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MÍLTON DIAS: A VIDA QUE PODERIA TER SIDO E QUE
NÃO FOI.
SUELÍ
OLIVEIRA
SILVA
2006
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SUELÍ OLIVEIRA SILVA
MÍLTON DIAS:
A VIDA QUE PODERIA TER SIDO E QUE NÃO FOI.
FORTALEZA
FEVEREIRO DE 2006
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SUELÍ OLIVEIRA SILVA
MÍLTON DIAS: A VIDA QUE PODERIA TER SIDO E QUE NÃO FOI.
DISSERTAÇÃO APRESENTADA AO
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM
LETRAS LITERATURA BRASILEIRA,
DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO
CEARÁ, PARA OBTENÇÃO DO TÍTULO
DE MESTRE, SOB ORIENTAÇÃO DA
PROFESSORA DOUTORA CELINA
FONTENELE GARCIA.
FORTALEZA
FEVEREIRO DE 2006
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MÍLTON DIAS: A VIDA QUE PODERIA TER SIDO E QUE NÃO FOI.
AUTORA: SUELÍ OLIVEIRA SILVA
APROVADA EM:
BANCA EXAMINADORA
Profa. Dra. Vera Lúcia Albuquerque de Moraes
Instituição: Universidade Federal do Ceará - UFC
Assinatura: ________________________________________________
Prof. Dr. Horácio Dídimo P. B. Vieira
Instituição: Universidade Federal do Ceará - UFC
Assinatura: ________________________________________________
Profa. Dra. Celina Fontenele Garcia (Orientadora)
Instituição: Universidade Federal do Ceará - UFC
Assinatura: ________________________________________________
5
À minha família, amparo inesgotável, sobretudo Solange e Camila.
A meu marido, presença fundamental na minha vida e neste trabalho.
Às minhas filhas Tâmara Camille e Bárbara Liz, iluminação e companhia
diária.
6
AGRADECIMENTOS
À minha família, pelo apoio inesgotável.
À Celina Garcia e Francisco de Assis Garcia, pelas portas abertas e pelas
constantes trocas.
A meus alunos, pelos constantes desafios.
Aos mestres John, Francisco da Mata e todos os mestres das primeiras
jornadas.
Ao Dr. Wilson Dias, pela acolhida.
À professora Vera Moraes, pela qualificação.
A Rodrigo Marques e Ana Remígio, pela amizade.
A Rosa e Rita, pelos depoimentos.
A Gertrudes, pelas revelações.
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Se eu tivesse mais alma pra dar, eu daria.
Isso para mim é viver.
Djavan
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RESUMO
Este trabalho é o resultado de uma pesquisa que objetivou investigar o
itinerário autobiográfico no processo criativo de Mílton Dias, a partir das
crônicas publicadas em livros; mais particularmente as obras A Ilha do
Homem (1966), Entre a boca da noite e a madrugada (1971), Cartas sem
resposta (1974) e Relembranças (1985), coletânea póstuma.
Os procedimentos adotados partiram inicialmente de estudo sobre o
gênero crônica: origem, definições, características e classificações.
Entretanto, tivemos também que recorrer ao estudo epistolográfico, posto que
o autor mostrou predileção pela comunhão desses gêneros, que corroboram o
circuito de suas confidências. Em seguida, mergulhamos na leitura analítica
do universo cronístico para demarcar a possibilidade de uma trajetória
memorialista que confirmasse a presença de Mílton Dias através de suas três
fases: infância, adolescência e maturidade.
Dessa maneira, através de sua produção de crônicas, focalizamos a
recorrência de algumas temáticas: perda, solidão, viagem e a repercussão
delas na postura dualista do autor: o riso e a dor bem como o papel do
cronista ao rememorar e evocar tempo e espaços perdidos e recuperados
pela memória.
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RÉSUMÉ
Ce mémoíre de Maîtrise est le résultat d’une recherche faite pour
s’enquérir de l’itinéraire autobiographique, dans le processus créatif de Mílton
Dias, à partir de ses chroniques littéraires publiées dans des livres : A Ilha do
Homem (1966), Entre a boca da noite e a madrugada (1971), Cartas sem
resposta (1974) e Relembranças (1985), tous des recueils posthumes.
Les procédés adoptés ont commencé par l’étude sur le genre chronique
littéraire : son origine, sa définition, ses caractéristiques et sa classification.
Cependant nous avons recourir à l’étude épistolaire, vu que l’auteur a fait
voir sa prédilection par ces deux genres : l’épistolaire et la chronique littéraire,
qui montrent ses confidences. Ensuite nous avons fait la lecture analytique
des chroniques publiées dans les livres cités ci-dessus, pour essayer de
trouver des traces autobiographiques, qui confirment la présence de Mílton
Dias dans ses trois groupes d’âge : l’enfance, l’adolescence et la maturité.
De cette façon, en lisant ses chroniques nous avons décelé la
currence de quelques thèmes : la perte, la solitude, les voyages et leur
répercussion dans l’attitude double de l’auteur : le rire et la douleur, quand il
remémore le temps et les espaces perdus, qui ne peuvent pas être récupérés
que par la mémoire.
10
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 12
CAP. 1 - MÍLTON DIAS: A ESCRITA DO EU - O PERDIDO E O
(RE)ENCONTRADO 17
1.1. A ESCRITA MEMORIALÍSTICA E AUTOBIOGRÁFICA 19
1.2. MÍLTON DIAS: O EU - MATÉRIA-MEMORIAL 26
1.3 . O ITINERÁRIO DA CRÔNICA 31
1.4. A TRAJETÓRIA DO CRONISTA MÍLTON DIAS 42
1.5. O UNIVERSO CRONÍSTICO EM MÍLTON DIAS: A
CONFLUÊNCIA DE ESTILOS 44
1.6. VOZ DO CRONISTA NO GRUPO CLÃ 54
CAP. 2 - MÍLTON DIAS: O MISSIVISTA SOLITÁRIO E A (RE)VISITAÇÃO À
INFÂNCIA 60
2.1. O PERCURSO DA EPISTOLOGRAFIA: O CONTEXTO HISTÓRICO
E LITERÁRIO 62
2.2. A ESCRITA MISSIVISTA NO CONTEXTO BRASILEIRO 63
2.3. CARTAS SEM RESPOSTA: UNIVERSO EPISTOLAR EM MILTON
DIAS 66
2.4. “A SENHORA SOLIDÃO”: REFÚGIO E REGRESSO DO
CRONISTA 99
CAP. 3 - A VIDA ANDEJA DE MÍLTON DIAS: O ENTRE-LUGAR DE SUA
CRONÍSTICA 106
3.1. O SER ITINERANTE. 108
3.2. AS VIAGENS GEOGRÁFICAS 109
3.2. 1. CEARÁ FORTALEZA 109
3.2. 2. OUTRAS CIDADES BRASILEIRAS 114
3.2. 3. EUROPA (FRANÇA, ITÁLIA, GRÉCIA E ESPANHA) 118
3.3. AS VIAGENS LITERÁRIAS 127
11
CAP. 4 - A PRESENTIFICAÇÃO DAS PERDAS ATRAVÉS DA ESCRITA
133
4.1. ITINERÁRIO DAS PERDAS: DIÁLOGOS COM MANUEL
BANDEIRA 135
4.2. APRENDIZAGEM DA MORTE 142
4.3. O DESENCONTRO AMOROSO: A LONGÍNQUA FELICIDADE
147
4.4. O LADO CHAPLINIANO: A DOR E O RISO 159
4.5. A ESCRITA: SALVAÇÃO/ETERNIZAÇÃO DO CRONISTA 163
CONSIDERAÇÕES FINAIS 169
BIBLIOGRAFIA 175
ANEXO 180
ANEXO A - Documentos pessoais 181
ANEXO B - Fotos 195
ANEXO C - Correspondências 199
ANEXO D - Entrevista, depoimentos e apreciações críticas 219
ANEXO E - Textos representativos 232
ANEXO F - Obras do autor 240
ANEXO G - Fotos de Fortaleza antiga 246
ANEXO H - Prova do exame vestibular da UFC 1999 250
12
INTRODUÇÃO
A leitura da obra póstuma Relembranças do escritor Mílton Dias foi
determinante para a definição do projeto de pesquisa a ser
desenvolvido no Programa de s-Graduação em Letras da
Universidade Federal do Ceará.
A descoberta veio como desafio e com autenticidade, pois a referida
obra estava na lista de livros do vestibular da UFC (1997), portanto
precisávamos fazer uma espécie de laboratório de leitura. Prontamente,
percebemos que ler Mílton Dias era ler a nós mesmos num processo
sobremaneira autocatártico dada a riqueza temática. E, devido ao habilidoso
trabalho cronístico, fluido de essência poética e metafísica, constatamos
também que lê-lo seria, a princípio, um impasse: suas crônicas mereciam
sempre releituras; e cada uma delas esboçaria novos olhares, novo “horizonte
de expectativas”. Assim, através das partes emblemáticas dessa obra (O
menino, O estudante, O homem, A cidade e Relembranças) confirmávamos
que não sairíamos impunes desse manancial. Desse modo, questionamentos
eram inevitáveis: Quem de nós leitores não compartilha esses universos
temáticos? Não guarda lembranças das reminiscências da infância? Quem de
nós não arquiva um repertório de vivências?
A propósito, foi fácil inserir Mílton Dias no universo de leitores que, a
princípio, gostaria apenas de conhecer o autor e sua obra para o sucesso do
vestibular; vestibular que, por sinal, colocou o cronista como um dos autores
ao lado do poeta Francisco Carvalho na prova de 1999; que trouxe como
resultado benéfico, a bem dizer, dois poetas: um de fato e outro de direito.
Entretanto, embora o autor seja uma referência na prosa cronística
cearense e brasileira também, para alguns estudiosos, poucos estudos foram
realizados acerca de sua produção literária.
Passados vinte e três anos de sua morte (1983 2006), poucos são os
trabalhos que merecem ser mencionados: Uma rede de crônicas; Mílton Dias,
um cronista do Nordeste, de Thomas Strater; Relembranças, escrita
memorialista, de Celina Fontenele Garcia estão entre os mais memoráveis.
Outros também merecem citação: Revista Clã, 29; Mílton Dias: Jornal de
13
cultura, 12; Dez ensaios da Literatura Cearense, de Sânzio de Azevedo;
Mílton Dias e a crônica, de Pedro Paulo Montenegro; Mílton Dias Um lírico:
colecionador de emoções, de Vânia Vasconcelos; além da conferência
intitulada Tempo e Memória nas crônicas de Mílton Dias (2003) que
realizamos sobre a orientação de Celina Fontenele Garcia.
Diante da riqueza da produção literária desse autor, julgamos
necessário um trabalho que focalize as pegadas estilísticas de sua escrita
bem como seu itinerário autobiográfico.
Para tal, tomamos como corpus literário seus livros publicados,
ressaltando Relembranças (1985), Cartas sem respostas (1974), A Ilha do
homem (1966) e Entre a boca da noite e a madrugada (1971), buscando
neles os textos que melhor circunscrevem a trajetória autobiográfica do
cronista.
Não obstante, deixamos de pesquisar na Biblioteca Pública o acervo de
textos do autor publicados no jornal O Povo durante 29 anos, cuja estréia deu-
se com o texto Três irmãs (1954) e o desfecho, dois dias antes da morte do
autor, com a crônica Miscelã (1983).
Realizaremos, concomitantemente a essa pesquisa, uma análise
histórica sobre a crônica como gênero ambíguo entre texto literário e
jornalístico, mais especificamente entre a poesia e o conto.
A despeito disso, lançaremos um olhar de maior alcance na produção
literária desse cronista que realizou cerca de 1500 textos, embora apenas 290
tenham-se tornado livros.
Nossa pesquisa, entretanto, ganhará maior projeção porque nos
abalizamos em estudos sobre a qualidade das crônicas de Mílton Dias que em
tudo podem figurar ao lado da produção de outros cronistas brasileiros
renomados, tais como: João do Rio, Rubem Braga, Manuel Bandeira, Sérgio
Porto, Carlos Drummond de Andrade, João do Rio, Paulo Mendes Campos,
entre outros.
Não é à-toa que Mílton Dias merece o destaque de maior cronista do
Grupo Clã, movimento consolidador do Modernismo no Ceará nos anos de
1940.
Assim, entendemos que o escritor Mílton Dias, dada sua importância no
cenário literário cearense e brasileiro pela elogiosa produção cronística,
14
merece um trabalho de maior profundidade, como a nossa pesquisa pretende
realizar, sistematizando uma linha de análise mais voltada para o estudo do
eu, pois julgamos queresidem as diretrizes que a justificam: a lingüística, a
estilística, a psicológica e a filosófica.
A orientação metodológica dessa pesquisa basear-se-á em corpus
teórico de literatura comparada, pois esta nos propiciará uma visão
interdisciplinar necessária à abordagem do texto literário e das confluências
psicológicas, lingüísticas e filosóficas nele imbricadas. Os critérios e conceitos
implicados poderão permitir a discussão do teor autobiográfico, uma vez que
aí habitam os problemas da personalidade e da memória.
Em observância a essa linha de análise, faremos uma abordagem dos
textos memorialísticos mais significativos, tendo como referencial teórico os
estudos de Philippe Lejeune, Eliane Zagury e Ecléa Bosi.
Procuraremos, no Capítulo 1, Mílton Dias: A escrita do eu o
perdido e o (re)encontrado, analisar o gênero crônica enquanto fazer
literário ambivalente (poesia / conto), demarcando sua trajetória entre os
séculos XIX e XX, além de focalizarmos o caminhar de Mílton Dias nesse
gênero, bem como uma avaliação de sua voz cronística no Grupo Clã. Crucial
também será retratar a escrita memorialística e autobiográfica do cronista ao
buscar, através de suas temáticas, o perdido e o (re)encontrado no universo
de sua produção literária.
Dessa forma, organizaremos esse capítulo de modo a realçar a maior
importância da prosa do escritor: o material memorialista, embora saibamos
que Milton Dias se projetou através do jornal, porém não julgamos que é o
gênero crônica o maior tributo literário do autor, dado o caráter de
ambigüidade dela e do próprio estilo do cronista a transitar freqüentemente
pela poesia e pelo conto. Seu legado de grande contador de histórias e a
recorrente prosa poética parecem melhor justificar sua produção literária de
qualidade.
No Capítulo 2, intitulado Mílton Dias: o homem solitário e a
(re)visitação à infância, delinearemos o modo peculiar de escrever do autor
com a preocupação de ressaltá-lo como escritor ficcionista e autobiográfico
cujo traço predominante é a crônica epistolar. Tentaremos demarcar o
itinerário da epistolografia no contexto mundial e brasileiro. Acentuaremos,
15
também, a escrita do eu, impregnada da temática solidão. Portanto, a
despeito disso, tomaremos como referência mais direta à obra Cartas sem
resposta, pois tais referências já deflagram o espaço literário do cronista.
A julgarmos esse capítulo um dos cernes do trabalho, pois aqui se
evidenciarão pontos capitais: a rememoração e evocação, focalizaremos,
também, em Mílton Dias o papel de cronista sociológico a percorrer os
espaços paternos Massapé e Fortaleza modificados pela urbanização.
No terceiro capítulo, A vida andeja de Milton Dias: o entre-lugar de
sua cronística, procuraremos demarcar sobretudo as viagens geográficas e
intelectuais do escritor, pólos fundamentais na fomentação de sua produção
literária, principalmente porque demonstram e ampliam sua vasta cultura não
só nas letras, mas nas artes em geral.
Ressaltaremos, também, sua postura de cronista a desvendar espaços
e cenários nacionais e estrangeiros, que podem ser desnudados por um
visitante desbravador e não mero turista.
Dessa forma, a obra As cidades invisíveis, de Ítalo Calvino, será
fundamental para nosso estudo, que percebemos os diálogos afins entre
Mílton Dias e Marco Polo.
Sobre as viagens intelectuais, procuraremos focalizar com maior
relevo as literárias, sobretudo as que estabelecem um jogo intertextual do
cronista com escritores franceses e brasileiros mais significativos.
No último capítulo, A presentificação das perdas através da escrita,
também outro cerne de nossa pesquisa, procuraremos enfocar a escrita do
cronista como forma de sublimação de suas perdas. Dado o universo da
ausência, da solidão, do aprendizado da morte, da projeção do luto e da
melancolia entre outros aspectos, percebemos um dialogismo de bastante
afinidade do autor com o poeta Manuel Bandeira. À medida do possível,
demarcaremos os aspectos de semelhança explícitos entre eles a partir da
comparação entre seus textos.
Valerá, também, enfocar que, apesar das tragédias pessoais de Milton
Dias, é indisfarçável sua postura ondulante entre a dor e o riso, e este
permeado de bom humor e ironia.
Motivados por todo esse manancial, fomos levados, quase que
instantaneamente, ao título do trabalho.
16
Outros aspectos também serão levados em conta para melhor delinear
nossa pesquisa: a artesania dos textos do autor focalizando sobretudo os
intertextos de sua produção, entretanto não desprezaremos os contextos
(histórico, social) e intercontextos, pela interligação das crônicas do autor com
a música e com a Bíblia.
Para a escrita desse capítulo, seguiremos a trilha de toda a produção
literária do autor naquilo que melhor representar esse universo de perdas,
pois é com ela que temos talvez as melhores páginas literárias do autor, bem
como seu consolo e sua eternização.
Depois das considerações finais, pretendemos organizar uma seção de
anexos: escritos inéditos do autor, como, por exemplo, partes da obra
inacabada A voz dos sinos, documentos pessoais (cartas, fatos de família, do
Grupo Clã, da visita de Sartre etc.); a primeira crônica escrita e a última
publicada no jornal; comentários de críticos e amigos sobre ele e/ou sua
produção; entrevistas de amigos, empregadas, etc., bem como fotos de
Fortaleza das décadas de 30, 40 e 50.
Sabemos de antemão que a riqueza dos textos do autor que foram
analisados possibilitarão outras releituras, por isso estamos cientes de que
nossa pesquisa merecerá novos olhares, novos estudos...
17
CAPÍTULO 1
Mílton Dias: A escrita do eu - o perdido e o (re)encontrado
18
Chego aos campos e vastos palácios da memória onde estão tesouros
de inumeráveis imagens trazidas por percepções de toda espécie.
Santo Agostinho
E por mais que se previna contra a auto-indiscrição, por mais que se
policie, se reserve, o cronista vai se projetando no que escreve e acaba se
contando, confessando os sentimentos mais prudentemente guardados,
soltando os pedaços desta alma envelhecente.
Mílton Dias
E ainda estou por saber se sou um homem, uma crônica ou um conto.
Mílton Dias
19
1.1. A ESCRITA MEMORIALÍSTICA E AUTOBIOGRÁFICA
E este minuto que passou não voltará, como não volta
a madrugada, nem o amor perdido nem a juventude, nem a
infância. O outro é irrecuperável, irreversível, só existe o
nosso patrimônio particular de memórias. E é o único que
ninguém toma nem em empresta, nem perde , nem vende, é o
único bem pessoal, realmente intransferível. (DIAS,
1985:105.)
A partir das próprias palavras de Mílton Dias, poderemos ler sua escrita
memorialista, impregnada de revelações, na qual ele parece buscar o sentido
do presente reavaliando e repensando suas reminiscências numa espécie de
ajuste de contas, pois a lembrança é a sobrevivência do passado.
Nesse resgate, percebemos a importância que a memória individual
estabelece, pois cada indivíduo funciona como testemunha do tempo que é
represado pela memória e resgatado pelas imagens das vivências diárias.
Desse teor confessional, focalizamos o memorialismo de Mílton Dias
identificado com a definição de Phelippe Lejeune: narração retrospectiva, em
prosa, que uma pessoa real faz de sua própria existência, pondo acento sobre
sua vida individual e em particular sobre a história de sua personalidade.”
(LEJEUNE, 1980:24)
Tal definição ajusta-se aos elementos pertinentes a quatro categorias
descritas de acordo com um pacto autobiográfico, preconizado tamm por
Lejeune:
1) Forma de linguagem: narração em prosa: crônica
2) Assunto tratado: vida individual, história de uma personalidade:
Mílton Dias, suas emoções, vivências, perdas...
3) Situação do autor: identidade do autor (= narrador, pessoa real =
Mílton Dias)
4) Posição do narrador = Mílton Dias = personagem principal.
A propósito desses quatro elementos, um texto (auto-apresentação)
em sua última obra, Passeio no conto francês, que é profundamente
20
revelador, pois é a biografia mais autêntica feita por ele mesmo e que norteará
o estudo autobiográfico em sua trajetória cronística:
Me chamo José Mílton de Vasconcelos Dias. Donde
se que o Senhor Pedro Dias, jovem estreante na
paternidade, caiu no plano do exagero, impondo-me esta
inflação de nomes, agradada com uma gratuita partícula de
nobreza. Mas o povo, que é mais econômico e menos
orgulhoso de mim, me trata simplesmente por Mílton Dias. O
que já é muito.
Não me lembro se nasci, mas minha mãe garante, diz
que até sofreu muito, numa certa manhã, no Ipu, na pequena
Rua da Goela. Antes fosse mentira, mas a rua ainda existe, o
que não deixa de ser um depoimento - e provavelmente de
ficar muito triste quando eu morrer: quem sabe, o Prefeito, se
for meu amigo, vai querer mudar-lhe o nome para Rua Mílton
Dias. E a rua, sem culpa, vai morrer como nasceu, por Rua da
Goela, pobre, feia e triste como eu.
Minha mãe, porque é Iracema e me apresentou ao
mundo exatamente "onde campeava a guerreira tribo da
grande nação tabajara", quis me chamar Moacyr, com a
esperança de repetir a grandeza da lenda. Mas minha avó se
antecipara, dera este nome a um filho, dois anos antes; para
evitar equívocos, eu fiquei mesmo Mílton, sem paraíso
perdido, porque não achado.
Muito cedo meu pai, perdoavelmente vaidoso, como
todo pai debutante, quis me dar um diploma de gênio - e me
ofereceu para o teatro, eu nem bem tinha três anos. Ele
mesmo se encarregou de escolher um poeminha sem
compromisso e me mandou fazer uma minicasaca, a primeira
e última que vesti na minha vida. Aconteci muito bem, com
animador e gratificante aplauso, sob o olhar vigilante e
vitorioso do meu autor. Mas, na hora em que deveria me
despedir com um "boa noite", muito ensaiado, ao respeitável
público, fiz o que, talvez, nenhum artista do mundo teve ainda
idéia de fazer: molhei copiosamente o palco. O que não deixa
de ter sido a primeira decepção paterna e a morte prematura
da minha carreira artística.
Um dia quiseram me curar da ignorância congênita,
me puseram um livro nas mãos e me deram o mundo de
presente.
Sofri muita escola - e uma certa professora de olhos
policiais começou um longo processo que os alunos
costumam chamar "pura marcação". Dizia que eu era sonso,
zombeteiro e nico, porque, um dia, me surpreendeu
pondo apelido nas suas pernas, que eram finas e tristes.
Foi por volta dos seis anos, ou menos, que vim tomar
conhecimento de que o Brasil tinha sido descoberto por um
português. Daí por diante, muita coisa aconteceu, até hoje,
diante dos meus olhos, que continuam perplexos.
Passei por vários exames, alguns de laboratório, mas
o mais terrível foi o admissão ao Ginásio, onde a guerra do
Paraguai quase me derruba. Chego a pensar que aquela
21
guerra foi promovida deliberadamente para reprovar
estudante.
Meu primeiro emprego, assim que saí do Colégio
Cearense, foi de enfermeiro, embora nunca tenha feito um
curativo e ainda não sei aplicar injeção. Meu tio Deusdédit
acabava de ser nomeado primeiro Diretor da Assistência
Municipal de Fortaleza e recebeu, para a Secretaria, apenas
duas funcionárias - Jandira Costa Lima e Maria Perales Ayres,
ainda agora minhas amigas. O tio, pensando me colocar,
alegou ao Prefeito que precisava de um moço para redigir e
fazer relações públicas, sobretudo junto à imprensa.
restava uma vaga de enfermeiro - foi nesta que eu entrei.
Sou bacharel, como quase todos os da minha
geração, antes da Universidade. Quem não quisesse entrar
pelo Direito, entraria para dentista, farmacêutico ou agrônomo
- e como eu não tinha vocação para nenhuma, escolhi, por
exclusão; optei pelo primeiro.
Quando descobri que me sentia como peixe nágua
dentro duma sala de aula, fiz um curso na Faculdade de
Filosofia, que me deu um canudo, mais um, de Letras
Neolatinas - e me diplomei para o que, na verdade, queria ser.
Fui funcionário público, soldado, tradutor, professor
em colégios, aqui e em São Paulo, durante mais de vinte
anos. De repente, o Reitor Antônio Martins Filho me arrancou
do magistério secundário e me fez Chefe do seu Gabinete
onde fiquei doze anos. Já bati muita perna por aí, naveguei no
mar, galopei nas nuvens e pisei muito chão, cumprindo
também aqueles três lugares que brasileiro gosta muito de
citar: Europa, França e Bahia. Acrescente-se Paris e Massapê
principalmente. Consegui me vacinar contra muitos males,
inclusive, recentemente, contra meningite, mas ainda não
descobri a vacina específica contra a maldade humana. Estou
em vias de.
Escrevo em jornal por culpa duma cachumba, que
aqui tratam por papeira. Condenado à prisão domiciliar e ao
repouso que parecia perpétuo, eu, o mais inquieto, o mais
indócil dos empapeirados, puxei a máquina para junto da
cama e contei uma estorinha: era o caso duma paixão que
vinha curtindo desde a infância, por uma artista de circo, uma
moça morena de belas pernas, chamada Arabela, que
dançava no arame e cantava tangos, que muitos anos depois
vim encontrar na Rua das Mulheres Perdidas.
Bem que a psicanálise tem razão: sarei do amor
frustrado, mas contraí o vício do papel de jornal,
positivamente incurável - faz 21 anos que compareço com
uma crônica semanal no O Povo (desde 4 de agosto de
1954). O qual vício me levou a publicar seis livros, com
ameaça de reincidir: estou com dois nos estaleiros. Um dia,
meus amigos do Grupo Clã me pegaram pela mão e me
trouxeram para a Academia Cearense de Letras, onde espero
ficar, até que a morte nos separe. Falta dizer que sou
Professor de Literatura Francesa da Faculdade de Letras, que
agora tratam por Curso de Letras do Centro de Humanidades
da Universidade Federal do Ceará.
22
De religião sou católico, apostólico, romano, embora
negligente praticante, o que é uma pena, mas de oração
diária. Creio em Deus Todo-Poderoso e tenho medo do Diabo
matreiro e provocante, pouco tempo prestigiado pelo
"Exorcista". E, freqüentemente, na hora do aperto, uso Santo
Antônio como pistolão infalível, assim como me ensinou
minha amiga Alba Frota.
De irmãos, que são quatro, estou muito bem servido:
além de outras virtudes, vão cumprindo a contento a tarefa de
multiplicação da família. E de amigas e amigos que são
muitos, estou, felizmente, também muito bem abastecido.
está meu conto - certamente um conto de vigário,
talvez do mesmo que casou meus pais e me batizou. Quando
procurei o dito vigário para fazer meu casamento, o pobre
tinha partido para a glória de Deus. Por isto, continuo solteiro,
cumprindo um trato que fizemos - eu casaria com a sua
bênção. Padeço de amor grande, velho e crônico, no mesmo
modelo do que se queixa o poeta Felix d’Arvers no seu
famoso soneto: “Lê mal est sans espoir, aussi j’ai taire /
Et celle qui l’a fait nem a jamais rien su. A diferença é que no
meu caso, ela sabe, sim.
E ainda estou por saber se sou um homem, uma
crônica ou um conto. Provavelmente um conto, mais um, que
comparece a este Curso de Contos, promovido pela
Academia Cearense de Letras.
Nota: Muita coisa mudou dentro de tão pouco tempo.
Em circunstâncias diversas e inesperadas faleceram meu
irmão Pedro Miron (médio), João Batista (engenheiro) e minha
irmã Maria Stela. Também partiu definitivamente minha citada
amiga Maria Perales Ayres. ( DIAS, 1982:17-9.)
As memórias geralmente são escritas na trajetória final do escritor, o
que não acontece com Mílton Dias. As primeiras publicações de suas crônicas
são em 1954, quando ele tinha 35 anos. Três anos mais tarde, ele torna-se
um cronista hebdomadário do jornal O Povo, ocupando este lugar primeiro
aos sábados depois aos domingos.
Mílton Dias não chegou a publicar seu romance Senhora da sexta-
feira
1
, condição substancial, segundo Lejeune, para afirmação do espaço
autobiográfico, mas o cronista não mais estava no anonimato devido a sua
presença no jornal.
E, embora para Lejeune a autobiografia seja o gênero condizente com
a fase da aposentadoria, pois é necessário haver um espaço autobiográfico,
isto é, que o escritor tenha produzido ficção, principalmente romanesca, antes
1
Senhora da sexta-feira, romance que ficou incompleto, embora grandes nomes literários o
tivessem incentivado, tais como Pedro Nava, Jorge Amado, Moreira Campos entre outros.
23
de seu trabalho memorialístico, controvérsias, pois se o romance é mais
verdadeiro que a autobiografia; esta é mais esquemática e aquele mais
complexo, por que ela precisa ser escrita? A despeito disso, temos em Pedro
Nava um exemplo consistente dessa contradição, porque ele começou a
escrever suas memórias sem a produção de sua obra romanesca, que ficou
apenas como projeto. O importante, pelo que se observa, é a soma desses
dois gêneros e o inegável papel desempenhado no contrato de leitura, através
do pacto entre autor e leitores.
Portanto, ao analisarmos a escrita de Mílton Dias, nossa preocupação
maior dar-se-á a respeito do gênero autobiografia, aquilo que demarque a
escrita do eu, que memorialismo é todo o acervo de acontecimentos
passados que está armazenado na memória, mas cujo narrador não é o
centro de interesse da narrativa. São impressões, imagens de seu universo
circundante: fatos sociais, históricos, políticos, lingüísticos entre outros.
Para definirmos a obra de Mílton Dias, procuramos relacioná-la
principalmente aos estudos feitos por Phelippe Lejeune sobre autobiografia.
Segundo esse estudioso, é em relação ao nome próprio que se devem
situar os problemas da autobiografia. Nesse nome, impresso na capa do livro,
resume-se a existência do autor, pessoa real, a quem é atribuída a
responsabilidade da enunciação do texto escrito. Sua prosa é confessional e
autodiegética.
É condição básica, portanto, que o autor seja o próprio narrador,
produto de sua trajetória vivencial indicando a semelhança da personagem
com o modelo.
Se os fatos contidos na autobiografia correspondem à “realidade das
coisas”, é porque um conceito filosófico de “verdade”, isto é, o autor firmou
um pacto de sinceridade, percebido várias vezes em lton Dias:
Eu fui, como pretendia, como pretendera, e anunciara, fui
rever o campo, as gentes do sertão, olhar lugares e coisas,
fazer uma deliberada e lírica e oportuna volta ao país da
infância, fui como quem se arrepende dos pecados do asfalto
e deseja perdão e volta às fontes, retorna às origens. Foi
assim que me senti reconduzido ao mais antigo outrora.
(DIAS, 1985: 31)
24
É como se dissesse: Prometo dizer a verdade, desvendando os fatos e
a mim mesmo. Em Mílton Dias, isso é transparente. Além do conhecimento
biográfico sobre ele e vários textos serem demarcados por sua assinatura,
Mílton Dias também protagoniza vários deles. Sendo protagonista dessas
histórias, ele tem consciência de si mesmo na produção de suas narrativas.
Em Eu, Mílton Dias, título que resgata a escrita autobiográfica, ele
delineia muito de sua prosa memorialista desde as temáticas a as
características de seu estilo: EU COLECIONO - Pára-choque de caminhão.
Epitáfio. Prosa e verso sobre sinos. Estórias de domésticas. Prosopopéia.”
(DIAS, 1985: 87)
Através do gosto por epitáfio, a sugestão é direta sobre a morte,
recorrência temática de todo seu itinerário como cronista. Duas obras também
foram dedicadas às domésticas: As cunhãs e As outras cunhãs. Outra obra
sua ficou inacabada nas 25 páginas: A voz dos sinos, além de sinos também
intitularem dois textos memorialísticos: Sino, meu irmão”, “Sinos”, bem como
essa palavra ser recorrente na escolha lexical de suas crônicas.
Mais adiante, nesse mesmo texto auto-retrato, Mílton Dias revela-se
mais inteiramente, deixando pegadas concretas sobre seu universo auto-
biográfico:
EU GOSTO
de gente, crepúsculos e madrugadas, mar e
montanha, cidade antiga, vinho tinto, viagem, música. Gosto
de ler, reler e escrever. Sou perdido por uma boa conversa.
Gosto da minha casa, meus cantos, minha rua, minha praça,
de tudo o que me cerca. Gosto da solidão quando a solicito e
a detesto se me é imposta. Gosto de mexer nos meus velhos
papéis. (DIAS, 1985: 89)
Outras obras vêm intituladas de algumas dessas temáticas: Entre a
boca da noite e a madrugada”, Viagem ao arco-íris”, A ilha do homem
sugerindo fortes paratextos de sua escrita autobiográfica. E dentro dessas
obras, continuam os títulos sugestivos de suas crônicas como uma espécie de
mapeamento de sua trajetória existencial, pois Mílton Dias é um viajante do
mundo, de cidades, de si mesmo. Sua viagem é plurissêmica: são geográficas
e metafísicas, que serão melhor explicitadas no 3º Capítulo. Mílton Dias,
cearense, nasce em Ipu, passa a infância em Massapé e Santana do Acaraú,
25
vem estudar em Fortaleza aos 11 anos; adulto, mora em São Paulo e também
viaja pelo Brasil. Vai aprimorar o francês em Paris e de viaja para outras
cidades européias, motivo de várias de suas crônicas: “Toledo”, “Atenas”,
Tarde em Roma” entre outras.
Entretanto, dois endereços são mais significativos na escrita de lton
Dias e funcionam como verdadeira retórica memorialística, pois projetam
novas ondas de fluxo memorial (ZAGURY, 1982: 33). O primeiro
corresponde a Massapê, símbolo de sua infância; o segundo é Fortaleza, de
sua maturidade física, intelectual, profissional e humana. São esses
endereços recorrentes em suas crônicas, sobretudo naquelas dirigidas ao pai
morto: Os moradores de [Massapê] lhe indicariam o nosso endereço e o
senhor viria bater na Coronel Ferraz, 230 [Fortaleza], onde estamos 33
anos. (DIAS, 1974: 107)
Outras viagens, entretanto, talvez as mais significativas de sua
trajetória existencial, o aquelas que circunscrevem verdadeiras lições de
partir: resgatam, através da memória, a infância, a volta paterna, sempre
conduzida pelo universo imaginário, pois seu pai morre quando Mílton Dias
tinha nove anos; mobilizado por essa ausência, o cronista recria um mundo
perdido na infância. Assim, através da morte, temática recorrente em suas
obras, Mílton Dias é um viajante que tenta recuperar-se, analisando-se e
demarcando a sua imagem de homem circundado por trajetórias marcadas
pelas perdas.
Segundo Eliane Zagury, a infância é um dos pólos mais importantes da
prosa memorialística e parece ter sido descoberta pelos românticos, mas é
com os modernistas que ela consolida-se definitivamente.
Estreitando ainda mais os laços modernistas que esse gênero guarda,
segundo a professora Celina Fontenele Garcia, a gênese memorialística
reside com maior excelência na geração modernista dos anos 30, dadas as
inovações trazidas por Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Murilo Mendes
entre outros.
26
Não muito distante dessa época, começa Mílton Dias sua trilha no que
se convém chamar de geração de 45, no Ceará, que o cronista foi
integrante do Grupo Clã
2
.
Sua primeira obra publicada em 1960 foi Sete-estrelo e nela
conseguimos visualizar o universo memorialístico da infância de Mílton Dias
através, sobretudo, do texto “Pedro”, o pai do autor, que é tema recorrente em
sua trajetória de escritor memorialista:
Cedo perdeu pai e mãe, dizia ele, muito cedo (...)
Todo esse mundo estranho cruel, aberto a um menino
de nove anos, podia ser objeto de um livro.
(...) Quando atingia 35 anos, exatamente aos 35, Seu
Pedro sucumbiu rapidamente a um colapso do coração (...)
Talvez um dia eu vos diga como uma mensagem de
otimismo e de coragem, como foi a vida de Dona Maria, viúva
de Seu Pedro e daqueles cinco filhos. (DIAS, 1960; 184-6.)
Curiosamente nesse texto, precisamente nesse fragmento,
constatamos a intenção de Mílton Dias em escrever textos autobiográficos e
talvez até a possibilidade de escrevê-los em forma de romance, pois no pacto
esboçado ele parece dizer-nos: minha vida um romance. No entanto,
infelizmente, isso não aconteceu. Todavia “a narrativa da vida de um particular
pode, se ela é bem escrita, trazer ao leitor o mesmo prazer de um romance
(LEJEUNE, 1971:12). Isso aconteceu aos leitores de Mílton Dias, sempre
premiados com textos de alta qualidade ao mesmo tempo que ele se revelou
de corpo e alma.
Outros pontos interessantes no fragmento são o teor autobiográfico de
tristeza, de tragédias, matizes de envolvimento dos leitores e a circularidade
do material memorialístico entre pai e filho: a perda paterna como fio condutor
das memórias.
1.2. MÍLTON DIAS: O EU - MATÉRIA-MEMORIAL
A escrita autobiográfica faz parte de um gênero complexo, que
estabelece, em princípio, duas linhas: a narrativa histórica e a prosa lírica. O
2
O Grupo Clã, movimento que consolidou o modernismo no Ceará, será mais adiante pico
de referência ao cronista Mílton Dias.
27
escritor transita, geralmente, por essa ambivalência. Em Mílton Dias,
predomina a segunda, dada a linguagem poética de suas crônicas.
Falar de si significa uma ruptura de perspectiva em desequilíbrio,
porque o narrador é ao mesmo tempo processo-produto da gênese de sua
obra. O distanciamento temporal que deve ocorrer entre um eu-objeto
passado e um eu-sujeito presente sugere ao leitor que a memória é sempre
fluida e inconstante. Sendo assim, ela torna-se literatura crítica, já que o
escritor é um ser em crise, necessitando da recorrência constante ao passado.
Desse modo, Mílton Dias retira do seu baú da memória todo o material
que ele vai reelaborar em seus textos (GARCIA, 1997:159), sendo sua
memória ao mesmo tempo individual e coletiva, pois ele recupera os vazios do
presente. Com o primeiro tipo de memória, o cronista reconstrói sua infância
em Massapé através de suas vivências com a escola, com o ambiente
regional:
Depois que mudei de escola não a reencontrei, não lhe falei
mais, mas guardei dona Chiquinha [a professora] cá na minha
lembrança,conservei-a assim como a conheci. Guardei-a com
olhos de criança, de sorriso sonso e zombeteiro, defeitos de
que sempre me acusaram (DIAS, 1985: 54).
Com a memória coletiva, ele recupera suas vivências da cidade de
Fortaleza dos anos trinta aos oitenta, descrevendo os hábitos e a vida
citadinos:
Ah, Pai, muita coisa diferente. Aquela cidade quieta,
provinciana, silenciosa, sofreu uma transformação violenta,
perdeu muito da sua pureza e do seu verde. Lembra os
canteiros de rosas que algumas praças se davam ao luxo de
ter e as mongubeiras da Praça dos Voluntários e aquelas
árvores enormes da Praça de Pelotas? Fortaleza perdeu
também os bondes, que lhe deitavam uma nota lírica,
gemendo em cima dos trilhos e lhe davam um colorido
metropolitano, os bondes do povo. A Ceará Gaz se acabou,
os acendedores de lampião desapareceram com seu mistério,
talvez tenham morrido todos e com eles foi rescindido o
contrato que a Companhia tinha com a lua. Era muito original:
noite de lua os lampiões ficavam apagados. (DIAS, 1974: 119)
Mas não é com a recuperação de Fortaleza de décadas passadas
que Mílton Dias demarca sua memória coletiva. Ao trazer, imaginariamente, o
28
pai morto em 1928, o cronista revisita muitos aspectos da história cearense,
nacional, universal ao mapear as realidades sociais: a política, o avanço
tecnológico, os modismos sociais e lingüísticos, a urbanização, entre outros:
Claro, claro. Seria necessário prepará-lo
psicologicamente, fazer um pouco de História, desde a sua
partida, em 1928. Aquele tempo estava no poder Pio XI, que
governou de 1922 a 1939 e foi a inquieta testemunha das
grandes mudanças, assistiu o colapso da democracia
parlamentar na Europa, viu a inflação, o desemprego
crescente, a luta de classes se acirrando, principalmente entre
os socialistas, os esquerdistas e a direita, a constante de
violência e de hostilidades. Mussolini subindo ao poder depois
da famosa marcha sobre Roma, já marcava, ao tempo em que
o senhor vivia, a ascensão do primeiro dos ditadores da
direita. E Hitler na Alemanha. E quando os ditadores subiam,
a primeira coisa que faziam era suprimir as liberdades. Foi um
triste período para o mundo: o nazismo e o fascismo
baldearam tanto que acabou dando em guerra. Isto sem falar
no regime comunista instalado na Rússia, que era do seu
conhecimento. E sem falar na guerra civil espanhola, em
1936.
Pois bem, em 1939 veio Pio XII, que ficou conhecido
como um dos Papas mais eruditos - e justamente quando
começou o seu Pontificado, começava a segunda grande
guerra. Lembro que no dia 19 de setembro daquele ano, eu
viajava, com um grupo de estudantes da Faculdade de Direito,
por terra, em excursão a Pernambuco - e foi no rádio duma
estalagem de beira de estrada que surpreendemos a notícia.
Depois deste, ah, depois deste veio João XXIII, um
santo e sábio velhinho, que o mundo inteiro ficou aplaudindo e
admirando, pela inesperada, surpreendente capacidade de
renovação que logo revelou, fazendo a Igreja avançar
rapidamente, dando à história e ao progresso da religião uma
valiosa e inesquecível contribuição pessoal. Foi o velho Papa
revolucionário, no melhor sentido da palavra. (DIAS, 1974:
116)
Através desse texto, percebemos que Mílton Dias reconstrói sua prosa
memorialística embasada de sua memória voluntária, mas há textos em que a
memória involuntária, ou seja, a memória dos sentidos, projeta-se como num
processo zigue-zague, ou talvez, mais oportuno dizer, numa superposição de
fatos guardados na memória e que vêm à tona instantaneamente ou
ressuscitados, a revisitar ao mesmo tempo alguns lugares: Ceará, o Paulo,
Espanha.
29
Naquele tempo eu era inconscientemente feliz,
ignorando ainda todas as maldades grandes e pequenas, mas
acreditava no fim do mundo - e tinha medo. (...)
Vestida numa longa camisola branca, os braços
estendidos para o céu em atitude dramática, o cabelo solto
caindo nas costas, a voz cavernosa, o rosto em que as rugas
começavam a abrir caminhos, lavado de lágrimas, versão
sertaneja das figuras de tragédia grega, a Prima começou a
entoar sozinha uma cantiga soturna que herdara das Santas
Missões: - Senhor meu Jesus, perdão, misericórdia! Perdoai,
Senhor. (...)
Muito depois, homem feito, morava em São Paulo,
quando de novo, noite grande, o fim do mundo se anunciou, e
a voz da Prima, inexplicavelmente ressuscitada, cantava
salmos e me devolvia à frente do oratório. É, eu ia morrer
naquele quarto alugado num apartamento estranho, sozinho,
sem vela, sem oração, o vento forte fora, a tempestade
varrendo tudo. A velha senhora, dona da casa, na companhia
duma filha solteira, começou a rezar o Padre Nosso em voz
alta. (...)
Passou-se, passou-se, eu andava em terras de
Espanha, pelo norte, com um motorista maluco, de
profissão professor universitário com alma de Fitipaldi, que
achou por bem se desgarrar em caminhos impossíveis.
Chovia tanto que os limpa-pára-brisa não davam vencimento
à água e pouco se via além de um metro, na estrada escura.
Tentou burlar, fazendo praça de bom "routier", mas acabou
reconhecendo, com altivo desdém, que estava tresmalhado. O
que, no seu “patois" traduzido em nossa língua, dava mais ou
menos isto: - É, eu estou perdido e daí? As sombras da noite
já tinham envolvido a terra fazia muito tempo, com seu cortejo
de pavores e lá, do fundo duma província estrangeira, eu
voltava à infância no Ceará, ouvia a voz da Prima: - Do
profundo abismo em que me acho clamo a Vós, Senhor.
(DIAS, 1985: 41-3)
Outro exemplo de memória involuntária é significativo em outras
crônicas, pois Mílton Dias usa a percepção olfativa e visual para rememorar o
sertão de Massapé:
Um inesperado cheiro de café torrado em casa me
agrediu agradavelmente, impunemente, na tarde de ontem,
numa rua sossegada e distante desta cidade, quando eu
buscava localizar um endereço desconhecido - e me devolveu
de repente ao sertão de antigo outrora e outras tardes
preguicentas como esta, longas, tranqüilas, intermináveis
tardes de verão, de sol medonho e calor grande. (DIAS, 1971:
66)
Foi um inesperado galho de ateira que na manhã de
hoje carregou meu pensamento para a escola de dona
Chiquinha Pequena, em Massapê. Na verdade, todo aquele
30
quintal de casa velha que visitei por acaso, casarão do centro
da cidade, que de ter tido seus dias de glória e de festas,
com moças casadouras, reuniões sociais e políticas, com
novenários e assaltos carnavalescos, vivendo sem dúvida
todas as comemorações do calendário, todo aquele quintal,
dizia eu, estava impregnado do cheiro de infância. Foi
portanto mais um reencontro do que uma descoberta.
De repente revi a escola, a casa de calçada alta, a velha
fachada pintada de amarelo que depois sofreu uma reforma
pretensiosa e sem graça e ao lado esquerdo, um terreno
inexplorado, com um de ata que era constante objeto da
nossa investida, diria melhor, da nossa crueldade, com mato
em torno que crescia à toa e carrapichos que nos grudavam
nas pernas. Por esse dito terreno tomávamos a porta do oitão
que dava acesso à sala de jantar, onde dona Chiquinha dava
aulas. (DIAS, 1985: 53)
Ainda na construção de sua obra, Mílton Dias vai exibindo o seu
arquivo memorialístico ajustando-o em prosa confessional sob a ótica da
memória fortemente visual e auditiva. Nesse desenrolar narrativo, o leitor vai
percorrendo atentamente as imagens que vão se formando para coadunar
num todo iluminado e ruidoso. São vozes humanas de mortos e vivos,
barulhos de sinos, de cães, de ventos, de buzinas, de sinetas, de coros
musicais, de orações, de águas de chuva e de rio; outras imagens são
pictóricas: cores, pinturas, arquiteturas, verdadeiros desenhos de ruas,
cidades, casas... num jogo sinestésico que parece fustigar o cronista desde
sua infância, intensificando-se na fase adulta. Esse jogo de imagens são
demarcações das memórias visual, auditiva e afetiva de Mílton Dias,
acordando-o sempre de seu presente para conduzi-lo às reminiscências da
infância, adolescência ou mesmo aos momentos de sua fase adulta inundada
de saudosismo incurável.
Vejamos alguns recortes de textos de Mílton Dias que exemplificam sua
memória afetiva, visual, auditiva...
De repente revi a escola, a casa de calçada alta a velha
fachada pintada de amarelo que depois sofreu uma reforma
pretensiosa e sem graça e ao lado esquerdo um terreno
inexplorado, com um de ata que era constante objeto da
nossa investida, diria melhor, da nossa crueldade com mato
em torno que crescia à toa e carrapichos que nos grudavam
nas pernas. Por esse dito terreno tomávamos a porta do oitão
que dava acesso a sala de jantar, onde dona Chiquinha dava
aulas. (DIAS, 1985: 53)
31
Do mais distante outrora, volta o toque dos sinos de
Natal ressuscitando lembranças que pareciam queimadas
irreparavelmente no latifúndio do tempo, dantes generoso.
(Op. cit., 47)
Esta noite houve um congresso de cães na minha
praça e tudo indica que os participantes não estavam se
entendendo muito bem, a tirar pelos latidos indisciplinados e
constantes, como se todos quisessem opinar ao mesmo
tempo, balburdiando deliberadamente a assembléia. Verdade
que no meio da gritaria geral havia duas vozes mais fortes,
provavelmente dois líderes que permaneceram a noite inteira
num desafio violento e, ao que me pareceu, um fazia sua
tribuna nas grades do jardim da casa em que mora; outro
andava solto, mas mantinha uma distância prudente. (Op. cit.,
38).
Ó lembranças nunca apagadas. A espera do sinal da
sineta que anunciava a primeira aula, o grupo de meninos
sobraçando livros e esperanças, o medo da lição não
aprendida, o exercício de matemática, a ameaçadora
chamada ao quadro negro, a programação para o fim de
semana - tudo tão puro - a perspectiva do cinema, da praia.
(Op. cit., 116)
Assim, na sua construção confessional, Mílton Dias vai percorrendo
uma trajetória marcada pela auto-revelação de suas vivências, impregnada de
acervos imagéticos de sua memória afetiva, que vai intensificando e
iluminando suas crônicas, pois segundo César Guimarães:
O conjunto de enunciados que formam uma imagem é, antes,
um bloco de sensações perceptivas, afectos, paisagens e
rostos visões e devires. No trabalho da arte ou de literatura -
escrevem Deleuze e Guattari - o que se conserva não é o
material - seja o signo lingüístico, a pedra ou a cor -, o que se
conserva em si é o percepto ou o afecto. (GUIMARÃES, 1997:
63)
1.3 . O ITINERÁRIO DA CRÔNICA
No passado de mais ou menos 150 anos, a crônica não gozava de
prestígio literário quanto em nossos dias. Era tomada como gênero menor,
dado que na literatura não se elegiam grandes escritores por serem cronistas.
32
O cânone literário sempre foi constituído por romancistas, poetas e
dramaturgos.
Advinda da convergência de três áreas: a HISTÓRIA a lembrar os
cronicões como fez Fernão Lopes na época do Humanismo; o JORNALISMO
devido à relação íntima com a difusão desse gênero e finalmente a
LITERATURA pelo formato da prosa ficcional, pela linguagem poética, não
necessariamente nessa ordem, a crônica é um gênero que despertou
polêmicas, garantindo, por isso mesmo, o surgimento de vários estudos sobre
sua origem, estrutura, seus tipos entre outros.
Seu nome de origem é o folhetim, que, segundo o professor Roberto
Faria, é o texto-avô da crônica atual. Era um artigo longo, geralmente
publicado aos domingos no rodapé da primeira página do jornal, tendo como
propósitos comunicativos prioritários informar e comentar os principais fatos
semanais. Assim, o folhetinista precisava ser habilidoso para condensar num
único texto um rol de notícias acerca de política, artes, economia, história
entre outros.
Foi com Jo Alencar que esse gênero começou a ganhar a
notoriedade no Brasil quando da sua estréia em 1854, no jornal Correio
Mercantil com a primeira série de folhetins intitulada Ao correr da pena.
E o próprio Alencar escreve um dos folhetins em que ele discute, com
ironia e humor, as origens obscuras do folhetim e, o maior problema, a
dificuldade de se escrever esse tipo de texto:
É uma felicidade que não me tenha ainda dado ao
trabalho de saber quem foi o inventor deste monstro de
Horácio, deste novo Proteu, que chamam folhetim; senão
aproveitaria alguns momentos em que estivesse de candeias
às avessas, e escrever-lhe-ia uma biografia, que, com as
anotações de certos críticos que eu conheço, havia de fazer o
tal sujeito ter um inferno no purgatório onde necessariamente
deve estar o inventor de tão desastrada idéia.
