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Universidade Federal do Rio de Janeiro
O BRASIL IMAGIADO EM QUADRIHOS A REVISTA PERERÊ (1960-
1964)
Ivan Lima Gomes
2010
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ii
O BRASIL IMAGIADO EM QUADRIHOS A REVISTA PERERÊ (1960-
1964)
Ivan Lima Gomes
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-
graduação em História Social, Instituto de Filosofia e
Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção
do título de Mestre em História Social.
Orientador: Prof. Dr. Renato Luís do Couto Neto e Lemos
Rio de Janeiro
Junho de 2010
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iii
O BRASIL IMAGIADO EM QUADRIHOS A REVISTA PERERÊ (1960-
1964)
Ivan Lima Gomes
Orientador: Renato Luís do Couto Neto e Lemos
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em História
Social, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de
Janeiro UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre
em História Social.
Aprovada por:
_______________________________
Presidente, Prof. Dr. Renato Luís do Couto Neto e Lemos
_______________________________
Prof. Dra. Adriana Facina Gurgel do Amaral
_______________________________
Prof. Dra. Ana Maria Mauad de Sousa Andrade Essus
Rio de Janeiro
Junho de 2010
iv
FICHA CATALOGRÁFICA
Gomes, Ivan Lima.
O Brasil imaginado em quadrinhos na revista Pererê (1960-1964) / Ivan Lima
Gomes. – Rio de Janeiro: UFRJ/ IFCS, 2009.
xi, 17690.: il., 31cm.
Orientador: Renato Luís do Couto Neto e Lemos
Dissertação (mestrado) – UFRJ/ Instituto de Filosofia e Ciências Sociais/
Programa de Pós-Graduação em História Social, 2010.
Referências bibliográficas: f. 172-177.
1. Revista Pererê. 2. Nacionalismo. 3. Ziraldo. 4. Quadrinhos brasileiros. 5.
Cultura (anos 1950 e 1960). 6. Imaginário social. I. Lemos, Renato Luís do Couto
Neto e. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências
Sociais, Programa de Pós-graduação em História Social. III. Título.
v
Um filósofo costumava circular onde brincavam crianças.
E se via um menino que tinha um pião já ficava à espreita.
Mal o pião começava a rodar, o filósofo o perseguia com
a intenção de agarrá-lo. ão o preocupava que as
crianças fizessem o maior barulho e tentassem impedi-lo
de entrar na brincadeira; se ele pegava o pião enquanto
este ainda girava, ficava feliz, mas por um instante,
depois atirava-o ao chão e ia embora. a verdade,
acreditava que o conhecimento de qualquer
insignificância, por exemplo, o de um pião que girava, era
suficiente ao conhecimento do geral. Por isso não se
ocupava dos grandes problemas era algo que lhe
parecia antieconômico. Se a menor de todas as ninharias
fosse realmente conhecida, então tudo estava conhecido;
sendo assim só se ocupava do pião rodando. E sempre que
se realizavam preparativos para fazer o pião girar, ele
tinha esperança de que agora ia conseguir; e se o pião
girava, a esperança se transformava em certeza enquanto
corria até perder o fôlego atrás dele. Mas quando depois
retinha na mão o estúpido pedaço de madeira, ele se
sentia mal e a gritaria das crianças que ele até então
não havia escutado e agora de repente penetrava nos seus
ouvidos afugentava-o dali e ele cambaleava como um
pião lançado com um golpe sem jeito da fieira.
KAFKA, Franz. O pião.
WATTERSON, Bill. Calvin e Haroldo.
vi
AGRADECIMETOS
Ao Ziraldo, pela sua incansável produção artística cujos passos iniciais se
encontram em Pererê e pela liberdade disponibilizada para consultar seu acervo de
revistas Pererê.
Ao orientador desta dissertação, Renato Lemos, pela postura acadêmica
exemplar, por aceitar orientar um trabalho sobre histórias em quadrinhos e, sobretudo,
pela paciência e “puxadas de orelha” necessárias devido a atrasos e sumiços meus.
Aos membros da banca de qualificação e da dissertação, Adriana Facina e Ana
Maria Mauad, que acompanham meus esforços desde meus primeiros anos de formação
acadêmica. Seus conselhos e sugestões escutados nas disciplinas da graduação em
História na UFF, nas orientações de monografia de conclusão de curso, em participação
em simpósio da ANPUH-RJ e durante a qualificação permitiram um rearranjo
importante para o trabalho.
Aos professores Carlos Fico, Luiz Reznik, Marieta Ferreira e Manoel Salgado
(in memoriam), pelas contribuições importantes obtidas em suas disciplinas de pós-
graduação. Aos professores Beatriz Kushnir e Ronaldo Pereira de Jesus pelos
comentários enriquecedores durante apresentações de trabalhos ligados a pesquisa. A
Wellington Srbek pela disponibilidade de enviar seu trabalho sobre Pererê.
Ao professor Waldomiro Vergueiro, especialista em quadrinhos no Brasil e que
me recebeu com interesse em bate-papo na ECA/USP. A ele agradeço também o auxílio
para consultar o acervo de revistas em quadrinhos da biblioteca da ECA/USP.
Aos funcionários do PPGHIS/UFRJ, do Centro Cultural São Paulo e da
biblioteca da ECA/USP, pela simpatia e atenção únicas. Aos dois últimos agradeço em
especial a permissão para consultar e fotografar algumas revistas em quadrinhos
presentes em seus acervos. Foram dias felizes em São Paulo.
Aos meus pais, pelo sacrifício dedicado aos estudos dos filhos e por todo o apoio
obtido sempre que necessário. A minha irmã Vanessa, pelas conversas sobre o
Magistério e por eventuais correções no Inglês.
Aos colegas e amigos da (minha) História e que acompanharam, mesmo a
distância, o desenvolvimento da pesquisa e compartilharam dúvidas, curiosidades e, o
mais importante, bom humor e afeto: Álvaro “Figueiró” Ferreira, André “Dideh”
Cavalcanti, Carlos Eduardo “Catatau” Rebuá, Clarissa Póvoa, Gabriel Furman & Kati
vii
Barreto, Gabriel Neiva, Grupo Século (Löis Lancaster, Rodrigo Duarte, Rosanna
Aliprandi e Sandro Rodrigues), Hugo Duarte, Larissa Costard, Ludmila Pereira,
Raphael “Negão” Oliveira, Thiago Krause, Vívian Curvello (pelo entusiasmo sobre a
obra de Ziraldo).
Para finalizar, a Flávia, aquela a quem dedico cada palavra, dúvida e alegria
sentida todo dia. Esta dissertação entra para esta lista, grande e infinita.
viii
RESUMO
O BRASIL IMAGIADO EM QUADRIHOS A REVISTA PERERÊ (1960-
1964)
Ivan Lima Gomes
Orientador: prof. Dr. Renato Luís do Couto Neto e Lemos
Através das conexões entre arte e política, procuramos compreender como o
Brasil foi imaginado nas páginas da revista em quadrinhos Pererê (out. 1960- abr.
1964), de Ziraldo. Defendemos que esta construção se dá tanto do ponto de vista
estético quanto do “político-institucional”: Pererê, publicada pela Editora O Cruzeiro e
primeira revista em quadrinhos de autor brasileiro a contar com grandes tiragens no
concorrido mercado brasileiro, lançou histórias sobre Revolução Cubana, Brasília,
brincadeiras infantis, um Papai Noel estrangeiro e uma versão fora de forma e
gananciosa de Tarzan, por exemplo. Ao mesmo tempo, artistas organizavam-se em
torno da reserva legal de mercado para o quadrinho nacional – dentre eles, Ziraldo.
Sendo assim, a pesquisa procura analisar como Ziraldo, através de Pererê, pôde
conciliar o caráter autoral de sua obra com as necessidades do mercado de quadrinhos e
com as discussões gerais em torno de temas como nacionalismo e cultura popular
presentes naquele período e como tudo isso contribuiu para uma visão imaginada do
Brasil.
Palavras-chave: Pererê (Ziraldo); Quadrinhos (anos 1950-1960); Nacionalismo.
Rio de Janeiro
Junho de 2010
ix
ABSTRACT
A IMAGIATED BRAZIL I COMICS O PERERÊ’S COMIC MAGAZIE
(1960-1964)
Ivan Lima Gomes
Orientador: prof. Dr. Renato Luís do Couto Neto e Lemos
Through the connections between arts and politics, we intend to discuss how
Ziraldo’s comic magazine Pererê (oct. 1960- apr. 1964) imagined Brazil through its
pages. We argue that this construction goes also aesthetically and institutionally:
Pererê, which was the first one-author Brazilian comics magazine to count with big
runs on the comics field of that time, published comics about themes like the Cuban
Revolution, Brasília, 1962’s World Cup, Cold War, a foreign Santa Claus and a out of
shape version of Tarzan, for example. Moreover, artists organized themselves for
Brazilian comic’s legal protection and Ziraldo is one important name on this process
either.
So, this research goes on the direction to analyse how Ziraldo, through Pererê,
could manage his personal and authorial characters with the comics market’s necessities
and the general discussions about nationalism and popular culture of that time and
how it contributed to generate an imaginated vision of Brazil.
Keywords: Pererê (Ziraldo); Comics (1950-1960); Nationalism.
Rio de Janeiro
Junho de 2010
x
LISTA DE FIGURAS
Figura 1: Equipe que participava da produção das histórias de Pererê. p. 2
Figura 2: Personagens da revista Pererê. p. 3
Figura 3: Almanaques do Pimentinha, Zé Colmeia e Bolinha e Luluzinha. p. 13
Figura 4: Saci Pererê nas páginas finais na edição de aniversário da revista. p. 23
Figura 5: Reação da Turma do Pererê ao descobrir que o Saci não tem mãe. p. 24
Figura 6: Turma do Pererê ouve atentamente sobre a origem de Pererê. p. 25
Figura 7: Página final de “Pererê e o dia das mães”. p. 26
Figuras 8 e 9: Pererê, Tininim e a viagem ao tempo. p. 38
Figura 10: Homem pré-histórico quer vender “antes que o mundo acabe”. p. 39
Figuras 11 e 12: O fogo e a iminência da “Pré-Terceira Guerra Mundial. p. 40
Figura 13: Pererê registra bons usos para o fogo. p. 41
Figura 14: Página final de “A Grande Viagem”. p. 42
Figuras 15 e 16: “Presente” de Cope. Tonico e Seu Neném para Galileu. p. 48
Figura 17: Página final de “Galileu e o carro alegórico”. p. 49
Figura 18: Convocação da Mata do Fundão para comício de Pererê. p. 51
Figura 19: Primeira tentativa de libertação dos pássaros. p. 51
Figura 20: Liberdade para os pássaros. p. 52
Figura 21: Saci/Napoleão Bonaparte. p. 54
Figura 22: Turma do Pererê parte rumo à “Fazenda Inglaterra”. p. 55
Figura 23 e 24: Plano de Saci é descoberto por Allan, que decide se vingar. p. 56
Figura 25: Página final de “A batalha da ponte”. p. 57
Figura 26: Pererê narra a invasão da Mata do Fundão. p. 62
Figura 27: Preparativos finais para “A grande batalha”. p. 63
Figuras 28 e 29: Batalha entre turmas do Pererê e do Rufino; página final. p. 64
Figuras 30 e 31: Galileu enfrenta as dificuldades da Caatinga. p. 75
Figura 32: Cope. Tonico explica a Seu Neném o plano para pegar Galileu. p. 76
Figura 33: Seu Neném reflete sobre o plano de Compadre Tonico. p. 77
Figura 34: Galileu e a Palma de Ouro. p. 78
Figura 35: Pererê e amigos conversam sobre a festa da Boneca de Piche. p. 82
Figura 36: Turma do Pererê se diverte com a “festa moderninha”. p. 83
Figura 37: Sérgio Ricardo e Nara Leão na festa da Boneca de Piche. p. 83
xi
Figura 38: Todos escutam a bossa da Boneca de Piche. p. 84
Figura 39: Pererê “compreende” a canção da Boneca. p. 84
Figura 40: Abertura da edição especial sobre a Copa de 1962. p. 87
Figura 41: Equipe da Pruslávia hospedada na Mata do Fundão. p. 88
Figura 42: Pênalti batido por Kebrapeitolstoy contra a Mata do Fundão. p. 88
Figura 43: Cartaz de Ziraldo para o filme O Assalto ao trem pagador. p. 89
Figura 44: Mata do Fundão F.C. posa para foto antes do jogo. p. 90
Figura 45: Narração de gol da Mata do Fundão F.C. p. 92
Figura 46: Amigo da Onça em Pererê. p. 95
Figura 47: Reclamações sobre a vida na Mata do Fundão. p. 101
Figura 48: Ideias para “escaparem” da Mata do Fundão. p. 102
Figura 49: Quadro final de “O piquenique”. p. 103
Figura 50: Início do julgamento do menino da cidade. p. 106
Figura 51: Campo e cidade sob julgamento. p. 107
Figura 52: Chegada de Pererê à terra alienígena. p. 111
Figura 53: “Acidente” de Pererê no Rio de Janeiro. p. 114
Figura 54: O Sacintopeia. p. 115
Figura 55: Compadre Tonico e Seu Neném na praia de Copacabana. p. 117
Figura 56: Página final de “O banho de mar”. p. 118
Figura 57: Página final de “Tininim no Rio”. p. 121
Figuras 58 e 59: Figuras do high society carioca e Tininim. p. 122
Figura 60: Capa da edição de fevereiro de 1963. p. 123
Figura 61, 62 e 63: Dificuldade em lidar com os sapatos no Natal. p. 128
Figura 64: Sequência final de “Uma história de Natal”. p. 129
Figura 65: Estratégia de Papai Noel para aguentar o calor brasileiro. p. 131
Figura 66: Estratégia de Papai Noel para entregar os presentes a tempo. p. 132
Figura 67: Cope. Tonico e Seu Neném promovem uma ceia de Natal. p. 135
Figura 68: Ceia de Natal brasileira de acordo com Pererê. p. 136
Figura 69: Conversa entre Cope. Tonico e Gal. Nogueira sobre o Natal. p. 137
Figura 70: Chuva de verão surpeende Papai Noel na Mata do Fundão. p. 139
Figura 71: Turma do Pererê entrega os presentes de Natal. p. 141
Figura 72: “Presentes” para a Turma do Pererê após a forte chuva. p. 142
Figura 73: Capa da edição de dezembro de 1962. p. 146
xii
Figura 74: Papai Noel é encontrado preso na chaminé. p. 147
Figura 75: Papai Noel enegrecido pela fuligem da chaminé. p. 148
Figura 76: Papai Noel e a ausência de “preconceito de cor” no Brasil. p. 148
Figuras 77 e 78: A Natureza ataca o Rei das Selvas. p. 154
Figura 79: Página final de “‘Tarzan’, o filho (adotivo) da selva”. p. 155
Figura 80: Uso das onomatopeias em Pererê. p. 157
Figura 81: Tarzan revela a Pererê e Tininim um dos segredos de seus filmes. p. 158
Figura 82: Página final de “A volta do Tarzan”. p. 159
Figuras 83 e 84: Método de Tarzan para atravessar o Rio Amazonas. p. 161
Figura 85: Tarzan engorda por causa do bom clima brasileiro. p. 162
Figura 86: Página final de “O Regime”. p. 162
Figura 87: página final de “O detalhe”. p. 164
Figura 88: Tarzan, de Hal Foster. p. 165
Figura 89: Capa da edição de novembro de 1963. p. 166
xiii
SUMÁRIO
ITRODUÇÃO
1. Dados sobre Pererê 1
2. Quadro teórico geral 4
3. Hipóteses e objetivos 6
4. Fontes e metodologia 6
5. Apresentação da bibliografia sobre Pererê 9
6. Resumo dos capítulos 14
Capítulo 1 – A ORIGEM DE PERERÊ
1.1 Introdução 16
1.2 O Saci está em cada um de nós 19
1.3 A Flor Negra 24
1.4 Mamãe Docelina 27
1.5 Compadre Tonico e Seu Neném 28
1.6 Gilberto Freyre, Ziraldo e a defesa dos quadrinhos no Brasil 31
1.7 Considerações finais 33
Capítulo 2 – EQUADRADO O PASSADO: PERERÊ E A HISTÓRIA
2.1 Introdução 35
2.2 “Pré-Guerra-Fria” 38
2.3 Guerra de Tróia cai no samba 47
2.4 “Saci do Patrocínio” 50
2.5 Um duelo entre Napoleão Bonaparte e Duque de Caxias 53
2.6 “Serra Matrona”: Mata do Fundão, mãe da revolução 62
2.7 Considerações finais 66
Capítulo 3 TRAÇOS DO CAMPO CULTURAL DOS AOS 1950 E 1960 EM
PERERÊ
3.1 Introdução 68
3.2 “Logo agora que o cinema brasileiro foi campeão do mundo”: Pererê e o Cinema-
Novo 71
xiv
3.3 “Festa moderninha”: Pererê e a Bossa Nova 79
3.4 “Gôôôôll do ‘Mata do Fundão F. C.’ do Brasil!”: Pererê e o futebol 86
3.5 Pererê e O Cruzeiro 93
3.6 Considerações finais 97
Capítulo 4 O CAMPO E A CIDADE: DISPUTA TERRITORIAL PELO
IMAGIÁRIO
4.1 Introdução 100
4.2 Olhares sobre a metrópole 100
4.3 Meninos da cidade grande na Mata do Fundão 105
4.4 Brasília, terra alienígena 110
4.5 Rio de Janeiro, três impressões 113
4.6 Considerações finais 124
Capítulo 5 – ATAL TROPICAL: PAPAI OEL FORA DE LUGAR
5.1. Introdução: O Natal em xeque 126
5.2. O Natal e a ganância 127
5.3. Salvando o Natal 131
5.4. Considerações finais 151
Capítulo 6 – TARZA, O FILHO (ADOTIVO) DA SELVA
6.1 Introdução 152
6.2. Tarzan em terras brasileiras 153
6.3. Considerações finais 165
COCLUSÃO 168
REFERÊCIAS BIBLIOGRÁFICAS 172
1
ITRODUÇÃO
1. Dados sobre Pererê
Publicada mensalmente todo dia primeiro pela Editora Gráfica O Cruzeiro,
Pererê contou com quarenta e três edições lançadas de outubro de 1960 a abril de 1964.
É reconhecida como a primeira revista de autor brasileiro a sair por uma grande editora
e a contar com tiragens mensais elevadas. Antes de ganhar publicação própria, o
personagem Pererê já aparecera em fins dos anos 1950 sob formato cartum na revista O
Cruzeiro. Sobre esta fase final inicial do personagem Marcos Silva destaca nela um
humor mais “adulto”, ligado ao público deste periódico
1
. Herman Lima sinalizava a
presença do jovem desenhista Ziraldo em sua monumental História da Caricatura no
Brasil:
Mineiro, de Caratinga, ainda na casa dos vinte e poucos anos, desde
cedo se dedicou ao desenho, trabalhando durante muitos anos para a
publicidade, no Rio. Por volta de 1960, passou a publicar, no
Cruzeiro, uma série de piadas com o Saci, piadas às vezes cruéis, pois
o duendezinho brasileiro, com a sua perna só, não é raro receber
presentes como uma patinete, ou ter gessado o braço justamente do
mesmo lado ausente. Outras vêzes, porém, o Saci aparece em
estripulias que acabaram tornando-o muito popular entre os leitores da
revista, o que levou a Emprêsa de O Cruzeiro a lançar, em fins de
1960, um mensário infantil, a côres, Pererê, totalmente desenhado por
Ziraldo, com o diabrete como personagem único de várias histórias na
verdade muito divertidas.
(...)
Apesar das limitações físicas da figurinha de sua criação, o certo é que
Ziraldo se sente perfeitamente à vontade, para movimentar seu boneco
em situações por demais fantasiosas, a ponto de muitas vêzes o
diabinho duma perna adquirir tanta vida própria com[o] se nos
aparecesse vivinho e inteirinho da silva, como qualquer corredor de
Olimpíada
2
.
Seu direcionamento para o público jovem é assumido, portanto, a partir do
momento em que é veiculado sob o formato de revista em quadrinhos – o que comprova
a importância de contextualizar as HQs a partir dessa mídia, e não através da seleção
1
SILVA, Marcos Antonio da, Prazer e poder do Amigo da Onça, 1943-1962. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1989. p. 188-189.
2
LIMA, Herman. História da caricatura no Brasil. vol. Rio de Janeiro, RJ: José Olympio, 1963. p.
1607-1609.
2
isolada de histórias, conforme é comum na produção bibliográfica sobre Pererê, como
veremos adiante. A partir deste momento, além de Ziraldo, que cuidava dos roteiros e
desenhos, uma equipe se une ao autor para a produção das histórias de Pererê: Heucy
Miranda (colorista), João Barbosa (letrista) e Paulo Abreu (arte-finalista):
Figura 1: Equipe que participava da
produção das histórias de Pererê. Da
esquerda para direita: Heucy Miranda
(colorista), Ziraldo, João Barbosa (letrista)
e Paulo Abreu (arte-finalista)
3
.
As revistas eram lançadas no chamado formato americano (17x26 cm), com
cerca de 36 páginas em cada edição e contavam com uma média de 5 a 6 HQs, todas
coloridas. As histórias em sua maioria se passam na Mata do Fundão ou, quando a
ação se em outra localidade, é a partir de suas características calmas que o local
estrangeiro é definido. Mesmo que sua exata localização não seja apresentada na revista,
ela remonta ao interior do Brasil, marcado por sua calmaria, rios e “caipiras” mais
precisamente a terra natal do autor, Caratinga.
De acordo com o dentista Onofre Guzella
de Abreu, inspiração para o menino pobre Nozito que aparece em alguns números da
revista:
Os lugares que Ziraldo descreve são os espaços aqui de Caratinga.
Ribeirão do Nódoa é nada mais que o rio Caratinga, porque ali tinha
muitas bananeiras em volta do rio. Eu era chamado na história em
quadrinhos de menino pobre, porque, ficávamos vagando nas ruas da
cidade como se não tivéssemos casa
4
.
3
SAGUAR, Luis; ARAUJO, Rose. Almanaque do Ziraldo. São Paulo: Melhoramentos, 2007. p. 99.
4
Apud MOURA, Márcia Asedias. O quintal de Ziraldo: raiz da ficção. Juiz de Fora, 2005. Dissertação
(Mestrado em Letras) Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora. p. 58. Outras referências a Caratinga
se farão presentes ao longo da dissertação.
3
Além do personagem-título, habitavam a Mata do Fundão um índio de nome
Tininim e diversos animais representativos da fauna brasileira que, em sua maioria,
foram batizados em homenagem a amigos de infância do autor:
Figura 2: Personagens da revista Pererê. Podemos destacar, de cima para baixo e da esquerda
para direita: General Nogueira (coruja); Galileu (onça); Allan (macaco); Boneca de
Pixe;Geraldinho (coelho); Pererê; Moacir (jabuti); Tininim (índio)
5
.
Os temas abordados pela revista giravam em torno uma série de dualismos, que
reduzimos a três ressaltando que tais dualismos encontravam-se integrados em muitas
HQs, sendo, pois, esta organização antes para melhor compreensão geral da revista. Em
todos os três casos, opera-se uma crítica ao elemento externo e não adaptado aos valores
da Mata do Fundão:
cidade e campo;
local e estrangeiro;
moderno e tradicional
6
.
5
PINTO, Ziraldo Alves (org.). Todo Pererê Vol. 3. São Paulo: Salamandra, 2002c. p. 5.
4
Além disso, personalidades e fatos cotidianos eram sempre introduzidos nas
HQs desde referências a nomes importantes da cultura ou da política (Ruy Guerra,
Dorival Caymmi, Paulo Francis; Paschoal Carlos Magno, Palácio do Itamarati, entre
outros) até processos políticos contemporâneos ou recentes até então, como a disputa
pelo espaço entre EUA e URSS e a Copa de 1962, entre outros. Tudo isso abordado
através do humor e da paródia, com os personagens lidando com estas questões a partir
de suas habilidades próprias, conforme será possível observar na terceira parte do texto.
2. Quadro teórico geral
Pelas especificidades de nosso objeto de pesquisa, procuramos refletir
teoricamente sobre ele a partir das contribuições de alguns autores que dialogam não
apenas com a história, mas também com campos do conhecimento diversos, tais como a
comunicação social, a sociologia e a teoria literária, por exemplo.
Partimos inicialmente para o trabalho que Bronislaw Backzo acerca da
imaginação social. Ele nos interessa em particular na medida em que procura atentar
para a importância que os meios de comunicação detêm no mundo contemporâneo na
difusão e modelação dos imaginários sociais – sendo que estes, por sua vez “(...)
constituem outros tantos pontos de referência no vasto sistema simbólico que qualquer
colectividade produz e através da qual, como disse Mauss, ela se percepciona, divide e
elabora os seus próprios objectivos
7
”.
O imaginário social, como é possível deduzir da citação acima, apresenta-se sob
a forma de rituais, mitos, ideologias e também como símbolos e produções culturais.
Neste sentido, interessa-nos analisar sob que maneiras simbólicas Pererê representa
temas como o campo e a cidade, a história e figuras como Papai Noel e Tarzan para
através delas discutir o Brasil. Afinal, como não produção simbólica que não esteja
6
Comentando uma série de apresentações sobre a mediação cultural nas artes, Luiz Fernando Duarte
destaca a presença, desde o início da modernidade, de um “grande divisor interno” que se manifesta, por
exemplo, nas oposições entre erudito e popular, Zona Sul e Zona Norte e cidade e sertão. Os exemplos
são múltiplos, e enxergamos Pererê entre eles. Cf: DUARTE, Luiz Fernando. Comentários. IN: VELHO,
Gilberto & KUSCHNIR, Karina. Mediação, cultura e política. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2001.
7
BACKZO, Bronislaw. Imaginação social. IN: Enciclopédia Einaudi. Vol. 5. Lisboa: Imprensa
Nacional/Casa da Moeda, Editora Portuguesa, 1985. p. 309.
5
calcada em relações sociais, Backzo defende que “os sistemas simbólicos em que
assenta e através do qual opera o imaginário social são construídos a partir da
experiência dos agentes sociais, mas também a partir dos seus desejos, aspirações e
motivações
8
”. Há para utilizar uma expressão de Backzo uma “comunidade de
sentido” ou “comunidade de imaginação” na qual Pererê procura se localizar, modelar e
discutir de forma própria – de forma autoral –, ao mesmo tempo em que precisa
sustentar-se no já concorrido mercado editorial de HQs.
Uma vez que seguimos Backzo e constatamos serem os bens simbólicos
limitados em uma sociedade e, por isso, alvo de disputas entre os agentes sociais
9
,
devemos apontar que será na linguagem que muitos conflitos tomarão corpo em nosso
objeto de pesquisa. Robert Stam, comentando a obra de Mikhail Bakhtin, ressalta o
valor que o intelectual russo dedicava à linguagem enquanto arena de conflitos, onde
encontramos, por um lado, uma tradução interlingüística – que seria uma sensibilidade e
uma capacidade para a percepção da linguagem do outro que exige
concomitantemente uma tradução intralingüística selecionar, em nosso discurso
interno, qual linguagem devemos utilizar no diálogo com os nossos interesses e os dos
outros
10
.
Com isso, temos uma proposta a favor do fim das divisões esquemáticas entre
texto, intertexto e contexto. Isso nos auxilia na medida em que podemos entender
determinadas decisões estéticas presentes em Pererê não apenas do ponto de vista da
criação autoral, mas também à sua busca por aceitação junto ao público infanto-juvenil
e inserção no campo cultural das esquerdas contribuindo, para sua vez, para a
modelação do imaginário social. Ressaltamos, desta feita, a linguagem como local
privilegiado de manifestações ideológicas, como o local do posto, do suposto e do
imposto
11
.
3. Hipóteses e objetivos
Hipóteses:
8
Ibid.. p. 311
9
Ibid.. p. 299.
10
STAM, Robert. Bakhtin. Da teoria literária à cultura de massas. São Paulo: Ática, 1992. p. 12-13.
11
BAKHTIN, Mikhail (V. N. Volochínov). Marxismo e filosofia da linguagem. edição. São Paulo:
HUCITEC, 1995.
6
1. As HQS da revista Pererê dialogam simbolicamente com valores e noções caros
ao imaginário social das esquerdas da época, ao apresentar leitura própria da
realidade brasileira a partir de temas como nação, cultura popular, folclore e
infância, por exemplo;
2. Tal olhar credita-se não somente pelas concepções autorais de Ziraldo, mas
também pela necessidade de inserção da revista junto ao mercado de HQs,
dominado por publicações estrangeiras voltadas ao público infanto-juvenil e por
quadrinhos “educativos” estes atuando em contraposição àqueles que
consideravam as HQs prejudiciais aos seus leitores.
Objetivos
1. Analisar como o imaginário social é trabalhado em Pererê através das
representações veiculadas sobre nação, cultura popular, folclore e infância;
2. Compreender tais discussões junto ao campo cultural da época em especial o
dos quadrinhos.
4. Fontes e metodologia
As nossas fontes são os quarenta e três números da revista Pererê publicados de
outubro de 1960 a abril de 1964. Optamos por este recorte pelas seguintes razões: é
nesta duração que a caracterização da Turma do Pererê se constrói e se estabelece na
cultura brasileira, devido ao pioneirismo histórico e seu tratamento original dentro dos
quadrinhos nacionais, conforme atesta a bibliografia
12
; pela publicação sistemática e
mais longeva, ao contrário das outras reedições fragmentadas e pouco consistentes que
a seguiram, como as dos anos 1970; e pelos limites de tempo estabelecidos para uma
dissertação de mestrado.
12
CIRNE, Moacy. História e crítica dos quadrinhos brasileiros. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1990.
PATATI, Carlos; BRAGA, Flávio. Almanaque dos quadrinhos: 100 anos de uma mídia popular. Rio de
Janeiro: Ediouro, 2006.
7
Além disso, comentaremos sobre outras HQs contemporâneas a Pererê a partir
de bibliografia auxiliar como forma de melhor avaliar a inserção da revista de Ziraldo
junto ao mercado editorial de quadrinhos. É possível destacar entre tantas revistas
presentes no período publicações da EBAL (como as Edições Maravilhosas e Grandes
Figuras, por exemplo), HQs paulistas independentes de terror e outras publicações da
própria O Cruzeiro e que eram propagandeadas em Pererê, como Luluzinha, por
exemplo.
A elaboração de uma “semiótica aplicada” promovida por Ciro Cardoso a partir
das formulações de autores como Tzvetan Todorov e Algirdas Greimas e Joseph
Courtés serviu como suporte para análise das HQs de Pererê. Suas discussões
interessam às nossas preocupações na medida em que pretendem estabelecer uma
“estrutura narrativa” ou “narratividade” presente em um “nível imanente”, “prévio aos
modos concretos de manifestação
13
”. Ou seja, para Cardoso, a semiótica servirá como
ferramenta que possibilitará a apreensão do significado “profundo” das narrativas
presentes em linguagens diversas, como livros, filmes e quadrinhos.
As HQs de Pererê, como ficará mais claro ao longo da dissertação, apresentam
narrativa bastante linear, como era comum entre as revistas em quadrinhos do período.
Geralmente elas apresentam um momento inicial sem problemas, a perturbação desta
ordem e a solução final para ela. Tal modelo narrativo, compreendido, de acordo com
Todorov, sob uma ordem lógica e temporal, cuja “(...) relação lógica é de implicação,
causalidade, estreitamente vinculada à temporalidade: o que vem depois dá pelo menos
a impressão implícita de ter sido causado pelo que veio antes
14
”, será bastante
recorrente em Pererê, o que nos levou a adotar a sintaxe narrativa formulada por
Todorov e aplicada para análise histórica por Ciro Cardoso.
Ela divide-se em cinco partes, chamadas de “proposições narrativas”,
comportando, mesmo que algumas proposições sejam apenas “insinuadas” ou
deduzidas (ocorram como elipses), toda a narrativa analisada
15
:
Sequência 1:
1) Situação inicial;
13
CARDOSO, Ciro Flamarion. arrativa, sentido, história. Campinas, SP: Papirus, 1997. p. 12-13.
14
Apud Cardoso, Ciro Flamarion. Op. cit.. p. 42.
15
Ibid.
8
2) Perturbação da situação inicial;
3) Desequilíbrio ou crise;
4) Intervenção na crise;
5) ovo equilíbrio.
A outra abordagem que utilizaremos, sempre a partir de Cardoso, sobre as
histórias é o método da leitura isotópica de Greimas e Courtés. Isotopia pode ser
definida como a possibilidade de uma “grade de leitura” para o texto, de forma a
resolver suas possíveis ambiguidades
16
:
“(...) se trata de um feixe redundante de categorias de significação,
descoberto pela leitura atenta à iteratividade, isto é, à reprodução,
sobre o eixo sintagmático – ao longo ou no fio do texto, portanto –, de
unidades idênticas (ou que pelo menos se revelem compatíveis quando
comparadas) situadas em um mesmo nível analítico.
Através das “categorias semânticas isotópicas”, ou seja, dos elementos de
significação que se repetem ao longo da narrativa, é que se configura uma leitura
isotópica do texto. Estas categorias são compreendidas em três níveis, do mais
elementar para o mais abstrato: o figurativo são as referências mais concretas e mais
ligadas ao mundo externo; o temático seria uma “síntese” das figurações apresentadas
17
;
e o axiológico ligado a sistemas de valores de caráter moral, religioso, estético, entre
outros
18
. Procuramos organizar as HQs analisadas a partir destas duas perspectivas
direcionadas por Ciro Cardoso para os trabalhos em história. Por isso, sempre que
utilizarmos a sintaxe narrativa de Todorov e/ou a leitura isotópica de Greimas e Courtés,
deve-se ter em mente que: a) partimos sempre da aplicação proposta por Cardoso e, por
isso, poupamos repetir ao longo da dissertação as referências a esse trabalho
apresentado aqui; e b) aplicamo-las como ferramentas auxiliares da análise histórica,
que constitui o objetivo desta pesquisa e, por isso, não nos preocupamos com maiores
discussões sobre as diversas correntes que formam a semiótica
19
.
16
CARDOSO, Ciro Flamarion. Op. cit.. p. 174.
17
O exemplo de Cardoso pode tornar mais claro: beijos, abraços e carícias são figurativos; o /amor/ é
temático. Ibid.. p. 172.
18
Ibid.. p. 172-173.
19
Ibid.
9
5. Apresentação da bibliografia sobre Pererê
As análises sobre a revista Pererê surgiram no mesmo instante em que os
primeiros estudos sobre os quadrinhos em geral foram formulados no Brasil. A proposta
desta seção é discutir as linhas gerais das principais pesquisas ligadas à revista de
Ziraldo; por isso, dados específicos que elas por ventura apresentem e que possam ser
trabalhados ao longo da dissertação passam ao largo neste momento.
Um nome que logo é lembrado quando nos referimos a pesquisas em quadrinhos
no Brasil é o de Moacy Cirne. O autor, que publicava artigos em jornais e revistas de
comunicação desde fins dos anos 1960, lança em 1970 Bum! A explosão criativa dos
quadrinhos, hoje considerado um marco nos estudos das HQs no Brasil. No ano
seguinte, publica a obra que merecerá nossa atenção por debruçar-se especificamente,
ao lado de Maurício de Sousa e sua Turma da Mônica, sobre os personagens da Turma
do Pererê
20
.
A reflexão de Cirne é marcada por um forte engajamento político e estético: a
ditadura militar é contestada a partir de sua militância pela experimentação linguística
presente, sobretudo, no movimento vanguardista do Poema-Processo
21
. É neste sentido
que devem ser compreendidas as constante referências ao movimento em seus livros
sobre quadrinhos e algumas afirmações fortes do autor, como ao defender que “entre
um poema de Drummond e uma estória qualquer do Pererê, optamos pela estória de
Pererê”, ou ao destacar a revista de Ziraldo sob um grau de importância estética e
histórica equivalente ao “cinema de Glauber Rocha, o romance de Guimarães Rosa ou a
poesia de Oswald de Andrade, apresentando estórias do mais ouro dimensionamento
estético (refletindo sem masturbações intelectuais a nossa realidade social
22
”.
