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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO UNI-RIO
CENTRO DE LETRAS E ARTES – CLA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS – PPGAC
JULIANA BITTENCOURT MANHÃES
MEMÓRIAS DE UM CORPO BRINCANTE:
A BRINCADEIRA DO CAZUMBA NO BUMBA-BOI MARANHENSE
Rio de Janeiro
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Agosto/2009
JULIANA BITTENCOURT MANHÃES
MEMÓRIAS DE UM CORPO BRINCANTE:
A BRINCADEIRA DO CAZUMBA NO BUMBA-BOI MARANHENSE
Dissertação apresentada à Banca Examinadora do
Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, do Centro
de Letras e Artes, da UNIRIO, como requisito parcial a
obtenção do título de mestre em Artes Cênicas. Linha de
Pesquisa: Estudo de Performance, Discursos do Corpo e
da Imagem. Sob a orientação do Prof. Dr. José Luiz
Ligiéro Coelho.
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Rio de Janeiro
Agosto/2009
MEMÓRIAS DE UM CORPO BRINCANTE:
A BRINCADEIRA DO CAZUMBA NO BUMBA-BOI MARANHENSE
JULIANA BITTENCOURT MANHÃES
Dissertação apresentada no Programa de Pós-Graduação do curso de Artes Cênicas, do
Centro de Letras e Artes, da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro,
defendida e aprovada pelos professores:
Orientador: ________________________________________
Prof. Dr. José Luiz Ligiéro Coelho – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
_________________________________________________
Profa. Dra. Nara Waldemar Keiserman – Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro
_________________________________________________
Prof. Dr. Raimundo Oswald Barroso – Universidade Federal do Cea
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Dedico aos mestres Apolônio Melônio e Abel Teixeira que me deram
licença para entrar na brincadeira do bumba-boi...
A minha mãe Elisabeth e meu pai Luiz que me botaram nesse mundo
festivo do Maranhão...
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E a minha Vó, Isa de Oliveira (in memorian), pela vontade de
aproveitar e ter fé na vida!!!
AGRADECIMENTOS:
Agradecer é a possibilidade de recordar muitas pessoas fundamentais nesta trajetória e
reconhecer momentos especiais que fizeram e fazem parte desta história.
É uma realização emocionante ter compartilhado com a generosidade de brincantes,
mestres, professores, amigos e familiares que me ajudaram na construção deste trabalho, que
mesmo sendo solitário no ato da escrita é emaranhado pelos depoimentos e diálogos dessas
pessoas que me ensinam a dar continuidade no ofício e na crença de ser aprendiz nas festas e
brincadeiras.
Agradeço a todos os mestres e peço licença para registrar essas memórias, escritas por
mim e por muitos brincantes nesses caminhos trilhados.
A Abel Teixeira, mestre Apolônio e Nadir Cruz por tudo.
Ao meu orientador Zeca Ligiéro que me mostrou a importância em registrar as
experiências, incentivando a minha escrita e valorizando minhas práticas de brincadeiras e
festas, fortalecendo e me guiando na condução deste processo.
A antropóloga Angela Mascelani, que esteve presente desde a escrita do projeto
inicial, pontuando questões importantes na minha qualificação e estimulando o meu olhar
sobre a pesquisa.
Ao grupo As Três Marias, as de ontem, de hoje e do amanhã que me permitiram
vivenciar na prática as festividades maranhenses no Rio de janeiro, e a partir desse
movimento me estimularam a pensar e escrever sobre minha atuação nas manifestações
populares, além de aprender a lidar com a diversidade coletiva.
Aos amigos e amigas, Andréa Alac forte incentivadora para o caminho acadêmico, a
Ricarda Mendes que sempre me deu força para acreditar que era possível, a Joana Araújo
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pelas longas conversas nas horas mais difíceis dessa escrita, a Miza Carvalho pela paciência
nas transcrições de filmagens, a Chris Alcântara, parceira de trabalho que me acompanhou na
viagem para pesquisa de campo e grande animadora, a Matilde Vilela pelos bons diálogos, a
Rafael Rodrigues, companheiro de cena e pelo cuidado nesse momento de solidão da escrita,
a Fernando Mendonça pelos toques e inspirações, a Wellen Lírio pela animação nos
momentos de cansaço, a Hamilton Oliveira pelas cumplicidades na pesquisa, Aressa Rios pelo
diálogo durante todo o processo e Flora Moana pelas perguntas que me estimularam na
pesquisa, a Telma pelas boas conversas, a Maria Mazzillo pelas caretas e a cumplicidade de
cazumba.
A Leo Carnevale pela força e companheirismo nos momentos iniciais, fundamentais
para a concretização deste trabalho.
A Mathias Rohring pelas indicações de leitura e reflexões sobre questões ligadas ao
movimento.
A Dona Zelinda e Carlos Lima que me receberam em sua casa, fortalecendo a minha
pesquisa, através do registro de seus preciosos depoimentos.
Ao professor Sérgio Ferretti, por toda bibliografia indicada e emprestada, além das
boas conversas.
A professora Mundicarmo Ferretti pelo convite inicial para escrever um artigo sobre
cazumba, quando eu ainda nem pensava no mestrado, mas começava a fazer os primeiros
registros da minha experiência.
A Michol Carvalho que sempre estimulou o meu trabalho artístico com a cultura
maranhense.
A Jandir Gonçalves pelos bons papos, idéias e fotos sobre o interior e a diversidade do
boi na baixada.
A Márcio Vasconcelos pela autorização de suas belas imagens das brincadeiras no
Maranhão.
A Dona Lourdes e Cláudio Costa, da Fundação São Sebastião, pelas acolhidas em
Viana.
A Luiz Henrique pelas leituras, traduções e clarezas nos textos em inglês e as
iniciações sobre performance.
A Juliana Prado pela paciência em aguardar este momento de escrita, para depois
retornar as visitas guiadas no Pontal.
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A Marcelo Gabbay e Michele Campos pelas clarezas nas formatações, conversas e
ajuda nas escolhas das ilustrações para essa dissertação.
A Fundação de Amparo a Pesquisa e ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do
Maranhão – FAPEMA, pela bolsa de doze meses, que certamente contribuiu para a realização
deste trabalho.
A Agostinho Marques, meu padrinho, pela revisão do português na dissertação e
valorização do meu percurso.
A Cláudia Barcelos, minha madinha, pelos cuidados afetivos e a atenção para as
sensações no corpo.
A Márcia Guimarães, que me ajudou nesses últimos meses a compreender meu corpo
e aceitar minhas fragilidades.
Ao meu pai Luiz Manhães, por todo estímulo e certeza de que eu iria conseguir,
indicando livros, lendo a minha escrita, rindo, recordando e me ajudando na organização com
o tempo para a pesquisa.
A minha mãe Elisabeth Bittencourt, que sempre acredita nos meus movimentos e me
ensina a fazer as coisas com bom humor e alegria.
A toda família do Boi da Floresta que me aceitou carinhosamente como mulher
cazumba.
Aos cazumbas Bigu Melônio, Honório Serra, Cândido Pinheiro, Domingos, Fabriciano
Campos, Charles Mendes, Cassiano Ferreira, Laís Silva, Lucimara Corrêa, Flávia Moura,
Mauro e Seu Nico.
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Para entender nós temos dois caminhos:
O da sensibilidade que é o entendimento do corpo;
E o da inteligência que é o entendimento do espírito.
Eu escrevo com o corpo.
Poesia não é para compreender,
Mas para incorporar.
Entender é parede; procure ser uma árvore.
(Manoel de Barros – Livro Arranjos para assobios, 2007:37)
RESUMO:
A brincadeira do cazumba dos bois da Baixada Maranhense constitui o principal
objeto deste estudo. Fazendo uma reflexão sobre a sua movimentação e funções dentro da
manifestação, agregando uma diversidade de sentidos sobre o personagem. Além de buscar
significados sobre o uso de sua indumentária, bata, cofo e careta. Este trabalho procura
identificar o que é um corpo brincante, festivo e fluido, onde o jogo e a espontaneidade
trazem a marca da performance do cazumba, buscando contribuir para os estudos das culturas
populares e sua relação com o corpo, ampliando possibilidades nos estudos do teatro, da
dança e suas relações com as manifestações brasileiras. A principal fonte de pesquisa foi o
Boi da Floresta, através do seu fundador mestre Apolônio Melônio e o mestre cazumba e
artesão Abel Teixeira, além de depoimentos de cazumbas da Baixada.
Palavras chave: Boi, brincadeira, corpo brincante, cazumba, máscara, festa, jogo,
performance e memória.
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ABSTRACT:
The play on the Maranhão suburb's cazumba is the main focus on this research. We
seek to make a reflection about its movements and functions concerning to the ritual, putting
together the whole diversity of senses that surround this character. Besides, we search for
meanings to the use of its clothing, including the tunic, the cofo, and the mask. This
dissertation searches for the identification of a playing body, which is celebratory and fluid,
and where the play and spontaneity brings up the characteristics of the cazumba's
performance, so we intend to contribute to the studies of popular cultures and its relation to
the body use, opening new possibilities on the studies of theater, dance, and their relations to
the Brazilian popular manifestations. The most important research font was the Boi da
Floresta party, through its founding member, master Apolônio Melônio, and the master
cazumba, and craftsman Abel Teixeira, besides other cazumbas from that location.
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Key-words: Boi, play, playing body, cazumba, mask, party, play, performance and
memory.
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LISTAS DE ILUSTRAÇÕES:
Capa: Mestre Abel Teixeira vestido de cazumba em brincadeira no Boi da Floresta, em junho
de 2008.
Capítulo 1
Figura 1: Bordado do Boi Paz do Brasil, junho 2008 27
Figura 2: Mapa do estado do Maranhão mostrando a região da Baixada 40
Figura 3: Paisagem dos alagados de Viana 40
Figura 4: Desenhos dos instrumentos do bumba-meu-boi 43
Figura 5: Micaela do Boi União da Baixada, São Luís, junho, 2008 46
Figura 6: Miolos André Luís e Benedito Costa do Boi da Floresta, junho, 2008 48
Figura 7: Um dos amos do Boi da Floresta, Seu Sá Viana, junho, 2008 48
Figura 8: Índia Talyene do Boi da Floresta, junho, 2008 49
Figura 9: Cacique do Boi da Floresta, junho, 2008 50
Figura 10: Baiante Dona Maria do Boi da Floresta, junho, 2008 51
Figura 11: Batuqueiros no pandeirão do Boi da Floresta, junho, 2008 51
Figura 12: Burrinha do Boi da Floresta, junho, 2008 52
Figura 13: Boi em movimento com o vaqueiro Louro do Boi da Floresta, junho,
2008 53
Figura 14: Pai Francisco do Boi da Floresta, junho, 2008 54
Figura 15: Catirina de um Boi de Zabumba 55
Capítulo 2
Figura 16: Mestre Apolônio Melônio 66
Figura 17: Nadir Cruz de índia e o Boi Paz do Brasil, junho, 2006 66
Figura 18: Bordado do Boi Paz do Brasil do mestre Apolônio Melônio 69
Figura 19: Bordado do Boi Paz do Brasil do mestre Apolônio Melônio 70
Figura 20: Altar do Boi da Floresta 71
Figura 21: Juliana Manhães no Batizado do Boi da Floresta, junho 2005 72
Figura 22: Início do ciclo de festas: batizado do boi brincantes tocando e
dançando em frente ao altar depois da ladainha, junho, 2005 72
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Figura 23: Cartaz informando equipes da divisão de tarefas da Festa de Morte do
Boi da Floresta, setembro, 2005 81
Figura 24: Cortejo que leva o mourão da casa de Dona Maria para a casa de mestre
Apolônio, setembro, 2005 82
Figura 25: Derrubada e quebra do mourão a casa de mestre Apolônio, setembro,
2005 setembro, 2005 85
Figura 26 : Cazumbas na Festa de São Pedro em Santo Inácio, 1978 91
Figura 27: Cazumba na Festa de São Pedro em Santo Inácio, 1978 92
Figura 28: Carregadeira do Santo, Turma de Paulo, Viana, junho 2008 94
Figura 29: Ladainha, Turma de Paulo, Viana, junho, 2008 95
Figura 30: Brincadeira do Boi Meia gua em Matinha na hora da apresentação
para os jurados, junho, 2008 98
Figura 31: Cazumba mulher no encontro de Bois em Matinha, junho, 2008 98
Figura 32: Caretas com material de látex, junho, 2008 99
Figura 33: Abel, Seu Neco e Dona Margarida se encontrando em Santo Inácio,
junho, 2008. 101
Figura 34: Mastro da Festa de São Pedro em Santo Inácio, junho, 2008 101
Figura 35: Brincadeira na Festa de São Pedro em Santo Inácio, junho, 2008 102
Capítulo 3
Figura 36: Cazumba Charles do Boi da Floresta, junho 2008 110
Figura 37: Cazumba mulher no Boi da Floresta, julho 2008 111
Figura 38: Mestre Cândido e sua careta do Boi da Floresta, junho 2008 112
Figura 39: Cazumba Fabriciano no Boi da Floresta, junho de 2008 115
Figura 40: Cazumbas Zé Mauro, Fabriciano e Abel em Viana, junho 2008 115
Figura 41: Cazumba Walace em festa da cidade de Viana, julho 2008 116
Figura 42: Bordados na bata Turma de Paulo em Viana, junho 2008 117
Figura 43: Cazumba Honório Serra e o cantador Machado, Matinha, junho 2008
118
Figura 44: Cazumba Nico do Boi Urubu, São Luís, julho, 2008 118
Figura 45: Cordão de cazumbas na Turma de Paulo, Viana, junho, 2008 119
Figura 46: Cofo do cazumba 120
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Figura 47: Cazumba Bigu Melônio, do Boi da Floresta, junho, 2008 122
Figura 48: Careta de madeira do mestre Abel Teixeira, junho, 2008 123
Figura 49: Careta em miniatura de mestre Abel 124
Figura 50: Careta de pambé 125
Figura 51: Careta Torre, Boi Santa Fé, junho, 2008 126
Figura 52: Cordão de cazumbas, Boi Santa Fé, junho, 2008 128
Figura 53: Urubu do Boi de Seu Nico, Viana, junho, 2008 129
Figura 54: A direção dos olhos de cazumba, junho, 2008 132
Figura 55: Juliana Manhães de cazumba na Casa do Pontal, novembro, 2008 134
Figura 56: Cazumba se comunicando com outro cazumba, junho, 2008 135
Figura 57: Movimento de bambolear os quadris, Viana, junho, 2008 135
Figura 58: Juliana Manhães brincando de cazumba no Boi da Floresta, na festa de
morte, setembro, 2002 138
Figura 59: Tabela sobre os Fatores da Movimentação do Brincante Cazumba nos
Bois da Baixada Maranhense 143
Figura 60: Tabela sobre os Fatores da Movimentação do Brincante Cazumba nos
Bois da Baixada Maranhense 144
Capítulo 4
Figura 61: Careta com material de arame, Viana, junho, 2008 150
Figura 62: Careta com material de isopor, Penalva, junho, 2008 150
Figura 63: Cazumba com careta diabólica, Morte do Boi Meia Légua, povoado
Santa Maria, junho, 2008 152
Figura 64: Cazumba com focinho de cavalo, Viana, junho, 2008 153
Figura 65: Cazumba com focinho de porco, Viana, junho, 2008 153
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SUMÁRIO
1 APRESENTAÇÃO OS PRIMEIROS FIOS: DA BRINCADEIRA À
PESQUISA 18
2 INTRODUÇÃO “DANDO NOMES AOS BOIS”: DEFINIÇÕES E USO
DE PALAVRAS 24
3 ABRINDO A RODA DO BOI: A ENTRADA NA PESQUISA 26
3.1 ESTILOS E FIGURAS DO BUMBA-MEU-BOI NO MARANHÃO 26
3.2 QUESTÕES ECONÔMICAS QUE PERMEIAM A BRINCADEIRA DO BOI,
PRODUZINDO UMA POLÍTICA CULTURAL NO MARANHÃO 28
3.3 BREVE RELATO SOBRE A HISTÓRIA DA MANIFESTAÇÃO DO BOI NO
MARANHÃO 32
3.3.1 Estilos de boi no Maranhão e o uso de suas nomenclaturas Do ritual do
interior à espetacularização na capital 37
3.3.2 Os sotaques de Bumba-meu-boi no Maranhão 38
3.3.2.1 Os instrumentos musicais 43
3.3.2.2 Personagens do boi no sotaque da baixada 45
3.3.2.3 Uso de palavras e o roteiro na performance do Bumba-meu-boi 57
3.4 O CICLO DE FESTEJOS DO BOI: DA ALELUIA À MORTE 59
4 MEMÓRIAS DOS MESTRES APOLÔNIO MELÔNIO, MESTRE ABEL E
OUTROS CAZUMBAS 65
4.1 MESTRE APOLÔNIO E A FUNDAÇÃO DO BOI DA FLORESTA 65
4.2 DOS ENSAIOS, A FESTA DE BATISMO ATÉ O DIA DE SÃO PEDRO 69
4.3 FESTA DE MORTE DO BOI: OS PREPARATIVOS, A PROGRAMAÇÃO E
A ORGANIZAÇÃO 78
4.4 A VIAGEM COM MESTRE ABEL RUMO À SANTO INÁCIO 89
5 UM CORPO QUE FALA: COISA DE CAZUMBA 106
5.1 CAZUMBA OU CAZUMBÁ? E SEUS DIVERSOS SENTIDOS 107
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5.2 INDUMENTÁRIA: BATA, COFO, CHOCALHO E SUA CARETA 114
5.3 OS SENTIDOS DA MÁSCARA E SEU USO NAS TRADIÇÕES
BRASILEIRAS 123
5.3.1 Materiais da careta e modos de fazer 125
5.4 A BRINCADEIRA E SEU ESPAÇO 126
5.5 A DANÇA E JOGO DO CAZUMBA 130
5.5.1 Estilos do Cazumba: jeitos de andar, passos e seus “caqueados” 131
5.5.2 Movimentos de Cazumba 137
5.5.3 Qualidades dos movimentos do Cazumba nas brincadeiras do Boi 140
6 ELEMENTOS DA PERFORMANCE DO CAZUMBA 145
6.1 O ATO DE SE MASCARAR 147
6.2 O GROTESCO NO CAZUMBA 151
6.2.1 O Riso como alicerce para a figura do Cazumba 154
6.2.2 O Sobrenatural como alicerce na figura do Cazumba 156
6.3 O CAZUMBA DO “REINO DO ENTRE” 159
CONSIDERAÇÕES FINAIS – DESPEDIDAS 162
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 166
GLOSSÁRIO 176
APÊNDICE 1: DIÁLOGO COM MESTRE ABEL TEIXEIRA 185
ANEXOS 188
ANEXO A - CONVITE DA FESTA DE MORTE DO BOI DA FLORESTA, NO
ANO DE 2005 189
ANEXO B - ORÇAMENTO DO FESTEJO DE MORTE DO BOI DA
FLORESTA, 2005 190
18
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ANEXO C PROGRAMAÇÃO DA FESTA DE MORTE DO BOI DA
FLORESTA, 2006 191
ANEXO D MATÉRIA DE JORNAL COM MESTRE APOLÔNIO: MESTRE
NO BOI, MESTRE NA VIDA, 2004 192
ANEXO E – MATÉRIA DE JORNAL COM MESTRE APOLÔNIO: FESTA
PARA UM MESTRE DA CULTURA, 2008 193
ANEXO F MATÉRIA DE JORNAL COM MESTRE ABEL TEIXEIRA:
CARETOS NAS RUAS DA CIDADE, EM PORTUGAL, BRAGANÇA, 2007 194
ANEXO G- FOLDER DE PROGRAMAÇÃO DAS FESTAS JUNINAS DE SÃO
LUÍS 195
AXEJO H CONVITE DA EXPOSIÇÃO: CAZUMBÁ: MÁSCARA E DRAMA
NO BOI DO MARANHÃO, RIO DE JANEIRO, 2000 196
ANEXO I FOLDER DA PREFEITURA NO PERÍODO DOS FESTEJOS
JUNINOS, DIVULGANDO A IMAGEM DO CAZUMBA 197
ANEXO J MATÉRIA DE JORNAL COM MESTRE ABEL TEIXEIRA:
MESTRE DAS CARETAS, JORNAL IMPARCIAL, 2009 198
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1 APRESENTAÇÃO – OS PRIMEIROS FIOS: DA BRINCADEIRA À PESQUISA
A tradição é o chão onde toda a cultura pisa, pois ninguém pisa no ar,
ninguém começa nada a partir do zero. Tudo começa a partir de algum
passado, um acúmulo. (TAVARES, 2005:142).