Obrigar um homem a percorrer todos os
acontecimentos, a passar do gracejo ao assunto sério, do riso
e do prazer as páginas douradas do seu álbum, com toda a
finura e graça e a mesma monchalance com que uma senhora
volta as páginas douradas do seu álbum, com toda a finura e
delicadeza com que uma mocinha loureira sota e basto a
três dúzias de adoradores! Fazerem do escritor uma espécie
de colibri a esvoaçar em ziguezague, e a sugar, como o mel
33
das flores, a graça, o sal e o espírito que deve
necessariamente descobrir no fato o mais comezinho!
Ainda isto não é tudo. Depois que o mísero folhetinista
por força de vontade conseguiu atingir a este último esforço
da volubilidade, quando à custa de magia e de encanto fez
que a pena se lembrasse dos tempos em que voava, deixa
finalmente o pensamento lançar-se sobre o papel, livre como
o espaço. Cuida que é uma borboleta que quebrou a crisálida
para ostentar o brilho fascinador de suas cores; mas engana-
se: é apenas uma formiga que criou asas para perder-se.
De um lado um crítico, aliás de boa-fé, é de opinião que
o folhetinista inventou em vez de contar, o que por
conseguinte excedeu os limites da crônica. Outro afirma que
plagiou, e prova imediatamente que tal autor, se não disse a
mesma coisa, teve intenção de dizer, porque, enfim nihil sub
novum. Se se trata de coisa séria, a amável leitora amarrota o
jornal, e atira-o de lado com um momozinho displicente a que
é impossível resistir.
Quando se fala de bailes, de uma mocinha bonita, de
uns olhos brejeiros, o velho tira os óculos de maçado e diz
entre dentes: “Ah! o sujeitinho está namorando à minha custa!
Não fala contra as reformas! Hei de suspender a assinatura”.
O namorado acha que o folhetim não presta porque não
descreveu certo toilette, o caixeiro porque não defendeu o
fechamento das lojas ao domingo, as velhas porque não falou
na decadência das novenas, as moças porque não disse
claramente qual era a mais bonita, o negociante porque não
tratou das cotações da praça, e finalmente o literato porque o
homem não achou a mesma idéia brilhante que ele ruminava
no seu alto bestunto.
Nada, isto não tem jeito! É preciso acabar de uma vez
com semelhante confusão, e estabelecer a ordem nestas
coisas. Quando queremos jantar, vamos ao Hotel da Europa;
se desejamos passar a noite, escolhemos entre o baile e o
teatro.
Compramos luvas no Wallerstein, perfumarias no
Desmarais, e mandamos fazer roupa no Dagnan. O poeta
glosa o mote, que lhe dão, o músico fantasia sobre um tema
favorito, o escritor adota um título para seu livro ou o seu
artigo. Somente o folhetim é que há de sair fora da regra
geral, e ser uma espécie de panacéia, um tratado de omni
scibili et possibili, um dicionário espanhol que contenha todas
as coisas e algumas coisinhas mais? Enquanto o Instituto de
França e a Academia de Lisboa não concordarem numa exata
definição do folhetim, tenho para mim que a coisa é
impossível. (ALENCAR, 2003: 28-30)
Anos mais tarde, 1859, Machado de Assis, um dos responsáveis pelo
domínio folhetinesco, volta a focalizar numa de suas Aquarelas
3
um retrato
irônico do folhetinista como o fez Alencar. Nesse texto metalingüístico,
3
Série de crônicas de Machado de Assis publicadas em 1859.
34
Machado também acentua, de maneira mais tenaz, os sérios agravantes que
o gênero exigia de seus autores: habilidade na condensação de fatos,
motivação do leitor, o resgate certeiro do espaço jornalístico, o papel do
folhetinista na singular convergência entre o útil e o fútil, e talvez o mais
importante tributo do folhetinista: a consciência do blico alvo e a aceitação
do gênero, sobretudo em relação às mulheres, ainda consideradas leitoras
sentimentalistas:
Uma das plantas européias que dificilmente se têm
aclimatado entre nós é o folhetinista.
Se é defeito de suas propriedades orgânicas, ou da
incompatibilidade do clima, não o sei eu. Enuncio apenas a
verdade.
Entretanto, eu disse - dificilmente - o que supõe algum
caso de aclimatação séria. O que não estiver contido nesta
exceção, o leitor que nasceu enfezado e, mesquinho de
formas.
O folhetinista é originário da França, onde nasceu, e
onde vive a seu gosto, como em cama no inverno. De
espalhou-se pelo mundo, ou pelo menos por onde maiores
proporções tomava o grande veículo do espírito moderno; falo
do jornal.
Espalhado pelo mundo, o folhetinista tratou de
acomodar a economia vital de sua organização às
conveniências das atmosferas locais. Se o têm conseguido
por toda parte, não é meu fim estudá-lo; cinjo-me ao nosso
círculo apenas.
Mas comecemos por definir a nova entidade literária. O
folhetim, disse eu em outra parte, e debaixo de outro
pseudônimo, o folhetim nasceu do jornal, o folhetinista por
conseqüência do jornalista. Esta Intima afinidade é que
desenha as saliências fisionômicas na moderna criação.
O folhetinista é a fusão admirável do útil e do fútil, o
parto curioso e singular do sério, consorciado com o frívolo.
Estes dois elementos, arredados como pólos, heterogêneos
como água e fogo, casam-se perfeitamente na organização do
novo animal.
Efeito estranho é este, assim produzido pela afinidade
assinalada entre jornalista e o folhetinista. Daquele cai sobre
este a luz séria e vigorosa, a reflexão calma, a observação
profunda. Pelo que toca ao devaneio, à leviandade, está tudo
encarnado no folhetinista mesmo; o capital próprio.
O folhetinista, na sociedade, ocupa o lugar de colibri na
esfera vegetal, salta, esvoaça, brinca, tremula, paira e
espaneja-se sobre todos os caules suculentos, sobre todas as
seivas vigorosas. Todo o mundo lhe pertence, até mesmo a
política.
Assim aquinhoado pode dizer-se que não entidade
mais feliz neste mundo, exceções feitas. Tem a sociedade
diante de sua pena, o público para lê-lo, os ociosos para
35
admirá-lo, e a bas-beus para aplaudi-lo. Todos o amam, todos
o admiram, porque todos têm interesse de estar de bem com
este arauto amável que levanta nas lojas do jornal a sua
aclamação de hebdomadário
Entretanto, apesar dessa atenção pública, apesar de
todas as vantagens de sua posição, nem todos os dias são
tecidos de ouro para os folhetinistas. os negros, com fios
de bronze; à testa deles está o dia... adivinhem? O dia de
escrever!
Não parece? Pois é verdade puríssima. Passam-se
séculos nas horas que o folhetinista gasta à mesa a construir
sua obra.
Não é nada, é o cálculo e o dever que vêm pedir da
abstração e da liberdade - um folhetim! Ora, quando
matéria e o espírito está disposto, a coisa passa-se bem. Mas
quando, à falta de assunto se une àquela morbidez moral, que
se pode definir por um amor ao far niente, então é um
suplício...
Um suplício, sim.
Os olhos negros que saboreiam essas páginas
coruscantes de lirismo e de imagens, mal sabem às vezes o
que custa escrevê-las. (ASSIS, 1859: 958-9)
Nos últimos cinco parágrafos, é nítida a semelhança com Mílton Dias
no ofício de escrever suas crônicas semanalmente. O toque de ironia também
é percebido. Entretanto, o cronista cearense, a princípio, tem uma vantagem a
mais que Machado, pois o manancial de suas temáticas é construído através
das próprias características do povo cearense, apesar de o progresso ter
impossibilitado ao cronista de continuar bebendo dessa fonte de inspiração:
Quem se compromete a comparecer uma vez por semana ao
jornal, durante tantos anos, com uma crônica, está sempre
motivado para colher temas, um pouco por toda parte, tirando-
os freqüentemente do cotidiano. 'É uma pena que o esquema
da cidade não permita mais as viagens de ônibus (a gente
está obrigado ao carro, por motivos óbvios, que agora o
corpo humano se compõe de cabeça, tronco e rodas). Mas
nos ônibus a colheita era sempre farta. Cearense fala alto,
conta sua vida, seus casos e problemas (autobiográfico pela
própria natureza) com a maior simplicidade, para quem quiser
ouvir, dentro dos coletivos. Às vezes a conversa se
generaliza, os palpites se multiplicam, os comentários correm
numa linguagem gostosa, colorida. É uma beleza. (DIAS,
1985: 278-9)
Retomando a trajetória do folhetim, quem mais profundamente
mergulhou nesse estudo foi Marlyse Meyer:
36
De início, ou seja, começos do século XIX, le feuilleton
designa um lugar preciso do jornal: o rez-de-chaussée -rés-
do-chão, rodapé -, geralmente o da primeira página. Tinha
uma finalidade precisa: era um espaço vazio destinado ao
entretenimento. E pode-se antecipar, dizendo que tudo que
haverá de constituir a matéria e o modo da crônica à brasileira
é, desde a origem, a vocação primeira desse espaço
geográfico do jornal, deliberadamente frívolo, oferecido como
chamariz aos leitores afugentados pela modorra cinza a que
obrigava a forte censura napoleônica (...) (MEYER, 1996: 57)
A bem da verdade, é o “espaço vale-tudo” - ainda segundo Marlyse
Meyer - , suscitando
todas as formas e modalidades de diversão escrita: nele se
contam piadas, se fala de crimes e monstros, se propõem
charadas, se oferecem receitas de cozinha ou de beleza;
aberto às novidades, nele se criticam as últimas peças,os
livros recém-saídos, o esboço do caderno B,em suma.(Op.
cit.,96)
E como a época é propícia em termos de produção de textos
ficcionais,o espaço configura-se ainda para o treinamento da narrativa de
autores renomados ou iniciantes.
Com propriedade, Meyer nesse contexto folhetim-variedades o
nascimento da crônica que, aos poucos, foi ganhando autonomia e
personalidade próprias.
A despeito disso, devemos muito a José de Alencar, através de seus
textos folhetinescos intitulados Ao correr da pena nos anos de 1854 e 1855 e
Folhas soltas, Revista e mais dois subtitulados: Conversa com meus leitores e
Conversa com as minhas leitoras.
Segundo o professor Roberto Faria, tais textos são um importante
documento da cidade do Rio de Janeiro no decênio de 1850, quando Alencar,
maravilhado pelo início do progresso da Capital do Império, retrata a
modernização urbana, entusiasticamente, ao comentar o surgimento das
máquinas de costuras, a iluminação a gás do Passeio Público, a viagem de
trem entre outros. No entanto, não omitiu sua postura engajada ao criticar a
precariedade dos serviços públicos, a limpeza da cidade e outros problemas
que já se faziam notar com o advento da urbanização:
37
Se não quereis ficar doido, abandonai a cidade, fugi
para Petrópolis, ou fechai-vos em casa.
Sobretudo não vos animeis a deitar a cabeça à janela ou
a sair à rua, ainda mesmo de noite.
Apenas derdes os primeiros passos, encontrareis um
homem grave, que vos apertará a mão como antigo
conhecido.
Pensais que vai perguntar pela vossa saúde, ou falar-
vos de algum negócio particular? Enganais-vos
completamente.
Desde terça-feira que não nesta grande cidade
senão um negócio.
(...)
Os curiosos divertem-se com as comparações, e os
parasitas estudam os nomes daqueles a quem devem tirar o
chapéu ou fazer simplesmente um cumprimento de proteção.
E assim são as coisas deste mundo. Dantes os homens
tinham as suas ações na alma e no coração; agora têm-nas
no bolso ou na carteira. Por isso naquele tempo se
premiavam, ao passo que atualmente se compram. (FARIA,
2003: 210-13)
Seguindo a trilha dessa urbanização, faz-se imprescindível também
focalizar o papel de Paulo Barreto (1881 - 1921), mais conhecido pelo
pseudônimo de João do Rio, que percebeu que a modernização da cidade
exigia uma mudança de postura daqueles que escrevia o dia-a-dia dela.
Ele foi um testemunho importante da cidade do Rio, retratando-a de
perto e com conhecimento de causa, uma vez que transitava por ela, em seus
lugares requintados ou desfavorecidos, para melhor exibi-la ao leitor. Fiel a
essa nova postura, acabou impondo a seus contemporâneos uma nova
maneira de vivência da profissão de jornalista.
Sem dúvida, como é notório, não devemos somente a Alencar o
aprimoramento do folhetim, que, com o tempo, mudou de enfoque; a
linguagem e a própria estrutura também sofreram alterações. Passou a ser
mais curto, coexistindo também os dois aspectos harmoniosamente: o
jornalístico, pois a informação, o retrato do cotidiano eram exigências desse
gênero e o literário (ambivalência entre a poesia e o conto), já que ao cronista
é permitido o uso de uma linguagem leve, subjetiva, humorística e poética.
Assim, como texto híbrido, a crônica é hoje um importante gênero
literário, pois segundo Antonio Candido:
38
[...] está sempre ajudando a estabelecer ou restabelecer
dimensão das coisas e das pessoas. Em lugar de oferecer um
cenário excelso, numa revoada de adjetivos e períodos
candentes, pega o miúdo e mostra nele uma grandeza, uma
beleza ou uma singularidade insuspeitadas. Ela é amiga da
verdade e da poesia nas suas formas mais diretas e também
nas suas formas mais fantásticas, - sobretudo porque quase
sempre utiliza o humor. (CANDIDO, 1992:14)
Mas o que vem a ser, de fato, a crônica? Qual o melhor conceito desse
gênero?
São vários os significados da palavra crônica. Todos,
porém, implicam a noção de tempo, presente no próprio
termo, que procede do grego chronos. Um leitor atual pode
não se dar conta desse vínculo de origem que faz dela uma
forma do tempo e da memória, um meio de representação
temporal dos eventos passados, um registro da vida escoada.
Mas a crônica sempre tece a continuidade do gesto humano
na tela do tempo.
Lembrar e escrever: trata-se de um relato em
permanente relação com o tempo, de onde tira, como
memória escrita, sua matéria principal, o que fica do vivido -
uma definição que se poderia aplicar igualmente ao discurso
da História, a que um dia ela deu lugar. [grifos do autor]
(MOISÉS, 1997: 104)
Como quer que os estudiosos prefiram direcionar sua visão sobre o
gênero crônica, não estarão sobremaneira chocando-se entre si. É justamente
a soma dessas definições que tornam esse gênero um assunto importante em
nossos dias, que a crônica é a retratação de épocas, portanto veículo
dinâmico e acumulativo de valores históricos e sociais que devem ser
considerados importantes para a humanidade.
Outra apreciação importante sobre a crônica e continuação do olhar
crítico de Massaud Moisés é esta:
Ambígua; duma ambigüidade irredutível, de onde extrai seus
defeitos e qualidades, a crônica move-se entre ser no e para o
jornal, uma vez que se destina, inicial e precipuamente, a ser
lida na folha diária ou na revista. Difere, porém, da matéria
substancialmente jornalística naquilo em que, apesar de fazer
do cotidiano o seu húmus permanente, não visa à mera
informação: o seu objetivo, confesso ou não, reside em
transcender o dia-a-dia pela universalização de suas
virtualidades latentes, objetivo esse via de regra minimizado
pelo jornalista de oficio. O cronista pretende-se não o repórter,
39
mas o poeta ou o ficcionista do cotidiano, desentranhar do
acontecimento sua porção imanente de fantasia. Aliás, como
procede todo autor de ficção, com a diferença de que o
cronista reage de imediato ao acontecimento, sem deixar que
o tempo lhe filtre as impurezas ou lhe confira as dimensões de
mito, horizonte ambicionado por todo ficcionista de lei. De
onde as características da crônica, como também suas
grandezas e misérias, resultarem dessa inalienável
ambigüidade radical. (Op. cit., 104-5)
Nesse trecho, dois pontos merecem nossa atenção quanto à escritura
cronística de Mílton Dias. Primeiro pela hibridez de sua crônica entre a poesia
e o conto, depois a respeito da questão de tal gênero ser escrito no e para o
jornal. Ele foi essencialmente cronista assim como Rubem Braga, pois
divulgou-se primeiramente no jornal. No entanto, o nível de seus textos, por
estarem mais voltados para o universo lírico, consagraram-no entre os
melhores cronistas nacionais.
Considerando ainda a semelhança de lton Dias com Rubem Braga,
será mister dizer que também se ajusta àquele desenvolvimento cotidiano de
sua sensibilidade, resultando disso a maior captação dos instantes de vida
que pessoas comuns como nós deixamos escapar, pois o nosso tom reflexivo
esbarra na inoperância de nossas palavras. Caímos, quase sempre, na trivial
referencialidade das circunstâncias diárias. Contudo, é que o cronista nos
socorre, como nosso porta-voz, devolvendo-nos textos que são praticamente
a expressão de nós mesmos, pois estamos sempre reticentes a buscar
traduções de nossos sentimentos e anseios, na busca da exata palavra
reveladora. Não é raro, por isso mesmo, dizermos ou ouvirmos declarações
como estas: “- Este texto foi escrito para mim”; “- É meu texto”; “- Era tudo o
que queria dizer, mas não consegui”.
A prosa de Mílton Dias a exata dimensão desse fazer cronístico.
Não é à-toa que vários estudiosos tais como: Austragésilo de Athayde,
Thomas Strater, Almeida Fischer, Pedro Paulo Montenegro entre outros o
consideram cronista de grande valor.
Wilson Martins, em sua História da Inteligência Brasileira (MARTINS,
1996: 436) elegeu o livro de estréia de Mílton Dias, Sete-estrelo, como uma
das mais importantes publicações no campo da crônica de 1960, ao lado de O
40
cego de Ipanema, de Paulo Mendes Campos, e O homem nu, de Fernando
Sabino.
Se o que faz o cronista é a qualidade de seus textos, Mílton Dias pode
estar também, por mérito de sua escritura, ao lado de Carlos Drummond de
Andrade, João do Rio, Raquel de Queiroz, Manuel Bandeira e outros
expoentes brasileiros representantes desse gênero. Ser escritor no e para o
jornal, como acentuou Massaud Moisés, é uma questão importante se
levarmos em conta o pressuposto de que “a vida histórica da obra literária não
pode ser concebida sem a participação ativa de seu destinatário (JAUSS,
1994: 169). Portanto, é o leitor o responsável por essa acolhida e pelas
diferenças que passam a existir na publicação de um texto.
A crônica, na sua trajetória como gênero, tem conseguido um espaço
literário significativo, mesmo que ainda, para alguns, ela circunscreva o rótulo
de gênero menor. Mesmo sabendo que, infelizmente, nem todas resistirão ao
tempo, hoje, pois, mesmo indo para os livros, elas passam por uma seleção
cujos critérios devem estar ligados ao caráter de universalidade e de
sensibilidade que possam despertar no leitor acerca da atualização do
conteúdo impresso. Portanto, como disse o próprio Mílton Dias:
A idéia da crônica como subgênero, gênero espúrio, está
totalmente superada, foi aceita como gênero independente
pelos críticos mais recalcitrantes. Não é só escrevendo versos
ou contos ou romance, que se pode fazer literatura. muita
coisa ruim com este rótulo, em todos os gêneros. O que
importa é a qualidade, é a arte de bem escrever, é saber
cantar com estilo próprio, correção, originalidade, graça -
enfim uma série de ingredientes que compõem a receita da
boa literatura. (DIAS, 1985: 281)
Da constatação do próprio cronista Mílton Dias parece emanar a
resposta sobre o lugar ideal da crônica ou se existe mesmo um lugar ideal
para ela. Constatação que se comunga também com as palavras do crítico
literário Eduardo Portela:
A estrutura da crônica é uma desestrutura; a
ambigüidade é a sua lei. A crônica tanto pode ser um conto,
como um poema em prosa, um pequeno ensaio, como as três
coisas simultaneamente. Os gêneros literários não se
excluem: incluem-se. O que interessa é que a crônica,
41
acusada injustamente como um desdobramento marginal ou
periférico do fazer literário, é o próprio fazer literário. E quando
não o é, não é por causa dela, a crônica, mas por culpa dele,
o cronista. Aquele que se apega à noticia, que não é capaz de
constituir uma existência além do cotidiano, este [sic] se perde
no dia-a-dia e tem apenas a vida efêmera do jornal. Os outros,
esses [sic] transcendem e permanecem.( PORTELA, 1979:
53-4)
Segundo Massaud Moisés, a brevidade, a subjetividade, a ambigüidade
e a efemeridade são as principais características do gênero, podendo também
agregarem-se a outros atributos essenciais, tais como: o diálogo, o estilo entre
o coloquial e o literário, a temática do cotidiano entre outros.
Conseqüência desse gênero flutuante, duas características somam-se
em importância: a subjetividade e a ambigüidade.
A subjetividade, no entanto, é a mais relevante das características, pois
o foco narrativo em pessoa do discurso estabelece a presença direta do
cronista na transmissão do fato. Assim,
ele atua como historiador do cotidiano que, através de sua
forma de ver as coisas, as pessoas e os acontecimentos, age
como indivíduo-testemunha de um tempo, uma época,
permitindo um monodiálogo (ANDRADE, 1972: 50)
Como bem o disse Carlos Drummond de Andrade, para ele, ocorre
simultaneamente um monólogo pela auto-reflexão por que passa o cronista e
um diálogo pela projeção de um interlocutor, seu leitor virtual.
Portanto, é uma subjetividade análoga à do poeta lírico, pois ambos
manuseiam a linguagem metafórica com sensibilidade, deixando transparecer
uma prosa poética que favorece a um duplo harmonioso: autocatarse e
catarse. O cronista, ao focalizar o jogo aparente do cotidiano, caminha em
direção ao essencial e ao universal. Assim, reflete sobre ele mesmo e o
mundo circundante. E, conseqüentemente, como espécie de porta-voz dos
leitores, proporciona a eles uma espécie de catarse.
Talvez desse duplo habilidoso do estilo peculiar de cada escritor tenha
a crônica conseguido alargar ainda mais seu espaço entre os leitores e
fincado com mais autonomia seu lugar decisivo no espaço literário.
42
A outra característica relevante à crônica é a sua ambigüidade, que,
para Massaud Moisés quando o caráter literário assume a primazia, a crônica
deriva para o conto ou a poesia, conforme se acentua o aspecto narrativo ou o
contemplativo.” (MOISÉS, 1997: 108) Daí, resultou a crônica-conto e a
crônica-poema.
O primeiro tipo é responsável por tornar a obra mais duradoura, com
o segundo mantém-se sua conservação.
Diante de tantos dizeres sobre o que a crônica significa, ela veio para
fincar suas marcas em nós. Se for bem escrita, consegue nos tirar da inércia,
nem que seja por momentos; projetar-se-á em nosso cotidiano como reflexão,
resgate da nossa memória individual e/ou coletiva devido ao seu caráter de
universalidade e de brasilidade.
Não é por acaso que ela tem figurado com intensidade nos livros
didáticos, bem como nas listas de paradidáticos, mesmo em vestibulares de
instituições renomadas como a UFC (Universidade Federal do Ceará). A
crônica, texto curto, de linguagem acessível, despretensiosa, tem sido mais
poderoso instrumento de leitura que se possa imaginar. Parece mesmo que
ela já faz parte do nosso Cânone literário.
1.4 A TRAJETÓRIA DO CRONISTA MÍLTON DIAS
Como reconheceu Jorge Amado, a crônica adquiriu no Brasil foros de
literatura maior. (DIAS, 1985:14) Mílton Dias é um dos responsáveis pela
conquista a que chegou esse gênero na opinião de vários homens das letras
que o intitulam de mestre de crônica cearense. No entanto, outros estudiosos
julgam-no também uma expressão nacional:
...[escreveu] um extrato literário composto, que fazendo justiça
a seu autor, reclama um dos primeiros lugares não somente
entre os cronistas, mas no âmbito de literatura brasileira em
geral.
(STRATER, 1990: 134)
43
O primeiro texto de Mílton Dias, Arabela, publicado em 1953 no
Unitário, teve apreciação lisonjeira de Orlando Mota.
Dois anos mais tarde, a convite de Jairo Martins Bastos, publica Três
irmãs no jornal O Povo. Em 1957 passa a cronista hebdomadário desse jornal
onde escreveu até sua última crônica, Miscelã”, em 1983, dois dias antes de
sua morte.
Desse espaço jornalístico, ganhamos a última obra cronística do autor
A Capitoa, em comemoração a seu jubileu de prata.
Mílton Dias escreveu no jornal perto de mil e quinhentas crônicas e
destas 239 transformam-se em livros. São oito volumes assim constituídos
através de título, ano de publicação, número de textos e gêneros: Sete-Estrelo
(1960 - 30 crônicas); As Cunhãs (1966 - 27 estórias e crônicas); A ilha do
homem (1966 - 39 estórias e crônicas); Entre a boca da noite e a
madrugada (1971 - 30 crônicas); Cartas sem resposta (1974 - 33 crônicas);
Viagem no arco-íris (1974 em parceria com Cláudio Martins - 15 crônicas); As
outras cunhãs (1977 - 23 estórias e crônicas, mas o texto Kátia Mara consta
primeiramente em Viagem no arco-íris); A Capitoa (1982 - 42 estórias e
crônicas, no entanto oito destas fazem parte das obras anteriores).
Além delas Relembranças (1985), obra póstuma, compilada por
Hélder de Sousa e prefaciada pelo escritor Jorge Amado, constando de 87
textos.
Dos 239 textos das obras publicadas pelo autor somam-se 87 da obra
póstuma, entretanto 60 deles o inéditos em livros. Portanto, ao todo, temos
um universo de 290 textos, pois alguns são retomados integralmente; outros
mudaram de título: A Ilha do Homem (homônima desta obra) ficou em
Relembranças intitulada Voltei à Ilha; Serzedelo (da obra Viagem ao Arco-íris)
mudou na obra póstuma para Momento na praça Serzedelo; Adeus a
Mykonos (de A Capitoa) ficou na obra póstuma Despedida de bordo e a
mudança mais radical ocorreu em Salmo a Nossa Senhora dos afogados na
melancolia (d’A Ilha do Homem ) que sofreu alteração de título para Salmo
de Nossa Senhora dos tristes bem como algumas informações textuais foram
cortadas.
Ao lado das crônicas, existem outros trabalhos: um ensaio intitulado
Passeio no conto Francês (1982) e plaquetas: Discursos Acadêmicos (1975);
44
Três cidadãos de Massapé (1975); Fortaleza e eu (1976); Péguy, o poeta da
esperança (1976) e Dois discursos acadêmicos (1978). O escritor deixou
também duas obras inéditas: Senhora da sexta-feira (Romance) e A voz do
sino (dossiê), sendo esta inacabada.
Foram mais de vinte e cinco anos de uma produção literária intensa e
publicada, marcada pelo primeiro texto, A rede, na obra de estréia Sete-
Estrelo, cujo título parece denotar que Mílton Dias seria uma ativa
testemunha de seu tempo, coligando suas vivências sertanejas e urbanas em
que os fios dessa rede comporia a teia literária em que se (con)fundem a
fantasia e a realidade, melhor dizendo, sua criação ficcional e sua trajetória
temático-autobiográfica.
Embora recomponha a própria história individual, Mílton Dias compõe a
nossa própria história à medida que ele projeta situações universais,
permitindo-nos que façamos uma leitura catártica e empática, dado que o
cronista é um ser coletivo com o qual nos identificamos para vencermos as
limitações de dizer o mundo para elaborarmos as variantes de nossa
identidade.
1.5. O UNIVERSO CRONÍSTICO EM MÍLTON DIAS: A CONFLUÊNCIA DE
ESTILOS
conhecemos a importância da ambigüidade no universo da crônica,
que transita entre a poesia e o conto. Isso em Mílton Dias parece mais
agravante, pois, às vezes, ele polariza-se como escritor cronista-
fotógrafo/pintor, cronista-poeta, cronista-contista e cronista-ator, mas esse
caráter híbrido fortalece ainda mais a trajetória literária de Mílton Dias.
Do seu caráter de cronista-fotógrafo-pintor depreende-se forte vigor de
observação e sensibilidade. Milton Dias apropria-se de recursos imagéticos,
como o uso de sinestesias e jogo cromático, de modo a fazer autênticos e
vivos retratos falados do local, sobretudo os espaços percorridos por suas
andanças. Mas não são meros esboços ou desenhos. São imagens criadas
ou recriadas por olhos de mestre na arte de sentir e viver com alumbramentos
45
a natureza, o que dificilmente seria captado por olhos que apenas sabem
olhar e não enxergar como bem o disse o poeta Horácio Dídimo(1980) em um
título de seu poema: “uma nesga de céu é um céu inteiro para quem sabe
vislumbrar”.
Do mais profundo abismo do tempo, no silêncio negro da
madrugada vazia, uma voz clama solitária em tom de salmo,
que evolui lentamente no rumo de outrora. Vem duma praça
enorme, deserta, habitada de palmeiras em leques que
dialogam com o vento e do cochicho conspirativo sai um longo
assobio que fala com a morte. (DIAS, 1982: 75)
Além dessas imagens plásticas, o cronista revitaliza ainda mais a
linguagem através de analogias.
Tenho a impressão de que o céu de Nosso Senhor é no
modelo da Serra, com muita paz, todo verde, o clima brando,
o frio ameno, água saltando nas pedras, catando a mesma
cantiga que no entanto mude de nota quando encontra
folhagem – e pássaros bailarinos, trêfegos como crianças,
adejando de galho em galho. Papoulas sangrando nas cercas
e flores por toda parte, de toda cor, variedade, tamanho,
formato e perfume. Sobretudo a rainha delas, a rosa, que
nasceu no Cáucaso e veio até nós.(DIAS, 1985: 337)
O trabalho sensorial é cuidadoso, sugerindo que o cronista olha o
cenário e parte a pintá-lo ou a fotografá-lo habilmente para depois torná-lo um
retrato ou um cartão-postal.
É claro que esse papel tríade: cronista-fotógrafo-pintor não vem
dissociado de seu legado como contista, tampouco distancia-se da prosa
poética, marca tonificante de sua prosa.
Outras vezes é muito forte a postura de cronista-ator, sobretudo nos
textos referentes a viagens, principalmente as geográficas apresentadas no
terceiro capítulo.
Desse hibridismo, ressaltam seus legados contístico e poético, pois,
além de cronista, Mílton Dias, é exímio contador de histórias; tal tendência é
paixão de tempos vindos da infância quando menino em Massapé, na fazenda
de seu avô, ele ouvia as estórias dos vaqueiros, das cunhãs sobre contos de
fadas, tesouros enterrados, assombrações. E tudo isso foi avantajando o
46
acervo de sua memória no terreno do fantástico e do maravilhoso para depois
transbordar em suas obras.
O texto A que voltou, da obra A Capitoa, apresenta toques do universo
fantástico, pela atmosfera sombria, pesada e contornada de mistérios. Esse
clima é mais manifestado pelos recursos estilísticos: espécie de refrão que
fortalece o mistério: Do mais profundo abismo do tempo, no silêncio vazio de
madrugada vazia”, a circularidade textual, que é sustentada por esse refrão e
a escolha lexical que desencadeia toda essa atmosfera macabra: “profundo
abismo”, “silêncio negro”, “madrugada vazia”, “voz solitária”, “coruja rasga
pano”.
O próprio Mílton Dias mostrava-se conhecedor de sua ambivalência
literária, pois em alguns de seus livros vêm assinalados os gêneros crônicas e
estórias como subtítulos.
Essa consciência assumida engrandece a artesania de seus textos,
marcados por forte imagética ao criar suas personagens que vêm desenhadas
por um tonificante lirismo das mãos hábeis do grande artesão de tipos
humanos que foi Mílton Dias, sobretudo ao retratar as cunhãs, temática
importante de sua escrita folclórico-literária:
Caíram nos braços, é claro, sentiram imediatamente que
nasceram um para o outro, saíram a beber pelas barracas
naquela noite e, quando cambavam para a casa de
Guaracilda, forma ferozmente repreendidos pelo guarda que
se julgou autoridade desacatada diante das expansões de
carinho ofensivas ao decoro público.
Precisavam ver a expressão humilde com que ouviram a
reprimenda, medrosos de perder aquele primeiro encontro
amoroso: de fala pastosa, pediram desculpas, baixaram a
cabeça, guardaram uma distância digna, mas se conservaram
de mãos dadas. Quem sabe, a esta altura não era apenas
amor, era necessidade de apoio mútuo, porque ambos
trambecavam bastante. Como era de esperar, João Perna
Mole trambecava um pouco mais. (DIAS, 1966: 27- 28)
Essa pintura é sempre feita de maneira a envolver o leitor como bem o
disse Moreira Campos: “Lê-lo, é quase ouvir-lhe a palavra ao vivo, sentir-lhe o
gesto necessário, a parada, o efeito indispensável (AZEVEDO, 1985:101),
pois a vida histórica da obra literária não pode ser concebida sem a
participação ativa de seu destinatário
(JAUSS, 1994:169), uma vez que suas
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crônicas fazem amadurecer nossa visão sobre o mundo, sobre nós mesmos e
sobre nossa origem.
Resultante disso, surge o duplo sempre deflagrado: o regionalismo e o
telurismo empregados em muitos de seus textos.
Fui como quem cumpre um voto, como quem precisa de
bênção, como quem volvendo às nascentes se purifica, fui
retomar a paz primitiva, numa ingênua busca do irreversível.
Fui a Massapê, meu amado país particular, minha perdida
Pasárgada. Se me credes, tem quase tudo o que tem em
Pasárgada (atentai bem para o quase) e porque todos cantam
sua terra, também sou filho de Deus, ah, que vou cantar a
minha.
Tem uma silhueta de serra permanentemente à nossa
disposição: de manhã, de tarde ou de noite, está a nossa
espera, lá está para a nossa tranqüila mirada, variando de cor
entre o azul e o raro cinza, tirando mais sobre o verde, que se
faz agressivo, mas cintilante, à luz do sol violento. (DIAS,
1985:31)
Desse homem plantado em suas raízes, muitos desenhos sertanejos
ganharam forma: a seca, o inverno, os banhos de chuva, que para o sertanejo
ela é bênção, as cozinheiras, as cunhãs, entre os outros muitos tipos. Por isso
não nos causa surpresa constatar Mílton Dias citado no dicionário de Aurélio
Buarque com dois termos nordestinos: cepa e remendar:
Cepa (ê). [De cepo (ê).] S. f 1. Tronco de videira. 2. Videira. 3.
Parte da planta a que se cortou o caule e que permanece viva
no solo; touceira. 4. P. ext. Tronco de qualquer linhagem ou
família; cipó: "Nós todos, brasileiros da velha c e p a, não
compreendemos a constelação familIar sem a participação
constante do que no sertão se chama cunhã" (Mílton Dias, As
Cunhãs. p. 6). S. Raça de uma espécie, sobretudo de
microrganismos. 6. Bot. Base subterrânea de um tronco de
planta perene, ligada diretamente à raiz; cepo. [PI: cepas (e).
Cf. cepa e pl. cepas.] " (FERREIRA, 1980:306).
Remendar. [De re- + emendar.] V. t. d. 1. Deitar remendos
em: "Minha mãe r e me n d a n do, costurando o que a nossa
inquietação descosia" (Mílton Dias, As Cunhãs. p. 48);
"sentada na sua cadeirinha de palha, r e m e n da, na paz do
Senhor, desbotado avental da ganga azul" (Antero de
Figueiredo, Toledo. p. 128). 2. Retificar, consertar, emendar: r
e m e n d a r os erros de um escrito. 3. Mesclar (a linguagem)
de estrangeirismos ou termos impróprios. Os ignorantes r e
m e n d a m o vocabulário. (FERREIRA, 1980:1213).
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Para o estudioso Thomas Strater, Mílton Dias enquadra-se no momento
neo-realista da Literatura Brasileira ao lado de Raquel de Queiroz, Graciliano
Ramos, José Lins do Rego, pelo retrato da nordestinidade, mas suas raízes
como cronista estão também deflagradas pelas leituras de franceses, como o
próprio Mílton Dias confirma:
Sou um homem do sertão carregado de estórias e, graças a
Deus, tenho tido oportunidade de viajar. É possível que
minhas incursões pela literatura francesa, que sempre
freqüentei, parte por gosto, parte por imposição profissional,
tenham tido alguma força. Na verdade as iminências são
várias e muitas. Afinal, o que conta mesmo é este patrimônio
de lembranças, o que sobrou do visto, do ouvido, do lido, do
vivido. (DIAS, 1985:282)
Devido à análise pormenorizada do estilo dos contistas do século XIX
Alphonse Daudet e Guy de Maupassant na obra Passeio no conto francês,
podemos perceber que os dois devem ter influenciado diretamente a escritura
de Mílton Dias.
A respeito de Daudet, Mílton Dias comentou:
[...] com tanta realidade cria seus personagens, com tanta
força e com tão hábil discrição que, terminada a leitura de
cada um dos seus contos, sente-se a impressão de ter
convivido com eles e que o autor conseguiu penetrar-lhes a
alma. Não pinta retrato, nem levanta estátua, nem fabrica
bonecos - faz gente, de corpo sangue e alma, traz para a
literatura a pessoa viva, movimentando-se com verdade num
cenário real a que nada falta e a que consegue imprimir
sempre o tom bucólico, o adorável, ameno clima do pequeno
mundo camponês (DIAS, 1982: 48).
Basicamente as mesmas palavras foram usadas por alguns críticos
ao comentar sobre a produção literária de Mílton Dias, além da semelhança
direta dos dois contistas acerca do espaço camponês.
O conto de Daudet mais apreciado por Mílton Dias é A cabra de
Monsieur Séguin:
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O velho conflito de gerações se manifesta com
obstinada determinação de ambos os lados. A cabra aceita a
possibilidade de morrer, mas não renuncia ao seu desejo de
liberdade: tem consciência de que se arrisca a perder a vida,
mas morrerá lutando. Mais vale um dia de liberdade total à
vida inteira presa aos limites estreitos do quintal onde era bem
tratada, tinha alimentação copiosa e adequada, obedecendo o
horário certo. Mas lhe faltava o mundo: queria a conquista da
montanha e do mundo, a vida em toda a sua plenitude. E se
perdeu. (DIAS, 1982b: 49-50)
Semelhante situação ocorre no conto de Mílton Dias intitulado A rede:
Do alto daquela rede, Seu Otávio acabou o casamento
de um dos filhos, homem feito, independente, dono e senhor
de sua vida, que navegava pelos vinte e tantos anos e andava
apaixonado por mulher bonita, moça solteira e jovem. Seu
Otávio chamou o filho, expôs as conclusões a que chegara,
fazendo pesquisas em torno da família, ponderou, invocou a
voz da experiência, seus anos de vida, seus exemplos, somou
argumentos, decretou:
- Com aquela, não!
O moço vendeu a casa de comércio, a fazendola que
tinha, desfez o compromisso e se abalou mundo afora, com
algum dinheiro e muita “bênção", com a alma carregada de
paixão e de sofrimento, levando dentro de si a consciência
tranqüila da obediência aos mandamentos de Deus e às
ordens do pai. Atacou-se para o sul, cortou amarras
definitivamente, nunca mais voltou. (DIAS, 1960: 19-20)
No entanto, parece que é Maupassant o mais responsável pela trilha
seguida por Mílton Dias ao produzir sua obra literária: o pessimismo
indisfarçável, a sensibilidade com que trata os desfavorecidos socialmente, os
infelizes, o vigor da prosa realista, em contrapartida à narrativa quase
piedosa, revelaram um Mílton Dias discípulo de Maupassant:
[...] metropolitanos e camponeses, comerciantes espertos que
alternam com provincianos cheios de ingenuidade e de
contraditória malícia, prostitutas e honradas senhoras,
avarentos e generosos, meninas de programa e moças
virtuosas, juntos, numa grande ronda como uma síntese do
mundo. estão os prepotentes e os humildes, (com muita
freqüência, os humildes), os tristes, os injustiçados, os
incompreendidos, os infelizes. (DIAS, 1982: 52-3)
Essas palavras sobre Maupassant ficam mais tonificadas ao avaliarmos
Bola de sebo do escritor francês que é o conto predileto de Mílton Dias:
50
Ao tempo da guerra com os prussianos, uma carruagem
se desloca de Rouen para o Havre, conduzindo homens e
mulheres de várias classes sociais: duas religiosas, um conde
e uma condessa, um próspero negociante de vinhos, um casal
de alta burguesia e uma prostituta chamada Elisabeth
Rousset, conhecida por "Bola de Sebo", que todos tratam com
absoluto desprezo, exceto Cornudet, republicano exaltado e
democrata sincero. Quando, a um certo momento da viagem,
a fome ataca, e a "Bola de Sebo" tira as provisões que trazia,
todos esquecem o desprezo com que a tratavam - e aceitam
participar do pequeno abastecimento que a mulher fizera.
Numa parada, um oficial prussiano se toma de simpatia
por "Bola de Sebo" e estabelece uma condição:
continuariam a viagem, se ela concordasse em ir para a cama
com ele. Mas o contato com um militar inimigo a apavora e
repugna e "Bola de Sebo" bate o pé, resiste, se opõe a
atendê-lo.
Começam então as demarches por parte de todos os
passageiros, (que queriam salvar sua viagem) para que "Bola
de Sebo" aceite a imposição. Ela continua resistindo e a
exigência permanece categórica. E os passageiros todos, que
antes a desprezavam, se multiplicaram em atenções e
pedidos, para que ela os livrasse daquela situação
terrivelmente vexatória.
Todos os argumentos foram usados, desde a adulação
mais humilde, mais baixa, até recurso da ameaça. E ‘Boule de
Suif’, finalmente vencida, concorda. E quando a diligência
retoma seu caminho o tratamento mudou completamente,
voltaram todos a tratar a chamada “mulher pública”, com
desprezo maior do que o anterior. (DIAS, 1982:52-53)
A esse manancial, Mílton Dias recorreu em suas obras, com relevância
em As cunhãs e As outras cunhãs, pois o centro das narrativas é a mulher
desfavorecida, sobretudo socialmente:
Chamava-se Maria Fortuna e era mendiga, mas
provavelmente nunca se deu conta daquela diferença entre o
nome que carregava e a sua própria sorte, aceitava com
suave resignação mas sem virtude aquela sina de comer o
pão-de-cada-dia, esmolando às portas das casas. E era
silenciosa, estimada, quase alegre, estimulada por aquela
pobreza mental maior do que a outra. (DIAS, 1977: 88)
Em todas as outras obras, a mulher é presença marcante. Segundo o
estudioso Thomas Strater:
O engajamento a favor dos desfavorecidos da sociedade,
sobretudo das mulheres, pode ser parcialmente explicado
51
através de uma experiência autobiográfica. Mílton Dias
cresceu sem pai. Sua mãe Iracema ficou com a difícil tarefa
de criar sozinha os cinco filhos. (STRATER, 1990:146)
Talvez por essas razões, lton Dias, mesmo delineando as mulheres
realisticamente em suas carências e/ou fraquezas, apieda-se delas quase na
defesa/compreensão de suas vicissitudes.
Observamos exemplos de mulheres marcadas pelas circunstâncias
sociais presentes em algumas obras de Mílton Dias, como em A Capitoa:
Esta Dasdores era completamente despreparada, feito
mecânico que vai consertar carro e não leva a ferramenta. E
possuída dum analfabetismo resistente a todas as tentativas
de cura e duma burrice que comove; uma menina grande,
criada em fazenda, incapaz ao telefone e um desastre total
quando vai atender alguém à porta. Troca os nomes, trunca
os recados, faz um verdadeiro jogo de disparate - e um deles
saiu tão violento que chegou a ferir o pudor auditivo da patroa
- e se não o repito aqui é porque se trata mesmo de trocadilho
impublicável. Depressa se apaixonou pelo telefone, se
precipita feito uma doida quando lhe ouve a campainha, quer
ser a primeira a atender, entra em órbita, se desgoverna, não
entende nada, mas insiste. Da primeira vez, quando ouviu a
clássica pergunta - de onde fala? -respondeu simplesmente: -
Daqui debaixo da escada. (DIAS, 1977: 57).
Além de todas essas peculiaridades da escritura de Mílton Dias como a
de exímio contador de histórias, é imprescindível ressaltarmos o seu
indisfarçável legado poético. Diríamos mesmo que seu lirismo, arraigado de
sensibilidade, é a iluminura para todos os seus textos.
Sua prosa é tão marcadamente poética que flagramos vários
momentos de musicalidade, de um lirismo transbordante e associado a vários
recursos poéticos: metáfora, metonímia, alegorias que são mais que tudo isso,
pois criam uma supra-realidade, revelando interpretações, atitudes que
recuperam momentos do cronista - homem ou menino.
A exemplo disso, a crônica A mala é uma retratação em que se
misturam a alegria e a tristeza; alegria de desarrumá-la ao chegar de férias a
Massapé e tristeza ao arrumá-la para retornar aos estudos em Fortaleza. A
própria Massapé também alegoriza a Pasárgada perdida do cronista.
Segundo Sânzio de Azevedo, há várias passagens de crônicas de
Mílton Dias marcadas por clima poético em que a reiteração de frases confere
52
ao texto uma atmosfera de encantamento, a exemplo disso temos a crônica
Ricordami do livro A Capitoa:
LEMBRA-TE de mim quando ao primeiro anúncio do dia, na
hora silenciosa do alvorecer, as árvores paradas, o céu sem
nuvem, o tempo sem cor, uma ave solitária, voltando da noite,
cortar o teu caminho. (DIAS,1982: 38
)
A expressão de abertura “Lembra-te de mim” funciona como anáfora
em nove dos dez parágrafos da crônica, tendo o último leve quebra para
contemplar o tom quase declamatório “Ó lembra-te de mim”. Ainda mais
poetizante, segundo o referido estudioso, merece focalização o texto O
menino antigo e o Natalque traz os dois últimos parágrafos em redondilha
maior com trabalho rimático:
“reproduzo o trecho dessa crônica, porém perdoe-me o
autor esta profanação -, barras para indicar os seguimentos
métricos”
Ao menino que à chegada/ foi salvado com alegria,/ resta
um canto de roda/ em tom de melancolia./ Foi-se morrendo o
menino/ com um canto no coração,/ ciranda, noites de
prenda,/ Maria me tua mão,/ quero uma de vossas filhas,/
carneirinho, carneirão. (AZEVEDO, 1976: 100)
Outro recurso poético utilizado pelo cronista é a isometria observada
pelo poeta Caetano Ximenes Aragão:
Era assim Mílton Dias, um poeta que escondia a sua própria
poesia. A crônica Sino, meu irmão, de Viagem no Arco-íris
(1974), é um longo poema em redondilha menor, com
exceção de poucos trechos.
Vejamos o início:
pelo que passou
pela nossa infância
pela juventude
pelo amor perdido
pelo amor não vindo
pelo pai que é morto
pela eterna noiva
pelo falso amigo
pelos que partiram
sem se despedir
pelos que não voltam
53
pelos que se foram
para o grande mundo
pelo antigo outrora
pelas folhas mortas
por neves de antanho
pela verde aurora
que o sol, seu amante
cedo apascentou
pelas agonias
pelos sofrimentos
pelo velho corpo
pela alma enferma
que ninguém
pela noite amarga
pela madrugada
que a manhã levou
Quando eu for embora
sino, meu irmão
quero badaladas
em tom de oração
quero cantochão
bem triste e profundo
recordando ao mundo
a minha solidão. (Jornal de Cultura,1983: 10)
Tonificando ainda mais a sua prosa poética, Mílton Dias a recheia de
recorrentes reflexões filosóficas, de um profundo questionamento existencial
que, no dizer do poeta cearense Francisco Carvalho, são palavras
repassadas de serenidade búdica”:
Eu sei em que espantoso vazio caímos quando um dos elos
do nosso amor se quebra, esquecemos que o elo partido não
caiu em vão, foi participar de outra cadeia, em que sua
presença estava prevista, era esperada. A mágoa e o
pranto não encurtam nem alongam a distância que nos
separa. (DIAS, 1982:108.)
Diante de todo esse cenário artístico de qualidade, como não perceber
em Mílton Dias um cronista-ator daqueles que, por agudeza de sensibilidade e
de senso de captação do humano dizível e indizível soube transformar sua
obra em auto-maturidade, ou melhor dizendo, ao escrever também participa
do grande espetáculo que é a vida? Como não percebê-lo um narrador
onipresente em muitos de seus textos?
Discutir a autoria de suas obras é constatar que elas escrevem o
próprio Mílton Dias. As palavras do próprio cronista são uma prova disso:
54
E por mais que se previna contra a auto-indiscrição, por mais
que se policie, se reserve, o cronista vai se projetando no que
escreve e acaba se contando, confessando os sentimentos
mais prudentemente guardados, soltando os pedaços desta
alma envelhecente. (DIAS, 1985: 286-7)
1.6. A VOZ DO CRONISTA NO GRUPO CLÃ
Segundo Celina Fontenele Garcia:
A atualidade literária do Ceará se caracteriza
fundamentalmente no movimento da revista Clã: toda e
qualquer atividade cultural que em nosso tempo se processa
aqui, tem a iniciativa, a cooperação ou a participação dos
escritores deste grupo. (GARCIA, 1997: 155 -156)
Assim, através desse valioso órgão difusor, tomamos conhecimento dos
homens de letras da geração de 45 e de sua produção literária: romance,
conto, teatro, novela, crônica...
Para Vera Moraes, em seu livro Clã: trajetórias do Modernismo em
revista, Mílton Dias foi o cronista maior do grupo Clã. E, se abalizarmos as
características essenciais da crônica moderna como gênero literário: narrativa
leve, curta, ágil, despretensiosa, ambígua (conto x poesia), a captação de
flagrante do cotidiano, constataremos que o referido escritor conseguiu
realizar este gênero com mestria. Mais salutar ainda o seu legado como
cronista é o fato de suas temáticas universalizantes conseguirem burlar aquilo
que a crônica costuma propagar: a efemeridade. Somos, por assim dizer,
espécie de leitores cúmplices/confidentes, pois as temáticas abordadas, tais
como, a solidão, as perdas, as decepções, as reflexões... são vivenciadas por
todos nós. Portanto, o lirismo reflexivo do cronista Mílton Dias, buscando a
compreensão do homem, fortalece a proximidade dos seus leitores através de
seu contrato de leitura:
55
Entre dois rios
4
joguei meu coração desde menino. Entre dois
rios fiz minha seara de sonhos, semeei minhas ilusões, com
ternura permanente. Entre dois rios vivi infância,
adolescência, juventude e ainda vivo agora, na maturidade,
amando a ambos com uma fidelidade que não cansa. Entre
dois rios plantei muita esperança, colhi muita mágoa; plantei
amor, colhi saudade, quando não desengano; plantei bem-
querer, colhi muitas vezes incompreensão e esquecimento.
Entre dois rios tentei poesia, cometi prosa, ousei livros, contraí
amadas, fiz dívidas de simpatia e de ódio e tantas despedidas
sofri e tantos reencontros gozei, que me ocorria a imagem
poética do marujo, cujas “mãos mais longas de acenar, ao
hábito do adeus se modelaram”. Entre dois rios me fiz gente,
fui aceito e rejeitado, amado e desamado, fui senhor, fui
servo, fui doutor, funcionário público, aluno, professor,
jornalista; no mar fui afogado, da morte fui devolvido,
freqüentei tantas gamas deste vasto mundo. (DIAS, 1985:
121).
