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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS
PPGF
MITOLOGAR É UMA FORMA DE FILOSOFAR:
A mitologia política de Hesíodo em Os Trabalhos e os Dias e a genealogia do homem bom
Luiz Otávio de Figueiredo Mantovaneli
Rio de Janeiro
2009
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MITOLOGAR É UMA FORMA DE FILOSOFAR:
A mitologia política de Hesíodo em Os Trabalhos e os Dias e a genealogia do homem bom
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LUIZ OTÁVIO DE FIGUEIREDO MANTOVANELI
MITOLOGAR É UMA FORMA DE FILOSOFAR:
A mitologia política de Hesíodo em Os Trabalhos e os Dias e a genealogia do homem bom
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito
parcial para obtenção do Grau de Mestre em Filosofia.
ORIENTADOR: Prof. Dr. Fernando José Santoro Moreira
Rio de Janeiro
2009
M 293
Mantovaneli, Luiz Otávio de Figueiredo.
Mitologar é também filosofar: a mitologia política de Hesíodo em Os
Trabalhos e os Dias e a genealogia do homem bom / Luiz Ovio de
Figueiredo Mantovaneli. Rio de Janeiro : UFRJ, IFCS, 2009.
126 f.
Orientador: Fernando José Santoro Moreira
Bibliografia f. 124 – 126.
Dissertação (Mestrado) – UFRJ, IFCS
1.Filosofia. 2. Filosofia-História. 3. Ética. 4. Poesia. 5. Educação. 6.
Hesíodo. 7. Os Trabalhos e os Dias. I. Universidade Federal do Rio
de Janeiro. Programa de Pós-Graduação em Filosofia. II. Título.
CDD 109
LUIZ OTÁVIO DE FIGUEIREDO MANTOVANELI
MITOLOGAR É UMA FORMA DE FILOSOFAR:
A mitologia política de Hesíodo em Os Trabalhos e os Dias e a genealogia do homem bom
Rio de Janeiro
Aprovada em agosto de 2009.
PROFESSORES DOUTORES AVALIADORES:
________________________________________________
Orientador: Prof. Dr. Fernando José Santoro Moreira
________________________________________________
Prof. Dr. Fernando Rodrigues
________________________________________________
Prof. Dr. Marcos Martinho dos Santos
A Olival, Aldair, Cláudio, Luiza e Rita.
AGRADECIMENTOS
Ao Professor Doutor Fernando José Santoro Moreira,
meu orientador, pela dedicação profissional e amizade.
Aos Professores Doutores Fernando Rodrigues, e
Marcos Sinésio Pereira Fernandes pelos ensinamentos,
incentivo e cordialidade.
A todos os professores do Programa de Pós-Graduação
de Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro
PPGF, pelas brilhantes aulas.
Ao Vitor Pinheiro, além da amizade, pelo Lidell-Scott.
A todos os meus amigos.
RESUMO
Este trabalho parte da premissa de que Hesíodo, em seu poema os Trabalhos e os
Dias, tinha um novo modelo de homem em mente e busca descobrir qual é este
modelo e quais as conseqüências que a realização deste modelo desencadeou no
pensamento ético e potico grego.
Para dar conta desta empreitada foi necessário passar em revista as verdades que
o poeta endereça a seu irmão Perses, buscando entender como elas se articulam
entre si, para então poder entender como elas podem se realizar em um homem
virtuoso.
Foi necessário também investigar a recepção explícita e implícita do poema em
obras de autores gregos posteriores, tais como lon, Platão, Xenofonte e
Aristóteles, bem como de comentadores contemporâneos.
A conclusão é de que o modelo de homem de Hesíodo estava delineado no
próprio poema, pela figura do vizinho que prospera às custas de seu próprio
trabalho e que a formação de um homem segundo os padrões preconizados pelo
poeta teve um impacto profundo no mundo grego, podendo inclusive ser
considerado como um dos pilares da pólis.
ABSTRACT
This work takes the premises that Hesiod, in his poem Works and Days, had
in mind a new model of man and searches what is this model and wich
consequences it brought into the ethical and political greek thought.
To face this task it was necessary to revise the truths that the poet addresses
to his brother Perses and try to understand how do they match between
themselves so that it is possible to understand how can they become a reality
within a virtuous man.
It was also necessary to investigate the implicit and explicit reception of the
poem by later greek authors such as Solon, Plato, Xenofon and Aristotle, as
well as by contemporary researchers.
The result is that the model Hesiod intended was already designed in the
poem itself, in the figure of the neighbour that prospers by his own work
and that the rise of a man according to the paterns assigned by the poet
caused great impact in the greek world and may be considered as one of the
pillars to the polis.
1
SUMÁRIO
1 Introdução ...................................................................................................................... 2
1.1 Sábios e Filósofos antes de Sócrates ...................................................................... 5
1.2 O nascimento da filosofia e sua relação com a poesia ........................................... 9
1.3 O olhar sobre Hesíodo .......................................................................................... 12
1.3.1 As semelhanças com Homero ....................................................................... 13
1.3.2 As diferenças ................................................................................................. 15
1.4 Uma limitação da tradução ................................................................................... 18
2 Apresentação do poema ............................................................................................... 20
3 O encaminhamento da questão .................................................................................... 23
3.1 tu! .......................................................................................................................... 23
3.2 Eu .......................................................................................................................... 29
3.3 Perses .................................................................................................................... 31
3.4 Dizer Verdades ..................................................................................................... 31
3.4.1 As Duas Lutas ................................................................................................ 33
3.4.2 Prometeu e Pandora ....................................................................................... 43
3.4.3 O mito das raças ............................................................................................ 51
3.4.4 O mito das raças e a herança de Vernant ....................................................... 53
3.4.5 O mito das raças na obra de Platão ................................................................ 63
3.4.6 O gavião e o rouxinol .................................................................................... 70
3.5 Uma revisão das verdades .................................................................................... 71
4. A mitologia política .................................................................................................... 74
5. A genealogia do homem bom ..................................................................................... 81
6 Conclusão .................................................................................................................... 95
OS TRABALHOS E OS DIAS ......................................................................................... 99
BIBLIOGRAFIA .......................................................................................................... 124
2
“Precisamos antes, a meu ver, dar ao nosso
exame uma direção na qual já fizemos um
desvio e consultar os poetas, pois no
caminho da sabedoria, estes são para nós
como que pais e guias.”
(Platão, Lísias, 213e)
1 Introdução
A questão que põe o presente trabalho em movimento versa sobre a existência de um
modelo de homem a ser perseguido no poema Os Trabalhos e os Dias de Hesíodo e, em caso
afirmativo, qual seria este modelo. ainda uma questão subjacente que é decorrente do
próprio desenrolar da pesquisa, qual seja, a de procurar colocar em evidência traços de
herança hesiódica no pensamento ético filosófico grego, o que, não só contribui para
justificar o presente esforço, como também tentará tornar mais visível o papel que o poeta da
Beócia desempenhou como grande educador, papel este que tem sido negligenciado na
atualidade.
Uma vez que o suposto modelo intentado por Hesíodo não está claro, é válido recorrer
à posteridade do pensamento grego para tentar encontrar um ou mais modelos já
estabelecidos e procurar encontrar algum traço de ligação entre eles e o poema. Este esforço
solicita a leitura de autores gregos clássicos, como Platão, Aristóteles e Xenofonte, bem
como dos comentadores contemporâneos. A aproximação de Hesíodo com os filósofos
posteriores será sempre proveitosa, pois permitirá acessar com maior clareza pontos que
estão sendo postos em jogo no poema que, por sua vez, mostrar-se-á, cada vez mais, uma
obra fundamental, no sentido de fundadora, para a cultura grega. É exatamente desta
aproximação que se espera extrair, de forma não exaustiva, é claro, indícios da influência do
3
poeta no pensamento grego, seja pelos temas por ele tratados, seja pelos problemas
levantados, ou ainda por questões metodológicas que possam ter sido adotadas ou herdadas
– por filósofos que a ele se seguiram.
Uma obra em particular será de grande valia: a Ética a Nicômaco, pois tanto o poema
quanto o texto de Aristóteles compartilham o entendimento de que é na ação que as coisas
humanas se realizam
1
Há, ainda, dois outros pontos importantes que tornam sempre proveitosa a aproximação
entre as duas obras: enquanto o poema visa transformar alguém que é vil em um homem
bom, o tratado foi escrito para o maior proveito de quem já é bom
. No caso de Os Trabalhos e os Dias, a justiça, no caso da Ética a
Nicômaco, a felicidade.
2
A questão principal deste trabalho se coloca a partir das premissas de que na obra citada
o poeta ataca os valores da ética aristocrática, presente nos poemas de Homero, sobretudo na
Ilíada ; que este ataque contribui para o surgimento de uma agonística entre o aristocrata e o
homem livre, o que é diferente do camponês, de quem Hesíodo é usualmente designado
como porta voz
. Além do mais, o poema
foi composto no nascedouro da “pólis” e, segundo o entendimento desta pesquisa, contribuiu
sobremaneira para este acontecimento, enquanto o livro foi escrito já na decadência desta.
Pode-se dizer que Hesíodo foi, de certa forma o primeiro enquanto Aristóteles foi o último
filósofo da “polis”.
3
1
Cf. ARISTÓTELES. E.N. II, 2, 1103 b 26-31.
2
Cf. Idem. I,3, 1093 a 10-12.
3
É importante ter em mente que, mesmo no auge da “pólis”, a agricultura nunca deixou de ter um papel
preponderante na economia termo aqui empregado com o seu sentido contemporâneo grega. Assim sendo,
predomina aqui o entendimento de que é incorreto considerar Hesíodo como porta voz de uma moral
camponesa que se opõe à da cidade. A moral de Hesíodo é uma força constituinte da “pólis”.
; e que a tensão gerada entre estes dois valores foi o motor que pôs todo o
pensamento político grego em movimento.
4
A idéia de um ataque aos valores aristocráticos encontra respaldo, sobretudo em
Philippe Rousseau
4
A influência de Homero na poesia de Hesíodo é defendida também por importantes
comentadores tais como Córdova
, que vê nos versos 5 a 7 o cerne do proêmio do poema, já que descreve a
ação de Zeus: “pois fácil fortalece e facilmente ao forte enfraquece/ fácil o brilho escurece e
o escuro esclarece/ fácil do torto faz reto e humilha o herói.”Como se vê, o herói figura neste
trecho numa posição de rebaixamento, o que já é bem diferente do destaque habitual a ele
dado por Homero. Segundo Rousseau, estes versos encerram um princípio moral que pode
ser apreendido pelo homem, conforme se verá adiante.
5
, Easterling
6
, Havelock
7
, Most
8
e West
9
O papel de Hesíodo como uma das molas propulsoras do pensamento político grego é
bem defendido por Carrière, para quem o poema e dentro dele os mitos de Prometeu e das
raças em particular, apresentam “um conjunto de ideais que contribuíram para o surgimento
de um certo tipo de experiência social que é atualmente denominada Cidade-Estado”
, entre outros.
10
Neste quadro, a Cidade-Estado é apresentada como “a integração moral de uma
coletividade de homens livres conclamados a integrar uma comunidade de cidadãos que
compartem direitos iguais.” E a liberdade é definida por um estatuto mais econômico do que
jurídico: “é considerado livre o chefe de família que possui ou explora, por sua própria
.
Carrière enfatiza que a noção de CidadeEstado é moderna e que Hesíodo e seus
contemporâneos não podiam estar plenamente conscientes das transformações decisivas que
eles viviam naquele momento. Em outras palavras, não se deve entender que a fundação da
“pólis” era um efeito intencionado por Hesíodo, mas sim que o efeito educativo do seu
discurso pode ter produzido mudanças individuais que condicionaram mudanças sociais.
4
Cf. ROUSSEAU, P. In BLAISE, JUDET , ROUSSEAU. (1996) p. 100-102.
5
CÓRDOVA in HESÍODO (1986) Cf. Notas ao texto grego.
6
Cf. EASTERLING, P. E. & KNOX, B.M.W. (2000) vol. I, p. 63
7
Cf. HAVELOCK, E. (1996) p. 221- 4
8
Cf. MOST in HESIOD (2006) p. XIX-XXV
9
Cf. WEST in HESIOD (1978) p. 27
10
CARRIÉRE, J.C. In BLAISE, F. ; JUDET , P. : ROUSSEAU, P. (1996) p. 393
5
conta, um domínio capaz de satisfazer às necessidades de sua família
11
Começa-se assim a divisar o escopo amplo desta pesquisa, isto é, a poesia como
primeiro motor de uma educação que culmina na “pólis”. Parece então justificado que este
olhar, já dirigido para os primórdios, volte-se para os primórdios da própria poesia grega, e é
o que fará, mas não na direção de Homero, e sim na de Hesíodo, poeta tão grande a seu
tempo, que a preservação, ainda que fragmentada, do poema “O Combate entre Homero e
Hesíodo” é testemunho de sua importância, uma vez que mostra que este foi o único poeta a
ser colocado em condição de fazer frente a Homero. É de pouca relevância se a obra é ou não
de autoria de Hesíodo. O que importa aqui é que, segundo a tradição, neste combate, embora
Homero tenha agradado mais à multidão do que Hesíodo, o rei concedeu o prêmio ao último,
entendendo que um poema dedicado à paz e à agricultura deve ser considerado superior a um
sobre guerra e derramamento de sangue
.” É a estes
indivíduos, onde já se pode divisar a importância da autarquia, portanto, bem diferentes do
camponês que se costuma associar a Hesíodo, que o poeta propõe a Justiça de Zeus.
12
1.1 Sábios e Filósofos antes de Sócrates
. Fica aqui reafirmado um dos pontos que o
presente trabalho pretende trazer à luz, qual seja, a contribuição de Hesíodo para a
emergência do pensamento político grego.
A educação foi desde sempre no mundo grego objeto de uma reflexão voltada para a
prática, atraindo o olhar de poetas, legisladores e filósofos e instaurando entre estes uma
disputa em torno da primazia neste campo. Não se pretende aqui determinar a quem, de fato,
pertence esta primazia, se é que ela existe. Ao se entender a educão grega como um
11
Idem. p..393
12
Cf. MOST in HESIOD (2006) p. LXVI
6
processo ininterrupto compartilhado por diferentes gêneros de sábios, resulta claro que cada
um destes deu sua contribuição com vistas a um fim maior e único, que os encampou todos e
que este fim constituiu a “pólis”, o único espaço, para os gregos, onde cada cidadão pode
entrar em relação de harmonia consigo mesmo relacionando-se com os demais concidadãos e
com a “pólis” propriamente dita. Assim sendo, uma vez que a educação grega é parte ao
mesmo tempo constituinte e subordinada da política e que a poesia é o mais antigo elemento
constitutivo da educação, a poesia grega está indissoluvelmente ligada, como constituinte e
subordinada, à política
13
O compartilhamento do processo da educação pelos diferentes gêneros de sábios não
foi pacífico. No mais das vezes a polêmica era intensa. Além do já aludido “Combate entre
Homero e Hesíodo”, sabemos que Xenófanes atacou Homero e Hesíodo
.
14
e foi atacado por
Heráclito num pronunciamento que pode ser considerado emblemático deste ambiente
erístico: “A aprendizagem de muitas coisas não ensina a ter compreensão; se assim fosse,
teria ensinado Hesíodo, Pitágoras, e depois Xenófanes e Hecateu
15
O duplo ataque recebido por Hesíodo não é casual: sendo a poesia o único campo de
saber constituído e reconhecido pela cultura grega, tanto Xefanes quanto Heráclito
parecem estar procurando cavar para eles mesmos, e não para a filosofia ou para uma
.”
O que se vê aqui, descrito sob a ótica das categorias atuais, é um filósofo atacando um
poeta, um religioso com incursões pela matemática e pela filosofia, um filósofo poeta e um
historiador. Mas àquela época, apenas o poeta era reconhecido como tal e os campos de
interesse de cada uma destas áreas de saber o termo disciplina é intencionalmente evitado
não estavam nitidamente delimitados.
13
Cf. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. 1180a 1-5.
14
Cf. XENÓFANES, fr. 11, Diels-Kranz. Todas as transcrições de fragmentos de pré-socráticos constantes neste
trabalho foram obtidas in KIRK, G.S.; RAVEN, J.S.; SCHOFIELD, M. (1994).
15
HERÁCLITO, fr. 40, Diels-Kranz.
7
escola filosófica, um espaço discursivo autônomo e privilegiado sobre a forma de
comunicação social então estabelecida.
Um estudo de Laks
16
põe em cheque a existência de escolas filosóficas pré-socráticas
alegando que a crença nestas instituições é uma herança de Diels, pautada numa concepção
demasiado abstrata, e duplamente anacrônica das instituições escolares, onde os rigores da
“Wissenschaft
17
Lloyd
universitária se cruzam com as formas institucionais posteriores a Sócrates.
18
16
Cf. LAKS, A. in BOUTIER, J.; PASSERON, J-C.; REVEL, J. (2006) p.151-169.
17
Em alemão no original.
18
Cf. LLOYD, G.E.R. in LAKS A.; LOUGUET, C. (2002) p. 39-53.
é ainda mais radical e, indo além da “desescolarização” de filosofia pré-
socrática, propõe também uma “desdisciplinarização”, ou seja, vai procurar pôr em cheque o
estatuto da própria filosofia que, segundo seu entendimento, só se constitui como tal a partir
de Sócrates. O mais aconselhável seria designá-los todos pela categoria de sábios. Assim
sendo, além de não se poder falar de escolas pré-socráticas, também lhe parece inadequado
falar de filosofia, em sentido estrito, naquele período.
A tarefa que Lloyd se propõe é a de descrever e analisar as correntes de pensamento
que se entrecruzavam na vida intelectual da Grécia naquela época. A principal ferramenta de
que se vale é o exame das categorias que os próprios gregos utilizavam, sem supor que estes
as empregavam da mesma maneira que é feita hoje em dia, mas tendo o cuidado de procurar
entender estas atividades e pesquisas produzidas por aqueles pensadores dentro dos termos
atuais. Entre suas conclusões tem-se que o termo philósophos” era empregado antes de
Platão em um sentido muito amplo, ora com valor positivo, ora pejorativo e que os campos
de investigação destes indivíduos eram determinados por interesses tão particulares que
resulta impossível agrupá-los sob outra categoria que não seja a de sábios, “sophói”,
exatamente por ser a mais genérica possível. O autor expressa sua plena consciência de que,
no desenrolar desta tarefa, algumas distorções podem, ou até mesmo devem, surgir daí.
8
Seja lá o que for que se pense sobre que juízo Xenófanes faria de Pitágoras, a pouca
estima que Heráclito dedicava a ambos, bem como a Hesíodo e Hecateu é perfeitamente
clara.
Um indivíduo criticando outro pode ser um forte indício de que abordam o mesmo
assunto. Isso não parece ser válido para o ataque de Heráclito aos “polymathes”. A polimatia
deles portava naturezas diferentes, e Heráclito bem o sabia. Os quatro citados, e talvez o
próprio Heráclito, eram candidatos a sábios e, com isso retornamos ao problema da
diversidade do “sophós”. Era o que se dizia de poetas e de artistas em geral, bem como de
legisladores como Sólon. Esta categoria é útil para discutir as ambições intelectuais dos pré-
socráticos, mas não corresponde a um ramo particular do saber.
Heráclito não teria considerado nenhum dos que ele critica no fragmento B-40 como
um colega engajado na mesma pesquisa que ele. Provavelmente, não consideraria ninguém.
Talvez mesmo, todos os figurantes das listas apresentadas por Diels-Kranz, Kirk-Haven-
Schofield ou Barnes se sentissem escandalizados perante a idéia de se verem como colegas
num sentido forte, ainda que alguns pudessem se ver como pitagóricos, milésios ou
atomistas. As críticas que eles formulavam não eram dirigidas a colegas, mas a indivíduos
engajados em projetos muito distintos dos seus
19
Não se deve com isso renunciar à tarefa de dar sentido aos diferentes paradigmas de
empreitada intelectual que estavam em competição neste período, mas, na busca deste
sentido, alguma prudência é necessária. Em primeiro lugar, porque há um marcado
individualismo em grande parte destes autores. Em segundo, as relações que estabeleciam
entre si são muito mais complexas do que nossas categorias podem alcançar. E ainda,
nenhuma das atividades intelectuais identificáveis ao olhar atual demandava qualificações
oficialmente reconhecidas. Mesmo sob a perspectiva de uma crescente especialização, as
.
19
Idem, pp. 49-52
9
fronteiras entre as disciplinas permaneceram fluidas e contestáveis, e isto é particularmente
verdadeiro para o quinto e quarto século a.C. Entre a sofística, as matemáticas, medicina,
história e a sabedoria dos sábios, existia uma margem de manobra excepcional quanto à sua
determinação
20
1.2 O nascimento da filosofia e sua relação com a poesia
.
As sucessivas desconstruções abordadas acima solicitam de imediato uma explicação
sobre o que é, num sentido restrito, a filosofia, e quando ela nasceu.
A resposta, como era de se esperar, não é tão simples assim. Laks apresenta uma
resposta, fornecida por Nightingale, que parece ser um ponto de partida apropriado para uma
reflexão sobre o problema: “A filosofia nasceu em Atenas, no quarto século A.C., quando
Platão apropriou-se do termo “philosophia” para designar uma nova e especializada
disciplina.
21
Entretanto, não se pode descuidar da investigação que Aristóteles faz, no livro I da
Metafísica, acerca dos primórdios da filosofia onde denomina aqueles que, antes dele,
investigaram os primeiros princípios como “os primeiros filósofos.
Esta disciplina, aos olhos de Platão, consiste na busca da verdade através da
dialética.
22
Nightingale fala de
uma disciplinaconstituída, enquanto Aristóteles fala do seu processo de constituição,
apontando para o caráter histórico e teleológico da filosofia, bem como para o critério por ele
adotado para a inclusão de quem quer que seja na categoria de “filósofo”, isto é, a
investigação acerca das causas e princípios
23
20
Cf. LLOYD. in LAKS A. ; LOUGUET, C. (2002) p. 53
21
Cf. LAKS in BOUTIER, J.; PASSERON, J-C.; REVEL, J. ( 2006) p. 162
22
ARISTÓTELES. Metafísica I.3, 983b 6-8.
23
Idem I.1, 982a 2-3.
, cabendo ainda observar que Aristóteles nomeia
a ciência que investiga estes assuntos como “sophia”. Convém lembrar que, numa passagem
deste mesmo Livro I da Metafísica, o Estagirita também declara que aqueles que se
10
dedicaram aos mitos, “philómythoi”, eram, de certa forma, filósofos
24
, declaração esta aqui
recuperada para compor justamente o título do presente trabalho: “Mitologar é uma forma de
filosofar”. Aristóteles confirma a sua disposição em conceder alguma participação dos
“philómythoi” na filosofia convocando Hesíodo como, talvez, o primeiro a ter enveredado
por esta seara
25
, ao apontar o Kháos como origem de todas as coisas, ainda que reconheça em
Tales o iniciador deste tipo de filosofia
26
Ao que parece, Aristóteles foi o primeiro autor a distinguir terminologicamente o que
ele chamou de “mythólogoi” e “theólogoi” por um lado, e “phýsikoi” e “physiólogoi” de
outro. No seu entender, o primeiro grupo era composto de contadores de histórias, poetas que
narravam mitos sobre heróis e deuses e qualquer visão que se pudesse extrair de suas obras
sobre a natureza era incidental, obscura e filosoficamente desinteressante. Já o segundo
grupo, do qual ele aponta Tales como iniciador, estava engajado basicamente no mesmo tipo
de investigação acerca do mundo físico ao qual o próprio Aristóteles se dedicava. Ainda que
as teorias deles fossem deficientes em comparação às suas próprias, ele as considerava
filosoficamente significativas e dignas de serem estudadas, comparadas e refutadas.
.
27
Ainda cabe trazer à baila uma interessante metáfora cunhada por Laks para descrever a
vasta multiplicidade de personagens intelectuais na Grécia antiga, bem como seus múltiplos
campos de investigação e seus diversos modos de expressão. Trata-se da “nebulosa dos
primeiros filósofos.
28
Uma nebulosa é um aglomerado de corpos celestes dotados de diferentes grandezas,
que podem ser referidas à grandeza individual de cada um destes pensadores, de Homero a
Sócrates; corpos estes constituídos de diferentes matérias, que podem ser referidas aos
campos de investigação que cada um destes sábios, no dizer de suas épocas, ou gênios, no da
24
Idem I.2, 982b 18-19.
25
Idem, I.4, 984b 23-24.
26
Idem, I.3, 983b 20.
27
Cf. MOST in LONG, A.A. (1999) p. 332.
28
LAKS in BOUTIER, J.; PASSERON, J-C.; REVEL, J. ( 2006) p. 166
11
contemporaneidade; e diferentes aspectos, identificados à distância pelo seu brilho, e que
podem ser referidos tanto ao modo como se expressaram, seja por meio de poemas, seja por
aforismos, diálogos, relatos ou tratados argumentativos, quanto à beleza de suas obras.
A despeito de seu aspecto aparentemente desorganizado, mais parecendo uma
multiplicidade dispersa, a nebulosa caminha em torno, não de um ponto, mas de um eixo, o
que finda por lhe conferir um aspecto espiralado, ou piramidal, se preferirem, que leva a um
ápice. O eixo que ordena o movimento da nebulosa dos primeiros filósofos também foi muito
bem apontado por Laks, trata-se da “reflexividade”. Em suas palavras: “Não se trata de uma
diversidade selvagem, mas reflexiva, que supõe tanto linhas de continuidade quanto
exploração sistemática de modelos incompatíveis.
29
Quando se leva em conta que o maior deles, Sócrates, revolucionou o conceito de
filosofia, transformando-a de estudo da natureza em estudo da alma humana,
desinteressando-se pelas coisas da natureza
De fato, a reflexividade é a condição de possibilidade do pensamento crítico que é, por
sua vez, o fundamento da filosofia, mas não sua exclusividade, e à medida que a filosofia foi
se constituindo como um campo específico do saber, a ponto de já poder ser considerada uma
disciplina, mais ela foi direcionando seus ataques contra a poesia.
30
, e até mesmo das coisas de fora da “pólis”, a
ponto de raramente deixá-la
31
29
LAKS in BOUTIER, J.; PASSERON, J-C.; REVEL, J. ( 2006) p. 167
30
Cf. PLATÃO Apologia de Sócrates, 19b-d.
31
Cf. PLATÃO. Fedro, 230b
, fica evidente a pertinência do fragmento do diálogo Lísias, de
Platão, que serve de epígrafe a este estudo: “Precisamos antes, a meu ver, dar ao nosso
exame uma direção na qual já fizemos um desvio e consultar os poetas, pois no caminho da
sabedoria, estes são para nós como que pais e guias.” Com base no pronunciamento daquele
12
que é o marco indiscutível da filosofia, a poesia grega, ao menos no campo da ética, pode ser
objeto de uma reflexão filosófica
32
1.3 O olhar sobre Hesíodo
.
Cabe agora tornar mais patente a opção da presente investigação por Hesíodo que é,
lançando mão da metáfora de Laks, um corpo de não pouca grandeza nesta nebulosa.
O poeta da Beócia é conhecido hoje como “o segundo educador da Grécia.
33
A
tradição lhe atribui numerosos poemas, tais como O Escudo de Hércules, O Catálogo das
Mulheres, As Núpcias de Ceyx, A Melampodia, A descida de Pirítoos ao Inferno, Os
Preceitos de Quíron. A maioria destes só subsiste em fragmentos e os estudiosos divergem
muito quanto à sua autenticidade. A Teogonia e os Trabalhos e os Dias são os únicos, dentre
os que lhe são atribuídos, preservados na íntegra, ainda que alguns autores considerem que a
própria Teogonia não é de sua autoria
34
Este “segundo” não deve ser entendido nem na ordem temporal, uma vez que as
questões relativas à datação são, não só imprecisas, como também de pouca relevância para o
. Sem entrar no mérito destas questões, este estudo
tratará as duas obras como cantos de Hesíodo, fundamentado não só no peso da tradição que
assim o reconhece, como também, na interpenetração que a leitura dos dois poemas revela. A
complementaridade que as versões da Teogonia e de Os Trabalhos e os Dias exibem do mito
de Prometeu e Pandora é um belo exemplo da estreita relação existente entre estas duas peças
fundamentais da cultura ocidental.
32
Outro exemplo disso encontra-se no livro I de As Leis, onde Platão, pela voz do Ateniense, faz-se valer das
posições de Triteu e de Teógnis para, numa crítica dialética dirigida a ambos, construir a sua própria visão da
coragem.
33
Os gregos colocaram ao lado de Homero, como seu segundo poeta, o beócio Hesíodo.” cf. JAEGER,W.
(1995: 59). HERÓDOTO (História, II, 53) chamou atenção para a importância de Homero e Hesíodo na
formação religiosa e cultural grega: “Parece-me que Hesíodo e Homero, quanto à idade, foram mais velhos que
eu em quatrocentos anos, e não mais. Eles são os que compuseram Teogonia para os gregos, deram os nomes
aos deuses, distinguiram-lhes honras e artes, e indicaram suas figuras
.”
34
Cf. BALLABRIGA, A. In BLAISE, F. ; JUDET , P. ; ROUSSEAU, P. (199) pp. 71-82
13
propósito desta pesquisa, nem na ordem de grandeza, uma vez que os gregos jamais
demonstraram qualquer sinal de estima e admiração pelo segundo colocado em qualquer
competição. Pode-se propor outra interpretação para “segundo”, lendo-o como o outro, a
posição de diferença, conforme a dialética hegeliana, que o poeta ocupa com relação a
Homero. Deve-se, portanto, procurar descobrir o cantor destes versos pelo enfoque das
atenções nas semelhanças e nas diferenças que ele carrega e abre em relação a Homero, o
primeiro educador grego.
1.3.1 As semelhanças com Homero
Ambos fizeram parte do que se convencionou chamar tradição oral, onde a experiência
e conhecimento acumulados eram transmitidos na forma de poemas que eram compostos,
recitados e recebidos pelo público de forma inteiramente oral. Ambos compuseram seus
poemas em versos hexâmetros, provavelmente herdados da tradição indo-européia da qual o
idioma grego faz parte, que permitiam adaptações métricas e rítmicas que facilitavam a
memória, o centro de acumulação das informações. O verso era então a técnica mais apurada
para a comunicação, uma vez que o poema é mais memorizável do que um trecho em prosa,
e torna-se ainda mais memorizável quando incorporado à música, ou seja, quando cantado
35
Embora não se pretenda, neste trabalho, investigar questões relativas à datação
histórica, não se deve desconsiderar a tese, bastante aceita por parte dos estudiosos, de que a
Ilíada e a Odisséia já existiam e eram conhecidas na Grécia continental, num formato
.
Ambos compartilhavam do mesmo dialeto, o jônico, e seu vocabulário, bem como o
recurso abundante a fórmulas poéticas é praticamente o mesmo.