Estas primeiras palavras representam uma necessidade em marcar fatos da minha vida
pessoal, que desde o nascimento esteve emaranhada pelos caminhos do Maranhão, para no
momento seguinte distanciar do objeto crítico demarcando o real acúmulo e envolvimento
com o tema pesquisado.
O material básico deste trabalho nasceu de uma pesquisa feita durante nove anos como
brincante e observadora do bumba-meu-boi no Maranhão, acompanhando seu processo de
brincadeira dentro e fora do ciclo festivo.
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Sou maranhense de pais cariocas que foram morar no Maranhão na década de 70 e
criaram laços com a preciosa cultura popular, fazendo com que eu desde menina
acompanhasse as “brincadeiras” e festividades, primeiro na presença dos pais e depois por
conta própria tecendo uma rede de afetividades com mestres, brincantes e amantes da
brincadeira do boi.
O primeiro personagem com que me identifiquei foi a burrinha, achava engraçados os
“saltitos” e as corridas que ela dava, ficava olhando os bois, mas de repente estava dentro
da roda brincando, sendo a própria burrinha, gostava de dançar este personagem, porque é
uma dança livre, mas a figura que me intrigava desde menina era o cazumba. Além de
assustador, provocava um magnetismo curioso, maior do que o medo, permitindo uma
aproximação e, hoje em dia, vivenciando a brincadeira, percebo que o cazumba é um
personagem muito espontâneo.
O fato é que desde muito pequena fiquei identificada com aquelas figuras dançando,
batucando e cantando. A partir do interesse por essas linguagens, fui levada para o teatro e a
dança e, depois de um tempo, pude perceber como esses universos trazem características que
se integram hoje na minha vida artística e acadêmica.
Em 1992 venho morar no Rio de Janeiro para fazer teatro; em 1994 inicio a Faculdade
com o curso de Educação Artística Licenciatura Plena, na Escola de Teatro na UNIRIO
(Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro) e, ao mesmo tempo, começo a participar
das festas juninas no Maranhão, no mês de junho. Finalizo a graduação no ano de 2000,
quando regresso ao Maranhão. Nesta ação de retorno, aproximo-me de muitos mestres como
Dona Teté em São Luís e Dona Marlene em Alcântara, para aprender a tocar a caixa do
divino; Mestre Felipe, para dançar tambor de crioula, assim como o mestre e artesão Abel
Teixeira, com quem fui aprender a confeccionar uma careta de cazumba; e mestre Apolônio
Melônio, fundador do Boi da Floresta, com quem aprendo sobre a importância de
arregimentar o coletivo na festa do boi, para homenagear São João. Foi ele principalmente
quem me ensinou que a vida é para ser vivida em comunhão, e que a generosidade é a prática
fundamental para manter essa irmandade.
No primeiro semestre de 2001, confeccionei uma careta de cazumba em três meses
consecutivos, junto com mestre Abel, com aulas na minha casa, na casa dele no bairro do
Coroadinho, no Centro de Cultura Popular Domingos Vieira Filho e outros cantos de São
Luís, para costurar, alinhavar, fazer pontos, criar nós, bordar e construir a minha primeira
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careta de cazumba, sob o olhar atento do mestre que mostrava o seu jeito próprio de criação e
dizia quando não estava certo ao seu modo, mandando desmanchar e começar tudo de novo.
Em junho de 2001 estreava como “brincante” de cazumba, dentro da “roda” do Boi da
Floresta. No último dia de brincada, de toda temporada dos festejos juninos, na quarta
apresentação da noite, dia 02 de julho, meu corpo estava eufórico, entregue, vibrante e um
tanto cansado. Conversava com mestre Abel sobre essa euforia de “ser” cazumba, até que no
final da apresentação, quando começava a tirar a bata e a careta, ao seu lado, me despedia
dizendo que um dia ainda iria contar como havia sido para mim ser cazumba e meu mestre
respondeu logo de pronto: - Eu quero é por escrito para depois poder mostrar para minha
mulher!
Neste exato momento percebi estar me comprometendo a pensar no personagem do
cazumba e registrar através da escrita este gesto corporal, fruto de memória, de
movimentação, observação e experiência.
No entanto, essa participação é de alguém que não faz parte da comunidade e portanto
traz um olhar de fora, com uma passagem transitória, fazendo então uma leitura fragmentada
e envolvida por relações de afetividade que me mantêm com o coletivo escolhido.
O convite feito pela pesquisadora Michol Carvalho, para fazer parte de uma mesa
redonda intitulada Falando de Dança - no mês de agosto daquele mesmo ano, em
comemoração ao mês do Folclore e evento do Centro de Cultura Popular Domingos Vieira
Filho (CCPDVF), foi o motivo inspirador para dar início à escrita sobre esta primeira
experiência em ser cazumba, originando o texto Dança do cazumba.
No ano seguinte participei do 10° Congresso Brasileiro de Folclore, sediado em São
Luís, fazendo parte do grupo de pesquisa Danças e Festas Populares, com o trabalho Dando
nome ao boi: a dança do cazumba. Foi uma continuação da reflexão do primeiro artigo,
focando mais nos elementos corporais do que na situação de ser brincante de cazumba no Boi
da Floresta.
Um ano depois, a antropóloga Mundicarmo Ferretti, fez o convite para colocar o
mesmo artigo no jornal da Comissão Maranhense de Folclore. Nesse momento acrescentei
questões de alguns pesquisadores como Raul Lody (1999) e a psicanalista Elisabeth
Bittencourt (2000), criando interações da experiência vivida com questões teóricas que o
cazumba suscita, como o fato de sua estranheza ser uma potência no seu estilo de brincar e a
questão da origem da palavra cazumba, além das suas funções dentro da brincadeira do boi.
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Desde 2001 venho experimentando ser cazumba, refletindo e escrevendo de forma
livre, sem estar articulada a nenhuma instituição de pesquisa acadêmica e depois de muito
“cazumbar”, ou seja, estar presente na movimentação da roda do boi e sua performance,
nestes nove anos de vivência, o propósito é formular questões sobre como a movimentação
dos cazumbas sugerem códigos do que eles representam dentro da manifestação do bumba-
boi, a partir de dois eixos básicos, firmados no olhar do mestre cazumba Abel Teixeira e
outros que fazem parte desta trajetória de encontros, aos quais vou me referir mais à frente.
A necessidade de dar continuidade à pesquisa e fundamentar teoricamente estas
inquietações tornou-se uma possibilidade para ampliação do trabalho teórico-prático, como
brincante e pesquisadora, fortalecendo no desenvolvimento de metodologias a respeito da
movimentação das danças brasileiras, fundamentando e fundindo técnicas do teatro e da
dança, alargando novas condições para o trabalho como atriz, dançarina e arte educadora,
através dessa corporalidade festiva presente nas manifestações brasileiras.
Esta pesquisa enfoca os cazumbas dos bois da Baixada Maranhense e neste sentido foi
feita a organização de todo o acervo registrado ao longo dos anos, com entrevistas em fitas
cassetes e filmagens, além da aquisição de cds, documentários, jornais e revistas, que se
transformaram em material para a pesquisa.
Os encontros com o professor Zeca Ligiéro nas festas com rodas de tambor de crioula,
cacuriá e boi, no Largo das Neves, em Santa Teresa no Rio de Janeiro, organizados pelo
grupo As Três Marias, foram momentos que propiciaram diálogos sobre a importância dos
estudos da performance indo ao encontro de minha vivência com a cultura popular. No ano de
2007 fui fazer como aluna especial a disciplina Estudos da Performance na UNIRIO, e em
julho do mesmo ano me inscrevi na prova do mestrado, sendo aprovada e começando a cursar
a pós-graduação na Escola de Teatro da UNIRIO, no segundo semestre de 2007.
Desde então, venho buscando não perder o caráter intuitivo, subjetivo, que a vivência
imprime na pesquisa, mas trazendo um distanciamento no olhar, para poder questionar
elementos da performance do cazumba no bumba-boi maranhense.
Neste momento compartilho com o leitor espectador cenas de uma história costurada
pelos olhares de cazumbas e inquietações de uma maranhense, que mora no Rio de Janeiro
dezesseis anos e trabalha com a cultura do Maranhão nesta cidade de São Sebastião, como
atriz, dançarina e agora pesquisadora, “procuradora de coisas”.
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Essa expressão “procuradora de coisas” foi invenção de mestre Abel quando eu fazia
muitas perguntas sobre a figura do cazumba e ele afirmava que ía falando aos poucos para eu
sempre querer saber um pouco mais. Como diz mestre Abel: -“Não precisa explicar muito se
não perde a noção da coisa!” Fico neste lugar de burilar “as coisas”, na intenção de encontrar
nuances, faces, olhares diversos e pontos de vista da performance do cazumba dentro da roda
do boi no Maranhão, criando uma rede de sentidos para a dinâmica da movimentação do
cazumba em relação aos personagens existentes no bumba-boi.
Mestre Abel é a pessoa responsável por ter me inserido como cazumba dentro do boi,
a partir da experiência na confecção da careta e escolha das cores e imagens da bata. Creio
que estas atitudes foram a autorização para entrar na brincadeira, assim como a permissão
para que uma mulher colocasse a careta, situação que havia acontecido antes, em 1995,
quando Dona Augusta, esposa do mestre cazumba Cândido Pinheiro, do Boi da Floresta,
brincou pela primeira vez como cazumba.
Na introdução pretendo dar “nome aos bois”, exemplificando as nomenclaturas
escolhidas.
No primeiro capítulo escrevo sobre os instrumentos, personagens e estilos de boi no
Maranhão, refletindo sobre o uso do termo “sotaque”, suas diversidades, assim como sobre o
ciclo festivo do boi.
No segundo capítulo, aproveito para aprofundar na história da Turma Junina de São
João Batista, o Boi da Floresta, de Apolônio Melônio, por mim escolhido para concentrar a
pesquisa. Faço também uma descrição e análise da minha vivência em pesquisa de campo, são
depoimentos e diálogos com outros cazumbas do Boi da Floresta e de turmas de boi da
Baixada Maranhense, destacando a cidade de Viana e o povoado de Santo Inácio, terra do
mestre Abel, no qual tivemos a alegria de visitar no ano de 2008 a festa de São Pedro, do dia
28 ao dia 29 de junho, como descrevo e analiso posteriormente.
Pude compartilhar o reencontro de Abel com o seu lugar de origem, participando dos
seus receios de retornar à terra natal e conhecendo seus parentes, parceiros e mestres da sua
memória. Essa experiência trouxe muitas clarezas nas suas crenças, relacionadas a sua careta,
sua indumentária e seu compromisso no ciclo festivo.
No terceiro capítulo trago questões relacionadas ao “corpo” deste personagem, suas
dinâmicas e formações dentro da roda do boi, criando uma nomenclatura para movimentos e
24
24
ações que o cazumba executa, através de um vocabulário do que se fala durante a brincadeira,
nomeando os gestos.
Quando comecei a brincar de cazumba ficava observando o jeito dos mais velhos
brincarem, porque não uma regra fechada de como brincar, mas eu percebo que existem
algumas bases de movimentação que se repetem, e tentava primeiro seguir os passos dos
mestres. No início, estar dentro da roda do boi como cazumba era muita informação, mas
como a máscara delimita o olhar, eu caminhava sempre para a frente e aos poucos fui
percebendo o meu jeito de mexer os quadris, a minha intensidade de caminhar e o meu
gingado com o toque do badalo.
Mestre Abel tem um papel fundamental ao me mostrar o caminho e também me
proporcionar muita liberdade para ir me posicionando com o meu jeito feminino de brincar.
Ao longo dos anos fui analisando não o gestual quanto as obrigações desse personagem,
tentando entender as dinâmicas e funções que faziam parte da realidade do cazumba.
Para tentar responder a estas indagações é necessário escrever o processo de ser
cazumba, participando do ciclo festivo do Boi da Floresta, percebendo os compromissos
dentro do ritual e usufruindo do aprendizado com a sabedoria do Mestre Apolônio Melônio,
que no ano de 2008 completou 90 anos de vida, e o encontro com mestre Abel que também
comemorou, ano passado, os 50 anos de cazumba.
A pesquisa de campo específica para o mestrado aconteceu nos meses de junho, julho
e dezembro de 2008, além de janeiro e abril de 2009, em São Luís, com o Boi da Floresta, e
na Baixada, nas cidades de Viana e Matinha, fazendo um registro fotográfico e com
filmagens.
No quarto capítulo, escrevo e contextualizo esse corpo de mistérios e dubiedades do
cazumba, articulando com alguns conceitos como liminaridade e communitas de Victor
Turner, oriundos do entendimento sobre ritos de passagem de Arnold Van Gennep,
entrelaçando este conceito com a questão sobre comportamento restaurado de Richard
Schechner.
Esse corpo do cazumba trouxe inquietações para pensar como acontece a
movimentação desses brincantes dentro da roda do boi, seus gestos de comunicação, sua
liberdade, e principalmente estabelecer elos da relação que este personagem imprime dentro
da encenação que é a roda do boi no Maranhão, registrando que a performance do cazumba
25
25
acontece por ser apropriada de interação com o outro, está o tempo todo dialogando, em ação,
seja com o espectador, com outros personagens da brincadeira ou com outros cazumbas.
A pesquisa se realiza nas cidades de São Luís com os cazumbas Abel Teixeira,
Cândido Pinheiro e Bigu Melônio; os jovens Charles Mendes e Cassiano Ferreira; as
mulheres cazumbas Lucimara Correa e Flávia Moura do Boi da Floresta; Laís Silva do Boi de
Santa Fé, assim como Honório Serra, Fabriciano Campos, Mauro e Nico de turmas da
cidade de Viana, Baixada Maranhense, com outras turmas de boi encontradas durante a
pesquisa de campo realizada em junho e julho de 2008 acompanhada do mestre guia Abel,
com suas determinações e surpresas.
As páginas que o leitor vai abordar têm por objetivo propor uma reflexão e análise
para a construção de uma corporalidade, através da figura do cazumba e dos depoimentos
desses brincantes. A pesquisa vai criando “corpo próprio”, interagindo com a minha
experiência em ser um cazumba, participando do cotidiano e das “histórias de vida”, se
divertindo com as pilhérias, molecagens e compromissos do cazumba, dissecando as partes do
corpo e esmiuçando “o passo”.
Neste momento se faz necessário desnudar e permitir revelar uma experiência prática,
através do olhar e registro na escrita. Para isso peço licença aos meus mestres guias, Apolônio
e Abel, no sentido da possibilidade em exercer um papel de atuante dentro do grupo Boi da
Floresta, apontando reflexões do ato da brincadeira, e em aprofundar meu olhar, sob a
perspectiva de a roda do boi poder representar ações e comportamentos da cultura popular
brasileira, a partir dos mecanismos cômicos e misteriosos do personagem cazumba.
2 INTRODUÇÃO - “DANDO NOMES AOS BOIS”: DEFINIÇÕES E USO DE
PALAVRAS
O Estado do Maranhão é fonte de muitas festividades ao longo do ano, essas
manifestações são vinculadas principalmente aos Santos católicos e outras entidades
religiosas, como os orixás, caboclos e voduns
1
. O boi é para São João, o tambor de crioula é
1
Denominação genérica das entidades jejes, vindos do reino de Daomé, atual República do Benim no continente Africano.