Da convivência com o Grupo Clã, destacamos os textos, desde o
momento de estréia ao último trabalho publicado nas Revistas Clã: Quatro
crônicas, 16; Sobre os sonhos, 17; A mina, 18; Passarinha, 19; Do
amor de João e Guaracilda, 20; O colecionador de crepúsculos, 20; Da
não-barriga de Jacira, n° 21; O b, 23; Eu, pecador da literatura, 24;
Entre dois rios, 26; Cinco estórias de cunhãs, 27; Da importância e
oportunidade de um certo pé de limão, 28.
Outro momento importante de Mílton Dias no Clã foi marcado pela
revista de número 27, um precioso documentário, cujo título foi bem
adequado: Esse tal de grupo Clã. É um conjunto de depoimentos dos
integrantes em que estes analisam a importância do grupo e da revista para o
contexto literário e cultural do Ceará. Desse número, destacamos apenas
alguns trechos da fala do cronista Mílton Dias.
Havia o permanente gosto da discussão, comentavam-se os
livros novos que devorávamos vorazmente, possuídos
daquele desejo muito próprio dos moços de aprender tudo
duma vez, de absorver rapidamente a literatura mundial.
Tinha-se urgência da cultura e era pequeno o mundo para as
nossas aspirações. (...) Foi assim que vi nascer o Clube de
Literatura e Arte abreviado depois para Clã, sigla que continua
de pé, sobretudo através da revista, que não perdeu a sua
continuidade. E participei do Congresso de Poesia, que deu
tanto o que falar. (Revista Clã, 1981:18)
4
Os rios são o Acaraú, referente à infância do cronista em Massapé, e o outro é o Sena,
referente aos momentos de Mílton Dias em Paris, França.
56
Deter-nos-emos mais na análise da revista de número 29, pois ela é
quase toda uma homenagem póstuma a Mílton Dias: Este número da revista
CLÃ é dedicado à memória de Mílton Dias, integrante do seu corpo redacional
e inesperadamente levado pela morte em 22 de março de 1983.”
Embora seja de teor póstumo, as letras da revista não são pretas, mas
verdes para reforçar o título da homenagem Mílton não morreu. É a última
revista que consegue publicação graças à Imprensa Universitária da UFC.
Dado o problema da falta de recursos financeiros, a homenagem ao cronista
pôde acontecer cinco anos após o seu falecimento. São depoimentos de
colegas do grupo e de amigos do cronista: Fran Martins, Artur Eduardo
Benevides, Moreira Campos, Antônio Girão Barroso, Cláudio Martins, Lúcia
Fernandes Martins, Otacílio Colares, Mozart Soriano Aderaldo, Eduardo
Campos, Antônio Martins Filho, Olga Stela e Jairo Martins Bastos.
Vejamos alguns trechos que trazem informações importantes sobre o
autor e breves comentários a respeito deles:
Depois do editorial, há uma espécie de epígrafe, escrita por Lúcia
Fernandes Martins, integrante do Clã, que abrirá e emoldurará os outros
depoimentos:
NÃO MORREU
Os meninos, desde pequenos, chamavam-no de Tio
Mílton. E durante toda a vida ele conservou aquele ar
bonachão de Tio, sempre disposto a confraternizar com os
sobrinhos, como se tivesse a mesma idade deles.
Quando lhes dei a notícia dolorosa os meninos se
revoltaram:
- Tio Mílton? Morreu? Tio Mílton não pode morrer!
Os meninos tinham razão: Mílton não morreu.
Outra homenagem é um poema de Artur Eduardo Benevides,
Serenata para Mílton Dias, composto de quatro sonetos que focalizam
características do homem e escritor Mílton Dias. Eis dois quartetos
significativos:
Percebo que conservas a missão
De colher o mistério das estrelas
Em teus búzios de prata para tê-las
Como temas eternos da canção. (Revista Clã, 1988: 12)
57
És trompete de deus varando as horas,
Com músicas que emergem de teu sono.
Nas províncias do amor és um colono
Recolhendo os crepúsculos que adoras (Revista Clã, 1988:
13)
Também valiosa homenagem é um soneto Mílton Dias - meu irmão, de
Cláudio Martins, colaborador do livro do cronista Viagem no arco-íris (1974)
que focaliza algumas obras do autor: Entre a boca da noite e a madrugada
(1971); Sete-estrelo (obra de estréia - 1960); As cunhãs (1966); Cartas sem
respostas (1974):
Entre a boca da noite e a madrugada,
em doce mutirão, só de bondade,
lograste transmudar a raridade
de alma Sete-Estrelo em alvorada.
Tua Cunhã, qual filha muito amada,
vai te fazer presente na saudade
dos que sofremos a fatalidade
de tua ausência, sempre pranteada.
Mas lendo as Cartas ternas que mandaste
e quantos, sem reservas, muito amaste,
entendo, enfim, por que daqui fugiste.
Vivo e constante na melhor lembrança,
foste levar um sopro de esperança
aos que partiram deste mundo triste. (Revista Clã, 1988: 20)
Outro texto-homenagem que vale ser ressaltado é o de Olga Stela,
amiga estimada do cronista, que mereceu de Mílton Dias textos, comentários,
sobretudo acerca do valor da amizade.
Portanto é de esperar que Olga Stela escrevesse um texto permeado
de emoção, cujo título Balada para o encantado nos faz lembrar de
Guimarães Rosa em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras:
As pessoas não morrem, ficam encantadas”.
Vejamos o poema de Olga Stela:
Na "Ilha do Homem Só"
No barco da "Capitoa"
Nas velas todas do mar
Lá está ele
58
encantado
Nas cores do sol poente
Em cada boca-da-noite
Na brisa do alvorecer
Lá está ele
encantado
Na várzea do "Sete-Estrelo"
No disco da lua cheia
No bojo da madrugada
Lá está ele
encantado
Na "Viaqem do Arco-iris"
Na ciranda das "Cunhãs"
Nas ruas de Fortaleza
Lá está ele
encantado
No compasso da viola
Nas noites de serenata
em cada gole de vinho
Lá está ele
encantado
Nos pagos do Massapê
Na neblina que esvoaça
e abraça a Bica do Ipu
Lá está ele
encantado
Nas ondas verdes do mar
de sua terra natal,
nas águas do Rio Sena
Lá está ele
Encantado
Nas badaladas do sino ,
no toque da Ave-Maria
na suavidade da tarde
Lá está ele
encantado
Embaixo de um pé de jambo
onde a relva é sempre verde
Na morada mais singela
Lá está ele
encantado
Na saudade que não passa
Em cada instante que passa
Na memória mais constante
Continua ele
encantando.
59
Continuará encantando
como a estrela que morre
e seu brilho no firmamento
permanece
encantando.[grifo nosso]. (Revista Clã, 1988: 34-5)
Através desse poema, percebemos a trajetória de Mílton Dias desde as
origens vindas de Ipu e Massapé ao homem-escritor: suas temáticas
Fortaleza, mar, bem como suas obras A Ilha do Homem , A Capitoa etc.
Portanto, com as palavras de sua amiga, constatamos informações
biobliográficas do cronista, e o que é mais importante: através de tudo que ele
fez e representou para as letras cearenses jamais será esquecido, mesmo
estando em sua última morada, no Parque da Paz, à sombra de um de
jambo.
60
CAPÍTULO 2
MÍLTON DIAS: O MISSIVISTA SOLITÁRIO E A (RE)VISITAÇÃO À INFÂNCIA
61
[Solidão] é a fecundante, aquela que se deve exercer com
sabedoria, a que ensina a refletir, a usar a cabeça e as
emoções em favor próprio ou alheio, a doce solidão intocada
propriamente dita, física, moral, espiritual, professora dos
sábios e dos santos, a companheira dos filósofos, inspiradora
dos poetas, a mestra dos profetas, a mãe dos gênios, a
respeitável Senhora Solidão. Que pode ser quando é
imposta e repudiada e pode trazer grandeza quando é
solicitada, cultivada, desejada, amada. A bendita solidão dos
que sabem ser sós. (Mílton Dias)
Se o fim da obra de arte é criar vida, dar ao leitor uma
emoção realíssima de vida, de coisa intensa e ambiente,
temos que chegar à conclusão que a carta substanciosa vale
tanto como arte quanto um poema. (Manuel Bandeira)
62
2.1. O PERCURSO DA EPISTOLOGRAFIA: O CONTEXTO HISTÓRICO E
LITERÁRIO
Não se sabe ao certo quando a carta foi inventada, mas é inegável seu
valor através das épocas, salvo talvez com a ameaça do telefone e mais
recentemente do correio eletrônico, do utilizadíssimo e-mail, que tende à
quase obsessiva concisão. Talvez para comunicar tudo em tão escasso
tempo, o emissor se previna para conseguir dizer vários assuntos quase
concomitantemente a um ou a vários interlocutores.
Mas não foi assim a vigência das epístolas em tempos remotos.
A carta evoluiu de sua função pragmática para a relevante dimensão
reflexiva e estética quando foi adotada por escritores literários ou pensadores
visando-a como recurso estilístico narrativo ou mesmo como suporte para
reflexão ideológica.
Desde o contexto bíblico, com relevância ao apóstolo São Paulo cujas
epístolas são um importante paradigma a seu itinerário religioso, a
epistolografia foi ganhando mais espaço entre os filósofos, sobretudo os
gregos (Epicuro, Isócrates e Platão) que a usavam como recurso de ensino;
depois os textos missivistas foram migrando para outro terreno que
circunscrevia os indivíduos com posições sociais significativas, voltadas para
interesses temáticos comunitários, inaugurando, assim, a prática das cartas
abertas.
Os primeiros teóricos da literatura epistolar foram o orador ateniense
Demétrio de Faleno, o sofista Filostrato e o neoplatônico Proclo, reproduzindo
os três em suas respectivas obras De elocutione, Typi epistolares e De forma
epistolari modelos que ensinavam a desenvolver temáticas variadas: amizade,
repreensão, conselho, recomendação entre outros, mas dentro de regras e
princípios pré-estabelecidos.
Foi, entretanto, com o filósofo romano Cícero que a epistolografia
ganhou notoriedade, dado seu caráter “modelar”, por isso durante a época
moderna várias foram as reedições latinas e “vulgares” de suas missivas.
Para Tiago dos Reis Miranda, na obra Prezado senhor, Prezada
senhora, a carta, enquanto gênero literário, conheceu notável impulso na
63
época do Renascimento que o advento da imprensa facilitou o acesso dos
letrados a antigos modelos estilísticos.
Dessa forma, ela foi ganhando tradição entre filósofos e ficcionistas,
alcançando, sobretudo no século XVIII, destacada importância como escrita
ensaística e ficcional na Europa, com relevo na França e na Inglaterra. A
exemplo disso, temos As Cartas Persas, de Montesquieu; A nova Heloísa, de
Jean Jacques Rousseau e As ligações perigosas, de Choderlos de Laclos.
Em Portugal, a carta foi deslocando-se para o próprio centro da
literatura, destacando nomes como de Miranda, Antônio Vieira, Eça de
Queirós, Fernando Pessoa.
Durante o século XIX, as correspondências ganham maior espaço, pois
servem como recurso narrativo em romances como Amor de perdição, de
Camilo Castelo Branco e A correspondência de Fradique Mendes, de Eça de
Queirós entre outros.
Nessa trajetória de muitos séculos, a carta foi ganhando mais trunfos
que, mostrando seu caráter de gênero ambíguo entre história e literatura,
[...] é um meio de comunicar por escrito com o semelhante.
Compartilhado por todos os homens, quer sejam ou não
escritores, corresponde a uma necessidade profunda do ser
humano. Communicare não implica apenas uma intenção
noticiosa: significa ainda "pôr em comum", "comungar".
Escreve-se, pois, ou para não estar só, ou para não deixar só.
Lição de fraternidade, em que as palavras substituem os atos
ou os gestos, vale no plano afetivo como no plano espiritual, e
participa, embrionária ou pujantemente, do mecanismo íntimo
da literatura dádiva generosa e apelo desesperado, ao
mesmo tempo. (ROCHA, 1985: 13)
2.2. A ESCRITA MISSIVISTA NO CONTEXTO BRASILEIRO
No Brasil seiscentista, a escrita missivista se projeta com a carta de
Pero Vaz de Caminha ao então El-Rei Dom Manuel que, mesmo com
prioridade histórica, o efeito cronístico sobre o achamento da nova terra,
64
galga prenúncios literários, pois emprega linguagem conotativa e descrição
entusiástica.
[...] o melhor fruto que dela se pode tirar parece-me que será
salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que
Vossa Alteza em ela deve lançar. E que não houvesse mais
do que ter Vossa Alteza aqui esta pousada para essa
navegação de Calicute bastava. Quanto mais, disposição para
se nela cumprir e fazer o que Vossa Alteza tanto deseja, a
saber, acrescentamento da nossa fé! (CORTESÃO, 1943:
240)
Na época árcade, constatamos importância para o gênero epistolar
com os textos, então, anônimos, denominados Cartas Chilenas.
As Cartas Chilenas o 13 textos escritos por Critilo relatando
desmandos, atos corruptos, nepotismo, abusos de poder e tantos outros erros
administrativos, jurídicos e morais de "Fanfarrão Minésio" (na verdade, o
governador Luís Cunha Meneses) no governo do "Chile" (a cidade de Vila
Rica).
Escritos em forma poética com uma linguagem satírica e agressiva,
circularam em Vila Rica pouco antes da Inconfidência Mineira. Esses poemas
foram desenvolvidos em versos decassílabos com a estrutura de uma carta,
assinada por Critilo e endereçada a Doroteu, residente em Madri.
A autoria dessas cartas foi discutida por muito tempo. Entretanto, após
os estudos de Afonso Arinos e Rodrigues Lapa, a dúvida acabou: Critilo é
mesmo Tomás Antônio Gonzaga, e Doroteu, Cláudio Manuel da Costa.
as correspondências utilizadas no contexto brasileiro do século XIX,
entretanto, ganharam projeção, sobretudo na pena de José de Alencar que
reconhece o valor de uma missiva para a humanidade:
Uma carta!
De todas as espécies de escritos que eu conheço, a
carta é sem dúvida a mais interessante, a mais curiosa, e
sobretudo a mais necessária.
A carta é um livro numa folha de papel, é uma história
em algumas linhas, um poema sem cantos; pode ser um
testamento, uma confidência, uma entrevista, um desafio,
uma boa notícia, ou o anúncio de uma boa desgraça.
É um pássaro, uma ave de arribação, que voa a longes
terras, aos climas mais remotos para levar ao amigo ausente
as palavras e os pensamentos da amizade ou do amor.
65
É uma espécie de fio elétrico que comunica através do
espaço e da distância duas almas separadas por uma
infinidade de léguas, dois homens que muitas vezes nunca se
viram, e que entretanto se conhecem.
Quando deram este nome a esse pequeno
paralelogramo de papel, que num minuto pode devorar uma
fortuna colossal, foi por uma analogia que talvez tenha
escapado a muita gente.
Como a carta do baralho, a carta escrita produz as
mesmas emoções, o mesmo delírio; também ela tem seus
lances de fortuna ou de azar no jogo da vida.
Se uma dama, ou um ás, ou um valete que se volta
sobre o tapete verde, pode arruinar-vos ou enriquecer-vos, da
mesma maneira neste lansquenet do mundo a que se chama
a existência, uma carta que se escreve pode trazer-vos o
sorriso da ventura ou a lágrima do desespero.
A única diferença é que o baralho tem quarenta cartas, e
que a vida tem mil alternativas. No mais a semelhança é
perfeita, e todas as cartas deste mundo são uma e a mesma
coisa. (FARIA, 2003: 191-192)
A expressão epistolar em Alencar alcança outras fronteiras literárias
mais significativas que sua obra ficcional focalizada nos perfis de mulher,
isto é, seus romances urbanos Lucíola (1862), Diva (1864) e Senhora (1875)
vêm pontilhados de cartas, sem esquecermos mais diretamente a primeira,
que é um romance missivista.
Para cada um dos três romances, existe um autor-primeiro que conta
uma história na forma de carta ou manuscrito a um interlocutor particular,
despertando nos leitores maior interesse na narrativa. Assim, através de tal
artifício, tenta-se criar um disfarce de que o romance não é uma criação
ficcional, mas uma verdade.
Com esse jogo metalingüístico, apresentado nas notas prefaciais,
explica-se a gênese das referidas narrativas como uma espécie de
(pre)par(ação) do leitor sobre o conteúdo, pois essas informações também
compõem as próprias obras.
Em Lucíola, o narrador-personagem, Paulo, envia a uma velha
senhora GM as cartas que ela reúne em um livro cujo prefácio de sua autoria
intitula-se “AO AUTOR”:
Portanto, GM, espécie de pseudônimo de Alencar, é leitora,
confidente, personagem externa, ao mesmo tempo editora e espécie de
advogada do protagonista Paulo. O distanciamento do escritor deve-se ao
66
fato de o perfil de mulher prostituta causar impacto aos moldes da época, em
que a virgindade era um rótulo obrigatório e, para Alencar, um talismã.
em Diva, Paulo envia uma carta (o prefácio) à mesma senhora com
o título “A G.M”, apresentando nesse paratexto outra correspondência, a do
protagonista, Dr. Augusto Amaral, e alguns esclarecimentos que retomam a
obra Lucíola.
Em Senhora, Alencar parece fechar um círculo de confidências.
Entretanto, as scaras perdem ainda mais o espaço para o real literário
porque o autor, além de assinar o prefácio, assume-se também editor,
portanto retoma a mesma postura da senhora GM, seu disfarce. Faz um
contraponto com as duas outras obras dos perfis femininos, adota a 3ª pessoa
do discurso, o que torna a gênese desta última obra mais direta.
Nos três manuscritos prefaciais, focalizam-se a retratação dos perfis de
mulher, a autocrítica como ataque indireto aos críticos, a força metalingüística
da gênese das obras e o dialogismo entre elas.
Ainda a despeito desse artifício recorrente em Alencar, as cartas
funcionam como uma espécie de anticlímax das obras, que se firmam
como um retrato-testemunho revelador na escrita alencariana e parecem
mesmo expressar mais que o texto apresenta. Portanto, é um processo
metalingüístico, um veículo elucidativo sobre a gênese das obras, permitindo
um circuito de confidências (autor/leitores) e um documento, dada a
abordagem do pensamento social de uma época maniqueísta. E a
coexistência desses aspectos parece apontar o “alter ego” literário de
Alencar, como uma espécie de seu itinerário romanesco.
Para tal, as correspondências pontuam esse jogo ficcional em que o
leitor vai-se dando conta do modo como Alencar se sente diante da recepção
de seus romances pelos leitores comuns e pelos críticos. Com os primeiros,
de maneira harmoniosa; com os últimos, de forma conturbada.
2.3. CARTAS SEM RESPOSTA: UNIVERSO EPISTOLAR EM MILTON
DIAS
Mílton Dias, assim como Alencar, é um bom exemplo de discussão
sobre a utilização de cartas em sua produção literária. De maneira consciente,
67
ele atualiza os leitores acerca de sua escolha: Prefiro dizer que minhas
crônicas estão no plano da carta-estória (na maioria). (DIAS, 1985: 281)
Mesmo que alguns escritores do século XIX tenham obtido
expressividade e importância epistolares, tais como Alencar e Machado, para
alguns críticos a relevância missivista aconteceu de fato na literatura
modernista, pois com essa estética houve o enriquecimento do gênero e a
ampliação de suas possibilidades estruturais e poéticas. Tais modificações
foram geradas devido ao papel do destinatário, à época e ao assunto;
impregnando os textos de propósitos comunicativos ltiplos: criticar,
desabafar, protestar, confidenciar entre outros, a depender da(s) temática(s) e
da audiência, direta ou indireta.
Não é à-toa que nas últimas décadas do século XX cresceu o estudo
sobre epistolografia, sobretudo porque os leitores, espécie de voyeur, passam
a interessar-se pelo gênero muito recorrente que é a escrita de si como
legado biográfico ou autobiográfico. Órgãos legitimadores, como o mercado
editorial, as academias, as universidades também vêem com grande interesse
tal gênero, pois, através da escrita epistolar, pode-se expressar o acesso a
experiências compartilhadas, ao universo dos afetos e das emoções, assim
como aos climas de época e a diferentes formas de intercâmbio de idéias e
debate intelectual. (GALVÃO,2000: orelha)
há uma grandiloqüente leitura dos missivistas modernistas: Manuel
Bandeira, Monteiro Lobato, Murilo Mendes, Oswald de Andrade, Mário de
Andrade, Pedro Nava entre outros igualmente importantes. Entretanto, um
grande destaque foi dado à troca de cartas entre Carlos Drummond de
Andrade e Mário de Andrade durante cerca de vinte anos e através delas
muito se vivencia o movimento modernista, o papel político-literário e
intelectual desses escritores, bem como a importância do mestre escritor de
Macunaíma na produção literária drummondiana.
Apesar de estudos valiosos como o realizado entre esses dois
modernistas, cresce o número de leitores estudiosos desse gênero, o que
promete ainda muitas formulações teóricas sobre esse gênero missivista.
Mas o que de o interessante por trás de uma carta? Por que
conseguiu seduzir a tantos?
68
Talvez certo halo de mistério, de poesia ou mesmo as marcas de
ausência e de distância tornem o enunciador seduzido por esse precioso
recurso literário. Ou talvez também pelos duplos sugestivos leitor-autor;
remetente-destinatário, diálogo-monólogo..., o escritor missivista perceba
nesse dualismo possibilidades de reflexões, de ver-se através do outro. Quem
escreve a outrem acaba reatualizando para si próprio as palavras enviadas.
(FOUCAULT, 1994: 140)
A despeito disso, uma carta de Mílton Dias a Pedro Nava é um bom
exemplo:
69
70
Com essas possibilidades, o texto missivista de Mílton Dias alcança o
público leitor, pois foi escolha consciente e bem feita, que o próprio escritor
sabia, mesmo implicitamente, dos efeitos preciosos desse subgênero: Bom
mesmo é escrever cartas: tem-se a certeza de um leitor e a possibilidade
duma resposta, com a vantagem de que na carta podem-se abordar todos os
temas com inteira liberdade. (DIAS, 1974: apresentação)
A propósito, vemos nas palavras de Mílton Dias uma postura
semelhante à de Mário de Andrade ao se referir às missivas como “Cartas de
Pijama”
5
remetendo-as ao discurso informal, descontraído, íntimo, portanto
próximo ao leitor, possibilitando a este, mesmo a distância, a criação de um
circuito de confidências e de amizade, que pode propiciar um sentido de
confiabilidade nas palavras do enunciador a ponto de causar em seu
interlocutor a idéia de uma verdadeira reprodução de experiências vividas;
agora transformada numa espécie de pacto de sinceridade.
Esse jogo de sedução que as cartas promovem, ou pelo menos
promoveram, foi motivo de ressalva de amigos de Mílton Dias que o julgavam
não apenas grande cronista. Nas palavras do poeta Juarez Leitão têm-se a
constatação disso: [Mílton Dias] sagrou-se professor de tudo nesta vida. De
francês, de convivência, de cunhãs, de boca da noite e madrugada, de
existencialismo, de epistolografia(...) (LEITÃO, 2000: 316)
Ao eleger o recurso epistolar como primazia de vários textos, Mílton
Dias estava ciente de certos efeitos expressivos que resultariam dessa
escolha:
Cartas produzem memórias, que se desdobram em críticas,
que desencadeiam cartas, que engendram memórias... É o
grande circuito dos discursos, onde se pode observar a
inscrição das trajetórias de leitor e autor, de remetente e
destinatário. (GALVÃO, 2000: 339)
Mas elas também são retratos do cotidiano, por isso são capazes de
sugerir aos leitores a representação viva de seu missivista, desenvolvendo-
lhes perfis, auto-retratos, experiências compartilhadas, universo de afetos e
5
Cartas de pijama: relações de gênero na amizade e na escrita epistolar de Mário de Andrade
e Anita Malfatti
71
emoções, postura ideológica... É uma espécie de presentificação do
remetente ao destinatário.
Como são textos auto-referenciais, viabilizam a construção dos leitores
na e pela narrativa do sujeito de sua enunciação:
Escrever é mostrar-se, fazer-se ver e fazer aparecer à própria
face do outro: a carta é, ao mesmo tempo, um olhar que se
lança ao destinatário e uma maneira de se dar ao seu olhar. A
reciprocidade estabelecida pela correspondência implica uma
‘introspecção’ entendida como uma abertura que o emissor
oferece ao autor para que ele o enxergue na intimidade.
(MIRANDA, 1992:28 )
Dado esse caráter de ambigüidade, a carta pode transitar nos terrenos
do documento, da ficção, da história, da literatura, do prosaico e do poético
sem corromper nenhum desses âmbitos. E, se conferir a idéia de escritura
literária, pode galgar espaço mais retumbante:
Jean Cordelier, crítico que é ferrenho partidário dessa posição
[carta como literatura], acha que se trata de uma obra
essencialmente literária, que deve, inclusive, ser lida como um
romance. Para ele, trata-se de uma produção literária tão
consciente e acabada quanto às fábulas de La Fontaine, as
tragédias de Racine ou a Princesa de Cléves. (GALVÃO,
2000: 21)
Ao lermos as narrativas epistolares de Mílton Dias, pudemos vislumbrar
esse universo aparentemente comum e casual que são as cartas, mas que,
na verdade, são essência de um discurso múltiplo: entre o prosaico e o
poético, a história e a ficção, revelando um espaço que pode transformar-se
em romanesco, atualizando o leitor acerca da época e de tudo o que a pode
circundar:
A um ladrão
Senhor Ladrão, saudações. Faz tempo que sabemos
da existência um do outro, mas não tivemos ainda
oportunidade duma apresentação pessoal, que eu desejo
muito. Certamente o senhor me conhece de vista, talvez de
nome, sabe meu endereço, meus hábitos, os pontos em que
costumo encostar o carrinho - e muita vez terá se rejubilado
quando me viu chegar num local em que tem certeza de que
me vou demorar um pouco mais; de ficar particularmente
feliz quando vê que vou ficar preso numa sala de aula durante
duas horas. Aí, parece que estou vendo, o senhor age à
72
vontade, sem susto, vai cumprindo tranqüilamente o plano
que traçou, a determinação de ir tirando, um por um, os
acessórios do meu carro.
Bem se que o senhor é um homem metódico,
persistente, atual, habituado ao crediário - e assim, em vez de
me depenar duma vez, foi subtraindo tudo a prestação. Um
dia tirou a ferramenta. Depois, deu um bom prazo, deixou que
eu me refizesse do impacto, tirou o sobressalente, que agora
chamam "step". Mais tarde levou o extintor de incêndio. E, por
último, tendo terminado seu trabalho interno, passou a tirar o
que está por fora do carro. Começou ontem, carregando o
emblema da "Volkswagen" que fica em cima do capô.
Senhor Ladrão, agradeço a sua preferência, que
bastante me honra, e agradeço profundamente penhorado a
admiração particular que o senhor vem demonstrando por
este modesto automóvel. Mas agora, que o Natal se
aproxima, quero lhe lembrar que restam o espelhinho
retrovisor e os dois limpa-parabrisas (um dos quais foi
substituído, lembra?) - por isto venho pedir ao senhor, que
provavelmente também deseja paz, na terra, que me de
festas uma trégua.
Não é bem pelo aspecto material do assunto, porque,
reconheço, o senhor é um homem de Deus, também precisa
viver e escolheu este perigoso ofício, que pode, quem sabe,
comprometer-lhe um grande bem, que é a liberdade, ou até
tirar-lhe a vida. Não veja nisto uma ameaça, pois, talvez o
senhor não saiba, eu só mato barata e formiga, isto mesmo na
minha casa. Claro, aí é um caso de legítima defesa. Peço-lhe,
principalmente, pela minha consciência, para evitar um
pecado grave em que estou incorrendo repetidamente, que é
o mau juízo que posso fazer de algumas pessoas. Isto me
preocupa bastante, me coloca muito mal perante Deus.(...)
Gostaria muito de conversar com o senhor. Primeiro, para
saber como começou esta paixão pelo carrinho, saber se foi
amor à primeira vista - e conhecer os detalhes deste romance
que, pode ter um "happy-end" no Distrito, com o meu
testemunho. Segundo, para me informar se conseguiu uma
chave igual, ou se é um talento seu, este de abrir a porta com
uma gazua, talvez um simples arame, como eu vi no cinema,
uma vez. (...)
E o senhor, meu caro Ladrão (o senhor está me saindo
muito caro mesmo), como é que está fazendo? Estou
morrendo de curiosidade por saber como foi que, havendo
tantos carros iguais e tantos outros mais bonitos, dando sopa,
o senhor se engraçou exatamente do meu, comprado em
consórcio, num longo e lento crediário. Neste ponto lamento a
sua falta de sensibilidade, até de inteligência: havendo muito
carro bacana, de gente rica, o senhor veio gastar a sua inveja
justamente comigo, que tenho de invejável o pobre carro.
(DIAS, 1974: 25-28)
Ao avaliar o conteúdo da carta que está fragmentada, já podemos
constatar que ela é ficcional, pois, mesmo publicada em jornal, não seria
73
intenção de Mílton Dias que o ladrão lesse tal missiva. Entretanto, ao
desnudar-se para o suposto leitor, o ladrão, o que o autor parece querer é que
nós, seus leitores concretos, compartilhemos suas idéias acerca de um dos
sérios problemas cotidianos que é o roubo, a falta de segurança. Portanto, de
forma prosaica, a conversa ganha literariedade a começar pelo termo Ladrão
em letra maiúscula, sugerindo uma metonímia da recorrência dos roubos.
Assim, Mílton Dias habilmente nos atualiza sobre o aumento da violência
urbana, a importância do cidadão comum em querer resolvê-la, a marcante
presença de compras a prazo, também focaliza a tendência ao estrangeirismo
lingüístico: antes da época do roubo chamava-se sobressalente enquanto hoje
é “step”.
Nesse pequeno trecho, percebemos que o cronista se retrata: de
pouca condição econômica, professor que tem um carro modesto de marca
Volkswagen, além de constatarmos a forma como ele encara o problema
social, o Natal entre outros.
Através dessa conversa bem-humorada, despretensiosa, muito nos é
dito em tão pouco espaço e implicitamente com seriedade, pois o faltam
reflexões aos olhos dos leitores.
Nesse jogo ficcional, bem feito, temos a idéia de, pelo menos, um
capítulo do romance do nosso cotidiano tão assoberbado pelos problemas
sociais trazidos pela urbanização. A sutileza do duplo propiciado pelo texto de
o missivista fazer-se um voyeur imaginário, a fomentar um jogo imagético da
atuação do suposto ladrão, só faz aguçar, com propriedade, o verdadeiro
voyeur que parecemos nós, leitores de seus textos, a mirar a situação como
se ela fosse escrita ou vivida por nós.
E se tomarmos a temática central do texto como fato de nosso
cotidiano? Quantas reavaliações não precisaríamos fazer que esses
problemas estão mais agravados?
As cartas, de fato, podem ser testemunhas históricas de épocas
documentando cenários, trajetórias individuais e coletivas. Podem ser uma
“janela magnífica” para o desvendamento dos mundos, privado e
público.(GALVÃO, 2000: orelha)
Enveredando mais no universo epistolar ficcional, podemos constatar
duas modalidades importantes exercendo as duas funções: a retórica e a
74
estruturante. A primeira delas serve de meio operacional à literatura; a
segunda, como forma de estruturação convencional às cartas: local, data,
vocativo, etc.
Cartas sem resposta
6
(1974) é a obra de Mílton Dias que mais
explicitamente revela suas relações com o gênero epistolar, cuja data nos
sugere a origem do gênero, tendo como herança maior o olhar informal dos
modernistas e a literariedade, tonificando os textos de beleza estética e
reflexiva não somente de dados históricos ou documentais:
no plano familiar, aqui em casa, o verbo saudade se
integra de tal forma no nosso vocabulário que o empregamos
com a maior naturalidade, impunemente, sem nenhum
respeito pelas regras gramaticais nem pelas pessoas que o
conhecem. (...) Pois é, Amiga, saudadiei todo tempo. (DIAS,
1974: 82-93)
Examinar-se-ão os textos epistolares e suas implicações, com base na
leitura de 33 crônicas da referida obra, dividida em três partes: As diversas”,
A amigae Ao meu pai morto”, que o apresentadas por uma breve nota
introdutória do autor justificando a escolha da escritura de cartas, cuja
significação já é notória na terceira parte sob a figuração do ausente (o
perdido, o pai morto) que ressurge no espaço literário.
Outro aspecto que se soma à retratação memorialística é a epígrafe de
abertura da obra: Muita lua foi e voltou, muito sol me queimou o rosto, muito
mar me salgou o corpo, muita madrugada feita de insônia e de dúvida, de
medo, de preocupação e de amor desapareceu esquecida e muita aurora
enxugou pranto. Deus ajudou, sim. Isso vem sugerindo um resumo das idéias
das três partes do livro a observar os títulos e suas epígrafes respectivas: As
diversas” : Partir é bom, ficar é triste, voltar é uma beleza.; À amiga: Enquanto
isto, Amiga, eu juro que também ando conjugando o ‘verbo saudade. e Ao
meu pai morto”: Foram duros tempos, Pai. (op. cit., 14)
A escolha do título já aponta aos leitores a existência de um forte
paratexto, isto é, um pré-texto antecipando as temáticas primordiais da obra:
solidão, distância entre emissor - audiência e silêncio. Também subentende
6
A obra é de publicação do autor e dedicada ao poeta do Clã Artur Eduardo Benevides,
sendo a capa e as ilustrações um trabalho do artista plástico Descartes Gadelha.
75
um pretexto para chegar mais perto de seus leitores/ouvintes, sugerindo a
cumplicidade destes no universo missivista, pois o diálogo com os
destinatários, razão básica das cartas, não acontece explicitamente. Portanto,
o autor/enunciador apropriar-se-á de monólogo, num jogo autocatártico que
o outro está ausente na comunicação.
Talvez as cartas sirvam de manancial que focalizará a emoção
existencial e estética do autor, sugerindo o espaço ficcional das narrativas,
pois há, predominantemente, uma incomunicação com os destinatários.
Cartas sem resposta, e porque é a carta um texto auto-referencial,
propicia, através das três partes, uma espécie de balanço existencial das
reminiscências emocionadas de um passado/presente marcadas de partidas,
ausências, solidão e silêncio que o próprio gênero epistolar já tendencia.
A bem da verdade, as três partes sugerem uma cadência gradativa
ascendente que vai guiando o leitor para o desfecho crucial de todo o universo
existencial de Mílton Dias: a perda paterna, força motriz de sua produção
literária.
A primeira parte, As diversas”, pontua idéias abrangentes sem que se
precise de um destinatário específico, entretanto a auto-epígrafe Partir é bom,
ficar é triste, voltar é uma beleza é uma intratextualidade retirada do texto O
verbo saudade”, que pertence à parte da obra, o que mostra um fio
condutor entre as duas primeiras divisões.
É a parte mais bem-humorada cujo texto-base é A um ladrão”, mas
outros também merecem citação como À rainha da Inglaterra, Elizabeth IIe
À Jacqueline (No dia em que deixou de ser Kennedy)”, demonstrando o plano
ficcional em que os mesmos transcorrerão, pois as cartas não foram escritas
para serem enviadas. Elas são um recurso do autor para atualizar conteúdos,
leitores e a ele mesmo. E, apesar de o missivista falar sobre Rosa, sua
empregada, ele tenta distanciar-se dos problemas aflitivos do seu cotidiano,
para propiciar o riso, que vem expresso através do seu grande senso de
humor. Entretanto, Mílton Dias trai-se no último parágrafo ao contextualizar a
sua vida de solteiro e solitário. Chega mesmo a fazer um trocadilho com a
palavra ilha, mesmo que as duas sejam absolutamente distintas, inclusive a
do autor, que está incluso num dos títulos de sua obra:
76
Prezada Senhora Dona Jacqueline, respeitosas
saudações.
Hoje é terça-feira, dia 22, estou lhe escrevendo às
primeiras horas da manhã - ainda é cedo, portanto, para saber
qual terá sido a repercussão do seu casamento nos Estados
Unidos e nos outros cantos do mundo.
Sei que aqui na Praça da Escola Normal ficaram todos
extremamente, sinceramente desapontados, sendo que
alguns, seus antigos admiradores mais fiéis e mais convictos,
entraram numa faixa de depressão profunda, caíram na fossa,
como é de uso dizer agora, cá no Brasil.
(...)
Uma moça minha amiga, que era sua incondicional
e continua da Rainha Elizabeth e da Princesa Grace Kelly,
passou aqui em casa exatamente na hora em que a bomba
estourou, isto é, quando saiu jornal na rua contando os
poucos detalhes das bodas (...)
Outra que ficou indignada foi a Rosa, que é relações
públicas aqui em casa, faz o mercado, passa telegrama, paga
a água, a luz, o telefone, vai ao correio e ao banco e
internamente faz a copa, passa, lava, encera e em casos de
extrema necessidade, quando falta cozinheira, substitui
precariamente.
Não sei se a senhora sabe onde fica a Meruoca - é
uma serra ali perto de Sobral. Pois foi de lá que a Rosa
desceu, faz coisa de dez anos, perseguindo o ideal de
comprar um rádio de pilhas, um relógio de pulso e de
aprender a ler. E é tão inteligente que depressa conseguiu
tudo, se identificou com a cidade, com os usos e costumes,
com o noticiário do rádio, da televisão e dos jornais, põe-se
diariamente a par de tudo o que se passa no mundo, comenta
novelas e "faits divers" com grande cuidado e desembaraço.
A Rosa foi muito categórica, Dona Jacqueline, achava
que a senhora devia casar, sim, não precisava ficar cumprindo
a vida inteira a solidão e a viuvez. Mas não com aquele. Diz
que foi tudo ambição, que há de ter sido desejo de mais
dinheiro, de se divertir à boa moda da "dolce vita", de fazer
que nem o Antenor Patino, dar grandes festas, bailes,
jantares, que foi tudo iludição dos palácios que Onassis tem
espalhados no mundo, dos petroleiros, principalmente iludição
com aquele iate, com suas oitenta cabinas, cinema, sala de
reuniões para trezentas pessoas, duas piscinas, aquela
beleza de iate que agora certamente vai mudar o nome para
"Jacqueline". Diz ela que aposta que a senhora não de ter
gamado por um homem daquele; não é tanto pela idade, é
principalmente pelo bofe que ele é (desculpe, foi assim
mesmo que ela falou) - gordo, baixo, feio, muito míope, muito
estragado depois de tantas aventuras.
lhe digo uma coisa se o seu caso era casar com
um homem maduro – aqui mesmo na Praça da Escola Normal
tinha um, bem mais conservado, mais jovem, talvez lhe fosse
mais dedicado, mas fiel e tudo. Verdade que não tem a
fortuna de Aristóteles Onassis, mas tem um Volks em muito
bom estado, verdinho, em dia com o Trânsito, e com o
Seguro. Por ilha não, este daqui também tem uma, justamente
77
chamada A Ilha do Homem Só, que estava à sua espera. (op.
cit., 19-24)
A idéia crucial é de que a carta é sempre um documento histórico que
testemunha sobre uma pessoa individual (HAMBÚRGUER, 1995: 43). Mílton
Dias provas disso em todos os 12 textos dessa primeira parte, pois retrata
dimensionalmente a época em que narra, atualizando-nos do
passado/presente que percorre vários espaços físicos: o mundo, o Brasil, o
Ceará, Massapê, Fortaleza, mas que, de alguma forma, existe mesmo no
imaginário do missivista, responsável pela revitalização do que está ausente
ou perdido.
Ainda com relação a essa primeira parte, podemos constatar
também um tônus narrativo mais sóbrio, exigindo de nós leitores uma postura
mais reflexiva em que os textos operam através de um dualismo edificante:
catarse e autocatarse, pois, concomitantemente, a narrativa cria um ambiente
de purificação, mas propicia autopurificação. O sentido parece transitar para
as causas mais universalizantes, por isso não importa existir um destinatário
concreto, explícito, específico: a dor e as perdas são iguais para toda a
humanidade. E porque o autor tem consciência da efemeridade da vida,
busca de lucidez para tornar o viver compensador. Exemplos interessantes
dessas idéias são as cartas “A moça mãe”, “A um desencanto” e “Ao João”:
João, temos realmente muitos motivos para tristuras,
com a morte de alguns amigos e a enfermidade e a ausência
de outros. (...) É terrível, eu sei, perder as pessoas que
amamos, é trágico vê-Ias partir, sofrer, envelhecer, é
medonho ficar visitando hospitais e sepulturas. Morremos um
pouco com cada pessoa amada que se vai, mas não
podemos, não devemos fazer essa entrega total, sem
resistência, (...)
Tudo dói mais a esta altura (...) A alguns a vida dá muito
pouco demais, mas este pouco pode abastecer de boas
memórias o pesadelo da velhice - e, quando a depressão
inimiga ameaça se instalar, é bom convocar os fantasmas do
passado, trazê-los para embalar nossa nostalgia, lembrar
antigos afetos - um momento que não esqueceu, o minuto de
amor que ficou para a eternidade. A beleza e a bondade não
sumiram, aproveitemos o que o mundo ainda nos pode
oferecer de belo e de bom. (DIAS,1974: 29-31)
78
A 2ª parte, intitulada “À Amiga” é somada à auto-epígrafe retirada
também, como na primeira parte, do texto “O verbo saudade”, e pontilha o
tom de crescente sobriedade do missivista. De novo a inscrição da maiúscula
na palavra Amiga sugere a linguagem como presentificação do universo
temático da ausência, da solidão. Amiga talvez esteja num sentido
humanitário universal, isto é, o tu ficcional, como produto da recriação
epistolar aos olhos modernistas. A carta continua tendo respaldo na sua
função retórica, ou seja, literária, mesmo sobre o rótulo estruturante de
missivas quando do uso de vocativo, que parece ter mais sentido se
colocássemos em seu lugar a idéia de evocação; evocação no sentido de
tentar recuperar aquilo que possa ser irrecuperável.
Pelos títulos dos oito textos, já há sugestão de que o teor das narrativas
centrar-se-á no plano melancólico, elegíaco: A balada prometida”, Da
amizade”, O verbo saudade”, Carta de dezembro”, Coração de menino”,
Oferenda para uma rosa particular”, Quem mandou? e o último À uma
rosa”. Com ressalva do antepenúltimo e do último texto, o destinatário é
sempre a AMIGA distante, espécie de cúmplice da solidão do cronista.
Alguns títulos parecem mais instigantes que outros, pois na superfície
já são importantes paratextos.
Com A balada prometida”, temos de antemão a idéia de ofertório, que
pode ser para homenagear alguém que está ausente, distante. Entretanto, se
olharmos a corporificação dessa idéia com a narrativa concreta,
constataremos a aura de despedida, do perdido para sempre (recorrência
constante das cartas de Mílton Dias) e só recuperado pela escrita ficcional.
Amiga, você me perguntou se eu escreveria uma
crônica, se você morresse - e eu fui obrigado a lhe dizer “não",
pela primeira vez na minha vida. (...)
Em todo caso, que Deus me livre, se você partir antes
de mim, eu lhe faço uma balada triste e linda. Que fale em
madrugada sem orvalho, manhã sem sol, dia brumoso, tarde
sem crepúsculo, noite de lua nova (terríveis e estranhas
coisas podem acontecer quando a lua é nova). (op. cit., 73-74)
Não é à-toa a idéia de musicalidade com a palavra balada, facilmente
trocada por elegia; que vem depois através do paradoxo “triste e linda”. Para
tonificar ainda mais essa pintura melancólica, ele usa repetidamente a
79
preposição SEM. E não é por acaso. Para que serve uma tarde sem
crepúsculo, sem a preparação da noite? É o escuro total, frontal? “Manhã sem
sol é a confirmação de tristeza, que Sol é palavra plurissignificativa e
metaforiza-se no texto pela idéia de vida, alegria, esperança...
Seguindo outros passos desse texto, veremos que o emissor divaga e
volta para si mesmo confirmando a idéia de que suas missivas o textos-
monólogos. Recorre aos ssaros de sua casa e cria um texto
verdadeiramente fabulístico. É o texto em que ele mantém-se mais distante,
provocando o riso através de uma linguagem leve, bem-humorada. Ao
emprestar ares de antropomorfização aos pássaros, mais interessante e
hilário torna-se o texto; principalmente pelo eufemismo causado pela palavra
INFELIZ:
Depois você me pede novidades, a mim que sei tão
pouco o que se passa ana minha rua! Posso lhe dizer que
aqui nesta minha casa, abençoada por Deus por intermédio
do padre Amarílio, houve um adultério - o que é certamente
muito grave. Deu-se assim: não sabe aquele casal de
periquito australiano de sangue azul, de plumagem azul-clara,
com traços pretos finos nas asas, como feitos em nanquim, a
bico de pena, ela MarIene e ele Hanns? Pareciam viver bem,
tinham de um tudo e ainda mais, a tirar pelas aparências,
gozavam paz, compreensão e amor. Chegaram a anunciar
filhos: duas vezes tiraram três ovos, mas ela mesma bicava e
comia. E, quando estava no tempo do choco, não deixava que
o marido entrasse no apartamento, ficava lá, muito senhora,
descendo para o banho de piscina, para a comida e um
pouco de sol.
a Rita, não sei por que, teve a idéia de introduzir na
mesma gaiola, um outro periquito, também australiano, verde,
inquieto, solteiro, que morava vizinho, muito desinsofrido, um
por nome Alfredo. Foi a conta: parece que a vida inteira se
tinham esperado, passaram a se amar imediatamente (depois
dizem que não tem amor à primeira vista), passaram a viver
aqueles versos de Raul de Leoni: "Nascemos um para o outro,
dessa argila de que são feitas as criaturas raras". E o dia
inteiro se beijavam, enquanto o outro, o primeiro marido, ficou
no mais completo abandono. Como não gosto de ver ninguém
humilhado, determinei a separação, de forma que o infeliz
(para não dizer aquele outro nome), foi posto na gaiola que o
Alfredo ocupava primitivamente. Mas ficavam sempre se
vendo, o que também não era do meu agrado. no meu
sertão tem um ditado ensinando que a pior coisa do mundo é
largar a mulher e morar perto. E para que o pobre do marido
passado para trás não ficasse a fazer a sua curtição de forma
tão deprimente, providenciei a mudança de domicílio: dei-o de
presente.(...) (op. cit., .74-75)
80
O que isso tudo representa senão a ficção? A arte imita a vida assim
como a vida imita a arte, pois com os humanos essa história não acontece
como toma dimensões circunstanciais mais alarmantes que as observadas.
O segundo texto é uma espécie de amortecedor dos problemas
existenciais e age como outro recurso presentificador do missivista: a
amizade, que vem revitalizada pela habilidade do narrador que imprime a ela
um itinerário conceitual e filosófico:
Amizade é outra coisa, não se impõe, não se força, não
se compra, não se transfere, não se delibera, tem a sua
linguagem própria, até nos silêncios, nos gestos mais simples;
é mais sólida do que o amor, muitas vezes baseado apenas
na atração física, que os anos podem desgastar - enquanto a
amizade se aprimora, fortifica, melhora com o tempo. É que
nem vinho.
Amizade é um sentimento muito nobre, muito alto, muito
puro, muito profundo, muito sério, muito verdadeiro, muito
poderoso, muito belo, muito especial, para ser confundido
assim gratuitamente.
É um sentimento tão fabuloso que a palavra amigo não
admite adjetivo ao seu lado, tem que vir sozinha, porque é
impossível falar em "amigo bom", sem tombar num pleonasmo
grosseiro, não se pode falar em "amigo ruim" sem cair em
contradição: neste ponto a amizade é tão exigente como a
honestidade, não permite superlativo, nem aceita meio termo.
(op. cit. 79)
Assim, damo-nos conta de que existem dois processos de
presentificação do autor para enfrentar a solidão, a ausência e as perdas: a
amizade e a escrita. Esta última será retomada com mais profundidade no
último capítulo.
Outros textos desse conjunto também merecem menção: “Carta de
dezembro”, “Coração de menino e “Quem mandou?”.
O primeiro propicia uma aura de melancolia, de balanço existencial,
por ser o último mês do ano, além de representar uma data importante para
as famílias: o Natal. Assim, a família do missivista estará mais uma vez
saudosa e triste pela falta do patriarca. Novamente, o autor nos informa,
através da Amiga, que as saudades ainda não baixaram, continuam como rio
em tempo de inverno bom. (op. cit., 85)
81
Como forma de suavizar as constatações tão melancólicas, o missivista
dirige-se para outro pólo, talvez como um disfarce ameno, e fala sobre os
bichos, sempre presentes em seus textos. Parece que a projeção de fábulas
recria uma atmosfera menos dolorosa, embora o universo delas seja a própria
existência humana.
A segunda narrativa aumenta o peso existencial para o missivista,
embora o título não explicite isso sem a leitura do texto, pois é mais um ano
de aniversário do escritor, trazendo consigo a indisfarçável velhice indesejada,
entretanto suavizada pelas notícias de avanço da medicina, mesmo sendo
forte a idéia de morte cardíaca súbita para ele:
Tenho para mim que este ano fugi à regra da
depressão compulsória, no aniversário, graças ao farto, atual
noticiário em torno desse ousado doutor Christian Barnard
(Deus lhe conserve a vida por muitos anos), que abriu para o
mundo Inteiro, especialmente para os alegres velhotes,
imensas, animadoras perspectivas.
(...) Tenho fé em Deus que não há de custar muito, cada
hospital de emergência terá seu Banco de Coração, assim
como tem Banco de Sangue - não será preciso aguardar um
defunto recente, hão de encontrar um processo de
congelamento e de vivificação. E cada vidrinho, contendo
coração, de ter a ficha do antigo portador, com todos os
dados pessoais.
conversei a respeito com meu irmão Miron e com
outros doutores amigos, já lhes pedi que, quando chegar esse
tempo auspicioso, que coincidirá, provavelmente, com o
advento do meu enfarte particular não se preocupem com a
escolha do coração a utilizar: sou homem de pouca exigência,
inimigo de preconceitos. Até me encho de curiosidade por
saber qual será o coração que há de bater neste peito velho.
faço um pedido, ah peço por tudo, humildemente,
não me ponham um coração de mais de vinte anos. (op. cit.,
91)
O último texto também merece comentário dado que o título traz um
questionamento que denuncia a ameaça de algo que não é positivo: “Quem
mandou?”. E nós leitores nos apressamos para saber de que trata a narrativa,
incitando-nos a uma leitura imediata.
Uma carta recebida pelo missivista desencadeia todos os fortes
sentimentos que o perseguem: tristeza, saudade, solidão consciência da
efemeridade... projetados com maior amplitude, a ponto de desesperar o
autor/enunciador.
82
O texto é tão forte que ele divaga e faz projeções de cenas de sua
morte em tom depressivo, sugerindo certa morbidez ao tratar de sua partida
terrena e da reação das pessoas diante desse fato. Isso tudo é fruto de uma
postura recorrente em Mílton Dias a envolver-se com reflexões filosóficas e
existenciais.
Não há nada mais contagiante do que a tristeza, sobretudo se
ocorre numa jovem noite de solidão maior, como foi o caso.
Então a semente cai no terreno certo, na hora oportuna e se é
levado obrigatoriamente aos mesmos, inevitáveis
pensamentos em torno da morte: quando será, como será,
onde será, com quem será? Fico me perguntando se alguma
mão amiga trará uma coroa, uma rosa, se alguma boca dirá
uma prece, se algum vago conhecido fará o clássico
comentário ("coitado, era tão bom!"). Será que algum velho
amor me recordará com a ternura antigamente prometida?