35
Cf. HAVELOCK, E. (1996) pp. 149- 89
14
bastante similar a como conhecemos estas obras hoje em dia, nos tempos de Hesíodo
36
. Esta
tese sustenta a premissa de que se valem todos os autores, dentre os pesquisados que
abordaram o tema, segundo a qual Hesíodo freqüentemente compõe seus versos a partir de e
contra Homero para anunciar a sua visão de mundo e, principalmente, sua visão moral
37
Ambos parecem ter sido capazes, devido à influência da escrita, de concentrar, em um
único poema, um material muito mais abrangente do que poderia ser disposto em uma
composição exclusivamente oral e também de fazer com que sua obra fosse interessante para
uma audiência muito mais abrangente, a ponto de adquirir um caráter pan-helênico, ainda
que não nos seja claro de que maneira a escrita influiu na composição destes poetas
. Esta
premissa sustenta também a presente dissertação.
Por outro lado, ainda que as obras de ambos os poetas façam pressupor essa tradição de
composição, apresentão e recepção totalmente orais, ambos parecem, também, ter
incorporado, de alguma forma, influências de uma nova tecnologia de informação a escrita
- ao seu poetar. É importante ressaltar que a assimilação por completo do advento do alfabeto
foi um processo muito lento na cultura grega. Até a consagração do texto completamente
escrito em prosa dos sofistas, de Isócrates e de Aristóteles, ainda é preciso ver surgir as
filosofias de Xenófanes, Empédocles e Parmênides, escritas em verso heróico, a poesia lírica
e os diálogos – cômicos, trágicos e socráticos.
38
Falar de deuses e heróis nesta tradição reveste-se de extrema importância, uma vez que
a sintaxe do enunciado épico não é essencialmente de caráter causal, reportando a informação
na forma de eventos particulares e realizados por um determinado agente. Assim sendo,
.
Homero coligiu, principalmente na Ilíada, heróis de todo o mundo grego, enquanto Hesíodo,
na Teogonia, fez o mesmo com os deuses, e ainda os convergiu todos à unidade,
submetendo-os ao poder de Zeus.
36
Cf. EASTERLING, P. E. ; KNOX, B. M. W. ( 2000) p. 63
37
Cf. CARRIÉRE, J.C. In BLAISE, F. ; JUDET , P. : ROUSSEAU, P. (1996) p.411
38
Cf. MOST, G. in HESIOD. (2006) p. XX
15
quando o evento a ser cantado trata do ambiente físico, como uma montanha, um terremoto
ou a origem de algum ser vivente, o único agente possível é um deus, pois só alguém desta
natureza pode estar em todas as partes. Só um deus pode ser um super-agente que explique a
ocorrência desses fenômenos onde quer que se vá. Por outro lado, um princípio moral não é
enunciado como tal, mas exemplificado como algo que um deus ou herói, mortal de origem
e inspiração divina, fez, deixou de fazer, ou não poderia ter feito.
39
1.3.2 As diferenças
Quanto às diferenças identificáveis em Hesíodo com relação a Homero, este nunca se
apresenta como narrador, limitando-se a cantar seu canto sobre os heróis e os deuses, que
serão referidos, na maioria dos casos, na terceira pessoa, ou falarão na primeira pessoa,
quando o poeta lhes der voz. A audiência a quem se dirige é igualmente indeterminada,
ficando seu canto disponível e endereçado a quem quiser ouvi-lo. Já Hesíodo fala em
discurso direto, na primeira pessoa do singular, tanto na Teogonia, quanto nos Trabalhos e
Dias, onde dirige-se a um interlocutor em específico, ora na segunda pessoa do singular, à
pessoa de Perses, seu irmão, ora na segunda pessoa do plural, quando fala aos reis, conforme
veremos adiante, mas o faz criando um efeito artístico que dá a ilusão de sermos nós a quem
o poeta se dirige, garantindo, assim, a força educativa de sua fala.
Ao manifestar sua intenção de contar suas verdades a Perses, Hesíodo abre outra
diferença capital com relação a Homero. Enquanto este narrava os feitos e os discursos dos
heróis nas guerras, que os conduziam à glória, sendo os heróis modelos de um mundo
aristocrático que fundamentava o direito dos reis numa ascendência divina e a guerra, o
campo de realização e expressão da nobreza e poder dos heróis, Hesíodo trata das questões
39
Cf. HAVELOCK, E. A. (1996) p. 240
16
das injustiças, das “hýbrides que cometem e acometem ao homem comum, nos seus
campos de realização e expressão: a ágora, a casa e o campo.
Enquanto em Homero homens e deuses interagem das mais variadas formas, como os
casamentos entre deuses e mortais, as diversas hierofanias e o ferimento infringido a Afrodite
nos campos de batalha de Tróia, apenas para citar alguns, em Hesíodo, o afastamento entre
deuses e homens é a regra. O contato entre deuses e homens é feito única e exclusivamente
pela palavra e, ainda assim, por especialistas: as Musas, como inspiradoras e os poetas, como
inspirados.
40
40
Cf. LECLERC, M. C. (1993) p. 107
É sob a ótica desta separação entre homens e deuses e desta condensação da palavra
como única via de comunicação que Hesíodo constrói a imagem e a função do poeta. A
compreensão desta construção deve englobar seus dois poemas preservados na íntegra.
A apresentação que Hesíodo faz de si mesmo na Teogonia o situa num duplo limiar.
Como pastor, a quem as Musas se dirigem no vocativo plural (Teog. v.26) e, portanto, não a
ele em específico, habita o espaço semi-selvagem dos campos de pasto não cultivados, mas
já submetidos a algum tipo de controle humano. Como poeta escolhido pelas musas dentre os
pastores, situa-se entre o canto divino que canta a raça dos eternos e sagrados entes imortais
(Teog. v.21) e as vergonhas da terra que se resumem aos ventres (Teog. v.26). O ventre é, de
fato, aquilo que aproxima o homem das bestas.
Hesíodo estabelece, então, uma definição do homem: este é um ser ambíguo situado
entre o divino e o bestial. Inspirado pelas Musas, seu canto deve obedecer a esta ambigüidade
e, para obedecê-la, deve dizer mentiras semelhantes aos fatos ou ainda anunciar revelações
(Teog. VV.27-8), não por dolo das Musas, mas para poder se fazer entender por ouvidos
igualmente ambíguos.
17
Como observa Leclerc, todas as menções ao “ego” poético da Teogonia estão no
registro da iniciação e mostram o poeta orgulhoso dessa distinção que o aparta da massa dos
pastores. Esta iniciação faz do poeta um privilegiado que não apenas é capaz de transmitir as
revelações divinas, mas lhe confere um acesso efetivo ao conhecimento da natureza real das
Musas
41
Em suma, vemos em Hesíodo um quádruplo deslocamento com relação a Homero: do
herói para o homem comum; da guerra para a “ágora”, isto é, para o cotidiano; da glória
para a Hýbris
.
Nesta perspectiva de separação, o poeta percorre um caminho inverso ao
distanciamento, constituindo-se no elemento de ligação destas duas instâncias e sua função é
a de impedir a derrocada total da humanidade.
O “ego” poético dos Tarbalhos e os Dias já se apresenta de uma forma diferente, ainda
que pautado nesta experiência de iniciação da Teogonia. Ultrapassando o âmbito da
expressão na primeira pessoa, o que por si só já é uma inovação em comparação a Homero, é
estabelecida uma relação entre um eu” e um “tu”, constituindo um auditório privilegiado,
que inaugura a possibilidade da representação do diálogo.
42
41
Cf. LECLERC, M.C. (1993) p. 82
42
Embora Hesíodo seja conhecido como o poeta da Justiça e do Trabalho e o desenrolar desta pesquisa chega
a destacar a Justiça como o valor supremo para a raça de ferro, predomina aqui o entendimento de que a Justiça
em si é inapreensível na sua totalidade e o homem só a conhece episodicamente e a partir de um evento que
desencadeia a sua busca. Este evento é a “Hýbris.
e, por fim, a separação entre deuses e homens. Embora todos estejam
interligados, o terceiro deslocamento é o que desencadeará a sua questão pela justiça e pelo
trabalho - via de consecução da justiça - temas centrais dos Trabalhos e Dias, que
aproximarão o poeta à filosofia prática. Doravante, e não só por questão de brevidade,
chamaremos o poema por Erga.
18
1.4 Uma limitação da tradução
Se, por um lado, a tradução do grego “Érga kaì Hemérai por “Trabalhos e Dias”
ficou consagrada, por outro, a tradução deérga” por “trabalho” é bastante problemática.
Em primeiro lugar pela visão contemporânea de trabalho: não se encontra na Grécia antiga
uma grande função humana chamada trabalho e que recobre todos os ofícios. Cada um deles
constitui um tipo particular de ação que produz sua própria obra. É exclusivamente em
função de seu valor de uso que cada produto era fabricado e a meta era torná-lo o mais
perfeito possível. Não existia lá a idéia de um processo produtivo de conjunto cuja divisão
permitisse obter do trabalho em geral uma massa maior de produtos.
Em segundo lugar, não existe, em grego, um termo que corresponda a “trabalho”.
uma palavra, pónos”, que se aplica a todas as atividades que exigem esforço penoso e não
somente às tarefas produtivas com valores socialmente úteis. “Érgon” é, para cada coisa,
para cada ser, o produto de sua própria força de realização, de sua virtude, de sua “areté”. A
ênfase do érgon” recai, portanto, na própria ação produtiva, na “práxis”, e não no produto,
no “póiema”. É justamente nesta perspectiva que deve ser lido o verso 382 dos Erga,
“ôd’érdein, érgon epì érgoi ergázesthai”, que se traduz como “assim obra: trabalho sobre
trabalho trabalha”, mas que deve ser lida como “assim obra (ôd’érdein): a força de
realização (érgon) na própria obra (epí érgoi) se atualiza (ergázesthai)”. Em outras
palavras, ao endereçar este conselho, não só a seu irmão, como também à audiência, Hesíodo
quer dizer que o efeito mais importante do trabalho se dá em quem trabalha, e não sobre o
produto do trabalho. É certo que o trabalho dá seus frutos, mas o fruto maior é a modificação
que ele opera em quem trabalha, conduzindo-o, pelo hábito do trabalho, à excelência, à
virtude, à “areté”. A estreita ligação que Hesíodo vê entre trabalho e virtude, entre “érgon”
e “areté” fica dramaticamente patente na famosa passagem dos caminhos:
19
Pois eu, que conheço o bem, te digo, Perses, grande tolo:
mui pronto a miséria conquista multidões,
é muito fácil: seu caminho é plano e está logo ali.
Mas perante a virtude suor ordenaram os deuses
imortais. É longa e inclinada a subida até ele, 290
espinhosa no início, mas quando se chega ao topo
mais fácil se torna, ainda que seja difícil.
20
2 Apresentação do poema
O poema é constitdo de um proêmio e de um único e prolongado discurso exortativo
porque moral e didascálico porque se propõe a contar verdades. Estas verdades são
apresentadas quer sob a forma de mito e fábulas, quer sob a forma de exortações e
ensinamentos diretos.
Numa apresentação rápida e superficial, para um aprofundamento posterior, o poema
contém, além do proêmio, o mito das duas Lutas, que repudia a violência; o mito de
Prometeu e Pandora que trata da oposição entre o trabalho e o ócio e da origem dos males
humanos; o mito das raças que, a partir da instauração da violência no mundo, justifica o
surgimento de Díke, a Justiça; e a fábula do gavião e do rouxinol, que faz nova condenação à
violência. Muitos entendem que estes mitos são o fundamento “teórico” para as exortações e
ensinamentos diretos que se seguirão a estes, que, por sua vez, irão tratar do valor da justiça e
das conseqüências da injustiça, da sazonalidade das fainas agrícolas e das ligadas à
navegação e do significado dos dias.
Uma vez que não se trata de uma forma de pensamento fundada na distinção entre
teoria e prática, nem tampouco na causalidade e nem no conceito, ainda que a luta pela
conquista deste chegue a ser dramática em alguns momentos do poema
43
43
Am do episódio das duas Lutas, no qual Havelock reconhece uma luta intensa para a gênese de um conceito
(cf. adiante), há ainda as passagens da invisibilidade da justiça (vv.249-62) e o desejo, para si e para o filho, de
não ser justo (vv. 270-73).
, talvez seja mais
prudente manter esta separação entre teoria e prática afastada da audição do canto dos Erga:
tudo aqui é ação. Levando-se em conta que Hesíodo conta como os deuses agem entre si
(Zeus e Prometeu), como agem com os homens (Pandora), como agiram os homens das raças
anteriores (mito das raças) e como agem os animais (gavião e rouxinol), para, finalmente,
mostrar como devem agir os homens de ferro, ou, dizendo de outra forma, mostrar não só
21
qual a parte que nos cabe neste latifúndio, mas também que este latifúndio está sujeito a
influências de outras esferas, talvez seja mais interessante dividir o poema, se é que ele
comporta , de fato, alguma divisão, em uma mitologia política e uma genealogia do homem
bom, entendendo a primeira como a apresentação da visão de mundo do poeta, mundo esse
onde o homem está irremediavelmente imerso daí a relutância na divisão, por mais didática
que sejae a segunda,como a descrição de todas as ações que competem ao homem
inseparável do mundo, ações estas que farão dele o que ele é.
Há uma variedade muito grande de temas e de formas expressivas que constituem uma
grande dificuldade para definir globalmente o poema e assinalar seus fundamentos temáticos
e conceituais
44
. Resumir ou sintetizar tamanha diversidade de temas e de formas de
expressão em uma única expressão, como por exemplo, dizer que se trata do poema do
trabalho e da justiça, como é constantemente dito, embora não seja incorreto, é insuficiente
para dar conta do poema. É importante ter em mente o alerta de Snell: “Hesíodo é
sistematizador, mas não é um pensador sistemático
45
O núcleo dramático do poema gira em torno de uma disputa que o irmão do poeta,
Perses, mantém contra ele, a propósito de uma segunda tentativa de divisão da herança
.” Em outras palavras, a unidade do
poema não se dá de forma espontânea. Esta tem que ser conquistada, e, para tanto, é
fundamental procurar entender como as partes aparentemente desconexas do poema podem
ser articuladas. Sendo mais específico, importa sobremaneira entender como as sucessivas
narrativas míticas articulam-se não só entre si, como também com os conselhos práticos que
Hesíodo dirige a Perses. Em síntese, para a consecução do objetivo a que este estudo se
propõe, a compreensão da estreita articulação entre a mitologia política de Hesíodo e a
genealogia do homem bom é tarefa essencial.
44
Nisto estão de acordo CÓRDOVA, op.cit. p.XVII e MOST, op. cit. p. XXVIII.
45
SNELL,B. (1975) p. 78
22
paterna, pois a partilha já havia sido feita e Perses já tinha aquinhoado uma porção maior do
que lhe cabia, devido ao suborno aos reis comedores de presentes (v.39)”.
É importante antecipar que em nenhum momento do poema será visto lutando para que
lhe seja restituído o que lhe pertencia e nem dará nenhuma informação, ou sequer indicação
sobre o desfecho do processo. Se o fizesse, se sua intenção fosse a simples solução do litígio,
seria um mero cronista e jamais poderia ter sido considerado o segundo educador da Grécia e
não haveria motivo para se estar aqui investigando sua contribuição para o alvorecer da
filosofia. A voz de Hesíodo foi a primeira a se erguer no mundo grego clamando pela justiça,
tanto com seu canto quanto com seus atos, seus, se a assimilação do termo grego for
permitida, érga. Para o verdadeiro homem justo, as palavras não podem jamais se dissociar
dos atos.
Estas considerações tornam obrigatória a leitura do poema. No mais, é digno de nota o
recurso a formas expressivas tais como o mito, o apólogo, alegorias, provérbios e máximas
tradicionais, bem como a confissões, relatos de experiências e recordações pessoais, estes
últimos, uma significativa novidade que Hesíodo introduziu na épica grega.
23
3 O encaminhamento da questão
A presente leitura terá como ponto de partida, por ser o verso onde o poeta anuncia o
seu projeto, o décimo verso dos Erga, de Hesíodo, onde se lê: “tu! Eu, por mim, a Perses
quero dizer as verdades
46
3.1 tu!
.”, identificando as três pessoas envolvidas neste verso, quais as
verdades narradas, quais os problemas encontrados para a sua composição e como estas
verdades, bem como sua enunciação, foram recebidas pelo pensamento filosófico que estava
em vias de se constituir no momento mesmo em que elas foram contadas. Esta leitura não
exclui, com se verá, os nove versos anteriores que constituem o proêmio. Muito pelo
contrário, entende-se aqui que a eleição deste verso como ponto de partida permite uma
melhor compreensão da articulação do proêmio com o todo da obra.
Os Erga se iniciam com uma breve invocação, em nove versos, às Musas para que elas
cantem e gloriem a Zeus, fundamento supremo de tudo que há. No décimo verso, como já
sabemos, o poeta enuncia o seu propósito: “tu! Eu, por mim, a Perses quero dizer as
verdades.”
Este proêmio, talvez pela dúvida que se lança sobre a sua autenticidade
47
Córdova
, talvez pela
sua brevidade, é freqüentemente negligenciado pelos estudiosos, mas revela-se fundamental
para identificar o “tu” que abre o verso 10.
48
46
Conforme tradução do autor que é apresentada na íntegra como anexo a este trabalho.
47
Cf. PAUSÂNIAS, 9.31.4-5 in HESIOD (2006) pp. 188-9
limita-se a dizer que a invocação de Hesíodo às Musas é importante para
compreender o poema como “uma obra teoricamente marcada pela zona de influência de
24
Zeus, que será o ponto de referência nem sempre visível, mas constante para a atividade dos
homens.” Hesíodo apela a Zeus para que siga impondo a justiça sobre a terra, enquanto ele,
que será o Eu” recorrente no poema importa frisar que, embora a obra seja cantada na
primeira pessoa do singular, Hesíodo jamais se nomeia em todo o poema
49
West
possui, por
inspiração divina, algumas verdades e as quer contar a Perses.
50
Para Rousseau
mostra que na poesia em hexâmetros era costumeiro começar a recitação com
um prefácio constituído por um hino a um deus, mas, com freqüência, estes proêmios
guardavam pouca conexão com o restante da obra. Cita, inclusive, a avaliação, da qual
discorda, de Crates, segundo a qual os dois proêmios hesiódicos podiam ser apostos a
qualquer poema épico. Segundo West, Hesíodo compôs cada proêmio tendo em vista cada
poema e, se Zeus é apresentado nos Erga com ênfase no seu aspecto de mentor e supervisor
da justiça, é porque o proêmio da Teogonia já narrou a história de seu nascimento e de sua
constituição no poder.
51
, o encadeamento temático entre as partes do poema é maior do que se
supõe. Tomando o proêmio da Teogonia como ponto de referência, observa que, enquanto lá,
no verso 9 (daí precipitando-se ocultas por muita névoa
52
por quem são os homens mortais famosos ou infames,
), as Musas se distanciam
cantando, aqui, no verso 2, elas são convocadas à presença - vinde!. Este movimento deve ser
entendido como uma descida do mundo dos deuses ao mundo dos homens. É interessante
acompanhar o proêmio de perto.
Musas da Piéria, que com cantos gloriais,
Vinde! Contai de Zeus, vosso pai, hineantes,
48
Cf. CÓRDOVA in HESÍODO (1986) p. XXI
49
Os versos 657-9 (conquistei com um hino troféu de três pernas alado/ o qual dediquei às [sagradas] Musas no
Hélicon/ lá mesmo onde a mim ensinaram o canto suave.) se cotejados com os versos 21-2 da Teogonia (elas um
dia a Hesíodo ensinaram belo canto/ quando pastoreava ovelhas ao pé do Hélicon divino.) podem ser
considerados como a “assinatura” do poema.
50
Cf. WEST in HESIOD (1978) pp. 136-7
51
Cf. ROUSSEAU, P.. In BLAISE, JUDET , ROUSSEAU. (1996) pp. 93-168
52
Todas as citações de versos da Teogonia são transcrições da tradução de Torrano in HESÍODO (1995)
25
lembrados ou esquecidos, pela força do grande Zeus,
pois fácil fortalece e facilmente ao forte enfraquece, 5
fácil o brilho escurece e o escuro esclarece
fácil do torto faz reto e humilha o forte.
Zeus trovejante que nas altas moradas habita,
vem! Vê e escuta: com justiça corrige as sentenças,
tu! Eu, por mim, a Perses quero dizer as verdades. 10
As Musas são convocadas para celebrar o deus que é justamente quem permite a um
homem cumprir uma ação que fará, não do homem, mas do próprio deus, tema de um desses
cantos de glória.
A chamada às Musas ao “aqui e agora” é uma legitimação do projeto do poema. É a
garantia de que o ensinamento do poeta será válido para cada uma das recitações sucessivas
que compõem o canto.
Este “aqui e agora” é um ponto abstrato que conjuga simultaneamente o encontro do
canto com seu auditório com o encontro do “Eu” que canta com “Perses”, encontro este que
apresenta verdades que, apesar de extraídas da própria experiência do cantor, permitem, pelo
conteúdo dramático, representar a condição presente da raça humana, operando, pela
semelhança aos fatos, uma passagem do particular para o universal, num deslocamento que é
a própria arte.
As Musas são então convocadas para uma tarefa dupla. Sua voz, enquanto voz da
tradição, confere autoridade à voz do poeta no instante mesmo em que ele se prepara para
fazer as suas admoestações. Mas é também a sua voz que celebra o deus que garante a
legitimidade e a pertinência do discurso que “Eu” dirige a “Perses”. Em outras palavras, a
voz das Musas une a voz de Zeus à voz do aedo.
Nos versos 3 e 4 (por quem são os homens mortais famosos ou infames/ lembrados ou
esquecidos pela força do grande Zeus.), é a ação de Zeus entre os homens que interessa ao
poeta: é pela vontade do deus que os homens são falados e lembrados. Se a glória que as
26
Musas dispensam é um privilégio do herói a quem Zeus concedeu realizar as façanhas que
devem ser cantadas, o rumor que se faz em torno do seu nome é o meio pelo qual a grandeza
de um indivíduo pode tornar-se matéria de canto. Nos versos 760-4, Hesíodo reconhece neste
rumor fama - um deus tão poderoso que aconselha Perses a evitá-lo.
O processo de tornar-se matéria de canto é então constituído de três momentos
sucessivos: 1) a ação de Zeus sobre o homem 2) o rumor que se faz em torno de seu bom ou
mau nome e 3) a glória que as Musas lhe dispensam ao torná-lo matéria de canto.
Rousseau, como já foi dito, vê nos versos 5 a 7 (pois fácil fortalece e facilmente ao
forte enfraquece/ fácil o brilho escurece e o escuro esclarece/ fácil do torto faz reto e
humilha o herói.) o cerne do hino. É aqui que a ação de Zeus será descrita, primeiro pelo
modo, facilmente, depois pela explicitação do que está em jogo. O que os versos 5 e 6
descrevem com suas expressões polares não são as vicissitudes da sorte que a tradição épica
já conhece muito bem e que Homero já cantou:
Assim os deuses urdem o fadário 525
Dos infaustos mortais: um viver agoniado
Sendo os numes incólumes; pois há dois cântaros
Nos umbrais de Zeus, cheios de dons que ele nos dá,
Uns de ruins, de bons o outro. Mescla-os Zeus fulmíneo
E os versa: ora mal, ora bem, depara 530
quem os receba; quando maldosos opróbrios
Apenas colha, malsinado vagará
Pela terra divina, famélico, menos-
-prezado por mortais e deuses
53
A oposição que os versos de Hesíodo põem em questão não é a que se estabelece entre
a obscura vida do miserável fadado ao esquecimento e o brilho da glória do rico ou do herói.
Zeus pode fazer perecer miseravelmente até mesmo aquele que parece destinado à glória.
Agamêmnon é um exemplo deste poder do deus. Nos Erga mesmo, este é o destino da raça
.
53
Ilíada XXIV, 525-34)
27
de bronze, de guerreiros poderosos. Todos os mortais estão à mercê de Zeus. Seus nomes e
suas glórias se definem pelas mesmas qualidades da tradição épica: eles se distinguem, se
Zeus quiser, pelo brilho e pela força de suas vidas.
O verso 7 introduz uma variação discreta, mas fundamental: a ação de Zeus é regida
por um princípio moral cuja pertinência e legitimidade são inteligíveis aos mortais. Este
princípio manifesta-se negativamente através do castigo que Zeus faz cair sobre o injusto e o
opressor. Uma análise atenta revela que a força e o prestígio de um homem não são
suficientes para assegurar-lhe o renome. Uma conduta que o preserve da ação punitiva do
deus que “corrige” o torto e humilha o forte é essencial para a consecução da e permanência
na boa fama.
O que vem à tona é uma revisão do ideal heróico e, por conseqüência, das normas
sociais que os cantos das Musas celebram e ilustram. É de dentro deste ambiente de reforma
e para dentro deste ambiente que o aedo, após ter conclamado a presença das Musas, suplica
a presença do próprio Zeus, designado, na abertura do verso 10, pela forma enfática do
pronome da segunda pessoa do singular týne, para junto de si e se permite anunciar o projeto
do poema: “Eu, por mim, a Perses quero dizer verdades.”
A presença de Zeus é convocada, no verso 9, com o emprego de quatro verbos. Os três
primeiros, “vem
54
Rousseau
, vê e escuta”, articulam-se num encadeamento que lhe reclama a presença
absoluta, que possibilitará ao deus exercer a função reguladora explicitada na segunda
metade do verso, “com justiça, corrige as sentenças.”
55
54
Embora a tradução literal do verbo κλυθι seja “ouve”, o sentido não deixa dúvida de que o suplicante
reclama a presença da divindade. Basta lembrar da súplica de Crises a Apolo, após ser rechaçado por
Agamêmnon, em Ilíada, I, 37. Eis a resposta do deus, na tradução de Haroldo de Campos: “Ouviu-o Febo
Apolo. Baixou do alto do Olimpo, coração colérico (...).”HOMERO (2002: I, 37)
55
Cf. ROUSSEAU In BLAISE, JUDET , ROUSSEAU. (1996) p. 105
chama atenção para o entrelaçamento de forças que se estabelece entre
“corrigir o torto”, no verso 7 e “corrigir as sentenças”, no verso 9.
28
O verso 7 trás algo de novo no que concerne à maneira com que Zeus exerce o seu
poder, e essa diferença não se dá apenas com relação a Homero, mas também com relação à
Teogonia. Até então, as Musas limitavam-se a narrar os efeitos inexplicáveis do arbítrio
divino. Agora, as Musas revelam que os câmbios de fortuna que Zeus infringe aos homens
são guiados por um princípio que se manifesta negativamente, na forma de um castigo, ou
uma correção. Por detrás da opulência a distinção que os heróis ostentavam, revelam-se a
arrogância e o engodo que a poesia anterior não sabia ou não queria ver.
É exatamente esse princípio que é invocado no verso 9 pela pessoa que se designará, no
verso 10, pelo pronome “egô” - “Eu”.
É vindo, vendo e escutando, que Zeus avalia e depois corrige, com justiça, as sentenças.
Isto também precisa ser esclarecido. As sentenças em questão são asthémistes”, sentenças
divinas, herdadas da tradição oral e, provavelmente transmitidas em versos, das quais os reis
eram os depositários e os ministradores. A justiça, Díke, era o ato pelo qual um rei
escolhia e designava, entre o acervo de “thémistes”, a sentença adequada a ser aplicada a um
determinado caso. Rousseau é bastante preciso: só se corrige, ou endireita o que é torto
56
.
Sendo as sentenças divinas, elas só podem ser tortas por catacrese, mas o ato de julgamento
do rei, este sim, é passível de ser torto e de ser corrigido pelo deus. O verso 221 dos Erga
parece confirmar esta leitura. Lá, são os homens comedores de presentes que, com trocas
escusas
57
56
Skolión. Erga, v.7.
57
Skolíes Díkes, literalmente, justiça torta. Por entender que uma justiça torta não é justiça, surge a opção por
“trocas escusas”
, decidem as sentenças.
O dever do bom rei é escolher adequadamente as sentenças. O mau rei, por outro lado,
escolhe as sentenças por decisões tortas. A necessidade do rei de escolher adequadamente as
sentenças tem uma razão de ser principal: evitar o castigo de Zeus, o que fica evidente nas
descrições da cidade bem governada (vv. 225-37) e da mal governada (vv.238-47).
29
Como se vê, embora o projeto formal do poema seja o de “dizer verdades a Perses”, a
necessidade de dirigir-se também aos reis já estava evidenciada desde o proêmio.
Em síntese, a lição que o proêmio encerra, e que se constitui em princípio moral que
será acatado pela cultura grega, condena todos os tipos de violência, sejam eles cometidos
pela palavra, sejam eles cometidos pela força. Platão parece tê-lo acolhido na íntegra, na
medida em que abre o livro X das Leis ao fazer o ateniense proferir as seguintes palavras:
“Após termos abordado os maus tratos, pronunciemos um único princípio de lei
referente a todos os atos de violência: ninguém carregará ou se apropriará de nada que
pertença aos outros, como tampouco deverá usar quaisquer dos bens de seu vizinho
salvo se obtiver deste o consentimento para seu uso, pois dessa ação procedem todos os
males mencionados – passados, presentes e futuros
58
Os maus tratos em questão foram abordados no livro IX, onde é estabelecido, inclusive,
um código penal, e lá neste livro são divididos em dois tipos principais, “(...) um concerne
aos atos cometidos ocasionalmente através de meios violentos e abertamente, o outro diz
respeito aos atos cometidos privadamente, encobertos pelas sombras e pela fraude, ou às
vezes, atos cometidos dessas duas maneiras.
.”
59
3.2 Eu
O “Eu” que fala, a um só tempo opõe-se e apóia-se no “Tu” divino. Este “Eu” parece
partir da tradição dos hinos homéricos às divindades, mas, nesta aparência, já carrega em si
um deslocamento.
Calame
60
58
PLATÃO. Leis.884a
59
Idem, 864c
60
Cf. CALAME, C. In BLAISE, JUDET , ROUSSEAU. (1996) pp. 169-89
mostra que dez dos hinos homéricos começam com um apelo à Musa, ou às
Musas, para cantar ao narrador, e, por extensão, à audiência, a divindade que é objeto da
celebração que o hino representa e cuja narrativa prossegue retratando o deus na terceira
pessoa, na voz do poeta que passa a ser um instrumento das Musas.
30
Este “Eu” não se mantém na postura convencional, ainda que parta dela. O deus, sem
jamais deixar de ser o fundamento doador do sentido de tudo o que há, sai do primeiro plano
e a narrativa parte das circunstâncias reais da indignação de um homem em litígio com o
próprio irmão e vilipendiado pelas sentenças tortas dos reis comedores de presentes.
Este “Eu” assume o papel de personagem da trama no momento exato em que anuncia
o destinatário do seu canto, que não é, como na tradição, o auditório, mas Perses, a quem
quer contar as verdades. Por outro lado, “Eu” não se reduz ao papel de simples personagem
da trama e nem se limita ao relato autobiográfico de um processo cujo resultado não dará
notícia no desenrolar do poema.
“Eu” ainda é, e sempre será, a voz das Musas que celebram o pai, mas igualmente
portadora de um reflexão sobre a própria tradição que as filhas da Memória encarnam,
reflexão esta que quer contar suas verdades fundadas no princípio moral contido no corpo do
proêmio.