Para mais detalhes, pesquisar o livro de Mundicarmo Ferretti Desceu na Guma, que revela a presença de entidades espirituais
caboclas no Tambor de Mina, denominação religiosa afro-brasileira típica do Maranhão. Guma é o lugar onde os voduns e
26
26
de São Benedito, as Festas do Divino e o cacuriá são para o Divino Espírito Santo, além de
muitas outras celebrações e santos homenageados. De modo que tem festa o ano inteiro e
“todo ano tem”! Milhares de pessoas são envolvidas nessas manifestações, nesse
compromisso de realizar e “levar adiante a brincadeira”.
Essas festas e danças populares como bumba-meu-boi, tambor de crioula, cacuriá,
dança do lelê, dança do lili, coco, caroço, baião cruzado e outras são chamadas “brincadeiras”
e seus integrantes, “brincantes”. A mesma palavra é usada para festas e integrantes das
religiões afro-ameríndias, como tambor de mina
2
, pajelança ou terecô
3
, que acontecem
simultaneamente com as festas católicas ou em ocasiões especiais.
O termo “brincadeira” também pode ser chamado brinquedo, folguedo, é a
manifestação, o ato da cultura popular brasileira, onde circulam variadas linguagens como
música, canto, dança, ritmo, jogo, teatro, além de uma plasticidade marcada no colorido e
brilho das indumentárias. Faz parte de um contexto social e religioso específico, onde cada
“brincante” tem o seu compromisso e função dentro da “brincadeira”.
No nosso caso, “brincadeira” é o momento em si da manifestação, acompanhada de
toda representação do ciclo festivo de vida e morte do boi, é o ato da apresentação, assim
como denomina a existência do grupo, é a irmandade que reúne os brincantes.
Os brincantes são aqueles que brincam, se divertem, são aqueles que tem o
compromisso de “segurar e sustentar” a brincadeira ano a ano, são os integrantes dessa
irmandade coletiva. Dentro da brincadeira representam os personagens, as figuras do boi.
Alguns brincantes dominam na percussão rítmica, segurando o batuque durante toda a
movimentação da roda do boi, outros criam e se inspiram nas letras cantadas, as toadas e loas,
e existem aqueles com o dom da dança e da movimentação, que sustentam todo o movimento
da brincadeira. Como diz Apolônio:
Os brincantes natos mesmo, que gostam de brincar é matéria prima, tem
poucos, muitos brincam por influência, a indumentária é bonita, é boa, brilha,
e na época de São João pede para brincar, se inclui e quando para São João
ele falha, os que não são abnegados da brincadeira começam a falhar.
4
divindades africanas são recebidos em transe mediúnico e onde entidades espirituais caboclas (não africanas) passaram
também a ser incorporadas. (2000).
2
“Tambor de Mina é uma forma de culto praticada por meio da dança e de outras atividades e onde o transe místico ou a
possessão é uma atitude de interação entre pessoas e divindades, num grupo religioso.” (FERRETTI, 1995:115).
3
Segundo Domingos Vieira Filho, Terecô corresponde ao candomblé; tambor de mina, especialmente na cidade de Codó,
interior do Maranhão. (1979:93).
4
Conversa na casa de Apolônio Melônio, registrada em fita cassete, no mês de junho de 2002.
27
27
Ele percebe os talentos e vai distribuindo assim os papéis, de acordo com o dom e a
vontade de cada um, é um acordo, como um pedido de licença para entrar na brincadeira, sem
uma regra fixa, e com cada brincante acontece de uma maneira.
O termo brinquedo é mais utilizado nas manifestações de Pernambuco e outros
estados; no Maranhão o termo usado mesmo é brincadeira, dignificando a necessidade do
jogo, da alegria e do prazer na manifestação, trazendo uma conotação a princípio sem
compromisso, mas que no fundo é determinada por regras sérias.
A palavra folguedo vem de folgança, o momento da “folga” o tempo do ócio, o ato de
se entregar ao divertimento, assim como a palavra folguedo designa as danças brasileiras no
geral, a manifestação em si, o tempo fora do trabalho ordinário, tempo extracotidiano, que se
presentifica nas festas. Também pode-se afirmar que o folguedo é uma categoria situada por
Mário de Andrade como danças dramáticas. (ANDRADE, 1982).
Como diz Nadir Cruz
5
“é preciso se apegar a São João”, então os brincantes são
envolvidos na brincadeira a partir de uma “devoção”, uma relação com o “sagrado”, uma
missão colocada para a sua própria vida.
O termo performance designa este ato da brincadeira, comparando a uma rede de
códigos presentes, desde a movimentação em si a toda organização do “folguedo” para o seu
funcionamento, a partir dos “rituais” de batismo e morte ou ações do cotidiano até a
apresentação em si. E o performer é como o brincante, aquele que atua, executando uma ação
e estabelecendo uma função própria dentro da brincadeira performática.
Uma definição de performance poderia ser: comportamento ritualizado
condicionado/permeado pelo jogo. O ritual tem seriedade, ele é o martelo da
autoridade. O jogo é uma faca de dois gumes, amguo, se move em diferentes
direções simultaneamente. (SCHECHNER, 2002:79).
A performance pode compreender toda e qualquer ação, seja ela do cotidiano, artística
ou ritualística, aliás os nossos movimentos diários podem ser vistos como rituais, depende da
forma como enxergamos nossos atos. Assim como as brincadeiras brasileiras movidas por
uma ação de e principalmente de muita diversão, expressa através da dança, música, teatro,
plasticidade de suas indumentárias e formação coreográfica. A partir do momento em que
essas manifestações são pensadas para uma apresentação, as fronteiras do ritual e do jogo se
5
Companheira do mestre Apolônio Melõnio do Boi da Floresta, com duas filhas Talyene e Julyene, ambas integrantes do
boi, vestidas de índias e participantes da organização e dos trabalhos com bordados do grupo. Nadir, além de ser a líder das
índias, participa de toda a coordenação do grupo junto com Apolônio.
28
28
diluem, e o comportamento, como avalia Schechner, se restaura, através da repetição, na
passagem do movimento do ritual para a brincadeira, do religioso para o profano.
Nessa escrita faço a opção de utilizar a nomenclatura do performer como brincante e a
performance como brincadeira, expressando o sentido dessa manifestação, desde o seu
cotidiano aos momentos do ciclo festivo e as apresentações nos arraiais.
É interessante notar como a figura do brincante, o performer individual, é fundamental
para o todo e que este aprendizado vai se construindo no cotidiano, através do interesse de
cada brincante, que se transforma em potencial para as mudanças das gerações futuras,
baseadas no aprendizado do momento presente.
É um repasse criado por uma via dupla, onde a performance se reinventa a partir do
jeito de se apresentar e viver a brincadeira.
3 ABRINDO A RODA DO BOI: A ENTRADA NA PESQUISA
3.1 ESTILOS E FIGURAS DO BUMBA-MEU-BOI NO MARANHÃO
Para iniciar esta escrita faço questão de lembrar palavras do mestre Apolônio Melônio
em uma conversa na sala de sua casa, no bairro da Floresta, em São Ls do Maranhão:
Vejo as transformações naturalmente, sabe? É a evolução do tempo. As coisas
evoluem, como a tecnologia que chega, destrói e constrói alguma coisa que a
gente não quer que desapareça e desaparece para vir outra melhor, nem que
não seja (melhor) mas, quem faz pensa que está fazendo o melhor.
6
É através da experiência de um mestre que a tradição vai sendo repassada, re-ensinada
e se transformando naturalmente ao longo do tempo. Os seus saberes e fazeres vão sendo
deslocados de acordo com cada momento histórico e sua integração a outros símbolos
provoca novas perspectivas na maneira de olhar a brincadeira e seus interesses múltiplos, seja
por parte de quem está dentro da manifestação, seja por quem está fora, atuando como
pesquisador, mediador
7
ou público daquela experiência vivida.
6
Transcrição de filmagem realizada por Juliana Manhães, na casa de Apolônio Melônio, com a presença de Nadir Cruz,
companheira do mestre, durante os festejos juninos de 2002.
7
Indivíduo que exerce papel intermediário, fazendo uma ponte entre o brincante e os órgãos do Governo ou da academia.
Pessoa que realiza a pesquisa ou vivencia a manifestação e repassa o conhecimento, que facilita e ajuda nos novos
mecanismos de produção, no atual mercado cultural.
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29
Esses símbolos aparecem no cuidado, riqueza e escolha dos bordados das
indumentárias, que expressam imagens de santos católicos ou momentos blicos, como São
Jorge, São Pedro, São Benedito, a passagem de quando São João batizou Cristo, ou a pomba
do Divino Espírito Santo, engrandecendo a forte religiosidade existente na brincadeira
expressa nos bordados com canutilhos e miçangas.
Nessas imagens se percebe a interação com o cotidiano, como, por exemplo, alguns
bordados que trazem a bandeira do Brasil, a fotografia do Bob Marley, que São Luís é
considerada a Jamaica Brasileira, ou a imagem de algum poeta, fortalecendo o título de
Atenas Brasileira, algum artista e esportista maranhense ou brasileiro que se queira
homenagear, assim como algum monumento da cidade como o Convento das Mercês ou a
Fonte do Ribeirão, pontos históricos e turísticos de São Luís. É uma forma de diálogo da
brincadeira com a comunidade, com o mundo externo e a sua manifestação, através da
confecção e manutenção de novos bordados (Figura 1).
Figura 1: Bordado do Boi Paz do Brasil, junho 2008. Foto: Juliana Manhães.
Esses símbolos também aparecem na maneira do boi se apresentar, sua performance se
transforma quando se percebe a importância do público, que está fora da roda e do cordão
8
, e
que precisa ver a dança e a evolução da brincadeira. Esses são alguns exemplos das
adaptações realizadas, que são fundamentais para que a performance continue atual e orgânica
para os brincantes, diante das necessidades que vão surgindo ao longo do tempo.
8
Representações de como os brincantes se organizam na performance da dança, ora em roda, ora em cordão, duas fileiras
com os personagens das índias, caciques e baiantes, e no meio a figura do boi, cazumba, burrinha e vaqueiro. Neste primeiro
capítulo detalharei cada personagem.
30
30
Existem centenas de manifestações populares no Maranhão, o bumba-meu-boi
surpreende não somente pela quantidade, mas também pela diversidade existente por todo o
estado. É impressionante perceber que todo povoado maranhense tem um boizinho, de
apresentação ou de promessa. E como os grupos de boi, são a ligação dos convívios sociais
entre os brincantes. É uma festa religiosa, misturando a alegria de danças, batuques e
cantorias com o culto a alguns santos católicos, firmando um calendário festivo, mobilizando
milhares de pessoas ao longo do ano.
3.2 QUESTÕES ECONÔMICAS QUE PERMEIAM A BRINCADEIRA DO BOI,
PRODUZINDO UMA POLÍTICA CULTURAL NO MARANHÃO
O Boi no Maranhão até a década de 60 era proibido e rejeitado pela elite maranhense,
depois passou por uma fase de aceitação, em que alguns grupos se apresentavam nas casas de
autoridades do poder local, assim como em congressos e feiras.
A cultura popular do bumba-meu-boi no Maranhão é tão forte que foi expandindo,
sem “pedir licença” e irrompendo no cenário social do estado, com o apoio das comunidades
populares de sua origem e depois com a participação de pessoas muito influentes na política
maranhense. Como diz Apolônio Melônio: “Antes não ganhava nada, brincava nas casas de
família para pagar promessa e não para elite. Depois, as apresentações começaram a dar uma
pequena ajuda, a partir de Dona Zelinda
9
começou a pagar também transporte e um cachê.”
A partir da década de 60, as manifestações populares e principalmente o boi
começaram a ser valorizados pelo poder público, influenciando um calendário turístico, a
partir dessas festividades religiosas, profanas e a criação de órgãos públicos.
10
No início de
1966, José Sarney foi eleito Governador do Maranhão e criava ligações com a cultura,
fundando órgãos que pudessem valorizar e concretizar um apoio e fomento a estas
9
Dona Zelinda Machado de Castro Lima é uma mulher fundamental para a repercussão da cultura popular no Maranhão,
trabalhou em diversos órgãos do Governo de 1960-1980 e tornou-se conhecida pelo seu cuidado particular com mestres e
artistas da cultura
local. Na tese de Albernaz está descrito que ela ocupou os seguintes
cargos em órgãos governamentais de
turismo: diretora do Departamento Municipal de Turismo e Promoções Culturais;
diretora do Departamento Estadual de
Turismo (1966); secretária executiva do Fundo de Incentivo ao Turismo e Artesanato (FURINTUR). Foi Diretora de
Promoções e Eventos, e depois Presidente da MARATUR. (2004:231).
10
Dos anos 1950, até a década de 1990, as políticas culturais foram desenvolvidas por três órgãos executivos: o
Departamento de Cultura; a Fundação Cultural do Maranhão (FUNC) e a Secretaria de Estado da Cultura (SECMA). Em
1999, foi criada uma nova Fundação Cultural do Maranhão (FUNCMA). Estes são os órgãos executivos que estão nas
posições hierárquicas mais elevadas na burocracia do estado, a partir dos quais são subordinados os demais órgãos da cultura.
(ALBERNAZ, 2004:186).
31
31
manifestações. Sua imagem transitava livremente entre duas posições polarizadas: defensor
das elites e amigo dos pobres.
A
figura de Sarney é ligado à produção literária e considerado um
defensor da cultura popular. Entre seus assessores, um dos principais, está
Bandeira Tribuzi, que também é poeta de renome no Maranhão, além de ser
filho de um artista plástico. Outro importante colaborador no seu mandato foi
Domingos Vieira Filho, intelectual que integrou o Movimento Folclórico
Nacional, reconhecido localmente pela defesa, pesquisa e delimitação dos
estudos sobre folclore no Maranhão. Josué Montello também figura entre seus
correligionários. No campo da política cultural, Sarney, diretamente ou a
partir dos seus sucessores que chegaram ao poder com o seu apoio, iniciou a
fundação dos primeiros museus públicos do Estado do Maranhão. Museus que
são espaços fundamentais para reverenciar identidade. Dessa forma, Sarney
cumpriria a proposta de renascimento do Maranhão a partir das letras,
conforme o projeto dos atenienses de 1950, a geração modernista da cultura
local que ele integrou. (
ALBERNAZ, 2004:
69).
Em 1982 a Secretaria de Estado de Cultura do Maranhão (SECMA) inaugurou o
Museu do Folclore e Arte Popular, atual Centro de Cultura Popular Domingos Vieira Filho
(CCPDVF), numa homenagem ao folclorista Vieira Filho, idealizador e organizador desse
espaço. Esse foi um marco para a valorização da cultura no Maranhão, como busca de uma
identidade.
Esse centro foi reinaugurado em 1998, com direção de Michol Carvalho, quando a
Comissão Maranhense de Folclore (CMF), começou a produzir e publicar um boletim,
espécie de jornal impresso, evidenciando o bumba-meu-boi como uma das manifestações
mais pesquisadas.
Antes da década de 60, o boi se apresentava em troca de material para as
indumentárias, como veludo, miçanga, canutilho e penas de ema, assim como comida, bebida
e transporte parasustentar” a brincadeira. A partir da década de 90 o Estado passou a
remunerar as turmas de bumba-meu-boi, dividindo-os por grupos de “excelência”, com classe
A, B, C e D, tendo cachês diferenciados, sendo divididos por ordem de grandeza, seja na
relação com a quantidade de brincantes ou mesmo valorizando os mais antigos e tradicionais,
que recebiam pagamentos maiores por seu trabalho.
Nadir Cruz, companheira de Apolônio, diz que a partir do primeiro mandato de
Roseana Sarney, em 1995, o Estado começou a pagar por ano, 10 brincadeiras juninas, o que
significa na classe A, o valor de R$ 26.000,00, pagos 50% no início de junho, antes dos
festejos juninos, e os outros 50% em julho.
32
32
O grupo precisa ter um bom administrador, porque esse dinheiro, no caso do Boi da
Floresta, vai arcar com as despesas do transporte, dois ônibus e uma kombi para cada dia de
apresentação, o jantar de cada dia de brincadeira, a bebida, a manutenção e confecção das
indumentárias, inclusive o bordado do couro do boi.
Não um pagamento para os brincantes, o grupo Boi da Floresta fica com o
compromisso de ressarcir a passagem dos brincantes que moram distante, e os que moram na
comunidade próxima da Floresta recebem apoio no cotidiano, ora com um bujão de gás, um
quilo de arroz, de acordo com a necessidade de cada família e as possibilidades do Boi da
Floresta. Este entendimento varia de acordo com a organização de cada coletivo. São práticas
produzidas pelas redes de solidariedade e amizade existentes nos grupos populares.
Além desse valor fixo dos festejos juninos, as festividades do carnaval, em que o
Governo compra no máximo três apresentações de tambor de crioula,
11
e o projeto Vale
Festejar
12
, chegando a fazer o pagamento de 2 a 4 apresentações, realizadas no Convento das
Mercês, no mês de julho, com iniciativa de Roseana Sarney, que aproveita a realização do
evento para fortalecer seus elos não com a política maranhense, mas também com os
grupos e mestres da cultura popular do Maranhão, como forma de gratidão e também de
manipulação.
Percebo na trajetória do bumba-meu-boi um movimento da tradição à
espetacularização, relacionada com questões econômicas, identificada através do termo
turismo cultural. Esse movimento da produção do turismo é apresentado como “bens”, através
de diversos eventos e inclusive os atuais arraiais produzidos no período junino.
O poder público se interessou pelas suas manifestações como estratégia de
fortalecimento, percebendo uma forma de potencializar sua cultura, absorvendo respeito e
prestígio de uma grande quantidade da população, revigorando ainda mais o poder dos
governantes sobre os indivíduos. A imagem do estado se constrói na exaltação da diversidade
e riqueza das manifestações populares, como forte atrativo para divulgação do estado.
