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Catalogação na Publicação:
Bibliotecário Vladimir Luciano Pinto - CRB 10/1112
C419p Cerveira, Luis Alexandre
Paixões, transgressões e tragédias : as missões
populares urbanas e campestres (Província Jesuítica
do Paraguai, primeira metade do século XVIII) / por Luis
Alexandre Cerveira. 2008.
162 f. ; 30 cm.
Dissertação (mestrado) -- Universidade do Vale do Rio
dos Sinos, Programa de Pós-Graduação em História, 2008.
“Orientação: Profª. Drª. Eliane Cristina Deckmann
Fleck”.
1. Missões jesuíticas Paraguai Século 18. 2. Companhia
de Jesus Missões populares. 3. Missões jesuíticas Repressão
Paixão. 4. Jesuítas Cartas Ânuas. I. Título.
CDU 989.2:271.5”17”
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UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS
PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
Luis Alexandre Cerveira
Paixões, transgressões e tragédias: as missões
populares urbanas e campestres (Província Jesuítica do Paraguai,
primeira metade do século XVIII).
SÃO LEOPOLDO
2008
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Luis Alexandre Cerveira
Paixões, transgressões e tragédias: as missões
populares urbanas e campestres (Província Jesuítica do Paraguai,
primeira metade do século XVIII).
Dissertação apresenta à Universidade do Vale
do Rio dos Sinos como requisito parcial para
obtenção do título de mestre em História.
Orientadora: Profª. Drª. Eliane Cristina
Deckmann Fleck.
São Leopoldo, fevereiro de 2008
Luis Alexandre Cerveira
Paixões, transgressões e tragédias: as missões
populares urbanas e campestres (Província Jesuítica do Paraguai,
primeira metade do século XVIII).
Dissertação apresenta à Universidade do Vale
do Rio dos Sinos como requisito parcial para
obtenção do título de mestre em História.
Aprovado em
BANCA EXAMINADORA:
____________________________________________________________________
Profª Drª Eliane Cristina Deckmann Fleck Universidade do Vale do Rio dos Sinos
Profº Drº Leandro Karnal Universidade Estadual de Campinas
______________________________________________________________________
Profª Drª Maria Cristina Bohn Martins Universidade do Vale do Rio dos Sinos
Á minha esposa Adriana e à minha filha Manuela,
por sua presença e por sua ausência, e pelo quanto este
curso e esta Dissertação, em especial, lhes custou;
e a todos que acreditaram...
Meu muito obrigado a:
A Deus, por ter sido infinatamente mais paciente comigo, do que com as
populações platinas segundo os relatos jesuíticos...
À minha família mais próxima, Adriana e Manuela. Só vocês sabem o quanto
custou chegar aqui. Obrigado pelo carinho, pelo amor, pela compreensão, e, em
especial, pela paciência e pela dedicação. Por me agüentarem quando nem eu me
agüentava, por acreditarem e me darem força. À Adriana, meu obrigado pelos cafés e
sanduíches na madrugada. À Manuela, meu pedido de perdão pela ausência do “pai
que só estuda”. Agora, prometo te deixar jogar muito mais vezes o “joguinho da
Mônica” no computador.
Ao meu falecido pai, Sr. Luiz, mecânico de grandes máquinas e amante da
matemática elementar, meu obrigado pela educação e pelo amor.
À minha mãe. A ela é preciso mais que agradecer! De alguma forma, ela inspirou
este trabalho. Se chama Carmen, adora vestir-se de vermelho e sempre viveu suas
paixões com intensidade, as do amor e as do ódio. Possui uma força impressionante;
só a paixão pelos filhos e pela vida pode explicar o que moveu uma mulher que,
impedida de estudar e que passou boa parte da vida limpando a escola que não pôde
freqüêntar, sustentasse e educasse os filhos que hoje se aventuram pelos meandros da
Academia. Mãe! Obrigado por proporcionar que tivéssemos o “estudo” que a senhora
não teve.
Aos meus irmãos, Sandro e Leandro. Ao Sandro, meu colega nas Ciências
Humanas, que sempre me inspirou e me inspira desde as histórias em São Vicente.
Obrigado pelas dicas e orientações. Por ter feito o trabalho de “advogado do diabo” e
por ter dado uma pitada de “ciência hard” nesse trabalho. Ao Leandro, agradeço por
todo o apoio e pela ajuda nos momentos difíceis; pela paciência com os compromissos
adiados, pelos papos “acadêmicos” que incluíam ética, filosofia, história, economia,
antropologia, e tantas outras ciências que acho que ainda nem foram inventadas, mas,
principalmente, pelo exemplo de homem ético que certamente me inspirou.
Aos meus sogros, por todo o apoio. Por terem sido como pais; pela atenção e
por toda a ajuda. Além dos muitos cafés no fim de noite e pelos almoços rápidos...
afinal, tinha que estudar...
Ao meu primo Salmo, irmão por escolha. Colega da História e brilhante teólogo,
meu obrigado pelas discussões acadêmicas ou triviais que tivemos.
Ao meu primo Zezé, teólogo, grande amigo que muito me fez pensar. Obrigado.
Valeu!
Aos meus amigos Jardel, Paulo Daniel, Tiago, Alessandra, Márcia, Débora, Fabi
minha colega de estudos sobre os jesuítas , Dalila, Dilmar e tantos outros. Obrigado
pelos papos instigantes, pelos momentos no barzinho e nos corredores. Vocês são
muito importantes para mim.
A todos os colegas de mestrado e aos doutorandos, que tornaram nossas aulas
sempre muito instigantes e prazerosas.
A todos os amigos, meu obrigado por terem, pacientemente, me ouvido falar tão
apaixonadamente sobre paixões...
A todos os meus colegas de trabalho que torceram por mim, em especial, a
Magale “do Santa” minha “madrinha”.
À minha orientadora a quem, na intimidade, me permito considerar minha
amiga , Prof. Drª Eliane Cristina Deckmann Fleck. Impossível agradecer o sufuciente.
Desde a graduação, o medo da primeira aula com a exigentíssima professora de Brasil
na Graduação foi substituido pela admiração e respeito por seu brilhantismo
acadêmico, por uma aula que encantava, por seu alto grau de profissionalismo, e,
principamente, porque aliado a tudo isso sempre demonstrou e teve um enorme
sentimento e respeito pelas pessoas que a rodeiam. Sentimento que acabou por nos
aproximar, depois por nos unir como professora-aluno, orientadora-orientando, não só
mais pela afetividade, mas também pela paixão em saber como “outros sentiram em
outros tempos”. Eliane, obrigado por tudo! Pelo apoio, pelo trabalho de orientação
correto, exigente e instigador. Por ter me emprestado quase toda a tua biblioteca, por
ter sido professora, orientadora, amiga, psicóloga, motivadora, “advogada do diabo”, e,
como tu mesma dizes, uma espécie de “preparadora físico-acadêmica”. Obrigado pela
paciência e por acreditar que um estudante-sapateiro, sem o tradicional perfil
acadêmico, pudesse conseguir. Obrigado por acreditar!
À Prof. Drª Maria Cristina Bohn Martins, brilhante professora e intelectual. Uma
pessoa de uma generosidade impressionante! Desde a Graduação, tens meu carinho,
admiração e gratidão. Obrigado por sempre ter reconhecido meus esforços, por
ter me feito pensar e reagir diante das questões que levantavas, por ter me
proporcionado debater assuntos de interesse mútuo, e, ah! claro, pelos muitos livros
emprestados e indicações nestes dois anos.
Aos Professores Doutores Marluza, Dreher, Cleci e Nilton pelos muitos papos e
pela atenção aos meus devaneios. Cresci muito com vocês. A todos os professores do
Curso de Pós-Graduação em História da Unisinos, o meu sincero obrigado.
Ao Prof. Drº Pe. Pedro Inácio Schmitz. SJ, meu especial agradecimento. Ao
senhor tenho muito a agradecer. Sem a sua generosidade e confiança esta dissertação
não existiria. Obrigado por me permitir o acesso às Cartas Ânuas do século XVIII que
são a base deste trabalho que se encontram sob a guarda do IAP. Tenho noção do
quanto fui privilegiado e espero, realmente, não tê-lo decepcionado. Apesar de não me
encontrar ligado ao IAP, o senhor sempre me auxiliou em tudo que pôde e me
presenteou com longos e profícuos momentos de discussão sobre o tema. Meu
profundo e sincero muito obrigado!
Aos Professores Mestres Fúlvio e Jandir, pela amizade, pela generosidade, pela
paciência e pelo profissionalismo, sem o apoio de vocês no IAP tudo teria sido muito
mais difícil.
À Janaina, por sua eficência e atenção de sempre!
E, por fim, mas não menos importante, à UNISINOS, por ter tornado este sonho
possível, através da concessão da Bolsa Institucional Padre Milton Valente S.J.
SUMÁRIO
Resumo
Abstract
1. Introdução 11
2. As Paixões e a cidade platina: O Urbano como espaço de
transgressão 34
3. As Paixões e o campo platino: A Barbárie e a Sensibilidade dos excessos 75
4. As paixões: política e tragédia no espaço platino 108
5. Considerações finais 147
6. Referências Bibliográficas 156
RESUMO
Esta dissertação aborda as missões populares urbanas e campestres
promovidas por missionários jesuítas, na segunda metade do século XVIII, na ampla
região sob jurisdição da Companhia Jesuítica do Paraguai. A reconstituição das
motivações, das estratégias empregadas e dos efeitos dessas missões sobre as
populações dos centros urbanos e das áreas rurais platinas, foi feita a partir das Cartas
Ânuas da Província Jesuítica do Paraguai, referentes ao período de 1720 a 1760. A
análise que empreendi desta documentação revelou a construção de um discurso que
atribuía às paixões enquanto desencadeadoras do excesso e do descontrole o
desregramento dos comportamentos e da moral das populações citadinas e
campesinas platinas e que justificava a promoção das missões populares para a sua
(re) conversão. Nos três capítulos que compõem a dissertação, procurei destacar as
particularidades, as aproximações e as distinções entre as missões populares urbanas
e campestres, bem como enfocar as paixões como fator desencadeador de conflitos
políticos e de ações revolucionárias que ocorreram na região do Prata, na primeira
metade do século XVIII.
.
ABSTRACT
This dissertation is about the popular Missions - urban and countryside - promoted by
Jesuit missionaries in the second half of the eighteenth century, in the broad region
under Paraguay´s Jesuítica Company jurisdiction. Reconstitution of the motivations,
strategies employed and the effects of these missions on people in urban centres and
rural plates areas was made from Ânuas Province Jesuítica of Paraguay Letters, for the
period from 1720 to 1760. The analysis I´ve used on this documentation revealed a
construction of a speech about passions the reason of people exceded and lost their
self control- urban and countryside plates people lost the moral and respect justifying
the promotion of missions for conversion. In the three chapters dissertation, I
emphasized the particular, the approximations and the distinctions between urban and
countryside popular Missions, as well as focus the passions ,political conflicts and
revolutionary actions that occurred in Prata , in the first half of the eighteenth century.
11
1 INTRODUÇÃO
Se tomarmos a paixão como o sentimento ideal e necessário para um
casamento, esta dissertação é resultante de um casamento apaixonado. Fruto da
conjugação de um grande desejo e de uma oportunidade. O desejo que me moveu e
que continua me movendo foi o de saber como homens e mulheres de séculos
anteriores ao nosso sentiram e viveram suas paixões. A oportunidade foi aquela que
surgiu às vésperas da seleção para o Mestrado, pelo acesso a um conjunto documental
da Companhia de Jesus, referente a sua atuação na Província Jesuítica do Paraguai na
primeira metade do século XVIII, e que se encontra no Instituto Anchietano de
Pesquisas. A dissertação que ora apresento se constitui, em razão dessa conjugação,
num estudo sobre a vivência das paixões por homens e mulheres que viviam nas zonas
urbanas e rurais da região que se encontrava sob a jurisdição da Província Jesuítica do
Paraguai
1
, na primeira metade do século XVIII.
A escolha da paixão como tema, talvez se explique a partir da observação de
Adauto Novaes de que “a paixão é o campo das nossas ações cotidianas e, por isso,
todos temos uma idéia, ainda que difusa e deslizante, do que seja paixão”
2
. Apesar de
concordar com a percepção do filósofo, acredito que foi exatamente um certo
desconforto em relação a esta certeza corrente de que todos sabem de algum modo o
que é paixão que me levou a propor esta investigação.
1
Conforme Fleck, “a antiga Província do Paraguay abrangia, na época colonial, limites bastante mais
extensos do que os da moderna República Paraguaia. Recebendo o nome do rio que a banhava,
compreendia uma imensa região que se estendia entre o Brasil e o Peru, até o Prata e o Oceano
Atlântico. O antigo Paraguay limitava-se, ao norte, com a Capitania de São Vicente, pois a linha
imaginária a separa os territórios de Portugal, passava sobre o Iguape, no atual Estado de São Paulo; ao
sul, com o Rio da Prata; a leste com o Oceano Atlântico e a oeste com a Província de Tucumán,
atualmente território argentino. Os atuais Estados brasileiros do Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do
Sul e sul do Mato Grosso, subindo daí até a bacia do Amazonas, eram jurisdição do Paraguay. O Uruguai
e a Argentina, com exceção de Tucumán, igualmente estavam sob sua jurisdição. No atual território
boliviano, o Paraguay limitava-se com a Província de Santa Cruz de la Sierra.” (FLECK, Eliane Cristina
Deckmann. Sentir, Adoecer e Morrer Sensibilidade e Devoção no Discurso Missionário Jesuítico do
Século XVII. 1999. 353 f. Tese (Doutorado em História) Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul, Porto Alegre/RS.1999. p.5)
2
NOVAES, Adauto. Por que tanta paixão? In: CARDOSO, Sérgio. ( et al.) Os sentidos da paixão. São
Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 12.
12
Meu primeiro insight sobre o tema desta dissertação ocorreu ainda no período de
graduação, durante um dos recessos das aulas. Enquanto alimentava o corpo, a mente
divagava diante de um aparelho de televisão ligado. A programação, que até então não
servia para outra coisa senão como pano de fundo para o sanduíche que era
consumido, acabou por chamar a minha atenção. Pelo menos três dos programas da
grade de programação do canal que foram anunciados durante o intervalo tinham a
palavra paixão em seu título ou a ela se ligavam diretamente. Um rápido olhar nas
livrarias e nas letras das “músicas do momento” apontou para a mesma constatação.
Ao questionar a paixão como algo simplesmente “dado” e cotidiano, me deparei
com a sua nova condição no presente e que decorreu, em grande medida, do
“deslocamento para o espaço público de temas que até pouco tempo estavam
circunscritos ao domínio do privado” e que receberam “um caráter difuso e homogêneo
para que pudessem ser consumidas como objeto”
3
. O alerta feito por Benjamin de
que “a História é o objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e
vazio, mas um tempo saturado de ‘agoras’.”
4
também repercutiu na maneira como
encaminhei a reflexão. Logo, estava lançada a primeira questão fundamental, a
vivência da paixão não havia sido “sempre assim” e muitos outros conceitos de paixão
foram formulados ao longo dos séculos.
Foi levando em consideração este aspecto, que me propus a refletir sobre as
paixões
5
do corpo e da alma vividas pelas populações urbanas e rurais platinas que
3
NOVAES in: CARDOSO, 1987, p.13.
4
BENJAMIN, W. Magia e Técnica, arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura.
Tradução de Paulo Sérgio Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994. Vol. I, p. 229
5
Este trabalho, portanto, se filia teoricamente à Nova Historia Cultural, ao se propor a pensar as
questões do sensível, e, sobre o conceito de sensível e sua variante a sensibilidade, vale recorrer à
Marilena Chauí quando refere que “o conhecimento sensível também é chamado de conhecimento
empírico ou experiência sensível e suas formas principais são a sensação e a percepção. Sentir é algo
ambíguo, pois o sensível é, ao mesmo tempo, a qualidade que está no objeto e o sentimento interno que
nosso corpo possui das qualidades sentidas. Por isso, a tradição costuma dizer que a sensação é uma
reação corporal imediata a um estímulo ou excitação externa, sem que seja possível distinguir, no ato da
sensação, o estímulo exterior e o sentimento interior. (…) Por isso, se diz que, na realidade, só temos
sensações sob a forma de percepções, isto é, de sínteses de sensações. A percepção depende das
coisas e de nosso corpo, depende do mundo e de nossos sentidos, depende do exterior e do interior, e
por isso é mais adequado falar em campo perceptivo para indicar que se trata de uma relação complexa
entre o corpo sujeito e os corpos objetos num campo de significações visuais, tácteis, olfativas,
gustativas, sonoras, motrizes, espaciais, temporais e lingüísticas. A percepção é uma conduta vital, uma
13
foram alvo das missões populares
6
urbanas e campestres na primeira metade do
século XVIII. Paixões estas que foram fortemente combatidas pelo discurso e ação
missionária jesuíta que tinha por objetivo o regramento dos comportamentos e a
mudança das sensibilidades.
Interessa-me, especialmente, avaliar as reações dos colonos a esta pregação,
isto é, se cumpriram fielmente as determinações eclesiásticas ou se continuaram
vivenciando suas paixões de forma clandestina, enfrentando e afrontando publicamente
as decisões da Igreja. Constituem também objetivos a caracterização e a análise da
própria pregação jesuítica enquanto estratégia de combate às paixões e de (re)
conversão das populações platinas já cristãs.
Para tanto, penso ser pertinente apresentar o conceito de paixão que aqui será
utilizado. Considerando que as paixões e as emoções devam ser tratadas como
produtos do meio cultural, uma vez que “a experiência emocional não é pré-cultural,
mas preeminentemente cultural, (e que) as emoções e significativos atribuídos a ela são
uma conquista social e não individual, um produto que emerge da vida social”
7
, se
impõe a historicização do conceito de paixão. Na obra “Os Sentidos da Paixão
8
,
Gerard Lebrun nos oferece uma historicização, traçando um percurso que vai de Platão
e Aristóteles a Stendhal. Ao conceituarem paixão, estes autores a identificam como
originalmente irracional, por produzir o efeito de deixar o ser apaixonado “fora de si”,
isso a partir do quadrilátero passionalidade, intensidade, mudança/efemeridade e
descontrole. Essa proposta, ainda que muito rica, é por demais ampla para os meus
propósitos.
comunicação, uma interpretação e uma valoração do mundo, a partir da estrutura de relações entre
nosso corpo e o mundo”. (CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. 9.ed. São Paulo: Ática, 1997, p. 120
123).
6
“As missões populares, pregadas pelos jesuítas, anualmente, constituíam um verdadeiro arrastão
espiritual que possibilitava a estas populações por em ordem a sua vida.” (ZEN, Idinei Augusto. As
Missões Populares na Antiga Província Jesuítica do Paraguay. 1995. 161f. Dissertação (Mestrado
em História) Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo/RS. 1995, p. 40)
7
LUTZ, C. Unnatural emotions, Chicago, University of Chicago Press, 1988.
8
LEBRUN, Gerard. O Conceito de Paixão in: CARDOSO, Sérgio. ( et al.) Os sentidos da paixão. São
Paulo:Companhia das Letras, 2002. p.17-34.
14
Tendo em vista a autoria da documentação principal utilizada nessa dissertação,
considero fundamental refletir sobre como os jesuítas “pensaram” as paixões. Marina
Massimi, em seu artigo “As paixões e seus “remédios”: um excursus pela literatura
jesuíta dos séculos XVI e XVII
9
, procura caracterizar esse conceito através de amplo
trabalho de pesquisa realizado especialmente nas obras dos jesuítas portugueses do
século XV e XVI. Sua conclusão aponta para um conceito fortemente embasado na
obra de Aristóteles via são Tomás de Aquino , com o qual concordo em parte, mas
não totalmente. Se, é certo e inegável a forte influência aristotélica na obra de São
Tomás de Aquino
10
, não se pode esquecer que, em primeiro lugar, o próprio São
Tomas de Aquino possuía outras influências teológico/filosóficas, como as de Agostinho
e dos neoplatônicos
11
. Em segundo, que sua obra mais conhecida e na qual dedica
vários capítulos à questão das paixões , a Suma Teológica, realiza um enorme esforço
de concatenar a obra de Aristóteles e o Novo Testamento, especialmente, as Cartas do
apóstolo Paulo.
Por outro lado, ainda que eu já tenha aqui referido a influência de Agostinho,
sabidamente um neoplatônico como atesta sua obra “Cidade de Deus”
12
, gostaria de
reafirmar a influência do filósofo Platão sobre a teologia/filosofia católica e inaciana.
Ainda que não se possa negar a influência da obra de São Tomás de Aquino sobre a
9
MASSIMI, Marina. As paixões e seus “remédios”: um excursus pela literatura jesuíta dos séculos XVI e
XVII. In: MASSIMI, Marina; SILVA; Paulo José Carvalho da (org.). Os olhos vêem pelo coração,
Conhecimento psicológico na história da cultura brasileira dos séculos XVI a XVII. Holos Editora-Fapesp:
Ribeirão Preto/SP. 2001.
10
A obra de Tomás de Aquino é imensa. Nelas procurou conciliar a filosofia aristotélica com os princípios
do cristianismo, em oposição à tendência que predominava na época e que adotava um cristianismo de
inspiração neoplatônica. A influência de Aristóteles é tão notória na sua filosofia que esta é também
designada como aristotelismo cristão. Além de Aristóteles, constituíram inspiração os trabalhos de Santo
Agostinho, Avicena, Averróis e dos neoplatônicos.
11
Ver AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. Trad. Alexandre Correia: Editora Permanência. Disponível
em http://sumateologica.permanencia.org.br. Acesso em 15 de abril de 2007. Importante referir que as
referências à Suma Teológica serão citadas como: AQUINO, Tomás de. Suma Teológica op. Cit.; uma
vez que a obra foi acessado através de meio eletrônico, impossibilitando a referência a páginas.
12
Entre 412 e 427, Santo Agostinho escreveu "A Cidade de Deus", um livro cuja base era a filosofia
grega e que exerceria forte influência nos tempos medievais. Nele respondeu a acusações sobre a
situação de Roma depois da invasão dos godos que, segundo alguns, havia ocorrido em função do
abandono dos deuses romanos, contra o argumento de que coisas piores haviam ocorrido em tempos
pré-cristãos. Sua obra, com forte influência da filosofia de Platão, estabelece uma relação muito próxima
entre a cidade de Deus e a cidade dos homens, mais explícita do que aquela estabelecida pelo filósofo
da Academia entre o mundo das idéias e o mundo físico.
15
teologia e a filosofia da época, é preciso lembrar que ela é uma reação. É, pois, uma
tentativa de introduzir algo novo numa teologia fortemente escolástica e neoplatônica
que influenciou todo o fazer teológico desde os primeiros séculos de penetração do
cristianismo nos altos círculos romanos
13
. Proponho, portanto, que o conceito inaciano
de paixão seja entendido como alicerçado sobre um tripé principal: a obra de
Aristóteles/São Tomás de Aquino, a obra de Platão/neo platonismo/Agostinho e o Novo
Testamento e a Patrística, especialmente, as Cartas Paulinas. Por outro lado, cabe
ainda referir, que além desse tripé principal, o conceito de paixão jesuítico sofrerá uma
influência também dos estóicos, filosofia dominante no período de ascensão do
Cristianismo, no período final do Império Romano.
No que diz respeito aos escritos dos primeiros cristãos, pode-se dizer que
possuíam uma visão negativa da paixão, já que os que são de Cristo Jesus
crucificaram a carne com as suas paixões e concupiscências”. Há, portanto, uma clara
identificação da paixão (pathos) com a “carne”, ou o corpo , a natureza humana. Aqui a
idéia é que a paixão é um sinônimo de pecado, mas não só, já que o termo traduzido
como concupiscência ( epitumía ) também é homônimo de paixão, e, muitas vezes, foi
traduzido como tal, sendo ainda caracterizado como uma força poderosa que impele,
na maioria das vezes, o indivíduo a usufruir dos prazeres da carne.
Exemplo ilustrativo da ação da pathos (presente enquanto pecado) e da Epitumia
(o desejo que não se controla) pode ser encontrado na I Carta de Paulo aos Coríntios.
No capítulo 5, Paulo descreve a história de um jovem que vivia maritalmente com a
mulher de seu Pai. Tal atitude era condenada pelas leis Judaica14 e Romana15 . A
sentença foi a exclusão da Igreja e a entrega do homem a Satanás para a destruição da
carne16 ( Sarx no original). A punição portanto, era o sofrimento físico através da
13
Após Orígenes e Clemente de Alexandria, a Igreja não podia mais deixar de lado a filosofia, tendo
assumido muitos elementos da cultura helenista. Na discussão com a filosofia, o cristianismo tornou-se
grego. Já o helenismo foi cristianizado e desapareceu como cultura autônoma, tendo sido sugado pela fé
cristã. (DREHER, Martin N. Coleção História da Igreja. A Igreja no Império Romano. São Leopoldo/RS:
SINODAL, 1993. V.1.p. 50.)
14
LEVÍTICO 18:8
15
SHEDD,Russell P. A Bíblia Vida Nova (anotada).9.ed. São Paulo: Edições Vida Nova/Sociedade
Bíblica do Brasil,1988, p.200.
16
Sarx em grego: Carne, corpo, natureza humana, instrumento voluntário do pecado.(GINGRICH,
DANKER. Léxico do Novo Testamento Grego/Português. São Paulo: Sociedade Religiosa/edições
Vida Nova, 1984. p. 186,187). Vale esclarecer que para traduzir as expressões em Grego aqui utilizadas
16
doença. O sofrimento, por sua vez, também possuía raiz na palavra pathos, que desde
os gregos clássicos era utilizada para identificada como tal, como uma doença, de onde
herdamos a palavra patologia.
A questão que se coloca aqui é fundamental, e será recorrente, especialmente
na estrutura paulina da doutrina cristã. A Sarx (carne/corpo/natureza humana) é o
habitat do pecado. A paixão, por sua vez, é ao mesmo tempo pecado, promotora do
pecado (desejo que impele/Epitumia),e punição, sofrimento. Logo, a punição
estabelecida por Paulo para a relação ilícita é que a Carne (através de Satanás), seja
destruída, de forma que o espírito seja salvo. Há, pois, uma relação
sarx/pathos/epitumia, ou seja Carne/pecado/desejo ardente, e, é este o trinômio, o alvo
ser atingido e destruído. Diz Paulo, escrevendo à Igreja em Colossos: “Exterminai, pois,
as vossas inclinações carnais; a prostituição, a impureza, a paixão (pathos), a vil
concupiscência(epitumia), e a avareza, que é idolatria”
17
, a paixão que está inclusa
na lista de pecados graves precisava ser exterminada, isso porque ela era parte
constitutiva da natureza humana, da carne.
Os primeiros séculos da era cristã parecem ter sido palco de uma mudança no
conceito de paixão, especialmente, se comparada à proposta aristotélica. Em seu artigo
“Sobre o Medo”, Marilena Chauí aponta os principais motores dessa mudança:
Com o estoicismo (particularmente em sua versão romana) e com o cristianismo,
sobrevém a primeira mudança conceitual. Ethos transmuta-se num valor, a
virtude enquanto pathos torna-se seu negativo o vício. Identificada aos
poderes da razão para dominar corpo e ânimo, a virtude desenha a figura da
natureza humana ideal em que a paixão, identificada ao vício, deve ser
combatida porque contra a natureza.
18
nos utilizamos desta bibliografia.
17
Epístola aos Coríntios :Sétimo livro do Novo Testamento. Embora esta epístola seja denominada a
primeira aos Coríntios, evidentemente outra a precedeu, que não foi conservada. Corinto, a capital da
província romana da Acaia, era notável não apenas por suas riquezas e luxo, pois era uma fortaleza de
licenciosidade e depravação, alimentadas pelo culto à deusa Vênus. (BOYER ,Orlando. Pequena
enciclopédia bíblica. Pindamonhangaba/São Paulo: Instituto das Assembléias de Deus, 1966. p. 197). A
razão principal da carta foi atender às necessidades da jovem igreja em Corinto. Corinto era a principal
cidade da Grécia e era capital da província da Acaia. A cidade era famosa em dois aspectos: pela sua
cultura, comércio e riqueza, mas também por sua impiedade. A população era de cerca de 400.000 a
500.000 habitantes. Era tão “perversa” moralmente que o nome da cidade passou a ser usado finalmente
para descrever certa perversão sexual. O alcoolismo e a sensualidade estavam na ordem do dia. Grande
parte disso se devia à religião daquele lugar. A adoração centralizava-se na deusa do Amor, Afrodite, à
qual estavam associadas 3.000 sacerdotisas consagradas à pratica de relações sexuais.(WELCH, W.
Wilbert. Comportamento Adequado dos Santos. São Paulo: Imprensa Batista Regular,1985.p.8,9)
18
CHAUI, Marilena. Sobre o Medo. In: CARDOSO, Sérgio. (et al.) Os sentidos da paixão. São
Paulo:Companhia das Letras, 2002, p.43.
17
Como visto até aqui, as paixões na literatura cristã do primeiro e segundo
séculos adquiriram um caráter negativo e pecaminoso. Chauí, por sua vez, nos indica
uma confluência conceitual entre a visão cristã e estóica. É certo, porém, que as razões
são diversas. Enquanto os cristãos estão preocupados em viver uma vida de santidade
que agrade a Deus, os estóicos a pensam negativamente, pois “extravasam os limites
impostos pelo controle da razão, desviando o espírito para os vícios.”
19
Considerando, pois, que os estóicos acreditavam que as emoções são juízos, e
que para que estes juízos fossem positivos e valorosos deveriam estar submetidos à
razão
20
, logo, uma força ou sentimento que ameaçasse esse equilíbrio, deveria ser
eliminada.
Marina Massimi, entretanto, discorda da posição defendida pela filósofa,
afirmando que “esta posição é um tanto pré-concebida
21
”, visto que Chauí não teria
considerado a posição de Tomás de Aquino ao atribuir um caráter negativo à paixão.
Segundo ela, “Tomás de Aquino, retomando a perspectiva aristotélica, afirma que a
paixão tem uma utilidade inegável ma vida psíquica da pessoa”
22
Concordo com Massimi, quando destaca a importância da filosofia/teologia de
Tomás de Aquino na formação do conceito de paixão no cristianismo ocidental, em
especial, entre os jesuítas. Quero, entretanto, ressaltar que há, e por aí se explicam
algumas diferenças importantes, um conceito mais elástico por parte de Tomás de
Aquino/Aristóteles do que aquele dos escritos cristãos e estóicos dos primeiros séculos.
Enquanto os primeiros, percebem a paixão como força “neutra” para o bem ou para o
mal
23
, para os segundos, como vimos, a paixão tem caráter negativo essencial.
Entendo, ainda, que esta “neutralidade” da posição de Aristóteles e Tomás de
Aquino deva ser considerada como relativa. O próprio caráter de passividade traz em si
uma dependência e, por conseguinte, uma fragilidade, um “ponto fraco”, o que acaba
19
MASSIMI, 2001, p. 29.
20
MAGEE, Bryan. História da Filosofia. São Paulo: Edições Loyola, 1999, p.46.
21
MASSIMI, op.cit.; p. 10.
22
Idem
23
“A paixão boa está para o mérito, assim como está a má para o pecado” (AQUINO, Tomás de. Suma
Teológica op. Cit.;)
18
por torná-la alvo fácil do “outro”, o pecado, que a recruta, pois “quanto mais intensa a
paixão, tanto maior o pecado. Portanto, ela não o diminui, mas, o aumenta.”
24
Entretanto, como já referi, o conceito de paixão de Tomás de Aquino e de
Aristóteles possui um caráter mais abrangente, de modo que ”os filósofos da tradição
aristotélica e escolástica entenderam como “paixões” todos e quaisquer movimentos do
apetite sensitivo”.
25
Penso ser possível concordar com esta posição e tomá-la como a
“chave” para compreender as práticas dos jesuítas em território americano no que diz
respeito ao regramento da vivência das paixões.
Creio que seja também válido ressaltar que os estudos de Marina Massimi se
orientam para a compreensão do conceito de paixão entre os jesuítas, a partir, quase
que exclusivamente dos escritos jesuíticos que integram os Tratados Conimbricenses.
Isto nos leva a seguinte constatação: se Chauí não deu voz a Tomás de Aquino,
Massimi, por sua vez, parece não ter considerado os escritos dos cristãos dos primeiros
séculos, as discussões propostas por Tomás de Aquino em relação à filosofia de
Aristóteles e as Cartas paulinas.
Parece-me, que ao restringir suas análises aos escritos dos Tratados
Conimbricenses, Massimi acaba por “comprar” uma disputa específica do período
histórico em questão, no qual os jesuítas portugueses estão mais empenhados em
fazer apologia da filosofia tomista/aristotélica em consonância com as tendências
epistemológicas à época do que efetivamente expor um pensamento e uma prática
próprio da Companhia de Jesus diante das paixões.
Mesmo nos Tratados Conimbricenses que abordam a questão de forma
acadêmica e numa relação estreita com a medicina , a paixão é positiva enquanto
submetida à razão, pois “se lhes antepusermos a razão como senhora podem ser
utilizadas para a moderação e o equilíbrio”.
26
Segundo São Tomás, a paixão implicava
uma deficiência, pois era própria do “ser potencial”.
27
, assim, a razão e o equilíbrio
advindos da possibilidade de a paixão ser controlada, confeririam a ela uma certa
“positividade”. Diante disso, creio que se possa afirmar que a paixão que tantas vezes
24
AQUINO, Tomás. Suma Teológica op. Cit.;
25
MASSIMI, 2001, p. 29.
26
Disputas apud MASSIMI, 2001, p.199.
27
AQUINO, Tomás. Suma Teológica op. Cit.;
19
foi responsabilizada por pecados nas Cartas Ânuas
28
do século XVIII, com certeza, foi a
paixão que não se submeteu à razão.
Em outros documentos filosófico/teológicos dos séculos XVI e XVII, as paixões,
apesar de serem percebidas pela ótica tomista, são também alvo de grande
preocupação. O caso da freira e escritora portuguesa Joana da Gama é exemplar. Ela
nos diz que “a grande paixão tiraniza a vontade e rouba o senhorio da razão (...) Muita
paixão corrompe o juízo (...) A paixão obscurece o entendimento (...)”
29
. Nos escritos de
origem espanhola também podem ser encontradas evidências de que a paixão era alvo
de preocupação. Frei Luís de Granada, em sua obra “Instruccion y regla de bien vivir
para los que comienzan à servir a Dios, mayormente en las Religiones “, de 1757,
dedica a primeira parte do seu trabalho à “mortificação dos vícios, e paixões e aos
meios que servem para isso”. Tal processo tinha por objetivo mortificar a natureza
“carnal”, de modo a fortalecer no religioso o “homem espiritual”. Ora, essa relação
remete diretamente à dualidade apresentada pelo apóstolo Paulo, já comentada, e que
remete às paixões da carne e ao pecado.
Creio ser válido recorrer ao próprio Santo Inácio de Loyola, que muito apegado
ao cumprimento da missão evangelizadora, aconselhava:
Debe también ser libre de todas pasiones, teniéndolas domadas y mortificadas:
porque interiormente no le perturben el juicio de la ración, y exteriormente sean
tan compuesto y en el hablar especialmente tan concertado, que ninguno pueda
notar en él cosa o palabra que no le edifique, a si de los de la compañía que le
han de tener como espejo
30
28
Importante dizer que “as “Litterae Anuae” são a correspondência periódica que os Padres Provinciais
enviavam ao Padre Geral da Companhia de Jesus. Elas têm sua base nos relatórios anuais que o
Provincial recebia dos superiores das Residências, Colégios, Universidades e Missões junto aos índios.
Continham uma detalhada informação sobre as casas, suas obras, pessoas e atividades. Correspondem
a um lapso de tempo de um ano ou de vários anos. Eram de responsabilidade dos superiores provinciais,
que as assinavam e enviavam a Roma. De ordinário eram redigidas pelos secretários, ou por pessoas
com capacidade para escrevê-las, designadas pelo Provincial. As Cartas Ânuas constituíam-se em
relatórios administrativos para a Administração Geral da Ordem, mas não exclusivamente. Partilham
também do gênero de cartas edificantes, pois selecionam fatos que possam ser úteis como propaganda
para que mais jesuítas europeus viessem a trabalhar na América e para que conseguissem recursos
financeiros para dar continuidade às obras que a Província tinha instalado. Visavam também a
impressionar as autoridades civis e eclesiásticas com relação aos êxitos conseguidos. Com esse intuito
elas foram traduzidas para o latim para que pudessem ser divulgadas nas Casas da Companhia de Jesus
de toda a Europa. As Cartas Ânuas, relativas à Província Jesuítica do Paraguai, cobrem o período que
vai de 1609 a 1675 e, após um intervalo de cerca de 40 anos, o período de 1714 a 1762. (FLECK,1999,
p.11)
29
GAMA apud MASSIMI, 2001, p.13
30
LOYOLA, Inácio. Constituciones de la Compañia de Jesús. ítem 726.
20
Vale relembrar que São Tomás de Aquino reconhecia que a paixão implicava
uma deficiência, pois era própria do ser potencial, já que “os seres que se aproximam
da perfeição primeira - Deus, pouco têm de potencialidade e de paixão; e o contrário se
dá conseqüentemente com os que dele mais se afastam.”
31
Embora não pretenda
negar a influência exercida pelo pensamento tomista sobre a teoria e sobre a prática
missionária jesuítica na América, acredito que no trabalho missionário que visava a
conversão, a paixão tenha sido combatida como sinônimo de pecado. Isso pode ser
comprovado pela freqüência com que a paixão será identificada diretamente com
atitudes pecaminosas nas Cartas Ânuas da Província Jesuítica do Paraguai.
32
A posição que assumo neste estudo, portanto, é de que o conceito de paixão
vivido e instrumentalizado pelos jesuítas em terras americanas não pode ser percebido
unicamente, nem preferencialmente, como aquele proposto nos escritos aristotélicos ou
nos escritos Conimbricenses. Acredito, ainda, que não há como compreender as ações
realizadas pela Companhia de Jesus, no território platino, sem considerar que os
missionários perceberam as paixões como pecado e como geradoras de pecado.
É certo que o pensamento tomista e o discurso acadêmico dos Tratados
Conimbricenses acabaram por influenciar a prática missionária jesuítica. Acredito, no
entanto, que essa influência se deu menos em termos de uma sofisticação na
elaboração do conceito de paixão, e mais, na formulação de uma prática que visava
fazer “uso” delas. Se a paixão era percebida como causa ou sinônimo do pecado, e
identificada com o mal do qual o indivíduo deveria ser libertado, a estratégia era sua
supressão, eliminação, mortificação. O que podemos observar na documentação é a
opção por uma estratégia clara e bem formulada de, através da retórica e da
teatralidade, emocionar e, por vezes, constranger as populações platinas, procurando
redirecionar suas paixões com vistas a sua (re) conversão, reforçando a constatação de
Massimi de que o ”conhecimento, controle e manipulação” das paixões “revelaram-se
31
AQUINO, Tomás. Suma Teológica op. Cit.;
32
Destaco algumas passagens da Carta Ânua de 1735-1743. A primeira se refere ao jogo: “hasta tal
grado de insensatez llega la pasión del juego”, e a segunda ao ódio e à vingança: “Pues, esta pobre
gente está muy inclinada al odio y la venganza, es muy difícil desarraigar esta pasión de su corazón.”
(Cartas Anuas de la Provincia del Paraguay (C.A). Anõs 1735-1743. Tradución de Carlos Leonhardt,
S.J. Buenos Aires, 1928. Tradução Digitada, São Leopoldo, Instituto Anchietano de
Pesquisas/UNISINOS,1994, p. 19). Importante referir que a partir daqui, as Cartas Ânuas serão
identificadas pela abreviação C.A.
21
um instrumento muito importante para os objetivos religiosos, sociais e políticos da
Companhia.”
33
É preciso admitir, portanto, que o pensamento aristotélico influenciou e matizou a
estratégia jesuíta. Foi nele que os jesuítas foram buscar inspiração para um projeto de
“uso” das paixões, de controle e redirecionamento desta força
34
. É, pois pela técné
35
,
pela retórica, e, no caso específico dos jesuítas na América platina, pela missão
fortemente teatral, que se que buscou atingir o coração, as mentes e os corpos dos
colonos platinos.
A documentação que analisei para dar conta do tema proposto consiste de
Cartas Ânuas digitadas e encadernadas, ainda não publicadas, e que integram o
Acervo do Instituto Anchietano de Pesquisas. Elas se referem aos anos de 1720-1730,
1730-1735, 1735-1743, 1750-1756
36
, sendo sempre assinadas pelo Provincial. As
Cartas de 1730-1735
37
e 1735-1743
38
têm sua autoria atribuída ao Padre Lozano,
Secretário da Província Jesuítica do Paraguai, durante este período.
Até o presente momento, esta documentação mereceu a atenção de
pouquíssimos pesquisadores, razão pela qual localizamos não mais que duas
dissertações de mestrado, alguns artigos e capítulos de livros que dela se valem como
fonte.
Em relação às dissertações, a primeira delas intitula-se “As Missões Populares
na Antiga Província Jesuítica do Paraguay”, defendida por Idinei Augusto Zen, em
33
MASSIMI, 2001, p.17.
34
Conforme ARISTÓTELES. Retórica. Trad. Antônio Tovar. Madri: Centro de Estudios Constitucionales,
1990, p. 95
35
Idem, p. 95.
36
De acordo com Beatriz Vasconcelos Franzen, estes documentos possuem seu original no “Arquivo
Geral da Companhia de Jesus, em Roma ”sendo parte de três volumes” das “Cartas Ânuas da Provìncia
Jesuítica do Paraguai” que “abarcam o período de 1608 a 1763”.(FRANZEN, Beatriz V. Jesuítas
portugueses e espanhóis no sul do Brasil e Paraguai coloniais. São Leopoldo: Ed. da UNISINOS,
2003, p. 87).
37
Conforme Alicia Pioli, esta Carta teria sido escrita pelo Padre Lozano, considerado o historiador da
Companhia de Jesus no início do século XVIII, sendo que também produziu as obras “historiográfica”
Historia de las Revoluciones de la Província del Paraguay (1905). Ainda segundo ela, esta opinião seria
corroborada por Furlong e Leonhardt, estudiosos da Companhia. (PIOLI, Alicia Juliana. O Colégio
Jesuíta de Corrientes. 2002. 238 f. Dissertação (Mestrado em História). Universidade do Vale do Rio
dos Sinos, São Leopoldo/RS, 2002, p.166)
38
Quanto a esta Carta, tanto Alicia Pioli (2002, p.169), quanto Beatriz Franzen ( 2003, p.87) atribuem sua
autoria ao Padre Lozano, sem entretanto, indicar fonte. È bem possível que se apóiem também na
opinião de Furlong e Leonhardt.
22
1995, quando o trabalho de digitação e encadernação não havia sido ainda concluído.
Trata-se de trabalho de fundamental importância para a minha dissertação, pois
mapeou, de forma ampla, as missões populares realizadas pelos missionários jesuítas,
desde os inícios de sua atuação na região platina até o ano de sua expulsão, em 1762.
Tendo como tema o Colégio de Corrientes, a dissertação de Alicia Pioli,
defendida em 2002, utilizou-se desta mesma documentação para contemplar o a
história do Colégio de Corrientes, desde sua fundação, com destaque para a reação
dos jesuítas às medidas tomadas pelos líderes da Revolução dos Comuneros.
Já Beatriz Vasconcelos Franzen, em seu artigo “As missões populares na Carta
Ânua de 1735/43, da Província Jesuítica do Paraguai
39
, trata de forma geral as
missões populares, enfatizando a participação das mulheres nos Exercícios Espirituais
e nas festividades. Além deste artigo, Franzen dedicou dois capítulos em seu livro
“Jesuítas portugueses e espanhóis no sul do Brasil e Paraguai coloniais” ao estudo de
algumas das Cartas Ânuas relativas ao século XVIII. No primeiro, intitulado “Um
documento que fascina: A Carta Ânua de 1735-1743, da Província Jesuítica do
Paraguai”, ela se dedica a narrar alguns dos acontecimentos que considera mais
significativos para a reconstituição histórica da atuação jesuítica. No segundo, “Os
Colégios da Província Jesuítica do Paraguai (1607-1767). Um estudo de caso: A
fundação do segundo Colégio de Buenos Aires O Colégio do Alto de San Pedro
(1735-1767”, Franzen se detém na implantação das instituições de ensino da
Companhia, com especial destaque, para a construção do segundo Colégio de Buenos
Aires.
As produções aqui referidas, ainda que tenham se utilizado da mesma
documentação, não abordaram os mesmos temas a que me proponho, e mesmo
quando o margearam, como no caso de Zen que contemplou as Missões Populares
o fizeram em uma outra perspectiva teórico-metodológica. Ou seja, a documentação em
questão nunca foi investigada sob a perspectiva da Nova História Cultural, nem tão
pouco à luz de uma de suas vertentes, a História das Sensibilidades. Também o objeto
de estudo aqui proposto, a vivência das paixões pelas populações platinas e as
39
FRANZEN, Beatriz Vasconcelos. As missões populares na Carta Ânua de 1735/43, da Província
Jesuítica do Paraguai. História UNISINOS, Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Vol 9, n.1
janeiro/abril, 2005.
23
estratégias de combate e supressão empregadas pela Companhia de Jesus, jamais
foram pesquisadas a partir da análise dessa documentação específica.
Quanto a estudos que enfocam o sensível e seus efeitos no âmbito da Província
Jesuítica do Paraguai, com ênfase no século XVIII, vale referir o artigo de Mercedes
Avellaneda intitulado “El recurso de la violencia como mecanismo de cambio social en
la sociedad del Paraguay Colonial a principios del Siglo XVIII
40
. Nesse trabalho, a
historiadora argentina se pergunta sobre a influência exercida pelo medo nos rumos
que tomou a Revolução dos Comuneros, e se vale de documentação judicial,
administrativa e legislativa e não das Cartas Ânuas do século XVIII para constatar
sua presença imperativa. O trabalho em questão foi extremamente valioso para a
discussão que proponho no terceiro capítulo dessa dissertação.
Importante referir a Tese de Doutorado de Eliane Fleck, “Sentir, Adoecer e
Morrer Sensibilidade e Devoção no Discurso Missionário Jesuítico do Século XVII”,
também de fundamental importância para o desenvolvimento do argumento da
dissertação, na medida em que muitas das reflexões por ela propostas nos iluminaram
ou instigaram. Ao adotar uma perspectiva inovadora na análise das Cartas Ânuas
referentes ao século XVII, Fleck desenvolveu um estudo pioneiro sobre as
sensibilidades no âmbito das reduções jesuítico-guaranis da Província Jesuítica do
Paraguai, ao qual pretendemos dar continuidade, ao contemplar as missões populares
desenvolvidas pelos jesuítas junto às populações das áreas urbanas e rurais platinas,
sob a jurisdição dessa mesma Província, na primeira metade do século XVIII.