Será que alguém que me tenha ouvido, repetirá uma palavra
minha, alguém que me tenha lido lembrará uma frase, uma
estória, alguém que me tenha desprezado imprecará uma
maldição, algum possível inimigo se regozijará? Quem citará o
último encontro, o último gesto, o sorriso derradeiro? Quem
puxará uma ladainha, quem rezará um De Profundis, quem,
de noite, antes de dormir, terá medo da minha alma, quem, na
mesma hora, desejará o fantasma da minha presença, quem
lembrará uma velha dívida, quem celebrará uma missa, quem
a ouvirá? Quem mergulhará no álcool a sua saudade, quem
cochichará no velório, quem, lá fora, contará piada, quem
comparecerá ao enterro? Quem, passando um dia defronte da
minha sepultura, lembrará aquele desejo da árvore de sombra
gorda, que eu pedi? Quem a plantará, quem a regará? Quem
virá nos aniversários, quem virá no dia dos mortos, quem?
(op. cit., 97-98)
Com essa morbidez apresentada, ele nos faz lembrar o poeta Villon,
que é citado algumas vezes em situação semelhante:
Quase me arrepia, nesta noite, a "Balada dos
Enforcados", em que Villon, condenado, numa antevisão
macabra da sua imagem futura, se imagina enforcado, o
corpo balançando grotescamente ao vento, pendurado,
molhado pela chuva, depois secando ao sol, os olhos comidos
pelas corujas, pelos corvos, as barbas e as sobrancelhas
arrancadas pelos pássaros.
Dirige-se aos homens, seus irmãos, em seu nome e em
nome dos outros companheiros que seriam enforcados na
mesma ocasião, faz um apelo patético a todos os bons
sentimentos humanos, pede aos que ainda vivem que
supliquem por eles, orem para que Deus o absolva de tudo.
Foi esta Balada, afinal, que o livrou da forca.(DIAS, 1971:46)
83
Em meio a uma aura de intranqüilidade, insegurança e temor, para
aliviar a forte tensão desencadeada pela correspondência recebida, o
missivista divaga para outro pólo também ficcional e agora mais sui gêneris:
uma ilha, claro que imaginária, um refúgio, como em tempos de guerras em
que são construídos abrigos subterrâneos contra bombardeios. É uma
espécie de ilha-Pasárgada, que carece de existência urgentíssima. Mas a ilha
existe no imaginário do missivista, diferente da vida material e do peso da
existência das quais não se pode fugir: Ah, fugir para uma ilha em que não
haja futuro nem passado, onde as lembranças não apareçam, sobretudo não
firam. (Op. cit., 98)
O ponto alto dessa segunda parte é o texto “O verbo saudade”, elo
mais direto e explícito com a última parte. É narrativa nuclear de onde são
retiradas duas das três epígrafes da obra Cartas sem resposta. Assim, poderia
ser o último texto da parte, denunciando o próximo e mais significativo
momento da referida obra: “Ao meu pai morto”. Além de o título por si mesmo
causar impacto, pois sugere um teor mais insólito, que o existe em
nosso léxico o verbo saudade nem mesmo “saudadiar”; é um neologismo
bastante expressivo, recurso muito usado pelos modernistas.
A narrativa projeta um destinatário talvez ficcional, uma Amiga, cuja
maiúscula novamente ganha espaço. É através da despedida e viagem do
missivista, em retorno a sua cidade, que é invocada a saudade, condicionada
pela aura da perda e, conseqüentemente, da solidão. Essa culminância de
sentimentos é o sentido maior do missivista, que involuntariamente se reporta
a tempos remotos e através de uma passageira lembra a mãe, ligada ao
mesmo processo de vivências melancólicas, pois ambas, passageira e mãe
do cronista, perderam seus maridos. Feito um duplo, o autor associa a cena
de um presente concreto (chegada à casa dele) à de um passado longínquo,
reportando-se à infância onde começaram para o missivista as lições de partir
e de aprender com as perdas. O autor é sempre um viajante ambíguo: viaja
em espaços físicos e a outros reconstituídos pelas reminiscências (a infância,
sobremaneira):
84
Ainda bem que junto de mim estava uma inesperada
viúva, jovem e linda, que fora à Guanabara a cumprir seu fado
de alegria (...)
Por natural associação de idéias, de fácil compreensão,
imagine em quem vim pensando durante toda a viagem! (...)
numa certa senhora que nos tempos d'eu menino, viúva
recente, viajava ao meu lado, no mesmo banco de trem, numa
das minhas voltas das férias sertanejas.
A qual senhora levou grande parte do longo percurso a
reclamar as penas da solidão, a imprecar contra o destino que
lhe arrebatara o companheiro. (...). Finalmente, num momento
de desespero maior, num tom cochichante, declarou, com voz
embargada, quase sumida, que levava seu tempo, noite e dia,
a conjugar o verbo saudade. (...)
no plano familiar, aqui em casa, o verbo saudade se
integrou de tal forma no nosso vocabulário que o empregamos
com a maior naturalidade. (...)
Agora eu vejo que saudade é alguma coisa que se
conjuga mesmo, contra todos os preconceitos gramaticais,
tem categoria própria, independente, maltrata muito com a
força da sua voz ativa, sem nenhuma partícula apassivadora
(diria melhor, aliviante e se agrava em certos tempos,
sobretudo quando se trata de um certo passado recente.
baldeia completamente a conjugação, confunde-se o
improvável condicional, com um incerto futuro, sombrio e
pessimista, e se chega à melancólica, inevitável conclusão de
que é tudo imperfeito. Pois é, Amiga, saudadiei todo tempo.
(op. cit., 81)
Desse universo de 20 textos, se pode constatar que as cartas o
artifícios narrativos escolhidos por Mílton Dias de maneira consciente e que
vão seduzir os leitores a ponto de eles não saírem impunes das leituras. As
correspondências têm aparência estrutural de cartas na primeira parte. O
missivista assina com suas iniciais MD, mas o importante é a retórica poética,
o nível literário que elas imprimem, o contorno ficcional ou real que
dimensionam que elas podem determinar o universo biográfico ou
autobiográfico do autor.
Desembocando naquilo que havia de acontecer, isto é, o cerne, o
momento do clímax, o sentido temático central da obra, a escolha do título
dessa parte não poderia ser outro:Ao meu pai morto”.
É um título plurissignificativo, pois nos antecipa a idéia de monólogo
e não de diálogo, uma vez que as cartas não foram escritas, de fato, para o
destinatário projetado:
85
No ato de ser escrita, a carta dirige-se, normalmente, a um
leitor vivo e único. Não se escreve aos mortos: a carta implica
a presença viva de quem a recebe, como de quem a redige. E
nessa conformidade é que a devemos ler, sem perder nunca
de vista a repercussão que provocou nesse correspondente.
(ROCHA, 1985: 18)
Vêem-se que são cartas-ficção, reminiscências emocionadas de um
passado/presente marcado de ausências, solidão, silêncio, distância,
saudosismo, viabilizadas por uma voz de intensa melancolia que exprime o
desejo do regresso do pai ausente, mas que não retornará.
A revificação do pai morto, evocada pelo missivista, só é possível
através da memória mitificadora. Não haverá a valorização do circuito de falas
ou de confidências peculiares às cartas. A matéria de evocação acontece tão-
somente na memória veiculada pelas palavras recriadoras.
Dessa forma, a função poética é primordial a essas 13 cartas, pois ela
opera como meio a dar realidade à outra voz (ao ausente), que é possível
no plano metafórico da imaginação.
A despeito disso, o título Cartas sem resposta é mais coerente e
melhor compreendido na terceira parte (“Ao pai morto”), que o monólogo
não pode reconstituir, de fato, a presença viva paterna. Portanto, esses textos
ficcionais que constituem a última parte são um recurso expressivo e
renovado da escrita dialogística de Mílton Dias, acentuando a dramaticidade
de sua solidão, da ausência e da perda paterna definitiva.
Outro recurso tonificador dessa escrita missivista é a auto-epígrafe de
abertura: Foram duros tempos, pai.” Se o uso dela constitui um paratexto,
dignifica mais ainda a sua escolha perfeita para a compreensão da terceira
parte, pois tal frase parece explicar o penúltimo texto De pra ”. Título e
epígrafe, assim, propiciam sugestão à circularidade temático-narrativa da
obra, pois sinaliza a idéia de um longo e difícil percurso cronológico, como a
pontuar um mapeamento de todos os problemas principais sofridos pela
família sem a presença paterna. Parece uma espécie de missiva-síntese.
Entre os textos dessa última parte, três estão mais próximos do gênero
epistolar: Ao meu pai morto”, “De pra e Adeus”. Além do vocativo e da
saudação-desfecho, focalizam a idéia de troca, isto é, envio e resposta,
sugerindo, embora de maneira hipotética, o dinamismo desse tipo de
86
comunicação. O primeiro é a carta-abertura dessa parte que termina com a
expressão: Até a próxima, Pai”; o segundo, penúltimo na estrutura da
organização, sinaliza que o diálogo está chegando ao fim: Aa próxima, Pai,
que será a última. Ainda teríamos muito o que conversar, mas parece que é
tempo de parar. O último, final em tudo: na parte, na obra, na interrupção das
conversas: “Adeus, Pai. Deus o guarde”.
Diante da possibilidade dessa criação literária, Mílton Dias foi mais que
preciso, acertou em cheio o centro consolidador de sua arte de escrever
quando escolheu dois gêneros parceiros e ambivalentes, que se completam e
se reforçam: a crônica e a carta. Parecem mesmo um duplo de mão dupla:
bifurcam-se entre a história e a literatura, portanto podem ser documento e
ficção, além de retratarem, como testemunhas, o cotidiano da época da
escritura.
O esquema a seguir focaliza os pontos estruturais da obra à medida
que constatamos, com a leitura da terceira parte, a explicação do título.
87
Ao contrário de Manuel Bandeira que teve sua infância completamente
feliz, Mílton Dias já carrega dentro de si a marca da perda, portanto, da
solidão, desde os nove anos quando da orfandade paterna.
A infância interrompida, perdida guarda o legado maior da emoção
poética de Mílton Dias. É disso que ele tira o recorrente retorno do menino
que ficou suspenso com a ausência paterna e também familiar, pois aos onze
anos ele sai de sua Massapê-Pasárgada e vem para Fortaleza a enfrentar um
novo mundo, possivelmente em busca de um “porto seguro” de realizações,
pois vem estudar.
CARTAS SEM RESPOSTA
3ª PARTE: “Ao meu pai morto”
Orfandade paterna
PERDAS
SOLIDÃO
“Foram duros tempos, Pai.”
PRESENTIFICAÇÃO DA ESCRITA
CONSCIENTIZAÇÃO
DA EFEMERIDADE
Melancolia
SAU
DOSISMO
REVISITAÇÃO DA
INFÂNCIA
AUSÊNCIA SILÊNCIO
88
Assim, parece haver um forte jogo de opostos em que ambas as
condições (infância revisitada / presente de enfrentamento) explicitam a idéia
de incompletude, de fragmentação do autor. A impotência dele diante das
perdas parece sugerir seu relicário de vivências daquilo que ele tenta vivificar,
mas que está perdido para sempre.
Essas idéias estão impregnadas na terceira parte e funcionam como
uma espécie de organismo, num processo de causa-e-efeito.
A primeira delas o as perdas cuja denominação maior foi a morte
paterna, mas outras perdas foram desencadeadas, quase que por um “efeito
dominó”.
A despeito disso, justifica-se o memorialismo o atuante do escritor ao
revisitar constantemente sua infância que vem contaminada por fantasmas,
imagens, gestos, palavras, sensações, acontecimentos... apenas recuperados
pela memória.
E como a morte é o ponto de saída e de chegada, pois marcou
veementemente o autor em várias fases de sua vida, é compreensível que
dois espaços mais importantes dessa trajetória sejam cenários constantes de
seus textos: Massapê e Fortaleza. Para Ecléa Bosi, o espaço que encerrou os
membros de uma família durante anos comuns, de contar-nos algo do que
foram essas pessoas. (1994: 443) Assim entendemos que esses espaços
universais também especificam-se em forma de casas, quarto, sala etc.
Curiosamente, é no primeiro texto da terceira parte, Ao meu pai
morto”, que se focalizam, concomitantemente, dois cenários: Massapê e
Fortaleza. Ao recuperar a volta do pai metaforicamente, quando se
passaram muitos anos, o cronista informa-nos de que não haveria sintonia de
endereços:
Penso como seria se Deus o permitisse ressuscitar,
mesmo para provar que os milagres ainda são possíveis. Com
certeza o senhor iria nos procurar naquela casa da esquina,
alta, simpática, cercada de varandas de ferro, em frente ao
cinema, em Massapê, onde nos deixou, na tarde de 26 de
outubro de 1928 - e não voltou mais. Ou, mais exatamente,
voltou finado, meia hora depois de ter saído absolutamente
bem.
Os moradores de lá lhe indicariam o nosso endereço e o
senhor viria bater na Coronel Ferraz, 230, onde estamos
33 anos. (DIAS, 1974: 107-108)
89
De modo geral, os dois endereços alternam-se; outras vezes caminham
juntos, mas ambos sofrem o processo de (re)apresentação à figura paterna.
Pouco do que eles foram enquanto o pai era vivo subexistiu. Na verdade,
enfaticamente, o autor faz o papel de cicerone do pai, atualizando-o das
transformações sérias e inevitáveis por que passaram os dois espaços físicos.
Entretanto, existe um texto, “Vozes da noite”, em que Massapê
predomina com grandiloqüência, refletindo a forte presença de Pedro Nava e
Proust, porque Mílton Dias vai buscar o tempo perdido e recuperado pela
memória, sobretudo involuntária, como num processo de lembrar/esquecer:
Na noite de Sexta-Feira da Paixão dificilmente consegui
conciliar o sono, Pai. Gente viva, gente morta, homens e
mulheres, velhos e crianças desfilavam diante dos meus
olhos, como fantasmas dentro do quarto - e o pensamento
andejo me devolveu a Massapê de outrora. De repente revi
moços que se reuniam em conspiração, reconheci antigos
companheiros, altas horas da noite, em vários pequenos
grupos, à sombra protetora das árvores, alegres conjurados
falando em tom cochichante, entre risos presos e gargalhadas
contidas. Aos poucos partiam em bandos, como num
comando, para "O ataque". (...)
muito lentamente as vozes do passado se afogaram
no silêncio da madrugada e as sombras voltaram para o
esquecimento. (op. cit., 151-155)
A recuperação da memória da Massapê dessa época é intensa: as
procissões, o “Baile da ressurreição”, o Grêmio Recreativo Massapeense, as
roupas das mulheres, a derrubada dos Judas etc.
Quanto ao outro espaço, poderíamos intitulá-lo de Fortaleza
(re)visitada
7
, pois é de forma bastante panorâmica que ela é desnudada em
seu aspecto físico e social.
Mílton Dias traça um verdadeiro mapa dessa cidade através de sua
memória afetiva num sentido nostálgico.
Cada geração tem, de sua cidade, a memória dos
acontecimentos que permanecem como pontos de
7
A intenção dos parênteses na palavra (re)visitada é a de focalizar a idéia de que, às vezes, é
uma revisitação dessa cidade pelo pai(que a conheceu e morou nela), mas sem os
parênteses é para fazer referência às mudanças estruturais que sua urbanização trouxe a
ponto de causar quase o desconhecimento de Fortaleza pelo pai.
90
demarcação em sua história. O caudal das lembranças,
correndo sobre o mesmo leito (...) guarda episódios notáveis,
que ouvimos sempre retomados na fabulação de seus
moradores.(BOSI, 1994: 418)
É por isso que bairros, ruas, praças não têm um contorno
fisionômico, mas, de fato, uma biografia, que está sempre contrastada entre o
passado/presente, o antigo/novo, o perdido/a tentativa do (re)encontro.
Desse modo, o cronista faz uma viagem sutil por Fortaleza a atualizar o
pai e os próprios leitores.
As transformações, às vezes profundas, sérias e inevitáveis, são vistas
sob a ótica das vantagens e das desvantagens e fotografadas por hábil
repórter, que não é apenas um voyeur, mas uma espécie de historiador que
sabe bem avaliar o peso e o preço da urbanização para a sociedade: Um ser
humano tem uma raiz por sua participação real, ativa e natural na existência
de uma coletividade que conserva vivos certos tesouros do passado e certos
pressentimentos do futuro. (BOSI, 1994:443)
Um dos textos mais representativos da (re)visitação de Fortaleza é A
cidade”: título deveras sugestivo por deixar entrever a idéia de urbanização.
Após a costumeira reiteração da idéia de mais de 40 anos de ausência
paterna, Mílton Dias abre um leque de informações sobre Fortaleza,
atualizando linguagem, espaços físicos, sociais, entre outros que funcionam
como dispositivos da memória afetiva ligada sobretudo à sonoridade:
Fortaleza antiga / década de 20
(presença paterna)
Fortaleza atual (época do texto)
década de 60
(ausência paterna)
Provinciana
Silenciosa
Arborizada
Praça de Pelotas
Bondes
Ceará Gás
Lampiões
Praia do Peixe
“Charleston”, “Fox-trot”
Ganha ares de metrópole
Barrulhenta
Perda de verde
Praça da Bandeira
Automóvel
Extinta
Energia elétrica
Praia de Iracema
Tango, ieiê(substituição)
91
Valsas vienenses
Mucuripe (veraneio das famílias)
Palavra doido (“parafuso frouxo)
Calmantes
Dificuldade de embarque(Ponte
Metálica)
Farol (zona de prostituição)
Farol (ponto limítrofe da praia)
Paulificante, fazer primaveras(15
anos)
Calções de banho até o joelho com
blusão
Praia = remédio
Superadas
Cheio de restaurantes
Neurótico(mal do século)
Tranqüilizantes
Porto do Mucuripe
Existem outras.
Praia do futuro
Chato, début
Maiô, biquíni
Paquera, ponto de encontro
Outro texto expressivo é Passeio à cinza”, cujo título antecipa, com
a palavra cinza, o sentido do perdido para sempre, deixando entrever aos
leitores que o pai e o próprio cronista vão cair numa aura de nostalgia ao
revisitar lugares preciosos que fomentaram vivências para ambos.
Ah, Pai, a Praça [do Ferreira] bonitinha, acolhedora, tranqüila,
com aqueles bancos (...) onde eu mesmo, algumas vezes,
deitei fala nos tempos de estudante (...) Tenho certeza de que
o senhor repetiria a quadrilha de Antônio Sales: Achei-te tal
diferença / Quando de novo te vi / que estando em tua
presença / Tive saudades de ti.” (DIAS, 1974: 123)
Assim, é um dos textos mais impregnados de saudosismo do cronista
coadunando, por isso mesmo, aqueles elementos estruturadores da terceira
parte: revisitação da infância, consciência da efemeridade, ausência,
melancolia, solidão; sendo esta última reforçada por uma dupla perda: a do
pai e a de Fortaleza.
Várias informações são recuperadas pela memória de Mílton Dias: o
desaparecimento de pontos importantes (os cines Politeama, Magestic e
Moderno, a Pensão Randal, a Praça Capistrano de Abreu). Também foi
trocada a cor bronze das estátuas, referências históricas da cidade (Cavalos
92
do chafariz, D. Pedro II e a do Presidente Justiniano de Serpa) por um verde
de mau gosto.
Mais dois outros dados do texto valem a pena mencionar: o Passeio
Público, tão recorrente na lembrança do cronista e a visita de Sartre e Simone
de Beauvoir, a quem o cronista apresentou a cidade, com olhos críticos e não
os de mero guia turístico, que camufla a verdadeira realidade do local:
Ah, o Passeio Público que era o orgulho da cidade, uma
sala de visitas bem cuidada, bem plantada, florida e alegre,
onde, à noite, as classes sociais se separavam naturalmente
(os ricos passeavam mais perto do mar, a classe média no
meio e a patuléia na periferia), a antiga Praça dos Mártires
que testemunhou o fuzilamento dos heróis cearenses da
Revolução do Equador - Padre Mororó, Pessoa Anta, Miguel
Pereira Ibiapina, José da Silva Carapinima, Azevedo Boião,
sofreu grave esquecimento nestes últimos anos. (...)
- Quando esteve o filósofo francês Jean Paul Sartre,
considerado um dos homens mais inteligentes do mundo
atual, e sua companheira Simone de Beauvoir, tive a coragem
de levá-los à Cinza, para que não apanhassem da cidade uma
idéia deformada, para que não julgassem que, como seu
cicerone, eu pretendia tapar o sol com uma peneira,
mostrando somente clubes elegantes, praias pitorescas,
Universidade, gente bonita, sadia e culta. De tal forma
entenderam a pureza da minha intenção e a verdade do meu
gesto que no dia seguinte voltaram sozinhos e passaram
a tarde, a fazer observações e pesquisas. Não foi ele quem
deitou no mundo um nome novo para as prostitutas,
chamando-as "respeitosas", numa das suas peças mais
célebres?
Assim o levaria eu, Pai. Com a mesma identidade de
propósito, para mostrar que em qualquer parte do mundo a
humanidade continua a mesma, que hoje, como outrora, na
nossa cidade, a grandeza e a miséria ainda correm paralelas.
(op. cit., 124-126)
Não podemos esquecer que o Passeio Público também foi cenário de
outras obras cearenses importantes. A normalista” de Adolfo Caminha é um
dos mais vigorosos exemplos, pois aborda a mesma dimensão do olhar de
Mílton Dias: a trajetória física e social do espaço.
Também merece retratação o valor do título Passeio à cinza”; primeiro
como um paratexto que antecipa a idéia da impossibilidade de recuperação.
Depois, determinado por um contexto em que o cronista usa metalinguagem,
explicita-se o local como zona de prostituição da época. Portanto, com a
leitura da crônica, constatamos a ambivalência desse título tão sugestivo.
93
Fortaleza de novo é revisitada fortemente através de dois textos:
“Alagadiço” e “O automóvel”.
Parodiando Celina Garcia, diríamos que Mílton Dias, a lembrar Proust e
Nava, busca o tempo perdido através do espaço geográfico, pois este é
crucial para o reconhecimento das origens genéticas e sociais na sua
representatividade como indivíduo, testemunha de sua época e tradição: Em
qualquer tempo que viesse, o senhor entraria pela porta do Alagadiço, que
depois tomou o nome de São Gerardo e agora é Bezerra de Menezes. (op.
cit., 131)
Mas, logo a seguir, em postura de cronista engajado, vem sua crítica à
falta de tradição:
Como vê, aqui somos muito volúveis em matéria de nomes,
de rua, não soubemos imitar o exemplo das grandes cidades
brasileiras, nem do Recife. (...) Não tinha fundamento o temor
do poeta Manuel Bandeira, quando escreveu sua "Evocação
do Recife" e exprimiu num tom de desconsolada nostalgia:
"Rua da União!" Tenho medo que hoje se chame "Doutor
Fulano de Tal". E a rua continua lá com a mesma velha
designação. (op. cit., 131-132)
Retoma Fortaleza e cita várias ruas que tiveram nomes trocados: da
Alegria, da Escadinha, do Sol, do Chafariz, do Cajueiro, das Flores, da Palma,
da Glória, do Livramento,... As três últimas foram denominadas depois de Rua
Major Facundo, Rodrigues Júnior, Avenida Duque de Caxias,
respectivamente.
Sobre isso vem mais questionamento de Mílton Dias:
Agora se pergunta: que mudaram, tantas vezes, por que
não restaurar a nomenclatura primitiva? Esta mesma rua em
que moramos foi do Colégio, São Luiz, Travessa 7 e agora
é Coronel Ferraz, merecida homenagem ao primeiro
presidente do Ceará depois da República (op. cit., 132)
Com o outro texto, O automóvel”, intensificam-se as transformações
urbanísticas de Fortaleza concomitante à estranheza que isso causaria ao pai:
Pai, seria natural que o senhor não apenas se
surpreendesse, mas também se atordoasse diante da cidade,
que, dentro de pouco mais de quarenta anos, sofreu
94
modificações tão graves na sua estrutura, no seu aspecto
urbanístico, no seu comportamento social.
Claro, o último censo, que tinha sido feito oito anos
antes da sua partida, isto é, em 1920, acusava 78 536
habitantes para Fortaleza. Nós somos, hoje, um milhão,
contando com muitas desvantagens de cidade grande sem
ter as vantagens respectivas. Estamos no limite, nem somos
metrópole, nem nos podemos considerar uma província, no
sentido tradicional da palavra. (op. cit., 137)
Diferentes informações de Fortaleza foram acrescentadas nesse texto,
que também merecem um mapeamento dicotômico (passado/presente)
explicitando o avanço do “progresso”:
Fortaleza - década de 20 Fortaleza - década de 60
78.536 habitantes
Província
Carro (luxo/ de poucos)
Carros de aluguel (de praça)
Fiado (confiança do
vendedor ao comprador)
Reduzida condição de
compras
Falta de abertura de ruas
Carros: animais quase
sagrados
Boulevard Doutor Nogueira
Acioly
Outeiro
Um milhão de habitantes
Província-Metrópole
Aumento da frota
(necessidade:compromissos)
Táxis
Prestação (espiral inflacionária)
Ampliação do poder de compra
Congestionamento
Puxadores de carro (roubos de peças
ou do próprio veículo)
Avenida Santos Dumont
Aldeota (bairro mais rico da cidade)
No seu papel de cronista engajado, novamente Mílton Dias apresenta
sua crítica mordaz acerca do grupo social que habita a Aldeota:
É uma nova cidade dentro da cidade, com casas belíssimas, a
maioria de inegável bom-gosto (embora haja algumas
horrendas, outras feitas em série, na base da cópia). Mas
mesmo mansões dentro do figurino cinematográfico, a que
95
não faltam nem mármore, nem piscina, nem jardins, nem
móveis suntuosos, nem quadros dos grandes pintores. Às
vezes faltam livros, ou os há, bem arrumadinhos nas estantes,
naquelas coleções luxuosas que compram especialmente
para decorar. Não decorar para aprender de cor, como se
dizia no seu tempo, mas no sentido de enfeitar mesmo. Salvo,
é óbvio, as honrosas exceções, diga-se a bem da verdade.
(op. cit., 140)
Depois desse itinerário percorrido, a idéia de revisitação cabe apenas
ao cronista quando este se refere à Praça Portugal, na Aldeota, onde moram
os familiares, pois o pai não conheceu tal espaço:
[...] - e eu o levaria a
conhecer uma praça nova, bonita, redonda, que se chama Praça Portugal, onde está
uma fonte luminosa, musical e colorida. A fonte a cantar e a água a correr. (op. cit.,
140)
Esse é um dos raros momentos em que o cronista não está nostálgico,
não busca o perdido, pois a praça ainda estava intacta, o que revela a
satisfação de Mílton Dias com tal construção urbanística.
Destoando um pouco do universo predominante nos outros textos,
embora o contraponto também seja o reencontro com o pai, “Precursores” é
uma crônica mais universalizante.
O progresso é analisado sob a ótica dualista: salvar / matar. E vários
assuntos são abordados: a chegada do computador eletrônico, a diminuição
do casamento, o aumento das separações conjugais, as descobertas do
radar, da energia atômica, dos antibióticos entre outros.
Para falar sobre o começo dos transplantes cardíacos em 1967, Mílton
Dias atualiza o pai sobre seu filho médico, Miron.
A despeito do acervo de informações tão bombásticas, o cronista diz
haver uma única solução: ministrar ao pai um curso que as atualize.
Próximo ao texto Precursores”, poderemos situar Se o pai voltasse”,
pois o cronista tamm tenta atualizar o pai, sugerindo esse legado a seu filho
caçula, Batista, que é engenheiro. Portanto, pessoa ideal para falar sobre as
revoluções espaciais: correio aéreo (1929), Sputnik (1957), Apolo 11 e Apolo
14.
Outras informações interessantes também são abordadas: invenção do
telefone, as melhorias das estradas, reduzindo de três dias para três horas o
percurso de Massapê a Fortaleza.
96
Excetuando o último texto, os demais continuam na mesma trajetória:
“recuperar” o pai e atualizá-lo das sérias mudanças sociais, culturais,
religiosas, políticas entre outras nos cenários brasileiro e mundial.
São abordados temas, tais como: nazismo, fascismo, 2ª Guerra
Mundial, as mudanças na Igreja, a inflação, o desemprego na Europa, uso de
mini-saia e calça comprida pelas mulheres nas missas, o desfile das escolas
de samba no Rio de Janeiro, a chegada do rádio, da televisão, das boates
entre vários outros. A abordagem desses fatos também atualiza os leitores,
inclusive sobre o tempo cronológico. Para situar o Brasil e o Ceará nessa
trajetória temporal, é recorrente a rememoração sobre política, pois, segundo
Ecléa Bosi (1974), a memória dos acontecimentos políticos suscita uma
palavra presa à situação concreta do sujeito. Isso revela que a leitura social
de uma época passada, voltada para o presente do sujeito-enunciador,
demarca sua postura ideológica. Assim, Mílton Dias não se contenta em
apenas narrar os acontecimentos políticos, intervindo sobre o ocorrido através
de juízos de valor:
A mesma alienação que mostrava com relação à
questão social, manifestou quando se articulava o movimento
para a sua deposição. A revolução estava em plena
marcha, iniciada no Rio Grande do Sul, com jovens tenentes
assumindo o poder e Washington Luiz telegrafava aos
governadores dos Estados, alertando-os sobre os levantes
verificados em Minas, Paraíba e Rio Grande. Diz-se que no
dia 24 de outubro, o único brasileiro que não acreditava na
revolução era o Presidente. E quando os chefes militares
exigiram a sua renúncia, recusou-se a deixar o Catete e
adiantou que podiam bombardear o palácio, se quisessem.
Foi necessária a interferência do Cardeal Dom Sebastião
Leme, que conseguiu levá-lo e desta partida melancólica ficou
uma fotografia famosa, colhida no carro. Lembro que alguns
dias depois, um embriagado fazia desordens na Avenida Rio
Branco e resistia à voz de prisão. Ao que um passante
galhofeiro sugeriu: Chama o Cardeal que ele vai...
No dia 3 de outubro de 1930 assumiu o poder Getúlio
Vargas, que ficou até 1945. Daí por diante, os brasileiros
aprenderam a depor presidente. Este mesmo Getúlio Vargas
foi deposto, quinze anos depois. Neste ponto estamos aqui
mais civilizados de que outras nações: nunca matamos.
Quando não estamos satisfeitos, depomos. (DIAS, 1974:159-
160)
97
A seguir, o cronista continua atualizando-nos de maneira a citar os
presidentes brasileiros e governadores cearenses da década de 30 à de 70:
Da saída de Getúlio Vargas para cá, a presidência da
República passou pelas mãos do cearense José Linhares,
presidente do Supremo Tribunal Federal, general Eurico
Gaspar Dutra, de novo Getúlio Vargas, João Café Filho,
Juscelino Kubitschek de Oliveira, Carlos Luz, Jânio da Silva
Quadros, João Goulart. Este dito João Goulart foi deposto por
força de um movimento revolucionário das Forças Armadas, a
31 de março de 1964. De até agora, na presidência
estiveram Ranieri Mazilli, um outro cearense - o marechal
Humberto de Alencar Castelo Branco, marechal Arthur da
Costa e Silva e, agora, o general Emílio Garrastazu Médici.
E, no governo do Ceará, de 1930 até o presente,
passaram José Carlos de Matos Peixoto, Manoel do
Nascimento Fernandes Távora, João Leal, Roberto Carneiro
de Mendonça, Olívio Câmara, Felipe Moreira Lima, Franklin
Monteiro Gondim, Francisco de Menezes Pimentel, Beni
Carvalho, Thomaz Pompeu Filho, Acrísio Moreira da Rocha,
Pedro Firmeza, José Machado Lopes, Feliciano Augusto de
Athayde, Faustino de Albuquerque e Souza, Raul Barbosa,
Paulo Sarasate, Flávio Marcílio, Parsifal Barroso, Virgílio
Távora, Franklin Chaves, Plácido Aderaldo Castelo e, agora,
César Cais de Oliveira Filho. (op. cit., p. 160)
Em “Adeus”, a última carta, vários aspectos chamam a atenção do
leitor: o título, o lugar ocupado (último da 3ª parte e da obra), o clímax
constante das inúmeras mudanças (mundo-Brasil-Ceará-Fortaleza), a
circulariedade, a genealogia do pai (não especificada antes, mas é a única
razão de sua volta). E, além de se denominar tio coruja, o cronista faz questão
de explicitar os descendentes DIAS
8
:
8
Embora Mílton Dias tenha mencionado no texto a quantidade de 12 sobrinhos, não
nominalizou três deles (Cláudia, Silvana e Fernanda). Isso só foi possível através de
entrevista com ROSA, empregada do cronista de muito tempo e mencionada nas crônicas.
98
Retomando a última parte dessa obra epistolar, Cartas sem resposta”,
e seu intertítulo Ao meu pai morto”, temos a possibilidade de leitura de um
texto maior e consolidado de um sentido todo coeso e coerente acerca do
itinerário do cronista sem a presença paterna:
Dedico meus 13 textos Ao meu pai morto(há 43 anos) e Se o pai
voltasse(está apenas no espaço literário), pois isso é apenas O sonho(sua
volta). Assim reapresentaria a ele A cidade (Fortaleza, onde ele também
morou), o Passeio à Cinza (um dos lugares de Fortaleza degradado ou
inexistente à época do retorno paterno). Também o apresentaria “Ao tempo da
vitrola (modernidade desconhecida pelo pai), falaria sobre o Alagadiço
(antiga denominação da entrada Oeste da cidade, agora com outro nome),
sobre O automóvel (“parte da moderna anatomia humana”), sobre as
Cadeiras na calçada (desaparecidas pela urbanização), sobre Os
precursores(descobertas científicas desconhecidas do pai), sobre as Vozes
da noite(lembranças das noites de Sexta-feira Santa em Massapê onde ele
morreu). De pra (“Foram duros tempos, pai” - resumo das vivências
pessoais, sociais e políticas do cronista sem o pai), mas tudo é vão, pois você
não voltará, por isso Adeus”, pai. É inevitável que seja adeus, pois as
mudanças causam inadaptação mais severas do que o seu retorno.
PEDRO
E IRACEMA
MILTON
WILSON MIRON STELA BATISTA
CEALNE
ENAURA
FERNANDO LOURDES
Cláudia
Silvana
Rui
Fernanda
aa
Paulo
Pedro
Márcia
Fátima
Bernadete
Pedro Damião
Batistinha
99
Resultado: o cronista se utiliza do ausente para desvendar-se e fazer uma
retratação social e crítica do seu cotidiano.
2.4. A SENHORA SOLIDÃO” : REFÚGIO E REGRESSO DO CRONISTA
A solidão acompanha Mílton Dias desde a infância quando perdeu o pai
em Massapê e vai instalando-se em sua trajetória existencial
retumbantemente. Depois dessa perda, o cronista muda-se para Fortaleza e
estuda num colégio interno. Separado da mãe, dos irmãos, do avô (figura
mítica), ele adota essa cidade como espécie de presentificação de sua
sobrevivência.
Aqui continua a arquivar seus relicários existenciais entre a
adolescência e fase adulta. Perde outros parentes, perde amigos...
Agravando-se essas vicissitudes, descobre-se um homem insone, o
que também ajuda a ampliar seu olhar sobre o outro, sobre as coisas, sobre
os seres e sobre si mesmo. Em algumas crônicas, o galo é símbolo explícito
de sua insônia: [...] a noite (...) ameaçada por um galo insistente
madrugador,(...) companheiro de insônia, um galo que precipita
acontecimentos. (DIAS, 1966: 157) Enquanto “todos” dormem, seu
voyeurismo dimensiona-se. A noite e a madrugada, especificamente a
segunda, passa a outro tipo de presentificação: dão a lton Dias produções
literárias ricas, crônicas que o consagram não só no Ceará.
Essa “Senhora Solidão”, como ele diz em alguns textos, passa a ser
uma companhia intransponível, quase companheira conjugal, pois o cronista
não se casou, nem teve filhos.
Visivelmente matéria-prima de suas obras, a solidão é tão evocada que
parece quase uma obsessão temática em suas crônicas.
De forma mais explícita, ela está presente em três de suas obras: A Ilha
do homem só (1966), Entre a boca da noite e madrugada (1971) e Cartas sem
resposta (1974).
Podemos citar vários textos cujos títulos remetem a essa temática:
“Madrugada I”, “Madrugada II”, “Madrugada III” (Entre a boca da noite e
madrugada); “Guardai vossa insônia”, “Salmo do insone”, “A inquieta espera
100
do crepúsculo”(A ilha do homem só); “Salmo do homem só”, “Voltei à ilha, “As
três soluções”(Relembranças) entre outros.
A despeito disso, podemos entrever a solidão como um dos seres
itinerantes da obra cronística do autor. Tão presente mesmo, que ela percorre
toda a sua produção literária, inclusive o ensaio Passeio no conto francês
(1982), pois, além da retratação de alguns contistas que também a
tematizaram, Mílton Dias registra, através da apresentação dessa obra, o
agravante da solidão: a perda de três de seus quatro irmãos.
Desse referencial maior de homem solitário, focalizaremos a obra em
que a solidão mais se explicita: A ilha do homem ”, sem deixarmos de
lembrar que essa obra também é mencionada no livro examinado Cartas
sem resposta, no texto À Jacqueline”: ...por ilha não, este daqui também tem
uma, justamente chamada A ilha do homem que estava à sua espera
(op.cit., 23). Em outro texto desse mesmo livro,Quem mandou?”, o cronista é
bastante metalingüístico ao falar do seu desejo de ter uma ilha:
Estou à procura dum lugar na geografia, em que possa plantar
minha ilha, sem preconceito de distância nem de tempo, onde
a música virá com o vento, virá dos pássaros, virá dum regato
cantante e as palavras serão filtradas com os cochichos das
folhas e os momentos de amor terão restos de lua e pedaços
de sol-poente. E quando a tarde se fizer triste, se você quiser,
a gente manda providenciar uma manhã ligeira e alegre e o
sol voltará para o nascente, para que não nos agrida a
melancolia do crepúsculo. (op.cit.,99)
Um dos maiores símbolos da solidão do cronista é a ILHA. Quem não
se lembra também de Drummond com o texto Divagações sobre ilhas?
Quando me acontecer alguma pecúnia, (...) compro uma
ilha; (...). Minha ilha (e de a imaginar me considero seu
habitante) ficará no justo ponto de latitude e longitude, que,
pondo-me a coberto de ventos, sereias e pestes, nem me
afaste demasiado dos homens nem me obrigue a praticá-los
diuturnamente. Porque esta é a ciência e, direi, a arte do bem-
viver; uma fuga relativa, e uma não muito estouvada
confraternização.
De muito sonho esta ilha, se é que não a sonhei
sempre. Se é que a não sonhamos sempre, inclusive os mais
agudos participantes. (...) Significa a evasão daquilo para que
toda alma necessariamente tende, ou seja, a gratuidade dos
gestos naturais, o cultivo das formas espontâneas, o gosto de
101
ser um com os bichos, as espécies vegetais, os fenômenos
atmosféricos. Substitui, sem anular. Que miragens o
iluminado no fundo de sua iluminação? (DRUMMOND, 1983:
964)
Excetuando-se a idéia denotativa de ilha como “pedaço de terra
cercado de água por todos os lados”, o contexto assemelha-se, com muita
harmonia, à forma de pensar de Mílton Dias, reservando-se a este um tom
mais elegíaco.
Retomando a referência autêntica desse contexto ao cronista
cearense, constatamos que não lhe bastou apenas o título do livro A Ilha do
Homem , pois ele também escreveu um texto homônimo dessa obra que
sugere uma espécie de seu alter ego.
O próprio título da crônica deixa-nos entrever uma circularidade, um
duplo inseparável e redundante: ilha (=solidão) + homem (=solidão),
portanto, uma solidão visceral. Assim, as duas pontas do título entrelaçam-se:
não existe essa Ilha sem Mílton Dias e não existe Mílton Dias sem essa Ilha.
Passemos à leitura global desse texto para maior clarificação de
alguns tópicos que nos interessam:
Esta semana voltei à minha Ilha e me encontrei comigo
e longamente conversamos, numa brumosa mande chuva
fina e constante, sol ausente, céu cinza. E como essa dita Ilha
por nome Solidão tem uma rua chamada Tristeza, foi que
me hospedei. A casa é pequena e vazia - bem entendido,
vazia de móveis e de gente, mas cheia de lembranças, uma
plaquinha na fachada pobre, a letra irregular formando um
nome apagado que a custo se lê, duas janelas para olhar o
mundo, uma porta aberta.
Em chegando me servi de saudade, que tem muito
em todo canto, dá durante o ano inteiro, dá que sobra, e como
a Ilha é particular, povoada de fantasmas, um lugar que
envelhece sem drama e sem comédia, eu gosto de ir,
eu me interesso, sozinho me ocupo de colher frutos e plantar
sementes. Não se pode dizer que os frutos são saudáveis.
Têm um gosto pessoal e como o sítio tem freqüentemente
cardos nos caminhos, abertos pelos pés do único proprietário,
fica-se muito tranqüilo, a salvo da cobiça alheia, longe de
olhar curioso e de língua malsã.
me sugeriram lotear umas quadras daquela rua
chamada Tristeza - tem tantas quadras, que vendendo muitas
ou distribuindo, ou alugando, não deixaria falta. Algumas
delas vão bater no Passado, outras vão dar pro mar e são
todas cobertas de crepúsculo, que é o tom de luz permanente
em toda a Ilha. Para o lado do futuro eu nunca fui, não bem
102
por medo - é que não deixam entrar, um policiamento
invisível, permanente. Aí o crepúsculo se apaga de todo, cai a
noite de repente, não se um palmo adiante - ora, que digo
eu - não se um milímetro e o sítio me parece um natural
mistério que tenta e que atrai, e me lembra uma casa velha
que conheci quando era menino, por onde passava correndo
sem olhar as colunas numerosas, de onde saíam vozes,
possivelmente vozes do outro mundo.
Uma mulher de brincos de argola e de lenço à cabeça
me disse uma vez que sabia andar por aquele sítio escuro,
que pegando na minha mão esquerda mostraria estradas -
herdara o segredo de muitas gerações, seus olhos se
iluminavam à entrada, as sombras se afastavam e ela poderia
dizer como é por lá. Eu não quis. Na Ilha tudo é verdadeiro,
não vale a pena brincar com o desconhecido, desrespeitar o
sortilégio pode atrair sorte. Deixa estar que a gente vai
indo, um dia chega - foi assim que eu respondi.
Falei que conversamos longamente: é certo. Fomos dar
um balanço nesta véspera de fim-de-ano, fazer contas, pagar
dívidas, passar a escrita a limpo, rever dias, noites, rever
manhãs e madrugadas. Contabilidade na Ilha é feito exame
de consciência; o Homem assume a palavra e
contraditoriamente fica mudo, umas lembranças estranhas,
outras não, falam datas, momentos, pessoas, falam
aventuras, como as vozes do outro mundo que saíam das
colunas da casa velha, nos tempos de eu menino.
A safra de sofrimento foi regular, trabalho veio muito e
constante por toda parte. O de preocupação esteve
carregado, apareceu muito daquela ervinha conhecida por
aborrecimento e a tristeza deu para o gasto o ano todo.
Alegria foi pouca, mas apareceu.
No registro da correspondência tem ingratidão, tem
amizade, tem amor pequeno, tem um pouco de ternura. (Mas
tão pouco!) tem viagem, tem ruas da Bahia, noites da Bahia,
tem rios do Recife, tem beira de praia, tem sol-posto. Uma
mulher Quase-Amada chegou uma noite, ousou entrar,
quedou-se algum tempo, mas não quis ficar (oh imprevisível
nômade). Estranha mulher Quase-Amada, protegida de
Ogum, leva rosas a Iemanjá, tem verde do mar-oceano nos
olhos pequenos, tem balanço do mar nos passos miúdos, tem
mistério do mar na boca, no corpo, no peito, Mulher-Quase-
Amada, feita de argila inflamável, tocou fogo na Ilha e partiu.
Vejo agora o que ficou do incêndio.
Esqueci de dizer que tem muita cinza na Ilha, tem três
cruzes. Tem capela com santo particular; de muitos mares
tem lembranças, de muitas partidas tem memórias, tem
canção velha, estória antiga, tem salmo, tem balada, tem
madrigal, tem oração de matinas e "de profundis", tem muitos
olhos olhando, vindo daquele lado que passou, chamam
Passado.
Longamente conversamos, eu e eu - não digo tudo.
Antes de sair plantei de novo um de esperança, que eu
planto todo ano por esse tempo, assim como plantava arroz
para a lapinha de Natal, quando menino. Uma folha deste
de esperança é tudo o que vos venho oferecer, com um ramo
103
de gratidão, a vós todos, nesta véspera de Ano Novo, a vós
que eu encontro, quando saio da Ilha...(DIAS, 1966: 131-135)
O primeiro parágrafo é decisivo para fortalecer a idéia de ilha como
alter ego de seu autor: a ilha chama-se Solidão, seu proprietário é um homem
só. A tautologia soma-se à idéia de reforço, já que ilha = solidão, nominalizada
também de Solidão; o homem é solitário (Ilha solidão/homem solidão). Não é
casual que a palavra ilha seja grafada com maiúscula em todo o texto, pois
isso a transforma num ser personificado com bastante autonomia.
outras idéias edificantes nesse parágrafo: a dicotomia da Ilha como
saldo negativo e positivo (manhã X brumosa; sol X ausente; céu X cinza; casa
X sem móveis e pessoas), por isso ela tem uma rua chamada Tristeza,
entretanto os frutos colhidos dessa Ilha movem o cronista (sua escrita
memorialística: a casa é “cheia de lembranças”).
Também é salutar a idéia de o mapeamento da Ilha não sugerir uma
prisão: janelas para olhar o mundo, uma porta aberta. Ela é intensa,
recorrente, necessária, entretanto não sublima o cronista.
Os dois próximos parágrafos vão matizando a Ilha de saudade e
tristeza, sendo esta última intensificada pelo cortejo das imagens
fantasmáticas que ressurgem para denunciar as perdas do cronista.
Quando ele está na Ilha, o estado de tristeza é tão intenso que o eu
lírico focaliza a idéia de venda, distribuição ou aluguel como perspectiva
inesgotável. Maior projeção ganha a tristeza com a idéia do crepúsculo: luz
permanente em toda a Ilha”.
O deslocamento do eu lírico pela Ilha faz conexão com a idéia de ir e
vir, que o predomínio temporal é o PASSADO (“o que foi”), concomitante à
consciência do presente (“o que tem sido”); portanto, o presente é reflexo
daquilo que ele viveu. Dessa forma, parece clara a idéia de Futuro (“o que virá
a ser”) como linha divisória na Ilha, intensificada no parágrafo seguinte com
um apelo místico, supostamente dessa mulher como cigana
9
: “brincos de
argola e de lenço na cabeça”. Mesmo se fosse possível prever o destino, o
9
Cigano. [Do gr. bizantino athígganos.] s. m. 1. Indivíduo de um povo nômade, provavelmente
originário da Índia e emigrado em grande parte para a Europa Central de onde se disseminou,
povo esse que tem um código ético próprio e se dedica á música, vive de artesanato, de ler a
sorte, barganhar cavalos. etc. (HOLANDA, 1983: p. 325)
104
cronista descartou tal possibilidade, pois na Ilha tudo é verdadeiro, não vale a
pena brincar com o desconhecido, desrespeitar o sortilégio.... Afinal, o eu
lírico evade-se no tempo, mas está consciente desse estado de fugacidade.
Essa consciência da evasão confirma-se ainda mais porque esta não é
perene; seu momento de expressão maior é justificado por trata-se de um
período de fragilidade humana, que é o final de ano, quando é coerente e
quase inevitável um balanço existencial: O homem assume a palavra e
contraditoriamente fica mudo. Esse silêncio é mais que quietude, é
transcendental, pois é na solidão que podemos captar o que a define. É do
sentido da ausência que nossa reflexão emana. Isso se traduz para o cronista
de maneira objetiva: fazer contas, pagar dívidas, passar a escrita a limpo,
rever dias, noites, rever manhãs e madrugada, mesmo que essas frases
sejam ambivalentes por sugerirem metáforas (“rever dias, noites”). As
palavras dias e noites talvez signifiquem as alegrias e as tristezas,
respectivamente e são peculiares à humanidade.
Nesse tônus de reflexão, outros sentimentos vêm coadunar-se com o
“Homem só”: sofrimento, aborrecimento, preocupação, entretanto ele não
deixa de focalizar a presença de trabalho e de alegria, embora pouca.
O balanço existencial continua sendo desenhado e vai ganhando mais
vigor, pois o cronista pontua a relação de seu eu com o outro: tem ingratidão,
tem amizade, tem amor pequeno (...) tem viagem. A culminância é a sugestão
de amor desfeito: Mulher Quase-Amada, feita de argila inflamável, tocou fogo
na Ilha e partiu. Vejo agora o que ficou do incêndio. Qual seria a
conseqüência dessa última frase? Provavelmente, um dos ingredientes do
que ele representa: um “Homem só”.
E como era esperado, dado o clima de reflexão, o cronista ressalta que
tem muita cinza na Ilha, tem três cruzes. Ora, cinza e cruzes estão no mesmo
campo semântico remetendo à idéia de morte, de destruição. Um dos mortos
deve ser o pai, cuja partida tão cedo motivou uma das temáticas centrais do
autor: morte.
Mais adiante retoma a idéia de memorialismo, gênero predominante de
sua produção literária, ressaltando algumas particularidades dessa produção:
canção velha, estória antiga, salmo, balada, madrigal, oração de matinas e
105
de profundis”. Com isso nos lembramos de alguns de seus títulos e de seus
intertextos, sobretudo com o poeta Villon (“Balada do enforcado”).
Ao concluir o texto, Mílton Dias demonstra otimismo, que é renovado
pela esperança de dias melhores. E, quase como num canto de louvação,
confessa que essa esperança vem também de seus leitores, uma fonte de
ânimo e consolo, pois a escrita talvez seja a maior presentificação de sua
vida. Dessa forma, mais esclarecedora fica a escolha lexical rica e precisa,
pois com ela parece focalizar a exegese do cronista-poeta.
E como inteligentemente assinalou Aguiar e Silva na sua Teoria da
Literatura:
Desde há muito o homem interpreta a obra literária como uma
forma de libertação e de superação de elementos
existencialistas adversos e dolorosos, como uma procura de
paz e harmonia íntimos, tanto no plano do criador como no
plano do leitor.( SILVA, 1979: 116)
106
CAPÍTULO 3
A VIDA ANDEJA DE MÍLTON DIAS: O ENTRE-LUGAR DE SUA
CRONÍSTICA
107
Partir é bom, ficar é triste, voltar é uma beleza
Mílton Dias
A cultura, soma de todas as formas de arte, de amor e
de pensamento, através dos séculos capacitou o homem
a ser menos escravizado.
André Malraux
108
3.1. O Ser itinerante
É indisfarçável a inter-relação do cronista Mílton Dias com um itinerário
sempre bem traçado, mesmo que, às vezes, o deslocamento seja metafísico.
Ao lermos seus textos, constatamos essa condição inerente a seu discurso
cronístico: percorrer, evadir, conhecer, retornar.
Os espaços percorridos dimensionam-se: não importam apenas os
aspectos topográficos mas também os históricos, sociais, políticos,
econômicos sempre deflagrados pelos olhos atentos do cronista, consciente
do dinâmico processo de urbanização.