11
É uma forma ritual de divertimento, de pagamento de promessa, é uma forma ritual de comunicação de pessoas entre si e
com o sobrenatural e, ao mesmo tempo, é uma forma ritual de reafirmação de valores dos negros no Maranhão. (FERRETTI,
1995:24). É uma dança de roda feita por mulheres (coureiras) e no batuque e coro ficam os homens (coureiros), onde o
elemento mais expressivo da dança é a umbigada, momento onde os umbigos, a região do ventre das mulheres se encostam,
de acordo com o tempo da batucada dos tambores.
12
O evento Vale Festejar é um grande arraial, que acontece no Convento das Mercês, patrocinado pela empresa mineradora
Vale do Rio Doce e realizado pela família Sarney. Este arraial ocorre durante todo o mês de julho, apresentando a diversidade
de manifestações populares do Maranhão, oferecendo uma oportunidade aos turistas, que não conseguem chegar para o ciclo
festivo junino, conhecerem um pouco das brincadeiras juninas maranhenses.
33
33
No momento seguinte foi necessário criar uma estrutura de organização e
classificação, não somente com todos os estilos de boi, mas também de todas as outras
brincadeiras. Foi criado um nome jurídico para as manifestações, através de um
cadastramento, e esses grupos se transformaram em associações, porém não tiveram uma
orientação sobre o que significava e acarretava de custos e impostos, então muitos grupos
foram criando várias dívidas sem ter consciência. A questão importante a ser salientada é
como o Estado se aproveitou da “inocência” dos grupos populares nessas questões
burocráticas para se beneficiar, sem ter o menor cuidado com a gestão e autonomia que cada
grupo precisaria ter para sustentar não somente uma brincadeira, mas a partir de então, uma
empresa.
A partir de 1995 os grupos passaram a receber um valor fixo por ano, como acontece
até os dias atuais. O governo criou uma dependência, um paternalismo com os grupos, estes
não percebendo seus potenciais e acreditando no “agrado” como valor fundamental para suas
sobrevivências. Essa nova situação ajudou na espetacularização dessas manifestações, que
com dinheiro começaram a ficar mais luxuosos e brilhosos, na intenção de acompanhar as
novas necessidades e tendências que o turismo foi apresentando.
O que pudemos perceber no último governo de Jackson Lago, com Joãozinho Ribeiro
como secretário de cultura, foi a tentativa dos grupos e artistas perceberem a necessidade de
uma autonomia e independência dos órgãos governamentais. Junto com este movimento,
várias empresas privadas começaram a ter interesse em apoiar essas manifestações, assim se
autopromovendo também.
É inacreditável pensar na sobrevivência de uma brincadeira tão custosa como é o
bumba-meu-boi. Como que, a partir dos pagamentos das apresentações, cada grupo se
organiza e administra suas necessidades. Nos tempos atuais há outros recursos como o
patrocínio de algumas empresas como Tim e Oi de celulares ou Banco do Nordeste e Banco
da Amazônia.
O governo criou esta dependência e agora se percebe que não consegue mais sustentar
a continuidade deste apoio, até porque, a partir dessa valorização, muitos grupos foram
criados como forma de obter algum lucro. Atualmente existem 215 grupos de boi cadastrados,
conforme informações da secretaria de cultura do estado.
13
13
Atualmente existem 215 grupos, de todos os sotaques de boi, cadastrados e juntando com as brincadeiras do cacuriá,
tambor de crioula, dança portuguesa, dança do lelê, dança do coco, esse número aumenta para 480 grupos cadastrados na
34
34
São poucos os grupos de boi que circulam em festivais pelo Brasil, percebendo a
possibilidade de estabelecer um movimento econômico de sobrevivência dentro do grupo,
independentemente das festividades juninas no estado.
No ano de 2007 foi feito o pedido de registro do complexo cultural do bumba-meu-boi
do Maranhão e assinado um protocolo de intenções, visando o registro como Patrimônio
Imaterial da Humanidade, fazendo parte do livro Formas de Expressão do Patrimônio Cultural
Imaterial Brasileiro, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).
Esse processo ainda está em andamento, mas já mostra a força dessa manifestação no Brasil e
a valorização dessas brincadeiras nos organismos públicos ligados à cultura, como forma de
reconhecimento de identidade nacional.
3.3 BREVE RELATO SOBRE A HISTÓRIA DA MANIFESTAÇÃO DO BOI NO
MARANHÃO
O Boi no Maranhão até a década de 60 era proibido e rejeitado pela elite maranhense,
depois passou por uma fase de aceitação, em que alguns grupos se apresentavam nas casas de
autoridades do poder local, assim como em congressos e feiras.
A cultura popular do bumba-meu-boi no Maranhão é tão forte que foi expandindo,
sem “pedir licença” e irrompendo no cenário social do estado, com o apoio das comunidades
populares de sua origem e depois com a participação de pessoas muito influentes na política
maranhense. Como diz Apolônio Melônio: “Antes não ganhava nada, brincava nas casas de
família para pagar promessa e não para elite. Depois, as apresentações começaram a dar uma
pequena ajuda, a partir de Dona Zelinda
14
começou a pagar também transporte e um cachê.”
A partir da década de 60, as manifestações populares e principalmente o boi
começaram a ser valorizados pelo poder público, influenciando um calendário turístico, a
Secretaria de Cultura do Maranhão. E independente dos grupos cadastrados existem muito mais pelos interiores do Maranhão
que não são cadastrados nem filiados a nenhum órgão do Governo. São bois menores que existem nas comunidades e fazem
sua brincadeira também no período do ciclo festivo junino.
14
Dona Zelinda Machado de Castro Lima é uma mulher fundamental para a repercussão da cultura popular no Maranhão,
trabalhou em diversos órgãos do Governo de 1960-1980 e tornou-se conhecida pelo seu cuidado particular com mestres e
artistas da cultura
local. Na tese de Albernaz está descrito que ela ocupou os seguintes
cargos em órgãos governamentais de
turismo: diretora do Departamento Municipal de Turismo e Promoções Culturais;
diretora do Departamento Estadual de
Turismo (1966); secretária executiva do Fundo de Incentivo ao Turismo e Artesanato (FURINTUR). Foi Diretora de
Promoções e Eventos, e depois Presidente da MARATUR. (2004:231).
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partir dessas festividades religiosas, profanas e a criação de órgãos públicos.
15
No início de
1966, José Sarney foi eleito Governador do Maranhão e criava ligações com a cultura,
fundando órgãos que pudessem valorizar e concretizar um apoio e fomento a estas
manifestações. Sua imagem transitava livremente entre duas posições polarizadas: defensor
das elites e amigo dos pobres.
A
figura de Sarney é ligado à produção literária e considerado um
defensor da cultura popular. Entre seus assessores, um dos principais, está
Bandeira Tribuzi, que também é poeta de renome no Maranhão, além de ser
filho de um artista plástico. Outro importante colaborador no seu mandato foi
Domingos Vieira Filho, intelectual que integrou o Movimento Folclórico
Nacional, reconhecido localmente pela defesa, pesquisa e delimitação dos
estudos sobre folclore no Maranhão. Josué Montello também figura entre seus
correligionários. No campo da política cultural, Sarney, diretamente ou a
partir dos seus sucessores que chegaram ao poder com o seu apoio, iniciou a
fundação dos primeiros museus públicos do Estado do Maranhão. Museus que
são espaços fundamentais para reverenciar identidade. Dessa forma, Sarney
cumpriria a proposta de renascimento do Maranhão a partir das letras,
conforme o projeto dos atenienses de 1950, a geração modernista da cultura
local que ele integrou. (
ALBERNAZ, 2004:
69).
Em 1982 a Secretaria de Estado de Cultura do Maranhão (SECMA) inaugurou o
Museu do Folclore e Arte Popular, atual Centro de Cultura Popular Domingos Vieira Filho
(CCPDVF), numa homenagem ao folclorista Vieira Filho, idealizador e organizador desse
espaço. Esse foi um marco para a valorização da cultura no Maranhão, como busca de uma
identidade.
Esse centro foi reinaugurado em 1998, com direção de Michol Carvalho, quando a
Comissão Maranhense de Folclore (CMF), começou a produzir e publicar um boletim,
espécie de jornal impresso, evidenciando o bumba-meu-boi como uma das manifestações
mais pesquisadas.
Antes da década de 60, o boi se apresentava em troca de material para as
indumentárias, como veludo, miçanga, canutilho e penas de ema, assim como comida, bebida
e transporte parasustentar” a brincadeira. A partir da década de 90 o Estado passou a
remunerar as turmas de bumba-meu-boi, dividindo-os por grupos de “excelência”, com classe
15
Dos anos 1950, até a década de 1990, as políticas culturais foram desenvolvidas por três órgãos executivos: o
Departamento de Cultura; a Fundação Cultural do Maranhão (FUNC) e a Secretaria de Estado da Cultura (SECMA). Em
1999, foi criada uma nova Fundação Cultural do Maranhão (FUNCMA). Estes são os órgãos executivos que estão nas
posições hierárquicas mais elevadas na burocracia do estado, a partir dos quais são subordinados os demais órgãos da cultura.
(ALBERNAZ, 2004:186).
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A, B, C e D, tendo cachês diferenciados, sendo divididos por ordem de grandeza, seja na
relação com a quantidade de brincantes ou mesmo valorizando os mais antigos e tradicionais,
que recebiam pagamentos maiores por seu trabalho.
Nadir Cruz, companheira de Apolônio, diz que a partir do primeiro mandato de
Roseana Sarney, em 1995, o Estado começou a pagar por ano, 10 brincadeiras juninas, o que
significa na classe A, o valor de R$ 26.000,00, pagos 50% no início de junho, antes dos
festejos juninos, e os outros 50% em julho.
O grupo precisa ter um bom administrador, porque esse dinheiro, no caso do Boi da
Floresta, vai arcar com as despesas do transporte, dois ônibus e uma kombi para cada dia de
apresentação, o jantar de cada dia de brincadeira, a bebida, a manutenção e confecção das
indumentárias, inclusive o bordado do couro do boi.
Não um pagamento para os brincantes, o grupo Boi da Floresta fica com o
compromisso de ressarcir a passagem dos brincantes que moram distante, e os que moram na
comunidade próxima da Floresta recebem apoio no cotidiano, ora com um bujão de gás, um
quilo de arroz, de acordo com a necessidade de cada família e as possibilidades do Boi da
Floresta. Este entendimento varia de acordo com a organização de cada coletivo. São práticas
produzidas pelas redes de solidariedade e amizade existentes nos grupos populares.
Além desse valor fixo dos festejos juninos, as festividades do carnaval, em que o
Governo compra no máximo três apresentações de tambor de crioula,
16
e o projeto Vale
Festejar
17
, chegando a fazer o pagamento de 2 a 4 apresentações, realizadas no Convento das
Mercês, no mês de julho, com iniciativa de Roseana Sarney, que aproveita a realização do
evento para fortalecer seus elos não com a política maranhense, mas também com os
grupos e mestres da cultura popular do Maranhão, como forma de gratidão e também de
manipulação.
Percebo na trajetória do bumba-meu-boi um movimento da tradição à
espetacularização, relacionada com questões econômicas, identificada através do termo
16
É uma forma ritual de divertimento, de pagamento de promessa, é uma forma ritual de comunicação de pessoas entre si e
com o sobrenatural e, ao mesmo tempo, é uma forma ritual de reafirmação de valores dos negros no Maranhão. (FERRETTI,
1995:24). É uma dança de roda feita por mulheres (coureiras) e no batuque e coro ficam os homens (coureiros), onde o
elemento mais expressivo da dança é a umbigada, momento onde os umbigos, a região do ventre das mulheres se encostam,
de acordo com o tempo da batucada dos tambores.
17
O evento Vale Festejar é um grande arraial, que acontece no Convento das Mercês, patrocinado pela empresa mineradora
Vale do Rio Doce e realizado pela família Sarney. Este arraial ocorre durante todo o mês de julho, apresentando a
diversidade de manifestações populares do Maranhão, oferecendo uma oportunidade aos turistas, que não conseguem chegar
para o ciclo festivo junino, conhecerem um pouco das brincadeiras juninas maranhenses.
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turismo cultural. Esse movimento da produção do turismo é apresentado como “bens”, através
de diversos eventos e inclusive os atuais arraiais produzidos no período junino.
O poder público se interessou pelas suas manifestações culturais como estratégia de
fortalecimento da cidadania no Maranhão, percebendo uma forma de potencializar sua
identidade, absorvendo respeito e prestígio de uma grande quantidade da população,
revigorando ainda mais o poder dos governantes sobre os indivíduos. A imagem do estado se
constrói na exaltação da diversidade e riqueza das manifestações populares, como forte
atrativo para divulgação do estado.
No momento seguinte foi necessário criar uma estrutura de organização e
classificação, não somente com todos os estilos de boi, mas também de todas as outras
brincadeiras. Foi criado um nome jurídico para as manifestações, através de um
cadastramento, e esses grupos se transformaram em associações, porém não tiveram uma
orientação sobre o que significava e acarretava de custos e impostos, então muitos grupos
foram criando várias dívidas sem ter consciência. A questão importante a ser salientada é
como o Estado se aproveitou da “inocência” dos grupos populares nessas questões
burocráticas para se beneficiar, sem ter o menor cuidado com a gestão e autonomia que cada
grupo precisaria ter para sustentar não somente uma brincadeira, mas a partir de então, uma
empresa.
A partir de 1995 os grupos passaram a receber um valor fixo por ano, como acontece
até os dias atuais. O governo criou uma dependência, um paternalismo com os grupos, estes
não percebendo seus potenciais e acreditando no “agrado” como valor fundamental para suas
sobrevivências. Essa nova situação ajudou na espetacularização dessas manifestações, que
com dinheiro começaram a ficar mais luxuosos e brilhosos, na intenção de acompanhar as
novas necessidades e tendências que o turismo foi apresentando.
O que pudemos perceber no último governo de Jackson Lago, com Joãozinho Ribeiro
como secretário de cultura, foi a tentativa dos grupos e artistas perceberem a necessidade de
uma autonomia e independência dos órgãos governamentais. Junto com este movimento,
várias empresas privadas começaram a ter interesse em apoiar essas manifestações, assim se
autopromovendo também.
É inacreditável pensar na sobrevivência de uma brincadeira tão custosa como é o
bumba-meu-boi. Como que, a partir dos pagamentos das apresentações, cada grupo se
organiza e administra suas necessidades. Nos tempos atuais há outros recursos como o
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38
patrocínio de algumas empresas como Tim e Oi de celulares ou Banco do Nordeste e Banco
da Amazônia.
O governo criou esta dependência e agora se percebe que não consegue mais sustentar
a continuidade deste apoio, até porque, a partir dessa valorização, muitos grupos foram
criados como forma de obter algum lucro. Atualmente existem 215 grupos de boi cadastrados,
conforme informações da secretaria de cultura do estado.
18
São poucos os grupos de boi que circulam em festivais pelo Brasil, percebendo a
possibilidade de estabelecer um movimento econômico de sobrevivência dentro do grupo,
independentemente das festividades juninas no estado.
No ano de 2007 foi feito o pedido de registro do complexo cultural do bumba-meu-boi
do Maranhão e assinado um protocolo de intenções, visando o registro como Patrimônio
Imaterial da Humanidade, fazendo parte do livro Formas de Expressão do Patrimônio Cultural
Imaterial Brasileiro, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).
Esse processo ainda está em andamento, mas mostra a força dessa manifestação no Brasil e
a valorização dessas brincadeiras nos organismos públicos ligados à cultura, como forma de
reconhecimento de identidade nacional.
3.3.1 Estilos de boi no Maranhão e o uso de suas nomenclaturas – do ritual do interior à
espetacularização na capital
O universo do boi no Maranhão é complexo por possuir variadas formações e estilos
de brincar, notáveis, sobretudo, a partir dos diferentes toques. A partir da década de 70 foram
identificados cinco ritmos diferentes da manifestação do boi, no qual se tornaram referência e
foram nomeados como sendo os seus “sotaques”. Essa absorção da palavra “sotaque” traz um
conjunto de signos indicativos, de posições estabelecidas entre os grupos de bois, provocando
uma hierarquização, sendo diferenciados através dos ritmos, instrumentos, personagens e suas
performances. Não uma precisão de informações e dados de quando foi exatamente que
começou a ser utilizada esta categoria chamada “sotaque” e por quem, porém conseguimos ter
18
Atualmente existem 215 grupos, de todos os sotaques de boi, cadastrados e juntando com as brincadeiras do cacuriá,
tambor de crioula, dança portuguesa, dança do lelê, dança do coco, esse número aumenta para 480 grupos cadastrados na
Secretaria de Cultura do Maranhão. E independente dos grupos cadastrados existem muito mais pelos interiores do Maranhão
que não são cadastrados nem filiados a nenhum órgão do Governo. São bois menores que existem nas comunidades e fazem
sua brincadeira também no período do ciclo festivo junino.
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algumas pistas que serão colocadas a seguir. Os brincantes e toda a sociedade maranhense
assimilaram esta palavra, mas parece que foi introduzida por estudiosos e mediadores. Essa
questão da origem da utilização da palavra “sotaque” ainda precisa ser registrada, mas foi
utilizada e fundamentada por alguns teóricos como: Michol Carvalho (1995), André Bueno
(2001) e Luciana Carvalho (2005).
Apesar das fontes não serem muito claras, quero reforçar que a palavra “sotaque”
vem
do linguajar, do idioma, da ngua
e se tornou de uso cotidiano tanto dos brincantes, quanto dos
intelectuais, naturalizou-se, sendo incorporada à fala de quem participa e pesquisa esta
manifestação do Boi no Maranhão.
Cada sotaque enquadra elementos que atuam como fontes de significação
simbólica nos processos de construção de identidades específicas por parte
dos diferentes grupos de boi. Nesse sentido, sugiro que, mais do que
diferentes estilos musicais, cênicos e rituais de brincar, os sotaques
correspondem sobretudo a perspectivas e lógicas distintas de atualização do
idioma boieiro, que é comum, de certa forma, a todos os bois
maranhenses.(CARVALHO, 2005:137).