Se o “Eu” que fala é uma elaboração poética, já que Hesíodo não se nomeia neste
poema, que parte do factual e perde o particular
61
61
É importante lembrar que Hesíodo não conta no poema o desfecho de sua questão jurídica. A ele não importa
comunicar um dado biográfico, mas antes dizer ao mundo que a luta pela justiça é possível.
para conquistar o universal, na medida em
que quem o lê ou ouve é levado a assumir a posição do falante, pode-se pensar que o
endereçado do discurso, “Perses”, que, ainda que apareça neste verso na terceira pessoa, será
sempre referido na segunda em todo o desenrolar do poema, também parta, igualmente, do
factual rumo ao universal, na medida em que quem o lê ou ouve vai ver em “Perses”
alguém, de sua relação com quem tem alguma diferença ou a quem quer ministrar algum
ensinamento moral.
Assim sendo, assume-se aqui, em conformidade com a maioria dos intérpretes que
Perses realmente existiu, e foi o irmão com quem Hesíodo manteve uma relação conflituosa.
31
3.3 Perses
O nome “Perses” aparece também na Teogonia, na linhagem do Céu, como filho de
Euríbia e Crios, “distinto de todos pela sabedoria” (Teog. vv. 375-7) e como pai de Hécate
“a quem mais Zeus Cronida honrou e concedeu esplêndidos dons” (Teog. vv. 409-12).
West
62
Por outro lado, Rousseau
levanta a hipótese de o pai de Hesíodo ter sido um adorador de Hécate, o que
justificaria a escolha deste nome.
63
chama atenção para o fato de que este nome pode significar
“destruidor de cidades”, pautado no segundo verso da Odisséia, que descreve Ulisses como
o destruidor de Tróia (epéi Troíes ierón ptolíethron épersen
64
3.4 Dizer Verdades
). Este nome faz de Perses
virtualmente um herói de uma epopéia de tempos idos e convém perfeitamente ao intento de
Hesíodo de assinalar a mudança de paradigma do herói para o homem civil: enquanto a
fortuna do herói era construída pelo saque às cidades que eles arrasavam, a fortuna deste
novo herói deve ser conquistada com o suor do próprio trabalho.
Para que se possa esclarecer minimamente a natureza das verdades que o poeta quer
dizer a Perses, algumas considerações de ordem filológicas são necessárias. A palavra
aqui empregada para designar verdade é etétyma, diferente de alétheia, que é mais freqüente.
Os autores pesquisados são unânimes em admitir que elas não são sinônimas. Deve-se
também levar em consideração a observação de Benveniste que diz que muitas vezes recorre
a Hesíodo para determinar o valor exato de certos termos, uma vez que as escolhas do poeta
62
Cf. WEST in HESIOD (1966) p. 278
63
Cf. ROUSSEAU in BLAISE, JUDET , ROUSSEAU. (1996) p. 112
64
Grifo nosso.
32
refletem a busca de um esforço rigoroso para constituir um léxico que seja adaptado ao seu
tema e que contribua para ordenar as noções
65
Em primeiro lugar, ao tocar o problema da verdade, este verso evoca de imediato os
versos 27 e 28 da Teogonia : Sabemos muitas mentiras dizer símeis aos fatos/ e sabemos, se
queremos, dar a ouvir revelações.”, onde as verdades que as Musas sabem e, quando
querem, proferem, aparecem em oposição às mentiras semelhantes (homóia) aos fatos
(etýmoisin). Mesmo estes versos parecem ter antecedentes homéricos. Rousseau
.
66
Na Teogonia, a expressão é retomada, mas há uma substituição de verbo e mythesáimen
agora diz-se gerýsasthai, que parece designar uma modalidade particular da palavra divina.
De fato, Leclerc afirma que este verbo só é empregado duas vezes em Hesíodo, sendo a
segunda, também associada a uma deusa. No verso 260 dos Erga, quando Díke, a Justiça,
denuncia a mente dos homens injustos”, o verbo empregado é gerýomai. Este verbo é
ausente em Homero
assinala
que a expressão “alethéa mythesaímen” aparece em diversos contextos pragmáticos na
Ilíada, na Odisséia e no Hino a Deméter. É a partir deste último que se pode começar a
delinear o peso específico que Hesíodo quer atribuir á sua expressão. Lá, alethéa marca os
enunciados da deusa, enquanto etétyma, os do poeta.
67
Logo, não é de surpreender que ao encerrar o proêmio onde, com a vênia das Musas,
anuncia (gerýetai) o princípio (alethéa) de Zeus contido no verso 7, o poeta queira dizer
. Esta anunciação/denunciação é um apanágio dos deuses. Hesíodo
jamais o utiliza para designar a sua própria palavra poética ou a de qualquer mortal.
Mythésasthai é o modo da enunciação humana.
A escolha de palavras distintas para designar saberes distintos, marca não só a distância
que separa deuses e homens, como também indica a posição do poeta como o único, dentre
os homens, capaz de transitar entre estes dois níveis.
65
Cf.LECLERC. (1993) p. 78
66
Cf. ROUSSEAU. In BLAISE, JUDET , ROUSSEAU. (1996) pp. 113-15
67
LECLERC (1993) pp. 204-5
33
(mythesaímen) a Perses as verdades (etétyma) que o permitem submeter-se a este princípio e
pôr-se a salvo do castigo de Zeus. Uma vez que estas verdades são empíricas e implicam em
ações, o discurso terá sempre o tom imperativo, marcado pelos verbos érdein (vv. 35 e 382)
agir e ergázesthai (ao longo de todo o poema), trabalhar, obrar. Em outras palavras,
agindo, e agindo segundo a forma preconizada pelo poema, é que pode o homem inserir-se
na ordem de Zeus, ordem esta que marca o fim do ideal heróico.
3.4.1 As Duas Lutas
A primeira verdade que o poeta conta a Perses é introduzida sob a forma de uma
retificação: pois não há uma só raça de Lutas, mas sobre a terra /são duas. A uma louva
quem conhece/a outra é lastimável, espíritos opostos dominam.” (Erga, vv. 11-13) e ocupa
os versos 11 a 41.
Todos os estudiosos visitados concordam que há, nos três versos citados acima, uma
referência aos versos 225 a 232 da Teogonia, onde a Luta – Éris- é apresentada como filha da
Noite, mas a concordância entre eles parece terminar , o que também não quer dizer que a
discórdia seja predominante. Na verdade, cada comentador aborda este episódio sobre um
determinado prisma, assim sendo, uma revisão do que tem sido comentado, não só sobre esta,
mas a respeito de todas as narrativas míticas do poema será de extrema utilidade para que se
possa construir uma compreensão das verdades do poema e de como estas verdades se
articulam para constituir o modelo de ação que se está aqui investigando.
A ênfase que Hesíodo coloca na existência das duas Lutas sobre a terra pode ajudar a
entender porque Hesíodo não as distinguiu na Teogonia. A terra é o lugar onde se exercem as
atividades humanas, em oposição ao mundo dos deuses. A terra é, portanto, o lugar onde a
34
distinção entre as Lutas adquire sentido. Pode-se perceber aqui, de um modo mais preciso a
distinção entre alétheia e etétyma. O lugar dos homens é o lugar das etétyma.
O primeiro momento desta passagem (vv.11-26) pode ser entendido como uma
apresentação ampla e teórica da distinção entre as duas Lutas, enquanto na segunda parte o
aedo tenta persuadir Perses a abandonar a Luta má descrevendo os efeitos diretos e práticos
que esta desencadeia sobre os homens.
Pois não há uma só raça de Lutas, mas sobre a terra
são duas. A uma louva quem conhece
a outra é lastimável. Espíritos opostos dominam.
Uma traz a guerra, o mal e a discórdia,
Nenhum mortal a ama, mas submissos 15
à vontade dos imortais, honram a Luta opressora.
A outra, engendrou-a primeiro Noite tenebrosa.
Fincou-a o Cronida altirregente que mora no éter
nas raízes da terra; é muito melhor para os homens.
Esta desperta ao trabalho até o indolente 20
pois anseia por trabalho ao olhar para o outro,
rico, que se apressa a arar, e a plantar
e bem dispor a casa. E vizinho inveja vizinho
que corre atrás da riqueza. Boa Luta para os mortais.
O oleiro provoca o oleiro e carpinteiro ao carpinteiro, 25
mendigo inveja mendigo, aedo a aedo.
Segundo Mazon
68
Córdova observa que a Luta má é imposta aos homens pelos imortais, provavelmente
como parte da punição do “pecado original” cometido por Prometeu (Teogonia, vv. 535-
, no momento exato de apresentar os grandes temas do poema, Justiça
e Trabalho, temas estes que se fundem em um único, uma vez que o trabalho é a única via
para a justiça, Hesíodo percebe a ambigüidade da palavra grega para Luta. O homem é
dotado de um instinto para a luta que precisa ser satisfeito. Se este é dirigido para o trabalho,
torna-se uma emulação fecunda, voltado para a guerra, é a ruína.
68
Cf. MAZON inSIODE (2002) pp. 71-2
35
560). A Luta boa, “para os homens, muito melhor”, é dádiva de Zeus, o ordenador do mundo
divino e humano, entendendo aí que o aedo quer reservar a Zeus uma função eminentemente
positiva e profundamente moral, evitando associar o nome desse deus à Luta má
69
Segundo Most
.
70
Apesar destas considerações, o comentador é cauteloso: “Se, por um lado, a nova
tecnologia forneceu a condição de possibilidade dessa glosa, é muito pouco provável que ela
tenha sido a sua motivação.
, há nesta passagem uma forte influência da escrita, tanto no que toca à
composição, quanto à divulgação do poema, partindo da suposição de que a audiência
conhecia o outro poema e que de algum modo essa revisão no número das Lutas importaria
para ela.
Numa situação de composição, transmissão e recepção exclusivamente oral, essa
variação no bojo da narrativa não se constituía um problema digno de nota. Diferentes
versões de um mesmo mito eram produzidas e estas diferenças eram introduzidas para
satisfazer uma necessidade pontual de uma apresentação poética, no que diz respeito àquilo
que está sendo posto em cena naquele encontro particular daquele rapsodo com aquela
platéia. É inerente, e, até mesmo, essencial que o mito mude para permanecer, como bem
ilustra o dito popular onde ouve-se dizer que “quem conta um conto aumenta um ponto.”
Vista deste modo, prossegue Most, a revisão de Hesíodo no verso 11 dos Erga sugere
que o poeta tira partido dessa nova técnica de comunicação e também que a própria
audiência, ou alguém na audiência, poderia dispor de um registro inalterado onde se pudesse
checar in loco a contradição.
71
69
Cf. CÓRDOVA in HESÍODO (1986) p. XXIII
70
Cf. MOST. in HESIOD (2006) p. XXI
71
Idem, p. XXII
Sugere, então, uma nova resposta para as duas perguntas que
já estavam implícitas desde a argumentação acima: “Por que ele não guardou silêncio sobre
a mudança de uma para duas Lutas? Por que se deu o trabalho de sublinhar essa questão?”
36
A resposta, para Most, pode estar no verso anterior a essa proclamação, que é,
exatamente, o verso que nos orienta nessa investigação: das verdades anunciadas, esta é a
primeira.
Entendendo esta manobra como um recurso retórico, Most argumenta que, para auferir
credibilidade ao próprio discurso, Hesíodo faz uma admissão pública de que estivera
enganado na outra oportunidade. Tanto na poesia de Hesíodo como em outros casos, a auto-
representação está sempre a serviço da auto-legitimação
72
Para West
.
73
O tema da justiça só será abordado posteriormente. Para o momento importa reafirmar
a necessidade do trabalho, o que será feito pelo recurso ao mito de Prometeu e Pandora.
Usando a associação de idéias como fio condutor, West entende que o final da narração deste
mito solicita o mito das raças, já que ambos são mitos de queda que instauram a necessidade
o discurso de Hesíodo não obedece a um plano pré-estabelecido. A escolha
de começar a enunciar suas verdades pelo tema das duas Lutas seria então resultante de uma
combinação acidental de dois fatores, o primeiro sendo um procedimento comum na poesia
épica e o segundo, uma possível revelação da existência de duas Lutas posterior à Teogonia.
O procedimento comum é o de recolher alguns mitos disponíveis na cultura oral e arranjá-los
numa sequência que satisfaça o intento do poeta, o que não chega a constituir um argumento.
Na verdade, West assinala que “argumento” seria uma palavra muito forte para o caso em
tela, prevalecendo a associação de idéias como procedimento metódico de composição.
Assim sendo, Hesíodo teria começado sua parênese pela retificação de um conteúdo do
seu poema anterior. A partir daí ele apresenta o motivo principal do presente canto a
disputa com Perses, que é uma Luta má. Fica estabelecido então que Perses deve voltar suas
forças para o trabalho e que os reis venais devem corrigir suas sentenças.
72
Idem, p. XXII
73
WEST in HESIOD (1966) pp. 46-9
37
do trabalho entre os homens, mas o desvio que o poeta introduz neste mito ao acentuar a
decadência moral dos mortais finda por reintroduzir o tema da justiça.
Tanto Havelock quanto Rousseau vão além da retificação à Teogonia e assumem que
este tema remonta a Homero. Enquanto este assinala que a oposição entre as duas lutas é
expressa numa fórmula que condensa diversas expressões da Ilíada sem que nenhuma delas
seja reproduzida exatamente
74
, Havelock aponta alguns versos iliádicos como os
antecedentes dos versos de Hesíodo. Estes versos retratam Éris como suscitadora dos
instintos combativos do homem na batalha, uma aflição possessa de uma energia apaixonada,
mas também benéfica. “Em particular, ela ama e estimula a competição equilibrada. Zeus e
os deuses em geral a deixam campear livre entre os homens. Ela pode crescer até o ponto de
encompassar a terra e tocar o céu.
75
Nos Erga, uma vez que Éris, como aquela que trilha a terra o significado de sua
presença na terra será abordado mais adiante cinde-se em duas: como espírito do combate e
enviada pelos deuses
Outro registro importante no estudo de Havelock é a observação de que a própria Ilíada
orbita em torno da Éris que se estabelece entre Aquiles e Agamêmnon.
A racionalização operada na Teogonia – é o que sugere Havelock – envolve a Luta num
esquema genealógico, apresentando-a como descendente da Noite e como genitora de, entre
outros, Batalhas, Combate, Massacres, Litígios, Mentiras, Falas e Disputas (Teog. vv. 225-9).
Luta é então uma figura simultaneamente opressiva e formidável.
76
74
ROUSSEAU . In BLAISE, JUDET , ROUSSEAU. (1996) p. 120, cf. nota 6
75
HAVELOCK (1996) p. 225, cf. notas 5 e 6
76
Cf. ROUSSEAU In BLAISE, JUDET , ROUSSEAU. (1996) p. 122
, torna-se a má contenda, mas com fonte de energia que participa da
disputa equilibrada, sugere os atributos da boa contenda. Como fonte de litígios, ela dá
matéria para os versos que introduzem a disputa judicial com Perses.
38
Havelock reconhece aí, nessa tomada que engloba sucessivamente Ilíada, Teogonia e
Erga, “um ato de genuína criação intelectual” e prossegue: “um conceito nasceu, ou antes,
recebeu expressão linguística, coisa que era o principal objetivo da batalha.
77
Havelock entende a passagem como uma tentativa de expor uma tese formal com um
certo grau de rigor lógico e chega mesmo a propor uma paráfrase para evidenciar a sua
estrutura argumentativa.
78
Em síntese, para Havelock, Hesíodo sustenta uma lógica rigorosa que só se sustenta nos
primeiros versos desta passagem (vv. 11-26), mas esta se afrouxa por que o poeta é
compelido a recorrer a um vocabulário imprestável para seus propósitos
Segundo este autor, o poeta tem, de fato, em mira, uma unidade argumentativa difícil
de alcançar porque ele trabalha com frações e peças disjuntas de verso, extraídas de seu
acervo oral, as quais ele tenta juntar de um novo modo.
Um bom número de unidades constitutivas dessa composição consiste de provérbios
independentes tais como “o vizinho inveja o vizinho que corre atrás de riqueza” (vv. 23-24),
ou ainda, “o oleiro provoca o oleiro, o carpinteiro ao carpinteiro, o mendigo inveja o
mendigo, o aedo ao aedo.” (vv. 25-26), bem como “pois o tempo é curto p’ras arengas da
ágora para quem não guardou o sustento de um ano.” (vv. 30-31).
Quando lida em conjunto, avalia Havelock, a passagem dá impressão de um único fio
de significado consistente, só que o fio é, por demais tênue para alinhavar fórmulas populares
cunhadas numa época anterior à distinção das duas Lutas.
79
Córdova não vê este esgotamento lógico proposto por Havelock. Para ela o núcleo
lógico do episódio não é a cisão da Luta original em duas, mas o próprio trabalho, e a cisão é
.
77
HAVELOCK (1996) p. 227
78
Idem, p. 221
79
Idem, p. 227
39
feita exatamente porque a concepção anterior de Luta não dava conta para narrar as verdades
que o poeta tinha em mente
80
80
Cf. CÓRDOVA in HESÍODO (1986) p. XXIV, cf. também nota aos versos 27-41,pags. CCLXXV onde
critica especificamente a posição de Havelock.
.
Rousseau, guiado pela leitura de que Hesíodo intenta reverter os paradigmas morais da
tradição épica fazendo-se valer da própria composição épica.
Segundo este autor, importa então descobrir qual o sentido desta distinção entre as
Lutas e qual o papel que Hesíodo lhe destina dentro do projeto do poema, que será o de
construir um novo modelo de herói. Dentro desta perspectiva, aceitar Perses como um
homem regrado pelos modelos da ética épica pode ser uma chave útil para a compreensão do
que está sendo criticado e do que está sendo exaltado, e é exatamente isso que Hesíodo faz
com as Lutas: critica uma e exalta outra.
Assim sendo, é compreensível que Hesíodo comece sua fala pela Luta lastimável: ele
deve construir a imagem da Luta a partir de e contra a luta que enseja guerras e querelas, uma
potência muito bem conhecida do auditório da poesia épica e, uma vez que ela já é bem
conhecida, o poeta não vê necessidade de dedicar-lhe mais do que três versos.
Rosseau considera a entrada em cena da segunda Luta como uma revolução nas normas
sociais. Dez versos (vv.17-26) são dedicados à boa Luta, numa disposição temática que o
comentador disseca cuidadosamente em três segmentos. O primeiro, que compreende os
versos 17 até o primeiro hemistíquio do verso 19, aborda o nascimento desta boa Luta e seu
lugar dentro da ordem estabelecida por Zeus: A outra, engendrou-a primeiro Noite
tenebrosa./ Fincou-a o Cronida altirregente que mora no éter/ nas raízes da terra.”
O segundo segmento inicia-se no segundo hemistíquio do verso 19 e estende-se até o
verso 24. Aponta o valor desta luta para os homens (v.19b), incita o indolente ao trabalho por
meio da visão (20-21) do rico que se aplica ao seu trabalho (22-23a), põe em evidência a
emulação entre os vizinhos (23b-24a) e reforça o valor desta Luta para os mortais (24b).
40
O terceiro segmento destaca competição entre os artesãos (25) e a inveja que se
estabelece entre mendigos e entre poetas (26).
O núcleo desta unidade é o segundo segmento, para o qual Rousseau ainda acrescenta
uma interessante observação sobre a composição poética. O homem rico que trabalha ocupa
o verso central deste quadro que é emoldurado tanto acima quanto abaixo pela afirmação do
valor positivo desta nova Luta. Entre as extremidades e o centro, o modo com que a Luta
produz seu efeito: a emulação. Justifica-se então a reprodução deste painel:
nas raízes da terra; é muito melhor para os homens.
Esta desperta ao trabalho até o indolente 20
pois anseia por trabalho ao olhar para o outro,
rico, que se apressa a arar, e a plantar
e bem dispor a casa. E vizinho inveja vizinho
que corre atrás da riqueza. Boa Luta para os mortais.
Foi desencadeado aí um novo ágon”. Enquanto na guerra o inimigo requisita uma
ação direcionada para fora e que visa à destruição, o encontro com o vizinho desencadeia
uma ação voltada para si mesmo e que visa à autoconstrução. A guerra porta uma
transitividade direta enquanto o trabalho porta uma transitividade reflexiva, uma “vox
media” que a língua grega soube muito bem expressar e nós não sabemos traduzir:
ergázomai e ponoûmai.
O herói da nova epopéia é o homem rico cuja prosperidade salta aos olhos dos vizinhos.
Suas ações e seu sucesso, por responderem aos desígnios de Zeus, podem ser dados como
modelo à comunidade. A reversão de paradigma ainda é sutilmente reforçada pelo emprego
de dois verbos, despertar, egéiro”, e apressar, spéudo”, que têm como complemento na
Ilíada ações ligadas à guerra, tais com cantos de guerra, batalha, ira, ódio e outros, aqui
direcionados para o trabalho. Alguém poderia objetar que tudo isso é trabalho: ações de
guerra (as polémeia Erga) da Ilíada, mas o poeta já explicitou que tipo de trabalho ele põe
em evidência: o trabalho agrícola. As façanhas deste novo Aquiles, como Rousseau o
41
designa
81
A concordância unânime dos eruditos quanto à remissão que o poeta faz à Teogonia,
mostra que seu pensamento está em constante processo de revisão, seja de Homero, de si
próprio ou dos mitos que formavam o seu ambiente cultural. Já foi visto que Hesíodo compõe
a partir de e contra Homero, e é preciso esclarecer que o faz de diversas formas, seja
conferindo um novo sentido a um verso herdado na íntegra de Homero
, apresentam desde já o que será mais tarde o foco principal do poema, a partir do
verso 383: arar, plantar e cuidar bem da casa (v. 22 e 23).
A passagem em revista, ainda que de maneira sucinta, das observações que os
estudiosos construíram a respeito do mito das duas Lutas, permite então, começar a construir
uma compreensão não só desta narrativa, mas também da função que ela desempenha no
corpo do poema. Para tanto, também é preciso entender o modo de composição poética de
Hesíodo, que é reflexo direto de seu modo próprio de articulação de pensamento. O estudo
das duas Lutas é igualmente válido para esta tarefa.
82
, seja quebrando
versos homéricos, fundindo-os em um único que assumirá um novo sentido ou função
83
A revisão do mito das Lutas não é caso isolado. A Teogonia e os Erga apresentam
versões distintas do mito de Prometeu, e tudo leva crer, conforme ficará demonstrado mais
adiante, que o mito das Raças nem ao menos seja grego na sua origem. Para dar voz a seu
pensamento mantendo-se nos rígidos limites do verso hexâmetro, o poeta se vê obrigado a
modificar mitos e versos herdados da tradição e adaptá-los aos seus propósitos, procedimento
este que será herdado não só pela tragédia, mas também pela filosofia. Como se verá em
breve, Platão, entre as diversas criações e adaptações de mitos que permeiam sua obra, opera
, ou
ainda pela especificação do emprego de uma palavra que Homero empregava mais
livremente, como no caso de alethéa, abordado acima.
81
Cf. ROUSSEAU In BLAISE, JUDET , ROUSSEAU. (1996) p. 125
82
Como no caso do verso 360 do canto XIX da Odisséia, adotado na íntegra como o verso 93 dos Erga. Cf.
CARRIÈRE, J. C. in BLAISE, JUDET , ROUSSEAU. (1996) pp. 398-9
83
Como no caso do verso 35 da Teogonia, elaborado a partir de fragmentos dos versos 163 do canto XIX da
Odisséia e 122 do canto XXII da Ilíada. Cf. LECLERC (1993 ) pp. 183-9
42
uma interessante adaptação no mito hesiódico das raças para que este possa servir aos seus
interesses nas Leis, herdando de Hesíodo não só o mito propriamente dito, como também a
lição de adapta-lo aos seus interesses. Pode-se dizer que Hesíodo é um pensador dialético.
Mazon aponta para o problema da ambigüidade da palavra grega para designar luta.
Isto é, sem dúvida, correto, mas insuficiente. É preciso acrescentar que ao deparar-se com
esta ambigüidade, ao constatar, antes da formulação do princípio da não contradição, que a
luta não pode ser simultaneamente boa e má, a única operação lógica possível era cindi-la em
duas.
Hesíodo não antecipou este princípio: viveu-o, experimentou-o no limite (péras), talvez
por influência da escrita, como sugere Most, talvez como recurso retórico, ainda segundo o
mesmo autor, mas a retórica hesiódica não parece ser uma do tipo que visa unicamente a
persuasão. Parece antes ser a boa retórica, aquela que subordina forma ao fim. É justamente
esta subordinação religiosa ao fim o princípio de Zeus, que o autoriza e o leva a
desconstruir os discursos vigentes e lançar-se na construção de outro discurso que ajudará a
construção de um outro mundo.
Mas Hesíodo não se livra da ambigüidade apontada por Mazon ao cindir a Luta em
duas, ao contrário, esta vai acompanhá-lo até o fim. Ela continua presente aí mesmo, no mito
das Lutas, conforme observa Córdova, ao sustentar que o verdadeiro propósito desta
narrativa é introduzir o tema do trabalho, ambíguo por natureza, já que este, por um lado,
confunde-se com sofrimento e dor (pónos) e, por outro, é o modo próprio do homem
submeter-se ao princípio de Zeus. No mito de Prometeu e Pandora, essa submissão é animada
por uma força igualmente ambígua, a Esperança, que não se sabe se é um bem ou um mal.
Por fim, enraizada na própria condição humana, ou ao menos na raça de ferro, a ambiguidade
será apresentada como polarização entre Díke e Hýbris.
43
A compreensão da articulação entre a passagem do proêmio e o mito das Lutas faz cair
por terra aquela leitura de West segundo a qual Hesíodo não obedece a um plano definido.
Este plano existe, mas não se dá a conhecer de imediato, decerto devido às limitações da
linguagem que Hesíodo tinha ao seu dispor, limitações estas que animam a discussão que
Córdova trava com Havelock quando este afirma que o fio lógico que o poeta lança mão para
narrar o mito das lutas chega ao verso 26 esgarçado, tênue, prestes a se partir. As
observações de Córdova, somadas às de Rousseau tornam possível ir mais além, não só na
leitura do mito, como também na leitura do poema como um todo e constituem um convite
para tentar descobrir se em algum momento Hesíodo esgota suas possibilidades de expressão
ou se é o entendimento contemporâneo que esgota suas possibilidades de acompanhar aquele
pensamento.
3.4.2 Prometeu e Pandora
Dentro dessa linha de interpretação, é bastante razoável, e até lógico, que o episódio
seguinte seja o mito de Prometeu e Pandora, que, sendo um mito de queda, vai contar a
origem da necessidade do trabalho para os homens.
Hesíodo aborda este mito tanto na Teogonia, quanto nos Erga, e a forma que o faz
neste último parece ser uma complementação da primeira. Os pontos principais que
sustentam essa afirmação são a ocultação do fogo e a criação de Pandora, ambos atos de
Zeus, ambos presentes tanto na Teogonia, quanto nos Erga. O roubo do fogo e sua restituição
ao homens, por parte de Prometeu, narrados nos Erga, constituem, na verdade, o segundo
engano de Prometeu a Zeus, mas neste poema, Hesíodo não faz nenhuma menção ao
primeiro, o incidente em Mecona, que é abordado apenas na Teogonia. A criação de Pandora
também aparece nos dois poemas, mas, enquanto na Teogonia o poeta lhe dedica poucos
44
versos e nem ao menos a nomeia, designando-a como “a primeira mulher”, nos Erga, há uma
descrição mais longa e cuidadosa.
Em uma breve síntese, o mito, como um todo, desenvolve-se desta forma: deuses e
homens reuniram-se em Mecona (Teogonia, 535-6) para que Zeus presidisse a partilha de
honras e lotes entre os deuses, pois “homens e deuses tiveram a mesma origem” (Erga,108).
Desde então, os homens foram obrigados a prestar sacrifícios aos deuses e estes se afastaram
daqueles.
Na hora do banquete, Prometeu quis enganar a Zeus, induzindo-o a escolher um belo
arranjo que, na verdade, só continha ossos e gordura, reservando as melhores carnes para os
mortais. Zeus desmascara o engodo e esconde o fogo dos homens (Teogonia, 563-4 e Erga,
50). Prometeu rouba o fogo de Zeus e os devolve aos homens (Teogonia, 565-7 e Erga, 50-
2). Zeus, encolerizado, dá, então um mal aos homens, que é a primeira mulher (Teogonia,
590-612), Pandora (Erga, 60-104). O castigo de Zeus é concebido na forma de um engano,
pois os homens vão ficar encantados com a sua beleza sem atentar para que esta, de fato, traz
um mal dentro de si (Teogonia 588-9 e Erga, 57-8). Na Teogonia, a primeira mulher
inaugura a linhagem das mulheres que vão consumir todas as forças dos homens (Teogonia
591-612), enquanto nos Erga, Pandora dissemina os males sobre a terra ao destampar o jarro
que os continha, restando apenas a Esperança (Erga, 90-105). O castigo que coube a
Prometeu só é abordado na Teogonia, na introdução do mito (Teogonia 521-5).
Segundo Mazon
84
, para quem as verdades de Hesíodo podiam ser resumidas em dois
preceitos: “Trabalhe! e “Seja justo!”, o mito vem como um apoio relativo ao preceito do
trabalho. Córdova
85
84
MAZON in HÉSIODE (2002) p. 71
85
CÓRDOVA in HESÍODO (1986 ) p. XXVI
, numa leitura mais detalhada, aponta outras implicações, além desta, que
admite ser a principal, e o apresenta como um fruto da reflexão do poeta, elevando essa
passagem a um valor genérico, quase universal.
45
Para Córdova
86
O recorte aí operado, omitindo o primeiro engano relatado na Teogonia, não parece se
dever a uma abreviação pelo fato de, possivelmente, já ser conhecido pela audiência, mas
para acentuar a parte que se relaciona com os males. Estes males são ambíguos, pois o
trabalho, a despeito do cansaço que o acompanha, constituir-se-á, como será explicitado
adiante, na única via de consecução da justiça. O trabalho, que em Hesíodo é essencialmente
agrícola, será, juntamente com os sacrifícios que os homens são obrigados a prestar aos
deuses, uma forma de prestar-lhes honras e de aproximar-se deles
, o mito fala da condição humana a partir do afastamento entre homens e
deuses, afastamento este que inaugura nos homens as obrigações de prestar sacrifício aos
deuses e de trabalhar pelo sustento “senão comodamente em um só dia trabalharias para
teres por um ano, podendo em ócio ficar.” (Erga, 43-4), inaugurando também a cultura; fala
ainda da Esperança, que é introduzida como um conceito ambivalente, mas fundamental para
a humanidade. Segundo a autora, só assim é possível compreender como o mesmo mito é
utilizado duas vezes e com finalidades diferentes.
A narrativa começa nos versos 42-9, onde Hesíodo apresenta a sua “tese’: os bens são
escondidos dos homens pelos deuses, e explica o motivo: Zeus os ocultou por causa de
Prometeu:
Os deuses mantêm ocultos aos homens o alimento
senão, facilmente trabalhavas só um dia
e o tinhas por um ano, mesmo ocioso,
e logo içavas o leme acima do fumo 45
e largavas as obras dos dóceis bois e mulas.
