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ALEXANDRE WERNECK
O INVENTO DE ADÃO
O papel do ato de dar uma desculpa na manutenção das relações sociais
Tese de doutorado apresentada à Coordenão do
Programa de s-Graduão em Sociologia e
Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências
Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro
Orientador: Michel Misse
Doutor
Rio de Janeiro
2009
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Werneck, Alexandre
O invento de Adão: O papel do ato de dar uma
desculpa na manutenção das relações
sociais/Alexandre Vieira Werneck. Rio de
Janeiro: UFRJ/IFCS, 2009
xi, 287p. 29,7cm
Tese de Doutorado Universidade Federal do
Rio de Janeiro/Instituto de Filosofia e Ciências
Sociais.
1. Sociologia. 2. Sociologia Moral. 3. Desculpa.
4. Relações Sociais. 5. Efetivações. 6. Tese de
Doutorado (IFCS-UFRJ).
iv
A minha mãe e meu pai, sem mais nenhuma
desculpa para não se dedicar
Escrevi em minha dissertação que agradecer é preciso, mas que é, ao mesmo tempo,
impreciso. Nunca agradecemos na proporção correta, e muitas vezes sequer nos damos conta da
razão correta para agradecer. Mas sempre que penso nisso e nos quatro anos que se passaram
desde que comecei esta jornada e que somo aos anos que alimentaram o projeto de neles
ingressar penso em duas pessoas. A primeira é minha mãe, que um dia me disse que eu
ouviria muitas pessoas dizerem para eu duvidar de tudo, mas que eu deveria aprender mesmo
era a acreditar que qualquer coisa pode acontecer. Essa foi a grande lição de sociologia
compreensiva que tomei: tudo é possível; e é preciso estar pronto para disso dar conta.
A outra pessoa que me vem à meria é Jacques Derrida. Em uma palestra, em 2001. Era
uma noite quente e esvamos no Planerio da Gávea, aguardando a fala do fisofo. O audirio,
habitualmente usado para ver estrelas, esperava lotado uma espécie de astro da academia. Quando
ele chegou, sentou-se a uma pequena mesa e, uma mão diante dos olhos, como que a prote-los,
ele disse: “Aqui, hoje, estou de maneira totalmente desprotegida. Vos me em, porque há
muita luz a me iluminar, mas eu não os vejo, pois elas me cegam. Não nos conhecemos, mas esta
é a hora para baixar a guarda (e baixou o pulso, cerrando os olhos levemente) e receber o outro”.
Fez um breve silêncio e completou: “o mais álibi”.
Pois eis que a precisão é a última coisa que importa. É preciso errar, se dar à erncia, é
preciso abolir o álibi. É preciso não ter mais... desculpa. Pelo menos por ora.
* * *
Agradeço antes de tudo ao professor Michel Misse, orientador e fraternal amigo, generoso a
meu receber na sociologia tendo eu vindo de outra área. E por me acolher no Necvu, que se
tornou uma casa de pensamento para mim. Por todo o apoio, por todos os textos, por todos os
projetos conjuntos, pela falia que é o Necvu, por tantos Dilemas que ainda estão por vir.
vi
A professor Daniel Cef, meu orientador no peodo de um ano em Paris, por debates e
camaes. Ambos de alto nível.
Aos professores Laurent Thévenot e Luc Boltanski, que me acolheram em seus seminários
e me receberam para conversas inestimáveis sobre minha tese.
Ao interlocutor e amigo Luc Bovens, da London School of Economics, por tantas conversas
entre Paris e Londres e por tantas indicações preciosas.
Ao professor Sergio Pac, lexigrafo-chefe da Academia Brasileira de Letras, que me
permitiu acesso a material de pesquisa para a etimologia do termo “desculpa”, sem a qual a
compreeno de seus usos gramaticais seria impossível. Ao acadêmico Docio Proea Filho e
ao escritor Flávio Moreira da Costa, que ofereceram indicações valiosas para minha pesquisa
preliminar com textos de ficção.
Aos amigos Carole Gayet-Viaud, Camille Aubret, Delphine Moreau, da EHESS, por
debates inteligentes e cafés.
Aos amigos da Maison du Brésil, apesar do Lúcio Costa.
E à minhafalia” parisiense: Fábio Reis Mota, Letícia Luna e Gabriel Feltran. Aquele foi
o ano, meus amigos.
Aos grandes amigos Bruno Goutorbe e Clarice Spitz, pela acolhida em Nation na minha
chegada. E a Isabela, minha parceira de MK2 e de conversas sobre montagens, de filmes e de
casamentos, que muito me inspiraram. E, claro, a Silvana Clastres, o ouvido que me ajudou a
continuar lúcido o longe de casa e, naquele momento, por uma série de raes (e de falta delas)
tão longe de mim. Nunca poderei pagar o que devo a ela.
* * *
vii
Agradeço ao PPGSA/UFRJ e a seus funcionários, em especial a Claudia e Denise,
bons ouvidos para vidas. E às ts ancias que, em diferentes momentos, permitiram
que este projeto fosse concluído. Primeiramente, ao CNPq, que deu suporte a meu
trabalho do começo do doutorado, em 2005, até o primeiro semestre de 2006. Depois, à
Capes, que me permitiu passar o período de um ano na França, absolutamente
imprescinvel para o desenrolar desta tese. E, nos últimos meses, à Fundação Carlos
Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), o apenas pelo
auxílio, mas tamm pela distinção, inestimável, de uma Bolsa Nota 10.
Agradeço aos colegas do IFCS, sobretudo aos do Necvu. E aos professores Luiz
Antônio Machado da Silva, que vem me apoiando desde o mestrado; Elisa Reis, que
aceitou conversar sobre teoria sociogica nesta banca; e Maria Ligia Barbosa e Gláucia
Villas Bôas, pelos excelentes cursos. E aos professores Pedro Paulo de Oliveira (IFCS) e
Thamy Pogrebinschi (Iuperj), que aceitaram o posto de suplentes nesta avaliação.
E, claro, a Mirian Goldenberg, am de tudo grande amiga, por tanto apoio, tantos filmes,
caminhadas na praia (com e sem chuva) e tantos projetos conjuntos. E poro dar ouvidos a meu
pessimismo a meu respeito.
A Thais Sena, minha melhor amiga, por tanto apoio neste e noutros projetos e em
momentos em que alguns deles o deram certo –, apoio que o se pode nem sequer descrever.
Conte sempre comigo, para o que der e vier. E a Fernando Romeiro, por tantas imagens.
A Julia Sant’Anna, Kathia Ferreira, Bianca Tinoco, Ines Garçoni e Rachel Almeida, por
tanto ombro, sobretudo em 2006. Mas por tudo mesmo.
A minha Leka, uma verdadeira bênção em minha vida nos últimos quatro anos. Obrigado,
minha irmã. E a Serginho, meu irmão. E a Larinha, mais um motivo para não parar nunca.
A Caroline Menezes, por tantas discussões sobre tantos temas inspiradores desta tese. Por
Londres e por Robert Rauschenberg. E pela luz no fim do (Euro)nel.
viii
Por fim, agradeço a todos os amigos com que não me encontrei ao longo dos últimos
quatro anos, obrigado que fui a usar esta tese como desculpa.
* * *
E a Ana, por ela. Pelo futuro.
ix
Só a realidade justifica tudo.
Fiódor Dostoiévski,
O Adolescente
É difícil não sermos injustos com aquilo que amamos.
Oscar Wilde
RESUMO
WERNECK, Alexandre. O invento de Adão: O papel do ato de dar uma desculpa na
manutenção das relações sociais. Orientador: Michel Misse. Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS. Tese
de Doutorado (s-Graduão em Sociologia e Antropologia).
Esta tese se debruça sobre uma ão social discursiva, o ato de dar uma desculpa,
para anali-la para além de sua dimeno linguageira e rerica: aqui, o dar uma desculpa
é observado por meio das conseqüências que produz junto ao processo de manutenção das
relões sociais, sejam estas impessoais, sejam as mais íntimas, e com ênfase na ação
social que pratica, a de deslocamento da situão de um plano de generalidade máximo,
contido na regra moral desrespeitada, para um plano de circunsncias, contido na
desculpa dada. Para tanto, são analisados três corpus: manuais de desculpa, livros que
oferecem orientações para apresentar um bom pretexto; reportagens de jornal, mostrando
desculpas dadas por políticos durante o caso de corrupção conhecido como Esndalo do
Mensalão; e entrevistas com casais a respeito dos cotidianos de suas relações.
xi
ABSTRACT
WERNECK, Alexandre. Adam’s invention: The role of the act of giving an excuse in the
maintenance of social relations. Supervisor: Michel Misse. Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS. PhD
thesis (Post-Graduation in Sociology and Anthropology).
This thesis gets down to a social action of speech, the act of giving an excuse. Beyond its
lingual and rhetoric dimension, here the act of giving an excuse is observed by means of the
consequences it produces in the process of maintaining social relations, from impersonal to
intimate ones, with emphasis in the social action being practiced, that is, the displacing of the
situation from a level of maximum generality, enclosed within the moral rule being disregarded,
to a level of circumstances, enclosed within the excuse given. In order to achieve this goal, three
corpus are here analyzed: excuses handbooks, that offer guidelines to present a good pretext;
newspaper articles, that show excuses given by politicians during the corruption case known as
“mensalao” (monthly bribe) scandal; and interviews with couples about their daily life relations.
SUMÁRIO
Introdução.................................................................................................................................14
No princípio..........................................................................................................................15
1) A manutenção da relação apesar da ausência: Machado e Jerry Seinfeld ...................27
2) Salvar a própria pele: Chaplin e uma espiã contra o nazismo......................................31
3) O perdão porque não há mais desculpa: os Dardenne e Ana Kariênina.......................38
4) Eu é um outro: um romancista russo e um tropicalista.................................................43
5) Direito de resposta ao sofrimento: uma menina britânica que se sente culpada e João
Grilo no céu, chegamos à terra.........................................................................................45
Uma definição sociológica do dar uma desculpa: do senso comum a uma abordagem
específica ..............................................................................................................................50
Mea desculpa....................................................................................................................51
Múltiplas interpretações e sociologia pragmatista ...........................................................62
Mil desculpas....................................................................................................................64
Questões (e soluções) metodológicas...................................................................................70
A construção de uma análise: de um objeto sociológico a uma categoria metodológica (e
de volta ao objeto) ............................................................................................................70
Às desculpas dadas, por meio de desculpandos: a regressão a uma teoria formal por meio
de teorias substantivas ......................................................................................................74
Capítulo 1: Cachorrinhos, impressoras e jabutis no Éden........................................................86
Fazendo gênero.....................................................................................................................87
Mil e uma verdades ..........................................................................................................95
Dois tipos de desculpas à mão............................................................................................105
O cachorrinho e a impressora devoram o dever: o modelo do “não era eu”..................105
Mais real que o rei: o modelo do “é assim mesmo”.......................................................109
Desculpas esfarrapadas: pequeno ensaio comparativo.......................................................114
Uma sociologia do absurdo: a dispensa da lógica na argumentação da desculpa..........117
A definição de uma moral flexível .....................................................................................120
Parênteses de pensamento social brasileiro: de volta a João Grilo ................................123
Parêntese de campo: da manualização à terceirização ou a desculpa como serviço......134
Conclusões substantivas: primeira revisão de questões .....................................................138
Quadro das publicações analisadas.....................................................................................140
Capítulo 2: Responsabilidade pública e circunstâncias..........................................................145
Uma rotulação de pouco efeito...........................................................................................146
O jornal como “empreendedor moral” ou do material jornalístico como espaço de
investigação para uma sociologia crítica............................................................................157
Entrevistas, depoimentos, desculpas ..................................................................................167
Memorial da crise...........................................................................................................167
Com a palavra.................................................................................................................175
Errar é humano: a biografia como ponto de partida.......................................................189
Da pessoalidade...................................................................................................................193
Capítulo 3: Discutindo a relação ............................................................................................199
A hora marcada...................................................................................................................200
Uma dinâmica peculiar para as conversações ................................................................211
A construção de um relacionamento ..............................................................................216
Características complicadoras, mal-estares e desculpas para eles..................................220
Familiaridade......................................................................................................................225
1) Previsibilidade: o outro nos é conhecido e agirá sempre de uma mesma maneira ....227
2) Inevitabilidade: a relação é inevitável, determinada por um princípio superior........229
3) Intimidade: há pouca ou nenhuma limitação em relação ao outro.............................231
Decorrências da afirmação de que a familiaridade é uma matriz ou Pessoalidade e
familiaridade...................................................................................................................233
Quadro de casais entrevistados.......................................... .................................................244
Conclusão: O amor e o “egoísmo” como competências ........................................................246
A grande família dos homens.............................................................................................247
Comprometidos com o bem de si ...................................................................................247
Um ensaio sobre a dádiva (complementar) ou Um modelo dos regimes de efetivação....251
Regimes, gramáticas e competências .............................................................................253
Brevíssimo ensaio para conclusão: Ainda sobre o conhecimento do bem e do mal .........262
O retorno ao Paraíso: apontamentos para uma sociologia da amizade a partir do mal-estar
amistoso..............................................................................................................................262
Bibliografia.............................................................................................................................265
Livros e artigos acadêmicos ...............................................................................................266
Textos de jornais e revistas.................................................................................................283
INTRODUÇÃO
15
NO PRINCÍPIO...
Quando eu era um jovem estudante, ainda no curso que no meu tempo se chamava primá-
rio, ali pelo começo dos anos 1980, comecei a ter, na escola, aulas de religião. Filho de família e
sobretudo de mãe – católica, eu estava ao mesmo tempo assistindo a lições de catecismo na igreja
e tinha contato habitual com o universo simbólico da Bíblia e da liturgia eclesiástica. Era um tem-
po em que aquilo era considerado cultura geral e em que a TV exibia filmes blicos à tarde sem
que isso fosse considerado programação segmentada. Curiosamente, entretanto, foi na laica edu-
cação formal que fui exposto pela primeira vez à história da Criação do Mundo. A professora,
uma jovem que parecia efetivamente ser apaixonada por falar sobre aquele tema, desenhou no
quadro, em forma de esquema, o cerio e os personagens da história que narraria, e se pôs a ler
no exemplar que portava, de capa de couro e zíper, algo como (Gn, 3, 8-13)
1
:
Eles ouviram os passos de Javé Deus, que caminhava pelo jardim à brisa da manhã,
e o homem e a mulher se esconderam diante de Javé Deus no meio das árvores. Javé
Deus chamou pelo homem: Onde estás tu?”, perguntou. “Ouvi seus passos no jar-
dim”, respondeu o homem; “tive medo porque estava nu e me escondi”. Ele respon-
deu: “E quem lhe mostrou que estavas nu? Então tu comestes da árvore de que te
proibi de comer!” O homem respondeu: “Foi a mulher que tu puseste ao meu lado
que me deu de comer da árvore e eu comi!Javé Deus disse à mulher: O que tu fi-
zeste?”, e a mulher respondeu: “Foi a serpente que me tentou e eu comi”.
O desenrolar do episódio é bastante conhecido (mas seria ainda assim narrado pela profes-
sora, que éramos infantes): pela desobedncia, Ja expulsa Ao (o homem) e Eva (a mu-
lher) do Parso e punirá o primeiro com a exigência de suor de trabalho para conseguir o alimen-
to, e a segunda com as dores do parto e... a submiso ao homem. À serpente, ele imporá inimiza-
1
Todas as citações bíblicas desta tese são retiradas da Bible de Jerusalém (1973), e traduzidas do francês para o
português por mim mesmo. Preferi trabalhar com essa fonte devido a sua fidelidade às versões originais (segundo
cada língua em que o texto foi escrito) e não ao grego (edição conhecida como a Septuaginta) e ao latim, como o-
corre na maior parte das Bíblias disponíveis. Na tradução, mantive as repetições típicas da linguagem bíblica.
16
de com a mulher e o castigo de passar a rastejar sobre o próprio ventre – antes, ela tinha pernas. O
contdo pedagógico do mito, narrado a crianças, era bem claro: era preciso obedecer a Deus, sob
pena de... bem, sob penas que determinariam nossa existência. Mas a situação escolar ainda ren-
deria muito mais para minha refleo. Ao final da leitura, a professora comentaria o trecho bíbli-
co, tratando-o por seu nome mais consagrado, a narrão do “pecado original”. Nomeação diante
da qual um colega, como o ar extremamente espirituoso que o marcaria por todo o tempo em que
convivemos, dispararia: “Logo depois do pecado original, o Adão inventou a desculpa esfarrapa-
da original”. Ao riso generalizado, inclusive da educadora, eu, entretanto, me furtei. E não porque
achasse aquilo uma heresia papel que era paradoxalmente ocupado por nossa mestra, que,
entre gargalhadas, informava a meu amigo que ele não deveriafazer tra da Bíblia”.
Pelo contrio, por mais que eu tivesse como tenho até hoje – atração irresisvel pela boa
anedota, o que me prendeu à história não foi a dimeno humorística da presença de espírito de
meu colega – que seguiria como meu melhor amigo por alguns anos, até que uma fatalidade nos
separasse. o, o que me chamou a atenção ali, hoje enxergo (por a história ter ficado decalcada
em minha meria), foi a exteno do olhar analítico dele. Sim, de fato, o que acontecia naquele
momento era que o “primeiro homem”, ao praticar a primeira falta, oferecia para si a primeira de-
fesa. E o que chamava a ateão – primeiro a de meu camarada e depois, gras a ele, a minha
era que essa defesa não buscava provar a inocência – entendida como o não desacordo com a re-
gra imposta, mas simplesmente a não responsabilidade. Adão diz: eu fiz, mas não fui eu o culpa-
do, a culpada foi a mulher que o senhor me deu que me fez fazer o que não devia. A demanda da
criatura que desobedecera ao criador era para que fosse desarticulada sua responsabilidade
2
por
uma ação que praticou. Ele alega, digamos, “inoncia”.
2
O conceito de responsabilidade tem produzido definições variadas na filosofia moral e nas ciências sociais. Chateau-
raynaud (1991) trabalha com ela a partir da noção de erro profissional, atribuindo-lhe o duplo estatuto de ligação ao
mesmo tempo com um compromisso com a coletividade (uma responsabilidade investida, por exemplo, pela prática
profissional) e uma noção de culpabilidade (atribuída pelas falhas). a definição de McDowell (2000) diz que ela é “o
resultado de um silogismo no qual a principal premissa é o dever e a menor é a falha” (p. 8): responsabilidade é, assim,
17
“Inocência”, aliás, é palavra curiosa a ser usada ali, já me produzia dúvidas e imagine a
dor de cabeça que por isso dei às professoras, do colégio e do catecismo. O homem e a mulher
não tinham livre-arbítrio, posto que não sabiam o que era bom e o que era mau. E não o sabiam
justamente porque nunca haviam comido da tal árvore do conhecimento do bem e do mal, exa-
tamente aquela que havia sido a eles interditada por Deus. Não tinham como saber, por si mes-
mos, então, se era bom ou não comer da árvore – salvo por uma determinação de regra, a obedi-
ência estrita à ordem divina. Mas, no final das contas, independentemente dessa inocência, A-
dão joga a culpa em Eva. E esta joga a culpa na serpente. Nenhum dos dois humanos assume a
responsabilidade pelo que fez. Meu colega estava certo: eles dois deram, ali, desculpas.
Pois, diante da admoestação do Criador, o primeiro homem se ameaçado. De
quê? A resposta es na regra ditada anteriormente: “Tu podes comer de todas as árvores
do jardim. Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal tu o comerás, pois no dia
em que tu dela comeres, tornar-te-ás passível de morte (Gn, 2, 16-17). A pena é capital,
então. Entretanto, a ameaça é de uma faculdade, não de uma ação pontual: é a mortalidade
e não a morte necesria. Se comesse da árvore, o homem passaria a ser mortal não morto.
Mas complementemos essa letra da lei com a pena aplicada: ao final da história, o ho-
mem ganha os tros dessa mortalidade traduzidos pela imposição de uma relação confli-
tuosa com a terra, o solo, traduzida ao mesmo tempo na necessidade de trabalhar para do
chão extrair o sustento e ter a vida nele encerrada porque da terra viestes e à terra re-
tornarás (Gn, 3, 19). E logo depois ele é expulso do Jardim, um paraíso no qual a relação
com a terra era outra, a de tudo dispor. No entanto, sobretudo, a expulsão representa uma
punão relacional: o homem perde a intimidade com Deus. O paraíso era um lugar em
que eles conversavam face a face, interagiam cotidianamente. Dali em diante, falar com
a associação entre causa e efeito, com uma noção de dever ligada dicotomicamente a esses efeitos: algo é responsável
por um resultado de algum processo, de um lado porque “devegarantir a realização de algo, por outro porque não
pode” permitir a realização de algo. Em todas essas definições, uma economia da consciência é central: a responsabili-
dade passa por uma noção de controle sobre as ações determinantes para a efetivação de um processo.
18
Deus se tornaria uma ação muito mais complicada, que teria que ser intermediada. O ho-
mem e a mulher mantinham com Deus, então, algo que podemos chamar de uma relação,
ou seja, o reconhecimento mútuo da permissão para interões não-furtivas. O Criador
o era desconhecido do homem, e vice-versa.
O que Adão tenta fazer, então, quando diz que não tinha sido ele o responsável por algo
que ele fez e sabia que era errado? Ele tenta mostrar a Deus que não merece ser punido, que
não merece... perder a relação com ele. Pelo menos não por ter transgredido aquela regra em
específico, naquelas circunstâncias específicas. Ele teria uma boa desculpa para o que fez.
Eis, então, a questão: dar uma desculpa. Que ação é essa que, de tão presente em nossas
vidas, adquiriu força simbólica suficiente para se tornar metáfora-emblema do nascimento da
moralidade? Que tipo de movimentação social é essa que faz o ator, diante de, digamos, um o-
lhar reprovador de outro, em vez de exibir a contrição de um pedido de perdão, admitindo que
errou e que tentará não mais errar, diz que o erro teve, afinal de contas, um motivo outro, e que
foi impossível naquele momento obedecer à regra moral em questão? Que objeto é esse que ca-
be nas bocas de Adão e Eva, de criminosos, estudantes, maridos, esposas, políticos, de qualquer
pessoa que esteja diante de um mal-estar produzido por um ato seu em uma interação?
O objetivo desta tese é estudar o papel que o ato de dar uma desculpa ocupa na ma-
nutenção das relações sociais. O que apresentarei nas próximas páginas é o resultado de
um trabalho de quatro anos de refleo e pesquisa a respeito, observando Ao se repetir
em pessoas reais, em situações reais na vida social, diante de diferentes demandas oriun-
das das relações em que elas estejam envolvidas. O primeiro homem e sua situação-
emblema apareceo reproduzidos principalmente na forma de njuges e políticos ato-
res cotidianamente envolvidos em situações em que são chamados a prestar contas de suas
ões, e com grande recorncia e intensidade e em algumas outras formas, de aparão
mais esparsa, menos sistemática.
19
Mas este não será um trabalho sobre casais ou sobre integrantes da classe política. É um
trabalho a partir deles. A questão aqui é o dar uma desculpa, uma ação definida e discreta.
Tratarei disso mais à frente. Por ora, preciso tratar de outro tema, o refinamento desse objeto.
Pois, então: quando digo que se trata de verificar o papel desempenhado por meu objeto “na
manutenção das relações sociais”, a escolha do termo “manutenção” é central. Ele colhe dois
sentidos que se mostrarão primordiais em minha pesquisa. Primeiro, o significado mais sim-
ples, o de manter, no sentido de preservar, ou seja, de fazer uma coisa continuar existindo. Ao
mesmo tempo, ele chama a atenção para a dimensão cotidiana de uma relação, para o fato de
que ela depende de “manutenção”, de pequenos consertos, de pequenos ajustes, como uma
máquina, como um sistema. A palavra vem de manutentio, latim medieval, e significa “ato de
segurar com a mão”. É o termo para o tomar conta, para “a ação de manter”.
Aquilo sobre o que me pergunto aqui tem a ver com a constituão das situações no interior
das relações. As interões entre os atores constantemente produzem possibilidades de conflito,
quando determinada regra defendida por pelo menos um dos interactantes foi burlada por pelo
menos um dos outros interactantes. Isso e esses personagens nos dois pólos de um ringue mo-
ral: de um lado, alguém ofendido pela ão do outro, e que pode ter essa condão de ofendido
manifestada de imeras maneiras, consciente ou inconscientemente. Esse alguém surge investido
da regra moral em queso. Do outro lado, alguém cuja ação ofendeu a outrem e que tem ameaça-
da sua condição de participante da interão. À frente, falarei das possibilidades de desenrolar pa-
ra esta situão. Por ora, quero me deter em uma delas: diante dessa ameaça de des-interação, ou,
mais radicalmente, talvez mesmo de des-relação, o ator, parado com a regra moral apresentada
pelo outro na sua frente, apresenta um argumentoem geral na forma de uma fala, mas o ne-
cessariamente
3
, sugerindo que nem sempre a regra moral precisa ser totalmente obedecida.
3
Tanto a pesquisa empírica quanto os exemplos ficcionais e de referência que encontrei mostraram que gestos tam-
bém servem como desculpas. Por exemplo, quando um marido coloca as mãos nas costas para mostrar que sua coluna
serve como desculpa diante da cobrança da mulher de que ele contribuísse mais com as tarefas domésticas.
20
, eno, um problema de ordem gica: se o ator ofendido traz nas os uma regra abs-
trata, um princípio universal ideal, o ofensor que uma desculpa oferece uma razão “pé-no-
chão”, localizada, estritamente para ser utilizada naquele momento, naquelas circunstâncias. Isso
divide o mundo em dois planos de generalidade, habitados por dois tipos de personagens: um pla-
no estritamente abstrato, utópico, no qual o cumprimento das regras morais é absoluto, e que é
habitado por seres totalmente investidos de fidelidade à regra; e um plano pragmático, de circuns-
ncias, no qual a regra moral é aplicada caso a caso, habitado por atores que precisam lidar com a
pressão das circunstâncias sobre suas máquinas cognitivas
4
.
Adão, desta maneira, é um ser misto, que se vê na fronteira entre esses dois espaços.
Nascido no Éden, sob um regime de total perfeição, ele é marcado pelo pragmatismo que
lhe é transmitido (por meio de Eva) pela serpente, o mais astuto de todos os animais do
jardim que Javé Deus tinha criado”, negando que eles morrerão se provarem do fruto: “Deus
sabe que no dia em que s dela [da árvore] comerdes, vossos olhos se abrirão e vós sereis
como deuses, que conhecem o bem e o mal”. Esse mbolo também é sugestivo: o réptil diz
à mulher que a regra moral de Deus cabe em um plano em que ela própria é contraditória,
uma vez que exige uma faculdade de avaliação que é negada por ela mesma. O mandamento
de Deus, então, é uma espécie de armadilha tautológica: é para ser obedecido porque seu
principal mote é a obediência. É como uma placa na qual está escrito “É proibido ler
5
: co-
mer da árvore do conhecimento do bem e do mal produz justamente o conhecimento de que
comer dessa própria árvore é errado.
4
Vários autores articulam essa partição. Comte (1990), por exemplo, fala de “seres metafísicos” a habitarem uma di-
mensão abstrata da vida social, opostos aos seres reais. E mesmo o conceito de “tipo ideal’ de Weber é investido desta
divisão, embora elaopere em um plano analítico. Quero destacar a divisão proposta por Hannah Arendt (1996), que
a sofistica como operação intelectiva: “os invisíveis” são seres criados pela atitude de pensamento, e que se digladiam
com o mundo como ele esacomodado. Essas entidades protagonizam uma tensão poderosa: o pensamento é, para
ela, por definição, a ação de pôr em questão as verdades solidificadas do mundo, e ele não se faz sem essa operação de
sair do mundo, por meio dos invisíveis. Ao mesmo tempo, entretanto, essas verdades sólidas estão em uma instância
outra, abstrata, ela mesma invisível e apenas alcançável pela operação de abstração do pensamento.
5
Essa placa existe na tirinha de humor americana Cyanide and happiness, disponível on-line em:
http://www.explosm.net/movies/118/. Uma segunda aparição da mesma gag es em:
http://www.explosm.net/movies/129/.
21
Ao mesmo tempo, parece igualmente muito sugestivo que a serpente seja chamada de a-
nimal “astuto”. Esse termo pode ser associado à corrupção, mas, da mesma forma, refere-se a
uma esperteza, uma habilidade especial, uma competência. Diferentemente de Adão, o réptil
possui a capacidade de articular bem e mal e, mais que isso, para resolver a tensão entre abstra-
ção e circunstância. E, se quisermos avançar mais na exegese da hipótese de meu colega de es-
cola, o réptil municia Adão com sua “desculpa esfarrapada original”.
A desculpa dada, então, parece ser a operadora de uma tensão entre esses dois mundos. De
fato, se há uma operão de que ela parece dar conta é a migrão, a descida de toda situação de
possível conflito moral estabelecida quando uma regra moral é descumprida rumo a uma condi-
ção menos abstrata e mais circunstancialista
6
. Esta foi uma das principais queses surgidas ao
longo de minha pesquisa e se tornou um dos principais debates desta tese: essa descida é produzi-
da pela gravidade ou ela opera horizontalmente, exigindo gasto de energia? Ou seja, será que ape-
nas a constatação de distanciamento gico é suficiente para fazer descender da regra moral abs-
trata para as condões propostas na desculpa dada ou para que isso ocorra é preciso algum esfor-
ço dos atores? Ou, mais elaboradamente, o dar uma desculpa é reflexo de uma incompetência
cognitiva dos atores ou ele é a demonstração de uma competência relacional?
7
* * *
6
dois diferentes exercícios de circunstancialidade em questão aqui. Em um primeiro plano de aplicação, toda
observância da regra moral exercita um certo grau de recurso à circunstância, oriunda do própria tensão entre regra
e dimensão pragmática. Essa tensão é responsável por uma série bastante recorrente de permissões, licenças, dadas
cotidianamente pelos atores a si mesmos e aos outros para flexibilizações nas regras. Isso pode variar do mais bási-
co exemplo-emblema de dilema moral aquele localizado na pergunta sobre se alguém faminto pode roubar para
comer – até os casos mais sutis – como a criação de faixas de tolerância de horário para atrasos. Mas estou tratando
aqui de um segundo plano, aquele em que as ações, ao estarem em desacordo com a regra moral, causam mal-estar,
e em que a cinscunstancialização é um recurso para aplacar esse mal-estar. A diferença central entre esses dois pro-
cedimentos de descenso à circunstância é que, na desculpa dada, a circunstância é um elemento de oposição, com-
põe uma questão relacional, um momento da própria relação em que está em jogo sua manutenção.
7
Mais à frente discutirei longamente o conceito de competência que utilizo aqui. Por ora, podemos operar com
ele em sentido lato, como uma faculdade, uma “capacidadede fazer algo. E, neste caso específico, uma compe-
tência relacional será uma competência para intensificar as interações de uma relação.
22
Pois um elemento da fala de meu amigo que parece passar despercebido no mar
de mitologia que se desenha na historinha dA Queda: o fato de ele dizer que Adão in-
ventoua desculpa original. O uso da palavra remeteu, naquele momento, a uma primeira
articulação a uma dimeno instrumental que as pessoas costumam atribuir ao ato de dar
uma desculpa: fazê-lo o raro é “inventaruma desculpa. Mas, ora, estamos falando de
Adão, o pioneiro de nossa escie. Trata-se, eno, de um invento. A alegoria desse
primeiro homem dando a primeira desculpa é profundamente embletica. Se a chamo de
invento, na esteira de meu colega de cogio, é porque esse nome aponta para uma das
dimensões mais importantes que quero demonstrar em meu objeto: sua dimensão disposi-
tiva. Antes de falar dela, pom, cabe chamar a atenção para outra dimensão importante
desse uso. McEvoy (1995) também chama o dar uma desculpa de inveão”, invenção
defensiva”. Esse nome porque se inventa a partir “dessa deslocalização, dessa generaliza-
ção da defensividade, ao ponto de nela incluir a defensividade paraica e o silêncio do
desumano (p. 8). A idéia do autor, que dialoga com a perspectiva que estou aqui adotan-
do, é que a defensividade se tornou uma tecnologia reconhecível universalmente, um “es-
tertipo
8
(p. 11) de uso generalizado
9
.
Antes de McEvoy, entretanto, Ao. Como literatura, a blia, é um ambiente de
vasta oferta semiogica. Os analistas do livro bem o sabem
10
. Dessa forma, como mostrei
acima, apenas os elementos interpretativos contidos no curto Capítulo 3 do Gênesis de-
mandaria verbetes inteiros de enciclodia. Porém, com todo o respeito a criacionistas e
religiosos, Adão serve, aqui, como personagem literário, de ficção. O que é real nele é sua
dimensão alerica, sua dimensão de mito (BARTHES, 2003).
8
O uso do termo estereótipo é muito bem cuidado pelo autor. Retornarei a ele mais à frente.
9
E se isso é possível, ele pode encontrá-la em um objeto peculiar como o que usa para pesquisar: McEvoy parte
de textos de Shakespeare. E, nele, mundo e teatro elisabetano adquirem o mesmo direito analítico. Generalizada,
a invenção defensiva está em ambos, da mesma forma.
10
Cito alguns, que me serviram de apoio: Chouraqui (1995); Alter (2008); Armstrong (2008); Kelly (2008).
23
Detenhamo-nos sobre a desculpa de Adão: se a mulher surge como seu álibi inicial, na ou-
tra ponta da corda esa serpente. Esse personagem é um enigma e o teve sempre a imagem
que hoje tem. Se apenas no século II, em Justino, o Mártir (KELLY, 2008), um dos primeiros
grandes doutores da Igreja, que se da a ele uma dimeno embletica, associando o réptil a
Sa. Essa associação o é apenas uma amplião do sentido do personagem e nem uma pura e
absoluta vilanizão. O animal, ali, desempenha o papel por excelência de Satanás: “tentador” da
humanidade. Cheguei (WERNECK, 01/11/2008) a sugerir um sentido para essa conexão:
Trata-se, talvez, da discussão mais antiga entre aquelas que tentam explicar por que
agimos como agimos: motivação racional interna versus motivação determinante ex-
terna. Pois no momento em que é admoestado por Javé por ter desobedecido a sua
ordem, a de o comer da árvore do conhecimento do bem e do mal, no momento
em que comete o pecado original (...), Satã surge como o elemento externo que de-
termina ações dos homens “dotados de livre arbítrio”. (…) Responsabilidade deles?
Não toda. Satã tem sua parcela de culpa. E, eles, de desculpa.
Ao dizer que a culpa é de Eva, Adão diz reconhecer a regra de Deus. Ele não a renega,
não discorda do princípio de limitação (de suas ações). Mas diz que não teve controle sobre
seus próprios atos, e que uma circunstância específica na qual a regra que previa sua puni-
ção, caso ele descumprisse a proibição, seja des-generalizada: este, em que ele foi tentado por
Eva e, esta, pela serpente. Esse mito, portanto, estabelece um jogo moral importante: se por
um lado a determinação generalizada de desafios da humanidade fica demarcada pela culpa,
por outro, a forma de driblar essa culpa também se estabelece de forma generalizada. Satã, a
serpente, é uma forma genérica desse procedimento. A tensão, então, é entre genérico e parti-
cular, entre moral e ação, entre o bem dos outros e o bem de si.
Ao apresentar a desculpa original, deparando-se com o pecado original, Adão, entre-
tanto, apresenta uma outra originalidade. Algo que poderíamos começar por aqui a chamar
de inabilidade ou incompencia, mas que mais à frente chamarei propriamente de uma
competência: trata-se de uma tensão cognitiva original, entre abstrato e concreto, entre
universal e particular, entre geral e localizado.
24
A questão me ocorreu na escrita da concluo de minha dissertação de mestrado,
Comunicação e Cinismo (WERNECK, 2004), na qual discutia o estabelecimento de uma
razão nica como tentativa de justificativa para a despolitização dos discursos que davam
conta das ações ligadas ao feriado de 1
o
de Maio o Dia do Trabalho entre os anos 1960
(quando ele tinha a imagem de principal momento de luta política ao longo do ano) e os
1990 (quando sua imagem passou a estar associada a um pragmatismo poticoda classe
trabalhadora). Naquele momento, eu ensaiava a necessidade de fazer apontamentos para
uma teoria da desculpa”: a forma nica de prestação de conta das ações aparecia como
“uma desculpa com estica de justificão”, ou seja, um argumento personalista apresen-
tado como (se fosse) uma forma de bem comum. Daquele trabalho, preocupado como a
maneira como uma moralidade muda ao longo do tempo e como a atitude política assume
um grau de consagração moral em um contexto para assumir uma dimeno muito reduzi-
da em outro, vinha a necessidade de compreender melhor o estatuto de um femeno: o
recurso ao bem de si em vez da necessidade de demonstração de um bem do(s) outro(s).
É inspirador, portanto. O caso de Adão e Eva pode ser tomado como uma alegoria, um,
como disse, mito, uma fala que dê conta de um sentido “para am da hisria”, como se ela ocor-
resse “desde sempree “para sempre”. Mas se uma narrativa, tradicional ou literária, pode ser u-
sada como imagem representativa, isso parece ocorrer porque se reconheça nela um certo “conte-
údo de mundo”. E esse conteúdo, diferentemente do que poderia se pensar por se tratar de um tex-
todistante do mundo real”, de fião, não é pouco representativo. Se ele é distante do mundo, o é
por excesso e não por falta. O que difere fião e realidade é a intensidade. A fião opera com a
hipérbole, com seres e situações saturadas, de traços do mundo apresentados como metáforas
11
.
11
Uma abordagem sociológica muito inspiradora nesse sentido é a de Clark (2007), que faz um uso muito inteli-
gente dessa constatação para analisar a maneira como a noção de sympathy desempenha um importante papel nas
relações sociais. Para isso, usa textos de ficção, a partir da noção de que autores se utilizam dessa saturação para
conquistar a sympathy dos leitores.
25
Essa é uma questão quase tão antiga quanto o próprio pensamento, mas quero ata-la bre-
vemente porque dela parte um elemento primordial para meu raciocínio. Platão e Aristóteles ti-
nham uma certa querela filofica – da parte do segundo, obviamente – no que diz respeito à mi-
mesis e à diegesis. Enquanto para Plao, a mimesis corresponde ao processo que produzia o fal-
seamento descrito por ele na “Alegoria da Caverna”, a imitação do mundo das idéias pelo mundo
dos sentidos, para Aristóteles, ela significa justamente ao procedimento de representação das a-
ções, permitindo que o sofrimento do mundo fosse dirimido pelo “efeito catártico” (ARISTÓTE-
LES, 1996b). A diegesis se refere às maneiras de apresentar o mundo, narrando-o. Enquanto sua
parceira (ou inimiga, para os dois pensadores) corresponde a uma reprodução representativa, esta
trata das formas de se falar do mundo, da criação de um mundo outro, narrado. Auerbach (2007)
consolida essa tensão, mostrando como a própria não de temporalidade nas narrativas demons-
tra que mimesis e diegesis só podem diferir do mundo porque o dele uma vero concentrada.
Mesmo o conceito de tipo ideal de Weber (2003) incorpora essa tensão. Ele “se afasta da
realidade emrica, a qual pode ser comparada ou relacionada com ele” (p. 96). O problema é
importante porque empreenderei a constrão de uma categoria sociológica abstracionista e todo
este trabalho será marcado por uma cio entre o abstrato e o concreto. E em dois planos, um pri-
meiro, social, e um segundo, analítico, porque boa parte da tensão contida em meu objeto é entre
uma tipificão ideal operada socialmente – a regra moral estritamente observada – e o exercio
dessa tipificação no mundo. Mas antes de tudo esse é um problema contido na ppria vivência do
objeto; mais, em grande medida posso dizer que esse, afinal, é meu objeto: se, como veremos, a
desculpa dada tem sido pensada como um ritual social constitdo por um femeno de lingua-
gem (AUSTIN, SCOTT e LYMAN, HERSFELD, BENOIT, MCEVOY), sugiro que ela seja
pensada prioritariamente como um aparato actancial, ou seja, como uma quina de fazer coisas
mais do que discursivamente, como um sistema de ao mesmo tempo criar e resolver uma teno
entre abstrato e concreto, entre universal e particular, entre genérico e circunstancial.
26
Justamente por isso, inspirei-me a iniciar minha apresentão do invento de Adão por uma
via abstrata. Apresentarei agora alguns espaços semelhantes ao Éden, espaços de alguma forma
emblematizáveis como ele. O primeiro passo de minha pesquisa, eno, foi o da observação de
alguns casos de desculpas dadas em páginas literias, televisivas e cinematográficas. O uso de
um certo número de obras de ficção para iniciar o norteamento desta apresentão se baseou no
fato de que uma situão ou um personagem de ficção o constrdos segundo graus hiperli-
cos, extrapolados, de características que representam. Pois, se um dos pressupostos da análise
qualitativa é alcaar a “saturação” (GLASER e STRAUSS, 1970, p. 117), em uma obra literária
os entes trazem justamente essa saturação como traço principal. Em uma pesquisa como a que
apresentarei mais adiante, a saturação é produzida pela seência exaustiva de entrevistas em um
corpus, e de reportagens em outro, além de pela observação das desculpas dadas em manuais de
desculpa. Na ficção, os objetos já estão saturados.o “tipos ideais”. Nesse sentido, usá-los como
fonte para depreender prinpios preliminares a respeito de um objeto como o dar desculpas se
comprovaria como uma decisão bastante produtiva, inclusive por melhor simetrizar diferentes
contextos culturais. Então, assim como McEvoy recorreu ao bardo inglês a partir da generalizão
da inveão defensiva, procuro o invento de Adão, igualmente generalizado, em algumas poucas
ginas literias, a fim de, alimentado por suas versões saturadas, procurá-lo no mundo.
O uso desses textos exemplares poderia conduzir a um desvio para o qual Glaser e
Strauss (p. 5) chamam a atenção: os exemplos são habitualmente escolhidos por sua exempla-
ridade, por seu poder de confirmação de algo que se tenha em mente de antemão em relação
ao campo. Mas, se a escolha foi por algum poder, não foi o de confirmar nada, uma vez que
nada pensei de antemão. Pelo contrário, eles serviram para avistar questões a serem explora-
das. E, neste caso, foi justamente a riqueza dessa exemplaridade que contribuiu para a obten-
ção de uma teoria, que não será, então, dedutiva a partir de princípios, mas indutiva a partir de
casos de uma categoria metodológica, dotados de diferentes graus de saturação.
27
A escolha dos textos para esta pesquisa foi consideravelmente alearia. O objetivo foi co-
lher obras notadamente marcadas por situações nas quais o dar uma desculpa ocupe papel de des-
taque. A idéia não foi fazer um mapeamento desses trabalhos. O painel traçado aqui será dificil-
mente chamado de completo. Pelo contrario. O desejo foi o de mergulhar aprofundadamente em
alguns poucos escritos. Os textos usados foram escolhidos por rios cririos. O primeiro deles
foi a notoriedade
12
, tanto como obra quanto como obra dotada de dimensão moral daí Dostoi-
évski, Tolstói e Machado de Assis
13
, por exemplo. O segundo cririo foi a operacionalidade: as
obras sobre as quais me debrucei o todas fontes vigorosas de situões de dar uma desculpa. O
terceiro elemento foi um certo grau de acaso: colhi textos que me pareceram interessantes nestes
quatro anos de pesquisa. E, por último, o critério foi pessoal: o autores, obras e situações que
me interessam como leitor ou espectador. Esses critérios construíram o pequeno estudo que abre
esta tese: listarei cinco queses, a partir de cinco grupos de textos de fião.
1) A manutenção da relação apesar da ausência: Machado e Jerry Seinfeld
Brás Cubas está morto. Não poderia ter desculpa melhor para estar ausente. Mas suas Me-
rias stumas
14
(MACHADO DE ASSIS, 1881) o a prova de que quer permanecer, quer
estabelecer uma relação com o leitor. E manter vivas as que manteve em vida. O enredo do livro é
mais do que norio: falecido, Brás Cubas narra, depois da morte, sua vida. Trata-se de um ho-
mem nico, de grande fortuna e profunda ironia em relação a seus semelhantes. Do qual vamos
acompanhando as inúmeras peripécias e conhecendo várias facetas.
12
Agradeço imensamente a Flávio Moreira da Costa, sublime romancista e valioso antologista, sobretudo na área do
conto, e ao acadêmico Domício Proença, filho, exímio malabarista de conceitos machadianos, que, com suas primoro-
sas memórias, me ajudaram a encontrar alguns textos, mesmo que algunso tenham sido usados em última análise.
13
Um detalhe importante é o fato de essa observação não ver como obstáculo a noção de cultura. De fato, colho obras
de diferentes origens nacionais (e de diferentes épocas) e procurei nelas traços em comum, e não traços culturais pecu-
liares. Não se trata, então, de um estudo comparativo sobre como determinada cultura trata o dar uma desculpa, mas
sim como a desculpa opera, para além das peculiaridades contextuais. Nem é tampouco um estudo das peculiaridades
dos autores na abordagem do tema, mas uma redução dessa presença autoral como elemento de contexto mesmo.
14
Todas as citações a Machado de Assis tiveram como fonte a edição standard da Obra Completa de Machado de As-
sis (org.: Afrânio Coutinho): Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1997. Preferi na referência a datação da edição original.
28
Pois bem, em determinado momento, dá-se o encontro entre Brás Cubas e Quincas
Borba. Já abastado, Brás vive um momento de ouro, a cogitar se será ou não ministro de Es-
tado. Quincas é “um antigo companheiro de colégio” (p. 572), que ele encontra por acaso na
Rua dos Barbonos (atual Evaristo da Veiga), no Centro do Rio de Janeiro. Outrora um me-
nino “tão inteligente e o agastado” (p. 573), Joaquim agora é “um homem de trinta e oito a
quarenta anos, alto, magro e pálido. As roupas, salvo o feitio, pareciam ter escapado ao ca-
tiveiro de Babilônia”. Amigo rico, amigo pobre. Praticamente um mendigo, Quincas Borba
pede um dinheiro a Brás Cubas, que lhe e lhe promete um emprego. Tempos depois, ele
vai visitá-lo, após escrever-lhe uma carta. Mas após o reconhecimento, o que vem de mais
importante é a exposição que o Borba” quer fazer: pretende expor ao amigo sua filosofia
de vida, o “humanitismo”. Quis expor-me finalmente a filosofia; pedi-lhe que não. Estou
muito preocupado hoje e não poderia aten-lo; venha depois; estou sempre em casa. Quin-
cas sorriu de modo malicioso; talvez soubesse de minha aventura, mas não acrescentou na-
da” (p. 611). Em algumas outras ocasiões, Quincas tentará contar ao amigo do que se trata,
sem muito sucesso. Brás Cubas o evitará com um agora não posso” ou um “passe no escri-
tório durante a semana, que falaremos sobre um emprego”.
Vejamos um outro caso: Jerry
15
chega a seu apartamento acompanhado de seu amigo
George. Lá, Kramer, seu vizinho, está sentado ao sofá e fala ao telefone, de maneira ex-
pansiva e estridente. Quando o dono da casa chega, Kramer lhe passa o aparelho, para que
ele fale (DAVID [e] SEINFELD, 14/06/1990, p.3):
15
O seriado Seinfeld foi criado pelos humoristas Jerry Seinfeld e Larry David em 1990. Comediante do gênero stand-
up (no qual o artista se apresenta de , falando sobre seu estranhamento diante das idiossincrasias do mundo), Sein-
feld criou com o colega um programa que acompanha o cotidiano de um humorista do gênero, mostrando como a vida
pode ser idiossincrática – sempre com uma apresentação dele na abertura e outra no final –, e a influência de sua vida
em seu humor. Em torno de Jerry, convivem três personagens: o fracassado e neurastênico George; a poderosa e deci-
dida ex-namorada de Jerry, Elaine, e o histriônico e grotesco Kramer, vizinho de porta do protagonista, um grupo pe-
culiarmente egoísta de amigos. Com esse enredo e com uma maneira peculiar de apresentar conversações banais (que
o levou a ser identificado como “a comédia sobre o nada) e, em especial, dicotomias morais, o programa se tornou o
mais celebrada emissão de TV humorística da história, chegando a nove temporadas, ficando no ar até 1999. O episó-
dio aqui analisado, intitulado “Male unbonding” (“Rompimento entre homens”) foi o primeiro a ser filmado depois do
piloto, e o terceiro a ser exibido, de uma primeira temporada formada por quatro episódios.
29
JERRY: (para Kramer) Quem é?
KRAMER: Tome.
JERRY: Quem é?
KRAMER: É pra você.
JERRY: (ao telefone) Alô? Oh, oi, Joel. (Jerry bate em Kramer com uma revista.)
Não. Eu estava for a da cidade. Acabo de retornar… Kramero sabe de nadaEle
é apenas meu vizinho de porta. Uh… Nada demais… Terça-feira? Oh, terça-feira,
não. Eu tenho que encontrar… alguémUh, Quarta-feira? Quarta-feira, OK... Tudo
bem. Uh, Estou um pouco ocupado agora. Podemos nos falar quarta pela manhã?
OK... Sim... Certo… Obrigado… Tchau [desliga, então dirige-se a Kramer]. Por
que você me colocou no telefone com ele? Odeio ser colocado num telefonema!
KRAMER: Bem, é o seu telefone. Ele queria falar com você.
JERRY: Talvez eu não quisesse falar com ele.
KRAMER: Por que não?
JERRY: Ele me incomoda. Eu nem atendo mais ao telefone por causa dele. Ele me
transformou em um equipamento de vigilância. Agora terei que me encontrar com
ele na quarta-feira.
O que se segue é uma série de situações em que Jerry tenta evitar se encontrar com Joel.
Trata-se de um amigo de infância, de quem Jerry era colega apenas porque ele possuía uma
mesa de pingue-pongue (“Eu tinha 10 anos. Eu seria amigo de Stalin se ele tivesse uma mesa
de pingue-pongue”, diz ele). O ponto de partida do episódio é a idéia de que dois homens não
podem encerrar um relacionamento, como um homem e uma mulher fariam (“O que eu vou
fazer? Romper com ele?”). George sugere que ele trate a situação “como se ele fosse uma mu-
lher... Diga-lhe a verdade”. “A verdade?” E os dois fazem uma expressão que denuncia: a
verdade é algo com o que eles não sabem lidar muito bem.
Jerry tenta seguir o conselho de George. Diz ao amigo que a relação deles não es mais
dando certo e que eles o devem mais se ver, que “essa amizade o esfuncionando(p. 6).
Ao que recebe como resposta uma sessão de choro. A cena transcorre espelhando o conflito entre
os dois homens e o rompimento de um casal. O que eu fiz de errado?”, pergunta Horneck, aos
prantos. E Jerry, tenso ao ver o homem se desmontar como uma menina indefesa que toma um
fora do namorado: “Vamos esquecer isso, OK? Ainda somos amigos, certo? Amigos... Ainda a-
migos. Olha: tenho entradas para o jogo dos New York Knicks na quarta. Ótimos lugares, ats
dos bancos de reserva. Vo quer ir comigo? Vamos!” “Esta noite?” “Não, na próxima quarta. Se
fosse esta noite eu diria esta noite.”Vo realmente quer que eu vá?”, completa Joel, fungando.
30
Mais tarde, o humorista chega à conclusão, novamente conversando com George, de
que o melhor a fazer é evitar Joel. No dia em que combinara sair com ele, telefona-lhe, mas a
ligação cai na secretária eletrônica. Ele deixa um recado (p. 11):
JERRY: Oi, Joel. É Jerry. Espero que você veja este recado antes de Ah, oi, Jo-
el… Ah, você acaba de entrarEscuta, o vou conseguir ir ao jogo esta noite. É
que eu tenho que estudar com meu sobrinho. É, ele tem uma prova amanhãGeo-
metria… É, vosabe: trapezóides, losangos… De todo modo, escuta: pegue você
os ingressos. Ele estão na bilheteria com o nome A retirar”… Eu lamento muito…
Divirta-se. A gente se fala semana que vem. OK… [tentando desligar] Sim…
Não… Certo… Certo… Tchau [e desliga].
GEORGE: Trapezóide?
JERRY: É, eu sei. Eu estou ficando sem desculpas para esse cara. Estou precisando
de um daqueles fichariozinhos de escritório para listar desculpas.
A história segue, e Elaine, amiga e ex-namorada de Jerry, entra em cena. Ela está na ca-
sa dele, eles vão sair e ela vai dar um telefonema. No caminho, ela uma prancheta sobre a
mesa de centro, com uma folha. Lê:
ELAINE: “Pegar alguém no aeroporto”; “Participar de um ri”; “Esperando pelo
técnico da TV a cabo”...
JERRY: OK, deixa isso aí, por favor.
ELAINE: Ah, mas o que é isso?
JERRY: É uma lista de desculpas. Eu fiz por causa do Horneck, um cara que foi ao
jogo esta noite com meus ingressos. Fiz essa lista para o caso de ele ligar. Aí eu con-
sulto a lista e eu o preciso me encontrar com ele. (Elaine ri) Eu preciso disso!
(Elaine começa a escrever na lista) O que você está fazendo?
ELAINE: Tenho umas para você.
JERRY: Não preciso de mais.
ELAINE: Na-na-na-na-não, estas são das boas. Olha, olha: “Você ficou sem cuecas
e está preso em casa”.
JERRY: (sarcástico) Muito engraçado.
ELAINE: E que tal: Você foi diagnosticado como portador de dupla personalidade
e você não é mais você. Você agora é Dan”.
JERRY: Eu sou o Dan. Pode me devolver minha lista, por favor?
ELAINE: (devolvendo a lista a Jerry) Toma, toma. Jerry Seinfeld, não consigo acre-
ditar que você está fazendo isso. É absolutamente infantil.
JERRY: E o que eu posso fazer?
ELAINE: Lide com isso. Seja homem!
JERRY: Ah, não. É impossível. Prefiro mentir para ele pelo resto da minha vida do
que passar por aquilo de novo. Ele chorou. Lágrimas. Seguidas de muco!
ELAINE: Você fez um homem chorar? Eu nunca fiz um homem chorar. Cheguei a
chutar um cara no saco uma vez e ele não chorou... Mas eu fiquei com o táxi.
No final do episódio, Joel chega à casa de Jerry, depois do jogo, ao qual ele acabou indo
com Kramer. Conhece, então, Elaine, interessa-se por ela e começa a jogar charme. Tenta:
31
JOEL: Então, obrigado mais uma vez pelos ingressos. Mas na próxima semana, eu é que
lhe convido. Que tal terça-feira à noite? (e para Elaine) E por que vocêo vem junto?
ELAINE: Ah, não, não. Terça não é bom porque nós temos… ensaio do coral.
JERRY: Isso! Tinha esquecido do coral!
ELAINE: E será a Noite dos Hinos Nacionais do Leste Europeu.
JERRY: Certo! Você sabe, esse negócio de o muro caindo e tudo mais.
JOEL: (para Jerry) E que tal a noite de quinta-feira? Eles vão pegar os Sonics (Jerry
balança a cabeça.)
ELAINE: Hum… Quinta também o é legal, porque temos que ir ao hospital… ve-
rificar se estamos qualificados para ser doadores de órgãos.
Sim, ambos os casos, tanto o do personagem do romance brasileiro do século XIX
quanto o do humorista americano da década de 1990, apresentam situações em que a desculpa
é usada para evitar uma situação, mais especialmente para evitar o contato com outra pessoa
(mais radicalmente no caso de Jerry). Mas, igualmente, ambos os casos mostram uma contra-
dição importante, uma espécie de exceção que confirma a regra: os personagens aqui querem
evitar contato, mas querem, ao mesmo tempo, manter a relação ativa. É importante promover
aqui uma distinção entre relação e interação. Relação, no âmbito desta tese, será entendida
como uma situação prolongada, uma forma duradoura de interações entre os atores envolvi-
dos e que se reconhecem integrantes dessa relação. Assim, se Brás Cubas e Jerry evitam a in-
teração, eles querem ao mesmo tempo manter a relação.
Primeira questão: o dar uma desculpa participa da economia de uma tensão entre o man-
ter a regra moral e o manter a relação. Ou, mais complexamente: ela opera uma priorização da
relação sobre a regra moral.
2) Salvar a própria pele: Chaplin e uma espiã contra o nazismo
Henry Verdoux es diante do tribunal. Estamos em 1937, na França. É um homem
franzino e de feões picarescas, ostentando cabelos claros e, ao mesmo tempo, um bigo-
dinho escuro que lhe parece ter sido traçado na face a caro de pintura. Usa roupas jus-
tas, bem cortadas, marca de quem entende de elegância, embora nem sempre tenha tido
32
acesso a ela. Na sala, rodeia o réu um grupo de quatro soldados que parecem ter sido es-
culpidos como réplicas do general De Gaulle
16
. Em torno deles, uma banca de juízes e ju-
rados. De pé, o promotor, que, togado, discursa:
Nunca, nunca, na história da jurisprudência, feitos como esses foram trazidos à luz.
Cavalheiros, vocês têm diante de si um monstro cínico e cruel. Olhem para ele. [Ver-
doux ironicamente se vira como todos para ver de quem ele estava falando.] Obser-
vem-no, cavalheiros: este homem, que tem o cérebro, e que se tivesse a decência para
tal, poderia ter tido uma vida honesta. Mas em vez disso, ele preferiu roubar e assassi-
nar mulheres de bem. De fato, ele transformou isso em um negócio. Não estou aqui a-
penas pedindo por vingança , mas pela proteção da sociedade. Para esse assassino em
massa, eu solicito a punição máxima, que ele seja mandado à morte na guilhotina.
Verdoux mata
17
. Mulheres. Mulheres “de bem”. Na história do filme Monsieur Verdoux
(CHAPLIN, 1947), idealizada por Orson Welles e escrita por Charles Chaplin
18
, vemos um
homem que, tendo sido demitido do banco em que trabalhara por décadas, e tendo uma esposa
paraplégica e um filho pequeno, encontra uma via alternativa para conseguir dinheiro: identi-
ficando-se por nomes falsos, ele conquista mulheres viúvas, casa-se com elas, convence-as a
lhe dar acesso a suas fortunas e as mata, roubando-lhes o dinheiro
19
. Nas mãos de Chaplin, a
história assume contornos “compreensivos”: subtitulado “Uma comédia de assassinatos”, o
filme, escrito, produzido, dirigido, protagonizado e musicado por Chaplin, mostra uma histó-
ria de suspense e brutais assassinatos com atmosfera de humor negro, sem abrir mão do hu-
mor físico que caracterizou o artista. Falado, como o anterior, O Grande Ditador, Verdoux é
uma avalanche de momentos de adoçamento da personalidade de um assassino frio. Ele é ca-
16
O general Charles De Gaulle seria chefe das forças francesas durante a Segunda Guerra e uma das imagens
mais divulgadas internacionalmente da França. Assim, ainda que a cena se passe no final da década de 1930, o
fato de o filme ser de 1947 justifica o uso da imagem do militar como símbolo da força marcial francesa.
17
Para uma análise da maneira (brilhante) como Lacan se debruça sobre esse caso, veja Martinelli Costa (2004).
18
Sétimo longa-metragem de Chaplin, Monsieur Verdoux foi o primeiro e maior fracasso comercial do diretor
nos Estados Unidos. Reflexo da conturbada relação que o artista britânico vivia com o país que não mais o aco-
lhia tão bem quanto no passado, o filme chegava em um momento em que ele era vigiado pela Comissão de In-
vestigação de Atividades Anti-americanas, segundo a qual ele era comunista. Considerado uma agressão à políti-
ca externa do país e a sua sociedade desde o roteiro, o filme foi perseguido pela imprensa na estréia. Apesar
disso, Chaplin teve seu roteiro indicado ao Oscar de 1948.
19
O personagem foi inspirado no assassino francês Henri Désiré Landru, o Barba Azul, que entre 1914 e 1918
matou dez mulheres e um de seus filhos. A alcunha oriunda do conto infantil de Charles Perrault, no qual uma
esposa descobre que seu marido executava suas ex-mulheres.
33
paz de matar mulheres impiedosamente, mas também ser vegetariano, por não querer o sofri-
mento dos animais. Ao mesmo tempo, dá-se ao trabalho de produzir um veneno que permita
matar “sem absolutamente nenhum sofrimento da vítima”.
Ao final de uma série de mortes e peripécias, então, Verdoux é reconhecido pela família
de uma de suas vítimas, é preso, levado ao tribunal... e condenado. Ao ouvir o veredicto de
culpado, ele é questionado sobre uma declaração final, que resolve fazer:
Por mais pouco gentil que o promotor tenha sido comigo, ele pelo menos admitiu que
eu tenho cérebro. Obrigado, monsieur, eu tenho. E por 35 anos eu o usei honestamen-
te. Depois disso, ninguém mais o quis. Então, fui forçado a fazer negócios eu mesmo.
No que diz respeito a ser um assassino em massa, o mundo não encoraja isso? Não
tem a construção de armas de destruição o propósito único de assassinato em massa e
não têm elas explodido mulheres de bem e criancinhas em pedacinhos... e feito isso de
maneira bem científica? Como assassino em massa, eu sou um amador em compara-
ção com isso. Entretanto, não quero perder minha calma, porque dentro em pouco per-
derei minha cabeça. Ainda assim, antes de deixar esta lufada de existência terrena, te-
nho isto a dizer: eu verei todos vocês... muito em breve... muito em breve.
Um detalhe chama a atenção. O começo de seu discurso é estranhamente... premoni-
rio. Mas, ironicamente, ao contrio: aquela cena ali parece ser um negativo de um caso
real que se passaria algum tempo depois: o julgamento de Adolf Eichmann, que ocorreria
em 1961, em Israel (ARENDT, 1996). Como se sabe, Eichmann foi um oficial da buro-
cracia nazista de 1934 a o final da guerra, tendo sido o responsável pela política de de-
portação de judeus que se converteria na solão final”. As ser preso pelas tropas ame-
ricanas, fugiu em 1946 e em 1950 refugiou-se na Argentina com um nome falso. Em
1960, foi seqüestrado por comandos do Mossad, servo secreto de Israel, e levado para
Jerusam, onde passou por um polêmico julgamento, transmitido pela TV mundialmente
e que resultou na única sentença de morte na história do Estado de Israel. Na corte, Eich-
mann tentaria se justificar, dizendo estar cumprindo ordens” e afirmando estar em acordo
com as determinações do hrer. Diante disso, Hannah Arendt (1996) constata que seu
objeto, que agiu por obediência estrita a seus superiores, não é um imbecil”. Ele apenas
34
apresenta uma curiosa e auntica incompetência para pensar (1996, p. 26). A fisofa
fica impressionada pela colocação de uma irreflexividade o radical de um personagem
que se propunha a uma experncia de pensamento no julgamento, ele afirma ter vivido
de acordo com o preceito moral kantiano: Quis dizer que o princípio de minha vontade
deve ser sempre tal que possa se transformar no princípio de leis gerais(ARENDT, 1999,
p.153), mas isso representa, como a própria pensadora analisa, uma contradição com o
próprio Kant, uma vez que sua filosofia moral es ligada à faculdade do juízo, eliminando
a obedncia cega. Isso a leva a constatar que a operação de irreflexividade de seu objeto
está relacionada com o fato de que ele funcionou em seu papel de grande criminoso de
guerra tão bem quanto funcionara no papel de integrante do regime nazista (1996, p. 26).
Eichmann dizia que matou milhares porque cumpria ordens. Mais que isso, ele sempre
estará de acordo com a moral vigente. Cumprirá as ordens do tribunal como cumprira as
de Hitler, sem discuti-las. Para Hannah Arendt, isso mostra que o nazismo distorceu o
mandamento ético de Kant para algo como “Aja como se o princípio de suas ões fosse o
mesmo do legislador ou da legislação local. (...) O Imperativo categórico do Terceiro Rei-
ch: aja de modo que o führer, se souber da sua ação, a aprove” (ARENDT, 2001, p.153).
A fala de Verdoux, entretanto, parece se antecipar, pelo inverso, a de Hannah. Se em
Eichmann há uma tentativa de justificação, mostrando que suas ões estão de acordo com
um princípio de correção, em Verdoux há uma clara oferta de desculpa, mostrando que, se
a ão é errada, algm cometeu uma o errada quanto. E se Eichmann não pensa, não
tem atitude reflexiva e, nesse sentido, total conscncia de seus atos, Verdoux tem, sim,
um cérebro, assume total conscncia do que fez e fala o para se justificar, mas para
mostrar que se pode dar conta de sua ão pela ão dos outros. Que outros? Todos. De
fato, o cineasta Claude Chabrol chamaria a declaração de Verdoux de uma das frases
mais terríveis jamais pronunciadas contra uma sociedade(EISENSCHITZ, 2003), sobre-
35
tudo por conta da cena posterior, em que ele conversa com um jornalista. O que é toda
essa conversa sobre bem e mal?”, pergunta o repórter. Forças arbitrárias, meu amigo. Ex-
cesso de qualquer uma delas nos destruirá a todos. Um assassinato faz um assassino, mi-
lhões, um herói... meros santificam”. Segundo ele, seus assassinatos faziam o parte
de uma ação de racionalidade econômica quanto economicamente racionais são as ões
militares de governos dos países naquele momento
20
.
Diante de uma situão de morte do outro – de um e de miles –, também está Ellis, aliás
Rachel. A loura está no banco da frente de um carro. Ao seu lado, Gerben Kuipers, que acaba de
tomar o volante do condutor, que deixou desacordado. Estamos em uma estrada na Holanda, à
beira o Rio Mosa, nos arredores de Maastricht, em 1944. O veículo é um carro funerário e, na
sua traseira jaz um caixão. E, dentro dele, Hans Akkermans, vivo. O dilema de Rachel: abrir ou
o o esquife, permitindo, assim, que o homem em seu interior respire e sobreviva.
A cena que se segue é poderosíssima. Rachel e Kuipers deixam o veículo e sentam-se à
beira do rio. Ficam olhando para frente, sem se falarem. Ao fundo, os gritos de Akkermans,
agonizante, sufocando. Até que Rachel volta seu rosto para o carro e diz: “Deveríamos abrir o
caixão.” Ao que Kuipers responde: “Sim, deveríamos.”
Silêncio. Ele retoma a conversa: “O que faremos com o dinheiro?” Ela: “Não nos per-
tence.” Kuipers: “Não pertence a ninguém.” Rachel: “A não ser aos mortos.”
Mais uma pausa, após a qual ele ergue o dedo, como que para chamar a sua atenção. Si-
lêncio total, salvo o canto de uma ave ao longe.
“Ele se calou, finalmente”, diz o homem. “Parece uma eternidade”, responde a mulher.
20
Todo o discurso crítico de Verdoux representava um posicionamento pessoal do próprio Chaplin, expressado
desde seu filme anterior, O grande ditador, de 1940. Radicalmente pacifista, o diretor não admitia a maneira
como as nações vinham procedendo na Segunda Guerra e logo depois dela. Ao usar um criminoso homicida, que
mata em grande quantidade, ele dizia querer relativizar um outro grande homicida em grande quantidade como
criminoso, o Estado. Nas notas de produção de Monsieur Verdoux, Chaplin escreveria um pensamento que pode-
ria ter sido inspirador para Howard S. Becker se ele tivesse tido acesso a ele: “É mais importante entender um
crime do que condená-lo” (EISENSCHITZ, 2003).
36
A história completa: o filme A espiã (Zwartboek
21
), do holandês Paul Verhoeven
(2006), conta a história de Rachel, uma judia-holandesa que, após ver sua família ser executa-
da em uma tentativa de fuga do país na época do jugo nazista, infiltra-se na Resistência. Deci-
dida a agir contra o invasor, ela aceita mudar a cor de seus cabelos (inclusive os pubianos,
exibidos em uma cena de forte poder simbólico) e se fazer passar por alemã, para se aproxi-
mar do oficial da SS Ludwig Müntze, tornando-se seu amante. Em sua vida real, entretanto,
ela começa a esboçar um romance com um colega de resistência, Akkermans. No percurso,
entretanto, o alemão vai se revelando um bom homem. Quando a Alemanha cai, entretanto,
ela é acusada de colaboracionismo, justamente pelo envolvimento com ele, uma vez que vá-
rios agentes se perderam ao longo da guerra porque alguém da resistência estaria fornecendo
informações à SS. No último momento, entretanto, eles descobrem que o agente duplo era
Akkermans e que este fugiu com o dinheiro roubado dos judeus ricos que haviam tentado e-
migrar do país, mas haviam sido enganados e levados para uma armadilha. Por conta das in-
formações passadas ao inimigo, também Tim, o filho de Kuipers, havia sido morto em uma
operação mal-sucedida. Quando descobrem que ele havia escapado, Kuipers e Rachel iniciam
a perseguição que resulta na descoberta do caixão (mesmo recurso usado por Rachel para es-
capar aos nazistas no início do filme) com ele, dinheiro e jóias no interior. Ao chegar ao carro,
o caixão está semi-fechado apenas, mas ao reconhecer seu alvo, Rachel se apressa em fechar
as borboletas que fixam a tampa. Akkermans oferece suborno à jovem, passando-o pelo vão
de respiração deixado aberto por uma cruz mal fixada com parafusos. Em uma imagem cober-
ta de simbolismo, a judia que havia sido obrigada a decorar versículos da Bíblia para sobrevi-
ver apanha o colar em que trazia fotos de sua família e o usa como chave para apertar os para-
fusos que afastavam a cruz e permitiam que o homem respirasse.
21
A tradução literal do título, Livro negro, refere-se à pesquisa feita pelos dois roteiristas do filme, o diretor Paul
Verhoeven e o escritor Gerard Soeteman. Ambos trabalharam no texto por 15 anos, a partir de histórias reais
pesquisadas por eles próprios. Embora o enredo da obra não transponha para a tela uma história real, ele é livre-
mente inspirado em depoimentos de sobreviventes do período e se assume como “inspirado em fatos reais”.
37
Sentados ali, então, Rachel e Kuipers constatam que “deveriam” praticar uma ação es-
pecífica: o mais correto seria soltar o traidor, para que ele seja julgado e o dinheiro subtraído
às famílias judias fosse entregue ao Estado de direito que se desenharia com a queda dos na-
zistas. Entretanto, interesses “menores” em jogo: Rachel quer vingança; Kuipers também.
E o dinheiro pode ir para um fim mais nobre, mais certo: a construção de um kibutz, cujas i-
magens encerram o filme
22
, em que encontramos Rachel de cabelos castanhos, casada e atu-
ando como professora na Terra Santa, em 1956, justamente o ano da Crise de Suez, um dos
momentos mais tensos da Guerra Árabe-Israelense. De posse desses motivos, de que vale uma
obrigação de obediência à justiça universal? O argumento ali é que aquela é uma situação por
demais particular para exigir observâncias regulares de normas
23
.
Não é culpa de Verdoux, não é culpa de Rachel e Kuipers.
Os dois casos apontam para uma forma muito interessante de se posicionar diante das
próprias ações. Em ambos os casos, estamos diante da criação de um oponente grande demais
para que se observe a norma consagrada. A Grande Depressão e o exemplo dos governos; a
Segunda Guerra e as situações de exceção. Essas situações determinam um efeito bastante
definido do dar uma desculpa: ao se circunstancializar a situação, desloca-se o lugar de mere-
cimento para sofrer. Ainda que Henry Verdoux seja, afinal, executado, ao final de sua histó-
ria, seu ar vitorioso é maior que o da sociedade que o pune. O fato de que se encontrará com
eles “muito em breve”, é definidor: será no inferno, porque ambos são dignos de punição. Ao
22
Na verdade, o filme começa com a visita de turistas europeus e americanos ao kibutz. Na seqüência, uma ho-
landesa casada com um canadense tira fotos em uma excursão e reconhece Rachel como uma de suas colegas de
infiltração feminina junto à SS, ao que a professora começa a relembrar o passado.
23
Referindo-se à experiência em campos de concentração vivenciada pelos judeus na Segunda Guerra Mundial,
Michel Pollak (1990) mostra como, em situações extremas, a moralidade universal dá lugar a arranjos peculiares
para garantir a sobrevivência diante do inimigo: “A profundidade da catástrofe engendrou uma crise de consci-
ência que dá saltos periodicamente colocando em jogo a covardia, o oportunismo e a cumplicidade que puderam
nascer naquela época e que foram condutas mais generalizadas do que a resistência e a oposição declarada”. Esse
tipo de situação extrema aponta para uma desculpa importante: ao adotar alternativas de sobrevivência em uma
situação em que a maioria das pessoas está morrendo, o argumento de que não se era forte o suficiente como os
que morreram” surge como um account emocional. “As seqüelas mais duráveis de um sistema repressivo como
aquele provêm de seu poder de fazer todo um exército de auxiliares e, por vezes, das próprias vítimas, aquilo que
eles recusariam em ‘circunstâncias normais.’” (p. 8).