Podemos dividir o trabalho de Cirne em três partes: a primeira discute o mito do
Saci Pererê e sua relação com Monteiro Lobato; a segunda contextualiza a revista junto
20
CIRNE, Moacy. A linguagem dos quadrinhos: o universo estrutural de Ziraldo e Maurício de Souza. 4ª
ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1975. Vale destacar que este foi o primeiro trabalho publicado no Brasil
dedicado a personagens específicos de quadrinhos– o que demonstra o impacto representado pela revista
de Ziraldo.
21
Liderado por Wlademir Dias-Pino e Álvaro de de 1967 a 1972, em linhas gerais propunha uma
radicalização das noções concretistas, propor uma saída da dicotomia significante/significado, que
percebia nos trabalhos dos concretistas, em direção a experimentações envolvendo signos. Para uma
definição mais apurada, cf: CIRNE, Moacy. Bum! A explosão criativa dos quadrinhos. Petrópolis, RJ:
Vozes, 1970.
22
CIRNE, Moacy. Op. cit., 1975. p. 9-10, 11.
10
aos marcos gerais do seu contexto social, definindo-a como um “reflexo marcante dessa
fase”; e a última é especialmente interessante por apresentar dados sobre o número de
HQs lançadas ao longo das quarenta e três edições, onomatopeias presentes, um perfil
de cada personagem e algumas HQs que Cirne considerou interessantes. Como
referência teórica para sua pesquisa, o autor lança mão, principalmente na segunda
parte do livro, do conceito de aparelho ideológicos de Estado
23
a partir da conceituação
de Althusser, o que eventualmente o leva a posicionamentos que parecem lhe causar
algum incômodo quando, por exemplo, destaca que “mesmo o Pererê, por mais livre
que pareça ser, será uma parte do aparelho ideológico de Estado
24
”. Algumas de suas
observações sobre a mitologia do Saci Pererê, os personagens da revista e algumas de
suas histórias são apresentadas ao longo da dissertação.
Esta chave interpretativa sobre Pererê se tornará ponto comum em boa parte dos
estudos sobre quadrinhos até os dias de hoje o que apenas ressalta a relevância das
pioneiras pesquisas de Moacy Cirne. Curioso é que esta associação, estabelecida entre
Pererê e o governo Goulart, se por vezes assume coloração positiva em Cirne, será
interpretada de maneira divergente em outros trabalhos. Enquanto para Cirne ela é
importante, por considerá-la um momento de “tomada de consciência” dos quadrinhos
brasileiros, tal como vinha tomando corpo na sociedade, para Pimentel
25
os quadrinhos,
incluindo o Pererê ziraldiano que lhe serve de objeto de análise, são compreendidos
a partir das reflexões de Adorno e Horkheimer e, assim, inserem-se na lógica
instrumental presente na indústria cultural. À ideia de um modelamento de um “homem
universal” inerte a conflitos, objetivo último da indústria cultural, Pimentel termina por
associar a noção de aparelhos ideológicos de Estado também trabalhada por Cirne
26
.
O livro de Sidney Valadares Pimentel, resultado de uma dissertação de mestrado
em comunicação apresentada à Universidade de Brasília, talvez seja um dos únicos a
versar especificamente sobre a Turma do Pererê. O autor, porém, não se preocupa com
recortes temporais muito claros, analisando indiscriminadamente, a partir de autores
como Barthes, Foucault, Adorno e Marx presentes de forma não-sistemática ao longo
do texto –, histórias produzidas tanto na primeira metade da década de 1960 quanto no
23
Os quadrinhos são compreendidos por Cirne como “representações de um determinado aparelho
ideológico”, veiculadas a partir de uma instituição específica, os “sistemas culturais (artísticos)”. CIRNE,
Moacy. Op. cit.. p. 16-17.
24
Ibid., p. 33-34. Em trabalhos mais recentes é possível observar que este conceito é abandonado, e seu
uso justificado pela época. Cf CIRNE, Moacy. Op. cit..
25
PIMENTEL, Sidney Valadares. Op. cit.
26
Ibid.. p. 15-19.
11
contexto político diverso presente nos anos 1970. Aparentemente isso não se apresenta
como um grande problema, pois, ainda que baseado principalmente nas revistas
publicadas durante o período ditatorial, consegue afirmar que “(...) Pererê veio a se
constituir em um aparelho ideológico do estado populista
27
”.
Esta afirmação apresenta clara imprecisão cronológico-conceitual, uma vez que
durante os anos 1970 o Brasil viveu sob uma ditadura civil-militar longe de poder ser
considerada populista. este fato nos impediria de tecer qualquer tipo de comentário,
pois o nosso objeto de pesquisa restringe-se às revistas dos anos 1960. Porém, tomando
a tese geral de Pimentel para o nosso contexto de estudo, consideramos igualmente
questionável a leitura que o autor empreende sobre as formulações de Adorno e
Horkheimer, excluindo qualquer possibilidade de desdobramento criativo dentro da
indústria cultural, conforme aponta Walter Benjamin em seu estudo sobre a obra de arte
na era da reprodutibilidade técnica
28
. Para Pimentel, há apenas uma
(...) única reprodução possível: a dos significantes vazios (porque
ideológicos) que circulam. Na relação entre ambos, o resultado desse
jogo desleal entre produtores e consumidores: o receptor desaparece
como sujeito e passa a compor o sistema apenas como confirmador do
‘espetáculo’, que integra como simples espectador passivo
29
.
Esta leitura sobre os quadrinhos apresenta clara filiação ainda que não
inteiramente assumida por Pimentel
30
com o conhecido trabalho sobre o Pato Donald
escrito em 1971 por Ariel Dorfman e Armand Matterlart. Curiosamente, o trabalho do
autor chileno também trata suas “fontes” com pouca precisão, ao não atentar para a
presença de desenhistas e autores diversos desenhando o “universo Pato” e imprimindo
nele características variadas; prefere antes tomar as características dos personagens
ligados ao Pato Donald como uma criação exclusiva de Walt Disney
31
. Com este
procedimento perde-se de vista a construção progressiva dos personagens à medida que
27
Pimentel, Sidney Valadares. Op. cit.. p. 66. Ao longo da obra predominam as HQs publicadas ao longo
dos anos 1970, com exceção das referências a algumas “biografias ilustradas” presentes na edição de
outubro de 1962.
28
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Obras escolhidas.
Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Vol. 1. São Paulo:
Brasiliense, 1985. p. 165-196.
29
Pimentel, Sidney Valadares. Op. cit.. p. 17-18.
30
Com exceção para a citação de um único artigo, sobre “domínio ideológico na literatura infantil”. Cf.
Ibid.. p. 40; p. 74.
31
Cf: DORFMAN, Ariel, MATTELART, Armand. Para ler o Pato Donald: comunicação de massa e
colonialismo. 3ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.
12
estes são recebidos a cada número pelos leitores – o que é ignorado também por
Pimentel.
Em artigo sobre identidade nacional nos quadrinhos brasileiros, Bruno Alves
parte de tipologia formulada por Stuart Hall para definir algumas publicações de HQs
no Brasil nos últimos cem anos, sustentando que:
(...) podemos concluir que na primeira tendência [na qual Pererê
estaria inserido], uma tentativa de resistência às influências dos
quadrinhos hegemônicos, com o reforço de uma identidade “local”; na
segunda, uma desintegração da identidade local, com a total
assimilação dos elementos impostos pelos quadrinhos hegemônicos;
por fim, na última tendência, podemos verificar que uma nova
identidade híbrida surge com a intersecção de elementos universais e
locais
32
.
Ao observarmos as HQs de Pererê, sem dúvida é clara a presença de temas
diferenciados e que não eram comuns a boa parte das publicações estrangeiras de então.
Mas é importante ainda assim matizar o argumento para evitar conclusões que Alves
alcança em outro momento, associando o fortalecimento de uma identidade local em
Pererê a uma “(...) preocupação de encontrar uma identidade ‘pura’ para as histórias em
quadrinhos (...)
33
o que não se sustenta com uma rápida observada no traço dos
personagens de Pererê, por vezes semelhante ao de outros personagens da época,
conforme atesta o próprio Ziraldo, quando questionado sobre quem o teria influenciado
na época para compor o visual e a narrativa de Pererê:
Levei um susto quando li a Luluzinha pela primeira vez. A linguagem
da Marge [Henderson Buell, criadora da personagem] era
cinematográfica (...).Era um tempo perfeito de narração que criava um
clima fantástico. Quadrinho com clima. Fiquei fascinado
34
.
Além disso, como seria possível defender uma “pureza” se na mesma revista
veiculavam-se propagandas diversas – de sabonetes a outras publicações estrangeiras de
quadrinhos? O depoimento acima de Ziraldo encontra-se no último trabalho aqui
32
ALVES, Bruno Fernandes. A identidade nacional na pós-modernidade: o caso dos quadrinhos
brasileiros. Disponível em:
http://www.ppgcomufpe.com.br/arquivos/PUBLICACAO_DISCENTE/bruno.doc. p. 9 (acesso em 15 de
março de 2010).
33
Alves, Bruno Fernandes. Op. cit.. p. 13
34
SRBEK, Wellington. Quadrinho-arte: uma leitura da revista Pererê de Ziraldo. Belo Horizonte, 1999.
Dissertação (Mestrado em Educação) Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais.
p. 108.
13
analisado, o de Wellington Srbek. Ele que consegue apresentar uma análise diferenciada
sobre a revista a partir de um minucioso estudo de sua linguagem do ponto de vista mais
“formal” (cores, quadros e traços, por exemplo), percebendo a possibilidade de um
“quadrinho-arte” surgir no seio da indústria cultural.
Ainda que o autor tenha estabelecido como recorte as edições publicadas em
1963 possivelmente devido à carência de acervos com quadrinhos bem conservados e
disponíveis para consulta acadêmica o autor foi feliz ao trabalhar a Pererê como o
resultado de três ideais: “as aspirações pessoais de seu criador, a utopia nacionalista
difundida pelo movimento modernista brasileiro e o projeto desenvolvimentista que
buscava integrar o Brasil ao mundo industrializado
35
”. A esses “ideais”, podemos
acrescentar um quarto, ligado às necessidades de inserção no mercado de quadrinhos.
Figura 3: Propaganda dos almanaques do Pimentinha, Zé Colmeia e Bolinha e Luluzinha
36
.
35
Ibid.. p. 2.
36
Pererê, julho de 1963. p. 2.
14
6. Resumo dos capítulos
A dissertação divide-se em seis capítulos. O primeiro deles aborda como a
origem do personagem que nome à revista foi estabelecida por Ziraldo em dois
momentos distintos. Procuramos discutir quais referências teriam sido utilizadas pelo
autor para justificar o surgimento do Saci Pererê, além de destacarmos a ligação destas
com uma imagem de Brasil. Destacamos, por fim, um ponto de contato entre Gilberto
Freyre e Ziraldo, estabelecendo homologias entre suas obras e suas atuações em defesa
da “nacionalização” dos quadrinhos. No capítulo seguinte, analisamos os usos da
história presentes em Pererê: destacamos que tipo de olhar sobre o passado se apresenta
nestas histórias e o que o motivaria. O terceiro capítulo procura mostra como a revista
de Ziraldo procurou “mapear” o quadro cultural de seu tempo, a partir de algumas HQs
que apresentam personalidades da música, do cinema e do futebol brasileiro, por
exemplo. Tentamos novamente apontar as relações existentes entre o pensamento mais
“artístico” e aquele mais preocupado com o mercado brasileiro.
Do quarto capítulo em diante, temos um núcleo de capítulos mais “temáticos”:
em “O campo e a cidade: a disputa territorial pelo imaginário”, procuramos discutir
HQs cuja temática central versasse sobre a Mata do Fundão, terra habitada pelos
personagens de Pererê, e o “outro”, pensado ora a partir de uma noção geral sobre uma
grande metrópole, ora quando um menino da cidade passa férias na região, ou ainda a
partir de espaços específicos como Brasília e Rio de Janeiro. O quinto e sexto capítulos,
por sua vez, analisam a presença do estrangeiro e a dificuldade de adaptação em terras
brasileiras a partir de duas figuras: respectivamente Papai Noel e Tarzan.
A título de ilustração, indicamos que as proposições gerais do nosso estudo
encontram paralelo com a leitura realizada por Antoine Prost acerca da constituição do
ofício de historiador na França
37
. Ao traçar as estratégias assumidas desde fins do século
XIX nos níveis políticos e científicos para a consolidação do ofício de historiador, o
autor constata que, sendo a história uma prática tanto social quanto política, ela “(...)
depende da posição ocupada por eles [os historiadores] nesse duplo conjunto, social e
37
PROST, Antoine. Doze lições sobre a história. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008. p. 33-51.
Cf. também KEYLOR, William R. Academy and community. The foundation of the french historical
profession. Cambridge, Massachusetts: Harvard UP, 1975. p. 55-89.
15
profissional
38
". Para fins de nosso objeto de análise, podemos parafrasear, ainda
segundo Prost, agora citando Burguière, que “todo projeto estético é inseparável de um
projeto de poder
39
o que se aproxima, por sua vez, da linha teórica defendida por
Mikhail Bakhtin
40
em sua análise das relações entre signo lingüístico e ideologia, a qual
procuramos levar em conta quando analisarmos as HQs da revista de Ziraldo.
Por isso, ao invés de procurarmos fixar a revista em denominações estanques e
pouco elucidativas de sua dinâmica, optamos por observar algumas histórias lançadas
ao longo dos quase quatro anos de duração da série. De início, vamos analisar no
próximo capítulo o diálogo de Pererê com a ideia de um Brasil construído a partir de
três raças.
38
PROST, A.. Op. cit.. p. 50.
39
Ibid.. p. 40.
40
BAKHTIN, M.. Op. Cit.. 1995.
16
CAPÍTULO 1
A ORIGEM DE PERERÊ
Música Brasileira
Tens, às vezes, o fogo soberano
Do amor: encerras na cadência, acesa
Em requebros e encantos de impureza,
Todo o feitiço do pecado humano.
Mas, sobre essa volúpia, erra a tristeza
Dos desertos, das matas e do oceano:
Bárbara poracé, banzo africano,
E soluços de trova portuguesa.
És samba e jongo, xiba e fado, cujos
Acordes são desejos e orfandades
De selvagens, cativos e marujos:
E em nostalgias e paixões consistes,
Lasciva dor, beijo de três saudades,
Flor amorosa de três raças tristes
41
.
1.1. Introdução
Olavo Bilac integra, ao lado de outros poetas, teóricos sociais e escritores, um
conhecido panteão de pensadores que se dedicaram a refletir as especificidades da
formação social brasileira. De acordo com Ianni, em artigo dedicado a classificação das
tendências do pensamento social brasileiro, dentre os grupos que identifica como
“precursores”, “clássicos” e “novos”, Bilac localizar-se-ia junto ao primeiro deles, ao
lado de nomes como Euclides da Cunha, Eduardo Prado, Varnhagen e outros. Ainda
segundo o mesmo autor, a expressão “três raças tristes” carrega consigo uma
inquietação cara ao grupo de pensadores que vivenciavam, na virada do século XIX e
início do século XX, um país formado por um grande contingente de ex-escravos que
41
BILAC, Olavo. Música brasileira. In: A tarde [1919]. Disponível em:
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ua000251.pdf (acesso em 10 de maio de 2010). p. 3.
17
não se interessa em integrá-los no processo de formação do Estado-nação, e que
observava de forma “atônita” os limites políticos e econômicos da recém-implantada
República
42
.
O poema de Bilac que estabelece os elementos sociais formadores da sociedade
brasileira servirá anos após sua publicação de referência para desenhar a origem do
personagem Pererê, protagonista da revista de mesmo nome de Ziraldo. Em dois
momentos ao longo dos três anos e meio de publicação da revista o personagem
mitológico teve apresentada sua origem, o que manifesta certa preocupação em
justificar a presença deste personagem junto ao seu público consumidor. Tal
investigação sobre esta figura do folclore brasileiro fora empreendida no ano anterior
ao livro de Bilac por Monteiro Lobato: em O Sacy Pererê resultado de um inquérito,
o autor apresenta os resultados de depoimentos colhidos sobre o tema enviados por
leitores de várias regiões do Brasil, donde reúnem-se imagens de um saci endiabrado,
arteiro e até maligno. Em 1921 era publicada O Saci, uma versão “suavizada” e voltada
ao público infantil do trabalho publicado em 1918
43
. A crítica que Pimentel aponta
sobre a revista de Ziraldo, acusando-a de suprimir o caráter endiabrado do Saci Pererê
“original”, não encontra assim maior precisão literária e histórica
44
.
Pelas claras delimitações de uma dissertação de mestrado, interessa-nos aqui,
porém, não iniciar uma análise aprofundada de autores de diversas “tendências”, no
dizer de Ianni, ligados à reflexão sobre a formação da identidade nacional
45
. Preferimos
aqui lançar foco sobre as fontes, percebendo-as como agentes produtoras de sentido, e
não como “reflexo” de regimes políticos ou de uma ideologia específica, conforme
desenvolvemos na Introdução.
A opção por iniciarmos o capítulo com a referência ao poema de Bilac tem um
caráter, cujo sentido é apontado no parágrafo acima, que procura lançar uma
provocação: ao contrário do que se poderia imaginar em se tratando da revista Pererê,
42
IANNI, Octávio. Tendências do pensamento brasileiro. Tempo Social. Rev. Sociol. USP. São Paulo,
12: 55-74, Nov. 2000, p. 70. Disponível em:
http://www.fflch.usp.br/sociologia/temposocial/site/images/stories/edicoes/v122/ianni.pdf (acesso em 20
de março de 2010).
43
Para informações sobre ambas as obras e como o saci lobatiano inseria-se em um projeto de nação do
autor, cf: BLONSKI, Míriam Stella. Saci, de Monteiro Lobato: um mito nacionalista. Em Tese, Belo
Horizonte, v. 8: p. 163-171, Dez. 2004 Disponível em.
http://www.letras.ufmg.br/poslit/08_publicacoes_pgs/Em-tese-2003-pdfs/19-Miriam-Stella-Blonski.pdf
(acesso em 20 de março de 2010).
44
PIMENTEL, S.. Op. cit..
45
ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Paz e Terra, 1987.
18
Ziraldo não leu “apenas” Lobato para desenvolver seu trabalho em Pererê ou não
limitou-se a reproduzir o populismo dos anos 1960. Pelo dinamismo necessário a uma
publicação mensal voltada para jovens, Ziraldo dialogará com uma série de referências
presentes no imaginário brasileiro para apresentar sua visão do país.
Mais especificamente Bilac é apropriado pela revista na edição comemorativa de
dois anos da revista, em outubro de 1962. Este número especial apresenta exatas
dezessete páginas, ou seja, metade do “miolo” da publicação, dedicadas àquilo que
podemos classificar como “biografias ilustradas” dos personagens. Após dois anos de
publicações mensais, Pererê tem uma estética claramente definida e que pode ser
explicitada por seu autor em palavras e ilustrações.
O capítulo não tem a intenção de realizar uma extensiva descrição das fontes e
apresentar as biografias de todos os personagens, apresentados em suas linhas gerais
na Introdução e que serão obviamente trabalhados ao longo da dissertação. Além disso,
as “biografias ilustradas” não devem ser tomadas em absoluto, pois assim perderíamos
de vista o caráter de “obras em movimento” que,segundo Pluet-Despatin, caracterizaria
publicações periódicas como revistas
46
. Como era publicada mensalmente, com grandes
tiragens e voltada para um público heterogêneo, Pererê foi concretizando o perfil de
cada personagem ao longo de cada número e de cada HQ; a revista não pode ser lida
apenas através das “biografias ilustradas”, que são versões escritas e com maior espaço
reflexivo para moldar o perfil dos seus personagens. Ainda assim, contudo, elas fizeram
parte de Pererê e, pelo esforço de sistematização de ideias presentes nessas séries
biográficas, tornam-se apropriadas para os objetivos deste capítulo e, por isso, merecem
nossa atenção.
Dividimos a análise em três momentos: de início analisaremos o perfil do
personagem principal, e como sua origem é explicada; em seguida comparamos com
uma HQ publicada em maio de 1961 que se referira às origens de Pererê; e por fim
retornaremos aos perfis de outros três personagens com o objetivo de aprofundar a
compreensão sobre os elementos que constituiriam Pererê. A hipótese básica deste
capítulo postula que Pererê é pensado como um personagem-símbolo do Brasil e que,
46
Apud VELLOSO, Mônica Pimenta. Percepções do moderno: as revistas do Rio de Janeiro. In: NEVES,
Lúcia M. B.; MOREL, Marco; FERREIRA, Tânia M. B. C.. História e imprensa: representações culturais
e práticas de poder. Rio de Janeiro: DP&A/FAPERJ, 2006. p. 313. De acordo com o autor francês, elas
são fortemente articuladas com o cotidiano e, pela sua “capacidade de intervenção mais rápida e eficaz”,
caracterizar-se-iam pelo seu caráter de “obra em movimento”.
19
para tal, Ziraldo lança mão de uma série de referências presentes no imaginário social
brasileiro.
1.2. O Saci está em cada um de nós
A história do Saci é diferente. O Saci, meus queridos amiguinhos, é o
símbolo mais perfeito do Brasil. Um símbolo perfeito. Não estou
falando do meu personagem, o amigo do Tininim, o namoradinho da
Boneca. Falo do Saci Pererê, que já existia antes de se instalar
definitivamente nesta revista. Êle é a figura mais popular e querida
que a imaginação brasileira criou, e mais que isto: três povos criaram
a figura do Saci Pererê no coração do Brasil. E a criaram no mesmo
instante em que construíam o Brasil. Os dois nasceram juntos: do
mesmo barro. No princípio era o índio. E o Saci se chamava Yaci
Yaretê e era um indiozinho de uma perna só, de cabelos de fogo.
Vovô índio o descreveu ao seu neto indiozinho. Depois, chegaram os
negros da África, de imaginação enorme. E o prêto-velho, contando
histórias a sinhazinha, ao do fogo, pintou o Yaci Yaterê de preto e
lhe meteu um cachimbo na bôca. E o Yaci virou Saci na língua
arrevezada do negro escravo. E sinhazinha depois foi nossa vovó e
trocou os cabelos de fogo do negrinho de uma perna só, por um
barrete, português, vermelho como o barrete dos pescadores de
Nazaré. E Yaterê virou Pererê. Estava pronto para habitar nossa terra
de ponta a ponta, o Saci Pererê. Fruto da imaginação de três raças
tristes: o português, o negro e o índio guarani, como o Brasil. que
nem o saci nem as três raças eram tristes. Foi um poeta que fêz esses
versos e se enganou. O Saci Pererê é alegre, ágil, inteligente,
sonhador, sagaz, matreiro, simpático, corajoso, sabe dar sempre um
jeito para tudo. É o Brasil. O Saci está em cada um de nós, da favela
aos cafezais, do César Lattes
47
ao Pelé
48
.
Por ser o personagem principal da publicação, não será por acaso que a biografia
de Pererê seja a escolhida para concluir a edição comemorativa de dois anos da revista.
47
César Lattes (1924-2005) foi um dos mais importantes físicos brasileiros. Doutor honoris causa pela
USP (1948), trabalhou em centros de pesquisa em Bristol e Berkeley, além de ser fundador do Centro
Brasileiro de Pesquisas Físicas, onde permaneceu como diretor até 1965. Cf: RODITI, Itzhak. Dicionário
Houaiss de física. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005. p. 134-135.
48
Pererê, outubro de 1962. p. 34. Pelé (1940- ), considerado o maior jogador da história do futebol
brasileiro, atuou no Santos (1956-1974) e foi campeão mundial pelo Brasil nas Copas de 1958 e 1962. De
acordo com José Jairo Vieira, “o negro passou a ser considerado um personagem importante após a
conquista da Copa de 1958, na qual Pelé e Garrincha praticamente garantiram o campeonato para o
Brasil”. apud. SILVA, Ana Paula. Pelé e o complexo de vira-latas: discursos sobre raça e modernidade
no Brasil. Rio de Janeiro, 2008. Tese (Doutorado em Antropologia Cultural). Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio de Janeiro. p. 15-16, 22-23.
20
De início é clara a força simbólica atribuída ao personagem e o valor que este acabaria
agregando à própria publicação: ora, se o Saci Pererê já era “o símbolo mais perfeito do
Brasil” mesmo “antes de se instalar definitivamente nesta revista”, isso nos leva a
deduzir que a revista Pererê, de certa maneira, também simboliza harmonicamente o
Brasil. A homologia entre os campos no nosso caso, os da criação estética e do
mercado editorial de quadrinhos – é bastante clara, conforme já definida por Bourdieu
49
:
enquanto estabelece um mito de origem para seu personagem definido como “a figura
mais popular e querida que a imaginação brasileira criou” –, Ziraldo procura, através
disso, legitimar sua revista, inserida em um campo marcado por revistas estrangeiras e
pela defesa da nacionalização dos quadrinhos, melhor analisadas na seção 1.5 deste
capítulo
Por intermédio de uma referência que remonta ao mito cristão do surgimento do
Homem no Paraíso (“nasceram juntos: do mesmo barro”; “no princípio era o índio”), é
contada a criação do Saci Pererê na Mata do Fundão. Percebemos que uma gradação
entre as três raças presentes neste relato: enquanto de início Yaci Yaterê era um
“indiozinho de uma perna só” “de cabelos de fogo”, logo em seguida os negros vindos
da África, representados por um “negro escravo” de “imaginação enorme”, com sua
“língua arrevezada”, e acrescentaram-lhe outros elementos, convertendo-o ao seu grupo:
pintaram-no de preto, deram-lhe um cachimbo para fumar e passou a ser chamado de
saci. E por fim a sinhazinha retratando o português europeu retira o fogo de sua cabeça,
substituindo-o por um “barrete dos pescadores de Nazaré”.
A celebração do Brasil como palco da união das três raças é explicitada nesta
biografia ilustrada de Pererê, pois “o Saci Pererê é alegre, ágil, inteligente, sonhador,
sagaz, matreiro, simpático, corajoso, sabe dar sempre um jeito para tudo”. Presente “da
favela aos cafezais, do César Lattes ao Pelé”, ele, em resumo, “é o Brasil”, o símbolo
que integra a diversidade (e as contradições) do país e aponta para o futuro sob os
limites estritos do que imagina como nação brasileira. Pererê segue aqui em
consonância também com o imaginário social ligado ao nacional-desenvolvimentismo;
se o personagem-título é definido como “fruto da imaginação de três raças” e, por
conseguinte, da pena do poeta Olavo Bilac –, Ziraldo não toma tal leitura da como
explicação exclusiva e completa para compreender a formação do povo brasileiro. O
49
Cf. BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo:
Companhia das Letras, 1996.
21
autor permite-se inverter a tese de Bilac, substituindo a tristeza que estaria presente nas
três raças formadoras por um fator de alegria que se externaliza na capacidade de Pererê
– e do povo brasileiro em solucionar problemas e “dar um jeito para tudo”, apesar das
dificuldades do país. Nas palavras de Ziraldo, Bilac “se engana”.
Pererê resulta de uma bem-sucedida união de três povos, celebrada através da
analogia com outra conhecida lenda explicativa da origem mitológica do Saci, difundida
por Monteiro Lobato: partindo de um olhar que percebe os indígenas em um “grau de
desenvolvimento muito inferior ao do africano”, e ambos atrasados em relação ao
europeu, o autor defende que a figura do Saci Pererê e sua faceta bem-humorada e
travessa não seriam possíveis sem a união dos três povos como se deu no Brasil.
Ao passo que “essas raças [indígenas e africanos], com o fetichismo e
naturalismo animista característicos de sua mentalidade, forneceram como que o
elemento, a atmosfera, o meio moral onde podia vingar semelhantes crendices”, foi
através do elemento português, segundo Monteiro Lobato, que “interveio a colaboração
do civilizado (...) [que] foi a pouco e pouco alterando ao som dos motejos e risadas dos
senhores-moços ou patrões (...)
50
”. Em resumo:
(...) o preto e o índio deram, por assim dizermos, a matéria-prima com
a qual o europeu plasmou a maliciosa figurinha que de imaginação em
imaginação chegou a tocar as raias do mais leve magismo poético, da
mais irisada ‘feérie’, e é hoje incontestavelmente digna de aparecer ao
lado dos Pucks, dos Oberons e das Titânias
51
.
Outro escritor que pensou a formação do povo brasileiro a partir da conjunção de
três raças foi Cassiano Ricardo, poeta e escritor ligado às correntes mais nacionalistas
do Modernismo. Sua obra mais conhecida, Martim Cererê, definida pelo próprio autor
como uma “síntese étnica do nosso povo
52
”, parte da lenda indígena sobre a origem da
noite para explicar o nascimento do menino que nome à história e que serve também
de alegoria para o Brasil
53
. Apesar de aspectos presentes nesta obra de Cassiano Ricardo
serem especialmente interessante para aprofundarmos o diálogo com a produção de
50
LOBATO, Monteiro. O Sacy Perêrê: resultado de um inquérito. Rio de Janeiro, RJ: Gráfica JB S.A.,
1998. p. 279-280, p. 280.
51
Ibid.. p. 280.
52
Apud OLIVEIRA, Vera Lúcia. Poesia, mito e história no modernismo brasileiro. São Paulo,
SP/Blumenau, SC: UNESP/FURB, 2002. p. 175.
53
MOREIRA, Luiza Franco. Meninos, poetas e heróis: aspectos de Cassiano Ricardo do Modernismo ao
Estado Novo. São Paulo: EdUSP, 2001. p. 35-66.
22
Ziraldo, como sua edição ilustrada que conta com ilustrações de Di Cavalcanti
54
e sua
ideia de uma “Brasil menino”, preferimos comentar de início um procedimento adotado
por ele que consideramos semelhante ao que Ziraldo propôs para justificar em sua HQ a
origem do seu Saci: de início viera o elemento indígena, em seguida o negro e por fim o
português a contribuir para o surgimento da figura mitológica embora na obra do
poeta modernista esteja presente uma hierarquia racial
55
que não se manifesta
explicitamente na biografia de Pererê por Ziraldo.
Podemos destacar também o reconhecido folclorista Luis da Câmara Cascudo,
cujas obras já eram tomadas como referências importantes sobre o folclore brasileiro em
meados dos anos 1930 e 1940. Em sua Geografia dos mitos brasileiros, destaca ser o
Saci-Pererê um “mito de existência relativamente moderna” e que escapa dos registros
dos cronistas coloniais. Consideramos especialmente interessante que, dentre as muitas
denominações iniciais recebidas por este personagem, Ziraldo tenha optado pela de
nome “Yacy Yateré”, encontrada no sul do Brasil e em países como Argentina, Paraguai
e Uruguai, Cascudo defende que a figura que reconhecemos como Saci-Pererê tem
como ponto de origem esta tradição localizada nos países próximos ao sul do Brasil,
povoados por tribos Tupi-Guaranis, tendo daí partido para o restante do Brasil
56
.
O Saci-Pererê ziraldiano pode ser assim lido a partir de três pontos de vista
interligados: como resultado de uma celebrada união freyreana entre três raças, gerando
um menino, à maneira de Cassiano Ricardo, que representa o Brasil a ser construído,
integrado entre si de norte a sul (a partir da difusão do mito do Yacy Yaterê assumido
por Ziraldo para seu personagem) e até mesmo estabelecendo conexão com o restante
da América Latina, se nos remetermos à formação lendária recolhida e apresentada por
Câmara Cascudo.
Vale destacar, para finalizar esta primeira seção, que a biografia de Pererê é
enriquecida pela ilustração presente na página junto ao seu texto que, por sua vez,
adquire sentido se acompanhada pelos desenhos localizados na parte inferior de cada
página desta edição. Eles retrataram uma investigação de Tininim e Allan que, tal qual a
54
Mais precisamente nos referimos à primeira edição de Martim Cererê, onde algumas páginas aliam os
versos de Cassiano Ricardo com ilustrações do pintor modernista, especialmente preparadas para o livro.
Este recurso é comum em obras voltadas para crianças – como os quadrinhos.
55
Ibid.. p. 44
56
Cf. CASCUDO, Luis da Câmara. Geografia dos mitos brasileiros. Belo Horizonte/São Paulo:
Itatitiaia/EdUSP, 1983. p. 106-113.
23
dupla Sherlock Holmes e Watson
57
, partem em busca do autor das pegadas localizadas
ao longo das páginas da publicação. Após muitas biografias e algumas breves HQs onde
Pererê não esteve presente – algo raro em se tratando do personagem principal da
publicação ele finalmente surge e, como se devesse uma explicação aos seus leitores
pelo sumiço, põe-se a justificar-se:
Figura 4: Saci Pererê
nas páginas finais na
edição de aniversário
da revista. Em
paralelo, Allan e
Tininim parecem
surpresos com a
solução do mistério
que os acompanhou
por toda a revista
58
.
Na página final relativa à biografia de Pererê, revela-se que o autor das pegadas
era, é claro, o próprio Saci, que as pintava em cada página para confundir a dupla de
investigadores. A ilustração termina por acrescentar, assim, outra conhecida faceta
ligada ao lendário personagem brasileiro, a saber, o seu caráter travesso e brincalhão,
apresentado por Monteiro Lobato em livro sobre o Saci ligado ao tio do Picapau
Amarelo e lançado em 1921.
57
Os sobretudos e o cachimbo na boca de Tininim corroboram a afirmação, e atestam que Ziraldo
baseava sua obra em referências conhecidas da literatura mundial.
58
Pererê, outubro de 1962. p. 33.
24
1.3. A Flor egra
O surgimento de Pererê é apresentado ao leitor pela primeira vez na edição de
maio de 1961. Em “Pererê e o dia das mães
59
”, os personagens da Mata do Fundão
providenciam presentes para suas es, mas, enquanto o macaco Allan consegue um
grande cacho de bananas e a tartaruga Moacir um patinete para suas respectivas mães,
Pererê não poderá comemorar tal data tão importante, pois sua mãe é desconhecida. A
turma não deixa de expressar sua preocupação sobre este fato:
Figura 5: Reação da Turma do Pererê ao descobrir que o Saci não tem mãe
60
.
Diante deste quadro, os personagens resolvem ajudá-lo e recorrem ao sábio
General Nogueira em busca da mãe do Pererê. É a oportunidade para todos se reunirem
e escutarem atentamente a história sobre a origem de Pererê:
59
Pererê, maio de 1961. p. 3-14.
60
Ibid.. p. 8.
25
Figura 6: Turma do
Pererê ouve
atentamente sobre a
origem de Pere
61
.
Cabe a Tininim, Allan, Moacir, Pedro Vieira e Geraldinho a missão de encontrar
a tal flor negra, pois, se o Saci Pererê nasceu de uma, presume-se que ela é a e do
personagem da Mata do Fundão e, desta forma, trata-se o mito de origem de Pererê
com o humor leve que seria caro à revista. Após muita busca, que inclui até uma
equivocada investigação de Moacir em um rio, a flor é encontrada dentro do jardim do
Compadre, de nome não especificado mas que podemos imaginar se tratar do Compadre
Tonico, personagem de tipo fazendeiro cuja fixação única consiste em caçar a onça
Galileu.
O fato é que a planta está muito bem protegida, e o acesso a ela não é permitido
pelo Compadre. A turma a observa sob o muro da propriedade e procura uma solução.
O índio Tininim percebe que ela está sendo regada, e decide então chamar por Dona
Docelina, que se revela a pessoa que se dedicava a molhar a flor negra. Após saber que
ela perdera seu filho ainda “piquininho”, Tininim pergunta se ela não gostaria de ter um
61
Pererê, maio de 1961. p. 9.
26
outro filho, “bonzinho e inteligente”. Pererê é então adotado por Mamãe Docelina, com
direito a registro no cartório
62
:
Figura 7: página final de “Pererê e o dia das mães
63
”.
62
Mais precisamente no “Cartório Tabelião Fernando Patrício”. o por acaso, em Caratinga, cidade
natal de Ziraldo, localiza-se um Cartório Fernando Patrício.
63
Pererê, maio de 1961. p. 14.