Mas Zeus o ocultou, de cólera mente:
a ele lesou Prometeu de curvo pensar.
Por isso tramou para os homens duros castigos:
87
86
CÓRDOVA in HESÍODO (1986) p. XXVII
87
Esta percepção permanece no pensamento grego através dos séculos e o trabalho agrícola será visto sempre
como um culto a Gaia e Deméter.
. E a mulher será ainda
46
mais ambígua, pois o engano de Zeus fez com que ela parecesse um bem, enquanto, na
verdade era um mal, mas tanto na Teogonia, e principalmente neste poema (603-12), quanto
nos Erga, em menor escala (405-7), a mulher bem escolhida é considerada como um bem
que alivia a dureza da vida.
Ao abordar a Esperança, Córdova
88
A resposta se dá com a leitura do poema. Segundo ela, Hesíodo dá uma lição
metodológica: “os elementos particulares não podem ser explicados por si só; têm de ser
relacionados simultaneamente com o contexto imediato e com o global.
formula três hipóteses interpretativas: a) Hesíodo
concebe a Esperança como um bem em meio aos males, ou como um mal? ; b) Zeus quis
negá-la aos homens por ser um bem, ou, sendo um mal, quis preservá-los de ao menos este? ;
c) Tem Hesíodo uma concepção ambígua da Esperança?
Mas a mulher, retirando com as mãos a tampa do jarro
derramou espalhando duras penas aos homens 95
e ali só restou a Esperança, em morada inabalável,
dentro do jarro, abaixo das bordas, sem transpor
os umbrais, pois logo repôs a tampa do jarro
ordem de Zeus porta-escudo, agrega-nuvens.
Dez mil pesares já estavam lançados aos homens: 100
a terra repleta de males; o mar também está pleno.
doenças diurnas e noturnas visitam os homens
incessantes, trazendo desgraça aos mortais,
silenciosas, pois da voz lhes privou Zeus pensante.
Então, não há como escapar da mente de Zeus. 105
89
Justifica, então, sua tese fazendo-se valer de outra: o conhecimento das verdades que o
poeta anuncia vale para evitar a ruína completa dos homens. Seguindo-se na interpretação, os
males contidos na jarra, enquanto estão dentro dela não são efetivos, ao passo que fora dela,
88
CÓRDOVA in HESÍODO (1986) p. XXXIV
89
Idem, p. XXXIV
47
são inevitáveis. Ressalta, ainda, que, segundo a ética grega, a Esperança, quando pautada
exclusivamente em elementos externos, é um mal.
A Esperança é um mal, mas como está dentro do jarro, não é inevitável. É passível de
algum tipo de controle. É um bem ou um mal conforme o uso que os homens quiserem dar a
ela. Com isso, a Esperança introduz o problema da responsabilidade.
Há duas justificativas para que a Esperança se desdobre moralmente e conceitualmente
em boa e má: primeiro porque é uma vox media, isto é, quem espera, espera alguma coisa
para si; depois, por usos positivos e negativos que o poeta faz deste conceito, como em
“espero isto não deixar cumprir-se o tramante Zeus!(Erga, 273), que tem um valor positivo
e em “o homem ocioso que permanece em vã esperança”(Erga, 498), cujo valor é
nitidamente negativo.
Em suma, se por um lado a Esperança é ambígua, por outro não é inevitável, seu uso é
de responsabilidade do homem
90
Carrière acentua profundamente o caráter de queda contido neste mito, o que faz deste
uma narrativa sobre a condição humana. Segundo o autor, o mito contém três elementos de
suma significação: o fogo, a mulher e a Esperança, devendo os dois primeiros ser entendidos
no plano simbólico e o terceiro no plano conceitual
.
91
A partir das observações de Carrière, é possível entender que o fogo que Prometeu
retorna aos homens não é o mesmo fogo que Zeus ocultou. O fogo de Zeus, ou melhor, a
centelha do seu raio, simboliza aquela espontaneidade criadora e criativa que os homens
compartilhavam com os deuses, uma vez que homens e deuses procedem da mesma origem.
O fogo de Prometeu integra a nova ordem do mundo para os homens, agora apartados e
obrigados ao trabalho. È um fogo técnico, destinado à fabricação de instrumentos e ao
cozimento dos alimentos, atividades desnecessárias na ordem anterior, mas agora
.
90
Cf. CÓRDOVA in HESÍODO (1986 ) pp. XXVV-XXXVIII
91
Cf. CARRIÈRE, J. C. in BLAISE, JUDET , ROUSSEAU. (1996) pp. 399-408
48
imprescindíveis para a subsistência. O fogo de Zeus é um símbolo do poder. O fogo de
Prometeu é um símbolo da falta.
Esta falta é reforçada pelo dom de Zeus, a mulher - Pandora, que simboliza a entrada do
homem no ciclo do devir inexorável, conforme o canto da Teogonia:
Tal como na colméia recoberta abelhas
nutrem zangões, emparelhados de malefício, 595
elas todo o dia até o mergulho do sol
diurnas fadigam-se e fazem os brancos favos,
eles ficam no abrigo do enxame à espera
e amontoam no seu ventre o esforço alheio,
assim um mal igual fez aos homens mortais. 600
O homem está fadado a esgotar-se no esforço que visa satisfazer uma necessidade que
sempre se renova, seja o desejo sexual, para perpetuar-se como espécie, seja a fome, para
permanecer vivo, enquanto indivíduo.
Em sua análise da Esperança, Carrière filia-se à corrente interpretativa que toma a
Esperança como ambígua. Parte da premissa de que não é concebível que o Zeus justo e
providencial de Hesíodo tenha tido a intenção de enganar e desesperar a humanidade, no que
deve-se concordar quando se lê os versos “Agora eu mesmo justo entre os homens não
quereria ser/ e nem meu filho, porque é um mal homem justo ser/quando se sabe que maior
justiça terá o mais injusto,/ mas espero isto não deixar cumprir-se o tramante Zeus
92
À luz dos versos da introdução do mito de Prometeu, que dizem: “os deuses ocultam
aos homens o alimento/ senão trabalhavas um só dia e o tinhas por um ano. (vv. 40-2)”, e da
lição geral do poema, a Esperança deve ser interpretada como uma possibilidade de vida
concedida aos homens como uma graça subordinada à aceitação da nova lei moral e política
.”.Toda
a ação de Zeus tende a estabelecer uma ordem política e moral no mundo.
92
Erga, 270-3, conforme a tradução de Mary de Camargo Neves Lafer, cf. HESÍODO (1991). Passagem adotada
na íntegra pela tradução constante neste trabalho, não só pela incompetência assumida de fazer diferente, mas,
acima de tudo como um humilde agradecimento pelo seu trabalho que se constitui, em última análise, em pedra
fundamental e mola propulsora para a investigação presente.
49
do mundo, que determina o trabalho e a justa repartição dos frutos deste trabalho, bem como
a autocontrole e a renúncia à Luta má. A realização da Esperança é então ligada à retribuição
divina (leia-se Díke) que os versos 225-247 descrevem tão bem, compondo o díptico da
cidade boa e da cidade má, que será abordado em outro contexto, mais adiante.
Este díptico e os versos 498-501 - “O homem indolente, apoiado em vã Esperança,/
quando falta alimento, muito maldiz sua alma./ Vã Esperança acompanha o homem
indolente/ que descansa ao galpão sem sustento já certo.” deixam claro que a Esperança
ultrapassa e engloba a espera do bem e a espera do mal: ela é boa na medida em que é
garantido que os deuses recompensam as expectativas daqueles que trabalham, mas pode
tornar-se ilusória se o indolente se fia na caridade divina, uma vez que os bens que a
Esperança de Hesíodo promete situam-se na terra: saúde, boas colheitas, velhice livre de
misérias e paz.
O sistema de dialetização das noções morais nos Erga é complexo, pois comporta um
desdobramento de noções que é em si bastante intrincado. Estas noções possuem, por um
lado, um sentido homérico, aristocrático, e um sentido já político: elas são más na medida em
que são dirigidas á violência guerreira e são boas quando dirigidas à atividade produtiva. Por
outro lado, elas possuem um significado político positivo, quando dirigidas ao trabalho e ao
respeito aos bens de terceiros; e um significado negativo, quando dirigidas às arengas, à
inveja e ao roubo. Elas podem até mesmo e isto é o mais revelador variar de acordo com
a condição social, como é o caso de Pudor, que prejudica o homem pobre, impedindo-o de
agir: “A timidez
93
Enquanto a Teogonia conta a criação do gênero feminino, nos Erga vê-se a criação de
um indivíduo mítico Pandora ao que se acresce a abertura da jarra dos males. Neste
não é boa para o homem necessitado/ timidez que muito atrapalha ou
ajuda/ timidez vai com a pobreza, a audácia vai junto à riqueza.(vv.317-9).”
93
No original, “aidós”, aqui traduzida como timidez para estabelecer uma diferenciação em relação à deusa
Pudor.
50
desdobramento é possível entrever uma articulação entre causas e conseqüências: de um
lado, o roubo mítico do fogo determina a existência atual do gênero feminino. De outro, a
criação de Pandora determina a existência dos males, pela abertura da jarra. A mulher mítica
é, portanto, a causa do mal, ao passo que na Teogonia, o gênero era, como um todo, o próprio
mal
94
Segundo Córdova
.
Todos os elementos contidos no mito de Prometeu e Pandora, a origem e necessidade
do trabalho, a instauração dos males inevitáveis no mundo, a relação da Esperança com a
responsabilidade e o distanciamento entre deuses e homens, serão desenvolvidos no mito que
se seguirá, o das raças humanas. Antes de seu exame será importante assinalar como Hesíodo
já o evoca ainda no presente mito quando canta: “Antes vivia sobre a terra a grei dos
humanos a recato dos males, dos difíceis trabalhos, das terríveis doenças que aos homens
põem fim.” (Erga, 90-3), bastante próximos aos que descrevem os homens da raça de ouro:
“como deuses viviam, tendo despreocupado coração, apartados, longe de penas e misérias.”
(Erga, 112-3)
Ao tema do Trabalho (Érgon) se somará o da Justiça (ke), que será abordada a partir
de seu contrário, a desmedida, a Hýbris. Da integração destes dois temas trabalho como
manifestação de justiça, resultará o princípio moral que rege os conselhos práticos contidos
na segunda parte do poema. Este princípio é a inversão da acepção puramente negativa do
trabalho. É a conversão de Pónos em Érgon. Aceitar o destino é a única forma de mudá-lo.
95
94
Cf. CARRIÈRE, J. C. in BLAISE, JUDET , ROUSSEAU. (1996) pp. 402-5
95
Cf. CÓRDOVA in HESÍODO (1986) pp. XXV-XL
, o mito de Prometeu e Pandora, se entendido em sintonia com sua
ocorrência na Teogonia (vv.535–616), apresenta a dupla finalidade de mostrar o afastamento
entre deuses e homens, bem como explicar a necessidade do trabalho para os homens. Neste
sentido, o mito das raças funciona como um reforço da lição do distanciamento, sem,
entretanto, tratar do trabalho. Hesíodo procede aqui exatamente da forma descrita por
51
Havelock: na impossibilidade de sustentar uma argumentação, por falta absoluta de
instrumental lingüístico, o poeta lança mão de seu acervo oral, rearranjando-o de um novo
modo.
3.4.3 O mito das raças
O mito das raças é introduzido por três versos (vv. 106-8) que dizem: “Se queres, com
outra história esta encimarei / bem e sabiamente lança-a em teu peito! / Como da mesma
origem nasceram deuses e homens.” Este último verso constitui-se num ponto
importantíssimo para a compreensão da visão de mundo de Hesíodo. Deuses e homens
compartilham da mesma origem. Sua diferença estabelece-se, então, num plano axiológico e
é progressiva, ainda que seja difícil precisar se essa diferença progride no tempo, no espaço,
ou em ambos.
A narração do mito, propriamente dito, ocupa os versos 109 a 201.
Cada uma das idades está aparentada com um metal, cujo nome toma e cuja sucessão se
ordena do mais ao menos precioso, do superior ao inferior; ouro, prata, bronze, ferro.
Intercala, entre as duas últimas, a raça dos heróis, que não possui correspondente metálico.
Sua inserção no relato das idades é indispensável para completar o quadro dos seres divinos
que engloba os deuses, os demônios, os heróis e os mortos. De um lado, mito genealógico
que explica a decadência da humanidade, de outro, uma divisão estrutural do mundo divino
que possibilita a inserção dos heróis. Primeiro a de ouro (v.109), segunda, a de prata (vv.127-
8), a de bronze é a terceira (vv. 143-4), heróis a quarta (vv. 157-9) e, por fim, a quinta, de
ferro (vv.173-6).
A introdução de cada raça é assinalada por numerais ordinais que funcionam como
advérbios de tempo, o que sugere, à primeira vista, uma sucessão em ordem cronológica
52
linear, em ordem decrescente de valor, mas esta ordem é turbada pela raça dos heróis, que se
segue à de bronze e é “mais justa, mais corajosa” e “divina” (vv. 158-159).
Os versos que contam que a raça de ouro foi criada pelos deuses e desapareceu no
tempo em que Khrónos reinava nos céus (vv.109 111) e a raça de prata que, embora
também tenha sido criada pelos que detêm olímpia morada (vv.127-8), foi escondida já
por Zeus encolerizado (vv.137-9) são, igualmente indícios de uma sucessão temporal,
reforçados pelo surgimento da raça de bronze, criada unicamente por Zeus: “E Zeus Pai,
terceira raça de homens mortais brônzea criou em nada se assemelhando à argêntea;” (vv.
143 – 4).
Por outro lado, o surgimento da raça de ferro, com seus advérbios temporais, pode ser
entendida como uma quebra dessa linearidade. Estes versos (173-7) podem dar a entender
que tanto a raça anterior quanto a vindoura são mais felizes do que a presente, rompendo a
seqüência de decadência.
Quem dera eu não tivesse nascido na quinta raça,
mas tivesse antes morrido, ou nascido mais tarde
pois agora é a raça de ferro: não se livrarão
da dor e da miséria do dia, nem à noite
de agonizar; os deuses darão duras angústias.
Uma vez que este mito, que Hesíodo apresenta como lógos (v.106), é a passagem
mais comentada de todo o poema e que muitas interpretações contemporâneas levam em
conta a interpretação estruturalista proposta por Jean-Pierre Vernant
96
96
Cf. VERNANT, J-P. (1990) p.22-50.
, é compreensível que
esta seja adotada como ponto de partida e que se passe em revista algumas das que se a
seguem para a construção de uma interpretação que fundamente os propósitos da presente
pesquisa. Por outro lado, a análise do uso que Platão faz deste mito, tanto na República,
quanto nas Leis, não só ampliará a compreensão atual desta passagem, como servirá como
53
um importante testemunho da recepção de Hesíodo como grande educador grego. Procurar-
se-á demonstrar, por esta via, que tal construção é possível.
3.4.4 O mito das raças e a herança de Vernant
Resumidamente, a interpretação de Vernant dá conta, simultaneamente, da separação
entre deuses e homens, uma vez que entre estes existem as raças metálicas e a raça dos
heróis; da compreensão da estratificação da sociedade indo-européia em três camadas
constituintes, cada uma desempenhando uma função própria a saber, a função real, a função
guerreira e a função produtora; e, por fim, dá conta da instauração da justiça no mundo.
Valendo-se do artifício de dividir a raça de ferro em duas, sendo a primeira a do tempo
presente e a segunda a de um futuro mítico e negro onde a injustiça dominará e levaZeus a
extinção dos homens (vv. 173-201), Vernant propõe que as seis raças sejam agrupadas em
três pares e descreve cada par em função do comportamento que cada uma adota no que
respeita à justiça ou à desmedida. Em outras palavras, de acordo com a transitividade que
cada par apresenta no eixo Díke Hýbris. Assim sendo, o primeiro par, composto pelas raças
de outro e prata, apresenta uma transição de ke para Hýbris; o segundo, composto pelas
raças de bronze e a dos heróis, apresenta uma transição de Hýbris para ke, enquanto o
último, composto pela raça de ferro do presente e a raça do futuro, apresentaria um
deslocamento de ke para Hýbris.
A tabela abaixo tem o propósito de facilitar a visualização da proposta de Vernant.
Pares de raças
Transitividade
Ouro - Prata
Díke - Hýbris
Bronze – Heróis
Hýbris - Díke
Ferro presente Ferro futuro
Díke - Hýbris
54
Um dos pontos que a leitura de Vernant não resolve é o da interrupção da seqüência de
queda das raças metálicas, provocada pelo surgimento da raça dos heróis entre a raça de
bronze (Depois que sumiu com esta raça debaixo da terra,/ Zeus Cronida criou, mais justa e
mais nobre,/ raça de heróis, homens divinos,/ são chamados semideuses. vv. 156-160) e a
raça de ferro (Quem dera, eu não tivesse nascido na quinta raça,/ mas tivesse antes morrido,
ou nascido mais tarde,/ pois agora é a raça de ferro. vv. 174-6). Como se vê, a queda é
nitidamente interrompida por uma raça que é mais justa e mais nobre do que a anterior, para
ser retomada com o surgimento da raça que a sucederá, a de ferro, a qual o poeta pertence e é
tão terrível que ele preferiria ter nascido antes ou depois.
Outro ponto problemático é o da temporalidade na sucessão ou acontecimento das
raças. Seria o tempo hesiódico linear, como sugere Córdova, pautada nos advérbios de tempo
e nos numerais empregados para introduzir cada raça, ou seria um tempo cíclico, como
sugere Vernant, apoiando-se no lamento de Hesíodo por pertencer à raça de prata? De fato, a
partir dos versos citados há pouco, parece que uma morte anterior ou um nascimento
posterior, é um destino melhor do que o negro “agora” da raça de ferro.
Daí surge ainda outro problema: se o agora” da raça de ferro, que ainda é melhor do
que o futuro que o poeta profetiza para esta raça, já é sombrio, como é possível aceitar a
transição de ke para Hýbris que Vernant propõe para os dois momentos desta mesma raça,
uma vez que a raça a qual pertencemos não pode ser caracterizada como justa?
Carrière
97
97
CARRIÈRE, J. C. in BLAISE, JUDET , ROUSSEAU. (1996) pp. 411
chega a afirmar que esta raça, que supõe ser uma interpolação hesiódica, é,
ao mesmo tempo, pedra de escândalo e pedra fundamental do mito. Entende o autor que
Hesíodo confere aos heróis um tratamento ambíguo. Por um lado, é valendo-se deles, e mais
precisamente dos heróis que compõem o ciclo de Tebas e o ciclo de Tróia (Uns, na Tebas de
55
Sete Portas, terra de Cadmo,/ devastou ... / Outros, em naves, sobre o fundo abismo do mar,
levou a Tróia por causa de Helena de belos cabelos. vv. 162-5), Hesíodo ataca os ideais
guerreiros e aristocráticos de Homero.
Por outro lado, nem todos os heróis tiveram o mesmo destino pós-morte. Enquanto uns
foram “envolvidos com destino de morte” (v.166), outros foram para a Ilha dos Bem-
Aventurados e lá vivem felizes sob o reinado de Khrónos. Carrière propõe a hipótese
segundo a qual estes heróis felizes, nomeadamente Nestor de Pilos, Menelau de Esparta e o
próprio Ulisses, podem ser tomados como referência para os reis da cidade justa descrita nos
versos 225-237. Talvez, seja pautado nestes que Hesíodo constrói todo o seu discurso aos
reis. O sentido da mensagem aos reis seria então algo como: “- Enriquecei vossa pátria, fazei
leis justas para garantir os bens e conquistai para vós e vossa cidade o favor dos deuses e
vos tornareis os heróis merecedores de culto!”
98
Couloubaritsis
Este discurso, bem o observa Carrière, está longe de ser democrático, mas já situa a
legitimidade do poder dos reis no desempenho de sua função, em detrimento da nobreza de
origem, o que, de certa forma, pode ter contribuído para e emergência da Cidade-Estado
sobre bases novas e ampliadas.
99
Ouro
, sem fugir ao esquema estrutural, propõe um ordenamento não em três
pares, mas em dois trios, sendo o primeiro composto pelas raças de ouro, prata e bronze e o
segundo, composto por heróis, ferro presente e ferro futuro, num arranjo que pode ser
percebido com maior facilidade mediante o recurso à tabela abaixo:
Prata
Bronze
Heróis
Ferro presente
Ferro futuro
98
Cf. CARRIÈRE, J. C. in BLAISE, JUDET , ROUSSEAU. (1996) pp. 415-16
99
Cf. COULOUBARITSIS, L. in BLAISE, JUDET de la COMBE, ROUSSEAU. (1996) pp. 502-18
56
Isto permite entrever dois ciclos distintos de queda, atenuando assim a aparente
interrupção da queda introduzida pela raça dos heróis, já que por meio deste ordenamento
pode-se ainda estabelecer um paralelo entre estes dois trios no que respeita o eixo ke
Hýbris. A posição que a raça de ouro ocupa no primeiro ciclo seria ocupada pela raça dos
heróis no segundo e tanto a raça de ouro quanto a raça dos heróis seriam a expressão da ke,
ainda que a raça dos heróis seja inferior à de ouro; em seguida, respectivamente em cada
ciclo de três raças, viriam as raças prata e ferro presente, a expressão da Hýbris que recusa o
culto aos deuses, determinante do afastamento dos deuses, o que o recurso ao mito de
Prometeu ajuda na compreensão; por último, bronze, no primeiro trio e ferro futuro, no
segundo, pode ser visto como expressão da Hýbris guerreira, da violência em estado puro,
que já determinou o desaparecimento da raça de bronze e será a causa da destruição final do
homem.
Em última análise, o que surge daí é uma espécie de definição do homem de ferro
segundo Hesíodo e surge também o entendimento de que é só ao homem de ferro que
concernem os ensinamentos dos Erga. O homem é um híbrido que oscila entre o divino e o
bestial: “Oh Perses, tu, então, guarda isto na mente:/ escuta a Justiça e esquece a desmedida
de vez!/ Pois o Cronida dispôs aos homens a lei./ Aos peixes, às feras e às aves aladas, que
se devorem. Justiça não há entre eles. vv. 274-8”, mas, sendo muito distante tanto dos deuses
quanto das bestas, só tem a si próprio como apoio nas suas ações. Ainda não é, como dirá
mais tarde Protágoras, a sua própria medida, uma vez que sua medida é Díke vestida de ar
(v.223), presente invisível de Zeus, tão ambígua quanto os outros presentes, Éris, Pandora e
Esperança.
A invisibilidade da Justiça de Zeus não é ingênua, já carregando aí a marca de sua
ambigüidade. Se por um lado ela premia os que a respeitam com saúde, paz e sucesso, por
outro, justamente por onde ela se faz mais “visível”, castiga duramente os que se entregam à
57
Hýbris. A Justiça de Hesíodo é uma restauração, isto é, só se dá a conhecer, ou se o dá mais
preponderantemente, a partir de uma transgressão. A compreensão desta revelação fará com
que os homens procurem regular-se uns aos outros para evitar que este castigo se abata sobre
a comunidade: Muitas vezes se vê que toda a cidade padece/ por um só homem mau que
maquina vilezas. vv.240-10”, e uma atividade reguladora que abarque os reis comedores de
presentes, as arengas da ágora, as disputas entre vizinhos, oleiros, poetas e mendigos, só pode
ter lugar na pólis.
Ada Neschke dedica um estudo à filosofia poética do direito em Hesíodo
100
Neschke identifica duas correntes interpretativas para a abordagem do poema e ambas
são acatadas tanto no seu estudo quanto na presente investigação. A primeira é a
hermenêutica de Schleiermacher, que aborda uma obra como uma criação individual e
procura estabelecer sua individualidade comparando-a com obras anteriores e posteriores. A
, o que,
admite, já suscita de sda uma contradictio in adjecto. Esta contradição é contornada pela
constatação de que, se por um lado o pensamento e o conhecimento tornaram-se,
progressivamente e a partir do séc. VI A.C., objeto da filosofia, por outro, em épocas
anteriores eram os poetas que se apresentavam como sábios. Neste embate, Hesíodo ocupa
justamente a posição de intermediário.
O poeta, decerto jamais se pergunta o que é o direito em si e assemelha-se muito aos
interlocutores de Sócrates e de Platão que respondem á uma questão geral pela menção de
um exemplo concreto. Hesíodo, se perguntado sobre o que é o justo, apresenta como resposta
um catálogo de comportamentos justos, mas a despeito desta maneira concreta de responder,
ainda é legítimo ler neste pensamento uma certa filosofia, uma vez que os Erga apresentam
respostas que manifestam uma reflexão profunda a perguntas tais como “qual é a origem do
direito?” e “o que significa para os homens ser justo ou injusto?”
100
Cf. NESCHKE, A. in BLAISE, JUDET de La COMBE, ROUSSEAU. (1996) pp. 415-78
58
segunda é a estruturalista e encontra em J. P. Vernant, no que se refere a Hesíodo, a sua
maior expressão. Esta encara a obra como a expressão de uma mentalidade ou de uma
ideologia, privilegiando a expressão de estruturas gerais do pensamento que estabelecem as
normas e os valores do mundo vivido pelo autor. Uma das premissas que a regem é a que
sustenta que todo homem está submetido à língua que ele fala.
É preciso submeter estas duas vias interpretativas a um objetivo maior, que é a
compreensão mais ampla possível da própria obra, e admitir a possibilidade de uma relação
dialética entre as estruturas gerais da cultura e a atividade individual criadora. Em outras
palavras, é preciso reconhecer que “é a força viva do indivíduo que determina novas formas
de falar e pensar dentro do material maleável que é a língua.
101
Com relação a este arquétipo, a narrativa de Hesíodo apresenta diversas irregularidades
que lhe valeram a reputação de mau poeta
Esta mirada é o principal sustentáculo da tese que apresenta Hesíodo como um poeta
que rompe com um modelo de pensamento para construir um novo modelo por meio de uma
nova narrativa.
Para Neschke, a interpretação do mito é difícil por diversas razões, dentre as quais duas
são as mais proeminentes: em primeiro lugar, Hesíodo não extrai desta narrativa nenhuma
moral explícita; em segundo, ele retoma um mito muito antigo e de origem não grega e o
modifica de um modo estranho que suscita diferentes e conflituosas interpretações.
O arquétipo do mito fala, decerto, de uma degradação contínua da existência humana,
explicitada pela sucessão de raças que são nomeadas por metais e dispostas numa seqüência
de valor decrescente.
102
101
NESCHKE in BLAISE, JUDET de La COMBE, ROUSSEAU. (1996: 467)
102
Idem, p. 470. Cf. nota 9
. A interpolação da raça dos heróis (mais justa e
mais nobre, v. 157) entre as raças de bronze e prata parece interromper a seqüência de queda,
turbando a coerência lógica da série de decadência, que será restabelecida com a
59
apresentação da raça de ferro (vv. 174 ss.), que é a raça à qual tanto o poeta como nós
mesmos pertencemos.
Vista desta forma, a narrativa parece absurda. Não só a lógica da queda é abandonada
em pleno caminho, mas também a descrição do curso de cada raça também é desigual: se as
quatro primeiras seguem um curso definido, a quinta, de ferro é a única que está sujeita a
uma modificação durante a sua existência, uma vez que o poeta prevê para ela um futuro
ainda pior do que o presente que ele testemunha. A raça dos heróis, por outro lado, é a única
a cindir-se em duas após a morte: enquanto uns foram “envolvidos com destino de morte”
(v.166), outros foram para a Ilha dos Bem-Aventurados e lá vivem felizes sob o reinado de
Khrónos.
Ada Neschke concorda que a interpretação estruturalista de J-P. Vernant introduz
algumas observações que toda e qualquer leitura do poema deve levar em conta. Vernant
propõe organizar as raças levando em conta, além da tripartição das funções sociais, a
maneira como os homens das diferentes raças comportam-se em face à justiça. A lição do
mito seria então uma definição da condição humana em face à justiça, revelando o homem
como um ser para quem a justiça existe, mas seu comportamento em relação a ela é oscilante.
A autora recorre também à interpretação de Couloubaritsis, que como faz questão de
assinalar, é pautada na de Vernant, mas afasta-se deste em dois pontos:
Em primeiro lugar, Couloubaritsis, procura eliminar a interrupção da seqüência de
queda dispondo as raças, conforma visto acima, em dois ciclos ternários, o primeiro
constituído pelas raças de ouro, prata e bronze, e o segundo, pelas raças dos heróis, ferro
presente e ferro futuro, acatando a divisão no seio da raça de ferro proposta por Vernant.
Em segundo lugar, para Couloubaritsis, a queda deve-se à permanência da Luta má.
Para Neschke, o esquema tri-funcional estruturalista não permite nem a reconstrução de
uma articulação unívoca da narrativa com o corpo do poema, nem definir o propósito
60
específico do mito. “As contradições a que a interpretação estruturalista conduzem
parecem-me dever-se ao fato de só levar em consideração os elementos do texto e esquecer
que este texto faz parte de um poema que deve ser tomado como um todo.
103
O arranjo ternário de Couloubaritsis é aceito sem restrições: “Está claro que Hesíodo
faz das três primeiras raças uma unidade
Para construir sua interpretação, procurará então conjugar elementos de forma conteúdo
e contexto.
104
103
NESCHKE in BLAISE, JUDET de La COMBE, ROUSSEAU. (1996) p. 472
104
Idem, p. 473
.” A queda, neste primeiro momento se dá com
relação aos deuses: os homens de ouro “viviam como os deuses espírito isento de penas
(v.112)”. Para Hesíodo, a proximidade ou a distância dos deuses depende do comportamento
em face á justiça. Com os homens da raça de prata, o respeito à justiça começa a ser abalado.
Ao negar culto e respeito aos deuses, as themistes”, leis divinas transmitidas aos mortais
(v.137), são desrespeitadas.
A raça de bronze vai ainda mais longe: depois do crime contra as leis divinas, a
violência pura que leva os homens à autodestruição. Lido de outra forma, não há uma
mudança de qualidade no comportamento da raça de bronze, mas sim uma conseqüência
lógica do comportamento da raça de prata: do desrespeito às leis, resulta violência mútua e
autodestruição.
Ao se levar em conta os versos 276 e ss., onde Hesíodo diz que Zeus deu a justiça aos
homens para que eles não se destruam como os animais, é possível inferir que os seres da
raça de bronze já não são mais homens.
Assim, as três primeiras raças formam uma unidade que transmite a idéia de uma
decadência contínua em face à justiça: o homem que vive de forma justa assemelha-se aos
deuses e está próximo à sua origem (Guarda tu na mente/que têm mesma origem deuses e
homens mortais. v. 108), enquanto aquele que nega a justiça aproxima-se das bestas.
61
Parece haver um paralelismo, ainda que decaído, tanto de forma quanto de conteúdo
entre o segundo trio e o primeiro, uma vez que há uma nova seqüência de queda. Os heróis,
que abrem a série, não são mais semelhantes aos deuses, como os homens da raça de ouro,
mas, ainda assim, têm o status de semideuses (v.160). E também não são todos eles que
vivem em paz, pois dividem-se entre os que tiveram o destino e morte na guerra, que é
descrita como cruel (v. 161) e os que conhecem a paz que se tornaram os felizes da Ilha dos
Bem aventurados (vv. 167-72), ou seja, já estão imersos na oscilação entre justiça e
violência. Importa aqui ter em mente que o comportamento justo é recompensado com uma
vida quase divina após a morte. Estes heróis são os que se tornarão modelo de
comportamento justo para o homem da raça de ferro.
