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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Ana Enésia Sampaio Machado
O papel de Deus na cura segundo Viktor Emil Frankl
MESRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
SÃO PAULO
2010
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Ana Enésia Sampaio Machado
O papel de Deus na cura segundo Viktor Emil Frankl
MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, como exigência
parcial para obtenção do título de Mestre
em Ciências da Religião, área de
concentração: Fundamentos das Ciências
da Religião, sob a orientação do Prof.
Doutor Luiz Felipe de Cerqueira e Silva
Pondé.
SÃO PAULO
2010
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B a n c a E x a m i n a d o r a
________________________
________________________
________________________
À Luciana Jukemura
(in memorian)
AGRADECIMENTOS
Jacek Bednarek é o primeiro que deve ser lembrado em meus
agradecimentos, pois foi quem, em 2006, apresentou-me a Viktor Frankl e seu livro
Em busca de sentido. Quase um ano depois, graças à minha irmã, Suzy Garcia, tive
a felicidade de conhecer Luiz Felipe Pondé, que o gentilmente aceitou me orientar
nesse projeto, tendo sido, durante os últimos três anos, um modelo de professor,
que sabe ouvir seus alunos e os respeita em qualquer situação, além de
compartilhar, não em aulas, mas também em conversas, sua incalculável riqueza
de pensamentos.
Ainda falando sobre enriquecimento, devo citar minhas queridas professoras
do Cogeae (Coordenadoria Geral de Especialização, Aperfeiçoamento e Extensão
da PUCSP): Maria Cristina Mariante Guarnieri, cuja enorme importância em minha
vida não se pode avaliar; Maria José Caldeira do Amaral, que fala sobre o amor com
tanta propriedade por um motivo, a meu ver, muito simples: não se pode deixar de
amá-la; e Ana Cláudia Patitucci, que tanto me ensinou, ofertando-me indicações
preciosas para que este trabalho pudesse ser completado. Elas estiveram comigo do
início ao fim.
Também agradeço aos excelentes professores das disciplinas cursadas na
PUCSP: cada um deles contribuiu para que minha visão de mundo fosse ampliada.
Da mesma forma, aos colegas, que generosamente compartilharam leituras e
informações importantes, formando laços de amizade que adoçaram cada momento
passado entre aulas, lanches e cafés. E à Andréia, secretária do Programa de
Estudos Pós-Graduados em Ciências da Religião, que, sempre com sorriso e
gentileza, forneceu todas as informações precisas e necessárias, até para os mais
esquecidos, como eu, que repetidas vezes perguntam a mesma coisa.
Sem o auxílio financeiro da CAPES, provavelmente, eu teria desistido diante
das dificuldades para prosseguir neste estudo, que é tão diverso de minha formação
acadêmica anterior. É necessário, portanto, destacar também a importância dessa
instituição e agradecer pelo apoio recebido.
Um grupo inteiro de pessoas deve ser citado: os membros do NEMES
(Núcleo de Estudos de Mística e Santidade). Todos me incentivaram a falar do meu
tema, demonstraram interesse e fizeram perguntas pertinentes, além de suportar a
não acadêmica carga de emoção, que surgia quando eu relatava a vida de Viktor
Frankl. Fiz, nesse grupo, amizades que, espero, durarão a vida toda. Tive ajudas
específicas de diversos desses meus colegas e temo esquecer algum nome, caso
venha a falar o que cada um fez. Seria, porém, uma falha enorme se não citasse
nominalmente os seguintes amigos: Rodrigo Inácio de Menezes, para quem o
versículo “o amigo ama em todo o tempo, e na angústia nasce o irmão”, aplica-se
muito bem; Marcelo Consentino, cuja personalidade é como um diamante que,
dependendo do ângulo de observação, revela uma faceta de brilho diferente; Andrei
Venturini Martins, porto de amizade onde se ancora com segurança; Carlos Alberto
de Souza, uma mistura interessantíssima de rigor intelectual e afeto; Roberto Pereira
Miguel, tão disponível, equilibrado e bondoso. Eles me ajudaram lendo
cuidadosamente meu trabalho e levantando questões cujas respostas fizeram com
que meu texto adquirisse consistência. Agradeço, em especial, ao Roberto e ao
Rodrigo, pela revisão dos textos que lhes enviei.
Por fim, agradeço à minha outra doce irmã, Mary Ferreira, que revisou meus
escritos iniciais e à Lilian Wurzba Ioshimoto, este dínamo ambulante, que passou
madrugadas em claro para corrigir e padronizar todo o texto final, apontar minhas
falhas de encadeamento lógico, sugerir melhores formas de expressar minhas
idéias, dizer tudo o que eu precisava saber sobre o processo burocrático do término
de uma dissertação, além de me ensinar as etapas finais de uma obra como esta.
Sem ela, eu não teria terminado a tempo.
Todas as pessoas aqui citadas estao sempre em meus pensamentos.
“Na angústia clamei ao senhor, e ele me respondeu.”
(Jonas 2:2)
RESUMO
Este trabalho aborda a relação entre Deus e cura das neuroses da falta de
sentido. A partir das obras de Viktor Frankl, psiquiatra e psicólogo vienense,
descreve quais seriam essas neuroses, denominadas noogênicas, neuroses que
têm sua origem na dimensão da existência humana. O conceito de neurose
noogênica vai além de uma patologia psicofísica, pois, para o autor, o homem é
essencialmente espiritual. Esse núcleo espiritual, em torno do qual se agrupam o
psíquico e o físico, é o responsável pela consciência moral, pelo amor e pela arte. O
homem moderno, ao se afastar de sua religiosidade aumentou o vazio existencial,
pois não encontra o porquê de suas ações, o que pode gerar uma ausência de
sentido, característica da neurose noogênica. Assim, o homem adoeceria em sua
espiritualidade. Para esse tipo de adoecimento, Frankl criou a Logoterapia. Um tipo
específico de tal doença espiritual é a neurose de massa, que tem um destaque
nesta pesquisa. Para o autor, Deus, que é o sentido último da existência humana,
dialoga com o homem quando este conversa com sua própria consciência moral,
que é transcendente. Utilizando os conceitos de Deus e de homem dados pelo autor,
esta pesquisa aborda a relação entre o ser humano e a transcendência e como se
daria, através dessa relação, e de um conseqüente encontro de sentido, a cura das
neuroses citadas.
Palavras-chave: cura; Deus; Logoterapia; neurose de massa; neurose noogênica.
ABSTRACT
This paper addresses the relationship between God and the cure of
meaningless neuroses. From the works of Viktor Frankl, the Viennese psychiatrist
and psychologist, this paper describes what are these neuroses, called noogenics,
neuroses that have their origin in the dimension of the human existence. The
concept of noogenic neurosis goes beyond a psychophysical condition, therefore, to
the author, the human being is essentially spiritual. This spiritual core, around which
are grouped the psychic and physical, is responsible for the moral conscience, love
and art. As the modern man deviates himself away from his religion, he has
increased the existential emptiness, because he can not find a reason for his actions,
which can lead to a lack of meaning, characteristic of noogenic neurosis. Thus, the
man would get ill in his spirituality. For this type of illness, Frankl has created the
Logotherapy. A specific type of such spiritual disease is the mass neurosis, which is
the highlight of this research. For the author, God, who is the ultimate meaning of
human existence, dialogues with the man when he talks to his own moral
conscience, which is transcendent. Using the concepts of God and man given by the
author, this research addresses the relationship between human being and the
transcendence and how it would, through this relationship, and a subsequent
meeting with the meaning, the cure of the mentioned neuroses.
Keywords: healing, God, Logotherapy, mass neurosis, noogenic neurosis.
SUMÁRIO
Introdução .......................................................................................................... 10
Capítulo I: Vida e obra de Viktor Frankl ............................................................. 15
Infância e adolescência............................................................................... 15
Estudos e início de sua profissão................................................................ 16
Humor, afinidades e amor ........................................................................... 20
Religiosidade............................................................................................... 22
Campos de concentração............................................................................ 22
Primeira fase: recepção............................................................................... 24
Segunda fase: a vida no campo de concentração....................................... 26
Terceira fase: após a libertação .................................................................. 31
A recuperação ............................................................................................. 32
Capítulo II: Sobre logoterapia e cura................................................................... 35
Neuroses noogênicas.................................................................................. 43
Intenção paradoxal...................................................................................... 44
De-reflexão.................................................................................................. 45
Um tipo específico de neurose noogênica causada pelo vazio existencial:
a neurose de massa.................................................................................... 47
Atitude existencial provisória ....................................................................... 48
A atitude fatalista......................................................................................... 49
O pensamento coletivo................................................................................ 49
O fanatismo................................................................................................. 51
O tratamento logoterapêutico...................................................................... 52
Capítulo III: Deus, o ser desconhecido ............................................................... 57
A consciência moral: o ético inconsciente................................................... 60
O amor: o erótico inconsciente.................................................................... 61
A arte: o estético inconsciente..................................................................... 62
A origem transcendente da consciência moral............................................ 63
O sentido último .......................................................................................... 65
Psicoterapia e religião ................................................................................. 69
O homem em busca de sentido................................................................... 73
Conclusão........................................................................................................... 76
Referências......................................................................................................... 79
10
INTRODUÇÃO
Quando criança, tomei conhecimento desse acontecimento que tem a
capacidade de deixar qualquer pessoa estupefata diante do horror e do mal: os
campos de concentração. Na época, havia lido uma obra intitulada O refúgio
secreto, da escritora Corrie Ten Boon, membro da resistência holandesa, que
refugiou alguns judeus em um compartimento secreto em sua casa. Como muitos
que não fecharam os olhos para seus semelhantes, ela e sua família, juntamente
com seus hóspedes refugiados, foram descobertos e forçados a ir para esses locais
de horror e morte. Nunca esqueci esse livro e, sempre que podia, buscava mais
informações sobre o que ocorreu na Alemanha da II Guerra. Mais tarde, meu
interesse se voltou para relatos de ex-prisioneiros de regimes comunistas e de
pessoas que sobreviveram a massacres e genocídios feitos em nome de uma futura
sociedade perfeita. Apesar de ter lido vários relatos de tentativas feitas para nivelar e
igualar os homens, apagando-lhes as particularidades e os induzindo a um único
modo de pensar e enxergar o mundo, ingressei numa seita fundamentalista e lá
permaneci durante onze anos de minha juventude, conhecendo de perto
(pouquíssimo, é verdade, em comparação com qualquer sobrevivente de
movimentos genocidas), a violência especialmente a psicológica , a
desonestidade, a injustiça e o fanatismo, vivendo minha própria fusão com a massa
e sofrendo, durante esse tempo e mais tarde, todas as conseqüências de tal
vivência. Como não poderia deixar de ser, questionei-me diversas vezes sobre o que
ocorria comigo e com os demais participantes da seita e me perguntei com
insistência se havia um sentido para minhas próprias experiências de vida.
11
Em 2005, mexendo nas estantes de uma livrara, deparei-me com duas obras
de Primo Levi: Se não agora, quando? e A trégua. Imediatamente li esses dois livros
que foram seguidos por É isto um homem? e Os afogados e os sobreviventes. Neste
último, chamou-me a atenção, entre outras coisas, um capítulo no qual o autor fala
sobre a inutilidade da violência aplicada aos prisioneiros dos campos de
concentração:
Para um nazista ortodoxo devia ser óbvio, nítido, claro que todos os judeus
tinham de ser mortos: era um dogma, um postulado. Também as crianças, por certo:
também e especialmente as mulheres grávidas, para que não nascessem futuros
inimigos. Mas por que, em suas razias furiosas, em todas as cidades e povoados de
seu império imenso, violar a porta dos moribundos? Por que se meterem a arrastá-
los até os trens, para levá-los a morrer longe, após uma viagem insensata, na
Polônia, no limiar das câmaras de gás? Em meu comboio havia duas moribundas de
noventa anos, arrancadas da enfermaria de Fòssoli: uma morreu na viagem,
assistida em vão pelas filhas. Não teria sido mais simples, mais ‘econômico’, deixá-
las morrer, ou quem sabe assassiná-las, em seus leitos, em vez de inserir sua
agonia na agonia coletiva do trem? Verdadeiramente, somos induzidos a pensar que,
no Terceiro Reich, a escolha melhor, a escolha imposta de cima para baixo, fosse
aquela que comportava a máxima aflição, o máximo esbanjamento de sofrimento
físico e moral. O ‘inimigo’ não devia apenas morrer, mas morrer no tormento.
1
Justamente nessa época, eu costumava conversar sobre leituras com um
amigo, Jacek Bednarek, que conheço virtualmente, pois ele mora na Polônia. Ao
me ouvir dizer sobre o quanto gostava dos escritos de Levi, recomendou-me ler Em
busca de sentido, de Viktor Frankl. Eu queria prosseguir com estudos acadêmicos e
sabia que não o faria na área em que estudei minha graduão, a Matemática. A
leitura deste livro trouxe a imediata certeza sobre qual autor seria meu objeto de
estudo. Apaixonei-me por essa bela história de encontro de sentido em meio a uma
situação extrema, na qual até a violência carecia de finalidade.
No decorrer do ano de 2006 cursei dois módulos do curso Introdução à
Logoterapia, na Sociedade Brasileira de Logoterapia, para aprender mais sobre
Viktor Frankl e sua teoria psicológica. Nessa época conheci, por uma feliz
coincidência, o professor Luiz Felipe de Cerqueira e Silva Pondé, que aceitou me
orientar neste projeto, embora minha formação não seja em Filosofia ou em
Psicologia. Com a idéia deste trabalho em mente, também fiz o curso de extensão
universitária Psicologia e Religião, no COGEAE (Coordenadoria Geral de
1
PRIMO LEVI, Os afogados e os sobreviventes, pp. 103-4.
12
Especialização, Aperfeiçoamento e Extensão) da PUC-SP (Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo), com o intuito de ter um conhecimento introdutório ao tema
que pretendia estudar. Concomitantemente, comecei a assistir às aulas de Filosofia
da Religião, ministradas pelo professor Pondé, e a participar do grupo NEMES
(Núcleo de Estudos de Mística e Santidade), na PUC-SP. No segundo semestre de
2007 ingressei como aluna do mestrado em Ciências da Religião nessa instituição
dando início a este projeto.
No livro Em Busca de Sentido, Viktor Frankl narra sua experiência como
prisioneiro em campos de concentração nazistas e também descreve os conceitos
fundamentais da Logoterapia, sua teoria psicológica. A principal afirmação dessa
teoria é a de que em qualquer situação da vida é possível encontrar um sentido e
este pode se dar por três diferentes modos: diante de uma realização, de uma
vivência do belo e de uma atitude humana perante o sofrimento. Cada uma dessas
situações nos convida a assumir uma responsabilidade pessoal e única perante a
vida. A logoterapia é a terapia voltada para o encontro de sentido e é aplicável,
principalmente, nos casos de neurose da falta de sentido, denominadas neuroses
noogênicas. Vale a pena observar que neuroses noogênicas não são neuroses no
sentido usual da palavra, pois se referem a um adoecimento espiritual e não
psicológico. Frankl afirma que, além das três possibilidades de sentido que um ser
humano pode encontrar nas situações vividas, também é possível a um homem se
perguntar se existe ou não um sentido último. Este sentido último, perante o qual o
homem é responsável e de onde provém sua consciência moral fonte de nossos
julgamentos de valor é Deus. Mas qual é o papel de Deus na cura das neuroses
noogênicas? Essa é a investigação que será desenvolvida neste trabalho.
Viktor Frankl é um autor bastante estudado. Existem grupos de especialistas
em logoterapia tanto na Áustria como em diversos outros países, incluindo Estados
Unidos, Brasil, Argentina, México e Alemanha. Há muitas obras que tratam da
relação entre Deus e cura que citam a teoria psicológica de Viktor Frankl, tanto em
português, quanto em espanhol ou inglês. Boa parte deles aborda a assistência
espiritual para pacientes com doenças graves.
2
Esta é uma das aplicações da
2
Citamos, como exemplos: T.WALTER, Spirituality in palliative care: opportunity or burden? Palliative
Medicine, pp. 133-9; Willian BREIBART, Spirituality and meaning in supportive care: spirituality and
meaning-centered group psichotherapy interventions in advanced cancer, Supportive Care in Cancer,
pp. 272-80.
13
logoterapia, mas não é o foco de nosso trabalho. Outros, ainda, discutem como a
religiosidade influenciaria na cura de doenças psicológicas ou físicas, também não
sendo o interesse da presente pesquisa. Por outro lado, há aqueles que tratam
diretamente da logoterapia, apresentando suas aplicações, bem como um resumo
do pensamento do autor.
3
Encontramos, no entanto, dois trabalhos que se
aproximam de nossa investigação: Viktor Frankl: a antropologia como terapia, de
Ricardo Peter, uma análise da visão antropológica de Frankl e do encontro de
sentido na dimensão espiritual, e As dimensões espiritual e religiosa da experiência
humana: distinções e inter-relações na obra de Viktor Frankl, de Achilles Gonçalves
Coelho e Miguel Mahfoud, que discutem a visão do homem como ser espiritual e
religioso.
Esta pesquisa difere, contudo, desses dois trabalhos, pois tem como interesse
principal o papel de Deus na cura das neuroses noogênicas. Nossa hipótese é a de
que, no caso desse tipo específico de neurose, Deus exerce um papel fundamental
no restabelecimento da saúde.
Observamos, nos dias atuais, conseqüências da falta de sentido, manifestas,
principalmente, na grande quantidade de casos de neuroses de massa e nos atos
suicidas. Daí a importância desse estudo para os nossos dias, pois o pensamento
de Viktor Frankl representa uma possibilidade de tratamento e prevenção desses
problemas. Além disso, a maneira pela qual o autor considera a relação entre o
homem e Deus não se reduz a um conjunto de regras e obrigações, possivelmente
inventado para servir a interesses de alguns, como apregoa o senso comum, pouco
reflexivo; antes, se refere à atitude de “ser-responsável”. Para Frankl, o homem é
um ser essencialmente espiritual, inclusive dotado de um inconsciente não apenas
anímico, mas também espiritual. Nesta medida, sua obra coloca a Psicologia em
franco diálogo com as Ciências da Religião. A proposta psicoterapêutica de Frankl
só pode ser entendida sob a perspectiva da religião. Nosso objetivo, assim, é
aprofundar o conhecimento existente a respeito do tema e com isso avançar um
pouco na compreensão do homem em sua condição de criatura. Nosso estudo diz
3
Cf. Marina B. Gomes PRIETO, La espiritualidad em el hombre desde la perspectiva logoterapéutica
de Víktor Frankl, Psicologia y Psicopedagogia; José Carlos Vitor GOMES, Logoterapia: A psicoterapia
existencial e humanista de Viktor Emil Frankl; Alfried LÄNGLE, “Viver com aprovação” imagem
humana, motivação e forma de tratamento na análise de existencia,
Fundamenta Psychiatrica, pp.
139-46; Antonio Wardison Canabrava DA SILVA e Herivelton BREITENBACH, Fundamentação e
prática da psicoterapia, http://200.159.127.206/encontro2009/trabalho/aceitos/CC29750900804C.pdf.
14
respeito, portanto, à relação entre Logoterapia e Religião, com foco nos aspectos
terapêuticos dessa relação. Está baseado principalmente nas obras publicadas pelo
autor, além de outras que nos permitiram saber um pouco mais de Psicologia e de
Filosofia, de modo a entender melhor os conceitos apresentados por Frankl.
Para realizar tal propósito, esta dissertação está organizada da seguinte
maneira:
No capítulo I é apresentada a biografia de Viktor Frankl, incluindo a sua
experiência como prisioneiro do regime nazista. Experiência esta que serviu para
corroborar sua teoria, pois a logoterapia o foi concebida nos campos de
concentração. Frankl já tinha seus primeiros manuscritos sobre o tema ao ser
deportado para Auschwitz, porém sua obra foi confiscada quando ingressou. O
fato de termos incluído sua biografia neste trabalho, e nela um espaço tão grande
para descrever a experiência de Viktor Frankl nos campos de concentração, justifica-
se porque ele mesmo teve que provar se sua teoria seria aplicável em qualquer
situação, teve que encontrar sentido em meio ao absurdo.
O capítulo II fornece uma explicação detalhada sobre a logoterapia e suas
aplicações, assim como o conceito de neurose noogênica, com especial atenção às
neuroses de massa.
O capítulo III fala sobre o conceito que o autor tem sobre Deus e sobre o
homem, de como se dá o diálogo entre ambos e sobre a conseqüência desse
diálogo: o encontro de sentido.
A conclusão assinala que o encontro de sentido, fruto do diálogo com a
transcendência, é uma possibilidade de cura para a neurose noogênica.
15
CAPÍTULO I
Vida e obra de Viktor Frankl
Você pesa sobre mim, você que eu perdi para a morte.
Você me deu a carga silenciosa de viver para você;
Então cabe a mim agora liquidar a dívida da sua exterminação.
Até que eu saiba que com cada raio de sol
Você deseja aquecer-me e encontrar-me;
Até eu ver que em cada árvore a desabrochar
Há um morto que quer me cumprimentar;
Até eu ouvir que cada canto de pássaro é a sua voz
Soando para me abençoar e talvez para dizer
Que você me perdoa por viver.
1
Viktor Frankl nasceu em Viena, a 26 de março de 1905 filho de Gabriel e Elsa
Frankl. Em sua autobiografia
2
, ele descreve sua mãe como uma mulher de bom
coração e profundamente piedosa e seu pai como um Zaddik, ou seja, um homem
justo, em hebraico. Quando seu pai trabalhava em uma repartição pública, chegou a
ser repreendido disciplinarmente por ter se recusado a trabalhar durante o Yom
Kippur. Assim, Frankl atribui seu temperamento racional e profundamente emotivo a
uma mistura entre as heranças paterna e materna.