27
Em “Pererê e o dia das mães”, uma “índia morena e muito bela”, “uma escrava
negra muito boazinha” e “uma bela cachopa portuguesa” são retratadas como as mães
de Pererê, nascido de uma “flor negra”. Semeada pela primeira, cuidada pela segunda e
colhida pela terceira,
Se em Martim Cererê o branco é representado pelo professor que escolhe o
nome de Martim Cererê para o menino no lugar de seus antigos nomes, que não eram
“nome de gente”, em Pererê o Compadre, se por um lado dificulta a missão da turma
em recolher a flor negra localizada em sua protegida fazenda, termina por protegê-la ao
permitir que ela seja cuidada por Dona Docelina e mesmo por estimular a turma na
busca pela solução de mais um impasse, inserindo-a em um contexto de aventuras,
tônica que norteia as HQs da revista. Com isso, o elemento branco de Pererê que
aparece apenas sob a “forma” da propriedade –, cede espaço à negra quituteira, que
passa a ser identificada “umbilicalmente” com a figura do protagonista da HQ, ao passo
que o índio Tininim intercede a favor de Mamãe Docelina. O mito contado pelo General
Nogueira é assim revivido de forma bem-humorada e mediante autorização em cartório
firmada por Pererê, Tininim e companhia.
1.4. Mamãe Docelina
A personagem, também chamada de Dona Docelina e que já aparecera
timidamente na edição de dezembro de 1960
64
, mas que é apresentada aos leitores
apenas em “Pererê e o dia das mães”, passará a ser associada em outras HQs às figuras
das mulheres quituteiras negras popularizadas por Gilberto Freyre em Casa-grande e
senzala
65
. Esta condição seria ratificada por Ziraldo em outubro de 1962, ao escrever na
biografia da personagem:
Docelina Benvinda de Jesus. Dizem que mãe dela foi escrava. Ela é o
grande ‘xodó’ de todo o pessoal da Mata do Fundão. Vive ali desde
que o mais antigo morador daquelas bandas se entende por gente. Não
é empregada de ninguém, mas é de todos. Às vezes está cozinhando
pra “Seu” Nereu quando Vovó Mariana adoece. Às vezes está fazendo
64
Cf. Pererê, dezembro de 1960. p. 32. A HQ onde a personagem estreia na revista será analisada no
capítulo 5.
65
FREYRE, Gilberto. Casa-grande e senzala. São Paulo, SP: Círculo do Livro, s/d.
28
os doces pra uma festa na fazenda do “Seu” Nenen, ou cuidando das
flores do Compadre Tonico. Não tem casa, pois mora na casa de todo
mundo. Cada casa tem um lugar para guardar um pouco dos seus
‘trens’: uma ou outra recordação do seu marido, que morreu
muito tempo. Mamãe Docelina não tem filhos, por isso todos são
filhos dela. Principalmente o Saci Pererê, que ela resolveu adotar de
vez. E nunca vi filho e mãe mais felizes um com o outro...
66
.
Uma característica importante da personagem é a relação desapegadamente
“maternal” que mantém com os outros personagens da revista: “todos são filhos dela” e
ela “é de todos”, “pois mora na casa de todo mundo”. A individualidade de Mamãe
Docelina se a partir da sua diluição caridosa a favor dos outros personagens e que se
traduz no papel secundário que ela terá ao longo das edições de Pererê.
Entretanto, o fato é que as mulheres em geral terão pouco destaque na revista.
As duas personagens femininas mais conhecidas Boneca de Piche e Tuiuiu seguem
o modelo de contos infantis onde as donzelas devem sempre ser cortejadas por seus
respectivos “príncipes” Pererê e Tininim. Ziraldo parece ter ciência desta clara divisão
de papéis, e brincou com isso algumas vezes, como em “O duelo”, onde Pererê e
Tininim enfrentam seus antagonistas Rufino e Flecha-Firme sob fantasias de cavaleiros
medievais, objetos de admiração das meninas. Saem vencedores, mas perdem a batalha
do amor: elas agora se interessam mesmo é pelos “heróis do espaço
67
”. A pouca atenção
às mulheres pode, por fim, se justificar por serem então os quadrinhos uma mídia de
forte apelo junto a crianças e jovens do sexo masculino.
1.5. Compadre Tonico e Seu eném
Antônio Macedo da Costa, mais conhecido por Compadre Tonico,
próspero fazendeiro desta região. É assim que o jornalzinho da cidade
que fica na Mata do Fundão se refere ao Compadre. De fato, ele é
um fazendeiro muito inteligente e muito trabalhador. Nasceu no
Estado de São Paulo e comprou a fazenda onde hoje vive mais de
dez anos. Quando êle comprou, aquilo não era nada. Hoje é um
fazendão, produz café em alta escala, criação, porcos, galinha, vacas
leiteiras. Êle planta também arroz, feijão, e muitas outras coisas. Tem
uma horta muito bonita e uma plantação de flôres que é a menina dos
seus olhos. É um homem muito simples, mas muito bem informado.
66
Pererê, outubro de 1962. p. 25.
67
Pererê, janeiro de 1962. p. 19-28.
29
Sua fazenda é, no aspecto externo, uma típica fazenda do interior do
Brasil, mas é na verdade muito modernizada. Seus colonos, que são
muitos, adoram o Compadre Tonico. Quiseram eleger o homem
prefeito, ou vereador. Mas êle não quer. Prefere o sossêgo de sua
fazenda, picar o seu fumo, fumar seu cigarrinho de palha, dar seus
“arrasta-pés” no pátio da fazenda em noite de lua, ouvir a “Hora do
Fazendeiro” no rádio, suas musiquinhas caipiras, seus tangos e suas
valsas. Mas o que ninguém sabe é que o Compadre conhece todos os
cantores de Bossa-Nova também. Êle é um sabidão. Compadre Tonico
é solteiro, outros dizem que ele é viúvo. Ninguém sabe ao certo. Êle é
muito brincalhão, muito bem-humorado, mas fala pouco sobre sua
vida. É reservado e caladão, sabe fazer negócio como ninguém. Os
“minino” assim que ele chama a turma da Mata do Fundão) são a
alegria do Compadre. Mas, como todo mundo, o Compadre tem a sua
mania: se julga o maior caçador de onças do Brasil. E o Galileu que
sofre pra provar ao Compadre o contrário...
68
Êle também é outro próspero fazendeiro do município. Sujeito
simples, mas trabalhador, tá ali. Sua fazenda é outra beleza. Tem
pomar, açude para criação de peixes, horta, moinho, tratores,
tudo. Ninguém sabe qual fazenda é maior: a dele ou a do
Compadre Tonico. Aliás, nós achamos que êles são sócios numa
porção de coisas. E difícil se ver amigos tão grandes. “Seu”
Nenen também tem uma mania: é querer casar com a Dona
Santinha, a viúva rica, outra fazendeira de mão cheia que vive
por ali. Se juntarmos a fazenda da Dona Santinha, a do “Seu”
Nereu, a do “Seu” Nenen e a do Compadre Tonico dá um
verdadeiro país, essencialmente agrícola. Mas, cheio de fartura,
onde ninguém passa fome
69
.
Representando na HQ de 1961 o elemento branco que comporia o povo
brasileiro temos Compadre Tonico e Seu Neném, que compõem uma inseparável
parceria de planos mirabolantes para pegar a onça Galileu. Nas duas biografias destaca-
se em primeiro plano a riqueza de suas propriedades. Quando Compadre Tonico
comprou sua propriedade “aquilo não era nada”, mas passou a ser um “fazendão” que
produz até flores, “menina dos seus olhos”. Com Seu Neném não é diferente, pois nela
“tem pomar, açude para criação de peixes, horta, moinho, tratores, tudo”. De fato,
“ninguém sabe qual fazenda é maior: a dele ou a do Compadre Tonico”.
Ziraldo pinta este quadro imaginário do proprietário agrícola em um momento
de lutas travadas em torno da reforma agrária e em um primeiro momento esta visão
cega a contradições e harmônica do campo poderia defini-lo como defensor de grandes
latifundiários. Além da sutil crítica às terras improdutivas que observamos ao final da
68
Pererê, outubro de 1962. p. 23.
69
Ibid.. p. 24.
30
biografia de Seu Neném, indicando que as fazendas formam “um verdadeiro país,
essencialmente agrícola”, “cheio de fartura, onde ninguém passa fome”, destacamos a
contribuição de Marcos Silva, que levantou a possibilidade de se pensar os embates
travados entre a dupla de fazendeiros e Galileu a partir do quadro geral do debate das
ligas camponesas experimentado na época:
O próprio nome de Galileu aponta para isso, uma vez que ele evoca a
denominação “galileus”, atribuída aos trabalhadores do Engenho
Galiléia, Pernambuco, pioneiros na formação de ligas camponesas e
largamente comentados pela Imprensa brasileira da época
70
.
As perseguições, que estarão presentes em todas as revistas Pererê em pelo
menos uma HQ por número, não manifestam, porém, uma vontade de eliminação entre
os dois lados desta eterna peleja. As disputas são abordadas priorizando a brincadeira e
o lúdico, como em “Desta vez...fui!”, HQ onde, após uma sucessiva sequência de
ataques à onça, o Compadre Tonico finalmente consegue prendê-la apenas para
libertá-la por causa do de abril
71
. Como o próprio autor sempre se preocupou em não
estabelecer vilões em Pererê, a tensão que Silva percebe entre os fazendeiros e Galileu
é quebrada a cada edição, o que não invalida a leitura do autor. O nome Galileu, a nosso
ver, também pode ser pensado como uma referência a Jesus, nascido na Galiléia e
perseguido em vida. Esta polissemia permite ao personagem não restringir-se ao
período que o viu surgir, abrangendo assim outros níveis do imaginário da população
brasileira.
Por fim, na biografia do personagem General Nogueira, temos a seguinte
passagem a revelar as tensões presentes na revista acerca da questão agrária:
Outro dia um repórter foi entrevistá-lo e perguntou a êle o que êle
achava da reforma agrária. Êle respondeu, depois de refletir
demoradamente: “Num vai ser mole não
72
!”.
70
SILVA, Marcos Antonio, Op. cit.. p. 189.
71
Pererê, abril de 1961. p. 14-18.
72
Pererê, outubro de 1962. p. 26.
31
1.6. Gilberto Freyre, Ziraldo e a defesa dos quadrinhos no Brasil
As acusações contra os quadrinhos formuladas pelo psicólogo Fredric Wertham
em artigos de jornais e livros como A sedução dos inocentes, por sua vez, tornaram-se
lendárias até os dias de hoje: neles defendia que as histórias em quadrinhos de
personagens como Superman, Batman e Mulher-Maravilha estimulavam a delinqüência
juvenil e comportamentos homossexuais em seus leitores, por exemplo. Bart Beaty
critica a associação direta realizada por diversos estudos, como o de Nyberg, entre a
obra de Wertham e a censura aos quadrinhos como se toda esta iniciativa pudesse ser
creditada à ação exclusiva de um indíviduo, tido como “macarthista
73
”. Além de
demonstrar que ele seguia uma agenda política muito mais próxima da “liberal” durante
os anos 1950, Beaty destaca como as configurações do campo científico dos estudos em
comunicação e a constituição do que enxerga ser um modelo “empírico” para explicar
as mídias atuaram diretamente para o estado de ostracismo que os estudos de Wertham
sobre cultura de massas e quadrinhos se viram inseridos
74
.
Para além do reconhecimento da importância dos estudos de Wertham e da sua
relação conflituosa com o rigor acadêmico apontados por Beaty, por exemplo, a nós
interessa destacar que suas obras não pairaram acima dos anseios e expectativas de
certos segmentos da sociedade norte-americana. O repórter e escritor Sterling North,
citado por Wright, bradava na edição de 8 de maio de 1940 do Chicago Daily contra a
“desgraça nacional” que enxergava nos comics, por exemplo
75
. Diante daquilo que
define como uma “consciência generacional” que preocupava os adultos, forjada a partir
de um contexto marcado pelo desemprego dos anos da Depressão e as reformas
educacionais do New Deal,Wright aponta as primeiras manifestações de preocupação
com o conteúdo veiculado pelos comics:
“Os críticos atribuem a irreverência adolescente e o comportamento
não-desejado a uma série de fatores, incluindo a “educação científica”
73
Assim cunhado em homenagem ao senador Joseph McCarthy, o termo foi criado para definir a
exacerbada postura anticomunista assumida por algumas pessoas nos Estados Unidos em fins dos anos
1940 e ao longo da década de 1950. Muitos artistas e intelectuais foram perseguidos no período, acusados
de apologia ao comunismo, no que ficou conhecido como “caça às bruxas”.
74
BEATY, Bart. Fredric Wertham and the critique of mass culture. Jackson, MS: University Press of
Mississippi, 2005. NYBERG, Amy Kiste. Seal of Approval: the history of the Comics Code. Jackson,
MS: University Press of Mississippi, 1998.
75
WRIGHT, B.. Op. cit.. p. 27.
32
equivocada, dificuldades financeiras na família, políticas invasivas do
New Deal, filmes, swing music e comic books
76
”.
No Brasil, a tentativa de tornar evidente um teor virtuoso potencialmente
presente em qualquer revista em quadrinhos era também uma forma de se diferenciar e
escapar destas críticas e, em decorrência disso, solapar a concorrência oriunda de
editoras paulistanas de pequeno porte que se dedicavam com exponencial sucesso aos
quadrinhos de terror. Violência, assassinatos, misticismo e nudez moviam os enredos
destas revistas em quadrinhos.
Apesar de contar com uma organização não suficientemente profissionalizada e
estabelecida, a Editora La Selva, fundada em São Paulo no início da década de 1950,
conseguiu trabalhar bem com as histórias de terror, publicadas até então
esporadicamente por outras editoras no Brasil desde fins da década de 1930. De acordo
com Moya:
O aparecimento das revistas de terror obedece a uma escala crescente
do próprio gênero. Revista ‘completa’ mesmo, em 1951, mas
histórias avulsas, muito antes desta data eram publicadas (...). Com
o término da guerra, os super-heróis um tanto desgastados com o uso e
o abuso de seus poderes para vencer o ‘inimigo comum’ tinham caído
no desprestígio da constante repetição
77
.
A voz dissonante que sairá em defesa dos quadrinhos será a do antropólogo
Gilberto Freyre, atuando na imprensa e na Câmara dos Deputados, onde exerceu um
mandato pela União Democrática Nacional (UDN) de 1946 a 1951. De início propôs
aliás, sem sucesso uma versão em quadrinhos da Constituição promulgada em 1946
com o objetivo de torná-la conhecida da população. Em 1948, manifestou-se em defesa
dos quadrinhos após uma comissão de Educação e Cultura na Câmara ter sido criada a
partir de artigos publicados pelo Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP)
denunciando a preguiça mental e a aversão a livros que os quadrinhos causavam em
seus leitores
78
. Gilberto Freyre defendia o papel educativo que os quadrinhos poderiam
ter para crianças e adultos, servindo como “ponte para leitura de livros”:
76
Ibid. (tradução nossa).
77
MOYA, Álvaro; OLIVEIRA, Reinaldo. História (dos quadrinhos) no Brasil. In: MOYA, Álvaro (org.).
Shazam!. 2ª edição. São Paulo, SP: 1972. p. 227-229.
78
JUNIOR, Gonçalo. A Guerra dos Gibis: formação do mercado editorial brasileiro e a censura nos
quadrinhos. 1933-64. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2004. p. 114.
33
A história em quadrinhos, em si, não é boa nem má, depende do uso
que se faz dela. E bem pode ser empregada em sentido favorável e não
contrário à formação moderna do adolescente, do menino ou
simplesmente do brasileiro, ávido de leitura rápida, em torno de heróis
e aventuras ajustadas à sua idade mental
79
.
1.7. Considerações finais
A luta em defesa dos quadrinhos brasileiros dava seus primeiros passos quando
Gilberto Freyre interveio junto à comissão e conseguiu dela um parecer favorável aos
quadrinhos como “elementos de ajuda na alfabetização
80
”. Ziraldo logo participaria de
debates em torno da nacionalização das HQs.
Iniciativas pioneiras presentes nos anos 1960 procuraram, através de políticas
governamentais de proteção à produção brasileira, reverter o quadro de predomínio de
obras estrangeiras. Como exemplo marcante, tivemos a CETPA: Cooperativa Editora de
Trabalho de Porto Alegre que, com apoio de Leonel Brizola, então governador do Rio
Grande do Sul (1959-1963), defendia apoio institucional à produção de quadrinhos
nacionais. Esta luta por uma legislação que zelasse pelos quadrinhos nacionais se
desenrolava desde fins dos anos 1950 e início dos 1960, quando ocorre a primeira
reunião em defesa da nacionalização dos gibis, que contou com nomes como o crítico
de arte Mário Pedrosa, o cartunista Fortuna, o então presidente da Associação dos
Desenhistas do Brasil (ADB)
81
José Geraldo
82
, além do próprio Ziraldo. Realizada
durante o governo Jânio Quadros (1961), não pôde prosseguir dada a turbulência
política causada por sua renúncia, em 25 de agosto de 1961
83
.
79
Apud. JUNIOR, 2004, p. 114-115.
80
Ibid.. p. 115.
81
Fundada em 1948, reivindicava reserva de mercado para os quadrinhos nacionais como forma de
combate à “nocividade do material estrangeiro consumido no país”. Outras associações que se seguirão a
ela, como a ADESP (Associação dos Desenhistas de São Paulo, fundada em 1952), defenderão propostas
semelhantes. Cf. JÚNIOR, Gonçalo. Op. cit., p. 132-133; 176-177.
82
Admirador do pensador anarquista Bakunin e defensor da nacionalização dos quadrinhos brasileiros,
José Geraldo trabalhou em editoras como Ebal e O Cruzeiro. É interessante observar que sua atuação tal,
como relatada no livro de Gonçalo Junior, foi recentemente contestada em um blog mantido pelo próprio.
Dentre os principais pontos, ele critica e apresenta outros pontos de vista à associação estabelecida por
Gonçalo Jr. entre a CETPA e um tratamento xenófobo que ela dedicaria aos quadrinhos. Cf:
http://zegeraldo.wordpress.com/2008/12/24/1589/ (Acesso em 20/03/2009).
83
JÚNIOR, Gonçalo. Op. cit.. p. 331-335. Cf. GUAZZELLI, Eleomar. La historieta en Rio Grande do
Sul. Revista Latinoamericana de Estudios sobre la Historieta, v. 4, n. 16: p. 239-256, Dez. 2004.
Disponível em: http://www.rlesh.110mb.com/16/16_guazzelli.html (Acesso em 01/03/2009).
34
Durante a presidência de João Goulart (1961-1964), foi aprovado no Congresso
Nacional um projeto de lei limitando a importação de histórias em quadrinhos
estrangeiras e a implantação progressiva de cotas para publicação de HQs e tirinhas de
jornal de autores brasileiros, a partir de discussões que contaram com a presença de
artistas como Ziraldo e Fortuna. As grandes editoras brasileiras não foram censuradas,
mas se sentiram lesadas por terem sido excluídas deste debate e entraram com ação
judicial contra a lei. Com o golpe de 1964 e a teia burocrática que o envolveu, a lei não
resistiu às mudanças políticas e nunca foi aplicada como fora prevista
84
.
Devemos entender, pois, a iniciativa de Ziraldo em criar Pererê a partir das
discussões travadas entre os desenhistas em torno do quadrinho nacional, uma vez que o
rápido sucesso de sua revista foi saudado como “exemplo sadio de ‘brasilidade’ e de
vida inteligente nos quadrinhos” por críticos e intelectuais
85
, dando continuidade à
defesa pioneira de Gilberto Freyre e legitimando, assim, a atuação coletiva dos artistas
brasileiros.
84
JÚNIOR, Gonçalo. Op. cit.. p. 363-371. José Geraldo, corrigindo passagens do livro de Gonçalo
Junior., afirma que de fato: “A lei que o deputado carioca Aarão Steinbruch conseguiu aprovar no
congresso limitando a importação de ‘quadrinhos’, com cotas para os nacionais, nunca funcionou porque
o presidente João Goulart o assinou a sanção que puniria seus infratores, e depois do golpe militar o
Supremo Tribubal Federal deu ganho de causa aos empresários”. Cf:
http://zegeraldo.wordpress.com/2008/12/24/1589/
(Acesso em 20/03/2009).
85
Como exemplo, temos o reconhecimento expresso por Herman Lima apresentado na Introdução. Cf.
JUNIOR, Gonçalo. Op. cit.. p. 327.
35
CAPÍTULO 2
EQUADRADO O PASSADO: PERERÊ E A HISTÓRIA
2.1. Introdução
Ao longo dos anos, o saber histórico constituiu-se um objeto de interesse
privilegiado por diversos setores da sociedade em busca de hegemonia: o controle em
torno daquilo que deve ser lembrado ou esquecido está presente em políticas de Estado,
comemorações e monumentos, por exemplo
86
. E no século XX a imprensa consolidou-
se como espaço massivo de propagação de relatos baseados em elementos associados à
história, em uma tentativa de legitimação ou combate dos posicionamentos destes
mesmos grupos. Deduz-se, pois, que não é demais avaliar jornais e revistas não só como
agentes produtores e difusores de modelos específicos de consciência histórica, mas
também como verdadeiros formuladores daquilo que deve ser lembrado ou esquecido
87
,
obviamente a partir de preocupações e abordagens diferentes das praticadas pelos
historiadores profissionais.
A estes últimos, Rüsen os define ligados à “ciência da história”, ao passo que
“todo pensamento, em quaisquer de suas variantes – o que inclui a ciência da história –,
é uma articulação da consciência histórica
88
”. De relação direta com a vida cotidiana, a
consciência histórica permite que os homens orientem suas ações do agir de acordo com
a experiência do tempo; por isso, Rüsen defende que passado, presente e futuro
encontram-se articulados na produção da consciência histórica:
Seria totalmente equivocado, pois, entender por consciência histórica
apenas uma consciência do passado: trata-se de uma consciência do
86
Para um estudo de caso cf.: SILVA, Kelly Cristine. A nação cordial: uma análise dos rituais e das
ideologias oficiais de ‘comemoração dos 500 anos do Brasil. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São
Paulo, v. 18, n. 51: 141-160, Fev. 2003. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/rbcsoc/v18n51/15990.pdf (acesso em 15 de março de 2010).
87
FERRO, Marc. A história vigiada. São Paulo, SP: Martins Fontes, 1988.
88
RÜSEN, Jorn. Razão histórica: teoria da história: fundamentos da ciência histórica. Brasília, DF:
Editora Universidade de Brasília, 2001. p. 56.
36
passado que possui uma relação estrutural com a interpretação do
presente e com a expectativa e o projeto de futuro
89
.
Por isso, para além de pensarmos a relação passado/presente na consciência
histórica sob o peso de uma função magistra vitae ou por intermédio da provocação
nietzschiana a favor do abandono da História pensada como negação da potência,
através de Rüsen podemos observar, em primeiro lugar, que a consciência histórica está
inscrita em nossas ações cotidianas, sempre definidas a partir de projetos formulados e
expectativas futuras; e em segundo lugar, que entre o pensamento histórico
“profissional” e o “amador” existem pontos de contato que se refletem na consciência
histórica de cada um.
Tudo isso nos leva a elencar algumas perguntas de caráter geral relativas a
pesquisa: por que o passado é tão importante a ponto de servir de parâmetro a ações
presentes? Quais elementos históricos neste movimento de retorno ao vivido são
escolhidos e por quê? Toda seleção do passado encerraria em si um caráter arbitrário e,
em conseqüência, representaria tão somente uma reafirmação de poder? E de que
maneira a História, campo de conhecimento que remonta aos antigos gregos, estudada
ao longo dos séculos e que teve até mesmo a sua morte anunciada ou inutilidade
declarada, poderia ter alguma relação com uma mídia como os quadrinhos, cuja origem
recente data de fins do século XIX, marcadas pela reprodutibilidade e pelo consumo em
escala industrial? Estas questões gerais nortearão a análise sobre o objeto desta
pesquisa, a revista Pererê. O objetivo deste capítulo, por sua vez, é analisar como o
saber histórico serviu de capital simbólico nas disputas por legitimidade e
reconhecimento no campo dos quadrinhos no Brasil.
Este quadro nos levará a defender como hipótese central deste capítulo que o
reconhecido papel representado por Pererê na história dos quadrinhos brasileiros, para
além da conjunção de um contexto histórico “nacionalista” com o traço original de seu
autor
90
ou de ter a revista exercido a função de aparelho ideológico do estado
populista
91
, coaduna-se explicitamente com as necessidades de inserção em um campo
marcado por debates e limitações específicos, e que valorizavam determinadas diretrizes
para os quadrinhos em detrimento de outras. Os quadrinhos históricos representariam
um importante momento para a legitimação desta mídia, que, acusada de ser violenta e
89
RÜSEN, Jörn. Op. cit.. p. 65.
90
CIRNE, Moacy. Op. cit.,1975.
91
PIMENTEL, Sidney Valadares. Op. cit.
37
uma forma de “subliteratura”, se via diante de constantes ataques e críticas, quando
ainda “engatinhava” a consolidação do mercado de quadrinhos no Brasil. Vale lembrar
que já vimos no capítulo anterior a atuação de Gilberto Freyre na política e na grande
imprensa em defesa das HQs.
Pelos limites desta dissertação, apenas faremos referência aqui, através da
pesquisa de Alexandre Barbosa, a outras publicações contemporâneas ao trabalho de
Ziraldo que tiveram a história como tema de suas HQs. Tendo como hipótese o
engessamento das narrativas dedicadas à história lançadas pela EBAL ocasionado pelas
perseguições e cobranças de diversos setores da sociedade sobre os quadrinhos de uma
forma geral, Barbosa destaca, com base em Bakhtin, que as HQs sobre história da
EBAL não primavam por maiores inovações no campo estético, preferindo antes aliar-
se à esfera oficialesca, estatal, numa estratégia de legitimação e sobrevivência no
mercado
92
. De acordo com o autor:
A maioria das histórias em quadrinhos sobre temas históricos
tornaram-se narrativas ilustradas, perdendo as características que
fazem dos quadrinhos algo envolvente e dinâmico para o leitor. As
histórias que acrescentavam elementos ou buscavam uma narrativa
mais lúdica e envolvente eram caracterizadas como perniciosas e não
confiáveis. Como vimos, algumas destas formas de quadrinhos não
devem ser analisadas pelo conteúdo da narrativa, mas sim pela
analogia com o tempo de produção da obra. Casos claros são do
Príncipe Valente de Harold Foster, e Asterix, de Gosciny e Uderzo,
em que podemos verificar um anacronismo temporal
93
.
Se comparada com a linha editorial de outras publicações do período, Pererê e
seu Brasil imaginado apresentarão uma perspectiva singular de determinados processos
históricos, permitindo localizar-se de forma diferenciada no ascendente campo dos
quadrinhos da época. Em resumo, procuramos discutir, através de algumas HQs de
Pererê que abordaram temas e personagens históricos, que olhar específico seria este.
2.2. Pré-Guerra-Fria
92
BARBOSA, Alexandre Valença Alves. Histórias em Quadrinhos sobre a História do Brasil em 1950: a
narrativa dos artistas da EBAL e de outras editoras. São Paulo, 2006. Dissertação (Mestrado em
Comunicação) – Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo. p. 166-169.
93
Ibid., p. 206.
38
A primeira HQ a ser analisada intitula-se “A grande viagem
94
”. Publicada em
fevereiro de 1962, tem treze páginas e se passa na Pré-História, alcançada a partir do
redemoinho do saci e um “botão do tempo” apertado acidentalmente por Tininim. Nas
primeiras ginas vale destacar o trabalho de edição entre os quadros a cada mudança
de página, recurso bastante explorado por Ziraldo em Pererê e percebido por Cirne
95
:
compreendemos o porquê da agitação do redemoinho presente nos três últimos quadros
da página 16 a partir da afirmação de Tininim no primeiro quadro da página 17:
Figuras 8 e 9: Pererê, Tininim e a viagem ao tempo
96
.
A passagem de um grito a princípio de tipo assustador para um alegre e
exclamativo “Ôba” justifica-se por ser o homem das cavernas na verdade um vendedor
que, entusiasmado diante da presença dos dois novos “turistas”, procura lhes vender
uma série de relíquias “antes que o mundo acabe”, como faz questão de repetir ao final
de cada uma das suas falas:
94
Pererê, fevereiro de 1962. p.15-27.
95
CIRNE, Moacy. Para ler os quadrinhos: da narrativa cinematográfica à narrativa quadrinizada.
Petrópolis, RJ: Vozes, 1975.
96
Pererê, fevereiro de 1962. p. 16-17.
39
Figura 10: Comerciante da Pré-História quer vender tudo “antes que o mundo acabe
97
”.
97
Pererê, fevereiro de 1962. p.18.
40
Logo o nosso vendedor tem seu nome revelado. Seu nome é Caramuru, como
podemos constatar ao ser chamado por seus colegas para aderir a uma lista de
assinaturas “pedindo para que não estoure a pré-terceira guerra mundial
98
”. Tudo isso
porque o inimigo teria descoberto uma arma poderosíssima, revelada mais uma vez a
partir dos recursos dos cortes entre páginas:
Figuras 11 e 12: Descoberta do fogo e iminência da “Pré-Terceira Guerra
Mundial
99
”.
Caramuru, porém, adota um olhar cínico sobre a situação a partir de sua
condição de comerciante: ao ser interpelado por Tininim e Pererê acerca de sua alegria
98
p. 20.
99
Pererê, fevereiro de 1962. p.20 e 21.
41
diante do fim do mundo, ele lhes responde que, por ser comerciante, “o sonho da minha
vida é morrer ganhando dinheiro
100
”. Porém esta postura resignada sobre os
acontecimentos não satisfaz os heróis da revista, que tentarão arrumar uma solução para
o problema. Esta surge, mais uma vez, a partir de uma ideia do saci.
Saci, através de seu cachimbo, proporciona que Caramuru e seu povo também
possam ficar “armados para a paz”; desta forma “um vai ficar com medo do outro...e
então não haverá guerra
101
”. Com isso, Pererê e Tininim são levados ao presidente e
felicitados por ele, mas, antes de voltarem para a Mata do Fundão, solicitam um “papel”
para escreverem recomendações acerca do uso do fogo:
Figura 13: Pere
registra bons usos para o
fogo
102
.
100
p. 21.
101
p. 22.
102
Pererê, fevereiro de 1962. p.25.
42
A HQ se encerra com a dupla retornando ao século XX, porém não para a Mata
do Fundão, e sim para o Rio de Janeiro, onde têm uma surpresa não muito agradável,
conforme atestam as expressões dos seus rostos:
Figura 14: Página final de “A Grande Viagem
103
”.
“A grande viagem”, com suas treze páginas divididas em quadros regulares, nos
propõe uma série de temas e questões para análises. Procuraremos aqui percebê-las a
partir do mote central desta HQ, que é a ida para o período pré-histórico. Porém, como
103
Pererê, fevereiro de 1962. p. 27.
43
será recorrente nas representações históricas utilizadas pela revista de Ziraldo, o passado
não é abordado a partir de uma preocupação estritamente didática, conforme
presenciamos em revistas como Grandes Figuras comentadas na dissertação de
Alexandre Barbosa, por exemplo; ele serve antes de elemento paródico aonde seus
personagens passeiam e discutem os valores da trama, fortemente inseridos no presente.
Apesar de os países protagonistas da Guerra Fria não participarem diretamente
como personagens desta HQ, o imaginário deste período é claramente tematizado por
Ziraldo nesta HQ, uma vez que a Guerra Fria é abordada como “(...) um antagonismo
entre potências incapazes de alcançar uma paz verdadeira, mas ansiosas por não se
precipitar em um conflito do tipo clássico
104
” – ou, como prefere Hobsbawm, como uma
“disputa de pesadelos
105
”.
Na HQ em questão as disputas em torno do controle tecnológico da Guerra Fria
são trabalhadas a partir da busca pelo controle do fogo entre a tribo de Caramuru e a sua
adversária, de nome não revelado. O medo de uma “Pré-Terceira Guerra Mundial”
afinal, estamos na época pré-histórica – e o fato de Pererê, tido como um “jovem
cientista” ser interpelado em virtude disso pelo presidente da tribo de Caramuru como
um “jovem alemão” são alguns dos indícios que ajudam a retratar esta HQ junto às
questões políticas de seu tempo. A História abandona seu posto de oráculo do futuro; é
parodiada e invertida, servindo como fábula para a compreensão do presente.
O mito do Caramuru foi trabalhado por poetas, historiadores e servira até mesmo
de enredo de Carnaval nos anos 1950, conforme destaca Janaína Amado
106
. A
apropriação de Ziraldo nos parece especialmente original pela presença de diversas
temporalidades em uma mesma história: iniciada na bucólica Mata do Fundão, ela
prossegue por intermédio de uma espécie de função “máquina do tempo” presente no
redemoinho do Saci no período pré-histórico tendo como guia um Caramuru que, ao
contrário da lenda, não consegue submeter os nativos com sua arma de fogo. Pelo
contrário, sente-se intimidado e depende da intervenção de Pererê e Tininim para
conseguir obter fogo e assim suspender o conflito iminente. Tudo isso trabalhado como
uma parábola do medo de uma guerra tecnológica que poderia resultar da Guerra Fria.
104
DELMAS, Claude. Armamentos nucleares e guerra fria. São Paulo: Perspectiva, 1979. p. 33.
105
HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos. 2ª edição. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 1995. p. 87.
106
AMADO, Janaína. Diogo Álvares, o Caramuru, e a fundação mítica do Brasil. Revista Estudos
Históricos, Rio de Janeiro, n. 25: 3-39, 2000.
44
Para melhor compreensão da estrutura narrativa de “A grande viagem”, utilizarei
aqui o modelo de sintaxe narrativa, conforme sintetizado por Ciro Cardoso a partir de
Todorov:
Seqüência 1:
1. Situação inicial: Pererê e Tininim preparam-se para embarcar no redemoinho;
2. Perturbação da situação inicial: Tininim aperta botão indevido, transportando-os
para outra época;
3. Desequilíbrio ou crise: Pré-3ª Guerra Mundial a caminho, anunciada pelo
comerciante Caramuru, devido ao monopólio inimigo sobre o fogo;
4. Intervenção na crise: Pererê entrega fogo à tribo de Caramuru;
5. ovo equilíbrio: Retorno da dupla da Mata do Fundão ao século XX
Seqüência 2:
1) Situação inicial: idem à parte 5 da seqüência 1;
2) Perturbação da situação inicial: Pererê e Tininim vão parar na cidade do Rio de
Janeiro;
3) Desequilíbrio ou crise: Vendedor anunciando seus produtos e estupefação da
dupla;
4) Intervenção na crise: em suspenso;
5) ovo equilíbrio: em suspenso.
A tomar as passagens que materializam (Elementos Figurativos) os temas
(Redes Temáticas) presentes na HQ, temos a construção do sentido moral (axiológico)
presente em “A Grande Viagem”, sintetizado no quadro a seguir:
45
Rede Temática 1 Elementos Figurativos para Rede 1 Elementos Axiológicos
para Rede 1
/Iminência da 3ª
Guerra Mundial /
/Salvação do
Mundo/
/Venda de produtos (“lembranças”) “antes que o mundo
acabe”/; /- E ela [A Pré-Terceira Guerra Mundial] vai
estourar já!/; /- Ora, cavalheiros...eu sou comerciante...logo, o
sonho da minha vida é morrer ganhando dinheiro/; /- Dentro
de uma semana ele vai explodir seu fogareiro! E aí...a terra
inteira pegará fogo, e...será o fim de tudo!/; /- O inimigo
descobriu uma arma poderosíssima...e se êle a usar...PIMBA!
