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1
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
UFRJ
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS
IFCS
PROGRAMA DE PÓS
-
GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA COMPARADA
- PPGHC
O revolucionário da Convicção:
Joaquim Câmara Ferreira, o Velho Zinho
Luiz Hen
rique de Castro Silva
Rio de Janeiro
2008
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2
Luiz Henrique de Castro Silva
O revolucionário da Convicção:
Joaquim Câmara Ferreira, o Velho Zinho
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-graduação em História
Comparada, da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Mestre em História.
Orientadora: Profª Dr.ª Maria Yedda Leite Linhares
Rio de Janeiro
2008
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3
S578r SILVA, Luiz Henrique de Castro
O revolucionário da convicção: Joaquim Câmara Ferreira, o
Velho Z
inho / Luiz Henrique de castro Silva
2007
400 p.
Dissertação (Mestrado em História)
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e
Ciências Sociais
IFCS, Rio de Janeiro, 2007.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Maria Yedda Le
ite Linhares
1. Biografia Política
Joaquim Câmara Ferreira. 2. História
Comparada. 3. Revolucionário. 4. Ética da Convicção. I. Título
CDD: 321.92
4
Luiz Henrique de Castro
Silva
O revolucionário da Convicção:
Joaquim Câmara Ferreira, o Velho Zinho
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-graduação em História
Comparada, da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Mestre em História.
Aprovada em
________________________________________
Prof.ª Dr.ª Maria Yedda Le
ite Linhares
-
Orientadora
Universidade Federal do Rio de Janeiro
________________________________________
Prof.ª Dr.ª Sabrina Evangelista Medeiros
Universidade Federal do Rio de Janeiro
________________________________________
Prof. Dr.ª Marly de Alme
ida Gomes Vianna
Universo
________________________________________
Prof. Dr. Lincoln de Abreu Penna
Universo
5
Para Sara Mello (Sarinha), Murillo Mello (in memoriam), Lincoln Penna e Marly
Vianna.
Homens e mulher
es de seu tempo,
humanos, generosos, comunistas e
revolucionários como já não se
fazem mais. O resto dispensa
comentários.
6
Agradecimentos
Não seria possível em algumas linhas agradecer a todas as pessoas que
contribuíram para a realização deste trabalho e sem os quais ele não teria sido
possível. Entretanto, quero mencionar algumas e que me perdoem aquelas a quem eu
tiver cometido a falha do esquecimento.
A Deus, fonte geradora de toda vida em plenitude.
À Dr.ª Maria Yedda Leite Linhares, pela paciência, pelo carinho e sabedoria com
que se dispõe a orientar alunos que possuem muitas limitações.
À Dr.ª Norma Musgo, Coordenadora do Mestrado em História Comparada da
UFRJ, pela generosidade do acolhimento, num momento em que poucos se dispõem a
estender
a mão. Não vou esquecê-
la jamais.
Aos todos os professores do Colegiado do Mestrado em História Comparada da
UFRJ. Tenho com vocês uma dívida de gratidão eterna.
Aos Professores Doutores Francisco Carlos Teixeira, Anita Leocádia Prestes e
Alexander Zebhit pelos conhecimentos recebidos durante os cursos, pela colaboração
nas sugestões que muito contribuíram para este trabalho e sobretudo, pelo privilégio
que tive em poder ser aluno dos senhores.
A Dr.ª Sabrina Evangelista. Jovem e competente. Desde o nosso primeiro
contato, sempre teve gestos de sensibilidade e generosidade comigo. A ela agradeço a
honra de tê-la na minha Qualificação de Projeto e na minha defesa de Mestrado. Suas
sugestões foram extremamente valiosas para o meu trabalho.
7
As secretárias Márcia e Leniza do Mestrado em História Comparada. A alegria, o
carinho, a competência e generosidade de vocês fazem do curso de Mestrado um lugar
de encontro humano.
Aos meus amigos do Mestrado Jorge Ferrer, Jorge José, Ricardo, Jéferson,
Verônica, Josélia, Roberto, Carlos, João Inácio e tantos outros que estudaram comigo
no Mestrado.
Ao pessoal do Arquivo da UNESP e do Arquivo Público de São Paulo pela
paciência e acolhida durante as pesquisas.
Aos Tios Sandro e Celimar pela acolhida generosa em sua casa, durante a
realização da pesquisa, em São Paulo.
Ao Fernando, Fabiano e Carminha pela correria nas entrevistas em Campinas.
À tia Maria José pelas aulas de francês e ao tio Plínio pela compreensão.
Ao amigo de tantos anos Antônio Carlos Barros. Nossas discussões sobre o
trabalho me levavam a pensar o tempo todo.
As escolas em que trabalhei e trabalho, pela compreensão e pelo apoio.
A todos os meus alunos. A convivência com vocês sempre me fez sentir melhor
do que sou.
Ao curso gratuito do Pré-vestibular Cidadão (PVC MEP) no qual sou voluntário
muitos anos. Esse curso, os professores e seus alunos me permitem vislumbrar a
mudança da sociedade de perto.
Ao Senhor Clóvis Capalbo que tão generosamente me enviou os livros que
escreveu sobre a h
istória de Jaboticabal.
8
Aos meus parentes Mayara, Camila, Angelinho, Paloma, Mateus, Vinício, Vítor,
Márcio, Igor, Gustavo, Marluce, Marcos, Márcia, Gilberto, Albertino e Celita. Por toda
compreensão e pelas ausências durante o curso.
Aos Entrevistados Alberto Castiel, Aloysio Nunes Ferreira, Apolônio de Carvalho,
Armênio Guedes, Frei Carlos Alberto Libânio de Christo (Frei Betto), Carlos Eugênio
Paz, Clara Charf, Denise Fraenkel, Frei Fernando de Brito, Franklin Martins, Geraldo
Rodrigues dos Santos, Gilberto Beloque, Guiomar Silva Lopes, Heládio Maia
Pastana, Hércules Correa, Ivan Seixas, Ivo Lebauspin, Jacob Gorender, J. A. de
Granville Ponce, José Luiz Del Roio, Lia Cardieri, Luiz Carlos Moura, Luiz Mário
Gazzaneo, Magno Vilela, Manuel Cyrillo de Oliveira Neto, Marco Antônio Coelho,
Maria do Carmo, Maria Luíza Beloque, Maurício Segall, Moacir Longo, Murillo Mello,
Nadir Helú, Noé Gertel, Orlando Ferreira, Frei Oswaldo Rezende, Paulo Cana
Brava, Paulo de Tarso Venceslau, Rafael Martinelli, Raymundo de Oliveira, Renato
Martinelli, Roberto Cardieri Ferreira, Roberto de Barros Pereira, Takao Amano, Sara
Mello, Tarcísio Sigrist, Teodoro Melo, Vera Gértel, Vladimir Sacchetta, Zuleika
Alembert, não pela generosidade de partilharem suas experiências de vid
a
comigo, mas pela possibilidade de conviver com vocês e poder me tornar um ser
humano melhor do eu era.
Agradecimentos Especiais
A Mary, Jéssica e Ana Clara, pela compreensão, carinho e significado que dão a
minha vida.
9
A meu pai Diocélio com quem aprendi que é nas coisas simples e pequenas que
se esconde toda grandeza da vida.
A minha mãe Vicentina que mesmo diante de todo sofrimento da vida nunca
perdeu a capacidade de acreditar e sorrir.
A minha avó Celina, mulher serena que mesmo com o seu silêncio, sempre nos
ensina alguma coisa.
Ao meu irmão Paulo André pelos incentivos, digitação, degravação de fitas e
companhia nas viagens, mesmo com o cansaço.
A meu irmão Ângelo pela companhia na correria das pesquisas e entrevistas por
São Paulo. Sua comp
anhia foi sempre um alento e uma segurança.
As minhas cunhadas Jussara e Eliane, pela ausência de meus irmãos e pelo
apoio.
A minha irmã Andréia e meu cunhado Fernando que mesmo de longe sempre
mandavam incentivos nos momentos mais difíceis.
A minha ir
mã Angélica pelo carinho e ajuda durante todo o curso de Mestrado.
Ao Dr. Lincoln Penna. O aluno tinha a vontade e a dúvida. O Mestre tinha a
confiança, a generosidade, a sensibilidade e a certeza. Nunca vou me esquecer do
Senhor.
A Drª Marly Vianna.
Fir
me e sábia no falar, doce e generosa nos gestos, sensível
no olhar. Tudo que um aluno que não sabe nada precisa. Tenho uma dívida de gratidão
eterna com a senhora.
A Daniela Câmara Ferreira, neta de Joaquim Câmara Ferreira. Amiga
conquistada durante as
pesquisas do mestrado. Sua busca por seu Avô foi o ânimo que
10
nos motivou durante todo trabalho. Sem Você, nada teria sido possível. Espero que
este trabalho lhe ajude a conhecer um pouco do grande ser humano que foi seu avô.
A Roberto Cardieri Ferreira, filho de Joaquim Câmara Ferreira. Eu sei o quanto
foi sofrido as nossas conversas sobre seu pai. Mesmo assim, aceitou o desafio de
partilhar conosco essa riqueza de caminhada. O pai do Senhor foi um ser humano
como poucos.
A Lia Cardieri Ferreira, nora de Joaquim Câmara Ferreira. Sua sensibilidade
ajudou a recuperar a trajetória de seu sogro naqueles momentos em que era difícil
para Roberto continuar falando.
A Denise Fraenkel, filha de Joaquim Câmara Ferreira. O seu depoimento
emocionado e emocionante, ainda que por e-mail, nos revelou muito da sensibilidade
de seu pai.
A Edwirges Ferreira Cardieri, irmã de Joaquim Câmara Ferreira. Entendemos os
seus motivos. E seu depoimento, mesmo que por escrito, nos ajudou a conhecer melhor
a infância e adolescên
cia de seu irmão.
A Carlos Fraenkel, neto de Joaquim Câmara Ferreira que mesmo de longe, se
dispôs a nos mandar material e apoio.
A Sara Mello, ser humano de sensibilidade extrema. Consegue enxergar a vida
como poucos. Nunca perdeu a ternura.
A Murillo Mello, comunista, revolucionário e poeta. Felizmente, ainda que por um
breve período, tive o privilégio de conhecê-lo e compartilhar de sua amizade e sua
sabedoria.
A Célia Mello, filha de Sara Mello. Sempre que precisei ligar, a alegria estava do
outro
lado.
11
Ao jornalista e amigo Mário Magalhães. É difícil encontrar disponibilidade de
alguém que se conhece. Entretanto, Mário Magalhães é destas pessoas que
conseguem ser generosas mesmo antes de se conhecer. Você sabe do que estou
falando.
A D. Waldyr Calheiros de Novaes pelo privilégio que tive de nascer, crescer e
viver na sua Diocese e nas Comunidades Eclesiais de Base.
Aos Padres Normando Cayoette e Arlindo Luiz por me ensinarem que ser cristão
é antes de tudo, praticar o Evangelho.
Ao amigo Ernesto Germano pelos cursos de formação política na Ação Católica
Operária. Ali tudo começou.
Ao Sílvio Vilela, amigo e irmão de Mestrado. Sua amizade já valeu o curso de
Mestrado.
Ao Erlon Couto, amigo de Mestrado e irmão de Comunidade Eclesial de Base.
Op
tamos por aquilo que melhor se coadunava com nossas consciências. Você vai
chegar lá também.
A Comunidade Nossa Senhora do Loreto, a que eu tenho alegria de pertencer e
praticar o ser cristão.
A Prof.ª Dr.ª Ana Flávia, pela amizade, carinho e pela paciente revisão
gramatical do trabalho.
As minhas amigas e amigos Mariléia, Ângela Alhanati, Edgar, Zezinho, Maria
Real, José, Rita, Janaína, Estelita, Antônio Miller, enfim, todos que torceram por mim.
12
“Hay hombres que luch
an un día y son buenos
Hay otros que luchan un año y son mejores
Hay quienes que luchan muchos años y son muy buenos
Pero hay los que luchan toda la vida
Esos son los imprescindibles”.
BERTOLT BRECHT
13
O AVÔ QUE EU NÃO TIVE
O avô que eu não tive
nunca m
e contou histórias,
jamais me levou para passear
ou mesmo para tomar sorvete
Isto porque ele morreu
Muito tempo antes de eu nascer
Apesar desta ausência,
esteve sempre ao meu lado,
Iluminando meus os passos
pelas trevas da vida
Apesar de morto, ele
vive
Transmitindo
-
se,
atávico e improvável
através dos livros velhos da estante
No olhar castanho de meus irmãos
no caráter reto do meu pai
na memória de seus amigos
Assim, ele segue vivendo
E enquanto for contada
E recontada a sua história
Ele vencerá
a morte
Através da memória.
Daniela Câmara Ferreira
(Neta de Joaquim Câmara Ferreira)
14
Resumo
O presente trabalho tem como propósito construir a biografia política de Joaquim
Câmara Ferreira, nascido numa família tradicional da cidade de Jaboticabal; estudante
de engenharia que fez a opção por ser militante do Partido Comunista Brasileiro, no
qual permaneceu desde a década de 30 até o ano de 1967, quando rompeu com o
partido e passou a atuar na luta armada, numa organização da qual foi um dos
fundadores, a Ação Libertadora Nacional.
A ênfase analítica na qual centralizamos este trabalho foi a seguinte que
stão:
procuramos analisar os motivos que levaram Câmara Ferreira a romper com o PCB, na
medida em que este se opunha à luta armada no combate à ditadura: se, e até que
ponto, conteúdos éticos se sobrepuseram a perspectivas teórico-políticas na
compreensão
da revolução brasileira.
15
Resumé
Le présent travail a pour but de tracer la biographie politique de Joaquim Câmara
Ferreira, issu d`une famille traditionelle de Jaboticabal, do Estado de São Paulo. Il était
étudiant em génie quand il chois
it de s`engager dans le Parti Communiste Brésilien
(PCB), parti où il a milité depuis les années trente, juqu`en 1967, année ou il a rompu
avec le Parti puor entrer dans la lutte armée, comme membre de l`Action Libératrice
Nationale, organisation dont il f
ut l`un des membres fondateurs.
Le point central sur lequel nous avons concentré notre attention dans ce travail
porte sur la question suivante: quells sont les motifs qui ont conduit Câmara Ferreira à
rompre avec le PCB, à mesure que celui
-
ci s`opposait à
la lutte armée contre la Dicture;
se de fait, et jusqu`à quel point, des contenus éthiques se sont superposés aux
perpectives théorico
-
scientifiques dans la compréhension de la Revolução Brésilienne.
16
Í N D I C E
INTRODUÇÃO
...............................................................................
1. Justificativa e obje
tivos
..............................................................
2. Questões Historiográficas
..........................................................
3. Hipóteses
...................................................................................
4. Quadro Teórico e Metodológico
................................................
1 -
ZINHO
O HOMEM JOAQUIM CÂMARA FERREIRA
..........
1.1. Jaboticabal
As origens
..............................................
1.1.1. Infância e adolescência de Joaquim Câmara Ferreira
.
1.1.1.1.
Leonora Cardieri Ferreira
Uma grande companheira.
1.1.1.1.1 Leonora e Zinho
Encontros e desencontros
..............
1.2. Com Roberto e Denise
Amor e preocupação à distância
2
-
CÂMARA FERREIRA
O HOMEM DO PCB
.........................
3
-
O “VELHO OU TOLEDO”
O H
OMEM DA ALN
..................
CONSIDERAÇÔES FINAIS
.........................................................
BIBLIOGRAIFIA
............................................................................
ANEXOS
........................................................................................
17
O REVOLUCIONÁRIO DA CONVICÇÃO:
Joaquim Câmara Ferreira , o Velho Zinho.
“Entre erros e acertos, fizemos o que nos foi possível
fazer numa situação histórica dada. Cada um, um
pouco à sua maneira, lutou, nos seus estreitos limites,
pelos ideais de que estava imbuído.”
Maria Yedda Linhares
I
Apresentação
Todo trabalho de pesquisa parte de uma indagação a respeito de algo com o
qual se adquiriu uma certa identificação inicial e que aos poucos foi se tornando uma
paixão. O presente projeto de pesquisa não foi diferente. No decorrer da realização de
uma pesquisa de pós-
graduação
latu sensu, em que procurei resgatar um pouco da
história dos presos políticos em Volta Redonda no período que abrangia os anos entre
1964 e 1988, fui orientado a estudar bibliografias que tratassem da ditadura militar no
Brasil, para que daí pudesse compreender a repressão política em Volta Redonda em
um contexto mais amplo.
Foi no decorrer das leituras realizadas que me deparei com um personagem que
mais tarde se tornou o objeto de pesquisa para esta dissertação.
O nome que muito me chamou atenção pela quantidade de referências feitas a
ele no que dizia respeito à resistência à repressão militar no Brasil era o de Joaquim
Câmara Ferreira, também conhecido entre os grupamentos da esquerda armada no
18
Brasil pelos codinomes de “Velho” e “Toledo”, tendo sido dirigente de um desses
grupos, a Ação Libertadora Nacional (ALN)
1
.
Durante um determinado tempo, procurei obter livros que pudessem me
desvendar o personagem e sua trajetória de vida pessoal, social e política. Causou-
me
surpresa que não existisse nada escrito a respeito desse homem, a não ser as
constantes citações na bibliografia lida por mim.
Tend
o ingressado no curso de Mestrado, tive a grande satisfação de conhecer o
Professor Lincoln Penna logo no primeiro módulo do curso, que tratava de metodologia
de pesquisa, e descobri que esse Professor havia introduzido no Mestrado em
Vassouras uma linha d
e estudos que abrangia o campo de biografias políticas
2
.
Conversando com o Professor Penna, falei do meu interesse em construir a
biografia política de Joaquim Câmara Ferreira, e ele expôs as etapas necessárias à
realização de um trabalho biográfico, dando-me apoio e segurança para que eu
pudesse optar definitivamente pela realização da pesquisa.
A indagação inicial sobre o personagem foi se transformando numa paixão, sem
a qual nenhuma dissertação pode ser bem realizada.
Assim, este estudo biográfico tem como objeto a trajetória do homem Joaquim
Câmara Ferreira, procurando desvendar suas diversas faces: pessoal, social e política.
Historicamente, trata-se de um personagem quase desconhecido, que, no
entanto, testemunhou, através de sua vida e militância iniciada aos dezoito anos, todo
1
Organização armada de esquerda surgida nas fileiras do PCB (1968) e vinculada aos nomes de Marighella e
Joaquim Câmara Ferreira.
In: GORENDER, Jacob.
Combate nas Trevas
. 3.ed. S
ão Paulo: Ática, 1998, p103.
2
As biografias e autobiografias são gêneros historiográficos cujo valor histórico se mede em função de um
pressuposto básico: o rigor no tratamento das abordagens acerca dos protagonistas. Ambas, apesar de suas
especificidade
s, são políticas, seja pelo enquadramento histórico social inerente à sua concepção, seja pelas
implicações desses protagonistas no curso do processo social. PENNA, Lincoln de Abreu. História Apreensão ou
Construção de Realidade?
Revista do Mestrado de His
tória
, Vassouras, RJ, V.4, n.2, 2001/2002, p.134.
19
um período marcado por fatos da maior importância: a “Revolução” de 30, a
Constitucionalista de 32, o levante de 35, a tentativa do golpe integralista, o Estado-
Novo, a Segunda Guerra Mundial, a legalização do Partido Comunista do Brasil (PCB)
em 1945 e a cassação de seu registro eleitoral em 1947, a efervescência social pré-
64,
o golpe militar, a escalada repressiva posterior ao golpe, o Ato Institucional nº5 (AI-
5)
em 68 e a luta armada a partir de então, em conseqüência da
qual foi morto em outubro
de 1970.
Ao recuperarmos a trajetória desse homem, acompanharemos as lutas travadas
pela esquerda contra o regime de opressão que remonta à ditadura Vargas. E, por
tratar
-
se de
“um militante coerente
3
, que fez as mais ousadas op
ções em conformidade
com seu pensamento íntegro, poderemos ter, ao cabo do trabalho, não só uma visão de
sua vida particular, como também de sua vida no PCB, numa perspectiva que permita
uma visão global
4
dos caminhos que a esquerda se propunha, em relação à Revolução
Socialista no Brasil.
Joaquim Câmara Ferreira, de início, foi integrante da Juventude Comunista,
depois do Socorro Vermelho. Logo após, tornou-se quadro do partido comunista,
membro de seu Comitê Central e mais tarde dissidente, fundador da ALN, clandestino,
perseguido, torturado e morto.
Reconhecido no partido como um grande articulador político e por seus
companheiros como “afável e de caráter excepcional”
5
, Câmara Ferreira tornou-
se
também, hoje, uma figura na qual se concentram as questões que revelam as
3
Conforme depoimentos de vários membros do PCB e da ALN.
4
Quando falo de uma visão global, estou me referindo aos aspectos relevantes para a contextualizar o personagem
em seu tempo, visto que o objetivo
desse trabalho não é aprofundar a história do PCB e nem da ALN.
5
Conforme depoimentos de vários membros do PCB e da ALN.
20
contradições de um membro do PCB em seu período de militância política, a hesitação
da própria esquerda diante de um momento histórico confuso resultante do golpe de 64,
e a trajetória de um revolucionário que, uma vez tendo optado pela aç
ão armada, sendo
sempre convicto e coerente com esta opção, terminou por entregar sua própria vida.
Quanto à realização de uma biografia política, fazem-se necessárias algumas
considerações a seu respeito como possibilidade historiográfica.
A construção de
biografias não constitui um gênero recente, pois, desde a Grécia
Antiga, textos deste tipo eram utilizados com propósitos que transitavam entre o campo
literário e o histórico. Nesse sentido, podemos observar que, durante o período que vai
da Grécia Antiga até os meados do século XX, a biografia foi utilizada com vários
objetivos: como recurso literário, como ficção, como importante instrumento de culto a
personalidades políticas, históricas e religiosas, como suporte para pesquisas, entre
outros. Em razão disto, a biografia sofreu sempre de uma dúvida com relação à sua
validade como gênero para a História, sendo de certo modo estigmatizada.
Porém, na década de 1970, na França, a biografia tomou um novo impulso,
motivado pelo aumento do número de teses que retomavam, como objeto de estudo, a
história política. Esta, por sua vez, havia também recebido resistências devido ao fato
de voltar-se quase exclusivamente para a evocação de governantes e a historicidade
do poder. Dentro desta perspectiva de História, a biografia aparece totalmente
desvinculada de um contexto sócio
-
político e repleta de forte componente ideológico, ao
ser utilizada pelas elites políticas, que, referenciando suas personalidades, procuravam
manter seus poderes e privilégios.
De qualquer modo, essa retomada da história política, com uma abordagem que
consagra os estudos de marginalidades, pretendendo estender o campo da História e
21
trazendo para o primeiro plano os excluídos da memória, deu novo impulso à biografia
e à sua possibilidade como
gênero histórico.
Porém, no período em que se retomava a biografia como gênero histórico, esta
ação era atacada por historiadores renomados como Pierre Nora e Jacques Le Goff,
que, em
Faire
de L´historie
(1974), destacam:
“(...) a especificidade (e a insuficiência metodológica) de um gênero situado
nas fronteiras da Literatura e da História, designado, fora do campo histórico,
como um terreno onde acampavam ‘esses vulgarizadores de baixo nível,
esses escrevinhadores da historieta’, que se valiam de uma certa arte de
escrever para o grande público para esquecer sua insuficiência científica”
6
.
As críticas feitas por esses historiadores direcionam-se aos trabalhos baseados
muito mais em biografias literárias com objetivos mercadológicos do que em biogra
fias
históricas: apesar de ambas se pautarem por um mesmo estilo de escrita, na primeira é
permitida a ficção, isto é, a possibilidade do autor preencher livremente as lacunas
sobre as quais não encontra documentação suficiente, enquanto na segunda esta
po
ssibilidade é inadequada, por uma questão de método.
O próprio Le Goff, poucos anos depois, reviu sua posição com relação à
biografia como possibilidade historiográfica, ao se propor escrever um trabalho
biográfico sobre São Luiz, dizendo que
“(...) Con
sidera
-se de modo geral que a história dita ‘nova’, em particular a
Ècole des Annales, não está interessada na biografia. Isto é ignorar que
Lucien Febvre escreveu um Luther, e que a grande tese de Fernand Braudel
Sobre Filipe II e o Mediterrâneo é também,
à sua maneira, uma biografia”
7
.
6
Levillain, Philippe. Os Protagonistas: da Biografia. In: Rémond, René (org.) Por uma História Política. Rio de
Janeiro: Edito
ra UFRJ e FGV, 1996, p. 142.
7
Levillain, op. cit., p.50.
22
Cabe
-nos, agora, uma reflexão sistematizada para definirmos o que é biografia,
qual é a sua metodologia, seu lugar histórico, sua aplicação e sua possibilidade de
construir um saber histórico.
Ao buscarmos no dicionário uma definição para “biografia”, encontramos
:
descrição ou história de vida de uma pessoa”
8
.
Para a análise histórica, esta definição
leva a um equívoco de interpretação, pois restringe o sentido a que se propõe uma
biografia. Nas palavras de Valéria Guimarães, o termo “’descrição’ camufla a
possibilidade de se estabelecer relações entre a vida do biografado e o contexto em
que este se inscreve”
9
.
Escrever uma história de vida não pressupõe obrigatoriedade em estabelecer a
articulação entre a vida de uma pessoa e as relações sociais que a permeiam, bem
como a sua contextualização. Podemos entender, desta forma, que, embora a história
de vida e a biografia tentem reconstruir trajetórias individuais, estas possuem
especificidades próprias e relações de comp
lementaridade e independência.
A história de vida busca registrar toda a trajetória existencial de um personagem,
enquanto a biografia tende a uma análise mais seletiva. Porém, na construção
biográfica, faz-se necessária à construção da história de vida como ponto de partida,
uma vez que não podem ser desprezados aspectos de relevância que dizem respeito
ao caráter e à personalidade do personagem.
Segundo Penna,
“(...) do ponto de vista da construção de biografias, as histórias de vida
representam pressupostos insubstituíveis. Essa imprescindibilidade decorre do
8
Ferreira, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa Século XXI.
2.ed.
Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 302.
9
LIMA, Valéria Guimarães. Em torno da biografia como Gênero histórico; Apontamentos para uma reflexão
epistemológica.
Universidade do Rio de Janeiro, s/d (mimeo), p. 5.
23
fato de a biografia ter como ponto de partida o conhecimento da vida do
biografado. Porque, se a história de vida está centrada na individualidade do
ser, a biografia situa
-
se na confluência dest
a com a do ser social, isto é, aquele
que combina uma dupla condição: a do indivíduo e a do cidadão. Operar
nestas duas dimensões é conseguir tecer o resultado final de uma vida,
sobretudo quando esta transita com desenvoltura nos planos privado e público,
de maneira inteiramente integrada”
10
.
Nesse sentido, para construir uma biografia histórica, é necessário construir os
diversos tecidos de relações que auxiliam na explicação não da importância do
personagem biografado no seu contexto (circunstâncias históricas, imersões em
culturas e experiências típicas de seu mundo), como também revelam os valores que a
pessoa traz consigo. Além disso, a construção biográfica permite ainda uma análise de
questões que fogem ao período delimitado, possibilitando
“uma
série de ligações entre
um tempo remoto, que se vivificam a partir de um outro tempo, e o tempo presente”
11
.
Por isso, uma integração entre o tempo e o espaço é fundamental na construção
das biografias, pois elas não podem ser elaboradas somente a partir de dados do
biografado. Pierre Bourdieu reforça essa condição ao dizer que é indispensável
reconstruir o contexto, a superfície social em que age o indivíduo, numa pluralidade de
campos, a cada instante”
12
.
Podemos perceber, dessa forma, as dificuldades que permeiam a realização do
trabalho biográfico numa perspectiva rigorosamente histórica. É imprescindível trabalhar
nas dimensões do tempo cronológico e emocional (existencial), e do tempo factual e
político, num processo de reconstrução histórica que envolve o particular e o geral, isto
é, o individual (a pessoa enquanto ser social e político), e o universal, compreendido
10
PENNA, Lincoln de Abreu.
Metodologia de Abordagem Biográfica
,
Vassouras, mimeo, 1998.
11
LIMA, op. cit., p. 7.
12
LEVI, Giovanni. (Usos da biografia), In: Amado, Janaína & Ferreira, Marieta Moraes (organizadoras). Usos e
Abusos da História Oral
. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2002, p.169.
24
nas civilizações e culturas que atravessam, por vezes, milhares de anos. Tudo isso
numa relação complementar e não exclusora.
Nessa compreensão, o indivíduo relaciona-se com o seu contexto numa atitude
de conservação, negação ou transformação contextual. O contexto não é o único fator
determinante das atitudes e valores do personagem.
De acordo com Guimarães,
“(...) O indivíduo apreende seu contexto de acordo com seus interesses e sua
cultura política. Somam-se a isso os elementos subjetivos, a afetividade, a
personalidade do biografado. O indivíduo não é uma mera tábua rasa a ser
moldada pelo seu contexto, não é um mero produto do seu tempo, mas
alguém que está constantemente dialogando e mesmo se confrontando com
ele”
13
.
Além da referência à contextualidade, outros elementos importantes para a
biografia, como a oralidade e a memória.
Ecléia Bosi enfatiza “que o modo de lembrar é individual tanto quanto social: o
grupo transmite, retém e reforça as lembranças”
14
, isto é, a memória individual e a
memória coletiva estão intimamente ligadas. Cada memória individual é um ponto de
vista sobre a memória coletiva. Desta forma, quem se dispõe a trabalhar essas
lembranças vai paulatinamente individualizando a memória comunitária, e, no que
lembra e no como lembra, faz com que permaneça o que signifique.
Para a realização de uma biografia, sendo o personagem vivo ou morto, os
depoimentos constituem a maneira de dar forma à memória, cuja formulação está em
constante processo de criação e atualização, num exercício permanente de seleção e
valoração dos acontecimentos.
13
LIMA, op. cit. p. 8.
14
BOSI, Ecléia
. Memória e Sociedade. Lembranças de Velhos
. 10. ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 2003. p.
31.
25
Dessa forma, pode haver interferências nos depoimentos, que vão desde a
afetivi
dade até o desfecho de um processo histórico do qual o depoente foi partícipe e
que o leve a fazer uma análise acompanhada de racionalidades que não estavam
presentes no momento em que o fato aconteceu. Isto é muito observado nos
depoimentos que tratam de pessoas mortas, que ganham certa respeitabilidade aos
olhos do depoente.
Cabe ao biógrafo a atenção necessária no que diz respeito a essas
interferências valorativas, confrontando-as com outras fontes e depoimentos e
procurando perceber que é justamente ne
ssa
“contaminação que reside uma
considerável rede de informações, que estão conectadas ao tempo, à afetividade e às
experiências do depoente”
15
. Procedendo assim, evita-se que o trabalho estabeleça
uma imagem do personagem de acordo com as intenções políticas e/ou com as
opiniões de quem a realiza.
Esses foram os aspectos observados para a realização do trabalho de
recuperação do personagem Joaquim Câmara Ferreira, em que utilizamos a história
oral.
Para a feitura do trabalho, foram realizadas entrevistas com pessoas das
relações pessoais, partidárias e guerrilheiras do biografado. Tais entrevistas, além de
serem imprescindíveis na realização da pesquisa, também nos deram o privilégio de
conviver com militantes que contribuíram, através de suas trajetórias de vida, para o
avanço das lutas do povo brasileiro.
Joaquim Câmara Ferreira, por ter atuado sempre em ações de organização
partidária, e devido aos grandes períodos de sua vida na clandestinidade, não deixou
15
LIMA, op. cit., p. 9.
26
muitas coisas escritas, embora fosse um intelectual e houvesse sido diretor-redator de
jornais do PCB. É importante ainda lembrar que esta dissertação é um trabalho inédito
sobre um personagem sobre o qual nada há escrito.
Devido a esses fatos, todas as fontes que pudemos utilizar foram importantes
para aquilo que nos propusemos. Neste aspecto, Marieta de Moraes Ferreira e Janaína
Amado, no seu livro “Usos e abusos da história oral”, dizem que “fazer história oral
significa, portanto, produzir conhecimentos históricos, científicos, e não simplesmente
fa
zer um relato ordenado da vida e das experiências dos outros”
16
.
Sabíamos, no entanto, que os depoimentos não substituiriam a pesquisa nem a
conseqüente análise histórica, mas que essas entrevistas, organizadas e confrontadas
com outras fontes documentais, nos ajudariam na composição do trabalho, como
explicita Lincoln Penna:
“(...) O somatório de memórias que um indivíduo consegue preservar pode
permitir que se consiga reconstituir o seu passado, assim como o passado
histórico do qual foi partícipe e testemunha. Todavia, isso não basta para
que se consiga reconstituir o seu passado histórico, pois esta reconstrução,
embora aleatória e subjetiva, se faz mediante procedimentos
metodologicamente organizados por parte dos historiadores”
17
.
Exposta então a importância que a história oral teve na realização deste
trabalho, desde que analisada dentro do processo histórico, juntamente com outras
fontes documentais, passaremos a explicitar brevemente o procedimento utilizado na
realização das entrevistas.
Noss
a abordagem foi ao encontro do que as autoras citadas acima estabelecem
como questionário aberto, pois, segundo elas,
16
FERREIRA, Marieta Moraes; AMADO, Janaína (coordenadoras). Usos e abusos da história oral. ed. Rio de
Janeiro: Editora FGV, 2000. p. 17.
17
PENNA, op. cit., p. 146
-
147.
27
“Quando o interesse do pesquisador se concentra apenas num aspecto
concreto ou numa época da vida da testemunha, ele pode ficar tentado a
limitar seu questionário a esse projeto imediato, o que a nosso ver seria um
erro. É preciso visar a elaboração de um relato de vida, fonte de valiosas
informações”
18
.
O nosso objetivo com isso foi coletar a maior quantidade de informações
possíveis dos entrevistados, para não perdermos a riqueza dos detalhes que nos
ajudaram na realização da dissertação.
Assim sendo, apropriamo-nos de outra possibilidade da história oral que “(...) é
extremamente útil para preencher as lacunas da história, para compensar a falta de
documentação”
19
.
Em relação a outras fontes, utilizamos documentos dos órgãos de repressão que
estavam no Centro de Documentação da Universidade Estadual de São Paulo
(UNESP) e no Arquivo Público de São Paulo e do Rio de Janeiro; memórias escrit
as por
Leonora Cardieri Ferreira, esposa de Câmara Ferreira; cartas escritas por Joaquim
Câmara Ferreira à sua filha Denise, em 1969; documentos escritos pelo biografado:
texto elaborado por ocasião da morte de Marighella; artigo publicado no jornal “O
Gue
rrilheiro”; relatório analisando a linha política do PCB, após o seu V Congresso.
Para construir a biografia política deste personagem, na qual buscamos
estabelecer a relação do ser social e do ser pessoal, também nos apropriamos do
trabalho de Agnes Heller, “O quotidiano e a história”, principalmente no tocante à
importância da vida cotidiana. Para ela, “a vida cotidiana é a vida de todo homem.
18
FERREIRA, Marieta Morae
s; AMADO, Janaína (coordenadoras). op. c it. p. 238.
19
op. c it, p. 31.
28
Todos a vivem, sem nenhuma exceção, qualquer que seja seu posto na divisão do
trabalho intelectual e físico”
20
.
He
ller analisa que todo homem está inserido no cotidiano, que se constitui como
ponto de partida para todo indivíduo. A autora afirma ainda que
a vida cotidiana é a vida do homem inteiro, ou seja, o homem participa na
vida cotidiana com todos os seus sentidos, todas as suas capacidades
intelectivas, suas habilidades manipulativas, seus sentimentos, paixões,
idéias, ideologias”
21
.
Também Jacques Le Goff corrobora com as palavras de Heller, ao dizer que
“A história do cotidiano é uma visão autêntica da história porque representa
uma das melhores formas de abordagem da história global, na medida em que
atribui a cada ator e a cada elemento da realidade histórica um papel, no
funcionamento dos sistemas, que permitem decifrar essa realidade”
22
.
Enfim, a cotidianidade nos levou a traçar o perfil do homem Joaquim Câmara
Ferreira, ou Zinho
23
, como este era chamado em família, o qual não pode estar
desvinculado de Câmara Ferreira (como Zinho era chamado no PCB) e nem do “Velho”
ou “Toledo” (como Zinho era chamado
na ALN).
No primeiro capítulo, procuramos recuperar o homem Joaquim Câmara Ferreira
em sua vida cotidiana: sua infância, adolescência, a opção pelo comunismo, o
abandono da engenharia na Politécnica de São Paulo e a Filosofia na USP, para se
dedicar à militância no partido comunista; o casamento por procuração, quando estava
preso na Ilha Grande em 1945; a relação com a esposa Leonora Cardieri e com os
filhos Roberto e Denise.
20
HELLER, Agnes
. O quotidiano e a história.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1972, p. 17.
21
Ibid., p. 17.
22
DUBY, G.; ARIÈS, P.; LE GOFF, J
. História e Nova História.
Lisboa: Teorema, 198
6, p. 82.
23
Conforme depoimento de Roberto Cardieri Ferreira (Filho de Câmara Ferreira), em agosto de 2003, em São
Paulo.
29
No segundo capítulo, abordamos a vida militante de Joaquim Câmara Ferreira no
PCB, quando ingressou na Juventude Comunista, passando pelo Socorro vermelho,
atuando como diretor
-
redator dos jornais do partido (“Hoje” e “Notícias de Hoje”) e como
dirigente do Comitê Estadual do PCB em São Paulo e membro do Comitê Central.
Focalizamos esta trajetória de acordo com Penna, que, sobre o trabalho biográfico,
afirma que “uma necessidade de contextualização, pois as pessoas objetos desses
estudos viveram em circunstâncias históricas, imersas em culturas e experiências
típicas de seu mundo”
24
.
Além disso, procurarei demonstrar a relação visceral deste
militante com o PCB. Câmara Ferreira nunca foi um homem de relações públicas, mas
pelo contrário, sempre atuou dentro da máquina partidária, ou seja, na organização.
Poderia ser definido como um “homem do aparelho.” Homens como Câmara Ferreira
aparecem pouco, mas não deixam de ser fundamentais para o funcionamento da
estrutura do Partido.
Enfatizamos ainda as prisões e torturas às quais foi submetido durante sua
trajetória política. Para isso,
foi necessário delinear uma visão geral do PCB, com o qual
a vida do personagem esteve diretamente entremeada, porque, ainda segundo Penna,
“(...) é indispensável a inclusão do lugar social, cuja apreensão por parte do historiador
ou biógrafo não pode deixar de ser construída para a realização do trabalho biográfico”
25
.
No terceiro capítulo, enfocamos o rompimento de Joaquim Câmara Ferreira com
o PCB em 1967 para ingressar na luta armada, e a sua atuação na ALN.
24
PENNA, Lincoln de Abreu.
Revista do mestrado de História
,
Vassouras, RJ, V.4, n.2, p. 139, 2001/2002.
25
Ibid., p. 139.
30
Nesse sentido, optamos por apresentar uma abordagem das facetas do
personagem para podermos ter uma dimensão mais exata das opções feitas por ele
durante sua trajetória de vida pessoal, política (no PCB) e guerrilheira (na ALN). Nesse
campo, priorizamos uma análise acerca do seu rompimento com o partido e sua
inserção na luta armada para combater a ditadura militar, em que objetivamos:
a)
Verificar os motivos que levaram Câmara Ferreira a romper com o PCB, na
medida em que este se opunha à luta armada no combate à ditadura: se, e até
que ponto
, conteúdos éticos se sobrepuseram
a perspectivas teórico
-
políticas na
compreensão da revolução brasileira;
b)
Verificar como a ALN, que propunha a ação armada contra a Ditadura militar no
Brasil, se coadunava com as perspectivas políticas e éticas de Joaquim Câmara
Ferreira.
Sendo assim, trabalhamos com as seguintes hipóteses:
a) Na opção de Joaquim Câmara Ferreira pela luta armada pesou muito mais um
forte conteúdo ético do que uma interpretação teórica e política sobre os caminhos
da revolução brasil
eira;
b) A Ação Libertadora Nacional foi o caminho natural encontrado por Joaquim
Câmara Ferreira para colocar em prática as suas perspectivas políticas permeadas
por um conteúdo ético.
31
A partir desses pressupostos, vislumbramos neste personagem aquilo que Max
Weber definiu em seu livro Ciência e Política: Duas Vocações”, ao estabelecer a
distinção entre o que denomina “ética da responsabilidade” e a “ética da convicção”.
A ética da responsabilidade é aquela na qual o indivíduo atua de acordo com os
in
teresses pessoais. Este tipo de ética gera o político que faz política como meio de
sobrevivência e age por interesses privados e não coletivos.
A ética da convicção é aquela que faz com que o indivíduo aja em função das
suas idéias e não de suas conveniê
ncias. Os indivíduos secundarizam sua vida pessoal
em função de uma idéia. São aquelas pessoas que fazem da política o meio de fazer
valer suas idéias e não usam da política para interesses próprios. Supomos que
Câmara Ferreira tenha norteado suas ações pe
la ética da convicção.
Weber um exemplo específico a respeito do que seria a ética da convicção,
tomando como exemplo o pacifista absoluto:
O pacifista absoluto se recusa incondicionalmente a portar armas e matar seu
semelhante. Se ele pensa que irá impedir as guerras com essa recusa, é um
ingênuo e, no plano da moral da responsabilidade, ineficiente. Mas se seu
objetivo é simplesmente agir de acordo com sua consciência e se a própria
recusa é o objeto de sua conduta, se torna sublime ou absurdo, não i
mporta,
não pode ser refutado. Quem proclama antes a prisão e a morte do que matar
seu semelhante está agindo de acordo com a ética da convicção. Pode
-
se não
lhe dar razão, mas não se pode demonstrar que está enganado, pois o ator
não invoca outro juiz a não ser sua própria consciência, e a consciência de
cada um é irrefutável na medida em que não tem a ilusão de transformar o
mundo, e a única satisfação que ambiciona é a própria fidelidade”
26
.
É importante observar que, para William Ash, não é possível chegar a nenhum
conceito próprio de moral partindo de um ato isolado, praticado por certa pessoa num
momento preciso. Porém, segundo o mesmo autor,
26
ARON, R
aymond.
As etapas do pensamento sociológico.
São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 472.
32
“uma vez compreendida a natureza da moral em seus aspectos sociais e
temporais, então os atos individuais podem ser analisados em termos morais.
(...) Uma apreciação das relações humanas socialmente determinadas que
interagem durante a vida do indivíduo nos dá o sentido da moral como a
medida do esforço para agir de acordo com essas obrigações; e este padrão,
uma
vez formulado, pode ser aplicado aos atos individuais”
27
.
Recuperando o homem Joaquim Câmara Ferreira, pudemos verificar em toda
sua trajetória, principalmente na ruptura com o PCB em 1967 para militar na luta
armada, a ética da convicção. Esse personagem havia militado desde muito jovem no
PCB, destacando-se como um quadro expressivo do partido, sempre coerente no que
se referia a seguir toda a sua diretriz. Enfim, um homem que possuía a sua militância
partidária dentro dos processos que o partido havia traçado como sendo aqueles
possíveis para realizar a revolução socialista dentro da realidade brasileira. Poderíamos
dizer que sua vida partidária era regida como o que nos diz Antônio Gramsci:
“Todos pertencemos a um determinado grupo, que reúne os el
ementos sociais
que partilham de um mesmo modo de pensar e de agir, somos sempre
conformistas de algum conformismo, somos sempre homem massa, ou
homem coletivo”
28
.
No entanto, diante da posição tomada pelo PCB pós 1964 de criar uma frente
democrática ampl
a de combate à ditadura instaurada no país, Joaquim Câmara Ferreira
tomou uma posição contrária a esta diretriz, e, diante da impossibilidade de realizar
suas idéias, que viam na luta armada a única alternativa diante do quadro político
existente, rompeu com o partido e foi atuar na esquerda armada, o que ocasionou
27
ASH, William.
Marxismo e moral
. Rio de Janeiro, 1965, p. 115
-
116.
28
GRAMSCI, Antônio.
A Concepção Dialética da História
. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,1981, p.
12.
33
surpresa a muitos de seus companheiros, como nos diz o depoimento de Geraldo
Rodrigues
29
:
“o seu desligamento (o de Marighella) ocorreu por ocasião do racha do partido
que antecedeu o VI Congresso. Arrastou todos os integrantes desse comitê,
incluindo o pacato Joaquim Câmara Ferreira, que jamais pude imaginar um ativo
militante da luta armada, e que, a exemplo de Marighella, também viria a tombar
no enfrentamento com a repressão”
30
.
“Geraldão”
, ao mesmo tempo em que se surpreendeu com a opção de Joaquim
Câmara Ferreira, nos dá, logo a seguir, um ponto que se pode caracterizar como
ética da convicção, que é o fato de Câmara Ferreira ter optado por um caminho que se
coadunava com os seus conteúdos éticos, mantendo suas idéias e convicções até as
últimas conseqüências.
Conforme Ash, “embora o ato particular possa ser mais ou menos típico de
nossa atitude moral geral, a soma de nossos atos durante toda a vida expressa tal
atitude fielmente, j
unto com todas as suas modificações no curso da evolução”
31
.
Além disso, ainda podemos constatar esta mesma convicção em vários outros
episódios no período de desligamento do partido: os princípios norteadores daqueles
que fizeram a mesma opção podem ser também constatados na carta de Marighella ao
Comitê Executivo do PCB, quando ele pede o seu desligamento deste Comitê.
Marighella diz:
“o contraste de nossas posições políticas e ideológicas é demasiado grande, e
existe entre nós uma situação insustentável. Na vida de um combatente, é
preferível renunciar a um convívio formal a ter de ficar em choque com a
própria consciência”
32
.
29
Geraldo dos Santos Rodrigues (Geraldão) foi liderança sindical dos portuários de Santos e dirigente histórico dos
comunistas. Conheceu e militou com Joaquim Câmara Ferreira no PCB, em São Paulo.
30
PENNA, Lincoln de Abreu.
A Trajetória de um Comunista
. Rio de Janeiro: Revan, 1997, p. 66.
31
ASH, op. cit., p. 115.
32
LÖWY, Michael.
O Marxismo na América Latina
. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000, p. 296.
34
Podemos verificar essa mesma posição no depoimento colhido por nós com
Dona Sara Mello
33
, que, tendo sido visitada por Câmara Ferreira em sua casa, relatou
uma das últimas conversas que teve com ele, quando este atuava como militante na
ALN:
“- Zinho, será que a luta armada é o único caminho? Não outro? e o Zinho
me respondeu:
-
Isto é uma questão moral!”
34
.
Para Ash, quando colocamos as ações num contexto social onde elas realmente
ocorrem, a distinção entre os resultados objetivos e a motivação subjetiva nos surge, a
princípio, como uma distinção entre os atos dos outros e os nossos. No caso de nossos
atos, temos consciênc
ia do que tencionamos fazer; mas, quanto aos atos dos outros, só
nos ocupamos quando procuramos descrevê-los com os seus atos observáveis. De
acordo com o autor,
“como ‘o que deve ser feito’ não pode ser uma característica dos atos em si,
como vimos, e como a conduta moral de outras pessoas parece ser limitada
aos atos que as vemos executar, parecemos estar na curiosa posição de
sermos capazes de aplicar as formulações de ‘dever’ em relação a nós
mesmos. Na verdade, quando julgamos o comportamento dos outros, são
freqüentes observações como ‘com tal pano-
de
-fundo, que teríamos de
esperar?’, ou ‘poderia um homem com seus hábitos ter feito outra coisa?’. É
muito menos provável que nos pronunciemos dessa forma a nosso próprio
respeito, e, na realidade,
pareceria estranho dizer: ‘sei que agi mal, mas com a
minha história passada, como me teria sido possível fazer outra coisa?’ Parece
estranho porque estamos em condições de saber se poderíamos ter evitado ou
não um determinado ato, e, se não pudéssemos, não o caracterizaríamos
como moralmente errado. E, não obstante, enquanto levamos em conta nossas
limitações e nossas intenções, em qualquer julgamento que fazemos a nosso
próprio respeito, os outros nos julgam como os julgamos rigorosamente em
termos dos resultados objetivos de nossos atos. Assim, é possível não só uma
diferença considerável entre o que pensamos de nós mesmos e o que os
outros pensam de nós, mas também o que parece uma expressão
relativamente livre de certa intenção parece aos demais uma
série
completamente determinada de atos e conseqüências”
35
.
33
Dona Sara Mello entrou no PCB com 18 anos, em 1932, e conheceu Joaquim Câmara Ferreira, que estava então
com 19 anos. Ambos mantiveram um laço de amizade pessoal e partidária que durou a vida toda.
34
Conforme depoimento de Sara Mello, em maio de 2003, em São Paulo.
35
Ash, op. cit., p. 112
-
113.
35
Procuramos, no transcorrer do trabalho, e mais precisamente no terceiro
capítulo, demonstrar que Joaquim Câmara Ferreira, convicto de suas idéias e de sua
opção pela luta armada, diante das impossibilidades impostas pela repressão política
implantada pela ditadura militar, buscou por todos os meios manter-se fiel a seus
princípios, a ponto de, por eles, dispor
-
se a sacrificar a própria vida.
Feitas essas considerações iniciais, queremos deixar evidenciado que, ao optar
pela construção da biografia política de Joaquim Câmara Ferreira, estamos
convencidos daquilo que é enfatizado por Philippe Levillain: “A biografia é o melhor
meio de mostrar as ligações entre o passado e o presente, memória e proj
eto, indivíduo
e sociedade, e de experimentar o tempo como prova de vida”
36
.
Além disso, é possível fazer História a partir de propostas centradas no sujeito,
na eterna relação entre “Homem e História”, que, segundo Penna, são elementos sem
os quais não existem os processos sociais, as estruturas, as longas e breves durações
e todos os demais conceitos que integram a linguagem de quem dá sentido ao curso da
vida do ser humano no planeta Terra.
Após essas reflexões preliminares, acreditamos ser possível encaminhar o corpo
da nossa dissertação.
36
Levillain, op. cit., p. 176.
36
CAPITULO 1
Zinho
O homem Joaquim Câmara Ferreira
Resumo do 1º capítulo
Neste capítulo procuramos enfocar a vida cotidiana do homem Joaquim Câmara
Ferreira. Abordamos os vários aspectos da vida pessoal deste personagem: a infância
órfã (a mãe, Cleonice Câmara Ferreira, morreu vinte dias após o nascimento de
Joaquim, por complicações do parto
37
), a vida ao lado da avó materna, que assumiu a
criação de Joaquim e Francisco
38
após a morte da filha; a vida numa família de
grandes posses (o pai de Câmara Ferreira era fazendeiro na cidade de Jaboticabal
onde foi prefeito
39
da mesma por três vezes, pelo Partido Republicano Paulista (PRP) e
pelo Partido Constitucionalista (PC)); a ida para São Paulo para estudar, ficando
hospedado na casa de Isaac Nogueira Garcez, pai de Lucas Nogueira Garcez, com
quem Zinho manteria um laço de amizade durante toda a sua vida, mesmo com
posições políticas divergentes; o romance com Leonora Cardieri Ferreira e o casamento
por procuração com a mesma, quando Joaquim Câmara Ferreira ainda estava preso na
Ilha Grande, durante o Estado Novo; a relação com os filhos e com os amigos, e a vida
familiar dentro dos limites da clandestinidade.
37
Diário de Leonora Cardieri (esposa de Joaquim Câmara Ferreira) deixado para a filha Denise Fraenkel (Munster,
Alemanha, 1971) enviado da Alemanha, para o autor, em dezembro de 2003.
38
Irmão mais velho de Joaquim Câmara Ferreira.
39
Leonora Cardieri, diário.
37
1
Zinho
O homem Joaquim Câmara Ferreira
“Aos 20 anos se intuem as verdades que a vida
confirma depois” .
Margueritte Yourcenar.
1.1
Jaboticabal
-
As origens.
Nas palavras do grande historiador Lucien Febvre, o homem deve ser sempre do
seu
tempo e para o seu tempo. Para tal, acreditamos, como nos diz Gramsci, que este
deve estar imbuído de uma filosofia da práxis, isto é, da unidade entre a teoria e prática
40
.
Marx disse em seu trabalho intitulado A ideologia alemã, que a consciência não
faz a vida, mas a vida faz a consciência. Segundo Guareschi, isto ocorre porque a
dominação ideológica que se no plano individual é detectada na análise das
instituições que prescrevem os papéis sociais e as funções de cada pessoa, e acabam
determinando
as relações sociais de cada indivíduo
41
.
Porém, essa situação pode ser alterada através de um processo de
conscientização, que, segundo Guareschi, se desencadeia tanto que em vel pessoal
como no nível de consciência de classe. Esta se processa em grupo e se manifesta
quando indivíduos conscientes de si percebem-se sujeitos das mesmas determinações
40
ARIÈS, Philippe; DUBY, Georges. História da vida privada. Da Primeira Guerra aos nossos dias. São Paulo:
Companhia das Letras, 1994, p.449.
41
Pedrinho A. Guareschi.
Sociologia crítica. Alternativa de mudança
: Porto Alegre: Edições Mundo Jovem, 1996,
p.17
-
18.
38
históricas que os tornam membros de um mesmo grupo, inseridos nas relações de
produção que caracterizam a sociedade num determinado momento histórico. Isso
pode
levar a um processo de autoconscientização e conscientização social. Por sua
vez, o indivíduo consciente de si necessariamente tem também consciência de
pertencer a uma classe, mas enquanto indivíduo, esta consciência se processa
transformando tanto suas
ações quanto ele mesmo.
Nessa perspectiva, recuperamos o homem Joaquim Câmara Ferreira,
chamado pelos familiares e amigos mais íntimos de Zinho, para visualizarmos a
dimensão das opções assumidas por este personagem no decorrer de sua vida, que
evidênci
a a afirmação de Hobsbawm de que para “muitos vanguardistas de origens
burguesas era deliberada a escolha da insegurança em vez da segurança de uma
existência burguesa.”
42
As origens de Joaquim Câmara Ferreira situam-se no interior de São
Paulo, na cidade
de Jaboticabal.
O fundador da cidade de Jaboticabal
43
foi João Pinto Ferreira, que nasceu por
volta de 1778, na freguesia de Santo Estevão de Regadas, Conselho Celorico de
Bastos, em Portugal
44
. João Pinto Ferreira era parente remoto de Joaquim Câmara
Ferreira e adquiriu em 2 de dezembro de 1817 a posse, de João Rodrigues de Lima,
das terras relativas à Fazenda Cachoeira, mais tarde denominada de Fazenda Pintos.
No ano de 1828, João Pinto Ferreira fez a demarcação do perímetro que
mais tarde seria doa
do ao patrimônio de Nossa Senhora do Carmo de Jaboticabal.
42
HOBSBAWN, Eric. Pessoas Extraordinárias. Resistência, rebelião e Jazz. 2.ed. São Paulo: Paz e Terra,1999,
p.192.
43
A origem do nome deriva de um bosque de jabuticabeiras nativas, existentes dentro do perímetro demarcado e
jaboticabal, significa portanto, bosque das jabuticabeiras. A origem da palavra jabuticaba é indígena (Tupi) “iaoute
kaua”, fruto que alimenta o jabuti.
44
CAPALBO, Clóvis.
A história de Jaboticabal (1828
1978)
. Jaboticabal: Gráfica Multipress, 1993, p.4.
39
Entrando o ano de 1848, Jaboticabal foi elevada a Distrito de Paz e em 1857 a
Assembléia Legislativa provincial elevou o Curato de Jaboticabal à Freguesia. E, trinta e
nove anos após sua fundação, em 1867, Jaboticabal foi elevada à categoria de Vila,
desmembrando
-
se de Araraquara.
Historicamente o município de Jaboticabal, no ano de 1867, abrangia regiões de
São José do Rio Preto, Jales, Fernandópolis, Votuporanga, Araçatuba, Barretos,
Catanduva
, Novo Horizonte entre outras, estando limitado pelos rios Mogi Guaçu,
Grande Tietê e Paraná. Desde então, Jaboticabal teve diversos desmembramentos.
Atualmente, Jaboticabal tem 708,6 Km
2
, divididos entre os distritos de Lusitânia,
Córrego Rico e a sede m
unicipal.
Em 1868, foi instalada a Câmara de Vereadores e em 6 de outubro de
1894
45
, a sede do município recebeu o foro de cidade.
Na segunda metade do século XIX, a expansão da cafeicultura para o oeste do
Estado de São Paulo e a implantação das ferrovias foram os marcos do
desenvolvimento da região, o que pode ser constatado no crescimento populacional da
cidade: em 1872 eram 5.269 habitantes, e, em 1886, o município atingia 26.224
habitantes
46
.
A primeira metade do século XX foi marcada pelo predomínio da
imigração, com destaque para os italianos
47
, os portugueses, os espanhóis e os
45
Segundo o Historiador João Luís Fragoso, o ritmo de reprodução do sistema agrário que dava vida ao café em
terras paulistas pode ser medido pela ampliação das plantações e multiplicação dos municípios cafeeiros. Em 1880,
existiam 106 milhões de pés de café; nove anos depois , 220 milhões e, no final do século, 520 milhões. Na última
década do século XIX foram criados 41 novos municípios. In: Linhares, Maria Yedda (org.) História Geral do
Brasil.
Rio de Janeiro: Editora Campus,1996, p.166.
46
CAPALBO, op. cit., p. 4.
47
Segundo o Historiador João Luís Fragoso, entre 1887 e 1900, o território paulista recebeu 863 mil imigrantes, ou
seja, 29,7% do total das entradas entre 1827
-
1936. Mais de 60% desses imigrantes, nas duas últimas do século XIX ,
40
japoneses. Com base na agricultura, Jaboticabal se destacou como importante centro
regional nas atividades industriais, comerciais, bancárias e de prestação de serviços. As
indústrias de alimentação se destacavam regionalmente, juntamente com a cerâmica,
as fábricas de louças e olarias.
Na década de 30, Jaboticabal tornou-se um importante centro regional, sendo
conhecida como a “Athenas Paulista” pela grande atividade cultu
ral
48
. Mas, com a
decadência da cafeicultura, ocorrida a partir da depressão dos anos 30, a cidade
enfrentou a estagnação econômica, perdurando até o começo dos anos 50. Diante
deste quadro, mecanismo de reativação econômica, o município procurou diversifi
car
sua lavoura, destacando-se o algodão, o amendoim, o arroz e o milho, tendo, porém, a
cana de açúcar adquirido importância crescente e transformando-se na principal
atividade econômica do município, particularmente na produção de álcool e açúcar.
Em relação à etnia, Jaboticabal, desde sua fundação, sofreu declarada influência
de elementos de origem portuguesa, vindos de Minas Gerais, aos quais se juntaram
mais tarde consideráveis contingentes de italianos, espanhóis, árabes e japoneses
49
.
A família de Joaquim Câmara Ferreira esteve vinculada à história desta cidade,
como poderemos constatar no decorrer deste capítulo.
1.1
.1
– Infância e adolescência de Joaquim Câmara Ferreira
eram italianos (particularmente do norte da Itália) In: Linha
res, Maria Yedda (org.)
História Geral do Brasil.
Rio de
Janeiro: Editora Campus,1996, p.166.
48
CAPALBO, op. cit., p.5.
49
Ibid., p.5.
41
Joaquim Câmara Ferreira nasceu em 5 de setembro de 1913
50
, em São Paulo, na
“Al
ameda Barão de Limeira, num bonito hotel.”
51
Foi o segundo filho do casal Cleonice
Câmara Ferreira e do engenheiro Joaquim Batista Ferreira Sobrinho
52
, que nasceu no
Distrito de Córrego Rico, em Jaboticabal, em 4 de julho de 1886, falecendo na mesma
cida
de no dia 26 de fevereiro de 1936. Filho de Francisco Batista Ferreira e Maria de
Jesus Batista, antigos fazendeiros
53
, o pai de Joaquim Câmara Ferreira, portanto,
pertencia à tradicional família de Jaboticabal, ou seja, uma família de posses. Formou-
se em 1909 pela Politécnica, como relata Edwirges Ferreira Cardieri (irmã de Joaquim
Câmara Ferreira):
“Seu pai formava entre os primeiro moços a alcançar a formação de
engenheiro e dividia, então, o exercício de sua profissão em São Paulo (dirigir
obras de hidráulica e saneamento para o Estado de São Paulo) com o início
da participação na vida pública de sua cidade natal, Jaboticabal, local onde
sua família, além de fundadora da cidade, mantinha
-
se atenta ao desempenho
do seu papel na política comandada pela b
urguesia do café.”
54
Leonora Cardieri Ferreira (esposa de Joaquim Câmara Ferreira) confirma a
posição de destaque que a família de Zinho tinha dentro da sociedade e da política
jaboticabalense:
“Joaquim Batista Ferreira Sobrinho foi prefeito de Jaboticabal por três vezes
pelo Partido Republicano Paulista e pelo Partido Constitucionalista, sendo o
prefeito do centenário da cidade. Quando faleceu em 1936, ainda era prefeito.”
55
50
Certidão de casamento de Joaquim Câmara Ferreira fornecida pela família.
51
Leonora Cardieri, diário.
52
Depoimento concedido por Edwirges Ferreira Cardieri (irmã de Joaquim Câmara Ferreira, também chamada pelos
familiares carinhosamente de “tia Edu”) ao seu sobrinho neto Carlos Fraenkel que a enviou ao autor, do Canadá, em
julho de 2003.
53
CAPALBO, op. cit., p.5.
54
Edwirges
Ferreira Cardieri, depoimento.
55
Leonora Cardieri, diário.
42
Joaquim Batista Ferreira Sobrinho teve seu nome perpetuado no mais importan
te
logradouro público de Jaboticabal, que é a Praça Joaquim Batista, conforme resolução
número 2 da Câmara Municipal de 1936
56
. Todo esse reconhecimento se deveu às
inúmeras realizações do pai de Joaquim Câmara Ferreira, como nos conta Clóvis
Capalbo:
“Sua primeira obra de engenharia, em 1910, foi a ponte sobre o Rio Turvo, na
estrada de Monte Azul. Foi responsável pela ampliação da rede de água e
esgoto, pelos trabalhos de pavimentação da cidade e pela captação do
manancial do bairro Alto. Exercera fora de Jaboticabal importantes atividades
profissionais, chegando a ser nomeado pelo governo do Estado para trabalhar
na repartição de águas e esgoto da capital. Fora engenheiro da Estrada de
Ferro Jaboticabal. No centenário da cidade, ao receber a visita do
governador
Júlio Prestes, foi convidado para responder até o fim daquele governo paulista
pelo cargo de Diretor da Diretoria de Estradas de Rodagem.”
57
Joaquim Batista Ferreira Sobrinho foi também um dos fundadores do clube
Jaboticabal, importante clube da cidade. Clóvis Capalbo
58
relata a fundação do clube e
sua finalidade:
“No dia 8 de outubro de 1922, Major João Batista Novaes, Basiliano da Costa
Fontes, Dr. Pedro Dória, José Batista Ferreira, Joaquim Batista Ferreira, Dr.
Elias da Costa Barros, Dr. Alcibíades Fontes Leite e Dr. Cornélio Ferreira
França são as pessoas encarregadas de formar os estatutos para a
construção do clube Jaboticabal, em reunião a ser efetivada nas dependências
do Paço municipal.
O objetivo do clube Jaboticabal é o de ser um clube seleto, reunindo a
aristocracia e a elite da sociedade jaboticabalense, bem como ajudar a
incentivar as causas nobres, além de fazer promoções sociais.”
59
Terminada sua missão na Diretoria de Estradas de Rodagem, Joaquim Batista
Ferreira Sobrinho voltou para Jaboticabal, onde foi eleito Prefeito municipal, cargo que
ocupou até o advento revolucionário que o retirou do poder.
56
CAPALBO, op. cit., 152.
57
Ibid., p. 152.
58
O senhor Clóvis Capalbo escreveu três livros sobre a história de Jaboticabal.
59
Ibid., p.152.
43
Com a organização do Partido Constitucionalista, o Dr. Joaquim Batista se desligou do
Partido Republicano, passando a comandar a política de Jaboticabal , novamente no
cargo de prefeito. Quando faleceu, em 1936, ainda exercia o poder executivo nesta
cidade.
A mãe de Joaquim Câmara Ferreira, Cleonice Câmara Ferreira - filha de
Francisco Alves Câmara, farmacêutico, e de Orminda Carvalho Câmara - faleceu 20
dias depois do nascimento do filho (Joaquim Câmara Ferreira), ou seja, no final do mês
de setembro de 1913
60
.
O fato de ser sido órfão de mãe deixou marcas na vida de Zinho, o que pode ser
constatado nas palavras de Sara Mello, n
uma conversa que ambos tiveram muitos anos
depois. Sara Mello relatou que estava em casa, conversando sobre livros com Zinho, e
lhe perguntou :
“qual o escritor que mais te sensibilizou? Exupéry. Aquele escritor francês,
aviador, que morreu. Por quê? ... Tem um livro do Exupéry que eu não tenho
mais em que ele fala muito da infância dele porque ele... Parece que Exupéry
foi criado não pela mãe mas por uma babá, pela avó. Esse livro do Exupéry
tocava muito o Câmara porque o Câmara perdeu a mãe quando era m
uito
pequeno ... Ele era muito família , adorava a madrasta ... Esse, o livro do
Exupéry em que ele fala muito da infância dele e fala do sentimento dele de
não poder ter convivido com a mãe. Muito da vida do Câmara. Sem ele me
dizer que era por causa diss
o mas eu sabia.”
61
Após o ocorrido, Joaquim Câmara Ferreira e seu irmão Francisco (este um ano
mais velho que Zinho
62
) viveram em companhia dos avós maternos toda a primeira
infância, como relata Leonora Cardieri Ferreira:
“Ambos, Zinho e Francisco, foram criados pela avó, Dona Orminda. Foi uma
grande mulher. Dedicou
-
se aos netos com imenso amor. Incansável.
60
Leonora Cardieri, diário.
61
Sara Mello, depoimento.
62
Zinho
– Era o apelido pelo qual Joaquim Câmara Ferreira era conhecido pelos parentes numa referência a
Joaquinzinho, pois o pai também era Joaquim.
44
Moraram muitos anos na rua Humaitá, em São Paulo uma pequena casa
que ainda resiste à avalanche de destruições
onde o velho Câmara tinha, no
porão, um laboratório. Fazia porções, xarope e outros preparados que a
mulher vendia nas boticas (farmácias) da época.”
63
A origem da família Câmara era a Bahia, como nos afirma Leonora Cardieri
Ferreira:
“A família dos Câmaras era de tronco baiano. Um seu tio avô, Antônio Alves
Câmara era almirante e foi ministro da marinha no governo de Juscelino. Dona
Cleonice formou
-
se pela Escola Normal da Praça (hoje Caetano de Campos) e
seu irmão Jurandir, pela Faculdade de Direito. Foi adido de Guerra e falece
u
no Rio de Janeiro, mas enterrado ao lado de sua prima e esposa , em Curitiba.
Quanto ao seu irmão, Francisco Câmara Ferreira, este formou
-
se veterinário e
faleceu em 1947, no dia 3 de abril, num acidente de automóvel em São
Manoel, onde residia e onde uma biblioteca com o seu nome, em memória
de seu trabalho e dedicação.”
64
Zinho teve uma infância feliz. Família de largos recursos, o pai, embora casado
novamente (na segunda núpcias, Joaquim Batista Ferreira Sobrinho casou-se com
Marion de Barros Ferreira, com a qual teve mais três filhos: Edwirges, Edson e José
Eduardo) alguns anos depois, não lhes deixou faltar nada, conforme relata Leonora
Cardieri:
“Já naquela época, que veranear , que ir para Santos era coisa de gente
exclusivamente rica, anualmente iam para Santos. Conheceu o mar bem criança,
enquanto eu só o fui conhecer depois dos 20 anos.”
65
Com relação à nova família formada com o segundo casamento do Dr. Joaquim
Batista, não se criou conflitos em relação a Francisco Câmara Ferreira e Joaquim,
filhos
do primeiro casamento, como relata Edwirges Ferreira Cardieri:
“com o segundo casamento de seu pai ele e seu irmão mudaram-se para
Jaboticabal, em companhia da nova família que se formara e onde longe da
figura dos contos de fada sua madrasta alcançara o privilégio de poder ser
por eles chamadas de “mãezinha”, e junto deles e do pai concluir o projeto de
63
Leonora Cardieri, diário.
64
Ibid.
65
Leonora Cardieri, diário.
45
ter mais três filhos. Assim chegou-
se aos cinco irmãos, que em instante algum
de suas vidas estabeleceram diferenças entre si.”
66
Foi no convívio com esta nova família que Zinho deu início à sua vida estudantil,
que foi feita entre São Paulo e Jaboticabal, conforme descreve Edwirges Ferreira
Cardieri:
“os primeiros estudos do Zinho foram feitos em São Paulo no Colégio Franco-
Brasileiro. Com o segundo casamento de seu pai, ele e seu irmão mudaram-
se para Jaboticabal, em companhia da nova família. Os seus estudos
secundários correram entre o Colégio São Luiz de Jaboticabal e o Ginásio do
Estado, em São Paulo, ocasião em que seu pai, a convite do Governo, em
1928, veio dirigir o projeto de reformulação do sistema rodoviário do Estado de
São Paulo.”
67
Leonora Cardieri Ferreira endossa as palavras da irmã de Zinho em relação aos
seus primeiros anos de estudo, além de demonstrar que ele se con
trapôs às exigências
estabelecidas por um colégio tradicional, em Jaboticabal, tendo por isso que abandoná-
lo :
“fez seus estudos em Jaboticabal e São Paulo. Em Jaboticabal cursara o
ginásio do velho Aruba Martins, carola, que exigia dos alunos freqüência
à
missa e comunhão. Rebelou-se contra essas imposições e precisou deixar a
escola, continuando seus estudos em São Paulo, se não me engano no
Ginásio Anglo Latino.”
68
No caderno de anotações de Joaquim Câmara Ferreira, em seus estudos iniciais,
a págin
a referente ao mês de setembro traz uma poesia e os aniversariantes do mês:
“eu trago a primavera
Trago a aprazível era
De universos festins,
Mais bellas, mais viçosas
Surgem sorrindo
E as dáhlias nos jardins.”
66
Edwirges Ferreira Cardieri, depoimento.
67
Ibid.
68
Leonora Cardieri, diário.
46
Dia 05
Joaquim Câmara Ferreira
Dia 24
Martha Martins.”
69
Após seus estudos iniciais, o início da década de 30 marcou a chegada do Zinho à
Politécnica de São Paulo para estudar engenharia e seguir os mesmos passos do pai.
Na capital paulista, ele foi morar na casa do Dr. Isaac Garcez e estudou com
Lucas Nogueira Garcez, que se tornou mais tarde Governador de São Paulo.
É importante ressaltarmos essa relação de amizade entre o Dr. Isaac Garcez com
a família do Dr. Joaquim Batista Ferreira, pois os Garcez, mesmo divergindo
posteriormente do pensamento político de Joaquim Câmara Ferreira, mantiveram um
laço de amizade pessoal que se estendeu por toda a vida, a ponto de ser o Dr. Isaac
Garcez um dos homens que ajudaram a exigir das autoridades militares o corpo de
Joaquim Câmara Ferreira para que ele fosse enterrado no túmulo da família, no
cemitério da Consolação, em São Paulo, depois de morto sob tortura nas mãos do
delegado Sérgio Paranhos Fleury
70
, em outubro de 1970.
A amizade entre as famílias pode ser entendida pelas palavras de Leonora
C
ardieri:
“o
Dr. Joaquim Batista foi um dos grandes amigos do Dr. Isaac Garcez .
Formandos ambos pela Politécnica de São Paulo, estudaram juntos. Essa
amizade se manteve sempre. Dona Cleonice foi madrinha de batismo de uma
das filhas do Dr. Isaac e Dona Dulce e, posteriormente, Dona Marion, sua
segunda esposa, também o foi de outra de suas filhas.”
71
69
Página do caderno escolar de Joaquim Câmara Ferreira cedida por seu filho Roberto Cardieri ao autor, em agosto
de 2003.
70
Sérgio Paranhos Fleury Delegado do DOPS de São Paulo, tido como expoente maior da repressão militar no
Brasil. Foi responsável também pela emboscada que vitimou Carlos Marighella e pelas torturas que destruíram
psicologicamente Frei Tito de Alencar Lima (um dos dominicanos que trabalhavam no apoio a ALN) que acabou
levando
-o ao suicídio na França. Foi responsável também pela tortura e execução de vários militantes da esquerda
armada no Brasil.
71
Leonora Cardieri, diário.
47
Zinho morou e estudou em casa dos Garcez, à rua Fagundes,112. Colega de
Lucas
este entrou na Politécnica um ano antes –, continuaram com a mesma e sólida
amizade.
Joaquim Câmara Ferreira, durante toda sua vida, manteve laços pessoais e
afetivos com pessoas que divergiam politicamente de suas ideologias, como no caso
dos Garcez. Sua irmã Edu também uma dimensão desse traço de sua
personalidade:
“a homenagem dos colegas de imprensa na morte havia reafirmado um dos
traços maiores de suas qualidades humanas: saber conviver. A despeito de
optar pela luta ideológica, quase sempre na clandestinidade, pôde manter-
se
próximo, apoiado e querido por todos os parentes e amigos que não
compartilhavam dos seus pensamentos. Assim foi o seu relacionamento com o
colega de escola, mais tarde governador de São Paulo, Lucas Nogueira
Garcez que, mesmo após sua morte, ia ao cemitério depositar flores no seu
túmulo. Assim entendesse ele (num momento difícil em que era procurado por
todos os lados) ter feito sua movimentação do Rio de Janeiro para São Paulo
em carro oficial da Câmara dos deputados. Esta veia de entendimento e de
conciliação se reconhece na vida política, por exemplo, no episódio do
seqüestro do embaixador americano, quando ele trocou companheiros presos
pertencentes a todos os movimentos revolucionários.”
72
O relato de Edwirges Ferreira, no que se refere à morte de Câmara Ferreira, será
por nós trabalhado com mais profundidade, no terceiro capítulo, onde analisaremos o
personagem na Ação Libertadora Nacional (ALN), quando assumiu o codinome de
Velho ou Toledo, após ter rompido com o Partido Comunista Brasileiro (PCB) na
dissidência do partido em 1967, em São Paulo
.
Pretendemos, no entanto, ao resgatar o homem, enfatizar alguns traços
marcantes de sua personalidade, que serão ressaltados por pessoas que com ele
conviveram na ALN e no PCB.
72
Edwirges Ferreira Cardieri, depoimento.
48
Outro relato de Edwirges Ferreira Cardieri relembra alguns episódios que
caracterizam muito bem o apreço de Zinho pela família, o companheirismo e os gestos
de solidariedade presentes na vida cotidiana:
“(...) cabe agora uma recordação do seu grande amor que não se identifica
em momentos e épocas, mas no sempre da convivência com ele. Muito
embora as evidências disso falem mais alto na lembrança da doença do
Luís, seu sobrinho, filho de sua irmã Edu e de seu duplo cunhado José,
quando desconsiderava o perigo da perseguição ferrenha da polícia para vir
ao hospital trazer sua presença e com ela a solidariedade. Ou, ainda, no olhar
maroto das suas chegadas, de improviso, com jeito de quem driblava as
vigilâncias, para conosco passar algumas horas nas Festas do Ano Novo.”
73
Fatos
como estes citados pela família assumem uma importância maior se
pensarmos que a vida pessoal de um militante comunista era posta em segundo plano,
em função da militância política.
Joaquim Câmara Ferreira chegou à Politécnica de São Paulo (curso de
Engenharia), num momento efervescente no Brasil e no mundo. No contexto
internacional, havia a grande crise do sistema capitalista com a queda da bolsa de
valores de New York, e no Brasil havia acontecido a Revolução de 30, que pusera fim
à política café
-
com
-
leite
74
, que havia imperado por anos
no país. Tudo isso teve grande
influência no engajamento político do Zinho, como podemos verificar nas palavras de
Edwirges Ferreira Cardieri:
se associarmos sua chegada ao ambiente universitário de São Paulo com o
momento econômico mundial; a evolução das ideologias ; os efeitos da
industrialização sobre a capital paulista e a economia do café; a influência dos
primeiros artesãos espanhóis e italianos vindos para cá, não será difícil
entender o engajamento político do Zinho. Aliás, sobre isso, um seu
con
temporâneo (ex-membro da Juventude comunista e mais tarde líder de
73
Ibid.
74
Os grupos oligárquicos dominantes de São Paulo e Minas Gerais constituíam o que se chamou de “política café-
com
-leite”, na qual os presidentes paulistas e mineiros se alternavam no exercício do poder, representando ora os
interesses paulistas, ora os mineiros.
49
direita e governador do Rio de Janeiro), Carlos Lacerda, disse que errado
naquela época era ficar em cima do muro.”
75
Após um período de estudos na Politécnica de São Paulo e o início de sua
militância política, que não será tratada neste capítulo, ele abandonou a Engenharia e
se transferiu para o curso de Filosofia na Universidade de São Paulo (USP).
Edwirges Cardieri conta sobre este período de sua vida: “Nos seus primeiros
anos de engenharia, Zinho estava comprometido com a política. Tanto que
abandonou o seu curso transferindo
-
se para a Faculdade de Filosofia de São Paulo.”
76
Leonora Cardieri Ferreira também faz referências ao mesmo período e analisa de
onde veio a influência de Z
inho para se tornar um quadro do PCB:
“deixou a Politécnica quando terminava o segundo ano e passava para o
terceiro.Tendo conhecido o Fosco, o Roitman e o Nino (um velho anarquista
italiano), dava seus primeiros passos entre os comunistas de então. De
ixando
a Poli, foi fazer Filosofia na USP, mas não continuou seus estudos.”
77
Analisando num primeiro momento a fase que diz respeito ao período da infância e
adolescência de Joaquim Câmara Ferreira, passaremos a abordar a fase de sua vida
no tocante ao romance com Leonora Cardieri, ao casamento por procuração, quando
ele ainda se encontrava preso na Ilha Grande, no período de 1939 1945, durante a
ditadura do Estado Novo implantada por Vargas em 1937, bem como à relação com os
filhos e sua vida familia
r.
1.1.1.1
Leonora Cardieri
Uma grande companheira
75
Edwirges Ferreira Cardieri, depoimento.
76
Ibid.
77
Leonora Cardier
i, diário.
50
Ao abordamos o romance de Leonora Cardieri e Joaquim Câmara Ferreira e sua
vida familiar, tentaremos conhecer um pouco essa mulher que foi a sua grande
companheira.
A relação de companheirismo , amor e amizade entre Leonora e Joaquim
Câmara Ferreira nunca passou despercebida aos filhos Roberto e Denise , que
conseguiram, em meio aquela vida familiar incomum, sentir a importância de Leonora
na vida de Zinho:
“o homem Joaquim Câmara Ferreira quase
não pode ser focalizado na história
sem citar sua companheira, minha mãe, pois nada seria assim como foi a
nossa vida e a sua vida, se não tivesse tido o apoio, a confiança, a aceitação e
o amor dessa mulher que nunca quis aparecer , embora tenha sido uma
pioneira da independência feminina, principalmente naquela época. Meus
pais foram casados 25 anos, e os laços que os uniam eram profundíssimos.
Os dois lutaram pela mesma causa, cada qual em seu meio, mas os dois com
a mesma devoção, sem a qual não haveria nunca a possibilidade da
esperança (ou do sonho) de alcançar suas metas.”
78
Também Roberto Cardieri analisa a relação dos pais, que foi sempre marcada
por encontros e desencontros, mas de muita solidariedade:
“(...) ele teve uma esposa fabulosa que é a Leo, que deu sustentação. Ele
conseguiu fazer o que precisava sem se preocupar com a família, porque ela
se preocupava, ela dava esse apoio. Era uma mulher muito culta que ele
adorava e o deixava passar um dia de aniversário, uma data de um
aniversá
rio nosso. Se ele estivesse no exterior, se ele estivesse onde
estivesse, sem lembrar, sem dar um telefonema, sem trazer um presente. Eles
não tinham dinheiro. Ele era um quadro oficial do partido. Então, ele não tinha
salário. Ele vivia daquilo que sobrava. Pouca coisa ele podia trazer para casa
e ela era funcionária pública e ela então é que praticamente fazia o sustento
da casa. Mas eles se adoravam. Liam muito, iam ao cinema, teatro. Eles
tinham uma vida de muita amizade. Nunca vi meus pais um ficar bravo com o
outro, apesar de todas as dificuldades que eles enfrentavam. Nunca vi briga
por razão nenhuma, hoje tão comum na nossa vida num relacionamento a
dois. Eles não tinham diferença nenhuma.”
79
78
Conforme depoimento de Denise Fraenkel (filha de Câmara Ferreira), enviado ao autor, por e
-
mail, da Alemanha,
em setembro de 2003.
79
Roberto Cardieri Ferreira, depoimento.
51
Estas questões do dia-a-dia não podem deixar de ser analisadas, pois, embora
sejam muito sutis, constituem uma base de apoio e segurança que sustentava a vida
dos militantes, homens e mulheres que, dentro de suas opções políticas, não estavam
desligados da vida quotidiana. Muitos haviam constituído família antes da militância no
PCB, e outros depois. Qualquer que seja a situação de cada um, as esposas, os
maridos, os pais, os filhos foram os seus alicerces de sustentação, pois, não havendo
tempo para resolver as questões corriqueiras de cada dia, alguém deveria
fazê
-
lo.
A vida de um militante do PCB, dentro do período em que Câmara Ferreira
pertenceu ao Partido, não era fácil: havia perseguições, prisões, torturas, vida
clandestina, ausências, dificuldades financeiras. É evidente que toda família sofria as
con
seqüências da opção de vida feita por esses militantes. Com Leonora Cardieri e os
filhos não foi diferente.
No caso dos comunistas, esta situação era muito complicada, pois o partido
viveu a maior parte de sua história na ilegalidade, com militantes sendo perseguidos,
mortos, torturados, exilados. Poderíamos nos perguntar quem assumia a
responsabilidade pela família nestas circunstâncias.
A nora de Leonora e Joaquim Câmara Ferreira, Lia Ferreira, analisa que sua
sogra, mesmo recebendo muita gente em casa e sendo uma cozinheira maravilhosa,
não era uma mulher de fogão ou uma anfitriã apenas: “Ela era uma intelectualidade
que hoje é difícil de encontrar. Ela também falava dois ou três idiomas, há muito estava
por dentro dos movimentos, escrevia poesia, desenhava muito bem. Era uma mulher
digna.”
80
80
Conforme depoimento de Lia Ferreira (nora de Joaquim Câmara Ferreir
a), em agosto de 2003, em São Paulo.
52
Leonora Cardieri nasceu em São Manuel, São Paulo, no dia 12 de outubro de 1912,
filha de Vicente Cardieri e Luiza Gagliotti (nascida na Itália)
81
. Ela mesma nos fala
sobre a sua trajetória pessoal de vida:
“nes
sa época [em que Leonora conheceu o Zinho], não sabia o que era
comunista e pouco me preocupava com política, aliás tônica de todo
estudante. Nas escolas da época estamos no Estado Novo como agora,
era terminantemente proibido falar em Marxismo. Nem os Professores de
Sociologia, Fernando de Azevedo, nem o de Filosofia, Roldão Lopes, nem o
de Educação Comparada, Milton Rodrigues da Silva, ligados diretamente ao
Estudo das Ciências Sociais, faziam ou podiam fazer qualquer alusão do
Marxismo.”
82
Mesmo não se preocupando com a política de uma forma geral, Leonora não
deixava de assumir pessoalmente algumas posições políticas do momento histórico em
que vivia, como ela enfatiza: “(...) mas, mesmo desconhecendo política, era uma
antifascista ardorosa. Brigava, discutia por causa dos camisas verdes, os integralistas.
Não os suportava.”
83
No ano de 1930, por ocasião de sua formatura em Botucatu, a cidade estava
tomada por tropas de Getúlio Vargas, como ela conta. Ela estava então com 18 anos de
idade e assim an
alisava a realidade de então:
“éramos completamente regionalistas, paulistas contra gaúchos. Nada
sabíamos dos bastidores, e, imbuída de idéias regionalistas São Paulo é a
locomotiva que puxa 21 vagões fui uma ardorosa defensora da Revolução
paulista
de 1932, da bandeira de 13 listras.”
84
81
Certidão de casamento de Câmara Ferreira e Leonora Cardieri.
82
Leonora Cardieri, diário.
83
Ibid.
84
Ibid.
53
Por volta de 1940, Leonora diz tomar consciência do que era comunismo, pois os
jornais da época haviam noticiado a prisão de Joaquim Câmara Ferreira pelo fato de
pertencer a uma família ilustre e posses etc.
Nessa
época, ela era educadora sanitária formada pela faculdade de Higiene e
trabalhava no Instituto Clemente Ferreira, que era ligado ao Departamento de Saúde.
Com curso de formação na escola de Botucatu, curso de aperfeiçoamento na Caetano
de Campos, além do curso de educação sanitária, possuía formação cultural, como ela
mesma relata:
“Como o Câmara, sempre gostei de ler. Quando trabalhava em Sorocaba no
centro de saúde, era sócia do gabinete de leitura sorocabano, um dos
melhores do Estado de São Paulo, e levava livros para casa. Mas enquanto
minhas amigas liam Delly, eu lia Dostoievski, Tolstoi, V. Hugo, Flaubert,
Dickens, Shakespeare, Aluízio de Azevedo, Eça, Machado de Assis, etc.... E
embora não tivessem senso critico e de análise, adorava. Chorei como um
bezerro desmamado com a Recordação da Casa dos Mortos, humilhados e
oprimidos de Dostoievski. Tinha, portanto, cultura livresca. Mas era muito para
a época, pois as moças do meu tempo não procuravam outra coisa senão
arranjar marido. Eu não. Adorava dançar e não me preocupava com namoro,
nem casamento.”
85
No ano de 1938, Leonora Cardieri alterará seus planos ao conhecer aquele que
será seu companheiro de toda a vida.
1.1.1.1.1
Leonora Cardieri e Joaquim Câmara Ferreira Encontros e
desencontros
.
O irmão de Leonora Cardieri Ferreira, José Cardieri era casado com a irmã de
Joaquim Câmara Ferreira, Edwirges Ferreira Cardieri, e o romance de Leonora e Zinho
aconteceu em parte em função dessa relação entre Edwirges e José.
85
Leonora Cardieri, diário.
54
Leonora relata a seguir como se deu o romance que culminou no casamento por
procuração:
“Conheci o Câmara em 1938. Sua avó, Dona Orminda, seu irmão mais velho,
Francisco, moravam numa pensão onde eu também morava ... Também
moravam sua madrasta e seus irmãos do segundo casamento do pai. Era a
pensão da Dona Maria Vacleo, a rua Marquês de Itu, local onde hoje se
levantou um alto edifício com laboratórios de análise Dr. Brandi. Lembro-
me
bem que sua irmã, Edwirges , a Edu, minha cunhada, casada com meu irmão
José, possuía um retrato
dele, muito bonito, tirado pelo Morelli, de Jaboticabal.
Nessa minha época de estudante, freqüentadora de teatro , Procópio, Dulcina
e Odilon Moraes, e do Lírico, não me preocupava com namoro e muito menos
pensava em casamento. Mas sempre que passava pelo corredor onde estava
esse, pelo retrato, dizia de mim para mim: Com esse aí, faria a burrada.
Casava
-
me.”
86
Após esse período na rua Marquês de Itu, Leonora e seu irmão José passaram a
morar na Cesário da Motta, em frente à Santa Casa, numa pensão que a madrasta do
Câmara instalou. De lá, a pensão foi mudada para a rua Augusta, quase na esquina
com a Paulista, e o Zinho sempre aparecia por lá, como relata Leonora: “O Câmara
aparecia sempre, alegre, risonho, amigo de todos. Muito tímido, eu brincava sempr
e
com ele
minha cunhada já namorava meu irmão
se queria casar
-
se comigo.”
87
O romance dos dois se tornou mais profundo no período em que Zinho era preso
político, devido à correspondência de Joaquim Câmara Ferreira para o irmão Francisco
e para sua irmã Edwirges e, mais tarde, para a própria Leonora Cardieri, conforme
afirma a irmã de Zinho:
“da ilha Grande corresponde-se por carta com a irmã de seu cunhado.
Leonora , moça culta e politicamente consciente do futuro que cabe à mulher
de um revolucionário, cria as condições para o casamento, que acontece em
São Paulo, quando ele (Zinho) foi representado no ato pelo seu irmão Edson.”
88
86
Leonora Cardieri, diário.
87
Ibid.
88
Edwirges Ferreira Cardieri, depoimento.
55
A documentação dos proclames de casamento de Joaquim Câmara Ferreira e
Leonora Cardieri confirmam esse fato ao se
constatar que ele era domiciliado no Distrito
Federal, recolhido no Presídio político de Dois Rios, colônia agrícola do Distrito Federal,
e que ela residia em São Paulo, na 12ª zona, Santa Cecília, à Alameda Nothmam,1221;
que ambos eram solteiros, não parentes e que não havia impedimento para o
casamento, e que portanto, o casamento estava em conformidade com o número 2 do
artigo 180 do código civil brasileiro
89
.
Essa correspondência entre ambos aconteceu de um fato incomum, conforme
palavras da própria Leonora Cardieri:
“naquele 41 ou 42, o livro ‘E o vento Levou’ era best seller. A guerra na
Europa tomava outro rumo apesar do ataque à União Soviética e a
polícia consentia na leitura de alguns livros, fazia algumas concessões aos
presos. E meu futuro marido havia lido o livro. Nós a irmã e eu também
havíamos lido. Sua irmã escrevia a respeito e sua resposta (do Zinho) foi uma
coisa tão extraordinária, uma análise profunda das razões da guerra de
secessão, nos Estados Unidos , tema do livro. Fiquei tão entusiasmada que
lhe mandei uma carta.”
90
Leonora escreveu ao Zinho propondo uma discussão a respeito do livro. Como já
enfocamos anteriormente,
“do alto de sua cultura livresca, acreditava que um comunista
não poderia saber mais do que ela.”
91
Aos poucos, porém, foi percebendo que não
possuía os instrumentos para uma análise dos motivos reais que deram origem à
Guerra de Secessão, entretanto, dessa correspondência começará um relacionamento
cada vez mais afetuoso, que permitirá ao Zinho fazer um trabalho de formação política
de sua futura companheira. Leonora enfatiza que:
89
Pro
clame de casamento de Joaquim Câmara Ferreira e Leonora Cardieri. São Paulo. 1º de Julho de 1944, assinado
por Edson Barros (irmão de Câmara Ferreira) e Leonora Cardieri.
90
Leonora Cardieri, diário.
91
Ibid.
56
“dessa primeira carta, outras seguiram, entre nós dois, e pouco a pouco,
orientada por ele, comecei a ler algo que me levasse a compreender o fundo
de todas as lutas pela independência política e econômica dos povos. E
compreender a sua própria luta.”
92
Com as correspondências freqüentes, o afeto entre os dois foi crescendo. Além
disso, as visitas que Leonora juntamente com a irmã de Câmara Ferreira [Edwirges] e
seu irmão caçula fizeram a Zinho na Ilha Grande acabaram fazendo com que
decidissem pelo casamento, que foi acertado para o dia 29 de julho de 1944. A própria
Leonora relata como aconteceu o seu casamento:
“já, então, a guerra na Europa atingia seu fim, a vitória dos aliados se firmava
e então o Ministro da Justiça consentiu no casamento. Fui para a Ilha Grande
dia 1 de agosto de 1944. Obtive licença em minha repartição e de voltei em
começos de 1945. Tirei minhas férias em fevereiro e fiquei mais vinte dias.
Volte
i, e, a 23 de março desse ano, ele foi libertado.”
93
O telegrama enviado por Zinho confirma sua libertação. Nele pode ser lida a
seguinte mensagem: “Sigo domingo diurno beijos = Zinho” . CT urgente = Leonora 112
= Zinho.”
94
A vida conjugal no presídio da Ilha Grande, apesar de todas as circunstâncias, é
lembrada por Leonora como sendo de muita felicidade: “esses tempos, na Ilha, me são
profundamente queridos. Foram os melhores dias de nossa vida. Morávamos numa
casa grande, com outros casais, cada um com seu quarto, mas cozinha e banheiro
comum a todos.”
95
Após sua libertação, Zinho e Leonora tiveram dificuldades para iniciar a vida em
comum, pois não tinham dinheiro. Prevendo tal situação, ainda na Ilha, ela conseguiu
92
Ibid.
93
Leonora Cardieri, diário.
94
Telegrama enviado por Joaquim Câmara Ferreira avisando Leonora e a família sobre a sua soltura da Ilha Grande,
enviado ao autor, do Canadá, pelo neto de Joaquim Câmara Ferreira Carlos Fraenkel, em julho de 2003.