Infância e adolescência
Desde criança manifestou desejo de ser médico, em parte por querer agradar
seu pai, que não pôde continuar seus estudos de medicina devido a problemas
financeiros. Em suas memórias de infância, recorda-se vivamente da noite em que
percebeu que um dia iria morrer. Nessa noite, perguntou-se pela primeira vez se a
existência da morte faz com que a vida fique vazia de sentido. Da luta contra esta
1
Viktor FRANKL, Recollections, p.101. (tradução de Rodrigo Inácio Sá Menezes)
2
Ibid. p. 19-26.
16
questão, veio sua resposta: é justamente a morte que faz a vida ficar mais repleta de
sentido, sentido este que a transitoriedade não destrói, porque tudo o que está no
passado é irrevogável e não poderá mais ser destruído.
Outro de seus desejos infantis era o de escrever um pequeno conto no qual
relataria, de forma indireta, algumas de suas vivências da infância como, por
exemplo, uma em que seu pai o resgatou rapidamente de uma linha de trem
justamente no momento em que este iria começar a se movimentar. Essas
experiências lhe deram a sensação de estar seguro e protegido, de tal modo que ele
se recorda de ter acordado numa manhã e, ainda com os olhos fechados, sentir-se
inundado por uma agradável sensação de estar sendo guardado. Assim que abriu os
olhos, viu seu pai olhando para ele e sorrindo.
Quando adolescente, elaborou outra possível história: um homem descobre
um remédio capaz de tornar as pessoas mais espertas. Após a publicação da notícia
dessa descoberta, ninguém mais conseguiria entrar em contato com tal homem. O
motivo: ele mesmo havia ingerido a poção e, tendo se tornado mais sábio, retirara-
se para uma floresta e passara a viver em contemplação, esquivando-se de
qualquer exploração comercial de seu segredo.
Frankl recorda-se do período de sua infância em que ocorreu a I Guerra
Mundial. Nessa ocasião, chegou a ficar durante três horas em uma fila, durante o
inverno, somente para comprar batatas. Assim que chegava o horário de ir para a
escola, sua mãe o substituía na fila.
Estudos e início de sua profissão
Antes mesmo de ingressar na faculdade, começou a se interessar por aulas
de psicologia aplicada e experimental e, mais tarde, ficou fascinado pela obra Além
do princípio do prazer, de Sigmund Freud.
Seus primeiros estudos de psicanálise foram obtidos através de dois
influentes estudantes de Freud: Eduard Hirschmann e Paul Schilder, que ensinavam
regularmente na Clínica Psiquiátrica de Julius Wagner Ritter Von Jauregg, na
Universität Wien (Universidade de Viena). Esse fato o levou a corresponder-se com
Freud, mas, infelizmente, as cartas guardadas por Frankl foram confiscadas por
ocasião de sua partida para os campos de concentração. Na época, Freud enviou
17
um dos artigos de Frankl para o Internationalen Zeitschrift für Psychoanalyse (Jornal
Internacional de Psicanálise), publicado em 1923. Conheceram-se pessoalmente
enquanto Frankl ainda estava na universidade. Este se apresentou e, em resposta,
ouviu Freud recitar seu endereço, memorizado devido à intensa troca de
correspondências. Mais tarde, encontraram-se novamente, por acaso, mas na época
Frankl estava sob a influência de Alfred Adler, que havia aceitado um segundo
artigo seu para ser publicado, desta vez no Internationalen Zeitschrift für
Individualpsychologie (Jornal Internacional de Psicologia Individual), em 1925.
Começou a se interessar pela psiquiatria ainda antes da universidade e,
apesar de ter pensado em especializar-se em dermatologia ou obstetrícia, decidiu-se
pelo estudo da psiquiatria, influenciado por uma conversa com seu colega da escola
de medicina, W. Oesterreicher. Este perguntou a Frankl se tinha ouvido falar de
Søren Kierkegaard, pois seus interesses lembravam-lhe a seguinte frase desse
filósofo: “Não se desespere na procura de se tornar o seu autêntico eu”. Essa
conversa fez com que Frankl percebesse que não deveria mais adiar a “atualização
psiquiátrica de si mesmo”
3
. Ao questionar-se se realmente tinha talento para a
psiquiatria, decidiu fazer relação com outro de seus talentos, o de cartunista. Foi
então que percebeu que, ao fazer caricaturas, expressava uma importante qualidade
que os psiquiatras deveriam ter: não fazer unicamente um retrato das fraquezas das
pessoas. Considerou que um bom psiquiatra vai além de enxergar os pontos fracos
de seus pacientes, pois reconhece neles as possibilidades de realização. Uma
aparente falta de sentido pode resultar numa realização humana genuína.
4
Convenceu-se de que não situações desprovidas de uma semente de sentido.
Essa convicção, mais tarde, tornou-se a base da logoterapia. Além disso, refletiu
sobre o fato de que a motivação de um psiquiatra não deve ser a de ter poder sobre
as demais pessoas, para dominá-las e manipulá-las. Esse tipo de poder, para ele,
ficava claro no caso da hipnose, cuja técnica dominava desde os 15 anos. Para
Viktor Frankl, o poder do médico se identifica com a seguinte citação do Talmud:
“Aquele que salva uma única alma é tão estimado quanto aquele que salva o mundo
inteiro”.
3
Cf. Viktor FRANKL, Recollections, p. 53.
4
Ibid., p. 53.
18
Seu outro grande interesse era pela Filosofia e, por isso, quando tinha
aproximadamente quinze anos, participou de um seminário filosófico conduzido por
Edgar Zilsel. O título de sua leitura foi O Sentido da Vida e, nessa ocasião, Frankl
tinha chegado à conclusão de que esta não é uma questão que o ser humano coloca
para si mesmo, mas que lhe é dada pela vida. Outra de suas conclusões é a de que
existe um supra-sentido, que não podemos compreender, mas no qual podemos e
devemos acreditar. Viktor Frankl afirma que, essencialmente, todos cremos nesse
suprassentido, ainda que inconscientemente. Pensando nisso, criou o seguinte
lema: “abençoado seja o destino, acreditado seja o sentido”
5
.
Sua publicação de 1925, no periódico de Alfred Adler, foi seguida por outra,
em 1926. Nesse mesmo ano, Frankl foi convidado a dar o tema do Internationaler
Kongress für Individualpsychologie (Congresso Internacional de Psicologia
Individual), mas não pôde fazê-lo sem se desviar da linha ortodoxa do congresso.
Em A questão do sentido em psicoterapia, relata:
[...] eu contestava que de fato a neurose, por toda a parte e todo o tempo, fosse um
simples meio para um fim, no sentido da teoria do seu “caráter adaptativo”
[Arrangementcharakter]; insistia muito mais na alternativa de interpretá-la (não como
simples “meio”, mas também) “como expressão”, portanto, não apenas instrumental,
mas também num sentido expressivo.
6
Em seu ciclo de leituras nesse congresso, com apenas vinte e um anos de
idade, teve a oportunidade de falar sobre o sentido da vida para muitas pessoas.
Em 1927, sua relação com Adler se deteriorou e Frankl começou a criticar seu
próprio psicologismo
7
, assim como seu sociologismo
8
. Resolveu, então, reformular
suas ideias, tendo como ponto de partida O Formalismo na Ética, de Max Scheler.
Nessa época, foi repreendido pelo adleriano Alexander Neuer, como um “renegado
5
Cf. Viktor FRANKL, Recollections, p. 56.
6
Ibid., p. 117.
7
Psicologismo é definido por André LALANDE (Vocabulário técnico e crítico da filosofia, p. 889) como
sendo “a tendência para fazer predominar o ‘ponto de vista psicológico’... sobre o ponto de vista
específico de qualquer outro estudo (particularmente da teoria do conhecimento ou da lógica).” Este
é, provavelmente, o significado adotado por Viktor Frankl para o termo, usado diversas vezes em
seus escritos. Cf. Viktor FRANKL, Recollections, pp. 59, 63, 63, 67; ______ A questão do sentido em
psicoterapia, p. 116-8; ______ Logoterapia e análise existencial, pp. 25-6, 40-2, 104, 122, 147-148,
156 e 246.
8
Sociologismo: Doutrina segundo a qual a explicação dos principais problemas filosóficos e dos fatos
essenciais da história das religiões depende da sociologia. Cf. André LALANDE, Vocabulário técnico
e crítico da filosofia, p. 1048. Tamm parece ser este o sentido adotado por Viktor Frankl, conforme
seu relato em A questão do sentido em psicoterapia, p. 116.
19
de espírito”. Rudolf Allers e Oswald Schwarz anunciaram e justificaram publicamente
sua saída da Gesellschaft der Individualpsychologie (Sociedade de Psicologia
Individual), e Viktor Frankl sentiu-se obrigado a apoiá-los, sem deixar de tentar uma
reconciliação destes com Adler que, a partir desse momento, nunca mais lhe dirigiu
a palavra. Após várias sugestões feitas para que Frankl também deixasse a
Sociedade, finalmente, foi expulso formalmente.
Depois disso fundou, juntamente com Fritz Wittels e Maximilian Silbermann, a
Wissenschaftliche Gesellschaft für Medizinische Psychologie (Sociedade Acadêmica
de Psicologia Médica), dando início à sistematização de suas ideias. Nesta época
usou, pela primeira vez, o termo Logoterapia e, em 1933, como termo alternativo,
empregou Análise Existencial. No início de 1929, Frankl havia elaborado o conceito
dos três grupos de valores nos quais é possível encontrar um sentido, a saber: o
sentido de realizar algo, o sentido de ter uma experiência humana e, também, diante
de uma fatalidade inevitável, assumir uma atitude de valor diante dos fatos. Sobre
este assunto falaremos mais longamente no segundo capítulo.
No início de sua carreira, Frankl formou centros de aconselhamento de jovens
e deu aulas em organizações do movimento jovem socialista, ganhando bastante
experiência. Experiência esta que lhe possibilitou conseguir a permissão rara, senão
única, de trabalhar como psicoterapeuta, sem supervisão, na clínica do Dr. Pötzl,
seu professor que o havia incentivado. Membro do partido nazista, apesar de não
ser antissemita, o Dr. Pötzl corajosamente ajudou Frankl a cuidar de seus pacientes
judeus (os únicos que lhes eram permitidos) e a sabotar o sistema nazista da
eutanásia para os doentes mentais. Assim, por exemplo, um paciente esquizofrênico
era notificado às autoridades como portador de afasia e no caso de melancolia,
como delírio febril. Enquanto as demais clínicas não aceitavam mais pacientes
judeus, Dr. Pötzl os recebia na sua. Desse modo, ironicamente, alguns judeus,
portadores de doenças mentais, foram salvos da morte, ao contrário de alguns
membros do partido nazista que estavam na mesma situação.
Frankl também adquiriu experiência em neurologia trabalhando com Josef
Gerstmann durante dois anos e, mais tarde, durante os quatro anos como
encarregado do “pavilhão das mulheres suicidas”, no Heil-und Pflegeanstalt Am
Steinhof (hospital mental Am Steinhof), atendendo a aproximadamente três mil
mulheres por ano. Recorda-se que nos primeiros tempos nesse hospital tinha
20
pesadelos relacionados a doenças mentais todas as noites, mas atribui a essa
experiência um ganho na habilidade de fazer diagnósticos apurados. Nessa clínica,
Frankl relata que sempre tinha a ideia de escrever um livro intitulado Loucos dizem a
verdade, que esclarece a teoria da logoterapia (a logoteoria): quem está doente não
necessariamente está errado, pois “duas vezes dois é quatro, ainda que um
esquizofrênico o afirme”
9
. Com isso, declara que a logoterapia trava sua batalha
contra o psicologismo da psicoterapia.
A partir de 1937, Frankl passou a atender seus próprios pacientes como
especialista em neurologia e psiquiatria, num consultório na casa de seus pais.
Humor, afinidades e amor
Viktor Frankl gostava de fazer piadas e trocadilhos. Para se fazer uma piada,
ou mesmo uma ironia, é necessário certo grau de autodistanciamento, fundamental
em ocasiões onde o desespero pode dominar. Usou esse tipo de
autodistanciamento fornecido pelo humor em algumas ocasiões durante sua prisão
em campos de concentração. Ele usava o humor também para se livrar de situações
embaraçosas, especialmente quando estava diante de um público em uma
conferência. Na logoterapia, a aplicação da intenção paradoxal, que mais adiante
será explicada, muitas vezes é feita valendo-se do humor do paciente.
Um recurso que usou em sua juventude, quando queria impressionar alguma
moça, era o seguinte: durante alguma conversa, dançando, por exemplo, dizia o
quanto estava empolgado com as palestras de um certo Frankl, que ensinava na
escola de adultos, e sugeria com entusiasmo que a garota o acompanhasse em uma
dessas palestras. Estrategicamente, sentavam-se no fim da primeira fila e a deixava
espantada quando, sob aplausos, era ele quem iniciava a aula.
Conheceu sua primeira esposa, Tilly Grosser, em Viena, no hospital onde
ambos trabalhavam, ela como enfermeira. Viktor dizia que essa enfermeira lhe
chamava atenção, pois, para ele, parecia uma dançarina espanhola. Ele diz que fora
atraído por sua beleza, mas o que realmente o impressionava eram seu caráter e
sua compaixão.
9
Viktor FRANKL, A questão do sentido em psicoterapia, p. 116.
21
A mãe de Tilly que, segundo as leis vigentes, deveria ser deportada, não o foi
porque sua filha tinha um benefício por ser enfermeira. Esse benefício foi cancelado
e, justamente na véspera do dia em que o cancelamento seria aplicado, alguém
tocou a campainha. Vencido o medo, finalmente abriram a porta, encontrando um
mensageiro do Serviço da Comunidade Judaica que solicitava à mãe de Tilly que
começasse em um novo emprego na manhã seguinte, como carregadora de móveis
de judeus deportados, entregando-lhe um certificado que a protegia da deportação.
Quando o mensageiro saiu, as três pessoas, Viktor Frankl, Tilly e sua mãe, mal
podiam acreditar. A primeira a falar foi a jovem, dizendo: “bem, Deus não é uma
coisa e tanto?
10
. Porém, o fato decisivo para que Frankl se decidisse a casar com
Tilly ocorreu em uma noite em que ela preparou o jantar na casa de seus futuros
sogros. Viktor Frankl recebeu um chamado de emergência do Hospital Rothschild,
pois uma paciente havia tentado se matar, ingerindo comprimidos para dormir. Sem
tempo de sequer tomar uma xícara de café, pôs alguns grãos de café no bolso (uma
de suas paixões era essa bebida, a ponto de, quando viajava e sabia que o café
local era fraco, levar seu próprio suprimento, em grãos ou pastilhas) e foi atender o
chamado. Ao voltar, tarde da noite, Tilly o havia esperado para jantar e, sem se
preocupar com seu atraso e com sua própria fome, a primeira coisa que lhe
perguntou, ao vê-lo novamente em casa, foi sobre o estado da paciente.
O casamento de Viktor e Tilly foi, juntamente com o de outro casal, o último
que obteve, em Viena, a autorização das autoridades nazistas. Para os judeus,
extra-oficialmente, era proibido ter filhos, pois as mulheres judias que engravidavam
eram imediatamente enviadas para o campo de concentração. Tilly sacrificou o feto
que carregava dentro de si (a morte de ambos já estava decretada caso fossem para
o campo de concentração) e, anos depois, Frankl dedicou o livro The Unheard Cry
for Meaning para essa criança não nascida.
Após a Segunda Guerra, a foto de casamento que eles tiraram na ocasião
serviu de ajuda inesperada. Frankl foi convidado para uma conferência em Zurique.
Para ser reconhecido na estação de trem pelos seus anfitriões, combinou que usaria
em seu casaco um triângulo vermelho invertido, emblema usado por prisioneiros no
campo de concentração. Justamente naquele dia, a estação estava lotada de
pessoas usando o mesmo símbolo em suas roupas, como parte de uma campanha
10
Cf. Viktor FRANKL, Recollections, p. 86.
22
para coletar recursos para as pessoas mais necessitadas. Frankl foi reconhecido
porque sua anfitriã, amiga da família de Tilly, possuía a foto do casal no dia do
matrimônio.
Religiosidade
Viktor Frankl não fala sobre sua própria religião, o judaísmo, mas, citando
Paul Tillich, afirma: “ser religioso significa fazer a pergunta apaixonada pelo sentido
de nossa existência”. A terapia criada por ele permite que o homem se interesse
pelo sentido último, o suprassentido
11
, sobre o qual discorreremos no terceiro
capítulo. Além disso, Frankl diz:
Não dúvida de que esta nossa concepção de religião tem muito pouco a
ver com estreiteza confessional e sua conseqüência, ou seja, a miopia religiosa que
parece ver em Deus um ser que basicamente pretende uma coisa: que o maior
número possível de pessoas creia nele e ainda bem do jeito prescrito por uma
denominação determinada. Simplesmente não consigo imaginar que Deus seja tão
mesquinho. Igualmente acho inconcebível uma Igreja exigir de mim que eu creia.
Afinal não posso querer crer assim como também não posso querer amar, isto é,
forçar-me a amar, da mesma maneira como também não me posso forçar a ter
esperança, quando tudo evidencia o contrário. Afinal, existem certas coisas que não
se podem querer e que, portanto não se conseguem querendo ou ordenando. Para
dar um exemplo muito simples: não posso rir sob comando. Se alguém quer que eu
ria, terá que fazer um pequeno esforço e me contar uma piada.
Algo análogo se dá com o amor e com a fé: não podem ser manipulados. Eles
somente surgem como fenômenos intencionais quando se deparam com conteúdo
e objeto adequados.
12
Para ele, a humanidade caminha rumo a uma religiosidade cada vez mais
pessoal e personalizada, na qual cada um encontrará uma linguagem própria e
originalmente sua para se comunicar com Deus.
Campos de Concentração
Frankl e sua família foram enviados, inicialmente, para o gueto de
Theresienstadt, onde seu pai morreu. Na ocasião, Frankl conseguiu furtar uma
injeção de morfina, que aplicou em seu pai em sofrimento por causa de um edema
pulmonar. Em seu último diálogo, perguntou-lhe se sentia dor, se tinha algum desejo
11
Cf. Viktor FRANKL, A presença ignorada de Deus, p. 62.
12
Ibid., pp. 62-3.
23
e se queria dizer algo. Diante das respostas negativas para todas essas questões,
beijou-o e saiu. Teve, pom, o sentimento de que fez o que pôde por seus pais,
pois teve oportunidade de deixar Viena e ir para os Estados Unidos, mas não quis
fazê-lo uma vez que, sendo médico, conseguiu adiar o envio de sua família para os
campos nazistas.
Após a morte de seu pai, Frankl beijava sua mãe sempre que a via ou se
despedia, pois imaginava que talvez fosse pela última vez. De fato, quando foi
enviado para Auschwitz com Tilly, pediu a bênção materna, que lhe foi concedida
entre lágrimas. Uma semana depois, Elsa também foi transportada para o mesmo
lugar, mas com destino direto às câmaras de gás.
Ao ser chamado para o “Transport East”, presumivelmente com Auschwitz
como destino, Frankl insistiu ardentemente com sua esposa para que ela não se
apresentasse como voluntária desse mesmo transporte. Tilly estaria protegida de ser
executada por mais dois anos se continuasse trabalhando como enfermeira em
Theresienstadt. Seu pedido, porém, foi em vão, e ambos foram encaminhados para
o destino que tanto temiam. Ao se separarem, advertiu sua esposa firmemente,
dizendo: “Tilly, permaneça viva a qualquer preço. Ouviu? A qualquer preço!”. Com
isso queria dizer que, se fosse necessário para sobreviver, Tilly deveria se prostituir,
sem se sentir culpada diante de seu marido.
13
Tilly morreu no campo de Bergen-
Belsen.
Em sua obra Em busca de sentido, Frankl relata suas experiências nos
campos de concentração, com a intenção de retratar a experiência não dos heróis
ou dos carrascos, mas sim das pequenas vítimas, do prisioneiro médio, que faziam
parte da grande massa, tal como o autor se considera, que, na maior parte das
vezes, não sobreviveram para contar sua história. Ele afirma: “todos nós que
escapamos com vida por milhares e milhares de felizes coincidências ou milagres
divinos – seja como quisermos chamá-los sabemos e podemos dizer, sem
hesitação, que os melhores não voltaram
14
. A narração de Frankl está dividida em
três partes, que serão descritas a seguir.
13
Cf. Viktor FRANKL, Recollections, p. 90.
14
Idem, Em busca de sentido, p.17.
24
Primeira fase: recepção
Essa fase é caracterizada pelo que se chama “choque de recepção”. Aos
poucos, cada prisioneiro vai tomando um contato gradual com o horror: separa-se de
sua casa e da sua rotina diária, deve levar poucos pertences para entrar, com ou
sem seus familiares, em um vagão abarrotado de pessoas. Nesse vagão pouco
ar e nenhuma condição de higiene ou qualquer alimento, a não ser uma lasca de
pão durante dias. A ansiedade a respeito do próprio destino é mesclada com uma
ilusão de indulto, que a cada novo passo é desfeita.
Na parada do trem, ao olhar a placa do destino Auschwitz todos se
abalam, sabem o significado do lugar. No desembarque ouvem comandos gritados
da mesma forma que seriam repetidos cotidianamente, “o som é rouco e fanhoso,
como se saísse da garganta de um homem que tem que gritar constantemente
assim, porque está sendo constantemente assassinado...”
15
.