O “sotaque” demarca questões territoriais e artísticas, mostrando uma diversidade de
modos de fazer a brincadeira. Seu uso aponta uma necessidade em estruturar e trazer um
entendimento, para quem não faz parte dessa realidade, a palavra vem para atualizar, mas
infelizmente este processo não se inicia pelos mestres e brincantes e sim pelos pesquisadores,
ou seja, vem de fora para dentro da comunidade. O antropólogo e professor Sergio Ferretti,
tem a impressão de que a palavra “sotaque” surge nos escritos do folclorista maranhense Domingos
Vieira Filho, nos anos 50.
A idéia da palavra sotaque era para criar uma estrutura, uma organização dos ritmos de
boi no Maranhão, mas aos poucos foi se desestruturando, porque foi sendo descoberto por
pesquisadores e viajantes que havia muitos outros ritmos e bois com características diversas,
desmistificando a existência de somente três sotaques (matraca, zabumba e orquestra), de tal
maneira que atualmente se nomeiam cinco (matraca, zabumba, orquestra, baixada e costa
de mão).
Segundo uma convenção estabelecida, os estilos de boi foram divididos em: sotaque
da ilha (de São Luís) ou matraca, sotaque de zabumba ou Guimarães, sotaque de costa de mão
ou Cururupu, sotaque de orquestra ou região do rio Munim e sotaque de Pindaré ou região da
baixada. É importante salientar que mesmo a palavra “sotaque” sendo aceita e utilizada, não
consegue abarcar toda a diversidade de estilos de boi que no Maranhão. Enquadrar todos
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40
os ritmos do boi promove também uma cristalização dos estilos e jeitos de fazer a
brincadeira.
Cada “sotaque” particulariza memórias das regiões do estado e no interior o sotaque é
identificado pelo nome do povoado, da cidade ou o “dono” do boi, aquele que comanda a
boiada. Cada estilo de boi representa uma forma particular na realização da performance, com
características próprias nas suas indumentárias, instrumentos, figuras, maneiras de evoluir na
roda da brincadeira, suas músicas ou toadas. Estes cinco sotaques são reconhecidos como
oficiais pelo Estado e tomados como verdadeiros pelos grupos, porém quando se aprofunda na
pesquisa pelo interior do Maranhão se descobre um universo muito mais amplo e complexo,
que não pode ser codificado, como reforça o pesquisador e diretor da Casa do Nhozinho,
Jandir Gonçalves, que conheceu muitas manifestações não reconhecidas pelo Estado, e diz o
quanto “é difícil fechar estes termos relacionados aos sotaques, porque há uma enorme
diversidade e liberdade de criação em cada povoado e comunidade”.
3.3.2 Os sotaques de bumba-meu-boi no Maranhão
Cada sotaque de boi tem características próprias, mesmo sabendo que essas formas de
fazer o brinquedo são múltiplas e variam de acordo com a realidade da comunidade boieira
19
,
sua situação financeira, sua localização geográfica e suas influências, que determinam um
jeito próprio de construção da identidade desse coletivo, exibido através dos bordados, o
domínio do batuque, da dança e a inspiração das toadas inventadas e improvisadas.
O sotaque da ilha ou matraca se localiza na capital do estado, são os chamados
“batalhões” por terem uma enorme quantidade de brincantes, chegando a somar milhares de
pessoas em um mesmo grupo, como o boi da Maioba ou Maracanã, bois antigos, de tradição e
exuberância, representando também nomes de grandes bairros da cidade de São Luís. Seus
personagens principais são os caboclos de pena, os caboclos de fita, além das índias, burrinha,
Pai Francisco, Catirina e o boi. Seus instrumentos são matracas, maracás, pandeirões grandes,
tambor-onça e o apito.
O sotaque de zabumba ou Guimarães fica na região da cidade de Guimarães, e esta
nomeação vem dos tambores bombos, chamados zabumbas. Normalmente tem três toques
diferentes e justapostos. “Tem traços do samba. Os pandeiritos e as zabumbas fazem a
19
Expressão para localizar a comunidade do boi.
41
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espinha dorsal do ritmo, cabendo aos tamborinhos e maracás preencherem os espaços vazios.”
(AZEVEDO, 1997: 34).
Suas figuras principais são os caboclos de fita, compostos por calça com saiote e golas
bordadas com miçangas e canutilhos, o chapéu é confeccionado com muitas fitas coloridas
que vão até o chão. As índias tapuias usam perucas e tangas de fibra, além das figuras como o
amo, o vaqueiro, a burrinha e o boi.
O sotaque de costa de mão ou de Cururupu representa a região da baixada ocidental
litorânea, tem esse nome porque utiliza pandeiros que são tocados com a costa ou dorso da
mão, além de maracás. Suas vestimentas apresentam chapéus de fitas coloridas, calças e
camisas com manga de veludo totalmente bordados, suas figuras são principalmente os
caboclos de fita e as índias, além do boi.
O sotaque de orquestra vem da região da cidade do Rosário e Axixá, lugar onde passa
o rio Munim. Os instrumentos de sopro e cordas como o saxofone, trompete, clarinete, flauta,
banjo, além dos instrumentos percussivos como os maracás, caixas e o tambor-onça formam a
orquestra do boi. Suas indumentárias são muito brilhosas e adornadas de enfeites, e as figuras
são as índias, os chapéus de fita, o amo e o boi. É o estilo de boi que mais cresce em todo o
estado, sendo que alguns não realizam ciclo festivo religioso, surgem para fazer
apresentações.
O sotaque da baixada maranhense, fica localizado em uma região a oeste e sudeste da
ilha de São Luís, formada por campos baixos que alagam na estação das chuvas, envolvendo
cerca de 15 municípios do estado, é berço do estilo de boi que tem a presença do brincante
mascarado cazumba.
A Baixada Maranhense (Figura 2) é uma região eminentemente afrodescendente, que
abrange várias terras de antigos quilombos, habitadas principalmente por lavradores,
pescadores, pessoas que trabalham com a extração, coleta e quebra do babaçu, além da feitura
de farinha d’água. Viana é a principal cidade da região e tem um papel fundamental na
formação de um estilo de brincar boi que caracteriza o sotaque da baixada (Figura 3).
42
42
Figura 2: Mapa do estado do Maranhão mostrando a região da Baixada. Fonte: Livro Careta
de Cazumba.
Figura 3: Paisagem dos alagados de Viana. Foto: Juliana Manhães.
O foco desta pesquisa é a figura do cazumba, presente somente nos bois desse sotaque,
o que justifica uma maior elaboração acerca das questões relacionadas com o sotaque da
baixada. Este estilo traz um “mode fazê” próprio, agregado a uma maneira de expressar
crenças e de reinventar, atualmente o cazumba se tornou um dos elementos mais importantes
desse sotaque, é o que o diferencia e o destaca.
Muitos brincantes da região da baixada migraram do interior para a capital e
trouxeram para São Luís as características desse estilo de boi, porém muitas transformações
foram ocorrendo ao longo dos tempos, tanto no interior quanto na cidade grande,
evidenciando uma diversidade na sua composição musical, nas figuras dos brincantes, nos
materiais de suas indumentárias, nas caretas dos cazumbas, na maneira de evoluir na roda e no
seu ciclo festivo.
É interessante observar como os bois de sotaque da baixada, residentes na capital, têm
características específicas e trazem uma unidade, uma homogeneidade, que não percebemos
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43
nos bois do interior, onde cada turma de boi tem elementos peculiares, como explicarei mais
adiante neste capítulo.
Estes bois com sotaque da baixada, residentes em São Luís trazem um ritmo mais
lento do que o sotaque da matraca ou zabumba. Possuem instrumentos como o badalo ou
chocalho, uma espécie de sino, de alarme, que anuncia a chegada dos cazumbas. Pandeirões
menores, cobertos com couro de animais e aquecidos no fogo para afinação; maracás de
alumínio menores, tambor-onça (parecido com a cuíca do samba); e o instrumento mais
popular, as pequenas matracas, e o apito do amo cantador ou dos amos, aqueles que puxam as
músicas e comandam a cantoria.
Por sua vez, no interior, o que mais se são grandes caixas e tambores, alguns
poucos e pequenos pandeirões com couro de cobra, muito usado em toda a região. Em muitos
grupos quase não existe o tambor-onça. Mestre Abel diz que os bois no interior ganharam
essas caixas das escolas de samba da capital, na década de 70, porque “na época dele”, década
de 50, ainda se usavam os pandeirões. Imagino que por uma questão econômica e de
facilidade, pelo fato de os instrumentos não precisarem ser afinados no fogo, os bois
aceitaram estes instrumentos do samba, incluindo na brincadeira, mas modificando seu couro,
sua forma de afinação e dando continuidade à pulsação do boi.
O crescimento das escolas de samba tem influenciado o boi com as indumentárias
cada vez mais brilhantes e grandes, existe cazumba cuja careta pode ser comparada a uma
alegoria carnavalesca. Essas caixas predominam na percussão, e como o som delas é muito
alto, o tambor-onça, (uma espécie de cuíca), considerado a base, foi se perdendo na
brincadeira, uns brincantes se desculpam dizendo que não dava para escutar esse
instrumento de som grave e marcante. Ainda sobrevivem muitos grupos com o tambor-onça,
mas pude perceber também a falta dele em alguns grupos, comparando com sua importância
na capital, onde todos os bois se apresentam com esse instrumento.
Durante uma viagem pela baixada, com mestre Abel, em junho de 2008, ele chamou
muito a minha atenção sobre o uso dos apitos de vaqueiros, elemento que era desconhecido
pelo boi na década de 50. Informou ainda que antigamente as toadas eram mais longas, cada
música contava uma situação, uma história e agora as canções são curtinhas com refrão
repetitivo. Inclusive a mesma característica foi observada nas transformações das escolas de
samba, que também se adaptaram às novas exigências das mídias.
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É curioso pensar como a brincadeira do interior é considerada mais tradicional, de raiz
e perceber que são exatamente eles que mais inovam e reinventam a tradição, enquanto na
capital, sofrem pressão da estrutura formal, das apresentações nos arraiais. Conforme Dona
Zelinda falou em conversa na sua casa, em janeiro de 2009 “e o mais interessante que eu acho
é que as mudanças não começam aqui pela capital, elas começam pelo interior. Parece que
assim, quanto mais atrasado, eles se baseiam mais nas revistas, nas coisas, querem estar
atuais. Não tem mais aquela ingenuidade.” Em São Luís é necessário seguir algumas normas
que identificam o sotaque do boi, como o uso das penas de ema e a abundância de cazumbas,
além de precisar manter o cuidado com o brilho dos bordados para manter o páreo da
“disputa”, lembrando das palavras do mestre Apolônio em conversa filmada na sua casa: “não
queremos ser o melhor, queremos ser um dos melhores”.
A brincadeira do boi traz um sentido forte de coletivização, é um momento de
“suspensão de papéis” que interrompe a vida cotidiana, criando um senso de harmonia dentro
da estrutura da brincadeira, essa experiência de communitas surge de um efeito de
estranhamento que se produz em relação ao cotidiano. O tempo do ritual provoca uma união
da comunidade, no sentido da solidariedade, criando um sentimento de communitas, conceito
d
e Turner que “chamou a liberação das pressões da vida ordinária anti-estrutura’ e a experiência da
camaradagem ritual em communitas”. (SCHECHNER, 2002:62).
Ninguém sabe dizer ao certo quando começou a existir o boi e o cazumba, eles
explicam: - “Quando me ‘intindi’ era assim!” E a coisa fica misteriosa sem ser explicada,
fica à deriva dos sentidos porque quem precisa dar sentido é o outro que está fora da
brincadeira, os brincantes simplesmente brincam e não criam reflexões sobre o seus fazeres
dentro da roda do boi, a maioria participa por questões religiosas e porque gostam muito de
fazer parte dessa irmandade do boi, é a principal referência cultural e social dentro da
comunidade.
Cada brincante dessa irmandade do boi tem reunido sentidos dos seus compromissos
dentro da brincadeira, essas normas podem parecer soltas por valorizarem a espontaneidade,
mas na verdade seu modelo é potencializado pelas possibilidades em transitar pelas fronteiras
da estrutura, recriando novos formatos. Este dado transitório é real quando pensamos que o
coletivo do boi vai se transformando, alguns saem enquanto outros entram, mas o sentido da
brincadeira e o valor agregado a cada personagem permanecem.
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3.3.2.1 Os instrumentos musicais
Alguns instrumentos são afinados, “quentados” na fogueira, até chegar a um “grau”,
onde o couro está esticado e trazendo uma sonoridade ora grave ora mais aguda. Este
momento, ao lado do fogo, é também a oportunidade de confraternizar, recordando antigas
toadas e criando novas, além da boa conversa sobre assuntos do cotidiano, que aproximam
ainda mais os brincantes até os instrumentos afinarem. Enquanto alguns instrumentos são
tocados, outros são afinados. Ainda vale ressaltar o simbolismo do fogo como misterioso
gerador de vida, fervor, entusiasmo, paixão e vivacidade, presentes nas festividades. Entre os
instrumentos se destacam (Figura 4):
Figura 4: Desenhos dos instrumentos do bumba-meu-boi. Fonte: livro “Descobrindo o
Bumba-Meu-Boi: Estudo da Cultura Popular Maranhense nas séries do 1° Grau Menor”.
As matracas, dois pedaços de madeira que são batidos um contra o outro, como se
estivesse “batendo as palmas das mãos”. Algumas podem trazer um furo escavado no meio
para darem melhor som, unidas por um fio ou cordão, criando uma percussão alta e contínua,
com um som vibrante, levando os brincantes e o blico ao delírio pela vibração e constância
sonora. A palavra “matraca” tem também outro sentido, como aquela pessoa muito faladeira,
tagarela, além de ser também muito popular, pois quem quiser é carregar um par e tocar na
hora, as matracas maiores são utilizadas no sotaque da ilha e as menores no sotaque da
baixada.
Os pandeirões, como o próprio nome sugere, são pandeiros grandes, alguns ainda
rústicos, cobertos com couro de cabra, afinados no fogo, e muitos feitos de material sintético,
que não precisa ir na fogueira para ser tocado, possuem tarrachas que são apertadas com
alicates para atingir a afinação e são tocados com as palmas das mãos, uma segura o
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instrumento e a outra “bate” no couro. No sotaque de matraca, o pandeirão é tocado
suspendendo-o para cima e no caso do boi da baixada é tocado para baixo, vertical às pernas.
São confeccionados em madeira flexível, geralmente jenipapo.
O tambor-onça, da mesma família instrumental da cuíca, apresenta o formato de
barrilzinho ou cilindro, geralmente feito de zinco, coberto com couro de cabra, e no lado de
dentro, em seu centro, possui uma vareta. Para ser tocado molha-se um pano e com uma das
mãos vai-se puxando a vareta, fazendo um movimento contínuo. Alguns brincantes comentam
que produz um som semelhante ao rugido do boi ou até mesmo da onça. Possui uma alça ou
corda para o tocador segurar o instrumento, apoiado no ombro.
Dizem segundo os mais antigos, que tem essa denominação por terem sido
usados para “arremedar” a onça. O camarada trepava no pau arremedava a
onça com o tambor, a onça vinha, pensando de ser outra ele atirava na onça”.
Daí o instrumento produzir um som grave e rouco como o urro desse animal.
(CARVALHO, 1995: 196).
Este instrumento é utilizado em todos os sotaques de boi, os brincantes nomeiam o
tambor-onça de “coração do boi” é a pulsação base. Não é afinado na fogueira.
Os maracás, tradicionalmente confeccionados de cabaça, mas aqui feitos de alumínio,
com formato diferenciado, em cuja cavidade são colocados contas ou esferas de chumbo que
produzem som quando sacudidos. No sotaque de matraca eles são mais achatados e de
proporções maiores do que o da baixada, e no sotaque de zabumba têm um formato ovalado e
são menores. São tocados com uma das mãos.
Os zabumbas são grandes tambores de madeira, com couro de cabra ou veado,
amparados por uma forquilha (vara de madeira), tocados com baquetas de madeira, alguns
brincantes chamam de “soca-pilão”.
Os pandeiritos, tamborinho ou repinicadores, são pandeiros bem menores do que os
pandeirões, feitos de madeira de jenipapo e cobertos com couro de cotia ou de boi, presos à
armação através dos torniquetes de madeira, chamados cravelhas. São afinados na fogueira.
Os instrumentos de sopro e cordas como o saxofone, trompete, clarinete, flauta, banjo
são utilizados no sotaque de orquestra.
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O apito
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é utilizado pelo amo cantador sempre antes de iniciar uma toada quanto para
finalizar. Também é utilizado no momento de guarnicê do boi, antes da brincadeira começar,
no ato da preparação e está presente em todos os sotaques.
3.3.2.2 Personagens do boi no sotaque da baixada
Os personagens do boi se dividem entre os dançarinos, tocadores, cantadores e
algumas figuras mascaradas. Organizam-se com a formação de uma roda ou cordão, em filas.
Eles se diferenciam de acordo com cada sotaque e mesmo assim podem apresentar
peculiaridades em cada grupo, que percebemos que, apesar da nomeação da palavra
“sotaque”, cada boi particulariza um estilo, um jeito próprio de brincar. Um grande cantador
chamado Olhinho, de um boi de sotaque da baixada residente na capital, Boi Unidos de
Santa Fé, explica que: “Quando uma brincadeira é lançada, o sotaque foge um pouquinho do
original. Embora procure a semelhança, cada aprendiz tem uma maneira de bater.”
(MARANHÃO,1995:105).
É possível afirmar que cada brincante, mestre ou grupo se apropria de um jeito
particular de brincar e se organizar, trazendo para a manifestação um movimento orgânico,
fazendo ressaltar um estilo individual. Alejandro Frigerio reconhece características comuns
nas culturas africanas, mas enfatiza que “é justamente a ênfase no estilo pessoal que permite a
continuidade e finalmente o desenvolvimento de novas formas estilísticas, produzindo
mudanças contínuas que abrem caminho para inovações”. (2003:61).