Após haver identificado seu próprio tempo como o da raça de ferro (v.174), caracteriza-
a também como uma raça marcada pela mistura do bem e do mal (v.176) para, em seguida,
anunciar em tom profético que Zeus a irá destruir (vv.180-201), o que justifica a cisão da
raça em presente e futuro. Nesta manobra, Hesíodo coloca a raça de ferro no centro da
narrativa, pois é antecedida pelos heróis, que são apresentados como “São chamados
semideuses./ Precedem a nossa na terra sem fim. (vv. 159-160)” e sucedida pelos homens da
raça de ferro do futuro, que se assemelham aos da raça de bronze pela violência que estão
prestes a perpetrar.
Também nesta manobra, Hesíodo coloca-se, mais que nunca na posição do iniciado:
tendo como referência próxima o passado histórico dos heróis homéricos e o futuro da raça
de ferro; e como referência mítica a tríade das raças de ouro, prata e bronze, ele é aquele que
sabe o que é, o que foi e o que será. Fala com a autoridade de quem conhece, e comunica
alethéa e etétyma.
Hesíodo revela-se inovador ao contar um mito antigo: a degradação da humanidade e o
distanciamento progressivo dos deuses são por duas vezes objeto de uma narrativa que
62
apresenta o declínio dos homens numa dupla sucessão de três fases. A primeira série forma o
arquétipo desta decadência e se dá num tempo mítico. A segunda é marcada pela experiência
presente e pela tradição imediatamente próxima. Mas não se trata aqui da simples passagem
do bem absoluto ao mal absoluto: bem e mal já estão para sempre misturados
105
As seis raças são atravessadas por uma única e mesma verdade: o respeito à justiça
garante ao homem uma existência semelhante à dos deuses. O inverso, a violação desta leva
o homem ao nível das bestas raça de bronze e ao abandono total por parte dos deuses
futuro da raça de ferro. Aqui, pela primeira vez, é formulado, através de um mito, o princípio
que irá reger a antropologia filosófica posterior, a saber, que a essência do homem é algo
situado entre o deus e a besta (o que já estava delineado desde Teogonia,vv. 1-36): na medida
em que é justo, o homem assemelha-se ao deus
.
106
; se, ao inverso, ele não é justo ou não vive
numa comunidade regida pela justiça, assemelha-se às bestas
107
É sob a ótica da responsabilidade que devem ser lidas a profecia acerca do futuro da
raça de ferro e a incitação aos reis (Tendo isso em mente, corrigi as sentenças, oh reis. v.
263) e a Perses (Oh, Perses, tu, então, guarda isto na mente:/ escuta a Justiça e esquece a
. A narrativa de Hesíodo
separa em tempos distintos o que a antropologia filosófica considerará como potencialidades
coexistentes no homem ao longo da realização de sua humanidade.
A mistura de justiça e injustiça surge nítida na segunda seqüência de queda, sobretudo
no presente de Hesíodo. Assim, se o mal existe, isto não se deve a nenhum acaso, é apenas a
essência do homem em pleno processo de atualização. Como em todas as outras raças, o
comportamento moral, ou melhor, o imoral, é a causa da infelicidade do homem. Com isso o
poeta reintroduz o tema da responsabilidade, jamais nomeado, mas sempre latente ao longo
do poema.
105
Cf. NESCHKE in BLAISE, JUDET de La COMBE, ROUSSEAU. (1996) p. 476
106
Cf. PLATÂO, República 500b-c e Teeteto 176a
107
Cf. PLATÃO, República IX e ARISTÓTELES, Política 1253a 30
63
desmedida de vez. vv. 274-5). Tanto quem administra quanto quem cumpre estão submissos à
Justiça.
Responsabilidade pressupõe liberdade. A profecia sobre o futuro da raça de ferro não
faria sentido se a destruição final fosse inevitável. O que o poeta quer é evitar este futuro
conclamando reis e Perses, que aqui já não é mais um indivíduo, e sim um tipo, ou antes,
uma representação de uma classe, a adotarem o comportamento justo que evitará a derrocada
final. Já foi dito acima que Hesíodo decerto não tinha esta intenção clara e evidente para si
próprio, mas é fato que os reis e a classe representada por Perses puseram-se em movimento
e em confronto na busca deste comportamento possível e o ensinamento moral tornou-se a
base de um ensinamento político.
A chave deste ensinamento moral, que Hesíodo jamais explicita ao longo do poema é o
verso 108, deuses e homens tem a mesma origem. Cerca de três séculos mais tarde, Platão
108
retomará esta idéia e tentará demonstrar que a semelhança ao deus consiste na justiça do
homem
109
3.4.5 O mito das raças na obra de Platão
.
No livro III da República, sua aparição é pequena. O mito é apresentado como uma
“nobre mentira” de origem fenícia e é usado para explicar a existência dos distintos extratos
sociais da cidade. Assim sendo, àqueles destinados a governar, o deus misturou-lhes ouro na
sua composição; aos auxiliares, prata; e ferro e bronze aos lavradores e demais artífices. O
Sócrates platônico, narrador do mito, faz a ressalva que “do ouro pode acontecer de nascer
uma prole argêntea, e da prata uma áurea, e assim todos os restantes, uns dos outros
110
108
Cf. PLATÃO. República 500 b-c.
109
Cf. NESCHKE in BLAISE, JUDET de La COMBE, ROUSSEAU. (1996) pp. 477-8)
110
PLATÃO. A República. 415a
.
Por isso os chefes devem exercer a máxima vigilância sobre as crianças, identificando qual a
64
matéria que predomina na composição de cada criança para que ela possa ser levada a tornar-
se um adulto capacitado a desempenhar a função que lhe é própria.
Ainda na República, no livro IV
111
, ao tratar das honras que se devem aos valentes e
tomando o Ájax de Homero como paradigma, Sócrates cita Hesíodo
112
No livro I das Leis, ao apresentar a imagem do teatro das marionetes, o estrangeiro de
Atenas diz que “cada um de nós é uma marionete, um brinquedo dos deuses dos quais
nada sabemos e que somos movidos pelos nossos sentimentos interiores que, como tendões
ou cordéis, nos arrastam em movimentos de oposição recíproca.
e diz que “os homens
desta raça acabarão como gênios puros sobre a terra, nobres, afastando os males, como
guardiães dos mortais”, numa fala que remete aos versos 122-3 dos Erga: “eles são anjos,
por vontade de Zeus grandioso,/sobre a terra, guardiães de homens mortais.” Ao se levar
em conta que estes versos referem-se aos homens da raça de ouro, percebe-se que a proposta
de Couloubaritsis, de aproximação entre estes e os heróis, é dotada de fundamento e isto
permite entender um dos motivos mais fortes de Hesíodo, isto é, o de dar a saber que o
homem pode, por meio da ação nobre e justa, reaproximar-se dos deuses, com quem
partilham a mesma origem.
113
111
Cf. PLATÃO. A República.468e-469a.
112
Esta é a única das quatro passagens onde Platão lança mão do mito das raças onde Hesíodo é citado
nominalmente.
113
PLATÃO. Leis. 644d-e.
Por isso, o homem deve obedecer ao fio condutor sagrado da avaliação, e esta deve ser
assumida como lei. Esse fio condutor, flexível e uniforme, visto que é de ouro ao passo que
os demais são de ferro - assegura que “a raça áurea dentro de nós derrote as outras raças.”
Há que se reconhecer nesta passagem uma alusão velada que Platão faz a Hesíodo, ao
dizer que é preciso que a raça de ouro vença as demais existentes em nós”. Essa imagem é,
incontestavelmente, extraída do mito das raças constante nos Erga.
65
O retorno ao tema da raça de ouro, já no livro IV
114
e, desta vez - com maior riqueza de
detalhes, ainda que com variações - dá maior respaldo ao reconhecimento da influência de
Hesíodo na formulação deste pensamento de Platão. Nesta passagem o filósofo fala que
muito antes que existissem as cidades mais antigas conhecidas, existia no tempo de Khrónos,
pai de Zeus, um Estado tão excelentemente constituído que serviu de modelo para a
constituição do melhor dos Estados atuais. O fato é que, conforme se lê nos Erga, a raça de
ouro foi gerada pelos deuses e desapareceu quando Khrónos reinava e os homens desta raça
foram convertidos em dáimones epikhthónioi, isto é, “sobre a terra” e passaram a
constituir o batalhão de guarda de Díke, a Justiça, filha de Zeus e Thêmis
115
114
Cf. PLATÃO. Leis. 713b-714a
115
HESÍODO Os Tarbalhos e os Dias. Versos 109-111 e 120-122.
.
Platão diz que Khrónos sabia da disposição naturalmente oscilante do homem e, por
isso, por amor aos homens, designou como reis e governantes, não seres humanos, mas de
uma raça mais divina, nomeadamente dáimones, para nos governar, da mesma forma que
nós governamos os rebanhos de animais domesticáveis por lhes sermos superiores, e
distribuir entre os homens a paz, o senso de honra, as leis e a justiça. Por conta disso, devem
os homens, por todos os meios, imitar a vida da época de Khrónos, dando a essa ordenação o
nome de lei.
Chama atenção a ausência de qualquer referência à raça dos heróis tanto na República
quanto nas Leis. As evidências que apontam para sua origem oriental são confirmadas pelo
próprio Platão, que o remete a uma origem fenícia. Sabendo-se que no oriente não havia
heróis estes são gregos por excelência pode-se concluir com razoável segurança, em
concordância com Carrière, que a raça dos heróis é uma interpolação hesiódica, da qual
Platão não precisou (ou não quis) lançar mão.
66
Por outro lado, a remissão a Khrónos e aos “daimones”, nas Leis, já o torna totalmente
grego e, por conseguinte, tributário a Hesíodo. Ao retomar um mito e adaptá-lo para seus
fins, coisa que faz amiúde, Platão revela-se discípulo de Hesíodo.
Eis que este cotejo com as versões platônicas leva a uma nova pergunta: por que teria
Hesíodo introduzido uma raça que não havia no mito original? E por que exatamente entre a
de bronze e a de ferro?
Se o herói é um modelo de ação, a posição da raça na narrativa não pode ser outra: não
entre bronze e ferro, mas imediatamente acima, ou antes - conforme se adote a disposição de
Vernant ou de Couloubaritsis - da de ferro, porque o herói é modelo para o homem da raça de
ferro. O máximo de excelência que nossa raça pode aspirar está representado no herói, que
ainda está muito longe dos deuses, e a audiência de Hesíodo o sabia bem demais - por isso o
poeta beócio foi lacônico ao tratar da raça dos heróis. Por outro lado, Hesíodo parece mais
preocupado em estabelecer um outro limite, abaixo ou posterior, uma vez que é situado no
futuro e é a extrema radicalização da Hýbris, que culminará na partida de Pudor- Aidós e
Indignação - Nêmesis (Erga. vv. 197-200), deusas que, segundo Córdova
116
Aristóteles refere-se a elas como sentimentos
, representam a
regulação da conduta humana, a primeira, no que respeita à consciência individual e o
sentimento de honra, incluindo aí a justa apreciação dos próprios direitos e o respeito aos
direitos dos outros, enquanto a segunda é a consciência pública, ligada à opinião ou à fama,
um valor social objetivo, que expressa a indignação manifestada pelos outros perante ações
injustas ou anti-sociais.
117
116
Cf. CÓRDOVA in HESÍODO (1986) p. CCXCVI
117
Cf. ARISTÓTELES. E.N. 1108 a 28-32.
, não como virtudes, ainda que passíveis
de excesso, deficiência e meio-termo ou, mais de acordo com o jargão aristotélico, sujeitas ao
mais e ao menos. Assim, com relação ao pudor, aquele que o experimenta na justa medida é
digno de louvor. O acanhado, que se envergonha de tudo, é o que se desvia para o excesso.
67
Este excesso de Pudor aparece nos versos 317-9 dos Erga, aqui traduzidos por timidez: A
timidez não é boa para o homem necessitado,/ timidez que muito atrapalha ou ajuda:/
timidez vai com a pobreza, a audácia vai junto à riqueza.” Estes três versos começam com a
palavra Aidós e parecem referir-se mais ao sentimento do que à deusa. O que está em jogo
aqui é uma falta de confiança do homem em si mesmo que o prejudica, impedindo-o de agir,
ainda que a ação intentada seja boa
118
A indignação (nêmesis) é apresentada por Aristóteles como um meio termo entre a
inveja e o despeito
. Esta interpretação levou à rejeição de “vergonha”
adotada por tradutores como Córdova, Lafer, Mazon, Most e Pinheiro & Ferreira, por
entender que timidez expressa melhor esta falta de confiança em si que é, em última análise,
um aspecto negativo do pudor. Por outro lado, prossegue Aristóteles, aquele que mostra
deficiência com relação ao pudor e não se envergonha de nada é despudorado.
119
O poeta estabeleceu os limites da ação humana entre a quase-divindade do herói e a
bestialidade, depois de já ter estabelecido os limites do cosmos na Teogonia: tudo acontece
sobre a Terra e sob o Céu. Na abertura do Livro VII da Ética a Nicômaco, Aristóteles, ainda
que cite Homero, parece, antes, ser um herdeiro de Hesíodo quando situa a virtude humana
como um meio-termo entre a bestialidade e a virtude sobre-humana dos heróis e deuses
. O homem que se caracteriza pela justa indignação sofre com a má
fortuna imerecida de alguém; o invejoso sofre com a boa fortuna alheia, enquanto o
despeitado chega a alegrar-se com o infortúnio alheio.
Retornando ao poema, a partida de Pudor e Indignação deixará os homens por sua
própria escolha à mercê da maldade e vaticina, nos versos 201-2 um futuro terrível: “Só
restarão tristes pesares/ aos homens mortais. Contra o mal, não haverá defesa.”
120
O estudo do emprego do mito das raças na República permite entender, junto com
Vernant, que o mito foi usado para explicar a existência dos distintos extratos sociais da
.
118
Cf. CÓRDOVA in HESÍODO (1986) p. CCCVI
119
Cf. ARISTÓTELES. E.N. 1108 b 1-6.
120
Idem, 1145a 15-22.
68
cidade. Assim sendo, a raça de ouro explica a existência da classe dos governantes, a de
prata, os auxiliares; e a de ferro explica os lavradores e demais artífices. Isto faz com que as
raças coexistam no tempo, mas em indivíduos distintos.
Já nas Leis, o fio condutor de ouro é exatamente aquilo que assegura que a raça áurea
dentro de nós na condição de indivíduos - derrote as outras raças. Platão faz aqui, em
ambos os casos, uma abordagem do tempo sob a perspectiva do tempo cíclico e eterno de
Urano, caso a luta travada entre a raça áurea e as demais dentro de nós seja percebida como
uma metáfora da condição humana, eternamente oscilante entre Hýbris e ke. Platão lança
mão do mito exatamente para que o homem não se afaste do deus. Sustentado pelo fio de
ouro da avaliação, do “logismós”, a raça humana permanece submetida àquele Estado
perfeito do tempo de Khrónos ainda que governada não mais por daimones, mas por homens
que apreenderam o sentido e a direção para a qual nos leva o fio.
Por outro lado, há um emprego do tempo linear e irreversível de Khrónos quando, no
livro IV, fala do Estado excelentemente constituído e governado por dáimones que serviu de
modelo para os melhores Estados atuais. Este Estado, é certo, não retornará. Está
irremediavelmente perdido no tempo, ou melhor: por se tratar de um tempo mítico, está fora
do tempo. A boa ação humana, pautada na repetida imitação dos belos exemplos até a
conquista do fio dourado, é a única possibilidade de dobrar a reta inexorável do tempo de
Khrónos, construindo então um arco que nos reenvie para a proximidade do deus. Com isso,
os dáimones assumem, em Platão, a função que em Hesíodo era dos heróis: a de modelos, e
ocupam, na narrativa, uma posição temporal que não agride a lógica do pensamento atual.
Com isso, também, parece estar justificada a leitura de Couloubaritsis, que por meio de
seu arranjo ternário, permite uma melhor compreensão do emparelhamento das funções
desempenhadas pelas raças de ouro e dos heróis, assim como do emparelhamento do destinos
reservado ao homens da raça de bronze e o futuro da raça de prata.
69
Parece, portanto, que Platão está em perfeita consonância com Hesíodo quanto aos
motivos que os levaram a lançar mão desta velha história, ainda que a tonalidade do discurso
do poeta seja sombria, austera e repreensiva, decerto em função de sua visão pessimista de
mundo, enquanto a do filósofo é encantadora e, portanto, de certa forma exortativa,
certamente em função do projeto pedagógico que estava em jogo no seu diálogo de
despedida.
Estas considerações permitem avaliar as versões do mito no âmbito do terceiro aspecto
da temporalidade, ou seja, no âmbito do instante, ou melhor, do kairós, o que põe em
evidência a infinita plasticidade do discurso, seja ele mítico ou filosófico: ele pode mudar
permanecendo. Tanto o mito, variando seus símbolos e suas metáforas, quanto a filosofia,
variando seus conceitos e suas categorias são discursos dos quais o homem lançou e lança
mão para ao menos tentar descrever e entender como ele se constituiu como homem e como
ele deve agir para permanecer como tal, e esse encontro do homem com a decisão pela ação,
que é o que ambos os discursos procuram trazer à tona, tem no kairós a sua melhor tradução.
Talvez por terem se atido única e exclusivamente à narrativa de Hesíodo, os intérpretes
contemporâneos depararam-se com tamanha pedra de escândalo. O recurso a Platão permite
ver o mito vivo e em plena ação exatamente pela via da transformação. É claro que não se
pretende com isso considerar a questão do tempo, neste mito, resolvida.
Finalmente, o recurso a Platão valida uma das premissas fundadoras deste trabalho,
segundo a qual o poema apresenta “um conjunto de ideais que contribuíram para o
surgimento de um certo tipo de experiência social que é atualmente denominada Cidade-
Estado
121
Repete-se aqui o que foi dito acima: “se por um lado, não se deve entender que a
fundação da “pólis” era um efeito intencionado por Hesíodo, por outro, o efeito educativo
.”
121
Cf. Introdução p.4
70
do seu discurso pode ter produzido mudanças individuais que condicionaram mudanças
sociais.
122
3.4.6 O gavião e o rouxinol
A recepção de Platão a este mito é forte evidência da possibilidade de seu uso político.
Na verdade, Platão o emprega justamente para fundamentar a própria existência da “pólis”.
Encerrando a narrativa do mito das raças, Hesíodo justapõe, imediatamente, a fabula do
gavião e do rouxinol (vv. 202-12), que é, à primeira vista, endereçada aos reis: Conto agora
um conto aos reis, embora já o saibam.(v. 202”.Na verdade, esta fábula é, como Mazon a
considera, parte integrante de uma longa parênese (vv.202-285) dirigida aos reis e a Perses,
que tem a justiça por tema central
123
Segundo West
. De fato, ao término da narrativa da fábula propriamente
dita, Hesíodo invoca Perses e une pobres e nobres em um mesmo ensinamento: “Oh, Perses,
ouça a Justiça e não dê força à desmedida./ A desmedida é má para o pobre. Nem mesmo o
nobre/ a pode agüentar facilmente.(vv.213-15).”
124
Na literatura grega, tanto no período arcaico quanto no clássico, a fábula era contada a
uma pessoa em particular para comentar o seu comportamento ou a situação em que essa
pessoa se encontrava. Parece ser este o padrão que Hesíodo está perseguindo ainda que,
prossegue West, o poeta não seja bem sucedido quanto a um uso retórico efetivo desta
fábula. Se, por um lado, a posição do gavião é análoga à dos reis, por outro, ele não é
ridicularizado e nem há nada na narrativa que demonstre o vício da conduta do gavião. Em
outras palavras, não existe aqui a “moral da história”, presente, por exemplo, nas fábulas de
, esta fábula, que tal como o mito das raças, parece ter uma origem
oriental, é uma continuação do tema de Díke e bris.
122
Cf. CARRIÉRE, J.C. in BLAISE, F. ; JUDET , P. : ROUSSEAU, P. (1996) p. 411
123
Cf. MAZON in HÉSIODE (2002) p. 73
124
Cf. WEST in HESIOD (1978) p. 204-5
71
Esopo. Assim sendo, só resta a Hesíodo aconselhar Perses para não agir desta forma (v. 213),
justificando, bem mais tarde (vv. 276 ss.), que pássaros e bestas podem comer uns aos outros,
mas há uma lei diferente para os homens.
A fábula do gavião e do rouxinol não trata diretamente da justiça, o fio que une todo o
canto, e sim da desmedida. Esta é a desgraça dos homens e nada mais é do que a lei do mais
forte que Hesíodo combate desde o proêmio (v.7: fácil do torto faz reto e humilha o herói) e
através deste combate torna-se o arauto de uma nova ordem social que deste ponto ainda é
difícil de vislumbrar.
Uma vez que quem está em melhores condições para exercê-la é justamente quem está
no poder, a analogia entre os reis e o gavião é tão evidente que Hesíodo não vê nenhuma
necessidade de explicitá-la, mas embora invocando nominalmente a Perses, os reis devem ser
entendidos como endereçados da fala seguinte que diz que a Hýbris é nociva tanto ao pobre
quanto ao poderoso (vv. 214-15: A desmedida é má para o pobre. Nem mesmo o nobre/pode
agüentar facilmente:é esmagado por ela) A punição da Hýbris reduz as diferenças entre
fortes e fracos, entre reis e governados. Dois deuses a combatem, Khrónos e Díke
125
,
trazendo desgraça aos homens sempre que a Hýbris é praticada ou que um juramento é
quebrado.
3.5 Uma revisão das verdades
125
Juramento e Justiça, respectivamente. Hýbris não é uma deusa, mas um efeito provocado pela deusa Áte,
citada no verso 216, que Lafer não identifica como deus e traduz como desgraça. Se considerarmos
α)α/τη?ιν como uma manifestação de Áte, veremos Díke relacionando-se com dois filhos de Éris (Teogonia,
226-33) como se segue: Díke derrota bris, que é um efeito da influência de Áte. Logo, Díke e Áte são
antagonistas. Por outro lado, Khrónos arruína quem perjura (Teogonia 233), assim como Díke traz o mal para os
homens das trocas escusas (Erga 223). Khrónos e Díke são, portanto, aliados.
Esta relação de antagonismo e aliança com os filhos de Éris pode ajudar a entender a necessidade que
Hesíodo sentiu da divisão de Éris em boa e má.
72
Córdova, no decorrer de sua análise da passagem 202-285, faz uma revisão do
encadeamento dos mitos empregados por Hesíodo para relacioná-los com as verdades
transmitidas a Perses.
126
Enquanto a Luta má enseja a inveja e desvia o homem do trabalho, a luta boa estimula
o combate no próprio âmbito do trabalho e levará o oleiro a querer suplantar o oleiro, o
carpinteiro ao carpinteiro e o aedo ao aedo. Em outras palavras, a Luta boa estimula a
competição ágon tão cara aos gregos, pois a grande beneficiada por esta competição
Estruturando a articulação das verdades contidas nos mitos, Córdova apresenta uma
interessante sinopse: a quarta verdade a justiça é a norma de vida dos homens é o ápice
da construção teórica de Hesíodo e é sustentada pela terceira a Hýbris é a ruína dos
homens. As duas primeiras existe uma luta boa e o trabalho é uma fadiga inevitável
representam o lastro cognitivo necessário para um agir no mundo que esteja em harmonia
com a lei de Zeus.
127
Este encadeamento de temas coloca em evidência um tema não abordado em nenhuma
das passagens, mas presente em todas, que é o tema da responsabilidade. Este tema também
era a pólis e, por extensão, o povo que floresce quando ela germina.
O tema do trabalho, introduzido pelas lutas, é aprofundado no mito de Prometeu, a
partir do afastamento entre deuses e homens. O mito de Pandora, atrelado a Prometeu, conta
como os males necessários se espalharam pelo mundo. O mito das raças introduz o mal maior
para os homens, a Hýbris. Mas este não é um mal inevitável, como os demais. Pode ser
evitado desde que os homens pratiquem a justiça.
126
Cf. CÓRDOVA in HESÍODO (1986) pp. LI-LIX
127
Segundo Carrière, “as duas Lutas são as ancestrais distantes de dois mitos modernos. A Éris negra, que
concerne às usurpações sociais sem trabalho (ruína dos pobres e roubo dos ricos) é, ainda que individual, ligada
ao processo de produção, sendo assim, um tipo de ancestral da luta de classes marxista (para Marx, é a luta que
determina o surgimento de classes sociais, à medida que os indivíduos tomam consciência de seu papel no
processo de produção). A Éris boa, que é transversal e corporativa (entre pessoas do mesmo ofício) está mais a
serviço do mito da concorrência liberal. A importância destes jogos de tensão conduziu o pensador a desdobrar a
noção de Luta no plano alegórico. É de se admirar a profundidade de sua reflexão social.” CARRIÈRE In
BLAISE, JUDET , ROUSSEAU. (1996) p. 408, nota 31
73
está presente em Homero, e até de forma mais clara: no livro I da Odisséia, Zeus fala aos
imortais: “- Meus caros, os homens costumam incriminar os deuses. Não consideram que
eles padecem por desmandos próprios.
128
128
Odisséia, I, 31-34
.
A coincidência de temas nas obras de poetas tão importantes quanto distintos nos dá
uma idéia do quanto a questão da responsabilidade era importante para os gregos. Tanto é
que ela foi aprofundada ainda mais pelos poetas trágicos.
74
4. A mitologia política
Para justificar seu enunciado, o poeta opõe, em dois desenvolvimentos paralelos, a
prosperidade da cidade justa (vv.225-37) à desgraça que se abate sobre aqueles que baniram
Díke (vv.238-47). Nesta passagem torna-se evidente a visão que Hesíodo tem da submissão
do homem - e da sua vida política às leis do cosmos. Hesíodo a expressa em termos de
phýsis, empregando um vocabulário que remete à vida vegetal, no verso 227, aqui traduzido
da forma mais literal possível: “para estes, a cidade germina e o povo floresce”.
A condição de possibilidade da germinação da “pólis” e esta é a condição de
possibilidade do florescimento do povo é a boa Luta, que implica que “oleiro provoque
oleiro, carpinteiro a carpinteiro (v.25).” e que “os reis comedores de presente saibam que a
metade é maior que o todo. (vv.39-40).” Em outras palavras, “que corrijam as sentenças
(v.9).”
O que se vê é uma brevíssima descrição da cidade bem ordenada onde cada um cumpre
sua função. A descrição da cidade justa retomada nos versos 216-37 descreve apenas seus
resultados, mas sua fundamentação já está lançada desde o início do poema e ao longo de
todos os mitos narrados. Do mesmo modo, a descrição da cidade injusta nos versos que se
seguem (238-47) dá conta apenas e tão somente das conseqüências da inobservância desta
ordenação.
No livro IV da República, Platão acolhe esta mesma ordenação como sendo a própria
origem da cidade: “(...) de maneira que se te obedecêssemos, nem o lavrador será lavrador,
nem oleiro, oleiro, nem ninguém ocupará o seu lugar; e nessa ordenação é que a cidade se
origina. (Rep. 420e-421a).” Reafirma esta posição um pouco mais adiante ao abordar a
justiça: “O princípio que de entrada estabelecemos (...) cada um deve ocupar-se de uma
função na cidade, aquela para a qual sua natureza é mais adequada. (Rep. 433a)”,
75
culminando com a apresentação de uma definição de justiça: “a força (dýnamis) que leva
cada um a manter-se nos limites da sua tarefa. (Rep. 433d).”
Importa, antes de tudo, assinalar a diferença de visão de justiça entre poeta e filósofo.
Não é por acaso que cada um emprega uma palavra distinta para expressar seu conceito,
sendo que o primeiro emprega Díke e o segundo, “dikaiosýne” que é a idéia de justiça
como um bem em si, uma idéia de justiça não constrangida, uma idéia de liberdade que até
então não tinha se manifestado em absoluto no pensamento grego. Quando apresentou a
justiça como arte,
129
Parece ser igualmente herança hesiódica a descrição em díptico das cidades, ainda que
em ordem inversa: Platão apresenta primeiro a cidade injusta, para em seguida descrever a
cidade justa
crates operou uma modificação sutil, mas ao mesmo tempo
extraordinária: a arte não comporta a rigidez imperativa da visão de justiça como a
implacável lei divina que norteia o pensamento hesiódico. Sempre que se tentar aplicá-la,
qualquer que seja a arte envolvida, surgirão distorções tantas e tamanhas que terminarão por
destruir a obra. Não se pretende, com isso, que a arte seja incondicionada, mas antes, uma
vez que trata-se de uma ação com vistas a um fim, que seja uma busca de meios adequados
para a consecução do fim. Com isso, Díke deixa de ser um limite (éskhatos) que uma vez
transgredido desencadeia uma punição divina e passa a ser um fim (télos). Justiça já está
sendo designada por “dikaiosýne. Este estudo não abordará a fundo a desconstrução
platônica desta visão da tradição, uma vez que isto seria escopo de uma, ou, ainda, muitas
pesquisas.
130
129
PLATÃO. República. 332 d 2.
130
PLATÃO. República 434 b-d.
, abrindo, entretanto, uma diferença com relação a Hesíodo: enquanto para este
a ruína da cidade injusta vem sob a forma de um castigo divino (àqueles a quem a desmedida
intenta obras escusas/ a estes, justiça decreta o Cronida Zeus de ampla mirada. vv. 238-9),
76
para Platão, a causa desta destruição é justamente a inobservância do princípio fundador,
segundo o qual cada um deve ocupar na cidade a função mais adequada à sua natureza.
Esta mudança de atribuição de causa não se deu num salto. A história do pensamento
político grego aponta Sólon como o local privilegiado para acompanhar esta evolução. Sua
comunidade de pensamento com o poeta de Acra foi tão grande que levou Jaeger a escrever:
“Sólon não redescobriu as idéias de Hesíodo. Não precisava fazê-lo: limitou-se a
desenvol-las.
131
Enquanto Hesíodo escrevia na primeira pessoa, tendo como interlocutor principal seu
irmão Perses
132
“A antiga sociedade ática no seio da qual Sólon surgiu encontrava-se ainda
governada por uma nobreza de terratenentes, cujo domínio havia sido, em parte, já
destruído em outros locais, ou então chegara ao fim. O primeiro passo para a edificação
do direito de sangue, as proverbiais “leis draconianas”, significou mais uma
e com o nítido propósito de conformá-lo em um homem de bem, Sólon
escrevia, igualmente na primeira pessoa, mas seu interlocutor era a “pólis”, e seu propósito
era a educação política. Embora a História não seja o foco principal do presente trabalho, é
importante ressaltar a diferença de contextos entre ambos os poetas: Hesíodo viveu num
ambiente camponês, de poder centrado nos “basilêis”, sendo, portanto, anterior à “pólis”.
Sólon viveu numa “pólis” consolidada, mas ainda com as tensões entre nobreza e povo em
plena efervescência, tensão esta que ele procurou combater com a sua poesia. Esta
observação parece reforçar ainda mais a leitura que aqui se faz de Hesíodo como um dos
primeiros artífices desta instituição grega.