Inspirador para a investigação que realizei foi o historiador uruguaio José Barran,
que assim definiu a História da Sensibilidade: “Se trata de analizar la evolución de la
faculdad de sentir, de percibir placer y dolor, que cada cultura tiene y en relación a que
la tiene”. Barran pretende superar uma historia somente dos hábitos ou idéias de uma
época, ao pretender fazer “una historia de las emociones”.
41
Esta proposta teórica que,
por si mesma delimita o objeto o sensível não pretende, entretanto, se desligar do
seu momento histórico. Para o historiador da “Historia de la sensibilidad en el Uruguay”,
40
AVELLANEDA, Mercedes. El recurso de la violencia como mecanismo de cambio social en la sociedad
del Paraguay Colonial a principios del Siglo XVIII. História UNISINOS, Universidade do Vale do Rio dos
Sinos. Vol 11, n. 2 mai/ago 2007, p.145 159.
41
BARRAN, José Pedro. Historia de la sensibilidad en el Uruguay: "La cultura bárbara (1800-1860)",
Ediciones de la Banda Oriental-Facultad de Humanidades y Ciencias, Montevideo, 1991, p.11.
24
um aprofundado estudo da sensibilidade “revelará, creemos , sus más escondidos
presupuestos , el secreto de las conductas , de sus integrantes , las razones del
corazón” e “ nos acercará a la medula de esa época , a los rasgos colectivos y
seguramente intransferibles de una forma de sentir.”
42
A preocupação com as questões do sensível tem estado presente na
historiografia desde Michelet (1789-1874). Marcou fortemente os Annales, através de
Lucien Febvre, que advogava uma história do amor e da alegria
43
e, também, de Marc
Bloch. Mais recentemente, encontrou continuadores em Duby, Delumeau e Corbin.
Presentes, portanto, no horizonte dos historiadores que consideram necessário transpor
as temáticas econômicas e políticas na construção de um arcabouço explicativo, as
emoções vêm ganhando espaço nas análises históricas. É, contudo, importante
ressaltar que esta perspectiva a da história das sensibilidades não pressupõe que
elas sejam analisadas isoladamente, mesmo porque se impone confrontar las
estructuras sociales y la diversidad de los comportamientos perceptivos. Es inútil
pretender el estudio de tensiones y enfrentamientos , y sofocar los diversos modos de
la sensibilidad , tan fuertemente implicados en tales conflictos.”
44
Sobre a importância do estudo das sensibilidades no âmbito das Ciências
Humanas, me reporto à Márcia Tiburi que afirma:“Tal posição é a que devemos
defender hoje: a sensibilidade é uma categoria do conhecimento e uma categoria
política”, isto porque para a autora “Ela é a base,a via de acesso ao mundo externo ao
nosso corpo(...) É o modo como olhamos para as coisas,como ouvimos,mas também
como pensamos(...)O uso da razão,a produção do pensamento,depende deste gesto
inicial”.
45
Não me furto, entretanto, de reconhecer os limites dessa perspectiva de análise,
selecionando dois que considero mais representativos. O primeiro tem a ver com o
42
Idem, p.12 -13.
43
FEBVRE, Lucien. Combats pour l’Histoire. Paris, Armand Colin, 1965, p.221.
44
CORBIN, Alain. El perfume o el miasma. El olfato y lo imaginario social. Siglos XVIII y XIX. México:
Fondo de Cultura Económica, 1987, p.10.
45
KEHL, Maria Rita. Três perguntas sobre o corpo torturado. In: KEIL,Ivete; TIBURI, Márcia (Org). O
Corpo Torturado. Porto Alegre, Escritos Editora, 2005, p.12.
25
próprio objeto, o sensível; e o segundo, com os meios para alcançá-lo, o discurso. O
objeto que me proponho a estudar, as paixões, não faz parte do universo do “concreto”,
uma vez que enquanto “traço de união entre corpo e alma, a sensibilidade é uma
presença enquanto valor, dificilmente será número(...)”. As sensibilidades raramente
serão encontradas de forma evidente, concreta na pesquisa histórica, logo, é preciso
pensar outras formas de alcançá-la “(...) as sensibilidades demonstrariam sua presença
ou eficácia pela reação que são capazes de provocar (...) onde podem ser medidas
ações e reações, mobilizações e tomadas de iniciativa”
46
Há pois, um limite
metodológico importante, na medida em que não se pode alcançar, ou medir, o objeto
de pesquisa em si, se não seus reflexos, suas expressões.
O segundo aspecto a ser observado, tem a ver com a única forma de alcançar as
sensibilidades, o discurso. Antes mesmo de pensarmos os limites do discurso, seus
condicionantes e a hermenêutica necessária para dele fazermos uso enquanto fonte, é
preciso reconhecer que é preciso haver um discurso
47
. Sobre isto bem observa Alan
Corbin “(...) o historiador é condenado a evocar apenas pessoas que praticaram a
escrita de si, ou que foram colocadas sob uma luz particular,seja da polícia,seja do
confessor seja do médico.”
48
No caso específico desta proposta de trabalho, a mão que
descreve as vivências das paixões condenadas, é a do confessor, que inicialmente
relata, e do provincial ou redator que seleciona os relatos e os descreve nas Cartas
Ânuas a que tivemos acesso. É pois, o jesuíta “falando” sobre o Outro e descrevendo
as vivências do Outro. Vivências estas que só adquirem sentido a partir de sua própria
formação. É, em razão disso, que me aproximo do pensamento de Corbin, quando este
define como função da História das Sensibilidades a de “identificar a utilização dos
sentidos que permitiu construir imagens do outro, dar forma ao imaginário social.”
49
46
PESAVENTO, Sandra. Sensibilidades no tempo, tempo das sensibilidades. Nuevo
Mundo Mundos Nuevos, Número 4 2004. Disponível em
http://nuevomundo.revues.org/document229.html. Acesso em: 04 de fevereito de 2007.
47
Burke alerta para o risco necessário de se depender sempre de um discurso para se alcançar o que se
deseja em termos de análise historiográfica, já que ”estudar a história do comportamento dos iletrados é
necessariamente enxergá-la com dois pares de olhos estranhos a elas: os nossos e os dos autores dos
documentos que servem de mediação entre nós e as pessoas comuns que estamos tentando alcançar” (
BURKE, Peter. A Cultura Popular na Idade Moderna. São Paulo: Cia. Das Letras, 1989. p.94)
48
CORBIN, Alain. O prazer do historiador. Entrevista concedida a Laurent Vidal. Revista Brasileira de
História- Órgão Oficial da Associação Nacional de História.São Paulo,v. 25, nº 49, jan-jun, 2005. p.25.
49
CORBIN, 2005, p.19.
26
Aqui cabe reafirmar o objetivo desta dissertação, que é o de prioritariamente
saber como as populações que foram alvo do discurso de controle das paixões
reagiram às estratégias empregadas pelos missionários, se as acataram, se as
rejeitaram ou ainda se deram às paixões um sentido novo em suas vivências. Sobre o
conceito de estratégia, nos apropriamos da proposta teórica de Michel de Certeau, que
a define como:
(...) o cálculo das relações de forças que se torna possível a partir do momento
em que um sujeito de querer e poder é isolável de um “ambiente”. Ela postula um
lugar capaz de ser circunscrito como um próprio e portanto um lugar capaz de de
servir de base a uma gestação de suas relações com uma exterioridade distinta.
A nacionalidade política, econômica ou científica foi construída segundo este
modelo estratégico.
50
Seguindo, portanto, o caminho proposto por De Certeau, acredito ser
fundamental, para a compreensão das vivências das paixões na Província Jesuítica do
Paraguai, considerar os esforços empreendidos por parte da Companhia de Jesus a
partir do conceito de estratégia. Este conceito será considerado, na medida, em que
serve de “lente”, através da qual pretendemos enxergar as ações planejadas pelos
jesuítas, pois “não se dá por acaso que toda a sua cultura se elabora nos termos de
relações conflituais ou competitivas entre mais fortes e mais fracos, sem que nenhum
espaço, nem legendário ou ritual, possa instalar-se na certeza de neutralidade”.
51
É nesses espaços de relações conflituosas, que acredito seja possível capturar
“(...) os tipos de operações que as estratégias são capazes de produzir, mapear e impor
(...)”
52
, pois “as estratégias escondem sob cálculos objetivos a sua relação como poder
que os sustenta, guardado pelo lugar próprio ou pela instituição”
53
.
A escolha e a aplicação do conceito de estratégia se justificam, portanto, na
medida em que compreendo a ação da Companhia de Jesus como uma ação objetiva
daqueles que detêm os meios que possibilitam “(...) com isso ganhar credibilidade e
fazer crer que está falando em nome do “real” dos contratos sócio-econômicos e
culturais”
54
. Deve-se ter clareza que na primeira metade do século XVIII, ainda que
50
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1 artes de fazer.10.ed. Petrópolis/RJ: Editora Vozes,
2004. p. 46.
51
Idem, p.86.
52
CERTEAU, 2004, p.92.
53
Idem, p.47.
54
Idem, p.241.
27
houvessem conflitos com a elite política e econômica da região platina, os jesuítas até
por força do Padroado agiam e pensavam como elite, como aqueles que pensavam o
campo de batalha a partir de cima, estabelecendo seu logos e sua práxis.
Penso que para melhor compreender as vivências das paixões de homens e
mulheres das áreas urbanas e rurais que integravam a Província Jesuítica do Paraguai
se torna fundamental também “analisar a sua manipulação pelos praticantes que não a
fabricam. Só então é que se pode apreciar a diferença ou a semelhança entre a
produção da imagem e a produção secundária que se esconde nos processos de sua
utilização”.
55
. Logo, o segundo conceito que cabe explicitar é o de tática. É um conceito
que pode nos ajudar a compreender como uma sociedade, que é vítima de uma ação
estratégica consciente como a de regrar comportamentos, não “se reduz a ela,
adotando procedimentos “minúsculos” e cotidianos, jogando com os mecanismos da
disciplina e não se conformando com eles a não ser para alterá-los; enfim, que
“maneiras de fazer” constituíram a contrapartida dessa população à ação dos
missionários
56
.
Os conceitos de estratégia e tática são extraídos das ciências militares, sendo a
primeira associada à ação do general, que no grego antigo é o estrategói, e a segunda,
percebida como o espaço de reação do mais fraco, daquele que não dispõe de tantos
meios para o combate, daquele que, por muitas vezes, precisa resistir em território que
não lhe pertence, a esta pois é denominada
(...) “tática”, um cálculo que não pode contar com um próprio, nem portanto nem
portanto com uma fronteira que distingue o outro como totalidade visível. A
tática só tem por lugar o do outro. Ela aí se insinua, fragmentariamente, sem
apreende-lo por inteiro, sem poder retê-lo à distância. Ela não dispõe de base
onde capitalizar os seus proveitos , preparar suas expansões e assegurar uma
independência em face dar circunstâncias.
57
O conceito de tática proposto por De Certeau é amplo. Contempla todas as
práticas articuladas por aqueles que são o alvo da estratégia, no caso a de controle e
combate das paixões por parte da Companhia de Jesus. Os atores destas táticas são,
no caso de desta análise, os colonos platinos. Estes, me parece, nem sempre
cumpriram as determinações eclesiásticas. Não raro, buscaram viver suas paixões de
55
Idem, p.40.
56
Idem, p. 41.
57
CERTEAU, 2004, p.46
28
modo velado, escondido. Creio, portanto, que o conceito de tática dá conta destas
questões pois nele se inclui a
trampolinagem, palavra que um jogo de palavras associa à acrobacia do
saltimbanco e à sua arte de saltar no trampolim, e como trapaçaria, astúcia e
esperteza no modo de utilizar ou de driblar os termos dos contratos
sociais...devem desembaraçar-se de uma rede de forças e de representações
estabelecidas. Tem de “fazer com”.
58
Há casos recorrentes na documentação que indicam estas práticas, do que
poderíamos chamar de trapaça religiosa e que se traduziu, sobretudo, no que
denominei de “tática da boa morte”. A transcrição a seguir, ilustra uma destas práticas:
a de um homem que se mantém pecador apesar das confissões, até que, diante da
iminência da morte, manifesta-se arrependido:
Outro havia vivido quase cinqüenta anos tão dominado pelo pecado da luxúria
que, afora suas relações indevidas desde muitos anos nesta cidade, do
escândalo público em que vivia e seus inúmeros pecados de bestialidades, não
podia encontrar-se com uma mulher sem assediá-la (...)mas, ao fazer os
exercícios, se horrorizou de tal maneira de suas barbaridades, que seus olhos
se transformaram em duas fontes de água (...)
59
Vidas inteiras e intensamente usufruídas sob o controle das paixões que só
buscam o arrependimento na hora da morte. Este exemplo que destaquei, ilustra,
claramente, um projeto de vida que incluía o prazer de pecar enquanto havia força vital,
e a tranqüilidade do “bem morrer”, que garantia salvação da alma quando a vida se
findava.
Essas táticas são, como foi dito, bastante comuns, mas não são as únicas. Há
muitas outras, pois “a invenção não é ilimitada e,como as ‘improvisações’ no piano ou
na guitarra, supõem o conhecimento e a aplicação de códigos e que implicam uma
lógica dos jogos de ações relativos a tipos de circunstâncias”.
60
Acredito, portanto, que
muito há para ser desvendado sobre os escamoteamentos e as trampolinagens
empregadas como táticas pelas populações platinas na primeira metade do século
XVIII. Identificar e analisar estas práticas que “colocam em jogo uma ratio “popular”,
uma maneira de pensar investida numa maneira de agir, uma arte de combinar
58
Idem, p.79
59
C.A 1735-1743, p. 243.
60
CERTEAU, 2004, p.83.
29
indissociável de uma arte de utilizar”
61
se constituem, no entanto, em grandes desafios
para esta investigação, na medida em que não são tão facilmente trazidos à luz.
Acredito que as táticas incluíram também, além da dissimulação, as
resignificações, as reelaborações e as traduções, na medida em houve “um constante
trabalho de transformação no plano das práticas e dos símbolos, as primeiras
veiculando os segundos e sendo, ao mesmo tempo determinados por estes”
62
. Uma
prática que pode ter dado novo sentido ao proposto, em que o indivíduo, ao invés de
esconder-se para fazer, o fazia às claras, numa ação que conferia outro sentido que
não aquele previsto pela estratégia empregada pelo detentor do discurso.
A análise que fiz das Cartas Ânuas levou em conta a metodologia proposta para
a análise de textos históricos, a partir do proposto por Vainfas e Cardoso: “um
documento é sempre portador de um discurso, que assim considerado, não pode ser
visto como algo transparente”
63
. Considerei, também, como fundamentais os
pressupostos de De Certeau, sobretudo, aqueles que chamam a atenção para os
condicionantes dos discursos, pois “(...) a história se define inteira por uma relação da
linguagem com o corpo (social) e, portanto, também de sua relação com os limites que
o corpo impõe, seja à maneira do lugar particular de onde se fala(...)” , mas não só isto
o outro, alvo do discurso acaba por influenciá-lo “(...) seja a maneira do objeto
outro.(...)do qual se fala”
64
.
Os alertas metodológicos feitos por Cristina Pompa também foram considerados
na análise que empreendi, especialmente, os cuidados necessários “(...) para
desenvolver um contexto triplo, o contexto histórico (...), o contexto narrativo em que se
articulam as informações; o contexto cultural para o qual os relatos eram destinados”, já
que o texto escrito “(...) é talvez o lugar privilegiado para apreender o processo de
mediações culturais, de mudança de registros, de revisão de códigos, de traduções
(...)”
65
.
61
Idem, p.42.
62
POMPA, Cristina. Religião como tradução: missionários, Tupi e Tapuia no Brasil colonial. Bauru/SP:
EDUSC/ANPOCS. 2003, p.23.
63
CARDOSO,Ciro Flamarion; VAINFAS.Ronaldo (orgs). Domínios da História: ensaios de teoria e
metodologia.Rio de Janeiro: Campus,1997, p.377.
64
CERTEAU, Michel de. A Escrita da História.2.ed. Rio de Janeiro:Forense Universitária, 2002. p.77.
65
POMPA, 2005, p.28-29.
30
Penso que o discurso jesuítico se constitui em lugar privilegiado para
detectarmos as múltiplas expressões das paixões desses homens e mulheres, mesmo
porque, como bem observado por De Certeau, “tudo retorna nas franjas do discurso ou
nas suas falhas, resistências, sobrevivências”
66
. Ou seja, mesmo havendo uma fórmula
prescrita para a escrita missionária, como fica evidenciado na estrutura que as Cartas
Anuas apresentam e na crença sempre reafirmada na conversão e reconversão das
populações platinas, os muitos relatos de reincidência nas paixões apontam em outro
sentido. Finalmente, entendo que “o espaço do discurso” nos permite alcançar o próprio
jesuíta em suas inquietações e paixões, pois, nas descrições que faz,“freqüentemente,
o que os missionários, os cronistas, (...) apresentam em suas fontes é sua própria
imagem deformada no espelho”
67
.
Estruturei a dissertação em três capítulos, sendo que no primeiro destaco a
vivência das paixões nas cidades platinas. De Buenos Aires até Assunção, passando
pelo grande centro de Córdoba onde ficava a Universidade da Companhia de Jesus
, além de Salta, Santiago del Estero e de outras cidades menores. Ressalto a
importância do trabalho realizado pelos Colégios da Companhia de Jesus em algumas
dessas cidades, através do trabalho pastoral e dos atendimentos diferenciados
prestados à população branca, indígena e negra.
Neste capítulo ressalto um dos efeitos das missões populares nos centros
urbanos: o “teatro da fé”
68
. A chegada do padre missionário era aguardada com grande
ansiedade e previa a realização de muitas atividades que visavam envolver toda
cidade. Havia uma clara orientação por parte dos Superiores da Companhia de que
através desse “teatro da fé” a alma dos ouvintes fosse alcançada e que os pecadores
se mostrassem verdadeiramente inclinados ao arrependimento, à confissão geral e à
mudança de comportamento. Ora, na adoção desta estratégia de conversão
encontramos as orientações formuladas por Aristóteles e que se encontram na sua obra
“Retórica”. É nela, pois, que os “teólogos estrategistas” da Companhia de Jesus irão se
inspirar e aprender a “fazer uso” das paixões. Ou seja, pelo uso de recursos teatrais
66
Op.cit.; 2002, p.16.
67
Op.cit.; 2005. p.27.
68
Expressão emprestada do historiador Leandro Karnal que a emprega em sua obra Teatro da Fé:
Representação Religiosa no Brasil e no México do Século XVI. ( KARNAL, Leandro. Teatro da Fé:
Representação Religiosa no Brasil e no México do Século XVI. São Paulo: HUCITEC, 1998)
31
procissões, missas, sermões, penitências e confissões especialmente pela via da
emoção, alcançar os corações e mentes dos colonos platinos. É a partir, portanto, da
concepção aristotélica de paixão, como força transformadora, mas desprovida de
autocontrole, isto é, uma força movida e dependente de algo “exterior”, que os padres
da Companhia irão proferir seus sermões.
Ainda neste capítulo, abordo a vivência das paixões pelas populações urbanas
que foram alvo das missões, destacando suas mais diferentes reações, desde o
cumprimento das determinações eclesiásticas até o enfrentamento público aos
ensinamentos dos missionários. Acredito que para melhor entendermos as
particularidades dessas manifestações citadinas, seja pertinente refletir sobre a
influência exercida pelos espaços urbanos de sociabilidade, pela proximidade das
moradias, pelo maior fluxo de população, pelos espaços de convivência como festas e
as missas, e, portanto, pela oportunidade de conhecer pessoas em espaços que
ficavam fora do ambiente privado e protegido das casas. Além de criar oportunidades
para vivências diferentes daquelas pensadas e propostas pela pregação de controle e
de supressão das paixões, o espaço urbano possibilitou uma maior “publicidade” das
ações não permitidas, fazendo com que muitos dos que ousaram viver suas paixões,
fossem alvo de fofocas e discriminações. A urbe, portanto, será o espaço que dará
visibilidade a uma série de paixões, aproximando espanhóis, criollos, negros, índios e
mestiços. Peculiaridade que fez com que a negra piedosa fosse aclamada como santa
pela igreja, enquanto o bem nascido peninsular era criticado e repreendido
publicamente por perseguir e matar a escrava que se negava a satisfazer sua luxúria.
Além das missões populares realizadas nas cidades, a Companhia de Jesus
realizava missões campestres que levavam os missionários a se deslocarem para as
adjacências das cidades e para lugares bastante longínquos e isolados. No segundo
capítulo descrevo o quão penoso era este trabalho missionário e ressalto as
particularidades que caracterizaram estas missões.
O ambiente rural, com espaços desabitados, escassa ocupação humana e pouca
presença feminina, influenciou de forma bastante significativa a vivência das paixões
por estas populações campesinas. As estratégias de conversão empregadas pela
Companhia de Jesus para estas áreas nem sempre puderam ser cumpridas a contento,
32
devido às dificuldades de deslocamento, às longas distâncias e à falta de padres para
cobrir tão vasto território.
As reações dos campesinos platinos à normatização de condutas que as
missões populares pregavam, apesar de não terem sido tão intensas como nas
cidades, estiveram presentes, diferindo delas, em grande medida, pelas
particularidades do espaço rural platino, parcialmente “invisível” aos olhos da igreja e
difícil de ser controlado pelos raros e longínquos vizinhos. O ambiente hostil e o
isolamento das áreas rurais que dificultavam uma presença feminina mais significativa
, no entanto, acabaram determinando que as poucas mulheres, mães ou irmãs, por
vezes, se tornassem também parceiras sexuais e companheiras na constituição de
famílias incestuosas. A proximidade em relação aos animais bastante característico
no ambiente doméstico rural , não poucas vezes, levou à prática dasbestialidades”,
como chamavam os padres.
Por fim, será neste ambiente também que as populações criollas, mestiças e
ameríndias terão facilitado o convívio. É claro que, em muitos casos, esta relação foi
conflituosa, não impedindo, entretanto, a realização de casamentos ou a constituição de
outros tipos de relacionamentos ditados e/ou justificados pela paixão. Foi também no
ambiente rural que outras paixões, como o jogo, a borrachera e o ódio e de seu efeito
mais comum, a violência tiveram lugar. Procurei destacar, em especial, a questão do
ódio e da violência, considerando as condicionantes espaciais, culturais e sociais que
as promoveram.
No último capítulo, me detive na influência que as paixões exerceram no âmbito
das relações de poder e da política, desencadeando disputas entre indivíduos e famílias
e ações político-revolucionárias na primeira metade do século XVIII. A paixão como
atestam as Cartas Ânuas chegou a ser tomada como justificativa por aqueles que, em
várias situações, mas, em especial, no caso da Revolução dos Comuneros, se
colocaram contra a Companhia de Jesus. Atitudes estas que, muitas vezes, excederão
a simples discordância ou oposição, e incluíram atitudes drásticas, como o confisco de
bens e a expulsão dos inacianos de seus colégios e demais propriedades. A paixão, em
seu caráter de excesso e descontrole, passará, a partir de então, a ser apresentada
pelos jesuítas como cegueira que fazia com que alguns indivíduos cometessem ações
33
irracionais, ou então como paixão-pecado que desencadeava a cobiça que levava
amigos e vizinhos a se colocarem uns contra os outros.
Ao final, retomo o objetivo primordial desta investigação que foi o de analisar as
estratégias empregadas pelos jesuítas para controlar ou suprimir as vivências
apaixonadas
69
de homens e mulheres que viviam nas cidades e no campo platinos
através das missões populares na primeira metade do século do XVIII, na Província
Jesuítica do Paraguai.
69
Esclareço que ao me referir, ao longo desta dissertação, ao termo vivências apaixonadas não o farei
com o sentido de extase romântico, por vincular o termo vivências apaixonadas às manifestações de
indivíduos que se encontravam sob o comando da paixão.
34
2 AS PAIXÕES E A CIDADE PLATINA: O URBANO COMO ESPAÇO DE
TRANSGRESSÃO
A cidade platina parece ser um bom ponto de partida para o estudo das paixões,
na medida em que se constitui num “fenômeno que se revela pela percepção de
emoções e sentimentos dados pelo viver urbano (...) que esse habitar em proximidade
propicia.”
70
Ainda que não se deva imaginar as cidades platinas como grandes centros
urbanos, o fato de um número razoável de pessoas estarem convivendo num espaço
restrito, potencializou infinitas modalidades de relações sociais, favorecidas pelos
encontros nas igrejas, praças, mercados, teatros e em outros espaços de
sociabilidade
71
.
A cidade, desde há muito está presente no imaginário judaico/cristão. Ainda que
o povo judeu no período pré-cristão tenha sido um povo dependente de uma economia
fortemente agro-pastoril, sua capital, Jerusalém, é citada como centro de poder e
povoa o imaginário bíblico. Sobre ela diz o salmista no exílio, “ Se eu de ti me esquecer,
ó Jerusalém que me resseque a minha mão direita.”
72
É conveniente lembrar que na literatura judaico/cristã a cidade de Jerusalém
chegou a representar o conjunto de atitudes dos seus moradores: “Jerusalém pecou
gravemente, por isso se tornou repugnante (...) porque lhe viram a nudez; ela também
geme e se retira envergonhada.”
73
A cidade, portanto, se antropomorfiza, assumindo e representando as ações de
seus moradores. Ainda que Jerusalém estivesse corrupta, a “forma”, a cidade, havia de
ser restaurada, “vi também a cidade santa, a nova Jerusalém que descia do céu, da
70
PESAVENTO, Sandra. Cidades visíveis, cidades sensíveis, cidades imaginárias. Revista Brasileira de
História - Órgão Oficial da Associação Nacional de História. São Paulo, vol.27, nº 53, jan-jun. 2007. p.14
71
Utilizo-me do conceito de sociabilidade empregado por Resende: “Ao mesmo tempo que implica a
associação prazerosa entre um grupo específico de pessoas, destacando certos valores seus, delimita
por contraste, e exclui, outros grupos distintos. (...) É neste sentido que a sociabilidade constitui-se em
práticas de associação lúdica que, mesmo buscando a confraternização, não deixam de ser perpassadas
por dinâmicas de diferenciação social e por relações de poder.” (REZENDE, Claudia Barcellos. Os limites
da sociabilidade: “cariocas” e “nordestinos” na Feira de São Cristóvão. Estudos Históricos.
Sociabilidades. Rio de Janeiro. nº 28, 2001, p. 13)
72
SALMOS 137:5.
73
LAMENTAÇÕES 1:8.
35
parte de Deus.”
74
É dessa cidade , a Jerusalém celestial, que Agostinho partiu na
proposição da sua obra filosófica, a Cidade de Deus,
75
que tanto influenciou o
pensamento religioso e filosófico medieval.
Ainda que a Companhia de Jesus tenha sido criada no início do século XVI, no
contexto da Contra Reforma e com o objetivo de resguardar e reafirmar valores cristãos
considerados fundamentais para a Igreja, suas estratégias evangélico-civilizatórias
estiveram, em grande medida, identificadas com o pensamento filosófico medieval e,
conseqüentemente, partilhavam de suas concepções sobre a cidade.
A cidade, ao contrário do campo. que se caracteriza por longas distâncias
entre as moradias era, então, o espaço da presença do outro, da convivência e da
imposição da civilidade. Desde a Renascença, a cidade havia adquirido esse caráter
simbólico: nela viviam os que posteriormente assumiriam o poder político e nela os
servos buscavam refúgio após a fuga ou a expulsão das terras em que antes
trabalhavam e viviam.
Essa idealização, ao que parece, não se limitou aos servos da gleba. Tomas
Morus, pensador católico do final dos séculos XV e XVI, em sua mais importante obra, a
Utopia, se valeu da cidade ideal para criar uma sociedade imaginária: ”A ilha da Utopia
tem cinqüenta e quatro cidades espaçosas e magníficas. A linguagem, os hábitos, as
instituições, as leis são perfeitamente idênticas.”
76
É certo que o país ideal de Morus
possuía uma área campesina, mas essa era habitada de forma planejada; os jovens lá
deviam ficar por dois anos apenas pois assim “ninguém é obrigado a levar, por muito
tempo, a vida rude do campo”.
77
A valorização da cidade, do espaço urbano e civilizado, se evidencia diante da
ameaça da invasão da ilha da Utopia, por povos vizinhos que não partilhavam dos
mesmos valores. Para se defender, o país fortemente urbano, que odiava a guerra,
abre mão de algumas das suas convicções e recorre a mercenários que viviam não só
fora dos limites da ilha, mas fora das cidades para preservar o modo de vida da civis. O
povo em questão é “o zapoleta, povo bárbaro, feroz e selvagem, que não sabe viver
74
APOCALIPSE 21:2.
75
AGOSTINHO. A Cidade de Deus. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1991. 2 v.
76
MORUS,Tomas. A Utopia. 3.ed. Brasília: Editora Universidade de Brasilia, 1992, p. 36.
77
Idem, p. 29.
36
senão no meio das florestas e rochedos em que foi nutrido (...) As delícias da vida lhe
são desconhecidas; menospreza a agricultura, a arte de bem morar e de bem vestir”.
78
O pensamento de Tomas Morus, ao estabelecer uma relação entre cidade e civilidade,
campo e barbárie, parece ter expressado o pensamento vigente no final da Idade Média
e início da Idade Moderna.
Reforçando a importância da cidade enquanto espaço de civilização neste
período, Keith Thomas afirma: “Nos tempos da renascença, a cidade fora sinônimo de
civilidade, o campo, de rudeza e rusticidade. Tirar os homens das florestas e encerra-
los numa cidade era o mesmo que civilizá-los.”
79
Ainda que o autor tenha se debruçado
sobre a Inglaterra dos séculos XVI a XIX, creio ser possível estabelecer uma relação
entre suas conclusões e a realidade platina do século XVIII.
No que se refere à América platina, a obra “Historia de la sensibilidad en el
Uruguay”, especialmente no seu segundo tomo
80
, trata de todo o processo de
disciplinamento
81
, ao qual, especialmente a população de Montevidéu, foi submetida no
afã de que esta desenvolvesse hábitos e comportamentos adequados a um novo
modelo de sociedade do fim do século XIX e do início do século XX. Barran, nessa
obra, utilizando-se de documentação administrativa e judiciária, se debruça sobre o
processo de mudança de uma sensibilidade “bárbara”, para outra, “civilizada”. Ainda
que o autor uruguaio não estabeleça uma relação direta, entre cidade e civilização, a
porque em seu primeiro volume
82
boa parte desta vida bárbara se dá exatamente na
cidade de Montevidéo, não consegue fugir por completo da ligação entre cidade e
civilização. O que há em Barran, entretanto, é a civilização da própria cidade. O que a
documentação trabalhada por Barran mostra, é que diante de novas necessidades e
78
MORUS, 1992, p. 71.
79
THOMAS ,Keith. O Homem e o mundo natural. São Paulo: Cia. das Letras, 1988, p. 290.
80
BARRÁN, José Pedro. Historia de la sensibilidad en el Uruguay . El disciplinamiento. 1860-1920.
Montevideo: Ed. de la Banda Oriental Uruguay, 1990. v2.
81
Penso que, de alguma forma a proposição de Barran, se aproxima daquela proposta por Huzinga a
respeito do processo de mudança de sensibilidade ocorrido ao final da Idade Média, para ele “(…) a alma
apaixonada e violenta da época, vacilando entre a piedade lacrimosa e a frígida crueldade, entre o
respeito e a insolência, entre o desânimo e a licença, não podia dispensar as mais severas regras e o
mais estrito formalismo. Todas as emoções exigiam um sistema rígido de formas convencionais, porque
sem elas a paixão e a ferocidade causariam a destruição da vida” (HUIZINGA, J. O declínio da Idade
Média. Lisboa: Odisséia, 1924, p. 48.)
82
BARRÁN, 1991, p.15.
37
realidades sócio-históricas, Montevidéu é chamada a assumir sua função de baluarte
da civilização em um país fortemente agrário e pastoril. Ele argumenta que certos
setores “pensantes, e influyentes, encuadraron los cambios de la sensibilidad em el
siglo XIX siempre dentro de este marco interpretativo” este, por sua vez, estava “más
bien interessado em la promoción de determinado desarrollo “europeizado” de la región
platense.”
83
As Cartas Ânuas da Companhia de Jesus que são analisadas nesta dissertação
revelam a percepção dos jesuítas e expressam as distinções que estabeleceram entre
a cidade e o campo: “es indescriptible la necesidad espiritual de aquellos campesinos,
diseminados por alli, viviendo ellos muy distantes los unos de los otros, a, más bien,
como brutos.”
84
É possível inferir, portanto, que eram “adeptos da concepção grega que
opunha a pólis civilizada à barbárie dos não urbanizados.”
85
Esta percepção se arraigou de tal forma, que trezentos anos depois, já na época
dos novos estados independentes, Domingos Faustino Sarmiento continuará falando
em seu Facundo (1845) das cidades como focos civilizadores, opondo-se aos campos
onde via engendrada a barbárie”.
86
Constata-se, portanto, que houve uma idealização
da cidade como espaço livre de comportamentos considerados bárbaros, aqueles que
na acepção de Norbert Elias, são regidos pela paixão, afinal, aquela que controlada
promove “a conduta que denominamos “civilização”.
87
É certo, entretanto, que a planificada cidade hispano-americana “em uma ordem
social hierárquica transposta para uma ordem distributiva geométrica”
88
, tem feições
muito distintas da cidade orgânica da Renascença, mas o que as diferencia em termos
urbanísticos, as aproxima no que diz respeito a sua função, a de civilizar.
Parece que há uma relação direta entre o processo de urbanização e o
“processo civilizador”, como concluiu Elias, ao estudar a França do mesmo período.
Esse processo teria se fortalecido no processo de rearranjo da corte em decorrência do
83
BARRÁN, 1991, p.15.
84
Cartas Anuas de la Provincia del Paraguay (C.A). Anõs 1750-1756. Tradución de Carlos Leonhardt,
S.J. Buenos Aires, 1928. Tradução Digitada, São Leopoldo, Instituto Anchietano de
Pesquisas/UNISINOS,1994, p. 95.
85
RAMA, Angel. A cidade das letras. São Paulo: Brasiliense, 1985, p.35.
86
Idem, p.36.
87
ELIAS, Norbert. O Processo civlizador, Formação do Estado e Civilização. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editora,1993. Vol II, p.54.
88
Op .cit.; 1985, p.26.
38
enfraquecimento do sistema feudal. Por sua vez, no processo de surgimento e
fortalecimento dos Estados Nacionais, seria necessário forjar uma nova sensibilidade:
A espada fora substituída pela intriga e por conflitos nos quais as carreiras e o
sucesso social eram perseguidos por meio de palavras. Estas exigiam e
produziam qualidades diferentes das que eram necessárias nas lutas armadas...
A reflexão contínua, a capacidade de previsão, o cálculo, o autocontrole, a
regulação precisa das próprias emoções (...) tornavam -se precondições cada
mais indispensáveis para o sucesso social.
89
O foco deste capítulo são as diferentes estratégias empregadas pelos
missionários jesuítas para forjar essa sensibilidade civilizada, a chamada “reforma de
los costumbres”
90
, bem como as táticas empregadas pelas populações que eram alvo
desta ação.
Se a cidade era, por sua configuração espacial
91
, um ambiente propício à
formulação e à aplicação de estratégias de civilização e evangelização, por outro lado,
também se revelava propícia ao estabelecimento de relações não consideradas
virtuosas. A cidade era, a um só tempo, considerada “o berço do aprendizado, das boas
maneiras, do gosto e da sofisticação” e a “arena da satisfação do homem”
92
.
É certo que esta última característica da cidade não agradava aos jesuítas, uma
vez que a satisfação do homem passava pela idéia de prazer associada à paixão. O
caminho para a virtude passava pelo abandono dos hábitos que davam prazer à carne,
isto é, pelo “sacrifício” de um gosto.
Fue molestada en 1729 por vehementes estímulos de la carne, y manifestó estas
continuas luchas con el mal enemigo, y sus consiguientes perturbaciones de
ánimo, a un Padre de nuestra compañía... Aconséjele entonces el Padre: Pues,
prometa ud al honor de este santo, hacer cada día el sacrificio de un gusto, aun
que sea pequeño, o mortificase en algo, aun que sea poca cosa (...).
93
Como se infere, a cidade não era somente o berço das virtudes da civilização,
mas também de seus vícios, já que “mais uma vez que os lucros rurais eram
consumidos na cidade, era nela que se encontrava a sociedade mais sofisticada, as
89
ELIAS,1993, p. 225,226.
90
C.A 1735-1743, p. 200.
91
Sobre a configuração espacial da cidade, como espaço de construção de um imaginário, Pesavento
compreende que acidade é, antes de tudo, uma materialidade de espaços construídos e vazios, assim
como é um tecido de relações sociais, mas o que importa, na produção do seu imaginário social, é a
atribuição de sentido, que lhe é dado, de forma individual e coletiva, pelos indivíduos que nela habitam.
(PESAVENTO, Sandra Jatahy. O imaginário da cidade . Visões literárias do urbano. Paris, Rio de
Janeiro, Porto Alegre. 2. ed. Porto Alegre: UFRGS, 2002, p.32)
92
THOMAS, 1988, p. 290.
93
Op. Cit.; 1735-1743, p.14.
39
últimas modas e os vícios mais caros.”
94
. O processo de “reforma dos costumes”
dependia do sucesso das estratégias de combate e supressão das paixões dos
citadinos que nelas persistiam e resistiam à tentativa de seu controle ou eliminação.
Novamente a caracterização feita por K. Thomas parece encontrar eco nas
cidades do Prata, como se percebe nesse relato sobre a conversão de uma senhora
que teria abandonado uma vida de luxo e vaidade “(...) al salir de la casa de Ejercicios
quedaron los botes con los colares, con que se habían pintado la cara, y los tiraron a la
basura. Despreciando en adelante el afeite de la cara, tan usado ántes entre las
mujeres de la ciudad”.
95
A vaidade, um dos pecados capitais para São Tomás de
Aquino, parece ter encontrado terreno fértil nos sistemas de reconhecimento social das
cidades platinas, onde os lucros do comércio e das haciendas era usufruído. A cidade,
desta forma, concentrava tanto as benesses da civilização, quanto aquilo que para a
Igreja era considerado como paixão e que, necessariamente, deveria ser combatido.
Ainda que seja possível estabelecer uma série de relações entre as cidades
americanas e as européias, é preciso considerar a especificidade do caso platino, já
que nele a importância das cidades foi marca registrada do tipo de colonização e
sociedade que ali se formou.
Importantes centros de concentração de poder, as cidades asseguraram a
presença da cultura européia, dirigiram o processo econômico e, sobretudo,
traçaram o perfil das regiões sobre s quais exerciam sua influência e, em
conjunto, sobre toda área latino- americana
96
É, pois, sobre esse espaço fundante e fundamental para a cultura hispano-
americana a cidade platina que concentrarei esforços, visando refletir sobre como
seus moradores viveram suas paixões e sobre como delas se viram privados pela ação
dos missionários jesuítas. Penso que Romero em “América Latina, as cidades e as
idéias” define bem a importância de estudos dessa natureza, ao afirmar que ”se
buscarmos as chaves para a compreensão do desenvolvimento que conduz até o seu
presente, será provavelmente nas suas cidades, no papel que tiveram as suas
94
THOMAS, 1988, p294.
95
C.A 1735-1743, p.39.
96
ROMERO, José Luis. América Latina: as cidades e as idéias. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2004,
p.42.
40
sociedades urbanas e as culturas que criaram (...).”
97
A incursão pelos prédios, casas e ruas das cidades platinas se dará,
preferencialmente, através dos relatos dos jesuítas que por lá andaram, pelo que viram
e ouviram: “Ver” através dos olhos dos homens de hábito negro, entretanto, não
significa considerar tudo o que relatam sem uma análise crítica, nem tampouco pensar
que só veremos o que ele descreveu intencional e conscientemente. Pois, o texto
escrito talvez seja “o lugar privilegiado para apreender o processo de mediações
culturais, de mudança de registros, de revisão de códigos, de traduções(...)”
98
.
As Cartas Ânuas, ainda que documentos da Ordem redigidos com objetivos
claros entre os quais, a exaltação do trabalho da Companhia de Jesus e a motivação
para novas vocações podem sim, nos fornecer informações valiosas para a
compreensão do processo de combate e vivência das paixões nas cidades do Prata.
Ou seja, acredito que, através da análise das Cartas Ânuas do período compreendido
entre 1730 e 1756, se possa alcançar as diferentes reações daqueles que foram alvo
das ações de controle e combate das paixões nas cidades platinas, que, muitas vezes,
foram registradas pelo padre sem que tenha se dado conta disso
99
.
Ainda que não se deva pensar a cidade como um “livro aberto”, sua
característica principal, a proximidade entre as pessoas, faz com que mesmo as
vivências das paixões às escondidas vividas naquilo que poderíamos chamar de “sub-
urbano” que as mantêm veladas corram maior risco de ser re-veladas. Nesse sentido,
busco identificar não somente as estratégias jesuíticas de combate e controle das
paixões vividas nas cidades, mas também dar conta da influência que este espaço
propriamente urbano de sociabilidade exerceu sobre a vivência dessas paixões.
É certo, porém, que a importância da cidade não está somente naquilo que ela
tem de material, expresso na sua arquitetura e naquilo que ela desfruta em função de
sua importância econômica.
Vigorosas redes urbanas garantiram a fluidez da distribuição de produtos (...)
uma diversificação das atividades permitiu a organização da rede financeira (...)
97
ROMERO, 2004, p.42.
98
POMPA, 2005, p.28-29.
99
Vale destacar a afirmação de que “tudo retorna nas franjas do discurso ou nas suas falhas,
resistências, sobrevivências”. (CERTEAU, 2002, p.16)
41
junto as casas comerciais (...) foram-se constituindo-se os grupos econômicos
com que o destino da cidade iria comprometendo-se pouco a pouco.
100
Um complexo sistema compõe o ambiente urbano, “as cidades americanas
foram remetidas, desde as suas origens, a uma dupla vida”
101
, que se expressa, na
concepção de Angel Rama, em dois níveis, o dos signos e o dos significantes.
O primeiro tem caráter simbólico e precede a própria existência da cidade,
“acima dela, a correspondente à ordem dos signos que atuam a nível simbólico, desde
antes da sua realização, e também durante e depois, pois dispõe de uma
inalterabilidade a que poucos concernem os avatares materiais.”
102
. Este sistema era
completado pela realidade mais imediata das “ruas, casas e praças, que só podem
existir e ainda assim gradualmente no transcurso do tempo histórico(...).”
103
A questão que se coloca , portanto, é que a cidade ainda que composta em
dois níveis, se caracteriza pela sua interação. Se, por um lado, não podemos conceber
uma cidade sem sua estrutura material e física, só isso não faz dela uma cidade. Este
corpo necessita de uma alma
104
, e isto, creio seja o que Rama chama de “ordem dos
signos”. Estes, por sua vez, ainda que detentores de certa inalterabilidade, só têm
significação na sua relação com aquilo que lhes dá forma. E mesmo estes, precisam de
um sopro que lhes dê vida, um espírito, que é a população desta cidade.
Proponho, portanto, pensar a cidade enquanto organismo. Organismo esse que
deu características próprias ao combate à vivência das paixões. Se, de um lado, a
Companhia de Jesus soube ocupar e usar os espaços estratégicos da arquitetura da
cidade como suas igrejas, residências, colégios, universidade ou mesmo a praça nas
missões populares, por outro, também soube utilizar-se do aspectos simbólicos que
estes lugares possuíam no imaginário da população. O alvo , é certo, era sempre
alcançar o espírito da cidade, as pessoas que a ela davam vida, para isso foi preciso
pensar a apropriação e a utilização do corpo , sua estrutura física, e da alma da cidade ,
seu caráter simbólico, suas evocações ao imaginário.
100
ROMERO, 2004, p.106.
101
Idem, p.32.
102
Idem, ibidem.
103
Idem, ibidem.
104
“(...) a cidade está sempre a explicar o seu presente. Com isso, acaba por definir uma identidade, um
modo de ser, uma cara e um espírito, um corpo e uma alma...” (PESAVENTO, 2007, p.17)
42
A proximidade das moradias, o maior fluxo de população e os espaços de
convivência possibilitaram e criaram oportunidades de conhecer e conviver com
pessoas fora da proteção de suas casas. Isto tudo deu oportunidade a vivências
diferentes daquelas pensadas e propostas pela pregação de controle e supressão das
paixões.
O espaço urbano possibilitou ainda uma maior “publicidade” das ações não
permitidas, fazendo com que muitos dos que ousavam viver suas paixões fossem alvos
de comentários e discriminações. A urbe, portanto, era o espaço que dava visibilidade a
uma série de comportamentos apaixonados, que aproximaram espanhóis, crioulos,
negros, índios e mestiços sob a marca da dissimulação, da transgressão e do pecado,
enfim, das paixões.
Não se pode esquecer, entretanto, que esta cidade, independentemente de sua
condição de espaço privilegiado de uma elite político-econômica e religiosa, acabou
adquirindo um outro “uso” que não aquele proposto inicialmente. Pois, como bem
lembrado por De Certeau, “é necessário analisar a sua manipulação pelos praticantes
que não a fabricam. Só então é que se pode apreciar a diferença ou a semelhança
entre a produção da imagem e a produção secundária que se esconde nos processos
de sua utilização”
105
Este outro “uso” se deu de formas bastante variadas, incluindo
desde o enfrentamento até as maneiras ou “artes de fazer”
106
através das quais os
citadinos usavam os espaços da cidade a seu favor, subvertendo os usos pensados
inicialmente, tanto dos lugares, quanto das oportunidades que surgiam para a
convivência.
Considerando as estratégias de evangelização e conversão adotadas nas
cidades da região do Prata, proponho que elas possam ser agrupadas em dois modelos
principais. O primeiro modelo, inspirado naquele proposto por Angel Rama
107
, analisa a
cidade da America espanhola como um tabuleiro, e o segundo, adaptado da proposta
de Leandro Karnal
108
, percebe o ambiente urbano como um palco de teatro.
105
CERTEAU, 2004, p.40.
106
Idem, p.15.
107
RA MA, 1985, p. 26
108
KARNAL, 1998. p.24
43
Pensar a cidade a partir da metáfora do tabuleiro implica considerar sua própria
configuração arquitetônica, já que “o resultado na América Latina foi o desenho tipo
tabuleiro de damas, que reproduziram (com ou sem plano estruturado) as cidades
barrocas e que se prolongou praticamente até nossos dias”
109
. Quero, no entanto,
esclarecer que a análise não restringirá à esfera visível e à disposição cartesiana típica
das cidades hispano-americanas
110
, na medida em que o tabuleiro será entendido aqui,
como espaço da estratégia, por excelência. Isto implica entender a cidade como um
espaço de atuação dos grupos dirigentes, dentre os quais se destacava a Companhia
de Jesus.