95
Ibid.
57
com um amigo chamado Edgar Cavalheiro que Zinho fizesse a tradução de um livro
chamado “O Puritano”, de um escritor irlandês. Para tal trabalho, ele ganhou três contos
de réis, e foi com esse dinheiro que iniciaram sua vida em São Paulo.
Foram morar “numa pensão na rua Olinda, esquina com a rua Augusta. Através
de Corifeu de Azevedo Marques”
96
, arranjou colocação no Diário de São Paulo,
trabalhando até a reorganização do partido com a anistia declarada ao término da
guerra.
Após algumas outras prisões em 1945 e 1946, as quais serão analisadas
oportunamente no segundo capítulo, os dois foram morar em uma pequena casa na rua
Cardeal Arco Verde, 2878, em frente do dispensário onde trabalhava Leonora Cardieri
Ferreira.
Ela relata esse momento de sua vida, dizendo: “Montamos a casa,
m
odestamente, com vários móveis usados que ganhamos. Nossos dois filhos nasceram
nos anos de 1946 e 1948, quando ali morávamos.”
97
Leonora e Zinho foram felizes dentro dos limites que a militância de um
comunista lhes permitiu ser. O respeito entre ambos e o companheirismo fizeram com
que superassem as dificuldades e pudessem deixar um legado aos filhos.
A vida militante de Joaquim Câmara Ferreira o absorvia de uma maneira tão
intensa, que não lhe sobrava muito tempo para se dedicar à esposa e aos filho
s.
Leonora, consciente do que assumia para si e sua vida ao optar pelo casamento
com Zinho, se manteve firme nessa posição. O filho de Joaquim Câmara Ferreira,
Roberto Cardieri, relata a posição de alguns familiares e a atitude de sua mãe diante da
96
Leonora Cardieri, diário.
97
Ibid.
58
vida
familiar, relatando que
algumas pessoas da família diziam que ela sofria porque se
dedicava a uma vida de renúncias. Ela disse que nunca sentiu isso, quer dizer, ela fez
por amor , pelos filhos. Nunca se sentiu mártir.”
98
Quando se intensificou o relacionamento de Zinho e Leonora, este deixou
enfatizado que ela o havia conhecido como preso político e comunista, e que ele nunca
mudaria sua posição. Roberto Cardieri reforça a posição de seu pai:
“ele entrou para o partido. Ele disse adeus à vida boa muito antes de nós,
quando com 18 anos largou uma faculdade e com 20 anos largou outra
faculdade para militar no Partidão. Ele já tinha feito uma opção muito antes.”
99
Também Lia Ferreira, esposa de Roberto e nora de Zinho e Leonora, confirma
essa posição do sogro, dizendo que “(...) quando eles se casaram, com trinta e poucos
anos, ela sabia que ele tinha essa vida. Você me conheceu nisso, ele disse. Não
espere de mim um marido de chinelos.”
100
Nessas palavras de Zinho, podemos
perceber a incorporação do sign
ificado do “ser comunista.”
Pandolfi analisa esta maneira de ser, de um militante do PCB, a uma cultura
comunista
101
, tomando como exemplo as palavras de Pedro Sabarábussú, membro
deste partido, pronunciadas em 1923:
“o dia da adesão de um proletário ao Pa
rtido Comunista deve ser considerado
por ele um dia sagrado; é o dia da sua libertação moral e mental, o dia em que
começa a dedicar-se à causa mais digna dentre todas as que agitaram a
humanidade.”
102
98
Rober
to Cardieri Ferreira, depoimento.
99
Idem.
100
Lia Ferreira, depoimento.
101
Compartilhamos do pensamento de Pandolfi quando esta estabelece como cultura comunista, uma determinada
visão de mundo, compartilhada por todos aqueles vinculados a uma tradição que se consolidou com a vitória da
Revolução Russa de 1917 e se identificou com o modelo de sociedade que foi implantado na URSS.
In: PANDOLFI,
Dulce Chaves.
Camaradas e Companheiros: memória e história do PCB.
Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1995,
p.36.
102
PANDOLFI, Dulce Chaves. Camaradas e Companheiros: memória e história do PCB. Rio de Janeiro:
Relume Dumará, 1995, p.35.
59
Pedro Sabarábussú estabelece também quais as normas e valores que se
esperam de um militante comunista:
“o Partido Comunista não é um clube de diletantes, (...) é uma escola de
sacrifícios, de disciplina, de combate, de sofrimento, de moral proletária, de
abdicação de seus interesses pessoais em prol dos interesses internacionais
do proletariado.”
103
Outras palavras de Zinho, ditas à esposa, demonstram bem as opções que tinha
estabelecido para a sua vida. Tais palavras se confirmaram em outubro de 1970,
quando ele foi assassinado pela ditadura militar. Roberto Cardieri se recorda destas
palavras ditas a sua mãe: “outra coisa que ele disse para ela (Leonora) e que ninguém
sabe é que ele sabia que não ia morrer na cama. Isso ela (Leonora) disse para nós
(filhos).”
104
Essa certeza de Zinho é a convicção de um homem que conhecia muito
bem o sentimento de se pertencer a um partido comunista, pois entrar para ele é,
“sobretudo, adotar o ‘espírito do partido’. Tal ação pressupõe um envolvimento não
apenas político, mas também existencial.”
105
Ainda segundo Pedro Sab
arábussú,
“(...) em nome da construção de uma nova
sociedade, justificam-se todas as renúncias, todas as submissões, inclusive, se
necessário, o sacrifício da própria vida.”
106
De acordo ainda com as palavras deste
militante, a única recompensa para tamanho sacrifício seria a “honra de ser um
revolucionário; a alegria do dever cumprido; o prazer de sacrificar-se pelo futuro; a
glória de lutar pela humanidade, pelo Bem Maior.”
107
103
PANDOLFI, op. cit., p.36.
104
Roberto Cardieri Ferreira, depoimento.
105
PANDOLFI, p.36.
106
Ibid., p.36.
107
Ibid., p.38.
60
Nesse processo, segundo Pandolfi, a subsociedade comunista se apresenta como
“gra
nde família” e , neste sentido , os limites entre a vida privada e a vida pública são
tênues. As relações familiares são inteiramente subordinadas às exigências da
militância. A dedicação ao partido exige tempo integral.”
108
Porém, a mesma autora
enfatiza que, em consonância com o tipo ideal derivado da tradição judaico-cristã, o
comunista deve, em princípio, ser bom pai, bom marido, bom profissional.
Zinho e Leonora, entre encontros e desencontros causados pela militância
política, nunca perderam o afeto e o carinho um pelo outro e nem deixaram de
solidarizar
-
se em todos os momentos, mesmo os mais difíceis.
É importante se observar que essas opções assumidas, mesmo com plena
consciência, não deixam de trazer conflitos familiares e pessoais para o próprio
m
ilitante, conforme confessa Margarida Tengarrinha em suas memórias:
“mas no nosso caso, quando a militância e a vida na clandestinidade partiam
de uma opção política tomada com consciência dos perigos, sacrifícios e
renúncias inerentes, por que sentirmos mais pesados sentimentos de culpa e
maior necessidade de Justificação? No entanto, foi isso que eu sempre senti.”
109
A própria Leonora fez uma análise muito profunda sobre a vida de Zinho, de sua
relação com ele, as dificuldades, as alegrias, as relações
com os amigos.
No tocante à vida de Câmara Ferreira, como homem do PCB:
“não é muito que posso dizer de sua vida política. Foi sempre muito discreto,
jamais comentando em casa sua luta, suas dificuldades, suas desilusões. E
como havia entre nós dois um mútuo respeito, evitei sempre me aprofundar
em seu mundo, não só para não o prejudicar como também para não o
sobrecarregar com preocupações conosco. Assegurava-se sua própria
segurança e a nossa.”
110
108
PANDOLFI, op. cit.,
p.36.
109
TENGARRINHA, Margarida.
Quadros da memória.
Lisboa: Editorial Avante, 2004, p.81.
110
Leonora Cardieri, diário.
61
Em relação à sua condição de companheira:
“não me considerei mártir ou sacrificada. Quando escolhi o meu caminho,
sabia o que estava fazendo. O que fiz foi procurar remover os obstáculos que
surgiam com coragem, sem medo. Procurei ajudá-lo dentro de minhas
possibilidades de companheira consciente e dedicada, sem alardes. Fiz o que
pude para que ele não encontrasse, no lar, problemas que sabia não ter tempo
de resolver. Também não sei se tudo quanto fiz, o fiz bem, mas procurei fazê-
lo da melhor maneira possível dentro do meu tempo e minha época. Sinto
orgulh
o de ter sido sua companheira, de ter me preocupado sempre com ele,
de ter sofrido com ele e por ele.”
111
Sobre o esposo Zinho:
“foi um companheiro carinhoso, dedicado, bondoso, leal, profundamente
humano. Simples, modesto, desprovido de ambições materiais, não se tinha
em conta de onisciente. Sabia voltar atrás quando cometia erros. Nunca se
julgou modelo de correção, nem tampouco incapaz de cometer erros. Mas
tinha o exato senso das coisas. Para mim, um defeito. Como era
profundamente sincero na sua luta, achava que todos que a abraçavam
também o eram. Confiava sempre nas pessoas e muito. Principalmente na
juventude, onde via o reflexo de si mesmo, dos seus vinte anos. Tivemos
muita coisa em comum, muita coisa boa, e isso é algo grande que jamais
esque
cerei.”
112
Com relação às dificuldades que tiveram
:
“também tivemos muitos momentos difíceis, mas soubemos superar tudo,
ombro a ombro, sem desânimo, sem desespero, naquela capacidade de
renúncia e adaptação às situações incríveis que sempre surgiam.”
113
A atitude com os amigos:
“as portas de nossa casa , embora modesta, sempre estiveram abertas para
todos. A todos que nos procuravam, recebíamos com prazer, dando o melhor
sempre que podíamos.”
114
O exemplo deixado:
111
Ibid.
112
Ibid.
113
Ibid.
114
Leonora Cardieri, diário.
62
“por isso mesmo, nessa caminhada toda, o caminho que ele percorreu ficou lá
trás, mas deixou passo a passo um exemplo de amor, dedicação e nobreza. É
por isso tudo que nos mantemos com a cabeça erguida, olhando de frente,
certos de que se não soubemos fazer sorrir, também não fizemos ninguém
chorar.”
115
Leonora e Zinho:
“fomos ambos, extraordinariamente sentimentais. Isso é um mal, nesta época
de destruição de valores antigos. Mas todas as épocas têm seus valores e
suas destruições.”
116
No que diz respeito à reação da família com relação a Leonora e Zinho, o filho
Roberto relata:
“na nossa família, eu acho que havia pessoas que aceitavam. Todos
aceitavam as idéias dele, mas comungar com o comunismo, eu não me
lembro na minha família de haver. Mas todos adoravam o Zinho, e ajudavam a
ele a anos, sempre que havia alguma dificuldade, tipo alguma prisão que
acontecia. Meus tios por parte tanto dele, como do lado de minha mãe,
sempre nos ajudaram nessa hora, que havia um problema com a prisão, de
ele estar foragido. Nós tivemos apoio muito grande da família nestas horas.”
117
A vida de Zinho e Leonora foi permeada por problemas que não se resumiam à
falta de dinheiro, de tempo, mas todas as dificuldades de um militante comunista que
passou grande parte de sua vida política entre prisões, clandestinidade, perseguições
que muito exigiram de toda família, como ressalta Leonora: “eu vivia no DOPS, a fim de
libertá
-
lo e providenciar advogado se necessário, mas isto o partido sempre fazia.”
118
115
Ibid.
116
Ibid.
117
Ibid.
118
Leonora Cardieri, diário.
63
As palavras de Leonora não refletem períodos ocasionais de sua vida, mas, pelo
contrário, refletem uma situação permanente que não se alterou até o dia em que um
telefonema a avisou que Zinho havia sido assassinado pela ditadura militar.
Porém, mesmo no período pós-1964, até a repressão mais violenta que foi
desencadeada pela ditadura militar no Brasil com o Ato Institucional 5 (AI-
5),
promulgado em 13 de dezembro de 1968, Zinho, procurou, dentro dos limites da
clandestinidade, visitar a família, conforme o relato de Leonora Cardieri:
“depois do golpe de 6
4, sabiam que ele estava no exterior. Nossa casa passou
a ser vigiada constantemente. Essa casa da Vila Madalena. Quando não era
um volks vermelho ou azul escuro rondando a vizinhança, eram homens
maltrapilhos disfarçados de limpadores de terrenos baldios que havia em
frente de casa. Os maltrapilhos ofereciam serviços de tapeçaria ou serralheiro
fotografando a grade das janelas por achá-las muito bonitas. Tudo tão mal
disfarçado e montado que mesmo um cego não perceberia. Mas isso não
impedia que o Câmara nos visitasse. O fazia 2, 3 vezes ao mês, até 1968.
Chegava sexta-feira à noite. Alguém o deixava ali perto. Ele vinha a e
entrava na nossa casa de madrugada. Passava o bado e o domingo
conosco e, assim como ele vinha de madrugada, ele saía. Alguém o pegava
ali perto.”
119
Zinho não abandonará esse vínculo familiar, nem a partir do momento que se
tornou um dos homens mais procurados do Brasil, o que levava a uma preocupação na
família de que esta pudesse ser o motivo de sua prisão e morte. Leonora Cardieri, o
filho e a nora foram interrogados na Operação Bandeirantes (Oban)
120
, que buscava
pelo paradeiro de Câmara Ferreira.
119
Ibid.
120
A OBAN Operação Band
eirantes
Órgão de segurança criado em São Paulo no dia de julho de 1969, que a
início se tornou um instrumento extra - ilegal de repressão política e mais tarde foi oficializado no Governo do
General Emílio Garrastazu Médici, através de uma circular secreta intitulada “Instruções sobre a Segurança Interna”
- encerrava um processo de cinco anos sobre o papel a ser desempenhado pelas forças aramadas na manutenção da
segurança interna. In: FON, Antonio Carlos.
Tortura
A história da repressão política no Brasil . 2.ed. São
Paulo: Global, 1979.
64
Para termos uma idéia exata do que essa perseguição significava, basta lembrar
que este episódio ocorreu no início do ano de 1970, meses após o seqüestro do
embaixador americano Charles Burke Elbrick
121
, do qual Câmara Ferreira foi um dos
protagonistas, e também após a morte de Carlos Marighella, ocorrida em novembro de
1969, em São Paulo, a partir da qual Câmara Ferreira assumiu o comando da ALN.
Após esse seqüestro, houve uma caçada feroz aos militantes que haviam participado
deste seqüestro, e, em poucas semanas, muitos foram presos, torturados e mortos pela
repressão.
Após o exaustivo interrogatório de Leonora, de seu filho Roberto e de sua nora
Lia, permeado por uma série de provocações, sobre o qual trataremos com maior
profundidade no 3º capítulo, todos foram liberados. Leonora destaca que um dos
fatores para tal decisão estava no fato de que eles seriam a “‘isca’ para apanhá-l
o.
Estavam certos de que chegariam ao Câmara através da família.”
122
Roberto Cardieri
afirma que se tornou tão grande o medo de sua mãe que usassem a família para
prendê
-lo e até mesmo que utilizassem alguém da família como moeda de troca, para
obrigá
-lo a
entregar
-se, que ela pensou em arrumar um advogado para realizar um
desquite, o que garantiria sua segurança, uma vez que disfarçaria o elo que o Câmara
mantinha com os familiares, “embora isso não implicasse na diminuição do amor que
os uniu sempre.”
123
O interrogatório se deu no dia 6 de janeiro de 1970. Mesmo tendo plena
consciência dos perigos que significavam o contato com a família, Zinho continuou
121
O Embaixador americano Charles Burke Elbrick foi “seqüestrado” em setembro de 1969 por um comando
revolucionário formado pelo ALN e o MR-8 e trocado por 15 presos políticos que estavam nos porões da ditadura
mil
itar. Foi considerada a mais espetacular ação realizada por grupos de esquerda no Brasil.
122
Leonora Cardieri, diário.
123
Roberto Cardieri Ferreira, depoimento.
65
estabelecendo formas de manter-se próximo dos amigos mais íntimos e dos familiares
e, no mês de fevereiro de 1970, encontrou-se com a esposa Leonora, que foi ao
encontro temendo pelo pior, como ela mesma relata em suas memórias:
“mas, assim mesmo, sabendo-me vigiada, o telefone censurado a partir de 11
de janeiro de 1970, encontrei-me com meu marido logo depois do carnaval.
Claro está que fui a esse encontro apavorada, com medo de ser causadora de
sua prisão e morte. Usei de todos os malabarismos e despistamentos. Contei-
lhe tudo que havia ocorrido, pedi-lhe que montasse uma casa a mais legal
possível,
que tomasse o máximo de cuidado e não confiasse plenamente em
ninguém e que me telefonasse de vez em quando. Era ligar, eu repetia o
número do meu telefone e ele diria que a ligação era errada e desligava. Era a
única maneira de sabermos um do outro.”
124
Esse artifício foi utilizado várias vezes por Zinho para demonstrar à família que
estava tudo bem com ele, principalmente nos momentos em que corriam boatos a
respeito de sua prisão. Esses boatos eram criados pela repressão na tentativa de
prendê
-
lo
, caso alguém da família tentasse contatá
-
lo para checar a informação.
Outros amigos e militantes que conviveram com Joaquim Câmara Ferreira
ressaltam o apego que ele tinha pela família e pelos amigos mais íntimos, que levava a
se arriscar para ajudá-
los
ou estar próximo deles, como podemos constatar nas
palavras de Carlos Eugênio Paz
125
, o Clemente (codinome pelo qual era conhecido
como militante da ALN):
“(...) o Toledo (um dos cognomes de Joaquim Câmara Ferreira na ALN)
quando entra na clandestinidade na ALN. Aqui era uma clandestinidade
completa e absoluta. Ele se separou da família. Aí, ele chegava para mim e
falava assim: Vamos ver a minha velha! Eu sabia o que era e duas
pessoas sabiam o que era essa mania dele. Aí, eu pegava o carro e ia de
carro com ele na Vila Madalena, onde morava a mulher dele, que ele tinha
abandonado na clandestinidade. Eu parava o carro no alto da rua, na hora
em que ela (ele sabia os horários dela) saía para comprar o pão de manhã. A
gente parava o caro em cima . Ele ficava longe, de dentro do carro, olhando
124
Leonora Cardieri, diário.
125
Carlos Eugênio Paz iniciou sua militância na ALN aos 17 anos, atuando nos Grupos Táticos Armados (GTA) .
Conheceu Joaquim Câmara Ferreira quando foi atuar em São Paulo. Assumiu a direção da ALN após a morte de
Câmara Ferreira. Foi um dos únicos dirigentes da organização a não ser preso pelos órgãos de repressão.
66
a velha dele passar para comprar o pão na ida e na volta. Um homem desse
para mim é... Um homem que na época era o mais procurado do Brasil e com
esse nível de sentimentalismo. Esse homem nunca perdeu a ternura. Esse
homem, a poucos dias da prisão e eu estava levando ele para ver a velha dele
que saía para comprar o pão e na volta, quer dizer, levando o pão para dentro
de casa.”
126
Também Noé Gertel
127
, que foi um dos grandes amigos de Câmara Ferreira na
vida pessoal e política no PCB, analisa que nosso personagem não estava preso a
linhas, situações táticas, enquanto grandeza de seu comportamento e diz que sua
decência, sua dignidade eram respeitadas por todos, independente da posição política.
Ao referenciar o amigo Câmara Ferreira em seu depoimento escrito, Gertel
lembra do exemplo de Elisa Branco
128
, que, quando soube da morte de Câmara Ferreira,
foi ter com um camarada, entrou e disse: “me deixa entrar que eu quero chorar a morte
do Câmara. Tenho vergonha, não quero que o partido me veja chorar a morte do
Câmara.”
129
O mesmo Noé Gertel o seu testemunho pessoal de como Câmara Ferreira
era capaz de gestos extremos de solidariedade, mesmo quando isso pudesse significar
perigo de vida, ao relatar a última vez em que Câmara Ferreira foi visitar sua esposa
Raquel Gertel, que estava internada no hospital com um câncer na fase terminal que
acabou levando-a à morte um mês após o assassinato de Câmara Ferreira. O próprio
Joaquim Câmara Ferreira estava a poucos dias de sua prisão e assassinato quando
126
Conf
orme depoimento de Carlos Eugênio Paz, em dezembro de 2002, no Rio de Janeiro.
127
Noé Gertel era jornalista e iniciou sua militância no PCB no início dos anos 30. Manteve laços de amizade
pessoal e partidária com Joaquim Câmara Ferreira durante toda vida.
128
Elisa Branco foi militante do PCB. Durante um desfile militar de 7 de setembro no governo Dutra, foi
encarregada pelo partido de expor uma faixa na qual se podia ler: “Os soldados, nossos filhos não irão para a
Coréia”, numa manifestação contra o governo que pretendia enviar soldados brasileiros para a Guerra da Coréia. Em
razão disso foi presa com diversas prostitutas e como tinha a profissão de costureira, acabou ensinado-as a costurar.
Após ser solta, ganhou uma viagem para a União Soviética, onde recebeu o prêmio Stálin da Paz, que mais tarde,
após denúncias dos crimes de Stálin, foi transformado no prêmio Lênin, conforme depoimento que me foi concedido
por Dona Sara Mello.
129
Conforme depoimento escrito de Noé Gertel, em junho de 1997, em São Paulo.
67
resolveu, sob protestos até de Noé Gertel, visitar Raquel no Hospital. Noé disse que ele
sempre ligava para o hospital para saber do estado de saúde da amiga, e, desta última
vez, Noé havia lhe avisado
“que
ela estava muito mal.”
130
Câmara disse: “olha! Vou
aparecer aí! Porque sou o irmão dela.”
131
Noé entendeu que ele ia se apresentar como
um irmão de Raquel. Nesta mesma “noite chuvosa e com uma tempestade danada”
132
,
ele chegou ao hospital e se identificou, porque não era horário de visitas. Ele arriscou o
pêlo, andava com a fotografia em toda parte . Era uma espécie de inimigo público número
um.”
133
Ao
se identificar como irmão de Raquel, disse que tinha vindo de longe, o que
levou a recepção do hospital a fazer uma exceção para a visita. Noé diz “que ele entrou,
sentou e conversou com a Raquel e disse-lhe ao sair, com afeto: Você vai sarar. Estava
acompanhada da Lurdes
134
. Percebi que estava armado, e, durante a conversa, disse-
me que andava pisando em ovos.”
135
Ao ser questionado sobre a imprudência de se expor a uma atitude como essa
de ir ao hospital, Murillo Mello
136
relata que Câmara Ferreira simplesmente disse: “Você
acha que eu poderia deixar de prestar solidariedade a uma amiga, num momento como
este?”
137
130
Ibid.
131
Ibid.
132
Ibid.
133
Ibid.
134
Maria de Lourdes Rego Mello era militante da ALN e estava presa no sítio alugado pelo delegado Sérgio Fleury
juntamente com Maurício Segall, na noite que Joaquim Câmara Ferreira foi assassinado, conforme depoimento de
Maurí
cio Segall ao autor, em maio de 2003, em São Paulo.
135
Noé Gertel, depoimento.
136
Murillo Mello militante do PCB por mais de 70 anos. Conheceu Joaquim Câmara Ferreira nos anos 30. Murillo
Mello e sua esposa Sara Mello, também do PCB, foram juntamente com Noé e Raquel Gertel, amigos de Câmara
Ferreira durante toda a vida.
137
Conforme depoimento de Murillo Mello, em maio de 2003, em São Paulo.
68
Por fim, Noé Gertel ressalta que sua amizade com Câmara Ferreira foi algo de
toda uma vida, desde a adolescência, em 1931”
138
, que tinham uma identificação
política e pessoal e que suas famílias foram muito ligadas afetivamente. Afirma também
que
o Câmara, “sempre alegre e brincalhão, buscava exibir os melhores sentimentos e,
nos últimos anos de sua vida, estava submetido a uma tremenda pressão, sendo que não
era mais jovem, a saúde não ajudava muito, porém ele manteve sempre aquele respeito
ao próximo, não ao companheiro, mas a todo ser humano, e isto, sem dúvida, foi a
sua maior qualidade.”
139
Outro que descreve essa afeição que Câmara Ferreira sempre nutriu por
aqueles que conviveram com ele é Raymundo de Oliveira
140
, que foi membro da ALN e
grande amigo do nosso personagem, tendo abrigado-o em sua casa por várias ocasiões.
Raymundo de Oliveira diz que um fato que muito lhe chamou a atenção em relação à
sensibilidade humana de Câmara Ferreira era o seguinte: sempre que ele aparecia em
sua casa, deixava a maleta que carregava num dos cantos da sala ou da cozinha, e se
deitava no chão para brincar com suas duas filhas, que eram muito pequenas. Elas o
chamavam de vovô Maneco. Sempre levava chocolate para as meninas. Tudo isso o
impressionava muito, pois naquele momento ele era um dos homens mais procurados do
país, e com toda aquela paciência em brincar, rolando no chão com as crianças. Câmara
Ferreira disse a Raymundo de Oliveira, ao ser questionado sobre essa tranqüilidade,
“que
138
Noé Gertel, depoimento.
139
Ibid.
140
Raymundo de Oliveira é engenheiro e foi militante do PCB. Foi grande amigo de Joaquim Câmara Ferreira. Por
várias vezes dirigia o carro para Câmara Ferreira e por diversas vezes o abrigou em sua casa.
69
tinha tido muito pouca oportunidade de fazer isso com os filhos, e não sabia se teria de
fazer com os netos.”
141
Sara Mello ressalta que uma das características mais marcantes do homem
Câmara Ferreira era sua sensibilidade humana, pois ele
“(...) poderia estar na maior ilegalidade, se soubesse que você estava
passando por uma crise emocional, ele marcava encontro com você, como ele
marcou comigo, num bairro distante, pra ficar andando comigo assim, rodando
pra saber o que eu tinha, porque que eu tinha, que conselhos poderia me dar,
que ajuda ele poderia me dar.”
142
Como podemos constatar, mesmo estando na militância política e vivendo na
clandestinidade, Joaquim Câmara Ferreira não se afastou do contato mais íntimo com a
mulher, os filhos e os amigos, e, embora não fosse um contato de tempo integral, era
sempre muito intenso.
Buscaremos, a seguir, recuperar de maneira mais detalhada a relação de Zinho
com os filhos Roberto e Denise, que nasceram em 1946 e 1948.
1.2 - Com Roberto e Denise –
Amor e preocupação à distância
As dificuldades para conciliar vida política e vida familiar foram uma tônica na
vida de muitos militantes comunistas, no Brasil e em outros países. Podemos verificar isto
no depoimento de Margarida Tengarrinha, militante do Partido Comunista Português
(PCP), que relata como se deu na sua vida a relação família e militância política:
“A maior preocupação dos camaradas que tinham consigo os filhos eram a
separação inevitável e, tentando ultrapassar as limitações a que éramos
obrigados, conseguir que eles vivessem o mais normalmente possível na
clandestinidade. Isso era extremamente difícil. No entanto, com prescindir de
141
Conforme depoimento de Raymundo de Oliveira, em abril de 2003, no Rio de Janeiro.
142
Sara Mello, depoimento.
70
viver com eles enquanto pudéssemos mantê-los conosco, como evitar a
aspiração de ter filhos, tão normal nos casais jovens? Seria isto errado, seria
ego
ísmo da nossa parte?.”
143
Zinho teve a mesma trajetória. Embora sempre nutrido de preocupação e muito
amor pelos filhos, a militância o impediu de dedicar-se a eles integralmente. Leonora fala
sobre o amor de Zinho aos filhos permeado pela ausência:
“Voc
ês nasceram e isso para
ele foi a maior alegria. Cresceram e estudaram, se fizeram gente. Ele os quis muito.
Nunca teve tempo de se dedicar muito a vocês, mas nem por isso o amor era menor.”
144
Roberto Cardieri reforça as palavras de sua mãe (Leonora) em r
elação à vida do
pai e militante comunista, dizendo que ele era uma pessoa que saía de casa às sete
horas da manhã e voltava meia noite, uma hora. Então, realmente, ele nos via muito
pouco. O contato que a gente tinha com ele era praticamente sábado e domingo. De
fato, ela (Leonora) teve que fazer muitas vezes, às vezes de mãe e pai dentro de casa.”
145
Margarida Tengarrinha, enfatiza em suas memórias, o processo doloroso que
vive os pais e os filhos, e o relacionamento vivido nos estreitos limites da milit
ância
política, num partido marcado pela perseguição brutal, pelas torturas e pelas mortes:
“sobre estas questões ainda não consegui fazer um juízo seguro, embora
tenha debatido algumas vezes, essencialmente comigo própria.
Principalmente por ter detectado nalgumas observações ocasionais das
minhas filhas vestígios de ressentimento que, embora não muito evidentes,
não conseguem esconder laivos de amargura por terem sentido a separação
forçada como uma rejeição e um abandono.”
146
143
TENGARRINHA, op. cit.
, p.80.
144
Leonora Cardieri, diário.
145
Roberto Cardieri Ferreira, depoimento.
146
TENGARRINHA, op. cit., p.81.
71
Dona Sara Mello, que manteve laços de amizade pessoal e partidária com
Câmara Ferreira durante toda vida, nos diz que ele, em várias ocasiões se referia aos
filhos dizendo: “os filhos da Leo.”
147
Tais palavras não queriam de forma alguma omitir
a sua responsabilidade ou amor em relação aos filhos, mas simplesmente demonstrava
que Câmara Ferreira tinha plena consciência da importância da esposa na criação dos
filhos.
Outro ex-militante comunista, Hércules Corrêa, enfatiza como era muito
complicada a vida de um comunista no sentido de poder conviver com a família e
principalmente com os filhos. De acordo com ele: “foi uma vida difícil. (...) Eu como
muitos outros, me privei da bastante coisa, perdi muito, pessoalmente, afetivamente
não por causa da política, mas daquela maneira de compreender e fazer política. Meus
filhos, por exemplo, não posso sequer dizer que fui eu quem os criou.”
148
Entretanto, a preocupação e o amor pelos filhos podem ser constatados no
depoimento de Juca Kfouri, que aos 20 anos, era um militante da ALN q
ue atuava como
apoio a pessoas perseguidas que precisavam ser escondidas. Em 1969, foi contatado
para providenciar um aparelho onde esconder um quadro da organização muito
importante, pelo período de um mês. Kfouri arranjou um apartamento. Quando
chegaram
com o militante, este se apresentou a Kfouri e, para sua surpresa, tratava-
se
do “Velho” . Durante este período, Kfouri conviveu intimamente com Joaquim Câmara
Ferreira, pois todos os dias ele tinha que ir ao apartamento saber se ele precisava de
147
Sara Mello, depoimento.
148
CORRÊA, Hércules.
Memórias de um Stalinista
. Rio de Janeiro: Opera Nostra, 1994, p. 55.
72
algo. Nas conversas que tiveram, o velho militante comunista “falava muito da família
dele, que a única coisa que doía nele era o pouco tempo que teve com os filhos.”
149
A vida de Câmara Ferreira estava permeada pela vida do Partido Comunista, e
os anos de nascimento dos seus filhos (1946: Roberto Ferreira Cardieri e 1948: Denise
Ferreira Fraenkel) são marcados por um período de semilegalidade e cassação do
PCB. Tudo isso vai se refletir na vida dos filhos por ocasião do seu nascimento. Tanto
Roberto quanto Denise compartilharam da situação de ter o pai preso no período de
suas gestações, e a soltura, pouco antes do nascimento. No caso de Roberto, Leonora
relata que Zinho fora preso novamente , quando voltava do interior, onde fôramos
passar o Natal e o 31 com minha família, em janeiro de 1946. Isso porque havia uma
greve de motorneiros em São Paulo e ele estava sendo culpado da greve.”
150
O filho
Roberto nasceu no mês de abril do mesmo ano. O mesmo ocorreu com a filha Denise,
que nasceu em 1948 e nos diz que “tudo começou no tempo da gravidez de minha
mãe. Meu pai tinha sido preso, e, assim, durante os últimos meses, minha mãe correu
muito atrás de advogados, políticos, polícia.”
151
Denise, no entanto, relata que
felizmente o pai estava em liberdade no dia em que ela nasceu, e que, segundo ouviu
de sua mãe, ela e Zinho haviam ido ao cinema quando chegou o momento do parto, e
então voltaram para casa, e de para o hospital maternidade São Paulo, onde um
médico que era companheiro deles, o Dr. David Rosenberg, fez o parto e, num
determinado momento, disse: “A Denise esta aí, é uma menina.”
152
O nome foi
149
Conforme depoimento de Juca Kfouri, em março de 2005, em São Paulo.
150
Leonora Cardieri, diário.
151
Conforme depoimento de Denise Fraenkel (filha de Câmara Ferreira), enviado ao autor da Alemanha, por e-
mail,
em setembro de 2003.
152
Denise Fraenkel, depoimento.
73
escolhido pelos pais em função de um romance francês que Leonora lera cuja heroína
se chamava Denise e que tratava da época da resistência francesa.
Toda essa situação criava um ambiente familiar incomum e difícil, como
podemos constatar nas palavras de Denise: a nossa vida foi sempre cercada por muito
medo, muita perseguição e falta de segurança.”
153
A vida em família, como se lembra
Denise, não podia ser enquadrada naquilo que a maioria das pessoas conceitua como
normal. Ela analisa que, realmente, não se pode dizer que foi uma vida de família
como cada um conhece, com pai que trabalha fora, traz o sustento para casa, e mãe
dona de casa, com a preocupação com os filhos e parentes, fins de semana com
futebol e cerveja.”
154
Na realidade, a vida era marcada por pai que quase sempre
estava ausente, e mãe intelectual que trabalhava diariamente e depois cuidava da
família.”
155
Nos fins de semana, quando a família conseguia estar junta, este “era um dos
fatores que nos deu muita segurança.”
156
Nestes momentos, que aconteciam
principalmente aos domingos, o cunhado de Câmara Ferreira, José, e sua irmã
Edwirges, junto com os filhos, apareciam para “tomar café e baterem um pap
o.”
157
Em
algumas ocasiões, como se lembra Denise, a mãe (Leonora), filha de italianos
preparava o almoço que era composto de macarrão, carne, legumes, verduras e
sobremesas. Durante o almoço, Zinho e Leonora bebiam um copo de vinho tinto,
enquanto os filhos bebiam guaraná com um pouquinho de vinho. Zinho tinha o hábito
de comprar garrafões e dividi-
los em garrafas que punha para gelar.
153
Idem.
154
Denise Fraenkel,
depoimento.
155
Idem.
156
Idem.
157
Idem.
74
Denise afirma que os pratos italianos eram os prediletos de seu pai, que fora
influenciado em sua convivência com a família italiana do Fosco, desde os tempos em
que havia entrado no PCB. Outro gosto do pai é relatado por Denise, que afirma:
“minha mãe preparava sempre uma caçarola italiana ou pudim de leite
condensado, que meu pai adorava. Ele sempre cortava mais um pedacin
ho
para acertar o corte, mas na verdade seu fraco eram os doces. Não gostava
de nada azedo, ficava arrepiado até os cabelos.”
158
Em outros momentos, o próprio Zinho ia para cozinha preparar um arroz de
carreteiro.”
159
Os filhos gostavam da sua comida, mas Leonora ficava desesperada
pela quantidade de acessórios que ele necessitava: óleo de oliva, as carnes caras.
Leonora sempre dizia ao Zinho sobre sua aptidão culinária: “Assim, qualquer um sabe
cozinhar bem. Quero ver fazendo economia como eu faço.
160
Fora isso, a participação
de Zinho na cozinha “não ia além de fazer café e fritar um ovo.”
161
Depois desses
almoços, Denise conta que:
“meu pai (especialista) fazia o café que tomávamos na sala, e o importante era
que o café fosse torrado pouco e moído na hora. Minha mãe recebia da
fazenda de sua mãe, todo ano, algumas sacas de café. Esse café era torrado
no quintal e moído na máquina manual, embaixo do telhadinho. Eu acho que
meu irmão era o principal moedor.”
162
Após o café, Leonora ia deitar-
se,
enquanto Zinho deitava-se no sofá ou lia
histórias para os filhos, entre as quais estavam “Marusia, a aluna do primeiro ano, em
espanhol; um livro infantil russo com fotos de uma menina que entrou para a escola e o
que ela vivência ou Monteiro Lobato.”
163
Em outras oportunidades, Zinho levava os
158
Idem.
159
Idem.
160
Denise Fraenkel, depoimento.
161
Idem.
162
Idem.
163
Idem.
75
filhos ao cinema para assistir a filmes de arte, e, nesses momentos, “tinha sempre nos
bolsos drops de menta, que então lhes dava.”
164
Ao chegar em casa, Denise se
recorda que se esquentava o que tivesse para o jantar
. Leonora relatava aos filhos que,
quando esses eram pequenos, Zinho dizia que iria levá-los no domingo de manhã a
sessão “zig-zag” no cinema, porém ela descobriu um dia que a tal sessão era, na
realidade,
“um passeio a praça da República para os filhos verem os patinhos e
pássaros que se encontravam por lá.”
165
Outras possibilidades dos fins de semana era ir à casa de uma tia (irmã de
Leonora), no Jardim Paulista. Denise se lembra que, nesses passeios “íamos de bonde
e às vezes voltávamos, à noitinha, de lotação. Havia, no ponto final, um bom pedaço
para andar a pé, e eu às vezes fingia dormir, e meu pai me carregava no colo uns mil
metros.”
166
Havia, também, a possibilidade de visita a algum parente, primos casados
com filhos pequenos. Eram coisas corriqueiras, mas que, diante da situação vivida pela
família, tornavam
-
se muito importantes.
Com relação ao pai, Denise diz o seguinte:
“era sempre muito agradável. Vestia-se bem, estava sempre de terno e
gravata, sapatos de couro sempre bem limpos e brilhantes, camisa branca
social. Sempre de cabeça muito erguida, os olhos olhando diretamente para
frente, ao lado de minha mãe, também bem arrumada. Meu pai pegava-lhe no
braço e a dirigia. Às vezes, ela reclamava: Zinho, eta homem de mão dura,
veja como aperta o meu braço! Nunca fui testemunha de uma briga entre
meus pais. Jamais se desrespeitaram, jamais levantaram a voz. Jamais ouvi
de meus pais um insulto ou um palavrão. Às vezes, eu ouvia que conversavam
na cama, com a luz apagada, cochichando sobre o quê? Os
filhos?
Problemas?. Além disso, era um homem que gostava de comer bem, que
tinha o prazer em sentar-se à mesa , além da paixão pelos doces. Era aberto
as inovações . Não era o tipo conservador, adorava experimentar novidades.”
167
164
Idem.
165
Denise Fraenkel, depoimento.
166
Idem.
167
Idem.
76
A profundidade da relação de Zinho com os filhos estava pautada em detalhes
simples, mas que eram muito caros a todos, pois eram momentos raros de encontro.
Todo gesto era permeado de muita significação, como diz Denise:
“nós, crianças, também andávamos penduradas nele, provavelmente
necessitávamos estar corporalmente perto. Como eu ia à escola no período da
tarde, levantava às vezes da cama depois que meus pais já haviam ido
trabalhar e vestia o pijama dos dois, para sentir o perfume deles. Meu pai
ouvia religiosamente o jornal da manhã no rádio. Isso era um procedimento
diário. O rádio alto, enquanto tomava banho e fazia a barba.”
168
Tengarrinha relata a importância e a profundidade desses momentos simples e
corriqueiros da vida:
“e é talvez por isso que a recordação dos momentos felizes da nossa vida de
família me surge com tanta intensidade e o vivo colorido que os anos não
desbotaram. Porque encontro neles uma autojustificação ou porque se
coadunam com a minha natureza otimista.”
169
Devido à militância Zinho não dispunha de muito tempo para brincar com os
filhos. Como vimos, ele costumava levar os filhos ao cinema, à casa de amigos como
Noé Gertel e Raquel, Fosco Mazzoncini (pai da Mara, Marisa e Mauro), Adolfo Roitman,
Faride Helú, e à de parentes. Muitas vezes, Zinho levava amigos, provavelmente
companheiros militantes do partido, para dormir em casa, porém eles chegavam muito
tarde e saíam muito cedo. Denise relata um fato que a marcou muito, numa ocasião
dessas. Ela estava cursando a terceira série do ginásio, e o pai apareceu com um
amigo à meia noite. Ela estava na cozinha estudando inglês, pois precisava de nota
para não ficar de segunda época, e diz que o pai estranhou bastante que sua “
figliolina
estivesse acordada. Zinho preparou para eles uma omelete com presunto, e ela ficou
168
Denise Fraenkel, depoimento.
169
TENGARRINHA, op. cit., p. 81.
77
encantada em ver que ele sabia fazer uma omelete. Em relação ao fato de o pai a
chamar de “
figliolina
” , Denise esclarece que:
“meu pai havia aprendido italiano com um amigo durante o tempo em que
esteve preso na Ilha Grande. Dizia sempre para mim:
Figliolina
mia, me
vuole bene o no? Ao que eu devia responder: Si. E ele : E
dove
? E eu: In
cuore
. E ele então:
Dunque
,
dame
um
baccio
. E então ganhava um beijinho
da sua bananinha pintadinha, oncinha pintada . Essa denominação eu r
ecebi
porque tinha sardas no rosto e porque, quando brigava com meu irmão, o
arranhava sem perdão.”
170
Quanto à correção dos filhos, Denise descreve ser o pai muito calmo, embora
fosse fácil identificar quando estava nervoso devido ao fato de movimentar
os músculos
do maxilar, ou seja, ele mordia os dentes por dentro. Esse ponto era o sinal de que não
deveriam ultrapassar mais o limite. O nervosismo era sempre em função da briga dos
irmãos. O fato de ser menina dava a Denise, “uma posição especial na cons
telação
familiar, em relação ao pai.”
171
Quando era malcriada, “o pai dava risada baixinho, pois
ele achava charmosa a minha malcriação.”
172
A filha esclarece que o relacionamento
que tinha com pai foi sempre muito carinhoso e acrescenta que
“Não me lembro de qualquer repreensão de sua parte. Também não se
intrometia na educação que minha mãe nos dava . Quando tentava conseguir
com ele permissão para algo que minha mãe havia proibido, a resposta era
sempre: Pergunte a sua mãe. Do meu ponto de vista hoje, isso foi a melhor
solução que os dois encontraram. Com isso, o nosso respeito pela mãe
sempre foi muito grande.”
173
Algumas vezes, Zinho conseguia ajudar o filho nas lições de casa,
principalmente naquelas que tratavam de tradução de inglês. A filha, ele auxiliava nas
lições de história: ela conta que o pai ajudou-a muito a compreender essa matéria
170
Denise Fraenkel, depoimento.
171
Idem.
172
Idem.
173
Idem.
78
quando ela cursava o terceiro ano clássico. Denise diz que não compreendia o
relacionamento entre os fatos, e “ele mostrou-me o que eu deveria ler para entender as
causas de uma guerra, ou a relação histórico-econômica que havia provocado uma
mudança social. Naquela época, fiquei felicíssima em descobrir que história não é um
amontoado de datas e dados e sim um contexto compreensível.”
174
Não muito freqüentemente, Zinho, Leonora e os filhos almoçavam fora, em geral,
no bairro chinês, onde, segundo Denise, a comida era muito boa e barata, além de seu
pai gostar muito. Outras vezes, era a comida italiana ou pizza, no Brás, com alguns
amigos.
Roberto Cardieri se recorda que outra atividade que unia a família em algumas
ocasiões era a venda do jornal do PCB, que tinha tiragem muito pequena
175
. As
famílias de militantes comunistas se dirigiam para Santo Amaro e Tatuapé em Kombis,
para vender esses jornais:
“iam meu pai, minha mãe, eu e minha irmã e um monte de gente do Partidão
(PCB). Íamos fazer mutirão de venda desses jornais nesses bairros mais
populares, e havia todo um trabalho de convencimento, mostrar o que era o
jornal, qual era a função dele e o que era o Partido Comunista. Era uma
atividade interessante. Havia uns almoços grandes com todo aquele povão, e
com a venda do jornal, havia leilões, então o Zinho saía com frangos. Aquele
pessoal operário aceitava bem, havia consciência maior e o pessoal era muito
be
m aceito ... esses mutirões de venda do Notícias de Hoje. Os filhos, filho do
Pomar. Eu pegava o jornal, 10 centavos, 10 centavos.”
176
Em outros momentos, o simples fato de poder ouvir o pai contando aos amigos
em casa sobre suas viagens já era motivo de
excepcional alegria, conforme palavras da
filha Denise: ”Eu adorava ouvir meu pai reportar a amigos e família sobre as suas
174
Denise Fraenkel, depoimento.
175
Roberto Cardieri Ferreira, depoimento.
176
Idem.
79
viagens.”
177
Ela se lembra de que ficava quietinha, sentada na sala, escutando as
aventuras pelas quais o pai havia passado na União Soviética, como o episódio da
vodka: Zinho contava que os russos sempre tomavam uma colher de azeite antes de
começar a beber, a fim de que não ficassem rapidamente bêbados. Quando chegava a
hora de ir para cama, ela voltava sem fazer qualquer ruído até a metade da escada,
para continuar a escutar. Podia escutar por horas as histórias
, “e, por sorte, isso sempre
me foi permitido.”
178
Em alguns domingos, era possível ouvir em casa os discos que Zinho havia
trazido da União Soviética, como o caso do baixo” mais alto do mundo, isto é,
“um
cantor negro, creio que americano, que cantava na Rússia”
179
, e outros discos de
música clássica. Por ocasião de suas viagens, Zinho sempre trazia algum presente para
os filhos e a esposa. Quando esteve na Rússia e na China, adquiriu para a filha uma
maravilhosa
“matroschka, uma blusa bordada na Ucrânia, além de pinturas e recortes
em papel de seda chinês.”
180
Quando possível, Zinho e Leonora iam ao teatro e a
concertos. Denise revela que era uma coisa excepcional ver a mãe bem arrumada, de
tailleur e casaco de pele, e perfumada, pois Zinho sempre presenteava a esposa com
um perfume chamado “Flor de maçã” da Coty
181
.
Com relação às festas de Natal e Ano novo, esses eram dias muito especiais
para a família, e os presentes eram colocados debaixo da cama, chegando durante a
noite do nascimento de Cristo. “E assim, no dia 25, em pleno verão, via as crianças nas
177
Denise Fraenkel, depoimento.
178
Idem.
179
Idem.
180
Idem.
181
Idem.
80
calçadas, bem vestidas, brincando com suas bolas coloridas, seus tico-ticos, bicicletas,
ou as meninas empurrando carrinho
de bonecas.”
182
Durante o Natal, Zinho e a família iam à festa do jornal Notícias de Hoje
183
ou
do sindicato dos jornalistas, e as crianças recebiam os presentes que certamente
eram doados para os filhos dos trabalhadores. Além disso, Denise se lembra que em
casa havia alguns presentes, como casinha e móveis de boneca, cabidinhos e
roupinhas, e às vezes uma boneca, mas era muito simples. As passagens de Ano Novo
eram festejadas todos os anos na casa da irmã de Zinho, Edwirges, e era um momento
em
“que todos ficavam acordados até tarde, esperando a passagem do ano, e se
abraçavam e se desejavam feliz Ano Novo.”
184
O tratamento que os filhos davam aos pais em casa nunca era o de senhor ou
senhora, mas simplesmente pai ou mãe e em alguns casos ”você”.
Havi
a em casa uma preocupação com as questões políticas, o que levava Zinho,
Leonora e os filhos a lerem muitos jornais, entre os quais estavam o “Notícias de Hoje”
e a “Folha da Manhã”. Este fato corriqueiro criava mais uma oportunidade de encontro
familiar,
como enfatiza Denise:
“também nos era permitido comprar nos fins de semana uma revistinha –
Pato
Donald. Depois do café da manhã aos domingos, a família se reunia para ler o
jornal , espalhados pela sala, nas poltronas ou deitados no tapete. Um clima
muit
o gostoso e descontraído.”
185
Denise se lembra de que o pai gostava de ler romances em geral, se interessava
por literatura política especializada e livros de história, como os de Vernhagen, ou arte.
182
Denise Fraenkel, depoimento.
183
“Notícias de Hoje” era o jornal do PCB, do qual Joaqui
m Câmara Ferreira foi diretor redator.
184
Ibid.
185
Ibid.
81
Em relação à vida política do pai, sua filha, como o restante da família, diz que
sabia muito pouco sobre ela devido ao fato de os filhos serem muito jovens para
compreender o que se passava. Fora isso, por problemas de segurança que, segundo
ela, lhes salvou a vida, “não se falava em casa mais do que o necessário e permitido e
o permitido, era pouquíssimo, pois o Partido Comunista sempre esteve na ilegalidade e
a perseguição sempre existiu, às vezes mais escondida, às vezes mais clara e
evidente.”
186
A formação e o exemplo de vida dos pais acabaram levando as crianças a se
posicionarem, mesmo sem compreenderem a dimensão do que significava a opção.
Podemos constatar isso nas palavras de Denise:
“o que eu sabia era que nós éramos comunistas, que lutávamos pela
igualdade e pelo direito dos oprimidos, que lutávamos por uma sociedade
onde existisse respeito pelo ser humano. Justamente por causa da situação de
semilegalidade, vivíamos sempre um pouco afastados da sociedade, sempre
um pouco na expectativa , sempre com cuidado. Nossa politização foi em
grande parte emocional. Admirávamos os países onde o proletariado era livre,
o trabalhador era respeitado.”
187
No período entre o golpe e o famigerado AI-5, apesar de Zinho não poder morar
em casa com a família, estavam sempre juntos. Leonora relata que o Câmara h
avia
conseguido um apartamento e que nele se encontravam, saíam juntos, jantavam com
os filhos e amigos, iam ao cinema e, “mesmo não sendo uma vida ideal, nos
alegrávamos com a possibilidade de estarmos juntos, vez ou outra, conversando,
levando uma vida quase normal.”
188
Zinho sempre demonstrava preocupação com os
estudos dos filhos, e “foi imensa a sua satisfação quando os viu entrarem na
Universidade. Tinha um extraordinário orgulho deles, inteligentes, estudiosos, sempre
186
Denise Fraenkel, depoimento.
187
Idem.
188
Leonora Cardieri, diário.
82
rodeados de colegas e amigos. Isso lhe causava imensa alegria.”
189
Com a edição do
AI-5, em 13 de dezembro de 1968 e o recrudescimento da repressão, a distância
aumentou e a situação se tornou muito difícil, conforme as palavras de Leonora:
“para mim foi um período profundamente difícil. Filha e genro longe (Denise e
Renato Fraenkel haviam saído do país em 1969 por questão de segurança
conforme analisaremos no capítulo), marido caçado, filho ainda estudante.
Vivendo sem sossego, sem paz, sem qualquer segurança. Não sabíamos o
que poder
ia acontecer de um dia para o outro. Foram os piores anos de minha
vida. Falta de meu querido companheiro, temor constante em prende-
lo.”
190
Ainda a poucos dias de sua prisão e morte, exatamente uma semana antes,
Zinho deu mostras de preocupação e amor à família. O dia 17 de outubro era o dia do
aniversário de Leonora, e ele mandou-lhe uma bolsa de presente. Leonora pensava em
tirar o passaporte para ir a Alemanha visitar a filha que estava grávida do primeiro neto.
Junto com a bolsa de presente, ele enviou um bilhete no qual dizia que estava bem de
saúde, alegre por ser avô e saudoso de todos. Pediu a esposa que esperasse até o
final do ano para viajar, pois o filho estava terminando a Politécnica e ele temendo pela
segurança da família, tinha esperança “que ela, o filho e a nora decidissem por deixar o
Brasil, definitivamente.”
191
Leonora, porém, não aceitou sair do país. Conforme suas
palavras:
“isso eu não o faria. Não o deixaria no Brasil. Se não podia estar ao lado dele,
lutando ou pelo menos, fazendo-lhe companhia, como o fizera sempre,
também não o abandonaria procurando segurança fora da pátria. E isso eu lhe
disse. Eu jamais o deixaria sozinho, mesmo longe dele, como estava. Também
sabia que permanecendo no Brasil, ele se exporia. (...) Mas também sabia que
não me afastando do país, ajudava-o, indiretamente, a tomar o máximo de
cuidado.”
192
189
Ibid.
190
Ibid.
191
Leonora Cardieri, diário.
192
Ibid.
83
Esse temor, somado à insegurança pelo qual passou a família, durante toda a
vida, em relação a uma possível prisão e morte de Zinho, concretizaram-se em 23 de
outubro de 1970, quando ele foi morto pela ditadura militar depois de ter assumido a
luta armada até as últimas conseqüências. Adiante, analisaremos o trama que resultou
no assassinato de Zinho, pela repressão desencadeada a partir do golpe militar de
1964
.
Procuramos, no decorrer deste capítulo, recuperar o homem Joaquim Câmara
Ferreira, chamado pelos familiares e amigos mais íntimos de Zinho. Para tanto,
analisamos sua trajetória de vida pessoal, familiar e de amizades, pois a cotidianidade
do personagem pode demonstrar uma faceta que muitas vezes não é percebida na
militância política, na vida pública.
Conhecendo a história de vida do nosso personagem, e sendo esta história
indispensável na realização de Biografias políticas, poderemos perceber mais
clar
amente a dimensão das opções por ele feitas durante sua vida. A análise pura e
simples de Câmara Ferreira, o comunista, e do “Velho” ou “Toledo”, o guerrilheiro, pode
levar a um obscurecimento dessa face humana e generosa do Zinho, conforme nos
disse Sara
Mello, ao enfatizar que
não se pode desvincular o homem do militante.Ele era assim porque era um
comunista. Ele seria o Câmara, desse jeito, fora do partido, mas eu acho que a
ligação dele com o partido aumentou aquele amor pelo ser humano. (...)
Câmara
levou para o partido toda essa beleza moral que ele tinha, mas ele
aliou essa sensibilidade dele à luta por uma sociedade diferente. Eu acho que
não se deve desvincular essa moral e finidade moral do Câmara da sua
militância política.”
193
193
Sara Mello, depoimento.
84
Esses traços de humanismo e sensibilidade humana do personagem foram
referenciados no decorrer de sua vida partidária e revolucionária, a ponto de ele ser
caracterizado por muitos militantes por um termo que seria pouco usual, como diz
Granville Ponce
194
, para um milita
nte revolucionário:
“Gentleman.”
195
194
Granville Ponce foi membro do PCB e da ALN e amigo de Joaquim Câmara Ferreira. É jornalista e autor do livro:
Presídio Tiradentes, um presídio da ditadura
Memória de presos políticos.
195
Conforme depoimento de Granville Ponce, em abril de 2004, em São Paulo.
85
CAPITULO 2
Câmara Ferreira
-
O homem do PCB
Resumo do 2º capítulo
No segundo capítulo, abordamos a vida militante de Joaquim Câmara Ferreira no
PCB, quando ingressou na Juventude Comunista em 1931, passando pelo Socorro
Vermelho, atuando como diretor-redator dos jornais do partido (“Hoje” e Notícias de
Hoje”), dirigente do Comitê Estadual do PCB em São Paulo, membro do Comitê
Central. Enfatizamos ainda as prisões e torturas às quais foi submetido durante a sua
trajetória política, e por fim o seu desligamento do PCB, no ano de 1967, para militar na
luta armada. Além disso, poderemos vislumbrar a relação visceral que existia entre
Joaquim Câmara Ferreira e o PCB e como este militante atuou sempre na e
strutura
partidária nunca aparecendo como um homem de holofotes, mas como um “homem do
aparelho” e de organização.
86
2
Câmara Ferreira
-
O homem do PCB
Outros haverão de ter o que
houvermos de perder.
Fernando Pessoa
O Partido Comunista do Brasil (PCB) foi fundado em 25 de março de 1922 e,
desde que seus fundadores aceitaram as “21 teses da Internacional Comunista (IC),
criada três anos antes em Moscou, condição necessária para ser reconhecido como
uma seção desse organismo, concebido para orientar o movimento comunista mundial”
196
, a ação política dos comunistas vinculados a essa origem foi marcada por uma forte
identificação com os destinos do país. O congresso de fundação contou com a
participação de nove delegados representando 73 comunistas de Porto Alegre, Rio,
Niterói, São Paulo, Recife e Cruzeiro. Santos e Juiz de Fora não enviaram delegados.
O PCB trazia n
o artigo N
o
2, do seu estatuto, que definia a sua finalidade:
“o partido Comunista tem por fim promover o entendimento e ação
internacional dos trabalhadores e a organização política do proletariado em
partido de classe para a conquista do poder e conseqüente transformação
política e econômica da sociedade comunista.”
197
Num primeiro momento, o partido foi composto na sua maioria por militantes
vindos do anarco-sindicalismo e que dele se distanciaram na luta pela organização de
196
PENNA, Lincoln de Abreu. Caminhos da Soberania
Nacional
Os comunistas e a criação da Petrobrás.
Rio
de Janeiro: E
-
papers, 2005, p.22.
197
CARONE, Edgar.
O PCB. 1922 a 1943
. São Paulo: Difel, 1982, p. 23.
87
um partido nos moldes do partido bolchevique russo.”
198
Desta forma, começava a
história do mais antigo partido político em âmbito nacional que já existiu no Brasil. Esta
história foi marcada por lutas, sofrimentos, conquistas e fracassos que seduziram
muitos trabalhadores brasileir
os e se tornaram referência de luta.
A princípio, seus militantes eram de origem operária. Porém, com o tempo, foram
incorporados militantes de outras categorias sociais, principalmente originários da
pequena burguesia e da classe média, com motivações sociais e políticas claras, e
certamente sob a influência do contexto mundial do entre Guerras, “em que o
engajamento político e ideológico era uma questão de cidadania.”
199
Sabemos, porém, que a militância num partido comunista como o brasileiro
opção que historicamente implicou risco de morte, tortura, prisão ou clandestinidade
supõe algo mais “que a adoção das idéias formuladas primeiramente por Marx e
Engels: supõe envolvimento vital com a causa proletária, e este tipo de envolvimento
marca profundame
nte aqueles que o exercitam
.”
200
Enfim,
“não um partido de mártires e heróis apenas, de cavaleiros da esperança no
rumo de uma mística utopia, mas um partido de homens comuns com erros e
acertos e fracassos bem brasileiros, bem nacionais. Um partido pequeno na
clandestinidade, mas sempre influente. Sempre submetido a rudes golpes e
sempre se recuperando deles graças a sua coerente defesa global dos
interesses da massa trabalhadora. Um partido que, quando pode respirar o
oxigênio da legalidade, cresce, se afirma e sempre ganha a simpatia publica
pelo seu empenhamento na causa da democratização da vida social brasileira.
Em suma, um partido nacional: nas suas limitações e nos seus êxitos, uma
expressão legitima do nosso povo.”
201
198
VIANNA, Marly de Almeida Gomes. Revolucionários de 35. Sonho e realidade. São Paulo Companhia d
as
Letras, 1992, p. 52.
199
PENNA,
A trajetória de um Comunista.
op. cit., p. 12.
200
SEGATTO, José Antônio.
Breve historia do PCB
. 2 ed. Belo Horizonte: Oficina de Livros, 1989, p. 13.
201
SEGATTO, op. cit., p. 14.
88
Foi nesse partido que Joaquim Câmara Ferreira ingressou por volta do ano de
1931, aos 18
202
anos, quando era estudante de engenharia na Politécnica de São
Paulo.
No depoimento de Joaquim Câmara Ferreira, em janeiro de 1939, na Delegacia
Especial de Segurança Política e Social (D.E.S.P.S), ele declarou como se deu sua
entrada no PCB. Embora tenhamos claro que, nesses depoimentos, o declarante
procura disfarçar sua atividade política, vale a pena relatar o que foi declarado por ele:
“entrei para o Socorro Vermelho (S.V) em 1932. A ligação foi feita por um
colega ligado, e o primeiro elemento dessa organização com quem
reunimos foi o Lobo, professor israelita (posteriormente desmascarado na
Bahia como provocador). Em São Paulo. Vim para as organizações
revolucionárias, trazido pelos movimentos de massas e por agitação
revolucionária que se segue ao movimento de 30, consolidados em sua
influência pela literatura marxista.”
203
O significado desse ingresso de Câmara Ferreira no PCB pode ser avaliado no
depoimento de Sara Mello, que ouviu muitas vezes de seu companheiro Murillo Mello
que ele arrumava os amigos, e ela é quem arrancava as confidências. Um dia, quando
Sara Mello se encontrava em sua residência, conversando com Câmara Ferreira, ela
perguntou
-lhe:
“Zinho, o que foi que mais na vida te marcou, te impressionou? Olha que a
vida dele foi uma vida rica, sofrida, bonita, perigosa. E Zinho me respondeu:
sabe Sarinha, foi uma reunião. Aquele companheiro (Sebastião Francisco
204
-
Secretário de organização do Comitê Estadual de São Paulo) disse: Câmara
Ferreira, que foi que te trouxe para o partido? O que você espera deste
202
A referência que temos para o ano em que Joaquim Câmara Ferreira entrou no PCB nos foi dado por Sara Mello.
Ela nasceu em 1914 e entrou no PCB aos 18 anos, ou seja, em 1932. Porém, quando ingressou no PCB encontrou
Joaquim Câmara Ferreira que segundo ela, teria entrado um ano antes.
203
D.E.S.P.S.
-
Prontuário 33807, ficha número 3. Arquivo Público do Rio de Janeiro.
204
Sebastião Francisco, decorador de paredes nascido em 07 de agosto de 1899, num lugarejo, parada de trem,
Espraiado de nome, no município de Brotas, que tivera, desde a segunda infância, uma vivencia anarco - socialista
muito intensa. Com cerca de um ano de idade, seus pais mudaram
-
se para Mineiros do Tietê. Nesse local, mais tarde,
aconteceram fatos políticos que o motivaram ao marxismo militante. Conhecido entre os militantes comunistas de
São Paulo pelo codinome de Castro.
In: MAFFEI, Eduardo.
A Batalha da Pra,a da Sé.
Rio de Janeiro: Philobiblion,
1984, p. 58.
89
partido? Então ele fala do que espera, muito do que ele era... Então esse
companheiro disse assim: Então você pode se considerar hoje membro do
Partido Comunista do Bra
sil... A maior sensação da vida do Câmara, ... é o dia
que ele foi considerado membro do Partido Comunista do Brasil.”
205
Outro fato, aparentemente simples, mas que pode revelar a relação de militância
desse personagem com o PCB é apontado pela mesma Sara Mello, ao dizer que
Câmara estava sempre sorrindo, e, ao ser perguntado sobre o motivo dessa felicidade,
sempre dizia: “
comunismo, comunismo, o comunismo dá alegria.”
206
Joaquim Câmara Ferreira chegou na Politécnica de São Paulo num momento
efervescente do Brasil e do mundo. No contexto internacional, havia a grande crise do
sistema capitalista com a queda da bolsa de valores de New York, e no Brasil havia
acontecido a revolução de 30, que pôs fim à política café-
com
-
leite, que havia imperado
por anos no país. Tudo isso teve grande influência no engajamento político de Zinho,
como podemos verificar pelas palavras de Edwirges Ferreira Cardieri:
“se associarmos sua chegada ao ambiente universitário de São Paulo com o
momento econômico mundial; a evolução das ideologias: os efeitos da
industrialização sobre a capital paulista e economia do café; a influência dos
primeiros artesões espanhóis e italianos vindos para cá, não será difícil
entender o engajamento político do Zinho. Aliais, sobre isso, um seu
contempo
râneo (ex-membro da juventude comunista e mais tarde líder de
direita e governador do Rio de janeiro) Carlos Lacerda, disse que errado
naquela época era ficar em cima do muro.”
207
No período entre os anos de 1930 e 1932, o PCB foi marcado pelo obreirismo
,
em que antigos dirigentes eram substituídos por operários, muitas vazes inexperientes
politicamente e com grandes debilidades ideológicas e teóricas.
205
Sara Mello, depoimento.
206
Ibid.
207
Edwirges Ferreira Cardieri, depoimento.
90
Após um período de estudos na Politécnica, Câmara abandonou e se transferiu
para o curso de Filosofia na USP. Edwirges Ferreira Cardieri relatou este período de
sua vida, dizendo que nos seus primeiros anos de engenharia, Zinho estava
comprometido com a política. Tanto que abandonou seu curso, transferindo-se para a
Faculdade de Filosofia de São Paulo.”
208
Leonora Cardieri Ferreira também fez referências ao mesmo período que conta
da onde veio a influência de Zinho para se tornar um quadro do PCB:
“deixou a Politécnica quando terminava o segundo ano e passava para o
terceiro. Tendo conhecido o Fosco, o Roitman e o Nino (um velho anarquista
italiano), dava seus primeiros passos entre os comunistas de então. Deixou a
Poli para fazer filosofia na USP, mas não continuou seus estudos.”
209
Dentre as influências destacadas por Leonora Cardieri para o ingres
so de Câmara
Ferreira no PCB, estão italianos como Fosco Mazzoncini e Nino. A presença desses
italianos no Brasil se deveu a uma política deliberada do governo brasileiro que, no
inicio da República, buscou fornecimento de braços para a grande lavoura do c
afé,
como também para o povoamento de áreas pouco exploradas, através do
estabelecimento de pequenas propriedades. O final da escravidão no Brasil e a
mudança do regime monárquico para República, bem como a possibilidade de
desenvolvimento do país atraíram grandes contingentes de imigrantes, e São Paulo se
beneficiou muito com os imigrantes de origem italiana, que se destacaram até 1920.
Logo após, vieram os portugueses e os espanhóis. Estas nacionalidades formariam o
grosso do proletariado no Brasil.”
210
208
Ibid.
209
Leonora Cardieri, diário.
210
PENNA, Linc
oln de Abreu.
República Brasileira.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 117.
91
Segundo Lincoln Penna, para se ter uma idéia dos imigrantes neste “mundo do
trabalho” basta verificar que nas indústrias estabelecidas em São Paulo, no início do
século XX, cerca de 90% dos empregados eram estrangeiros. Diante disso, a influência
dos imigrantes, principalmente italianos, foi decisiva para impulsionar o movimento
operário, pois a tradição de luta dos trabalhadores europeus era conhecida desde a
época das Internacionais, a Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT),
fundada em Londres no ano de 1864, e a Internacional Socialista, criada em Paris em
1889.”
211
Entre as correntes que atuaram dentro do movimento operário brasileiro tivemos
aquelas com ideário anarquista e também a vertente anarcosindicalista, que irá marcar
a luta dos trabal
hadores brasileiros. A imigração trouxe muitos deles para o Brasil.
Fosco Mazzoncini havia sido um dos fundadores do Partido Comunista Italiano
(PCI). Nessa época, na Itália, para fazer propaganda, saía de casa meia noite com a
esposa Ada, grávida, usando
um casaco cheio de panfletos para serem distribuídos.
Na década de 20, fugiu da Itália, escondido num navio devido à perseguição de
Benito Mussolini, ditador do Fascismo italiano. Deixou a “esposa e a filha Mara, que
vieram para o Brasil um ano mais tarde. No Brasil, moraram em Santos e Ribeirão
Preto, e de se transferiram para São Paulo. Fosco nunca militou no PCB, pois temia
ser preso e deportado.”
212
Entretanto, sempre deu cobertura e recebeu muitas pessoas
do partido em sua casa, que se constituía como base de encontros e na qual muitas
reuniões do partido eram feitas. Foi nesse período que o jovem Câmara Ferreira,
estudante de engenharia, começou a freqüentar a residência de Fosco e criou laços de
211
PENNA, op. cit, p. 126.
212
Conforme depoimento de Maria do Carmo, em maio de 2003, em São Paulo.
92
amizade que duraram toda a vida, a ponto de ser tratado como membro da família,
onde recebeu o apelido carinhoso de Caquino.
Maria do Carmo (Carmita)
213
, a nora de Fosco, reforça essa relação de Câmara
Ferreira com a família Mazzoncini:
“o Joaquim foi bem da família Mazzoncini desde moço. Ele gostava muito do
meu sogro , da minha sogra e da minha cunhada também. Eles tinham muita
amizade. Então, ele sempre foi uma pessoa que se considerou da família.
Então, quando ele, na época mais perigosa, quando ele tinha que fugir, ele
teve liberdade na casa do meu sog
ro de se esconder.”
214
Maria do Carmo, em seu depoimento, disse que seu sogro foi um dos mentores
políticos de Joaquim Câmara Ferreira, enfatizando que: “Eu me lembro que a relação
do Joaquim com meu sogro era uma relação bem próxima, e o Joaquim levava d
úvidas
lá. Ficava ele e meu sogro discutindo os problemas do partido.”
215
Outras palavras de
Maria do Carmo reforçam a relação entre Fosco Mazzoncini e Câmara Ferreira, no
tocante a discussões políticas que os dois faziam e que provavelmente se referissem a
questões do PCB. Ela relatou que:
“muitos assuntos eles não comentaram comigo nem com a minha sogra
porque normalmente essas coisas o Câmara era muito reservado e chegava lá
em casa e ia para aquele quarto do fundo conversar com o seu Fosco.
quando a coisa era mais sem importância que eles discutiam ali no soda
sala. Mas quando as coisas eram assim, coisas que o Câmara queria a
opinião o meu sogro, relatar, o que seja, eles conversavam muito
reservadamente. O Câmara sempre foi muito cuidadoso. Ele não queria
envolver mais pessoas.”
216
Além dessa amizade mais próxima e confidente entre os dois, outro fato
aparentemente corriqueiro também demonstra a dimensão desta relação. Maria do
213
Maria do Carmo (Carmita) era casada com o filho de Fosco Mazzoncini (Mauro). Foi muito amiga de Joaquim
Câmara Ferreira.
214
Maria do Carmo, depoimento.
215
Maria do Carmo, depoimento.
216
Idem.
93
Carmo se lembra de que: “quando nasceu aquela filha do Prestes, a Zóia... o dia em
que ela nasceu ... o Câmara foi levar a notícia pro meu sogro que tinha nascido essa
filha do Prestes.”
217
Câmara Ferreira dormia muitas vezes na casa de Fosco, aonde chegava por volta
das seis horas da tarde e saía muito cedo, sem que ninguém percebesse, pois não
queria comprometer as pessoas e nem deixá
-
las em má situação.”
218
Além de Fosco Mazzoncini, outro homem que também teve influência na militância
política de Câmara Ferreira foi Adolfo Roitman, que era
“um marxista de Santos, autodidata, ligado ao PCB e que havia sido preso na
Ilha Grande durante alguns meses, juntamente com outros comunistas, no
começo do governo Vargas. Adolfo Roitman conheceu Câmara Ferreira no
bonde Vila Mariana Ponte Grande, quando este estava indo para a
Pol
itécnica. Roitman estava lendo um livro de Lênin. Ao seu lado, o estudante
Câmara, curioso, tomou conhecimento do título, puxou conversa e disse que
se interessava pelo marxismo.”
219
Ambos acertaram novos encontros e, em um destes, Câmara Ferreira foi
ap
resentado a Noé Gertel, a quem Roitman já levava a se interessar pelo partido
quando ia à casa de Gertel, levando livros e doutrinando
-
o.
A partir daí, Câmara iniciou um trabalho de recrutamento em sua faculdade,
trazendo Mário Schemberg e o Milani
220
, e, juntamente com Noé Gertel, Adolfo
Roitman e o Carlos Prado, fundou o primeiro núcleo paulistano do chamado Socorro
Vermelho Internacional, que era uma organização de caráter internacional que tinha por
finalidade operar pela solidariedade aos presos polí
ticos.
217
Idem.
218
Idem.
219
Noé Gertel, depoimento.
220
Ibid.
94
O prontuário do D.E.S.P.S de Joaquim Câmara Ferreira, datado de 09 de maio de
1940, reforça a participação política deste com o Socorro Vermelho Internacional e o
Partido. Nas declarações que supostamente teriam sido dadas pelo próprio Câmara
Ferrei
ra, diz
-
se o seguinte:
“ingressou no partido Comunista do Brasil em mil novecentos e trinta e três
tendo antes disso, em mil novecentos e trinta e dois, trabalhado no Socorro
Vermelho do Brasil; que seu ingresso não foi reconhecido formalmente por
nenhum
órgão do partido, e sim pela atividade prática desenvolvida; que em
mil novecentos e trinta e três integrava a comissão especial da região de São
Paulo, e mais tarde, no ano seguinte, passou a pertencer ao Comitê Regional
daquele estado.”
221
Noé Gertel disse que na primeira reunião apareceu um camarada chamado
Lobo
222
, e a pré-condição para entrar no Socorro era aceitar o princípio da luta de
classes. Para ser um militante, participava-se das medidas que visavam apoiar os
presos políticos no mundo inteiro. Além destes (Câmara Ferreira, Mário
Schemberg,Milani, Noé Gertel, Adolfo Roitman e o Carlos Prado), pertencia ao núcleo
Victor Garcia, que era um militante profissional que organizava o trabalho do Socorro
Vermelho, com a distribuição de material, manifestos, volantes. Victor Garcia foi, mais
tarde, deportado para a Espanha, onde, segundo Noé Gertel, teria sido fuzilado pela
ditadura de Franco.
Victor Garcia foi o protagonista, em 1934, de um episódio envolvendo Joaquim
Câmara Ferreira e Sara Mello. Victor havia sido preso, e Joaquim Câmara Ferreira
pediu que Sara Mello fosse com ele ao apartamento (aparelho) onde Victor havia
morado para fazer uma faxina, pois, segundo Sara Mello, havia uma determinação no
221
D.E.S.P.S. Prontuário 33807 termo de declaração de Joaquim Câmara Ferreira. Arquivo Público do Rio de
Janeiro.
222
Lobo
segundo Noé Gertel, seria um representante do Boreal sul americano da Internacional Comunista, sediado
à época em Montevidéu.
95
Partido para que o militante preso não fornecesse o endereço nas primeiras vinte
quatro horas, que era o tempo necessário para que o aparelho fosse limpo e não caísse
nenhum documento nas mãos da repressão. Após a limpeza do aparelho, onde foram
queimados os documentos, Câmara Ferreira pediu a Sara que fosse ao presídio,
recomendando que “agora você vai ao presídio amanhã. Arranje um jeito de entrar e
diga ao Victor Garcia que o quarto está limpo, quer dizer, se ele tiver que apanhar e dar
o endereço, pode da.”
223
Sara Mello foi e deu uma desculpa de que iria visitar um
namorado que estava preso. Avisou o Victor Garcia, que lhe pediu que fosse ao
corredor ao lado, pois havia duas companheiras presas que talvez precisassem de
algo. Foram-lhe lhe dados alguns números de telefones, mas, ao sair, Sara Mello foi
pr
esa, pois os carcereiros estranharam o fato de ela conhecer muitas pessoas que
estavam presas ali.
A fundação de um grupo de Socorro Vermelho não foi aleatória, pois, no 3
o
congresso do PCB, realizado entre o final de 1928 e início de 1929, havia, na pauta de
debate, a questão do Socorro Vermelho e a continuidade das táticas necessárias para a
construção da revolução no Brasil. Havia a opção pela linha revolucionária, que era
entendida
“como a inevitabilidade da terceira revolta”, (as duas anteriores eram
pequeno burguesas‘ de 1922 e 1924, que culminaram na coluna Prestes), pautada pela
presença da classe operária liderada pelo Partido Comunista.”
224
Dentro do trabalho do Socorro Vermelho formado pelo grupo, várias tarefas foram
realizadas, como “fazer finanças” para os presos políticos e distribuir material
denunciando ilegalidades e a situação dos presos políticos. Além disso, “o Socorro
223
Sara Mello, depoimento.
224
VINHAS, Moisés.
O Partidão: A luta por um partido de massas (1922
-
1974).
São Paulo: HUCITEC, 1982, p.
12.
96
desenvolvia uma campanha internacional em favor de sete negros, vitimas de um
processo injusto nos E.U.A (processo Southb
orough).”
225
No final de 1931 e começo 1932, São Paulo vivia um clima político, pelo menos
nos meios estudantis, antigetulista, e a oligarquia tomava posições golpistas. A
oligarquia paulista estava insatisfeita com a Revolução de 30, pois ela limitara os seus
interesses. Neste momento, o PCB defendia a palavra de ordem de revolução operária
camponesa, ou seja, o PCB avaliava que existia uma situação revolucionária e buscava
preparar a revolução. Acreditava-se que existia o amadurecimento revolucionário e que
o partido deveria preparar a revolução através da insurreição das massas trabalhadoras
e, por isso, O PCB não demonstrava a menor sensibilidade pela luta de variados
setores oposicionistas contra o regime arbitrário de Vargas e a favor da
reconstituci
onalização do país. Quando eclodiu a Revolta Constitucionalista de 1932,
em São Paulo, o PCB ficou à margem do processo, pois analisava ser uma luta de
posições imperialistas anglo-americanos nas quais os ingleses eram representados
pelos paulistas e os am
ericanos pelo governo Vargas.
De acordo com Marly de Almeida Gomes Vianna,
“o partido tinha razão ao afirmar que o povo estava sendo iludido, levado a
acreditar que a constituinte resolveria todos os seus problemas; mas, por outro
lado, não percebeu a importância de uma luta nacional pela legalidade
constitucional. E como o tinha expressão política para propor qualquer
alternativa que tivesse um mínimo de repercussão social, limitou-se a lançar
palavras de ordem de luta pela revolução operário-
camponesa
que
evidentemente não encontraram eco em nenhum setor.”
226
Essa posição foi tomada por Joaquim Câmara Ferreira, que militava no PCB.
Edwirges Ferreira Cardieri assinala esse episódio dizendo que
225
Noé Gertel, depoimento.
226
VIANNA, op. cit., p. 57.
97
“o seu fato marcante da época foi o de recusar-
se a par
ticipar da revolução de
1932, por ela não apresentar fundamento marxista. Uma época em que toda
sua família e seus colegas mais próximo, se alistavam como soldados
voluntários.”
227
Leonora Cardieri Ferreira também analisou esta postura assumida por Joaquim
Câmara Ferreira, destacando que
“em 1932, compreendendo as razões verdadeiras da Revolução Paulista,
não quis fazer parte dos batalhões ‘pó de arroz‘, de estudantes, que se
opunham a Getúlio. Por essa razão, os paulistas quatrocentões de Jaboticabal
e São Paulo, o acharam a ele e a seu irmão impatriotas.”
228
.
Com o movimento constitucionalista de 1932, as cadeias ficaram repletas e a
reação contra o movimento comunista em São Paulo foi muito violenta.
Ocorreram
inúmeras prisões, entre as quais a de Alexandre Weinstein (editor ligado ao PCB), a de
Pompeu Lacerda (tio de Carlos Lacerda).”
229
Quem não apoiava a direita no seu
levante contra Getúlio era suspeito.
Nesse momento, o trabalho do Socorro vermelho consistia, além do apoio aos
presos políticos, em se fazer bandeiras que eram penduradas na fiação (estas
bandeiras vermelhas eram confeccionadas pelo Carlos Prado, que era artista plástico),
e a palavra de ordem da época era: “contra a guerra imperialista, em defesa da URSS.”
230
Pouco tempo depois desse
episódio, a direção da Juventude Comunista que ficava
no Rio de Janeiro, mudou para São Paulo, e Maurício Grabois, tornou-se um de seus
dirigentes. Esta postura do PCB seguia resoluções do Congresso, que diziam
227
Edwirges Ferreira Cardieri, depoimento.
228
Leonora Cardieri, diário.
229
Noé Gertel, depoimento.
230
Ibid.
98
respeito “ao maior apoio a Juventude Comunista, que havia sido fundada em 1927 e
que editava o jornal ‘O Jovem Proletário’; chamavam a atenção sobre o PCB em São
Paulo, onde permanecia fraco (...).”
231
Foi nesse período que o PCB, por intermédio do
militante profissional Arlindo Pinheiro, o Pinho
232
, secretário nacional da Juventude,
transformou o grupo do Socorro Vermelho em uma célula da Federação da Juventude
Comunista do Brasil (FJC
233
). Tal posição do Partido mostrava a importância que o
trabalho em São Paulo havia adquirido.
Muitos jovens estudantes se incorporaram ao grupo, entre os quais Sara Mello,
Valdemar Zumbano, José Stacchini, Arnaldo Pedroso d’Horta, Raquel (mais tarde se
tornou esposa de Noé Gertel), Eduardo Maffei, além de outros que já vinham do
Socorro Vermelho, citados anteriormente. O futuro dirigente comunista Câmara
Ferreira, segundo Gertel, destacou-se nesse grupo pelo profundo senso de
responsabilidade política e orgânica, e pela dedicação que devotava a FJC.
O então jovem Eduardo Maffei, estudante de medicina, relatou como se deu sua
cooptação para militância nesse grupo:
“Fui recrutado para militar na esquerda num dos primeiros anos trinta. Um
certo sergipano, Menezes de nome, sargento do exército, ministrava exercício
aos Tiros de Guerra 47 e 48, respectivamente para a
cadêmicos de medicina e
engenharia, num salão da rua Barão de Tatuí, em São Paulo. Era num tempo
de agudo choque entre as forças imperialistas americanas e inglesas e, entre
nós, tentava-se criar um ambiente contra a Argentina, país em que prevalecia
o capital inglês, enquanto o ianque se achava aqui em penetração. Ele, então,
numa das aulas, perguntou-me: ‘no caso de uma guerra entre o Brasil e
Argentina, o que faria você?’ Procurei demonstrar era um jovem de 20 anos
que não devíamos pautar nossa vida à base de hipóteses e muito menos a
231
SEGATTO, op. cit., p. 37.
232
Segundo Noé Gertel, Arlindo havia sido cabo do exército, expulso. Militava no Rio de Janeiro, no Sindicato dos
Comerciários, onde desfrutava de grande prestígio. Era excelente militante, dos melhores mitingueiros (alguém que
fazia comícios e agitava as massas).
233
Segundo Murillo Mello naquele tempo só com 24 anos de idade é que se passava para o Partido e o setor juvenil
funcionava dentro do Partido e Câmara Ferreira militava no setor juvenil.
99
das nações. Ele, entretanto, insistiu na pergunta. Não tive dúvidas. Disse-
lhe
que tal guerra era do interesse de ingleses e americanos, e que os brasileiros
não deveriam apresentar-se para tal contenda. Fui expulso do Tiro de Guerra.
Quando me retirava, um estudante de engenharia disse-me: ‘espere fora.
Preciso falar com você’. Chamava-se Joaquim Câmara Ferreira. Foi em vida
um puro.”
234
Sara Mello relata o trabalho realizado pela Juventude Comunista nesse período:
“naquela época misturavam-se tarefa de partido e tarefa de estudante. Era a
mesma coisa. Primeiro porque tinha muito pouco estudante e depois que o
estudante não fazia trabalho político dentro da faculdade ou dentro da escola.
Nosso trabalho era mais de organização, de difusão das nossas idéias, de
pichar parede, pendurar bandeira em poste, sabe, ir para porta de fábrica.
Distribuir a Classe Operária: era essa nossa tarefa.”
235
Gertel reforça essa posição ao descrever que o trabalho se baseava na
distribu
ição de manifestos de denúncia, cartazes e comícios relâmpagos nas portas
das fábricas. Este grupo estudantil foi muito ativo, a ponto de começar a editar um
jornal chamado “Vanguarda Estudantil”.
Câmara Ferreira se tornou muito importante para o jornal e, segundo Gertel, foi
neste trabalho que se revelou o seu talento jornalístico, pois
“estudava muito. Entre nós, era quem mais entendia da economia cafeeira.
Conhecia os interesses, os grupos, ligação com os bancos, o papel no
comércio exterior. Eu, por exemplo, não me preocupava de entender o papel
da economia cafeeira na relação de forças, mas o Câmara fez essa ligação
política com grande sucesso. Nascia nele o quadro, o homem do partido.”
236
O mesmo Gertel enfatiza que, nessa época, uma das preocupações do partido
estava na formação dos militantes enquanto quadros. A política de quadros consistia
em formar militantes que pudessem ser profissionais capazes, elementos que
234
MAFFEI, Eduardo.
A Batalha da Praça da Sé.
Rio de Janeiro: Philobiblion, 1984, p. 41.
235
S
ara Mello, depoimento.
236
Noé Gertel, depoimento.
100
pudessem ser enviados para qualquer lugar e, ali, organizar a vida do partido. De
a
cordo com as suas palavras
“Joaquim Câmara Ferreira tinha esse perfil. Era um homem com grande
capacidade de organizador. Era um jovem generoso, de mente aberta e,
sobretudo, muito educado. Este traço não combinava bem com um partido
obreirista, com era então o nosso. A juventude era também sectária e
obreirista. Essa educação do Câmara, típica da pequena burguesia
paulistana, contrastava: ‘o senhor’ ... ‘a senhora’ ... conservou-se nele a vida
inteira. Foi até aprimorando.”
237
Os núcleos estudantis estavam ligados a uma Federação Vermelha de
Estudantes
238
, que por sua vez pertencia à Federação Estudantil Internacional. Isto
dificultava o conhecimento específico da realidade. Em decorrência, na prática da
agitação, era necessário buscar soluções próprias. Gertel enfatiza como esse trabalho
se realizava:
“recordo
-me que em 1932, após algumas prisões, o delegado Costa Ferreira,
do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), declarou na imprensa
que o comunismo fôra liquidado em São Paulo. Pensamos então em panfletar
o centro, usando a altura do edifício Martinelli. Como sair, no entanto, de lá, a
tempo? Tínhamos que encontrar um dispositivo de tempo que nos permitisse
abrir o pacote de panfletos, quando estivéssemos fora do prédio. O Milani
bolo
u um pavio de tempo, fazendo os cálculos com cuidado. Colocamos um
recado para o delegado: acabou nada, seu boboca!”
239
Em 31 e 32, o PCB se colocou numa posição contrária a Constituinte e lançou um
documento contra o que eles chamariam a “Constituinte
dos ricos.”
Porém, em 1933, com a ascensão de Hitler ao poder na Alemanha, a Internacional
Comunista, através da revisão de sua linha política, passou a adotar, de forma ainda
hesitante, a tática de
Front Populaire
240
: a aliança entre comunistas, os social
istas e os
237
Noé Gertel, depoimento.
238
Ibid.
239
Ibid.
240
KONDER, Leandro.
A Democracia e os Comunistas no Brasil.
Rio de Janeiro: Graal, 1980, p. 44.
101
liberais burgueses contra o Fascismo. Essa linha, aplicada ao Brasil, deveria levar a
criação de uma ampla coligação de forças capazes de se opor ao perigo fascista, isto
é, ao Integralismo, representação do Fascismo no Brasil cujo principal expoente foi
Plínio Salgado. Nesse aspecto, os comunistas se organizaram com a publicação de
jornais, revistas, livros e panfletos.
O grupo da Juventude Comunista, em São Paulo, também se organizou e no
segundo semestre de 1933, foi criado o “Comitê de Luta contra a Reação, o Fascismo
e a Guerra Imperialista, que ficou mais conhecido por ‘Comitê Antiguerreiro’, e teve
como fundadores Oswaldo Costa e Joaquim Câmara Ferreira.”
241
Esse comitê referia-
se ao chamado movimento de Amsterdam
Pleyel
, produto de duas conferências de
intelectuais antifascistas realizadas respectivamente em junho de 1932, em
Amsterdam
(Holanda), e agosto de 1933, em
Pleyel
(França), com uma ampla direção da qual fazia
parte, entre outros, três grandes intelectuais internacionalmente famosos: Máximo
Gorki,
Romain
Rolland e Henri Barbusse
.
Esse comitê Antiguerreiro desdobrava-se em vários setores, o “militar, o
estudantil, o sindical e o de mulheres, que procuravam aglutinar o movimento de massa
sob controle do PCB numa frente única pela ba
se, numa frente única de luta.”
242
De acordo com Eduardo Maffei, o grupo se reuniu numa tarde, num modesto
quarto, numa casa de vila da rua Rodolfo Miranda, na Ponte Pequena, na residência de
Sebastião Francisco, então secretário Regional do PCB. Estavam nessa reunião
Câmara Ferreira, Eduardo Maffei, Cristovam Pinto Ferraz, Noé Gertel, Higino Milani,
Miguel Costa Júnior, Sara Mello e outros, e, após uma explanação de Câmara Ferreira
241
DEL ROIO, Marcos. A Classe Operária na Revolução Burguesa A política de alianças do PCB: 1928
1935.
Belo Horizonte: Oficina de Livros, 1990, p. 237.
242
Ibid., p. 237.
102
e do Jornalista Oswaldo Costa, “fundaram o Comitê Estudantil de Luta contra o
Fascismo, a Reação e as Guerras Imperialistas, estabelecendo contato com o centro
dirigente mundial, recebendo, em resposta, uma carta de incentivo, assinada por Henri
Barbusse.”
243
Joaquim Câmara Ferreira teve papel bastante destacado nessa luta contra o
Integralismo em São Paulo, que culminou com a famosa Batalha da Praça da Sé
244
, no
dia 07 de outubro de 1934, onde dez mil camisas verdes (como os integralistas eram
chamados), foram postos em fuga pela união das forças democráticas.
Num desses episódios, Maffei se recorda de Dom Nicolau Flue Gutt, um alemão
que se tornara apóstolo do integralismo. Por sua influência, o Largo de São Bento,
onde existia o colégio, tornou um ponto de concentração dos integralistas. Numa tarde
de domingo, iam passando pela praça Eduardo Maffei, Câmara Ferreira e Sebastião
Francisco, quando surgiu um grupo de encamisados sob o comando de Plínio Salgado.
Segundo Maffei, quando eles avistaram o grupo, “Câmara Ferreira a muito custo foi,
por nós dois, contido. Queria, sozinho
, enfrentá
-
los.”
245
Em 1933, Murillo Mello, que antes morava no Rio de Janeiro, mudou
-
se a pedido
do PCB, para São Paulo, indo morar nessa época com Joaquim Câmara Ferreira,
numa pensão na rua Silveira Martins. Alguns meses depois, Antônio Maciel Bonfim
(Mi
randa), secretário geral do partido, esteve em São Paulo e disse a Murilo Mello:
“eu procuro você porque eu o conheço e acho que você pode me ajudar (...).
O Secretariado Nacional precisa de um companheiro com qualidades
excepcionais. Dedicação ao partido. Que coloque o partido acima de seus
243
MAFFEI, op. cit., p. 43.
244
Batalha da Praça da No dia 7 de outubro de 1934, na Praça da Sé, em São Paulo, ocorreu um grande
confronto entre os
integralistas de Plínio Salgado (versão do fascismo no Brasil) e uma união de forças democráticas,
entre as quais, o PCB. Na batalha terminou com muitas vítimas, inclusive, fatal.
245
MAFFEI, op. cit., p. 60.
103
interesses pessoais. Camarada muito equilibrado, que o fale demais, para
uma missão muito séria. E eu quero que você me ajude porque eu não
conheço mingúem aqui em São Paulo. Eu pensei, pensei e somente no dia
se
guinte, quando voltei respondi: tem um camarada aqui em São Paulo.
Um único. Joaquim Câmara Ferreira (...). Não vacilou. O partido precisou dele
e ele foi. E coube a mim essa tarefa de ter dado a ele um sentido maior, uma
responsabilidade maior no movim
ento partidário.”
246
De acordo com Murillo Mello:
“o Câmara era sereno, não era demagogo, não fazia esse discurso, esse
excesso de entusiasmo, mas ele era convicto perfeitamente e fiel ao partido.
Agora, era pessoalmente muito agradável, modesto. Ele tratava todo mundo
bem. Agora, era um camarada capaz das tarefas mais sérias (...). Muito
decidido e muito capaz de grandes ações.”
247
Assim sendo, no final de 1933, Câmara Ferreira foi mandado ao Rio de Janeiro,
para uma missão de extrema importância para o partido. Murillo e Sara acreditam que,
nesse período, Joaquim Câmara Ferreira foi para o Rio para fazer ligações com o setor
militar do partido (Antimil), devido aos requisitos exigidos para a tarefa, e ao fato de o
próprio secretário Geral ter ido pessoalmente a São Paulo requisitar o militante. O
prontuário de Joaquim Câmara Ferreira, na policia civil do Distrito Federal relata que de
dezembro de 1933 até agosto ou setembro de 1934, ele participou de uma comissão
especial
248
, porém não faz referência ao que seria essa comissão. Entretanto, nas
conclusões tiradas pela investigação feita pela policia civil do Distrito Federal através
da D.E.S.P.S, consta o seguinte: “ultimamente, com a prisão de Argeu (Almir de
Oliveira Neves), o declarante (Joaquim Câmara Fer
reira) foi incumbido do setor militar.”
249
Também consta no mesmo prontuário o seguinte: “membro do Bureau Político e
246
Murillo Mello, depoimento.
247
Idem.