Para que se tenha uma visão mínima do cenário que tentamos delinear acima,
recorramos a Jaeger:
131
JAEGER (1995) p. 178
132
Nos versos 202-11, onde endereça aos reis a fábula do gavião e do rouxinol, e nos versos 248-64, também
dirigidos aos reis, Hesíodo fala, respectivamente, da força que os poderosos detêm sobre o homem comum e dos
perigos que podem advir da promulgação de decretos injustos, com a conseqüente responsabilidade dos
governantes para com os destinos do povo.
77
consolidação das leis recebidas que um rompimento com a tradição. Tampouco as leis de
Sólon queriam suprimir o domínio dos nobres como tal. Foi a reforma de Clístenes, após
a queda da tirania dos Psistrátidas, que acabou violentamente com ele. Quando
pensamos na Atenas posterior e na sua ânsia infatigável de novidades, parece milagre
ter sido nas acolhedoras praias da Ática que se quebraram as ondas da tormenta política
e social que inundaram o mundo daqueles tempos. Mas seus moradores de então não
eram os marinheiros dos séculos seguintes, que Platão descreve como acessíveis a todas
as influências. A Ática é ainda uma região exclusivamente agrícola. O povo, nunca fácil
de mover, estava preso à terra e á moral e religião tradicionais. Não se deve pensar, por
isso, que as camadas inferiores da sociedade eram alheias às novas idéias sociais. Veja-
se o exemplo dos beócios, que tiveram Hesíodo um século antes de Sólon e cujo sistema
feudal permaneceu intacto, apesar de tudo, até a época do florescimento da democracia
grega. Não era com essa facilidade que as reclamações e exigências formuladas em
surdina pela massa se transformavam em ação política orientada por uma intenção
clarividente.”
133
“Também Sólon fundamenta sua crença política na força de Díke, cuja imagem
descreve com visível coloração hesiódica. É de se acreditar que na luta de classes das
cidades jônicas a fé inquebrantável de Hesíodo num ideal de Justiça tenha
desempenhado um certo papel e tenha sido uma fonte de íntima resistência para a classe
que lutava pelos seus direitos. ... Também ele está convencido de que o direito tem um
lugar insubstituível na ordem divina do mundo. Não se cansa de proclamar que é
impossível passar por cima do direito, porque este acaba sempre por triunfar. Assim que
a Hýbris humana ultrapassa os seus limites, sobrevêm, cedo ou tarde, o castigo e a
necessária compensação.
Se Sólon ainda não é o revolucionário que o espírito contemporâneo admira, é, sem
sombra de dúvida, um reformador:
134
133
JAEGER (1995) pp. 175-6
134
JAEGER (1995) p. 178
78
Logo, não é de espantar que Sólon, “irmão-em-poesia” de Hesíodo, cante Eunomia
135
Sofrer muitas dores pela sua grande insolência
,
irmã de ke:
A nossa cidade jamais perecerá, por vontade de Zeus
E querer dos deuses imortais, bem aventurados.
Sobre ela estende os braços, magnânima e vigilante,
Palas Atena, filha de um pai ilustre.
Mas querem destruir a grande urbe, com seus desvarios, 5
Cedendo às riquezas, os próprios cidadãos,
E dos chefes do povo o espírito injusto, a quem está destinado
136
Não guardam os alicerces veneráveis da Justiça
Pois não sabem refrear seus excessos, nem pôr ordem
Nos bens presentes, na paz do banquete. 10
137
E a Boa Lei
Que, em silêncio, conhece o presente e o passado, 15
E, com o tempo, vem a exercer a vingança.
E assim, a desgraça pública entra em casa a cada um.
E as portas do pátio não podem detê-la.
Mas salta a elevada fortaleza, e acha quanto quer,
Ainda que se fuja para o recesso do tálamo.
Manda-me o meu corão que ensine aos Atenienses estas coisas: 30
Como a Desordem causa muitas desgraças ao Estado,
138
-se aqui, conforme foi dito acima, que enquanto Hesíodo fala separadamente aos reis
e ao homem comum, e este na pessoa de Perses, Sólon endereça sua palavra à totalidade dos
cidadãos, chamando-os à responsabilidade sobre suas ações e isentando os deuses. Afinal de
contas, a depender da vontade destes, a “pólis” jamais perecerá. O seu nexo causal é claro:
as decisões oriundas do espírito injusto dos chefes do povo retornam como a desgraça
apresenta tudo bem arranjado e disposto,
E muitas vezes põe grilhetas aos injustos.
135
SÓLON. Eunomia. (frg. 3 Diehl) in PEREIRA (1971) p. 109-10, com modificações
136
Hýbris
137
Díke
138
Eunomia
79
pública que entra na casa de cada um, cujas portas não constituem mais defesa segura
139
. A
interdependência entre indivíduo, a coletividade e o destino, não poderia estar pintada em
cores mais vivas. O castigo, para Sólon, não mais virá na forma como peste ou má colheita,
por desígnio de Zeus
140
Há que, enfim, tentar conjugar a dialética singular-plural, indivíduo-comunidade, que
se estabelece entre os dois poetas e o filósofo. Partindo de Hesíodo, podemos constatar, no
, mas pela desordem que toda e qualquer violação do direito instaura.
Sólon, tal qual Hesíodo, lança um olhar para o futuro, mas o que vê não é mais profecia: no
seu desenvolvimento das idéias de Hesíodo, sua visão de futuro tornou-se saber político.
Não se pretende, com isso, que o poeta ático tenha banido o divino da vida humana:
Díke permanece entre os homens, em silêncio, conhecendo o presente e o passado e,
conforme as determinações do tempo, a vingança se faz sentir. Os deuses são executores de
uma ordem moral. Esta é a Moira que leva tudo à unidade, o princípio de uma ordem fixa que
governa o mundo humano, bem como a natureza, fundado na Justiça e na Eunomia: entre os
homens, vige a lei de Zeus. Na natureza, a lei dos campos se manifesta na sucessão ordenada
das estações. Esta aparente separação deve ser entendida como o mesmo manifestando-se em
diferentes aspectos para diferentes modos se ser no mundo.
Sobre a permanência de Díke entre os homens, duas observações. A primeira é a de que
Díke ainda conserva o seu triplo significado antigo de julgamento, estipulação da pena e
punição, sendo, consequentemente, algo que só se mostra quando provocada. A segunda é a
espantosa semelhança com a descrição de Hesíodo, nos Erga:
E há o clamor da Justiça violada quando os homens 220
Comedores de presentes, trocam favores, decidem sentenças
Ela acompanha, chorando, cidade e costumes do povo,
Vestida de ar, portadora de mal para os homens
Que a baniram e não fizeram reta partilha.
139
É inevitável a comparação com o fragmento 44 de Heráclito que diz que “o povo deve lutar pela lei como se
lutasse pelas muralhas da cidade.”
140
HESÍODO. Os Tarbalhos e os Dias. vv. 243-245.
80
seu esforço educador voltado para o indivíduo, a construção de uma possibilidade de viver
em harmonia, que vê como única via, a vida reta, do homem comum do rei e do vizinho,
para se manter ao abrigo da vingança de Díke, sendo o caminho para esta vida reta, o árduo
caminho do trabalho. Em suma, já em Hesíodo, a ação individual deve se orientar para o bem
comum, devendo, portanto, buscar um nómos, uma lei que integre indivíduo e comunidade
na ordem maior em que já são inseridos e que nem um deus pode transgredir. Este
pensamento apresenta reflexos em Heráclito: No fragmento 94, Dike aparece como guardiã
do sol: “O Sol não ultrapassará as medidas; se o fizer, as Erínias, ajudantes de Dike, o
encontrarão.” Aqui, Heráclito, pensador da unidade panta hen submete a natureza às
determinações de Dike, distanciando-se de Hesíodo, para quem Dike foi dada aos homens
(vv. 274-79). Por outro lado, temos o enunciado de uma lei anterior e universal, a lei da não
ultrapassagem da medida (oukh hyperbésetai métra), a qual Hesíodo acolhe e transmite ao
seu irmão: “Guarda a medida! O momento oportuno é o melhor sobre tudo.” (v.604). Este
fragmento nos permite, então, uma aproximação semântica entre Hýbris, a ultrapassagem da
medida, e adikía, a não-justiça, que pode ser entendida como o modo humano de ultrapassar
o metro, seja em relação aos deuses, ao outro ou a si mesmo. Devido à sua natureza divina, a
extensão e alcance de Dike são inapreensíveis para os mortais, tal como são inapreensíveis os
limites da vida, tão profundo é o Lógos que possui (frag.45). Assim sendo, ela só se
manifesta aos homens quando provocada pela ultrapassagem do metro e em medida
correspondente àquela ultrapassagem que ensejou a sua manifestação. Mais do que isso,
estaria, ela própria, ultrapassando a medida. Esta é a tarefa que o pensamento político grego
levou adiante.
81
5. A genealogia do homem bom
Uma vez que a tarefa que compete ao rei ou ao governante é a de administrar a justiça,
“tàs díkas dikázein (Erga, v.39, Rep. 433e)”, Hesíodo e Platão sentem a necessidade de falar
em separado aos governantes, enquanto Sólon dirige-se à unidade da “pólis”. Mas se até este
ponto a concordância entre Platão e Hesíodo é evidente, a diferença de projeto das
respectivas obras, República e Erga, os leva a rumos distintos. O filósofo, por estar mais
preocupado com a educação do governante, irá afastar-se progressivamente do homem
comum e concentrar-se no guardião, enquanto o poeta, intrigado com a falência da lei do
mais forte, encerra sua última fala aos reis (vv. 248-69) para dedicar-se à formação do
homem comum.
Por obra de seu gênio poético, seu interlocutor, Perses, ouvirá a descrição das
atividades do vizinho rico, aquele cuja simples existência desperta para a boa Luta,
atividades estas que se resumem na de administrador do “oîkos”, mas que englobam as de
lavrador, carpinteiro, esposo, vizinho, marinheiro e comerciante. Este é o herói de Hesíodo e
o pilar sobre o qual se constituirá a pólis, pois, conforme se lê nos Econômicos: A arte de
administrar uma casa e a de administrar uma pólis diferem entre si não apenas na medida
em que a casa e a lis também diferem (uma vez que aquela é o fundamento desta)
141
e
mais adiante, na mesma obra, Por aqui se torna claro que a origem da administração da
casa é anterior á administração da lis; e o mesmo se diga da sua função, pois a casa é
uma parte da pólis
142
Hesíodo vê a possibilidade de construção de um caráter semelhante a este herói pela
via do discurso. Por isso a advertência “Eis o melhor: aquele que pensa tudo por si/ e
conjuga o que convém agora com o fim. Nobre, também, quem ouve do bem e obedece/ mas
.”
141
ARISTÓTELES. Econômico, 1. 1343 a 1-3.
142
Idem, 1. 1343 a 15-17.
82
quem não pensa por si, nem ouvindo o conselho/ não o guarda na mente, este é um homem
inútil. (vv.293-97)”, acatada por Aristóteles na introdução de sua discussão sobre a
virtude.
143
“Sobre este ponto, Aristóteles parece retornar, para além do intelectualismo de
Sócrates e de Platão, a algum ideal arcaico de herói, o qual se impõe menos por seu
saber do que por suas façanhas ou, simplesmente, seu ‘zelo”. Em Aristóteles não é
casual que a personagem que serve de critério seja frequentemente designada pelo
vocábulo spoudaios. A palavra evoca inicialmente a idéia de zelo, de ardor no combate,
e posteriormente simplesmente a idéia de atividade séria: o spoudaios é o homem que
inspira confiança por seus trabalhos, aquele com quem nos sentimos em segurança,
aquele que se leva a sério.
É sabido que Aristóteles privilegia o primeiro dos três tipos descritos por Hesíodo, isto
é, “o melhor”, que identificará com o “phrônimos” e o filósofo, enquanto Hesíodo dirige sua
fala ao terceiro, “o inútil”, visando transformá-lo em nobre”, mas o distanciamento entre o
filósofo de Estagira e o poeta da Beócia não é tão grande quanto o que se dá com Platão, pois
há um tipo na antropologia aristotélica que, confrontado com o vizinho, pode ajudar a aclarar
a imagem do modelo intentado. Trata-se do “spoudaios”, do homem bom”.
Importa estabelecer que o “spoudaios” é entendido aqui segundo a leitura de Aubenque:
144
Esta aproximação deve ser precedida de dupla cautela, e a primeira concerne ao próprio
Aristóteles que, ainda segundo Aubenque, pensa menos na força do “spoudaios” e mais na
qualidade do seu julgamento.
145
143
ARISTÓTELES. E.N. 1, 4, 1095 b 10-13.
144
AUBENQUE ( 2003) p.77
145
Idem, ibidem
. De fato, o filósofo apresenta-o, na Ética a Nicômaco, a
partir da correção de seu julgamento: “as ações devem ser necessariamente aprazíveis em si
mesmas. Mas elas são também boas e nobres, e têm no mais alto grau cada um desses
atributos, se o homem bom (spoudaios) sabe julgar bem acerca de tais atributos e, como
83
dissemos, ele julga.
146
O conselho a que o poeta se refere no verso 296 já foi proferido e concerne à virtude:
“Pois eu, que conheço o bem, te digo, Perses, grande tolo:/ mui pronto a miséria conquista
multidões,/ é muito fácil: seu caminho é plano e está logo ali./ Mas perante a virtude
Hesíodo não leva em conta o julgamento de seu homem bom, o
vizinho. Suas ações bastam como modelo, pois para ele, é agindo que a obra se atualiza; e a
obra mais importante é o homem.
A segunda diz respeito ao ideal arcaico de herói, que é justamente o que Hesíodo quer
reformular. Assim sendo, não se trata aqui do herói homérico, de ascendência divina e de
virtude guerreira, mas antes do herói hesiódico, cuja origem não importa, uma vez que estão
todos, independente de origem, sujeitos à lei divina que “fácil do torto faz reto e humilha o
forte (v.7)”, e cuja virtude é o trabalho.
147
Registre-se, antes do mais, que Platão lança mão precisamente desta passagem no livro
IV das Leis, no momento em que o ateniense está expondo a necessidade do preâmbulo às
leis. Uma vez que “há também matérias que o legislador terá necessariamente que
regulamentar, embora não se prestem bem a uma formulação sob a forma de lei.
, suor
ordenaram os deuses/ imortais. É longa e inclinada a subida até ele,/ espinhosa no início,
mas quando se chega ao topo/ mais fácil se torna, ainda que seja difícil. (vv. 286-92)”.
148
, o
ateniense destaca a necessidade de uma abordagem que pudesse levar as pessoas a escutarem
as advertências em matéria de virtude numa disposição de maior civilidade e menor
hostilidade, pois “não há uma quantidade enorme de pessoas ansiosas para se tornarem as
melhores possíveis rapidamente.
149
146
ARISTÓTELES. E.N. I,8,1099 a, 21-24.
147
No original, Areté, virtude.
148
PLATÃO. Leis. 718b.
149
Idem, 718d.
É justamente aí que diz que Hesíodo foi sábio ao
compor estes versos.
84
Se nesta passagem Hesíodo não se pergunta pela natureza ou pela essência da virtude,
por outro lado responde antecipadamente à pergunta socrática sobre a possibilidade do ensino
da virtude, descrevendo a sua via de aquisição: a virtude é conquistada pela conversão do
“pónos” em “érgon”. Em outras palavras, pela conversão do esforço em obra. Ou ainda,
uma palavra: práxis, a ação virtuosa que tem nela mesma a sua finalidade e na qual o homem
conjuga todas as causas. Ao converter “pónos” em “érgon”, o homem torna-se aquilo que é
e é a sua própria obra.
A via de aquisição, o caminho íngreme e espinhoso, que se torna mais fácil, ainda que
difícil, nada mais é do que o ciclo anual de trabalhos descrito nos versos 383 828, pois
“feliz e abastado é aquele que todo este saber/ sabendo, trabalha isento perante os imortais/
consultando as aves e evitando exageros. vv. 826-8.”
A maioria dos estudos desenvolvidos acerca dos Erga dificilmente vai além do já
visitado verso 382. As poucas incursões dentro deste mar pouco conhecido que é o espaço
compreendido entre os versos 383 e 828, que encerra o poema, ou são pontuais ou tendem a
vê-lo como uma maçante descrição de tarefas rurais, como um manual de agricultura arcaica,
o que somado ao fato de ser o poeta um pastor, faz com que o entendimento geral seja de que
o pensamento de Hesíodo não participa da “pólis”.
Neste quadro, é perfeitamente compreensível que a tradução brasileira de Lafer
150
, que
tem enorme peso na concepção deste trabalho, termine precisamente com este verso. Sua
formulação é problemática e sua tradução é imposvel, uma vez que não existe uma tradução
única e definitiva para o termo grego érgon que atravessa todo o verso
151
150
Cf. HESÍODO (1991)
151
Até mesmo quando érgon está ausente. O primeiro verbo, no infinitivo com valor de imperativo érdein
(age!) a aço implicada pelo érgon (en-érgeia) está presente.
. Embora a tradução
desenvolvida como suporte para a presente investigação não tenha ousado transgredir a
forma canônica de érgon como trabalho, é oportuno retomar a paráfrase proposta acima:
“assim age (ôd’érdein): a força de realização (érgon) na própria obra (epí érgoi) se atualiza
85
(ergázesthai).”, primeiramente para tentar alcançar uma compreensão maior de seu
significado e, em seguida, retornar ao poema para entender que papel ele desempenha no seu
corpo.
Esta retomada serve apenas e tão somente como uma etapa intermediária que possibilita
introduzir a sentença de Aristóteles que permitirá desvendar o enigma: as coisas que
devemos aprender para fazer, aprendemo-las fazendo
152
. Por esta via indireta de
aproximação, desvela-se toda a força educativa de um poema que, tal como a Ética a
Nicômaco, visa à ação, pois ambas as obras compartilham o entendimento de que é na ação
que as coisas se realizam
153
Embora o pensamento grego posterior venha a adotar uma postura ambígua em relação
ao trabalho e aconteça da agricultura ser apresentada por Aristóteles ora como “uma
atividade de acordo com a natureza, na qual o homem pode exercer sua virtude ativa
conforme a justiça” e ora como “uma atividade servil, igual aos ofícios dos artesãos”, o
trabalho em Hesíodo, sobretudo o agrícola, ainda que ambíguo por ser um mal que é a única
. No caso dos Erga, a justiça, no caso da Ética a Nicômaco, a
felicidade.
É preciso, então, determinar quais são as coisas que devemos fazer para aprender a
fazê-las. Neste ponto Hesíodo assemelha-se aos interlocutores de Sócrates nos diálogos de
Platão: perguntado sobre o que é uma ação justa, ele só consegue descrevê-la. Está, como
entende Havelock, nos limites de sua linguagem e tudo o que pode fazer é descrever tudo o
que deve ser feito e tudo o que deve ser evitado durante o período de um ano. Caso Perses
siga seus conselhos por repetidos ciclos anuais, a circularidade de suas ações entrará em
harmonia com a circularidade do verso 382 e ele poderá intuir o cosmos, o princípio
norteador da ação, que embora ainda não expresso num discurso racional, já estava implícito
no movimento do poema.
152
ARISTÓTELES. E.N. II, 1, 1103 a 32-33.
153
Idem, II, 2, 1103 b 26-31.
86
via do bem, nunca é depreciado. Ao contrário, é a origem de tudo: “Uma casa primeiro,
mulher e boi de lavoura é o que tens de arranjar.”
154
O recurso ao Econômico de Xenofonte pode ser valioso para ajudar a compreender o
que está em jogo aqui. Segundo este, “o melhor trabalho e o melhor saber é a agricultura”,
pois “incita os lavradores a serem corajosos, já que aquilo de que precisam, ela faz crescer
e nutre fora dos muros. Por isso é também a vida mais nobre, pois, ao que nos parece, torna
os cidadãos melhores e mais bem dispostos para com a comunidade.
155
Após diferenciar e determinar as tarefas que competem ao homem e as que competem à
mulher, e nisto discorda de Hesíodo, uma vez que para este a mulher segue os bois (v.406),
enquanto para aquele ela deve permanecer no interior da casa, Xenofonte apresenta a
agricultura mais como uma atividade formadora de carÁter do que como um saber ou uma
arte. Não é nem a ciência nem a ignorância dos agricultores que faz com que uns sejam
abastados e outros carentes, mas o zelo com que se dedicam a ela. Sendo a terra uma deusa,
“ensina também a justiça aos que podem aprendê-la, pois aos que lhe prestam os melhores
serviços, dá em troca muitos bens” e ainda, por ser uma deusa, basta que se a olhe e que se a
ouça para que se torne um perito nela
156
Nesta perspectiva, trabalhar a terra significa acatar a necessidade do trabalho que foi
imposta pelos deuses aos homens desde o mito de Prometeu. Quem trabalha “é muito mais
caro aos deuses (Erga v.309)”. Por outro lado, “a preguiça no cultivo da terra denuncia, de
modo claro, a alma vil
.
157
Isto, ao menos na visão de Xenofonte, atravessa todas as classes, uma vez que relata
que Ciro, o rei mais ilustre, disse a Lisandro, general lacedemônio: “-Quando estou bem de
”.
154
Cf. VERNANT, J. P. in VERNANT; VIDAL-NAQUET (1989) p. 20, citando Aristóteles : Econômicos I, 2,
1343 a 25 , Política 1330 a 25. e Hesíodo: Trabalhos e Dias, 405-6.
155
XENOFONTE. Econômico, VI, 10.
156
Idem, V, 12 e XIX, 17.
157
Idem, XX, 15.
87
saúde jamais vou jantar antes de suar fazendo um exercício de guerra ou um trabalho
agrícola, ou esforçando-me para conseguir algo.
158
Hesíodo aborda o relacionamento com o vizinho na passagem que abrange os versos
342-370. Logo no primeiro verso desta seqüência, o vizinho já se desdobra em duas
possibilidades: ou é amigo, ou é inimigo. Este é um castigo, aquele, grande socorro. Na base
de tudo está a utilidade: “se alguma desgraça se dá em tua casa,/ os vizinhos de presto te
acodem, parentes demoram. (vv. 344-45)”. Mas, se esta utilidade é regida por uma noção de
reciprocidade, onde prevalece, à primeira vista, o interesse próprio: “Mede bem o que vem do
vizinho e bem o retorna/ na mesma medida ou mais, se puderes,/ para que, precisando mais
tarde, o encontres disposto. (vv. 349-51)”, ou ainda, numa fala mais crua: “Dá a quem te dá
e a quem não te dá nada dês:/ dá-se a quem dá, ao que não dá, ninguém dá. (vv. 354-55)”,
A breve incursão a Xenofonte possibilita entender que a administração do oikos baixo
os princípios preconizados pelo poeta produz, pela via do hábito, um caráter forte e viril, um
determinado tipo de indivíduo que será objeto tanto de admiração, como de uma inveja, que
Hesíodo pretende que seja boa e que estimule o vizinho a trabalhar.
Pelas palavras de Xenofonte é possível conhecer mais de perto este novo Aquiles que
se esteve buscando ao longo de toda esta pesquisa. É possível visualizá-lo, conhecer a sua
casa, saber como vive e como age. É possível até mesmo dar-lhe um nome: Iscômaco, o
interlocutor de Sócrates neste diálogo, parece ser o homem que ouviu e cumpriu o conselho
dado por Hesíodo.
Este caráter será também objeto de reconhecimento, de identificação, pelo qual poderá
ser denominado, além de spoudaios, ísos, igual, ou homóios, semelhante. Este é o tipo de
homem que pode, justificadamente, buscar auxílio com os vizinhos. Este é caro aos deuses e
aos homens, pois trabalha: ambos odeiam os lerdos (vv. 309-10).
158
Idem,, IV, 24.
88
por outro lado, é também delimitada por um preceitos morais, o primeiro expresso por uma
negação: “Nada de ganhos escusos, estes são como ilusões. (v.352)”, o segundo por uma
afirmação: “Doação é boa, roubo é mau: traz a morte. (v.356)”.
Em outras palavras, a doação pressupõe também uma recepção, isto é, troca, algo que
está em questão desde o início do poema: a distinção entre a troca justa e a troca escusa
(vv.35-41).
Por detrás deste linguajar seco e pragmático, descortina-se um tipo de relação
interpessoal ausente em Homero: uma associação que visa à preservação da vida boa. A
associação entre os heróis de Homero, a symakheía, visava à guerra e a honra, o que
instaurava uma tensão permanente: os heróis eram aliados na medida em que buscavam a
vitória, mas eram eternos rivais na busca pela glória.
Hesíodo agiu aqui, na sua dissertação sobre a amizade, de modo semelhante ao que
tratou da virtude. Em nenhum dos casos, apresentou uma definição, mas enquanto com
relação à virtude, conforme já visto, apresentou sua via de aquisição, ao tratar da amizade,
apresentou suas condições de possibilidade, onde a principal é a reciprocidade, expressa,
dentre outros, pelo preceito de dar a quem dá e de negar a quem não der, seguida pela
convivência, expressa pela proximidade do vizinho, contrastante com a distância dos
parentes, que demoram com o auxílio.
No bojo da exigência da conquista dos bens pela via do trabalho - nada de ganhos
escusos, ou ainda, o roubo é mau subjaz a própria exigência do trabalho, aqui expressa de
forma discreta, mas que sugere também a repetição do ato, que não é outra coisa que o
caminho da virtude: “E se acrescentares pouco ao pouco/ e com freqüência o fizeres, logo
muito será. (vv.361-62).
É bem verdade que a exigência do trabalho como condição para tornar-se também
merecedor de auxílio fica mais esclarecida mais adiante, já fora desta passagem dedicada à
89
relação com o amigo: “Trabalha, Perses tolo,/ os trabalhos que os deuses destinaram aos
homens/ para que nunca, com filhos e mulher, coração aflito,/ peças sustento aos vizinhos e
eles te neguem./Duas ou três vezes talvez consigas, mas se insistires/ não terás coisa alguma.
(vv. 397-401)”.
Em outras palavras, para tornar-se merecedor do auxílio do vizinho, o homem deve
exibir um caráter trabalhador. A busca de auxílio junto a vizinhos que são spoudáioi, ísoi e
homóioi, dá ensejo a um novo sentimento: “Ganha um tesouro quem tem um vizinho de
escol.(v. 347)”. As relações que se estabelecem entre estes fundam uma nova experiência
social, e a prática reiterada da doação transforma-se em prazer: “O homem que dá por
vontade, ainda que muito,/ alegra-se com o presente e agrada seu espírito. (vv. 357-58)”.
Na raiz deste processo encontra-se a auto-suficiência (autarquia), algo muito caro a
Hesíodo: “É bom colher o que é seu, castigo para a alma/ é precisar do que falta. Pense bem
nisto. (vv.366-67)”, e que Aristóteles apresentará duplamente, primeiro por meio de uma
negativa: “Por auto-suficiente não entendemos aquilo que é suficiente para o homem
isolado, para alguém que leva uma vida solitária, mas também para os pais, os filhos, a
esposa, e em geral, para os seus amigos e concidadãos, já que o homem é um animal
político
159
, em seguida positivamente: “Definimos a auto-suficiência como aquilo que, em
si mesmo, torna a vida desejável, por não ser carente de nada
160
Além do mais, a própria cidade, segundo Platão, tem sua origem no fato de cada um de
nós não ser auto-suficiente
.”
161
Assim sendo, a nova experiência social que está sendo gestada a partir da associação
pacífica entre os vizinhos com vistas à manutenção da vida boa é a pólis e o sentimento que
surge em decorrência desta associação é a amizade, o agente de união entre os oikonómoi.
e assim, auto-suficiência que o oikos não conseguir prover,
será provida pela pólis.
159
ARISTÓTELES. EN. I.7.1097b 9-11.
160
Idem, 1097b 15.
161
PLATÃO. República. 369b.
90
Séculos mais tarde, Aristóteles escreverá, em concordância com Hesíodo, na abertura
de sua discussão sobre a amizade na Ética a Nicômaco, que a amizade é o que há de mais
necessário para a vida, e que sem amigos ninguém quereria viver. Todos: ricos ou pobres,
jovens ou velhos, beneficiam-se dela. No campo das ações humanas, dá-se de modo natural
entre pais e filhos e até mesmo entre aves e animais. Mesmo nas viagens, isto é, fora de sua
pólis natal - traço fundamental na construção da identidade do homem grego - ainda é
possível sentir a sua força e o homem, agora ksénos, que quer dizer simultaneamente
estrangeiro e hóspede, ainda hoje, no grego moderno, permanece amigo e familiar ao
homem.
162
“Parece, ademais, que a amizade mantém unidas as cidades, e que os legisladores
consagram mais esforços a ela do que à justiça. Com efeito, a concórdia assemelha-se de
alguma forma à amizade e [os legisladores] lançam-se mais na sua direção, enquanto
procuram evitar a discórdia, por ser inimiga.
Após ter ultrapassado os limites da muralha da pólis, Aristóteles retorna a ela:
163
Coloca em seguida a amizade no patamar da phýsis, como fica demonstrado em seguida
ao abordar as investigações de Eurípides, Heráclito e Empédocles, para então retornar ao
âmbito humano do qual se ocupará no restante da sua investigação
164
Mas há ainda algo desta apresentação da amizade que foi intencionalmente omitido e é
agora trazido à cena: a primeira definição que Aristóteles apresenta é que a amizade é uma
virtude, ou vem acompanhada da virtude
.
165
. Ora, na abertura do Livro II da Ética a
Nicômaco, o filósofo sustenta que há dois tipos de virtude, a intelectual e a moral
166
162
ARISTÓTELES, EN. VIII, 1, 1155 a 1-22.
163
Idem, VIII, 1, 1155 a 22-26.
164
Idem, VIII, 1, 1155 b 1-11.
165
Idem, VIII, 1, 1155 a 2.
166
Idem, II, 1, 1103 a 14.
. Uma
vez que a amizade exige a existência de um outro com quem se relacionar, é válido inferir, já
que Aristóteles não esclarece que tipo de virtude é aquele que é ou acompanha a amizade,
91
que trata-se aqui de uma virtude moral. A virtude moral é adquirida pelo hábito
167
e resulta
do exercício tás d’aretás lambánomen energésantes próteron
168
Esta é, para Aristóteles, “a amizade perfeita, aquela que se dá entre homens bons e
iguais em virtude, pois tais pessoas desejam o bem um ao outro de modo idêntico, e são bons
em si mesmos.
, ou seja, “adquirimos as
virtudes depois de termos trabalhado”. Isto implica em que há aqui um trabalho trabalhando
sobre o trabalho ou, como já foi dito, uma força de realização que se atualiza na própria obra,
no próprio agir. Se a amizade é, de certa forma uma capacidade natural, ela demanda uma
ação sobre si para realizar-se.
Se alguém que age sobre si vê o vizinho agindo, também ele, sobre ele mesmo, o
reconhecimento é imediato e ambos se vêem spoudaioi, isoi e homoioi e suas trocas e
retribuições são necessariamente justas.