A arte é movida pela liberdade na criação, os brincantes populares criam através do
jogo e da brincadeira, no tempo do “aqui e agora”, conectados com regras específicas, mas
abertos às surpresas do que for acontecendo no processo festivo. Ao mesmo tempo que a
brincadeira é tradicional, é também a inovação que mantém a autenticidade dos brincantes, e
essa verdade é a inteireza do brincante movido pela espontaneidade e improviso, é isso que
faz a riqueza e a pérola das manifestações populares brasileiras.
Os personagens do boi de sotaque da baixada, tanto no interior quanto na capital são:
índias, caciques, baiantes cantadores, batuqueiros percussionistas, o amo, a burrinha, a onça, o
vaqueiro, o pajé e/ou doutor, os encaretados Pai Francisco ou Negro Chico, Catirina,
20
“Já entre os ameríndios há o emprego das diferentes espécies de apito que eles usam, é muito comum nas danças rituais. Na
África sei apenas que os apitos são usados também durante as danças, que nem entre os Brasis”. (ANDRADE, 2002:68).
48
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cazumbas, as mutucas e a figura central que é o boi. No interior encontramos diversas figuras
de animais como o carneiro e o urubu; Micaela (Figura 5), uma boneca gigante feita de cabaça
que representa a esposa do patrão ou amo; além da Maria carregadeira do Santo, uma
mulher vestida toda de branco que fica segurando um quadro com a imagem de São João,
como uma homenagem ou pedindo licença.
Figura 5: Micaela do Boi União da Baixada, São Luís, junho, 2008. Foto: Juliana Manhães.
O boi é a figura central e mais importante da história. Sua movimentação acontece
junto com o vaqueiro, mas pode se relacionar com todas as figuras que ficam dentro da roda.
Observa-se que o estilo do boi brincar se transforma de acordo com o momento do ciclo do
boi, no período de batismo ele é mais manso e na festa de morte o boi fica muito brabo,
chegando a dar rasteiras, derrubando muitos integrantes no chão, como explicarei mais
adiante.
A estrutura ou armação do corpo do boi é feita de talos de buriti ou de jeniparana
amarrados com cipó, e o couro que cobre a armação é feito de veludo preto bordado com
miçangas, paetês, canutilhos e tudo que possa encher de brilho o novilho. Prende-se à
armação, a barra do boi, uma saia de tecido colorido e com muito brilho. O brincante que fica
dentro e conduz o boi é chamado de miolo ou tripa do boi. A cabeça do boi é esculpida em
49
49
madeira e o chifre é natural, encravado na madeira, suas pontas são enfeitadas com fitas
coloridas. Costumava-se montar os olhos com uma fava silvestre chamada ”olho de boi”,
hoje, porém, é comum o uso de bolas de gude porque proporciona um efeito de maior realce.
Em geral, todo ano o bordado do boi é renovado e batizado na véspera de São João.
Durante a pesquisa de campo, realizada na cidade de Viana, pude presenciar que esta
renovação do bordado não acontece em todos os bois, pois é um investimento muito
dispendioso, mas quando alguém da comunidade realiza uma promessa, ela pode trocar o
bordado, e então essa pessoa fica encarregada de abrilhantar o novo bordado do boi, assim
como a festa como um todo. Os grupos grandes da capital normalmente trocam de bordado
todo ano, simbolizando o batismo e purificação do novilho para aquele ano que se inicia,
valorizando o ritual e o movimento da brincadeira.
É interessante observar que o personagem do boi também simboliza o grupo como um
todo. Muitos brincantes falam do boi, mas não somente da figura, querem dizer sobre todos os
integrantes, estão afirmando o boi, enquanto brincadeira. Isso demonstra a relação da
economia no fortalecimento e espetacularização da cultura; o que a princípio parecia ritual,
somente é possível se houver um patrocínio. Mesmo sem trocar o bordado, como acontece em
muitos bois pequenos, emerge o principal que é o ato festivo do encontro, da brincadeira do
boi (Figura 6).
Figura 6: Miolos André Luís e Benedito Costa do Boi da Floresta, junho, 2008. Foto: Juliana
Manhães.
50
50
O amo (Figura 7) representa o dono da festa e do boi, o patrão, fazendeiro, coronel,
latifundiário, o chefe com toda a arrogância e poder; normalmente são fundadores, brincantes
mais antigos ou aqueles que têm o talento de cantador. É a pessoa responsável em “puxar as
toadas”, cantar as músicas e tocar o apito, dominando a situação do grupo como um todo,
indicando a hora de parar e recomeçar o batuque e as toadas. Tem alguns grupos de boi que só
têm um cantador e um sócio, mas, em muitos grupos encontramos mais de dois brincantes
puxando toadas. O sócio é o parceiro do amo, que pode ajudar ou até mesmo substituir o amo
nas toadas cantadas. A indumentária do amo é muito brilhante e bordada, demonstrando,
através da roupa, a força e a superioridade hierárquica do patrão, que usa chapéu, calça e
blusa bordada, além de segurar seu maracá e apito.
Figura 7: Um dos amos do Boi da Floresta, Seu Sá Viana, junho, 2008. Foto: Juliana
Manhães.
As índias representam as mulheres guerreiras, dançam no formato de um cordão ou
fila em conjunto, com marcações definidas de movimentação, coreografias elaboradas e muito
ensaiadas. Sua indumentária é feita de pena de ema com cocar, saia e pulseiras nas pernas e
nos braços, presas em veludo bordado. No Boi da Floresta, as índias possuem muita força na
roda do boi, por serem em grande quantidade e por executarem os passos com muita precisão,
algumas são as líderes e usam uma flecha, que quando erguidas simbolizam o momento da
mudança do passo. De dois anos para as índias começaram a cantar “gritos de guerra” na
despedida de cada brincada, são falas repetidas como “é o boi da floresta”, que trazem um
enorme entusiasmo para todos os outros brincantes.
51
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Talyene é filha do mestre Apolônio e hoje comanda sua tribo de índia, ela comenta o
que significa brincar com esse personagem:
Quando eu comecei eu era muito pequeninha então eu acho que não tinha nem
noção do que era, comecei com três anos, então tava muito longe de entender
o significado disso, mas a convivência não de ouvir, mas capturando o
verdadeiro sentido da história. Ser índia hoje como comando da tribo é muita
responsabilidade, mas muita diversão, muita felicidade, muita fé, tudo junto, é
muitos sentimentos. É um personagem que me satisfaz, eu sou muito feliz por
ser índia, posso entender que dentro da minha função básica, que é ser o
guerreiro daquela área rural, onde se passa a história do bumba-meu-boi, sou
guerreira da área, tenho que defender os interesses da natureza de certa
forma.
21
A índia é colocada como guerreira que cuida da sua tribo; é interessante perceber nas
palavras de Talyene (Figura 8) como o significado do personagem surgiu quando ela foi
crescendo, entendendo no convívio da brincadeira e no cotidiano o amplo sentido não do
personagem, mas a responsabilidade de ser brincante e líder de sua turma de índias.
Figura 8: Índia Talyene do Boi da Floresta, junho, 2008. Foto: Juliana Manhães.
O cacique (Figura 9) representa o índio homem da tribo, que também dança no mesmo
formato e movimentação. Como de um lado ficam as índias e do outro os índios, essa
formação também é chamada de trincheira, representando o local onde os guerreiros se
preparam para a batalha. A indumentária dos índios tem um cocar bem mais alto do que a das
índias, calça com saiote bordado, além de muitos colares e a maquiagem em branco com
traços pintados no rosto. O líder da tribo de cacique do Boi da Floresta, Magno Ferreira,
explica o que significa para ele este personagem: “Cacique é garra, força e união, é como se o
21
Entrevista realizada na Casa do Nhozinho Centro de Cultura Popular, com gravador e fita cassete, no mês de abril de
2009.
52
52
batuque fosse o coração do boi e nós somos escudo, é o cartão de visita, é tudo de bom que
tem na frente”
22
.
Figura 9: Cacique do Boi da Floresta, junho, 2008. Foto: Juliana Manhães.
Os baiantes (Figura 10) são os brincantes que fecham a roda ou o formato da meia lua
ficando junto com a percussão, uns tocam matracas e maracás e alguns são considerados
sócios
23
do amo cantador. Eles usam um enorme chapéu de pena de ema, com fitas coloridas
até o pé e um enorme bordado na testa, que eles chamam de “testeira”. Apesar de o chapéu ser
muito pesado, a maioria dos integrantes são idosos e antigos dentro do grupo.
22
Entrevista realizada no barracão do Boi da Floresta, após um ensaio das tribos de índias e caciques, no mês de março de
2009.
23
O sócio é aquela pessoa que está assessorando no puxar das toadas. (Zé Olhinho do Boi de Santa Fé, Memória de Velhos,
Volume V, 1999:105).
53
53
Figura10: Baiante Dona Maria do Boi da Floresta, junho, 2008. Foto: Juliana Manhães.
Os batuqueiros (Figura 11) são os tocadores percussionistas, que ficam encarregados
de buscar a lenha, fazer a fogueira e “quentar” os tambores, com o compromisso de segurar o
andamento musical do grupo, durante todo o percurso do boi. Durante a roda do boi ficam
parados ao lado dos cantadores e alguns revezam afinar os tambores, enquanto outros tocam
seus instrumentos. Normalmente eles usam um chapéu bordado e a camisa com o nome do
grupo. No Boi da Floresta o figurino básico é a calça verde e a camisa rosa.
Figura 11: Batuqueiros no pandeirão do Boi da Floresta, junho, 2008. Foto: Juliana Manhães.
A burrinha (Figura 12) é uma figura com movimentação dentro da roda do boi, brinca
muito com a onça, os cazumbas e o boi. No Boi da Floresta, geralmente tem duas burrinhas,
brincadas por crianças da comunidade, mas como não exige ensaio, quem quiser pode brincar,
assim como a onça que usa uma roupa e máscara com tecido de oncinha e fica dançando solta
pela brincadeira. A cabeça da burrinha imita um “burro”, tem o rabo feito de corda, armação
de buriti, madeira leve, com um buraco no meio, onde uma pessoa fica montada, essa armação
54
54
é sustentada por cordas, como suspensórios, presos nos ombros. Utiliza uma saia toda
colorida, um sino no pescoço, um chapéu bordado e pode estar com máscara feita de pano.
Figura 12: Burrinha do Boi da Floresta, junho, 2008. Foto: Juliana Manhães.
O vaqueiro é uma figura muito importante, é empregado de confiança do patrão, o
responsável em laçar o boi na festa de morte e durante as brincadeiras, além de estar sempre
ao lado do boi, no centro da roda, guiando o seu movimento ou fugindo da chifrada do boi.
Utiliza um enorme chapéu como dos baiantes, mas como dança muito, sua movimentação traz
o equilíbrio com sua indumentária. No boi de que participo há dois vaqueiros que se revezam,
um se chama Alípio Durans e o outro se chama Waldimar Lopes, mas todos o conhecem pelo
apelido de Louro. Este vaqueiro é muito antigo no Boi da Floresta, ele toca um apito que
parece uma gaita, e gosta muito de ir atrás dos cazumbas, tem um movimento muito próprio,
arredondando, dando giros sob seu próprio eixo e com um equilíbrio sob um enorme chapéu
que impressiona qualquer pessoa. Carlos Lima escreve que “O boi e o vaqueiro formam um
par indissociável do folguedo, um pela destreza com que arrebata, o outro pela persistência
como escapa ao seu amansador”. (LIMA, 1982:19). Aproveito para inserir algumas palavras
do que o vaqueiro Louro acredita na sua brincadeira (Figura 13):
A parte do vaqueiro pra quem entende é muito importante, ele toma conta do
boi, porque quem sabe do segredo do boi é o vaqueiro. Ele brinca e tal, rola
por ali, mas o sentido tem que atento, se ele não tiver atento, pensar que
não, cadê o boi? Desapareceu, né? o chefe vem perguntar, o patrão vem
perguntar, cadê o boi, vaqueiro? O vaqueiro não sabe, quer dizer, ele não
prestou atenção, se ele tivesse prestado atenção ele sabia dizer alguma coisa,
55
55
então o sentido do bumba boi é esse, o vaqueiro preparado com a vara de
ferrão, e o sentido da vara é pra dá-lhe no boi.
24
Figura 13:
Boi em movimento com o vaqueiro Louro do Boi da Floresta, junho, 2008. Foto:
Christiane Alcântara.
A figura do pajé ou doutor representa o curandeiro dentro da tradição indígena
brasileira, o conhecedor da medicina. Sua movimentação é dentro da roda do boi, de forma
solta, utiliza muito os braços para movimentar a indumentária e faz muitos giros. No auto do
boi é a figura que junto com o cazumba tem poderes de cura, ajudando a ressuscitar o boi, e
sua encenação é mantida através da sua dança e movimentação. Atualmente não é encontrada
em todos os grupos de bois; no Boi da Floresta, é a mesma pessoa que brinca ao longo de dez
anos, seu apelido é Maçarico. Sua roupa é toda feita de palha de babaçu
25
, da cabeça, no qual
fica uma enorme cabaça, aos pés. Carlos Alberto, o Maçarico, é quem confecciona a sua
própria indumentária, e diz o seguinte:
O pajé é o curandeiro da aldeia, onde tem o grupo das índias e caciques, é uma
peça fundamental numa aldeia e na brincadeira é uma pessoa muito criativa,
quando o boi adoece, ele faz benzimento, cura, deixa o boi bom, entrega pro
patrão o boi são e salvo. A dança é girando no meio dos índios, os índios
fazem o círculo e o pajé fica rodando, procurando, benzendo, curando.
26
24
Entrevista filmada no barracão do Boi da Floresta em janeiro de 2009.
25
Palmeira típica da região, da palha, se faz telhado de casa, artesanato, cofos e do coco se extrai óleo na feitura de sabonete.
26
Entrevista realizada na casa de Maçarico, no bairro da Floresta, no mês de março de 2009.
56
56
Pai Francisco ou Nêgo Chico (Figura 14) representa o empregado da fazenda, casado
com Catirina, que, a pedido desta, corta a ngua do boi predileto do patrão e, normalmente, é
o responsável pelo andamento e roteiro da comédia do boi. Sua movimentação é junto com
Catirina, vivem correndo um atrás do outro, mas podem interagir com qualquer brincante do
boi ou com o público. Sua indumentária é composta de uma máscara feita de pano, com
buracos para os olhos e a boca, um grande nariz feito de corda ou pano, calças e blusas
compridas, e pode utilizar uma espingarda ou outros adereços.
Figura 14: Pai Francisco do Boi da Floresta, junho, 2008. Foto: Juliana Manhães.
Catirina, esposa de Pai Francisco (Figura 15), está grávida, representada por
enchimento na barriga e também com máscara de pano. A maioria das vezes representado por
um homem vestido de mulher, que a entrada das mulheres na brincadeira do boi ocorreu a
partir da década de 60. (LIMA, 1968). A Catirina do Boi da Floresta a cada ano inventa um
adereço novo: anda de bolsa, pente, lenço, pedaço de madeira para bater no marido.
Uma antiga Catirina do Boi da Floresta, um homem chamado Raimundinho, fala sobre
quem é essa personagem:
Ser Catirina é gostoso demais, é uma adrenalina, uma celebridade, pra quem
sabe fazer papel, pra quem sabe botar tudo na linha, porque hoje em dia
muitas Catirinas não usam máscaras, pintam a cara de tinta. Catirina tem que
ser solta, não pode ficar toda acanhada, quer fazer graça e chamar atenção do
público. O que ela mais quer é a língua do boi, ela tempera e depois come no
57
57
sal e no alho, mata o desejo e fica satisfeita. A barriga é um cambalacho. Ela
ilude as pessoas para conseguir o boi. Teve umas pessoas em São Paulo que
achou que eu fazia umas vidências, umas consultas. Ela gosta de estar solteira
porque vai em qualquer festa.
27
Figura 15: Catirina de um Boi de Zabumba. Foto: Márcio Vasconcelos.
As mutucas ou torcedoras são pessoas que não participam de dentro da brincadeira do
boi, mas estão sempre juntas para ajudar no que for necessário. São as companheiras,
namoradas, esposas, mães, tias, avós que acompanham os seus entes queridos desde o início
até o final da brincadeira, tendo a função de animar os companheiros e ajudar carregando
bolsas, ou os “comes e bebes” de seus baiantes. Esta palavra “mutuca” também se refere à
existência de um mosquito, um inseto que ataca as pessoas durante o dia ou a noite, não
deixando ninguém dormir, fazendo uma alusão a essas companheiras que ajudam a fortalecer
a brincadeira, não permitindo o desânimo durante a madrugada.
Uma mutuca do Boi da Floresta, chamada Verônica Pereira Mendes ou apelido de
Nenê, integrante do tambor de crioula Prazer de São Benedito, brincadeira que também faz
parte da comunidade do Boi de Apolônio, fala o seguinte sobre ser mutuca:
27
Entrevista com Raimundo, no barracão do Boi da Floresta, no mês de junho de 2004.
58
58
Acompanhar o boi quando ele sai, fazer as coisas aqui que tem que fazer, eu
faço os enfeites do barracão, enfeites da rua, ajudo a cozinhar, tudo que
pertence aqui ao boi, as pessoas daqui. Pra onde o boi vai a gente vai.
Torcedora e mutuca é a mesma coisa. Tem que animar. Mutuca é pro boi não
se ‘assussegar’, ficar brincando o tempo todo.
28
O cazumba mascarado age no sentido da graça, da artimanha, da brincadeira,
caracteriza-se por ser o responsável por abrir a roda, criando uma relação intensa com o
público que está assistindo e, ao mesmo tempo, depois da roda formada, permanece dentro
dessa roda, girando, passando por todos os integrantes e brincando com quem der vontade, de
maneira muito espontânea e original. O som do seu badalo anuncia sua chegada, sua bata
denuncia suas crenças, interesses e devoções, sua careta remete a alguma “doidice”, um estilo,
uma brincadeira: ele se diz por sua vestimenta.