Acredito que a organização espacial das cidades platinas tenha favorecido e
muito a implementação de estratégias, cujo objetivo primordial não era mais, no
século XVIII, converter e civilizar, mas de reconverter os que já eram cristãos. As
cidades, normalmente construidas com um traçado planejado, que convergia as
principais ruas para a praça favorecia os arrastões espitiruais e o andar dar procissões.
A praça, por sua vez, não raro, serviu de palco para as missões quando a igreja não
comportava os muitos assistentes. Cabe lembrar o fato de o Governador da Província
de Salta ter solicitado, em 1741, que os jesuítas marchassem para fazer missão na
cidade, mesmo que “no hacía mucho” tivessem alí “dado misión”, que sugere que havia
um plano de trabalho conjunto, entre autoridades religiosas e civis, com o objetivo
continuar la reforma de los costumbres” (grifo meu).
111
Por outro lado, o fato de que “se marchó”
112
, indica que havia uma visão
estratégica de nítida inspiração militar, bem ao gosto da Companhia de Jesus. Isso fica
evidente na passagem em que o padre em missão afirma que se “ponían en juego sus
máquinas de guerra para conquistar esta alma.” (grifo meu)
113
Daí se infere que
pretendiam ocupar a cidade, estabelecer claramente um domínio sobre seu espaço
físico, colocando-o serviço do sagrado, na medida em que a praça, a igreja, as casas e
as principais ruas eram apropriadas para os ritos da missa e das procissões.
109
RAMA, 1985, p.26
110
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 22. ed. São Paulo: Companhia das Letras,1995.
111
C.A 1735-1743, p.200.
112
Idem, p.200.
113
Cartas Anuas de la Provincia del Paraguay (C.A). Anõs 1730-1735. Tradución de Carlos
Leonhardt, S.J. Buenos Aires, 1928. Tradução Digitada, São Leopoldo, Instituto Anchietano de
Pesquisas/UNISINOS,1994, p.10,11.
44
A estratégia de ocupação do espaço urbano se considerarmos as cidades que
possuíam residências, colégios ou Univerdade também pode ser pensada como o
posicionamento mais adequado das peças no tabuleiro de um jogo, que nos remete ao
xadrez por sua óbvia relação com a estratégia de guerra. Não é preciso ser um grande
jogador de xadrez para saber que o sucesso e a derrota do adversário passa,
impreterivelmente, pela colocação das peças mais importantes
114
nos lugares certos e
pelo bom uso destas.
A Companhia de Jesus parece ter sabido, ainda que seja recorrente nas Cartas
Ânuas a reclamação por mais “operários” e recursos, se posicionar muito bem através
dos movimentos de suas “peças” no tabuleiro das cidades platinas. Entre os anos de
1730 e 1756, havia na Província Jesuítica do Paraguai, entre 311 e 400 jesuítas, 02
residências, 10 colégios e uma universidade.
115
A universidade estava situada em
Córdoba, cidade de grande importância. Buenos Aires e Assunção possuíam colégios,
assim como as cidades de porte médio da Província.
116
Em uma escala de importância crescente, na base estavam as residências.
Contando com número reduzido de jesuítas, elas tinham como função o atendimento
religioso das populações das cidades e haciendas próximas.
117
As residências, apesar
de desempenharem papel importante na tarefa da evangelização e do combate das
paixões, não eram o modelo ideal de ocupação do espaço,na medida que faltavam a
elas recursos e meios para alcançar o fim último, evangelizar e civilizar.
As residências, talvez pudessem ser comparadas aos cavalos
118
no xadrez, por
serem peças boas para abrir espaço e causar baixas no adversário, na medida em que
114
Ainda que a maioria das peças do jogo de xadrez seja composta de peões, é o bom uso, a colocação
adequada, ou seja, a ocupação dos espaços mais importantes no tabuleiro pelas peças principais
rainha, bispos,cavalos e torres com vistas a proteger seu rei e vencer o adversário que vai definir o
vencedor da partida.
115
ZEN, 1995, p.51
116
As cidades que possuíam Colégio, além de Buenos Aires e Assunção, eram, Córdoba, Corrientes,
Tarija, Santiago Del Estero, Salta, San Miguel de Tucumán, Santa Fé e La Rioja. (ZEN,1995, p.52)
117
“Siempre los Padres acuden, y han acudido con mucho fervor en sus ministerios de niños, negros y
indios de quien tienen cofradía haciéndoles la doctrina, confesando y predicando a indios y españoles.”
(Carta Ânua de 1612. Documentos para la Historia Argentina. Tomo XIX, Buenos Aires, 1927, p.196-
197)
118
O cavalo no xadrez tem um movimento peculiar, anda em “L”, saltando por cima das outras peças. No
início e no meio-jogo, é importante ter um cavalo perto do centro do tabuleiro, ou os dois, já que eles
podem atacar em "garfo" (atacar duas peças sem ser atacado por nenhuma delas), e ajudar a controlar o
45
se movimentam com destreza entre eles, sendo, contudo, desprovidas de recursos para
empreender o fim último, o xeque-mate. Seu trabalho, portanto, se restringia às cidades
menores.
Os colégios desempenhavam papel relevante nessa atuação estratégica, pois se
dedicavam à educação da elite, à formação da classe letrada das cidades e à reforma
dos costumes.
En cada uno de los colegios se enseña gramática latina, la cual es tan necesaria,
que nadie sabe hablar en latín, si no ha pasado por las escuelas de la
compañía...Pero no se insiste sólo en que sepan las reglas de la gramática, los
que frecuentan nuestras aulas, sino también en que se instruyan ante todo en la
piedad, y en que aprendan el casto temor de Dios.
119
Se, é possível comparar as residências aos cavalos no xadrez, talvez se possa
estender esta analogia para os colégios, comparando-os às torres
120
e aos bispos
121
.
Estes, no xadrez, ainda que não possuam em separado todo o poder de fogo da rainha,
que anda em todas as direções tantas casas quantas estiverem livres, ao serem
combinados podem, cada um a seu tempo, movimentando-se os bispos em diagonal e
as torres em linha reta, produzir grande poder de ataque.
Os colégios também possuíam funções múltiplas, que combinadas produziam
grande resultado na tarefa de reformar os costumes e combater as paixões. Além da
tarefa de formar uma elite letrada, os colégios ainda acumulavam todas as funções de
uma residência, no que diz respeito ao atendimento espiritual. Isto porque “en todos los
colegios, además han sido erigidas congregaciones marianas (...) Existen en todos los
centro do tabuleiro. No final do jogo, ele pode fazer um bom serviço comendo peões, mas não é possível
empreender um xeque-mate somente com cavalos.
119
C.A 1735-1743, p. 4.
120
Além de fazer o roque com o Rei, a Torre é bastante útil no xeque-mate ao Rei inimigo. Movimenta-se
em linha reta, ou seja, em linhas ou colunas. Ela não pode saltar sobre peças, e, como ela é mais forte
em linhas ou colunas vazias, geralmente não é movimentada senão no meio-jogo e no final do jogo. Tem
a função tática de dominar colunas abertas, ou seja, colunas sem peões, onde seu movimento é bem
aproveitado. . As Torres dobradas (na mesma linha ou colunas) são uma arma poderosíssima,
ultrapassando muitas vezes o valor de uma Rainha. Teóricos do xadrez dão à Torre o valor 5, sendo a
peça de maior valor depois da Dama (ou Rainha).
121
O bispo movimenta-se apenas em diagonal. Geralmente lhe é atribuído o valor de 3 peões. No início
do jogo sua utilidade é pequena, pois muitas peças estão a lhe obstruir o caminho. No meio do jogo é
quando todo o seu potencial é usado e começa a perder valor no final do jogo. O par de bispos é muito
valorizado, sendo considerado por muitos melhor que o par de cavalos. O bispo não pode saltar sobre
peças, mas pode capturar uma peça que se encontre em seu caminho.
46
colegios soledades de indios e morenos, a los cuales cuanto más rudos e ignorantes,
con tanto más caridad se los trata.”
122
Some-se a esse trabalho, que incluía o atendimento espiritual e social, funções
mais imediatas, pois dos “dos colégios e residências sempre fazia parte uma igreja
onde celebravam regularmente os sacramentos”
123
. Estes trabalhos, é claro, faziam
parte de uma estratégia maior. Segundo a Carta Ânua de 1735-1743, o fato de em
todos os colégios ser estabelecido “el jubileo de las comuniones generales de cada
mês” era fruto da “invención celestial de la Compañia para la conservación de las
almas...y para la reformación universal de la iglesia.”
Para além das funções exercidas pelos colégios e pelas residências
encarregadas do atendimento espiritual nas cidades onde estavam instaladas, haviam
as missões populares, empreendidas pelos missionários jesuítas, as peças menos
nobres do xadrez, os peões
124
.
Estes peões, numerosos na primeira fila do tabuleiro, são de pequeno poder de
ataque, mas fundamentais no processo de abertura do caminho e negociação, de modo
que as outras peças mais poderosas possam agir. Creio que os peões no tabuleiro da
cidade platina tenham sido os assim chamados operários da fé. Eram padres e irmãos
jesuítas que, em determindos períodos do ano, abandonavam suas funções intelectuais
ou administrativas, se dirigindo em missão para outras cidades e áreas rurais.
Dentre as estratégias empregadas para o controle das cidades platinas,
pensadas como tabuleiros, destaca-se a Universidade. Ainda que fosse única no âmbito
da Província Jesuítica do Paraguay, assim como a rainha
125
no jogo de xadrez, a
Universidade de Córdoba foi a instituição que melhor representou o poder de ocupação
do espaço e dos recursos que a Companhia de Jesus podia utilizar.
122
C.A 1735-1743, p. 5
123
ZEN, 1995, p.37
124
O Peão é a mais modesta das peças de xadrez, e cada jogador conta com 8 peões no início do jogo.A
peça movimenta-se sempre para a frente, sendo a única peça que não pode retornar ou retroceder
125
A rainha é a peça de xadrez que fica ao lado do rei. Por sua capacidade de movimentação, recebe
uma ênfase muito grande no jogo. A Rainha movimenta-se em diagonais, como o bispo, e em linhas e
colunas, como a torre. Com isto, incorpora os movimentos de todas as peças, exceto o do cavalo. Com
base nisto entende-se sua importância, atribuindo-lhe o valor 9 ou 10. Entretanto, deve estar em uma
posição central para usufruir de todo este poder. No início do jogo, sua função recomendada é a de dar
apoio para outras peças, para aos poucos começar a passear pelo tabuleiro. Apesar de ser poderosa,
não vale por todas as outras peças, o que justifica cautela na sua movimentação.
47
A Universidade jesuítica de Córdoba representou o ápice do poder exercido pela
Companhia de Jesus, já que nela “...se graduan en esta nuestra universidad de
maestros e doutores”
126
Mas a importância dessa “rainha” das instituições/peças
jesuíticas na América platina não pode ser medida somente pelo seu brilho intelectual.
Sua formação qualificada, que incluía “Filosofia, Teologia Escolástica, Teologia
Moral, Direito Canônico y la Sagrada Escritura” e recebia estudantes de “todas las
partes de estas tierras”, objetivava a formação de uma elite que, pelo conhecimento e
virtude, influenciasse política e religiosamente a região de modo que “ siendo la honra y
el apoyo de la república”
127
fosse uma aliada importante na tarefa de estabelecer um
modo de vida pautado pela virtude e não pelas paixões.
Pode-se dizer, portanto, que a Companhia de Jesus no Prata tinha uma
estratégia de jogo bastante elaborada para cada uma das peças posicionadas nos
tabuleiros das principais cidades platinas. As peças até aqui descritas não
correspondem à totalidade das peças do xadrez. Como metáfora isso nem seria talvez
necessário. Quero, contudo, mencionar aquela peça que até agora se fez ausente de
nossa análise, o rei i
128
. Este, como sabemos, é a peça mais importante do jogo, é por
ele que trabalham todas as peças, mesmo a rainha, e o jogo só é vencido quando o rei
adversário é vencido. No tabuleiro da cidade platina, as estratégias são feitas em
função do rei, que é a própria Companhia de Jesus.
O segundo modelo estratégico é aquele que pensa a cidade como palco do
teatro da fé, expressão tomada de empréstimo da obra de Leandro Karnal (1998), ”
Teatro da fé, Representação religiosa no Brasil e no México do século XVI”. Eu a utilizo,
portanto, nos moldes concebidos pelo autor que considera “que a questão teatral
extrapolava o nível específico da encenação propriamente dita”, de modo que inclusive
126
C.A. 1735-1743, p. 6.
127
Idem, p. 5.
128
O Rei é a peça-chave do jogo de xadrez. Todo o jogo desenvolve-se em torno de dois objetivos: dar
xeque-mate ao rei adversário, e proteger o rei de receber xeque-mate.Apesar de sua importância no jogo,
o Rei é modesto em termos de recursos: ele não pode mover-se mais que uma casa de cada vez, em
qualquer direção. Quando o rei é posto em xeque, e não há alternativa de fuga ou impedimento o jogo
acaba.
48
“as relíquias recebiam atenção teatral, transformavam-se em adereços cênicos. Da
mesma forma, a procissão e a própria literatura.”
129
Ainda que a abordagem proposta por Karnal se refira ao México e ao Brasil do
século XVI, acredito que seja possível uma aproximação quanto à forma como os
jesuítas pensaram e agiram na região platina, visando converter e civilizar, na medida
em que “o teatro tornou-se, assim, uma das formas mais representativas da
espiritualidade inaciana. “
130
Ao propor a teatralidade como modelo estratégico para a evangelização e para o
controle das paixões, retomo a proposta aristotélica de, pela técne, pela retórica, e
através de diversas estratégias cênicas, agir sobre o emocional destas populações de
modo a levá-las ao arrependimento. As muitas referências nas Anuas que analisei a
sermões emocionados, que incluíam sentenças de condenação tão fortes que faziam
com que os ouvintes da missa saíssem “aturdidos de horror, como si hubieran oído
pronunciar estas palabras por Jesús Cristo mismo”
131
, corroboram a percepção de que
os inacianos utilizaram-se de técnicas teatrais como forma de atingir seus objetivos. O
resultado, em muitos casos, eram confissões notadamente compungidas diante dos
fortes apelos teatrais do sermão, de modo que muitos “se confesaban de sus pecados
entre abundantes lagrimas (grifo meu), y entre señales inequívocas de la más grande
compunción de corazón (...)”
132
A retórica, entretanto, ainda que parte fundamental no uso da cidade como palco,
não foi o único recurso utilizado. Foi, antes, parte constitutiva de encenações que
envolviam muito mais que o planejado uso da palavra
133
.
129
KARNAL, 1998, p.24.
130
Idem, p. 50.
131
C.A. 1735-1743, p.229.
132
Idem, p. 230.
133
O planejado uso da palavra a que nos referimos é aqui entendido como sermão. De acordo com
Floréz é “necesario, en primer lugar, definir al sermón como “el discurso oral que se realiza dentro de un
marco litúrgico o en una reunión de tipo religioso”. (FLÓREZ, Gloria Cristina. Prédica y Espectáculo en los
autos de fe en Lima a inicios del siglo XVII. Revista UKU Pacha, Año 3 N° 6, Lima, 2003 p.410). Sobre a
importância dos sermões no catolicismo pós-tridentino, Thomas defende que “homilias, sermões e
catequizações desempenhavam um papel crucial na formação de cada cidadão; os observadores, em
sua maioria, concordavam que seria impensável uma sociedade sem eles, ou sem as sanções
sobrenaturais em que se baseavam”. (THOMAS, Keith. Religião e o declínio da magia. São Paulo: Cia
das Letras, 1991. p. 135).
49
Antes de destacar os aspectos mais particulares dessa encenação teatral da fé
nas cidades platinas, quero resgatar a proposição de Karnal em relação ao caráter
cênico dos prédios religiosos nas cidades da América espanhola
O palco, por excelência, do mundo das Representações, na América Colonial,
foram as Igrejas. Os prédios eclesiásticos dominavam os lugares de maior
destaque em cada cidade colonial, eram ponto de referência, denominavam um
lugar, e, nos seus átrios e pátios vivia-se parte significativa da vida colonial. As
cidades espanholas,por exemplo, foram dispostas ortogonalmente, sendo a igreja
e a praça central as grandes definidoras desta disposição. A igreja-prédio assim,
não foi apenas suporte para a representação na América, mas ela própria foi
concebida e mantida como elemento central desta Representação.
134
Diante disto, proponho que os prédios da Companhia as igrejas, colégios,
capelas e residências, assim como as igrejas das cidades em que não havia trabalho
regular dos jesuítas e as casas utilizadas para exercícios ocasionalmente
135
e até
mesmo a praça e as ruas da cidade, sejam considerados como cenário de uma peça
que eles se propunham a dirigir e encenar.
Esta preocupação com a eficácia cênica desses espaços pode ser identificada
no relato da Carta Ânua de 1735-1743, que refere a construção da nova capela do
Colégio de Buenos Aires, descrita como “primorosa y espaciosa, dedicada a la Virgen
Santíssima” e com um altar que era uma “obra de arte esculturística com sobredorado,
así se resultó el santuário todavía más magnífico.”
136
Por outro lado, se através da
beleza dos cenários os jesuítas buscavam comover, também se valeram do feio e do
monstruoso, quando consideraram necessário: “mostrabam uma imagem rudamente
pintada de una alma condenada a las penas del inferno, a cuyo aspecto, un dia, quedó
tan imprecionado cierto individuo, que le parecía oir los gritos desaforados.”
137
Ainda que não se possa comparar a região platina, em termos de arquitetura
religiosa e de estatuária, com o espaço analisado por Karnal, creio que seja possível
estabelecer uma aproximação entre elas, a partir daquilo que as une, isto é, sua função
dentro do teatro da fé. Dentre os aspectos mais recorrentes nos diferentes espaços da
América espanhola destacam-se o culto a santos específicos em cada região como a
134
KARNAL,1998, p. 169.
135
“En caso se facilitará alguna habitación decente en la vecinidad de nuestro colégio para dar as
mujeres que quisieren hacer dichos Ejercicios(...)” (Memorial do Padre Provincial Luis de la Roca, 14 de
Janeiro de 1714, Archivo General de la Nácion Argentina,p.495 apud ZEN,1995, p .78)
136
C.A. 1735-1743, p. 7.
137
Idem, p. 222.
50
Virgem de Guadalupe no México e as festas em homenagens aos santos, assim
como o uso de relíquias como recurso cênico e mesmo mágico-curativo.
Quanto à existência de cultos a santos locais na região platina, há o caso
exemplar da “llamada Virgen de Tarija, cuja imagen se venera en nuestra iglesia de
Tarija y que tiene fama de ser muy milagrosa”
138
. A dita Santa acabou por ser alvo de
importante questão com índios Chiriguanos, que em uma invasão da cidade acabaram
por profanar a imagem religiosa. Como forma de se restabelecer a devoção à Virgem
que havia sido ofendida pelos indígenas , sua festa anual foi reafirmada e tratada com
grande esmero. É certo que, além da Virgem de Tarija, outras cidades possuíam seus
padroeiros e festas preparadas em sua homenagem. As festas religiosas, por
conseqüência, foram outra peça importante nesse teatro da fé.
Há um caso emblemático que, ao mesmo tempo em que relata a devoção ao
fundador da Companhia Santo Inácio de Loyola também nos informa sobre os
preparativos e a preocupação com o cenário da festa religiosa a ele dedicada na cidade
de Santa Fé em 1738: “en este lugar no pudendo callar de la devoción de toda esta
ciudad a San Inacio”, e “existiendo allí la costumbre de ensalzar la solemnidad de su
fiesta con cuantas preciosidades que tienen sus habitantes”
139
. É certo que não havia
na Província Jesuítica do Paraguai a riqueza presente na região do México central,
isso, no entanto, não impedia a dedicação da Companhia e dos moradores para que a
praça, as ruas da cidade e a igreja fossem enfeitadas até mesmo com algum luxo. Um
milagre relatado na documentação dá uma idéia do trabalho que envolvia a preparação
da festa e mesmo do uso de algumas peças de maior valor: “quitar los adornos en el dia
seguinte a la fiesta, cayó un espejo de cristal muy grande e precioso de lo más alto del
altar”
140
, sem entretanto ter se quebrado, por interferência de Santo Inácio.
Não se deve esquecer, no entanto, que as festas, além de serem “expressão
teatral de uma organização social” e também “fato político, religioso ou simbólico”,
consistiam em importante espaço de transgressão, servindo “ainda de exutórios à
138
C.A. 1735-1743, p.26.
139
Idem, p. 22.
140
Idem, ibidem.
51
violência contida e às paixões”
141
. Ao que parece, a Companhia de Jesus, mesmo
correndo o risco de que a população conferisse outro sentido à festa diferente
daquele planejado e reconhecendo que “dentro de cada festa religiosa existisse uma
profana e vice-versa”
142
, não só manteve as festas tradicionais, como incentivou e
implementou outras como recurso estratégico. Os missionários acreditavam que as
festas religiosas contribuíam significativamente para “avivar el fervor religioso”, tanto
que em Assunção e em Santiago del Estero “se comenzó a celebrar la fiesta de la
Virgen de Dolores com missa solemne y panejírico”
143
.
O uso da festa como recurso cênico-estratégico se justificava, apesar dos riscos
já considerados, na medida em que “en los dias de fiesta comulga gran numero de
españoles y africanos”
144
. Apesar de possuírem um caráter profano, as festas atraíam
grande audiência às celebrações religiosas e, por conseguinte, atingiam os corações,
levando-os à confissão e à emenda dos costumes.
Além das festas, os santos eram alvo de um outro tipo de devoção e porque
não dizer, de um aparato cênico as relíquias, “elementos que unem o Catolicismo da
colônia (...) à História Eclesiástica Européia (...) um pedaço palpável da história que o
teatro encena.”
145
Em solo platino, as relíquias foram largamente usadas como recurso
na estratégia de combate efetivo das paixões e nas práticas de cura.
Um dos santos que mais se prestou ao uso de relíquias, como era de se esperar,
foi Santo Inácio de Loyola. Interessante referir o caso ocorrido em 1739 de uma
mulher de Assunção, que tinha por irmão um homem “escandaloso”. Esta mulher teria
recorrido ao padre, de modo que ele a ajudasse a fazer com que o irmão retornasse “a
buen juicio”. O padre, então, instruiu-a a esconder uma imagem em papel de Santo
Inácio na roupa de seu irmão, perto do coração. Logo, ”despues de unos pocos días,
esta estampa, que aquel hombre llevaba (...) había tocado por completo su corazón,
tanto que se le apagó el calor de la pásion.”(grifo meu)
146
A relíquia, segundo o relato,
141
DEL PRIORE, Mary. Festas e Utopias no Brasil Colonial.São Paulo: Editora Brasiliense, 1994, p.10.
142
Idem, p.19.
143
C.A. 1735-1743, p.30.
144
Idem, p.10.
145
KARNAL, 1998, p.227.
146
C.A. 1735-1743, p.17.
52
teria aplacado a paixão daquele homem, provocando a mudança de seu
comportamento.
A relíquia se prestava, ainda, a outro papel. Na região platina do século XVIII, ela
foi muito utilizada como recurso de cura. São recorrentes os relatos como o de uma
mãe que trouxe seu filho em perigo de morte ao Irmão Gómes, devoto de São Luiz,
que logo “sacó la poderosa relíquia y la aplicó a la criatura. Al instante se acabó el
peligro de la muerte”.
147
Além de imagens em papel , havia outros tipos de relíquias, mais raras, é
verdade, mas de grande valor. É o caso de uma carta-relíquia, que teria sido escrita por
Santo Inácio e utilizada com grande sucesso em várias curas em Assunção, no ano de
1737
148
. Sobre esse tipo de relíquia, com participação efetiva do Santo, por conter
pedaço de sua roupa ou parte de seu corpo, pode-se dizer que era “um ponto de honra:
-las, engrandece uma cidade, um mosteiro, um país (...). A posse de relíquias
corresponde a um aval divino à obra missionária.
149
Ainda sobre as relíquias e seu uso, talvez seja importante dizer que, além do seu
uso prático curando ou libertando do pecado as relíquias possuíam um “caráter
puramente mágico” que “não deve ser desprezado.”
150
Interessante, portanto,
considerar na análise, o caráter de espetáculo proporcionado por este uso das
relíquias. Elas ofereciam um espetáculo do inexplicável, dos milagres que
testemunhavam o êxito da pregação dos jesuítas.
Além dos recursos cênicos aqui descritos, que compunham o cenário as
igrejas, praças e ruas e os adereços teatrais as relíquias ou, ainda, a
interpretação e assistência às festas religiosas, havia uma série de outros recursos, que
foram utilizados pelos jesuítas na sua estratégia de fazer da cidade o palco do seu
teatro da fé. Para discorrer sobre estes outros recursos, e a forma como se relacionam
com os já descritos, destacarei o que talvez tenha sido a mais importante e completa
obra cênica da Companhia de Jesus nas cidades platinas, a missão popular.
147
Idem, p.24.
148
Idem, p.21.
149
KARNAL, 1998, p.159.
150
Idem, ibidem.
53
Com seus muitos atos e variados adereços, a missão popular foi uma verdadeira
ópera a céu aberto. A chegada do missionário e a procissão que abria a missão, as
atuações dramáticas dos personagens que incluíam performances sangrentas sem
esquecer, é claro, dos figurinos adequados além do seu ponto alto, com os exercícios
espirituais e as confissões gerais, tudo fazia dela um ato grandioso. A missão popular
foi a estratégia da Companhia de Jesus que melhor articulou os diferentes recursos e
adereços cênicos na tarefa de combate às paixões e de reforma dos costumes.
A missão popular ocorreu na maioria das cidades que integravam a Província
Jesuítica do Paraguai, sendo realizadas em intervalos de tempo que variavam conforme
as condições de pessoal e recursos, embora procurasse manter certa regularidade. Nos
casos mais extremos, o tempo entre a realização de uma missão e outra nos lugares
mais longínquos chegou a cinco ou seis anos. Nas maiores cidades, entretanto, parece
que sua realização foi regular, quase ano a ano, com exceção dos períodos de maior
falta de recursos financeiros e humanos ou em razão de conflitos com os chamados
“indios bravos”.
A missão durava em média de “seis a oito dias; outras chegavam a se prolongar
por quinze e até dezesseis dias “
151
e tinha como um de seus objetivos, reavivar a fé
dos bons cristãos, o que implicava a realização de missas especiais, confissões gerais
e procissões, além do uso de recursos cênicos. Mas o público a que este teatro da fé
preferencialmente se dirigia, eram aqueles que viviam em pecado, oculto ou público,
“victimas” de “la pásion”
152
O descortinar do palco se dava em grande estilo. A entrada em cena dos atores
principais, os missionários que pregariam a missão na cidade escolhida, seguia
elaborado roteiro. De antemão, a cidade era avisada do dia da chegada. Assim, um
grupo considerável de fiéis esperava o missionário já fora da cidade: “al acercarse del
pueblo señalado los misioneros bajaban de sus cabalgaduras...rezaban de rodillas...
uno de los misioneros armaba el crucifijo...y entregaba a la persona más adecuada del
clero o al señor obispo.”
153
.
151
ZEN, 1995, p.97.
152
C.A. 1735-1743, p.173.
153
ASTRAIN apud ZEN, 1995, p.89.
54
Realizada a primeira parte do ritual, seguiam em direção à cidade, sendo que
“las personas allí reunidas y las que iban agregando, se formaban en procesión y
echaban a andar por las calles principales.”
154
A procissão que dava início à missão era
uma elaborada encenação, sendo que cada um tinha um papel a desempenhar, a
interpretar
155
, “algunos con faroles o hachas encendidas al Santo Cristo. Los
misioneros, iban en medio de la gente, pronunciando en alta voz y pausada sentencias
llamadas “saetillas
156
” .
157
O objetivo, claro, era dar visibilidade à missão que se iniciava. Toda encenação
visava atingir “los corazones de los pecadores, despertándolos del letargo de sus vicios
y convidándolos a la misión”. Ao final da procissão , já na igreja, ou mesmo na praça,
no caso de grande assistência, o “primer sermón” era pregado e “consistía sobre el
pecado. Con aquella novedad, y no esperado sermón, se conmovía a el vecindario y se
agregaba a la procesión.”
158
As procissões se realizavam no decorrer de todo o período da missão e
possuíam importante caráter cênico, buscando comover e convencer a população para
que participasse ativamente da missão. Para tanto, a própria configuração física da
cidade também era utilizada como cenário do teatro da fé, pois “a procissão também
sacraliza o espaço, pois anda pelas ruas e calles da América Católica, esparge água-
benta por becos e vielas, adornam-se balcões à sua passagem e os habitantes hauren
grossos rolos de incenso.”
159
Durante a realização da missão popular, a procissão era, certamente, o
espaço privilegiado para as atuações no palco desse teatro da fé. Além da elaborada
encenação já descrita, devemos incluir crianças vestidas de branco
160
e, mesmo de
anjos, que eram seguidos por “gente imnumerable, armados con diferentes
154
ASTRAIN apud ZEN, 1995, p.89.
155
Sobre os papéis interpretados por cada um na procissão, ressaltamos o alerta feito Del Priore em
relação a uma “narrativa idealizada, (em que) o povo aparece ordenado e quase imóvel, sem inclinação
para as tradicionais rupturas da festa.” ( DEL PRIORE, 1994, p. 22.) e para a observação de Karnal de
que “a procissão não é apenas um espetáculo para quem vê. É também para quem a lê.”(KARNAL, 1998,
p. 162)
156
As saetillas eram pequenas canções cantadas pelas ruas durante as procissões e que tinham o
objetivo de tocar os corações endurecidos pelo pecado e levá-los ao arrependimento.
157
ASTRAIN in ZEN, op. cit., p.89.
158
Idem, ibidem.
159
KARNAL, op.cit., p.160.
160
C.A. 1735-1743, p.110.
55
instrumentos de penitencia (...) contando más de doscientos cincuenta hombres que se
azotaban hasta la sangre, habiendo además otros muchos.”
161
Some-se a isso, o uso
de outros recursos teatrais: cinzas na cabeça, corda no pescoço” que reforçam o
espetáculo em que “a procissão anda e chora.”
162
A auto flagelação, entretanto, parece ter merecido destaque, constituindo-se
numa das práticas das mais utilizadas, não só pela população , mas também pelo clero
. O próprio Provincial da Companhia nos anos de 1734 a 1738
163
, o Padre Jaime
Aguilar, chega a ser ,mencionado num relato de uma procissão, que refere também
outros clérigos:
Los Padres de la compañía salieron en forma de penitentes, entre ellos el Padre
provincial Jaime de Aguilar, todos con una corona de espinas a la cabeza, y una
soga al cuello, y así todos los demás participantes en la procesión… A demás,
seis Padres… usaban diferentes modos de mortificación, menos la sangrienta, la
cual estaba prohibida a todos.
164
A disciplina corporal não se restringia ao espaço da procisão. As Cartas Ânuas
registram que durante a liturgia da missa, logo após “el sermón” quando a missa era
feita fora da igreja por esta não comportar a assistência algumas pessoas “entrando
en secciones a la iglesia” se disciplinavam “durante el espacio del rezo de salmo
“Miserere”. A prática da auto-disciplina parece ter sido bastante concorrida, a ponto de
“llenando cada sección de hombres por completo la iglesia matriz, mientras en las otras
iglesias se disciplinaban las mujeres, siendo admirable el fervor con que hacían su
penitencia.”
165
A mortificação corporal, é certo, produziu atuações impressionantes mesmo para
aqueles que só tinham acesso a ela nos relatos escritos. Supondo-se um leitor “pio do
final do XVI e do XVII” deve ter reagido “com horror à profanação. Comove-se com a
dor dos frades, desculpa-os quiçá, pois manifestaram culpa profunda e fazem tudo para
expiá-la.”
166
161
C.A. 1735-1743, p.111.
162
KARNAL,1998, p.162
163
ZEN, 1995, p.17.
164
C.A. 1735-1743, p.105.
165
Idem, p.161
166
KARNAL, op. Cit.; p.162.
56
Outro importante ato desta peça sacra foram os Exercícios Espirituais
167
. Em
geral duravam uma semana, em local afastado e próprio. A Companhia chegou a
construir casas exclusivamente para sua realização
168
. Eles consistiam num exercíco de
reflexão orientada, através do qual a pessoa era colocada diante de verdades
fundamentais do Cristianismo, como o pecado e a necessidade de arrependimento. Até
meados da década de vinte do século XVIII , a realização dos Exercícios Espirituais
com as mulheres era proibida, sendo que diante da constante insistência de algumas
delas, sua realização foi autorizada.
169
Desde então, a orientaçao da Companhia é que
fossem aplicados a ambos os sexos e todas as classes sociais
170
Durante a realização dos Execícios Espirituais, a Companhia de Jesus se
utilizava de sermões específicos e todos os recursos cênicos disponíveis para conduzir
os exercitantes à consciência da gravidade de seus pecados, à necessidade do
arrependimento verdadeiro e à uma boa confissão geral, que incluía os pecados de
toda vida. O resultado, muitas vezes, se assemelhava a uma intensa catárse coletiva,
como fica evidente neste relato sobre a realização de Exercícios Espirituais por
mulheres:
Para los puntos de meditación se les explanan en nuestra iglesia, en el cual
tiempo, igualmente que durante la lectura espiritual derraman ellas copiosas
lágrimas gimiendo a veces tanto, que hay que interrumpir por un rato de la
explicación o la lectura, y darles además media hora para desahogarse, ante la
imagen de la virgen de dolores. Después se da una señal, para que se retiren
cada una a su aposento, donde todavía siguen llorando y gimiendo.
171
Os missionários envolvidos na missão popular acreditavam que os Exercícios
Espirituais, efetivamente, poderiam alterar as condutas das pessoas, como se pode
observar neste registro feito pelo padre Lozano, de que após sua realização “se ven
167
Acredito que seja válido esclarecer o que são os Exercícios Espirituais: “Propostos por Santo Inácio
para uma opção de vida mais perfeita, são resultado se sua própria. Geralmente duram uma semana,
sendo feitos em recolhimento, longe das atividades cotidianas, sob a orientação de um sacerdote, que
propõe os pontos a serem meditados, serve de orientador nas dúvidas e recebe, no fim do retiro, uma
confissão da vida de cada um dos participantes. Os exercícios põem a pessoa frente às verdades
básicas do cristianismo, a criação, o pecado, a redenção e a pessoa de Cristo.” (ZEN,1995, p. 47). Cabe
somente registrar, que Zen aqui se refere a uma versão compacta dos exercícios que era utilizada nas
missões populares, sendo que sua versão completa dura em torno de um mês.
168
Idem, p.49
169
C.A. 1730-1735, p.24-29.
170
C.A. 1735-1743, p.35
171
C.A. 1730-1735, p.61.
57
personas escrupulosas en lo más minimo, las mismas que ántes devoraban horribles
vicios, tan grandes como camelloa, y tragaban los pecados como agua”.
172
Nem sempre, entretanto, a proposta da realização dos Exercícios Espirituais foi
bem recebida. Não são raros, nas Cartas ânuas, casos relatados em que as pessoas se
negavam a fazer os Exercícios Espirituais. Como no caso relatado, em que os Padres
em missão, tentaram estabelecer “en Salsacate, poblácion de la jurisdición de Córdoba,
la práctica de los Ejercicios en el año de 1738”, ocasião em que “se opusieran dos
individuos publicamente.”
173
A justificativa dos dois homens aparentemente lideranças
locais era de que os Exercícios eram por demais violentos, além do que seriam uma
fórmula velha e degastada que não serviria para outra coisa senão confundir a cabeça
das pessoas simples.
Em Santiago del Estero, por sua vez, a resistência aos Exercícios vinha do temor
da população de que eles podiam “transtornar la cabeza.
174
Apenas após ser “disipada
la prevención de una posible locura, comenzaran ellos, a buscar lo que antes
temían.”
175
Houve também casos de indivíduos que sozinhos enfrentaram os Padres da
Companhia. Ilustrativo desta situação é o relato de um caso ocorrido em Assunção, de
um homem que mantinha com uma “mala mujer” uma relação ilícita. Ao ser convidado a
fazer os Exercícios Espirituais, de pronto respondeu ao Padre: “Te agradesco por tu
amabilidade, pero tengo que acer, y no tengo tiempo para Ejercicios.”
176
Os casos relatados indicam que apesar da ocupação estratégica dos espaços
das cidades platinas pela Companhia de Jesus, como as igrejas, as residências, os
colégios e a universidade, e dos muitos e elaborados recursos teatrais empregados,
nem sempre os resultados esperados foram alcançados. O fato de os padres em
missão terem de recorrer à ajuda do Estado, para que esse usasse seu poder de
polícia, nos indica que, mesmo em nos períodos de missão, quando toda a cidade era
172
C.A. 1735-1743, p.45.
173
C. A. 1735-1743, p.53.
174
C.A. 1730-1735, p.99.
175
Idem, ibidem.
176
C.A. 1735-1743, p.51.
5
8
mobilizada, muitos moradores ofereciam resistência
177
, recusando-se a participar do
teatro da fé,
(...) y antes de comenzar la enseñanza catequística salen los nuestros por las
cales, para buscar a toda esta gente sen ciela, hombres y mujeres, y llevarlos
todos juntos a nuestra iglesia. Da muy bien resultado esta plática, mayormente,
cuando las autoridades civiles nos secundan en nuestro empeño. Pues, ellos
fácilmente se imponen a estos sus suditos. (grifo meu)
178
Recorrendo à força policial, através da qual buscavam garantir a participação de
todos nas celebrações da missão, los obligan a aprovecharse de tan útil, y
absolutamente necesaria instrucción” (grifo meu), os missiónários pretendiam apartá-los
das diversões e atendê-los, já que careciam “casi completamente de cualquier cultivo
espiritual”
179
. A necessidade de obrigá-los a participarem, sugere que os citadinos
atribuíam ao espaço urbano e aos espaços de diversão que ele proporcionava, um
sentido bastante difetente daquele pensado pela Companhia de Jesus para o momento
da missão. Michel de Certeau concebeu uma categoria de análise a tática que, por
ter “por lugar o do outro. (...) e aí se insinua, fragmentariamente “
180
poderá nos ajudar a
compreender essa resistência à reforma dos costumes e essa insistência na
manutenção dos comportamentos movidos pela paixão.
Não se deve pensar, entretanto, que a vivência das paixões só se dava nos
espaços marginais da urbe. Também nos espaços privilegiados, freqüentados pelas
elites, ela se manifestará. Os padres a temiam e, por isso, ficavam felizes quando os
fiéis se mantinham longe das diversões próprias das cidades, quando “estas personas
no sólo ocasiones de pecar, como son bailes, y espectáculos profanos.”
181
A preocupação que os jesuítas tinham com os espaços de sociabilidade não era
sem razão. Neles, em geral, as pessoas tinham um contato que ultrapassava a rotina
do dia a dia; neles, com o auxílio da ingestão da bebida alcoólica, as pessoas tinham
177
Ainda que no geral, a chegada dos padres missioneiros às cidades e o início da missão provocasse
grande comoção, e, no geral, houvesse grande assistência pela população, as Cartas Ânuas registram
alguns casos de indivíduos ou grupos que resistiam aos convites e se negavam a participar da missão.
Os casos iam desde homens e mulheres das classes dirigentes que por não concordarem com os
métodos dos jesuítas se negavam a participar da missão até a população pobre que, muitas vezes,
preferia ficar bebendo, jogando ou vadiando pelas ruas da cidade. Alguns casos bastante ilustrativos
serão relatados no decorrer do trabalho.
178
C.A.1730-1735, p. 2,3.
179
Idem, p. 2
180
CERTEAU, 2004, p. 46
181
C.A. 1735-1743, p. 45.
59
atitudes que normalmente não teriam. Não era nos bailes, no teatro ou nos espetáculos
que ocorriam os pecados mais temidos pelos padres, mas nos espaços em que a
paixão aflorava sem controle, em que a paixão da luxúria encontrava brechas, em que
ocorriam os primeiros flertes e o modo de agir e de vestir estimulava os excessos.
Diante das reiteradas solicitações de que fossem realizadas missões populares
junto às populações platinas, e considerando que tanto os espanhóis, quanto os criollos
ou mestiços da região do Prata vinham sendo alvo da pregação católica desde o início
do século XVII
182
, creio que se deva relativizar os sucessos das missões relatados na
documentação jesuítica.
Assim, se estas populações eram, pelo menos nominalmente cristãs e católicas,
o fato de terem de ser repetidas vezes, convertidas e reconvertidas, parece indicar que
recorrentemente voltavam a práticas condenadas pela Igreja. Mas não só isso, o fato de
vestirem-se de forma condenável para os padrões inacianos, e, de freqüentarem bailes
e espetáculos profanos, apontam para comportamentos de resistência à praxis
religiosa
183
proposta pela Companhia de Jesus.
Um caso exemplar nos dá idéia da extensão e da complexidade desta questão:
uma donzela, que diante do discurso de conversão se arrependeu de seus pecados,
decidiu externar sua mudança, deixando os caros vestidos de lado, os adornos, cortou
os cabelos e não dada por satisfeita, “chamusco ella con un pedazo de cobre candente
su cutis desde el cuelo hasta el pecho para hacer penitencia por sus anteriores escotes
indecentes...”
184
A idéia de que a vaidade dava ocasião à luxúria parece ter preocupado os
padres da Companhia, a ponto de registrar, com certa freqüência, que algumas
mulheres, como forma de demonstrar seu arrependimento, abriam mão de sua vaidade:
“Varias mujeres se cortaran espontáneamente el cabello, renunciando a los vanidosos
182
ZEN, 1995, p.93.
183
Segundo Karnal, no caso do trabalho jesuítico no Brasil do século XVI, a práxis religiosa proposta foi
bastante rígida, pois “o cristão que a Companhia queria produzir no Brasil era, basicamente, um jesuíta.
(KARNAL,1998, p.67) Por outro, no espaço platino, a documentação se refere a alguns indivíduos que
posicionaram contrariamente à realização dos Exercícios Espirituais pois estes seriam “uma fábula vieja y
disparatada, rechazada ya por su mesmo inventor.” (C.A. 1735-1743, p.53)
184
Idem, p.172.
60
adornos de las mujeres mundanas”. Além de serem uma forma de demonstrar piedade,
estas ações tinham uma outra razão a de “prevenir las ocasiones del pecado.”
185
A preocupação com a forma de vestir e de se portar das mulheres parece ter
direta ligação com o uso, conforme referido anteriormente, dos espaços de
sociabilidade pelas pessoas. Havia uma crítica sistemática a bailes e espetáculos
profanos que poderiam dar ocasião ao pecado. A postura jesuítica sobre isso pode ser
extraída da documentação que faz referências diretas a como procediam os que se
arrependiam dos seus pecados, pois abandonavam prontamente espetáculos profanos
e adotavam um modo de vestir despido de vaidade.
186
Essa preocupação , me parece, vai além de uma ação preventiva. Ela pode ser
compreendida como uma reação a uma situação bastante recorrente nas cidades.
Sobre o comportamento das mulheres fidalgas “das índias ocidentais” ainda que
referindo-se à Lima, o autor de “América Latina As Cidades e as Idéias”, nos diz:
Nas cidades procuraram criar o ambiente de distinção próprio das cortes e das
cidades espanholas, rodeadas de escravos e de criados. Algumas deixaram-se
levar pelo encanto dos casos amorosos, o suficiente para fazer da discreta
limenha um arquétipo de sedução cortesã; e outras desviaram-se para os
tormentosos casos passionais(...)
187
Em Córdoba, parece não ter sido muito diferente. Por ocasião de uma grande
peste, houve uma série de arrependimentos relacionados a pecados de ordem sexual.
Diante da iminência da morte e da manipulação estratégica deste medo por parte dos
jesuítas “procúrese también la enmienda de costumbres de la gente con ocasión de
aquel contagio mortal(...)” Entre ellos se hallaron dos mujeres casadas, antes muy
perdidas,”
188
. Parece que a situação-limite acabou por levar estas mulheres casadas a
revelarem uma vida dupla e, por conseqüência, suas paixões secretas.
185
Idem, p.182
186
Segundo a documentação, algumas mulheres, após participarem da missão, ou fazerem os Exercícios
Espirituais, experimentavam uma profundo sentimento de culpa, buscando à partir de então, uma
mudança radical no seu modo de viver, a ponto de se afastar de tudo o que era “mundano”. Muitas
dessas mulheres adotaram, inclusive, “el habito de Carmelita ”(1735-1743, p. 39), e como se isto não
bastasse, acompanhavam toda a rotina do Colégio ou da Residência dos jesuítas que houvesse na
cidade. Transformavam -se então, em “beatas” ou “freiras” de uma Ordem que nunca admitiu mulheres.
187
ROMERO, 2004. p. 110
188
C.A. 1730-1735, p.39
61
A situação das mulheres solteiras, ao que parece, não diferia ja que “había
algunas de ellas de igual constancia en guardar su castidad.”
189
Na mesma cidade, e
na mesma ocasião, referindo-se às mulheres solteiras, o padre informa que algumas
guardavam a castidade, logo, a maiori , como pode-se inferir, não tinha um
corportamento que atendia às expectativas da igreja.
A razão destas ações “pecaminosas”, não poucas vezes, é justificada pelos
missionários como decorrente da paixão, do descontrole na vida do individuo. Essa
força pulsante, orientada pelas tentações ou pelo próprio demônio, era a justificativa
mais freqüente para os desvios de conduta. Isto pode ser constatado no registro que
relata que certo homem, morador de Córdoba, havia recorrido à magia e até a um pacto
com o demônio, com o objetivo de “encantar a las mujeres, para avasallarlas a su
pásion”, de modo que dessa forma pudesse “satisfacer, a su gusto, su desenfrenada
pásion
190
. A paixão, neste caso, aparece como sendo má em si mesma, já que o
envolvimento do homem com a magia deveria fazer com que as mulheres, mediante
uma força que as impeliria ao pecado, praticassem a luxúria.
Se, por um lado, a cidade possibilitava encontros e contatos nos espaços de
sociabilidade que de outra forma seriam mais difíceis , por outro, ela expunha a
todos. A “publicidade” das condutas condenáveis foi largamente utilizada pelas
estratégias de conversão jesuíticas. Circulando pelas bem traçadas ruas da cidade
platina, os membros da Companhia de Jesus parecem ter sabido se utilizar
eficientemente da coleta e do uso de informações como estratégia de conversão.