O deportado agarra-se à sua esperança como um afogado a uma palha: olha
para os demais prisioneiros responsáveis pela recepção e verifica que eles parecem
bem alimentados, pensando: “quem sabe não seja tão ruim assim.” mais tarde
saberá que a boa aparência dos recepcionistas é conseguida por regalias, advindas
do auxílio no assassínio e do aumento dos sofrimentos de outros prisioneiros, e que
sua culpa só é suportada pela ingestão de muito álcool. De início, Viktor Frankl toma
uma decisão importante: não assumir o papel do destino. A primeira seleção dos
sobreviventes ocorre logo na primeira ordem de formar filas. Não se sabe se a morte
está à direita ou à esquerda. Durante todo o período de prisão haverá seleções
parecidas, repetidas vezes permanecerá a indefinição sobre de que lado estariam os
destinados a sobreviver um pouco mais. Desta vez, como em tantas outras, ele não
foi escolhido para a morte imediata, mas mais tarde, ao perguntar a outros
prisioneiros sobre o destino de seu colega, escolhido para a outra fila, apontar-lhe-
ão a terrível labareda que sai continuamente da chaminé. Em Recollections, Frankl
relata sua primeira seleção, feita em Auschwitz, pelo Dr. Joseph Mengele. A
princípio, foi-lhe designada a fila da esquerda, mas, como na outra fila havia
15
Viktor FRANKL, Em busca de sentido, p. 21.
25
conhecidos de Frankl, assim que Mengele lhe deu as costas, rapidamente trocou de
fila.
16
Os sondercommand
17
ordenam que todas as posses pessoais sejam
colocadas sobre alguns cobertores. Renitente diante da ordem, Frankl tenta
argumentar
,
dizendo que tem um manuscrito trabalho de toda a sua vida que
deve ser preservado (era o esboço de sua obra The Doctor and the Soul
18
). A
expressão do guarda começa compassiva, torna-se zombeteira e, seguido de uma
careta, vem o grito da palavra mais ouvida pelo prisioneiro no campo de
concentração: “Merda!”. Nesse momento Viktor Frankl por encerrada toda sua
vida até ali...
Cada prisioneiro tem seus pêlos e cabelos raspados e está nu. Resta-lhes
apenas a existência, nada mais. Diante da contínua desilusão, o prisioneiro é
tomado por um humor negro, faz piadas forçadas diante da situação, mas logo em
seguida vem a curiosidade, a alma se retrai para salvar-se fora daquele horror e
começa a observar o que acontece, perguntando-se sobre o que vem a seguir e se
surpreendendo com suas próprias reações. Mais surpresas são reservadas ao se
verificar que é possível, por exemplo, pegar no sono mesmo num amontoado de
pessoas, em beliches duros e imundos, que os dentes não apodrecem mesmo sem
meses de higiene bucal e que se sobrevive à exposição contínua e prolongada ao
frio e ao sono, muito além do limite estimado em tratados de medicina.
Na primeira noite, o psicólogo faz também o propósito de “não ir para o fio”,
ou seja, tocar no arame farpado de alta tensão que delimita o campo. Aliás, essa
não era uma decisão incomum, pois o prisioneiro de Auschwitz sabe que a morte
está à sua espreita e provavelmente virá em breve. O horror de tudo que o cerca é
tão grande que a morte não amedronta mais, apenas o poupa da decisão de buscá-
la.
16
Cf. Viktor FRANKL, Recollections, p. 93.
17
Sondercommand eram os prisioneiros dos campos de concentração que se encarregavam,
mediante certas vantagens, de tarefas especiais, tais como coletar os objetos de valor dos
prisioneiros recém-chegados, conduzi-los às duchas ou às câmaras de gás ou introduzir os
cadáveres nos fornos crematórios. No filme Cinzas da guerra (The grey zone, EUA, 2001), o bem
retratadas as pessoas nessa situação, assim como a referência a que as pessoas que ingressavam
em um campo de extermínio podiam ser encontradas na fumaça das chaminés.
18
Este livro foi editado pela primeira vez em 1946.
26
Segunda fase: a vida no campo de concentração
Após o primeiro estágio de choque, a apatia vai tomando conta do prisioneiro,
como se ele morresse aos poucos interiormente
19
. As sensações, tais como
saudade dos entes queridos e o nojo de toda a feiúra que se encontra à sua volta e
em si mesmo, são torturantes demais e, por isso, suprimidas. A lama, os
excrementos, as torturas sádicas, o abandono, porém, ainda o tocam. Entretanto,
alguns dias depois, nada disso o afetará. “O nojo, o horror, o compadecimento, a
revolta, tudo isso nosso observador não pode sentir nesse momento”
20
. Nada se
sente diante de um menino que tem seus pés gangrenados pelo frio, pois a cena é
corriqueira demais. Se alguém morre na enfermaria, um se aproxima para pegar
algum resto de comida de seus bolsos, outro para verificar se os sapatos ou
qualquer pertence do defunto está em condições de uso. Se algo que pode ser
aproveitado, imediatamente é surrupiado. Quando um grupo dos menos doentes
reúne forças, arrasta o corpo até fora da barraca e, se a sopa for servida logo em
seguida, todos se alimentam com indiferença. A visão do antigo colega que
poucas horas estava com eles conversando jazendo do outro lado da porta não
desperta senão o sentimento de admiração com a própria insensibilidade.
Não é a dor física o que mais afeta o prisioneiro, mas “a dor psicológica, a
revolta pela injustiça ante a falta de qualquer razão”
21
, o desprezo do guarda que
não se dá ao trabalho nem de chamar o prisioneiro verbalmente, mas o faz atirando
uma pedra em sua direção, como se chamasse a um cão; ou ainda o escárnio de
outro que xinga um médico dedicado, chamando-o de vagabundo e explorador.
22
19
Cf. Viktor FRANKL, Em busca de sentido, p.29.
20
Ibid., p. 30.
21
Ibid., p. 32.
22
Em Os afogados e os sobreviventes (p. 115), Primo Levi nos diz: “à parte o trabalho, também a
vida no alojamento era mais penosa para o homem culto. Era uma vida hobbesiana, uma guerra
contínua de todos contra todos (insisto: trata-se de Auschwitz, capital concentracionária, em 1944.
Em outros lugares ou em outras épocas, a situação podia ser melhor, ou até muito pior). O soco dado
pela Autoridade podia ser aceito, era, literalmente, um caso de força maior; ao contrário, não se
podiam aceitar, porque inesperados e fora das regras, os golpes recebidos dos companheiros, aos
quais raramente o homem civilizado sabia reagir. Além disso, uma dignidade podia ser encontrada no
trabalho manual, inclusive no mais cansativo, e era possível a ele adaptar-se, quem sabe nisto
percebendo uma ascese grosseira ou, segundo o temperamento, um ‘medir-se’ conradiano, um
reconhecimento dos próprios limites. Era muito mais difícil aceitar a routine do alojamento: arrumar a
cama no modo perfeccionista e idiota que descrevi entre as violências inúteis, lavar o chão de
madeira com sórdidos trapos molhados, vestir-se e desnudar-se sob ordens, exibir-se nu por ocasião
dos inúmeros controles de piolhos, sarnas, da limpeza pessoal, adotar a paródia militarista da ‘ordem
27
Certa noite, Viktor Frankl percebe que um colega seu tem pesadelos e, quase
ao acordá-lo, decide que seria uma crueldade fazê-lo. Nenhum sonho pode ser tão
ruim quanto à realidade que os cerca.
Os sonhos dos prisioneiros são freqüentemente sobre comida, pois a fome é
incessante durante sua estadia no campo de concentração. O pensamento contínuo
em alimentar-se incomoda mais ainda pela indignidade de ocupar um espaço tão
grande. A fome está presente em cada momento, e é possível prever quanto tempo
de vida uma pessoa ainda tem ao observar o estado de seu corpo que devora a si
mesmo. Esse cálculo é feito com base na observação de um grande mero de
casos. O desejo por comida não ocupa somente o sono dos prisioneiros. Muitos
gastam boa parte do tempo também falando sobre planos de grandes banquetes.
Viktor Frankl logo percebe que tais devaneios tinham o poder de piorar o mal estar.
Perde-se também longo tempo pensando sobre qual seria a melhor decisão: comer
aos poucos a porção de pão, guardando pedaços para serem consumidos durante o
dia, ou tentar amenizar o vazio do estômago de uma vez. Provavelmente devido
à subnutrição, não havia nesse confinamento casos de depravação sexual e a libido
raramente se manifestava em sonhos.
Com a vida sob constante ameaça, a insensibilidade dos prisioneiros se
manifestava na depreciação de tudo o que não servia exclusivamente à
sobrevivência. Por exemplo, num transporte de prisioneiros para o campo de
Dachau, o trem passava defronte ao lugar onde Frankl nascera e vivera por longos
anos. Todos no vagão se imaginavam indo ao encontro da morte em um dos
campos de extermínio e cada um tinha a sensação de ser um morto-vivo. Aos
insistentes pedidos para ver pela última vez, através da fresta, seu antigo lar, Frankl
recebeu como resposta o argumento de que havia vivido ali por tantos anos, não
necessitando ver o lugar novamente.
O refúgio para alguém em tal situação é buscar em seu íntimo a própria
riqueza interior. Aqueles que possuíam maior vida intelectual e cultural estavam
mais protegidos da devastação espiritual. Viktor Frankl recorda um momento em que
os prisioneiros, fustigados pelo frio, por dores, pela fome, pelos açoites e gritos dos
unida’, da ‘posição de sentido’, de ‘tirar o gorro’ de improviso diante do SS graduado, de ventre suíno.
Isto, sim, era percebido como uma destituição, uma regressão mortal para um estado de infância
desolado, carente de amor e de mestres.”
28
guardas, conforme andavam em direção ao campo, sujos e com roupas em farrapos,
reagem imediatamente a um comentário sobre qual seria o pensamento de suas
esposas se os vissem em tais condições. Em meio aos pensamentos invadidos por
lembranças, ele se dá conta, naquele momento, de que o amor por uma pessoa
independe de sua existência física. Percebeu a verdade descrita em Cântico dos
Cânticos 8,6: Põe-me como selo sobre o teu coração... porque o amor é forte como
a morte.
Estás no valo trabalhando. O crepúsculo que te envolve é cor-de-cinza, o céu
é cinzento, cinzenta a neve no pálido lusco-fusco, os trapos dos teus companheiros
são cinzentos, e também os semblantes deles são cor-de-cinza. Retomas outra vez
o diálogo com o ente querido. Pela milésima vez lanças rumo ao sol teu lamento e
tua interrogação. Buscas ardentemente uma resposta, queres saber o sentido do
teu sofrimento e teu sacrifício o sentido de tua morte lenta. Numa revolta última
contra o desespero da morte à tua frente, sentes teu espírito irromper por entre o
cinzento que te envolve, e nesta revolta derradeira sentes que teu espírito se alça
acima deste mundo, desolado e sem sentido, e tuas indagações por um sentido
último recebe, por fim, de algum lugar, um vitorioso e regozijante ‘sim’. Nesse
mesmo instante acende-se ao longe uma luz, na janela de uma distante moradia
camponesa, postada feito bastidor à frente do horizonte, em meio à cinzenta e
desolada madrugada bávara et lux in tenebris lucet, e a luz resplandece nas
trevas. Agora estiveste horas a fio picando o chão congelado, outra vez passou a
sentinela e debochou um pouco de ti, e de novo recomeças o diálogo com teu ente
querido. Tens cada vez mais o sentimento de que ela está presente. Sentes que ela
está ali. Crês poder tocá-la, parece precisares apenas estender a mão para tomar
sua mão. E com grande intensidade te invade o sentimento: Ela está aqui! Eis
que no mesmo instante o que é aquilo? sem que tenhas notado, acaba de
pousar um passarinho à tua frente, sobre o torrão que acabaste de cavar, para te
fitar atento e sereno...
23
Consideradas as condições existentes no campo de concentração, havia o
que se poderia chamar de arte. Aqueles que sabiam cantar podiam garantir para si
uma ração dupla de sopa, retirada do fundo do caldeirão, quer dizer, com um pouco
mais de comida sólida. Ao mesmo tempo, esse canto beneficiava também aos
demais homens que, em seu cansaço, durante o intervalo para o almoço, podiam se
distrair da dureza extrema de suas vidas. Por vezes, até se improvisava algum
teatro, com peças cujos temas freqüentemente tratavam de ironias sobre a situação
vivida, assistidas pelos que passavam relativamente bem no campo ou que
precisavam esquecer suas dores por alguns instantes, abrindo mão da refeição
noturna para ter esse alívio. A arte, propriamente, vinha mais do contraste entre o
apresentado e a desoladora realidade. O humor também era existente no campo, na
23
Viktor FRANKL, Em busca de sentido, pp. 45-6.
29
forma de ironia, manifestando-se quando situações cômicas, entre outras, eram
imaginadas, como, por exemplo, em relação ao que poderia ocorrer num possível
retorno ao lar: num jantar elegante, um ex-prisioneiro pede à anfitriã para retirar a
sopa do fundo da panela.
A insensibilidade, o refúgio no interior de si mesmo, a arte e toda forma de
humor eram, em última instância, modos encontrados pela alma para se
autopreservar.
Outro efeito comum em situação tão extrema é a irritabilidade. Poder-se-ia ser
punido por pequenos detalhes, como um quarto sem a organização exigida ou uma
palha fora do lugar. Se o prisioneiro comum freqüentemente estava a ponto de
perder o controle e brigar com seus colegas, que dizer então dos que tinham alguma
função que conferia poder, como a de cozinheiro, chefe de desito ou “kappo
24
?
Esses, por quase nada, explodiam e eram cruéis, como que para compensar seu
sentimento primitivo de inferioridade.
A alegria também existia em pequenas doses. Ocorria, por vezes, ao se saber
que mais um dia de sobrevivência foi ganho, como na ocasião do transporte para
Dachau, em que todos se congratularam ao ver que o trem não se dirigia para
Mauthausen, onde havia “lareira”. Na maioria das vezes, tratava-se de uma alegria
negativa: a de ser poupado de mais um sofrimento. Raras eram as ocasiões em que
havia regozijo por se ganhar algo e esse ganho normalmente era relativo a coisas
simples, tais como o fato de a sopa do dia ser servida por alguém que se
preocupava com uma distribuição mais igualitária.
24
Um kappo era um prisioneiro encarregado de guardar os outros prisioneiros. Normalmente eram
escolhidos para esta função os homens (ou mulheres) mais violentos. Primo Levi em Os afogados e
os sobreviventes (pp. 40 e 41) diz: “Quem se tornava kappo? Mais uma vez é preciso distinguir. Em
primeiro lugar, aqueles a quem a possibilidade era oferecida, ou seja, os indivíduos nos quais o
comandante do Lager ou seus delegados (que muitas vezes eram bons psicólogos) entreviam a
potencialidade de colaborador: criminosos comuns egressos das prisões, aos quais a carreira de
esbirro oferecia uma excelente alternativa à detenção; prisioneiros políticos enfraquecidos por cinco
ou dez anos de sofrimentos ou, de um modo ou de outro, moralmente debilitados; mais tarde, até
judeus, que viam na migalha de autoridade que se lhes oferecia o único modo de escapar da “solução
final”. Mas muitos, como dissemos, aspiravam ao poder espontaneamente: buscavam-no os sádicos,
por certo não numerosos mas muito temidos, uma vez que para eles a posição de privilégio coincidia
com a possibilidade de infligir aos subordinados sofrimento e humilhação. Buscavam-no os
frustrados, e também isto é um traço que reproduz no microcosmo do Lager o macrocosmo da
sociedade totalitária: em ambos, fora da capacidade e do mérito, o poder é concedido generosamente
a quem esteja disposto a reverenciar a autoridade hierárquica, conseguindo assim uma promoção
social inalcançável de outro modo. Buscavam-no, enfim, muitos entre os oprimidos que sofriam o
contágio dos opressores e tendiam inconscientemente a identificar-se com eles.” Há um filme que
trata justamente desse tipo de personagem: Kappo: uma história do holocausto (Kapò, Itália, 1960).
30
Grande alívio teve Viktor Frankl ao ficar doente e poder descansar alguns
dias no barracão. Ainda que o lugar fosse infecto e a ração de pão reduzida, sua
vida foi poupada durante esses dias, pois seu estado de fraqueza não o permitiria
trabalhar por sequer mais um período. Sua sorte foi aumentada quando aceitou
atuar como médico no setor de doentes de tifo. Apesar de todo o risco que esse
trabalho envolvia, ciente de seu estado físico e prevendo sua morte próxima, preferiu
passar seus últimos dias fazendo algum trabalho que fizesse sentido.
A grande batalha para o prisioneiro era a de não se desvalorizar aos seus
próprios olhos
25
. Cada um buscava submergir na massa, como uma ovelha num
rebanho cercado por uma matilha. Todo esforço feito no sentido de não chamar
atenção sobre si podia levar o prisioneiro à autoanulação. Era necessário, portanto,
por vezes buscar a solidão e a reflexão. Viktor Frankl pôde obter esse recolhimento
por ocasião de seu trabalho na enfermaria. Sempre que podia, sentava-se sobre o
hidrante subterrâneo, onde desfrutava do silêncio. Certa vez esse seu hábito salvou
a vida de três companheiros, que haviam se escondido sob a tampa desse hidrante,
fugindo de mais um transporte para algum local de extermínio. Os guardas que os
procuravam não foram procurar por lá, pois estavam acostumados a ver o médico
sentado sempre naquele mesmo lugar. E assim, por muitas coincidências e
pequenas escolhas, alguém podia encerrar rapidamente sua vida ou ganhar mais
alguns dias. Todos eram alvo de uma infinidade de decisões arbitrárias e cada um
era joguete de destino. Uma decisão aparentemente sábia podia revelar-se
desastrosa no futuro.
Certa vez, o médico-chefe ofereceu a Frankl a oportunidade de ser excluído
de uma lista de transporte, pois havia muitos indícios de que o destino de tal
transporte fosse uma câmara de gás. O psicólogo recusou a oferta, pois permanecia
fiel à sua decisão de não interferir no destino. Ao se despedir de um amigo,
recomendou-lhe, como num testamento, que falasse com sua esposa, caso a
encontrasse. Queria que ela soubesse o quanto ele a amava e que a vida com ela,
25
Primo Levi observa sobre essa autodesvalorização: “Imagine-se, agora, um homem privado não
apenas dos seres queridos, mas de sua casa, seus hábitos, sua roupa, tudo, enfim, rigorosamente
tudo que possuía; ele será um ser vazio, enfim, reduzido a puro sofrimento e carência, esquecido de
dignidade e discernimento pois quem perde tudo, muitas vezes perde também a si mesmo;
transformado em algo tão miserável, que facilmente se decidirá sobre sua vida e sua morte, sem
qualquer sentimento de afinidade humana, na melhor das hipóteses, considerando puros critérios de
conveniência. Ficará claro, então, o duplo significado da expressão “Campo de extermínio”, bem
como o que desejo expressar quando digo: chegar no fundo.” PRIMO LEVI, É isto um homem?, p. 25.
31
apesar de ter durado tão curto peodo, compensou todo sofrimento pelo qual
passou. Já liberto, soube de notícias desse campo que havia deixado: lá a fome veio
após alguns meses, e com tal foa que até o canibalismo chegou a ser praticado.
Em outra ocasião, porém, aceitou participar de uma fuga planejada por um
amigo, mas, tomado por um sentimento incômodo, desistiu na última hora. Passados
dias, quando o campo no qual se encontrava quase o tinha mais pessoas,
aceitou novamente fugir com esse colega. O plano era ajudar no transporte de três
cadáveres para fora do campo, encobrindo dois deles com mochilas com víveres e
não retornar do transporte do último. Seu colega, porém, no último instante, foi
buscar algo e demorou, o que fez com que fossem surpreendidos pela chegada do
caminhão da Cruz Vermelha. Mais uma vez, depois de passado o incidente,
souberam que não teriam escapado com vida, pois a demora impedira que fossem
eliminados com os últimos sobreviventes que os guardas encontraram pelo caminho.
Apesar de o representante da Cruz Vermelha ter se hospedado na casa de
um camponês, num local próximo, a SS deu ordens de desocupar o campo
imediatamente. Viktor Frankl e seu colega foram os únicos que não couberam no
caminhão que supostamente os levaria para a liberdade, mas que na verdade foi
para um galpão num campo vizinho, onde os transportados foram trancados e
incendiados. Na ansiedade daquela última noite de prisão, ele e seu colega foram
acordados com os tiros: a frente de combate havia chegado.
Terceira fase: após a libertação
O prisioneiro, após sua libertação, foi tomado por um sentimento de
irrealidade, a ponto de, na noite seguinte, admitir que não chegara a ficar alegre. Ele
desconfiava que essa liberdade não fosse verdadeira. Seu corpo, porém, não se
inibiu e ele comeu por horas a fio. Em seguida, foi tomado pela compulsão de contar
o que havia passado a quem pudesse ouvir e, diante de olhos incrédulos, passou a
relatar os mais horríveis fatos, difíceis de serem imaginados. Com o tempo, porém,
não era mais apenas sua língua que se soltava – era também a sua alma. Certa vez,
andando por lugares floridos, deixou-se, de repente, invadir pela beleza ao redor e,
32
prostrando-se de joelhos, ouviu as palavras: “na angústia gritei para o Senhor, e ele
me respondeu no espaço livre”. Naquele momento, começou uma nova vida.
26
Muitos, porém, infelizmente não tinham para onde voltar. Suas casas não
existiam mais e, ainda que estivessem no mesmo lugar, não estariam os seus
familiares. Alguns se entregaram à vingança, à desilusão e à amargura.