É o fim do mundo!/;
/- Se o seu povo tiver uma arma tão poderosa quanto a do
inimigo...o que é que acontecerá?/; /- O mundo estará a salvo,
companheiro!/; /- nós também estaremos devidamente
armados para a paz!/; /- Um vai ficar com mêdo do outro...e
então não haverá guerra!/; /- (...) o mundo está salvo!/;
/- Êste jovem cientista aqui acaba de descobrir o fogo!/
/Guerra/Conformismo,
cinismo/ Mau uso da
tecnologia/
/Paz/Inovação,
criatividade/ Bom uso
da tecnologia/
Rede Temática 2 Elementos Figurativos para Rede 2 Elementos Axiológicos
para Rede 2
/Controle
tecnológico e suas
finalidades/
/- É...mas você devia cuidar melhor dele [redemoinho], Saci!/;
/Três últimos quadros da página 16/; /Tininim aperta “botão
do tempo/; /Comerciante e seus produtos/; /Venda de
produto que daqui a “mais alguns aninhos vira petróleo”,
mas desiste pois “não vai dar tempo/;
/- Êle [o redemoinho], porém, nunca me deixou na
mão...sempre funcionou direitinho.../; /- Rapaz!... Como é
bacana aqui dentro!/; / Lista de assinaturas” para que “não
estoure a Pré-Terceira Guerra Mundial/; /- Agora, basta o
senhor pegar uma folhinha sêca, encostar no cachimbo...que
/Mau uso de
ferramentas, tecnologia
e bens naturais/
/Bom uso de
ferramentas, tecnologia
e bens naturais/
46
O quadro formulado a partir das colocações de Greimas e Courtès e aplicadas
por Ciro Cardoso para a História explicita uma tendência de pensamento cara aos anos
1950 e 1960: haveria uma disputa clara entre duas grandes potências em torno da
supremacia tecnológica e política do mundo, mas, ao mesmo tempo, inúmeros outros
países não deveriam se alinhar a uma das duas. Cabe frisar que em 1955 ocorrera a
Conferência de Bandung, onde países recém-libertos da dominação colonial reuniram-se
procurando posicionamento diferente da polarização política da Guerra Fria, entre os
blocos liderados pelos Estados Unidos e União Soviética defendendo o neutralismo e
assumindo-se enquanto países de Terceiro Mundo
108
. O imaginário sobre Bandung,
conforme salienta Linhares, manteve-se por mais de uma década após sua constituição
original
109
.
A leitura da HQ em um primeiro momento poderia apontar em direção a um
posicionamento neutro acerca do conflito entre as duas potências, como se indicasse que
ele poderia ser resolvido apenas a partir do bom uso do aparato tecnológico pelo
homem. Sob esta perspectiva “A grande viagem” poderia ser tomada quase como uma
HQ pacifista, ressalvadas as eventuais conotações anacrônicas que poderiam originar
desta afirmativa. A sua última página, porém, parece reverter e derrubar esta tese, pois,
apesar das recomendações de Pererê, o ser humano continuaria cínico diante da
perspectiva – mais real do que nunca do fim do mundo. É como se o espanto da dupla
protagonista expressasse a incapacidade do homem, organizado sobre as premissas da
corrida armamentista e da marcha para o progresso tecnológico, para libertar-se do
107
A grande viagem. In: Pererê, fevereiro de 1962. passim.
108
LINHARES, Maria Yedda. A luta contra a metrópole: Ásia e África. 1945-1975. 5ª edição. São Paulo:
Brasiliense, 1989.
109
Ibid.
ela vira chama! Olha !/; /- De como usar o fogo sem se
queimar ou queimar os outros...em vez de fazer guerra com o
fogo...a gente pode fazer coisas formidáveis...como churrasco,
por exemplo/; /- Aqui tem o meu cachimbo. Êle é fogo. E não
acaba nunca, chova ou faça sol/; /- Se vocês seguirem
direitinho as nossas instruções...aquela areiazinha que o
senhor aqui me vendeu, ainda vai ser como petróleo
107
/
47
constante medo da destruição, restando-lhe apenas o cinismo do vendedor. Localizado
no meio urbano, termina por agregar valor negativo a este espaço assunto que será
aprofundado no terceiro capítulo desta dissertação.
2.3. Guerra de Tróia cai no samba
A HQ seguinte, “Galileu e o carro alegórico
110
”, publicada em fevereiro de 1964,
gira em torno de um dos motivos mais recorrentes nas edições da revista: a
comentada perseguição de Compadre Tonico e Seu Neném à onça Galileu. Tudo se
inicia quando a turma percebe o isolamento e a dedicação de Galileu em construir algo
que, de acordo com ele, surpreenderá seus amigos. É a oportunidade para que Compadre
Tonico arquitete um plano para capturá-lo, aproveitando-se de sua distração com o novo
projeto. A estratégia dos caçadores é insinuada no início da página 18, confirmada no
último quadro da mesma página tanto pela escuridão quanto pela afirmação de
Compadre Tonico (“Seu Neném, o senhor já ouviu falar no Cavalo de Tróia...?) e
explicitada no início do quadro e na manhã seguintes. Galileu aceita o surpreendente
regalo sem pensar duas vezes.
110
Pererê, fevereiro de 1964. p. 14-22.
48
Figuras 15 e 16: “Presente” de Compadre Tonico e Seu Neném para Galileu
111
.
Em paralelo à ação de Compadre Tonico e Seu Neném, temos revelado, por
intermédio do Saci, que o isolamento de Galileu se deve à construção de um carro
alegórico fato insinuado pelo título da história e por esta sair em uma edição
temática dedicada ao mês do Carnaval. Voltando à dupla de caçadores, a HQ se encerra
com a investida destes sobre a onça, que reage e termina por obter através disso os
retoques finais de seu carro alegórico:
111
Pererê, fevereiro de 1964. p. 18 e 19.
49
Figura 17: página final de “Galileu e o carro alegórico
112
”.
Sequência 1:
1) Situação inicial: Galileu preparando algo em “segredo”;
2) Perturbação da situação inicial: Curiosidade geral;
3) Desequilíbrio ou crise: Artimanha da dupla Compadre Tonico e Seu Neném
(“Cavalo de Tróia”);
4) Intervenção na crise: Reação de Galileu;
5) ovo equilíbrio: Carro alegórico.
112
Pererê, fevereiro de 1964. p. 22.
50
Rede Temática 1 Elementos Figurativos para Rede 1 Elementos Axiológicos
para Rede 1
/Todos querem saber
o que Galileu está
fazendo/
/Pedro Vieira e o salto para “passar por cima da
paliçada do Galileu”/; /- Mandei o Pimentel dar
uma voada lá por riba [onde está Galileu], êle me
trouxe preciosas informações/; /- Geraldinho foi
fazer uma toca...quebrou dois dentes/; /- Descobri
o que é que o Galileu está fazendo!/.
/- O Galileu gasta o sol do dia! Distraído,
distraído/; /- Rapaz...que negócio é êsse que
botaram aqui na minha porta?/ (p. 19); /- Não
quero nem saber o que seja...pro que eu estou
fazendo vai me servir muito. Vamos lá
113
/;
/Curiosidade/
/Inocência/
2.4. “Saci do Patrocínio”
A próxima história analisada, “Boneca, a Redentora
114
”, publicada em maio de
1962, terá a abolição da escravidão e as personalidades a ela associadas como eixo do
enredo. Após “agitação” de Pererê auto-intitulado “Saci do Patrocínio” ou, como será
chamado pela turma, “o Castro Alves da Mata do Fundão”– convocando os amigos para
um comício em defesa da libertação dos “pobrezinhos dos escravos” e da liberdade,
todos seguem empolgados em direção a uma gaiola de passarinhos. Impedidos de
prosseguir pelo guardador de passarinhos do Seu Nereu ou “escravocrata”, como
prefere Pererê não se dão por vencidos e, liderados mais uma vez por “El Libertador”
Pererê, conseguem falar com Boneca de Piche, filha de Seu Nereu, uma vez que este
não se encontrava em casa.
113
Galileu e o carro alegórico. In: Pererê, fevereiro de 1964. passim.
114
Pererê, maio de 1962. p. 3-16. Disponível também em Ziraldo (org.). Op. cit., 2002a. p. 24-37.
51
Figura 18:
Convocação da
Mata do Fundão
para comício de
Pererê
115
.
Figura 19: primeira tentativa
de libertação dos pássaros
116
.
115
Pererê, maio de 1962. p. 4.
116
Pererê, maio de 1962. p. 8.
52
Com o pai fora de casa, Boneca de Piche assina a autorização que permite a
libertação dos passarinhos – afinal, isto tem que se dar no mês de maio, segundo Pererê.
A turma então retorna para junto do guardador dos pássaros que, agora se revela
117
(p.
14-15) um ex-escravo a serviço de Seu Nereu:
Figura 20: liberdade para os pássaros
118
.
117
Pererê, maio de 1962. p. 14-15.
118
Pererê, maio de 1962. p. 15.
53
A HQ termina com uma tirada cômica: após libertar os pássaros, Pererê recebe
uma “titiquinha de passarinho” na cabeça como recompensa.
Tal como na primeira HQ analisada, em “Boneca, a Redentora”, o foco reside na
ação individual de personalidades “encarnadas” nos personagens, principalmente
Pererê, alcunhado de “Saci do Patrocínio” e “Castro Alves da Mata do Fundão”; para a
Boneca de Piche, ainda que não seja declarado, fica implícita a imagem da princesa
Isabel que, lançando mão da ausência de seu pai, assina a Lei Áurea conforme o
guardador mesmo afirma: “Eu era minino...mas me lembro...foi quase igual...só que a
sinhazinha que assinou o papé tinha outro nome”.
Fruto da iniciativa de indivíduos que, por tais gestos admiráveis devem ser
lembrados e referenciados pela Pererê, a história ou um olhar específico sobre ela é
fonte de inspiração e é transmitida para os leitores a partir da ação e iniciativas
individuais dos personagens. Nesta última HQ toda a ação recai sobre Pererê que, além
de preparar e distribuir os panfletos convocando seus amigos para o “comício de
esclarecimento”, lidera a ação de assalto à gaiola dos passarinhos, negocia com o
guardador, parte rumo à casa de “Seu” Nereu e entrega a autorização para a Boneca de
Pixe assinar – além de receber o “agradecimento” final dos passarinhos.
Vale destacar também que a Abolição apresenta uma memória própria,
construída em um primeiro momento por poetas ligados à tradição parnasiana e por
historiadores-memorialistas. Tais autores ajudaram a construir heróis e imagens
associadas ao processo abolicionista, tais como
o imperador, a princesa regente, José do Patrocínio, Tiradentes e
Cristo; para as imagens a luz e o sol, associados liberdade,
enquanto a escravidão era vinculada a tudo o que era escuro como a
noite e as trevas
119
2.5. Um duelo entre apoleão Bonaparte e Duque de Caxias
A próxima HQ abre a edição de setembro de 1961, dedicada a temas que possam
apresentar alguma relação com as comemorações em torno da Independência do Brasil,
119
MORAES, Renata Figueiredo. A abolição da escravidão: história, memória e usos do passado na
construção de mbolos e heróis no maio de 1888. In: SOIHET, Rachel (et al.). Mitos, projetos e práticas
políticas: memória e historiografia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. p. 89.
54
como paradas militares e heróis nacionais. Em “A batalha da ponte
120
”, Ziraldo
apresenta figuras como Napoleão Bonaparte e Duque de Caxias a partir da tentativa de
Pererê em agradar sua amada, a Boneca de Piche.
Tudo começa quando, para cumprir uma solicitação da Boneca de Pixe, Pererê
finge-se de Napoleão Bonaparte:
Figura 21: Saci/Napoleão Bonaparte
121
.
Para não contrariá-lo, a turma resolve obedecer aos caprichos de Pererê
Bonaparte, procurando assim curá-lo desta loucura recém-contraída. A situação chega
120
Pererê, fevereiro de 1962. p. 3-14.
121
Pererê, setembro de 1961. p. 5.
55
ao ponto deles construírem uma ponte que, atravessando o Canal da Mancha, os ligaria
à Inglaterra. Na verdade o que temos é:
Figura 22: Turma do Pererê parte rumo à “Fazenda Inglaterra
122
”.
122
Pererê, setembro de 1961. p. 8.
56
Construída a ponte pela turma, o Saci se subitamente curado da loucura. É
neste momento que ele revelará sua estratégia para sua amada enquanto Allan e se
revolta com a artimanha de Pererê e sai de cena, a preparar o troco:
Figura 23 e 24: Plano de Saci é descoberto por Allan, que decide se vingar
123
.
Entra em cena Duque de Caxias, versão brasileira da loucura que ireverter o
quadro inicial desenhado por Pererê. E assim termina a HQ: a turma novamente segue
as decisões do novo der e dinamita a recém-construída ponte, obedecendo às suas
ordens para destruir a passagem que permitiria o acesso de Solano Lopez ao Brasil:
123
Pererê, setembro de 1961. p. 11-12.
57
Figura 25: Página final de “A batalha da ponte
124
”.
Estruturamos o enredo da HQ a partir da sintaxe narrativa todoroviana, exposta a
seguir:
Seqüência 1:
1) Situação inicial: Turma do Pererê descansando;
124
Pererê, setembro de 1961. p. 14.
58
2) Perturbação da situação inicial: loucura do Saci;
3) Desequilíbrio ou crise: Saci Bonaparte ordena que a turma construa uma
ponte ligando a ponte à Fazenda Inglaterra;
4) Intervenção na crise: a turma acata a decisão como forma de curá-lo;
5) ovo equilíbrio: Pererê retorna à sanidade.
Seqüência 2:
1) Situação inicial: Saci e Boneca conversam satisfeitos sobre a ponte;
2) Perturbação da situação inicial: Allan ouve tudo e “enlouquece”;
3) Desequilíbrio ou crise: Allan como Duque de Caxias exige que a ponte seja
demolida;
4) Intervenção na crise: a turma acata a decisão como forma de curá-lo
(ambiguidade);
5) ovo equilíbrio: Saci constrói a ponte sozinho.
À primeira vista, poderia nos chamar a atenção a presença de grandes
personagens históricos, através de suas ordens caprichosas como construir uma ponte
sobre o “Canal da Mancha” ou destruí-la para afastar o perigo da invasão de Solano
López –, conduzindo os acontecimentos e, por conseguinte, a própria HQ. A ação seria
então esvaziada de sentido e reduzida aos caprichos individuais das figuras históricas
e a loucura parece encaixar-se bem neste sentido para legitimar a construção da ponte
diante da turma. Ao mesmo tempo, seria possível deduzir que a ação das HQs de Pererê
também é motivada pela iniciativa de personagens específicos “A batalha da ponte”,
através de Pererê e Allan.
O papel dos grandes heróis como molas propulsoras da História é duramente
combatido desde os primeiros escritos dos fundadores da revista dos Annales
125
sem
contar que hoje em dia autores como Dosse esboçam um reconhecimento da
contribuição da geração anterior de historiadores franceses e alemães para a formulação
de algumas discussões em torno do que viria a definir futuramente as proposições gerais
125
Cf. BLOCH, Marc. Apologia da história ou O ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2001. p. 41. FEBVRE, Lucien. Combates pela história. Lisboa: Editorial Presença, 1985.
59
de uma “história-problema
126
” – o que torna perceber a continuidade de um olhar
“heróico” sobre as transformações presentes na História ainda mais significativa.
Não podemos, porém, menosprezar a figura dos super-heróis, fundamentais para
a consolidação das HQs como elemento da cultura de massas
127
e definidora estéticas do
campo dos quadrinhos; Pererê, como primeira revista de autor nacional a sair por uma
grande editora terá de lidar com isso inevitavelmente. Não obstante o caráter heróico
presente nos personagens de Pererê diferencie-se claramente dos conhecidos
personagens das HQs norte-americanas
128
, ele manterá, através da astúcia e predomínio
das iniciativas individuais, seu papel central para no desenrolar da trama
129
.
Por isso consideramos relevante observar novamente a sintaxe narrativa desta
HQ. Através dela fica possível perceber que as situações de tensão e crise geradas a
partir da loucura dos personagens guardam relação antes com uma mensagem final de
cunho moral do que com uma preocupação em transmissão de conhecimentos ligados à
história. Em outras palavras, não é possível concluir que esta HQ, por abordar figuras
como Napoleão Bonaparte e Duque de Caxias e suas respectivas ações para determinar
os momentos de tensão e relaxamento da narrativa, segue linha próxima às de outras
revistas que abordaram temas históricos e que aqui procuramos representar através da
série Grandes Figuras já explicitada anteriormente.
Não resta dúvida de que os projetos editoriais de ambas as revistas são bastante
diferentes, porém devemos lembrar as necessidades de inserção no campo das revistas
em quadrinhos: atacadas como mídia que desestimularia a leitura, ela respondeu,
sobretudo através da EBAL de Adolpho Aizen, procurando mostrar que poderia ser
educativa e valorizar a história do Brasil. Porém, como vimos, o olhar da EBAL sobre
nomes da história brasileira correspondia a um determinado modelo de história, do qual
Pererê, apesar de ainda estruturado sob a figura do herói e de grandes momentos
históricos, parece se afastar.
Observamos este afastamento através do uso dos recursos das inversões e da
paródia, destacados por Bakhtin em seu estudo sobre Rabelais como recursos estilísticos
126
De acordo com Dosse, Charles Seignobos foi o “bode expiatório” que Lucien Febvre lançou mão para
expor sua visão sobre a história. Cf. DOSSE, François. A história em migalhas: dos Annales à Nova
História. Bauru, SP: Edusc, 2003. p. 7-8.
127
Wright, Bradford. Op. cit. p. 1-30.
128
Ao ponto de heróis como Tarzan e Charlie Chan virarem motivo de sátira em algumas histórias de
Pererê, como nas edições de novembro de 1960 a 1963.
129
Os heróis nos quadrinhos seriam realmente problematizados em meados dos anos 1980, através da
série em quadrinhos Watchmen, roteirizada por Alan Moore e desenhada por Dave Gibbons.
60
privilegiados para a crítica social. Ora, ainda se Napoleão e Duque de Caxias como
representações heroicas sejam retratados em “A batalha da ponte”, não encontramos
uma listagem de seus feitos em batalhas e conquistas heroicas, assim como não temos
maiores dados biográficos dos dois, por exemplo; o máximo que encontramos sobre o
primeiro são frases por ele proferidas (“Pois...do alto desta pirâmide...”), a fala
empolada na segunda pessoa do plural (“Obedecei às ordens de vosso chefe...”) e
geralmente gritada (explicitada pelo constante negrito das letras nos balões e nestes
quase sempre “vazados”), e algumas ações associadas à sua trajetória militar (o conflito
com a Inglaterra); no caso de Duque de Caxias, temos o uso dos balões semelhantes aos
de Napoleão e o conflito com o Paraguai de Solano López. Em ambos os casos, porém,
são heróis afetados e excessivos.
Em uma leitura isotópica temos o seguinte esquema:
Rede Temática 1 Elementos Figurativos para Rede 1 Elementos Axiológicos para
Rede 1
/Construção da ponte pela
turma; loucura de Pererê
como Napoleão
Bonaparte/
/Demolição da ponte pela
turma; loucura de Allan
como Duque de Caxias/
/- O Saci ficou maluco!/; /- Êle cismou que é
Napoleão Bonaparte!/; /- as ordens, senhor
general! O senhor manda!/; /- Vamos invadir a
Inglaterra!/; /- (...) vamos construir uma ponte
nova!/; /- Como eu sabia que, se pedisse à
turma, eles não iam me ajudar...fingi que tinha
ficado maluco/.
/- Esse saci é um Calabar/; /- O Allan ficou
maluco!/; /- Cismou que é um general
comandando uma batalha (...) Duque de
Caxias!/; /- Vamos ao encontro do inimigo!
Em marcha!/; /- Lá está a ponte por onde nosso
inimigo invadirá nossa pátria...vamos destruí-
la!/; /- Calma, saci, não se pode contrariar um
maluco! Ele piora
130
!/
/- Nada como a gente ser vivo/
/- A gente deve ser vivo, mas
não deve exagerar/
130
A batalha da ponte. In: Pererê, setembro de 1961. passim.
61
O próprio Pererê se, à primeira vista, parece agir como vilão nesta HQ, tem logo
esta condição suavizada, a nosso ver, pelo fato de agir em nome de uma paixão de
menino e de utilizar-se da esperteza para conseguir seus objetivos. O problema reside no
fato da sua astúcia exigir o constrangimento de outros e deve, por isso, ser limitada
também por intermédio da inteligência, explicitada através da figura de Alan. A HQ
valoriza a esperteza e a inteligência praticadas para o bem comum ao invés do formato
heróis x vilões que era hegemônico naquele momento.
A escolha da figura de Duque de Caxias e a lembrança de sua atuação na Guerra
do Paraguai para pôr fim ao imbróglio em que a turma se viu inserida pelo
Pererê/Bonaparte atestam a importância desta passagem da história do Brasil para a
formação de nossa identidade, conforme defende José Murilo de Carvalho
131
. Em
Pererê, salvar a pátria da invasão estrangeira e punir a injustiça local caminham de
mãos dadas em “A batalha da ponte”: Duque de Caxias assume a “dupla tarefa” de
protetor do Brasil e da Mata do Fundão. O Brasil é projetado e imaginado na Mata do
Fundão, em uma versão em quadrinhos e com alta tiragem mensal. Vale destacar, por
fim, que a Guerra do Paraguai fora quadrinizada em uma adaptação da EBAL para
Retirada da Laguna, do Visconde de Taunay, analisada por Barbosa e cuja conclusão
segue sua mesma linha de pensamento apresentada no início deste capítulo: HQ muito
preocupada em fornecer uma versão “fiel” da obra clássica e limitando a estética própria
dos quadrinhos. Pererê, ao contrário, propõe uma brincadeira leve com a história e
aproxima os espíritos expansionistas que enxerga em Napoleão e Lopez aos
personagens e cenários da revista.
Vale destacar, por fim, que a “loucura de Napoleão” serviria de mote para
Ziraldo abordar a chegada dos militares ao poder em 1964. Publicada em julho de 1964
na Pif-Paf, “A história de Napoleão” aprofunda as conexões entre passado e presente
quando, entre diversas referências, afirma, sobre o movimento de 1789, que “o povo
francês estava naquela base: querendo as reformas!
132
”. Em seguida:
A França virou a maior bagunça. Prende não prende. Cassa não cassa.
Ibade não ibade. Devolve não devolve. Elege não elege. De qualquer
maneira, o Comando Revolucionário se reuniu e fez uma lista enorme,
criando todos os Direitos dos Homens (...). Os Direitos dos Homens
131
CARVALHO, José Murilo de. Forças Armadas e política no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2005. p. 179.
132
PINTO, Ziraldo Alves. 1964-1984: 20 anos de prontidão. Rio de Janeiro: Record, 1984. p. 12.
62
ficaram famosos no mundo todo, mas tem umas partes do mundo
que não dão muita bola para coisas desse tipo
133
.
2.6. “Serra Matrona”: Mata do Fundão, mãe da revolução
Também publicada na edição de setembro de 1961 temos “A grande batalha”,
HQ de nove páginas onde a Revolução Cubana torna-se cenário para as brincadeiras dos
personagens da Turma do Pererê
134
.
Ela tem início com a apresentação do problema por Pererê :
Figura 26: Pererê narra a
tristeza que reina após a
invasão da Mata do
Fundão
135
.
133
PINTO, Ziraldo Alves. Op. cit, 1984. p. 12.
134
Pererê, setembro de 1961. p. 18-26.
135
Pererê, setembro de 1961. p. 18.
63
Apesar de a dramatização de Pererê ser ironizada através da onomatopéia
musical, possivelmente uma referência aos acordes iniciais da 5ª Sinfonia de Beethoven,
comum em anúncios de suspense; e por serem os invasores bastante semelhantes aos
personagens da Mata do Fundão a invasão é um fato e apresenta suas características
negativas: teias de aranha e cartas se acumulam, uma vez que Queiroz é, segundo
Pererê, “o pior carteiro do mundo”.
Em seguida, observamos os preparativos de Pererê e seus amigos para “a grande
batalha”. Escondidos na “Serra Matrona
136
”, eles bolam estratégias, cultivam seu
arsenal de guerra, praticam mamona ao alvo e técnicas de camuflagem. Está tudo pronto
para a batalha; faltava apenas o “uniforme”, fundamental para o início da batalha e logo
providenciado:
Figura 27: preparativos finais
para “A grande batalha
137
”.
136
Uma referência a Sierra Maestra, local onde os combatentes liderados por Fidel Castro iniciam a
guerra de guerrilhas que culminará na expulsão de Fulgêncio Batista. Cf. SALES, Jean Rodrigues. A luta
armada contra a ditadura militar: a esquerda brasileira e a influência da Revolução Cubana. São Paulo:
Fundação Perseu Abramo, 2007. p. 10.
137
Pererê, setembro de 1961. p. 23.
64
As barbas postiças usadas pelos personagens nos remetem diretamente ao visual
dos revolucionários cubanos. A HQ se encerra com a batalha de mamonas entre as
turmas do Pererê e Rufino, com expressiva vitória para a primeira. Expulso o invasor,
resolvem usar o armamento de uma forma mais produtiva: ao invés de utilizá-las para
“produzir óleos vegetais para a indústria”, Pererê tem a idéia de as mamonas passarm a
servir como bolas de gude para as brincadeiras da turma:
Figuras 28 e 29: Batalha entre turmas do Pererê e do Rufino; página final
138
.
138
Pererê, setembro de 1961. p. 25-26.
65
Seqüência 1:
1. Situação inicial: Turma do Pererê na Mata do Fundão (elipse);
2. Perturbação da situação inicial: Invasão da turma do Rufino (elipse);
3. Desequilíbrio ou crise: Ocupação de “Rufino e seus asseclas” sobre a Mata do
Fundão; exílio de Pererê e amigos na Serra Matrona;
4. Intervenção na crise: Preparativos para o ataque; “Dia D”;
5. ovo equilíbrio: Retomada da Mata do Fundão pela Turma do Pererê.
Rede Temática 1 Elementos Figurativos para Rede 1 Elementos Axiológicos para
Rede 1
Invasão da Mata por
Rufino & Cia.
Retomada da Mata do
Fundo pela Turma do
Pererê
/- As trevas desceram bre a Mata do Fundão...por
isso...não mais alegria em nossas terras...somos
um povo fugitivo e triste...nós, os da Mata do
Fundão...fomos dominados por um bando de
bárbaros/; /- O bando de Rufino e seus asseclas (...)
pior carteiro do mundo (...) uma turma sem classe
mesmo/; /- O dia da expulsão do inimigo que
invadiu nossa mata!/;
/- As borboletas voltarão a voar sôbre as nossas
flôres...nossas flôres terão mais vida...nossa vida,
em teu seio, mais amores!/; /- gastei uma
[mamona-munição]!/; /- A Mata do Fundão está
livre” (idem); /- (...) aproveitamento da mamona
em tempo de paz!
139
/
Local X Invasor
139
A grande batalha. In: Pere, setembro de 1961. passim.
66
2.7. Considerações preliminares
As disputas em torno do que deve ser lembrado e esquecido pela História
sempre nos revelam algo que, por vezes, parecemos esquecer: não existe construção
histórica inocente e livre de contradições. Tradições, no dizer de Hobsbawm, são
reinventadas a todo instante pelos veículos de comunicação massivos em um
ininterrupto processo de construções de (contra-) hegemonias, segundo Dênis de
Moraes a partir da leitura de Gramsci
140
. Podemos dizer mesmo, remetendo a
Bakhtin
141
, que não existe escrita livre de contradições; pelo contrário, ela se constitui
como arena privilegiada para compreensão mais acurada dos conflitos presentes em
uma dada sociedade. Mesmo quando a escrita em questão reveste-se de humor,
personagens associados ao Brasil e é direcionada para um público de crianças e jovens,
como é o caso de Pererê, de Ziraldo.
Ziraldo, através de Pererê, procurou posicionar-se junto ao conjunto da
produção cultural que discutia temas como desenvolvimento, revolução e o
nacionalismo no Brasil, tão presentes nas décadas de 1950 e 1960. Neste sentido,
Pererê representa a defesa da construção da nação a partir, por exemplo, da valorização
do folclore e da crítica a práticas consideradas exógenas ao país.
Ao mesmo tempo Pererê não renega integralmente elementos usualmente
associados à cultura norte-americana e à modernização capitalista. O Brasil imaginado
que está presente em Pererê deveria, pois, assumir uma política que defendesse o
desenvolvimento e propiciasse a inserção plena e independente do Brasil na
modernidade, a partir de seus próprios valores.
Neste sentido, esta conclusão dialoga com alguns dos pressupostos assumidos
por Ridenti ao tratar do “romantismo revolucionário” que seria caro a boa parte das
manifestações culturais das esquerdas durante os anos 1960:
O romantismo das esquerdas não era uma simples volta ao passado,
mas também modernizador. Ele buscava no passado elementos para a
construção da utopia do futuro. Não era, pois, um romantismo no
sentido da perspectiva anticapitalista prisioneira do passado, geradora
140
HOBSBAWM, Eric. A invenção das tradições. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2008. MORAES, Dênis
de. otas sobre o imaginário social e hegemonia cultural. Disponível em:
http://www.enecos.org.br/xiiicobrecos/arquivo/doc/009.doc
. (acesso em 15 de outubro de 2007).
141
BAKHTIN, Mikhail (V. N. Volochínov). Op. cit.
67
de uma utopia irrealizável na prática. Tratava-se de romantismo sim,
mas revolucionário. De fato, visava-se resgatar um encantamento da
vida, uma comunidade inspirada no homem do povo, cuja essência
estaria no espírito do camponês e do migrante favelado a trabalhar nas
cidades (...)
142
.
Ao privilegiar personagens e passagens da história, Pererê consegue ingressar na
dinâmica do campo dos quadrinhos, definido a partir do combate às publicações que
não educassem e valorizassem a leitura e a História – ou ao menos um certo olhar sobre
ela. Porém, a revista assumiu desde o início leitura autoral sobre a história e, em
nenhum momento, seus personagens foram descaracterizados de forma a passar
determinados conteúdos.
Com isso, embora Ziraldo Pererê não rompa com os marcos gerais de uma
história magistra vitae, ele consegue, através de sua interpretação e seleção do passado
e do que deve ser lembrado como “histórico” e o exemplo da Revolução Cubana é
bastante significativo desta seleção e de que como não podemos restringi-la a um
“nacionalismo” quase xenófobo, conforme interpretação de Bruno Alves discutida na
Introduçao nos leva a crer, por exemplo –, imaginar um Brasil singular e
idiossincrático e, desta forma, estabelecer-se de forma diferenciada no mercado de
quadrinhos no Brasil.
142
RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da TV. Rio de
Janeiro: Record, 2000. p. 25.
68
CAPÍTULO 3
TRAÇOS DO CAMPO CULTURAL DOS AOS 1950 E 1960 EM PERERÊ
3.1. Introdução
A cultura de esquerda dos anos 1960 foi marcada pelas iniciativas do Centro
Popular de Cultura, diretamente ligado à União Nacional dos Estudantes (UNE)
143
. O
primeiro Centro Popular de Cultura, constituído no Rio de Janeiro, foi fruto do avanço
político e do engajamento dos movimentos sociais que artistas e intelectuais
procuravam acompanhar. Segundo Ridenti, as denúncias levantadas por Krushev,
durante o XX Congresso do PCUS, sobre as atrocidades cometidas durante o período
stalinista provocaram uma abertura, ainda que tímida, na estrutura do Partido Comunista
Brasileiro (PCB), estimulando que as ideias ligadas às manifestações artísticas
passassem a ser formuladas por artistas do Partido ligados a movimentos sociais,
políticos culturais do período
144
. O autor também destaca que:
Os movimentos culturais do pré-64 sofriam influência do PCB, de
diversas correntes marxistas e do ideário nacionalista e trabalhista da
época, dito populista. Mas vale insistir que nem todos os seus
integrantes eram militantes. Por exemplo, Ferreira Gullar esclarece
que jamais pertencera ao PCB no tempo do CPC. Integrou-se ao
Partido no exato dia do golpe (...)
145
.
143
O correto mesmo seria dizer CPC’s no plural uma vez que estes comitês eram localizados nas
principais capitais do país e, consequentemente, respondiam artisticamente de acordo com as demandas
específicas de cada região. Para fins desta pesquisa, no entanto, quando tratamos de CPC’s nos referimos
a uma caracterização generalizante e que, em geral, assume como referência a experiência do CPC no Rio
de Janeiro. Cf. HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Impressões de viagem. CPC, vanguarda e desbunde:
1960/70. São Paulo: Brasiliense, 1980. HOLLANDA, Heloísa Buarque de; GONÇALVES, Marcos
Augusto. Cultura e participação nos anos 60. São Paulo: Brasiliense, 1982. NAPOLITANO, Marcos.
Cultura brasileira: utopia e massificação (1950-1980). São Paulo: Contexto, 2004. RIDENTI, Marcelo.
Op. cit..
144
RIDENTI, M. Op. cit.. p. 67-72.
145
Ibid.. p. 77.
69
Fundado em 1961 por jovens que reivindicavam participação social mais efetiva
da UNE, o CPC apresentou no ano seguinte o seu famoso e polêmico
146
Anteprojeto do
Manifesto do CPC, escrito por Carlos Estevam Martins, que defendia que a obra de arte
poderia ter alguma relevância naquela conjuntura enquanto arte popular
revolucionária” definição esta que, não por acaso, o CPC assumia para si, em
contraposição a termos como “arte do povo” e “arte popular”. O caráter político é o que
deveria ser destacado na obra de arte
147
.
O manifesto apresenta alguns pontos bastante reflexivos acerca das avaliações
que um dado grupo social pode fazer sobre a função da cultura em um dado contexto
social:
Os artistas e intelectuais do CPC não sentem qualquer dificuldade em
reconhecer o fato de que, do ponto de vista formal, a arte ilustrada
descortina para aqueles que a praticam as oportunidades mais ricas e
valiosas, mas consideram que a situação não é a mesma quando se
pensa em termos de conteúdo (...). Com efeito, seria uma atitude
acrítica e cientificamente irresponsável negar a superioridade da arte
de minorias sobre a arte das massas no que se refere às possibilidades
formais que ela encerra
148
.
O que nos salta aos olhos é a avaliação de que fosse possível trabalhar forma ou
conteúdo enquanto instâncias dissociadas do processo artístico. Neste sentido, Heloísa
Buarque de Hollanda, partindo de algumas reflexões de Walter Benjamin, defende que o
CPC com seus pressupostos “revolucionários” não produziu arte engajada justamente
por ignorar a esfera formal que rege a arte, ou seja, suas lutas e contradições internas,
inerentes aos seus meios técnico-estilísticos
149
. Há a escolha pelo paternalismo em torno
da cultura popular e pela homogeneização da multiplicidade e das contradições
presentes na cultura.
Devemos atentar, com efeito, que estamos nos referindo a um contexto histórico
específico e, por isso, não pretendemos tecer maiores juízos de valor acerca dos
posicionamentos assumidos pelos agentes por nós estudados, assim como seus supostos
146
Ainda que “(...) áreas como o cinema, as artes plásticas e a música (popular e erudita), pouco foram
influenciadas esteticamente falando pelo Manifesto do CPC”. Acreditamos, contudo, que mesmo do
ponto de vista estético, o Manifesto do CPC serviu como paradigma para a cultura da época, mesmo que
sob um prisma negativo. Basta observarmos as críticas duras às suas teses principais formuladas por
cinema-novistas, tropicalistas e membros do chamado Cinema Marginal. Cf. NAPOLITANO, Marcos.
Op. cit... p. 42.
147
HOLLANDA, H. Op. cit., 1980. p. 18-19
148
NAPOLITANO, M. Op. cit.. p. 38.
149
HOLLANDA, H. Op. cit.. p. 27-28.
70
equívocos e erros de avaliação Hollanda levanta argumento próximo ao nosso,
destacando o impacto cultural e social dos CPC’s em seu tempo
150
. A força de algumas
idéias defendidas pelo CPC nos leva a crer que, neste momento, assistimos ao início da
consolidação de um habitus para as manifestações culturais, cujo ápice será alcançado
nos anos de 1964-1968, perdendo fôlego em fins deste último devido à radicalização
repressora imposta através do AI-5.
