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Segunda fase: a vida no campo de concentração
Após o primeiro estágio de choque, a apatia vai tomando conta do prisioneiro,
como se ele morresse aos poucos interiormente
19
. As sensações, tais como
saudade dos entes queridos e o nojo de toda a feiúra que se encontra à sua volta e
em si mesmo, são torturantes demais e, por isso, suprimidas. A lama, os
excrementos, as torturas sádicas, o abandono, porém, ainda o tocam. Entretanto,
alguns dias depois, nada disso o afetará. “O nojo, o horror, o compadecimento, a
revolta, tudo isso nosso observador já não pode sentir nesse momento”
20
. Nada se
sente diante de um menino que tem seus pés gangrenados pelo frio, pois a cena é
corriqueira demais. Se alguém morre na enfermaria, um se aproxima para pegar
algum resto de comida de seus bolsos, outro para verificar se os sapatos ou
qualquer pertence do defunto está em condições de uso. Se há algo que pode ser
aproveitado, imediatamente é surrupiado. Quando um grupo dos menos doentes
reúne forças, arrasta o corpo até fora da barraca e, se a sopa for servida logo em
seguida, todos se alimentam com indiferença. A visão do antigo colega – que há
poucas horas estava com eles conversando – jazendo do outro lado da porta não
desperta senão o sentimento de admiração com a própria insensibilidade.
Não é a dor física o que mais afeta o prisioneiro, mas “a dor psicológica, a
revolta pela injustiça ante a falta de qualquer razão”
21
, o desprezo do guarda que
não se dá ao trabalho nem de chamar o prisioneiro verbalmente, mas o faz atirando
uma pedra em sua direção, como se chamasse a um cão; ou ainda o escárnio de
outro que xinga um médico dedicado, chamando-o de vagabundo e explorador.
22
19
Cf. Viktor FRANKL, Em busca de sentido, p.29.
20
Ibid., p. 30.
21
Ibid., p. 32.
22
Em Os afogados e os sobreviventes (p. 115), Primo Levi nos diz: “à parte o trabalho, também a
vida no alojamento era mais penosa para o homem culto. Era uma vida hobbesiana, uma guerra
contínua de todos contra todos (insisto: trata-se de Auschwitz, capital concentracionária, em 1944.
Em outros lugares ou em outras épocas, a situação podia ser melhor, ou até muito pior). O soco dado
pela Autoridade podia ser aceito, era, literalmente, um caso de força maior; ao contrário, não se
podiam aceitar, porque inesperados e fora das regras, os golpes recebidos dos companheiros, aos
quais raramente o homem civilizado sabia reagir. Além disso, uma dignidade podia ser encontrada no
trabalho manual, inclusive no mais cansativo, e era possível a ele adaptar-se, quem sabe nisto
percebendo uma ascese grosseira ou, segundo o temperamento, um ‘medir-se’ conradiano, um
reconhecimento dos próprios limites. Era muito mais difícil aceitar a routine do alojamento: arrumar a
cama no modo perfeccionista e idiota que descrevi entre as violências inúteis, lavar o chão de
madeira com sórdidos trapos molhados, vestir-se e desnudar-se sob ordens, exibir-se nu por ocasião
dos inúmeros controles de piolhos, sarnas, da limpeza pessoal, adotar a paródia militarista da ‘ordem