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De muito longe eu venho, já despojado das ilusões de juventude, mas cultivando o
mesmo sentimento que animava a alma dos menestréis medievais, quando se lhes abriam as
portas dos castelos e os líricos trovadores contavam o que tinham vivido nas suas andanças.
Mas para vos entreter por um minuto, com o depoimento da minha jornada sem
grandeza, a minha prosa não pode pretender mais do que a conversa: falta-me a viola dos
menestréis, faltam-me os versos, falta-me a poesia, falta o talento para a balada, para o
madrigal. Ah, falta muito!
Venho dos verdes campos do Ipu, onde pontificava “a guerreira tribo da grande nação
tabajara”, onde meus olhos saudaram o sol primeiro tirando faíscas sobre “aquela serra que
ainda azula no horizonte” e meus ouvidos se abriram para as festas de som da natureza,
embalados com a cantiga incansável da bica, que dos longes do tempo vem repetindo um
acalanto de poucas notas.
Venho da beira do Acaraú, de Santana, onde passei a infância menor, convivendo com
tangerinos e boiadeiros, ouvindo conversas nos alpendres de antiga fazenda colonial – e ainda
carrego entre os guardados mais gratos da memória aboios de vaqueiros e canções de
antigamente e estórias que pretas cochichantes, conservando ternuras de restos da
escravidão, contavam em segredo, à luz moribunda de tristes candeeiros.
Venho de noites indormidas, esperando a cheia do rio, onde canoeiros viviam aventuras
que as traições das águas lhes pregavam, ao mesmo tempo em que lhes ensinavam truques
de defesa e inspiravam caso que a imaginação caipira ampliava num heroísmo ingênuo, para
um público atento e crédulo. E onde o vento, soprando altas horas, contava mistérios que as
palmas das carnaubeiras, abertas em leque, transformavam em lamento, no silêncio das horas
perdidas da madrugada.
Venho das margens do rio Contendas, das várzeas de Massapê, que me fez seu filho
adotivo. Venho de cavalgadas por campos em cinza que a chuva acordava cobrindo de verde.
Venho das escolas primárias do interior, em que as professoras, exercendo o
apostolado nunca demais louvado, davam aos alunos de então conhecimentos que os cursos
d’agora, calejados de reformas, não conseguiram igualar.
Venho do sertão. Deu-me Deus a graça da infância em cidade pequena, síntese do
mundo, onde bem cedo se aprende a vida, convivendo com personalidades de todos os
matizes – o juiz, o delegado, o padre, o comerciante, o curandeiro, o mestiço, o doido, o
ladrão, o mentiroso, o generoso e o avarento, gente boa e gente má, com todas as gamas e
nuanças encontradiças mais tarde, em plano mais amplo. E este conhecimento direto da
humanidade ainda mais se aguçou e me amadureceu, com a morte prematura do meu pai que
me comprometeu a infância e me advertiu para as surpresas da sorte.
Venho dum certo capitão-mor português, versão modesta de Abraão, que se instalou na
ribeira do Acaraú e deixou descendência biblicamente numerosa.
Venho dum avô coronel da Guarda Nacional, homem de formação austera, que deu à
família patriarcal os moldes severos do tempo, que cumpriu a honestidade na sua forma mais
rigorosa e transmitiu aos filhos e netos a lição do respeito à lei e aos mandamentos de Deus e
da Igreja.
Venho dum pai boticário, que me ensinou, menino, o trabalho e minhas mãos
aprenderam o ofício dos pacotinhos de alfazema, de sene de maná e o fabrico doméstico da
Paludina, fórmula do tio doutor, posteriormente transformada em tímida indústria sertaneja,
para combater impaludismo. Da farmácia ainda guardo com nostalgia os odores das poções,
pomadas, remédios ensinados pelo Chernoviz e aviados no almofariz branco, que era o
símbolo sagrado das artes da cura.
Venho dum tempo que se distancia, se perde e começa a ser outrora, surpreendi o
século ao final das duas primeiras décadas e ainda continuo perplexo dentro deste mundo
atormentado, inquieto e aflito.
Um dia, a professora revelou honestamente que não tinha mais o que ensinar ao aluno
e o recomendou ao exame de admissão na capital.
E eu ganhei Fortaleza de presente. E o alumbramento inicial, a entrada noturna pelo
Alagadiço, os lampiões da Ceará Gaz, o bonde gemendo em cima dos trilhos, o “prego” do
carro à entrada da cidade e a saudação que me foi feita por um piano anônimo, donde uma