De uma forma ou de outra, para cada um dos libertos chegará o dia em que,
contemplando em retrospecto a experiência do campo de concentração, terá uma
estranha sensação. Ele mesmo não conseguimais entender como foi capaz de
suportar tudo aquilo que lhe foi exigido no campo de concentração. E se houve um
dia em sua vida em que a liberdade lhe parecia um lindo sonho, virá também o dia
em que toda a experiência sofrida no campo de concentração lhe parecerá um
mero pesadelo. Essa experiência do libertado, porém, é coroada pelo maravilhoso
sentimento de que nada mais precisa temer neste mundo depois de tudo que sofreu
– a não ser Deus.
27
A Recuperação
Em seus últimos dias no campo de concentração, Frankl contraiu tifo
exantemático
28
. Para evitar entrar em colapso enquanto dormia e também
aproveitando a agitação da febre, refez suas anotações em pequenos pedaços de
papel e mais tarde usou-as para reconstruir seu livro confiscado.
Assim que voltou a Viena, procurou o professor Pötzl que estava sem
recursos nesta época, pois havia sido demitido de seu posto. Um pouco antes desse
encontro teve a notícia da morte de Tilly e foi consolado pelo professor e sua
esposa. Outro amigo seu, Bruno Pitterman, convenceu-o a assinar um formulário
pedindo uma posição no Poliklinik Krankenhaus in Wien (Hospital Policlínico de
Viena), onde Viktor seria chefe do departamento de neurologia durante 25 anos.
Otto Kauders, sucessor de Pötzl como chefe da psiquiatria na Clínica da
Universidade, encorajou Frankl a escrever um terceiro e último manuscrito de seu
primeiro livro. Isso lhe parecia a única coisa que valeria a pena fazer no momento.
Tinha a convicção de que em meio a tantas perdas e sofrimento, deveria haver,
afinal, algum sentido e que alguma coisa ainda o esperava.
26
Cf. Viktor FRANKL, Em busca de sentido, p. 86.
27
Ibid., p. 88.
28
Doença infectocontagiosa causada pela Rickettsia prowazekii, transmitida ao homem pelo piolho,
caracterizada por fraqueza, febre alta e erupção maculopapular; tifo epidêmico. Cf. Dicionário
Houaiss da língua portuguesa.
33
Frankl ditou sua obra às estenografas durante dias, em uma pequena sala
quase sem móveis e com papelões nos lugares das janelas quebradas. Após ter
aberto tão intensamente seu coração, desmoronou em uma cadeira, em lágrimas.
Suas dores novamente foram revividas. No mesmo ano ditou, em apenas nove dias,
seu livro Em busca de sentido. A princípio, pretendia publicar esse relato sob um
pseudônimo, mas foi convencido pelos amigos de que seria melhor assumir a
autoria. Este livro foi traduzido em pelo menos vinte e quatro línguas e escolhido
cinco vezes por faculdades americanas como “o livro do ano”.
Frankl dedicou o restante de sua vida a divulgar a logoterapia, escrevendo
livros e artigos, lecionando e proferindo palestras ao redor do mundo. Em 1946,
conheceu Eleonore Katharina Schwindt, enfermeira da policlínica, que se tornou sua
esposa em 1947. Tiveram uma filha, Gabriele, e dois netos. Sua segunda esposa o
acompanhou em suas viagens e o auxiliou entusiasticamente na divulgação de sua
obra. Juntos praticavam o esporte predileto de Frankl: o alpinismo.
Em 1948 obteve seu doutorado em Filosofia, com o tema “o Deus
inconsciente”. Visitou o Brasil três vezes e se tornou doutor honoris causa em
diversas instituições de ensino, inclusive na Universidade do Rio Grande do Sul, no
Brasil. Faleceu em dois de setembro de 1997. Em uma entrevista realizada na série
Man alive, neste último ano de vida, Frankl afirmou:
Meus editores americanos costumam trazer à baila a história de que eu saí de
Auschwitz com um novo ramo de psicoterapia, com um novo sistema e tudo o mais.
um erro nisso: eu entrei em Auschwitz com o manuscrito completo do meu
primeiro livro escondido em meu bolso. E foi precisamente neste manuscrito que
posteriormente foi publicado nos EUA sob o título The Doctor and the Soul – que eu
desenvolvi a ideia do significado incondicional da vida. Portanto a ideia de que a
vida faz sentido e permanece significativa sob quaisquer condições é um conceito a
que cheguei anteriormente às minhas experiências no campo de concentração.
Assim para dizer que esta ideia, esta convicção da significação incondicional da
vida foi mantida, ela sobreviveu à experiência do campo, e é ainda uma convicção,
apesar do sofrimento e de todas as mortes ao nosso redor no campo de
concentração. E o próprio campo de concentração estava ali servindo meramente
como um campo de provas para confirmar vivencialmente e experimentalmente
a justificativa de minha convicção.
29
Quando Viktor Frankl entregou seu casaco com o manuscrito seu “filho
espiritual” ao guarda de Auschwitz, viu que sua grande obra estava perdida. A
29
http://www.endireitar.org/site/artigos/endireitar/403-o-homem-vive-entrevista-com-viktor-frankl
34
realização que tanto sentido conferia à sua vida jamais ocorreria. Em troca, recebeu
um casaco em farrapos, em cujo bolso havia uma única página, na qual estava
escrita a oração Shemá Ysrael
30
. Naquele momento compreendeu que seu principal
desafio não seria colocar seus pensamentos num papel, seria vivê-los. Felizmente,
fez ambos.
30
Esta oração significa: "Ouve, Israel, A-do-nai é nosso D'us, A-do-nai é Um." (Shemá Yisrael, A-do-
nai E-lo-hê-nu, A-do-nai Echad )
35
CAPÍTULO II
Sobre logoterapia e cura
Quem sabe amar e sofrer, sabe tudo.
(Santa Teresa de Lisieux)
Ao se conhecer as condições de vida em um campo de concentração, como
as que foram descritas no capítulo precedente, uma pergunta emerge: é possível se
falar em liberdade humana em tais condões? Para Viktor Frankl:
Quem dos que passaram pelo campo de concentração não saberia falar
daquelas figuras humanas que caminhavam pela área de formatura dos
prisioneiros, ou de barracão em barracão, dando aqui uma palavra de carinho,
entregando ali a última lasca de pão? E mesmo que tenham sido poucos, não
deixou de constituir prova de que no campo de concentração se pode privar a
pessoa de tudo, menos da liberdade última de assumir uma atitude alternativa
frente às condições reais.
1
Segundo ele, a cada momento, mesmo em condições mais extremas, existe
uma última liberdade restante ao ser humano: a de configurar a vida de forma a ter
sentido
2
. Ainda que tudo seja arrancado de um indivíduo, ele mantém sua liberdade
1
Viktor FRANKL, Em busca de sentido, p.66.
2
Lalande define sentido como: “orientação de um movimento; ordem em que um móbil percorre uma
série de pontos. ‘No sentido das agulhas de um relógio.’ ‘O sentido da evolução’”. Todavia, em nota
de rodapé diz: “por vezes, significação escondida sob as aparências e revelada pela intuição. ‘O
Ocidente é fanático pela exatidão. Ignora quase tudo do sentido (Sinn). K
EYSERLING
, Diário de um
viajante, t. II”. André LALANDE, Vocabulário técnico e crítico da filosofia, p. 1005. Quando Viktor
Frankl utiliza este termo, dizendo que é a motivação primária, de conteúdo exclusivo e específico,
podemos entendê-lo tanto em relação ao sentido matemático, primeira definição dada acima, quanto
em relação ao significado, apontado na segunda definição. Ou seja, ele usa o termo “sentido” para
nos dizer para onde (ou para quem) o homem se dirige em suas ações (no capítulo III este uso ficará
mais claro) e também para falar da significação do que é vivenciado por um ser humano como, por
36
interior inalienada
3
e deve assumir diante da vida a responsabilidade pelo que ela
lhe solicita. A busca de sentido é, de acordo com o autor, a motivação primária do
ser humano
4
e cada um deve encontrar esse sentido que lhe é exclusivo e
específico. Na verdade, não é o homem que pergunta pelo sentido de sua
existência, mas sim a vida que continuamente lhe dirige as seguintes perguntas:
“qual é o sentido para o que você está vivendo neste momento? e “que
responsabilidade você deve assumir para cumprir este sentido?”. Além disso, o
sentido sempre será encontrado em cada situação vivida, em cada momento. Assim
como seria absurdo perguntar a um grande enxadrista qual é a melhor jogada do
mundo, também seria absurdo generalizar a possibilidade de sentido como se ele
fosse coletivo ou único durante toda a existência de uma pessoa.
Frankl afirma que dois tipos de objeção, comumente feitas, à afirmação de
que a vida possui um sentido incondicional. A primeira seria a de que nossa finitude,
o pprio fato da morte, faz com que a vida perca seu sentido. Diante desse
argumento, Frankl responde que é justamente a morte que torna a vida mais repleta
de sentido, pois se tivéssemos um tempo indefinido, adiaríamos a responsabilidade
de cumprir agora o que a vida nos solicita. “A transitoriedade da nossa existência
não a torna, de forma nenhuma, sem sentido. Ela constitui, na verdade, a nossa
responsabilidade, pois agora tudo depende de realizarmos também as
possibilidades (transitórias).
5
Para ele, a responsabilidade significa mais que a
liberdade, uma vez que somos responsáveis por algo ou perante algo, mas somos
livres de alguma coisa.
A segunda objeção seria a de que o é a limitação no tempo, mas nossas
imperfeições e incapacidades que tornam a vida desprovida de sentido. Mais uma
vez, Frankl responde que são nossas limitações que criam uma maior possibilidade
exemplo, no caso de uma dor inevitável, ou ao considerar o passado como um depósito onde os
tesouros da experiência humana são acumulados.
3
Camus fala da liberdade humana de subtrair-se ao sofrimento e ao sentimento de absurdo
provocado pelo mal, através do suicídio. Conclui que mesmo diante do absurdo, é preciso recusar o
suicídio. É necessário enfrentar o absurdo. Segundo o filósofo e escritor francês, “matar-se, em certo
sentido, e como no melodrama, é confessar. Confessar que fomos superados pela vida ou que não a
entendemos.” Albert CAMUS, O mito de sísifo, p. 19. A liberdade à qual Viktor Frankl se refere não é
a de fugir do sofrimento a qualquer custo, ao ponto de destruir a vida. Diante de um sofrimento
inevitável, temos que assumir nossa liberdade interior e fazer do sofrimento uma realização humana.
4
Cf. Viktor FRANKL, Em busca de sentido, p. 66.
5
Idem, A psicoterapia na prática, p. 72.
37
para a escolha de sentido. Ele afirma que as imperfeições é que fazem com que
cada homem seja único, singular e, por isso mesmo, cada pessoa tem uma missão
na vida que somente ela poderá cumprir. Costuma comparar a humanidade a um
grande mosaico, no qual cada peça é incompleta e imperfeita, mas fundamental e
insubstituível no desenho formado.
Para definir o ser humano, Frankl adota a definição de Max Scheler sobre a
pessoa. Para ele, a pessoa é detentora e “centro” de atos espirituais.
6
Ele afirma,
então, que o psicofísico se agrupa em torno do centro espiritual. Para Frankl, a
pessoa “tem” um psicofísico enquanto “é” espiritual. Sendo assim, esse “eu
espiritual” é o principal responsável pela diferenciação entre os seres humanos.
Cada homem tem por dever descobrir qual é o sentido das situações vividas. Ao
fazer essa descoberta, também se lhe revela qual responsabilidade deve ser
assumida. Essa responsabilidade é individual e única para cada ser humano e para
cada situação.
O autor relata que no campo de concentração alguns prisioneiros, ansiosos
por saber se conseguiriam sobreviver ou não, afirmavam que, caso isso não
ocorresse, todo o sofrimento passado não teria sentido. Ele discordava dessa
posição, pois “uma vida cujo sentido depende exclusivamente de se escapar com
ela ou não e, portanto, das boas graças de semelhante acaso uma vida dessas
nem valeria a pena ser vivida”
7
.
O sentido a ser descoberto em cada situação pode permanecer oculto.
Pensando nisso, Frankl propõe um método, um caminho que tem como objetivo a
busca de sentido: a Logoterapia, ou Análise Existencial (Ezistenzanalyse). É a
terapia criada por Viktor Frankl e significa a terapia da busca de sentido. Ele diz, na
obra Em busca de sentido, o seguinte:
Quero explicar por que tomei o termo “logoterapia” para designar minha
teoria. O termo “logos” é uma palavra grega e significa “sentido”! A logoterapia, ou,
como tem sido chamada por alguns autores, a A Terceira Escola Vienense de
Psicoterapia”, concentra-se no sentido da existência humana, bem como na busca
da pessoa por este sentido. Para a logoterapia, a busca de sentido na vida da
pessoa é a principal força motivadora no ser humano. Por esta razão costuma-se
falar de uma vontade de sentido, a contrastar com o princípio do prazer (ou, como
também poderíamos chamá-lo, a vontade de prazer) no qual repousa a psicanálise
6
Cf. Viktor FRANKL, A presença ignorada de Deus, p. 20.
7
Idem, Em busca de sentido, p. 68.
38
freudiana, e contrastando ainda com a vontade de poder, enfatizada pela psicologia
adleriana através do uso do termo ‘busca da superioridade”.
8
Frankl diz também ter escolhido um neologismo para designar sua teoria
psicológica para não ter de falar na primeira pessoa e nem ser cultuado.
9
Inúmeras
vezes afirmou que não pretendia formar discípulos e que seu desejo era o de que
seus alunos aprimorassem sua teoria psicológica e fossem além dela.
O termo análise existencial (Ezistenzanalyse), difere de outro: análise da
existência (Daseinsanalyse
10
). Frankl afirma que tanto a análise existencial quanto a
análise da existência dedicam-se a esclarecer a existência, mas, no caso do
segundo termo, a preocupação é a de esclarecer a existência no sentido de
esclarecer o ser, enquanto que no primeiro caso, um avanço para o
esclarecimento de um sentido, de possibilidades de sentido. Além disso, a análise
existencial é uma terapia ou, mais precisamente, uma antropologia terapêutica. É
uma explicação da existência que não se preocupa em fazer uma síntese da
mesma, mas em salientar que a existência, a pessoa, também se explica a si
mesma.
11
A análise da existência não se constitui como terapia no verdadeiro
sentido da palavra
12
, ao contrário da análise existencial. A Ezistenzanalyse e a
Daseinsanalyse diferem, igualmente, da Daseinpsychologie (tamm traduzida
como análise existencial), criada pelo psiquiatra suíço Ludwig Biswanger. Esta
última consiste em um método da Psicologia Existencial para analisar as
experiências presentes, buscando compreender os sintomas pela existência,
focalizando, assim, o tratamento do paciente e não da síndrome.
13
8
Viktor FRANKL, A psicoterapia na prática, p. 92.
9
Cf. Idem, Logoterapia e análise existencial, p. 248.
10
O termo Daseinsanalyse aparece pela primeira vez na obra de Heidegger, Ser e tempo, em 1927,
com o objetivo de denominar a explicitação filosófica das características ontológicas constituintes do
ser humano (a abertura original ao mundo, a temporalidade do homem, sua espacialidade original,
sua afinação seu estado de humor, seu estar-com-o-outro, sua corporeidade e seu caráter de ser
mortal. Biswanger, considerando a importância do pensamento de Heidegger para descrever as
síndromes e os sintomas concretos do homem, criou a Daseinpsychologie, às vezes também referida
como Daseinsanalyse. Cf. E. DORIN, Dicionário de psicologia, p. 22; Associação Brasileira de
Daseinsanalyse (ABD), http://www.daseinsanalyse.org/dasein_historia_1.htm
11
Cf. Viktor FRANKL, A psicoterapia na prática, p. 61.
12
Ibid., p. 67.
13
Cf. E. DORIN, Dicionário de psicologia, p. 22.
39
De acordo com o fundador da logoterapia, nenhuma teoria psicológica pode
se abster de reconhecer o pensamento de Freud e o de Adler. Apresentá-los aqui,
porém, fugiria ao escopo deste trabalho. No entanto, para que possamos melhor
compreender a proposta de Frankl, apresentaremos, a seguir, um breve resumo das
teorias psicológicas desses dois fundadores.
Sigmund Freud (1856 1939), médico neurologista judeu-austríaco, foi
inicialmente influenciado por Charcot, aplicando, como este, a hipnose no tratamento
da histeria. Depois das investigações desenvolvidas com Josef Breuer (1895), a
técnica da hipnose foi substituída pelo método catártico, que consiste em levar o
paciente a descarregar tensões, revivendo e analisando emoções ou experiências
desagradáveis Posteriormente, trabalhando sozinho, Freud desenvolveu um novo
método, o psicanalítico, fundamentado em suas teorias sobre o desenvolvimento
psicossexual e o inconsciente. Este método visava investigar o inconsciente
dinâmico e analisar os seus elementos (idéias, desejos, lembranças). A Psicanálise,
assim, consiste tanto em um método terapêutico, como de investigação, além de
uma teoria da personalidade e da conduta. Para Freud, a psique humana é
composta de três partes: id, ego e superego. O id é constituído pelos processos
primitivos do pensamento, é o reservatório das pulsões, da energia empregada em
toda atividade humana; representa a paixão em oposição ao ego, que é reflexão. O
ego é o mediador entre as necessidades primitivas do id e as crenças éticas e
morais do superego. Como a parte consciente da personalidade, o ego tem como
tarefas a autopercepção, a autoconsciência, a ação (controle motor), o ajustamento
à realidade (e, para isso, se utiliza de mecanismos de defesa), a memória, o afeto, o
pensamento. O superego, última parte diferenciada no processo evolutivo individual,
representa os pensamentos morais e éticos internalizados; em grande parte
inconsciente, contra-agindo ao id, suas funções incluem: aprovação ou reprovação
dos atos do ego (conscientes), auto-observação crítica, autopunição. A grande
inovação de Freud foi ter dado ao inconsciente um status científico e ter introduzido
a noção de uma camada psíquica pré-consciente ou sub-consciente, que se acha
entre a consciência e o inconsciente. Por consciente entende aquilo que um
indivíduo reconhece de sua própria condição e atos, enquanto o pré-consciente se
refere ao que é debilmente consciente, isto é, está abaixo do limiar da consciência.
O inconsciente é o conjunto de processos dinâmicos que não chegam à consciência
40
da forma que se desenvolvem; são os desejos recalcados e os impulsos sexuais.
Assim, Freud considera que o ser humano nasce com um conjunto de pulsões que
reprimidas ou sublimadas geram uma tensão em seu organismo. O comportamento
humano, então, é orientado no sentido de diminuir essa tensão.
14
Alfred Adler, (1870 1937), também um médico austríaco, foi o criador da
Psicologia (ou Análise) Individual, que enfatiza a singularidade da personalidade.
Para ele, o self (eu) é o intérprete das experiências e criador, em determinados
momentos, das próprias motivações. Discordou do conceito de ego de Freud, pois
considerava que o comportamento humano não era regido por impulsos
inconscientes, mas decorrentes de projeções, de realizações do self. Influenciado
pela leitura da obra A Psicologia do ‘Como Se’, de Hans Vaihinger, publicada em
1911, Adler aceitou a tese de que vivemos com muitas idéias que não passam de
ficções: somos todos iguais, faça o bem sem olhar a quem, o fim justifica os meios, o
homem vale pelo que é como pessoa, etc. Vivemos em função de um futuro e são
as ficções as causas subjetivas dos fatos psicológicos. Outra teoria adleriana é a da
vontade de poder, da luta pela superioridade, do ideal de superioridade, que faz
parte da própria vida. Os obstáculos a essa realização geram o complexo de
inferioridade, que emerge do conflito entre o desejo de realização e reconhecimento
e o medo de ser frustrado. Isso leva o indivíduo a conquistas, à obtenção de
segurança e ao autoengrandecimento para superar o estado de inferioridade. Todo
ser humano se sente inferior não no início da existência, mas também ao longo
da vida é acometido várias vezes por tal sentimento, o que engendra a busca de
perfeição e o alcance de objetivos sociais. O ideal de superioridade consiste em um
mecanismo compensatório presente durante toda a existência. Assim, para Adler, o
comportamento humano é determinado basicamente pelo meio social e pela
preocupação contínua do indivíduo em alcançar os objetivos preestabelecidos,
incluindo a sede de poder e a notoriedade.
15
Frankl foi um grande admirador de Freud, como dito anteriormente, e
discípulo de Adler. No entanto, ele faz ressalvas às teorias desses dois cientistas:
A logoterapia diverge da psicanálise na medida em que considera o ser
humano um ente cuja preocupação principal consiste em realizar um sentido, e não
14
Cf. E. DORIN, Dicionário de psicologia, pp. 62,89,137,143,179,180,223,268,270.
15
Ibid., pp.56 e 230.
41
na mera gratificação e satisfação de impulsos e instintos, ou na mera reconciliação
das exigências conflitantes de id, ego e superego, ou na mera adaptação e no
ajustamento à sociedade e ao meio ambiente.
16
Para ele, tanto a psicanálise quanto a análise individual revelam algo sobre o
ser humano, mas revelam parcialmente, como se fossem projeções bidimensionais
de um objeto de três dimensões. Dependendo do ângulo de projeção e do plano
onde esse objeto é projetado, avistamo-lo de uma forma diferente. Apesar de todas
as projeções fornecerem, de certo modo, uma descrição do objeto, nenhuma delas o
descreve em sua totalidade, pois o fazem desconsiderando uma de suas dimensões.