169
”. Esta forma de amizade, que o filósofo assumirá como o padrão segundo o
qual as demais formas de amizade, seja com vistas ao que é útil, seja com vistas ao que é
prazeroso, guardam certa semelhança
170
Se o poeta não aborda estes outros tipos de amizade, e menos ainda discute se estes
tipos assemelham-se a ela ou dela derivam, como faz Aristóteles, nem por isso seu mérito é
diminuído. O modelo de amizade apresentado por Hesíodo é algo a ser seguido e imitado
, atende, em última análise, às mesmas condições
estabelecidas pelos versos de Hesíodo, pois lá a relação começa a partir da utilidade, mas a
exigência de reciprocidade marcada pelo verso 324 - “Dá a quem dá e a quem não te dá
nada dês.”- introduz a exigência do trabalho, fonte da virtude e, retornando a Aristóteles, a
amizade segundo a virtude é justamente a única que conjuga nela mesma a utilidade e o
prazer, enquanto que as amizades pautadas unicamente no prazer ou na utilidade são ditas
amizade devido à semelhança.
167
Idem, 1, 1103 a 17.
168
Idem, II, 1, 1103 a 31.
169
ARISTÓTELES, EN. VIII, 3, 1156 b, 7.
170
Idem, VIII, 4, 1157 a, 1-2.
92
pelos filhos e servos dos oikonómoi” virtuosos. Pouco importa que a imitação seja ou não
bem sucedida. O importante é que o movimento gerado pelo esforço da imitação desembocou
em transformação social. Os sucessos e os insucessos decorrentes deste esforço imitativo
geraram a tensão instauradora e mantenedora da pólis.
Talvez seja oportuno aproximar as considerações aqui apresentadas com as que
Konstan desenvolve em seu livro, “A amizade no mundo clássico
171
Em primeiro lugar, há concordância de entendimento no que diz respeito ao mundo
homérico. Segundo Konstan, não há em Homero uma referência específica a amigos. A
afeição entre heróis está inserida em uma estrutura hierárquica que envolve um elemento de
deferência e até de medo
.
172
. Mesmo a relação entre Aquiles e Pátroclo, tida por muitos como
uma das amizades paradigmáticas do mundo antigo
173
, revela traços de assimetria
incompatíveis com a simetria requerida pela amizade, seja devido a um possível elo erótico,
onde, no mundo grego a assimetria era requerida
174
Outro ponto de concordância é o fato do autor reconhecer, não só nos versos já aqui
visitados sobre a amizade, como também em outra passagem dos Erga, os versos 707 -718,
que ficam fora da presente discussão, os elementos que oferecerão o contexto da amizade
pessoal na cidade-estado clássica. A Konstan não causa muita surpresa que o mundo
camponês descrito por Hesíodo pareça antecipar a sociedade da pólis
, seja pela relação hierárquica, uma vez
que Pátroclo é descrito como uma espécie de escudeiro de Aquiles.
175
O ponto onde os entendimentos se afastam é a visão de Konstan de que Hesíodo tem
em vista a conveniência, ou, no jargão aristotélico, Hesíodo visa uma amizade regida pela
utilidade. A convicção do autor é tão forte que ele a expressa por duas vezes nas trêsginas
que ele dedica à amizade em Hesíodo. Na primeira oportunidade ressalta que a “cooperação
.
171
KONSTAN, D. (2005)
172
KONSTAN, D. (2005) p. 58.
173
Idem, p.32
174
Idem, p. 57.
175
Idem, p. 63.
93
é um valor importante, mas deve ser tratada com cautela e considerando a vantagem
própria” quando aborda os versos 353-4, aqui transcritos segundo a tradução brasileira:
“recebe bem quem o recebe [tòn philéonta phileîn], entra em contato com quem entra em
contato contigo, dá se ele der, não dês se ele não der.” A segunda é a ocasião onde analisa
os versos 344-6, que tratam da preferência pelos vizinhos aos parentes, especificando que é
melhor convidar os que moram mais próximos: “pois se qualquer problema local surgir,
vizinhos[geítones] vêm como estão, ao passo que os parentes se vestem:um mau vizinho é um
desastre tanto quanto um bom vizinho é uma benção.” Konstan considera este conselho
prático, não como cultivo de amizade, mas como uma disposição para ser amistoso e útil aos
vizinhos, algo reconhecido como valor em qualquer sociedade de aldeia
176
É possível começar a contestar a posição do autor a partir de seu próprio livro. Já na
Introdução, escreve: “Se amigos proporcionam presentes, presentes proporcionam amigos
(...) o fluxo material subscreve ou inicia relações sociais.
.
177
Mas dentro mesmo da passagem em questão, Konstan não deu atenção a dois versos
importantes, o verso 352, “Nada de ganhos escusos: estes são como ilusões.” E o verso 356,
“Doação é boa; roubo é mau: traz a morte.” Em primeiro lugar, a interdição ao roubo é
patente. Nunca é demais lembrar que este é um dos pontos nevrálgicos do poema. Hesíodo
quer revogar a ética heróica que legitima o ganho pelo saque. Em segundo lugar, é a doação
quem é boa, e não o favor recebido. Como então pode haver uma vantagem própria fundando
o ato de dar? Por outro lado, parece lícito inferir que aquilo que se está dando foi conquistado
Os presentes que os candidatos
a amigos trocam entre si podem ser bens materiais (skeúa, khrémata) ou favores, que são
ações (práxeis). Por outro lado, a expressão “inicia relações sociais” sugere um continuum
que leva a um aprofundamento, enquanto que a abordagem de Konstan parece descrever uma
série repetitiva de trocas pontuais e estanques.
176
KONSTAN., D. (2005) p. 61-2
177
Idem, p. 5.
94
com o próprio trabalho, e não com o saque. Conquistar as coisas com o próprio trabalho
confunde-se, como já visto, com o caminho da virtude.
Os versos que se seguem, “O que o homem dá por vontade/ alegra-o como presente e
agrada seu espírito. (Erga 357-8), introduzem o prazer que marca as trocas que se
estabelecem entre homens que já trilharam o caminho da virtude.
95
6 Conclusão
Fica então evidente que Hesíodo quis, de fato, apresentar um novo modelo de ação no
seu poema didático. Este modelo é o vizinho “que corre a arar, semear e enfeitar a casa”, o
novo Aquiles, nas palavras de Philippe Rousseau. Mas não se trata apenas de apresentar
um modelo. É preciso fundamentá-lo, e Hesíodo soube fazê-lo com um rigor excepcional,
caso não se confunda o rigor da fundamentação com a rigidez de uma argumentação
silogística.
O movimento do poema tem sempre uma orientação definida: do geral para o
particular. Por isso ele é aberto com a invocação a Zeus, o deus que assumiu o comando de
um mundo já dado não foi ele quem o criou e sua tarefa no mundo é ordena-lo, dar-lhe
sentido. Nada mais divinamente humano. Para os gregos, a criação do mundo nunca foi um
problema efetivo, conforme atesta Heráclito: Este mundo, o mesmo de todos, nenhum deus,
nenhum homem o fez, mas era, é e será um fogo sempre vivo, acendendo-se em medidas e
apagando-se em medidas.
178
178
HERÁCLITO. Fg.30, Diels-Kranz
”. A Luta é o modo de realização do cosmos, conforme Hesíodo
estabeleceu na Teogonia. Lá temos o episódio da titanomaquia, a batalha que Zeus travou
para estabelecer a ordem do mundo. Se até os deuses tiveram que lutar, os homens têm que
lutar permanentemente, e o modo do homem de inserir-se nesta Luta é o trabalho. Por isso a
luta precisa ser cindida em duas “sobre a terra”. Como foi visto, é sobre a terra, isto é, para
os homens, que esta divisão faz sentido. A necessidade do trabalho é trazida à cena na
narração do mito de Prometeu e Pandora e este é apresentado como uma imposição divina e
como um aparente castigo que é, na verdade, a única via do bem. O desvio do trabalho é uma
agressão à boa Luta, o que deve ser punido. Para isto o poeta lança mão do mito das raças e
mostra que para diferentes transgressões existem diferentes punições. A principal
96
transgressão, aquela que ele quer eliminar do mundo, é a lei do mais forte, o que determina o
recurso à fabula do gavião e do rouxinol como reforço desta lição.
Mas qual é o lugar onde esta boa Luta pode se desenrolar? Onde pode vizinho bater-se
com vizinho, carpinteiro com carpinteiro, oleiro com oleiro, mendigo com mendigo e poeta
com poeta? Onde fora da “pólis”, o único lugar onde todas estas tensões podem ser dar
simultaneamente? Seguindo sua ordenação do geral para o particular, nada mais lógico que
Hesíodo dirija-se aos reis e descreva para eles a “pólis” administrada com justiça (para
estes, a cidade germina e o povo floresce, v.227) e a injusta, não sem antes apresentar-lhes a
ação que a Justiça exerce na sua eterna vigia sobre a cidade (vv. 213-224). Afinal de contas,
o modo próprio do governante de inserir-se no cosmos é a decisão justa.
Neste ponto, o mito das raças parece ser perfeitamente adequado para cumprir a função
que Carrière nele reconhece, isto é, a de prenunciador da polis”. Seu ressurgimento na obra
de Platão, em dois diálogos essencialmente políticos reforça sobremaneira esta interpretação
Antes de apresentar a Perses, na condição de governado, o trabalho como seu modo
próprio de ser e agir no mundo (vv.286-382), o poeta retoma a Justiça como o elemento que
une governante e governado e os diferencia das feras que desconhecem a Justiça (vv.274-
282).
Assim sendo, o verso 382 exerce a função de articular o indivíduo, a última instância do
cosmos, com todas as instâncias nas quais ele se insere: família, vizinhos, cidade e o cosmos
divino. Deste modo, este verso refere-se tanto ao que já foi dito quanto ao que ainda está por
dizer. Deste modo justifica-se também a divisão estrutural que o presente trabalho propõe ao
poema: estão perfeitamente articuladas a mitologia política e a genealogia do homem bom.
Lida como um manual de trabalhos agrícolas, a segunda parte dos Erga será, de fato
maçante. Esquece-se com freqüência que Hesíodo é um dos maiores educadores gregos e que
para estes a educação visava antes à formação do caráter, do que um ensino meramente
97
profissional. Lido sob esta perspectiva, será possível compreender melhor as questões
levantadas pelo poeta no que toca à administração do oikos”, que envolvem não só as
relações com a mulher, com os servos e com os vizinhos, como também a aquisição de
capacidade de previsão e reconhecimento do momento oportuno para a ação. Em outras
palavras, é possível descortinar aqui um estágio inicial de uma discussão sobre a aquisição
das virtudes.
Este novo modo de agir, determinado pela boa Luta, determina, por sua vez, um novo
modo de relação. Surge aqui a relação entre iguais, à diferença da ética homérica dos
melhores áristoi” - e nesta relação, como foi sugerido, estão postas as bases da amizade,
virtude fundamental para a existência e preservação da polis”.
o se quer dizer com isso que a ética dos iguais suplantou a dos melhores. O próprio
espírito agônico grego jamais permitiria isso. Mas a tensão gerada entre estes dois valores foi
o motor que pôs todo o pensamento político grego em movimento.
Esta tensão pode ser dita de outra forma, mais concreta e mais histórica: de um lado os
eupátridas, que para legitimar seu poder faziam sua ascendência remontar aos heróis e, por
extensão, aos próprios deuses. De outro, o homem livre, chefe da casa, com seu ideal de
autarquia, figura sempre presente na Grécia arcaica e clássica. Hesíodo evidentemente canta
o homem livre, empreendendo sua batalha verbal no campo do opositor e, apropriando-se da
poesia épica, que era o discurso fundador do poder dos eupátridas, desconstrói estes versos,
os reconstrói e os re-significa. Bem ao dizer de Nietzsche, destrói velhos valores e constrói
novos a partir de seus escombros.
Seu novo Aquiles foi uma descrição e não uma criação - tão poderosa que até hoje
nos quedamos admirados quando nos deparamos com um de sua linhagem. O impacto
causado pelo homem que progride e enriquece às custas de seu próprio trabalho e ainda
98
reparte com justiça os frutos deste mesmo trabalho atrai sobre si profunda estima, palavra
portuguesa que carrega em seu bojo a “timé”, a honra e a admiração.
Em resposta à questão secundária que orientou esta dissertação, a de procurar colocar
em evidência traços de herança hesiódica no pensamento ético filosófico grego, além da já
aludida discussão inicial sobre a aquisição da virtude, outros temas dos quais a filosofia
tratou mais tarde puderam ser detectados.
A revisão que Hesíodo opera cindindo Éris em duas pode, conforme já dito, ser
entendida como um antecedente do princípio da não contradição. Ainda no âmbito da Éris, a
sua boa Éris pode ter influenciado Heráclito, ainda que este o negue, a desenvolver a sua
visão de Pólemos como gerador de mundo
179
179
HERÁCLITO. Fr. 53.
.
O mito de Prometeu e Pandora trouxe à baila, por meio do Trabalho, da Esperança e da
própria Pandora, o conflito entre aparência e essência.
No seu emprego do mito das raças Platão seguiu os passos de Hesíodo ao introduzir
modificações em uma narrativa anterior para conformá-la aos seus propósitos. A
apresentação que Platão faz, na República, das cidades bem e mal governadas também parece
ter uma inspiração hesiódica.
É importante assinalar que as ligações aqui apontadas são, ao fim deste trabalho,
suposições suscitadas a partir do desenvolvimento da própria pesquisa, e que estas
demandam estudos posteriores para maior aprofundamento.
99
OS TRABALHOS E OS DIAS
1 - Musas da Piéria, que com cantos gloriais,
2 - Vinde! Contai de Zeus, vosso pai, hineantes,
3 - por quem são os homens mortais famosos ou infames,
4 - lembrados ou esquecidos, pela força do grande Zeus,
5 - pois fácil fortalece e facilmente ao forte enfraquece,
6 - fácil o brilho escurece e o escuro esclarece
7 - fácil do torto faz reto e humilha o forte.
8 - Zeus trovejante que nas altas moradas habita,
9 - vem! Vê e escuta: com justiça corrige as sentenças,
10 – tu! Eu, por mim, a Perses quero dizer as verdades.
11 - Pois não há uma só raça de Lutas, mas sobre a terra
12 - são duas. A uma louva quem conhece
13 - a outra é lastimável. Espíritos opostos dominam.
14 - Uma traz a guerra, o mal e a discórdia,
15 – cruel. Nenhum mortal a ama, mas submissos
16 - à vontade dos imortais, honram a Luta opressora.
17 – A outra, engendrou-a primeiro Noite tenebrosa.
18 – Fincou-a o Cronida altirregente que mora no éter
19 – nas raízes da terra; é muito melhor para os homens.
20 – Esta desperta ao trabalho até o indolente
21 – pois anseia por trabalho ao olhar para o outro,
22 – rico, que se apressa a arar, e a plantar
23 – e bem dispor a casa. E vizinho inveja vizinho
24 – que corre atrás da riqueza. Boa Luta para os mortais.
25 – O oleiro provoca o oleiro e carpinteiro ao carpinteiro,
26 – mendigo inveja mendigo, aedo a aedo.
27 – Oh, Perses! Guarda isso em teu espírito:
28 – que não te afaste Luta cruel a mente do trabalho
29 – nem te traga à ágora para ouvir arengas,
30 – pois o tempo é curto p’ras arengas da ágora
31 – para quem não guardou o sustento de um ano.
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32 – o grão de Deméter que a terra trás no seu tempo.
33 – Isto cumprido, poderias entrar em litígios e brigas
34 – sobre os bens alheios. Mas não pra ti segunda
35 – chance de agires assim. Julguemos aqui nossa crise
36 – com retribuições retas de Zeus, as mais justas.
37 – Pois a nossa herança já está dividida e muito
38 – levaste de rapina, bajulando bastante os reis
39 – comedores de presentes que trocam favores.
40 – Néscios, não sabem quão maior é a metade que o todo,
41 – nem quanto proveito há na malva e no asfódelo.
42 – Os deuses mantêm ocultos aos homens o sustento
43 – senão, facilmente trabalhavas só um dia
44 – e o tinhas por um ano, mesmo ocioso,
45 – e logo içavas o leme acima do fumo
46 – e largavas as obras dos dóceis bois e mulas.
47 – Mas Zeus o ocultou, de cólera mente:
48 – a ele lesou Prometeu de curvo pensar.
49 – Por isso tramou para os homens duros castigos:
50 – Sumiu com o fogo. Em novo engano, o filho de Jápeto
51 – o esconde pr’os homens, de Zeus pensador,
52 – no oco da férula. Logro a Zeus lampejante.
53 – Então, colérico, retorna Zeus agrega-nuvens:
54 – “Filho de Jápeto, mais ardiloso que todos,
55 – alegra-te o roubo do fogo e o logro à minha mente.
56 – A ti mesmo grande pena e aos homens vindouros.
57 – A eles, em troca do fogo, dou um mal ao qual todos
58 – irão animados, cumulando de agrados, ainda que mal.”
59 – Assim disse e gargalhou o pai de homens e deuses.
60 – E ordenou ao ínclito Hefesto para que presto
61 – misturasse terra e água e desse voz humana
62 - e força. E que na face desse aspecto de deusa
63 – imortal, virginal belo porte. Depois a Atena
64 – que ensinasse sua obra: tecelã poliurdidora.
65 – À dourada Afrodite, que cercasse de graça a cabeça
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66 – e despertasse desejo incessante, devorador de membros.
67 – “Damos-lhe mente de cão e ao caráter, disfarce.”
68 – Disse a Hermes, mensageiro argirofonte.
69 – Assim falou e obedeceram a Zeus Cronida Rei.
70 – Hefesto, o ínclito coxo, presto modela na terra
71 – o ídolo: donzela no aspecto, vontade de Zeus.
72 – Vestes e adornos de Atena de olhos glaucos.
73 – Das Graças divinas e da suprema Persuasão,
74 – colares dourados em torno do colo. Arranjam-
75 – lhe as flores da testa as Horas de belos cabelos.
76 – Ajuste final ao corpo formoso dá Palas Atena.
77 – Então o mensageiro argifonte incute no peito
78 – a fala falsa, o engano e disfarça o caráter.
79 – Está feita a vontade de Zeus trovejante. Voz
80 – acrescenta o arauto dos deuses e o nome da fêmea:
81 – Pandora! Pois todos os deuses do Olimpo
82 – deram-lhe dom. Pena aos homens que comem pão.
83 – Depois de pronto o engano inevitável
84 – envia o Pai a Epimeteu o ilustre Argifonte,
85 – veloz anjo dos deuses, levando o presente. Epimeteu
86 – esquece que Prometeu lhe disse que nunca
87 – aceitasse agrado de Zeus e mandasse de volta
88 – para que nenhum mal aconteça aos mortais.
89 – Só depois que aceitou – desgraça já feita – pensou.
90 – Pois antes vivia na terra uma tribo de homens
91 – bem longe dos males, bem longe da dura fadiga
92 – sem dor das doenças que trazem morte aos homens.
93 - [pois súbito em desgraça os homens envelhecem.]
94 – Mas a mulher, retirando com as mãos a tampa do jarro
95 – derramou espalhando duras penas aos homens
96 – e ali só restou a Esperança, em morada inabalável,
97 – dentro do jarro, abaixo das bordas, sem transpor
98 – os umbrais, pois logo repôs a tampa do jarro
99 – ordem de Zeus porta-escudo, agrega-nuvens.
102
100 – Dez mil pesares já estavam lançados aos homens:
101 – a terra repleta de males; o mar também está pleno.
102 – doenças diurnas e noturnas visitam os homens
103 – incessantes, trazendo desgraça aos mortais,
104 - silenciosas, pois da voz lhes privou Zeus pensante.
105 – Então, não há como escapar da mente de Zeus.
106 – Mas, se queres, eu te conto outra história,
107 – boa e bem contada, e tu guarda na mente
108 – que têm mesma origem deuses e homens mortais.
109 – Primeiro a raça de ouro, de homens falantes,
110 – criaram os imortais de olímpias moradas.
111 – Era no tempo de Kronos, quando reinava no céu.
112 – Viviam como deuses – espírito isento de penas
113 – sem dor, nem cansaço ou lamento, nem fardo
114 – da idade cruel, mas sempre com braços e pernas
115 – leves dançando nas festas à parte de todos os males.
116 – Morriam como que enlaçados pelo sono. Todos os bens
117 – se dispunham para eles. A terra farta dava frutos
118 – incessante - abundante colheita. E eles, contentes
119 – tranqüilos, partilhavam os bens, que eram muitos
120 – [ricos em rebanhos, caros aos deuses benditos.]
121 – Mas desde que a terra ocultou esta raça
122 – eles são anjos, por vontade de Zeus grandioso,
123 – sobre a terra, guardiães de homens mortais
124 – [que vigiam suas trocas e obras malsãs,
125 – vestidos de ar, varrendo toda amplidão.]
126 – e distribuem riquezas: régia honra tiveram.
127 – E uma segunda raça, muito pior, em seguida,
128 – de prata, criaram os deuses de Olímpia morada
129 – no porte e na mente desigual à dourada.
130 – Por cem anos o filho ficava ao cuidado da mãe
131 – comia, brincava – grande bobo – dentro de casa,
132 – mas quando cresciam ao tamanho de jovens,
133 – bem pouco duravam em vida, com dores medonhas
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134 – por falta de senso: não puderam a desmedida arrogante
135 – conter um do outro. Nem cultuar imortais tampouco
136 – quiseram. Nem sacrifício em altares sagrados.
137 - É norma entre os homens, segundo o costume. Então
138 – Zeus Cronida, encolerizado, os escondeu, pois honra
139 - não deram aos deuses benditos de Olímpias moradas
140 – e ainda, depois, sumiu com esta raça debaixo da terra.
141 – São então chamados subterrâneos pelos mortais piedosos.
142 – Secundários, decerto, ainda que honra os persiga.
143 – Zeus pai outra raça terceira de homens falantes,
144 – de bronze, criou. Nada parelhos à raça de prata.
145 – Vieram do freixo, terrível e forte. Seguiam Ares
146 – nas obras pungentes e desmedidas. Nada de trigo
147 – comiam e tinham espírito duro como diamante:
148 – inflexíveis. Violência imensa e braços invencíveis
149 – nasciam dos ombros sobre robustos membros.
150 – De bronze eram suas armas, de bronze, suas casas
151- com o bronze trabalhavam – não tinham negro ferro.
152 – Devastando uns aos outros pelas próprias mãos
153 – desceram à úmida casa do frio Plutão,
154 – anônimos. E a morte, por mais poderosos que fossem,
155 – negra os levou. E deixaram o brilho da luz do sol.
156 – Depois que sumiu com esta raça debaixo da terra,
157 – Zeus Cronida criou quarta, mais justa e mais nobre,
159 – raça de heróis, homens divinos. São chamados
160 – semideuses. Precedem a nossa na terra sem fim.
161 – A estes, guerra cruel e cantos de combate.
162 – Uns, na Tebas de Sete Portas, terra de Cadmo,
163 – devastou. Combatiam pelos rebanhos de Édipo.
164 – Outros, em naves, sobre o fundo abismo do mar,
165 – levou a Tróia por causa de Helena de belos cabelos.
166 – Lá, é certo, envolveu alguns com destino de morte.
167 – Outros, apartados dos homens, provendo sustento e morada
168 – nos limites da terra, asilou Zeus pai, filho de Khrónos,
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170 – onde habitam, com o espírito livre de cuidados,
171 – a Ilha dos Bem-Aventurados, p’ra lá d’Oceano profundo.
172 – Felizes heróis! Para eles doces frutos, espontâneos
173 – dão os brotos da terra, três vezes ao ano.
173a- longe dos imortais. Para eles Khrónos é rei.
173b- livrou-o o pai dos homens e deuses
173c- e goza entre eles da honra devida.
173d- E Zeus forjou outra raça de homens falantes
173e- que habitam agora a terra fecunda.
174 – Quem dera eu não tivesse nascido na quinta raça,
175 – mas tivesse antes morrido, ou nascido mais tarde
176 – pois agora é a raça de ferro: não se livrarão
177 - da dor e da miséria do dia, nem à noite
178 – de agonizar; os deuses darão duras angústias.
179 – Ainda assim alguns bens lhes virão, junto à desgraça.
180 – Mas Zeus findará com esta raça de homens falantes
181 – assim que nascerem com brancas melenas
182 – e pai não se assemelhar aos filhos, nem filhos ao pai,
183 – nem hóspede ao hospedeiro, nem camarada ao companheiro,
184 – nem o irmão for mais amigo, como sempre tem sido.
185 – Virá, tão logo envelheçam, o desrespeito dos filhos,
186 – lançando censuras com duras palavras.
187 – Insolentes! Não vêem o olho dos deuses e nem mesmo
188 – devolvem devidos cuidados aos pais já cansados.
189 – [é a força do braço: um saqueará a cidade do outro.]
190 – Não terá alegria o que jura certo, nem o justo
191 – nem o bom, mas ao que é perverso e desmedido
192 – o povo estimará. Justiça e Pudor não estarão
193 – ao alcance da mão. O covarde lesará o varão,
194 – lançando palavras esquivas, sobre as quais jurará.
195 – Inveja perseguirá aos homens – desgraçados, todos –
196 – horripilante – alegra-se com a dor alheia – asquerosa.
197 – Então, para o Olimpo, desde a terra vasta,
198 – belo corpo escondido em brancas vestes,
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199 – à tribo dos imortais irão, abandonando os homens,
200 – Pudor e Partilha. Só restarão tristes pesares
201 – aos homens mortais. Contra o mal, não haverá defesa.
202 – Conto, agora, um conto aos reis, embora já o saibam:
203 – Disse o gavião ao rouxinol de colorido colo,
204 – que levava entre as garras no alto das nuvens,
205 – enquanto este, cravado nas garras recurvas,
206 – gemia. O captor, à captura, lançou as palavras:
207 – “Infeliz, o que dizes? Quem te detém é mais forte.
208 – P’ra onde eu quiser, eu te levo, apesar do teu canto.
209 – Se quiser, de ti faço pasto, ou deixo ir à solta.
210 – Tolo é quem se quer medir ao mais poderoso:
211 – perde o triunfo e conjuga dor e vergonha.”
212 - Assim falou o gavião de longas asas e vôo veloz.
213 – Oh, Perses, ouça a Justiça e não dê força à desmedida.
214 – A desmedida é má para o pobre. Nem mesmo o nobre
215 – pode agüentar facilmente. É esmagado por ela
216 – quando cede à Ilusão. Mas há outro caminho a seguir
217 – que é melhor: o das coisas certas. Justiça vence a desmedida,
218 – revelando-se ao fim. E o tolo aprende sofrendo.
219 – logo, com trocas escusas, vem Juramento
220 – e há o clamor da justiça violada quando os homens
221 – comedores de presentes, com trocas escusas, decidem as sentenças.
222 – Ela acompanha, chorando, a cidade e os costumes do povo,
223 – vestida de ar, portadora do mal para os homens
224 – que a baniram e não fizeram reta partilha.
225 – Os que dão a estrangeiros e patrícios reparos
226 – corretos e não se afastam do que é justo,
227 – para estes a cidade germina e o povo floresce
228 – e a Paz, nutriz de jovens, se espalha sobre a terra
229 – A estes jamais traz guerra cruel Zeus de ampla mirada,
230 – jamais a fome persegue os homens de retas trocas,
231 – nem a Ilusão. Em festa repartem o fruto do trabalho.
232 – A estes a terra dá muito alimento. No monte, o carvalho
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233 – no topo dá frutos e no tronco dá mel,
234 – as ovelhas ficam pesadas, tão farta é sua lã.
235 – mulheres parem filhos que parecem com os pais
236 – e vicejam em meio aos bens. Jamais partem em naus:
237 – não navegam, pois a terra arada dá frutos.
238 – Àqueles a quem desmedida intenta obras escusas,
239 – a estes, justiça decreta o Cronida Zeus de ampla mirada.
240 – Muitas vezes se vê que toda a cidade padece
241 – por um só homem mau que maquina vilezas.
242 – A estes o Cronida, de lá do céu, destina castigos:
243 - fome e flagelos, fraquejam os homens,
244 – as mulheres não parem, mínguam as casas
245 – pela sagacidade de Zeus do Olimpo. Outras vezes
246 – devasta-lhes imenso exército, ou ainda a muralha
247 – ou, no mar, reclama o Cronida as naves deles
248 – Oh, reis, guardai também vós mesmos (outros?)
249 – esta Justiça, pois bem perto, entre os homens,
250 – os imortais velam quantos, por transações tortuosas,
251 – lesam uns aos outros, afrontando o olho dos deuses
252 –três vezes inumeráveis são sobtre a terra fecunda
253 – os imortais de Zeus, guardiães dos homens mortais
254 – que vigiam as trocas e obras escusas
255 – vestidos de ar, vagando por sobre a terra toda
256 – e há ainda Justiça, virgem engendrada por Zeus,
257 – honrada e cantada pelos deuses de Olímpia morada.
258 – Quando alguém a ultraja, desdenha ou debocha,
259 – corre p’ra junto do pai Zeus Cronida, toma assento
260 – e denuncia a mente dos homens injustos, para que pague
261 – o povo a loucura dos reis que tramam vilezas
262 – e deturpam transações com palavras esquivas.
263 – Tendo isso em mente, corrigi as sentenças, oh reis
264 – comedores de presentes e largai de mão as trocas escusas.
265 – Trama o mal contra si mesmo quem trama o mal contra o outro:
266 – o desejo do mal é ainda pior para quem o deseja.
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267 – O olho de Zeus, que tudo vê e que tudo considera,
268 – também vê isso, se quiser, e não ignora
269 – que tipo de justiça, no interior da cidade, vigora.
270 – Agora eu mesmo justo entre os homens não quereria ser
271 – e nem meu filho, porque é um mal homem justo ser
272 – quando se sabe que maior justiça terá o mais injusto
273 – mas espero isto não deixar cumprir-se o tramante Zeus.
274 – Oh Perses, tu, então, guarda isto na mente:
275 – escuta a Justiça e esquece a desmedida de vez!
276 – Pois o Cronida dispôs aos homens a lei.
277 – Aos peixes, às feras e às aves aladas,
278 – que se devorem. Justiça não há entre eles.
279 – Aos homens, sim, deu a Justiça, muito mais nobre.
280 – Eis que se alguém conhecer e quiser proclamar
281 – coisas justas, sucesso lhe dá Zeus de ampla mirada.
282 – Mas quem, em seu testemunho, quebrar juramento
283 – e, mentindo, violar a Justiça, é sem perdão castigado.
284 – Deste virá, mais tarde, descendência obscura.
285 – O homem que segue o seu juramento deixa raça mais nobre.
286 – Pois eu, que conheço o bem, te digo, Perses, grande tolo:
287 – mui pronto a miséria conquista multidões,
288 – é muito fácil: seu caminho é plano e está logo ali.
289 – Mas perante a virtude suor ordenaram os deuses
290 – imortais. É longa e ínclinada a subida até ele,
291 – espinhosa no início, mas quando se chega ao topo
292 – mais fácil se torna, ainda que seja difícil.
293 – Eis o melhor: aquele que pensa tudo por si
294 – e conjuga o que convém agora com o fim.
295 – É bom também quem ouve do bem e obedece,
296 – mas quem não pensa por si, nem ouvindo o conselho
297 – não o guarda na mente, este é um homem inútil.