248
D.E.S.P.S
.
Prontuário 33807, p.4
Arquivo Público do Rio de Janeiro.
249
Ibid., p.10.
104
encarregado do setor militar. Fez diversas viagens pelo interior e litoral do país, como
elemento que levava a palavra de ordem aos Comitês
Regionais (CC. RR.).”
250
No final de 1934, Câmara Ferreira estava atuando novamente em São Paulo.
Noé Gertel diz que, “a partir do ano de 1934 1935, passou a atuar fora dos limites
estudantis, organizando o partido em vários setores.”
251
Na composição do Comitê Regional (CR) de São Paulo, em 1934, aparecia o
nome de Câmara Ferreira como membro. Segundo Marcos Del Roio
“o CR de São Paulo era formado pelo decorador de paredes Sebastião
Francisco (Castro) como secretário regional, Antônio Fiesk (Salles) como
secretário de organização, Hermínio Sacchetta (Leônidas) como secretário
agit
-prop’, pelo acadêmico de medicina Hílio Lacerda Manna (Luís)
responsável pelas finanças, e pelo encanador Giacobo Tolusso, responsável
sindical, mais o estudante de engenharia Joaquim Câmara Ferreira (Jurandir)
e Leonor Petrarca. A FJC era dirigida por José Stacchini, Arnaldo Pedroso
d’Horta e Noé Gertel; a comissão antimil era dirigida por João Raimondi e dela
faziam parte Davino Francisco dos santos e Euclides Krebs, um dos
estrategistas da Batalha da Praça da Sé.”
252
De acordo com Maffei, nesse período, Joaquim Câmara Ferreira era responsável
pelas finanças do partido em São Paulo, mas que nessa função não demonstrava
grandes habilidades. O mesmo destaca que
“Joaqui
m Câmara Ferreira, cognominado Jurandir, havia sido estudante de
engenharia na Escola Politécnica. Recrutado para dirigir as finanças, foi
democraticamente destituído, em virtude do seu fracasso financeiro. Ele não
sabia e não o conseguia
puro como era
pedir dinheiro. Todas as vezes que
o tentava fazê-
lo
participei com ele de algumas empreitadas ficava
vermelho como um pimentão de envergonhado. Deixara de cursar a
Politécnica e se transformou, no Comitê Regional, numa espécie de ministro
sem pasta, pau para toda obra, menos finanças. Certa feita alguém quis
reconduzí
-lo a responsável pelas finanças. Houve protestos, pois um dos
companheiros exclamou: ‘Agora sim; vamos passar fome!’.”
253
250
Ibid.
251
Noé Gertel, depoimento.
252
DEL ROIO, op. cit., p. 243.
253
MAFFEI, op. cit., p. 61.
105
O ano de 1934 foi de intensa mobilização, especialmente depois da decisão de
organizar a frente única contra o Integralismo, tendo como objetivo as bases das
grandes empresas, o que levou a um sacrifício geral, pois todos tomaram consciência
de suas tarefas e trabalharam como se fossem laboriosas formigas do formigue
iro
político.”
254
Nesse período, o PCB resolveu participar das eleições, mas não conseguiu
registro eleitoral. O pretexto utilizado pelo Tribunal era de que o PCB era um partido
internacionalista e representava perigo para a segurança nacional. O partido p
articipou
através de outras legendas, mas elegeu Antônio Cordeiro, em Pernambuco, que se
elegeu por uma legenda mais ampla porque tinha prestígio pessoal. O partido se
dispunha a lutar nas eleições de 1934 porque analisava a tribuna parlamentar como
mer
o instrumento para a denuncia, pois na prática continuava preparando a insurreição
por pão, terra e liberdade. Em julho deste ano, ocorreu a Conferência Nacional do
PCB
255
. Nesta Conferência, a tática do PCB continuou a mesma de outubro de 29, ou
seja, não ampliar alianças que estavam acontecendo. Havia mobilização de setores
como os militares, estudantes e mulheres contra o Integralismo e a ascensão do
Fascismo mundial. Várias bandeiras estavam sendo levantadas, mas a direção do PCB
ignorou e manteve a postura de 29. É claro que não se pode confundir a atividade
prática de militantes (unidade com outros setores) com as determinações do partido
que permaneciam as mesmas. Muitas vezes, a prática se sobrepunha as
determinações partidárias.
254
Ibid., p. 63.
255
A Conferência é uma instância intermediária entre o Congresso e o Co
mitê Central que é a instituição máxima do
partido.
106
Nesse momento, os ferroviários da São Paulo Railway, mais tarde Santos
Jundiaí eram liderados por Hidelberto Martins de Queiroz (comunista), e o
“responsável
entre os ferroviários, por decisão do CR, era Câmara Ferreira como dialogador , que
sempre era acompanhado por Sebastião Francisco. Aliás, eram quase inseparáveis.”
256
A atuação de Câmara Ferreira entre os ferroviários é reforçada por documento
da D.E.S.P.S, no qual o próprio militante diz que, “por intermédio da célula a que
pertencia, participava da luta sindical do
s ferroviários em 34
35.”
257
Segundo Eduardo Maffei, foi um período de intensas manifestações, com
dezenas de comícios em portas de fábrica, o que exigia trabalho árduo e perigoso, pois
o governador era Armando de Salles Oliveira, cuja polícia exercia repressão severa ao
movimento. Para despistar a polícia, era necessário misturar material neutro com
aqueles de cunho mais perigoso, caso houvesse batidas policiais.
Dentre os agrupamentos da frente de combate ao Integralismo, pelo número de
militantes
e sua eficiente ação, em primeiro lugar, situavam
-
se os comunistas
“com todos os organismos paralelos, que a polícia e os jornais da reação
chamavam de fantasmas. E assim em rodízio compareceram Joaquim Câmara
Ferreira, Hermínio Sacchetta, Arnaldo Pedroso d’Horta, Noé Gertel, Miguel
Costa Júnior, Igyno Ortega, Francisco Cordeiro, Leonor Petrarca, eu (Maffei),
Luisinha, Eneida de Morais Costa, pelo C.C.”
258
Em São Paulo, o movimento culminou com a Batalha da Praça da Sé, em 7 de
outubro de 1934, um domingo. A ação Integralista Brasileira (AIB), de cunho fascista,
havia programado uma grande manifestação com dez mil militantes para essa data, na
256
MAFFEI, op. cit, p. 63.
257
D.E.S.P.S., op. cit., p.4.
258
MAFFEI, op. cit., p. 76.
107
praça da Sé, “para, durante o comício, jurar fidelidade ao Chefe Nacional da nação,
Plínio Salgado.”
259
Os Integralistas lançaram o desafio, e os antifascistas o aceitaram,
preparando
-se muito antes para São Paulo servir de exemplo aos antifascistas
brasileiros.
Para cumprir o objetivo de impedir a ocupação das ruas pelo integralismo,
escolheram
-se duas comissões: uma civil, para mobilização popular, e outra militar,
para traçar o programa de luta. Para a comissão militar, que se postou na esquina da
rua Direita, foram designados 40 bons e valentes atiradores, entre os quais Câmara
Ferreira. O objetivo traçado era visar Plínio Salgado, que, segundo Maffei nas reuniões
preparatórias feitas na Federação Operária, se havia decidido matá-lo. O trajeto do
desfile anunciado pelos integralistas era: Brigadeiro Luiz Antônio, Largo São Francisco,
Ruas São Bento e Direita. Os 40 atiradores deveriam destruir fisicamente os cabeças,
mas os integralistas mudaram o percurso. Porém, o fato não impediu o confronto na
Praça, onde “durante quatro horas houve cerrado tiroteio, com a expulsão dos
integralistas deixando baixas de trinta
e quatro feridos e seis mortos.”
260
Foi desse conjunto de forças reunidas contra o Integralismo, que em março de
1935, foi, de fato, lançada no Rio a Aliança Nacional Libertadora (ANL), quando Prestes
foi escolhido para presidência de honra da entidade. A direção do PCB não estava
ligada diretamente na criação da ANL, porém, a realidade levou os militantes a
participarem do movimento, ou seja, havia um certo descompasso da direção do PCB e
a prática que empurrava os comunistas para as alianças com outras fo
rças sociais.
259
Ibid., p. 53.
260
MAFFEI, op. cit., p. 98.
108
O documento da Delegacia de Ordem Política e social no qual trata dos
antecedentes de Alberto (um dos codinomes de Joaquim Câmara Ferreira no PCB),
falam da participação do mesmo na ANL, enfatizando que: “Alberto é autor de uma
carta, manuscrita , enviada a Ramon Prieto, na qual censura este e marca ‘ponto de
encontro’ . Assinou a referida missiva pelo Diretório Estadual da ANL.”
261
A ANL, ao desenvolver suas atividades, deveria teoricamente ampliar o espírito
das forças antifascistas, porém, hegemonizada pelos comunistas, ela se revelou um
instrumento insuficiente na mobilização das massas e uma base estreita para alianças
com as correntes liberais burguesas. No Manifesto sobre a ANL e a situação nacional,
lançada por Prestes em 05 de julho d
e 1935, dizia
-
se que
“para a ANL precisam vir todas as pessoas, grupos, correntes, organizações e
mesmo partidos políticos, quaisquer que sejam seus programas, sob a única
condição de que queiram realmente lutar contra a implantação do Fascismo no
Bras
il, contra o Imperialismo e o Feudalismo, pelos direitos democráticos.”
262
Posteriormente, Prestes vai atacar o governo Vargas e assumir uma posição
revolucionária, dizendo
“que a situação é de guerra e cada um precisa ocupar o seu posto. Cabe à
iniciat
iva das próprias massas organizar a defesa de suas reuniões, garantir a
vida de seus feches e preparar-se ativamente para o momento do assalto. A
idéia do assalto amadurece na consciência das grandes massas.”
263
Segundo Leandro Konder, Getúlio Vargas se aproveitou com habilidade do
choque entre os comunistas e os integralistas, explorou a apreensão dos chefes
militares e das classes conservadoras e articulou o seu fortalecimento no poder. Em
261
D.E.S.P.S, op. cit., p.6.
262
CARONE, Edgard.
O PCB. 1922
1943
, op. cit., p
. 177.
263
Ibid., p. 177.
109
julho de 1935, apoiado na Lei de Segurança Nacional (LSN) recém adotada, fechou a
ANL. De acordo com Anita Prestes, iniciou-se uma repressão violenta por parte do
governo contra os participantes da ANL, que ocasionaram o afastamento de muitos
elementos. permaneciam dispostos a lutar pelos objetivos traçados os mai
s
conscientes e desprendidos, os mais destemidos e conseqüente, ou seja, na prática,
foram os comunistas que acabaram conquistando o controle da entidade. Detentores de
um grande trunfo político (o nome de Luís Carlos Prestes), os comunistas, levados
pelas
circunstâncias do momento, assumiram, na prática, a liderança da ANL.
Ainda de acordo com Anita Prestes, antes do fechamento da ANL, os
comunistas já adotavam posições de crescente radicalismo e após 11 de julho de 1935,
os apelos à luta armada e a insurreição se tornariam freqüentes. O PCB continuava
insistindo na existência de uma situação revolucionária e na necessidade de
desencadear tanto lutas grevistas como lutas armadas e guerrilhas. Contudo,
ressaltava
-se como tarefa primordial , a união com as massas e a necessidade de se
evitar o golpismo, ou seja, se pretendia tomar o governo não por um golpe militar, mas
através das lutas de massa que iriam até a insurreição. Sendo assim, as diretrizes do
PCB e da ANL (sob influência do PCB), pretendiam lutas armadas parciais que
deveriam permitir as massas populares chegarem a insurreição nacional que derrubaria
o governo Vargas e implantaria o Governo Popular Nacional Revolucionário (GPNR)
com Prestes a frente. É bom salientarmos que não se trata da implantação do
comunismo no Brasil, o que derruba as teses difundidas pela direita de Intentona
Comunista”, ou seja, de que os levantes de 35 teriam este objetivo.
A postura do PCB de condenar o golpismo e preparar as massas para a
insurreição e a tomada do poder, foi apoiada e defendida pelo Secretariado Sul-
110
americano (ou Bureau) da IC que pensava na data para a insurreição para o final do
ano de 35, ou mais tardar, no início de 1936.
A orientação adotada pelo PCB (com a provação da IC) partia do pressuposto de
que o processo revolucionário teria lugar obrigatoriamente pela ação armada,
apostando numa especificidade importante, segundo sua análise, que no caso
brasileiro, os militares possuiriam fortes tradições nacionalistas, democráticas e
progressistas. Os di
rigentes do PCB argumentavam que a:
“tradição do Exército seria popular e democrática, lembrando não que os
militares proclamaram a República, como o fato de que sua educação fora
inspirada no positivismo, disto tendo ficado como remanescente o melhor: um
espírito igualitário, democratizante.”
264
E sendo assim, não haveria razão, segundo o dirigente comunista argentino
Rodolfo Ghioldi (que se encontrava no Brasil à frente do Secretariado Sul-americano da
IC, assessorando o PCB) de se criar um Exército
popular à parte.
Nos meses de outubro e novembro de 1935, o clima de insatisfação
generalizada se tornou grave no exército, pois o governo resolveu implementar com
energia, a política de redução dos efetivos militares. Havia crescente agitação nos
meios operários e se intensificava por todo país o movimento grevista. Os comunistas
concluíam que poderiam perder suas bases dentro do Exército através das expulsões
feitas pelo governo e assim, perder a possibilidade de desencadear a insurreição
armada. Deste modo, a insurreição que era prevista para o mês de dezembro de 35 ou
janeiro de 36, ocorreu no mês de novembro, devido à precipitação dos acontecimentos
no Nordeste do país. De acordo com Anita Prestes, o desencadeamento foi tomado
264
PRESTES, Anita Leocádia
.
Luiz Carlos Prestes e a Aliança Nacional Libertadora. Os caminhos da luta
antifascista no Brasil (1934/35)
.
2. ed. Petrópolis: Vozes, 1998, p.131.
111
pela direção do PCB e do Secretariado Sul-americano da IC e não por ordem de
Moscou.
O levante irrompeu no dia 23 de novembro, pelos cabos e soldados do 21º
Batalhão de Caçadores (infantaria), em Natal, Rio Grande do Norte. No dia 25, o
movimento eclodiu em Recife e Olinda, Pernambuco. E no dia 27 foi deflagrado no Rio
de Janeiro, no Regimento de Infantaria, na Praia Vermelha, e na Escola de Aviação
Militar no Campo dos Afonsos. O levante fracassou e propiciou as forças políticas
conservadoras, em torno de Getúlio Vargas, de articularem o “Plano Cohen” e a
instauração do Estado Novo, em 1937.
Com o movimento de 35, o setor civil do Partido praticamente ficou intacto, e
Joaquim Câmara Ferreira, fora o fato de ser lançado na clandestinidade, passou ileso
de prisões no período, conf
orme depoimento de Noé Gertel:
“o movimento de 35, com suas fortes características golpistas, não teve
qualquer ação de massas em São Paulo. Mesmo assim, houve uma onda de
prisões. Em todo estado, centenas de companheiros foram aprisionados. (...)
Houve
assim um recuo muito forte com essas prisões, de maneira que o ano
de 1936 foi gasto em boa parte na luta pela liberdade desses companheiros,
em atividades solidárias etc.”
265
E foi nesse ano de 1936, segundo Gertel, que Joaquim Câmara Ferreira foi
coopta
do pela Direção Nacional (Secretariado), organizada precariamente no Rio de
Janeiro, para tarefas especiais, isto é,
“articular remanescentes militantes e montar um aparelho tipográfico ou coisa
que o valesse. Foi
-
lhe conferida outra tarefa especial, pelo
então Secretariado:
Comissão Militar. Consistia em manter ligações com camaradas nossos do
exército, simpatizantes da ANL que não haviam caído na repressão pós-
35.”
266
265
Noé Gertel, depoimento.
266
Depoimento escrito de Noé Gert
el, mandado para Denise Fraenkel, em novembro de 1988.
112
Outra versão para o envio de Câmara Ferreira ao Rio em 1936 foi dado por John
W. F. Du
lles
267
. Segundo este, depois da fuga de Lauro Reginaldo da Rocha (Bangu),
Honório de Freitas Guimarães (Martins) e Eduardo Ribeiro Xavier (Abóbora) do Rio
para o Nordeste em março de 1936, e da simultânea desaparição de Adelino dos
Santos (Tampinha), o PCB não tinha mais um Secretariado Nacional efetivo. Tal
situação perdurou até o fim de 1936 ou começo de 1937, quando Bangu organizou o
Secretariado Nacional em São Paulo, com a ajuda do Comitê Regional paulista. Antes
que Bangu desse tal passo, o Comitê Regional de São Paulo, chefiado por Hermínio
Sacchetta, reconheceu haver perdido contato com o Partido na capital federal.
Ordenou, assim, que um de seus membros, Joaquim Câmara Ferreira, então com 24
anos de idade, passasse a residir no Rio a fim de ligar-
se
com o organismo superior,
isto é, com o Secretariado Nacional e, dessa forma, enviar informações a São Paulo
sobre a situação política.
No Rio de Janeiro, Joaquim Câmara Ferreira verificou que não havia nenhum
Secretariado nacional do PCB, mas deixou-se ficar na capital Federal assim mesmo,
transmitindo informes políticos a São Paulo.
O fato é que nesse período, entre 36 e 37, até sua queda em 1940, sua atividade
foi de extrema importância, “porque, graças a ele, foi possível reorganizar a Direção
Nacional, então em pedaços.”
268
Este trabalho é confirmado nos documentos da D.E.S.P.S, onde consta:
“figura destacada do Partido Comunista, faz parte do Comitê de Direção da
Região de São Paulo, viajou pelos estados do norte, fazendo ligação entre o
267
DULLES, John W. F.
O Comunismo no Brasil (1935
1945).
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 78.
268
Noé Gertel, depoimento, em novembro de 1988.
113
Secretariado Nacional e as diversas regiões ali existentes. Foi representante
do Comitê Regional de São Paulo junto ao Secretariado Nacional.”
269
O mesmo prontuário
270
afirma que Joaquim Câmara Ferreira esteve na Bahia,
Sergipe e Alagoas, onde manteve contatos com diversos militantes civis e militares do
PCB, entre eles: ex- tenente Durval Miguel de Barros (Pedro), Arruda Câmara, Lauro,
Isaac, Jordão, Gilda Greenhalf e Silveira Martins (Bahia); José de (Sergipe). Em
Alagoas, levou uma carta de apresentação para um alfaiate, cujo nome não se recorda,
na rua do Comércio. Ao regressar da última viagem ao Norte, fez contato com o Capitão
Júlio, do 2
o
Regimento de Infantaria (R.I.) da Vila Militar o qual havia sido apresentado a
Câmara
Ferreira pelo tenente Antônio Bento Monteiro Tourinho. Após isto, apresentou o
Capitão Júlio a Eduardo Ribeiro Xavier (Xavier), o qual solicitou do Capitão auxílio para
os presos, recebendo deste uma certa importância ’. Além disso, foram encontrados,
na
residência de Joaquim Câmara Ferreira quando da sua prisão em 1940, materiais
comprovantes da sua atividade e o esquema de organização militar que lhe havia sido
levado, na Bahia, pelo tenente Durval Miguel de Barros, para ser entregue ao Bureau
Político
do Rio de Janeiro.
Após a derrota da insurreição de novembro e a reorganização dos Comitês
Estaduais nos anos de 36 e 37, o PCB desenvolveu ao mesmo tempo uma campanha
de denúncias contra um possível golpe de Estado que vinha sendo articulado,
pretendendo
pôr fim às liberdades democráticas que ainda restavam. Segundo Segatto,
a posição do Partido consistia em afirmar que “Getúlio Vargas prepara a todo galope o
269
D.E.S.P.S., op. cit., p.13.
270
Ibid., p.13.
114
seu golpe fascista. (...) Com a Ação Integralista e seus aderentes do exército, começa
ele a prepa
rar novamente um golpe militar
fascista.”
271
Essa ameaça crescente de golpe leva os comunistas não a denunciá-lo como
tentar compor uma frente comum com outras forças sócias além de articular apoio a
futuros candidatos que tivessem um programa com reivindicações de caráter mais
popular e antifascista. De acordo com Anita Prestes, o problema do apoio aos
candidatos Armando de Salles Oliveira e José Américo de Almeida provocava
divergências dentro do PCB, com o surgimento de duas posições, ou seja, a posi
ção do
Secretariado Nacional (SN) era de enveredar pelo caminho de uma aproximação com
Vargas e por isso, quando o SN se transferiu da Bahia para São Paulo, em 1937, por
insistência de Bangu (Secretário do Partido), o PCB apoiaria a candidatura oficial de
José Américo, sem qualquer compromisso prévio por parte do candidato. o Comitê
Regional de São Paulo, embora se inclinasse a apoiar a candidatura de Armando de
Salles Oliveira (era tido por este Comitê como o único candidato anti-Getúlio), defendia
o prévio compromisso do candidato com uma plataforma democrática a ser discutida.
Sua posição consistia em apoiar o candidato que se comprometesse de público com
um programa que fosse baseado na “Fórmula Cascardo
272
que reivindicava: anistia,
volta à Constituição, abolição das leis terroristas, luta contra o integralismo e o
getulismo, luta contra a carestia de vida, pelo aumento do salário.”
273
O fato é que ao apoiar José Américo, Bangu e o SN não percebiam a tática de
Getúlio Vargas de se perpetuar no poder em aliança com o Integralismo e acreditava
271
A Classe Operária (São Paulo: nov. de 1936), ano XI, 198, apud SEGATTO, José Antônio. Breve História
do PCB.
2.ed. Belo Horizonte: Oficina de Livros, 1989, p. 49.
272
Conforme Anita Prestes, Hercolino Cascardo foi ex
-
tenente e presidente da ANL.
273
PRESTES
, Anita Leocádia
. Da insurreição armada (1935) à União Nacional (1938
1945). A virada tática
na política do PCB.
São Paulo: Paz e Terra, 2001.
1
15
que José Américo restabeleceria as garantias constitucionais. O SN não percebia que
Getúlio não tinha a intenção de que as eleições se realizassem e ao centrar sua tática
no combate ao Integralismo, não percebeu que Vargas se articulara com eles para a
preparação do golpe que acabaria assegurando sua permanência no poder.
De acordo com Anita Prestes, esta mudança tática do SN, chefiado por Bangu,
para posições mais à direita e o conseqüente aprofundamento das divergências da
direção nacional do PCB com o CR de São Paulo levaram a grave cisão partidária.
Bangu ficou fortalecido com a chegada de “Xavier (Abóbora), emissário da orientação
da IC, cujo apoio ao SN se tornaria ainda mais explícito devido às transmissões da
Rádio de Moscou para o Brasil, nas quais o grupo de Sacchetta era acusado de
trotskista.”
274
Tal situação ocasionou uma cisão dentro do PCB em São Paulo, da qual
Joaquim Câmara Ferreira teve novamente participação destacada. A cisão ocorrida
teve como personagens centrais, de um lado, o então
“Secretário
Geral interino do
Partido, Lauro Reginaldo da Rocha, o Bangu, e, de outro, o também membro do Bureau
Político do PCB e Secretário do Comitê Regional de São Paulo, Hermínio Sacchetta.”
275
O CR SP opunha-se ao apoio incondicional do PCB à candidatura de José
Américo de Almeida que era apoiado por Getúlio Vargas e propunha Armando de Salles
Oliveira, ex
-
governador de São Paulo.
Segundo Gertel:
274
Ibid., p.29.
275
K
AREPOVS, Dainis.
Luta Subterrânea
-
O PCB em 1937
-
1938.
São Paulo: UNESP, 2003, p. 24.
116
“Getúlio Vargas lançava a candidatura de José Américo para d
ividir a oposição
e, se possível, inviabilizar o Armando Salles. Isso, de certa forma dividiu o
partido. Organizou-se, então, uma plenária do Partido em São Paulo, para
decidir quem devíamos apoiar. O apoio do Partido em São Paulo a Armando
Salles fora instrumentalizado como uma manobra tática, para assegurar a
possibilidade de eleições. Uma candidatura burguesa assim articulada, com
forte apoio democrático no estado, contribuía para tornar possíveis as
eleições.”
276
Embora, num primeiro momento, o CR SP tenha conseguido reunir a maioria
dos comitês regionais (CR’s) do Partido em torno de suas posições, a intervenção da
Internacional reverteu a situação, e o grupo de São Paulo, ligado a Sacchetta, foi
expulso do Partido.
Conforme John Foster Dulles
277
, Sac
chetta veio ao Rio em 1937 para convencer
a liderança nacional a abandonar José Américo e a tornar-se menos burocrática e
oportunista. Ao mesmo tempo, recusou-se a voltar atrás em sua posição em duas
reuniões sucessivas do C.C. Os lideres do Rio convocaram então outro
meeting
, esse
numa casa da orla de Niterói, escondida por árvores. Joaquim Câmara Ferreira, que
recebera ordens de ir com Sacchetta e dois homens de Bangu para tal lugar, tentou
durante a viagem dissuadir Sacchetta da suas posições “trotskistas.” Sacchetta ficou
firme nos seus pontos de vista e, apesar disso, não foi liquidado. Atribuiu sua
sobrevivência à relutância de Câmara Ferreira em cumprir ordem tão drástica. Câmara
Ferreira disse ao C.C que ele e seus companheiros não tinham conseguido localizar o
ponto do encontro.
Num texto datado de 1957 e denominado “O que foi a luta fracionista de 1937.”
278
Joaquim Câmara Ferreira fez uma analise deste período da história do PCB em São
276
Noé
Gertel, depoimento, em junho de 1997.
277
DULLES, op. cit., p. 137.
278
Noticias de Hoje, São Paulo, 31 de março de 1957, p.3 apud, KAREPOVS, Dainis. Luta Subterrânea- O PCB
em 1937
-
1938.
São Paulo: UNESP, 2003, p. 26.
117
Paulo, do qual foi partícipe. De acordo com Karepovs na visão de Câmara Ferreira o
fato teria sido, simplesmente, fruto de uma conspiração.
Em sua analise, Câmara Ferreira fez a seguinte avaliação:
“As resoluções desta reunião, realizadas em agosto
279
, foram tomadas contra
o fato de alguns elementos (precisamente dos que conspiravam contra a
unidade do Partido), mas estes fizeram mil juras de submeter-se à maioria.
Estas juras se destinavam, entretanto, a adormecer a vigilância do Partido e
assegurar
-lhes as posições de que necessitavam para melhor conduzir sua
açã
o divisionista. O Certo é que, após a realização dessa reunião do Bureau
Político, acentuou-se a sabotagem à aplicação da linha do Partido e o esforço
visando desmoralização da direção. E, quando nos primeiros dias de
outubro a conspiração reacionária se preparava para liquidar com os últimos
restos de liberdade e instaurar o Estado Novo, também os fracionistas
ultimavam seus preparativos para o assalto à direção do Partido. Os dois
acontecimentos coincidiram praticamente. Enquanto o golpe de Estado
diss
olvia o Congresso e instaurava o chamado “Estado Novo”, os fracionistas,
através de uma declaração subscrita por treze elementos que ocupavam
cargos de relativa responsabilidade (inclusive Sacchetta, então membro do
Bureau Político), declaravam a falência da antiga direção e instituíam-se, eles
próprios, em direção provisória do Partido Comunista do Brasil. Ao mesmo
tempo, enviaram emissários aos Comitês Regionais, realizavam reuniões com
todas as organizações do Partido com as quais estavam em contato,
pro
curavam os amigos e simpatizantes do Partido para caluniar a direção e
apresentar
-se como “salvadores do Partido”, assaltavam a caixa do Partido,
tomavam tipografias e mimeógrafos. Através dos documentos que passaram a
espalhar dentro e fora do Partido, denunciavam também à policia os nomes
dos elementos mais responsáveis do Comitê Central, que viviam em rigorosa
clandestinidade. De início, dada a confusão que conseguiram lançar nas
fileiras do Partido e ao fato de terem em suas mãos as ligações com uma sér
ie
de regiões, conseguiram obter o apoio do Comitê Local da Capital de São
Paulo e dos Comitês Regionais de Mato Grosso, do Triângulo Mineiro, de
Goiás, do Rio Grande do Sul e de Minas Gerais.”
280
A vertente Trotskista era considerada por Câmara Ferreira como fator principal
para essa cisão:
279
Segundo John Foster Dulles, a sessão, o chamado “ampliado de agosto”, realizou-se na casa de Júlio Barbosa de
Oliveira. Entre os presentes, segundo declaração ulterior de Sebastião Francisco, estavam o próprio Sebastião
Francisco, Barbosa de Oliveira, Bangu, Abóbora, Joaquim Câmara Ferreira e Almir de Oliveira Neves (Argeu).
Sacchetta (Paulo), também presente, manifestou-se contra o apoio do PCB a José Américo e sua posição foi
sustentada por Hilio de Lacerda Manna (Luís), Diretor de Agitação e Propaganda do CR –
SP. Mais tarde, Sacchetta
e Hilio Manna acusaram Bangu e André de terem conseguido a aprovação pela margem de dois votos, da resolução
pró
-
José Américo, fazendo votar homens “seus” que haviam convidado a participar e que não representavam os seus
CR. Joaquim Câmara Ferreira (Jurandir) s
eria um desses indivíduos, segundo Sacchetta e Hiliuo Mama.
280
KAREPOVS, op. cit., p. 27.
118
“ficou constatado que a inspiração da luta fracionista partira de Paulo
(Sacchetta), quando desde os primeiros meses de 1937 havia estado em
contato com Trotskistas e agia segundo seus planos. Foi segundo sua
orienta
ção que se manteve na direção do Partido, embora já houvesse aderido
à política e organicamente aos Trotskistas. Foi seguindo sua orientação que,
enquanto conspirava contra a direção e contra o Partido, fazia juras de amor a
unidade, enquanto proclamava, nas reuniões Trotskistas, a falência da União
Soviética e do Camarada Stalin, escrevia ditirambos à pátria dos trabalhadores
e enchia a boca dos mais elogiosos adjetivos sempre que se referia a Stalin.”
281
Segundo Gorender
282
, a divergência se aprofundou e levou a discussões
agressivas e intransigentes. Com o apoio da Internacional Comunista, Lauro Reginaldo
da Rocha, Secretário-geral do C.C, venceu a disputa: os divergentes de São Paulo
foram expulsos do Partido sob a acusação de renegados trotskistas, a mais infamante
para um militante comunista. Acontece que, ao travar-se a luta interna conforme
Heitor Ferreira Lima nenhum dos divergentes do C.R paulista era Trotskista e, em
seguida, apenas um deles Sacchetta, precisamente aderiu ao Trotskismo. Te
ndo
tomado posição ao lado do C.C, Câmara Ferreira não podia mais continuar amigo de
Sacchetta, com o qual se iniciara na vida partidária. A amizade se transformou em
rancorosa inimizade. Porém, segundo Vladimir Sacchetta, filho de Hermínio Sacchetta,
“es
sa história vai culminar na frente, ou seja, Câmara Ferreira e Hermínio
Sacchetta, companheiros no começo da década de 30. Companheiros nos
embates contra os integralistas. Companheiros na famosa Batalha da Praça
da Sé de 07 de outubro de 1934, rompe
m, brigam, se esculhambam por conta.
Isso era conjuntura internacional em que havia o Stalinismo mais aguerrido.
Aguerrido não é o termo, mas cruel, lançando formas de luta política de muito
baixo nível (...) através da calúnia e através da eliminação física de gente (...)
Nessa relação dos dois, eu insisto, que nessa relação entre os dois, o
rompimento e depois na frente, quando Câmara sai do Partido (...) a
dissidência de 67 e vai compor com Carlos Marighella a primeira dissidência e
depois a ALN, eles vão se encontrar de novo. O velho Trotskista e o velho
Stalinista que se tornou guerrilheiro, se tornou um quadro dirigente da luta
armada, um quadro incrível. Eles vão se encontrar na luta contra a ditadura.”
283
281
Ibid., p. 28.
282
GORENDER, op. cit., p. 176.
283
Conforme depoimento de Vladimir Sacchetta, em maio 2003, em São Paulo. Vladimir Sacchetta é filho de
Hermínio Sacchett
a proprietário de um respeitado Centro de Documentação iconográfica, em São Paulo.
119
O reencontro de Câmara Ferreira e Sacchetta se deu da seguinte forma: em
1968, Joaquim Câmara Ferreira, na roupagem de Toledo, procurou Hermínio
Sacchetta para que este aceitasse colaborar com a ALN. Sacchetta, no começo dos
anos 60, ajudou a formar o Movimento Comunista Internacional (MCI), o q
ual
pretendiam converter em partido. Embora não adotasse o Trotskismo de maneira
escrita, o MCI conservou seus princípios doutrinários fundamentais: prioridade ao
internacionalismo, revolução permanente, ditadura do proletariado como objetivo direto.
Nos anos entre 1967 e 1969, sob a ditadura militar, o MCI publicou o jornal
clandestino “Bandeira Vermelha”, que difundia denúncias e argumentos contra o regime
nascido do golpe de 64 e também tomava posição na exploração controvérsia entre as
correntes de esquerda. Sacchetta era redator do jornal e atacou o reboquismo e o
oportunismo do PCB. Reconhecia a validade das facções dissidentes, entretanto, não
concordava com o foquismo cubano, pois rejeitava a luta armada imediata,
desvinculada da preparação através das lutas das massas. Apesar disso, aceitou o
convite de Câmara Ferreira de colaborar com a ALN, cuja “orientação estratégica
(nacional libertadora) e tática (luta armada imediatíssima)”
284
era totalmente oposta à
posição de Sacchetta. Conforme Gorender, Sacchetta desejava realizar algo de
concreto contra a ditadura militar e pôs de lado discordâncias teóricas, afastou velhos
agravos e passou a ter encontros regulares com o antigo companheiro, depois de
muitos anos separados por inimizade política. Apesar de sexagenário e abalado por
um infarto, resolveu correr riscos que, por experiência, não ignorava.
284
GORENDER, op. cit., p. 177.
120
Nesse período, Sacchetta, em diversos momentos, apoiou a ALN, como no caso
das armas roubadas pela Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), no final de ja
neiro
de 1969. De acordo com Gorender, a VPR precisava tirar com urgência as armas
desapropriadas da loja Diana, no depósito secreto em que se encontravam, pois um
militante que conhecia o local havia sido preso. A direção da VPR pediu a ajuda da
ALN, e Câmara Ferreira recorreu a Sacchetta, que arrumou às presas um lugar seguro
para o arsenal de carabinas, revólveres 38 e caixas de munição.
Em outro episódio, no dia 15 de agosto de 1969, um grupo de guerrilheiros da
ALN invadiu a estação transmissora da Rádio Nacional em Piraporinha, perto de
Diadema, onde foi proclamado um manifesto da ALN, que foi publicado integralmente
no jornal paulistano “Diário da Noite”, cujo Diretor de redação era Hermínio Sacchetta,
que foi preso pela Polícia Federal por infração da censura e indiciado em inquérito
criminal. Após algumas semanas, Sacchetta foi solto, mas perdeu o emprego. Gorender
afirma que não houve casualidade no episódio. Sacchetta havia recebido previamente a
cópia do manifesto das mãos de Câmara Ferreira e foi avisado do que ia ocorrer e de
qual participação a ALN esperava dele.
Vladimir Sacchetta relata ainda que
“tem um fato que eu lembro que bem a medida da relação entre Hermínio
Sacchetta e Câmara Ferreira. Eu me lembro que no dia da morte do Câmara,
eu chego em casa e a gente morava numa vila. Estou encostando o meu
fusquinha na porta de casa e olho pro
vitrô
e está meu pai de roupão,
pijama, roupão azul. Ele tinha sido preso em 69 (...) Um ano depois da prisão
do Sacchetta por conta daquela invasão, da tomada dos transmissores da
Rádio Nacional em Piraporinha. O Sacchetta estava sem emprego, afastado
da imprensa, telefone grampeado. Era um inferno. Tira na porta de casa. Eu
chego e vejo o velho Hermínio de cabelo desgrenhado, muito deprimido
assi
m e me contando que a polícia havia assassinado o Câmara. Ele estava
muito chateado com isso porque ele dizia: pegaram mais um e dessa vez foi o
121
Câmara, meu velho companheiro. A gente brigou muito mas se queria muito
bem.”
285
Ainda, em relação à cisão do Partido, em São Paulo em 1937, Sara Mello
relatou uma conversa que teve com Arnaldo Pedroso d’Horta, que também havia sido
expulso do Partido acusado de trotskista, e ele lhe disse o seguinte: “o Câmara é um
homem sério e um homem digno. Câmara sabia ser s
eu opositor com a cara limpa.”
286
A verdade é que as eleições presidenciais que acabaram levando a um cisma
dentro do PCB, com a expulsão de membros do CR de São Paulo, não se realizaram,
pois, a 10 de novembro de 1937, Getúlio Vargas, com o apoio dos militares, de muitos
governadores e de Plínio Salgado, cancelou as eleições presidenciais, fechou o
congresso e outorgou uma nova constituição. O golpe que culminou com o
estabelecimento do Estado Novo havia sido arquitetado em setembro de 1937 com a
farsa do Plano Cohen, no qual alguns oficiais do exército descobriram muito
convenientemente uma “trama do Comintern” para o assassinato de membros do
governo, incêndio de edifícios públicos e captura de reféns, a serem fuzilados em caso
de malogro. O ministro da Justiça, Macedo Soares, “que declarava três dias antes não
haver perigo comunista no Brasil, passou a descrever a situação como grave, muito
grave.”
287
Começou, a partir daí, intensa repressão ao comunismo, que recebeu maior
ímpeto com a nova constituição, que declarava o Brasil em estado de emergência e
decretava que a polícia, durante este período, podia executar a sua missão sem
qualquer interferência do Poder Judiciário. No âmbito internacional, iniciava-se uma
285
Vladimir Sacchetta, depoimento.
286
Sara Mello, depoimento.
287
DULLES, op. cit., p. 134
-
135.
122
ofensiva contra as liberdades democráticas com a Guerra Civil espanhola, o incêndio
do
Reichtag
(parlamento alemão), a formação do eixo Berlim / Roma e a elaboração,
pela Alemanha e Japão do “Pacto Anticomunista.” Nesse momento, Joaquim Câmara
Ferreira fazia parte do “Bureau Político Nacional, no Rio, que havia sido ampliado
com três novos membros: Domingos Brás (Mauro), um comunista do Rio Grande do Sul
(João), incluindo Câmara Ferreira (Alberto ou Jurandir).”
288
Gertel confirma este fato,
pois ele, em 1937, foi trabalhar com Câmara Ferreira no Rio, devido à perseguição da
polícia e a necessidade de cair na clandestinidade. Conforme o seu depoimento:
“nessa época Câmara e eu tínhamos o hábito de ler o jornal ‘Correspondência
Internacional’, que comprávamos numa livraria.(...) Foi assim que
acompa
nhamos a processo, na Alemanha, de Jorge Dimitroff, dirigente da
Internacional Comunista aprisionado pela Gestapo e inculpado pelo incêndio
do Parlamento alemão. Foi também na ‘Correspondência’ que seguimos o
resumo do 7
o
Congresso da Internacional Comunista, antes da direção
informar o coletivo das mudanças na orientação política.”
289
Essa orientação apontava para a nova linha, isto é, a unidade de todas as
forças democráticas e antifascistas, para evitar o perigo de isolamento, não só da União
Soviética,
como de cada movimento operário sindical, caso não fosse adotada uma
nova estratégia.
Foi nessa conjuntura nacional e internacional que o PCB tentava se
reorganizar. Gertel analisa que, nesse período, no Rio de Janeiro,
“Câmara
demonstrava então os traços de um quadro do Partido. Homem dedicado à
organização, era uma máquina de tarefas, completo em tudo. Basicamente um homem
muito equilibrado.”
290
288
Ibid., p. 134
-
135.
289
Noé Gertel, depoimento,
em junho de 1997.
290
Ibid.
123
Porém, conforme o mesmo Gertel, no ano de 1938, o próprio Joaquim Câmara
Ferreira passou a divergir da Direção Nacional e dela foi desligado. Acreditamos que tal
fato vinha de sua posição em relação a uma proposta da Conferência Nacional do
Partido, em 1937, cujo objetivo era a tão necessária “unidade de ação”
291
(frente
antifascista proposta pelo CR de São Paulo após renovação do Estado de Guerra por
Getúlio), além de imediatas providências de reorganização, tais como: o afastamento
temporário do CC dos quatros responsáveis pelas atuais divergências: Paulo
(Sacchetta), Arnaldo (Lauro Reginaldo da Rocha, conhecido por Bangu), Luís (Hilio de
Lacerda Manna) e André (Elias Reginaldo da Silva); a substituição do Secretariado
Nacional, responsável pelo dia-a-dia do Partido, um triunvirato
292
estranho à
divergência, a ser escolhido por uma comissão de cinco membros. A ala Sacchetta
aceitou as sugestões do documento, mas o Bureau Político dominado pela ala Bangu
rejeitou a inqualificável tentativa “fracionista-trotskista.” Além disso, o Secretariado
Nacional avisou São Paulo que, com repressão tão extrema, uma Conferência
Nacional
poderia resultar na prisão simultânea de todos os lideres do Partido, além de mencionar
a escassez de fundo para tal Conferência. Fora isso, alguns membros da ala Bangu
referiam
-se aos 15 proponentes originais da conferência como “simplórios, trotskistas e
agentes da polícia.”
293
Embora Câmara Ferreira apoiasse a ala Bangu, pôs-se a favor
da conferência, conforme esclarece Dulles:
“resposta mais pensada foi de Joaquim Câmara Ferreira e três outros, em
carta de 28 de outubro de 1937 ao Bureau Político: uma conferência do
291
O Comitê Regional de São Paulo havia responsabilizado o caráter falso e oportunista das posições políticas
sustentadas dentro do CC do Partido por Bangu, André e seus partidários pela renovação do Estado de Guerra por
Vargas. Afirmou que José Américo, apoiado pela ala Bangu, manifestara-se pela renovação do Estado de Guerra. O
CR de São Paulo insistiu na formação de uma frente antifascista.
292
DULLES, op. cit., p. 138.
293
Ibid., p.139.
124
Partido não poderá ser realizada sem a aprovação e ajuda da Internacional
Comunista. Reunindo essas condições, pode e deve realizar-se no mais curto
prazo possível, o que servirá de base à superação de todas as dificuldades e
dará grande impulso e perspectivas. Ao mesmo tempo, se elegerá
democraticamente a direção.”
294
O fato é que, no fim de 1938, Câmara Ferreira se desligou da direção nacional
e do profissionalismo partidário, ligando
-
se à produção. De acordo com Gertel:
“Câmar
a Ferreira foi trabalhar numa agência francesa de notícias, acho que
era a Havas (tradutor de telegrama). Penso que foi o primeiro emprego dele no
mercado de trabalho. Nessa ocasião, ele me disse: estou me sentindo morto!
Sei que não vou poder viver sem o Partido! Esse não era o jeito dele.
Normalmente não falava de si mesmo. Foi uma das raras ocasiões que o vi
mencionar a si próprio. Nessa época, ele era pouco conhecido no Rio. Por
isso, freqüentava minha casa, apesar de eu estar clandestino e ele não.”
295
Sara Mello reforça essa posição ao afirmar que Câmara Ferreira nunca falava
de si mesmo. De acordo com ela, “ele nunca falava nele, nos problemas dele, nas
amarguras, nas decepções, nas aspirações pessoais, nunca!”
296
O documento prontuário de Câmara Ferreira fornece dados sobre esse seu
breve desligamento do Partido, em 1938. Embora as declarações no documento
deixem dúvidas sobre o papel de Câmara Ferreira no Rio de Janeiro, o que é
compreensível devido o fato de o próprio Câmara Ferreira não revelar suas atividades
no Secretariado Nacional, o desligamento pode ser comprovado. Segundo o prontuário,
Joaquim Câmara Ferreira teria vindo para o Rio e se ligado a Lauro Reginaldo da
Rocha (Bangu) para a
“realização de trabalhos auxiliares desse elemento, bate
ndo cópias à máquina,
escrevendo cartas cujas minutas lhe eram fornecidas, procurando informações
políticas, até fim de 1938; que em janeiro de 1939 deixou de realizar tais
funções e desde então, até dezembro desse mesmo ano manteve apenas
294
Ibid.
295
Noé Gertel, depoimento, em junho de
1997.
296
Sara Mello, depoimento.
125
ligação espaçadas e irregulares com Xavier, dando contribuição em dinheiro e
recebendo dele, material de propaganda comunista.”
297
No final de 1939, Câmara Ferreira foi novamente chamado e voltou a se ligar à
direção, conforme o mesmo prontuário da polícia civil do Distrito Federal, onde é
relatado:
“em dezembro de 1939, devendo realizar uma viagem ao norte do país, Xavier
lhe pediu que se ligasse ao C.R dos estados por onde passasse, o que foi feito
pelo declarante, tendo tido ligações com os referidos Comitês, que foram os
da Bahia, Sergipe e Alagoas.”
298
É bom salientarmos que a repressão aos comunistas se tornou muito intensa
com a ditadura do Estado Novo, pois, ao mesmo tempo em que deveriam ser mantidos
pelo governo para sustentar o mito da conspiração, sua eliminação também era
necessária. Ainda nos primeiros minutos de 1936 (antes do golpe), Getúlio Vargas
transmitiu ao Brasil inteiro uma mensagem que ilustrava como o sentimento em relação
aos comunistas estava sendo construído. Em sua saudação de Ano Novo, falava,
“numa referência à tentativa de golpe em 1935, nas forças do mal e do ódio que
conspiravam sobre a nacionalidade, ensombrando o espírito amorável de nossa terra e
de nossa gente.”
299
Segundo Vargas, o comunismo era o pior inimigo da civilização
cristã, e seus métodos eram dissimulação e mentira, o que justificava as medidas a
serem tomadas. Daí que, “materializado o inimigo nos primeiros dias do novo regime, o
estado negou qualquer eficácia a algum tipo de solução política e iniciou a
implementação de soluções físicas.”
300
Foi dentro deste processo que, no início de
297
D.E.S.P.S., op. cit., p.8.
298
D.E.S.P.S., op. cit., p.8.
299
CANCELLI, Elizabeth
O Mundo da Violência
A polícia da era Vargas
. 2.ed. Brasília: UNB, 1994, p. 82.
300
Ibid., p. 83.
126
1940, Joaquim Câmara Ferreira foi preso no Rio de Janeiro. De acordo com os
documentos da D.E.S.P.S, ele foi preso no
“dia 14 de março de 1940, pela seção de explosivos, por determinação do Sr.
Capitão Delegado Especial, por ser elemento comunista e em virtude de ser
um dos cabeças das últimas rearticulações vermelhas. Elemento da direção
do PCB, que se entregava a atos de natureza subversiva, atentatórios ao
regime.”
301
Gertel confirma a prisã
o de Câmara Ferreira em 1940, enfatizando que:
“parece que caiu porque alguém que foi torturado abriu que ele morava na
casa de um músico italiano da orquestra sinfônica. O músico fazia seu
trabalho clandestino, mas foi entregue, mesmo assim. Câmara foi preso numa
segunda
-feira, porque havia passado o domingo com uma família em
Paquetá.”
302
Leonora Cardieri Ferreira reforça esta fato ao relatar que “sua prisão, quando
morava em casa de Dante Fantauzzi, creio que no Catete, Rio, foi resultado de delação
p
or um preso torturado.”
303
Felinto Muller, que era chefe de polícia por nomeação de Getúlio Vargas, e seu
Ministro da Justiça, Vicente Rao, organizavam, na época com apoio de criminosos da
Polícia Especial (agrupamento paramilitar especializado em repressão, nos moldes
hitleristas), um grupo de seviciadores permanentes. Câmara Ferreira foi entregue a
esse grupo, na mesma noite da prisão.”
304
De acordo com Gertel, esse grupo era da
delegacia de explosivos, comandada por um delegado chamado Segadas Viana. “Aí
,
Câmara Ferreira foi torturado barbaramente com palmatória, afogamentos, pau-
de
-
301
D.E.S.P.S., op. cit., p.2.
302
Noé Gertel,
depoimento, em junho de 1997.
303
Leonora Cardieri, diário.
304
KUSHNIR, Beatriz. Perfis Cruzados Trajetórias e militância política no Brasil. Rio de Janeiro: Imago,
2002, p. 16.
127
arara e estiletes de madeira enterrados sob as unhas.”
305
As torturas com requintes de
selvageria contra o preso político foram motivadas de acordo com Gertel, “porque a
políci
a tinha informações sobre seu trabalho entre os militares.”
306
Conforme Gertel
afirma, nesta época o partido tinha “ligações boas no exército, na marinha e na polícia
militar no Rio de Janeiro. Eram com estas ligações que o Câmara trabalhava. Era um
trabalh
o hiper clandestino
.”
307
O dossiê dos órgãos de repressão sobre Câmara
Ferreira revelam que eram conhecidas com exatidão as atividades do militante no PCB.
No documento, consta:
“Joaquim Câmara Ferreira vulgo Jurandyr ou Ernesto Membro
proeminente do P
artido Comunista. Intelectual de largos recursos como orador
e escritor. Ex-estudante de engenharia, tendo cursado a Politécnica até o
quarto ano. Membro do Bureau Político e encarregado do setor militar. Fez
diversas viagens pelo interior e litoral do país, como elemento que levava a
palavra de ordem aos Comitês Regionais (C.C R.R).”
308
Além disso, Leonora Cardieri afirma que ele era responsável pela imprensa
clandestina do partido, e queriam descobrir onde ela se localizava.”
309
Câmara Ferreira resistiu a todas as torturas, durante várias noites, sem nada
dizer. Não suportando, porém, as brutalidades da tortura, quebrou a vidraça do quarto
andar da Polícia Central e seccionou os pulsos, gritando para a rua: “estão torturando!
Viva Prestes!”
310
Ensangüentado pelo corte recente e pelos ferimentos causados
“pelas sevícias aplicadas sempre por quatro feras, foi logo subjugado, sem parar de
gritar denúncias.”
311
305
Noé Gertel, depoimento, em junho de 1997.
306
Noé Gertel, depoimento, em junho
de 1997.
307
Ibid.
308
D.E.S.P.S., op. cit., p.31.
309
Leonora Cardieri, diário.
310
Noé Gertel, depoimento, em junho de 1997.
311
KUSHNIR, op. cit., p.17.
128
Foi um corte profundo, do qual, segundo Leonora nunca se recuperou
completamente. Não sentia e não tinha mobilidade em alguns dedos da mão esquerda,
por secção de nervos.”
312
Conforme Gertel, um médico da prisão que ficou bastante
impressionado com a resistência de Câmara Ferreira lhe disse: “olha aqui Câmara.
Você esta precisando operar isso seriamente. Me sua palavra de honra que não vai
fugir e vou te mandar para enfermaria da Polícia Especial.”
313
Câmara foi operado na enfermaria daquele quartel, que ficava no morro Santo
Antônio, atrás da rua Senador Dantas. no início da convalescença, arquitetou sua
fuga.
O quarto da enfermaria dava para o terreno lateral do quartel.
“Dali se podia ver a passagem do famoso bondinho de Santa Teresa,
descendo para a Galeria Cruzeiro, no centro da cidade. O bonde descia em
horários regulares: O primeiro, às seis da manhã, hora em que o investigador
de vigia durante a noite era substituído.”
314
Naquela manhã, Câmara Ferreira viu sua chance. Tão logo o investigador saiu,
imprudentemente, para se encontrar seu substituto, Câmara, sem ser visto, braço na
tipóia, rec
ém
-operado, pulou a janela e saiu correndo em direção à linha do bonde, que
vinha descendo a toda velocidade. Mas o bonde não parou, “e Câmara, depois de
tentar se agarrar a ele, andando, caiu e foi levado prematuramente para a Polícia
Central, à espera do
julgamento pelo Tribunal de Segurança Nacional .”
315
Noé Gertel foi preso na noite de 1
o
de maio de 1940 e foi levado a uma cela no
fundo da passagem do corredor para presos. Ao passar pela janelinha de cubículo do
312
Leonora Cardieri, diário.
313
Noé Gertel, depoimento, em junho de 1997.
314
KUSHNIR, op. cit., p. 17.
315
Ibid.
, p. 17.
129
Câmara, este estava com sua mão na tipóia e sussurrou: “fala que a Raquel esta
grávida!”
316
De acordo com Gertel, “aquela presença de espírito dele foi uma beleza,
porque conseguiu me alertar, para evitar que minha mulher fosse torturada.”
317
Cadeia repleta, Câmara Ferreira, apesar da vigilância interna, conseguia
comunicar
-se, orientar os presos recém-chegados, transmitir rápidas lições de
comportamento. Exercia sua função de dirigente comunista nos rigorosos padrões de
comportamento que presidia a vida nos interrogatórios e na prisão. Conforme Ger
tel,
tinha influência junto a muita gente, muitos presos. Já exercia uma formidável liderança.
Impôs
-se pela sua previdência a pessoas desconhecidas para ele. Ferroviários da
Central, marinheiros, estudantes, todos o acatavam e consultavam. Ajudava a organ
izar
a vida na cadeia, da qual tinha pouca experiência. Não deixava cair o ânimo,
organizava correios, dava uma estrutura política a tudo aquilo.
Gertel e Câmara ficaram presos muito tempo na Polícia Central, até que
Câmara Ferreira foi “condenado a sete anos de prisão pelo Tribunal de Segurança
Nacional, dos quais dois anos e seis meses na casa de detenção, à rua Frei Caneca,
incomunicável”
318
, isto é, não era permitido qualquer contato, troca de palavras e, muito
menos, receber visitas de parentes.
A casa de detenção era um antigo edifício construído no Segundo Reinado,
inteiramente edificado com pedras e ferro. Quatro galerias, uma sobre a outra,
abrigavam, em corredores, 120 cubículos. Nada de instalações sanitárias ou esgoto.
Era lá que ficava a famosa s
ala da capela, construída já modernamente, histórica prisão
316
Noé Gertel, depoimento, em junho de 1997.
317
Ibid.
318
Leonora Cardieri, diário.
130
pela qual haviam passado os presos políticos nos tempos de Epitácio Pessoa e Artur
Bernardes.
Para receber os recém-chegados, foram construídas, num amplo espaço
ocupado por gramados e patos, logo depois da entrada, “sete cubículos, um junto ao
outro : porta de ferro com guichê fechado, um espaço de mais ou menos três metros
por dois, abrigando pia, sanitário, chuveiro e cama.”
319
Câmara Ferreira ficou num dos cubículos da ponta, e Gertel, em outra. A pouca
distância dali, ficava a enfermaria do presídio, um prédio em forma circular, alto, com
cubículos dando para uma área interna. Dois desses cubículos foram separados dos
outros por muros, e ali tinham posto Prestes incomunicável havia cerca de quatro anos.
Cada cubículo desses tinha uma pequena janela, no alto da parede, dando para os
pátios.
Os presos, violando ordens, falavam entre si, em voz alta, em franco desafio ao
investigador (não guarda) que os vigiava noite e dia, substituído de seis em seis horas.
Gertel relata que, certa manhã, eles ouviram a voz de Prestes que, aos berros,
reclamava estar recebendo jornais cortados pela censura e que havia meses não lhe
entregavam a correspondência.
Câmara Ferreira, em voz alta, gritando mesmo e apavorando o investigador do
turno,
“saudou o Cavaleiro da Esperança em francês, dando-lhe ciência de que no
mundo todos se organizavam movimentos pela sua libertação e pela anistia aos presos
políticos no Brasil.”
320
319
Noé Gertel, depoimento, em junho de 1997.
320
Ibid.
131
Muitos anos depois, Noé Gertel perguntou a Prestes se ele os ouvia, e Prestes
respondeu que sim. Seis meses de incomunicabilidade, e os presos finalmente saíram
dos cubículos e foram enviados para chamada “quarta galeria”, onde estavam presos
políticos mais antigos. “Neste momento podiam circular pelas celas e para passar o
tempo, costumavam jogar xadrez, onde um dos principais era Câmara Ferreira.”
321
Após esse período na casa de detenção, foram enviados para o presídio de Dois Rios,
na Ilha Grande.
Devemos enfatizar que, com a repressão, o PCB, foi praticamente liquidado.
No final de 1939, caiu toda a sua direção em São Paulo e, a partir daí, nos estados,
suas fileiras se desagregavam. De acordo com Moisés Vinhas, nos anos de 1940 e
1941, o Partido só subsistiu pela ação de indivíduos e pequenos grupos
isolados
322
.
A situação política do Brasil começou a tomar novo rumo a partir de 1942,
devido à entrada da União Soviética e dos Estados Unidos no conflito armado europeu,
que mudou a correlação de forças e o seu caráter, criando-se assim uma grande
aliança
mundial contra o Fascismo. O PCB vai se posicionar de diferentes formas diante
do Estado Novo e na maneira de encarar a questão da luta contra a ditadura interna
brasileira.
“Como seria possível falar em democracia, em luta contra o totalitarismo
externo,
se no seu próprio país imperava o regime Fascista? Como combater o inimigo
externo se, por sua vez, existe um inimigo interno?”
323
E, diante desta situação
concreta de tática, o PCB se dividiu em três posições, dentre as quais a primeira foi
defendida por Fernando Lacerda, que, juntamente com Pedro Motta Lima era favorável
a cerrar fileiras ao lado do povo e do governo Vargas, para ajudá-los a reforçar a
321
Noé Gertel, depoimento, em junho de 1997.
322
VINHAS, op. cit., p. 73.
323
CARONE, Edgard.
O PCB.
1943
1964.
V. 2
São Paulo: Difel, 1982, p. 2.
132
política de participação ativa do Brasil no esmagamento total das ordens eixistas e sua
miserável quinta
coluna.
Segundo Anita Leocádia Prestes, em janeiro de 1942, após novas prisões de
dirigentes comunistas, desta vez no nordeste, dois dirigentes do Comitê Regional da
Bahia, João Falcão e Diógenes de Arruda Câmara, considerando a complexidade da
conjuntura
internacional, foram a Buenos Aires manter contato com o Bureau Sul-
Americano da Internacional Comunista, sediado naquela metrópole, à procura de
orientação. Ao chegar a Buenos Aires, João Falcão e Arruda Câmara entraram em
contato com alguns exilados brasileiros, conhecidos como militantes comunistas, como
o jornalista Pedro Motta Lima, o major Carlos da Costa Leite e o médico Fernando de
Lacerda.
“Várias reuniões desses militantes foram realizadas com os dirigentes da
Internacional Comunista Victório Codovilla e Rodolfo Ghioldi para discutir a
situação da Segunda Guerra Mundial e seus efeitos no Brasil. Depois de
muitos dias e noites de trabalho, foi mantida a linha política adotada no
Brasil: a União Nacional para defesa da Pátria, ao lado do gov
erno.”
324
Gertel esclarece que alguns camaradas militares das ex-
Brigadas
Internacionais resolveram deixar de lado suas condenações no Brasil e retornar, até
com a intenção de se integrar às forças expedicionárias brasileiras. Eram todos
condenados. Por i
sso, ao retornar, foram presos e levados para a Ilha grande.
Sara Mello, que tinha como padrinho de casamento o major Carlos Costa Leite
corrobora com Gertel ao esclarecer que eles estavam na Argentina e resolveram se
entregar porque Getúlio tinha declarado guerra ao Eixo. Eles acharam que não havia
lógica no fato de brasileiros que estavam contra o getulismo num momento em que ele
324
PRESTES, Anita Leocádia. Da insurreição armada (1935) à União Nacional (1938 1945). A virada tática
na política do PCB.
op. cit., p. 70
71.
133
apoiava a luta pela democratização internacional favorecendo a URSS ficarem de fora
desse movimento. E mesmo Prestes dissera em 1942, por ocasião da visita que
recebeu, na prisão, do dirigente comunista cubano Blas Roca, considerar seu dever, e
dever dos verdadeiros patriotas brasileiros, encerrar todas as disputas de caráter
interno e unir esforços para acelerar a derrocada das potências do Eixo.
325
A posição
de Luiz Carlos Prestes deixava claro que ele não dissociava a política de “União
Nacional”, inclusive com Vargas, da luta pela democratização do país. Segundo Anita
Prestes, seria a posição de aproximadamente cento e cinqüenta comunistas
prisioneiros na Ilha Grande.
326
De acordo com a mesma autora, no que se refere especificamente aos
comunistas, três posições se delineiam nesse período, ainda que todas estivessem de
acordo com a “União Nacional.”
A primeira, com um menor número de adeptos era defendida por Fernando de
Lacerda, que, junto com Paulo e Pedro Mota Lima, pregava a dissolução do PCB. Esta
posição resultava de uma avaliação da situação internacional comum a vários
segmentos do movimento comunista mundial, dentre os quais se destacava o chamado
“browderismo.”
327
Tratava-se de uma orientação que estendia ao âmbito de cada PC a
medida de autodissolução tomada pela IC 15 de maio de 1943 justificada como
necessária para alcançar uma ampla unidade na luta contra o nazi-fascismo. Esta
325
PRESTES, Anita Leocádia. Da insurreição armada (1935) à União Nacional (1938 1945). A virada tática
na política do PCB.
op. cit., p. 73.
326
Ibid., p.74.
327
Browderismo era derivado de Earl Browder que era secretário-geral do PC dos Estados Unidos que havia
proposto a tese de “União Nacional” e dissolução do PC, que grande repercussão junto aos comunistas latino-
americanos. In: PRESTES, Anita Leocádia. Da insurreição armada (1935) à União Nacional (1938 1945). A
virada tática na política do PCB.
op. cit., p. 78.
134
corrente entendia que a permanência da IC e dos PC`s poderia ser nociva a tal unidade
nacional.
Uma segunda posição, liderada pelo grupo paulista, do qual faziam parte Caio
Prado Júnior, Heitor Ferreira Lima, pretendia uma Aliança Nacional contra o inimigo
externo, mas era contrária a um apoio a Getúlio Vargas, isto é, apelava para uma luta
contra a direita, na Europa como no Brasil.
a terceira posição, que é a mais importante, era formada pelos grupos
baiano e carioca, e este último era denominado Comissão Nacional de Organização
Provisória (CNOP), da qual faziam parte Maurício Grabois, Amarílio de Vasconcelos,
Arruda Câmara, Giocondo Dias e outros. Baianos e cariocas, como o Cavaleiro da
Esperança,
“são favoráveis à União Nacional contra o inimigo externo, mas,
contrariamente aos outros, preconizava também a União Nacional no plano
interno, isto é, o apoio ao governo, e que é preciso não esquecer que a União
Nacional é, pela sua própria essência, um movimento de pacificação da famíl
ia
brasileira.”
328
Essa posição influiu no coletivo que estava preso na Ilha Grande. Naquele momento
estavam presos comunistas que se encontravam no Rio de Janeiro, entre os quais
Câmara Ferreira, como também os outros que haviam sido transferidos da Ilha de
Fernando de Noronha (que havia se tornado base americana após o Brasil ter entrado
na guerra contra o Nazi-fascismo), além de integralistas, militares que haviam
participado da ANL, trabalhadores, camponeses intelectuais das mais variadas
procedênci
as.
328
CARONE, Edgard.
O PCB.
1943
1964.
op. cit., p. 3.
135
Gertel esclarece que, no presídio, os comunistas se organizavam em coletivos.
Em reuniões realizadas a cada dois meses, os comunistas aprovavam automaticamente
as chapas oficiais para renovação dos coletivos. Segundo Sebastião Francisco
“tais coletivos eram de rigor nas prisões, mesmo quando houvesse apenas
quatro ou cinco comunistas. E informa que o coletivo da Ilha Grande, era
especialmente poderoso. Os comunistas empregavam nele todo seu dinheiro.
Além de funcionar como centro distribuidor das notícias recebidas de fora, o
coletivo organizou uma oficina onde os que tinham habilidade faziam
ornamentos, cintos, bolsas, broches, caixinhas de jóias e até globos terrestres.
A renda obtida com as vendas, junto com as contribuições de amigos de fora
da prisão, ajudava na compra de remédios, cigarros, selos, papel de carta e
comida para melhorar as rações. Era até possível reservar quantias módicas
para as famílias mais necessitadas de prisioneiros.”
329
O fato de serem presos políticos e de terem uma forma de organização
demonstra que a política continuava permeando a vida cotidiana desses militantes e
que as discussões e divergências não estavam afastadas.
Diante das posições referidas anteriormente, houve um racha no coletivo da
Ilha Grande. A divisão se manifestou na questão quanto a trabalhar ou não para o
presídio. Havia o grupo em torno de Pedro Motta Lima, que aceitava a idéia de Nestor
Veríssimo (tio de Érico Veríssimo e diretor do presídio) de se integrar no sistema de
trabalho do presídio. Outro grupo, liderado por Agildo Barata e Marighella, era contra.
Este último “grupo ganhou a votação e botou para fora o pessoal que estava com Motta
Lima.”
330
Deste grupo faziam parte Joaquim Câmara Ferreira, o major Carlos Costa
Leite, o jornalista Pedro Motta
Lima, Roberto Morena, José Homem Correia de Sá, José
Maria Crispim, Frederico Bionimani, Antônio Maciel Bonfim (Miranda), Epifânio, França,
Domingos Brás, Sebastião Francisco, Eduardo Ribeiro Xavier, Lauro Reginaldo da
Rocha (Bangu) e outros que optaram
pelo trabalho.
329
DULLES, op.
cit., p. 239.
330
Noé Gertel, depoimento, em junho de 1997.
136
Segundo Leonora Cardieri, Joaquim Câmara Ferreira, ao ser colocado para fora
do coletivo, trabalhava com Morales (um espanhol anti-franquista, extraordinário) na
horta. Fizeram uma horta imensa que passou a abastecer quase toda a Ilha. Saiam de
manhã e voltavam para o almoço. À noite, Câmara ouvia o rádio no presídio, lia os
jornais e notícias sobre a guerra e redigia o jornal mural que era afixado no presídio.
Nesse período, Joaquim Câmara Ferreira participou ativamente das discussões em
tor
no da reorganização do Partido, que se processava fora e passou a apoiar a CNOP,
ou seja, as decisões tomadas na conferência da Mantiqueira: a CNOP havia avançado
para uma reorganização política do Partido que culminou na conferência da
Mantiqueira, em agosto de 1943, na região do Vale do Paraíba (Barra do Piraí), onde
quase duas dezenas de militantes decidiram pela união nacional externa e interna, ou
seja, a Guerra Mundial é uma
“guerra de preservação da liberdade dos povos contra a ameaça de dominação
fascista; o governo Getúlio Vargas não é fascista, pois dele participam ao
mesmo tempo reacionários e homens que lutam pela democracia, daí a razão da
União Nacional em torno do governo, do apoio irrestrito à política de guerra e ao
governo que realiza.”
331
No ano de 1945, o país avançava para a redemocratização após a anistia
decretada por Vargas em abril. A partir desse momento, os comunistas puderam sair da
clandestinidade e vieram inteiramente à superfície, revelando-se completamente à
opinião pública, além de aparecerem no cenário da vida política brasileira como um
partido de massas.
331
CARONE, Edgard.
O PCB.
1943
1964.
op. cit., p. 3.
137
Com a anistia, Joaquim Câmara Ferreira retornou a São Paulo e se ligou ao
Partido nesta capital, com o objetivo de fundar um jornal. Além disso, neste período, foi
eleito
para o Comitê Estadual de São Paulo e iniciou uma militância intensa.
no dia de abril de 1945, surge em São Paulo “Movimento Unitário
Democrático (M.U.D), por iniciativa de comunistas entre os quais Elias Chaves Neto,
Jorge Amado, Roque Trevisan e
Joaquim Câmara Ferreira.”
332
É bom ressaltarmos que a posição de uma unidade democrática vinha
reforçando a linha política adotada na Conferência da Mantiqueira e de Prestes, em
torno do governo. Conforme Konder, em um projeto de declaração da ANL e do PCB
redigido em abril de 1944, Prestes, então Secretário Geral do partido comunista,
comentou um discurso que Vargas acabara de pronunciar e no qual prometera a
democratização do Brasil para tão logo a guerra terminasse. Prestes escreveu que o
discurso merecia, da parte dos comunistas, uma resposta “respeitosa e construtiva.”
Além disso, Prestes escrevia que ia se tornando “cada vez mais necessário ao nosso
povo e ao próprio governo a prática da democracia.”
333
E assim, no plano nacional, o
PCB se preocupava com os riscos de um tumulto que agitasse o processo
democratizador dos caminhos institucionais e, por isso inviabilizasse, a fundação do
Movimento Unitário Democrático.
No plano internacional, segundo Pandolfi, com o término do conflito mundial, a
“tese apregoada por Stalin passou a ser a do desenvolvimento pacífico e cooperação
332
PCB.
1922
1982.
Memória Fotográfica.
São Paulo: Brasiliense, 1982, p.75.
333
KONDER, op. cit., p52.
138
entre os povos. Nesse sentido, a proposta de União Nacional defendida por Prestes em
nada destoava da postura dos demais partidos comunistas.”
334
Constatamos, com isso, que o M.U.D, em São Paulo, do qual Câmara Ferreira
foi um dos fundadores, atuava dentro das tarefas políticas estabelecidas pelo partido
comunista, onde consta:
“Cabe aos Comitês Estaduais, nesse assunto, a maior iniciativa, o dever de
não poupar esforços para unificar as correntes políticas de quaisquer
tendências em torno de um programa mínimo de União Nacional, visando
sempre, como já foi dito anteriormente, levar ao Parlamento os melhores
representantes do povo, homens de todas as classes sociais, comunistas ou
não, que mereçam a confiança popular e sejam realmente capazes de lutar
peal democracia e pelo progresso.”
335
De acordo com Sara Mello, nesse momento, Câmara Ferreira estava muito
animado e dizia: “tem que começar a trabalhar, trabalhar muito. Temos que formar o
jornal. Temos que comprar o maquinário do jornal. Temos que alugar a sede do Comitê
Estadual. (...) Ele deu um impulso muito grande com o bom humor, aquela
generosidade e o empolgamento.”
336
Toda essa empolgação refletia o Partido e os ares da legalidade respirados no
ano de 1945, e de fato o jornal acabou sendo criado em São Paulo com o nome de
“Hoje”, e Câmara Ferreira se tornou diretor redator.
Conforme se lembra Sara Mello,
“era um maquinário antigo e tal, que foi conquistado em uma campanha feita
pelo Partido em 1946, em que as pessoas davam máquina de costura, anel,
tudo, dinheiro. Um milhão. Eu não sei quanto era, para a compra de
maquinário para imprimir o jornal.”
337
334
PANDOLFI, op. cit., p.137.
335
CARONE, Edg
ard.
O PCB (1943 a 1964).
op. cit., p.56.
336
Sara Mello, depoimento.
337
Sara Mello, depoimento.
139
De acordo com Segatto, a atividade de imprensa era um fator decisivo para
afir
mação do PCB e a difusão do movimento operário. O Partido chegou a ter oito
jornais diários, em 1946, sendo os principais: a “Tribuna Popular” no Rio; “Hoje”, em
São Paulo; “O Momento” na Bahia; “Folha do Povo”, em Pernambuco; “O Democrata”,
no Ceará; e a
“Tribuna Gaúcha”, no Rio Grande do Sul.
Segundo Armênio Guedes, com a legalidade, sentiu-se a necessidade de se ter
um jornal em torno do qual organizar o Partido, e que este era o velho esquema de
organização do partido comunista: de ter sempre um órgão central, um agitador e um
organizador coletivo para se armar. O mesmo militante enfatiza que a admiração por
Câmara Ferreira já vinha antes de conhecê-lo pessoalmente. Entre 1939 e 1940,
Arruda Câmara, que era um dos dirigentes do PCB na Bahia, veio ao Rio de Janeiro
refazer ligações com o Comitê Estadual baiano, que tinham ficado precárias. No Rio,
conheceu Câmara Ferreira, que algum tempo depois foi preso e torturado
barbaramente. Porém, no pós-45, Armênio Guedes trabalhava como secretário político
de Prestes e veio a São Paulo, onde Câmara Ferreira era um dos pontos de apoio para
contatos políticos. A mobilização partidária nesse momento era no sentido de continuar
uma formação de frente que não era insurrecional, mas eleitoral. Segundo Armênio
Guedes
338
,
Câmara Ferreira ajudou muito nesse processo de estruturação do Partido
em São Paulo, afirmando que “ele era muito bem relacionado. Ele era de uma família
mais ou menos conhecida. (...) Ele era um sujeito muito útil nessa articulação política
que o partido
fazia e na organização do jornal do partido.”
339
338
Armênio Guedes Ex-militante comunista que iniciou sua militância no PCB, na Bahia, nos anos 30. Foi amigo
e trabalhou com Câmara Ferreira no partido, em São
Paulo.
339
Conforme depoimento de Armênio Guedes, em maio de 2003, em São Paulo.
140
Porém, essa qualidade de articulação que Joaquim Câmara Ferreira possuía lhe
trazia críticas dentro do partido, conforme relata o mesmo Armênio Guedes, ao dizer
que
“O Câmara nessa época era tido por aqueles
caras mais ortodoxos da direção
(era o Arruda Câmara, Pedro Pomar), era tido como um liberal, um sujeito
muito aberto para a política, que queria fazer contato com todo mundo. Não
tinha aquela rispidez (...) dos bolcheviques, exigidos por esses ortodoxos
da
direção do partido.”
340
É bom salientarmos que os comunistas mantiveram a política de União Nacional
forjada durante a guerra e, em conseqüência e contrariamente as diversas correntes
liberais e as outras tendências de esquerda, apoiaram a permanência de Getúlio
Vargas no comando do país até que as eleições, previstas para dezembro de 1945, se
realizassem. Porém, a 29 de outubro desse mesmo ano, Getúlio Vargas foi deposto, o
que não impediu a realização do pleito, basicamente porque o processo de
democratização já tinha avançado o suficiente para assegurar a realização do mesmo.
Segundo Bethell, o PCB, que agirá com prudência para não dar aos militares um motivo
de proscrevê-lo, e que emprestara pleno apoio ao governo interino, pôde ser
formalmente registrado e autorizado a participar das eleições; “contudo, sob nenhuma
circunstância lhe seria permitido vencer, conforme o comandante da 1
a
Região Militar
deixou claro ao adido militar britânico.”
341
Em um trecho do jornal “Hoje” de 29 de dezembro de 1945, Joaquim Câmara Ferreira
reforça essa posição assumida pelo PCB ao escrever que
“apesar de reconhecer a legitimidade das greves responsabilizamos os
empregadores, conclama os trabalhadores e o povo de São Paulo a se
340
Armênio Guedes, depoimento.
341
BETHELL, Leslie; ROXBOROUGH, Ian (Org.) A América Latina entre a Segunda Guerra Mundial e a
Guerra Fria.
São Paulo: Paz e Terra, 1996, p. 91.
141
manterem em atitude ordeira e pacífica, pois essa é a atitude que melhor
convém à defesa dos interesses imediatos da classe operária.”
342
Em outro trecho do mesmo jornal, de janeiro de 1946, temos uma idéia do papel de
Câmara Ferreira nesse processo de continuação da frente ampla:
“não são os comunistas os responsáveis pelas greves em curso. O PC tem
mesmo, repetidas vezes, conclamado os trabalhadores a submeterem seus
interesses imediatos aos interesses mais gerais da classe operária que, no
momento, exige, fundamentalmente, a manutenção da o
rdem.”
343
Dentro desse processo, os comunistas tentaram participar ativamente da política do
país, conforme havia declarado Prestes. Nesta perspectiva, o crescimento do partido na
legalidade foi enorme: “de uns poucos de milhares de membros para quase du
zentos
mil.”
344
Em razão disso, o PCB, obteve um desempenho extraordinário nas eleições,
nas quais o seu candidato à presidência da República, Yedo Fiúza, obteve seiscentos
mil votos, ou seja, 10% da população, em pouco mais de cinco milhões, ficando em
ter
ceiro lugar. Além disso, Prestes foi eleito senador, e o partido conseguiu eleger ainda
catorze deputados federais. Esta bancada, apesar de pequena, exerceu um papel
fundamental na constituinte de 1946, principalmente “na defesa dos interesses da
classe operária, advogando, entre outras propostas, o direito de greve e a autonomia
sindical.”
345
Também nas eleições estaduais de 1947, o partido obteve votação
expressiva, elegendo um número razoável de deputados às Assembléias Estaduais,
além de uma grande votaç
ão nas eleições municipais.
342
SANTANA, Marco Aurélio. Homens partidos. Comunistas e sindicato no Brasil. Rio de Janeiro: UFRJ/
Editorial Boitempo, 2001, p.37.
343
Ibid,.p.61.
344
SEGATTO, op. cit.,
p.59.
345
SEGATTO, op. cit., p. 64.
142
Joaquim Câmara Ferreira foi candidato a deputado estadual, porém não era um
candidato preferencial:
“era para pescar votos, e por isso não se elegeu.”
346
Noé Gertel
diz, a respeito da candidatura de Câmara Ferreira, que “ele não esquentava a cabeça
com estas besteiras. Não era carreirista. Não usava o partido para aparecer. Pelo
contrário, trabalhava discretamente para o coletivo.”
347
Sara Mello também reforça essa
posição de Câmara Ferreira em relação à sua candidatura para essas
eleições,
analisando que
“o Câmara era um homem que nunca ambicionou nada. Em 46, quando houve
a redemocratização, depois de 45, aqui em São Paulo onde nós atuávamos,
tinham os que seriam eleitos. Eleitos para a Assembléia estadual. Ele não era
candidato
preferencial, e nós ficamos loucos da vida porque, se havia alguém
que deveria ter preferência, era ele. (...) Ele nem nada. O negócio dele era
partido, era o jornal, era a direção (...).”
348
Hércules Corrêa
349
sintetiza o que motivava Joaquim Câmara Ferreira em sua
militância no PCB, dizendo que “ele não tinha nenhuma aspiração a não ser fazer a tal
da revolução. Câmara Ferreira não brigava por cargos. Ele não disputava cargos.
Nunca vi Câmara Ferreira disputando cargo. Ele não disputava cargo de jeito n
enhum.
(...) Era idealismo puro”
350
.
A militância política de Joaquim Câmara Ferreira sempre se caracterizou por um
trabalho de organização no partido. Nunca foi o homem das relações públicas, mas um
organizador e um articulador político que sempre trabalhava na clandestinidade, no
346
Noé Gertel, depoimento, em junho de 1997.
347
Ibid.
348
Sara Mello, depoimento.
349
Hércules Corrêa foi dirigente sindical, membro da direção do PCB, deputado comunista pela legenda do PTB. Foi
amigo de Câmara Ferreira no Partido, em São Paulo.
350
Conforme depoimento de Hércules Corrêa, em julho de 2003, no Rio d
e Janeiro.
143
aparelho, conforme corrobora Marco Antônio Coelho Tavares
351
em seu depoimento,
dizendo que
“o Câmara, em toda trajetória dele, ele sempre foi muito modesto. (...)
nesse finalzinho de vida dele, quando ele assumiu esse papel, ele aparece
como uma figura proeminente. Não, ele era sempre um sujeito de bastidor,
quer dizer, que não aparece muito, mas trabalhando diariamente, e um ativista
full time. Principalmente aqui em São Paulo. Ele sempre militou só em São
Paulo. Ele se dest
acava assim por todo mundo. Tinha o maior respeito por ele.
Ele se comportava muito fraternalmente com todo mundo. Era assim uma
figura desses homens que carregavam o piano. Muito inteligente. Culto. Ele
fazia os artigos dele dando a opinião dele, mas com muita modéstia, sem se
destacar muito e atuando mais na intelectualidade com muita prudência. Um
homem que se fosse preciso ficar duzentos anos na clandestinidade, ele
ficava. (...) Numa organização política, pessoas assim são indispensáveis
porque são eles que articulam, que unificam, que levam a orientação. É um
cimento interno no movimento da organização revolucionária.”
352
Após essas eleições, Câmara Ferreira foi trabalhar na supervisão na assessoria
parlamentar aos deputados do Partido, na assembléia estadual. Sara Mello se lembrou
de que havia necessidade de conseguir terno, roupas para Câmara Ferreira usar nesse
trabalho, o que causava a ela certo constrangimento e vergonha. Nessas ocasiões, ela
dizia:
“Câmara, mas que coisa! Eu ter de arranjar roupas para você! E ele dizia:
Sarinha, se quiser dar uma manivelada na história da vida, eu recomeço tudo outra
vez.”
353
Entretanto, esse período de legalidade do Partido não durou muito, pois em
1946, a conjuntura nacional e internacional mudaram, determinando nova situação para
o PCB.
Pedro Estevam da Rocha Pomar enfatiza que o combate às forças de oposição
não obedecia meramente a determinações de ordem ideológica ou política da Guerra
351
Marco Antônio Coelho Tavares militante comunista, deputado do PCB. Militou com Joaquim Câmara Ferreira em
Soa Paulo.
352
Conforme depoimento de Marco Antônio Coelho Tavares, em maio de 2003, em São Paulo.
353
Sara Mello, depoimento.
144
Fria, que se torna a principal determinante internacional no período. Havia uma
determinação econômica que segundo ele, era a seguinte:
“o ritmo de acumulação do capital industrial exigia taxas crescentes, que por
sua vez requeriam a compressão dos salários e, conseqüentemente, a
repressão às demandas dos trabalhadores, ou o “confisco salarial. (...) Esse
direcionamento combinava-se com a reconversão do aparelho de Estado ao
liberalismo econômico: desativação ou reorientação dos controles estatais da
economia em favor do grande capital nacional e estrangeiro.”
354
no plano internacional, em março de 1946, o ex-primeiro ministro britânico
Winston Churchill, em discurso feito em Fulton, nos E.U.A, lançou a expressão “cortina
de ferro”, procurando separar os países capitalistas dos socialistas, o que levou no ano
de 1947 ao início da “guerra-fria” entre E.U.A e URSS. A partir desse momento, iniciou-
se uma perseguição aos comunistas em todo o bloco capitalista.
No Brasil, isso teve uma enorme repercussão, provocando campanha contra o
PCB por parte de setores da classe dominante, que, juntamente com o então
presidente Dutra, que assumira a presidência no lugar de Getúlio Vargas, começaram a
fechar o cerco, objetivando impedir o crescimento do Partido. Começou a articular-se a
cassação da legenda do Partido, o que pode ser constat
ado em março de 1946, por um
telegrama do encarregado de negócios da embaixada americana no Rio de Janeiro,
onde consta: “a polícia política elaborou uma lista dos mais proeminentes comunistas
e seus endereços, e recebeu instruções para fazer preparativos para prendê-
los
imediatamente após a promulgação do decreto, se ele vier a ser assinado.”
355
354
POMAR, Pedro Estevam da Rocha. A democracia Intolerante. Dutra, Adhemar e a repressão do Partido
Comunista (1946
1950).
São Paulo: Arquivo do Estado SP/Imprensa oficial do Estado, 2002, p. 24.
355
Documento 832.00 B33-746, Washington National Archives, apud SEGATTO, José Antônio. Breve História do
PCB.
2.ed. Belo Horizonte: Oficina de Livros, 1989, p. 67.
145
Conforme Segatto, a partir desse momento, os comunistas passaram a ser
“acusados de serem dirigidos por uma potência estrangeira, teleguiados de Moscou,
espiõ
es soviéticos, além de instigadores da luta de classes, fomentadores de um
ambiente de caos e desordem, de pretenderem destruir a civilização ocidental cristã.”
356
A operação empreendida pela direita no sentido de isolar o PCB produziu
resultados, e, em sete de maio de 1947, o Tribunal Superior Eleitoral cassou o registro
do PCB por três votos a dois
357
, devido a uma manobra em que se pedia a
impugnação do PCB por causa do nome do Partido. Alegava
-
se que, sendo “do Brasil” ,
significava que era uma represent
ação dos soviéticos no Brasil.
A repressão ao Partido pelo governo Dutra foi violenta, e, segundo Noé Gertel
“ele eliminou cinqüenta e cinco dirigentes do PCB. Vivia-se num clima de
terror. O Partido perdera suas ligações com as massas e as numerosas
pri
sões, embora a maioria fosse temporária, intimidavam muito as pessoas,
particularmente quem tinha responsabilidades familiares.”
358
Além disso, Dutra rompeu ligações diplomáticas com a União Soviética e mais
uma vez o Partido mergulhou em dura clandestinidade. O PCB havia se revelado nas
eleições, como um forte partido urbano, consolidando-se nas cidades, e agora se viu
obrigado a voltar às catacumbas.
Em São Paulo, o governador eleito Adhemar de Barros havia fundado o Partido
Social
-Progressista (PSP) e ganhado as eleições de 1947 por uma “pequena margem
de seus dois concorrentes direto, graças ao apoio recebido dos comunistas, os quais,
nas eleições de 1945, haviam obtido em São Paulo cerca de um terço de sua votação
356
SEGATTO, op. cit., p. 66.
357
Três votos a favor (Cândido Mesquita da Cunha Lobo, F. Rocha Lagoa e José Antônio Nogueira) e dois contra
(Álvaro Ribeiro da Costa e Fr
ancisco Sá Filho)
358
Noé Gertel, depoimento, em junho de 1997.
146
nacional.”
359
Adhemar foi convencido ou pressionado pelo governo federal, a reprimir e
a perseguir seus aliados de véspera, e para isso recorreu principalmente ao
Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), bem como às delegacias de polícia
e à Polícia Marítima.
Joaquim Câmara Ferreira ajud
ou muito nesse período a manter a organização do
Partido em São Paulo, conforme o relato de Armênio Guedes:
“o número de amizades que ele tinha no Partido era muito grande e isso
facilitava muito nosso trabalho dentro da clandestinidade, de aparelhos.
Aju
dava muito mesmo. (...) Era uma das características dele essa grande
preocupação humana com as pessoas, pelos companheiros. (...) fizemos
trabalhos para a revista, pra jornal, juntos aqui. Trabalhamos juntos com os
intelectuais do Partido. Ele tinha muita ligação com os intelectuais do Partido,
que era forte. Tinha jornalistas, escritores, médicos nessa época, no Partido.
Escritores como Afonso Schimidt. (...) Clóvis Graciano, um pintor. (...) O Vila
Nova Artigas, um arquiteto. (...) Tinha médicos famosos como Lerfern, Martins
Costa. (...) O Portinari, o grande pintor (...) enfim, o Câmara tinha muito
contato com essa gente. Ajudava o Partido na organização dessa
clandestinidade.”
360
Nessas novas condições, Joaquim Câmara Ferreira era também responsável de
agitação e propaganda, em São Paulo, sendo diretor do jornal “Hoje” e tendo Jorge
Amado como redator-chefe. O principal instrumento do Partido era a imprensa, e não
podiam correr o risco de perdê
-
la.
O jornal circulava diariamente e, segundo Gertel, chegou a ter edições maiores
que o Estado de São Paulo. A imprensa burguesa abominava a concorrência. Fizeram
pressão para o “Hoje” ser empastelado, e a destruição do jornal tornou-se, pois, um
ponto de honra para a direita. Porém, os comunistas estavam dispostos a defender
suas gráficas e o jornal a qualquer custo. Foi neste processo que Joaquim Câmara
359
POMAR, op. cit., p. 25.
360
Armênio Guedes, depoimento.
147
Ferreira demonstrou toda sua coragem e disposição de luta, no que se referia às suas
responsabilidades partidárias.
Na noite de dois de janeiro de 1948, Câmara Ferreira preparava, na oficina
gráfica situada na Rua Conde de Sarzedas, atrás do Largo da Sé, em São Paulo, uma
edição especial do “Hoje”, comemorativa do cinqüentenário de Prestes. Era quarenta e
sete pessoas no jornal, entre gráficos, redatores, revisores e seguranças, mais o
deputado estadual Estocel de Moraes, que era também comandante da resistência. A
impressora estava instalada no térreo, um salão cimentado dando para a rua, fechado
com portas de aço, onde se esperava um ataque da polícia para apreender a edição. O
governador Adhemar de Barros, através do DOPS, mandou interditar o prédio e
apreender aquela edição de três de janeiro. Soldados da Força Pública, investigadores,
bateram na porta de aço que não foi aberta. Do outro lado, Câmara Ferreira pediu o
mandato judicial. O delegado disse que não tinha e que entrava à força. Então Câmara
Ferreira dizia: “aqui eles não entram! E ao pessoal que rodava o jornal disse: eu atiro e
mato se vocês deixarem alguém roubar o jornal. O jornal vai sair!”
361
A polícia então cercou o jornal e o tiroteio começou e durou a noite toda. A essa
altura, a polícia tentou abrir o portão de aço a machadadas para poder jogar bombas de
gás lacrimogêneo para dentro, pois estavam numa oficina de jornal que tinha as
máquinas embai
xo, rotativas, linotipo.
Câmara Ferreira ligou para o palácio do governo e, como Adhemar não quis
atender,
“falou aos gritos, com alguém de seu gabinete. Disse que estavam ali quarenta
e sete homens dispostos a lutar para defender o jornal, e, se alguma tr
agédia
361
Conforme depoimento de Sara Mello, em maio de 2003, em São Paulo, que ouviu de Estocel de Moraes.
148
ocorresse, a responsabilidade cairia sobre a cabeça do governador, pois não vamos
nos entregar.”
362
A idéia era resistir até de manhã, porque haveria mobilização política dos
deputados, e se poderia negociar uma rendição. Gertel enfatiza que os quarenta e sete
resistiram até quase o amanhecer e se renderam depois que a oficina foi saturada de
gás lacrimogêneo, tornando o ambiente irrespirável. Enquanto isso, do lado de fora,
uma multidão se aglomerava e, deputados estaduais, como Caio Prado Júnior,
do PCB,
exigiam garantia de vida aos resistentes.
Documento da Secretaria de Segurança Pública confirma o relato de Noé Gertel,
embora a data precisa esteja equivocada, ao informar que Câmara Ferreira: “ocupou o
cargo de redator-chefe do jornal ‘Hoje’ Em 5 / 1 / 1948, foi detido por ocasião das
diligências levadas a efeito pela polícia paulista na redação do citado jornal, quando
comunistas que ali achavam receberam os policiais a bala.”
363
De acordo com Sara Mello, Estocel de Moraes morava em sua casa ness
e
período. Não havia sido preso porque ainda tinha imunidade parlamentar, embora
tivesse sido ameaçado pelo comandante das tropas, que disse que ele não perdia por
esperar, pois “lhe arrancaria o couro.” Sara Mello ainda relata que Estocel teria dito a
Mur
illo Mello: “Major (codinome de Murillo Mello), tentaram invadir o jornal, mas eles
resistiram. Tinha mais bala de dentro para fora do que de fora para dentro. (...) Este
Câmara, com aquele jeito de intelectual, é uma fera!”
364
De acordo com Gertel, a defesa à mão armada era uma forma adotada pelo
Partido para sobreviver à feroz repressão do Dutra e do Adhemar, o que, neste caso,
362
Noé Gertel, depoimento, em junho de
1997.
363
D.E.S.P.S., op. cit., p.52.
364
Sara Mello, depoimento.
149
ajudou a desmascarar o autoritarismo de ambos. Os quarenta e sete foram presos e
lavados aos xadrezes do DOPS, na Rua General Osó
rio.
O documento da Secretaria de Segurança Pública confirma a prisão e a
condenação de Joaquim Câmara Ferreira. Neste documento consta uma notícia
publicada pela “Imprensa Popular” de 6 / 1 / 1951 dizendo o seguinte: foi condenado
pelo juiz da 4
a
Vara Criminal de São Paulo a um ano de prisão, pelo fato de, na
madrugada de 3 / 1 / 1948, ter resistido à sua prisão à bala, por ocasião do fechamento
da gráfica “Hoje.”
365
Na prisão, Joaquim câmara Ferreira comandou o processo a que todos
responderam. Coordenou
o comportamento dos companheiros perante a polícia e, mais
tarde, perante o judiciário, e todos foram absolvidos.
No período em que estiveram presos, acabaram organizando o coletivo do
Partido na polícia central.
A dez de janeiro de 1948, são cassados os mandatos dos parlamentares e
suplentes eleitos pela legenda do PCB, e, no dia doze, os comunistas fizeram o seu
último pronunciamento na Câmara Federal, através de Gregório Bezerra.
Segundo Pomar, em fins de abril de 1948, no contexto de uma escalada
anticomunista em São Paulo, o DOPS tomou a iniciativa de entrar em contato com
órgãos similares em outros Estados para trocarem informações sobre o PCB. Em 1949,
a Polícia Política tinha uma relação enorme do seu maior inimigo, através de um
documento de vinte e uma folhas que era uma relação nominal de indivíduos
comunistas, com seus respectivos endereços. Constam do tal documento trinta
dirigentes estaduais, entre os quais: “José Maria Crispim, João Sanches Segura,
365
D.E.S.P.S., op. cit., p.52.