Para ele, as contradições que ocorrem entre os conceitos de homem se dão por um
processo semelhante:
Basta transcendê-las para a dimensão imediatamente superior para perceber
que as contradições não contradizem de modo algum a homogeneidade do homem,
tão logo as consideramos como simples projeções, o que nesse mesmo instante
significa que essa mesma homogeneidade do homem e juntamente com ela
também toda a sua humanidade! pode surgir exatamente na dimensão
imediatamente superior, e essa dimensão é tão-só a dimensão especificamente
humana, a dimensão dos fenômenos especificamente humanos.
17
Por fenômenos especificamente humanos, Frankl entende os fenômenos
espirituais, responsáveis pela nossa consciência moral, pelo amor e pela arte. Para
ele, a existência humana não se limita ao corpo, nem à alma, de modo que não
podemos, portanto, falar do ser humano apenas no sentido somático ou psíquico,
temos que enxergá-lo também como ser espiritual. “Para que a psicoterapia
permaneça como uma terapia e não se torne um sistema dentro da patologia da
época, ela necessita de uma imagem correta do homem, pelo menos tanto quanto
necessita de uma metodologia e de uma técnica precisas.”
18
De acordo com Frankl, as teorias e terapias psicológicas se complementam.
O método de tratamento terapêutico a ser escolhido é tal como o resultado de uma
equação que é a soma de duas variáveis: paciente e terapeuta, personalidades
únicas e singulares. O decisivo na psicoterapia não é a metodologia ou a técnica,
mas o encontro entre o médico e o doente.
16
Viktor FRANKL, Em busca de sentido, p. 95.
17
Idem, Logoterapia e análise existencial, pp. 246 – 247.
18
Idem, A psicoterapia na prática, p. 73.
42
A logoterapia está indicada em cada um dos cinco casos enumerados abaixo
que, a seguir, detalharemos para uma melhor compreensão dos termos menos
comuns ou mais específicos da linguagem logoterapêutica (em itálico):
1 neuroses noogênicas, ou seja, neuroses
19
resultantes da falta de sentido.
Nesses casos, a logoterapia tem indicação específica;
2 – alguns casos de neuroses psicogênicas que não têm relação com a problemática
de sentido nesses casos, a logoterapia, apesar de não ser uma terapia específica,
pode, utilizando os recursos da intenção paradoxal e da derreflexão, atacar as
neuroses em suas raízes, ou seja, os mecanismos circulares destrutivos;
3 em casos de doenças somatogênicas incuráveis, como o câncer, por exemplo,
nas quais a logoterapia possibilita ao doente uma descoberta de sentido, na forma
de realização de valores. Nesses casos, não se trata de uma terapia, mas sim um
tipo de salvação médica das almas.
Se a vida se nos apresenta pura e simplesmente plena de sentido, então
resultará mais tarde que também o sofrimento será integrado no sentido, fará parte
do sentido da vida. E finalmente resultará que o morrer pode ter um sentido que
pode ser o pleno sentido de morrer ‘sua morte’.
20
4 em casos de sentimento de falta de sentido e de vácuo existencial. Aqui a
logoterapia não funciona propriamente como uma terapia, por não serem esses
sentimentos patológicos, embora possam levar a uma neurose noogênica. A busca
de sentido não é uma doença, pelo contrário, é uma autêntica e necessária
manifestação humana, mas somente busca um sentido quem se conta da falta
dele. O vazio existencial pode se manifestar ou permanecer latente e ocorre quando
19
Entende-se por neurose uma desordem de personalidade resultante da incapacidade de o
indivíduo lidar com seus conflitos e traumas, o que dificulta seu ajustamento social. É um transtorno
psicogênico, ou seja, de origem psíquica, funcional e não orgânico, que tem por sintomas: medos
(fobias), sentimentos de culpa, reações compulsivas (manias), fadiga extrema, sintomas
psicossomáticos, stress, que variam de indivíduo para indivíduo. Conceito ligado à teoria nosológica
psicanalítica, a neurose decorre de conflitos entre o ego e superego. Diferente da psicose que,
embora seja, também, uma desordem da personalidade, a desorganização psíquica nela operada é
profunda, resultando em uma “perda de contato com a realidade”, uma falta de crítica, uma
incapacidade de reconhecer o caráter estranho e bizarro do comportamento. Mesmo sendo variáveis,
dependendo do tipo, estão presentes nas psicoses diferentes transtornos: ilusões, alucinações,
depressões, confabulações, delírios, deterioração mental, transtornos comportamentais, que levam a
dificuldades na comunicação não só com os outros, mas consigo mesmo. Cf. E. DORIN, Dicionário de
psicologia, p. 194 e p. 232.
20
Viktor FRANKL, A questão do sentido em psicoterapia, p. 95.
43
o encontro de sentido é frustrado. Ele se apresenta especialmente em pessoas que
dispõe de tempo livre, mas não conseguem descobrir nada com o que preenchê-lo.
Esse tédio refuta a afirmação de que a perfeita satisfação de necessidades significa
realização. O que ocorre é o contrário da realização: carência e vazio.
21
5 na prevenção de neuroses iatrogênicas, ou seja, aquelas provocadas pelo ato
médico. Frankl cita, como exemplo, o caso de um diplomata americano que estava
descontente com sua carreira:
Seu analista, no entanto, lhe havia dito repetidamente que ele devia tentar
reconciliar-se com seu pai, porque o governo dos Estados Unidos bem como os
seus superiores eram “nada mais” que imagens paternas, e, conseqüentemente, a
insatisfação com o seu emprego se devia ao ódio inconsciente contra o pai. Uma
análise que já vinha durando cinco anos induzira o paciente a aceitar cada vez mais
as interpretações de seu analista, até que, de tantas árvores de símbolos e
imagens, ele não mais conseguiu ver a floresta da realidade. Após algumas poucas
entrevistas, ficou claro que a sua vontade de sentido estava sendo frustrada por
sua profissão e que ele na realidade ansiava engajar-se em outra espécie de
trabalho. Como não tinha motivo para ele não largar a sua profissão e abraçar
outra, assim o fez, com os mais gratificantes resultados.
22
Neuroses noogênicas
A expressão designa as neuroses que têm sua origem não na dimensão
psicológica, mas na dimensão da existência humana, “noológica”
23
(do grego noos,
que significa “espírito”). Tais neuroses têm origem na frustração existencial. O termo
“existencial” pode ser usado de três maneiras distintas: ao modo especificamente
humano de ser, ao sentido da existência e à busca por um sentido concreto na
existência pessoal.
24
21
Cf. Viktor FRANKL, Logoterapia e análise existencial, p. 119.
22
Idem, Em busca de sentido, p. 94.
23
Noológicas são as ciências que se referem ao espírito filosóficas, dialegmáticas (glossologia,
literatura, tecnestética e pedagogia), etnológicas e políticasem oposição às ciências cosmológicas,
de acordo com o criador do termo, Ampère, que o emprega em sua obra Filosofia das Ciências, de
1834. Cf. André LALANDE, Vocabulário Técnico e Crítico da Filosofia, p. 736. Para Kant, noologista é
aquele que, como Platão, considera que o conhecimento puro deriva da razão, em oposição ao
empirista que o pressupõe derivado da experiência. Entretanto, o termo Noologia é mais antigo e
designava, segundo seu inventor, Calov, em Scripta philosophica (1650), uma ciência auxiliar da
metafísica, junto com a gnosiologia. Cf. Nicola ABBAGNANO, Dicionário de Filosofia, p. 716.
24
Cf. Viktor FRANKL, Em busca de sentido, p. 93.
44
Para Viktor Frankl, a busca por sentido – principal força motivadora humana
causa uma tensão no equilíbrio interior. Essa tensão, porém, é necessária e é fruto
da diferença entre o que somos e o que deveríamos ser. A doença ocorre quando
essa diferença é grande demais, ocasionando desespero, ou muito pequena,
gerando tédio ou indiferença. Pelo fato de o sentido buscado ser pessoal, não cabe
ao terapeuta responder ao paciente qual é o sentido do que ele vive; antes cabe
ajudá-lo a encontrar por si mesmo esse sentido. O papel do logoterapeuta é
comparável ao de um oculista, o ao de um pintor, uma vez que sua função é de
fazer o paciente enxergar o sentido de sua vida e não o de impor ou mesmo
demonstrar em relação a que a vida lhe exige uma responsabilidade.
A logoterapia procura criar no paciente uma consciência plena de sua própria
responsabilidade; por isso precisa deixar que ele opte pelo que, perante que ou
perante quem ele se julga responsável. Eis por que um logoterapeuta é, dentre
todos os psicoterapeutas, o que menos se tentado a impor julgamentos de valor
a seus pacientes, porque jamais lhes permitirá transferir ao médico a
responsabilidade de julgar.
25
Alguns, entretanto, se perguntam também pela existência de um sentido
último, porém esse suprassentido não pode ser compreendido totalmente: o que a
logoterapia propõe é suportar a incapacidade de compreendê-lo. O incompreensível,
todavia, o precisa ser inacreditável. Viktor Frankl afirma que o ser humano, assim
como é dotado de um inconsciente físico e psicológico, também possui um
inconsciente espiritual. A logoterapia tem como finalidade trazer à consciência a
existência espiritual do homem. Sobre esse assunto falaremos mais no terceiro
capítulo.
Intenção paradoxal
Frankl distingue dois padrões de reação patogênicos: um da pessoa que tem
medo do que lhe pode acontecer e outro daquela que teme o que pode fazer. O
primeiro costuma se manifestar em neuroses de angústia e consiste num ciclo onde
o paciente reage a um determinado sintoma e, tendo ansiedade antecipatória, com
receio de que o sintoma se manifeste novamente, faz com que ele justamente volte
25
Viktor FRANKL, Em busca de sentido, p. 99.
45
a se manifestar. É propriamente o “medo do medo”. O segundo padrão também é
um círculo vicioso e costuma se manifestar em neuroses obsessivas. O paciente se
sente invadido por idéias obsessivas e reage a elas tentando reprimi-las. Ao fazer
isso, porém, apenas aumenta a pressão original das idéias que o atormentam.
26
Para os dois casos acima descritos, a logoterapia recomenda a chamada
intenção paradoxal, cujo papel é romper os dois mecanismos circulares, utilizando a
capacidade de autodistanciamento do paciente. Ela consiste em inverter a intenção
que caracteriza os dois padrões patogênicos. No primeiro caso, o da tentativa de
evitar o medo através da fuga e, no segundo, o de evitar a compulsão através da
luta. Frankl afirma que a técnica da intenção paradoxal não é invenção sua, pois
era usada por terapeutas comportamentais, e que sua contribuição foi a de
desenvolver um método para essa técnica e integrá-la a um sistema. Em A
psicoterapia na prática, o autor relata casos em que a intenção paradoxal foi usada
com sucesso.
27
Em cada um deles, o paciente deveria ter a intenção de que
acontecesse exatamente o que ele temia, colocando-se na posição de espectador
de si mesmo. Nos relatos de Frankl e nas citações de relatos de outros terapeutas, o
resultado era que, quando o paciente invertia sua intenção, aquilo que ele temia
acabava por desaparecer. O que aconteceu nessas ocasiões é bem ilustrado pela
anedota de um homem que afirma a um hipnotizador ser impossível que este
consiga deixá-lo em transe. Diante de tal desafio, o hipnotizador o convida a se
sentar e lhe diz: “você está bem acordado. Fique acordado, cada vez mais
acordado”, e em pouquíssimo tempo hipnotizou o homem que o desafiava.
Derreflexão
ainda um terceiro padrão patogênico de reação, encontrado nos casos de
neuroses sexuais. O paciente, nesse caso, não foge de algo, como nas neuroses de
angústia, nem luta contra algo, como nos casos de neuroses obsessivas; ele luta por
algo, no caso, o orgasmo ou a potência sexual. De acordo com Frankl,
infelizmente, quanto mais alguém busca o prazer, mais o prazer lhe escapa. O
prazer nega-se a ser procurado diretamente. Porque ele não é nem o objetivo real
26
Cf. Viktor FRANKL, A psicoterapia na prática, pp. 32-6.
27
Ibid., pp. 40-50.
46
do nosso comportamento e das nossas ações, nem uma meta possível; ele é na
verdade um efeito, um efeito colateral, que surge por si mesmo sempre que nós
vivenciamos a nossa autotranscendência, portanto, sempre que nós nos
entregamos amando uma outra pessoa ou servindo a uma causa.
28
O círculo vicioso, nesse caso, é gerado por uma hiperintenção, a luta pela
potência ou pelo orgasmo. Essa hiperintenção traz consigo uma hiper-reflexão e a
pessoa, no ato de observar a si mesma, perde a espontaneidade. O paciente no
ato sexual uma realização que lhe é exigida, como se fosse obrigado a consumar o
ato sexual. Essa exigência pode vir do próprio paciente, de seu parceiro ou da
situação em que ele se encontra.
Para combater essa hiper-reflexão, a logoterapia utiliza a técnica da
derreflexão, que consiste na intenção do paciente de não chegar ao orgasmo e se
satisfazer com carícias fragmentárias. Sua intenção deve ser a de prestar atenção
no parceiro e tentar satisfazê-lo, não observando demais a si mesmo e às reações
de seu próprio corpo. Em A psicoterapia na prática também relatos de casos em
que esta técnica foi bem sucedida.
29
A respeito do que foi dito acima, sobre o prazer ser uma conseência e não
uma finalidade, Frankl vai mais longe e afirma que “a auto-realização não pode ser o
objetivo final da vida ou a meta final do homem pelo contrário, quanto mais o
homem a persegue, menos ele a encontra... A caça à felicidade a afugenta”
30
, pois o
objetivo do homem não é realizar a si mesmo. Quando realiza o sentido concreto e
pessoal de sua existência, encontra a realização de si próprio. Aos seus alunos dizia
que eles nunca deveriam buscar o sucesso, pois, assim como a felicidade, ele
jamais deve ser nosso alvo, mas sim conseqüência de nossos atos realizados. O
homem que está voltado para si mesmo é como um bumerangue lançado que
volta para o caçador porque não atingiu a presa. Se estivermos preocupados com
nossos próprios estados, seja porque queremos prazer, sossego, sucesso ou
consciência tranqüila, é por que esquecemos que o mundo espera por uma tarefa
que somente nós podemos realizar. O que o homem deseja, de fato, não é a
felicidade, mas sim um motivo para ser feliz. Citando Kierkegaard, Frankl afirma que
a porta da felicidade se abre para fora e se fecha para quem intenta “arrombá-la”.
28
Viktor FRANKL, A psicoterapia na prática, p. 52.
29
Ibid., pp. 55-7.
30
Ibid., pp. 65-6.
47
Um tipo específico de neurose noogênica causada pelo vazio existencial: a
neurose de massa
Gustave Le Bon afirma que as aglomerações humanas, em circunstâncias
específicas e através de certos estímulos, possuem, do ponto de vista psicológico,
características muito diversas daquelas de cada indivíduo que as compõem. Em
Psicologia das multidões, ele diz:
O fato mais surpreendente apresentado por uma multidão psicológica é o
seguinte: quaisquer que sejam os indivíduos que a compõem, por mais
semelhantes ou dessemelhantes que possam ser seu tipo de vida, suas ocupações,
seu caráter ou sua inteligência, o mero fato de se haverem transformado em
multidão dota-os de uma espécie de alma coletiva. Essa alma os faz sentir, pensar
e agir de um modo completamente diferente daquele como sentiria, pensaria e
agiria cada um deles isoladamente. Algumas idéias, alguns sentimentos só surgem
ou se transformam em atos nos indivíduos em multidão. A multidão psicológica é
um ser provisório, composto de elementos heterogêneos por um instante
amalgamados, exatamente como as células de um corpo vivo formam por meio de
sua reunião um novo ser que apresenta características muito diferentes daquelas
que cada uma das células possui.
31
Viktor Frankl, ao falar do vazio existencial, diz-nos que ele se deve
principalmente a duas causas: a perda da capacidade instintiva e a perda das
tradições. Não há, no homem atual, nenhum instinto que lhe revele o que precisa
fazer e atualmente também não nenhuma tradição que lhe diga o que deve fazer.
Além disso, muitas vezes o homem também não sabe o que quer fazer. Assim, a
tendência para que se queira apenas aquilo que os outros fazem ou se faça apenas
aquilo que os outros querem torna-se cada vez mais predominante. Manifestam-se
assim, respectivamente, o conformismo e o totalitarismo
32
, faces distintas de uma
mesma situação: a neurose coletiva.
As características dessa neurose, descritas na obra Psicoterapia para todos,
são as seguintes: atitude existencial provisória, atitude fatalista, pensamento coletivo
e fanatismo. Vejamos, em detalhe, cada uma dessas características.
31
Gustav LE BON, Psicologia das multidões, p. 32.
32
Cf. Viktor FRANKL, Psicoterapia para todos, p. 15.
48
Atitude existencial provisória
Em tempos de guerra ou em algumas situações limítrofes, o homem encontra-
se sem poder saber se estará vivo no dia, ou mesmo no momento seguinte. Nesses
casos, interessa saber apenas o momento presente, salvar-se no agora. O
problema, porém, de se viver em função de um único dia, é que se vive sujeito à
dominação dos impulsos. Compreende-se, nesses casos, a desistência de construir
uma vida amorosa humanamente sadia, limitando-se a usufruir o momento presente,
de modo a que nenhuma satisfação sensível escape. Os casamentos tipificados
como uniões de guerra, que cedo se desmantelavam, são exemplos disso. A vida
sexual, para os respectivos parceiros, configurava-se não como sendo o que deveria
ser – realização e encontro, motivo para a felicidade e o prazer –, tornando-se
apenas a busca da fruição do prazer, o qual, por sua vez, torna-se um fim em si
mesmo. Frankl relata um caso interessante a esse respeito. Nos campos de
concentração era possível saber quando um prisioneiro iria desistir de continuar a
lutar pela vida e se entregar ao denimo e à morte: bastava vê-lo fumando seus
últimos cigarros que eram uma importante moeda de troca por comida, o que
poderia significar, talvez, mais um dia de sobrevivência. Após isso, ele não se
levantava mais da cama e morria em pouco tempo. Uma vez que a morte está
próxima, é necessário ter os últimos prazeres, ainda que ínfimos. A propósito, nos
campos de concentração a atitude existencial provisória possuía um fator agravante:
além de ficar muito clara para cada prisioneiro a provisoriedade de sua existência,
também ficava claro o quanto essa provisoriedade era indefinida, uma vez que não
se podia ter a menor noção de quanto tempo a guerra iria durar ou por quantos dias
se escaparia da arbitrariedade da morte.
Mesmo com o fim da guerra, não nos libertamos da concepção existencial
provisória. alguns anos tínhamos fobia da bomba atômica. Atualmente, temos
ansiedade antecipatória da ameaça de extinção do planeta por esgotamento de
recursos, ou de simplesmente morrer tolamente em algum episódio de violência
urbana. A atitude provisória se manifesta quando se pára de conceber planos com
perspectivas amplas e de construir e organizar a vida com objetivos
conscientemente assumidos. Essa atitude leva a não buscar um fim ou um sentido
para os próprios atos, vivendo provisoriamente e considerando tolice planejar, agir
para um determinado fim, etc. uma coisa é importante: o dia-a-dia. O prazer que
49
deveríamos obter como conseqüência natural de nossas realizações passa a ser o
objetivo principal dessas e, com isso, adquire-se uma tendência ao
descontentamento, à falta de objetivos e à ausência de autodisciplina.
O curioso é que, ao buscar apenas o que é efêmero, o indivíduo age como se
o seu futuro fosse algo garantido, não sendo necessário construí-lo. Esquece-se que
há tarefas a cumprir. Também menospreza o passado e suas realizações que,
segundo Frankl, são o maior tesouro de um homem, uma vez que o que aconteceu e
ficou no passado está salvo, nada pode ser dele subtraído. Não possibilidade de
perda daquilo que já realizamos.
Apesar de não se ocupar do futuro, o homem com a concepção existencial
provisória se desespera com ele. O desespero, para Frankl, é uma forma de
idolatria, pois o desesperado absolutiza um único valor, aceita e valoriza uma única
percepção de sentido, fechando os olhos para inúmeras opções ao seu redor, o que
caracteriza uma perda de liberdade.
A atitude fatalista
Aquele que tem uma atitude provisória se convence de que não é necessário
agir para tomar o destino em suas próprias mãos, pois, diante do desconhecimento
do que ocorrerá no dia de amanhã, o fatalista diz a si mesmo que não é possível
assumir responsabilidade frente a seu destino. Ele crê no poder do destino ou de
forças semelhantes, tanto no âmbito externo como no interno, ou seja, na força das
circunstâncias exteriores e das situações interiores. Ao agir dessa forma, teme a
responsabilidade, repelindo-a. Aquele que tem uma concepção fatalista do mundo
considera impraticável agir contra forças tão poderosas.
O pensamento coletivo
Aqueles com a característica de pensamento coletivo dificilmente são
capazes de entender a si mesmos e aos outros como pessoas. O homem, nesse
caso, é levado a agir não como parte de uma sociedade, mas como componente
substituível de uma engrenagem. O indivíduo com essa característica deseja a
50
unidade da fusão e se diferencia de si mesmo para obter tal unidade. A diversidade
da estrutura psíquica dá lugar a uma base uniforme e inconsciente comum a todos.
