm mais / Uma escola na praça Onze,
testemunha ocular / E perto dela uma balança onde os
malandros iam sambar / Onde os malandros iam sambar //
Depois, aos poucos, o nosso samba / Sem sentirmos se
aprimorou / Pelos salões da sociedade / Sem cerimônia ele
entrou / Já não pertence mais à praça, / Já não é samba
de terreiro / Vitorioso, ele partiu para o estrangeiro //
E muito bem representado / Por inspiração de geniais
artistas, / O nosso samba, humilde samba, / Foi de
conquistas em conquistas / Conseguiu penetrar no
Municipal / Depois de percorrer todo o universo / E com a
mesma roupagem que saiu daqui / Exibiu-se pra Duquesa
de Kent no Itamaraty
Datação
: 1960
Tema
: metalinguagem
Disco
: Verde que te quero rosa
Gravadora
: RCA Victor
Intérprete
: Cartola
Tenho um
novo amor
Cartola
Tenho um novo amor... / Tenho um novo amor... / Que vive
a pensar em mim. / Não quer me ver / Triste nem zangada
/ Gosta que eu ande / Assim meio engraçada //
Eu não quero dar a perceber / Que gosto demais, do meu
amor / Se ele compreender / Vai se convencer / Que tem
pra mim / Um grande valor. //
Se acaso um dia se apagar / No teu pensamento o meu
amor / Para não chorar / E não mais penar / Mando
embora a saudade / Pra livrar-me da dor.
Datação
: 1932
Tema
: relações amorosas
Disco
: Noel pela primeira vez
Gravadora
: Velas
Intérprete
: Carmen Miranda
Teste ao
samba
Paulo da
Portela
Vou começar a aula / Perante a comissão, muita atenção /
Eu quero ver se diplomá-los posso / Salve o fessor, dá
nota a eles, senhor / Quatorze com mais doze noves fora
tudo é nosso //
Cem divididos por mil / Cada um com quanto fica / Não
pergunte à caixa surda / Não peça cola à cuíca / Lá no
morro vamos vivendo de amor / Estudando com carinho o
que nos passa o professor.
Datação
: 1937
Tema
: metalinguagem
Livro
: Paulo da Portela, traço
de união entre duas culturas, p.
152
Editora
: Funarte
Tive sim Cartola
Tive sim / Outro grande amor antes do teu / Tive sim / O
que ela sonhava eram os meus sonhos / E assim íamos
vivendo em paz / Nosso lar, em nosso lar sempre houve
alegria / Eu vivia tão contente / Como contente ao teu lado
estou / Tive sim / Mas comparar com teu amor seria o fim /
E vou calar pois não pretendo amor te magoar.
Datação
: 1968
Tema
: relações amorosas
Disco
: Cartola
Gravadora
: Marcus Pereira
Intérprete
: Cartola
Observação
: datação atribuída
a partir de Barboza da Silva e
Oliveira Filho, 2003, p.160, 292
491
Todo amor
Carlos
Cachaça e
Cartola
Todo amor no princípio tem sabor / Tem perfume tem odor
/ Que embriaga o coração / Mas depois é uma taça incolor
/ Que só contém amargor / Dissabor e maldição //
Todo amor principia com beijos e risos / Mesmo com
hipocrisia forma um paraíso / Mas com o tempo um dos
dois vem a se arrepender / Um amor para gozar, o outro
para sofrer //
O fim de todo amor, é tão triste que juro / Despedaça-se ao
vê-lo o coração mais duro / Ela fica aos beijos com
qualquer criatura / E ele procura a paz na paz da sepultura.
Datação
: 1976
Tema
: relações amorosas
Partitura
Editora
Euterpe
Todo mundo
quer
Ismael Silva
Trabalho igual ao meu / Todo mundo quer / Mas nem todos
podem arranjar / Pego às onze horas / Largo ao meio-dia /
E tenho uma hora pra almoçar //
Não há coisa melhor / Fico às vezes até sem comer / Só
pra não mastigar / Não há coisa melhor / Do que não fazer
nada / E depois descansar
Datação
: 1975
Tema
: cotidiano
Disco
: A voz do samba
Gravadora
: Philips
Intérprete
: Alcione
Tradição Ismael Silva
No morro onde eu moro / Tem um barracão para se alugar
/ O ambiente eu adoro / Mas é que não sei se você vai
gostar / Não posso me maldizer / Vivo com muita sorte /
Na minha choupana / Lá é bem raro haver / Mais de um
crime de morte / Em cada semana. //
Quem ouve falar desse morro agora / Fica aterrorizado /
Porém quem conhece ele desde outrora / Diz que está
civilizado / Lá hoje em dia qualquer um novato / Vive sem
preocupação / Não é um morro pacato / Porque se
conserva a tal tradição.