Da postura do cronista parece emanar a mesma idéia do escritor Júlio
Cortazar: A cidade é mais que casas habitadas, é um código a espera de que
o decifrem (apud SOUZA, 2000:241). Recorrendo à memória individual e
coletiva, Mílton Dias vai viajando pelas cidades, sobretudo Fortaleza,
revestindo-as literariamente para desnudá-las em seus gestos, mistérios,
símbolos, significados, em suas malícias, personagens...
Dessa forma, Mílton Dias assume o papel de viajante, que as palavras
do estudioso Thomas Strater parecem revelar muito bem:
As viagens geográficas ou metafísicas são adotadas em
Sete-estrelo. Pois durante a noite as sete estrelas da plêiade
no céu serviam de orientação aos navegantes na antiguidade.
Esta função serviu também a Mílton Dias em suas sensíveis
viagens ao fim da noite (Entre a boca da noite e a
madrugada), durante o dia (Viagem ao arco-íris) e em seu
quarto como objetivo e ao mesmo tempo, outra vez, como
partida para a viagem, para o refúgio espiritual da solidão (A
ilha). (STRATER,1990:139)
Portanto, a viagem é um dos temas mais importantes do cronista
focalizado ou sugerido em alguns títulos de suas obras: Passeio no conto
francês, Viagem ao arco-íris, A ilha do homem , Sete-estrelo e mesmo de
seus textos: Voltei à ilha”, Viagem à Praça do Ferreira”, Viagem”, A mala”,
A volta”, De Paris a Reims”, Despedida de bordo”, Voltei”, Uma volta em
Paris”, “Tarde em Roma” entre outros.
109
Os deslocamentos do cronista são feitos no tempo e no espaço,
através de mecanismos temporais e intemporais, físicos e imaginários.
Através da memória voluntária e involuntária, o cronista retoma sua
infância em que se retratam os contadores de histórias na fazenda do seu avô
tematizando-se o fim do mundo, as bruxas, os lobisomens, entre outras.
Essa viagem metafísica, focalizada no primeiro capítulo da dissertação,
também é retomada no segundo mais aprofundadamente, pois o cronista, ao
(re)visitar sua infância, imaginando a volta paterna, após quatro décadas de
sua morte, revive Fortaleza que existe na memória individual de sua
produção literária.
Sua vida infanto-juvenil e adulta é demarcada em textos de maneira a
mapear suas vivências: a mudança de residência para a fazenda do avô, a
escola, a vinda a Fortaleza, as viagens pelo Brasil e pela Europa. O cronista
também viaja em sua imaginação às vezes em busca de seu tempo perdido
ou mesmo idealizado.
Para melhor delineamento dessas viagens, destacaremos dois tipos
importantes na cronística de Mílton Dias: as geográficas e as literárias ou
intelectuais, entretanto elas não são compartimentos estanques; imbricam-se
ou fortalecem-se entre si.
3.2. As Viagens geográficas
3.2.I. Ceará
Fortaleza
Praticamente no nascimento, Mílton Dias faz sua primeira viagem, pois
nasce em Ipu, mas sua infância vai transcorrer em Santana e Massapé; sendo
este último o lugar que marcaria suas vivências mais cruciais:
Fui como quem cumpre um voto, como quem precisa de
bênção, como quem volvendo às nascentes se purifica, fui
retornar a paz primitiva, numa ingênua busca do irreversível.
Fui a Massapé, meu amado país particular, minha perdida
Pasárgada. (DIAS, 1985: 31)
110
Outro deslocamento importante foi sua vinda a Fortaleza após a morte
do pai para o aprimoramento de seus estudos, entretanto ainda sem firmar
endereço definitivo:
As almas que sobem ao céu devem carregar a mesma alegria
que eu levava quando, dois dias depois dos exames, trepei na
boléia de um caminhão sobraçando minha bola que comprei
com os cobres que sobravam e rumei para o interior, para os
passeios a cavalo, os banhos no rio, a família, as festinhas, as
quermesses, as novenas, para as férias, para casa. (DIAS,
1985: 69)
Desse itinerário sertão-cidade, feito um duplo indissociável, Fortaleza
ganha a adoção do cronista e dela surgem seu universo intelectual-
profissional e a consciência de seu papel existencial.
Dessa cidade adotiva, portas são abertas ao cronista para vários
mundos que o tornaria um dos cronistas mais lidos até hoje, uma referência
em língua e literatura francesas, um dos imortais da Academia Cearense de
Letras e um memorável cronista do Grupo Clã. Fortaleza viabilizaria também
outros espaços nacionais e internacionais, bem como o aprimoramento de
seu impecável francês, principalmente em Paris.
Essa Fortaleza de muitas histórias também é freqüentemente tema de
suas crônicas, retratada pelo escritor como presentificação de vida,
focalizando-a várias vezes como uma espécie de hino de amor, como
verdadeiras prosas poéticas:
Este meu amor a Fortaleza, que aumenta cada dia e a cada
instante foi feito em capítulos, com sabor de novela e de
aventura, depois virou cantiga constante dentro do peito,
depois virou patrimônio e foi escrito em letra maior na minha
vida, cidade amada, idolatrada, a primeira, a mais cara, a
mais eterna, a mais grata da minha movimentada geografia
afetiva. (DIAS, 1985: 181)
O papel do viajante em Mílton Dias é explicitamente contornado em
suas andanças desde menino e vai aprofundando-se à medida que mais
avolumado vai ficando seu histórico existencial.
Suas viagens começam, mais deliberadamente, na própria Fortaleza,
tão transfigurada, percorrida em suas dimensões físicas, sociais e afetivas.
111
Não raro o cronista sinaliza seu papel de cronista social ou de historiador,
cuja intenção é apresentar ao leitor o retrato fiel da cidade, sem
escamoteamentos tão comuns ao trabalho realizado por vários guias
turísticos, que percorrem a cidade com uma trajetória pré-estabelecida e
“maquiada”. Daí a diferença com o cronista Mílton Dias:
... para conhecer bem qualquer cidade do mundo, é preciso
andar de ônibus, ir ao mercado, ao cais do porto, conversar
com o garçom, o barbeiro, o engraxate, o ascensorista –
assim você terá uma média do que pensa o povo dessa
cidade, como ele vive, mora, ama, sofre, come e trabalha.
(DIAS, 1985, 188)
Com as palavras do cronista, estabelece-se a dicotomia: visitar uma
cidade é diferente de conhecê-la. Os hábitos, os costumes, as edificações, as
mudanças, os símbolos, as ruas, as esquinas, os bairros, seus nomes... o
documentos que dão certidão de existência a um local ao mesmo tempo que
o diferenciam de outros espaços. Mas, para o reconhecimento da relação
intrínseca de seu biografismo com a história, é necessário trilhar um caminho
de olhos bem abertos a fim de decodificá-la:
Em toda a sua extensão, a cidade parece continuar a
multiplicar o seu repertório de imagens, no entanto, não tem
espessor, consiste somente de um lado de fora e de seu
avesso, como uma folha de papel, com uma figura aqui e
outra ali, que não podem se separar nem se encarar.
(CALVINO, 1990: 97)
A forma de ver a cidade adotada pelo cronista é revelada ao leitor na
fusão da memória individual e coletiva. Adotando o papel de cicerone, ele
traça um roteiro a uma visitante imaginária, que vem a Fortaleza pela primeira
vez:
Senhora, por quem sois, ficai a gosto, que esta cidade
é mulher como vós, cultiva as prendas do agrado e exerce
com alegria o gentil acolhimento, incansável como o verde do
seu mar, quente como este sol que pouco se ausenta e
brando como a brisa que certamente levará com vossos
cabelos. Talvez vos interesse uma informação inicial, muito
importante: somos um milhão e meio de habitantes, o que
vale dizer, a quinta capital do Brasil em população. O clima é
112
ameno, saudável, estável. Somos de pouco passado, de
muito presente e de grande futuro,
A certidão de nascimento de Fortaleza está ali perto do
Passeio Público, oficialmente Praça dos Mártires, porque
foram sacrificados alguns heróis da Confederação do
Equador. E o documento primeiro, feito em pedra, é o Forte
que deu o nome a esta cidade, que tem Nossa Senhora da
Assunção como madrinha - o antigo Forte Schoonenborch, do
tempo dos holandeses.
Bem perto corre o Pajeú, que cantarola cantigas
outrora aprendidas, guardião da história da cidade,
testemunha humilde e discreta, constante, andejo como o
povo que vive à sua margem, o riacho cantante que agora
está tendo tratamento condigno.
O mais aprendereis na vossa permanência em
Fortaleza, lamentavelmente tão rápida. Visitar as praias,
explorar o centro, os bairros residenciais, o Mercado Central,
a Emcetur, a Central de Artesanato Cearense Luisa Távora,
as lojas de artesanato da Av. Monsenhor Tabosa, o Museu de
Arte da Universidade Federal do Ceará, a Casa de José de
Alencar, o Campus do Pici, a Casa de Cultura Raimundo
Cela, o Teatro José de Alencar, os clubes, os restaurantes, as
boates, E se fordes à beira-mar um pouco antes do
crepúsculo, surpreendereis os jangadeiros de volta da sua
aventura que constantemente se renova, em busca do peixe
de cada dia. (DIAS, 1985: 175-6)
A partir do próprio título da crônica Boas vindas a uma visitantebem
como o resto do texto, o leitor vai (re)visitando a cidade resgatada pelo autor
através do número de habitantes, do clima, da certidão de nascimento
(“Passeio Público, oficialmente Praça dos mártires”), dos pontos turísticos,
inclusos também os culturais: Museu de Arte da Universidade Federal do
Ceará (MAUC), a Casa de José de Alencar etc., das rendeiras cuja arte foi
trazida de Portugal. Assim, Fortaleza vai exurgindo para os leitores.
Quantitativamente, a capital do Ceará é o espaço mais (re)visitado pelo
autor, apresentando-o a ele mesmo, a nós leitores de seus livros e de suas
crônicas n’O Povo e ao próprio pai morto, imaginariamente, na obra Cartas
sem resposta. E a cidade Fortaleza, “invisível” a nossa forma de olhá-la, vai
ganhando um desenho concreto sob a ótica de um cronista historiador e
poeta a desnudá-la já distante dele e mais ainda dos visitantes atuais:
Então passavam os bondes de saudosa memória, fazendo
estremecer o soalho da velha, enorme casa, bondezinhos
sonolentos, ruidosos, soluçantes, gemendo em cima dos
trilhos. Foi com eles que aprendi a cidade, nos domingos de
113
saída Benfica, Prainha, Soares Moreno, Via Férrea, Oiteiro,
Fernandes Vieira (...) Posso dizer que foram eles que me
deram de presente Fortaleza de corpo inteiro. (DIAS,
1985:182)
Do que se depreende das palavras do autor, conhecer as cidades
demanda tempo, paciência, atenção e mais que isso: revisitação. Pode-se
inferir também que é desse comportamento andejo e desbravador que surgiu
o acervo temático para muitas de suas crônicas. Devido também à maneira
da busca da fonte inspiradora, veio a conquista definitiva de seus leitores,
pois Mílton Dias soube revelar-se um grande colecionador de tipos humanos,
de histórias, de retratos espaciais... Não dependeu de intentos imaginativos
ou de leitura informativa para escrever, pois ele viveu perto de pessoas
universalizadas na condição de viver: têm desejos, necessidades, buscam
realizações, sofrem, amam, desamam... na peleja contra a morte que as
pode findar a qualquer instante.
Com sensibilidade aguçada e a visão ampliada, o cronista percorre
espaços de Fortaleza como se fosse uma cidade dentro de outras. São os
patrimônios resgatados pela memória do cronista, até porque muitos deles
não têm a mesma fisionomia de antes.
A propósito, um dos itinerários percorridos com avidez por Mílton Dias
nos é revelado pelo título da crônica: Viagem à Praça do Ferreira”, com o
qual ele nos informa de uma relíquia quase que absolutamente impossível:
percorrer pontos da cidade a pé, mesmo de dia estando o transeunte em
segurança, devido aos problemas de urbanização, especificamente os
assaltos e roubos.
Os que viveram uma Fortaleza mais tranqüila devem (re)ler alguns
textos do cronista com um saudosismo amarfanhador:
Atravessei a rua, prossegui distraído. De dentro do
primeiro bar, de repente saltou um bêbado que me agrediu
efusivo, gordo vermelho, um vago conhecido de quem nem
me acudiu o nome veio intempestivo e fraterno, congraçante,
alvissareiro (...) Até que me ocorreu uma mentira salvadora,
invoquei uma consulta médica marcada, estava em cima da
hora. (...)
Quando atingi a Praça já eram onze horas, fui abordado
por vendedor de bilhete de loteria, por mendigos (...)
114
Decididamente foi uma manhã de encontro com gente
feliz. Deixa estar no próximo sábado eu vou mais cedo. (DIAS,
1985: 195)
Como astuto observador de gente e de locais, Mílton Dias sabia bem o
significado de viajar. Em um de seus mais edificantes textos “Viagem”, o valor
e o perfil de um viajante são esmeradamente caracterizados como se ele
quisesse empreender lições de partir:
10
1º. Viajar bem é uma sabença que se vai aprendendo,
melhorando, aperfeiçoando com o tempo. (...)
2º. Bom mesmo é partir a passeio, sem compromisso, sem
horário, sem programa rígido, partir, como diz o francês, au
petit bonheur, com dinheirinho no bolso para não deixar de ver
nem de fazer o que se pretende, livre como passarinho no ar.
(...)
3º. O viajante experimentado aprende a reduzir sua bagagem
ao estritamente necessário, sem a pretensão de exibir
variedade de roupa em terra estranha, exatamente onde não
é conhecido, nem sequer notado. (...)
4º. Fundamental é abastecer-se o viajante de bom humor,
condicionar-se para receber com fair play os imprevistos,
aceitar sem a inútil reclamação atrasos de avião, transformar
os desencontros em encontros e conversas. E não protestar
contra os hábitos dos outros ( antes apreciá-los na
confirmação de que cada povo tem seu uso)(...)
5º. A sugestão inevitável a oferecer a quem se dispõe a viajar
é começar a exercer a curiosidade antes da viagem: informar-
se e informar-se. (DIAS, 1985: 199-202)
Através da leitura desses pequenos trechos, mesmo sem o
conhecimento de toda a crônica, é inquestionável a consciência de viajante
em Mílton Dias.
Como disse Chesterton: O viajante o que vê, o turista o que foi
ver.” (LEITE: (?), 274) Aí se encontra a diferença estreita entre o turista
intelectual-social (retrato do viajante) e o turista inexperiente ou supérfluo.
Tais palavras de Chesterton harmonizam-se com as de Mílton Dias:
que a questão é saber descobrir” (DIAS, 1985: 189)
3.2.2. Outras cidades brasileiras
10
A enumeração foi demarcação nossa, pois julgamos que essas são as lições do cronista sobre Viagem,
por isso assinalamos as cinco mais importantes no texto.
115
A condição de um viajante contumaz inerente a Mílton Dias não se
restringe somente ao sertão cearense e a Fortaleza, porque ele também
percorre, com desenvoltura, outros cenários brasileiros de maneira a
presentear os leitores com textos que parecem verdadeiros cartões-postais;
possíveis pela escrita habilidosa e sensível de um grande observador,
capaz de captar cenas simples, mas de grande força imagética da retratação
do local:
Ah, quem for à Bahia, além das clássicas visitas indicadas
pelos guias turísticos, não deixe de procurar o Sergiu’s’, um
restaurante que não sedifícil encontrar nas águas da Barra.
A atração começa na porta com um preto alto, magro,
encadernado em casimira escura, de chapéu gelô e óculos
com aros dourados, trêfego e bisonho, acolhendo a clientela
em francês, cheio de mesuras. (DIAS, 1985: 204)
Como se não bastasse a sutileza da fotografia que é sugerida, o
cronista usa outros recursos atraentes: função apelativa (“não deixe...”), uma
descrição instigante e uma escolha lexical meticulosa. É como se
visualizássemos essa figura típica da Bahia, muito impecável, a se fortalecer
pela expressão inusitada: “encadernado em casimira escura”.
Esse trecho consta na crônica “Notícias da Bahia”, tomada como
referência à capital, pois é nesta que existe uma espécie de catálogo
abrangente do povo baiano, sobretudo um que foi amigo próximo do cronista,
Jorge Amado.
Salvador foi muito visitada por Mílton Dias e dela sempre feita uma
retratação físico-social, bem como nos foram dadas informações novas. Não
lhe faltavam considerações sobre as perdas trazidas pelo progresso urbano:
Sempre é bom rever a Bahia, pouco que seja, conviver com o
que restou da infância do Brasil, conferir o que cantam seus
poetas, descansar a vista no azul do seu mar que conta
estórias e lendas antigas, percorrer as praias famosas, vagar
pela ladeira do Pelourinho o que ficou de mais belo e
pouca gente sabe que carrega o nome de José de Alencar),
testemunhar a partida dos saveiros, conversar com as pretas
vistosas nos seus trajes típicos (agora menos numerosas,
responsáveis pelo cheiro gostoso de dendê que identificava a
cidade), comer pratos antológicos, ouvir pedaços daquele
folclore pitoresco e rico. (DIAS, 1985: 203)
116
Outra cidade importante no rico histórico de vivências do cronista é
São Paulo, onde ele foi professor durante dois anos. O título da crônica A
volta desperta curiosidade ao leitor, pois é uma revisitação e esperamos
atentamente as considerações do escritor sobre o reencontro com a cidade. A
propósito, no primeiro parágrafo, constatamos que a urbanização andou
fazendo estragos:
E os ‘trombadinhas’ desafiam a polícia, até meninas se
transformam em pequenas ladras atrevidas, de ligeiro. São
os percalços das metrópoles que compulsivamente se
despojam do antigo encanto, não permitem mais aquela
adorável despreocupação que o visitante anônimo gozava,
vendo, vivendo, observando, comprando tranqüilamente.
(DIAS, 1985: 222)
Nós, leitores de agora, temos vontade de “dialogarmos” com o cronista
para nos atualizarmos de que hoje está tudo absolutamente pior em São
Paulo. Apesar da avaliação objetiva e desoladora da cidade, Mílton Dias tinha
lúcida consciência de que era impossível barrar o progresso, por isto suas
palavras finais nessa crônica transitam num percurso paradoxal:
E triste ver a bela avenida, em que ele morou, inteiramente
transformada, irreconhecível, cheia de enormes e difíceis
neutros, onde se levantavam respeitáveis casas senhoriais. E
a humanidade em marcha mais rápida se sente certamente
esmagada pelo rolo compressor do progresso, os homens
começam a perder a capacidade de diálogo, a luta de cada
dia se torna cada vez mais feroz, mais competitiva. Apesar de
tudo, eu teimo e revejo e voltarei tantas vezes quantas
puder.(DIAS, 1985: 224)
Outro espaço importante nas andanças do cronista é Minas Gerais,
cujo título da crônica parece esquisito Guardai-vos da Rainha, mas somente à
primeira vista, melhor dizendo, sem a leitura integral do texto. Pois, se
conhecemos um pouco o estilo de Mílton Dias, ficaremos atentos a algum
dispositivo irônico, ou humorístico que estará por vir:
Se quiserdes utilizar uma ‘charrete’, não vacileis – é uma
beleza de passeio, explorando recantos, abraçando a cidade.
Mas desde vos advirto: evitai aquela ‘charrete’ puxada por
uma burra que atende pelo nome de Rainha. Foi esta que eu
peguei mas nunca vi rainha tão mal comportada, tão
117
despreparada para a responsabilidade do título que carrega.
Pois não respeitou nem a limpeza da rua, nem o olfato do
único passageiro naquela manhã maravilhosa. Presume-se
que, na véspera, teria abusado da água mineral e o jovem
charrateiro que por coincidência se chamava Mílton, aflito
tentou explicar, quis falar em aerofagia, não conseguiu dizer o
nome. Não sei; de qualquer forma, é bom que estejais
prevenidos, guardai-vos da Rainha.(DIAS, 1985: 208)
O bom humor do cronista é indisfarçável a começar pelo tom poético
usado e pela antropomorfização emprestada ao animal, desembocando tudo
num tom de pilhéria, bem ao gosto do escritor.
A região mineira é imageticamente delineada pelas mãos do cronista, a
ponto de os leitores sentirem-se seduzidos a fazer o mesmo itinerário traçado
pelo cronista:
Ah, Minas Gerais, bem que o poeta disse, quem te viu não
te esquece jamais, porque ninguém esquece Ouro Preto,
Sabará, Congonhas, ninguém esquece o Triangulo Mineiro,
Uberaba, Uberlândia, Araxá, ninguém esquece Caxambu,
Lambari, São Lourenço, Cambuquira.(DIAS, 1985: 207)
Outro espaço focalizado é o Amazonas, sobretudo pela visitação dos
rios Negro, Solimões e o próprio Amazonas; este último, retratado pela lenda
contada ao cronista pelo botânico, antropologista e etnógrafo Barbosa
Rodrigues. Fala da impossibilidade amorosa entre o sol e a lua, advindo disso
as lágrimas da lua, que formaram o rio Amazonas.
Manaus também é delineado, segundo o cronista, na sua infância,
pois sua avó materna nascera e depois de casar-se com um cearense,
jamais retornou à terra natal.
Mílton Dias também envereda pela Zona Franca de modo a confirmar,
como costumeiramente, sua postura de cronista, pronto às avaliações
críticas:
Da chamada Zona Franca conto pouco, pois não fui vencer o
incontrolável animus aquirendi. Mas vi alguma coisa, sim,
sobretudo a indiferença com que nos atendem as vendedoras,
inteiramente despreparadas para o ofício que lhes caiu
inesperadamente às mãos e as levou a uma sorte de
amadorismo profissionalizante. E me distraí com a atividade
febril dos compradores, a fome de produtos estrangeiros, a
ânsia de não perder um minuto para comprar, comprar,
118
comprar o útil e o desnecessário, mas conjugar integralmente,
desbragadamente o verbo com uma volúpia nunca vista
antes, nem nas viagens ao exterior. (DIAS, 1985: 217)
Agora surge, com o Rio de Janeiro, o papel do cronista como voyeur
atento aos transeuntes:
Um desconhecido se aproxima, interrompe a minha
contemplação, pergunta o nome da praça. Tem um ar
estranho inquieto, quase aflito, vê-se que não tem tempo a
perder. É um homem de meia-idade, alto, forte, portando uma
camisa social branca sem gravata, calça azul, chinelão.
Pergunta onde está, confessa-se meio desorientado e, no
entanto, acrescenta, morou aqui nas imediações vinte
anos atrás. E tendo passado esse tempo todo em
Blumenau, onde reside, veio agora rever o Rio, encontra tudo
fora do lugar. (DIAS, 1985:220)
A cena nos lembra de uns trechos do poema Minha terra” de Manuel
Bandeira, da obra Belo Belo:
Minha Terra
Saí menino de minha terra.
Passei trinta anos longe dela.
(...)
Revi afinal o meu Recife.
Está de facto completamente mudado.
Tem avenidas, arranha-céus.
(...)
A visão atenta do cronista agora encontra outra cena que
desemboca em humor reiterado astutamente entre os parênteses:
Aquelas moças friorentas tão agasalhadas, uma de amarelo, a
outra de preto, os cabelos longos soltos, uma loura, a outra
ruça, bem mereceriam estar acompanhadas (serão cegas,
não vêem que aqui está, suspirando, um homem só?).
Parecem vedetes em intervalo de ‘show’ não acredito que
permaneçam sozinhas por mais de dois quarteirões. (DIAS,
1985: 220)
3.2.3. Europa: França, Grécia, Itália, Espanha
119
Depois de Massapé e Fortaleza, a França é o espaço de maior
importância para o cronista, pois ele o adotou como “Pátria espiritual”, no dizer
do estudioso Thomas Strater.
Curiosamente, a França já tinha sido apresentada a Mílton Dias através
de sua professora sertaneja na época de Massapé e em cujo título sugestivo
A moça e o sonho reside esse fato:
Uma tarde chuvosa plena de ousadas sugestões, concluída a
aula, a jovem mestra me conduziu diante do mapa da Europa
(...) me apontou a França, país de sua predileção. (...) Com
sua ajuda, na sua companhia, pelo milagre do pensamento, vi
as rendas de pedra e os vitrais como jóias de tantas catedrais,
principalmente as de Paris Notre Dame, Saint Denis, Saint
Séverin, Saint Etiènne du Mont, Saint Germanin dos Prés.
Posteriormente, exploramos as de Chartres, Strasbourg,
Toulouse, Bordeaux, Reims e outras, igualmente famosas.
(DIAS, 1985: 118)
O cronista, à semelhança do trabalho realizado sobre Fortaleza, lança
seus olhos de alumbramento e paixão sobre a capital francesa, entretanto
diferença marcante entre as duas cidades: a primeira é seu bem querer maior,
seu refúgio, seu retorno, lugar escolhido para o todo-e-sempre.
Se avaliarmos os títulos referentes à retratação do itinerário francês,
constataremos também sensíveis diferenças ao juízo de valor empregado aos
de Fortaleza: “Uma volta em Paris”, “De Paris a Reims” contrapõem-se a “Este
meu amor a Fortaleza”, “Fortaleza e eu”.
Mílton Dias tem uma relação afetiva grandiosa com a França: as
amizades, o prêmio do governo francês promovendo-o do grau de Chevalier
de Palmes Académiques ao de Officier, os itinerários percorridos, seus
símbolos e um dos mais significativos que é o rio Sena:
...era um rio-mulher, tinha no corpo volteios de bailarina e
cortava, decorativa, graciosa e serviçal, a mais bela cidade do
mundo (...) Foi, portanto, amando o Sena que comecei a amar
verdadeiramente a França, foi desejando vê-lo, conhecê-lo de
perto, conviver com sua água, passear nas suas margens,
conversar com seus buquinistas (...) que eu penetrava, cada
dia, com interesse maior, no estudo da ngua, da civilização,
da arte da literatura, da história, da cultura da França. (DIAS,
1985:125)
120
O tempo de convivência do cronista com a França, especificamente
com Paris, revela também a constante travessia mental para o Brasil, e mais
notoriamente para Fortaleza. Às vezes, na forma de compará-las, surge o
processo urbanização inevitável:
Outra surpresa desagradável que me aguardava foi sentir o
ritmo de Montparnasse tão mais agitado (era deliciosamente
tranqüilo) e, o que é mais grave, a construção de edifícios
ultramodernos, a silhueta oblíqua da Torre (inegavelmente
muito bonita, sobretudo, à noite, feericamente iluminada, que
ficaria bem em São Paulo, no Rio, em Brasília ou Fortaleza)
mais o Hotel Sheraton e a Galeria Lafayette e bancos, até a
“Gare” está modernizada. Santo Deus, dá medo que dentro de
alguns anos a cidade esteja totalmente descaracterizada e
vire aquilo, fruto da ambição de investidores imobiliários que
pululam em toda parte do mundo. (DIAS, 1985: 230)
Os olhos do cronista sobre Paris são os mesmos usados para ver as
cidades brasileiras, por isso não lhes faltam a ótica social, histórica,
topográfica.... textos em que visualizamos também perfeitos cartões-
postais, impregnados de jogo cromático:
Cada vez que vou à França me pego numa dívida geográfica.
Agora foi a região do Champanhe que vi. Desde a partida de
Paris, pelas dez horas da manhã, depois de atravessar a o
Bois de Vincennes, em pleno outono, com os castanheiros e
os plátanos dourados, naquele fundo de floresta amarela,
iluminados por um sol brando até chegar às estradas
margeadas de campos de trigo a perder de vista, foi tudo uma
beleza. (DIAS, 1985: 240)
Existem outros em que denotamos uma forma de ver a cidade francesa
com olhos mais astuciosos:
E voltam dizendo que “conheceram” Paris, como se a
cidade pudesse revelar à primeira vista os seus mistérios,
seus encantos mais íntimos.
É claro que Paris se entrega com relativa facilidade,
mas se reserva aos que estão condicionados por um longo
aprendizado cultural, aos que a amavam à distância e em
chegando experimentam aquela eufórica sensação de
reencontro; os que não vão dispostos ao deslumbramento
gratuito pretendem apenas confirmar a velha admiração,
diante de cada santo em que o passado e o presente se
fundem. (DIAS, 1985: 238)
121
O viajante Mílton Dias, entretanto, não pára sua caminhada na França,
vai ganhando também outros ares com as mesmas posturas usadas em
outros itinerários. Há momentos em que o cronista faz um verdadeiro papel de
cicerone, de guia turístico dos mais atualizados, cujas informações são tão
intensas, eficazes e consistentes que não deixam a desejar aulas de histórias
no sentido mais auntico da palavra: o que nos é dito destrói a idéia de
abstração que a História tantas vezes imprime aos alunos, sobretudo aos mais
inexperientes.
O texto-referência a essa postura do cronista é “Atenas”, que merece
ser lido na íntegra, pois é uma verdadeira viagem intelectual. E o começo dele
nos seduz pela proposta, mesmo hipotética, de irmos a Atenas. O cronista
recomenda várias visitas aos pontos turísticos, porém nos mune de
advertências importantes, tais como, o preço alto dos guias, a necessidade de
termos um livro topográfico a respeito da civilização grega na arquitetura, nas
artes, na literatura, das lutas históricas... Enfim, é preciso que vejamos Atenas
como propõem os olhos do cronista: com dispositivos social, cultural,
topográfico e artístico que o autor soube sugerir tão bem. A crônica tem tom
de texto vivo, imagético, espécie de retrato falado do cenário grego.
Outro ponto interessante é a capacidade de associação que o cronista
tem em retratar o local visitado ao Brasil e às nossas origens. É ligando
justamente esse telurismo indisfarçável que nos convida a uma leitura mais
envolvente:
Sim, depois da volta ao passado é bom descer à
cidade e descobri-la sem guia, por conta própria. Muita coisa
mudou a grande Atenas (compreendendo o Pireu e os
subúrbios) (...) transbordando dos seus limites tradicionais,
tem largas avenidas e mostra edifícios em linhas modernas. A
Praça da Concórdia, por exemplo, tanto poderia estar lá como
em Belo Horizonte ou Fortaleza. Aqui, ali, um prédio em linhas
clássicas, ornado de colunas iônicas ou dóricas. (...)
Curioso é que o nordestino brasileiro não se sentirá
deslocado na Grécia a cor do tempo, a transparência da
atmosfera, o sol a profundidade do céu, a vegetação, tudo
lembra a nossa natureza. o mar difere o mar Egeu foi
pintado dum azul exclusivo, o verdadeiro azul marinho, como
não se em nenhuma outra parte do mundo. (DIAS, 1985:
244-5).
122
Estando ainda na Grécia, Mílton Dias aproveita também o cenário
humano e nos conta sobre um mineiro, turista pitoresco, quase uma caricatura
de São Tomé, que suscita risos do leitor:
Este dito mineiro é dos que acreditam vendo,
pegando, apalpando e no Palácio de Cnossos, em Creta,
sentou no trono do Rei; em Delos salgou-se no mar; em
Mykonos, precisou passar a mão no pelicano vivo, vedete da
cidade, para ter a certeza de que aquilo, existia. E na Turquia
rompeu um cerco de fotógrafos, quase sofreu uma agressão,
mas chegou perto de Anthony Quinn, apertou-lhe a mão com
estas palavras: “Zorba, the Greek!”. (DIAS, 1985: 247)
É através desse turista que o cronista vai apresentando-nos a Creta,
pois foi justamente o local de maior fascínio para o mineiro. Assim, um
mundo de informações preciosas sobre o local vão sendo processadas pelo
leitor atento, mas, que, a essa hora, fica esperando outra peripécia do
mineiro e não é em vão: A reprodução em Madri do trono de pedra ocupa
lugar de destaque na sala do trono, onde sentava o rei Minos. E onde sentou-
se o trêfego Mineiro, sob o olhar perplexo e repreensivo da senhora guia.
(DIAS, 1985: 249)
Dessa cena é impossível sairmos sem risos diante da reação da guia e
do comportamento grotesco do turista. Realmente, o jogo imagético é
meticuloso, pois a essa altura (penúltimo parágrafo da crônica), muito foi
dito sobre a imponência do lugar, o que contrasta com o comportamento do
Mineiro, desinformado sobre o acervo cultural da Grécia.
Outro tipo de informação que parece esperada é algum tipo de
associação ao Brasil, que se confirma através da arte plástica local:
No Museu de Herakleion, em falança, a Grande Deusa das
Serpentes, a Pequena Deusa das Serpentes, o acrobata em
marfi, a Bailarina, afrescos com temas vários, alguns peixes e
touros, lembrando as pinturas do nosso “Chico da Silva”.
(DIAS, 1985: 249).
Ainda nos apresentando a Grécia, o cronista apruma sua câmera na
ilha de Mykonos e pára aí para alguns retratos, pois é o ponto final da viagem
cujo título já antecipa a temática: “Despedida de Bordo.”
123
Esse texto é mais descompromissado com as volumosas informações
histórico-geográficas, mas em nada deixa a desejar a postura hábil do cronista
sociológico:
Da minha parte não viajo para comprar não trago senão
lembranças adquiridas ao acaso o tempo que seria gasto
nas lojas prefiro aproveitar em não fazer nada, andando,
observando, vivendo cada cidade, gozando tranqüilamente o
cotidiano, não deixando no entanto de ver nada que
represente enriquecimento cultural ou alegria para a rica
vidinha. Mas confesso que eu mesmo não resisti a algumas
tentações em Mykonos, diante de tantos bazares que agridem
a vista e estimulam a cobiça. (DIAS, 1985: 251).
O próprio local também convida ao traçado dos tipos humanos e a
reação deles nesse cenário. Portanto, não faltam os tipos pitorescos,
sobretudo não está ausente o nosso “Mineiro” e agora compreendemos
melhor o porquê de o escritor apresentar a palavra com letra maiúscula: deve
ser uma metonímia dos tipos burlescos de turistas, vista de maneira
universalizada, para retratar a inexperiência somada ao comportamento
insensato ou ingênuo dos que viajam sem postura de turista bem-informado.
Pois nessa crônica existe, praticamente, uma galeria deles cuja representação
não é só brasileira. Devido à descontração maior, fruto do ponto final da turnê,
o texto flagra, com totalização, um ambiente descontraído, leve, humorístico,
propiciado talvez pela aproximação dos turistas, em vários dias de convívio,
bem como a consciência deles de que precisam aproveitar com veemência
aquilo que lhes resta da excursão. Dessa focalização, vale apresentar uma
cena de absoluto bom humor do cronista e sua capacidade de nos fazer rir,
misturando dois tipos humanos contrastantes em vários aspectos, sobretudo
em linguagem e é disso mesmo que advêm o humor e a ironia.
A velha senhora Morris, de “longo” plissando marrom, amplas
mangas e óculos escuros, (tão parecida com morcego,
coitada), exclamava patética e declamatória: - Eu passaria
aqui o resto da minha vida! Ao que o brasileiro próximo,
irreverente, certo de não ser entendido, aconselhou no seu
melhor português: - Cai n’água, véa! (DIAS, 1985: 250).
Outro ponto da crônica que vale ressaltar é a postura do cronista como
espécie de ator, pois, ao comentar para a turista canadense sobre Fortaleza,
124
na verdade representa um papel parecido ao de Marco lo que soma
realidade e fantasia sobre o local descrito. Mílton Dias não apenas parece
num palco como escolhe um papel engenhoso, espécie de Sherazade que vai
seduzindo a ouvinte ao retratar Fortaleza. E numa disputa a defender a Terra
amada, Mílton Dias discrepa para o fabuloso, embora tenhamos consciência
de que era esse o retrato que ele queria de Fortaleza, portanto é crítica sutil e
até assim ele viaja dentro de outra viagem: imaginação.
A moça canadense que falava constantemente das belezas
de Quebec teve a feliz idéia, naquele derradeiro encontro, de
me pedir que falasse da minha terra. Não, eu não ia deixar
Fortaleza perder para Quebec, isto nunca e pintei a nossa
cidade com os encantos que tem, mas bastante ampliados,
multipliquei a população por três, pus na boca de cada
habitante um sorriso de acolhimento, de felicidade a todo
mundo, limpei as ruas, lavei os monumentos, ajardinei todas
as praças, coloquei verde por toda parte e cantei as graças de
nossas praias. Tão parecidas com as de Mykonos, garanti.
Deus me perdoe, até abri mais buracos nas ruas para as
obras ao metrô. Diz ela que vem ah minha Nossa Senhora,
valei-me. (DIAS, 1985: 252)
Depois dessa visitação à Grécia, o espaço é cedido à Espanha,
retratada através de Toledo, cuja crônica é homônima dessa cidade.
Lendo-a, não falta em Mílton Dias o vigor de cronista consciente de seu
papel:
A crônica, no caso, há de funcionar como testemunha de
episódios vividos em meio à gente estranha que conheci,
anônimos com quem conversei: o garçom, o barbeiro, o
engraxate, o motorista, a mendiga, que no seu despretensioso
depoimento acabam dando uma dimensão exata de como a
cidade vive, pensa, sofre, goza, ama, se diverte, o que conta
são as estórias colhidas por esses mundos, que confirmam a
velha tese de que a humanidade é a mesma por toda parte.
(DIAS, 1985: 254)
E se não tivermos atenção diante das palavras do mestre da crônica
andaremos em círculo, ou mais agressivamente, estaremos promovendo
tautologias, pois a consciência de sua postura social e do papel do cronista
como repórter de flashes do cotidiano, que espelham a universalização
humana, é constante na escrita de Mílton Dias. Ele conhecia seu público e
125
pela lucidez de seu universo intelectual também tinha dimensão de sua
escrita, de suas temáticas, da escolha lexical de sua comunicação. -lo é
como se estivéssemos assistindo a sua leitura em voz alta no processo de
revisão final. Assim, sentimo-nos seus cúmplices e não há como sairmos
impunes desta circunstância: por lermos suas crônicas sob um foco bem
ajustado e do qual todos somos parcelas, vemo-nos em seus textos, que
desfilam personagens bem humanos, bem próximos da nossa realidade
diária; não são simulacros de uma vida imaginada, literária; são comuns, são
verdadeiros retratos do nosso dia-a-dia. Grotescos, tristes, reflexivos,
sombrios,... não importa, pois representam a vida real, mais real impossível.
Não bastando tudo isso, Mílton Dias focaliza a figura de Marco Pólo
como uma espécie de espelhamento da própria figura do cronista experiente:
E Marco Pólo, quando morria, alguém lhe chegou à beira do
leito e insinuou que era chegada a hora da verdade,
aproveitasse, pois, o ensejo, para confessar que era mentira
tudo o que contara das suas andanças”. Ainda bem que tal
energia para levantar a cabeça e fuzilando com o olhar o
interlocutor ousado, afirmou: “Não contei sequer metade do
que eu vi. Esse Marco Pólo tinha seu tanto de sábio, quando
dizia que para viajar, aprender, assimilar, são necessárias três
qualidades: “olhos atentos, mente clara e coração de poeta”.
(DIAS, 1985: 255)
Sejamos sinceros: depois de lermos Mílton Dias, duvidamos dessas
três condições? O nosso cronista precisa aprender alguma delas? Parece
mesmo justificativa de sua escrita aquilo que Mílton Dias apresenta sobre
Marco Pólo.
Ao ler as palavras a seguir, temos alguma dúvida de que nosso cronista
está presente em cada uma delas, ou melhor dizendo, lendo também as
palavras dele retratando Toledo não é a recuperação do dito? Não é a
primazia de nosso escritor que se iguala, pelo menos, ao todo escrito?
Bem que eles avisam: “Viajante que vens a ver e
saborear estas glórias, não penses agora nas comodidades
materiais, nem encontrar ruas amplas e luxuosas, nem
edifícios modernos, nem esplêndidas avenidas, nem jardins
coloridos. Abre, muito abertas, as asas do espírito, e por cima
dos muros de pedra e entre as ruas estreitas, sinuosas e
sombrias, deixa que o pensamento voe, que a fantasia se
desenvolva, que o sentimento goze. Deixa que a alma se
126
inunde, plena de emoção. Depois, se a cidade te agradar,
pende em teu coração a flor immarcessible’ de uma
lembrança, amante, e duradoura, pela cidade, que, pródiga e
generosa, vai abrir-se gentil aos teus anseios”.
Tem-se a impressão de que Toledo foi copiado dum
cartão-postal, invertendo a ordem das coisas. E vendo-a no
conjunto, chega-se à conclusão de que Toledo é uma
miragem, uma hipótese geográfica feita de pedras e de casas
que se derramam como num presépio, cercada pela muralha
presa de que lembra a antiga Jericó. (DIAS, 1985: 255)
Depois de lermos esses trechos, quais as dúvidas de que Mílton Dias
também incorpora o comportamento de Marco Pólo? Precisa nosso cronista
de explicitação sobre sua sensibilidade de construir também suas “cidades
invisíveis”? Será que qualquer um de nós, leitores, temos a destreza de
viajarmos com essa postura? A resposta provavelmente será negativa, pois é
necessário, pelo menos, bastante tempo para enxergarmos os espaços que
percorremos com lentes ampliadas.
Outro lugar perlustrado é a Itália, mas, redundantemente, não é preciso
refletir o jorro de informações e de aprendizado que o leitor pode aproveitar
com a leitura das crônicas. Resta-nos refletir com as palavras do cronista
hábil: Meu Deus, eu paro aqui, por respeito, a paciência do leitor, que não
tem nada a ver com as minhas viagens”. (DIAS, 1985: 262). A palavra viagens
não está aí por acaso. São viagens mesmo: intelectuais, históricas, sociais,
literárias,... nem sempre ao nosso alcance...
Depois delas, o cronista ainda estará mais apto a outras viagens
espaço-temporais, entretanto seu retorno está explicitado num texto,
espécie de fechamento de um ciclo como viajante, cujo título “Voltei”, por si
só, focaliza a circularidade desejada e obtida. Voltar consolida-se com um
efeito múltiplo: retornar à cidade mais amada, Fortaleza, a seus leitores,
amigos, familiares e às atividades cotidianas.
Desse retorno, fomentado pelo saudosismo, pelo cansaço, pela
necessidade de partilha do visto e descoberto transborda de alegria o homem
telúrico que sempre foi Mílton Dias.
E os leitores renovarão também suas expectativas, pois o cronista
brindará com eles, presenteando-lhes, textos ainda melhores, emanados de
um repertório de experiências amplificado. A ausência do cronista será
127
recompensada. Ninguém melhor que ele para retratá-la: Partir é bom, ficar é
triste, voltar é uma beleza.”(DIAS, 1985: 266)
A vida andeja do cronista e suas referências pessoais
CEARÁ
Ipu Massapé Fortaleza
(Nascimento) (Infância) (adolescência /
fase adulta)
A formação do
homem
BRASIL
São Paulo (Horto Florestal, Tremembé, Santana)
Bahia (Salvador, Ondina, Pelourinho) Minas
Gerais (Belo Horizonte, Ouro Preto, Uberlândia,
Araxá etc.) Rio de Janeiro (Copacabana)
Amazonas (Manaus, Zona Franca)
Pernambuco (Recife, Olinda)
A brasilidade:
aprimoramento
cultural e as
amizades
EUROPA
França (Paris: Montparnasse, Montmartre,
Chamonut) Portugal (Lisboa) Grécia
(Atenas, Creta, Mykonos) Espanha (Madri,
Toledo) Itália (Roma, Tivoli) Alemanha
(Oberammergau) Inglaterra(Londres) ...
O papel do
desbravador da
cultura universal
OS ESPAÇOS FULCRAIS
Massapé Fortaleza Paris
“País da infância” Presentificação “Pátria
(Pasárgada) existencial espiritual”
3.3 As viagens literárias
128
De toda a sua vida andeja, a literatura nos parece a mais complexa,
mais rica, mais fértil, espécie de iluminura de suas crônicas, funciona também
como suporte para as outras viagens, sobretudo as geográficas.
E que tipo de veículo proporcionou ao cronista essa viagem? Existe
uma resposta firme que traduza com hegemonia essa concretude?
A língua francesa, domínio do cronista, parece não responder ao
questionamento, como confirmar a abertura de portas para o vasto
conhecimento de mundo do escritor, pois o francês ocupou lugar de destaque
em épocas passadas. Ele foi professor conceituado de língua e literatura
francesa, proporcionando-lhe também a escrita da obra ensaística Passeio no
conto francês e o contexto direto com a rica produção literária da França.
A erudição de Mílton Dias é indiscutível. Ele leu desde os clássicos aos
escritores modernistas. Suas obras são fruto do trabalho intelectual
acumulado ao longo de sua vida leitora e profissional.
...convivi com os poetas da Renascença, freqüentei os
clássicos do século XVII, ouvi os filósofos do século XVIII, vi
florescer o romantismo (que exerceu tão poderosa influência
sobre os românticos brasileiros) e acompanho os escritores
deste século, os contemporâneos. O teatro francês e o
romance tiveram sempre em mim um espectador, um leitor
atento. Os simbolistas e os realistas ocuparam um lugar
constante na minha predileção. (DIAS, 1985: 120)
Através de seus textos, podemos destacar seu conhecimento de muitos
escritores franceses importantes: Montaigne, Anatole France, Daudet, Villon,
Baudelaire, Leo Larguier, Charles Pomarat, Apollinaire, Maupassant, Victor
Hugo, Mauriac, La Fontaine, entre outros. E alguns deles são influências da
escrita de Mílton Dias: Villon e Maupassant são bons exemplos.
Modernistas brasileiros também o referendados, como
Carlos Drummond de Andrade, Mário de Andrade e Manuel Bandeira.
E quanto mais se penetra em Minas, mais facilmente se
conclui que foi na certa num momento de profundo desprazer
de desalento, de desencanto, numa destas horas niilistas em
que o homem supõe perdidas todas as alegrias, que o poeta
Carlos Drummond de Andrade escreveu aqueles versos do
seu inesquecível, famoso, triste e bonito poema. E AGORA,
JOSÉ? Você quer ir para Minas, Minas não mais! José e
agora?” (DIAS, 1985: 207)
129
Sem dúvida, é rico o repertório cultural de Mílton Dias cuja formação
humanística é universal não somente em literatura, mas em história,
geografia, artes de modo geral.
Esse legado do cronista poderia em muito assustar o leitor que, talvez,
várias vezes não tenha alcançado o escritor integralmente, entretanto isso é
convertido em aproximação, pois Mílton Dias consegue despertar de imediato
admiração e respeito devido à sua vasta cultura. Facilmente se percebe o
leitor voraz que foi o cronista e a qualidade do cânone particular de sua
biblioteca.
De que maneira essa erudição é perpassada aos leitores?
Mílton Dias usa dois procedimentos que os seduzem: a inter e a
intratextualidade. A primeira delas é a mais recorrente e geralmente aparece
de maneira explícita, isto é, o cronista apresenta a fonte das citações ou
alusões, propiciando ao leitor compartilhamento de sua erudição, além de
despertar também a vontade de este apreender todo aquele mundo de
informações:
Como dizia o velho Anatole France falando duma pequena
cidade francesa vista do alto duma colina: Pensamentos
humanos sobem com a fumaça dos tetos, alguns são tristes,
outros alegres; eles se misturam na nossa lembrança, para
inspirar, todos juntos, uma tristeza sorridente, mais doce do
que a alegria. (DIAS, 1985: 226)
Outras vezes os intertextos exigem leitores mais avisados devido à
ausência de referencialidade, entretanto as citações geralmente vêm entre
aspas, indicando que o trecho não é da autoria do cronista: E sofrer pelas
pessoas perdidas, pelas cruzes que estão plantadas no velho comboio de
cordas que se chama coração.” (DIAS, 1985:225)
Embora o desconhecimento da autoria não prejudique a compreensão
das idéias do contexto, é compensadora identificação da fonte: Fernando
Pessoa em seu conhecido poema “Autopsicografia”, que indica
esclarecimento sobre o processo heteronímico do poeta.
Com certeza, Mílton Dias era cônscio de que erudição não devia ser
sinônimo de pedantismo. Assim, ele vai construindo os textos habilmente
tornando seu leitor peça fundamental, razão dessa escrita, evitando
130
verticalismos que turvariam, sobretudo, o gênero literário de sua predileção: a
crônica.
Ainda sobre os intertextos, eles são circunscritos através de passagens
de obras/autores, de músicas, frases bíblicas, provérbios, ditos populares,
principalmente em forma de paráfrases, mas as paródias também têm
especial valor:
...pelos que não têm a coragem de partir, pelos que se
quedam na comodidade do lar, cumprindo o provérbio de que
“boa romaria faz quem na sua casa está em paz”. E como
provérbio com provérbio se paga, a este eu respondo dizendo
que cobra que não anda engole sapo. Da minha parte, juro
que nunca endossaria o ideal de Sainte Beuve, para quem a
felicidade consistiria em “nascer, viver, morrer dentro da
mesma casa”. (DIAS, 1985: 254)
Há um entrelaçamento de provérbios e dois deles são demarcados com
o uso de aspas e o outro vem parodiado, pois do domínio público sabemos
que sua legitimação é a seguinte: “Amor com amor se paga”, o que o cronista
recriou para “provérbio com provérbio se paga”; podendo a original versão
passar despercebida ao leitor que não o conheça.
Interessante também parece ser o reforço, quase tautológico, da
opinião do cronista sobre a necessidade de ser um viajante, uma espécie de
nômade, que percorre, por condição peculiar, lugares; daí a citação das
palavras de Sainte Beuve.
Assim, num processo de negar-afirmar (antonímia/sinonímia), o
cronista vai arquitetando as idéias de modo a situar a função apelativa nesse
contorno antitético com o qual consegue a intenção comunicativa: persuadir
os leitores sobre a importância de se viajar geograficamente.
Várias citações podem ser destacadas das crônicas de Mílton Dias, o
que nos levaria à quase exaustão, devido à freqüência delas em seus
discursos cronísticos. Reportar-nos-emos a algumas mais tonificantes
sobre viagens:
Montaigne, no século XVI, acusava o francês de não saber
viajar, por que para onde ia queria encontrar a França. (DIAS,
1985: 200);
131
... [um companheiro de banco de ônibus] terá lido aquele
conselho que está em Eça de Queiroz: “O que não dizes à tua
mulher, dize-o a um estrangeiro, na primeira estalagem que
encontrares (DIAS, 1985: 210);
... veio-nos inevitavelmente o título do livro de Hermingway:
“Paris é uma festa” (DIAS, 1985: 229)
São também confessos os intertextos com a música, que, às vezes,
trazem o nome do cantor. Ele cita um dos maiores e inesquecíveis valores
musicais da França, Edith Piaff, mas também percorre o Brasil e cita Sílvio
Caldas. Outras vezes existem aspas em trechos sem menção do cantor ou
compositor:
Desculpem, voltei. Eu volto sempre (com a graça de Deus),
porque, como diz a cantiga, “aqui é meu lugar”. Aqui é que
tenho a minha casa, a minha gente, minha leitura, minha
música, meus objetos de estimação, meu de maracujá.
Aqui é que tenho as pessoas que amo (tirando algumas
poucas espalhadas pelo mundo se eu pudesse, traria todas
para perto de mim). (DIAS, 1985: 266)
Esse exemplo é um intertexto interessante, pois se encontra na crônica
Voltei bem semelhante ao trecho da música O Portão de Roberto Carlos e
Erasmo, de 1974:
Eu cheguei em frente ao portão,
meu cachorro me sorriu latindo
Minhas malas coloquei no chão,
eu voltei
(...)
Eu voltei,
agora pra ficar,
porque aqui, aqui é o meu lugar
Eu voltei pras coisas que eu deixei,
eu voltei
(...)