Sobre o uso estratégico das informações de que a Companhia de Jesus tinha
posse, há um caso que parece ilustrar isto de modo bastante exemplar. Segundo a
Carta Ânua de 1735-1743, havia em Assunción uma senhora que há muito estava
separada de su marido ya desde hacia muchos años, no queriendo por nada juntar-se
con su marido.” Isso parece ter gerado um desconforto nos padres que faziam a
missão, a ponto de afirmarem que “seria su pertinacia el mayor escándalo de todos los
buenos “ e que isto impedia que “Muchos matrimonios deshechos, volvieran a la paz y
189
Idem, ibidem.
190
C.A. 1735-17343, p.219.
62
concordia”.
191
Este caso, por ser de conhecimento público, acabava por ser um
empecilho para o completo sucesso da missão.
A Ânua informa que o padre empreendeu várias tentativas frustradas e que a
senhora não só não se arrependeu como o enfrentou, dizendo: “¡Que predique el Padre
misionero el Evangelio los ignorantes indios macabíes!”
192
. Mesmo diante de tanta
resistência, o padre não teria desistido de encontrar “un remedio oportuno para vencer
la pertinacia de ella”. Sua estratégia consistiu em, no momento dedicado à auto-
flagelação durante a missa e de um salmo “misere”, incitar os fiéis a se açoitarem por
seus pecados e também pelos de “cierta persona, la cual mandada por su odio
inveterado, se niega obstinadamente a reconciliarse”
193
.
A estratégia do inaciano consistiu em utilizar-se, no momento adequado, da
informação de que a mulher vivia em pecado, separada do marido, não aceitando a
reconciliação. É certo que muitos na cidade não apenas tinham conhecimento do caso,
como também da obstinação do padre em levá-la ao arrependimento. A estratégia do
jesuíta acabou por ser bem sucedida, pelo menos durante o período da missão, pois a
mulher “se declaró por vencida, buscó solícitamente el misionero, y se sujetó obediente
a sus instrucciones del caso, reconciliándose pronto después con su marido”
194
.
Se tomarmos o relato do padre como indicativo de uma estratégia bem sucedida,
através da exposição pública do “pecador”, cabe perguntar que tipo de arrependimento
é este que se dá sob a imposição da vergonha? Segundo esse mesmo relato, uma das
principais causas da mudança de comportamento da mulher, que antes se negava a
voltar a viver como seu marido, foi a “vergüenza por ser ella notada”. Sentimento que se
expressou através de “increíble conmoción, y inaudita abundancia de lagrimas que se
derramaran, repitiéndose esta escena también al otro día”
195
. Durante os dois dias de
atividade da missão, aquela mulher não apenas teve sua vida exposta publicamente,
como foi obrigada a ouvir soluços e gemidos de dor e a assistir pessoas se auto-
flagelando por um pecado que ela havia cometido.
191
Idem, p.137,138.
192
Idem, p.138.
193
C.A. 1735-1743, p.139.
194
C.A. 1735-1743, p.139.
195
Idem, ibidem.
63
A esta “escena”, a obstinada mulher resistiu durante todo o primeiro dia, mas
“repitiéndose esta .también al otro día”
196
, a mulher acabou por ceder. Penso que o
mais significativo neste caso, além do expressivo espaço que mereceu no relato do
padre, seja a reflexão que suscita: que tipo de arrependimento ele produziu? Será que,
ao final de tamanha exposição e pressão, a corajosa senhora de Córdoba não
encontrou uma outra forma de resistir? Não há como, através da Ânua, aferir se houve
arrependimento real e se esta senhora efetivamente continuou a viver com seu marido
após o término da missão.
Acredito que seja possível desconfiar do relato do sucesso da estratégia
empregada pelo jesuíta. Nas condições em que esta mulher se encontrava, é bem
possível que ela tenha preferido abandonar a prática do enfrentamento direto,
substituindo-a por outra tática, a da dissimulação. Afinal, propondo um exercício de
projeção, pode-se perguntar: qual teria sido o comportamento adotado por essa mulher
ao término da missão, quando a vida de toda a cidade voltou à rotina? É provável que
essa mulher tenha voltado a separar-se do marido. Ou, então, que o casamento
aparentemente reatado tenha sido mantido para evitar nova exposição em uma
missão futura. Como forma de evitar as exposições e as advertências públicas
indesejadas, os citadinos, com certeza, aperfeiçoaram táticas de dissimulação.
É preciso que se leve em conta, a importância do período de missão na vida da
cidade. Neste tempo as atividades da rotina diária cessavam, todos os olhos estavam
voltados para o ritual da missão: as missas, as procissões, os exercícios espirituais e as
confissões gerais. Além do que, a Companhia de Jesus, no mais das vezes, gozava de
apoio do Estado espanhol, assim como de muitos políticos locais. O custo social da
insistência em manter um pecado de conhecimento público e sem confissão
197
era
196
Idem, ibidem.
197
Segundo Weber, “Os agentes sociais obedecem a regra quando o interesse em obedecer a ela
suplanta o interesse em desobedecer a ela”( WEBER, Max, apud BOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. São
Paulo: Brasiliense, 1990. p. 96) Sobre isso, nos apropriamos da discussão realizada por Fleck, quando
refere que: “Cabe ressaltar que para Max Weber existe uma importante margem de liberdade de ação
para os homens, que são dotados de vontade subjetiva e com base nisso conduzem suas ações. Essa
vontade subjetiva está sempre vinculada a ações de outros homens, isto é, obedece aos limites das
possibilidades que se apresentam junto às ações tradicionais, afetivas e/ou racionais de outros. (...)
mesmo quando as ações são caracterizadas como tradicionais realizadas mais mecanicamente pela
repetição dos costumes , na realidade, não se constituem como tipos puros e dependem, de forma
variável, também de interesses racionais e/ou afetivos.(FLECK,1999, p. 217,218) São também oportunas
as considerações de Keith Thomas de que: O historiador social deve estar disposto a admitir que os
64
muito alto para as populações do Prata, fossem elas da elite, fossem dos extratos
populares.
Por outro, é importante lembrar que a missão ocorria uma vez ao ano, e que a
vida diária e cotidiana continuava após seu término. Assim as pessoas, buscavam,
formas de equacionar, de um lado, o que se esperava delas, como bons cristãos, a
partir do discurso jesuítico da missão, e de outro, a vivência de sua realidade cotidiana
que, não raro, incluía comportamentos apaixonados. Certa senhora de Corrientes,
elogiando a atução da Companhia de Jesus em missão, aproveitou a oportunidade para
alertar os inacianos que “solo conocían la superficie exterior de los inmensos males,
que brotaban allí”
198
, e que sua ação se fazia ainda mais necessária.
Pode-se inferir, portanto, que havia muito mais do que os padres conseguíam
“ver”, ou seja, havia comportamentos que eram convenientemente alterados durante o
período da missão. Sobre a situação da vida diária, na cidade da zelosa senhora
correntina, nos informa a Carta Ânua de 1735-1743: “No ( Tocante a los vícios)
dominaba ante todo, gran desfachatez en robar, en perseguir y calumniarse
mutuamente, siendo el vicio principal la lujuria”
199
.
Os pecados de ordem sexual, como se deduz, eram bastante freqüentes nas nas
cidades platinas. Sua recorrência acabou por banalizá-los, a ponto de serem
justificados pelos citadinos com o argumento que se “había mujeres, para que se
sirviesen de ellas los hombres”. A luxúria parece ter assumido um papel de destaque
nos usos não planejados da cidade teatro. Os relatos de mulheres e de homens de
“mala vida” são recorrentes, como neste que refere que: ”ya por muchos años, y tan
lasciva, que, faltándole una de sus cómplices, se metía con otro” e que “Confesábase
ella aparentemente cada año, ocultando cada vez sus pecados carnales. Asistía a las
misiones, pero sólo para sabir más malla de ellas”.(grifo meu)
200
Entre as táticas mais utilizadas encontrava-se, sem dúvida, a dissimulação, que
previa a interpretação de um papel social, através das confissões e da assistência às
processos mentais e perceptivos podem estar extensamente condicionados pelo conteúdo cultural da
sociedade em que vivem as pessoas (…)”. (THOMAS, 1991, p. 482)
198
C.A. 1735-1743, p.153.
199
C.A. 1735-1743, p.153.
200
Idem, p.231.
65
atividades da missão, que não implicavam, no entanto, no cumprimento efetivo das
determinações da Igreja. Deduz-se daí, que a “cidade palco” cenário do teatro da fé
recebeu atores e interpretações que não aquelas originalmente previstas pelos jesuítas.
O relato a seguir, que me permito transcrever na íntegra, ainda que um tanto
longo, me parece emblemático. Não só porque a mulher envolvida assumiu que
pretendia confessar-se apenas para evitar falatórios, mas, especialmente, porque ela
assume que imitava as outras pessoas.
(...) otra señora de família distinguida, acercáse um dia al confessionário de uno
de nuetros padres, y le dijo, que no vería a confessarle, sino sólo para aparentar
la confission, para que no hablassen de ela(...) El sacerdote se enpeñaba mucho
en ablandar en algo este corazón endurecido, o innfietrarle un poco de
esperanza: Todo en vano. Contestóle ella, que todo no le importaba nada.
Hamóle la atencioñ al Padre semejante obstinación, y averiguó desde que fecha
se sentía ella tan endurecida y como abandonada de Dios. Contestó ella, que
desde que esquivaba de los Ejercícios, burlándose además de los que los
hacían, remedando sus lágrimas y llantos. Insistió el Padre en alértala, sin el
menor bien resultado, así que se vio obligado a despedirla como incorregible.
201
Os casos se multiplicavam pelas cidades, como se deduz deste comentário feito
pelo padre: “Luego vino otra, la cual por unos treinta años nunca había podido vencer
el falso pudor, para confesar las faltas de su primera juventud. Várias veces había
asistido a la misión, y siempre había confesado sacrílejamente.”(grifo meu)
202
Importante observar que a maioria dos casos de confissões dissimuladas apresentados
na documentação, aqui compreendidas como tática de resistência ao discurso
civlizador-evangelizador, envolvia mulheres. Uma possível explicação para este fato
talvez se deva a que muitos relatos se limitavam a pecados de ordem sexual. Ainda que
a Companhia de Jesus pregasse e exigisse o mesmo comportamento puritano de
ambos os sexos, do ponto de vista do custo social, é possível afirmar que as
conseqüências para as mulheres identificadas como lascivas era maior.
É o caso de certa mulher “distinguida”, moradora de Santa Fé, que em 1736,
mantinha um caso público de adultério, pois “con grãn escándalo...estaba en relaciones
malas con el esposo de otra señora distinguida”. Diante da vergonha pública, já que ela
“había perdido todo pudor, y no se emendó”, foi “castigada públicamente”
203
. É
importante referir, que não há na documentação qulquer referência a castigos públicos
201
C.A. 1730-1735, p. 70.
202
C.A. 1735-1743, p.247.
203
Idem, p.51,52.
66
ou a qualquer tipo de punição ao seu amante, esposo legítimo de outra mulher. Sendo
assim, é bem possível que as mulheres das cidades platinas utilizassem como maior
freqüência o recurso do arrependimento e da confissão, como forma de burlar ou
amenizar as conseqüências de terem se deixado levar suas paixões.
Outra razão possível para explicar a maior incidência das mulheres nas artes da
dissimulação, talvez se explique por uma necessidade, já que tinham menor
mobilidade. Os homens, especialmente os da elite, possuíam haciendas fora da cidade,
se deslocando com facilidade, sem que muitas vezes alguém pudesse saber onde
estavam ou o que faziam. Isto pode tê-las tornado alvo mais fácil de vigilância e de
falatórios. A freqüência às missas, às confissões e às missões garantiam que sua vida
de paixão se mantivesse resguardada.
A dissimulação nas confissões, entretanto, não era exclusividade feminina.
Muitas vezes, as confissões dissimuladas se mantinham durante anos, e só eram
abandonadas quando uma situação de risco de vida epidemias, doenças ou idade
avançada se fazia presente. São bastante recorrentes na documentação os relatos de
alguém que “Enférmose gravemente, y llamó el confesor (…)”
204
.
Esta prática que convencionei chamar de “tática da boa morte”, é certo, não foi
inventada na cidade platina. Há um sacramento específico para os momentos em que a
vida está em risco, hoje chamada “unção dos enfermos”, mas que no século XVIII era
conhecida como “extrema unção”, sendo admistrada in articulo mortis
205
. Para que este
sacramento fosse oficiado, era necessário caso o doente estivesse em condições
uma confissão anterior e sua decorrente absolvição.
A questão que proponho, é que muitos tencionavam aproveitar o máximo da
vida, incluindo viver suas paixões, e se utilizavam da “extrema unção” como uma
oportunidade para se confessarem e acertaem as contas com Deus. Desta forma
imaginavam poder viver também o melhor da vida após a morte. Muitos, é certo, não
esperavam uma situação limite como a que ocorreu durante uma epidemia em
Córdoba
206
, e consideravam após dezenas de anos de vidas em desacordo com os
204
C.A. 1735-1743, p.167.
205
A ponto de morrer, em latim.
206
“Procúrese también la enmienda de costumbres de la gente con ocasión de aquel contagio mortal”
(C.A. 1730-1735, p.39)
67
preceitos cristãos que talvez fosse prudente emendarem seu comportamento diante
da iminência da morte e da idade avançada.
Vale destacar o caso de certo homem que “en su última enfermedad ya había
arreglado su conciencia, confesándose y haciendo su testamento como convenía”,
entretanto, ao recuperar-se de sua doença, “lo revocó haciendo otro muy inicuo”
207
. A
mudança do testamento diante da expectativa de continuidade da vida parece
apontar para a tática que ele vinha empregando e para a forma como lidava com sua
vida terrena. Ainda que um testamento só teria validade após a sua morte, o poder que
detinha de incluir ou excluir herdeiros, consistia em grande vantagem enquanto vivesse.
Os casos de confissões dissimuladas “por espacio de 18 años seguidos”
208
, ou
“treinta años”
209
ou ainda o caso da mulher que “después de haber hecho confesiones
sacrílegas(...) durante más 40 años.”(grifo meu)
210
, ilustram bem essa situação.
Havia, entretanto muitos outros que tinham “envejecido en los pecados, o habían
pasado mucho tiempo en ellos”
211
até que abandonavam a tática da confissão
dissimulada e a substituíam pela tática do “bem morrer”.
Considerando que a expectativa de vida na Argentina, nos inícios do século XIX,
não ultrapassava os 40 anos
212
,é possível inferir que uma vida de pecados de 30 ou 40
anos na região do Prata do século XVIII, como mencionad nas Ânuas somados aos
mais ou menos15 anos de vida pré-adulta indicavam que o tempo de vida terrena
dessas pessoas se findava. Era preciso, então, preocupar-se com a vida após a morte
de modo a acabar “sus días con la firme esperanza de alcanzar la eterna buena
venturanza del cielo.”
213
207
Idem, p. 13.
208
C.A. 1735-1743, p.167
209
Idem, p.232.
210
C.A. 1730-1735., p.96.
211
C.A. 1735-1743, p.232.
212
Conforme Victoria Mazzeo investigadora Investigadora do Instituto Germani Facultad de Ciencias
Sociales UBA em seu artigo Relaciones entre modernidad, espacio y vida social en Buenos Aires-
Desde fines del Siglo XIX hasta mediados del Siglo XX. (MAZZEO, Victoria. Relaciones entre
modernidad, espacio y vida social en Buenos Aires- Desde fines del Siglo XIX hasta mediados del
Siglo XX. Disponível
em:http://www.mundourbano.unq.edu.ar/index.php?option=com_content&task=view&id=190&Itemid=0.
Acesso em 10 Jan. 2008
213
C.A. 1735 1743, p.168.
68
As populações citadinas do Prata desenvolveram também outras formas de
resistir às estratégias evangélico-civilizatórias da Companhia de Jesus, de modo a
viverem suas paixões, e , ao mesmo tempo, resguardarem seu status quo. Há um caso
bastante exemplar de um homem de certa importância social, que mesmo após uma
confissão e conversão pública comoventes, manteve escondido um relacionamento
proibido, tendo sido punido com a própria vida:.
Había roto aquel, a consecuencia de los ejercicios, los lazos que le ligaban con
cierta mala mujer...A lo menos, parecía que los había roto, a calcular por
lágrimas que derramaba al confesar-se, y por su voluntario destierro de la
ciudad...cuando volvió a la ciudad, y encontrando-se con aquella mujer , se
inflamó otra vez su pasión hacia ella...y la invitó a venir clandestinamente a su
casa(...).
214
A tática presente nesse relato difere daquela em que simplesmente os pecados
são ocultados na confissão. Ao contrário, aqui a a trapaça está não em esconder, mas
antes confessar, preferencialmente utilizando-se dos recursos teatrais tão caros ao
padres da Companhia.
As muitas lágrimas por ele derramadas impressionaram o padre confessor,
levando-o a acreditar no arrependimento do “cavaleiro espanhol”. Como forma de dar
maior credibilidade ao gesto, o homem se afastou da cidade espaço privilegiado da
luxúria e no qual estava o objeto de sua paixão de modo a demonstrar seu firme
propósito de não mais pecar. Ao retornar à cidade, o “cavaleiro espanhol” volta a
encontrar-se com “aquella mujer” e sua paixão volta a se inflamar. O dilema se impõe:
de forma clandestina, quer manter seu comportamento apaixonado e, ao mesmo
tempo, seu status social e seu prestígio diante dos padres. Interessante notar que a
cidade fica marcada como o espaço da paixão. É dela que o homem se afasta com o
objetivo de manter seu firme arrependimento e vida piedosa, é nela que volta a
encontrar sua paixão, e é nela, que quer continuar mantendo um relacionamento
apaixonado e condenável.
O caso de uma mulher envolvida em relações ilícitas, e que durante a missão “al
parecer de todo corazón”, havia se arrependido, a ponto de “por algún tiempo más
perseveró en su enmienda, confesándose cada ocho días, intrigou o jesuíta., pois,
pouco depois da conversão aparentemente sincera se dejó otra vez arrastar por
214
Idem, p.50.
69
mala inclinación, y pronto desmedró todo freno de temor de Dios, y se sumergió en el
abismo de sus vicios anteriores. Enredada en sus lazos ilícitos(...).”, tornando-se
“una piedra de escándalo(grifo meu)
215
.
Essa forma de tática de resistência, que inclui sempre uma confissão
aparentemente verdadeira, para, em seguida, manter a antiga prática apaixonada, foi
identificada também em “cierta mujer, enredada ya por mucho tiempo en relaciones de
adulterio. Acercándose también a la confesión, pero sólo para no llamar la atención,
asistió a las funciones de la misión.(grifo meu)” Assim como o outro padre, este também
ficou intrigado com a alteração de comportamento da mulher, no entanto, decidiu
atribuí-la ao “diabo”
216
.
O aborrecimento causado pela solidão e pela distância da pessoa por quem
nutria paixão foi a causa atribuída à reincidência no pecado por uma pessoa que após
ter se confessado, voltou à prática anterior. Em Santiago del Estero, certo homem
Por el año de 1740 había acudido repetidas veces a un Padre de la compañía,
sin alcanzarla absolución, antes que se apartase de su cómplice, que estaba en
la misma casa. Al fin la expulsó, recibiendo él en seguida los sacramentos de
penitencia y eucaristía. A tres días había quedado solo, y comenzó aburrirse, de
su soledad, llamando otra vez a su casa aquella mala mujer(...)
217
Como referimos, anteriormente, essa prática utilizada pelas populações platinas
de modo a continuarem vivendo suas paixões não passavam desapercebidas aos
padres da Companhia. Esses, entretanto, preferiam buscar explicações na solidão ou
na ação sobrenatural do diabo.
Num dos relato que menciona uma “mujer casada, la cual vivía ya por once años
en relaciones ilícitas con cierto joven (…) para que, al fin, se levantase del cieno de su
abominable pasión, a consejo de uno de nuestros padres” (grifo meu)
218
, o padre usa
o termo paixão como sinônimo de pecado, o que, além de freqüente, é compreensível,
já que a literatura cristã pré-tomista assim tratava a paixão.
A paixão, no entanto, não será sempre exclusivamente associado ao pecado ,
que pode ser revertido ao “hacer a los Ejercicios... volviendo su casa con el propósito
de morir antes de proseguir en su mala amistad”. A paixão é também vista e referida
215
C.A. 1735-1743, p.169.
216
C.A. 1735-1743, p.199.
217
Idem, p.19.
218
C.A. 1730-1735, p. 71.
70
como a causa do pecado, como sugere o relato em que uma mulher casada
arrependida acaba por ceder às tentações pois “aquel individuo apasionado siguió
visitándola y regalándola(...)(grifo meu)”
219
Esta tática também teve algumas variações. Além da prática da confissão do
pecado e da posterior volta ao comportamento apaixonado preferencialmente às
escondidas muitas vezes, as populações das cidades do Prata fizeram promessas
públicas que não pretenderam cumprir.
Como “Cierto caballero distinguido, invidado por uno de nuestros padres, en
1730, a hacer ejercicios para arreglar su conciencia”, e que tentou, de todas as formas,
esquivar-se, mas para evitar maiores custos sociais e religiosos, se “comprometió a
hacerlos, tan pronto como hubierer despachado ciertos negocios, lo cual quería hacer
quanto ántes”, entretanto, “no pensaba en cumplir su palabra, sino que la había dado
sólo para librarse de las insistencias del Padre (...).”
220
Este tipo de tática se justifica na medida em que , ganhando tempo e livrando-se
da pressão mais urgente do padre, o período dos Exercícios Espirituais parte do
fundamental do processo de missão passaria e, com isso, a vida voltaria à
normalidade, ficando o cavaleiro livre de sua promessa.
Outra forma encontrada foi a de manter as paixões em segredo e viver uma vida
pública aparentemente piedosa, como fez certo “español, el cual se había apartado de
su esposa, señora distinguida en dones naturales y sobrenaturales, para entregarse
más libremente a sus relaciones malas con una esclava negra.”
221
Ele, porém, diante dos custos sociais, e, quem sabe, até econômicos, que essa
atitude acarretaria, “para no causar a su suegro tanta verguenza y siguiendo el consejo
de personas de autoridade, otra vez admitió a su mujer legítima (...) mientras vivía
aquella esclava negra como si fuese su esposa.”
222
As táticas de que se utilizaram as populações platinas, nem sempre foram tão
sutis. Por vezes, as escuras ruas da cidade foram palco de tentativas que incluiram
atitudes violentas. Segundo o relato do autor da Carta Ânua de 1735-1743, uma mulher
219
Idem, p. 71.
220
C.A. 1730-1735, p.13.
221
C.A. 1735-1743, p.243.
222
Idem, ibidem.
71
que havia abandonado uma relação ilícita foi perseguida por seu ex-amante que,
inconformado, tentou forçá-la e até matá-la, diante de sua recusa. Por pouco, as ruas
da cidade não foram palco de um crime passional.
Otra de estas infelices, antes esclava de la corrupción, fue buscada después de
la misión, para renovar su vida criminal. Pero ella resistió al seductor tan
heroicamente, que se dejó más bien arrastrar por plena calle, llenar de ultrajes, y
destrozar su ropa, antes de consentir al pecado; ni se dobló, al amenazarle este
hombre infame, con la muerte, ya poniendo la mano criminal al puñal, para
matarla. Pero al atacar a la mujer renitente, se le cayó por casualidad el puñal…
aprovechase la mujer de este momento, para escapársele, refugiándose en su
casa.
223
O esforço dispendido até aqui foi duplo. Inicialmente, me propus a compreender
as estratégias de evangelização adotadas pelos jesuítas nas cidades platinas na
primeira metade do século XVIII, no território de atuação da Província Jesuítica do
Paraguai. Para tanto, privilegiei o papel desempenhado pelas missões populares, cujos
objetivos eram o de reafirmar a fé católica e realizar uma profunda reforma de
costumes. Por outro lado, as Ânuas que analisei revelam que os colonos que viviam
nas cidades platinas, fossem eles espanhóis ou criollos, mestiços, escravos ou
indígenas, não foram tão passivos diante das estratégias de controle das paixões
empregadas pelos missionários como estes gostariam. Utilizaram-se das mais variadas
táticas de modo a continuarem vivendo suas paixões, e, ao mesmo tempo, manterem o
status desfrutado pelos bons cristãos.
Recorri às metáforas da cidade tabuleiro”, em grande parte, tributária da análise
feita por Angel Rama em “Cidade das Letras”, e da cidade palco”, inspirada na reflexão
feita por Leandro Karnal, em sua obra “ O Teatro da Fé”, para analisar as vivências das
paixões no espaço urbano platino. Estas duas perspectivas, mais do que comprovar a
complexidadade própria das relações humanas e que abarcam as formas de morar,
de vestir, de sentir ou de se apaixonar trazem em si uma característica comum. Ainda
que ambas, a princípio, pareçam propor que há total visibilidade e controle sobre as
ações, o tabuleiro e o palco, na prática, como foi demonstrado, possuim “brechas” que
foram utilizadas pelos citadinos platinos, seja para subverter as regras do jogo, seja
para fazer mudanças no roteiro inicial do teatro da fé. Creio que se possa pensar na
cidade palco e na cidade tabuleiro platina, a partir de uma instigante reflexão feita por
Walter Benjamin sobre como a História, por vezes, se apresentaria:
223
Idem, p. 182.
72
Um fantoche vestido à turca, com um narguilé na boca, sentava-se diante do
tabuleiro, colocava-o numa grande mesa. Um sistema de espelhos cria a ilusão
de que a mesa era totalmente visível, em todos os seus pormenores. Na
realidade, um anão corcunda se escondia nela, um mestre no xadrez, que dirigia
com cordéis a mão do fantoche.
224
A cena criada por Walter Benjamin nos remete às metáforas que empregamos
nesse primeiro capítulo, sobretudo, a do fantoche vestido “à turca” enquanto um fiel
representante do teatro da fé , e a do tabuleiro de xadrez, como a cidade enquanto
espaço de atuação do mestre estrategista.
A cidade foi sempre o espaço idealizado da civilidade e da virtude. A Jerusalém
do imaginário judaico-cristão planejada e construída para ser a morada do povo de
Deus mesmo corrupta, seria restaurada, e, finalmente, ganharia uma versão pura,
feita pelo próprio Deus. Esta última, serviria de inspiração a Santo Agostinho que em
sua obra mais importante, “Cidade de Deus”, teria a Jerusalém celestial como modelo.
Já a antítese seria aquela que não cumprisse adequadamente sua missão,
constituindo-se na cidade dos homens. Tomas Morus, em sua “Utopia”, imaginava uma
ilha com cidades iguais e simétricas berço da civilização e da virtude que ficava
ainda mais perfeita quando contrastada com os bárbaros costumes dos seus vizinhos
que viviam nas montanhas, embrenhados no mato, e não só não aceitavam a vida
citadina e civilizada, como pretendiam possuí-la e destruí-la. Keith Thomas, por sua
vez, se debruçou sobre as cidades inglesas, enquanto Norbert Elias analisou as
cidades francesas e alemãs. Todas essas cidades possuem uma característica comum,
a de terem sido idealizadas, quer pelos servos fugidos dos feudos, quer pelas
corporações de ofício ou mesmo pela nobreza, como uma ilha a salvo da rudeza do
campo e dos costumes medievais, e que viria a ser o germe de uma nova sociedade,
moderna e fidalga.
Como dito, todas estas cidades reais ou imaginárias foram produto de uma
idealização da projeção de necessidades e/ou desejos que os homens destes tempos
tiveram em um espaço, artificialmente construído e demarcado, aparentemente
controlável, se comparado à imensidão da zona rural, ou das insondáveis florestas.
Novamente, a cena proposta por Benjamin nos serve de inspiração. Nela, há um
224
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e
história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1987, Vol. 1, p. 223.
73
fantoche vestido à turca, fumando à maneira oriental, enquanto joga xadrez. Um jogo
de espelhos é empregado para criar a ilusão de uma visão completa da mesa,
afastando as possíveis desconfianças e criando a ilusão de que não há nada
escondido, estando tudo à vista. Entretanto, há mais. Um anão, versado longamente na
prática do xadrez, controla o fantoche. Logo, não há naturalidade nas ações do boneco
vestido à turca. A cena toda é uma encenação e o jogo também é um engodo, só
estando ali para dar credibilidade ao fantoche.
Creio que as cidades do Prata, em grande medida, se assemelham a esta cena.
Havia não só uma idealização, mas todo um trabalho para fazer parecer que o que
havia sido idealizado, estava ocorrendo de fato. A cidade, ao buscar sua identidade
através da sua antítese, o campo, criava um cenário de teatro com suas festas,
jantares, pompas e códigos de conduta tendo nisso como maior articuladora a
Companhia de Jesus, voltada para a busca incessante da reforma dos costumes. Já os
prédios e instituições da Companhia, assim como os da administração civil, serviam de
peças no tabuleiro da cidade; sendo, aparentemente, controlados em todos os detalhes
por aquele(s) que mexiam as peças e definiam as estratégias. Na prática, entretanto, o
teatro e jogo recebiam influências que a um primeiro olhar, não eram percebidas, pois
havia fatores, como a própria idealização e a reação daqueles que deveriam ser
transformados pelas estratégias civilizadora e evangelizadora. Às populações platinas
não podemos atribuir nem o papel do anão maquiavélico, e nem o de desempenharem
papéis previamente definidos no teatro do tabuleiro. Elas encontraram formas de dar
vida à cidade, uma vida real e não idealizada, nela moraram, comeram, vestiram,
sentiram e viveram as suas paixões, não poucas vezes, fora do esquema teatro-
tabuleiro, e, não raro, não se deixaram dirigir pelo anão corcunda e mestre estrategista.
A América Hispânica assumiu, inegavelmente, um caráter marcadamente
urbano, o que pode ser constatado nos centros de poder e de comércio e nos espaços
de sociabilidade nelas instalados. O campo, contudo, exerceu grande influência sobre a
cultura platina, desempenhando um papel que ultrapassou o de garantir a manutenção
e a subsistência das cidades. No próximo capítulo, me detenho na atuação missionária
da Companhia no ambiente rural platino um ambiente, muitas vezes, inóspito e hostil,
74
, e na análise das especificidades da vivência das paixões pelas populações
campesinas do Prata.
75
2 AS PAIXÕES E O CAMPO PLATINO: A BARBÁRIE E A SENSIBILIDADE DOS
EXCESSOS
Neste capítulo, proponho a identificação e a análise das estratégias usadas pela
Companhia de Jesus para o combate e a supressão das paixões próprias do ambiente
rural. São objetivos, também, a verificação da manifestação das denominadas “artes de
fazer” as táticas , porventura, empregadas por essa população rural platina, a fim de
manter suas práticas pautadas nas paixões, e a constatação de semelhanças e
diferenças entre a vivência das paixões nas áreas rurais e das áreas urbanas platinas.
A vivência das paixões no campo traz em si uma característica que a singulariza.
O ambiente rural o campo, o pampa ou sertão parece ter sido o espaço por
excelência do viver sem amarras, de um viver espontâneo e sem grandes contenções,
facilitado por uma ocupação humana esparsa e pelas longas distâncias dos centros
urbanos. É, em razão disso, que a discussão que proponho neste capítulo contempla a
reflexão sobre esta pretensa licenciosidade, ao questionar se ela ocorreu de fato, ou foi,
antes, uma construção daqueles que pretendiam implementar um outro modelo de
sensibilidade.
Esse modo de vida tem sido identificado, já de longa data, como uma antinomia
em relação ao espaço citadino, pois desde os “tempos da Renascença, a cidade fora
sinônimo de civilidade, o campo de rudeza e rusticidade.”
225
Os ares civilizados da pólis
grega haviam seduzido os homens do início da idade moderna, convencidos de que o
isolamento, a solidão e a falta dos mecanismos de controle e coerção das cidades
produziam, no campo, uma sociedade “bárbara”.O antagonismo entre barbárie/campo e
civilização/cidade não mais saiu da pauta daqueles que se prepuseram a pensar a
formação do Estado, da sociedade e, por conseqüência, do agir destes grupos
humanos.
225
THOMAS, 1988, p.290.
76
É clássica a relação feita por Hobbes em sua obra o “Leviatã”
226
em que o
Estado de “natureza” é uma situação de barbárie, em que os homens estão sob o
controle de suas paixões sem nenhum limitador externo. Logo, sua proposta de
implantação de um Estado passa pela supressão das paixões, através da mão forte do
Estado, o Leviatã.
O binômio “Barbárie x Civilização”, entretanto, não foi uma exclusividade dos
pensadores europeus. A América espanhola não ficou imune a esta categorização das
populações e dos comportamentos humanos. No período pós-independência argentina,
Domingo F. Sarmiento escreveu o seu “Facundo: civilização e barbárie”
227
, procurando,
de um lado, explicar o que era a Argentina de meados do século XIX sob o comando de
Rosas a quem considerava um caudilho oriundo de uma Argentina bárbara/rural e,
de outro, propor um caminho pautado na idéia de civilização que levaria a Argentina a
patamares europeus. A obra “Facundo” de Sarmiento parece ter marcado
profundamente a sociedade platina, a ponto de interferir na forma como esta se
percebe ou se enxerga no tempo.
José Carlos Barran, em sua obra “Historia de la sensibilidade en el Uruguay”,
retoma os conceitos de Sarmiento, discutindo-os em dois tomos, o Tomo I, intitulado “La
cultura barbara”, e o Tomo II, no qual trata dos mecanismos de disciplinamento e da
busca pela produção de uma sensibilidade “civilizada”:
A este tipo de sensibilidad, dominante, sin dudas, hasta la década que se inicia
en 1860, muchos integrantes de las clases dirigentes le dieron en nombre de
“bárbara”. En 1845, Domingos Faustino Sarmiento tomó su antinomia barbarie y
civilización de este medio social al que pertencia, asignándole tanto un contenido
geográfico vinculando la barbarie con el medio rural e identificando la
civilización con las ciudades como otro valorativo (...)
228
Barran, entretanto, não aceita a relação direta entre campo/barbárie e
cidade/civilização, antes sustenta sua escolha menos no determinismo geográfico e
mais em uma “funcionalidad que existió entre la economía de la abundancia con las
226
HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. São Paulo:
Abril Cultural, 1999, p. 113.
227
SARMIENTO, Domingo Faustino. Facundo: Civilização e Barbárie. 2. ed. Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional, 1938.
228
BARRAN,1991, p.14.
77
“plétoras” de ganado vacuno de 1880 a 1860 y la sensibilidad valoradora del placer y el
juego”. Ou seja, uma relação entre economia “ganadera” e uma sensibilidad “frouxa”
pautada pelo prazer e pelo jogo e, de outro lado, uma sensibilidade “civilizada” em um
“Uruguay cuasi burguês de 1890 y la represión del ocio y la sexualidad”
229
.
Julgo importante desvendar a compreensão dos conceitos de “barbárie” e
“civilização” empregados por Barran, na medida em que seus estudos sobre o Uruguay
“bárbaro” do século XIX, servem, em termos de aproximação, para a análise da vivência
das paixões próprias do ambiente rural platino da primeira metade do século XVIII que
pretendo fazer neste capítulo.
Ainda que Barran não estabeleça uma relação objetiva entre o ambiente rural e a
“barbárie”, Montevidéu é descrita como uma cidade com alma campesina. Suas muitas
e bem documentadas descrições da vida de Montevidéu do Oitocentos a aproximam,
em função dos aspectos econômicos já mencionados, com o modo de vida frouxo e
intenso dos campos orientais. No segundo tomo de sua obra
230
, Barran trata quase que
de um processo de civilização da própria cidade, propondo-se a fazer ”una historia de
las emociones; de la rotundidad o la brevedad culposa de la risa y el goce; de la pásion
que lo invade todo, asta la vida pública. (grifo meu)” O processo que o autor uruguaio
persegue, portanto, é aquele que quer fazer das paixões algo “encogido y reducido a la
intimidad; del cuerpo desenvuelto o del encorsetado por la vestimenta y la coacción
social que juzga impúdica toda soltura.”
O conceito de sensibilidade “bárbara” de Barran “La ‘barbárie’, es decir, la
sensibilidad de los “excessos”
231
me parece perfeitamente adequado para o estudo
aqui proposto, já que esta sensibilidade dos excessos, não foi outra coisa senão uma
sensibilidade apaixonada. Para Barran, “La historia de la sensibilidad en ese Uruguay
del siglo XIX es la de la lenta desaparición del pathos y la también lenta aparición del
freno de las ‘pasiones interiores’(grifo meu).”
232
Acredito, portanto, que uma
229
BARRAN,1991, p.16.
230
Chamada de Historia de la sensibilidad en el Uruguay . El disciplinamiento. 1860-1920. ( BARRAN,
1990)
231
BARRAN, 1991, p.15.
232
Idem, p.11.
78
aproximação com o trabalho desse autor seja bastante produtiva, na medida em que o
autor se deteve no estudo das estratégias adotadas pelo Estado Uruguaio para o
estabelecimento de uma nova subjetividade “burguesa”, que implicava freios nas
paixões interiores. De minha parte, esta nova subjetividade será analisada a partir das
estratégias empregadas pelos jesuítas para o estabelecimento uma reforma dos
costumes que impreterivelmente passou pela supressão e controle das paixões.
Deve-se considerar que os inacianos freqüentemente referem, em suas
correspondências, o processo de “reforma dos costumes”, apresentando-o como um
dos principais objetivos do trabalho missionário, aproximando-se da idéia de
sensibilidade “civilizada” de Barran. É claro que, no caso dos jesuítas, o modelo a ser
seguido era aquele definido pela Igreja, o comportamento cristão exemplar, enquanto
que no caso do Uruguai do século XIX, como bem disse Barran, havia uma
sensibilidade civilizada que atendia aos padrões e interesses burgueses.
No que diz respeito à sensibilidade “bárbara”, me parece que os conceitos são
ainda mais próximos. Ainda que a documentação não refira de forma recorrente - o
termo “barbárie”, a descrição que ela traz da vida campesina em muito se aproxima da
idéia de um modo de vida bárbaro, não civilizado. Sobre este modo de vida “bárbaro”,
Barran afirma que para comprende-lo era preciso “analizar la violencia, el juego, la
sexualidad y la muerte nos acercará a la médula de esa época, a los rasgos colectivos
y seguramente intransferibles de una forma de sentir.”
233
A documentação consultada assim descreve o modo de viver nas regiões rurais
do Prata: hay muchos incentivos al pecado, y los males ocasiones son tan
abundantes y provocativas, pierdem ellos muy facilmente la gracia de Dios, y se
precipitan a los vícios.” (grifo meu)
234
Estes vícios incluem uma entrega desenfreada
às paixões do corpo, à luxúria, aos jogos de azar, que incluíam a avareza e a
compulsão, além de atos de violência como brigas e assassinatos, aí presentes a ira e
a inveja.
233
Idem, p.13.
234
C.A. 1730-1735, p.5.
79
O modo de vida das populações campesinas a partir da análise de uma
documentação que não tem origem clerical é o foco do trabalho “Elite, Pulpería y
Disciplina Social. San Juan de la Frontera, 1750-1770”
235
de Mário A Solar Mancilla,
que adverte que “la fuente que nos permite, en parte, reconstruir sus modalidades de
vida es la judicial”.
236
Cabe ressaltar, entretanto, que San Juan de la Frontera não está
localizada na região compreendida como platina. Localizada ao norte da Provínicia de
Mendoza, a sudoeste da Província de La Rioja e a leste dos Andes e o Chile, San Juan
possuía uma economia baseada na produção de vinhos e criação de gado, ou seja
fortemente rural. Portanto, creio que há mais semelhanças do que diferenças entre a
população de San Juan e as da região platina, o que permite, algumas aproximações
para efeito de análise.
As fontes utilizadas, entretanto, não mudam a forma como a população
campesina é descrita, assemelhando-se muito às descrições feitas pelos missionários.
Las pendencias, heridas y muertes, lógicamente no tenían lugar en aquellas, que
estaban más cerca de ser tiendas o almacenes que tabernas, sino en los ranchos
improvisados donde se daban cita los hombres para dar rienda suelta a los
placeres de la vida (…) Los pucheros calientes, los matahambres, y las
empanadas iban acompañados por el aguardiente, los juegos de azar y por el
infaltable cantor popular que amenizaba el fandango, haciendo olvidar por
algunas horas el rigor de la vida. Pero también en medio de esa algarabía una
palabra mal dicha, una bufonada, no responder un saludo, creaba las condiciones
para que la festividad terminara en una pelea campal, con un herido o un muerto.
237
Nos registros civis, judiciais e da imprensa sobre o Uruguai do século XIX
utilizados por Barran , nas Cartas Jesuítas que se referem à população platina do
século XVIII, ou, ainda, na documentação judicial relativa à população rural de San
Juan de la Frontera, há uma constante na descrição destas populações que se poderia
denominar de “bárbara”, tomando a expressão de empréstimo a Barran. Esta
sensibilidade bárbara” como Barran a denominou tem como característica a
predominância de um comportamento pautado por “excessos”, um comportamento que,
no geral, não se dobra às ordenanças clericais, estatais ou judiciais. No Brasil
português, especialmente no que hoje é o estado de Minas Gerais, a antinomia entre
civilização e barbárie também esteve presente. Ainda que a região apresente
235
MANCILLA, Mario A Solar. Elite, Pulpería y Disciplina Social. San Juan de la Frontera 1750-1770.
Revista Universum,Vol.2,Nº 20:Talca/Chile. Universidad de Talca, 2005
236
Idem, p.112.
237
Idem, p.134.
80
características geográficas é, no geral, uma região montanhosa e econômicas
diferentes da região platina, já que possuía grandes riquezas minerais, creio que possa
nos ajudar a compreender de forma mais ampla a questão. Lá, no chamado sertão
238
,
eram os “paulistas”, ao invés dos gauchos ou campesinos platinos, os que recebiam a
pecha de incivilizados ou bárbaros. Em seu recente estudo sobre a violência e o crime
nas Minas setecentistas, Anastasia refere que sobre os paulistas se dizia que “não
possuíam civilização, eram selvagens”, pois “ficam sem cultura, ou nas suas
povoações, ou metidos no mato, onde andam anos sem mais provimento para sua
subsistência que pólvora, munição e machados”.
239
Nas cartas Ânuas, por sua vez, o excesso se expressava, sobretudo, na
ignorância em relação às coisas espirituais, uma ”ignorância religiosa (que) entre
ellos es excessiva” (grifo meu)
240
, indicando que seus comportamentos estavam longe
daqueles desejados pela Igreja, por serem “inclinados a toda classe de vicios, a
robos, perjurios, deshonestidades, adultérios, al juego y a la holgazanería. (grifo
meu)
241
Considerando que o excesso e o descontrole são características fundamentais
da paixão, é possível, afirmar que a sensibilidade bárbara, predominante no campo, é
uma sensibilidade em que a paixão é a protagonista.
Para os missionários jesuítas se tornou imperativo compreender as razões que
levavam as populações campesinas da região platina a viverem “como infieles, y peor
aún
242
e “no tienen cristianos si no el nombre”(grifo meu)
243
. Diante desta
constatação e, considerando que os jesuítas possuíam forte visão estratégica para o
238
Na América portuguesa o termo sertão foi cunhado a partir do antagonismo em relação ao litoral, que
era a zona mais povoada e onde se encontravam as maiores povoações.
239
ANASTASIA, Carla Maria Junho. A geografia do crime: Violência nas Minas Setecentistas. Belo.
Horizonte: Editora UFMG. 2005, p.53.
240
C.A. 1750-1756, p.7.
241
Cartas Anuas de la Provincia del Paraguay (C.A). Anõs 1756-1762. Tradución de Carlos
Leonhardt, S.J. Buenos Aires, 1928. Tradução Digitada, São Leopoldo, Instituto Anchietano de
Pesquisas/UNISINOS, 1994. p.95. Cabe lembrar, que no chamado “processo civilizador”, característico
do período moderno, os “excessos de violência, tanto com homens como com animais, abusos de
licenciosidade sexual, posturas muito familiares com o sagrado e uma gama de outros hábitos
considerados inadequados passaram a ser desvalorizados e compreendidos como parte do universo da
“barbárie”.( SILVEIRA, Marco Antonio. O Universo do Indistinto. Estado e Sociedade nas Minas
Setecentistas (1735 1808). São Paulo: HUCITEC, 1997, p 37.
242
C.A. 1756-1762, p. 95.
243
C.A. 1750-1756, p.7.
81
cumprimento de sua missão, acabaram por estudiar este asunto a fondo” (grifo
meu)
244
, de modo a modificar a situação.
Em suas descrições deste modo de vida “bárbaro” dos campesinos platinos
regido, sobretudo, pela paixão os missionários se valem de uma qualificação usual, a
de que eram “brutos”
245
. É interessante notar que o adjetivo pode significar algo rude,
de comportamento impróprio, o que certamente caracterizava os comportamentos
excessivos daquelas populações. Entretanto, “bruto” também pode ser tomado como
algo não lapidado, que se mantém em seu estado original.
A idéia, que fica, é que estas populações estariam em um estado de “barbárie”,
de selvageria, já que “se retiran ellos a lugares apartados y a la espesa selva, como
si fuesen fieras” (grifo meu)
246
. Interessante notar que um padre chega a nos informar
que devido à chegada da missão nas regiões rurais da Província Jesuítica do Paraguai,
os campesinos saíam dos seus “encondrijos”(grifo meu)
247
, termo muito usado para
caracterizar não só os lugares onde animais se escondem, mas também onde se
refugiam indivíduos que vivem fora do controle do Estado.
Acredito, portanto, que se pode inferir aqui a presença do conceito de paixão
como algo constitutivo do ser , como pensado por Aristóteles e Tomás de Aquino.
Concepções em que a paixão se relaciona diretamente com o que há de mais primitivo
no ser humano. Um comportamento “bruto”, “bárbaro”, que de alguma forma os
aproximava dos animais, um estado de primitivismo próprio daqueles que ainda não
havia sido lapidado pelo cristianismo ou pela reforma dos costumes. Outra avaliação
recorrente na documentação é a de que estas populações eram infiéis, o que de
alguma forma os isentava de culpa já que “los más de ellos son malos más bien por
ignorância que por malicia” (grifo meu)
248
.
A idéia presente nesta descrição pressupõe uma identificação entre as
populações campesinas e os infiéis, nesse caso, especificamente os indígenas que não
aceitavam ser reduzidos pelas missões jesuítas, e, que vivendo a seu modo, não raras
vezes atacavam as populações nas cidades, pueblos e fazendas com grande
244
C.A. 1750-1756, p. 7.
245
Idem, ibidem.
246
Idem, p.8.
247
Idem, p.7.
248
Idem, ibidem.