150
Armando Mazzo, Caio Prado Júnior, Milton Caires de Brito, Roque Trevisan, Zuleika
Alembert, Joaquim Câmara Ferreira, Osvaldo Pacheco, Nestor Vera, Mario Schenberg.”
366
Com o Partido empurrado para a clandestinidade, seus jornais fechados, seus
Comitês Democráticos dissolvidos, seus líderes sindicais afastados pelas intervenções,
seus parlamentares cassados, seus militantes perseguidos ferozmente, o PCB
começava a sentir a diminuição de sua força e influência, e difundiu-se entre os
militantes o amargo sentimento de que haviam superestimado a liberal
democracia.
Num documento intitulado “Como enfrentar os problemas da revolução agrária
Antiimperialista, Prestes critica as posições políticas que os comunistas haviam
defendido em 1945 1946, vendo nelas perigosas tendências oportunistas, e ao
reformismo
.”
367
Prestes, criticando a postura do PCB, ao mesmo tempo advertia para tendências
“esquerdistas” opostas, que poderiam vir a se manifestar na correção dos desvios
“direitistas” por ele criticados.
Mesmo com todas advertências, a partir desse mesmo ano de 1948, a linha do
PCB descambou para um acentuado “esquerdismo”, passando a
“exigir a derrubada imediata do governo Dutra. Através da formação de uma
frente, composta por todos aqueles que lutavam contra o imperialismo, o
feudalismo e o capitalismo, pregava-se a instalação de uma governo
democrático, progressista e nacionalista.”
368
Em 1949, os militantes presos foram soltos e absolvidos daquele processo
alienatório de editar um jornal. Câmara Ferreira foi trabalhar na direção do CR. Mais
366
POMAR, op. cit., p. 60.
367
KONDER, op. cit., p. 73.
368
Manifesto do PCB de 1948.
In: CARONE, Edgard.
O PCB.
1943
1964.
V. 2 São Paulo: Difel, 1982, p. 73.
151
tarde, em agosto desse ano, os comunistas de São Paulo, em substituição ao jornal
“Hoje”, lançaram o periódico “Notícias de Hoje”
369
, no qual Câmara Ferreira se tornou
diretor responsável e continuou atuando dentro das diretrizes estabelecidas pelo
Partido.
Nessa nova política estabelecida pelos comunistas de reagirem com
radicalização revolucionária, vários trabalhos foram desenvolvidos, como a atuação
comunista em relação aos sindicatos e aos camponeses, além de outras atividades
como o monopólio do petróleo, contra o envio de soldados brasileiros à guerra da
Coréia, pela paz mundial. No campo sindical, a atividade baseou-se no combate aos
sindicatos existentes, subordinados ao Estado, ao mesmo tempo em que se dedicou à
criação de sindicatos paralelos e independentes, na fo
rma de associações.
O “Notícias de Hoje”, comandado por Joaquim câmara Ferreira, veio ao encontro
desse objetivo, como relata Geraldo Rodrigues dos Santos, o Geraldão. Este havia sido
dirigente sindical em Santos. No início do ano de 1950, veio a atuar na direção do
partido, em São Paulo, onde conheceu Joaquim câmara Ferreira, que era o diretor
responsável pelo jornal. Geraldão enfatiza que, nessa época “ele (Câmara Ferreira)
gostava sempre que eu fizesse uma matéria para o jornal e transmitisse algumas
exp
eriências do movimento sindical.”
370
Segundo Pandolfi, numa total consonância com a nova postura que vinha sendo
adotada, em agosto de 1950 o CC lançou um novo manifesto referendando as posições
369
PCB.
1922
1982. Memória Fotográfica.
op. cit., p. 96.
370
Conforme depoimento de Geraldo Rodrigues do Santos, em março de 2003, no Rio de Janeiro.
152
do manifesto de janeiro de 1948
371
, onde se enaltecia a via armada para a tomada do
poder.
A partir daí, o PCB buscava o exemplo do levante de 1935 e, de acordo com a
nova tese, o proletariado, liderado pelo partido de vanguarda, dirigiria a processo
revolucionário através de uma Frente Democrática de Libertação Nacional, com uma
base formada pela força indestrutível da aliança operário-camponesa, que poderia
também incorporar outros setores da sociedade, inclusive a burguesia nacional,
disposta a apoiar o movimento revolucionário contra o imperialismo, contra o la
tifúndio
e os restos feudais.”
372
Getúlio Vargas foi eleito em 1950 sem os votos dos comunistas, que haviam
prezado o voto em branco e o aliado de 1945 era considerado um governo de “traição
Nacional”, embora tenha sido maciçamente sufragado pelo proletariado paulista. De
acordo com Gorender
373
,
“Getulio se elegeu e ficou o tempo todo de seu governo sob o
ataque incessante do PCB.”
374
Conforme Noé Gertel, foram grandes as dificuldades da vida partidária nos anos
50, pois,
“com o manifesto de agosto de 1950, o Partido deu um passo atrás,
consolidando sua ruptura com a realidade. Naquela época, Prestes estava
clandestino, até do próprio Partido. O Diógenes Arruda Câmara, que tornou
-
se
secretário da organização do Partido na reorganização que seguiu-se a
anistia,
assumiu automaticamente o controle da segurança de Prestes. (...) A
atividade do Partido passou assim por um período de grande sectarismo,
abalado por notáveis terremotos.”
375
371
PANDOLFI, op. cit., p. 174.
372
CARONE, Edgard.
O PCB.
1943
1964.
op. cit., p. 108
112.
373
Jacob Gorender foi membro do Comitê Central do PCB, militante do partido por muitos anos e fundador do
Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR). Foi amigo de Joaquim Câmara Ferreira durante militância, em
São Paulo.
374
Conforme depoimento de Jacob Gorender, em maio
de 2003, em São Paulo.
375
Noé Gertel, depoimento, em junho de 1997.
153
A imprensa do Partido atuou na direção dessa critica ao governo Vargas, e
Joaq
uim Câmara Ferreira teve papel importante agindo dentro dos “Notícias de Hoje”, a
ponto de, em 1949 e 1950, ter sido denunciado pela 8
a
e 10
a
Varas Criminais por
crimes de imprensa, injúrias e ofensas às autoridades constituídas
376
. Foi ainda nesse
ano de 1950 que Joaquim Câmara Ferreira, juntamente com Armênio Guedes, que era
responsável pela propaganda do Comitê Estadual, programaram uma manifestação
contra a visita do então Secretário de governo americano John Foster Dulles
377
, em
São Paulo.
A manifestação foi programada para a Praça da Sé, onde foi queimada a
bandeira americana e foi feito um discurso relâmpago. Armênio se lembra de que
discutiu com Câmara Ferreira como se daria o ato, e que este ficou responsável por
levar a bandeira embebida em gasolina, para não ocorrer nenhum imprevisto. O local
escolhido era estratégico, pois, naquela época a Praça da em estilo europeu, era
enorme, devido ao fato de ainda não existir o metrô. O horário estipulado para as cinco
horas da tarde ajudou o ato a ter repercussão, pois havia muitas linhas de ônibus com
milhares de pessoas que circulavam pela praça neste momento, tudo isso sem contar o
fato de que o momento, e o movimento de pessoas dificultava a ação da polícia.
A manifestação deu tão certo que acabou saindo na revista Times: “Comunistas
queimam a bandeira americana em São Paulo.”
Armênio Guedes enfatiza que a forma de Joaquim Câmara Ferreira fazer
jornalismo contribuía muito para essas ações partidárias. De acordo com ele
376
D.E.S.P.S., op. cit., p.40.
377
Segundo Jacob Gorender quando os Estados Unidos eram governados pelo general Eisenhower –
republicano
o
Secretário de Estado era John Foster Dulles, um dos expoentes reacionários daquele período. In: Revista Brasileira
de História, v.23, nº45, p.304.
154
“Câmara Ferreira não era um sujeito carrancudo, estava sempre de bom
humor (...) e sempre achando soluções dos problemas complicados. Ele
encontrava sempre uma solução para levantar fundos para o jornal, ter apoio
para o jornal ou para uma ação que a gente ia fazer. (...) Era um sujeito que
organizava pela convicção. Levava os outros a trabalhar, a ter entusiasmo
pelo trabalho, sem ser mandonista.”
378
Ao assumir o governo em 1951, Getúlio Vargas colocou em prática a mesma
política nacional-populista que pusera em prática após 1945 até sua deposição, no
mesmo ano. Havia, porém, um clima de liberdades democráticas e existência, mas o
PCB, porém, permaneceu na oposição, principalmente no movimento sindical , área em
que Vargas disputava a
“hegemonia através do PTB e dos dirigentes sindica
is (pelegos)
mantidos pelo Ministério do Trabalho.”
379
O clima de liberdades democráticas e
existência de liberalização em relação ao repressivo Dutra permitia, entretanto que os
comunistas se movimentassem com certo desembaraço na cena política, inclusive
com
sua imprensa circulando normalmente, embora os líderes comunistas continuassem na
clandestinidade extremada, muito mais por concepções políticas próprias do que pela
realidade objetiva.
Dentro dessa política, o Partido sofreu dificuldades eleitorais e
perdeu o apoio da
intelectualidade. As greves que foram impulsionadas pelo Partido, neste período,
fracassaram, a rede de militantes de base, tanto nos sindicatos como nos bairros e em
outros setores sociais, se desfez, e muitos abandonaram o Partido: “dos 200.000
inscritos em 1947, o Partido comunista se viu reduzido, no início da década de 50, a
cerca de 20.00, ou seja, a 10% dos seus efetivos.”
380
A partir desse retrocesso no
378
Armênio Guedes, depoimento.
379
REIS, Dinarco.
A luta de classes no Brasil e o PCB.
Vol. 1,2. São Paulo: Novos Rumos, s/d., p.86.
380
VINHAS, op. cit., p. 130.
155
movimento sindical, o Partido foi obrigado a rever sua posição, pois as massas
operárias não acompanhavam o Partido nessa direção.
Em 1952, Joaquim Câmara Ferreira e Estocel de Moraes foram mandados para
o Rio de Janeiro, e Câmara permaneceu durante esse ano. Segundo Sara Mello,
Estocel de Moraes era o secretário do CR de São Paulo, e Orlando Pioto, um operário
tecelão, era o secretário do Comitê Estadual. Havia, porém, algumas divergências de
Pioto com Estocel de Moraes e Câmara Ferreira em relação a questões partidárias, e
os dois foram mandados para o Rio de Janeiro, não propriamente como castigo, mas
por alguns desentendimentos.”
381
Sara se lembra ainda que
“como Estocel vivia muito lá em casa, às vezes os dois se encontravam
(Estocel e Pioto), e eu ouvia muita discussão, até, assim, um pouco agressiva.
O cidadão cobrava muito do Estocel. (...) Eu me lembro que o Pioto cobrava,
reclamava. (...) Eu sei que depois de uns tempos, o Estocel foi mandado para
o Rio, e o Câmara também. Os dois se davam muito bem. Me lembro que
no apartamento (de Sara e Murillo) tinha um terracinho. Os dois ficavam
andando no terraço, os dois conversando.”
382
Roberto Cardieri Ferreira também confirma essa ida de seu pai para o Rio nesse
ano, pois, estando ele com 6 anos de idade e em fase de ingresso na escola, iniciou
nesse ano seus estudos na an
tiga capital do Brasil.
Em relação às atividades exercidas por Estocel e Câmara no Rio, não
conseguimos precisar do que se tratava, mas, de acordo com Sara Mello, eles estavam
ligados a trabalhos do Comitê Central.
Ainda em 1952, o Comitê Central do PCB resolveu realizar um amplo “ativo
sindical nacional” e aprovou uma resolução que permitiu, nessa área especifica, uma
381
Conforme depoimento de Sara Mello, em agosto de 2003, em São Paulo.
382
Sara Mello, depoimento, em agosto de 2003.
156
mudança de orientação. A “revolução sindical” de 1952 confirmou a prática e
determinou que os comunistas voltassem aos sindicatos existentes
, e que
“recolhessem
as reivindicações próprias dos trabalhadores, forjassem alianças com as forças ali
atuantes, especialmente os políticos, e retomassem a luta pela sindicalização e pela
unidade sindical.”
383
A partir desta nova estratégia, os comunistas obtiveram sucesso na conjuntura
da crise econômica que houve no período, principalmente na direção de grandes
greves, particularmente a dos 300.000, em 1953, em São Paulo.
de volta a São Paulo, Joaquim Câmara Ferreira foi um dos organizadores de
proa dessa greve operária, de acordo com Gertel. Podemos ter uma dimensão mais
precisa da participação de Câmara Ferreira ao analisarmos o papel da imprensa
comunista no episódio. Segundo Gorender, “o jornal comunista Notícias de Hoje”, com
uma vendagem diária d
e quatro a cinco mil exemplares, tornou
-
se praticamente o órgão
oficial dos grevistas e chegou à vendagem de vinte e cinco mil exemplares.”
384
As negociações durante a greve foram mediadas pelo então governador de São
Paulo Lucas Nogueira Garcez, antigo ami
go de Câmara Ferreira e de sua família.
Finalmente, após 29 dias, a greve terminou com a conquista, por parte da massa
trabalhadora, do direito de greve, além da derrubada do ministro do Trabalho, Segadas
Vianna, e a ascensão de João Goulart, que iniciou sua gestão aumentando em 100%
os salários dos trabalhadores.
Além do jornal “Notícias de Hoje”, em 1953, Câmara Ferreira era um dos
dirigentes do Comitê Regional do Interior de São Paulo (CRI).
“O Partido, em São Paulo
383
VINHAS, op. cit., p. 130.
384
GORENDER, op. cit., p. 26.
157
havia sido dividido, do ponto de vista da estrutura de organização, em dois Comitês: o
Comitê de Piratininga, que era dedicado a cidade de São Paulo, e o Comitê do
interior.”
385
Marco Antônio Coelho foi para São Paulo, neste período, para trabalhar como
professor na escola de Quadros que o Partido mantinha, e se ligou a Câmara Ferreira,
que era quem fornecia os alunos.
A partir do ano de 1954, Joaquim câmara Ferreira passou a ser o secretário de
Agitação e Propaganda (Agit-prop) em substituição a Jacob Gorender, conforme relatou
Alberto Castiel, que foi membro do PC francês e do PCB, e desde 1952 trabalhava
nesse secretariado. Castiel diz ter excelente lembrança de Câmara Ferreira:
companheiro, amigo, jovial, com uma grande experiência no Partido.
O trabalho nesse secretariado, que era muito árduo, de acordo com Alberto
Castiel
386
, com Câmara Ferreira foi muito agradável, pois o nosso personagem dava
muitas oportunidades, pois sabia descentralizar o trabalho e valorizar os homens
387
.
Câmara Ferreira, nesse período, indicou Castiel para responsável político do
noticiário do Partido “Notícias de Hoje” e, em varias ocasiões, conforme as palavras de
Castiel:
“a polícia ameaçava destruir, invadir o local onde funcionavam as impressoras
do jornal, e, neste caso, o Câmara convocara companheiros, a mim i
nclusive,
para permanecer na sede da impressora. Havia distribuição de armas (...) Mas
nós permanecíamos para defender a gráfica, e felizmente não houve
invasão.”
388
385
Marco Antônio Coelho, depoimento.
386
Alberto Castiel foi membro do Partido Comunista Francês (PCF) e do PCB. Foi amigo e trabalhou com Joaquim
Câmara Ferreira no jornal do partido, em São Paulo.
387
Conforme depoimento de Alberto Castiel, em maio de 2003, em São Paulo.
388
Alberto Castiel, depoimento.
158
O trabalho realizado por Câmara Ferreira no jornal pautava-se por uma
descentralização,
e Castiel podia se reunir com outros jornalistas do “Notícias de Hoje”
para discutir estratégias. Além disso, Castiel, que era jornalista quando militava na
Europa, adquiriu a carteira que lhe garante até hoje o exercício desta profissão devido à
insis
tência de Câmara Ferreira. Naquela época não havia formação superior de
jornalismo.
Luiz Mário Gazzaneo disse, em relação ao trabalho jornalístico de Câmara
Ferreira, que:
“o Câmara era responsável pelo editorial mesmo, às vezes, ele não
escrevendo o editorial. O editorial passava pelo crivo dele. E ele fazia uma
reunião com os responsáveis pela redação, uma reunião diária com os
responsáveis pela redação para acertar, definir as principais matérias. Era um
trabalho jornalístico normal. Ele era o vínculo do jornal com a direção do
Partido. E dentro do jornal ele era a direção do Partido. Mas mesmo sendo a
direção do Partido que, muitas vezes, ele tinha sido, ele era uma pessoa
flexível, sensível e atenta a importância da informação.. Mesmo sendo um
jornal or
ientado, com uma linha política definida. Mas ele era, ele procurava na
medida do possível fazer com que o jornal refletisse o que estava acontecendo
de importante. E esse era um mérito do Câmara.”
389
O trabalho no jornal do partido não era fácil, devido às tremendas dificuldades
financeiras,
“o que levava a atrasar os salários que eram baixos, e criava o que era
natural: insatisfação”
390
, pois os jornalistas “por vezes não tinham o mínimo necessário
para levar o sustento para a família.”
391
Castiel afirma ainda que Joaquim Câmara Ferreira era excelente jornalista, mas
que escrevia e, na maioria das vezes, não assinava os textos. Entretanto, no ano de
1954, Câmara Ferreira pediu a Sara e Murillo Mello que fossem ao Rio de Janeiro
389
Conforme o depoimento de Luiz Mário Gaz
zaneo, em maio de 2006, no Rio de Janeiro. Luiz Mário gazzaneo foi
jornalista do PCB, em São Paulo, durante vários anos e trabalhou por um longo período com Câmara Ferreira no
“Notícias de Hoje.”
390
Alberto Castiel, depoimento.
391
Idem.
159
prestar solidariedade ao companheiro de Partido Estocel de Moraes, que estava muito
doente e acabou vindo a falecer. Em homenagem ao militante e amigo, Câmara
Ferreira escreveu um lindo artigo no jornal, que tinha o seguinte título: “adeus,
camarada Pedro (codinome de Estocel de Moraes no Partido).”
392
A preocupação de
Câmara Ferreira em relação a Estocel de Moraes tinha fundamento e refletia seu perfil
humano: segundo Murillo Mello, no hospital, durante a doença de Estocel, estavam
presentes ele e Sara Mello, do PCB.
É bom salientarmos que o fato de Câmara Ferreira ter se tornado secretário de
Agitação e Propaganda não significa que não continuasse trabalhando no jornal, pois
Moacir Longo, que militou no PCB junto com o nosso personagem, esclarece que
“o
Câmara além de diretor do jornal, ele tinha uma militância como dirigente do Partido.
Ele participava das reuniões de direção, dava assistência a outros órgãos partidários.
Enfim, ele desempenhava a função de dirigente.”
393
Sara também reforça a intensa atividade partidária de Câmara Ferreira, ao dizer
que:
“nunca o Câmara se habituou a isso ou aquilo. O que tinha que fazer, em
circunstâncias quaisquer, ele seria o homem para assumir. Na
clandestinidade, na legalidade. Ele tinha essa qualidade. (...) Era o trabalho
legal do” Notíc
ias de Hoje”, da fração parlamentar, das finanças do Partido, de
contatos com todo mundo, era o Câmara.”
394
É interessante notar que, ás vezes, até para algumas questões de cunho pessoal
e familiar, Câmara Ferreira era chamado como mediador. Sara se lembra de que, num
dia, a esposa de um companheiro o procurou para reclamar do marido que era militante
do Partido. Sara foi até Câmara Ferreira que, juntamente com outro companheiro
392
Sara Mello, depoim
ento, em agosto de 2003.
393
Conforme depoimento de Moacyr Longo, em outubro de 2003, em São Paulo.
394
Sara Mello, depoimento, em agosto de 2003.
160
partidário, foram até a casa do tal militante e chamou-lhe a atenção, mostrando como
que um comunista se porta com a companheira, a obrigação de uma ética, de
tolerância, de ser grato pelo trabalho que a companheira faz.
Em relação ao trabalho de agitação e propaganda realizado com intensidade
pelo Partido durante esse período, An
tônio Carlos Mazzeo esclarece que
“em sua linha de aplicações mecânicas de concepções e de resoluções
políticas, o PCB não conseguiu adequar os aspectos positivos de uma
interpretação teórico-analítica, presentes em suas diretrizes, à necessária
habilida
de para flexibilizar à condução política de seu projeto, e, com isso,
transformou a tática a ser construída pela Frente Democrática em ação
principista imediata realizada, aliás, com enorme grau de sectarismo, que
acaba tendo muito mais a função de ‘agitação e propaganda’ que elementos
pragmáticos a serem desenvolvidos por meio da articulação de um bloco de
políticos democrático e popular.”
395
No trabalho realizado no jornal, de acordo com Longo, Câmara Ferreira sofreu
algumas prisões, como outros militantes do Partido. É bom ressaltarmos que Câmara
Ferreira estava exposto, pois, enquanto alguns dirigentes estavam na clandestinidade,
ele tinha de comparecer ao jornal todos os dias, “pois cuidava do trabalho do jornal,
fazia textos, ele ajudava a catar recursos para o jornal, enfim, todas essas tarefas, e
isso expunha ele mais do que os outros.”
396
Outro ponto importante que devermos salientar é a postura de Câmara Ferreira
enquanto dirigente municipal e estadual do PCB, o que pode ser constatado nas
palavras
de Castiel, ao dizer que
“embora na época a direção do Partido em todos os escalões fosse muito
autoritária , um comando do tipo militar, o Câmara Ferreira não dirigia de
acordo com esses métodos. Ele era compreensivo, humano e em muitas
reuniões das quais eu participei com a presença do Arruda, o Arruda criticava
395
MAZZEO, Antônio Carlos. Sinfonia Inacabada
A Política dos Comunistas no Brasil.
São Paulo: Boitempo,
1999, p. 77.
396
Moacyr Longo, depoimento.
161
sem razão, criticava asperamente o Câmara Ferreira por ser liberal. Ser liberal
no Partido era uma espécie de ofensa, quando deveria ser o contrário. Ser
liberal era ser mais humano e não exerce
r um tipo de direção que na época se
chamava Stalinista.”
397
Mesmo atuando no movimento operário e nas greves, em 1953, como vimos
anteriormente, a verdade é que a linha política do manifesto de agosto continuou dando
a orientação política para o PCB em 1954, e, na manhã de 24 de agosto, quando o
Brasil era sacudido pelas notícias do suicídio de Vargas, orquestrado pela “pressão dos
monopólios estrangeiros, capitalistas nacionais e militares reacionários”
398
, o jornal do
Partido, a Imprensa Popular, ainda fazia política contra o governo com a seguinte
manchete:
“abaixo o governo de Traição Nacional de Vargas”
399
.
Entretanto, a
comoção nacional em torno do suicídio e as manifestações populares que se seguiram
deixaram os comunistas perplexos a ponto de se aproximarem espontaneamente das
massas getulistas.
E foi ainda em meio a essa crise política que o PCB, entre os dias 7 e 11 de
novembro desse mesmo ano, realizou seu IVº Congresso, vinte e cinco anos após o IIIº.
O IVº Congresso do Partido, manteve a política que preservava os comunistas
do contato com a realidade, de acordo com Moisés Vinhas:
“o congresso se realiza como se nada tivesse acontecido, como se a situação
política não tivesse sofrido alterações substanciais (...), nenhuma mudança foi
introduzida
no programa do Partido, que continua pregando a derrubada do
governo de latifundiários e grandes capitalistas à base de uma leitura que
considera o Brasil um país semicolonial e semifeudal. (...).”
400
397
Alberto Castiel, depoimento.
398
VINHAS, op. cit., p. 133.
399
SEGATO, op. cit., p. 80.
400
VINHAS, op. cit., p. 133.
162
Porém, na prática, algumas posições foram mudadas em função dos
acontecimentos vistos anteriormente, aos quais o PCB foi levado a aderir. E, apesar da
postura antidemocrática na escolha dos delegados presentes no Congresso e da
manipulação pela direção, que não permitiu aos participantes discutirem amplamente
os problemas do Partido, havia evidências reais de que as coisas não poderiam
continuar como estavam. As repercussões disto começaram a aparecer na eleição de 3
de outubro de 1955, quando o PCB apoiou a candidatura à presidência de Juscelino
Kubitschek (Partido Social-Democrático (
PSD)
Partido Trabalhista Brasileiro (PTB),
que acabou vencendo com uma pequena vantagem sobre Juarez Távora
(União
Democrática Nacional
-
UDN)
. O vice
-
presidente eleito foi João Goulart.
JK iniciou seu governo em janeiro de 1958, sob estado de sitio, pois, a 11 de
novembro do ano anterior, o ministro da Guerra de Café Filho (vice-presidente de
Getúlio Vargas), Marechal Lott, havia sido obrigado a comandar um golpe antigolpe
para evitar uma conspiração que visava impedir a posse
de JK e seu vice. Ao analisar o
período JK, Dulce Pandolfi afirma:
“duas tendências distintas e antagônicas coexistiam no governo Kubitschek.
De um lado, as forças patrióticas, progressistas e democráticas; do outro, as
forças reacionárias, aliados do imperialismo. Caberia ao PCB explorar essas
contradições e exigir um compromisso maior com as reivindicações
populares.”
401
Joaquim Câmara Ferreira exerceu uma intensa atividade na imprensa do Partido
durante esse período. Sua atividade era acompanhada de perto pelos órgãos de
segurança que mapeavam seu trabalho no jornal do PCB, conforme podemos constatar
nos documentos deste órgão, nos quais aparece o seguinte:
401
PANDOLFI, op. Cit., p. 177.
163
“tomou parte no ‘Festival da Imprensa Popular’, levado a efeito no teatro
Colombo a 3 de março de 1955, ocasião em que foi longamente ovacionado
pela assistência, que prestou, assim, uma homenagem ao Partido Comunista
Brasileiro, uma vez que Joaquim Câmara Ferreira encarna as idéias desse
partido.”
402
Ainda no mesmo documento, podemos encontrar:
“d
iscursos por ocasião da
instalação da sede da Comissão Central da Campanha do mês da Imprensa conforme
divulgação no jornal ‘Notícias de Hoje’, em publicação de 1° de maio de 1955.”
403
Constatamos, ainda:
“participou da mesa de trabalhos, na reunião efetuada no Teatro Municipal de
Campinas, a 15 de março de 1955, pró-lançamento naquela cidade da
‘Imprensa Popular’, tendo discursado sobre carestia de vida, trustes
americanos etc.”
404
Ainda no mesmo documento, encontramos:
“pregou uma conferência sobre o tema: ‘De que ponto de vista encarar a
realidade brasileira’ patrocinado pela revista Fundamento, cujos diretores são
conhecidíssimos militantes comunistas. A referida conferência teve lugar na
Biblioteca Municipal, em 8 de novembro de 1955.”
405
Todavia,
a partir da segunda metade dos anos 50, não a conjuntura brasileira
como as mudanças no cenário internacional provocaram crises no interior do PCB. Em
janeiro de 1956, Nikita Kruschev, o sucessor de Stalin, falecido em 1953, apresentou,
durante o XXº Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PUCS), um
relatório secreto denunciando os crimes do Stalinismo. Conforme Jacob Gorender
“esse documento pela primeira vez revelava na URSS uma parte dos crimes
de Stálin embora não todos. Era a primeira vez que o secretário era
apresentado como criminoso e assassino, e também a primeira vez que um
402
D.O.P.S.
Documento 178, f.3
Arquivo Público de São Paulo.
403
Ibid.
404
Ibid
.
405
D.O.P.S.
Documento 178, f.3
Arquivo Público de São Paulo.
164
documento oficial soviético dizia que o PC podia chegar ao poder pela via
democrática, disputa parlamentar, pela via pacífica. Admitia a coexistência
pacifica entre E.U.A e URSS. Tiveram repercussão nos comunistas de todo o
mundo e em particular no Brasil. O PC brasileiro foi um dos mais atingidos
pelas revelações, por ser Stalinista (...).”
406
Noé Gertel analisa o período da seguinte forma:
“o terremoto levou do Partido 30% dos seus efetivos. Com razão
perguntavam
-se as pessoas se seus sacrifícios serviam apenas para ocultar
delitos de toda espécie ou era jogo das grandes potências. O clima político
nunca mais foi o mesmo. Quebrou-se a confiança nos dirigentes, e o mundo
do Arruda derreteu como sorvete ao sol. Agildo Barata, indignado, afastou-
se
do Partido, com grande número de efetivos. O Joaquim Câmara Ferreira, eu, e
a maioria dos militantes de São Paulo sofremos terrivelmente com aqueles
acontecimentos. (...) O estupor inicial foi substituído pelo desejo de lutar e
melhorar.”
407
Joaquim Câmara Ferreira foi, nesse momento, um dos militantes que ajudou na
tentativa de se encontrar novos caminhos, conforme analisa Marco Antônio Coelho
Tavares, em suas memórias:
“havia uma tendência geral a jogar todas as falhas nas costas de Prestes, o
que não deixava de ser uma absolutização e uma forma de ‘culto à
personalidade’ às avessas. No entanto, alguns dos velhos militantes
raciocinavam na linha do bom senso, interessados sobretudo no que fazer daí
em diante. Entre eles, Dinarco Reis, Câmara Ferreira, Ramiro Luchesi e
Antônio Chamorro (...).”
408
Essa posição tomada por Câmara Ferreira condizia com as posições por ele
assumidas no decorrer de toda sua militância no PCB, e os depoimentos de Moacir
Longo e Zuleika Alembert confirmam tais posições. Moacir Longo, de sua vez, diz o
seguinte sobre a postura de Câmara Ferreira frente aos debates no Partido:
“o Câmara parecia uma moça, sua pessoa extremamente bondosa, muito
equ
ilibrado. Muito solidário com as pessoas. Era muito raro explodir, ficar
406
Jacob Gorender, depoimento.
407
Noé Gertel, depoimento, em junho de 1997.
408
Marco Antônio Coelho, depoimento.
165
nervoso etc. Ele era uma pessoa muito afável. E essa é uma característica
dele que, segundo pessoas que o conheceram mais jovem, era desde o tempo
em que ele era mais jovem. Ele, como ser humano, como figura humana, era
uma pessoa ímpar. Todo muno se dava muito bem com ele, do ponto de vista
de relacionamento etc. E, na atividade partidária, na militância, ele foi sempre
um militante, digamos assim, nem um pouco exacerbado, entende, de se
apegar a dogmas e também nas disputas internas, na chamada luta interna.
Ele sempre era um ponto de equilíbrio nas disputas. Uma pessoa muito
ponderada.”
409
E Zuleika Alembert
410
:
“o Câmara era uma pessoa, um gentleman. Assim muito delicado. Muito lig
ht.
Por isso é que eu digo a você que não entendo como ele terminou na luta
armada. Não entendo até hoje. (...) Ele nunca foi sectário, nunca foi estreito.
Era uma pessoa, pelo contrário, muito tranqüila, muito calma. (...) Mesmo nas
reuniões políticas do CC nunca vi ele se destemperar. Era sempre uma
pessoa fina. (...) Ele destoa um pouco das demais. (...) O Câmara tava sempre
do lado das posições amplas. (...) Não me lembro de ver nele uma posição
esquerdista.”
411
Além das questões partidárias, Joaquim Câmara Ferreira se preocupou também
com o apoio solidário ao companheiro da direção do CC, que, conforme vimos
anteriormente, pela análise de Alberto Castiel, muitas vezes lhe foi hostil. Tratava-se de
Arruda Câmara, que inclusive havia ido ao XXº Congresso do Partido Comunista da
União Soviética, quando foram feitas as denúncias dos crimes de Stalin.
Conforme se lembra Sara Mello
“o Câmara vai em casa na nove de julho, e diz: Sarinha, Murillo. Eu vou
trazer o Arruda aqui, falem com ele. Ele está muito amargurado. Ele está
achando que os erros do culto à personalidade foi por causa dele. uma
ajuda para ele. Ele levou o Arruda que passou a ir algumas vezes em casa.
E nós ajudamos. (...) Viu o Arruda sofrendo, ele leva lá em casa.”
412
409
Moacyr Longo, depoimento.
410
Zuleika Alembert foi militante ativa do PCB e foi
membro do Comitê Central. Muito amiga de Câmara Ferreira.
411
Conforme depoimento de Zuleika Alembert, em outubro de 2003, no Rio de Janeiro.
412
Sara Mello, depoimento, em maio de 2003.
166
Arruda Câmara era o exemplo concreto do abalo que afetou toda a direção
partidária, conforme analisou Dinarco Reis sobre uma reunião ampliada convocada pelo
CC, com a participação de antigos militantes do Partido e membros da delegação que
havia representado o PCB no XX
º Congresso do PCUS.
Dinarco Reis disse o seguinte:
“esta reunião também se caracterizou pela predominância do clima emocional
e pelo desespero de vários dirigentes, incapazes de fazer um exame sereno e
equilibrado visando apresentar contribuição sensata e construtiva nessa
conjuntura, sem dúvida difícil, que atravessava a direção do Partido, mas que
se refletia em todo o seu conjunto.”
413
A partir desse momento, iniciou-se um debate franco e público sobre a situação
através dos jornais a Voz Operária e Imprensa Popular, e se propunha que não podia
ser adiada uma decisão que havia se iniciado nas cabeças. Esses debates, iniciados
pelos jornalistas do Partido, acabaram sendo acolhidos por parte da direção como
necessários, e, nos meses que seguiram, os militantes e simpatizantes exteriorizam
suas dúvidas, remorsos, irritações, apreensões e mágoas, nas páginas dos jornais do
Partido. Também o “Notícias de Hoje”, dirigido por Câmara Ferreira, abriu espaço para
essas discussões.
Luiz Mário Gazzaneo trabalhou com Câmara Ferreira no “Notícias de Hoje”
durante todo esse período. Disse que Câmara Ferreira poderia ser definido como um
revolucionário tranqüilo, uma pessoa equilibrada, sensível e uma figura humana
extraordinária além, de uma figura política e uma pessoa com sensibilidade política.
Em relação ao episódio da denúncia dos crimes de Stálin, Gazzaneo disse que :
413
REIS, op. cit., p. 106.
167
“o Câmara era o diretor do jornal quando houve a crise do XXº Congresso do
Partido, em 56 e 57 quando houve uma verdadeira rebelião que se
localizou
nos jornais do Partido, na época. O foco da rebelião era os jornais do Partido.
Que tipo de rebelião? Uma rebelião para que o Partido discutisse abertamente
as causas e os efeitos da denuncia que o Kruchev havia feito no XXº
Congresso do PCU`S. O comportamento político do Câmara, na redação do
‘Notícias de Hoje’, evitou uma debandada de jornalistas como houve aqui, no
Rio de Janeiro, na ‘A Imprensa Popular’ e como houve na ‘Voz Operária’. A
conduta dele impediu que o Partido interviesse no ‘Notícias de Hoje’ como
interveio na ‘Imprensa Popular’ e na ‘Voz operária’. Apesar das divergências e
do grande debate interno que houve naquele período, ele soube conduzir
aquele processo de modo que as fraturas dentro do jornal não se tornassem,
não se agravassem. Tanto assim, que pelo menos, nos três principais jornais
do Partido que circulavam, no país, na época. Eu repito, a ‘Voz Operária’, ‘A
Imprensa popular’ e o ‘Notícias de Hoje’, quer dizer, o núcleo da redação e a
maioria dos repórteres e redatores (do ‘Notícias de Hoje’) ficaram todos
comunistas, a maioria, pelo menos, constituída de comunistas, discutiram,
participaram, polemizaram. As defecções foram poucas e o jornal passou,
mais ou menos, incólume por aquela crise, graças à ação política do Câmara
que com equilíbrio e com sensibilidade e espírito democrático, sendo o Partido
como era, facilitou muito isso. Esse foi um mérito político eu considero
extraordinário. (...) O Câmara conduziu o debate dentro do jornal e permitiu
que nas páginas do jornal se expressasse aquele debate que era público,
dos comunistas, entre os comunistas e voltado para a sociedade, com uma
sensatez extraordinária. (...) E na crise de 56, 57 quando havia problema. Na
época eu era editor internacional. Quando havia problemas e havia muitas
vezes porque com a chefia de redação , com o secretário da redação, sobre o
enfoque de uma determinada matéria, a importância de uma determinada
matéria. O que caracterizava a postura do Câmara era levar em consideração,
primeiro, a veracidade da informação, segundo, a importância da informação.”
414
É claro que havia por parte de membros da direção partidária que eram mais
ortodoxos, uma tentativa de se impedir que os debates fossem realizados. Segundo
Gazzaneo, a direção estadual do Partido, em São Paulo, nesse período, era de maioria
conservadora. Mesmo sendo contrária que se fizesse o debate no Notícias de Hoje”,
Câmara Ferreira permitiu que as discussões fossem realizadas. Conforme Gazzaneo,
“O Câmara tinha muita autoridade. Ele não era uma pessoa autoritária, mas
tinha autoridade. A palavra dele era respeitada. Não fosse isso, teria havido
uma debandada no ‘Notícias de Hoje’ como houve na ‘Imprensa Popular’, aqui
no Rio, na ‘Voz Operária’. Primeiro, ele se apoiou no coletivo, está
entendendo? Ele deu ao coletivo da redação, transferiu ao coletivo da
redação, sem intervir, o direito de discutir e sugerir, porque não podia tomar
414
Luiz Mário Gazzaneo, depoimento.
168
decisão, qual seria o caminho. Está entendendo? E ele fez isso com muita
habilidade e eu digo o seguinte: aparentemente porque ele sabia qual era o
humor da redação. Ele podia impor a decisão dele porque a decisão dele era a
decisão da direção do Partido. E ele teve choques com a direção estadual do
Partido que estava dividida como todo Partido estava dividido. Que
r dizer, uma
das pessoas a quem ele prestava conta na direção estadual era o Pomar, o
Pedro Pomar que era contra. Tanto assim, que saiu do Partido para fazer
depois, o PC do B. O Pomar era contra a discussão. Ele não queria discutir.
(...) E o Câmara bancou, na direção do Partido, a postura do jornal,
evidentemente que amparado no que os outros jornais estavam fazendo, na
perplexidade da direção do Partido. Mas, na prática, tomou uma posição, a
verdade tem que vir a tona e nós não podemos esconder. Essa foi a postura
dele. Eu vejo, eu vejo a conduta do Câmara dessa maneira. E naquele
período, a direção estadual que era de São Paulo, que era de maioria
conservadora, criou problemas para o jornal. Nós passamos, pelo menos três
meses, a vale. Recebendo vale no fim de semana. O dinheiro que vinha todo
fim de mês regularmente, parou de vir. E o jornal funcionava com recursos,
basicamente com recursos do Partido. Ele tinha venda, alguma popularidade,
mas o grosso dos recursos do jornal subsistir era destinado pelo
Partido. Outro
problema, nós fizemos uma greve simbólica no Partido, no jornal. Quando
houve, quando a crise financeira se agravou e ela tinha conotações políticas
evidentemente, nós fizemos uma greve simbólica e depois dessa greve, os
dois principais, o chefe da redação e o secretário; o secretário se demitiu e o
chefe de redação foi mudado. (...) E o Câmara nesse bololô todo, o que não
queria era perder o controle do jornal. O que ele queria garantir era, primeiro:
que o jornal refletisse aquele estado d
e perplexidade que era de todo Partido e
segundo: que não, quer dizer, que as relações internas não esgarçassem a
ponto de impedir a circulação normal ou de permitir uma intervenção da
direção do Partido que seria desastrosa, naquele momento.”
415
O depoimento de Sara Mello, confirma essa postura de Câmara Ferreira, em
relação ao debate aberto e democrático, dentro do jornal do Partido. Ela ia visitar
Câmara Ferreira na redação do jornal que ficava na Praça João Mendes, e ficou
incomodada com as matérias escritas no quadro, no jornal, onde os jornalistas podiam
anotar inquietudes, revoltas. Então ela disse:
“Câmara, Zinho, eu estou no Estadão ou no jornal do Partido? Porque era um
arraso contra o Partido. Porque o Partido não abria discussão. Porque
precis
ávamos saber o que era aquilo. Como o Partido dificultava a criação de
uma discussão em torno dos crimes de Stalin. Câmara, estou entrado no
Estadão ou no jornal do partido? Ele disse: que fazer Sarinha? É a opinião
deles.”
416
415
Luiz Mário
Gazzaneo, depoimento.
416
Sara Mello, depoimento, em maio de 2003.
169
Os debates, porém, foram tolerados durante um mês, pois, em novembro de
1956, através de uma carta aberta, Luiz Carlos Prestes estabelece o fim da discussão.
Conforme Vinhas, tratava-se de uma “carta rolha”, que, longe de pôr fim a crise,
bloqueou
-a a meio caminho, e a autocrítica assim, tomava novos rumos. A partir daí,
duas tendências tomaram corpo, e foram chamadas de “abridistas” e “fechadistas.”
Alberto castiel, que viveu a crise nesse período e acabou aderindo aos abridistas,
define qual era a posição de cada grupo. De acord
o com sua analise
“(...) Os abridistas defendiam uma posição para o Partido de mais democracia,
mais direção não militarizada, uma linha nova para o Partido que aentão
defendia um de tal de Programa do IVº Congresso no qual se achava que a
luta armada era necessária, e, ao contrário, os fechadistas, cujo maior
dirigente era o Amazonas, e que depois, quando saiu do Partido, constitui o
chamado PC do B. (...) Praticamente eles defendiam, os fechadistas, que tudo
deveria permanecer mais ou menos como esta
va (...).”
417
Vinhas acrescenta que os abridistas tinham à frente o ex-tenente Agildo Barata,
herói do movimento Aliancista, apoiado por boa parte da intelectualidade que exigia
uma autocrítica radical, mas que acabaram progressivamente negando o próprio
Partido e os fechadistas, que por sua vez, eram formados pela maioria da Comissão
Executiva, profundamente comprometida com o status quo anterior, resistentes a
qualquer preço à mudança. Além dessas duas tendências, segundo Vinhas, havia, no
meio, os conc
iliadores, que num primeiro momento reforçaram a esquerda contra direita
e, uma vez liquidada esta, cortam a cabeça daquela.”
418
417
Alberto Castiel, depoimento.
418
VINHAS, op. cit., p. 180.
170
Castiel, que foi mandado para trabalhos no Rio de Janeiro no período em que se
desenrolavam essas disputas, diz que o que se ouvia no Rio de Janeiro naquela época
era que Câmara Ferreira havia aderido aos fechadistas, embora não tivesse tido
contato com ele nesse período. Essa posição de Câmara Ferreira, citada por Castiel,
não pôde, no entanto, ser confirmada, porque Marco Antônio Coelho Tavares, Sara
Mello e Armênio Guedes confirmam outra posição de Câmara Ferreira em relação às
tendências que surgiram. A posição de Marco Antônio, citada anteriormente, foi por ele
mesmo confirmada com ênfase no fato que “Câmara Ferreira manteve uma postura
que pretendia cuidado, cautela, de acordo com seu perfil sensato e tranqüilo.”
419
Sara
Mello, por sua vez, enfatiza que a posição de Câmara Ferreira era de ajudar a organizar
o Partido e que nunca ouviu uma crítica contra ou a favor da questão. O
utra opinião que
deve ser analisada e que pode esclarecer de forma bastante consistente a posição de
Câmara Ferreira nos foi dada por Armênio Guedes, que participou da reunião com
Arruda Câmara quando, foi confirmada a veracidade do relatório de
Kruchev
sobre os
crimes de Stalin. De acordo com Armênio Guedes, Câmara Ferreira também participou
dessa reunião e aderiu aos abridistas como ele próprio também aderiu. Segundo
Armênio Guedes, a posição de Câmara Ferreira era condizente com o seu perfil aberto
para
a política, enfatizando ainda que
“Câmara era muito aberto e negociava com outras forças políticas. Era um elo
de ligação. Tinha contatos com a classe média alta e a burguesia paulista que
desde a época do Dutra não apoiava a perseguição política aos jo
rnais.”
420
Mesmo com todos os debates e divergências ocorridas no interior do PCB,
Joaquim Câmara Ferreira continuava trabalhando de forma intensa na imprensa e nas
419
Informação checada com Marco Antônio Coelho Tavares, por telefone, no dia 14.01.2005, às 15:00 horas.
420
Informação checada com Ar
mênio Guedes, por telefone, no dia 31.01.2005, às 11:00 horas.
171
articulações realizadas pelo Partido, e seus passos continuavam sendo vigiados de
perto pelos órgãos de inteligência e repressão, conforme constatamos nos documentos
do DEOPS, onde está registrado o seguinte: “foi incumbido de redigir no jornal ‘Notícias
de Hoje’, uma série de protestos contra a programação do ‘Estado de Sítio’, segundo
relató
rio reservado de vinte de janeiro de 1956.”
421
Em outra parte do documento consta que
“escreveu um nota no jornal ‘Notícias de Hoje’, em edição de dezesseis de
fevereiro de 1956, intitulado ‘O Congresso do Homem’, no qual salienta a
grandiosidade do VI qüinqüenal, tema considerado central, debatido no XXº
Congresso do Partido Comunista da União Soviética.”
422
Ainda no mesmo documento:
“Joaquim Câmara Ferreira referiu-se ao manifesto intitulado ‘Informe de Luz
Carlos Prestes’, publicado pela imprensa ‘Vermelha’, ocasião em que assina o
manifesto: ‘esse documento coloca Prestes entre as máximas expressões do
Comunismo Internacional’, conforme relatório de 18 de abril de 1945.”
423
Continuando:
“no dia primeiro e no dia dez de junho de 1956, o jornal comunist
a ’Notícias de
Hoje’, publicou, em suas páginas, dois artigos de Joaquim Câmara Ferreira, no
dia primeiro, sobre a automatização de fábricas na Inglaterra, e, no dia dez, o
artigo foi sobre a política de concessões ao Imperialismo e a reação interna do
ent
ão presidente Juscelino Kubitschek.”
424
Continuando:
“no ato realizado em primeiro de julho de 1956, por ocasião do lançamento da
Campanha Pró-Imprensa popular, o jornalista Joaquim mara Ferreira fez
um relatório das atividades do jornal ‘Notícias de Hoje’ dizendo, entre outras
coisas, que esse era o único jornal que o estava a serviço de interesses
políticos de Trustes.”
425
421
D.O.P.S.
Documento 178, f.3
Arquivo Público de São Paulo.
422
Ibid., f.4.
423
Ibid., f.3.
424
Ibid.
425
Ibid.
172
No início de abril de 1957, Joaquim Câmara Ferreira “participou como dirigente
dos trabalhos da reunião ampla do Partido Comunista Brasileiro, a fim de comemorar o
transcurso do 35º aniversário da fundação do Partido.”
426
Nesse mesmo mês,
numa
reunião gravada do CC, Agildo Barata é expulso e em outra reunião, em agosto, na
qual aparece Prestes, depois de dez anos de clandestinidade, foram destituídos quatro
membros da Executiva: Diógenes de Arruda Câmara, João Amazonas, Sérgio Holmos e
Maurício Grabois. Nesta mesma reunião, decidiu-se pela formação de uma comissão
para preparar um novo documento analisando os reflexos do sistema de culto à
personalidade dentro do PCB. O documento ficou pronto em janeiro de 1958 e foi
encaminhado para debate na plenária de março, entre todos os membros, mas foi
substituído por outro anteprojeto conforme relato de Jacob Gorender:
“foi um grupo de militantes entre os quais estavam Armênio Guedes, Alberto
Ramos Guimarães, eu e outros. O trabalho de Giocondo fazia parte do Partido
ligado a Prestes. Essa comissão se reuniu e tinha autorização, e era
clandestina para o CC, porque o CC ainda tinha dirigente
s que fundaram o PC
do B, como Pedro Pomar, Diógenes Arruda, e bloqueariam os trabalhos no
sentido que se pretendia fazer. O que esse comissão queria fazer era a
mudança da linha política desde 1948, do manifesto de Agosto de 1950, que
conclamava a luta armada, desiludido do governo.”
427
A mudança pretendida derivava de uma análise da realidade política do país
naquele momento, pois, em 1958, era o governo JK que se caracterizava pela plena
liberdade política, sem presos políticos, com a imprensa livre e sem perseguição. O
Partido tinha vários jornais. Além disso, a situação internacional não prenunciava
426
D.O.P.S.
Documento 178, f.5
Arquivo Público de São Paulo.
427
Jacob Gorender, de
poimento.
173
conflitos graves. Havia a coexistência pacífica URSS/E.U.A. Ainda de acordo com
Gorender, esses fatores nortearam a elaboração do documento. Conforme ele
diz:
“esse grupo referido do qual eu fazia parte decidiu que não poderia continuar
com a linha política de agosto. Não se podia pregar luta armada com
liberdade. Não se podia esperar decisão do CC com essa composição.
Resolveram criar um documento deliberando essa nova linha política. Essa
nova linha seria validada pelo Prestes. E como conservava grande prestígio,
pois vivia na clandestinidade até do CC (...) não estava comprometido com o
grupo de Amazonas e Pomar. Então ele iria endossar o projeto. Nos pr
imeiros
meses de 1958, verão quente, se reuniram e o local era a casa de Alberto
Ramos Guimarães. Foi elaborado o documento, e a redação final discutida
ponto por ponto. Foi publicado em separata. O documento provocou grande
repercussão (...).”
428
Em relação à posição de Câmara Ferreira com relação ao documento de 1958,
Gorender esclarece que “quando se formou o grupo de 1958, ao qual eu aludi antes e
que reúne para elaborar a declaração de março, o Câmara não participou desse grupo,
mas nós tínhamos a si
mpatia do Câmara (...).”
429
Joaquim Câmara Ferreira continuava com uma intensa militância partidária neste
ano de 1958, conforme comprova documentos da repressão, nos quais consta que
participou do
“almoço em homenagem ao jornalista e ex
-
deputado, Pedro Po
mar, promovido
pela Comissão Tiradentes por liberdade, paz e cultura e pela Associação
Paulista dos Amigos da Imprensa Democrática ”, segundo publicação do jornal
‘Notícias de Hoje’, em sua edição de fevereiro de 1958.”
430
Segundo relatório reservado d
atado de sete de abril de 1958, temos que
“os Comitês Regionais de Piratininga, Sul Paulista, Norte Paulista, Litoral
Paulista e outros, foram extintos tendo porém surgido sem muito alarme o
Comitê Estadual de São Paulo, figurando nome de Joaquim Câmara F
erreira
como um de seus membros expoentes.”
431
428
Jacob Gorender, depoimento.
429
Idem.
430
D.O.P.S.
Documento 30B152, f.5
Arquivo Público de São Paulo.
431
D.O.P.S.
Documento 30B152, f.5
Arquivo Público de São Paulo.
174
Esteve presente “no desembarque de Luiz Carlos Prestes, no dia dezessete de
abril de 1958 no aeroporto de Congonhas.”
432
É de sua autoria
“o artigo publicado no jornal ‘Notícias de Hoje’ , em sua edição de quatro de
julho de 1958, sob o título e subtítulo de ‘O tema do Comunismo numa
Faculdade Católica’ e ‘Um debate proveitoso’, nos referidos artigos, o
marginado comenta sobre a mesa redonda promovida, a respeito do
comunismo, pelo centro acadêmico ‘Sedes Sapientia’ (Secção feminina da
Faculdade de Filosofia da Universidade Católica), da qual o epigrafado teve
participação direta.”
433
Consta no relatório de quatro de julho de 1958 que
“a conferência de paz, realizada sob o título de ‘Encontros pela Cooperação
de
Paz’, nos dias 28 e 29 de junho de 1958, no salão nobre da Associação
Paulista de Imprensa, diz, em um dos seus tópicos, que figuras de destaque
do movimento comunista estiveram presentes, entre as quais Joaquim
Câmara Ferreira.”
434
Em artigo publicado no jornal “Notícias de Hoje”, em sua edição de dois de
agosto de 1958, consta que
“sob o título de ‘Os argumentos dos Agressores’, atacando os Estados Unidos
por manter tropas em vários países, com os quais, segundo o autor, mantinha
seu imperialismo, (...), Joaquim Câmara Ferreira fez referências ao
desembarque de tropas ianques no Líbano, qualificado de agressão.”
435
Ainda conforme o mesmo documento, podemos encontrar:
“a atualização de endereços de alguns comunistas, feita após investigação em
torno
dos mesmos em dezesseis de dezembro de 1958, na qual se diz em
respeito ao marginado (Joaquim Câmara Ferreira), lê-se o seguinte: elemento
comunista militante, diretor do jornal ‘Notícias de Hoje’, componente do C.E do
PCB, companheiro de Luiz Carlos Prestes, costumeiramente viaja para a
432
Ibid.
433
Ibid.
434
Ibid., f.6.
435
Ibid., f.7.
175
Capital Federal, onde fica a maior parte de seu tempo. Após citar locais onde
residia, a informação aduz que, quando a redação daquele jornal passou a
funcionar na Praça Clóvis Bevilaqua nº 122, o referido fixou residência
ali.”
436
No mês de março de 1958, o CC do PCB aprova a declaração política, na qual
ressaltava a seguinte plataforma de lutas: 1º) política exterior independente e de paz;
2º) desenvolvimento independente e progressista da economia nacional; 3º) medidas
de reforma agrária em favor dos camponeses; 4º) elevação do nível de vida do povo;
5º) consolidação e ampliação da legalidade democrática.
A conferência de março de 1958 abriu o caminho ao processo de reorganização.
O Partido, “que vivera um ano e meio a beira da ruína, foi tomado pela tendência
favorável de desestalinização.”
437
A partir da declaração de março, os comunistas emergiram da clandestinidade e
passaram a militar de forma aberta e legal de fato. A organização vinha à luz do dia, e
os Comitês Central, Estaduais, Municipais e até Distritais instalaram seus escritórios.
As reuniões plenárias do Comitê Central e de muitos Comitês Estaduais eram
realizadas em suas sedes. Além disso, os comunistas estabeleceram as mais diversas
alianças sociais e partidárias em função das eleições de 1958, as quais ocorreram sob
as legendas do PTB e de outros partidos. Ao mesmo tempo, se intensificou a luta para
que o Partido fosse legalizado.
Gorender apresenta uma idéia do clima político que imperava naquele momento,
dizendo que
“Prestes saiu da clandestinidade e se tornou personalidade pública com
jornalistas estrangeiros e nacionais, e dava a idéia de o Partido atuar
legalmente. Vivia legalmente, e todo mundo circulava livremente e tinha local
436
D.O.P.S.
Documento 30B152,
f.7
Arquivo Público de São Paulo.
437
Noé Gertel, depoimento, em junho de 1997.
176
próprio. Na Candelária, tinha a secretaria do PCB. Prestes se reunia. Saíam e
entravam embora não tivesse placa, pois não era legal.”
438
Em relação à saída de Prestes da clandestinidade, Câmara Ferreira fez uma
saudação através da Imprensa Popular. No documento da Secretaria de Segurança
Pública, conta-se o seguinte: “segundo a ‘Imprensa Popular’ de 28 / 03 / 58, enviou por
intermédio desse jornal, congratulações a Luiz Carlos Prestes e sua família pela vitória
alcançada com a revogação de sua prisão prematura.”
439
Também segundo a
‘Imprensa Popular’ de 19 / 4 / 1958: “por ocasião da visita de Luiz Carlos Prestes à
redação do jornal comunista (editado em São Paulo) ‘Notícias de Hoje’, o marginal usou
da palavra saudando o ilustre militante em nome do jornal.”
440
Como dissemos anteriormente, Câmara Ferreira havia ficado preso no mesmo
local que Prestes quando de sua prisão em 1940. Tornou-se grande admirador de
Prestes e nunca deixou de admirá-lo. Segundo Jacob Gorender, “mesmo rompendo
com Prestes mais tarde, nunca se desfez essa
admiração.”
441
No ano de 1959, Joaquim Câmara Ferreira continuou trabalhando no jornal do
Partido em São Paulo, mas, ocorreram mudanças na imprensa do PCB, conforme relato
de Moacir Longo:
“quando, em 1959, fechou o jornal do partido em São Paulo, fechou no Rio
também. A imprensa Popular, o ‘Notícias de Hoje’ e o Partido resolvem unificar
toda sua estrutura gráfica, de comunicação jornalística, no Rio. Então o
equipamento de São Paulo foi para e se fez uma grande gráfica. Além de
fazer, voltou a circular o Hoje, diário sob a direção no Rio, do Saldanha e
Marighella. Tinha um semanário que era antes ‘Voz Operária’ e depois se
transformou em ‘Novos Rumos’. Mudou de nome para ‘Novos Rumos’, e o
Câmara era então o diretor da sucursal de ‘Novos Rumos’, em São Paulo e
438
Jacob Gorender, depoimento.
439
D.E.S.P.S.
Prontuário 33807, p.53
Arquivo Público do Rio de Janeiro.
440
Ibid., p.47.
441
Jacob Gorender, depoimento.
177
exercia também a função de diretor da sucursal do ‘Hoje’, que era diário. Mas
o ‘Hoje’, diário que foi lançado no Rio, durou pouco tempo. (...) Então, a partir
de 1959, o Câmara permaneceu , nessa mudança, como diretor da sucursal
de ‘Novos Rumos’, em São Paulo, até o golpe. (...) O Câmara permaneceu
ainda todo tempo até o golpe, à frente do trabalho de imprensa do Partido.”
442
Sara Mello diz que, nesse período, Câmara Ferreira sempre aparecia no
escritório de Murillo, que era advogado, pedindo que ele escrevesse artigos para serem
publicados no jornal.
O documento do DOPS confirma a mudança no jornal referida por Moacir Longo
e a manutenção de Câmara Ferreira à frente:
“referente à visita que o líder Luiz Carlos Prestes fez no último dia doze
ao CM
do Partido Comunista Brasileiro do ABC, em reunião na residência do
tesoureiro desse organismo, Mário Fernandes, entre os inúmeros assuntos
debatidos, consta que, após o desaparecimento do jornal ‘Notícias de Hoje’ ,
tal como aconteceu com o ‘Voz Operária’ (Hoje revista ‘Novos Rumos’),
deveria sair com o nome de ‘Brasil’, ou mais um outro em edição e formato de
semanário, todos os domingos. Ressalta o relatório que este assunto, Luiz
Carlos Prestes tratou cuidadosamente, por ocasião de sua vinda, com o atual
diretor de ‘Notícias de Hoje’, Joaquim Câmara Ferreira, o qual seria, ainda,
diretor desse novo semanário.”
443
Também a documentação do DOPS confirma tal trabalho de Joaquim Câmara
Ferreira:
“conforme relatório de 02 de fevereiro de 1959, o CM do PCB do ABC, esteve
reunido na sede sucursal de ‘Notícias de Hoje’, em Santo André: de São
Paulo, estiveram presentes entre outros elementos, Joaquim Câmara Ferreira,
Donoso Vidal, Regina Lima e mais. Acrescenta o relatório que a finalidade da
reunião,
para todos os efeitos, por foi ouvir a exposição do epigrafado
(Joaquim Câmara Ferreira) e de Donoso Vidal, sobre a situação do Jornal
‘Notícias de Hoje’.”
444
Como dissemos anteriormente, além do trabalho, Câmara Ferreira exercia
diversas funções, e uma outra delas era administrar cursos do Partido para militantes
442
Moacyr Longo, depoiment
o.
443
D.O.P.S.
Documento 30B152, f.7
Arquivo Público de São Paulo.
444
D.O.P.S.
Documento 30B152, f.7
Arquivo Público de São Paulo.
178
mais novos. Um desses militantes, Luiz Carlos Moura
445
, iniciou sua militância no PCB
entre o final da década de 50 e o início da década de 60. Conheceu Câmara Ferreira
num desses cursos, onde nosso personagem era professor, conforme ele se lembra: “o
Partido, o PCB, fazia uns cursos de preparação e capacitação dos jovens e do Partido
em geral. Eu tive uma oportunidade interessante de ser aluno do Câmara, Jacob
Gorender, Saad (...).”
446
A document
ação do DOPS confirma as palavras de Luiz Carlos Moura:
“informação reservada de 26 de fevereiro de 1960, diz que, segundo o líder
comunista Antônio Rodrigues Galedo, nos últimos dias, digo, últimos meses do
ano de 1959, o PCB realizou, em todos os seus
Comitês Regionais, cursos de
emergência para os militantes de destaque e dirigentes dos organismos
intermediários, a fim de proporcionar aos mesmos um amplo estudo da atual
linha do Partido. Que em São Paulo, por iniciativa do C.E e colaboração do CN
foi também realizado um curso do qual participaram mais de 50 militantes
ativistas e dirigentes de organismos de base do Partido de Prestes, e consta
que um dos professores foi Joaquim Câmara Ferreira.”
447
No ano de 1960 se consumou uma mudança radical em relação às perspectivas
que nortearam a Partido desde 1948. O PCB preparava-se para as eleições deste ano
e para a realização do seu Vº Congresso.
Segundo Daniel Aarão
“em vez de uma situação crítica, explosiva e catastrófica, os comunistas
descobriram no país amplas possibilidades de desenvolvimento; no lugar de
classes dominantes coesas e insensíveis às reivindicações populares,
perceberam divisões e brechas entre as elites o que permitia imaginar a
hipótese de atuar um setor dominante, a burguesia nacional, para a Frente
Única. Em conseqüência, o recurso à força cedeu espaço às lutas eleitorais, à
445
Luiz Carlos Moura foi militante e dirigente do PCB durante vários anos. Casado com a filha de Sara Mello e
Murillo Me
llo (Célia). Teve Joaquim Câmara Ferreira com Padrinho de Casamento.
446
Conforme depoimento de Luiz Carlos Moura, em maio de 2003, em São Paulo.
447
D.O.P.S.
Documento 30B152, f.10
Arquivo Público de São Paulo.
179
valorização das instituições políticas existentes, ao caminho pacífico para as
transformações da sociedade brasileira.”
448
Em abril de 1960, o CC lançou suas teses, tendo Joaquim Câmara Ferreira
como um dos elaboradores. Essas Teses seriam debatidas no congresso, conforme o
relato de Jacob Gorender:
“eu passei a ter contatos com o Câmara mais demorados e me tornei amigo
dele em 1960, pois se criou uma comissão para elaborar as teses do
Congresso e faziam parte Prestes, Câmara, eu e outros como Francisco
Gomes, Hilio Costa etc. Éramos umas oito a nove pessoas. A gente se reunia
no edifício na Rio Branco que era o mais moderno. (...) O Partido alugou o
conjunt
o de salas e nos reunimos para elaborar as teses, e, quando se
elaborava, as reuniões eram durante o dia todo. Após, eu e o Câmara saíamos
para almoçar juntos na rua São José, pois a comida não era cara e era muito
boa. Peixe grelhado com creme de espinafre era o prato predileto dele. As
vezes, a comissão se reunia com outras pessoas que não eram da comissão,
como sindicatos, e o Caio Prado Júnior ficou um dia todo para avaliar o
material.”
449
Em setembro de 1960, realizou-se, afinal, o Congresso no Rio de Janeiro, na
legalidade de fato, confirmou-se a sua resolução política, o essencial da linha adotada
na declaração de março de 1958 e se reforçou, nos aspectos fundamentais, a idéia de
que era preciso aprofundar o exame da questão democrática. Joaquim C
âmara Ferreira
no relatório que escreveu sobre as resoluções do Congresso, fez uma análise dos
seus princípios norteadores. Em relação à resolução política, Câmara Ferreira
escreveu:
“a elaboração da atual linha política do Partido, aprovada pelo Co
ngresso,
foi feita à luz das novas teses discutidas no XX Congresso do PUCS, o que
vale dizer também na base da análise da situação internacional e da
correlação de forças mundiais ali feita. Em todo o processo dos debates
realizados em 1956 / 57 e agora nos debates de preparação do congresso, as
questões da caracterização da situação internacional e da luta pela paz, bem
como a dos caminhos para o socialismo, representam um enorme papel. Isso
448
REIS FILHO, Daniel Aarão. A Revolução Faltou ao Encontro. Os Comunistas no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1990, p. 23.
449
Jacob Gorender, depoimento.
180
ficou bem marcado em nossos documentos fundamentais deste períod
o,
notadamente no balanço dos debates, na declaração política de março de
1958, nas teses e agora na resolução do Vº Congresso.”
450
Da orientação do Congresso:
“toda nossa orientação deflui de uma determinada compreensão da essência
da situação internacional; da compreensão de que o conteúdo fundamental da
época em que vivemos e a transição do capitalismo ao socialismo; do
crescimento, que ninguém pode deter, do momento antiimperialista e de
libertação nacional; de ascenso impetuoso do socialismo e da marcha para o
comunismo; de desagregação do sistema capitalista mundial em
conseqüência, de um lado, de ter sido batido pelo socialismo, de outro pelas
suas contradições internas. Vivemos um período em que a correlação mundial
de forças pendeu decisivamente para o lado do campo do socialismo e da
paz, em que surge a possibilidade real de as guerras serem evitadas, em que
a luta emancipadora dos povos atrasados e dependentes se tornou muito mais
fácil.”
451
Em relação às divergências no Partido:
“podemos
afirmar que todo nosso Partido se deu conta da estreita ligação
existente entre estas teses básicas e a própria linha discutida e a aprovada?
Acreditamos que não. O grande argumento que levou o Partido a aprovar a
linha foi a do critério da prática. Se a aplicação da linha estava produzindo
resultados positivos, então ele possuía, ao menos, muitos elementos de
acerto. Assim raciocinavam os camaradas, em sua maioria, e com razão. De
outro lado, as divisões no plano teórico, embora não entrando diretamente n
a
apreciação das teses do XX Congresso, revelavam sempre uma maior
subestimação das mesmas por parte dos camaradas que mais combatiam a
linha que vinha sendo seguida pelo Partido.
A discussão destes problemas é, assim, tanto mais atual para nós. É
atual porque está estreitamente ligada a um problema central da humanidade
hoje, ao problema primeiro do proletariado internacional
o problema da paz e
da guerra. E é atual também porque de uma exata compreensão dos mesmos
depende, em boa medida, uma melhor assi
milação da linha do Partido.”
452
A questão da Paz e da Guerra:
“não nenhuma questão mais importante no mundo atual que a da Paz e da
Guerra. Num mundo em que as armas nucleares constituem uma ameaça
permanente para países inteiros, para parcelas enormes da humanidade, o
problema da existência ou não da possibilidade de serem evitadas as guerras,
450
FERREIRA, Joaquim Câmara
Relatório A1, 53 (4)
5, mimeo. CEDEM, s/ data.
451
Ibid.
452
FERREIRA, Joaquim Câmara
Relatório A1, 53 (4)
5, mimeo
. CEDEM, s/ data.
181
interessa de perto a bilhões de criaturas, e se liga estreitamente a toda nossa
perspectiva de futuro.
A luta pela Paz é uma constante do movimento socialista e operário,
que sempre denunciou as guerras como conseqüência do regime capitalista e
imperialista. Ao denunciar a responsabilidade das classes dominantes por
esse crime, as forças de vanguarda do proletariado difundiam, ao mesmo
tempo os interesses imedia
tos de sua classe: os trabalhadores e o povo foram
sempre as maiores vítimas da guerra, tanto nas frentes de batalha, vertendo
seu sangue, quanto na retaguarda, sofrendo miséria e fome, enquanto os
grupos monopolistas se enriqueciam. Daí a grande preocupação do
movimento socialista e operário, nas últimas décadas do século passo e nos
primeiros anos deste século, em lutar contra a guerra, em procurar impedir seu
desencadeamento e pela transformação da Guerra imperialista em guerra civil
de Classes, caso ela desencadeasse apesar dos esforços em contrário do
proletariado. Mas, nas circunstâncias então predominantes, quando o
proletariado não dispunha de poder político em país algum e quando o
movimento operário se encontrava fortemente influenciado, pelas clas
ses
dominantes através de seus agentes, os reformistas, não foi possível frear os
provocadores de guerra.”
453
Conclusão em relação às Guerras:
“partindo de que a Guerra não é apenas uma decorrência de fatores
econômicos, mas que seu desencadeamento depende, em grande medida,
também da correlação de força de classe, das forças políticas, do grau de
organização e da vontade consciente dos homens, o XX° Congresso da PCUS
chegou a conclusão de que as Guerras não são, hoje, fatalmente
inevitáveis; de que agora existem enormes forças que dispõem de meios para
impedir o desencadeamento da Guerra pelo imperialismo e para dar aos
agressores uma resposta esmagadora caso se atrevam a iniciá
-
la.”
454
Da coexistência pacífica:
“desde sua instauração, o estado soviético lutou pela paz e também pela
coexistência pacífica. E esta idéia esta estreitamente ligada e de cooperação e
a de competição pacífica. Se não desejamos a guerra e assim a paz, é
necessário que se estabeleçam termos de entendimento entre países de
re
gimes sociais diferentes, é preciso que haja cooperação e também
competição, luta. E luta em que terreno? Fundamentalmente no terreno
econômico. Da vitória no terreno econômico dependerá, em ultima instância, a
vitória no terreno do bem-estar das massas, e, portanto, o fato de este ou
aquele regime poder se apresentar diante das massas do mundo inteiro como
o melhor, como o que deve dar exemplo a ser imitado. (...) Esse caminho da
453
Ibid.
454
FERREIRA, Joaquim Câmara
Relatório A1, 53 (4)
5, mimeo. CEDEM, s/ data.
182
coexistência e da paz significa atrasar de qualquer maneira a luta pela
emanc
ipação social do proletariado, a marcha para o comunismo? quem
acredita que atrasa e compromete. Temos para nós, entretanto, que isso não
corresponde a verdade. O caminho da coexistência pacífica acelera a marcha
para o comunismo.”
455
Os caminhos para
o socialismo:
“o outro problema básico do movimento revolucionário mundial no dias de hoje
e o dos caminhos para o socialismo. No XXº Congresso do PCUS, depois de
citar Lênin, que admitia francamente a multiplicidade de caminhos para o
socialismo e de apresentar as numerosas variantes surgidas após a II Guerra
Mundial, o camarada
Krusch
ev
afirmou: ‘ é plenamente possível que as formas
de transição ao socialismo sejam cada vez mais variadas. Certamente não é
obrigatório que a realização destas formas esteja unidas, em todas as
circunstâncias a guerra civil. E depois de examinar a possibilidade do real, do
aproveitamento hoje, numa série de países, do caminho parlamentar apoiado
no movimento revolucionário de massas, adverte: em todas as formas de
transição ao socialismo é condição indispensável e decisiva que a direção
política seja exercida pela classe operária, encabeçada por sua vanguarda.
Sem isto é impossível a passagem ao socialismo.”
456
Conclusões do documento:
1ª) Para uma exata compreensão de nossa linha política, é necessário
aprofundar, em todo o Partido, o estudo e o debate da teses básicas do XXº e do XXIº
Congresso do PCUS, bem como das resoluções da reunião dos Partidos Comunistas e
Operários dos países socialistas e dos dezessete Partidos comunistas dos países
capitalistas. Isso ajudará substancialmente o Partido a assimilar elementos básicos da
nossa orientação geral e conseqüentemente ajudará a impulsionar a mobilização contra
o imperialismo norte-americano, pela paz e pelas reivindicações do proletariado e do
povo.
Devemos ter bem presente que nossa luta contra o imperialismo, que nossa luta
por um governo nacionalista e democrático e por todas as reivindicações nacionalistas
do nosso povo em defesa da Petrobrás, contra a exportação dos lucros, pela
455
Ibid.
456
Ibid.
183
industrialização
ou as reivindicações democráticas mais gerais
pela reforma agrária,
pelas liberdades democráticas e pela legalização do PCB, pela revogação da Lei de
Segurança, pela liberdade de presos políticos, pelo direito de organização dos
camponeses e trabalhadores agrícolas, etc são aspectos de luta geral do proletariado
do mundo inteiro por sua emancipação social, pelo socialismo e pelo comunismo.
2ª) As possibilidades que as teses do XXº Congresso e nossa linha política
abrem da formação de amplas frentes–únicas com elementos de todas as classes e
camadas sociais em torno da mais variadas questões impõe o fortalecimento do
Partido, tanto orgânica quanto política, ideológica e teoricamente, a fim de não
percamos de vista nossos próprios objetivos e também a fim de não subestimarmos as
tarefas de frente única devido a nossos próprios objetivos. Além das medidas orgânicas
necessárias, a criação de cursos de pequena e média duração se apresenta como
tarefas mais imediatas.
3ª) Devemos lutar firmemente pela unidade de nossa próprias fileiras e dar toda
contribuição possível ao fortalecimento da unidade dos partidos comunistas e operários
de todo mundo como fator essencial do avanço da luta pelo socialismo e pelo
comunismo, bem como pela defesa da paz no mundo. A estreita unidade das forças de
vanguarda do proletariado de todo mundo constitui hoje uma das mais sólidas garantias
de paz.
Esse Congresso, do qual participaram delegados que representariam cerca de
quinze mil militantes no Brasil todo, elegeu Joaquim Câmara Ferreira como um dos
membros efetivos do CC.
Foi dentro dessa nova linha política do Congresso que o Partido se
apresentou para as eleições presidenciais de outubro de 1960. Juntamente com o PTB,
184
com a Frente Nacionalista, os comunistas decidiram apoiar a candidatura nacionalista
do General Henrique Teixeira Lott, em dobradinha com João Goulart, que buscava a
reeleição à vice-presidência. E mesmo sendo Henrique Teixeira Lott, anticomunista, o
que tornava o trabalho muito delicado, principalmente na área sindical, era a
candidatura mais avançada que se tinha naquele momento, o que justificava o apoio. O
adversário contra o qual lutavam era Jânio Quadros, governador de São Paulo, político
populista e demagogo, que vinha representando as forças mais reacionárias que havia
no país, tais como: a União Democrática Nacional (UDN) coligada com partidos
menores como o Partido Democrata Cristão (PDC), Partido trabalhista Nacional (PTN),
dissidência do PTB e o Partido Libertador (PL).
Jâni
o Quadros venceu as eleições com cerca de seis milhões de votos, tendo
sido eleito, como vice-presidente, João Goulart, já que as candidaturas não eram
vinculadas. Nesse período, Joaquim Câmara Ferreira, além de membro do Comitê
Central, voltou a atuar à f
rente do Secretariado Estadual de Agitação e Propaganda.
457
É bom ressaltarmos que um dos pontos consolidados pelo Congresso foi o de
Agitação e Propaganda. De acordo com a estratégia política do PCB, “o trabalho de
Agitação e Propaganda é outro fundamento para que o Partido possa dirigir grandes
massas.”
458
À frente do secretariado, Câmara Ferreira convidou novamente Alberto Castiel
para trabalhar com ele. De acordo com Castiel ele me chamou para trabalhar com ele
457
Dissemos anteriormente pelo depoimento de Moacyr Longo que Câmara Ferreira continuou a frente da imprensa
do Partido, em São Paulo, até 1964. De acordo com Sara Mello, o jornal e o trabalho jornalístico fazem parte da
Agitação e Propaganda, não existindo assim, contradição na analise feita anteriormente.
458
VINHAS, op. cit., p. 196.
185
e, embora, eu não fosse mais profissional do Partido, eu aceitei. Aceitei porque era o
Câmara.”
459
Foi nessa época que Castiel ouviu, também, uma confidência muito íntima de
Câmara Ferreira após reunião destes juntamente com outro companheiro chamado
Odon Pereira. Segundo Castiel, ele e Odon Per
eira defendiam
“um trabalho mais aberto, voltado para uma orientação que não fosse baseada
no autoritarismo, numa direção de disciplina férrea, bolchevique. E após uma
reunião que o Odon, eu e o Câmara tivemos, eu saí junto com o Câmara
andando na rua, e foi que o Câmara fez a seguinte confidência: Alberto eu
tenho muita dificuldade nesse novo tipo de trabalho. Vocês têm razão! mas
todo o meu passado de vida clandestina. Todo meu passado no qual uma das
ele dizendo uma das primeiras tarefas que me mandaram fazer foi
trabalhar num mimeógrafo clandestino. Agora, esse tipo de trabalho no qual a
parte ilegal não tem mais necessidade, eu estou com dificuldade de me
adaptar. Era muito sincero da parte dele, e, é claro, eu não concordei. Eu
disse que ele tinha todas as condições, inclusive pela própria personalidade
dele, para que ele tivesse condições de ser um político comunista, mas
dedicado a um trabalho que não era mais clandestino.”
460
A confidência de Câmara Ferreira refletia a impressão que muitas pessoas que
conviveram com ele tinham a respeito de sua militância, ou seja, da relação visceral que
o mesmo havia estabelecido com o PCB. Uma destas pessoas é Vera Gertel, filha de
Noé Gertel
461
, que conviveu com Câmara Ferreira desde criança. Ela enfatiza
que:
“(...) eu nunca vi uma vocação maior para a militância no seguinte sentido: Ele
era uma pessoa extremamente bem humorada e a vontade. Ele nunca estava
tenso. Ele estava sempre, sabe, à vontade. Naquela militância, ele estava
sempre dizendo piadas, brincando, fazendo as pessoas rirem. Entendeu? Ele
parecia que tinha nascido para aquilo. Sem aquilo ele não era nada nem
mingúem, e eu não consigo imaginar o Câmara fora dessa militância dele a
vida toda, dentro do Partido Comunista onde ele ficou até 1967
.”
462
459
Alberto Castiel, depoimento.
460
Alberto Castiel, depoi
mento.
461
Vera Gertel é filha de Noé Gertel. Conheceu Joaquim Câmara Ferreira desde que era criança. Teve Câmara
Ferreira com padrinho de casamento e foi sua amiga durante toda a vida.
462
Conforme depoimento de Vera Gertel, em janeiro de 2004, no Rio de Jane
iro.
186
Marco Antônio Coelho Tavares, também, confirma esse atrelamento de Câmara
Ferreira ao PCB, dizendo que “(...) um homem que sempre militou, sempre lutou na
clandestinidade, muito mais na clandestinidade etc.
463
Em outro depoimento ainda,
Granville Ponce confirma tal posição, enfatizando que, em relação à prática política de
Câmara Ferreira
“ele foi uma figura que atuou sempre na circulação. Então ele não é uma figura
que tinha tido assim junto ao público, ao grande público (...) o grande público
não muito politizado, não tinha noção do destaque de Câmara Ferreira.
Câmara Ferreira era um grande articulador. Ele não era o homem de ..., o
relações públicas. Ele não era o cara que aparecia como comunista mas ele
era um cara que atuava intensamente na política do Partido. E vem essa
militância da década de 30. Ele viveu grande parte da vida dele. Acho que a
maior parte da vida dele, ele viveu na clandestinidade. (...) Ele era um cara
muito preparado. Teoricamente era uma figura muito competente. Muito
dedic
ado à causa. Uma pessoa que dedicou a vida toda.”
464
Em agosto de 1961, pouco antes da renúncia de Jânio, o PCB continuava
buscando uma inserção mais direta dentro do jogo político e apresentou requerimento
de registro na Justiça Eleitoral, publicando, de acordo com as determinações legais
vigentes, manifestos, programas e estatutos. Decidiu-se mudar o tradicional nome: O
Partido Comunista do Brasil tornava-se Partido Comunista Brasileiro, o que mais tarde
se tornou pretexto para ruptura ocorrida em 1962.
Em 25 de agosto de 1961, após sete meses de um governo contraditório,
marcado por medidas conservadoras no plano interno e progressistas no plano externo,
Jânio Quadros renuncia, entregando o governo aos ministros militares Odílio Denys,
Silvio Heck e Grün Noss, enquanto o vice-presidente João Goulart estava em missão
comercial na República Popular da China. O secretário de imprensa de Jânio Quadros,
o jornalista Carlos Castelo Branco, ouviu Quadros dizer a seu ministro do trabalho,
463
Marco Antônio Coelho, depoimento.
464
Granville Ponce, depoimento.
187
Francisco Castro Neves,
que
“não farei nada por voltar, mas considero minha volta
inevitável. Dentro de três meses, se tanto, estará na rua, espontaneamente, o clamor
pela reimplantação do nosso governo.”
465
A posição de Jânio Quadros,embora
obscura, pois ele se dizia pressionado por “forças terríveis”, poderia ser qualificada de
golpista: Jânio imaginava que, entre ele e Goulart, os ministros militares não hesitariam
e lhe devolveriam o poder. Assim, sairia fortalecido, livre dos partidos e do Congresso.
De acordo com Francisco Ca
rlos Teixeira:
“tendo as experiências peronistas e apristas da Argentina e do Peru como
pano de fundo, as classes dominantes do país, as elites culturais e as
lideranças militares formadas sob influência direta das escolas de treinamento
militar dos Estados Unidos, onde predominava a mentalidade da Guerra Fria,
sabiam do avanço, cada vez mais firme, do voto das esquerdas e perdiam a
esperança de, no âmbito do regime democrático, impedir a ascensão do
reformismo trabalhista no poder.”
466
Porém, suas expectativas fracassaram e desencadearam uma luta feroz entre a
direita apoiada pelos chefes militares, que pretendia impedir a posse de Jango, e a
resistência popular ao golpe, que se corporifica na cadeia da legalidade sob a liderança
do governador Leonel Brizola, do Rio Grande do Sul, apoiado pelo IIIº exército sob o
comando do general Machado Lopes e a participação do governador Mauro Borges, de
Goiás, prefeito Miguel Arraes, do Recife, da Frente Parlamentar Nacionalista com mais
de cem deputados, o movimento
sindical e os partidos políticos PTB, PCB, PSD etc.
Nesse momento, Joaquim Câmara Ferreira buscou a clandestinidade, conforme
se lembra Alberto Castiel. Ele nos conta que
“eu via que a situação política era critica e não encontrava o Câmara, mas já a
il
egalidade não era tão rígida. Procurei por aqui, procurei por lá. Investiguei e
465
BANDEIRA, Luiz Alberto Muniz. O governo João Goulart As lutas sociais no Brasil (1961 1964). 7.ed.
Rio de Janeiro/ Brasília: ed.
Revan/ UNB, 2001, p. 12.
466
LINHARES, Maria Yedda
(Org.).
História Geral do Brasil
. 6. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1996, p. 308.
188
acabei descobrindo onde estava o Câmara. Ele estava exatamente hospedado
na casa deste jornalista (Noé Gertel) que eu te falei (...) Eu brinquei com
ele: Câmara (...) Câmara o que é isso? Aqui escondido. Abandonas teus
comandados? Mas era tudo brincadeira. A gente podia ter esse tipo de
relacionamento com ele. É assim, num momento tão grave que tu nos
abandonas? Ele riu e disse: é mas eu não sei que evolução vai ter isto. V
ocê
tem razão é o momento de trabalhar com a massa contra qualquer golpe. E
ele me deu, me disse uma tarefa, mas que eu já tinha feito. Nós tínhamos um,
vou chamar, um escritório legal no qual nós nos reunimos e havia uma grande
quantidade de livros marxistas, soviéticos e, diante da situação que parecia
que podia degenerar em atividades anticomunistas, aquele escritório
evidentemente conhecido da polícia podia ser invadido e todo aquele material
ser perdido. Mas eu tomara cuidado de retirar esse material. E foi a grande
preocupação do Câmara.”
467
As palavras de Câmara Ferreira se transformaram em atividades práticas, no
sentido de garantir a legalidade. De acordo com Paulo Cana Brava, militante do PCB e
posteriormente um dos fundadores da ALN, no Paraná e em São Paulo foi aberto o
alistamento civil militar, e Paulo Cannabrava e o seu amigo Vânio de Matos que era
tenente da força Pública na época, convenceram os dois principais quartéis dessa
corporação a defender a legalidade: a da Vergueiro e o da Luz.
Após fazerem isso,
“procuraram Câmara Ferreira, e ele fez a articulação política que os dois
regimentos passassem a garantir o funcionamento dos núcleos de resistência
democrática que haviam sido instalado na Assembléia legislativa e na Câmara
Municipal
, reunindo políticos, trabalhadores e estudantes. Estava formada a
Frente de Legalidade Democrática.”
468
Nesse episódio, o PCB defendeu a posse do vice-presidente João Goulart
enquanto os ministros militares procuraram vetá-la. Quando o golpe mostrou-
se
como
realidade plausível, os comunistas o condenaram, numa postura contrária a qualquer
posição conciliatória (emenda parlamentar), e exigiam punição aos golpistas. Ao
467
Alberto Castiel, depoimento.
468
FILHO, Paulo Cana Brava.
No olho do Furacão
América Latina nos Anos 60/70.
São Paulo: Cortez, 2003, p.
135.
189
mesmo tempo, convocava-se o movimento de massas à ação e à luta em qualquer
terreno, ca
so fosse preciso.
De acordo com Daniel Aarão, embora o tom fosse agressivo, era remota a
possibilidade de travar a luta
“em qualquer terreno, tendo-se em vista o nível de desarticulação do
movimento popular. Os próprios comunistas, aliás, pareciam admitir, em
outras declarações, o papel limitado das forças populares. Estavam
destinadas, na melhor das hipóteses, a apoiar as autoridades que se
mantivessem fieis à democracia e a legalidade.”
469
João Goulart retornou ao país em setembro de 1961 e foi forçado a aceitar a
adoção do regime parlamentarista, mas deixava claro que lutaria pela recuperação dos
seus poderes. O primeiro ministro escolhido pelo Congresso foi o deputado federal
Tancredo Neves.
Sara Mello diz que o período entre 1960 e 1961, foi uma fase
mais tranqüila, mas
ela tinha certas preocupações com relação a Joaquim Câmara Ferreira, temerosa de
ele por um motivo qualquer, se afastar da direção e não ter como sobreviver, se manter.
Diante disto, propôs que ele fizesse um curso superior de história ou geografia na USP,
pois ele estava mais em São Paulo. Ela disse que ele sorria sem dizer o que achava,
mas, no seu sorriso, Sara Mello percebia como se ele quisesse dizer não é por aí,
você sabe que não é por aí!
470
Em 1962, o PCB sente os reflexos da Conferência nacional de 1961, quando foi
aprovado o novo estatuto
471
que alterava o nome do Partido, além, de não fazer
referências à ditadura do proletariado. Tal fato culminou com a ruptura dentro do
469
REIS FILHO, op. cit., p. 26.
470
Conforme depoimento de Sara Mello, em março de 2004, em São Paulo.
471
Em 11 de agosto de 1961 o semanário “Novos Rumos” publicou o Programa e os Estatutos do Partido Comunista
Brasileiro que visavam obter do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) o registro lega
l do Partido.
190
Partido. Porém, para entendermos esse processo, devemos recuar no tempo. Como
vimos anteriormente, durante quase toda década de 1950, as concepções dogmáticas e
sectárias permearam e marcaram de forma profunda a linha política e a ação prática do
PCB. O dogmatismo vinha de uma análise abstrata de teses universal
mente
conhecidas, como as da resolução nos países dependentes, sobre a frente única e a
aliança operário-camponesa, e sobre a hegemonia do proletariado, sem submeter tais
teses à medição indispensável da realidade concreta do país. Conforme Segatto:
“form
aram
-se, assim, as idéias da revolução a curto prazo, da impossibilidade
de uma política de resoluções positivas no atual regime do país, da
absolutização do caminho da luta armada, do golpe principal dirigido contra a
burguesia nacional-reformista, da conquista de um poder revolucionário sob a
direção do proletariado sem a necessidade da luta por formas políticas de
aproximação.”
472
Nesse momento, homens como Arruda Câmara, João Amazonas, Ângelo Arroio,
Pedro Pomar, Maurício Grabois ganharam expressão na direção do PCB, através do
papel destacado na elaboração dessa linha política. Porém, a partir do XXº Congresso
do PCUS (1956) e da nova linha política, estabelecida a partir de 1958, que se
consolidou definitivamente em 1960, com a realização do Congresso. Esse grupo de
dirigentes perdeu hegemonia na direção do Partido e se tornou dissidente, na
Conferência Nacional de 1961. Os dissidentes, argumentavam que o C.C incorrera em
infração de princípios e que o Programa e os Estatutos encaminhados ao TSE
equ
ivaliam ao abandono do marxismo e que, portanto, Prestes e seus companheiros
haviam renegado o Partido fundado em 1922 e criado um Partido revisionista. Sendo
assim, em fevereiro de 1962, o grupo dissidente,
472
SEGATO, op. cit., p. 104.
191
“organizou uma conferência extraordinária, e se decide por fazer a eleição de
um novo Comitê Central; a manutenção do nome PC do B; um programa
político (bastante parecido com o do Manifesto de Agosto de 1950 e do IVº
Congresso do PCB) etc. Na verdade, o grupo dissidente cria mesmo um novo
partido, que tem por objetivo a implantação do que chamam de ‘governo
popular’, através da “luta armada.”
473
A divisão do PCB foi a primeira de um processo que vai resultar na fragmentação
e proliferação de organizações de esquerda e na quebra do monopólio marxista
que até
então o Partido Comunista Brasileiro exercia.
De acordo com Sara Mello, foi também por volta do ano de 1962 que Joaquim
Câmara Ferreira, além de suas outras funções, passou a ser uma espécie de assessor
de Prestes. Em seu depoimento, ela relata que
:
“A ultima fotografia que eu tenho dele, foi na casa dele. Tinha voltado da União
Soviética num acompanhamento a Prestes. Nos últimos anos, antes de ele se
afastar do Partido, ele era um homem ligado a Prestes. Viagens, uma espécie,
não digo de secretário porque seria diminuir o papel de Câmara, mas era um
homem muito chegado a Prestes.”
474
Na realidade se verificarmos artigos da revista “Novos Rumos” que era publicada
pelo Partido Comunista, nesse período, podemos constatar que Joaquim Câmara
Ferreira atuou como uma espécie de correspondente internacional, ou seja, isto pode
esclarecer porque ele acompanhou Prestes em tantas viagens para fora do Brasil.
O depoimento de Sara Mello é confirmado em diversos documentos que os
órgãos de repressão possuíam sobre as atividades políticas de Câmara Ferreira, no
qual consta o seguinte:
“(...) figura em uma relação de elementos comunistas que foram
ao Congresso Comunista em Moscou, realizado em julho de 1962.”
475
473
SEGATO, op. cit., p. 104.
474
Sara Mello, depoimento, em maio de 2003.
475
D.E.S.P.S.
Prontuário 33807, p.55
Arquivo Público do Rio de Janeiro.
192
(...) Participou do Congresso Comunista realizado em Moscou, em julho de 1962.”
476
Outro documento do DEOPS confirma esta proximidade de Câmara Ferreira e Prestes:
“relatório reservado de 20 de janeiro de 1961, em seu tópico final informa-nos que o
marginado (Joaquim Câmara Ferreira) esteve presente à Conferência que Prestes
manteve com Kruchev no Kremlin, a qual durou mais de três horas.”
477
Nos documentos que tratam das vinte cadernetas
478
com cento e cinqüenta
páginas cada uma, que foram apreendidas pela repressão na casa de Prestes, consta
em várias delas
o nome de Câmara Ferreira e sua relação com o líder comunista:
“todas essas cadernetas, na proporção de 80%, indicam que este indiciado
(Joaquim Câmara Ferreira) tomou parte em reuniões, juntamente com Prestes
e outros dirigentes do Partido.
Destacamos,
contudo, a caderneta nº 16, na página 1, quando se nota
que o indiciado realizou uma viagem ao estrangeiro, tendo estado na
Alemanha Oriental e na Itália, onde manteve contactos com comunistas locais.
A anotação dessa caderneta é uma espécie de relatório q
ue ele apresentou ao
Partido, resultante da viagem realizada, parecendo
-
nos que também esteve na
Rússia, onde teria participado de um Congresso de vários partidos comunistas
do mundo.
Os indiciados que prestaram declarações, e são vários, se referem ao
ind
iciado Joaquim Câmara Ferreira, destacando-o como elemento comunista
participante das reuniões presididas por Prestes.”
479
Também nas declarações prestadas por José Montserrat Filho, consta que:
“em 1963 Luiz Carlos Prestes (Antônio) uma explanação da situação política
brasileira para a UAPPL; que Luiz Carlos Prestes estava acompanhado por
Joaquim Câmara Ferreira (Toledo), que tomou conhecimento da Escola de
Quadros em Moscou, mas desconhece qualquer fato relacionado com ela,
bem como qualquer brasileiro que a tenha freqüentado; que soube da
existência da UAPPL de um grupo de brasileiros ligados ao PCB mas que
desconhece que elementos compunham tal grupo; que, sobre o PCB, o
declarante conhece somente através de noticias publicadas em jornais e como
elemen
tos do PCB conheceu Luiz Carlos Prestes e Joaquim Câmara Ferreira;
476
Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro
Setor comunismo, pas
ta 101, f.24.
477
D.O.P.S.
Documento 30B152, f.10
Arquivo Público de São Paulo.
478
No dia 9 de abril de 1964, a polícia invadiu a residência de Prestes em São Paulo. Ele já se encontrava foragido,
mas no local foram apreendidos arquivos do Partido. As ch
amadas “cadernetas de Prestes” serviram de base para um
inquérito policial militar (IPM), constituindo prova documental contra ele e diversos outros militantes.