38
mesmo tempo, se é, afinal, uma assassina, que teve nas mãos a vida de um ser humano inde-
feso que, apesar de criminoso, tinha direito à vida e a um julgamento justo, não é sem o lugar
heróico dedicado aos protagonistas que nossa espiã se ergue para um final triunfal.
Segunda questão: o dar uma desculpa articula uma noção de responsabilidade diante das
condições em que a ação foi praticada.
3) O perdão porque não há mais desculpa: os Dardenne e Ana Kariênina
24
“Todas as famílias felizes são iguais, escreveu Liev Tolsi (2007). A singularidade
que ele aponta nas infelizes, entretanto, é a grande sentença: cada uma o faz de uma ma-
neira peculiar. Encontramos formas singulares de ser infeliz por toda fião. De fato, é
uma das formas de definir o drama
25
. Stiepan Arditch é o paradigma dessa história.
Quando Ana Kariênina coma, somos informados de que “tudo era confusão na casa dos
Oblónski. A esposa ficara sabendo que o marido mantinha um caso com a ex-governanta
francesa. O conflito instalado mina as bases do casamento do personagem, iro da pro-
tagonista do grande romance sobre o adulrio. O momento da descoberta do affaire do
marido pela esposa é digno de nota (pp. 18-19):
Aconteceu com ele, nesse momento, o mesmo que ocorre com pessoas surpreen-
didas em uma circunstância demasiado vergonhosa. Não soube preparar suas
feições para a situação em que se viu, diante da esposa, após a revelação de sua
culpa. Em lugar de ofender-se, negar, justificar-se, pedir perdão ou até ficar in-
diferente tudo teria sido melhor do que o que fez! , seu rosto, de modo com-
pletamente involuntário (reflexos cerebrais, pensou Stiepan, que gostava de fi-
siologia), de modo completamente involuntário, abriu de repente seu sorriso cos-
tumeiro, bondoso e, por isso mesmo, tolo.
24
Adotei a grafia usada na tradução de Rubens Figueiredo, diretamente do russo, em vez das grafias anteriores,
consagradas, mas oriundas de traduções indiretas, do francês.
25
A estrutura do drama é aquela em que um protagonista se opõe a um antagonista na busca de um objetivo e na
qual o efeito artístico é produzido pela postergação da conquista desse objeto. A chegada à felicidade é sempre
precedida de infelicidade em variáveis doses.
39
De imediato, Tolsi nos brinda com uma tipologia de reações que o se muito
diferente da que apresentarei mais à frente, baseada em pesquisa emrica: negação indig-
nada; negação simples; justificação, perdão, indiferença sorriso. O significado deste úl-
timo gesto faz pensar: o que Oblónski comunica com ele? Vejamos o que o pprio nos
oferece como conta do que fez (p. 19):
Era um homem sincero consigo mesmo. Não conseguia enganar-se e persuadir-se de
que estava arrependido da sua conduta. Não conseguia, agora, arrepender-se por ele,
um homem de trinta e quatro anos, bonito e namorador, não estar enamorado da espo-
sa, mãe de cinco crianças vivas e duas mortas, e apenas um ano mais jovem do que
ele. Arrependia-se apenas de não ter sabido dissimular melhor diante da esposa. Mas
sentia toda a gravidade da sua situação e se compadecia da esposa, dos filhos e de si
mesmo. Talvez soubesse dissimular melhor seus pecados, diante da esposa, se previsse
que a notícia afetaria a ela desse modo. Está claro que nunca pensara sobre a questão,
mas lhe parecia, vagamente, que a esposa adivinhara, desde muito tempo, que ele
não era fiel, e fazia vista grossa. Parecia-lhe até que ela, uma mulher esgotada, enve-
lhecida, feia, sem nada de admirável, simples, apenas uma boa mãe de família, deveri-
a, por um sentimento de justiça, mostrar-se indulgente.
O gesto, então, traz contido nele este raciocínio: não é óbvio que um homem em tais con-
dições, casado com uma mulher em tais condições, terá um relacionamento extraconjugal? Pelo
menos para ele. Sua melhor desculpa, então, é traduzida em um gesto simbólico. O sorriso po-
deria querer dizer – como habitualmente quer dizer com familiares, conforme mostrarei mais à
frente – “eu sou assim”, mas, no caso de Oblónski, diz: “é assim [que as coisas são].”
O que esse caso apresenta é uma situação em que um cônjuge descobre que o outro, aque-
le de quem o se esperava nenhum segredo, age de maneira absolutamente inesperada. Diane
Vaughan (1986) abre seu estudo sobre divórcios dizendo que “uma separação começa com um
segredo”. O caso da esposa de Oblónski é ainda mais radical: ele se torna para ela um total es-
tranho. E, supremo desencontro, esse estranhamento é surpreendente para o marido.
Vejamos agora o caso de Bruno e Sonia, os protagonistas de A criança, filme dos irmãos
belgas Jean-Luc e Pierre Dardenne. Encontramos a jovem a chegar em casa, vinda do hospital,
onde deu à luz Jimmy, filho dos dois. Ao tentar abrir a porta, percebe-a com uma tranca e bate.
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Alguém ocupa seu apartamento e lhe conta que Bruno o havia alugado para eles. Ela
segue para a rua, em busca do companheiro. Encontra-o em frente a uma loja, vigiando um
homem, que pretende roubar. Depois de recebê-la de maneira um tanto indiferente, eles co-
meçam a conversar e ela pergunta sobre o apartamento:
SONIA: E para dormir?
BRUNO: No abrigo?
SONIA: E eu e Jimmy?
BRUNO: No andar das mulheres.
SONIA: Você tem algum dinheiro?
BRUNO: Não.
SONIA: Gastou tudo?
BRUNO: Sim.
SONIA: Foi meu apartamento que você alugou. Poderia ter me guardado algum...
BRUNO: Eu arrumo dinheiro sempre. Não precisava guardar (Mostra-lhe a jaqueta,
nova, e o chapéu). E então...? Legal, não é?
SONIA: É roubada ou foi comprada com minha grana?
BRUNO: Era impossível de roubar... Venha.
Segue-se uma seência um tanto infantil, em que ela e o pé para ele cair, ele se
precipita ao chão e ela, rindo, chuta-lhe pedras. Ele se levanta e ela retoma a conversa, de
maneira menos tensa:
SONIA: Venha para perto de mim... Venha (Ele se aproxima, mas parece evitar
contato com a criança. Ela se cola a ele). Quero dormir com você.
BRUNO: Só teremos o apartamento de volta depois de amanhã.
SONIA: Esperei por você. Pensei que você ia [ao hospital] me ver. Te liguei to-
dos os dias.
BRUNO: Tive que mudar o chip do meu telefone.
Vemos aqui um pequeno núcleo familiar recém-formado, mas que vive conflitos im-
portantes: sem dinheiro e sem trabalho, Bruno realiza pequenos delitos para sobreviver.
Ao mesmo tempo, jovens, o casal enfrenta a chegada do primeiro filho com certa inconse-
ência da parte dele: o jovem o apenas deixou a namorada sem casa como ficou com o
dinheiro ganho com o aluguel do apartamento e ainda o gastou de maneira fútil. Ao mes-
mo tempo, ele demonstra pouco cuidado e uma desculpa para o tê-la visitado no hos-
pital. Mais à frente, a assistente social do governo que vai visitá-los em casa fala de um
41
emprego para o rapaz. O salário é de mil euros por mês. o estou a fim”, ele responde
a Sonia. Ela insiste e ele diz: Não quero trabalhar. É coisa de babaca. E, logo depois,
usa o único dinheiro que tinha, ganho com a venda do produto de um roubo, para comprar
para ela uma versão feminina da jaqueta que havia comprado antes.
Mas o centro da trama vem logo em seguida. Após se separar do namorado e do filho
por algum tempo, quando estes vão passear, Sonia reencontra o rapaz em um lugar na beira do
rio, que eles chamam de “o esconderijo”. Segue-se o diálogo:
SONIA: Onde está Jimmy?
BRUNO: Eu o vendi.
SONIA: O que? Como assim, vendeu?
BRUNO: Sim, eu o vendi.
SONIA: Onde ele está?
BRUNO: Com pessoas que vão lhe encontrar uma família. Ele ficará bem, será adotado.
SONIA: Mas... Onde ele está?
BRUNO: Eu te disse: eu o vendi (Silêncio). Em uma hora, vou ao Jardim Botânico
com o carrinho e digo à policia que alguém o roubou (E lhe oferece o cigarro que
fuma. Ela está paralisada.) A gente faz outro. (Ela segue muda.) Veja... Dinheiro...
(e mostra um maço volumoso de notas – 5 mil euros. Ela desmaia.)
Ele a leva a um hospital. E passa a dizer que a namorada alucinou a venda do filho. Ele o
havia feito por sugestão de uma receptadora de mercadoria roubada, que lhe havia garantido que o
be seria adotado por uma falia de posses. Mas diante da reão “inesperada” de Sonia – que,
ele fica repetindo para a comparsa, “havia concordado com a venda, mas mudou de iia–, Bru-
no resolve devolver o dinheiro e retomar o filho. Mas a quadrilha, ao entregar a criança, exige que
o rapaz pague o dobro do valor que recebera. De volta ao hospital, se depara com a pocia, que
ouviu da e a história da venda. Ele nega. Sua resposta aos homens da lei: ela inventou a histó-
ria; o filho na verdade o é dele; ela quer que ele seja preso “para que possa trepar à vontade”.
Bruno fica na rua e, as tomar uma surra dos traficantes de bebês e ter seus últimos vinns
e seu celular tomado, vai ats da namorada, que o ignora. Como se nada tivesse acontecido, ele
lhe pergunta: “Me empresta seu GSM? [o telefone celular] Roubaram o meu... Vo me ?” E
diante do sincio dela, pede explicões: “O que eu te fiz? Achei que poamos ter outro, is-
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so.” Ela o expulsa violentamente, ameando-o com uma faca o que faz com que os dois che-
guem a se enfrentar fisicamente. Ordena que ele embora, leve embora o carrinho de beque
comprara e nunca mais volte. Ele voltará a procurá-la ainda mais uma vez:
BRUNO: Eu te peço perdão. Espere... Me perdoe!
SONIA: Cale a boca e pare de me seguir.
BRUNO (agarrando-se às pernas dela): Preciso de você, Sonia. o queria te ma-
goar... Não queria! Não me deixe, não me deixe.
SONIA: Saia! Me deixa!
BRUNO: Espere... Eu mudei, te juro... Espere. Não feche a porta, o vou tentar en-
trar. Eu te amo, Sonia.
SONIA: Voestá mentindo. Vomente tanto quanto respira (e fecha a porta na
cara dele).
(Silêncio. E quando esperamos uma fala redentora, ele:)
BRUNO: Sonia, eu queria um dinheirinho. Tenho fome. Juro, tenho fome. Seo
quiser abrir, passe por baixo da porta. Eu te devolverei. Ouviu? Sonia?
O que se segue é a tentativa derradeira do rapaz de conseguir o dinheiro para pagar a dí-
vida (que a quadrilha receberá “à prestação”). Planeja um roubo acompanhado de seu habitual
cúmplice, um menino de 12 anos. O resultado é fracassado e, após algumas peripécias, o ga-
roto termina preso e Bruno, com a lambreta dele. Ele vai mais uma vez à casa de Sonia, mas
não a encontra. De lá, vai à delegacia e se entrega, liberando o menino.
Preso, recebe a visita de Sonia. “Você quer um café?”, ela oferece. “Sim.” Ela está cho-
rosa. “E o Jimmy?”, ele pergunta. “Vai bem.” Ele segura o copo de plástico, toma o café... e
chora. Copiosamente. Como uma criança. Segura as mãos dela, que retribui e começa a tam-
bém chorar. Encostam a cabeça um no outro. Olham-se. Ela perdoa o namorado.
Esta segunda história também apresenta a ordem de um estranhamento profundo de um
outro que se julgava conhecer. Quando Sonia sabe que teve seu filho vendido pelo próprio
namorado, pelo próprio pai da criança, ela desmaia: o choque é grande demais. Mas assim
como na primeira história, temos aqui algo que chama a atenção: a coragem, a falta de censu-
ra dos personagens para apresentar razões, digamos, egoístas, para o que fizeram. E se é ver-
dade que Sonia rompe com Bruno, é também que antes da venda do bebê ela aceita tudo o que
43
ele fizera: o aluguel do apartamento, o uso de seu dinheiro, a ausência do hospital, o tratamen-
to distante, a recusa em ter um emprego, tudo vai sendo tratado como parte mesma da convi-
vência de ambos e o que conta disso tudo é a necessidade, dele. Comprou a jaqueta com o
dinheiro dela porque “era impossível roubar”. Mas a posse dela, não. Era necessária, obrigató-
ria para ele. No caso de Oblónski, ele imaginava que a esposa soubesse de seu comporta-
mento adúltero e que fizesse vista grossa. Em ambos os casos, o dar uma desculpa é operada
segundo altos graus de demonstração do bem de si como algo independente do bem do outro.
E o fato de que os dois casos são concluídos com pedidos de perdão – objetivo no caso de
Stiepan Arcáditch, subjetivo no de Bruno – corrobora essa tese: o perdão, ou seja, o esque-
cimento total do passado com vistas a um futuro melhor, vem porque não há mais possibili-
dades de articular exclusivamente o bem de si, não nos extremos em que os dois apresentam.
Terceira questão: o dar uma desculpa participa de uma economia de tensão entre o bem
de si e o bem do outro, com ênfase na idéia de demonstração do bem de si como necessidade.
4) Eu é um outro: um romancista russo e um tropicalista
Arkadi Makarovich Dolgoruk proclama: eu não peço desculpa. Jorge Mautner também.
Entre o protagonista de O adolescente (2002), romance multifacetado de Fiódor Dostoiévski e
a letra de música do artista ligado ao tropicalismo, uma coincidência importante. Dostoi-
évski escreveu seu livro entre 1874 e 1875, sob encomenda, recebendo por lauda, o que cer-
tamente determinou sua longuíssima metragem. Mautner fez Todo errado (que ele próprio
define no encarte do CD como “rock-balada-sertanejo-mariachi”, aproveitando para fazer alu-
são a seu pai em uma afirmação importante para se pensar o ato de dar uma desculpa: “Não
importa o que você fizer, estará sempre errado.”) para o disco Eu não peço desculpa, gravado
em parceria com Caetano Veloso em 2002.
44
Arkadi é um jovem ambicioso, cuja “idéia é ser Rothschild” (p. 2), um dos irmãos bili-
ardários alemães que foram os mais ricos da Europa na primeira metade do século XIX. Para
isso, ele traça um plano, que será meticulosamente executado, rumo à riqueza. O livro narra
basicamente um ano decisivo em sua trajetória. Mas me aterei aqui a um trecho específico,
aquele em que o rapaz se explica, oferece ao mundo os motivos para querer ser rico e para
“justificar” o que fará (o que ele chama de “minha idéia”) para que isso ocorra:
Entristece-me ter que desiludir o leitor desde o início, fico triste mas ao mesmo tem-
po encantado. Pois fiquem sabendo, não nos objetivos de minha “idéianenhum
sentimento de vingança, nada byroniano, nem maldição, nem queixas de órfão, nem
lágrimas de bastardo, nada, nada. (...) Todo o objetivo de minha idéia é o isolamen-
to. (...) É que além do isolamento, quero também o poder.
O plano é surpreendente: seu objetivo é ser tão rico quando o famoso bilionário e, de-
pois, isolar-se do mundo. De que maneira? Ele daria o dinheiro. Todo (“não darei a metade
(...) eu ficaria duas vezes mais pobre e nada mais”, p. 43). Ele está disposto a tudo fazer, in-
clusive agir de maneira imoral, para ter um poder peculiar de tudo ter para tudo dispensar e,
com isso, ter poder absoluto. Depois de sua carta de intenções, ele apresenta uma série de si-
tuações mostrando como será absolutamente singular quando alcançar seu objetivo. Mas so-
bre as histórias que narra, ele tem uma critica: “São pálidas e talvez vulgares” (p. 40). Por
quê? Por conta da epígrafe desta tese: “Só a realidade justifica tudo.”
Frase forte. Aparentemente de puro efeito. Mas quero me deter sobre ela. A idéia de jus-
tificação aparece na frase em um sentido lato, sem muita precisão: é algo como uma legitima-
ção, uma aprovação. Está dito, então, que se uma medida absoluta de legitimação, esta é a
realidade, a experiência vivida, fora das abstrações.
Mautner traz um poema simples, em que igualmente renega qualquer arrependimento:
Eu não peço desculpa
E nem peço perdão
Não, não é minha culpa
Essa minha obsessão.
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Já não agüento mais
Ver o meu coração
Como um vermelho balão
Rolando e sangrando,
Chutado pelo chão.
Psicótico,
Neurótico,
Todo errado...
Só porque eu quero alguém
Que fique vinte e quatro horas do meu lado.
No meu coração, eternamente colado...
No meu coração, eternamente colado...
Por trás dessa aparente simplicidade, o jogo sugerido no poema é bastante intrincado. Lo-
go depois da afirmação do que não faz, vem a proclamação: “Não, não é minha culpa/ Essa mi-
nha obsessão”. Isso que ele chama de “obsessãoé o desejo de ter alguém que ele ame. É uma
forma poética para mostrar o amor: ele tudo pode fazer porque precisa ter alguém para amar e
em uma relação. Mas essa forma de amar é apresentada de maneira específica: obsessivo, o eu
poético, assim como Arkadin, é diferente. Ele introduz o sentimento amoroso como uma tensão
particular que se com seu coração. Diferentemente do que acontecia com Oblónski e Bruno,
ele não apresenta o amor como ele é, mas como ele é diante do amor. E se faz algo de errado, é
porque não está em seu estado de normalidade. Da mesma forma como Arkadin quer sair de seu
estado de normalidade para poder tudo fazer.
Quarta questão: o dar uma desculpa distancia o ator de si mesmo, na medida em que a-
firma, como fez Rimbaud, em seu texto Cartas do visionário (1995 [1871]), que “eu é um ou-
tro”. E essa diferença de si é produzida por uma diferença em relação aos outros.
5) Direito de resposta ao sofrimento: uma menina britânica que se sente
culpada e João Grilo no céu, chegamos à terra
Briony está à mesa de jantar com sua família. Leon (MCEWAN, 2002, pp. 157-158):
“Adoro a Inglaterra quando faz uma onda de calor. Vira um país diferente. Todas
as regras mudam.”
Emily Tallis pegou seus talheres, e todos a imitaram.
46
Disse Paul Marshall: “Bobagem. Me diga uma única regra que muda”.
“Pois bem. no clube o único lugar em que a gente pode tirar o paletó é a sala
de bilhar. Mas quando a temperatura chega a trinta e dois graus, antes das três da
tarde, é permitido tirar o paletó no bar do andar de cima no dia seguinte.”
“No dia seguinte! Um país diferente, sim.”
“Você sabe o que eu quero dizer. As pessoas ficam mais à vontade bastam dois
dias de sol que viramos italianos. Na semana passada, na Charlotte Street tinha
gente jantando em mesas nas calçadas.”
“Os meus pais”, disse Emily, “achavam que o calor levava os jovens a se com-
portar mal. Menos camadas de roupa, mil lugares pra se encontrar. Fora de casa, fora
do controle. A sua avó em particular ficava muito preocupada no verão. Ela inventa-
va mil pretextos para que eu e minhas irmãs não saíssemos de casa.”
“Bem”, disse Leon, “o que voacha disso, CEE? Será que hoje vose com-
portou pior até que o normal?”
Todos olharam para ela, e a brincadeira do irmão era implacável.
“Ora, você ficou vermelha. Então a resposta deve ser sim.”
Sentindo-se na obrigação de defendê-la, Robbie foi dizendo: “Na verdade...”.
Mas Cecília interrompeu-o. “Eu estou morrendo de calor, isso. E a resposta é
sim. Eu me comportei muito mal. Convenci Emily, contra a vontade dela, de que o
jantar devia ser um assado em sua homenagem, apesar do calor. Agora você está
comendo salada enquanto todos nós estamos sofrendo por sua causa. Assim, passe
os legumes para ele, Briony, e quem sabe ele fica quieto.
Leon, então, resolve procurar “alguém de seu tamanho”: “Você fez alguma coisa errada
hoje por causa do calor? Você quebrou as regras? Por favor, diga que sim.Mas a irmã, depois
de uma série de considerações consigo mesma, prefere uma resposta moralista: “Sem querer
decepcionar ninguém, eu não fiz nada de errado hoje”, assim mesmo, com grifo no “eu”, apon-
tando para o fato de que alguém, outro, havia feito. No desenrolar do romance, veremos que a
jovem acusará, injustamente, o namorado da irmã de atacar sexualmente sua prima, fazendo
com que ele seja preso e que o casal, finalmente, seja separado para sempre, provocando a des-
graça na vida da irmã. O arrependimento profundo se abaterá sobre ela e ela nunca se perdoará.
Mas na cena em que ela demonstra sua posição de empreendedora moral o que está em
jogo é a possibilidade de usar o calor como desculpa para “quebrar as regras”. Leon louva o fato
de que a sisuda Inglaterra se permite uma válvula de escape quando a temperatura sobe. Seria
uma espécie de desculpa universal, de circunstância amplamente utilizável. Mas mesmo que
seja difundida universalmente, ela não é universal logicamente. A permissão dada para a ação
articulada a partir desse argumento é... individual. Não nenhuma ligação com algum bem
comum ou alguma tentativa de se alocar junto à regra moral. Isso porque o calor... faz sofrer.
47
Enquanto isso, no céu:
JOÃO GRILO
E o senhor vai dar uma satisfação a esse sujeito [O Encourado], me desgraçando pra
o resto da vida? Valha-me Nossa Senhora, e de Deus de Nazaré, fui menino,
fui homem...
A COMPADECIDA
Sorrindo
lhe falta ser mulher, João, já sei. Vou ver o que posso fazer. [A Manuel] Lembre-
se de que João estava se preparando para morrer quando o padre o interrompeu.
ENCOURADO
É, e apesar de todo aperreio, ele ainda chamou o padre de cachorro bento.
A COMPADECIDA
João foi um pobre como nós, meu filho. Teve de suportar as maiores dificuldades,
numa terra seca e pobre como a nossa. Não o condene, deixe João ir para o purgatório.
JOÃO GRILO
Para o purgatório? o, o faça assim não. [Chamando a Compadecida à parte.]
Não repare eu dizer isso, mas é que o diabo é muito negociante e com esse povo a
gente pede mais, para impressionar. A senhora pede o céu, porque aí o acordo fica
mais fácil a respeito do purgatório.
A cena apresentada acima, extraída da peça Auto da Compadecida, de Ariano Suassu-
na (2005 [1957]), mostra uma situação bastante comum. Não me refiro, obviamente, a diá-
logos entre pessoas mortas (João Grilo), o diabo (O Encourado) e Nossa Senhora (A Com-
padecida). Falo, na verdade, do que dizem esses seres sobrenaturais. No trecho, João Grilo,
um trambiqueiro, está sendo julgado depois da morte. O tribunal divino é constituído como
um espelho de tribunais reais, com personagens esquematicamente ocupando papéis típicos
de um julgamento: Grilo é o réu; O Encourado é o advogado de acusação; Manuel, ou Jesus
(que no trecho citado não aparece, mas que tem falas a ele direcionadas), é o juiz; e A Com-
padecida aparece como advogada de defesa. Mas o que chama mesmo a atenção é o tipo de
reivindicação feito pela defensora. O réu teria cometido vários crimes (no caso, pecados) e
está provado que ele praticou as ões de que é acusado. Ainda assim, A Compadecida pro-
põe que as regras racionais da corte, até então obedecidas, sejam flexibilizadas, desobedeci-
das circunstancialmente, e que o acusadoo seja punido.
48
Não se trata, entretanto, de um pedido de clemência, do uso de uma espécie de poder
moderador – o que até poderia ser esperado de um juiz que ocupa também o lugar de Filho de
Deus. Ela não solicita o simples perdão do réu. A Compadecida, em vez disso, articula uma
espécie de argumentação para dar sustento à proposta de o réu não ser punido. E seus argu-
mentos são concebidos a partir das peculiaridades das situações nas quais foram praticados os
crimes de seu “cliente”, peculiaridades que, aliás, incluem o histórico dele. Sua reivindicação
se baseia em um suposto atenuante, o de que “João foi um pobre (...), teve de suportar as mai-
ores dificuldades, numa terra seca”. E ela não apela apenas para a piedade do juiz persona-
gem do qual, então, seria esperada uma avaliação racional, de justiça. Ela atrela essa piedade
a uma associação pessoal e, dirão alguns, de classe entre o réu e Manuel, além de a ela
mesma. A Compadecida lembra que o personagem não apenas foi um homem simples, mas
foi simples da mesma maneira como ela e Jesus foram quando viveram na Terra. Os três teri-
am passado pelo mesmo tipo de sofrimento, o que permitiria ao meritíssimo entender os mo-
tivos que teriam levado o réu, agora morto, a praticar seus pecados em vida.
Como todos reconhecem que o que o acusado fez é errado, reconhecem também a validade
das regras morais/legais em questão e a validade de um projeto de punição. Mas A Compadecida
propõe: se forem levadas em conta determinadas circunstâncias segundo as quais seu cliente teria
sido obrigado a adotar determinado comportamento, esses erros podem a ser cometidos,
mesmo que se concorde que eles não devam sê-lo. “Não o condene, deixe João ir para o purgató-
rio”, diz ela, propondo ao juiz, inclusive, uma “pena alternativa”, atenuada
26
.
26
Além de João Grilo, estão no tribunal outros moradores de uma cidadezinha nordestina, todos executados por um
cangaceiro e seu capanga (ambos também em julgamento, depois de terem sido mortos por João Grilo e por seu amigo
Chicó, o único a permanecer vivo na história, não participando do evento celestial). Cada personagem está diante do
tribunal segundo seus pecados, cada um se dizendo inocente a sua maneira. João é um malandro, concebido nos mol-
des da figura folclórica ibérica de Pedro Malas Artes, espertalhão que vence os poderosos com sua lábia. Grilo faz
trambiques e, pouco antes da morte, traçara um plano para tirar vantagem do padeiro e de sua esposa, seus patrões. Ele
e Chicó se sentem injustados por anos de maus-tratos na padaria e concluem que chegou a hora de tirarem finalmen-
te algum proveito. No primeiro ato, Grilo tenta ganhar dinheiro dos patrões, oferecendo-lhes um enterro em latim para
o cachorro morto do casal. Depois, vende-lhes um gato que, segundo Grilo, “descome” (ou seja, defeca) dinheiro.
49
João Grilo e Briony estão de lados opostos da situação de dar uma desculpa. Moralista, a
menina assume uma posição superior em relação à irmã e a todos os outros que fariam alguma
coisa errada por causa do calor. Já o trambiqueiro é justamente aquele que algo fez por conta da
seca. Entretanto, os dois estão diante de uma mesma economia, a do sofrimento: nas duas histó-
rias, estão em jogo permissões para a ação baseadas no sofrimento. O sofrimento parece ser um
elemento importante no qual podem ser traduzidas várias formas de desculpas dadas.
Quinta questão: o dar uma desculpa opera uma economia do sofrimento, que surge
como elemento para dar sustentão a ões que podem trazer incômodos em uma relão.
50
UMA DEFINIÇÃO SOCIOLÓGICA DO DAR UMA DESCULPA:
DO SENSO COMUM A UMA ABORDAGEM ESPECÍFICA
A observação dessa inveão nos textos de ficção serviu não apenas para levantar questões,
mas para reforçar uma desconfiança que era ela mesma uma outra questão. Observada como falas
de personagens, a desculpa dada ajudou a apontar para uma dimensão menos óbvia: ela produz
efeitos o discursivos, e são justamente eles a variável a ser analisada. Era necessário, eno,
buscar outras lentes para olhar para esse objeto e entender sua importância sociológica.
Uma primeira questão era a representão social a respeito da categoria. O humorista Guca
Domenico (2003) diz que “através dos tempos, a desculpa tem sido uma ferramenta muito utiliza-
da pelo homem e não se tem notícia de coisa tão útil, depois da inveão da roda” (p.11). Esse
“utilitarismo” é um dos traços mais complicadores ao se analisar esse objeto. Para muitos, descul-
pa dada é “desculpa esfarrapada
27
. De fato, é quando mais facilmente se reconhece uma descul-
pa: quando ela soa como “apenas uma desculpa”. Essa apreensão “moralista
28
do fenômeno faz
da desculpa dada irmã gêmea do pretexto e prima-irmã da mentira. Mas, proponho, esse é um tipo
de ão que produz efeitos bem mais ambiciosos do que os contidos tanto numa idéia de promo-
ção de subtergio para a lei/regra, quanto na idéia de reconciliação. Por isso mesmo, começarei
agora a refinar esse objeto, a fim de deixar clara a maneira como me aproximarei dele.
27
A expressão “desculpa esfarrapada” é um regionalismo brasileiro. O termo “esfarrapado” se refere, nesse sentido, a
algo mal ajambrado e pode se referir a qualquer coisa, de um sanduíche a uma desculpa. “Esfarrapado” vem, claro, de
“farrapo”, originado para o português do espanhol “harapo”, que depois se transformou em “farapo”, ambos com o
sentido de “trapo, andrajo” (primeiro registro de uso em 1300), vindo do antigo verbo espanhol “farpar” ou “harpar”,
“cortar em tiras, estragar uma roupa,r tiras ou rebarbas em pendão, setas, anzol etc.” Outrasnguas têm construções
semelhantes. Em inglês, a expressão é “lame excuse” ou, nos Estados Unidos em alguns casos, “lousy excuse”.
28
Uso agora o termo no sentido lato, mas essa noção se torna essencial como conceito para uma abordagem como a
que desenharei aqui: uma vez que o social será entendido como uma disputa em torno de princípios morais, uma idéia
de “bem” estasempre em jogo. Mas esse “bem”, em uma fenomenologia que parta da idéia de crítica, tesempre
como referência uma noção de igualdade, de justiça. Fica fácil de entender, então, a popularidade da crítica sobre a
desculpa dada: ela se oporia à moral da justiça.
51
Nas páginas que se seguem, recorrerei a dois modelos teóricos: o primeiro, o de uma te-
oria dos “performativos” (AUSTIN, 1962) e dos “atos de fala” (SEARLE, 1969), a fim de
discutir que ação social é realizada pelo dar uma desculpa. O segundo modelo, mais propria-
mente sociológico, é o da abordagem pragmatista
29
, a partir da discussão sobre competências,
justificações e regimes de ação (BOLTANSKI e THÉVENOT,1987; 1991). Uma operação
importante neste momento será traduzir o dar uma desculpa no “estilo” (NACHI, 2006)
pragmatista, para depois ampliar esse quadro com o que considero minha contribuição para
compreensão de meu objeto, um modelo que articulará competências morais com efetivações
simbólicas. Antes, o traduzirei sociologicamente.
Mea desculpa
Antes de avançar, entretanto, tenho que levar em considerão o fato: uma desculpa dada é
uma fala. Como tal, é dada às complexidades interpretativas do falar. Por isso, a palavra “descul-
pa” é tão multissêmica quanto presente nas relações. A julgar pelos casos acima e pelo que cons-
tatei em entrevistas, estou falando de algo que se confunde com outros, chamados pelo mesmo
nome. O primeiro problema para uma definição, eno, é a sinonímia: a primeira idéia, de senso
comum, que se tem da palavra “desculpa” é oriunda da idéia de “pedir desculpas”: “desculpa”
seria um procedimento para anulação da culpa de alguém que cometeu um erro – “É como o pró-
prio nome diz, desculpar é des-culpar, é tirar a culpa”, dizem-me, em uma etimologia informal.
De maneira geral, entende-se a palavradesculpaem várias dimensões
30
:
29
Adoto a designação “pragmatista” para me referir à corrente francesa “sociologie pragmatiste”, para diferen-
ciá-la de qualquer corrente sociológica que possa ser considerada “pragmática”, em conexão com o pragmatismo
(e o “pragmaticismo”) filosófico americano, criado por Charles Sanders Peirce no final do século XIX. Embora
haja uma conexão central entre os dois modelos, eles não devem ser confundidos.
30
Para montar essa galeria, trabalhei com definições de dicionários e com entrevistas. Essa forma de obser-
vão acabou por se mostrar mais fértil que o que se poderia produzir com, por exemplo, questionários.
Sobretudo porque nessas conversações as definições são discutidas com as pessoas, que costumam multi-
plicar os sentidos dos termos, deixando claras sinonímia e multissemia.
52
1) Como um femeno geral de apaziguamento de conflitos/reconciliação a partir de
uma demonstrão de arrependimento (A desculpa): um primeiro sentido é aquele que en-
globa uma vasta gama de operações visando a impedir-o-rompimento/promover-a-
retomada de uma relação social em risco por conta de uma ão que feriu moralmente
uma das partes. É o sentido contido na expreso “pedir desculpasou pedir perdão”. E-
timologicamente, o termo vem de uma variação do latim e do português arcaico desacul-
par, o ato de retirar a culpa.
2) Como um fenômeno espefico de apaziguamento de conflitos/reconciliação (o
dar uma desculpa): ao mesmo tempo que pode ser entendido como um femeno geral
que engloba essas ações, o termo desculpa costuma ser compreendido também como uma
forma específica de “pedir desculpas”, ou mesmo como uma forma de “não pedir descul-
pas”. O importante é que essa ação envolve a oferta de uma explicação peculiar, circuns-
tancialista, que chamo de dar uma desculpae dedesculpa dada”.
3) Como argumento (Uma desculpa/Desculpa dada): O termo “desculpa” tamm
designa, habitualmente, o argumento usado para a desculpa. É o: Ele é pobre da defesa
d’A Compadecida; ou o: Era impossível roubarda fala de Bruno; ou o: O mundo nos
obriga a ser assassinos em massa de Verdoux. Ou também o: Tive que ir ao banco”, que
podemos dizer quando chegamos atrasados. Ou é o: O computador deu pau, a impressora
ficou sem tinta, o disquete o abriu, um vírus apagou tudo. Você sabe que o computador
é um bicho imprevivel, , fessor? Temperamental feito ele só!, que o jornalista Léo
Cunha (2004), um tanto anedoticamente, usa como exemplo de desculpas dadas por alu-
nos para atrasos em trabalhos escolares.
4) Como ação demandante (Desculpar-se): na forma de uma ão, a desculpa é um
verbo, desculpar-se. Curiosamente, embora haja uma forma verbal para o ato de pedir
desculpas, o há um para o ato de oferecer uma explicação circunstancialista para uma
53
ão que incomodou a outrem. Ele acaba por depender dessa locão analítica que tenho
usado, dar uma desculpa. De todo modo, embora nem todas as desculpas sejam dadas
em pedidos de desculpa, é importante deixar claro que a solicitação de desculpa não vem
sem argumento, por mais que ele seja dado de maneira automática, ritual
31
.
5) Como ão concedente (Desculpar): o ato de aceitar a desculpa, o desculpar, é também
contemplado nesse horizonte semiológico. Não me deterei sobre esse elemento neste trabalho.
Diante desse quadro de ambiidade, a constatação é a de que, embora a sinonímia seja
dominante nos discursos, as pessoas com que falei compreendem, diferenciam claramente e o
capazes de administrar as categorias da galeria acima. Neste trabalho, minha preocupação é inves-
tigar o “dar uma desculpa” e as desculpas dadas”, ou seja, a ão social de dar um tipo de argu-
mento para sustentar uma ação em desacordo com o que outrem considere correta.
O objeto que estou aqui analisando é, afinal, um discurso. É, antes de tudo, um “enunci-
ado”. Mas não é um tipo qualquer de enunciado. Trata-se da forma de enunciado que Austin
(1962) define como “performativo”, ou seja, “um enunciado que pratica uma ação” (p. 6), a-
quele cuja expressão é ela mesma a prática de uma ação. Por exemplo: “Eu prometo que...” ou
“Declaro aberta esta reunião”. Igualmente, quando se uma desculpa, não se está apenas
dizendo algo, apresentando uma declaração que possa ser verdadeira ou falsa, não se está a-
penas descrevendo
32
, reproduzindo algo que esteja na mente. Mais que isso, embora possa
parecer à primeira vista, não se está apenas “contando uma historinha”. Está-se, mais que isso,
fazendo algo. A questão desta tese é: o quê?
31
Convém diferenciar duas situações de pedido de desculpa: uma, na qual são usadas palavras-chave con-
sagradas e cujo horizonte simbólico não provém diretamente da relação específica entre as pessoas. É o que
ocorre quando pisamos no pé de um desconhecido ou mesmo de um conhecido e simplesmente dize-
mos: Desculpe-me ou mesmo: Perdão”. Ali, o compromisso parece estar simplesmente em um ideal de
paz, na anulação de um possível conflito em uma relação não-familiar. O outro caso, pelo qual estou mais
interessado, é aquele em que em teremos que utilizar argumentos mais longos, exigidos tanto pelo tipo de
ação quanto pela relação específica. É o que acontece quando o amigo chega atrasado, quando um marido
fala mais alto com a esposa ou quando um problema de responsabilidade é estabelecido.
32
Austin prefere o termo “constativo” ao termo “descrição”. Como este não é um estudo de lingüística, uso
“descrever” aqui para me referir à reprodução de um pensamento.
54
Pois bem, Austin foi um dos primeiros a se aproximar das desculpas dadas de maneira
sistemática. Para o filósofo, (1979, p. 176):
Em geral, a situação é aquela em que alguém é acusado de ter feito algo, ou (para deixar
mais claro) na qual é dito que alguém fez algo que de mal, errado, inepto, indesejado ou
de alguma entre inúmeras outras formas desfavorável. Logo depois, o próprio, ou al-
guém que esteja a seu lado, tentará defender sua conduta ou tentar ti-lo da situação.
O que chama a atenção nessa definição é que o dar uma desculpa aparece como um proce-
dimento de resposta, um retorno. Para Austin ele depende de uma acusão. Esse pressuposto será
compartilhado por vários autores que tratarão do mesmo tema – boa parte deles a partir de Austin,
als. Mas antes, reparemos, uma desculpa dada surge como uma explicão. Isso localiza esse
objeto como um tipo do que vem sendo tratado pela sociologia como account, o ato de prestar
conta, de dar satisfação por algo. O uso dos accounts como categoria sociológica foi operado e
consagrado sobretudo pela etnometodologia, que a tratou como seu substrato central, em especial
no trabalho de Harold Garfinkel, mas há elementos de sua utilizão por toda a sociologia qualita-
tiva, sobretudo a influenciada pelo pragmatismo americano e pela Escola de Chicago. Antes, en-
tretanto, um dos primeiros a utilizar o termo foi Wright Mills (1940), em uma discussão a respeito
do conceito de “motivos” de Weber, um complexo de significado subjetivo que parece ao pró-
prio ator ou ao observador uma sustentão adequada à conduta em queso”. Uma das melhores
e mais consolidadas definões, entretanto, foi feita por Scott e Lyman (1968), a partir de Austin e
de observões próprias (p. 112): “é um discurso feito por um ator social para explicar uma ação
imprevista ou um comportamento problemático, seja esse comportamento da ppria pessoa ou de
outros, ou quer a causa imediata a provocar esse discurso provenha do próprio ator ou de outrem”.
Essa definão é feita no escopo de um movimento de reconhecimento do valor dos discursos co-
mo objeto sociológico. Eles estão interessados na qualificação desses discursos como “habilidade
para manter de as vigas da sociação rompida, para estabelecer pontes entre o prometido e o
executado, para consertar o que está quebrado e trazer de volta quem está longe” (p. 111).
55
A definição deles situa um account em um modelo semelhante ao proposto por Goffman
(1971), que classifica as interões sociais o conceito-chave dessas abordagens em suporti-
ve” eremedial, alocando os accounts no segundo grupo, aquele que trata das formas de recons-
tituão, de retomada das relações
33
. Em minhas observações, entretanto, ficou claro que havia
algo a ser repensado nesse modelo: a noção de que não se pode chamar de “remediadoraa inte-
ração contida em um account. De fato, na abordagem de Boltanski e Thévenot, a situação em
que se essa “indagação valorativa” é chamada de “momento crítico” (1999, p. 359), nome
que, segundo os autores, aponta para a raridade dessa ocorrência. O que quero dizer é que uma
abordagem como essa cria uma espécie de “lado de fora” da relação, um espaço em que ela pode
cessar. Uma das regularidades que pude observar, sobretudo em minhas entrevistas com casais, é
que a insatisfação é uma forma de interação e que ele é constituinte importante da relão. “Se eu
brigo com minha mulher e, sei , vou dormir na sala, o significa que eu deixei de ser marido
dela e que a minha ausência na cama o continua se relacionando com ela”, diz-me Antônio, ma-
rido de Viria, três anos de casamento, cinco de relacionamento; “A gente discute muito. Se a
gente fosse contar isso como ponto fora da curva, simplesmente não haveria curva”, diz Mariana,
namorada de Gilberto um ano e meio (na época da entrevista)
34
. Assim, se a definição de Scott
e Lyman parece apontar para uma raridade, para uma descontinuidade social, na apresentação de
accounts
35
, parece-me importante ampliar essa definão, mostrando como esse “dispositivo lin-
33
Goffman qualifica três principais rituais remediais”: apologies; accounts (ambos depois de uma ão pratica-
da); e requests (que ocorre antes da ação). Para ele, trata-se de um conjunto de rituais, ou seja, de ações incorpo-
radas como hábitos pelos atores sociais. As apologies o os pedidos de desculpa, ou seja, as manifestações ex-
plícitas de arrependimento; os accounts são esses discursos que dão conta do feito; e os requests são os pedidos
de licença para ações, a serem solicitadas para legitimar algo que se queira fazer.
34
Antecipo aqui a apresentação de minha pesquisa com casais apenas para sustentar esse argumento. Mas apre-
sentarei pormenorizadamente as regras dessa pesquisa e seus resultados ainda nesta introdução e no capítulo 3.
35
Scott e Lyman (1970, p. 112): “As pessoas não requisitam um account quando estão ligadas à rotina, a um
comportamento de senso comum em um determinado meio cultural que o reconhece como tal. Assim, na socie-
dade americana, normalmente não se pergunta por que pessoas casadas mantêm um relacionamento sexual, ou
por que elas sustentam casa e filhos, embora esta última pergunta possa muito bem ser feita se tal comportamen-
to ocorre entre os Naires do Malabar. Essas perguntas não são feitas porque as respostas são determinadas de
antemão em nossa cultura e são indicadas pela própria linguagem. Aprendemos que o significado de “casal” é:
duas pessoas de sexos opostos que têm o direito legítimo de manter relações sexuais e criar seus filhos em um
56
güístico empregado sempre que se sujeita uma ação a uma indagação valorativa” é menos rara
do que se pensa e é um elemento de manutenção das próprias relações, uma vez que negocia a
tensão entre ação localizada e regra moral.
Por ora, entretanto, prossigo na definição de desculpa. Scott e Lyman fazem sua defini-
ção situando-a em uma tipologia de dois elementos (1970, p. 114): “Justificações são ac-
counts nos quais alguém aceita ser responsabilizado pelo ato em questão, mas renega a quali-
ficação pejorativa a ele associado. (...) Desculpas são accounts nos quais a pessoa admite que
o ato em questão é ruim, errado ou inapropriado, mas nega ter responsabilidade total sobre
ele”. E aqui coloca-se o primeiro pressuposto teórico desta tese: há, contida nessa tipologia, a
tensão central que me chamou a atenção quando o dar uma desculpa se tornou uma questão
para mim, a tensão entre genérico e circunstancial. Uma justificação surge como uma recusa
de descompasso entre princípio moral (universal) e ação (localizada); uma desculpa dada sur-
ge como uma constatação de descompasso entre esse princípio moral e essa ação. Mas não um
descompasso qualquer, e sim um descompasso contaminado, como demonstrarei abaixo em
uma tipologia de diferentes reações a ações que causam mal-estar.
A situação descrita por Austin para a desculpa, lembremo-nos, vem a partir da constata-
ção de que ele se trata de um performativo, de uma fala que pratica uma ação. Mas se é fala e
atua, ainda assim, Austin informa, ela não tem esse poder sozinha (p. 8):
A verbalização de palavras é normalmente um, ou até mesmo o principal, incidente no
desempenhar de um ato (...), a ação que também é o objeto do enunciado. Mas está lon-
ge de normalmente ser considerado, até mesmo se o for alguma vez, a única coisa ne-
cessária para que o ato seja tido como executado. Em termos gerais, sempre é necessá-
rio que as circunstâncias nas quais as palavras são proferidas sejam, de alguma maneira,
ou maneiras, apropriadas, e é muito comumente necessário que ou o próprio falante ou
as outras pessoas envolvidas também tenham que executar certas outras ações, sejam
elas ‘físicas’, sejam ‘mentais’, ou até mesmo o ato de verbalizar mais palavras.
ambiente doméstico. Quando tais fenômenos tidos como óbvios o questionados, o inquiridor (se for um mem-
bro do mesmo grupo cultural) é visto como ‘apenas um gozador’ ou talvez uma pessoa ‘doente’”.
57
Segundo Austin (p. 94), essa situação é composta por três tipos possíveis de atos expres-
sivos: a) locução, ou ato locutório: um enunciado que apresenta sentenças dotadas de sentido e
referência; b) ilocução ou ato ilocutório: enunciado que “pratica uma ação ao dizer algo em vez
de praticar a ação de dizer algo”; e perlocução ou ato perlocutório: o que se consegue provocar,
ou justamente o efeito que se consegue produzir no interlocutor ao dizermos alguma coisa.
Isso diz muito sobre o objeto sobre o qual estou me debruçando. Mas qual é o sentido so-
ciológico de um “ato ilocutório”? Para chegar a ele, proponho avançar um pouco mais em uma
teoria da linguagem. Utilizo o modelo dos “atos de fala” de Searle (1969). Para o filósofo, um
performativo pode praticar cinco tipos de speech acts”, na forma de cinco tipos de enunciados: a)
representativos: aqueles que comprometem o falante com a verdade da proposão expressa (a-
firmar, declarar, etc.); b) diretivos: aqueles que o tentativas, por parte do falante, de fazer com
que o ouvinte faça algo (pedir, questionar, exigir); comissivos: aqueles que comprometem o falan-
te com a realização de uma ação futura (prometer, ameaçar); expressivos: aqueles que expressam
um estado psicogico do falante (agradecer, perdoar); declarativos: aqueles cujo efeito causa mu-
daas imediatas no estado de coisas e que tendem a apoiar-se em instituições extralinísticas
(um presidente ao declarar guerra, um padre ao batizar, um patrão ao demitir alguém).
Aparentemente, dar uma desculpa poderia ser interpretado como um enunciado “expres-
sivo”, que deixaria aberta a disposição do falante para se defender. Mas, e se ele for pensado
como enunciado “diretivo”, ou seja, como enunciado que pede para que o outro pratique uma
ação? O sentido sociológico disso é que o dar uma desculpa aparece como um dispositivo pa-
ra fazer o outro fazer algo. E esse algo não é apenas a adesão a uma explicação que, conforme
veremos e estamos habituados a constatar –, nem sempre terá compromisso com a verdade
ou mesmo com a veracidade. O que trabalho para demonstrar aqui é que essa ação é justa-
mente a de descendência de uma esfera comprometida com a abstração da regra universal pa-
ra uma disposta a aceitar a dimensão pragmática de uma ação circunstancialista.
58
Revisemos os exemplos ficcionais que listei acima. Em todos os casos, de Adão a João
Grilo, tem-se: a) um ator é admoestado por alguém – Deus no caso de Adão; Quincas, no caso
de Brás Cubas; Horneck, no de Jerry; a Justiça, para Henri Verdoux; a própria consciência
diante de uma moral de paz, em relação a Rachel; Sonia (principalmente), diante de Bruno; a
esposa, para Oblónski; o leitor, para Arkadin; um interlocutor amoroso, para o eu poético da
canção de Jorge Mautner; a moral tradicional de Briony diante do calor, para os personagens
em torno dela; O Encourado no Auto da Compadecida incomodado com o descumprimento
de uma regra moral/legal que considera relevante; b) esse ator procura apaziguar o mal-estar
gerado pela admoestação; c) esse mesmo ator oferece para isso um argumento que não procu-
ra recusar a incorreção da ação; ao contrário, admite-a (ainda que sub-repticiamente em al-
guns casos); d) ele oferece um argumento deslocado em relação aos princípios morais basea-
dos nos quais as acusações foram estabelecidas e ligado a circunstâncias peculiares da situa-
ção e/ou do praticante; e) esse deslocamento se referencia no interesse dele, culpado, e não no
interesse sobre o qual a crítica é construída.
Um primeiro elemento digno de nota nessa sistematização, quando observada ao la-
do da idéia de account e da definição de Austin, é a relão com a iia de acusação. Uma
vasta literatura sobre sociologia dos conflitos e dos chamados comportamentos desviantes
entre a qual destaco, claro, o embletico trabalho de Becker (1970) e os de Misse
(1999); Velho (1985); e Machado da Silva (1995) tem articulado uma discussão a partir
da noção de acusação como um processo de rotulação” (BECKER), “estigmatizão”
(GOFFMAN, 1988) e elaborações “adjetivas” (WERNECK, 2008b), como a de sujeição
criminal, de Misse (1999). Em todos esses trabalhos, o movimento de acusação assume
uma dimensão primordial nos conflitos e no controle social. Ao mesmo tempo, em um
modelo como o de Boltanski e Thévenot (1987, 1991), um mesmo movimento assume
uma dimensão um grau mais abstrata: se a acusão pode ser entendida como um processo
59
formal, constituído por uma série de procedimentos mais ou menos ritualizados caso da
acusação policial ou judicial, por exemplo , a crítica (BOLTANSKI e THÉVENOT,
1999, p. 359) surge como uma forma abstraída:
A pessoa que se dá conta de que algo não está funcionando raramente permanece em si-
ncio. Ela o guarda os seus sentimentos para si. O momento em que se conta de
que algo não está funcionando é, na maioria das vezes, aquele em que percebe não poder
mais suportar esse estado de coisas. A pessoa deve, por essa razão, expressar desconten-
tamento em relação às outras com quem estivera desempenhando, até então, uma ão
conjunta. A demonstração desse descontentamento pode terminar em um “escândalo”. O
escândalo propriamente dito assume diferentes formas. Pode facilmente se converter em
violência. Contudo, o investigaremos essa possibilidade. Mais freqüentemente, o es-
cândalo torna-se uma discussão na qual críticas, acusações e queixas o trocadas. Ele
assim se desdobra em uma controvérsia. A palavra “escândalo” sugere querelas domésti-
cas, e a palavra “controvérsia”, litígio judicial. O primeiro é visto como informal, en-
quanto que a segunda é conduzida pelo sistema judicial. No entanto, há uma profusão de
casos intermediários, como, por exemplo, as discussões em lojas ou repartições, entre
clientes e funcionários, ou os desentendimentos na rua, entre motoristas.
Mais do que como categoria lateral em um mesmo esquema, a crítica aparece acima da
acusação em grau de abstração (a acusação surge como um caso particular, formalizado, da crí-
tica). Mas, seja em um nível seja no outro, em ambos os casos as definições articulam a dimen-
são apenas aparentemente mais habitual de seus fenômenos, a dos discursos, a das acusações
e/ou críticas verbalizadas. Entretanto, minha pesquisa com casais demonstrou um traço impor-
tante e que reivindica um grau ainda mais abstrato na definição. A insatisfação de que falam
Boltanski e Thévenot pode ser demonstrada por um urro, por um suspiro, por um silêncio, por
um movimento corporal. Essa insatisfação, aliás, pode nem mesmo ser demonstrada, pode ser
apenas percebida, ou seja, ela pode ser notada pelo lado ofensor sem que o lado ofendido tenha
feito um movimento consciente e/ou discreto para isso
36
.
36
Scott e Lyman (1968, 1970) tratam essa forma como um dos “estilos lingüísticos dos accounts, indican-
do-o como íntimo”, e dão um exemplo: Um homem casado, deitado ao lado de sua mulher, a acaricia sem
receber em troca uma reposta afetuosa. Ela emite uma única palavra, quebrada. Por este termo, o marido
entende que o account dado em resposta à pergunta não verbalizada: Por que você não faz amor comigo?
Afinal de contas, sou seu marido e você tem obrigações maritais!, é: Entendo que em circunstâncias nor-
mais eu deveria responder e de fato responderia ao seu desejo de fazer amor, mas esta noite estou can-
sada demais para este tipo de atividade. Não ache que isso significa que perdi afeição por vo, ou que ne-
gligencio minhas obrigações maritais. Kauffman (2007) apresenta vários casos em que o agacement (in-
cômodo) entre casais assume a forma de uma gramática não-verbal. Em minha pesquisa, vários exemplos
60
Justamente por conta disso, resolvi operar com uma forma ainda mais geral de femeno,
que chamarei aqui de demonstrão/perceão de mal-estar relacional. Diferenciei mal-estar
simplesmente de mal-estar relacional para indicar, com este último, que se trata de um mal-estar
de um dos participantes de uma relão e que pode fazer diferea para o estatuto dessa relação.
A lógica do dar uma desculpa pode ser, então, apresentada pela seguinte seqüência:
1) uma ação social de um ator A causa mal-estar relacional em outro ator, B;
2) esse mal-estar é demonstrado por A/percebido por B
37
; A dá uma desculpa (um tipo de
“defesa de sua conduta”)
38
e/ou pede desculpas;
3) B o desculpa (ou não) e o mal-estar relacional é “congelado” (ou não).
Salvo por esta elaborão da noção de mal-estar, esse esquema não difere muito de
outras apresentações do procedimento do dar uma desculpa, como o de Austin e os de
Herzfeld (1982), Benoit (1995), McDowell (2000), Miller (2002) ou mesmo Boltanski
(2004). Mas todos esses modelos insistem em centrar a observão na dimeno rerica
desse ato, em sua forma como estratégia discursiva. Desses modelos, o que mais se apro-
xima de uma observação actancial é o de McEvoy (1995), que demonstra que a crítica
justifica o mau trato contra o praticante do ato imoral”. O uso central do termo “justifica-
çãopelo autor que procura demonstrar como a crítica que gera o dar uma desculpa tem
que ser justificada me fez olhar para o modelo pragmatista como uma boa possibilidade
de pensar a desculpa como ação mais do que discursiva.
dessa noção surgiram, como no caso de Sérgio, que chega a sua casa e nota que a mulher, Cláudia, está ca-
lada, mas nada faz. O silêncio permanece até que ele fica também mudo longamente e ela pergunta: “O que
houve? Ele: “Você estava calada e quando se cala, é porque está irritada, eu te conheço!” Ela: Faz duas
semanas que você não me chama mais de filhinha quando entra em casa!”.
37
Esse esquema tem um certo grau de esquematismo, para incluir o ato de demonstrar consciente do mal-estar,
mas parece fácil enxergar que para o fenômeno da desculpa o hemisfério importante desse duo é a percepção de
mal-estar: é ela quem determinará a ação do praticante da ação incômoda. Claro, a demonstração (e sua intensi-
dade e sua estética) poderá ser determinante para a intensificação do conflito.
38
Ocorrência que acrescenta um grau de complexidade à definição do dar uma desculpa como performativo.
Diferentemente de em um pedido de desculpas, o dar uma desculpa não tem um enunciado típico. Pelo menos
não à primeira vista. algumas expressões típicas para se pedir desculpas (“desculpe-me”, “perdoe-me” etc.),
mas uma infinidade de argumentos podem ser desculpas dadas.
61
A idéia de olhar para o modelo da capacidade críticade Boltanski e Thévenot que
afirma que os atores possuem essa capacidade de se insatisfazer com as ações de outrem,
fazem uso constante dela e demonstram consciência e reflexividade nesse processo mos-
trou-se uma possibilidade bastante rica. Centrado na noção de justificação que eu havia
entendido a partir de Scott e Lyman, mas sobretudo a partir da tensão observada empiri-
camente entre universal e particular como contraponto central para se pensar o dar uma
desculpa, esse modelo, chamado pelos autores de “modelo da economia das grandezas”
proposto em 1987 e 1991 por Boltanski e Thévenot e consolidado por uma obra apenas de
Boltanski de 1990 –, mostrou-se efetivamente um ponto de partida e uma inspiração para
minha abordagem. Uma série de elementos desse modelo me foram úteis para construir meu
próprio, sobretudo a forma peculiar segundo a qual os autores tratam conceitos como o de
competência e em especial noções de regime e de solução de compromisso.
No próximo item, demonstrarei como dialogo teoricamente com esse modelo, no qual
as relações sociais o apresentadas como um sistema de disputas e acordos em torno das
grandezas relativas dos agentes, chamados por Boltanski e Thévenot de actantes
39
, segundo
uma economia entre críticas e provas. Minha definição parte de uma oposição entre o ato de
dar desculpa e a categoria central dessa teoria, a justificação de fato, a desculpa aparecerá
como uma resposta particularista (e, portanto, alternativa) a uma demanda de justificação ,
ou seja, a uma demanda de dar conta de uma ão pela demonstração de sua concordância
com um princípio de equivalência superior. No tratamento que darei a esse modelo, o dar
uma desculpa e a justificação se tornam diferentes formas de resposta à demonstra-
ção/percepção de mal-estar relacional
40
.
39
A noção de actante vem do fato de que para os autores o social é entendido como um sistema actancial, ou
seja, interpretado a partir das ações localizadas. O termo vem do semiótico russo Algirdas Julien Greimas, de sua
teoria narratológica, por meio do trabalho de Bruno Latour. Doravante, passo a adotar a mesma notação.
40
Além disso, sustento que uma desculpa dada é o operador de uma tensão entre manutenção de regras morais e
manutenção de relações. Com sua ão circunstancialista e personalista, a desculpa ao mesmo tempo ajuda a
62
Múltiplas interpretações e sociologia pragmatista
Fica clara, então, a motivação para se trabalhar em um sistema que adote como princí-
pio a exigência de justificações tanto os actantes que criticam quanto os que são criticados,
exatamente o outro lado do dar uma desculpa em um sistema de, digamos, accountability
41
(BOLTANSKI/THÉVENOT, 1999, p. 360):
Uma primeira característica dessas situações é que as pessoas nelas envolvidas estão
sujeitas a um imperativo de justificação. Aquele que critica outras pessoas tem que
produzir justificações para sustentar suas críticas, assim como alguém que seja alvo
de críticas tem que justificar suas ações para defender sua causa.
Trata-se de um modelo que contempla o social como um sistema de competências morais.
Por “compencia” entende-se “uma capacidade para julgamento de prinpios e coordenação das
ões para se ajustar às situões e participar de operações dentro de um regime” (NACHI, p. 43).
Por “regime” entende-se um conjunto de características das lógicas de discurso, de ação e estados
assumidos pelos actantes em uma situão. Esses dois elementos seo centrais para o “estilo”
pragmatista, que apresentarei rapidamente
42
. Boltanski e Thévenot (1987; 1991; 1999) e Boltans-
ki (1990) propõem que um dos elementos determinantes da constituão das ordens sociais mo-
dernas é a crítica, a manifestão de não-aceitação dos actantes de situações por eles observadas:
“Pessoas, envolvidas em relações cotidianas, que estejam fazendo coisas juntas digamos na po-
tica, no trabalho, no sindicato e quem que coordenar suas ações, chegam à concluo de que
conservar a regra moral que “burla”, ao criar uma “margem de manobrapara sua rigidez, e a miná-la, ao de-
monstrar que sua observância estrita o é um dado absoluto. A apresentação de uma desculpa acaba por ofere-
cer uma moralidade alternativa e concorrente à da regra que a gerou.
41
O uso deste termo funciona de certa forma como jogo de palavras. Explico: os estudos de governo costumam traba-
lhar com o conceito de accountability, como referente à obrigação de membros de um órgão administrativo ou repre-
sentativo de prestar contas a instâncias controladoras ou a seus representados. Aqui, o termo aparece em sua acepção
mais primitiva, como um imperativo, para deixar claro que uma demanda de prestação de contas nas relações.
42
Essa abordagem dialoga com algumas tradões de pensamento, notadamente com a sociologia crítica de
Bourdieu (neste caso, como dissidência) e com o pragmatismo filosófico americano Peirce, James, Dewey,
Mead e as correntes dele oriundas, como a sociologia fenomenológica de Schütz etc.; com a etnometodo-
logia Garfinkel etc.; do interacionismo simlico Blumer etc.; da microssociologia Goffman –, embora
o haja refencia expcita a eles como inspiradores nos textos emblemáticos da corrente. Outros elementos
importantes de sua origem serão a gramática generativa de Chomsky e a sociologia da ciência de Latour. Mas
também conversa intensamente com a ppria filosofia potica e moral. Todo esse referencial serve de base
para a sociologia pragtica e servirá de refencia para esta investigão.
63
algo está errado; de que eles o podem manter-se daquela forma por mais tempo; de que algo
deve mudar” (1999, p. 359). Os actantes observam as situações (ações dos outros) o tempo todo e
as avaliam, segundo um cririo baseado na idéia de bem comum, de “comum humanidade
(BOLTANSKI/THEVENOT, 1991, p. 96). Cada uma dessas observações poderiam se transfor-
mar, eno, em um “momento ctico”, se surgisse insatisfação com aão em questão. A base do
modelo é a iia de que há uma pluralidade de regimes de ão e que os actantes se movem entre
regimes de disputa (nos quais os princípios o disputados) e regimes de paz (nos quais não se
disputam princípios), cada um deles baseado em uma diferente gratica da ão.
dois regimes de paz: a) ajustamento (justesse): a paz é estabelecida pelas ações pa-
dronizadas dos seres humanos, a partir de pressupostos previamente incorporados por eles,
ou seja, são ões que não abrem espaço para disputa de princípios (como o hábito de entrar
numa fila sem discutir se seu lugar no final é justo ou não); e b) amor (ágape): a paz é estabe-
lecida a partir da noção de ágape, o amor desinteressado, em que ações são estabelecidas em
torno de uma impressão de fraternidade, sem uma reflexividade da idéia de bem, como,
por exemplo, quando alguém perdoa outra pessoa amada
43
.
E há dois regimes de disputa: c) violência: as grandezas (e, em conseência, as ações)
o estabelecidas a partir de uma diferenciação de força, e a disputa conduz para o conflito,
a ruptura e a destruição das relações mesmas; e d) justiça: as ações são justificadas, ou seja,
o explicadas por meio de prinpios superiores comuns aos atores envolvidos.
Este último regime corresponde à justificação e é nele que se dão as ações críticas, que
obedecem a um protocolo, à busca de uma forma de generalidade que situe os actantes,
sejam eles críticos ou criticados, fora de seus interesses pessoais, em prol do princípio su-
perior comum (BOLTANSKI/THÉVENOT, 1999, p. 360):
43
O conceito de ágape e a maneira como ele determina um regime de amor são amplamente discutidos por Bol-
tanski (1990). Como para o âmbito deste texto a paz pelo regime de amor não será determinante, não me debru-
çarei mais longamente sobre essa gramática.
64
Essas justificações precisam seguir regras de aceitabilidade. Não podemos dizer, por e-
xemplo: “Não concordo com voporque não vou com a sua cara”. E não há razões para
achar que essas regras de aceitabilidade seriam diferentes para aquele que critica e para
aquele que tem que responder às críticas. Assim, um quadro de análise da atividade de
disputa deve ser capaz de operar com as mesmas ferramentas as críticas de qualquer or-
dem situacional ou social assim como a justificação dada em vigor.
Um exemplo proposto justamente por Boltanski/Thévenot (1999, p. 361) oferece uma
situação prática da questão dos critérios universalizantes necessários para a justificação:
Vamos considerar, por exemplo, uma disputa entre dois motoristas depois de uma
colisão. A indignação furiosa do primeiro pode advir de uma série de situações o-
pressivas sofridas por ele ao longo do dia: sua esposa está doente; seu filho tirou no-
tas muito ruins na escola; seu chefe o humilhou; ele está tenso por causa de uma dor
em sua garganta (talvez um câncer) e, além disso tudo, esse cara estúpido bate em
seu carro novinho e lindo. Assim é demais! Mas o segundo motorista pode também
trazer uma série de motivos pessoais para reclamar do mundo cruel: sua mãe morreu
no dia anterior; seus impostos aumentaram; seu último livro foi recusado pelo editor
e, mais ainda, esse idiota, no meio da rua. Assim é demais! Mas se eles querem
escapar da violência, devem ser capazes de eliminar a maior parte desses motivos de
descontentamento, levando em consideração que eles são problemas “privados”, e
convergir para uma definição comum de situações e objetos relevantes tais como
códigos de trânsito, estado dos pneus etc. Mas a fim de convergir no sentido de esta-
belecer o que é relevante e o que é irrelevante, eles precisam partilhar uma capaci-
dade comum de ver o que se adéqua à situação e sob que relação. Logo, eles preci-
sam de uma definição comum da forma de generalidade que permite interligar a si-
tuação a outra, identificada por eles como similar.
Mil desculpas
Mas posso imaginar uma torção na situação anterior. Um dos motoristas diz ao outro
justamente: Puxa, minha mulher esdoente”; ou: “Minha mãe acaba de morrer”. Cada um
desses fatos pode servir não como potencializador do descontrole, da entrada em um regime
de violência, e sim, justamente, como atenuador: pode funcionar como argumento para dar
conta e fazer aceitar uma ação precipitada no trânsito que tenha provocado o acidente. Isso
demonstra uma operação diferente à constituída na justificação. A crítica não produziria
uma busca por uma forma de generalidade, mas por uma forma de especificidade capaz de
emular a própria disputa. E, o que será mais central: diferentemente do que acontece na jus-
tificação, a desculpa dada não produziuma prova. No lugar dela, operará uma mecânica
dupla, por um lado, emocional, por outro lado, lógica.
65
Os regimes de ação não são regimes estanques. Boltanski (1996, p. 37) mostra que “as
pessoas são dotadas da faculdade de se torcer entre um regime e outro, segundo cadeias que
podem ser mais ou menos longas”, ou seja, que os actantes são capazes de circular entre dife-
rentes regimes de ação. E este parece ser o elemento-chave aqui, aquele que diz qual é, afinal,
a ação praticada pelo performativo do dar uma desculpa: ela opera uma importante torção,
porque é propriamente uma operação a ser iniciada dentro de um regime de justiça, em que as
reivindicações contidas nas críticas são todas estabelecidas em torno de um critério de princí-
pio superior comum. A resposta, e apenas ela, é que promoverá esse trânsito a outro regime.
A primeira impressão tida sobre a desculpa é a de que ela recusaria a utopia “conserva-
cionista” da justificação, ou, mais especificamente, recusaria o princípio moral. Mas a descul-
pa dada opera justamente segundo uma lógica dupla. A começar porque ela parte de uma acei-
tação do princípio moral. Não é uma operação de imposição de fronteiras entre uma regra u-
tópica “impossível” e práticas reais “possíveis”; é uma tentativa de situar uma disputa no pla-
no da especificidade e de retomar o presente.
De um lado, então, está uma ão nitidamente produzida segundo um regime de justiça, a
crítica; do outro, outra ação que movimenta os actantes para esse outro regime de circunstâncias, a
resposta na forma de uma desculpa. Essa afirmão indica uma forma de precedência: o que está
em jogo no momento crítico é a tensão entre a moral do crítico e a do criticado, mas é a moral do
crítico quem guia o conflito. Becker (1970) constrói o processo que ele chama de “rotulação”,
ou seja, de atribuão de acusões, como a operada pelo que ele chama de empreendedor mo-
ral”, aquele ator que se mostra engajado em algum princípio de moralidade e que, por isso, rotula
um ator que pratique um ato em desacordo com ele. Isso conduz a um racionio de que tratarei
mais à frente, mas que parece importante citar no âmbito de uma definão: é preciso levar em
considerão que há, em ão nas relações, diferentes morais, concorrentes. Uma delas, mais di-
fundida, consagrada, é capaz de produzir mobilização em sua defesa, ou seja, empreendedorismo
66
moral. Outras, menos difundidas, mais segmentadas, concorrem pela consagração ou permane-
cem como “cultura outsider(BECKER, 1970). A desculpa operaria, então, como um “agente
duplo”. Ela pode ser um primeiro passo de uma mudança rumo a uma nova moral consagrada.
Mas será também uma forma de manter a moral consagrada atual, uma vez que, ao oferecer-
lhe uma válvula de escape momentânea, uma margem de manobra, permitirá sua manutenção,
sem que se inicie um conflito mais amplo que a poderia ameaçar pela discussão de sua factibi-
lidade e, depois disso, sua efetividade (conceito que explorarei no último capítulo).
* * *
Pois bem, tomado o modelo que apresentei anteriormente, observação-
demonstração/percepção de mal-estar-resposta-ruptura/arrefecimento, como resultado da situ-
ação de mal-estar relacional, o acusado pode apresentar uma das seguintes reações:
1) Mostrar-se indiferente (Não dar nenhuma resposta). Chamarei esta opção simples-
mente de indiferença.
2) Negar que tenha praticado a ação (Uma resposta do tipo: “Eu não comi da árvore,
Javé Deus” ou “Eu não matei nenhuma mulher, imagine!”, ou: “Não fizemos trambique ne-
nhum em vida”). Chamarei esta opção de negação.
3) Afirmar desconhecimento da regra moral (Uma resposta do tipo: O Senhor ha-
via falado da árvore do conhecimento do bem e do mal? Eu não sabia!”, ou: “Eu não podia
alugar seu apartamento?, ou ainda: Ué, mas não podia fazer enterro de cachorro em la-
tim?”). Chamarei esta opção de declaração de inoncia.
4) Admitir que praticou a ação e apresentar um account. Isso inseri o actante em
uma economia de disputa em torno da justiça proposta pela percepção do mal-estar e o
fará explicar sua ão segundo uma de quatro possíveis formas:
67
a) Renegar o princípio moral/legal que produziu o mal-estar (Uma resposta do tipo: “Eu
o ligo se ele tinha direito a um julgamento justo!”). Chamarei esta opção de desengajamento
44
.
b) Admitir que praticou a ação, mas recusar que ela esteja em desacordo com o princí-
pio moral/legal que gerou o mal-estar, apontando uma justificativa para a prática da ação atre-
lada a uma idéia de bem comum (Uma resposta do tipo: “Matei, mas sou policial e estava no
exercício do meu dever”, ou: “Será o melhor para todos se ele for executado”). Chamarei esta
opção pelo nome usado por Boltanski e Thévenot, “justificação”.
c) Admitir que praticou a ação e admitir o desacordo com o princípio moral/legal em
questão, mas mesmo assim solicitar o não mau tratamento. Essa paralisação da justiça se ba-
seia na criação de um puro efeito anulador (Uma resposta típica entre casais: “Cheguei atrasa-
do e não poderia chegar, mas não vá embora, eu te amo”). É o perdão.
d) Admitir que praticou a ação e admitir o desacordo com o princípio
moral/legal em questão, mas solicitar uma permissão para o descumprimento
da regra especificamente no caso em avaliação, em determinadas circunstân-
cias específicas. Essa permissão será baseada em uma particularização das
condições de cumprimento da universalidade da regra mesma (Uma resposta
do tipo: Não posso ir ao jogo com você porque tenho que dar aula de geome-
tria a meu sobrinho”
45
). É o dar uma desculpa.
44
Há uma vasta literatura em psicologia social a respeito da idéia de “moral disengagement”, sobretudo a partir
do trabalho de Bandura (1990), mas não discutirei este tema aqui, justamente por considerar que as ações aqui
descritas demonstram engajamento e não o contrário.
45
Pode haver certa dificuldade na diferenciação entre uma desculpa e uma justificação, sobretudo quando entra em
jogo uma retórica da necessidade. Dois exemplos de explicação para atrasos são bons para ajudar a esclarecer esses
limites: no caso de um atraso de trem que provoca o atraso do passageiro, essa motivação é apresentada como algo
totalmente fora de seu controle, configurando uma motivação superior comum, algo que efetivamente é partilhado
por ambos os envolvidos. Já no caso de uma ida ao banco, o atraso foi motivado por uma decisão tomada pelo ac-
tante, que acabaria se atrasando, o que caracteriza sua responsabilidade. Em certo sentido, entretanto, toda desculpa
objetiva ser recebida como justificação, ou seja, tem a pretensão de ser plenamente entendida como justa (e é por
isso que se desloca a decisão para o plano da necessidade “Tive que ir”). Afinal, os actantes não produzem “justi-
ficações” ou “desculpas”, eles produzem falas nas situações, ou seja, eles não pensam necessariamente de antemão
na categoria. Isso define um duplo estatuto para a desculpa dada, ao mesmo tempo como forma de engajamento
moral e como “retórica de defensividade” (MCEVOY, 1995).