298 – Mas tu, sempre lembrado do nosso conselho,
299 – trabalha, Perses, raça de Zeus, para que a Fome
300 – te odeie e que te estime a bem coroada Deméter,
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301 – honrada, e te encha de alimento a despensa,
302 – pois Fome sempre acompanha o homem indolente.
303 – Deuses e homens partilham, contra quem vive
304 – ocioso como um zangão sem ferrão, da mesma raiva:
305 – consomem o trabalho das abelhas, os lerdos,
306 – e o comem. Que te empenhes em articular obras certas
307 – e a abastecer a despensa na hora oportuna.
308 – pelo trabalho os homens são ricos de gado e de bens
309 – e quem trabalha é muito mais caro aos deuses também
310 – [e o mesmo serás para os homens: odeiam os lerdos.]
311 – Trabalho não é vergonha. Vergonha é não trabalhar
312 – se trabalhares, logo te inveja o preguiçoso
313 – porque enriqueces. Sucesso e glória acompanham a riqueza.
314 – Seja lá para quem for, trabalhar é melhor,
315 – se desvias a mente dos bens do vizinho
316 – para o trabalho e ganhas teu pão, como te aconselho.
317 – A timidez não é boa para o homem necessitado,
318 – timidez que muito atrapalha ou ajuda
319 – timidez vai com a pobreza, a audácia vai junto à riqueza.
320 – Bens não devem ser roubados; doados por deus são muito melhores.
321 – pois se alguém, pela força do braço, alcança a riqueza,
322 – ou a consegue pela palavra, o que com freqüência
323 – acontece quando o lucro ilude a mente
324 – dos homens e Perfídia afugenta Pudor,
325 – facilmente os deuses escurecem e mínguam a casa
326 – do homem e a prosperidade se torna efêmera.
327 – o mesmo para quem faça mal a pedinte ou estrangeiro,
328 – ou quem sobe ao leito do irmão, escondido,
329 – e com sua mulher pratica imensos ultrajes.
330 – Ou quem, insensato, agride crianças órfãs,
331 – ou quem, ao pai ancião, no umbral da velhice,
332 – ataca, lançando-lhe duras palavras.
333 – contra este Zeus certamente agasta-se ao fim
334 – e por causa das obras injustas impõe dura resposta.
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335 – Mas tu, afasta estas coisas da mente insensata
336 - e quando puderes sacrifica aos deuses imortais
337 – santa e puramente e queima pernis reluzentes.
338 – Outras vezes aplaca-os com libações perfumadas
339 – ao te deitares e quando retorna a luz sagrada
340 – a fim que te tenham coração e mente propícios
341 – a que compres a terra dos outros e não os outros a tua.
342 – Convida o amigo ao banquete. Evita o inimigo.
343 - Sobretudo convida ao que vive bem perto de ti
344 – pois se alguma desgraça se dá em tua casa,
345 – vizinhos acodem sem cinto, parentes o cintam.
346 – O mau vizinho é um castigo, o bom grande socorro.
347 – Ganha um tesouro quem tem vizinho de escol:
348 – nenhum boi se perderia se o vizinho não fosse mau.
349 – Mede bem o que vem do vizinho e bem o retorna
350 – na mesma medida, ou mais, se puderes,
351 – para que, precisando mais tarde, o encontres disposto.
352 – Nada de ganhos escusos: estes são como ilusões.
353 – Seja amigo do amigo e vai a quem vem p’ro teu lado.
354 - Dá a quem te dá e a quem não te dá nada dês:
355 – dá-se a quem dá, ao que não dá ninguém dá.
356 – Doação é boa; roubo é mau: traz a morte.
357 – O que o homem dá por vontade, ainda que muito,
358 – alegra-o como presente e agrada seu espírito.
359 – Mas aquele que rouba, arrastado pela cobiça,
360 – uma migalha que seja, congela seu coração.
361 - Pois se acrescentares pouco ao pouco
362 – e com freqüência o fizeres, logo muito será.
363 – Quem acrescenta ao que já tem, afasta fome ardente.
364 – O que está guardado em casa não tira o sossego do homem.
365 – É melhor que esteja em casa: o de fora é nocivo.
366 – É bom colher o que é seu, castigo para a alma
367 - é precisar do que falta. Pense bem nisto.
368 – Farta-te do jarro no início e no fim.
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369 – Sê comedido no meio: poupar o fundo é inútil.
370 – Honra o pagamento acordado ao amigo.
371 – Mesmo com teu irmão, sorrindo, impõe testemunha:
372 – tanto confiança quanto desconfiança destroem os homens.
373 – Que não te engane a mente mulher de anca insinuante
374 – e gorjeio sedutor em busca dos teus bens:
375 – quem confia em mulher confia em ladrões.
376 – Que haja um filho unigênito para os bens paternos
377 – cuidar, pois assim aumenta a riqueza das casas,
378 – e possa este morrer já velho, deixando outro filho.
379 – Facilmente Zeus daria a muitos riqueza infinita:
380 – quando são muitos, maior é o cuidado, maior o proveito.
381 – Quanto a ti, se esrito e mente desejam riqueza,
382 – assim obra: trabalho sobre trabalho trabalha.
383 – Ao despontar das Plêiades, filhas de Atlas,
384 – começa a colheita. Quando elas se põem, semeia.
385 – Elas ficam, bem sabes, quarenta noites e dias
386 – ocultas e, de novo, quando cumprido um ano,
387 – rebrilham primeiro, o ferro já está amolado.
388 - Esta é a lei do campo: para quem vive
389 – perto do mar ou em vale de densa floresta,
390 – longe das ondas revoltas, em farta terra,
391 – habita. Desnudo semeia, ara desnudo com os bois,
392 – desnudo colhe, se queres a tempo e à hora
393 – cumprir os trabalhos de Deméter para que cada
394 – coisa venha ao seu tempo e não precises mais tarde
395 – mendigar em casa alheia sem nada obter
396 – tal como agora viestes à minha. Mas não te dou
397 – nem empresto de novo. Trabalha, Perses, tolo
398 – os trabalhos que os deuses destinaram aos homens
399 – para que nunca, com filhos e mulher, coração aflito,
400 – peças sustento aos vizinhos e eles te neguem.
401 – Duas ou três vezes, talvez consigas, mas se insistires
402 – não terás coisa alguma. E tu jurarás em vão,
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406 – tuas palavras serão inúteis. Ouça o que eu digo:
407 – cuida de pagar o que deves e abrigar-te da fome.
405 – Uma casa primeiro, mulher e boi de lavoura,
406 – é o que tens de arranjar. Solteira, que siga teus bois
407 – Fabrica tu mesmo as coisas de casa
408 – pra não pedires a outro, ele te negue, e tu fiques parado
409 – enquanto a hora passa e tu perdes trabalho.
410 – não deixa nada pra amanhã ou depois:
411 – o homem negligente não enche a despensa,
412 – nem quem o adia. Na labuta cresce o trabalho
413 – e quem a postErga enfrenta desgraças.
414 – Quando cessa a fúria ardente do sol escaldante
415 – que faz brotar o suor, e envia o tempo da chuva
416 – Zeus poderoso; e o corpo do homem se torna
417 - mais leve e ligeiro; quando Sírius, a estrela
418 – passa por sobre a cabeça dos homens fadados à morte,
419 – anda pouco de dia e desfruta muito de noite.
420 - Aí, é mais forte que a praga a madeira cortada
421 - a ferro. As folhas cobrem o chão e os brotos não crescem.
422 – Então, corta a madeira. Lembra: a cada obra, sua hora.
423 – Talha um morteiro de três pés e um pilão de três cúbitos.
424 – Depois, um eixo de sete pés; esta é a medida mais certa.
425 – Se for de oito pés, talha também uma massa.
426 – Faz uma roda de três palmos pr’um carro de dez.
427 – Há muita madeira curvada. Leva pra casa um teiró,
428 – se o encontrares nas andanças no monte ou na mata,
429 – de azinho: para o trabalho com bois, esta é a melhor,
430 – quando o operário de Atenas a engata no dente
431 – e, cravando com pregos, atrela o timão.
432 – Faz dois tipos de arado - trabalha em casa-
433 – um simples, outro de engate. Assim é melhor:
434 – se um deles quebra, atrela o outro nos bois.
435 – De loureiro ou de olmo, os melhores timões;
436 – de carvalho, o dente, de azinho, o teiró. Bois de nove anos,
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437 – machos, consegue pra ti: são fortes, não cansam,
438 - No auge da idade, melhor pro trabalho.
439 – não brigarão na lavoura, quebrando o arado
440 – e nem deixarão, conta disso, trabalho incompleto.
441 – Vai junto com eles robusto varão, quarenta anos,
442 – que tenha comido um quarto de um pão que basta pra oito;
443 – sério no trabalho, traça o sulco direito;
444 – não cuida da vida dos outros, mas é justo na obra
445 – que tem atenção. Outro, mais jovem, em nada melhor,
446 – distribui as sementes e evita exagero na semeadura.
447 – Este mais novo distrai-se com outros de mesma idade.
448 – Presta atenção ao ouvires o grito do grou que
449 – lá em cima, nas nuvens, grasna cada ano
450 – o sinal da lavoura e a chegada do inverno
451 – chuvoso anuncia. Dói o coração do homem sem bois.
452 – Aí, então, engorda o boi de curvos cornos no curral
453 – pois é fácil dizer: “Dá-me teus bois e o carro.”
454 – e mais fácil negar: “Os bois têm trabalho de sobra.
455 – O homem de mente fértil diz que vai fazer seu carro.
456 – Tolo! Nem sabe que sem são as peças que fazem um carro
457 – e que precisa primeiro juntá-las em casa.
458 – Assim que se mostra a hora do arado aos mortais,
459 – forma tua tropa, os servos e tu mesmo,
460 – e ara a terra, seca ou molhada. Na hora do arado,
461 – quanto mais cedo, melhor, para aumentar os teus campos.
462 – Ara na primavera e, no início do verão, não erra:
463 – semeia teu campo, fofa ainda a terra.
464 – O campo afasta o mal e acalma as crianças.
465 – Pede a Zeus, rei da terra, e à sagrada Deméter
466 – que, ao fim, o dourado grão de Deméter seja farto,
467 – já no início da primeira arada, assim que a rabiça
468 – empunhes e lances o chuço ao lombo dos bois
469 – que arrastam canga e cavilha. Atrás o servo
470 – mais jovem leva uma vara: espanta as aves
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471 – e oculta a semente. Boa ordenação é o melhor
472 - para os homens mortais. Desordem, o que há de pior.
473 – Assim que as espigas pesadas apontem pro chão,
474 – se ao fim o Olímpico permite um ciclo perfeito,
475 – as teias de aranha tu tiras da jarra e espero
476 – te alegres juntando a colheita dentro de casa.
477 – Plena fartura, vem primavera sem outro
478 – invejares. O outro, de ti, estará precisado.
479 – Se quando o sol faz a volta, aras a terra divina,
480 – colherás agachado um pequeno punhado –
481 – tudo ao contrário – feixe poeirento, nada contente,
482 – levarás num balaio. Poucos irão te invejar.
483 – Mutável é a mente de Zeus porta-égide
484 – difícil aos homens mortais de alcançar.
485 – Se aras a terra mais tarde, talvez isto te seja remédio:
486 – quando o cuco cucula nas folhas do carvalho,
487 – primeiro cantar, e agrada aos mortais sobre a terra sem fim,
488 – se Zeus faz chover sem parar por três dias,
489 - que cubra, nem mais nem menos a pegada do boi,
490 – assim, quem ara tarde alcança quem cedo lavora.
491 – Guarda bem isto no espírito e não esqueça
492 – da chegada da primavera nem da estação das chuvas.
493 – Fica longe da forja e do calor do galpão
494 – nos dias de inverno, quando o frio afasta o homem
495 – do trabalho. É hora do homem ativo ajeitar sua casa.
496 – Que o rigor do inverno não te pegue, de surpresa,
497 – em penúria e não cuides de pé inchado com frágil mão.
498 – O homem indolente, apoiado em vã esperança,
499 – quando falta alimento, muito maldiz sua alma.
500 – Vã esperança acompanha o homem indolente
501 – que descansa ao galpão sem sustento já certo.
502 – Avisa aos servos da casa em pleno verão:
503 – “Nem sempre será tempo bom. Construí vossos albergues!”
504 – Mês de Lenáion, maus dias! Todos ruins para o gado.
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505 – Abriga-te dele e das nevascas que sobre a terra
506 – caem e se espalham quando sopra o Bóreas
507 – que corta a Trácia, nutriz de cavalos, e o mar
508 – levanta soprando. Gemem então terra e floresta.
509 – Muitos carvalhos alticopados e grossos pinheiros
510 – tombam quando nas grotas dos montes de fértil terra
511 – investe e toda a vasta floresta ressoa num grito.
512 – Animais arrepiam-se, o rabo entre as pernas,
513 – mesmo os de pele coberta de pelo. Até estes
514 – o frio fustiga, ainda que sejam de peito lanudo.
515 – E atravessa o couro do boi, que não o detém
516 – e até mesmo a cabra, de muito pelo. Às ovelhas não:
517 – à conta de muito lanosas, não as atinge
518 – a força do vento do norte. E faz curvar o ancião
519 – mas não corta a pele fina da virgem
520 – que fica em casa, junto à mãe querida,
521 – sem ainda saber das obras da dourada Afrodite,
522 – bem lavada, a pele macia, ungida em óleo,
523 – perfumada, resguardada dentro de casa
524 – em dia de inverno, quando o “sem-osso” come sua perna
525 – em sua casa sem fogo, num triste recanto,
526 – pois o sol não lhe mostra pra onde mover-se
527 – e sobre o povo e a cidade dos homens negros
528 – demora: só mais tarde se mostra aos helenos.
529 – Então, habitantes da mata, cornudos e sem cornos,
530 – rangendo os queixais pela mata fechada
531 – fogem, todos com a força voltada pra isto:
532 – alcançar um abrigo, esconderijo seguro como
533 – uma gruta de pedra. Então, qual mortal de três pernas
534 – que trazem o dorso recurvo e o rosto olhando pro chão.
535 – Tal como estes, vagam a esmo, fugindo da neve.
536 – Agora, abriga teu corpo conforme te digo:
537 – Um leve manto e túnica bem talhada,
538 – muita lã em trama espaçada, tece pra ti.
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539 – Enrola-te nela pra que os pelos não tremam
540 – nem se ericem como setas ao longo do corpo.
541 – Em torno dos pés, sandálias [de couro] de boi abatido
542 – amarra bem forte forradas de pêlo por de.
543 – De cabrito terneiro, quando vier a hora do frio,
544 - pega a pele, costura com nervo de boi, joga às costas:
545 – abrigo bem quente pra chuva. Sobre a cabeça,
546 – mantém um gorro ajustado pra não molhar as orelhas,
547 – pois a alvorada é gelada com a chegada de Bóreas
548 - do céu estrelado, e de madrugada sobre a terra
549 – baixa névoa nutriz do trigo sobre os campos dos protegidos
550 – que nascida dos rios sempre correntes
551 – voa alto sobre a terra levada pelo vento.
552 – Às vezes chove fim da tarde, às vezes vira tempestade
553 – se Bóreas da Trácia agrega nuvens espessas.
554 – Antes dela, encerra a labuta e vai pra casa.
555 - Que nunca a nuvem negra vinda do céu te envolva
556 – e te molhe a pele do corpo e encharque tua roupa,
557 – mas protege a ti, pois é mês rigoroso este aí
558 – invernal: rude aos novilhos, rude aos humanos.
559 – Dá meia porção para os bois. Aos varões, que haja mais
560 – alimento, pois as longas noites, de longe, compensam.
561 – Observa estas coisas até que se cumpra um ano.
562 – Ajusta tuas noites e dias até quando, de novo,
563 - a Terra, mãe de todos, múltiplos frutos forneça.
564 – Quando, depois da virada do sol, sessenta
565 – dias de inverno Zeus fizer cumprir, a estrela
566 – Arcturo deixa o curso do sagrado Oceano
567 – e surge primeiro, toda brilhante, no ocaso,
568 – voa a andorinha de canto gemido, filha de Pandíon,
569 – para a luz, quando é nova primavera para os homens,
570 – antes disso poda teu vinhedo. Assim é melhor.
571 – Mas quando o ‘trás-a-casa’ sai do chão e sobe nas plantas
572 – fugindo das Plêiades, já não é tempo de cuidar das vinhas,
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573 – mas de afiamento de foice e despertar os escravos.
574 – evita descansos na sombra e sono até o dia claro
575 – é tempo de ceifa, quando o sol rasga a pele.
576 – Apressa-te agora e guarda a colheita em casa.
577 – De pé desde cedo, garanta pra ti sustento bem farto.
578 – Aurora é um terço da faina diária.
579 – Aurora apressa o caminho, avia a obra.
580 – Aurora, assim que aparece, já bota no passo
581 – toda gente e bota também o boi na corrente.
582 – Quando o cardo floresce e a estridente cigarra
583 – pousada na árvore lança doce canto
584 – esfregando as asas na penosa estação do verão,
585 – quando o vinho é melhor e as cabras mais gordas,
586 – as mulheres mais ardentes e os homens mais indolentes
587 – estão, pois Sírius lhes queima cabeça e joelhos,
588 – lhes seca a pele o calor, que agora então
589 – haja sombra de pedra e vinho de Biblos
590 – pão de cevada, leite de cabra em desmame,
591 – carne de vaca de pasto – que ainda não tenha parido –
592 – e de cabrito terneiro. Bebe, pois, rubro vinho
593 – sentado à sombra, coração saciado em festa,
594 – rosto encarando o frescor que vem com o Zéfiro,
595 – e de fonte perene que brota água limpa
596 – mistura três partes de água e a quarta de vinho.
597 – Ordena aos escravos o sagrado grão de Deméter
598 – secar - logo assim que surgir o brilho de Órion –
599 – em terreiro bastante arejado de eira redonda.
600 – Com o medidor, guarda nas jarras. Depois
601 – de toda colheita estocada no largo galpão
602 – arranja um escravo sem casa e serva sem filho,
603 – assim aconselho: rebelde é escrava com cria.
604 – cria também um cão de dentes agudos - não poupa ração –
605 – pra que não roube teus bens o “que-dorme-de-dia”.
606 – Estoque de feno e forragem consegue bastante
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607 – pros bois e jumentos durante um ano. Aí sim,
608 – dispensa os escravos e desatrela a parelha.
609 – e quando Órion e Sírius chegarem ao meio
610 – do céu e Aurora de dedos rosados vir Arcturo,
611- Oh Perses, colhe todos os cachos e leva pra casa
612 – deita-os ao sol durante dez dias e dez noites
613 – mais cinco deixa na sombra, ao sexto colhe na jarra
614 – o dom de Dionísio multialegrante. Mas quando
615 – as Plêiades, as Híades e a força de Órion
616 – minguarem, esteja presto lembrado do arado:
617 – É hora! Tomara que o solo te seja pleno
618 – E se o desejo de navegar tempestades se apossa de ti
619 – quando da intensa potência de Órion as Plêiades
620 – em fuga mergulham no mar nebuloso,
621 – quando todos os ventos soprarem valentes,
622 – não deves manter mais as naus no mar violáceo,
623 – mas trabalha no solo, lembrado daquilo que digo:
624 – traz teu barco pra terra, escora-o todo em pedras
625 – por todos os lados. Faz frente à força do sopro do vento,
626 – retira o batoque: a chuva de Zeus estraga o casco
627 – guarda todo o armamento dentro de casa
628 – dobra bem certo a vela da nau corta-mar
629 – iça o leme bem talhado acima do fumo
630 - enquanto esperas a hora certa do mar; ela virá.
631 – Aí leva a nau esguia pra água salgada e apresta
632 – o armamento ali dentro e traz o sustento pra casa.
633 – Assim como meu pai e o teu, Perses, grande tolo
634 – também navegava em nau, precisado de sustento,
635 – e um dia chegou por aqui em longa travessia
636 – deixando eólica Cime a bordo de nau escura.
637 – Não fugiu da fartura, nem da riqueza nem do lucro,
638 – mas da dura pobreza que Zeus trás aos homens
639 – e viveu nas encostas do Hélicon – miserável aldeia
640 – Ascra, difícil no inverno, dura no verão, nunca agradável.
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641 – Mas tu, Perses, fique bem lembrado das obras
642 – e de todas as horas. Acima de tudo da navegação.
643 – Exalta a ´pequena barca, mas pôe tua carga na grande.
644 – Quanto maior a carga, maior o ganho sobre o ganho
645 – será, se os ventos afastarem suas tempestades.
646 – Mas se, voltando tua mente insensata ao comércio,
647 – quiseres fugir das dívidas e da fome cruel,
648 – ensino-te as regras do mar ressonante,
649 – ainda que nada saiba de naus nem de navegação,
650 – pois jamais embarcado cruzei mar aberto,
651 – a não ser para Eubéia, de Áulis, onde um dia os Aqueus,
652 – aguardando a tormenta, concentraram a tropa
653 – da Hélade sagrada contra Tróia de belas mulheres.
654 – De lá, para os jogos de Anfidamante valente,
655 – embarquei para Cálcis. Anunciados já estavam
656 – os prêmios pelos filhos do nobre. Ali, afirmo,
657 – conquistei com um hino troféu de três pernas alado
658 – o qual dediquei às [sagradas] Musas no Hélicon,
659 – lá mesmo onde a mim ensinaram o canto suave.
660 – Isto é tudo o que sei sobre naves de muitas cavilhas,
661 – assim mesmo direi sobre a mente de Zeus porta-escudo:
662 – as musas a mim ensinaram cantar o hinoi inefável.
663 – Cinqüenta dias depois da revolta do sol,
664 – chegando a seu fim o verão, estação escaldante,
665 – oportuna aos mortais é a faina do mar. Nau
666 – nenhuma se perde, homem nenhum leva o mar
667 – a não ser que assim propensos Posidão treme-terra
668 – ou Zeus, rei dos deuses, os quiserem arrasar:
669 – a eles pertence o fim de homens bons e dos maus.
670 – Agora o vento é tranqüilo e o mar sem perigo.
671 – Assim, sem medo, confiante na brisa, a nau esguia
672 – arrasta pro mar e despacha tua carga.
673 – Apressa-te então e em breve navegas pra casa.
674 – Não espera vinho novo nem chuva de outono,
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675 – nem inverno que chega com forte vento do sul
676 – que levanta a ressaca e junto com a chuva de Zeus,
677 – freqüente no outono, torna o mar perigoso.
678 – primavera também é propícia à faina do mar.
679 – Quando a primeira folha surgir para os homens
680 – qual marca de gralha trepada no galho,
681 – é quando o mar se faz mais navegável.
682 – assim é a navegação da primavera. Então, penso eu:
683 – mas não para mim! Ao meu coração não me toca.
684 – Perigosa! Difícil fugir da desgraça. Assim mesmo,
685 – os homens de mente insensata a cumprem,
686 – pois para o homem que é pobre, a posse é a vida.
687 – mas é terrível morrer entre as ondas. Eu te peço:
688 – grava isto tudo na mente tal como eu te digo.
689 – Não ponha tudo o que tens em fundo de barco.
690 – Guarda a parte maior e embarca a menor:
691 – desgraça encontrar a ruína entre as ondas do mar.
692 – Desgraça também se pões muita carga no carro
693 – e quebras o eixo e estragas teus bens.
694 – Guarda a medida! A hora certa é o que há de melhor.
695 – Na hora adequada leva pra casa a tua mulher:
696 – quando andares por perto dos trinta, nem menos,
697 – nem mais. É o teu momento para o casamento.
698 – Já a mulher, quatro anos após a menarca, casa no quinto.
699 – que seja donzela, para que dês bons costumes a ela.
700 – E dá preferência àquela que mora bem perto de ti.
701 – Cuidado pra não te casares com a alegria do vizinho:
702 – o homem não consegue nada melhor que mulher
703 – dedicada, nem nada pior do que a descarada,
704 – come-dorme, que o marido – mais forte que seja
705 – consome sem fogo e condena à velhice precoce.
706 – Cuida-te aos olhos dos imortais venturosos
707 – e nunca compares o irmão ao camarada.
708 – Se assim o fizeres, não o ataques primeiro
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709 – nem mintas por conta da língua. Se ele começa
710 – a brigar com palavras ou agindo errado,
711 – recorda e devolve dobrado. E se de novo
712 – quiser retomar amizade e fazer acordo,
713 – concede! Pobre é o homem que faz amizade ora aqui
714 – ora ali. Que tua mente não contradiga tua face.
715 – Não sejas chamado de hospitaleiro, nem muito nem pouco;
716 – nem de amigo de vis, nem de agressor de nobres
717 – e ao homem cuja pobreza rasga sua alma, nunca
718 – censures: é dom dos benditos entes eternos.
719 – Da língua vem o tesouro melhor entre os homens:
720 – pouca, que segue a medida, é a maior alegria.
721 – Se falas o mal, depressa um outro, maior, ouvirás.
722 – Não sejas rude em banquete de muitos convivas:
723 – em grupo, o prazer é maior e a despesa, menor.
724 – Nunca, ao nume de Zeus, libes vinho brilhante
725 – com as mãos não lavadas, nem aos demais imortais:
726 – eles não te ouvirão e rejeitarão tuas preces.
727 – E não mijes nunca com o rosto voltado p’ro sol.
728 – Depois que ele deitar, lembra bem, até o levante,
729 – jamais, sem as roupas – a noite é dos venturosos –
730 – não Andes nem mijes, nem dentro nem fora da via.
731 – Sentado é que o faz o varão piedoso e prudente,
732 – ou procura o muro do pátio bem protegido.
733 – Não mostres, dentro de casa, as partes sujas de esperma,
734 – não chegues assim junto à lareira. Evita isso.
735 – Tampouco ao regresso de um enterro funesto
736 – engendra filhos, mas depois de festa divina.
758 – Não urines em nascentes. Evita-o mais que tudo.
737 – Nem a água das belas correntes dos rios eternos
738 – cruze a pé antes das preces às belas correntes
739 - e as mãos limpas no curso d’água cristalina.
740 – Aquele que cruza um rio com mãos não lavadas,
741 – a este os deuses reservam pesares mais tarde.
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742 – No banquete em nome dos deuses, dos cinco ramos não
743 – cortes o seco do verde com ferro brilhante.
744 – Não põe a jarra de vinho acima da cratera
745 – enquanto se bebe, pois isto traz sorte funesta.
746 – Erguendo tua casa, não deixes obra incompleta
747 – senão pousa em teu teto a gralha grasnante.
748 – De caldeirões não consagrados nada tomes,
749 – nem comas nem te laves. Daí também vem castigo.
750 – Não sentes em túmulos - tampouco isto é bom –
751 – crianças de doze dias: será homem frouxo.
752 - Nem de doze meses: o mesmo também acontece.
753 – Em banho de mulheres não deve se lavar um
754 – homem. Com o tempo recai sobre ele triste
755 – castigo. Perante as piras sagradas o
756 – zombes do mistério. Algum deus vai te punir
757 – Nunca, na foz dos rios que correm pro mar,
758 – nem nas nascentes urines. Evita-o mais que tudo.
759 – Nem mesmo defeques: isto, decerto, não é bom.
760 – Faz desta forma: evita a má fama dos mortais,
761 - pois a fama logo vira um mal: surge bem leve,
762 – muito fácil, mas é fardo a levar, difícil largar.
763 - Ninguém fica livre de todo da fama que um dia
764 – o povo lançou. Esta tem a força de um deus.
765 – Guarda bem os dias que Zeus dá segundo a ordem,
766 – orienta teus servos: o trinta do mês é melhor
767 – pra avaliar os trabalhos e repartir a ração.
769 – Estes são os dias que provêem de Zeus pensante,
768 – que o povo, ao concordar com a verdade, observa:
770 – O primeiro, o quarto e o sétimo são sagrados,
771 – quando Leto pariu Apolo, de espada dourada.
772 – O oitavo e o nono são dois dias do mês, em
773 – pleno crescente, propícios à faina do homem.
774 – Os décimos, primeiro e segundo, excelentes
775 – pra pelar as ovelhas e fazer a colheita.
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776 – Mas o doze - este é bem melhor do que aquele -
777 – quando a aranha que anda no ar fia sua teia,
778 – no dia maior, em que a formiga entoca comida,
779 – que apronte a mulher o tear e se lance à obra.
780 – Chegando o mês ao seu dia treze, evita
781 – começar a semear: as plantas crescem melhor.
782 – o sexto do meio do mês não é bom para as plantas
783 – nem pra gerar menina: é bom pra filho varão.
784 – também não é bom pra nascer, nem depois, pra casar.
785 – No sexto dia do mês não deve nascer menina.
786 – Pra capar cabritos e ovinos, muito propício.
787 – Pra fazer o cercado do gado, é dia feliz.
788 – Bom pra fazer um varão chegado a intrigas,
789 – falsidades, tramas, segredos e futricas.
790 – No oitavo do mês, aos porcos e bois mugidores
791 – tu deves capar: no doze, o brioso jegue.
792 – No grande vinte, em pleno dia, sábio brilhante
793 – deve nascer, pois terá, sobretudo, grande mente.
794 – Nobre homem no décimo e a moça no quarto
795 - do meio. É quando carneiros e bois, patas tortas,
796 – cães, dentes agudos, e jegues, bons de carga,
797 – deves domar pela mão, mas guarda teu coração
798 – e evita, no quarto do mês que finda ou começa
799 – que a dor te devore a alma: é dia sagrado.
800 – no quarto dia do mês, leva tua esposa pra casa
801 – depois de consulta às aves, neste assunto, as melhores.
802 – mas preserva-te ao quinto, dia duro e funesto,
803 – pois dizem que ao quinto as Eríneas celebram
804 – Juramento, que Luta pariu, castigo aos perjuros.
805 – No sétimo, ao meio do mês, o grão de Deméter,
806 – com muito respeito, em pátio de eira redonda
807 – espalha. Que o machado corte o lenho pro leito
808 – e madeira bastante pro casco da nave.
809 – no quarto, começa a montar a nave ligeira.
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810 – Aos nove do meio do mês, a tarde é mais agradável,
811 – no primeiro nove, os homens são livres de penas:
812 - É dia feliz pra engendrar e também pra nascer
813 – homem ou mulher, pois jamais é de todo ruim.
814 – Poucos sabem que ao terceiro nove é melhor
815 – começar uma jarra e botar a cangalha no lombo
816 – do boi, do jegue ou cavalo de rápidas patas
817 – e nau veloz de muitas cavilhas ao mar violeta
818 – arrastar, mas poucos conhecem esta verdade.
819 – Abre uma jarra no quarto, este é o melhor dia,
820 – do meio. Poucos, também, que depois da metade
821 - é a melhor alvorada, mas o ocaso é pior.
822 – Tais dias, pra quem está na terra, são o que há de melhor.
823 – Os demais, mutáveis, inúteis, não levam a nada:
824 – uns louvam uns, outros a outros, ninguém tem certeza.
825 – Às vezes o dia é madrasta, às vezes é mãe.
826 – Feliz e abastado é aquele que todo este saber
827 – sabendo, trabalha isento perante os imortais,
828 - consultando as aves e evitando exageros.
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