“Os que usam careta experimentam uma irmandade, um sentimento de integração, que
respeita e valoriza as singularidades, marcadas sobretudo na autoria das máscaras e batas”.
(LODY, 1999:4). Os encaretados cazumbas andam sempre juntos, inclusive tem alguns
grupos da baixada que reúnem vários brincantes de cazumba, que são brincantes soltos, que
vão brincar em vários grupos diferentes, eles são reconhecidos facilmente pela sua careta e
sua indumentária e por isso são considerados uma irmandade, circulando por várias
“turmas”
29
. Cada cazumba tem sua bata e sua careta; no interior, na baixada, essas caretas são
chamadas de torres por terem tomado proporções grandiosas e suas batas ficaram muito
incrementadas com veludos bordados, mas se cazumba de todo tipo, o importante é estar
mascarado e com sua bata enfeitada.
3.3.2.3 Uso de algumas palavras e o roteiro da performance do boi
Esse processo de absorção de algumas palavras entre os brincantes facilitou o diálogo
com as pessoas interessadas, de fora da comunidade, propiciando uma abertura e amplitude
no seu convívio social, percebendo o seu valor e trazendo autoestima em ser reconhecido
como alguém que participa da cultura do estado do Maranhão. Do mesmo modo, algumas
28
Entrevista com Verônica, no barracão do Boi da Floresta, no mês de março de 2009.
29
Nome usado para identificar as diversas agremiações e grupos de bumba-meu-boi da baixada maranhense.
59
59
palavras foram sendo adaptadas e renomeadas pelos mestres e brincantes. Mestre Apolônio
Melônio chama a indumentária do cazumba de bata, e mestre Abel chama de farda, mas de
tanto conviver com o mestre Apolônio, além do profundo respeito e valor agregado aos mais
antigos, percebeu que a maioria chamava bata, então resolveu utilizar também este outro
modo de nomear, mas aproveitando para divulgar a maneira apreendida no interior, terra onde
nasceu, povoado de Santo Inácio em Viana, Baixada Maranhense.
Foi necessário realizar ajustes para dar continuidade, assim como a palavra “auto”30,
que traz sentidos amplos, mas que é utilizada pelos autores como o momento em que é
contada a história ou lenda do boi e os brincantes chamam de “matança ou comédia”31. Esses
“autos tradicionais” são geralmente descritos como encenações do drama mítico de Pai
Francisco, que matou o boi para satisfazer o desejo da esposa, Mãe Catirina. Neste sentido
uma pesquisadora fez a seguinte constatação: “As nomeações ‘matanças’,’comédias’, ou
‘auto’, enfim, como se queira chamar, são as performances cômicas do boi, que não se
encontram mais com facilidade na capital. (CARVALHO, 2005:64).
Independente da nomeação dada para a encenação do boi ou sua diversidade de estilos, o que
é de suma importância é perceber que as palavras são carregadas de sentidos tradicionais que
fazem parte de um movimento circular, vivo e atual, seja da forma convencionada pelos
pesquisadores ou pelos brincantes.
Na minha trajetória festeira pude participar de algumas celebrações de morte no Boi
da Floresta, sendo verificado que não acontece esse auto, comédia ou matança, como mestres
antigos afirmam que acontecia no interior. Mas, na verdade, no momento presente, até no
interior vem desaparecendo e se transformando muito esse momento de performance cômica,
com diálogos entre personagens da brincadeira. Essa matança acontece quando alguma pessoa
vai pagar uma promessa e normalmente é na véspera do dia de São João (de 23 a 24 de
junho), dia de São Pedro (29 de junho) ou dia de Santana (26 de julho).
A brincadeira do boi, na capital, foi se adaptando às novas exigências ligadas às
apresentações nos arraiais, provocando uma abertura na roda do boi, que era fechada, criando
30
Forma teatral de enredo popular, com bailados e cantos, tratando de assunto religioso ou profano. Desde o século XVI os
padres jesuítas usaram o auto religioso, aproveitando também figuras clássicas e entidades indígenas, como poderoso
elemento de catequese. Dos autos populares brasileiros o mais nacional, como produção é o bumba-meu-boi, resumo de
reisados e romances sertanejos do Nordeste, diferenciados e amalgamados, com modificações locais, pela presença de outros
personagens no elenco. (CASCUDO, 1998:115).
31
Simboliza a festa de morte ou matança do boi, como a representação do auto. O momento da comédia é quando os
brincantes desenvolvem dramatizações do enredo lendário do boi, através das toadas cantadas e os diálogos entre Catirina,
Pai Francisco, Amo e outros personagens, de acordo com o grupo de boi e a região de sua origem.
60
60
uma nova formação como a meia lua ou roda aberta, estimulando a criação de novos “passos”
e coreografias e também delimitando o tempo da apresentação, favorecendo mais a dança,
com o batuque e as toadas, ao invés da encenação do auto, que desprendia muitas horas de
brincadeira. Mestre Apolônio explica que:
A comédia é a mesma morte, se botou comédia para amenizar, porque a morte
do boi, sabe, é muito longa, na capital não tem público. O público enjoa,
né, tem lugar que é só conversa correndo atrás de cazumba. Então, no
interior é que era uma coisa muito respeitada
.
Uma comédia aqui representa o auto, nós o fizemos esse ano, mas nós
sempre treinamos, porque o auto do boi verdadeiramente é uma casa de
fazenda que tem um boi de estimação e esse boi na época da festa, alguém
desaparece com ele, o pessoal vem como fazendeiro, vendedor de jóia, outro
como trabalhador, este ano eles apareceram como sem terra. De modo que
aquilo é o enredo e a gente entra na história que o boi desaparece e nós
queremos o boi de volta ou ressuscitado se fosse morto, de maneira que o
objetivo é querer o boi de novo com a mesma festa, então alguém que é
responsável aparece, apanha, vai preso castigado de modo que pra se livrar do
castigo substitui o boi. O Pai Francisco substitui o boi depois que ele vai
preso, manda gente buscar, a gente manda os vaqueiros pra receber e nessa
hora o boi, como as características são diferentes, ele é furtado com um
couro, uma pele e quando volta é com outra.
32
Essa questão do enredo é bastante complexa, porque uma grande diversidade e as
construções da comédia vão se modificando de acordo com o momento presente, apesar de
haver algumas questões básicas como o desaparecimento do boi, seja por morte ou
simplesmente porque se escondeu. O nome comédia remete à questão de a encenação se
imbuir com forte comicidade, e matança resume o fato de contar a história, em forma de
toadas, sobre a morte desse boi, sob a realidade daquela comunidade e dos brincantes que
tornam cada momento vivo e atualizado.
Os grupos de bois criaram uma sequência nas toadas cantadas, é como um roteiro que
vai representando os momentos da brincadeira. Em geral começa com a Reunida, que como o
próprio nome sugere, é o ajuntamento dos componentes dos grupos, momento em que cada
brincante se prepara para o início da brincadeira; logo após vem o Guarnicê, instante em que
o apito do amo começa a tocar, simbolizando os últimos ajustes da organização dos
integrantes, momento de cada brincante se posicionar dentro do cordão e cortejo de entrada da
32
Transcrição de fita cassete, em conversa com Apolônio e Nadir, na ocasião da festa de morte do Boi da Floresta, setembro
de 2005.
61
61
brincadeira, é a integração dos participantes na formação da brincadeira
33
; vai é a ordem
de partida, é o deslocamento e entrada no local onde o público está aguardando, simboliza o
primeiro momento da apresentação; Chegou significa a louvação ao boi e ao dono do terreiro,
afirmação vaidosa da presença do grupo; Urrou, como afirma Carlos Lima (2002), é a fase
em que se inicia o “auto”, a encenação da peça, a “comédia”, cujo enredo gira em torno do
desejo de Catirina. É também o momento onde as toadas refletem o conflito da trama e
também seu ponto culminante, quando o boi ressuscita; depois dessas toadas vem a
Despedida, término da brincadeira com agradecimentos pela boa recepção. Entremeadas nesta
sequência, se inserem outras toadas, onde cada grupo canta suas próprias histórias e
memórias.
De qualquer forma, independente da expressão ou roteiro utilizado, todo grupo de boi
no Maranhão tem um ciclo festivo e a seguir comentaremos sobre essas celebrações anuais.
3.4 O CICLO DE FESTEJOS DO BOI: DA ALELUIA À MORTE
Na festa reencontra-se plenamente a dimensão sagrada da Vida, experimenta-
se a santidade da existência humana como criação divina. (ELIADE, 1992:
80).
As manifestações populares de bumba-meu-boi no Maranhão acontecem através de
ciclos festivos que envolvem música, dança, canto, teatro e rituais. E por estarem ligadas a
diversas linguagens é possível percebê-las como parte de um todo, que pode ser considerada
como performance. A partir da imagem de uma rede, que se entrelaça criando vários pontos
diferenciados, podemos estabelecer diversas situações que podem estar presentes nos estudos
da performance.
No boi esta rede é representada pelo ciclo festivo com ensaios, brincadeiras, ritual de
batismo e de morte, tecendo relações entre personagens que, através das cantorias e batuques,
expressam a brincadeira do boi no Maranhão, agregando valores religiosos, místicos, festivos,
profanos, fazendo parte do cotidiano da vida desses brincantes. O boi se conecta com diversas
realidades, seja o cotidiano, os rituais, as brincadeiras no terreiro ou as apresentações.
33
Essa formação também pode ser em roda, se for somente uma brincadeira como um pagamento de promessa, com
compromisso no ritual e não na apresentação essas formações variam, a roda vai se formando de maneira espontânea, mas de
qualquer forma o sinal do apito significa um momento de reunir para começar ou continuar.
62
62
As festas populares consolidam encontros, são momentos celebratórios de
cumplicidade coletiva, estabelecendo relações criativas com as tradições herdadas, ligadas a
estruturas que envolvem uma natureza simbólica, um tempo especial, o tempo do sagrado que
remete a um passado, vive o momento presente e se sustenta através do ciclo festivo. A
historiadora Mary Del Priore afirma que as festas são um “espaço de múltiplas trocas de
olhares, de tantas leituras, ponte simbólica entre o mundo profano e o mundo sagrado.”
(1994:27).
As festas possuem um poder incorporador, de reunir diversos segmentos da sociedade,
possibilitando a criação de um espaço único, e seu valor está no tempo presente, remete-se a um
passado.
Ser um festeiro significa integrar o tempo festivo a outro tempo, diferente do nosso
cotidiano, um tempo circular, reversível, feito de memórias, que vive de ciclos. “Participar
religiosamente de uma festa implica a saída da duração temporal “ordinária” e a reintegração
no tempo mítico reatualizado pela própria festa”. (ELÍADE, 1992: 64).
As festas são espaços onde se reúnem muitas histórias de vida, de crença, de
conhecimentos e repasses de geração a geração. Esse comportamento é apreendido através da
observação dos mais velhos pelos mais novos, do “boca a boca”, a nossa memória oral, porém
sempre brincando com um sentido próprio e presente exercido pela originalidade do
brincante.
As festas fazem parte de um tempo sagrado, é um momento onde saltam outras
realidades, construídas a partir de um passado remoto, imemorial, preservado através das
culturas ditas populares. Este tempo sagrado é acessível, circular e recuperável – eterno
presente mítico. É neste tempo que se fiam as festas com suas manifestações culturais, é nesse
lugar que o ciclo do boi reside e se transforma ano a ano, reafirmando suas crenças e valores.
O bumba-meu-boi é a brincadeira que tem a maior comemoração do atribulado
calendário de festas populares do estado.
34
No período junino, o Maranhão respira a festa do
boi e de outros folguedos populares, escutam-se batucadas por toda a ilha de São Luís, uma
euforia com muita gente envolvida na mesma celebração, a irmandade do boi, a partir de
afinidades e laços afetivos.
34
Existem cerca de 215 grupos de bumba-meu-boi cadastrados pelas Fundações Municipal e Estadual de cultura e pelo
Estado, fora a enorme quantidade de bois que existem no interior, mas não estão registrados ou documentados, sendo assim
desconhecidos pela grande maioria.
63
63
As brincadeiras de bumba-meu-boi no Maranhão vivem intensamente um ciclo de
festas e rituais de vida e morte, celebrando santos católicos, construindo saberes, reunindo a
comunidade para comer, beber e se divertir.
É o lugar onde a comunidade rememora suas próprias histórias e firma o compromisso
em dar continuidade aos festejos e celebrações, transformando-se, reinventando-se, estando
em permanente feitura, produzindo uma rede calcada em uma dinâmica que vigora no
presente, partindo dos seus ancestrais passados.
É importante notar que alguns integrantes da brincadeira convivem com a dinâmica do
ciclo festivo o ano inteiro. O trabalho não é interrompido, os brincantes sempre estão
refazendo algum pedaço de roupa ou confeccionando um instrumento novo, a manifestação
não cessa de respirar, ela vai modulando o seu fazer durante o ano.
Mestre Apolônio fala sobre a dinâmica de sua brincadeira e revela a preocupação com
a união do coletivo para dar continuidade às obrigações do ciclo, seja ele festivo ou do
cotidiano. O fator principal é a clareza de que a brincadeira nunca para, está sempre em
movimento diário, como nos explica, com sua sabedoria, o mestre Apolônio:
O que eu desejo é que o público tome conhecimento da nossa brincadeira, não
se apresentando, mas funcionando, o que nós faz o que nós ainda
desejamos fazer, me deixa feliz e contemplado quando o público gosta da
nossa apresentação. Funcionando como é a vida, mesmo que não seja
presenciado, mas que seja escutado, que eles saibam que aqui não paramos de
confeccionar a roupa, de aparar as arestas que podem faltar no funcionamento
da brincadeira, comprar material, confeccionar roupas novas, consertar roupas,
aqui o ano inteiro estamos trabalhando assim. Se uma pessoa quer brincar e a
gente sente que ele quer cooperar, a gente a indumentária completa, para
ser um grupo reforçado e unido. O que eu mais me preocupo é com a
estabilidade do nosso grupo, que nós seja umas pessoas que quando a gente se
queira bem e se respeitando, se unimos, sabemos que temos que cumprir um
compromisso.
35
Nessa conversa com Apolônio, perguntei o que ele gostaria que as pessoas de fora da
comunidade ficassem sabendo sobre o Boi da Floresta, e para minha surpresa ele deseja que
as pessoas tenham o conhecimento do cotidiano da brincadeira, que vai além das
apresentações. Nesse sentido, ele diz que o compromisso não é na hora da brincadeira ou
nas festas de batismo e morte, mas que esse ciclo só acontece porque existe um coletivo unido
trabalhando para manter o compromisso.
35
Gravação em fita cassete de depoimento de Apolônio Melônio, em sua casa no bairro da Floresta, no período festivo de
junho de 2002.
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Os brincantes do boi que sabem bordar trabalham nas indumentárias, antes ou depois
do período das festas, assim como as pessoas que sabem confeccionar a estrutura do chapéu
de baiante ou os participantes que vão à casa de Apolônio para acompanhar as novidades
dentro da brincadeira e nas suas próprias vidas.
A obrigação é religiosa e, no caso do boi, devotada a São João, mas também é um ato
de prazer, que envolve a decisão e escolha por um grupo, um coletivo, é a vontade em estar
junto e ficar perto daquela irmandade. Esses coletivos trazem um ensinamento que não é
somente a manifestação do boi, mas apresenta uma possibilidade de conviver em grupo, a
partir de utopias e crenças próprias. É um ensinamento para a vida.
Betinho, que brinca de Pai Francisco no boi da em Deus, de sotaque de zabumba,
diz que “quando chega bate o mês de maio, o Santo começa a me cobrar. Eu sinto que eu
sonho com ele toda noite, quando entra mês de maio, ele me pedindo pra mim brincar. Então
eu não posso deixar. Acho que eu seja um devoto dele, São João.”
36
Turner ressalta a importância dos momentos vividos no coletivo como instantes de
communitas, onde os indivíduos são membros de um mesmo tecido social e buscam
autonomia dentro de suas atividades obrigatórias, convivem com as estruturas de forma mais
libertária, onde a transgressão revela uma possibilidade na criação de novas estruturas.
(1974:118). Nesse sentido podemos observar como um bordado, que poderá ser trabalhado
com diferentes formatos, mantendo os mesmos materiais, ferramentas e um estilo próprio de
fazer. Esse compromisso com o boi se fortalece dentro de ações que priorizam a força da
coletividade em prol da necessidade em comum de que o ciclo de festejos do boi seja bonito e
carregado de harmonia e companheirismo.
Alguns brincantes de cazumba na baixada ficam até seis meses do ano bordando a
bata para o ano seguinte ou planejando o que vão confeccionar. Nesse ofício de bordar, muitas
esposas e filhas participam, como é o caso do cazumba Domingos, da cidade de Viana, turma
de Paulo, que diz que todo ano quer ter uma bata nova para estar sempre inovando, ou como
mestre Honório Serra, também de Viana, que apesar de ter parado de brincar por onze anos,
voltou a fazer careta e inventar novos jeitos de criação, como ele diz: “construo caretas e batas
36
Depoimento de Betinho, brincante do Boi em Deus, do sotaque de zabumba, no documentário “Auto do Boi da Fé em
Deus” com direção de Murilo Santos
.
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de cazumba para me surpreender”
37
. Diz ainda que é o melhor e está sempre em primeiro
lugar. A sua careta é imensa, com seu nome na frente.
A busca pela novidade traz um simbolismo de renovação, mas também uma forte
disputa entre os brincantes, e, em se tratando de cazumba mascarado, também sugere um
anonimato, porque com careta e bata nova não se consegue identificar quem é a pessoa que
está por detrás da máscara e indumentária.
O ciclo de festas do bumba-meu-boi se inicia no sábado de aleluia da semana santa.
Após o período da quaresma
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, quarenta dias após o carnaval, no dia da “aleluia” os
brincantes cantadores e dançantes se reúnem na sede do boi, dentro do barracão para cantar
novas toadas, contar histórias do cotidiano e recomeçar o movimento de mais um ano de
brincadeira.