Viktor Frankl diferencia sociedade e comunidade, de um lado, e massa, do
outro. Enquanto a comunidade necessita de personalidades que se destaquem e,
por sua vez, cada personalidade precisa da comunidade para se desenvolver
plenamente e se realizar, a massa não tolera nenhuma personalidade humana, nem
mesmo a individualidade. Considera um embaraço as personalidades individuais e,
se possível, as elimina. “Por essa razão, combate ela as personalidades, reprime-as,
priva-as da liberdade, castrando essa liberdade em nome da igualdade. As
individualidades são aplanadas e as personalidades sacrificadas pela tendência ao
nivelamento.”
33
Como parte da massa, o indivíduo abre mão de sua liberdade
pessoal, tem como ideal uma igualdade despersonalizada e busca, para o futuro, a
sociedade supostamente perfeita, que resolveria todos os problemas. Deixa de lado
sua própria vida, renunciando a tudo o que lhe é particular, tendo em vista um futuro
ilusório. “Mas o que seria do terceiro elemento que somos levados a considerar a
esta altura da exposição – o que será do ideal da fraternidade? Ele degenera,
degradando-se a mero instinto de rebanho.”
34
O homem se rende ao pensamento coletivista à medida que abomina a
responsabilidade. Ele aprende a se deixar conduzir e levar. Na massa é importante
não se salientar de jeito nenhum, mas, antes, apagar-se a qualquer preço, diluir-se
nela. O homem, ao se afundar na massa, dissolve-se como ser personalizado.
A massa, assim como a comunidade, não é um ser personalizado, pois
somente pessoas possuem liberdade e responsabilidade. Por esse motivo, somente
estas têm culpas e méritos, pois agem baseadas em decisões livres e ações
responsáveis. “Jamais, porém, uma coletividade, essencialmente impessoal, poderia
considerar-se culpada.”
35
Quem atribui a culpa ao coletivo busca eximir-se da
responsabilidade individual. Na massa todos agem, mas ninguém é particularmente
criminoso ou santo. À massa tudo é permitido. Ela tem a força que cada indivíduo,
por si só, não possui. Os instintos individuais, antes refreados pelo senso de
33
Viktor FRANKL, Psicoterapia para todos, p. 45.
34
Ibid., p. 45.
35
Ibid., p. 45.
51
responsabilidade, podem emergir e se manifestar livremente na multidão anônima e
irresponsável.
O fanatismo
“Assim como o homem que pensa em moldes coletivistas olvida a sua própria
personalidade, o homem induzido pelo fanatismo não enxerga o ser pessoal do
outro, daquele que não sintoniza com o seu pensamento.”
36
Não admite ser possível
que alguém, de boa e com uso da razão, não pense como ele. Somente sua
própria opinião é válida, não o entendimento de outrem.
No entanto, o fanático nem sequer opinião própria possui. Ele é possuído pela
opinião pública. E é precisamente isso que torna o fanatismo tão perigoso. A
opinião pública se apodera tão facilmente do fanático que, ao mesmo tempo,
homens isolados, com não menor facilidade, se apoderam da opinião pública!
37
Não nos faltam exemplos de tais homens isolados que governam a massa.
Frankl conta que Hitler, certa vez, em uma conversa à mesa, teria declarado: “é uma
sorte para os governantes que os homens não pensem, mas permitam que por eles
se pense.”
38
O fanático ignora a liberdade de decisão e a dignidade humana. Ele
julga que o fim santifica os meios e não que, na verdade, certos meios profanam
os fins. A política fanática desconsidera a dignidade humana para atrelar os
indivíduos às suas metas.
Na massa verifica-se o fenômeno do contágio mental. Atos e sentimentos são
contagiosos e facilmente se sacrifica o interesse pessoal pelo interesse coletivo.
Pela massa dá-se a vida. O indivíduo então deixa desaparecer a sua personalidade
consciente e o que passa a predominar é a personalidade inconsciente, com suas
idéias e sentimentos modificados por sugestão ou contágio. Ele é imediatamente
tomado pela necessidade de transformar essas idéias e esses sentimentos em atos,
e sua atividade intelectual diminui.
36
Viktor FRANKL, Psicoterapia para todos, p. 46.
37
Ibid., p. 46.
38
Ibid., p. 46.
52
A massa chega ao extremo facilmente. Uma simples suspeita transforma-se
em fato concluído e de indiscutível evidência. Um princípio de antipatia pode
transformar-se, em segundos, em ódio feroz.
Uma vez que a massa é naturalmente inclinada a excessos, a massa
reage seguindo estímulos intensos. Não se argumenta logicamente com a massa,
ao contrário, apresenta-se-lhe imagens coloridas e slogans repetidos
insistentemente. Segundo Frankl, o slogan tem o poder de detonação de uma
bomba atômica, pois gera uma reação em cadeia tão grande quanto esta, só que de
ordem psicológica.
39
Frankl afirma que o fanatismo é uma epidemia psíquica, sendo que sua
principal ameaça não é, como no caso de algumas epidemias somáticas, uma
conseqüência de guerra, pelo contrário, é uma possível causa da guerra. Ele afirma:
Por outro lado sabemos que não somente um fator psicológico, mas também
uma causa espiritual, por exemplo, um conflito de consciência, pode levar a uma
neurose. É compreensível, por isso, que um homem, na medida em que for capaz
de ter um conflito de consciência, estará imune ao fanatismo e também à neurose
coletiva, como por exemplo, um político fanático torna-se capaz de superar sua
neurose coletiva na medida em que novamente puder ouvir a voz de sua
consciência, e até sofrer com ela.
40
O tratamento logoterapêutico
Apesar de a logoterapia ser indicada especificamente para as neuroses
noogênicas, Frankl afirma que não raramente se verifica que uma neurose
psicogênica atesta a elevação do psíquico para um vácuo existencial e, sendo
assim, a psicoterapia só será completa quando for eliminado esse vazio. A busca de
sentido é subjetiva, mas o sentido é, em si, objetivo, pois se trata de descobri-lo, não
de entregá-lo. O logoterapeuta exerce a função de tornar o paciente capaz de
descobrir o sentido de sua existência, ampliar seu aspecto de visão para que ele
perceba seu espectro de possibilidades de sentido e valores pessoais e concretos.
Na obra Em busca de sentido, Frankl apresenta sua tese do “otimismo
trágico”. Segundo ele, o ser humano pode dizer sim à vida apesar da “tríade trágica”:
39
Cf. Viktor FRANKL, Psicoterapia para todos, p. 47.
40
Ibid., p. 48.
53
dor, culpa e morte. Ele afirma que não se deve, contra todas as esperanças, ser
otimista indiscriminadamente, mas que é possível tirar o “melhor” (optimum) de cada
situação e extrair da tragédia o sentido incondicional da vida.
No caso da dor, retirar o melhor da situação consiste em fazer do sofrimento
uma realização humana. O sofrimento não é indispensável para a descoberta de
sentido, mas, se for inevitável, a pessoa que sofre pode escolher sua atitude. “Como
vemos, a prioridade permanece com a mudança criativa da situação que nos faz
sofrer. Mas realmente superior é saber sofrer, quando se faz necessário.”
41
Diante da culpa, deve-se extrair a oportunidade de mudar a si mesmo para
melhor, erguer-se acima da culpa. Frankl recebeu, certa vez, uma carta de um
prisioneiro que cumpria sua pena na qual este lamentava o fato de nunca poder se
explicar, pois a ele eram oferecidas várias opções de desculpas pelo crime que
havia cometido. Em outra ocasião, um grupo de prisioneiros, para os quais Viktor
Frankl deu uma palestra, manifestou sua gratidão por não lhes serem oferecidas
explicações e desculpas pelos atos pelos quais eles se sentiam responsáveis. As
palavras que os incentivaram a superar a culpa através da mudança de atitude
surtiram um excelente efeito e a maioria acabou se libertando mais tarde, sem
incorrer novamente em crimes.
Em relação à morte, a atitude ótima é fazer da transitoriedade da vida um
incentivo para realizar ações responsáveis:
Sem dúvida, as pessoas tendem a ver somente os campos desnudos da
transitoriedade, mas ignoram e esquecem os celeiros repletos do passado, em que
mantém guardada a colheita das suas vidas: as ações feitas, os amores amados e,
não menos importantes, os sofrimentos enfrentados com coragem e dignidade.
42
Não se pode obrigar alguém a ser feliz ou otimista, mas se a busca de sentido
de um indivíduo for bem sucedida, ele terá a capacidade de enfrentar o sofrimento.
Para Frankl, o sentimento da falta de sentido não é, em si, uma neurose. É
uma prova da humanidade de uma pessoa. Porém, esse sentimento, devido a uma
deficiência na visão dos obstáculos que uma pessoa tem a superar, pode levar à
neurose noogênica. Segundo ele, há três modos de se obter sentido.
41
Viktor FRANKL, Em busca de sentido, p. 125.
42
Ibid., p. 127.
54
O primeiro modo de obtê-lo é através de uma realização. Para exemplificar,
vamos relatar um fato ocorrido com Frankl quando ainda era prisioneiro. No fim de
um dia de trabalho, cansado e sofrendo ainda mais pelo fato de seus pensamentos
ocuparem-se apenas de detalhes para a sobrevivência, tais como a dúvida se
haveria ou não um pedaço de lingüiça na refeição noturna, ou de como conseguir
um arame para servir de cadarço para os seus sapatos, Frankl se imaginou diante
de um auditório, dando uma palestra sobre a psicologia do campo de concentração.
Ele se sabia possuidor de um conhecimento que era de amplo interesse. Sabia,
também, que deveria sobreviver para reescrever e divulgar seu trabalho perdido.
Naquele momento conseguiu alçar-se acima do tempo presente, contemplando-o
como se fosse passado e tendo idéia clara de como aproveitá-lo.
O segundo modo de encontrar sentido é através da vivência. Apreciar uma
música, desfrutar de um bom vinho ou de uma bela paisagem e, principalmente,
encontrar o amor, tudo isso confere sentido à vida. O que vivemos, e também o
que pensamos, não nos pode mais ser retirado está salvo de uma vez para
sempre. Olhando sob esse prisma, é vantagem envelhecer. Somente os que
estão no mundo mais tempo têm mais experiências que nunca lhes serão
subtraídas.
Frankl afirma que amar é poder chamar alguém de tu e, além disso, ser capaz
de aceitá-lo positivamente, com todas suas singularidades e particularidades; é
compreender a essência de uma pessoa, tal qual ela é, e enxergar suas
possibilidades, seu dever-ser. Quem ama deve desejar que a distância entre o ser e
o dever-ser do objeto de seu amor fique cada vez menor. O amor enxerga no outro
suas possibilidades e deseja que ele as realize plenamente. “O amor é, afinal, a
vivência em que, pouco a pouco, se vive a vida de outro ser humano, em todo o seu
‘caráter de algo único’ e irrepetível!”.
43
Amor (no sentido mais estrito da palavra) é a forma mais elevada possível do
erótico (no sentido mais amplo do termo), porquanto representa a mais profunda
penetração possível na estrutura pessoal da outra parte: o entrar em relações com
ela, como algo de espiritual. Nestes termos, a relação direta com o que de
espiritual na outra parte significa a mais alta forma possível de companheirismo.
44
43
Viktor FRANKL, Psicoterapia e sentido da vida, p. 172.
44
Ibid., p. 175.
55
O terceiro modo é encontrar sentido no sofrimento. Viktor Frankl ressalta que
o sofrimento não deve ser buscado, mas uma vez que ocorre, deve ser aproveitado.
O autor lembra, a esse respeito, do fim de um dia terrível no campo de
concentração, no qual os prisioneiros foram punidos com o jejum, por se recusarem
a entregar um colega que furtou alguns quilos de batatas. Todos estavam tomados
de depressão e o chefe do grupo começou a discorrer sobre o perigo de entregar os
pontos e se autoabandonar. Dirigindo-se então a Frankl, pediu-lhe que explicasse
um pouco mais. O psicólogo, sentindo-se tão mal quanto seus colegas, reuniu suas
forças e disse que a vida humana tem sentido em todas as condições. Era sabido
que muitos dos que estavam não sobreviveriam. Se há sentido na vida, não
poderia depender de alguém escapar ou não daquela situação. Disse que cada um
deles estava sob o olhar de um amigo ou de uma mulher, vivente ou não, ou sob o
olhar de Deus. Cada um tinha alguém que esperava não decepcionar, esperava que
o prisioneiro soubesse sofrer, mantendo-se humano. Também falou do sentido do
sacrifício, contou do companheiro que, ao entrar no campo de concentração, propôs
um pacto aos céus: o de que seu sofrimento poupasse alguém por ele amado. Seus
colegas, em lágrimas, vieram lhe agradecer por suas palavras.
45
De acordo com Primo Levi, os prisioneiros dos campos de concentração
estavam aquém do bem e do mal, e nos convida, através de seus relatos, a
refletirmos o quanto de nosso mundo moral comum poderia subsistir aquém dos
arames farpados.
46
De fato, Frankl também afirma que o cotidiano de um prisioneiro
em tais condições acaba reduzido à mera luta pela sobrevivência. No entanto, até
mesmo diante de tal situação limite, na qual a doença, a miséria corporal e
psicológica e a inevitável contemplação da morte estão presentes a cada instante,
há uma possibilidade para o encontro de sentido. Para a logoterapia sempre é
possível transformar os sofrimentos em vitórias humanas e ao homem sempre
estará reservado um último grau de liberdade em seu interior; sempre haverá em
cada ser humano uma responsabilidade a assumir. Como, por exemplo, no caso de
Herry Long que, após um acidente aos dezessete anos, ficou tetraplégico. Este
homem se matriculou em cursos do Communinity College e para escrever utilizava
uma máquina datilografando com um pauzinho que manejava com a boca. Em uma
45
Cf. Viktor FRANKL, Em busca de sentido, p. 80.
46
Cf. Primo LEVI, É isto um homem?, pp. 78-87.
56
carta escrita para Viktor Frankl ele diz: “vejo minha vida cheia de sentido e de
objetivos. A atitude que adotei naquele dia fatal se transformou no credo da minha
vida: eu quebrei o pescoço, não quebrei meu ser.”
47
Desta maneira, a afirmação de Freud de que se reuníssemos um grupo de
pessoas bastante diversificado e impuséssemos a esse grupo uma situação de
fome, as diferenças individuais desapareceriam, ficando em seu lugar apenas a
expressão uniforme da necessidade não satisfeita, para Frankl, consiste em um
engano. Ele viveu tal situação. Para ele, em Auschwitz, “as ‘diferenças individuais’
não se ‘apagaram’, os indivíduos retiraram suas máscaras, tanto os porcos como os
‘santos’”.
48
Para quem crê em um sentido incondicional da vida, inevitavelmente emerge
uma pergunta: “existe um sentido último, um sentido além de todos os sentidos?”
Esse é o tema que abordaremos no próximo capítulo.
47
Cf. Viktor FRANKL, Em busca de sentido, p. 125.
48
Ibid., p. 129.
57
CAPÍTULO III
Deus, o ser desconhecido
Tudo o que faço ou medito
Fica sempre na metade.
Querendo, quero o infinito.
Fazendo, nada é verdade.
Que nojo de mim me fica
Ao olhar para o que faço!
Minha alma é lúdica e rica,
E eu sou um mar de sargaço ---
Um mar onde bóiam lentos
Fragmentos de um mar de além...
Vontades ou pensamentos?
Não o sei e sei-o bem.
Fernando Pessoa
Em A presença ignorada de Deus, citando um ditado de Arthur Schnitzler
1
,
Viktor Frankl diz que existem apenas três virtudes: coragem, objetividade e senso de
responsabilidade, e relaciona cada uma delas com as três escolas vienenses de
psicoterapia. A coragem seria a virtude da psicologia individual de Adler, uma vez
que este método procura encorajar o paciente a vencer seu sentimento de
inferioridade. A objetividade estaria relacionada à psicologia freudiana, pois seu
fundador olhou de frente a psique humana e se arriscou a descobrir os segredos da
1
Romancista e dramaturgo austríaco, nascido em 1862, Viena, local onde morreu em 1931, foi
admirado por Freud que, em carta de 1922, “confessa” que “sempre que me deixo absorver por suas
belas criações, parece-me encontrar, sob a superfície poética, as mesmas suposições antecipadas,
os interesses e conclusões que reconheço como meus próprios”. Cf. Seminário A ficção na
psicanálise: Freud, Lacan e os escritores”, Associação Psicanalítica de Porto Alegre,
www.appoa.com.br/noticia
58
natureza interna do homem, tal como se encarasse a proposta da esfinge de que
alguém decifrasse seu mistério
2
. A análise existencial se relaciona à virtude da
responsabilidade, por interpretar a existência humana, em sua essência mais
profunda, como ser-responsável.
A logoterapia, ao indagar sobre o sentido da existência e concluir que este é
incondicional, mostra que a vida tem um caráter de dever, de missão e,
simultaneamente, de resposta à existência. Vimos, nos capítulos anteriores, que
essa resposta é dada às perguntas colocadas pela própria vida, através de atos e
responsabilidades assumidas. “Na verdade, a existência só poderá ser ‘nossa’ se for
responsável.”
3
Também se responde à vida “no aqui e agora”, diante de cada
situação concreta. Sendo assim, a responsabilidade é ad personam e ad
situationem.
A análise existencial, assim como a psicanálise, também tem como finalidade
tornar algo consciente. Mas, enquanto na psicanálise torna-se consciente algo
impulsivo, na análise existencial é algo espiritual que será conscientizado. Na
logoterapia não é algo relativo ao id que se conscientiza, e sim o próprio eu: o ser se
torna consciente de si mesmo.
Quando nos referimos ao ser humano como uma “totalidade corpo-mente”,
não estamos falando da totalidade humana, pois, além de possuir a unidade
psicofísica, o homem também deve ser representado pela sua característica mais
específica, a espiritual, responsável pela consciência moral, pelo amor e pelas
manifestações artísticas. Sendo assim, o homem é um ser bio-psico-espiritual.
4
O limite entre o que de consciente e inconsciente no homem é permeável
e muito facilmente o que é consciente torna-se inconsciente e vice-versa. No
entanto, o limite entre o instintivo e o espiritual precisa ser estabelecido de maneira
nítida, pois o ser humano, propriamente dito, se manifesta onde o um id a
impulsioná-lo, mas um eu responsável. Como diz Jaspers, o homem é um ser que
2
No filme Freud além da alma um diálogo de Freud com o diretor do hospital onde trabalhava,
Meyrnet, em que este o alerta para o que há de terrível nas descobertas feitas por Freud, se referindo
a uma “caixa de escorpiões que se abria” e diz: “Aí está, Freud, da noite o que é da noite.”
3
Viktor FRANKL, A presença ignorada de Deus, p.16.
4
Ibid., p. 21.
59
decide.
5
Frankl considera a existência como essencialmente espiritual e a facticidade
composta tanto de elementos físicos quanto psíquicos. Os fatos psíquicos e físicos
não podem ser separados facilmente, por isso, muitas vezes, é difícil para um
médico saber se a origem de uma doença é física ou psíquica, mas a separação
entre a existência espiritual e a facticidade psicofísica torna-se relevante, pois “na
psicoterapia trata-se de mobilizar, a todo o momento, a existência espiritual no
sentido de uma responsabilidade livre, contrapondo-se aos condicionamentos da
facticidade psicofísica, que o paciente tende a aceitar como seu destino”
6
.
Como foi dito no capítulo anterior, Frankl adota a definição de ser humano
como sendo um centro espiritual, em torno do qual se agrupa o psicofísico.
Entretanto, qualquer manifestação humana, seja espiritual, psíquica ou física, pode
ocorrer em um dos três níveis: consciente, pré-consciente e inconsciente, mas o
espiritual, assim como a própria existência, é algo imprescindível e, enfim,
necessário, por ser essencialmente inconsciente”
7
. Ao executarmos atos espirituais
ficamos tão absorvidos que não somos passíveis de reflexão em nossa verdadeira
essência. A existência, por ser irreflexível, não é analisável e por isso a Logoterapia
não se chama Análise da Existência e sim, Análise Existencial (é uma análise
dirigida à existência). Na dimensão ontológica, a consciência (no sentido de
“conhecimento do que se passa em nós”) e a responsabilidade o fenômenos
próprios do ser humano, são atributos básicos que pertencem ao existencial, como
algo que sempre esteve nele contido. A pessoa espiritual pode ser consciente ou
inconsciente, mas somente a pessoa profunda espiritual, que obrigatoriamente é
inconsciente, merece ser chamada assim.
Frankl compara o que foi descrito acima com o funcionamento do olho. No
ponto de entrada do nervo ótico, a retina tem seu ponto cego. Assim o espírito,
quando é totalmente primordial, completamente “ele mesmo” em sua origem, é cego
de toda auto-observação e autorreflexão. Citando os vedas indianos, o autor diz que
“aquilo que vê, não pode ser visto; aquilo que ouve, não pode ser ouvido; e o que
pensa, não pode ser pensado”
8
. Da mesma maneira, para ele, não somente em sua
5
Cf. Viktor FRANKL, A presença ignorada de Deus, p. 19.
6
Ibid., p. 20.
7
Ibid., p. 18.
8
Ibid., p. 24.
60
origem, “primeira instância” ou profundeza, o espiritual é inconsciente, mas também
em sua “última instância” ou altura. É nessa instância que o espiritual decide o que
deve ser consciente ou inconsciente. Para exemplificar, podemos observar que,
enquanto dormimos, apesar de inconscientes, em nós uma instância que decide
se devemos acordar ou continuar dormindo. É isso que faz com que uma mãe
ignore, durante o sono, os barulhos vindos da rua, mas acorde ao choro de seu filho.
Na hipnose também ocorre o mesmo. O hipnotizado acorda se estiver acontecendo
algo que ele não quer. Essa instância decisória desaparece somente em casos de
narcose de certo grau e é algo que “vela pelo ser humano”. Ou seja, o mecanismo
em nosso corpo que decide se devemos ou não nos manter inconscientes é, em si,
inconsciente. Mas para que haja uma decisão é necessário algum grau de
discernimento; e ambas as ações, decidir e discernir, são próprias de algo espiritual.