82
ferocidade. Essa aproximação, portanto, brutaliza os campensinos, os torna selvagens,
e, por conseqüência, reféns de seus instintos mais primitivos, suas pulsões ou suas
paixões.
A razão para o estado de “barbárie” em que se encontravam estas populações,
segundo a Carta Ânua de 1750-1756, é que “si descubre qui (...) los seglares que los
debían bautizar (obligando a eso la necessidad, por estar lejos los párocos), no se
han servidos de la debida fórmula” (grifo meu)
249
. Além disso, o clero secular não
estava cumprindo seu papel, já que “por su péssima vida eran antes el escándalo de
toda la comarca” (grifo meu)
250
.
Além do mau exemplo do clero secular, que, ao que parece, acaba por se
“barbarizar” dando vazão as suas paixões, outro fator que contribuía para tais condutas
era o isolamento em que viviam estas populações. Por se encontrarem espalhados pela
extensa zona rural platina era “indescriptible la necesidad espiritual de aquellos
campesinos, diseminados por alli, viviendo ellos muy distantes los unos de los
otros.” (grifo meu)
251
Em razão disso, “raras veces vienen ellos a misa, y más raras
veces reciben ellos los sacramentos. Los más de ellos no conocen a su cura-
pároco nisiquiera de vista” (grifo meu)
252
. O isolamento e a falta de assistência
espiritual os levavam, na percepção dos religiosos da Companhia de Jesus, a viverem o
más bien, como brutos” (grifo meu)
253
.
A opinião de que o ambiente rural, marcado pelo isolamento e pelo afastamento
da comunidade cristã, acabava por brutalizar e “barbarizar” as populações campesinas
não era expressa apenas pelos padres jesuítas. Em 1785, o governador de Córdoba
escreve ao Vice-Rei exprimindo opinião muito semelhante:
En la jurisdicción de esta se hallan más que en otra, dispersas varias familias de
mestizos e indios por aquellas dilatadas llanuras y quebradas, que de tiempo
inmemorial viven de ésta forma, sin que los jueces sean bastantes a vigilar sus
operaciones, ni pueda alcanzarle el pasto espiritual y es de presumir que al
quererlos sacar de éste genero de vida para reducirlos a población, se profugen
lo más porque aborrecen la sociedad.
254
249
C.A. 1750-1756, p.7.
250
C.A. 1730-1735, p.107.
251
C.A. 1756-1762, p.95.
252
C.A. 1750-1756, p.7.
253
C.A.1756-1762, p. 95.
254
TORRE apud MANCILLA, 2005, p.109.
83
Alguns anos antes, quando a região de San Juan de la Frontera estava ainda
submetida à “la Real Audiência de Chile”, uma outra reclamação dava conta de que o
“bajo pueblo...sólo viven ociosa e inútilmente en sus ranchos infelises, robando ganado
de las estancias inmediatas...”
255
.
Ao que parece, a visão que tinham as pessoas que moravam nas cidades, ou
mesmo nas estâncias “urbanizadas”, nas quais as instituições como a Igreja e o Estado
possuíam suas sedes, era de que o campo era o espaço da violência, da sexualidade
desenfreada, do ócio, do jogo, enfim, do espaço da barbárie e, porque não dizer, da
paixão. A questão proposta por Silveira ao estudar as Minas dos setecentos, e que nos
serve em termos de aproximação, é que “a manutenção de hábitos considerados
bruscos e violentos e da excessiva licenciosidade de outrora” fazia com que as
pessoas “que permaneciam ligados a essas posturas antigas tendiam a ser associados
ao oposto dessa regrada ‘civilização’, isto é, à ‘barbárie’.”
256
Ainda que no campo, as pessoas tenham tido algumas vivências bastante
específicas em função do ambiente em que moravam , como veremos mais adiante,
não creio que, no geral, elas tenham sido tão diferentes daquelas vividas pelos
moradores das cidades. No primeiro capítulo, enfocamos comportamentos citadinos
que incluíam a luxúria, a violência, a mentira, a dissimulação e outros tantos
comportamentos não cristãos.
Se aceitarmos a argumentação de que o ambiente rural permite uma forma de
vida sem tantos limitadores como os encontrados na cidade em que o aparato estatal
e clerical está presente e vigilante , teremos de admitir que no campo, o ambiente rural
permite uma vida de maiores excessos, uma vida em que muitas das paixões vividas
pelos citadinos se exacerbam e outras, específicas, têm lugar.
Este argumento pode, portanto, partir da premissa conceitual de que o espaço
natural é “(...) uma área indeterminada que existe previamente na materialidade
física”
257
, que ao ser trabalhado pela ação humana se transformaria em espaço
produzido:
255
TORRE apud MANCILLA, 2005, p. 110.
256
SILVEIRA, 1997, p 35.
257
BARROS, José D’Assunção. Espaço e Tempo Territórios do historiador. In: DOS SANTOS, Cláudia
Andrade(ORG) {et al.}. Espacialidades: espaço e cultura na História. Vassouras/MG: Laboratório de
84
É um resultado da ação humana sobre a superfície terrestre que expressa, a
cada momento, as relações sociais que deram origem. Nesse sentido, a
paisagem manifesta a historicidade do desenvolvimento humano, associando
objetos fixados ao solo e geneticamente datados. Tais objetos exprimem a
espacialidade de organizações sócio-políticas específicas e se articulam sempre
numa funcionalidade do presente.
258
O ambiente rural se encontraria, nesta perspectiva, em um estágio intermediário
entre o espaço natural e o espaço produzido. A historiografia tem destacado que as
autoridades espanholas, desde o aumento das tensões no campo ocorrido em
princípios do século XVIII, tentaram através de uma “política de fundación de pueblos y
villas (...) intervenir el espacio, racionalizarlo y controlar a sus ocupantes”
259
, o que
acabou, contudo, não dando resultado
260
.
A Companhia de Jesus, apesar de reconhecer as dificuldades que o ambiente
rural apresentava, não se furtou de cumprir aquilo que acreditava ser seu papel. Se os
cura-párocos locais tinham falhado porque “no se han servidos de la debida fórmula”
(grifo meu)
261
, os jesuítas haviam, desde o início do século XVII, chamado para si a
responsabilidade de evangelizar e civilizar estas populações campesinas
262
.
Em 1609, o Padre Provincial Diego de Torres havia recebido a incumbência do
Padre Geral Cláudio Acquaviva, de que os jesuítas deveriam sair, sempre que possível,
a pregarem missões.
263
Logo depois, em 1627, o Prepósito Geral da Companhia de
Jesus reafirmava a ordem de que fossem realizadas missões “por los pueblos de los
Estudos sobre Sociedades e Culturas, 2004, p.15.
258
MORAES apud ARRUDA, Gilmar. Cidades e Sertões. Bauru/SP: EDUSC, 2000, p.26
259
MANCILLA, 2005, p.110.
260
Idem, p.110.
261
C.A. 1750-1756, p.7.
262
Segundo Elias, a respeito do “embate” entre os grupos superiores que pretendiam civilizar, e os
grupos “civilizáveis”, há que se considerar que o “controle de paixões, sua conduta obedecem às regras
dos grupos superiores. Parcialmente, identificam-se com eles e mesmo que a identificação possa revelar
fortes ambivalências, ainda assim sua própria consciência, a instância do superego, segue mais ou
menos o modelo dos grupos superiores. Pessoas nessa situação tentam reconciliar e fundir esse padrão,
o padrão das sociedades civilizadas do Ocidente, com os hábitos e tradições de sua própria sociedade,
com maior ou menor grau de sucesso.” (ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1990, p. 259)
263
Conforme ZEN, 1955, p.55. Ainda segundo ele, as missões populares “como estratégia de
evangelização (...) passaram a constituir-se num trabalho apostólico típico dos jesuítas” e como também
“são feitas nos campos também são chamadas de Missões de Partido (distrito) (...) Poderíamos afirmar
que elas eram Exercícios Espirituais abertos.” (ZEN,1995, p. 53,54). Ou seja, as missões populares,
rurais ou urbanas, eram grandes arrastões espirituais que tinham por objetivo reformar os costumes,
converter aqueles que vivessem em pecado ou ainda oficiar os sacramentos.
85
indios, y por las estancias de los espanholes, adonde, según me informan, hay gente
muy necessitada.”
264
As missões realizadas pelos jesuítas consistiram numa variação das missões
populares surgidas na Europa, ainda no século XVI, e que na América receberam a
denominação de missões campestres. As condições adversas impostas pelo relevo e
pelo clima, as ameaças de indígenas “infiéis”, e mesmo a falta de missionários, são
bastante enfatizadas pelos missionários empenhados na realização dessas missões:
Impulsados sólo por tales sentimientos, salen nuestros Padres cada año dos o
tres veces de sus respectivos colegios, a estos las más de las veces muy difíciles
por tupidas selvas, empinadas montarías, escarpas rocas sirviéndose ahora de
una carreta agreste, o de un jumento, o andando a pie, cada vez por unas 200
leguas... Dura dos o tres meses cada una de estas misiones rurales... Hay que
añadir a todo esto inminente asalto de los indios infieles, los cuales infestan hoy
día con sus invasiones, toda la Provincia del Tucumán
265
Se, como dito no primeiro capítulo, a cidade platina pode ser pensada como um
tabuleiro, ainda que não se acredite na possibilidade de controle absoluto do espaço
por aquele que traça a estratégia, a Companhia de Jesus, é preciso admitir, tinha um
amplo conhecimento em relação a mecanismos bem sucedidos de controle no espaço
citadino.
Por outro lado, cabe lembrar que as estratégias se valem de cálculos
objetivos” e de “sua relação com o poder que os sustenta, guardado pelo lugar
próprio ou pela instituição. (grifo meu)
266
Ou seja, sua eficácia se dava a partir de
ações estruturadas racionalmente e que partiam do pressuposto do domínio exercido
sobre os mecanismos de controle e do conhecimento sobre o espaço.
Se considerarmos as descrições do campo que apresentamos no início deste
capítulo tais como a de um espaço de difícil controle, no qual as populações viviam de
forma “bárbara” e “selvagem” , acredito que se deva relativizar a eficiência das
estratégias jesuíticas.
Prova disso é que, ao contrário de todo aparato de que dispunha a Companhia
de Jesus nas cidades como as residências, as confrarias, os colégios ou
264
Archivum Romanum Societatis Jesu,Paraq.2, Epist.Gen.1622 1639, f45 v. Apud ZEN,1995, p. 55,56.
265
C.A. 1730-1735, p. 4.
266
CERTEAU, 2004, p. 47.
86
universidades, além das igrejas e da própria presença física dos membros da
Companhia , no campo, a situação que encontramos é bastante diversa.
Do ponto de vista de estrutura física, propriamente dita, nas regiões do campo
mais distantes não havia mais que “las capillas, levantadas a grandes intervalos”
267
.
Quando os padres chegavam para fazer a missão, a população que normalmente era
avisada com antecedência, “no se juntan en una aldeia determinada, si no distan
sus casas tres cuartos y mas leguas una de la otra” (grifo meu)
268
, se reunindo em
torno de uma povoação, que normalmente comportava a capela e ali assistia a
pregação da missão.
Segundo a documentação, a audiência era muito boa, já que na zona rural de
Tarija em uma única missão se “confessaron a muchíssima gente: en una sola de
estas missiones más de 4.000”
269
. Entre estes, inclusive los eclesiásticos los
quales por su péssima vida eran antes el escándalo de toda la comarca” (grifo
meu)
270
. Isto reforça o que foi dito anteriormente, de que não era somente o ambiente
inóspito e a falta de padres que motivava a vida desregrada dos campesinos. O fator
mais prejudicial era, sem dúvida, o trabalho relapso e a vida “pecaminosa” levada pelos
poucos cura-párocos que vivam nas áreas rurais.
Apesar dos poucos recursos e da falta de estrutura, os padres que pregavam nas
missões campestres procuravam manter o mesmo modus operandi das missões
populares urbanas. Ainda que muitas das vilas e povoados que recebiam a missão não
possuíssem largas e bem traçadas ruas, nem praças espaçosas em frente às igrejas,
acredito que, de algum modo, a Companhia de Jesus manteve sua estratégia de
conversão
271
.
Entretanto, ao contrário das metáforas explicativas da cidade-tabuleiro e da
cidade-palco que propus no capítulo I, como recurso para compreender as estratégias
de ação empregadas pelos jesuítas, no caso do ambiente rural e das missões
267
C.A. 1750-1756, p.7.
268
Idem, ibidem.
269
C.A. 1730-1735, p107.
270
Idem, ibidem.
271
Ainda que as Cartas Ânuas não nos ofereçam muitos dados estatísticos e a descrição do tamanho e
forma das cidades ou pueblos em que a missão era realizada, não fazendo a distinção entre as missões
campestres e populares, nos trazem valiosas descrições sobre como se dava a entrada do missionário
nas cidades.
87
campestres, não creio que sejam adequadas e possam ser aplicadas. Se as peças
mais importantes do tabuleiro e que se encontram a serviço da Companhia de Jesus
, sua Universidade/rainha, seus colégios/torres/bispos e suas residências/ cavalos
estão a léguas de distância, o que percebo é que seus missionários/peões
empenhados nas missões campestres precisam priorizar sua função como atores do
teatro da fé. Se, por um lado, não é possível pensar numa “cidade teatro”, dada a
ausência concreta da cidade, por outro, creio que seja possível pensar em um grande
espetáculo teatral
272
a céu aberto.
A chegada do padre que realizaria a missão era normalmente preparada por
algum clérigo secular ou liderança do lugarejo. Dependendo da distância, seu
deslocamento se dava a cavalo ou de barco. Recebido fora do vilarejo, o padre se
paramentava e, seguido por um bom grupo de fiéis, liderava uma procissão, adentrando
o vilarejo e percorrendo as poucas ruas e espaços que as condições do lugar
permitissem.
Creio ser oportuna a reflexão sobre o que representava a chegada desses
missionários jesuítas em termos de acontecimento mesmo. A documentação informa
que a maioria das pessoas que se reunia nos vilarejos para assistir a pregação da
missão vinha de muito longe, de lugares bastante isolados. As opções de lazer dessas
pessoas, como veremos mais adiante, eram essencialmente dirigidas aos homens e
tinham como lugar os ranchos onde havia bebidas alcoólicas, jogos, músicas e
mulheres. As pessoas desses vilarejos “muy raras veces vienen a misa, ni en las fiestas
mayores”
273
, logo, a simples chegada do padre missionário, com todo seu aparato
litúrgico e sua entrada triunfal e teatral na cidade, seguida da movimentação de
contingentes consideráveis de população, era um importante acontecimento.
Para um grande espetáculo, espera-se uma grande platéia. Os missionários da
Companhia, no geral, a tiveram. Em função do número, por vezes elevado, de pessoas
que vinha de longe para assistir a pregação da missão, muitos povoados, desprovidos
de estrutura, não conseguiam acomodar todas essas pessoas.
272
No capítulo anterior, desenvolvi o tema da teatralidade que envolve as práticas ritualísticas da fé.
Creio, entretanto, que seja importante reafirmar que ao utilizar a expressão “teatro da fé”, de nenhum
modo, estou pensando-a fora do contexto religioso em que se insere, não possuindo, portanto, mais
verdade ou falsidade que qualquer outra expressão de fé.
273
C.A. 1756-1762, p.95.
88
A solução encontrada por muitos era a de permanecerem “morando (durante a
missão) em suas carretas ou levantavam tendas e barracas com galhos de
árvores (grifo meu)
274
. Desta forma, a própria platéia dava brilho e interagia com o
espetáculo, pois “o lugarejo, antes quase solitário, aparecia, então, como por
encanto e, por poucos dias, uma povoação bastante numerosa(grifo meu)
275
Se, já havia uma platéia que, por vezes, se tornava elenco quando fazia sua
parte das procissões e dos demais ritos litúrgicos e o palco era a céu aberto, na praça
ou nas poucas ruas dos vilarejos, é certo que os atores principais eram os missionários.
O roteiro desse teatro da fé rural era muito semelhante ao seu correlato citadino.
Cada ato da peça deveria ser aproveitado da melhor forma possível. O tempo destinado
para a missão era curto, no geral uma semana, e, além disso, o padre nem sempre
sabia quando retornaria ao vilarejo. A dimensão do trabalho a ser feito fica evidenciada
na informação de que em “sus almas en otros tiempos por los padres, a la par que
crece y medra la mala yerba de tal modo, que casi siempre tienen los Padres que
comenzar de nuevo con trabajosa roza de la cizaña y con la siembra de la
sementera. (grifo meu)
276
As missas e as confissões diárias se mantinham tal qual nas missões urbanas,
sendo que as últimas ganhavam enorme importância, na medida em que o padre ao
“perguntarlos cuanto tiempo hace que ya no se han confessado”, obtinha a
resposta de que “desde que han pasado por aquí los santos Padres. Por lo tanto,
sucede que esta pobre gente queda tres o cuatro años sin confesarse.” (grifo
meu)
277
As confissões e as conseqüentes absolvições eram fundamentais para a
missão, pois reinseriam os campesinos numa vida cristã piedosa. Segundo Zen, as
confissões eram, no entanto, tarefa “dificultosa e desgastante para os missionários.
Isso porque os penitentes, talvez em sua maioria, até desconheciam os primeiros
274
ZEN, 1995, p.73.
275
Idem, ibidem.
276
C.A.1730-1735, p. 5.
277
C.A. 1750-1756, p. 9.
89
elementos da doutrina cristã ou pelo menos não sabiam como confessar-se” (grifo
meu)
278
Se por um lado, a missão campestre proporcionava aos campesinos a confissão
de seus pecados, por outro, oportunizava a recepção de sacramentos como o
batismo e a regularização das uniões através dos casamentos. Estes momentos
serviam, sobretudo, para alcançar os rebanhos desgarrados de cristãos apenas
nominais. Além de serem momentos festivos desfrutados entre familiares e amigos
como o do batismo ou do casamento eram, também, momentos ritualizados que
acabavam por ser uma “encenação” muito proveitosa ao reunirem uma platéia que
talvez de outro modo não estivesse ali.
Os batismos eram importantes momentos da missão campestre, na medida em
que através desse sacramento, as crianças eram não só inseridas na comunidade
cristã, como também afastadas do limbo, em caso de morte. A importância aumentava
em decorrência do precário atendimento espiritual ou sua inexistência nas áreas rurais,
o que levava os padres jesuítas a batizarem muitas crianças. A documentação informa
que, após a missa, o missionário “bautiza el primeo todos los ninõs nascidos
durante el ano pasado. (grifo meu) Além das crianças, não era raro o batismo de
adultos que nunca haviam recebido o sacramento.
A realização de matrimônios era outra tarefa fundamental dos missionários
durante as missões campestres. Os casamentos como era de se esperar não se
limitavam aos solteiros. A situação de isolamento e carência de assistência espiritual
motivava muitos amancebamentos e mesmo separações que se buscava reverter
através das missões:
Un buen número de solteros se casó, y todavía se están casando, otros, para
vivir en gracia de Dios, después de haber vivido sin casarse, para vivir más
libremente de una manera disoluta. Una buena porción de matrimonios aparentes
hubo que revalidar. Otros matrimonios, deshechos por la discordia, se volvieran a
la paz y concordia.
279
278
ZEN, 1995, p.101.
279
C. A. 1735-1743, p. 159,160.
90
Práticas bastante peculiares das missões campestres eram as procissões, o
assalto espiritual ou rondas religiosas
280
, a procissão geral de penitência, o perdão dos
inimigos, as comunhões e o período de flagelações. Numa comparação com as práticas
adotadas nas missões populares urbanas, talvez a mais prejudicada nas missões
campestres tenha sido a dos Exercícios espirituais. Em geral, para que pudessem ser
feitos de forma mais eficiente nas cidades, eram realizados numa casa que pertencesse
à companhia ou cedida por algum cavaleiro. No caso dos vilarejos, muitas vezes não
havia casas à disposição ou que comportasse o grande número de fiéis dispostos a
fazê-los.
A alternativa encontrada foi empregar os ensinamentos de Santo Inácio como um
roteiro nas pregações públicas, especialmente, dos exercícios da “primeira semana”,
nos quais os exercitantes eram levados a meditar sobre o pecado e a buscar uma vida
nova. De acordo com Zen, “poderíamos afirmar que elas eram Exercícios Espirituais
abertos ( Negrito do autor), segundo o precioso livrinho dos Exercícios Espirituais de
Santo Inácio.”
281
Por outro, se faltavam condições mais adequadas como na cidade-tabuleiro
que descrevemos no capítulo 1 para a montagem das estratégias de conversão dos
campesinos “bárbaros” e reféns de suas paixões, por que não fazer uso daqueles
recursos empregados nas missões urbanas? Se havia excessos nos comportamentos,
por que não redirecioná-los para o “teatro da fé”?
Me parece que podemos aproximar esta sensibilidade carregada de excessos
e que caracterizava também as populações campesinas daquela de que nos fala
Barran, ao referir-se ao Uruguai do século XIX: “¿Qué sensibilidad era esta que hacía
derramar el llanto en público a las mujeres de la cazuela ante la representación de ‘La
Traviata’ (...) ?”
282
Uma sensibilidade marcada pelo excesso e porque não dizer,
apaixonada que será eficientemente direcionada para o comportamento adequado e
almejado, através dos recursos teatrais e retóricos empregados pelos jesuítas. O
emprego e o êxito dessa estratégia jesuítica foram registrados pelos missionários que
280
As rondas religiosas ou assaltos espirituais foram descritos nesse trabalho no capítulo I. Consistiam
em grupos, em alguns casos auxiliados por militares ou policiais, que saíam em busca daqueles que não
estivem nas missas e rituais da missão, obrigando-os a participarem.
281
ZEN,1995, p. 54
282
BARRAN, 1991, p.12.
91
nos informam que as populações campesinas ficavam dias “no haciendo caso ya de
sus casas y habitaciones (...) Y no se pierde ninguna palabra de los padres, se
arrepienten con grandes señales de dolor, y vuelven a juicio”. (grifo meu)
283
Isso
ocorria, segundo o jesuíta, de forma constante e generalizada, nos muitos pueblos que
serviam de base para a realização das missões campestres. Ou seja, talvez se possa
dizer, que a mesma sensibilidade apaixonada que caracterizou os espetáculos
profanos de Montevidéo esteve presente nas missões campestres da região platina.
Os missionários jesuítas logo compreenderam que todo este excesso esta
paixão à flor da pele poderia ser reorientado, operando-se a transição do profano para
o sagrado. A mesma pulsão, a mesma força motora que havia servido ao pecado,
poderia estar a serviço da virtude, pois “habíendo aprendido ellas despreciar al
cuerpo tanto más implacavelente, cuanto más indebidamente ántes le habían
regalado”(grifo meu).
284
O caso descrito pelo jesuíta, refere-se a um grupo de
mulheres de Buenos Aires, que, fazendo o uso de seus direitos, pleitearam que lhes
fosse facultada a prática dos Exercícios Espirituais. Após terem conseguido a
aprovação, como já tratado ainda no primeiro capítulo, estas mulheres teriam chegado
a extremos excessos durante a auto-flagelação
285
. Esses excessos, conforme a
documentação, eram resultado de uma relação direta de inversão. Aquelas que mais
pecavam antes dos Exercícios e da conversão, eram as que mais se martirizavam.
283
C.A. 1750-1756, p.7.
284
C.A. 1730-1735, p.62.
285
Sobre os procedimentos intensivos de auto-flagelação que eram bastante freqüentes durante as
missões populares, vale lembrar que “(…) para a Igreja, o sofrimento e a aniquilação (provisória) do corpo
são menos temíveis doque o pecado e o inferno. O homem nada pode contra a morte, mas com a
ajuda de Deus lhe é possível evitar aspenas eternas.” (DELUMEAU, Jean. História do medo no
Ocidente: 13001800. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 37). Por outro lado, deve-se referir
que a auto-flagelação era parte integrante do processo empregado para alcançar o perdão divino e evitar
a condenação ao inferno, pois só “havia uma única possibilidade de escapar desse destino terrível: a
Penitência, pela qual são perdoadas ao pecador a culpa perante Deus e a pena eterna no inferno. A
Penitência é um dos sete sacramentos da Igreja (…) é administrada, concretamente, pelos sacerdotes.
Consiste em três partes: a contrição ou arrependimento do coração pelo pecado cometido, a confissão
oral dos pecados perante o sacerdote e a satisfação, que são obras que, segundo essa concepção,
compensam os danos e prejuízos temporais causados pelo pecado. (…) Sobretudo na Idade Média a
Penitência garantiu à Igreja uma enorme influência sobre os fiéis, dos governantes mais poderosos até
aos camponeses mais simples e humildes. O cristão dependia totalmente da Igreja no que diz respeito à
sua salvação. Dessa maneira, a Penitência tornou-se o sacramento mais importante e mais procurado no
dia-a-dia das pessoas.” (FISCHER, Joaquim. In DREHER, Martin et al. Reflexões em torno de Lutero.
v. III. São Leopoldo: Sinodal, 1988, p. 32 33)
92
Nessa mesma linha de raciocínio, Barran sustenta que “lo que sucedió fue que
esta cultura no diferencio claramente el trabajo del juego, lo ‘sagrado’ de lo ‘profano’ (...)
En el sentir de la sensibilidad “barbara”
286
. Para Barran, portanto, diferentemente do
que pensava Durkheim
287
, há na sensibilidade “bárbara” uma outra lógica que não
aquela baseada em uma divisão estanque entre as esferas religiosa e não-religiosa.
Ainda que haja claros indícios dessa lógica empregada por Barran nas extensas e
intensas práticas de auto-flagelação, esta discussão não será alvo de maior atenção
neste trabalho, apesar das inúmeras referências na documentação. Acredito, no
entanto, que havia muitos mais do que fervor religioso nos excessos cometidos durante
os períodos de penitência.
Apesar de todo o esforço estratégico da Companhia de Jesus, ao que parece, o
campo continuou sendo o espaço privilegiado da paixão. Um dos padres envolvido
nas missóes campestres reconhece que os vícios e as ocasiões para pecar eram
tantas, que isto acabava por sufocar a boa sementeesparcida en sus almas en
otros tiempos por los padres, a la par que crece y medra la mala yerba de tal
modo, que casi siempre tienen los Padres que comenzar de nuevo con trabajosa
roza de la cizaña y con la siembra de la sementera”. (grifo meu)
288
Este registro nos revela, ainda, que apesar das missões anuais realizadas nas
áreas rurais e das realizadas nas áreas urbanas, as populações agiam como se antes
não tivesse havido qualquer trabalho de evangelização
289
.
No caso das missões campestres, a descrição das dificuldades encontradas dá
fortes evidências de que os resultados, não poucas vezes, haviam sido intensos e
286
BARRAN ,1991, p.99.
287
Essa indistinção proposta por Barran não encontra respaldo nas reflexões de Durkheim, para quem as
sociedades ocidentais e cristãs praticam uma divisão do “tempo em duas partes estanques, alternando
uma com a outra, conforme uma lei variável de acordo com os povos e as civilizações (…)”, no entanto
admite que “é inevitável que haja algum vazamento. Há sempre coisas sagradas fora dos santuários.”
(DURKHEIM, Emile. As Formas Elementares da Vida Religiosa . São Paulo: Ed. Paulinas, 1989, p.373).
288
C.A. 1730-1735, p.5.
289
As referências a lugares exatos são raras nas Cartas Ânuas, com exceção das grandes cidades ou
regiões, como o Vale de Tarija, por exemplo. No entanto, Zen mapeou boa parte das referências
encontradas em relação às missões campestres. Nesse mapeamento se pode encontrar missões na
Região de Santiago del Estero desde o ano de 1609 até 1740, com várias referências. Ainda que não se
possa assegurar o mesmo de outras regiões, é pouco provável que os jesuítas tratassem as regiões de
forma diferente. (ZEN, 1995, p. 93-96)
93
excessivos, mas fugazes como a paixão. Muitas vezes, talvez em sua maioria, os
campesinos terminada a missão voltavam ao seu dia a dia e o sermão emocionado
e persuasivo ficava na lembrança. A paixão, sem o direcionamento para o sagrado,
acabava sendo canalizada novamente para o profano.
As paixões a que se entregava a “chusma mal entretenida”
290
designação
recorrente na documentação judicial ao se referir à população rural de San Juan de la
Frontera tais como “el ocio, el vagabundaje, el alcoholismo, la violencia, el robo, el
amancebamiento”
291
, em parte se assemelhavam às paixões vividas pelos platinos
urbanos, apesar de apresentarem suas especificidades. Neste espaço marcado pela
solidão rural, pela distância do controle da igreja e das pressões da civilização essas
paixões ganhavam matizes muito próprias.
As expressões da paixão-luxúria que encontramos nas cidades platinas
estiveram também muito presentes no campo, Nele, entretanto, essa paixão foi
potencializada devido a uma série de fatores.
Para Carlos A. Mayo, umas principais razões para uma vivência intensa da
paixão da luxúria era a existência de “un mercado de mujeres matrimoniables como
áquel, estrecho y oligopólico”, fazendo com que “ la vida sexual y amorosa de la plebe
rural (...) estaba signada por la ilegitimidad, las uniones informales y la precariedad.”
292
A situação, segundo Mayo, se tornava ainda mais complicada, porque os setores
altos e médios “de la sociedad rural ejercian un virtual monopolio del mercado femenino
(...) Hacia 1815 el 84 % de los hacendados y el 80% de los agricultores eran casados
mientras casi el 94% de los trabajadores asalariados carecian de esposa.”
293
Aqui cabe
ressaltar que muitos estancieiros preferiam peões solteiros, o que de alguma forma
parece ter contribuído para que “el amancebamiento (...) haber estado bastante
extendido.”
294
290
MANCILLA, 2005, p.110.
291
Idem, ibidem.
292
MAYO, Carlos (org). Pulperos y pulperías de Buenos Aires: 1740-1830. Mar Del Plata: Universidad
Nacional de Mar del Plata, 1996. p.139.p.182. Mayo considera os seguintes dados: em 1815, em San
Vicent, entre as idades de 15 e 44 anos, a predominância masculina variava de 134,63 % até 199,25%
(Idem, p.180).
293
Idem, ibidem.
294
Idem, p.182.
94
Por outro lado, como já demonstramos, uma das principais atividades da missão
campestre era a de regularizar casamentos, ou mesmo de batizar filhos de uniões nem
sempre legítimas ou legitimáveis, pois “os missionários também necessitavam evitar
certas artes enganosas dos que se apresentavam, pedindo casamento religioso (...)
Para conseguirem seu intento matrimonial, muitos não vacilavam em ocultar qualquer
impedimento.”
295
Aqui, ao que parece encontra-se uma sofisticada tática de preservação de
determinadas paixões, que nos sugere que o grande teatro da fé, armado no pequeno
pueblo, era vivido por atores que não se contentavam em desempenhar seus papéis de
acordo com o roteiro, antes, utilizavam-se de “artes enganosas” ou artifícios para darem
a elas um outro sentido. A interpretação dos atores, em razão disso, extrapolava aquilo
que os mentores do espetáculo haviam proposto, já que através dela pretendiam
legitimar um comportamento distinto daquele previsto no enredo original.
Além disso, as poucas mulheres solteiras, costumeiramente não estabeleciam
relações formais ou informais duradouras “con peones y “malentretenidos”, sendo que
“Las ‘amistades ilícitas’, como se calificaba a las uniones de ese tipo, eran
frecuentes.”.
296
A documentação que consultamos apresenta um caso bastante
ilustrativo desta situação, ao referir ”una mujer escandalosa (que) hacía un año, se
había escapado de su pueblo, para vivir esconjida en unas cuevas de la selva, para
encontrarse allí mas facilmente con los individuos con los cuales vivía mal.” (grifo
meu)
297
Interessante notar que a decisão de manter uma má vida, passou por um
abandono do pouco de civilidade que lhe restava ao viver no pueblo mediante a
fuga para a selva. Esta, ao que parece, não era tida somente um lugar afastado dos
olhares acusadores dos vizinhos, mas, também, como o mais adequado para o tipo de
vida que ela havia escolhido, uma vida pautada pelos desejos da carne.
A selva o espaço por excelência da barbárie torna-se, assim, o lugar onde a
estratégia jesuítica de combate e supressão das paixões não consegue se impor. O
lugar onde não é necessário dissimular, onde não é necessário interpretar ou
295
ZEN, 1995, p. 107.
296
MAYO, 1996, p. 182.
297
C.A. 1735-1743, p. 254.
95
reinterpretar as pautas comportamentais traçadas pela Companhia de Jesus ou pelas
autoridades civis.
Em sua obra, Barran faz referência a uma Carta enviada ao Conselho de Índias,
em 1794, na qual o emissário manifesta seu desejo de dar “noticia sobre el estado de
los campos de la Banda Oriental”. “Ao fazê-lo, acaba por levantar horrorizado um
questionamento em relação ao comportamento dos campesinos: “?Qué escessos (...)
no cometerían en el uso de la Venus, unos hombres que en nada lo parecen sino en la
figura?Unos hombres que no están ligados a sus semejantes por religión (...)? Qué
pecado habrá que les perezca enorme, si lo piede la sensualidad?”
298
Aqui, novamente,
a documentação nesse caso, referindo-se ao Uruguai rural do final do século XVIII
desumaniza os homens em função de sua entrega as paixões, nesse caso da Vênus,
da luxúria. Interessante notar a relação entre o “uso de la Venus” e a perda da
humanidade, pois a vivência das paixões da carne sem limites faz do homem um
selvagem, mesmo fora da selva.
Casos de adultérios na zona campesina são fartos na documentação jesuítica,
como o de certa mulher que após ter “passado muitíssimos años en los vícios”, em
função da missão, “se le ocurrió arregelar su conciência”. A confissão e o
arrependimento da mulher adúltera, entretanto, não suportaram a uma nova investida;
pois ao ser “provocada otra vez por una mala amistad con un individuo perverso, fue
vencida por la tentacioñ, y volvió a lo que había lançado de sí.”
299
Como vimos
anteriormente, os arrependimentos não duradouros, ao que parece, também foram uma
constante na zona campesina platina, assim como nas cidades da região. Difícil não
pensar que esta tenha sido a uma forma de manter ao mesmo tempo um modo de
vida pautado pela paixão, e outro, aceitável, nas escassas ocasiões em que se
esperava destes campesinos um comportamento cristão.
Retomando a análise que fizemos sobre a constatação feita por um padre
jesuíta, de que a erva daninha acabava por sufocar o bom trabalho de semeadura da
298
STÍFANO apud Barran, 1991, p.146.
299
C.A. 1730-1735, p.71.
96
companhia
300
, acredito que muitas dessas “ações pecaminosas” devam ser
consideradas como formas de resistência, sejam elas conscientes ou inconscientes.
Duas formas de satisfação da paixão da luxúria bastante específicas da zona
rural, e, segundo apurei na documentação, bastante presentes: o incesto e o chamado
bestialismo:
Los amancebamientos de 10,15,20 y 30 anõs de duración...los incestos
y ...el bestialismo sobre todo con yeguas, se alimentaban de ciertas
características de la vida rural, tales como el rancho de una solo
habitación, la gran distancia en que se encontraban los pobladores
de los escasos curas...sobre tudo, de la escasez de mujeres en una
campaña con índices de masculinidad elevadísimos(...) (grifo meu)
301
Apesar de considerar que a barbárie resulta de fatores sócio-histórico-
econômicos e de investir numa oposição campo/cidade, Barran reconhece que há
determinadas práticas que, senão exclusivas do campo, são por ele potencializadas.
Ainda que este não seja um assunto sobre o qual Mayo se demore ao enfocar a
vida das mulheres “de los sectores bajos”, o autor afirma que “es francamente
impactante” constatar que a documentação judicial “hace referencia al incesto en
presencia de los restantes miembros de la familia”
302
. A natureza da documentação por
ele utilizada bastante distinta da de caráter religioso permite que se tenha uma idéia
das práticas condenadas, tais como a persistencia de costumbres selvajes e
indecorosas como la de dormir padres e hijos en un mismo dormitorio”
303
. Mais uma
vez, o termo utilizado na documentação se reporta à idéia de um comportamento
selvagem. Ao viverem todos sob o mesmo teto, sem qualquer respeito à privacidade
tanto de parte dos pais, quanto dos filhos , mantendo a prática da satisfação imediata
dos desejos carnais sem quaisquer pudores, estas pessoas estavam adotando uma
300
Cabe ressaltar que a referência à semeadura e ao sufocamento da erva daninha remete ao texto de
MATEUS 13:1-23, que aborda parábola do semeador. Nele se lê: “O que foi semeado entre os espinhos
é o que houve a palavra, porém os cuidados do mundo e a fascinação das riquezas sufocam a palavra, e
fica infrutífera. ” (MATEUS 13:22).
301
BARRAN,1991, p.147.
302
MAYO,1996, p.171
303
S. MALLO apud MAYO, 1996, p.171.
97
conduta anti-humana, selvagem, fora dos roteiros possíveis do teatro da civilização
304
.
As Cartas Ânuas da Província Jesuítica do Paraguai, por sua vez, não se furtam
em trazer estes problemas à tona. Como exemplo, destacamos o “caso de cierto
matrimonio inválido, por un impedimento dirimente de ambos esposos supuestos, el
cual los hizo vivir incestuosamente, ya por cuarentas años continuos”.
305
Como era de
se esperar, um caso de tamanha gravidade
306
não seria considerado normal ou
relevado pela Companhia diante de razões próprias da sociedade rural. Por outro lado,
acreditamos, as populações campesinas do Prata tinham consciência de que sua
situação estava em desacordo com as normas da cristãs.
Ainda que em muitas regiões da Província Jesuítica do Paraguai não houvesse
missões campestres anuais, essas regiões não era totalmente desassistidas. Um caso
ocorrido na área rural de Corrientes, em 1739, ilustra bem isto: uma moça que havia se
entregue a suadesenfrenada lujuria, tanto que después de haber cometido ya
irnemerables pecados de toda clase, al fin comenzó a vivieren unión ilícita con su
propio Padre.”(grifo meu)
307
Interessante notar, que ainda que os estudos até aqui
feitos não registrem missão campestre específica na região de Corrientes, a
documentação indica que ela era assistida de alguma forma pelos padres regulares
308
,
que teriam, inclusive, alertado o padre missioneiro que nessa região as missões não
lograriam êxito.
A moça, segundo a documentação, arrependida dos pecados que a haviam
levado à cloaca de males (...) poco tiempo después se enfermó gravemente,
acabando sus días con el firme esperanza de alcanzar la eterna buena venturanza
304
Retomo aqui o conceito de teatro da fé formulado por Karnal e utilizado largamente nesse trabalho.
Creio que seja possível pensar, para além da existência de um teatro da fé, em um teatro ainda maior,
num espetáculo que inclui não só as atuações previstas no palco do teatro religioso que é pautado pelas
regras laicas de civilização.
305
C.A. 1735-1743, p.237.
306
Logo depois da fuga do povo judeu do Egito, ficou estabelecida no terceiro livro da Lei Judaica, a
proibição de casamentos consangüíneos até o parentesco entre tios e sobrinhos conforme LEVÍTICO
18:1 a 18.
307
C.A. 1735-1743, p.168.
308
Idem, p.154
98
del cielo.”(grifo meu)
309
Me parece que encontramos aqui o que denominamos de
“tática da boa morte” no primeiro capítulo. Ela é empregada pelo indivíduo que, depois
de anos em determinado pecado, após se conscientizar de seu estado de saúde, acaba
por arrepender-se, e, logo em seguida, vem a falecer. Desta forma, acabava por se
beneficiar do melhor dos dois mundos. No mundo terreno, a vivência de suas paixões, e
no outro, o celestial, já livre dos seus pecados, ter assegurada “su eterna salvación”
(grifo meu)
310
.
Ainda que a documentação da Companhia de Jesus, referente à região platina,
não reconheça as especificidades da zona rural como atenuantes das paixões
específicas ali vivenciadas, encontramos algo que parece apontar nesta direção num
relato sobre um caso acontecido na região de La Rioja em 1741. Neste registro
encontramos uma referência à prática do “pecar por bestialidade”: “Al viajar, montado
sobre una mula, por un lugar desierto, había consentido a una grave tentación del
demonio pecando con la misma bestia con la cual andaba.”(grifo meu)
311
Ainda que o padre aponte o demônio como o promotor do pecado, não deixa de
referir que o mesmo foi cometido em um lugar deserto, o que, além de favorecer a
prática face à ausência de prováveis testemunhas, teria levado pela solidão e pela
distância de tudo e de todos a uma situação de fragilidade diante da tentação.
Em um outro relato que informa sobre o ocorrido na zona rural de Assunción,
em 1738 , o jesuíta refere um homem que possuía o mau “costumbre de pecar por
bestialidade
312
, e que “muchas veces había hecho propósito de procurar la salud
de su alma”(grifo meu)
313
, mostrando ter consciência de seu pecado. Estas
demonstrações de arrependimento, no entanto, não o impediam de manter a prática
condenada pela Igreja, pois, mesmo fazendo confissões e propósitos de mudar seu
comportamento, sempre acabava por praticar “nuevos crimenes”. O relato informa
que, ao ser descoberto “no se atrevió a acercarse más al tribunal de la penitencia”
314
,
309
Idem, p.168.
310
Idem, ibidem.
311
C.A., 1735-1743, p.285.
312
O sexo com animais, desde as primeiras leis que regulavam o comportamento dos judeus era punido
coma morte, pois “quem tiver coito com animal será morto. “ (ÊXODO 22:19).
313
C.A., 1735-1743, p.242.
314
Idem, IBIDEM.
99
uma vez que sua “atuação dentro da atuação” do teatro da fé havia sido desmascarada
e não seria mais permitida.
Além dos pecados de ordem sexual a paixão da luxúria a documentação
consultada parece indicar que as paixões relacionadas ao jogo, aos excessos com a
bebida e à violência foram também potencializadas pelas características do espaço
rural.
Dentre os trabalhos desenvolvidos no campo, especialmente a pecuária
proporcionou uma fartura que, com certeza, possibilitou que o ócio se fizesse presente.
Este aspecto da cultura campestre foi destacado pelo viajante inglês James Weddel
que ao visitar o Uruguai no início do século XIX, ressaltou que a população não “se
distingue por su laboriosidad siendo bastante adicta a la holgazanería y a la embriaguez
(...) con tres días de trabajo por semana, dada la baratura de las provisiones, les basta
para mantener-se”
315
Além da bebida, também o jogo, segundo Barrán, tinha importância na vida dos
campesinos platinos, sendo o ”ocio, condición no necesaria pero sí ambientadora del
juego.”
316
O estudo de Mayo reforça as conclusões de Barran, pois ao analisar a
documentação judicial referente à população pampeana, pôde constatar que “el juego
era una de las actividades favoritas de los vagabundos. Sobre un total de 55
processados por vagabundaje, 27, prácticamente la mitad, fue acusada de jugar
asíduamente.”
317
Também nas Cartas Ânuas encontrei relatos que revelam que os padres tinham
consciência de que o ambiente rural favorecia o ócio especialmente para os que se
dedicavam à ganadería permitindo a vivência exacerbada de certas paixões que
encontravam terreno ainda mais fértil no campo. Nelas, os campesinos são descritos
como aqueles que ”tienen ocio de sobra” e as dificuldades enfrentadas são ressaltadas,
pois “hay una cosa que cuesta mucho remediar, y es quitar a esta gente el vicio del
juego.”
318
O jogo, ainda que muitas vezes tolerado especialmente pelos padres
315
BARRAN, 1991, p.33.
316
Idem, p.131.
317
MAYO,1996, p.160.
318
C.A., 1750-1756, p.8.
100
regulares , já que, segundo Barran se “vinculaba sobre todo a las fiestas religiosas”
319
, era motivo de grande preocupação para os padres da Companhia de Jesus.
Na Carta Ânua de 1735-1743 há uma referência explícita dos efeitos desastrosos
do vício, ao relatar o caso de certo homem que após ter “perdido en juego toda su
fortuna”, ficou transtornado e, tentando aplacar sua raiva, “traspaso con su puñal las
imagines del Santo Cristo crucificado, y de la virgen”.
320
A desgraça que recaiu sobre o
jogador abandonado pela sorte, levou-o a cometer o grave pecado da blasfêmia “tal
grado de insensatez” que, segundo o jesuíta, tivera como causa a “pasión del
juego.(grifo meu)
321
Como já abordado, tanto na introdução, quanto no primeiro capítulo, a paixão é
percebida de pelo menos duas formas distintas e complementares pelos jesuítas em
missão. A primeira, herdeira da tradição aristotélica e tomista, define a paixão como
pulsão, força motriz que reage em conseqüência de estímulos externos, e daí, a
esperança de conversão colocada nos sermões emocionados, tão característicos das
missões que buscavam redirecionar a força da paixão do pecado para a virtude.
A segunda, herdeira dos neo-platônicos, dos escritos neo-testamentários e de
Santo Agostinho, definem a paixão como essencialmente má e pecaminosa, além de
ser geradora de outros pecados, uma força intensa, excessiva e fugaz que só tem como
resultado o sofrimento, a desgraça e o distanciamento de Deus.
Ao definir o jogo como uma paixão, como um pecado a ser combatido como
sugere a passagem de que “estos jugadores persiguen los padres con gran energía”
(grifo meu)
322
, a documentação jesuítica dá respaldo para que se sustente a proposta
de que a paixão foi, em muitos casos, percebida e combatida como sinônimo de
pecado
323
.
Ao tomarmos a paixão como pecado e, também, como o que promove o pecado,
não podemos desconhecer a existência de outros pecados/paixões que normalmente
319
BARRAN, 1991, p.131.
320
C.A., 1735-1743, p.173.
321
Idem, ibidem.
322
C.A., 1750-1756, p. 8.
323
Penso ser oportuna a retomada do posicionamento que assumimos nesta dissertação: o de que os
jesuítas, no geral, consideraram, em muitos casos, a paixão como um sinônimo de pecado, o que se
distancia do proposto por Massimi (2001) que considera que o conceito de paixão entre os jesuítas
esteve calcado, exclusivamente, na proposição aristotélico/tomista que a priori considerava a paixão
como neutra.
101
acompanhavam o jogo: a luxúria, a “borrachera” e a violência física. Segundo Mancilla,
nas áreas rurais, os espaços onde essas paixões atuaram como atrizes principais
teriam sido
(...) las pulperías (que) se convertieron en un espacio de sociabilidad popular.
Ellas albergaron el ocio, el juego, la violencia, pero también los fandangos y
chinganas que eran animados por los infaltables vinos y aguardientes cuyanos.
Las pulperías fueron...ese pequeño almacén de menestras que expendían las
vitullas más indispensables para el consumo popular,pero donde también, al
abrigo del mostrador o en la trastienda del regente, se desarrolló una tertulia
popular, germen de una sociabilidad popular.