479
Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro
Setor comunismo, pasta 71, f.29.
193
que, os únicos brasileiros que conheceu na Rússia, forma esses dois
elementos. (...).”
480
As indicações de documentos da repressão dão referência a ligações de Câmara
Ferreira e Prestes, j
á em 1959:
“consta de relatório reservado do dia 21 de abril de 1959, que Luiz Carlos
Prestes, passou todo o dia 21 deste mesmo mês e ano, no bairro do Ipiranga,
para de onde fora convidado para um almoço, pelo Comitê Distrital do Partido
Comunista Brasileiro, daquele bairro, bem como para receber várias
homenagens, preparada pelos seus seguidores. E consta que em companhia
do líder Vermelho ’, entre outros elementos figurava o epigrafado (Joaquim
Câmara Ferreira).”
481
No ano de 1962, a economia brasileira passava por um ciclo depressivo, com
aumento da inflação, paralisação de obras consideradas básicas pelo governo,
achatamento dos salários e um conseqüente clima de enfrentamento entre patrões e
empregados. Também começaram a ocorrer amplas paralisações de investimentos
privados, por temor da conjuntura econômica e política que pretendia deteriorar a
situação do governo Goulart. Além disso, a política externa brasileira, que se pautava
por uma independência que visava identificação do país com o movimen
to não
-
alinhado
aos EUA, fazia escassear a chegada de investimentos estrangeiros ao país. Tal
posição levava a uma pressão dos E.U.A sobre o Brasil no sentido de alinhamento a
uma política de bloqueio aos cubanos. Muitos mecanismos foram utilizados para tal
objetivo, tais como: “aliança para o progresso”, que fornecia alimentos e recursos
aos estados e municípios em oposição ao governo federal; doação de dinheiro de
empresários americanos e alemães para dois institutos organizados para ações contra
o governo Goulart; Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD) e o Instituto de
480
Arquivo Púb
lico do Estado do Rio de Janeiro
Setor comunismo, pasta 303, f. 603.
481
D.O.P.S.
Documento 30B152, f.8
Arquivo Público de São Paulo.
194
Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), que visavam financiar a campanha de políticos
que defendessem o capital estrangeiro e lutassem contra a Reforma Agrária; a Escola
Superior de Guerra (ESG), instrumento da presença política e ideológica norte-
americana no Brasil, criada em 1949, no contexto de guerra
-
fria que se preocupara com
a “guerra revolucionária”, que seria travada dentro do país para a conquista do poder
sem a intervenção
direta da União Soviética.
Tal posição dos E.U.A pode ser constatada na visita do Procurador Geral dos
EUA, Robert Kennedy ao presidente João Goulart, no dia dezessete de dezembro de
1962, em Brasília. Robert Kennedy adverte Goulart quanto ao tratamento dado a
“radicalismo de esquerda”, enfatizando que
“(...) havia a omissão do próprio presidente Goulart, ou de outras autoridades
importantes, na adoção de um claro posicionamento público contra posições
violentamente anti - americanas assumidas por brasileiros influentes, alguns
deles dentro do governo, outras fora, embora o presidente e outras altas
autoridades não garantissem particularmente que discordavam dessas
expressões. Não contestamos a independência da política brasileira, mas
objetamos a que essa independência se torne sistematicamente anti-
americana, opondo-se sempre aos interesses e posições dos Estados Unidos
(...).”
482
Ainda no mês de dezembro de 1962, realizou-se a IVª Conferência Nacional do
PCB e a linha política não foi alterada. De acordo com Pandolfi, tal linha estabelecia
que:
“(...) lutar pelas reformas de base era principalmente acumular forças para
desencadear, num futuro não muito longínquo, a revolução socialista, cuja ante-
sala
era a revolução nacional e democrática.”
483
Entreta
nto, foram feitas críticas severas à sua aplicação. Analisava-se que a
ausência de uma postura mais crítica refletia-se no reboquismo dos setores populares
482
GORDON, Lincoln.
A Segunda Chance do Brasil a Caminho do Primeiro Mundo.
São Paulo: Senac, 2002, p.
373.
483
PANDOLFI
, op. cit., p. 188.
195
em relação ao presidente da república. Era preciso corrigir os desvios de rota, daí que o
documento aprovado afirmava que o governo Goulart, embora incluísse personalidades
vinculadas ao movimento nacionalista, mantinha “uma política de conciliação com as
forças racionarias e entreguistas, sendo incapaz, portanto, de realizar reformas
profundas no país.”
484
Em janeiro de 1963, realizou-se o plebiscito, e o regime presidencialista foi
restabelecido por uma longa margem de votos, ou seja, nove milhões de eleitores num
total de dez ratificaram o mandato de Goulart e disseram sim ao presidencialismo, ao
mesmo
tempo em que davam apoio às reformas de base que vinham vinculadas ao
processo. Além disso, a vitória obtida pelas esquerdas nas eleições regionais de 1962
confirmava o crescimento dos seus votos e as poucas possibilidades políticas para sua
contenção.
Ent
retanto, as reformas necessitavam de mudanças na constituição, que só
poderiam ser feitas com dois terços de aprovação no Congresso. Essa via legislativa
era desprezada pelo PCB, que analisava o legislativo, a partir das eleições, como
sendo instrumento de representação de forças retrógradas do país e afirmava que as
reformas deveriam ser encaminhadas através de prerrogativas legais do executivo. O
PCB, dessa forma, trabalhava com a concepção da necessidade da instauração de um
governo nacionalista e democrático que pudesse implantar as reformas de base e
conseqüentemente caminhasse na direção da revolução.
havia, porém, conspiração dos setores conservadores para derrubar o
Presidente da república, ao mesmo tempo em que se aguçavam tensões dentro do seio
das forças armadas. No final de 1963, eclodiu em Brasília, uma revolta de suboficiais da
484
Ibid., p. 191.
196
Aeronáutica e da marinha, ocupando diversos prédios públicos e exigindo o direito de
voto e melhores condições na tropa. Tal situação colocava João Goulart numa situação
difícil, pois ou se apoiava a quebra da hierarquia militar pelos revoltosos ou se reprimiria
a revolta, fortalecendo assim os opositores ao governo.
Goulart, por fim, controlou a crise, restabelecendo a disciplina militar e trocando
comandos, o que lhe permitiu enfrentar uma tentativa de golpe articulada no Rio de
Janeiro pelo então governador da UDN, Carlos Lacerda.
Ao tentar controlar a situação decretando estado de sítio, Goulart não obteve o
apoio dos ministros militares, deixando clara a falta de apoio com que contava. A partir
daí, Goulart buscou ajuda das organizações sindicais, dos nacionalistas e dos partidos
de esquerda para conseguir, nas ruas e manifestações das massas e comícios, o apoio
que não tinha no Congresso.
De acordo com Francisco Carlos Teixeira “para implementar as reformas
consideradas necessárias, Goulart apoiava-se no então, chamado ‘dispositivo militar
radical’: alguns comandos militares fieis e a ampla rede de sindicatos, controlados pelo
estado desde a época de Vargas.”
485
Em março de 1963, sexta feira treze, num comício na Central do Brasil, Goulart
defendeu mudanças na constituição e anunciou algumas medidas entre as quais a
encampação de refinarias de petróleo particulares e outra que se referia à reforma
agrária. No dia quinze de março, o Presidente encaminhou mensagem ao Congresso,
sobre um projeto reformista, incluindo emendas constitucionais relativas à
desapropriação de terras com pagamento em títulos públicos e à elegibilidade dos
subalternos das Forças Armadas. Em resposta ao comício do dia 13, ocorreu, em São
485
LINHARES, op. cit., p. 321.
197
Paulo, no dia dezenove de março, caminhando da Praça da República até a Sé, a
primeira Marcha da Família com Deus pela Liberdade contabilizando entre cem mil e
oitocentas mil pessoas, orientadas pela direita gol
pista.
No dia vinte e cinco de março, a Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais
comemorou o segundo aniversário com uma solenidade no sindicato dos metalúrgicos
do Rio. Esta associação havia sido fundada no dia vinte e um de março de 1962, com
sede
na rua São José, no Rio de Janeiro. Apesar de não reconhecida e hostilizada pelo
ministro da marinha, ela reunia milhares de associados e editou o periódico “Tribuna do
Mar”.
Na celebração, em março de 1964, o presidente da associação, o marinheiro de
prim
eira classe José Anselmo dos Santos
486
, discursou para uma platéia de 1200
pessoas, entre os quais os deputados da Frente de Mobilização Popular (FMP), e João
Cândido, líder da revolta da Chibata de 1910. De acordo com Cabo Anselmo, no dia 25
de março , ele estava preparando o discurso quando foi levado pelo Marco, vice-
presidente da associação, a um escritório na rua México, onde se encontrou com
Joaquim Câmara Ferreira e Marighella, para ajudarem na redação do documento. Ao
ser perguntado se tinha ouvido falar de Joaquim Câmara Ferreira, disse que não,
mas foi apresentado a ele por Marighella, que lhe fez elogios, e Cabo Anselmo o achou
um homem discreto. Em relação ao manifesto, cabo Anselmo conclui: (...) absorvido
486
José Anselmo dos Santos, promovido pela imprensa a Cabo Anselmo e considerado por alguns como um agente
infiltrado da Agência Central de Inteligência Americana (CIA). Seja como for, se tornou mais tarde um traidor
ideológico de direita entregando diversos militantes para serem assassinados pela repressão, inclusive Soledad Barret
Viedma, a Sol, que era sua companheira e estava grávida.
198
com isso, fui redigir o discurso. O M
arighella leu e fiz anotações. Depois, ele, o Marco, o
Câmara Ferreira e eu demos a redação final ao negócio.”
487
A comemoração foi tensa e agitada, porque muitos membros da diretoria da
Associação e marinheiros haviam sido presos e corriam o risco de expul
são, inclusive o
próprio Anselmo. Quando terminou a solenidade, revolveu-se fazer protesto diante do
ministério da Marinha a fim de exigir do almirante Silvio Mota a libertação dos presos e
o cancelamento das punições. A proposta, porém, aceita, foi a de uma assembléia
permanente no sindicato dos metalúrgicos, em São Cristóvão.
A ordem do comando da marinha era de invasão do sindicato e prisão dos
insubordinados. Para tanto, foi deslocada uma tropa de cem fuzileiros navais, sendo
que um terço deste contingente abandonou as armas e aderiu ao movimento. João
Goulart, que se encontrava no Rio Grande do Sul, retornou às pressas e nomeou o
almirante reformado Paulo Mário Rodrigues para ministro da Marinha, que se entendeu
com os rebeldes, que foram libertados e anistiados. A solução encontrada acabou
sendo o estopim de uma crise política, pois, ao anistiar os rebeldes e quebrar a
disciplina e a hierarquia, o governo acabou dando a coesão que faltava às forças
armadas.
Diante desse fato, a direção do PCB considerava a possibilidade do golpe de
direita. Porém, a maioria do Comitê Central acreditou no dispositivo militar do general
Assis Brasil, novo chefe da Casa Militar. Tal confiança pode ser conferida nas palavras
de Prestes por ocasião do aniversário do PCB, que era 25 de março. No dia vinte e
sete, no auditório da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), o Secretário Geral do
487
SOUZA, Percival de.
Eu, cabo Anselmo.
São Paulo: Glo
bo, 2000, p. 79.
199
PCB afirmou que não havia condições para um golpe da reação, e que se ele tentado,
“(...) os golpistas teriam as cabeças cortadas.”
488
Nesse mesmo dia, junto à edição extra de ‘Novos Rumos’, circulou o suplemento
especial com as teses para o VIº Congresso, marcado para novembro de 1964 e que
acabou não se realizando devido ao golpe. As teses se pautaram em dois aspectos: um
que analisava a condição dúplice e conciliadora da burguesia nacional e os parâmetros
da continuidade da aliança com ela, e outro que abria espaço à possibilidade da luta
armada embora o caminho pacífico fosse ainda preferencial.
Joaquim Câmara Ferreira foi eleito pel
o Comitê Central como membro do “comitê
das teses” de 1964. De acordo com Gorender, a comissão tinha os seguintes membros:
“Luiz Carlos Prestes, Carlos Marighella, Mário Alves, Élson Costa, Jacob
Gorender, Joaquim Câmara Ferreira e Francisco Gomes. Reu
niam
-se num
conjunto de duas saletas do edifício Avenida Central, na Avenida Rio Branco,
então o mais moderno do Brasil, o único com elevadores dotados de controle
eletrônico. No mesmo edifício, localizava
-
se o IPES.”
489
No dia trinta de março, Jango fez seu último discurso presidencial numa
solenidade promovida pela Associação dos Sargentos e suboficiais da polícia militar, no
Automóvel Clube do Rio. no dia primeiro de abril, João Goulart foi destituído da
presidência da República, num golpe civil mi
litar. Conforme Francisco Carlos Teixeira,
“as lideranças civis de Minas Gerais, com o Governador Magalhães Pinto, da
UDN; de São Paulo, Ademar de Barros, do Partido Social Progressista; e da
Guanabara, Carlos Lacerda, também da UDN, articulavam com os
comandos militares, em particular os Generais Mourão Filho, Carlos Luís
Guedes, Costa e Silva e Castelo Branco, esse o mais prestigiado chefe militar
de então, o desfecho do golpe para o mesmo mês de março.”
490
488
GORENDER, op. cit., p. 71.
489
GORENDER, op. cit., p. 71.
490
LINHARES, op. cit., p. 322.
20
0
Os esforços do Presidente em resolver a crise, não surtiram efeito. Além disso,
os golpistas conseguiram o apoio estratégico do E.U.A através da operação
Brother
Sam
, que enviou a frota americana para intervir a favor dos amotinados, esperando
uma possível reação do presidente João Goulart, no Rio de Janeiro. Mas isso não
aconteceu, porque o presidente deposto, “temeroso de um banho de sangue, preferiu
não reagir, e seu cargo é declarado vago pelo Congresso Nacional.”
491
Ainda, no dia primeiro de abril, consolidou-se o golpe que pôs fim à democraci
a
que imperava no país desde 1946, sob o pretexto do perigo comunista, conforme
relatou Thomas Mann, subsecretário de estado para assuntos interamericanos:
“em
janeiro, quando assumi o cargo, e até mesmo antes, estávamos conscientes de que o
comunismo esta
va corroendo o governo do Presidente João Goulart, no Brasil (...).”
492
Os comunistas foram surpreendidos pelo golpe de Estado que implantou o
regime militar no Brasil, e Joaquim Câmara Ferreira se encontrava fora do país, como
delegado numa conferência do partido colombiano, conforme depoimento de Noé
Gertel, que se lembra bem do episódio, porque,
“quando voltou, não foi para casa, porque não sabia como é que estava a casa
dele. tinham batido lá. Fui recebe-lo e ele foi instalado na casa de um
operário
no Brás. Não me lembro o nome do dono desta casa. Era aquele
pavor todo, mais rigorosamente o era ainda a ditadura militar. Aos poucos,
continuava
-
se trabalhando, o Câmara voltou para casa.”
493
Leonora Cardieri Ferreira confirma o depoimento de Gertel, embora afirma se
tratar de outros países. Ela conta que:
“em março de 1964, precisamente a vinte e seis, o Câmara viajou para Bolívia
e Peru, a serviço do Partido. Portanto, estava fora do país por ocasião do
491
Ibid.
492
MOREL, Edmar.
O Golpe Começou em Washington.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965, p. 18.
493
Noé Gertel, depoimento, em junho de 1997.
201
golpe de 31 de março. Escreveu-nos de cumprimentando o filho que
aniversariava dia 3 de abril. deveria saber do que ocorria no Brasil e suas
preocupações se voltavam por nós, pois não sabia como estávamos.
E assim, a 9 / 4, voltava ao Brasil pela Argentina, chegando de ônibus
a São Paulo. Foi a grande Raquel Gertel, recebendo seu telefonema de
madrugada, quem o acolheu e providenciou onde ficar, pois não poderia voltar
para casa. A polícia ficou de prontidão, vigiando a nossa casa. Não poderia
voltar a ela.
Enquanto outros fugiram do país para o exterior para salvar a pele,
diante da repressão que se desencadeava, ele voltava ao Brasil para assumir
seu posto de luta. Não descansou, embora cassados seus direitos políticos e
condenado. Encontrava-se conosco sempre que podia e foi para casa
inúmeras
vezes quando o país perdia aquele caráter tão expressivo e
parcialmente voltava à normalidade.“
494
Documento do DOPS confirma os depoimentos de Noé Gertel e Leonora Cardieri
ao afirmar que: “em maio de 1964, constava que o dirigente comunista Joaquim
Câma
ra Ferreira; residente nesta capital, à rua Original 99, bairro Vila Madalena,
encontrava
-
se foragido.”
495
No ano de 1964, ocorreu a última prisão de Joaquim Câmara Ferreira, a qual
segundo Leonora Cardieri Ferreira, foi em “São Bernardo do Campo, quando fazia uma
conferência sobre o papel da imprensa na sociedade atual. Soltaram
-
no no mesmo dia.”
496
Na verdade, o golpe fulminante obrigou a esquerda a uma retirada que, a
princípio, visava salvar a própria vida dos militantes, pois os vencedores buscaram
rapidamente desmantelar todas as organizações que pudessem oferecer resistência.
Assim sendo, diversos sindicatos sofreram intervenções, foi queimada a sede da União
Nacional dos Estudantes (UNE), as Ligas Camponesas foram dispersas, houve
cassações de direitos políticos advindas do primeiro Ato Institucional 1 (AI-1), ocorreu
494
Leonora Cardieri
diário.
495
D.O.P.S.
Documento 30B152, f.11
Arquivo Público de São Paulo.
496
Leonora Cardieri
diário.
202
expulsão de militares das Forças Armadas e civis do serviço público, além de várias
outras punições, tortura e assassinatos, que se tornaram o início de uma política de
Terrorismo de
Estado.
Ainda no mês de maio de 1964, segundo Gorender, recebeu-se o primeiro
pronunciamento da Comissão executiva do PCB após o golpe. O breve documento,
intitulado “Esquema para Discussão”, dava uma idéia de que o PCB tencionava uma
guinada para a esquerda. A verdade, porém, era que o documento havia sido
preparado por membros da executiva que tinham uma tendência à esquerda: Prestes
não havia participado devido aos problemas de segurança. Após um breve período, e
com o retorno de toda executiva mais as prisões de membros de linha mais à
esquerda, o “Esquema” foi revogado.
Entretanto, enquanto tinha o respaldo do “Esquema”, Gorender sugeriu a
Câmara Ferreira a elaboração de um texto que avançasse proposições autocríticas
acerca do pacifismo e do reboquismo pró-burguesia. Assim, Gorender redigiu o texto e
Câmara Ferreira providenciou a edição mimeografada e a circulação. Porém, assim que
tomou conhecimento do folheto, o secretariado estadual de São Paulo proibiu sua
distribuição nas fileiras partidárias.
Diante desse quadro, que pôs fim à ordem democrática, os comunistas tiveram
que adiar o VIº, Congresso que se realizou em dezembro de 1967. Entretanto, em
meio à perseguição policial, o PCB teve de enfrentar uma luta interna muito acirrada,
que advinha de avaliações sobre o golpe e das diferentes posições que deveriam ser
tomadas diante da nova conjuntura. Essas posições variavam desde o confronto direto
com o regime até o total imobilismo.
203
Em maio de 1965, o Comitê Central se reuniu para fazer sua primeira reunião
que visava analisar a situação política do país. A visão acerca do processo que levou a
implantação do regime ditatorial no Brasil não era unânime. Um grupo achava que o
PCB havia incorrido no “desvio de direita” ao iludir as massas com a possibilidade de
realizar uma reforma estrutural de base, dentro da legalidade, a partir de uma aliança
do proletariado com a burguesia. Outro grupo, entretanto, achava que o erro era o
“desvio de esquerda”, onde o PCB havia abandonado a via da legalidade democ
rática,
fazendo uma análise equivocada da correlação de forças e buscando ações que
estavam acima das condições objetivas da realidade brasileira.
Daniel Aarão realça bem essa luta interna dentro do PCB após o golpe de 1964,
ao descrever que:
“segundo o PCB, cabia ao ‘esquerdismo’, a responsabilidade pelo golpe. Para
os demais, a responsabilidade recairia sobre o ‘direitismo’. Para os primeiros
tratava
-se de esconjurar os líderes nacionalistas e comunistas que quiseram ir
longe demais. Para os segundos, era necessário fazer rolar as cabeças dos
dirigentes do PCB, a de Prestes em particular.”
497
Era evidente que havia uma crise dentro do Partido, como resultado do golpe e
suas circunstâncias, e Joaquim Câmara Ferreira vai discutir profundamente com os
compa
nheiros tal conjuntura. Em seu depoimento, Noé Gertel confirma tal posição de
Joaquim Câmara Ferreira, relatando que
“recordo
-me de uma reunião que o Câmara fez em minha casa. Por isso,
acabei participando. Câmara levantou para o Ramiro Luchesi problemas
quanto a várias posições do Partido. Luchesi não conseguiu convencer o
Câmara. Não é que Joaquim optasse abertamente pela luta armada. Ele
estava cobrando era a interpretação de forças da situação antes do golpe.
Estava cobrando a estratégia do Congresso, da resolução de outubro de
1963 etc. Qual era a posição do Partido: direita demais ou esquerda demais?
O que havia sido a linha justa naquela conjuntura? A metodologia de
discussões do Câmara valorizava os elementos à esquerda naquela situação,
497
REIS FILHO, op. cit., p. 47.
204
enquanto
o Ramiro e outros dirigentes valorizavam pontos à direita, na mesma
situação. A discordância tendia a se tornar profunda.
A interpretação do Luchesi enfatizava o sectarismo com que havíamos
praticado as alianças com Kubitschek, Goulart etc. O Câmara achav
a que não.
Que deveríamos ter preparado a Guerra Civil, porque o golpe seria dado
mesmo. Penso que aí já havia se delineado a opção futura do Joaquim
Câmara.“
498
É bom salientarmos que Joaquim Câmara Ferreira não se eximiu da
responsabilidade, visto que desde 1960 fazia parte da direção nacional do Partido. Sua
posição até então ia ao encontro do encaminhamento dado pelo Partido até o golpe de
1964. A partir daí, sua opção pessoal, diferentemente do Partido, é a de que era
necessária uma nova tática para combater a ditadura militar, e o caminho por ele
tomado partia uma concepção ética pessoal que não rejeitava, entretanto, a
possibilidade de outras formas de luta para a derrubada da ditadura. Podemos
constatar isso de maneira clara em alguns depoimentos que analisam a decisão do
personagem.
Em uma reunião na casa de Sara Mello logo depois do Ato Institucional 5 (AI 5),
estavam presentes Noé Gertel e sua companheira Raquel Gertel, Murillo e Sara Mello,
e Joaquim Câmara Ferreira e sua companheira Leonora Cardieri. O tom da conversa
era o seguinte, conforme descreve Sara Mello:
“a gente falando: mas Câmara, você deixar o Partido depois de quarenta
anos? Pensa bem Câmara! Pensa bem! Reflete um pouco. Andando assim
(Joaquim Câmara Ferreira) nunca me esqueço. É
um problema moral. Ele não
falou um problema político mas um problema moral. E quando ele sentado
numa poltrona que eu não tenho mais (...) Ele sentado aqui e eu sentada aqui.
Câmara você acha que é a única solução? Sarinha, não sei, eu não sei. (...).”
499
498
Noé Gertel, depoimento, em junho de 1997.
499
Sara Mello, depoimento, em maio de 2003.
205
Juca Kfouri, em depoimento, esclarece que Joaquim Câmara Ferreira não tecia
críticas aos companheiros que haviam permanecido no PCB e haviam optado por outra
forma de luta. Conforme Kfouri: “com respeito, com um carinho. contava coisa boa,
quer dizer, não atribuía a covardia. Atribuía a erro de avaliação, mas não desfazia de
ninguém, do pessoal que havia ficado no Partido (...).”
500
E Kfouri realça algo muito
importante que reforça essa posição de Joaquim Câmara e outros, ao enfatizar que
“as
questões da política não eram apenas as questões da política. Você não pode dissociar
a questão moral da sua atuação política (...).”
501
Gertel enfatiza que:
“a partir do dia em que retornou ao Brasil, procurou uma resposta. E logo
chegou a hipótese da luta armada. A luta armada não foi feita ou pensada de
uma hora para outra. Isso sempre foi discutido entre os comunistas Dentro
desse processo de luta interna dentro do PCB, houve um fracionamento que
levou ao surgimento, dentro do Partido, de vários grupamentos favoráveis à
luta armada.”
502
No primeiro semestre de 1966, o Comitê Central reformulou as teses
preparatórias para o VIº Congresso, e discussões polêmicas ganharam a “Tribuna de
debates”, publicação que circulou clandestinamente entre os fins de 1966 e o pri
meiro
semestre de 1967. Joaquim Câmara Ferreira teve um papel importante nesses debates,
nos quais defendia uma opção aberta pela luta armada, como veremos no próximo
capítulo.
Gertel resumiu de forma precisa a importância e a relação de Joaquim Câmara
Ferreira com o PCB, e como foi difícil para ele, quando se convenceu da necessidade
500
Juca Kfo
uri, depoimento.
501
Juca Kfouri, depoimento.
502
MIR, Luís.
A revolução impossível. A esquerda e a luta armda no Brasil
. São Paulo: Editora Best Seller, 1994,
p. 272.
206
da luta armada, o rompimento com o Partido ao qual havia devotado toda sua vida.
Gertel salienta que
“é claro que um quadro como o Câmara era uma máquina. Se qualquer um d
e
nós idealizasse um comunista, esse homem seria o Joaquim Câmara. Tinha
coragem, solidariedade, generosidade, abertura. Ele se entregava por
completo aquilo que fazia, que era a construção do Partido. Daí o drama que
devia viver em seu íntimo, a medida em que ia se convencendo da
necessidade de luta armada. Ao acreditar nesse caminho, muitas coisas se
apresentavam então para ele, com um matiz diferente”
503
A partir desse momento, já estava delineada a posição de Joaquim Câmara
Ferreira quanto ao caminho a
ser seguido por ele e do qual não retrocederia até o seu
assassinato, em outubro de 1970.
503
Noé Gertel, depoimento, em junho de 1997.
207
CAPITULO 3
O “Velho ou Toledo”
-
O homem da ALN (Ação Libertadora
Nacional)
Resumo do 3º capítulo
No terceiro capítulo, enfocamos o rompimento de Joaquim Câmara Ferreira com o
PCB em 1967 para ingressar na luta armada e a sua atuação na ALN. Além disso,
analisaremos o seu papel no processo desencadeado de luta armada no Brasil a partir
da formação de grupos guerrilheiros.
Tentamos demonstrar, na opção de Joaquim Câmara Ferreira por essa forma de
luta, uma ação muito mais de cunho pessoal, apesar da análise que possa fazer do
processo político que se desenrolava, naquele período.
208
3
O “Velho ou Toledo”
- O homem da ALN (Ação
Libertadora Nacional)
“A vida é uma senda estreita, e, quando a
gente pisa fora, pisa pra morrer. Mas foi a
indignação e a sensibilidade que nos
fizeram optar por esse caminho.”
Norberto Nehring
militante
da ALN assassinado em abril 1970.
Em 1966, como dissemos anteriormente, iniciaram-se os debates sobre as teses
para o VIº do PCB, e Joaquim Câmara F
erreira
504
participou de forma ativa nas
discussões. Entre algumas de suas posições, queremos destacar as seguintes:
Quanto à oposição à ditadura militar implantada em 1964:
“o que é preciso ser dito com clareza é que existe oposição e oposição. A
oposiç
ão das forças populares e revolucionárias que, embora ainda débil e
sem condições de se manifestar livremente, é a única que pode apresentar um
programa claro de lutas contra o governo e contra o regime a que ele serve. E
a oposição burguesa no caso uma oposição de que participem, ao lado de
representantes da burguesia nacional, elementos da grande burguesia,
latifundiários e até antigos e conhecidos agentes do imperialismo, - essa
“oposição” é também uma escora do regime, constitui sua mão esquerda”,
m
as nem por isso menos valiosa.”
505
Quanto à oposição consentida através do Movimento Democrático Brasileiro (MDB):
“(...) ali se encontram algumas ‘cabeças esquerdistas’, mas a orientação geral
do MDB é de crítica ao governo dentro dos limites da conservação do regime,
Isto é, da conservação dos privilégios de que se beneficiam os pró-homens do
MDB. Inclinando-se ora para um apoio ao general Costa e Silva, ora para uma
abertura ao próprio Marechal Castelo Branco, o MDB se mantém numa dança
de urso que não conduz a coisa alguma.
504
O codinome usado por Joaquim Câmara Ferreira no debate das teses para o VIº Congresso do PCB era
J.A.Toledo. In: GORENDER, Jacob.
Combate nas Trevas.
São Paulo: Ática, 1998, p. 102.
505
Teses
Suplemento Especial
Voz Operária, nº19, 20 de Janeiro de 1966, Questões Táticas (II).
209
E isso é compreensível. É preciso ter em conta que o grosso do MDB é
formado por elementos que, em março de 1964, apoiaram o golpe.”
506
Quanto aos motivos do apoio ao golpe a João Goulart:
“(...) o fizeram não porque o senhor João Goulart estivesse tramando medidas
antidemocráticas, mas porque consideravam uma ameaça aos seus interesses
o despertar de setores crescentes da população para uma vida política ativa,
porque as reformas de estruturas estavam sendo exigidas com força cada vez
maior pelas massas.”
507
Quanto às teses números 62 e 63, sobre a eventualidade de um golpe:
“(...) são as únicas que se referem à iniciativa das massas sob suas próprias
bandeiras de luta. É certo, que como resultado das contradições internas
do
bloco político que participou do golpe de abril cresce sua instabilidade e
tornam
-se possíveis novos golpes militares. Também é certo que, diante do
avanço do movimento de massas e do processo de impopularidade e
isolamento da ditadura, setores das classes dominantes poderão unir-se e
buscar uma solução que, excluindo a participação das forças trabalhadoras e
populares, conduza à substituição do governo reacionário. Em tais
eventualidades, é justa a recomendação de que as massas tomem a iniciativa
e reconquistem na prática as liberdades. Mas o que não está certo é deixar de
apontar possibilidades e a necessidade de, independente disso, as massas
tomarem a iniciativa da luta contra a ditadura, irem à ação por sua própria
conta. Esta perspectiva não se encontra nas teses. Mas, se apontamos desde
esta perspectiva, não criamos as condições para que as massas
intervenham de maneira independente no caso de uma crise de governo.”
508
Quanto à análise das teses, Joaquim Câmara Ferreira as resumiu em quatro
pont
os:
Organizarmo
-nos, ligarmo-nos às massas, promovendo movimentos
reivindicatórios;
Lutar por estabelecer a unidade de ação de todas as forças que se opõem à
ditadura;
506
Teses
Suplemento
Especial
Voz Operária, nº19, 20 de Janeiro de 1966, Questões Táticas (II).
507
Ibid.
508
Ibid.
210
Enquanto não estivermos perfeitamente ligados às massas e não tivermos
conseguido unir
todas as forças antiditatoriais, devemos esperar;
A organização e a ligação com as massas são necessárias para que elas
intervenham na eventualidade de um golpe.
Joaquim Câmara Ferreira críticas essas posições, afirmando que as teses não
tinham um programa independente para as massas e não davam ênfase à ação das
massas no sentido da derrubada da ditadura, pelos objetivos revolucionários do povo.
Ao mesmo tempo, ele enfatiza a sua posição quanto à ação necessária para se
contrapor ao regime ditatorial, que,
segundo ele:
“(...) o essencial é unir agora o que for possível em torno de um programa
concreto e de ações concretas.Há forças dispostas a se unirem. São as forças
fundamentais. A massa operária e camponesa, os estudantes, os servidores
do estado e para
-
estatais, as donas de casa, a intelectualidade, os pequenos e
médios comerciantes e industriais etc.São os católicos progressistas, os
socialistas, os comunistas, os partidários de Arraes, Brizola, Jango etc. Essa
frente pode e deve afirmar-se sob a bandeira comum, com uma clara
perspectiva de ação determinada pela realidade de cada âmbito de ão, mas
visando sempre a derrubada da ditadura. Ao tomarmos a iniciativa de unir
forças, estaremos também, e desde já, afirmando a hegemonia do proletariado
nesse processo e criando um instrumento poderoso, uma força capaz de atrair
outras forças. A frente comum de luta contra a ditadura se ampliará,
arrastando os elementos vacilantes, não para limitarmos nossos objetivos aos
desses elementos vacilantes, mas sim na medida em que se unam e lutem
efetivamente. Se ficarmos apenas à espera de que desencadeie um golpe em
conseqüência do agravamento das contradições entre os golpistas, no poder,
ficaremos condenados à passividade e teremos de registrar esses golpes, sem
cri
ar condições para neles intervir.”
509
Podemos perceber que a análise e a posição política de Joaquim Câmara
Ferreira, em 1966, era a favor de uma frente comum capaz de derrubar a ditadura
militar. Em sua análise, era prevista a ação das massas como forma
de contraposição à
ditadura, e não uma passividade e uma espera de contradição no seio das forças
golpistas para o restabelecimento das liberdades democráticas. Entretanto, após o
509
Teses
Suplemento Especial
Voz Operária, nº19, 20 de Janeiro de 1966, Questões Táticas (II).
211
rompimento com o PCB, Câmara Ferreira terminou privilegiando a luta armada a
través
de uma organização que não possuía uma direção nos moldes de um partido político.
Nesse momento, após o golpe militar, houve uma acirradíssima luta interna
dentro do PCB diante da conjuntura que se apresentava. Havia diversas propostas que
iam desde o confronto armado contra o regime até o imobilismo. Esses debates,
travados fora e dentro do PCB, tinham como tônica, conforme Apolônio de Carvalho
510
avaliar se “as causas da derrota deviam-se à orientação política. Discutia-se, pois, que
linha política poderia tê-la evitado. Que objetivo? Democrático, popular, luta imediata
pelo socialismo? Com que aliados e por meio de que formas? Via pacífica, luta
armada?”
511
Em maio de 1965, aconteceu a primeira reunião do Comitê Central, que visava a
fazer uma análise
da conjuntura política do país. Segundo Apolônio de Carvalho, para a
maioria do Comitê Central, as causas da derrota teriam sido o “desvio de esquerda”, ou
seja, aventureirismo e o radicalismo dos marinheiros, de Leonel Brizola, do próprio
PCB, que, assustando a burguesia, a teriam lançado nos braços dos militares. Por
esmagadora maioria de votos –
25 a 6
, esta passou a ser a posição oficial do Partido.
Entretanto, as posições críticas minoritárias, no Comitê Central, expressavam a posição
de muitos mili
tantes.
Os seis membros contrários a posição do Comitê Central representavam
importantes Comitês Estaduais: Câmara Ferreira e Marighella, por São Paulo; Jover
Teles, pela Guanabara; Miguel Batista e Apolônio de Carvalho pelo Estado do Rio de
510
Apolônio de Carvalho militar de formação que se tornou militante do PCB após participar do Levante de 1935.
Como militante comunista, participou das Brigadas Internacionais na luta contra o ditador Franco, durante a Guerra
Civil Espanhola. Após isto, foi combatente da Resistência Francesa durante a Segunda Guerra Mundial. Recebeu o
título de “Herói de Três Pátrias.” Conviveu com Joaquim Câmara Ferreira após o ano de 1960.
511
CARVALHO, Apolônio de. Vale a Pena Sonhar.
Rio de Janeiro: Rocco, 1997, p. 197.
212
Janeiro; Mário Alves, por Minas Gerais; Jacob Gorender, pelo Rio Grande do Sul.
Conforme Apolônio de Carvalho, esses seis membros “tem uma característica especial:
eles são os dirigentes das maiores concentrações no PCB. Não avancemos a idéia de
maiores concentrações co
mo uma coisa fabulosa não, mas num sentido relativo.”
512
Para essas vozes discordantes dentro do Comitê Central, a análise da situação
política era vista da seguinte forma, conforme as palavras de Apolônio de Carvalho:
“estamos diante de uma ditadura militar que não esconde ter vindo para ficar.
Que suprime as liberdades, dissolve os partidos políticos, cassa os direitos de
cidadania, reprime violentamente os sindicatos, as ligas camponesas, os
estudantes e o mundo das artes e da cultura. Suspensas as gara
ntias
constitucionais, governa-se por meio de atos institucionais decretados no
vértice do poder. Tudo isso para interromper um dos mais ricos ascensos
sociais de nossa história, inclusos o campo e a cidade, o que nos deixa muito
próximos de conquistas que visavam ao desenvolvimento do país e à melhoria
das condições de vida das parcelas majoritárias da população.”
513
Daí, havia duas posições distintas dentro do PCB em relação aos motivos do
golpe militar, bem como duas propostas de como se daria o combate
, a saber: união de
todas as forças democráticas que pudessem, aos poucos, minar a ditadura militar e
restabelecer a democracia no país; proposta de um combate armado que pudesse
desalojar os militares do poder através do uso da força.
De acordo com Apolô
nio:
“nós queremos que a linha do Comitê Central, do Comitê Central do
Congresso, em 1960, seja modificada. Que se aceite o predomínio do caminho
armado, protesto armado contra a ditadura. Achávamos que não havia
condições nem de ir para as ruas, nem para o parlamento, nem para as leis,
nem para as eleições, pois tudo isso estava cortado praticamente.”
514
512
Conforme depoimento de Apolônio de Carvalho, em janeiro de
2004, no Rio de Janeiro.
513
CARVALHO, op. cit., p. 196.
514
Apolônio de Carvalho, depoimento.
213
Dessa posição contrária em relação à nova orientação do PCB de uma união de
forças democráticas, surgiu uma corrente crítica, rotulada de “Corrente
Revolucionária.”
Entretanto, essa nova frente revolucionária não conseguiu, apesar de reuniões entre
seus dirigentes, formular uma política de unidade de objetivos comum. Sua formulação
partia muito mais do desagrado em relação à orientação oficial do PCB do que de uma
busca de posições coletivas mais amplas. Daí o surgimento das diversas organizações
de esquerda armada com diferentes propostas, entre as quais a ALN, da qual Joaquim
Câmara Ferreira foi um dos fundadores.
Segundo Moisés Vinhas
515
, no final de 1965, houve uma conferência do Estado
de São Paulo, onde, a reorganização do partido acabou optando pelo combate ao
esquerdismo, pois havia a imputação do Comitê Central de responsabilidades pela
sectarização e golpismos cristalizados no esquema de discussão da Comissão
Executiva. De acordo com Vinhas, nesta conferência, excluíram-se do novo Comitê
Estadual de São Paulo os dirigentes nacionais Ramiro Luchese, Geraldo Rodrigues e
Moisés Vinhas; foram escolhidos Antônio Chamorro e Joaquim Câmara Ferreira, qu
e
iriam assumir posições esquerdistas. Hércules Corrêa esclarece o clima que havia
dentro do PCB nesse período, e qual a posição de Joaquim Câmara Ferreira. De
acordo com suas palavras:
“(...) acho que aquilo chocou (o golpe) demais o Câmara. Ai, ele se j
ogou como
todos nós, de alguma forma, para recompor forças. Entendeu? Mas já na
recomposição da força, se apresentou o problema, perfeito? Um problema que
existia antes que era da contestação da orientação política do PCB. A
contestação ganhou força e com
argumentos, com atos e por confrontar atos e
atitudes que eram difíceis de ser esclarecidos. (...) Qual era a razão? É que o
partido não tinha feito. Não tinha feito a resistência armada, e, por outro lado,
quando fizeram as duas primeiras reuniões, quando prepararam a reunião, ele
(Joaquim Câmara Ferreira) não colocou a luta armada como centro. E a
515
VINHAS, op. cit., p. 241.
214
derrota política foi de tal ordem, tão esmagadora do ponto de vista político,
feito pela área militar, que as pessoas resolveram que tinha que ser feita pela
vi
a militar.”
516
Nesse momento, o PCB ainda era a grande organização da esquerda brasileira
tanto em experiências políticas como em influência nos movimentos sociais. Neste
sentido, os debates e a luta de posições dentro do PCB estabeleciam os rumos que
tri
lharia a esquerda no Brasil. Havia um fortalecimento dos setores críticos dentro do
PCB, e parecia que eles iriam ter suas propostas vencedoras no VIº Congresso que
havia sido marcado para novembro de 1967, mas que acabou se realizando no mês de
dezembro.
De acordo com Apolônio de Carvalho, os dirigentes da “Corrente
Revolucionária”
mantiveram contato durante esse período. Conforme suas palavras:
“Miguel Batista e eu, no Estado do Rio, somos os anfitriões de grande parte
desses encontros. Estamos em contato relativamente constante com
Marighella e Câmara Ferreira, e também com a Guanabara. Temos
igualmente, laços com Mário Alves e Jacob Gorender. E iremos aguardar,
vivas esperanças de uma confluência unitária do diversos grupos que
constituíam a Corrente.”
517
Apolônio de Carvalho afirmou ainda que esta reunião foi pedida por ele e Miguel
Batista no dia
“primeiro de outubro de 1967 de todos os companheiros dissidentes, daqueles
que s chamávamos a Tendência Revolucionária para discutir esta questão,
pois
nós não achávamos que devíamos ficar divididos em vários partidos. Lutar
por um partido só... um partido diferente do PC. Um partido aberto, sem
arrogância, sem autoritarismo, aberto para as divergências, aberto para troca
de opiniões etc.”
518
516
Hércules Corrêa, depoimento.
517
CARVALHO, op. cit., p. 198.
518
Apolônio de Carvalho, depoimento.
215
Renato Mar
tinelli
519
disse também que o racha do Partido Comunista deveria
caminhar para uma organização partidária que tivesse uma de suas linhas políticas a
luta armada. Conforme ele:
“(...) quando se dava essa situação de quebra orgânica do Partido, existia uma
possibilidade desta oposição ao Comitê Central se encaminhar para um
Partido Comunista Revolucionário em determinado momento e realmente isso
surgiu o termo, Mário Alves, Jacob Gorender, Apolônio de Carvalho, né? Então
essa posição em determinado momento era discutida entre as dissidências.
Posteriormente né, parece que tem uma coincidência com a ida do Marighella
a OLAS, se transforma no agrupamento comunista de São Paulo e no Partido
Comunista Brasileiro Revolucionário.”
520
A posição de Joaquim Câmara Ferreira e sua articulação tiveram papel decisivo
no fortalecimento dos críticos e na tomada de posição de diversos militantes do PCB
em relação ao caminho a ser seguido. Podemos constatar isso na Conferência
Estadual dos comunistas de São Paulo realizada em Campinas, em Abril de 1967: dos
37 delegados que participaram, 33 rejeitaram as teses
521
do Comitê Central e
aprovaram o informe contrário apresentado por Marighella. Tarcísio Sigrist
522
participou desta conferência e situou a importância de Joaquim Câmara Ferreira nela,
enfatizando que:
“Joaquim Câmara Ferreira era um militante comunista, mas por outro lado,
havia uma doçura na sua presença, uma generosidade. Câmara Ferreira era
um articulador, o homem do partido. Na conferência para a preparação do
con
gresso, que a mais importante, foi a de São Paulo, foi tão importante que
estava presente o Secretariado do Comitê Central, o Prestes e outros
membros, o Marighella, o Toledo e outras personalidades. Havia ali, 50 ou 60
519
Renato Martinelli membro do Comitê Estudantil do PCB na Universidade Mackenzie. Mas tarde, dissidente do
Partido e membro da ALN. Fez treinamento guerrilheiro em Cuba. Foi amigo de Joaquim Câmara Ferreira. Na ALN
tinha o codinome de “Lobato.”
520
Conforme depoimento de Renato Martinelli, em D
ezembro de 2003, em São Paulo.
521
Teses
Como perspectiva de luta, as teses propostas pelo Comitê Central propunham a derrota da ditadura militar
através da aliança com a oposição burguesa e dos arranjos de cúpula. Retirava
-
se a confiança na burguesia naci
onal e
na possibilidade do caminho pacífico para a revolução. In: GORENDER, Jacob. Combate nas Trevas. São Paulo:
Ática, 1998, p. 99.
522
Tarcísio Sigrist É professor. Foi militante do PCB no qual entrou em 1964. Rompeu com o PCB na dissidência
de 1967. Fo
i militante da ALN e amigo de Joaquim Câmara Ferreira.
216
comunistas ou mais, quer dizer, a el
ite do Partido estava ali, naquele momento.
E o que que eu tenho de memória desse momento? Apesar da divergência,
havia um respeito ao Prestes, apesar de todos os companheiros, a maioria em
absoluta a ser contrário ao Prestes, contrária ao Comitê Central. E naquele
momento, nós estávamos rompendo com o Partido, rompendo com o Comitê
Central, havia um respeito. E essa coisa, eu achei admirável. Havia um
respeito. Quando Prestes fala no Congresso, nós estávamos exaustos. E
tínhamos tido 4 ou 5 dias de r
euniões e era alto da noite e o cansaço era muito
grande, mas se fez um silêncio absoluto. Um silêncio que me marcou muito no
momento porque todos nós éramos contrários ao Prestes. A platéia inteira era
contrária. Meia dúzia ali o apoiava. O resto não o apoiava, mas, independente
disso, se fez um silêncio assim eloqüente quando Prestes fala. Marighella foi a
grande voz do Congresso, da Conferência. Ele foi a grande voz. A figura que
girava todo Congresso, que girava todo o debate, se centralizava no
Marighe
lla. Mas, quem organizava silenciosamente tudo isso era o Toledo.
Então, o Toledo articulava. Na medida que o Marighella falava em grupo ou se
reunia no almoço, no café, enfim, nos momentos que ficavam sem trabalho na
Conferência que era o almoço, o café, o jantar, a hora de fazer uma higiene
pessoal muito limitada, e também não tinha como tomar banho ali, pela......., o
local era pequeno e tinha que ser altamente seguro porque podia ser
denunciado por vizinho, enfim, o, trocando idéias etc, era o Toledo. Então, o
Toledo era esse homem que conhecia o Partido. Acho que ninguém conhecia
tão bem o Partido como o Toledo. Ninguém sabia amarrar tanto o Partido como
o Toledo fazia. Eu vejo nesse, eu não vejo o Toledo, assim, nesse momento,
essa grande figura, embora fosse, embora fosse, sem dúvida. Mas a presença
do Prestes, a presença do Marighella. Ele não era essa figura de força, da
massa do Partido, da massa tal, mas era aquele homem que articulava, que
sabia articular e que fazia esse trabalho de uma forma per
feita.”
523
Carlos Eugênio Paz definiu também de maneira bem clara os tipos de liderança
que exerciam Joaquim Câmara Ferreira e Marighella, e que iriam continuar após a
criação da ALN. Conforme ele:
“(...) que o Toledo era um homem de liderança também, mas era liderança
mais discreta, aquele homem de conversa miúda, pra pouca gente, formadora.
O que eu sentia com o Toledo é que eu sempre estava aprendendo alguma
coisa. O Toledo abria a boca para falar , ele estava sempre me ensinando
alguma coisa. Eu estava para ouvir, aquela coisa da conversa ao pé do ouvido,
daquela vida clandestina, dentro de uma organização, sempre clandestino,
tendo que falar baixo. Ele era um homem muito contido, assim, era todo
elegante não sei o quê. Era uma personalidade bem diferente ele e o
Marighella, mas ele também era um tipo de liderança, que uma liderança
mais interna, mais partidária, mais organizacional, mais de organização, mais
de contato pra pouca gente.Já o Marighella era não, é um cara que chegava
numa assembléia, ele já monopolizava as atenções. (...) Então os dois na
verdade, um foi ajudando o outro a chegar nessa posição, um foi influenciando
o outro e é um angu de dois que acabou formando, esses dois personagens
523
Conforme depoimento de Tarcísio Sigrist, em março de 2004, em Campinas.
217
tão diferentes, um angu, formado por eles dois que acabou formando e
construindo a Ação Libertadora Nacional.”
524
A resolução final que foi aprovada no final da Conferência estabelecia, como
caminho para a Revolução, uma luta longa, árdua, através de um contínuo preparo das
massas, e inevitavelmente armado. Além disso, a resolução previa a luta pela unidade
do Partido, a condenação a todas as atividades fracionistas. Previa também a adoção
de medidas especiais sobre o trabalho sindical e nas empresas industriais, e sobre a
atividade entre os camponeses, destacando a prioridade da aliança operário
camponesa em fase de aliança com a burguesia nacional.
É importante se observar que, em 1970, um inquérito sobre a ALN feito pelo
delegado Valter Fernandes, da Delegacia Especializada de Ordem Social, in
dicia vários
militantes utilizando esta reunião do PCB, em Campinas, como sendo infração à Lei de
Segurança Nacional: Conforme o relatório do inquérito:
“em princípios de 1967, numa propriedade rural nas circunvagâncias do
município de Campinas, neste Estado, reuniram-se alguns próceres do extinto
Partido Comunista Brasileiro. O conclave, que durou aproximadamente uma
semana e contou com o comparecimento de meia centena de comunistas,
tinha como objetivo primordial o desserviço à causa comum, inconformados
que estavam os teleguiados do bolchevismo com a trilha vitoriosa do
Movimento Revolucionário de março de 64. Fez-se presente a elite da caterva
vermelha, a mais depurada nata da grei da Foice e do Martelo: Luiz Carlos
Prestes, Carlos Marighella, Joaquim Câmara Ferreira, João Adolfo da Costa
Pinto, Cícero Silveira Vianna, Carlos Nibel, Fernando Leite Perrone, Nestor
Veras, Moacir Longo, Lindolfo Silva, Klaus Ulrich Helbrunn, Rolando Fratti,
Argonauto Pacheco da Silva, David Hunovich, Benedicto Arthur Sampaio. (...)
Carlos Marighella colocou em votação proposição alusiva à linha de conduta a
ser seguida pelo Partido, propugnado pela adoção da violência e da luta
armada como únicos meios aptos à tomada do poder, o que seria possível com
a disseminação das guer
rilhas rural e urbana. Submetida à votação, a proposta
de Carlos Marighella foi aprovada pela maioria dos presentes, malgrado as
vozes discordantes de Luiz Carlos Prestes, Moacir Longo e Carlos Nibel.
Vitorioso Carlos Marighella, praticamente vinha a lume a Ação Libertadora
524
Carlos Eugênio Paz, depoimento.
218
Nacional (ALN), primeiro passo para o estabelecimento de uma Frente Única
das Esquerdas Radicais, conforme pretensão daquele.”
525
O Comitê Central do PCB sofreu derrotas semelhantes em outras Conferências
Estaduais, como no Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul. Conforme Gorender, a
Corrente Revolucionária vendeu com 20 votos e uma abstenção. No Rio de Janeiro e
no Rio Grande do Sul não foi diferente.
Nesse processo, Marighella conseguiu ganhar o Comitê Estadual de São Paulo
com o apoio de Joaquim Câmara Ferreira, conforme as palavras de Vinhas
526
. Ao
mesmo tempo, Joaquim Câmara Ferreira se tornou secretário de Agitação e
Propaganda. De acordo com José Luiz Del Roio
527
,
“o PCB, em São Paulo, publicou uma vasta série de materiais impressos, em
que tentou basear teoricamente suas posições, além de reproduzir textos de
Lênin, Ho Chi Min, Giap, Dimítrov, Guevara e outros. Foi uma boa produção,
considerando
-se que foi realizada com os meios da época e na
clandestinidade. A gráfica ficava num apartamento no andar térreo, no bairro
Santa Cecília, praticamente no centro da cidade de São Paulo. Para a
estrutura dos Partidos Comunistas na clandestinidade, a gráfica era o coração
da organização. Existia uma relação quase mágica com os papéis imp
ressos
nestas condições, pois sem eles as orientações, a linha política e as idéias não
chegavam a outros militantes, simpatizantes e aos grupos organizados em
geral. Sua localização era um dos segredos melhor conservados pela direção e
conhecido apenas por poucos e confiáveis companheiros. A responsabilidade
era de Câmara Ferreira, mas quem fazia as máquinas funcionarem e passava
dias e noites trabalhando era Dário Canale.”
528
Entretanto, a Comissão Executiva do PCB não aceitou as derrotas sofridas nas
Conferências Estaduais e interveio nas organizações partidárias oposicionistas,
dissolvendo organismos e instituindo direções que não haviam sido eleitas nas
525
SOUZA, Percival de. Autópsia do Medo Vida e Morte do Delegado Sérgio Paranhos Fleury. São Paulo:
Globo, 2000, p. 138
-
139.
526
VINHAS, op. cit., p. 241.
527
José Luiz Del Roio Membro do PCB e Líder da Juventude Comunista Universitária. Participou com Câmara
Ferreira do PCB, do Agrupamento dos Comunistas de São Paulo e da ALN. Foi amigo de Joaqui
m Câmara Ferreira.
528
DEL ROIO, José Luiz.
Zarattini
A Paixão Revolucionária
. São Paulo: Ícone Editora Ltda, 2006, p. 56
57.
219
Conferências. Em São Paulo, conforme Gorender, “fabricaram um Comitê Estadual
ilegítimo que tinha c
omo Primeiro
– Secretário Hércules Correa dos Reis.”
529
Tal intervenção da Comissão Executiva nos Comitês Estaduais pode ser
confirmada nas resoluções do VIº do PCB, de dezembro de 1967. No documento
consta que:
“(...) ao mesmo tempo, fatos nocivos evide
nciaram
-se à medida que se
aprofundou a luta interna. Nos últimos meses, alguns membros do Comitê
Central enveredaram pelo caminho do fracionismo e da violação das normas
partidárias. O mesmo aconteceu com certos dirigentes intermediários,
notadamente em São Paulo, Estado do Rio e Guanabara. Em setembro de
1967, o Comitê Central realizou uma reunião extraordinária, a fim de apreciar
esses fatos e adotar as medidas disciplinares pertinentes. Deu poderes à
Comissão Executiva para adotar outras providências que se fizessem
necessárias, afim de por termo à atividade fracionista. Em cumprimento dessa
tarefa, a Comissão Executiva interveio nos Comitês Estaduais de São Paulo e
do Rio e no Comitê Metropolitano de Brasília, e designou delegações para
esses três Comit
ês com a missão de ali normalizar a atividade partidária.”
530
Como podemos perceber, havia uma tentativa de dirigentes do Comitê Central
de interromper o processo de discussão, e, segundo Mir
531
, Prestes interrompe o
debate, demite Câmara Ferreira como responsável pelo boletim e suspende a entrega
ao grupo dissidente das publicações oficiais, como a “Voz Operária”.
O que devemos analisar é em que medida a posição dos membros da chamada
“Corrente Revolucionária”, que tiveram suas propostas aprovadas dentro das
Conferências Estaduais do PCB, com a maioria dos votos, poderia ser considerada
fracionista. De acordo com Gorender, Prestes e Giocondo Dias, que controlavam a
Comissão Executiva, não se dispuseram “a acatar as derrotas com espírito
529
GORENDER, op. cit., p. 100.
530
PCB. Vinte anos de Política – Documentos 1958 – 1979. São Paulo: LECH – Livraria Editora Ciênci
as
Humanas, 1980, p. 90.
531
MIR, op. cit., p. 205.
220
democrático.”
532
O próprio Prestes reconheceu, mais tarde, a intervenção que foi feita
no Comitê Estadual de São Paulo, ao enfatizar que “para expulsar Marighella, tivemos
de dissolver o Comitê Estadual de São Paulo.”
533
Mesmo dentro desse processo partidário de punição aos que eram rotulados de
fracionistas, Joaquim Câmara Ferreira continuava no PCB, tentando, junto com outros
militantes, aprovar suas posições no congresso que se realizaria.
Conforme Del Roio:
“aí, é Câmara Ferreira que assume, e deve ter sido o momento mai
s trágico de
sua vida, na minha opinião, na minha opinião pessoal evidentemente subjetiva,
mais trágica da vida dele deve ter sido aquela, quando ele teve de enfrentar
Luís Carlos Prestes, num áspero debate. Ele não gostava de áspero debate.
Ele era um homem gentil, de raciocínio, e enfrentar logo Luís Carlos Prestes,
que para ele era o grande líder, o Cavaleiro da Esperança, era o chefe mesmo.
É dramático. E Prestes dizia quase a frase de Julio sar, mas você Câmara,
mas você não pode! Você não, qualquer
um, mas você não. Você não pode ter
essas posições. Quase reclamando trinta, quarenta anos de amizade comum.
(...) Não posso dizer se era amizade ou não. Era difícil amizade naquele clima,
mas de trabalho comum, sacrifício comum e do grande chefe. E Câmara
Ferreira tem que bancar a ruptura, porque Prestes é bastante claro: se vocês
continuam nesta posição, nós expulsamos. Claro, a gente não acredita muito,
tanto que tiramos delegados para o congresso e tudo. Um bando de
delegados. Elegemos os delegados, mas a situação se precipitou, a situação
se precipitou. O Comitê Central começou uma série de medidas
administrativas que eram difíceis de combater na clandestinidade. Eu também
acho que erraram profundamente tomando essas medidas administrativas,
pois precip
itou mais ainda o quadro.”
534
Entretanto, os delegados tirados pelos chamados fracionistas não chegaram a
participar do Congresso, pois, de acordo com Gorender, houve um boicote da direção
partidária àqueles que ainda podiam participar no processo decisório. Conforme suas
palavras:
“até setembro de 1967, ainda compareci a seis reuniões do Comitê Central.
Nelas e em conversas laterais em São Paulo e no Rio nossas posições se
esclareceram. Marighella, Mário Alves afastado da Comissão Executiva e
deslocad
o para Minas, após passar um ano na prisão Jover Telles, Câmara
532
GORENDER, op. cit., p. 100.
533
MORAES, Denis de.
Prestes: lutas e autocríticas.
Rio de Janeiro: Mauad, 1997, p. 184.
534
Conforme depoimento de José Luiz Del Roio, em Agosto de 2006, em São Paulo.
221
Ferreira, Apolônio de Carvalho, Miguel Batista dos Santos e eu estávamos
dispostos a levar a oposição até o rompimento. Decidimos permanecer no PCB
e travar a luta interna, sem ilusão em tri
unfo.”
535
De acordo com depoimento de Del Roio, Joaquim Câmara Ferreira,
“politicamente, trabalhou muito para o Congresso, para o VIº Congresso do Partido
Comunista, onde ele achava que era possível ganhar.”
536
O fato foi que o VIº Congresso do PCB, em dezembro de 1967, ocorreu sem a
participação desses militantes rotulados de fracionistas, que acabaram sendo expulsos
do Partido, conforme resolução do Congresso, na qual consta que
“por atividades fracionistas, incompatíveis com a condição de membros do
Partido, e conforme a fundamentação exposta na resolução de setembro do
Comitê Central, foram expulsos: Marighella, Jover Telles, Câmara Ferreira,
Mário Alves, Jacob Gorender e Miguel Batista, membros efetivos, bem como
Apolônio de Carvalho, suplente da dir
eção central.”
537
Tal documento contradiz a versão dada por Prestes na avaliação que fez da
cisão do PCB, em 1967, em depoimento a Denis de Moraes e Francisco Viana, no qual
se pode ler que:
“(...) nós expulsamos todos eles antes do VIº Congresso, mas ninguém pode
dizer que isto foi feito para que eles não participassem dos debates. Foram
eles e não nós que formaram um novo partido. mara Ferreira saiu após o
Congresso. Ele não participou porque não quis. Era muito ligado a Marighella,
e pouco a pouco f
oi se afastando da gente.”
538
De acordo com Gorender, o VIº Congresso do PCB realizou-se em dezembro, e
ele mesmo, tendo direito de participar do Congresso, não foi conduzido ao local. Ele
enfatiza ainda que o PCBR só foi criado após o VIº Congresso, o que desfaz o
535
GOREND
ER, op. cit., p. 97.
536
José Luiz Del Roio, depoimento.
537
PCB.
Vinte anos de Política
Documentos 1958
1979
. op. cit., p. 91.
538
MORAES, op. cit., p. 185.
222
depoimento de Prestes de que os dissidentes haviam formado um novo partido já antes
do Congresso. Gorender disse ainda que soube pela grande imprensa da resolução
que expulsava os chamados dissidentes, entre eles Joaquim Câmara Ferreira, embora
a resolução oficial tenha sido publicada no numero 35 da “Voz Operária”, de janeiro de
1968.
O Departamento de Ordem Política e Social acompanhou esse processo que se
deu dentro do Partido Comunista, que culminou com o racha dentro do PCB e a
expulsão de militantes que eram contrários às posições do Comitê Central. Conforme
documento deste departamento,
“o Congresso aprovou a decisão tomada pelo Comitê Central, expulsando seus
membros que participaram de atividades divisionistas, que são: Carlos
Marighel
la, Jover Telles, Mário Alves, Jacob Gorender, Câmara Ferreira,
Apolônio de Carvalho e Miguel Batista. Aprovou também a expulsão de Néri
Reis, Lourdes de Carvalho, por terem tido, quando presos na Guanabara,
comportamento incompatível com a condição de membro do Partido,
fornecendo à polícia informações sobre elementos do Partido e sua
organização. Aprovou a decisão do Comitê Central que destituiu, por
atividades fracionistas, os Comitês Estaduais de São Paulo e do Estado do
Rio.”
539
A culminância de to
do esse processo foi um racha dentro do PCB em São Paulo,
no qual a posição de Joaquim Câmara Ferreira teve muita influência em diversos
militantes comunistas. É bom salientarmos que Joaquim Câmara Ferreira havia atuado
no PCB de São Paulo a maior parte de sua vida. Ele tinha adquirido uma influência
muito grande entre os comunistas deste estado devido à sua trajetória de militante
dedicado à causa do comunismo. Além disso, o Joaquim Câmara Ferreira havia
sempre atuado dentro da máquina partidária e conhecia muito bem o Partido. Por esse
motivo, a vitória no Congresso de Campinas representou uma ameaça para o Comitê
539
DOPS
Documento 30C1
Arquivo Público de São Paulo.
223
Central no VIº Congresso. E, diante desse quadro de ruptura do Partido, a posição
tomada por Joaquim Câmara Ferreira influenciou de forma decisiva grande parte da
militância do PCB, em São Paulo, no que tangia a permanecer ou romper com o
partido. O depoimento de Tarcísio Sigrist confirma esta importância ao afirmar que
“(...) e nesse momento de passagem que a figura do Toledo ... por exemplo,
qu
ando você ia discutir com os companheiros nas bases ou pelas cidades,
eles perguntavam a posição: como está o Toledo? Marighella mais ou menos
sabiam, mas eles perguntavam: como está o Toledo? Qual a posição do
Toledo? Então, a força também do Toledo dentro do Partido era muito grande.
A posição do Marighella era mais visível, era mais conhecida talvez, mas havia
muita pergunta da participação do Toledo. Então a gente percebia que a
participação do Toledo, a posição dele era muito forte dentro do Partido. Isso
sem dúvida, ajudou esse rompimento e formar o agrupamento ... ser, ter mais
números ou ter mais adeptos porque havia esse respeito a figura do Marighella
e do Toledo também.”
540
Hércules Correa também confirma a participação de Joaquim Câmara Fe
rreira
como militante que teve grande influência sobre a bancada comunista de São Paulo.
De acordo com ele:
“(...) ele foi uma espécie de braço direito de Marighella pra segurar a máquina
do Partido, em São Paulo pra ... não foi o Marighella que fez. Foi o Câmara
Ferreira. (...) o Partido rachou em São Paulo. Eu estava em São Paulo, na
época. Eu vivi o acontecimento. Eu fui de reunião em reunião com o Câmara
Ferreira. era uma discussão para ver quem ficava com o Partido e quem saía
para a ALN. (...) ai começou o processo de reuniões dos comitês dissitários,
comitê sei o que, da cidade de São Paulo, Universidade, então ... ai foi um
negócio de oito meses mais ou menos de reuniões terríveis de fim de semana
e quem ficava e quem não ficava. Entendeu? (...) geralmente os embates que
travavam era do lado do Marighella, ia o Câmara e do lado do Partido, ia eu,
pras reuniões.”
541
Podemos constatar, pelos depoimentos, que o papel desempenhado por
Joaquim Câmara Ferreira, na cisão do Partido, em São Paulo, foi muito maior do que
540
Tarcísio Sigrist, depoimento.
541
Hércules
Corrêa, depoimento.
224
lhe foi atribuído. Essa cisão se transformou no Agrupamento Comunista de São Paulo,
embrião da ALN, a maior organização da esquerda armada no Brasil.
Marighella havia ido para Cuba participar da Organização Latino-Americana de
Solida
riedade (OLAS
542
). Saiu do Brasil em julho de 1967 e regressou em
dezembro. Este período foi de extrema importância para a organização do
Agrupamento Comunista de São Paulo. Quem articulou tudo, nesse período, foi
Câmara Ferreira.
De acordo com Luís Mir, em seu livro A Revolução Impossível”, Prestes havia
viajado, nesse mesmo período, para a União Soviética, para comunicar a realização do
VIº Congresso do PCB. Em Moscou, Prestes foi informado pelo PCUS que Marighella
havia sido conquistado totalmente pelos cubanos, mesmo com a pressão feita sobre
Havana para não interferir nos assuntos latino-americanos. Prestes, diante deste
quadro, decidiu que seu primeiro ato, assim que estivesse no Brasil, seria expulsar
Marighella. Era prioritário bloquear uma evasão significativa dos quadros e dirigentes
aptos e dispostos a enganchar
-
se na luta armada. Conforme Mir:
“na mesma resolução o Partido decide censurar publicamente os camaradas
Toledo (Câmara Ferreira), Lima (Mário Alves) e Rodrigo (Apolônio de
Carvalho),
por não cumprirem seus deveres e procurarem imprimir à atividade
dos Comitês Estaduais em que atuam uma orientação contrária às resoluções
e decisões do Comitê Central e da Comissão Executiva. que, em setembro
de 1967, Câmara Ferreira tinha importância
igual à de Marighella na montagem
da ALN. Era o homem da infra
-
estrutura, dos aparelhos. Marighella era o porta
-
bandeira e o abre
-
alas.”
543
542
OLAS A maior convenção revolucionaria do século na América Latina. Participaram 432 lideres e quadros
revolucionários num exército. O continente era um barril de pólvora revolucionário. Bastava acender a primeira
fagulha que a explosão continental estremeceria o mundo. Foi realizada de 31 de julho a 10 de agosto de 1967, em
Havana, Cuba.
543
MIR, op. cit, p. 242.
225
A questão colocada era a de uma ruptura drástica com o Partido. Marighella,
segundo José Luiz Del Roio, colocava a questão da necessidade de uma ruptura
radical com a estrutura burocrática do Partido. Não havia possibilidade de mudanças
simplesmente ganhando o Congresso do PCB, pois não se mudaria a estrutura do
Partido em nada e, desta forma, continuaria a mesma coisa, ou seja, na visão dele, se
precisava de uma renovação mais profunda no PCB. Del Roio afirma o seguinte sobre
a posição de Câmara Ferreira:
“isso para Câmara não era simples. Ele era mesmo do Partidão. Do Partido
Partido. Não era simples. Câmara se sentia bastante...ele era muito discreto
porque ele usava também..., embora, ele...outra coisa, ele não atacava
ninguém a não ser as posições das maiorias do Comitê Central que
politicamente ele atacava, ele não falava mal de ninguém. Não tinha nenhum
ataque
pessoal e ele não dizia, sei lá, aquele era um bandido revisionista...ele
não. Bem se notava que Câmara Ferreira não estava muito enquadrado com
esse movimentismo que Marighella vai desenvolver.”
544
Joaquim Câmara Ferreira era um velho militante e diri
gente do PCB. O fato de se
contrapor inicialmente ao movimentismo era justificável, pois, para ele, criava-se uma
situação contraditória. Saíra do Partido por discordar com seu pacifismo diante da
ditadura, entretanto, conceber uma linha de organização revolucionária sem a estrutura
tradicional Leninista de partido comunista era muito difícil. Daí a oposição inicial de
Câmara Ferreira ao livro de Régis Debray
545
“Revolução na Revolução.” De acordo
com Del Roio:
“o drama começa através da idéia errada que es
tá se gestando. Depois vai sair
o livrinho “Revolução na Revolução” de Regis Debray, que Câmara Ferreira
não suportava. Tanto é que nós fizemos, na nossa gráfica clandestina, várias
publicações contra, e fizemos, inclusive, uma publicação estranhíssima
cha
mada “Guerra de Guerrilhas” de Lênin. Selecionamos os artigos de Lênin
544
José Luiz Del Roio, depoimento.
545
Regis Debray Filósofo francês que acompanhou Che Guevara nas matas da Bolívia. Defendia a idéia de que o
partido era desnecessário para se fazer a revolução.
226
sobre a questão da guerra, da guerrilha. Lênin escreveu várias vezes sobre
isso, exatamente para se contrapor sobre o conceito foquista que estava
tomando conta de setores e que na verdade era uma crítica indireta a
Marighella. Não era uma crítica. Era dizer: Marighella calma, calma! Uma
própria análise que fizemos da Revolução Cubana, não era foquista.”
546
Podemos perceber que Joaquim Câmara Ferreira apoiava essas posições contra
o foquismo, pois, sendo ele responsável pela agitação e propaganda, havia permitido e
incentivado todas essas publicações. No entanto, após a expulsão de Marighella e de
outros membros foi formado o Agrupamento dos Comunistas de São Paulo, do qual
Câmara Ferre
ira foi um dos mentores.
Conforme Del Roio:
“e Marighella sempre fora, quer dizer, Marighella acaba sendo expulso sem ter
contato com a gente. Então a expulsão do Marighella ... nós não somos
expulsos pra dizer a verdade, agora que eu me recordo. O Marighella é que é
expulso. Nós acabamos todos saindo por causa da expulsão do Marighella. E é
sempre Câmara Ferreira que deve gestar a coisa. Fazer a gestão da saída
renhida. Ele é o nosso ponto referencial pra centenas, talvez milhares de
comunistas na clandestinidade, passa a ser ele. É ai que ele cria o
Agrupamento Comunista de São Paulo.”
547
O papel de Câmara Ferreira no processo da formação do Agrupamento
Comunista de São Paulo, feita por Del Roio, pode ser confirmada ao verificarmos que
Marighella, ainda em Cuba, em setembro de 1967, soube ter sido expulso do PCB por
atividades fracionistas que eram julgadas, pelo Comitê Central, como incompatíveis
com a condição de membro do Partido Comunista. Verificamos, como diz Del Roio, que
Marighella estava realmente afastado do processo que se dava no PCB, principalmente
em São Paulo. Conforme Mir, quando Marighella partiu para Cuba, despediu-se de
546
José Luiz Del Roio, depoimento.
547
Idem.
227
quatro pessoas: “Câmara Ferreira, Cícero Vianna, Farid Helou e Rolando Frati, este
último um dos dirigentes operário
s do PCB em São Paulo.”
548
Essa dissidência de comunistas não era ainda a ALN. Se verificarmos os nomes
de alguns comunistas que faziam parte desse grupo, veremos que se tratava de um
núcleo clássico de comunistas. Entre eles, podemos citar: Rolando Frati (líder sindical
de Santos operário), Rafael Martinelli (ferroviário e líder sindical), João Adolfo da
Costa Pinto (jornalista e dirigente estadual do PCB foi o pai da idéia de tomar o
Partido em São Paulo e derrubar a direção Pretista para poder sentar as bases para a
adoção da luta armada contra a ditadura militar), Joaquim Câmara Ferreira (jornalista e
dirigente do PCB), Farid Helou (arquiteto e Secretário-geral do PCB em Goiás),
Osvaldo Lourenço (líder sindical), Argonauto Pacheco da Silva (dirigente municipal do
PCB, responsável junto com Câmara Ferreira pela administração da infra-
estrutura
revolucionária).
Para Del Roio, a idéia que a princípio prevalecia no Agrupamento Comunista de
São Paulo era a que norteava outro dissidente do PCB, Mário Alves, que era a de
formar o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário. Conforme Del Roio:
“era o mesmo partido, que com posições revolucionárias. Com qualquer
ilusão, na parte de vários, de que Prestes se deslocaria para ai. (...) mas a
idéia, então, na verdade era você reconstruir agora o Partido. Em São Paulo,
tinha ficado com a maioria das bases, do proletariado, noventa e nove por
cento dos jovens. Continuava a gráfica funcionando, quer dizer, ficou o mesmo
aparato, as mesmas estruturas. Você contava com outros secretários que
também estavam indo para esta linha.”
549
Podemos verificar que Câmara Ferreira, nesse momento, não descartava a
possibilidade de um partido comunista que tivesse como norte a luta armada. Essa
548
MIR, op. cit., p. 219.
549
José Luiz Del Roio, depoimento.
228
possibilidade se colocava clara para Câmara Ferreira, se verificarmos o depoimento de
Apolônio de Carvalho que conta: “(...) eu sentia no Câmara Ferreira uma tendência
muito grande para as posições que nós no PCBR defendíamos. Nós não queríamos
uma luta armada de militantes de esquerda, contra os militares do outro lado, desligada
da massa, desligada do movimento social.”
550
Podemos verificar que o Agrupamento Comunista de São Paulo tentou se reunir
com os agrupamentos comunistas de outros estados, para promover uma união de
partidos comunistas brasileiros revolucionários. Esta unificação acabou não
acontecendo, e houve um racha dentro dessas dissidências que terminou por ocasionar
várias tendências de esquerda, entre as quais a ALN.
Nesse período, porém, Joaquim Câmara Ferreira era do Partido Comunista. Ele
enfatizou isso numa das últimas conversas com Sara Mello. De acordo com Sara:
“eu me lembro que dei um dinheiro que eu dizia, eu te falei, não gasta, não é
pro teu Partido não! Ele disse: Eu o tenho partido não, eu tenho um
movimento
. Partido eu tenho. (...) você vai formar um outro Partido,
Câmara? Ele disse: não, Partido eu tenho. É um movimento. Ele não dizia
eu não tenho Partido. Partido eu já tenho. Isso ele disse nessa última vez.”
551
O único Partido que Joaquim Câmara Ferreira havia tido durante toda sua
trajetória de militância era o PCB. Para ele, a própria ALN não se constituía num
Partido, mas num movimento de combate à ditadura militar.
As palavras de Del Roio nos dão uma exata dimensão da posição inicial de
Joaqu
im Câmara Ferreira em relação à sua condição de comunista. De acordo com Del
Roio:
“agora, o plano político dele era o seguinte: ele acreditava firmemente na
possibilidade da valorização das hostes comunistas, na força do Partido Comunista e
550
Apolônio de Carvalho, depoimento.
551
Sara Mello, depoimento maio de 2003,
em São Paulo.
229
na necessidade que esse Partido Comunista fosse para a esquerda e tivesse uma
posição revolucionária.”
552
Entretanto, quando em 1967, houve a dissidência e a formação do Agrupamento
de São Paulo, Câmara Ferreira começou a articulação para o fortalecimento desse
grupo que ainda não era a ALN. Conforme Del Roio, a posição clara que havia sido
discutida como Agrupamento era a que se poderia haver uma frente armada que havia
sido sempre uma possibilidade dentro do movimento comunista mundial. Entretanto,
nestes movimentos, o
Partido sempre controlava politicamente as frentes armadas.
Conforme Frei Betto, “ao retornar de Cuba, Carlos Marighella reuniu os
dissidentes do PCB para formarem o Agrupamento Comunista de São Paulo.”
553
Na
realidade,
a dissidência dentro do PCB vinha sendo gestada durante todo o segundo
semestre de 1967, período em que Marighella esteve fora do Brasil. Câmara Ferreira
trabalhou intensamente, nesse período, a formação do que viria a ser o Agrupamento
Comunista de São Paulo. Conforme GranVille Ponce, havia um descontentamento nas
bases do PCB em São Paulo, e uma tendência para esquerda. De acordo com ele:
“o Partidão, a gente achava que não estava a fim de radicalizar e até mesmo
boicotava atividades mais revolucionárias, mais à esquerda. Essa insatisf
ação
existia generalizada, no Partido, nas bases. Agora, precisava de uma
articulação disso para ter sucesso. Senão fosse Câmara Ferreira dificilmente
Marighella conseguiria essa articulação que foi feita. Que na verdade, a maior
parte do Partidão ficou co
m Marighella, ficou com a ALN.”
554
552
José Luiz Del Roio, depoimento.
553
BETTO, Frei. Batismo de Sangue: Os dominicanos e a morte de Carlos Marighella. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1983, p. 51.
554
J.A.Granville Ponce, depoimento.
230
Nadir Helou, esposa de Farid Helou, assim definiu o papel de Câmara Ferreira
na dissidência do Partido
: “(...) eu acho que o Câmara foi o sombra.”
555
É possível observar isso se verificarmos, através do depoimento de José Luiz
Del Roio, que foi Câmara Ferreira que o contatou quando ele era secretário político da
organização de base da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras, que naquele
momento era a maior organização de base do Estado de São Paulo, e também a mais
bem
organizada, pois não sofria repressão.
Conforme Del Roio:
“se eu controlava a maior organização que restava do Partido, em São Paulo,
era normal que eu fosse procurado pelos dirigentes partidários. Mas pela
posição que eu tinha assumido, que era conhecida
dentro do Partido, era óbvio
que quem me procuraria, sobretudo, aqueles membros da direção estadual ou
nacional, que tinham uma posição, vamos dizer, também de crítica ao Comitê
Central, o que a gente mais ou menos poderia citar como a área de esquerda.
Era um grupo de dez pessoas, dentro do Comitê Central. Talvez um pouco
mas, um pouco menos...e através de uma pessoa, da organização, da
organização de base comunista da faculdade, me procurou Câmara Ferreira.”
556
José Dirceu, que foi, na época, juntamente com Vladimir Palmeira, líder
estudantil de expressão nacional, também realça o papel de atuação de Joaquim
Câmara Ferreira junto aos estudantes. José Dirceu morava sozinho à época, e Joaquim
Câmara Ferreira sempre aparecia para almoçar com ele. Segundo
Dirceu:
“nossa
dissidência existia, mas a ruptura não era completa, e o Toledo como o
chamávamos
nos dava assistência e vinha sempre conversar comigo. Acabamos
rachando na Conferência de Itanhaém, no final de 1966, e eles um tempo mais tarde.”
557
555
Conforme depoimento de Nadir Helou,
em dezembro de 2003, em São Paulo.
556
José Luiz Del Roio, depoimento.
557
DIRCEU, José; PALMEIRA, Vladimir. Abaixo a Ditadura. O movimento de 68 contado por seus líderes
. Rio
de Janeiro: Garamond, 1998, p. 69.
231
To
do esse trabalho influiu de forma muito importante na concepção da ALN,
mais tarde, pois a ALN tirou militantes do PCB no Brasil todo, mas sua força principal
esteve sempre em São Paulo.
Ainda em outubro de 1967, conforme Apolônio de Carvalho, foi realizada uma
reunião da “Corrente”, em Niterói. Apolônio enfatiza que
“em Niterói, presentes Jacob Gorender, Câmara Ferreira, Jover Telles e nós
(Apolônio e Miguel Batista), a prata da casa, debatíamos mensalmente
perspectivas e planos de ação. Arriscamos assim, no Estado do Rio, em
outubro de 1967, um último intento unitário. Todas as faixas da Corrente
Revolucionária ai estão representadas. Adia-se, no entanto, uma definição
final. Na realidade, a dispersão já estava delineada.”
558
Desta forma, a partir de fevereiro de 1968, acabou de ser gestado o
Agrupamento dos Comunistas de São Paulo, que, a partir dos meados deste ano, se
tornou a Ação Libertadora Nacional.
Ainda no mês de fevereiro desse mesmo ano, foi lançado o Pronunciamento do
Agrupamento comunista de São Paulo, no qual era esboçado um tipo de organização
moldado para as tarefas da luta armada e contrária à constituição de uma estrutura
partidária aos moldes do Partido Comunista, pois se concebia a idéia de que uma
estrutura burocrática emperraria o avanço da luta revolucionária, como havia ocorrido
com o PCB. Entretanto, esse Agrupamento Comunista de São Paulo não se intitulava
foquista. Conforme o documento,
“não se trata, portanto, de desencadear a guerrilha como um foco, como
querem insinuar os nossos inimigos, acusando-nos daquilo que não
pretendemos fazer. O foco seria lançar um grupo de homens armados em
qualquer parte do Brasil e esperar que, em conseqüência disso, surgissem
outros focos em pontos diferentes do país. Se assim fizéssemos, est
aríamos
adotando uma posição tipicamente espontaneísta, e isso seria fatal. Para nós,
558
CARVALHO, op. cit., p. 200.
232
a guerrilha brasileira não terá condições de vitória senão como parte de um
plano estratégico e tático global.”
559
Conforme Paulo Cannabrava
560
, o Agrupamento Comunista era a “linha que eu
te falei, de organizar a guerrilha no campo como embrião de um exército revolucionário.
Continuar a linha de massa, continuar as articulações.”
561
Ele ainda enfatiza que o
rascunho do Pronunciamento do Agrupamento Comunista foi redigido por Cícero Viana
e contou com grande participação de Câmara Ferreira. Desta forma, o
Agrupamento não seria um partido político, mas uma frente aberta a todos os
revolucionários. Porém, essa posição apartidária do Agrupamento, segundo Gorender,
custou a perda da maioria dos adeptos que haviam apoiado a conferência de
Campinas, pois, se eram contrários ao pacifismo do Comitê Central, eram apegados ao
princípio do Partido Político de Vanguarda.
Frei Oswaldo Rezende
562
, dominicano, foi ligado ao esquema da ALN
que
visava servir de apoio, principalmente na procura de áreas estratégicas no campo.
Colaborava também no esquema de retirada de militantes que eram procurados pela
repressão para fora do país. Ele participou da reunião na qual foi escolhido o nome da
org
anização e qual seria a sua proposta. De acordo com ele:
“(...) eu me de lembro que nós nos encontramos uma vez para uma reunião.
Essa reunião foi feita ali na 9 de julho, num apartamento de uma pessoa que
era conhecida de um amigo meu que estava ausente. Eu me de lembro que
nessa reunião estávamos ali Marighella, estava o Câmara Ferreira, estava o
Frati que faleceu e devia estar uma duas ou mais pessoas que eu não me
lembro mais o nome. Os três que eu conhecia era o Frati, o Toledo e o
Marighella. Os outros dois na época...se não me engano tinha até um senhor
559
Documento do Agr
upamento Comunista de São Paulo
O Guerrilheiro, abril de 1968, p. 2.
560
Paulo Cannabrava Jornalista, militante do PCB e um dos fundadores da ALN. Amigo de Joaquim Câmara
Ferreira.
561
Conforme depoimento de Paulo Cannabrava, em maio de 2003, em São Paulo.
562
Frei Oswaldo Rezende Frei dominicano que iniciou os primeiros contatos da Ordem Dominicana com a ALN.
Foi amigo pessoal de Joaquim Câmara Ferreira.
233
negro. Eu soube depois que ele era o homem da região rural. Ele foi
assassinado, esqueci o nome. Quando nós chegamos, Marighella começou
esta reunião que foi a primeira reunião que ele chamou de o Comandamento
Estratégico porque na mentalidade do Marighella naquela época, ele estava
cansado do Partido com sua organização e coisa e tal. Nós iríamos perceber
depois que ele tem vantagem. A idéia dele era criar um movimento que tivesse
o mínimo de estrutura possível e cuja palavra de ordem fosse ação. Então, um
revolucionário não tem que pedir licença a ninguém pra fazer um ato
revolucionário, o que vinha um pouco na linha do que se dizia a OLAS: um,
dois, três, mil Vietnãs, quer dizer, que rompam em toda parte, guerra contra o
imperialismo. A revolta é tanta que tudo que for contra é bom. Bom, era uma
concepção de luta. Mas ali era preciso se dar um mínimo de organização, e
essa organização era este...Marighella reuniu essas pessoas e foi ai que surgi
u
o nome para essa organização Ação Libertadora Nacional. Uma referência
implícita ou mesmo explícita à Aliança Libertadora Nacional de Getúlio Vargas.
Uma aliança ampla do Getúlio Vargas, do Prestes. Uma aliança ampla de
todos os descontentes contra a ditadura, portanto, não tinha...única finalidade
de derrubar a ditadura. Não era nem de instalar socialismo, nem de fazer
comunismo. Nada disso. Uma frente ampla para derrubar a ditadura.”
563
O Agrupamento Comunista de São Paulo passou a se chamar Ação Libertadora
Nacional. Paulo Cannabrava diz que a idéia inicial era que o nome fosse Aliança de
Libertação Nacional, pois pretendia, como foi dito por Frei Oswaldo Rezende, vincular-
se à histórica Aliança Nacional Libertadora dos anos 30. Entretanto,
“acabou
prevalecendo o critério de Marighella de Ação de Libertação Nacional, e ficou Ação
Libertadora Nacional.”
564
A reunião que decidiu o nome da organização aconteceu na
casa de Paulo Cannabrava. O fato da organização se chamar “Ação” foi porque o
primeiro princípio a ser buscado era o da ação. Na ALN, a ação que faria essa
organização e a desenvolveria. A Ação criaria tudo a partir do nada, do zero, e a Ação
significaria a violência revolucionária, luta armada e a guerrilha. Conforme Gorender, no
pensamento implantado na ALN, “as necessidades teóricas do presente estão
supridas pelo leninismo e pelo castrismo, nada a de acrescentar.”
565
Os princípios
que passaram a nortear a ALN eram:
“o primeiro é que o dever de todo o revolucionário
563
Conforme depoimento de Frei Oswaldo Rezende, em junho de 2003, em Belo Horizonte.
564
Paulo Cannabrava,
depoimento.
565
GORENDER, op. cit., p.105.
234
é fazer a revolução; o segundo é que não pedimos licença para fazermos atos
revolucionários; e o terceiro é que temos compromissos com a revolução.”
566
O
conceito seguido pela ALN é de que a Ação faria a vanguarda. Para definir suas
propostas, a nova organização lançou o jor
nal clandestino chamado “O Guerrilheiro.”
Devemos observar que a ALN se estruturou de uma forma diferenciada daquela
pretendida inicialmente pelas dissidências dentro do PCB. Conforme Del Roio, as
coisas se precipitaram com a volta de Marighella de Cuba. Muitos foram pegos de
surpresa, inclusive ele e Câmara Ferreira. Segundo suas palavras:
“Câmara Ferreira também estava convencido que tinha que se preparar para
um período de luta armada, indispensável e necessária a violência
revolucionária. Pensava d
iferente dele (de Marighella) porque você via quando
ele (Câmara Ferreira) tratava de organizar as massas contra isso e os setores
da comunicação. Então, você via que tinha alguma coisa diferente nisso. (...)
com a questão de Cuba teve uma precipitação grave, e Câmara Ferreira tinha
dificuldade porque o Comitê Estadual, na sua maioria absoluta de esquerda,
não está de acordo com Marighella, mas não pode dizer por quê, você vai dizer
algo também, é tudo clandestino, é tudo complicado. Não está de acordo,
o
está de acordo porque acha aquilo uma precipitação. Nós não estamos
preparados, não é assim, e nós queríamos chegar até o Congresso do Partido
porque a gente achava que ganhava. (...), mas Marighella quis claramente
acabar com isso, dar uma acelerada.”
567
Câmara Ferreira, no entanto, acabou optando por essa organização que não
priorizava o partido como a vanguarda do processo revolucionário, o que causou
surpresa a vários militantes do PCB que haviam convivido com ele e conheciam muito
bem sua trajetór
ia de militância comunista.
Del Roio caracterizou de maneira muito clara o perfil de Câmara Ferreira no
PCB. Segundo suas palavras,
566
Documento do Agrupamento Comunista de São Paulo
O Guerrilheiro, abril de 1968, p. 2.
567
José Luiz Del Roio, depoimento.
235
“Câmara Ferreira era um quadro pouco carismático. (...) mas era um quadro
perfeito criado pelo Partido Comunista. È muito difícil, para quem não viveu a
época, entender o que é um quadro perfeito do movimento comunista. Ele era
um quadro perfeito do movimento comunista. Que quer dizer? Um quadro que
dedica totalmente a sua vida a uma idéia, a um conceito, a um partido.
Extremamente ético, extremamente corajoso, extremamente humilde. Humilde
no sentido de modesto, vamos dizer. Extremamente modesto, extremamente
modesto esse era o desenho do Câmara. Falava, inclusive, pouco, mas ele
era conhecido dentro do Partido, isso eu
aprendi aos poucos, como um homem
que entendia de algumas coisas mesmo. Entendia de organização, entendia de
segurança, era culto, conhecia a língua portuguesa , era um homem de
confiança. Era um daqueles homens que você que sabia que podia ter
confiança
absoluta que jamais te trairia de uma forma ou de outra.”
568
Geraldo dos Santos Rodrigues enfatiza também, de maneira precisa, qual era a
visão dos militantes que conviveram com Câmara Ferreira no PCB. Conforme ele,
“(...) agora, nunca me passou pela
cabeça, e acho que de outros companheiros
também nunca passou, pela cabeça, que ele um dia tivesse disposição de ir
para luta armada porque ele não era disso, pelo menos no trato e no
relacionamento conosco, nesse período. Isso não passava pra nós de jeito
nenhum. Ele era até considerado um liberal pra nós e por outros dirigentes do
Partido. Chamavam ele de liberal: Câmara é um liberaróide, Câmara Ferreira e
tal.”
569
Geraldo disse ter convivido com muitos homens no Partido, como Marighella,
Câmara Ferreira, Prestes, Giocondo Dias, Mário Alves, por décadas, e nesta
convivência podia conhecer bem o pensamento desses militantes. Câmara Ferreira,
para ele, foi uma surpresa. Segundo ele:
“não consigo atinar como se desenvolveu nele
esse negócio da luta armada.”
570
Houve, portanto, um estranhamento quanto à opção de Joaquim Câmara
Ferreira pela luta armada. Várias foram as hipóteses levantadas para tal decisão. Para
Geraldo dos Santos, deveu-se à amizade que Câmara Ferreira tinha por Marighella.
Para outros militantes, tratava-se de impaciência revolucionária. Entretanto, como
568
Idem.
569
Geraldo dos Santos Rodrigues, depoimento.
570
Geraldo dos Santos Rodrigues, depoime
nto.
236
vimos anteriormente, Câmara Ferreira havia nutrido durante toda sua vida uma extrema
admiração por Luís Carlos Prestes, e nem por isso deixou de romper com ele quando
as suas convicções pessoais e políticas deixaram de coadunar. Além do mais, Takao
Amano
571
e Guiomar Silva Lopes
572
chamam a atenção para a amizade profunda de
Câmara Ferreira com Noé Gertel, Sara Mello e Murilo Mello, o que não o impediu de
seguir seu próprio caminho. Paulo Cannabrava, ao ser perguntado se Câmara Ferreira
havia optado pela ALN por simples amizade a Marighella, nos deu a seguinte resposta:
“não, não, não é! Ele não era um tonto, pô! Por convicção pô! Por convicção
revolucionária. Imagina se eu entrei nisso por amizade a Marighella. Eu entrei
nisso por paixão, com tesão, com fervor revolucionário. Produzia documento,
assim, um milhão, assim, em casa. Aquilo rodando dia e noite, a noite inteira.
Por amor a Marighella, imagina! Por amor a Marighella a gente dava as co
isas
que ele precisava, mas amor era o povo brasileiro, ao nosso povo. A convicção
revolucionária que te leva. Isso não é uma aventura (...). Se você tem as suas
convicções, você peita teus amigos que estão equivocados como Apolônio
peitou. Apolônio disse: não pô, eu não vou nessa e não foi e fundou o PCBR
lá. Você conversou com ele. Figura maravilhosa, cheia de amor pelo Carlos
Marighella. Gostava muito do Carlos Marighella. Peitou porque o se
convenceu, não é? Não se convenceu. Os outros se convenceram e estavam
todos convencidos porque todos trabalharam na elaboração do que, na
elaboração no Marighella.”
573
Numa conversa que Câmara Ferreira teve com Luiz Mário Gazzaneo, ele mesmo
expôs quais eram as razões que o levaram a optar pela luta armada. Neste período,
Joaquim Câmara Ferreira procurou Luiz Mário Gazzaneo para saber se poderia ficar
um fim de semana em sua casa, no Rio de Janeiro, com a esposa Leonora Cardieri,
que não via havia bastante tempo. Recebeu autorização e passou o fim de semana
com
Leonora. No domingo à noite, Câmara Ferreira chamou Gazzaneo e lhe disse:
571
Takao Amano – estudante dissidente do PCB. Mais tarde, guerrilheiro revolucionário da ALN. Amigo pessoal de
Câmara Ferreira.
572
Guiomar Silva Lopes estudante dissidente do PCB. Mais tarde, guerrilheira revolucionária da ALN. Amiga
pessoal de Câmar
a Ferreira.
573
Paulo Cannabrava, depoimento.