68
Palavra complicada, desculpa. Como demonstrei, além de ser um objeto sociológico,
“desculpa” é uma palavra dotada de múltiplos sentidos e que desliza sobre vários planos sim-
bólicos. Antes de prosseguir na construção do problema propriamente social, pareceu-me
primordial dar conta da certa multissemia do termo. Até por conta da constante confusão que
enfrentei ao apresentar meu próprio tema: ouvi inúmeras vezes reações a ele apagarem a dis-
tinção entre dar desculpas e pedir desculpas. Debrucei-me, então, brevemente repito: bre-
vemente – sobre a desculpa a partir de um ponto de vista filológico. Obviamente, fiz isso ape-
nas em português e apenas o suficiente para colher os sentimentos sociológicos necessários
para minha pesquisa. Não tive a intenção de fazer uma pesquisa exaustiva sobre a origem do
termo e nem mesmo uma reconstituição completa de sua genealogia.
Ainda assim, consegui determinar
46
: “desculpa” como account tem uso mais antigo do que
desculpa como demanda de reconcilião. O Vocabulario Portuguez e Latino, de d. Raphael Blu-
teau (1713), define “desculpa” como: “Raz, que fe allega de huma coufa feyta, ou que fe há de
fazer, ou que se n quer fazer”
47
. A etimologia do termo é igualmente conhecida: de acordo com
o Índice do Vocabulário do Português Medieval, a primeira ocorrência do termo é registrada em
1352, com esse sentido. O termo vem de uma variação do verbo latino e português arcaico desa-
culpar, o ato de retirar a culpa. No latim, são registrados usos em Tito Lívio (59 a. C.-17) e Tá-
cito (55 d. C.-120 d.C.). O termo, e com o sentido de apresentar um motivopara uma ão, é
antigo. Mais tarde, esse sentido foi deslocado da apresentão das desculpas para os pedidos de
desculpa, ocupando o lugar que era antes ocupado pelo perdão, tornando-se dele sinônimo
48
.
46
Para esta pesquisa, tive o privilégio de contar com a ajuda do professor Sérgio Pachá, lexicógrafo-chefe da Acade-
mia Brasileira de Letras, que gentilmente abriu as portas de seu escritório para conversarmos e forneceu não apenas
indicações e dicas de pesquisa como preciosas cópias de dicionários antigos que alimentaram parte da investigação.
47
Grafia da época.
48
Essa multissemia se repete em outras línguas latinas, obrigando à criação de expressões diferentes com o mesmo
termo. Em francês, por exemplo, a palavra excuse produz as construções “faire une excuse” ou “donner une excuse”,
no sentido de dar uma desculpa, e, para se pedir desculpas, as expressões variam, desde o “excusez-moi” ao “pardon-
nez-moi”. Fora do plano das línguas latinas, a empreitada é bastante facilitada. Por exemplo, em inglês, o termo
“excuse”, de sentido operacionalmente distinto do termo “apology” (este segundo vindo do grego apologos, e significa
defesa) – embora haja ainda possibilidade de sobreposição dos dois no uso.
69
Mas essa aproximação entre dar e pedir desculpa não podia ser apenas uma confusão. Se era
o recorrente, deveria querer dizer algo e se tornaria elemento de minha pesquisa empírica, como
mostrarei nos capítulos 3 e 4. Antes, entretanto, um episódio: no meio da pesquisa, deparei-me com o
Dictionnaire de Théologie Catholique (VACANT e MANGENOT, 1930). Sentei-me por dias na
biblioteca da Maison des Sciences de l’Homme a ler verbetes como “pecado” e “ofensa
49
. Até che-
gar ao verbete “penitência”(p. 944): “Procurar a origem do mal é indispensável para conhecer perfei-
tamente os redios
50
a lhe serem prescritos. Não é, então, suficiente que o penitente tenha apresen-
tado omero e os tipos de pecados que cometeu; é preciso muitas vezes ter acesso às circunstâncias
de tempo, lugar, pessoas, hábitos e ocasiões que o levaram a pecar”. No mesmo verbete, cita-se a Bu-
la aposlica do papa Bento XIV para 1749
51
: “As advertências do confessor o mais importantes
que as do sero no lpito, uma vez que o confessor conhece as circunstâncias peculiares das ões
dos confessandos”. Fez pensar: o sacramento da penincia, no qual o perdão de Deus é ministrado,
dependendo apenas do sincero arrependimento para isso, ganhava uma nova cor, a de que o confes-
sor deveria avaliar as circunstâncias pragmáticas da situação em que foi praticado o pecado. As leis
de Deus, o máximo prinpio de equivalência universal baseado na fraternidade entre os homens
estabelecida pela filiação com o Pai –, é varvel de acordo com as circunstâncias, ou seja, com a
competência do ator para demonstrar as peculiaridades de sua situão. Esse exemplo demonstra a
relação intrincada entre esses diferentes fenômenos, dar uma desculpa e pedir pero, o que me levou
a encontrar desculpas dadas em meio a pedidos de desculpa. Mas o interesse aquio é no que ocor-
re quando algm diz: “Me desculpe”, e sim naquilo que se faz quando se diz: “Me desculpe, mas...
Esta, então, é uma sociologia do depois do “mas”.
49
Esta observação foi feita por sugestão de Luc Boltanski, a quem agradeço.
50
O DTC explica que o confessor ocupa vários papéis ao longo do sacramento da confissão. Um deles é o de
médico: o pecado é uma doença contra a qual é preciso prescrever remédios. Para encontrá-la, entretanto, é pre-
ciso fazer uma “anamnese” para determinar exatamente a doença e escolher os medicamentos.
51
Não deixa de ser digno de nota que essa bula papal seja publicada por um papa particularmente reformador. Bento
XIV estabeleceu várias transformações na liturgia católica. O curioso aqui é uma bula que transfere para uma relação
homem-Deus, na forma de uma relação homem-homem (pecador-padre), a precedência sobre uma relação homens-
Deus, na forma de uma relação homens-homem (pecadores na missa-padre na missa). Ora, esse tipo de desenho indi-
vidualista não deixa de ser uma forma de aproximação com a perspectiva protestante.
70
QUESTÕES (E SOLUÇÕES) METODOLÓGICAS
A construção de uma análise: de um objeto sociológico a uma categoria
metodológica (e de volta ao objeto)
Um objeto sociológico como este,o ambíguo, e sobre o qual eu próprio estou construindo
aqui uma dicotomia – esta, feita analiticamente, entre discurso e ação –, o é de fácil observação,
por mais que seja fácil vê-lo em toda parte. O primeiro problema a ser levado em conta, então, é o
fato de minha ação social analisada ser também um discurso. O grifo em “tambémé essencial:
performativo, como demonstrei, a desculpa é discurso que pratica ação. Ao mesmo tempo, entre-
tanto, uma rie de ões produzidas por ele e que não são ele. A partir disso, essa primeira
distinção tinha que ficar clara desde o início: o objeto sociológico aqui em discussão é aão pra-
ticada pela desculpa e, de certa forma, não ela mesma – ou seja, não em sua dimeno física, ver-
bal, de fala. A investigão de que trata essa tese parte desta pergunta inicial: que ato ou, mais
especialmente, que conjunto de atos é praticado quando se dá uma desculpa?
Para responder a essa pergunta, ficou claro que era essencial observar, então, as conse-
qüências produzidas pelas desculpas dadas e não apenas elas mesmas (ou seja, seus conteúdos
discursivos, sua retórica). Era necessário, para entendê-la, obter o máximo de cor e inflexão, o
máximo de contexto. Isso desde sempre determinou duas formas de enquadramento para este
trabalho. O primeiro deles, apresentado aqui, foi o olhar para meu objeto a partir de uma
abordagem pragmatista
52
. O segundo foi a conclusão, epistemologicamente depreendida da
primeira, mas sobretudo raciocinada a partir da busca pelo campo, de que minha pesquisa de-
52
E mesmo pragmática, uma vez que os princípios do antifundacionalismo e do conseqüencialismo (POGRE-
BINSCHI, 2005) são centrais para meu ponto de vista: não princípios a priori nesta pesquisa, e minha obser-
vação parte mesmo dos efeitos da ação social em questão o que inclusive determinará o principal elemento da
teoria aqui prospectada.
71
penderia de uma abordagem qualitativa, ou seja, uma abordagem na qual eu pudesse ter aces-
so ao momento de produção das desculpas, fosse esse momento observado em processo, fosse
ele reconstituído a posteriori. Por isso mesmo, a mais importante inspiração metodológica
para esta pesquisa foi a noção de “grounded theory”, proposta por Glaser e Strauss (1967).
Tal abordagem é baseada na idéia de produzir a teoria sociológica “a partir” da experiência de
campo e não usar o campo como espaço de teste de uma teoria dada
53
. Trata-se de uma abor-
dagem indutiva, baseada na análise sistemática dos dados obtidos em campo. Apenas com
uma abordagem qualitativa e, mais fortemente, por aquilo que Glaser e Strauss chamaram de
“amostragem teórica” (1967, p. 45), eu poderia chegar a uma teoria “formal” por meio de uma
“teoria substantiva”, segundo os autores (1967, p. 32), os dois tipos de teoria que podem ser
geradas com uma abordagem comparativa
54
:
Por teoria substantiva entendemos aquela desenvolvida por uma área substantiva, ou
empírica, da investigação sociológica, tal como as ações de enfermeiros, relações de ra-
ça, educação profissional, delinqüência ou institutos de pesquisa. Por teoria formal, en-
tendemos aquela desenvolvida para uma área formal, conceitual, da pesquisa sociológi-
ca, como estigma, comportamento desviante, organização formal, socialização, congru-
ência de status, autoridade e poder, sistemas de recompensa, ou mobilidade social.
Ou seja, uma teoria substantiva é um conjunto de hipóteses para uma dada área
substantiva baseada na pesquisa nessa área (GLASER e STRAUSS, 1970, p. 288). Trata-
se de raciocinar em busca de uma teoria que possa ser depreendida a partir da observação
de um processo em processo. É, digamos, uma análise no gendio. Esse tipo de aborda-
gem permite que se estabeleça uma teoria inicial, que vai sendo ajustada à medida que e
na medida em que o campo demande ajustes. Nas palavras de Becker (1970, p. 191), ao
53
Alguns analistas têm traduzido a expressão como “teoria fundamentada”, e de fato essa me parece uma boa
tradução. Mas mesmo assim, preferi manter o termo no original, por dois motivos: 1) pela consagração de seu
uso; e 2) para manter a riqueza multissêmica do termo ground”, que contém um caráter físico importante. Por
ser uma teoria produzida “no campo”, a palavra “ground”, que pode significar “chão”, sugere um duplo sentido
digno de nota: é grounded” porque é “sustentada”, mas também porque, digamos, tem os pés no chão e vem do
contato com a experiência efetiva.
54
A noção de abordagem comparativa de Strauss e Glaser diz respeito a comparações não apenas entre diferentes
grupos ou mundos sociais, mas se refere mais propriamente ao próprio processo dedutivo: é por comparação cons-
tante entre as diferentes configurações apresentadas pelo recorte observado que se depreende a teoria substantiva.
72
colocar uma observação como tal [de um certo fenômeno inicialmente observado no cam-
po e pasvel de abstrão teórica] no contexto de uma teoria sociológica, o observador
seleciona conceitos e define problemas a serem pesquisados. Ele constrói um modelo teó-
rico para dar conta daquele caso singular, mas com a intenção de refinar o modelo à luz de
novas descobertas”. Isso cria um procedimento acumulativo de impreses sobre o campo,
que vai solidificando outras impreses por constante comparação: Quando começa o
trabalho vital de testar uma teoria recém-gerada, deve-se como que esquecer ou ignorar a
evincia a partir da qual a teoria foi gerada. A atenção passa a se voltar para uma nova
evincia, destinada a verificar uma parte da teoria(p. 29)
O limite desse ajustamento é o que Glaser e Strauss chamam de saturação (1967,
p. 39), uma condição ótima em que novas verificações, e novas evidências, no campo, não
oferecem alterações consideveis para a teoria. Uma abordagem quantitativa, por outro
lado, poderia me permitir observar padrões textuais, contdos rericos típicosprodu-
zidos nas desculpas. De fato, é um caminho adotado por boa parte dos estudos dedicados a
este objeto como o de Benoit (1995), por exemplo. Mas isso, acredito, manteria o véu de
limitação com que acredito que esse objeto tem sido observado. O dar uma desculpa tem
sido limitado a um jogo de rerica. Parece poder ser enxergado dele sua dimensão ins-
trumental como disse anteriormente, a desculpa só é enxergada quando é esfarrapada ,
o uso consciente dele como um ritual ou ptica reparadora (GOFFMAN, 1971), ou ape-
nas como “discurso de auto-defesa” (BENOIT, 1995), ou, ainda, como “escamoteamento
ou “manipulação(SLANSKY e SORKIN, 2006). Por outro lado, a pesquisa qualitativa,
feita tanto no contato direto com as desculpas dadas quanto com o ato de dar uma descul-
pa, permite, em vez disso, acesso àquilo que mais me interessa entender a respeito deste
objeto, aquilo que es em meu título, seupapel na manutenção das relações sociais.
73
Para tanto, outro pressuposto se estabeleceu: o de uma observação que se despisse de prin-
pios de ão a priori. Isso descartou qualquer considerão a respeito de associão entre o dar
uma desculpa e categorias sociológicas tradicionais
55
. A queso, eno, passa ser como investigar
um objeto como esse sem esbarrar em uma caracterização discursiva associável a elementos so-
ciológicos que poderiam determinar esse discurso.o se trata de analisar desculpas assocveis a
grupos sociais, desculpas variantes segundo classe, gênero, idade, profissão ou qualquer outra de-
terminação a priori. Em vez disso, trata-se de estudar o que há em comum entre desculpas dadas
por diferentes atores, não importa a que sistemas de determinação eles perteam. Um parti pris
como esse tira partido de uma abordagem pragmatista, a começar, sobretudo, do conceito de “sis-
tema actancial” (LATOUR, 1989): se é actancial, o modelo é centrado nas ações, em uma obser-
vação formal dos processos passados com elas. Nesse sentido, os atores sociais e as determina-
ções do que eles fazem – deixam de ser a questão, para ceder lugar a algo que eu poderia chamar,
informalmente, de ecologia actancial: trata-se de observar ações sociais como se animais elas fos-
sem, olhando para suas movimentações, para o que se pode dizer a partir de suas conseqüências.
Mas uma abordagem como esta, ao mesmo tempo, demanda uma postura aparentemente
contraditória em relação e esses pressupostos. É que ela, de imediato, como disse acima, soli-
cita uma investigação de caráter etnográfico: é na observação das ações que se podem produ-
zir afirmações importantes. E, neste caso específico, como se tratam de ações cujo elemento
mais central é o discurso, trata-se de observar atores e ter contato direto com seus atos de fala.
Isso demandou uma articulação solidificadora para depois produzir uma evaporação: foi pre-
ciso imaginar um intermediário analítico, que chamarei de desculpando, a pessoa que uma
desculpa. Ele não é meu objeto de análise uma vez que estou analisando suas ações –, mas
55
Não estou com isso negando que diferentes categorias sociológicas tradicionais não pudessem (ou possam)
produzir variações nos conteúdos mesmos das desculpas dadas. A questão aqui, entretanto, é não tomar isso co-
mo uma determinação e, sobretudo, o se ater a um mapeamento dessas variações. O interesse central dessa
abordagem passa a ser a produção de uma teoria mais abstrata que ultrapasse essas diferenças. Sustentarei a que-
da delas justamente pela saturação do comportamento do dar uma desculpa segundo outro tipo de variação, entre
diferentes formas de consumar as ações sociais.
74
dependo de ter contato com ele para observá-las. A criação estritamente analítica deste
ente, entretanto, presta um serviço ainda mais operacional aqui: ele permite eliminar as dife-
renças (aquelas, de grupo) entre quaisquer pessoas que estejam dando desculpas. De fato, essa
eliminação é válida apenas para a análise sobretudo porque advém do postulado, apresenta-
do acima, de que a pergunta aqui é sobre o que há em comum e não sobre o que há de diferen-
te entre os atores que dão desculpas. Mas ela se torna mais útil, e mais representante do fun-
cionamento real do processo social que estou analisando, porque obriga a escalar um grau
maior de abstração no modelo, dos atores sociais para a ação social em questão e, depois de-
monstrarei, dos conteúdos simbólicos produzidos por essas ações. Até por isso, a nomeação
do objeto desta tese: em vez de “desculpa”, o que está sob observação aqui é “o dar uma des-
culpa”. Trata-se de um verbo, uma ação, não um substantivo.
Às desculpas dadas, por meio de desculpandos: a regressão a uma teoria
formal por meio de teorias substantivas
Esta apresentação, no entanto, foi iniciada de ponta-cabeça. Ela procura justificar a pri-
ori algo que se levantou a posteriori: a questão desta tese é compreender o papel que o dar
uma desculpa ocupa na manutenção das relações sociais. A amplitude desse questionamento
exige uma tradução desse objeto em um fenômeno mais amplo uma teoria formal. O que
quero dizer é que mecanisticamente o que o dar uma desculpa coloca é uma partição entre
graus de generalidade: a tensão que ali se dá, como disse, é entre uma regra moral abstrata,
utópica, e uma ação circunstancial, localizada. O dar uma desculpa, assim, é uma ótima... des-
culpa para se falar da moral por seu lado inverso, aquele que se afasta de maneira segura dos
graus mais ideais de generalidade. Se uma desculpa e, com ela, busca sua defesa –, o
desculpando nem por isso perde contato com a regra moral. Ao contrário, reafirma-a. Mas o
faz afastando-se, sim, de alguém, do “ser metafísico” contido nessa regra.
75
Por conta disso, a segunda pergunta que me fiz foi: como o dar uma desculpa se rela-
ciona com diferentes graus de generalidade da regra moral, ou seja, com diferentes graus de
comprometimento observados nas demonstrações/percepções de mal-estar? Em outras pala-
vras: como uma desculpa dada se relaciona com acusações/críticas feitas a partir de regras
morais mais ou menos generalizadas e universalizadas?
A pergunta me conduziu para a conclusão inevitável que havia esboçado mais acima:
se minha investigação não poderia fazer variarem desculpas dadas segundo tipos de atores de
acordo com grupos sociais que os poderiam determinar, era preciso, sim, fazê-lo segundo
graus de generalidade. O que eu tinha que observar, então, eram pelo menos dois tipos de
desculpandos que se relacionassem com dois tipos diferentes de distância em relação à abstra-
ção. Optei então por investigar o dar desculpas em duas diferentes situações: em relações es-
tabelecidas na esfera mais pública possível e em relações estabelecidas na esfera mais privada
possível. Sempre, repito, em busca de simetrizar esses espaços, ou seja, procurar a teoria mais
geral para ambos, que desse conta desse processo social em todos os casos.
Antes de prosseguir, entretanto, é preciso deixar claro o que estou chamando de esfe-
ras “mais blica possívele “mais privada possível”. A diferença entre blico e privado
tem sido central para as ciências sociais e na filosofia política e moral. Autores tão diferen-
tes quanto Simmel, Habermas ou Goffman ou, mais recentemente, Gusfield e Boltanski têm
se debruçado sobre essa diferença. Nas ciências sociais brasileiras, ela tem tido uma presen-
ça constante e tem produzido alguns dos estudos mais importantes de nossa tradição socio-
lógica, notadamente nos trabalhos de DaMatta e, mais recentemente, de Cardoso de Olivei-
ra. A oposição que construo aqui colhe uma fatia dessas tradições, para construir uma defi-
nição estritamente pragmatista: permito-me definir essa distinção segundo o grau de forma-
lidade da apresentação de accounts: se os accounts são apresentados publicamente, ou seja,
se sua oferta puder determinar diretamente as vidas de muitas pessoas, chamarei esse espa-
76
ço de uma esfera blica de prestação de accounts
56
. Se, por outro lado, essa apresentação
determinar diretamente uma relação (ou algumas poucas relações, como as entre vários fa-
miliares ou entre grupos de amigos) discreta, chamarei esse espaço de uma esfera privada de
prestação de accounts. Obviamente, um espaço poderá ter influência sobre outro o que
acontece na vida privada de um presidente podeter influência no que ele diz na vida pú-
blica e, ao mesmo tempo, o que ele diz na vida pública pode influenciar a briga de um casal
–, mas quero chamar a atenção aqui para o grifo: trata-se de uma determinação direta a que
está aqui em questão. Nos senãos que apresentei, ficou claro que essas influências são pro-
duzidas por um segundo grau de abstração e influência.
Uma primeira conclusão prática metodológica, então, é que eu teria que articular dife-
rentes corpus, fazer dialogarem mundos sociais bastante diversos. Por conta disso, me dire-
cionei no caminho de imaginar um modelo o mais abstrato e generalizável possível. Seria do
diálogo entre as teorias substantivas produzidas em cada um desses diferentes conjuntos de
desculpandos que eu poderia produzir uma teoria formal sobre a desculpa.
Antes de prosseguir, os mundos e os critérios de escolha de cada um.
Primeiro, a fim de dar conta de uma relação que fosse baseada no maior grau de ge-
neralidade posvel, optei por observar como os participantes da classe política no Brasil
respondem a acusões de corrupção. Como não se tratava de um estudo exaustivo de to-
das as desculpas produzidas em uma relação blica, optei por estudar as desculpas dadas
em um mesmo caso. Escolhi, eno, o caso que ficou conhecido como “Escândalo do
Mensalão iniciado em 2005 e que prosseguia com desenrolares a o final desta pesqui-
sa. Optei por observar o caso em jornais a 2006, quando os primeiros desenrolares dele
a fase que podeamos chamar de acusatorial se arrefeceu, mergulhando em outra de
debates políticos mais internos e técnicos que a fizeram ter menor presença nos jornais.
56
Configurando, assim, uma accountability de fato. Há, entretanto, uma vasta literatura que afirma que no Brasil
não accountability.
77
Depois, o problema era dar conta de uma relação baseada no “menor grau de genera-
lidade possível”. Mais à frente, demonstrarei como essa minoridade é entendida interna-
mente como uma “generalidade localizada”, ou seja, como um sistema em que se produz
universalidade em uma esfera auto-centrada e restrita, limitada a poucos participantes. Por
ora, a solução objetiva (objetal): casais pareciam ser uma boa forma de observar o dar
desculpas em um espaço em que as reivindicações pudessem ser pouco universalizáveis,
em que as exigências fossem específicas ao caso.
Essa partição de imediato me conduziu para um espelhamento com o modelo das cidades
e dos mundos de Boltanski e Thévenot (1987, 1991, 1999): o primeiro caso parecia apontar para
um mundo cívico, ao passo em que o segundo parecia conduzir para um mundo doméstico. Mas
pretendo demonstrar como essa observação pode ser limitada. Sim, de fato, o ponto de partida
da situação de dar uma desculpa é o atrelamento entre o “empreendedor moral” (BECKER,
2008) e o mundo com que está acostumado ou no qual sua reivindicação é mais legítima – nesse
sentido, um mundo é uma estética. Entretanto, o jogo do dar uma desculpa será mais intrincado
do que apenas uma torção entre regimes e, mais elaboradamente, do que uma “solução de com-
promisso” (Boltanski e Thévenot, 1991, pp. 337-421) entre mundos.
A questão, entretanto, é anterior: trata-se de um problema sobre as relações, sobre como
uma relação se mantém, no sentido de como ela faz seus pequenos ajustes cotidianos.
A partir dessas considerações, minha pesquisa se baseou em dois principais to-
dos: 1) investigão documental; 2) condução de entrevistas semi-estruturadas (com todo
o grau de observação participante que uma entrevista sobre o pprio ato de falar e dar
respostas permite). Em ambos os casos, o pressuposto de infencia era a busca por satu-
ração, ou seja, a construção de teorias substantivas que foram sendo ajustadas ao longo do
tempo a que não houvesse mais alterões aprecveis diante de novos exemplares, e
que desaguarão na pequena teoria formalizada que traço no Catulo 4.
78
Por isso mesmo, impus-me um “estudo de controle”. Na verdade, essa apresentação
também é feita a posteriori, uma vez que o controle ocorreu em paralelo a essas duas investi-
gações e, mesmo, iniciou-se antes delas. Ao longo da pesquisa bibliográfica inicial para esta
tese, e bastante inspirado pelas primeiras observações em textos literários – também paralela a
todo o processo de investigação –, comecei a me deparar com um tipo de objeto riquíssimo,
tanto como corpus quanto, devo dizer, como fonte de elaboração teórica: trata-se de um tipo
de literatura que acabei por identificar como “manuais de dar desculpas”. É exatamente isso,
livros que ensinam como produzir desculpas “eficientes”, ou seja, que sejam boas “auto-
defesas de imagem” (BENOIT, 1995). Esse objeto me conduziu a um grau de instrumentali-
dade que saturava todos os elementos constituintes de uma ação de defesa. Com isso, pude
observar um objeto para o qual o grau de generalidade do princípio e da reivindicação não é
determinante, o que me permitiu uma leitura muito mais complexa dos dois outros campos.
* * *
Cientistas sociais nem sempre têm o problema – e de, certa forma, a boa oportunidade
de estudar algo em que eles próprios estão tão envolvidos como nesta pesquisa. Em geral, so-
bretudo quando se tratam de estudos de natureza qualitativa, que dependem de etnografias e
outras formas antropológicas de observação, tomamos algo que nos é “estranho”, um grupo
ao qual não pertencemos, e vamos observar a ponto de quase a ele pertencer até poder
dizer algo dele que não se sabia. Para todos os efeitos, a distância em relação ao “grupo” ana-
lisado resolve o problema de olhá-lo como categoria analítica. Neste caso, o ponto de partida
era mais intrincado, pois, até onde se pode enxergar, todo mundo dá desculpas
57
: Adão incluí-
57
Apenas para mostrar que não estou sozinho na aposta, Herzfeld faz um belo apanhado do uso das desculpas na
Grécia, em uma cidadezinha de Creta (1991) e, depois, de toda a região do Mediterrâneo (2006). Antes mesmo, ele
próprio (1982) havia discutido a etimologia do termo (em inglês), e feito uma comparação entre vários sentidos
79
do, eu incluído, os leitores desta tese. O sociólogo neste caso estuda efetivamente aquilo em
que ele está imerso (e para o que terá um pouco mais de dificuldade de usar o argumento de
que “eu observei isso mais de perto do que os outros, logo posso fazer afirmações mais preci-
sas” (GLASER e STRAUSS, 1970). Isso torna o estudo ao mesmo tempo um desafio estimu-
lante e uma armadilha. De dois lados. É fácil chegar no campo com pontos de vista preconce-
bidos. Ao mesmo tempo, é fácil encontrar, no campo e fora dele, uma tonelada de teorias, na-
tivas, analíticas, e, digamos, pseudo-analíticas, a respeito do ato de dar desculpas. Assim, uma
das operações mais centrais que me obriguei a traçar nestes quatro anos de trabalho foi a de
compor filtros para todas elas, as minhas e as dos outros.
No caso dos políticos, o problema metodológico tinha a ver mais com o deslocamento de ob-
servão: diferentemente do que ocorreria na pesquisa com os casais, em que colheria narrões via
entrevistas, ou seja, diretamente com os desculpandos, eu buscaria as desculpas dadas nos jornais. O
pressuposto com que justifico essa investigão indireta, por assim dizer documental, baseia-se na
demonstração que farei à frente de que uma nocia ou uma reportagem contém o que chamarei de
“eu jornalístico”, um personagem abstrato que desempenha o papel de “empreendedor moral”
(BECKER, 2008). Um formato como esse não produziria a prinpio nenhum bias de participão na
análise. Mas o fato é que havia um: sou jornalista formado, com alguns anos de experiência em reda-
ções, e isso poderia conduzir para uma ilusão de conhecimento de causa, um bias analítico.
A sensação é um pouco semelhante àquela que se tem quando se lê um romance
em primeira pessoa e, nesse romance, o narrador narra seu próprio nascimento e ele
o é um fantasma ou outro tipo de personagem fantasioso, como, por exemplo, Brás
Cubas. A narrão se desconsti diante dos olhos, apontando para sua pura literatura,
por vezes para sua literatice: ou acreditamos que pessoas de fato conseguem se lembrar
de tal fato ou cindimos com essa iia e, para dar credibilidade ao personagem, enten-
nacionais. Ao mesmo tempo, Tavuchis (1991), ao falar sobre as apologies, mostra como, por exemplo, no Japão,
um bom pedido de desculpas oscila entre o perdão contrito e a apresentação de bons motivos (excuses).
80
demos que ele fala do lugar de uma metamemória alimentada por uma compreensão do
nascimento como símbolo (ou por testemunhos que ele está simplesmente reconstituindo
depois de recolhê-los). Mas e se esse mesmo romance em primeira pessoa for narrado
por uma parteira, algm que já viu, digamos, mil nascimentos? Tem-se aí uma situação
digna de nota: nesse sentido, ela pode possuir uma metameria de tal grau de satura-
ção, que o poder comparativo dessa situação que ela conhece tão bem pode contaminar
qualquer narrativa de nascimento, inclusive a de seu próprio.
Howard S. Becker (2008b) me disse:
É importante para o sociólogo manter alguma distância de sua biografia, de maneira a
não acreditar em tudo que aprendeu quando era criança, ou como músico, ou como seja
lá no que consista sua biografia. Mas aquela é uma área que você conhece muito bem e
sobre a qual sabe muitas coisas e seria tolo um desperdício não tirar vantagem disso.
E concordo com eleo porque não desperdiçar signifique que esse conhecimento determi-
ne a escolha por um objeto em um movimento de, no mínimo, falta de criatividade; no limite, de
preguiça. Mas, em vez disso, porque esse conhecimento permite estabelecer pametros de com-
paração com outros mundos sociais. Em meu caso, o próprio conhecimento de que aão crítica é
desmontada deixando de ser uma idealizão e passando a ser entendida, gras a meu conhe-
cimento de insider, como uma pura estica jornalística, como um ritual que precede à ppria es-
fera de decio, como um habitus profissional –, ofereceu uma contribuão para a análise.
Esse conhecimento serviu, então, como inspiração, como porta de entrada para o cor-
pus. Munido da compreensão do jornal como quadro de estabelecimento de um espaço forma-
lizado para o estabelecimento de “momentos críticos”, pude ser conduzido por ele para um
conjunto específico de desculpandos, aquele que observei: se eu tinha à mão um dispositivo
que colocava reiterativamente em ação a oposição entre ação localizada e princípio generali-
zado, que assumia mecanisticamente o papel de “empreendedor moral” (BECKER, 1970),
faltava apenas escolher um conjunto de desculpandos que fosse visado por esse dispositivo.
81
A primeira opção poderia ser o recorte temporal: observar o jornal matéria a matéria por
algum tempo em busca de ocorrências de desculpas, cuja saturação dependia da observação
de padrões comportamentais das desculpas ao longo do tempo (considerando uma obser-
vação cronológica) ou não (considerando uma observação aleatória). Levadas em conta as
peculiaridades situacionais e formais (tipos de texto de cada editoria, grau maior ou menor de
empreendedorismo moral em determinado momento etc.), todos os personagens do empreen-
dimento moral ali estariam
58
. Entretanto, havia uma segunda possibilidade, a de trabalhar com
aquilo que Boltanski (1990) chama de affaire, um caso isolado, discreto, de disputa pública
em torno de princípios de justiça. Isso criava um elemento analítico útil para a pesquisa: inter-
ligados por uma mesma problemática, os vários momentos críticos internos ao caso permitiam
observar variações de padrão de resposta diante de alguns poucos princípios morais, dando
sustentação justamente ao menos óbvio, a abstração de uma regra mais geral.
Pois bem, a escolha de um affaire produzido por acusações de corrupção serviu como
inspiração importante por produzir uma economia peculiar da rotulação, do estigma: em vez
de objetos de “sujeição criminal” (MISSE, 1999), os políticos são dotados das características
habituais de “gente de bem”. Ao mesmo tempo, entretanto, no Brasil, são alvo de um estigma
de corrupção que habitualmente tomba-se sobre eles uma série de acusações cotidianas ou, no
mínimo, a desconfiança. Isso fazia deles um espaço interessante para encontrar demonstra-
ções de mal-estar explícitas, explicitação essa típica de um mundo cívico.
E, por fim, a escolha do affaire específico recaiu sobre o Esndalo do Mensalão,
por três motivos, dois gerais e um que poderíamos chamar simplesmente de circunstanci-
al, mas que mereceria melhor denominação como de campo” ou substantivo. O primei-
ro motivo é de certa maneira jornalístico: foi a notoriedade do caso. Desde o Caso Collor,
58
E de fato esse era meu plano inicial, o que pode ser constatado em Werneck (2006). Agradeço às sugestões de
minha banca de qualificação, sobretudo aos professores Paulo Vaz e Luiz Antônio Machado da Silva, por um
deslocamento rumo à outra possibilidade.
82
em 1992, o se tinha nocia no Brasil de uma ocorrência de corrupção o ria, que en-
volvesse esferas tão altas do poder e, nesse sentido, a credibilidade das pprias institui-
ções democráticas no país. O segundo motivo é moral: esse escândalo ocupou um papel
peculiar na história recente do Brasil, por representar uma terceira grande deceão na-
cional pós-redemocratização (WERNECK, 2004), depois da decepção com a constatão,
oriunda do fracasso do Plano Cruzado, de que liberdade política não significava necessa-
riamente utopia econômica, e da decepção com a constatação de que o voto direto não re-
presentava necessariamente utopia governamental. A decepção com o Partido dos Traba-
lhadores (embora ela não tenha se refletido na imagem nacional de Lula) demarcava uma
decepção em relão à esquerda e à esperança de transformação do mundo.
Esses dois primeiros motivos se coordenam em um só: esse escândalo coloca no papel
de acusado justamente um ator que ocupou antes o papel de empreendedor moral.
No caso dos casais, a complicação dada se somava a outra ainda mais gritante. Con-
siderando a dificuldade de observar essas pessoas in loco, ou seja, na vida cotidiana efetiva-
mente – a idéia de passar dias inteiros com marido e mulher sempre pareceu mais complicada
do que uma promessa efetiva de dados mais conclusivos que os que pudessem ser obtidos por
outra maneira –, a opção por fazer entrevistas trazia uma vantagem clara: a colocação dos
desculpandos em uma posição própria para o account. Becker (2007) faz uma distinção digna
de nota entre duas formas de colocar perguntas em uma pesquisa qualitativa. Ele sugere que,
em geral, se prefira perguntar “como” em vez de “por quê”, o que evita a resposta sintética
oriunda da segunda forma de perguntar em favor de uma resposta analisada, longa, narrativa,
oriunda da primeira. Em meu caso, a entrevista oferecia uma possibilidade de associar essas
duas perguntas, partindo das histórias oriundas dos comos para pequenos porquês localizados,
pontuais. Mas, ao mesmo tempo, isso ampliava o problema básico da pesquisa: além de ser
alguém que habitualmente desculpas alguns dirão que desculpas até um pouco demais,
83
dado que boa parte de meus amigos acaba não me encontrando dado meu “excesso de afaze-
res” –, neste caso específico, eu era inevitavelmente parte do aparelho analítico. Como entre-
vistador, apesar das vantagens oferecidas pela posição, eu me tornava alguém a quem as pes-
soas davam desculpas e não alguém que observava as desculpas dadas de um a outro. Ainda
mais porque optei por entrevistar os cônjuges em separado. Essa própria separação foi pri-
mordial: não apenas por servir como “prova dos nove” das histórias de um sobre o outro, mas
também porque ela dava liberdade para que as desculpas fossem formuladas a partir de uma
revisão dos comportamentos de si e do outro.
Um dos filtros que tive que operar no caso dos casais foi a escolha dos entrevista-
dos. Em vez de um cririo aleatório “mais recomendável (BECKER, 2007), optei por
uma forma, eno, de tirar partido de minha inclusão no dispositivo: procurei casais ami-
gos de amigos. Eram desconhecidos para mim, mas que, ao mesmo tempo, tinham rela-
ções com pessoas que eu conheço mais ou menos bem. Isso criou um importante jogo de
perspectiva: apartado o suficiente para a conversação comigo ser considerada “uma ses-
são” várias pessoas me relataram se sentir “na terapia de casais” ou em DR indireta” ou
em “DR à disncia
59
, ou seja, um momento analítico, deslocado da relação habitual, a-
59
A sigla DR tornou-se um termo recorrente quando o assunto é o relacionamento amoroso. DR” significa
“discuso de relação” e se refere a uma espécie de ritual social contemponeo típico entre cônjuges de ca-
madas médias: o momento em que os integrantes de um casal colocam sobre a mesa algum tema sensível,
alguma “probletica espefica da relão. É uma “meta-interão em que os assuntos deixam de ser “da
relação(o que vamos comer no jantar, na casa da sua mãe ou na da minha, como vamos pagar aquela conta)
e passam a ser a relão(você o é compreensivo, como vai nossa vida a dois, preciso de mais espaço). A
mitologia brasileira contemporânea converteu a DR em um ritual maçante para homens, apreciado por mulhe-
res. Não entrarei aqui em uma discuso de gênero, mas nas entrevistas o termo e essa diferença surgiram vá-
rias vezes: uma diferea que se colocou desde o início é a de que, no campo dos casais, sempre foi mais fácil
entrevistar a mulher. Os homens pedem muitas explicões, querem saber todos os detalhes do que eu pergun-
taria, se quero saber intimidades etc. Mas foi nas entrevistas mesmo que essa diferea se fez mais gritante: os
maridos, namorados etc. em geral falam em termos genéricos mais habitualmente do que suas mulheres. Estas
narram mais, dão mais detalhes, evitam as generalizações Kaufmann (2007) encontra dificuldade semelhan-
te entre os casais que pesquisou. o fiz, repito, distinções de gênero em minha pesquisa, mas esse elemento
me pareceu importante metodologicamente, até por conta de minha estratégia de entrevista: rápido ficou claro
que era mais fácil iniciar o convite ao casal pela mulher, que o contato pelo marido acabava nem chegando
à consulta à esposa (ou essa consulta virava desculpa para não aceitar participar perdi alguns casais com
essa operação), ao passo que pela via contria, a “sede de DR (a expressão é de Marcos) das mulheres im-
pulsionou a consulta e deu oempurozinho” que fez os homens participarem.
84
partado do cotidiano –, eu era ao mesmo tempo alguém a quem eles o queriam desa-
gradar” Você é amigo de...”, “Faço tudo por...”, me diz, por exemplo, uma entrevista-
da, oito meses de namoro, publicitária, suco de laranja com adante na o. Isso me co-
locou efetivamente na posição de alguém a quem accounts eram direcionados. Em vez,
então, de o querer me “desagradar, prejudicar a pesquisa por indicar uma resposta
“tendenciosaou orquestrada”, ela colaborou justamente por um movimento ao mesmo
tempo de confiança, comprometimento, e por levar em conta justamente esse bias: uma
desculpa dada, no final das contas, sempre é uma operação de agradar o outro “Imagina
se eu não dou essa satisfão a ela! Ela me mata. Eu podia dizer que tinha ido comprar
o ou que estava jogando fliperama, o que eu não podia era deixá-la sem resposta. Seria
desagradável demais para ela”, defende um entrevistado, cinco anos de casado, analista de
sistemas, que recorrentemente usa filmes de ação como metáfora da vida a dois.
* * *
Além desta introdução, na qual apresentei as definições e em que depreendi as princi-
pais questões a serem atacadas nos próximos itens, Dividi a tese, então, em quatro partes:
No primeiro capítulo, apresentarei a pesquisa com manuais de desculpa. Trata-se
talvez da única pesquisa exaustiva desta tese: procurei cobrir todos os livros que encontrei
em três línguas: português, inglês e francês. A seu tempo, comentarei a dimensão transcul-
tural dessa pesquisa e falarei de como a apresentão de fórmulas para se dar desculpas
contribui para a compreensão da mecânica por elas utilizadas nos diferentes mundos soci-
ais em que ela opera.
No Capítulo 2, apresento a pesquisa com os políticos e o Escândalo do Mensalão, prefa-
ciada por uma discussão sobre o uso do jornal como substrato para essa pesquisa.
85
No Capítulo 3, apresento a pesquisa com os casais, esboçando desde já uma pequena te-
oria sobre o conceito de familiaridade, que será determinante para o capítulo seguinte.
Na Conclusão, abstraio minha teoria formal oriunda das três teorias substantivas, dando
conta do que chamo de um modelo de “regimes de efetivação” das diferentes formas de conso-
lidar imagens diferentes ou iguais. Trata-se de uma pequena teoria das relações sociais e de co-
mo e por que elas se mantêm a partir das imagens de seus integrantes. Essa teoria passará por
uma abordagem maussiana. Também apresentarei nesse capítulo uma discussão central para
esta tese, uma articulação entre o bem de si e o bem do outro, ou, como demonstrarei, um deba-
te sobre o papel do egoísmo na manutenção das relações. E, finalmente, discuto o papel das
desculpas nisso que estou chamando de “manutenção” das relações sociais. E mapeio o que po-
dem ser novos caminhos de pesquisa a partir desta, ou seja, um aprofundamento de diferentes
regimes de efetivação, e uma problematização a respeito da confiança e da amizade.
CAPÍTULO 1: CACHORRINHOS, IMPRESSORAS E JABUTIS NO ÉDEN
87
FAZENDO GÊNERO
O livro traz uma capa de fundo fechado, totalmente em preto, com apenas um moldura de
riscos amarelados. No alto, em letras de mesmo tom, estampa-se: Beyond the Bible (algo como Pa-
ra Além da Bíblia). Na base, na mesma cor, o subtítulo: “Inspirações para qualquer ocasião (e situ-
ação)”
1
. Trata-se, provavelmente, de mais um exemplar de um nero de grandes vendagens, o da
auto-ajuda religiosa. É uma obra a sugerir citações bíblicas para iluminar momentos de dificuldade.
Quando, entretanto, o produto chega às mãos e é manipulado, a discreta sobrecapa es-
corre e acaba por mostrar a fronte do volume interno. Na verdade, finda por revelar o outro
lado da própria folha protetora: o material “inclui uma capa secreta reversível” e recomenda
(em um vibrante balão estrelado na mesma área): “Carregue-o para reuniões ou qualquer ou-
tro lugar”. Vê-se, então, que a folha de rosto de tom religioso é, na verdade, um escamotea-
mento, uma forma de ocultar aquilo que o trabalho é de fato. Capa e sobrecapa reais, idênti-
cas, trazem um fundo vermelho, com, à esquerda, a estampa de um personagem de estética
emulando um design publicitário típico dos Estados Unidos do pós-guerra, pensativo, sob um
tarja com o real título da publicação: The Complete Excuses Handbook (O Handbook Com-
pleto das Desculpas). No subtítulo (o verdadeiro), os autores, Lou Harry e Julia Spalding, jor-
nalistas, prometem que aquele é “o guia definitivo para evitar a culpa e escapar da responsabi-
lidade por todas as suas próprias falhas infelizes e erros gritantes”. Ao mesmo tempo, é e não
é um livro de auto-ajuda: dá-se como um guia para de fato dar boas desculpas (e se livrar de
críticas), mas também faz a crítica a seu uso, por meio da ironia e do tratamento satírico (por
exemplo, ao qualificar as falhas do leitor de “infelizes”).
1
Optei por usar os títulos no original (a fim de fornecer uma informação direta sobre a origem) e traduzir subtí-
tulos, trechos e outros elementos informativos que esclareçam elementos analisados.
88
O que é digno de nota, entretanto, é o que o livro se propõe a fazer: compilar desculpas
padronizadas que sirvam para variáveis tipos de situações. E “desculpa”, ali, assume um sen-
tido bastante específico, tem até mesmo uma definição formal: “Explicação vazia para por
que fazemos (ou não fazemos) aquilo que fazemos” (p. 10). Ou seja, de uma forma de dar
conta de uma ação, account este “vazio”, não racional, talvez falso.
O livro apresentará, ao longo de 224 páginas, uma série de falas, tanto várias de uso cor-
rente quanto outras, produzidas “artificialmente” pelo bom humor dos autores, todas passíveis
de ser classificadas, como apresentei na Introdução, como desculpas dadas. Trata-se de uma
obra curiosa, sem dúvida, para a qual o adjetivo “cínica” não deixaria de ser bem aplicado:
afinal, é um manual de pretextos, de “desculpas esfarrapadas”, de falas usadas para escapar
dos reais motivos de uma ação que possa ter desagradado a alguém. Desfilarão por aquele pe-
queno volume, então, desculpas para atrasos, para omissões, para a não entrega de trabalhos
escolares, para ausências em reuniões (sociais e de trabalho), para uma série de situações típi-
cas nas quais as pessoas possam habitualmente encontrar a necessidade de dar um account por
algo potencialmente causador de mal-estar. Útil volume, poder-se-ia dizer.
Mas o que é ainda mais impressionante a respeito desse exemplo pitoresco de literatura,
deste livrinho tão curioso, é o fato de que ele não é um caso isolado: ao final da investigação que
resulta neste capítulo, reuni nada menos do que 96 títulos que sugiro classificar sob a rubrica geral
de manuais de desculpa”. São textos que ensinam procedimentos de uma espécie de “estratégia
relacional”: como oferecer desculpas eficientes, independentemente de sua veracidade ou, mes-
mo, do grau de lucidez dos argumentos utilizados. Mas essa definição não deixa de ser instrumen-
tal: selecionei rios tipos de livros que me servissem de fontes para listagens de desculpas dadas.
O campo que agora relato, que durou dois anos, foi motivado pelo achado, logo no co-
meço de minha pesquisa, de dois textos que me chamaram a atenção e que apontavam, ambos,
para uma dimensão importante do ato de dar uma desculpa, a reflexividade de sua utilização.
89
O primeiro livro era 1001 Desculpas Esfarrapadas, do compositor e humorista paulista
Guca Domenico (2003), fundador do grupo Língua de Trapo. O segundo era Manual de des-
culpas esfarrapadas: Casos de humor, do cronista mineiro Leo Cunha (2004).
O de Domenico se enquadraria com perfeição na categoria manual de desculpas, trazen-
do exatamente uma listagem de accounts, classificando-as segundo diferentes situações. O
volume chamava a atenção por seu uso da metalinguagem: na introdução, ele, dando uma
desculpa, explica que o livro não traz de fato 1001 delas: “Na verdade, a primeira versão dele
foi perdida quando seguia para a editora, sobrando apenas essas poucas que aqui estão” (p. 4).
No livro, ele opera ironicamente com a tendência a dar desculpas para tudo de que ele acusa o
ser humano. Por exemplo, para as pessoas que fazem regimes, mas que continuam comendo,
ele recomenda dizer (p. 44): “Eu sou do tipo perfeccionista: quando corto um pedaço de bolo,
gosto de deixar bem reto. Enquanto não consigo acertar, não paro”.
Já o trabalho de Cunha é mais próprio de sua experiência como escritor em jornais, o que
não impediu que ele pudesse ser incluído na pesquisa. Na primeira crônica de seu livro, que re-
pete o título do volume, ele comenta sua experiência como educador de adolescentes e comenta
as desculpas inventadas por estudantes para atrasar ou cabular um para-casa” (p. 24):
Eu, que dou aula há alguns anos, já ouvi as histórias mais cabeludas, con-
tadas com a cara mais lavada do mundo. E, o que é pior, engoli a maioria.
Outro dia resolvi fazer uma enquete com meus colegas professores pa-
ra montar um manual com as desculpas mais esfarrapadas que ou-
vimos. O leitor pode chiar e perguntar se nós, ilustríssimos professo-
res universitários, não tínhamos nada mais útil para fazer, mas sinto
muito, aqui vai a lista.
1 – A culpa é de São Pedro
Essa é das desculpas mais tradicionais. A rua alagou e eu não conse-
gui chegar à biblioteca. Ou eu esqueci a janela aberta e o trabalho fi-
cou encharcado. Que pena, fessor, tava tão lindo!
2 – A culpa é dos outros
Outra desculpa cssica. Foi o Joãozinho que tinha que ter compra-
do a cartolina e o comprou, fessor! Foi a Joana que não fez a
parte dela a tempo.
3 – A culpa é do computador
Quem nunca ouviu essa frase, vai ouvir logo. O computador deu pau,
a impressora ficou sem tinta, o disquete não abriu, um vírus apagou
tudo. Você sabe que o computador é um bicho imprevisível, né, fes-
sor? Temperamental feito ele só!
90
4 – A culpa é do excesso de trabalhos.
Essa costuma irritar meus companheiros docentes. Não é por nada
não, fessor, mas o senhor acha que a gente só tem a sua matéria? Tava
assim de trabalho pra fazer, os outros eram mais urgentes.
5 – Eu não sabia que era pra hoje.
Uai, mas ninguém avisou que era pra hoje! Eu tava crente que era
pra semana que vem. Ô, fessor, você é tão legal, mais um prazinho
pra eu poder terminar, o trabalho tá bem adiantado, só falta digitar,
só falta revisar, só falta grampear, só falta fazer a capa.
6 – Eu não entendi direito o que era pra fazer
Essa é das mais descaradas, e geralmente vem acompanhada de uns
dois parágrafos ilegíveis. Tá vendo, fessor, eu até comecei a fazer,
mas o entendi o que o senhor tava querendo. Será que dava para ex-
plicar de novo?
7 – Minha avó morreu.
Como todas as variantes possíveis. Afinal, avó são duas, avô tam-
bém. Pai, mãe e irmão é mais arriscado, porque fica fácil pro professor
conferir se é verdade ou não. Se preciso, pode-se apelar para um tio
distante (mas que morou com a gente muito tempo, fessor...) ou pro
gatinho siamês que era quase da família (até dormia na minha cama,
precisa ver que gracinha!)
8 – O supercolírio
Desculpa a ser usada apenas em casos extremos, quando as outras re-
almente não colam mais. Sabe o que é, fessor? Eu fui ao oculista, pin-
guei um colírio daqueles brabos e fiquei seis dias com a vista emba-
da. o teve jeito mesmo de fazer o trabalho, eu bem que tentei, mas
estava tão cego que acabei escrevendo em cima da receita do médico.
A lista poderia continuar por muitas linhas, mas essas são as mais
comuns. E, pra falar a verdade, de vez em quando a gente até se diver-
te vendo a aflição do aluno, admirando sua coragem, na hora de in-
ventar as desculpas mais caraduras do mundo. Afinal de contas, sa-
bemos que eles ainda estão aprendendo, não têm plena noção de suas
responsabilidades, não são casos perdidos.
Em ambos os exemplos, chamava a atenção o método hiperbólico de apresentação típi-
co do humor. É claro que 1001 Desculpas Esfarrapadas não recomenda de fato que se atribuir
um transtorno obsessivo compulsivo em relação à partilha de um doce e que o Manual não
sugere que se mate a avó sempre que se queira desobedecer a uma regra sobre tarefas estudan-
tis (embora em minha experiência como professor eu mesmo tenha ouvido algo não muito
distante disso várias vezes). Esse exagero, no entanto, mais pinta com tintas fortes um padrão
percebido do que cria uma fantasia de padrão. Assim, ficou claro para mim que havia um ma-
nancial interessante e digno de observação naqueles dois livros: se eles inventavam as descul-
pas com as quais se constituíam como método para oferecê-las, não o faziam sem demonstrar
uma percepção acurada de como as pessoas o fazem.
91
E a idéia de uma pesquisa logo se tornou uma realidade interessante: na verdade, conheci
1001 Desculpas Esfarrapadas logo no início de minha pesquisa, devido ao lançamento de 1001
Desculpas Esfarrapadas de Políticos (2005), que dava continuidade ao projeto do primeiro, iso-
lando um universo específico em relação ao que fora coberto no anterior. Retomarei a discussão
sobre ambos. Por ora, prossigo a narrar como ampliei a pesquisa para outros textos.
Pus-me a procurar outros manuais de desculpas. Por indicação de um escritor inglês com
que tive a oportunidade de conversar, deparei-me com 1001 Excuses: How to Get Out of and A-
way With Anything (ZIGOURIDES e PICKERING, 2002), lançado nos Estados Unidos. E fui
juntando pontos: logo vieram 1500 Excuses Imparables en Toutes Circonstances (FORTIN, E-
VANS e ROBINE, 1998), laado na França
2
, e o curioso Garfield’s Big Book of Excellent Ex-
cuses (DAVIS, 2000), dirigido ao público infantil dos Estados Unidos e guiado pelo famoso
gato preguiçoso dos quadrinhos que gosta de lasanha e odeia segundas-feiras
3
.
Havia, entretanto, uma primeira questão a ser tratada: comecei a dispor de uma imensa
maioria de meu corpus de pesquisa formado por um produto literio escrito em uma língua dife-
rente e concebido em um contexto cultural diferente do brasileiro. Os primeiros resultados de-
monstravam que no mercado literário americano a publicão desse tipo de livro podia ser classi-
ficada como um gênero. Ao final de minha contagem, pude observar 87 diferentes livros america-
nos
4
. Na França e no Brasil, esse mercado é consistentemente menor, com 4 tulos na primeira e
3 no segundo. A constatação de que se trata de umnero nos EUA é reforçada ainda pelo grande
mero de editoras diferentes a produzir esses títulos, 78, configurando um mercado relativamen-
2
Na verdade, este segundo texto é uma adaptação para a realidade francesa de um outro, lançado nos Estados
Unidos, em 1995, mas de edição já esgotada.
3
De fato, a este livro somar-se-iam outros três com o mesmo espírito: Scooby-Doo’s Little Book of Big Excuses
(DEWIN, 2004), com dicas do cão dinamarquês medroso que acompanha jovens investigadores de casos sobre-
naturais em um desenho animado da Hanna-Barbera; Sponge Bob’s Book of Excuses (KOWITT, 2005), com as
desculpas de Bob Esponja, o personagens nonsense e quase surrealista que habita o fundo do mar; e Fairly Odd
Excuses (LEWMAN, 2005), que tem como mestres de cerimônia os personagens do desenho que no Brasil rece-
be o nome de Os Padrinhos Mágicos. Estes dois últimos livros são da mesma editora, Simon Spotlight.
4
Embora se trate de um mercado americano, a maior parte desta investigação foi realizada em bibliotecas de Lon-
dres, no período em que passei em Paris como bolsista-sanduíche. Outra parte considerável da pesquisa foi feita
com a aquisição de livros, o que me levou a ter uma pequena biblioteca doméstica desse gênero, nos três países.
92
te competitivo. Explicar essa diferea quantitativa seria uma empreitada por demais intrincada e
de pouco interesse efetivo para os fins desta tese
5
. Mas a discrepância chamava a ateão para a
pergunta: até que ponto, diante dessa disparidade, a observão desse campo poderia ser útil para
uma investigação sobre o social feita no Brasil? A resposta que me dei na época e que repito aqui
é: o podia desperdar a riqueza de informões sobre o objeto em sua dimensão mais abstrata
que aquele corpus oferecia, usando como justificativa os posveis bias culturais com que poderia
me deparar. Resolvi colocar a pergunta, então, de outra forma: e se em vez de me perguntar sobre
as difereas entre esses contextos e sobre a inflncia delas sobre cada um, eu desse ateão não
tanto a essa discrencia de tamanho, e sim, diante dessa diferença, aos traços semelhantes entre
os produtos, permitindo constituir uma mesma categoria sociológica simetrizada?
Optei, eno, por uma observação comparativa ponto a ponto, tomando como referência o
representante brasileiro na galeria, a fim de constantemente verificar a possibilidade de algum viés
cultural. Mas sobretudo para adotar um índice verificador. Assim, 1001 Desculpas Esfarrapadas
tornou-se, de certa maneira, uma régua. Mas apenas para permitir uma observão mais acurada
do que surge como discurso geral a respeito do ato de dar desculpas a partir desses manuais.
Pois o primeiro ponto a chamar a atenção é a própria idéia de manualizão, ou seja, a no-
ção de que determinada ão pode ser objeto de uma metodologia, que ela pode ser entendida
como procedimento e ser realizada segundo padrões de conduta mais ou menos rígidos (variando
de acordo com o grau de exigência de cada objetivo). Um manual é criado para garantir a realiza-
ção de algum procedimento, para fazer “com que algo seja feito sempre da mesma maneira
(TVENOT, 2006-2007). Obviamente, nem toda ão pode ser manualizada. Apenas aquelas
dotadas de repetibilidade procedural e objetivo definido. Mas outro ponto mais central para
5
É possível que a diferença de pujança entre o mercado americano – da ordem de 2,2 bilhões de exemplares por ano,
segundo o book report do The Christian Science Monitor de 2007 e o brasileiro pouco mais de 400 milhões de
unidades/ano, segundo dados de 2008 (e que pouco variam desde 1986) da Câmara Brasileira do Livro – dê conta em
parte dessa disparidade entre os dois contextos e que semelhante diferença entre os segmentos de humor nos EUA e na
Europa esclareça também boa parte da discrepância entre esses dois. Isso, entretanto,o passa de uma especulação.
93
permitir essa utilização. Becker (1970; 2007), ao discutir metodologia em ciências sociais, diz que
cada todo depende de encontrar formas de observar maneiras segundo as quais situações soci-
ais de concretizam. Blumer (1970) questionava fortemente a maneira como a teoria social tentava
preceder às formas de concretização dos conteúdos simbólicos. Essas duas abordagens permitem
pensar: manualizar é apontar para um tro de uma ação que pode ser lido como competência”
(LATOUR, 1997; BOLTANSKI e THÉVENOT, 1987), como tro demonstrado na ão locali-
zada a apontar para sua alocação em uma gramática actancial, com desenvoltura dentro de regras
de ão. Se o mercado editorial é capaz de produzir manuais de desculpa é porque as desculpas
dadas demonstram, em suas ões, uma forma de competência, de alocão em regimes que as
tornem aceitáveis e, neste caso, reconhecidas como eficientes. A iia de pensar a desculpa como
a ponta do iceberg de uma competência actancial surgia como caminho irresistível sobretudo
diante do protocolo de intenções que eu trazia em mente e que apresentei na Introdução.
Quando me refiro a competência a partir de um processo de criação de procedimen-
tos, eno, estou dizendo sobretudo que o dar uma desculpa permite pensar uma forma ad-
jetivada de ão. A inspirão para esse racionio é o próprio modelo pragmatista como
apresentado em um de seus textos fundadores, O Amor e a Justiça como Compencias
(BOLTANSKI,1990), o soclogo inspirado pelo trabalho feito ao lado de Laurent Thé-
venot propõe analisar o social a partir do uso de duas categorias de “utopias posveis
(p. 201), o amor a e justiça. O primeiro entendido como a ágape, o amor incondicional,
ligado a estados de paz; a segunda como a correção da injustiça, da igualdade não justifi-
cada, ligada a estados de disputa por prinpios de igualdade. O amor e a justiça surgem
como compencias porque eles surgem como traços da ação que, quando percebidos, le-
gitimam essas mesmas ações, dentro de regimes de ão. Da mesma forma, quando se
percebe uma ação manualizável, está-se diante de uma ação da qual se espera uma de-
monstrão de competência, ou seja, um traço que, percebido, a torne efetiva.
94
Nesse sentido, o dar uma desculpa pode ser pensado segundo duas diferentes con-
cepções: como ritual”, ou rito de interação, no sentido de Goffman (1967; 1971); e
como ão que demanda avalião (SCOTT e LYMAN, 1968; 1970). A primeira é previ-
amente aceita, uma vez que es incorporada; a segunda depende de um constante proces-
so de prestação de contas, de accounts. Esses dois tipos de ão poderiam ser manualiza-
das, a primeira estritamente pela repetibilidade procedural que garante ela mesma a efeti-
vação, a segunda pelo reconhecimento de uma competência actancial que lhe garanta a
conformação metodogica pela garantia de eficácia actancial
6
.
Mas um procedimento de manualizão também aponta para outro traço, mais sutil,
e talvez por isso mesmo mais revelador: a instrumentalidade com que os atores reconhe-
cem a desculpa como operação. Essa dimeno estritamente consciente do uso do dar uma
desculpa poderá servir para justificar um olhar crítico/moralista em relação a ela. Entre-
tanto, quero usar essa produção como índice de outro tro dos atores: se o capazes de
instrumentalizar a desculpa de tal maneira é porque demonstram competência cognitiva
para reconhecer seus mecanismos, suas regularidades. Isso seria fácil de afirmar para um
procedimento ritualizado. Mas nem tão fácil assim de enxergar em ões sob avaliação
valorativa” (SCOTT e LYMAN, 1970, p. 114), o que aponta justamente para um traço do
objeto: a criação de um gênero literário como tal sugere que o dar uma desculpa aponta
para um tipo de compencia específica, e especialmente instrumentalivel pelos atores.
A questão a que me dedicarei nesta tese, afinal, é: que compencia é essa instrumentali-
zada no ato de dar uma desculpa? Darei minha resposta na Concluo.
6
Chama a atenção o fato de que haver um crescimento considerável no número anual de lançamentos do gênero no
terço final da apuração: enquanto de 1970 a 1998, os valores se concentram na casa dos dois lançamentos/ano (com
um ou outro picos mais altos), dali por diante a média de lançamentos chegaria a 5/por ano, com pico de 8 (2006).
Esse dado sugere um interesse maior do mercado por esse tipo de publicação e, nesse sentido, uma difusão maior da
consciência de que o ato de dar uma desculpas se tornou uma ferramenta recorrente. Considerando a concentração
do pico de lançamentos no ano que foi eleito como “ano das apologies(GOLDSTEIN, 2006), isso pode indicar
uma maior circulação de empreendimentos morais, de discursos acusando o ato de dar uma desculpa de ser um
mecanismo usado cinicamente pelas pessoas em geral e pelas públicas em especial.
95
Antes, pom, havia um grande manancial diante de mim: a investigão, então, procurou
edões correntes – publicadas e à venda – em três mercados, correspondentes a três línguas: bra-
sileiro (português); americano (inglês); o francês
7
e sobre eles debrucei-me em busca de observar
regularidades nas maneiras de observar regularidades experimentadas pelos autores dos manuais.
Mil e uma verdades
O primeiro traço digno de nota nos miolos dos livros é que, salvo nos tulos dedicados a
mundos espeficos como The Greatest Sports Excuses, Alibis, and Explanations (PARIETTI,
1990) ou 101 (Un)Believable Excuses for Breaking your Diet (WESTHEIMER, 1980) –, as des-
culpaso categorizadas segundo os tipos de situações (e contextos) em que são usadas. “Descul-
pas para...” é o mote dos capítulos. No primeiro exemplo que citei, o The Complete Excuses
Handbook, por exemplo, essa qualificação é constrda da seguinte maneira (pp. 4-5):
Desculpas gerais; para ausências/faltas, para artistas e celebridades; para falhar com al-
guém; ser amante; comer porcarias; para paquera e namoro; para o jogo; para ões es-
pidas em geral; para não ser tão generoso quanto você podia; para questões domésti-
cas; desculpas icônicas; para crianças, para atrasos; para sair cedo; para questões legais;
médicas; para cheirar mal; para comer demais/não praticar exercícios; para pais; para
festejar demais; para relações íntimas; para políticos; educacionais; para o s-e-x-o; para
compras e revendas; para esportes; tecnológicas; para contar segredos; para o local de
trabalho; usadas pelos ricos e pelos sem vergonha.
Uma galeria semelhante, embora mais compacta, foi encontrada em 1001 Excuses (pp. 3-4):
“para o trabalho; para casa; para o mercado; para o telefone; para paqueras e namoros; para edito-
res”. Nada muito diferente do que pude encontrar no sumário (e nos catulos) do The Little Book
of Big Excuses (pp. VI-VII): desculpas “para o comparecer; para a vida doméstica; para ocasi-
ões sociais; para crimes e pequenos delitos; desculpas do tipo ‘eu adoraria, mas...’; para tudo”.
7
A opção por essas três línguas se baseou nos primeiros textos que encontrei na pesquisa. Como inglês e portu-
guês (ou, mais que isso, como os mercados americano e brasileiro) se mostraram de antemão como obrigatórios,
o francês se mostrou como caminho graças aos encontros dos primeiros textos nessa língua. Além disso, havia
uma razão prática: boa parte desta pesquisa foi realizada na Europa, em meu período na França.
96
Esse tipo de contextualismo mostrou forte regularidade ao longo de toda a pesquisa. E
em geral segundo uma mesma lógica: a de contextualizar a desculpa segundo diferentes
formas de relação e diferentes espaços nos quais essas relações se manifestam. Para esses
manuais, um tipo de desculpa a ser dado em casa, um no trabalho e um em situações so-
ciais intermediárias (como festas), em paralelo a essa oposição, um tipo de desculpa para
relações públicas (como as com o professor) e outro para as privadas (como entre namora-
dos). Isso sugeriu de imediato a idéia de que a competência que eu procurava identificar ti-
nha a ver com essa diferenciação entre um plano mais blico no qual é mais típico utili-
zar princípios universalizados e um plano mais privado em que seria mais típico o recur-
so a circunstâncias. A desconfiança advinha justamente da definição que propus anterior-
mente para o ato de dar uma desculpa: se propõe uma descida do universal rumo ao circuns-
tancial para promover a manutenção da relação, faz sentido imaginar que o dar uma descul-
pa me colocava diante de uma competência para dar conta justamente essa operação.
Mas qual é a diferença entre os contextos sugerida pelos manuais? Como as desculpas
variam segundo essas mudanças? No processo de responder a essa pergunta, observando os
manuais, uma primeira percepção se tornou clara e apontou para elementos centrais na mecâ-
nica da manualização. Os manuais podem ser divididos em duas grandes categorias:
1) Livros centrados na quantidade de desculpas apresentadas: neste tipo, capas, índices,
projetos gráficos e textos chamam a atenção para a dimensão enciclopédica do manual, para
uma capacidade de acumulação de casos particulares de desculpas, de exemplos. Nos títulos,
essa informação é usada recorrentemente como elemento de atração, desde o uso de números
absolutos, como em 1001 Desculpas Esfarrapadas em 101 (Un)Believable Excuses for Brea-
king your Diet, 100 Excuses for Kids ou 365 Excuses for Being Late to Work, até o recurso a
adjetivos indicativos de procedimentos de totalização, como o The complete excuses handbo-
ok, ou The Little Giant Encyclopedia of Outrageous Excuses.
97
A ênfase desse modelo está na idéia de que cada desculpa, cada narrativa, possui um valor
intrínseco e que um manual centrado no número delas promove uma certa acumulação de valor,
com cada desculpa operando com um valor em si. Trata-se de uma precedência para a dimensão
estética da desculpa: como o fim último da maior parte dessa literatura é fazer humor, ela aponta
para as idiossincrasias fantasiosas de argumentos como: “Meu filho foi mordido por um jabuti
raivoso e tive que levar o menino ao hospital(DOMENICO, 2003, p. 20) (para cabular um
compromisso); “Não queria te interromper, mas estou passando mal e vou vomitar nos seus sa-
patos(ZGOURIDES e PICKERING, p. 55) (para interromper um participante chato de uma
reunião de trabalho); “Vo es louco! São seus óculos que provocam deformão” (FOR-
THINGHAM, EVANS e ROBINE, p. 73) (para alguém que diz que o outro engordou). Essa ten-
tativa de peculiarização de cada desculpa é operada por um ignorar da busca de mecanismos ge-
rais de construção. Mas, ao mesmo tempo, promove uma celebração da maneira como a retórica
das desculpas sugere uma busca pela peculiarização, por uma economia da singularização. Apa-
rentemente, um paradoxo aqui: o processo de manualização aponta para uma grande quanti-
dade de desculpas possíveis, o que tenderia a banalizá-las, mas, ao mesmo tempo, e com a mes-
ma estética, opera no sentido de mostrar cada desculpa como um ente diferenciado, particular
daí exigir uma taxonomia. A solução dessa aparente contradição parecia estar nos conteúdos
mesmos das desculpas dadas ou, mais especificamente, na negação deles. Vejamos: Scott e Ly-
man (1970, p. 114-120) propõem, a partir de Austin, uma tipificação para as desculpas. Segundo
eles, elas operam segundo quatro principais tipos: “apelo a acidentes, apelo à anulação
8
, apelo a
determinões biológicas, e uso de bode expiatório”. Cada um desses tipos aponta para uma
forma de conteúdo textual: é centrado no que a pessoa diz que é construída essa tipologia. E de
fato essa parece ser a forma maisgica de se tipificar desculpas, uma vez que elas são discursos.
8
Embora os autores tenham usado um termo jurídico, defeasibility, e que haja um correspondente justamente a esse
termo, o neologismo derrotabilidade, oriundo dele e também de uso judicial, referindo-se ao tipo de caso em que o
ator não possui livre arbítrio diante de uma situação, preferi esta tradução, a fim de deixar seu sentido mais claro.
98
Entretanto, como sugeri anteriormente, é justamente no lado de fora da expressão que se
encontra o sentido sociológico do dar uma desculpa: daí eu estar a procura da ação praticada
pelo dar uma desculpa e a alocar no plano de uma tração entre generalidade e circunstanciali-
dade. Por isso mesmo, a observação dessa operação de diferenciação das desculpas pareceu
uma fonte importante para compreender a maneira como opera uma desculpa dada.
Nesse primeiro grupo, identifiquei 39 publicações. Dentre elas, o título estampava um
número em 27 casos. Todos eles trabalham com números desejosos de simbolismo: 8 títulos
apresentam o número de 100 ou 101 desculpas (com o segundo valor ocupando a posição
simbólica de 100+1, ou seja, passando a idéia de que teve a criatividade de inventar “mais
uma desculpa”, “uma a mais”): One Hundred One Excuses for Not Having Sex (WESTHEI-
MER, 1979), 101 (Un)Believable Excuses for Breaking Your Diet (WESTHEIMER, 1980),
101 Unbelievable Excuses for Not Doing Homework (WESTHEIMER e PARENIO, 1982),
101 Excuses Not Doing Homework (LITTLE, 1989), 100 Excuses for Kids (JOYER e RO-
BERT, 1990), Mulligans 4 All: 101 Excuses, Alibis and Observations on the Game of Golf
(CARLSON, 1998), 101 Shooting Excuses (PARRY, 2005); You Can Do It! But Why
Bother?: 101 Excuses for Bad Behavior & Stalling Personal Growth (ST. JOHN, 2007); Ex-
cuses, Excuses! 100 Reasons Why Your Horse Lost the Race! (VENA, 2006). Quatro outros
apresentam 1000 ou 1001 desculpas, em um jogo simbólico semelhante ao anterior: Not To-
night Darling: 1001 Valid Reasons and Excuses (URTS, 1983); 1,001 Excuses!: How to Get
Out Of...and Away With...Almost Anything (ZGOURIDES e PICKERING, 2000); 1001 Des-
culpas Esfarrapadas (DOMENICO, 2003); The Dog Ate My Homework: And 1,001 Even Bet-
ter Excuses to Get Out of School, Avoid the Dentist, and for Every Other Sticky Situation
(THE AD LIB GROUP, 2008) e . Cinco outras operam com o número 500: 501 Excuses to
Go Golfing (EXNER e EMERSON, p. 2000); 501 Excuses for a Bad Golf Shot (EXNER,
2004); 501 Excuses to Play Golf (EXNER, 2004); Overeating? 500 Excuses and 500 Solu-
99
tions (BROCK, 2005); 501 Excuses to be Late for Work (EXNER, 2006). Três outras apresen-
tam 365 ou 366 (o mesmo mecanismo do “uma a mais”), usando como referência o número
de dias do ano: I’ll Drink to That!: 366 Unusual Excuses for a Celebration (ASH e HIGTON,
1987); 365 Excuses for Being Late to Work (SHARPE, 1996); 366 Excuses for a Sherlockian
Party (SENTER, FREEMAN e SENTER, 1999). E os outros textos trabalham com números
mais ou menos simbólicos, basicamente com valores curiosos: The Contractor’s Book of Ex-
cuses: 198 Reasons Why the Job Will Not Get Done (ZWEIFEL, 1996); 1500 excuses impa-
rables en toutes circonstances (FROTHINGHAM, EVANS e ROBINE, 1998); 104 Excuses
for Work Avoidance (COURT e BRADY, 1999); The Hooky Book: More than 200 Excuses
for Rolling in Late, Skipping Out Early and Scamming a Whole Day Off (SPECKMAN,
2000); Forty Excuses to Get Together with the Girls (TANGEMAN, 2006); His 90 Lame Ex-
cuses To Escape Commitment: Know What He Really Means... (JHAVERI, 2008).