324
As pulperías ocuparam lugar de destaque na vida campesina por sua
importância econômica. Nelas, a população rural se abastecia de gêneros de primeira
necessidade que, no geral, não produzia. Ao seu objetivo original, no entanto, foi
acrescido, segundo Mancilla, um outro, que talvez não estivesse nos planos iniciais das
autoridades que idealizaram estes estabelecimentos, pois “las pulperías no fueron ese
idílico comercio colonial que aprovisionaban a la población y concedidas por los
cabildos a mujeres viudas.”
325
Ou seja, aquilo que foi pensado para ser um posto de
comércio avançado, mediante concessão dada pelos cabildos às mulheres
desassistidas, muito cedo, passou a ter pela criatividade e necessidade das
populações campestres um outro uso, distinto daquele idealizado pelas elites políticas
e civis. As pulperías acabariam, assim, se transformando em espaço de vivência das
paixões.
Na verdade, as pulperías, “mas bien fueron improvisados ranchos de paja y barro
que albergaba el juego, la embriaguez y la prostituición, escenario de fandangos, pero
también de las más violentas pendencias.”
326
A importância que adquiriram as
pulperías não se limitou à região de San Juan de la Frontera. A descrição típica de uma
pulpería do interior da região de Buenos Aires era a de um lugar “donde los gauchos
bebían aguardiente hasta embriagarse, mataban el tiempo jugando al truco y
entregaban la vida en duelos a cuchillo, podía ser también y para sumarle mayor
sordidez un prostíbulo”.
327
Também o pampa uruguayo teria sido, durante os séculos
324
MANCILLA, 2005, p.110.
325
MANCILLA, 2005, p.123.
326
Idem, ibidem.
327
MAYO, 1996. p.139.
102
XVIII e XIX, palco de “la danza lasciva, la bebida y “el desorden en el porte”, financiadas
e promovidas “por los pulperos y demás personas del comercio.”
328
Não quero, no entanto, propor que ao concederem ou autorizarem o
funcionamento das pulperías, as autoridades o fizessem inocentemente e desprovidos
de interesses. Pelo contrário, é possível dizer que “existió un doble discurso de la elite
local, aquel que intentó condenar las pendencias y las borracheras en el interior de las
pulperias, y la que favoreció y estilmuló, en alguna medida, el consumo de alcohol entre
la peonada rural.”
329
Acredito que mesmo aquele grupo que se beneficiava
economicamente do consumo de bebidas alcoólicas, logo perdeu o controle, pois “los
rústicos ranchos que servían de pulperías y que no estaban bajo el control del cabildo
se multiplicaron en el mundo rural, dando lugar a una forma de sociabilidad popular que
nada tenía que ver con el nuevo espíritu reformador de los sectores dominantes, ni con
sus intereses.”
330
As pulperías se fizeram presentes numa vasta área geográfica e por um longo
tempo. Referências a sua existência e importância como espaço de sociabilidade e de
suas muitas funções como bolicho, casa de jogos, casa de bailes, ponto de encontro,
casa de prostituição e, mesmo, local de ocorrências de peleas, são encontradas do
pampa ao sul de Buenos Aires no século XVIII
331
, passando pelos campos ao pé dos
Andes de San Juan de la Frontera
332
, até o Uruguai do início do século XIX
333
.
Como era de se esperar, as pulperías, enquanto espaço de vivência das paixões
que eram, extrapolaram sua condição de espaço de sociabilidade popular, se
transformando em símbolo de um modo de viver, de se divertir, de amar e de odiar que
não mais podia ser tolerado pelas autoridades platinas
334
. Já sob a jurisdição de
328
BARRAN, 1991, p.139.
329
MANCILLA, 2005, p. 126.
330
MANCILLA, 2005, p.137.
331
MAYO, 1996, p. 153.
332
MANCILLA, 2005, p.109.
333
BARRAN,1991, p.139.
334
Estas ações de supressão da sensibilidade “bárbara”, da qual a pulpería era um espaço
representativo, podem ser melhor compreendidas se considerarmos que são parte de um processo que
visava a reforma dos costumes, ou a constituição de uma nova sensibilidade, e que, conforme Huizinga,
teria tido início ao final da Idade Média, tendo por pressuposto que “todas as emoções exigiam um
sistema rígido de formas convencionais porque sem elas a paixão e a ferocidade causariam a destruição
da vida” (HUIZINGA, Johan. O declínio da Idade Média. SãoPaulo: Verbo-Edusp, 1978, p.48)
103
Córdoba
335
, as pulperías acabaram sendo alvo de uma série de bandos de Buen
Gobierno,
336
tanto das autoridades de San Juan de la Frontera quanto de Buenos Aires
que pretendiam “condenar y contener aquellos desórdenes”,
337
referindo-se ao que
acontecía nas pulperías e procurando conter os abusos, assim como disciplinar seu
funcionamento. Em mais uma tentativa,
la autoridad ordenó a los jueces que cumplieran la política de control sobre
aquellos hombres. En mayo de 1776 las autoridades insistían en reglamentar el
funcionamiento de las pulperías, sobre todo porque ellas se mantenían abiertas
hasta los días consagrados:"Por tal razón se ordena y manda que, estén
cerradas las pulperías todos los días y noches excepto las dos horas que van
desde las diez de la mañana hasta las doce de la misma o medio día".Las
autoridades de San Juan de la Frontera reglamentaron hasta los más mínimos
detalles del funcionamiento de las pulperías, llegaron a pensar incluso que al
reducir el número de horas de atención se evitarían las pendencias y muertes.
Dispusieron los días que debían abrir, los horarios en que debían atender, y los
productos que podían comercializar; prohibieron taxativamente la venta y el
consumo de alcohol, tanto dentro como fuera de las pulperías y la permanencia
de personas de extraña condición en ellas.
338
Os problemas que as autoridades da América espanhola encontravam com as
muitas horas de ócio que tinham os homens ligados ao trabalho com gado, que se
dedicavam à “vadiagem”, às bebedeiras e aos divertimentos “mundanos”, provocaram
várias tentativas de regulação, contenção e até mesmo proibição, aproximando-se das
medidas adotadas pelas autoridades da América portuguesa. O ambiente de relativa
“liberdade” desfrutada por negros, mulatos e brancos pobres envolvidos no trabalho da
extração do ouro, promoveu uma série de confusões, brigas e mortes na região das
Minas Gerais no século XVIII, sobretudo, nas vendas que abasteciam os arraiais.
Diante disso, as autoridades também procuraram de alguma forma, instituir regras que
garantissem mais segurança e tranqüilidade, como através da medida que “procurou
335
San Juan de la Frontera esteve, até 1776, sob jurisdição do Chile, passando então para a jurisdição
de Córdoba, a partir das reformas bourbônicas que previam maior centralização administrativa e arrocho
fiscal. Isso porque, por encontrar-se boa parte do ano separado do Chile, devido à impossibilidade de
transposição dos Andes, San Juan esteve por muito tempo livre de maiores fiscalizações. Ver
(MANCILLA, 2005, p.130)
336
Estes Bandos eram resoluções jurídico-administrativas que visavam reprimir comportamentos e
práticas antigas consideradas inadequadas às novas posturas político-administrativas do Estado
espanhol, assim como estabelecer novas normas, adequadas a este novo momento.
337
MANCILLA, 2005, p.136
338
MANCILLA, 2005, p.136
104
controlar o consumo de aguardente pelos negros e mestiços nos engenhos próximos
aos caminhos (e que) buscou restringir o comércio de pólvora”.
339
Apesar de as pulperías não serem referidas explicitamente nas Cartas Anuas
consultadas, há indicações de que elas preocupavam os Padres da Companhia de
Jesus: “se retiran ellos (os jugadores) a lugares apartados y a la espesa selva, como si
fuesen fieras y pierden allí por el juego semanas y meses enteros. Cuantos robos de allí
se saltan, esto se puede conjeturar fácilmente”
340
As descrições feitas do lugar e das atividades nele realizadas me levam a inferir
que o que preocupava os jesuítas, provavelmente, eram as muitas atividades ilegais,
principalmente de alguns tipos de jogos proibidos, como a taba
341
, muito apreciado nas
pulperías clandestinas.
Cabe retomar aqui tema discutido anteriormente, o da referência à selva como o
lugar próprio das paixões. Os jogadores compulsivos, segundo informações dadas
pelos padres, jogavam por semanas e meses, se embrenhavam na selva espessa
como se fossem feras
342
. A ligação entre a paixão e a barbárie é retomada, a mata
fechada e o comportamento animal são, respectivamente, o lugar e a práxis da paixão.
A pulpería, provavelmente um rancho improvisado em algum campo longínquo ou mata
fechada, não aparece como uma ilha de civilidade no mar verde do pampa ou da selva.
339
ANASTASIA, 2005, p.15.
340
C.A., 1750-1756, p.8.
341
“La taba era uno de los juegos más prohibidos, ya que donde de desarrollaba era habitual el consumo
de alcohol y por lo tanto las peleas.”(MANCILLA, 2005, p.116). O jogo do osso ou “taba” tem origem
asiática. Árabes e persas já o praticavam, segundo referências da bibliografia. A própria palavra "taba",
ou "tava", teria sua raiz etimológica no vocábulo hebreu "ka-ba". "Lab-el-kab" era denominado o jogo dos
aduares árabes. Contudo, a bibliografia é unânime em afirmar que o povo que mais o praticava era o
grego. O jogo chamado "astrágalo" chegou a ser citado em referências mitológicas, como quando
Patroclo, ainda menino, teria desafiado e abatido o amigo Anfidamonte em um jogo de osso. Os
legionários romanos teriam sido os responsáveis por levar o jogo à Espanha. Eles o jogavam nos recintos
de quartéis e acampamentos, durante o período de dominação sob o império de Augusto. O jogo teria
chegado à bacia do Prata através dos espanhóis, por volta do ano de 1620. RILLO, Apparicio Silva. “É
Macho, Alumiou pra Baixo" - O Jogo do Osso no Rio Grande do Sul. Porto Alegre, RS: Martins Livreiro
Editor, 1988.
342
Sobre a comparação entre homens brutos e bárbaros e feras, resgatamos as considerações do
historiador inglês K.Thomas: ”sem serem iguais ao homem, nem completamente diferentes, os animais
ofereciam uma reserva quase inesgotável de significados simbólicos. (…) O homem atribuía aos animais
os impulsos na natureza que mais temia em si mesmo a ferocidade, a gula, a sexualidade (…).”
(THOMAS, 1988, p. 48 49).
105
Pelo contrário, é associada ao espaço rural, que provê as condições para a reunião dos
homens-feras entregues a seu comportamento apaixonado e bárbaro.
Outra menção não explícita feita às pulperías e ao perigo que representavam
é encontrada na Ânua de 1735-1743, que refere o caso de certo “borracho” da região
rural de La Rioja, que, em 1742, teria sofrido um acidente por intervenção divina
enquanto se dirigia “hacía cierta casa, donde sabía que se divertían mundanamente.”
343
Interessante notar a relação estabelecida entre paixão-pecado, punição e a casa de
divertimento mundano mencionada pelo padre.
Por outro, se entendermos o espaço campestre platino
344
como aquele que
permitiu a encenação de uma elaborada peça profana e violenta, a pulpería pode ser
vista mais do que qualquer outro espaço como o palco que deu visibilidade às
atuações dos múltiplos atores que ali viveram e interpretaram suas paixões. Penso que
também seja plausível imaginar que neste espaço diferentes tipos de peças tenham
sido encenadas. Desde os alegres fandangos e as galhofas entre amigos, até as
corridas a cavalo e jogos, nem sempre com finais felizes, dos possíveis enredos
românticos que possam ter surgido entre homens simples e mulheres da baixa
sociedade, até as relações muito mais eróticas do que emocionais entre peões e
mulheres de “má vida”. As pulperías foram, nesta perspectiva, o espaço em que as
paixões foram vividas em toda sua plenitude.
E, se as paixões são sinônimo de intensidade e excesso, também o foram
quando se tratou de violência. Nas pulperías “la violencia se percibía por doquier, sólo
faltaba un roce, una mala palabra para que las cuchillas salieran a relucir.”
345
Barran
confirma esta percepção, ao afirmar que a sensibilidade por ele chamada de
“bárbara” estava calcada em um tripé composto pela sexualidade, pela violência e
pela “actitud ante la muerte”
346
. Dados judiciais referentes a San Juan de la Frontera
enumeram pelo menos 18 crimes, entre 1770 e 1775, todos ocorridos em pulperías,
sendo que alguns dos agredidos acabaram mortos. Importante dizer, ainda, que “en los
343
C.A,, 1735-1743, p.290.
344
Vale lembrar que o espaço rural, denominado de sertão no Brasil colonial, também foi identificado
como um espaço propício à violência, que “se fazia todo tempo presente em especial, como se verá, nos
sertões, nas matas gerais e nas serras, paragens distantes dos centros administrativos onde, quase
sempre, não chegava o poder da Coroa.” (ANASTASIA, 2005, p. 20)
345
MANCILLA, 2005, p.123.
346
BARRAN, 1991, p.12.
106
procesos judiciales analizados los acusados se encontraban alcoholizados al momento
de la agresión.”
347
Por outro lado, acredito que se possa pensar as ações violentas
como uma ”necessidade de afirmar-se ou defender-se integralmente como pessoa”, que
surge conjugada à valorização de determinadas condutas “como a bravura e a
ousadia”, tornando, nesses casos, “realmente, a ação violenta não apenas legítima,
mas imperativa”.
348
Silveira por sua vez, corrobora esta opinião, quando refere que
ainda que “ parecessem ilógicos, os atos de violentos participavam de uma
racionalidade global que lhes conferia sentido. Matar era, muitas vezes, um gesto
público de vingança capaz de sublinhar a grandeza; era, portanto, um modo particular
de ser virtuoso”
349
.
Em um mesmo palco, a luxúria, o jogo, a borrachera e a violência própria do
corpo “escasamente encorsertado por la ropa, las reglas de urbanidad, las
convenciones emanadas de la tradición y las jerarquias sociales”
350
, atuavam na
composição de um enredo intenso, excessivo, na maioria das vezes, violento e, por
vezes, mortal.
Nas Cartas Ânuas, o ódio gerador da violência é tratado como paixão. O caso de
um homem que precisou da intervenção divina para dar-se cuenta de su ciega
pasión”(grifo meu)
351
e abandonar seu plano de assassinar um inimigo exemplifica a
gravidade atribuída pelos inacianos aos pecados decorrentes da ira. Sabiam os padres
da Companhia que homens rudes, por vezes sob o efeito do álcool, eram fortes
candidatos a se deixarem dominar por esta paixão, e assim, cometerem crimes graves.
É certo que as pulperías, também, foram palco de inúmeros duelos que
resultaram em muitas mortes ou determinaram ódios mortais. Entretanto, a
documentação indica que a paixão do ódio não foi exclusividade dos “bárbaros”
freqüentadores das pulperías. Segundo Zen, em “todos os lugares em que os
missionários pregavam missões encontravam pessoas que vivam uma relação de
347
MANCILLA, 2005, p.121.
348
FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. 3.ed. São Paulo:
Kairós, 1983, p .36.
349
SILVEIRA, 1997, p.148.
350
BARRAN, 1991, p.100.
351
C.A., 1735-1743, p.117.
107
inimizade.”
352
O problema era de tal ordem
353
que “outra função que nunca faltava nas
missões era que se chamava de perdão dos inimigos.”
354
Portanto, se o ódio não foi exclusividade dos campesinos, assim como outras
paixões aqui já descritas, acredito que seja possível afirmar que os homens e mulheres
do Prata dos núcleos urbanos ou rurais - viveram intensamente suas paixões sempre
que puderam. Por vezes, de forma frouxa e despreocupada; em outras ocasiões, de
forma escondida e velada.
Tanto os inacianos quanto as elites civis quiseram, através da antinomia
“civilização x barbárie”, atribuir aos moradores do campo um comportamento passional
pré-determinado que não foi, como procurei demonstrar, exclusivo dos campesinos. Por
outro lado, as fontes consultadas, revelam que algumas dessas paixões assumiram,
sim, feições muito próprias, em decorrência das características do ambiente rural. A
ausência de vigilância e de controle próprios do espaço urbano e civilizado permitiram
que as populações campesinas vivenciassem suas (próprias) paixões com uma relativa
liberdade. Não creio, entretanto, que isso os caracterizasse como “bárbaros”, uma vez
que simplesmente fizeram “uso” de um ambiente que, por facultar uma certa
“invisibilidade”, permitia que desfrutassem de certa licenciosidade. Seus pares urbanos,
por outro lado, também viveram suas paixões intensamente, tendo que, no entanto,
imprimir muito mais energia e criatividade para alcançá-las.
Na continuidade, abordo a presença da paixão e de seus excessos em
situações e em espaços com características bem diferentes daquelas encontradas nas
pulperías. Trato, em especial, da paixão que invadiu a vida política, daquela que se
manifestou nos conchavos, nas traições e nos atos de violência; daquela que alcançou
os centros de poder e levou muitos ao banco dos réus.
352
ZEN, 1995, p.125.
353
Vale lembrar que, segundo Anastasia, referindo-se à zona rural das Minas Gerais dos setecentos, os
atos violentos não eram exclusividade de nenhum grupo social, já que “a violência e os desmandos
faziam parte de todos os segmentos da sociedade daqueles sertões (...)”. (ANASTASIA, 2005, p. 61)
354
ZEN, 1995, p.119.
108
3 AS PAIXÕES: POLÍTICA E TRAGÉDIA NO ESPAÇO PLATINO
“un tiempo en la cuál solo triunfó la
insolencia, tiranía, pasión y venganza.”
C. A. 1735-1743
Nesse último capítulo, o que proponho é pensar a paixão em um espaço
não-físico. Ao contrário dos capítulos anteriores, em que me propus a pensar a paixão,
em espaços físicos bem marcados, a cidade e o campo, agora, a idéia é pensar a
paixão em uma espacialidade subjetiva, o lugar da política
355
. Se antes, a antinomia se
dava entre o campo e a cidade, neste capítulo, a única antinomia possível seria entre
paixão e razão. Digo isso por pensar que, tradicionalmente especialmente a partir de
Maquiavel
356
e de uma proposta moderna de fazer política
357
as estratégias, cálculos
precisos calcados na razão, deveriam ser a principal ferramenta do “bem governar”.
A paixão, portanto, continua sendo o fio condutor, pois é ela que norteia as
questões postas, as análises e as hipóteses que se tratou nesse capítulo. Ainda que a
ênfase proposta não se limite a um espaço físico específico, não desconheço o fato de
que a política foi praticada nos dois ambientes já trabalhados anteriormente, a cidade e
o campo.
É certo que as maiores e mais importantes instituições e agentes do fazer
política na América platina estavam nas cidades, pois era nelas que se destacavam o
355
Valemo-nos das reflexões de Pierre Nora sobre espaço. Para o autor, “com efeito, nos três sentidos
da palavra, material, simbólico e funcional (...) em graus diversos (...) um lugar de aparência puramente
material, como um depósito de arquivos, só é um lugar de memória se a imaginação o investe de uma
aura simbólica. Mesmo um lugar puramente funcional, como um manual de aula, um testamento, uma
associação de antigos combatentes, só entra na categoria se for objeto de um ritual”.(NORA, Pierre.
Entre memória e história. A problemática dos lugares. Projeto História. São Paulo, n. 10, dez. 1993.,
p.21)
356
Maquiavel, em sua clássica obra sobre o bem governar, embasa toda sua lógica de argumentação na
idéia que as ações do Príncipe devem ser estritamente racionais, desenvolvendo uma nova ética política.
Representativa é a passagem que diz que “donde é necessário, a um príncipe que queira se manter,
aprender a poder não ser bom e usar ou não da bondade, segunda a necessidade.” (MAQUIAVEL,
Nicolau. O Príncipe. São Paulo, Martin Claret, 2002, p.63)
357
Sobre a relação entre paixão e razão na modernidade, Chauí adverte que “para a modernidade,
porém, o risco é maior. A razão, luz natural finita, encarregada de guiar a vontade livre, ao esbarrar na
paixão não esbarra apenas no perigo da queda na bestialidade. Descobre, com horror, qua a paixão
deixa a mostra a essência humana como irracionalidade congênita.” (CHAUÌ, Marilena. Sobre o Medo. In:
CARDOSO,Sérgio...( et al.) Os sentidos da paixão. São Paulo;Companhia das Letras,2002, p.44)
109
cabildo e os tribunais; os alcaides e, no caso de Assunção, o governador. Os espaços
urbanos de sociabilidade foram, sem dúvida, espaços de discussão política. Tanto as
ruas, as missas, os saraus, os bolichos, as casas de divertimentos, quanto as casas
particulares e os espaços próprios para discussão política foram fundamentais na
discussão de questões práticas do dia a dia, ou na gestação de revoltas e revoluções.
Por outro lado, o campo, é certo, não ficou à margem do processo político.
Romero destaca a importância da sociedade rural nos processos de independência
política ocorridos na América hispânica ao final do século XVIII e início do século XIX.
Segundo ele, foi a sociedade rural quem “colocou suas cartas na mesa e revelou que
em seu seio não só se produzia a riqueza que garantia a sobrevivência de todos, como
também se amalgamava essa população arraigada que podia fazer de cada âmbito
colonial uma nação (...)”
358
.
Neste capítulo, os espaços que antes circunscreveram e definiram as ênfases
que dei ao transbordamento da paixão a cidade e o campo , não serão mais
limitadores, constituindo-se em pano de fundo para o desvendamento das ligações que
se estabeleceram entre paixão e política, entre o sentir e o fazer das ações políticas.
Segundo Aristóteles, “o homem, naturalmente, é um animal político”
359
. Portanto,
a política, por ser uma atividade naturalmente humana, não estaria isenta da influência
da paixão, já que esta pode ser encontrada ”em cada um de nós” e “prepara o caminho
à colera”
360
. Como já referido na Introdução, a paixão para Aristóteles era constitutiva
do ser, e, portanto, de uma forma ou de outra, estava presente nas diferentes
atividades humanas. Creio que as relações que Aristóteles estabeleceu entre política,
paixão e cólera, possam ser vislumbradas, muitos séculos depois, em solo platino. Ao
se referir a um conturbado momento político da cidade de Assunção, quando esta era
governada por um grupo rebelde identificado como “Comunero”
361
, o padre jesuíta a ele
358
ROMERO,2004, p.212.
359
ARISTÓTELES. A Política. Trad. Nestor Silveira Chaves. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1965, p.
18.
360
ARISTÓTELES, 1990, p. 99 (trad. nossa). A obra “Retórica” de Aristóteles foi escrita, em grande
medida, para servir como manual no uso das paixões em beneficio dos interesses políticos.
361
“El término comunero fue acuñado por primera vez por los asuncenos que se revelaron al gobierno del
Adelantado Cabeza de Vaca que fue enviado de vuelta a España en una nave bautizada con ese
término, que aludía al poder local de las comunidades castellanas a principios del siglo XVI y a la
procedencia de algunos conquistadores. La voluntad del Común, manifestada a través de los Cabildos
Abiertos, fue tenida en cuenta en el Paraguay en varias oportunidades durante el siglo XVI, XVII y XVIIII
110
se referiu como “un tiempo en la cuál solo triunfó la insolencia, tiranía, pasión y
venganza.”
362
Tirania, ódio, vingança, ira, excessos, choro, desrespeito, humilhações,
sofrimento, fome e tragédias foram, portanto, na visão desse jesuíta, a marca deste
governo orientado pelo triunfo de la pasión
363
. Por vezes, estes termos são identificados
como sendo sinônimos de paixão, como o ódio, o sofrimento e os excessos, por
exemplo. Em outros momentos, são tomados como conseqüência de atos motivados
pela paixão, ou ainda, como atitudes tomadas em momentos em que a paixão feito
espessa neblina impediu que os agentes políticos pudessem ver claramente. Em
outros casos, a paixão foi usada como justificativa para más ações que geraram
situações não desejadas, ou, então, para após uma derrota minimizar os custos
sociais e políticos, e quem sabe, a reinserção na sociedade fidalga.
O certo, é que na documentação jesuítica que trata da chamada “Revolución de
los Comuneros” as Cartas Ânuas que compreendem os anos de 1720-1730, 1730-
1735 e 1735-1743 a paixão, em alguns dos sentidos acima referidos, esteve presente
de forma bastante significativa. O período propriamente dito do conflito, em que
ocorreram as ações violentas, se dá entre os anos de 1724 e 1735, iniciando-se com a
primeira expulsão dos Jesuítas do Colégio e da cidade de Assunção
364
. O conflito,
entretanto, havia se iniciado três anos antes
365
, quando os moradores de Assunção
fizeram denúncias contra o Governador Reyes Balmaceda, aliado político dos Jesuítas.
para la elección de algunos gobernadores y para la expulsión de los jesuitas. Según Rafael Eladio
Velásquez, se conoce como movimiento comunero la sucesión de enfrentamientos entre conquistadores,
primero y del vecindario con las autoridades coloniales, después, que se desarrollaron en el Paraguay
entre 1544 y 1735. Ver Velásquez (1993) ”. (AVELLANEDA, 2007, p.146).
362
C.A., 1735-1743, p.323.
363
A afirmação feita pelo padre jesuíta parece sugerir que este período em que os Comuneros estiveram
à frente do governo de Assunção, além de ter sido marcado por demonstrações de rebeldia e por muitos
conflitos, foi também um tempo de excessos, em que os homens agiram sob efeito da paixão, como
veremos no decorrer do trabalho.
364
Conforme Avellaneda “Desde 1724 asta 1735, tuvieron lugar varios episodios de violencia conocidos
como “La Revolución de Los Comuneros.” (AVELLANEDA, 2007, p.146). A documentação jesuítica
corrobora a data, descrevendo detalhadamente a primeira expulsão do Colégio de Assunção. (C.A.,
1720-1730, p.57,58).
365
Conforme Beatriz Franzen, que se utilizou das mesmas fontes de que disponho, “segundo o cronista,
o movimento dos Comuneros (1721-1735) é uma revolta das elites paraguaias (...).”(FRANZEN, , 2003.
p.90). Avellaneda e Quarleli também consideram o período de 1721 a 1735 e definem que o início do
conflito se deu a partir das denúncias oficiais contra o Governados Reyes Balmaceda apresentadas pelo
Cabildo de Assunção ao Vice-Rei: “Entre 1721 y 1735 la provincia de Paraguay fue el escenario de un
importante movimiento socio-político que dividió en dos facciones antagónicas a la sociedad
111
Penso que para analisarmos os fatos que ocorreram a partir daí, pode-se muito
bem recorrer, mais uma vez, às metáforas, principalmente para compreendermos como
os jesuítas os perceberam. Na documentação jesuítica se sobressaem as apreciações
de que a revolta resultou da paixão e que provocou uma verdadeira tragédia. Ora,
pode-se pensar a Revolução dos Comuneros como trágica em dois sentidos. O primeiro
é o sentido clássico que remete ao teatral e pedagógico. Os gregos, inicialmente, e,
depois, os renascentistas que pretenderam retomar os clássicos se utilizaram de
histórias trágicas como objetivo de demonstrar, ensinar e sensibilizar os ouvintes para
verdades que eram importantes para o funcionamento da pólis, do Estado e para a
manutenção de determinado status quo. Um segundo sentido é aquele que, desprovido
de qualquer conotação simbólica, remete para os efeitos de uma tragédia real morte,
fome e epidemias provocados pelo conflito entre os comuneros e as tropas leais ao
Governador basicamente formadas por índios Guarani das reduções jesuíticas. Esses
dois sentidos, entretanto, não podem ser pensados como separados ou excludentes
entre si.
Os fatos narrados pelos jesuítas foram alvo também da atenção de outros
cronistas e das autoridades coloniais e podem ser encontrados em outras fontes
documentais do período, como a documentação do Cabildo secular de Assunção, já
trabalhado por Mercedes Avellaneda
366
, e mesmo nas obras “Historia de las
revoluciones de la Província del Paraguay”
367
do Padre Lozano, ou, ainda, na obra
“Historia de la Compañía de Jesús en la Provincia del Paraguay” do Padre Pablo
Pastells
368
. Cabe ainda referir que, tanto as Cartas Ânuas já citadas, como as obras dos
Padres Lozano e Pastells incluem a transcrição da documentação oficial do período em
que ocorreu a revolução.
A proposta de análise dos relatos que os jesuítas fizeram sobre a Revolução dos
Comuneros considerando o primeiro sentido dado à tragédia se reveste, antes de
asuncena(...)” (AVELLANEDA, Mercedes; QUARLERI, Lía. Las milicias guaraníes en el Paraguay y Río
de la Plata: alcances y limitaciones (1649-1756). Estudos Ibero-Americanos. PUCRS, v. XXXIII, n. 1, p.
109-132, junho 2007, p.116)6
366
Archivo General de Asunción (A.G.A.). 1724. Sección Copias de Actas del Cabildo de Asunción,
Cuaderno 21. apud. AVELLANEDA,2007, p.159.
367
LOZANO, P. S.J. 1905. Historia de las Revoluciones de la Provincia del Paraguay. Buenos Aires:
Biblioteca de la Junta de Historia y Numismática, 1905. v. 1. 453 p.
368
PASTELLS, P. S.J. Historia de la Compañía de Jesús en la Provincia del Paraguay. Madrid:
Instituto de Santo Toribio de Mogrovejo, 1946. v. 6, 689 p.
112
tudo, da tentativa de desvendar o imaginário jesuítico. A tragédia clássica de que me
apropriei para alcançar este objetivo é a Antígona de Sófocles. Na famosa tragédia, a
personagem feminina principal, Antígona
369
, entra em debate com Creonte, herdeiro do
trono de Tebas. Os irmãos de Antígona, Etéocles e Polinices, haviam morrido, um pela
mão do outro, em combate. O primeiro defendo o trono de Tebas que era seu por
direito dinástico e, o segundo, tentando usurpá-lo. Com a morte de Etéocles, Creonte
parente mais próximo assume o trono, e , como punição por sua traição à cidade,
decreta que ao corpo de Polinices seria vedado um funeral, devendo antes ser comido
pelos animais do campo. Antígona, inconformada com as ordens de Creonte, afronta
sua decisão e enterra o irmão morto. Descoberta, é levada à presença do soberano e
assume seu ato embasada nas antigas tradições.
370
Creonte por sua vez, quer sua
condenação, alegando que nenhum transgressor da lei da cidade deveria ficar
impune
371
. A questão central, de acordo com a interpretação hegeliana
372
, e que serviu
de enredo para a tragédia, era a questão posta entre direito natural, baseado na
tradição e nas crenças, e direito positivo, ou do estado de direito.
No caso da Revolução dos Comuneros, o enredo da tragédia fica evidente nas
cartas: está dividido em três atos, e tem como pano de fundo uma discussão de ordem
jurídica que, de certa forma, se aproxima daquela que marca a tragédia de Sófocles. Os
conflitos se deram em decorrência das restrições da autonomia política previstas pelas
novas orientações político-administrativas determinadas pelos antecedentes das
chamdas “Reformas Bourbônicas”
373
. Os comuneros, inicialmente respaldados pelo
369
Antígona era filha de Édipo e Jocasta e irmã de Ismênia, Etéocles e Polinice. Os últimos dois haviam
sido mortos em lados opostos durante a tentativa de invasão de Tebas, de que Etéocles era o governante
por direito dinástico.
370
Ela se pergunta: “Quem é ele para separar-me dos meus?”(SÒFOCLES, Antígona. Trad. Donaldo
Schüler. Porto Alegre: L&PM, 2001, p.10) “. Depois, em resposta a Creonte, que a acusa do não
cumprimento de suas ordens, argumenta “nem eu supunha que tuas ordens tivessem o poder de superar
as leis não-escritas, perenes dos deuses. ”(Idem, p. 36)
371
Idem, p. 21
372
Simon indica que o principal “aspecto destacado por Hegel, na sua interpretação da (...) tragédia
grega intitulada “Antígona”, apresenta a oposição entre o Direito Natural ( no caso da peça, Direito que
provinha das crenças deuses e dos costumes) e o Direito Positivo (Direito imposto pelo
representante do Estado).” (SIMON, Henrique Smidt. Sófocles e a democracia em “Antígona”. Jus
Navigand, Teresina, ano 7, n. 63, mar. 2003. Disponivel em: <
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3855>. Acesso em: 06 fev.2008)
373
As Reformas Boubônicas foram reformas político-adminstrativas e tinham por objetivo “modernizar” o
Estado, fortalecendo a monarquia. Para tanto, “Invocaram-se as idéias dos fisiocratas para estabelecer o
primado da agricultura e o papel do Estado; recorreu-se ao mercantilismo para justificar uma exploração
113
Cabildo e pela Audiência de Charcas, invocaram uma antiga legislação, a lei del
Comum”. O embate surgido entre a legislação do Estado bourbônico centralizado e a
antiga jurisprudência acabou determinando uma versão platina da disputa entre direito
natural e direito positivo própria da tragédia clássica. De acordo com a documentação
jesuítica, a paixão, especialmente sob a forma de ódio, esteve presente e foi o motor
dos conflitos que ocorreram. Agigantado pela ausência de razão, o ódio-paixão foi o fio
condutor de toda a tragédia que teve como palco a região platina.
O primeiro ato, portanto, teve início com as denúncias feitas contra o Governador
Reyes Balmaceda, em 1721. Eclodiu, entretanto, em sua faceta mais violenta, com a
primeira expulsão dos jesuítas de Assunção, durante o governo de Antequera. Teve
continuidade com a mau fadada tentativa de tomar a cidade com o auxílio de milícias
indígenas a serviço do Vice-Rei e só acabaria com a intervenção do Governador de
Buenos Aires, que entraria pessoalmente na cidade de Assunção em 1725, para
reestabelecer a ordem.
O segundo ato se daria nos tribunais, durante o Governo de Martín de Barúa, e
consistiria na tentativa dos moradores de Assunção, de, através do seu cabildo secular,
retomar o poder político na Cidade.
O terceiro ato, por sua vez, teve como atores principais, Mompox, companheiro
de Antequera, morto como punição por liderar a primeira insurreição o que parece ter
animado os asuncenos a defender os ideais de “la doctrina del Común”
374
e as milicias
rurais que tomaram o poder em Assunção. Este novo embate acarretou uma nova
expulsão dos jesuítas do Colégio de Assunção e a iminência de um novo confronto
entre as forças revolucionárias e os soldados espanhóis leais à Coroa.
O conflito que se tranformaria em tragédia, entretanto, tem raízes anteriores que
podem ser encontradas, segundo Avellaneda, no fato de que “las primeras reducciones
jesuitas fueron formadas con indios de encomiendas de los pueblos o doctrinas
mais eficiente dos recursos coloniais; buscou-se no liberalismo econômico uma base para eliminar as
restrições ao comércio e à indústria.”(LYNCH, John. As Origens da Independência na América
Espanhola. In.: BETHEL, Leslie (org.). História da América Latina: da Independência a 1870. São
Paulo/Brasília, EDUSP/Imprensa Oficial do Estado: 2001.Vol. III. p.19).
374
AVELLANEDA, 2007, p.147.
114
fundados por los españoles (...).”
375
Os moradores de Assunção, portanto, nunca
aceitaram o fato de não poderem contar com a mão de obra indígena, o que
consideravam um direito seu. A documentação jesuítica corrobora essa versão, ao
afirmar que “Durante todo este tiempo aspiraban los habitantes de esta ciudad a una
injusta servidumbre de parte de los indios, que se llama servicio personal (en italico na
carta).”
376
O desejo dos asuncenos de fazer uso da encomienda sobre os Guarani
reduzidos, e a clara resistência dos Padres da Companhia a que isso acontecesse, foi,
segundo os jesuítas, a mais importante causa da Revolução dos Comuneros. Isto foi o
que fez aumentar o ódio que alguns dos moradores de Assunção já há tempos
alimentavam contra os Padres da Companhia.
Al exponer nuestros Padres el gran obstáculo a la propagación de la fe causado
por tal servicio, alcanzaron de la benignidad de los Reys de España muchísimos
decretos, por los cuales, con sanciones civiles y canónicas, se prohibió que los
indios de los treinta pueblos florecientes, encomendados a nuestro cuidado,
prestasen aquel servicio personal, y al contrario se mandó que ellos quedasen
enteramente inmunes de semejante carga molesta(…) Este, pues, es el origen
del inveterado odio contra la Compañía, y de las continuas infames calumnias
contra ella. (grifo meu)
377
Esse ódio, identificado, muitas vezes, como sinônimo de paixão na
documentação jesuítica, parece ter garantido que o embate entre comuneros e jesuítas
se estendesse por muito tempo. De acordo com os inacianos, no entanto, este ódio era
infundado e resultava do fato de alguns terem se “dejado arrastrar, por una ciega
pasión, hablando mal antes de los nuestros y tratándoles mal.”
378
A verdadeira razão
para estarem lutando para impedir que os índios fossem colocados a serviço dos
asuncenos, segundo os padres, era que estes “Llevan muy a mal los nuevos cristianos
tal servidumbre molesta, por la cual piden de ellos los europeos ciertos servicios
serviles y laboriosos, muy aborrecidos por ellos por su gran amor a la libertad.”
379
375
AVELLANEDA, 2007, p.148.
376
Cartas Anuas de la Provincia del Paraguay (C.A). Años 1720-1730. Tradución de Carlos
Leonhardt, S.J. Buenos Aires, 1928. Tradução Digitada, São Leopoldo, Instituto Anchietano de
Pesquisas/UNISINOS,1994, p.48.
377
Idem, p.49.
378
C.A., 1735-1743, p.179.
379
C.A., 1720-1730, p.48.
115
O conflito, entretanto, teve ainda outros fatores que acabaram por potencializá-lo.
No início do século XVIII, havia uma situação de crise econômica instalada, motivada
por “la inseguridad en sus fronteras internas y externas, la restricción territorial, la falta
de mano de obra indígena suficiente para expandir la economía local, y el encierro y
aislamiento de la Provincia.”
380
Tudo isso, acabou ganhando uma dimensão ainda maior
durante a administração do Governador Reyes Balmaceda, acusado diante da
Audiência de Charcas pelo cabildo secular “de mala administración de los propios de la
ciudad en su beneficio. De imponer con su sola autoridad la sisa a todas las
embarcaciones que realizaban el transporte de mercaderías y de haber aumentado las
tasas del beneficio yerbatero. “
381
Entre as acusações feitas contra o Governador de
Assunção estavam a má administração, as suspeitas de corrupção e a ordem de “
ataque a los Payaguás de paz con los asuncenos, que había provocado el alzamiento y
confederación de otras parcialidades con los grupos del Chaco, y aumentado la
inseguridad en toda la Provincia.”
382
As atitudes tomadas pelo Governador Reyes Balmaceda, na opinião da maioria
dos moradores de Assunção e dos componentes do cabildo secular, teriam agravado
ainda mais a crise econômica que atingia a região. A ordem bastante discutível de
ataque aos índios “infiéis”, com os quais havia sido firmado acordo de paz, teria isolado
a cidade, tornando as coisas ainda mais difíceis. Diante disso, e sob estas acusações, o
cabildo secular denunciou o Governador Balmaceda ao Vice-Rei.
Para investigar as queixas existentes contra o Governador Balmaceda, foi
enviado à Assunção o procurador da Audiência de Charca, D. José de Antequera y
Castro, na qualidade de Juiz Pesquizador. Os resultados da investigação acabaram por
apontar a responsabilidade do Governador e Antequera então “lo encarcela y asume el
gobierno de la Provincia.“ Os jesuítas, por sua vez, “apoyan el accionar del gobernador
depuesto y logran que el Virrey ordene su restitución, la que es resistida por los
asuncenos.”
383
380
AVELLANEDA, 2007, p.146.
381
AVELLANEDA, 2007, p.148.
382
Idem, ibidem.
383
Idem, p.146.
116
Um complexo e intrincado enredo se desenvolverá a partir de então. Algumas
atitudes concretas foram tomadas como a de apoio dos jesuítas ao Governado Reyes
Balmaceda, empenhado em retomar seu cargo
384
. Outras ações, um tanto quanto
obscuras, resultaram na fuga do Governador deposto após oito meses de prisão e
sua chegada a Buenos Aires, de onde pôde fazer os arranjos políticos necessários para
sua volta ao poder e na batalha jurídica iniciada com o reação por parte do Governador
interino Antequera, do Cabildo de Assunção, e mesmo da Audiência de Charcas, ao
decreto do Vice-Rei que garantia a restituição do cargo a Balmaceda. A documentação
jesuítica registrará este fato, informando que “Apoyóle en realidad el Virrey, y decretó la
restitución a su cargo (…)”
385
Para Franzen, que se utiliza exclusivamente de fontes jesuíticas, as reclamações
dos asuncenos eram atitudes das elites “contrárias às reformas implantadas pelo
modelo francês de administração, introduzido pelos Bourbons no Império Espanhol.”
Além do interesse de usufruir da mão de obra indígena, no que não foram ajudados
pelo Governador Balmaceda, a ”centralização de poder, exemplificada pela nomeação
do governador para o Paraguai, pelo Vice-Rei, sem consulta ao Cabildo Secular, gerou
resistência dessas elites, que já haviam se habituado a controlar as instâncias de poder
local.”
386
A variável introduzida por Franzen ajuda a compreender o desenrolar dos
acontecimentos, pois ao mencionar que as elites asuncenas teriam se “habituado a
controlar as instâncias de poder local”, revela que este hábito acabaria tendo força de
lei, como proposto por Antequera, “el cual defendió desde una concepción particular del
derecho colonial la iniciativa local.”
387
A defesa feita por Antequera se baseava, em
384
Segundo Avellaneda, “Los jesuitas ayudaron a realizar las presentaciones necesarias en los diferentes
tribunales superiores. Se recogieron informes favorables del Cabildo Eclesiástico de Asunción de algunos
capitulares y de los prelados para apoyar las presentaciones de su hijo, Carlos de Reyes, ante el Virrey y
ante la Cámara de Indias. Ver Pastells (1946), tomo VI, Nº°3500 Carta del Cabildo, Justicia y Regimiento
de la Ciudad del Paraguay a S. M. 30 Agosto de 1720. Nº°3499 Carta del Venerable Dean y Cabildo del
Obispado del Paraguay (…) a S. M. 30 de agosto de 1720. Nº°3558 Carta dirigida al Virrey por los
prelados de Asunción 10 de noviembre de 1722. Nº°3546 Dictamen del fiscal posterior relativo a los
cargos acumulados contra el gobernador del Paraguay. Nº°3571 Real Cédula al Virrey del Perú para que
continúe Reyes Balmaceda en su gobierno hasta se nombre un sucesor. 5 de Mayo de 1723.”
(AVELLANEDA,2007,p.148).
385
C. A., 1720-1730, p. 50.
386
FRANZEN, 2003, p. 90.
387
AVELLANEDA; QUARLERI, 2007, p.116.
117
direitos que haviam sido adquiridos pelas cidades espanholas, diante do Rei, ainda no
século XV.
O Governador Reyes de Balmaceda, restituído ao cargo através de decreto do
Vice-Rei, de 21 de fevereiro de 1722, dirigiu-se à Assunção, no intuito de recuperar seu
cargo, mas, ao ser informado de que seria preso novamente, se refugiou nas reduções
jesuíticas. O ocorrido acabou por detonar a exaltação dos ânimos entre o Governador
rebelde e os jesuítas de Assunção. Antequera, “al saber que el gobernador Reyes
estaba en nuestros pueblos de indios, y que desde allí había emprendido su viaje a
Buenos Aires, comenzó a sospechar que los de la Compañía le eran contrarios.”
388
Os
jesuítas, por sua vez, se defendiam das desconfianças e acusações, argumentando que
“no teníamos derecho para rechazar y negar el hospedaje a una persona que nos
presentaba el decreto del Virrey, que le restituyó en el gobierno de una provincia, a la
cual pertenecían nuestras misiones.”
389
Fica clara, portanto, “a posição legalista da Companhia de Jesus. A atitude dos
jesuítas em todo o acontecimento é inteiramente favorável à Coroa espanhola, contrária
aos revolucionários que ousam levantar-se contra a autoridade legalmente constituída.”
390
Os jesuítas, por sua vez, não negavam sua posição, nem tão pouco tentaram
dissimulá-la, orgulhavam-se em ser sempre “firmes columnas en todo lo relativo a la
fidelidad debida a nuestros monarcas católicos” e condenavam duramente “El insolente
atrevimiento de los que se levantaron contra el rei católico y sus ministros (…).”
391
Os inacianos reafirmavam que os comuneros tinham interesse nos índios
reduzidos, pois “se persuadían de que, una vez cumplido este su deseo, se harían
inmensamente ricos, repartiéndose, a cada uno según sus méritos, una buena porción
de neófitos que los sirviesen.”
392
A postura adotada pelos inacianos em relação aos
comuneros fez com que Antequera se mostrasse “en delante ofendido por la Compañía
y desafecto a ella(…).” Diante disso, os asuncenos souberam se aproveitar do impasse
que se estabelecia e “en seguida comenzaron los émulos de la Compañía, muy
abundantes allí por la consabida causa con un odio casi hereditario, a poner en
388
C.A., 1720-1730, p.50.
389
Idem. Ibidem.
390
FRANZEN, 2003, p. 91.
391
C.A., 1735-1743, p.294.
392
C.A., 1720-1730, p. 50.
118
movimiento sus diligencias, a fin de prevenir Antequera contra nuestros
misioneros(…).”(grifo meu)
393
A paixão ou ódio , apresentada pelo jesuíta como quase hereditário tinha,
efetivamente, como vimos, origens históricas na fundação das reduções próximas a
Assunção e, também, continuidade, na medida em que é referido constantemente na
correspondência dos inacianos. Antequera, por sua vez, por sua condição de homem
de leis, não se limitou a uma “disputa provinciana” com os jesuítas. Sentindo-se
prejudicado pela ação daqueles que considerava inimigos dentro de seus domínios
afinal, os padres da Companhia dirigiam o Colégio de Assunção e continuavam
influenciando a população local com suas idéias ele buscará, segundo nos revelam os
próprios jesuítas, denegrir sua imagem a “la Audiencia Real con calumnias contra la
Compañía.”
394
O Padre Lozano traduzirá bem a visão que a Companhia de Jesus tinha das
ações dos comuneros de Assunção, que “han mirado por lo común a los jesuítas desde
que tuvimos reducciones de indios como a enemigos declarados”, e que, diante do
novo impasse, haviam “enderezado contra nuestro crédito la terrible incesante batería
de todo género de embustes, ficciones y falsos testimonios para deshonrarnos en todo
los tribunales de este Reino y em el Real Supremo Consejo de Indias.”
395
Como se vê, o
ódio-paixão permeia os relatos jesuíticos e acabará determinando uma visão que
reforçará a tragédia que os comuneros teriam provocado.