Como a perguntar por onde andei e eu falei
Onde andei não deu para ficar,
porque aqui, aqui é o meu lugar
Eu voltei pras coisas que eu deixei,
eu voltei
Outras passagens musicais brasileiras são mencionados e causariam
dificuldade de identificação da composição integral ou mesmo de seu título
aos leitores das décadas finais do século XX, já que as músicas são símbolos
132
de uma época, a menos que se transformem em espécie de hinos, portanto
tornem-se atemporais.
Outros recursos também praticados nas crônicas é a intratextualidade,
isto é, o cronista recolhe passagens de um texto e coloca-as em outros. Isso,
além de reforçar as idéias importantes do autor, às vezes também parece
funcionar como espécie de refrão.
Sim, Paris continua uma festa, como dizia o velho Hermingway (DIAS,
1985: 238). A crônica De Paris a Reims” dialoga com outra Montparnasse
quando ele nos informa o título do livro de Hermingway: “Paris é uma festa”.
(DIAS, 1985: 229)
De alumbramento em alumbramento, (...) mostrava-se a França, suas
regiões, seus castelos (...), seus poetas, seus artistas, seus escritores, seus
cientistas (...) (DIAS, 1985: 124). Da crônica Entre dois rios retoma o mesmo
contexto em A moça e o sonho: ...de alumbramento em alumbramento, fui
ganhando a França, suas regiões, seus castelos, seus rios, sua gente,
poetas, escritores, artistas, cientistas (DIAS, 1985: 119)
Outro ponto intratextual é a retomada do personagem o Mineiro para
demarcar os aspectos interessantes em viagens: A sorte do trêfego Mineiro
(DIAS, 1985: 246); O Mineiro, incuravelmente trêfego... (DIAS, 1985: 251);
respectivamente nas crônicas Creta e Despedida de bordo.
Tomando emprestado de rio de Andrade o termo artesania,
constatamos que Mílton Dias tem domínio e consciência sobre a construção
de sua narrativa, sobre os recursos estilísticos que devem ser usados para
seduzir seus leitores.
133
CAPÍTULO 4
A PRESENTIFICAÇÃO DAS PERDAS ATRAVÉS DA ESCRITA.
134
A arte é uma fada que transmuta
E transfigura o mau destino
Manuel Bandeira
A gente escreve a partir de uma necessidade de comunicação e de comunhão
com os demais, para denunciar o que dói e compartilhar o que dá alegria. A gente
escreve contra a própria solidão e a dos outros.
Eduardo Galeano
135
4.1. ITINERÁRIO DAS PERDAS: Diálogos com Manuel Bandeira.
“ Non, je me regrette rien” (...) Como é que posso
dizer: não, eu não lamento nada? (DIAS, 1985: 160)
Impossível mudar o passado. Impossível esquecer a
tarde em que, à hora exata de sol se pondo, e sino tocando
ave-maria, um homem cai, subitamente morto, eu perco meu
pai. (DIAS, 1966: 147)
O senhor nunca poderia imaginar que este homem
careca (...) calejado por meio século, fosse aquele menino
que ficou com nove anos (DIAS, 1974: 111)
Em circunstâncias diversas e inesperadas faleceram
meu irmão Pedro Miron (médico), João Batista (engenheiro) e
minha irmã Maria Stela .(DIAS, 1982a: 19)
Impossível esquecer as amargas lembranças,
impossível libertar-nos do que nos deixaram como marca, por
mais que nos esforcemos, por mais que as escondamos, por
mais que as disfarcemos, que as queimemos do nosso
pensamento, por mais longe que as tenhamos vivido, por mais
distante que as lancemos, ainda que as atiremos ao fundo do
mar, ainda que as extraviemos em caminhos inacessíveis,
que as mascaremos, que as mergulhemos no álcool, que as
embalemos em canções de ninar, ainda que as enganemos
com alegres ou tristes músicas favoritas, ah, as amargas
estão irremediavelmente presentes. (DIAS,1966: 147)
Embora as trajetórias biográficas de Mílton Dias e Manuel Bandeira não
sejam iguais, identificamos diálogos de afinidades entre os dois escritores: a
presença imponente da morte permeará a vida dos autores bem como será
uma temática recorrente em seus escritos. Não é à-toa que o primeiro faça
alusão ao segundo em sua escritura. Às vezes, a intertextualidade é explícita.
Morreu Seu Otávio, depois finou-se Dona Sinhá. Os
filhos desgarraram, não gostam de rever a casa,(...)
Nunca pensei que um dia se fechasse aquela casa
grande, sólida, solene, de parapeito rendado e varandas de
ferro nos balcões da sacada. Ocorreu-me o poeta Manuel
Bandeira: “Tudo ali parecia tão impregnado de
eternidade...”(DIAS, 1966: 138-9)
Vou-me embora pro sertão, e lá onde eu vou ficar
ainda tem bica, um jacaré bem na esquina da casa,
esperando a gente para um banho de chuva. A casa fica num
alto, na frente passa um rio e na beira do rio pontificam velhas
cajazeiras, que a esta altura hão de estar pesadas. (DIAS,
1971: 133)
Também, na geografia afetiva dos autores, Capibaribe e o Acaraú são
rios marcantes.
136
Estreitando-se ainda mais o diálogo entre os escritores, sabe-se que
Bandeira percorreu caminhos mais voltados para a poesia, embora a prosa
não lhe tenha sido avessa. Mílton Dias ancorou na prosa ainda que também
não esteja tão distante da poesia. Entretanto, o repertório de perdas,
sobretudo no que tange à morte, tema quase obsessivo dos dois autores,
parece alinhá-los, guardando as devidas proporções. O escritor cearense é
violentado por ela na infância e isso motivou o centro temático que animará
todas as obras publicadas, havendo mudança brusca na sua meninice.
Já o poeta pernambucano, por ironia da vida, é surpreendido pela
constante ameaça da “Indesejada das gentes” ainda bem jovem, aos 18 anos,
quando contraiu tuberculose, mas consegue driblá-la até os 82 anos; portanto
seu universo temático não pode ir em outra direção.
A presença paterna também é consolidadora nos dois escritores,
embora para Mílton Dias isso tenha sido possível através de rememoração
e evocação. Bandeira teve na doença o apoio do pai durante bom tempo a
que novamente outra ironia lhe acontece: o pai morre, o que era menos
presumível dado que o poeta estava desenganado pela medicina.
As perdas familiares são semelhantes para os dois em relação também
ao espaço curto dessas partidas; além de os mortos voltarem através da
recuperação da memória, portanto através da evocação.
Outra referência semelhante aos escritores é a mudança de endereços,
ponto crucial de seus universos memorialistas: Rua da Goela Rua Coronel
Ferraz; Rua da União Rua do Curvelo. Tal ligação nos faz pensar como os
espaços físicos são importantes para a recuperação do tempo perdido da
infância, referentes às primeiras ruas dos autores. A evocação desses
espaços dialogam estreitamente com os versos do poema América de Carlos
Drummond de Andrade, da obra A Rosa do Povo: Uma rua começa em
Itabina, que vai dar no meu coração”.
Especificamente nos dois autores, a casa do avô, lugar sagrado da
infância, espécie de emolduramento da mitologia infantil, perdeu-se,
transformou-se; também só se edifica na memória:
Rua da União
A casa de meu avô...
137
Nunca pensei que ela acabasse!
Tudo parecia impregnado de eternidade. (BANDEIRA,
1993: 214)
(...) Um dia, depois de ausência tão longa,
acrescentada a algum tempo fora do Ceará, me apressei em
visitar o Altinho, como quem se repreende, como quem se
paga a si mesmo de dívida grande, de pecado grave.
Ah, ledo engano! Mudou tudo. Da casa
despretensiosa, com colunas redondas sustentando as vigas
e o telhado em duas águas que terminava numa beira-e-bica
colonial deliciosa fizeram uma casa de dois pavimentos,
desproporcional, de evidente mau gosto - e toda a antiga
estrutura que tinha tanta unidade sofreu tratamento diferente.
Até o amarelo, que era, ao que parecia, a sua cor natural,
definitiva, eterna, foi substituído por um cinza neutro. (DIAS,
1985: 151)
Outro importante caminho similar foi percorrido por Bandeira e Mílton
Dias: a solidão. O primeiro pela fatalidade da doença; o segundo pelas
circunstâncias da vida, por opção, talvez.
O fato é que a solidão, também gerada pela ausência de esposa e
filhos, deu-lhes fomento temático. Em Mílton Dias, ela reinou soberana, pois
teve outra grande aliada, a insônia. E desse isolamento, surgiram grandes
textos que também resgataram a solidão da humanidade. A visão do homem
Mílton Dias aguçou-lhe as reflexões, a solidariedade com os que vivem sós
involuntariamente; ele de pensar e sentir de perto o sofrimento do
abandono. O percurso da solidão que aparece individualmente recai numa
perspectiva maior que é a coletividade. E a solidão ganha projeção
assustadora, pois o cronista aborda desde os solitários desprovidos de
privilégios sociais aos que estão sós devido à elétrica vida moderna a destruir
contatos, impedir trocas e a enfraquecer o sentimento de solidariedade que
precisa ser atuante e recíproca. Por isso o desalento do cronista vem
carregado de pesar com uma visão de profundo pessimismo.
Meu Deus, este anonimato em que nos vamos
mergulhando e diluindo, este Isolamento que as obrigações
nos vão impondo, esta falta de tempo para visitar gente
querida que mora tão perto, tudo isto vai nos conduzir a quê?
Dentro de alguns anos estaremos mudos, numa época em
que se fala tanto em diálogo, estamos sem interlocutores,
quando se fala tanto em comunicação, estaremos sozinhos,
quando se blasona tanto a solidariedade, estaremos surdos,
quando tanto o que ouvir, estaremos mudos, quando
temos tanto o que contar.(DIAS, 1985:159-60)
138
Desse itinerário de morte e de solidão, é indisfarçável nos dois
escritores um misto de luto e melancolia.
A perda consecutiva de familiares suscita a permanente busca do
ausente pela necessidade de resgatar vida na morte, a fim de que a existência
do eu possa reconstituir-se nos dois escritores. Todavia os mortos podem
ressurgir nas evocações textuais; daí emana o estado de saudosismo e ,
assim, o passado estrutura-se de forma a habitar o tempo presente numa
maneira compensadora.
Entretanto, os escritores têm consciência de que não podem mudar o
curso normal da vida. Tal consciência coloca-os mais frontalmente com a
vivência da incompletude, o que gera profundo estado de melancolia.
Um trecho do poema Ouro Preto”, da obra Lira dos Cinqüent’anos,
traduz bem o estado melancólico de Manuel Bandeira:
Que resta do esplendor de outrora? Quase nada:
Pedras... templos que são fantasmas ao sol-posto.
Esta agência postal era a Casa de Entrada...
Este escombro foi um solar... Cinza e desgosto.
Em Mílton Dias também encontramos momentos semelhantes, além do
que a palavra melancolia e seus cognatos o recorrentes nos textos,
inclusive uma das crônicas é intitulada Salmo a Nossa Senhora dos Afogados
na Melancolia. Em outros textos, por exemplo, “Quem mandou?”, o tom
melancólico é forte:
Amiga, quem mandou você me mandar aquela carta?
me bastava a carta do João, na semana passada, que,
impressionado, talvez, com o Dia de Finados, entrou naquela
de entristecer coletivamente e me falou das mortes todas
de amigos, as recentes e as de outrora, uma carta cheia de
angústia, à beira do desespero.
Agora vem você me falar também das tristezas que
somado, colheu todas as saudades, reuniu o mais
melancólico buquê, feito dum roxo sem alternativa, e me
mandou, como se quisesse plantar uma grande quaresmeira
no meu peito. Não, amiga, foi muito e eu não sei consolar
ninguém: quanto mais tento animar os outros, mais me
desconsolo a mim mesmo. (DIAS, 1974: 97)
139
Outro elo inegável entre Bandeira e Mílton Dias é a coexistência de
características literárias que transitam por domínios simbolistas tonificados de
visão crepuscular e penumbrista. Mas, é preciso ressaltar, que nossa intenção
não é tentar esgotar o assunto; ao contrário, nesse caminhar dialógico,
pretendemos apenas demonstrar afinidades entre os dois escritores para que
nossa pesquisa encontre caminhos que explicitem melhor o autor cearense.
Mesmo porque estamos cônscios de que Manuel Bandeira, embora
tenha trilhado tendências simbolistas, parnasianas e modernistas, conseguiu
produzir uma poesia autêntica, pois o que acabou sendo incorporado à sua
produção poética não foi um ditame apenas ligado ao estilo literário de uma
época mas também o decorrente da força das determinantes subjetivas da
percepção do poeta.
E como Mílton Dias foi leitor de Bandeira, ao apontarmos diretrizes
literárias naquele, estaremos aproximando-as deste, guardando as devidas
ressalvas, pois o estamos focalizando com isso a “angústia da influência”.
Mesmo porque se Mílton Dias leu Bandeira, leu também outros autores
simbolistas que também foram lidos pelo poeta pernambucano.
A poética bandeiriana, como acentua a crítica, tem seus pés fincados
inicialmente em consonâncias parnasianas e simbolistas, esta última mais
forte, entretanto o poeta alça vôos para novos olhares à medida que
percebemos sua postura experimentalista conscienciosa das múltiplas
possibilidades que podia acoplar uma obra.
Passando a Mílton Dias, é incontestável a tendência de sua prosa
simbolista, atitude confessada por ele na crônica A moça e o Sonho onde
declara que uma de suas leituras prediletas direcionava-se aos simbolistas.
Mas, atentemos ao fato de que o cronista marcou seu inicio literário em 1960,
portanto momento em que estéticas e importantes efervescências literárias já
haviam sido consolidadas. O fundamental nesse trajeto é levarmos em conta
que o cronista cita Bandeira em seus textos e que a sintonia entre eles
começa a partir de uma formação leitora mais ou menos semelhante,
sobretudo acerca dos franceses simbolistas a quem os dois leram muito bem
nas fontes originais. Desse modo os diálogos entre os autores vão ficando
mais explícitos porque vão estabelecendo mais afinidades na trajetória de
140
vida. É como melhor demarcou Arrigucci Jr. (1991) no interessante ensaio
intitulado O humilde cotidiano de Manuel Bandeira.
Basta pensar como elementos biográficos e da psicologia
individual, da tradição literária e artística e do contexto
histórico social podem ter pesado na configuração da sua
atitude criadora e talvez ajudá-lhe a explicá-la. (ARRIGUCCI
JR., 1991: 14)
A propósito, a focalização de vida de Bandeira tem relação imediata
com a estética simbolista que é delineada pelo sentimento de decadência,
pois é
[...] o estado de espírito do poeta que está assombrado com a
crueldade do tempo e a iminência da morte. É um
açambarcamento com o eu e com os mistérios de uma fixação
interior sobre os limites incompreensíveis da vida e da morte;
é a sensibilidade do super-sensível. (BALAKIAM, 1985: 126)
Isso é muito visível no terceto final do poema Noturno do morro
Encantado”, de Bandeira, da obra Opus 10:
Falta a morte chegar... ela me espia
Neste instante talvez, mal suspeitando
Que já morri quando o que eu fui morria.
Mílton Dias também, quase obsessivamente, demarca em seus textos o
gosto pelo decadentismo:
Todavia este é o momento em que se começa a decida da
montanha – é tempo de iniciar o melancólico retorno ao pó. Lá
embaixo, no vale, o verde ficou cinza e os obstáculos na
escarpa crescem à nossa vista, cada dia mais sombra
(...)(DIAS, 1974: 31)
Retomando a marca simbolista nos dois autores, percebemos algumas
características dessa estética: uso de musicalidade, recorrências sinestésicas,
criação de atmosferas difusas nas quais se mesclam o imaginário e o real,
atitudes crepusculares, penumbristas, decadentes, uso de símbolos entre
outros.
Desse rol simbolista, três características merecem maior apreciação: o
sentimento decadentista, a musicalidade e o uso de símbolos.
141
Além da sica está impressa nos versos melodiosos bandeirianos,
o poeta serviu-se de sonatas, rondós, cantigas, bem como declarou em
Itinerário de Pasárgada a importância da música para sua criação artística:
Não nada no mundo de que eu goste mais do que de
música. Sinto que na música é que conseguiria exprimir-me
completamente. Tomar um tema e trabalhá-lho em variações
ou, como na forma sonata, tomar dois temas e opô-los, fazê-
los brotarem, embolarem, ferirem-se e entrelaçarem-se e dar
a vitória a um ou, ao contrário, apaziguá-los num
entendimento de todo repouso... creio que não pode haver
maior delícia em matéria de arte. (BANDEIRA,1993: 50)
Em Mílton Dias também a música é notória não em termos da prosa
poética, cheia de ritmo já focalizado em outros momentos, bem como é
recorrente o uso de citações de composições brasileiras e francesas, pois
aspecto de relevância é o ouvido musical que tem o cronista. Também é
freqüente a citação de gêneros musicais como balada e madrigal.
Sobre o uso de símbolos, em forma de metáforas como no dizer de
Massaud Moisés (1980), esforço de apreensão do impapálvel e, por isso,
funciona como múltiplo e fugidio sinal luminoso duma complexa realidade
espiritual.”
A propósito, o poeta Bandeira elege a ESTRELA, um de seus grandes
símbolos, representando a própria poesia. Suas obras são uma prova disso:
Estrela da manhã, Estrela da tarde, Estrela da vida inteira.
O cronista Mílton Dias deixa entrever como o maior de seus símbolos a
ILHA, recorrentemente focalizada em seus textos, merecendo dele até uma
das obras de forte apelo temático cujo título é bastante sugestivo: A Ilha do
homem . O tratamento simbólico soma-se em valor preponderante a outros
ingredientes simbolistas: as imagens noturnas, bem como a escrita dos
termos sempre com letra maiúscula para dar maior força emocional, estado de
espírito do escritor bem como a ILHA assemelha-se à própria “torre de
marfim”, retrato da solidão, bem a gosto dessa estética.. O cronista também
recorre a outro símbolo muito importante em sua trajetória autobiográfica: o
Sino, que o marcou profunda e eternamente na hora da morte do pai às 18h
quando o sino anunciava a Ave-Maria.
142
Esse fato desencadeou a presença do sino na trajetória autobiográfica
do cronista e dele mereceu título de textos (Sino meu irmão, da obra Viagem
no arco-íris) bem como uma obra inacabada devido à morte do autor cujo
título seria A voz dos sinos.
Do dito, ainda muito reticente, a respeito dessas possibilidades
analógicas entre os escritores, sobressalta o presente literário que nos foi
dado: um poeta e um cronista de peso, vale a redundância. E eles continuarão
ainda por muito tempo em nossa leitura e memória literárias, posto que uma
Bandeira foi levantada e de tremular... e Dias transcorrerão nas Literatura
cearense e brasileira.
4.2. Aprendizagem da morte
O mais terrível é exatamente isto: é que o aprendizado
da vida, além de exigir a prática do sofrimento, inclui também
o aprendizado da morte.
Bem poderíamos recolher com mais freqüência e de
forma mais constante o pensamento de Tagore: “Que
vergonha a de Deus, quando os prósperos se jactam de seus
privilégios”. É o caso de perguntar que privilégios são esses
que a morte destrói para sempre como um sopro? (DIAS,
1985, 136)
Recorrendo aos aspectos biográficos do cronista, é praticamente
impossível não redundar na mesma informação:
A morte súbita do meu pai aos
35 anos, quando eu tinha 9, me marcou profundamente e teve uma repercussão
enorme em toda minha vida. (DIAS, 1985: 277)
Embora ainda de maneira apenas impactante, pois é com olhos de
menino que surge a primeira lição de partir, percebemos que o tema
percorrerá toda a obra do autor e de maneira importante. Algumas vezes ela
ganha com força de antropomorfização:
Na verdade, esbarramos perplexos e impotentes diante do
mistério da Eterna Indesejável, repetimos incansavelmente as
mesmas indagações, fazemos reflexões que se não forem
conduzidas no sentido da sabedoria bíblica - de aceitar o
irreparável com a humildade e a resignação de Jó - acabamos
tombando no plano do desespero. (DIAS, 1982: 107)
143
O estreito convívio do cronista com a morte irá privá-lo dos irmãos e de
outros familiares mais próximos em intervalos de tempo muito curto, o que o
impele de legitimar com amplitude sua existência solitária. Às vezes o
sentimento de perda defronta-se com palavras amargas, inconsoladas,
desesperadas que ele tenta conter através da formação religiosa recebida e
de seu forte senso de fé:
muito tenho escrito sobre a morte. Mas agora, que
a velha megera incansável e incompreensível me fere de
perto, profunda e repetidamente, dentro de tão curto espaço
de tempo, as palavras fogem num protesto contra o seu
absurdo e o silêncio bloqueia reflexões inúteis.
Não, nunca ninguém vai entender. Deus nosso Senhor
tem suas razões que escapam à fragilidade do nosso
raciocínio e só isto nos conduz à aceitação do mistério que vai
continuar indecifrado, até o fim dos tempos. (DIAS, 1985:341)
Essa passagem vem da crônica A Megera, e dos textos que tematizam
a morte é o mais contundente, pois é o período talvez mais difícil em que
Mílton Dias perde o irmão caçula num acidente aéreo quando este vinha ao
funeral de sua cunhada. Embora o título por si não estabeleça vínculos
diretos com a morte, acaba impactando de qualquer jeito, pois Megera,
semanticamente, não é um termo positivo, portanto também condizente à
morte.
A crueldade é maior porque, para o cronista, a morte balançou o
alicerce natural: levou o mais jovem driblando a velhice.
Morte não rima com juventude, com saúde, com alegria, não
rima com a beleza de pessoas amadas e amantes da vida -
sobretudo aquelas que usam seu tempo exercendo o trabalho,
a bondade, a lealdade, a benquerença. (DIAS, 1985, 341)
As palavras retratam o irmão mais moço com quem Mílton Dias tinha
um laço muito estreito, pois os dois estabeleceram o vínculo perfeito do
manancial do pai morto: o cronista, o filho mais velho é o começo da geração;
Batista, último filho, fim dessa hierarquia.
E nas palavras emocionadas do cronista, ainda fica mais claro esse
forte vínculo: Batista é um irmão meio filho:
144
E agora, o que é que vou dizer do Batista, aquele terno irmão
com quem eu tinha enorme afinidade, que tendo perdido o pai
com um ano de idade, acompanhei a vida toda, na infância,
nos colégios (onde sempre foi dos primeiros, freqüentemente
o primeiro da turma), na Escola de Minas de Ouro Preto, onde
mais de uma vez o visitei e voltava feliz por vê-lo estimado,
prestigiado, envolvido pela admiração e o bem-querer de
professores e colegas. (DIAS, 1985: 342-3)
Não parece observação de pai, sobretudo vindo de Mílton Dias que não
teve filho? Não parece uma projeção que o cronista realizou?
Entretanto, o desespero do momento não contamina por completo o
cronista. O aprendiz da morte, mais uma vez, busca resignação para continuar
aprendendo as lições de partir:
Além da força da fé, o que agora pode nos confortar e
consolar é a velha idéia de que somos transitórios
participantes da imensa caravana humana. E que depois da
caminhada, curta ou longa, nos encontraremos todos. (DIAS,
1985: 343)
O difícil aprendizado da morte, tentativa consciente do cronista, é fruto
da certeza que ele tem da efemeridade de tudo quanto existe:
Bem refletiu Mauriac: “O trágico da vida é amar o que é
efêmero" pois é justamente o efêmero que amamos, porque
não nos foi dado imprimir um toque definitivo às boas coisas
que a vida nos dá, ao que nos foi concedido por empréstimo.
Temos que assistir à transfiguração de tudo, ou mais
exatamente "'à implacável fuga das coisas". (DIAS, 1985: 136)
Assim, a busca do essencial reflete-se numa postura lúcida do cronista,
embora isso venha transbordado de sofrimento e, às vezes, de
questionamentos incisivos, geralmente monologados através da figura de
Deus, cujas respostas são encontradas nas próprias perdas, fontes de
aprendizado de vida:
Os filósofos, os santos, aconselham muito judiciosamente
(não fossem eles santos e filósofos) que o homem se prepare
para aceitar o sofrimento, como inerente à própria condição
humana. Mas em que escola se pode fazer este aprendizado,
meu Deus, senão com o exercício da experiência, que produz
a lição amarga, mas verdadeira? A vivência da dor conduz à
145
consciência das nossas limitações, da nossa fragilidade, dos
nossos medos e angústias, leva à incerteza do que nos
aguarda a cada hora, à insegurança com que cumprimos o
nosso cotidiano, neste mundo cada vez mais enlouquecido,
varrido por tantos vendavais, que o homem ajudou a
desencadear. (DIAS, 1985: 136)
É visível, na sucessão dos textos, uma crescente intimidade com a
morte. A visão do cronista sobre ela passa do espanto, do impacto e do
lamento à evocação dos mortos, como na obra Cartas sem resposta. Às vezes
vem com ressentimento, outras com “aceitação”, a observarmos o tratamento
dado pelo escritor: “Megera”, “a velha Megera”, “Eterna Indesejável”,
“plantação de cruzes” além de frases-núcleos carregadas de sentido, espécie
de refrão que estão em simetria com a morte: “Foram duros tempos”, “A vida
cobra com juros de agiota”.
É tamanha a lucidez do cronista quando ele deixa dedicado à mãe um
poema, encontrado postumamente, no qual registra sua retratação sobre sua
visão após a morte. Então, ele julgava que partiria primeiro? Talvez, porém
isso só aconteceu dez anos depois.
O texto se constitui de idéias impressas no título: uma confissão-
desabafo-desvendamento:
Confissão
Quando eu morrer, Mãe,
esquece este filho,
tão triste, tão pobre,
que só pede uma planta no túmulo.
Quando eu morrer, Mãe,
tudo o que eu peço
é uma oração crepuscular.
Quando eu morrer, Mãe,
perdoa a falsa alegria,
o riso gratuito
a alegria postiça
que escondia uma tristeza tão grande
que você, Mãe, nunca suspeitou.
Quando eu morrer, Mãe,
perdoa os erros todos.deste filho
que nunca deixou de ser criança.
Mílton Dias.
01/08/73 (DIAS, 1985: 05)
146
A atitude de silêncio do cronista em relação à sua tristeza profunda
supõe um vazio que ele o soube exercitar com maestria, pois seu bem-querer
maior e vivo, sua mãe, precisava continuar erguida depois de tantos golpes,
tantas perdas que o próprio Mílton Dias sabia avaliar, porque também delas
fora vítima. Como filho mais velho, parece, no poema, representar o que é
comum: depois de certa idade, os filhos querem deixar de sê-lo para ocupar o
lugar dos pais; no caso dele, o da própria mãe, que estava com setenta e
três anos.
E, embora isso pareça o irrefutável, soa estranha a idéia de que a
mãe, que a “tudo” parece desvendar de seus filhos, estivesse inoculada dessa
clarividência: o sofrimento, a profunda solidão de que padecia o cronista.
Seria possível mesmo que isso pudesse acontecer? Talvez. Na confirmação
de troca de papéis sugerida pelo escritor, a morte o parece o mais
importante; o golpe maior para a mãe seria a descoberta da verdadeira
identidade do sofrimento do filho, durante toda a existência dele ao seu lado
sem que ela suspeitasse disto: “a falsa alegria, o riso gratuito, a alegria
postiça”. E os adjetivos usados: “falsa”, “gratuito” e “postiça” não parecem
refletir dissimulações do cronista, mas completo aprendizado com as lições de
partir, que são inevitáveis. A aceitação de finitude de Mílton Dias revela a
capacidade de, no silêncio, galgar a essência da vida; fruto de profunda
lucidez do homem que buscava na convivência com o outro, especialmente
com a mãe, a paz dos dias idos e a certeza de que o melhor seria aproveitar
com sabedoria o presente diário: estar vivo e manter o outro esperançoso de
dias melhores.
É como se o cronista se dissesse, dissesse à própria mãe e a nós
leitores: Se não pudemos mudar o curso da vida, isto é, trazer o perdido ou
evitar perdas, pelo menos, saibamos aproveitar cada vão momento, ou
mesmo, transformar os pequenos instantes em eternidade.
Talvez seja o poema “Confissão” a marca mais explícita do cronista em
direção à integridade do ser, do existir, numa aceitação pacífica da morte,
confirmando seu verdadeiro aprendizado, que converteu seu dia-a-dia em
maturidade psicológica e espiritual, demonstrando também as lições daqueles
que sabem praticar o “carpe diem”, ou sabem suportar o pesado fardo
existencial tentando aliviá-lo, tanto quanto possível, das pessoas queridas.
147
Como todo aprendizado é processual e o cronista revela-se aprendiz
convicto da finitude das coisas, a busca de consolo só pode partir das próprias
perdas que ele tenta elaborar com a ajuda de sua postura meditativa, tendo
como nicos as reflexões filosóficas e a para que a inevitável circularidade
humana, se não totalmente aceita, pelo menos figure no plano da
compreensão.
Assim, com a leitura dos textos, constatamos que o cronista,
colecionador de epitáfios, parece imprimir a síntese de sua compreensão
acerca da existência humana:
O gráfico configura a circularidade da vida humana na qual o homem,
sempre enclausurado por ela, cumpre o mito de Sísifo: o eterno recomeço
depois de cada perda:
A VIDA
4.3. O desencontro amoroso: a longínqua felicidade
Repito o jogo tão do meu agrado e do meu hábito.
Pego uma data, geralmente aquela em que estamos vivendo,
vou ver o que aconteceu nesse mesmo dia, há dez, vinte anos
atrás. Algumas figuras se apagaram da memória, mas os
nomes ficaram.
Registro, por exemplo, vinte anos, às 11 horas da
noite (era tarde, naquele tempo), chegando da casa da bem-
amada, que voltaria no dia seguinte para longes terras, para
os seus pagos do sul. Na mesma ocasião, o recebimento dum
telegrama que me mandava um problema. O problema
passou, não teria ficado na lembrança, se não o tivesse
SOFRER
RECUPERAR-SE
PERDER
HOMEM
148
confiado à escrita. A mulher passou: eu não teria esquecido
mesmo sem o testemunho silencioso do papel. (DIAS, 1985:
139)
“Non, je ne regrette rien.” E ao mesmo tempo que
acompanho as palavras na boca da moça morta, vou me
desmentindo. Como é que posso dizer: Não, eu não lamento
nada? (DIAS, 1985: 160)
O desenho dos relacionamentos amorosos em Mílton Dias aparece em
raras crônicas, vem com toques de sutilezas; como aqueles toques que não
devem gritar alto o jogo das circunstâncias: cicatrizes graves? Exposição
pessoal indevida? De qualquer sorte os relacionamentos ficaram latentes no
patrimônio de lembranças do cronista e parece que ele não quis mais que
isso. Não sabemos o nome dessa mulher ainda lembrada após vinte anos de
separação, entretanto o leitor fica ciente de que houve um laço importante e
até o momento da escrita permanece inquebrantável. É o próprio cronista que,
através de antíteses, diz da importância dessa mulher, a propósito, não
apenas mulher, mas a mulher amada. E foi tão significativa essa história de
amor que dispensa registros em textos para mantê-la viva.
Também é claro o anonimato que ele pretende sobre esse
relacionamento devido aos eufemismos usados pela ausência de
esclarecimentos espaciais: Voltando da casa da amada”. Qual é a cidade
onde ela está? [A amada] voltaria para seus pagos do sul”. Quais as
referências de endereços? Não nos são explicitados. Talvez também porque
Milton Dias o quisesse expor a amada, cavalheiro que foi o cronista aos
olhos de todos que o conheceram.
Em outra crônica, Os meninos de Iracema, d’A Ilha do Homem ,
texto autobiográfico, Mílton Dias confessa, ainda sem maiores informações,
pois carece de detalhes, ter sido noivo, entretanto não podemos comprovar
que a mulher seja a mesma: a inesquecível. A retratação amorosa ocorre de
maneira habilidosa, porque ele envereda para o cômico ao tocar nesse
assunto:
Que é que querem saber ainda? Ah, sim – nunca levei mulher
nenhuma aos pés do padre. Tenho levado a outros lugares.
Somente uma vez estive gravemente noivo, mas escapei,
149
para surpresa geral e minha em particular. Não me acuso de
nenhum filho. (DIAS, 1966: 144)
É interessante a forma de abordar o problema. Parece um jogo de
quebra-cabeça: quando estamos prestes a montá-lo, falta uma peça.
A pergunta do cronista é reveladora: “Que é que querem saber ainda?”
O começo da resposta vem de maneira sábia: “Ah, sim...”, como se fosse algo
interessante apenas para o leitor completar o auto-retrato do cronista, pois há
sugestão de que a informação já não era mais significativa para ele.
Outro mecanismo para esconder esse assunto delicado é o uso de
certos termos “gravemente noivo”, “escapei”, “surpresa geral”, pois não
esclarecimentos dos porquês. Entretanto, esses disfarces são comuns quando
há constrangimentos, sobretudo em textos autobiográficos.
Qualquer leitor ao ler textos dessa natureza quer ver além das
palavras. E se o autor for conhecido, temos necessidade quase doentia de
invadir sua privacidade. Especulações vêm de muitos ângulos. Queremos
montar o quebra-cabeça esperando prováveis deslizes do escritor em seus
textos para que essas pistas denunciem, com propriedade, certos assuntos
muito sorrateiramente tocados.
Não estamos falando de quaisquer especulações. Queremos aquelas
que, de uma forma mais objetiva, explique o motivo da solidão do autor, o
desencontro amoroso, entre outros temas de foro íntimo.
Vasculhando outras informações, deparamos com um trecho em que o
cronista apresenta uma referência espacial, São Paulo, onde ele morou algum
tempo, mas de novo não sabemos se a mulher é a mesma do “sótão”
inesquecível de sua memória afetiva:
Sinto que preciso de alguma coisa mais encorajadora:
não vale a pena a curtição da nostalgia que a os jovens
estão cumprindo. Resolvo entregar a escolha ao acaso, minha
mão corre inelutavelmente, como a mão do poeta sobre o
papel, naquela doce paz azul de poema sem lágrimas. Ora,
muito bem, cai um antigo sucesso que fala no sereno da
madrugada, na companhia dum amor muito amado. E eu me
devolvo sem restrição e sem censura a São Paulo de há vinte
anos, súbito me encontro muito bem acompanhado, numa
noite fria, num canto de apartamento acolhedor, ao duma
150
lareira aconchegante, estimulante, cúmplice. (DIAS, 1985:
160)
Voltando a outras passagens dessa mesma crônica onde ele cita Piaff
e analisando a totalidade da letra da música, constatamos intertextualização
entre os textos.
Uma outra grata canção francesa povoa a minha sala
vem pela voz da Mome Piaff, entra quente, gloriosa, alegre
como um grito de vitória, como era bom de ouvir naquela
esquina do Café Cujas, em Paris: “Non, je ne regrette rien”. E
ao mesmo tempo que acompanho as palavras na boca da
moça já morta, vou me desmentindo. Como é que posso
dizer: Não, eu não lamento nada?
(...)
Quero uma canção que não me dê saudade,
uma que fale de futuro e de sol, de esperança e amor feliz,
vitorioso e fecundo, uma que me fale de plantas e de rosas,
que afaste para bem longe as neves de todos os invernos
antigos. (DIAS, 1985: 160)
Mas o cronista nos passa a impressão de que o desejo dele é de um
amor feliz que não lembre o passado, como a letra da canção interpretada por
Piaff.
Non, Je Ne Regrette Rien
11
Non, rien de rien, non, je ne regrette rien,
Ni le bien qu'on m'a fait, ni le mal, tout ça m'est bien égal.
Non, rien de rien, non, je ne regrette rien,
C'est payé, balayé, oublié, - je ne fous du passé.
Avec mes souvenirs, j'ai allumé le feu,
Mes chagrins mes plaisirs, je n'ai plus besoin d'eux.
Balayés mes amours, avec leurs trémolos,
Balayés pour toujours je repars à zéro
Non, rien de rien, non, je ne regrette rien,
Ni le bien qu'on m'a fait, ni le mal, tout ça m'est bien égal.
Non, rien de rien, non, je ne regrette rien,
Car ma vie, car mes joies, aujourd'hui -
Ça commence avec toi
12
11
Música composta por Michel Vaucaire e Charles Dumont.
12
Nada, absolutamente nada, não, eu não lamento nada / Nem o bem que me fizeram, nem o
mal, tudo me parece igual / Nada, absolutamente nada, não, eu não lamento de nada / Está
pago, varrido, esquecido, - eu estou farta do passado. / Com minhas lembranças, eu alimentei
o fogo / Minhas tristezas, meus prazeres, o preciso deles. / Varridos meus amores, com
suas emoções / varridos para sempre eu parto do zero / Nada, absolutamente nada / Não, eu
não lamento nada / Nem o bem que me fizeram, nem o mal / Tudo me parece igual / Nada,
151
O eu lírico nas duas situações é semelhante, embora na composição
musical haja uma postura mais firme, pois já houve uma quitação de dívidas, e
a nova vida afetiva é real; enquanto na crônica o eu lírico está esperançoso de
dias melhores. E isso só é possível varrendo-se, definitivamente, o passado, o
que é notório na letra musical.
A busca do cronista pela liberdade afetiva, expulsando da
memória os fantasmas de amor, é explícita através de seu desejo: canção “de
futuro e de sol, de esperança e amor feliz, vitorioso e fecundo”, pois isso são
armas contra todos “as neves de todos os invernos antigos”, isto é, seus
fracassos amorosos.
O motivo da impossibilidade de amor constante, duradouro, que o
impedisse da solidão, não sabemos, mas são claros ao leitor dois aspectos:
um saudosismo imperativo e a possibilidade de recuperação desse amor
apenas pela memória:
A mirada solitária no rio estrangeiro, numa boca de
noite outonal, os barcos iluminados carregando gente que se
divertia, no roteiro turístico da cidade, as moças provincianas
de olhar azul debruçadas no parapeito ao lado, à margem do
Sena, a conversa descompromissada, a troca de informações
sobre as origens, a fala marselhesa de sotaque particular, a
caminhada até a ponte Mirabeau, para esbarrar nos versos de
Appolinaire: “Passam as semanas, passam os dias, nem o
tempo passado, nem os amores voltam".
Não voltam mesmo. E tudo dói, quando vira saudade.
(DIAS, 1985: 117)
Para os leitores, que acompanharam Mílton Dias com regularidade, é
certo que a mulher seria um dos temas de sua cronística bem como também
ficamos cônscios de que sua estréia aconteceu com a crônica “Arabela”,
paixão juvenil do autor, talvez por isso o nome tenha sido explicitado:
E assim como nos filmes ou nas peças de teatro, ou
mesmo, mal comparando, nas novelas de rádio, eu desejava
constantemente ver, rever Arabela. Sua lembrança me
perseguiu na infância, na adolescência, na idade adulta - e eu
absolutamente nada / o, eu não lamento nada / Por que minha vida / Por que minhas
alegrias, hoje - / Tudo começa com você. (tradução livre)
152
procurei ver Arabela em todas as mulheres morenas e belas
que encontrei.
E não sei bem se foi doze anos depois da passagem
do circo pela minha terra, ou se foi muito mais tempo depois,
eu encontrei Arabela na Rua das Mulheres Perdidas. Não era
mais Arabela. (DIAS, 1960, 121-2)
De encontros e desencontros amorosos, constatamos um cronista
marcado pela solidão, que o feriu mais agudamente pela ausência de uma
família, incluindo esposa e filhos. E tão profundamente essa “Senhora
Solidão” o atingiu, que dele mereceu um texto muito apelativo e cujo título por
si muito explica: Salmo do homem , da obra Entre a boca da noite e
a madrugada, sem falar na beleza poética que emana do texto. É uma das
mais belas páginas publicadas:
Salmo do Homem Só
Senhor, tende piedade dos Sós. Mandai Senhor, para
o Homem Só, a mulher conveniente, a que se resigna às
recomendações da Carta de São Paulo aos Efésios, a que
seja amante, esposa, irmã e companheira, submissa e terna,
a que tenha a humildade das mulheres bíblicas e a grandeza
e a coragem de todas as que souberam se sacrificar pelo
Bem-Amado.
Mandai, Senhor, para o Homem Só, a mulher
compreensiva e laboriosa, mandai a doce mulher exclusiva,
parcimoniosa e amiga, aquela que seja feita à imagem de
Marta, à semelhança de Maria, a que tenha de Sara e de
Ruth, a que não guarde no seu sangue nenhuma lembrança
de Salomé, nem de Atália, nem de Jezabel.
Mandai, Senhor, para o Homem Só, a mulher certa.
- Da falsa loura, imprudente, impiedosa, cansativa e
caluniadora, livrai-nos, Senhor.
Dai-nos a outra, a de cabelos dourados e olhar de azul
mediterrâneo, a silenciosa, a de alegria discreta e constante, a
que sabe esperar, a que sabe escolher, a que sabe acolher, a
que receberá o Homem Só como seu Messias.
- Da morena capciosa de olhar de víbora, aliciante
como o das serpentes, daquela que atraiçoa com encantação,
da que esconde o veneno na boca de sorriso, daquela que
mistura mel com hipocrisia, livrai-nos, Senhor .
Dai-nos a outra. a morena que tem a beleza das
mulheres trigueiras do Cântico dos Cânticos, a que pelo Bem-
Amado se submete a todas as penas, a que o espera sem
cantar as luas, a que é fiel por atavismo, adorável e amorável
pela própria natureza. A que não conta as léguas do caminho
para o encontro, a que não respeita nem o sol, nem a chuva,
nem o vento para o encontro, a que chora pelo encontro, a
que ora pelo encontro, a que ri pelo encontro.
E no encontro é a mais feliz, a mais suave, a mais
felina, a mais amorenta, a mais humana de todas as
153
mulheres. A que aprendeu a dar a cada minuto a força da
eternidade, a que esconde lágrima, a que esquece queixa e
apaga sofrimento, a boa, a bela, a generosa, mulher morena.
- Da mulata traidora vocacional, daquela de sonhos
impossíveis de palco e passarela, de câmeras, refletores e
aplausos, da que deseja o largo mundo, a cidade tentacular,
os caminhos dos pássaros, o mar grande, as glórias
espaciais, livrai-nos, Senhor .
Dai-nos a outra, a simples, a que veio da melhor
miscigenação, a que trouxe do caldeamento a franqueza
branda, a dignidade sem orgulho, a fidelidade sem alarde, a
modéstia sem ostentação, o amor tranqüilo, feito de verdade e
de renúncia, amor constante, sincero e fecundo. Aquela que
traz na voz a quentura e a nostalgia das três pátrias
ancestrais e no gesto e nos meneios a graça de muitas
gerações, a que traz nas mãos promessas nunca reveladas, a
que esconde no olhar a receita da atração que se vem
transmitindo intacta a todas as mulheres da sua cor tão
especial.
- Da preta graciosa e demoníaca, daquela trêfega,
insinuante e ciumenta, que disfarça nas blandícias da voz
africana os sortilégios insuspeitados das estranhas forças da
sedução que conduzem ao mal, livrai-nos, Senhor .
Dai-nos a outra, a descendente em linha reta da mãe
preta, herdeira das cantigas de ninar, a que guarda segredos
culinários e ternuras quentes, a que carrega música na alma,
leveza no corpo, volúpia nos olhos, a que labora e ajuda, a
que se sem pedir câmbio, aquela que nasce por amor, a
que vive, a que morre por amor.
- De todas as outras, Senhor, as que não queremos
ver com os olhos do corpo nem do pensamento, as amargas,
as tristes, as infiéis, as hipócritas, as impudicas, as inimigas,
as loucas, livrai-nos, Senhor. Dai-lhes muitas alegrias,
concedei-lhes a paz, a prosperidade, a boa sorte e as
conservai longe de nós.
Mandai, Senhor, para o Homem Só, a mulher certa.
(DIAS, 1971:122-4)
Condição inerente ao cronista, a mulher é tema de sua predileção. No
texto, especificamente, ela ganha contornos de fêmea e companheira.
Para delinear os tipos femininos favoráveis ao Homem Só, o cronista
percorrerá caminhos intertextuais ligados à Bíblia e à Antropologia cultural,
isto é, à Etnologia, associando-os.
Assim, temos na Bíblia Maria, Marta, Sara e Ruth que representam as
mulheres boas, enquanto Salomé, Atália e Jezabel, as más.
Na Escritura, Maria, a irmã de Lázaro, acolhia a Jesus e ouvia seus
ensinamentos; Marta, também irmã de Lázaro, recebia freqüentemente Cristo
no seu lar em Betânia e desempenhava o papel de serviçal. Ruth, nora de
154
Noemi, tornando-se viúva, acompanha a sogra e passa a trabalhar para
sustentá-la. E Sara, esposa de Abraão, por estar em idade adiantada e não
poder dar-lhe filhos, concede à sua criada, Agar, tal oficio, de quem mais tarde
recebe ingratidão. No entanto, por sua bondade, Deus lhe permite gerar um
filho, Isaac, para sua surpresa.
As rotuladas como más: Atália, mulher de Jorão e rei de Judá, para
vingar a morte de seus 42 irmãos e também de seu filho, Ocazias, formou um
exército poderoso e, fazendo guerra a Jeú, matou quase toda a geração de
Davi; Jezabel, mulher de Acab, rei de Israel, instiga seu marido a extinguir,
inteiramente, no seu reino, o culto a Deus, além de corroborar, ilicitamente
com seu marido, na aquisição da vinha de Nabor; Salomé foi responsável pela
cabeça de São João Batista a conselho da mãe vingativa, como prêmio por ter
dançado diante de Herodes.
Assim, representantes simbólicas dos sentimentos atrozes, temos
Jezabel (a busca do poder), Salomé (a traição) e Atália (a vingança). E as dos
sentimentos virtuosos: Marta (a serviçal), Maria (a espiritual), Sara (a
perpetuação de um povo, a maternidade) e Ruth (a doação).
Esses aspectos simbólicos correspondem ao tratamento etnológico e
aos tipos físicos femininos pontuados pelo cronista. Assim, a loura verdadeira,
a morena trigueira, a mulata da "melhor miscigenação e a preta prendada
espelham o melhor da mulher brasileira, deixando-se entrever intertextos com
as referências bíblicas condizentes a Maria, a Ruth, a Marta e Sara, sobretudo
a última.
Vale enfocar na demarcação das diversidades de raças, formadoras da
população brasileira, que o cronista parece privilegiar as morenas e realçar as
mulatas e as pretas.
A primeira ganha requintes de sensualidade ("a mais felina") e de
virtuosidade ("a boa, a generosa, a mais humana"); a segunda é vista de
maneira dicotômica: situa o lado mítico do Brasil, representado pela mulata
propaganda do modelo nacional-exportação (“sonhos de palco, de passarela",
que deseja “o mar grande”), delineando, assim, as prováveis escolas de
samba do Rio de Janeiro, dos nossos folclóricos carnavais que a projetam no
estrangeiro; mas também é vista como símbolo de miscigenação, marca
registrada das mulheres do nosso povo (sensualidade, a magia, "a graça de
155
muitas gerações"), aquela que reflete "a nostalgia das três pátrias ancestrais”:
África, Portugal, Brasil, que é a mistura desses dois primeiros povos, na
época de nossa colonização, de que resultou o povo brasileiro.
Da última figura feminina, a descendente em linha reta da mãe preta”,
ressaltam-se os aspectos positivos de nossa irmandade africana: as amas e
as contadoras de histórias que herdaram "as cantigas de ninar", a habilidosa
na culinária, a boa serviçal, a acolhedora, que em muito parecem as cunhãs
de quem o cronista lamentava a quase extinção na década de 70 e com quem
ele teve ligação desde sua Massapê querida até o dia de sua morte. Ele
comentou em algumas crônicas o perfil de Rosa, sua empregada, "relações
públicas da casa," que sabemos ter vivido com o escritor até 22 de março de
1983, quando da sua partida definitiva.
Da arquitetura do texto, podemos demarcar as seguintes idéias
centrais:
SALMO DO HOMEM SÓ
Oração: “
Senhor, tende piedade dos sós”
/
Mandai, Senhor, para o Homem Só, a
mulher certa”
MULHER
I. Características
importantes e
universais: boa
acolhida ao Homem
Só:
II. Tipos positivos
Desafio ao homem só
III. Tipos
negativos
Repúdio do
homem só
IV. Outros
tipos
negativos
Conveniente, resignada,
amante, companheira,
submissa, terna,
humilde, corajosa,
generosa, compreensiva,
laboriosa, doce,
exclusiva, parcimoniosa,
amiga...= perfeita
(idealização)
a) Loura: silenciosa,
constante,
acolhedora...
b) Morena: paciente,
resignada, suave,
felina...
c) Mulata: simples,
franca, digna...
d) Preta: acolhedora,
amorosa,
despretensiosa...
a) Imprudente,
impiedosa,
cansativa,
caluniadora
b) Capciosa,
aliciante,
hipócrita.
c) Traidora,
vocacional,
ambiciosa...
d) Demoníaca,
Amargas,
tristes,
infiéis,
impudicas,
inimigas.
156
* Corresponde,
biblicamente, ao perfil
de Maria, Sara, Ruth e
Marta.
insinuante,
ciumenta
* Corresponde,
biblicamente, ao
pefil de Jezabel,
Salomé e Atália.
PRODUTO DESEJADO: MULHER SALVADORA DO HOMEM SÓ =
A MULHER CERTA ( Possibilidades dos itens I e/ou II)
Do texto podemos depreender algumas constatações:
Não importa o tipo físico da mulher, mas as virtudes que ela
traga;
Tais virtudes são espécie de encaixe para cada tipo de homem
só;
Com o pronome “nos” em “livrai-nos”, o cronista inclui-se,
assumindo-se solitário.
Não como reunir todas as características positivas em um
tipo de mulher, pois isso é mera idealização;
Mesmo ciente dos tipos negativos de mulheres, o cronista não
lhes deseja mal, contanto que estejam longe desse homem só;
O texto começa e termina em tom de apelo comum em orações
devido ao uso da função apelativa e de apóstrofe: “- Senhor,
tende piedade dos sós”; Mandai, Senhor, para o homem só, a
mulher certa.”
“Se essa mulher certa” tivesse surgido, talvez o cronista o nos
brindasse com textos de tão estrema reflexão e poesia, pois a trilha dessa
solidão é percorrida intensamente e nela outros elementos somam-se à
retratação memorialista que ainda mais engrandecem sua prosa; um deles é o
anseio do escritor pela completude, pelo desejo de felicidade:
É velho vício nosso (e vício velho não se cura) insistir
no sonho com o impossível, cultivar o desejo de eternizar
retalhos de felicidade, aqueles em que se poderia repetir com
Goethe: "Pára, momento, tu és tão belo" (DIAS, 1985: 136)
Reconhecendo o impedimento desse desejo, o cronista põe-se
melancólico, e o consolo parece emanar do retorno à sua Ilha idealizada.
157
Entretanto, mais explicitamente, Mílton Dias ao focalizar a efemeridade
exprime a idéia de evitar a perda de tempo. Suas palavras soam com um
timbre digno daqueles que acreditam na postura do “Carpe Diem” e praticam-
no:
Ah, fugir para uma ilha em que não haja futuro nem
passado, onde as lembranças não apareçam, sobretudo não
firam. E aquela que esperamos em vão a vida toda virá, com
um sorriso imemorial e eterno, um sorriso feito da consciência
do bem-querer, espontâneo e amorento. Ninguém permutará
mágoas, nem revolverá velhas diferenças, porque nesta ilha
as memórias não serão consentidas e o esquecimento será
distribuído em doses largas, desde o desembarque.