Datação
: 1954
Tema
: cotidiano
Partitura
Editora
Euterpe
Tristeza
Cartola e
Orlando
Batista
Tristeza / quanta tristeza tenho eu / Só em saber / Que
vivo longe dos carinhos teus / A quem eu dediquei / O meu
sincero amor / E com tantas muitas falsidades / Me
abandonou / Aumentando a minha dor / Aumentando a
minha dor / Guardo a tristeza comigo / Guardo a tristeza
porque / Dela sou o maior amigo / Depois que perdi você /
Eu não canto, eu não danço / Acabou tudo pra mim / Se eu
cantar essa tristeza / Terás ciúme de mim. //
Eu tive vontade, tive / De dar fim à minha vida / Mas
encontrei-te tristeza / Em pé na estrada perdida /
Seguimos o mesmo rumo / E me sinto bem feliz / Mas, sei
dizem que é o cúmulo / Fazer o que você diz.
Datação
: 1939
Tema
: relações amorosas
Livro
: Cartola, os tempos idos,
p. 113
Editora
: Gryphus
Tristezas não
pagam dívidas
Ismael Silva
Tristezas não pagam dívidas / Não adianta chorar / Deve-
se dar o desprezo / A toda mulher que não sabe amar //
O homem deve saber conhecer o seu valor / Pra não fazer
como o Inácio / Que andou muito tempo / Bancando o
Estácio. //
Nunca se deixa a mulher / Fazer o que ela entender / Pois
ninguém deve chorar / Só por causa de amor / E nem se
lastimar
Datação
: 1932
Tema
: relações amorosas
Disco
78 rpm, lado A (10922)
Gravadora
: Odeon
Intérprete
: Francisco Alves
Tu me
desprezas
Paulo da
Portela
Tu me desprezas / Tu me abandonas / Tens o prazer / De
me ver abandonado / Não faz mal, / Ó meu benzinho, / O
mundo gira / E na virada / Ainda te espero / Com carinho
Datação
: 1924
Tema
: relações amorosas
Livro
: Paulo da Portela, traço
de união entre duas culturas, p.
150
Editora
: Funarte
Tu vais ao
samba
Cartola
Pequena, tu vais ao samba / Ver as línguas que falam de
mim / Sem razão / Tu sabes que o mulato é sincero / E tem
critério / E sabes meu leal procedimento / Como é / Podes
perguntar e indagar / A quem quiser / Eu sou incapaz / De
amar outra mulher / Eu não amo outra mulher / Porque eu
não quero / Porque eu tenho amizade / A você / Sabes que
o mulato é sincero / E tem critério até morrer.
Datação
: 1928-1980
Tema
: relações amorosas
Disco
: Cartola entre amigos
Gravadora
: Funarte
Intérprete
: Nadinho da Ilha
Observação
: datação
aproximada estabelecida a
partir da biografia do
compositor
492
Uma jura que
fiz
Ismael Silva,
Noel Rosa e
Francisco
Alves
Não tenho amor / Nem posso amar / Pra não quebrar /
Uma jura que fiz / E pra não ter / Em quem pensar / Eu
vivo só / E sou muito feliz. //
Aquela que eu mais amava / Só pensava em me trair /
Quando eu menos esperava / Partiu sem se despedir /
Essa mesma criatura / Quis voltar, mas eu não quis / E
hoje, cumprindo a jura, / Vivo só e sou feliz //
Um amor pra ser traído / Só depende da vontade / Mas
existe amor fingido / Que nos traz felicidade / A mulher vive
mudando / De ideia e de ação / E o homem vai penando /
Sem mudar de opinião.
Datação
: 1932
Tema
: relações amorosas
Disco
78 rpm, lado A (10928)
Gravadora
: Odeon
Intérprete
: Mário Reis
Uma luta
vencida por
amor e glória
Paulo da
Portela
Uma luta vencida por amor e glória / São linhas traçadas /
Nas páginas da história / Gravado com as cores de nosso
país / Em seu castelo Portela feliz
Datação
: 1927
Tema
: metalinguagem
Monografia
: [Monografia sobre
Paulo da Portela], Candeia e
Araújo, 1980
Vai amigo Cartola
Vai amigo / E diga-lhe, por favor, / Que não sei o que faço /
que já nem sei quem sou / Diga que terminou / Toda
aquela vaidade e que sinto saudade / Quero amá-la com
mais fervor / Lembro-me bem / Um dia eu lhe disse uma
grande tolice / E nosso lar deixei / Todos têm o seu drama
/ Só não sofre quem não ama / Amenizar meu castigo só
você poderá, amigo.