237
“estou saindo do Partido. Eu acho que o caminho do Marighella é o caminho
mais correto para se enfrentar essa ditadura. Aí, nós discutimos um pouco. Eu
me declarei surpreso. Tentei
argumentar politicamente: naquele momento eles
eram mais fortes, eram poderosos, nós éramos fracos, estávamos ao léu, e o
caminho era o caminho de se reorganizar, juntar todos os democratas e toda
aquela história. Ele insistiu: não, não é possível. Tem que enfrentar essa
ditadura com as armas dela. Aí, a mulher dele se vira pra mim e diz: sabe de
uma coisa Gazzaneo, eu não quero ver meu marido morto passivamente. Ele
não vai passar pelo que passou na outra vez, sem resistir.”
574
Outro que analisou a posição de Câmara Ferreira foi Takao Amano, que disse:
“(...) o Toledo não foi enganado. Ele foi por convicção.”
575
Desta forma, Joaquim Câmara Ferreira se tornou um dos fundadores da ALN, no
ano de 1968. A nova organização tinha como objetivo a derrubada da ditadura militar,
formação de um governo revolucionário do povo, expulsão do país dos norte-
americanos, expropriação dos latifúndios, a melhoria das condições de vida dos
operários, dos camponeses e das classes médias, derrubada da censura, instituição da
liberdade de imprensa e da possibilidade de crítica e organização. Além disso,
pretendia quebrar o atrelamento do Brasil à política de satélite dos Estados Unidos.
Quanto ao modelo de organização, foi enfatizado pelos fundadores da ALN que:
“precisamos agora de uma organização de vanguarda para agir, para praticar a ação
revolucionária constante e diária, e não para permanecer em discussões e reuniões
intermináveis.”
576
É bom ressaltarmos que a nova organização não se posicionava como um
partido político. Segundo Takao Amano, “o Marighella e o Toledo achavam que não
precisava de um partido. Podia ser na frente não é? Porque o Partido ia se formando
574
Luiz Mário Gazzaneo, depoimento.
575
Conforme depoimento de Takao Amano, em maio de 2003, em São Paulo.
576
Documento do Agrupamento Comunista de São Paulo
O Guerrilheiro, abril de 1968, p. 2.
238
no processo.”
577
Tratava-
se de uma frente revolucionária que estava .aberta a todos os
revolucionários. A idéia que norteava o processo seria essa, entretanto Marighella tinha
uma visão da ação imediata.
Para aqueles que foram os dois principais articuladores e formadores da ALN,
havia uma certeza: o caminho seria luta armada, porém, conforme Mir, com algumas
diferenças:
“Marighella, ação, audácia, fim da burocracia ou qualquer tipo de
centralismo prejudicando a liberdade revolucionária, como acontecia no PCB. Câmara
Ferreira centrado na unidade de todos os revolucionários.”
578
Começaram
-se, assim, as ações armadas realizadas pela organização que
adquiriu a maior notoriedade, no Brasil, pelo enfrentamento armado pela ditadura
militar. A ALN reuniu um grande número de jovens que eram oriundos da pequena
burguesia, e conscientizados politicamente pelo movimento estudantil. Conforme Mir,
essa militância, que era recrutada nas universidades, mal passava dos vinte anos. Não
tinha experiência de clandestinidade e de luta. Entretanto, tinha uma posição de aberto
desafio ao regime militar. Sentia-se como a vanguarda. Haviam sido, até aquele
momento, participantes secundários na preparação da luta armada, agora queriam a
primazia da resistência. Os líderes revolucionários pediam calma. Porém, conforme o
mesmo Mir, havia discordância entre Marighella e Câmara Ferreira quanto à definição
do papel dos estudantes na ALN. De acordo com este autor:
“Câmara objetava a entrada sem preparação prévia. De estudante para
guerrilheiro, era necessário um estágio de aprendizagem e adaptação. O troco
dos estudantes a ele foi pesado: burocrata, capa preta, líder de aparelho
clandestino. O clima de animosidade entre o segundo homem no comando da
577
Takao Amano, dep
oimento.
578
MIR, op. cit., p. 273.
239
ALN e os estudantes permaneceria enquanto a organização existiu, aqui e fora
do Brasil.”
579
Essa posição de Joaquim Câmara Ferreira em relação aos jovens não o impediu
de articular e atuar, como vimos anteriormente, no movimento estudantil. Maria Luiza
Belloque
580
esclarece que ainda no PCB, Câmara Ferreira articulava com a
dissidência dos estudantes de São Paulo. Mais tarde, quando parte da dissidência se
desloca para a ALN,
“de novo, ele foi uma figura muito importante, quer dizer, ele é o contato. Ele é
o grande contato. Ele é o grande recrutador. Eu acho que no meio, né, nesse
meio estudantil, pelo menos, ele foi o principal contato e o principal recrutador.
E pesava na decisão da gente. (...) a gente resgata o contato com a ALN. O
contato que esta nos levando para participar da dissidência para a ALN, eu
acho, que ele é a figura chave.”
581
Podemos verificar, dessa forma, que havia uma migração de militantes dos
núcleos da Dissidência Estudantil para a ALN. Renato Martinelli é outro militante que
afirma ter havido uma estreita relação de Joaquim Câmara Ferreira com o Comitê
Universitário. Conforme suas palavras:
“é o seguinte: os vários núcleos de base do Partido, como eu to te dizendo,
que havia um núcleo no Mackenzie né, de oito. O mínimo desse núcleo tinha
que ser três companheiros, . Nós recebíamos uma assistência ao núcleo.
Tinha um secretário político, um secretário não sei o quê,
mas nós recebíamos
uma assistência do Comitê Universitário. Então, um membro do Comitê
Universitário era destacado para prestar assistência aos núcleos que era as
entidades de base, e o Comitê Universitário, por sua vez, recebia uma
assistência do Comitê Estadual de São Paulo porque eram os canais. Era
clandestino, compartimentado, mas tinha os canais. Então, o encarregado do
Comitê de São Paulo para prestar assistência ao Comitê Universitário era o
Joaquim Câmara Ferreira.”
582
579
MIR, op. cit., p. 306.
580
Maria Luiza Belloque Militante da Dissidência Estudantil do PCB e da ALN que conviveu com Joaquim
Câmara Ferreira.
581
Conforme depoimento de Maria Luiza Belloque, em outubro de 2003, em São Pa
ulo.
582
Renato Martinelli, depoimento.
240
Takao Amano e Guiomar Silva Lopes conheceram Joaquim Câmara Ferreira
também na dissidência do movimento estudantil, pois era ele quem dava assistência
aos jovens, no ano de 1967. Daí, se pode constatar que esse contato que Câmara
Ferreira tinha com os universitários a serviço do PCB é que o caracterizava junto a
esses estudantes como sendo um quadro típico do Movimento Comunista, o que,
naquele momento de ruptura com o Partido, gerava uma certa aversão à sua figura,
como veremos mais tarde.
O fato era que Câmara Ferreira havia pautado sua vida toda no PCB por uma
atuação em organização, segurança, agitação e propaganda e clandestinidade.
Contudo, essa continuava sendo uma exigência fundamental para uma organização
como a ALN, que pretendia atuar na clandestinidade, preservando a vida de militantes
e combatendo de forma eficiente a ditadura militar. Del Roio nos uma dimensão
exata disso, ao enfatizar que
“(...) então, para quem ta na clandestinidade, quem tem que fazer uma
organização na clandestinidade, como era o meu caso, é evidente que
passava a ser um dirigente chave, absolutamente chave. Muito jovens, cercado
de jovens por todas as partes, a nós nos faltava exatamente a experiência da
clandestinidade, a metodologia, você ter segurança de falar com alguém. (...)
então, para mim, ele representou isso, entende? Eu podia perder tudo! Se eu
for preso, como eu falo ou não falo. Como eu faço um ponto? Como eu faço
contato? (...) é, mas estão o fato de ser o professor. Pra mim, ele foi o
professor de clandestinidade.”
583
É interessante observar que, mais tarde, Joaquim Câmara Ferreira morreria ao
quebrar todas as normas de segurança que tinham pautado toda a sua trajetória de
militância.
583
José Luiz Del Roio, depoimento.
241
Pode se constatar que a participação de Câmara Ferreira dentro da ALN
continua a mesma que era e
xercida dentro do PCB. Paulo Cannabrava disse:
“(...) ele continuou na questão de organização e propaganda e articulação. Ele
era um grande articulador. Ele não foi um quadro operativo, não foi, porque ai
fundaram, criaram os grupos táticos, os GTA’s
584
e isso quem comandava era
Osvaldo Lourenço. Então essas coisas ... , mas ele estava dentro do conceito
estratégico.”
585
Esse trabalho de articulação e organização que coube a Câmara Ferreira,
naquele momento, na roupagem do “Velho ou Toledo”, é confirmad
o por Mir:
“se o PCB tinha comandado a esquerda brasileira até 64, em 68 a ALN
preenche o espaço vazio do velho Partido como alternativa revolucionária.
Adeptos e adversários rendiam-se ao seu papel de “organização-
mãe”.
Câmara julgava que o processo revolucionário desencadeado levaria o PCB a
aderir, ao menos, nas bases. Como estava falando até com Deus, Marighella
usa o posto de comandante máximo e pede a Câmara Ferreira que esperasse
um pouco. Negociar alianças e acordos a partir de uma posição de fo
rça,
mais exatamente depois do núcleo dos combates, da guerrilha no campo.”
586
Takao Amano também define também o papel de Câmara Ferreira dentro da
ALN. Conforme suas palavras:
“o Marighella, eu acho, que a característica dele, ele fazia os contatos e
quem ia amarrando era o Toledo, por baixo, porque o Marighella era mais um
relações públicas. Ia pra lá, ia pra cá, falava. Era mais um agitador que um
organizador. (...) eu acho que ele (Câmara Ferreira) foi um dos companheiros
que teve bastante destaque. Ele não é ... veja só, a importância dele é maior
do que, porque no trabalho dele sempre foi um trabalho interno né? Então
quem aparecia... . Se chamava grupo do Marighella né, mas isso é, Marighella
era um expoente que era, que se colocava pra fora, mais agora, internamente,
ele teve uma importância igual ou até superior ao próprio Marighella.”
587
584
GTA’s Grupos Táticos Armados, grupos de guerrilheiros combatentes da ALN. Eram utilizados em ações de
expropriações a bancos, carros
-
fortes etc.
585
Paulo Cannabrava, depoimento.
586
MIR, op. cit., p. 279.
587
Takao Amano, depoimento.
242
Frei Fernando de Brito
588
também esclarece a posição de Câmara Ferreira na
ALN, que, segundo ele,
“é isso que eu percebo de Câmara Ferreira. Ele não é um teórico. Não era,
digamos, assim, um líder carismático. Era um homem da fidelidade. Era o
homem .. esse é um negócio. Não se conhecia nada escrito dele. Eu nunca
ouvir falar que ele tenha escrito alguma coisa, mas é o fulano que está
cobrindo pontos e conversa pra e arma pra e tal. E uma série de
coisas digamos, assim, muito ousadas, como esse, como esse do seqüestro
do americano que é uma coisa muito ousada que politicamente teve, tinha um
sentido político muito grande na época e lançou o nome da ALN para o mundo
todo.”
589
Além do papel de organização dentro da própria estrutura da ALN, Joaquim
Câmara Ferreira articulava possíveis apoios para a luta armada devido à sua relação
com vários setores sociais, que iam desde a intelectualidade até sindicalistas e
membros do PCB. Aloysio Nunes Ferreira
590
enfatiza que:
“nessa época, a função do Câmara era trazer para a organização setores com
os quais ele tinha .... setores do Partido com os quais ele tinha contato mais
freqüente, que eram profissionais liberais, que eram intelectuais. Ele era um
homem com uma formação cultural acima do comum e tinha ampla circulação
por esse meio universitário, meio jornalístico, os intelectuais de esquerda de
São Paulo. Então, o Câmara, ele teve papel importante, na minha visão, trazer
para uma militância ou para uma rede de apoios, de amizades, de
solidariedade com a organização, pessoas que vinham desses setores. Sei
que Câmara também teve um papel importante para trazer para a organização
alguns militantes que vinham mais do movimento operário, do movimento
sindical, gente das considerações dele. Câmara sempre foi um bom
organizador. Ele já, antes da ALN, ele deu assistência, em determinado
momento, um pouco antes disso, a seção estudantil ou universitário do Partid
o
Comunista. Ele era membro do Comitê Estadual encarregado de dar
assistência a este setor do Partido.”
591
588
Frei Fernando de Brito Dominicano. Participou do esquema de apoio logístico a ALN. Conviveu com Joaquim
Câmara Ferreira, neste período.
589
Conforme depoimento de Frei Fernando de Brito, em junho de 2003
, em Belo Horizonte.
590
Aloysio Nunes Ferreira
– Membro do PCB e da ALN. Foi amigo de Joaquim Câmara Ferreira.
591
Conforme depoimento de Aloysio Nunes Ferreira, em julho de 2007, em São Paulo.
243
A ALN começou principalmente, no ano de 1968, as ações armadas que a
principio deixou todo o aparato do estado atordoado, uma vez que, não se tinha
conhecimento dos autores. A organização defendia que o fundamental era passar às
ações revolucionárias imediatamente e, desta forma, a ação revolucionária guerrilheira
contribuíra para liberar as forças revolucionárias que já estavam latentes e, desta
f
orma, expandi
-la ao máximo, conforme documento do Agrupamento Comunista.
O ano de 1968 se revelou um ano de rara complexidade em termos de
acontecimentos no Brasil e no mundo. Havia perspectiva de mudanças, acumulo de
esperanças nas possibilidades de realização de sonhos. No ar reinava uma
inconformidade e uma rebeldia que se espalhariam pelo mundo, o que levava a crer
que as coisas não seriam mais como antes. No Vietnã, o maior exército do mundo era
abatido; nos Estados Unidos, a luta dos Panteras Negras recrudescia; na França, a
juventude e os operários faziam a Europa tremer; houve várias revoluções culturais e
sexuais; a lenda de Che Guevara, morto nas selvas da Bolívia, inspirava o terceiro
mundo. Conforme Franklin Martins: “se a terra era azul, como dissera Gagarin, o futuro
parecia vermelho. A Revolução estava na ordem do dia.”
592
No Brasil, uma profunda
crise política rompeu as forças que haviam articulado o golpe com afastamento de
lideranças civis como Carlos Lacerda, que haviam patrocinado a dita
dura. Acentuavam
-
se as divergências dos grupos que queriam controlar o Estado. A classe média,
favorável ao golpe, começava a sentir os efeitos do arrocho salarial. O acordo MEC-
USAID deixava clara a intromissão americana até dentro do sistema educacional
brasileiro. Recrudesciam as restrições legais aos opositores do regime a partir da Lei
592
Franklin Martins In: PAZ, Carlos Eugênio. Viagem à Luta Armada: memórias romanceadas. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1996, p. 11.
244
de Segurança Nacional, que intentava barrar o movimento de massas que vinham da
classe média, a partir dos estudantes, artistas e intelectuais que realizavam passeatas,
atos públicos e divulgação de manifestos, além de confrontos acirrados com as forças
repressivas, em várias cidades do país. A oposição se acirrou ainda mais a partir do
assassinato do estudante Edson Luiz de Lima Solto, em 28 de março de 1968, no Rio
de Janeiro. Na missa, celebrada na Igreja da Candelária, no centro do Rio, sacerdotes
tiveram que formar uma barreira humana para separar a população que comparecia à
missa dos batalhões de choque da Polícia Militar. No dia 26 de junho de 1968, realizou
-
se a Passeata dos Cem Mil, no Rio de Janeiro.
No âmbito sindical, o ano de 1968 se tornou um ano de grandes mobilizações
com as greves operárias de Osasco e de Contagem com ocupação das fábricas, que
foram duramente reprimidas. Em outubro deste ano, foi realizado o Congresso
clandestino da UNE, em Ibiúna, município próximo a São Paulo. O que seria o 30º
Congresso da UNE foi descoberto pela repressão, e mais de setecentos estudantes
foram presos, entre os quais lideranças estudantis que ganhavam projeção nacional
,
como Vladimir Palmeira, José Dirceu e Luís Travassos. Vladimir Palmeira, no Rio e
José Dirceu, em São Paulo, faziam parte de dissidências do PCB.
A ALN, que havia começado os assaltos com a finalidade de expropriação de
fundos, intensificou, durante o ano de 68 as suas ações: os assaltos a bancos, assalto
ao trem pagador da estrada de ferro Santos Jundiaí, em agosto. Segundo Gorender,
“no decurso de 1968, os assaltos atingiram, na capital Paulista, onze agências
bancárias, cinco carros pagadores e um trem, no total de dezessete.”
593
A guerrilha
tinha a seu favor o anonimato que acabava deixando os órgãos de repressão
593
GORENDER, op. cit., p. 108.
245
desnorteados, pois a técnica utilizada nos assaltos era sofisticada, e o número,
crescente. O anonimato era parte da estratégia, pois enqua
nto era levantada a hipótese
de os atos serem praticados por assaltantes comuns, os guerrilheiros angariavam
recursos e forças para os embates que viriam. Além disso, militantes da ALN
percorriam regiões do interior do Brasil, levantando áreas estratégicas para o apoio às
colunas guerrilheiras que seriam lançadas. Ao mesmo tempo, militantes da primeira
turma que havia treinado em Cuba retornavam e começavam a passar conhecimentos
adquiridos em armamentos, explosivos, técnicas de guerrilha. Os ventos parecia
m
correr a favor dos guerrilheiros. Entretanto, no mês de novembro de 1968, o assalto ao
carro pagador do Instituto de Previdência do Estado da Guanabara (IPEG) rendeu
cento e vinte mil cruzeiros. Porém, um sargento reformado da Polícia Militar
reconheceu,
num posto de gasolina, o carro do assalto. Policiais prenderam o jovem
motorista que, sob tortura, acabou abrindo informações sobre os assaltos, inclusive a
participação de Marighella. A partir daí, o elemento surpresa deixou de existir. Os
órgãos de repressão descobriram que lidavam com grupos revolucionários
organizados. Apesar de a propaganda falar de assaltantes terroristas, de acordo com
Emiliano José,
“o segundo semestre de 1968 não registrava o mesmo ímpeto libertário do
primeiro. Mas as organizações de esquerda não chegaram a se dar conta de
haver um descenso das lutas populares, inclusive no Movimento Estudantil
(camada média mais dinâmica no combate à ditadura), e continuaram a
apostar num avanço linear e contínuo, sem perceber que os golpistas estavam
prontos a mexer nas regras do jogo novamente, e para pior.”
594
594
JOSÉ, Emiliano. Carlos Marighella O inimigo número um da ditadura militar. São Paulo: Sol & Chuva,
1997, p. 229.
246
E foi o que aconteceu no dia 13 de dezembro de 1968 quando foi editado o Ato
Institucional 5 (AI-5), instrumento da ação da ditadura que fechou o Congresso,
cassou inúmeros mandatos parlamentares, estabeleceu a censura prévia, os inquéritos
militares sigilosos. O pretexto utilizado foi um discurso do deputado Márcio Moreira
Alves na Câmara Federal, que criticava o Exército Brasileiro por arbitrariedades e
propunha um grande boicote as comemorações do dia sete de setembro. O governo
militar pretendia processá-lo, mas o Congresso Nacional recusou dar a licença. O AI-
5
se constituiu no “golpe dentro do golpe”: o país era declarado em guerra subversiva”,
ao mesmo tempo em que intensificava a resistência armada incrédula de qualquer
possibilidade de mudança por via parlamentar.
É bom ressaltarmos que o AI-5 veio de encontro aos movimentos sociais que
se colocavam, naquele momento, contra a ditadura militar. Não foi implantado para
combater a luta armada, mas foi a luta armada que se intensificou a partir do AI-5, num
embate entendido pelas organizações guerrilheiras como a única possível àquela
época. Conforme Denise Rollemberg, havia, no Brasil, apoio de Cuba à luta armada,
com
as Ligas Camponesas, ainda no governo de João Goulart. Entretanto, a ditadura
cerceou todas as possibilidades de lutas legais. A partir disso, houve um acirramento
das esquerdas armadas.
Câmara Ferreira atuou durante todo o ano de 1968 na ALN no sentido de
estruturar finanças, inteligência, grupos de apoio e de comunicação. Marco Antônio
Coelho Tavares ressalta que, “nessa organização política, pessoas assim são
indispensáveis, porque são elas que articulam, que unificam, que levam a orientação. É
247
um cimento interno, assim, numa organização revolucionária. O Câmara foi isso.”
595
E
toda esta infraestrutura foi elaborada a partir de uma rede de ligações com pessoas que
às vezes não estavam diretamente ligadas à luta e à ALN: ligações com outras
organizações
e até com membros da Igreja, como no caso da Ordem dos Dominicanos.
Os Dominicanos haviam iniciado os contatos com a ALN a partir de dois de seus
membros: Frei Oswaldo Rezende e Frei Betto. Frei Oswaldo Rezende, que como vimos
anteriormente, participou das reuniões do comando estratégico da ALN com Toledo e
Marighella, disse, sobre o papel de Câmara Ferreira na organização: “(...) no
reforçamento da ditadura militar pela violência, bom, essa juventude começou a se
voltar para esse tipo de ação, quer dizer, mais os líderes. Bom, e eu sei, o Toledo foi
um dos... das pessoas que eram procuradas por esse pessoal na constituição desses
grupos e coisa e tal.”
596
Inclusive, na própria reunião em que se estabeleceu o nome
de ALN, segundo o Frei Oswaldo Rezende, Câmara Ferreira expôs qual era a situação.
Conforme Frei Oswaldo Rezende:
“(...) ele deu conta da situação de São Paulo né?, como que estava a situação.
Fez um pequeno relatório. (...) algumas ações que foram feitas pelo
agrupamento. Havia o depósito de dinamites, por exemplo, eles foram e
roubaram a dinamites né? Foram feitas umas séries de pequenas ações, mas
eu acho que, na distribuição de tarefas, o Toledo ficou mais com a parte,
vamos dizer assim, política.”
597
No ano de 1969, porém, Frei Oswaldo Rezende foi avisado pela Ordem
Dominicana que seria enviado à Europa para aprofundamento dos estudos. Naquele
momento, segundo seu depoimento, era o único dominicano a ter contato direto com
Marighella que tentou demovê-lo da idéia de viajar, mas não dependia de sua vontade,
595
Marco Antônio Coelho Tava
res, depoimento.
596
Frei Oswaldo Rezende, depoimento.
597
Idem.
248
mas da ordem de seus superiores religiosos. Entretanto, antes de embarcar para a
Europa, deixou dois confrades seus com os contatos com os dois principais dirigentes
da ALN. Frei Fernando de Brito ficou como contato de Marighella, e Frei Magno Vilela
598
ficou como contato de Joaquim Câmara Ferreira. Nas palavras de Magno Vilela,
“eu
não me lembro mais detalhadamente quais foram as circunstâncias precisas, mas
neste grupo de Dominicanos eu vou ficar encarregado do contato com ele. Isso
vai
durar cerca de dois anos.”
599
Esses contatos de Câmara Ferreira com Magno Vilela eram realizados
semanalmente, e de forma rigorosamente clandestina. Magno Vilela disse que Câmara
Ferreira era extremamente rigoroso com a segurança, além de ser um homem
pessoalmente reservado. Os contatos não eram feitos por Magno Vilela, que não sabia
como localizar Câmara Ferreira; era este que tomava a iniciativa dos contatos, que
tinham como finalidade relatar o trabalho que ele realizava na ALN. Conforme Magno
Vilela
:
“(...) ele mencionava, sobretudo, duas coisas que a gente comentava muito. O
que eu chamaria uma espécie de serviço de inteligência da ALN e pelo que eu
percebia, na época, ele estava encarregado de montar. Ele estava tentando
montar, e de pelo menos, uma parte de relacionamento junto com a atividade
junto à imprensa. Imagino que, como antigo militante comunista que ele era,
tendo inclusive trabalhado no jornalismo do Partido, ele devia ter os seus
caminhos próprios nessa área, mas havia um certo tipo de contato que, mais
de uma vez, ele fazia através de mim, ou porque eu facilitava o contato, ou
porque o contato que eu tinha, ou porque ele me pedia então através de
outras relações, entrar em contato com as pessoas, isso tudo na
clandestinidade, obvia
mente.”
600
O Comitê de informação formado por Câmara Ferreira era composto por cinco
membros: Magno Vilela, o coronel Eddie Castor da Nóbrega, o ex-juiz Carlos Sá, o
598
Frei Magno Vilela
Dominicano que foi contato de Joaquim Câmara Ferreira. Conviveu com ele na ALN.
599
Conforme depoimento de Magno Vilela (ex
-
dominicano), em agosto de 2003, em São Paulo.
600
M
agno Vilela, depoimento.
249
arquiteto Sérgio Ferro e o próprio Câmara Ferreira. As reuniões eram realizadas na
Aveni
da Angélica, centro de São Paulo, num local que pertencia a um comunista
italiano, que foi grande amigo de Câmara Ferreira, chamado Dario Canale. Além
desses, porém, Câmara Ferreira buscou contatar outros possíveis militantes para esse
comitê, pois se mostrava preocupado com esse aspecto da organização. Conforme
Ottoni Fernandes Júnior, Câmara Ferreira
“usava um terno cinza e poderia passar por um bispo católico, sem batina.
Depois do cumprimento cordial, seguimos a pelo bairro (Barra Funda São
Paulo)
. Aproveitou e mostrou-
me a casa onde nasceu e morou o escritor Mário
de Andrade. Depois de uma conversa amena para quebrar o gelo, contou que
sabia de mim e perguntou onde eu poderia ser mais útil, ressalvando que eu
não deveria ir para o GTA, o núcleo d
e ação armada, especialmente por causa
dos meus dois metros de altura. Soube do treinamento sobre explosivos e
inteligência que eu fazia com o sargento do MNR que havia estado em Cuba.
Todo mundo quer ir para o GTA, parece coisa de cowboy. Mas temos muita
deficiência na infra-estrutura, quase nada em termos de planejamento
operacional, de análise de informações sobre o inimigo. Quero que você entre
para um núcleo de inteligência que estamos criando, totalmente
compartimentado do resto da organização, longe das ações e ligado
diretamente a mim.
Falou com convicção.
Topei na hora, até porque o Toledo era muito firme, tinha muito carisma, mas
ponderei.”
601
O trabalho mais importante pela comissão foi o mapeamento estratégico da
guerrilha rural feito por Castor da Nóbrega, e os estudos para infra-estrutura de
aparelhos, comunicações, retaguarda e finanças, feitos por Câmara Ferreira. Entre
essas atividades de aparelhos e retaguarda, podemos constatar o caso da saída do
capitão Carlos Lamarca do quartel de Quintaúna, no dia 23 de janeiro de 1969.
Lamarca deixou o quartel com uma Kombi carregada com 63 fuzis Fal e dois morteiros
para fazer a guerrilha. Segundo Mir:
601
JUNIOR, Ottoni Fernandes. O baú do guerrilheiro. Memórias da luta armada urbana no Brasil. Rio de Janeiro:
Record, 2004, p. 206.
250
“o ex-juiz do trabalho Carlos Figueiredo atendeu a um telefonema de
Câmara Ferreira às 14 horas do dia 23 de janeiro de 1969. Os dois se
encontram no centro de São Paulo. Câmara, querendo um refúgio seguro para
abrigar Lamarca, desertando do quartel de Quintaúna antes que o
prendessem. O grupo dos sargentos sendo pulverizado, e alguns presos não
resistindo à tortura, acabariam acertando em Lamarca. Com ele, saíram o
sargento Darcy Rodrigues, o cabo José Mariane Ferreira Alves e o soldado
Carlos Roberto Zanirato. Lamarca encontra-se com Câmara e a uma hora
da madrugada, no centro de São Paulo. Ficam rodando dentro do carro de
e conversando sobre o que fazer até as quatro horas. telefona para sua
casa e recebe a confirmação de que está tudo pronto. Poderiam vir. Um
químico da Johnson & Johnson, José Tabakcnick, concordara em recebê-
lo.”
602
Lamarca havia começado a fazer os contatos através do ex-sargento Onofre
Pinto, que era um dos seus líderes e com a ALN através de seus dirigentes, Joaquim
Câmara Ferreira e Carlos Marighella. Onofre Pinto convencera Lamarca de que tinha
uma área para implantação da guerrilha rural tão logo ele deixasse o quartel de
Quintaúna. A ALN não podia dar tais garantias porque estava ainda articulando o
projeto de guerrilha rural. Lamarca fez a opção pela VPR e, quando saiu do quartel, a
sua primeira dificuldade era guardar com segurança o pequeno arsenal tirado de
Quintaúna. A VPR passou o arsenal para as mãos dos militantes da ALN. Isaias
Almada
603
, entre janeiro e março, foi convocado pela VPR para uma tarefa importante,
sem saber direito do que se tratava. Devia estar na Avenida Ibirapuera, entrar numa
garagem, pegar uma Kombi e levar para um outro ponto de São Paulo. No ponto,
encontrou um homem, bem mais velho do que ele. No trajeto, conversaram, mas um
não perguntou identidade do outro, como era de praxe naquelas situações. Mas
Almada sabia tratar-se de Joaquim Câmara Ferreira. E os dois estavam simplesmente
levando as armas que o capitão Carlos Lamarca tinha tirado do quartel.
Porém, segundo Emiliano José Oldack Miranda:
602
MIR, op. cit., p. 355.
603
JOSÉ, Emiliano.
Lamarca: O Capitão da Guerrilha.
São Paulo: Global, 198
9, p. 81.
251
“alguns dias depois, sentindo-se em condições de garantir o armamento, a
VPR pediu-o de volta. Uma, duas vezes, e nenhuma resposta. Lamarca
começa a ficar preocupado com o comportamento de Marighella, principal
dirigente da ALN. Três meses depois da fuga consegue se reunir com Joaquim
Câmara
Ferreira e se mostra irritado ao saber da definição de Marighella: são
armas para a revolução. A VPR queria as armas e, se necessário, ele,
Lamarca, e seus companheiros descobririam onde elas estavam e fariam nova
ação para recuperá-las. Habilidoso, o vel
ho Joaquim garante o retorno. No fim,
apenas a metade voltou.”
604
Devido a isso, Raymundo de Oliveira, que conheceu o capitão Carlos Lamarca,
ouviu dele uma vez:
“era mais fácil o diálogo com Toledo do que com Marighella.”
605
Para realização dessas atividades, Joaquim Câmara Ferreira contava com uma
série de outros apoios, sendo que alguns deles não eram militantes da ALN, e atuavam
por uma questão pessoal. De acordo com o levantamento de Mir, a rede de apoio
pessoal e logístico em São Paulo era : Américo Lourenço Masset Lacombe, juiz federal
(apoio do GTA); Tereza Lacombe, advogada (apoio do GTA); Vinícius Medeiros
Caldevilla, engenheiro (apoio do GTA); Guilherme Lustosa da Cunha, advogado (apoio
do GTA); Carlos Henrique Knapp, publicitário (apoio GTA); Antônio Flávio Médici de
Camargo, empresário (apoio do GTA); Maria Clara Camargo, advogada (apoio do
GTA); Vera Tude de Souza, atendente da Varig (apoio do GTA); Norma Bengell, atriz
(apoio do GTA); Maurício Segall, advogado (apoio pessoal de Joaquim Câmar
a
Ferreira); Roger Karman, jornalista (apoio pessoal de Câmara Ferreira); Roberto de
Barros Pereira, engenheiro (apoio do GTA); Itobi Alves Corrêa Júnior, advogado (apoio
do GTA); Ana Corbisier, estudante (apoio do GTA); Jacques Emili Frederic Breyton,
empresário (apoio pessoal de Câmara Ferreira e Carlos Marighella e fornecedor de
materiais eletrônicos para o GTA); Nair Benecdito, secretária (apoio do GTA), Diva
Maria Faria Bournier, estudante (apoio do GTA).
604
JOSÉ, op. cit., p. 52.
605
Raymundo de Oliveira, depoimento.
252
Um desses apoios, Maurício Segall, havia conhecido Câmara Ferreira no PCB
nos anos 50, e saído do Partido após o relatório das denúncias de Kruchev. Ele entrou
para ALN na década de 60, após contato com Câmara Ferreira intermediado por um
amigo de Câmara, o diretor de teatro chamado Augusto Boal. Conf
orme Segall:
“(...) ai, eu cumpri uma série de tarefas, de todo o tipo. Eu viajei muito com ele
e por isso, tive muita oportunidade de conversar sobre outros assuntos e tal.
Levava ele pro Rio, trazia do Rio. Ele era procuradíssimo. Fiz levantamento de
es
tradas, de pontes, se eles porem bombas e tudo mais. Tudo isso eu fiz. Que
eram tarefas que ele me indicava pessoalmente. Limpar casa de companheiros
que tinham sido presos. Tinha que sair correndo e fazer isso antes que a
repressão chegasse. Cumpri todas
as tarefas.”
606
A ditadura militar iniciou o ano de 1969 disposta a combater a esquerda
revolucionária com todas as armas possíveis. No governo do Marechal Arthur da Costa
e Silva, que iniciara em 15 de março de 1967, os grupos de extrema direita passaram a
agir com desenvoltura, infiltrando-se no aparelho repressivo do Estado. Esses
aparelhos repressivos não sofriam as restrições conhecidas à época do governo do
Marechal Castelo Branco. Era uma tendência que tinha como intenção geoestratégica
garantir
a presença de governos confiáveis a política norte
-
americana no continente. No
ano de 1969, a ditadura foi aprimorando instrumentos como a tortura e os assassinatos
dos opositores.
Tudo isso fazia parte de uma política de Estado: O AI-6 representou a
inst
itucionalização do Estado autoritário. Sob a égide do principio de segurança
nacional, o Executivo tornou-se o poder por excelência, e a Justiça, até então
intimidada, passou a ser definitivamente desprovida das prerrogativas inerentes a um
606
Conforme depoimento de Maurício Segall, em maio de 2003, em São Paulo.
253
Estado de direito. O Congresso Nacional e as assembléias estaduais e municipais
permaneceram fechadas até 30 de outubro de 1969. O presidente Costa e Silva, que
pressentira o desfecho desta escalada, perdeu, a partir do AI-5, o controle da situação.
Os termos “contra-
re
volucionários”, “subversivos” e “terroristas” eram aplicados a todos
que faziam oposição ao regime, o que era reforçado pela tese de que existia uma
“guerra
-evolucionária.” Para Elio Gaspari, escancarada, a ditadura firmou-se. A tortura
foi o seu instrumento extremo de coerção e o extermínio, o último recurso da repressão
política que o AI-5 libertou das amarras da lei. A ditadura envergonhada foi substituída
por um regime a um tempo anárquico nos quartéis e violento nas prisões. Foram os
“anos de chumbo
.”
No dia 2 de julho de 1969, foi lançada em São Paulo a “Operação Bandeirantes”
(OBAN), oficializada no governo do general Emílio Garrastazu Médici, e tendo início a 1
de novembro de 1969. A oficialização se deu através de uma circular interna, intitulad
a
“Instruções sobre a Segurança Interna.” Aqui se encerrava um processo de cinco anos
de discussões sobre o papel a ser desempenhado pelas forças armadas na
manutenção da segurança interna. Segundo Antônio Carlos Fon:
“a tese de um engajamento total, ide
ológico e operacional, das forças armadas
na luta anti
-
subversiva surgira no ceio do grupo de coronéis da chamada “linha
dura” encarregado da condução dos inquéritos policiais militares, para
investigar atividades subversivas durante o governo anterior, logo após a
vitória do movimento de março de 1964.”
607
A OBAN foi estruturada com recursos do empresariado paulista. Na Federação
das Indústrias de São Paulo, convidavam-se empresários para reuniões em cujo
término se pediam doações. O governador de São Paulo em 1974, Paulo Egydio
607
FON, Antônio Carlos.
Tortura
História da Repressão Política no Brasil
. São Paulo: Global, 1979. p.16.
254
Martins, afirmou que à época, todos os grandes grupos comerciais e industriais do
estado contribuíram para o início da OBAN.”
608
A idéia da OBAN era reunir um
organismo com elementos das três Forças Armadas, da Polícia Estadual (civil e militar)
e da Polícia Federal. Era comandada sempre por um oficial superior até o posto de
coronel e ligado ao comando militar da área através da segunda seção do Estado-
Maior. Em 1970, a OBAN passou a se chamar Centro de Operações de Defesa Interna
(CODI) e passou a coordenar as atividades de vários Departamentos de Operações de
Informações (DOI). Assim, o CODI ficava com o trabalho burocrático e administrativo,
enquanto o DOI ficava com a parte operacional. Como os oficiais responsáveis por
esses ó
rgãos não tinham experiência no campo da investigação, foram incorporados ao
trabalho diversos delegados investigadores da Polícia Civil, entre os quais o delegado
Sérgio Paranhos Fleury que à época era conhecido apenas por pertencer ao
“Esquadrão da Morte
.”
Além disso, em agosto de 1969, o presidente Costa e Silva foi acometido de um
derrame cerebral, em virtude do qual acabou morrendo. O vice-presidente Pedro Aleixo
foi impedido de tomar posse porque havia votado contra o decreto do AI-5. Em seu
lugar, no dia 31 de agosto de 1969, foi nomeada uma Junta Militar constituída pelos
Ministros general Aurélio de Lira Tavares (Exército), Augusto Rademarker (Marinha) e
Márcio de Souza Mello (Aeronáutica). E foi no período da Junta que a ofensiva
guerrilheira ocor
reu de forma mais espetacular.
As ações armadas prosseguiram em 1969, como dissemos, de forma intensa, e
Joaquim Câmara Ferreira continuou articulando a Organização. Marighella se movia
608
GAS
PARI, Elio.
A Ditadura Escancarada.
São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 62.
255
por todo o Brasil organizando a retirada para o campo e o início das
colunas
guerrilheiras. Conforme Mir:
“as aparições do líder da ALN em São Paulo são cada vez mais esporádicas.
Como saltimbanco, palmilha o Brasil organizando a guerrilha rural, sempre
sozinho. Câmara desdobra
-
se entre São Paulo e Rio, controlando os mili
tantes
e o recolhimento de recursos em assaltos. Seu papel era de figurante no
esquema rural.”
609
Essas atividades de Câmara Ferreira, nesse momento, são confirmadas por Frei
Oswaldo Rezende. Frei Osvaldo, como vimos anteriormente, havia participado da
reunião do chamado Grupo Estratégico com Câmara Ferreira e Marighella. Nesse
período, encontrou-se com Câmara Ferreira na casa de um militante da ALN, e, de
acordo com Frei Oswaldo Rezende, “o Toledo se queixando, na casa do Genésio
comigo, que não via mais o Marighella. E era tempo de nós nos reunirmos de novo
como naquela vez. Eu senti que o Toledo estava preocupado com o fato de que havia,
como eu diria, uma certa dispersão.”
610
Além disso, havia uma preocupação de
Câmara Ferreira que as ações armadas desenvolvidas fossem permeadas por um
conteúdo político o que caracterizaria o papel da organização armada. Este fato pode
ser confirmado por ocasião dos incêndios que acometeram as emissoras de televisão,
em São Paulo, como Globo, Record, Bandeirantes e Excelsior. Os jornais diziam que
se tratava de terrorismo que se confundia de forma pura e simples com o banditismo.
Os incêndios tinham ocorrido no dia 14 de julho de 1969 (televisão Record e Globo) e
dia 15 de julho (Bandeirantes). Câmara Ferreira redigiu e distribuiu um comunicado
violento no qual se lia:
609
MIR, op. cit., p. 408.
610
Frei Oswaldo Rezende, depoimento.
256
“somos aberta e conscientemente partidários da utilização da violência e do
terror contra os que esmagam com violência e terror as liberdades e os
direitos do povo. Contra os homens da ditadura e seus lacaios. Contra os que
roubam, pelas mais variadas formas, o produto do trabalho da população
laboriosa, contra os imperialistas norte
-
americanos e seus agentes, os grandes
capitalistas e senhores de terras. Temos empregado e continuaremos a
empregar o t
error contra essa gente.
Com autoridade que nos uma afirmação tão clara não fazemos
senão repetir o que disse nosso dirigente Carlos Marighella - , queremos
informar à população de São Paulo que nada temos a ver com os incêndios
ocorridos nas estações de televisões. Também não pretendemos defendê-
las,
tanto mais quando sua orientação geral consiste em servir à ditadura e às
empresas estrangeiras que patrocinam seus programas. Mas é preciso que se
saiba que os responsáveis por esses incêndios devem
ser procurados entre os
que procuram valer-se deles para açular o povo contra os que estão lutando
pela libertação do Brasil. Entre os que ajudaram um provocador como Dinotos
(Aladino Félix) a atirar bombas a esmo e libertaram-no, “por engano”, logo
depois
do AI-5. Entre os que mandam os jornais - impedidos de divulgar
qualquer documento efetivamente revolucionário e mesmo simples notícias de
ações revolucionárias enorme destaque ao manifesto de uma pseudo
“Frente de Libertação Nacional” em que se “condenam à morte” os membros
do Conselho de Segurança Nacional “até a terceira geração.”
611
Os sabotadores nunca foram descobertos, e, pelas suspeitas que havia, os
incêndios tinham sido provocados para que as emissoras recebessem o seguro. O
material utilizado nos incêndios (gasolina gelatinosa explosivo) jamais havia sido
usado pelos grupos de esquerda. Walter Clark, o diretor
-
geral da emissora Globo, disse
mais tarde que os incêndios foram a melhor coisa que poderia ter acontecido, pois a
emissora recebeu um seguro de sete milhões de dólares com os quais comprou
equipamentos novos.
Para Câmara Ferreira, as ações armadas embasadas por conteúdo político
evitariam que o regime passasse para a população de que se tratava de bandidos e
terroristas comuns. Porém, para que isso acontecesse, era necessário um centro de
611
MIR, op. cit., p. 400.
257
inteligência que articulasse as ações e lhes desse um conteúdo político. Essa
preocupação, Joaquim Câmara Ferreira a manifestou a Roberto de Barros Pereira
612
:
“(...) o que eu fazia na ALN? Eu vivia quase que diariamente com o Toledo. Eu
transportava o Toledo para muitos lugares. Eu, ele me mandava ter contato
com algumas pessoas. Então, naquela época, a grande preocupação do
Toledo era montar o setor de inteligência da ALN. Era montar o setor de
inteligência da ALN. O Marighella era um cara muito voluntarioso, é certo? O
Marighella queria coisas práticas e imediatas. O Toledo era um cara muito
assim, de cabeça muito boa, achando que o negócio tinha que ser um pouco
mais devagar, e que a gente devia, antes de mais nada, tomar muito cuidado
que a ação não fosse um troço de primeiro lugar. Que a ação era em função de
um serviço de inteligência, entendeu? Porque, na realidade, chegou um
período na ALN, que eu não posso precisar, com o Câmara também volt
ando
de algum lugar e eu voltando, um monte de troço que eu tinha pra fazer...não
sei mais ou menos que ano, começou a ter uma certa divergência dentro da
ALN. Por quê? Porque queria se fazer muita ação, muita ação, muita ação, e o
Toledo não era desse tipo. Ele queria o seguinte: vamos montar um sistema,
um esquema todo de inteligência que permita a organização fazer as ões a
partir da definição de uma estratégia política, porque a estratégia da ALN era
muita genérica, ta certo?”
613
A ação política permeando a ação armada poderia a levar a uma adesão das
massas ao projeto revolucionário. A preocupação de Câmara Ferreira era exatamente
essa. Conforme o mesmo Roberto de Barros Pereira, para Câmara Ferreira,
“a ação física devia ser antecipada de uma aç
ão política porque, na verdade, o
que aconteceu foi isso. Que no fim o que ficou? Ficou uma guerra militar entre
a gente e o Estado enfrentado à bala sem apoio, sem apoio da população. Isso
que ele temia. O Toledo sempre falou isso. Se a gente não fizesse uma, uma
ação política, a gente ia ficar isolado com a população, ta certo? Por que na
verdade a população, mesmo a população carente, a gente tinha dificuldade de
ter acesso porque caracterizava a gente como terrorista, comunista. E se um
partido, sem ter ação política militar, era assim, ta certo? Éramos
chupadores de sangue de criança, não é mesmo? Você...nós que fazíamos um
assalto, que matava gente com certeza...então passou muita ação assim que,
de marginalidade. A ação política, na verdade, foi atropelada. Mas teve hora,
tem tempo que depois isso vai num..., é uma bola de neve, um negócio que
não tem mais jeito, não tem mais jeito.”
614
612
Roberto de Barros Pereira
Militante da ALN. Amigo pessoal de Joaquim Câmara Ferrei
ra.
613
Conforme depoimento de Roberto de Barros Pereira, em março de 2004, em São Paulo.
614
Roberto de Barros Pereira, depoimento.
258
Além disso, para Câmara Ferreira, a etapa da luta armada nas cidades estava
esgotada. O caminho dali para frente era o caminho da guerrilha rural. Essa idéia de
encerrar a luta urbana e iniciar o período da guerrilha rural pode ser constatado numa
conversa de Sara Mello e Joaquim Câmara Ferreira. Sara Mello continuava a dar algum
dinheiro para Câmara Ferreira. De acordo com ela, “ele me pediu para comprar umas
botas. Tinha uma casa que vendia fardas para militares em frente a um antigo QG que
dava na Conselheiro Crispiniano. Então...eu não vou comprar bota! Para que você quer
bota? Ele disse: porque eu, pra ir pro mato porque, pra aprender a atirar.”
615
A mesma
idéia, Câmara Ferreira manifestou-se a Roberto de Barros Pereira, que relata: “ele tava
muito preocupado que a gente tava andando rápido com algumas coisas. Ele achava
que o confronto na cidade tinha vida muito curta. Chegou uma época, ele achou que
tinha passado a época, a gente tinha que ir pro campo, senão, não ia andar as coisas.”
616
E foi com esse propósito que foi realizada a ação contra o transmissor da Rádio
Nacional de São Paulo instalado em Piraporinha, município de Diadema, cinturão
industrial da capital Paulista. Às oito e meia da manhã do dia 15 de agosto de 1969, um
destacamento de doze guerrilheiros da ALN invadiu a estação transmissora da rádio.
Dominaram os funcionários. Após isto, interrompe
rem a ligação com o estúdio e ligaram
o transmissor de ondas curtas tendo como música de fundo o Hino da Internacional
Comunista e o Hino Nacional Brasileiro. A ação visava um anúncio de Marighella sobre
615
Sara Mello, depoimento.
616
Roberto de Barros Pereira, depoimento.
259
o lançamento da guerrilha rural. A ação foi planejada por Gilberto Belloque
617
e José
Wilson Lena Sabag. Gilberto Belloque enfatiza que
“foi uma ação muito interessante porque a gente tomou os estúdios, estúdios
não, os transmissores da rádio, e numa fita gravamos o que era um discurso
do Marighella, um discurso de uns dez minutos, um manifesto dele à nação.
Nós gravamos umas três vezes na fita e colocamos a fita na..., levamos ela até
os estúdios, a torre transmissora, conectamos e colocamos no ar, inclusive
rodou umas três vezes. O que tem de interessante
nessa história é que o texto
que era um texto do Marighella, foi lido por mim. O texto era do Marighella.”
618
Podemos perceber que a ação tinha um cunho político, como pretendia Joaquim
Câmara Ferreira. Inclusive, como verificamos anteriormente, Câmara Ferreira havia
passado o texto antecipadamente para Hermínio Sacchetta, que o publicou no jornal do
qual era diretor
-
redator, rompendo o cerco da censura da ditadura militar.
Entretanto, a ação mais ousada da ALN aconteceu no mês de setembro de
1969, quando o embaixador dos Estados Unidos Charles Burke Elbrick foi seqüestrado
por um comando conjunto da ALN e da Dissidência da Guanabara, que assumiu, no
seqüestro, a nomenclatura de Movimento Revolucionário 8 de outubro (MR-
8)
619
. Na
história da guerrilha urbana no mundo, o seqüestro do embaixador foi a primeira
operação do gênero e se tornou uma das maiores armas revolucionárias das esquerdas
armadas no Brasil, pois não se seqüestrava o embaixador para executá-lo; ele seria
usado como moeda política na libertação de presos políticos. Em agosto de 1968, na
Guatemala, o seqüestro do embaixador americano John Gordon Mein acabou em
617
Gilberto Belloque Militante da dissidência estudantil, em São Paulo e da ALN. Conviveu com Joaquim Câmara
Ferreira.
618
Conforme depoimento de Gilberto Belloque, em outubro de 2003, em São Paulo.
619
MR-
8
Os órgãos repressivos haviam divulgado a liquidação do MR-8. Tratava-se da Dissidência Estudantil de
Nite
rói que havia começado a cair em abril de 1969. O grupo havia editado um jornal intitulado Movimento
Revolucionário 8 de outubro (homenagem ao dia da execução de Che Guevara nas selvas da Bolívia em 8 de outubro
de 1967). A fim de fazer um trabalho de cont
ra
-
informação no seqüestro do embaixador americano, a Dissidência da
Guanabara assumiu o nome de MR
-
8 para demonstrar que a organização supostamente liquidada continuava viva.
260
tragédia, pois, ao reagir, o embaixador acabou sendo morto. A idéia do seqüestro
surgiu na cabeça de Franklin de Souza Martins
620
, que pertencia à Dissidência (DI),
isto é, dissidência de jovens que haviam rompido com o PCB. A DI estava pensando
muito tempo numa maneira de libertar Wladimir Palmeira, um dos principais líderes
estudantis de 1968 e um dos fundadores da DI que havia sido preso no Congresso da
UNE, em Ibiúna, em 1968. O grupo havia feito levantamento nos locais onde
Wladimir Palmeira estivera preso como quartel da Polícia Especial no Ibirapuera, em
São Paulo, e o quartel da Marinha, em Jurujuba, perto de Niterói. A conclusão era a de
que não havia a menor possibilidade para o resgate. De acordo com Franklin Martins:
“quando os presos que estavam na Ilha das Flores fossem levados para depor
na Auditoria Militar, interceptaríamos a lancha militar em alto-mar e os
libert
aríamos. Era inviável. Numa conversa com Cid Queiroz Benjamin,
enquanto caminhamos pela rua Marques, em Botafogo, ele comentou que o
embaixador norte-americano passava diariamente por ali. Tive a idéia. Por que
não o seqüestramos e exigimos em troca a libe
rdade de nossos presos.”
621
Entretanto, um problema se apresentou. A DI não tinha quadros experimentados
que pudessem realizar a operação. Daí surgiu a idéia de estabelecer contatos com
outras organizações para uma ação conjunta. O seqüestro possibilitaria a libertação de
Wladimir, reforçaria a antiga tese da unidade entre as organizações armadas e seria
um grande acontecimento político, que de preferência fosse realizado na semana de
comemoração do Dia da Pátria. A princípio, a DI contatou a Vanguarda A
rmada
Revolucionária Palmares (VAR-Palmares), no Rio de Janeiro. Porém, os militantes da
VAR
-Palmares não compareciam aos encontros marcados, e a DI desistiu. Surgiu
620
Franklin de Souza Martins Membro do Movimento Estudantil e da Dissidência da Guanabara. Idealizador do
seqüestro do embaixador americano e um dos dirigentes políticos da ação junto com Joaquim Câmara Ferreira.
621
MIR, op. cit., p. 414.
261
então, a proposta de parceria com ALN. Paulo de Tarso Venceslau
622
havia sido do
Movimento
Estudantil, em São Paulo, e, juntamente com alguns estudantes, havia
pensado em uma possibilidade de libertarem Wladimir Palmeira, Luís Travassos
(presidente da UNE), José Dirceu e Antônio Guilherme Ribeiro Ribas. Quando a DI
pensou na possibilidade da ALN, foi Paulo de Tarso Venceslau, nesse momento, um
dos coordenadores da ALN em São Paulo, que colocou o grupo da DI em contato com
a ALN de São Paulo, e não a do Rio de Janeiro. Conforme Gorender, “Cláudio Torres
viajou a São Paulo e conversou com Joaquim Câmara Ferreira, que achou magnífica a
idéia. Fechado o acordo, Cid Queiroz Benjamim expôs o plano da Dissidência à
Coordenadoria Regional da ALN em São Paulo.”
623
Devido a esse fato, Marighella não
ficou sabendo da ação do seqüestro, pois se encontrava no Rio de Janeiro nesse
momento. Conforme Paulo de Tarso Venceslau, o fato de Joaquim Câmara Ferreira ter
sido contatado se devia ao fato de que
“o Mariga (Marighella) vinha pouco em São Paulo, e quem a gente se
reportava e quem era o dirigente político máximo aqui,. Em São Paulo, era o
Toledo. O Joaquim Câmara Ferreira. (...), então, quem tava dirigindo a ALN em
São Paulo, era efetivamente o Toledo. (...) e quando o Marighella vinha a São
Paulo, o Toledo que sabia, o contato era ele que sabia, os canais. Ele que
marcava a reunião que o Marighella queria ter, com quem que era a reunião.”
624
informações de que os próprios militares tinham o conhecimento da atuação
de Joaquim Câmara Ferreira na ALN em São Paulo. Consta em documento do DEOPS
que:
“o Ministério do Exército, em 12 de novembro de 1969, certifica-nos de que
622
Paulo de Tarso Venceslau
Militante da ALN. Participou do seqüestro do embaixador americano ju
ntamente com
Joaquim Câmara Ferreira.
623
GORENDER, op. cit., p. 182.
624
Conforme depoimento de Paulo de Tarso Venceslau, em outubro de 2003, em São Paulo.
262
Joaquim Câmara Ferreira, vulgo “Toledo”, ou “Velho”, era o Coordenador
-
geral, em São
Paulo, do Movimento da Ação Libertadora Nacional.”
625
Também, no relatório inquérito sobre a ALN, da Delegacia Especializada de
Ordem Social, elaborado pelo delegado Valter Fernandes, consta o papel que Joaquim
Câmara Ferreira exercia dentro da Organização, ao assinalar que
“(...) a ALN estruturou-se convenientemente, sendo os seguintes seus
escalões: Comando Nacional, Coordenação Geral, Coordenações Regionais,
Setor Armado ou de Expropriações (GTA), Setor Logístico e Setor de Massas.
O comando Nacional estava afeto única e exclusivamente a Carlos
Marighella, embora possuísse um Grupo de Trabalho Estratégico (GTE). O
coordenador
-geral da ALN era Joaquim Câmara Ferreira, que também
respondia pela Coordenação Regional de São Paulo. As coordenações
regionais diziam respeito às principais capitais do país, dentre estas São
Paulo, Guanabara, Belo Horizonte, Porto A
legre e Brasília.”
626
As negociações com a ALN avançaram, e foi programado o seqüestro do
embaixador americano numa ação conjunta com a ALN e DI, sem o conhecimento de
Marighella. A ação foi programada para a Semana da Pátria, o que causaria um maior
impacto. No dia 01 de setembro de 1969, viajaram para o Rio de Janeiro, num fusca,
Paulo de Tarso Venceslau (Geraldo), Virgílio Gomes da Silva(Jonas) e Manoel Cyrillo
de Oliveira Netto (Antônio) levando duas metralhadoras INA, dois revólveres 38 cano
longo,
três bombas de alta potência e granadas. E, nesta mesma manhã, Joaquim
Câmara Ferreira se dirige à capital federal pela ponte aérea. Pela Dissidência,
participaram João Lopes Salgado, Sérgio Rubens Araújo Torres, Cláudio Torres da
Silva, Franklin de Souza Martins, João Sebastião Rios Moura, Cid Queiroz Benjamin,
Vera Silvia Magalhães e Fernando Paulo Nagle Gabeira. Exceto Vera Silvia, Paulo de
Tarso, Sérgio Rubens e José Sebastião, todos os demais ficaram no aparelho onde foi
625
DEOPS
Documento 30B152
Arquivo Público de São Paulo.
626
SOUZA, op. cit., p. 141
-
142.
263
colocado o embaixador americano. O comando militar da ação ficou a cargo de Virgílio
Gomes da Silva e Manoel Cyrillo de Oliveira Netto. De acordo com Franklin Martins:
“Toledo compunha, junto comigo, o comando político da ação. Ele
representando a ALN, eu a Dissidência Comunista (MR-8), cabendo a Virgílio
Gomes da Silva (Jonas) o comando militar. Eram da competência do comando
político, a elaboração do manifesto anunciando a captura de Elbrick, a
definição dos nomes dos revolucionários que deveriam ser libertados em troca
do embaixador e a condução das negociações posteriores com as autoridades
da ditadura. Além disso, na medida do possível, deveríamos ser consultados
por Jonas no caso das decisões militares mais importantes, embora ele
gozasse de inteira autonomia operacional.”
627
Franklin Martins se disse impressionado com a pessoa de Toledo e sua atitude
de solidariedade num gesto aparentemente banal. De acordo com Franklin Martins:
“ele (Toledo) perguntou-me o que eu estudava. Disse-lhe que havia estudado
economia, mas tivera de interromper o curso, devido a perseguição política.
Espantou
-me a reação dele. Ficou indignado com o fato de um jovem como eu
(tinha, então 21 anos) não poder prosseguir seus estudos e concluiu: “um dia a
ditadura será derrubada e você, como outros jovens, poderá terminar seus
estudos. É um absurdo o que a ditadura está fazendo com a nossa juventude.”
O curioso é que, pessoalmente, eu não tinha o menor interesse em me formar,
pois estava me graduando como revolucionário e havia virado a página da
univers
idade, mas, mesmo assim, impressionou-me a solidariedade e a
indignação sinceras e espontâneas.”
628
Antes da chegada do pessoal da ALN ao Rio de Janeiro, havia sido feito um
levantamento pela DI sobre a rotina do embaixador, no qual se constatou que
“o
embaixador dos Estados Unidos circulava sem esquema de segurança,
apenas com o motorista, sempre no cadillac preto, chapa CD
-
3, cujas portas se
abriam normalmente, por dentro e por fora, como qualquer outro, não havia
nenhum sistema de alarme; seu horário e trajeto de casa à sede da
embaixada, no Castelo, seguiam a mesma rotina: três vezes por semana ele
dava expediente na embaixada pela manhã, ia almoçar em casa e voltava; nos
outros dias ele só saia de casa depois do almoço, sempre entre 13 e 14 horas.”
629
627
Conforme
depoimento de Franklin de Souza Martins, por e
-
mail, 6 de maio de 2003.
628
Franklin de Souza Martins, depoimento.
629
BERQUÓ, Alberto.
O seqüestro dia a dia
. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1997, p. 50
51.
264
Além disso, o aparelho onde ficaria guardado o embaixador ficou também a
cargo da DI. Virgílio e Manoel Cyrillo, ao repassarem com o pessoal da DI toda
estrutura para a ação, acabaram se convencendo da impossibilidade da realização
devido à inexperiência do grupo com armas e combate real. Segundo Mir: “diante do
desentendimento operacional entre os dois militantes da ALN e os responsáveis pela
Dissidência Carioca, Câmara Ferreira toma decisão unilateral determinando seu
procedimento. No estágio em que
estavam, impossível recuar.”
630
Daí, no dia 4 de setembro de 1969, o embaixador dos Estados Unidos foi
seqüestrado na rua Marques, bairro de Botafogo, Rio de Janeiro, numa quinta-feira, às
14:45. Após o seqüestro, o embaixador ficou 72horas em poder dos g
uerrilheiros.
Como estivesse agitado, acabou levando uma coronhada na testa de Manoel Cyrillo de
Oliveira Netto. Conforme Gorender, no dia decisivo,
“Câmara Ferreira queria tomar parte pessoal na ação de seqüestro. Com o
espírito aceso pela luta armada, não admitia sua ausência do evento histórico.
O veto enérgico de Virgílio impediu o desatino dessa participação, que
colocaria em risco desnecessário um dos líderes mais conhecidos, além do
que sem condições físicas diante de prováveis emergências. O Velho
revolucionário se conformou em ficar à espera na casa da rua Barão de
Petrópolis.”
631
Após o seqüestro, o comando militar da ação deixou o manifesto no qual estava
escrito:
“a vida e a morte do Senhor Embaixador estão nas mãos da ditadura. Se ela
atende
r às duas exigências, o Senhor Elbrick será libertado. Caso contrário, seremos
obrigados a cumprir a justiça revolucionária.”
632
As duas exigências eram a libertação
de prisioneiros políticos e a divulgação de um manifesto das organizações, na íntegra,
630
MIR, op. cit., p. 419.
631
GORENDER, op.
cit., p. 183.
632
MIR, op. cit., p. 418.
265
nos principais jornais, rádios e televisões do país, e o prazo dado à ditadura era de 48
horas para resposta. O dispositivo de cerco aos guerrilheiros foi o maior montado no
Brasil pela repressão política dentro de uma capital: cinco mil militares das três arm
as;
quatro mil policiais civis e militares; quinhentos agentes do centro de Informação da
Marinha (CENIMAR); Serviço Nacional de Informações (SNI); Centro de Informações
do Exército (CIE); Polícia Federal; trezentos veículos de todos os tipos, incluindo
ta
nques. A imprensa americana divulgou o seqüestro, e o presidente Richard Nixon,
que estava de férias em Cotton’s Point, foi avisado, através de um telefonema, por seu
assessor especial de segurança nacional, Henry Kissinger. Nixon fixou a posição do
govern
o americano, segundo a qual o embaixador teria de sair do episódio vivo e sem
humilhações. O secretário de estado Willian Rogers comunicou oficialmente ao
embaixador brasileiro em Washington, Mário Gibson Barbosa, as exigências da Casa
Branca. Alguns problemas de segurança surgiram, pois a casa, que ficava na Barão de
Petrópolis, 1026, no bairro de Santa Tereza, tradicional bairro carioca, havia sido
alugada para servir de gráfica clandestina da DI, em nome de Helena Bocaiúva. No dia
seguinte, a casa é visitada por militares do CIE à paisana, que foram recebidos por
Fernando Gabeira. A casa havia sido descoberta pela repressão. Conforme Adyr Fiúza
de Castro, que era na época coronel e um dos criadores do CIE, uma vizinha havia
telefonado e avisado sobre uma casa suspeita. O coronel enviou os tenentes-
coronéis
Íris e Boscardini. Porém quando os tenentes-coronéis chegaram ao local, o
encontraram vigiado pelo CENIMAR. Adyr Fiúza foi ao general Lira Tavares, que era
chefe da Junta Militar e disse:
“eu já sei o
nde está preso o embaixador americano, mas,
além de eu saber e ter localizado, posso vigiar, posso invadir, posso estourar, posso
266
fazer o que o senhor quiser. Agora, o embaixador vai morrer nessa. Vou prender os
caras, mas o embaixador vai morrer.”
633
En
tretanto, reunidos no Itamaraty, os membros da Junta Militar, o chefe da Casa
Militar, comandante do Primeiro Exército, o ministro das Relações Exteriores e o
ministro da Justiça resolveram permitir que o manifesto dos guerrilheiros fosse
transmitido na Guanabara, em cadeia de rádio e televisão. Na casa da Barão de
Petrópolis, na voz de Hilton Gomes, a edição extraordinária anunciava a leitura do
manifesto, no qual se dizia:
“grupos revolucionários detiveram hoje o Sr. Charles Burke Elbrick, embaixador
dos
Estados Unidos, levando-o para algum lugar do país, onde o mantêm
preso. Este ato não é um episódio isolado. Ele se soma aos inúmeros atos
revolucionários levados a cabo: assaltos a bancos, nos quais se arrecadam
fundos para a revolução, tomando de volta o que os banqueiros tomam do
povo e de seus empregados; ocupação de quartéis e delegacias, onde se
conseguem armas e munições para luta pela derrubada da ditadura; invasões
de presídios, quando se libertam revolucionários, para devolvê-los à luta do
pov
o; explosões de prédios que simbolizam a opressão; e o justiçamento de
carrascos e torturadores. Na verdade, o rapto do embaixador é apenas mais
um ato da guerra revolucionária que avança a cada dia e que ainda este ano
iniciara sua etapa de guerrilha rural. Com o rapto do embaixador, queremos
mostrar que é possível vencer a ditadura e a exploração, se nos armarmos e
nos organizarmos. Apareceremos onde o inimigo menos nos espera e
desapareceremos em seguida, desgastando a ditadura, levando o terror e o
medo
para os exploradores, a esperança e a certeza da vitória para o meio dos
explorados. O Sr. Burke Elbrick representa em nosso país os interesses do
imperialismo, que, aliados aos grandes patrões, aos grandes fazendeiros e aos
grandes banqueiros nacionais,
mantém o regime de opressão e exploração. Os
interesses desses consórcios de se enriquecerem cada vez mais, criaram e
mantêm o arrocho salarial, a estrutura agrária injusta e a repressão
institucionalizada. Portanto, o rapto do embaixador é uma advertência clara de
que o povo brasileiro não lhes dará descanso, e a todo momento fará desabar
sobre eles o peso de sua luta. Saibam todos que esta é uma luta sem tréguas,
uma luta longa e dura, que não termina com a troca de um ou outro general no
poder, mas que acaba com o fim do regime dos grandes exploradores e
com a constituição de um governo que liberte os trabalhadores de todo o país
da situação em que se encontram. Estamos na semana da Independência. O
povo e a ditadura comemoram de maneiras diferentes. A ditadura promove
festas, paradas e desfiles, solta fogos de artifícios e prega cartazes. Com isso,
ela não quer comemorar coisa nenhuma; quer jogar areia nos olhos dos
633
D’ARAÚJO, Maria Celina; SOARES. Gláucio Ary Dillon; CASTRO, Celso. Os Anos de Chumbo. Rio de
Janeiro: Relume Dumará, 1993, p. 53
54.
267
explorados, instalando uma falsa alegria com o objetivo de esconder a vida de
miséria,
exploração e repressão em que vivemos. Pode se tapar o sol com a
peneira? Pode se esconder do povo a sua miséria, quando ele a sente na
carne? Na semana da Independência, duas comemorações: a da elite e a
do povo, a dos que promovem paradas e as do que raptam o embaixador,
símbolo da exploração. A vida e a morte do Sr. embaixador estão na mão da
ditadura. Se ela atender às duas exigências, o Sr. Burke Elbrick será libertado.
Caso contrário, seremos obrigados a cumprir a justiça revolucionária. Nossas
dua
s exigências são: a) a libertação de quinze prisioneiros políticos. São
quinze revolucionários entre os milhares que sofrem as torturas nas prisões
quartéis de todo o país, que são espancados, seviciados, e que amargam as
humilhações impostas pelos milit
ares. Não estamos exigindo o impossível. Não
estamos exigindo a restituição da vida de inúmeros combatentes assassinados
nas prisões. Esses não serão libertados, é lógico. Serão vingados, um dia.
Exigimos apenas a libertação desses quinze homens, líderes da luta contra a
ditadura. Cada um deles vale cem embaixadores, do ponto de vista do povo.
Mas um embaixador dos Estados Unidos também vale muito, do ponto de vista
da ditadura e da exploração; b) a publicação e leitura dessa mensagem, na
íntegra, nos principais jornais, e televisões de todo o país. Os quinze
prisioneiros políticos devem ser conduzidos em avião especial até um país
determinado
- Argélia, Chile ou México -, onde lhes seja concedido asilo
político. Contra eles não devem ser tentadas quaisquer represálias, sob pena
de retaliação. A ditadura tem 48 horas pra responder publicamente se aceita
ou rejeita nossa proposta. Se a resposta for positiva, divulgaremos a lista dos
quinze líderes revolucionários e esperaremos 24 horas por seu transporte para
um país seguro. Se a resposta for negativa, ou se não houver resposta nesse
prazo, o Sr. Burke Elbrick será justiçado. Os quinze companheiros devem ser
libertados, estejam ou não condenados: esta é uma “situação excepcional.”
Nas situações excepcionais, os juristas da ditadura sempre arranjam uma
fórmula para resolver as coisas, como se viu recentemente, na subida da Junta
Militar. As conversações serão iniciadas a partir de declarações públicas e
oficiais da ditadura de que atenderá às exigências. O método será sempre
público por parte das autoridades e sempre imprevisto por nossa parte
Queremos lembrar que os prazos são improrrogáveis e que não vacilaremos
em cumprir nossas promessas(...).”
634
Esse manifesto havia sido preparado por Franklin Martins e Joaquim Câmara
Ferreira. A parte final do manifesto, na qual fazia advertência à ditadura, foi sugerida
pelo próprio Câmara Ferreira. Conforme Franklin Martins:
“dois dias antes do seqüestro, reuni–me com o Toledo para discutir o texto
base, cuja redação havia ficado a cargo da Dissidência. Ele aprovou o texto,
sugerindo algumas pequenas alterações, todas pertinentes, que foram
acatadas. Lembro- me, por exemplo, que ele pediu que se fechasse o
manifesto com uma advertência aos torturadores. A sugestão foi aceita e, em
poucos minutos redigi as frases que passaram a encerrar o texto: Finalmente,
queremos advertir aqueles que torturam, espancam e matam nossos
634
BERQUÓ, op. cit., p. 65
-
67.
268
companheiros: não vamos aceitar a continuação dessa prática odiosa.
Estamos dando o último aviso. Quem prosseguir torturando, espancando e
matando ponha as barbas de molho. Agora é olho por olho, dente por dente.”
635
Após a ansiedade inicial provocada pela expectativa da resposta que seria dada
pela Junta Militar, A discussão se dava no sentido de como transformar a ação em um
chamamento do povo à sublevação. E o tema central que se travou durante todas as
discussões seria a concentração de esforços para a implantação e o desenvolvimento
da guerrilha rural. Segundo Berquó: “apenas o Velho Toledo participa de todas as
discussões, pois há rodízio nas tarefas de guarda e vigilância.”
636
Na casa, Franklin Martins e Joaquim Câmara Ferreira conversavam com o
embaixador. Charles Burke Elbrick, que havia sido embaixador em Portugal, falava o
português. Na conversa, o próprio embaixador se dizia contrário à posição de seu
governo nos países do Terceiro Mundo, principalmente na América Latina. Segundo
Elbrick, a posição deveria ser de apoio às democracias, incentivando eleições livres e
democráticas. De acordo com Manoel Cyrillo
637
, Elbrick disse que os americanos
estavam preocupados com os rumos da luta armada no Brasil e pensavam numa saída
civil para o país. Cyrillo afirma que os guerrilheiros apreenderam junto com o
embaixador uma pasta com vários documentos “Top Secret” em que constavam
pequenas biografias de personalidades brasileiras. Eram sondagens feitas pelo
governo americano de possíveis nomes para um governo civil. Conforme as palavras
de Cyrillo, o embaixador afirmou que
635
Franklin de Souza Martins, depoimento.
636
BER
QUÓ, op. cit., p. 77.
637
Manoel Cyrillo de Oliveira Netto Militante do GTA da ALN e subcomandante do seqüestro de Elbrick. Foi o
guerrilheiro que deu a coronhada de revólver na testa de Elbrick quando ele se apavorou durante a abordagem do
seqüestro.
269
“essa é a terceira remessa que a
gente manda. Duas outras já foram e a gente
está quase que cumprindo tabela ao mandar essa terceira safra aí de nomes e
tal, porque mais ou menos eles chegaram a conclusão de quem seria esse
homem aí. A gente perguntou: Quem seria esse homem, né? E me entenda
bem! O nome, o homem e a figura dessa pessoa, não tem nada haver com a
CIA, ao contrário, a CIA que gostava que ele fosse a alternativa civil, né? O
nome não tem nada haver com a CIA. Sabe de quem era o nome? Dom Hélder
Câmara.”
638
Foi Também feita uma gravação com o embaixador, e os entrevistadores foram
Franklin Martins e Joaquim Câmara Ferreira. Conforme Cyrillo, “a idéia era ficar com
esse documento. Uma entrevista desse tipo na mão. Ocupar uma rádio e divulgar,
coisa que a gente tinha fei
to.”
639
Entretanto, quando os militantes começaram a ser
presos, alguns dias depois, todo esse material foi apreendido pelos órgãos de
repressão numa das casas invadidas.
Frei Betto, quando recebeu Câmara Ferreira na fronteira do Rio Grande do Sul,
pergunt
ou a ele sobre os bastidores do seqüestro. Conforme as palavras de Frei Betto,
“revelou
-me que o embaixador mentira ao declarar não ter visto o rosto dos
seqüestradores. O próprio Toledo conversava com ele sem nenhum disfarce. Essa
cumplicidade poria fim
à
carreira diplomática de Elbrick.”
640
Dessa forma, prosseguiu o acordo para a libertação dos presos políticos
indicados pelos guerrilheiros. A lista dos nomes foi enviada juntamente com bilhetes
escritos pelo embaixador, o que dava a ditadura à certeza de que ele se encontrava
vivo. A soltura do embaixador estava vinculada à chegada dos presos políticos num
país estrangeiro, conforme foi indicado. Segundo Franklin Martins:
638
C
onforme depoimento de Manoel Cyrillo de Oliveira Netto, em maio de 2003, em Campinas.
639
Manoel Cyrillo de Oliveira Netto, depoimento.
640
BETTO, Frei. Batismo de Sangue: Os dominicanos e a morte de Carlos Marighella. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira,
1983, p. 98.
270
“as negociações transcorreram sem incidentes, mais ou menos como
havíamos previsto, não sendo necessárias maiores alterações de rota.
Tivemos, porém, de fazer ajustes no novo plano do aparelho, já que, a partir da
noite do dia quatro, ficou evidente que a polícia suspeitava da casa da Barão
de Petrópolis. Virgílio tomou a decisão de que não alteraríamos nossa rotina
por causa da campana, mas, em caso de invasão, reagiríamos à bala e o
embaixador seria executado. Essas decisões foram aprovadas por Toledo e
por mim, e comunicadas aos companheiros que se encontravam no aparelho,
que também as
apoiaram.”
641
Em relação aos nomes que compuseram a lista, Joaquim Câmara Ferreira teve
enorme importância. A idéia inicial da DI era libertar o Vladimir Palmeira. Com o
seqüestro, entretanto, a organização vislumbrou que a ação poderia render mais
algun
s, talvez até seis presos políticos. Berquó afirma, entretanto, que, com a chegada
do pessoal da ALN, a coisa foi aumentando. Segundo ele
“com a perspicácia de velho militante do Partido Comunista, Toledo logo
enxergou o valor daquela moeda de troca que teriam em mãos. Era caso de
repercussão mundial, e os Estados Unidos não iriam permitir que um diplomata
seu fosse sacrificado, ainda mais num país de Terceiro Mundo! Contava
também a instabilidade da Junta Militar, claramente ilegítima, que nem no seio
das
forças armadas tinha afirmado seu poder! E quem manda aqui são os
Estados Unidos, ora bolas! Assim, na discussão dos nomes, o Toledo ia
empurrando mais um, mais outro, com muito tato, com muito jeito. “Sete não é
um bom número, é conta de mentiroso. Vejam
o velho Gregório Bezerra, preso
anos. É do Parido Comunista, contra a luta armada, mas é um lutador,
bravo, heróico, com mais de setenta anos de idade. Foi arrastado pelos
militares, pelas ruas do Recife, banhado em sangue, amarrado num jipe!.”
Tudo bem, bota o Gregório. Então vamos arredondar para dez. Alguém sugere
um nome, outro sugere mais um, e pronto, dez. Volta o Toledo: “coitado, o
Chuchu, um rapaz formidável, da melhor qualidade, firme ideologicamente. È
um crime não tirar o Chuchu. O pessoal da DI estava inseguro. Queria que a
ação desse certo, e o excesso de nomes poderia prejudicar o objetivo central.
Além do mais, quem era esse Chuchu? Ninguém tinha ouvido falar nesse
nome. Aliás, como é o nome dele mesmo? Nem o Toledo sabia, mas é um
quadr
o da melhor qualidade.” Esta bem. Mas como a gente vai saber quem é
ele, como eles vão identificá-lo?” O Toledo é bem humorado: “Ah, meus
amigos, isso a repressão descobre. Se o localizou aqui fora e o prendeu, agora
ela vai ter localizá
-
lo, dentro da cade
ia, e soltá
-
lo. É muito mais fácil. O Chuchu
é da Corrente, uma organização de Minas Gerais.” “E como é que se escreve
esse Chuchu?” “Vamos dar trabalho para eles. Escrevam assim: esse, agá, u,
hífen, esse , agá, u. Shu-Shu. Vão pensar que é um perigosíssimo quadro
chinês, um vietcong adestrado, um coreano secreto ...” “Mas Toledo...” Quando
a lista estava emperrada em treze um número cabalístico! - , a DI
641
Franklin de Souza Martins, depoimento.
271
acrescentou os dois últimos, Maria augusta e Ricardo Villas-Boas, chegando-
se finalmente a quinze.”
642
Manoel Cyrillo esclarece que o papel de Joaquim Câmara Ferreira na redação e
elaboração da lista era importante devido ao significado que ele havia adquirido em sua
trajetória de militância. De acordo com ele,
“para os quadros da Dissidência Comunista da Guanabara, era o Joaquim
Câmara Ferreira. Aquele militante da, do Partido Comunista tal, que como eles
também decidiu tal, também termina se afastando do Partido tal e cria a ALN, a
estrutura ALN e tal. que é uma figura, uma bandeira, um velho, um cara de
tradição de luta, de militância, uma figura nacional e tal. Então foi como que
natural essa, o peso que também deram a ele, dele definir as coisas, o respeito
à figura dele. É lógico que preservando a linha política da própria organização.
Mas eu acho que a coisa mais natural do mundo que acontecesse isso e eu
acho que aconteceu na minha maneira de pensar. Eu que estava de longe
acompanhando, vendo, vendo ali de perto a coisa, é, eu sentia isso e ali, na
minha cabeça, a explicação é essa: Porra, os caras respeitam o Velho pra
caramba, né? É uma coisa diferente. Não era um de nós, da nossa geração,
com o nosso tipo de experiência, com a nossa militância inicial, não. Era uma
bandeira.”
643
Na verdade, os guerrilheiros não tiveram a exata dimensão
do valor da moeda de
troca que tinham nas mãos, e avaliaram equivocadamente o significado da própria
ação. Daniel Aarão disse que, “se tivéssemos pedido a libertação de todos os presos
políticos, teríamos conseguido. Mas a gente era muito imaturo para ter, naquele
momento, a dimensão exata do peixe grande que havíamos pecado e o impacto que
provocamos.”
644
Assim sendo, os quinze presos políticos da lista eram os seguintes: Gregório
Bezerra (líder camponês PCB); Vladimir Gracindo Soares Palmeira (líder es
tudantil
da Dissidência Universitária do PCB); José Ibrahim (dirigente sindical e militante da
642
BERQUÓ, op. cit., p. 85
-
86.
643
Manoel Cyrillo, depoimento.
644
Daniel Aarão Reis In: JOSÉ, Emiliano. Carlos Marighella O inimigo número um da ditadura militar. São
Paulo: Sol & Chuva, 1997, p. 60.
272
VPR); João Leonardo da Silva Rocha (integrante do GTA da ALN); Ivens Marchette do
Monte Lima (um dos fundadores do MR-
8); Flávio Tavares (militante brizolista e
um dos
líderes do MNR); Ricardo Villas Boas Sá Rego (militante da Dissidência Universitária do
PCB); Rolando Frati (fundador da ALN); Mário Roberto Galhardo Zanconato (militante
da ALN); Ricardo Zarattini Filho (um dos líderes da Dissidência Universitária do PCB);
Onofre Pinto (líder da VPR); Maria Augusta Thomas (militante da ALN); Argonauto
Pacheco da Silva (fundador da ALN); Luiz Gonzaga Travassos da Rosa (líder
estudantil, militante da Dissidência do PCB e presidente da UNE); José Dirceu de
Oliveira e Silva (líder estudantil, militante da Dissidência universitária do PCB).
Podemos verificar que militantes de várias organizações da esquerda armada
na lista dos prisioneiros. A idéia de abranger tantas organizações tem muito a ver com
a visão política de Joaquim Câmara Ferreira em relação à evolução da luta armada no
Brasil. Conforme Paulo de Tarso Venceslau,
“primeira lista, primeira tentativa, o pessoal do Rio queria soltar o Vladimir. Nós
vamos soltar os três...isso antes do Toledo. Ai o Toledo falou assim: a ação é
grande. É hora de a gente fazer uma...uma ação mais. Exigir uma lista mais
ampla e que inclusive aponte para formação de uma frente nacional de
esquerda. Que as esquerdas se articulem nacionalmente. Então, quem faz a
lista, praticamente,
é o Toledo.”
645
Ivan Seixas
646
, que teve a oportunidade de conversar com Joaquim Câmara
Ferreira sobre o episódio, disse que o grande objetivo do seqüestro era a formação da
Frente Armada. Conforme ele:
“e eles fazem o seqüestro, e o seqüestro anda e coisa e tal, é esse mesmo
Toledo que comanda esse seqüestro, assim dessa forma. Não é uma coisa
645
P
aulo de Tarso Venceslau, depoimento.
646
Ivan Seixas
Foi militante do Movimento Revolucionário Tiradentes quando tinha 16 anos. Conviveu com
Joaquim Câmara Ferreira.
273
voluntariosa. Tinha um papel importante porque o Toledo é um dos poucos
caras, que na minha visão, que tinha uma visão sobre o processo de luta, que
a guerrilha urbana, não era uma guerrilha principal, não é uma guerrilha que
vai tomar território, como a guerrilha rural, mas é uma guerrilha basicamente,
uma guerrilha de propaganda, de agitação, de cerco político do inimigo, no
caso a Ditadura Militar, não é? E a visão que ele passa das coisas, que eu
conversei com ele, me leva a crer nisso. E a visão que ele passa no seqüestro
é essa. O manifesto do seqüestro, se você pegar um pelos jornais da época, é
um manifesto altamente político e devastador para a Ditadura. E que a
Ditadura tem que publicar pô! Fura um esquema de censura que existia, bota
na lista de soltos, de trocados pelo embaixador americano, uma liderança
comunista, do porte do Gregório Bezerra que diz: eu não concordo, eu vou sair
porque eu não sou contra
atos revolucionários, mesmo discordando, e sai. E aí
você tem o pessoal, que presidiu a UNE que foi os três líderes estudantis que
foi o Travassos, o Dirceu e Vladimir Palmeira. O Zarattini que era uma figura de
expoente lá do nordeste, e era fundador do
PCR e tal, e o outro que tinha era o
Onofre Pinto que era da VPR. Então eles tiram. A frente armada está aqui. Ele
já aponta esse caminho.”
647
Também é importante se observar que a composição da lista dos presos
políticos a serem libertados, na troca pelo embaixador americano, era vista por vários
militantes que conviveram com Joaquim Câmara Ferreira como sendo fruto de sua
habilidade política. Conforme Maria Luiza Belloque,
“o primeiro seqüestro, ele faz a lista de quem tirar. E quando nós lemos a lista
,
a gente sabia que o Toledo que a fez, porque era uma lista feita por alguém
que tinha realmente uma visão política acima de qualquer organização,
qualquer partido. Uma visão política bem maior, acima de qualquer
sectarismo.”
648
É importante não deixa
r de analisar, como observa Manoel Cyrillo, que
“já era pensamento também do pessoal da DI, que essa lista fosse a mais
ampla possível em termos de tendência, e de organizações, que seriam de
companheiros, dos companheiros que seriam resgatados e tal, mas ele
(Câmara Ferreira), joga um papel nisso também, até pela lembrança dos
nomes e pinçando nomes que também eram muitos significativos, muito
representativos e tal.”
649
647
Conforme depoimento de Ivan Seixas, em maio de 2003, em São Paulo.
648
Maria Luiza Belloq
ue, depoimento.
649
Manoel Cyrillo, depoimento.
274
Ainda em relação às organizações abrangidas na lista dos libertados e uma
possível
conjunção de forças contra a ditadura, é importante observar a posição de
Gregório Bezerra, que foi um militante histórico do PCB. Gregório havia estado preso
na Ilha Grande, com Joaquim Câmara Ferreira, na década de quarenta. Gregório havia
pronunciado algumas palestras em Olímpia, interior de São Paulo, em 1958. Conforme
suas palavras,
“ali reencontrei velhos amigos, abracei bons camaradas, alguns dos quais fazia
mais de dez anos que eu não via, como o companheiro mara Ferreira, com
quem tinha estado preso na lha Grande, e de quem era o admirador número
um desde a Colônia Dois Rios. Penso, agora, com saudade nesse bravo
combatente, trucidado pelos fascistas em 1970. E recordo o abraço que nos
demos, em 1958, em São Paulo.”
650
Gregório, ao saber da inclusão do seu nome da lista dos que seriam libertados,
escreveu um comunicado denominado “Declaração ao Povo Brasileiro”,no qual
aceitava sua saída da prisão mas mantinha sua convicção pessoal de desacordo com a
luta armada:
“(...) por uma questão de princípio, devo esclarecer que, embora aceitando a
libertação nessas circunstâncias, discordo das ações isoladas, que nada
adiantarão para o desenvolvimento do processo revolucionário e que servirão
somente de pretexto para agravar ainda mais a vida do povo brasileiro, e de
motivação para maiores crimes contra os patriotas. Respeito o ponto de vista
daqueles que impuseram à Ditadura a forma de libertar inúmeros
revolucionários que sofrem nos cárceres do atual regime militarista, mas
mantenho
-me na firme convicção de que somente a união de todas as classes
e camadas sociais não comprometidas com a ditadura entreguista é que
decidirá a instauração no Brasil de um regime de plena liberdade, de livre
desenvolvimento econômico, de paz e de nacionalismo.”
651
650
BEZERRA, Gregório. Memórias. Segunda parte: 1946 1969. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira S.A.,
1980, p. 153.
651
BEZERRA, op. cit., p. 242.
275
Em outra organização, a VPR, temos a posição de Carlos Lamarca num
encontro que teve com Gilberto Belloque, em São Paulo, no mês de novembro de 1969.
De acordo com Belloque,
“eu estive pessoalmente com o capitão Carlos Lamarca nos meados de
novembro. Ele estava muito sensibilizado com essa atitude do Joaquim
Câmara Ferreira de ter também...o Lamarca, ele reconheceu, quer dizer, eu
nem sabia que era o Joaquim Câmara Ferreira que tinha feito isso, mas ele
agradeceu a ALN. Enfim, ele ficou muito sensibilizado pelo fato de ta, ali no,
entre os resgatados, o pessoal, o pessoal que era muito caro ao capitão Carlos
Lamarca, que é o caso do Onofre, que foi resgatado. O Lamarca agradeceu
muito e se disponibilizou a fazer um trabalho de aproximação que efetivamente
começou e com retorno também que se deu do Joaquim Câmara Ferreira.
Isso foi em fins de novembro, isso começou, esse trabalho de colaboração, de
reorganização da organização.”
652
A Junta Militar cedeu, e os presos políticos foram mandados para o México.
Entr
etanto, o Estado reagiu, e, ainda no dia 05 de setembro, enquanto negociava com
os guerrilheiros, baixou os atos institucionais 13 e 14, que visavam a um reforço de
todo aparato repressivo. O AI – 13 previa que todos presos políticos trocados por
autoridad
es seqüestradas seriam banidos do território brasileiro, ou seja, criou-se um
mecanismo que permitia ao executivo banir do país qualquer cidadão brasileiro
inconveniente à Segurança Nacional. O AI 14, uma emenda à constituição de 1967,
tornava aplicável a pena de morte, prisão perpétua e o banimento nos caso de guerra
psicológica, guerra adversa revolucionária ou subversiva, assim como no caso de
guerra externa. Sem contar que o comandante do Primeiro Exército, general Syseno
Sarmento, foi ao Palácio Laranjeiras avisar os ministros militares que seus oficiais não
admitiam a troca de prisioneiros. A Brigada Pára-quedista defendia a execução dos
presos políticos na Cinelândia. Havia ameaça de explosão do avião com os presos
652
Gilberto Belloque, depoimento.
276
durante o vôo. Apesar de todas essas ameaças, o avião pousou no México com os
militantes liberados. Faltava agora a libertação de Ellbrick, que foi feita aproveitando-
se
o tumulto do jogo Fluminense e América, no Maracanã . No entanto, antes de sair,
era preciso fazer a limpeza do aparelho
. Conforme Gabeira,
“gavetas inteiras por esvaziar. Toledo me ajudava rasgando papel e jogando
na privada. É uma atividade irritante que, infelizmente, tive de enfrentar de
novo, em várias etapas de minha vida. Compreendo agora a paciência de
Toledo ser da oposição e viver na clandestinidade é também aprender a
rasgar suas anotações e jogá
-
las na privada incessantemente.”
653
Iniciou
-se o abandono do aparelho com o embaixador, que foi perseguido por
carros da polícia. De acordo com Gabeira,
era preciso, entretanto, aproveitar a multidão saindo do Maracanã para deixar
o Toledo num lugar seguro. A rural willys poderia estar equipada de rádio, e,
além do mais, quem poderia nos garantir de que não resolveram nos
acompanhar? Somente quando sentimos que ninguém estava em nosso
encalço, nos metemos num daqueles engarrafamentos de fim de partida,
fizemos o Toledo saltar numa esquina. Ele saiu calmamente, com sua
pastinha, sua pistola pendurada nos suspensórios, e nos sorriu com uma cara
de menino travesso, antes de sumir na escuridão de domingo. Será que
chegaríamos à idade de Toledo? Será que usaríamos nossa pistola nos
suspensórios e íamos preparar arroz de carreteiro nos futuros seqüestros?.”
654
Os problemas de infra-estrutura derivados da organização do seqüestro do
embaixador norte-americano já apareceram no processo de proteção e recuo dos
militantes que haviam participado da ação. Joaquim Câmara Ferreira, segundo Paulo
de Tarso Venceslau, seria abrigado pelo pessoal da Dissidência. Conforme seu
depoime
nto,
653
GABEIRA, Fernando
. O que é i
sso, companheiro?
35. ed. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1988, p. 112.
654
GABEIRA, op. cit., p. 115.
277
“o Toledo, você imagina, o Toledo, para nós o Velho, né, com seu terninho azul
marinho, típico, que ele usava no Rio de Janeiro, não tinha para onde ir, não
tava confiando em nada. Então, quem que vai se encarregar de arranjar um
lugar pro Toledo fui
eu, tá certo? Eu que tinha, eu que ia de São Paulo pro Rio,
do Rio voltei pra São Paulo, de São Paulo voltei pro Rio. Participei da soltura
do Ellbrick e de repente com o Toledo e ele fala: olha, Geraldo, meu nome
de guerra era Geraldo. Olha, Geraldo,
a situação é essa. E ai, primeiro procurei
amigos pessoais. Um, felizmente não deu certo. Que era um amigo que
morava na Tijuca, Zona Norte, que é uma história mais longa. Mas
resumindo, e aí, eu acerto com um, encontro com um jornalista amigo meu que
morava em Copacabana, perto do Leme, ali. João Vítor Strauss que era do
jornal “O Estado de São Paulo”, que estava no Rio de Janeiro. E converso com
o João Vítor. Era muito amigo meu. Estudei com ele em São José dos Campos
inclusive. Eu explico pro João Vítor. Abri o lance pra ele. Topou, topou, e foi
assim, fantástico. Ai, João Vítor apresenta ao Toledo como tio dele de
passagem pro Rio tinha vindo visitá-lo e Toledo fica no apartamento do João
Vítor durante um bom tempo. Meses, eu não vou dizer meses, mas
assim
algumas semanas. E enquanto a coisa não amainou, ele não saiu de lá, certo?
E o João Vítor foi super gente fina.”
655
Outros militantes da ação não demoraram a cair nas mãos da repressão. Manoel
Cyrillo e Virgílio Gomes da Silva tiveram que ficar vagando pelo Rio de Janeiro, depois
que o aparelho em que deveriam ficar e que pertencia a João Lopes Salgado foi
descoberto pela ditadura. Acabaram viajando para São Paulo de ônibus. Virgílio Gomes
da Silva teve sua queda no dia 29 de setembro de 1969, e, após ser torturado na
OBAN, acabou sendo morto a pontapés pela equipe do capitão do Exército Bonone de
Arruda Albernaz. No dia 30, Manoel Cyrillo foi preso e, depois de julgado, cumpriu pena
de dez anos de prisão. Paulo de Tarso Venceslau foi preso no dia 01 de outubro e
passou por torturas inomináveis.
Muitos avaliam que o seqüestro do embaixador americano foi o início do fim.
Assinado pela ALN e MR
-
8, marcava o ponto alto da guerrilha urbana, pois, a partir daí,
com carta branca das autoridades públicas, o mecanismo de repressão podia invadir
domicílios, prender, torturar e matar. Dentro da ALN, avaliava-se que a repressão seria
655
Paulo de Tarso Venceslau, depoimento.