Sendo assim, o espiritual deve ser inconsciente tanto em sua origem quanto em sua
última instância.
Segundo o nosso autor, três aspectos do inconsciente espiritual: a
consciência
9
moral, o amor e a arte, que iremos analisar a seguir.
A consciência moral: o ético inconsciente
Frankl afirma que a consciência
10
também se estende até uma profundidade
inconsciente, pois as grandes e autênticas decisões humanas ocorrem de maneira
irrefletida, portanto, inconsciente.
11
Ele define a consciência como sendo a
compreensão pré-moral dos valores e afirma que assim como existe uma
compreensão pré-científica do ser e, ontologicamente anterior a ela, uma
compreensão pré-lógica do ser, existe uma compreensão dos valores que é anterior
a qualquer moral explícita.
12
Ela é irracional, pois é racionalizável
secundariamente. Cita, como exemplo, o caso do exame de consciência, que é
9
Consciência moral, em alemão, Gewissen, aqui é tomada no sentido de uma faculdade de
estabelecer julgamentos morais dos atos realizados. Este sentido difere do referido anteriormente à
palavra consciência (“conhecimento do que se passa em nós”) que, em alemão, se escreve
Bewusstsein.
10
Neste tópico, sempre que for utilizada a palavra consciência será no sentido de Gewissen (exceto
nos casos em que houver indicação de outro sentido).
11
Cf. Viktor FRANKL, A presença ignorada de Deus, p. 26.
12
Ibid., p. 26.
61
possível ser feito a posteriori. Além disso, ele afirma que a deliberação da
consciência, em última análise, é inescrutável, pois o ser que é (Seinedes) torna-se
acessível à consciência (Bewusstsein), enquanto o ser que deve ser, mas ainda não
é (Sein-sollendes) torna-se acessível à consciência moral (Gewissen). Este Sein-
sollendes não é real, mas meramente possível. Todavia, essa possibilidade, em um
sentido mais elevado, torna-se uma necessidade. O papel da consciência moral é
revelar o que deve ser realizado, por isso ela precisa antecipar-se espiritualmente,
intuir
13
, ou seja, antever o que precisa ser feito, captando os fatos antes de toda
fixação gica.
14
É por isso que a consciência moral é irracional, pois sendo
essencialmente intuitiva, é racionalizável apenas posteriormente.
O amor: o erótico inconsciente
Processo semelhante ao que acontece em relação à consciência moral,
ocorre com o amor. Ele também intui, percebendo um ser que ainda não é.
Diferentemente da consciência, não percebe um ser que “deveria ser”, mas sim um
que “poderia ser”.
Assim, o amor descobre e traz à tona possíveis valores na pessoa amada.
Também o amor antecipa algo através de sua visão espiritual, justamente aquelas
possibilidades pessoais ainda não realizadas que a pessoa concreta, ou seja, a
pessoa amada, contém em si.
15
Mas não é somente o fato de que ambos, amor e consciência moral, agem de
modo necessariamente irracional, por serem essencialmente intuitivos, que os torna
semelhantes. Outra característica que lhes é comum é a ligação a um ser
absolutamente individual. A tarefa da consciência é revelar ao ser humano “aquele
único necessário”, a possibilidade única e exclusiva de uma pessoa concreta numa
situação concreta, referida por Max Scheler como “valores de situação”. Ela é
individual, refere-se a algo concreto e não pode ser abarcada por nenhuma “lei
moral” formulada em termos universais. Não é conhecida racionalmente, mas
13
Cf. Viktor FRANKL, A presença ignorada de Deus, p. 27.
14
Essa é a definição de intuição adotada por Scheler. Cf. Juan Llambias de AZEVEDO, Max Scheler:
exposición matemática y evolutiva de su filosofia, p. 25.
15
Viktor FRANKL, A presença ignorada de Deus, p. 27.
62
apenas intuitivamente.
16
Por essa razão, Frankl refere-se a ela como um instinto
ético. Esse instinto difere daquele animal, ou seja, das formas de comportamento
biologicamente não aprendidas, que são genéricas e tem um esquema fixo para
todos os indivíduos, mesmo que, para salvar o grupo, o indivíduo seja prejudicado
ou aja de forma contraproducente. “O instinto vital coloca a individualidade em
segundo plano”
17
, enquanto o instinto ético é pessoal, individual, e se dirige sempre
ao concreto; sua eficácia decorre do fato de seu alvo não ser algo geral.
O amor, por sua vez, também se dirige a uma possibilidade totalmente
individual, por revelar “o único possível”, as possibilidades únicas da pessoa amada.
Somente o amor é capaz de ver a pessoa amada em sua singularidade. “Nesse
sentido, o amor possui importante função cognitiva. E esta função cognitiva foi
talvez compreendida e reconhecida quando, em hebraico, o ato de amor e o ato de
conhecimento foram designados pela mesma palavra.”
18
Viktor Frankl afirma, então, que amor e consciência são comparáveis e
semelhantes não apenas por se dirigirem a um ser único e por intuírem algo, mas
também por envolverem decisão: “na realidade, a escolha de um parceiro, a ‘escolha
amorosa’ constitui uma verdadeira escolha quando não é imposta pelo
instintivo”
19
. Também no amor, o ser humano é um “ser que decide”.
A arte: o estético inconsciente
O inconsciente estético é a consciência artística. Frankl relata, em A
psicoterapia na prática, o caso de uma artista plástica que não conseguia mais pintar
obras de qualidade, assim consideradas por críticos de arte e por si mesma. Através
da logoterapia e da interpretação de sonhos, seu consciente artístico e, ao mesmo
tempo, sua religiosidade foram, aos poucos, restabelecendo-se, pois ela
compreendeu quais foram as “quebras” que a impediam de prosseguir e encontrar
realização em sua vida.
20
No artista, a intuição da consciência corresponde à
16
Cf. Viktor FRANKL, A presença ignorada de Deus, p. 27.
17
Ibid., p. 28.
18
Ibid., p. 29.
19
Ibid., p. 29.
20
Viktor FRANKL, A psicoterapia prática, pp. 239-54.
63
inspiração. Esta jamais pode ser totalmente iluminada por aquela; ao contrário, se
um artista se auto-observa com muita intensidade, prejudica sua obra. Assim, um
violinista que se auto-observa demais em relação à sua técnica, à posição com que
executa os movimentos e cada movimento em si, fica impedido de executar a peça
musical. um relato de um caso como este em A presença ignorada de Deus, em
que o paciente teve que utilizar a técnica da derreflexão (desenvolvendo nele a
confiança de que seu inconsciente era “mais musical” que seu consciente e que,
portanto, ele não deveria ficar tão atento à execução de seus atos), pois não
conseguia tocar.
21
A função do psicoterapeuta, então, não é trazer, a qualquer custo, tudo à
consciência. O médico traz à consciência apenas temporariamente o que é
importante no tratamento do paciente para, depois, fazer retornar ao inconsciente,
de forma a reconstituir novamente o hábito.
Não é válido, entretanto, concluir que toda produção artística, ou mesmo as
realizações eróticas ou éticas, devem ser atribuídas a um sentimento. É necessário,
neste caso, fazer uma distinção dos diferentes conceitos da palavra sentimento.
Frankl ressalta que é importante diferenciar os sentimentos intencionais
(intentionales Gefühl) dos estados afetivos (Gefühlszustand) e dos sentimentos
situacionais (zuständliches Gefühl). Somente no primeiro sentido da palavra
podemos relacionar sentimento com inconsciente espiritual. Em suas palavras:
Enquanto os sentimentos intencionais poderiam muito bem ser atribuídos ao
inconsciente espiritual, os meros estados afetivos têm tão pouco a ver com o ser
humano espiritual-existencial, ou seja, com o ser humano verdadeiro quanto
quaisquer estados instintivos.
22
A origem transcendente da consciência moral
Analisemos, agora, um pouco mais do que Viktor Frankl nos diz a respeito do
primeiro aspecto do inconsciente espiritual, a consciência moral. Em primeiro lugar,
ele afirma que a neurose ou a psicose ocorrem quanto o id (psicofísico) irrompe na
21
Cf. Viktor FRANKL, A presença ignorada de Deus, p. 30.
22
Ibid., pp. 30-1.
64
consciência (Bewusstsein), enquanto que a consciência moral (Gewissen) é o que
ocorre quando o eu (espiritual) penetra na esfera do inconsciente.
23
O autor diz, também, que a consciência moral possui uma transcendência.
Para explicar, observa que toda liberdade tem um “de quê” e um “para quê”. O “de
quê” o homem pode se libertar consiste em seu ser impulsionado, o “para quê”
consiste em ser responsável, ter consciência. Cita, para isso, Maria Von Ebner-
Eschenbach: “sê senhor da tua vontade e servo da tua consciência!”
24
, dizendo que
somos senhores de nossa vontade por sermos humanos (entendendo-se o homem
como ser livre e plenamente responsável), mas servos de nossa consciência quando
a obedecemos. Porém, só é possível a alguém obedecer a algo distinto de si
mesmo. A consciência de um homem, portanto, é algo diferente dele mesmo, algo
mais que ele.
Em outras palavras, posso ser servo da minha consciência, se, na minha
autocompreensão, entender a consciência como um fenômeno que transcende
minha mera condição humana e, conseqüentemente, compreender a mim mesmo, a
minha existência, a partir da transcendência.
25
Para que o diálogo com a consciência seja verdadeiro, e não um monólogo,
esta consciência deve ser porta-voz de algo distinto do ser humano. Frankl afirma
que a voz da consciência é, na verdade, a voz da transcendência. Essa voz é ouvida
pelo homem, não provém dele, mas, apesar disso, tem caráter, necessariamente,
pessoal, pois é dirigida a cada ser humano em particular. Cada pessoa ouve sua
própria voz da consciência. Ele diz que somente o caráter transcendente da
consciência faz com que possamos compreender o homem em um sentido mais
profundo. É, segundo ele, algo análogo ao que acontece com o umbigo humano.
Esta marca, que todos nós portamos, pode ser compreendida a partir da história
pré-natal do homem, não poderia ser compreendida se o considerássemos como um
indivíduo isolado. De modo semelhante, “a consciência pode ser entendida em
seu sentido pleno quando a concebemos à luz de uma origem transcendente”
26
.
é possível entendê-la a partir de uma região extra-humana. “Em outras palavras,
23
Viktor FRANKL, A presença ignorada de Deus, p. 31.
24
Ibid., p. 40.
25
Ibid., p. 40.
26
Ibid., p. 41.
65
para explicar a condição humana de ser livre, é suficiente basear-nos na sua
existencialidade, porém, para explicar a condição humana de ser responsável,
precisamos recorrer à transcedentalidade de ter consciência.”
27
Indo mais além,
Frankl afirma que a consciência somente será compreenvel se entendermos o
homem em sua condição de criatura. Somos criadores enquanto senhores de nossa
vontade, e criaturas como servos de nossa consciência.
O sentido último
Todo ser humano possui consciência e responsabilidade, mas a diferença
entre o homem religioso e o irreligioso é que este último não se pergunta pelo que é
responsável nem de onde provém sua consciência. Ele não quer ir além, e isto não
deve ser motivo de surpresa, pois não é sem dificuldade que reconhecemos o
caráter transcendente da voz da consciência. Para ilustrar esse fato, Frankl cita o
relato do profeta Samuel
28
que, quando rapaz, dormindo no templo do sumo-
sacerdote Eli, é acordado pela voz de Deus chamando-o. Isso aconteceu três vezes
e em todas elas Samuel se levantava e ia perguntar a Eli o que este desejava.
Somente após a terceira vez, o sacerdote instruiu o jovem a responder: “fala,
Senhor, pois teu servo escuta.” Frankl afirma que se até o profeta não reconheceu
como tal a voz que veio da transcendência, poderia ser comum que o homem
atribuísse esta voz como algo fundamentado em seu próprio ser. Assim, o homem
irreligioso se mantém na imanência, pára antes do tempo, como um alpinista que se
recusa a subir ao topo do monte porque este está encoberto pelas nuvens. Isso não
impede, porém, que este homem e aquele que é religioso (por acreditar na
transcendência) se despeçam gentilmente: um ficando onde está, e o outro seguindo
seu caminho. O que continua subindo assume o risco de seguir na incerteza da
neblina; respeita a decisão do que ficou em algum ponto do caminho, pois, como
religioso, sabe que a liberdade de seguir em frente ou não foi desejada e criada por
Deus.
Por vezes, o irreligioso se contenta em renegar apenas o nome de Deus,
falando “do divino” ou “da divindade”. Não tem coragem de se assumir partidário
27
Viktor FRANKL, A presença ignorada de Deus, p. 42.
28
I Samuel 3: 2-9
66
daquilo que reconhece, pois, para usar a palavra “Deus”, é necessário um pouco de
humildade.
29
Ao nos perguntarmos sobre a voz da consciência podemos, portanto, ir além,
perguntando-nos sobre sua origem. Assim, o questionamento ético leva ao religioso.
A consciência não apenas nos leva à transcendência, como também se
origina dentro da transcendência; portanto, a consciência é onticamente irredutível
Para a problemática sobre a origem da consciência não nenhuma saída
psicológica ou psicogenética, apenas uma resposta ontológica.
30
Por ser responsável, o ser humano não pode ser reduzido à sua
instintividade. Um impulso não pode reprimir, censurar ou sublimar a si próprio. O eu
também não pode se responsabilizar perante ele pprio, ou seja, não existe
nenhum “imperativo categórico” autônomo, pois seu caráter categórico não pode ser
derivado da imanência; antes, depende da transcendência. Dessa maneira,
enquanto o id é impulsionado, o eu é responsável, e o apenas perante si próprio.
“Ser livre é pouco, ou nada, se não houver um ‘para quê’. Porém, também ser
responsável não é tudo, se não soubermos perante quê somos responsáveis.”
31
Para Frankl, a consciência jamais teria autoridade na imanência se não fosse
referente ao “tu” de Deus. podemos responder se nos perguntam algo. Desse
modo, toda resposta necessita de um “a quê”, que deve ser anterior à resposta em
si. “O ‘perante quê’ de toda responsabilidade é anterior à própria responsabilidade.
Meu ‘dever’ deve ser anteposto para que eu ‘deva querer’.”
32
Criticando Sartre, que
diz que o homem é livre e exige dele que escolha, que invente a si mesmo, diz que
tal afirmação equivale a uma pessoa querer subir por uma corda lançada por si
mesma no espaço, sem nenhum ponto de apoio. Da mesma maneira, Frankl critica a
psicanálise:
O que a Psicanálise afirma não é nada mais nada menos do que o seguinte:
o ego puxa-se a si mesmo pelos cabelos do superego para sair do pântano do id.
Na realidade, Deus não é uma imago de pai, mas o pai é uma imago de Deus. Para
nós, o protótipo de toda divindade não é o pai, mas exatamente o contrário é
verdadeiro: Deus é o protótipo de toda paternidade. Apenas do ponto de vista
29
Cf. Viktor FRANKL, A presença ignorada de Deus, p. 43.
30
Ibid., p. 44.
31
Ibid., p. 44.
32
Ibid., p. 45.
67
ontogenético, biológico e biográfico, o pai é o primeiro; ontologicamente, porém,
Deus está em primeiro lugar. Assim, psicologicamente, a relação filho-pai é anterior
à relação homem-Deus, porém, ontologicamente, esta relação não é modelo, mas
sua imagem. Do ponto de vista ontológico, meu pai carnal que me gerou
fisicamente é o primeiro representante casual daquele que tudo gerou; portanto, do
ponto de vista ontológico, meu criador natural é apenas o primeiro símbolo e, de
alguma maneira, também a imago do Criador sobrenatural de toda natureza.
33
Para Frankl, a logoterapia mostra que o eu se revela como “também
inconsciente”, o inconsciente como “também espiritual” e este “inconsciente
espiritual” mostra ser “também transcendente”. Esta inconsciente do homem está
incluída no conceito de seu “inconsciente transcendente”. Este “inconsciente
transcendente” “significa que sempre houve em nós uma tendência inconsciente em
direção a Deus, que sempre tivemos uma ligação intencional, embora inconsciente,
com Deus. É justamente este Deus que denominamos de Deus inconsciente.
34
Todavia, Deus inconsciente o significa que Ele seja inconsciente em si mesmo,
mas permanece inconsciente para nós. Essa nossa relação com Deus pode ser
oculta para nós mesmos, especialmente quando é reprimida. Frankl alerta que este
conceito de Deus inconsciente era conhecido, por exemplo, nos Salmos, quando
se referem ao Deus oculto, ou na antiguidade helênica, que erigiu um altar ao “Deus
desconhecido”.
Contudo, esse termo – inconsciente espiritual pode dar margem a três
interpretações errôneas. A primeira, que Frankl chama de “teologia diletante”, é
interpretar o Deus inconsciente no sentido panteístico, que consideraria o id como
sendo, ele próprio, divino. “O fato de sempre termos tido uma relação inconsciente
com Deus não significa absolutamente que Deus esteja ‘dentro de nós’, que ‘habite’
inconscientemente em nós, que preencha nosso inconsciente.”
35
A segunda,
chamada pelo autor de “metafísica imediatista”, seria considerar Deus inconsciente
em um sentido ocultista, de um “saber inconsciente”. Se fizermos assim,
estipularemos que o inconsciente é onisciente, ou pelo menos que algo que faz
parte do eu sabe mais que o eu. O inconsciente não é Deus. O terceiro erro de
interpretação seria considerar Deus como sendo id-ficado. Nesse ponto, Frankl faz
uma crítica a Jung:
33
Viktor FRANKL, A presença ignorada de Deus, pp. 45-6.
34
Ibid., p. 48.
35
Ibid., p. 48.
68
De acordo com Jung, com efeito, a religiosidade inconsciente está ligada a
arquétipos religiosos, a elementos do inconsciente arcaico ou coletivo. Na realidade,
a religiosidade inconsciente em Jung muito pouco tem a ver com uma decisão
pessoal do homem; representa muito mais um evento coletivo, ‘típico’, justamente
arquetípico, ‘no’ homem. Nós, porém, acreditamos que a religiosidade nunca poderia
se originar num inconsciente coletivo, justamente porque pertence às decisões
pessoais, às decisões mais pessoais e próprias do eu, decisões estas que podem,
de fato, ser inconscientes, mas nem por isso precisam fazer parte da esfera dos
impulsos do id.
36
De acordo com Frankl, o inconsciente religioso, para Jung, continuaria a ser
algo que determina a pessoa. Nosso autor, porém, afirma que o inconsciente
espiritual e, sobretudo o “inconsciente transcendente”, não são determinantes, mas
existentes. Sendo os arquétipos “uma qualidade ou condição estrutural própria da
psique que, por sua vez, está ligada de alguma forma ao cérebro”
37
, a religiosidade
se transformaria numa questão do psicofísico humano, quando, na realidade, seria
uma questão do portador deste psicofísico, ou seja, da pessoa espiritual. Ao se
considerar os arquétipos religiosos como meras imagens impessoais de um
inconsciente coletivo, encontradas no inconsciente individual praticamente prontas,
os fatos psicológicos invadiriam arbitrariamente a pessoa, passariam por cima dela.
Para Frankl, a religiosidade inconsciente provém do centro do homem, a não ser que
permaneça latente e reprimida na profundeza da pessoa. Ela não pode ser
considerada inata quando atribuída ao caráter espiritual-existencial. Os esquemas
preestabelecidos que seguimos são herdados não geneticamente, mas
culturalmente. Nosso mundo de imagens religiosas o é inato em nós, nós é que
nascemos dentro dele:
Portanto, não negamos absolutamente que o homem encontre algo para
onde canalizar sua religiosidade, algo de fato preexistente do qual se apodera de
maneira existencial. Porém, aquilo que o homem encontra pronto, aquelas imagens
primitivas, não são quaisquer arquétipos, mas as orações dos nossos pais, os ritos
das nossas igrejas, as revelações dos nossos profetas e os exemplos dos nossos
santos.
38
A religiosidade das pessoas que a tem reprimida se manifesta na análise
existencial de maneira ingênua, quase infantil. Tais vivências religiosas
36
Viktor FRANKL, A presença ignorada de Deus, p. 50.
37
Ibid., p. 50.
38
Ibid., p. 51.
69
inconscientes coincidem com imagens muito antigas e apreciadas da época da
infância.
A análise existencial nos situa, assim, numa posição mais avançada que a
psicanálise. Hoje não questionamos mais ‘o futuro de uma ilusão’; porém, refletimos
sobre a eternidade de uma realidade, sobre a eternidade e a atualidade, sobre a
onipresença daquela realidade que revelou ser a religiosidade do homem e que
constitui uma realidade no sentido empírico mais estrito.
39
Quando a análise existencial investiga a fundo o modo de existir neurótico,
não é raro que, como causa desta maneira neurótica de existir, encontre uma
deficiência: sua relação com a transcendência está perturbada. Às vezes, essa
transcendência reprimida emerge como “inquietude do coração”, que pode se
manifestar como neurose. Frankl relata o caso de um paciente que sofria de neurose
obsessiva compulsiva. Ele imaginava que se deixasse de praticar determinados atos
sua mãe e sua irmã seriam condenadas pela eternidade. Quando questionado,
porém, sobre sua religiosidade, disse que conhecia os livros de orações como um
criminoso conhece o código de leis. Dizia que, pela razão, não acreditava em um
Deus que recompensa e pune e também afirmava ser ele mesmo um “livre-
pensador”, como seguidor de Haeckel, que popularizou o materialismo de orientação
biológica. Frankl conclui que
Se Freud disse: ‘a religião é a neurose obsessiva comum ao gênero humano;
da mesma forma que a neurose obsessiva da criança, ela se origina no complexo de
Édipo, no relacionamento com o pai, nós, diante do caso que acabamos de
descrever, estamos quase inclinados a inverter a afirmação, ousando dizer que a
neurose obsessiva é que seria a religiosidade psiquicamente doente.