Além desses títulos, chama a atenção a maneira como os números escritos ganham des-
taque no projeto gráfico da capa, por vezes com os algarismos em uma tipologia maior ou pe-
lo menos mais destacada do que a própria palavra “desculpa”. Não raro, aliás, esses sinais são
o principal elemento gráfico da página, sendo acentuados por signos de explosão, brilho e/ou
surpresa. No interior, cada um desses volumes opera para chamar a atenção para os argumen-
tos usados nas desculpas. Vários deles trazem, em finais de capítulos, listas de “desculpas a-
dicionais”, em que os autores aproveitam para construir accounts mais absurdos e, por isso
mesmo, mais próprios para o humor. Por exemplo, em The Complete Excuses Handbook, o
primeiro capítulo, “Desculpas gerais” (p. 15), traz sugestões como: “Se eu não fizer isso, meu
biógrafo não terá muito sobre o que escrever”, ou: “Quando você é um espião internacional,
não pode questionar sua missão. Você simplesmente a cumpre”. Em outro capítulo, “Descul-
pas para celebridades”, o tom satírico se aproveita de idéias como: “Eu sou Madonna. Posso
fazer o que quiser” (p. 30). Em 1500 Excuses Imparables en Toutes Circonstances, esses ar-
100
gumentos adicionais ganham ainda ilustrações, como no capítulo sobre “Desculpas para não
ser tão generoso”: uma mulher com jeito de carola pede doações e passar um milionário
que, diante da pedinte, pergunta: “Diga-me: você aceita cartão?”. 501 Excuses for a Bad
Golf Shot interrompe a seqüência numerada que percorre o livro todo para, em páginas intei-
ras com ilustrações, apresentar argumentos como o de número 50: “Eu jogo melhor contra
golfistas realmente bons”. Cada um desses destaques ajuda a compor a economia de desbana-
lização de que falei acima. Mas o peso do paradoxo que apontei ainda se manifesta: a leitura
de desculpas sob seqüências numeradas ou em páginas em que aparecem rodeadas de tantos
pares, fazem a variação entre uma desculpa e outra passar um tanto despercebida. A solução
vem justamente do contextualismo: o que mais chama a atenção entre as desculpas é a forma
de inflexão própria para cada situação: é a presença de Madonna e de seu posto de “rainha do
pop” em vez de outro artista, é o fato de o golfe exigir habilidades individuais específicas, di-
ferentemente, por exemplo, da sinuca, o que torna uma desculpa peculiar nesse modelo. O que
sugere uma outra questão importante: a apresentação e a aceitação de uma desculpa dada é
operada em uma economia de uma demonstração de peculiaridade contextual ou pessoal, ou
seja, não parece ser tanto uma questão lógica, de aceitação reflexiva de argumentos, mas de
adesão a um procedimento complexo, que envolve uma peculiarização da situação ou dos en-
volvidos. Retomarei esta discussão à frente. Antes, porém, completarei o argumento com o
segundo tipo de manual de desculpas.
2) Livros centrados em uma idéia de qualidade das desculpas, apresentando um nú-
mero (por vezes bem) menor de casos, como em The Little Book of Big Excuses (JOHN-
SON, 2007) ou dos rios textos desculpas em mundos sociais específicos, como The
Contractor’s Book of Excuses: 198 Reasons Why the Job Will Not Get Done (ZWEIFEL,
1996) ou ainda The Funniest Excuse Book Ever (KUSHNER e HOFFMAN, 1998), centra-
do mais na performance humorística do texto. O centro da publicação neste tipo é a ênfase
101
no todo de construção do discurso a ser dado e para sua qualificação como boa descul-
pa. Nos 57 títulos que pude alocar nesta categoria, observei um interesse mais forte em
colocar sobre a mesa alguns procedimentos gerais para o dar uma desculpa. A começar
igualmente pela maneira de esses textos se mostrarem: a maior parte deles apresentam su-
as desculpas com adjetivos positivos (ou pelo menos eficientes para demonstrar a qualida-
de das desculpas apresentadas, mesmo que use alguma ironia e picardia para isso em al-
guns casos): Doe (1977) usa “livro de ouro”; Roberts (1979), “bom livro e “boas descul-
pas”; Carroll (1983), “a melhor desculpa”; Chapouton (1987) e Frothinghame Evans
(1995), criativas, além de para qualquer ocasião” e “inovadoras para os últimos; Ge-
vertz, Oman e Goodwin (1989) afirmam apresentar as melhores desculpas de golfe do
mundo e todas as boas razões; Parietti (1990), que detém “as melhores desculpas
esportivas”; Blumenfeld (1991) diz oferecer desculpas quase críveis; disputam o tulo
de “o melhor livro de desculpas de todos os tempos Kushner e Hoffman (1991) e Scru-
ton e Plaisted (1996). Há “ótimas desculpas” (WEAVER, 1995). Adjetivos como supre-
mo, novas, excitantes”, cintilantes”, “pticas” m de Thompson e Hunzeker
(1995); “excelentes é usado por Moore (1991), Pickering e Pickering (1996), Davis
(2000) e Carroll, Lippman e Azar (2001), que ainda dizem que as suas são “rápidas e
“funcionais. Croucher (1997) teria”; Kushner e Hoffman (1998) trariam o mais engra-
çado dos livros de desculpas. As desculpas de De’Ath (2002) seriam fantásticas e “da
vida real”; as de Davies (2003), ótimas, “efetivase críveis”; enquanto seriam gran-
des as apresentadas por Dewin (2004) e Johnson (2006); e “as melhores” as de Tardy
(2006). Green (2004) venderia osuperlivro”.
Esse auto-elogio dos procedimentos chama a atenção para os seus resultados. Mas se
o dar uma desculpa pode ser pensado justamente como operação a ser realizada situacio-
nalmente a partir do domínio de suas regras (e o como uma memória de uma galeria,
102
como no modelo anterior), ele exige um grau de reflexividade e estratégia social bastante
desenvolvido. De fato, um certo tom didático domina os textos deste braço, como no caso
dos ensinamentos dados por Addie Johnson no Little Book of Big Excuses ou por Bill e
William F. Howell em Why???: A Practical Guide of Excuses for the Married Man Or
About to Be!!! (2007). Em todos esses casos, uma abordagem claramente teatral da vida
social surge como escopo. Esse tipo de abordagem poderia conduzir para um olhar próxi-
mo ao proposto por Goffman (1959; 1971), sugerindo um social em que os atores sociais
articulam “estragiasem suas ações. Mas uma fala de Johnson me sugeriu olhar para sua
abordagem de maneira diferente: Fazemos muita coisa sem pensar, mas momentos em
que precisamos pensar para fazer as coisas, por isso, todos damos desculpas” (p. 5). Isso
implica pensar que os atores sociais atuam segundo diferentes formas de coordenação de
suas ões na vida social. É justamente o que articula Tvenot (2006), ao propor diferen-
tes regimes de engajamentodos atores, ou seja, diferentes gramáticas de inserção lógica
nas situações do mundo social. Ele define ts desses regimes: “engajamento em familia-
ridade(segundo o qual os atores se engajam nas situões segundo proximidades e reco-
nhecimentos que dispensam a avalião); engajamento planejado” (que trata de um tra-
tamento conjunto de um sujeito engenhoso e estrategista e de um meio preparado para
uma utilização funcional, p. 15); e engajamento justificável” (no qual os atores depen-
dem de negociões em torno de princípios de legitimão). Isso permite pensar um ator
social que o precisa apenas estar no palco, exercendo pais, mas de um ser que se des-
pe inclusive de sua profissão e que, na coxia, perde por vezes a conscncia dela, alteran-
do a abordagem cognitiva com que se aproxima do mundo.
O momento do dar uma desculpa, então, pode ser pensado como um instante em que se com-
partilham diferentes formas de engajamento. Se os manuais mostram que a desculpa pode sofrer
utilização instrumental, ao mesmo tempo, por sua percepção de um procedimento metodologizável,
103
eles demonstram uma incorporação também inconsciente por parte dos mesmos atores que a utili-
zam conscientemente. Essa diferença, ironicamente, mostra queo faz diferença se consciência
ou não. Assim, quando Johnson sugere que a primeira regra para uma boa desculpa é que “o diabo
está nos detalhes(p. 8), o deixa de ser tentador incl-la no raciocínio que fiz anteriormente: o
diabo, ou seja, Satã, o deslocamento de responsabilidade, está nos detalhes. Ainda mais quando ela
afirma que “detalhes” é um sinônimo para “verdade”: “Uma vez que vo criou uma história crível,
ela deve ser preenchida com acepipes apetitosos para susten-la” (p. 8). o é muito diferente do
que recomendam outros autores. A iia de que é necessário demonstrar criatividade literia para
uma boa desculpa e que ela tem que soar verossímil é recorrente em todos os manuais. Mas este da-
do também pode ser enganoso e apontar apenas para uma superficialidade rerica: uma boa descul-
pa tem que ter muitos detalhes porque, como mentira, precisaria parecer uma verdade.
Mas uma outra forma de pensar essa máxima, mais abstratamente: o imperativo de
detalhismo conduz não apenas para a veracidade, mas também para o reconhecimento de uma
desculpa: quero dizer, uma desculpa dada pode servir como um ativador, como uma forma de
conduzir para uma ação social específica e que, para tal, dependa de alguns traços, como se
fosse uma fechadura musical a depender de determinadas notas para ser aberta. “O movimen-
to de dar uma desculpa, quando iniciado, prossegue, com várias delas, como se nunca fosse
acabar”, observa Boltanski (2006-2007). Nesse sentido, não será tanto o conteúdo mesmo de
uma desculpa o seu principal elemento. Isso fica ainda mais claro quando a mesma cartilha
sugere (p. 9): “Lembre-se que o exagero é seu amigo”. O detalhismo parece indicar que um
desses traços seja uma narratividade, uma competência para constituir uma narração dotada
de traços capazes de realizar a ação demandada pela desculpa dada.
Uma tipificação bastante usual para esses manuais qualitativos sugere quatro principais
categorias: a) negação de ação; b) negação de intenção; c) negação de culpa; d) afirmação de
necessidade. As situações apresentadas em vários desses livros sugerem a descrições desse
104
outro tipo de variação: em vez de apenas atentar para o que tem lugar nos contextos e como
isso determina as desculpas (pela escolha de argumentos ligados a esses mesmos contextos)
elas se ergueriam segundo quatro formas de construir sua argumentação.
Mas se essa mesma lista for observada mais de perto, assim como a lista sugerida por
Scott e Lyman repito-a aqui: a) apelo a acidentes; b) apelo à anulação; c) apelo a determi-
nações biológicas; e d) uso de bode expiatório –, elas clamam por uma revisão: tanto uma
quanto a outra o tipificações mais ligadas a essas mudanças contextuais do que ao fenô-
meno do dar uma desculpa tomado isoladamente. De fato, se pensarmos em uma tipificação
mais abstrata e reduzirmos essas variações a transformações efetivas no fenômeno em ques-
tão, veremos que, no caso da primeira escala, (a), (b) e (c) correspondem a um mesmo fe-
nômeno, A, e (d) a um segundo, B. Igualmente, na segunda escala, (a) e (d) correspondem
também a um mesmo fenômeno, o mesmo A, e (b) e (c) a um outro, justamente B. É na di-
reção desses dois fenômenos, A e B, que me voltarei agora.
105
DOIS TIPOS DE DESCULPAS À MÃO
O cachorrinho e a impressora devoram o dever: o modelo do “não era eu”
O personagem recorrente, em três situações: ele é o protagonista do próprio título em The Dog Ate My Ho-
mework (2008); na Little Giant Enciclopedia (2006), converte-se em ícone do próprio processo, encenando
como ão o que o colega sugere em palavras; e The Complete Excuses Handbook faz alusão a ele (inclusi-
ve visual), sugerindo uma ampliação da eficiência pela fuga do clichê:Não culpe o cachorro nunca mais!
As três capas acima chamam a atenção para um fato curioso: há curingas no baralho do dar
uma desculpa. Na Introdução, sugeri que esse é um recurso recorrente, usando como exemplo-
emblema o uso de Satas como desculpa existencial. Satã, na verdade, opera como uma metáfo-
ra para a prodão dessas desculpas totais. Pois nos manuais de desculpa que observei, Satã, que
foi uma serpente, agora toma a forma de... um cachorro, um inocente e aparentemente inofensi-
voozinho dostico
9
. Como aparece nas capas acima, o argumento genérico de que “o cachor-
ro comeu minha lição de casa” assume várias formas, como em The Dog Ate My Car Keys: And
Other Great Excuses Not to Go to Work (WEAVER, 1995).
9
Não estou sugerindo uma conexão real entre esses dois fatos, mas não deixa de ser uma coincidência curi-
osa que, conforme mostrei em minha dissertação (WERNECK, 2004), o cão seja ao mesmo tempo um ícone
paradigmático do dar uma desculpa e o animal inspirador do cinismo grego, uma corrente filosófica que
renegava o conhecimento escrito e preferia sua manifestação na forma da ação e que primava a dimeno
irônica das interações. De fato, o termo grego kynikós significa aquele que se porta como cão (kýon=cão),
referindo-se ao comportamento típico dos cínicos de andar na rua e olhar para as posões formalistas de
outras escolas com refinada ironia. O cínico costumava desqualificar os argumentos de seus oponentes
reduzindo-os ao ridículo, a fim de reivindicar um olhar personalista sobre o mundo.
106
De fato, o cachorro aparece tanto nos tulos Creative Excuses for Every Occasion: Old
Standards, Innovative Evasions and Blaming the Dog (FROTHINGHAM e EVANS, 1995); The
Dog Ate My Scriptures: Excuses, Agency, and Responsibility (HILTON III, 2005); The Dog Ate
My Homework: And 1,001 Even Better Excuses to Get Out of School, Avoid the Dentist, and for
Every Other Sticky Situation (THE AD LIB GROUP, 2008) – e nas capas a ilustração de 1500
Excuses, por exemplo, mostra um canino que urina nos pés de uma senhora, revoltada diante do
dono do animal, constrangido; a de Scooby-Doo’s Little Book of Big Excuses (DEWIN, 2004) traz,
obviamente, a imagem de seu famoso personagem, um cão dinamarquês; e a igualmente espirituo-
sa foto de um airedale terrier comendo uma folha de caderno estampa a fronte de Excuses!: Survive
and Succeed with David Mortimore Baxter (TAYLOR, 2007). Mas é sobretudo nos textos que o
animalzinho mantém uma dieta a base de responsabilidade alheia: ele é recorrente em quase todos
os trabalhos investigados. É culpado pelao entrega de trabalhos escolares e por atrasos para reu-
niões, mas o cão é o bode expiario também para problemas conjugais (como para bilhetes comi-
dos que provocam desencontros) e pequenos conflitos entre estranhos (como pisadas de s).
O que quer dizer essa recorrência? Ela de fato corresponde ao “apelo ao bode expirató-
rio” de Scott e Lyman. Mas e se pensarmos em uma dimensão mais abstrata, ou seja, desloca-
da de bodes, cães ou Satãs? A sugestão vem da evolução sofrida pelo animalzinho sugerida
por Leo Cunha (2004), a partir dos argumentos de seus alunos. Repito-a:
O computador deu pau, a impressora ficou sem tinta, o disquete não abriu, um rus
apagou tudo. Vo sabe que o computador é um bicho imprevisível, né, fessor?
Temperamental feito ele só!
Depois de uma vasta tradição de es que comem trabalhos escolares, parece que vi-
vemos, então, na era em que eles são comidos pela impressora (ou são arrasados por rus
ou o chegam quando são enviados aos professores por e-mail). “Acho que meu computa-
dor fez sexo inseguro”, diz a The Little Giant Encyclopedia of Outrageous Excuses (MAC-
107
FARLANE, p. 106). É uma experiência que eu mesmo tive quando lecionei (em três dife-
rentes instituições de nível superior, primeiro ensinando a alunos de jornalismo e depois
como estagiário para ensinar sociologia). E essa eleição tecnológica de um novo Satã é tam-
bém recorrente nos manuais mais recentes. De fato, a tecnologia surge como um alvo da
transferência de responsabilidade em rios dos livros pesquisados: como uma espécie de
mistério lotado de defeitos e hermetismo, o computador solidariza inúmeras pessoas (o que
não significa que também o seja fonte de conflitos, sobretudo quando está em disputa o
grau de acesso a essa ciência oculta que o os detalhes do cotidiano informático, como
mostrarei com um caso entre marido e mulher no Capítulo 3).
Não apenas cães (embora, por exemplo, cada página o 1500 Excuses Imparables en
Toutes Circonstances traga um dica de como jogar a culpa no cachorro”), serpentes ou a-
parelhos eletrônicos, aliás. É uma substituição tão recorrente que por vezes é confundida
com a própria definição de desculpa. o no âmbito dos manuais, mas nas entrevistas per-
cebi certa tendência a essa superposição (“Dar uma desculpa? Não, eu não jogo a culpa nos
outros pelo que eu faço”, diz-me uma namorada, Marcela, ano e meio de relacionamento
com sua companheira, Helena). Mas de fato é uma forma extremamente habitual. Senão,
vejamos: “Bom dia, não chegarei para o trabalho hoje. Acordei com uma terrível dor nas
costas e mal consigo me mexer. Se conseguir recobrar os movimentos amanhã, eu vou”
(TARDY, p. 6) para não ir ao trabalho; “Meus pais me mandaram a conta pelos custos de
minha educação” (MACFARLANE, p. 320) para falta de dinheiro; “Acabamos de ganhar
um filhotinho (de cachorro, naturalmente) e ele fica ganindo amorrer se a gente se afasta
um centímetro que seja dele(FROTHINGHAM, EVANS e ROBINE, p. 12) para não ir a
uma reunião social; “Minha mãe disse que tinha te mandado!” (ZGOURIDES e PICKERING,
p. 111) para ter cabulado o envio de um documento importante; “Não era realmente eu. Eu
estava sob efeito de medicação” (HARRY e SPALDING, p. 61).
108
Mas quer seja um animal quer seja uma máquina, quer seja uma pessoa, ou qualquer ou-
tro agente externo ao qual se transfira a culpa, aquilo que tenta evitar a saída do homem do
Éden poderia ser entendido a princípio como uma forma estratégica de culpar o outro por algo
que fizemos: não é culpa minha porque é culpa de outro. A ação pode ter sido praticada por
mim, mas a responsabilidade por ela estaria em outro ator.
, entretanto, outra maneira de ler essa operão: é usar como referência o próprio descul-
pando. A partir dessa posição, classifiquei as desculpas dadas segundo dois tipos gerais, e nomeio
aqui o primeiro: quando se es falando do cachorro, “foi ele”, está-se ao mesmo tempo dizendo:
“Não fui eu”. É uma troca mais complicada do que parece. Em vez de significar apenas um sim-
ples laamento da batata quente para a mão de outro, essa leitura permite enxergar a construção
de uma revisão de temporalidade, criando um tempo outro, por meio da crião de um ente outro:
aquele que praticou a ação que causou mal-estar relacional o era este que es agora falando,
uma pessoa que concorda com a regra moral em queso e que o a descumpriria em condões
normais. Aquele que praticou a ão é um outro, conforme sugeri na Introdução como questão a
ser atacada: a torção contida nesse tipo de desculpa dada é a da construção de dois estados disten-
didos no tempo, um de normalidade (atual, no qual se dá a desculpa e se afirma uma condão na
relação) e no qual se está inserido em uma situação de potencial conflito provocado pela demons-
trão/perceão de mal-estar, e outro de anormalidade, de desvio (que se quer) compreensível
(anterior, no qual se deu a ação). Entender o sentido sociológico dessa mudaa de referência de-
pende de se pensar no estatuto de uma relação duradoura, na qual uma economia da reputação
se determinante. O Capítulos 3 e a Conclusão discutirão aprofundadamente essa economia. Por
ora, a partir dos manuais de desculpa, a idéia de uma ação motivada pela manutenção de um esta-
do de paz – seja ele numa relão duradoura seja em uma interão furtiva – também é beneficia-
da pela construção desses dois tempos e desses dois entes: por esse modelo, a desculpa dada cha-
ma a atenção para a perenidade da paz, para o compromisso dos atores com essa condição.
109
Mais real que o rei: o modelo do “é assim mesmo”
Mas se o modelo do “não era eu” parecia ocupar a posição de metonímia do próprio ato
de dar uma desculpa, por outro lado, a observação exaustiva de milhares de desculpas dadas
10
apontava para um série de falas que não encaixavam desse tipo. Era desculpas como “Não rece-
bi amor suficiente quando eu era pequeno(HARRY e SPALDING, P. 11) ou o citado “Eu
sou Madonna” (Id., p. 30) para um rompante de agressividade; “Considerando que eu tenho
75 e provavelmente não viverei mais do que 48 meses mais, por que eu deveria perder um fim
de semana?”
11
(HOWELL E HOWELL, 2007, p. 12) para não ir a um casamento em outra
cidade e que tomaria o sábado e o domingo; “Eu tenho vermes. Dos compridos” (MCFARLA-
NE, p. 32) para evitar várias situações, afirmando uma fraqueza; “Não é assim que fazemos
isso” (ZGOURIDES e PICKERING, p. 57). Todos esses argumentos deslocam a responsabili-
dade não para um outro ator, mas para uma espécie de realidade alternativa: não é mais o eu que
é um outro, mas a situação: se uma regra normalmente observada e respeitada pelos atores,
em determinadas circunstâncias, é igualmente normal que ela não seja respeitada. A explicação
se baseia na constatação de um traço típico de algum actante (pessoas ou coisas) envolvido na
situação: a ação transcorreu de tal forma que causou mal-estar relacional porque algo “é assim”
(ou “não é assim”, o que é apenas uma inversão sintática do mesmo conceito). Os casos de Sti-
epan Arcáditch Oblónski, o marido adúltero de Ana Kariênina, e Bruno, o rapaz irresponsável
de A Criança, que apresentei na Introdução, são paradigmáticos nesse sentido.
10
A fim de delinear o valor simbólico dessa variável (mas igualmente como curiosidade), resolvi somar os números
contidos nos títulos dos livros, para imaginar um “espaço amostral”. Considerando apenas esses livros e ignorando as
repetições e arredondando números como “mais de”, o resultado sugere que passei por pelo menos 11 mil desculpas.
11
A observação do uso da idade avançada como desculpa genérica (como cachorro, portanto) mostrou-se
como um manancial interessante para observar o ato de dar desculpas. Tive contato com ele ao realizar uma
pesquisa em parceria com Mirian Goldenberg (GOLDENBERG, 2008; WERNECK e GOLDENBERG,
2009). Depois do resultado dessa primeira investigação, trabalhamos agora em uma outra pesquisa, especi-
ficamente sobre o uso da velhice como desculpa, a partir de minhas conclusões sobre este tema nesta tese e
das dela sobre envelhecimento em pesquisa que ela neste momento desenvolve. A velhice parece ser um
exemplo emblemático deste modelo do é assim mesmo: conforme temos observado, ela é recorrentemen-
te (e convenientemente) usada pelos velhos para fazer e para praticar ações que incomodam outras pessoas.
110
Os dois tentam “justificar” suas ações, dando conta delas com uma inevitabilidade basea-
da em um traço que seria “mais real que o rei”, ou seja, cuja normalidade é de exercício tão ou
até mais típico do que o cumprimento da própria regra. Esse tipo de perspectiva sugere um o-
lhar relativizador para a relação com a regra moral: se ela é consagrada, ao mesmo tempo, ela
não opera logicamente de maneira restritiva: determinados traços de outras morais, de graus de
consagração inferiores, podem se chocar com ela, estabelecendo tensões nas situações em que
elas se deparam uma com a outra. Essa forma de deslocamento, então, aponta para a criação de
uma transubstanciação moral: o conteúdo de uma moral precisa se apresentar como prioritário.
Essa busca por prioridade sugere um caminho mais longo do que uma fala discreta parece de-
monstrar: não é uma transferência simples entre dois actantes (de Adão para Eva, de Eva para a
serpente; do aluno para o cachorro ou para o computador), é uma transferência de um ator para
uma situação, que tem que mudar diante dos olhos do empreendedor moral.
Vejamos: quando um idoso diz que o irá a uma festa de família, na qual sua pre-
sença seria moralmente obrigatória, e que não fa isso porque é velho e provavelmente
o te “48 semanas de vida a mais”, ele está dizendo que uma determinada normalidade
(a idéia de que o se pode desperdar o tempo quando não se dispõe de muito dele) é
mais efetiva do que a regra de conduta que exigia sua presença. Por mais efetiva entendo
uma ão que produz mais efeitos que outra, ou seja, uma ação que infere mais sociação
(SIMMEL, 2006)
12
, intensifica as interações, seja em processos de sociabilidade, seja nas
interações lotadas de formalidade. Se com o velho “é assim mesmo”, sua velhice, naquele
momento, é mais efetiva que a obrigação de prestigiar seu clã.
12
O conceito de sociação, um dos mais centrais da obra de Simmel, é extremamente pródiga para pensar a
maneira como as ações são operadas socialmente. Segundo ele, essa sociação, a variável central da vida
social, é composta pelas interações fluidas que se formam e desfazem (ou não) na vida social. A sociação
combina diversas formas de ação conforme diferentes interesses. Adoto de Simmel aqui a idéia de que o
social é movido pelo próprio processo de busca de sociação. Nesse sentido, a variável central de um mode-
lo sociogico seria uma forma de descrever uma forma de constituição dessa socião. Minha sugestão
aqui é a de pensar essa noção de efetivação como uma medida de intensidade dessa socião, por meio da
reprodução da sociação mesma, por meio das interações efetivadas.
111
Esse modelo, então, ajuda a pensar em uma certa abordagem sobre as relações sociais: a
de que uma variável útil para delas dar conta é a idéia de sociação efetiva. Se adotamos a efeti-
vação como pergunta essencial sobre os fatos sociais – pensando que um fato se quando se
efetiva, ou seja, quando é e produz efeito, e que ele tem lugar em vez de outro fato social porque
mais se efetiva, estamos optando por uma dimensão essencialmente pragmática: é a partir das
conseqüências das ações que se podem fazer afirmações sobre o social.
* * *
A iia de efetivão parece estar associada acima ao modelo do é assim mesmo.
Mas embora eu tenha optado por demonstrá-la a partir dele, quero mostrar que essa abor-
dagem também conta do e pode ser explicada pelo tipo do não era eu. Quando se
usa um argumento que transfere a responsabilidade ou seja, o poder de decisão sobre a
ão de um actante para outro, tamm entra em jogo uma pergunta sobre o que é mais
efetivo: a mudança, então, faz a socião depender da competência do ator para demons-
trar um outro quadro de grandeza. Em um modelo baseado em um princípio de poder, isso
poderia parecer uma simples transfencia dele: o outro actante seria mais efetivo que o
desculpando na ão. Mas o que parece estar em jogo neste caso e se olharmos para o
caso sem um princípio que o guie a priori é a efetivação de uma outra condição, a de
uma perda de poder. A imagem em queso na economia da efetivação é de uma condição
de impossibilidade de agir com total liberdade. Se no modelo do “é assim mesmo essa
perda de liberdade se dava com a exisncia de uma normalidade mais efetiva que a ão
pessoal, aqui essa perda de liberdade é dada por uma liberdade maior da parte de outro
actante. Mas não é essa liberdade o que é efetivado no procedimento de dar uma desculpa,
e sim justamente a condição de limitão.
112
Além disso, e justamente porque envolvem um processo complexo como o dessa e-
fetivação que se dá no curso das interações esses dois modelos não são estanques. Eles
o utiliveis segundo formas de coordenação que variam de acordo com os contextos.
Para demonst-lo, quero agora apresentar um caso isolado do tratamento dos manuais,
mas que complementa a tipologia que apresentei acima:
Tive a oportunidade e, devo dizer, a honra –, de editar a publicação da versão em por-
tuguês do artigo “Accounts”, em Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social
(Vol. 1, n
o
2, 2008), publicação mantida pelo Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Vi-
olência Urbana (Necvu), do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), do qual faço parte. Sobre isso, cabe narrar um episódio
emblemático para esta tese: no processo de obtenção dos direitos de publicação do artigo, en-
trei em contato com a American Sociological Association (ASA), mantenedora da American
Sociological Review, revista que primeiro publicou o artigo (Vol. 33, n
o
1, 1968). A simpática
e prestativa responsável pelo departamento de permissions, Jamie Lynn Panzarella, enviou-se
contratos e as últimas coordenadas para localização dos dois autores, seus últimos postos in-
formados à ASA. A idéia é que eu tinha que obter assinaturas deles, a fim de autorizar a pu-
blicação. Para Stanford M. Lyman, a notícia não poderia ter sido mais negativa: ele faleceu
em 2003, aos 69 anos, quando era professor emérito da Florida Atlantic University.
Mas consegui encontrar o outro autor, Marvin B. Scott. Entretanto, a conversa com ele
renderia uma ocorrência simbólica e que mereceria o adjetivo de surrealista, devo dizer: es-
crevi-lhe uma mensagem elogiosa, comentando a importância que o artigo deles tinha para
minha pesquisa e para meus estudos, assim como chamando a atenção para a importância de
seu trabalho para uma geração de pesquisadores que trabalham com sociologia dos discursos
etc. E, claro, solicitando a permissão de publicação. Qual não foi minha surpresa ao receber
sua resposta: “Você contatou o Dr. Marvin B. Scott errado. Boa sorte com sua revista”. Era a
113
casa certa, o departamento certo, o endereço de e-mail certo (de acordo com que o próprio
Scott havia fornecido à ASA), mas, estranhamente, o pesquisador negava ser quem era. Mes-
mo que eu soubesse, sem dúvida (confirmei com a prestativa funcionária da entidade, que te-
lefonou para a universidade para confirmar), de que ele era ele. Essa história, no momento em
que começava a escrever este texto, parece ter sido desenhada pela providência como anedota
para estas páginas. É provável que o Dr. Scott não quisesse ser incomodado.
Mas o ainda mais simbólico do que, dias depois, fui informado pela responsável pelas
permissões da ASA: o professor “é assim mesmo” (“He usually does things like that”, disse-
me, logo depois de ele me dizer algo como: “Não sou eu”), e que a própria associação me
concederia a permissão em seu nome. E que, não, eu não precisava me preocupar, que eu não
estaria publicando o texto contra a vontade dele.
114
DESCULPAS ESFARRAPADAS: PEQUENO ENSAIO COMPARATIVO
Os dois manuais de Domenico: o centro da apresentação são a inverossimilhança, demarca-
da pelo termo “esfarrapada”, e a crítica a um excesso que o autor chama de “desculpismo”
Guca Domenico diz que escreveu 1001 Desculpas Esfarrapadas: As Melhores e Mais Efi-
cazes Maneiras de Justificar o Injustificável por ser “moralista”, como ele diz ao ser entrevista-
do
13
. De fato, ao se observar os dois volumes que ele publicou, o primeiro em 2003 e um segun-
do, 1001 Desculpas Esfarrapadas de Poticos, em 2005, fica claro que a posão assumida pelo
narrador é tipicamente a de “empreendedor moral” (BECKER, 2008, p. 153), o ator social que
“exibe a iniciativa de produzir e reproduzir as regras”. Seus dois livros podem ser classificados
como “manuais de desculpaa partir da definão formal que impus: eles listam desculpas. Mas
embora ele promova uma manualizão como apresentei, como vários outros livros dentre os que
analisei, o objetivo explícito do livro é o de ironizar o ato de dar uma desculpa, a partir de uma
medida do excesso: para rios dos autores (Domenico entre eles), dão-se desculpas demais.
13
Conversei com o autor no final de 2008, depois de ter a pesquisa praticamente concluída. A conversa com ele bus-
cava observar sua interpretação da idéia de produzir um “manual de desculpas” no sentido como o defini aqui e para
que ele desse conta dos princípios de construção das desculpas que produziu para o livro. Ao fazer o contato para mar-
car a entrevista, recebi dele a seguinte resposta, por e-mail: “Bem que gostaria de lhe dar a entrevista, mas acontece
que estou na Índia, pendurado no teto de um templo budista fazendo a meditação do telhado. Será que esta desculpa
convenceria?Era, claro, uma brincadeira e nos telefonamos imediatamente depois (eu no Rio e ele em São Paulo),
mas essa fala já ajuda a reiterar um dos princípios mais fortes de seu trabalho: construir uma compilação de hipérboles.
115
De fato, os manuais de desculpa podem mesmo ser divididos em duas categorias (divisão
que insinuei na abertura deste capítulo): a) manuais de auto-ajuda, aqueles desenhados conforme
uma indicação positivizada do uso das desculpas como estratégia relacional, uma compreensão
instrumental do uso das desculpas como manobra social; e b) anti-manuais, os que se posicionam
criticamente a essa compreensão e esse uso instrumental. Alguns dos livros apresentarão postu-
ras duplas, mas de maneira geral eles se dividem entre essas duas atitudes. O tipo (b) é o caso de
Domenico, como pode ser constatado em sua abordagem e confirmado em sua fala:
Se eu fosse fazer um manual, seria ridículo. Eu ia ensinar a fazer fraude? Sou pai de
quatro filhos e assumo esse papel de pai. Dizem até que sou linha dura. Não acredito
nessa onda de oba-oba. E como minha arma é o humor, uma lição de moral que a
gente procura passar, mas sem ditar regras. Quando você opta pelo humor, retira to-
da possibilidade de dar bronca.
Essa perspectiva moralista, transparente em 44 dos manuais investigados, é compartilhada
por boa parte das análises acadêmicas feitas sobre o tema. Benoit (1995), no âmbito da análise
da retórica de discursos políticos, fala de um “exagero retórico” no uso das “estratégias de
restauração de imagem”. McDowell (2000), fala em “crise ética contemporânea” para tratar do
que ele considera uma produção exagerada de desculpas, inicialmente no âmbito profissional,
depois generalizadamente (p. VII):
Havia [no momento em que ele decidiu escrever seu livro] uma propensão quase u-
niversal a dar desculpas, independentemente de serem ou não plausíveis, quer fun-
cionem propriamente ouo, sejam elas apresentadas para um trabalho atrasado, pa-
ra aparecer despreparado para uma aula, oferecer uma resposta satisfatória a uma
questão do professor ou se dar mal em uma prova. Relutava-se a assumir responsa-
bilidade por seus erros ou pedir perdão por eles.
Os articulistas americanos Paul Slansky e Arleen Sorkin, autores de um dos manuais
que analisei, My Bad: 25 Years of Public Apologies and the Appaling Behaviour that Ins-
pired Them (2006), uma compilação de pedidos blicos de desculpas (apologies) que a-
caba por listar as desculpas dadas (excuses) por essas mesmas personagens na esfera pú-
blica, afirmam que a perda de vergonha crescentemente define nossos discursos”. De fa-
116
to, o jornalista americano Patrick Goldstein, do Los Angeles Times (26/12/2006), ao clas-
sificar 2006 como “o ano dos pedidos de desculpa devido a uma epidemia” de apolo-
gies por parte de rias celebridades nos Estados Unidos e no mundo
14
chama a ateão
para o fato de que nenhuma dessas demanda de pero veio sem a apresentação de des-
culpas para as ões, todas esfarrapadas, segundo ele. É a mesma sensação percebida em
Domenico, que a usa como justificativa para seu livro:
Ele veio porque sou uma pessoa muito direta. As pessoas dizem até que sou sem educa-
ção. Mas estamos acostumados a dizer sim quando queremos dizer não. Dizemos que
vamos passar [na casa de um amigo], mas não vamos. Quando fazia shows [ele é músi-
co], as pessoas diziam: “Poxa, mas você não avisa!” Comecei, então, a avisar. E as pes-
soas diziam que iam. E não iam. E inventavam desculpas para explicar por que não ti-
nham ido. E começaram a vir umas desculpas que, pelo amor de Deus, não dava! Eu
pensava: “Essa aí de novo? Não dá!” É sempre alguém que morre! Me ocorreu, então, a
idéia de inventar umas desculpas para eles.
Logo depois, ele atribui uma tarefa para seu objeto: “As desculpas o um amortecedor so-
cial”. A escolha do termo é sugestiva: relaciona as desculpas à redão de impacto. Ela funciona-
ria como mola entre atores que poderiam entrar em conflito se houvesse total sinceridade. Ao
mesmo tempo, essa metáfora aponta para uma dimensão dispositiva: a desculpa dada operaria
como um equipamento, algo que realiza um trabalho, ou que, com a definão física, reduz o tra-
balho de aplicão de uma foa. Além disso, o uso de uma categoria mecânica refoa a noção
de manutenção que aponto como centro do papel desempenhado pela desculpa dada.
14
Entre as muitas celebridades que foram à mídia depois de aparecer na mesma criticados por terem praticado algo que
desagradou alguém estava o astro de cinema americano Mel Gibson, que, quando foi parado por excesso de velocidade
enquanto dirigia embriagado, ao constatar que os policiais eram judeus, disse: “Os judeus são responsáveis por todas as
guerras do mundo!”. Depois, Gibson mostrou arrependimento em um programa de TV e atribuiu justamente ao álcool
seu deslize. Outro caso famoso foi o do humorista Michael Richards, que vive o personagem Kramer na série Seinfeld
(citada na Introdução), que fez piadas racistas em uma apresentação de stand-up. Ao ir a um talk show logo depois, ele
tentou dar conta do que disse com um: “O mais insano sobre essa história é que eu não sou racista!Outra estrela que
deu uma desculpa um tanto esfarrapada quando pedia desculpas foi a atriz Sienna Miller, que chamou a cidade em que
estava filmando de Shittsburg (em vez de Pittsburg, trocando o icio do nome para a palavra em inglês para “merda”).
Na correção, ela disse que “conversações podem ser facilmente manipuladas na imprensa”. No Brasil, em um caso que,
obviamente, não é citado por Goldstein, um exemplo desse gênero ocorreu (O Globo, 15/10/2006): a funkeira carioca
Tati Quebra-Barraco foi parada por policiais em uma blitz e notificada por estar sem habilitação e os insultou, chaman-
do-os de “mortos de fome”. Depois de protestos, ela foi a blico pedir desculpas à PM e ao batalhão da corporão:
“Não me lembro de ter falado, estava nervosa, mas me referia apenas àqueles policiais que me abordaram”. E, mais à
frente: “E se eu estava sem habilitação, eles roubaram meu rádio e tentaram extorquir dinheiro da gente”.
117
Esse parece um ponto de partida importante para o trabalho de Domenico: sua iniciativa vei-
o, segundo ele, porque ouvia mentiras demais dos amigos. Mas o elemento que chama a ateão na
fala do artista é uma certa crítica estética: não é tanto a mentira que ocupa o lugar de vi em sua
fala, mas sim a mentira ruim. E por “ruim” o se entende, neste caso, uma inverdade que soe in-
verossímil. Na fala dele, o problema é que as desculpas eram repetitivas, soavam como “mais do
mesmo”, eram “essa de novo”. Ele elege, então, um oponente, o clichê, o “senso comum”. Assim,
ele se posiciona como ctico em duas frentes: uma arstica e uma ética. Ele se caracteriza como
“um chato”, alguém que es “sempre chateando” (o que mais uma vez o associa ao empreendedo-
rismo moral). A dimensão estética, entretanto, es a servo da moral: “Fazendo isso por meio do
humor, você desarma o inimigo”. Ele dá um exemplo de sua vida para ilustrar o movimento:
Quando lancei o primeiro livro, mandei um convite para a cantora Ana de Hollanda,
irmã de Chico Buarque, que gravou uma música minha, dizendo que gostaria muito
que ela fosse à noite de autógrafos. Ela respondeu: “Poxa, Guca, estou no Rio, meio
longe [o lançamento ocorreu em São Paulo], uns 400Km, não vai dar para eu ir”. Eu
respondi: “Ih, essa é a desculpa 467”.
Uma sociologia do absurdo: a dispensa da lógica na argumentação da desculpa
Essa operação estica informa bastante sobre a abordagem do autor para o que ele próprio
chama de desculpismo”. Se ele critica as desculpas dadas que ouvia por serem banais, as de seu
livro seguem, como as dos manuais em geral, uma gica de hipérbole: desculpa a desculpa, um
mesmo movimento se , o de criação de hisrias absurdas, esfarrapadas, que soem claramente
exageradas. Por exemplo, o surpreende que o autor – que diz desconhecer o manancial de manu-
ais existente fora do Brasil – adote ele também a estratégia do cachorro. Mas lhe oferecendo outra
forma (p. 20): “Meu filho foi mordido por um jabuti raivoso e tive que levar o menino ao hospital”.
E ele também recorre ao cachorro (ou jabuti) tecnogico: “Digitei todo o trabalho no computador,
mas na hora de imprimir, deu pau no disquete e o consegui reescrevê-lo(p. 87). E o absurdo
permeará todas as desculpas de seu texto: “O que, seu guarda, 173 por hora? O senhor me descul-
118
pe, eu estava ouvindo o hino da polícia rodoviária, que, aliás, é lindo, me empolguei e fui acompa-
nhar o ritmo com o direito, acelerei um pouquinho... 173? Puxa!” (p. 46); “Ainda o estou
pronta para um relacionamento mais sério, o quero te magoar, nem te machucar: você vai encon-
trar uma pessoa melhor que eu
15
(p. 61). “O Thiaguinho é muito legal, mas preciso terminar a tese
de mestrado sobre a inflncia dos corpos celestes sobre a vida existencial na Idade dia(p.
84-85, desculpa sugerida “para quem o quer ir ao aniverrio do sobrinho”). Em seu segundo
livro (2005), o mesmo tipo de constrão é recorrente, com um grau ainda maior de exagero. Nes-
se caso, elas são mesmo “esfarrapadas”. o desculpas como a da seção “promessas de campa-
nha”, que sugere accounts para o as cumprir: por exemplo, ele sugere ao presidente Luiz Inácio
Lula da Silva, eleito em 2002 com a promessa de gerar 10 milhões de empregos até o final de seu
governo, dizer (p. 18): “Diga que a imprensa não vê o lado positivo das coisas. Seu governo gerou
um milhão de empregos, mas cada cidadão empregado, orgulhoso de trabalhar pelo progresso da
nação, sente-se valendo por dez. Dez vez um é dez...” Ou quando está sugerindo desculpas de go-
vernantes para filas em postos de sde em cada estado brasileiro e apresenta a seguinte para o Rio
de Janeiro (p. 60): “Isso é típico desse povo ordeiro, o carioca. Diferente do paulista, que adora fu-
rar a fila. É por causa de nossa organização que fazemos o maior carnaval do mundo, certo?”.
Esse tom hiperbólico chama a atenção para uma desarticulação dos conteúdos mesmos
dos argumentos como prova a ser avaliada logicamente. Para o autor, é justamente o contrário:
A hipérbole é um reforço do moralismo: que a pessoa vai ocupar meu tempo dan-
do uma desculpa, que ela seja inventiva. Por exemplo, por contar uma história to-
talmente absurda. E assim como quem ouve sabe que a história da aque morreu é
mentira, é apenas uma desculpa, se eu digo que o jabuti mordeu o menino, ele tam-
bém sabe. Mas esta é nova, pelo menos. Conclamo, então, a pessoa a agir de manei-
ra criativa. O importante do jogo é: eu o vou acreditar. Isso está combinado:
quem ouve, não acredita. Mas também não vai dizer que não acredita.
15
Em uma tipologia pragmatista baseada nos tipos de argumento, esse tipo de account seria facilmente classifi-
cado como justificação. Boltanski (2003), por exemplo, opera sua qualificação por uma partição entre bem de si
(desculpa) x bem do outro (justificação), usando para isso o direcionamento dos discursos produzidos por suas
entrevistadas (mulheres que praticaram abortos e tentam dar conta de sua decisão para ele). Sugerirei aqui uma
qualificação baseada não nos conteúdos, mas nos efeitos: será classificado como desculpa ou justificação a ação
que for efetivada conforme um ou o outro modelo, o que será discutido no capítulo 4.
119
Destarte, ele afirma que um acordo tácito estabelecido, uma espécie de ritual social:
independentemente do conteúdo do que se diga, a desculpa dada manifesta um compromisso
de reciprocidade, uma narratividade ligada a manifestar uma prestação de contas. Mas não
sem abrir mão do recurso à mentira. Esse recurso, entretanto, não vem sem mais um protocolo
de compromisso com um objetivo estético: “A verdade é que qualquer desculpa serve. Nin-
guém acredita mesmo. Até porque não se trata disso. Ela pode ser uma desculpa verdadeira.
Mas para fazer humor, não pode ser qualquer coisa, preciso do absurdo”. Aqui ele articula
uma definição que se diferencia daquela com que vinha trabalhando até agora, usando a men-
tira como praticamente um sinônimo de sua matéria-prima de trabalho. “A desculpa é uma
coisa que usamos para mostrar que as coisas aconteceram de um jeito muito peculiar. É uma
inversão, o uso da circunstância como princípio em vez do princípio como princípio”, diz.
120
A DEFINIÇÃO DE UMA MORAL FLEXÍVEL
“A tentação é a arma da mulher e a desculpa do homem”
H. L. Mencken
Essa frase sobre a tentação – cunhada pelo espirituoso e ácido ensaísta e jornalista (profis-
são na qual assumiu a posição de editorialista, ou seja, de opinólogo) americano Henry Louis
Mencken (1880-1956) traz novamente ao palco um dos nossos personagens primeiros e um
dos mais recorrentes, “o tentador da humanidade” (KELLY, 2008, p. 19), Satã. Tentação é o
trabalho da serpente. Desculpa é o trabalho da humanidade. Não comentarei o viés de gênero
contido na frase (o que me obrigaria a debater a diferença simbólica entre “arma” e “desculpa”).
Detenho-me na presença dessa figura emblemática que é o convite à transgressão.
É um mito importante o da tentação, a idéia de que algo externo ao homem o faz agir em
desacordo com que ele sabe que é errado. Mas com os manuais de desculpa estou diante de uma
espécie de supertentação, bastante semelhante ao argumento tentador da serpente no Éden: “De
forma alguma! Vós não morrereis! Deus sabe que no dia que vós da árvore comerem, vossos
olhos se abrirão e vós sereis como deuses, que conhecem o bem e o mal(Gn, 3, 4-5). A oferta
contida na tentação é a possibilidade de agir. O manual de desculpas oferece uma espécie de
competência do bem e do mal, um “abrir os olhos”.
O que isso informa sobre a moral? Se por um lado, a manualização de um procedimento
como o dar uma desculpa aponta, como disse no começo deste capítulo, para uma dimensão
instrumental da efetivação dessa ação social, por outro, ele reafirma a dimensão estritamente
metonímica da tentação. E aponta para o fato de que ela pode ser pensada a posteriori: é a-
penas depois de a ação ser praticada e rotulada como produtora de mal-estar relacional, que se
121
pode olhar para as faculdades contidas nas possibilidades de evitá-la, ou seja, de “não cair em
tentação”. Uma ação, em si, é apenas uma ação, e não possui negatividade moral apriorística
(MISSE, 1999; BECKER, 2003). Claro, a educação sobre regras morais estabelecerá noções de
“bem e mal”, criará sementes da árvore. Mas a obediência a uma determinada cartilha dessas
duas noções é uma adesão a princípios, não a aquisição de um sistema de observância estrita,
uma competência para anular qualquer possibilidade de desvio em relação e eles.
A desculpa, então, pode ser operada segundo diferentes regimes de engajamento, não
exigindo nem consciência nem competência estratégica. Seja de uma forma seja de outra, ou-
tra percepção oriunda de uma conversão em metodologia de um apresentação de account co-
mo esta sem dúvida instaura uma problemática moral, a começar pelo fato de que aquilo que
chamei anteriormente de moral consagrada, ou seja, aquela suficientemente difundida e acei-
ta em um determinado recorte social em uma amplitude que fará variar consigo o grau de
complexidade da consagração a ponto de mobilizar o engajamento moral por sua manuten-
ção, passa a ser considerada a partir de uma referência móvel, estabelecida nas grandezas rela-
tivas das condições de efetivação de cada um de seus preceitos, sempre situacionalmente. As-
sim, o conjunto de regras estabelecido por um determinado grupo – ou reconhecidas como em
exercício em um determinado mundo social – são vistas a partir de um olhar compreensivo e,
igualmente, cada uma das ações que possa porventura se chocar com essas regras.
Se for pensado a partir de uma “sociologia da capacidade crítica” (BOLTANSKI e
THÉVENOT, 1987, 1991, 1999), um modelo que relativiza a moral consagrada a este ponto
sugere uma relação tensa com a idéia de um “princípio superior comum” que guia a “econo-
mia das grandezas”. Baseado na procura de princípios de equivalência que estabeleçam esta-
dos de paz em torno das grandezas relativas dos actantes, o modelo pragmatista possui uma
forma para dar conta das circunstancializações, todo um programa de acordos, de “soluções
de compromisso”, no qual diferentes mundos (correspondentes a diferentes gramáticas) se
122
sobrepõem por meio de entes que façam parte de mais de um, proporcionando um acordo de
equivalência “tratada como evidência sem ser explicitada” (BOLTANSKI e THÉVENOT,
1991, p. 338): “No compromisso, os participantes renunciam a esclarecer o princípio de seu
acordo, atrelando-se somente a manter uma disposição intencional orientada para o bem co-
mum”. Mas eis que se coloca uma questão importante sobre a relação com a moral que um
ator desenvolve quando uma desculpa: se talvez a crítica seja justificada em nome do bem
comum
16
, a desculpa opera justamente se afastando da perspectiva dotada na crítica. Não pa-
rece ser uma ação orientada para uma partilha de igualdade.
Essa constatação faz pensar que um estudo sobre desculpas dadas se insere, afinal, em
uma sociologia dos conflitos (de interesse) e dos desvios, mas a partir de um viés bastante pe-
culiar: nela, o processo de rotulação (BECKER, 1970) é tomado no gerúndio, ou seja, em
processo: a questão passa a ser não a consolidação de rótulos e efeitos de acusações (e, des-
cendendo em nível de formalidade, crítica e, mais abstratamente ainda, demonstra-
ção/percepção de mal-estar relacional), mas sim como se desenha e resolve uma fugidia, po-
rém potente, arena de disputa situacional em torno de uma adjetivação.
O mote contido nos manuais de desculpa parece ser a iia de que a relação com a
moral pode ser vista como uma forma flexível. De fato, essa relação tem sido um dos ele-
mentos definidores de lados em disputas entre modelos sociológicos, sobretudo entre os
modelos que tratam a moral como uma forma de definir um sistema de inclusão e exclu-
o (de normalidade e anormalidade) e as abordagens ditas compreensivas”. Com um a-
bordagem pragmatista e interacionista como a que proponho, a idéia é permitir uma com-
16
Um críticas fácil ao modelo pragmatista é que a idéia de bem comum desenharia um social que excluiria o princípio
do poder, traçando-o com um utopismo tolamente calcado em uma noção generosa de bem e excluindo a dimensão
lupina, competitiva, das relações. Mas o modelo é centrado, na verdade, em um sistema de exigir o bem comum, ou
seja, de tratá-lo como um imperativo dasões individuais. Uma forma de entender esse diferença é imaginar: não que
os atores tomem a iniciativa de pensar no bem do outro acima de seu próprio bem quando agem, eles, sim, aprendem é
que se não incluírem o bem do outro como elemento de seu bem, não terão este bem aprovado pelo outro. O dar uma
desculpa se insere nessa mecânica como um elemento de tensão: e se, mesmo tendo aprendido que o outro exige o
bem dele em paralelo a meu bem eu resolver agira, ainda assim, segundo o meu bem apenas, como fazer?
123
preensão mais horizontal da moralidade, pensando-a como uma forma social de potencia-
lizão da socião, ou seja, das interões e da sociabilidade. Nesse sentido, a moralida-
de contida como negativo nos manuais de desculpa compõe um quadro abstrato de princí-
pios e uma utopia de seu cumprimento. Um dos elementos centrais da teoria de Boltanski
e Tvenot (1987,1991) é a relação com a memória, uma relão com aquilo que poten-
cializa a ctica: a lembrança de uma condição de cumprimento habitual das regras. Mas se
uma conclusão cil de se extrair das compilões que listei aqui é uma que é central
para a teoria que tento construir: o descumprimento habitual das regras tamm se consti-
tui como uma meria e no caso dos manuais, uma memória portil.
Johnson (2007, p. 4) , em seu manual, uma forma bastante é assim mesmopara
essa faculdade: “Temos um músculo moral”, diz a autora, e [como todo músculo] ele tem
que passar por sessões de alongamento”. Ela sugere que o dar uma desculpa é um proce-
dimento de “alongamento da verdade”. Essa idéia de alongamento sugere uma categoria
operacionalmente muito útil: ela sugere que o dar uma desculpa opera a criação de uma
margem de manobra moral.
Parênteses de pensamento social brasileiro: de volta a João Grilo
A citão à peça Auto da Compadecida (2005 [1957]) na Introdução ocorre de ma-
neira um tanto esparsa, adotada que ela é como emblema entre outros em minha apresen-
tação de questões. Mas ela merece mais crédito do que pareceu por este trabalho. Na ver-
dade, ela foi uma das primeiras inspirações para a maneira como minha tese se desenhou.
É importante chamar a atenção para isto aqui pela maneira como ajuda a pensar a discus-
o sobre relativização moral aberta pela observação dos manuais de desculpa. Quero me
apropriar do texto de Suassuna e de sua abordagem sobre a desculpa para tentar demons-
124
trar como um certo discurso sobre o Brasil, a saber, o do mito da ambiidade do brasi-
leiro (VILLAS BÔAS, p. 24), conseguiu difusão no senso comum para am da esfera do
debate intelectual em que nasceu, e faz parte de uma certa cultura popular nacional. Para
tanto, analiso agora dois textos teatrais de Ariano Suassuna, Auto da Compadecida e A
Pena e a Lei (2005) e os comparo com a linhagem sociológica que tem discutido a iia
de umacontradão moral brasileira”.
A inspiração veio de uma reportagem que fiz, como jornalista, em dezembro de
2004 (WERNECK, 2004). Então, o dramaturgo e folclorista estava às speras de publicar
uma versão revisada de sua peça mais conhecida, o Auto. Na edão, comemorativa do
cinenterio da escrita original do texto, concldo em 1955, ele fez as primeiras altera-
ções substanciais na obra em 50 anos. Mas a releitura da pa (já visitada em outros mo-
mentos na pequenina edição de bolso da mesma editora Agir que, eno renascida, relan-
çava a obra) chamou minha ateão para uma oposão que me pareceu muito clara: di-
gladiam-se, principalmente no terceiro ato, duas forças que podem ser facilmente associa-
das aos dois modelos de democracia em questão quando se fala em ambiidade brasilei-
ra. De um lado, o Encourado, forma nordestina do Demônio, que assume o posto de pro-
motor e representa uma burocracia estatal (a Justiça), racional-legal, republicana, de soci-
edade democtica. De outro, A Compadecida, forma igualmente sertaneja de Maria, e
de Jesus, que representa uma insncia da misericórdia e da piedade, um conjunto de rela-
ções afetivas e singularizadas. Entre os dois, Manuel, o Cristo, feito negro para chocar os
preconceituosos”, mas, sobretudo, ocupante da posição de juiz, mas num juizado monár-
quico, que se dobra aos argumentos de piedade. Oem-se, assim, eno, dois modelos
gerais: o da “justiça e o da piedade(ARENDT, 1963; BOLTANSKI, 1993). Pois é no
campo dessa oposição e em como ela tem se manifesta no discurso sociogico sobre a
“dicotomia brasileira” que quero começar agora a discutir o ato de dar uma desculpa.
125
Uma pergunta me intrigou de imediato naquele releitura do Auto: a presença dessa te-
mática de fundo se deveu apenas à tendência notoriamente monarquista de seu autor? Além
disso, teria Suassuna trabalhado com ímpeto teórico e, leitor de textos sociológicos, acompa-
nhou o debate do tema a ponto de incorporá-lo a sua peça
17
? O questionamento se justificava
por conta da arquitetura dramática e historiográfica da peça. Como todo trabalho literário de
Suassuna, ela parte de cortes e colagens de textos de tradição oral nordestina. Neste caso es-
pecífico, além de três textos principais, uma série de outras ocorrências de uso de pequenos
trechos folclóricos é documentada (TAVARES, 2004; SUASSUNA, 2008, pp. 173-188). Isso
dava razão à pergunta sobre a presença dessa temática no discurso de origem, nos textos
folclóricos ou de literatura popular que dão sustentação ao espetáculo. Perguntas feitas a Su-
assuna (WERNECK, 2004), a resposta, segundo ele, é que no momento da escrita e da coleta,
ficou claro que suas fontes tinham incorporado todo um debate sobre a oposição entre justiça
e piedade no Brasil, para ele demarcado de outra forma, inspirada em Machado de Assis, em
uma oposição entre “Brasil real” e “Brasil oficial”. Partido tomado, para Suassuna, o “ofici-
al”, da justiça, é um país encenado, corrompido, uma tentativa mal-sucedida de implantação
de um Estado racional-legal democrático que apenas favoreceu aos integrantes de sua buro-
cracia e de suas elites no que se aproxima de Faoro (1958), por exemplo. Por outro lado, o
Brasil “real” é o da piedade, em que uma forma de afetividade muito específica, associada ao
reconhecimento do sofrimento constante do brasileiro, instituiria um modelo mais condizente
com nossa realidade. Mas em que medida era possível afirmar que haja ligação de fato entre o
trabalho de construção do texto de Suassuna e o contexto social em torno dele, a fim de se
concluir que o senso comum conjuga da mesma visão a respeito do mito da dicotomia brasi-
leira? Faz-se necessário um exame genealógico da obra de Suassuna.
17
Suassuna publicou em 1962 o artigo “Teatro, Região e Tradição” (2008 [1962]), escrito para um volume co-
memorativo do 25º aniversário da publicação de Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, no qual critica não
apenas a abordagem do autor como também as leituras feitas posteriormente a partir dele. No texto, ironicamen-
te, ele dá uma desculpa para possíveis ousadias cometidas ali: “Não sou estudioso de sociologia” (p. 43).
126
A história da escrita da peça é bastante relevante para a pretensão de entendê-la como um
mapeamento poético e, como literário, dotado de saturação sobre uma ordem social. Seu
ponto de partida é um conjunto de textos de cordel, literatura popular do Nordeste brasileiro.
Para compor a peça, então, Suassuna recolheu pequenas histórias da tradição oral nordestina
que foram registradas em livretos vendidos no início do Século 20. São textos como O Dinhei-
ro, de Leandro Gomes de Barros
18
(1905), de onde a peça extrai a história do cachorro morto
cujo dono destina uma soma em dinheiro para a realização de um enterro, com orações eclesiais
apresentadas em latim. Outro texto marcante para a reconstituição é a História do Cavalo que
Defecava Dinheiro, de autor anônimo (começo do século 20), que serviu de fonte, claro, para a
peripécia do gato que “descome” dinheiro que João Grilo vende a sua patroa, a mulher do pa-
deiro. E um terceiro é O Castigo da Soberba, igualmente de autoria desconhecida, que mostra
passagens de um julgamento no Céu em que há interseção da parte da mãe de Jesus.
Tanto Gerardo Carvalho Frota (1988) quanto Ivone Ramos Maya (2003) e Braulio Tavares
(2004) sustentam a relação entre essas hisrias e os contextos que o cercam
19
. Frota (p. 30) cha-
ma a atenção para uma definição de literatura popular: “Publicações que defendem os interesses
das classes trabalhadoras e as têm como autoras e destinarias principais”. Tavares (p. 192)
aponta que “um aspecto importanssimo desse tipo de teatro é o seu cater tradicional e coletivo,
no qual a fidelidade a uma tradição é o importante quanto a originalidade individualou mais
até – e onde o autor não julga que escreve por si só, mas com a colaborão impcita de uma co-
munidade inteira”. Como é uma literatura em que o povo fala de si mesmo, as temáticas mais cen-
tral o sempre o cotidiano e a moralidade. Daí tanto Frota (p. 18) quando Maya (p. 95) concluí-
rem que o cordel é uma espécie de “jornalismo do sero”, ou seja, um espaço de manifestão de
18
Leandro Gomes de Barros é considerado o principal nome do núcleo do Vale do Teixeira, na Paraíba, o grupo
fundador do cordel brasileiro. Ele foi o primeiro a imprimir e a editar folhetos no Brasil, em 1893. Também foi o
primeiro a se preocupar com a desfolclorização” do cordel, demarcando claramente a autoria dos versos em-
bora não necessariamente das tramas – e perseguindo falsificações de seus textos (MAYA, 2003).
19
Esses autores também são unânimes ao apontar que o Sertão funciona, no imaginário artístico brasileiro, como
uma espécie de espaço mítico, uma tabula rasa sobre a qual tramas morais são construídas emblematicamente.
127
vozes correntes na esfera blica. Pesa sobre o texto de cordel a moral pessoal do poeta, mas mais
fortemente a moral circulante dos ouvintes, as pequenas pabolas morais sobre casos que passam
de pai para filho. Pois como Auto da Compadecida é um painel de rios desses textos, é muito
cil a articulação que permite pen-lo como igual painel de esferas blicas. E daí ser posvel,
creio, articulá-lo com a literatura a respeito da dualidade brasileira.
A conversa com Suassuna remeteu-me para a tradão textual a respeito da contradição mo-
ral brasileira. O tema faz parte de uma das mais fortes tradições de pensamento sobre o país. Ele
es, claro, na tradicional oposão de Freyre (2003) entre “casa-grande” esenzala” e nas diferen-
tes posões morais assumidas pelo chefe de falia em sua relação com uma e com outra. Está
também em Buarque de Holanda (1991), com sua anatomia do “homem cordial”. Está em Faoro
(1958) em sua taxonomia da divisão de classes e da “formação do patronato brasileiro”. E está em
toda uma linhagem de autores que se alimentam das oposões de cada um deles. DaMatta (1985),
articula o problema por oposão entre dois espaços, representados por ele pelas entidades “casa
um ethos de relações familiares –, “ruaum ethos de relões formais e o “outro mundo”.
Nele (1985, p. 40-41), entretanto, um detalhe: essa oposição não deve ser vista como cênica:
Essa observaçãoo é uma mera questão de contexto, isto é, o fato plenamente conhecido
e trivial de que todo ser humano muda de opinião dependendo das circunstâncias. o é
desse fato universal que estou falando. Sei que ele também ocorre entre s. Mas estou
me referindo a espos, a esferas de significação social a casa, a rua, o outro mundo
que fazem mais do que separar contextos e configurar atitudes. É que eles conm vies
de mundo ou éticas particulares. Não se trata de cerios ou de máscaras que um sujeito
usa ou desusa como nos livros de Goffmande acordo com suas estragias diante da
“realidade”, mas de esferas de sentido que constituem a própria realidade e que permitem
normalizar e moralizar o comportamento por meio de perspectivas próprias.
Luiz Werneck Vianna (1997) e Gláucia Villas Bôas (2004), cada um por sua parte, dis-
cutem essas tradições. A segunda critica justamente a recorrência de tais interpretações, das
quais dois textos, Os Sertões, de Euclides da Cunha, e Casa Grande e Senzala, de Gilberto
Freyre, são constituídos como mitos de origem, impuseram à análise do país um certo interdi-
to da mudança social, o mito de que a modernidade no Brasil é incongruente com o país:
128
As duas interpretações do Brasil (...) impuseram-se de tal modo acentuando a ambi-
güidade brasileira que não foi mais possível reconhecer o seu caráter conservador e
o intento de forjar laços de solidariedade, que juntam, identificam e unem, em con-
traposição às regras modernas de conduta que separam, individualizam e distinguem
(...) Reunindo indistintamente a ambigüidade dos brasileiros [entre traços tradicio-
nais e modernos], que os esforços pela construção da nação procuravam resolver no
plano das idéias, com a ambigüidade de suas ações e relações sociais, desta vez di-
agnosticadas pela sociologia, reafirmou-se uma ontologia negativa dos brasileiros no
meio das camadas letradas (p. 35).
Segundo ela, o livro de Euclides da Cunha inaugurou uma agenda de análise que ela
chama de modelo do Brasil do eterno dilema. Já o de Freyre criou o paradigma do “Bra-
sil da harmonia autoritária”. No debate brasileiro não se esclarece apropriadamente a rela-
ção entre valores e modos de conduta universais e picos da modernidade e valores e mo-
dos de conduta atribuídos à “diferença” brasileira. Escritores, historiadores, artistas, cien-
tistas sociais e cineastas sentem-se motivados a discutir a identidade cultural da não
com a finalidade pragmática única de fazer de sua interpretação o parâmetro de avaliação
da capacidade de os brasileiros construírem uma “sociedade moderna, industrial e demo-
crática” (FAORO). Não distinguem, para efeito de suas análises, as categorias de nação e
sociedade, pom instrumentalizam um ethos brasileiro, atribuindo-lhe um valor causal
na construção da modernidade (p. 26). Pois Suassuna parece estar igualmente preocupado
em construir uma crítica à maneira como se formou o Brasil moderno. Sua abordagem,
entretanto, parece fazer com que ele transite facilmente entre ambos os modelos. Se em
determinado momento da pa, ele aposta em uma forte ctica à forma desumana como se
constituiu a democracia brasileira, em outro momento ele aposta em uma determinão de
relões semelhante àquela em que Freyre constitui seu modelo de alise. Claro, o que
ele está fazendo não é um tratado sociogico e sim contando uma fábula moral. Mas fi-
cam claros os pontos de contato com as intenções. A ctica de Glaucia Villas Bôas é à
maneira como parece haver no mundo dois animais distintos, brasileiros e cidadão de so-
ciedades democráticas, como fica claro neste trecho:
129
Essas interpretações (...) consideram o conjunto de valores compartilhados pelos brasi-
leiros – o seu ethos como inadequado aos requisitos da vida moderna. Cordialidade,
personalismo, autoritarismo e postergação das decisões versus racionalidade, impesso-
alidade, democracia e velocidade na tomada de decisões configuram um dilema, cons-
tante e insistente, inscrito em numerosas obras, livros e debates. A adequa-
ção/inadequação do ethos brasileiro, mais do que uma discussão corrente nos meios
acadêmicos, artísticos e intelectuais, tornou-se uma espécie de referência obrigatória e
exemplar para os novos pesquisadores, sobretudo no campo das ciências sociais, que
dela fazem uso para interpretar o atraso ou o progresso das instituições sociais (p. 26).
Suassuna parece trilhar a mesma dirão, mas outro sentido. Ele apresenta, na verdade, uma
crítica ao pprio modelo de democratização moderna republicana em si. Para ele, pelo que fica
claro nos protestos de Jo Grilo, não é o brasileiro que é incapaz de construir uma sociedade de-
mocrática. É o modelo de sociedade democrática moderna que não é capaz de dar conta do Brasil.
O texto de Luiz Werneck Vianna trilha o caminho de outra oposão, a entre dois
modelos posveis para explicar o processo de implantação da modernidade brasileira. Se-
gundo ele, é claro, historicamente, que o modelo americano serve como um parâmetro e,
mais que isso, que ele é dotado de uma série de peculiaridades de ordem ecomica, que
dependeriam de pressupostos culturais. Por isso mesmo, ele teria sido prejudicado por
uma tenncia ibérica: Tavares Bastos identificava a cultura política do anti-
individualismo ibérico como o principal obstáculo ao progresso do país, devido à onipo-
ncia de um governo que ‘regula tudo, submete tudo(p. 142). Para o autor, o america-
nista Bastos, voltado para, no final das contas, a implantação de um programa econômico,
o pressupõe uma conversão ideogica popular ao americanismo, ou seja, o vislumbra
uma sobreposão entre cultura e estrutura social como procedimento de implantão: A
reforma política não se explica por si mesma, consistindo no meio através do qual se in-
tenta trazer e impor o moderno, a cultura material e o ethos do trabalho(p. 144):
O americanismo de Tavares Bastos identifica no capitalismo o apenas o progresso
material, mas também a cultura política do indivíduo livre, com seus supostos de li-
vre mercado, trabalho livre, fronteiras econômicas abertas, emancipada a sociedade
de relações “invasoras” por parte do Estado.
130
para Oliveira Vianna, no outro pólo, “o estudo da singularidade brasileira tem como raiz
as relações sociais aqui estabelecidas, especialmente as prevalecentes no mundo agrio” (p. 144).
Nesse sentido, o autor, apesar de longe dos temas da cultura libertária, “inscreve-se numa posição
que o leva a valorizar positivamente a hisria do país e seu próprio povo (...) A afirmação de que
‘somos distintos’ (...) não soa como uma condenação como nos americanistas , e sim como
uma orgulhosa declaração de princípios do iberismo do autor(p. 145). Suassuna parece sugerir
que o modelo de civilização é um sistema de opreso à cultura. O tema central de A Pena e a Lei
é a justiça e o desenrolar da idéia de julgamento. Assim, no Segundo Ato, a presea de uma fala
do mestre de cerimônias Cheiroso deixa clara a postura moralizante do texto: “Com alguns atores
vistos, mostraremos: letra a: que os homens têm que viver com medo da polícia e do inferno;
letra b: que, se não houvesse a justa, os homens se despedaçariam entre si; letra c: que existem
casos em que a justiça acerta seus julgamentos”. Mais uma vez ele apresenta uma postura híbrida.
Embora trabalhe com a perspectiva de uma meritocracia opressiva (sobretudo no que diz respeito
à acumulão, o que renega mais ainda o modelo americanista, uma vez que, para ele, a implanta-
ção de um sistema capitalista é visto apenas como a implantação de um modelo de moralidade
discutível, em que eso em jogo possibilidades de ruptura da solidariedade entre os homens), ele
defende em sua constituão mais elementar o sistema buroctico implantado. A justa é neces-
ria, embora, ele demonstra nos terceiros atos de ambas as peças, ela será insuficiente para dar
conta das especificidades brasileiras. No terceiro ato de A Pena, Cheiroso voltará a chamar a aten-
ção para a confiança que o indivíduo tem que depositar na justa divina: “Seja pelas portas da
frente seja por portas travessas, o fato é que a justiça se faz! E se é possível ver isso agora ques
somos cegos, quanto mais depois, quando tivermos bons olhos para enxergar”.
Depois da reportagem, recebi de Suassuna o texto que seria agora publicado em
2005 como A Pena e a Lei, uma peça única, mas que na verdade consiste na junção de três
dramaturgias curtas. O texto é anterior ao Auto. Trata-se, de certa forma, de uma primeira
131
vero dele. O primeiro dos três textos foi escrito em 1951, sob o tulo de Torturas de Um
Corão ou em Boca Fechada Não Entra Mosquito. Em 1955, Suassuna escreveu, após
uma tentativa mal-sucedida de montar o Auto, uma versão do terceiro ato da pa, que
chamou de O Processo do Cristo Negro, montado em Recife. No mesmo ano, reescreveu
o primeiro texto, agora com o título de A Inconvenncia de Ter Coragem, com uma sofis-
ticão: os atores se apresentavam caracterizados como se fossem mamulengos, bonecos
da tradição sertaneja. Ele juntou, eno, os dois textos e, para tornar tudo uma peça, es-
creveu um segundo ato, chamado de O Caso do Novilho Furtado. Para se diferenciar de
sua principal obra, entretanto, fez alterações no terceiro ato, a mais gritante delas o fato de
o Cristo o ser mais negro. Mas manteve um julgamento divino, um Demônio acusador e
um Jesus Cristo como juiz moderador.
Nas duas peças, eno, opõem-se dois modelos de prinpio de legitimação das ações
sociais que quero associar a outro modelo aqui: de um lado, uma política de piedade, de
outro uma potica de justa, ambos no sentido que Boltanski (1993) apreendeu de Arendt
(1963). Ao descrever a oposão entre o sistema político produzido pela Revolão Ame-
ricana e o produzido pela Revolução Francesa, Hannah oe dois modelos de ordem, a
partir de dois modelos de política. Ao mundo europeu, ela associa a piedade e ao modelo
americano de justiça. Para Boltanski, o primeiro se baseia em dois traços marcantes: 1) a
distinção entre atores que sofrem e atores que não sofrem, definindo condões; e 2) a
produção de uma ão potica centrada na observação, na exibão, no especulo do so-
frimento. O segundo sistema é baseado em uma avaliação meritocrática dos atores, por
meio de uma quina de equalização diante uma norma racional e universal utilizada para
avaliá-los. É o papel que Suassuna transmite para o Diabo (“O que me importa o que vo
faz ou sente... Vamos aos fatos”, p. 130) e que representa o lugar do empreendimento mo-
ral ao qual os manuais de desculpa do modelo auto-ajuda se opõem.
132
Na política de piedade, entretanto, o sofrimento é um dado em si. Boltanski (p. 17)
afirma: Uma potica de piedade não se pergunta se o sofrimento do infeliz é justificá-
vel”. O modelo da potica de piedade se baseia, então, em uma exibão do sofrimento e
em uma conseente tomada de posão de um observador frente ao sofrimento observa-
do. Ora, a oposição essencial que se faz tanto no Auto quanto em A Pena e a Lei, é aquela
entre personagens pobres (Jo Grilo e Chicó ou Benedito), sofredores, e a estrutura insti-
tucional de poder: o capitalista (o padeiro e sua mulher), o sacerdote (padre, bispo, sacris-
o), o fazendeiro, o mais forte (sejam os cangaceiros do Auto, seja o valentão de A Pena).
O discurso de desculpa que A Compadecida faz a Manuel chama justamente a atenção pa-
ra este detalhe: desvalido, o sofredor não teve refencia moral. É um sofredor, logo, pre-
cisa ser salvo: “João foi um pobre como s, meu filho. Teve de suportar as maiores difi-
culdades, numa terra seca e pobre como a nossa(p. 170).