Pierre Bourdieu destaca que o habitus, produto de práticas passadas em alteração
permanente mediante contato com a dinâmica presente em um dado campo, tende a
reproduzir as estruturas objetivas que o originam
151
. Ou melhor, conforme Bourdieu,
habitus define-se como:
(...) sistemas de disposições duráveis, estruturas estruturadas
predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, isto é, como
princípio gerador e estruturador das práticas e representações que
podem ser objetivamente “reguladas” e “regulares” sem ser o produto
da obediência a regras, objetivamente adaptadas a seu fim sem supor a
intenção consciente dos fins e o domínio expresso das operações
necessárias para atingi-los e coletivamente orquestradas, sem ser o
produto da ação organizadora de um regente
152
Neste sentido, as disputas existentes em um campo contribuem para a constante
reformulação do habitus que “disposiciona” seus agentes. E com o CPC não foi
diferente. O Manifesto de 1962 foi alvo de duras críticas dentro do próprio quadro de
artistas e intelectuais que integravam o Centro Popular da UNE. As falas de Carlos Lyra
são bastante expressivas: segundo Napolitano (2004), foi o compositor quem propôs o
nome Centro Popular de Cultura, numa inversão à proposta inicial, Centro de Cultura
Popular
153
. Também Lyra escandalizou a esquerda artística da época ao discordar do
ideal do Manifesto que afirmava que para o artista tornar-se povo bastava apenas que
ele escolhesse assim sê-lo; era uma questão sobretudo de engajamento. Sobre este
impasse causado por Carlos Lyra:
150
HOLLANDA, H. Op. cit.. p. 28.
151
BOURDIEU, Pierre. Esboços de uma teoria da prática. In: ORTIZ, Renato (org.). Pierre Bourdieu:
sociologia. São Paulo: Ática, 1983. p. 61. Destacamos aqui que o verbo “tende” realça a concepção não-
determinista e não-reprodutivista que marcou os trabalhos do sociólogo francês, ao contrário das críticas
de autores como Bernard Lahire e François Dubet, brevemente apresentadas em SETTON, Maria da
Graça Jacintho. A teoria do habitus em Pierre Bourdieu: uma leitura contemporânea. Revista Brasileira
de Educação, n. 020, mai/jun./jul./ago. 2002. p. 60-70.
152
BOURDIEU, Pierre. Id.. p. 60-61.
153
NAPOLITANO, Marcos. Op. cit.. p. 41.
71
Sou contra’, ele votou. Sou burguês. ão faço cultura popular, faço
cultura burguesa, não tem jeito’.
Alguns o olharam horrorizado. Como alguém tão inteligente e
alinhado com as aspirações populares poderia dizer-se ‘burguês’?
Carlinhos explicou que o fato de gostar de samba de morro não o fazia
ter vontade de mudar-se para a favela e que, portanto, o saberia
produzir o tipo de música que aqueles sambistas faziam. Além disso,
usava camisas de zuarte, compradas na Casa da Pátria, na praça
Quinze, apenas porque estavam na moda. Mas era favorável a um
centro popular de cultura, que estaria aberto a todas as tendências.
Ferreira Gullar achou que ele tinha razão
154
.
Outros debates também foram travados entre os cineastas que integravam o
Cinema novo e o CPC. Nomes do movimento cinema-novista como Leon Hirzmann e
Carlos Diegues contavam com cargos importantes dentro dos Centros Populares de
Cultura da UNE, mas isso não evitou que o Cinema Novo se inclinasse para um
posicionamento cada vez mais autoral e idiossincrático, cujo nome de maior peso foi
Glauber Rocha. Ao mesmo tempo, esta ascendente postura não significou a ruptura com
o ideário que guiava o CPC; a discussão política se manteve e às vezes até se acentuou,
mas passamos a assistir àquilo que se tornará conhecido como “política do autor
155
”.
Com o golpe de 1964, a sede da UNE foi atacada por grupos favoráveis ao golpe
direitista no poder e, no ano seguinte, posta na ilegalidade, mantendo-se atuante na
clandestinidade. O legado estético e cultural do CPC manteve-se com vigor durante a
ditadura, mas passou a sofrer críticas de alguns artistas ligados ao teatro, música,
cinema e artes plásticas. Estas críticas correm, em paralelo, às problematizações que
surgem no seio dos movimentos políticos de esquerda à linha etapista da revolução
seguida até então pelo PCB. Observamos, pois, mais um exemplo das homologias
existentes entre os campos que compõem a sociedade dos anos 1950-1960.
3.2. “Logo agora que o cinema brasileiro foi campeão do mundo”: Pererê e o
cinema
154
CASTRO, Ruy. Chega de Saudade: a história e as histórias da Bossa Nova. 2ª edição. São Paulo:
Companhia das Letras, 1990. p. 261.
155
HOLLANDA, H. Op. cit..,1980. p. 38-39.
72
A produção cinematográfica é retratada por alguns estudiosos como um dos
campos culturais que provavelmente contou com um maior nível de debates na
sociedade de então, e que se reflete até os dias de hoje
156
. Estamos aqui nos referindo ao
movimento do Cinema Novo, integrado por artistas como Nelson Pereira dos Santos,
Cacá Diegues, Arnaldo Jabor, Paulo César Sarraceni, Ruy Guerra e Glauber Rocha,
entre outros.
É preciso destacar que não pretendemos esmiuçar a filmografia cinema- novista
em sua completude, marcada por questões específicas à dinâmica do próprio grupo
157
,
assim como compreendemos o risco que corremos ao retratá-lo tão sinteticamente.
Buscamos apenas neste primeiro momento abordar algumas de suas características
gerais, somando-as com alguns filmes que avaliamos como significativos para o
respectivo movimento, para, em seguida, destacarmos a relação estabelecida por Ziraldo
com o movimento do Cinema Novo.
Rio 40 Graus, filme de 1954 de Nelson Pereira dos Santos é considerado um
marco inicial para as reflexões sobre o Cinema Novo ao lado de filmes como Rio
Zona Norte, de 1957 do mesmo diretor e de O Grande Momento, exibido no ano
seguinte e dirigido por Roberto Santos, é chamado como “proto - Cinema Novo”. Neste
filmes vemos surgir uma preocupação mais aguda com a realidade brasileira e os seus
contrastes sociais, em oposição ao então esgotado cinema industrial.
Havia aqui, pois, um duplo movimento: ao mesmo tempo em que se
desvinculava daqueles que se utilizavam do cinema como mero aparato para diversão, à
moda hollywoodiana, os artistas que integravam o Cinema Novo procuravam um
cinema que estivesse aliado às estéticas modernas que surgiam na época, como o
Neorrealismo italiano e, posteriormente, o cinema moderno de Jean Luc Godard. E a
partir daí, há um segundo movimento de afastamento de uma estética atrelada ao padrão
norte-americano, ao defenderem que o cinema do “Terceiro Mundo” deveria estar
despojado de rigor, produzido fora de grandes estúdios e ricos em movimentos de
câmera: é a máxima creditada a Glauber Rocha “uma câmera na mão e uma idéia na
cabeça
158
”.
156
Para maiores informações cf: RAMOS. José Mário Ortiz. Cinema, estado e lutas culturais: os anos
50, 60 e 70. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. BERNARDET, Jean-Claude; GALVÃO, Maria Rita. O
nacional e o popular na cultura brasileira – cinema. São Paulo: Brasiliense, 1983.
157
XAVIER, Ismail. O Cinema Brasileiro Moderno. 2ª edição. São Paulo: Paz e Terra, 2001.
158
Ibid.
73
Uma característica importante que está presente no campo específico do cinema
como também no campo cultural em um sentido mais amplo é que a luta por uma arte e
por uma cultura que expressasse aquilo que se acreditava ser genuinamente brasileiro
não se inicia durante o governo reformista de João Goulart e sim durante os anos de
Juscelino Kubitschek. O impulso modernizador a qualquer custo cujo ápice podemos
indicar no rompimento de Kubitschek com o FMI em 1959
159
expresso no Plano de
Metas e do slogan 50 anos em 5 foram características importantes da gestão JK e
nortearam, sob diferentes matizes, os debates sobre a sociedade brasileira de forma mais
ampla – ainda que o projeto de Kubitschek estivesse inexpugnavelmente ligado ao
desenvolvimento desenfreado e dependente do capitalismo no país.
É neste sentido que José Mário Ortiz Ramos reflete sobre as relações entre
cinema e desenvolvimentismo. O autor levanta algumas iniciativas relativas à luta de
alguns agentes pela implantação de uma indústria cinematográfica no país como
iniciativa engendrada por intermédio de políticas estatais
160
, ao mesmo tempo em que
percebe uma progressiva virada de concepção sobre a forma de se fazer cinema no
Brasil nos anos 1960. Ela está marcada por duas facetas: a primeira como aquela mais
ligada ao que conhecemos como Cinema Novo, e que defende uma “desalienação
libertação nacional”; e a outra que se propõe a realizar um cinema mais “universalista-
comsmopolita”, como Walter Khouri e, exemplo que nós citamos, Zé do Caixão
161
.
Consideramos importante o estudo de Ramos para indicar, por exemplo, a
preocupação existente durante a década de 1950 entre os “independentes” cineastas
que constituirão o Cinema Novo e o imaginário sobre a industrialização. Ela era vista
como necessária para o bem comum do cinema brasileiro e da sociedade como um todo,
porém deveria se efetuar escapando das formas de produção típicas das grandes
companhias
162
.
Resulta destas lutas a criação em 1961 do Grupo Executivo da Indústria
Cinematográfica (GEICINE), órgão preocupado com a promulgação de medidas de
incentivo à produção cinematográfica nacional. A maior medida foi elevar a exibição
anual obrigatória de filmes brasileiros de 42 para 56 dias. Suas medidas acerca das
159
O FMI impunha condições para a efetuação das negociações que batiam de frente com as pretensões
desenvolvimentistas de JK. Cf. SKIDMORE, Thomas E. Brasil: de Getúlio Vargas a Castelo Branco
(1930-1964). 7ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. p. 211-225.
160
RAMOS, J. Op. cit.. p. 20.
161
BERNARDET, J.; GALVÃO, M.. Op. cit.. p. 39.
162
RAMOS, J. Op. cit.. p. 28 e 29.
74
remessas de lucros foram, no entanto, bastante criticadas pelos cineastas de então pois
acabava desobrigando as empresas estrangeiras a investirem no cinema nacional
163
.
Vale lembrar que também acompanhamos no primeiro capítulo a luta dos autores de
quadrinhos brasileiros por atuação institucional em defesa da produção nacional.
O Cinema Novo, além deste debate mais institucional, levantou uma série de
questões de ordem artística e estética, além das que apresentamos anteriormente.
Bernardet e Galvão destacaram as seguintes contribuições dos cinema-novistas:
Aumentou consideravelmente a quantidade de componentes da nova
fórmula para o cinema nacional: rejeição do estúdio e seu aparato
técnico, dos grandes elencos, do formalismo, da falsa poesia e de
quaisquer enfeites; valorização de exteriores, da fotografia direta, do
realismo, da linguagem seca e despojada; aproximação da realidade e
do povo
164
.
Aliado a estes fatores, lembramos o debate estabelecido entre o Cinema Novo e
a literatura que acreditavam expressar questões nacionais
165
, através de filmes como
Vidas Secas, dirigido por Nelson Pereira dos Santos em 1963 e inspirado na obra de
Graciliamo Ramos e Deus e o Diabo na Terra do Sol, produção de 1963 de Glauber
Rocha. Neste filme é rico o debate, segundo Xavier, com Os sertões, de Euclides da
Cunha
166
. Apesar de Bernardet e Galvão destacarem a presença no Cinema Novo de
obras de rica elaboração estética, eles também apontam que o Cinema Novo teria
promovido uma “elitização” do cinema, uma vez que a aproprição do material popular
passava por uma clivagem que muitas vezes se distanciava das percepções e anseios das
massas, objeto destes filmes
167
.
O cinema apareceu na revista Pererê, em “Como pegar uma onça
168
”, onde
Ziraldo nos apresenta um ambiente um pouco diferente do padrão conhecido para a
Mata do Fundão: logo nos primeiros quadros da primeira página, onde um grande Sol,
acompanhado por cactos e galhos secos, integra uma paisagem que é reforçada por
declarações como “A caatinga não me deterá” e “Um cangaceiro não treme diante dos
espin (...)”. O suspense sobre quem caminha sozinho neste cenário árido é rompido na
163
RAMOS, J. Op. cit.. p. 29-32.
164
BERNARDET, J.; GALVÃO, M.. Op. cit.. p. 200.
165
O debate com a literatura se de forma especialmente forte após o golpe de 1964; este período,
porém, escapa de nossa análise neste momento. Para ilustrar com um exemplo podemos citar Macunaíma
(1969), de Joaquim Pedro de Andrade.
166
XAVIER, I.. Op. cit.. p. 19.
167
BERNARDET, J. & GALVÃO, M.. Op. cit.. p. 139-140.
168
Pererê, dezembro de 1962. p. 16-23.
75
página seguinte, acompanhado da afirmação que remete a Euclides da Cunha: “O
‘cabra’ é antes de tudo um forte’”:
Figuras 30 e 31: Galileu enfrenta as dificuldades da Caatinga
169
.
Galileu se confrontado pela “volante do tenente Migué Torres
170
”, logo
“destruída” na página seguinte. Seguindo “sem rumo”, o nosso herói começa a sentir-se
mal, com sede, “pregado”, até ouvirmos um barulho de tiro que aparentemente teria
169
Pererê, dezembro de 1962. p. 16-17.
170
O nome nos remete ao ator e roteirista Miguel Torres, atuante em diversas produções do Cinema Novo
e que curiosamente faleceria no mesmo mês. É o seu o argumento para Os Fuzis (1964), dirigido por Ruy
Guerra e que teve cartaz ilustrado por Ziraldo. Cf. RAMOS, Fernão; MIRANDA, Luiz Felipe.
Enciclopédia do cinema brasileiro. 2ª edição. São Paulo, SP: Ed. SENAC São Paulo, 1997. p. 544.
76
atingido a onça
171
. Logo ficamos sabendo que na verdade tudo não passava de uma
gravação de uma cena de filme, patrocinado por Compadre Tonico:
Figura 32:
Compadre Tonico
explica a Seu
Neném seu plano
para pegar
Galileu
172
.
O truque formulado por Compadre Tonico é logo compreendido por seu
parceiro, inclusive a opção pelo diretor do filme:
171
Pererê, dezembro de 1962. p. 18-19.
172
Pererê, dezembro de 1962. p. 20.
77
Figura 33: Seu Neném reflete sobre o plano de Compadre Tonico
173
.
A fraqueza de Galileu após as filmagens é a oportunidade que Compadre Tonico
esperava para finalmente capturar o seu objeto de desejo, porém novamente ele será
surpreendido em suas intenções. Desta vez será pelo “presidente do Festival de Cannes”
que, fascinado pela atuação de Galileu no filme de “Ruy Batalha” uma referência
direta ao diretor Ruy Guerra
174
–, declara sua eleição como “melhor ator du monde!”. A
HQ termina com o arrependimento de Compadre Tonico e o orgulho de Galileu:
173
Pererê, dezembro de 1962. p. 21.
174
RAMOS, Fernão; MIRANDA, Luiz Felipe. Op. cit.. p. 287-288.
78
Figura 34: Galileu e a Palma de Ouro
175
.
Sequência 1:
1. Situação inicial: Galileu atuando em filme de Ruy Batalha;
2. Perturbação da situação inicial: Cansaço de Galileu;
3. Desequilíbrio ou crise: “Estafa” de Galileu; Compadre Tonico captura Galileu;
4. Intervenção na crise: Presidente do Festival de Cannes declara Galileu “melhor ator
du monde”;
5. ovo equilíbrio: Galileu “andando de pra cá” exibindo seu prêmio, a Palma de
Ouro.
A leitura isotópica da revista aponta para o elogio de uma estética fortemente
associada ao meio onde ela surge e se desenvolve. Em Pererê tal aspecto também se faz
presente, e merecerá destaque no capítulo seguinte.
175
Pererê, dezembro de 1962. p. 23.
79
3.3. Festa moderninha”: Pererê e a música
A música popular é outro lugar artístico que amalgama as complexidades da
sociedade onde Pererê se insere. Ela é marcada neste período sobretudo pela guinada à
esquerda de nomes importantes que integravam até então o quadro conhecido da Bossa
Nova, como Carlos Lyra, Nara Leão e Sérgio Ricardo. Como resposta às demandas que
o meio artístico-cultural, dominado pela atmosfera de reformas e/ou transformações
efetivas e estruturais, afastam-se do ideal estritamente desenvolvimentista, otimista e
urbano que marca o estilo musical cujo nome de peso é João Gilberto.
A Bossa Nova corresponde, de acordo com Ruy Castro, à modernização que se
mostrava em curso na sociedade e no meio musical brasileiro e que pode ser
visualizada, por exemplo, através da figura de JK, associada ao pensamento
desenvolvimentista e que passa a ser reconhecida pela alcunha de “presidente Bossa
176
Como pegar uma onça. In: Pererê, dezembro de 1962. passim.
Rede Temática 1 Elementos Figurativos para Rede 1 Elementos Axiológicos
para Rede 1
/Características do
cinema nacional/
/Sol e cactos ocupando sete das oito páginas da HQ/;
/- O ‘cabra’ é antes de tudo um forte!/; / - Paladino do
Nordeste/; / - Genial, Galileu! Você é o maior ator do
cinema nacional!/; / - Êle sabia que o Galileu não ia
agüentar êsse batente de fazer filme no Nordeste... êste
Sol não é brincadeira...ainda por cima convidou o Ruy
Batalha pra dirigir o filme...um diretor durão desses!!!/;
/- Êle serr mesmo Jean Paul Belmondo du Brésil/; /- Eu
eleger o Galileu o melhor ator du monde!/; /- Logo
agora que o cinema brasileiro virou campeão do
mundo!/; /- Exibindo essa tar de Palma de Ouro
176
/
/Estética nacional/
80
Nova
177
”. Ao mesmo tempo, o debate interno, que busca expressar esteticamente
uma ideia nacional por intermédio da busca por um estilo brasileiro que aliasse as
modernas harmonias do jazz com os elementos mais básicos do ritmo do samba
178
. O
meio de expressão para tal seriam o violão e a voz, de preferência em um clima
informal, (o “cantinho”).
A interpretação contida se insere no embate travado pelos bossa-novistas contra
o canto mais expressivo presente em intérpretes como Vicente Celestino, Cauby Peixoto
e outros ícones do rádio. Ao mesmo tempo, a Bossa Nova é conhecida justamente por
reintroduzir no campo musical de seu tempo sambas compostos durante as décadas de
1930 por nomes como Dorival Caymmi e Herivelto Martins, como uma forma de
estabelecer um nexo entre estes, considerados compositores autênticos e brasileiros, e a
sua prática artística. Por outro lado, Júlio Medaglia, maestro que participou de
movimentos de vanguarda na música erudita e popular nos anos 1960, destaca, em texto
de 1966, uma relação de continuidade que observava existir entre a Bossa Nova e as
canções de protesto que surgiram durante a década de 1960, pois a primeira, ao ignorar
excessos musicais, permite que diversas temáticas sejam trabalhadas de forma mais
simples
179
.
A serenidade que caracterizou musicalmente a Bossa Nova e que, segundo
Medaglia, permitiria um tratamento igualmente sereno às suas temáticas não evitou que
Carlos Lyra afirmasse em 1962 – citado por Castro:
A Bossa Nova estava destinada a viver pouco tempo”, declarou
naquela época. “Era apenas uma forma musicalmente nova de repetir
as mesmas coisas românticas e inconseqüentes que vinham sendo
ditas muito tempo. Não alterou o conteúdo das letras. O único
caminho é o nacionalismo. Nacionalismo em música não é
bairrismo
180
.
Carlos Lyra, juntamente com Sérgio Ricardo, passou a atuar em defesa de
canções que tratassem mais diretamente das dificuldades vividas pelo homem brasileiro.
Não se tratou, como vimos na afirmação de Lyra, de uma negação irrestrita ao legado
bossa-novista, mas sim de uma ruptura temática. Das letras que tratavam do amor, do
177
CASTRO, Ruy. Op. cit.
178
Ruy Castro, por exemplo, destaca o fascínio que a descoberta da hoje famosa “batida Bossa Nova”
despertou em um curioso João Gilberto.
179
MEDAGLIA, Júlio. Balanço da Bossa Nova. In: CAMPOS, Augusto de et. alli. Balanço da Bossa e
outras bossas. 4ª edição. São Paulo: Perspectiva, 1986. p. 67-123.
180
apud CASTRO, Ruy. Op. cit.. p. 344.
81
sorriso e da flor, passamos para composições que abordam a dureza da vida do homem
do Nordeste e do favelado
181
.
Observamos ainda a presença de uma espécie de retorno às raízes que podemos
compreender melhor se levarmos em conta as discussões em torno do conceito
löwyniano de romantismo revolucionário desenvolvidas por Ridenti
182
. Há, além da
temática relacionada aos nordestinos, favelados e desvalidos em geral, a procura por
uma africanidade que sempre integrara nossa condição nacional, mas que era reprimida
até então pela dominação branca, colonial e dependente. Podemos exemplificar por
meio das incursões de Vinícius de Moraes dentro do circuito de canções de protesto, em
parceria com o violonista Baden Powell, mulato; suas canções tratavam de rituais
religiosos negros e anunciavam uma espécie de libertação do povo, uma euforia
revolucionária.
Para além de elencar quantas vezes um ou outro nome da música brasileira
apareceu ao longo das quarenta e três edições da revista, optamos novamente por
analisar uma HQ onde a temática musical fosse diretamente apresentada. Nara Leão e
Sérgio Ricardo serão os nomes de destaque de “A canção do Pererê
183
”, HQ sobre uma
“festa moderninha” organizada pela Boneca de Piche. A primeira página da HQ já
parece explicitar a tensão dos meses finais do governo Goulart, através da pergunta de
Allan, logo esclarecida por Pererê; vemos também uma primeira caracterização da festa
em questão no último quadro:
181
Carlos Lyra compõe em 1963 a “Canção do subdesenvolvido”, que fez bastante sucesso no meio
universitário.
182
RIDENTI, Marcelo. Op. cit.
183
Pererê, janeiro de 1964. p. 27-34.
82
Figura 35: Pererê, Allan e Moacir conversam sobre a festa na casa da Boneca de
Piche
184
.
Iniciam-se os preparativos para a reunião, que é aguardada com ansiedade
devido ao anúncio de duas “surprêsas sensacionais”. A informalidade dita o tom da
festa: além de cada personagem da turma se encarrega de levar algo para comer e beber,
logo vemos que a casa não tem um ambiente enfeitado para uma celebração tradicional
na verdade, todos devem se sentar ao chão em almofadas, o que não passará
184
Pererê, janeiro de 1964. p. 27.
83
despercebido pelo humor dos personagens, desacostumados com uma festa tão
diferente:
Figura 36: Turma do Pererê se diverte
com a informalidade da “festa
moderninha
185
”.
Agora está tudo pronto para o anúncio dos dois convidados especiais. Porém,
eles são recebidos com desconfiança por Galileu, o que permitirá a explicitação, pela
via do humor, da tensão entre tradição e moderno através da música brasileira:
Figura 37: Sérgio Ricardo e Nara Leão
na festa da Boneca de Piche
186
.
185
Pererê, janeiro de 1964. p. 30.
186
Pererê, janeiro de 1964. p. 31.
84
A festa transcorre sem maiores problemas apesar deste interlúdio conflituoso,
pois logo na página seguinte Galileu reconhece o talento da dupla convidada, com
palmas para a interpretação de Sérgio Ricardo em “A fábrica” e um “genial” para Nara
Leão em “Esse mundo é meu
187
”. Após as apresentações dos dois, acompanhados por
um banquinho, violão e a admiração geral dos personagens, Boneca de Piche é
convidada a cantar e tocar composição própria intitulada “A canção do Pererê”. A
história termina com a turma saindo feliz do encontro, exceto por Pererê, que dormirá
feliz embalado pelos versos da Boneca:
Figura 38: Todos
escutam a bossa da
Boneca de Piche
188
.
Figura 39:
Pererê
“compreende”
a canção da
Boneca
189
.
187
Pererê, janeiro de 1964. p. 32.
188
Pererê, janeiro de 1964. p. 33.
189
Pererê, janeiro de 1964. p. 34.
85
A ligação de Ziraldo com Sérgio Ricardo ultrapassa a fronteira dos quadrinhos,
remontando pelo menos ao “Menino da calça branca”, curta-metragem de 1961 sobre
um menino de favela que ganha de presente de Natal uma calça branca e que, para não
sujá-la evita as brincadeiras de seus colegas e passa a andar pelo asfalto a imitar o jeito
dos adultos. Porém sua calça é atingida por lama e, por isso, “volta correndo aos braços
de seu habitat, reintegrado à sua gente
190
”. Dirigido por Sérgio Ricardo, contou com
Ziraldo no elenco, que também atuou e produziu o cartaz publicitário de “Esse mundo é
meu”, filme dirigido por Sérgio Ricardo em 1963 com Ruy Guerra na montagem
cuja faixa-título, por sua vez, é interpretada na HQ de Ziraldo por Nara Leão
191
.
Para fins desta pesquisa, não há necessidade de estabelecer uma sintaxe narrativa
à maneira de Todorov, pois o enredo basicamente gira em torno da festa bossa-novista
da turma e dos valores a ela atribuídos. Mais interessante será avançarmos em direção a
uma leitura isotópica de “A canção do Pererê” objetivando perceber como, através da
música brasileira, elementos como tradição e moderno são euforizados ou disforizados:
Observamos, por intermédio de uma leitura isotópica da HQ em questão, que
elementos usualmente associados ao universo da Bossa Nova, como a informalidade da
190
Cf. http://www.sergioricardo.com/?area=filme&id=1 (acesso em 13 de março de 2010).
191
A trilha sonora do filme veio a público em 1964, mas a faixa fora lançada no disco Um SR. talento,
de 1963.
192
A canção do Pererê. In: Pererê, janeiro de 1964. passim.
Rede Temática 1
Elementos Figurativos para Rede 1 Elementos Axiológicos
para Rede 1
/“Festa
moderninha” e
suas
características/
/- Aposto que a gente vai ter que levar as bebidas e as
meninas os salgadinhos/; /- Todo mundo sentado no
chão/; /- Vão ter duas surprêsas sensacionais/; /- A Mata
do Fundão precisa de mais iniciativas como essas.../;
/- Adorei esse negócio de assentar em almofadas/; /Sérgio
Ricardo e Nara Leão cantam em clima intimista, com
banquinho e violão
192
/
/Estética moderna/
86
“reuniãozinha para os amigos”, onde todos sentam no chão e levam comidas e bebidas;
e o clima banquinho-e-violão para a interpretação das canções são utilizados para
construir a rede temática em torno da “festinha moderna”, tema presente em toda a
história analisada. Com isso temos como elemento axiológico a modernidade,
representada pela Bossa Nova trazida pelos convidados e logo incorporada ao mundo da
Mata do Fundão, ora pela admiração completa da turma diante do sarau e sobretudo
pelo inicialmente reticente Galileu –, ora pela participação da Boneca como
compositora respeitada por Sérgio Ricardo.
Podemos enriquecer a compreensão da revista acerca da produção musical
brasileira se acrescentarmos à HQ analisada trechos presentes em edições diferentes, e
como outros nomes e a relação com o moderno e o tradicional foram discutidos. Vicente
Celestino, por exemplo, costuma ser ligado à tradição e até mesmo ao “fora de moda”.
Além da citada passagem de Galileu na última HQ analisada, em “O cosmonauta”
temos a fala de Saci para Tininim: Ih...Tininim, você anda tão fora de moda
ultimamente! Tocando música do Vicente Celestino, de tão antigo...
193
”; ou também
ligado a personagens como o menino pobre Nozito e sua zelosa e humilde mãe,
preocupada com sua voz que sumiu enquanto estava “cantando uma modinha tão
bonitinha do Vicente Celestino
194
”:
3.4. Gôôôôll do ‘Mata do Fundão F. C.’ do Brasil!”: Pere e o futebol
A Copa do Mundo de futebol de 1962, realizada entre 30 de maio e 17 de junho,
mereceu uma edição temática em junho do mesmo ano
195
. Ao contrário dos outros
quarenta e dois números de Pererê, temos aqui uma única história a ocupar toda a
revista, cuja contracapa enuncia a excepcionalidade deste número ao apresentar a HQ
como uma abertura de filme:
193
Pererê, março de 1963. p. 12.
194
Pererê, junho de 1961. p. 3.
195
Pererê, junho de 1962.
87
Figura 40: abertura da edição especial sobre a Copa de 1962
196
.
Com os preparativos finais para o início da Copa do Mundo, a seleção da
Pruslávia decide descansar um pouco na Mata do Fundão, o que é motivo de alegria e
entusiasmo para toda a turma. O time visitante será fortemente caracterizado ao longo
da HQ pela força física de seus jogadores, que se inscreve até mesmo em seus nomes,
como podemos ver na Figura 42, por exemplo:
196
Pererê, junho de 1962. p. 2.
88
Figura 41: Equipe
da Pruslávia
hospedada na Mata
do Fundão
197
.
Figura 42: Pênalti a ser batido por
Kebrapeitolstoy contra a equipe do Mata do
Fundão F. C.
198
.
Animados com a presença do time estrangeiro, Pererê e seus amigos propõem
uma partida entre a Mata do Fundão e a seleção da Pruslávia. Em paralelo a isso, temos
a chegada de um repórter vindo da cidade diretamente para cobrir a seleção da
Pruslávia: é Luiz Carlos Carreto, homenagem de Ziraldo a Luiz Carlos Barreto, colega
então fotógrafo da revista O Cruzeiro. Além da revista, ambos trabalham em O assalto
ao trem pagador (1961), filme dirigido por Roberto Farias: Ziraldo como autor do
impactante cartaz do filme, e Barreto como co-autor do roteiro e co-produtor:
197
Pererê, junho de 1962. p. 5.
198
Pererê, junho de 1962. p. 29.
89
Figura 43: Cartaz de Ziraldo para o filme O Assalto ao trem pagador
199
.
A partida inicia-se com a Turma do Pererê uniformizada como Mata do Fundão
F.C. portando as cores do time de coração de Ziraldo, o Flamengo, do Rio de Janeiro:
199
LEITE, Ricardo. Ziraldo em cartaz. Rio de Janeiro: Ed. Senac Rio, 2009.
90
Figura 44: Mata do Fundão F.C. posa para foto antes do jogo
200
.
Iniciada a partida, que ocupará boa parte da HQ, ela será definida a partir do uso
inteligente das características de cada personagem para driblar a truculência adversária:
Geraldinho e suas orelhas de coelho atrapalharão a visão do goleiro; Moacir usará seu
200
Pererê, junho de 1962. p. 10.
91
casco de tartaruga para obstruir a chegada do adversário à defesa do Mata do Fundão F.
C.; Allan se utilizará de seu corpo esguio para realizar defesas elásticas; e Galileu e sua
força de onça atuarão na defesa do time, por exemplo. Boa parte destas iniciativas
termina por ser anulada pela força bruta adversária: Geraldinho tem suas orelhas
amarradas e Moacir terá seu casco quebrado, por exemplo.
Todas estas dificuldades serão superadas pelo Mata do Fundão F. C.,
principalmente a partir da vontade que Tininim e Pererê têm de impressionar Tuiuiu e
Boneca de Piche. Por fim o time sairá como vencedor da partida e o resultado foi tão
satisfatório que a escalação da seleção brasileira de futebol será alterada: no lugar do
“escrete” oficial, será a Turma do Pererê quem disputará a Copa do Mundo no Chile.
Antes de iniciarmos a análise da HQ, é preciso chamar atenção primeiramente à
associação entre o Flamengo e o time da Mata do Fundão F.C. proposta por Ziraldo.
Conforme lembramos na Introdução e abordaremos de forma mais detida em parte do
terceiro capítulo, Ziraldo destaca em Pererê elementos biográficos de sua infância e
juventude na cidade de Caratinga, através de seus personagens e da construção da Mata
do Fundão. Em livro em quadrinhos lançado em 2009 que apresenta diversas HQs
ligadas à história do time rubro-negro, Ziraldo o introduz mostrando como teria
começado sua paixão pelo time:
Um dia, um primo me chamou pra jogar futebol de botão com ele.
em Caratinga, interior de Minas, time de futebol eram os times do Rio:
América, Vasco, Botafogo...Ele mostrou os botões e eu disse que
queria jogar com os botões do Botafogo. Eu não sabia nada do
Botafogo, mas era um nome sensacional, Botafogo! Mas meu primo
disse que Botafogo era ele. Eu que escolhesse outro time. E o que
mais tinha na sua caixa de botões? Ah, eu podia ser Flamengo. Achei
o nome forte...pomposo, meio misterioso. O que podia ser Flamengo?
Estreei como Flamengo nesse dia, meio sem querer. que a história
estava apenas começando.
No mesmo dia, passando pela rua do comércio, vi uma aglomeração
de rapazes em torno de um dio na vitrine de uma loja. Do rádio
vinha o som de uma gaitinha enlouquecida: piriri, piriri, piriri! Não
parava de tocar. E o pessoal comemorava. Era gol do Flamengo!
Comemorei também. Se o Flamengo era aquela alegria, eu tinha que
ser Flamengo mesmo
201
!
Voltando à HQ de junho de 1962, prosseguimos com o modelo de sintaxe
narrativa todoroviano instrumentalizado por Ciro Cardoso:
201
PINTO, Ziraldo Alves. O mais querido do Brasil em quadrinhos. São Paulo: Globo, 2009. p. 3.
92
Sequência 1:
1) Situação inicial: Turma do Pererê na Mata do Fundão;
2) Perturbação da situação inicial: Notícia da chegada da seleção da Pruslávia;
3) Desequilíbrio ou crise: Partida de futebol não-planejada entre Pruslávia e Mata do
Fundão F.C./chegada de jornalistas para cobrir o jogo/Violência do time estrangeiro;
4) Intervenção na crise: Uso da inteligência e da estratégia no time do Mata do Fundão
F.C.;
5) ovo equilíbrio: Vitória da Turma do Pererê, escalada para a Copa de 1962 no Chile.
Em “Os craques da pelota”, a ão concentra-se nas partes 3 e 4 da sintaxe
narrativa formulada por Todorov, ou seja, no confronto entre a força estrangeira dos
“Jakarowsky”, “Leopoltrowsky” e “Joandalmeidowsky” na linha da famosa fala de
Garrincha que, ao referir-se aos seus marcadores de nomes impronunciáveis, chamou-os
simplesmente de “joões” contra a astúcia e habilidade da Turma do Pererê, logo
identificados como brasileiros ao longo da narração da partida
202
. É especialmente
interessante observar a associação estabelecida pelo narrador entre o time rubro-negro
sediado na Mata do Fundão e liderado por Pererê com o Brasil na passagem abaixo:
Figura 45: Narração de gol da Mata do Fundão F.C.
203
.
202
A título de curiosidade, Ziraldo é mencionado como o responsável pela recepção dos familiares dos
atletas campeões da Copa de 1958 na redação dos Diários Associados. Cf: CASTRO, Ruy. Estrela
solitária: um brasileiro chamado Garrincha. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 183.
203
Pererê, junho de 1962. p. 29.
93
Propomos então a seguinte leitura isotópica para a HQ:
3.5. Pererê e um amigo d’O Cruzeiro
Como funcionário da revista O Cruzeiro, de Assis Chateaubriand, Ziraldo
também não deixou escapar a chance de retratar seus colegas de trabalho em Pererê.
204
Os craques da pelota. In: Pererê, junho de 1962. passim.