40
Para ele, quando a atrofia, ela se distorce, desfigura-se; a reprimida
degenera em superstição. Na neurose obsessiva individual, não em poucos casos, a
deficiência da transcendência se vinga através de uma existência neurótica.
Psicoterapia e religião
O psicoterapeuta que se interessa por questões religiosas, na qualidade de
médico, tem obrigação de mostrar tolerância incondicional a não religiosidade que,
39
Viktor FRANKL, A presença ignorada de Deus, p. 52.
40
Ibid., p. 53.
70
porventura, encontre em seus pacientes. Como dito anteriormente, a deve ser
espontânea. O médico religioso, justamente por -lo, deve se interessar não
apenas pela religiosidade do paciente, mas também pela espontaneidade desta
religiosidade ele deve estar consciente da religiosidade latente de seus pacientes
manifestamente irreligiosos, mas esperar que ela se manifeste, pois a religiosidade
é genuína quando existencial, quando a pessoa não é impelida para ela, mas se
decide por ela.
Freud havia advertido que o efeito terapêutico de tornar conscientes
conteúdos inconscientes dependia do grau de espontaneidade do paciente. Frankl
observa que também “somente a manifestação espontânea da religiosidade
inconsciente poderá ter efeito curativo”
41
. Um exemplo dessa espera pela
espontaneidade religiosa é relatado por Frankl, no caso de um sacerdote que foi
chamado por um homem irreligioso que estava à beira da morte. Ele havia chamado
o padre apenas porque queria desabafar antes de morrer. Este sacerdote respeitava
em grau tão elevado a espontaneidade da que o ofereceu ao homem a unção
dos enfermos, pois este não lhe havia solicitado. Frankl conclui que um médico não
deve ser mais sacerdotal que um sacerdote. Assim, um psicoterapeuta não deve
sobrepujar o sacerdote. Da mesma maneira que o dico não religioso não deve
retirar do paciente a sua fé, o que é religioso deve deixar ao sacerdote o que é dele,
seu ministério. Frankl se refere ao neurótico obsessivo como aquele que, ao buscar
o conhecimento cem por cento correto e a decisão cem por cento válida, querendo
se sobrepor à condição de criatura, está preso à tentação da serpente: “sereis como
Deus, cientes do bem e do mal”. De modo análogo agiriam os terapeutas que
querem usurpar as atribuições dos sacerdotes. Nesse caso, a promessa da serpente
é: “sereis como os pastores, mostradores do bem e do mal”. Assim como a
logoterapia não quer e não pode substituir a psicoterapia, também não lhe é
permitido substituir a “assistência pastoral da alma”.
Quanto ao médico não religioso, Frankl afirma que não tem o direito de usar a
religião como um meio útil aos fins terapêuticos. “Para que a religião possa ter
efeitos psicoterapêuticos, seu motivo primário não pode ser absolutamente
psicoterapêutico”.
42
O médico religioso, por sua vez, tem obrigação de abordar
41
Viktor FRANKL, A presença ignorada de Deus, p. 56.
42
Ibid., p. 57.
71
pontos de vista religiosos de um paciente como pessoa que crê. Mesmo que a
religião tenha como efeito secundário uma influência favorável sobre aspectos tais
como saúde e equilibro psíquico, seu objetivo não é a cura psíquica, mas a salvação
da alma.
A religião não é um seguro para uma vida tranqüila, para a ausência máxima
de conflitos ou para quaisquer outros objetivos psico-higiênicos. A religião ao
homem mais que a terapia, mas também dele exige mais. Deve ser evitada com todo
rigor qualquer contaminação entre estes dois campos, que podem até coincidir
quanto a seus efeitos, mas são diferentes quanto à sua intencionalidade.
43
A psicoterapia também não deve renunciar à sua autonomia como ciência e à
sua independência frente à religião, assumindo uma posição de serva da teologia. A
dignidade do homem está fundada em sua liberdade, inclusive a liberdade de dizer
não a Deus. A dignidade da ciência está baseada na liberdade incondicional que
garante à investigação sua independência.
Assim como a liberdade humana precisa ser garantida até o não”, a
liberdade de investigação deve ser concedida até o risco de que os resultados da
investigação possam entrar em contradição com as verdades da fé. Somente desta
investigação militante poderia surgir aquele triunfo de incorporar seus resultados
incontestáveis nas verdades do credo, as quais se situam num nível superior.
44
Ao se falar da dignidade do homem, definimo-la como um “valor em si”, em
contraposição ao valor útil. Quem pretende colocar a psicoterapia como serva da
teologia rouba-lhe a dignidade de uma ciência independente e também lhe subtrai o
valor útil para a religião.
A psicoterapia pode servir à religião, ou pelos resultados empíricos de
suas investigações, ou pelos efeitos de seus tratamentos psicoterapêuticos, se ela
não se mover num caminho preestabelecido, se não se fixar em metas
predeterminadas. No campo científico somente os resultados imparciais de uma
investigação independente serão úteis à teologia.
45
Viktor Frankl também enfatiza que, se algum dia a psicoterapia comprovar
que a alma é o que ele acredita ser, naturalmente religiosa, isso será possível
mediante a investigação de uma ciência naturalmente irreligiosa, autônoma. “Não é
43
Viktor FRANKL, A presença ignorada de Deus, p. 57.
44
Ibid., p. 58.
45
Ibid., p. 58.
72
preciso ser ‘criada’ para servir.”
46
O médico logoterapeuta, assim como os demais
psicoterapeutas, tem a obrigação de cuidar para que seu método seja aplicável a
todo e qualquer doente, seja ele crente ou não. Assim também, a logoterapia deve
ser aplicável por todo e qualquer médico, independentemente de sua visão pessoal
de mundo. Desse modo, a religião pode ser objeto e não posição da logoterapia,
pois esta tem como finalidade a cura da alma, enquanto aquela tem como alvo a
salvação da alma. A religião não deixa de ter efeitos psico-higiênicos e
psicoterapêuticos, mas sua intenção não é a cura psíquica nem o estabelecimento
de medidas profiláticas. Do mesmo modo, a psicoterapia pode restabelecer uma
original inconsciente e reprimida, mas não é este o seu alvo, nem deve ser esta a
sua intenção, a não ser que o médico e o paciente tenham o mesmo chão de credo
religioso. Neste caso, o tratando seu paciente propriamente como médico,
também pode exercer a função pastoral. A função do médico não é apenas curar,
mas também consolar a alma.
A salvação da alma ocupa um nível mais elevado e abrangente que a saúde
psíquica. Frankl compara essa diferença de níveis, afirmando que ela é semelhante
à razão áurea da geometria. Na razão áurea, um segmento é dividido em duas
partes desiguais, de tal modo que a parte menor está para a maior assim como a
parte maior está para o todo. De maneira semelhante, o habitat animal estaria para o
mundo humano assim como o mundo humano es para o supramundo
transcendente. Desse modo, as injeções que são aplicadas em um macaco de
laboratório não fazem sentido para o macaco, podem ser entendidas no mundo
humano, no qual tais experiências têm como finalidade a obtenção de alguma cura
ou a informação de determinado processo físico. Analogamente, o mundo
transcendente ultrapassa a capacidade de compreensão do mundo humano e o
sentido do sofrimento do homem talvez só possa ser dado pelo suprassentido.
A logoterapia, então, movimenta-se no aquém da fé. Se a psicoterapia
representasse a Revelação a um paciente descrente, ele mesmo já seria um crente.
Reconhecer a Revelação pressupõe uma decisão de fé. Não tem cabimento fazer
perguntas que transcendam tempo e espaço, pois não é possível pensar, muito
menos perguntar, sem pressupor esses dois elementos. O sentido último não pode
ser perguntado para além dele mesmo, deve ser aceito. “Há algo como um
46
Viktor FRANKL, A presença ignorada de Deus, p. 58.
73
conhecimento prévio a respeito de sentido; e uma noção de sentido também está na
base da vontade de sentido. Quer queira, quer não, se o admite ou não o ser
humano crê num sentido enquanto respira.
47
A logoterapia não entende o fenômeno
da crença como uma fé em Deus, e sim como umamais abrangente num sentido,
por isso é legítimo que se ocupe com o fenômeno da fé. Segundo a definição de
Paul Tillich, citada por Frankl, “ser religioso significa fazer a pergunta apaixonada
pelo sentido da nossa existência”
48
.
A religiosidade pessoal e personalizada, para a qual Frankl crê que a
humanidade caminha, não exclui o fato de que os homens possam ter ritos e
símbolos em comum, porém tais ritos e símbolos funcionariam como linguagens.
Existiriam em multiplicidade, porém tendo um “alfabeto” em comum. Do mesmo
modo que é possível mentir, errar ou dizer a verdade em qualquer língua, também é
possível encontrar Deus em qualquer religião.
49
A logoterapia não é moralista em sua práxis, uma vez que não receita um
sentido. Este deve ser encontrado pelo paciente, que pode não entender o sentido
do que lhe acontece, mas tem a tarefa de interpretá-lo corretamente. “Não foi a
logoterapia, e sim a serpente que prometeu ao ser humano no paraíso que ela faria
dele um ente ‘como Deus, ciente do bem e do mal’.”
50
O homem em busca de sentido
O sentido também não pode ser produzido, pois senão será mera sensação
de sentido ou absurdo.
51
aqueles que não encontram um sentido em sua vida e
nem conseguem inventá-lo, lançando-se, por isso, ao inebriamento, correndo o risco
de passar ao largo do sentido verdadeiro e das tarefas autênticas a serem
cumpridas no mundo fora de si mesmas. Segundo Frankl, o risco de tal
comportamento é semelhante àquele de cobaias que têm a sensação de satisfação
do impulso sexual ou da fome quando se lhes aplicam eletrodos nos cérebros: os
47
Viktor FRANKL, A presença ignorada de Deus, pp. 61-2.
48
Ibid, p. 62.
49
Ibid., p. 63.
50
Ibid., p. 66.
51
Ibid., p. 67.
74
animais acabam aprendendo a fechar os eletrodos sozinhos e acabam por ignorar
alimentos e parceiros sexuais que se encontram à disposição.
Frankl define a consciência (Gewissen) como a capacidade de procurar e
descobrir o sentido único e exclusivo de cada situação. O sentido deve e pode ser
encontrado, mas a consciência também pode enganar a pessoa. Até nosso último
suspiro o saberemos se realmente cumprimos o sentido de nossa vida ou nos
enganamos. Isso não implica a inexistência da verdade e nem que ela não seja
única. Não podemos, porém, saber se somos nós ou se é o outro que possui a
verdade.
Existem não apenas os sentidos individuais e restritos a cada situação, mas
sentidos universais abstratos, que se estendem a situações mais amplas e à
sociedade humana: os valores. O que a consciência diz é bem claro e o traz
conflitos. Os valores gerais, porém, são fontes de conflitos, pois freqüentemente
uma pessoa se encontra em situação em que deve optar por valores que se
contradizem. Mas mesmo a natureza conflitante dos valores pode não ser inerente a
eles. O conflito pode ser apenas aparente, como no caso de duas esferas exteriores
uma à outra, situadas em planos distintos e parcialmente sobrepostas em relação à
sua projeção em um plano. Apenas a projeção está sobreposta, mas na verdade
isso se porque as esferas encontram-se uma acima da outra. Em sua dimensão
real não se interceptam. Quando nossa percepção dos valores faz com que eles se
contradigam, temos a liberdade de dar ouvidos à voz da consciência ou rejeitá-la.
Quando a consciência é sistemática e metodicamente reprimida e sufocada, o
resultado é ou o conformismo ocidental, ou o totalitarismo oriental
52
, dependendo se
os ‘valores’ excessivamente generalizados pela sociedade são simplesmente
oferecidos ou então impostos.
53
Em uma época na qual não se acreditam válidos os dez mandamentos, temos
que captar os dez mil mandamentos que se ocultam sob dez mil situações de nossa
vida. Encontrar um sentido para a existência significa ficar imunizado ou resistente
ao conformismo e ao totalitarismo. Em um mundo onde excesso de informações
52
A última edição alemã da obra A presença ignorada de Deus, foi escrita em 1988, ainda durante a
Guerra Fria.
53
Viktor FRANKL, A presença ignorada de Deus, p. 69.
75
e de estímulos é preciso discernir o que é essencial: o que tem sentido e o que não
tem.
Em situações aparentemente sem sentido, é válido acreditar em um sentido
encoberto, em um suprassentido. Apenas pelo intelecto não é possível demonstrar a
existência deste suprassentido e, caso os argumentos de que dispomos a favor e
contra a existência desse sentido último fiquem equilibrados, podemos jogar o peso
de nosso próprio ser em um dos pratos da balança.
A nossa impossibilidade de conhecer o sentido não significa a sua o
existência. Um ator em um palco iluminado não consegue enxergar sua platéia
porque o excesso de luzes ofusca sua vista, isso não faz com que duvide da
existência de espectadores. Somos ofuscados cotidianamente com as trivialidades,
e preenchemos o buraco negro que vemos à nossa frente com símbolos. “O homem,
afinal, tem a necessidade de ‘projetar’ algo ou alguém para dentro do nada diante do
qual se encontra.”
54
O símbolo, porém, o coincide com o que representa.
“Concluímos, assim, que a religião poderia muito bem ser definida como um sistema
de símbolos; seriam símbolos para algo que não pode mais ser apreendido
mediante conceitos e depois ser expresso em palavras.”
55
A linguagem pessoal, pela qual cada um de s se dirige a Deus, culmina na
prece, que é um diálogo com Deus. Frankl faz uma definição operacional de Deus:
Ele é o parceiro nos nossos mais íntimos diálogos conosco mesmos. “Sempre que
estivermos dialogando conosco na derradeira solidão e honestidade, é letimo
denominar o parceiro destes solilóquios de Deus, independentemente de nos
considerarmos ateístas ou crentes em Deus. Esta diferenciação torna-se irrelevante
dentro desta definão operacional.”
56
Não é importante saber se a solidão desse
diálogo é ou não aparente. O importante é que esse diálogo produza a “honestidade
última”. “Se Deus realmente existe, estou convicto de que Ele não levaria a mal se
alguém o confundisse com o próprio eu e o chamasse por nome errado.”
57
54
Viktor FRANKL, A presença ignorada de Deus, p. 84.
55
Ibid., p. 86.
56
Ibid., p. 87.
57
Ibid., p. 88.
76
Lembrando o físico Albert Einstein, para quem “ser religioso é ter encontrado
uma resposta para a pergunta ‘qual o sentido da vida?’”
58
, poderíamos dizer que
quem encontra tal resposta é aquele que atinge a consciência de que sua própria
existência é uma dádiva. A vida é, ao mesmo tempo, dádiva e incumbência. Ela nos
incumbe de cumprir seu sentido e nos agracia com a possibilidade de nos
realizarmos através desse cumprimento.
58
Albert EINSTEIN, Out of My Later Years, apud Viktor FRANKL, A presença ignorada de Deus, p.
89.
77
CONCLUSÃO
Enquanto estamos vivos procuramos um sentido para o que vivemos. Para
que, afinal de contas, repetir indefinidamente os vários gestos diários? Qual é o
motivo de prosseguir a cada dia? Por que sofrer? A quem amar? Para Viktor Frankl,
essas perguntas não são feitas por nós mesmos, mas se colocam naturalmente à
nossa frente. Podemos fugir delas, pedir que a vida emudeça e agir no sabor da
inércia, sem assumir as responsabilidades que, inevitavelmente, virão juntamente
com as respostas. É possível passar toda uma vida no esquecimento das questões
realmente importantes. No entanto, quem se deixa levar, em algum momento ficará
descontente com o lugar para o qual é dirigido. Para Frankl, o conformismo é uma
das faces da falta de sentido.
Gostamos das respostas ceis e é enorme a tentação de buscar uma chave
que explique o mundo, liberando-nos do trabalho de ter que considerar as nuances
de cada situação que se nos apresenta. Pode ser que aceitemos uma resposta
pronta de alguém ou de um grupo, que pode ser político, religioso ou de outra
natureza, até mesmo de bons amigos com os quais nos divertimos. Grupos
costumam ser ótimos e, excetuando-se uma ou outra pessoa, todos contamos com o
conforto do estar junto a outros, de compartilhar atividades e idéias. A amizade e o
companheirismo são enriquecedores e, como diz o Eclesiastes (4:9), “é melhor
serem dois do que um”. O encontro com um outro pode ser uma ótima ocasião para
encontrarmos sentido. Tudo que é humano, porém, pode ser usado para o bem ou
para o mal e o convívio não é uma exceção a essa regra. Se, ao nos unirmos aos
outros, deixamos de lado nossa responsabilidade e julgamento pessoais, certamente
caminhamos para um abismo desconhecido. A neurose de massa, que caracteriza
esse desejo de fusão, é o outro lado da ausência de sentido e de responsabilidade.
78
Podemos também, de antemão, fixar como objetivo de nossos atos algo que
deveria ser a conseqüência deles. Assim, nossa vida pode ser gasta na busca do
prazer, da notoriedade, da riqueza ou da beleza. A batalha que se compra com tal
decisão, vem com o aviso de derrota. O prazer tem como natureza a fugacidade;
o homem que se fia em sua própria fama ou se desconhece, ou se julga uma fraude;
a riqueza traz a insegurança e a insaciabilidade, e a beleza se esvai, sempre, muito
mais rápido do que gostaríamos. Como diz David Foster Wallace, pessoas com tais
propósitos na vida morrerão um milhão de mortes antes de serem enterradas.
Cada parte da obra de Frankl é um sinal de alerta: é preciso encontrar o
sentido no que vivemos; não podemos nos conformar, render-nos ao totalitarismo,
ou nos perdermos, ignorando o que deve ser feito ou nos colocando falsos
propósitos. Encontrar um sentido é assumir uma responsabilidade. A logoterapia se
propõe justamente a ajudar no encontro daquilo que deve ser feito por cada homem,
exclusivamente por ele. Pelo fato de as neuroses noogênicas serem neuroses
espirituais, é apropriado que sejam tratadas por uma terapia que considera o homem
como ser essencialmente espiritual a logoterapia. O sentido, porém, não deve ser
imposto, mas encontrado.
Como saber, então, se não estamos vivendo uma ilusão de sentido? A
verdade é que o é possível se precaver totalmente contra enganos. Podemos,
isso sim, sempre nos perguntar qual a responsabilidade que estamos assumindo
diante da resposta dada à vida. Um questionamento sério a respeito do sentido
deve incluir, naturalmente, o questionamento sobre se o sentido encontrado não é
ilusório. O diálogo que devemos honestamente travar conosco mesmos, na solidão
de nossa consciência que para Viktor Frankl é um diálogo com Deus –, deve ser
constante. Na grande orquestra da humanidade, temos a função de executar a
partitura que foi dada exclusivamente para nós, pois nosso instrumento, o espírito, é
único. O sentido é pessoal e aplicável a cada situação particular. Cada nota deve ser
executada por sua vez e nossos erros e acertos são a melodia da obra que somente
poderá ser avaliada, em sua totalidade, após termos deixado o palco.
Mas, de acordo com Frankl, quando se assume uma responsabilidade,
assume-se perante alguém. A pergunta que então se coloca é: quem é o apreciador
do conjunto dessa obra musical que tocamos? O psicólogo, que é tema de nosso
estudo, responde: a essência do ser humano é espiritual e os atos espirituais, como
79
a consciência moral, o amor e a arte, o essencialmente inconscientes. A
consciência moral só tem autoridade sobre o homem porque não provém dele
mesmo. A origem dessa consciência é o “perante quem” temos uma
responsabilidade a assumir. Frankl afirma, porém, que não importa se chamamos
essa origem de Deus ou de “eu mesmo”. Uma vez que o diálogo com a consciência
é travado, uma oportunidade de encontro de sentido. Prosseguindo com a
comparação feita: o apreciador de nossa obra é quem nos incumbiu da partitura.
Como estamos no palco, somos ofuscados pelas luzes e não o enxergamos. Por
vezes, até supomos que ninguém nos observa. Não importa: podemos executar
nossa música simplesmente porque ela está posta, e devemos extrair de nosso
instrumento o melhor som possível. O sentido será encontrado quando executarmos
bem a peça (uma realização), quando apreciarmos a harmonia das outras melodias
que o tocadas juntamente com a nossa (o encontro do outro, o amor), ou quando
suportarmos nossas notas dissonantes e de difícil execução (o sofrimento), cientes
de que não devemos abandonar o palco, pois aquele trecho, aparentemente em
desacordo com nossa concepção de uma bela música, é essencial na totalidade da
sinfonia mesmo no sofrimento pode-se assumir uma atitude de valor,
permanecendo-se humano e em constante superação.
Deus é o sentido último, de acordo com Viktor Frankl. A logoterapia, ao levar
o homem a descobrir o sentido de sua existência, faz com que ele se aproxime do
Deus transcendente. Em última instância, portanto, quem promove a cura da
neurose da falta de sentido é Deus.
Este trabalho não teve a intenção de dar uma resposta definitiva às questões
que se propôs. Foi apenas um convite para que, em meio à névoa, tomemos a
lanterna que Viktor Frankl nos oferece e possamos enxergar alguns passos adiante.
80
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