Por esse modelo e pelo desenho de Suassuna, é fácil ver no conjuntos de ordens mo-
rais em diálogo no Brasil um híbrido entre sistema (institucional) de justiça e ações soci-
ais localizadas que primam pela piedade (o que fica claro na leitura de Tavares Bastos,
por exemplo, e em várias leituras apontadas por Glaucia Villas Bôas). A visão de Faoro
(p. 822) é um bom exemplo:
A realidade história brasileira demonstrou (...) a persistência secular da estrutura pa-
trimonial, resistindo galhardamente, inviolavelmente, à repetição, em fase progressi-
va, da experiência capitalista. Adotou do capitalismo a técnica, as máquinas, as em-
presas, sem aceitar-lhe a alma ansiosa de transmigrar.
E depois (p. 823), lembrando a transição do patrimonialismo, nascido da monarquia e
da aristocracia rural, ao Estado racional, completa:
O caminho burocrático do estamento, em passos entremeados de compromissos e
transações, não desfigura a realidade fundamental, impenetrável às mudanças. O pa-
trimonialismo pessoal se converte em patrimonialismo estatal, que adota o mercanti-
lismo como a técnica de operação da economia.
133
Todo esse movimento pode ser lido como o percurso de criação de um modelo misto, em
que se tenta criar uma estrutura buroctica de justa, mas com uma sociedade, e uma esfera pú-
blica, de piedade. Mas não se trata de associar ao modelo patrimonialista a potica de piedade e
nem espel-los um no outro. Claro, são dois sistemas diferentes, que, curiosamente juntos, no
Brasil, encontraram solo fértil para cruzar justiça e piedade e com isso criar uma sociedade dotada
de fortes contradões. Boltanski (p. 18) afirma que, sob o ponto de vista de uma política de pie-
dade, “é somente em um mundo do qual o sofrimento foi banido que a justiça poderia fazer va-
ler seus direitos”. País de cultura católica, com uma ordem moral perpassada pela idéia de carida-
de (o que também fica espelhado nas duas peças de Suassuna, que associa sempre a justiça à idéia
de justa divina, absoluta, única possível), o Brasil se mostra um ótimo lugar para se pensar o ato
de dar uma desculpa como um lugar de negociação entre prinpios universais e efetivões cir-
cunstanciais e ao mesmo tempo um ótimo lugar para ser pensado sob a ótica desse objeto.
Permito-me recordar: Auto da Compadecida conta a história de João Grilo que, ao lado
de seu amigo Chicó, traça um plano para tirar vantagem de seu patrão, o padeiro, e de sua es-
posa. Funcionários da padaria, eles se sentem injustiçados por anos de maus-tratos por parte
dos patrões e chegam à conclusão de que chegou a hora de ganhar algo. No primeiro ato, ve-
mos Grilo, um típico representante do tipo malandro nordestino (inspirado em Pedro Malas
Artes, personagem típico do cordel em suas origens espanholas). Um dos primeiros diálo-
gos deixa muito claro o posicionamento do texto. O Palhaço, espécie de mestre de cerimônias
que atravessa a apresentação, sobretudo os entreatos, brada: “Auto da Compadecida! Uma
história altamente moral e um apelo à misericórdia”. Ao que João Grilo, deslocado da própria
ação, responde, também ao público: “Ele diz ‘à misericórdia’, porque sabe que, se fôssemos
julgados pela justiça, toda a nação seria condenada”. Essa fala aponta para um princípio de
igualdade contido em cada um dos manuais de desculpa apresentados aqui: todo ser humano é
passível de depender de uma circunstancialização.
134
Vários autores têm trabalhado com uma perspectiva relativista para a moral, notada-
mente no campo da sociologia dos conflitos. Sobretudo a partir dos trabalhos de Becker
(1970) e Goffman (1988), ambos publicados originalmente em 1963, o problema das “adjeti-
vações” (WERNECK, 2008b, p. 169), ou seja, para a problemática das atribuições identitárias
produzidas por acusações (rotulações para Becker, estigmatizações para Goffman). Uma ver-
são extrema dessa discussão é o modelo da sujeição criminal de Misse (1999), que debaterei
brevemente no próximo capítulo. O mais importante é que nessa galeria todos esses fenôme-
nos são vistos pelo seu lado de trás, ou seja, como fenômenos de imposição identitária sobre
entes que necessariamente não necessariamente as aceitam. É uma forma importante de pen-
sar a atitude de dar uma desculpa: uma forma de resposta ao processo de adjetivação. É em
grande parte o que discutirei nos próximos capítulos.
Parêntese de campo: da manualização à terceirização ou a desculpa como serviço
Os manuais de desculpa colocaram diante de mim um quadro de consciência instrumen-
tal dos elementos constituintes de uma desculpa dada, tratando-a como um procedimento pas-
sível de estratégia e tática. Analisarei nos próximos capítulos o exercício prático do dar uma
desculpa. Antes, porém, quero apresentar alguns casos deslocados, integrantes de uma catego-
ria aproximada a dos manuais, mas que contribui para o entendimento dessa relativização mo-
ral promovida pela desculpa dada.
Conheci o site em uma reportagem de agência de notícias (MOLLARD-
CHENEBENOIT, 24/09/2007). Ele apresenta em sua home-page uma logomarca que sugere
uma imagem estilizada de Dédalo e Ícaro, os personagens da mitologia grega que se liberta-
ram do jugo do Rei Minos, de Creta, construindo asas de cera e penas. No centro da página,
uma foto mostra atendentes, com fones auriculares e sentadas diante de notebooks, passando a
135
imagem de um eficiente serviço de atendimento de telemarketing. Acima, uma outra foto,
mostra uma moça, com jeito de secretária, em fogo, observada, em um segundo plano afasta-
do, desfocado, por um homem de terno, compleição de executivo, óculos, a tomar café e ob-
servá-la. Um menu apresenta opções: “Associe-se agora”, “Preços”, “Depoimentos”, “Política
de Privacidade”, “Afiliados”. É aparentemente um portal de serviços empresariais como outro
qualquer, a exibir uma imagem limpa e profissional. Entre a logomarca “de altos vôos” e as
fotos, entretanto, um texto apresenta o protocolo de intenções do e-service: “Políticos têm
marqueteiros, celebridades têm assessores de imprensa, corporações têm advogados e relações
públicas, bancos de investimento têm analistas. Agora, pessoas comuns tem Álibi Network”.
O Alibi Network (http://www.alibinetwork.com/index.jsp) é exatamente aquilo que parece:
um servo de produção de desculpas. Ou pretextos, que eles chamam de “álibis”. A escolha do
termo para batizar o site chama a ateão para a consciência da transgressividade, o que é refor-
çado pelo slogan da empresa: “Serviços de álibis para casados a procura de relacionamentos dis-
cretos e casos extraconjugais queo chamem atenção”. O cliente padrão é o marido que trabalha
e tem um caso (o que muda o significado da foto da secretária eficiente e o executivo a tomar ca-
: o tem nada a ver com admiração por eficiência). “A motivação para uma pessoa comprar
um álibi deve-se em parte ao desejo das pessoas de poupar seu njuge, a fim de o ferir seus
sentimentos”, diz Mike DeMarco, dono da companhia (MOLLARD-CHENEBENOIT,
24/09/2007). Mas completa: “Em um nível mais prático, é como diz aquela antiga canção: é mais
barato mantê-la” (It’s Cheaper to Keep Her, antigo blues de Jim Liban, Junior Brantley).
Pois assim como The Complete Excuses Handbook, o Alibi Network também o é
um caso isolado. Outros serviços semelhantes começaram a surgir na Internet, como o fran-
cês Alibila (http://www.alibila.com
20
) e o suíço Alibi Beton (http://alibi-
beton.com/default.aspx), que presta serviços em francês, inglês e alemão. Ambos também
20
Visitado em setembro de 2007. Atualmente indisponível.
136
apresentam seus serviços com ênfase nas relações extraconjugais. O Beton, por exemplo,
estampa em uma home-page, além de uma foto de um homem passando a mão nas pernas de
uma mulher, o slogan: “A infidelidade é um jogo sutil entre o amor e a mentira. Preocupe-se
com o amor. Nós nos ocupamos do resto”. Mesmo. A tônica dos serviços dessas empresas é
informacional: basicamente eles fornecem provas de que a pessoa estava fazendo outra coi-
sa no momento em que está ocupado com seu compromisso a ser ocultado. Vejamos as vá-
rias possibilidades oferecidas pelo Alibi Network:
Captura de tela da seção de serviços e preços do site, disponível em:
http://www.alibinetwork.com/prices.jsp
A tabela de preços classifica os tipos de serviços oferecidos com bastante precisão:
Tabela de preços do site, disponível em: http://www.alibinetwork.com/prices.jsp
O Alibi Beton apresenta o mesmo tipo de tabela, e o mesmo tipo de servos, mas
sem tantas inflexões, além de mais ou menos os mesmos pros. Na gina, entretanto, a
apresentação é mais despojada, mais espartana:
137
Tabela de preços do Alibi Beton, disponível em: http://alibi-beton.com/aboutus.aspx
Mas seja a versão publicitariamente mais elaborada típica dos americanos, seja a versão
mais européia, as duas discriminações de serviços trabalham com uma padronizão das descul-
pas, assim como os manuais. A padronizão é por tipo de situação e não por tipo de desculpa. O
ponto aqui, entretanto, é o fato de que há uma padronizão e, mais, a forma como essa ocorrên-
cia manifesta uma relação estritamente instrumental com a moral: ela separa o exercio da vida
amorosa entre a vida oficial e uma vida oculta, vida oculta essa totalmente aprovada por um ac-
count geral, o jogo de sentimentos envolvidos na relação conjugal (amor, atrão, escape de uma
relação difícil “em casa”
21
) e mostra uma adeo forte a um jogo de necessidade: a desculpa dada
recebe dois nomes nesses empreendimentos: desculpas” (excuses) e “álibis”. Mas uma dife-
rea fundamental aqui: o álibi dependerá claramente da verossimilhaa, da prova. De fato, o
que é vendido nesses siteso é tanto uma narratividade quanto sua dimensão objetal.o provas
que eles entregam (e-mails, telefonemas, faxe, bilhetes de viagem usados etc.). Isso cria um entre
curioso: entre a exincia de prova própria da justificão e o chamar a des-referenciação no bem
comum que caracteriza a desculpa, esses álibis surgem como um aparato fundado não para nego-
ciar com a moral, mas simplesmente para nem sequer permitir a observação que permitiria o mal-
estar relacional, traço que quis demonstrar com esta pequena deriva de campo.
21
Uma boa galeria dos argumentos produzidos nesta situação embora o classificados como desculpas ou
justificações – aparece em Goldenberg (2006).
138
CONCLUSÕES SUBSTANTIVAS: PRIMEIRA REVISÃO DE QUESTÕES
A observão dos manuais de desculpa contribui para uma etapa importante da abstração
teórica de minha pesquisa, por oferecer uma instância laboratorial da produção de desculpas da-
das. É uma escie de emulão corporificada do “momento crítico”. A opção por analisar esses
manuais passou por uma opção semelhante à que expus na Introdução sobre o uso de textos de
fião: assim como acontece com os personagens literários, que trazem em si a saturação produ-
zida pela tipificação ideal, um manual apresenta resultado semelhante, mas por outro motivo: é
pelo próprio processo de manualizão: a constituão de uma taxonomia e de uma enciclodia,
elementos de qualquer manual, pressupõem uma especularidade em relação ao mundo.
Esse espelhamento permitiu que, como anunciei páginas atrás, este estudo servisse co-
mo elemento de verificação das duas outras pesquisas que agora narrarei, ambas situadas nos
pólos opostos de uma escala de generalidade típica, ou que sejam pertencentes a mundos mais
ou menos definidos, de um lado, o mundo cívico em que se constituem as críticas contidas nas
acusações contra ocupantes de cargos públicos; de outro, o mundo doméstico das relações
familiares produzidas entre casais. Com este campo “prévio”, mais abstrato que a alocação
formal em algum mundo típico (e às soluções de compromisso que eles articulem), pude ob-
servar a forma como as desculpas podem obedecer a regras intrínsecas a seu estatuto de ente
em uma negociação moral, independentemente do contexto.
Na Introdução, levantei cinco questões, a partir de exemplos paradigmáticos ficcionais.
Quero agora revê-las brevemente, diante das evidências obtidas na observação dos manuais
de desculpa. Cada uma delas será igualmente revista a cada um dos próximos capítulos, a fim
de ajustar a teoria geral que produzirei no último deles.
139
1) O dar uma desculpa opera uma priorização da relação sobre a regra moral: com os
manuais e com os sites de álibis –, esta questão foi bastante exercitada. De fato, pude de-
monstrar que essa priorização participa dos argumentos e, com isso, da articulação que desu-
niversaliza a situação: a relação é o próprio alvo da desuniversalização.
2) O dar uma desculpa articula uma noção de responsabilidade diante das condições em
que a ação foi praticada: essa “noção de responsabilidade” foi o componente central dos dois
principais tipos construídos neste capítulo: o modelo do “não fui eu” e o do “é assim mesmo”.
Ambos projetam diferentes formas de se relacionar com a responsabilidade, condicionadas de
acordo com os deslocamentos a partir da posição ocupada pelo desculpando em uma tempora-
lidade e uma actancialidade outras.
3) O dar uma desculpa participa de uma economia de tensão entre o bem de si e o bem
do outro, com ênfase na idéia de demonstração do bem de si como necessidade: embora o
modelo do “é assim mesmo” tenha chamado a atenção para a articulação de uma necessidade,
não houve elementos suficientes nesta pesquisa para afirmações consistentes sobre a proble-
mática da efetivação do bem de si.
4) O dar uma desculpa distancia o ator de si mesmo, na medida em que afirma, como
fez Rimbaud, em seu texto Cartas do visionário (1995 [1871]) que “eu é um outro”: essa
questão correspondeu efetivamente ao tipo do “não era eu”.
5) O dar uma desculpa opera uma economia do sofrimento: não encontrei elementos
suficientes para esta discussão neste campo.
140
QUADRO DAS PUBLICAÇÕES ANALISADAS
Ano
Título
Autor
Editora
pp.
22
T
23
L
24
1970
The Book Of Excuses
Gyles Brandreth
Futura
NI
Q
i
1977
The Golden Book of Excuses
Father John Doe
25
The SMT Guild
56
Q
i
1978
The Excuse Book
Marcia Jacobs
Price Stern Sloan
80
Q
i
1979
Well... Excuse Me: A Good Book
Full of Good Excuses
Dennis Roberts
Harvest House
NI
Q
i
1979
Excuses for All Occasions
Bernice A Lever e Gordon
Fisher
Highway Book Shop
NI
N
i
1979
One Hundred One Excuses for
Not Having Sex
Patricia Westheimer
Westroots
NI
N
i
1980
101 (un)believable Excuses for
Breaking your Diet
Patricia Westheimer
Westroots
NI
N
i
1981
Excuses, Excuses, or, How to Get
Out of Doing Practically Every-
thing
Robert A. Myers
Bell
NI
Q
i
1981
Excuses, Excuses: How to Get
Out of Practically Anything
John Caldwell
Thomas Y. Crowell
NI
Q
i
1982
Smudgkin Elves: And Other
Lame Excuses
Dotsey Welliver
Light and Life
116
Q
I
1982
101 Unbelievable Excuses for
Not Doing Homework
Patricia Westheimer e Judy
Parenio
Westroots
48
N
i
1983
Not Tonight Darling: 1001 Valid
Reasons and Excuses
Myed Urts
Pentangle
160
N
i
1983
The Best Excuse and How to
Make it
Donald Carroll
Coward, McCann
176
Q
i
1986
Every Excuse in the Book
Marc Juris e Cindy Juris
Solson
NI
N
I
1986
Le Petit Répertoire des Excuses
Caron e Charbonneau
Editions du Jour
127
Q
f
1987
I’ll Drink to That!: 366 Unusual
Excuses for a Celebration
Russell Ash e Bernard Hig-
ton
Corgi
64
N
i
1987
Sebastian is Always Late: Sebas-
tian Offers Some Imaginative
Excuses for Being Late to School
Anne-Marie Chapouton
North South
32
Q
i
1988
Doggone Excuses People Make
for Smoking
Shigeru Yabu
Vantage Pr
NI
Q
i
1989
101 Excuses Not Doing Homework
Carly Little
Scholastic Australia
NI
N
i
1989
World’s Greatest Golf Excuses:
All the Good Reasons for Playing
so Bad in the 1990’s
Hal Gevertz, Mark Oman e
D. Goodwin
Golfaholics Anony-
mous
NI
Q
i
22
Alguns dos manuais mais antigos foram acessados no acervo digitalizado da British Library e não dispunham
de numeração de páginas. Assinalei esses casos com “NI”.
23
Tipo: Q=Manuais centrados na qualidade e no método de construção das desculpas dadas; N= Manuais cen-
trados no número de desculpas apresentadas.
24
Língua: i=inglês; f= francês; p=português.
25
Essa assinatura é um pseudônimo (do padre americano Ralph Pfau). John Doe (e o correspondente feminino Jane
Doe) é um nome curinga, algo como “João Ninguém”. Era usado para se referir a cadáveres desconhecidos nas bata-
lhas na Inglaterra do século XVII e desde então vem servindo em inglês para se referir a alguém não identificado.
141
Ano
Título
Autor
Editora
pp.
T
L
1990
100 Excuses for Kids
Mike Joyer e Zach Robert
Beyond Words
85
N
i
1990
The Greatest Sports Excuses,
Alibis, and Explanations
Jeff Parietti
Contemporary
284
Q
i
1991
Yes, Lord, I Have Sinned But I
Have Several Excellent Excuses
James W.Moore
Dimensions for Li-
ving
109
Q
i
1991
Book of Lame Excuses
Dan Piraro
Chronicle
72
Q
i
1991
My Grandmother Died Again:
And Other Almost Believable
Excuses
Warren S. Blumenfeld
Peachtree
82
Q
i
1991
Great All-Time Excuse Book
Maureen Kushner e Sanford
Hoffman
Sterling
96
Q
i
1992
The Emergency Excuses Kit
Gyles Brandreth e Judy
Brown
Puffin
256
N
i
1992
The Almanac of Excuses
Rupert McPhail e Chutney
McPhail
Seven Hills
144
N
i
1995
The Dog Ate My Car Keys: And
Other Great Excuses Not to Go
to Work
Sherrie Weaver
Great Quotations
365
Q
i
1995
Creative Excuses for Every Oc-
casion: Old Standards, Innova-
tive Evasions and Blaming the
Dog
Andrew Frothingham e
Tripp Evans
St. Martins Pr.
115
Q
i
1995
The Ultimate Book of Excuses:
Fresh, Exciting, Scintillating
Excuses (Just Add Water)
John W. Thompson e Da-
mon M. Hunzeker
Fountainhead
NI
Q
i
1996
365 Excuses for Being Late to
Work
Andy Sharpe
Adams Media
144
N
i
1996
Excuses, Excuses: How to Duck,
Weave and Wriggle Out of Any
Situation
Gray Jolliffe
Kyle Cathie
160
Q
i
1996
You Won’t Believe This But...:
Responding to Student Com-
plaints and Excuses
Gary Colwell
Detselig
96
N
i
1996
The Monster Guide to Excellent
Excuses
Fran Pickering e John Pick-
ering
Kingfisher
64
Q
i
1996
The Goldfish Ate My Knickers :
Best Book of Excuses Ever
Caroline Scruton e C.
Plaisted
Bloomsbury
NI
Q
i
1996
A Complete Guide to Effective
Excuses
Wayne Allred e David
Mecham
Willow Tree
116
N
i
1996
The Contractor’s Book of Ex-
cuses: 198 Reasons Why the Job
Will Not Get Done
Karyn Zweifel
Crane Hill
NI
N
i
1997
Exam Scams: Best Cheating Sto-
ries and Excuses from Around
the World
John Croucher
Allen & Unwin
168
Q
i
1997
The Wrong Kind of Shirts: Out-
rageous Football Excuses,
Whinges and Verbal Own Goals
Mark Reynolds
Fourth Estate
112
Q
i
1998
The Funniest Excuse Book Ever
Maureen Kushner e Sanford
Hoffman
Sterling
96
Q
i
1998
I Didn’t Do It... And Other Ex-
cuses to Keep You Out of Hot
Water
Sherrie Weaver
Great Quotations
168
Q
i
1998
Chocoholic Reasonettes: Little
Excuses to Eat Chocolate
Sherrie Weaver
Great Quotations
168
Q
i
1998
Every Excuse in the Book
Craig Boldman e Pete
Mathews
MJF
288
N
i
142
Ano
Título
Autor
Editora
pp.
T
L
1998
1500 Excuses Imparables en
Toutes Circonstances
Andrew Frothingham, Tripp
Evans, e Fabrice Robine
Vents d’Ouest
191
N
f
1998
Mulligans 4 All: 101 Excuses,
Alibis and Observations on the
Game of Golf
Chuck Carlson
Addax
143
N
i
1999
104 Excuses for Work Avoidance
Matthew Court e Dave
Brady
Mustard
96
N
i
1999
366 Excuses for a Sherlockian
Party
Joel Senter, Carolyn Free-
man e Rick Senter
Classic Specialties
NI
N
i
1999
Slick Excuses for Stupid Screw-
ups
Charles Goll
CCC
96
Q
i
2000
Garfield’s Big Book of Excellent
Excuses
Jim Davis
Troll
80
Q
i
2000
501 Excuses to Go Golfing
Justin J. Exner e Dawn M.
Emerson
Greenleaf
144
N
i
2000
1,001 Excuses!: How to Get Out
Of... and Away With... Almost
Anything
George Zgourides e Nancy
L. Pickering
Loompanics
203
N
i
2000
The Hooky Book : More than 200
Excuses for Rolling in Late,
Skipping Out Early and Scam-
ming a Whole Day Off
Kerry Speckman
Apiary
137
N
i
2001
Speeding Excuses That Work:
The Cleverest Copouts and
Ticket Victories
Alex Carroll, Rich Lippman
e Joe Azar
AceCo
160
Q
i
2001
Excuses, Excuses: How to Spot
Them, Deal with Them, and Stop
Using Them
Sven Wahlroos
Backinprint.com
267
Q
i
2001
The Little Book Of Crap Excuses
Michael Powell
Michael O’Mara
96
Q
i
2002
It’s Not My Fault Because...: The
Kids’ Book of Excuses
Matt Rissinger, Philip Yates
e Jeff Sinclair
Sterling
96
Q
i
2002
Pull the Other One: Amazing
Real-Life Excuses from Around
the World
Richard De’Ath
Robson Books
182
Q
i
2003
1001 Desculpas Esfarrapadas:
As Melhores e Mais Eficazes
Maneiras de Justificar o Injusti-
ficável
Guca Domenico
Claridade
96
N
p
2003
Don’t Just Say No: Give A Great
Excuse! Effective And Believable
Excuses For Any Situation
Phillips Davies
Knight & Davies
96
Q
i
2003
Giant Book of Put-Downs, Insults
& Excuses!
Joseph Rosenbloom e
Maureen Kushner
Main Street
256
N
i
2003
“Your Legs Are Too Long”: Get-
ting Beyond Excuses for Erectile
Dysfunction
Deborah Kathryn Hargis
Allbright
216
Q
i
2003
Excuse Minute, l’Art d’Apaiser
les Relations
Ken Blanchard
Michel Lafon
122
Q
f
2004
501 Excuses for a Bad Golf Shot
Justin Exner
Sourcebooks Hysteria
144
N
i
2004
501 Excuses to Play Golf
Justin Exner
Sourcebooks Hysteria
144
N
i
2004
The Little Book of Excuses
Kaz Cooke
Penguin Global
160
Q
i
2004
Excuses, Excuses
John Foster
Oxford University
Press
128
Q
i
2004
Yes But!!!: A Super Book of Ex-
cuses
Christine Green
Powerfresh
128
Q
i
2004
Scooby-Doo’s Little Book of Big
Excuses
Howie Dewin
Scholastic
NI
Q
i
143
Ano
Título
Autor
Editora
pp.
T
L
2005
1001 Desculpas Esfarrapadas de
Políticos
Guca Domenico
Claridade
96
Q
p
2005
Fairly Odd Excuses
David Lewman
Simon Spotlight
48
Q
p
2005
SpongeBob’s Book of Excuses
(Spongebob Squarepants)
Holly Kowitt
Simon Spotlight
48
Q
i
2005
101 Shooting Excuses
Bryn Parry
Swan Hill
101
Q
i
2005
Shite Excuses
Moira La Chame
Crombie Jardine
128
N
i
2005
Overeating? 500 Excuses and
500 Solutions
Tonna Brock
Skinned Knees
221
Q
i
2005
The Dog Ate My Scriptures: Ex-
cuses, Agency, and Responsibility
John Hilton III
Deseret
CD
N
i
2006
The Little Giant Encyclopedia of
Outrageous Excuses
David Macfarlane
Sterling/Chapelle
512
Q
i
2006
Excuses, Excuses! 100 Reasons
Why Your Horse Lost the Race!
James A. Vena
Outskirts
136
N
i
2006
The Official Procrastinator’s
Handbook: A Collection of Ex-
cuses for the Procastinator in
your Life!!
Leslie Fehr
AuthorHouse
96
N
i
2006
Forty Excuses to Get Together
with the Girls
Nanci Tangeman
BookSurge
142
Q
i
2006
501 Excuses to be Late for Work
Justin Exner
Sourcebooks Hysteria
352
N
i
2006
Best Get Out of Work Excuses
John Tardy
Lulu.com
36
N
i
2006
My Bad: 25 Years of Public
Apologies and the Appalling Be-
havior That Inspired Them
Paul Slansky e Arleen
Sorkin
Bloomsbury
248
Q
i
2006
Toutes Les Excuses Pour ne pas
Aller Bosser
Sophie Egly, Emmanuel
Lehmann e Gabs
Marabout
125
N
i
2007
The Complete Excuses Hand-
book: The Definitive Guide to
Avoiding the Blame and Shirking
Responsibility for all Your Own
Miserable Failings and Sloppy
Mistakes
Lou Harry e Julia Spalding
Cider Mill
224
N
f
2007
The Little Book of Big Excuses:
More Strategies and Techniques
for Faking it
Addie Johnson
Conari Press
152
N
i
2007
You Can Do It! But Why
Bother?: 101 Excuses for Bad
Behavior & Stalling Personal
Growth
Jeff St John
iUniverse
136
Q
i
2007
Excuses!: Survive and Succeed
with David Mortimore Baxter
Karen Taylor
Stone Arch
80
Q
i
2007
Why???: A Practical Guide of
Excuses for the Married Man Or
About to Be!!!
Bill Howell e William F.
Howell
Trafford
128
Q
i
2008
Excuses and Lies for All Occa-
sions
Sem assinatura
Knock Knock
NI
N
i
2008
Everyday Cat Excuses: Why I
Can’t Do What You Want
Molly Brandenburg
Sterling
64
Q
i
2008
His 90 Lame Excuses To Escape
Commitment: Know What He
Really Means...
Pooja Jhaveri
AuthorHouse
208
Q
i
2008
Coach, I didn’t Run Because...:
Excuses not to Run
Coach Dean
AuthorHouse
84
N
i
144
Ano
Título
Autor
Editora
pp.
T
L
2008
The Dog Ate My Homework: And
1,001 Even Better Excuses to Get
Out of School, Avoid the Dentist,
and for Every Other Sticky Situa-
tion
The Ad Lib Group
Handprint
128
Q
i
2008
Ladies Night: 75 Excuses to
Party with Your Girlfriends
Penny Warner
Polka Dot
304
N
i
2009
Excuses 2010 Day-to-day Calen-
dar: Strategies and Techniques to
Fake it Through the Entire Year
Addie Johnson
Universe
320
N
i
CAPÍTULO 2: RESPONSABILIDADE PÚBLICA E CIRCUNSTÂNCIAS
146
UMA ROTULAÇÃO DE POUCO EFEITO
Benett (25/09/2005)
A imagem dos políticos no Brasil compõe uma mitologia peculiar. E o uso do termo
“imagem” aqui, diante da charge exibida acima, parece assumir um sentido ainda mais curi-
oso. O artista usou como inspiração o mural A Última Ceia (concluído entre 1495 e 1497),
de Leonardo Da Vinci, uma das coleções de imaginárias mais célebres e emblemáticas co-
nhecidas. Mas como o intuito da figura é o humor, a representação religiosa não poderia es-
tar mais deslocada: em torno do presidente Luiz Inácio Lula da Silva que ocupa o lugar de
Jesus da imagem original, o ao centro –, outros políticos formam um séquito de acusados,
formalmente acusados, aliás, em rios casos. De corrupção. Sobre cada um aponta uma
linha, indicando uma diferente culpabilidade, uma história particular de participação em um
escândalo de mal uso de seus cargos públicos. Sobre Lula, não. Lula não sabia de nada. Ele
pode ficar ao centro, lendo gibi. Ele tem uma (boa?) desculpa.
147
Lula foi eleito com 53 milhões de votos em 2002, em sua terceira tentativa. Convertido
de aguerrido sindicalista barbudo em Lulinha Paz e Amor pelo marqueteiro Duda Mendonça,
em uma campanha que, oficialmente, declarados à Justiça Eleitoral, “arrecadou R$ 33 mi-
lhões” (ATTUCH, 2006, p. 28), enquanto o principal candidato oponente, José Serra, do
PSDB, declarou arrecadação de R$ 45 milhões. “No entanto, os recursos que o PT conseguiu
arrecadar por fora, no caixa dois da campanha, alcançaram cifras muito mais expressivas. ‘Fo-
ram R$ 200 milhões em recursos não contabilizados’”, garante o informante do autor (p. 29).
Mesmo valor (na verdade, um pouco maior) teria sido arrecadado pelo PSDB “por fora”. “O
que era dado para a campanha do Lula era dado para a campanha do [candidato oponente,
José] Serra”, conta o outro informante do jornalista, que completa: “Os financiadores eram os
mesmos e nos diziam tudo o que estavam fazendo com cada um dos candidatos”.
Os dados impressiona pela insinuação de uma dualidade. De um lado, temos a demons-
tração de um personagem “isentado”, cuja idoneidade estaria garantida, inclusive no que diz
respeito aos reflexos de qualquer problema do governo sobre sua imagem pessoal: uma pesqui-
sa realizada pelo insituto CNT/Census e publicada em julho de 2005, mostrava que 45,7% dos
entrevistados achavam que Lula “o presidente Lula não tinha conhecimento do esquema do pa-
gamento de mesada a deputados da base aliada(SILVEIRA, 12/07/2005), caso que ficou co-
nhecido como o Escândalo do Mensalão, segunda maior história de corrupção registrada no país
depois da redemocratização, ombreada apenas pelo affaire que resultou do impeachment do
presidente Fernando Collor de Melo, em 1992. Ao mesmo tempo, 47,8% das pessoas ouvidas
achavam que o Lula agiu “adequadamente em relação às denúncias”
1
. Mas sem vida o dado
que mais fortemente abonou a reputação do presidente foi sua reeleição em 2006, em segundo
turno, com 58.295.042 votos, 60,83%, depois de registrar 48,61% no primeiro turno.
1
A pesquisa CNT/Census foi realizada entre os dias 5 e 7 de julho, nas cinco regiões do país em 24 Esta-
dos e 195 municípios. Foram ouvidas 2.000 pessoas. A margem de erro é de três pontos percentuais para
cima ou para baixo.
148
Mas “o mensalão marcaria inevitavelmente o governo Lula, nem que seja para a história”
(BARBEIRO e CANTELE, 2008). Quase um mês depois da explosão do caso que ficou, em
junho de 2005, foi exibida pela TV uma entrevista do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O
governante era então atacado por todos os lados por um questionamento: sabia ele ou não que
integrantes do Partido dos Trabalhadores, do qual ele foi fundador e pelo qual foi eleito, paga-
vam uma quantia mensal R$ 30 mil segundo a denúncia feita pelo deputado federal Roberto
Jefferson em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo – a parlamentares para que eles votassem a
favor do Governo no Congresso? A conversa, gravada em Paris, França, em uma viagem ofici-
al, e apresentada em horário nobre em julho do mesmo ano, foi rechaçada por várias parcelas da
imprensa. Era então primeira e única manifestação de Lula a respeito e havia sido dada a uma
repórter de TV desconhecida, que pouco o pressionou e que parecia mais a serviço da fala do
presidente do que da apuração dos fatos (MONTEIRO, 22/07/2005; O Globo, 19/07/2005). A
certa altura, Lula refere-se a um dos componentes do escândalo, a utilização do chamado “caixa
dois”, ou seja, de recursos de campanha não declarados à Justiça Eleitoral:
O que o PT fez, do ponto de vista eleitoral, é o que é feito no Brasil sistematicamente.
Eu acho que as pessoas não pensaram direito no que estavam fazendo, porque o PT
tem na ética uma das suas marcas mais extraordinárias. E não é por causa do erro de
um dirigente ou de outro que você pode dizer que o PT está envolvido em corrupção.
Chama a atenção: o presidente da República, ator público ocupante do cargo mais im-
portante de uma democracia, vai a público responder a um questionamento sobre um caso de
corrupção, de um crime, além disso considerado especialmente imoral em uma ordem como a
brasileira que, de redemocratização recente, ainda consolida sua democracia. Mas em vez de
procurar rebater as acusações com falas que recoloquem as ações praticadas em um plano que
reafirme os princípios da democracia dos quais é representante, ele oferece desculpas, exata-
mente no formato segundo o qual defino e que exploro aqui, um deslocamento que deixa para
trás esses princípios e segue rumo às circunstâncias.
149
Senão, vejamos: de imediato, chama a ateão a boca de um presidente fazer a afir-
mação que Lula emitiu a respeito da ação de seu partido: O que o PT fez, do ponto de
vista eleitoral, é o que é feito no Brasil sistematicamente. Essa frase é um exemplo típico
do modelo do “é assim mesmo que operacionalizei no capítulo anterior. Nela, es infor-
mado que o PT não teria responsabilidade total por seus atos, uma vez que uma normali-
dade alternativa, o fato de que qualquer partido brasileiro faria (als, faz) a mesma coisa,
apesar de ela ser ilegal, foi mais efetiva que a competência do PT de agir dentro dos pre-
ceitos da correção em relão à regra moral (e, no caso, da lei). O argumento seguinte se-
gue para o lado contrário da tipificação, dizendo o era eu” (no caso, “ele”, o partido):
“Eu acho que as pessoas não pensaram direito no que estavam fazendo, porque o PT tem
na ética uma das suas marcas mais extraordirias”: o PT, em seu estado normal, sendo
ele mesmo, o faria o que é feito sistematicamente no Brasil, mas na circunstância em
que “as pessoas o pensaram direito”, o fez, deixou de ser quem é, e foi outro momenta-
neamente. E não o faria por quê? Ora, o PT tem na ética uma das suas marcas mais ex-
traordinárias”. Em seguida, a sistematização da recusa do rótulo: “E não é por causa do
erro de um dirigente ou de outro que você pode dizer que o PT es envolvido em corrup-
ção”. A reputação do PT deveria ser mais efetiva que a fixação da imagem que se quer
impor a ele com a acusação de corrupto. A articulação a mesma da frase anterior: o foi
o PT quem agiu, mas um ou outro dirigente”. É um argumento que a psicologia social,
em especial Zimbardo (2007, p. 10), chama de argumento das mãs podres”:
Comportamentos aberrantes, ilegais ou imorais da parte de indivíduos que
trabalham como servidores, tais como policiais, agentes correcionais ou solda-
dos, o geralmente atribuídos às más-ações de algumas poucas maçãs podres.
Isto implica que eles são uma rara exceção e devem ser separados pela imper-
meável linha entre o bem e o mal, com a maioria das maçãs boas do outro lado.
Pom, quem faz esta distinção? Normalmente isso é realizado pelos guardiões
do sistema, que querem isolar o problema a fim de despistar a atenção e afastar
de quem estava no topo da hierarquia a responsabilidade pela criação de condi-
ções de trabalho insustenveis. O modelo das maçãs podres ignora a fruteira e
seu impacto situacional potencialmente corruptor.
150
De volta à charge da abertura, seu título é bastante sugestivo, alude ao livro dos jornalis-
tas Bob Woodward e Carl Bernstein (1974), que reconstitui o processo de apuração da série
de reportagens do jornal Washington Post, que revelou o chamado Escândalo Watergate no
qual se comprovou a autoria de dentro da Casa Branca para o assalto à sede do Comitê Na-
cional Democrata, no Complexo Watergate, na capital americana, em 17 de Junho de 1972.
Na ação, cinco pessoas foram detidas quando tentavam fotografar documentos e instalar apa-
relhos de escuta no escritório do Partido Democrata. O caso se transformou no maior escânda-
lo de interferência do poder executivo sobre instituições democráticas da história americana e
provocou a queda do presidente republicano Richard Nixon, que renunciou em 1974. A cone-
xão entre Watergate e Mensalão sugere não apenas o grau de retumbância do caso brasileiro,
mas também cria dois efeitos de sentido dignos de nota.
O primeiro deles é a sugestão de que nenhum grande caso de corrupção pode ser grande
sem um grande elenco: a citação à Santa Ceia certamente sugere um time, um grupo, uma...
quadrilha. Certamente o símbolo ali produzido é o de que uma intrincada rede de persona-
gens a ser responsabilizada, e não um cordeiro do sacrifício
2
, um bode expiatório único.
O segundo desses signos que irmana os dois affaires é a participação de agendes revela-
dores externos, os jornalistas. Se Woodward e Bernstein foram transformados em heróis da
democracia americana por seu esforço de jornalismo investigativo, uma série de reportagens
foram igualmente os responsáveis pela repercussão pública do caso brasileiro. havia acon-
tecido no caso Collor (CONTI, 1999) e se repetiu desta vez (ATTUCH, 2006).
Este segundo detalhe será determinante na metodologia deste capítulo. Explicarei como a
dinâmica operacional do jornalismo emula a demonstração de mal-estar relacional que produzi-
a demanda de accounts que resultará em justificações ou desculpas. Por conta disso, o jornal
será um espaço privilegiado para observar desculpas como as dadas acima por Lula.
2
Falarei especificamente sobre este signo na conclusão.
151
Na Introdução e no Capítulo 1, articulei a discussão sobre o ato de dar uma desculpa a
partir de uma abstração de sua forma actancial: a desculpa dada é um procedimento que induz
a descendência de um plano universalista contido na regra moral rumo a um plano circunstan-
cialista que faz com que “não se fale mais nisso”, ou seja, que a questão produzida pela de-
monstração/percepção de mal-estar, que poderia alterar o estatuto da relação, seja congelada.
Trata-se, então, de um problema em torno da maneira como os atores sociais articulam suas
relações com graus diferentes de generalidade com que têm que lidar. Neste e no próximo ca-
pítulo, situarei essa discussão nos dois extremos dessa escala de generalidade.
Por agora, analiso o extremo em que se dá o exercício cotidiano de uma generalidade ma-
ximizada. Daí a citação que acabo de fazer à mito dos políticos no Brasil. Bennett, o chargista
cujo trabalho ilustra a abertura deste capítulo, não detém nenhuma exclusividade no que diz
respeito ao objeto escolhido para fazer troça. De fato, alguns dos mais importantes artistas grá-
ficos do país se tornaram famosos pela maneira como satirizam a classe política e a própria di-
nâmica dos jornais brasileiros favorecem um verdadeiro anedotário no país a respeito da reputa-
ção da classe política nacional: os quatro maiores jornais de circulação nacional do país, Folha
de S. Paulo, O Globo, O Estado de São Paulo e Jornal do Brasil possuem todos um espaço diá-
rio para charge política, com O Globo dando-lhe destaque na primeira página
3
. E esse anedotá-
rio parece ser uma forma irônica, quase cínica, da grande desconfiança nesses personagens no
país. Pesquisa realizada em julho de 2008 pelo Instituto Vox Populi por encomenda da Associa-
ção dos Magistrados Brasileiros (AMB) (07/2008)
4
mostrou que 35% dos entrevistados “con-
cordam totalmente” e 47% pelo menos “concordam” na afirmativa de que “a maioria dos políti-
cos brasileiros não cumpre as promessas que faz em campanha”. Isso representa um grau de
3
Um interessante trabalho de análise da construção deste anedotário fora do espaço das charges foi feito por Ana
Paula Fagundes (2001) em um trabalho de graduação em Comunicação. Nele, ela mostra como a fotografia política
persegue flagrantes anedóticos, paralisando imagens que soam tão ridicularizadoras quando as próprias charges.
4
Pesquisa realizada entre 27 de junho e 6 de julho de 2008 com 1.502 entrevistados de mais de 16 anos, em ci-
dades das regiões Nordeste, Norte, Centro-Oeste, Sul e Sudeste.
152
desconfiança de 82% (GALLUCCI, 12/08/2008). Pesquisa anterior realizada pela mesma
AMB, em parceria com o Instituto de Pesquisas Sociais, Políticas e Econômicas (Ipespe)
5
, mos-
trou que 72% da população brasileira não confia nos partidos políticos; 68% desconfiam da
Câmara dos Deputados, 68% da Câmara dos Vereadores, 61% do Senado, 42% não m confi-
ança no governo federal. Da mesma forma, pesquisa de 2006 (IBOPE, abril/maio de 2006) mos-
tra uma série histórica de 1989 a 2005, na qual a confiança n’“os políticos” chega a um máximo
de 31,5%, caindo ao mínimo, 8,0%, na última leitura, em agosto do último ano da série.
Mas para além dessa informação quantitativa, uma percepção qualitativa também é inegá-
vel: a maneira como a classe política é alvo do humor no país não deixa dúvidas sobre o estigma
que pesa sobre ela. Além disso, uma infinidade de trabalhos de caráter jornalístico ajudam a
construir a imagem dos políticos no país (CONTI, 1999; CAMAROTTI e DE LA PEÑA, 2005;
VAZ, 2005; ATTUCH, 2006; BARBEIRO e CANTELE, 2008). Ao mesmo tempo, as ciências
sociais brasileiras têm igualmente se dedicado a analisar essa imagem, notadamente na antropo-
logia política (TEIXEIRA, 1998; BEZERRA, 1999; KUSCHNIR, 2000) e na ciência política.
Toda essa economia imagética faz da classe política um grupo estigmatizado, rotulado, mas
segundo uma gica diferente da que esse processo social costuma seguir. Não se pode dizer que a
classe potica seja objeto do que Misse (1999) chama de “sujeição”, ou seja, de uma “expectativa
de um certo tipo de experiência social esperada dos agentes acusáveis, de sua subjetividade e po-
sição social (p. 42). É algo que chamei (WERNECK, 2008c) de “atribuição de um adjetivo
como se ele fosse um substantivo”, é uma rotulão extrema, que atrela aos atores sociais uma
incriminação prévia às próprias ações, a partir de uma rie de características “típicas(traços de
raça, classe etc.). Pelo contrio, o processo de rotulão da classe política parece afetá-la segundo
procedimentos mais indiretos. O que a torna um objeto interessantíssimo justamente para um es-
tudo sobre como lhe chegam acusações (e, como venho procedendo aqui, suas duas dimenes
5
Entre 29 de maio a 2 de junho de 2008, com 1.500 entrevistados, em amostra representativa da população adulta
brasileira com acesso à rede telefônica (nos domicílios e/ou nos locais de trabalho), de todas as regiões do país.
153
mais abstratas, a acusação e a demonstrão/perceão de mal-estar). Considerado ao mesmo
tempo “dentro da lei” e “corrupto– na pesquisa Vox Populi que citei acima, 41% dos brasileiros
o concorda que de modo geral, atualmente, os poticos eleitos o punidos quando cometem
atos ilegais” e 36% discordam que “de modo geral, as eleões no Brasil o feitas de maneira
limpa, sem fraudes, e têm resultados confiáveis–, o potico brasileiro manm sua participão
na democracia nacional, constituindo uma classe profissionalizada (RODRIGUES, 2006). O que
produz descontinuidade nesse quadro é o “escândalo, o episódio em que se revela que o potico
espefico agiu de maneira ilegal ou imoral em uma situação espefica.
A noção de escândalo é central aqui. Boltanski e Thévenot (1991, p. 311) atribuem a
essa categoria um lugar central de uma tensão forte entre mundo cívico” e “mundo domés-
tico”
6
, ou seja, é a situação na qual se revela que uma pessoa em um papel público familia-
rizou elementos desse papel em favor de algum interesse pessoal. É justamente o que Bol-
tanski (1990) chama de affaire, em uma definição que passa pela denúncia que produz uma
situação de disputa em torno dos princípios que estabelecem uma grandeza. Ora, o que o
se esperaria (pelo menos em tese) de uma representante da classe política como um presi-
dente da República, como Lula é que ele trate as relações palacianas como relações de
família. A promiscuidade entre os dois mundos seria inadmissível: “Enquanto o mundo cí-
vico se espalha por um espaço homogêneo e transparente, o espaço doméstico, centrado na
casa
7
, é organizado por oposição entre interior e exterior, com a traição consistindo preci-
samente em tornar público, exterior, aquilo que deve ser conhecido do lado de dentro”
(BOLTANSKI e THÉVENOT, 1991, p. 313).
6
Antes, entretanto, eles definem o escândalo como uma percepção de contaminação gritante de um mundo por outro.
7
Grifos deles. Um conjunto de metáforas espaciais como essa sugere de imediato um espelhamento entre o duo
mundo doméstico/mundo cívico e o duo casa/rua apresentado por Roberto DaMatta (1985). Quero chamar a a-
tenção aqui o fato de que DaMatta centra seu modelo em uma contraposição entre pessoa e indivíduo que opera
transformações dimensionais nos atores comparáveis aos estados-pessoas propostos por Boltanski e Thévenot.
Mas como o modelo pragmatista se propõe a um desenho mais abrangente, deixarei a comparação de lado para
este texto e prepararei um trabalho à parte estritamente sobre ela.
154
Em um mundo cívico, então, “não são, com efeito, as pessoas humanas que acedem aos
estados de grandeza superior, mas as pessoas coletivas que eles compõem por sua reunião.”
(BOLTANSKI e THÉVENOT, 1991, p. 231). Isso não significa que os atores que ocupam
lugares representativos não ascendam a estados superiores de grandeza por outros regimes – a
reputação constituída no mundo da opinião, por exemplo, é um elemento importante na vi-
vência política, uma vez que para os cargos eletivos a imagem pessoal será central; ou o mun-
do mercantil, baseado na medida de eficiência, uma questão tão importante quanto a idonei-
dade em uma avaliação do político conforme mostrarei à frente. O que está em jogo aqui,
entretanto, é o mundo em que se legitimam as críticas: as que estão aqui em jogo são críticas
constituídas a partir de uma perspectiva cívica: a acusação de corrupção é uma demonstração
de mal-estar em uma relação definida por bases muito claras: é um mundo criado para poten-
cializar os entes coletivos, em especial um entre coletivo, a sociedade, e, nele, a pessoa é
sempre personagem investido dessa coletividade. E como é coletividade, a noção de justiça é
universalizada na medida em que as regras sejam formalizadas e difundidas.
Por isso mesmo, faz sentido fazer mais uma operação de construção de um intermediá-
rio analítico: primeiro, uma oposição entre mundo cívico e mundo doméstico cria um ente
cindido em dois (a pessoa precisa administrar suas duas dimensões, de ser humano e actante
de um mundo cívico) e, com isso, cria um personagem que podemos chamar de ator no exer-
cício de um papel público. Esse ente se diferencia de um outro ente, que pertenceria a outro
mundo, o da opinião, que poderíamos chamar, simplesmente de pessoa pública. Esses dois
entes compartilham uma mesma característica central: as ações de ambos podem influenciar a
vida de muitos. Por isso mesmo, poderão ser tratados de um mesmo jeito. Ambos receberão
um tratamento semelhante da parte das críticas quando não atuarem a favor dos muitos em
cujas vidas eles podem influenciar: espera-se deles um compromisso de obediência ao bem
comum, sejam eles imersos em um mundo cívico, sejam em um mundo de opinião.
155
Essa observação é relevante porque sem dúvida em um caso de corrupção persona-
gens que não são exatamente ator no exercício de um papel público, como os próprios jorna-
listas e alguns personagens secundários, como funcionários, que surgirão envolvidos no caso.
Seja em um caso, seja no outro, essa imersão na dimensão pública, a consolidão como ac-
tante público, tende a anular – ou pelo menos congelar algo que chamar de pessoalidade, uma
condão em que a principal compencia do ator é demonstrar sua peculiaridade, seu afastamento
da generalidade, o que permiso ao ator para receber um tratamento especial, um tratamento
“pessoal”. Totalmente investido de uma coletividade que justifica a ocupão do papel blico,
esse actante tem sua dimensão pessoal invisível. Pelo menos idealmente. Mas os políticos o se-
res humanos. E essa humanizão nos é constantemente lembrada pelo noticiário potico dos jor-
nais, ao apresentar cotidianamente os defeitos desses entes. Afinal, errar é humano.
* * *
Os políticos brasileiros, então, vivem em estado de paz. Salvo quando acontece o fenô-
meno do grande escândalo. O que leva à constatação: Nas democracias modernas e contem-
porâneas, o lugar do escândalo, do affaire público, é... o jornal. Tem sido a maneira segundo a
qual esses fenômenos têm vindo à cena, passado a mobilizar os cotidianos dos atores. Por is-
so, então, centrei esta seção de minha pesquisa na observação das conseqüências dessa forma
peculiar de empreendedorismo moral que é estabelecida cotidianamente pelos jornais diante
dos políticos. Para tanto, analiso os primeiros momentos do chamado Escândalo do Mensalão
iniciado em junho de 2005 e que segue com desenrolares até o momento em que este artigo
é concluído, mas que observei até o encerramento da Comissão Parlamentar Mista de Inquéri-
to dos Correios, cujo relatório final foi aprovado em 5 de abril de 2006. Nesta pesquisa, são
colhidos argumentos usados por políticos diante de acusações de corrupção.
156
O tema da corrupção tem despertado grande interesse nas ciências sociais e políticas, e
em especial no Brasil vários autores têm se dedicado ao assunto
8
. Este trabalho, entretanto,
não é “sobre” a corrupção, mas a partir dela. Na verdade, a partir dela como representações,
adjetivos, atribuições, como, enfim, demonstrações/percepções de mal-estar relacional.
Dito isso, procedo agora a uma pequena discussão metodológica, a fim de demonstrar as
potencialidades do uso que fiz dos jornais como fonte para minha pesquisa.
8
Das quais, destacaria pelo menos Teixeira (1998), Barbosa (2005), e, mais recentemente, Cavalcanti (2005).
157
O JORNAL COMO “EMPREENDEDOR MORAL” OU DO MATERIAL JORNALÍSTICO
COMO ESPAÇO DE INVESTIGAÇÃO PARA UMA SOCIOLOGIA DA CRÍTICA
De maneira geral, dois principais usos m sido feitos do jornalismo em pesquisas
em ciências humanas, em especial em sociologia. O primeiro é a utilizão do jornal como
fonte de informões e/ou impressões sobre o pprio jornalismo tomado como parte de
um fenômeno geral do uso da comunicação como variável do social. Esse tipo de aborda-
gem emrica procura, por meio de métodos como análise de discurso ou mesmo de testes
quantitativos, usar a produção da imprensa como fonte de estudo a respeito da própria im-
prensa e de seus efeitos (por exemplo, como BURKE, 1996 ou LEMIEUX, 2000) na vida
social. Dessas pesquisas, tem-se extraído uma série de observações sobre a relação entre
dia e sociedade, seja por se chamar a atenção para a foa política, para o poder conspi-
ratório ou para a potência pedagógica do meio.
O outro grande braço da utilização do jornal como objeto é o da fonte de informações
sobre o social. Nesse sentido, o horizonte das pesquisas migra do jornal como objeto para o
jornal como fonte. Como o jornal (em todos os meios) publica virtualmente matérias sobre
qualquer assunto que se torne público, ele pode ser usado como fonte para trabalhos de histo-
riografia tradicional, história da literatura ou qualquer outra história que se queira fazer a par-
tir da apresentação da realidade (como no caso de SILVA, 1988; ou SILVA, 2001). Uma vez
que se levem em conta mecanismos para eliminar dúvidas sobre a veracidade ou a manipula-
ção ideológica ou mercadológica dos fatos apresentados por exemplo, por meio do uso de
mais de uma publicação como fonte e a leitura comparada de suas narrações notícias e re-
portagens têm servido como fonte efetiva para estudos de caráter sincrônico.
158
Parece-me, entretanto, que o jornal pode ainda ser usado de uma outra maneira, que a meu
ver tem sido negligenciada. É o uso da produção jornastica como objeto para analisar determi-
nados tros da sociedade emuladas em suas ginas por seus próprios procedimentos de produ-
ção. Esse modelo parte de um pressuposto principal: o jornal se construiu historicamente como
um dispositivo, uma operacionalização de práticas típicas da arena blica moderna. Um exemplo
inspirador para mim foi o de Boltanski (1990), que se utilizou das cartas (a rigor, o processo de
seleção dessas cartas) enviadas a um jornal para abstrair um modelo de “denúncia pública”, a par-
tir do reconhecimento de que a dencia operada nessas cartas corporifica a movimentão crítica
mais geral do social. O ponto de partida é que a sociedade documentada também é a responvel
pela documentão: um conjunto de formas de cobertura representa um conjunto de questões que
a sociedade se coloca, em que es interessada e, no limite, opera por meio delas. Quero apresen-
tar um raciocínio analógico a partir de Bourdieu (1974, p. 207):
O que os indivíduos devem à escola é sobretudo um repertório de lugares-comuns, não
apenas um discurso e uma linguagem comuns, mas também terrenos de encontro e a-
cordo, problemas comuns e maneiras comuns de abordar tais problemas. Embora os
homens cultivados de uma determinada época possam discordar a respeito das ques-
tões que discutem, pelo menos estão de acordo para discutir certas questões.
Jornal e educação operam da mesma forma nesse sentido: a priorização de assuntos
e a abordagem utilizada para exibi-los informam sobre o que a sociedade em torno do jor-
nal considera seu corpo de questões em debate. E assim, informa, claro, sobre a sociedade
que manifesta esse interesse. Jornal e sociedade se irmanam dessa maneira direta, mas
tamm indiretamente, uma vez que, no caso do jornal, esse corpo de questões chega aos
jornais segundo um método de questionamento. Essa relevância opera em mão dupla, uma
vez que o jornal, claro, possui regras próprias de mercado, de espetáculo, de ideologia
etc. para a escolha do que é relevante e a sociedade alimenta o jornal com elementos
que tornem generalizantes as pautas por eles publicadas.
159
Trata-se, então, de uma economia dos discursos e das permissões e permissões para seu
uso segundo determinadas regras. Para Foucault (1996), a maneira como uma determinada
episteme ou sistema de pensamento trata os discursos caracteriza sua maneira de exercer po-
der. Para ele, há procedimentos mais ou menos padronizados ao longo da história de controlar
o que se diz e o que não se diz em uma ordem social:
(...) Suponho que em toda a sociedade a produção do discurso é simultaneamente
controlada, selecionada, organizada e redistribuída por um certo número de proce-
dimentos que têm por papel exorcizar-lhe os poderes e os perigos, refrear-lhe o a-
contecimento aleatório, disfarçar a sua pesada, temível materialidade. (p. 8)
Para o filósofo, não se trata apenas de uma semiologia e de uma tradução de fatos em fa-
las: “O discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação,
mas é aquilo pelo qual e com o qual se luta, é o próprio poder de que procuramos assenhorear-
nos(p. 10). Para ele, um dos procedimentos mais poderosos para esse sistema de ordenação e
controle dos discursos é a disciplina, ou seja, a maneira organizada de um sistema de pensamen-
to, de um saber ou fazer, de permitir que se digam coisas segundo seus critérios particulares e
de se impedir que se digam outras, que estariam fora de seu sistema de permissões (p. 30):
Uma disciplina se define por um domínio de objetos, um conjunto de métodos, um
corpo de proposições consideradas verdadeiras, um jogo de regras e de definições, de
técnicas e de instrumentos: tudo isto constitui uma espécie de sistema anônimo à dis-
posição de quem quer ou pode servir-se dele, sem que o seu sentido ou a sua validade
estejam ligados ao seu inventor. (...) numa disciplina, (...) não está suposto à partida
que é um sentido o que deve ser redescoberto, nem está suposto que é uma identidade
que deve ser repetida; está suposto antes aquilo que é necessário para a construção de
novos enunciados. Para que haja disciplina, é preciso, por conseguinte, que haja a pos-
sibilidade de formular, e de formular indefinidamente, novas proposições.
Ou, mais explicitamente (p. 31):
Mas mais; e mais, sem dúvida, para que haja menos: uma disciplina não é a so-
ma de tudo aquilo que pode ser dito de verdadeiro a propósito de qualquer coisa; nem
mesmo é o conjunto de tudo aquilo que, a propósito de um mesmo dado, pode, pelo
princípio de coerência ou sistematização, ser aceite. A medicina não é constituída pela
totalidade do que se pode dizer de verdadeiro sobre a doença; a botânica não pode ser
definida pela soma de todas as verdades que dizem respeito às plantas. Há duas razões
para isso: em primeiro lugar, a botânica ou a medicina, como qualquer outra discipli-
160
na, são feitas tanto de erros quanto de verdades, erros que não são resíduos ou corpos
estranhos, mas que têm funções positivas, uma eficácia histórica, um papel muitas ve-
zes indistinto do das verdades. Mas por outro lado, para que uma proposição pertença
à botânica ou à patologia, é preciso que ela responda a condições que em certo sentido
são mais estritas e mais complexas do que a pura e simples verdade: em todo o caso, a
outras condições. A proposição deve dirigir-se a um plano de objetos determinado (...)
não pertencendo a uma disciplina, uma proposição deve utilizar instrumentos concep-
tuais ou técnicas de um tipo definido; (...) mais ainda: para pertencer a uma disci-
plina, uma proposição deve poder inscrever-se num certo tipo de horizonte teórico.
Os dicos falam de doenças e podem usar bisturis, cortar caveres, receitar medicamen-
tos e nomear rus. Os engenheiros constroem pontes e podem dizer se uma pode receber auto-
veis ou não. Trata-se, então, da configurão de uma potica das falas o que es em jogo aqui.
Qualquer campo disciplinar te suas regras próprias e exercerá seu poder de acordo com esse po-
der discursivo. Assim, para Foucault, organizam-se as forças dentre de uma sociedade (p. 33):
No interior dos seus limites, cada disciplina reconhece proposições verdadeiras e
falsas; mas repele para o outro lado das suas margens toda uma teratologia do saber.
O exterior de uma ciência está mais e menos povoado do que julgamos: certamente
que a experiência imediata, os temas imaginários que trazem e reconduzem in-
cessantemente crenças sem memória; mas talvez o haja erros em sentido estrito,
porque o erro o pode surgir e ser avaliado senão no interior de uma prática defini-
da; em contrapartida, monstros que circulam e cuja forma muda com a história do
saber. Numa palavra, uma proposição tem de passar por complexas e pesadas exi-
gências para poder pertencer ao conjunto de uma disciplina.
Pensemos, eno, a esfera blica como um espo de circulão de discursos disciplinares
em que potica e conhecimento – os elementos centrais das atividades profissionais dialogam,
sempre segundo discursos regrados. Ora, o que acontece cotidianamente com esses discursos?
Eles são divulgados, são levados ao cidadão comum de rias maneiras. Imaginemos, então, co-
mo podemos enxergar a leitura de um jornal segundo essa ótica. O que vemos nas ginas todos
os dias? Uma leitura atenta mostrará que o que acontece no jornal é uma verificação constante da
corrão dos sistemas de pensamento (disciplinas): o governo, as instituões, os atores conside-
rados actantes blicos ou publicizáveis
9
, todos o observados segundo um mesmo critério, to-
9
Um ator singular pode ser tornado blico em uma reportagem, desde que sua ação seja de interesse público.
Assim, um assaltante se torna figura blica ao ser apresentado (e acusado), o mesmo acontece com um aciden-
tado, vítima de um evento que o interliga aos leitores, aos outros indivíduos da mesma ordem.
161
dos são confrontados com a mesma pergunta: funcionam eles segundo suas próprias regras de ex-
clusão, de constituão como sistema, como disciplina? Ou, em outras palavras, no exercio de
sua dimeno coletiva, até que ponto um determinado mundo cívico constituído se manm puro?
Ou seja, o discurso jornalístico se apresenta, eno, na esfera blica, como aquele que vigia as
“sinceridades” de outros discursos, o respeito que cada “sociedade de discurso” (FOUCAULT, p.
7) tem pelas próprias regras enunciadas publicamente como mecânica de seu sistema de restrição.
A necessidade, então, é a de uma palavra que seja uma composição entre discurso e
ordem social ou, mais forte que isso, um uso da palavra que faça dela mesma mecanismo
de composição da ordem social. Trata-se, então, de uma observão da relão entre dis-
curso e coletividades ou, mais profundamente, do poder do discurso para compor coletivi-
dades, agregações. Gabriel Tarde (1992, p. 29) proe uma oposão forte entre duas for-
mas de coletividade, a multidão e o público. Seu trabalho sobre o problema da esfera pú-
blica escrito em 1901 na forma de vários ensaios coloca a primeira como um agregado
sico de pessoas movidas pelo mesmo interesse e o segundo como o centro mesmo da
formação de mundo na modernidade, através de uma agregação indireta e não material:
A idade moderna, desde a invenção da imprensa, fez surgir uma espécie de público
bem diferente [da idéia de multidão], que não cessa de crescer e cuja expansão inde-
finida é um dos traços mais marcantes de nossa época. Fez-se a psicologia das mul-
tidões; resta fazer a psicologia do público, entendido (...) como uma coletividade pu-
ramente espiritual, como uma disseminação de indivíduos fisicamente separados e
cuja coesão é inteiramente mental.
De imediato, ele associa a formação do público à formação e à consolidação da impren-
sa. É na produção da mentalidade coletiva no jornal que ele enxerga a formação de uma outra
forma de coletividade inaugurada pelo mundo moderno. A imprensa se torna um espaço de
conexão “espiritual”, nos termos de Tarde (p. 30), ou seja, de ligação conceitual entre atores
dispersos em uma mesma ordem social, ultrapassando elementos de desidentificação como a
distância física e diferenças sociais variáveis (gênero, raça, credo, classe etc.):
162
Não é em reuniões nas ruas ou na praça pública que m origem e se desenvolvem
esses rios sociais (...) Coisa estranha, os homens que assim se empolgam, que se su-
gestionam mutuamente, ou melhor, que transmitem uns aos outros a sugestão vinda
de cima, esses homens o se tocam, não se vêem nem se ouvem: estão sentados,
cada um em sua casa, lendo o mesmo jornal e dispersos num vasto território.
Essa ligação é produzida conceitualmente, sem a necessidade de integração sica entre os
atores. Para Tarde (1992, p. 30), ela nasce da consciência que cada um deles possui de que essa
idéia ou essa vontade é partilhada no mesmo momento por um grande número de outros homens.
Basta que ele saiba disso, mesmo sem ver esses homens, para que seja influenciado por estes to-
mados em massa, e o apenas pelo jornalista, inspirador comum”. É atras dessa constrão
que ele proe um conceito de contemporaneidade ligado o à datão factual, mas à co-
temporalidade de formação de generalidade. Para ele, o interesse o está necessariamente em
apenas se ler uma nocia do dia e sim em se ler a nocia do dia porque ela é lida ao mesmo tempo
pelos outros. É em um jogo de pertencimento que se localiza, para ele, o papel da formação do
blico na constrão da esfera pública. Lemos o jornal e nos sentimos parte de um mesmo cam-
po de pensamento e, nesse sentido, sentimo-nos parte de uma mesma ordem social.
Um elemento que chama a atenção na descrição de Tarde é sua atribuição de precedência
do discurso público sobre o indivíduo e, mais, do discurso individual publicado sobre os indiví-
duos do público. Como bom moderno ocidental que é, Tarde está preocupado com o controle
das mentes por mecanismos lobotômicos de controle coletivo. “O leitor, em geral, não tem
consciência de sofrer essa influência persuasiva quase irresistível do jornal que habitualmen-
te” (p. 31), diz em um momento. “Poder-se dizer que, se cada grande publicista faz seu públi-
co, cada público um pouco numeroso faz seu publicista? Essa última proposição é bem menos
verdadeira” (p. 40), lança em uma nota de rodapé. Mas seu olhar anti-conspiratório não des-
mente a correção em observar a formação de uma esfera pública através da produção de um dis-
curso público. É na produção desse geral pelo discurso unificado da opinião gravado sobre o
jornal que se constitui uma nova forma de ágora, uma praça mental, social.
163
Boltanski (1993) faz uma descrão da necessidade de uma palavra blica na construção
de uma potica em que se envolvem os atores imersos em um jogo de exibição/reão. A cons-
trão de um público, no sentido de Tarde é, na visão de Boltanski, a construção de um sistema
olhar/falar. Esse sistema passa pelo estabelecimento de um narrador que é, ao mesmo tempo, um
puro espectador, capaz de se isentar de ligação emocional com os fatos. Para ele (p. 48), “o espec-
tador é puro porque ele é perfeitamente independente da cena que contempla”. E esse espectador
puro, em um primeiro momento, é justamente o jornalista: “Operador sistetico do rumor, ele
e em rede e distribui a todos os pontos uma informão que correria o risco de, sem isso, seguir
as redes de convivência preexistentes, de pegar emprestadas as passagens obrigatórias, de se con-
centrar nos bolsos, de constituir agregados” (p. 50). Essa posão pressue um personagem des-
ligado da ocorrência o suficiente para conquistar credibilidade: “É porque o espectador é sem li-
gações, sem engajamento prévio, que sua narração, seu testemunho, pode ser crível(p. 51)
10
. É
por conta desse sistema que confere credibilidade à distância que é possível fazer com que os ato-
res de uma mesma ordem compartilhem impressões semelhantes.
Para Boltanski, esta é a geografia do espaço blico: um campo de fluxo de discursos atra-
s da constituão de narradores com credibilidade observados por atores que podem reagir às
situões por eles narradas. Mas ele chama a atenção para o fato de que esse narrador e os espec-
tadores por ele assistidos o eso envolvidos em um sistema de verificação, de “entrega de ver-
dades”. Ainda que o olhar do puro espectador seja parente do olhar do observador cienfico, ele
possui como uma máquina de distribuão e generalização mais efetiva do que a de confirmação.
O observador “faz circular opiniões divergentes, como, por exemplo, medidas econômicas ou po-
líticas” (BOLTANSKI, p. 53). Não se trata de um campo apenas racional de circulação do que é
razoável e crível, mas de um espaço de debate, de transposão para uma escala ampliada de uma
discussão que poderia ser apenas local e, nesse sentido, ser movida por interesses individuais.
10
Grifo dele.
164
O espo público, então, para Boltanski, é constitdo em torno de causas, de tomadas de
partido. Isso confere à circulação dos discursos no espaço público, mesmo que dispersa pela
ordem social, um caráter político. Ele é aquela nova ágora, desta vez produzida não por um
local de encontros, mas por um encontro no tempo e dentro de uma mesma lógica, dentro de
um mesmo debate. Para Boltanski, entretanto, um outro detalhe se faz relevante: duas
possibilidades de participar da esfera blica, uma engajada e outra desengajada, ou seja,
pode ser uma participação motivada pela ão diante do que é mostrado pelo puro narrador
ou uma participação sem reação. Para Boltanski (p. 53), entretanto, a reação engajada,para
ter valor, tem que ser puramente moral, ou seja, desligada de toda e qualquer determinação
por interesses e, em conseqüência, de qualquer ligação comunitária prévia”. Trata-se, para
ele (p. 54), de uma reação genérica. Apesar de fazer diferença o conteúdo específico das
mensagens expostas publicamente (que, mostrarei mais à frente, são mensagens que infor-
mam a opinião blica sobre o sofrimento de atores), a reação deve ser independente de
qualquer interesse prévio, como, por exemplo, vizinhança ou laços familiares:
Nessa figura política, o engajamento não é autêntico senão na medida em que ele
marca o momento no qual os indivíduos indeterminados tomam posições. Mas para
que esse momento se dê, é preciso que todos os indivíduos em rede, entre os quais
todas as passagens são em princípio possíveis, no estado inicial, possam dispor da
mesma informação, conhecer as mesmas causas. De fato, é o caráter comum da in-
formação o que compõe a rede.
A política moderna foi calcada, então, nesse sistema de olhares de engajamentos. Lócus
desse sistema, o espaço público é um espaço atravessado por narrações e falas. E é por isso
que é nele que espero encontrar a constituição do espírito do cinismo (porque é nele que está a
de qualquer discurso na esfera pública) e é por isso que o jornal pode ser um espaço privilegi-
ado de investigação. Na generalidade produzida pela notícia, justamente a produtora da sensa-
ção de proximidade que produz o público para além da multidão, pode-se ter uma fotografia,
um decalque até, da própria ordem. A ágora moderna é o jornalismo.
165
Assim, ao optar por colher desculpas no jornal estou partindo do princípio de que a re-
lação crítico-criticado estabelecida incidentalmente entre entrevistador-entrevistado emula a
interação contida no momento crítico. Mais que emula, aliás, é ela mesmo um momento críti-
co. E por conta do reconhecimento da legitimidade dessa operação que o jornal se constitui
como um espaço típico de denúncias e acusações públicas. O jornal está justificado para fazer
suas críticas porque se investe dos discursos de constituição dos vários mundos cívicos esta-
belecidos pelas vários entes públicos em atuação no social. Assim, ao olhar para a resposta
dada por um político a um entrevistador, está-se diante de uma resposta dada a qualquer leitor
do jornal e, por conta do próprio processo de contaminação noticiosa, para qualquer cidadão.
O espaço público pode, assim, ser visto na forma do jornal, que pode ser entendido
como um mecanismo de socializão de debates. Uma fala no jornal, eno, pode ser en-
tendida como uma forma de participão de um debate que pode ser apresentado a um
grande número de pessoas interligadas. Esse raciocínio é relevante para justificar a esco-
lha do jornal como espaço de investigação de acusações e desculpas. É claro, as acusações
e desculpas apresentadas nas páginas de um jornal eso ali segundo uma estética, que o-
bedece a cririos externos ao próprio duo o apelo à vendagem do produto jornalístico,
por exemplo. o se trata de uma indignação particular o que produz a acusação/crítica,
mas de uma indignação formatada segundo procedimentos operacionalizados, do pressu-
posto de que a “função social” do jornal é defender os interesses dos cidadãos. Ao mesmo
tempo, entretanto, toda acusão/ctica apresentada nos jornais se torna automaticamente
acusação/crítica feita publicamente, ou seja, passa a ser disponibilizada para servir de crí-
tica a partir de qualquer ator a veja. Ao mesmo tempo, as negões, justificações e des-
culpas apresentadas no jornal são dadas não a uma indignação localizada diante da qual
um entrevistado esteja, mas à indignação virtual que possa ser produzida em qualquer ator
a cuja disposição é colocada a matéria jornalística.
166
Assim, a pesquisa que se segue foi baseada no acompanhamento dessa movimenta-
ção discursiva nas páginas de jornais. Para esta apresentão, foram consultadas intensi-
vamente as colões dos jornais Folha de S. Paulo e O Globo nos períodos de 5 de junho
de 2005 a 5 de abril de 2006). Por remiso a partir desta primeira pesquisa, foram consul-
tados exemplares anteriores e posteriores destas e de algumas outras publicões (em par-
ticular o Jornal do Brasil e as revistas Veja e Isto É Dinheiro). Foram privilegiadas as lei-
turas dos cadernos “Brasil” (Folha de S. Paulo) e O Ps (O Globo). Outras editorias
foram consultadas quando havia algum redirecionamento das consultadas para elas. Em
todas as investigações foram procuradas ocorncias de admoestões morais feitas pela
reportagem na forma de perguntas a entrevistados. E, como objeto central, as respostas
desses entrevistados. Dessas respostas, colhi aquelas que pude classificar como desculpas,
o me interessando, no âmbito desta investigação, pelas justificações
11
.
11
Em outra pesquisa (WERNECK, 2006), com outras situações de acusação igualmente dadas em jornais, che-
guei a fazer uma partição entre desculpas e justificações e a promover uma análise quantitativa dessa distribui-
ção. Mas preferi não ampliar a discussão para esta distribuição neste artigo, uma vez que o objetivo aqui era es-
tudar a maneira como as desculpas são produzidas pelos atores ocupantes de cargos blicos e extrapolar um
ferramental teórico para delas dar conta.