Ninguém lembrará a noite da espreita inútil (repito que
dói muito a angústia da espera sem certeza), ninguém dirá a
palavra que outrora ofendeu, ninguém lamentará as ausências
que foram tantas, ninguém falará de outras viagens. Ah, um
amor sem separação seja servido nesta ilha. Um amor sem
exigência e sem remorso, corra para esta ilha. Um amor sem
idade, voe para esta ilha. Depressa, é urgente, meu Nosso
Senhor. Não sei quanto ainda resta para cumprir meu tempo
em cima deste chão, compondo a grande caravana que não
se detém um segundo. (DIAS, 1974, 98-9)
Fora de sua ilha, visando as pegadas verdadeiras do difícil dia-a-dia,
parece mesmo que o cronista esteve sempre distante da escorregadia e
sempre desejada felicidade; sonho de impossível concretização duradoura
não para ele, mas também para toda a humanidade. Afinal, o que se quer
da vida? Ser feliz. Não importa que os caminhos e as facetas dessa felicidade
sejam distintas.
Com senso de vigorosa consciência da realidade, sobretudo do peso
de sua existência, sem felicidade, Mílton Dias escreve um texto ao amigo,
médico e poeta, Saraiva Leão e em tom apelativo e mais uma vez de forte
vigor melancólico. A pergunta do cronista é respondida por ele mesmo,
porque a nenhum médico foi dada a condição de se prescrever felicidade,
mesmo em gotas. Ao observarmos a disposição textual, percebemos que não
é por acaso que a palavra GOTAS ocorre cinco vezes num texto curto.
Semanticamente, o termo gotas ressoa como uma espécie de tônico para a
vida do cronista, cuja felicidade é totalmente ausente, possibilitando-lhe
espécie de salvação para o encontro dele mesmo com dias melhores.
158
também a sugestão de uma idéia de necessidade urgente como a
última possibilidade de ele continuar vivo, pois a disposição do termo “em
gotas” retirando o vocativo, vem no final das frases como a produzir um eco
que parece ir apagando-se. Daí inferirmos a iminência de um socorro, de que
seu apelo seja realizado urgentemente:
159
4.4 O lado chapliniano: a dor e o riso
Diz-se que se Deus com nitidez através das lágrimas”.
Deixá-las então correr e fecundar em algum canto do coração a
lembrança grata, impagável, pois o choro e o riso confirmam a
condição humana. (DIAS, 1982: 109)
É justamente essa consciência lúcida do cronista sobre a existência
humana que o torna um escritor experiente; aquele que domina os recursos
estilísticos utilizados e a reação que eles provocam nos leitores.
O fato de lton Dias centralizar em sua prosa temática ligada à dor e
ao sofrimento, como a morte, a ausência, enfim, as perdas, não o torna um
cronista de textos depressivos por excelência, isto é, ao serem lidos, tornam
os leitores ainda mais melancólicos ou pessimistas diante do ciclo natural da
vida.
Mesmo quando o tema denota melancolia, o leitor sai dele mais
fortalecido, ou mais cúmplice, pois o dito, em muito, contribui para momentos
de reflexão, para tomada de consciência, como um processo de
alumbramento, dado que as palavras impressas, usadas com adequação,
nem sempre fazem brotar nos leitores que por ventura viveram ou vivem
problemas semelhantes ou iguais ao cronista. É como se ele fosse intérprete
hábil na função de traduzir, com objetividade e completude, nossos
sentimentos mais profundos. Dessa forma, apesar da densidade melancólica
que advém de alguns temas, o leitor ainda se sente tonificado com a precisa
escolha lexical do escritor, que às vezes até parece formular ximas.
Provavelmente, vários textos desencadearão reações emocionadas,
tais como Confissão”, “Carta à minha mãe”, “A megera” entre outros, porque
focalizam retratações de grande sofrimento. Mas, ainda assim, o saldo da
leitura vale pelo preço da reflexão, da meditação.
No entanto, de um modo geral, a obra de Mílton Dias é marcada
também pelo riso, pelo bom humor, mesmo em situações inusitadas em que
se espera apenas uma postura de dor, de tristeza, de comiseração diante do
sofrimento de perda como este trecho da crônica Sobre a morte:
160
Terrível é morrer no figurino antigo muito bem fixado
no In extremis de Bilac, a natureza toda cantando fora e
dentro do quarto o moribundo agarrado às mãos da bem-
amada vivendo a situação dramática - "vendo-te, e vendo o
sol, e vendo tão bela palpitar nos teus olhos, querida, a delícia
da vida; a delícia da vida!”
Ocorre-me a morte de um senhor em plena
maturidade, que se finou recitando estes versos ao lado da
mulher que lhe acompanhava a agonia. Ao que uma vizinha
irreverente comentou: - Ave Maria, como é que se estraga
Bilac com uma mulher feia destas? Era o óbvio, o pobre não
podia improvisar uma companheira bonita para seu último
desfrute declamatório. (DIAS, 1982: 103-4)
Recorrente em seus textos, a intertextualidade agora vem com o
poema de Olavo Bilac. O texto integral enfoca com maior plenitude a antítese
da despedida: o marido é um moribundo enquanto a esposa, cheia de vida.
Assim, as tríades paradoxais (marido-morte-quarto) e (esposa-vida-natureza)
fortalecem ainda mais o tom sombrio e melancólico que desencadeia a
comicidade.
In Extremis
Nunca morrer assim! Nunca morrer num dia
Assim! De um sol assim!
Tu, desgrenhada e fria,
Fria! Postos nos meus os teus olhos molhados,
E apertando nos teus os meus dedos gelados...
E um dia assim! De um sol assim! E assim a esfera
Toda azul, no esplendor do fim da primavera!
Asas, tontas de luz, cortando o firmamento!
Ninhos cantando! Em flor a terra toda! O vento
Despencando os rosais, sacudindo o arvoredo...
E, aqui dentro, o silêncio... E este espanto! E este medo!
Nós dois... e, entre nós dois, implacável e forte,
A arredar-me de ti, cada vez mais a morte...
Eu com o frio a crescer no coração, — tão cheio
De ti, até no horror do verdadeiro anseio!
Tu, vendo retorcer-se amarguradamente,
A boca que beijava a tua boca ardente,
A boca que foi tua!
E eu morrendo! E eu morrendo,
Vendo-te, e vendo o sol, e vendo o céu, e vendo
Tão bela palpitar nos teus olhos, querida,
161
A delícia da vida! A delícia da vida!
Desse jogo dicotômico em que se alinham idéias incongruentes,
surgem cenas inteiramente cômicas em muitos textos, sobretudo as da obra
Cartas sem resposta cujo conteúdo é mais voltado para o universo das perdas
e no qual se esperava, portanto, o vigor soberano da tristeza, da melancolia,
do choro, pois o cronista imagina a volta do pai morto mais de quatro
décadas.
Fazer sorrir não é um jogo fácil. Na arte poética, Aristóteles concedia à
tragédia papel de superioridade, enquanto a comédia ligava-se à imitação de
pessoas inferiores. A comicidade era associada, portanto, a um defeito e a
uma feiúra, a um aviltamento. Foi necessário tempo para que a comédia e
depois a tragicomédia tivessem prestígio enquanto gênero.
O riso, agora soberano, é desencadeado através, costumeiramente, de
ironia. E esta pode ocorrer de modo a apresentar dissimulação, atenuação,
paródia, caricatura, envolvendo nesse jogo o patético, o grotesco, o caótico.
Em parte, o humor praticado por Mílton Dias é conseqüência do próprio
gênero crônica, mas reconhecemos que esse recurso evidencia-se
verdadeiramente pelos seus atributos de exímio contador de histórias. E ele é
um contador de histórias cujo manancial parece ter vindo no sangue. A
propósito, no texto Carta à minha mãe, o cronista se refere a sua progenitora
assim:
Os cabelos brancos não dissiparam o senso de humor nem o riso fácil
(...)” Ou talvez advenha também do fato de ele ter sido cearense, a quem as
críticas nacionais acolhem como povo bem-humorado, “exportador” de
comediantes.
Venha de qualquer que seja a fonte, o importante é que o cronista sabe
habilmente estruturar seus textos sob uma perspectiva chapliniana: a dor e o
riso, que se impõem e matizam-se para levar ao leitor páginas de leituras
deliciosas e cheias de requintes e sutilezas.
Seja do domínio consciente dos processos estilísticos ou da habilidade
inerente ao autor, que conviveu com personagens folclóricos do sertão, o fato
é que seu humor irônico em grande parte consolida-se a uma ironia eufêmica,
anedótica. Os assuntos delicados, trágicos, desesperadores não são
162
enfocados pela visão caústica, disfêmica. Parece intencional o jogo do
cronista em apresentar as mazelas ou os problemas da existência humana de
maneira leve, a evitar choques, contundências, ou mesmo para focalizar
humor negro com requintes de sutileza:
No sertão as providências com relação aos funerais
começam muitas vezes antes que se o desenlace e altas
horas da noite ouve-se o marceneiro entregue ao seu fúnebre
mister de fazer o caixão. Foi por isto que quando dona
Maroquinha estava nas últimas, mandaram um menino à casa
do Seu Messias, a fazer a encomenda. Ele conhecia a
candidata, nem precisava tirar as medidas. Imediatamente o
homem pôs mãos à obra e ia em meio do seu trabalho
quando recebeu um recado para que o suspendesse, pois a
senhora estava experimentando inesperada melhora. Ao que
o mestre carpina, decepcionado em face da perda de tempo,
indagou com ligeira esperança: - Mas é miorinha pouca, não?
(DIAS, 1982: 104-5)
A sutileza do humor bem trabalhado nessa passagem reside em
alguns aspectos: a escolha lexical é precisa ao denotar eufemismo com a
palavra “candidata”, que comumente está ligada a um campo semântico
positivo. Quem, normalmente, quer candidatar-se à morte? Outra expressão
que merece atenção do leitor é “ligeira esperança”, pois o adjetivo “ligeira”
corresponde ao comportamento brusco do marceneiro ao ter esperança de
que a melhora da moribunda não prosseguisse; portanto, trata-se de uma
hipálage. Outro recurso interessante é o uso de linguagem sertaneja e do
próprio diminutivo “miorinha”, que reforça a idéia de melhora passageira, o
que tornará válido o trabalho do carpina.
Mais uma vez, ao abordar a temática morte, o cronista provoca o riso
do leitor. Vale a pena ressaltar que se trata de um dos textos em que Mílton
Dias evoca a volta do pai morto há mais de quatro décadas:
Sim, depois veio o padre José Bezerra Coutinho, que
é, hoje, Bispo de Estância, em Sergipe. E, em seguida, um
jovem vigário, o padre Prisco, que morreu logo, coitado. E,
quando falecia, quando agonizava no quarto da sua casa,
uma filha de Maria, que aguardava o desenlace na sala,
cercada do grupo da Pia União, não se conteve na sua
sincera dor, exclamou dramática: - Padre Prisco, não deixe o
seu rebanho ao desamparo, venha buscar suas ovelhinhas!
163
Ao que o Soares, que o senhor conheceu, atalhou,
oportunamente: -Olha, moça, arruma com ele pra vir buscar
as ovelhas. Mas diga que deixe os carneiros aqui. (DIAS,
1974: 118)
Afora esses exemplos de humor ligado à morte, existem inúmeros
outros focalizando cenas de viagem, flagrantes do cotidiano; alguns deles
apresentados em outros momentos do trabalho, como os textos “A um ladrão”,
“À Jacqueline”, “Despedida de bordo.
4.5. A escrita: salvação / eternização do cronista
No começo eu contei carneirinho, chamando sono.
Depois contei boi, contei boiada, mulher, menino, anjo,
demônio - e, enquanto apascentava brancos rebanhos
noturnos dentro de nuvens improváveis, passei a guardar a
insônia fecunda. Pastor solitário de olhos acesos, habitei
noites estranhas, grávidas de mistério, caminhei longe, passei
ponte, passei rio, surpreendi rosa, estrela, lua nova, lua
crescente, lua minguante, de novo mulher, demônio de novo,
raio verde, sol poente, navio bêbado. No remanso da
madrugada, desembarcavam pessoas, pássaros, coisas,
cidades, caminhos do sertão, braço de mar, beira do rio.
Testemunha e participante, fui ouvindo conversas
conversadas, somei cartas, casos, vivências, andanças,
malaventuras, amores, alegrias, salmos, sofrimento, ajuda -
toda a humana safra que trago aqui para os vossos olhos e
que fui colhendo devagarinho, cada noite, na minha ilha. Na
Ilha do Homem Só. (DIAS, 1966: 9)
Testemunha e participante da roda-viva humana, que a tudo e a todos
consome, já que não se pode mudar o curso natural da vida, Milton Dias, mais
uma vez, deixa entrever intertextualização com Manuel Bandeira em seu
poema Trem de ferro:
Café com pão
Café com pão
Café com pão
Virge Maria que foi isso maquinista?
164
Agora sim
Café com pão
Agora sim
Voa, fumaça
Corre, cerca
Ai seu foguista
Bota fogo
Na fornalha
Que eu preciso
Muita força
Muita força
Muita força
(trem de ferro, trem de ferro)
Oô...
Foge, bicho
Foge, povo
Passa ponte
Passa poste
Passa pasto
Passa boi
Passa boiada
Passa galho
Da ingazeira
Debruçada
No riacho
Que vontade
De cantar!
Oô...
(café com pão é muito bom). (BANDEIRA, 1993: 236)
É nessa apresentação de um dos seus livros mais expressivos sob a
ótica da solidão, A Ilha do Homem , que parece clara a idéia de que as
crônicas podem (re)fazer o caminho que levou Mílton Dias a buscar a escrita
como forma de preencher um vazio existencial, pois, dicotomicamente, é
justamente esse vazio que se materializa em seus textos para o aconchego
165
do cronista. Supostamente, é esse vazio de que o eu torna-se prisioneiro,
associado às perdas, que invade a solidão do cronista e adota uma linguagem
do que fal(t)a.
Na sua trajetória existencial, o cronista passa a “guardar a insônia” e,
na condição de “pastor solitário”, aprende a lidar com esses dois “problemas”;
pois eles vêm acompanhados de duas condições salutares: a insônia é
“fecunda” bem como o pastor solitário tem “olhos acesos”. Portanto, através
desse duplo, os triunfos literários vão sendo realizados e ofertados aos
leitores: Toda a humana safra que trago aqui para os vossos olhos e que fui
colhendo devagarinho, cada noite na minha ilha. Na Ilha do Homem só”.
Fonte de criação literária, o vazio (o ausente) se objetiva nas crônicas,
assumindo formas cada vez mais ricas: Sol poente, noite, madrugada, mulher,
vozes, cidades, pessoas, caminhos do sertão... e sucedem-se colorindo uma
vida que, dessa forma, escapa da aridez cotidiana e do próprio desespero que
dela pode brotar.
Tudo isso que é colhido e presenteado aos leitores realiza-se “no
remanso da madrugada”, desempenhando o cronista duas funções
fundamentais: testemunha e participante da “humana safra” que ele foi
“colhendo devagarinho” no seu refúgio, na sua “Ilha”.
E são justamente as malaventuras e o sofrimento, sugestão das perdas
do cronista, os pólos fomentadores de sua escrita, realizada quando
comumente todos dormem, e ele comanda seu reinado de solidão.
Paradoxalmente, é através desse universo de ausência que o cronista
se ergue de seus textos para reconquistar o que lhe falta como tão bem
preconizou o crítico Alfredo Bosi:
“Suprir” a ausência de pessoas, coisas e ações,
chamando-as, exprimindo o sentimento que elas provocam, articulando esta, a
direção fundamental de nossa linguagem. (BOSI,1977:60)
Assim, o cronista solta sua voz na Madrugada-insônia, dupla coesa e
fundamental também retratada nos textos:
Tanto pôr-do-sol guardei, tanta noite não dormi, tanta
insônia cultivei, madrugada apascentei, muita aurora atocaiei,
muitas estórias ouvi, algumas contei, outras tantas escrevi.
(DIAS, 1971:PREFÁCIO)
166
A madrugada é meu clima e meu feudo, minha
parceira e cúmplice. (DIAS, 1985: 89)
É madrugada, a última deste mês de setembro e eu
mergulho sozinho numa sala pequena, dentro do silêncio
grande, que o apito dum guarda desrespeita de vez em
quando e cumpre cautelosamente mais sua insônia, entre
lembranças velhas e novas. (DIAS, 1971: 39)
Pastoreio e exploro a insônia oportuna, rasgo papéis,
faço notas, arrumo livros, leio, escrevo, retomo velhas cartas
que encontrei por acaso num canto da gaveta. (DIAS, 1971:
44)
Além dessas referências diretas, existem outras igualmente
importantes: um livro intitulado Entre a boca da noite e a madrugada bem
como três textos dessa obra cujos títulos o denunciadores desse espaço
temporal: “Madrugada”, “Madrugada II”, “Madrugada III”.
Em observância a esses símbolos de sua escrita, denotamos que eles
estão quase sempre impressos de idéia positiva: “insônia oportuna e fecunda”,
“cumpro cautelosamente mais uma insônia”, madrugada é “clima”, “feudo”,
“parceria” e “cúmplice”, insônia cultivada. A propósito, apenas em um contexto
a insônia ganha projeção negativa, porém é de se esperar que assim ocorra
dado que Mílton Dias toma posição de cronista “menor”, falando
explicitamente sobre seus “atentados à Literatura municipal”, pois escrevia
semanalmente no jornal O Povo.
Verdade também que estas insônias têm seu lado negativo,
são irresponsáveis por repetidos atentados à literatura
municipal, é por conta delas que freqüentemente cometo
crônicas, reincido impunemente – são elas que fazem cair
nesta portátil indefesa atrevidos vocábulos violentando a
virgindade branca do papel não vingado. (DIAS, 1966: 157)
Sua escrita emana de um cenário de solidão, de reminiscências da
infância, de transfiguração do tempo e do espaço existencial em que o leitor é
chamado a participar de um testemunho de vida.
E tamanha é a consciência de Mílton Dias sobre suas crônicas, que
elas percorrem um duplo (escritor/leitor) numa parceria indissociável.
Pois é - solto minha literatura municipal pela imprensa,
vai tudo pro povo, para o povo ver se quiser, ler, criticar,
167
julgar, apedrejar, rir, chorar, aplaudir até. E assim me
exponho, provavelmente como o ator que, apesar de
esforçado e de bem intencionado, não deixa de ser canastrão
aos olhos da multidão irreverente, funcionando como velho,
como criança, como irmão, como amigo, como doido, como
alguém que conta estória ou que não conta nada,
dependendo naturalmente do leitor receber ou não receber a
mensagem, evidente ou subentendida. Haverá uma verdade
em mim mesmo e uma outra em cada leitor talvez a mesma e
não coincidente, pois de ator, de doido, de criança, de médico,
de irmão, todos têm um pouco. (DIAS, 1974, 102)
Ainda mais retumbantemente, o cronista declara a preocupação em
manter a privacidade de sua vida íntima, reconhecendo, portanto, que suas
crônicas também estão imbuídas de teor confessional:
E por mais que se previna contra a auto-indiscrição,
por mais que se policie, se reserve, o cronista vai se
projetando no que escreve e acaba se contando, confessando
os sentimentos mais prudentemente guardados, soltando os
pedaços desta alma envelhecente. (DIAS, 1985,286-7 )
O cronista sugere que sua escrita funciona também como espécie de
consolo, desabafo, rememoração, refúgio em que ele conta com o leitor,
partícipe primordial que serve de alento ao seu cotidiano.
Uma folha deste de esperança é tudo o que vos venho
oferecer, com um ramo de gratidão, a vós todos, nesta
véspera de Ano Novo, a vós que eu encontro, quando saio da
Ilha... (DIAS, 1966: 135)
Esse consolo de que precisa o cronista, fruto das perdas sofridas ao
longo de sua vida, é fortemente demarcado pelo estado de melancolia que
passa a ser a principal figura alegórica representante da “vida que poderia ter
sido e que não foi”. Entretanto este estado melancólico, fomentado pela
experiência da ausência, transforma-se numa poderosa energia criativa em
que Mílton Dias recria seu mundo perdido, atualizando-o, embora isso só
possa ocorrer na rememoração e evocação de seus escritos.
A linguagem, portanto, presentificação do que está ausente, torna-se,
por excelência, suporte vital de um lirismo voltado para a reconstrução de uma
história de vida. Assim, as crônicas, que gradualmente se solidificam como
principal companhia do cronista, fazem-no encontrar sua razão de ser: Estou
168
um pouco em muitas delas [crônicas]. A projeção do autor no que escreve é
inevitável, compulsória. (DIAS, 1985:280)
Portanto, essa sublimação feita através da escrita é uma espécie de
pulsão para a própria vida do cronista, embora tudo isso tenha sido fomentado
por um viés de grande sofrimento. O vazio advindo de suas perdas invade sua
solidão, quando ele colhe das insônias de longas madrugadas o manancial
para sua escrita, que por sua vez só é possível resgatando esse vazio,
fomentado pela melancolia dessas ausências...
Não tivesse havido todo esse universo de sofrimento, infelicidade,
talvez também não tivéssemos um cronista tão maior. Por isso, o verso de
Manuel Bandeira parece merecer uma intertextualização paródica: A vida
inteira que poderia não ter sido e que foi. Essa mesma vida que ironicamente
amarfanhou o coração de Mílton Dias também presenteou os leitores com
crônicas de grande relevo literário.
169
CONSIDERAÇÕES FINAIS
170
Pensar na conclusão desse trabalho já abre um caminho reticente
dadas as várias possibilidades que novos olhares podem sugerir ao objeto de
estudo, posto que novas lições são engendradas no infinito processo de
dinamismo da vida, pois as idéias renovam-se e ampliam-se cotidianamente.
É nessa perspectiva que se insere a dissertação Milton Dias: a vida
que poderia ter sido e que não foi, cujos objetivos principais são contribuir
com o patrimônio das idéias sobre o autor e encaixar-se como parte de sua
fortuna crítica, pois muito ele merecia um estudo de maior fôlego dado seu
inegável valor como um dos cronistas mais importantes do Ceará, sobretudo
neste ano em que se comemora o sexagésimo aniversário do Grupo Clã do
qual ele fez parte e foi destacado como o melhor de seus cronistas.
Feitas essas considerações, sentimo-nos gratificados pela possibilidade
da demarcação de um itinerário autobiográfico através da leitura de seus
textos, que trazem no bojo do gênero essa ambivalência indisfarçável entre
jornalismo e literatura, realçando-se o último. Foi escrevendo no e para o
jornal durante 29 anos que ele consolidou-se como cronista e pela qualidade
de sua escrita, definitivamente, consagrou-se um dos maiores cronistas
brasileiros.
Portanto, dessa ambivalência outros aspectos merecem ser retomados:
a própria ambigüidade da crônica entre a poesia e o conto e a consciência do
autor sobre esse terreno movediço, o que o fez classificar ou subclassificar
seus textos também de estórias, ressaltando-se daí o seu legado de grande
contador de estórias e sua prosa poética sempre presente nos textos.
O jornal O Povo e mais recentemente a Universidade Federal do Ceará
são os grandes veículos responsáveis pela projeção do autor, sobretudo este
último através do qual nosso projeto saiu de uma mera especulação para a
realidade, dada a leitura da obra póstuma Relembranças para o concurso
vestibular dessa entidade em 1997.
As crônicas de Milton Dias, merecedoras de aplausos pela qualidade
que imprimem, estão impregnadas de vivências pessoais do autor e estas se
comungam com a memória coletiva cearense, brasileira e mundial, posto que
enfocam e justificam as grandes mudanças trazidas pela urbanização nos
cenários nacionais e internacionais.
171
Isso não foi possível apenas pelas viagens intelectuais do autor, mas,
principalmente, por sua vida andeja que sempre o incitou a enxergar com
lentes ampliadas as pessoas e o mundo. Percorrer caminhos, lugares,
cenários parece justificar a postura do homem inquieto, sensível e reflexivo
que constatamos ao ler seus textos, no justo sentido do homem que tinha
dimensão da efemeridade das coisas da vida, por isso, mesmo sendo o
passado o seu ponto de referência, ele jamais perdeu a lucidez de enxergar o
presente como forma de recuperar-se, de refletir:
(...) o pior desta minha geração sacrificada e atônita foi
ter vindo justamente para testemunha de todas as grandes
mudanças que ainda se processam e se completam, cada dia,
de forma mais rápida, viemos para ver a vitória das grandes
invenções, gozar o conforto de muitas delas, é certo, mas
sofrer o medo e as conseqüências das outras, as terríveis,
aquelas que desgraçadamente aumentaram o poder da
destruição.
O impacto ainda mais aumentou porque conhecemos,
na infância, o resto de tranqüilidade que vinha do século
passado, vimos as despedidas da doce vida de província,
num ritmo sossegado, surpreendemos a pureza e a
ingenuidade de outros tempos. Nascemos no fim da “belle
époque” – e subitamente, como uma pancada na cabeça,
presenciamos a violentação de antigas, sólidas, milenares
estruturas. E nem tivemos tempo de chorar sobre os
escombros, porque, apesar de perplexos, o imperativo
irrecorrível era marchar para a frente, sobre o caminho que na
Europa se costumava chamar “das ilusões perdidas” aquele
que ficou entre 1919 e 1939.
Viemos de antigos tempos e mergulhamos nos tempos
novos, assim tão de repente. Éramos crianças (crianças do
mundo inteiro), caçávamos pássaros indefesos e assim
como numa resposta de punição, pouco tempo depois nos
ensinaram a arte de matar possíveis inimigos aéreos e nos
deram a guerra de presente. Aprendemos canções de paz e
quando saímos da adolescência (os da minha geração no
mundo todo), tivemos de cantar hinos bélicos, políticos,
porque a guerra pegava fogo, homens endemoninhados,
líderes loucos, deitavam fósforos à pólvora da sua ambição de
conquista, no seu desvario de ódio e de domínio.
Viemos de tempos em que ainda se debruçava o
homem na contemplação da natureza (eram os últimos
resquícios românticos), e borboletas dançarinas costumavam
dar espetáculos gratuitos sobre os campos (para onde terão
fugido as borboletas?), bravos tempos em que as águas
jovens, cantantes, vadias, dos rios, se ofereciam, cordiais e
cúmplices, a meninos despreocupados e felizes.
Ainda participamos de alegres cirandas noturnas, sem
revistas em quadrinhos, sem televisão, apenas com o começo
172
do cinema, numa sessão dominical, e vimos, diariamente,
uma cidade inteira se benzendo e rezando, ao toque das seis
horas, em tardes de azul precioso, com restos de sol dourado
deitando em tudo uma nota de suave eternidade.
Ainda ouvimos os últimos bandolins em casas
senhoriais, ainda alcançamos pianos prestigiados, ainda
escutamos poemas em jovens bocas de tímidas raparigas
sertanejas, nas prendas familiares, ainda acreditamos em São
Jorge cavalgando corcel branco, em noites de lua cheia, ainda
fizemos confiantes pedidos à lua nova, ainda fechamos os
ouvidos ao canto agourento de corujas insones, acreditamos
numa paz constante, definitiva, reconstruindo e renovando o
mundo.
Nossa geração foi embalada, na infância, na ilusão de
que o homem, depois da lição duma grande guerra, nunca
mais repetiria a experiência terrível. Fomos educados com a
consciência de que o homem caminhava para a perfeição
espiritual, que cada dia mais se aproximava de Deus e
desistia, definitivamente, de matar o seu semelhante.
Tudo ilusão de meninos que ainda buscavam no céu os
nomes das estrelas, em vez de procurar sinais de discos
voadores; tudo ilusão de meninos que ainda não tinham
contraído os hábitos da civilização desvairada, que ensina a
agressão em cursos de defesa pessoal; tudo ilusão de
meninos que ainda não tinham renunciado à sua ingênua
esperança num mundo ideal, daqueles meninos que agora
são cinqüentões, irremediavelmente. Injustamente, sem
nenhuma culpa. (DIAS, 1985: 107-8)
Como não perceber ou como esquecer a consciência engajada e
filosófica do autor? Como apagar sua postura de cronista de uma sociedade,
pronto a sempre deflagar as mudanças irrevogáveis? Como não perceber
também a aguçada reflexão de seus textos, que confirmam o eu e o outro
imersos na tensão do mundo moderno caótico?
É dessa lúdica memória individual e coletiva que surgem matizes de
sua prosa como reflexo de um escritor multifacetado: cronista, poeta, ator,
repórter em que uma faceta enriquece a outra, que ele soube percorrer os
universos geográficos, intelectuais e metafísicos.
E nessa busca de compreender a si mesmo e o mundo, deixou-nos
grandes momentos de reflexão e meditação, por isso é impossível sairmos
impunes da leitura de seus textos que nos predispõem a catarse e
autocatarse.
Embora morto quase 23 anos, Milton Dias parece mais vivo que
antes dada a atemporalidade de seus textos que não falam apenas da vida,
mas de nós mesmos nas grandes lutas diárias.
173
Dessa matéria-prima, é que se nutre a cronística do autor, enraizada
por um itinerário sempre visível a focalizar, de maneira quase indissociável, o
menino e o homem Milton Dias, pois este parece sempre emergir daquele
quando a questão é a escrita.
Foram tantas as portas abertas pela própria escrita do autor, que
precisaríamos retomar e unificar as vias pelas quais enveredamos:
organizamos o trabalho partindo do memorialismo ao autobiografismo a fim de
nortear alguns aspectos básicos: escrita do eu – o perdido e o (re)encontrado;
o missivismo solitário e a (re)visitação à infância; a vida andeja do autor e o
entre-lugar de sua crônica e a presentificação das perdas através da escrita.
Tais aspectos completam-se, às vezes, circundam-se, mas conseguem
demonstrar a possibilidade de um itinerário de vida trilhado pela memória.
Dessa forma, sentimo-nos, várias vezes, ameaçados pela tendência à
redundância, dado o teor de entrelaçamento e de circularidade que tal
itinerário estabelece.
Não existe Milton Dias sem a infância, não existe infância sem a
evocação do perdido, o existe o perdido sem a melancolia e o luto e não
existem todos esses ingredientes sem o perfil de um homem itinerante e
solitário que parece buscar seu consolo, sua “salvação” na escrita
transbordante de dor e riso. E sem isso tudo, portanto, não haveria o escritor e
contador de histórias de tanta qualidade...
Essas referências de análise permitiram um estudo de articulação da
vivência biográfica à expressão literária, sem pretensão alguma de a termos
esgotado. Várias são as lacunas de sentidos que a crítica talvez jamais
abarcará em seu todo. Portanto, que essa fal(t)a proposta aqui nos estimule a
novos desafios em torno da produção literária desse autor que merece com
urgência o resgate de tantas outras das centenas de crônicas que ainda estão
restritas ao jornal para figurarem como enriquecimento nas letras brasileiras.
Se existe “palavra final” nessa dissertação sobre o autor acerca de seu
processo de criação literária, é mais oportuno que venha dele mesmo esse
“ponto final”:
O ato de criação é um ato de amor. É uma beleza sentir-
se a gente tentado por um tema, uma estória, um personagem
174
e conseguir dar-lhes o sopro da vida no papel. Depois é como
diria o velho Cardeal Rufo, “o resto é quase nada”. (O
Popular, 1977:7)
175
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ZILBERMAN, Regina. Estética da Recepção e História da Literatura. São
Paulo: Ática, 1989.
180
ANEXOS
181
ANEXO A
DOCUMENTOS PESSOAIS
Certidão de nascimento
Documentos de identidade pessoal e profissional
Curriculum
Certificado
Caderneta de apontamentos pessoais (Miscelânea)
Certidão de óbito
Lembrança da missa de 7º dia
182
183
184
185
186
187
188
189
190
191
192
193
194
195
ANEXO B
FOTOS
196
PEDRO DIAS (Pai de Mílton Dias)
Da esquerda para a direita: em pé : Miron, Mílton e Wilson Dias
Sentados: Estela, João Batista e D. Iracema Dias
197
Na Concha Acústica da UFC: Da esquerda para a direita:
Raimundo Girão, Fran Martins, Artur Eduardo Benevides, Antônio
Bandeira, João Clímaco Bezerra, Braga Montenegro, Antônio Girão
Barroso, Alba Frota, Moreira Campos e Mílton Dias
Mílton Dias com Simone de
Beauvoir e Jean Paul Sartre em
visita a Fortaleza
198
Rita (irmã de criação
de Mílton Dias e
personagem de
algumas crônicas do
autor)
Rosa (“secretária-do-
lar” , “relações-
públicas” da casa de
Mílton Dias – também
personagem de
algumas de suas
crônicas)
199
ANEXO C
CORRESPONDÊNCIAS
De Pedro Nava para Mílton Dias (1978) – comentário sobre o romance
Senhora da sexta-feira
De Pedro Nava para Mílton Dias (1979)
De Wilson Martins para Mílton Dias
De Jorge Amado para Mílton Dias
De Jorge Tufic para Mílton Dias
De César Barros Leal para Mílton Dias
De José Gamaliel Noronha para Mílton Dias
De Mílton Dias para Pedro Nava (1975)
De Mílton Dias para Pedro Nava (1979)
200
201
202
203
204
205
206
207
208
209
210
211
212
213
214
215
216
217
218
219
ANEXO D
ENTREVISTAS, DEPOIMENTOS E APRECIAÇÕES CRÍTICAS
220
DIVERSOS Fortaleza, Ceará, Brasil terça-feira, 11 de junho de 1974 O
POVO
MILTON DIAS – O CRONISTA BASTANTÍSSIMO
O POVO – Por que você acredita no céu, nos anjos, nos santos e em Deus?
MD Minha fé é atávica, congênita, estrutural, tem talvez muito de emocional, vem
muito mais do coração do que da cabeça. Creio em Deus, sim, nos anjos, nas almas
e nos santos. Creio no diabo também, que agora voltou à moda com toda força, foi
ressuscitado com chifre e rabo e cheiro de enxofre, por culpa do Exorcista” de
William Peter Blatty.
O POVO Com toda ajuda da Corte Celestial, espera ser contemplado com um
lugarzinho no paraíso perdido de John Milton?
MD Sou Milton, sim, mas nunca perdi meu paraíso, porque nunca o encontrei. Mas
não faço contabilidade religiosa. Acho que o cumprimento dos mandamentos da lei
de Deus deve ser feito por honestidade e por princípio e não por medo da punição ou
por simples interesse da recompensa. Desde que se aceita Deus, é preciso respeitá-
lo e segui-lo, numa forma de comunicação direta e permanente, assim como num
relacionamento filial. Sei que existe a justiça divida, mas sei também que existe a
misericórdia digna como Omar Khayamm, não posso desesperar delas: fui sempre
um homem sincero. Os pecados e falhas que são muitos (mea culpa, mea culpa!)
hão de ser compreendidos pelo Pai: decorrem da própria condição humana. os
santos foram preservados e assim mesmo (talvez por isto) muitos deles sofreram
pedradas, vexames, calúnias, insultos, perseguição, até condenação à morte.
O POVO – O homem continua lobo do homem?
MD – A humanidade continua a mesma, em toda parte, a mesma de todos os
tempos. Os sentimentos humanos não mudaram, nem desaparecem. Ainda e
haverá sempre o amor, o medo, a amizade, a solidariedade, a bondade. Ainda e
haverá sempre o ódio, a incompreensão, a inveja, a injustiça, o despeito, todo o
cortejo de mesquinharias e maldades que habitam o homem e que aumentam nas
sociedades do tipo extremamente competitivo como esta em que vivemos. De
repente, o homem volta à caverna e por motivo banal, ou sem motivo mata o seu
semelhante (noticiário policial que o diga, diariamente). Antigamente o homem no
sertão matava por três coisas: mulher, terra e cachorro. O homem encontrou outros
meios de lavar a honra, sem sangue: abandona a indigitada e passa adiante,
imperturbável e resoluto. Para as questões de terra aprendeu a usar advogado. E por
cachorro quem é que ainda não mata? Os pobres é que estão morrendo todo dia,
imolados no asfalto.
O POVO Qual o fascínio que você descobre na madrugada entre um copo de
uísque e uma seresta dolente e bem cantada?
MD fui um bom inquilino da Noite, que cobra preço muito caro e juros altos. De
qualquer modo, o habitante da Madrugada compõe, seu patrimônio de lembranças
para o futuro, para quando a velhice se instalar irremediavelmente e o mundo se
limitar a uma peça da casa. Estou sendo despejado do inquilinato da Noite, pelo
Tempo, nosso senhorio impiedoso. Confesso humildemente que estou envelhecendo.
Mas reconheço que a madrugada é um dos mais belos momentos das 24 horas,
quando a humanidade está disposta a esquecer seus tormentos e se entrega ao
congraçamento, às alegrias e glórias que a Madrugada promove. Sem contar, é claro,
221
as madrugadas dos doentes, dos presos, dos que trabalham enquanto outros se
divertem. Não esqueça de que entre a boca da noite e a madrugada tudo aumenta: o
amor, a paz, o sono, o sonho, o silêncio, o ódio, o mistério, o medo e a população.
Respondendo mais diretamente a sua pergunta: um violão boêmio e um uísque
moderado são o melhor tempero para uma noite descontraída, numa véspera de
domingo ou de feriado.
O POVO Você diz que ama o mar com muita intensidade. Um dia o mar quase o
devora. Houve, por isso, algum rompimento definitivo, ou temporário?
MD Nem definitivo nem temporário. O mar, porta de entrada, porta de saída do
mundo, tem, para os que o amam uma força psíquica liberadora, provoca a
imaginação vagabunda e o pensamento vadio embarca nas ondas, sem passaporte,
e se manda para os mais estranhos mundos e desembarca em cais improváveis de
cidade impossíveis. Qualquer coisa, assim, como a chegada ao País Ideal que
Baudelaire descreve no seu poema “Invitation au Voyage”. É verdade que o mar
quase me traga, uma vez, mas foi reivindicação da sua parte, que me queria
dentro, participando dos seus mistérios. Tudo coisa de amigo exagerado. Naquele
exercício de afogamento, não fossem os salvadores, eu teria tido um décor”
esplêndido para a morte, num domingo, cercado de amigos e amigas, com um sol
glorioso cantando as belezas da vida. E ainda tive direito a duas companheiras
chorando por mim. Quem chorará por mim, quando a hora derradeira for realmente
chegada?
O POVO – O amor é válido, ou assim na terra como céu?
MD – O amor é válido em toda parte e por todo sempre, amém. Pessoalmente prefiro
tudo em vida. Na santa glória, um dia, é outra estória. Espero que São Pedro me trate
como tratou a Irene Preta do Manuel Bandeira. Tenho um bom pistolão no céu: São
Antônio, meu amigo Toinho, há de punir por mim.
O POVO Como cronista, você é o maior de todos. Depois de você, quem se
destaca, no gênero, cá na província.
MD Deixe de brincadeira. Você sabe que o Ceará é muito bem abastecido de bons
cronistas: o difícil exatamente é uma enumeração completa, por medo de omissão de
alguns nomes o que seria desastroso e imperdoável. O gênero ganha força em
todo o Brasil. Sou um, entre centenas. Um cronista municipal que conto minhas
estórias sempre aos sábados (nunca aos domingos).
O POVO Você carpe a nostalgia da saudade ou vive a curtição da onda moderna,
nas artes e na música em particular?
MD – Vivo muito presente, mas isto não me impede de olhar para trás de quando em
vez e apreciar o que foi feito de bom no passado. Corre no mundo todo uma onda de
nostalgia, como se a humanidade saturada de tanta agitação, se voltasse para os
tranqüilos tempos de outrora, desde as valsas do Senhor Strauss (que foram
consideradas muito ousadas, na época, passando pelo tango, que chegou a ser
fortemente combatido pela igreja. Pensar que mesmo o erotismo vai saturar de tal
modo que vamos ter um retorno ao romantismo. Não nos moldes do século XIX, mas
um romantismo rejuvenescido com as cores do nosso século. Honestamente, eu faço
as duas coisas: tiro a minha onda de saudade (tenho uma antologia da música
popular brasileira, desde o princípio e faço a curtição da onda moderna, que tem
produzido coisas realmente muito boas.). O importante é saber selecionar.
222
O POVO – Você preferiria ter vivido antes, agora ou no futuro?
MD O poeta romântico francês Alfred de Musset se queixava de que tinha vindo
muito tarde, num mundo muito velho. Eu não. Infelizmente não fui consultado e este
século me foi imposto, com as angústias das suas transições, seus tormentos e
desajustamentos, principalmente nos últimos trinta anos, em que a geração anterior
teve que fazer muita força para se adaptar às mudanças muito radicais e muito
bruscas. A minha opção seria para depois do ano 2000. Tenho a impressão de que o
mundo vai ser muito melhor, as grandes transformações terão sido feitas, já terão
inventado remédio para a cárie dentária e para o câncer e nem se falará de enfarte:
cada um vai conduzir um aparelhinho que previne. E haverá mais estabilidade em
todos os setores, refletindo-se na estabilidade emocional de cada um.
O POPULAR – Suplemento cultural – Goiânia 03/07/77 p. 7
MILTON DIAS – Preferia fazer uma modificação no coração do homem
Entrevista concedida a Edmundo Vitoriano
EV – Podemos julgar um autor pelos seus livros?
MD Nem sempre a obra é o retrato do autor. Alguns, no entanto, se projetam tão
completamente, que dão margem até a estudos psicanalíticos, como foi feito com
Camilo Castelo Branco, para citar só um exemplo. Por mais prudência, astúcia,
inteligência e engenho que o autor utilize na arte do despistamento, acabará,
inevitavelmente, por se revelar muito ou pouco, na sua obra. Deixará caminho
não digo para um julgamento – mas, pelo menos, para uma análise.
EV O Poeta que habita em você, trabalha por turnos traficando com estados de
ânimos?
MD Não sei se mora em mim um poeta. Ainda não nos encontramos. A poesia
exige muita grandeza, é uma eleição de Deus a que, lamentavelmente, não tive
direito.
EV – Já se intimidou diante de uma folha de papel branco?
MD Sim, quando tive de escrever por obrigação. A imposição não se coaduna com
a atividade criadora.
EV – É sempre cortejado pela inspiração?
MD “Cortejado” é dizer muito. E a palavra “Inspiração” deveria ser reservada aos
que realmente enriqueceram o patrimônio mental da humanidade, aos responsáveis
pelas grandes obras. Num plano mais modesto, devo dizer que quem se habituou a
um certo condicionamento para escrever, sente-se freqüentemente motivado para a
utilização de temas às vezes tão evidentemente imperativos, que chegam a exigir
papel e tinta. Como se o assunto pretendesse uma libertação pela mão do escritor.
Feito aqueles seis personagens que saíram à procura dum autor.
EV – Ao elaborar uma história, aconteceu de tomar o rumo diferente do pretendido?
MD Já, muitas vezes e creio que isto acontece a todos. A menos que o autor
tenha um disciplina mental muito rigorosa e submeta sua estória, desde o princípio, a
um esquema rígido, do qual não pretende fugir. É mais fascinante deixar trabalhar a
223
imaginação por conta própria, sem limitações nem rédeas. Como diz a cantiga: “o
pensamento parece uma coisa atoa e como a gente voa, quando começa a
pensar”.
EV – A inspiração está ligada ao abandono da personalidade?
MD A inspiração está ligada a um processo mental tão caprichoso, a tantos fatores
da sensibilidade, da emoção, da inteligência e de circunstâncias, que a palavra mais
próxima para tentar uma definição seria “mistério”.
EV – É possível alguma obra surgir do recesso do consciente?
MD Do consciente, como do subconsciente. Das coisas mais simples, duma
lembrança remota ou recente, duma impressão momentânea que se levanta, duma
sensação olfativa, auditiva, gustativa. Lembro que foi provando um bolinho chamado
“madeleine”, molhando no chá da tília, que Proust se devolveu à infância e
desencadeou toda sua obra “A la recherche du temps perdu”.
EV – Quantos livros publicados?
MD – Sete: Sete-Estrelo, A Ilha do Homem Só, As Cunhas, Entre a Boca da Noite e a
Madrugada, Cartas Sem Resposta, Viagem no Arco-Íris, As outras Cunhas.
EV Poderia inserir em lugar de destaque, entre seus planos, uma obra que
amenizasse o panorama conflitante do mundo moderno?
MD – Quem sou eu, para pretender trabalho desta monta, de tamanha repercussão e
de tão importantes e sadios resultados. Fica a “deixa” para outros valores que mais
alto se alevantam. Mesmo porque, é muito difícil dar juízo à humanidade.
EV – Talento é algo que se desenvolve através da técnica. O que para si é um gênio?
MD Gênio é exatamente aquele que não dependeu de exercício, que não precisou
se desenvolver através da técnica. O que foi alcançado pela centelha que atinge a
muito poucos. E que não pode ser medido no gabarito do homem comum. É assim
como a graça para o Santo.
EV – Há algo que o exime das limitações dos nervos e do cérebro?
MD Somos todos nós um saco de tripas, um molho de nervos, uma instalação
cerebral eletrônica mais complexa do que os computadores. Como pode a gente se
subtrair a todas estas complicadas injunções e a influências tão várias? Seria como
se a terra não sofresse a influência da chuva, nem a do sol.
EV – Espera o inesperado?
MD – Sim, dá mais emoção do que esperar o previsto. Espero até o impossível.
EV – Seus personagens são reais ou recebem as tintas douradas da ficção?
MD São reais, na maioria. Alguns, naturalmente, recebem o tratamento que
implicitamente reclamam. E neste processo singular, sofrem às vezes tão profunda
transformação, que acabam sendo outros. Acontece também que duas ou três
personalidades, transpostas para o papel, se fundem numa só. É curioso constatar
como alguns personagens tomam independência e saem agindo por conta própria.
224
EV Algum acontecimento guardado na lembrança que tornou um pedaço de tempo
digno de ser recapitulado?
MD Muitos, muitos. A única coisa que realmente me pertence é o meu passado,
pessoal, inalterável, inalienável, intransferível, recordável. Não vivo sistematicamente
ligado no outrora, nem sou basicamente um saudosista, achando que o passado foi
sempre melhor. Como quase todo mundo, vivi situações tão deliciosas, que tive
vontade de repetir com Goethe: “Para, momento, tu és tão belo”!
EV – O que faria se tivesse tempo suficiente para fazer o que quer?
MD Me dividiria, geograficamente entre Fortaleza, Rio, Paris e Massapé. Estaria
sempre partindo e chegando, recolhendo minhas reservas de lembranças para a
velhice. Então, antes que arteriosclerose desembarcasse, eu passaria aos amigos o
que teria aprendido num tempo sem compromisso com o relógio, bem abastecido das
graças da natureza e das pessoas que quero bem.
EV – Que modificações faria no terraço do mundo?
MD Preferia fazer uma modificação no coração humano, retirando-lhe o ódio, a
inveja, a mentira, a hipocrisia. Deitando-lhe mais fé, mais coragem, mais amor.
EV Você que comunica seus pensamentos mais profundos em prosa como se
fosse um verso, através de palavras quentes que se alinham formando um estilo.
Qual a essência da verdadeira comunicação?
MD A simplicidade na forma e o tom da conversa despretensiosa e verdadeira. E a
despreocupação em compor de si mesmo uma imagem transfigurada para melhor,
como quem prepara moldura para o retrato da posteridade.
EV – Disseca o mundo do pensamento desde quando?
MD Desde a mais pequena infância fui atormentado por indagações que ainda
persistem e continuam sem resposta. O verme metafísico continua roendo sem
conseguir as perseguidas revelações.
EV – Quem você considera um farol na literatura brasileira?
MD Nossa Senhora, são tantos faróis, que encandeiam. Prefiro não fazer citações.
Aqui vem aquela clássica justificativa – o temido perigo da omissão.
EV Suas obras sorriem; seu senso de humor é filho da perspectiva, parente da
filosofia?
MD Não sei se elas sorriem sempre. Mas o senso de humor é provavelmente
atávico. Venho duma família que tira partido dos pequenos acontecimentos,
explorando o real no rumo do anedótico. Graças a Deus, somos mais voltados para a
comédia do que para o drama. Filosoficamente, continuo achando que na vida, tão
curtinha, o riso deve ser mais explorado do que a lágrima.
EV – Em qual direção seu entusiasmo é canalizado?
225
MD Antes falar em alegria do que em entusiasmo, muito vizinho da juventude,
muitas coisas que me provocam uma euforia verdadeira. O mundo endoidou, mas
não perdeu os seus encantos. E a vida é uma beleza, inegavelmente, apesar de tudo.
EV – O que mais o preocupa: a economia desta vida, ou a geografia da vida
seguinte?
MD – A economia desta vida me preocupa pouco. Essencial é usar o mais possível e
o melhor possível o tempo que nos é atribuído. A geografia da vida seguinte sim, me
preocupa: permanece uma interrogação assustadora, como um desafio.
EV Em seu livro AS CUNHÃS, fala que a mãe preta acabou, virou relíquia de
família. Que nossa terra é o maior centro produtor e exportador de cunhãs do
Nordeste do Brasil. que é profundo conhecedor do produto, pode explicar às
patroas, por que a espécie está em extinção?
MD Ora, estão as fábricas, os balcões de lojas, os gabinetes de beleza, as
repartições, oferecendo oportunidades e situações mais vantajosas. As patroas que
se cuidem: agora são as cunhãs que tomam informação delas, antes de se
candidatar a emprego. Estão mais conscientizadas, valorizam mais seu trabalho,
conhecem seus direitos, exigem boa acomodação e melhor tratamento. Patroa que
não aprende a tratar inteligentemente as empregadas, está condenada a viver só.
EV – O que o torna mais feliz: o ato de realizar ou a realização?
MD – O ato da criação é um ato de amor. É uma beleza sentir-se a gente tentado por
um tema, uma estória, um personagem e conseguir dar-lhes o sopro da vida no
papel. Depois, é como diria o velho Cardeal Rufo, “o resto é quase nada”. O ato de
realizar me basta.
EV – Será verdade que o “aumento de conhecimento cresce a dor” e que organismo,
altamente apurado, é que mais sofre? Então, quem é feliz na ignorância é loucura
tornar-se sábio?
MD Sei lá. Ninguém sabe o que é mesmo felicidade e é muito difícil hospedar-se a
gente no coração alheio, mesmo por um minuto. As mais belas vozes do mundo são
filhas do sofrimento: é a dor que fecunda a alma, funcionando, como grande
inspiradora. Tentando uma resposta mais direta: as pessoas que vivem da barriga
para baixo, sem os problemas decorrentes das reflexões em torno do sofrimento são
aparentemente mais felizes. Mas, por outro lado, não têm direito a certas alegrias,
filhas da sensibilidade e da inteligência.
EV – Se tivesse que escolher entre a beleza e a verdade, qual escolheria?
MD – Você não sabe que são irmãs gêmeas? É impossível separá-las. Eu ficaria com
as duas.
EV – Vivemos a hora do desperdício?
MD Que desperdício? talvez, da parte de muitos, um esbanjamento do tempo,
definido como a matéria prima da vida. os inconscientes, que queimam as
melhores horas da maneira mais idiota e menos produtiva, sob qualquer aspecto.
Enfim, cada um tem lá sua razão: o que é de gosto regala o peito.
EV – Já pesou a importância do agora?
226
MD Muito e sempre. Peso a importância do “agora”, quando me lembro que cada
minuto é irreversível.
EV Concorda com Voltaire, quando disse que “Deus criou a mulher, somente para
domesticar o gênero humano” e posteriormente afirmou: “O homem é o último animal
domesticado pela mulher”?
MD Me encontro muito em Voltaire. Volto a ele freqüentemente. Estou de acordo
com esta afirmativa, em gênero, número e grau.
EV Na coletânea de experiências convertidas em recipientes de deleites morais e
estéticos, envie uma mensagem que suavise a trajetória de quem escala o primeiro
degrau da maturidade.
MD – Alguns cantam a adolescência e a juventude como as mais belas fases da vida.