278
brutal, pois o episódio havia imposto aos militares uma situação extremamente
incômoda e humilhante. Sem contar que, segundo
Hugo Studart,
“quando a luta armada chegou ao Brasil, a estratégia de guerra e as táticas de
combate a guerrilheiros tanto rebeldes urbanos quanto
partisans
rurais
estavam quase prontas. As academias militares e os curso de Estado-
Maior
das três Forças Armadas começaram a estudar o tema ainda em 1965.
haviam dissecado as táticas dos guerrilheiros espanhóis, dos
partisans
soviéticos e dos Jagdkommandos alemães. Haviam estudado o terrorismo dos
Judeus na Palestina, antes da segunda guerra mundial; seu sucessor local, o
terrorismo dos palestinos em Israel e na Europa. Assim como a arte da guerra
antiterror inspirada pelo general chinês Sun Tzu. Haviam estudado, sobretudo,
o manual antiguerrilha de Bonnet.”
656
Dias após o seqüestro, acompanhado de Antônio Flávio Médice Camargo,
Marighella recolhe Câmara Ferreira, e, contrariando seu hábito de longas caminhadas,
os três permanecem rodando com o carro enquanto conversavam. Médice afirma que a
discussão entre os dois foi dura. As justificativas de Câmara Ferreira não convenciam
Marighella. Conforme Mir, o clima torna-se tenso e insuportável quando Marighella
emite o veredicto sobre o que pensava a respeito da tormenta política que desabaria
sobre a organização: “vocês fazem uma ação dessas e eu não sei de nada! Poderia ter
sido preso na Dutra. Não vamos agüentar a repressão que vem por aí!”
657
Manoel Cyrillo disse que, realmente, na primeira reunião que foi feita após o
seqüestro, Marighella chegou com uma visão crítica sobre a ação. O questionamento
feit
o foi que o grupo de São Paulo, ao assumir a ação no Rio de Janeiro, havia deixado
ele e todo o pessoal da ALN do Rio desprevenidos. A repressão desencadeada após o
seqüestro poderia ter causado a prisão de muitos militantes. O seqüestro havia exposto
656
STUDART, Hugo. A lei da selva. Estratégias, imaginário e discurso dos militares sobre a guerrilha do
Araguaia.
São Paulo: Geração Editorial, 2006. p. 14.
657
MIR, op. cit., p. 429.
279
toda
a organização. Entretanto, Manoel Cyrillo, que disse fazer a autocrítica sobre não
ter comunicado toda organização, enfatiza que
na hora a gente lembrou que ninguém devia pedir licença a ninguém para
fazer a revolução. Se a gente informa a organização inteira através do nosso
superior do que estava acontecendo naquela ocasião no Rio, a gente poderia
abrir uma brecha na segurança muito grande. Então, quem, aqui em São
Paulo, tomou uma decisão de não comunicar, deve ter ponderado isso. Deve
ter ficado...ac
ho melhor eu não falar nada, ir lá e garantir essa ação.”
658
Para Carlos Eugênio Paz, Joaquim Câmara Ferreira havia optado pela luta
armada e a construção da ALN por
“convicção e formulação dele também. Eu acho que nada na ALN enquanto os
dois estavam vivos, passou pelo Marighella. Passou sempre Marighella e
Toledo, inclusive em alguns momentos, o Toledo tinha posições até
divergentes de Marighella, por exemplo, o seqüestro do embaixador
americano. Eu to falando seqüestro só para todo mundo saber o qu
e é, porque
pra mim é a captura do agente inimigo embaixador norte
-americano (...).”
659
É claro que não se pode vincular exclusivamente ao seqüestro a ação repressiva
naquele período, mas, sem dúvida, ele deu forças aos setores mais duros do regime,
que
acabou levando a quedas em cascata, das quais não ficariam imunes Marighella,
Joaquim Câmara Ferreira e a ALN.
Renato Martinelli, que, na época, estava havia oito meses em treinamento em
Cuba, disse que a avaliação que se fez na Ilha das possíveis seqüelas da ação do
seqüestro eram divididas. Conforme ele, dentro do grupo que está em Cuba, tem um
658
Manoel Cyrillo, depoimento.
659
Carlos Eugênio Paz, depoimento.
280
grupo que se entusiasma e tem outro grupo que não, que diz: puxa vida! Que que é
isso! O americano! Pô, nós estamos fortes assim?”
660
Para Martinelli:
“o grande erro factual que se é o seqüestro do embaixador americano. Isso
foi o grande erro. Isso foi uma ação que se organizou sob o ponto de vista
tático que se demonstrou estratégico. Isso em política militar, política armada é
um erro fatal. Se confundir tática com estratégia Se jogou todas as nossas
forças num golpe espetacular pensando que era um ... mal avaliado
politicamente e, portanto, inexperiência do comando numa ação que se revelou
estratégica. Por quê? Porque a guerrilha ataca de surpresa, concentra e recua
e se dispersa. Nós não tínhamos recuo. O recuo era dentro da cidade, e,
portanto, dentro do cerco estratégico. Ficamos na boca do leão. Então não
deveria ... uma análise política militar levaria a dizer o seguinte: Olha! Diga pro
pessoal da Dissid
ência do Rio de Janeiro que isso não pode. Não é assim! Não
temos força pra isso porque se tratava do representante da maior força
capitalismo internacional que era o imperialismo americano.”
661
A posição de Renato Martinelli, que foi capitaneado na ALN
por Joaquim Câmara
Ferreira, se deve ao fato de que, embora a ação tivesse conseguido o objetivo de soltar
militantes presos, o objetivo da ALN não era esse, e sim fazer a revolução e derrubar a
ditadura. A ação acabou custando cara à ALN, pois foram presos e mortos vários
guerrilheiros com experiência em ações e experiência política de décadas, como o
próprio Joaquim Câmara Ferreira.
Na Europa, também houve uma preocupação sobre as possibilidades reais de
que a ALN pudesse realizar uma ação como essa e s
air intacta. Frei Oswaldo Rezende,
que leu a manchete nos jornais europeus sobre o episódio, disse, “eu confesso a você
que fiquei preocupado. Fiquei preocupado porque, quando eu deixei o Brasil, não me
660
Renato Martinelli, depoimento.
661
Idem.
281
parecia que a situação estava tão sólida a ponto de nós nos podermos dar o luxo de
uma ação dessa envergadura.”
662
A finalidade do seqüestro do embaixador foi dita por Joaquim Câmara Ferreira a
Ottoni Fernandes Júnior. Ottoni, como vimos anteriormente, havia sido convidado para
participar do Centro de Inteligência da ALN que estava sendo montado por Toledo.
Porém, Ottoni precisa operar os joelhos, o que demandaria um pouco de tempo.
Conforme ele: “ele (Joaquim Câmara Ferreira) concordou e disse que o período viria
bem a calhar, pois a ALN estava preparando uma grande operação militar, que teria
muita repercussão e deveria provocar um contragolpe na ditadura. Assim, quem
pudesse deveria ficar na encolha.”
663
A ditadura militar apertou o cerco após o seqüestro do embaixador americano. Já
tinha acumulado um conhecimento e uma metodologia que, ajudada por uma
conjuntura na qual tudo lhe era permitido, avançou com muita rapidez. A esquerda
armada não conseguiu dar conta desse processo, e, mesmo que tivesse conseguido,
não se alteraria o quadro. A ofensiva passou a ser da ditadura, enquanto a ALN não
havia conseguido posições de retiradas seguras. Diante disso, a situação se complicou
muito. Além disso, a estrutura, os objetivos e o modo de operação das organizações
armadas eram conhecidos pela repressão, e a tortura continuava sendo essencial para
obter as informações que permitiriam novas prisões.
Joaquim Câmara Ferreira continuou mantendo encontros freqüentes com o
dominicano Magno Vilela, e planejava um recuo estratégico da organização.
Conforme Magno Vilela,
662
Frei Oswaldo Rezende, depoimento.
663
FERNANDES, op. cit., p. 206.
282
“mais de uma vez, por exemplo, eu me lembro do Toledo chegar no encontro
tenso, embora sempre comedido, como eu disse, dizendo: caiu um
companheiro nosso. Quando era gente que eu conhecia, quando isso tinha
relação com a nossa, com os nossos contatos diretos, com nosso
relacionamento, quando tinha a ver com o nosso relacionamento, ele chegava
até a me dizer o nome, se fosse o nome verdadeiro, quer fosse o codinome,
dependendo do tipo de conhecimento que eu tinha dessas pessoas. E, a partir
de um determinado momento, ele me disse, ele chegou a me dizer, que ele
estava pensando em algum recuo estratégico e algumas medidas, reforço
das medidas de segurança.”
664
Joaquim Câmara Ferreira, nesse período, foi convencido pelo próprio Marighella
a sair do país e a passar uma temporada fora, pois estava jurado de morte pelo regime
militar. Clara Charf
665
afirma que “o Marighella, preocupado com a saúde dele e com a
perseguição que... a repressão tinha aumentado muito, e o Marighella mandou ele
pra fazer um trabalho fora do Brasil. Foi muito difícil convencê-lo a sair, mas no fim
Marighella conseguiu. Ele ia visitar vários países: Coréia, França etc.”
666
A ALN havia montado um esquema para a retirada de perseguidos políticos, pelo
Rio Grande do Sul. Frei Betto, um dos dominicanos que participavam do sistema de
apoio a ALN, havia se transferido para São Leopoldo, para estudar no Colégio Cristo
Rei. Frei Betto acompanhava, em Porto Alegre, perseguidos políticos que se
destinavam ao Uruguai e à Argentina, para depois se
guirem para Europa. Segundo Frei
Betto,
“seria uma ajuda a todos os que precisassem deixar o país, independente de
siglas políticas, e não um serviço exclusivo da ALN.”
667
E foi nesse esquema de fronteira que Joaquim Câmara Ferreira deixou o Brasil
em outu
bro de 1969, dias antes de Marighella. Conforme Frei Betto,
664
Magno Vilela,
depoimento.
665
Clara Charf
Militante do PCB, da ALN e esposa de Carlos Marighella.
666
Conforme depoimento de Clara Charf, em outubro de 2003, em São Paulo.
667
BETTO, op. cit., p. 74.
283
“ele havia conhecido Câmara Ferreira entre 1967 e 1968 em São Paulo,
porque era ele, Joaquim Câmara Ferreira, que cuidava de obter os
documentos falsos dos militantes da ALN, com ficha correspond
ente na polícia.
Ou seja, se Frei Betto fosse preso, o nome falso de Ronaldo Marcos, teria
cadastro no Departamento de Investigação (DEIC).”
668
E foi em São Paulo, em julho de 1969, que Frei Betto se encontrou com Joaquim
Câmara Ferreira. Segundo ele,
“preocupado com minha segurança, Joaquim Câmara Ferreira, o Toledo,
segundo homem na estrutura da ALN, ofereceu
-
me um documento frio. (...) por
temer risco de prisão, aceitei o documento, na esperança de que ele facilitasse
a minha fuga em caso de necessidade. Mas a carteira de identidade, com
minha foto e o nome de Ronaldo Matos, me veio às mãos em outubro de
1969, e pelas mãos de Magno Vilela.”
669
Antes da partida, porém, Joaquim Câmara Ferreira teve um último encontro com
Marighella, que foi acompanhado pelos dominicanos Magno Vilela e Ives Lesbaupin
670
.
O encontro foi feito no bairro do Brooklin, zona residencial da capital Paulistana no dia
19 de outubro de 1969, ou seja, poucos dias antes da morte de Marighella, e
praticamente um ano antes da morte de Câmara Ferreira. Para Magno Vilela, havia um
clima de despedida geral. Magno Vilela diz que,
“se bem me lembro eu chego com o Toledo. O Ivo deve ter vindo por um outro
meio, imagino eu, e o Marighella chega por sua conta própria, como em geral
ele sempre fez, possivelmente num carro que nós não vemos. Ele deve ter
parado um pouco antes, e nos encontramos de pé, os quatro numa rua do
Brooklin, aqui em São Paulo. Era uma noite e, eu me lembro bem, e naquela
mesma noite, ele embarca no carro com o Ivo. Se despedem ali. Então, nesse
sentido, eu acredito que eu testemunhei o último encontro de Marighella e o
Toledo. Marighella ia morrer alguns dias depois.”
671
668
Conforme depoimento de Frei Betto, por e
-
mail, em abril de 2003.
669
BETT
O, op. cit., p. 75.
670
Ives Lesbaupin ou Frei Ivo
Dominicano ligado ao esquema de apoio a ALN.
671
Magno Vilela, depoimento.
284
Câmara Ferreira e Marighella conversaram um pouco. Mir diz que, conforme
entrevista que lhe deu Magno Vilela, “Marighella repetia para um inconformado Câmara
que tinha que sair do país, preservar-se. Se alguma coisa acontecesse com ele,
haveria alguém para continuar comandando a luta. Chorando, abraçam-se fortemente.”
672
Magno Vilela afirma que, a partir daí, os contatos foram todos suspensos, e ele
não conseguiria mais contatar Câmara Ferreira, mas seria contatado por ele, se
houvesse necessidade. Foi tratado, nesse encontro também, como Câmara Ferreira iria
se vestir, como seria a viagem e como se comunicaria para informar se tudo havia
ocorrido conforme o combinado, e quando ele atravessaria a fronteira.
Assim, num fusca dirigido por Ivo Lesbaupin, Câmara Ferreira foi levado a Porto
Alegre. Frei Ivo se lembra de que
“eu fui levar ele para o Rio Grande do Sul pra ajudar ele. Ele ia sair do país.
Ele ia sair pelo Uruguai. O Betto, levei ele pro Rio Grande do Sul onde
encontrou com Berto e o Betto embarcou ele para sair. A gente fez a viagem
toda junto e eu tô lembrado que no meio da viagem, a viage
m demorou o que?
Eu não tô lembrando. Doze horas, São Paulo Porto Alegre. Doze horas,
quatorze horas. Não me lembro direito quanto é que levava não! E ele num
determinado momento da estrada, estava no Paraná, estava tranqüilo,
não havia muito risco, ele pediu pra dirigir um pouco. Ta bom! Acho que ele
queria variar um pouco de atividade que não podia fazer isso em São Paulo
porque se fosse parado no trânsito tinha que mostrar os documentos. Aí, ele
dirigiu um pedaço e eu me lembro que teve uma hora ele fez um curva meio
fechada e derrapou um pouco pra fora. Tava com pouca prática. Mas eu, não
tinha muito receio nessa época não.”
673
Segunda
-
feira, 20 de outubro de 1969, o volks vermelho com placa de São Paulo
chegou aos jardins do Cristo Rei. Ivo Lesbaupin e Câmara Ferreira haviam viajado a
noite toda, resguardados pela escuridão. Conforme Frei Betto,
672
MIR, op. cit., p. 430.
673
Conforme entrevista de Ives Lesbaupin, em março de 2003, no Rio de Janeiro.
285
de Clergyman cinza escuro, colarinho eclesiástico, pequena cruz na lapela,
Câmara Ferreira, à porta do Cristo Rei, assemelhava-se a um idoso
Monsenho
r. Cabelos brancos à escovinha, rosto quadrado, benévolo, seu jeito
atencioso, capaz de ouvir com entusiasmo o fato mais banal, contradizia a
imagem estereotipada do revolucionário radical, carrancudo, obcecado,
centrado na onipotência de suas idéias, a boca repleta de frases de efeito.
Toledo era desprovido dessa emotiva ansiedade que torna certos esquerdistas
apocalípticos, convencidos de que suas idéias são definitivas, absolutas, frutos
de uma espécie de revelação divina.”
674
Câmara Ferreira ficou com Frei Betto no convento e foi apresentado aos padres
Marcelo Cavalheira e Manoel Valiente como “professor Cavalcanti.” Além de jantarem
juntos, Câmara Ferreira insistiu com Frei Betto para que o levasse ao cine São João
para ver um filme. Conforme o domini
cano, Câmara Ferreira era
“fã da bailarina Isadora
Duncan.”
675
Câmara Ferreira disse a Frei Betto que as coisas não iam bem, e que se
mostrava preocupado com a prisão de Paulo de Tarso Venceslau, que sabia sobre o
esquema de apoio logístico dado à ALN pelos dominicanos. Conforme Frei Betto,
Câmara Ferreira tinha lhe dito que
“a repressão aprendeu a lidar com a guerrilha urbana. É necessário, o quanto
antes, deslocar militantes da cidade para o campo e implantar as bases de um
trabalho político a longo praz
o, enraizado nas aspirações populares. Apesar do
êxito, o seqüestro do embaixador incorreu em muitas falhas técnicas e
políticas, a ponto de a casa ter sido localizada e cercada pela polícia quando
ainda o diplomata se encontrava em seu interior. não foi invadida porque o
governo Nixon exigia o seu representante são e salvo.”
676
Câmara Ferreira foi levado por Frei Betto até Livramento, fronteira com o
Uruguai. De lá foi para Montevidéu. A passagem de Câmara Ferreira pelo Uruguai tinha
a ver com relaçõ
es que ele tinha nesse país. Magno Vilela diz que
674
BETTO, op. cit., p. 97.
675
Frei Betto, depoimento.
676
Frei Betto, depoimento.
286
“eu tenho impressão que ele tinha velhos amigos e aliados comunistas ou ex-
comunistas uruguaios. Do lado do Uruguai inclusive, personalidades políticas
influentes na época. Tanto quanto pude vislumbrar ele tinha algum esquema
próprio, alternativo ou não, no Uruguai, com personalidades políticas bem
colocadas no país, personalidades políticas no país, que numa eventual ajuda
no seu deslocamento para acolhê-lo, para ajudá-lo financeiramente,
estrategicamente,
enfim, taticamente.”
677
Mir enfatiza, que em sua passagem pelo Uruguai, Câmara Ferreira pretendia
fazer contatos com os dirigentes dos Tupamaros e colaboradores da ALN. Tal posição
é confirmada pelos documentos dos órgãos de repressão, no qual consta qu
e,
“conforme relatório reservado de 24 /01/1970 sobre o Movimento de Libertação
Nacional (Tupamaros), consta que foi Ariel Collazo quem deu condições de
clandestinidade no Uruguai a Joaquim Câmara Ferreira, que, com a ajuda dos
Tupamaros, seguiu para o Chi
le, Praga e posteriormente Havana.”
678
A ligação que a ALN tinha com os Tupamaros pode ser verificada também no
depoimento de Roberto de Barros Pereira, ao dizer, eu levei muita gente para fora do
país, levei muita gente. Entreguei nas mãos dos Tupamaros, às vezes em Livramento,
às vezes em Porto Alegre. Muita gente.”
679
Entretanto, conforme Mir, durante este período, Joaquim Câmara Ferreira esteve
na Argentina para encontro com onze militantes que estavam esperando que o líder
da ALN levasse recursos para que pudessem comprar passagens e embarcarem para
Cuba. Porém, como Câmara Ferreira não tivesse conseguido obter o dinheiro, ele
planejou com os guerrilheiros o seqüestro de um avião. De acordo com Renato
Martinelli:
“na Argentina, ele (Câmara Ferreira) tem um encontro com o pessoal que
seqüestra o avião pra Cuba. Ele que faz os encontros e as tarefas para este
677
Magno Vilela, depoimento.
678
DEOPS
documento 30B152
Arquivo Público de São Paulo.
679
Roberto de Barros Pereira, depoimento.
287
pessoal todo.”
680
Após a preparação da ação, Mir enfatiza que: “o grupo de onze
militantes da ALN seqüestraram o Boeing PP-VJX da Varig com 95 pessoas a bordo,
que decolara do Aeroporto de Ezeiza com destino a Santiago, desviando-o para Cuba.”
681
Para Mir, o avião teria chegado a Havana no dia 5 de novembro de 1969. Mir afirma
ainda que Câmara Ferreira teria embarcado para Paris no dia 4 de novembro de 1969.
Não acreditamos que a data seja correta, pois, como podemos verificar, no dia 5 de
novembro de 1969 Câmara Ferreira recebeu a notícia da morte de Marighella em Paris,
na companhia de Aloysio Nunes Ferreira, que disse que Câmara Ferreira convivia com
ele alguns dias, em sua casa, na França. Parece mais correto que Joaquim
Câmara Ferreira tenha chegado à Europa no final de outubro de 1969, onde se
encontrou com Aloysio Nunes Ferreira e foi morar com ele durante um breve período.
Como vimos anteriormente, Frei Oswaldo Rezende havia ido estudar na Europa
em 1969. Aloysio Nunes Ferreira viajou para Europa no final de 1968, para passar um
ano lá. Juntamente com Frei Oswaldo Rezende, estavam incumbidos da missão de
“providenciar publicações, em jornais e revistas européias, de documentos, inscritos do
Marighella e documentos da ALN, e, ao mesmo tempo, montar uma rede de apoio para
militantes que circulariam, que iriam do Brasil para Cuba e de Cuba para o Brasil,
passando pela Europa.”
682
Ao final de 1969, Aloysio Nunes iria também para Cuba
fazer treinamento guerrilheiro. Frei Oswaldo Rezende reafirma esse trabalho que
deveria ser realizado na Europa, ao dizer que, “em julho, chego na Europa. Levei até
uma carta do Marighella para possíveis contatos fora, no sentido de explicar o que
estava acontecendo no Brasil. Chamar a atenção da opinião pública européia para o
680
Renato Martinelli, depoimento.
681
MIR, op. cit., p. 461.
682
Aloysio Nunes Ferr
eira, depoimento.
288
horror que era essa ditadura aqui, e, por outro lado, pedir apoio também para a luta
contra a ditadura.”
683
Foi durante o período de estadia na França que Joaquim Câmara Ferreira
recebeu a notícia da morte de Marighella. Conforme Aloysio Nunes Ferreira,
“(...) ele estava comigo quando teve notícia da morte do Marighella. Nós
tínhamos ido à embaixada da Coréia do Norte, no dia 05 de novembro de 69.
Tínhamos um encontro com um funcionário da Coréia do Norte, da embaixada
da Coréia do Norte. Nosso objetivo era pedir apoio a Coréia do Norte pro
nosso movimento. Eu fui lá com o Câmara, mas quando sai da embaixada que
ficava num bairro ali c
hamado
Deni
, compramos um jornal numa estação perto
do metrô quando estava o “Le Fígaro”, estampada a notícia da morte do
Carlos Marighella. Ele ficou abaladíssimo. Foi pra ele um golpe muito grave,
tanto que ele empalideceu. Nós fomos até um café pra recuperar o fôlego, e
ele ficou realmente perplexo, muito abalado emocionalmente. Depois disso,
fomos pra casa e tal, e ele procurou retomar os contatos, então, com os
companheiros no Brasil, e, ao mesmo tempo, preparar a ida dele a Cuba,
porque ele precisava se encontrar com os companheiros que estavam lá
fazendo treinamento, para dar uma perspectiva futura.”
684
Frei Oswaldo Rezende estava em Roma, na Itália, almoçando num restaurante e
conversando com alguns cineastas sobre a situação do Brasil, quando lhe chegou
alguém pedindo que retornasse para casa, pois havia notícias não muito boas do Brasil.
Quando chegou, a dona da casa em que Frei Osvaldo se hospedava disse que havia
sido noticiado na rádio que Marighella e Lamarca haviam sido assassinados em São
Paulo. Desconfiado de tratar
-
se de Marighella e Lamarca, que Frei Osvaldo sabia terem
algumas divergências entre si, procurou confirmar a história e descobriu que era
Marighella que havia sido assassinado. Assim, encaminhou-se para a casa de um
simpa
tizante do movimento chamado Jirges Ristum. Estando lá, recebeu um
telefonema da França, de Aloysio Nunes Ferreira, que o colocou para falar com
Joaquim Câmara Ferreira. Frei Osvaldo se lembra de que ficou surpreso “eu, que não
683
Frei Oswaldo Rezende, depoimento.
684
Aloysio Nunes Ferreira, depoimento.
289
estava esperando, eu fiz a pergunta mais boba do mundo num momento como aquele.
Como vai, tudo bem? E o Toledo respondeu: Tudo muito mal, Osvaldo!”
685
Câmara Ferreira saiu da França e foi se encontrar com Frei Oswaldo Rezende
em Roma. Chegou acompanhado de Itobi Correa, para, juntamente com Frei Osvaldo,
avaliarem a situação naquele momento. Para Frei Oswaldo Rezende, Câmara Ferreira
estava na seguinte situação: ou ele podia seguir viagem para Coréia como se nada
tivesse acontecido, ou voltar para o Brasil.”
686
Na avaliação, ficou decidido que Câmara Ferreira iria para Cuba. Oswaldo
Rezende era o homem, na Europa, que tinha as senhas para a entrada de militantes
em Cuba. O esquema, de acordo com Oswaldo Rezende, funcionava da seguinte
maneira:
“através de um mensageiro do Marighella, eu estava com as senhas das
pessoas que deveriam ir para Cuba. Essas senhas eram o seguinte: os
cubanos tinham, tinham que mandar quando a pessoa, quando chegava uma
pessoa que ia pra Cuba, não é? Eu dava a senha, uma senha para essa
pessoa que ia à embaixada Cubana com essa senha. Através dessa senha,
ele era levado para Cuba.”
687
Segundo Mir, Roberto Las Casas, representante de Miguel Arraes em Paris,
pediu a Aloysio Nunes Ferreira que impedisse Câmara Ferreira de ir para Cuba, pois
tentaria demo
-lo do mergulho para a morte, pois “voltando para o Brasil, sabia que
morreria, condenado à morte como responsável maior pela humilhação imposta aos
quartéis no seqüestro do embaixador americano.”
688
Foi Impossível convencê-lo. Frei
Oswaldo Rezende se d
irige à embaixada Cubana e, conforme suas palavras,
685
Frei Oswaldo Rezende, depoimento.
686
Frei Oswaldo Rezende, depoimento.
687
Idem.
688
MIR, op. cit., p. 493.
290
“eu fui à embaixada Cubana e falei: olha! Está Câmara Ferreira. Expliquei
aquela situação. Expliquei quem era. Eu me lembro que o diplomata que me
recebeu me pediu que eu voltasse no dia seguinte. Nesse momento, Câmara
Ferreira pediu uma máquina de escrever e redigiu um longo artigo sobre a vida
de Marighella, que foi publicado no dia seguinte no
Unitá.
Unitá
é o órgão
oficial do Partido Comunista Italiano.”
689
O artigo se intitulava: “Marighella: vida e ação criadoras.” Neste artigo, Câmara
Ferreira, ao falar de Marighella e de todo o projeto da ALN, afirmou sua disposição em
continuar lutando pela causa da revolução, ao escrever que,
“naquela noite fatídica de 04 de novembro, os esbirros da ditadura cortaram a
vida de um grande líder revolucionário, porém, longe de sufocar a Revolução,
deram uma vibração ainda maior ao chamado à luta que foi toda sua vida. (...)
seu exemplo continuará iluminando a luta libertadora dos brasileiros, que
saberão vingá
-l
o com a própria revolução.”
690
Durante todo o intervalo de espera da resposta da embaixada cubana, Frei
Oswaldo Rezende conversou com Joaquim Câmara Ferreira. Conforme ele,
“o Toledo estava seriamente abalado com a notícia da morte do Marighella, e,
d
e uma certa forma, de uma certa maneira, ele sentia que ele teria que assumir
uma responsabilidade. Que essa responsabilidade não era cômoda, porque ele
teria que voltar ao Brasil nas condições em que ele o deixou. Ele o deixou
porque as condições eram péssimas para sua segurança, e, com a morte do
Marighella, ele queria voltar. Era decisão dele. Voltar ao Brasil e continuar a
luta.”
691
De acordo com Mir, Câmara Ferreira, ao explicar a necessidade de ir o quanto
antes para Havana, defendia que o contingente guerrilheiro estacionado em Cuba era
determinante para os rumos que a organização poderia tomar. Se entrassem no Brasil,
deflagrassem a guerrilha rural e criassem um fato político, a reversão ocorreria. Frei
Oswaldo Rezende voltou à embaixada Cubana e recebeu a autorização para que
689
Frei Oswaldo Rezende, depoimento.
690
FERREIRA, Joaquim Câm
ara. Panfleto
: Marighella: vida e ação criadoras
, novembro de 1969.
691
Ibid.
291
Câmara Ferreira fosse para Cuba, sendo orientado a ir juntamente com ele. Câmara
Ferreira achava essencial a ida de Frei Osvaldo, devido ao conhecimento do pessoal
que estava. Desta forma, os dois esperaram o contato da embaixada com Havana. A
recomendação que veio é que os dois seguiriam em vôos diferentes, em dias
diferentes. Enquanto esperavam, Oswaldo Rezende e Câmara Ferreira foram a
Nápoles, e, segundo frei Osvaldo,
“(...) curiosamente, foi como se naquele dia, o Toledo resolvesse tirar férias.
Duas vezes eu tentei conversar sobre problemas, problemas que nós tínhamos
que enfrentar, não queria saber. Como se ele soubesse de antemão que
aquele passeio a Nápoles, um dia saímos de manhã para voltarmos à noite,
era talv
ez o último dia que ele se dava de um pouco de lazer. Sabendo que, no
dia seguinte, ele pegaria um avião, a situação dele já não seria..., ele já não se
pertenceria de uma certa maneira. Quando nós fomos, nós comemos num
restaurante. Ele queria pizza. Pizza em Nápoles não existe!
existe...brasileiro é que pensa que tem. Comemos peixe, frutos do mar. Fomos
até a cidade de Pompéia e voltamos.”
692
No dia seguinte, Joaquim Câmara Ferreira seguiu para Cuba, enquanto Frei
Osvaldo passou por Genebra, na Suíça, e logo depois rumou para Havana. Era o final
do mês de novembro de 1969, pois, antes de se dirigir a Cuba, Câmara Ferreira foi,
junto com Aloysio Nunes Ferreira, registrar sua filha, na prefeitura de Paris, no dia 20
de novembro, para servir de testemu
nha.
A chegada de Joaquim Câmara Ferreira a Cuba visava a uma discussão com os
militantes que estavam, para avaliarem a situação e a continuidade da luta.
Entretanto, havia uma situação muito conturbada, que requereu de Joaquim Câmara
Ferreira a habilidade política que havia permeado toda sua vida. Conforme Frei
Oswaldo Rezende, Câmara Ferreira encontrou uma conjuntura muito complicada. Para
692
Frei Oswaldo Rezende, depoimento.
292
ele, “o Toledo é, pela força das coisas, pela importância que ele tinha, o sucessor de
Marighella. Ele foi recebido imediatamente pelo Fidel Castro. Foi uma conversa de dez
minutos.”
693
Frei Osvaldo visitou Fidel nessa época, e disse que na conversa com
Joaquim Câmara Ferreira, Fidel Castro não disse o que deveria ser feito, era uma visita
de cortesia. O que “Fidel disse ao Toledo. Ele lamentou a morte do Marighella. Disse
que pesava bem a responsabilidade dele e que ele podia contar inteiramente com a
solidariedade dos cubanos. A conversa foi de dez, quinze minutos, mas ela foi
suficiente politicamente para reforçar a liderança do Toledo.”
694
Durante esse período,
Joaquim Câmara Ferreira e Frei Osvaldo permaneceram juntos na mesma casa. Certa
manhã, Frei Osvaldo encontrou Joaquim Câmara Ferreira fardado. Conforme ele,
Câmara Ferreira lhe disse: pois é Osvaldo, você veja. Com a minha idade ter que
começar a fazer serviço militar. E ele foi, porque ele ia, tinha decidido voltar ao Brasil, e
ele estava indo todas as manhãs numa, num local onde se aprendia a dar tiros, e para
que ninguém estranhasse um civil entrando num quartel, ele ia fardado.”
695
A primeira
missão de Joaquim Câmara Ferreira foi fazer uma visita aos militantes que faziam
treinamento de guerrilha urbana em Cuba. Alguns, como Renato Martinelli, estavam
na ilha desde o segundo semestre do ano de 1968. Ele
conta como foi a visita inicial de
Joaquim Câmara Ferreira a esses militantes. De acordo com suas palavras,
“nós estamos num treinamento de guerrilha rural, né? São Paulo, da ALN
porque era tudo compartimentado. Éramos lá, éramos uns trinta companheiros.
Nós tínhamos, nós atuávamos dentro de uma base militar, entende? E o
Toledo...tem uma visita. É anunciada uma visita a nós que estávamos lá, aos
companheiros. Os cubanos: olha! Tem uma visita importante não sei o que e
tal. Nós com a nossa farda lá, especial. Receber quem? O Toledo. Receber a
visita do Toledo (choro). Ele tava bem. Ele veio até com um fardamento verde
viu? E você sabe que o oficial, o oficial leva uma pistola né? Então ele veio
693
Frei Oswaldo Rezende, depoimento.
694
Idem.
695
Idem.
293
com uma pistola (...) até parecia um militar aposentado mas ele vem de verde
oliva com aquela...porque a tropa a farda do oficial cubano era muito simples,
era um verde oliva não sei o que com um boné, mas eles carregam, o oficial
carrega uma pistola que é característica do oficial né? E ele vem com aquela,
coisa com aquela cintura, aquela coisa especial né? Com a pistola meio
desengonçada. A pistola está aqui, meio aqui, meio assim. Se vê que é um civil
que está com a farda, mas uma pistola. o! È um oficial, um comandante.
Então, é muito simpático, muito humano e co
nversa com a gente não sei o que
e tal. Essa foi à conversa. Não é uma conversa política, é uma conversa mais
de visita aos companheiros da Ação Libertadora que estava treinando.”
696
Entretanto, a questão principal a ser enfrentada por Joaquim Câmara Fe
rreira
em Cuba era em relação ao futuro político da organização, depois da tormenta que
havia caído sobre a ALN. Conforme Mir, a primeira reunião política de Joaquim Câmara
Ferreira com dois fundadores da ALN (Argonauto Pacheco e Rolando Frati), residentes
em Havana, dava uma dimensão do processo pelo qual passava a organização.
Argonauto Pacheco e Rolando Frati queriam,
“discutir tudo, o projeto era inviável. A luta armada não chegara a criar cultura e
crescimento políticos, não seduzira setores da opinião pública para que os
peixes (guerrilha) tivessem água (proteção e apoio). Em discussão: Frear a luta
armada, reconstruir a rede logística, fazer trabalho de massa e de base,
retomar as atividades dentro das fábricas. O modelo que adotaram (cubano)
era inexeqüível. Reconstituiriam o movimento revolucionário para a formação
de um grande partido marxista, que atraísse setores da ALN, VPR, comunistas
do PCB. Seria o retorno ao projeto original do Agrupamento Comunista de São
Paulo.”
697
Além disso, a discussão mais difícil que se deu em Cuba foi de como ficaria a
direção política da organização após a morte de Marighella. Para um setor da ALN, do
qual fazia parte Renato Martinelli, Câmara Ferreira era o sucessor natural, entretanto
outro setor não concordava. Um dos problemas enfrentado por Joaquim Câmara
Ferreira para assumir a direção da organização vinha dos estudantes paulistas
696
Renato Martinelli, depoimento.
697
MIR, op. cit., p. 500.
294
originários da Dissidência Universitária do PCB, em São Paulo. Grande parte deste
grupo de jovens guerrilheiros acabou rachando com a ALN e formando o Movimento de
Libertação Popular (MOLIPO) que era também chamado como Grupo Primavera ou
Terceiro Grupo da Ilha. Como analisamos anteriormente, os contatos da Dissidência
Comunista com o Comitê Estadual do PCB, em São Paulo, era de responsabilidade de
Joaquim Câmara Ferreira, e, conforme Renato Martinelli,
“por causa desse vínculo, vai ter uma relação futura. O pessoal da MOLIPO
não aceita Joaquim Câmara Ferreira como dirigente da ALN que sucede
Carlos Marighella. Por causa daquele vínculo. Por que aquele vínculo se dava
numa posição do Partido pela redemocratização 66, 67. Você entende? O
Toledo vai do Partido, redemocratização, Agrupamento Comunista de São
Paulo e a ALN.”
698
Jose Luiz Del Roio corrobora essa oposição que havia a Joaquim Câmara
Ferreira dentro da militância estudantil de São Paulo, devido ao fato dele ter sido um
dirigente importante do Comitê Estadual do PCB. Conforme suas palavras,
“em São Paulo, no período do Movimento Estudantil, quando eu ainda era
dirigen
te do Movimento Estudantil, surgiu um grupo, de uma oposição muito
violenta, dura, dentro do Partido Universitário. Vou dizer até alguns nomes:
José Arantes, o Benetazzo, Fernando Ruivo. Morreram todos! Morreram todos!
Esse grupo acusava a mim, mas isso eu vou dizer qual. A mim não importa
nada. Me acusavam como Secretário político exatamente de representar
setores burocráticos do partido, mesmo com uma linguagem de esquerda. É o
burocrata para eles. O desenho do burocrata era o Câmara Ferreira. Eles
quase
fizeram a caricatura do Câmara Ferreira como o burocrata. Aquilo que
eu lia de muito positivo, de muito positivo, que era a sua capacidade de
dirigente, sua capacidade de serenidade, de ser professor, de ser calmo, de
ser o homem do partido. Talvez um belo tipo realmente. Tava ligado à vida
dele, à história dele. O quadro perfeito do Partido Stalinista, eles viam como o
horror, o horror. Era tudo ao contrário do que eles queriam (...). Então Câmara
Ferreira era para eles o diabo (risos), coitado do Câmara.
Era o diabo. Quando
ele vai para Cuba, nós estamos com quase, muitos desses companheiros por
lá, muito desses companheiros. Tem também o João Leonardo que também
morreu. Na verdade é o grupo, nada assim rigoroso como essa gente diz, mas
é o grupo que vai criar o MOLIPO, quer dizer, esse grupo de oposição a mim
698
Renato Martinelli, depoimento.
295
ainda na Universidade que via Câmara Ferreira como o burocrata, é o que cria
o MOLIPO.”
699
Além disso, havia outra questão a ser resolvida por Câmara Ferreira a respeito
da direção política, a qual dizia respeito à parte da organização que ficava no Rio de
Janeiro. Conforme Oswaldo Rezende, Joaquim Câmara Ferreira tinha atuado mais em
São Paulo, e era que havia um grupo mais sólido. No entanto, havia um grupo da
ALN que se localizava no Rio de Janeiro. Dentro desse grupo, segundo Oswaldo
Rezende,
“havia uma militante extremamente valiosa. Ela tinha sido membro do Partido
Comunista Brasileiro durante décadas. Casada com um comunista. Os filhos
dela estavam todos, dois deles, dois ou três, estavam treinando. Mulher de
uma imensa coragem, abnegação grande e de temperamento forte. (...) (em
Cuba) tinha esses rapazes e moças do Rio de Janeiro, geralmente muito mais
jovens que a média de que, praticamente terminado... tinham dezenove vinte
anos,
e ela se considerava a líder desse grupo e tratava o Toledo, como
homem de São Paulo. Então, ele tinha que lidar com esse problema.”
700
A ALN havia sido estruturada de forma descompartimentada, o que favorecia o
aparecimento de vários grupos que não eram dirigidos por um núcleo, aos moldes do
partido político. Com a morte de Marighella, que era uma liderança de caráter mais
nacional, surgiu um problema relativo a quem teria a liderança da organização. Frei
Oswaldo Rezende afirmou que Câmara Ferreira
“nun
ca tinha contato com a área do Rio do Janeiro. Nunca tinha tido contato
com a área, digamos assim, do campo. E lá em Cuba estava todo mundo junto.
No Brasil, todo mundo vivia na clandestinidade. tava junto andando na rua,
portanto, é que estouravam os problemas políticos de liderança. O pessoal
do Rio de Janeiro vendo na Carmem a grande líder, e era evidente que ela não
tinha nenhuma qualificação pra isso. (...) por outro lado, tinha o Toledo, que
699
José Luiz Del Roio, depoimento.
700
Oswaldo Rezende em seu depoimento, não foi citado o nome da militante. Entretanto, conforme podemos
verificar através de Luís Mir, tratava
-
se de Zilda Xavier Pereira, cujo codinome era Carmem.
296
todo mundo sabia quem era Câmara Ferreira. Ali havia p
roblema de liderança.”
701
Frei Oswaldo Rezende disse que Joaquim Câmara Ferreira teve de usar de
extrema diplomacia, psicologia e tranqüilidade para resolver o problema. Além disso,
como vimos anteriormente, a ALN era uma organização nacional, mas sua forç
a
principal era formada pela Dissidência dos Comunistas de São Paulo. E foi exatamente
a decisão do contingente já preparado para guerrilha rural no norte do Brasil e o
alinhamento da militância Paulista que estabilizaram Câmara Ferreira e asseguraram o
se
u predomínio dentro da ALN, conforme afirma Mir. Entretanto, não é difícil entender
porque Joaquim Câmara Ferreira assumiu a direção política da organização, pois,
conforme Del Roio,
“isso não ia ter dúvida, não existia outra possibilidade, não está em
discussão porque fora Câmara Ferreira e Marighella você não tem ninguém
dentro da ALN com os conhecimentos, contatos e o prestígio deles. Nós não
estávamos numa organização democrática, meu caro, que você vota, não tem
disso! Estávamos numa organização armada sendo massacrada, do meu
ponto de vista, morrendo. E quer dizer, o meu ponto de vista, infelizmente a
história, quer dizer, a história diz que era assim. Eu achava naquele
momento. Isso é uma opinião minha, daquela época. Infelizmente eu tinha
razão. Numa linguagem militarista, a organização estava cercada,
estrategicamente tinha caído no cerco e os militares estavam, depois do cerco,
estavam no momento da liquidação. Cercar e liquidar. Estávamos nisso. A
única coisa que podíamos fazer era tentar conter o cerco e desaparecer. Não
se desorganizar, mas desaparecer. Ir pra profunda clandestinidade, dormir e
ressurgir mais tarde, era o que tinha que fazer. Câmara Ferreira não assumiu
essa posição. Mas não tinha dúvida que era ele. O grupo de Cuba quer
endo ou
não, não ia ter discussão. Por contatos internacionais, por tudo. Então isso,
não que ele voltou (pro Brasil como dirigente da ALN), ele era. É automático.
Alguns podiam não aceitar e ir embora, isso é outra coisa, mas nunca se pode
pôr em discussã
o isso, tanto que, depois dele, não teve mais ninguém.”
702
Paulo Cannabrava disse que Joaquim Câmara Ferreira era um estrategista, não
um combatente. Por isso, “eu fiquei surpreso quando ele assumiu o comando, mas ele
701
Frei Oswaldo Rezende, de
poimento.
702
José Luiz Del Roio, depoimento.
297
era o comandante, pô, era o comandante. Ele era o mais velho. Era o que sabia tudo,
sabia tudo.”
703
Após ter assumido o comando político da organização, em Cuba, Joaquim
Câmara Ferreira iniciou os preparativos para o seu retorno ao Brasil. E, segundo
Oswaldo Rezende, “ele é o comando da ALN e veio para para continuar, para
continuar colocando a coisa na medida que era possível. Não se tratava de fazer ações
espetaculares, assim mesmo, houve.”
704
Antes, porém, de partir para o Brasil, Joaquim
Câmara Ferreira conversou com algumas pessoas
em Cuba, e enfatizou que voltaria ao
Brasil para continuar a luta. Um desses militantes foi o próprio José Luiz Del Roio, que
afirma ter sido esse o seu último encontro com Câmara Ferreira. Conforme suas
palavras,
“eu vou vê-lo dentro do cemitério Colombo. Ele marca um encontro comigo,
assim bem clandestino mesmo. Ele deve ter pensado várias coisas na cabeça
dele. Primeiro porque ele não queria cubano escutando por perto, e segundo, a
gente marcava muito encontro em cemitério. Ele adorava marcar encontro e
m
cemitério. (...) eu converso com ele, muito preocupado. A missão dele era
realmente tentar continuar agora, a luta armada. Tanto que ele me pede para
sair de Cuba e ir para a Europa arranjar infra-estrutura. Trabalhar em infra-
estrutura.”
705
E realmente José Luiz Del Roio saiu de Cuba e foi para Europa e em Viena foi
pedir apoio da Internacional Socialista no sentido de conseguir documentação e não
dinheiro, como afirma Mir. Del Roio afirma que “a nossa questão não era dinheiro, era
os passaportes, documentação mais segura.”
706
Outro que conversou com Câmara
703
Paulo Cannabrava, depoimento.
704
Frei Oswaldo Rezende, depoimento.
705
José Luiz Del Roio, depoimento.
706
José Luiz Del Roio, depoimento.
298
Ferreira foi Frei Oswaldo Rezende. De acordo com ele, Câmara Ferreira procurou se
informar sobre a revolução cubana, e os dois conversaram muito sobre o assunto:
“as dificuldades daquela revolução, a falta de quadros. O fato que eles não
tinham muito petróleo, muita riqueza deles mesmo e coisa e tal. Era difícil fazer
uma revolução ou instalar. Fazer revolução até que foi garantido, foi fácil. Eles
conseguiram vencer, mas fazer o socialismo num país como aquele. As
dificuldades que eles enfrentavam tendo o inimigo a menos de cem
quilômetros.”
707
Além disso, Denise, filha de Câmara Ferreira, chegou a Cuba, nessa mesma
época, saída do Brasil, por questões de segurança. Foi apresentada a Oswaldo
Rez
ende por Joaquim Câmara Ferreira.
Numa carta de despedida para filha Denise, ao sair de Cuba, Joaquim Câmara Ferreira
expôs algumas idéias a respeito do processo revolucionário cubano. Conforme ele:
“estes últimos dias foram de muita corrida e, afinal, mesmo na hora da
despedida, pouco tempo tivemos. De Paris, se houver condições, voltarei a
escrever
-lhes. Mas ainda lhes quero deixar uma palavra. Na vida, sempre
determinamos nossas ações, pelas razões maiores. Concordei plenamente
com a saída de vocês do Brasil. De um lado, creio que lhes faltavam algumas
condições para uma participação mais integrada no processo de luta, inclusive
preparação. De outro, não tínhamos condições de lhes oferecer meios para
uma segurança efetiva. Demais, sabia que, por muitos motivos, inclusive
devido à minha atuação, poderiam vir a ser presos. E a coisa andou perto.
Entretanto, creio que um dos objetivos que se devem propor é o de se
prepararem para voltar. A luta se desenvolve, essencialmente, e no país de
cada um. A permanência aqui deve ser entendida como essa pausa
necessária, pausa que deve ser aproveitada, ao máximo, para preparar a
volta. Mas isso também não significa que a volta deva ser num prazo breve,
nem que deva constituir um objetivo imediato. Quaisquer que sejam as
dificuldades que tenham de enfrentar, o essencial é o esforço de preparação
e de autopreparação. E a autopreparação, para vocês, creio que deve ser
sobretudo ideológica. Para isso, vocês dispõem de uma riqueza imensa de
fontes. A principal, é o estudo da própria experiência cubana. Ela é riquíssima
e tem um valor inestimável para todos os povos, e, em primeiro lugar, para os
Latino
-americanos. Muita coisa vocês encontraram nos jornais, livros e
revistas. Mas outras, terão de buscar por mesmo, procurando ver as
experiências concretas e conhecendo o homem cubano. E não me refiro nem
aos revolucionários formados, nem, está claro, aos
“gusanos e meio
-
gusanos.”
A grande revolução que se produz nesse país é a revolução na consciência do
707
Frei Oswaldo Rezende, depoimento.
299
homem. Isto é o mais difícil, especialmente, quando se trata de um país tão
pouco desenvolvido e que sofre permanentemente o impacto da propaganda
capitalista, daquilo que costumamos chamar a influência ideológica do
capitalismo”. Estudem a fundo as páginas do Che sobre isto, e verão a
profundidade do pensamento de um verdadeiro marxista um homem que
cria.
Para fazerem isto, um meio: conviver com o povo, com os
representantes de suas camadas fundamentais. Embora o ambiente intelectual
aqui seja em geral bom, é ins
uficiente. É preciso ir mais fundo. Vocês mesmos
terão de descobrir a maneira de fazê
-
lo. Também isto é criar. Mas, não apenas
o homem deve ser estudado. Também o processo e as originalidades da
revolução cubana, e para isso é indispensável dominar sua história. Desde a
colonização até estes cento e um anos de lutas pela independência.
E é preciso conhecer a realidade cubana sua economia, suas
condições geográficas e sociais etc. A revolução cubana, se tem traços gerais
que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento de muitos
países, tem também particularidades que correspondem a determinadas
situações concretas. E é necessário conhecê-los bem, pois podemos ter uma
justa visão do conjunto.
A participação no processo de produção intelectual e material é o meio
mais adequado para vocês enfrentarem e realizarem seu propósito principal. E
não se trata apenas de uma curiosidade, de um capricho, mas, antes de tudo,
de uma missão revolucionária. E, para realizar uma missão revolucionária, é
preciso persistência, paciência, uma vontade firme e inabalável - assim é que
vocês irão vencendo as dificuldades.
Certamente, nossos amigos têm algumas dificuldades. Mas não devemos
nos esquecer de que, em grande parte, nós mesmos é que somos
responsáveis por eles. Não me refiro aos pequenos problemas que lhes
criamos, de caráter individual. Estes eles vão resolvendo com sua imensa boa
vontade, e dentro das condições em que vivem, das limitações que sofrem.
Refiro
-me, principalmente, é ao fato de que estas dificuldades derivam de
estarmos tão atrasados no cumprimento do nosso dever de revolucionários
que é, afinal, e não apenas de palavras, o de fazer a revolução. Por isso Cuba
está isolada na América e sofre um bloqueio tão odioso.
Para o processo de sua formação ideológica e política, vocês também
dispõem, aqui, de uma vasta riqueza de informações internacionais. Fiquei
satisfeitíssimo com o fato de vocês terem ido apanhar aquele material na
embaixada do Vietnã do Sul. Mas nos cinemas, nas livrarias, em outros
cent
ros culturais casa das Américas etc bem como em outras embaixadas
Vietnam do Norte, Coréias, Guiné, e outros países socialistas, vocês
encontrarão muito material interessante. Eles o distribuem com prazer. (...) eu
gostaria de dizer ainda muita coisa. Sobre o trabalho voluntário ... Que coisa
fabulosa esta de um povo que reivindica o direito de trabalhar! E tanta coisa
mais. Mas são as três da manhã, ainda tenho de arrumar a mala e me
aprontar para sair às cinco. Por isso, volto ao principal.
Trate
m de desempenhar com honra a tarefa revolucionária de se
prepararem como bons revolucionários. O terreno de que vocês dispõem é a
realidade cubana. Penetrem-na por todos os lados. Isto é muito importante.
Contribuam com o máximo de seu esforço pessoal para pagar essa formação
que estão recebendo.
Vejam esta tarefa como uma forma de se prepararem para voltar ao
Brasil e desempenharem a missão que lhes condiz no processo de nossa luta
geral.”
708
708
Joaquim Câmara Ferreira
carta esc
rita para a filha Denise, em Cuba, em 18 de dezembro de 1969.
300
Desta forma, Joaquim Câmara Ferreira deixou Cuba para retornar ao Brasil em
condições extremamente difíceis, e com enormes problemas para tentar resolver e
assim continuar a luta armada. Essas dificuldades não eram desconhecidas por
Câmara Ferreira, tanto que, ao sair de Cuba, na última conversa com Frei Oswaldo
Rezen
de, ele sinalizava para algumas questões. Frei Oswaldo Rezende disse a
Câmara Ferreira, nessa conversa:
“se você achar conveniente, eu gostaria também de voltar ao Brasil. O Toledo
me disse o seguinte: a minha situação já está muito delicada do ponto de v
ista
de segurança. Você indo, é pouca gente que nos sobra. Você indo, você vai
levantar muitos ... os problemas de segurança vão se colocar duplamente.
Então vai ser uma perda de ... por outro lado, nós vamos precisar de alguém
que fique por aqui, na Europa, porque as pessoas vão continuar a sair, e é
preciso divulgar a situação que está se passando no Brasil. Eu preciso, vamos
precisar de gente para contato com esse contingente que está aqui em Cuba.”
709
A última recomendação de Joaquim Câmara Ferreira a Frei Osvaldo era a de
que este deveria ajudar a resolver alguns problemas em relação a militantes em Cuba,
problemas até mesmo de caráter pessoal, enquanto ele se dedicaria à sua própria
preparação de retorno ao Brasil. Quando se despediu de Joaquim Câmara Ferreira, em
Cuba, Frei Osvaldo disse que tinha certeza de que não tornaria a vê-lo de novo.
Quando deixou Cuba para se dirigir à Europa e depois retornar ao Brasil, Joaquim
Câmara Ferreira trouxe na bagagem a certeza da dificuldade da continuação da luta
nos parâmetros em que estava colocada, e uma convicção moral de que era preciso
continuar, apesar dos problemas a serem enfrentados. Frei Oswaldo Rezende enfatiza
que
“a situação era muito mais difícil. A repressão estava no seu clímax. A tortura era
709
Frei Oswaldo Rezende, depoimento.
301
cois
a, se pegou era melhor morrer antes, e tudo muito desorganizado.”
710
Frei Osvaldo
disse que Joaquim Câmara Ferreira era um militante experiente e sabia que a situação
estava se encaminhando para uma possível derrota, pois (...) eu acho que ele era
intelig
ente demais para perceber né? Para perceber, mesmo, que, depois da morte de
Carlos Marighella, que as cartas estavam na mesa e que nós tínhamos perdido.”
711
No entanto, mesmo diante deste quadro, ao ser perguntado a Frei Oswaldo
Rezende se Joaquim Câmara Ferreira havia cogitado a possibilidade de não voltar ao
Brasil, o Frei disse o seguinte:
“de jeito nenhum, em nenhum momento. A primeira coisa que nós
conversamos foi que ele devia voltar ao Brasil. E em nenhum momento ele
teve uma mínima, pelos menos na minha frente, e eu acredito que tenha tido
em lugar nenhum, a mínima hesitação sobre aquilo que ele achava que era o
dever dele. Ele estava profundamente convicto que o dever dele era voltar e
continuar , mesmo sabendo, ele nunca se exprimiu nesses termos, ele nunca
falou: estamos derrotados! Mas enfim, as análises que ele fazia e que nós
fazíamos também, indicava que o quadro era extremamente perigoso. Não era
favorável ao desenvolvimento de uma ação. (...) Eu creio que o Toledo ficou
nisso por uma consciência de dever. A opção de ir até o fim da luta que ele
tinha, para a qual ele tinha se entregado. Não vejo outra razão. Ele poderia ter
seguido calmamente a sua viagem para Coréia . Dez anos depois, estaria de
novo no Brasil com sua família, tranqüilo e com a perfeita consciência de que
tinha feito o que era necessário: eu fiz, não deu certo, me mandaram
para,Coréia, eu fui e esperei. È um traço de caráter que faz bem as pessoas
que ... , sobretudo, como exemplo.”
712
E podemos analisar que Joaquim Câmara Ferreira tinha uma exata dimensão
das dificuldades, e de qual seria o seu papel na continuidade da luta, ao retornar ao
Brasil. Ainda na carta deixada para Denise em Cuba, ele esclarece isso ao dizer que
“acredito que em 18 ou 24 meses de permanência voc
ês terão ganhado muito,
e que, de qualquer maneira, teremos criado condições para a volta de vocês,
quer se trate de uma volta clandestina, visando ao trabalho clandestino, quer
710
Frei Oswaldo Rezende, depoimento.
711
Idem.
712
Idem.
302
uma volta legal, visando ao trabalho revolucionário nas condições de
“legalida
de”.
De minha parte, vou tentar contribuir para o prosseguimento da luta.
Conheço bem minha limitação e sei que os jovens é que terão de empunhar a
grande bandeira da revolução brasileira. O que pretendo é criar condições
para que o façam.”
713
Joaquim Câmara Ferreira retornou à Europa com intuito de voltar ao Brasil e
tentar reconstruir a ALN, com os militantes que haviam escapado da ofensiva do regime
militar. Durante sua estadia na Europa, esteve novamente com Aloysio Nunes Ferreira,
que disse:
“(...)
eu sei que ele foi pra Cuba. ele procurou avaliar a situação com os
companheiros que estavam fazendo treinamento e voltou muito preocupado.
Eu conversei com ele muitas vezes, ele estava muito preocupado com o
destino do movimento. Ele avaliava que as coisas estavam chegando ao fim
da linha. Que aquele caminho estava bloqueado. Mas ele me disse que não se
sentia, que ele tinha obrigação de voltar ao Brasil porque ele se sentia
moralmente comprometido com os companheiros que estavam aqui ainda
acreditando
naquela linha, e que ele queria participar de uma discussão com
eles, e, se fosse o caso, organizar uma, promover uma retirada organizada.”
714
Como vimos anteriormente, Joaquim Câmara Ferreira havia saído do Brasil em
outubro de 1969 e estava voltando em dezembro deste mesmo ano. Entretanto, nesses
dois meses, a situação tinha mudado drasticamente, e seria necessária a retomada de
contatos e infra-estruturas perdidas, e um diagnóstico de qual era a situação da
organização. Porém, antes de partir da Europa, numa última conversa com Aloysio
Nunes Ferreira, ele deixou evidenciado qual era a possibilidade real que o esperava no
Brasil. Conforme Aloysio Nunes Ferreira,
“me lembro até que, que dei uma última volta pela cidade com ele. Pela cidade
de Paris, para levá-lo a estação de trem. Ele tomou o trem na estação de
Austerlitz
para ir pra Lisboa, pra Madri e de Madri ele iria pro Brasil. Trocaria
713
Joaquim Câmara Ferreira
carta escrita para a filha Denise, em Cuba, em 18 de dezembro de 1969.
714
Aloy
sio Nunes Ferreira, depoimento.
303
de identidade e iria pro Brasil. Eu me lembro que passei de frente no lado, na
praça do
Panteon
e tinha um hotel chamado que ainda existe, chamado
Le
Hòtel
des Gran Homme, o hotel dos grandes homens. eu disse: o Câmara!
Quando você voltar aqui, você vai ficar nesse hotel. ele disse: não Aloysio!
Acho que o que me espera, o que me espera é aquilo e me apontou. Havia
uma funerária, ponto final. Imagine o peso que isso significou, enfim, o estado
de espírito. Mas ele enfrentou isso com muita coragem. Logo se recompôs,
viajou, se despediu, muito assim, fraternalmente.”
715
Em dezembro de 1969, Joaquim Câmara Ferreira desembarcou no Brasil, com
muitos problemas para resolver em relação à ALN, mas com a convicção de que era
seu dever voltar e assumir a luta.
Ao chegar, Joaquim Câmara Ferreira foi para casa de Vera Gertel. Conforme ela,
após a morte de Marighe
lla, Câmara Ferreira
“fez um périplo que eu não sei qual foi. Quase deu uma volta ao mundo pra
chegar aqui. ele chegou. Eu tinha uma rede na sala, ele chegou. ele
sentou na rede. A gente conversou um pouco e eu falei: eu vou fazer um
café pra você. Fui pra cozinha e quando eu voltei com o café, ele tava
dormindo na rede. Devia estar exausto, devia estar exausto, tava dormindo. Aí
eu deixei lá, ele dormiu, eu não sei, acho que umas duas horas depois ele
foi embora, mais eu fiquei muito impressionada com esse negócio porque,
pra você ver como as coisas eram precárias na verdade, né? A luta era
precária!.”
716
Após isso, Câmara Ferreira se encontrou com Clara Charf, e expôs a sua
convicção e decisão de retomada da luta revolucionária no Brasil. Clara Charf havia
mandado um aviso a Joaquim Câmara Ferreira que não retornasse, mas ele ignorou
esse aviso. Conforme Clara Charf,
“(...) isso foi uma temeridade muito grande, porque ele estava sendo procurado
aqui no Brasil. O Marighella tinha sido assassinado, a repressão tinha se
desencadeado de maneira violentíssima contra todo mundo. E eu encontrei
uma companheira, inclusive, não sei se viva, não sei se posso localizá-la, é
difícil. E fiz chegar um recado a ele que ele não viesse porque a impressão, o
sentimento que eu tinha é que se ele viesse, ele ia ser assassinado. Mas ele
715
Aloysio Nunes Ferreira, depoimento.
716
Vera Gertel, depoimento.
304
veio. Voltou pro Brasil, o que revela um ato de coragem enorme. O que revela
também uma decisão política muito grande de continuar a luta, e uma
responsabilidade histórica que ele achava que tinha né? Porque depois do
Marighella era a segunda pessoa mais responsável na organização, naquela
época. Então, eu tava certa que ele não ia vir, eu pensava: não, ele não vai
voltar. Tomara que ele não volte porque eu tava preocupada que ele fosse
preso, preso, torturado e morto. Um belo dia recebi um recado que ele tava me
procurando, que ele tinha chegado ao Brasil. Que loucura né! Todo mundo
clandestino e eu também né. a gente se encontrou. Um encontro rápido
porque naquelas con
dições, não tinha, não se podia conversar muito. Encontro
de rua. E eu fiz uma crítica a ele por ter vindo porque eu sabia, primeiro ele
não tinha condições físicas de enfrentar aquela clandestinidade, muito difícil
tudo e segundo porque o cerco tinha se fechado muito né? Mas ele disse que
não. Que ele, que o dever dele era esse mesmo, que ele iria continuar a luta
que o Marighella tinha começado (...). Ele resolveu voltar, quer dizer, era muita
coragem, muita decisão né? muita firmeza porque eu acho que as pessoas
que saíram, naquela época, do Brasil, com a repressão do jeito que ela se
desencadeou, nem todas voltariam nas circunstâncias em que ele voltou e
tentou ajudar no que pode até que foi preso.”
717
A chegada de Câmara Ferreira a São Paulo foi difícil devido à falta de infra-
estrutura da organização, pois vários militantes haviam sido presos, não havia dinheiro
e armas. Inclusive, naquele momento, a organização não tinha sequer local seguro
para abrigá-lo, conforme enfatiza Mir. Foi exatamente nesse período que Juca Kfouri,
que atuava fazendo trabalhos de apoio na ALN, recebeu um pedido que arrumasse
um lugar seguro para que a organização pudesse abrigar uma pessoa importante por
um período. Conforme Kfouri:
“um belo dia me pediram para arrumar um apartamento que pudesse abrigar
uma pessoa que eu não sabia quem era, por um período. Eu tinha um casal de
amigos que estava indo fazer uma viagem durante um mês. E eu então, tratei
de arrumar esse apartamento. Contei pros dois: alguém que eu não sei qu
em
é e eles concordaram. E essa pessoa foi pra lá e me pediram que eu desse
uma assistência a essa pessoa. Que diariamente fosse ver se precisava de
alguma coisa e tal. Ocorreu que quando eu me dei diante da pessoa, eu me
lembrei que tempos antes, num almoço de família, da minha família, o
Norberto e Lia chegaram na casa onde houve esse almoço com alguém que
eles apresentaram como tio do Norberto. Eu entrei nesse apartamento depois
e dei com essa pessoa. Falei: mas eu te conheço. Ele falou: claro que
você me
717
Clara Charf, depoimento.
305
conhece né. Você é o tio do Norberto! Não, sou tio do Norberto coisa
nenhuma. Eu sou o Velho. E todo dia, durante quase um mês, eu fui vê
-
lo.”
718
A idéia de Joaquim Câmara Ferreira era tentar reorganizar a ALN, montar
juntamente com outras organizações da esquerda, uma grande frente ampla armada e
a implantação da guerrilha rural. Na conversa com Clara Charf, ele enfatizou que
“iria tratar de unir todas as forças de resistência contra a ditadura, para
apressar a queda da ditadura. Isso ele declarou ali. Por isso que ele tinha
voltado, e realmente ele se empenhou, segundo eu soube, porque eu não
estava com ele, de contatar todas as outras organizações, a VPR e outras
para ver como se podia juntar as forças. Ele teve um papel muito importante
na
quele período.”
719
Joaquim Câmara Ferreira, nas primeiras reuniões que realizou com militantes
que restavam da organização e que basicamente eram da frente de massas,
estabeleceu, como prioridades iniciais: preparar infra-estrutura para receber o
conting
ente guerrilheiro que estava em Cuba e organizar a frente revolucionária. De
acordo com Guiomar Silva Lopes, “a preocupação dele era reorganizar a ALN. Isso era
a preocupação. Como vamos fazer. O que que vamos fazer e naquela agitação pra
gente recuperar o
tempo perdido, se reorganizar de novo, montar infra
-
estrutura.”
720
O próprio Joaquim Câmara Ferreira fez, neste período, uma análise do processo
que havia se desencadeado desde o lançamento da luta armada no Brasil. Conforme
suas palavras,
“partindo da estaca zero em princípios de 1968, avançamos com vigor e
rapidez até fins de 1969. Nós e outras organizações revolucionárias
realizamos uma série de ações que comoveram o país e demonstraram a
viabilidade da luta armada. Instalamos, de fato, a guerra revolucionária no
país. Cometemos também, entretanto, erros e enganos que criaram grandes
718
Juca Kfouri, depoimento.
719
Clara Charf, depoimento.
720
Conforme depoimento de Guiomar Silva Lopes, em maio de 2003, em São Paulo.
306
dificuldades no prosseguimento das operações. Entretanto, como dizia Lênin
“em toda guerra, toda operação leva uma certa desordem às fileiras dos
combatentes. Disso não se pode deduzir que não se deva fazer a guerra.
Disso é preciso deduzir que é preciso aprender a fazer a guerra, isso é tudo”
(Lênin, “Guerra de Guerrilhas”). O que é necessário saber é se a situação
objetiva se modificou no essencial. E a resposta é: Não. O que existe, em
relação a 1968, é uma mudança quantitativa: a ditadura consolidou, de certa
forma, um estado de terror, encarregando-se ela própria de acabar com toda
ilusão de uma “saída democrática.”
721
Além disso, após fazer uma análise da realidade brasileira, Joaquim Câmara
Ferreira destacava, entre outras coisas, a impossibilidade de mobilização das massas;
o desenvolvimento da guerra psicológica contra o povo e os revolucionários; a
identificação dos êxitos de esportistas brasileiros com a ditadura; a realização de
grandes obras para tentar mostrar o Brasil grande sem mostrar que as obras serviam
aos interesses da oligarquia e do imperialismo americano; o arrocho dos salários dos
trabalhadores; a inclusão da matéria de moral e cívica nos currículos escolares como
forma ideológica de ensinar um falso patriotismo; a censura rigorosa à imprensa cada
vez mais; cassações de direitos políticos etc.
Para se contrapor a esta situação, Joaquim Câmara Ferreira tinha, como
propostas:
“diante desta situação, os verdadeiros revolucionários não têm outra
alternativa senão intensificar a guerra contra a ditadura e o regime. É
indispensável que sejam tomadas as medidas técnicas de segurança que
garantam o êxito de ações urbanas visando a abalar a ditadura, e que tenh
am
início as ações guerrilheiras no campo, visando a despertar o enorme potencial
revolucionário das massas camponesas. A guerra popular e revolucionária
implica numa estratégia global e num planejamento geral, mas a maneira
concreta de dar-lhe continuidade agora é a intensificação das ações
revolucionárias onde quer que atuemos. assim poderemos corrigir nossos
próprios erros e conquistar a confiança e o apoio de milhares de patriotas e
revolucionários, depois dos milhões de descontentes que, todos, dese
jem
fazer alguma coisa para livrar o Brasil do despotismo e da dominação
americana. O que é importante é que a ação seja estimulada em todos os
níveis, dando maior envergadura, como o seqüestro do embaixador
americano, assalto a aos brinks ou incêndio de carros de patrulhas, até a
divulgação de volantes, aquisição de uma arma, o pichamento de paredes, o
721
Jornal “O Guerrilheiro”
Ação Libertadora Nacional, nº2, novembro de 1970, p.3.
307
comício dentro das fábricas e nas concentrações populares, a ampliação das
redes de apoio e informações, o estímulo às lutas reivindicatórias gerais e
parci
ais, a participação intensa em campanhas como o da denúncia da farsa
eleitoral e pelo voto nulo, a preocupação com a formação política e ideológica
dos próprios revolucionários, a formação dos novos grupos revolucionários etc.
O essencial é despertar a iniciativa dos revolucionários em todos os níveis. O
avanço realizado este ano, no sentido da unidade dos revolucionários através
da realização de uma série de ões em frente única, é um fator altamente
positivo. E já podemos prever a união das forças revolu
cionárias em função de
objetivos bem mais amplos. Isso beneficiará enormemente o processo da
revolução brasileira. A situação em que vivemos exige a intensificação da
violência revolucionária. O fortalecimento das forças revolucionárias no
processo da ão tornará possível a aplicação dos golpes cada vez mais
sérios na reação. A guerra revolucionária se aprofundará com êxito se
soubermos nos desincumbir, com paciência e um confiança inabalável na
vitória final, das tarefas que temos pela frente.”
722
Confo
rme Carlos Eugênio Paz,
“Toledo”
723
é o dirigente adequado para
reconstruir a organização, devemos dar-lhe as condições necessárias para a realização
de seus planos.”
724
Joaquim Câmara Ferreira acabou fazendo uma opção por uma política ofensiva
no plano militar urbano, a partir de uma concepção de que era importante manter a
chama da luta armada, e para obter recursos para as futuras empreitadas que seriam
realizadas pela ALN, num momento em que se apertava o cerco da ditadura. Dentro
dessa idéia, ele impulsionou uma aproximação com outros grupos, dando nascimento
ao que se conheceu como “Frente Armada”, responsável por uma série de ações de
certa importância, em 1970. Em um artigo do Jornal “O Guerrilheiro”, intitulado
“Voltamos”, o próprio Joaquim Câmara Ferreira esclarece os pontos que deveriam unir
a “Frente Armada”:
722
Jornal “O Guerrilheiro.” op. cit., p. 5.
723
Em suas memórias, Carlos Eugênio Paz deu a Câmara Ferreira o codinome de Diogo e a Marighella o codinome
de Fabiano. Porém, mesmo utilizando a obra de Carlos Eugênio como fonte, optamos por manter os codinomes ou
nomes reais dos personagens para evitar confusão ao leitor menos atento.
724
Carlos Eugênio Paz, depoimento.
308
“depois, o importante era que, como afirmávamos, a vanguarda se forjasse
através da ão. E as ações revolucionárias foram surgindo, num nível até
então desconhecido em nosso país. A vanguarda foi se definindo, não sob a
forma de uma única organização, mas de numerosas. Entretanto, havia um
denominador comum a todas elas: a compreensão de que a revolução
brasileira se desenvolveria fundamentalmente no campo, que teríamos de
travar uma guerra prolongada e que deveríamos concentrar nossos melhores
esforços na preparação e desencadeamento da guerrilha rural.”
725
Carlos Eugênio Paz conheceu Joaquim Câmara Ferreira, em São Paulo,
nesta época, e, conforme suas palavras,
“um pouco mais velho, ele
gante, gentleman
de fala pausada e belos gestos.
De físico frágil, possuía energia de propósitos contagiante. Sem a exuberância
de Marighella, era mais incisivo, ofensivo, acreditava na retomada da iniciativa
da luta e se propunha a reorganizar as frentes de trabalho para realizar o
objetivo de levar a guerrilha ao campo. Os dias não eram os mesmos,
conhecíamos as derrotas, mas nos unimos em torno dele, superando enormes
obstáculos, aprendendo a fechar a Organização, refinando as ações armadas
e compensando, com audácia e sacrifício individual, a falta de recrutamento.
Dediquei
-me a ajudar Toledo em sua tarefa, e o ajudei a convencer os
componentes dos grupos-
de
-fogo da necessidade de um apoio incondicional a
seus planos.”
726
Carlos Eugênio Paz disse ainda que, em numa conversa com Joaquim Câmara
Ferreira, em São Paulo, foi-
lhe passada a seguinte missão pelo novo líder da ALN:
“você assume o comando do trabalho armado com a tarefa de montar uma
equipe
-
de
-fogo e retomar as ações o quanto antes. A repressão nos sufoca
nas cidades, temos de levar a guerrilha ao campo. Custará caro trazer os
militantes que terminaram o treinamento em Cuba, comprar propriedades,
caminhões, instalar a rede de comunicações e toda a infra-estrutura, Clamart
727
. As armas para a coluna devem ser expropriadas, não compramos de
contrabandistas, é uma questão de princípio. Para isso, serão necessários
militantes dispostos e uma boa potência
-
de
-
fogo. Quero que mantenha contato
com Hugo
728
, dirigente do MT, e Rafael
729
, da RD, em quem sinto grande
725
Jornal “O Guerrilheiro”
Ação Libertadora Nacional, nº2, no
vembro de 1970, p.2.
726
PAZ, Carlos Eugênio. Viagem à Luta Armada: memórias romanceadas. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1996, p. 58
-
59.
727
Clamart ou Clemente
codinome utilizado por Carlos Eugênio Paz na ALN.
728
Hugo Devanir José de Carvalho, dirigente máximo do Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT),
organização revolucionária paulista.
729
Rafael Eduardo Colem Leite (Bacuri), jovem quadro de ação armada e fundador da Resistência Democrática
(REDE), pequena organização de São Paulo.
309
espírito de unidade. Rafael quer entrar na ALN e esta em processo de
discussão com a sua organização. Hugo não pensa nisso, mas defende o
estreitamento de nossas relações. Os dois estão na frente de combate desde o
início, contam com militantes combativos e querem fazer ações armadas
conjuntas. Espero que, com o tempo, as outras organizações compreendam
que a criação de uma Frente Armada é essencial para o desenvolvimento
contra a ditadura.”
730
É importante observar que foi a partir desses contatos que se iniciou o processo
de formação de uma “Frente Ampla” que, a princípio, passava por ações conjuntas que
seriam realizadas por esses grupos que pretendiam a derrubada da Ditadura Militar.
Entre essas ações estavam os seqüestros de Diplomatas estrangeiros. Desta forma,
para resgatar do cárcere militantes que sofriam bárbaras agressões físicas, parcelas
dos grupos clandestinos das esquerdas armadas seqüestraram, em 1970, no dia 11 de
março, o cônsul japonês em São Paulo, Nobuo Okuchi; em 11 de junho, o embaixador
alemão no Rio, Ehrenfried von Holleben, e, em 7 de dezembro, o embaixador da Suíça,
Giovani Enrico Bucher. As negociações desses quatro episódios libertaram um total de
134 presos políticos. Noticiados nas rádios e TVs do país e de todo o mundo, os
acontecimentos vividos não podiam ser negados.
O seqüestro do Embaixador alemão, por exemplo, foi arquitetado por um
conjunto de organizações. Em São Paulo, nos primeiros dias de junho, uma reunião
entre Carlos Lamarca, Joaquim Câmara Ferreira, da ALN, e Devanir José de Carvalho
(“Henrique”, “Justino”, “Heitor”), do Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT), havia
estabelecido a lista dos 40 prisioneiros que seriam trocados pelo embaixador. De
acordo com Alfredo Sirkis, “O Velho Toledo, sucessor do Marighella, com quem Daniel
tivera uma reunião em São Paulo, mandou para o Rio dois combatentes
730
PAZ, Carlos Eugênio. Nas trilhas da ALN: memórias romanceadas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1996, p. 41
-
42.
310
experimentados. Um era o Bacuri que devia chefiar militarmente a operação, o outro o
Milton
731
, um antigo cabo do Exército.”
732
Dias antes do seqüestro, Joaquim Câmara Ferreira avisou a
Renée
, esposa de
Apolônio de Carvalho, que estava sendo preparada uma ação na qual o tirariam da
prisão e da tortura.
Numa quinta
-
feira, 11 de junho de 1970, o “Comando Juarez Guimarães de Brito”
executou o seqüestro às 19:55, nas proximidades da residência do embaixador, na
confluência da Rua Cândido Mendes com a Ladeira do Fialho.
Executado por nove guerrilheiros, o seqüestro durou menos de quatro minutos e
deixou um morto e dois feridos; espalhados pelo chão, alguns panfletos assinados pela
VPR e pela ALN
-
um “Esclarecimento” e um manifesto “Ao Povo Brasileiro.”
Segunda
-
feira, dia 15, os 40 banidos chegavam na Argélia, em avião da VARIG.
Conforme Carlos Eugênio Paz, o ano de 1970 foi dedicado a conseguir dinheiro
para pagar toda
infra-
estrutura que se precisava para construir ou continuar construindo
o processo de luta, além de trazer militantes que estavam em Cuba para iniciarem a
retirada para o campo e o início da guerrilha rural. Conforme ele: “foi um ano de muito
trabalho. A gente tinha que fazer muito dinheiro. Tivemos que fazer muitas
expropriações para poder pagar tudo isso, inclusive porque a ida desses companheiros
e a volta desses companheiros custava muito dinheiro.”
733
O fato era que as despesas
para a ida e a volta desses militantes para Cuba eram pagas pela própria ALN. De
acordo com ele, a ALN “pegava os companheiros na Europa e trazia para cá, tudo com
731
José Milton Barbosa
-
que tinha como codinomes “Sargento”, “Cláudio”, “Castro”, “Célio.”
732
SIRKIS, Alfredo.
Os Carbonários.
São Paulo: Glo
bal, 1994, p. 213.
733
Carlos Eugênio Paz, depoimento.
311
o dinheiro pago pelos banqueiros brasileiros, mas, para isso, a gente tinha que ir até os
bancos e recolher o dinhei
ro para ter condições de pagar tudo isso, que era muito caro.”
734
A Organização não queria que seus militantes fossem colocados no Brasil pelos
cubanos.
É importante observar que a organização, neste momento, estava extremamente
militarizada. Conforme Paul
o Cannabrava
“a radicalização desse processo chegou a tal ponto que era suficiente ter
preparo militar para se considerar um líder revolucionário. Lembro de uma
ocasião de que eu lamentava a morte do amigo e companheiro Câmara
Ferreira, também chamado de
Toledo. “Quantos anos seriam necessários para
termos um quadro com a formação e a experiência do Toledo?
-
Perguntei. Um
jovem de uma das tantas dissidências saídas da ALN me contestou com a
maior cara-
de
-pau: “ora, que é isso! Com três ou quatro assaltos a banco e
com algum enfrentamento com os milicos se tem um quadro mais
qualificado que esse Velho ... “mas, pior que isso, o próprio Toledo, quando
inquirido pelo companheiro Ziga, no início de 1970, sobre o abandono da linha
de massas, respondeu que a Ação Popular (AP) e outros partidos fariam isso,
pois o papel da ALN era fazer a revolução! Ziga era da Dissidência Estudantil,
grupos de jovens comunistas que não concordavam com a linha oficial do PCB
e pregavam a luta armada. Ziga integrou um dos primeiros grupos que foi
treinar guerrilha em Cuba.”
735
Para Paulo Cannabrava, houve um predomínio de uma vertente militarista dentro
da ALN, que levou a um afastamento da linha de massas e das concepções
estratégicas que pretendiam atrair a população para o projeto revolucionário. Sobre
Joaquim Câmara Ferreira, ele diz:
“nem ele era um quadro preparado para dirigir uma organização armada, no
meu entender. Então ele volta e tava todo mundo entusiasmado com questão
das ações armadas. Eu ainda até conto isso n
o meu livro, conto aí que pô. Nas
ações de massas os partidos políticos fazem e tal, nós vamos fazer guerra.
Então o abandono da linha de massa e das concepções estratégicas de
preparar né, um exército e tal, tal. Então se havia perdido o caráter
estrat
égico da guerra popular, e se havia perdido o comando da
organização, e, nessas circunstâncias, de comandar uma organização
734
Idem.
735
CANNABRAVA, op. cit., p.107
-
108.
312
degringolada, esfacelada né? com um bando de mortos, presos, torturados,
quer dizer, já estava comida pela repressão, já es
tava infiltrada pela repressão.
(...) Então, o que eu realmente não consigo entender é como é que o Câmara
Ferreira, um intelectual, que todo mundo respeitava que participou tanto da
elaboração, das estratégicas, das táticas e das teorias e das teses e tal, como
é que ele abandona assim a linha da massa e se deixa levar pelo
espontaneísmo pequeno burguês de uma juventude militarizada assim e tal,
que acha que pegou num pau furado, já é um comandante entendeu? assaltou
um banco é dirigente revolucionário, quer dizer, um negócio assim meio
doido que tava acontecendo.”
736
Renato Martinelli reforça a posição de Paulo Cannabrava sobre o militarismo
dentro da ALN, ao mesmo tempo em que enfatiza a falta de experiência militar dos
líderes da ALN. Para ele,
“acontece, não sei, não sei, eu falo em N experiências de comando. Nossos
comandantes. Todos nossos comandantes o revolucionários que a gente
respeita e tem o mais profundo respeito por eles e o respeito que se deve a
qualquer revolucionário, mas eles não tinham experiência da luta armada
revolucionária. Não tinham essa experiência e não tiveram tempo de acumular.
Por quê? Até por erro nosso que é a participação deles na frente. A própria
operação de expropriação e de propaganda foi um grande erro. Na frente de
batalha. (...) Eles são líderes e carismáticos e nós, em vez de proteger os
nossos líderes. Até por insistência deles. Até por uma, por eles defenderem
essa posição na frente de ação pra ter uma posição diferenciada da burocracia
do Partido, mas se
expuseram. Então o que acontece? Perdem o comando e a
situação começa ir de mão.”
737
Frei Betto esteve preso entre 1969 e 1973. Durante este tempo, presenciou
diversas tentativas de análises deste período, feitas por esses jovens que também
estavam
presos e que haviam participado da luta armada. A análise era no sentido de
entender o que havia acontecido no desenrolar da construção do processo
revolucionário no Brasil. Conforme ele, nunca conseguiam chegar a uma conclusão.
Entretanto, a impressão que lhe ficou do que ele ouviu dos antigos militantes
combatentes da ALN era a de que,
736
Paulo Cannabrava, depoimento.
737
Renato Martinelli, depoimento.
313
“da estrutura burocratizada e inoperante do PCB, Marighella passara a um
movimento de forma indefinida, no qual predominava o ativismo militarista.
Muitos ingressaram na Organização sem nenhum preparo político, movidos
pela mística revolucionária, acreditando que a luta obedeceria a um
desenvolvimento linear, até a vitória final. O primado da ação respaldava-
se
no princípio da autonomia tática, que permitia a grupos armados
interpretarem, a seu modo, o que fazer, sem que nenhum comando ou
coordenação pudesse impedi-los de agir. A prática revolucionária restringia-
se quase que exclusivamente às ações armadas que, sem apoio popular,
tornavam
-se cada vez mais vulneráveis à ofensiva da repressão. Não se
fazia trabalho político de massa, nem se sabia exatamente como incorporar
os trabalhos à luta política. A guerrilha, praticamente restrita às cidades,
colocava
-se como alternativa ao trabalho de base, à organização popular,
como se ela fosse capaz de, por si só, deflagrar o descontentamento latente
no povo, materializando-
o no efetivo apoio ou participação na luta.”
738
É claro que, conforme o mesmo Frei Betto analisa, não se pode avaliar de forma
tão simplista aquele contexto, sem contar que “é cômodo julgar, do alto de nossas
idéias tão arrumadas, impecavelmente imaculadas, a prática de quem ousou sujar as
mãos quando o regime militar não admitia nenhuma forma de luta legal.”
739
Entretanto, ele enfatiza também que, apesar do sacrifício de vidas valiosas, não se
pode eximi
-
las da crítica e da autocrítica.
É importante observar que o próprio Joaquim Câmara Ferreira havia
observado e demonstrado preocupação com esse processo. Roberto de Barros Pereira
relatou uma situação que ilustra muito bem a análise que Frei Betto fez do período.
Conforme ele, a Organização foi expropriar a fábrica da Villares, em São Paulo. A idéia
era fazer a ação quando os dois carros fortes entrassem no pátio da empresa. Porém,
houve um atraso no horário, e, quando a ação estava sendo realizada, soou o sinal
para o almoço dos operários, que saíram e presenciaram a expropriação. Um dos
guerrilheiros que participavam da ação subiu em cima do carro forte para explicar o
significado da ação dizendo que aquele era dinheiro do patrão, e que os operários não
738
BETTO, op. cit., p. 54.
739
Ibid., p. 53.
314
iriam perder nada. Diante desta situação, muitos operários começaram a pegar pedras
e jogá-las nos guerrilheiros, numa revolta muito grande. Roberto de Barros disse que
conversou sobre isso com Joaquim Câmara Ferreira, enfatizando: “(...) Toledo, isso é
uma situação né, que o operariado mesmo está contra a gente”
740
. E, ao ser
perguntado sobre a percepção de Câmara Ferreira sobre o fato, ele disse o seguinte:
“ele também tava preocupado com isso. Então, ele começou a ficar muito
preocupado, o Toledo, porque na realidade, a visão que ele tinha da coisa foi
sendo superada. Não sei se vou chamar de voluntarismo, é um troço meio
complicado, um troço meio... Eu não sei. Eu não acho. Eu não quero falar
voluntariado,
mas essa ação, porque depois teve que ter mesmo, não tem
jeito! Porque daí, o cara vive em clandestinidade e tal, é um troço bem
complicado. Mas sem essa parte política, você ta entendendo? Isso nós
perdemos. Na realidade, ele tinha consciência disso, o Toledo. E ele sempre
falou isso e depois, o negócio evoluiu muito rápido. Foi, ele queria justamente
evitar que virasse uma ação militar porque ficou um confronto militar, no fundo,
e nós como marginais, entendeu? Não tinha ação, não tinha conscientização
mais. Porque começou a ficar muito difícil, inclusive, você trazer gente para a
ALN, cara, movimento de guerrilha. Todo mundo, como é que é? Entendeu?
Quando eu entrei na ALN tinha uma perspectiva. Todo mundo achava que o
negócio tinha que caminhar assim mesmo. Tinha que ir pra luta armada. Tinha
que fazer um projeto todo para levar a guerrilha pro campo, certo? Tinha
que fortalecer o meio operário porque, na realidade, a ALN foi reflexo daquele
tempo porque era muito mais classe média do que operário.”
741
Daí, podemos entender a posição de Joaquim Câmara Ferreira em sua opção de
centralizar a Organização diferentemente do que havia pensado Marighella. Segundo
Carlos Eugênio Paz,
“Toledo quer centralizar a organização, a partir de agora nada pode ser f
eito
sem autorização do comando. (...) Toledo acredita numa organização
centralizada, ao contrário de Marighella, que incentivava a atomização e a
iniciativa de cada grupo. É verdade que os tempos mudaram, os DOI CODI
unificaram a repressão ... Toledo não tem o carisma e o vôo teórico de
Marighella, mas tem visão estratégica, um plano de luta, vontade férrea, e é
reconhecido pelas outras organizações de luta armada.”
742
740
Roberto de Barros Pereira, depoimento.
741
Idem.
742
P
AZ, Carlos Eugênio.
Nas trilhas da ALN: memórias romanceadas.
op. cit., p.47.
315
O mesmo Carlos Eugênio esclarece a diferença de formulação na estrutura ALN
por aque
les que foram os seus principais dirigentes:
“Toledo muda completamente o estilo da ALN, nos aproximando das
organizações tradicionais da esquerda. Com Marighella, a ação fazia a
vanguarda, não precisávamos pedir licença para praticar atos revolucionári
os.
Essa atomização permitiu nossa participação no seqüestro do embaixador
norte
-americano que Toledo defendia. Marighella era contra. A concepções de
Marighella desenvolveram a iniciativa de nossos militantes, em oposição ao
imobilismo do Partido, quando esperávamos sempre as decisões das
instâncias superiores. Agora centralizamos tarefas e o comando. Toledo
imprime a sua marca.”
743
Para Joaquim Câmara Ferreira, a necessidade de centralizar a organização se
devia ao conhecimento adquirido pelos órgãos re
pressivos sobre a forma de atuação da
guerrilha, e também era uma forma de controlar as ações armadas, sem coordenação
política. Para ele, havia se perdido a vantagem da surpresa. Assim sendo,
“sem quebrar
a segurança, devemos fazer circular as idéias. Não podemos manter segredo total, os
companheiros devem saber como estão sendo encaminhadas as questões táticas e
estratégicas, e a direção tem de saber o que pensa a maioria dos militantes.”
744
De
acordo com Carlos Eugênio Paz,
“a Organização, a ALN, até enquanto Marighella estava vivo, foi uma. A partir
do momento que o Marighella morreu e o Toledo passou a imprimir uma marca
mais pessoal dele, ela se modificou. Apesar de ela tentar manter e até
conseguir, em grande medida, manter essa liberdade de pensamento, ela ... ,
o Toledo começou a dizer o seguinte: já que a repressão agora já nos atingiu a
um tal ponto, que a gente tem que centralizar mais a organização, manter um
controle maior sobre os nossos militantes, porque ele dizia: não mais pra
gente continuar atuando dessa maneira descentralizada e horizontalizada. (...)
a partir do momento em que o Toledo passou a imprimir essa marca mais
pessoal, a organização ficou mais centralizada.”
745
743
PAZ, Carlos Eugênio. Viagem à Luta Armada: memórias romanceadas. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1996, p. 161.
744
PAZ, Carlos Eugênio.
Nas trilhas da ALN: memórias roma
nceadas.
op. cit., p. 43.
745
Carlos Eugênio Paz, depoimento.
316
Para Renato Martinelli, Joaquim Câmara Ferreira, além da própria centralização
da ALN, pensava na possibilidade de uma unificação das organizações armadas de
esquerda, em termos não de ações conjuntas, mas também de um comando único.
Conforme ele:
“com relação à coisa interna da organização, uma da resolução do comando é
a tentativa de reunificar o movimento, de unificar. Reunificar não porque ...
falar em unificar porque nunca teve unidade. Unificar o movimento das
organizações de política armada, ? Através, inclusive, através de
organizações e através de lideranças como Carlos Marighella. Perdão, como
Carlos Lamarca, né? E outras lideranças e organizações que estavam
atuando, através da unificação organizacional, não mais através de núcleos
de ões. Uma coisa mais centralizada do que essa organização meio
anárquica da ALN, de grupos de ação, ação, revolução, aquele tipo de coisa.”
746
É importante se observar que havia um pólo de tensão entre os militantes que
faziam trabalho político e os que se dedicavam às ações armadas. Joaquim Câmara
Ferreira tentou resolver esta questão colocando os dois grupos em contato, para que
ambos tivessem a oportunidade de perceber a importância do trabalho do outro.
Segundo Carlos Eugênio Paz,
“Toledo precisa de dinheiro para depois de amanhã, dessa vez exagerou. Ele
exige a
participação de um companheiro da Frente
-
de
-
massas, acredita que os
companheiros vão entender como é difícil e importante o trabalho armado, e
que nós vamos ver que eles podem ser úteis, que estão na luta como nós etc.
Um carro pagador com dois guardas recolhe o dinheiro do comércio do bairro
e transporta para o banco. Não havendo expediente aos sábados, um outro
guarda e o gerente abrem a porta, é o momento ideal para rendê-los. Os
companheiros da Frente-
de
-Massas não têm prática de ação e não sabem
atira
r, vamos ter problemas.
Será tão grave assim? Essa vai ser minha primeira ação deste nível, e
confiam em mim...
Rafael tem razão, seu caso é diferente, vive nossa realidade e es
disposto a tudo, o que não é o caso de Júlio. Ele virá despreparado e chei
o de
críticas aos militaristas, com a disposição de provar que pode fazer ações
armadas, mas fica no trabalho político por ser mais importante. Até agora não
746
Renato Martinelli, depoimento.
317
vi as massas que eles estão recrutando e aglutinando, mas isso não vem ao
caso.”
747
Havia a necessidade de recursos para que a ALN conseguisse realizar a
guerrilha rural. Entretanto, não era fácil, pois se corria contra o tempo. Recursos
financeiros eram cada vez mais difíceis de obter, devido à pouca estrutura dos grupos
táticos armados desmantelados pela repressão e dificultados pela falta de recrutamento
de novos militantes. Além disso, os próprios bancos reforçavam a segurança em termos
de homens e armamentos. Porém, as ações passaram a ser realizadas somente pela
ALN ou em conjunto com outras org
anizações. Conforme Carlos Eugênio,
“Toledo estava certo, tínhamos de novo uma Equipe de fogo em São Paulo.
Ela realizou algumas das ações mais importantes da luta armada sozinha ou
em Frente com o MRT ou a VPR. O brinks da rua Estados Unidos, e os
assalt
os da Mangels, da Aço Vilares e da Ericsson, foram ões exemplares
da audácia, organização e combatividade desse destacamento.”
748
Além dessas preocupações com a reestruturação da ALN, a construção de uma
“Frente Ampla”, a volta de militantes de Cuba e o preparo da guerrilha rural, havia a
preocupação com a própria segurança de Joaquim Câmara Ferreira, que, mesmo
sendo o homem mais procurado do Brasil naquele momento, continuava cobrindo
pontos, o que, segundo Carlos Eugênio, dificultava sua proteção. Conforme as palavras
de Carlos Eugênio, “será difícil preservar Toledo, ele é ofensivo, gosta de estar na
frente, como Marighella. Admiro os homens como eles, dando o exemplo e vivendo
como pregam, mas trabalho preservá-
los.”
749
Para Carlos Eugênio, após a morte de
Marighella, Câmara Ferreira era o próximo da lista. Em sua opinião, havia a
747
PAZ, Carlos Eugênio.
Viagem à Luta Armada: memórias romanceadas
. op. cit., p. 39
-
40.
748
PAZ, Carlos Eugênio.