167
ENTREVISTAS, DEPOIMENTOS, DESCULPAS
Memorial da crise
12
Em 17 de janeiro de 2009, sábado, a nocia circulou com a certa discrição nos jor-
nais: “Juiz exclui Dirceu de ação por improbidade (CORRÊA, 17/01/2009): “O juiz Ala-
or Piacini, da 9ª Vara Federal de Brasília, excluiu os ex-ministros José Dirceu (Casa Civil)
e Anderson Adauto (Transportes) de uma ão de improbidade administrativa referente ao
mensalão. O magistrado, “se baseou em decisão do Supremo Tribunal Federal de 2007
para defender que não cabe ação de improbidade contra ex-ministros. Para Piacini, eles
‘devem responder, em tese, por crime de responsabilidade’, no STF. É o caso. Há proces-
sos contra ambos na casa. A notícia era pejada de um debate sobre minúcias jurídicas que
o fizeram a menor diferença para colunistas e leitores que escreveram para os jornais
nos dias que seguiram: a maioria esboçava sentir uma sensação de impunidade. Sobretudo
porque a notícia vinha dois dias depois da divulgação da soltura de Marcos Valério (SEM
ASSINATURA, 15/01/2009) preso, na verdade, em decorrência das investigações da
chamada Operação Avalanche, que desmontou uma quadrilha que promovia fraude fiscal,
extorsão e espionagem, com Valério como mentor e principal operador deste terceiro bra-
ço. Mas um habeas corpus concedido pelo ministro diz que o publicirio continuava pre-
so pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Gilmar Mendes, que argumen-
tou que a prisão do emprerio se baseava apenas no uso de argumentos fortemente espe-
culativos, expondo simples convicção íntima do magistrado”.
12
Narração a partir dos jornais pesquisados e de Cavalcanti (2005), Attuch (2006), Figueiredo (2006) e Patarra
(2006). Uma cronologia bastante completa é a de Patarra, disponível online em:
http://www.escandalodomensalao.com.br/
168
Os nomes “Dirceu” e “Valério” provavelmente concorreriam às primeiras posições en-
tre os mais pronunciados no país entre 2005 e 2009. Os dois foram dois dos principais prota-
gonistas do Caso Mensalão, o maior escândalo de corrupção registrado no Brasil desde o caso
Collor. Em resumo, o caso consistiu na denúncia, em 2005, de que o Partido dos Trabalhado-
res, partido do presidente Luiz Inácio Lula da Silva – e de Dirceu – pagava um valor mensal a
deputados de partidos da base aliada notadamente ao PTB e ao PL por votos em favor do
governo na Câmara. Os recursos para alimentar esse duto de corrupção, que teriam circulado
em espécie, de maneiras até mesmo pitorescas, viriam, suspeitava-se, de fontes públicas.
Analisarei entre seu marco inicial, a entrevista de Roberto Jefferson à Folha de S. Paulo e
a data da aprovação do relatório final da CPMI dos Correios, período que chamo de acusatorial
do escândalo, no qual se concentraram as argüições e as demonstrações mais claras de mal-estar
em relação aos acusados, sobretudo nos jornais. A fim de oferecer uma compreensão geral do
caso, que apresento agora uma breve cronologia, com os principais episódios do mesmo.
* * *
14 de maio de 2005: A revista Veja publica a reportagem “O homem-chave do PTB”
(JÚNIOR, 18/05/2005), na qual transcreve trechos de uma fita de 114 minutos, mostrando
chefe do departamento de contratão e administração de materiais e dos Correios, Maurí-
cio Marinho, recebendo propina.
15 de maio: O PTB cobra apoio a Roberto Jefferson. Quer solidariedade do governo,
comparável à dedicada ao “ministro José Dirceu (PT-SP), em fevereiro de 2004. Na época, uma
outra fita de vídeo captou imagens e a conversa do assessor e braço direito de Dirceu, Waldomi-
ro Diniz. Ele pedia propina a Carlinhos Cachoeira, um empresário do jogo. Em troca, oferecia
facilidades em negócios com o governo do Rio de Janeiro” (PATARRA, 2006) .
169
17 de maio: Oposição inicia movimento para instalação de uma CPI para investigar
denúncias de corruão nos Correios (o que é divulgado pelos jornais com chamadas em
primeira gina, em geral as principais.
19 de maio: começa ser noticiado o que os jornais chamariam de operão abafa”, a
estratégia do governo para tentar barrar a CPI.
21 de maio: Reportagem “Mesada de R$ 400 mil para o PTB, da revista Veja, afir-
ma que dio Duarte, o presidente do IRB (Instituto de Resseguros do Brasil), uma estatal
federal, vinha sendo pressionado a entregar R$ 400 mil por mês ao PTB, por exincia do
deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ).
25 de maio: é criada no Congresso a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito
(CPMI) dos Correios.
3 de junho: jornais noticiam que a operão abafagarantiria emendas orçamentá-
rias para deputados fis, que votassem contra a CPI.
6 de junho: Roberto Jefferson dá entrevista à Folha de S. Paulo, afirmando existir o
mensalão.
7 de junho: governo muda de posão e toma as rédeas da criação de uma outra CPI,
a do Mensalão.
8 de junho: Delúbio Soares concede entrevista coletiva.
9 de junho: Instala-se a CPI dos Correios. O deputado Sandro Mabel (PL-GO) nega ter pro-
posto à deputada Raquel Teixeira (PSDB-GO) para que deixasse o partido de oposição e ingres-
sasse na base aliada do governo, em troca de uma mesada de R$ 30 mil e um bônus de R$ 1 mi-
lhão, no final do ano. Dois parlamentares apontam Mabel como o autor do asdio à deputada.
12 de junho: nova entrevista do deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ) à Folha de S.
Paulo: surge o empresário Marcos Vario Fernandes de Souza, a origem do dinheiro do
mensalão.
170
14 de junho: Roberto Jefferson dee no Conselho de Ética da mara dos Deputados.
16 de junho: o ministro da Casa Civil, José Dirceu (PT-SP), demite-se, abalado pelas
acusações de Jefferson de ser um dos mentores do mensao.
25 de junho: a revista Veja publica entrevista com Marcos Valério (RODRIGUES,
29/06/2005).
4 de julho: Cai Silvio Pereira, o secrerio-geral do PT. Silvinho, como é conhecido,
disfarça o afastamento do partido com um pedido de licea. Na verdade, foi obrigado a
se desligar do PT, acusado de organizar a distribuição de cargos no governo Lula.
5 de julho: Cai Debio Soares, o tesoureiro do PT. O afastamento é disfarçado de
pedido de licença.
6 de julho: Marcos Vario depõe na CPI dos Correios.
9 de julho: Caem Jo Genoino, o presidente nacional do PT, e Marcelo Sereno, o
secretário de Comunicão do partido. Sereno é próximo a José Dirceu. Genoino, homem
de Lula, manteve o PT sempre muito próximo do Palácio do Planalto.
12 de julho: Caem os ministros Luiz Gushiken e Romero Jucá (PMDB-RR), acusado
de desviar dinheiro de um abatedouro de frangos. Gushiken, integrante do chamado nú-
cleo durode Lula, assegura um cargo na assessoria do presidente.
1
o
de agosto: Simone Vasconcelos, diretora financeira de uma das empresas de Mar-
cos Valério, dee na Pocia Federal: fornece uma lista com 31 nomes, elaborada por Va-
rio, os sacadores e beneficiários do mensalão, todos autorizados pelo PT a fazer retira-
das. Total que saiu das contas banrias das empresas de Valério: R$ 55,8 milhões.
2 de agosto: José Dirceu (PT-SP) e Roberto Jefferson (PTB-RJ) se encontram em
seso do Conselho de Ética da Câmara dos Deputados e trocam acusações.
6 de agosto: O PT decide suspender Debio Soares por tempo indeterminado soli-
citão do pprio ex-tesoureiro do partido.
171
11 de agosto: Zilmar Fernandes Silveira e Duda Mendoa, espontaneamente, de-
em na CPMI dos Correios. Duda apareceu sem ser convocado. Marqueteiro de Lula,
confessa que recebeu R$ 11,9 miles em caixa 2 de Marcos Valério. É dinheiro que pa-
gou os serviços prestados na campanha de 2002, que elegeu Lula.
13 de agosto: A revista Época publica entrevista com Valdemar da Costa Neto (SP),
o presidente do PL. Foi o primeiro deputado a renunciar por envolvimento no escândalo
do mensao. Aliado do Pacio do Planalto, Valdemar foi um dos artífices da aliança PT-
PL em 2002, e um dos responveis pela escolha de Jo Alencar (PL-MG) para vice-
presidente de Lula.
17 de agosto: Preso Rorio Buratti, o advogado e ex-secrerio de Antonio Palocci
(PT-SP) na Prefeitura de Ribeirão Preto (SP), denunciado pelo Ministério Público por la-
vagem de dinheiro e formão de quadrilha.
18 de agosto: Delúbio Soares presta depoimento à CPI do Mensalão.
19 de agosto: Em troca do benecio da delação premiada, Rorio Buratti presta de-
poimento na Delegacia Seccional da Polícia Civil de Ribeirão Preto (SP), na frente de seis
promotores do Ministério blico que investigam fraudes em licitações e lavagem de di-
nheiro, implicando Palocci.
23 de agosto: o ex-deputado Valdemar Costa Neto (SP), presidente do PL, depõe na
CPI no Mensalão. Recebeu R$ 6,5 milhões em recursos do caixa 2 do PT, entre janeiro de
2003 e setembro de 2004. Pagou despesas com material de campanha do presidente Lula,
ainda do segundo turno das eleições de 2002.
25 de agosto: Rogério Buratti depõe na CPI dos Bingos e afirma: o ministro Antonio
Palocci (PT-SP) recebeu propina de R$ 50 mil mensais, durante dois anos, no período em
que exerceu seu segundo mandato como prefeito de Ribeio Preto (SP). O suborno teria
sido pago pela Leão Leão, contratada para diversos servos pela Prefeitura.
172
29.08.2005: Pedido no Congresso Nacional recomenda a cassão do deputado Ro-
berto Jefferson (PTB-RJ): Jefferson teria se comportado de forma incompatível com a éti-
ca e o decoro parlamentar, ofendido parlamentares de forma leviana, recebido dinheiro de
caixa 2 na campanha de 2004, feito tráfico de influência em estatais e por o ter provado
o mensalão, “nos moldes descritos.
1
o
de setembro: Em sessão conjunta, as CPIs dos Correios e do Mensao aprovam,
por unanimidade, relario denunciando 18 deputados federais por “um amplo conjunto de
crimes poticos”. O documento solicita a abertura de processos de cassação de mandatos
contra todos os citados, por improbidade administrativa, corrupção ativa e passiva, preva-
ricão, infrão à legislão eleitoral e sonegação fiscal. O relario vai para o Conselho
de Ética da mara.
2 de setembro: A revista Veja (OLTRAMARI, 07/07/2005) denuncia um esquema segundo
o qual o presidente da mara dos Deputados, Severino Cavalcanti (PP-PE), cobrou propina de
R$ 10 mil mensais, de março a novembro de 2003, do empresário Sebasto Augusto Buani, con-
cessiorio do restaurante Fiorella, instalado no 10º andar do pdio da Câmara.
12 de setembro: O deputado Carlos “BispoRodrigues (PL-RJ) renuncia ao manda-
to, para evitar um processo de cassação e a eventual inelegibilidade. É acusado de ter re-
cebido R$ 400 mil do valerioduto. Ele nega e diz ter sacado “apenas” R$ 250 mil, para
quitar dívidas referentes ao segundo turno da campanha que elegeu Lula em 2002.
13 de setembro: O Conselho de Ética da Câmara formaliza pedido de abertura de
processo contra o deputado Severino Cavalcanti (PP-PE).
14 de setembro: A Câmara dos Deputados cassa Roberto Jefferson (PTB-RJ). A in-
terrupção do mandato do deputado autor da denuncia do mensalão é endossada por 313
parlamentares. Outros 156 votam contra. Há ainda 13 abstenções, cinco votos em branco e
dois nulos. O petebista fica inelegível até 2015.
173
21 de setembro: O presidente da Câmara, Severino Cavalcanti, renuncia ao mandato,
tamm evitando a cassação e a inelegibilidade a 2015.
25 de setembro: A Folha de S. Paulo publica entrevista com José Dirceu (PT-SP).
2 de outubro: A Folha de S. Paulo publica entrevista com o ex-secretário-geral do
PT, Silvio Pereira, afastado do cargo depois de ganhar um jipe Land Rover da empresa
GDK, uma contratada da Petrobras.
5 de outubro : A comissão de sindicância da Corregedoria da Câmara dos Deputados
recomenda ao Conselho de Ética da Casa a abertura de processo de cassação contra 13 de-
putados acusados de envolvimento no Escândalo do Mensalão: João Paulo Cunha (PT-
SP), Professor Luizinho (PT-SP), Jo Mentor (PT-SP), Paulo Rocha (PT-PA), João Mag-
no (PT-MG), Josias Gomes (PT-BA), José Janene (PP-PR), Pedro Corrêa (PP-PE), Vadão
Gomes (PP-SP), Pedro Henry (PP-MT), Wanderval Santos (PL-SP), Jo Borba (PMDB-
PR) e Roberto Brant (PFL-MG).
11 de outubro: A Mesa da mara dos Deputados aprova a abertura de processos de
cassação contra 13 deputados acusados de envolvimento no esndalo do mensalão.
13 de outubro: Em entrevista a O Estado de S. Paulo, Ricardo Berzoini (PT-SP), o
novo presidente do PT, afirma que “o caixa 2 é do nosso folclore político.
19 de outubro: A Folha de S. Paulo reproduz o contdo da carta enderada por
Delúbio Soares ao PT, na qual o ex-tesoureiro faz a sua defesa dentro do partido.
22 de outubro: A dirão do PT reúne-se em São Paulo e expulsa Delúbio Soares do
partido. Alega gestão temerária”. Em nota, os dirigentes petistas afirmam ter sido contida
a ofensiva das forças conservadoras contra o governo Lula e o PT.
1
o
de novembro: O Conselho de Ética da Câmara aprova por unanimidade o arqui-
vamento da acusão contra o líder do PL, deputado Sandro Mabel (GO). Não haveria
provas do envolvimento de Mabel no Escândalo do Mensalão.
174
10 de julho: Relario parcial da CPMI dos Correios pede os indiciamentos de Delú-
bio Soares e Marcos Valério. A dupla é apontada como operadora de um esquema “acima
de leis, Estado e Justa”. Ambos são acusados por se “dedicarem a subtrair dos cofres
blicos recursos que foram destinados a integrantes da base aliada, e cometer diversos
crimes, entre os quais falsidade ideológica, lavagem de dinheiro, fraude em licitação, cri-
me eleitoral e improbidade administrativa. Debio e Vario o citados por tráfico de
influência, crime contra o sistema financeiro, crime contra a ordem tributária, fraude con-
bil e processual.
16 de novembro Termina de forma melancólica a CPI do Mensalão. O relator da
comissão, deputado Abi-Ackel (PP-MG), ex-ministro da Justiça do governo militar do
presidente Jo Baptista Figueiredo e integrante da base aliada do governo Lula, sequer
havia começado a elaborar o relario final, 48 horas antes do prazo de encerramento. Pi-
or. Ao ser questionado por jornalistas, mostrou-se surpreso, como se não soubesse da data
limite. Vai acabar? Agora que estamos em várias frentes de investigação?’, ousou per-
guntar. ‘O relatório está dentro de mim. É só eu ditar para algm’, afirmou, impassível”
(PATARRA, 2006).
30 de novembro: O mandato do deputado Jo Dirceu (PT-SP) é cassado, com ele
sendo acusado de ser o mentor do esquema do mensalão. Com a decio do plenário da
mara dos Deputados, por 293 votos a favor e 192 contra, o ex-ministro da Casa Civil,
homem-forte do PT e do governo Lula, fica inelevel até 2015.
14 de dezembro: A Câmara dos Deputados absolve o primeiro mensaleiro, cuja cas-
sação fora recomendada pelo Conselho de Ética. Trata-se do deputado Romeu Queiroz
(PTB-MG), acusado de mandar um assessor sacar R$ 350 mil do esquema de Marcos Va-
rio, e de ter recebido outros R$ 102 mil o contabilizados da empresa sidergica Usi-
minas, por intermédio da SMP&B, uma das agências de publicidade de Valério.
175
21 de dezembro: A CPMI dos Correios divulga relatório preliminar.
Segue-se uma série de absolvões: em 9 de março de 2006, Roberto Brant (PFL-
MG) e Professor Luizinho (PT-SP); 15 de março: Pedro Henry (PP-SP); 22 de março:
Wanderval Santos (PL-SP); 23 de março: Jo Magno (PT-MG); 5 de abril: João Paulo
Cunha (PT-SP); 3 de maio: Josias Gomes (PT-BA); 24 de maio: Vadão Gomes (PP-SP); 6
de dezembro: José Janene (PP-PR).
5 de abril: relatório final da CPMI dos Correios
11 de abril: O procurador-geral da República, Antonio Fernando de Souza, apresen-
tou denúncia ao Supremo Tribunal Federal contra 40 pessoas envolvidas no esquema de
mensalão. A lista inclui os ex-ministros Jo Dirceu (Casa Civil), Luiz Gushiken (Secreta-
ria de Comunicação do Governo) e Anderson Adauto (Transportes).
2 de outubro: Oito acusados de ligação com o esquema do mensao foram eleitos
para a Câmara dos Deputados: Jo Paulo Cunha (PT-SP); José Mentor (PT-SP); Vadão
Gomes (PP-SP); Sandro Mabel (PL-GO); Pedro Henry (PP-MT); Paulo Rocha (PT-PA);
Valdemar da Costa Neto (PL-ES); e José Genoino (PT-SP).
Com a palavra...
Em 6 de junho de 2005, o jornal Folha de S. Paulo estampava em sua primeira gina a
chamada: “PT dava mesada de R$ 30 mil a parlamentares, diz Jefferson”. A manchete apontava
para uma entrevista do então deputado federal e presidente do Partido Trabalhista Brasileiro
(PTB), Roberto Jefferson. No texto (LO PRETE, 06/06/2005), o político acusava o partido do
presidente Luiz Inácio Lula da Silva de pagar um “mensalão”, uma mesada a parlamentares da
base aliada para que eles votassem a favor do governo do Congresso. Segundo o deputado, o
termo já era comum nos bastidores da política entre os parlamentares para designar essa prática,
176
ilegal. Começava ali o que ficou conhecido como Escândalo do Mensalão ou Caso Mensalão. A
história, entretanto, começara anteriormente, ainda em 2004. Em 18 de setembro, a revista se-
manal Veja trazia, na capa de sua edição 1872, a chamada: “O escândalo da compra do PTB
pelo PT”. Isso sobre o subtítulo de: “Saiu por 10 milhões de reais.” Segundo a reportagem da
revista, a aliança entre os dois partidos tinha sido fundada no pagamento de R$ 150 mil a cada
deputado federal do PTB. Em 24 de setembro do mesmo ano, o Jornal do Brasil trazia a man-
chete: “Planalto paga mesada a deputados”. A matéria (LYRA, MARQUES [e] PARDELLAS,
24/09/2005), dizia que “o governo montou no Congresso um esquema de distribuição de verbas
e cargos para premiar partidos da bancada governista fiéis ao Planalto”, avaliava seu montante
em R$ 10 milhões e já chamava a prática de “mensalão”. A fonte para a informação seria o en-
tão ministro das Comunicações, Miro Teixeira, que teria confirmado ao jornal ter ouvido de
parlamentares relatos sobre o suposto esquema de corrupção. Entretanto, pouco tempo depois, o
mesmo ministro negaria ter sido a fonte da denúncia e a história teve a repercussão abafada.
Meses depois (RODRIGUES, 07/06/2005), quando o caso havia explodido, o mesmo minis-
tro foi questionado sobre o ocultamento das denúncias na época, mas deu explicações que fo-
ram imediatamente aceitadas e tratadas como justificação:
Miro – (...) Eu disse [A Roberto Jefferson, quando este lhe teria falado da existência
do mensalão]: “Vamos agora ao presidente da República”. E ele se recusou.
Folha – O Sr. não poderia ter falado ao presidente?
Miro – Claro que não, porque a minha prova seria ele.
Folha – Sim, mas era um caso grave e o Sr. era ministro. Não deveria relatar
reservadamente a seu superior, o presidente?
Miro – Eu seria irresponsável.
Folha – Por quê?
Miro – Porque eu não teria como provar.!
A história, entretanto, só andaria de fato no ano seguinte à matéria do JB. O antecedente
mais imediato é a reportagem publicada na revista Veja em 14 de maio de 2005, “O homem-
chave do PTB” (JUNIOR, CABRAL [e] OLTRAMARI, 14/05/2005), que denuncia um su-
posto esquema de corrupção na Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos. Segundo a re-
177
portagem, feita a partir de gravações com câmera escondida, o diretor do Departamento de
Contratação e Administração de Material dos Correios, Maurício Marinho, havia sido flagra-
do explicando o esquema de recebimento de propina para fraudar concorrências para presta-
ção de serviços para a ECT. Segundo a matéria, o esquema teria como um dos cabeças o de-
putado Roberto Jefferson, então da base aliada do governo.
As imagens filmadas (exibidas pela TV e com repercussão bombástica em todo pais)
mostravam o burocrata recebendo de emprerios a quantia de R$ 3 mil como “adianta-
mento de um pagamento maior posterior. Tem icio, então, uma guerra entre governo e
oposição: o primeiro tentando evitar que se criasse no Congresso uma Comissão Parla-
mentar de Inquérito, os oposicionistas lutando pela criação da CPI. Ao longo do s de
maio, o Governo vai vencendo a queda de braço com seus oponentes, até que em 3 de ju-
nho a Folha de S. Paulo publica a chamada de primeira gina: “Operação abafa custa R$
400 mi”. A reportagem (KENNEDY ALENCAR, 03/06/2005) sugeria que o Planalto es-
tava liberando dinheiro na forma de emendas orçamentárias em favor de parlamentares
que votassem contra a instalão da CPI. A repercussão fez com que a instalão se tor-
nasse inevitável e mesmo parlamentares governistas se posicionaram a seu favor. Com o
movimento, o governo cessou sua defesa de Jefferson e atuou para lhe atribuir toda a res-
ponsabilidade sobre o caso.
Abandonado, Jefferson, então, a entrevista que abriu de vez as portas do caso. Se-
gundo o deputado, o mensalão era operado por Delúbio Soares, tesoureiro do PT, por meio do
empresário mineiro Marcos Valério de Souza, cujas agências publicitárias tinham contratos
vultosos com órgãos públicos. A entrevista à Folha (LO PRETE, 06/06/2005, p. A4), entre-
tanto, não se passa sem uma argüição ao próprio Jefferson:
Folha – Na Tribuna da Câmara, o Sr. Disse ter sido procurado por pessoas que lhe
pediam para resolver pendências nos Correios, que teria se recusado a traficar influ-
ência e que interesses contrariados estariam na origem da denúncia da revista “Ve-
178
ja”. Por que o sr. Não denunciou essas pessoas?
Roberto Jefferson – Não se faz isso. Se você for denunciar todo lobista que se apro-
xima de você vai viver denunciando lobista.
Chama a ateão a resposta de Jefferson. Diante do personagem que incorpora o lu-
gar de empreendedor moral, levando a ele um questionamento sobre a omiso que prati-
cara, ele nem pensa em se justificar, nem pensa em desarticular a referência à regra moral.
Prefere dizer: “Não se faz isso”. Mais à frente, outra desculpa:
Folha O senhor considera correta, legítima essa forma de partilha dos governos?
[referindo-se ao loteamento de cargos entre os partidos que acabava por produzir a
corrupção]
Roberto Jefferson Quem ganha, governa. Você entrega aos administradores dos
partidos que compõem o governo a administração do governo. O PT tem participa-
ção muito maior que a dos outros partidos da base. Tem 20% da base parlamentar e
80% dos cargos. (...) Tudo isso foi construído atrás, pelo Silvio Pereira, o negoci-
ador do governo.
Mais uma vez, um account digno de nota: “Quem ganha governa”. A explicação para o
quadro de loteamento de cargos parece ser a de que as coisas são como são, simplesmente. No
argumento anterior, esse mesmo modelo geral parece guiar Jefferson: não se faz isso porque,
afinal, as coisas são assim. Em outro ponto da entrevista (p. A6), ele nega ter participado de
qualquer esquema de corrupção, e afirma ter contado ao presidente Luiz Inácio da Silva que a
prática ocorria. O presidente, segundo o deputado, teria chorado ao saber da prática, ordenado
investigações e ordenado que o mensalão fosse cancelado. E teria sido a insatisfação com o
fim da prática o pivô da crise entre PT e PTB.
Questionado sobre os motivos de vir a público finalmente fazer as denúncias, ele usa
um account emocional, decepção com o tratamento recebido do partido do presidente:
O PT não tem coração, tem cabeça. Ele nos usa como uma amante e tem vergo-
nha de aparecer conosco a luz do dia. s somos para o PT gente de segunda, eu
sempre me senti assim. A relação sempre foi a pior possível. O [José Carlos] Marti-
nez [ex-presidente do PTB] morreu [em 2003] dizendo que ele queria carinho do
presidente Lula, que jamais o recebeu. A nossa relação com o PT não é boa, o é
boa. Você não pode confiar... O que está fechado não está fechado. Tudo o que é di-
to não é cumprido. Toda palavra que é empenhada não é honrada.
179
Pivô da hisria do lado do PT, Delúbio Soares daria uma entrevista coletiva no dia
seguinte, publicada nos jornais de 8 de junho. Na matéria (CHRISTOFOLETTI, CORSA-
LETTE e SEABRA, 08/06/2005), o tesoureiro do PT se diz indignado com a acusação
que lhe foi imputada. Seus argumentos, entretanto, o se preocupam em provar sua ino-
ncia, e sim, deslocar a direção da acusação. Primeiro, ele faz questão de dizer (assim
como Lula em sua fala posterior) que “o governo tem feito um combate implacável à cor-
ruão no país”. Mais à frente, declara: Até agora tenho sido caluniado e massacrado.
o me julguem pela ão de uma chantagem.” Pois é esse o principal argumento em seu
favor: Jefferson, aquele que o acusa, estaria fazendo uma chantagem embora ele, tendo
utilizado pelo menos 15 vezes a palavra chantagem’”, mas tenha se negado “a dar o no-
me de quem seria o chantagista (CHRISTOFOLETTI, CORSALETTE e SEABRA,
08/06/2005). Logicamente, ele parece sugerir que o importa o que se está dizendo sobre
ele, há algo pior em ão e seria isso que mereceria a verdadeira atenção.
Delúbio assumirá, como tesoureiro, ter praticado caixa dois e afirmaque os recursos
que circularam vindos de empréstimos tomados a bancos por meio do empresário Marcos Valé-
rio teriam sido usados para saldar dívidas de candidatos petistas ou aliados que não venceram as
eleições. Em outra reportagem, o ex-ministro dos Transportes de Lula, na época da entrevista
prefeito de Uberaba, Minas Gerais, Anderson Adauto (PL), contou ter de fato recebido o dinhei-
ro, com esse escopo. “Pedi ajuda para o Delúbio Soares e ele me ajudou. Não sei precisar a
quantia, mas foi entre R$ 100 mil e R$ 150 mil”, disse (FRANCISCO e CORRÊA,
20/07/2005). Mas diante do questionamento do jornalista sobre como avaliava o procedimento
de recebimento de recursos de maneira no mínimo pouco ortodoxa, e por meio de saques em
espécie por terceiros, ele respondeu que não via irregularidade em isso ocorrer “para pagar dívi-
das de campanha”. Esse condicional, o imperativo do pagamento das dívidas de campanha, é
usado como tentativa de justificação – e será a desculpa recorrente – de vários dos envolvidos.
180
Em seu depoimento, Debio reitera a tese do pagamento de vidas de campanha,
preocupando-se reafirmar que “O PT não orienta compra de voto de nenhum parlamentar
para votar com as teses do Governo. Cada parlamentar eleito pelo povo brasileiro deve
exercer seu mandato conforme a sua consciência”, promovendo uma clara transferência de
responsabilidade, por meio de um emparceiramento. Basicamente, o argumento é de que
se há um corruptor, há tamm o corrupto e não se pode acusar apenas o corruptor. “Não
era eu”, nesse sentido, é o era apenas eu”. Mais à frente, ao explicar porque foi ao pro-
curador-geral da Reblica, ele se coloca no lugar de defensor da reputão alheia: Eu,
como fui responsável, quero explicar a todos vos sobre isso e à Nação brasileira, senti-
me na obrigação, para o prejudicar pessoas que estão sendo acusadas indevidamente.
Ele, entretanto, mantém a versão que Lula apresentaria, a do é assim mesmo”: Por
que s usamos esses recursos? Porque as vidas, as campanhas eleitorais, todos nós aqui
nesta sala sabemos como é feita a campanha eleitoral”, convertendo essa normalidade em
discurso de crítica:
Nas campanhas no Brasil, os Partidos brasileiros têm grande dificuldades de susten-
tação. Sinto isso pelo PT. Estou na direção do PT, sou responsável pelas finanças do
PT cinco anos, e sinto isso no PT, entendo que outros Partidos também podem ter
as mesmas dificuldades. O processo de financiamento das campanhas eleitorais no
Brasil da forma como o é, ela tem muita dificuldade em todos os doadores se identi-
ficarem. Isso é fato, é publicado em rios jornais locais, rios jornais nacionais de
campanhas diversas. Não quero aqui especificar campanha, não quero aqui trazer
campanha da qual eu não participei. Eu quero trazer aqui campanhas de que eu par-
ticipei. É isso que nós temos que colocar claro.
Mas, ao mesmo tempo que aponta para as peculiaridades do PT e de sua condição
de administrador de recursos diante de uma condão ineluvel as reivindicões de
sofrimento dos companheiros não-eleitos ele, ao recusar listar quem recebeu recursos
dos empréstimos, prefere o caminho da justiça: não quer ser “injusto”: Quem recebeu?
As investigações darão conta dessa maria. Se eu começo a citar nomes, se eu cito um
nome e esqueço um outro...
181
Questionado pelo relator da CPMI, deputado Osmar Serraglio (PMDB PR), sobre
se não achava estranho que os empréstimos a aquele momento ainda não tinham sido
pagos, ele retorna às circunstâncias: “É um contrato de confiança”. Se é de confiaa, po-
de ser procedido como foi, sem registro no partido, sem instituões oficiais (bancos), sem
juros claros, sem vencimento.
Debio manteria o mesmo estilo às speras de ser exonerado definitivamente de seu cargo
do PT. Em carta tornada pública em reportagem da Folha de S. Paulo (RGAMO, 20/10/2005):
acusado eno internamente, ele se defende do que chama de “hipocrisia dos dirigentes”. Diz, en-
o, que “o uso de caixa 2 visava ‘resolver problemas criados pela direção do partido’”:É óbvio,
para aqueles que o querem adotar a hipocrisia como rao de viver, que recursos destinados ao
pagamento de despesas não-contabilizadas o poderiam ser registrados na contabilidade do par-
tido, independentemente da minha vontade.” E, mais à frente, com ironia: “Respeito a ingenuida-
de. Não sei, no entanto, de onde imaginavam que o dinheiro viria – se do u, num carro puxado
por renas e conduzido por um senhor vestido de vermelho e menos ainda me recordo de que
alguma preocupação com a origem desses recursos tenha me sido transmitida.”
Mais uma vez o, o argumento é que se ele fez algo errado, foi por delegação e pelo bem
de uma coletividade que não reconhece seu sacrifício: “O caixa 2 é prática antiga e habitual
no partido, pela qual jamais se viu uma punição(...) PT de tem se transformado numa floresta
de dedos em riste, duros como pedra, todos apontados contra mim”. E encerra, garantindo si-
gilo”: “Tranqüilizem-se os que foram beneficiados pelo meu trabalho, pois seus nomes não
brotarão de minha boca, ainda que o meu não saia das deles.”
Movimento semelhante de se atribuir o papel de injustiçado se vê na entrevista de
José Dirceu à mesma colunista que teve acesso à carta de Delúbio: a nica Bergamo ()
ele responde, sobre as responsabilidades sobre a irregularidade a única que todo PT ad-
mite, o uso de caixa 2:
182
Muita gente. Parece que eu fui presidente do PT sete anos sozinho, secretário-geral
cinco anos sozinho, né? O PT não foi construído assim. Tem dezenas de dirigentes
importantes que hoje o prefeitos, governadores, ministros, deputados e senadores
que participaram da construção de toda essa estratégia comigo. (...) E o próprio pre-
sidente da República. É isso o que eu digo. A responsabilidade é de todos nós. s
temos que debater isso, num congresso do partido, e fazer o balanço.
Mas mesmo assim ele recusa a responsabilização de Lula:
– E a responsabilidade política? As pessoas votam no Lula e ele não sabe de nada? É
difícil acreditar que ele ignorava tudo.
Não é isso. É que ele não tem responsabilidade. Eu o posso atribuir responsabi-
lidade a ele no grau dele. O Lula tem responsabilidade política porque ele era líder
do PT. Mas os graus são diferentes. Não posso atribuir a ele responsabilidade sobre
o caixa 2. Aí eu não vou atribuir.
– Ele não tem responsabilidade como liderança?
– Isso é uma pergunta que tem de ser dirigida a ele. Eu não vou responder por ele.
Diante dos dois, o deixa de ser interessante observar a entrevista ao jornal O Esta-
do de São Paulo (CAETANO e ROSA, 13/10/2005) do presidente do partido, Ricardo
Berzoini, ex-ministro do Trabalho, que assumiu a vaga deixada com o fim da interinidade
de Tarso Genro, substituto de Jo Genoino. O político faz coro com Lula no “é assim
mesmo, afirmando queo caixa 2 é do nosso folclore potico”:
Tenho dito que não é um caso semelhante ao de corrupção. No caso de caixa 2, de-
fendo a apuração das circunstâncias, da origem e do destino do dinheiro, e que se fa-
ça uma avaliação do que fere a ética partidária. Não devemos ser hipócritas: caixa 2
é algo muito comum na política brasileira.
A mesma reportagem trazia uma réplica do procurador-geral do Tribunal de Contas da
União, Reação de Lucas Furtado, para quem “um dos piores crimes é o eleitoral, porque aten-
ta contra a democracia”, resposta que em um primeiro momento, pode ser facilmente alocada
na classificação de justificação cívica, construindo uma retórica de rgumento centrado em
uma idéia de bem comum:
Não se pode considerar como normal algo que a legislação considera crime. A rigor,
o crime eleitoral parece que o tem vítima. Esses crimes têm normalmente baixa
reprovação social, mas o quer dizer que eles o sejam um dos crimes mais dano-
sos à democracia.
183
Mas considerei importante essa resposta principalemnte porque, embora ela seja uma críti-
ca, traz em si justamente o conteúdo mecastico da desculpa do tipo “é assim mesmo”: como ela
seria “normal”, seu principal elemento é a suposão de que ela, afinal,o faz mal a ningm”.
* * *
Quero chamar a atenção para dois outros importantes personagens: Silvio Pereira e
Marcos Vario. Embora os flashes tenham estado por muito tempo sobre Roberto Jeffer-
son, o secrerio-geral do PT e o empresário mineiro são estrelas melhores no quesito a-
presentação de desculpas. As falas deles são embleticas no sentido de localizar. Pereira
foi sem duvida o personagem submetido a argüões mais minuciosas no depoimento à
CPMI dos Correios. E as situões minuciosas são portas abertas para a desculpa, porque
permitem uma ampliação da narratividade, cria mais possibilidades de enxergar circuns-
ncias que relativizem o universal da regra moral. Antes do depoimento, entretanto, ele
chegou a dar uma entrevista, à Folha de S. Paulo (Souza, 02/10/2005). Questionado pelo
repórter sobre o grau de sua responsabilidade nas ações de que o vinha vem sendo acusa-
do, ele divide a culpa:
Eu assumo a minha responsabilidade política. A minha responsabilidade não é dife-
rente da de nenhum outro dos 21 membros da executiva nacional do PT. O nível de
decisão que eu tinha não era diferente do de nenhum dos 21 membros da executiva
nacional do PT. (...)Ninguém é hipócrita de achar que não sabia que existia caixa 2.
Qual membro da direção do PT não sabia disso?
E ele acaba por corroborar a desculpa dada por seu colega, o tesoureiro:
Os 27 Estados bateram à porta do Delúbio. Por que os Estados não assumem isso,
pô? Todo mundo pegava no do Delúbio para arrumar recursos, todo mundo, todo
mundo. Agora ele es lá, sozinho. As pessoas não perguntavam: “Bom, de onde
vem esse dinheiro”?
184
Em seu depoimento à CPMI, ele passa aos detalhes. A principal acusação que ele so-
fre é de interfencia, como dirigente do partido, nos assuntos do governo, porque cabia a
Pereira a função de indicador de nomes para cargos na estrutura governamental. A per-
gunta do relator:
Queremos saber: esta República tem grandes estatais, tem cargos que foram dis-
putados por traduzirem poder. Era uma forma de partilha de poder, inclusive. E,
estranhamente, essa briga sempre incidia sobre cargos e essa também era uma
pergunta que eu queria fazer a V. Sª. Não se percebia, nesse núcleo do qual V.
Sª participava, que era formado por aqueles que efetivamente davam o toque fi-
nal na nomeação, que a escolha era muito estratégica, era sempre em cima de lo-
cais que viabilizavam o quero dizer que fosse isso , para quem tivesse a in-
tenção de arrecadar dinheiro, é evidente a escolha dos cargos. Nunca li em al-
gum lugar que algum técnico tivesse sido apresentado por ser um grande técnico
e ocupar um cargo técnico onde não se mexesse com licitação, com compra, com
dinheiro, enfim, que não servisse de fonte de recursos. (...) nunca estranharam,
enquanto organização de poder, que, mais do que competência, o que se estava
colocando eram pessoas estrategicamente localizadas na estrutura para aquilo
que ficou o claro? V. Sª deve ter ouvido o Roberto Jefferson falando, o Depu-
tado Roberto Jefferson, e dando de dedo nos Líderes dos Partidos: Vocês não
sabiam que s estávamos indicando diretores porque eram diretores para captar
recursos? E deu o exemplo do IRB, onde havia uma determinada importância;
deu, inclusive, dos Correios; e finalmente s vimos, esses dias, o escândalo das
Furnas. O que V. Sª tem a dizer sobre isso?
A resposta:
O que estou dizendo ao senhor é que o tenho esse conhecimento nesse nível que
se possa imaginar. (...) Eu não tinha esse nível de informação, esse nível de influên-
cia e esse nível de decisão. (...) Minha vinculação no PT, minha história no PT, ao
longo desses anos, sempre foi uma relação com os Estados, todos os Estados. Quem
me conhece no PT sabe exatamente disso.
Na mesma linha, dizia-se que Pereira tinha tanto poder no governo que despacharia di-
retamente do Planalto (o que seria ilegal):
Quando alguém queria procurá-lo em Brasília, o que se diz é que isso se dava nu-
ma sala no quarto andar do Palácio do Planalto. Isso não é verdadeiro?
Isso não é verdadeiro, Sr. Relator. Temos aqui, nesta, sala diversos Parlamen-
tares que se reuniram comigo em salas de reuniões dentro do Governo, em salas
de reuniões de trabalho. Eu tinha o meu celular, a minha sala ficava aqui no es-
critório do PT, no prédio da Varig, onde eu ia muito pouco, e na sede do PT
em o Paulo, onde eu permanecia. Em 2003, eu vim com bastante freqüência a
Brasília; em outubro, a partir do nascimento da minha filha, passei a reduzir bas-
tante a minha presença aqui em Brasília. Nunca tive salinha, nunca tive estrutu-
ra, nunca tive secretária. Isso não existe, Sr. Relator.
É uma curiosidade, porque nós, costumeiramente, atendemos nos nossos gabi-
185
netes, em escritórios. O que leva a se fazer tanta reunião em hotéis? Todas as pesso-
as que nós ouvimos faziam as reuniões em hotéis.
(...) Quando vinha para Brasília, eu ficava muito pouco tempo. Por exemplo,
eu me hospedava no hotel; logo de manhã, tomava três cafés da man, às sete,
sete e meia, oito horas, oito e meia, e ia tudo na seqüência. Muitas vezes, nem
sequer dava tempo de eu ir a dependência do Governo, nem mesmo ao escririo
do PT. Então, às vezes, eu ficava ali no hotel. Os pprios Líderes de Partidos
iam lá no hotel se reunir comigo, e não só Líderes, eu me reunia também nos ho-
is com jornalistas. Com os principais jornais, as principais revistas, com os
principais jornais do Ps eu me reunia em hotel, recebia dirigentes partidários
de todos os Partidos da base aliada, também dirigentes sindicais, dirigentes da
sociedade civil. Fiz várias reuniões importantes em hotéis, fazia-as à luz do dia,
fazia-as ali no café da manhã, eu as fazia, Sr. Relator, onde fosse mais racional.
Por exemplo, se eu fosse para Congonhas, eu as faria mais próximas de Congo-
nhas; no retorno, se eu estava no retorno, eu fazia o mais pximo da minha casa
ou na saída, ou na volta; enfim, eu procurava fazer com que rendesse o máximo
o meu tempo e eu pudesse produzir.
Ou seja, não era para fugir da presença de assessores que pudessem ouvir as con-
versas estabelecidas. Não era essa a intenção.
– De maneira nenhuma, Sr. Relator.
Em seguida, ele é questionado sobre quem tinha conhecimento sobre empréstimos feitos
ao partido. Responde:
O PT funciona da seguinte maneira: as diretrizes, as orientações gerais, por e-
xemplo, políticas de aliança, coligações, são decisões de natureza coletiva; a e-
xecução é de responsabilidade individual. Isso funciona com todas as 21 secreta-
rias que o PT tem. É evidente que sabíamos das dificuldades do PT não só agora,
como desde esses 25 anos do Partido. O meu conhecimento parava em saber que
o secretário de finanças estava tentando obter recurso junto à rede bancária. Mas
em nenhum momento era apresentado com quem, de que forma, de que jeito.
Disso eu não tinha conhecimento. (...) Eu realmente não acompanho a questão
da parte financeira do PT. A minha pauta, a minha responsabilidade, sempre foi
potica eleitoral. Eu não trato de assuntos financeiros.
Em outro momento, ele é argüido pelo deputado federal Eduardo Paes (PSDB-RJ):
O senhor é membro do PT há 25 anos, dedicou toda a sua vida profissional ao
Partido. V. Sª concorda com essa afirmação do Presidente Lula de que houve um
enfraquecimento da direção, que levou o PT a cometer erros? Essa foi a expres-
são utilizada pelo Presidente Lula. (...) Ele disse mais ou menos o seguinte: os
bons quadros do PT assumiram prefeituras, governos estaduais; outros, quando
ganhei a Presidência, vieram para o Governo Federal. Portanto, não temos qua-
dros preparados para exercer essas funções.
Eu tenho uma vida dedicada à militância do PT, como militante. Toda a
minha história é vinculada a essa milincia. Eu me orgulho dessa opção.
Nunca quis ser parlamentar. Foi uma opção pessoal minha, sempre quis ser
um quadro partidário. Nem quis estar em Parlamento... (...) Não me sinto a-
tingido de maneira nenhuma, se foi isso o que o Presidente colocou. Eu sou
um quadro do jeito que eu sou.
186
O que se vê de recorrente na fala de Silvio Pereira é a tendência a uma circunstanci-
alização com forte aposta em um conhecimento de causa: a normalidade que produz seu
“é assim mesmo” ele chega articular um sou assim mesmo, a tentar justificar ser um
quadro supostamente o formado para o cargo que ocupa é perfeitamente dominada por
ele. Professoral, Pereira atua tanto na entrevista quanto do depoimento quase a ensinar ao
interlocutor como funciona o mundo o do PT e, em parte, o da potica brasileira. Não
transcrevi aqui, para evitar repetições, mas é muito recorrente na fala de Pereira o uso do
nome (ou do cargo) do interlocutor, reforçando ainda mais o tom explicativo, de uma fala
diretamente dirigida ao outro para o esclarecimento.
Esse iluminismo” de Pereira encontraria o contraponto não apenas na desinforma-
ção estratégica de Debio. Ele se depararia com a tendência quase literária do empresário
Marcos Valério, que depôs em 06 de julho de 2005, dias depois de ter dado uma entrevista
a revista Veja (23/07/2005), e pouco mais de um mês depois depois da retumbante entre-
vista de sua ex-secreria, Fernanda Karina Somaggio, à revista Isto É Dinheiro (ATTU-
CH, 14/06/2005), denunciando a rotina segundo a qual eram efetuados os saques que, a-
credita-se, iriam para os parlamentares mensaleiros.
A resposta mais importante de Vario ao jornalista é referente ao uso de dinheiro
vivo nas transações. Sua resposta à Veja caiu como anedota nos jornais: “Lido com gado.
fazendeiros que simplesmente o aceitam cheque”. Mas ele chegaria a testar um ar-
gumento de “não era eu”, atribuindo sua responsabilização à proximidade com Delúbio
Soares: “Nunca escondi de ningm que somos amigos. As pessoas me viam com ele, e
isso gerou um folclore”.
De volta à vaca fria, ou melhor, aos bois de piranha, no depoimento, ele diria que foi
mal interpretado pela revista e daria a seguinte explicação, que não altera em nada o tipo
de desculpa que oferece:
187
Quando dei a entrevista à revista Veja, fui entrevistado por um jornalista chamado
Edvar. E o Edvar, esse jornalista, me questionou os saques. Eu virei para ele ele
conversando em off e falei: “deixa eu te perguntar: o senhor é da onde”? Ele virou
para mim porque ele questionava que saque não era normal neste País, quero dei-
xar claro, é esse o questionamento dele e disse: “Eu sou de Brasília de Minas”.
“Ótimo, deixa eu te perguntar: eu sou de Belo Horizonte e vou à sua cidade, Brasília
de Minas, comprar um gado , da pessoa do interior que nunca me viu, que tem
três, quatro, cinco cabeças de gado. Você acha que ele vai aceitar um cheque meu”?
O Sr. Edvar, que é de Brasília de Minas, virou para mim e falou: “Não, não vai acei-
tar. Só em dinheiro”. Esse foi o exemplo que dei para a revista Veja. Em momento
algum, eu afirmo que eu sou pecuarista e dono de cabeças de gado.
De maneira um tanto irônica, entretanto, ele explica ao relator por que não estão ali fa-
lando sobre “suas empresas”, A DNA e a SMP&B:
Em 1998, e isso foi divulgado lá na imprensa de Minas Gerais, em Belo Hori-
zonte, eu entro numa disputa com o meu ex-cio. E essa disputa foi muito acir-
rada. O Dr. Clésio Andrade Soares. Essa disputa foi muito acirrada. E para o
ter problema para essas empresas, porque isso se tornou uma disputa quase pes-
soal, eu transferi essas empresas para o nome da minha esposa. E a minha espo-
sa ficou me representando dentro dessas empresas. Essa disputa acaba, onde s
fazemos um acordo nos autos, e, para falar a verdade, até por questão de família,
eu não consegui mais transferir essas empresas depois para o meu nome, porque
a queso é que minha esposa achou: “Ah, você vai transferir, e tal. Para falar a
verdade, é o seguinte: ela achou que eu podia me separar dela. Então, ficou no
nome dela. E eu, como não pretendo nunca, deixei no nome dela. Nada ilícito.
As circunsncias do embate societal e da vida afetiva o levaram a recorrer a sua
mulher como testa de ferro”. Mais à frente, sobre a forma como os saques vinham
sendo realizados, de uma maneira pitoresca tal que conduziu ao evento como o de 8
de julho, quando os jornais estamparam nas primeiras páginas as fotografias de uma
apreeno de dinheiro em espécie no aeroporto de Congonhas, em São Paulo: uma
maleta com R$ 200 mil e de outros US$ 100 mil, carregados... dentro da cueca de Jo
Adalberto Vieira da Silva, assessor do deputado José Nobre Guimaes (PT-CE), o
der do partido na Assembléia Legislativa do Ceará e integrante do direrio nacional
do PT e irmão do presidente do partido, José Genoino:
– Antes de V. Sª ter esses contratos com os Correios e com os órgãos públicos, a sua
empresa tinha esse mesmo hábito de sacar em espécie?
– O procedimento da minha empresa obedece a uma rotina.
188
Mas se há um episódio que chama a atenção no depoimento é a pergunta sobre a contra-
tação do escritório de direito do ex-ministro João Pimenta da Veiga. O diálogo de Osmar Ser-
raglio e Marcos Valério é particularmente interessante, por atrelar uma série de eventos a um
conjunto de condições nada atreladas a uma gramática cívica:
Qual a causa que foi patrocinada pelo escritório de advocacia Pimenta da Veiga
para a SMP&B?
– Eu vou entrar em detalhes, até para justificar a honra de um homem sério.
Com certeza, é o que nós desejamos, até para o bem dele, para o esclarecimento
público.
O Sr. Pimenta da Veiga passou pelo mesmo infornio que passei. Na época,
eu perdi um filho de seis anos de idade com câncer, e o Pimenta... Eu estava al-
moçando com um amigo nosso, em comum, em Belo Horizonte, e esse amigo
em comum me contou a história do filho do Dr. Pimenta da Veiga, o Vicius.
Eu liguei para o Sr. Pimenta da Veiga e pus-me à disposição para o que ele pre-
cisasse. Ele me contou que os gastos estavam muito elevados, do filho. Eu suge-
ri a ele que eu estava precisando de um consultor jurídico para acompanhar al-
guns contratos da iniciativa privada e alguns contratos da iniciativa pública. O
Pimenta, que é um grande jurista, consultou os impedimentos dele ele já não
era mais Ministro, ele estava começando a advogar e aceitou a proposta. E foi
isso que foi feito, Sr. Relator. Eu paguei ao Ministro Pimenta da Veiga os R$150
mil é verdade pelos servos jurídicos dele, e muitas vezes vou deixar claro
foi com sentimento que ele e eu estivemos juntos. Só.
O depoimento segue, segundo um movimento pendular: em um momento, ele chama
a atenção para uma microscopia das circunsncias, uma série de fatores familiares, pe-
quenos (embora apresentados como importantes em sua narrativa), circunstanciais, que
lhe servem como sustentão para ações; no outro hemisrio, aponta para um conheci-
mento do relativismo das regras em queso. Por exemplo, quando questionado por um
parlamentar, Valério dá uma resposta que parece talhada para fazer coçar o “músculo mo-
raldo empreendedorismo dos jornalistas que o perseguem”, como em um movimento de
demonstração de que ninguém é perfeito, um “não julgues para o seres julgado”:
V. fez referência à contratação de funcionário que, na verdade, seria uma em-
presa. Isso não é uma forma de burlar o Fisco, na medida em que usa um funcioná-
rio como empresa?
Eles são prestadores de serviços e isso é praxe dentro do mercado. Apesar de nin-
guém admitir, é uma praxe dentro do mercado, como é uma praxe dentro do merca-
do de imprensa, também.
189
Errar é humano: a biografia como ponto de partida
Um mesmo traço iguala os envolvidos no caso que depuseram na CPMI dos Correios
13
. Por
praxe, todos são convidados pelo presidente da comissão, Delcídio Amaral (PT-MS), a iniciar suas
falas com uma breve apresentação,Rapidamente, a carreira profissional... Eno, V. pode co-
meçar o depoimento”, diz Amaral a Delúbio Soares (20 de julho de 2005). Mas à deixa para apre-
sentar um curriculum vitae, localizando-se civicamente como exemplar de profissional ou político,
o depoente em geral prefere fazer uma biografia, em geral eloqüentemente, como fez Soares:
Tenho hoje 49 anos. Sou natural de uma cidade pequena, Buriti Alegre, no Estado de
Goiás. Vivi lá, cursei o ginásio. Depois fui à Goiânia, onde estudei o Científico, antigo
segundo grau... o segundo grau. Na época era a transição do Científico para as escolas de
treinamento que nós nhamos em 1972. Todos aqui conhecem. Fiz o segundo grau. In-
gressei na Universidade Católica de Goiás, fiz curso de licenciatura plena em Matemáti-
ca. Exerci a profissão de professor desde 1974, sendo registrado oficialmente em 1976
somente. Estou falando isso, para que entendam a minha vida profissional.
E, mais adiante:
Sou fundador do PT. Estive em São Paulo, na primeira reunião, juntamente com rios
outros companheiros do Estado de Goiás e do Brasil inteiro, para fundar o PT. Participei
ativamente das discussões que deram origem à fundação e à reconstrução do movimento
sindical brasileiro. Participei do primeiro conclave que fizemos. A idéia era fazer uma
central sindical única no Brasil, mas não conseguimos. Participei da fundação da CUT, e
outros companheiros participaram da fundação de outras centrais sindicais que existem
até hoje. Participei ativamente da construção da CUT, da qual fui diretor, desde 1983 –
data de sua fundação – até 1994. Fui dirigente da Central Única dos Trabalhadores. Par-
ticipei, nesse período, também, do Diretório Nacional do PT, de 1987 até 1990.
Ao mesmo tempo que articula um reputacionismoExerci a profissão de professor”; “Sou
fundador do PT”;Participei da fundação da CUT” –, ele coma chamando a atenção é para o
fato de que é “natural de uma cidade pequena”. Na entrevista coletiva, ele havia chamado a a-
teão para sua humanidade. De estrela do PT no peito, e acompanhado pelo presidente do parti-
do, deputado José Genoino, não permitiu que os repórteres lhe devolvessem perguntas.
13
Todos os depoimentos foram acessados no banco de dados on-line da própria CPMI dos Correios, disponível
on-line em: http://www.cpmidoscorreios.org.br/depoimentos.htm. Por se tratar de documentação em formato de
hipertexto, ela não possui numerações, assim, identificarei as citações apenas pelos nomes dos falantes.
190
Marcos Valério de Souza, quando des à mesma CPMI, em 6 de julho, um dia an-
tes de Delúbio, tamm havia iniciado sua fala fazendo uma biografia dotada de elemen-
tos enobrecedores:
Srs. Deputados, Srs. Senadores, eu evitei muito ir à mídia. Muito. Dei uma en-
trevista à Rede Globo, levado pela minha família; pela minha filha, pela minha
esposa e pelo meu filho. Dei uma entrevista à VEJA, e alguns fatos ali não coin-
cidiram com o que eu declarei, por engano ou, então, por o me fazer entender.
Fora isso não falei com mais ninguém na imprensa. Fui massacrado, fui julgado
por uma mídia que tem todo o direito dentro da liberdade democrática do nosso
País. Mas devo esclarecer, como empresário que sou, que as empresas têm de
vinte e cinco a vinte e dois anos. A SMP&B tem vinte e cinco anos de existên-
cia. Trabalhou para vários órgãos públicos, vários governos e várias empresas da
iniciativa privada. É uma empresa que vem, aos poucos, aumentando o seu fatu-
ramento, dando empregos diretos para cento e cinqüenta pessoas e empregos in-
diretos para mais de quinhentas pessoas.
E, depois:
A DNA Propaganda é uma empresa que atende o Banco do Brasil desde 1994. É
uma empresa que faturou no ano passado mais de R$200 milhões, dando empre-
go também a outras cento e cinqüenta pessoas. É uma empresa que tem vinte e
dois anos de existência. Tudo o que tenho está declarado no meu Imposto de
Renda. Tudo o que essas empresas fizeram e faturaram está declarado na conta-
bilidade delas e no Imposto de Renda delas. Tenho a mania de ser muito objeti-
vo e, por isso, muitas vezes, sou mal interpretado, até porque não tenho vivência
potica e não sei falar em público. Sou emprerio no ramo de publicidade. Te-
nho uma empresa de eventos. Tenho uma filha de treze anos, um menino de qua-
tro e uma família. Um brasileiro normal.
Silvio Pereira:
Bom dia, Sr. Presidente. Bom dia, Sr. Relator. Bom dia, senhoras e senhores.
Estou aqui para prestar esclarecimentos a esta CPI e a toda a opinião blica.
Estou aqui para falar a verdade, a verdade que marcou toda a minha trajetó-
ria em 25 anos de milincia no PT. Sr. Relator, conforme afirmei aqui e é
também, de certa maneira, de conhecimento de muitos Parlamentares desta
Casa, a minha função era coordenar as indicões do PT e fiz isso com muita
dedicação. Foi uma história de vinte e cinco anos para conquistarmos a Pre-
sidência da República. Considero justo, legítimo que os partidos que com-
põem a base, os partidos que apoiaram o Presidente, possam fazer indicações
de quadros técnicos, de quadros políticos, com competência, ao Governo.
Foi exatamente nessa função, Sr. Relator, como representante do PT, que eu
recebia, por parte de diversos Parlamentares do PT.
Luiz Gushiken (o que faz a apresentação mais longa):
191
Meu nome é Luiz Gushiken, RG 4860483-0, casado, pai de três filhos, ex-
funcionário do Banespa. Trabalho desde os 14 anos de idade. Cursei Adminis-
tração de Empresas na Fundação Getúlio Vargas. Fui dirigente do Sindicato dos
Bancários de 1978 a 1986, um período muito especial na minha vida, porque foi
do respeito que pude angariar junto aos trabalhadores bancários que pude, poste-
riormente, ascender à condição de Deputado Federal, missão que cumpri, nesta
Casa, por três mandatos consecutivos e que muito honrou o meu currículo políti-
co, porque foi, neste espaço blico, que pude travar memoráveis batalhas, entre
as quais a memorável Assembléia Nacional Constituinte. O PT tem sido alvo
central desse processo de denúncias. E, como filiado do PT, quero dizer que te-
nho absoluta convicção de que esse Partido saberá superar suas dificuldades,
porque esse Partido é maior do que a sua direção, esse Partido é maior do que
eventuais irregularidades em crises eleitorais.
Todos eles chamam a atenção para uma imagem pregressa, para algo que parecia ter
sido esquecido a fim de conduzi-los a ali. Benoit (1995) afirma que as prestações de
conta linguageiras, os accounts, são formas de relembrar essa imagem. Não à toa, é de
“restauração de imagem” que ele fala.
* * *
Três elementos, então, se mostraram mais gritantes na observação das desculpas dadas
por políticos brasileiros quando em uma situação como um grande escândalo de corrupção:
1) O recurso bastante mais habitual ao tipo do “é assim mesmo”. Parece que a proximidade
do mundo cívico demanda uma articulação que simule um civismo outro. Afinal, afirmar “é assim
mesmo” é afirmar a existência de uma coletividade outra aquela produzida quase-
estatisticamente, uma comunidade dos que reconhecem a “regra alternativa” que es sendo ali
afirmada. E como é coletividade, quando afirma a desculpa, afirma-se a investidura do grupo.
2) Uma afirmão constante de algo que poderíamos chamar de uma reputação, uma ima-
gem de si que possa servir de referência a partir da qual o “o era eu” e meso o “é assim mesmo
possam se estabelecer como diferença se a desculpa chama a ateão para a circunsncia, ela
precisa ser uma circunstância a partir de, por oposição a, uma não-circunsncia, uma universali-
dade, uma normalidade superior e abstraída.
192
3) Uma operação de deriva a partir de sua condição de ator do mundovico rumo a um es-
tado outro, em que essa condão fica entre panteses o que se pôde constatar em quase todas
as falas dos políticos. É sobre este terceiro ponto que tratarei mais pormenorizadamente agora.
193
DA PESSOALIDADE
Bill Watterson, originalmente publicada em 12/01/1987
Calvin é uma escie de avatar moral do homem contemporâneo. O menininho de
seis anos criado pelo cartunista americano Bill Watterson cotidianamente representa em
suas aventuras dilemas éticos individuais e coletivos. Em seus debates com o amigo ima-
ginário” Hobbes
14
, o tigre de pano que ele como um animal real e falante, o garoto tra-
vesso e inventivo constantemente coloca sobre a mesa questões tão polêmicas quanto pro-
fundas e as tempera com humor e uma considerável dose de ironia. Na tirinha acima
(2005), Calvin conta a Hobbes que, sem querer, magoou Susie, a menininha com quem
vive às turras, personagem recorrente na relão de oposição ao sexo feminino vivida por
14
Calvin and Hobbes foi lançada no Brasil com o título de Calvin e Haroldo. Preferi manter o nome original do
personagem, por conta do jogo de moralidade contido em seu batismo. É uma anedota digna de nota de um car-
tunista formado em ciência política colocar como interlocutores morais um menino com o nome do pensador e
líder religioso teocrata moralista Calvino e um tigre homônimo do autor de Levia. A historinha narra as aven-
turas dos dois personagens (e a relação de Calvin com outros interlocutores, em especial com seus pais). Calvin é
um garoto de seis anos nada típico, que vive praticamente imerso em um mundo de fantasia, incorporando a ela
vários clichês da cultura pop e da moral cotidiana dos adultos. Ele é relativamente egoísta e mimado, em contra-
posição a um tigre em geral (mas nem sempre) generoso e maduro. As tirinhas foram publicadas diariamente de
maneira inédita por uma década a partir de 1985 (com uma interrupção sabática entre 4 de maio de 1991 e 2 de
fevereiro de 1992). Em 1996, Watterson anunciou sua aposentadoria, depois de uma carreira exclusivamente
dedicada às tirinhas, nunca permitindo que fosse criado nenhum produto secundário (como bonecos, buttons ou
camisetas, que vitaminam a indústria dos quadrinhos em geral). C&H chegou a ocupar espaço em mais de 2400
publicações de todo o mundo. Até hoje, jornais ainda republicam as aventuras do menino e de seu tigre. Atual-
mente, o artista se dedica à pintura.
194
ele (como por qualquer menino de sua idade): Eu chamei a Susie de cabeça de meleca na
saída da escola e ela foi para casa chorando”. Meu Deus, mas por que você fez isso?,
pergunta o amigo. Sei . estava provocando, ele responde. “Parece que você feriu os
sentimentos dela”, ouve do sábio felino. Ao que se defende: Não imaginei que ela fosse
tomar o insulto como uma coisa pessoal!
Declarão fascinante que oferece um interessanssimo jogo de sentido: o que Calvin está
fazendo é dando uma desculpa para seu mau comportamento. Mas, ora, o que acabei de demons-
trar a partir da observão de actantes públicos é que uma desculpa é justamente uma operação
para fazer uma situação passar a ser considerada “uma coisa pessoal”. Ele está dizendo: o que eu
fiz não deve ser tomado como uma ão universalista, uma ão moral, mas como uma ão cir-
cunstancial. O primeiro argumento é que tudo o passou de uma inocente “provocão”, perfei-
tamente aceitável na relação entre Calvin e Susie (e nas ões de um garotinho de sua idade). Os
dois constantemente se insultam, vivem uma relação de amor e ódio lotada de libido infantil.
Seu argumento central, entretanto, é que ele não esperava que a menina fosse considerar o
contdo da agressão como algo “pessoal”, ou seja, especialmente direcionado a ela, uma forma
de desqualifi-la diretamente, de afirmar alguma verdade a seu respeito. Afinal, em seu “vale
tudo para brincar”, um insulto não é senão um procedimento genérico, mais uma das bolas de ne-
ve sem nome que ele habitualmente direciona a Susie (ou a Hobbes). Afinal, ninguém é de fato
“caba de meleca” (e seu correspondente metafórico, um imbecil, não chega a ser um real insulto
em relação a ela, reconhecidamente dona de um desempenho acadêmico melhor que o dele).
Por conta disso, a conclusão mais direta a ser extraía dos argumentos do menino é que,
afinal, eles não são... Argumentos. O que guia as explicações de Calvin não é, então, um prin-
cípio moral, ou seja, um princípio de bem comum ou de bem do outro. O que está em jogo é
muito mais um princípio de um bem estritamente de si, neste caso um ethos do seu direito ao
divertimento, que ele esperava dever ser reconhecido como legítimo por Susie.
195
Pois bem, Calvin não é um político. E a julgar pela maneira como se relaciona com a
coleguinha, poder-se-ia mesmo dizer que ele o é nada potico. Mas o deixa de ser
curioso pensar na aplicação no mundo político de uma das falas mais conhecidas e em-
bleticas da tirinha: Gosto da moral que não se aplica às outras situações da vida”, um
claro convite a se pensar a moralidade atrelada a circunsncias relativas e não a princí-
pios absolutos a serem aplicados a quaisquer situações.
Susie, para se legitimar, parte de um argumento claramente moral e oposto ao do
colega: sua crítica à atitude de Calvin se baseia no princípio de que as pessoas não
devem insultar as outras gratuitamente. Na tirinha subseqüente
15
, ela expressa sua mo-
tivão para o mal-estar com o coleguinha: “Aquele Calvin é um espido! Por que ele
me xinga sem nenhuma rao? É pura maldade.” Agredida “gratuitamente”, ela apela
para um prinpio moral para justificar o mau-tratamento do criticado” (MCEVOY,
p.17). O que fez com que Calvin notasse o desagrado, entretanto, foi o choro dela. E,
diante dele, na hora de falar com Hobbes, parte de um account nada moral, como já
disse. Sua explicão, dada na verdade a Hobbes, é muito pouco uma explicação de
fato (no sentido em que não oferece motivações justifiveis para o que fez ou sequer
se refere ao que fez como causa efetiva da problemática em queso. Para ele, conflito
é apresentado como um erro de interpretação). Dela.
Mas o que chama mais a atenção é esse protocolo da pessoalidade: o paradoxo na
fala do menino apenas refoa a constatação de que a menica do dar uma desculpa passa
por uma operação de construção de uma pessoalização. De fato, olhados de perto, os dois
tipos de mecânicas de desculpa que integrei, o não era eue o “é assim mesmosão for-
mas dessa pessoalização, operada em diferentes elementos de uma situação. Quando os
depoentes do Esndalo do Mensalão abrem seus discursos com longas formas de de-
15
Originalmente publicada em 13/01/1987. As aventuras de Calvin, apresentadas habitualmente em jornais, não
raro duram alguns dias, ocupando uma seqüência de edições.
196
monstrão de humanidade sempre em paralelo a uma demonstração de honestidade
eles aproximam suas falas de uma condução para uma coisa pessoal. É ali que começa o
afastamento do ser metafísico, é ali que o actante público coma a reconquistar pessoali-
dade e se afastar do mundo vico e mesmo do da opinião. Mas pensar a desculpa como
uma simples solão de compromisso entre o mundo vico e o mundo dostico limita a
idéia de pessoalidade. Ela se apresenta como um princípio de transformação e não de i-
dentidade. A pessoalidade é uma pessoalizão, é um processo, não uma condição. Nesse
sentido, ela parece ser o operador central no interior do ato de dar uma desculpa. O ficou
mais fortemente transparente nesta pesquisa de campo localizada no extremo mais cívico
da escala de generalidade, é que o recurso à desculpa é um recurso de suspensão, de, como
afirmei antes, de “colocão entre panteses.
Mas a comparação pura e simples entre mundos parece o dar conta. A torção
o parece ser de mundo a mundo. O femeno parece exigir a crião de um modelo
de mais de uma dimensão: se sai do mundo vico de um lado, por meio da pessoalida-
de, o é o percurso rumo a um outro mundo que parece estar em jogo, mas o pprio
processo de saída. Quando Calvin, Delúbio, Silvio Pereira e Marcos Valério chamam a
ateão para seus traços mais caractesticos, para o qo eles são peculiares, o que se
criar não é um co diferente sobre o qual diferentes veículos possam trafegar, mas de
uma intermodalidade: sai-se do ônibus vico, mas não se vai para o carro de família.
Trata-se mesmo de mudar o tipo de transporte. E talvez sem pensar no transporte como
meio, mas como fim. Esse tipo de raciocínio me fez pensar que um modelo de justifica-
ções baseado em regimes de ação talvez não desse conta de todo de um objeto intrinca-
do como o dar uma desculpa: isso porque, embora ele seja pragmatista, como qualquer
modelo, ele depende de princípios e um deles, um dos mais operacionais e importantes,
acaba por servir como um limitador: o pluralismo de mundos.
197
A idéia de que múltiplos mundo é uma das mais interessantes contribuições de Bol-
tanski e Thévenot às ciências sociais. Mas há duas maneiras de pensá-la. Uma é como espaço
amostral puro e simples: o princípio do pluralismo é apenas um dado ecológico dos mundos:
as portas estão abertas para torções e soluções de compromisso. Mas isso não implica neces-
sariamente na segunda maneira de interpretar: a de que esse basculement necessariamente o-
correrá. O que quero dizer é que uma confusão fácil em termos teóricos – e mesmo empíricos,
na hora de ler os fenômenos com que nos deparamos é a idéia de que um princípio de ação
atuará necessariamente. A movimentação entre mundos quando tensão entre eles obedece-
ria, então, à lei da gravidade: do alto, abstrato, ao chão, tudo o que sobe, terá que descer.
Mas não parece ser o simples assim. o podemos nos esquecer de que o empre-
endedorismo moral que permitiu a elevação não é uma quina voadora, e sim um an-
daime. É fácil para aquele que demonstrou mal-estar relacionar permanecer investido do
ser metafísico da regra moral. o é de gravidade que se trata e sim de uma operação que
demanda gasto de energia, que envolve alguma economia que permita esse conjunto de
mudanças. Que economia é essa, tentarei responder no Catulo 4. Antes, porém, visitarei
o outro extremo da escala de generalidade que esbocei, olhando para relões íntimas, dis-
tantes de uma problemática do mundo vico
16
.
16
Realizei um pequeno campo preliminarmente para esta tese, a respeito da epidemia de dengue no Rio de Janeiro, no
começo de 2008, e as acusações de incompetência administrativa contra a prefeitura da cidade, mas ele rendeu uma
pesquisa reduzida, que apresentei no encontro anual da Anpocs (WERNECK, 2008b). Quero transcrever um trecho,
para mostrar a amplitude das possibilidades do modelo: “O número de casos de dengue registrados em todo o estado
do Rio de Janeiro começou a crescer fortemente em janeiro (asetembro, o numero total chegou a 243.404 casos,
128.647 no Rio). Na capital, naquele mês foram registrados, oficialmente, 12.777 casos. Em fevereiro, esse numero
saltou para 17.037. No mês seguinte, entretanto, o numero de registros na cidade chegou a 48.488, o ápice do gráfico
de variação, com o registro de abril com o numero de 40.745 que representava o braço descendente da alça epidêmi-
ca. Ao final do que se considerou a epidemia, 172 óbitos foram confirmados como causados pela doença, e 141 segui-
am ainda em investigação (o que significa que o número de mortos poderia chegar a 313) no estado e 98 na cidade.
O assunto começou a ganhar espaço privilegiado nos jornais no começo de fevereiro. Neste caso, o posto de
empreendedor moral do jornal é operado em busca das responsabilidades pela epidemia. A primeira alusão surge
no dia 5 (MAGALHÃES, 05/02/2008). A matéria chama a atenção para o fato de que houve um aumento de
80,93% no mero de casos da doença entre janeiro de 2007 e janeiro de 2008. Apesar desse crescimento, entre-
tanto, a superintendente em Vigilância em saúde da prefeitura, Meri Baran, diz que não eram necessárias provi-
dências mais enérgicas em relação à doença. O argumento: ‘Os meros ainda estão longe de configurar uma
epidemia’. Essa negação se manteria por mais tempo. No final do mês, a doença chegaria à chamada de primeira
198
página. Em matéria sobre o projeto do governo do estado de permitir invasão de casas em que houvesses focos
de mosquito, a prefeitura mantinha a mesma leitura da situação. Em uma reportagem subseqüente (MOTTA,
05/03/2008), um caso curioso: a acusação de incompetência administrativa apontada pelo jornal não dizia respei-
to exatamente à epidemia, mas a um cartaz usado em uma campanha educativa sobre a doença: ‘19 outdoors
foram instalados com a frase: ‘Estas (sic) área está com muitos casos de dengue’’.
O account da agência publicitária responsável pela comunicação não deixa de ser digno de nota: ‘O arquivo que
nós aprovamos estava correto. A gráfica, porém, tentando economizar, fez essa burrada. (...) A gráfica arcara com os
custos. (...) Se o erro fosse meu, eu pagaria’. Esse caso é interessante por apresentar um argumento ambíguo a respeito
da classificação entre desculpa e justificação. Na mesma reportagem, a gráfica assume o erro e isenta a agência de
qualquer responsabilidade, justificando totalmente a posição dela (mostrando mais uma vez que é o desenrolar da situ-
ação e o o argumento mesmo o elemento de definição). Mas como o há um account por parte da própria gráfica,
faltam elementos para aprofundamento. Em 19 de março, matéria (COSTA, 19/03/2008) informava que eram registra-
dos 45 casos por hora da doença na cidade. O prefeito mantinha o argumento de que o havia uma epidemia, mas
com um argumento novo: ‘Já houve uma epidemia. (...) Agora, o momento é de declínio.’ No dia seguinte (COSTA e
MAGALHÃES, 20/03/2008), Maia voltou a afirmar que os meros estavam em declínio. O novo argumento desta
vez foi justamente o citado ‘a culpa das mortes ocorridas na cidade era dos hospitais estaduais.
No dia seguinte, a nova acusação dava conta de irregularidades efetivas (BORGES, 21/03/2008): ‘A prefeitu-
ra usou, na locação de ambulâncias e na limpeza de hospitais, metade da verba de R$ 12 milhões do orçamento
de 2006 que deveria ser aplicada em ações de combate à dengue’. A denúncia envolvia a contratação de uma
empresa sem licitação, mesmo se considerando que a cidade, segundo o prefeito, não vivia uma epidemia da
doença. A explicação foi de que era ‘uma emergência’ e que o objetivo fora ‘intensificar as ações de combate à
dengue até a realização de um concurso público’. Foi apenas, entretanto, em 23 de março (MOTTA,
29/03/2008), que o prefeito da cidade propôs uma explicação para a situação. Segundo o ele, a culpa é da nature-
za. Ele atribuiu a doença à alta incidência de chuvas, topografia acentuada e aglomeração nos grandes centros’.