Datação
: 1968
Tema
: relações amorosas
Disco
: Mangueira - sambas de
terreiro e outros sambas
Gravadora
: Arquivo Geral da
Cidade do Rio de Janeiro
Intérprete
: Cartola
Observação
: datação a partir
do disco Vai amigo, de
Paulinho da Viola (Odeon,
MOFB 3560). Para a
transcrição, preferiu-se uma
interpretação de Cartola.
Vale do São
Francisco
Cartola e
Carlos
Cachaça
Não há neste mundo um cenário / Tão rico, tão vário / E
com tanto esplendor / Nos montes / Onde jorram as fontes
/ Que quadro sublime / De um santo pintor / Pergunta o
poeta esquecido / Quem fez esta tela / De riquezas mil /
Responde soberbo o campestre / Foi Deus, foi o mestre /
Quem fez meu Brasil! / Meu Brasil! Meu Brasil! //
E se vires poeta o vale / O vale do rio / Em noite invernosa
/ Em noite de estio / Como um chão de prata / Riquezas
estranhas / Espraiando beleza / Por entre montanhas /
Que ficam e que passam
Em terras tão boas / Pernambuco, Sergipe / Majestosa
Alagoas / E a Bahia lendária / Das mil catedrais / Da terra
do ouro / Berço de Tiradentes / Que é Minas Gerais
Datação
: 1948
Tema
: Brasil
Disco
: História das escolas de
samba, Mangueira
Gravadora
: Marcus Pereira
Intérprete
: Cartola
Observação
: datação atribuída
a partir de Barboza da Silva e
Oliveira Filho, 2003, p. 367
Vamos
embora, ó, flor
[Vamos
embora, amor]
Paulo da
Portela
– Vamos embora, ó flor / – Ora, muito cedo, amor / A lua
estará gostando de me ver sapatear / – Mas quem é que
dá as ordens? / – É você. / Mas quando pode! / Só deixarei
o pagode / Quando o sol raiar. – Jamais tu irás a um
samba / E tenho as minhas razões / Quando entras no
batuque / Esqueces as obrigações. / – Pense o caso bem
direito / Te aconselho a que não faça / Proibir-me do
batuque / Tradição de nossa raça.
Datação
: 1940
Tema
: metalinguagem
Livro
: Paulo da Portela, traço
de união entre duas culturas, p.
149-50
Editora
: Funarte
Vejo
amanhecer
Ismael Silva,
Noel Rosa e
Francisco
Alves
Vejo amanhecer, vejo anoitecer / E não me sais do
pensamento, ó mulher! / Vou para o trabalho, passo em
tua porta / Me metes o malho, mas que bem me importa //
Amanhece e anoitece / Sem parar o meu tormento / Por
saber que quem me esquece / Não me sai do pensamento
/ Já não durmo, já não sonho / De pensar fugiu-me a paz /
Num passado tão risonho / Que não volta nunca mais //
De esperar a minha amada / A minh'alma não se cansa /
Pois até quem não tem nada / Tem ainda a esperança /
Esperança nos ilude / Ajudando a suportar / Do destino o
golpe rude / Que eu não canso de esperar
Datação
: 1933
Tema
: relações amorosas
Disco
78 rpm, lado A (22225)
Gravadora
: Odeon
Intérprete
: Mário Reis
493
Velho Estácio Cartola
Muito velho, pobre velho, / Vem subindo a ladeira / Com a
bengala na mão //
É o velho, velho Estácio / Vem visitar a Mangueira / E
trazer recordação / Professor, chegaste a tempo / Pra dizer
neste momento / O que devemos fazer / Me sinto mais
animado / A Mangueira a teus cuidados / Vai à cidade
descer
Datação
: 1930
Tema
: metalinguagem
Livro
: Cartola, os tempos idos,
p. 80
Editora
: Gryphus
Observação
: datação
aproximada estabelecida a
partir da biografia do
compositor
Vem
Cartola e
Arthur de
Oliveira
Vem / Tudo é belo por onde eu passei / Será onde eu
passar / Vem / Ao meu lado eu sei / Vais sorrir, vais cantar
/ Não me convence essa tua tristeza / Vem / Há um Deus,
há uma natureza //
Vem / Caminhar para além de todo mal / O bem / É a meta
final da estrada universal / Vem / Dar-me a paz e ter paz
junto de mim / Vem / Fica comigo assim / Até o fim / Vem
Datação
: 1980
Tema
: reflexões existenciais
Livro
: Cartola, os tempos idos,