Ledo engano. A adolescência é um período de conflitos psicológicos e a juventude é
o tempo em que se está lutando por uma afirmação pessoal, profissional e social. O
momento ideal da vida é a maturidade e ainda seria melhor se não se tivesse de
cambar para o diabo da velhice. Na idade madura, se tem a coragem da
autenticidade. Cada um já compôs sua imagem (boa ou má) junto ao respeitável
público. E a altura da maturidade, mais consciente, mais coerente, mais
experimentado, mais vivido, mais sofrido, o homem compreende melhor, julga
menos, perdoa mais, assume totalmente a sua personalidade, pode se dar ao luxo de
dizer como o cantador: “Eu sou como Deus me fez, quem me quiser é assim”. E pode
e deve viver em toda plenitude.
ENTREVISTA COM ROSA E RITA, PERSONAGENS E TESTEMUNHAS DO
ITINERÁRIO DE MÍLTON DIAS.
Mílton Dias era assim mesmo, sensível e justo, como as crônicas demonstram?
RITA: Demais, era muito amigo, ave-maria! Era uma amizade grande. Era como um
irmão, pois fui morar com eles aos dois anos de idade.
ROSA: Era amigo de todo mundo. Ele morava no centro, a casinha era vizinha à
da mãe e tinha uma porta comunicando.
RITA: Todo sábado os amigos dele iam tomar uísque lá. Às vezes até almoçavam.
ROSA: Quinze dias era numa casa e quinze dias noutra. Um sábado era na casa de
Paulo Elpídio, noutro na casa de Cláudio Martins. Era assim. Eram escritores...
uma curiosidade de leitora sobre as histórias das cunhãs de que ele vai falando.
Existe alguma que seja verdadeira ou são histórias que ele ouvia?
ROSA: O negócio das cunhãs é o seguinte: é porque sempre que ele chegava do
trabalho ficava aquele pessoal na calçada (D. Iracema, Cealne, Renata, era um
monte de gente casada) Ele chegava e dizia assim:”- Estão todas reunidas, ou estão
falando do marido ou das empregadas”. E a Cealne, que era a mulher de Dr. Wilson
disse: -Oh! Mílton, pare com suas indiretas”. “- Não, é porque vocês só sabem falar
das empregadas. Não sabem vocês que saem de casa de manhã e chegam ao meio-
dia e encontram a mesa posta, almoço pronto, roupa lavada e passada? -só faltam
tirar a roupa de vocês. E aí vocês continuam a falar das empregadas: Nós não somos
nada e nem elas, porque empregada doméstica não é empregada, temos que dizer
227
assim, Cealne, que ela é uma secretária do lar, é como se fosse alguém da família,
porque uma funcionária pública é igual a uma empregada doméstica. Todos são
empregados; não tem esse negócio não.”
Continuou Rosa: é por isso que ele não gostava de dizer empregada, e sim cunhãs.
É daí que vem o livro “As Cunhãs”. Aí eu vim servir cafezinho e ouvir toda a
conversa.
Quando você, Rosa, veio trabalhar com os Dias?
RITA: Ela era bem garota.
ROSA: Eu tinha 13 anos, a família dele estava aqui em Fortaleza. Eu sou da Serra
da Meruoca. A mãe dele pediu a uma irmã dela, Terezinha, que morava mais
tempo aqui para arranjar uma empregada. Tereza disse que ia mandar buscar
uma pessoa, mas não deu certo, no lugar dela vim eu, gente maravilhosa... (Riu...). O
dr. Mílton me chamava de “relações públicas” da casa.
RITA: A Rosa agora trabalha na casa de uma senhora, a Gertrudes, e toma conta do
menino dela. Quando ela começou a tomar conta dele, o bichinho tinha 4 meses e
agora está com 8 anos. Ela ficou com Mílton até a morte dele.
O que Mílton Dias falou sobre “As cunhãs estarem em extinção....”
ROSA: É verdade, pra você ter uma idéia, eram umas moças Aparecida e Eliete, tudo
irmãs, não era Rita? Então Aparecida pediu para ficar uma semana pra fazer
vestibular e as colegas vieram atrás. Então todas, eram quatro, ficaram na casa de
Dona Iracema. Ela não tinha empregada, quando ela saía, o povo dizia: “- A Iracema
vai pra rua e deixa a casa cheia de cunhãs”. Agora as moças querem outros
empregos...
ROSA: Ele era tão bom, era romântico, ele não tinha bobagem. Mandava os
bêbados, nos sábados, entrar e ficava aquela animação, tocavam sanfona. Dr.
Mílton tinha uma graúna. Num sábado, tava todo mundo bebendo: Cláudio Martins,
Paulo Elpídio, Lúcio Alcântara e Alba Frota, que era a maior amiga dele. chegou
Rita e disse que a graúna tinha morrido. Ele gostava muito de bichos, ele mandou
tocar uma música de morto. Ele era assim: levava tudo na esportiva.
Além das cunhãs, Mílton Dias deixa transparecer a religiosidade como assunto em
suas crônicas. Ele era religioso?
ROSA: Ele não viajava sem Santo Antônio, era o Santo predileto dele. Um dia
roubaram o Santo Antônio dele e ele quase derruba a casa.
RITA: Ele até fez uma crônica e botou as amigas dele e disse que se Santo Antônio
ficasse sempre no lugar ele nunca casaria, o que realmente aconteceu...
ROSA: Alba Frota é que trouxe esse Santo Antônio de Portugal para ele. Quando ele
ia viajar, a primeira coisa que ele colocava lá na mala era o santinho.
ROSA: É por isso que, quando Santo Antônio sumiu, ele ficou doido, doido, doido.
RITA: Mílton achava que foi Estrelinha, a tia dele, que pegou o santo.
228
ROSA: Depois Santo Antônio apareceu, mas ninguém soube quem foi que botou no
lugar.
RITA: Menina, foi Estrelinha quem levou mesmo.
Rosa, a que hora ele costumava escrever?
ROSA: Toda hora, dependia do dia. Mas de tardezinha, à noite, de madrugada era
mais comum. Às vezes eu acordava de madrugada, ele tava lá.
Ele fala muito da perda do pai quando ele era menino e isso mudou muito a vida da
família. São várias as crônicas em que isso aparece...
RITA: Ele veio morar aqui com o tio Deusdedit, que ajudou muito. Ainda hoje eu sinto
muito a morte de Mílton, ave-maria. Sonho muito com ele...
Foi ataque do coração?
RITA: Foi. Depois da morte de Batista, ele ficou muito triste. Escondia isso da mãe.
ROSA: Quando ele chegou do médico, um dia antes de morrer, ele ligou pra muita
gente: para Dona Elisa, pro amigo dele dono do antigo colégio São João. Ligou para
esse pessoal todo, dizendo que tinha chegado e tava tudo bem. Parecia coisa de
despedida. Mas ele disse a Dona Estrelinha que estava com uma dor nas costas
insuportável, só que não disse nada pra ninguém.
RITA: Mais tarde, de noite, ele foi até minha cama e pediu pra eu fazer uma
massagem. Eu fiz foi muito...
ROSA: De madrugada, 4 horas da manhã, Rita foi me chamar pra dizer ele estava
passando mal e estava pedindo um chá de erva doce.
ROSA: Aí eu disse: será que ele vai morrer também igual ao Dr. Miron, nesse mesmo
horário também? Rita disse que eu dizia besteira. Eu perguntei a ele se não
queria que chamasse Pedro Miron. Ele disse assim: “- Não precisa não, é coisa
passageira.” eu disse: mas nesse caso eu vou ligar pro Pedro Miron sim, ele é
médico. ele disse de novo: “- Não precisa incomodar o Pedrinho, não”. Pedro
Miron veio, trouxe umas revistas, examinou ele todinho: a pressão boa, o coração
bom. Depois o Pedro Miron disse que já era de manhãzinha e que ia ficar com o tio.
Pediu que não tomasse café, pois ia levar ele pra São Raimundo para fazer uns
exames, mas que não era nada não. Se ele estava mesmo doente, ele não disse pra
gente. Dona Iracema estava na cadeira de roda, Dr. lton foi beijar ela todo
cheiroso, que ele gostava de andar bem perfumado. Deu tchau à mãe e falou com
todo mundo e com uma vizinha que tinha uns meninos pequenos e ele era louco
pelas crianças.
eu fui pro mercadinho São Luís, quando entrei, o telefone toca e diz que
era da Verdes Mares: “-Olha, é aqui da Verdes Mares, eu posso avisar no ar que o
Dr. Mílton Dias acabou de falecer?”. Soltei o telefone e chamei a vizinha, que trouxe o
irmão para falar e disse que seria uma loucura fazer aquilo, pois a mãe dele era uma
velha doente. Nesse momento, chegou um rapaz fora e perguntou a Estrelinha se
conhecia um Mílton Dias, pois ele acabava de falecer.
RITA: Foi uma loucura, uma tristeza...
229
ROSA: Depois que o Batista morreu, Sr. Mílton ficou muito acabado, ele sempre
disse que Batista era um filho pra ele, um filho que ele não teve. Ele era muito sério,
ele sofreu muito desde cedo, pois era o filho mais velho, pegou todo o abacaxi para
ajudar a mãe a criar os irmãos.
ROSA: Ah, outra coisa: quando ele morreu, todo mundo queria a rede branca dele,
perfumada. Ele era tão elegante... Gostava muito de uísque cavalo branco.
RITA: Foi um choque pra todo mundo, mas ele agüentou muita coisa: depois que o
Batista morreu no acidente de avião, um mês depois morreu Estela, sua única irmã.
Eles todos tinham problema no coração, mas Milton nunca tinha sentido nada. Foram
os choques todos...
ROSA: Lembro como se fosse agora: Dona Iracema sempre chamava a atenção dele
para não gastar todas as coisas, pra ele lembrar o dia de amanhã. E ele sempre
respondia: “- Que dia de amanhã? Vou aproveitar o que eu puder agora, mãe. Para
que deixar as coisas para o povo brigar?
ROSA: Outra história engraçada: um dia ele foi visitar o ladrão na cadeia que tinha
roubado umas coisas dele, até uma caneta de ouro. Dona Iracema até reclamou ele,
mas ele foi assim mesmo e quando ele chegou lá ficou arrasado com a condição dos
presos, pedindo coisas, cigarro. Ele mandou comprar cigarros para todo mundo. Ele
era uma bondade em pessoa. Ninguém nunca vai esquecer ele,parece que eu estou
ouvindo ele aqui...
Depoimentos e apreciações críticas
Milton Dias é, sem dúvida, o cronista maior e o mais lido desta cidade. E não
fica aqui, limitado a província, o seu prestigio que já escapoliu das fronteiras nossas e
alastrou-se por outras paragens.
Seu nome completo: José Milton de Vasconcelos Dias, nascido no Ipu e criado
no Massapé, e ainda novo veio bater com os costados em Fortaleza, com andanças
pelas Europas, São Paulo e talvez Bahia.
Advogado, professor especializado em Sorbone e Paris, deita sapiência em
outras línguas aos alunos do Ceará.
Se é bom cronista, não perde para o contador de história via oral. É um agrado
ouvi-lo contando histórias e fatos pitorescos que ele testemunhou e os reproduz com
graça, agilidade, ironia. É tamm um grande sujeito, isto é, pessoa humana
extraordinária.
Já escreveu muito e continua escrevendo e irá sempre escrever, pois se deixar
tal coisa morrerá de tédio e de cansaço.
Recentemente, lançou o seu último livro “Cartas sem respostas”, e antes
havia lançado “Sete-Estrelo”, “As Cunhas”, “A ilha do homem só” e “Entre a boca da
noite e da madrugada” todos estórias e crônicas. Promete mais e mais. Todos os
domingos, este jornal publica trabalho seu, exigido pelos leitores e por ele devorados
com sofreguidão.
Milton é característico no estilo e na aparência física. Não pode ser confundido
com ninguém; conserva, cultiva e lustra uma respeitável cabeça sem cabelo algum e
nos olhos uns óculos grossos e de lentes de grau.
Os grandes das letras do Ceará e de fora já escreveram exaltando seu estilo e
suas obras.
A mim, concedeu longa entrevista, sobre vários temas, respondendo a tantas
perguntas, que vão logo abaixo. Na conversa, me mentiu, dizendo-se cronista de
“vôo rasante”, pois não lhe perdôo nem a modéstia, porque ele sabe que é cronista
de peso e medida, como assim o qualifica o povo. E a voz do povo é a voz de Deus,
230
e como crente, deveria acreditar no voto da procuração do Todo Poderoso. (Jornal O
Povo - 11 de junho de 1974 )
Flávio Ponte
“Fazer crônicas e narrar casos pode levar o autor ao provincianismo; mas em sendo
ele o que Milton Dias é, dar-lhe-á um toque de poesia e de humor, que costuma ser o
forte do grande cronista-contador de histórias.” (DIAS, 1985: orelha)
Antônio Olinto
“É, precisamente, o tom de simplicidade no estilo humano, vivo, comunicativo e
atuante – que dá grandeza às crônicas de Mílton Dias.” (DIAS, 1985: orelha)
João Clímaco Bezerra
“É justamente por ser poeta que lton Dias é o melhor cronista do Ceará. Mesmo
quando o fundo de sua crônica pretende o humor, jamais, aqui e ali, deixa de ser
encontradiça a nota, o pathos da Poesia autêntica.” (DIAS, 1985: orelha)
Otacílio Colares
Milton Dias é seguramente um dos melhores cronistas do Brasil e o cronista
do Ceará, seu Estado natal, ao qual permanece fiel.
Suas crônicas são ao mesmo tempo encantadoras pequenas novelas.
Sugerindo muito mais do que descrevem, elas são um clássico de um gênero que
não tem nada de menor, pois exige tanto arte como tato. (DIAS, 1985: orelha)
Jean Roche (Toulouse-França)
No estilo de Mílton Dias mistura-se uma formação literária predominantemente
francesa com a prosa nordestina, a frase longa às vezes quase pode ser dividida em
sextilhas, a forma de versejar dos cantadores, tudo em meio à preciosidade do
detalhe lembrando louvação. (DIAS, 1985: orelha)
Juarez Barroso
“A província é um celeiro de bons e grandes escritores. Não são escritores de
província, como se poderia dizer, com a intenção de diminuí-los, mas escritores de
valor que escrevem na província e, porque escrevem bem, repercutem nos grandes
centros intelectuais, especialmente no Rio de Janeiro. É o caso de Mílton Dias.”
(DIAS, 1982: orelha)
Austregéslio de Athayde
“A impressão do cunhãzal é a mesma das criações anteriores. Aquela claridade de
estilo, a movimentação natural dos diálogos, o sangue-vivo das figuras, a ternura fiel
nordestina, numa moldura afetuosa de apresentação. Contra a tradição euclideana e
clássica do falar-bonito, emproago e flamante. As Cunhãs, de Mílton Dias, desfilam
numa poderosa simplicidade de virgem-nua, sem pecado vocacional, espalhando
fomes de perpetuidade. Não quero escolher a predileta, porque, lendo-o, canto a
cantiga do quero-essa, quero-aquela, na indecisão da fartura. Lindo livro.” (DIAS,
1982: orelha)
Câmara Cascudo
231
“Não é pitéu de todos os dias, em ngua portuguesa (pelo menos do lado de do
Atlântico), crônicas tão saborosas como estas que formam o ramalhete As Cunhãs.
Um estilo rico de seivas, que no filão popular buscou os melhores condimentos sem,
no entanto, perder de vista o classicismo da frase, um modo aliciador de se enfiar
num tema em jeito de conversa – tudo isso e mais ainda uma panorâmica social que,
mesmo sob o disfarce do sorriso e da tolerância, nos urge terrivelmente desnudada.
Um belo livro, pois, de um verdadeiro escritor, que me regalou durante duas horas e
me deu uma lição da arte da escrita.” (DIAS, 1982: orelha)
Fernando Namora (Portugal)
232
ANEXO E
TEXTOS REPRESENTATIVOS
233
PRIMEIRA CRÔNICA PUBLICADA – UNITÁRIO, 1953
ARABELA
A conversa era inicialmente sobre psicanálise. Assunto puxa assunto,
passou-se de Freud à psicanálise dinâmica, do simbolismo dos sonhos às
recordações da infância e foi aí que cada um falou da lembrança mais forte
que guardou, a lembrança melhor, mais gostosa, aquela que nos ficou mais
cara e mais clara na cabeça e no coração.
Ouviram-se histórias deliciosas, pitorescas, coloridas e belas histórias.
Houve quem louvasse o rio, o campo, houve quem louvasse a montanha, as
viagens, as fugas para o sítio, os passeios em montanha russa e roda gigante,
o futebol de rua, na eterna luta contra o guarda que fazia a vigilância da
pracinha e guardava o jardim contra a fúria dos craques.
Houve quem louvasse os banhos de chuva na cidadezinha do interior,
quando todo mundo patrões, caixeiros e meninos confraternizavam no
meio da rua, debaixo da água que caía do céu. Houve um, em meio ao grupo
numeroso, que assinalou o catavento como a coisa mais bonita que viu até
hoje e jurou que nunca se sentiu mais vitorioso, em nenhuma outra situação
da vida, do que no dia em que subiu até o último degrau do catavento, em
meio aos vivas e à gritaria da molecada do seu quarteirão.
Surgiram as histórias mais inesperadas, num ímpeto de confissão digno
do século passado, quando os românticos faziam do coração vitrina e
expunham em letra de fôrma, em verso e em prosa, suas alegrias e suas
dores, estas principalmente. Houve quem louvasse os passeios a cavalo, a
subida para a serra, o namoro ingênuo com a menina tímida que o ano inteiro
esperava a vinda do bem-amado para as férias no sertão.
De mim, eu louvei o circo e fui fiel. Nada me excitou mais a
imaginação, nem me fez bater mais o coração de alegria, na hora festiva da
chegada da companhia e de depressão quando tiravam a empanada e a
cidade recaía na monotonia sem horizonte e sem novidades da vidinha do
interior.
Bem me lembro do circo responsável pela recordação mais forte que
conservei. Vinha precedido de fama ruidosa, tinha feito sucesso por onde
passara e passara por todas as vilas e cidades que ficavam à beira do trilho
da estrada de ferro. Saiu palhaço na rua com acompanhamento grande, mas
não fiz parte do cortejo, infelizmente: este gosto sempre me foi negado e a
mágoa respectiva hei de levar à cova. Espalhou-se depressa a notícia de que
havia feras e globo da morte e trabalho no arame e todas as atrações de um
grande circo.
A companhia instalou-se numa casa da Praça da Estação, o povo
curioso procurou entrar na vida da gente estranha que, de um momento para
outro, invadira seu mundo – e foi assim que, de conversa em conversa, dentro
de pouco tempo, se sabia quem era casado, solteiro, viúvo, ou quem não
era nada disso. O chefe era um alemão grande, de voz cavernosa, gestos
sóbrios, certa distinção na maneira clássica de se apresentar ao respeitável
público, com farda azul-marinho, alamares e dragonas douradas.
Os espetáculos tinham de tudo do vôo da morte à cançoneta com
bom sabor das cançonetas francesas do meio século. Homem que engolia
234
fogo, mulher que se deixava levantar pelos cabelos e se balançava no alto, de
uma ponta a outra do circo, expondo a nu os nervos da platéia indefesa, tinha
menino que se empilhava numa pirâmide que ia bater quase na empanada.
Tinha Tosca, a trapezista branca, de olhos pretos e gesto solenes e
graves, como em câmara lenta, a sisuda, não abria um sorriso, não dizia uma
palavra. Agradecia maquinalmente com um gesto duro de quem cumpre um
dever. Não consegui saber se estava ali por gosto ou se casara com algum
moço da companhia e fora obrigada a trabalhar em alguma coisa, para não
ficar sem tarefa, que em circo ninguém fica inútil. Era digna e triste.
Lembro-me também das três moças que dançavam no fim do
espetáculo, no ato variado, de mantilha longa, castanholas e mata-rapaz na
testa. Estas eram saracoteantes, dirigiam pilhérias maliciosas aos
espectadores grã-finos que se sentavam perto do picadeiro, pegavam nos
queixos dos velhos que lhe dirigiam gracinhas, num desafio cínico. Entre as
espanholas e o número de trapézio, saía cachorro amestrado e cavalo que
pulava os obstáculos, ao som duma valsinha triste. Isto sem falar nas feras,
nos três palhaços, nos números de mágica, nas exibições de bicicleta. Havia
de tudo, como se vê.
Tinha também, ai de mim, tinha Arabela, que dançava no arame e
cantava tangos nos intervalos. Para os meus olhos de menino, que estava
entre nove e dez anos, Arabela era a mulher mais linda do mundo e me
impressionou gravemente e me deixou um certo desespero de ainda não ser
homem e não poder concorrer com os homens que lhe faziam a corte e me
deu um desgosto sério de sentir que quando crescesse não encontraria para
mim uma mulher com aquela beleza, aquele jeito de cigana, alguma coisa de
moura e uma voz quente, macia, agradável, derramando-se nas notas de um
tango que ainda hoje está no meu ouvido, música e letra. Era um convite para
que o bem-amado lhe viesse ouvir as juras, sentir as carícias, gozar as
ternuras e prometia, em trôco, cantar uma linda canção de amor, embebida
no clarão do luar.
Representava com uma capa branca, uma pelerine, que lhe deixava
ver as belas pernas morenas, o manto deitado negligentemente sobre os
ombros pretendia ocultar a roupa com que dançara no arame. Arabela valia o
circo e tinha que voltar três, quatro vezes, sob aplausos insistentes. Em torno
dela correram histórias que excitavam a imaginação da legião de
apaixonados. Era moça de rica família do Sul, que caíra de amores pelo galã
do circo e abandonara tudo, de medo que passada aquela vez, o amor não
lhe aparecesse mais. O pessoal da companhia se encarregava de soltar as
histórias que a cidade sossegada, sem rádio, sem novela, sem romances,
recolhia contrita, faminta de aventura. Um filho do coronel, nosso vizinho,
também se apaixonou por Arabela, quase acabou a loja, deu-lhe dezenas de
presentes, prometeu montar casa e fez ainda o que eu teria feito, não fossem
meus dez anos, acompanhou o circo por três ou quatro cidades. Acompanhou
em vão, para minha alegria.
Fiquei de lundu quando o circo partiu e a lembrança de Arabela me
inquietava cada dia mais. Pudera o: além do desespero de não poder mais
vê-la, também não fui à última representação. Quase me mato de raiva;
desejei ardentemente morrer, pelo menos para fazer remorso aos que não me
deixaram ir. Imaginei tanta formas de vingança que ainda hoje me ocorre um
remorso, de lembrar a maldade com que as concebi, estruturei e conservei
235
tanto tempo. Mas de nada valeu, porque Arabela estava perdida, havia de
estar suscitando outras emoções, cantando outros tangos e apaixonando
outros homens de todas as idades que a ouviam em outras terras.
O circo foi-se, foi-se Arabela e a cidade recaiu na rotina insuportável da
vidinha de cidade do interior. E muita água correu debaixo da ponte. Eu me
mudei, fui interno em colégio, sofri prisão em cafua, conheci Carlota Joaquina
sem seus desmandos, conheci Pedro I, sem saber das suas aventuras,
aprendi a guerra do Paraguai, proclamação da República, abolição da
escravatura, frações, carroção, raiz quadrada, aprendi quanta coisa não sei
mais e todas as vezes que lia o episódio da famosa Paraguaçu, eu me
lembrava que ela havia de ser como Arabela.
Fiz cursos, passei os sofrimentos de banca examinadora, fui vacinado,
tirei título de eleitor e bacharel, viajei, aproveitei a noite e o dia e os caminhos
do mundo que Deus me deu, mas Arabela nunca me saiu do pensamento. De
vez em quando eu me lembrava do ciúme com que ouvia os galanteios que a
rapaziada lhe dirigia, quando, depois da representação, Arabela vinha passar
em meio à platéia, vendendo retratos. Felizmente consegui roubar um desses
clichês mal impressos que meu tio comprara e deixara atirado numa gaveta
empoeirada, indigna do meu ídolo.
E assim como nos filmes ou nas peças de teatro, ou mesmo, mal
comparando, nas novelas de rádio, eu desejava constantemente ver, rever
Arabela. Sua lembrança me perseguiu na infância, na adolescência, na idade
adulta – e eu procurei ver Arabela em todas as mulheres morenas e belas que
encontrei.
E não sei bem se foi doze anos depois da passagem do circo pela
minha terra, ou se foi muito mais tempo depois, eu encontrei Arabela na Rua
das Mulheres Perdidas. Não era mais Arabela. (DIAS, 1960: 117-122)
236
ESTRÉIA NO JORNAL O POVO – 4 DE AGOSTO DE 1954
Três irmãs
Presume-se que Hermínia, a mãe, não tenha tido conduta
irrepreensível na juventude, mesmo na vigência do finado marido, que era um
homem bem construído para os trabalhos do campo, feito também de corpo e
alma para as alegrias da pinga, da dança e da conquista à mulher alheia.
Hermína, velhota, ainda punha no andar uma certa graça que não deixava
dúvida quanto à intenção de atrair a cobiça masculina. O certo é que agora,
aposentada de todos os amores, come o pão difícil cumprindo a sentença
bíblica – com o suor do seu rosto derramado pelas cozinhas dos brancos.
Morava e mora no sertão e foi lá mesmo que se perdeu a primeira filha,
por nome Maria, e tão depressa se tornou esta dita menina conhecida como
mulher da vida airada, bonita, mal comportada, afrontando a sociedade local
com os vestidos curtos, decotados, de cores violentas e as farras acintosas,
que passou a ser tratada por Maria Perdida, versão municipal da concubina
dos grandes do Império e da República, pois falavam claramente das suas
aventuras e dos seus amores com o senhor Prefeito.
E tanto sucesso alcançou, tanto subiu na sua carreira rápida, tanto
“charme” pôs no olhar de brasa, tanta sinceridade no seu propósito de luxar,
de ganhar dinheiro e correr o mundo, tanto sonhou com navio e cidade
grande, que vindo para Fortaleza e botando banca, ou melhor, botando cama
no Mucuripe, mesmo conseguiu que um comissário se interessasse por ela
e a carregasse para terras do sul.
Esta é o orgulho da mãe, que continua no sertão, na mesma cidade em
que sempre viveu. Quando aparece, Hermínia faz por sua conta a promoção
da menina, inventa cartas, improvisa notícias, informa com segurança: - Está
no Rio, a Maria. É a que está melhor de todas, mora num “departamento”,
casou com um gringo, tem automóvel e todo conforto.
Uma vez lhe perguntaram se Maria está mais gorda, ela respondeu
com alegria d’alma: - Nem gorda, nem magra, está assim medieval...
Uma outra Maria, a que vinha encostada à primeira, na ordem de idade,
foi a segunda pomba despertada. Não se pode dizer que era bonita como a
Perdida, ah, isto nunca mas era sacudida, tão alvoroçada, tão doida,
dançadeira, bebedeira de cerveja, abrideira de barulho, tão inquieta, que
ganhou o apelido de Maria Pinote. Tantas fez, tanto trabalho deu ao padre, ao
delegado, tanto escandalizou, que se cotizaram, pagaram-lhe a passagem de
caminhão e a mandaram exercer seu ânimo aqui na capital. Salvou-se assim
muita paz doméstica.
Hermínia desculpava a filha, dizia que a pobrezinha tivera uma doença
em pequena, ficara com o juízo “destrocado”. E completava: mas aquilo tem
um coração de ouro. Apesar de todo ouro no coração sabia-se, por porta de
travessa, que Hermínia apanhara da própria filha ao ensejo duma carraspana
inesquecível.
Tão avoada, não havia quem dissesse que se apaixonaria um dia. Mas
diz que o impossível aconteceu a pobre se engraçou dum embarcadiço,
caiu-lhe nas malhas. Quando foi abandonada, sofreu, chorou, bebeu, perdeu
o gosto de usar óculos “Rayban”, de pintar o cabelo de louro, de usar o colar
de miçanga, o vestido vermelho brilhoso, e foi entristecendo, alterando a
237
embriaguez freqüente com estados de desgraçada depressão. Um dia destes
queimou-se toda, virou fogueira, morreu ardendo, morreu apaixonada pelo
embarcadiço infiel.
Hermínia veio cá, os olhos constantemente molhados de choro copioso,
mas compreendendo o gesto da filha como fraqueza do coração generoso e
perdoando tudo da pobrezinha, debitando tudo por conta daquela doença que
ela tivera em criança.
Foi buscar os pertences da menina, mesmo na pensão onde morava
e voltou magoada, a Madame não quis dar nem os óculos escuros, nem o
colar de miçangas, nem o colar de conta de vidro, nem os brincos, nem a
pulseira. Hermínia lamentava: - As outras disseram que o homem deu muita
coisa a ela, mas a Madame estava intolerável. Alegou as despesas do
enterro, encerrou o assunto. Tanto que ela queria os óculos escuros da
menina!
Quando veio, Hermínia trouxe outra filha, por nome Maria das Graças,
que tratam por Graciosa. Bem se que é de menor, mas tão enfeitada, o
batom carregado na boca polpuda, o esmalte feito sangue nas unhas
compridas, as sobrancelhas arqueadas, o olhar vivo, o cabelo curto. O vestido
barato, as alpercatas ordinárias denunciavam pobreza de verdade.
- Esta o volta pro sertão, esclareceu Hermínia. Vai se empregar por
aqui os ganhos andam poucos, em casa de branco tem mesmo a
vantagem da comida, mas pagam barão e ainda são desaforentos que
vendo. Esta é que nem a mais velha, quer ser gente...
Foi assim, por morte de Maria Pinote, que aportou recentemente em
Fortaleza, a terceira Maria, mulata com as irmãs, menina de muito futuro.
(DIAS, 1997:45-47)
238
ÚLTIMA CRÔNICA – JORNAL O POVO - 22 DE MARÇO DE 1983
MISCELÃ
Eu sou do tempo em que era uso ter-se caderno para copiar poesias,
fazer-se miscelâneas – um livro onde se julgavam tópicos de interesse literário
artístico, científico, folclórico, esportivo, as fotos carinhosas, selecionados dos
jornais e revistas: uma forma prática de fixar informações culturais e úteis.
Ainda hoje, lamento a perda de uma dessas miscelâneas que era de minha
particular estima, iniciada na série do colégio, encadernada numa vistosa
capa verde, uma grande agenda – propaganda de certo leite em pó. As
ilustrações eram verdes campos suíços e uma página estava o símbolo de
fonte de laticínios, uma vaca bem nutrida na primeira, que logo cobri com a
figura de Marechal Deodoro da Fonseca a cavalo, na clássica atitude de
Proclamador da República, igual ao quadro que meu avô conservava em lugar
de honra na sala de visitas.
Algumas moças medíocres optavam pelo caderno em que atacavam
um questionário cretino, com perguntas deste tipo: “Que achas do flerte? Qual
é o tipo da tua preferência? Como te chamas? Como gostarias de te chamar?”
Ao que os rapazes respondiam na mesma linha de futilidade, afirmando que
“o flerte” é um passatempo muito agradável ou descrevendo a mulher da suas
escolha.
Lembro meu jovem pai, nos longos serões sertanejos, sem luz elétrica,
obviamente sem as distrações atuais do rádio e da TV à luz de um lampião,
pregando recortes do seu interesse de boticário num livro enorme, antes
utilizado como conta-corrente da farmácia. Ali pontificava inicialmente Pasteur,
com uma notícia de suas pesquisas e descobertas, seguida de cientistas
famosos e informações sobre novidades na área de farmácia e da medicina. E
entre os clichês daqueles graves senhores, posava colorida, de corpo inteiro,
a bela Pola Negri (era italiana, não?) de olhos sonhadores, exibindo seu
charme de estrela do cinema-mudo. Seria da parte do meu pai apenas
admiração ou o que se costumava chamar “paixão oculta?”.
Um colega de colégio ganhara de presente um livro luxuoso para a sua
miscelânea, com a palavra “curiosidades” imprensa na capa e me provocava
inveja forte mostrando as fotos de todos os membros da Academia Brasileira
de Letras, número de suas cadeiras e nome dos patronos, que recortara da
“Noite Ilustrada” de saudosa memória.
Também daquela revista meu amigo tirara a reportagem das Misses de
vários países desfilando em carro aberto na Avenida Rio Branco: foi na época
um fantástico furo de reportagem, pois mal terminara o cortejo, a revista
circulava com as fotos, dando ênfase à zanga da miss Yugoslávia, que por
ordem alfabética fora colocada em último lugar e em sinal de protesto
desfilara sentada. Alegava que no seu país se escrevia Jugoslávia, portanto
na sua posição devera ser outra. Foi no ano creio em que se sagrou Miss
Universo a gaúcha de Pelotas Yolanda Pereira.
Tiro algumas amostras ao acaso de uma destas miscelâneas que tenho
debaixo dos olhos e começa com os “Estatutos do Homem”. Tomo trecho
de uma crônica aqui colada, de João Saldanha, que, diga-se de passagem,
escreveu delicioso livro intitulado “Subterrâneos do Futebol”, no qual a vedete
é certamente o finado Garrincha:
239
“Até fica parecendo aquela história da cena que, investido do cargo de
subdelegado, botou um revolvão na cintura e saiu para prender. Passou o dia
inteiro e nada. O homem estava chateado, quando teve uma idéia: tirou o
sapato, encostou-se na parede da rua de calçada estreita e espichou o .
Um turco, chamado Zarife, mascate, cansado do trabalho e carregando duas
malas, pisou no do delegado. Pronto, o homão gritou: “Teje preso! Pisou
no pé da lei.”
Mais adiante colho retalhos do “Pensamento vivo do Aiatolá”:
“A música engendra a imoralidade, a luxúria, o despudor, enfraquece a
coragem e a bravura.” E em seguida: “No momento de urinar ou defecar,
deve-se agachar de modo a não ficar de frente nem de costas para a Meca.”
(Bem se ver que se dirige mais às mulheres).
De uma reportagem do “O Globo” sobre o Censo, 1980, que conservei
na integra, pego estas belezas de pitoresco:
“No Rio, um recenseador precisou beber uma garrafa de cachaça com
os operários de uma obra, para inspirar-lhes confiança a responder suas
perguntas. Em Goiás, um outro levou um susto ao defrontar, cara a cara, com
o famoso “bandido da cartucheira” a quem denunciou à Policia. Uma senhora
gaúcha não soube dizer as datas em que nasceram os seus dezoito filhos,
informando vagamente que o penúltimo nascera “na última safra do trigo” e o
derradeiro “na mais recente colheita da soja”. “Em Rondônia, foram
localizadas três crianças chamadas respectivamente de “Ouviram do”,
“Ipiranga” e “As margens plácidas”. (Fico pensando que se os pais tivessem
tido muitos filhos iram bater no “Deitado eternamente”). Em Juiz de Fora, uma
senhora concordou em responder às perguntas do Censo depois que o
representante do IBGE prometeu registrar seus 12 gatos como filhos.
De uma página de Millôr Fernandes na revista “Veja”, debaixo do título
“Reflexões sem dor”, cito isto:
“Reforma agrária é uma coisa que todo grupo social tem o maior
interesse em ver realizada... na terra dos outros”.
No plano dos assuntos sérios estão devidamente pregados: A
sentença que condenou Cristo; erratas famosas (desde a edição da “Suma
Teológica” de Santo Tomás de Aquino, em quem apareceram 111 emendas);
relação dos Cardeais bem como fotos, com as respectivas datas de
mandatos, Dos Presidentes da França e do Brasil; história da máquina de
escrever; a lista de todos os Papas assassinados, martirizados ou agredidos
(são 34 itens); comentários sobre as cartas eróticas de Trotsky a Natália, sua
mulher; pequena história do DINHEIRO. E muita matéria mais, que nem a
citação caberia nesta crônica.
Para encerrar, esta oportuna advertência aos motoristas publicada no
“Le Matin”:
“A 80 km cantai: a vida é bela. A 100 km cantai: os Santos e os Anjos.
A 120 km cantai: mais perto de ti, meu Deus.
A mais de 120 km: Senhor, estou chegando”.
O Povo, 20/03/1983.
240
ANEXO F
OBRAS DO AUTOR
241
Sete-Estrêlo.
Fortaleza:
Imprensa Universitária do Ceará.
1960.
A Ilha do homem só. Estórias e crônicas.
Rio de Janeiro:
Record,
1966.
As Cunhãs.
Fortaleza:
Edições UFC,
1966.
Entre a boca da noite e a madrugada.
Fortaleza
Edições UFC,
1971
242
Cartas sem respostas.
Fortaleza
Edição do autor.
1974.
Viagem no arco-íris.
Fortaleza
Edições UFC,
1974.
Em parceria com Cláudio Martins
As outras cunhãs. Estórias de domésticas.
Fortaleza
Edição do autor.
1977.
243
A Capitoa. Estórias e crônicas.
Fortaleza
Edições UFC,
1982a.
Passeio no conto francês.
Fortaleza
EDUFC/ Academia Cearense de Letras/ PROEDI.
1982.
Relembranças.
Org. José Hélder de Sousa,
Fortaleza
EDUFC,
1985.
OBRA PÓSTUMA
244
A VOZ DOS SINOS – OBRA INACABADA E AINDA INÉDITA
245
246
ANEXO F
FOTOS DE FORTALEZA ANTIGA
247
248
249
(Fotos retiradas do livro de Marciano Lopes)
250
ANEXO H
PROVA DO EXAME VESTIBULAR DA UFC 1998
251
U N I V E R S I D A D E F E D E R A L D O C E A R Á
C O M I S S Ã O C O O R D E N A D O R A D O V E S T I B U L A R
COMENTÁRIOS DA PROVA DE LÍNGUA PORTUGUESA – 1
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ETAPA – 1999
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01. Considere as afirmativas abaixo sobre a crônica literária, gênero em que se destaca Mílton
Dias.
1. Comenta e interpreta subjetivamente ocorrências pessoais ou de domínio público.
2. Referencia indivíduos históricos e reais, pois o cronista se priva de recorrer à fantasia.
3. Despreza os detalhes do cotidiano, porque se volta para os grandes recortes de tempo.
Assinale, então, a opção correta.
A) Apenas 1 está correta.
B) Apenas 3 está correta.
C) 1 e 2 estão corretas.
D) 1 e 3 estão corretas.
E) 2 e 3 estão corretas.
02. Considere as afirmações abaixo sobre Mílton Dias e sua obra.
1. O livro Relembranças reúne crônicas inéditas numa publicação póstuma.
2. Mílton Dias pertenceu ao grupo Clã e à Academia Cearense de Letras.
3. As Cunhãs e Entre a boca da noite e a madrugada são duas de suas obras.
4. O escritor se prende às tradições culturais do interior e rejeita as grandes cidades.
Assinale a opção que indica as afirmações corretas.
A) Primeira e segunda.
B) Primeira e terceira.
C) Segunda e terceira.
D) Terceira e quarta.
E) Segunda e quarta.
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252
De muito longe eu venho, já despojado das ilusões de juventude, mas cultivando o
mesmo sentimento que animava a alma dos menestréis medievais, quando se lhes abriam as
portas dos castelos e os líricos trovadores contavam o que tinham vivido nas suas andanças.
Mas para vos entreter por um minuto, com o depoimento da minha jornada sem
grandeza, a minha prosa não pode pretender mais do que a conversa: falta-me a viola dos
menestréis, faltam-me os versos, falta-me a poesia, falta o talento para a balada, para o
madrigal. Ah, falta muito!
Venho dos verdes campos do Ipu, onde pontificava “a guerreira tribo da grande nação
tabajara”, onde meus olhos saudaram o sol primeiro tirando faíscas sobre “aquela serra que
ainda azula no horizonte” e meus ouvidos se abriram para as festas de som da natureza,
embalados com a cantiga incansável da bica, que dos longes do tempo vem repetindo um
acalanto de poucas notas.
Venho da beira do Acaraú, de Santana, onde passei a infância menor, convivendo com
tangerinos e boiadeiros, ouvindo conversas nos alpendres de antiga fazenda colonial – e ainda
carrego entre os guardados mais gratos da memória aboios de vaqueiros e canções de
antigamente e estórias que pretas cochichantes, conservando ternuras de restos da
escravidão, contavam em segredo, à luz moribunda de tristes candeeiros.
Venho de noites indormidas, esperando a cheia do rio, onde canoeiros viviam aventuras
que as traições das águas lhes pregavam, ao mesmo tempo em que lhes ensinavam truques
de defesa e inspiravam caso que a imaginação caipira ampliava num heroísmo ingênuo, para
um público atento e crédulo. E onde o vento, soprando altas horas, contava mistérios que as
palmas das carnaubeiras, abertas em leque, transformavam em lamento, no silêncio das horas
perdidas da madrugada.
Venho das margens do rio Contendas, das várzeas de Massapê, que me fez seu filho
adotivo. Venho de cavalgadas por campos em cinza que a chuva acordava cobrindo de verde.
Venho das escolas primárias do interior, em que as professoras, exercendo o
apostolado nunca demais louvado, davam aos alunos de então conhecimentos que os cursos
d’agora, calejados de reformas, não conseguiram igualar.
Venho do sertão. Deu-me Deus a graça da infância em cidade pequena, síntese do
mundo, onde bem cedo se aprende a vida, convivendo com personalidades de todos os
matizes o juiz, o delegado, o padre, o comerciante, o curandeiro, o mestiço, o doido, o
ladrão, o mentiroso, o generoso e o avarento, gente boa e gente má, com todas as gamas e
nuanças encontradiças mais tarde, em plano mais amplo. E este conhecimento direto da
humanidade ainda mais se aguçou e me amadureceu, com a morte prematura do meu pai que
me comprometeu a infância e me advertiu para as surpresas da sorte.
Venho dum certo capitão-mor português, versão modesta de Abraão, que se instalou na
ribeira do Acaraú e deixou descendência biblicamente numerosa.
Venho dum avô coronel da Guarda Nacional, homem de formação austera, que deu à
família patriarcal os moldes severos do tempo, que cumpriu a honestidade na sua forma mais
rigorosa e transmitiu aos filhos e netos a lição do respeito à lei e aos mandamentos de Deus e
da Igreja.
Venho dum pai boticário, que me ensinou, menino, o trabalho e minhas mãos
aprenderam o ofício dos pacotinhos de alfazema, de sene de maná e o fabrico doméstico da
Paludina, fórmula do tio doutor, posteriormente transformada em tímida indústria sertaneja,
para combater impaludismo. Da farmácia ainda guardo com nostalgia os odores das poções,
pomadas, remédios ensinados pelo Chernoviz e aviados no almofariz branco, que era o
símbolo sagrado das artes da cura.
Venho dum tempo que se distancia, se perde e começa a ser outrora, surpreendi o
século ao final das duas primeiras décadas e ainda continuo perplexo dentro deste mundo
atormentado, inquieto e aflito.
Um dia, a professora revelou honestamente que não tinha mais o que ensinar ao aluno
e o recomendou ao exame de admissão na capital.
E eu ganhei Fortaleza de presente. E o alumbramento inicial, a entrada noturna pelo
Alagadiço, os lampiões da Ceará Gaz, o bonde gemendo em cima dos trilhos, o “prego” do
carro à entrada da cidade e a saudação que me foi feita por um piano anônimo, donde uma
253
moça desconhecida, certamente curtindo a nostalgia de algum amor tresmalhado, tirava as
notas de “Era meu lindo jangadeiro”, aquele alumbramento inicial ainda persiste, ainda cresce
e se multiplica no meu afeto maior.
Venho de colégio interno, colégio externo, de Faculdade, das inquietações e desejos
líricos de impossível reforma do mundo, então pequeno para minha ambição de jovem.
Venho do trabalho burocrático em repartições do governo, venho da caserna, do jornal,
das salas de aula, de vinte anos de magistério secundário e quase outro tanto de ensino
superior.
Venho de longa experiência em terras do sul, de alguma vivência européia, trabalhei,
penei, estudei, ensinei, aprendi, vivi, sobrevivi, fui amado e esquecido, fui desamado e
lembrado, conheci a glória do anonimato, pingo d’água em cidade tentacular, cultivei a mosca
azul e namorei estrelas improváveis.
(...)
Venho do mundo. Convivi com santos e demônios, varei madrugadas e acordei
auroras, festejei noite alta e cortejei o sol, passei mar, passei rio, passei ponte, passei
montanha, furei nuvens. Mas, sobretudo, venho do sertão.
(DIAS, Mílton. (1985) Relembranças. Fortaleza:Edições UFC)
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03. Sobre “Fortaleza e eu”, de Mílton Dias, é correto afirmar que:
A) como em outros escritos do cronista, o tédio urbano cria uma visão desfavorável de Fortaleza.
B) a sugestão romântica do texto indica uma relação intertextual com Luzia Homem, de Adolfo
Caminha.
C) o texto descreve os tipos humanos e a geografia local, recorrendo ao ideário realista-
naturalista.
D) o ponto de vista desloca-se do pretérito idealizado para o presente, em que se encontram os
leitores.
E) as mudanças consolidadas do século XX permitem ao cronista cearense viver sem conflitos.
04. Indique a opção que apresenta maior continuidade ideológica com o texto.
A) ... “desculpem todos, mas eu penso, cá de mim, que foi aqui na Praia de Iracema que o país foi
descoberto.” (“Este meu amor a Fortaleza” p. 184)
B) “É curioso constatar (...) como algumas das canções da Idade Média, extremamente ousadas,
estariam hoje inscritas na linha pornô.” (“O Menestrel” p. 232)
C) ...“feliz quem não acompanhou os impactos deste século de transição, feliz quem nasceu,
viveu, morreu no tranqüilo século XIX.” (“Eu não tive culpa” p. 106)
D) “Bem perto fica o Pajeú, que cantarola cantigas outrora aprendidas, guardião da cidade,
testemunha humilde e discreta.” (“Boas-Vindas a uma Visitante” p. 175)
E) “Andei por aí, passeando o corpo e a alma, galopando em cima das nuvens, castigando os pés
em caminhos estrangeiros e sofrendo alfândegas.” (“Voltei” p. 266)
05. Do trecho “Venho do mundo. Convivi com santos e demônios, varei madrugadas e
acordei auroras, festejei noite alta e cortejei o sol, passei mar, passei rio, passei ponte, passei
montanha, furei nuvens. Mas, sobretudo, venho do sertão.”, pode-se inferir que o
cronistaconfessa-se fiel à sua origem.
Marque a opção que contém os elementos lingüísticos responsáveis por essa inferência.
A) "Venho do mundo"
B) "passei rio"
254
C) "Mas, sobretudo"
D) "acordei auroras"
E) "é noite alta"
06. O uso do recurso da repetição “venho de”, no início da maioria dos parágrafos indica que o
cronista:
I. evidencia o processo das cantigas medievais.
II. destaca a estrutura temporal da crônica.
III. enfatiza o tom nostálgico, próprio da crônica histórica.
A partir da leitura dos itens I, II e III é correto afirmar que:
A) I e III são verdadeiros.
B) I e II são verdadeiros.
C) II e III são verdadeiros.
D) apenas I é verdadeiro.
E) apenas II é verdadeiro.
07. No período: “Vim do sertão, fedelhozinho ainda, bestalóide, mas hipersensível.”, há, em
fedelhozinho, dois sufixos de ______________, um deles expressa idéia de ______________;
em bestalóideum sufixo que indica ______________, carregado de conotação depreciativa
e, em hipersensível, um ______________ prefixal.
Assinale a opção que preenche corretamente as lacunas do período.
A) aumentativo, depreciação, aspecto de, superlativo.
B) diminutivo, afetividade, semelhante a, superlativo.
C) diminutivo, depreciação, forma de, aumentativo.
D) diminutivo, afetividade, aspecto de, aumentativo.
E) aumentativo, ironia, semelhante a, aumentativo.
08. Observe o trecho: “... com a morte prematura do meu pai que me comprometeu a infância e me
advertiu para as surpresas da sorte.” Com a expressão sublinhada o autor transmite uma idéia
de :
A) superstição.
B) perplexidade.
C) fatalidade.
D) desânimo.
E) padecimento.
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09. Identifique o valor semântico da conjunção e nos períodos abaixo.
I- O poeta nasceu ao final das duas primeiras décadas deste século e ainda continua perplexo
dentro deste mundo atormentado.
II- As pessoas conviviam com personalidades de todos os matizes e aprendiam a lidar com gente
boa e gente má.
III- Por amar Fortaleza, o poeta fez-lhe um canto de amor e
o leu ao receber o título de “Cidadão
de Fortaleza”.
255
Assinale a opção cuja seqüência corresponde à relação de sentido existente entre as orações
dos períodos I, II e III.
A) adição – conclusão – conseqüência;
B) oposição – oposição – adição;
C) adição – conclusão – finalidade;
D) oposição – conclusão – finalidade;
E) adição – conseqüência – explicação.
10. Leia o trecho abaixo.
O berço de lton Dias é Ipu. Ele nasceu na pequena rua da Goela do seu torrão natal. O
município tem 403 km
2
e fica a 391 km de Fortaleza. A cidade da bica em que Iracema, de
Alencar, se banhava está na região norte do Estado e seu padroeiro é o Sebastião. A bica
do Ipu é uma queda d’água que surge por entre o Despenhadeiro da Morte e desprende-se de
uma altura de 180m, formando um Véu de Noiva” que encanta a todos os visitantes da
pequena localidade do Ceará.
As expressões que retomam, no texto, a expressão “o berço” são:
A) Ipu – município – região norte – “Véu de Noiva” – pequena localidade do Ceará.
B) torrão natal – município – bica do Ipu – Despenhadeiro da Morte – “Véu de Noiva”.
C) Ipu – torrão natal – município – cidade da bica – pequena localidade do Ceará.
D) pequena rua – torrão natal – município – bica do Ipu – “Véu de Noiva”.
E) Ipu – torrão natal – município – região norte – pequena localidade do Ceará.
11. Leia a frase abaixo.
O
(1)
que
(1)
vive no sertão conta o
(2)
que
(2)
lhe permite a imaginação caipira.
Marque a opção cujos termos apontam para o mesmo referente.
A) O
(1)
– lhe;
B) O
(1)
– O
(2)
;
C) O
(2)
– lhe;
D) Que
(1)
– Que
(2)
;
E) Que
(1)
– O
(2)
.
12. Leia as frases abaixo.
I - Aqui continua um paraíso.
II - Aqui ele chegou em 1930.
III – Aqui onde ele mora viveu José de Alencar.
IV – Aqui faz muito calor.
Em relação aos termos grifados, pode-se afirmar que:
A) expressam informação secundária, em I, III e IV.
B) indicam a posição próxima do ouvinte, em II e III.
C) assumem a mesma função na frase, em I, II e III.
D) há uma preposição implícita, em II, III e IV.
E) os termos assumem a mesma função, em I, II e IV.
256
13. O gráfico abaixo mostra, em percentual, a constituição da população de Fortaleza nas décadas
de 1930 e de 1990.
Em relação à leitura do gráfico, pode-se afirmar de modo correto que:
A) a população de Fortaleza, em 1990, era formada menos por pessoas nascidas no interior do
que o era em 1930.
B) a população de 1990 era formada mais por pessoas nascidas em Fortaleza que a de 1930.
C) o total de pessoas oriundas de outros estados atinge, no mínimo, 10% tanto em 1930, quanto
em 1990.
D) o percentual de nascidos em Fortaleza em 1990 é equivalente ao percentual de nascidos no
interior em 1930.
E) o percentual de nascidos no interior em 1990 é equivalente ao percentual de nascidos em
Fortaleza em 1930.
0
10
20
30
40
50
60
1930 1990
nascidas em
Fortaleza
nascidas no
interior
nascidas em
outros estados
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