Rede Temática 1
Elementos Figurativos para Rede 1 Elementos
Axiológicos para
Rede 1
Partida de futebol
entre Mata do
Fundão F.C. e
seleção da
Pruslávia
/Uniforme do time da Mata do Fundão é das mesmas cores do
time do Flamengo/; /”Catimba” de Pererê para reunião tática/;
/Sucessivos dribles de Pererê sobre o time da Pruslávia/;
/Geraldinho obstrui a visão do goleiro da Pruslávia/; /Moacir
usa seu casco como obstáculo para parar o ataque adversário/ ;
/Pedro Vieira faz buracos no campo adversário/; /Galileu
barra os jogadores adversários com sua força física; / Tininim
e Pererê fazem gols para impressionar suas namoradas/;
/- Êles são geniais!!! Futebol brasileiro é aquilo!!!/; /A Turma
do Pererê é convocada para a Copa do Mundo no Chile/;
/- Moçada crescidinha, né, “seu” técnico?/; /Ataque do
jogador Marallewsky Tromborswynn derruba todo o time da
Mata do Fundão; /Nó nas orelhas de Geraldinho/; /Casco de
Moacir é danificado/; /- Chuta violentamente
Joandalmeiodowsky/; /- Fuzila Donnelokisky/; /Penâlti batido
pelo jogador Kebrapeitolstoy que tira Galileu do jogo
204
/
/Nacional; ”Futebol-
arte”/
/Estrangeiro; “Força
bruta”/
94
Desde João Martins e Ed Keffel
205
, que ganharam popularidade com reportagem sobre
“discos voadores” sobrevoando a Barra da Tijuca
206
, zona oeste do Rio de Janeiro, a
Carlos Leonam
207
, repórter companheiro de revista e de empreendimentos futuros, como
no Pasquim
208
, passando pelo citado Luiz Carlos Barreto, Ziraldo situava seus
leitores junto aos nomes de peso da revista O Cruzeiro, muito popular no período, ainda
que iniciasse um lento declino em suas vendas, resultado da entrada de novas revistas
no mercado e da política empresarial de Chateuabriand
209
.
Destacamos aqui uma HQ que homenageia outro nome fundamental para O
Cruzeiro. Ziraldo faria sua homenagem ao famoso personagem Amigo da Onça em “O
bom amigo”, publicada em setembro de 1963, meses após o suicídio de seu criador e
colega Péricles
210
. Nesta HQ, Ziraldo brinca com o conhecido prazer proporcionado
pelo poder do Amigo da Onça para derrotar em situações cotidianas um Outro definido
a partir de extremos limiares loucos, pobres, mulheres traindo maridos etc.
211
–, ao
colocá-lo como justificativa para uma viagem súbita do sempre inocente Galileu para o
Rio de Janeiro. Chegando à cidade grande, não encontra seu amigo e percebe-se sem
dinheiro e condições para retornar à Mata do Fundão. Ao decidir resgatar a enganada
onça, Pererê é interrompido por aquele que seria o tal amigo de Galileu:
205
O Pererê existe?. In: Pererê, outubro de 1961. p. 3-12. A referência à dupla, que aqui aparecem como
João Marfins e Ed Koffre, aparece nas páginas 09-10. João Martins é lembrado também em “Viagem para
Marte”, que será analisada no capítulo seguinte.
206
A reportagem data de 17 de maio de 1952. O tema seria retomado nos anos seguintes, como na edição
de 31 de outubro de 1959, onde João Martins procura defender a veracidade da polêmica reportagem; ela
pode ser lido aqui: http://www.memoriaviva.com.br/ocruzeiro/31101959/311059_3.htm (acesso em 15
março 2010).
207
“Charles Leonam”, criador da expressão “esquerda festiva” para designar artistas e intelectuais da
Zona Sul, e criador, ao lado de Ziraldo, do símbolo do Canário para a seleção brasileira de futebol, é
personagem de “Papai Noel, o azarado”, publicada em dezembro de 1963 (p. 24-29). Cf. LEONAM,
Carlos. Os degraus de Ipanema. edição. Rio de Janeiro: Record, 1998. CASTRO, Ruy. Op. cit.., p.
358.
208
Como no Pasquim, onde foi levado por Ziraldo em 1971. Cf. LEONAM, Carlos. Op. cit.., p. 205.
209
MARTINS, Ana Luiza; LUCA, nia Regina de. Imprensa e cidade. São Paulo: Ed. Unesp, 2006. p.
110.
210
Péricles faleceu em 31 de dezembro de 1961, mas inéditos foram publicados até fevereiro do ano
seguinte. De 10 de fevereiro a 31 de março de 1962, reeditaram-se seus trabalhos mais representativos, e
de abril deste ano até 1972, o personagem passou às mãos de uma equipe de desenhistas da revista, sob
responsabilidade de Carlos Estevão, até a morte deste último em 1972. Cf. SILVA, Marcos Antônio da.
Op. cit.. p. 20.
211
Ibid.. p. 49 e p. 57.
95
Figura 46: Amigo da Onça em Pererê
212
.
Sequência 1:
6) Situação inicial: Galileu parte subitamente em encontro a seu amigo no Rio de
Janeiro;
7) Perturbação da situação inicial: O amigo de Galileu não o busca no aeroporto;
8) Desequilíbrio ou crise: Galileu não tem dinheiro para voltar a Mata do Fundão;
9) Intervenção na crise: Turma do Pererê decide “resgatar” Galileu;
10) ovo equilíbrio: Não há (situação em suspenso).
Não conseguimos observar um novo equilíbrio a concluir a Sequência 1 devido à
decisão da turma de buscar Galileu ter sido interrompida com a chegada inesperada do
212
Pererê, setembro de 1963. p. 34.
96
Amigo da Onça. Ziraldo aqui estabelece forte intertextualidade com o trabalho de
Péricles, ao basear a conclusão da HQ nas características narrativas presentes no
trabalho deste último em O Cruzeiro, caracterizado por lançar mão do inesperado
213
para revelar críticas morais e sociais ao mesmo tempo em que a amizade do grupo da
Mata do Fundão, fator sempre destacado em Pererê, também está presente na HQ e
sobrevive à redução humorística promovida pela chegada do “amigo” de Galileu. A
expressão final de Pererê ao constatar ser o amigo de Galileu o personagem de Péricles
demonstra que ele percebe ter sido este o motivo de tantos acontecimentos estranhos
terem ocorrido com a onça, e que isso não poderia ser diferente, em se tratando do
Amigo da Onça. A sintaxe de Todorov nos revela que, ao não estabelecer um novo
equilíbrio priorizando a ação inconclusa e aberta ao leitor, termina por se aproximar da
linha narrativa comum aos cartuns de Péricles. A homenagem aqui não se restringe às
citações, mas dialoga mesmo com as diferentes linguagens dos quadrinhos e do cartum
d’O Amigo da Onça.
Com isso, a intertextualidade presente em “O bom amigo” não se inscreve
apenas na presença do personagem de Péricles, mas sim na própria narrativa da HQ, ao
instituir a abertura do enredo inconcluso, marca tão trabalhada por Péricles ao longo de
quase vinte anos desenhando o personagem para a revista O Cruzeiro, onde também
trabalhava Ziraldo. Péricles, que tinha uma relação conflituosa com o sucesso de seu
personagem e sofria de depressão, poria fim à própria vida em 31 de dezembro de 1961
e o título da HQ de setembro de 1963 também poderia ser lido como uma singela
homenagem ao falecido amigo.
Por outro lado, através de uma leitura isotópica de “O bom amigo”, veremos que
a homenagem à famosa criação de Péricles não diminui a valorização de noções como a
amizade estabelecida na Mata do Fundão, tema caro à revista de Ziraldo:
213
ZAMMATARO, Ana Flávia Dias; GAWRYSZEWSKI, Alberto. Entre o humor e a crítica: abordagens
de O Amigo da Onça (1943-1974). In: VII SEPECH Seminário de Pesquisas em Ciências Humanas.
Londrina: Eduel, 2008. Disponível em: http://www2.uel.br/eventos/sepech/arqtxt/resumos-
anais/AnaFDZammataro.pdf (acesso em 15 de março 2010).
97
3.6. Considerações finais
Por intermédio das HQs com personalidades da música e cinema brasileiros foi
possível observar clara valorização artística da Bossa Nova e do Cinema Novo,
respectivamente. Mais precisamente, destacam-se a presença de nomes como Nara
Leão, Sérgio Ricardo e Ruy Guerra, cujas obras, produzidas no período por nós
estudado algumas das quais citadas ao longo deste capítulo preocupavam-se em
retratar as dificuldades experimentadas pelas classes populares. Enquanto a estética
moderna associada à Bossa Nova pode ser apreendida ludicamente pela Turma do
214
O bom amigo. In: Pererê, setembro de 1963. passim.
Rede Temática 1 Elementos Figurativos para Rede 1
Elementos Axiológicos
para Rede 1
Galileu parte para o
Rio de Janeiro sem
avisar
/-Se é amigo do Galileu só pode ser um bom
sujeito/; /- O Galileu disse que é o maior amigo
que êle têve/; /- O maior é? E nós, os humildes
aqui da Mata do Fundão?/; /- E disse que o tal
amigo dêle vai pagar tôdas as despesas, tôdas./; /-
O Galileu vai pro Rio de avião. Tudo pago. O
amigo que êle tem é um espetáculo./; /- Ora,
Allan, afinal a gente não pode fazer tudo pelos
amigos./ ; /- O amigo é de inteira confiança./; /-
Nunca vi onça mais craque pra fazer amigos/; /-
Êle agora pensa no tal amigo do Rio./; /- Êste
mundo é assim mesmo...amigos novos no lugar
dos velhos amigos/; /- Não adiantar chorar. Nós
somos amigos de verdade. Vamos juntar todo o
nosso dinheiro pra buscar o Galileu/; /- É isso
que dá. O Galileu confia em todo mundo
214
/
/Valor da “verdadeira”
amizade/
98
Pererê em “A canção do Pererê”, o Cinema Novo tem destacado seu caráter autoral
associado ao espaço em “Como pegar uma onça”.
Além disso, os artistas da Bossa Nova e do Cinema Novo haviam trabalhado
ou lançariam novas obras que contariam com a participação de Ziraldo como ator ou
cartazista, por exemplo – o que é indicativo da relevância de Pererê para melhor
compreender as relações estabelecidas, na primeira metade dos anos 1960, entre os
artistas do campo cultural das esquerdas, e que os quadrinhos não ficaram de fora destes
debates
215
.
Em “Os craques da pelota”, enquanto os personagens da Mata do Fundão
enfrentam e vencem uma seleção de um país que nos remete ao Leste Europeu, temos
na verdade o elogio do futebol-arte brasileiro em contraposição ao frio e truculento
futebol estrangeiro, e que poderíamos exemplificar, a partir dos marcos da época, com a
seleção da U.R.S.S:
Como tudo que parecia vir da URSS, seu futebol tinha uma aura de
modernidade e mistério que dava medo. Era o “futebol científico”, em
que os jogadores estavam preparados para correr 180 minutos e,
depois, sapatear balaiakas sobre os bofes dos adversários. Dizia-se
que, em dia de jogo, eles fazia quatro horas de ginástica pela manhã
(...)
216
.
Vale destacar também a coerência existente entre a construção do personagem
Pererê discutida no primeiro capítulo e o destaque dedicado à imagem do futebol
brasileiro ligado ao drible e ao talento dos jogadores (que usam suas características
físicas com astúcia)
217
. Estas habilidades podem ser sintetizadas na fórmula “futebol-
arte”, consolidada a partir da vitória da Copa do Mundo de 1958: se até 1958 o
“coquetel racial brasileiro” era o culpado pelos sucessivos fracassos em competições
anteriores, a situação muda de figura quando o time brasileiro vence sua primeira Copa;
215
Autores como Hollanda, Napolitano e Ridenti, importantes para o desenvolvimento deste capítulo, não
fazem nenhuma referência ao Pererê em seus trabalhos.
216
CASTRO, Ruy, Op. cit.. p. 158-159.
217
O futebol brasileiro, pensado por Da Matta como um “drama social” que indica uma série de questões
presentes na sociedade brasileira, é pensado associado a uma “arte da malandragem”, em contraste com o
muitas vezes “quadrado e “autoritário” futebol europeu. Cf: DA MATTA, Roberto. Esporte na
sociedade: um ensaio sobre o futebol brasileiro. In: ________(org). Universo do futebol: esporte e
sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1982. p. 40; p. 28.
99
a partir daqui, a forma brasileira de jogar futebol será interpretada a partir da identidade
nacional
218
.
Por fim, a homenagem ao personagem de Péricles revela o domínio que Ziraldo
apresentava sobre a linguagem dos quadrinhos: em “O bom amigo”, a
intertextualidade reflete-se não apenas na presença de um personagem conhecido pelas
seus cartuns em O Cruzeiro, mas também na presença de modelos narrativos diferentes
em uma única história, conforme indicamos em nossa análise torodoviana da narrativa.
218
SOARES, Antônio Jorge Gonçalves. Futebol, malandragem e identidade. Vitória, ES: SPDC/UFES,
1994. p. 97-98.
100
CAPÍTULO 4
O CAMPO E A CIDADE: DISPUTA TERRITORIAL PELO IMAGIÁRIO
4.1. Introdução
Tratamento recorrente dentro da tradição literária e do pensamento social
brasileiro
219
, denotar valores para as experiências de vida nos mundos rural e urbano
será recurso também utilizado nos quadrinhos de Pererê. Os enredos de um bom
número de histórias centram-se nos contrastes presentes entre aspectos da vida moderna,
associados às cidades, em contraponto à calmaria típica do meio rural, representada pela
Mata do Fundão, espaço onde vivem os personagens da Turma do Pererê.
4.2. Olhares sobre a grande metrópole
A primeira história que destacamos é “O piquenique”, HQ que abre a edição de
janeiro de 1964 e que, nas suas dez páginas, nos apresenta uma clara definição das
características do campo e da cidade a partir de um jogo de inversões entre ambas. Ela
começa com os lamentos iniciais de Pererê e Tininim, cansados da vida que têm na
monótona Mata do Fundão. Logo os outros integrantes da turma juntam-se aos
protagonistas em suas críticas ao “vêrde por tôda parte”, ao “ruído dos riachos, das
cascatas”, na “porção de passarinhos piando, cantando, assoviando, buzinando,
martelando na hora do ‘rush’” e no “ar carregado de clorofila-90”, por exemplo:
219
O caso inglês das representações de campo e cidade na literatura é analisado por WILLIAMS,
Raymond. O campo e a cidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.ORTIZ, Renato. Cultura
brasileira e identidade nacional. São Paulo: Paz e Terra, 1987.
101
Figura 47: reclamações sobre a vida na Mata do Fundão
220
.
A turma se no meio de uma crise, ao ponto de Geraldinho afirmar: Pobres
crianças...vamos acabar uns frutos do meio...
221
”. Ninguém sabe qual solução assumir
para resolver o impasse:
220
Pererê, janeiro de 1964. p. 4.
221
p. 5.
102
Figura 48: Em busca de uma solução para “escaparem” da Mata do Fundão
222
.
É chegada a hora de Pererê intervir: ele defende que todos devem fugir da Mata
do Fundão, no que é complementado por Galileu, que propõe que isso se através de
um piquenique. Todos iniciam seus preparativos para o grande dia até que, chegado o
momento, somos surpreendidos com o local escolhido pela Turma do Pererê para fugir
da desgastante e colorida vida na Mata do Fundão, em expressivo quadro de gina
inteira:
222
Pererê, janeiro de 1964. p. 6.
103
Figura 49: quadro final de “O piquenique
223
”.
O quadro final apresenta uma série de imagens que poderíamos associar a um
grande centro urbano: anúncios publicitários, ar poluído, aviões e um helicóptero,
grandes edifícios – com direito a uma pessoa segurando uma mala que aparentemente se
jogou do alto de um deles e grande fluxo de automóveis em viadutos cortando a
cidade. As cores utilizadas para contrapor a realidade urbana, em tons de cinza e sem
maiores variações de tonalidade a despeito da elogiosa diversidade que nela residiria,
a tomar as declarações de Pererê e seus amigos ao longo da HQ ao da letra com a
223
Pererê, janeiro de 1964. p. 14.
104
Mata do Fundão e seus personagens, ricas em cores fortes e vivas, também nos ajudam
a caracterizá-las e melhor compreender o efeito irônico desta HQ.
Sua sintaxe narrativa pode ser definida da seguinte forma:
Sequência 1:
1) Situação inicial: Turma do Pererê na Mata do Fundão (em elipse);
2) Perturbação da situação inicial: Tininim e Pererê estão cansados da Mata do
Fundão;
3) Desequilíbrio ou crise: Toda a turma engrossa o coro dos descontentes Tininim
e Pererê;
4) Intervenção na crise: Fuga da Mata do Fundão e piquenique;
5) ovo equilíbrio: Chegada da turma na cidade grande.
Neste sentido, a leitura isotópica d’O Piquenique deve atentar para a carga
irônica presente nos elementos figurativos e temáticos que a constituem:
224
O piquenique. In: Pererê, janeiro de 1964. passim.
Rede Temática 1 Elementos Figurativos para Rede 1 Elementos Axiológicos
para Rede 1
/Ir para longe desta
mata infernal /
/Êsse verde por toda parte me irrita /; /Êste ruído dos
riachos, das cascatas (...) me tocas nos nervos/; /Esta
porção de passarinhos piando, cantando, assoviando,
buzinando, martelando na hora do ‘rush’/; /E o gás neon
dos vagalumes acendendo e apagando no sono da gente?
não agüento/; /Estas árvores gigantescas... todas
iguais...me esmagam!!!/; este ar carregado de
clorofila-90...é uma tragédia/; /Os dias verdes e iguais
nos destroem um pouco cada dia, não é?/; /Mal posso
esperar a hora de me livrar dessa mata
224
/
/Tudo em volta nos
maltrata/; /Vamos
acabar uns frutos do
meio/
105
Através da leitura isotópica, percebemos que o novo equilíbrio que a princípio
encerraria “O piquenique” de acordo com a sintaxe narrativa na verdade sustenta, em
virtude da inversão humorística sobre os valores ligados a cidade e ao campo, um falso
equilíbrio que nos leva a não imaginá-los satisfeitos e adaptados à cinzenta cidade
grande. A mirada sarcástica do coelho Geraldinho na última página não parece deixar
margens para dúvidas quanto à carga irônica presente nesta HQ, fazendo-nos voltar a
ela para uma leitura mais condizente com o perfil dos personagens, consolidado ao
longo de mais de três anos de publicação da revista.
4.3. Meninos da cidade grande na Mata do Fundão
As representações ligadas à vida na cidade e no campo servirão de argumento
para um bem-humorado julgamento em Viva!!! Acabaram as férias!”, publicada na
edição de março de 1961, por ocasião da volta às aulas neste mês
225
. A exclamação que
serve de título vem de Pererê e justifica-se porque, a partir daquele mês, encerrar-se-ia a
estadia de Carlos Roberto, menino da cidade que, entre outras estripulias, tapou os
buracos cavados por Pedro Vieira, deu nó nas orelhas de Geraldinho e entupiu os
cachimbos de Pererê, na até então sempre calma Mata do Fundão. Porém, ao contrário
do restante da turma, ávida por vingança e que conseguiu capturá-lo em uma armadilha,
o saci pondera a favor de um julgamento justo para o menino da cidade .
Arma-se o júri, com Tininim no papel da promotoria e Pererê fazendo as vezes
da defesa de Carlos Roberto. Como era de se esperar, o humor permeará o julgamento, a
começar pelo exagero das acusações:
225
Pererê, março de 1961. p. 3-14.
106
Figura 50: início do julgamento do menino da cidade
226
.
A defesa de Pererê nos fornece uma série de informações adequadas aos
objetivos deste capítulo. O herói não exime o menino de suas ações, mas a justifica por
ser ele apenas “um pobre garôto da cidade”; ele “não conhece os encantos do campo, da
roça e da floresta verde e perfumada”; “nunca teve uma árvore para subir, pra pular de
galho em galho”; “a beleza das noites estreladas, o crepúsculo e a aurora colorida”;
“nunca ouviu pela manhã o doce trinar dos passarinhos”, entre outras intervenções ao
passo que Tininim pondera que o menino, por outro lado, “tem gangorras, balanços e o
‘play-ground’ da prefeitura”; “tem o cinema e a televisão”; “rádio, vitrola e a alta
fidelidade”, por exemplo:
226
Pererê, março de 1961. p. 8.
107
Figura 51: campo e cidade sob julgamento
227
.
Ao fim do caloroso debate, Carlos Roberto é declarado culpado, com pena de
um ano de estudos forçados na cidade recebida com alívio por ele, talvez ciente do
quanto havia aprontado na Mata do Fundão. Por fim ele se despede da Turma do Pererê
227
Pererê, março de 1961. p. 10.
108
e, como para selar a paz entre eles, lhes oferece cigarrinhos de chocolates mas que
prontamente explodirão sobre eles, numa última travessura do menino da cidade.
Sequência 1:
1) Situação inicial: Turma do Pererê na Mata do Fundão (em elipse);
2) Perturbação da situação inicial: Menino da cidade (Carlos Roberto) passa as
férias na Mata do Fundão;
3) Desequilíbrio ou crise: Carlos Roberto apronta com a turma, que decide vingar-
se;
4) Intervenção na crise: Julgamento de Carlos Roberto no lugar da vingança;
5) ovo equilíbrio: O menino da cidade é condenado, mas consegue uma praticar
última travessura na Mata do Fundão.
Percebemos nesta HQ uma tensão entre os valores imaginados para cada espaço
e as travessuras que seriam típicas de crianças. Para Ziraldo, as crianças não podem ser
pensadas como boas ou más, mas sim devem ser compreendidas a partir da agitação e
do ritmo diferenciado que seria próprio desta faixa etária. O problema talvez esteja em
uma incompatibilidade gerada a partir da vivência em regiões tão opostas entre os
meninos da cidade e do campo, como sugere a rede isotópica abaixo:
109
228
Viva!!! Acabaram as férias!. In: Pererê, março de 19614. passim.
Rede Temática 1
Elementos Figurativos para Rede 1 Elementos Axiológicos
para Rede 1
/Travessuras do
garoto da cidade
em férias na Mata
do Fundão/
/- Aquêle capetinha está passando as férias na fazenda, e não
deixa a gente em paz/; / - Êle tapou todos os buracos que eu
cavei durante anos e anos/; /- Deu um nas minhas orelhas e
pintou meu rabinho de verde!/; /- Me chamou de gorila!/; / - E
enquanto eu dormia, pegou um aparêlho de barbear/; /- Êle
entupiu todos os cachimbos que a Boneca me deu no Natal
(...)/; /Explosão final após presente do menino para a Turma da
Mata do Fundão/.
/No fundo é um menino
bonzinho/
Rede Temática 2
Elementos Figurativos para Rede 2 Elementos Axiológicos
para Rede 2
/Julgamento do
garoto da cidade/
/- O acusado é um pobre garôto da cidade...e sendo da cidade,
não conhece os encantos do campo, da roça e da floresta verde
e perfurmada...sendo criado no asfalto, nunca teve uma árvore
para subir, pra pular de galho em galho/; /- Mas em
compensação, êle tem gangorras, balanços e o “play-ground” da
prefeitura!!!/; /- Ele não tem na cidade a beleza das noites
estreladas, o crepúsculo e a aurora colorida!/; /- Mas tem
cinema e a televisão/; /- Ele nunca ouviu pelas manhãs o doce
trinar dos passarinhos!/; /- É? É? E o rádio, a vitrola e a Alta
Fidelidade?/; /- Não tem na cidade a água cristalina dos rios e o
cantar das cataratas.../; /- ...Mas tem piscinas e fontes
luminosas!!!/; /- Êle não tem gabirobas azedinhas, amoras,
pitangas, jaboticabas e sapotis colhidos nos pés.../; /- Em
compensação, êle tem balas, bombons, caramelos, jujuba,
pirulito, Chicabon e o chicletes de bola
228
!/.
/Relação entre o meio e
a formação do
indivíduo/
110
4.4. Brasília, terra alienígena
O primeiro número da revista, publicado em outubro de 1960, apresenta duas
histórias ligadas à relação estabelecida por Pererê com grandes cidades brasileiras.
“Viagem para Marte
229
”, história de oito páginas, é a primeira das cinco presentes neste
número, e retrata as aventuras do protagonista Pererê, capturado por alienígenas com
planos de invadir a Terra enquanto preparava seu almoço. Curiosamente, quando Pererê
é levado ao planeta de seus raptores, constatamos que a arquitetura do lugar muito se
assemelha com a da recém-inaugurada capital da República: Brasília fora fundada
menos de seis meses da publicação da primeira revista Pererê, e sua arquitetura
moderna é motivo para Ziraldo imaginá-la como uma paisagem de algum planeta
distante.
Figura 52: chegada de
Pererê à terra alienígena
230
.
229
Pererê, outubro de 1960. p. 3-10.
230
Pererê, outubro de 1960. p. 5.
111
A conotação é bastante óbvia: Brasília, cidade que representava o ideal do
desenvolvimentismo fomentado por Kubitschek, planejada e rapidamente construída
para simbolizar a inserção do país na modernidade, é vista em Pererê como um espaço
deveras exótico e, sobretudo, como um local externo, distante, “alienígena”. As
referências a Brasília revelar-se-iam ainda em um jogo de labirintos presente na edição
do mês seguinte, onde o leitor, antes de começar a brincar, é alertado de que “Isto aqui é
igual Brasília: você pode passar por baixo ou por cima dos caminhos que se cruzam.
não vale pular e usar desonestidade
231
”.
Retornando à primeira história, o estranhamento que Pererê sente ao deparar-se
com a arquitetura de outro planeta é logo nuançado quando os extraterrestres percebem
que Pererê na verdade muito se assemelha a eles, exceto pela cor. Enquanto nosso
personagem principal é negro, os ETs seguem o conhecido modelo esverdeado padrão
para alienígenas. Ao constatar esta diferença de ordem cromática, Pererê procura
aproveitar-se da situação para escapar do planeta, afinal “Isto aqui é como aquêle jogo
de pega-varetas: o preto é um e vale mais do que todas as outras cores
232
.
Primeiramente, acaba obtendo dos alienígenas uma série de luxos e benefícios e
consegue, por fim, retornar ao lar.
Por se tratar da HQ que inaugura a revista, é possível perceber, quando
comparamos com outras histórias analisadas ao longo da dissertação, que
personagens como Pererê e Galileu encontram-se com traços muito “crus”: o desenho
de Ziraldo ainda não alcançara o grau de desenvolvimento presente, por exemplo, na
HQ que abre este capítulo.
Nesta breve história uma série de informações e valores é veiculada: referências
a Brasília, a invasores de outro planeta temática que fazia bastante sucesso em HQs e
no cinema durante os anos 1950 e a importância da cor como fator de diferenciação
são alguns deles. Neste momento nos interessa, contudo, perceber como binômios do
tipo local-estrangeiro, representado pela presença de Pererê em Brasília, são trabalhados
de forma a nos auxiliar a melhor compreender como Pererê procurava pensar o Brasil.
Abaixo estruturamos, respectivamente, a sintaxe narrativa e a leitura isotópica de
Viagem para Marte:
231
Pererê, outubro de 1960. p. 12.
232
Pererê, outubro de 1960. p. 9.
112
Sequência 1:
1) Situação inicial: Pererê na Mata do Fundão preparando comida;
2) Perturbação da situação inicial: Pererê capturado por disco voador;
3) Desequilíbrio ou crise: Pererê vai para um lugar estranho/ Alienígenas discutem
entre si;
4) Intervenção na crise: Pererê tira proveito de sua aclamação como mestre do
povo alienígena;
5) ovo equilíbrio: Retorno de Pererê a Mata do Fundão.
Como em outras histórias que analisaremos aqui, “Viagem para Marte” trata das
diferenças presentes entre tradição e modernidade, representadas aqui através da forma
como a cidade-modelo Brasília é apresentada, em contraste com outro estilo de vida o
rural, experimentado pelos personagens na Mata do Fundão. Neste sentido, é possível
perceber que o estranhamento será elemento fundamental das HQs em Pererê; é a partir
233
Viagem para Marte. In: Pererê, outubro de 1960. passim.
Rede Temática 1 Elementos Figurativos para Rede 1 Elementos
Axiológicos para
Rede 1
/Pererê capturado
para planeta
alienígena/
/Pererê é alçado a
líder do povo
alienígena/
/- Estamos chegando a Marte!/; /- Ué... tenho a impressão que
estive em Marte./; /- Senhor presidente geral do planeta
Marte, eis o homem da Terra, nosso prisioneiro!/;
/- Seus imbecis!!! Vocês não podem prender um ser superior!/;
/- Eu aqui vou chegar a chefe de gabinete./; /- Perdão, mestre!
Se soubéssemos que a Terra era habitada por seres tão
superiores, jamais ousaríamos.../; /- O pessoal aqui não tem
nenhum preconceito de côr
233
./;
/Estranhamento/
/Semelhança/
113
da constatação de que algo foge ao andamento corriqueiro da vida dos personagens da
Mata do Fundão que boa parte dos enredos irá se desenvolver.
A semelhança percebida pelo protagonista não avança ao ponto de convencê-lo a
permanecer em Marte, mesmo não havendo “preconceito de cor”. Temos então um
valor que será bastante presente na relação que Pererê estabelece junto à modernidade e
à presença estrangeira: sua relevância é reconhecida, mas sob o signo do estranhamento
e da forte identificação das diferenças e especificidades dos elementos locais e externos.
Campo e cidade são diferentes, mas um não deve substituir integralmente o outro
ainda que a preferência da Turma do Pererê pese obviamente sobre o primeiro.
4.5. Rio de Janeiro, três impressões
Nesta mesma edição de outubro de 1960, foi publicada “Sacintopeia”,
interessante HQ que retrata os contrastes entre campo e cidade. Desta vez tem como
pano de fundo a cidade do Rio de Janeiro, que recebe Pererê à procura de algumas
lembranças para seus companheiros de Mata do Fundão. Sem esconder seu
encantamento pelas belezas naturais da ex-capital da República, o personagem prepara-
se para pegar um lotação
234
quando, em virtude da direção imprudente e veloz do
motorista, é arremessado sobre a calçada. As pessoas próximas ao local ficam
espantadas ao se depararem com nosso protagonista e perceberem que ele tem apenas
uma perna. Creditando tal fato ao acidente, levam-no rapidamente ao hospital, e inicia-
se uma grande confusão envolvendo um surpreso Pererê.
234
Transporte urbano muito comum a partir dos anos 1950, o lotação insere-se em um imaginário de
modernização onde os automóveis e os meios de transporte rodoviários ganham força, em detrimento da
malha ferroviária. Cf: DUARTE, Ronaldo Goulart. Centralidade, acessibilidade e o processo de
reconfiguração do sistema de transporte na metrópole carioca dos anos de 1960. Revista Território, Rio
de Janeiro, ano VII, n. 11, 12 e 13:91-106, set./out. 2003. p. 95, 97-98. Disponível em:
http://www.laget.igeo.ufrj.br/territorio/pdf/N_11_12_13/centralidade.pdf (acesso em 16 de maio de
2010).
114
Figura 53: “acidente” de Pererê no Rio de Janeiro
235
.
“Dez minutos depois”, inicia-se intensa cobertura midiática sobre o ocorrido,
com imprensa, televisão e políticos atuando em conjunto e explorando o caso de forma
exagerada e por vezes forçada. No fim, toda esta sensibilidade coletiva resulta em
doações de inúmeras pernas mecânicas (esquerdas e direitas), e Pererê retorna com elas
em fila para casa, justificando assim o título da HQ:
235
Pererê, outubro de 1960. p. 20.
115
Figura 54: O Sacintopeia
236
.
Sequência 1:
1) Situação inicial: Pererê viaja para o Rio de Janeiro;
2) Perturbação da situação inicial: Pererê é derrubado por motorista de lotação;
3) Desequilíbrio ou crise: Populares pensam que ele perdeu sua perna
4) Intervenção na crise: Pererê é internado em hospital e levado a programa de
auditório, onde ganha pares de pernas mecânicas;
5) ovo equilíbrio: Chegada de Pererê e suas pernas na Mata do Fundão.
Como um prenúncio do que seria definido por Debord como a “sociedade do
espetáculo
237
”, “Sacintopeia” retrata noções como a proliferação das mídias e suas
consequências mais nocivas, como o sensacionalismo no trato dos acontecimentos e a
banalização da comoção popular, por exemplo:
236
Pererê, outubro de 1960. p. 27.
237
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo: comentários sobre a sociedade do espetáculo. Rio de
Janeiro: Contraponto, 1997.
116
Em novembro de 1961, será a vez de Compadre Tonico, Seu Neném e Galileu
conhecerem os mistérios da “cidade maravilhosa” em “O banho de mar”, HQ de sete
páginas baseada no motivo da perseguição da dupla de fazendeiros à onça
239
. O
primeiro quadro nos mostra, porém, um Galileu despreocupado, afinal Compadre
Tonico e Seu Neném foram passar uns dias de descanso em Copacabana. As primeiras
três páginas destacam as diferenças entre os modos de vida do campo e da cidade: o
funcionário do hotel onde estão hospedados estranha o pedido para serem acordados às
quatro e meia da manhã, horário considerado tarde para eles; o encantamento que eles
sentem ao verem o mar, no melhor estilo mineiro de ser (“Ê...marzão bêsta!!!”); o jantar
servido exageradamente cedo; e, por último, a dúvida quanto ao uso de protetor solar,
que servirá como estratégia para a (não) captura de Galileu:
238
Sacintopeia. In: Pererê, outubro de 1960. passim.
239
Pererê, novembro de 1960. p. 16-22.
Rede Temática 1 Elementos Figurativos para Rede 1 Elementos
Axiológicos para
Rede 1
/Pererê é tratado como
acidentado em sua ida
ao Rio de Janeiro/
/- O lotação arrancou-lhe uma perna!/; /Presença de
vereador, jornalistas e de equipe de TV para cobrir o caso;
/Saci olha atônito para uma câmera de TV/ (p. 23); /- “Sr.
Saci... sua vida está aqui!/; /- As geladeiras “Friex” têm o
prazer de apresentar: “Sua vida está aqui, o programa mais
triste da TV!”; /- Graças à corajosa e oportuna campanha de
Juca Vangrano, o povo, num gesto magnânimo e sob os
auspícios das geladeiras “Friex” irá oferecer ao Sr
Saci...16.685 pernas mecânicas
238
!/
/Exploração
midiática/
117
Figura 55: Compadre Tonico e Seu Neném na praia de Copacabana
240
.
A dupla decide então convidar Galileu para acompanhá-los no Rio de Janeiro.
Ele prontamente aceita e parte para a cidade que também lhe traz sensações próximas
àquelas manifestadas por Compadre Tonico e Seu Neném: a vista do Pão de Açúcar lhe
chama atenção; estranha ir a praia tão tarde, apesar não ser “nem meio-dia”; e as ondas
quase o afogam também. É pintado um Rio de Janeiro voltado para o mar, faceta que,
240
Pererê, novembro de 1961. p. 18.
118
segundo Joaquim Ferreira dos Santos, veio a imprimir-se como forte característica da
cidade a partir de fins dos anos 1950
241
.
Após ambos terem sentido o ritmo próprio da cidade, desenha-se o seguinte
quadro: fora do contexto da Mata do Fundão, apenas vencerá a disputa aquele que
dominar em proveito próprio o que a cidade tem para lhes oferecer. A dupla de
fazendeiros acredita que tem Galileu em suas mãos ao convidá-lo para um banho de sol,
sob o pretexto de cozinhá-lo com o protetor solar. O que a dupla obviamente não
entendeu desde o início da HQ é que o óleo serve para bronzear e não para cozinhar”
quem dele se utiliza; consequentemente, enquanto Galileu ganha um bronzeado que lhe
estimulará a propagandear pela praia o uso do óleo “dapelle”, Compadre Tonico e Seu
Neném sofrem insolação
e acabam ficando três
meses de cama
fracassando mais uma
vez na tentativa de pegar
a onça:
Figura 56: página final de
“O banho de mar
242
”.
241
SANTOS, Joaquim Ferreira dos. Feliz 1958: o ano que não devia terminar. edição. Rio de Janeiro:
Record, 2006. p. 35.
119
Sequência 1:
1) Situação inicial: Galileu na Mata do Fundão;
2) Perturbação da situação inicial: Galileu é convidado por Compadre Tonico e
Seu Neném a conhecer o Rio ;
3) Desequilíbrio ou crise: Banho de sol na praia, onde a dupla de fazendeiros acaba
se queimando demais no Sol.