Antequera e o cabildo secular de Assunção, entretanto, não estavam sozinhos
no ataque aos jesuítas e às ordenanças do Vice-Rei. A audiência de Charcas, sentindo-
se preterida já que o decreto do Vice-Rei que ordenava a restituição de Reyes de
Balmaveda não havia sido enviado através dela , acabou por prover subsídios
jurídicos
396
ainda mais consistentes aos comuneros. Depois, ao utilizar-se do direito de
393
Idem, ibidem.
394
C.A., 1720-1730, p.50.
395
LOZANO, 1905, p.15.
396
“Esta interferencia en la forma de resolver los asuntos de justicia del Virrey brindó a los vecinos de
Asunción el sustento jurídico necesario para mantenerse en su posición negativa a la restitución de
Reyes. Les dio motivo para tener esperanzas, mantenerse en una posición de fuerza y resistir cualquier
resolución que no fuese proveída por ese tribunal.” (AVELLANEDA, 2007, p. 149).
119
suplicação
397
, suspendeu a execução do mandato do Vice-Rei até que se pudessem
esclarecer melhor as acusações contra Diego Reyes Balmaceda , e sugeriu a
nomeação de um Governador neutro para o lugar de Antequera, que só deixaria o
poder com a chegada do novo nomeado.
Os ânimos se acirraram, ainda mais, com a recusa do cabildo de Assunção em
aceitar o novo decreto do Vice-Rei, datado de 8 de junho de 1723, e que depunha
Antequera do cargo e nomeava o Coronel Baltazar García Ros como novo governador
interino O argumento dos comuneros era de que García Ros era aliado de Reyes de
Balmacena, e logo, o conduziria ao poder. A decisão foi tomada em Cabildo Aberto, que
teria se utilizado de “una legislación que aún tenía en cuenta la costumbre como parte
importante del derecho en concordancia con la jurisprudencia del derecho común
utilizado por la Audiência en los casos de justicia.”
398
Novamente, nesse caso, se vê o
embate entre um alegado direito natural - ou antigo , fortemente embasado no
costume, em contraste com a objetividade e centralização que caracterizavam a
legislação bourbônica, marca do novo Estado de Direito. Assim, como na peça clássica
Antígona, a tragédia comunera trazia, bem claramente em seu enredo, a disputa entre o
direito do costume, “del común”, e o direito do Estado Moderno.
A situação se tornava cada vez mais difícil. Pode-se constatar o alinhamento dos
jesuítas com o Vice-Rei na informação de que foi o reitor do Colégio quem deu a notícia
da nomeação do Coronel Garcia Ros ao Mestre de Campo Geral da Província, D.
Sebastián Fernández
399
, e de que o novo Governador vinha acompanhado de milícias
397
Conforme Avellaneda, “la Audiencia, en uso de las facultades que le eran propias para decidir en
casos de justicia, decidió mantener en suspenso las disposiciones del Virrey para informarlo mejor de
todos los motivos comprobados para la destitución de Reyes y las consecuencias negativas para esa
Provincia de insistir en su reposición. Le pedía que mandase retirar a Antequera y que proveyese un
sujeto independiente para su gobierno. Aguardando alguna resolución de su parte, despachó una
provisión para que Antequera, Reyes y los capitulares vecinos de Paraguay se mantuviesen de paz bajo
las mayores penas en el ínterin que el Virrey, en vista de lo representado, ordenase lo que tuviese por
más conveniente y lo que fuese resuelto se lo haría participar por esa Audiencia. Sabemos que la
Audiencia debía legislar sobre asuntos de justicia y podía oponerse a una Ley o mandato superior por el
derecho de suplicación, fuertemente arraigado en la legislación indiana hasta mediados del Siglo XVIII, si
consideraba que podía acarrear daños mayores a los afectados por esa disposición. El recurso de
suplicación obligaba a revisar o enmendar decisiones erróneas de la autoridad superior, y con ello
quedaba en suspenso la ejecución de la medida hasta recibir el segundo mandado que tenía fuerza de
Ley superior.” (AVELLANEDA, 2007, p.149).
398
Idem.p.148.
399
A. G..A. ,1728, p.38 apud AVELLANEDA, 2007, p.149.
120
de índios Guarani que o Vice-Rei havia solicitado
400
. Isso, é certo, gerou um imenso mal
estar entre os jesuítas, Antequera e os cabildantes. Apesar deste prestígio, os jesuítas
não desconheciam que não contavam com um grande número de aliados na cidade,
pois, além do Bispo do Paraguai e de parte do Cabildo Eclesiástico somente “una
minoría de encomenderos, algunos parientes del gobernador Diego de Reyes, algunos
miembros del cabildo secular y los habitantes de Villa Rica quienes mantenían
relaciones comerciales con las reducciones”
401
, estavam a seu lado e muito pouco
poder tinham para agir em sua defesa. A expulsão dos jesuítas de Assunção começava
a se desenhar.
A situação teria ficado tão tensa, que o próprio Antequera teria agido para
“calmar los ánimos y las reacciones violentas contra los religiosos, porque sabía cuales
eran los límites del derecho natural y la necesidad de respetar la inmunidad
religiosa.”
402
O padre Lozano (1905), no entanto, discorda dessa informação, e em sua
obra Historia de las Revoluciones de la Provincia del Paraguay”, responsabiliza
Antequera, não apenas por ter fomentado o levante, como também por atos de
hostilidade contra os jesuítas.
Com a notícia de que as tropas lideradas pelo Coronel Ros já se posicionavam
diante de Assunção e se preparavam para invadir a cidade em armas, detê-lo e mandá-
lo preso a Lima
403
, Antequera, respaldado pelas leis do Direito Común, resolveu
“defenderse contra el delegado del Virrey com tropas reunidas de toda la provincia.”,
antes, porém, “mandó que los jesuitas del colegio de la Asunción abandonasen la
ciudad.”
404
Se até aqui, no primeiro ato desta tragédia, a paixão protagonista foi o ódio tão
presente na relação entre asuncenos e jesuítas quando o epílogo do primeiro ato se
aproxima, esta paixão alcança seu ápice em uma cena de intensa força e sensibilidade.
400
O Vice-Rei enviou ordens aos jesuítas para que estes preparassem os Guarani para o combate com
os asuncenos. Segundo a Carta Ânua dos anos de 1720-1730, nas reduções mais próximas a Assunção,
estava sendo preparada “la expedición militar, y nosotros no podíamos menos que enviar los indios que
se pedían por encargo del Virrey, el cual, al fin y al cabo, es nuestra legítima autoridad.” (C.A .,1720-
1730, p. 56).
401
AVELLANEDA; QUARLERI, 2007, p.116.
402
AVELLANEDA, 2007, p.153.
403
Capital do Vice-Reinado do Perú, ao qual Assunção encontrava-se sob jurisdição.
404
C.A., 1720-1730, p.57.
121
Os comuneros, tomados pela paixão do ódio, segundo descrição do padre jesuíta, “tan
grande era la excitación de los ánimos”, que nem mesmo a ameaça das mais “terribles
censuras y reservaciones eclesiásticas”
405
, decidem expulsar os jesuítas do Colégio. A
ação que seguiria seria marcada pelos excessos típicos da paixão: parte dos
asuncenos, liderados por Antequera, deram um prazo de “dos o tres horas” para que os
inacianos abandonassem o Colégio. Se os padres resistissem “haria bombardear
templo y colegio, para sepultarlos bajo las ruinas “. Não restava outra atitude a não ser
a que tomaram os jesuitas: “cedieron a la violencia, viendo que en tal perturbación de
los ánimos no sacarían nada con oponerse (...).”
406
Ao protagonizar esta última cena, o ódio-paixão acaba desencadeando um outro
sentido da paixão, aquele que é considerado o mais sublime e puro, e que tem forte
ligação com a religiosidade e com a figura do próprio Cristo
407
, o sofrimento! A
descrição da expulsão dos jesuítas do Colégio de Assunção, assim como os fatos que
se sucederam a ele, merecem ser descritos, de modo que se perceba o recurso
retórico, quase poético, utilizado pelo padre cronista.
Y se marcharon a pie, a la caída de la tarde, por la ardiente arena del camino,
fuera de la ciudad, sin llevar nada del colegio sino sus breviarios (...) Siguiéndoles
buen numero de gente llorando, en especial los alumnos del colegio, los cuales
vinieron a tropel para despedirse entre llantos de los desterrados, no menos
como si asistieron a la muerte de sus padres (...) Pasaron los jesuitas
aquella noche triste en el rancho de una pobre india, comiendo sólo un
punhado de maiz. Al aclarar el día, siguieron ellos su camino hacia los pueblos
de las misiones de la Compañía, cuando los detuvo de improviso el canónico
de Paraguay Alonso Delgadilho proveyéndolos con cariño de bastimiento,
y protegiéndolos contra la soldadesca rebelde alli estacionada, que los
habían recibido con insultos y sibildos, ya así siguieron adelante por espesos
montes, por fangosos pantanos, y por las inclemencias de la temporada. Hasta
llegar al fin y ser recibidos por la amable hospitalidad de los indios Guaraníes y
sus misioneros en los pueblos de nuestras misiones. (grifo meu)
408
Creio que esse relato não deva ser utilizado apenas para reconstituir a sucessão
de fatos ocorridos em Assunção e que estavam sendo informados ao Provincial jesuíta
405
Idem, p. 58.
406
C.A., 1720-1730, p. 57.
407
Desde há muito, o sofrimento protagonizado por Cristo em favor da remissão dos pecados humanos,
que inclui a via crucis e a crucificação de fato, é chamado de “Paixão de Cristo”. A palavra paixão, assim
utilizada, tem origem na pathós dos gregos que, além de outros sentidos, significava o sofrimento e
mesmo a doença. Os inacianos também usaram o termo paixão nesse sentido, conforme se pode ver na
descrição de uma flagelação que o padre missioneiro realizou exatamente durante o “Sermón de la
Pasión” (C.A. 1735-1743, p.206)
408
C.A., 1720-1730, p. 57,58.
122
e às instâncias superiores da Companhia em Roma. Ao descrever a expulsão, o padre
recorre a recursos retórico-narrativos com o objetivo de fazer com que o leitor (ou o
ouvinte) sinta aquilo que os padres sentiram, e mais do que isso, propõe uma
aproximação entre o ocorrido em Assunção com o que havia ocorrido na Palestina, e
que havia envolvido aquele que era a própria razão de ser da Companhia, o Cristo. A
saída dos padres jesuítas de Assunção, extrapolando a descrição feita em papel,
parece ter sido experenciada pelos padres como uma Via Crucis real.
A saída violenta e apressada do Colégio, que impediu que levassem seus
pertences, a caminhada a pé, o choro de muitos como se a morte tivesse ocorrido de
fato, tudo parece lembrar a noite da Paixão. O Cristo que fora preso no jardim do
Getsêmani, privado de estar entre os seus
409
, a postura de resignação e de não
violência, a caminhada forçada pelas ruas de Jerusalém, o choro daqueles que, sem
poder interferir, por medo ou impotência, se resignavam a chorar e a compartilhar o
sofrimento, como Pedro que “chorou amargamente”
410
por ter negado a seu mestre.
Ao cair da noite, já sozinhos, os padres dependeriam da caridade de uma velha
índia, que não tinha mais o que lhes dar a não ser um pouco de milho pobre
retribuição para aqueles que sofriam por defenderem os índios Guarani daqueles
homens tomados pelo ódio. A noite do Cristo também havia sido um momento difícil,
também havia sido abandonado pelos seus, exposto ao sofrimento da fome e da dor
também por ter uma missão a cumprir a de “salvar os pecadores”
411
Quando o dia amanhece, os padres cedo retomam seu caminho, são recebidos
por um grupo de soldados leais a Antequera, com insultos e assobios. As semelhanças
da narrativa são impressionates. Também Cristo fora insultado pelos soldados
romanos, que “zombavam dêle, davam-lhe pancadas e, vendando-lhe os olhos diziam:
Profetiza-nos quem é o que te bateu. E muitas outras cousas diziam contra êle,
blasfemando.”
412
. Os jesuítas, contudo, se viram aliviados de algumas privações com a
ajuda inesperada do Canônico do Paraguay, Alonse Delgadilho, que lhes deu comer e
lhes livrou dos soldados insolentes. O Cristo, não havia tido tanta sorte, tendo sido
409
LUCAS 22:47-53.
410
MATEUS 26:75.
411
I TIMÓTEO 1:15.
412
LUCAS 22:63-65.
123
ajudado apenas por um tal de Simão Cirineu que carregou a cruz por um tempo após
ter sido obrigado a fazê-lo
413
.
A ajuda inesperada do Canônico do Paraguai foi um alento, mas durou pouco. O
caminho de sofrimento dos padres continuou através de altos montes, grandes
pântanos que dificultavam em muito a locomoção, tudo isso sob as intempéries do
clima. O alívio final só veio com a chegada às missões, onde foram recebidos
amigavelmente pelos índios Guarani que tanto haviam defendido e pelos irmãos da
Companhia. O sofrimento do Cristo também havia sido longo, vários julgamentos,
insultos, chicotes, uma interminável caminhada levando a cruz e, depois, a crucificação
e a dor de morrer tendo o corpo perfurado e suspenso por pregos. O sofrimento de
Cristo também teve seu fim, e assim como os jesuítas, só descansou quando “voltou
para casa”, quando pôde, finalmente, dizer: “Pai, nas tuas mãos entrego meu
espírito!”
414
Já em segurança, em uma das missões da Companhia, na qual foram acolhidos
e tidos, provavelmente, como heróis-mártires, os jesuítas dedicaram-se a relatar o que
lhes havia acontecido, não se furtando em seu afã de serem imitadores de Jesus
Cristo de estabelecer a ligação entre seu sofrimento e o do Salvador e de divulgarem
que haviam vivido também a sua Paixão. A saída de Assunção será, assim, descrita na
Ânua de 1720-1730: “tan revuelto entonces, que la ciudad de la Asunción era vivo
retrato de Jerusalém en aquella noche, en la cual los fariseos habían sublevado a todo
el mundo para que pusiesen mano al Salvador del mundo.”
415
Assim como nos comuneros, também nos jesuítas a paixão se manifestou,
levando-os a terem uma atitude de resignação cristã diante do sofrimento que lhes fora
imposto, como se constata nesta passagem, em que o Padre Blas Riechinger, em seu
leito de morte, afirma: “rogó a Dios que le alargase un poco la vida, para poder sufrir
413
“Ao saírem encontraram um Cirineu, chamado Simão, a quem obrigaram a carregar-lhe a cruz.”
(MATEUS, 27:32)
414
LUCAS 23:46. Interessante notar, também, que ainda durante o interrogatório perante o Sinédrio, o
Cristo havia predito que, após todos aqueles sofrimentos poderia de novo voltar ao seu lugar, disse ele:
“Desde agora estará sentado sentado o Filho do homem à direita do Todo-poderoso Deus”(LUCAS
22:69)
415
C.A., 1720-1730, p.58.
124
más por su amor (a Deus).”
416
Ao serem questionados sobre o porquê de tamanha
afronta não ter sido punida com sanções eclesiásticas, os jesuítas costumavam
responder “que tenía motivos el jues eclesiástico”
417
. O relato da expulsão do Colégio
marcado pelo sofrimento suscitou ira para não dizer ódio nos corações daqueles
que o leram ou ouviram. Enquanto os inimigos da Companhia tomados também pela
paixão não só não dariam ouvidos às sanções, o Cabildo Eclesiástico poucas
condições teria de assegurar a aplicação das punições, por “lo demás afecto a la
Compañía”
418
. A paixão, o ódio, pelo que revela a documentação, foi vivida
intensamente pelos dois lados envolvidos no conflito.
Como já referido anteriormente, a Companhia havia sido alvo, durante todo este
tempo, da oposição de vários moradores de Assunção, revoltados por não poderem se
apoderar da mão de obra indígena. A consciência em relação a esta oposição deve ter
contribuído para que considerassem que uma solução bélica fosse o único meio para
sua redenção e vingança. Não é, também, difícil supor que no imaginário jesuíta, o
pecado cometido por Antequera e pelos moradores de Assunção deveria,
necessariamente, ser purgado, e que os instrumentos de penitência usualmente
empregados para tal fim bem poderiam ser as armas das milícias guaranis.
Segundo Avellaneda, quando as tropas se posicionaram diante de Assunção, os
jesuítas perceberam que o enfrentamento através do uso das armas era a única saída
possível “para cumplir con las órdenes del Virrey y defender sus reducciones, su
Colegio, y sus haciendas de un enemigo tan obstinado. En la intimidad estaban
convencidos de la fuerza superior de sus milicias y subestimaban el valor de sus
416
O obituário do Padre Blas Riechinger refere que ele, em grande sofrimento, rogou a Deus que lhe
permitisse estender seu martírio: “Y así, para contestar debidamente a Jesús crucificado, durante los dos
meses de su última enfermedad, cuándo ya no podía comer, ni dormir, (sufriendo él, como afirmaba
alguien, en verdadero martirio), no profería él palabra, que no era señal de su singular paciencia, y invicta
constancia. Ya entrando en agonía, rogó a Dios que le alargase un poco la vida para poder sufrir
más por su amor. Para corresponder a Jesús amante, se enardecía tanto en amor suyo, mayormente,
se enardecía, al decir misa, que inspiraba fervor y piedad a los que le miraban(...)Consumióle, parece el
amor a Jesús. Pues, en la fiesta del Santo Nombre de Jesús nuestro Padre Blas, que sufrió un ataque
cardíaco, por la vehemencia de su amor, la cual le causó su última enfermedad y su temprana muerte.”
(grifo meu) (C.A., 1750-1756, p.133)
417
C.A., 1750-1756 p. 133.
418
C.A., 1720-1730, p. 58.
125
enemigos.“
419
Para tanto, Avellaneda se apóia em carta enviada pelo padre da Missão
de Santa Rosa ao Coronel Garcia Ros, em 11 de agosto de 1724, e arquivada no
Arquivo General de Asunción, na qual ele aconselha que para manter os indígenas
ocupados e mobilizados para a batalha “es necesario dar un asalto a la habitación de
los principales para mantener el fervor de la guerra, coger algunas armas del enemigo,
ropa, caballos, armas.” Na mesma carta, fica bem evidente uma visão triunfalista,
orgulhosa até, pois segundo o padre, não havia razão para temer o conflito, já que “(...)
cada índio vale por muchos paraguayos porque estos son soldados y aquellos no saben
que es pelear (...) sí ellos hacen campo serán carnaza para los cuervos aun ellos se
podrán en cobro.”
420
Os fatos ocorridos no campo de batalha, entretanto, parecem ter efetivamente
surpreendido os inacianos. Segundo o relato do padre Lozano, a movimentação teria
sido encarada pelos Guarani não uma ação militar, mas uma comemoração pela festa
de São Luiz sem o consentimento do Coronel García Ros utilizando, para tanto, de
formações militares, bandeiras e armas
421
. Informados de uma movimentação e avanço
das milícias guaranis, os asuncenos teriam optado por um forte ataque-surpresa, sem
dar tempo ao exército leal ao Vice-Rei para reagir. Isto parece ser reforçado pelas
informações de que o comandante teria acabado de almoçar e que os soldados
espanhóis dormiam a siesta. O certo é que, os comuneros tomaram a movimentação
como uma ação ofensiva, e (re) agiram violentamente. O exército das forças legalistas
pego de surpresa como foi dito acabou sofrendo muitas baixas, o Coronel García Ros
abandou o campo de batalha em fuga, assim como seu Estado Maior. Houve
numerosas baixas entre os Guarani, e, conforme a documentação do Cabildo de
Assunção, cerca de 150 indígenas foram feitos escravos.
O envolvimento dos jesuítas na batalha, das milícias guaranis comandadas pelo
Coronel García Ros e dos asuncenos, se consideradas as alegações do Cabildo
Secular de Assunção, foi muito além do sentimento de ódio, de desejo de vingança ou
de purgação dos pecados cometidos pelos moradores de Assunção. Segundo o exhorto
de 26 de agosto de 1724 que requeria que Antequera se dirigisse às quatro primeiras
419
AVELLANEDA, 2007, p. 152.
420
A.G.A.,1724, p.91 apud AVELLANEDA,2007, p. 155.
421
Conforme LOZANO, 1905, p. 193.
126
reduções e de lá expulsasse os jesuítas as razões eram claras, já que os inacianos
“cuyos hechos demás de estar incursos en la irregularidad y de ser incapaces de
administrar el oficio de párocos por la sangre que se había derramado de españoles e
indios.”
422
Ainda, segundo o Cabildo secular de Assunção, os religiosos de Santa Rosa
y San Ignacio, teriam sido presos “con armas de guerra”, enquanto os outros religiosos
teriam se “involucrado directamente en la guerra.”
423
A documentação produzida pelos
jesuítas, por sua vez, não corrobora essa versão. As Cartas Ânuas que utilizei como
fonte principal não só, não sustentam a participação efetiva dos jesuítas no campo de
batalha, como referem as constantes calúnias de que os jesuítas teríam sido alvo.
De fato, o epílogo do primeiro ato da trágedia” da Revolução dos comuneros,
parecia ainda bem distante. Os asuncenos, liderados por Antequera, não satisfeitos
com os 150 escravos feitos em batalha, ainda tentariam cumprir o seu maior desejo, há
muito denunciado pelos jesuítas, de invadir as reduções e fazer com que os índios
fossem “desaforados a sus pueblos y sujetos a servidumbre perpetua de los
españoles”. A motivação, entretanto, não parecia ser só de ordem econômica. O ódio
presente há tanto tempo nas relações asuncenos-jesuítas-guaranis, devia ser saciado e
aplacado: “y a lo mas piadosos reducirlos a los otros pueblos de indios inmediatos a
dicha ciudad para la sujeción de tanto orgullo y voracidad en que estaban impuesto y
acostumbrados contra españoles por sus doctrineros y superiores (…)”
424
O desejo de vingança dos asuncenos, entretanto, não pôde ser saciado. O
exército rebelde, ao entrar na redução de Nra.Sra. de la Fé, a encontrou vazia, pois
índios e padres haviam se refugiado nos montes. A investida contra a redução de Santa
Rosa também não foi diferente. Assim, o primeiro ato da “tragédia” da Revolução dos
comuneros, terminava, sem que nenhum dos lados fosse de fato vencedor. Os jesuítas,
expropriados de seus bens e privados do exercício de suas atividades em Assunção,
haviam, junto com suas milícias Guarani, sofrido uma grande derrota militar diante dos
asuncenos, sem poderem fazer cumprir o mandato do Vice-Rei. Os paraguaios, por sua
vez, liderados por Antequera, ainda que vitoriosos no campo de batalha, não puderam
422
A.G.A.,1724, p.105 apud AVELLANEDA,2007, p. 155.
423
Idem, ibidem.
424
A.G.A., 1724, p. 106 apud AVELLANEDA, 2007, p. 156.
127
escravizar e submeter a mão de obra indígena das reduções próximas, nem tão pouco
satisfazer seu “ódio quase hereditário” contra jesuítas e indígenas. O ódio, assim,
continuava a crescer e adquiria novas nuances a cada nova cena da “tragédia”
comunera.
Os moradores de Assunção, por mais que estivem bem orientados juridicamente
por Antequera, baseavam sua argumentação em uma legislação, que em tempos de
reformas bourbônicas, estavam sendo duramente contestadas. Sabiam que ao
rechaçar o Governador nomeado pelo Vice-Rei, estavam fadados a sofrerem sanções
e, mesmo, outras investidas militares, caso o conflito não chegasse a bom termo. É
sabido que, pelo menos, parte de seus temores se tornaram realidade, pois o Vice-Rei,
informado do acontecido, deu ordens ao Governador de Buenos Aires para que
interviesse e solucionasse o conflito. Bruno Mauricio de Zavala, respaldado por um
exército de 6000 índios Guarani que não chegaram a guerrear entrou em Assunção
e de forma pacífica restabeleceu a ordem. Para tanto, nomeou como Governador a
Martín de Barúa, um nome de consenso. Antequera foi preso e mandado para Lima,
onde, pessoalmente, assumiu sua defesa. Posteriormente, seria condenado à morte,
como punição exemplar para que não houvessem outras insubordinações à autoridade
do Vice-Rei. O primeiro ato, finalmente, chegava ao fim, mas não a “tragédia”.
O segundo ato se deu durante o governo de Martín de Barúa (1725-1731). Este
não seria marcado por atos de violência explícita, mas pela fermentação do antigo ódio
através de batalhas judiciais, intrigas e jogos políticos. De um lado, os comuneros se
empenharam em justificar suas atitudes e minimizar suas punições e em impedir a volta
dos padres Jesuítas a Assunção. De outro, os jesuítas, temerosos de novas tentativas
de invasão das reduções, procuraram sair de baixo da jurisdição de Assunção, e, para
tanto, recorreram a instâncias legais e usaram de toda sua influência.
Se, no primeiro ato desta “tragédia”, os comuneros obtiveram uma vitória, ainda
que parcial, neste segundo ato, as “armas” utilizadas pelos jesuítas, nos tribunais e
instâncias de poder, foram bem mais eficientes. Considerados como as maiores vítimas
do embate bélico, afinal, estavam a serviço da coroa, recorreram às instâncias de poder
na busca de reparação e de proteção contra novos ataques. Como “recompensa y ante
la inseguridad instalada en las misiones por la derrota en el río Tebicuary, la Compañía
128
de Jesús logro obtener, en 1726, una Cédula Real que ponía fuera de la jurisdicción del
Paraguay a sus reducciones.”
425
Esta vitória jurídica muito agradou os jesuítas, que,
depois de muitos anos de instabilidade e de medo, acreditavam que os índios das
reduções poderiam se ver livres das ameaças dos asuncenos.
Entretanto, a Cédula Real traria outras conseqüências, já que de “hecho retraía
la frontera de la provincia al sur del río Tebicuary, junto con los nuevos gravámenes
punitorios impuestos al comercio de Paraguay para financiar la defensa del puerto de
Santa Fe, profundizaron, aún más, las tensiones.”
426
As punições impostas aos
rebeldes, somadas ao fim da possibilidade de obter farta mão de obra indígena para
suas propriedades, acabaram por alimentar ainda mais ódio já existente dos
comuneros pelos jesuítas.
Para os asuncenos, entretanto, nem tudo havia sido derrota neste segundo ato.
Auxiliados pelo novo governador, que apoiava grande parte de suas demandas, a ponto
de ao visitar as missões “sugirió al Rey y a su Consejo poner corregidores españoles en
ellas”
427
, conseguiram protelar por cerca de três anos a volta dos jesuítas ao Colégio de
Assunção. Os inacianos, é claro, não permaneceram de braços cruzados. Sabiam, que
sua volta a Assunção, não dependia só de expedientes legais, afinal, o Cabildo de
Assunção, muitas vezes, havia acatado decisões do Vice-Rei, sem, entretanto, cumpri-
las. Para tanto, souberam aliar ação, pressão política e as boas relações mantidas com
as instâncias de poder. Apesar de ansiosos com a demora, já que “el destierro duró tres
años y medio”, os jesuitas se viam forçados a reconhecer que “aunque la Audiencia de
La Plata y el Virrey de Perú (...) había hecho lo posible para hacer volver a la
Compañía, se frustraron sus empeños por las dificultades de la distancia”.
428
Sabiam, entretanto, qual era o verdadeiro entrave para sua volta ao Colégio de
Assunção. Mesmo quando obtinham uma vitória jurídica, como a Provisión de la
Audiencia Real, fecha de 1º de Marzo de 1725”, que ordenava o retorno dos jesuítas as
suas possessões, o Cabildo secular agia e apelava “al Rey, para quitarle su valor
425
AVELLANEDA; QUARLERI, 2007, p. 117.
426
AVELLANEDA; QUARLERI, 2007, p.117.
427
Idem, p.116.
428
C.A., 1720-1730, p.60.
129
jurídico.”
429
Como foi dito, esse segundo ato é um momento em que as batalhas se dão
fora do front, as armas são o bom uso das leis, os bons contatos políticos e as
influências. Os jesuítas, mais uma vez, demonstraram que sabiam fazer uso destas
armas. Diante da irredutível posição do Cabildo de Assunção em aceitar a volta dos
inacianos ao seu Colégio, fizeram saber ao Vice-Rei de mais esta “afronta” à
Companhia. De Lima, o Vice-Rei se disse surpreso com a não reintegração dos
jesuítas, e constatava que isto, com certeza, era “consecuencia de las intrigas de
alguns malévolos habitantes, y los cuales obcecados por la pasión, pretenden
impossibilitar aquela justa satisfación.”
430
Interessante notar que neste documento
oficial, o Vice-Rei não só reconhecia as ações do jogo político que tentavam retardar o
cumprimento de suas ordens, mas as justificava como sendo conseqüência da paixão.
O ódio, como paixão, portanto, não só teria produzido ações violentas e impensadas,
como teria determinado o uso de estratégias próprias do jogo político e do qual teriam
resultado as intrigas. Por outro lado, a paixão era responsabilizada por promover um
comportamento obsessivo que cegava a todos e impedia o cumprimento da lei.
Diante do comportamento obsessivo e apaixonado dos comuneros, não restou
ao Vice-Rei, tomar outra atitude que não a da ameaça do uso da violência oficial. Em 3
de setembro de 1727, ele decretava que caso suas ordens não fossem cumpridas,
qualquer liderança político-adminstrativa de Assunção poderia se “considerar depuesto
de su oficio, cualquiera que había sido el cargo que desempeñaba, que sus bienes
serían secuestrados, y que su persona publica e privada, cargada de cadenas, sería
deportada a Lima.”
431
Diante dessa última ameaça, os comuneros aceitaram a volta
dos jesuítas ao Colégio de Assunção, marcada para a data de 18 de fevereiro de 1728.
O fato de os comuneros terem aceitado, ou melhor, terem sido obrigados a
aceitar que os jesuítas voltassem a Assunção não significou, entretanto, que mudariam
seu comportamento em relação a eles, ou que seu ódio tivesse acabado. Segundo
Alícia Pioli, “renovaram-se as calúnias, as vexações e os Padres foram acusados até de
cometer crimes.”, sobretudo, “com a aparição de um panfleto cheio de injúrias aos
429
Idem, ibidem.
430
C.A., 1720-1730, p. 62.
431
Idem, p. 63.
130
jesuítas.”
432
, que teria causado grandes provações aos Padres, sendo “indecible,
cuanto hicieron sufrir a los nuestros por innumerables vejaciones y calumnias”, a ponto
de serem os inacianos chamados de “traidores de la patria”.
433
Os comuneros, inconformados em terem de conviver com seus maiores inimigos,
os jesuítas, se valeram de todos os subterfúgios e ataques possíveis, perseguindo
“rabiosamente nuestra sagrada ordem”, de forma que “aumentábase de día em día la
audacia de la gente perdida.”
434
Os jesuítas, por sua vez, consideravam que a moral e a
religiosidade em “una cidad que no tiene respeto a las cosas sagradas y no hace caso
de su obispo. haviam se deteriorado muito durante o período de sua ausência, e
aproveitavam toda e qualquer oportunidade para criticar o Governador, dizendo que os
asuncenos não tinham “autoridad estable que podía temer.”
435
A situação de caos social seria decorrente do longo período em que a cidade,
respaldada pela antiga legislação “del comun”, havia se negado a obedecer as
determinações do Vice-Rei. Descrita pelo jesuíta relator da Carta Ânua como uma
cidade tomada por um “estado verdaderamente caótico, haciendo cada uno lo que le
autorgaba, impunemente.”
436
, Assunção mereceria a seguinte observação do Pe.
Lozano, em sua “Historia de las Revoluciones de la Provincia del Paraguay (1721-
1735)”: “una confusa Babilonia.
437
Acredito que ambas as descrições feitas sobre a cidade Assunção remetem ao
imaginário jesuíta. A primeira, que emprega o termo caótico, enfatiza que nela cada um
agia como bem entendia, permitindo o estabelecimento de uma relação com o conceito
de barbárie já abordado nesta dissertação. Se recorrermos, mais uma vez, à tragédia
“Antígona”, podemos dizer que a opção comunera de defender os princípios jurídicos
antigos uma espécie de “direito natural” , anteriores às reformas bourbônicas , foi
encarada como responsável por manter a cidade num certo “estado de natureza”, como
diria Hobbes
438
. Esse “estado de natureza” foi bem traduzido pelo jesuíta Juan de
Mariana, ainda no século XVI, ao afirmar que nele “confiando cada um em suas
432
PIOLI, 2002, P. 167.
433
C.A., 1730-1735, p.41.
434
Idem, ibidem.
435
C.A., 1730-1735, p.41.
436
Idem, ibidem.
437
LOZANO, 1905, p. 155.
438
HOBBES, 1999, p.107.
131
próprias forças, aqueles que podiam se arrojavam contra a vida e a fortuna dos mais
fracos (...) Aonde poderia a pobreza e a inocência encontrar abrigo contra tantos
latrocínios, saques e matanças?”
439
Ou seja, na ausência de um estado de direito, as
pessoas agiam cada uma a sua maneira, seguindo suas paixões, e, portanto,
estabelecendo o caos social.
A segunda descrição a do Pe. Lozano remete a uma comparação entre a
Assunção sob a administração comunera com uma confusa Babilônia. As imagens
existentes sobre a Babilônia no imaginário judaico-cristão são, pelo menos, duas. A
primeira se refere a ela como meio e lugar de castigo e purgação do povo judeu, que
havia se afastado da vontade de Jeová. Jeremias predisse que Judá cairia frente a
Nabucodonosor, que Jerusalém seria entregue “nas mãos do rei da Babilônia, o qual a
queimará a fogo”
440
, e que, após ser invadida, saqueada e queimada, teria quase toda
sua população levada cativa para a Babilônia
441
. É bem possível, portanto, que ao se
referir a Assunção como uma confusa Babilônia, o historiador da Companhia de Jesus
estivesse estabelecendo uma relação em que a cidade “construída” pela administração
comunera, fosse seu próprio castigo e lugar de purgação.
Em uma outra descrição da situação da cidade, já do período posterior à
segunda expulsão jesuíta, Assunção é descrita como um lugar onde “muchos casi
perecieron de hambre, y hasta hoy día perduran y se aumentan odios mortales de unos
contra los otros”. O relato segue, destacando que “no están seguros ni los padres de
sus hijos, ni los hijos de sus padres; y no se mantiene estable ningún gobierno. Todo
está revuelto y perturbado como una confusión babilônica.”
442
Em um trecho da Carta
Ânua de 1730-1735, encontramos a mesma figura de linguagem a Babilônia que é
empregada por Lozano na obra já citada, o que se explica pela atribuição a Lozano da
autoria dessa Carta
443
. Nela, o ódio/paixão é, novamente, a figura central, sendo, a um
439
MARIANA, Juan de. In: EISENBERG.José. As Missões Jesuíticas e o Pensamento Político
Moderno. Encontros culturais, aventuras teóricas. Belo Horizonte: UFMG,2000, p.119.
440
JEREMIAS 34:2.
441
Idem 39:9
442
C.A., 1730-1735, p.44.
443
Sobre a autoria da Carta Ânua de 170-1735, nos diz Alicia Piolii:“Nesta carta, assinada pelo Provincial
Jaime de Aguilar, mas escrita por Lozano, segundo Fourlong e Leonhardt, que dizem também que parece
ter sido retocada por outro Padre para fazê-la mais fluente e menos densa, o autor retoma o tema que
parecia estar truncado ma Ânua anteiror. (PIOLLI, 2002, p.166)
132
só tempo, a geradora do conflito e a resultante dele, o pecado gerador do caos e o
próprio castigo
444
.
A outra simbologia bíblica para Babilônia tem estreita ligação com a idéia de
pecado e de perdição, de parte de alguém que se afastou daquilo que deveria ser ou
fazer. Sobre a visão profética da queda da Babilônia diz o Apocalipse que “todas as
nações têm bebido do vinho do furor da sua prostituição. Com ela se prostituíram os
reis da terra. Também os mercadores da Terra se enriqueceram à custa da sua
luxúria.”
445
O termo furor
446
também poderia ser traduzido como ira ou raiva termos
próximos ao conceito de ódio ou ainda, como uma variação da idéia de paixão. As
idéias de caos e confusão babilônica, portanto, são complementares e muito
semelhantes. A cidade sob forte influência comunera, ou sob sua administração direta,
estava longe do ideal de obediência cega às ordens do Estado bourbônico, apregoado
e defendido pelos jesuítas. O ódio/paixão era não só a razão da rebelião, o causador do
caos social que os jesuítas relatavam em sua correspondência, como o castigo que
sobre ela se abateu. Isso porque, ao se colocarem sob a égide do ódio/paixão, sendo
ele de natureza carnal
447
, os comuneros teriam se afastado do ideal de Estado moderno
e racionalizado. A conseqüência disso teria sido o descontrole característico do “estado
de natureza”, que o imaginário político da época como também no encontrado em
Hobbes e De Mariana relacionava com uma vida regida pelas paixões, em que cada
um buscava seu próprio bem, expondo a coletividade à instabilidade e à violência.
Ainda que os jesuítas atribuíssem à administração comunera a inexistência da
presença do Estado e o caos social, não era assim que os asuncenos se percebiam.
Pelo menos até esse momento, haviam baseado suas ações em uma antiga legislação
444
Um importante antecedente da percepção da paixão como simultaneamente aquela que gera o
pecado e que é o próprio castigo está na Carta de Paulo aos Romanos. O apóstolo abre a Carta com
uma reprovação aos diversos “costumes gentios”, entre eles a prática da homossexualidade. Á paixão
nesse caso, como aqui, é atribuída dupla função. Primeira como geradora do pecado “pela
concupiscência dos seus próprios corações” (ROMANOS 1:24) - o termo aqui, no original é epitumía
desejo ardente também traduzido como paixão-, e depois como castigo por seus atos “por causa disso os
entregou Deus a paixões infames” (ROMANOS 1:26) - o termo em grego Koiné é pathos raiz principal da
nossa palavra paixão.
445
APOCALIPSE 18:3.
446
A palavra no original grego é thimos, que pode ser traduzida por ira e raiva. Em um texto correlato,
APOCALIPSE 14:8, uma inflexão desta palavra, thimos pode ser traduzida como paixão.
447
A carta de Paulo aos Gálatas descreve as obras típicas da natureza humana carnal, são elas:
“prostituição, impureza, lascívia, idolatria, feitiçarias, inimizades, porfias, ciúmes, iras, discórdias,
dissenções, facções, invejas (...)” (GÁLATAS 5: 20,21) (grifo meu)
133
que consideravam a mais adequada para seus interesses e necessidades. Foi assim,
que, mais uma vez, convocaram o Cabildo aberto para que decidisse sobre a incômoda
presença dos padres jesuítas à frente do Colégio de Assunção.
Sobre este episódio, a documentação jesuítica tece suas críticas: “reunieron,
bajo pretexto piadoso, a los habitantes de las poblaciones vecinas, en numero de más
de 2000 personas, manifestándoles sus ideas y haciéndolas plausibles, pronunciando
precipitadamente la sentencia”, o que teria provocado grande tristeza nos inacianos que
temiam que “de nuevo tuviesen que abandonar la ciudad y su comarca.”
448
Foi, apenas,
com a decisão do Cabildo aberto de Assunção, tomada em 19 de fevereiro de 1732
449
,
que se encerrou o segundo ato da “tragédia” comunera. O tempo em que o ódio/paixão
havia ficado restrito aos tribunais e às assembléias, às intrigas e aos jogos políticos,
acabara. Iniciava-se o tempo em que a paixão voltaria a explodir em excesso e o ódio
assumiria seu caráter de ira e violência.
O terceiro ato se iniciaria com o cumprimento da decisão tomada pelo Cabildo
aberto: os jesuítas deveriam ser expulsos. Por mais incrível que possa parecer, neste
momento, os jesuítas devem ter sentido falta de seu grande inimigo José de Antequera
que havia garantido a imunidade religiosa aos jesuitas. Preso em Lima, ele não mais
podia instruir juridicamente os comuneros liderados, agora, por Mompox “confidente y
compañero de celda de Antequera” que “reavivó la lucha por el bien común y la
extendió al ámbito de la campaña y los presidios.”
450
Além disso, o Cabildo secular
havia sido deposto de suas funções administrativas por uma Junta de Governo formada
pelos Capitães das milícias comuneras
451
. Os ânimos estavam mais acirrados que
nunca. Se antes, os xingamentos e assobios nas ruas eram endereçados somente aos
jesuítas, agora até o representante do Bispo que tentava ponderar com a multidão
enfurecida era alvo de “sibilos e injurias” dos “mais atrevidos de todos los mortales.”
452
O relato da segunda expulsão dos jesuítas de Assunção não apresentará os
mesmos jogos retóricos que caracterizaram o primeiro. Se antes, o recurso
retórico/literário construiu uma “uma paixão jesuítica” um sofrimento vivido em
448
C.A., 1730-1735, p.41.
449
C.A., 1730-1735, p.41.
450
AVELLANEDA; QUARLERI, 2007, p.116.
451
Conforme AVELLANEDA, 2007, p.159.
452
C.A., 1730-1735, p.41.
134
estações como na Paixão de Cristo , a violência e o furor dos moradores que
caracterizaram a segunda expulsão parecem brotar das páginas da Ânua e tomar vida
própria. O relato transcrito a seguir tem por objetivo estabelecer uma comparação com
o primeiro relato e identificar semelhanças e diferenças:
Estaba a la sazón cerradas las puertas de nuestra iglesia y se habían juntado en
ellas nuestros, para aplacar la ira de Dios, por medio de sus súplicas, cuando de
repente llegó a sus oídos la gritería de la gente que se acercaba al colegio,
haciendo aquellos esfuerzos para abrirse entrada por fuerza. Cayó destrozada
la puerta, y ellos, fuera de sí de furor, entraran a tropel, desparramándose por
toda la casa, amenazando que iban a matar a los Padres. Los llenaron de
insultos de toda la clase. Sacároslos por fuerza e ignominiosamente de su
hogar, trasladándolos bajo escolta de unos forajidos al otro lado del rió
tebicuarí unas cuarenta leguas distante.
453
(grifo meu)
As semelhanças entre esse e o primeiro relato estão, a meu ver, no evento que
está sendo narrado a expulsão dos jesuítas do Colégio e da cidade e no uso da
violência em ambos. Há, entretanto, importantes diferenças. Se, na primeira expulsão,
liderados por Antequera juiz versado em leis os comuneros haviam estabelecido um
prazo para que os padres saíssem, na segunda não houve qualquer acordo diplomático
entre as partes. A violência, ainda que presente na primeira, assumiu um caráter de
intimidação, pois, caso não saíssem, o Colégio seria bombardeado. Na segunda
expulsão foi diferente, a violência eclodiu e assumiu grandes proporções.
Ao final da reunião do Cabildo aberto, o grupo já demonstrava qual era sua
intenção, já que os Capitães das milícias comuneras que haviam substituído o
Cabildo Secular “levantaron el grito para marcharse a nuestra casa, y ejecutar
atropelladamente aquel crimen.”
454
. Sob gritos de ordem, marcharam até o Colégio
ação usual de um grupamento militar preparando-se para atacar e, lá chegando, não
propuseram qualquer negociação, e, feito ferozes guerreiros, destruíram a porta do
Colégio. A cena descrita pelo jesuíta relator acaba falando por si. Os comuneros
tomados de furor, fora de si e governados por suas paixões mais primitivas, invadiram a
Igreja. Aos gritos, andavam pela igreja sem considerar sua condição de espaço
sagrado e, aos gritos, ameaçavam matar os padres da Companhia. Antes que os
inacianos pudessem sair da igreja provavelmente, atônitos diante da cena que
presenciavam os próprios comuneros se encarregaram, de violentamente, pô-los para
453
C.A., 1730-1735, p.42,43.
454
C.A., 1720-1730, p.42.
135
fora, e, não satisfeitos, de arrastá-los sob escolta até o outro lado do rio Tebicuarí. Na
seqüência, os bens “de la casa em su totalidad (con excepción de los libros y los
preciosos ornamentos sagrados (...) cayeron em manos de los adversarios que se lo
apropiarán (...) faltó poco que el colegio fuese destruido totalmente.”
455
O que se pode inferir desse intenso início do terceiro ato é que, provavelmente,
este tenha sido o início do momento mais intenso do governo das paixões
456
de toda
essa “tragédia”, um tempo em que “se cometerán muchos excesos”
457
. Mesmo
Avellaneda, que baseou seus estudos sobre a Revolução dos comuneros em uma
proposta de revisão historiográfica, cotejando a documentação produzida pelos próprios
comuneros com a versão produzida pela historiografia jesuíta
458
, concorda que este foi
um tempo de grande convulsão social. A historiadora reconhece que “los últimos tres
años fueron de descontrol social, subversión del orden establecido en el que se
cometieron muchos excesos contra la autoridad Real y contra los bienes de los vecinos
alineados en el bando opuesto.”
459
O movimento, segundo ela, teria se estendido
também “al ámbito rural”, nele encontrando espaço favorável para se desenvolver,
principalmente, após a “muerte a um gobernador enviado por el Virrey”, que implicou a
nomeação do Bispo de Buenos Aires para o cargo
460
.
Se antes o movimento comunero tinha a cidade como base para o exercício do
poder e da administração representada pelo Juiz-Governador Antequera, e o Cabildo
Secular era a instância legislativa, nesse segundo momento, em que o Cabildo secular
é deposto de suas funções administrativas e o Governador enviado pelo Vice-Rei havia
sido morto, quem assumiu o poder, de fato, foram os líderes das milícias rurais. O
campo como sabido, era considerado um espaço de “ignorância” pelos grupos
“ilustrados urbanos”
461
e a figura do caudilho, tipicamente rural se fazia presente como
ator protagonista desde os tempos de Antequera. A constatação de que o movimento
455
Idem, p.43.
456
Retomo aqui a citação inicial deste capítulo, na qual o jesuíta descreve o tempo do governo dos
comuneros como “un tiempo en la cuál solo triunfó la insolencia, tiranía, pasión y venganza.(...)” C.A
.,1735-1743, p.323.
457
AVELLANEDA, 2007, p.147.
458
Cabe ressaltar que Avellaneda se deteve nas obras de Lozano e Pastells, não considerando as Cartas
Anuas sobre as quais me detive nesta dissertação.
459
AVELLANEDA, 2007, p.159.
460
Conforme AVELLANEDA , 2007, p. 147.
461
ROMERO, 2004, p.212.
136
se estendeu da cidade para o campo feita por Avellaneda talvez se deva ao tipo de
documentação que ela consultou, as atas do Cabildo secular de Assunção. Deve-se ter
presente que os cabildantes haviam sido depostos de sua condição de liderança e de
baluarte da defesa da legislação “del comum”, o que pode tê-los levado a
responsabilizar os chefes das milícias rurais tão necessários no campo de batalha
para a obtenção da vitória contra os Guarani pela situação de caos social que havia
se estabelecido em Assunção.