Nas trilhas da ALN: memórias romanceadas.
op. cit.,
p. 67.
749
PAZ, op. cit., p. 48.
318
necessidade de preservar sua vida como forma de garantir a Organização e continuar a
luta. Conforme ele, “se Toledo deixasse, eu o levaria para minha casa, cobriria seus
pontos, faria suas tarefas, e ele ficaria planejando, como na história do cego e do
coxo. Daria minha vida por ele.”
750
A análise de Carlos Eugênio estava correta se observarmos que a própria família
de Joaquim Câmara Ferreira sofria pressões dos órgãos de repressão que tentavam
encontrá
-lo a todo custo. Leonora Cardieri foi levada para OBAN, para interrogatório,
neste ano de 1970. Conforme ela
“no dia 06 de janeiro de 1970, oficiais da Operação Bandeirantes, quatro deles,
armados de revólveres, surgiram em meu apartamento. Sabia que muito
estava sendo procurada, pois por duas vezes tinham estado em minha antiga
casa, Vila Madalena, à nossa procura. Eu há muito os esperava. Jamais supus
que ignorassem que eu era funcionária pública aposentada, fazia mi
nhas
declarações de imposto de renda, tinha meus filhos freqüentando Faculdades,
tinha telefone. Aliás, quando me mudei, transferi o telefone a pedido de meu
marido, prova cabal de que não me ocultava, nem fugia. (....) Estava sozinha
no apartamento e fui levada para rua Tutóia. Meu filho e minha nora não se
encontravam em casa. Ele estudante e trabalhando, e ela também. Não pude
deixar aviso nenhum, a não ser rabiscar umas palavras com autorização
deles que “precisava sair e esperava voltar logo”. Eram 4 horas da tarde.
Foram buscar os dois às 6 horas, levando, inclusive, a chave da porta. (...) Às
18 horas subi para ser interrogada por tal de Herman. Aliás, não sei se os
nomes eram reais, pois usavam nomes de “guerra”. Um interrogatório suis
generis, cheio de provocações e armadilhas. Queriam principalmente saber
onde se encontrava meu marido. E, embora só eu e Raquel soubéssemos que
regressara ao Brasil, afirmei que, de acordo com as informações oficiais da
imprensa e do SNI, ele devia estar no Urugua
i ou Cuba. Tive calma e coragem
suficientes para responder-lhes. (...) Também queriam saber como minha filha
e meu genro haviam viajado para o exterior. Afirmei-lhes que decidíramos que
saíssem do Brasil porque meu genro fora detido por ocasião do Congress
o
Estudantil de Ibiúna e que, sendo genro do Câmara, temíamos pela segurança
deles. Que tiraram passaporte na Secretaria de Segurança, ele viajou com
autorização do SNI, que seguiram dia 06/10/69. (...) O interrogatório de meu
filho foi mais provocador ainda, principalmente porque se tratava de um
estudante e da Poli. Além das perguntas em relação a sua irmã e cunhado que
confirmou sem o saber, o que eu já dissera, havia outras como esta: se
encontrasse como o pai, na rua, se o denunciava. A que ele retrucou: “o
senhor o faria?” Insistiram: “mas nós perguntamos a você? Denunciava? E ele:
o senhor o faria? Depois indagaram também se numa guerra entre Brasil e
750
PAZ, Carlos Eugênio.
Viagem à Luta Armada: memórias romanceadas
. op. cit., p. 36.
319
Cuba, de que lado se colocaria. Teve a presença de espírito de dizer que não
lutaria. Tipo de provoca
ção grosseira e de evidente ignorância.”
751
Neste contexto, a necessidade maior da ALN e o empenho de Joaquim Câmara
Ferreira se pautavam por retirar a Organização do cerco estratégico que ocorria dentro
da cidade e fatalmente poderia levar ao extermínio absoluto. E foi nesta tarefa que
Joaquim Câmara Ferreira estava trabalhando arduamente nos meses que antecederam
a sua morte. Neste período, ele estava muito preocupado com os rumos da luta. Ao ser
perguntada se, neste período, Joaquim Câmara Ferreira em algum instante poderia ter
pensado que no final as coisas não dariam muito certo, Guiomar Silva Lopes disse o
seguinte:
“não sei, mas eu acho que ele estava muito preocupado (...) eu não sei, mas
ele estava muito preocupado. Ele sabia que a gente estava numa situação
assim muito cercados pela repressão. Eu acho que ele tinha essa
preocupação, tanto que ele queria sair rapidamente para o campo. Aliás, eu
até acho que era uma possibilidade de sair porque de repente, estamos todos
cercados aqui. Talvez ir para o campo, não sei, fosse um refúgio melhor do
que a cidade, que ele tinha. Ele estava realmente preocupado.”
752
Outro que confirmou a extrema preocupação de Câmara Ferreira foi Maurício
Segall, que o transportava de carro para várias atividades que ele realizava: “Como eu
disse, eu era ascético, tanto é que eu, nas minhas viagens com o Toledo, eu comecei a
sentir que a coisa ia engrossar. O próprio Toledo ficou muito tenso, pessimista. Eu falei:
bom, isso vai dar pepino.”
753
Ao ser perguntado se Câmara
Ferreira achava isso, Segall
deu a seguinte resposta: “ele nunca falou claramente, mas estava na cara que ele
751
Leonora Cardieri, diário.
752
Guiomar Silva Lopes, depoimento.
753
Maurício Segall, depoimento.
320
achava, porque estava caindo muita gente. Eles estavam tão bem infiltrados, quem
vinha de Cuba era bufe, era pego na hora, eles sabiam de tudo.”
754
E Segall tem razão ao afirmar que a situação era extremamente difícil, e que
havia uma grande preocupação por parte de Câmara Ferreira, pois, segundo Leonora
Cardieri :
“o trabalho estava muito difícil, muitas prisões e traições. E principalmente a
pr
isão de Eduardo Leite
O Bacuri
, em agosto de 1970, o preocupava muito.
Não tanto pela confiança, pois sabia que era fiel e leal. Mas não podia
compreender como fora preso. Acreditava em traição. E Bacuri foi
torturadíssimo. Quem teria levado à prisão.”
755
Nesse momento, a ALN se encontrava numa posição de defesa e recuo e,
segundo a mesma Guiomar Silva Lopes, Joaquim Câmara Ferreira tinha uma visão
clara disso e sabia que teria que dar um novo rumo à luta armada. Ela enfatiza, porém,
que
(...) que não dava. Por quê? Porque a Organização não tinha uma
retaguarda muito boa. Então, aquele exército de pessoas clandestinas.
Sustentar um exército não é brincadeira! É caríssimo, é caríssimo. Então, o
que que a gente tinha que fazer? Todo dia tinha que fazer uma ação para
sustentar o exército. E aí, toda vez que a gente fazia uma ação, ora
aumentava a repressão, aumentava o risco, aumentava a situação de
exposição mesmo.”
756
Essa retaguarda, Joaquim Câmara Ferreira tentou obter retomando os
contatos c
om as áreas que haviam sido perdidas. A princípio, essa missão ficou a cargo
do comandante Raúl Soleto Souto Mayor, passaporte peruano, que na verdade era o
ex
-líder estudantil paulista Washington Mastrocinque Martins, que desembarcou no
Brasil em 15 de janeiro de 1970. O comandante Raúl, acompanhado de Zelik Trajberg,
754
Maurício Segall, depoimento.
755
Leonora Cardi
eri, diário.
756
Guiomar Silva Lopes, depoimento.
321
que também havia retornado, percorreram várias regiões do interior do Brasil, checando
a estrutura de campo que havia sido pensada para guerrilha rural, e nada encontraram.
Diante de tal situação, Washington propõe um recuo que não foi aceito por Câmara
Ferreira, que pensava ser possível uma retomada do processo revolucionário. Na
entrevista a Luís Mir
757
, Washington disse que no mês de abril foi para o exterior e
chegou a Havana, em maio, para montagem da operação de retorno do grupo
guerrilheiro. Entretanto, em julho e agosto de 1970, estava em Paris. Numa conversa
com Aloysio Nunes Ferreira e Frei Oswaldo Rezende, ele explicou os motivos pelos
quais estava desertando, após tentar convencê-
los
a apoiar um pedido coletivo de
parada da luta.
Câmara Ferreira, entretanto, tinha consciência das dificuldades e da fragilidade
da Organização, pois, em março de 1970, ele pediu que Frei Oswaldo Rezende
voltasse a Cuba para ver como estava a situação. Conforme Frei Oswaldo Rezende,
“aquilo estava terrível, né? Ele pediu o seguinte: você tem que acalmar o pessoal
porque eles não podem voltar pro Brasil. tinha um punhado de gente que tinha
feito treinamento. Estava mofando, e se sentiu mofando e
queria voltar pro Brasil.”
758
Além disso, outros dois fatos também esclarecem a visão de Câmara Ferreira
sobre o processo que se desenvolvia. O primeiro foi com relação a Carlos Eugênio Paz.
A mãe de Carlos Eugênio, que também participava da luta aramada, preparava-se para
sair do Brasil e ir para Cuba fazer um curso de “enfermagem de guerra.” Numa
conversa com Joaquim Câmara Ferreira e Carlos Eugênio, antes de sua partida, ela
757
MIR, op. cit., p. 557.
758
Frei Oswaldo Rezende, depoimento.
322
expunha a possibilidade de o filho sair do Brasil, pois estava muito visado p
elos
militares. Conforme Carlos Eugênio, o dialogo se deu da seguinte forma:
“só fico preocupada, Toledo, com a segurança de Clamart. Ele é muito visado,
desertor do Exército atrai muita raiva, farão de tudo para pegá-lo e sabem
que está em São Paulo.
Não seria o caso de sair também durante um tempo?
- Entendo sua preocupação , Marta. Em momentos melhores o correto seria
sair, esfriar um tempo e depois voltar, mas agora é impossível, preciso dele
para reestruturar a Organização. Tem formação militar, muita disposição, e
conta com a confiança dos combatentes. O lugar de Clamart é no Brasil.”
759
O segundo fato foi em relação a Juca Kfouri. Quando Juca Kfouri conheceu
Joaquim Câmara Ferreira, comprometeu-se com ele em fazer o Curso Preparatório de
Oficia
is da Reserva (CPOR) para adquirir treinamento militar e ingressar nos grupos de
combatentes da ALN. Kfouri se apresentou como voluntário para servir em 1970, que
havia sido dispensado por excesso de contingente. Porém, em 1970, Kfouri recebeu um
convit
e de emprego para trabalhar na Editora Abril, na “Revista Placar.” Entretanto, ele
não queria romper o trato que havia feito com Joaquim Câmara Ferreira. Então, pediu
um ponto com Câmara Ferreira e lhe expôs a situação. De acordo com Kfouri:
“ele (Câmara Ferreira) virou-se pra mim e falou: Bira
760
, é o seguinte: se você
pegar a obra do Jovem Marx, você vai ver que lá tem frase que diz o seguinte:
não queira resolver os problemas dos outros antes de resolver os teus. Vai e
resolve o teu problema! Se o que tá
te levando para o CPOR é o compromisso
que s temos, você liberado do compromisso comigo. Te ajudaria, nos
ajudaria e tal, mas você o precisa necessariamente, pra ser um bom
revolucionário, fazer o CPOR. (...) Em seguida o Toledo morre. Ficou
claríss
imo pra mim. O que que aconteceu? Qual foi o raciocínio dele? Ora, ta
tudo indo pro diabo. Quem tá, tá, não tem recuo. Quem eu to trazendo
vão se embora, vou tomar conta. Mas, poxa, esse moleque começando a
vida dele agora. Não é razoável expô
-
lo
a isso porque ele vai se ferrar adiante,
entendeu? E, na medida que ele tinha a visão de que as coisas estavam tavam
como tavam, em bom português, ele poupou minha vida, entendeu? Porque se
ele me diz: não Juca! Espera aí, nós estamos precisando, nós estam
os
fazendo um grupo e tal, eu ia, eu ia. Claro que eu ia, entendeu? Se ele não me
liberasse, se eu não tivesse. Não é nem ele me liberasse. Se eu não tivesse
759
PAZ, Carlos Eugênio.
Nas trilhas da ALN: memórias romanceadas.
op. cit., p. 61
-
62.
760
Bira era o codinome utilizado por Juca Kfouri na ALN. Era uma homenagem ao jogador de basquete Ubiratã.
323
conseguido me encontrar com ele e ele me dizer: cai fora! Eu teria ido e,
provavelmente não estava
mais aqui, né? Porque depois foi aquele morticínio.”
761
No entanto, a possibilidade de continuação da luta armada teria que ser
simultaneamente campo e cidade. Dentro desta concepção, Joaquim Câmara Ferreira
escalou um novo militante para a retomada dos contatos com as áreas rurais, no lugar
de Washington Mastrocinque. Foi escolhido Renato Martinelli. Martinelli havia retornado
ao Brasil no mês de junho de 1970. Conta ele:
“agora, no Brasil, no começo de julho de 1970, conversando de maneira
calma e demorada, entre outras notícias, Câmara Ferreira me conta que,
dentre aqueles companheiros que haviam regressado de Cuba, tivéramos
umas seis baixas: um morto em condições inexplicáveis, o companheiro
Norberto Nehring, o "Francisco"; dois presos, o "Protino" e o "Pedrinho"; dois
outros desligados, o "Ramon" temporariamente e o "Tanaka" definitivamente.
Esse número aumentava para sete ao incluirmos o companheiro Agostinho
Fiordelisio, o "Ernesto", ou "Italiano", que, não aceitando a composição do
novo comando da ALN, decidira abandoná-la ainda em Cuba. Em seguida,
Câmara Ferreira me transmite o fato mais surpreendente, de características
diferentes dos anteriores: o companheiro que ele havia encarregado do enlace
com o pessoal da base regional do norte, área considerada estratégica pela
organização, em Belém do Pará, havia desertado durante uma viagem à
Europa. Logo ele, em quem Câmara Ferreira confiava tanto! Felizmente tinha
informações seguras que afirmavam que ele não havia passado para as fileiras
do inimigo, portanto a área estratégica e demais conhecimentos que possuía
estavam garantidos, não corriam o mínimo perigo: o "Raul" desertou,
desembarcou de um avião na Espanha quando voltava para o Brasil, alegando
doença
-
disse
-
me Câmara Ferreira.
Vai ver que realmente estava doente. Porque não aguardamos a sua volta por
mais uns dias
-
respondi.
Você não me entendeu bem, não volta mais, as informações que recebi
afirmam que interrompeu a viagem de volta por medo - respondeu Câmara
Ferreira, um tanto contra
riado, dando o assunto por encerrado.
Em seguida, o companheiro me conta dos planos e da urgentíssima
necessidade que tínhamos de retomar os contatos interrompidos com o
pessoal encarregado da área estratégica, uma das responsabilidades do
"Raul", pois, entre outras medidas, era preciso preparar todas as condições
para encaminhar para parte dos combatentes que estavam voltando dos
treinamentos em Cuba.
Essa era a missão que o Comandante Câmara Ferreira, naquele mesmo
instante, me entregava. Enquanto eu ia retomar os contatos com o pessoal de
Belém, no Pará, ele mandaria emissários para outros estados, com a
finalidade, entre outras, de organizar retaguardas logísticas.”
762
761
Juca Kfouri, depoimento.
762
Memórias escritas por Renato Martinelli que foram entregues ao autor por ocasião da entrevista, em São Paulo.
324
Martinelli foi enviado para Belém do Pará para fazer contato com aquela que era
a base urbana da Organização para a implantação da guerrilha rural, que se
concentraria no sul do Pará, Maranhão, São Félix do Araguaia.
“A base urbana principal
de apoio dessa, da chamada , da chamada guerrilha rural, é Belém.”
763
A primeira e
mais urgente tarefa de Martinelli era contatar os militantes. De acordo com ele,
“o pessoal estava paralisado porque o Raúl tinha ido pro exterior com uma
missão, a de preparar com os companheiros de Belém do Pará a chegada
desse pessoal de Cuba, com o pessoal que estava aqui como eu e os
companheiros pra, pra levar pra base rural pra começar os trabalhos, né?
Preparação, ou seja, havia um núcleo mínimo, mas pra receber esse
pessoal.”
764
Além disso, Joaquim Câmara Ferreira enviaria emissários para outros locais do
país, como o nordeste, centro e sul para tentar realizar um trabalho que objetivava tirar
militantes de São Paulo que estavam muito marcados pela repressão. Sem contar que
tal esquema serviria para despistar a repressão do foco principal, que era o norte.
Martinelli afirmou que o trabalho em Belém do Pará havia começado em 1968 após
contatos de Marighella com militantes locais, estudantes e dominicanos que haviam
visitado São Félix do Araguaia.
O próprio Câmara Ferreira, segundo Carlos Eugênio, expôs, nesse período, os
caminhos que estava trilhando para continuidade do projeto revolucionário. De acordo
com ele, Joaquim Câmara Ferreira disse:
“como vocês sabem, tenho tentado recontactar as áreas de campo que
estavam em mãos de Marighella. Após meses de esforço, começamos a ser
recompensados. Recuperamos vários companheiros e uma parte da infra-
estrutura que se estava construindo para o apoio logístico da Coluna
Guerrilheira que pretendia lançar no final do ano passado., planos
interrompidos com seu assassinato. O papel da Coluna seria criar uma
763
Renato Martinelli, depoimento.
764
Idem.
325
alternativa de poder, politizando a região central de nosso país, realizando
ações de propaganda armada, expropriações de armas, dinheiro e explosivos,
servindo também para o escoamento de nossos quadros queimados, pois
sabemos como é difícil preservá-los nas cidades, onde a repressão está
concentrada, e temos dificuldades imensas para atuar na clandestinidade.
Tenho mandado algumas famílias se instalarem no centro do país pra nos
servirem de esconderijo e comunicação, nada de fazer política, isso é para a
coluna. Compramos alguns sítios para depósito de armas, munições e clínicas
clandestinas. Estou fazendo contato com líderes do movimento camponês que
foram ou ainda são do Partido, mas que esperam a luta armada chegar para
se integrarem de uma forma ou de outra. Vai caber a eles capitalizar as vitórias
militares da coluna guerrilheira. A guerrilha vem, faz a propaganda armada,
levanta a bandeira de luta, e as esses companheiros é dada a tarefa de
convencer, g
anhar e organizar a população local. Em nossos encontros, dizem
que muita revolta no interior e que as condições para a guerrilha estão
maduras, muita gente vai aderir quando a centelha for acesa. Precisamos de
uma vanguarda armada que resista tempo suficiente para que possam
canalizar o descontentamento. Não adianta fazermos grandes ações sem uma
retaguarda sólida. Defini uma área afastada mas com um bom acesso às
zonas de combate, onde comprei, através de companheiros de extrema
confiança, uma propriedade pra me instalar após o lançamento da Coluna,
para centralizar o planejamento e as decisões estratégicas. Em outras regiões,
vamos instalar pequenos sítios para alojar grupos de combatentes em caso de
recuo.”
765
Martinelli retornou desta primeira viagem a Belém e fez um relatório para
Câmara Ferreira. Havia problemas políticos, pois o pessoal havia sido abandonado por
Marighella, que fora assassinado, e Raúl, que desertara. Em Belém, não eram previstas
ações armadas para não chamar a atenção da repressão. Martinelli resolveu os
problemas e solicitou dinheiro a Câmara Ferreira para a compra de terras e um barco.
Após isso, ficou acertado que Martinelli retornaria a Belém do Pará, e que o próprio
Câmara Ferreira visitaria a área rural, fazendo se passar, juntamente como outros
militantes, de simples pescadores paulistas passeando pela região.
Os contatos com a direção da ALN em Belém do Pará nunca eram diretos. Havia
um contato indireto que marcava o encontro do militante com a Organização através de
pon
tos que eram marcados.
765
PAZ, Carlos Eugênio.
Viagem à Luta Armada: memórias romanceadas
. op. cit., p. 54.
326
Entretanto, antes da viagem de Joaquim Câmara Ferreira para o reconhecimento
da área rural, houve uma série de prisões de militantes em Belém, inclusive a de José
da Silva Tavares, codinome “Severino”, que fez o acordo com o delegado Sérgio
Fleury, trocando a sua vida pela de Joaquim Câmara Ferreira. De acordo com
Martinelli,
“viajei para Belém duas vezes. A segunda delas foi no principio de setembro
de 1970. me encontrava quando foram presos vários companheiros da
direção da ALN da região. Entre as prisões do dia 8 de setembro de 1970,
ocorreu a de um militante treinado em Cuba, que chegara dois dias antes a
Belém, proveniente de São Paulo . Tratava-se do futuro traidor, José da Silva
Tavares, que é preso na estação rodoviária de Belém quando ia tomar um
ônibus para a cidade de Imperatriz, no Maranhão. Se lograsse chegar à
Imperatriz, "Severino" seria conduzido por companheiros da ALN para o
interior da região, onde se localizava uma base rural da organização.”
766
A técnica para prender Joaquim Câmara Ferreira seria a da infiltração, a
serpente no ninho. Conforme Percival de Souza, o planejamento para matar Joaquim
Câmara Ferreira foi realizado numa parceria de Fleury com o CENIMAR. “A operação
foi demorada e constituiu fundamentalmente em doutrinar um prisioneiro ferido, José da
Silva Tavares, da ALN, recolhido ao Hospital Militar de Belém do Pará.”
767
Severino
conhecia muito bem a Organização e sabia as técnicas dos combatentes. Após cumprir
o trato com Fleury, seria solto, sem que ninguém soubesse de sua colaboração.
Percival de Souza esclarece que:
“Tavares tinha sido baleado em tiroteio. Era da ALN. A conversa foi muito
franca, direta e objetiva. Fleury deu-se ao trabalho de explicar, didático
repressor, que pretendia desenvolver uma investigação linear, de início,
seguida de uma investigação circular. Tavares, que a princípio não entendeu o
que ele queria dizer com isso, teria de participar dela, senão desapareceria do
766
Renato Martinelli, memórias.
767
SOUZA, op. cit., p. 257.
327
mapa, do mesmo modo que alguns guerrilheiros do Araguaia nunca mais
seriam vistos. Linear seria uma seqüência de manter e reatar contatos;
circular, para atrair a um encontro o líder Joaquim Câmara Ferreira, Toledo.
Fleury disse a Tavares que ele estava nas mãos, poderia ser um morto a mais,
mas teria a palavra, que ele sempre honrou, de poder desaparecer do cenário
da guerra revolucionária tão logo Toledo fosse localizado, capturado ou morto.”
768
Para os órgãos de repressão, não era muito fácil prender um homem como
Joaquim Câmara Ferreira. Como vimos anteriormente, para Câmara Ferreira, um bom
militante comunista era aquele que atuava de forma clandestina, ou seja, teria que ser
invisível. Ele sempre havia atuado na clandestinidade e, ao contrário de Marighella,
nunca se deixava fotografar. As fotos que a repressão tinha dele eram muito antigas e
não permitiam uma identificação. A única possibilidade era ser identificado por alguém
que o conhecesse.
O delegado Fleury, que havia assassinado Marighella, tinha agora como
missão prender e matar Joaquim Câmara Ferreira, naquele momento tido pelos órgãos
de repressão como o inimigo público número um.
A família de Câmara Ferreira passou a ser vigiada constantemente, e, segundo
Leonora Cardieri, “às vezes até acintosamente. E pelo telefone, provocações
cons
tantes, perguntas estúpidas e de uma falta de originalidade impressionante.”
769
Fleury já havia tentado, por meio de tortura de militantes presos, descobrir a
localização de Joaquim Câmara Ferreira. Um desses militantes foi Ottoni Fernandes
Júnior, que foi preso no final do mês de agosto de 1970. Ottoni foi torturado
pessoalmente durante dias pelo próprio Fleury. Segundo ele:
768
Ibid., p. 259
-
260.
769
Leonora Cardieri, diário.
328
“não queriam menos. Fleury sequer pediu meu ponto com Nelson e o pessoal
da Coordenação Regional. O alvo prioritário era Joaquim Câmara Ferreira,
dirigente principal da ALN. Falei a verdade e disse que não tinha contato com
o Velho. Choques, golpes de cassetetes. Meu corpo oscilava no pau-
de
-
arara.
(...) Em tom monocórdio queriam saber do ponto com o Velho, resposta que eu
não tinha.”
770
Diante da situação de queda do projeto de guerrilha rural em Belém do Pará
devido à prisão de militantes, e sem saber que havia sido tramada uma cilada para
pegá
-lo, Joaquim Câmara Ferreira enviou dois militantes para o Pará para paralisar a
missão
.
Martinelli, que não havia sido preso, continuou cobrindo pontos, e se encontrou
com esses dois militantes, que providenciaram junto a Organização, em São Paulo,
novos documentos pessoais para que ele se retirasse de Belém.
De volta a São Paulo, Martinelli se reencontra com Joaquim Câmara Ferreira,
que lhe deu outra missão. Desta vez, ele iria para o Sul fazer contatos. Conforme ele,
“encontro o Toledo. Aí eu vou pro ... o Toledo me mandou pro sul do país fazer
um contato, pra tentar um local lá, né? Um companheiro, velho militante.
chego lá, tenho um contato que me recebe. Devia ser um executivo de alguma
grande empresa estatal, né? Ele me tira o informe do SNI. Diz: olha, isso
aqui! Eu leio o informe dele. Olha: estão esperando a gente. três meses
que tem informação do SNI que a gente ia tentar entrar lá. Sei que o SNI,
me parece que é um serviço de informação de todo grande executivo, né?
Prestar ... principalmente das estatais, mas nós tínhamos companheiros
também que eram executivos. Então, nós tínhamos algumas informações.
Então ele diz: olha, diz pro Toledo ... Aí eu volto pro Toledo e digo: Toledo, lá é
impossível. Inclusive marco um contato dele com o Toledo que ele queria
conversar com o Toledo. nós ... caindo tudo. Nós não temos pra onde
ir. A situação é desesperadora.”
771
770
FERNANDES, op. cit., p. 39.
771
Renato Martinelli, depoimento.
329
Conforme combinado com o delegado Fleury, José da Silva Tavares simulou sua
fuga do Hospital Militar de Belém sob o pretexto ter sido internado após uma tentativa
de suicídio por enforcamento. Sua “fuga” foi oficialmente comunicada, com ênfase à
periculosidade do guerrilheiro. De acordo com Percival de Souza,
“o homem da ALN, que saiu andando do hospital, passou a ser monitorado o
tempo todo, num revezamento sem falhas, pelo trajeto de ônibus que i
ncluiu
várias capitais até concentrar-se no eixo Rio-São Paulo. Tavares, seguindo
rigorosamente o combinado, continuou se comportando como um
revolucionário, contatando gente e ampliando a cada dia as condições de
chegar até Joaquim Câmara Ferreira.”
772
Carlos Eugênio estava cobrindo um ponto com Joaquim Câmara Ferreira quando
Severino se aproximou e fez o primeiro contato com ele, que já estava trabalhando para
a repressão. Carlos Eugênio, desde a primeira vez que se encontrou com Severino,
disse ter a
chado a sua história e atitude muito estranhas:
“estava tomando um café com Toledo e Altino
773
, numa padaria na Vila
Mariana, quando se aproximou. Não o conhecendo, estranhei, e me
preparava para rendê-lo, quando o Velho o reconheceu e foi a seu encont
ro.
Altino treinou com ele em Cuba e ficou feliz também, abraçaram-no efusivos,
mas eu não gostei, senti-o culpado, atormentado, sei ... Apressei a saída,
me senti em combate, sosseguei dentro do carro e bem longe dali.
Confirmou a história dos jornais, mas raramente eles publicam verdades sobre
nós. Mostrou uma mancha no pescoço causada pela corda com a qual teria
tentado se enforcar, contou a fuga e como chegou a São Paulo, mas o me
convenceu. Prendem o cara no Pará, os tiras ameaçam matá-lo e pro
põem
que volte à Organização com a missão de entregar Toledo. Ele topa, vem para
São Paulo, a repressão monta a notícia da fuga e nós caímos como patinhos.
As regras de segurança dizem que uma fuga não controlada deve ser
investigada. Falei com Toledo e ele perdeu as estribeiras, me chamou de
desconfiado, disse que não confio nem na própria sombra e que não tenho o
direito de levantar suspeitas sem provas concretas. Esse cara não me engana,
772
SOUZA, op. cit., p. 260.
773
Al
tino
- Yuri Xavier Pereira, Militante do PCB e um dos fundadores da ALN no Rio de Janeiro. Contava com a
confiança de Marighella e Joaquim CâMara Ferreira, que o indicou para a Coordenação Nacional da Organização
após sua volta de Cuba, onde treinou guerrilha. Foi morto em 14 de junho de 1972, em uma emboscada no bairro da
Mooca.
330
está vendo, nem consigo chamá-lo de companheiro. Marcela
774
, o primei
ro
instinto é o que vale, esse cara prepara uma traição, sinto claramente e não
posso provar.
- Talvez Toledo tenha razão, não podemos desconfiar só porque fugiu da
prisão.
- Marcela, até Altino , que não pode ser acusado de segurismo, concordou
com a nece
ssidade de uma investigação.”
775
Durante os últimos dias que antecederam a sua queda e assassinato, Joaquim
Câmara Ferreira tentava implementar dois projetos: mantinha contatos quase diários
com o capitão Carlos Lamarca, num projeto que, na sua análise, era a única
possibilidade de continuidade da luta para a derrubada da Ditadura militar no Brasil. Ao
mesmo tempo, preparava a “Quinzena Marighella”, série de ações e seqüestros para
comemorar o primeiro ano da morte de seu antecessor no comando da Organiza
ção.
Joaquim Câmara Ferreira pretendia sedimentar e oficializar o comando militar
revolucionário nas mãos do capitão Carlos Lamarca, ficando consigo o comando
político. Em reunião com alguns militantes, entre eles Carlos Eugênio, Joaquim Câmara
Ferreira di
sse o seguinte:
“tenho dedicar mais tempo aos contatos com as outras organizações, é
necessário unificar o movimento. Devemos aproveitar a Quinzena para realizar
ações conjuntas, aumentar a aproximação na prática diária. Estou tentando
atrair Aníbal
776
para a coluna, seria o melhor comandante militar no campo. A
direção política estaria nas mãos de um colegiado composto por nossa
direção, Aníbal, e representantes de organizações que porventura participem
conosco. Precisamos vencer resistências, ainda somos reféns da herança
divisionista da esquerda tradicional. Marighella desprezou a importância de
Aníbal, e só depois que escapou do cerco do Vale é que estou podendo
estreitar nossas relações. conversamos sobre a possibilidade de ele
comandar a Coluna e posso assegurar que houve uma boa receptividade.
Teria que convencer a VR (VPR), o que deve ser possível; afinal, das outras
quatro organizações da Frente Armada, eles são, junto com o pessoal do
Hugo, os mais próximos de nós. De qualquer maneira, sei que An
íbal vai atuar
no sentido da união , passo importante, que nós e o MT (MRT) estamos
774
Marcela
Ana Maria Nacinovic, dirigente da ALN, em São Paulo. Morreu no mesmo dia e na mesma emboscada
que vitimou Yuri Xavier Pereira.
775
PAZ, Carlos Eugênio.
Viagem à Luta Arm
ada: memórias romanceadas
. op. cit., p. 30
-
31.
776
Aníbal
– Codinome dado por Carlos Eugênio, em suas memórias, para o capitão Carlos Lamarca.
331
nesta perspectiva. As maiores reticências vêm do PR (PCBR), com a velha
história de construir um partido revolucionário, e do MR (MR-8), que coloca
como prioritária a questão da etapa socialista revolução mas, como são
organizações pequenas e localizadas regionalmente, vão tender a
aproximarem
-se à medida que avance a guerra no campo. A coluna será o
catalisador das forças revolucionárias, teremos que capitalizar as vi
tórias,
fazendo convergir as diversas lutas e correntes de nossa esquerda para um
objetivo comum: fortalecê-las no sentido de acumular forças que nos permitam
a construção de um exército revolucionário que possa enfrentar o regime e
derrotá
-lo. Por isso, terei que ter mobilidade, não vou poder ficar enfurnado
num aparelho vendo as coisas acontecerem.”
777
Em entrevista a Luís Mir, Carlos Eugênio, que transportava Câmara Ferreira para
estes encontros com Lamarca que eram realizados num apartamento no bairr
o
Jabaquara, zona sul da capital paulista, disse o seguinte:
“repetia nesses encontros que
a unidade revolucionária era a última carta disponível. Dizia para o Lamarca: se não
nos aliarmos, não vale a pena continuar.”
778
Porém, Joaquim Câmara Ferreira estava cercado e prestes a morrer. Vera
Gertel almoçou com ele treze dias antes do seu assassinato e expôs a preocupação
que tinha com sua segurança, e como a situação havia se agravado muito. Segundo
ela,
“eu tive contato com o Câmara até treze dias , eu me lembro exatamente,
antes dele morrer. Eu me lembro que ele ligou pro meu trabalho. A gente
tinha um ponto. Ele só: oi, tudo bem? Tudo bem. Vamos nos encontrar?
Vamos. Meio-dia e meio que era minha hora de almoço e a gente se
encontrava. Aqui no... . E eu querendo falar sobre militância, sobre as coisas,
como é que iam, como é que o iam. Ele sempre querendo comer uma
feijoada (risos). E ele dizia ... e eu e como é que foi? E o negócio e tal,
como é que vocês?. E eu não tinha uma militância ass
im, digamos, direta, mas
eu ajudava muito, né? Aos companheiros, no sentido de às vezes, esconder
um, esconder outro. Eu me lembro que nesse dia, treze dias antes de ele
morrer, eu disse pra ele: Escuta: todo mundo caindo! Por que você não vai
embora? Por que você não sai do país? E ele me disse: Eu não posso largar
os rapazes! Porque na verdade, havia um grande número de jovens nessa
militância da luta armada, né? Muitos daqueles estudantes que lutaram contra
a privatização do ensino. Que apanharam nas ruas. Que até morreram contra
777
PAZ, Carlos Eugênio.
Viagem à Luta Armada: memórias romanceadas
. op. cit., p. 61
-
62.
778
MIR, op. cit., p. 572.
332
a privatização do ensino. (...) E ele me disse exatamente esta frase: Eu não
posso largar! ”
779
Nesse momento, até militantes do PCB tentaram salvar a vida de Joaquim
Câmara Ferreira ao advertirem que a repressão o havia localizado e que ele estava
prestes a cair. Entre estes militantes estava Hércules Correa:
“eu era, eu assistia à reunião da base dos jornalistas que eram pessoal da
Manchete, Estado de São Paulo, Folha. Qual era a outra revista que tinha?
Tinha outra
revista. Acho que já tinha Veja, naquela época. E o, nós saímos de
uma reunião e eu tinha o sistema de comunicação com eles. Naquela época
respondia pela comunicação Miguel Urbano. Era editoralista do Estado de São
Paulo e era do Partido comunista Português. Aí, fiz uma reunião. Terminou
tarde da noite fui embora. no dia seguinte eu telefono pro telefone que eu
tinha aqui que recebia as comunicações que eram pra mim. Eu telefonava pra
aquele aparelho e a pessoa dizia: ah tem encomenda pra você! Eu sa
bia
que tinha encomenda pra mim. Eu ia pra pegar e informação pra poder,
coisa de emergência. Aí no dia seguinte à tarde, eu liguei, estava lá. A pessoa
da casa me disse que tinha recado pra mim. eu fui lá, era recado do Miguel
Urbano Rodrigues, que eu urgentemente falasse com ele. Eu acionei a
telefone que eu tinha pra ele, e me encontrei com ele. ele me contou a
história: que eles estavam trabalhando na sala de auditoria, de auditoria do
Estado de São Paulo, chegou o velho Mesquita e virou pra um
jornalista antigo
e disse assim: desça a pasta do Câmara Ferreira! o cara perguntou
porque? Ele disse assim: porque ele vai ser morto! Assim, falou na frente de
todo mundo. E o cara, o velho Mesquita sabia que o Miguel Urbano Rodrigues
era comunista ligado à gente. Falou pro Miguel ouvir. o Miguel Urbano me
disse isso, e aí eu fui e acionei, o tesoureiro do Partido de São Paulo que era o
Mário Velhinho pra ir na casa da mulher do Câmara, que ele conhecia a
mulher do Câmara. Ele foi na casa da mulher do Câmara pra avisar a ela,
entendeu? E ela tinha meios e comunicou a ele. Dois ou três dias depois, o
Mário Velhinho ia andando na Freguesia do Ó e viu o Câmara na rua. falou
com o Câmara. O Câmara disse: não! Isso é coisa do Hércules! Ele que quer
que eu vá pro exterior! Ele disse na hora: não é o Hércules que disse isso, é o
Miguel Urbano Rodrigues. Houve isso, isso e isso. não fez oito ou dez dias
depois prenderam ele e mataram.”
780
Joaquim Câmara Ferreira passou os últimos dias de sua vida em reuniões com a
Coordenação Nacional da ALN, com organizações da “Frente Armada” e cobrindo
pontos com militantes, inclusive o último, que foi com José da Silva Tavares.
779
Vera Gertel, depoimento.
780
Hercules Corrêa, depoimento.
333
Carlos Eugênio continuava tentando sem êxito convencer Joaquim Câmara
Ferreira da imprudência que era a confiança irrestrita num militante que havia sido
preso e que tinha uma história, que, de acordo com as normas de segurança da
Organização, deveria ser checada. Conforme Carlos Eugênio, “eu e Altino temos uma
nova conversa com ele, mas
Toledo, por trás de sua fala macia e temperamento dócil, é
teimoso como uma mula, nada a fazer, ele confia em Silvério
781
, nos resta esperar e
torcer para estarmos errados.”
782
As reuniões da Frente Armada” eram realizadas na casa de Ivan Seixas.
Conforme
Ivan Seixas, “na clandestinidade ele ia para minha casa porque o Lamarca
estava morando na minha casa, e, aí, as reuniões da “Frente Armada” eram lá em casa.
Pro Lamarca não precisar sair, os outros vinham até ele.”
783
Joaquim Câmara
Ferreira tinha como proposta para a “Frente Armada”, segundo o mesmo Ivan Seixas, o
seguinte:
“esse mesmo Toledo que tem essa visão, em 1970 ele preocupado com as
quedas e tudo mais, ele propõe uma coisa que é alucinada, maluca porque
pega todo mundo desconcertado, que é: vamos fazer um recuo! Como fazer
um recuo? Fazer um recuo. um recuo com uma ofensiva grande, depois a
gente recua. Então a proposta que a gente tinha, porque a gente atuava é, em
frente, então a minha organização que era o MRT “Movimento Revolucionário
Tiradentes”, atua em conjunto com a VPR e com a ALN, em São Paulo. O
PCBR não tem, mas assina junto. MR-8 não tem em São Paulo, mas assina
juntos todos os documentos que a gente fazia. No Rio de Janeiro tinha a VPR,
tinha o MR-8, tinha não sei o que, mas não tinha o MRT. O MRT assinava,
confiava e pronto. Mesma coisa no nordeste e tal. É, ele propõe o seguinte:
que, bom, nós atuamos juntos, mas nós precisamos fazer um recuo. A
proposta de recuo era fazer um múltiplo seqüestro de cinco ou seis
embaixadores
e cônsules que estavam nos estados como em Recife, em São
Paulo e Porto Alegre, e talvez em Minas também, e esses, esse múltiplo
seqüestro, trocaríamos por todos os presos políticos do Brasil. A exigência é
que tirem todos, todos. E aí, nós íamos deslocar para o campo todos os
militantes queimados pra começar um trabalho de guerrilha lá. Tá? Quem
estivesse aqui na cidade, deixaria de fazer as ações, e a gente passaria, talvez
até o pessoal que estava fazendo o seqüestro, saísse junto com os presos
781
Silvério
Codinome dado por Carlos Eugênio, em suas memórias, para José da Silva Tavares (Severino).
782
PAZ, Carlos Eugênio.
Viagem à Luta Armada: memórias romanceadas
. op. cit., p. 177.
783
Ivan Seix
as, depoimento.
334
para ir embora. Mas era isso. Mas a idéia era tirar todos os presos, para
começar de novo a luta, já no campo.”
784
Nesta reunião, Ivan Seixas disse que havia uma imensa preocupação por parte,
inclusive, do capitão Carlos Lamarca e dos demais membros da “Frente A
rmada”, sobre
a necessidade de Joaquim Câmara Ferreira se preservar e não ir ao ponto marcado
com Severino sem que antes fosse feita uma investigação prévia. O próprio Lamarca
reconhecia a importância que Câmara Ferreira tinha no processo revolucionário
na
quele momento, e como devia se preservar. Ivan Seixas enfatizou:
“porque você fala com Carlos Eugênio, ele vai te contar isso, que ele teve um
trabalho desgraçado. Na reunião que teve na minha casa, eu não participava
da reunião, mas eu participava na organização da reunião. Eu levava comida,
levava café, levava não sei o quê, e fazia segurança fora, porque tinha um
pessoal armado para qualquer eventualidade, mas fora eu que podia
ficar, porque era um aparelho fechado, né? Então eu entrava, saía etc
, e fim. E
eu como eu ia na reunião, eu via as conversas. O tal Carlos Eugênio tava
junto com ele, e o Carlos Eugênio abre uma conversa no meio da reunião
dizendo o seguinte: Porra, ponham na cabeça dele que ele não pode ir no
ponto amanhã com o cara. O
cara foi preso, diz que fugiu e fez o contato. Aí, o
Lamarca fala pra ele o seguinte: O Toledo, você tá ficando maluco! Você é um
cara importante, você não pode cair! Como é que é, eu não vou cair! Claro que
você vai cair! A chance de você cair é grande! Você não pode se expor. Você
não podia estar andando na rua do jeito que você anda. Eu to me submetendo
a ficar dentro desse aparelho fechado, sem ver a luz do sol, mas você não
pode cair, você é um homem nacional, você é um líder revolucionário, você
não pode. Aí, o Muniz do MR-8, o Getulio Cabral do PCBR, todo mundo, o
Henrique do MRT, meu pai também que estava na reunião, falando: cara, você
tem que se proteger! Manda um militante fazer contato, prende o cara dentro
do aparelho, ver primeiro o que que é,
e depois se tiver tudo bem solta ele, faz
uma descompressão. Não, imagina, vocês estão paranóicos e o sei mas o
quê, e tal. E foi o que aconteceu, exatamente como todos tínhamos dito, ?
um cara levou a polícia e ele foi preso.”
785
Entretanto, Joaquim Câmara Ferreira trabalhava com a possibilidade de
infiltração dentro da Organização. Ele continuou mantendo contato com Aloysio Nunes
Ferreira nesse período, através de cartas que eram intermediadas por um amigo
784
Ivan Seixas, depoimento.
785
Ivan Seixas, depoimento.
335
comum de ambos que sempre viajava para a Europa, Maurício Segall. Aloysio Nunes,
Maurício Segall e Câmara Ferreira haviam montado um sistema de correspondências.
Algumas eram para o próprio Aloysio, e outras eram para ser enviadas a Cuba. Por
estas cartas, Aloysio disse poder ter acompanhado a traj
etória final de Câmara Ferreira.
A última carta que recebeu chegou às suas mãos somente após a morte de Câmara
Ferreira. Segundo Aloysio Nunes Ferreira, “ele manifestava muita preocupação com o
indício de infiltração na Organização, com a possibilidade de haver um traidor que
pudesse, vindo de Cuba ou que estivesse lá. Ele fazia alusão a alguém que teria sido
preso no Nordeste e que ele desconfiava que pudesse ser um traidor.”
786
Em meados do mês de outubro, estavam preparadas as ações da “Quinzena
Mari
ghella.” Entre as atividades previstas estava o roubo de um avião para panfletar em
São Paulo anunciando a guerrilha rural.
A reunião da Coordenação Nacional da ALN convocada por Joaquim Câmara
Ferreira tinha por objetivo “dar o informe sobre a preparação da ação no campo,
detalhar nossa participação na Quinzena e na campanha do voto nulo, informar os
avanços dos contatos na Frente Armada e organizar o recuo nas cidades.”
787
Esta
reunião foi realizada no aparelho de Carlos Eugênio Paz e Ana Maria Nacinovic. Foram
feitos os preparativos e compras que, pela previsão, deveriam durar uma semana.
Porém, Joaquim Câmara Ferreira não poderia participar o tempo todo, pois precisaria
sair para uma reunião da Frente e para cobrir pontos inadiáveis. Na sexta-feira, dia
dezesseis de outubro de 1970, por volta das dezenove horas, Carlos Eugênio paz se
encontra com Joaquim Câmara Ferreira e Paulo de Tarso Celestino, que era militante e
786
Aloysio Nunes Ferreira, depoimento.
787
PAZ, Carlos Eugênio.
Viagem à Luta Armada: memórias romanceadas
. op. cit., p. 177
-
178.
336
dirigente nacional da ALN em Moema. Jantaram juntos e se dirigiram para o a aparelho
de Carlos Eugênio. No domingo, Carlos Eugênio abriu os trabalhos com um informe
sobre as ações da “Quinzena Marighella” em São Paulo. Logo após, Hélcio Pereira
Fortes, quadro político da ALN e um dos coordenadores da Direção Nacional, expôs o
que era possível realizar no Rio de Janeiro. Joaquim Câmara Ferreira, segundo Carlos
Eugênio, tomou a palavra e disse:
“é chegada a hora de dar o passo mais importante de nossa luta, com o
lançamento da coluna guerrilheira no campo. Tenho a convicção, como o
companheiro Marighella, de que esse passo criará condições para uma luta
prolongada que desestabilize o poder militar ditatorial, provocando uma
acumulação de forças que nos permitirá construir um exército para tomar o
poder de assalto. Não entrarei em detalhes, todos conhecem meus planos,
prefiro falar da mudança de rumos que estou imprimindo à nossa Organização
do ponto de vista interno. O tipo de Organização atomizada e descentralizada
que Marighella criou, foi bom para começar a luta, desenvolveu iniciativa de
no
ssos militantes, propagou a chama da luta armada de difundiu nossas
idéias. Com os golpes que recebemos o ano passado, que culminaram com o
assassinato de nosso líder, e o avanço dos métodos de repressão e tortura,
decidi centralizar nosso comando, única forma, a meu entender, de cumprir
satisfatoriamente as enormes tarefas que nos esperam com a abertura da
frente rural. Por isso convoquei
-
os, todos companheiros provados na luta, para
fazer parte da Coordenação Nacional que vai dirigir nossos trabalhos a pa
rtir
de agora.”
788
Joaquim Câmara Ferreira permaneceu com o grupo até quarta-feira, dia 21 de
outubro de 1970. Saiu da casa para participar de reuniões da “Frente Armada” e cobrir
alguns pontos, “voltando ao nosso convívio sábado de madrugada.”
789
Carlos
Eugênio
retirou Joaquim Câmara Ferreira de seu aparelho e ouviu deste que seu encontro com
Severino seria sexta-feira ao cair da noite. Então Carlos Eugênio disse:
“peço
oficialmente permissão para montar um esquema de segurança.”
790
Entretanto ouviu o
788
PAZ, Carlos Eugênio.
Viagem à Luta Armada: memórias roman
ceadas
. op. cit., p. 185.
789
Ibid., p. 186.
790
Ibid.
337
segu
inte de Câmara Ferreira: “sua insistência me desgosta, confio no companheiro e
considero esse assunto encerrado.”
791
Um dos pontos que Joaquim Câmara Ferreira foi cobrir era com Renato
Martinelli. Dias antes, Martinelli havia se encontrado com Câmara Ferre
ira, que lhe falou
de uma operação na qual,
“nós vamos pôr fogo em São Paulo, operação Marighella não
sei o quê.”
792
Mas,
como Martinelli exercia a função, naquele momento, de quadro
político, Joaquim Câmara Ferreira propôs: “eu vou te dar um dinheiro e você vai pra
uma missão como que me retirando de São Paulo, pra mim ir pra numa missão fora de
São Paulo.”
793
Martinelli foi então àquele que seria seu último ponto com Joaquim
Câmara Ferreira, para receber a missão e o dinheiro que lhe seria dado. Os contatos
com Câmara Ferreira eram sempre diretos. De acordo com Martinelli,
“em 22 de outubro, de volta a São Paulo, após ter regressado de uma
viagem a Santa Catarina a mando de Câmara Ferreira, vou ao seu encontro, já
pela segunda vez naquela semana. Para minha primeira surpresa, sou
recebido por dois outros companheiros que haviam treinado comigo em Cuba.
No carro que estacionou ao meu lado estavam o "César" e o "Garcia”. Era
essa a primeira vez que me encontrava com eles no Brasil. Após os rápidos
cumprimen
tos, me passam as instruções: você deve seguir em frente e entrar
na primeira rua à esquerda. No percurso você encontrará o "Severino”. Com
ele você deve ir em frente e entrar na primeira à esquerda e continuar
caminhando. Não se preocupe, companheiro, que no trajeto o "Velho" os
encontrará. Minha resposta a essa segunda surpresa é imediata:
Mas como companheiros, o "Severino" não está preso no Pará?
Não, está aqui. Fugiu da prisão e veio para São Paulo.”
794
Os planos do inimigo estavam em pleno andamento. Martinelli afirmou que,
naquele momento, havia uma quebra total no esquema de segurança da
Organização. Não eram observadas as mínimas regras de segurança, e, para ele,
791
Ibid.
792
Renato Martinelli, depoimento.
793
Renato Martinelli, depoimento.
794
Renato Martinelli, memórias.
338
somente a subestimação do inimigo, um pecado mortal na guerra revolucionária, p
ode
explicar como os repressores haviam conseguido, em um período tão curto de tempo,
mais uma vez chegar a um dos máximos dirigentes da ALN. Conforme Martinelli,
“a situação era insólita, a última vez que eu havia visto o "Severino" fora ainda
em Belém do Pará, no dia 7 de setembro, véspera do seu embarque para
Imperatriz. Eu me lembro que caminhamos pela cidade e depois fomos comer
um pato no tucupi, uma comida típica da região, em um restaurante perto do
centro. Agora em São Paulo, seguindo todas as instruções dos companheiros,
vou ao encontro do transfigurado "companheiro": você está bem magro
"Severino", nem imagino pelo que passou. Nem fale nisso. Na rodoviária,
quando fui preso, me confundiram com você. Quando percebi, sai correndo,
briguei muito, mas me pegaram. Na prisão simulei o suicídio. Levaram-
me
para um hospital, de fugi... Cheguei a São Paulo de carona, de caminhão...
Caminhávamos, conversando sobre a "fuga", pela rua indicada, quando nos
encontramos com o comandante Câmara Ferreira: Então companheiro, está
contente com a surpresa? Muito contente, uma surpresa e tanto respondi.”
795
Para Martinelli, Joaquim Câmara Ferreira comete muitos erros em termos de se
resguardar de uma possível prisão, tortura e assassinato. “Parece que ele meio
desesperado, meio.. a segurança cai completamente. A coisa mais ou menos, os
cuidados mínimos não se toma, porque não existe um contato eu, ele e uma pessoa
que fugiu da prisão. Não é assim que se trata.”
796
Martinelli afirma que havia uma lei
na
Organização chamada Lei da Compartimentação, que tinha que ser respeitada por
todos, ou seja, se fosse feita uma pergunta a um militante que fosse indevida, a
resposta poderia ser diversionista. Se alguma pergunta ferisse a segurança de um
militante, el
e poderia dar respostas evasivas. E foi exatamente esta a tática utilizada por
Martinelli neste último encontro com Joaquim Câmara Ferreira e o traidor Severino.
Conforme suas palavras,
795
Renato Martinelli, memórias.
796
Renato Martinelli, depoimento.
339
“entramos no carro, o Câmara Ferreira, o traidor "Severino", e eu, dentro de
um Fusca verde escuro parado na rua. "Severino" continua falando sobre
como chegou a São Paulo depois da "fuga.” Câmara Ferreira me pergunta se
tenho mais informações sobre os acontecimentos e pede um relatório mais
detalhado, por escrito, para aquele mesmo dia. Respondo que não é possível.
Câmara Ferreira pergunta por quê. Não tempo para eu ir ao meu
apartamento, escrever o relatório e voltar ainda hoje para São Paulo. Uma
viagem de ida e volta até o litoral, e não é isso, tenho outros comprom
issos
e o tempo é curto. Essas praias, assim não há dinheiro que agüente. "Lobato",
você está exagerando, devia morar aqui em São Paulo. lá, ao menos hoje,
para poder escrever, se hospede em um hotel aqui em São Paulo, não tem
problema, o "Severino" está hospedado em um...Tá bem "Toledo", mas
escrever um relatório para hoje é impossível, não dá. Mais alguma coisa? A
falta de preocupação e a confiabilidade excessiva dos companheiros e do
próprio Câmara Ferreira com questões elementares de segurança sempre me
incomodaram. Em primeiro lugar, em nenhuma hipótese o "Severino" poderia
ter acesso direto ao Câmara Ferreira antes que todos os detalhes da sua
"fuga" tivessem sido exaustivamente investigados, e muito bem comprovados
por companheiros preparados para esse trabalho. Depois, jamais ele poderia
ter sido levado à minha presença, sem meu prévio conhecimento, ainda mais a
um ponto a que compareceria o Câmara Ferreira. Finalmente, a minha
resposta na presença do "Severino", praticamente me obrigava a falar do meu
cotidiano, da região onde morava, e das dificuldades de escrever um relatório
e apresentá-lo naquele mesmo dia. A conversa continuou cada vez mais
absurda para mim, algo nela me incomodava, não sabia o quê, talvez a bronca
do "Toledo" pelo excesso de segurança pessoal. O fato é que, intuitivamente,
no decorrer do encontro, havia sentido que devia me proteger, ...e sutilmente o
fizera. Não sei explicar por quê, talvez a surpressiva presença do "Severino"
que causou uma situação de quebra total nas regras de segurança que eu
havia incorporado ao meu cotidiano , e, quem sabe, ao estranho clima que
permeou a insólita reunião. Por mais que eu havia notado a presença de um
esquema de segurança no local, aquilo definitivamente não estava certo,
estavam todos e tudo muito estranho. Finalmente, um novo encontro é
marcado para o dia seguinte, 23 de outubro de 1970, creio que para as 19
horas, na rua Lavandisca, em Moema, quando eu entregaria o relatório para o
Câmara Ferreira. Diferente do que dissera no interior
do carro naquela manhã,
extremando as medidas de segurança, não me hospedei em um hotel na
capital e muito menos fui para um apartamento localizado no litoral.
Posteriormente, soube que naquela noite a repressão havia realizado uma
grande batida nos hotéis
da cidade.”
797
No dia 23 de outubro, com hora e pontos marcados, Joaquim Câmara Ferreira
caminhou, ignorando todas as regras de segurança, para a armadilha que lhe havia
sido preparada. Quando Joaquim Câmara Ferreira se encaminhava para o ponto com
Tavares, as equipes do DOPS circulavam em todas as áreas circunvizinhas, e a
797
Renato Martinelli, memórias.
340
avenida estava cercada pelo aparato policial formado pelo “chefe dos investigadores
do Serviço Secreto Osvaldo Machado de Oliveira (Osvaldão), o delegado Fleury, o
delegado Jocecyr Cuoco e os investigadores Tralli, Campão e Donato.”
798
No
depoimento que deu a Percival de Souza, o delegado Jocecyr disse que era preciso
que Toledo fizesse avistamento”, isto é, Joaquim Câmara Ferreira deveria ver Tavares
e, sentindo
-
se seguro, aprox
imar
-
se para fazer o contato. Jocecyr disse ainda que havia
policiais disfarçados, e que todos conheciam bem o lugar, porque, antes da operação
um policial, Alemão, que gostava de tocar viola, havia feito fotografias da avenida e das
imediações do ponto.”
799
Foram dadas várias recomendações por Fleury de que se
queria evitar o desastre da “Operação Marighella.” Entre elas:
“o homem é muito valioso
e possui segurança reforçada.”
800
Conforme o mesmo delegado Jocecyr, quando
Joaquim Câmara Ferreira apareceu, Campão atracou-se no pescoço dele com a força
descomunal de um peso-pesado, perto de Tavares. Tralli foi ajudá-lo. Osvaldão
gritando: “grampo no homem.” Neste momento, Renato Martinelli entrava pela avenida
para o ponto com Joaquim Câmara Ferreira. Conforme
seu relato:
“no dia seguinte, na hora combinada entro na rua, vestia um terno escuro,
usava gravata e carregava uma pasta de executivo na mão, dentro dela levava
o relatório contando detalhadamente os fatos que conhecia sobre as prisões
de Belém do Pará. Minha aparência era a de mais um executivo que voltava
para casa no fim da tarde, depois do trabalho. Caminho uns trinta metros pela
calçada do lado direito da rua. Como sempre nessas ocasiões, estou bem
alerta, reparo num carro preto estacionado à minha
esquerda, tem um casal no
banco da frente e estão olhando fixamente para a frente, mais precisamente
estão olhando para o horizonte. Definitivamente não estavam namorando, nem
ao menos conversando estavam. Estranho e desconfio da atitude do casal, fico
mai
s alerta ainda, diminuo os passos e continuo caminhando por mais uns
vinte metros. De repente ouço uma puta gritaria. A confusão está acontecendo
a uns 100 metros lá na frente, do mesmo lado da calçada que eu caminhava, a
do lado direito. O carro com o "ca
sal de namorados" sai cantando os pneus em
direção à confusão. A gritaria continua, não lembro de ter escutado tiros. Como
798
SO
UZA, op. cit., p. 260.
799
SOUZA, op. cit., p. 261.
800
Ibid.
341
precaução atravesso a rua e continuo andando, não sou o único a fazer isso.
Já no outro lado da rua, alcanço e passo pela operação policial sem ser
notado. Eram muitos policiais, pelo menos uns oito, estavam todos de costas
para mim, portavam armas de vários tipos, incluindo metralhadoras. Todos
estavam no meio da rua, voltados para uma casa localizada na outra calçada
da rua. Deitado na calçada, encostado e com o rosto virado para o muro da
casa, vislumbro um vulto. A casa estava com as luzes acesas. Caminho mais
um pouco, entro na primeira rua à esquerda, depois na próxima também à
esquerda, voltando, dessa forma, por uma rua paralela à Lavandisca.
Finalmente consigo um táxi e saio definitivamente do local: o senhor viu o
monte de policiais na rua Lavandisca? - perguntou o motorista. Na rua
Lavandisca, ...policiais,...não, o que houve
-
respondo?
Parece que prenderam uns terroristas,.
.. senhor, para onde vamos?
Prenderam terroristas na Lavandisca!? Para a rua da Consolação, por favor,
perto da...
Sem que eu soubesse, do outro lado da rua, a repressão assassina, contando
com a infanda ajuda do traidor José da Silva Tavares, havia logrado penetrar
na organização e alcançar o nosso comandante, o companheiro Joaquim
Câmara Ferreira.”
801
Nesse momento, segundo o delegado Jocecyr Cuoco, Tavares estava próximo e
cobrou de Fleury o cumprimento do acordo firmado entre ambos:
“Tavares
estava encostado a uma parede. Toledo já estava na nossa mão. Ele
disse para o Fleury, e eu ouvi muito bem: “doutor, o nosso combinado está de
a partir de agora”. Fleury olhou bem nos olhos dele e não disse uma
palavra. Tavares falou mais o seguinte: “c
umpri minha obrigação. Não quero te
ver na minha frente nunca mais”. Ele disse isso e foi saindo do local,
caminhando normalmente pela calçada e desaparecendo entre as pessoas
que se aglomeravam. Eu vi e ouvi isso, rigorosamente assim, como estou
contando.
802
Jocecyr Cuoco afirmou ainda que Joaquim Câmara Ferreira sofreu um infarto e
foi levado para o Hospital das Clínicas numa veraneio, e acabou morrendo. Essa parte
do depoimento do delegado Jocecyr não corresponde com a verdade sobre o que
realmente
aconteceu. Na realidade, Câmara Ferreira debateu-se furiosamente com os
policiais que tentavam colocá
-
lo num camburão.
801
Renato Martinelli, memórias.
802
SOUZA, op. cit., p. 261.
342
Após isso, Joaquim Câmara Ferreira foi conduzido para o sítio particular que
Fleury mantinha arredores de São Paulo como centro particular de tortura. Joaquim
Câmara Ferreira sofreu o infarto dentro da viatura policial e chegou ao sítio em
condições precárias. Esse fato foi confirmado por Maurício Segall, que, juntamente com
Maria de Lourdes (Maria Baixinha) haviam sido presos horas antes, e estavam no
mesmo sítio sendo torturados. O motivo das torturas era exatamente saber do paradeiro
de Joaquim Câmara Ferreira. Conforme ele,
“e foram para o ponto e pegaram o Toledo. Ele chegou, e eu estava,
quando eles voltaram, eles puseram rápido na sala, porque a cama, eles
levaram o Toledo pra cama porque o Toledo entrou ofegante, com sinais de
ataque do coração. E ele, foi um reboliço danado porque naquela época
ainda a repressão estava dividida, você tinha polícia civil e CENIMAR de um
lado, Fleury, e do outro lado você tinha o exército e uma parte da polícia civil.
E o CENIMAR que estava com o Fleury e o exército. Havia uma divisão, mas
não estava unificado, né? Logo depois eles unificaram e deram o comando pro
exército da repressão em São Paulo. Então, o Toledo não podia morrer né?
porque eles precisavam entregar ele vivo pro exército, tá certo? Pra tirar dele o
que pudesse e dar pro exército. Ele morreu. Nesse interregno, foram buscar
médico. Levou tempo, eu vi, porque eu estava vendado, mas via por baixo eu
vi um cara de calça branca passar e os ruídos de uma pessoa que teve ataque
do coração porque eu sabia quais são os ruídos porque meu pai tinha morrido
disso, eu tinha visto, eu ouvido. Ele morreu. Aí, deu aquele reboliço todo e
s
saímos vivos de lá. eles levantaram acampamento, deixaram eu ir embora.
E aí, depois, foram as coisas normais da parada OBAN. Passei um tempo lá, a
Maria baixinha foi muito torturada, muito mais do que eu, nem tem
comparação, porque ela era muito chegada ao Toledo. Mas sobreviveu. Aí, eu
fui parar na solitária do DOPS, depois eu fiquei um ano preso em penitenciária
e tal, nem foi tanto assim.”
803
Maurício Segall estava preso na solitária, e, num determinado dia, um agente de
segurança o conduziu para
o banho. Segundo Segall, ele lhe disse as circunstâncias da
morte de Joaquim Câmara Ferreira:
“ele disse: olha o Toledo cumpriu o que tinha que disse. O Toledo dizia que ele
nunca mais seria preso. Ele nunca mais seria torturado porque ele foi muito
tort
urado no Estado Novo, né? E aí ele disse: nunca mais. E cumpriu, porque o
cara disse: ele lutou tanto, quando caíram em cima dele no ponto, arrancou
803
Maurício Segall, depoimento.
343
naco de carne da perna de tira, na base do dente, que ele teve um ataque
cardíaco.”
804
Entretanto, se observarmos a foto de Câmara Ferreira no Instituto Médico Legal
(IML), podemos perceber que, embora ele não tenha sido torturado com os requintes
que eram próprios dos órgãos de repressão naquele momento, sua fisionomia mostra
que ele foi barbaramente espanc
ado.
O corpo de Câmara Ferreira foi levado para o IML, e o delegado Fleury mandou
o DPOS fazer a segurança do prédio, pois poderia haver tentativas de resgate. De
acordo com Percival, Fleury foi examinar o trabalho dos legistas pessoalmente
“ao aproximar-se da mesa onde o corpo de Toledo fora colocado
desajeitadamente, a mão direita do cadáver deslizou e tocou-lhe o rosto.
Fleury ficou impressionadíssimo. Pareceu-lhe ter levado um tapa do defunto
para vingar-se do planejado, ensaiado e arquitetado beijo de Judas. Contou o
fato apenas para sua amiga Denise Boulhosa: “o que será isso? A mulher não
teve resposta. Disse que tinha sido um incidente desagradável mas normal.
Fleury insistiu: “como é que pode, certas coisas?.” A mão rígida de Toledo
tocando seu rosto incomodou profundamente Fleury, que ficou com aquela
imagem gravada na cabeça dias e dias, noites e noites, como se tivesse sido
esbofeteado. Queria saber se aquela mão, ao deslizar inesperadamente para a
sua cara, justamente a sua, queria dizer algum
a coisa.”
805
Carlos Eugênio se levantou cedo no dia 24 de outubro de 1970 com a missão de
retornar com Joaquim Câmara Ferreira para o seu aparelho, para darem continuidade
aos trabalhos de preparação das ações que se dariam em poucos dias. Às seis hora
s
em ponto, ele entrou numa padaria em Moema. Joaquim Câmara estava atrasado. O
ponto tinha uma alternativa às seis e meia e às sete horas da manhã. Conforme Carlos
Eugênio
804
Idem.
805
SOUZA, op. cit., p. 261
-
262.
344
“seis e meia e nada. Ligo o rádio, sinto calor, tenho calafrios, vontade de
chor
ar, surro o volante, acelero, diminuo a marcha, os joelhos tremem como na
primeira ação, a felonia é evidente, Silvério entregou nosso líder. Sete horas, o
dia mal começa e já termina uma era. Entro em casa sem Toledo, todos
compreendem meu olhar.”
806
Pa
ra a família de Joaquim Câmara Ferreira, o ano de 1970 foi o último dos anos
que Leonora Cardieri descreveu como os piores de sua vida, devido à falta e às
saudades do meu querido companheiro, e o temor constante de perdê
-
lo.”
807
Leonora ouviu no rádio a
notícia da morte de seu marido:
“era sábado, dia 24 de outubro. Não sabíamos a quem recorrer. Lembrei-
me
de procurar um advogado que me orientasse. Fomos eu, Roberto e Clarisse ao
apartamento do Aldo Lins e Silva. Ele não acreditava em sua morte. Supunha
chantagem. Por isso, telefonou a um amigo do “Estadão”. Como não estava,
telefonou para as Folhas onde um seu conhecido confirmou a notícia, que
havia sido remetida pelo DOPS. Mas não sabíamos como fazer. Ir ao DOPS
seria arriscado, e o advogado não podia ir conosco, pois também era marcado
pela polícia visto ser defensor de muitos presos políticos. Recorremos então à
família Garcez. Do apartamento do Dr. Aldo telefonamos para a casa do Dr.
Isac Garcez. Ele estava nos aguardando, embora ignorasse qual a razão de
nossa visita. Foi um choque tremendo. O Dr. Isac desfez-se em lágrimas. E
tomou todas as providências. Saímos de sua casa tarde da noite e com a
recomendação de voltarmos no domingo às dez da manhã para saber se
tinha conseguido a liberação do co
rpo. Não foi fácil. Luiz Carlos, meu sobrinho,
também ajudou muito, pois seu chefe no Ceasa era um dos auxiliares diretos
do Abreu Sodré. Mas somente às treze horas tivemos confirmado nosso
pedido através do Helly Lopes Meireles, então Secretário da Justiça e do
general Canavarro Pereira, Comandante do II Exército. Nós o vimos depois de
morto. Isso diz tudo. Nós parentes e amigos ao todo 25 pessoas -, além dos
funcionários do Departamento de Medicina Legal, do medico legista Dr. Mário
Santa Lúcia, dois tiras e delegados do DOPS que nos cercaram e nos
acompanharam até o cemitério, de jornalistas do Estadão. Todos esses são
testemunhas no futuro. Não é preciso dizer que todos que estiveram no
cemitério tiveram as chapas dos carros anotadas. Foram verificar um por um,
para possíveis prisões. Como o carro de Maria Lúcia (do Mauro) era de
fora, Promissão, foram à casa dela para saber a razão de ter comparecido ao
cemitério. Viu-se na obrigação de dar satisfação e dizer que era minha
sobrinha. Foi enterrado às
quinze horas e trinta minutos do dia vinte e cinco de
outubro.”
808
806
PAZ, Carlos Eugênio.
Viagem à Luta Armada: memórias romanceadas
. op
. cit., p. 188.
807
Leonora Cardieri, diário.
808
Ibid.
345
Leonora Cardieri Ferreira tem razão, pois, ao se analisarmos o documento do
DEOPS
809
de doze do novembro de 1970, podemos verificar que os órgãos de
repressão haviam mapeado todas as pessoas que estiveram no enterro de Joaquim
Câmara Ferreira, inclusive os nomes completos, endereços, grau de parentesco e
empregos.
Leonora escreveu ainda que, na segunda-feira, dia vinte e seis, o jornal noticioso
da Tupi comentou a sua morte e focalizou
o túmulo onde estava enterrado:
“na noite de domingo para segunda-feira, elementos não identificados haviam
arrombado a administração do cemitério da Consolação para comprovar se de
fato havia sido enterrado nesse local. E que haviam feito depredação. F
iquei
alarmada, pensando logo no Comando de Caça aos Comunistas (C.C.C) e
outros elementos da extrema direita com idéia de profanação do túmulo. Logo
cedinho, na manhã de terça-feira, fui ao cemitério, ao túmulo, verificando que
tudo estava como havíamos deixado, inclusive com as flores que
depositávamos. De fui à administração para saber o que havia acontecido e
verificar se de fato tinha ocorrido o arrombamento. Não constatei nada do que
dissera.”
810
Naquele momento, Leonora Cardieri resolveu também fazer uma investigação
pessoal sobre como teriam sido as circunstâncias da morte de seu marido. Ela
pretendia ir até a avenida Lavandisca e se informar com a vizinhança; entretanto,
conforme ela, “mas, como me aconselharam amigos, não devia fazê-lo. As pes
soas
poderiam negar-se a dizer qualquer coisa, temendo a própria polícia; ou inclusive ser
humilhada. Tive que engolir o fel.”
811
Com a morte de Joaquim Câmara Ferreira, morriam as possibilidades do
lançamento da guerrilha rural no Brasil.
809
DEOPS
Documento 30B152
Arquivo Público de São Paulo.
810
Leonora Cardieri, diário.
811
Ibid.
346
Numa crônica de Reali Júnior de dezessete de maio de 1982 sobre a morte de
Lucas Nogueira Garcez, que foi Governador de São Paulo, o autor fala da amizade de
Lucas Garcez e Joaquim Câmara Ferreira. Conforme Reali,
“(...) estavam dois homens, mais ou menos da mesma idade, da mesma
cidade, filhos de pais compadres, que dormiram no mesmo quarto,
contemporâneos da mesma faculdade, separados pelo destino e opções de
vida. Até que a doença o alcançou, havia flores no túmulo de um desconhecido
do cemitério da consolação: no túmulo de Joaquim Câmara Ferreira, o
Toledo.”
812
É assim que o autor termina o artigo: “Hoje, o túmulo de Toledo amanheceu sem
flores.”
813
Terminou assim a trajetória de um homem que soube, durante sua vida fazer
opções, cometer erros e acertos, mas que, independente de tudo isso, procurou
manter
-se fiéis às opções feitas, até as últimas conseqüências.
812
Júnior, Reali. Folha da Tarde:
Flores para Toledo.
17
-
05
-
1982.
813
Ibid.
347
Considerações Finais
“Entre os combatentes,
há quem já não reconheça o caminho.
Há quem interrogue,
com tristeza,
a praça vazia.
Se nesta hora o inimigo te procura,
recusa o jantar que te oferece
Recusa a paz,
a vida que te oferece.
O jantar te daria um assento à mesa da noite.
Esta paz é a tua escravidão.
E se agora o inimigo te propõe a vida,
É chegada a hora de
tua morte”.
Poema: Suplício (Pedro Tierra)
Não pretendemos com este trabalho, emitir um juízo de valor que eleve o nosso
personagem a uma condição de super homem ou herói, porém, construir a trajetória de
um homem que procurou fazer tudo o que lhe foi possível dentro do processo histórico
no qual estava inserido. Neste sentido foi um homem do seu tempo e para o seu tempo,
embor
a, para Plekhanov o herói não seja aquele que tem o poder de deter ou modificar
o curso natural das coisas, mas aquele cuja atividade se constitui numa expressão
consciente e livre deste curso necessário e inconsciente. Para Plekhanov:
“o grande homem é grande não porque suas particularidades individuais
imprimiam uma fisionomia aos grandes acontecimentos históricos, mas porque
é dotado de particularidades que o tornam o indivíduo mais capaz de servir às
grandes necessidades sociais de sua época, surgidas sob a influência de
causas gerais e particulares. (...) É precisamente, um iniciador, porque vê mais
longe que os outros e deseja mais fortemente que os outros. Resolve
problemas científicos colocados pelo curso anterior do desenvolvimento
intelectual da sociedade, indica as novas necessidades sociais criadas pelo
desenvolvimento anterior das relações sociais e toma a iniciativa de satisfazer
a estas necessidades. (...) Nisto reside a sua importância. Mas esta
importância é colossal e esta força é prodigio
sa.”
814
814
PLEKHANOV, G. V.
O papel do indiv
íduo na história.
São Paulo: Expressão Popular, 2000, p. 158.
348
Na elaboração deste trabalho procuramos analisar as diversas facetas de um
homem que desde muito jovem se mostrou indignado com as injustiças sociais que
imperavam no país e que por isso, buscou através de um Partido revolucionário, as
soluções que eram necessárias para a situação extremamente difícil em que se
encontrava a população brasileira. Nascido em uma condição de classe extremamente
favorável, dela abdicou em prol da luta pela emancipação política, econômica e social
de seu povo. Enquanto comunista dedicou toda a sua vida pela luta da construção de
um Brasil melhor e socialista. O Partido Comunista e a teoria marxista se pautavam
para ele como uma perspectiva real para as transformações pretendidas. Entretanto,
lutar por transformações revolucionárias de um contexto social sempre traz consigo o
risco de se sofrer derrotas de menor ou maior gravidade. Sendo assim,
“nenhum
revolucionário jamais pôde contar com a certeza da vitória ao empreender o caminho
revolucionário.”
815
Daí, os fracassos servirem de aprendizados necessários que
possam levar a vitória. Todavia, para Hobsbawm o que leva as pessoas a posição
revolucionária consciente não é a ambição de seu objetivo, mas o fracasso aparente
de todas as formas alternativas para alcançá-lo, o fechamento de todas as portas para
elas.”
816
É importante se observar que no desenvolvimento do marxismo histórico ou
marxismo concreto que se deu a partir da criação da Primeira Internacional, houve o
aparecimento de duas tendências fundamentais. Uma tendência é aquela que ao nosso
ver, poderíamos chamar de estrutural. Esta tendência estrutural é aquela que enxerga a
815
PRESTES, Anita Leocádia. Luiz Carlos Prestes e a Aliança Nacional Libertadora os caminhos da luta
antifascista no Brasil (1934/1935).
op. cit., p. 17.
816
Hobsbawm, E. J.
Revolucionários
. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1982, p. 248.
349
“revolução” como um processo inevitável, isto é, um processo que é determinado pelas
condições da história e que vai por um caminho certo e seguro. A outra tendência,
entretanto, percebe a “revolução” como sendo uma tarefa. Essas duas tendências não
são excludentes, mas pelo contrário, deveriam ser percebidas como complementares,
ou seja, o ideal seria o processo e a tarefa. Desta forma, o processo deveria ser
assumido como tarefa a ser realizada. Entretanto, muitas vezes, essas duas
perspectivas se separam ou uma se torna preponderante em relação à outra. E quando
isso acontece pode ocorrer duas situações: eu ponho na frente a tarefa e, portanto, a
ação ou eu me inclino para seguir o processo em vez de comandá-lo. É interessante
observar que sempre houve esta tensão na vivência revolucionária entre o processo e a
tarefa. É claro que quando a noção de tarefa predomina, os imperativos morais estão
mais presentes enquanto que quando predomina o processo teríamos aquilo que
Maquiavel chamou a verdade efetiva da coisa, da realidade.
Plekhanov esclarece isso de forma muito clara ao dizer que:
“as relações sociais tem a sua lógica: enquanto os homens
se encontrarem em
determinadas relações mútuas, necessariamente sentirão, pensarão e atuarão
assim e não de modo diverso. Seria inútil que a personalidade eminente se
empenhasse em lutar contra esta lógica: a marcha natural das coisas (isto e´,
a própria lógica das relações sociais) reduziria a nada seus esforços. Mas, se
eu sei em que sentido as relações sociais se modificam em virtude de
determinadas mudanças no processo social e econômico de produção, sei
também em que sentido se modificará a psicologia social; por conseguinte,
tenho a possibilidade de influir sobre ela. Influir sobre a psicologia social é
influir sobre os acontecimentos históricos. Pode-se afirmar portanto, que, em
certo sentido posso, apesar de tudo, fazer a História, e não preciso espe
rar
que a História se faça.”
817
Sendo, assim nos pautamos por perceber no posicionamento de Joaquim
Câmara Ferreira uma “ética da convicção” , isto é, um imperativo moral no qual o
817
PLEKHANOV, op. cit., p. 158
-
159.
350
personagem se pauta por seguir sua própria consciência diante de um proce
sso
estabelecido. Podemos verificar essa posição, em sua opção de ruptura com o PCB,
para se enveredar pelo caminho da luta armada como forma de se contrapor à ditadura
militar implantada no Brasil a partir de 1964, construindo uma organização
revolucionár
ia que tinha como princípio básico à máxima de que “o dever de todo
revolucionário é fazer a revolução”.
Para ele, o PCB estava muito a reboque de um processo, vendo a revolução
muito mais como conseqüência do desenvolvimento histórico inevitável do que a
revolução como uma tarefa e ação a ser empreendida.
Diante disso, o importante era a consciência do dever cumprido, isto é, dentro
das limitações em que teve de desenvolver sua atividade política, agiu de acordo com
os ditames do que sua consciência lhe indicava, sem contar com recompensas
pessoais ou esperar vitórias rápidas e fáceis. Cometeu erros, mas como enfatiza Anita
Leocádia
: “quem não os cometeu? Quem, no Brasil conseguiu formular um programa
efetivamente viável de transformações revolucionárias capazes de abrir caminho para
implantação de justiça social, de democracia para milhões de brasileiros e de soberania
nacional?”
818
O filósofo Renato Janine Ribeiro
819
chama a “Ética da Convicção” também de
“Ética de valores” ou “Ética de princípios”. Segundo ele, em primeiro lugar, esta ética
nos leva a seguir valores, se não fixos, pelo menos firmes, e que por isso mesmo
simulam uma fixidez, um quase absoluto (por isso é que cabe dizê-la; uma ética de
valores , ou de princípios). Os dez mandamentos da Igreja, a moral instilada pelos pais
818
PRESTES, op. cit., p. 18.
819
RIBEIRO, Renato Janine. A sociedade contra o social. O alto custo da vida pública no Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000, p. 208
-
209.
351
ou sobretudo pela mãe -, a educação ministrada na escola, funcionam como
referenciais que, pelo menos tradicionalmente, eram pouco contestados. Segundo: nela
a intenção conta muitas vezes mais do que o resultado efetivo da ação (quanto mais
próximo de mim o meu próximo, mais importará para ele a intenção de meu ato, e
menos o real efeito prático, externo, visível, da ação. Para minha mulher, contará mais
por que lhe dou flores do que o tipo de flores que recebe. Já para a mulher que não me
ame, o presente que eu lhe poderá importar mais do que o sentimento que me
animou a fazê-lo. E a um estranho, a quem prometi uma coisa que não pude cumprir,
importará bem mais meu deslize do que a razão, séria que seja, que me impediu de
satisfazê
-lo. Terceiro e último, na ética de princípios o fracasso não é fracasso. Nela,
muitas vezes, para usar um ditado francês, “quem perde, ganha”. Mesmo numa
sociedade cada vez mais marcada pelo dinheiro, respeita-se quem abriu mão do
sucesso a todo custo em função de algum valor relevante. Pode ser o respeito
nostálgico de quem não agirá jamais com a mesma dignidade, mas de qualquer forma é
um respeito. (...) Fracassei de ponta a ponta, minha ação foi um desastre, perdi tudo
mas conservei algo precioso, íntimo, relevante. Para Janine ainda, no segundo e
terceiro traços estão realmente o cerne desta “Ética da Convicção”, que não é a “Ética
da Responsabilidade”, pois a primeira característica significaria somente seguir uma lei
existente o que seria fácil. Não a distingue de uma ética qualquer da heteronomia
820
,
pela qual nem sequer nos perguntamos o que é certo, o que é errado, mas apenas
acompanhamos a manada. Por isso, o essencial aqui está nos traços segundo e
terceiro, os que nos afastam da mera repetição no limite, não ética de valores
aprendidos, para entrarmos na opção pessoal por princípios, que procuraremos seguir.
820
Siste
ma de ética segundo o qual as normas de ação provêm de fora (de Deus).
352
Para ele, o momento em que deixamos de ser carneiros, e nos tornamos humanos, é
quando cintila a intenção. É quando, também, se divisa o fracasso. Esses dois traços, o
segundo e o terceiro acima apontados, ligam-se umbilicalmente. distingo a intenção
do ato porque percebo o quanto é difícil e arriscado estar neste mundo. Aliás, neste
ponto os éticos de princípios se encontram com Maquiavel: o cerne de seu argumento,
no Príncipe, era o descompasso entre a intenção (boa) e o resultado (desastroso). Eles
e ele, os éticos e Maquiavel, percebem que o mundo da ação é opaco, que entre o
gesto e seu efeito, entre o ímpeto e o final, um sem-fim de desencontros, que por
sinal, são o que nos faz pensar, são o que nos desafia a encontrar um rumo que seja o
nosso. Aqui, porém, ao contrário de Maquiavel, longe de o resultado julgar a intenção, é
esta que prevalece. A intenção desculpa o ato e quem não sabe como isso conta, na
mais íntima das relações, a do amor? Daí, quanto mais íntimos somos, mais importa a
intenção. Por isso mesmo se uma ética que lida com o não íntimo, com o
desconhecido, não pode pautar-se pela intenção -, uma ética da proximidade é,
sobretudo, uma ética intencionada. Janine termina afirmando que é por isso, que a ética
da Convicção acaba construindo com o fracasso um de suas maiores qualidades, pois
aos olhos da amada, um fracasso de boa intenção conta mais que a secura de
sucesso. Enquanto que a ética da responsabilidade, sendo pautada por resultados, terá
enorme dificuldade em tratar com a derrota. Irá evitá
-
la de todos os modos, mas quando
a ela sucumbir não terá defesa, não terá discurso que seja plausíve
l.
A partir disso, observamos que Joaquim Câmara Ferreira esteve a maior parte
de sua vida no PCB. Não era um líder carismático de expressão nacional como outros
que o Partido teve, no decorrer de sua história, mas se destacou por ser um homem
que sempre atuou clandestinamente em atividades de infra-estrutura, organização,
353
agitação e propaganda e, sobretudo, pela tentativa de implantação do socialismo no
Brasil. Dentro deste objetivo foi um militante incansável que passou por dificuldades, as
mais diversas, prisões e torturas. Entretanto, o militante disciplinado e que era tido por
seus companheiros como um homem de “humanismo acentuado” e de educação
refinada, fez a opção do enfretamento armado contra a ditadura em condições e numa
organização revolucionária que, a nosso ver, contrariava toda a sua história de
militância e concepção política, se pautando por uma convicção pessoal que não
ambicionava nada além do que satisfazer a própria consciência e fidelidade. Causou
estranheza a todos os companheiros que haviam militado com ele e que não
vislumbravam na sua atuação política ou perfil pessoal, a possibilidade de tal opção.
Todavia, ao se convencer de qual caminho deveria seguir, procurou manter-se fiel a ele
não retrocedendo, mesmo quando a conjuntura indicava a possibilidade da derrota.
Parafraseando Anita Leocádia, ao falar de Prestes, Joaquim Câmara Ferreira foi
“como
se dizia antigamente, e no bom sentido da palavra, um idealista.”
821
Desta forma, é importante recuperar a trajetória de homens como Joa
quim
Câmara Ferreira e tantos outros, principalmente, num país em que praticamente
inexiste uma memória histórica. A vida e luta de homens como Joaquim Câmara
Ferreira pode trazer para as populações mais jovens um exemplo de como se pode
nortear a vida por valores que não sejam somente aqueles de cunho eminentemente
individualistas. Além disso, serve para que o nosso povo perceba que homens simples
mas extremamente dedicados ousaram lutar e até morrer para que se pudesse
construir no Brasil, uma sociedad
e diferente e sem tantas desigualdades sociais.
821
PRESTES, op. cit., p. 10.
354
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Suplemento Especial
–, 20 de Janeiro de 1966.
Jornal “O Guerr
ilheiro”
Ação Libertadora Nacional, novembro de 1970.
2
Documentos manuscritos e mimeografados
Certidão de casamento de Joaquim Câmara Ferreira e Leonora Cardieri Ferreira.
Certidão de óbito de Joaquim Câmara Ferreira.
Diário de Leonora Cardieri - esposa de Joaquim Câmara Ferreira (Munster, Alemanha,
1971).
Documento do Agrupamento Comunista de São Paulo, abril de 1968.
Joaquim Câmara Ferreira carta escrita para a filha Denise, em Cuba, em 18 de
dezembro de 1969.
Joaquim Câmara Ferreira –
Relatór
io A1, 53 (4)
5, mimeo. CEDEM, s/ data.
Joaquim Câmara Ferreira. Panfleto: Marighella: vida e ação criadoras, novembro de
1969.
Página do caderno escolar de Joaquim Câmara Ferreira.
Proclame de casamento de Joaquim Câmara Ferreira e Leonora Cardieri.
362
Te
legrama enviado por Joaquim Câmara Ferreira avisando Leonora e a família sobre a
sua soltura da Ilha Grande.
D.E.S.P.S.
-
Prontuário 33807, ficha número 3. Arquivo Público do Rio de Janeiro.
D.E.S.P.S.
Prontuário 33807 termo de declaração de Joaquim Câmara Ferreira.
Arquivo Público do Rio de Janeiro.
D.E.S.P.S.
Prontuário 33807, p. 2
Arquivo Público do Rio de Janeiro.
D.E.S.P.S.
Prontuário 33807, p. 4
Arquivo Público do Rio de Janeiro.
D.E.S.P.S.
Prontuário 33807, p. 6
Arquivo Público do Rio
de Janeiro.
D.E.S.P.S.
Prontuário 33807, p. 8
Arquivo Público do Rio de Janeiro.
D.E.S.P.S.
Prontuário 33807, p. 10
Arquivo Público do Rio de Janeiro.
D.E.S.P.S.
Prontuário 33807, p. 13
Arquivo Público do Rio de Janeiro.
D.E.S.P.S.
Prontu
ário 33807, p. 31
Arquivo Público do Rio de Janeiro.
D.E.S.P.S.
Prontuário 33807, p. 40
Arquivo Público do Rio de Janeiro.
D.E.S.P.S.
Prontuário 33807, p. 47
Arquivo Público do Rio de Janeiro.
D.E.S.P.S.
Prontuário 33807, p. 52
Arquivo Públic
o do Rio de Janeiro.
D.E.S.P.S.
Prontuário 33807, p. 53
Arquivo Público do Rio de Janeiro.
D.E.S.P.S.
Prontuário 33807, p. 55
Arquivo Público do Rio de Janeiro.
D.O.P.S.
Documento 178, f.3
Arquivo Público de São Paulo.
D.O.P.S.
Documento 178,
f.4
Arquivo Público de São Paulo.
D.O.P.S.
Documento 178, f.5
Arquivo Público de São Paulo.
D.O.P.S.
Documento 30B152, f.5
Arquivo Público de São Paulo.
D.O.P.S.
Documento 30B152, f.6
Arquivo Público de São Paulo.
D.O.P.S.
Documento 30B152
, f.7
Arquivo Público de São Paulo.
D.O.P.S.
Documento 30B152, f.8
Arquivo Público de São Paulo.
363
D.O.P.S.
Documento 30B152, f. 10
Arquivo Público de São Paulo.
D.O.P.S.
Documento 30B152, f.11
Arquivo Público de São Paulo.
D.O.P.S.
Documento
30C1
Arquivo Público de São Paulo.
Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro
Setor comunismo, pasta 71, f. 29.
Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro
Setor comunismo, pasta 101, f.24.
Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro
Setor co
munismo, pasta 303, f. 603.
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concedida ao autor em 05 de maio de 2003.
AMANO, Takao. (ex-militante da ALN). São Paulo, 2003. Entrevista concedida ao
autor em 22 d
e maio de 2003.
BELLOQUE, Gilberto.
(ex-
militante da ALN)
. São Paulo, 2003. Entrevista concedida ao
autor em 06 de outubro de 2003.
BELLOQUE, Maria Luiza. (ex-militante da ALN). São Paulo, 2003. Entrevista
concedida ao autor em 06 de outubro de 2003.
BET
TO, Frei. (Dominicano, apoio da ALN). Entrevista concedida ao autor, por e-
mail,
em 20 de abril de 2003.
BRITO, Frei Fernando de. (Dominicano, apoio da ALN). Belo Horizonte, 2003.
Entrevista concedida ao autor em 21 de junho de 2003.
CANNABRAVA, Paulo. (ex-militante da ALN). São Paulo, 2003. Entrevista concedida
ao autor em 27 de maio de 2003.
364
CARDIERI, Edwirges Ferreira (irmã de Joaquim Câmara Ferreira). Entrevista
concedida ao seu sobrinho neto Carlos Fraenkel que a enviou ao autor, do Canadá, em
julho de
2003.
CARDIERI, Roberto Ferreira. (Filho de Câmara Ferreira). São Paulo, 2003. Entrevista
concedida ao autor em 23 de agosto de 2003.
CARMO, Maria do. (amiga de Câmara Ferreira). São Paulo, 2003. Entrevista
concedida ao autor em 30 de maio de 2003.
CARVAL
HO, Apolônio de. (ex-militante comunista). Rio de janeiro, 2003. Entrevista
concedida ao autor em 17 de janeiro de 2003.
CARVALHO, Apolônio de. (ex-militante comunista). Rio de janeiro, 2004. Entrevista
concedida ao autor em 05 de janeiro de 2004.
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IEL, Alberto.
(ex-
militante comunista)
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autor em 20 de maio de 2003.
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8)
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ao autor em 06 de novembro de 2003.
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mil
itante comunista)
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autor em maio 20 de maio de 2003.
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.
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autor em maio 30 de maio de 2003.
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MELLO, Sara. (ex-militante do Partido Comunista). São Paulo, 2003. Entrevista
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MELLO, Sara. (ex-militante do Partido Comunista). São Paulo, 2003. Entrevista
concedida ao autor em 30 de maio de 2003.
MELLO, Sara. (ex-militante do Partido Comunista). São Paulo, 2003. Entrevista
concedida ao autor em 25 de agosto de 2003.
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ao au
tor em 30 de maio de 2003.
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autor em 19 de março de 2004.
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VENCESLAU, Paulo de Tarso. (ex-militante da ALN). São Paulo, 2003. Entrevista
concedida ao autor em 06 de outubro de 2003.
VILELA, Magno. (ex-dominicano, apoio da ALN). São Paulo, 2003. Entrevista
concedida ao autor em 25 de agosto de 2003.
369
ANEXOS
Arquivo particular de Sara Mello
Joaquim Câmara Ferreira com os filhos Roberto e Denise.
Arquivo particular da
família de Joaquim Câmara Ferreira
Leonora Cardieri Ferreira, esposa de Joaquim Câmara Ferreira
370
Arquivo particular de Sara Mello
Prisão de Joaquim Câmara Ferreira no jornal do PCB em 1948, em São Paulo.
3
71
Arquivo particular da família de Joaquim Câmara Ferreira
Carteira de identidade de Joaquim Câmara Ferreira.
372
Arquivo particular da família de Joaquim Câmara Ferreira
Joaquim Câmara Ferreira (em pé) e seu
irmão Francisco
373
Arquivo particular da família de Joaquim Câmara Ferreira
Joaquim Câmara Ferreira e Leonora Cardieri no casamento da filha Denise.
374
Arquivo particular da família
de Joaquim Câmara Ferreira
Roberto Cardieri, Lia Cardieri e os filhos
375
Iconographia
376
Agência Estado
Joaquim Câmara Ferreira no IML.
377
Arquivo particular de Mário
Magalhães
Joaquim Câmara Ferreira numa palestra em Ribeirão Preto
378
Daniela Câmara e Luiz Henrique no túmulo de Câmara Ferreira no cemitério da Consolação, em São Paulo
.
379
Túmulo de
Joaquim Câmara Ferreira e Leonora Cardieri (cemitério da Consolação
SP)
380
Clóvis Capalbo
História de Jaboticabal.
381
Clóvis Capalbo
História de Jaboticabal.
Joaquim Batista Ferreira Sobrinho
-
pai de Joaquim Câmara Ferreira
382
Iconographia
Libertados no seqüestro do embaixador americano Charles Burke Elbrick.
383
Arquivo da família de Joaquim Câmara Ferreira
Joaquim Câmara Ferreira e Leonora no casamento de Vera Gertel.
384
Clóvis Capalbo
História de Jaboticabal.
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