4) Intervenção na crise: Galileu chama por socorro e eles são levados para o
hospital;
5) ovo equilíbrio: Galileu faz propaganda do protetor solar que usou para se
proteger do Sol.
Para fins deste capítulo, restringimos a leitura isotópica de O Banho de Mar à
relação dos personagens com o Rio de Janeiro:
242
Pererê, novembro de 1961. p. 22.
243
O banho de mar. In: Pererê, novembro de 1961. passim.
Rede Temática 1 Elementos Figurativos para Rede 1 Elementos Axiológicos
para Rede 1
/Compadre Tonico,
Seu Neném e
Galileu no Rio de
Janeiro /
/Admiração diante das belezas naturais da cidade/;
/Compadre Tonico e Seu Neném pedem para serem acordados
às 04:30 da manhã para irem à praia e acham tarde;
/Bronzeador é confundido como óleo para queimar a pele;
/- Mas Compadre, o sol do meio-dia não vai me pegar na
praia... nesta hora estou até jantando!/; /A dupla de
fazendeiros e Galileu quase se afogam/; /Compadre Tonico e
Seu Neném não se protegem do Sol e acabam internados em
hospital/; /- Vocês não estão acostumados com o sol
carioca
243
/;
/Estranhamento do
campo sobre a cidade/
120
Por fim, em fevereiro de 1963, a partida de um personagem da Turma do Pererê
para o Rio de Janeiro é novamente explorada, o que demonstra a abrangência deste tema
e sua importância para a caracterização da revista. Desta vez Tininim será o escolhido:
em “Tininim no Rio
244
”, incentivado por Pererê o jovem índio decide aceitar o convite
de dois adultos para ir ao Rio de Janeiro, pois será sua chance, de acordo com o Saci, de
“(...) ficar conhecendo o Rio de Janeiro, o mar, o bonde, uma porção de coisa
245
”.
Chegando à cidade grande, Tininim é recepcionado em meio a sussurros de entusiasmo
pela mãe de um dos homens de nome Fabiozinho Rebouças Duprat Jr. –, sob os
cuidados de quem Tininim permanecerá ao longo da HQ. Madame Duprat decide lançar
mão da excepcionalidade de ter um “selvagem” trazido da “selva” em sua casa para
“ganhar o prêmio de fantasia do baile infantil do Coventry!
246
”.
Para isso não basta Tininim ser ele mesmo, e é aqui que se inicia a trajetória de
nosso personagem às lojas da cidade em busca de plumas americanas, de “imitação
perfeita das araras do Amazonas” –, tintas, colares que imitam dentes de jaguar e arco e
flecha de fabricação europeia, por exemplo. A artificialidade dos preparativos é
ressaltada a todo momento na HQ, e o silêncio de Tininim, que apenas se expressa sob
pensamento e procura apenas entender o que acontece e se divertir tomando sorvete, em
contraste com o falatório expressivo de Mme. Duprat, explicita o conflito em torno do
que é autenticamente brasileiro ou não.
É chegada a hora do concurso, e Tininim sai como grande vencedor e, quando
pela primeira convidado a manifestar o que sente sobre toda a situação, explicita a
contradição presente no comportamento da burguesia carioca retratada por Ziraldo:
244
Pererê, fevereiro de 1963. p. 17-22.
245
Pererê, fevereiro de 1964. p. 17.
246
Pererê, fevereiro de 1964. p. 17. Possivelmente uma referência ao Country Club, localizado no bairro
do Leblon, Zona Sul do Rio de Janeiro. O Country Club funcionava como elemento de distinção social a
ser cobiçado por quem quer “ser elegante”, de acordo com coluna de José Álvaro n’O Diário de otícias.
Cf: SANTOS, Joaquim Ferreira dos. Op. cit.. p. 83.
121
Figura 57: página final de “Tininim no Rio
247
”.
A cidade grande é retratada em “Tininim no Rio” a partir de um olhar
direcionado para aquilo que poderíamos discernir como o high society carioca, cujo
modo de vida burguês e pautado pelo elogio do american way of life ganhara força por
intermédio de revistas ilustradas como Careta e O Cruzeiro e da crescente influência de
colunistas sociais como Ibrahim Sued e Jacinto de Thormes a ditar valores e padrões de
247
Pererê, fevereiro de 1964. p. 22.
122
beleza e consumo
248
. A maneira de se expressar popularizada pelo primeiro, marcada
por americanismos e gírias por ele inventadas, parece ter sido mesmo satirizada nesta
HQ, conforme indicam os exemplos abaixo:
Figura 58 (ao
lado) e 59
(abaixo): figuras
do high society
carioca e
Tininim
249
.
É importante mencionar também que a capa apresenta coerência temática com a
HQ, comunicando sobre o Carnaval que ocorria naquele mês:
248
MAUAD, Ana Maria. Janelas que se abrem para o mundo: fotografia de imprensa e distinção social no
Rio de Janeiro, na primeira metade do século XX. Estudios interdisciplinarios de America Latina y el
Caribe, Tel Aviv, v. 10, n. 2, s/p., 1998-1999. Disponível em:
http://www1.tau.ac.il/eial/index.php?option=com_content&task=view&id=588&Itemid=233
(acesso em
15 março 2010). SANTOS, Joaquim Ferreira dos. Op. cit.. p. 81-89.
249
Pererê, fevereiro de 1963. p. 17 e 18.
123
Figura 60: Capa da edição de fevereiro de 1963.
Sequência 1:
1) Situação inicial: Pererê e Tininim na Mata do Fundão (em elipse);
2) Perturbação da situação inicial: Tininim é convidado por família rica a
conhecer o Rio de Janeiro;
3) Desequilíbrio ou crise: Tininim é levado para várias lojas afim de concorrer a
prêmio em um baile como “Bravo Guerreiro do Tocantins”;
4) Intervenção na crise: Resposta final em inglês de Tininim;
5) ovo equilíbrio: (Não há/em aberto).
124
4.6. Considerações finais
Em todas as HQs analisadas neste capítulo, encontrarmos presente o
estranhamento daquele que vive no campo diante da arquitetura peculiar, dos excessos
midiáticos e do ritmo incessante que estaria presente no cotidiano das grandes cidades,
por exemplo. Podemos nelas constatar clara diferenciação entre as vidas urbana e rural –
e a explícita valorização desta última.
Seguindo artigo de Velloso
251
, a partir da breve apresentação destas histórias em
quadrinhos e da caracterização geral que Pererê procura traçar para o campo e a cidade
torna-se possível traçar paralelo com a visão que os intelectuais da Academia Brasileira
250
Tininim no Rio. In: Pere, fevereiro de 1963. passim.
251
VELLOSO, Mônica P. A dupla face de Jano: romantismo e populismo. IN: GOMES, Ângela de
Castro (Org.). O Brasil de JK. Rio de Janeiro: EdFGV/CPDOC, 1991.
Rede Temática 1 Elementos Figurativos para Rede 1 Elementos Axiológicos
para Rede 1
/Tininim é levado para
o Rio de Janeiro por
membros do “High
Society” carioca para
concorrer a prêmio de
melhor fantasia/
/- Claro que você deve ir, Tininim. Tem nada a perder.
Vai ficar conhecendo o Rio de Janeiro, o mar, o bonde,
uma porção de coisas/; /- É o Fabiozinho Rebouças
Duprat Jr. Chegando de sua viagem ao Amazonas;
/- Vamos vestir nosso indiozinho com linda fantasia./;
/- Eu tôu adorando é êste tapete... mais macio do que a
grama lá da mata./; /Compra de plumas americanas,
“imitação perfeita das araras do Amazonas/; /Outros
artigos importados são comprados; /- A maravilhosa
fantasia premiada se intitula... Bravo guerreiro do rio
Tocantins!/; /- Pois até a criança que conduz a fantasia é
um autêntico selvagem brasileiro das selvas do longínquo
Amazonas
250
/;
/Elite urbana voltada para
a cultura estrangeira/
125
de Letras apresentavam acerca do folclore como chave para compreensão do país. A
autora reconhece que uma das tendências do pensamento social brasileiro na época
encontra-se na “vertente étnico-cultural” ao defenderem a integração do negro e do
índio
252
. Com isso, os estudos sobre o folclore permitiriam entrar em contato com aquilo
que seria a mais autêntica definição de nossa brasilidade
253
. Ainda segundo a autora:
“Já são conhecidas as vinculações do discurso folclórico com o
pensamento romântico, devido à identificação que fazem entre o
nacional e o popular. Dentre as várias retomadas românticas uma
particularmente que chama a atenção: a distinção entre o popular-rural,
visto como positivo, e o popular-urbano, visto como negativo. Entre os
intelectuais da ABL essa polarização é clara. A área rural, o interior do
país, aparece como o espaço ideal para se desenvolver as pesquisas.
estariam as nossas tradições mais puras, nossas relações mais estreitas
com o passado. Já nas cidades observa-se justamente o contrário: a
dispersão das energias nacionais, o abandono do passado
254
”.
252
VELLOSO, Mônica. Op. cit.. p. 135.
253
Ibid.
254
Ibid.. p.136-137.
126
CAPÍTULO 5
ATAL TROPICAL: PAPAI OEL FORA DE LUGAR
Papai oel às avessas
A Afonso Arinos (sobrinho)
Papai Noel entrou pela porta dos fundos
(no Brasil as chaminés não são praticáveis),
entrou cauteloso que nem marido depois da farra.
Tateando na escuridão torceu o comutador
e a eletricidade bateu nas coisas resignadas.
Papai Noel explorou a cozinha com olhos espertos,
achou um queijo e comeu.
Depois tirou do bolso um cigarro que não quis acender,
teve medo talvez de pegar fogo nas barbas postiças
(no Brasil os Papai-Noéis são todos de cara raspada)
e avançou pelo corredor branco de luar.
Aquele quarto é o das crianças.
Papai entrou compenetrado.
Os meninos dormiam sonhando outros natais muito mais lindos
mas os sapatos deles estavam cheinhos de brinquedos
soldados mulheres elefantes navios
e um presidente de república de celulóide.
Papai Noel agachou-se e recolheu aquilo tudo
no interminável lenço vermelho de alcobaça.
Fez a trouxa e deu o nó, mas apertou tanto
que lá dentro mulheres elefantes soldados presidente brigavam por causa do
[aperto.
Os pequenos continuavam dormindo.
Longe um gato comunicou o nascimento de Cristo.
Papai Noel voltou de manso para a cozinha,
apagou a luz, saiu pela porta dos fundos.
Na horta, o luar de Natal abençoava os legumes
255
.
5.1 Introdução: o atal em xeque
255
Drummond, Carlos Drummond de. Poesia e prosa em um volume. 5ª ed. Rio de Janeiro: Editora Nova
Aguilar, 1979. p. 88.
127
O poema de Drummond, lançado originalmente em seu livro de 1930 intitulado
“Alguma Poesia”, marcava, ao lado de poemas hoje bastante conhecidos, como o
“Poema de sete faces” e “No meio do caminho” a estreia do autor mineiro no mundo da
literatura brasileira. Nele o autor mostrava sua filiação ao movimento modernista: em
“Papai Noel às avessas” algumas características que poderíamos associar ao movimento
artístico de 1922 encontram-se presentes, como o humor presente na inversão da relação
entre os presentes e Papai Noel que, ao invés de entregá-los às crianças recolhe os que
elas têm, além de problematizar um fator estrangeiro quando inserido na realidade
brasileira, entre outros aspectos.
Passados trinta anos da primeira edição de “Papai Noel às avessas” e também
de “O que fizeram do Natal”, presente no mesmo livro
256
, seria a vez de outro mineiro
expor sua visão de mundo sobre a comemoração de final de ano. Ziraldo dedicará todas
as quatro edições de dezembro (1960, 1961, 1962 e 1963) a trabalhar sobre o imaginário
ligado à figura natalina e como se a presença do estrangeiro Papai Noel na brasileira
Mata do Fundão.
5.2 atal e a ganância
Publicada em dezembro de 1960, “Uma história de Natal”
257
retrata a
preocupação de Pererê e seus amigos em obterem pares de calçados para que Papai Noel
possa colocar neles seus presentes, uma vez que os personagens não estariam com eles
familiarizados na Mata do Fundão. O estranhamento quanto a isso é levantado seguidas
vezes por personagens diferentes:
256
“Natal. O sino toca fino./ Não tem neves, não tem gelos./ (...) As beatas ajoelharam/ e adoraram o deus
nuzinho/ mas as filhas das beatas/ e os namorados das filhas,/ mas as filhas das beatas/ foram dançar
black-bottom/ nos clubes sem presépio”. ANDRADE, Carlos Drummond. Op. cit., p. 79.
257
Pererê, dezembro de 1960. p. 14-20.
128
Figura 61, 62 (acima, esquerda
e direita respectivamente) e 63:
dificuldade da Turma do Pererê
em lidar com os sapatos na época
de Natal
258
.
O enredo desta HQ se desenrola a partir de Geraldinho que, auxiliado por Pererê
e Galileu, procura um par de sapatos para o Natal. Porém, a turma não dera ouvidos à
dúvida de General Nogueira sobre as cartas com pedidos de presentes que deveriam
enviar para Papai Noel: quando questionado sobre isso, Pererê respondeu que ele
simplesmente adivinharia o que cada um gostaria de receber como presente. O fato é
que na manhã do dia 25 todos se encontram cabisbaixos, pois receberam apenas pares
de meias para os seus sapatos Pererê chega ao cúmulo de receber o direito como
presente. Esta é a oportunidade para General Nogueira passar uma lição final, que
encerra “Uma história de Natal”. Pererê e seus amigos dedicam-se a escrever cartas para
258
Pererê, dezembro de 1960. p. 14, 16 e 17.
129
Papai Noel apenas depois de alertados pelo General que lhes aconselha que enviem logo
seus pedidos de Natal, ou então ficaria sem presente algum:
Figura 64: Sequência final de “Uma história de Natal
259
”.
Compreendemos a narrativa a partir da sequência abaixo:
Sequência 1:
1) Situação inicial: Personagens procuram conseguir sapatos para que possam
receber presentes de Natal
259
Pererê, dezembro de 1960. p. 20.
130
2) Perturbação da situação inicial: Alguns personagens encontram dificuldades
para conseguir calçados;
3) Desequilíbrio ou crise: Pererê e seus amigos recebem apenas pares de meias
como presentes;
4) Intervenção na crise: Justificativa do General Nogueira;
5) ovo equilíbrio: A Turma do Pererê escreve cartas solicitando novos presentes.
Identificamos também duas redes temáticas ligadas ao tema Natal:
260
Uma história de Natal. In: Pererê, dezembro de 1960. passim.
Rede Temática 1 Elementos Figurativos para Rede 1 Elementos Axiológicos
para Rede 1
/Uso de sapatos para
receber presentes de
Natal /
/- Sapato serve para se botar no pé?/; /- Pra que mais
podem servir os sapatos? - Para o Papai Noel botar
presentes, ué./; /- É, acho que vou ganhar mais presentes
do que todo mundo/; /- E tem mais uma vantagem, Allan.
Com êstes seus sapatos você vai ganhar o maior presente
de todos/
/Artificialidade da
comemoração natalina/;
/- Aqui na floresta se
usa sapato no Natal”/
Rede Temática 2 Elementos Figurativos para Rede 2 Elementos Axiológicos
para Rede 2
/Turma não escreve
para Papai Noel/
/ - Vocês já escreveram suas cartinhas para o Papai Noel?/;
/ - Como é? escreveram? Não, General, não é preciso.
O Papai Noel adivinha!/; / - Incapazes de escrever uma
linha!/; / - Êle [Papai Noel] manda dizer que o recebeu
carta de ninguém, por isso deixou o que lhe pareceu
melhor/; / - E disse mais: se vocês escreverem para êle,
rápido, até o dia 31...êle vai mandar os presentes que vocês
pedirem na Noite de Reis...portanto, mãos à obra!
260
/
Condenação da
ganância/; /- São uns
preguiçosos/
131
5.3. Salvando o atal
“Outra história de Natal”, cujo título estabelece claro nexo de continuidade com
a história precedente, inicia uma série de HQs dedicadas a apresentar um Papai Noel
atrapalhado em seu ofício e por vezes pouco conhecedor de algumas características da
brasileira Mata do Fundão. Nesta história Papai Noel, expressando-se em português
carregado de sotaque inglês, surge após acertar Tininim com presentes enquanto
procurava seu gorro perdido, exigência estabelecida em seu contrato para exercer seu
ofício de fim de ano. A solução vem através da ajuda do “jovem colouredsegundo
Papai Noel Pererê, que empresta seu gorro ao bom velhinho, adornando-o com o
pompom do rabo de Geraldinho.
Em “Outra história de Natal”, ao contrário daquela que lhe serviu de inspiração
para o título, temos um final sem maiores mensagens de cunho moral; ela preferiu antes
nos apresentar algumas características pouco conhecidas da figura natalina: além dele
“saber falar português”, para espanto de Tininim, ficamos sabendo um pouco como
Papai Noel consegue aguentar o calor dos trópicos e como consegue locomover-se a
tempo de entregar todos os presentes:
Figura 65: Estratégia de Papai Noel para aguentar o calor brasileiro
261
.
261
Pererê, dezembro de 1960. p. 24.
132
Figura 66: Estratégia de Papai Noel para conseguir entregar os presentes a tempo
262
.
Em uma sintaxe narrativa teremos a seguinte disposição:
Sequência 1:
1) Situação inicial: Tininim dorme enquanto aguarda chegada de Papai Noel;
2) Perturbação da situação inicial: Tininim é acordado com resmungos e presente
jogado acidentalmente por Papai Noel;
3) Desequilíbrio ou crise: Papai Noel perde seu gorro;
4) Intervenção na crise: Pererê e Geraldinho emprestam peças características suas
para recompor o gorro perdido;
5) ovo equilíbrio: Papai Noel encontra-se apto para começar sua tarefa anual.
262
Pererê, dezembro de 1960. p. 27.
133
O novo equilíbrio, se a princípio parece uma solução conciliatória, pode mesmo
ser melhor levado em conta se lembrarmos como se caracterizavam as edições de
Pererê. Por serem publicações mensais, voltadas ao público infanto-juvenil e
apresentarem certa preocupação com a formação das crianças, as revistas procuravam
representar HQs que se relacionavam a datas e acontecimentos significativos de cada
mês: Natal, Carnaval, fim das férias, Páscoa, dia das mães, Independência do Brasil,
foram alguns dos temas abordados diretamente pela revista ao longo de seus quarenta e
três números, como já abordamos em outros momentos desta dissertação.
Através de uma leitura isotópica de “Outra história de Natal”, podemos destacar
outra perspectiva possível sobre esta HQ:
Além do claro estranhamento sentido por Papai Noel quando se encontra na
Mata do Fundão, vale destacar a integração do Brasil ao ritual natalino, e que podemos
representar figurativamente através do pompom do rabo do coelho Geraldinho que
ganharia traços cada vez mais nacionalistas, segundo palavras do autor citadas adiante
em HQ sobre a Páscoa – e do barrete de Saci. Se acrescentarmos a este último a análise
de Câmara Cascudo sobre o barrete utilizado pelo folclórico personagem brasileiro,
podemos tomar a contribuição dos personagens sobre o vestuário de Papai Noel como
263
Outra história de Natal. In: Pererê, dezembro de 1960. passim.
Rede Temática 1 Elementos Figurativos para Rede 1 Elementos Axiológicos
para Rede 1
/Papai Noel precisa
de ajuda para
cumprir sua tarefa
de Natal /
/ - Papai Noel estarrr muito nervoso/; / - Papai Noel perderrr
seu gorro/; / - Pelo meu contrato, Papai Noel terrr que
trabalharr de uniforme completo/; / - Papai Noel não terrr
barriga grande... terr dois aparelhos de ar refrigerado!/;
/ Pererê empresta seu gorro e Geraldinho o pompom de seu
rabo ao Papai Noel (p. 25; p. 27); / - Obrigado, rapazes!
Agradeço em nome de tôdas as crianças do Brasil
263
!/
/Artificialidade da
figura de Papai Noel/
/Integração da Mata do
Fundão junto ao ritual
natalino/
134
uma verdadeira conversão deste herói estrangeiro para a realidade brasileira. De acordo
com o folclorista, o barrete é uma contribuição do europeu
264
e:
significaria que o pretinho é livre para importunar a paciência alheia e
[é] ligado à ideia do encantamento, da força misteriosa dos talismãs.
Converge ainda a cor vermelha, sugestionadora e com séculos de
significação sagrada
265
.
Em história que não apresenta título
266
e também publicada na edição temática
de dezembro de 1960, Pererê e sua turma passam o Natal na casa de Compadre Tonico
após saírem da Missa de Reis. Ao entrarem, surpreendem-se logo com uma palmeira
substituindo a tradicional árvore de Natal. Apesar do comentário da Boneca de Piche
exaltando a sofisticação de Compadre Tonico pela escolha adequada da palmeira como
sua árvore de Natal, o General retruca dizendo que “Sofisticado nada. Influenciado
pelos hábitos de outros países. Só quero ver como vai ser a ceia”:
264
E que Ziraldo manifestara conhecer ao escrever a biografia do personagem, publicada em outubro
de 1962 e analisada no primeiro capítulo.
265
CASCUDO, Luis da Câmara. O barrete do Saci. In: Superstição no Brasil. Belo Horizonte/São Paulo:
Itatitiaia/EdUSP, 1985. p. 40-41.
266
um anúncio logo no início da HQ que apresenta estilização próxima àquelas geralmente utilizadas
em tulos: “Chegou o Natal! Aproveite a nossa grande venda de verão! Casa Neném Anselmo”. Mesmo
que não possamos afirmar ser este o título da história, esta abertura anunciando vendas no Natal
prenuncia o que encontraremos nesta HQ.
135
Figura 67: Compadre Tonico e Seu Neném recebem a Turma do Pererê para a ceia de
Natal
267
.
267
Pererê, dezembro de 1960. p. 31.
136
Passada a troca de presentes entre os personagens, eles se veem diante da tão
aguardada ceia, que termina por surpreender a todos, inclusive o cético General
Nogueira, pois foi preparada para ser “uma ceia para o verão”: “não tem amêndoas, nem
nozes, nem avelãs e nem qualquer prato quente”. Em resumo, “uma ceia brasileira de
Natal”:
Figura 68: Ceia de Natal brasileira de acordo com Pererê
268
.
268
Pererê, dezembro de 1960. p. 32.
137
A história se encerra com todos satisfeitos diante deste Natal único até mesmo
o General que, possivelmente traumatizado por ceias passadas, carregava consigo
bicarbonato de sódio para entregar a todos como presente. No final Compadre Tonico e
General Nogueira encontram-se fora da casa, jogam fora as caixas com bicarbonato e
entram em acordo sobre como se deve comemorar o Natal no Brasil – com direito a uma
cachacinha:
Figura 69: Conversa entre Compadre Tonico e General Nogueira sobre o Natal
269
.
269
Pererê, dezembro de 1960. p. 34.
138
Sequência 1:
1) Situação inicial: Tininim e Pererê e amigos (alguns em elipse) preparam-se para
o Natal na casa de Compadre Tonico;
2) Perturbação da situação inicial: General Nogueira prepara seus presentes “para
abrir depois da ceia”;
3) Desequilíbrio ou crise: General Nogueira foge desconcertado após surpreender
com a ceia montada pelo Compadre Tonico;
4) Intervenção na crise: Conversa entre Compadre Tonico e General Nogueira;
5) ovo equilíbrio: Dupla chega a um consenso sobre o Natal no Brasil.
270
Sem título. In: Pererê, dezembro de 1960. passim.
Rede Temática 1 Elementos Figurativos para Rede 1 Elementos Axiológicos
para Rede 1
/Expectativa pela
ceia de Natal
montada por
Compadre
Tonico/
/- Olha que árvore de Natal linda! O Compadre está ficando
tão sofisticado/; /- Parabéns, Compadre. Isto é que é uma ceia
brasileira de Natal!/; /- Uma ceia para o verão... posso comer
até cansar!/; /- Não tem amêndoas, nem nozes, nem avelãs e
nem qualquer prato quente/;
/Valorização da cultura
local/
Rede Temática 2 Elementos Figurativos para Rede 2 Elementos Axiológicos
para Rede 2
/General
Nogueira e o
Natal no Brasil/
/- É, tem mania de presentes práticos, nunca vi!/
/- Puxa, que calor! Creio que escolhi o presente mais
indicado. sei o que vai ser esta ceia na casa do Compadre
Tonico/; /- Sofisticado nada. Influenciado pelos hábitos de
outros países. quero ver como vai ser esta ceia/; /- Deixe
ver, General, os presentes dos meninos...eu sabia...caixinhas
de bicarbonato!/; /- Em compensação, fora, também não
tem neve!/; - Mas sem neve e sem pinheiro europeu! O Brasil
é o país do Sol!/; /- Está vendo, General... Nós pensamos da
mesma maneira, só que o senhor não confia em mim
270
/
/Desconfiança pré-
fabricada/
139
A edição de dezembro de 1960, portanto, priorizou histórias com temas
natalinos sem poupá-las de ironias e contestações. Sob este viés, Pererê não se limitou a
veicular HQs de conteúdo oficialesco e legitimadores de grandes acontecimentos, como
supõe Pimentel
271
; pelo contrário, procurou apresentar visão de mundo própria que
apresenta sem dúvida certo nível de ligação com o imaginário reformista da época, mas
que se relaciona diretamente também com as suas necessidades próprias de
sobrevivência no tão concorrido mercado de quadrinhos do período.
Um ano depois, o Natal seria mais uma vez problematizado nos quadrinhos de
Pererê. Em “A chuva
272
”, novamente Papai Noel e seu inconfundível sotaque inglês não
parecem estar preparados para encarar um Natal “à brasileira” diante de uma forte
tempestade:
Figura 70: Chuva de verão pega Papai Noel de surpresa na Mata do Fundão
273
.
271
Op. cit.. 1989.
272
Pererê, dezembro de 1961. p. 3-16.
273
Pererê, dezembro de 1961. p. 4.
140
Além de dispor apenas de um inadequado kit para esqui e de quase entalar na
entrada de uma caverna que lhe serviria de abrigo contra a chuva, Papai Noel precisará
contar novamente com a ajuda de Pererê e Tininim, desta vez através de capa, guarda-
chuva e galochas por eles obtidas através da ajuda de Mamãe Docelina, Seu Nereu e
Compadre Tonico, respectivamente. Diante do novo visual, o índio Tininim defende
que “êste devia ser o uniforme do Papai Noel para trabalhar no Brasil”.
Ao ganhar as ruas escuras logo é confundido e, em seguida, preso como
“agitador”, denominação geralmente direcionada a pessoas que buscavam
transformações sociais mais significativas. A prisão equivocada de um ainda que um
tanto perdido símbolo infantil de Natal nos parece ser indicativa, por sua vez, das
tensões sociais durante os anos 1960.
Mais uma vez cabe aos moradores da Mata do Fundão através da pureza
infantil do jovem Geraldinho, de seis anos intercederem a favor do Natal e resgatá-lo.
Reconhecido entre outros presos, ele é liberado e volta sob chuva para continuar sua
tarefa. Porém, desta vez se vê atacado por uma forte gripe que o impossibilita de
realizar sua aguardada tarefa anual. Caberá a Pererê e seus amigos a missão de entregar
todos os presentes e salvar o Natal:
141
Figura 71: Turma do Pererê substitui Papai Noel e entrega os presentes de Natal
274
.
“Missão cumprida”, afirmam em uníssono ao terminarem a distribuição dos
presentes. Cansados após o trabalho noturno, caem no sono, prontos para agora
receberem eles a aguardada recompensa de Natal do Papai Noel que, por fim, parece
não lhes agradar muito:
274
Pererê, dezembro de 1961. p. 15.
142
Figura 72: “Presentes” de Papai Noel para a Turma do Pererê após a forte chuva
275
.
Sequência 1:
1) Situação inicial: Pererê e Tininim conversam sobre a chuva e o Natal;
2) Perturbação da situação inicial: Papai Noel procura abrigo junto a Pererê e
Tininim;
3) Desequilíbrio ou crise: Papai Noel declara-se despreparado para enfrentar a
chuva e entregar os presentes;
4) Intervenção na crise: Pererê consegue galochas, capa e guarda-chuva para Papai
Noel;
5) ovo equilíbrio: Papai Noel sai para começar suas atividades de Natal.
Sequência 2:
1) Situação inicial: Idem ao Novo Equilíbrio da Situação 1;
2) Perturbação da situação inicial: Papai Noel é abordado por um policial;
3) Desequilíbrio ou crise: Papai Noel é confundido como um “agitador” e é preso
4) Intervenção na crise: Pererê, Geraldinho e o restante da turma resgatam Papai
Noel;
5) ovo equilíbrio: A turma e Papai Noel correm para começar a entrega dos
presentes;
275
Pererê, dezembro de 1961. p. 16.
143
Sequência 3:
1) Situação inicial: Idem Novo Equilíbrio da Situação 2;
2) Perturbação da situação inicial: Papai Noel começa a espirrar sucessivamente;
3) Desequilíbrio ou crise: Papai Noel é atacado por forte gripe e não pode entregar
os presentes;
4) Intervenção na crise: A Turma do Pererê entrega os presentes no lugar de Papai
Noel;
5) ovo equilíbrio: “Missão Cumprida”, e os personagens recebem capas e guarda-
chuvas de presente.
276
A chuva. In: Pererê, dezembro de 1961. passim.
Rede Temática 1 Elementos Figurativos para Rede 1 Elementos Axiológicos
para Rede 1
/Papai Noel precisa
de ajuda da Turma
do Pererê para
entregar os
presentes de Natal/
/- Eu não saber como vai ser... não estar muito
preparado...Acho que esse material que eu ter não deve servir
muito para andar na chuva/; / - Saci, essa chuva não acaba
hoje. Precisamos fazer alguma coisa para ajudar o Papai Noel!/;
/Papai Noel recebe de Pererê roupas para enfrentar a chuva/;
/ - O Papai Noel foi prêso como agitador!/; / - Todos para a
delegacia da cidade! Vamos libertar o Papai Noel/; /- Vamos
levar o Papai Noel pra caverna antes que ele pegue uma
pneumonia!/; /- O jeito é a gente deixar o Papai Noel se
tratando aqui e ir distribuir os presentes./; /- Que jóia de
meninos! Serr uns heróis
276
!/
/Artificialidade da figura
de Papai Noel/;
/Integração da Mata do
Fundão junto ao ritual
natalino/
144
Na mesma edição de dezembro de 1961, temos “Geraldinho, o benfeitor
277
”. O
coelhinho vermelho, definido posteriormente por Ziraldo em prefácio comemorativo de
coletânea da Turma do Pererê como “extremamente nacionalista
278
”, mostra-se
indignado com Papai Noel e sua desatenção para com os pobres, uma vez que apenas os
ricos, representado pelos “filhos do doutor” e suas fantasias de caubóis e astronautas,
parecem se beneficiar do espírito natalino
279
. O coelho aceita então sugestão de Pererê e
passa a fingir-se de presente para Nozito, menino pobre que chega a ser por isso
questionado por seus colegas, surpresos após se depararem com seu inesperado
presente: “Você escreveu em inglês?
280
”. Apesar de Geraldinho fugir de Nozito após
este tender a extrapolar os limites da curiosidade infantil sobre o coelho ao pretender
abri-lo para saber o que haveria dentro dele o menino pobre ainda assim encerra a
história feliz à beira do rio.
Sequência 1:
1) Situação inicial: Geraldinho e Pererê conversam sobre as injustiças do Natal;
2) Perturbação da situação inicial: a dupla observa o menino pobre Nozito deixar
sua carta para Papai Noel em uma árvore;
3) Desequilíbrio ou crise: a dupla constata que o presente que ele pediu é muito
caro;
4) Intervenção na crise: Geraldinho resolve fingir-se de brinquedo para agradar
Nozito;
5) ovo equilíbrio: Nozito encontra seu presente e fica feliz.
Sequência 2:
1) Situação inicial: idem ao Novo Equilíbrio da Sequência 1;
2) Perturbação da situação inicial: Geraldinho é arrastado, torcido, apertado e
jogado contra garotos que brigam com Nozito;
3) Desequilíbrio ou crise: Nozito e seu amigo Pilôto decidem abrir o brinquedo
Geraldinho para verem como ele é feito;
4) Intervenção na crise: Geraldinho revela não ser um brinquedo;
5) ovo equilíbrio: Nozito e seu amigo brincam felizes apesar disso.
277
Pererê, dezembro de 1961. p. 26-34.
278
PINTO, Ziraldo Alves. Op. cit., 2002c. p. 6.
279
Pererê, dezembro de 1961. p. 31-32.
280
Ibid.. p. 30.
145
A leitura isotópica desta história revela a superação, através da alegria simples
da infância, das injustiças existentes na celebração do Natal:
281
Geraldinho, o benfeitor. In: Pererê, dezembro de 1961. passim.
Rede Temática 1 Elementos Figurativos para Rede 1 Elementos Axiológicos
para Rede 1
/Pererê e Geraldinho
constatam que
Nozito não ganhará
presentes de Natal e
resolvem ajudá-lo/
/- Você acha que êle [Nozito] vai ganhar o presente que
pediu? É claro que não!/; / Por que é que êle [Papai Noel]
presente bonito pra menino rico?/; /- O Nozito pediu um
presente caríssimo! Não disse?! O Papai Noel não vai
atender.../; /- Você não pode consertar o mundo, Geraldinho...
custa nada fazer, pelo menos, um menino feliz neste Natal./;
/- Você pode fingir de coelhinho de pelúcia e ser dado de
presente pro Nozito!/; /- Tudo pela felicidade de uma criança
pobre!/
/Injustiças do Natal/
Rede Temática 2 Elementos Figurativos para Rede 2 Elementos Axiológicos
para Rede 2
Relação de Nozito
com seu novo
presente/
/- Tôdas as crianças do mundo, ricas ou pobres, são
iguais...quer dizer: elas brincam com o presente na semana
do Natal. No Dia de Reis nem se lembram mais dele (...)
Felicidade de menino é assim, Geraldinho! Grande...e
pequenininha!; /Nozito aperta, arrasta e usa seu coelho para
se defender dos “filhos do doutor”/; /- Realmente, tôdas as
crianças são iguais... Principalmente no cuidado que têm seus
brinquedos!/; / Nozito decide abrir o coelho para saber como
ele é feito/; /- Puxa! Foi o presente mais bacana que já ganhei
na minha vida
281
!/
/Ludicidade infantil/
146
Passado um ano desde a revista de 1960, Pererê explicita as incoerências
presentes nas comemorações natalinas, marcando posicionamento crítico sobre elas. É
possível deduzir que a revista problematiza o Natal por ser uma data marcada por rituais
que seriam alheios à realidade brasileira, cujo personagem principal é um estrangeiro
conforme denota o seu sotaque inglês –, com pouca adaptação à realidade brasileira e
que se preocupa mais com os ricos do que com os pobres.
A HQ que abre a edição de dezembro de 1962 radicaliza a artificialidade da
condição de Papai Noel. “Ajuda teu Papai Noel
282
apresenta treze páginas com uma
série de situações embaraçosas experimentadas pelo “bom velhinho” na Mata do
Fundão, conforme a bela capa da revista nos adianta:
Figura 73: Capa da edição de dezembro de 1962.
É por estar preso em uma chaminé que o Papai Noel atrasou a entrega dos seus
presentes para a turma da Mata do Fundão – os primeiros a recebê-los todo ano,
conforme nos confidencia Pererê. Papai Noel explica a ele o que o motivou a aventurar-
se na chaminé, sempre com o seu já inconfundível sotaque:
282
Pererê, dezembro de 1962. p. 3-15.
147
Figura 74: Papai Noel é encontrado preso na chaminé
283
.
O fato é que Pererê e seus amigos mais uma vez terão de salvar não apenas o
Natal, mas também a produção de pão para a Mata do Fundão, prejudicada pela
inesperada presença de Papai Noel na chaminé da padaria: “as crianças brasileiras não
podem ficar sem brinquedos”, mas “ficar sem pão é pior do que ficar sem brinquedo”.
Pererê, em companhia de Galileu, empurra o personagem natalino chaminé abaixo,
283
Pererê, dezembro de 1962. p. 5.