Seria, então, ‘inevitável’ haverem casos e a atuação mais importante seria evitar óbitos, o que ele estaria fazendo
(dado que seria desmentido em reportagens posteriores, mostrando o aumento da letalidade na cidade).”
CAPÍTULO 3: DISCUTINDO A RELAÇÃO
200
A HORA MARCADA
Conheci Laura na porta de um teatro. No dia, esperava na escadaria, para assistir a um concer-
to. Àquela hora, esperava o mais pelo início da apresentação, aliás, mas mais por Cláudia, minha
amiga, que, “presa no jornal”, onde participava do fechamento da edão daquela semana de sua
editoria, ligava-me de 15 em 15 minutos, oferecendo-me boletins atualizados sobre sua demora.
Fardado de terno, conforme a certa pompa que o ambiente exigia, eu amargava ter passado a hora
marcada para a apresentação preliminar. De pé, eu olhava para a movimentão de pessoas retarda-
rias enquanto ouvia os brados do vendedor de balas que gritava a palavra chiclete com o primeiro
é alongado e afinado, seguido por um imperativo “escolhecom o “scom forte som de “x”. Até
que,bito, ficamos praticamente eu e ela nas escadas. Eu, sentado, sem cerimônia; ela, de, celu-
lar aos ouvidos. E de repente,o havia outro som no mundo: “Como assim está saindo agora, Mar-
celo
1
? Vo é que queria vir ao show. Você é muito relax... Não acredito no que voes falando...
Vo não podia beber com seu pai... [sincio e, depois, um tom abaixo:] É, tá bem, eu entendo, não
podia...E se virou para mim: “Atrasados... É preciso entender, né!
Começamos a conversar. Um amigo meu costuma dizer que se voconcorda com tudo
que um estranho te diz quanto puxa assunto na rua, ele desiste logo e vai embora, ao passo que
se você discorda, você oferece intimidade e a pessoa não te deixa em paz. “Não sei se é preciso,
não”, respondi, discordando de propósito. Não queria encerrar a conversa por ali.
1
Todos os nomes de entrevistados desta tese foram mudados. Além disso, a citação a cada um seguirá protocolos vari-
ados, por vezes com maior ou com menor grau de informação. Essa forma de apresentação é oriunda da necessidade
de preservar os entrevistados, que confiaram profundamente em mim e me deram acesso algumas vezes detalhes mui-
to íntimos, alguns deles desconhecidos até do outro cônjuge. Para padronizar a apresentação, entretanto, adotei um
identificador, um traço peculiar de cada um que possa ser usado para diferenciá-lo sem que eu tenha que recorrer a
características (como profissão ou idade, quando a divulgação destas forem incômodas para os entrevistado). Entretan-
to, preciso dizer: o nome de minha amiga Cláudia não foi mudado e, sim, ela costuma se atrasar.
201
Laura e Marcelo representavam uma deriva metodológica a pesquisa que vinha reali-
zando havia quase um ano. Eu havia definido – como disse na Introdução – que trabalharia com
casais indicados por amigos (pelos motivos que expus). Mas a força da “amostragem aleató-
ria produzida pelo acaso, pela situação oportuna na porta do concerto, me deparou com os
dois, meu único casal de relacionamento recente, então namorados havia apenas três meses, e
com um caso potencialmente. Se o desenrolar não foi totalmente feliz em um certo sentido –
como mostrarei ele foi riquíssimo no que pude extrair dele. Jovens, ela com 23 anos, ele 25,
os dois eram um pico casal da Zona Sul do Rio, embora ela, na verdade, morasse em Niterói.
Como aconteceria em quase todos os casos – salvo em dois – entrevistei primeiro a ela. Na ver-
dade, acabaria por entrevistar mesmo apenas a ela. Explicarei por quê.
Com tudo de peculiar que apresentavam, Laura e Marcelo cheguei a conversar com ele
rapidamente na sda do espetáculo e, depois, por e-mail, enquanto tentava marcar a entrevista –
quero chamar a atenção para alguns traços que se tornaram picos com os casais que investiguei.
O primeiro deles é que todos construíram uma narrativa em torno de uma queso moral funda-
mental. Parece haver, no cleo de qualquer relacionamento, uma probletica, algo apesar do
que a relação se mantém. Essa diferea será maior ou menor conforme o caso e pode interferir
mais ou menos no relacionamento. De fato, os entrevistados relatam histórias de pendularidade,
de retorno e afastamento dessa questão fundamental, mas eles sempre retornam a ela.
No caso de Laura e Marcelo, era o ciúme. Começou com o dele, mas depois mudou e as
posições se inverteram, de modo que “hoje parece que eu sou a louca psicótica”, diz ela. Co-
meçou na primeira noite, um 30 de dezembro, quando eles “ficaram”
2
pela primeira vez, em
2
O termo “ficar” remete-se a alguns diferentes sentidos na dinâmica amorosa contemporânea. Basicamente, re-
fere-se a um momento furtivo em que se constitui um casal (eles se beijam, se abraçam, podem chegar a fazer
sexo), em geral de desconhecidos ou recém-conhecidos (mas não necessariamente) e em que a interação não se
converte em relação. O casal fica” e depois se desfaz. Entretanto, o termo também se refere a cada vez que um
casal constituído interage afetivamente de maneira física. E, em algumas vezes, para designar um casal que ainda
não assumiu um “namoro” (“É, a gente fica” ou “Estamos ficando”).
202
uma boate, em uma festa de rock. Era a primeira vez dela no lugar, do qual ele era freqüenta-
dor. Eles se conheceram na pista e ela o achou bonito (“Nossa, que menino alto”) e logo esta-
belecei-se um “clima” e começaram a conversar. Mas a certa altura, Marcelo “veio com um
papinho”
3
: “Vou ser muito sincero: estou muito a fim de você, mas... Eu tenho namorada”.
Ele passou a sugerir que os dois saíssem da boate e fossem para “outro lugar”. Escondidos.
Diante da recusa da moça, ele disse: “Na verdade, não é bem namorada, a gente terminou,
mas os amigos dela estão todos aqui.” Ela se recusou mais uma vez. “Eu não vou me escon-
der”. Ele então cedeu e a beijou no meio da pista, diante de todo mundo.
A jovem, no momento da entrevista, justifica a ação de seu namorado como algo “no-
bre”. “Ele não queria machucar uma pessoa que de alguma maneira ainda gostava dele.”
Mas no momento, considerou algo inadmissível. Eles tinham acabado de se conhecer e ele
não podia fazer exigências daquele tipo. E ela se preocupou em deixar isso claro para ele.
Tanto que ele teve que, em um primeiro momento, “mandar um papinho”, dizer que tinha um
relacionamento, o que desculparia a saída do lugar. Entretanto, aquela situação marcaria o
começo do namoro em torno de uma tensão com “outras pessoas”.
Eles ficaram juntos por onze meses. Ao longo desse tempo, a questão do ciúme se tra-
duziu basicamente em uma economia da diversão: para ela, era importante sair, freqüentar
boates, festas, o que em geral é chamado de “noite”. Para ele, esse movimento não fazia muito
sentido. Embora os dois tenham se identificado inicialmente pelos mesmos gostos musicais
estávamos, afinal, indo os quatro assistir a uma mesma apresentação e ela descreveu a ambos
como “fãs fundamentalistas de Beatles, diferentes dos que gostam de Yesterday”, ir a uma bo-
ate para ouvir rock o desagradava “um pouco”: “O lugar é barulhento, chato.” Mas a principal
3
Esta é outra expressão recorrente entre os entrevistados e com dois sentidos bastantes definidos: primeiramente,
trata-se ao mesmo tempo de um sinônimo para desculpa esfarrapada, quando alguém conta alguma história para dar
conta de algo errado (em geral para se livrar de alguém incômodo). Mas o sentido mais interessante é o de um si-
mulacro de desculpa esfarrapada, no qual o argumento é usado para fingir que se considera algo errado, mas se está,
na verdade, tentando obter alguma vantagem a partir dessa desculpa dada. O caso de Marcelo é paradigmático.
203
questão é que a ida a esses ambientes, para ele, representava um ritual com outro sentido: “Sa-
ir, para um cara, serve para conhecer meninas. O único sentido é achar alguém. Quando estou
namorando, não vejo sentido em ir”, era o argumento que ele usava para tentar convencê-la a
eles fazerem outra coisa ou simplesmente ficarem em casa. Chama a atenção, entretanto, a
forma de articulação, uma tentativa de “é assim mesmo”: sair tem determinada serventia “para
um cara”. Ele usa uma certa articulação de gênero como desculpa, mas, mais que isso, a cria-
ção de uma normalidade alternativa, “para todo cara”.
A mensagem, entretanto, era a de um certo ciúme. Ele dizia que não queria ir às boates.
A resposta dela, entretanto, era o outro lado da moeda da reivindicação dele: “Sinto muito.
Seria muito melhor ir com você, mas se você não quer ir, eu posso ir sozinha”. Para mim, ela
direciona o resto da desculpa: “Eu, abrir mão daquilo, da minha diversão? Ele tem que abrir
mão de algo também!” Articulação dupla: ao mesmo tempo que apela para uma reivindicação
de igualdade no relacionamento, ambos têm que abrir mão ela sustenta seu direito ao e-
xercício de uma ação que é um bem apenas para ela.
Marcelo e Laura ficaram juntos de janeiro a dezembro de 2008. Ele tomou a iniciati-
va de terminar. O motivo? Ciúme. Os dois haviam ido a uma boate, e discutiram “Uma
discuso bêbada, desculpa-se Laura e foram para casa, onde comaram a conversar.
O argumento central para o fim do relacionamento, apresentado em uma longa conversa,
“uma DR imensa até 8h da manhã(atravessada por longas seses de choro de ambos),
como ela descreveria depois, por e-mail, foi o de que namorar não é legal porque prende,
tem cobraa, expectativa, projeto”.
* * *
204
Ao final de minha pesquisa para esta tese, eu havia ouvido 26 casais. Salvo por três casos,
entrevistei sempre os dois integrantes, o que resultou em um total de 49 entrevistados. O núme-
ro não representa nenhum valor simbólico. Corresponde estritamente ao instante em que concluí
que meu argumento estava saturado o suficiente. O percurso de coleta foi bastante informal,
com meu acesso aos entrevistados intermediado por amigos. Como expliquei na introdução,
isso oferecia pontos de partida importantes para a coleta de informações. A abordagem em geral
passava pelo envio de um e-mail ao amigo que indicava o entrevistado. No texto, eu explicava
alguns detalhes gerais da tese. Mas nunca a apresentei como uma pesquisa sobre “o ator de dar
desculpas”. Isso para evitar o julgamento moral por parte dos entrevistados. É um objeto tão
estigmatizado que a tendência mais habitual é a recusa em falar a respeito. Cheguei a ouvir de
uma amiga que eu nunca conseguiria alguém que aceitasse falar sobre isso.
Mas não se tratava apenas deo conseguir entrevistados. O fato deo usar “dar uma des-
culpa” para apresentar a tese tinha principalmente a ver com evitar um direcionamento das respos-
tas. A idéia de que se es sob avalião, com um pesquisador diante de você que verifica se você
desculpas em vez de justificões poderia criar uma preveão moral nos atores. Assim, apre-
sentava inicialmente o trabalho como “um estudo sobre os argumentos para explicar asões pra-
ticadas no âmbito dos relacionamentos”. Essa apresentão se mostrou suficientemente operacio-
nal para mim e para os entrevistados, que mostravam perceber a conversa como algo mais centra-
do na rotina de suas relações do que como um inquérito sobre seus tipos de fala.
Nunca vi essa eufemização como um problema ético, mas esse questionamento surgiu para
alguns dos intermediários e me questionei a respeito. É um tema recorrente em trabalhos sobre
metodologia por exemplo, Blanchet e Gotman (2007); Kaufmann (2007b) e Becker (2007).
Herbert Blumer a atacou frontalmente em seu artigo clássico “What is wrong with social theory
(1970), originalmente publicado em 1953, no qual questiona o fato de que as ciências sociais de
seu tempo valorizavam mais as representões prévias que as observões empíricas. Ele diz que
205
um dos principais elementos da prodão da pesquisa sociológica – ele recusava o uso da expres-
o “teoria sociológica”, como conta Becker (2007) era a conversa orientada segundo “as neces-
sidades de quem pergunta”. Mas a constrão mais explícita que encontrei a esse respeito foi a de
Blum (1970, p. 87): “O entrevistado pode ajustar suas respostas àquilo que ele acredita que o pes-
quisador espera ouvir (...) Por vezes, é melhor fazer perguntas menos explícitas do que as que as
que diretamente apresentam um objeto moralmente probletico”.
Minha convicção de que essa operãoo agredia a integridade dos entrevistados veio, en-
tretanto, dos momento de pesquisa: quando finalmente eram informados de que se tratara de uma
conversa sobre desculpas o que acontecia ao final das seses –, os entrevistados, em geral até
optavam por acrescentar mais informões (“Ah, mas ele é o rei da desculpa, vocêo sabe!”, me
diz Regina sobre Augusto, com que é casada há quatro anos, depois de mais três de namoro).
As entrevistas tomavam em geral pouco mais de duas horas. Uma ou outra tomaram mais
tempo. Apenas uma foi bastante curta (45 minutos). De maneira geral foram conversões infor-
mais. Em geral, marcava-as em locais públicos, como cafés ou praças. Alguns entrevistados, en-
tretanto, preferiram falar em seus locais de trabalho. Uma entrevistada, que trabalhava no Centro,
foi me encontrar no pátio do IFCS. Nenhuma dessas mudanças de cerio produziu variações a-
precveis nas falas dos entrevistados no tocante à produção de teoria substantiva.
* * *
Nina e Marcela moravam juntas havia três anos e meio quando entrevistei as duas, uma
logo em seguida da outra. “Claro, isso será uma oportunidade rara de falar dela pelas costas”,
brincava Nina, diante da namorada, ao receber a proposta, pessoalmente, quando fui apresen-
tado a elas por uma amiga em comum, colega dela no trabalho, em um almoço. Designer, a
moça é cheia de tiradas bem humoradas e ironias. É dela, por exemplo, a definição de descul-
206
pa como um . Ela, entretanto, seria protagonista de uma das situações mais interessantes e
providenciais por que eu passaria em minha pesquisa de campo. Justamente nesse almoço
em que nos conhecemos, no café do Paço Imperial, o prédio que foi criado para os governan-
tes de capitania, virou residência oficial de D. João VI e que hoje abriga um museu. Na ver-
dade, eu ia almoçar com minha amiga e no momento em que nos cumprimentávamos, tocou o
telefone e era Marcela, dizendo que estava no Centro e convidando para almoçar. Ela se virou
para mim e disse: “Você vai adorar essa menina”. E voltou a falar com ela: “Liga pra Nina”.
Combinaram que aguardaríamos por pelo menos uma delas. Nina estaria a caminho do escri-
tório de que é sócia, na Zona Sul.
Tomamos um café e conversamos até que Marcela chegou, informando, à guisa de
justificação prévia: “Nina chega num instante, ela disse que conseguia chegar em 20 minutos.
Tava no Flamengo. Vai pegar o metrô”. Aceitamos esperar aquele tempo. Eu tinha um com-
promisso (por acaso, uma entrevista, com uma terapeuta de casais
4
, naquele mesmo dia, no
Jardim Botânico, algumas horas mais tarde, e poderia tomar um pouquinho mais de tempo
com o almoço). E minha amiga, bem, fazia o próprio horário.
Entretanto, uma hora depois, ainda estávamos “tomando café”. Um certo ar constrangi-
do começou a se formar em Marcela no que, depois me contaria, eram os 30 minutos do pra-
zo, dez depois do que a parceira havia prometido. Formada em psicologia, mas trabalhando
em uma produtora de cinema com produção, ela dizia ser cuidadosa com prazos. Naquele
4
Cheguei a fazer entrevistas com três terapeutas de casais, com a intenção inicial de ter acesso, por meio de-
las, a suas carteiras de clientes. A idéia era me aproveitar de uma suposta reflexividade “treinadados casais
que fazem terapia, acostumados que eles estão de falar de si mesmos, de seu problemas. Mas uma rie de
queses me fez desistir de acessar os casais por essa via. A primeira era justamente a influência dessa refle-
xividade treinada sobre a construção de uma categoria que queria incluir desculpandos não treinados. A se-
gunda era a crião de uma rie de focos de aproximão baseados em uma forma de confiança “mercantil”
(a competência do terapeuta) e não naquela de que me aproveitei ao buscar em amigos esse foco. Havia tam-
m um problema ptico: a resistência dos especialistas em permitir acesso a seus clientes (mesmo que fosse
apenas repassando uma carta-convite para eles decidirem se aceitavam participar da pesquisa ou não). As en-
trevistas com os ts profissionais, entretanto, se o tiveram pontos suficientes para configurar um campo,
ofereceram algumas indicações sobre o estatuto do momento de reflexividade nas relões.
207
momento, ela pegou o celular e ligou. Seu telefone tinha bom som e eu pude ouvir a caixa
postal de Nina. A medida se repetiu mais duas vezes até Nina finalmente chegar, nada menos
do que pouco mais de uma hora depois da chegada de Marcela, que prometera 20 minutos de
espera. Ou seja, cerca de hora e meia depois que eu e minha amiga nos encontramos no Paço.
Era de se esperar que eu e ela estivéssemos chateados. Eu de minha parte, entretanto, estava
mesmo é entretido. Com a chateação da jovem diante de mim, 27 anos, cabelos louros com-
pridos, um discreto piercing de brilhante (ou imitação) no nariz, celular enorme guardado em
uma meia infantil de bichinho. Tons sóbrios nas roupas.
Nina chegou como um furacão. Não precisou nem que notássemos as duas bolsas de
comprar que se somavam à sua de estilo carteiro chique, colorida. Cabelos pintados de ruivos,
óculos de armação quadrada que, me lembro, na época não estavam tão na moda quanto no
momento em que escrevo. Ela já se apresentou disparando: “Oi, oi, oi, desculpa o atraso, gen-
te! Eu tava correndo pra cá, mas quando saí do metrô, não andei cinqüenta metros, dei com
uma bolsa linda! Mas inacreditável de bonita! Eu tinha que parar pra olhar! Foi mais forte que
eu! E a menina ainda me mostrou esse sapato e aí foi...”
Marcela, que recebeu o beijo da namorada com certa frieza, reclamou com veemência,
sem cerimônia, desenvolta diante de mim: “Poxa, mô, a gente esperou um hora por você!
Não podia ter avisado? Te liguei à beça”. Eu, minimizando: “Ah, que é isso, a gente estava
aqui se divertindo, não tem problema, por mim...” Mas Nina quis responder: “Ela é assim
mesmo, querido, não liga... Mô, não vi o celular. Tava dentro da bolsa e não ouvi. Mas eu
cheguei, né? Você tem que ver a bolsa! É linda.” “Mas você sabe que eu não gosto de atra-
so!”. “E você sabe como eu sou!” “Vocês podiam dar entrevista para ele!”
Minha amiga intrometeu o que poderia se tornar uma discussão. E foi saudada com o
olhar interrogativo de Nina: “Entrevista? Pra quê? Você é jornalista?” “Não, menina, pra tese
dele... Ele faz doutorado. Em sociologia”
208
Dei as explicações de praxe e, sim, comecei a pensar que, de fato, era uma boa idéia.
Era uma situação providencial, aquela de estar constatando um micro-conflito entre duas na-
moradas, situação essa claramente intermediada por uma desculpa. Das mais curiosas: Nina
chegou atrasada, o que ela sabia irritar sua companheira, porque vira uma bolsa à qual não
pode resistir. Tentei minimizar o episódio em meu convite, a fim de não criar aquele viés mo-
ral, mas a própria situação se encarregou de eliminá-lo: Nina retornou à história do atraso. “A
gente briga pouco, mas tem muitas discussõezinhas, sabe”, disse. “Mas também, né!”
Foi quando ela resolveu mostrar a bolsa. Para mim: “Olha aqui. Não é linda. Você
mesmo, sendo homem, não pararia para olhar... para dar para sua namorada?” Eu tentava ser
simpático. De fato, eu não vi muita graça no acessório. Mas eu nem precisei fazer comentário
nenhum. Minha amiga e Marcela cobriram o ar: “Nossa!” (com o “o” bem prolongado). “Me-
nina!” Sim, elas haviam amado a bolsa. Ficou claro de que a desculpa de que “é assim mes-
mo”, Nina é assim mesmo e, um pouco, “mulher é assim mesmo”, embora o argumento de
Nina passasse por uma normalização do gosto – o que é belo é obrigatório.
Quando finalmente me deram entrevistas, em casa. Primeiro Nina, depois Marcela, quando
chegou de um passeio de bicicleta, em um sábado pela manhã rie de eventos após os quais
tomamos café os três – ficaria claro para mim, entretanto, que a queso fundamental das duas era
o tempo. Em dois sentidos. O primeiro era justamente essa probletica do chegar na hora, dos
atrasos, um “desvio” recorrente da parte da ruiva, como eu havia constatado assim como sua
reão na parceira no café no Paço. O segundo era com relação ao tempo dedicado. Marcela
ouvia da companheira uma reivindicão de mais dedicação às duas. A loura podia andar de bici-
cleta de man sozinha, mesmo que a namorada, nem o afeita a exercícios físicos (“Eu gosto de
daar, queima gordura à beça”) não gostasse tanto (mas havia duas bikes penduradas no porta-
bicicleta da casa, uma espécie de gancho em forma de chifre afixado na parede da área de serviço,
ao lado da máquina de lavar). “Ela consegue ficar horas no set de um comercial, entrar em casa e
209
me tratar como se tivesse ido ali, no mercado”, reclamava Nina. “É que eu sinto que é mesmo
como se o tissemos nos separado, como se fosse retomar a conversa”, respondeu-me ela,
ao lembrar de que a outra sempre chamava ateão para essa suposta desatenção dela. As duas,
entretanto, articulavam o problema do tempo com outro nome: desamor. Na verdade, o uso do
termo comou com Marcela, chamando os atrasos de Nina assim (“A gente já perdeu sessão de
filme do Festival [do Rio, evento de cinema que ocorre anualmente na cidade e que mobiliza os
cinéfilos] por causa disso. Sabe, sessão do filme que o vai passar mais, o do Jackie Chan na
China Comunista? Pois é, eu não vi
5
”). O desamor virou um termo geral para as ões que cau-
sam mal-estar (sempre ligado ao tempo) em cada lado.
E nos dois casos, a maneia pela qual o desamor era administrado era a circunstanciali-
zação. Perguntei diretamente a ambas (cada uma por sua vez, claro): por que não desmentir o
desamor simplesmente afirmando o amor? “Isso não é necessário. Ela sabe que eu a amo. E a
gente diz eu te amo bastante. A questão é que essa coisa dela chegar sempre atrasada é um
desamor prático, é uma coisa que exige amor prático”. Prova de amor? “Não, nada nem tão
sério nem tão cafona assim, mas pelo menos uma satisfação, né?
6
Essa demanda por “amor
prático” pareceu uma boa porta de entrada. A afirmação encaminhava a história para mais
5
Para evitar a estigmatização de minha entrevistada, o filme a que ela se refere se chama Traces of a Dragon: Jackie
Chan and His Lost Family e foi exibido no Festival do Rio de 2003 com o título de Traços do Dragão, Jackie Chan e
a Família Perdida. Trata-se de um documentário de co-produção entre Hong Kong e Holanda, dirigido pela cineasta
Mabel Cheung. O filme narra a história do popularíssimo astro de artes marciais chinês Jackie Chan – famoso por unir
lutas e humor físico em seus filmes: filho de um ex-agente da China Nacionalista que fugiu para Hong Kong na Revo-
lução Cultural, onde conheceu uma atendente de cassino que se tornaria mãe de Jacky, Chan foi deixado para ser cria-
do por um mestre de kung-fu quando seus pais tiveram que fugir para a Austrália, perseguidos pelo regime comunista
de Pequim. O filme, então, narra a história da família em paralelo à das últimas décadas na China, cobrindo seus prin-
cipais acontecimentos. De fato, o filme teve duas apresentações no festival, não foi lançado comercialmente no Brasil
e até hoje não foi lançado em DVD em nenhuma das praças em que o procurei (foi apenas na Austrália). Eu devo pro-
vavelmente ter passado por Marcela enquanto ela esperava Nina, já que consegui ver o filme nas duas sessões quis
mostrá-lo a minha namorada da época, depois de-lo.
6
Essa história do “pelo menos uma satisfação” me fez lembrar de algo que uma amiga me havia contado: quando ela
se casou, a cerimônia exigiu certa dose de esforço dos convidados, já que foi realizada em Tiradentes, interior de Mi-
nas, cidade em que morava a mãe de seu noivo. Ela enviou convites a sua família providenciou um ônibus para que os
convidados fôssemos para lá. Um amigo dela, entretanto, mandou-lhe uma mensagem eletrônica, dizendo que não
poderia ir. “Terei aula da minha s, sábado o dia todo”, justificava-se. Ela contou que passou a mão no telefone e
disse a ele: “Eu vou apagar o seu e-mail e você vai me mandar outro. E nele você vai tratar de me mandar uma descul-
pa bem doida, com elefante, o que você quiser, mas não aceito que você me diga que não vai ao meu casamento por
causa de uma aula de pós,! É muita desatenção!
210
uma partição entre abstrato e concreto: o amor-sentimento e o amor-ação. O primeiro, é aque-
le de uma utopia de sentimento, o segundo articulado a um exercício cotidiano de ações que
demonstrem competência amorosa. A dimensão abstrata não está em questão entre os apaixo-
nados, mas a concreta está em questão o tempo todo e poderá ameaçar a outra, caso provoque
desgaste. Daí as satisfações, tentativas de desarticular o desamor com o descontrole, o desem-
poderamento, a impossibilidade de agir de outra maneira.
Papel exercido – por definição – pelo ato de dar uma desculpa. Entre as duas, o desamor
é sempre desmentido pela fato de que o tempo é uma entidade incontrolável. Nina é mais di-
reta que Marcela. Oferece desculpas mais claramente centradas em um bem de si inevitável: a
bolsa que tinha que ser comprada, a preocupação com a combinação das roupas, o fato de ela
não gostar das pessoas com que as duas se encontrariam (não parecia ser o caso de minha a-
miga). Este segundo caso fez com que Marcela esperasse por Nina na Fundição Progresso du-
rante um show. Acabaram por se encontrar apenas ao final. “Ah, você tava com o Amauri e a
Claudia, não suporto aquele cara”, disse. Marcela transfere claramente a responsabilidade
para os entes maiores: meu diretor é maluco, “Você fez uma cotação de cabeamento algu-
ma vez?” (por acaso, tinha, o que acabou resultando em uma pequena discussão), um co-
mercial exige administrar muitas pessoas e é preciso dar atenção a elas.
Em todas essas situações, o desamor é apontado como centro do conflito. Não por elas.
Aquilo que nas bocas de Nina e Marcela é “desamor” ganha de Heloísa, mulher de Alex, o nome
de “falta de ateão”. Por Sandro, marido de Ilda, de “ela podia ser mais atenciosa”. Por Verônica
e seu companheiro Rubens, pelos dois, de “quando uma coisa assim acontece, é como se ele/ela
o me amasse”. Essa perceão se espalha de maneira democrática pelos entrevistados, levando-
me a concluir que esse desamor pode ser uma categoria substantiva importante, a ser examinada
com mais vagar. Ela coloca uma pergunta essencial sobre o próprio estatuto do relacionamento:
qual é o outro lado, o que é o amor quando o desamor não se manifesta?
211
O uso dessa categoria me fez pensar em uma outra oposição, também da ordem da dico-
tomia concreto x abstrato. É que diante dessas afirmações, perguntei a Marcela e Nina por que
não se podia admitir esse tipo de coisa da pessoa que nós amamos. A resposta foi muito seme-
lhante: “Ué, porque ela é a pessoa que eu amo, é a pessoa a quem eu dou atenção, é a pessoa
que me trata diferente das outras, para quem eu sou especial e que é especial por isso”, elabo-
rou Nina. Marcela: “Se eu não for bem tratada por ela, se ela, logo ela, minha “cara-metade”
(os dedos sinalizando), não me tratar com especial, quem vai tratar”. As duas usam o termo
“especial”, as duas articulam uma singularidade do companheiro: ele é aquele que me trata
como mais ninguém me trata e lhe tenho amor porque ele me trata assim. A partição estabele-
cida no desamor, então, pode ser entendida como aquela entre uma condição de singularidade
absoluta do ente amado e momentos em que essa singularidade é desmentida ou, pelo menos,
posta em questão. Na ação desamorosa, o outro se banaliza, deixa de ser especial, deixa de ser
único. No momento em que se estabelece um mal-estar relacional em uma relação amorosa, a
questão fundamental do relacionamento vem à tona de outra forma: ela é aquilo que desmente
a singularidade do outro. É fundamental, aliás, justamente por isso: quando ela existe, o outro
como único no mundo a merecer o amor cai por terra.
Uma dinâmica peculiar para as conversações
Os dois primeiros casos que apresentei acima serviram para estabelecer uma dinâmica. O
fato de ambos serem articulados a partir de situações de atraso ajudou a torná-los emblemáticos.
O atraso (o tempo, em geral) é um problema recorrente entre casais, embora nem sempre possa
ser apontado como questão fundamental. Mas a observação desses três traços gerais, a questão
fundamental, o desamor e a singularidade do amado, representam nesta exposição a percepção
de uma maneira de perguntar, uma série de curiosidades que guiaram minhas entrevistas.
212
Assim, o que busquei nos casais com que conversei foi esmiuçar uma relação entre o es-
tabelecimento e a manutenção de um cotidiano e os argumentos usados para dele dar conta.
Assim, embora eu tenha feito entrevistas consideravelmente informais e até bastante diferen-
tes das outras em alguns casos, algumas questões gerais sempre estiveram presentes:
1) Como se deu a formação e o reconhecimento de um relacionamento?
Essa questão ajudou a entender como os atores dão conta da construção de uma imagem
do outro como alguém especial, diferentes dos outros do mundo, com quem estabelecer uma
aliança, compartilhar uma relação. A inspiração para essa curiosidade veio de Kaufmann
(2002), estudo sobre a primeira manhã depois da primeira noite de um casal, e Kaufmann
(2004), sobre a imagem que o homem tem para as mulheres solteiras. Ambos são trabalhos
que destacam a maneira como os parceiros amorosos constroem o outro como uma represen-
tação e que essa representação é central para a vida a dois. Mas certamente que a inspiração
principal para essa pergunta foi se tornando a saturação da categoria substantiva da singulari-
dade do outro. Se essa singularidade era construída, isso acontecia nos momentos de constru-
ção da relação, na decisão de primeiro “ficar” com o outro, na passagem do estágio de atração
e primeiras interações (quando o outro pode ser nada singular
7
)
O que me perguntava era: qual é o papel da imagem fundamental de cada um dos atores
na economia das desculpas dadas no cotidiano? Será que os traços que fizeram diferença na
hora de escolher um parceiro e os que o fizeram se tornar um parceiro fixo fazem parte do
corpo de elementos que vem à tona quando surge um empreendimento moral da parte de um
desses parceiros e o outro se diante da possibilidade de dar uma desculpa para suas ações?
Qual é a relação entre essa imagem primordial e aquilo que chamei de questão fundamental?
7
A pessoa com que se fica pode ser construída mesmo como a oposição a alguém com quem se tem um relacio-
namento. “Ali a gente não era mais ficante aquele com o qual se fica em um determinado momento ou com o
qual se esficando habitualmente, sem que isso configure um relacionamento reconhecido –, estava namoran-
do” (Nina) ou “Vofica com um cara e é só diversão, ele não significa nada pra você. Mas quando você namo-
ra, ele é diferente, é como se você nunca tivesse ficado com ele” (Marta, mulher de Hélio)
213
2) Que características do entrevistado são complicadores no cotidiano do relacionamen-
to?
Dirigi aos entrevistados esse convite à mea culpa: como cada um dos dois contribui para
a construção da questão fundamental do relacionamento? A tentativa é de solidificar na análise
dos atores traços que sejam determinantes na constituição dos conflitos cotidianos. A operação
é um pouco a de “se colocar no lugardo empreendimento moral alheio. De duas formas. A
primeira, na memória, ou seja, por meio do que o ator está habituado a ouvir do outro, daquilo
que ele percebe como tendo causado mal-estar no outro. A segunda, por um exercício de auto-
crítica, de análise do que ele próprio pode considerar como fonte potencial de conflitos.
Essa forma de colocar as causas dos conflitos sobre a mesa, atrelando-os à queso funda-
mental, foi importante para que os atores articulassem uma tradução de seus conflitos nos termos
de um conflito mais geral, mas, ao mesmo tempo, que fossem capazes de tamm analisar mais
pormenorizadamente os mal-estares incidentais, os não relacionados diretamente à questão fun-
damental. Esses potenciais de conflito isolados o igualmente relevantes como fonte de descul-
pas, mas contribuem sobretudo para o entendimento da articulão da imagem do outro, da cons-
trão de uma reputação. Demonstrarei como os atores atribuem aos mal-estares ligados ao con-
flito fundamental uma possibilidade de conflito que pode alterar o estatuto da relação, ou seja,
alterando uma imagem perene mantida por um dos atores, ao passo que os mal-estares incidentais
podem fazer parte de um jogo ou de estabelecimento de outras reputações ou de reajuste de um
estado moral das regras que pode ou não ser aceito entre os participantes de uma relação.
3) O que o entrevistado diz para dar conta dessas características complicadoras?
Esse tipo de questão me fez diferenciar as desculpas entre as que são articuladas generi-
camente, para dar conta dos traços conflituosos fundamentais e as que são dadas pontualmen-
te, seja nos casos particulares que manifestam a questão fundamental, seja nos casos dos pro-
blemas morais incidentais.
214
4) Que características do outro são complicadores no cotidiano do relacionamento?
Esse questionamento colocava os atores na posão de empreendedor moral: o que
eles consideram como um componente conflituoso do outro e o que eles habitualmente
criticam no outro. Essa questão também faz uma articulação dupla entre memória e senso
crítico. Mas essa queso não seria articulada sem o item 6, logo abaixo, já que me esfor-
cei para que os entrevistados apontassem esses “defeitosno âmbito de uma narração de
situações espeficas. Essa articulão teve a ver com a regra do “‘como? e não por
quê?’ sugerida por Howard S. Becker (2007, p. 85-86):
Quando entrevista pessoas, se lhes perguntava por que haviam feito algo, provocava ine-
vitavelmente uma resposta defensiva. Se perguntava a alguém por que havia feito certa
coisa que eu estava interessado (...) o pobre e indefeso entrevistado compreendia minha
pergunta como um pedido de justificação, de uma razão boa, suficiente para a ação sobre
a qual eu estava indagando. Respondia aos meus “por quês?” de maneira breve, cautelo-
sa, pugnaz, como se para dizer: “Certo, meu chapa, isto é bom o bastante para você?”
Quando, por outro lado, eu perguntava como alguma coisa havia acontecido (...), minhas
perguntas “funcionavam” bem. As pessoas davam-me respostas longas, contavam-me
histórias cheias de detalhes, forneciam-me explicações que incluíam o suas razões
para o que quer que tivessem feito, mas também as ações de outros que haviam contribu-
ído para o resultado em que eu estava interessado.
Esse princípio metodológico me conduziu para uma forma dupla de tratar dessa questão:
perguntar “como?” e “por quê?” ao mesmo tempo, ou melhor, partir de uma demanda por narra-
tivas, e portanto para respostas analíticas, para um questionamento em busca de respostas mais
sintéticas. Isso fez o que eu pudesse ocupar um lugar efetivo no aparato analítico, emulando o
lugar do empreendedor moral, aquele que ouve as desculpas, que, afinal, o “respostas sintéti-
cas” de Becker: “Se voestiver fazendo certo tipo de pesquisa, talvez o lhe agrade que um
entrevistado tenha esse tipo de liberdade” (p. 87). Pois bem, minha pesquisa era justamente “do
certo tipo” em que a liberdade narrativa tinha que ser articulada com um direcionamento de res-
postas. Foi importante, então, ocupar esse papel de empreendedor, reforçando o caráter “imoral”
das ações descritas, a fim de fazer com que os atores relembrassem suas desculpas dadas mais
picas ou que articulassem novas. Esse posicionamento, entretanto, não vinha sem uma proble-
215
tica metodológica determinante e efetivamente teórica – no sentido em que determinava de-
senrolares teóricos a respeito do objeto: um ator articula suas desculpas de acordo com o tipo de
ão ou com o ator que está diante dele? Qual era a diferença de o ator dar uma desculpa para
mim e ele contar para mim uma desculpa que ele deu ou daria para seu companheiro? E embora
a resposta a essa pergunta parecesse óbvia é claro que a desculpa depende de quem vai ouvi-la
– para mim ela poderia revelar detalhes mais intricados, e nem o óbvios assim – ligados justa-
mente à tipificação do “não era eu” e do “é assim mesmo”: uma intrincada matriz entre reputa-
ção, engajamento moral e forma de efetivação seria composta ao final de minha pesquisa.
5) O que o outro diz para dar conta dessas características complicadoras?
Essa questão também diferenciava as desculpas entre as que são articuladas generica-
mente e as dadas pontualmente. Mas foi um questionamento importante para que os atores
aproveitassem a oportunidade para avaliar os accounts de seus companheiros, avaliando-os
como justificações ou desculpas e julgando a efetividade dessas prestações de conta. É algo
percebido na própria maneira de falar, na maneira de apresentar o que o outro diz, como de-
monstrarei nos próximos itens.
6) Que mal-estares são dignos de ser lembrados na história dos dois?
Esta questão surge aqui para compor um quadro analítico, mas ela acabou por se tornar
uma questão articulada com as narrativas produzidas em cada pergunta. As situações de mal-
estar são as variáveis centrais desta pesquisa. São elas que determinam: o que as atores consi-
deram como um mal-estar a ser lembrado (que possam ter feito diferença na história da rela-
ção); o que os atores consideram sério o suficiente para causar incômodo; o que eles conside-
ram um mal-estar insuportável o suficiente para mobilizar a conversão desse mal-estar em
uma demonstração consciente e articulada; que tipos de transformações nos relacionamentos
– e em sua questão fundamental – essas situações produziram.
216
A construção de um relacionamento
O início de uma vida a dois “é uma aventura” (KAUFMANN, 2007, p. 28). “Uma aven-
tura mental, isto é claro, que desenraiza a antiga existência, mas uma aventura também cotidi-
ana, que redefine profundamente as duas identidades”. Mas qual é o caminho dessa redefini-
ção. Ao perguntar a meus entrevistados pelo processo de transformação de seus relaciona-
mentos em uma relação de longo prazo, uma coisa ficou clara para mim: esse processo passa-
va pelo que chamarei aqui de criação de um idioma comum, uma forma de falar própria dos
dois. A questão determinante pareceu ser a partilha de definições. As narrativas de começo de
relacionamento que ouvi passam pela construção daquela singularidade que apontei antes e
pela integração de uma série de definições, termos compartilhados entre os dois: o que é a-
mor, o que é vida a dois, o que é bem, o que é mal, o que é bom, o que não é, o que dá prazer,
o que não dá, o que causa desprazer. Entretanto, essa definição é um processo invisível, tácito.
As pessoas não se sentam para debater e compartilhar definições previamente. O único mo-
mento em que isso ocorre é no ritual da DR, quando são feitos justamente partilhas e reajustes
dessas definições. No processo de produção do relacionamento isso é feito de maneira indire-
ta, pela observação do que coincide e o que não coincide nas ações. E essas definições consti-
tuirão uma imagem do outro que será central para definir a própria manutenção das relações.
Gustavo, por exemplo, conheceu sua mulher quando dava aula para ela, em 1994, na u-
niversidade. Como ele tinha namorada na época em que lecionava, diz que ela era uma meni-
na bonita, mas não havia chamado sua atenção. “Eu não enxergo muito essas coisas. Estava
preocupado em dar aula!” Mas começou a notá-la quando ela tomou uma iniciativa “estra-
nha”. “Eu dei em cima dele”, diz ela. No final do período, ela resolveu se dirigir a ele, dizen-
do que ficou devendo um trabalho e que queria que ele ainda o lesse. Pegou ser cartão para
lhe enviar o arquivo via modem (a internet comercial ainda engatinhava no Brasil) e se des-
217
pediu com uma insinuação nenhum dos dois se lembra ao certo o que ela disse, mas ele fi-
cou com a pulga atrás da orelha. “Uns dois meses depois”, ele tendo terminado com a na-
morada, eles “se esbarraram” no Centro, que trabalhavam, coincidentemente, na mesma
rua. Surgiu a idéia de almoçarem juntos. Do almoço, veio um “vamos tomar um chope” e eles
começaram a namorar. Começaram a namorar os dois se lembram exatamente da data – em
13 de abril. Se casariam apenas em 2007, depois de três anos morando juntos.
Mas porque a moça de cabelos escuros e “feições de Fanny Ardant” (“Dizem muito is-
so”, ele conta. Ela cora e recusa a comparação) foi falar com o professor caladão e sisudo, que
“chegava, dava aula e ia embora”? Ela responde:
Eu vim do interior do Rio. Morava dividindo apartamento, em República. Tinha namo-
rado algumas pessoas, mas todo mundo com quem eu convivia Eu fazia estágio em
banco de investimento era “riquinho”. Eram umas pessoas “meio bestas”. Pois a pri-
meira impressão que ele me passou foi uma pinta de “bom moço batalhador”. Pensei:
“Eu queria construir uma vida com alguém assim. Como eu.Procurei saber onde ele
morava, e não era na Zona Sul. (...) No meio do período, o avô dele morreu e ele ficou
muito emocionado. Ele não era muito de conversa. Nesse dia, eu o sabia se ele tinha
morrido um dia antes ou se ele tinha vindo direto do enterro para a aula, mas a turma es-
tava meio agitada, enrolando um pouco, e ele fez um discurso: sobre metas na vida, o
que era importante, falou de si e o olho encheu d’água. Achei aquilo lindo. Percebi então
que além de tudo ele era sensível. E, ora, era professor, inteligente, e eu sou bem CDF.
Da parte dele, ele reconheceu na moça “uma pessoa doce, inteligente e séria”. Ele tam-
bém estava interessado em alguém que pudesse “tocar um projeto de vida”.
Viviane e Túlio se conheceram pela Internet. Em fevereiro de 2005, ela recebeu o
e-mail de um estranho, que dizia que estava se mudando de outro estado para o Rio. Ela ti-
vera contato com ele em uma lista de discussão virtual sobre fotografia. Ele enviara a men-
sagem apenas para as meninas da lista. E ela foi a única que respondeu, dando boas vindas.
“Foi por educação”, afirma. Viviane teve três namorados que conheceu na Rede. Mas
encontrou lio pessoalmente em agosto. Nesse meio tempo, falava com ele por e-mail ou
programas de bate-papo e, eventualmente, por telefone. Ele era separado e se dizia “trauma-
tizado”, de modo que ela evitou contato, “para não complicar”.
218
Um dia, chateada, ela resolveu ligar para ele. Mas antes que pudesse fazê-lo, recebeu um te-
lefonema. Dele. Apesar das experncias anteriores com parceiros do mundo virtual, ela mantinha
uma série de rituais de segurança revisão de perfis do candidato, de amigos e parentes no site de
comunidades virtuais Orkut, observar ocorncias em buscadores em busca de comentários, blogs
etc. Inquérito concluído, aceitou encont-lo. Marcaram um cinema de domingo. Encontrariam
um ao outro no sago. Ao chegar, viu-o de longe. Quando o viu, pensou:Até que pro gasto.”
Ia cumprimentá-lo com um par amistoso de beijos no rosto, mas foi surpreendida pelo mo-
vimento do rapaz, que lhe deu um forte abro. Ela pensou: “Que fofo!Viram um filme e os dois
“ficaram”. Depois, marcaram de se encontrar uma semana depois. Nesse dia, ela foi encontrá-lo
para o almo. Ao pegá-la, de carro, em um local público, ele novamente a surpreendeu:Você se
incomoda se a gente der uma parada no caminho? Eu... tenho que colocar a roupa para lavar.” Ela
aceitou, apesar de achar que era um estratagema. Não era
8
. Ele de fato trazia um saco de roupas
no banco de ts e as levou a ela e a bolsa para a lavanderia. “Me fez pensar. A gente conhece
uns caras que o sempre mal-intencionados, e ele fez uma coisa diferente. Achei aquilo o hu-
mano! o parecia ter algo arquitetado, foi espontâneo. Achei bonito, gostei muito”, relembra.
Esse fato a fez tomar uma atitude:Vo quer namorar comigo?”, perguntou a ele na praia do Joá,
no transcurso do que chamou de “uma tarde perfeita”. Ele aceitou e eles estavam juntos por três
anos quando a entrevistei. Foram morar juntos em outubro de 2006 (“No dia 3”, ela se lembra).
o consegui entrevistar Túlio. Antes que pudesse fazê-lo, eles se separaram. Destaquei esse ca-
so, apesar disso, porque a maneira como ela constrói o começo do relacionamento é bastante indi-
cativa de um procedimento geral de prodão do outro. Essa imagem parece ser determinante na
manutenção da relação: um mal-estar relacional é um exercício de afastamento dessa imagem.
8
Todas as impressões subjetivas apresentadas nas descrições são transcrições de impressões apresentadas pelos
entrevistados. Assumo que essas informações o relevantes por mostrarem a maneira como os atores interpre-
tam as situações. Mas as uso como evidências apenas dessas representações e não como fontes de informação
direta sobre os conteúdos transmitidos por esses discursos.
219
Marilda e Bernardo não tiveram muito problema para se conhecerem. São primos. Ela se
lembra de sempre -lo achado feio quando criança, mas que quando o viu, depois de uma via-
gem de férias, ele aos 22, ela aos 16, achou-o “um pão”. Marilda tem 58 anos e eles estão casa-
dos 39 anos. Bernardo diz que namorou a mulher “desde que ela nasceu”, que ela era “um
bebê lindo”, e que soube quando a viu pela primeira vez que ia se casar com ela. Na tal visita,
quando passou na casa dos tios para deixar uma encomenda que trouxera de viagem, ele, ao re-
-la, depois de quatro anos sem a encontrar, achou-a “a menina mais bonita que eu já tinha vis-
to”. Ficaram noivos meses depois. “Ele queria casar logo, mas a gente tinha que construir uma
casa, né?” E nesse processo, ela conheceu de fato o primo: “Me impressionava como ele era
trabalhador. Ia para a fábrica todo dia e, depois, dormia na obra. A casa o saiu antes por-
que a gente o tinha dinheiro.” Da parte dele, a noiva se revelaria também alguém impressio-
nante: “Para ela, a coisa mais importante era nosso sonho, então ela o fazia questão de nada,
não queria luxo nenhum... Era tão compreensiva que eu não acreditava! Se fosse outra, ia achar
que eu ia pra gandaia” E ia? “Ah, de vez em quando eu ia, né! Mas eu era jovem, e era ho-
mem... Mas nunca teve mulher, não, hein! Erauma sinuquinha, um limãozinho...”
Esses começos de relacionamento apresentados aqui como casos exemplares de rios
movimentos com que me deparei nas entrevistas mostram uma rie de padrões interessantes.
Mas limitei a análise à importância que essa constrão tomou no estabelecimento de definões,
de temas gerais que moldem o relacionamento e como isso se estabelece como uma linha de base
de sua normalidade, a condão com que se depara a desculpa dada. O que quero dizer é que cada
relacionamento estabelece um “mundo dostico” próprio, um conjunto de princípios que se
respeitado como princípio superior entre os dois (ou, eventualmente, mais) envolvidos. E que ser-
vio como fontes para a produção de momentos críticos, para situões em que os mal-estares
relacionais serão colocados sobre a mesa e se estabelecerá uma demanda por um account, a fim
de evitar que o estado da relação ou dos atores seja alterado.
220
Características complicadoras, mal-estares e desculpas para eles
O “limãozinho” de “seu” Bernardo foi a queso moral fundamental do relacionamento de-
le como “dona” Marilda. Depois que conseguiram construir a casa e finalmente se casaram e se
mudaram para lá, a vizinhaa já era muito mais conhecida dele do que dela – que só ia ao subúr-
bio de Realengo, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, para encontrá-lo, levar almo na jornada de
final de semana de obras etc. Já ele, era conhecido como um animado companheiro de sinuca dos
rios serventes de obra e novos donos que, como ele, constram casas novas nos terrenos re-
cém-loteados ali. Bernardo tinha apelido e tudo na rua
9
. Com a chegada da esposa ao local, ela
teve que se acostumar com a mudança de imagem do cônjuge. “Bernardo, eu sou uma moça de
falia. Não gosto disso de vo ficar por jogando baralho [sim, ele se dedicava a outros espor-
tes] e sinuca com essa gente”, disse-lhe, taxativa. Isso fez com que ele começasse a trazer para o
plano das circunsncias. O primeiro deles por meio de uma estranha noção de mérito: “Eu cons-
tr a nossa casa! o tenho direito a uma sinuquinha?” “Não, se voficar por , bebendo, na-
quela vendinha imunda, e eu sendo falada por aí! Vo não pensa em mim?”Mas que mal em
tomar um limãozinho e jogar uma sinuca, minha filha?” “Eu não saí da casa da minha e para
virar mulher de cachaceiro!Não sou cachaceiro, tomo um limão de vez em quando. Eu sou
homem, tenho que me divertir!” Homem que é homem mantém sua dignidade!” Minha digni-
dade está no meu trabalho. Eu suo muito a semana nabrica pra perder minha sinuca!” A discus-
o durou anos. Desta, a primeira, ficou uma regra, negociada com a aceitação dela para jogos e
beberagens: “Se vo me aparecer bêbado aqui, eu saio por aquela porta e não volto mais”
10
.
9
Não poderei, entretanto, repeti aqui seu apelido, uma vez que era um diminutivo de seu nome verdadeiro.
10
Na versão dele para o episódio, ela teria dito ainda: “Eu chamo a polícia para te prender”. Mas ao contar a
história, ela colocaria a polícia do outro lado da história: “Ainda mais se eu souber que voanda com aquele
polícia seu amigo. Segundo ela, teria havido um momento em que ele “andou fazendo umas coisas”, o que suge-
riu envolvimento com o jogo do bicho local. Mas nenhum dos dois entrou em detalhes sobre a interferência des-
sa história na vida dos dois como família. Em um outro episódio, ele descreve o momento em que a achou “in-
gratapor ela não ter aceitado um dinheiro “extra” que ele teria ganhado vendendo um carro com o amigo. Dis-
se-lhe que precisavam do dinheiro para o concerto do banheiro. E ela ficou meses sem usá-lo.
221
O “limãozinho”, então, representa uma vasta gama de comportamentos que ela conside-
rava “desqualificados”: álcool, jogo e, por meio deles, o envolvimento com pequenos delitos
que nem eram considerados delitos na vizinhança de classe baixa em que começavam sua vi-
da “Isso não é nada, mulher, não faz mal a ninguém. É um carro apreendido e não tem do-
no!”. Ou seja, toda uma série de desvios em relação à moral estabelecida no relacionamento.
E ela é centrada justamente na imagem moral registrada em relação ao outro. “Aquilo foi a
maior decepção da minha vida”, disse ela. “Eu tive que carregar muita pedra para ela não me
largar”, disse. E boa parte dessa operação passou por fazê-la entender que a vida “é mais difí-
cil que parece e às vezes a gente tem que fazer mais do que pode”. É, de todo modo, todo ator
traz para uma relação uma forma de produção de contradições em relação ao padrão estabele-
cido na formação da imagem do outro. O amor informa que o ente amado é de uma maneira
ideal(izada). O cotidiano coloca essa imagem à prova. E o dar uma desculpa permite que esse
cotidiano seja rearticulado em uma base estritamente localizada, permitindo que se possa
manter a relação em curso sem rediscutir as bases fundadas na imagem do outro.
No caso de Leandro e Carolina, o núcleo do mal-estar entre é a pocahontice”. A histó-
ria é digna de qualquer anedotário familiar: era uma Festa de São Nicolau (em 5 de dezembro,
mas celebrada pela comunidade holandesa, da qual ele é originário, como prévia do natal), o
primeiro que passaram com a família dele, em São Paulo, onde estavam de férias
11
. Tradicio-
nalmente, a família mantém o hábito de realizar um “amigo secreto”. No sorteio para ver a
11
Fui apresentado ao casal por uma amiga em Londres. São dois brasileiros que vivem no Reino Unido, onde
trabalham na área de informática. Relutei um pouco a entrevistá-los porque, afinal, eles moravam em outro país,
o que poderia descaracterizar minha amostra, mas a história dos dois mostrava um empreendimento para manu-
tenção do casal muito significativa: os dois enfrentaram uma boa carga de pressão para se estabelecerem no Ve-
lho Continente. De família holandesa, ele possui dupla cidadania e ela conseguiu rapidamente se adaptar à vida
acadêmica do novo país, onde foi estudar mestrado e hoje leciona. Profissional de uma área muito competiti-
va da indústria do software, Leandro passou por um período de desemprego e chegou a trabalhar sem salário fixo
para uma empresa até conseguir a colocação que hoje exerce. Mas apesar de todos os momentos de tensão, os
dois que se conheceram ainda como estudantes, no interior de São Paulo, começaram a namorar bastante tem-
po depois (ambos tinham namorados quando se conheceram), mas foram morar juntos pouco depois de começar
a namorar, para logo depois irem para a Europa. Sobre o primeiro contato, aliás, ambos são muito enfático ao
singularizarem o outro: “A gente nem se tocava. Era claro que havia alguma coisa ali”, lembra-se Leandro.
222
quem daria um presente, Carolina tirou a prima de seu marido, uma criança. A madrasta de
Carolina sugeriu que ela desse a menina uma fita de vídeo do desenho animado Pocahontas,
da Disney, que ela havia comprado. Mas como não havia sido ela a compradora do presente
que daria, Carolina quis comprar algo. A idéia brilhante: dar à menina uma boneca da perso-
nagem-título do desenho, a brava indiazinha que se apaixona por um homem branco. “Vamos
à 25 de março!”, disse ao marido, referindo-se ao shopping a céu aberto de comércio popular
na capital paulista, formado por cerca de 3 mil diferentes pontos de venda. Pois, obstinada, ela
fez o companheiro subir oito andares da parte vertical do centro de vendas, de lojinha em loji-
nha, perguntando pela boneca. “E ele ia atrás de mim e não falava nada! E eu não parava, não
parava por nada. Tinha que achar a boneca para dar à menina”
Pois pocahontice foi o nome que os dois deram a essa obstinação. “É quando ela quer
alguma coisa e coloca aquilo na cabeça e nada faz desistir. E passa por cima de todo mundo”,
diz ele. É, então, uma forma de tornar pitoresca a “característica complicadora” da parte dela.
Funciona ao mesmo tempo para desculpar “É o meu jeito. Eu tento, mas é muito difícil mu-
dar”, diz ela e para congelar a ação. Quando ela começa a entrar em pocahontice, ele agora
a informa disso e ela “cai na real”, “mas sem que isso seja uma acusação, sabe”.
Mas se traz à tona essa obstinação cega que pode se tornar um problema oferecido por
ela à relação, ao mesmo tempo a pocahontice não existe sem uma contrapartida: “O Leandro
guarda tudo. Não fala nada! E acho que esse é um dos fatores pelos quais a gente não briga.
Mas, ao mesmo tempo, é o motivo pelo qual é bem sério quando a gente eventualmente acaba
brigando”. “Não gosto de briga. Ela quer ir lá, atrás da Pocahontas? Vamos lá. Eu vou junto e
apoio. não quero que a gente tenha que discutir por isso.” Essa falta de combatividade do
marido é apontada por Carolina como uma fonte de problemas para os empreendimentos
como a compra de um apartamento: quando decidiram que o fariam, ela queria começar no
dia seguinte e marcar cinco visitas a possíveis flats. ele, não via sentido em tanta pressa:
223
“Quando a gente toma uma decisão dessas, não pode ser correndo, tem que fazer tudo com
calma!”. Para ele, o motivo para não correr é a falta de necessidade, mas ele se move empur-
rado por ele. O motivo: “Não sei dizer ‘não’.” Para ela, a necessidade de se mover é... o jeito
dela. Entre os dois, a diferença se estabelece por complementaridade. Mas ela reconhece que
para ela “isso é muito conveniente na maioria das vezes, porque ele não fala e acaba fazendo
as minhas vontades [ri]. Mas acho que é uma coisa que vai matando o relacionamento.”
E, não, eles não encontraram a boneca.
* * *
Afonso soa um tanto insensível aos olhos da esposa quando chega em casa e se estira no
sofá. Chega, liga a TV e se deita, ocupando todo o móvel. Paula fica triste e se aproxima. Pára
ao lado, mas ele não percebe. Quando conversam, ela finalmente diz a ele: “Eu queria poder
sentar para ver TV com você, mas você não me espaço nenhum”. Ele tem um motivo: “É
minha coluna, você sabe!” Pablo fez “uma grande besteira”: Norma viajou, para Santa Catarina,
para ver a família, e ele saiu para beber com os amigos. “Bebi demais e... Já viu”. “Ele me disse
que tinha dormido com a Marcela, minha amiga... Porque bebeu demais!” A desculpa não fun-
cionou. Assim como no caso de Bruno, o personagem fictício que citei na Introdução, aquele
que vendeu seu bebê e tentou convencer sua namorada, Sonia, de que não havia problema nisso
porque eles precisavam do dinheiro e “podiam fazer outro bebê”, aqui a ação ficou localizada
em um plano do inaceitável. Se a coluna de Afonso lhe permite não ceder o lugar para a esposa
e evitar várias situações, como saídas incômodas, porque efetivamente coloca o ator em uma
condição de descontrole sobre suas ações que permite a efetivação de algo que permita “trata-
mento especial”, o que Pablo fez “foi longe demais”. No caso dele, o conflito o fez sair de casa,
passar dias em um hotel, passar dois meses na casa de um amigo até ser aceito novamente ao
224
lado da esposa. E em outras bases: “Eu sei que errei e eu ter bebido não desculpa o que eu fiz.
Mas não me deixa... Eu te amo”, ele chegou a dizer. Mais uma vez nos deparamos com o “per-
dão, porque não mais desculpa”. É uma articulação importante a ser feita a partir do duo ca-
racterísticas complicadoras/mal-estar relacional: nela, o ato de dar uma desculpa pode ser des-
crito em um quadro de temporalidade: quando diz que não há desculpa para o que fez e que só
quer o perdão, tributado ao amor que sente – o que configura um quadro de necessidade absolu-
ta (amor = necessidade de ter o outro), ele está deslocando o quadro de mal-estar de para um
plano deslocado rumo ao futuro: o perdão demanda que simplesmente se anule a possibilidade
de conflito (ou mesmo o conflito estabelecido), que se anule o mal-estar relacional, baseando
essa solicitação em uma promessa de futuro. “Me perdoe porque eu te amo” significa “Me per-
doe porque o futuro será diferente do presente em que hoje sofremos”.
O dar uma desculpa, por sua vez, parte de uma relação diferente com o tempo: quando a-
presenta sua versão dos fatos intermediada pela apresentação de uma circunstância, a demanda
para que se anule o mal-estar relacional passa por uma revisão do passado. Toda a operação é
de reconstituição, de transporte rumo a um tempo outro, no qual a situação fica explicitamente
definida: é nela que ou o ator praticante da ação deixa de ser a si mesmo ou que a situação muda
igualmente de estatuto, deixando de ser aquela que se desconfiava na regra moral.
225
FAMILIARIDADE
O quadro que apresentei até agora estabelece uma economia de tensões. Primeiro, a-
quela entre imagem singular do outro e questão moral fundamental. Cotidianamente, uma
pressiona a outra, a segunda à primeira, oferecendo constantes condições para o estabeleci-
mento de mal-estares relacionais quando no exercício das interações próprias do relaciona-
mento. É, como disse, uma manifestação da outra tensão, aquela entre abstrato e concre-
to, que é fundante na relação dos atores com o mundo moral. Aqui uma observação para a-
placar um engano fácil de cometer: embora a questão moral fundamental seja ela também
uma abstração, ela o é porque é uma integração apenas formalmente abstraída de uma série
de condicionamentos pragmáticos. A questão moral fundamental não é a moral, e portanto a
dimensão mais elevada, metafísica. Quem assume essa posição é a imagem singular do ou-
tro, é o ideal utópico sobre o qual se constrói a relação. A questão moral fundamental é uma
integração da pressão que a dimensão pragmática, de práticas localizadas, exerce sobre o
mundo dos seres metafísicos. Não estou negando que o outro, em uma relação amorosa, seja
“diferente de todos os outros(como me falaram textualmente muitos dos entrevistados, e
acabaram me dizendo, com outros textos, muitos outros). E nem que não. Esta questão não
se coloca aqui. É para a psicologia. O que aponto com este quadro é que essa singularidade,
em sua relação tensa com a questão fundamental também a cada momento em que ela in-
terage com as questões eventuais ocorridas quando uma problemática moral mais consagra-
da –, compõe uma imagem simbólica, segundo a qual os atores tomam decisões (conscien-
temente ou inconscientemente) e praticam ações, que eles interpretam constantemente e u-
sam como ponto de partida para suas próprias ações (BLUMER, 1986).
226
Essa posição interacionista simbólica me levou a pensar essa noção sob o ponto de vista
da construção de signos conotativos, “mitos”, no sentido de Barthes (2003) e, por conta disso,
imaginar que essa composição sígnica opera conforme uma matriz de vários elementos de
significação – como planos de significação que se coordenam e ou subordinam. A essa matriz
dei o nome de familiaridade
12
. O termo sugere uma partição entre dois mundos e dois tipos de
pessoas, aquelas que pertencem à nossa família e aqueles que a ela não pertencem. Essa ma-
triz nasceu de um conjunto de observações feitas nas interações com os entrevistados. Eles
não apenas se referem a essa familiaridade ainda que indiretamente –, como trazem à tona
essa série de elementos que a compõem. Assim, a familiaridade parece ser a noção central
articulada pelos atores para o estabelecimento e a manutenção de uma relação.
Esse conceito se define a partir da própria construção da matriz: familiaridade é a
noção de que uma relação está plenamente efetivada, ou seja, se constitui como uma u-
nidade social capaz de produzir uma vasta gama de efeitos, efetivos para todos os atores
nela envolvidos, e estabelecidos a partir de uma noção de singularidade do outro ator o
que aponta para a dimensão familiar e mesmo íntima das relações ou, a princípio, pelo
menos para um determinado tipo de relação, as mais privadas, mais íntimas: Uma rela-
ção íntima é a menor organização que criamos (VAUGHAN, 1986, p. 18). Mas essa
definição é, à primeira vista, tautológica. Ela depende, para ser plenamente funcional,
dos elementos que compõem a matriz. Esses elementos são, eles próprios, assim como a
própria familiaridade, noções, representações simbólicas (e portanto abstraídas) em refe-
rência às quais os atores, no plano de suas interações cotidianas, atuam.
12
A sociologia pragmatista, especialmente Thévenot, tem trabalhado com o conceito de familiaridade (constitu-
indo mesmo um regime para ela), mas utilizo o termo de maneira independente de suas definições aqui. Adotei-o
a princípio por dedução teórica, mas ele foi se tornando cada vez mais uma forma induzida de várias impressões
que obtive no campo nas entrevistas, impressões que vinham de falas como: “Ele é a minha família, não pode
fazer isso comigo”, “Com o tempo, a gente vai sentindo que ele entra na família” ou “Minha mãe trata o Leandro
exatamente como me trata. É exatamente como se ele fosse filho dela. Dá as mesmas broncas”.
227
1) Previsibilidade: o outro nos é conhecido e agirá sempre de uma mesma maneira
Ao longo de todas as entrevistas, um mesmo padrão de constituição da linha de base
dos relacionamento moldou uma idéia de reconhecimento. A singularização do outro como
alguém com quem se quer estar ao lado é o estabelecimento de uma memória: aquele ali
com quem mantenho uma relação (aquele que amo) é aquele com quem quero interagir
sempre porque a interação com ele não apenas me é boa, mas me é sempre boa isto, claro,
é uma utopia. O que eu mais gosto nele? Ele está sempre dizendo e fazendo coisas novas,
diferentes!”, diz-me Bruna, advogada, casada sete anos, desde os 20, com Wilson, tam-
bém advogado. Os dois estudaram juntos, entraram para a mesma faculdade, formaram-se
de juntos e hoje trabalham cada um em uma área de direito. A fala da moça de cabelos mui-
to pretos e pele muito alva soa curiosa por conta da aparente contradição, mas é uma defini-
ção central: o marido muda, se reinventa, mas faz isso “sempre”. Por mais que varie, ele se
mantém como a mesma pessoa. Assim, o começo de um relacionamento, que Kaufmann a-
ponta como uma aventura” é não porque seja um mergulho no desconhecido, mas porque
se dirige para o conhecimento. “Aos poucos, a distância segura se estabelece”, diz Gustavo,
explicando como conviver com o excesso de iniciativa” de Cinthia. Rapidinho eu me a-
costumei com aquelas coisas dela de incenso, astrologia, essas coisas. Imagina! Eu, comu-
nista!”, conta rgio, marido de Cláudia na Introdução, citei brevemente uma situação en-
tre os dois, relativa à não utilização de um apelido íntimo
13
. Trata-se de um constante pro-
cesso de aprendizado daquilo que é uma regra entre os dois integrantes da relação. Ora, um
13
Tenta-me concluir a história iniciada naquele momento: ele não a chamava de “Filhinha” havia “duas semanas”,
segundo ela. Diante da acusação, ele primeiro tentou desqualificar a regra: “Eu? Mas eu tinha que chamar?” Cláu-
dia: “Tinha, sim, tinha. Você sempre me chama assim. O que está acontecendo?” Ele ficou em silêncio um tempo,
mas depois revelou que havia algo errado de fato: “Sabe o que é, amor? Eu não consigo... Você, loura, eu não te
reconheço. Não consigo te chamar de Filhinha com esse cabelo desse jeito.” Pois, então: ela havia tingido o cabelo.
Habitualmente morena de cabelos castanhos médios, ela colocara um louro alvo nas madeixas. Quando os conheci,
ela estava de cabelo “normal” – o episódio do cabelo tomou um bom trecho do segundo ano deles morando juntos,
primeiro de casados, mas continuava na memória de ambos intensamente, mesmo ao cinco anos de co-habitação.
228
relacionamento não é uma relação com regras dadas embora haja algumas mais ou menos
difundidas e quase universais, como pressupostos tais como fidelidade, co-habitação etc. e
nem com regras p-estabelecidas. O que de relevante aqui é que esse conjunto de regras,
articulado com a imagem singularizada do outro, seo outro lado da questão fundamental.
Será em referência a essas definições e a essa imagem singularizada do outro que se estabe-
lecerão os mal-estares relacionais em cada relação.
E será justamente a partir desse mito de previsibilidade que se estabelecerá a confi-
ança, elemento apontado como central por todos os entrevistados
14
. De fato, aquilo que
surge quando um njuge ou namorado age segundo uma forma com qual o outro não es
acostumado é uma desconfiança, uma perda de chão diante da impossibilidade cognitiva
de reconhecer o outro. “Ah, mas eu acho que a gente sempre se surpreende com o marido,
?”, diz Marilda. Para completar: Mas o vou dizer que o i quando isso acontece”.
Algo semelhante vem de Viviane, com uma racionalidade que aponta para o mesmo tipo
de é assim mesmo apenas apresentado em uma, digamos, ordem inversa: A gente
confia desconfiando, né? Deus me livre de acontecer alguma coisa, mas a gente tem que
estar pronto para sofrer um baque. Mas a gente tem que confiar. Se não confiar, como é
que vai ter um relacionamento?” Isto, vindo dela, que se encantou com o fato de o namo-
rado demonstrar uma atitude o calculista, despojada de estragias, ajuda a mostrar o
grau da imporncia que os atores atribuem à previsibilidade: mesmo diante de uma cons-
ciência forte de que ela é um princípio ideal, e em parte uma representação mais do que
um dado estastico, ele é um mito a ser alimentado, sem o qual a relação seria imposvel.
14
Mesmo diante de relações em que a fidelidade é relativizada, como as descritas por Von der Weid (2008) ao
analisar a prática do swing por casais cariocas, uma noção de confiança é central: o uso da expressão “adultério
consentido” sugestiva em rias dimensões, inclusive a psicanalítica, por conta do jogo de palavras contido
duo consentido/com sentido –, colhida pela autora com um de seus entrevistados, conta de uma previsibilida-
de e uma memória de confiança fortes: é ao amor dos dois exercitado mesmo no âmbito de uma sexualidade
mais complexa, envolvendo mais e outros parceiros que ambos são fiéis e essa configuração é negociada e
reconhecida por ambos como um traço de seu relacionamento, algo que eles sabem que está lá e estará lá.
229
2) Inevitabilidade: a relação é inevitável, determinada por um princípio superior
O amor é o centro de um relacionamento amoroso. Pode parecer uma tautologia redun-
dante. Mas diante de meus entrevistados, ela faz muito mais sentido do que apenas como ex-
pressão lógica. É que o amor é um símbolo importante, e, no caso de uma relação afetiva, é o
“princípio superior comum” que estabelece a lógica de uma ordem moral específica. Os en-
trevistados procuram justificar a aceitação de circunstâncias as desculpas dadas por seus
companheiros – e a aceitação das idiossincrasias do outro, baseado no fato de que ele é o ente
amado e, se é, ele é merecedor desse amor. Justamente pelas singularidades enxergadas no
processo de construção da relação. É uma definição circular: é amado porque é singular e se
torna singular porque é amado. A principal conseqüência disso é um princípio de inevitabili-
dade. Esse princípio opera em dois sentidos: primeiro, como instaurador, ou seja, como justi-
ficativa da própria relação; depois, como mantenedor, como justifica para que a relação se
mantenha. O primeiro é sustentado por idéias como “Tinha que ser ela”, “Nascemos um pro
outro” (que ouvi de alguns casais aqui e que é recorrente em qualquer relacionamento) ou
“Quando a vi pela primeira vez, vi que ela era meu número” (Ricardo, marido de Soraya, ca-
sados há oito anos, com uma separação de dez meses no final do terceiro, tendo os dois se ca-
sado depois de um ano morando juntos, que se seguiram a um namoro de... três meses).
A segunda forma do princípio é o uso de uma forma total de desculpa de “é assim mesmo”,
uma forma de dar conta da circunstancialidade proposta pelo outro. De maneira geral, entretanto,
esse princípio é uma forma de dar conta da continuidade de oposão em relão à queso moral
primordial. Seo, vejamos: uma discuso aparentemente banal entre Olivia e Umberto levou a
uma discussão sobre as bases de sua relação. Casados havia apenas seis meses (no momento da
entrevista, eles estavam juntos havia três anos), ele usava o notebook dela, sentado no sofá da sa-
la. Como o utilizasse com a bateria e o monitor estivesse “escuro”, encaixou no aparelho o cabo
230
de alimentação, que permitia fornecimento diretamente da rede elétrica. A companheira, ao ver o
gesto, virou-se para ele com “o rosto vermelho” (a descrão é do marido): “Não pode colocar o
cabo de energia com a bateria pela metade, estraga.“É desta vez, eu tenho que entregar isso
aqui amanhã sem falta, amor.“Mas retira a bateria, por favor.” “Tá, assim que der, eu tiro”.
“Você o tem nenhuma considerão!”, gritou ela, enfurecida. Ele se manteve trabalhando. Ela
voltou minutos depois e gritou novamente: “Você o tem nenhuma considerão!” Ele ergueu a
voz (segundo ela, “com frieza”, para ele, “calmamente”): “Eu não acredito que vo tá brigando
comigo por causa de uma bateria de computador”. Ela ficou em silêncio e se pôs a chorar. Pouco
depois: “Eu te amo! É por isso que eu aturo tua indiferea. Você é um covarde!”
15
“Ah, a gente aceita essas coisas porque ama, né?”, diz Cinthia. “Tem que aceitar as coi-
sas, senão a gente não vai poder amar ninguém”, completa ela mesma. Uma frase que acho
providencialmente curiosa é de Talita:
Não tem aquele negócio do filme, de ‘amar é nunca ter que pedir perdão’? Pois é. Do
perdão eu não sei, mas amar é ter que dar e ouvir muita desculpa esfarrapada. Porque se
você ama, se ama mesmo, é condescendente. O seu marido pode nem estar errado de fa-
to, mas você tem que ser condescendente com ele até quando ele escerto.
