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requerem arte
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alguma, ainda que todas as outras coisas possam ser transmitidas por
uma arte
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. Nos quais, a meu ver, tu, César, excedes de longe aos outros;
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pelo que,
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Cf. Quint. (VI, 3,1 e nn.): Huic diuersa uirtus quae risum iudicis mouendo et illos tristes soluit adfectus
et animum ab intentione rerum frequenter auertit et aliquando etiam reficit et a satietate uel a fatigatione
renouat (Diversa a essa, /há/ uma virtude que provocando o riso do juiz não somente dissolve os
sentimentos tristes, como também afasta com freqüência o ânimo da atenção aos fatos, bem como
algumas vezes o reanima e renova da saturação e da fadiga). Semelhante a Quintiliano, a introdução do
tratado do ridículo em Cícero se refere ao outro recurso que tem por objetivo ganhar a simpatia do juiz ou
dos ouvintes, a saber: a excitação dos sentimentos de comoção ou piedade para com a causa do cliente
conforme a própria causa requeira e dependendo do ἦθος que o orador queira desenhar para si e para seu
cliente perante aqueles que o ouvem ou aquele que julgará a causa. Parece também semelhante a
Quintiliano, o efeito que o riso pode causar nesses sentimentos, se quem os excita é o adversário. Assim,
se o advogado da causa contrária quis despertar sentimentos de afeto, piedade, comoção, emoções
diversas a respeito de seu cliente e de sua causa, o riso pode funcionar na anulação desses efeitos,
tornando a atenção e simpatia do juiz ou dos ouvintes favoráveis à sua causa, e ao mesmo tempo
desfazendo aquela impressão positiva provocada e conquistada pelo adversário. É dessa situação que
resulta a utilidade dos “gracejos” e das “facécias”.
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Iocus e facetiae são elementos opostos àqueles sentimentos de ódio, ira, indignação, comiseração,
complacência, piedade etc. No entanto, facetiae é o termo escolhido por Cícero para definir o instrumento
do ridículo oratório. Isso se evidencia, de um lado, pela maior quantidade de ocorrências da palavra em
De ridiculis (nas mais diversas formas morfológicas) e, por outro, pelo fato de que essas ocorrências se
fazem quase que totalmente com o objetivo de caracterizar, preceituar e categorizar o termo. Quanto ao
termo iocus, observamos que sua presença no texto se equivale ao termo facetiae (cf. §§ 216, 229, 238,
239, 248, 285 etc.), mas em uso comum durante o discurso, diferentemente de facetiae que se configura
em gêneros nos parágrafos 218 e 239 (v. §§ 251, 252).
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Não somente neste parágrafo, mas também nos demais, a palavra arte refere-se ao conceito de Ars
(τέχνη): um conjunto de regras extraídas da experiência, que preceituam determinado fazer criativo de
modo que este se torne perfeito e adequado à vontade de seu realizador e não se permita a ação do acaso
em sua execução; cf. Quintiliano II, 17, 41: Confirmatur autem esse artem eam breuiter. Nam siue, ut
Cleanthes uoluit, ars est potestas uia, id est ordine, efficiens, esse certe uiam atque ordinem in bene
dicendo nemo dubitauerit, siue ille ab omnibus fere probatus finis obseruatur, artem constare ex
perceptionibus consentientibus et coexercitatis ad finem utilem uitae, iam ostendimus nihil non horum in
rhetorice inesse (v. também Cícero, Brutus 29, 111, Cleantes, Frag. 790). No trecho anotado, primeira
aparição do termo em De ridiculis, a tradução literal poderia ser “transmitidas pela arte” ou “transmitidas
por um método – ou conjunto de regras” ou ainda “ensinadas por um método – ou arte ou conjunto de
regras”. No entanto, por um lado, essa preposição determinante que rege o agente da passiva, poderia
proporcionar à palavra “arte” o sentido hodierno de arte como obra artística em contraposição às obras
não artísticas como, p.ex., uma pintura cubista em oposição a uma planta de engenharia destinada à
construção de um edifício, o que me obrigou a retirar o artigo definido na preposição na forma sintética e
colocar um indefinido na forma analítica para que aquela acepção hodierna enfraquecesse, fortalecendo
assim a acepção técnica do termo. Por outro lado, preferi manter a palavra técnica no corpo da tradução,
para que ela mostre, como acontece no texto latino, que o termo “arte” engloba não somente este aparato
técnico obtido pela experiência e transformado em teoria, como também a constituição de uma doutrina,
que tem a finalidade de instruir e a prerrogativa de ser transmitida (cf. Quintiliano I, 14, 5; Cícero, De
inuentione I, 5, 7; De oratore I, 4, 15).
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Cf. § 218. Em De inuentione (§§ 98–106), Cícero prescreve uma partição (precisamente uma
tripartição) e os lugares-comuns que devem ou podem constar na peroração não fazendo constar ali o riso
como recurso ou lugar-comum. Por outro lado, o próprio Cícero diz em De oratore (§ 184) que o recurso
do mouere (incluindo aí por lógica o riso) pode ser usado, além de na peroração, também no exórdio e na
narração, e isso faz saber que embora De oratore não trate da peroração especificamente onde De
ridiculis se situa, o recurso do riso dali pertencente é lembrado. Conclui-se então, a partir dessas
observações e do trecho anotado (lembro: “que de fato estão relacionadas à natureza e não requerem arte
alguma, ainda que todas as outras coisas possam ser transmitidas por uma arte”), que provavelmente o
uso do riso não se encaixa numa doutrina semelhante ao que ocorre em De inuentione, uma vez que ele
tem seu habitat na altercação, no jogo existente entre o discurso e a réplica, entre esta e a tréplica, entre a
fala ou pergunta e a devida resposta, como aponta Cícero aqui mesmo em De ridiculis (§§ 219, 220, 223-
226, 229, 230) e Quintiliano em De risu (§§ 4, 7, 11–14, 75, 81). Por outro lado, como o próprio Cícero