148
conseguindo desobstruir a passagem e salvar o Natal de todos – até o Papai Noel
recusar-se a entregar os presentes devido à sujeira de fuligem em seu corpo:
Figura 75: Papai Noel enegrecido pela fuligem da chaminé
284
.
O problema resolve-se novamente com a intervenção de Pererê, em uma
presença apologética da “democracia racial” brasileira:
Figura 76: Pererê convence
Papai Noel de que não há
“preconceito de cor” no
Brasil
285
.
284
Pererê, dezembro de 1962. p. 12.
285
Pererê, dezembro de 1962. p. 13.
149
A turma precisa ainda, no fim das contas, preparar um banho especial para o
Papai Noel que, mesmo assim, literalmente entra pelo cano ao esvaziar a banheira e
assim termina a história, para espanto de todos.
A sintaxe narrativa de “Ajuda teu Papai Noel” descrita abaixo revela-se mais
extensa do que o padrão de outras HQs aqui analisadas, e se justifica pela completa
dependência que a conhecida figura natalina manifesta em relação à Turma do Pererê
quando se vê diante de sua tarefa anual em terras brasileiras:
Sequência 1:
1) Situação inicial: Pererê, Tininim e seus amigos aguardam chegada dos presentes
de Papai Noel;
2) Perturbação da situação inicial: atraso do Papai Noel;
3) Desequilíbrio ou crise: Papai Noel é encontrado preso em uma chaminé; o
padeiro não pode fazer pães;
4) Intervenção na crise: Pererê e Galileu resgatam Papai Noel;
5) ovo equilíbrio: Papai Noel é empurrado e desce pela chaminé.
Sequência 2:
1) Situação inicial: idem ao Novo Equilíbrio da Situação 1;
2) Perturbação da situação inicial: Papai Noel surge coberto de fuligem da
chaminé;
3) Desequilíbrio ou crise: Papai Noel recusa-se a entregar os presentes coberto de
fuligem;
4) Intervenção na crise: Pererê convence-o a entregar os presentes, alegando “que
no Brasil não há preconceito de cor”;
5) ovo equilíbrio: Papai Noel entrega os presentes e a turma é recompensada com
um café da manhã.
Sequência 3:
1) Situação inicial: Papai Noel é convidado para participar do café da manhã da
turma;
2) Perturbação da situação inicial: Papai Noel prefere tomar um banho antes;
150
3) Desequilíbrio ou crise: Papai Noel precisa de ajuda, pois “ele é muito gordo”;
4) Intervenção na crise: Pererê e amigos socorrem-no mais uma vez;
5) ovo equilíbrio: Papai Noel agradece a ajuda e pede para ficar a sós para se
trocar.
Sequência 4:
1) Situação inicial: A Turma do Pererê conversa satisfeita por ter salvado o Natal;
2) Perturbação da situação inicial: Padeiro os interrompe comunicando haver
outro problema;
3) Desequilíbrio ou crise: Papai Noel esvazia a banheira e literalmente desce pelo
cano.
4) Intervenção na crise: (Não há);
5) ovo equilíbrio: (Não há).
286
Ajuda teu Papai Noel. In: Pererê, dezembro de 1962. passim.
Rede Temática 1 Elementos Figurativos para Rede 1 Elementos Axiológicos
para Rede 1
/Papai Noel precisa
da ajuda da Turma
do Pererê para
entregar os presentes
de Natal/
/- Êi... Allan! Acorda, rapaz! Aconteceu alguma coisa com o
Papai Noel/; /Papai Noel é encontrado preso na chaminé/;
/- Quando eu servia no Europa era assim. Depois eu começar
a ficar velho, êles mandaron outro Papai Noel mais nova
pra lá/; /- As crianças brasileiras não podem ficar sem
brinquedos/; /- Ficar sem pão é pior do que ficar sem
brinquedo/; /- Papai Noel, aqui estamos para salvá-lo/;
/- Muito obrigado por ter me salvo, Saci...mas eu não poder
trabalhar assim. Todo pretas, todo cheio de fuligem/; /- Eu
provei para êle que no Brasil não há preconceito de côr... e êle
partiu para o trabalho rápido como uma bala!/; /- Turma
auxilia Papai Noel em seu banho
286
/;
/Artificialidade da
figura de Papai Noel/
/Integração da Mata do
Fundão junto ao ritual
natalino/
151
5.4. Considerações finais
A título de comparação, vale destacar outra importante data que seria contestada
nas páginas de Pererê. Em “Os ovos de Páscoa”, publicada em abril de 1961
287
, o Saci
recebe uma mensagem diretamente do “palácio do Itamarati” alertando que os coelhos
norte-americanos, encarregados da distribuição dos ovos de Páscoa, não poderão
exercer suas funções tradicionais na Páscoa que se aproxima. Cabe a um revoltado e
antiamericano Geraldinho a tarefa de evitar o fiasco das comemorações pascoais da
turma.
É muito contrariado e um pouco atrapalhado que Geraldinho parte para cumprir
a missão, ainda que comente resignadamente que “coelho brasileiro não tem nada a ver
com ovinhos”. O que é bastante curioso é que Geraldinho, coelho de cor vermelha, ao
entrar em contato com os ovos de chocolate sofre de súbita alergia que modifica sua cor
original para azul. No fim da história, depois de cumprida a tarefa, Geraldinho prefere,
ao invés de ovo de Páscoa, degustar um côco de Páscoa.
Apesar de o ritual de entrega dos ovos de Páscoa não ter sido rompido e
subvertido por inteiro, a mensagem do autor nos parece bastante clara, ao indicar a
origem estrangeira desta tradição e a sua incoerência com o Brasil e seu clima tropical, e
também ao mostrar o quanto o “extremamente nacionalista” Geraldinho está insatisfeito
diante da situação em que foi envolvido cumpre a missão apenas “em nome dos
amigos”. A imagem de Papai Noel foi lida sob o mesmo viés questionador que se
realiza a partir da convicção de sua inadequação diante do modo de vida brasileira,
ainda que a Turma do Pererê reconheça, aceite e, como muitas outras crianças, se
entusiasme com a possibilidade de receberem presentes de fim de ano. Papai Noel é
auxiliado por Pererê e seus amigos a partir de sua irreconciliável condição de
estrangeiro que não consegue entender a realidade na Mata do Fundão.
287
Pererê, abril de 1961. p. 20-26. Também disponível em PINTO, Ziraldo Alves. Op. cit., 2002c. p. 23-
29.
152
CAPÍTULO 6
TARZA, O FILHO (ADOTIVO) DA SELVA
Mas em torno de você entrou a subir a atoarda mecânica de trilos e
buzinas da cidade moderna, começou o cinema a passar, a pisca-piscar
o anúncio luminoso, o dio a esgoelar reencontros e gols. E a
meninada pouco a pouco se distraiu. Um foi ver os Esquadrões da
Madrugada. Outro o Império Submarino, um terceiro, com os
dentinhos em mudança, abriu a boca porque o Leônidas tinha
machucado o dedão do direito. E quando Tarzan passou, ali perto,
pelo porto de Santos, maior era o mundo de adultos que rodeavam a
sua ilustrada carochinha que o de crianças, ocupadas a dar tiro de
canhão com a boca, andar de quatro, roncar como avião, grunhir de
chimpanzé e imitar a marcha truncada e fantasmal do Homem de Aço.
Sinais dos tempos!
Lobato, trava-se uma luta entre Tarzan e a Emília. Mas isso de ter
fim
288
.
6.1. Introdução
Quando a carta aberta de Oswald de Andrade para Monteiro Lobato em
celebração de sua trajetória intelectual e de sua obra Urupês saiu no Estado de São
Paulo, Ziraldo era ainda um menino que dava seus primeiros passos rumo ao letramento
em sua cidade natal, Caratinga. Provavelmente foi mais um dos muitos leitores das
obras lobatianas voltadas para crianças e jovens, mas também vivenciou como ávido
leitor o boom das histórias em quadrinhos no Brasil, que já se fazia presente pelo menos
a partir dos primeiros anos do século XX com O Tico-Tico, mas que experimentava uma
difusão maior de personagens e histórias a partir da segunda metade dos anos 1930,
como abordamos nesta dissertação. Em resposta enviada para enquete sobre o que
seus jovens leitores gostariam de ser quando chegassem à idade adulta, publicada na
revista da EBAL chamada O Herói e datada da segunda metade dos anos 1940, Ziraldo
respondeu sem titubear: desenhista
289
.
288
ANDRADE, Oswald de. Carta a Monteiro Lobato. In: ________. Ponta de lança. São Paulo, SP:
Globo, 1991.
289
JUNIOR, Gonçalo. Op. cit.. p. 158.
153
Sua adoração pelos comics desde a mais tenra idade é reforçada em obra caráter
biográfica publicada nos anos 1990 sobre seus anos escolares em Caratinga. Para a
pesquisa vale destacar o entusiasmo com que Ziraldo retrata a relação que sua antiga
professora mantinha com os incompreendidos quadrinhos da época. Ao contrário de
outros educadores
290
, sua “professora maluquinha”, uma mulher jovem, alegre e atenta
às mudanças do mundo, mostrava-se simpática aos quadrinhos, ao ponto de incentivar a
leitura de revistas durante as suas aulas como parte do processo de ensino e
aprendizagem. E, ao lado de personagens como Príncipe Valente e Spirit, Tarzan
aparece na lista de leituras preferidas de nosso autor mineiro
291
.
A luta travada no campo do imagináro entre a autêntica Emília e o estrangeiro
Tarzan não é percebida pelo jovem Ziraldo e, possivelmente, por outras crianças do
período, fascinadas pelo universo de ambas as publicações, reconhecidas até os dias
atuais. Ziraldo acabará decerto retomando o embate proposto por Oswald de Andrade
em suas HQs centradas no famoso personagem de Hal Foster, mas a partir desta
convivência possível que percebemos em sua infância, sem negar-lhe suas contradições
e incoerências. Com isso, dialoga com uma perspectiva nacionalista ao instituir os
valores do Brasil como parâmetros analíticos sobre o elemento externo, ao mesmo
tempo em que se afasta de qualquer espécie de nacionalismo xenófobo ao perceber a
possibilidade da existência do estrangeiro em uma relação de respeito com os valores
brasileiros.
6.2. Tarzan em terras brasileiras
Para avançarmos na análise da dinâmica da revista acerca das relações entre
elementos considerados nativos e estrangeiros, dedicamos este capítulo às edições de
novembro, que sempre apresentavam enredos envolvendo Tarzan e sua relação com os
personagens e o ambiente da Mata do Fundão. Duas histórias lançadas no intervalo de
um ano ilustram bem estes pontos. A primeira foi publicada em novembro de 1960 e se
chama “‘Tarzan’, o filho (adotivo) da selva”; em novembro de 1961 temos a história “A
290
O Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP) dedicou dois números de sua revista para discutir
eventuais impactos negativos dos quadrinhos sobre a formação dos jovens. Cf. JUNIOR, Gonçalo. Op.
cit..
291
PINTO, Ziraldo Alves. Uma professora muito maluquinha. São Paulo, SP: Melhoramentos, 199_.
154
Volta do Tarzan”. Ambas versam sobre o famoso personagem de Hal Foster,
apresentado de forma irônica, crítica e espalhafatosa.
Na primeira história
292
, Tarzan é retratado como um fraco, além de um tanto
acima do peso: é picado por abelhas e marimbondos; está em vias de se aposentar, por
não ter mais a mesma força dos tempos áureos. Mesmo o seu outrora famoso grito
justifica-se agora tão somente pelas mordidas de marimbondo que sofreu na ponta do
nariz ao chegar à Mata do Fundão:
Figuras 77 (ao lado) e 78 (abaixo): a Natureza ataca o
Rei das Selvas
293
.
Diante deste quadro, Tarzan solicita ajuda a Pererê e Tininim, que decidem
entrar em contato com Galileu para que participe das filmagens de um longa-metragem
junto com o vacilante Rei das Selvas. Desta forma, Tarzan seria reabilitado como herói
e poderia obter sua tão sonhada aposentadoria ou, como os personagens preferem
dizer, ser promovido a Jim das Selvas, outro importante personagem de histórias em
quadrinhos ligado ao universo de aventuras em matas inóspitas. A diferença entre eles é
292
“Tarzan”, o filho (adotivo) da selva. In: Pererê, novembro de 1960. p. 3-11.
293
Pererê, novembro de 1960. p. 4 e 5.
155
que, ao contrário de Tarzan, que pega “bicho a unha”, Jim das Selvas não abre mão de
sua espingarda para caçar
294
.
O plano para reabilitar Tarzan consistia em Galileu fingir que tomava uma surra
dele, mas a onça acaba chegando antes ao estúdio por acreditar que no acampamento
deviam “estar procurando petróleo”. Sem saber do trato, responde às investidas do Rei
das Selvas, afinal ele tem de manter sua fama de “mais feroz animal das selvas
brasileiras”. Tal reação inverte o planejado, e s cineastas ficam encantados é com
Galileu: “Hollywood, a glória e o dólar o esperam”
295
. Diante deste quadro, Tarzan
declara que vai “desertar”, e sai para passear com Pererê e Tininim:
Figura 79: página final de
“‘Tarzan’, o filho (adotivo)
da selva
296
”.
294
Pererê, novembro de 1960. p. 6.
295
Pererê, novembro de 1960. p. 11.
296
Ibid.
156
Como nas HQs sobre Papai Noel, as histórias dedicadas a Tarzan não terão
apenas uma sequência, quando organizadas sob o modelo todoroviano. O que dita o
ritmo de cada parte é a dificuldade de Tarzan em se relacionar com a Natureza.
Sequência 1:
1) Situação inicial: Pererê e Tininim brincam na Mata do Fundão;
2) Perturbação da situação inicial: Chegada desastrada de Tarzan;
3) Desequilíbrio ou crise: Tarzan não pode se aposentar (ou ser promovido a Jim
das Selvas) se não enfrentar onça;
4) Intervenção na crise: Pererê e Tininim se comprometem a ajudar Tarzan;
5) ovo equilíbrio: Início das filmagens.
Sequência 2:
1) Situação inicial: Idem ao Novo Equilíbrio da Situação 1;
2) Perturbação da situação inicial: Chegada de Galileu;
3) Desequilíbrio ou crise: Galileu não sabe do plano e reage aos ataques de Tarzan;
4) Intervenção na crise: Pererê e Tininim interrompem Galileu; cineastas aplaudem
Galileu;
5) ovo equilíbrio: Galileu é levado para Hollywood, e Tarzan abandona seu posto
de Rei das Selvas.
Rede Temática 1 Elementos Figurativos para Rede 1 Elementos Axiológicos
para Rede 1
/Tarzan precisa da
ajuda de Pererê e
Tininim para se
aposentar/
/- Grito de guerra, coisa nenhuma... foi marimbondo
mordeu nariz Tarzan!/; /- Mas, “seu” Tarzan, o senhor
não acha que já está um pouco gordo?/; /Aliás Tarzan vai
aposentar ano que vem/; /- Eu estou cansado de pegar
bicho a unha. Com espingarda é tão mais simples!/;
/- Tarzan, seu grito está casa vez pior./; /Tarzan ataca
Galileu/; /- Não tem importância não, rapazes! Eu já
/Desajuste do estrangeiro
em relação à Natureza/
157
Em “A volta do Tarzan
298
a gina de abertura destaca-se em primeiro lugar
pelo domínio desenvolvido por Ziraldo sobre as onomatopeias, sobretudo quando a
comparamos com a HQ de 1960. As onomatopeias são elementos caros à linguagem dos
quadrinhos e podem ser definidas como a visualização do som, agregando a eles
também forte valor gráfico
299
. Esta será futuramente uma característica marcante em seu
estilo, ao ponto de criar uma tipografia que extrapola sua função inicial de suporte para
a mensagem ao explorar seu caráter visual e integrar-se no conjunto da ilustração
300
. E
suas primeiras experiências neste sentido encontram-se no Pererê.
Figura 80: uso das onomatopeias em
Pererê
301
.
297
“Tarzan”, o filho (adotivo) da selva. In: Pererê, novembro de 1960. passim.
298
Pererê, novembro de 1961. p. 3-14.
299
RAMOS, Paulo. A linguagem dos quadrinhos. São Paulo, SP: Contexto, 2009. p. 75-87.
300
Podemos identificar, neste ponto, a influência dos trabalhos em publicidade do ilustrador lituano e
residente em Nova York Ben Shahn (1898-1969). Cf: LEITE, Ricardo. Op. cit.. p. 97-113.
301
Pererê, novembro de 1961. p. 3.
estava cheio de Hollywood./; /- Vou desertar!
297
158
Este longo grito de página inteira antecede a chegada novamente desastrada de
Tarzan à Mata do Fundão, mais exatamente ao rio onde Pererê e Tininim tomavam
banho. A opção por cair no rio não foi casual, afinal “Brasil fazer muito calor...se
Tarzan sair, ter insolação”. O Rei das Selvas sairá apenas quando a dupla da Mata do
Fundão lhe alertar sobre a presença de jacarés no rio; surpresos diante do medo que ele
demonstra diante dos animais, Tarzan se justifica explicitando a artificalidade presente
em suas produções hollywoodianas:
Figura 81: Tarzan revela a Pererê e Tininim um dos segredos de seus filmes
302
.
Estamos novamente diante deste personagem que na verdade é assumidamente
alheio à natureza que todos acreditavam saber ele dominar tão bem. O agora inapto Rei
das Selvas, retratado por Ziraldo como um medroso bonachão, foge espantado dos
302
Pererê, novembro de 1961. p. 7.
159
jacarés após ter mergulhado rapidamente n’água para refrescar-se do calor dos trópicos
e, em seguida, corre também de Galileu, possivelmente em razão do trauma causado
pelo encontro de um ano antes. Para fugir da onça acaba por refugiar-se no mesmo rio
de onde acabara de sair por medo dos jacarés; por isso caberá a Pererê e Galileu a
missão de salvá-lo dos ataques destes animais. Enquanto Tarzan foge a nado dos
animais, Galileu consegue derrotá-los, mostrando a Tarzan que de fato ele é inofensivo
e bom amigo. Tarzan ressurge mais magro e aparentemente revigorado: aproveitando-se
do cansaço dos jacarés, captura-os e segue para os Estados Unidos para vendê-los como
bolsas de couro:
Figura 82: Página
final de “A volta
do Tarzan
303
”.
303
Pererê, novembro de 1961. p. 14.
160
Sequência 1:
1) Situação inicial: Pererê e Tininim nadam em rio da Mata do Fundão;
2) Perturbação da situação inicial: Chegada desastrada de Tarzan;
3) Desequilíbrio ou crise: Tarzan sofre com calor da Mata do Fundão;
4) Intervenção na crise: Pererê e Tininim cobrem-no com folhas de bananeira
(“banho turco”);
5) ovo equilíbrio: Tarzan permanece sob as folhas, ainda com calor.
Sequência 2:
1) Situação inicial: idem ao Novo Equilíbrio da Sequência 1;
2) Perturbação da situação inicial: Chegada de Galileu;
3) Desequilíbrio ou crise: Tarzan pula em rio “infestado de jacarés”;
4) Intervenção na crise: Galileu derrota os jacarés do rio;
5) ovo equilíbrio: Tarzan emagrece e leva para Hollywood malas feitas com o
couro dos animais derrotados por Galileu.
304
Pererê, novembro de 1961. passim.
Rede Temática 1 Elementos Figurativos para Rede 1 Elementos Axiológicos
para Rede 1
/Chegada de Tarzan e
suas consequências/
/- Ué...que peixe ser este?/; /- Com êste sol, Tarzan
derreter...muito calor, Tininim. Muito calor.../; /- Brasil
fazer muito calor... se Tarzan sair, ter insolação./; /- Corre,
boys, corre! Corre, senão jacaré pegar vocês!/; /- Êstes
jacarés daqui também o de matéria plástica?/; / Tarzan
foge de Galileu;
/Tarzan foge de jacarés/; /Tarzan é salvo por Galileu e
ressurge mais magro./ (p. 13); /Tarzan leva para
Hollywood malas feitas de couro dos jacarés
304
/
/Estranhamento do
estrangeiro sobre a
Natureza/
161
A dificuldade de Tarzan com seu peso setema frequente em Pererê, como as
HQs analisadas até aqui e a capa de 1963 nos indicam
305
. Se em “Jacs, o Terrível
306
o
personagem consegue emagrecer apenas porque o jacaré que dá nome à HQ o persegue
para “trabalhar de crocodilo em filmes de Tarzan”, em novembro do ano seguinte
inverte-se o quadro: Tarzan, mais uma vez recebido e reconhecido por Pererê e Tininim,
“veio de novo ao Brasil só para emagrecer
307
”. Porém, ele já consegue chegar à Mata do
Fundão abaixo do peso, uma vez que fez toda a viagem a pé: justifica-se dizendo que
“vida muito difícil em Hollywood com televison e cinemas europeus...Tarzan no dollars
para passagens
308
”. Ainda assim, ele demonstrará seu estranhamento com a natureza
brasileira com seu curioso método para conseguir atravessar o rio Amazonas:
Figuras 83 e 84: Método de Tarzan para atravessar o Rio Amazonas
309
.
A mudança que observaremos nesta HQ se dará por Tarzan começar a engordar
aos poucos a partir do momento em que permanece na Mata do Fundão, ao contrário do
que ocorrera nas edições anteriores. Com isso altera-se a avaliação que antes fizeram
com relação ao seu excessivo peso quando viera de fora da Mata do Fundão – a
mudança física de Tarzan é agora associada ao ambiente favorável onde ele agora se
encontra:
305
Cf. Figura 89.
306
Pererê, novembro de 1962. p. 3-16.
307
O regime. In: Pererê, novembro de 1963. p. 3-16.
308
Pererê, novembro de 1963. p. 5-6.
309
Pererê, novembro de 1963. p. 6-7.
162
Figura 85: Tarzan engorda por causa do bom clima brasileiro
310
.
Cada vez mais o personagem de Hal Foster adquire peso, o que o deixa alarmado
com relação a sua carreira em Hollywood. A dupla Pererê e Tininim resolve ajudá-lo
através receitas naturais, recusadas por Tarzan por não serem “da Obbat, da Shellung ou
da Party Davis”; e do susto que Galileu lhe aplica, mas sem sucesso, visto que são
colegas desde o episódio do ano anterior. Finalmente Pererê lhe sugere que volte a
Hollywood a pé, refazendo o caminho que lhe fizera emagrecer até chegar a Mata do
Fundão. Ideia aceita, o problema estará na travessia do Amazonas:
Figura 86: Página final de “O Regime
311
”.
310
Pererê, novembro de 1963. p. 9.
311
Pererê, novembro de 1963. p. 16.
163
Apesar de pequenas variações de acordo com o desenvolvimento narrativo de
cada HQ sobre Tarzan, novamente o Rei das Selvas procura o Brasil com o objetivo de
recuperar sua antiga forma e retornar a Hollywood.
Sequência 1:
1) Situação inicial: Pererê e Tininim brincam na Mata do Fundão;
2) Perturbação da situação inicial: Chegada surpresa de um magro Tarzan;
3) Desequilíbrio ou crise: Tarzan começa a engordar;
4) Intervenção na crise: Diversas soluções são tentadas; na última delas Pererê
propõe que Tarzan refaça o caminho até Hollywood a pé;
5) ovo equilíbrio: Tarzan aceita, mas se afoga no rio Amazonas.
Por fim vale destacar uma última história ligada ao famoso personagem dos
cinemas e dos quadrinhos, desta vez abordado a partir da perseguição da dupla de
fazendeiros sobre a onça Galileu. Em “O Detalhe
312
”, Galileu conta para Pererê que seu
único medo é de Tarzan e sua força capaz de derrotar até um leão, o rei dos animais. É
tudo o que a dupla de antagonistas precisava saber: Compadre Tonico fantasia-se de
Tarzan, provoca o desmaio de Galileu e conseguiria finalmente vencer a eterna disputa
entre eles se não fosse por um detalhe:
312
Pererê, novembro de 1963. p. 29-34.
164
Figura 87: página final de
“O detalhe
313
”.
Sequência 1:
1) Situação inicial: Turma do Pererê na Mata do Fundão (em elipse);
2) Perturbação da situação inicial: Tininim e Pererê estão cansados da Mata do
Fundão;
3) Desequilíbrio ou crise: Toda a turma engrossa o coro dos descontentes Tininim
e Pererê;
4) Intervenção na crise: Fuga da Mata do Fundão e piquenique;
5) ovo equilíbrio: Chegada da turma na cidade grande.
313
Pererê, novembro de 1963. p. 34.
165
6.3. Considerações finais
A presença de um personagem estrangeiro como Tarzan poderia partir das linhas
gerais conforme era veiculado no mercado de quadrinhos onde era um dos líderes de
vendas: um herói forte e destemido que enfrentava muitas aventuras na selva que
conhecia tão bem, sob o traço realista de Hal Foster:
Figura 88: Tarzan, de Hal Foster
314
.
Ziraldo, como foi possível perceber, prefere retratar o personagem de forma
exagerada, questionando boa parte de seus conhecidos atributos:
314
Cf. http://www.entrecomics.com/wp-content/uploads/2007/09/tarzan_foster.gif (acesso em 12 de
maio de 2010).
166
Figura 89: Capa da edição de novembro de 1963.
Nestas histórias podemos destacar a figura do elemento estrangeiro assumindo
duas feições: ao mesmo tempo em que se apresenta como fraco e decadente – afinal, ele
não conhece verdadeiramente as leis da selva e não está adaptado ao clima e à cultura da
Mata do Fundão –, o estrangeiro é retratado também como um oportunista que, na
primeira chance, captura aquilo que lhe convém e volta a sua terra de origem. É
inegável, pois, o conteúdo anticolonialista aqui presente formalmente elaborado para
crianças e jovens, público-alvo da revista Pererê.
Procuramos avaliar a opção de Ziraldo por representar um Tarzan reduzido a um
estrangeiro que apresenta grandes dificuldades para manter seu corpo e grito em forma
como uma maneira de valorizar a realidade cultural brasileira. Neste sentido, a Turma
do Pererê está longe de apresentar uma postura intolerante sobre o personagem
estrangeiro, que, assim como o Papai Noel do capítulo anterior, é constantemente
socorrido por Pererê e seus amigos. Estes manifestam tolerância com relação às
dificuldades sentidas por Tarzan e procuram sempre ajudá-lo a retornar à sua antiga
forma e ao seu antigo lar, Hollywood. A artificialidade de Tarzan é considerada
possível, contanto que não pretenda estabelecer-se na autêntica Mata do Fundão.
A crítica ao estrangeiro representado por outros personagens de HQs ganha mais
força em Pererê quando lembramos a configuração do mercado brasileiro de quadrinhos
e o predomínio que as publicações estrangeiras detinham. Como primeira revista em
quadrinhos de autoria exclusivamente brasileira, associar nomes como Tarzan ao
estrangeiro egoísta e usurpador de riquezas nacionais e contrapô-los aos “autênticos”
167
heróis brasileiros da Mata do Fundão torna-se também uma prática de legitimação de
sua própria obra junto ao campo dos quadrinhos.
168
COCLUSÃO
Em prefácio a edição brasileira de sua obra Linhagens do presente, Aijaz Ahmad
expõe a natureza do problema ligado à questão nacional que se encontra presente ao
longo dos artigos de seu livro. Em contraposição à perspectiva de Jameson, que
compreenderia o nacionalismo como uma “resposta definitiva para a ‘cultura americana
pós-moderna’, o autor indiano historiciza o conceito e afasta-se do teórico norte-
americano ao defender que o nacionalismo não apresenta uma essência alheia às
contradições da sociedade. Por isso é preciso referir-se ao termo sempre no plural, pois
ele pode ser motivado a partir das pretensões políticas de movimentos fascistas,
socialistas e liberais, por exemplo
315
. Em resumo:
Daí eu afirmar que o nacionalismo não tem uma ideologia pré-
determinada e que o conteúdo de qualquer nacionalismo é
determinado pelos agentes sociais que dele se apoderam e
mobilizam seus poderes interpelativos no processo de luta por
hegemonia nos campos político e cultural
316
Compreendemos a presença de uma revista como Pererê no mercado de
quadrinhos da primeira metade dos anos 1960 em consonância com o posicionamento
teórico acima. Localizada em um mercado de quadrinhos definido por super-heróis
estrangeiros e por iniciativas de autores brasileiros de curto alcance, a revista Pererê,
lançada pela Editora Gráfica O Cruzeiro, apresentou raro dinamismo temático ao longo
dos seus quarenta e três números, distribuídos mensalmente entre outubro de 1960 e
abril de 1964. Apesar de ser um dos seus primeiros trabalhos mais prolongados, Ziraldo,
que contava em 1960 com vinte e sete anos, logo amadurecerá o traço de seu desenho, e
também o perfil de cada personagem e da revista em si.
O pioneirismo da iniciativa de Ziraldo em Pererê é inegável e sem dúvida deve
ser inserido politicamente junto nos debates travados no período do governo
Kubitschek, alcançando seus limites durante a presidência de João Goulart e sendo
arbitrariamente interrompidos com o golpe civil-militar de 1964
317
. Como as análises
das HQs em cada capítulo deixam claro, procuramos também levar em conta tais
aspectos para nos auxiliar a compreender o papel da revista junto à sociedade de seu
315
AHMAD, Aijaz. Linhagens do presente. São Paulo, SP: Boitempo, 2002. p. 11.
316
Ibid., p. 12.
317
CIRNE, Moacy. Op. cit., 1990.
169
tempo. Pensamos, porém, que outras camadas são perceptíveis se não esquecermos que
ela era “apenas” uma revista em quadrinhos, ou melhor dizendo, que deveria preocupar-
se em sobreviver em um mercado concorrido como era o dos quadrinhos no Brasil.
Para isso, Ziraldo optou por uma inserção profunda no imaginário brasileiro, a
começar pelo mito de origem de Pererê calcado na união de três raças formadoras do
povo brasileiro. Se, por um lado, esta é uma perspectiva de limitações óbvias, uma vez
que, tomada sob uma leitura excessivamente apologética da nacionalidade, escamoteia o
caráter conflituoso e as intenções econômicas presentes na escravidão aplicada em
nosso país, por outro lado armazena uma carga simbólica positiva e de abordagem
menos problemática para um meio massivo e que, vale lembrar, foi a primeira revista
de único autor brasileiro a contar com grandes tiragens editoriais – direcionado a
crianças e jovens de diversas partes do país. Os quadrinhos de altas tiragens foram por
muito tempo um meio que apresentou longa tradição em trabalhar com estereótipos e
informações rápidas
318
Além disso, quando editoras como a EBAL, a RGE ou mesmo O Cruzeiro
lançavam alguma revista em quadrinhos com temas ligados à história e sociedade
brasileiras, o predomínio era de uma visão oficial e livresca que encerrava por isso uma
limitação estética sobre estas publicações ao contrário do tratamento autoral dedicado
a tais assuntos por Ziraldo. E como todo herói que se preza(va) tem de apresentar
alguma história de origem que justifique sua existência, Pererê enquanto herói brasileiro
não poderia ficar sem a sua
319
.
A opção pelo elogio das três raças como mito formador de seu principal
personagem pode ser compreendida também se partirmos das ideias de Bourdieu já
desenvolvidas na dissertação e atentarmos para as homologias presentes entre os
diversos campos na sociedade. Assim como Ziraldo, Gilberto Freyre também participou
de campanhas em defesa do quadrinho brasileiro, seja através de artigos de jornal, seja
pela via legislativa. É bastante provável que Ziraldo, bacharel em direito ainda nos anos
1950 e atuante em reuniões que debatiam os rumos de uma eventual nacionalização dos
quadrinhos brasileiros, estivesse ciente da atuação de Freyre, que escrevia artigos para a
revista O Cruzeiro, em defesa dos quadrinhos brasileiros. Com isso, a sua opção estética
318
EISNER, Will. Quadrinhos e arte seqüencial. 3ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
319
O mito do Superman foi objeto de clássica análise de Umberto Eco. Cf. ECO, Umberto. Apocalípticos
e integrados. 5ª edição. São Paulo, SP: Perspectiva, 1993. p. 231-279.
170
assume outro nível político ao lhe agregarmos os níveis mercadológicos e político-
institucionais, para além de uma leitura rápida e descontextualizada da HQ.
A divisão dos capítulos desta dissertação foi pensada de forma a agrupá-los em
duas grandes partes, cada uma contendo três capítulos. Enquanto os três primeiros
procuram analisar como a revista (re)inventa a origem de seu personagem-título,
estabelece períodos históricos relevantes para compreender o presente, que é por sua
vez delimitado ao escolher filiar-se de forma ampla junto a outras manifestações ligadas
às esquerdas da época, os capítulos finais apresentam alguns temas que serviriam para
expor as contradições e paradoxos presentes na relação entre o meio urbano e o rural e
em comemorações como o Natal e em heróis estrangeiros como Tarzan. Através destes
capítulos, foi possível perceber uma crítica geral à alienação cultural, percebida ora nas
grandes cidades, repletas de futilidade e explorações sensacionalistas, ora em
personagens alheios à realidade brasileira, como Papai Noel e Tarzan. Passado, presente
e futuro, fatores imprescindíveis para um projeto de nação
320
, não escapam às HQs de
Pererê.
É possível aqui estabelecer algum contato com o Instituto Superior de Estudos
Brasileiros (ISEB), mais precisamente em suas discussões acerca da alienação cultural.
De acordo com as reflexões do grupo isebiano
321
, a situação semicolonial não permite o
estabelecimento de uma cultura autêntica e nacional, uma vez que, no
subdesenvolvimento, não é possível formular um modelo próprio e ideal de cultura que
possa negar o dado natural, ou melhor, o estado de natureza – reprodutivista por
excelência, exceto quando sofre ação do Homem. Com isso, o país subdesenvolvido
limita-se a copiar e reproduzir projetos externos, que não pode produzir os seus
próprios. Este processo é o que o isebiano Álvaro Vieira Pinto classificou como
“reflexo do reflexo”: o reflexo da consciência alheia, que em si mesma reflete a
condição desenvolvida ou não de onde ela foi engendrada
322
.
Daí decorre a chamada alienação cultural sofrida pelos países subdesenvolvidos.
O processo de superação daquela é diretamente ligado, por sua vez, às ambições mais
gerais de desenvolvimento e industrialização defendidas durante o governo de Juscelino
Kubitschek e que se refletem, sob diferentes matizes, em Jânio Quadros e em João
320
HOBSBAWM, Eric. Op. cit., 2008.
321
Estamos cientes da diversidade intelectual que compunha o ISEB. Quando nos referimos ao grupo
isebiano pensamos em suas reflexões gerais e mais marcantes na sociedade brasileira e, por conseguinte,
naquelas correntes que foram hegemônicas dentro do ISEB.
322
TOLEDO, Caio Navarro de. ISEB: fábrica de ideologias. 2ª ed. São Paulo: Ática, 1982. p. 81-82.
171
goulart. A solução para a superação da alienação cultural do Brasil seria “(...) o
abandono das fontes estrangeiras para se poder chegar a uma ‘melhor compreensão da
realidade brasileira
323
”. Em Pererê as “fontes estrangeiras” não são abandonadas, mas
são postas em diálogo crítico com o que considerava como a realidade brasileira.
A dissertação, naturalmente, não conseguu esgotar os diversos planos que
podem integrar a questão nacional em Pererê e, por isso, nem todos os assuntos
receberam a devida atenção. Alguns nem mesmo puderam ser melhor trabalhados aqui –
por exemplo, o papel das personagens femininas, da religião ou das brincadeiras
presentes em algumas histórias. Apesar disso, podemos tirar a seguinte conclusão geral
sobre a publicação: se analisada em sua rie de quarenta e três números, a revista
Pererê preocupou-se todo momento com sua inserção no mercado dos comics
brasileiros, mas não perdeu de vista a defesa de um projeto de nação que dialoga com
diversos quadros do pensamento social brasileiro e da cultura da época, pensando os
elementos estrangeiros sempre a partir do que considera válido para o Brasil.
323
TOLEDO, Op. cit.. p. 84.
172
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