p. 251-2
Editora
: Gryphus
Verde que te
quero rosa
Cartola e
Dalmo
Castello
Verde como o céu azul, a esperança / Branco como a cor
da Paz a se encontrar / Rubro como o rosto fica junto à
rosa mais querida / É negra toda tristeza se há despedida
na avenida / É negra toda tristeza desta vida //
É branco o sorriso das crianças / São verdes, os campos,
as matas / E o corpo das mulatas quando vestem verde e
rosa, é / Mangueira / É verde o mar que me banha a vida
inteira //
Verde que te quero Rosa (é a Mangueira) / Rosa que te
quero Verde (é a Mangueira)
Datação
: 1977
Tema
: metalinguagem
Disco
: Verde que te quero rosa
Gravadora
: RCA Victor
Intérprete
: Cartola
Vim lhe pedir
Nelson
Sargento e
Cartola
Vim lhe pedir / me perdoa / reconheço, errei / se aqui voltei
/ foi para lhe dizer, então, / que há motivos de força maior /
que às vezes prende a gente / me disseste que voltei
cinicamente / pra zombar de te ver chorar //
Foi a saudade que me trouxe aqui / depois que te perdi /
mergulhei na sofreguidão / ao cair na realidade / descobri
que a felicidade / está na bondade do seu coração
Datação
: 1955-1980
Tema
: relações amorosas
Disco
: Encanto de paisagem
Gravadora
: Rob Digital
Intérprete
: Nelson Sargento
Observação
: datação atribuída
a partir de informações
biográficas dos dois
compositores
Você é uma
flor
Cartola e
Nuno
Você é uma flor / Que eu plantei para mim / É a flor mais
bela / Do meu jardim //
Se algum dia / Essa flor murchar ou morrer / Sem ela eu
não posso viver //
No meu jardim tive flores belas / Nunca fiz questão / Mas a
flor dos meus amores / Mora no meu coração.
Datação
: 1928-1980
Tema
: relações amorosas
Livro
: Cartola, os tempos idos,
p. 333
Editora
: Gryphus
Observação
: datação
aproximada estabelecida a
partir da biografia do
compositor
Você gosta de
mim?
Ismael Silva
e Francisco
Alves
Você gosta de mim e eu gosto de você / Meu bem, não faz
assim, briga não sei pra que //
Meu bem, meu bem, / Eu não gosto de ninguém (só de
você) //
Todo o meu ideal é só sempre te amar / Você faz muito
mal em tudo acreditar
Datação
: 1931
Tema
: relações amorosas
Disco
78 rpm, lado B (13377)
Gravadora
: Odeon
Intérprete
: Francisco Alves
Você merece
muito mais
Ismael Silva
Foi por causa de você / Que eu arranjei muitos rivais / Mas
não lhe deixo / Só porque (eu sei por quê) / Você merece
muito mais //
Há tanta gente que faz fé / Na sua face de cetim / Que eu
até nem sei / Como é / Que você foi gostar de mim //
Se alguma coisa acontecer / Embora saia nos jornais /
Qualquer desgraça é prazer / Você merece muito mais
Datação
: 1930
Tema
: relações amorosas
Livro
: Ismael Silva: samba e
resistência, p. 98-9
Editora
: José Olympio
494
Vou contar
tintim por
tintim
Cartola
Eu fui tão maltratada / Foi tanta pancada / Que ele me deu
/ Que estou toda doída / Estou toda ferida / Ninguém me
socorreu / Ninguém lá em casa apareceu / Mas eu vou ao
distrito / Está mais do que visto / Isto não fica assim / Vou
contar tintim por tintim / Tudo nele eu aturo / Menos tapas
e murros / Isto não é para mim //
Ele sai para a orgia / Passa três, quatro dias / Sem me
aparecer / Quando vem está zangado / Está contrariado /
E eu não sei por que //
Mas eu agora vou saber / Eu sou tão camarada / A ele não
falta nada / Ganha um terno por mês / Ainda agora
pancada / Piorou a maçada / Eu parei desta vez / Vou
arranjar um português.
Datação
:1928-1980
Tema
: metalinguagem
Livro
: Cartola, os tempos idos,
p. 342
Editora
: Gryphus
Observação
: datação
aproximada estabelecida a
partir da biografia do
compositor
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