Mais uma fala que parece uma contradição: ser condescendente mesmo que o outro esteja
certo. Mas o que brota dessa fala é que a mulher quer informar que um procedimento típico
para a condescendência – que envolve desligar a máquina de avaliação de provaspica da justifi-
cação e passar por cima desse imperativo e que esse procedimento, esse ritual mesmo, pode,
deve ser aplicado ao amado mesmo que o seja necesrio uma alteração de lógica.
15
Preciso contar que vivi uma situação bastante semelhante em um relacionamento meu, também envolvendo
uma bateria de computador e o uso dela sem total carga. O desenrolar foi diferente e resultou em uma discus-
são mais séria. Mas informo que passei por essa situação não apenas para oferecer um parâmetro de comparação
e também não para mostrá-la como típica, mas para apontar para um fato de eu desconfiava, por experiência
própria, antes mesmo de fazer a pesquisa, do papel simbólico dos objetos na dinâmica da relação. Não investi
nessa questão nesta tese, mas ela me pareceu um tema importante a ser abordado, em outra pesquisa. O que pude
observar sobre isso nesta pesquisa é que a importância dada a essa economia dos objetos apontada, por exem-
plo, por Thévenot (1994) reforma a dimensão actancial que deve ter um olhar sobre os relacionamentos, inun-
dados que eles são por uma forma variada de ações de influências de muitos fatores objetais.
231
3) Intimidade: há pouca ou nenhuma limitação em relação ao outro
A intimidade é a forma mais externa, mais visível, da familiaridade. De fato, costuma-se
tratar uma pela outra e muitos estudos centrados em sociologia das relações afetivas usam o grau
de intimidade
16
como variável-guia para analisar a efetividade de uma relação. Mas a intimidade
se mostra como um componente da familiaridade. Por intimidade, entendo aqui uma noção de
eliminação (ou redução, variável segundo o grau de intimidade) de limitações de interação em
relação a outro(s) ator(es). Esse conceito é o que mais explicitamente divide as pessoas do mun-
do em dois tipos, as que são íntimas de nós (e que podem agir ou falar de maneira diferente das
outras) e as queo íntimas. Essa divisão conduz para uma tipologia de dois elementos:
a) Intimidade actancial: a noção de que não há limitações na gama de ações que se pode
praticar em relação ao outro. Essa forma de intimidade é aquela correspondente a tudo que
deixamos – e que se espera que deixemos – que o outro faça conosco e vice-versa. É um pres-
suposto das relações: “Na sociedade americana, nós usualmente não perguntamos por que
pessoas se engajam em relações sexuais” (SCOTT e LYMAN, p. 112) é uma demonstração
desse tipo de pressuposto. Na intimidade actancial, estabelece-se um acordo tácito de que po-
demos tocar no outro e de determinada maneira (abraçá-lo, beijá-lo, ter relações sexuais com
ele, bater nele, vendê-lo, matá-lo
17
, dependerá do grau de intimidade, da permissão).
16
Por exemplo, Jamieson (1988) e Jeudy (2007).
17
Um dos exercícios mais limítrofes dessa noção foi o caso do técnico de informática alemão Armin Meiwes, de 42
anos, que em 2003 ficou conhecido mundialmente como “O Canibal de Rothenburg”. Meiwes foi preso e admitiu ter
matado, desmembrado e comido o corpo de um homem que respondeu a um anúncio colocado por ele na Internet para
participação de um ritual de canibalismo. A questão do julgamento foi que a vítima respondeu ao anúncio por livre
espontânea vontade e, consciente de todos os detalhes, permitiu que Meiwes o apunhalasse no pescoço, cortasse seus
órgãos genitais e os fritasse com alho para ser consumido por ambos enquanto praticavam sexo, o fizesse sangrar até a
morte, o matasse e, depois de morto, que ele o cortasse em pedaços, o congelasse e o consumisse, regularmente, em
suas refeições (com todo o processo sendo gravado em vídeo e sendo assistido pelos dois enquanto se passava – o que
acabou servindo de prova no tribunal contra o “suposto” assassino. Ele fora preso em dezembro do ano anterior, quan-
do um novo anúncio colocado por ele foi denunciado à polícia e os agentes encontraram as provas em sua casa. Os
anúncios de Maiwes falavam em “ritual de intimidade absoluta” e sua alegação no tribunal é que o ato era consentido e
que o exercio da intimidade entre duas pessoas é inviolável e tudo permite desde que seja de comum acordo. Ele só
foi punido severamente depois que a Suprema Corte da Alemanha reabriu o caso, após ele ser condenado por 8 anos
por “indução ao suicídio. Na segunda sentença, ele foi condenado por assassinado e por “trama para ação hedionda”.
232
b) Intimidade informacional ou “disclosing intimacy” (JAMIESON, 1988): a noção de
que não limitações na gama de informações que se pode ter do outro e que se pode apre-
sentar ao outro. Essa forma de intimidade informa que no âmbito de uma relação amorosa,
uma negociação em torno da possibilidade de dois tipos de fluxo de informação. O primeiro
deles, o de fluxo privativo de informação: a pessoa íntima é aquela que poderia saber de nos-
sos segredos, que nos conheceria bem e que mereceria ouvir de nós o que poucas outras pes-
soas teriam o direito de ouvir. O segundo tipo de fluxo é o de perda de censura ou de mani-
festação de coragem: a pessoa íntima é aquela a quem podemos falar determinadas coisas que
não teríamos coragem de dizer a outros. “Você é muito mais cruel com quem você ama, por-
que com essa pessoa você perde totalmente a cerimônia, você é você mesmo”, diz Paulo, um
professor de filosofia que leciona em um colégio secundário, marido de Margarida, professora
de história. E ela prova (assim como vários outros entrevistados, entre eles Carolina, que re-
pete várias vezes que “se alguma coisa me incomoda, eu falo”). Conta que nunca teve ceri-
mônia de dizer o que pensava do marido, mas se sentiu “até mal” no dia em que disse a ele
que ele não passara em um concurso porque escrevia mal. “O que se espera é que você fique
ali, dando apoio, falando um monte de eufemismos, mas chega uma hora em que a pessoa tem
que saber da verdade”, diz ela, mostrando uma normalidade alternativa ao papel esperado da
esposa compreensiva. Esperado por ele: “Você vira noites trabalhando, estudando, não passa
por causa sei de que motivo e se chateia com isso, claro. E quando acha que vai encontrar
um ombro amigo em casa, você escuta que tinha que fazer oficina de texto, que você escreve
mal.” A história desencadeou uma crise que quase separou o casal e despertou outras “cruel-
dades”: ele a acusou de ser uma mãe relapsa da filha do primeiro casamento, que mora com
os dois: “É por isso que ela vira a cara pra você quando você tenta mostrar sua autoridade”.
“Mas você não tem medo de perdê-la, dizendo coisas assim?”, pergunto: “Não, de jeito ne-
nhum, ela é minha mulher, meu amor, eu posso falar essas coisas pra ela.”
233
Decorrências da afirmação de que a familiaridade é uma matriz ou
Pessoalidade e familiaridade
Afirmar que a familiaridade é uma matriz significa desmembrar esse conceito em seus
elementos. Mais fortemente, essa abordagem indica que esses três elementos se coordenam
para compor a familiaridade. E isso em “quantidades” variáveis. Isso corresponde a dizer que
nenhum dos três componentes “causa” ou “determina” ou outro a priori, e sim que eles são
mutuamente determinados. Assim, se a intimidade, ou seja, o impedimento para agir ou falar
com o outro, pode ser justificada pela inevitabilidade, ao mesmo tempo esta é justificada pela
própria intimidade, que provoca a impressão de que a relação com o outro é inevitável. I-
gualmente, a previsibilidade será componente provocado e provocador desses dois outros fa-
tores, apresentando uma coordenação prática a determinar o relacionamento. Cheguei a pen-
sar em uma tipologia de tipos de familiaridade, definindo tipos de relações, mais centradas em
cada um desses eixos, mas cheguei à conclusão que essa tipologia atenderia mais a uma socio-
logia específica da relação do que da influência da desculpa nas relações. Fica para outro tra-
balho. Mas ficou claro para mim que esses três elementos operam mais como gramáticas, co-
mo regimes de familiaridade, a definir diferentes instâncias a guiar as ações em cada situação
relacional, dependentes do tipo de ação e, sobretudo, dos tipos de imagens simbólicas em jo-
go. No próximo capítulo, retomarei este tema.
O amor romântico é a utopia da familiaridade máxima. Máxima porque artificializada.
Alguém com quem a relação não é obrigatória, não é previsível e não é íntima vive uma inte-
ração pontual. Do outro lado, alguém com quem esses três elementos se manifestam ao limite
tudo interage em tudo produz sociação, tudo efetiva com o outro. Mas toda relação, reco-
nhecida como uma instância de interações habituais entre (pelo menos) dois atores possui cer-
to grau de familiaridade. Essa é a principal decorrência de tratá-la como uma matriz em que
os diferentes regimes de familiaridade deslizam um coordenado ao outro o traço definidor
234
dessas gramáticas: pensada como um modelo mais geral, a familiaridade pode ser uma medi-
da de sociação de qualquer relação, seja ela de caráter íntimo ou não. Estou me referindo a
uma inclusão deste quadro aparentemente específico de relações de quaisquer ordem de gene-
ralidade, até mesmo as descritas no capítulo anterior. O que é necessário para isso, no meu
entender, é um pequeno salto lógico (mais uma vez para um grau superior de abstração): em
vez de pensar em uma processo de singularização do outro (o que certamente é o que será de-
terminante em uma relação amorosa, ou de amizade), pensar em formas de peculiarização:
toda relação, para se constituir, parece depender de um processo de formação, no qual o outro
é instituído simbolicamente, no qual ele é tornado diferente dos outros outros e é estabelecido
um critério de reconhecimento. É uma imagem simbólica que se conserva, algo que talvez eu
possa chamar de reputação. Assim, se um marido é estabelecido como digno do amor pela
esposa por ter um série de características segundo as quais ela o considera singular, um políti-
co pode ser estabelecido como digno de confiança, aceitação etc. com seus eleitores ou com a
“opinião pública” entendida aqui em um sentido mais lato, ou mais nativo, do que o que é
criticado por Bourdieu (1983), que corresponderia a uma ilusão de coletividade e concordân-
cia, significando, em vez disso, um painel do espaço crítico produzido publicamente (por e-
xemplo, nos jornais, nas pesquisas de opinião etc.). O que vem disso, então, é que podemos
falar em uma familiaridade para os não familiares, de uma atuação generalizada dessa matriz
sobre as relações sociais em geral. Isso porque a familiaridade será sempre a instância da li-
nha de base sobre a qual se estabelecem os pilares de uma relação. É a negociação tácita sobre
definições, que dependendo do grau de generalidade da relação nem precisa ser tácita, pode
mesmo ser estabelecida por contrato. Porque parece ser essa a variável principal do eixo que
vai dos casais aos políticos: o grau do quão tácito e do quão expresso é esse quadro desses
pilares. Em jogo nessa construção, a partilha ou não de definições: e é porque precisam de
definições expressas que eles recorrem à justificação, baseada na prova e nas generalidades.
235
Há, entretanto, a circunstância, há a pessoalidade. No quadro da pesquisa com os actan-
tes públicos, essa faculdade parecia uma competência própria das relações formais, quando
estas se afastam de suas generalidades definidoras. Uma idéia simplificadora a se ter é que
relações “íntimas” teriam uma aproximação das circunstâncias o suficiente para não depen-
der dessas torções. Mas aquilo que minhas entrevistas com casais demonstrou é que o empre-
endedorismo moral se manifesta internamente a essas relações íntimas segundo o mesmo pro-
cesso, ou seja, segundo um par oposicional generalidade/pessoalidade, com o segundo ele-
mento operando a saída do plano do primeiro, uma condição de normalidade abstrata, aquela
maneira como a relação deveria ser e a maneira como ela está sendo.
Por isso mesmo, retorno a Calvin e Susie, dois amiguinhos, quase namoradinhos, e por
isso mesmo os faço se encontrarem com Priscila e Walter. Foi outro casal cuja interação tes-
temunhei, que almocei na casa dos dois para explicar a pesquisa antes de fazer a primeira
das entrevistas, com ele. A dela foi feita dois dias depois, em casa mesmo. Ela é uma artista
plástica ainda em busca de reconhecimento com seu trabalho de pintura, ele um profissional
do audiovisual. Jovens, morando juntos havia sete meses quando os conheci, logo que retornei
ao Brasil, em agosto em 2007, eles me foram apresentados por um amigo que sabia que eu
fazia uma pesquisa com casais – embora não soubesse exatamente sob que abordagem – e que
espontaneamente sugeriu os nomes deles.
No almoço, no qual ficou clara uma divisão de tarefas, entre ele cozinhando e ela “or-
ganizando” (era o nome que ela dava para atividades como lavar a louça e pôr a mesa), ou,
como ele disse, ele “sujando e ela limpando”, eles mostraram bastante curiosidade a respeito
da pesquisa e me fizeram perguntas que me obrigaram a dar mais conta do que eu gostava
de dar antes das entrevistas de fato, mas tive que me adaptar à situação. Walter não preparava
nada de muito sofisticado, apenas alguns bifes, que comeríamos com batatas. Trocamos al-
gumas impressões sobre culinária e nos pusemos a falar sobre a rotina deles.
236
O casal se viu pela primeira vez quando um amigo dela, fotógrafo de jornal, fez aniver-
sário e marcou um chope em um bar. Espaço pequeno na Zona Sul, o boteco ficou pequeno
para batalhão de relacionados e logo as pessoas que estavam no bar, em outras mesas, foram
incorporados ao grupo do aniversariante. Priscila e Walter se conheceram por uma discordân-
cia. O que, na tipologia do camarada que citei anteriormente, significa que eles partiram para
a intimidade desde o primeiro momento. Ela falava sobre filmes. Iranianos. Para ela, “lindos e
profundos”. “Mas, peraí”, interrompeu o rapaz. “Por que todo filme iraniano tem que ter uma
criancinha, uma velha tagarela e um objeto? É sempre maçã, balão branco, sapato, caderno...”
“Você não entendeu nada, essas formas são imagens poéticas.” “Não, minha querida, você é
que não entendeu: essas formas são a mesma [na narração, ele fala essa palavra com muita
ênfase] imagem poética... Azevedo
18
, mais uma aqui, meu filho!”
O misto de discordância e indelicadeza com que ele “cagou regra” deixaram a moça fo-
ra de si. Ela comentou com a amiga, que tinha ido com ela: “Que cara grosso.” A amiga: “É,
mas é um gato.” Ela nem concordou, à primeira vista. Ele fazia mais o tipo da amiga, com
cabelo muito curto e barba por fazer. Mas a observação da amiga a deixou de sobreaviso: era
um rapaz diferente. Do lado dele, quatro cadeiras mais à direita dela, do outro lado da mesa,
ele a achou bonita no momento em que a viu. “Mas eu tenho uma coisa muito esquisita. Eu
sempre olho para a mulher que eu acho mais bonita num círculo. Se chega uma outra mais
bonita, eu posso estar pedindo a mulher anterior em casamento que eu me interesso pela ou-
tra”, conta, sem a presença da mulher. Como havia duas moças que ficavam em postos
mais altos em uma escala “estritamente racional” (segundo ele) de beleza, ele olhara menos
para ela. “Mas ela tem esse sorriso, né! Esse quando ela com raiva, olha só”, diz, ainda no
almoço, quando ele caçoa dela por algo que ela disse. A discussão sobre os filmes iranianos
envolveu outros da mesa, mas o debate era mesmo dos dois e seguiu por bem uma meia hora
18
O nome do garçom também foi mudado. O casal mora hoje perto do bar.
237
ou mais, até alguém desviar o assunto para “o chefe filho da puta da produtora”. Nesse
momento, iniciou-se uma sessão coletiva e provavelmente catártica de desagravo à hierar-
quia do mundo do trabalho. Quando perguntaram a ela de seu chefe e ela disse que não tinha,
que pintava e estava tentando viver de sua arte, ele lançou mais uma “bola de neve” la Cal-
vin e Susie): “Ah, então é por isso que você gosta de filme iraniano. É cheio de natureza mor-
ta.” Funcionou. O riso generalizado na mesa contagiou até a ela. Tinha sido “zoada” na frente
de todo mundo e... gostara disso. Algo estava errado.
“Mas eu não pinto natureza morta, não. Eu faço assemblage
19
”, ela tentou recuperar-se
do baque com uma demonstração de conhecimento.
“E você cata lixo na rua, essas coisas? E cola na tela?” (é, não adiantou muito).
Estava pegando mal já, ele pensou. Por que estava atormentando aquela menina? Resol-
veu “pegar mais leve”. Horas depois, quando o clima estava bem menos concentrado e as pes-
soas se dispersavam, ele se aproximou dela: “Escuta... Me desculpa, eu não quis ser rude.
Espero que você não ligue de eu ter sido sincero.” “Ah, não... Imagina! Não foi nada” (“Era
mentira, claro, eu queria bater nele”, conta). O que se seguiu foi “totalmente fora de meu con-
trole”: “Deixa eu pegar seu e-mail? Pra gente se falar mais?”
Trocaram e-mails e telefones e ela sentiu que era a deixa para ir embora. Senão eu
o ia mais!Mas eles se ligaram no dia seguinte e foram a um show. Marcaram de se en-
contrar lá mesmo, dentro da casa de espetáculos. Viram-se apenas depois de meia hora,
depois da banda de abertura. Quando finalmente se encontraram, trocaram um abraço.
“Apertado, claro”, disse ele. Ficarampela primeira vez na segunda música. “E o des-
19
Estilo de arte hoje associada à pintura, mas que, florescido na França e nos Estados Unidos no começo dos
anos 1950, é baseado no pressuposto de que qualquer material pode integrar uma obra de arte. Na assemblage,
habitualmente faz-se uma “colagem” de objetos sobre uma tela (associada a pigmentos ou não) ou em um objeto
sólido, constituindo um objeto escultórico. Um excelente exemplo (meu favorito) de artista dessa vertente é um
de seus fundadores/consolidadores, o americano Robert Rauschenberg. Não descreverei o trabalho de Priscila
porque, tenho certeza, dada sua qualidade, isso poderá um dia ajudar a identificá-la, o que não é meu objetivo.
238
grudamos mais. Zero. Até hoje. A gente dorme junto todo dia desde aquele dia, diz ele.
“Não passou um dia sequer sem que a gente o passasse junto”, contam os dois, com
quase o mesmo texto. E ela foi morar no apartamento dele três meses depois. Ele:
Foi uma aventura (neste momento, lembrei-me de Kauffman), porque era um quarto e sa-
la, com uma dependenciazinha e ela chegou com aquelas coisas todas de pintura, com
aqueles trecos, aquelas latas, aqueles... Cara, ela levou uma roda de bicicleta e um maca-
co, de automóvel! Me deu um medo...
Ela:
Imagina: eu ia morar na casa dele, a maior invasão, e ele quase o tem nada! Tem uns
livros empilhados, um armário de roupa. O que ele tem mesmo são os equipamentos. O
computador, as telas, essas coisas. Mas a sala dele tinha esse sofá, dado pelo pai, que
morava aqui [no apartamento novo, de dois quartos, para o qual eles tinha se mudado
dois meses antes de conhecê-los], e a mesa era um balcão que dava da sala pra cozinha.
E eu estava levando pra não minhas coisas de casa, o que incluía o microondas, o
meu computador, também um desktop. Eu tava levando também meus materiais de tra-
balho e [ênfase muito forte no “e”] meus trabalhos prontos. Eu não tenho galeria ainda,
imagina. Meu atel é minha casa. Nos meus pais, eu pintava no quartinho [de emprega-
da], mas o de [da casa dele] era minúsculo!
O estabelecimento de uma rotina também foi algo complicado. Embora ela trabalhasse
em casa, passava boa parte do dia estudando, na Biblioteca Nacional. “Eu queria fazer mes-
trado e estava ao mesmo tempo pesquisando para o meu trabalho e para um projeto de pesqui-
sa.” O “casamento” inclusive a fez mudar de idéia em relação ao plano de talvez tentar fazer
isso fora do Brasil. “Lá fora, eu poderia fazer mestrado em arte mesmo, em feitura de obra de
arte. Mas aqui eu tenho como conjugar as duas coisas. Na verdade, eu estava em dúvida sobre
se eu queria fazer mesmo arte ou comunicação ou antropologia” (o que me fez conversar um
bocado com ela sobre as opções de estudo no Brasil). Walter trabalhava ora em casa, ora
em produtoras. Tinha dois trabalhos fixos e horários muito variáveis. Se os dois não passaram
um dia ser dormir juntos, deu muito trabalho, porque em vários dias, ele virou a noite traba-
lhando. Mas é nesse momento que o casal se estabelece. Priscila fazia café para ele e começou
a ajudá-lo quando podia. Esquentava a sopa que ele preparava. “Senão ele não come. Se você
239
não dá na boca, ele fica sem comer!” ele, começou a servir de carregador nos passeios dela
por feiras de antigüidades, lojas de materiais dos mais variados e se tornou mesmo um caça-
dor de “lixo”. “Ele vive chamando assim o meu material!”
Mas teve uma vez que ele foi muito fofo! Muito! Ele chegou em casa e me trouxe uma
caixa de presente, com laço de fita e tudo. Sabe, essas de papelaria, tipo Papel Picado?
Abri, e era... uma série de parafusos, grandes, enferrujados. Ele disse que achou a minha
cara, que eu ia adorar usar aquilo. E ele sacou direitinho, porque eu tava numa de fazer
algo com objetos pequenos, chaves, parafusos, mas não tinha falado nada com ele ainda.
É um amor, esse menino!
Essa atenção de lado a lado estabeleceu uma rotina que leva os dois a chamar o outro
de “carinhoso”. Mas o espaço exíguo da casa e as diferenças existem. A primeira, baseada em
uma mentira: ele aceitou ir ao show em que começaram a namorar “só pra encontrar com e-
la”. Mas ele teve que contar a ela depois que odiava aquela banda. Na verdade, ele gostava de
jazz de rock progressivo. Ela, de música brasileira, rock “muderno” (como ele chama). Parece
um tema simples, mas como os dois são ligados ao cenário artístico, a disputa em torno do
cinema iraniano era de fato um emblema. A discussão sobre essa ou aquela obra, esse ou a-
quele músico, esse ou aquele livro, renderam (e rendem até hoje) muitas disputas. Ainda mais
porque ele continuou sem papas na língua. Ampliada pela familiaridade, pela intimidade.
Essa falta de cerimônia começou a gerar problemas quando ela mudou um pouco seu
trabalho e ele disse que não gostava da nova fase. A “falta de apoio” que ela via na “sinceri-
dade” dele gerou uma série de mal-estares. “Sabe qual é o problema? Você não ajuda. Você
diz que não está bom, mas não diz o que pode ficar melhor!” “Mas como eu vou dizer isso?
Eu não entendo nada de pintura!” E arremedava: “Você prefere que eu minta para você?” “Eu
prefiro que você me dê apoio, que me ajude”. E quando ela finalmente usou os parafusos que
ele lhe dera em um trabalho, mostrou a ele. “Não tive coragem de dizer que não gostei!”
“Disse que não tinha tempo para pensar naquilo, que estava com um problema na produtora.”
E se manteve desconversando por um bom tempo.
240
A questão se arrastou até que ela lhe deu um ultimato: ou dizia o que achou ou ela ia sa-
ir de casa. “Você vai sair de casa por causa da minha opinião sobre a sua obra?”, perguntou
indignado. A resposta era óbvia, quase literária: “Não, por causa da sua falta de opinião!” Mas
ele não queria dizer o que achava.
Amor, eu acho que a gente devia deixar essa coisa de fora da nossa relação. Eu tenho a
maior admiração do mundo pelo seu trabalho, pelo fato de que você faz arte. Te amo, te
acho linda e te acho mais linda ainda porque você tem essa sensibilidade. Mas às vezes,
uma vez ou outra, eu não acho legal, não me afeta. E eu não quero ser responsabilizado
como aquele-que-não-gosta-do-seu-trabalho porque uma vez, por acaso, não me agra-
dou. Vamos fazer o seguinte? Quando eu não gostar de alguma coisa que você fez, eu te
dou um beijo na testa. E você entende que é o caso e a gente não fala mais nisso. Mas te-
nha certeza disso: eu acho seu trabalho maravilhoso.
A proposta soava um tanto absurda: substituir uma circunsncia espefica por uma ão
que o desculpasse genericamente pela omissão. Como poderia funcionar uma mentira entre duas
pessoas que sabiam qual era a verdade?Mas o era uma mentira. Era um código nosso.”
A idéia de que ele não me admirava, ou que poderia não se orgulhar de mim me dava um
medo tremendo. Na verdade, eu andava muito insegura em relação a meu trabalho e vi-
nha pensando em dar um tempo. E estava querendo que ele aprovasse isso. Depois, en-
tendi que estava sendo injusta com ele ao jogar essa responsabilidade sobre ele. E acho
hoje que foi bonito o que ele fez, para evitar que a gente brigasse por isso.
Esse epidio me lembrou uma outra ótima situação ficcional, envolvendo igualmente a a-
ção de dar uma desculpa em uma tirinha cssica, Peanuts, de Charles M. Schulz (1999), citada
por Slansky e Sorkin (2006): Lucy, uma menininha de cabelos pretos e vestidinho azul, sobre a
qual pesa o posto de algoz do personagem principal, Charlie Brown, apelidado com o “Peanut
(“Minduim”) do título, e cruel figura que atravessa as vidas de todos os personagens, anda pela
vizinhança com um papel nao. Ela pede para que todos os amigos assinem o documento. “As-
sine... Isso mesmo... Obrigado”, diz ela, diante dos colegas. Ao se deparar com Charlie Brown, ela
revela o contdo do texto: “Não importa o que aconteça em qualquer lugar do mundo ou em
qualquer momento da hisria, este documento me absolve de toda culpa”. Charlie Brown obser-
va: “Este deve ser um ótimo documento para se ter”.
241
Espécie de protagonista de romance russo infiltrado numa história em quadrinhos “in-
fantil” americana, Charlie Brown é como um avô de Calvin
20
, no que diz respeito ao reinado
como guia de dilemas morais na cultural de massa na forma de tirinha de jornal. As desventu-
ras do menino azarado, deprimido e constantemente preterido pelos colegas, menos por Linus,
seu inseparável amiguinho, retratam não os sofrimentos da infância como também vários
debates sobre a relação bem do outro/bem de si do mundo adulto
21
. Eis a brilhante defesa de
Umberto Eco, feita originalmente em 1964 em Apocalípticos e integrados (1987, p. 286):
A poesia dessas crianças nasce do fato de que nelas encontramos todos os problemas, to-
das as angústias dos adultos que estão atrás dos bastidores (...) Essas crianças nos tocam
de perto porque num certo sentido, o monstros: o as monstruosas reduções infantis
de todas as neuroses de um moderno cidadão da civilização industrial (...) Nelas encon-
tramos tudo: Freud, a massificação, a cultura absorvida através das várias “Seleções”, a
luta frustrada pelo êxito, a busca de simpatias, a solidão, a reação proterva, a aquiesn-
cia passiva e o protesto neurótico. E no entanto , todos esses elementoso florescem, tal
qual os conhecemos, da boca de um grupo de inocentes: são pensados e reditos depois de
terem passado pelo filtro da inocência.
É uma história, então, sobre a experiência solitária e individual dos dilemas morais do
mundo moderno e, a julgar pelo interesse que ainda desperta, o contemporâneo. Mais uma
vez, Eco, de quem fico tentado a emprestar a sinopse (p. 287-288):
No meio, está Minduim: ingênuo, cabeçudo, sempre inábil e, portanto, votado ao insu-
cesso. Necessitado até à neurose de comunicação e “popularidade”, e recebendo em tro-
ca, das meninas matriarcais e sabichonas que o rodeiam, o desprezo, as alusões à sua ca-
ra de lua-cheia, as acusações de burrice, as pequenas maldades que ferem profundamen-
20
De fato, o parentesco entre os dois meninos nem é tão absurdo, dado o papel inoculador que Watterson atribui
a Schulz em sua carreira, conforme se em: “Enquanto eu crescia, colecionou os livros anuais de Peanuts e os
utilizei como meu curso particular de cartunista, copiando os desenhos com a idéia de algum dia me tornar um
novo Charles Schulz” (WATTERSON, 2007).
21
Peanuts foi publicado de maneira praticamente ininterrupta desde 2 de outubro de 1950 até a aposentadoria de
Charles Schulz, em 14 de dezembro de 1999, provocada pelo ncer que o mataria em 12 de fevereiro de 2000.
A última tirinha diária foi publicada em 3 de janeiro deste mesmo ano, trazendo uma mensagem de despedida do
cartunista. A derradeira publicação ocorreu em 13 de janeiro daquele mesmo ano, um dia depois da morte do
artista e era uma versão de domingo da despedida feita semanas antes. Ao longo de seus 50 anos de produção
inédita, a tirinha, os livros anuais e os desenhos animados que ela gerou sempre se centraram nas aventuras coti-
dianas de Charlie Brown, o menino que incansavelmente tenta ser bom em alguma coisa na vida, mas que é
sempre derrotado pelas circunstâncias e ridicularizado pelos coleguinhas. Outros personagens, entretanto, for-
mam outros núcleos de ão e vivem tramas por vezes independentes de do garoto. Um exemplo mais famoso é
Snoopy, o cãozinho de Charlie Brown, que se tornou para muitos o verdadeiro protagonista da história, sobretu-
do depois do surgimento dos desenhos animados exibidos na televisão, a partir de 1965. Ou de Linus e Lucy, os
irmãos que se opõe com visões de moral diametralmente diferentes.
242
te. Minduim, impávido, procura ternura e afirmação em toda parte: no baseball, na cons-
trução de “papagaios”, nas relações com seu o Xereta [Snoopy], nos contatos de jogo
com as meninas. Fracassa sempre. Sua solidão torna-se abissal, seu complexo de inferio-
ridade, esmagador (colorido pela suspeita contínua, que também atinge o leitor, de que
Minduim não tenha nenhum complexo de inferioridade, mas seja realmente inferior. Pi-
or: é absolutamente normal. É como todos. Por isso caminha sempre à beira do suicídio
ou, na melhor das hipóteses, do colapso: porque busca a salvação segundo as fórmulas
comodamente propostas pela sociedade em que vive (a arte de fazer amigos, como tor-
nar-se um solicitado animador de reuniões sociais, como conseguir cultura em quatro au-
las, a busca da felicidade, como agradar às meninas...
Nesse quesito da dicotomia moral, Lucy van Pelt é um caso, digamos, especial. Esperta
e interesseira, a irmã de Linus habitualmente pratica manobras egoístas e que não visam senão
tirar vantagens e, não raro, desfazer do protagonista:
Mas como [Charlie Brown] o faz [buscar o reconhecimento] com absoluta pureza de co-
ração, e nenhuma velhacaria, a sociedade está pronta a rejei-lo na figura de Lucy, ma-
triarcal, pérfida, segura de si, empresária de lucro certo, pronta a comerciar uma proso-
popéia falsa de fio a pavio, mas indubivel efeito (são as suas aulas de ciências naturais
ao irmãozinho Linus, uma mixórdia de idiotices que dão náuseas a Minduim
22
– “I can’t
stand it”, não posso agüentar isso, geme o desgraçado, mas com que armas se pode deter
a má-impevel, quando se tem a desventura de ser puro de coração...)
O que essa historinha acrescenta à de Walter e Priscila e a todo meu raciocínio é que ela
chama a atenção para o próprio mecanismo de uma “desculpa total”, de um ente que sirva
como curinga, de emulador de qualquer desculpa, justamente para isentar o portador do mes-
mo de qualquer culpa por seus atos. É uma situação, claro, fantasiosa. Uma anedota. Mas ela
se baseia, ao mesmo tempo, em algo que vemos (menos saturadamente) no casal anterior: esse
elemento bastante típico do cotidiano das relações, o ato de dar uma desculpa. Se no caso de
Calvin, o personagem-emblema do capítulo passado (ao lado de digamos, Marcos Valério),
essa desculpa era bastante clara, aqui se uma situação mais metafórica: assim como a ar-
gumentação de Calvin soava “absurda” (sem justificação), a situação de Lucy leva esse ab-
surdo argumentativo a seu paroxismo: o ato de dar uma desculpa desarticula a idéia de nego-
22
Lucy mantém uma banquinha de quintal, daquelas em que tipicamente nos Estados Unidos as crianças vendem
limonada. A menina, entretanto, presta ali serviços típicos do mundo adulto. O mais habitual é sua atuação como
psiquiatra/psicanalista, na qual atende Charlie Brown apresentando a ele diagnósticos com requinte de sadismo e
que em nada ajudam o menino em suas angústias.
243
ciação de explicações. A tirinha mostra isso com uma metáfora anedótica: agressiva, Lucy
praticamente obriga seus interlocutores a assinar sua declaração de isenção. Mas, mesmo sem
a abordagem “enérgica” da menininha, dar uma desculpa é, em grande parte, uma operação de
“Não importa o que aconteça em qualquer lugar do mundo ou em qualquer momento da histó-
ria”. Isso porque, nos quatro casos (Calvin e Lucy; a oposição entre políticos e críticas públi-
cas; Walter e Priscila; e Lucy e o mundo), o que aparece como centro do discurso de autode-
fesa daqueles que querem isenção de culpa por suas ações é o fato de que, segundo eles pró-
prios, eles possuem peculiaridades, são “especiais”, merecem tratamento “no pessoal”.
244
QUADRO DOS CASAIS ENTREVISTADOS
23
Cônjuge 1
24
Descrição
25
Cônjuge 2
Descrição
TR
26
Comentários
Marcelo
Estudante de
cinema
Laura
Estudante de
comunicação
3m
Conheci-os na porta de um teatro, a
partir de uma situação de atraso. Na-
morados recentes, tiveram uma histó-
ria de um ano, encerrada, segundo di-
zem, por conta do ciúme.
Marcos
Profissional
de RH
Claudia
Professora
3 ½
Marcos cunhou as expressões “sede de
DR” e “egoísmo”. A questão do casal
é a suposta desatenção do marido ao
relacionamento.
Augusto
Comerciário
Regina
Advogada
4
Ela o chama de “o rei das desculpas”
Marcela
Produtora
Nina
Designer
3 ½
Casal de duas moças, em que os atra-
sos de uma e a desatenção da outra
produzem tensões.
Hélio
Publicitário
Marta
Empresária
6
Entrevista dele muito curta. Resultados
dela muito mais informativos.
Gustavo
“Bom moço
trabalhador”
Cinthia
“Feições de
Fanny Ardant
1
Os dois são profissionais de informáti-
ca e ele foi professor dela.
Túlio
Viviane
2
Ambos o profissionais de informáti-
ca, embora ele seja mais nior que
ela. Relacionamento terminado antes
que fosse feita a entrevista com Túlio.
Bernardo
Bombeiro
hidráulico
aposentado
Marilda
Dona de casa
39
Envolvimento dele com o álcool e
“más companhias” fizeram-na se de-
cepcionar.
Wilson
Advogado
Bruna
Advogado
7
O marido “sempre se reiventa”
Leandro
Não reclama
Carolina
“pocahontice”
2
Os dois trabalham com informática e
são brasileiros radicados em Londres.
Ela articula
Cláudio
Empreiteiro
Lúcia
Dona de casa
5
Chama a mulher de exagerada. Ela diz
que o mundo é muito chato sem exagero
Sérgio
“Comunista”
Cláudia
Empresária
5
Ele é historiador e ela tem uma con-
fecção. Articulam
Valentino
Matemático
Talita
Dona de casa
9
Ela sofreu de depressão durante um
ano, o que fez com que o marido tam-
bém vivesse problemas. Mas ela evita
falar do problema
Ricardo
Taxista
Soraya
Professora
8
A separação de um ano é um tabu para
os dois. Falam pouco, mas é fácil per-
ceber que houve uma traição da parte
dele. Ela diz que “ele ficou doente” e
precisou “se tratar”.
23
Todos os nomes foram alterados.
24
Salvo quando indicado, Cônjuge 1 = marido, companheiro ou namorado, Cônjuge 2 = mulher, companheira ou
namorada.
25
Breve descrição, a fim de diferenciar os atores, mas evitando muitos detalhes, por conta do sigilo.
26
TR=Tempo de relação (em anos, salvo quando indicado com “m”, para “meses”)
245
Cônjuge 1
27
Descrição
28
Cônjuge 2
Descrição
TR
29
Comentários
Afonso
Empresário
Paula
Psicóloga
1 ½
A coluna dele serve como desculpa
para várias ações no relacionamento.
Pablo
Engenheiro
Norma
Farmacêutica
7
Ele dormiu com uma amiga dela.
Umberto
Ilustrador
Olivia
Enfermeira
3
Discussão por conta de um notebook
João
Consultor
Silvia
Empresária do
turismo
6
Casaram-se depois de trabalhar juntos
por anos
Pedro
Pesquisador
Mariana
Psicóloga
7
Ela tem muito medo de perder o mari-
do. E diz que tem até medo de si por
isso. Mas não é ciúme, é insegurança.
Paulo
Professor de
filosofia
Margarida
Professora de
história
5
Disputa por conta da qualidade da es-
crita dele.
Thiago
Estudante de
medicina
Rosane
Estudante
1 ½
Os dois são de famílias da classe A
Walter
Profissional
de cinema
Priscila
Artista plásti-
ca
7m
Criaram um código de “desculpa total
Santoro
Márcia
6m
Os dois são jornalistas, mas apenas ele
exerce a profissão. Situação tornou
mais explícita a dimensão egoísta das
ações.
Gilberto
Sandrine
12
Os dois mantém um pequeno restau-
rante fora do Rio. Passaram por difi-
culdades financeiras e se dizem “uni-
dos” por ela
Antônio
Advogado
Vitória
Advogada
1
Grande diferença de idade entre os
dois. Ele é mais velho.
Lucas
Estudante
Marília
Estudante
3
Namorados de faculdade
27
Salvo quando indicado, Cônjuge 1 = marido, companheiro ou namorado, Cônjuge 2 = mulher, companheira ou
namorada.
28
Breve descrição, a fim de diferenciar os atores, mas evitando muitos detalhes, por conta do sigilo.
29
TR=Tempo de relação (em anos, salvo quando indicado com “m”, para “meses”)
CONCLUSÃO: O AMOR E O “EGOÍSMO” COMO COMPETÊNCIAS
!
247!
A GRANDE FAMÍLIA DOS HOMENS
Comprometidos com o bem de si
Marcos chega em casa mais tarde todas as quintas-feiras. É o dia do chope com os amigos.
Em três anos de casados, sua mulher, Claudia, nunca escondeu a insatisfão. Mesmo sendo
constantemente convidada a se juntar a ele e mesmo confiando “total e irrestritamente” no marido,
ela preferiria que os dois, juntos, fizessem algo apenas entre eles, no único dia em que ele sai um
pouco mais cedo. Ela reclama constantemente. Até que em um ocasião – ela se lembra de que era
julho, que, professora, estava de férias e se sentiu particularmente sozinha resolveu dizer a ele
o quanto a incomodava essa prefencia pelos amigos (e pelo samba e pela cerveja que o faziam
sempre voltar para casa “alto”): “Eu queria que você desse prioridade a nós dois! Marcos
responde: “Mas eu preciso de um tempo para mim!” “Você está sendo egsta”, ela replica. E ele:
“Mas eu tenho direito a um pouco de [e faz sinal de aspas com as os] egoísmo!”
As aspas dele, apresentadas, na verdade, na entrevista, me foram muito inspiradoras. E
igualmente a forma como se desenvolveu a situação: Cláudia encerrou o assunto. Resolveu
não brigar mais, “afinal, eu também precisava de tempo sozinha.
Em outro canto da cidade, Santoro chega de viagem. Havia viajado a trabalho. E
chegava tarde, por volta das 2h da madrugada. Chovera muito em São Paulo, aonde fora, e ele
preferiu viajar de ônibus, que tanto o acesso ao aeroporto de Congonhas quanto o ritmo de
decolagens no mesmo produziam grandes atrasos naquele momento. Na rodoviária, ele pega
um táxi e se dirige para a casa da namorada, com quem tem um relacionamento que define
como “intenso” quatro meses. Ele mora em bairro vizinho ao dela, de modo que
!
248!
costumavam ficar um na casa do outro com grande freqüência. Mas aconteceu que, quando
iniciou sua viagem de seis horas de duração –, ligou para ela e a namorada não estava bem,
estava chateada, um tanto deprimida. “Eu estou chegando já, meu amor. Vou praí e tento te
animar.” “Não, não venha. Não quero que você me veja assim.” “Mas estou com saudades de
você! Faz dois dias que a gente não se vê!” (eles não haviam se encontrado no dia anterior ao
da viagem, por uma série de circunstâncias). “Não venha para cá. Vá para casa.”
o foi. No começo da madrugada, ele batia à porta da namorada. “O que você está
fazendo aqui?”, ouviu dela pelo interfone. “Estava com saudades de vo!” Ela abriu a porta e o
recebeu de cara amarrada, os olhos com olheiras de choro. “Eu falei para você não vir para .”
“Do que vo es falando? Sou seu namorado. Vo o estava bem. Você achou que eu fosse
deixar você...” “Eu queria ficar sozinha! Vo não entende isso?” “Não.” “Pois eu vou te dizer: eu
te amo e adoro estar com você, mas quando eu estou assim não quero ver você, não me faz bem.
A discussão durou uma xícara de chá para cada um. Ela queria ter um tempo para ela.
Estava chateada, deprimida, e não queria que ele estivesse por perto. Santoro ficou
desconsolado. Dizia-se injustiçado. Achava que estava sendo gentil e carinhoso e que estava
sendo punido por isso. Mas, apesar das reclamações, ele aceitou fazer a vontade dela: da
próxima vez, se ela dissesse querer ficar só, ele acataria.
Essa duas situações apresentam uma tensão muito habitual em relação ao amor. Ele é
sempre interpretado como uma noção de “bem do outro”. Por mais eros que seja, ele é
geralmente apresentado com um forte componente de ágape. Toda a construção do outro
singular e daquilo que estabelece essa singularidade passa por um entendimento do outro como
componente de um bem para a relação. Por isso mesmo, uma relação envolve invariavelmente
uma tensão entre “bem do outro” e “bem de si”. E todas as desculpas dadas por que passei e que
apresentei aqui são justamente agentes dessa tensão. Observadas de perto, me mostraram que o
que elas demandam é uma permissão para o “bem de si”, para uma ação “egoísta”.
!
249!
O que está em jogo na fala de Marcos, então, é uso do “bem de si” como elemento de
efetivação de suas ações. Ele brande nas mãos algo que poderíamos chamar de “princípio
universal do direito ao bem de si”, ou, em suas palavras, “o direito universal ao egoísmo”.
Igualmente o que vem dos lábios de Márcia. Ao dizer que quer ficar sozinha, apesar de isso
estar em desacordo com o bem de Santoro (para quem o bem seria estar com ela), ela
demanda a efetivação desse bem egoísta por meio de uma circunstancialização.
Mas o que chamo de “egoísmo”? Adotei as aspas que tornam esse termo categoria nativa
justamente porque eles retiram o tom que determinado uso do termo impõe. “Egsmo é
invariavelmente um termo pejorativo. Egoísta seria quem quer o bem apenas de si. No kantismo,
entretanto, o termo tem outro valor: é a paixão humana fundamental, que consiste na submiso do
dever ao interesse particular, em detrimento da obediência à lei moral. Interesse “particular”, interesse
“pessoal”, como o que move Arkadi Dolgoruk, o personagem de Dostoiévski que quer ser bilionário.
Mas o tratamento que dedico ao “egoísmo” aqui é pensando-o como uma competência.
No mesmo sentido em que o modelo da “economia das grandezas” (BOLTANSKI e
THÉVENOT, 1987, 1991) o operacionaliza: assim como o “amor e a justiça como
competências” (BOLTANSKI, 1990) o egoísmo pode operar como um traço peculiar de uma
ação a conectá-la a uma forma de dar conta de uma ação, permitindo que ela aconteça no
social, mantendo os estatutos e os status das relações e as ordens em estado de normalidade.
O que está insinuado acima é que aquilo que apareceu como pessoalidade, é uma forma
de dar conta do egoísmo quando este é um elemento de paz e não um elemento de disputa.
Assim, o ato de dar uma desculpa ergue-se como uma forma de efetivar ações “egoístas”.
Trata-se, então, de fazer uma sociologia do “egsmo”, ou melhor, das ações “egoístas”. A
análise do ato de dar uma desculpa, dessa forma, permite o apenas acessar essa dimeno das
ões sociais, como tamm a modeli-lo sem que ele seja considerado um desvio rumo a um
“regime de vionciano qual a foa seria o guia para dar conta das difereas de grandeza.
!
250!
Nos capítulos anteriores, montei três laboratórios de observação de atos de dar uma
desculpa. Graças a eles, pude observar o papel que esse movimento de circunstancialização de
uma situação estabelecida no pólo oposto de um eixo de generalidade exerce na manutenção das
relações. Nos dois últimos capítulos, em minha análise das desculpas dadas por políticos e na
observação das produzidas no âmbito das relações íntimas, duas conclusões principais brotaram:
1) É possível extrapolar um modelo simetrizado para analisar o ato de dar uma desculpa
independentemente da distância entre o actantes pragmáticos e seres metafísicos desenhada na
definição do mundo de regime de ão em que os atores se o as situações. Em outras palavras:
o modelo usado para usar observar poticos e o modelo usado para observar casais pode ser o
mesmo. Essa simetrizão pode sugerir uma simplificação, uma condução a uma superficialidade,
que não atentaria para as sutilezas, as peculiaridade dos contextos. Mas estou propondo o
movimento contrário: o da compreeno das relões sociais em sua dimeno de socião mais
elementar. Se me permito observar esses diferentes mundos sociais segundo uma mesma ótica é
porque eles são atravessados por aquilo que posso chamar em um mesmo “metamundo”, o da
moralidade, o mundo da moral, que ocupa as relações sociais indistintamente.
2) O ato de dar uma desculpa mantém uma relação direta com o estabelecimento de uma
dicotomia entre o actante pragmático e uma imagem simbólica atribuída ao ator na relação.
Quer seja na apresentação de sua reputação positiva num depoimento ou numa entrevista quer
seja na construção do outro singularizado, o dar uma desculpa aponta diretamente para uma
dimensão mais abstrata que a do plano das ações. A compreensão do fenômeno do dar uma
desculpa, então, parece demandar um modelo mais abstrato que um baseado nas
padronizações (nas regimizações, gramatizações) das ações. Esse modelo terá um abordagem
mista entre um quadro pragmatista e um quadro interacionista, a partir do estabelecimento de
uma nova pergunta: se os atores praticam suas ações a partir das interpretações dos símbolos
produzidos pelos outros entes sociais, como uma imagem se mantém?
!
251!
UM ENSAIO SOBRE A DÁDIVA (COMPLEMENTAR) OU
UM MODELO DOS REGIMES DE EFETIVAÇÃO
Um quadro como esse que quero construir leva a pensar as relações sociais como um
espaço de produção e negociação constante das imagens simbólicas dos entes. Faz pensar que
uma relação social é uma “aliança”, no sentido de Mauss (2003), ou seja, elas possuem um
imperativo de “reciprocidade”. Esse imperativo de obrigatoriedade das dádivas e
contradádivas pode servir para modelizar também um plano abstrato de reciprocidade. Sugiro
que cada ação social em relação ao outro, quando entendida como dádiva, e, portanto, como
estabelecedora do eixo dádiva-contradádiva, produz, além da contradádiva de reciprocidade,
seja ela de que substância for, uma contradádiva complementar, de caráter sígnico: a imagem
simbólica do ator, uma reputação. Ele é aquele que ofereceu a dádiva e que, espera-se (pelo
princípio da previsibilidade) se mantenha como dadivoso. A imagem singularizado do outro
que encontrei entre os apaixonados em uma relação amorosa é justamente a consolidação
dessa contradádiva complementar, é o “moço batalhador” enxergado por Cinthia. Igualmente,
são os dados biográficos, as imagens públicas dos políticos, o fato de que, como diz Lula, “o
PT tem na ética uma das suas marcas mais extraordinárias”.
Da mesma forma, quando esse ator recebe essa contradádiva complementar, ele também
recebe uma contradiva complementar (uma contracontradádiva!), tamm de substância
simbólica, também uma reputação, ao mesmo tempo de dadivoso e de reconhecedor da imagem
simbólica do outro. Esse jogo de reciprocidade simbólica sugere uma possibilidade de modelizar
o social em um nível pragmatista mais abstrato do que o das ões. O projeto actancial de Latour
(1997) permite, como eu disse na Introdão e repito agora, que se pense as ões sociais
!
252!
observando estritamente nas ões, em uma observação formal dos processos passados com elas.
Nesse sentido, os atores sociais e as determinões do que eles fazem – deixam de ser a queso,
para ceder lugar a algo que eu poderia chamar, informalmente, de ecologia actancial: trata-se de
observar ações sociais como se animais elas fossem, olhando para suas movimentações, para o
que se pode dizer a partir de suas conseqüências.
Pois, então, se posso observar as ações isoladamente, posso também pensar em um
plano mais abstrato delas e pensar em um modelo meta-actancial a partir não das ações, mas
das imagens simbólicas produzidas por essas ações. A questão, como disse, é como pode se
manter uma contradádiva complementar, como ela pode se solidificar como reputação e, no
mesmo sentido, como podem variar as imagens simbólicas?
Para responder a essa pergunta, adotei a resposta que usei para dar conta das
operacionalizações do dar uma desculpa: efetivação. Quero levantar uma revisão da escolha desse
termo-conceito como o cerne de meu modelo. “Efetivão conduz para o caráter mais
propriamente pragmático desta leitura: o termo vem de effectÍvus, latim, que significa “que
exprime um efeito”. Quando opto por ler esse fenômeno como uma efetivão estou dizendo que
o cririo central de manuteão (no duplo sentido em que uso aqui o termo) de uma imagem
simbólica é a prodão de efeitos, é ela se estabelecer como fonte de outras ões, de
sociabilidades, de sociação. Esse conceito me parece ser o princípio mais geral do que o de
“justificaçãose torna caso particular operacionalizado quando o princípio de efetivão é um
princípio de legitimidade (no sentido clássico de Weber)
1
.
Um modelo para dar conta de um quadro de relações pensadas em sua dimensão
moral parece passar, eno, por uma padronização gramatical das maneiras como as
imagens simbólicas se efetivam.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
1
A engenharia possui um conceito interessante para modelizações industriais, o de validação: trata-se do
estabelecimento de todas variáveis e todos os critérios necessárias para que uma prática seja considerada válida,
ou seja, que garanta que ela manterepetibilidade em seu exercício. É um bom caso particular de procedimento
de efetivação. Sobretudo porque é uma efetivação manualizante.
!
253!
O que apresentarei agora será um quadro analítico abstraído a partir das observações do
ato de dar uma desculpa. O objetivo desta tese era produzir um modelo que dessa conta dessa
ação social específica. O quadro, entretanto, para dar conta dessa ação, acabou mostrando-se
mais amplo que ela, porque ela se relaciona com várias dimensões de elementos da vida
social. Essa ampliação do quadro, se se aproveita do ato de dar uma desculpa para modelizar
o social por meio das efetivações, mostrou-se o melhor modelo para entender esse mesmo ato,
porque ajuda a mostrar o papel importante que ele desempenha na manutenção da vida social
em seu exercício gerúndio, o vivendo socialmente, nas interações.
Regimes, gramáticas e competências:
Estou em busca, então, de um modelo que permita entender a “efetivação” do egoísmo
como competência. Para abstraí-lo, partirei da conclusão principal que extraí da observação
das desculpas dadas: o ato de dar uma desculpa opera um processo de transição entre um
plano universal para um plano circunstancial por meio da pessoalidade, da pessoalização. A
operação, então, parece ser a de uma mudança de estatuto do elemento central da situação,
elemento esse plenamente universalizado, rumo a uma dimensão em que ele possa ser
efetivado por meio da pessoalidade. A pessoalidade, então, sugere ser um entre vários
regimes de efetivação, ou seja, uma entre várias diferentes gramáticas da efetivação de
imagens simbólicas produzidas pelos entes em interação no social.
Quero, então, dar um salto de abstração em relação ao modelo dos regimes de ação,
mantendo-me no andar de cima em relação a ele. O ponto de partida é a idéia de que, ao
praticarem suas ações segundo diferentes gramáticas, inseridos em diferentes regimes de ação,
ou seja, em interação com outros actantes, “os seres humanos praticam ações em relação a
coisas a partir dos significados que essas coisas adquirem para eles” (BLUMER, p. 2). Essa
abordagem interacionista simbólica chama a atenção, então, para o fato de que, quando
!
254!
inseridos em situações práticas de interação, as pessoas, as coisas e mesmo as ações assumem
diferentes dimensões simbólicas umas em relações às outras. Mas para que essa carga
simbólica se tornar operacional, ou seja, consumar as ações produzidas na interação, ela
necessitará de efetivação, que ganha assim um novo escopo: ela se torna a forma de perceber
que esses entes se mantêm em sociação. A efetivação é, então, ao mesmo tempo, o objeto e o
indicador do objeto, é a forma de fazer e a forma de perceber que se pode fazer e que foi feito.
O ponto de partida para essa discussão é o fato de que não há motivo para se acreditar que
os actantes aceitem (quer isso seja consciente ou não) mutuamente as imagens simbólicas
produzidas nas interações. Chamemos essas imagens ou cargas simbólicas de significados.
Assim, quando em prática dessas relações, cada significado exigirá a construção de um conjunto
de elementos simbólicos para preenchê-lo, para que ele seja aceito e assimilado, para que seja
considerado efetivo. No modelo pragmatista, as situações construídas em torno das grandezas
relativas produzem uma economia dessas grandezas, baseada em processos de justificação. A
proposta aqui é ampliar esse modelo para situações que envolvam planos não baseadas em
justiça ou não solucionados por ela. De que maneira aquilo que se acopla a essas ações, seus
conteúdos simbólicos, seus significados, efetivam-se, configurando reputações, ou seja imagens
simbólicas que permitam previsibilidade, confiança – e converter interações sociais em relações
duradouras? Para responder a essa pergunta, proponho pensar em uma gramática não das ações,
mas das formas de efetivação dos conteúdos simbólicos estabelecidos por essas ações.
Mas segundo que critério variariam os regimes de efetivação?
A observação das desculpas dadas e dos processos de formação dos relacionamentos entre
casais me sugeriu um caminho para responder a esse pergunta: as grandezas relativas são
interpretadas pelos atores como formas de demonstrar imagens efetivas segundo dois planos:
ou constituídas como diferença em relação a outras imagens simbólicas ou constituídas como
igualdade em relação a outras imagens simbólicas.
!
255!
Os procedimentos de interpretação dos significados dos outros se mostram como formas de
reconhecer os tros peculiares desses outros, aquilo que os faz únicos, por um lado, e, por outro,
como formas de reconhecer traços que demonstrem que esses outros pertencem a uma categoria
reconhecível. Assim, uma escala de graus de peculiaridade parece se construir diante de um
quadro de formas de efetivão. Um significado será tão mais efetivo quanto mais conseguir
estabelecer em torno dele um estado de peculiaridade contextualmente adequado à situação em
que tenha sido produzido. Os regimes de efetivação, então, são divididos em dois tipos: 1)
regimes baseados na prodão de igualdade ou simplesmente regimes de igualdade; e 2) regimes
baseados na prodão de diferea ou simplesmente regimes de diferença.
O quadro abaixo representa os tipos de regime de efetivação:
Sobre uma seta variável de graus de peculiaridade, deslizam diferentes gramáticas de
efetivação simbólica. A idéia é conferir ao modelo pragmatista um grau de generalidade
maior, levando-o a um grau de abstração que lhe permite dar conta de situações relativistas,
sem que se tenha que recorrer a um princípio de bem comum, permitindo contemplar o
“egoísmo”. A seguir, apresento os regimes de efetivação definidos pela interpretação
simbólica, segundo uma ordem crescente de grau de peculiaridade:
!
256!
1) Regimes de igualdade:
a) Regime de efetivação em legitimidade dada: baseia-se em um conjunto de
construções simbólicas que gerarão o significado de que ação em questão é previamente
efetivação. Esse regime de efetivação se baseia
2
diretamente no regime de ação em
ajustamento (justesse) conforme apresentado por Boltanski e Thévenot (1987). Ele surge
como o grau mínimo de peculiaridade porque é a forma de efetivação que toma as pessoas em
sua dimensão mais equalizada: todos são iguais perante os rituais sociais/hábitos
incorporados.
b) Regime de efetivação em universalidade: baseia-se em um conjunto de construções
simbólicas que gerarão o significado de que ação em questão é justa em relação a um
princípio moral, ou, como definiram Boltanski e Thévenot, em que os envolvidos na situação
são iguais em relação a “um princípio superior comum”. Esse regime de efetivação tem como
base o regime de ação em justiça ou, mais diretamente, no regime de justificação.
c) Regime de violência: baseia-se em uma saída do plano dos conteúdos simbólicos e se
centra em uma única interpretação simbólica do outro e da ação, a de que é preciso
estabelecer diferenças de força, uma vez que o outro é uma ameaça não negociável ao
significado que se poderia estabelecer na relação caso não se chegasse à violência.
2) Regimes de diferença:
a) Regime de efetivação em diferenciação: baseia-se em um conjunto de construções
simbólicas que gerarão o significado de que ação em questão ou o significado assumido pela
pessoa é diferenciado em relação a outros significados concorrentes. Esse regime se baseia na
idéia de uma economia simbólica que exige a exibição de características peculiares de um
determinado ente para que o significado assumido por ele seja efetivo.
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2
O termo “basear” aqui exerce função dupla: além de se referir a uma inspiração, o sentido principal é que ele usa o
regime de ação como base, que este se constrói na dimensão mais abstrata daquele. É como se flutuasse sobre ele.
!
257!
b) Regime de efetivação em pessoalidade: baseia-se em um conjunto de construções
simbólicas que gerarão o significado de que ação em questão ou o significado assumido pela
pessoa é especial e circunstancial e por conta disso merece avaliação simbólica
particularizada, diferentemente de outras situações.
c) Regime de efetivação em singularidade: baseia-se em um conjunto de construções
simbólicas que gerarão o significado de que ação em questão ou o significado assumido pela
pessoa é absolutamente único, singular.
d) Regime de efetivação em amor: baseia-se em um conjunto de construções simbólicas
contidas na idéia de fraternidade.
O esquema, entretanto, contempla três pontos dignos de nota, por serem elementos não
lineares da escala. Na base da seta, o regime de violência aparece como um ponto livre, sem
continuidade da escala de graus de singularização. Isso se porque ele o dependerá de um
sistema de efetivação simbólica. A efetivação da ação se dará pela força, impondo uma
equalização no plano do apagamento das peculiaridades dos atores. amor e ajustamento
estarão em seguida à escala, em linha pontilhada, porque correspondem a momentos em que
não haverá procedimento de produção simbólica. Em ambos os casos, essa representação já será
dada. No caso do amor porque ela será estabelecida pelo conjunto de imaginários construídos
pela ágape; no caso do ajustamento porque ela será estabelecida pelos hábitos incorporados
3
.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
3
Testei dois outros regimes de efetivação em uma pesquisa feita em parceria com Mirian Goldenberg
(Goldenberg e Werneck, 2009, no prelo). Nessa pesquisa, nós comparamos as escolhas de mulheres para a
capa da revista Playboy no Brasil e na França, depois que esta versão nacional da publicação passou por
uma reforma editorial em 2007, e mostramos que enquanto a Édition Fraaise efetiva os significados das
mulheres que passou a estampar na capa por singularidade publicando fotos de grandes atrizes de cinema,
mulheres consideradas únicas, intocáveis para uma publicação “de mulher pelada, tratando-as como
verdadeiras obras de arte a versão brasileira faz essa efetivação por meio da diferencião, pela
construção de diferenciais competitivos entre as mulheres de um mês e de outro e de cada uma delas em
relação às profissionais da beleza em geral, através do que chamamos de jornalistização, o uso de um
gancho jornalístico (a presea em uma novela ou um filme de sucesso, mas, igualmente, o fato de ela ser
namorada de um jogador de futebol ou um personagem como A Musa do Mensalão, a assessora
parlamentar que fez sucesso no imaginário masculino aparecendo nas imagens da TV senado nas
transmissões das seses da CMPI dos Correios. O teste permitiu entender o modelo com muita precisão e a
me dar confiança para, no futuro, explorar os outros regimes que abstraí a partir das desculpas dadas.
!
258!
O ato de dar uma desculpa emerge desse modelo segundo uma nova definição: é a ação
social responsável pela torção entre dois regimes de efetivação, de um regime dotado em um
estágio superior de abstração (os das pontas da seta, o de singularidade e o de universalidade),
rumo ao de pessoalidade, ou seja, transpõe um quadro de exigência cognitiva de transposição
do “empreendedor moral” que se aproxima do “ser metafísico”, para uma dimensão
pragmática das ações. Como disse antes, é uma atividade que pressupõe gasto de energia,
porque a transposição só se dá se a validação da pessoalidade é demonstrada.
Os dois tipos de desculpa que sugeri, o do “não era eu” e o do “é assim mesmo” surgem
também redefinidos segundo esse vocabulário. Vejamos: no primeiro caso, o que está em jogo
é uma mudança de regime de efetivação do significado do ator: do ser metafísico que sempre
cumpre a regra para a pessoa que ali estava quando agiu e que precisou tratar a coisa toda de
maneira pessoal. No segundo, o que entre em ação é a torção de regime de efetivação do
significado da situação e/ou da ação: da condição ideal de cumprimento da regra para a
normalidade alternativa que precisou se determinar como tratável de maneira pessoal.
* * *
E é esse é, concluo, o papel do ato de dar uma desculpa: em vez de corresponder a
(apenas?) um artifício retórico, o ato de dar uma desculpa é um controle remoto, uma
forma de ativar no outro a percepção de que alguns seres ou algumas situões devem
ser tratado de maneira pessoalizada, distante do ser metafísico, distante do Éden. É o que
explica o fato de que o perdão (como o defini aqui, quer ele seja chamado de pero,
quer seja de pedido de desculpas) uma forma de arrefecimento de conflitos funcionar
mais facilmente com os estranhos ou com aqueles de quem temos pouca ou nenhuma
informão que a desculpa dada.
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259!
Essa afirmação ajuda a dar conta do certo e compreensível estranhamento diante do
que ocorre nos Capítulo 2: pelo menos no espo que observei, a política brasileira,
políticos, actantes públicos em geral, als, dão desculpas. Isso é possível porque eles
estabeleceram uma relão de reciprocidade simbólica em sua aliança com a ordem social
que os observa. Acredito que esta possa ser uma boa frente para pensar a potica
brasileira, a partir de um modelo que privilegie o trabalho que construir a pessoalidade
quando se está atrelado a uma forma de efetivação mais abstrata. O que es em jogo,
então, neste modelo? Trata-se de uma teno entre o significado do ser metafísico contido
na regra moral e uma, digamos, vontade de peculiaridade cada actante, “vontade, no
sentido nietzschiano, mas entre aspas, assume a dimensão de uma competência e não de
um prinpio. O que considero primordial a ser notado d é que esta é uma escala que
migra das bordas para o centro e não de borda a borda como as movimentações entre
regimes de ação exigiriam. o se trata de um desejo psicogico, mas de uma
competência actancial demonstrada nas relações. É essa vontade de peculiaridade que
opera quando o egoísmo opera como compencia, produzindo um quadro em que o
desempoderamento demonstrado na impossibilidade de agir segundo a própria vontade o
que es exprimido é entendido o como um sofrimento a demandar solidariedade, mas
mais como uma refencia para manter as relações sociais ajustadas e efetivas.
Pois se exerce esse papel nessa manutenção, a desculpa dada certamente exerceu um
papel nesta pesquisa: enten-la ajudou-me a entender de uma forma mais geral o estatuto
das relações sociais em seu estado de normalidade, quando suas questões fundamentais
o sendo deixadas de lado e nome da aliança, da manutenção da reciprocidade. O que
depende das próprias regras de estabelecimento dessas relações. A desculpa, eno,
demonstra um duplo engajamento dos atores: ao mesmo tempo à relação e à regra moral
que mantém ao não colo-la em queso, evitando discu-la e preferindo
!
260!
circunstancializar a situão e à relação. Aventei uma priorizão da relação sobre a
regra moral entre as hipóteses na Introdão. Mas essa afirmação dependia de ajuste:
relão é regra moral e vice-versa. o há uma sem a outra, porque ela sempre dependerá
do outro singularizado, mesmo que esse outro seja uma entidade abstrata, como o Estado,
a política, a democracia etc. As raízes fincadas da relação guiam seus troncos.
Voltemos a falar de árvores, então: o ato de desculpa parece ocupar, um papel na
economia temporal da moral. Isso porque se é circunstância, a desculpa pode se tornar
recorrente, conforme a necessidade de circunstancialização se tornar mais uma
normalidade alternativa ou não. E, com isso, um processo de mudaa moral pode se
estabelecer. Assim, se serve como água para regar a árvore da regra moral ao evitar que a
discuso de seus princípios oriunda da constante pressão da queso fundamental venha
amear seus galhos, o ator de dar uma desculpa, como água, também ajuda a erodir o
solo em que ela se sustenta, podendo fazer com que, ao longo do tempo, ela tombe,
provocando uma transformação moral. Um dia talvez o caixa 2 seja considerado um ato
cito no Brasil, talvez ele ganhe uma legislação específica e a recusa a seu uso se torne
uma forma de omissão imoral ao financiamento de campanhas. Se isso acontecer, os
novos empreendedores morais talvez se lembrem da desculpa dada por Luiz Inácio Lula
da Silva em 2005, dizendo que ela era o que é feito sistematicamente no Brasil”. Ele
poderá ser louvado como um cruzado contra a retórica de uma potica hipócrita, ou coisa
que o valha. Isso poderá não acontecer. Pode ser que o tenhamos mais oportunidades de
ter em defesa do caixa 2 um personagem dotado de conteúdo simbólico tão firme a
efetivar sua relação com seus eleitores ou seus governados (a ponto de ter sdo ileso e
com altos índices de aprovação do escândalo de corrupção formado em torno dele). O fato
é que sua posão de “não era eu, tão bem-humoradamente registrada pelo cartunista no
como do Catulo 2, manteve-se efetiva, produzindo efeitos.
!
261!
Pois estou falando aqui de um momento da vida social calcado no fato de que a
justa é apenas mais uma possibilidade de referência. Isso corresponde a dizer que é a
igualdade que está em jogo. Se o modelo da economia das grandezas absolutizava esse
papel da justiça ao atribuir à justificação o papel de fiel na legitimação de diferenças de
grandeza ou seja, da aceitação de algo a prinpio inaceitável , acredito que o modelo
que desenhei aqui ajude a pensar em uma possibilidade de diferença o-conflituosa, ao
trazer a tona os momentos em que é justamente a diferença e o desequilíbrio (o de
poder, mas de bem) são efetivados sem que as relações sofram localizadamente com isso.
Tenta-me encerrar com mais uma página de anedorio, a falar do lugar da justiça:
!
262!
BREVÍSSIMO ENSAIO PARA CONCLUSÃO:
AINDA SOBRE O CONHECIMENTO DO BEM E DO MAL
O retorno ao Paraíso: apontamentos para uma sociologia da amizade a
partir do mal-estar amistoso
Um dos malfeitores crucificados blasfemava em relação a ele: “Não és tu o Cristo?
Salva-te a ti mesmo e também a nós.” Mas o outro malfeitor, repreendendo-o,
declarou: Nem mesmo passando pela mesma pena que Deus você é temente a Ele!
Para nós, isso tudo é justiça, estamos pagando por nossos atos; mas ele nada fez de
mal.” E se dirigiu a ele: “Jesus, lembre-se de mim, quando tu entrares em teu
Reino.” E Jesus respondeu: “Em verdade, eu te digo, ainda tu estarás comigo no
Paraíso. (Lc, 23, 39-43)
Esse episódio é narrado na Bíblia apenas no evangelho de Lucas, mas mesmo assim (e
talvez por ser única, uma história diferente). É relativamente conhecido e celebrado como a
história do Bom Ladrão. Nela, Jesus dialoga com os dois homens que foram crucificados
junto com ele. Segundo a lenda, dois ladrões. Um deles, surpreendentemente, apesar de ter
acabado de conhecê-lo, converte-se à crença de que aquele ali é Deus encarnado. O outro,
permanece em descrença. Ao primeiro, Jesus promete o Paraíso.
O padre Antônio Vieira, em seu “Sermão do Bom Ladrão” (2000), apresentado em
1655, na Igreja da Misericórdia de Lisboa, proclama, sobre essa passagem: “Nem os Reis
podem ir ao Paraíso sem levar consigo os ladrões, nem os ladrões podem ir ao inferno sem
levar consigo os Reis” (p. 390). Mas é apegando-se a Santo Agostinho que ele lança uma das
explicações teológicas mais complexas e interessantes de que se tem notícia (p. 390-391):
Se o alheio que se tomou ou rem, se pode restituir e não se restitui, a penincia
deste e dos outros pecados o é verdadeira penitência, senão simulada e fingida, porque
se o perdoa o pecado sem se restituir o roubado, quando quem o roubou tem
possibilidade de o restituir. Esta única exceção à regra foi a felicidade do Bom Lado, e
!
263!
esta a razão por que ele se salvou, e também o mau se pudera salvar sem restitrem.
Como ambos saíram do naufgio desta vida despidos, e pegados a um pau, só esta sua
extrema pobreza os podia absolver dos latrocínios que tinham cometido, porque
impossibilitados à restituição, ficavam desobrigados dela.
O princípio universal, o mandamento, o quinto: não roubarás. Deus, entretanto, poderá
perdoar esse, como qualquer outro pecado, desde que haja arrependimento. Na formatação de
Santo Agostinho intermediada por Antônio Vieira, entretanto, o arrependimento não pode ser
apenas conceitual, tem que ser actancial: o ladrão tem que, para ser perdoado, devolver o que
roubou. Mas Jesus o perdoa, mesmo sem a devolução. Por quê? “Porque Dimas era ladrão
pobre, e não tinha como restituir o que roubara” (p. 392).
O tema desta tese é, de certa maneira, a incoerência das ações sociais, o dizer que faz algo
e fazer o contrário. Não deixa de ser curioso que, olhando para o começo deste texto, voltemos
a falar sobre o invento de Adão: deixado o paraíso, o primeiro homem teve prole e a espalhou
pelo mundo e, séculos depois, eis então, o “filho de Deus” a prometer o retorno ao Jardim para
um homem, para o homem. De Adão ao Bom Ladrão, todos estão, afinal, perdoados, porque
“não souberam o que fizeram”, porque o tinham controle de suas ões no momento em que
agiram. Talvez por isso se chame pecado original, porque esse outro que evocamos ter nos
tornado quando agimos errado deve ser Adão, o inventor, que volta em cada ação.
Essa alegoria é para retomar brevemente a questão de pano de fundo aqui: um ideal de
paz entre os homens que se pode estabelecer graças à construção constante de Édens, de
espaços de pressuposição do bem dos homens.
No final da introdução, eu apresentei cinco hipóteses, hipóteses que revisei ao final do
Capítulo 1: 1) O dar uma desculpa opera uma priorização da relação sobre a regra moral; 2)
O dar uma desculpa articula uma noção de responsabilidade diante das condições em que a
ação foi praticada; 3) O dar uma desculpa participa de uma economia de tensão entre o bem
!
264!
de si e o bem do outro, com ênfase na idéia de demonstração do bem de si como necessidade;
4) O dar uma desculpa distancia o ator de si mesmo; 5) O dar uma desculpa opera uma
economia do sofrimento. Já respondi a todas essas hipóteses ao longo do texto. Mas todas elas
juntas compõem um quadro a deixar perguntas em aberto.
A principal dessas perguntas é: se pude localizar no plano dos extremos da abstração
dos significados, operando segundo graus extremos em uma escala de peculiaridade, é fácil
entender como essas formas de relação de dobram rumo à pessoalidade: seria fácil, por conta
da distância e da pressão mesmo lógica, a tensão de manutenção, os custos etc., rumar para
um plano mais localizado e pragmático. Mas o que dizer das relações em estágios
intermediários de abstração, em que os laços são estabelecidos com outras formas de
reputação não singularizante? Que papel a pessoalidade pode ter em uma questão como essa?
A conclusão desta tese, curiosamente, é uma fuga da conclusão, é a afirmação da
necessidade de uma nova pesquisa, a ser iluminada mais uma vez pelos pequenos mal-estares
relacionais: penso na amizade, naquilo que pode permitir que estranhos se tornem irmãos, sem
que isso seja elemento de uma construção do outro singular pelo amor romântico. É para
poder perguntar qual é o significado da amistozidade e das amizades formalizadas nas
variadas relações da vida social. Mãos à obra.
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