Já documentação jesuítica não faz referência explícita a essa possível mudança
e ao papel definitivo desempenhado pelas lideranças rurais. Referindo-se a Miguel de
Garay, o jesuita relator informa que era “hombre de alta nobleza, era uno de los
principales caudillos de la revolución paraguaya, en tiempo del famoso Gobernador
Antequera y de los comuneros”
462
, sendo que “se adelantó a todos en su odio contra la
Compañía.”
463
Creio que o erro cometido pelos comuneros ilustrados, talvez tenha sido o de
pensarem que podiam suscitar as paixões e, depois, dominá-las e direcioná-las,
conforme sua necessidade, numa prática “astuta ou maquieveliana” que pretendia
“transformar as paixões em forças civilizatórias, graças à “astúcia da razão”.
464
Se os
jesuítas estavam corretos, e a paixão produzia cegueira e ódio, o que pode de fato
ter acontecido é aquilo que se denomina de “razão louca” e que se dá, conforme
Rouanet, quando “a razão, interagindo com a paixão, deixa-se influenciar por ela,
perdendo a objetividade necessária ao conhecimento e mergulhando na falsa
consciência.”
465
O caos social vigente em Assunção não teria nesta perspectiva de
análise sido causado pela forma “bárbara de ser” dos comandantes das milícias rurais
que haviam tomado o poder, mas conseqüência natural da estratégia adotada pelos
comuneros de tentarem fazer uso da paixão como se esta pudesse ser manipulada e
dominada.
462
C.A., 1735-1743, p.142.
463
Idem, p.143.
464
CHAUÍ in: CARDOSO, 2002, p.44.
465
ROUANET, Sérgio Paulo. Razão e Paixão. In: CARDOSO, 2002, p. 451.
137
Referindo-se ao período pós independência
466
, Romero propõe que “o campo
afirmava seu papel de matriz da nova nação quando derramava sobre os campos de
batalha e sobre as amedrontadas cidades, as suas indomáveis multidões a cavalo,
comandadas pelos improvisados chefes que pareciam ignorar o que queriam.”
467
A
aparente ignorância desses líderes referida pelos ilustrados citadinos era, entretanto,
uma ilusão. Segundo ele, “os latifundiários” e seus homens “que se proclamavam
coronéis ou generais transmitiam uma vaga ideologia que o campo também afirmava: o
criollismo, uma indefinida filosofia de vida que mergulhava em suas raízes (...) e tinha
mais força emocional que doutrinária.”
468
Se considerarmos que no campo a paixão teve condições favoráveis para atuar,
a partir da relação paixão-campo-barbárie que analisamos no segundo capítulo dessa
dissertação, é possível concordar com Avellaneda de que a ascensão ao poder pelas
lideranças rurais poderia ter contribuído para o processo de deterioração do estado de
direito em Assunção no período da revolução comunera. Por outro lado, não se deve
esquecer que muitos dos caudilhos rurais também possuíam casas na cidade e
mantinham, em paralelo, uma vida fidalga. Se concordarmos com Walter Benjamin, de
que “nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da
barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é tampouco, o
processo de transmissão da cultura”
469
, as justificativas para os excessos cometidos no
terceiro ato da “tragédia” comunera precisam ser encontradas em outro lugar.
A “força emocional” mencionada por Romero se aproxima de alguma forma
dos argumentos jesuíticos para explicar o descontrole e os excessos que
caracterizaram os últimos anos da Revolução dos comuneros. A documentação
jesuítica refere, recorrentemente, ações que cometidas nesse tempo de “estado de
natureza” eram atribuídas a vidas que estavam sendo controladas pela paixão. Em
um dos relatos sobre os comuneros, o padre diz que “no tenían su tiranía por no
466
Ainda que Romero, nesse texto, esteja se referindo às mudanças ocorridas no eixo de poder no
período pós-independência, creio que sua percepção pode ser útli no sentido de relativizar a posição dos
cabildantes de Assunção que pretendiam atribuir o estado de caos social a uma mal fadada liderança de
origem rural. (ROMERO, 2004, p. 212)
467
Idem, ibidem.
468
Idem, ibidem.
469
BENJAMIN, 1994, p.225.
138
bastante asegurada, mientras no si suprimiese la casa del la compañía de en medios
de ellos (... ) Por esta causa, levantando enormes calumnias, sugeridas por la ciega
pasión y el odio. ” (grifo meu)
470
Para os jesuítas, o tempo de excessos estabelecido
em Assunção estava, menos em quem estava à frente do movimento comunero, se um
ilustrado urbano ou um caudilho rural, e mais no caminho que haviam escolhido para
atingirem seus objetivos.
Desde as primeiras disputas entre asuncenos e inacianos que giravam em
torno da proteção dos indígenas o ódio se fez presente, fazendo com que os
primeiros perdessem o respeito pelas coisas sagradas, abandonassem a reverência
pelos homens santos e passassem a fazer qualquer coisa para alcançarem seus
objetivos. Obcecados por essa paixão que lhes cegava, estes homens se opuseram ao
novo modelo de legislação e administração previsto pelas reformas bourbônicas,
apoiando-se em antigos preceitos legais, que lhes garantiam a autonomia. Não se
deram conta, entretanto, que a posição assumida trazia consigo um preceito perigoso,
pois se a legislação bourbônica podia ser contestada, também os antigos preceitos
legais poderiam sê-lo em outra ocasião.
Os jesuítas nunca esconderam o amor que nutriam pela ordem e o respeito que
tinham pelas leis vigentes, afinal, a hierarquia sempre foi uma marca dos soldados de
Cristo, que acreditavam que a paixão trazia conseqüências graves. O Bispo de
Assunção
471
, escrevendo ao Provincial jesuíta, parece compartilhar da mesma
percepção, ao afirmar que “cualquier ser racional no podia esperar otro engendro de su
loca pásion, que aquellas enormes calunias, que evomitaran con tanta bilis contra unos
misioneros my leales algunos sujetos que se habían puesto fuera de la ley y rebeldes
contra el rey(...).”
472
A paixão, como visto, não era percebida somente como pecado,
mas também como produtora de pecado. Em seu excesso e fugacidade, em sua
incapacidade de se deixar domar e se enquadrar nos esquemas da religião e do Estado
de direito, acabaria se transformando no próprio castigo e no purgatório dos
470
C.A., 1735-1743, p.294.
471
Nesta Carta de 1735, o Bispo de Assunção pede que a Companhia instale uma redução junto aos
índios Tabatines. Interessante notar que para ver atendida a solicitação, o Bispo faz inúmeros elogios à
Companhia de Jesus e esclarece que considerou uma atitude injustificada a sua expulsão de Assunção.
(C.A., 1735-1743, p.389)
472
Idem, p.396
139
revolucionários, numa lógica que remete à confusão babilônica que foi alvo de análise
anteriormente.
O caos social em Assunção teria durado, pelos menos, três anos após a
segunda expulsão dos jesuítas do Colégio de Assunção. No terceiro ato dessa
“tragedia” se “produjeron fracturas al interior del movimiento por el incremento de la
violencia con el asesinato del gobernador Ruiloba y el acaparamiento de encomiendas
y bienes por el descontrol reinante.”
473
Mantida a oposição à autoridade do Vice-Rei
outros dois governadores haviam sido rejeitados anteriormente “al fines del 1733, dio
lugar a un nuevo rearme general de las milicias de las reducciones y al breve
levantamiento de los correntinos que simpatizaban con los comuneros.” A situação em
Assunção e arredores se tornou ainda mais crítica. A expansão e as divisões dentro do
próprio movimento comunero geraram uma espécie de intra-violência, fazendo com que
os desertores do movimento também fossem considerados, dali em diante, inimigos, e,
portanto, passíveis das mesmas perseguições. As notícias das ações comuneras que
haviam chegado a Corrientes acabaram provocando problemas para os jesuítas lá
instalados:
Fue cosí envuelto por la misma tempestad, que arruinó al colegio de Paraguay.
Pues fueran, provocados a la misma prevaricación los habitantes de corrientes
por los del Paraguay (de los cuales no son muy desemejantes en vida y
costumbres), y realmente no eran inaccesibles a estas insinuaciones y se
rebelaran contra el nuevo gobernador, nombrado por el Virrey de igual manera
como aquellos. Por lo tanto, también aquí se turbó la relación con los nuestros, y
se concentró también contra ellos, el odio y la envidia, de un modo muy natural
y lógico, ya que la compañía pareció a los traidores como la muralla mas firme,
para conservar la fidelidad de las masas para con su Rey y sus representantes
(...) Lo hubieran ejecutado sin duda, si no se hubiera opuesto enérgicamente a
estos furiosos José Aranda, comendador de los mercedarios de aquella ciudad
(...) Pero no vovió del toda la confianza de ellos para con nosotros. (grifo meu)
474
Os jesuítas não chegaram a ser expulsos do Colégio de Corrientes, por empenho
de José Aranda, comendador dos mercedários, que assumiu sua defesa e fez com que
seus críticos “volvieron a su juicio”
475
. Isto, no entanto, não impediu que os jesuítas
instalados em Corrientes enfrentassem o ódio daqueles que se opunham à defesa que
faziam das reduções e à posição legalista que haviam assumido. Entre as sanções
473
AVELLANEDA; QUARLERI, 2007, p. 116.
474
C.A., 1730-1735, p.46-47.
475
Idem, p. 46.
140
impostas pelos revoltosos de Corrientes aos jesuítas estava a censura a sua
correspondência
476
. Censura que parece ter se estendido à divulgação de obras, já que
um livro escrito por um mercedário contrário aos jesuítas chegou a receber a
reprimenda do Vice-Rei
477
.
As conseqüências de uma administração governada pelas paixões, entretanto, não
pararam por aí. Nesse terceiro ato da tragédia comunera, os índios Guarani e suas
reduções acabaram sendo, talvez, as maiores vítimas. Com a segunda expulsão dos
jesuítas de Assunção, ”las reducciones se prepararon para resistir una posible invasión.
Durante un año movilizaron 7000 guaraníes para hacer alarde de fuerza, controlar los
pasos del río Tebicuary y ocupar una línea defensiva”, o que acabou por manter
“entonces la ciudad de Asunción aislada y su comercio paralizado”.
478
A reação teria se
dado, segundo a documentação jesuítica, porque “los Comuneros querían ocupar siete
reducciones, o todas se podían y sujetar a los indios a la esclavitud y atrincherarse para
que no pudieran entrar allí con fuerzas armadas los que quedaban fieles al rey.”
479
O fato é que, ainda durante o primeiro e segundo ano do cerco a Assunção, as
reduções já haviam começado a sentir as conseqüências, “os efeitos foram
desastrosos, já que não havia quem cultivasse a terra (...) a essa situação se
incorporaram as fomes produzidas pelas secas e a falta de gado.”
480
A “tragédia” que
se abateu sobre as reduções fez com que “se desparramaron los indios por todas las
partes, vagando por los montes como frenéticos, para que juntamente com sus mujeres
y niños, buscassen algo que comer.”
481
, enquanto “outros fugiram aos povoados
vizinhos (...) foram embora em balsas rio abaixo até os povoados de espanhóis (...) às
estâncias onde estavam as vacas dos povoados das missões (...) originando brigas e
mortes.” A “tragédia” comunera oferecia um cruel cenário para o último ato: “as missões
476
Nada, contudo, pôde ser comprovado, já que “Interceptando las cartas pero, no hallando nada de
comprometedor en ellas, dejaron también de esto” (C.A., 1730-1735, p.46)
477
Segundo Alicia Piolli, o Vice-Rei do Perú “indignou-se e o obrigou a comparecer a Lima para impor-lhe
castigo: “Pero la justicia divina se anticipó y le mandó una enfermedad y que causa horror en quienes los
ven.” (C.A., 1730-1735, p.46 apud PIOLI, 2002, p.168)
478
AVELLANEDA; QUARLERI, 200, p.116.
479
C.A., 1735-1743, p.343.
480
PIOLI, 2002, p. 169.
481
C.A 1735-1743, p.345.
141
florescentes de outrora, tinham se transformado em uma espécie de povoados
fantasmas.”
482
Com o passar do tempo, a situação só pirou. O envolvimento dos índios no
conflito fez com que se afastassem das lavouras nas missões, e o pouco que havia sido
plantado foi comprometido por uma grande seca em 1734.
483
Quando o Governador
“del Río de la Plata Bruno de Zavala”, cumprindo “nuevas órdenes del virrey Salvatierra,
recuperó, en 1735, el gobierno del Paraguay con la ayuda de 6000 mil guaraníes y 100
dragones del puerto de Buenos Aires”
484
, a situação nas missões era gravíssima,
principalmente, em função da fome. O fim dos conflitos, no entanto, não solucionaria os
problemas, já que os anos de afastamento em função da movimentação militar, haviam
afetado “sobremaneira, os Guarani da missões dos rios Paraná e Uruguai. Ao terminar
a revolução, os índios-guerreiros (...) devido à fome, não retornaram às reduções,
passando a vagar pelos campos, buscando comida, roubando gado.”
485
Além dos problemas causados pela fome, “outra dificuldade surgiu, pois os
índios que vagavam pelos campos e matos espalhavam a peste, também conseqüência
dos anos de perturbação política.”
486
Pestes e fome são conseqüências inevitáveis de
conflitos, o que não permite que se estabeleça uma relação direta entre estas e o
“governo da paixão” praticado pelos comuneros, como se fossem uma espécie de
conseqüência nefasta da paixão que esteve atuando decisivamente nos anos de
duração do conflito. A fome e a peste, assim como a morte de cerca de 10.000 índios
487
e a decadência das missões mais envolvidas diretamente no conflito, não podem,
contudo, ser excluídas da “tragédia” comunera. Penso que, assim como na tragédia
grega
488
, devem ser tomadas como conseqüências indiretas de um ato.
482
PIOLI, 2002, p.170.
483
Idem, IBIDEM.
484
AVELLANEDA; QUARLERI, 2007, p.117
485
FRANZEN,2003, p.91.
486
Idem, IBIDEM.
487
Sobre o número efetivo de mortes, Piolli indicar ser “difícil calcular o número de mortos por fome, pois
muitos morriam pelos campos, podendo se constatar, de acordo com censo realizado, a morte de 10.130
índios.” (PIOLI, 2002, p.172)
488
Na Antígona de Sófocles, mesmo depois de Creonte ter-se convencido do seu erro, as conseqüências
de sua teimosia se multiplicam. Tendo desistido de matar Antígona, ao libertá-la a encontra morta, ela
havia se suicidado certa de sua condenação. Hêmon, filho de Creonte ao saber do fim da amada, busca
o mesmo fim, e, na seqüência, Eurídice, esposa de Creonte também se mata ao saber da morte do filho.
Ver SÒFOCLES, 2001.
142
Em Assunção, por sua vez, a deposição dos rebeldes e o restabelecimento de um
governo leal ao Rei, não resolveu de todo a situação. Entretanto, parece que a memória
dos anos de convulsão social, as dificuldades decorrentes dos anos de cerco à cidade e
a entrada sem qualquer resistência do Governador de Buenos Aires na cidade,
haviam trazido para muitos dos rebeldes, a sensação de que havia chegado o momento
de desistir de sua luta. Quando o Governador de de Buenos Aires “se encargó
personalmente en 1735 de juntar un ejército importante de leales para entrar en la
Provincia y retomar el poder, (...) muchos comuneros de la primera hora se pasaron al
bando realista.”
489
É certo que nem todos, de pronto, se bandearam para o lado dos
realistas no período entre a entrada do Governador Bruno de Zavala e a volta dos
jesuítas. Alguns, como o Alcaide Miguel de Garay, ainda, tentaram manter uma posição
hostil, especialmente em relação à Companhia de Jesus “firmando con su nombre un
largo proceso lleno de calumnias y falsos testimonios”. Tal processo seria, mais uma
vez “producto y hechura de su odio y del sus cómplices”
490
Esse comportamento, entretanto seria uma exceção, e o próprio Miguel de Garay
repensaria sua estratégia política, já que com a retomada do poder pelos legalistas, a
Companhia de Jesus saiu fortalecida. Como recompensa por todos los servicios
brindados, las milicias y los jesuitas obtuvieron de Zavala informes elogiosos y un
petitorio para que no se les retirase el privilegio a las reducciones de poseer armas de
fuego para su defensa.”
491
Os inacianos, entretanto, ainda demorariam cerca de três
anos para reassumir suas posições em Assunção. Desta vez, bons analistas políticos
que eram, identificaram que o grupo comunero estava, de fato, muito enfraquecido.
Afora as poucas manifestações públicas contrárias aos jesuítas, uma parcela
considerável dos derrotados, assim como daqueles que assumiram seus postos, logo
percebeu que, diante do aumento de prestígio dos jesuítas frente ao Vice-Rei, era
prudente, não só evitar uma posição contrária a sua volta ao Colégio de Assunção,
como solicitar a volta deles. Os inacianos, mais uma vez, souberam fazer bom uso do
tempo.
489
AVELLANEDA; QUARLERI, 2007, p.116.
490
C.A., 1735-1743, p.143.
491
AVELLANEDA, 2007, p.116.
143
Durante uma missão popular em Assunção, antes ainda da volta dos jesuítas, o
padre missioneiro relata ter percebido que “había ya cambiado el aspecto de las casas,
pareciendo ántes conjurarse todos para el exterminio de la compañia, cuando ahora los
mismos la buscan otra vez, pidiendo con mucha insistencia que se procurase su
restablecimento.”
492
Esta mudança no comportamento dos asuncenos referido nesta
passagem pode ser comprovado em cartas e em documentos oficiais enviados aos
jesuítas e que não só formalizavam pedidos de desculpas, como solicitavam a sua
volta: “se saca claramente de estas cartas y demás documentos que, como antes todos
habitantes de la governación del Paraguay parecían haberse conjurado (...) así ahora
otra vez todas consintieron a reparar aquel daño.” Animado com o reconhecimento de
sua importância para a moral e para a religiosidade assuncena, o jesuita voltaria a
apresentar a paixão como causa do mal: “ ya que disipadas las nubes de la ciega
Pasión, comprendieron claramente el inmenso prejuicio que habían causado a su patria
por la expulsión de la compañía.”
493
Os jesuítas, contudo, não voltaram a Assunção, apesar do decreto do Vice-Rei de 8
de junho de 1735
494
, das cartas do novo Cabildo secular, do Governador de Buenos
Aires e do assessor do Vice rei, enquanto não tivessem asseguradas algumas garantias
jurídicas O Provincial da Companhia, Jaime Aguilar, escreveu ao Vice-Rei
495
, pedindo
que este ordenasse a elaboração pelo Cabildo secular e pelo Grêmio Militar de
Assunção de um documento jurídico que declarava a inocência dos jesuítas. O Vice-
Rei respondeu que isto não era necessário e que ele mesmo atestaria que “todo estó és
juridicamente falso e inválido”
496
e que as acusações que lhes haviam sido feitas
resultaram da “ciega paixão y manifestación de absurda malícia.”
497
È interessante
notar que, também no decreto oficial do Vice-Rei, a paixão seria responsabilizada pela
“tragédia” comunera e pelos comportamentos de traição, violência e barbárie que a
caracterizaram.
492
C.A., 1735-1743, p. 302.
493
C.A., 1735-1743, p. 309.
494
Idem, p. 306,307.
495
Idem, p. 314.
496
Idem, p. 321.
497
Idem, p. 320.
144
Convencidos pelo novo decreto, os jesuítas voltaram ao Colégio de Assunção
em outubro de 1728
498
, tendo sido muito bem tratados e recebidos com grande festa.
Segundo o jesuita relator, a mudança tinha se dado porque “Dios nuestro Señor había
trocado estos corazones ántes más duros que piedras, en corazones blandos como
ceras.”
499
. A Assunção que os recebia depois de tanto tempo estava irreconhecível,
como se pode perceber neste relato:
Pues, aquella misma noche, venían repetidas veces grupos numerosos de ellos,
militares e civiles, a tropel a la puerta de nuestro colegio, lamentando tristemente
y pidiendo perdón a gritos por sus enormes injurias como decían con las cuales
habían perseguido su notoria inocencia, atropellando ellos nuestros bienes
muebles y inmuebles, profanando tempranamente nuestro colegio.
500
Essa cena é emblemática! Ao serem expulsos pela segunda vez, os jesuítas
foram alvo de grande violência, sobretudo, no momento da desocupação da igreja
cercada pelos comuneros “a tropel”
501
. Agora, a expressão “a tropel” é novamente
empregada. Os que se encontram à porta do colégio, no entanto, não pretendem
destruí-la para invadir o Colégio, mas para pedir perdão, expressando sua tristeza e
aos gritos. Se considerarmos
502
, que alguns anos antes, esses mesmos homens,
haviam insistido que “Antequera mandase disparar la artillería, y demoliese” ao “colegio
e inglesia”
503
, uma importante questão se coloca: o que teria levado esses homens
que tanto odiaram os jesuítas a se tornarem agora seus admiradores, desejando de
forma tão ardente seu perdão?
Outro caso emblemático e que só vem corroborar a estranheza que esses novos
comportamentos provocam refere-se à mudança de atitude de Miguel de Garay, Alcaide
de Assunção no momento da Revolução comunera, “hombre de alta nobleza, era uno
de los principales caudillos de la revolución paraguaya, en tiempo del famoso
Gobernador Antequera y de los comuneros”
504
, que se “adelantó a todos en su odio
contra la compañía”
505
. Segundo relato encontrado na Ânua de 1735-1743, “Dios en su
498
Idem, p. 323.
499
Idem, p. 127.
500
Idem, p. 137.
501
C.A., 1730-1735, p. 42.
502
Emprego o plural para convidar o leitor a me acompanhar no raciocínio.
503
C.A., 1735-1743, p. 151.
504
Idem, p. 142.
505
Idem, p. 143.
145
infinita misericordia, le devolvió el bien conocimiento durante los ejercicios, empañado
hasta ahora por la pasión
506
. Completados os Exercícios Espirituais, Miguel de Garay
registrou publicamente sua “retractación de los falsos testimonios, los cuales había
firmado, arrebatado por su ignorancia y pasión durante aquellos tiempos revoltosos.”
507
Dentre as razões para a mudança de seu comportamento está a que o próprio
missionário sugere: “báliale, de seguro esta humillación mucho, para asegurarse su
salvación, faltándole en este momento muy poco para la muerte, falleciendo antes de
acabarse el año.”
508
Franzen acredita que muitos deles agiram assim porque “crendo
que suas almas estavam em perigo (...) buscavam, mesmo em altas horas da noite (...)
fazer as pazes com os jesuítas.”
509
. Avellaneda
510
por sua vez, atribui causas de ordem
político-administrativa para o rearranjo social. Em tempos de centralização do poder e
de implantação das reformas bourbônicas, o fortalecimento da autoridade do Vice-Rei e
do Governador de Buenos Aires, assim como dos próprios jesuítas, havia feito com que
muitos se dobrassem aos novos tempos.
É bem possível que todas estas motivações tenham contribuído de forma até
complementar umas às outras para as mudanças registradas pelos jesuítas. Homens
de seu tempo, muitos dos comuneros podem, efetivamente, ter visto na vitória legalista
e no fortalecimento dos padres jesuítas, um sinal dos céus a exigir seu arrependimento.
Talvez o comportamento do ex-alcaide Miguel de Garay ilustre bem essa visão mística,
já que buscou o perdão de seus pecados na iminência da morte. Por outro lado, após o
controle e a punição dos excessos, associados ao “governo da paixão” sob os
comuneros, é bem possível que uma ação política mais estratégica tenha substituído os
arroubos ditados pelo ódio que marcaram os tempos de convulsão social.
Ainda que uma das motivações para a mudança comportamental se fundamente
na religiosidade e outra na conduta política, há entre elas um ponto em comum, uma
certa racionalidade. Remo Bordei, ao analisar a obra do filósofo Spinoza em sua
“Geometría de las pasiones”, propõe que
506
Idem, ibidem.
507
Idem, p. 144.
508
C.A., 1735-1743, p. 144.
509
FRANZEN, 2005, p. 68.
510
Ver AVELLANEDA, 2007, p.158,159.
146
El tumulto de las pasiones se aquieta, no porque reduzca guardándose en una
especie de presa muerta, sino porque "al contrario" el conatus que la animaba
-en vez de dispersarse infructuosamente o de anularse por elisión en una lucha
paralizante y deprimente- se proyecta hacia lo alto, arrastrando un diagrama que
muestra todavía oscilaciones, pero se consolida. para siempre sobre las crestas
elevadas de la vis existendi.
511
De acordo com o autor mexicano, ao chegar ao seu ápice, a paixão arrefece
para que seja garantida a sobrevivência dos envolvidos. Acredito que esta perspectiva
de análise também deva ser considerada ao se tratar do epílogo da “tragédia” dos
comuneros e ao se buscar as razões para a mudança de comportamento dos
asuncenos.
Mas, afinal, que lugar ocupou a paixão nesta “tragédia”? Muito além da imagem
recorrente de um nevoeiro que impediu que os homens enxergassem claramente e que
permitiu que cometessem seus excessos, a paixão foi instrumento que alimentou as
ações dos comuneros. Mas não só deles. A paixão também moveu os jesuítas a
experimentarem o sofrimento que lhes foi imposto pelos seus opositores Posta no
banco dos réus, ela foi duplamente condenada: pelos repentinamente arrependidos e
pelos jesuítas reabilitados em seu prestigio e autoridade. Mesmo assumindo faces e
usos distintos, ela jamais deixou de estar presente.
Não conformando-se em viver esquecida numa cela fria da memória daqueles
que haviam vivido aqueles tempos da primeira metade do século XVIII, a paixão
mostraria sua vitalidade nos movimentos de Independência, no século XIX. O levante
comunero voltaria travestido de criollismo e o sonho de autonomia, tão presente na luta
pela independência, ganharia de novo o campo de batalha, pois “la simple docilidad a
las pasiones y la arrogante voluntad de dominio sobre ellas son complementarias, y
ambas terminan por hacer la esclavitud todavia mas gravosa”.
512
. Mas isto já é uma
outra história.
511
BORDEI, Remo. Geometría de las pasiones. México: Fondo de Cultura Económica, 1995, p.72.
512
BORDEI, 1995, p. 61.
147
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao concluir o presente estudo sobre as estratégias de combate e supressão das
paixões por parte da Companhia de Jesus na Província Jesuítica do Paraguai , bem
como, sobre as muitas formas encontradas pelos colonos platinos para viverem suas
paixões, ficam algumas fortes impressões e algumas questões que, ou não puderam
ser respondidas nos limites deste trabalho, ou foram suscitadas no decorrer dele.
Uma leitura superficial das Cartas Ânuas da primeira metade do século XVIII
poderia passar a impressão de que o trabalho missionário, do qual as missões
populares foram instrumento fundamental, teve sempre grande êxito. As muitas
descrições de casos exemplares de (re) conversão durante as missões ou sessões de
Exercícios corroboram esta versão. Aqueles que resistiram ao discurso de combate das
paixões e de reforma dos costumes, são, nos relatos jesuíticos, quase sempre
castigados de forma dura com doenças, acidentes e mortes de modo a servir de
exemplo e instrumento na tarefa missionária. Esta impressão se mantém, a princípio,
mesmo quando os jesuítas são expulsos por duas vezes de Assunção, durante a
Revolução dos Comuneros, pois, ainda assim, ao final, o valor do trabalho da
Companhia de Jesus, assim como o comportamento exemplar dos inacianos acabou
reconhecido.
Ao propor o questionamento desta versão, considerei que “um documento é
sempre portador de um discurso, não podendo ser visto como algo transparente”
513
.
Além disso, ao ter optado por enfocar as paixões manifestação sensível dificilmente
encontrada de forma clara , objetiva, procurei “ler” esta documentação tendo em
mente que “(...) as sensibilidades demonstrariam sua presença ou eficácia pela reação
que são capazes de provocar (...) onde podem ser medidas ações e reações,
mobilizações e tomadas de iniciativa”
514
.
O estudo das Cartas Ânuas foi feito, ainda, tendo sempre presente a premissa de
que poderia revelar aquilo que “retorna nas franjas do discurso ou nas suas falhas,
resistências, sobrevivências”
515
, isto é, foi preciso olhar com mais atenção, procurar
513
CARDOSO; VAINFAS, 1997, p. 377.
514
PESAVENTO, 2004, p. 8.
515
CERTEAU, 2002, p. 16.
148
por pistas que indicassem que nem tudo era o que parecia ser. Nesse esforço de leitura
crítica da documentação, foi bastante inspiradora a instigante metáfora que nos
ofereceu Walter Benjamin, na medida que propõe que o relato documental, e, por
vezes, a própria produção historiográfica se apresenta como:
Um fantoche vestido à turca, com um narguilé na boca, sentava-se diante do
tabuleiro, colocava-o numa grande mesa. Um sistema de espelhos cria a ilusão
de que a mesa era totalmente visível, em todos os seus pormenores. Na
realidade, um anão corcunda se escondia nela, um mestre no xadrez, que dirigia
com cordéis a mão do fantoche.
516
Essa mesma metáfora, por mim foi utilizada para ilustrar algumas considerações
parciais relativas ao primeiro capítulo no qual tratei da vivência das paixões nas
cidades platinas , acredito, possa ser útil nesse último exercício de reflexão. A
inusitada cena de um fantoche vestido à turca, que fuma narguilé, e ao mesmo tempo
joga xadrez, ainda que pouco provável, não causa estranheza a princípio, já que um
jogo de espelhos cria a ilusão de que tudo o que há para ser visto, está posto, é o que
está aparente, é uma verdade óbvia e fácil de apreender. Entretanto, um olhar mais
apurado, revela que há um truque, uma montagem teatral que esconde o verdadeiro
mestre do xadrez, um anão que está sob a mesa e controla o fantoche.
A metáfora proposta por Walter Benjamim ilustra, de forma geral, o que foi o
esforço empreendido nesse trabalho de pesquisa: a busca permanente por ver além do
que a documentação jesuítica desejava mostrar, enxergar os bastidores do teatro da fé
que de uma forma ou de outra esteve presente na cidade e no campo, ou mesmo na
trágica experiência comunera.
No que diz respeito ao primeiro capítulo, ao me utilizar das metáforas da cidade
palco do teatro da fé e da cidade tabuleiro, respectivamente tomadas de empréstimo a
Karnal e Rama, procurei demonstrar a importante influência da Companhia de Jesus na
maioria das cidades platinas. A atuação dos jesuítas se deu através de estratégias bem
elaboradas, que combinavam ações no campo do convencimento as missões
populares e suas procissões, os sermões, o uso de relíquias e de todo aparato cênico
deste grande teatro da fé , com ações objetivas de controle do espaço através de suas
instituições Residências, Colégios e a Universidade localizadas estrategicamente, o
516
BENJAMIN, 1987, p. 223
149
que deixa evidente que os missionários que souberam, e muito bem, usar a lógica
cartesiana da arquitetura urbana platina, em prol de seus objetivos de combate das
paixões e de reforma dos costumes.
A população urbana que se encontrava sob a jurisdição da Província Jesuítica do
Paraguai, que esteve sob forte vigilância quanto a sua conduta moral tanto pelos
próprios inacianos, por seus próprios pares, ou ainda por outras ordens religiosas e
padres seculares , em muitos casos não aceitou as regras de comportamento que
tentavam lhes impor. Como forma de fugir ao combate e ao controle sobre as paixões
que desejam vivenciar, as populações platinas, de todos os extratos sociais,
desenvolveram as mais diversas e elaboradas formas de manter seus comportamentos
apaixonados. As formas de resistências ou dissimulações de comportamentos foram as
mais diversas. Oscilaram desde o rechaço público ao discurso inaciano, como fizeram
as lideranças do Vale de Salsacate que acusaram o discurso e a prática jesuítica de
serem “una fábula vieja y disparatada”
517
, passando por aqueles que mantinham a
vivência da paixão da luxúria de forma escondida e dissimulavam nas confissões
518
, ou
ainda os que confessavam o pecado, simulando uma mudança de comportamento, mas
que, na prática, mantinham suas paixões em segredo
519
. Outras táticas também foram
utilizadas pelos citadinos platinos no afã de, por um lado, manter o comportamento de
bons cristãos que deles se esperava, e de outro, viver suas paixões.
Uma leitura mais apurada da documentação indicou, portanto, que ao contrário
da encenação de uma bem sucedida peça sagrada, o que houve na cidade platina, em
grande medida, foi a interpretação de uma outra peça, de cunho profano, onde não raro
o script original não foi seguido, e as improvisações tiveram um lugar de destaque.
No que diz respeito às estratégias da Companhia de Jesus no espaço rural, a
documentação indicou que sua principal ferramenta foi a chamada “missão campestre”.
517
C.A., 1735-1743, p.53.
518
Como o caso de certa mulher que “por unos treinta años nunca había podido vencer el falso pudor,
para confesar las faltas de su primera juventud. Várias veces había asistido a la misión, y siempre había
confesado sacrílejamente”. (C.A., 1735-1743, p. 247)
519
Como fez certo “español, el cual se había apartado de su esposa, señora distinguida en dones
naturales y sobrenaturales, para entregarse más libremente a sus relaciones malas con una esclava
negra (...) para no causar a su suegro tanta verguenza y siguiendo el consejo de personas de autoridade,
otra vez admitió a su mujer legítima (...) mientras vivía aquella esclava negra como si fuese su esposa.”
(C.A., 1735-1743, p. 243)
1
50
Esta seguia um modelo e ritual muito parecido com o das missões populares urbanas,
sendo que exigiam um esforço e mobilização muito maior. Normalmente, dois padres
missioneiros saíam dos colégios ou residências e se embrenhavam por vales,
pântanos, campos e montanhas, até poder alcançar o mais ermo dos lugares. Lá
chegando, normalmente em um pequeno pueblo onde os campesinos se reuniam para
ouvir a missão, o ritual sacro da missão era realizado, respeitando, é claro, as
dimensões e condições do lugar.
Convencionei dizer, que a missão campestre era um enorme esforço de produzir
o grande espetáculo do teatro da fé a céu aberto. Essa era uma oportunidade rara para
os jesuítas e os campesinos. Para os primeiros, porque podiam alcançar a estes
homens e mulheres que viviam no campo, em habitações que distavam longas
distâncias, seja das cidades, seja dos próprios vizinhos, e que não recebiam quase
nenhum atendimento espiritual. Buscava-se, portanto, mediante a pregação a estas
populações, consideradas bárbaras, e que “no tienen cristianos si no el nombre”
(grifo meu)
520
, alcançar a reforma dos seus costumes e (re) cristianizá-los. Quanto aos
campesinos platinos, a missão era a oportunidade de serem realizados casamentos,
batizados, e, de alguma forma, colocar os cristãos minimamente em dia com seus
deveres, assim como, promover o acerto de contas com Deus daqueles que ao fim de
vida pretendiam alcançar uma boa morte.
Se pode-se dizer que as estratégias da Companhia empregadas no ambiente
rural foram semelhantes àquelas empreendidas nas cidades, apesar das
particularidades decorrentes do isolamento e das configurações espaciais, também as
táticas adotadas pelos campesinos em relação aos moradores dos centros urbanos ,
não diferiram muito. A maior diferença, entretanto, reside no fato de que o espaço rural
conferia às pessoas uma certa “invisibilidade”, ou seja, muitas das vivências das
paixões se davam de forma escondida, na imensidão do pampa ou nas selvas
espessas, sendo que assim, estas populações não precisavam se preocupar tanto em
justificar seu comportamento.
Esta certa liberdade de ação, somada a comportamentos considerados
inadequados aos cristãos, como constantes bebedeiras, prática de jogos de azar,
520
C.A., 1750-1756, p. 7.
151
prostituição, amancebamentos, bestialidades, incestos e uma sociedade permeada pela
violência, valeu aos campesinos a qualificação de bárbaros. Neste cenário rural, um
espaço teve lugar de proeminência, as pulperías, que foram espaços de sociabilidade
de grande importância, pois em um só lugar concentravam a venda de bebidas
alcoólicas, os jogos de azar, os fandangos e, em muitos casos, a prostituição. Nesse
verdadeiro palco das paixões, a violência também ocupou lugar de destaque, já que “la
violencia se percibía por doquier, sólo faltaba un roce, una mala palabra para que
las cuchillas salieran a relucir.”(grifo meu)
521
A violência, tanto na documentação jesuítica, quanto na judicial e administrativa
referentes a esta mesma região ou áreas afins, parece ter, efetivamente, ocupado um
lugar de destaque no espaço platino rural. O ódio e a ira estiveram presentes, não raro,
alimentados por disputas em relação às paixões do jogo e da luxúria. É certo,
entretanto, como já foi indicado, que a forte presença da violência nas relações sociais
no campo platino, teve outros motivadores além das paixões do ódio e da ira. Entre as
outras causas da violência no ambiente campesino, pode-se dizer que a ”necessidade
de afirmar-se ou defender-se integralmente como pessoa”, era uma das mais
importantes em lugares tão longínquos que, muitas vezes, careciam dos aparelhos
coercitivos do Estado. Diante deste quadro, “a bravura e a ousadia”
522
, acabaram por
representar importantes valores sociais, a ponto de “um gesto público de vingança”, ser
“capaz de sublinhar a grandeza” do individuo, de modo que ser violento podia ser
considerado “um modo particular de ser virtuoso”
523
. De qualquer formar, esta realidade
violenta e profana em muito contribuiu para a visão tradicional de antagonismo entre
barbárie e civilização, campo e cidade, tão presente nas Cartas Anuas que analisei
nesta dissertação.
Esta visão clássica, que viria a ganhar projeção e seria imortalizada, anos mais
tarde, por Domingos Faustino Sarmiento em sua obra Facundo, precisa, entretanto, ser
compreendida em seu momento histórico, no qual se queria reformar costumes e lançar
uma nova sensibilidade mais adequada às necessidades, primeiramente das reformas
bourbônicas e depois das novas nações latino-americanas. A documentação nos revela
521
MANCILLA, 2005, p. 123.
522
FRANCO, 1983, p. 36.
523
SILVEIRA, 1997, p.148.
152
que os campesinos platinos não eram os bárbaros entregues às paixões, num claro
antagonismo aos citadinos civilizados e comandados pela razão. Pelo contrário, o que
nela encontramos são moradores das cidades e do campo vivendo intensamente suas
paixões. O fator que pode ter distorcido esta constatação foi o cuidado que tiveram os
citadinos em não exporem publicamente suas vivências apaixonadas, dedicando-se ao
escamoteamento ao controle dos paixões, à dissimulação e à manutenção de suas
paixões em segredo. Os campesinos, por sua vez, em função das características
próprias do ambiente rural, desfrutaram de uma situação de maior liberdade, já que
longe das grandes instituições da Companhia de Jesus, foram alvo efetivo do discurso
de combate e controle das paixões muito esporadicamente, somente durante as
missões campestres.
Ainda sobre a questão da violência, penso que uma última consideração deve
ser feita: Silveira, em sua obra O universo do indistinto”, que trata sobre as Minas
Gerais dos setecentos, propõe uma outra causa além das aqui já discutidas, e que ele
define como “aluvionismo social”
524
. Ele propõe que o tipo de sociedade que ali surgiu,
se caracterizava por uma fluidez muito maior entre os estamentos do que queriam as
autoridades administrativas e a elite local. Esta fluidez social, própria de uma sociedade
mineradora, decorria da imposição quase natural de “caminhos de ruptura”, tais como o
“difamar ou delatar”
525
, alternativas empregadas na busca da ascensão social e
também importantes motivadores de violência. Embora a sociedade rural platina
possuísse uma realidade econômica agro-pastoril e não mineradora com a das Minas
Gerais, creio que algumas aproximações possam ser feitas. Isso porque as sociedades
típicas da ganadería também possuíam um arranjo social menos rígido e estático. Esta
questão que poderia ter complexificado e enriquecido a análise da violência na
sociedade rural platina, não pôde ser, contudo, explorada suficientemente nesta
dissertação.
Em relação ao que denominei de tragédia comunera, procurei dar destaque ao
discurso jesuítico sobre um episódio razoavelmente pouco estudado, a Revolução dos
Comuneros, estabelecendo aproximações com o enredo de uma tragédia grega
524
SILVEIRA, 1997, p. 147.
525
Idem, p.148.
153
clássica, a Antígona de Sófocles. Cruzando as fontes jesuíticas as Cartas Ânuas de
que dispunha com as fontes juridico-administrativas produzidas pelos comuneros e
seus simpatizantes, utilizadas por Mercedes Avellaneda e por Lia Quarleri, procurei
historicizar a Revolução dos Comuneros, me distanciando por isso dos trabalhos
realizados por Beatriz Franzen e Alicia Pioli que se detiveram, exclusivamente, na
análise da documentação jesuítica.
Na documentação jesuítica ficaram evidentes não apenas o papel que os
missionários atribuíram à paixão para a eclosão do movimento rebelde, como também o
debate que provocou a implantação das reformas bourbônicas, seguido da resistência e
elas e a defesa do direito del comum pelos asuncenos..
A intolerância era mútua, assim como o ódio. O que se viu a partir de então foi
uma sucessão de batalhas jurídicas, de não cumprimento de decretos do Vice-Rei, e
uma situação que acabou por gerar a expulsão dos jesuítas de Assunção por duas
vezes, do que resultou um verdadeiro caos na cidade, especialmente na segunda
metade do governo comunero, período que foi caracterizado pelo jesuíta como “un
tiempo en la cuál solo triunfó la insolencia, tiranía, pasión y venganza.”(grifo meu)
526
A tragédia não se limitou aos envolvidos diretamente no conflito, jesuítas e
comuneros, pois, assim como na tragédia grega que pune os excessos sem distinção
, os Guarani, chamados para servir de soldados na luta contra os comuneros, foram
grandemente prejudicados. Por terem sido mal liderados na batalha, sofreram muitas
perdas, além de terem suas colheitas prejudicadas longo tempo que permaneceram no
cerco à Assunção, o que desencadeou uma onda a fome que levou milhares à morte,a
abandonarem as missões e a voltarem a seus costumes anteriores.
Após o término do conflito, à paixão foi atribuída a responsabilidade pela revolta
e pelo caos político e social. Diante da necessidade de voltar a vida cotidiana afinal,
as revoluções sempre acabam ou ainda da necessidade de “acertar as contas” com
Deus diante da iminência da morte foi sobre a paixão que recaiu a responsabilidade
por toda tragédia. Desde o Vice-Rei, passando pelos jesuítas, até os comuneros, todos
justificaram os atos de violência e de barbárie a partir de “las nubes” produzidas por “la
526
C.A., 1735-1743, p.323.
154
ciega Pasión”
527
. A paixão, entretanto, além de ter sido representada como a nuvem
que impediu os comuneros de verem claramente, também surge no discurso jesuítico
como aquilo que alimentou “o fazer revolucionário”, o ódio que os revoltosos nutriam
pelos jesuítas e pelos Guarani. Os jesuítas por sua vez, também tiveram sua tragédia.
Foram expulsos do Colégio de Assunção, tendo vivido sua “própria paixão”, inspirada
no sofrimento daquele que deu nome à Companhia.
A paixão, por sua vez, como foi dito, não aceitaria passivamente ser excluída da
vida política, e não demoraria a voltar à cena nos movimentos de independência,
através do criollismo, pois “la simple docilidad a las pasiones y la arrogante voluntad de
dominio sobre ellas son complementarias, y ambas terminan por hacer la esclavitud
todavia mas gravosa”.
528
Ao final deste trabalho, entretanto, fica a sensação de que muito ficou por ser
feito, dada a riqueza documental representada pelo conjunto de Cartas Ânuas não
publicadas de que se fez uso como fonte preferencial neste trabalho. O espaço desta
dissertação não comporta todo os temas que “pululam” das páginas destes relatos, que,
como bem disse Franzen, é um documento que “fascina”.
529
Especificamente, no que
concerne a temas ligados ao universo de análise da História das Sensibilidades, e que,
portanto, são importante alvo de meu interesse, ficam como importante indicativo para
posterior investigação as “beatas da Companhia”; os inúmeros e impressionantes casos
de auto-flagelação e a importância que tinham na prática religiosas de então, e, ainda, o
papel desempenhado pela paixões na questão do translado das missões para o lado
ocidental do rio Uruguai e na posterior expulsão dos jesuítas do Império Espanhol.
As “beatas da Companhia” que têm sido alvo do interesse de Beatriz Franzen,
como em seu artigo As missões populares na Carta Ânua de 1735/43, da Província
Jesuítica do Paraguai
530
, merecem um estudo mais aprofundado, na medida em que
assumem o modo de viver dos padres jesuítas, levando-o às últimas conseqüências,
seguindo inclusive os horários e a rotina das residências, isso em uma ordem que
nunca admitiu mulheres.
527
C.A., 1735-1743, p.309.
528
BORDEI, 1995, p.61.
529
FRANZEN, 2003, p. 87.
530
FRANZEN, 2005, p. 69.
155
No que diz respeito às constantes e impressionantes práticas de auto-flagelação,
como no caso das mulheres que burlavam as regras postas para essa prática de
penitência, e, através de “tranzas (...) con mil artifícios” se disciplinavam de forma tão
cruel a ponto de manchar “con sangre suelo y paredes”
531
, creio, que estas práticas
religiosas carecem de um estudo que possa desvendar o que efetivamente significaram
em uma cultura que “no diferencio claramente (...) lo ‘sagrado’ de lo ‘profano’ ”.
532
Quanto ao papel representado pelas paixões na questão da transferência das
missões para o lado ocidental do rio Uruguai e na posterior expulsão dos jesuítas do
Império Espanhol, acredito que, especialmente a Carta Ânua de 1750-1756 e a Carta
Ânua de 1756-1762 esta última não contemplada no presente estudo e também
disponível no Acervo do Instituto Anchietano de Pesquisa podem contribuir para a
produção historiográfica dedicada às missões jesuíticas, sobretudo, sobre o contexto
anterior à expulsão da Companhia de Jesus de terras americanas.
Nesta dissertação procurei mostrar o quanto as paixões se fizeram presentes na
vida das populações urbanas e campesinas platinas, agindo sobre as sensibilidades de
homens e mulheres e conformando a religiosidade, a sociedade e a política. Assim
como Barran, que se propôs a fazer “una historia (...) de la pásion que lo invade de
todo, hasta la vida pública, o del sentimiento encogido y reducido a la intimidad (...) y
también la lenta aparición del freno de las ‘pasiones interiores”
533
, espero ter
conseguido alcançar satisfatoriamente meu intento, aquele que apaixonadamente
persegui ao longo de dois anos.
531
C.A., 1735-1743, p. 68,69.
532
BARRAN, 1991, p. 99.
533
Idem, p.11.
156
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