Esses grupos de boi começam os ensaios do ano na “aleluia” e finalizam no “ensaio
redondo” ou último ensaio, no dia de Santo Antônio, 13 de junho. A véspera de São João, 23
de junho, é um dia muito esperado pelos brincantes, porque simboliza o início da brincadeira ,
quando o boi é batizado, abençoado por uma ladainha, uma reza cantada por mulheres, com
todo o grupo na frente de um altar, com muitas velas acesas e o novo couro ou bordado do
boi, que será trocado para recomeçar as festas e brincadeiras daquele ano.
Depois do batismo, o boi vai para a rua brincar ou se apresentar pelos arraiais
organizados pelo poder público. Na madrugada e ao longo do dia de São Pedro, 29 de junho,
todos os bois de todos os sotaques se reúnem na capela de São Pedro para agradecer e
homenagear o Santo. No dia 30 é a vez da festa para São Marçal, reunindo todos os grupos de
boi da ilha ou matraca.
Após temporada junina, os grupos descansam e recomeçam o processo de organização
para a festa de matança do boi, e cada grupo fecha o ciclo de festas em período determinado
pela comunidade, ao longo dos meses do segundo semestre, finalizando os festejos para
recomeçar no ano seguinte.
Este ciclo de festas cria uma dimensão integradora, é um lugar que instaura no
cotidiano dos brincantes um segundo mundo, representando uma segunda vida fora da
oficialidade. A cada ano estas celebrações se atualizam na relação de suas memórias coletivas
com os acontecimentos do mundo externo, se preserva aquilo que é considerado base ou
37
Entrevista filmada na casa do cazumba Honório Serra, na cidade de Viana, no mês de junho de 2008.
38
Nessa época os tambores não são tocados, é sagrado ficar em silêncio, por isso o boi , como também o tambor de crioula,
param e só retornam a ser batidos no sábado de aleluia.
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fundamento e se readaptam contextos artísticos ditos "originais e puros" às novas realidades
advindas da modernidade, possibilitando experimentações diversas, sem perder a sua
referência histórica de fundação.
4 MEMÓRIAS DOS MESTRES APOLÔNIO MELÔNIO, MESTRE ABEL E OUTROS
CAZUMBAS
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São João desceu do céu
Pra vim ver a festa dele (bis)
Eu vou reunir
Eu vou guarnecer
Turma de São João Batista
Vai fazer terra tremer (bis)
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.
4.1 MESTRE APOLÔNIO E A FUNDAÇÃO DO BOI DA FLORESTA
O Boi da Floresta foi fundado por Apolônio Melônio e outros parceiros, no dia 12 de
março, no ano de 1972, com sede própria na rua Tomé de Souza 101, Bairro Floresta-
Liberdade, e desenvolve mais de 35 anos atividades ininterruptas com o bumba-meu-boi.
Além da brincadeira do boi o grupo criou também um tambor de crioula, que foi fundado no
dia 10 de dezembro de 1980.
A história do Boi da Floresta ou Boi da Sociedade Junina Turma de São João Batista é
indissociável da história de vida do seu fundador Mestre Apolônio Melônio (Figura 16) que
nasceu no dia 23 de julho de 1918, em uma pequena vila chamada Canarana, em uma cidade
do interior da baixada maranhense, município de São João Batista. Um homem forte, que aos
90 anos mantém plena consciência de sua condição de vida, mas quando falamos de sua
experiência e sabedoria é cheio de modéstia, com um carisma e uma generosidade de quem
está sempre aprendendo. Conhece cada brincante integrante do boi que comanda, sabe os
custos de cada indumentária, instrumento, além de ter uma visão ampla e crítica em relação à
política brasileira e à situação do movimento da cultura popular no Maranhão.
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Toada de reunida, cantada por João Sá Viana, no segundo cd do Boi da Floresta.
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Figura 16: Mestre Apolônio Melônio. Foto: Márcio Vasconcelos.
É impressionante perceber a força de sua memória sobre sua trajetória. Além de ter a
clareza do seu desejo quando não estiver mais presente na brincadeira, tem se preocupado em
passar histórias e fundamentos para os brincantes do boi, principalmente para Nadir Cruz
(Figura 17), sua atual companheira e suas filhas Talyene e Julyene.
Figura 17: Nadir Cruz de índia e o Boi Paz do Brasil. Foto: Clarício Santos.
Quando menino, morando em São João Batista, município da região da baixada
maranhense, criou o Boi Ramalhete com os colegas, que durou dois anos e mudou de nome
para Boi Lindo Fama, persistindo até ficarem rapazes.
Em 1939 foi para São Luís e chegando à capital trabalhou duro em diversas profissões,
até que conseguiu uma vaga na estiva marítima, tendo mais estabilidade para pensar na sua
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maior paixão, o bumba-meu-boi. Dona Zelinda Lima, importante presença na disseminação
da cultura popular do Maranhão, trabalhando em diversos cargos públicos e ajudando a
fortalecer as manifestações folclóricas, afirma que foi Apolônio que introduziu a brincadeira
de sotaque da baixada na capital.
De 1945 até 1959, junto com outros companheiros, fundou o Boi de Viana, chegando
a reunir cerca de quarenta pessoas para brincar. Rompida essa aliança, em 1960, Apolônio
fundou junto com mestre Coxinho, João Câncio e outros, o boi da Turma de Pindaré. Um dos
grupos populares mais importantes na divulgação da cultura popular maranhense na década de
60, a partir das músicas de Coxinho, famoso cantador, que fez de suas toadas verdadeiros
“hinos” do boi no Maranhão, enobrecendo sua terra e divulgando essa identidade, através de
sua voz gravada em vinil. Para lembrar o mestre Coxinho apresento uma de suas toadas, que
ficou marcada na memória das festas de São João no Maranhão:
Anoiteceu, o galo cantou
Vaqueiro vai na igreja que o sino dobrou
É pra reunir
Vamos guarnicê
Esta é a ordem que São João mandou
Em 1972 aconteceu outra mudança e Apolônio se apartou do Boi de Pindaré, criando o
boi que tem até hoje, com o nome de Boi da Floresta ou Turma de São João Batista, em
homenagem ao santo e ao seu lugar de nascimento. Apolônio fala como começou o Boi da
Floresta:
Tinha quatro irmãos, todos morreram, hoje tem Viana, Mundoca,
Cândido. Depois que fundei o boi de Viana e o Boi de Pindaré, este aqui
estava cheio de responsabilidade, pelo menos pela pessoa que ia dirigir, então
meu irmão Antônio Melônio, que tinha um recurso muito melhor do que o
meu, incentivou dizendo que tinha que botar um boi nosso da família. Padre
João Gales da paróquia, também incentivou dizendo que tinha que botar um
boi nosso, da floresta. Antônio Melônio foi uma das figuras que entrou com a
parte financeira, e eu entrei com o que podia e a organização, então tinha essas
pessoas Antônio Melônio, Lucílio Melônio, tinha um vigia daqui por nome de
Jacinto, que era o gerente da brincadeira, eram pessoas de alta
responsabilidade e alto prestígio de dentro da brincadeira e eu era o cantor
então queria me desfazer da responsabilidade momentânea, instantânea do
momento, pra mim ter condições de fazer minhas músicas.
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Gravação em fita cassete de depoimento de Apolônio Melônio, em sua casa no bairro da Floresta, no período festivo de
junho de 2002.
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Mestre Apolônio ficou com o nome do Boi Paz do Brasil (nome do boneco do boi,
escrito sobre o couro bordado) e as cores verde e rosa da roupa, porque ele havia tido a idéia
de que todos os brincantes deveriam usar roupa igual, sendo reconhecidos pelo figurino como
fazendo parte de um mesmo grupo.
A casa de Apolônio fica na frente da igreja Santo Expedito e junto da sede do boi, no
bairro da Floresta, tem a sala na frente com vários retratos da sua trajetória, dois quartos, uma
cozinha e um banheiro. Descendo algumas escadas, encontramos o barracão, onde ficam
guardados os chapéus grandes de pena de ema, todas as indumentárias e instrumentos. É o
local onde acontece o batizado, os ensaios, as reuniões, ou as celebrações mais religiosas,
onde fica o altar. Mais embaixo um salão com cozinha, para preparar as comidas em dias
de festa, local para as pessoas dançarem, o bar e banheiros, além de ter o lugar da fogueira
para “quentar” e afinar os tambores. Neste ano foram feitas reformas para ampliar a cozinha,
ajudando nas festas e no cotidiano do grupo e da família. Apolônio e Nadir comentaram o
desejo de aumentar a sede na intenção de melhorar o espaço do boi, inclusive para os projetos
sociais que já estão acontecendo.
Nos anos de 2007 e 2008 desenvolveu o projeto Floresta Criativa, através do
patrocínio do Banco do Nordeste, realizando oficinas de bordado, confecção de careta de
cazumba, confecção de chapéu, dança e percussão gratuitas para a comunidade, na intenção
de fortalecer e ampliar laços da brincadeira dentro do bairro e proporcionar novas
oportunidades para os jovens com poucas perspectivas de trabalho, sugerindo maneiras de se
integrar a um novo mercado que cresce no Maranhão, introduzido através das brincadeiras de
bumba-meu-boi.
Essa realização é fruto de muitas conversas sobre questões de o grupo buscar
autonomia, potencializando práticas que eram exercidas dentro do grupo e que precisavam
ser reconhecidas e multiplicadas, valorizando os saberes internos do boi. Atualmente o Boi da
Floresta é exemplo para órgãos como Sebrae e Sesi, como um modelo de autogestão, exercido
pelos próprios brincantes, principalmente por Talyene Melônio e Nadir Cruz que administram
e coordenam as atividades.
O projeto Floresta Criativa abriu alternativas de novas movimentações criativas em
torno da brincadeira do boi, gerando uma rotatividade, a partir da entrada de novas pessoas do
bairro da Floresta, na comunidade do boi, demonstrando o potencial artístico dessas pessoas e
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criando opções e meios de sobrevivência, a partir da geração de renda em bordados, objetos
utilizados nos grupos de boi ou pequenas miniaturas para serem comercializadas.
4.2 DOS ENSAIOS, A FESTA DE BATISMO ATÉ O DIA DE SÃO PEDRO
No Boi da Floresta, os ensaios desempenham o seu papel no sentido da criação de
novas músicas, coreografias, firmando o contato entre os brincantes. As índias são as que
mais ensaiam, têm um passo muito determinado, onde o coletivo se organiza no formato de
um cordão ou fila, os outros personagens são mais soltos, como os cazumbas, que chegam
na hora e improvisam suas brincadeiras, não precisam de ensaio propriamente. Neste mesmo
período, Nadir Cruz e suas filhas Talyene e Julyene mais uma turma de jovens, começam a
bordar novas imagens para serem aplicadas em indumentárias, trazendo mais beleza e cuidado
para os figurinos.
Ao mesmo tempo, Dona Tânia, bordadeira profissional, por três meses borda o novo
“couro” do boi que será batizado. Este couro é um trabalho de bordado no tecido de veludo
preto, feito a mão com aplicação de canutilhos, miçangas e paetês costurados um a um, que
trazem um brilho renovado ao novilho. Antes disso os brincantes mais antigos ou a diretoria
vão idealizando na cabeça as imagens que serão bordadas, revelando situações do cotidiano,
símbolos que podem aparecer em um sonho, uma pintura ou algum acontecimento forte que
queiram estampar para todos rememorarem (Figuras 18 e 19).
Figura 18: Bordado do Boi Paz do Brasil do mestre Apolônio Melônio. Foto: Juliana
Manhães.
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Figura 19: Bordado do Boi Paz do Brasil do mestre Apolônio Melônio. Foto: Juliana
Manhães.
Este tempo festivo se refere ao período do primeiro ensaio, no sábado de aleluia, até a
festa de morte do boi. Segundo Maria Laura Cavalcanti:
É um tempo cíclico, fortemente ligado à experiência vital, cheio de conteúdos
cognitivos e afetivos. Um tempo que entrecruza o calendário histórico e traz
de volta, a cada ano, as diferentes festas do calendário popular.
(2006:43).
No interior da baixada este ciclo varia muito para cada turma de boi, mas acontece
principalmente entre o dia de São João (24 de junho) e o dia de São Pedro (29 de junho).
Alguns bois morrem logo no dia seguinte ao dia de São Pedro, outros deixam para fazer a
matança no dia 26 de julho, celebrando Nossa Senhora de Santana, como o boi da turma de
Marco Roque, boi de Neco, irmão de Abel.
O momento do batismo é onde o religioso se faz presente, rezadeiras cantam ladainhas
em latim e todos participam deste canto, repetindo como um coro, simbolizando a purificação
e iniciação para abrir o ciclo de festas do boi, de abençoar o novo couro bordado e dar início
aos festejos juninos.
Ladainha é uma forma de culto onde, através de Santos de Devoção, elevamos
o nosso pensamento a Deus. Em passado não tão distante, as ladainhas
constituíam a base essencial dos festejos religiosos, propiciando um
acontecimento de grande vulto, despertando um forte sentimento de
confraternização. (MEDEIROS, 2003:189).
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Na sede do Boi da Floresta de Apolônio Melônio, a ladainha é cantada no barracão,
encontramos um altar com duas imagens de São João Batista nas laterais, Santo Antônio, São
Pedro, Nossa Senhora da Conceição e São Benedito ao centro. Nesse altar ficam acesas
durante todo o ano lâmpadas nas cores branca, vermelha, azul e verde (Figura 20).
Figura 20: Altar do Boi da Floresta. Foto: Juliana Manhães.
A cerimônia do batizado é um momento onde aparecem várias pessoas de fora, que
gostam de frequentar o terreiro do boi e ver este ritual, além de muitos estrangeiros curiosos
que ficam deslumbrados com esta rica e complexa manifestação que mistura o sagrado e o
profano. É hora de acender uma vela, dar as mãos e se emocionar, entrando em contato com
este “outro tempo”, simbólico, estabelecendo contatos com referências sagradas que a
memória coletiva cria e se firma diante das tradições. Depois se joga água benta no couro do
boi e se homenageiam os padrinhos (Figuras 21 e 22).
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Figura 21: Juliana Manhães no Batizado do Boi da Floresta, junho 2005. Foto: Márcio
Vasconcelos.
Figura 22: Início do ciclo de festas: batizado do boi brincantes tocando e dançando em
frente ao altar depois da ladainha, junho, 2005. Foto: Juliana Manhães.
No Boi da Floresta, atualmente, quem está passando a executar a função de chamar as
pessoas para a brincadeira começar é o cantador e amo Sá Viana. Ele puxa uma toada, a figura
do boi dança junto com o vaqueiro e os cazumbas vão chegando para formar a roda ao redor
do boi tocando seu chocalho, que fica a badalar fazendo uma ligação do sagrado do batismo
com a festa, o som do badalo penetra nos nossos ouvidos, repetindo em conjunto com as
outras percussões que aos poucos vão entrando junto com os outros brincantes que vão
ocupando seus lugares e enchendo o barracão, que se torna pequeno diante de tantos
brincantes e pessoas interessadas.
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Todo ano o boi tem uma madrinha e um padrinho, normalmente alguém da
comunidade ou uma pessoa que apóia o grupo. Dona Maria José Lima Melônio, esposa do
falecido Antônio Melônio, irmão de Apolônio, que o ajudou a fundar o grupo, é madrinha de
consideração permanente e mantém um cotidiano muito próximo com Apolônio e Nadir. É na
casa de Dona Maria que o “mourão”
41
, da festa de morte, é enfeitado e onde será buscado em
forma de cortejo.
O mourão é um tronco de árvore retirado do mangue, enfeitado com papel colorido e
brilhoso. Ele será fincado na frente da sede do boi e, depois, este é o local onde o boi ficará
preso, depois de laçado, na festança de morte. Próximo ao bairro da Floresta existe uma
região de mangue, onde alguns integrantes do boi vão procurar e trazer esse tronco de árvore.
Após a reza, a rezadeira fala os seguintes versos, repetindo três vezes: “Eu te batizo
Paz do Brasil com toda a tua formosura, não te dou os santos óleos, pois não és criatura.
Em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, amém”. Em seguida vem a cantoria de
“Parabéns” para São João e o boi, em conjunto com a percussão no ritmo da baixada, seguida
de algumas toadas para São João no altar, firmando o batuque dentro do barracão. Depois o
boi vai dançar na frente da casa de mestre Apolônio, ao lado da igreja Santo Expedito no
bairro da Floresta.
Os brincantes vão saindo de dentro do barracão e fora da casa aguardam outros
amigos do grupo e a comunidade que está esperando o boi. Nesses instantes uma euforia
de alegria, movida pela resistência daquelas pessoas que estão unidas para o nascimento de
mais um ano da brincadeira.
O boi vai brincar na frente de casa, firmando sua roda e batuque no “seu chão”, na sua
própria sede, para depois sair em cortejo pelas ruas do bairro da Floresta, tocando, dançando e
agregando a quem quiser ir junto, formando uma grande procissão com os brincantes, amigos
e moradores do bairro. Esta brincadeira vai até o dia amanhecer, na casa de gente amiga e
familiares, ou então em apresentações no circuito dos arraiais, promovidos pelo Governo do
Estado ou Prefeitura. É importante ter casas convidando o boi para brincar, significa um bom
relacionamento e elos com os quais o boi pode contar para dar movimento à brincadeira até o
dia amanhecer.
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Creio que mourão, moirão, esteio, peça de madeira compacta constituindo as ombreiras da porta do curral, qualquer tronco que
imagem de resistência, firmeza inabalável, provenha de mouro, moiro, no aumentativo, na idéia associada da solidez material. (CASCUDO,
2001:16).
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Esses cortejos são como procissões concebidas como “performances que se movem
através do espaço” (LIGIÉRO, 2003:84) com papéis e funções muito bem determinados;
apesar de parecer um movimento solto, estão presentes importantes códigos de comunicação e
entendimento para a comunidade.
Mc Namarra e Barbara Kirshenblatt Gimblett definem dois tipos de estruturas
nas performances procissionais: as organizadas formalmente em unidades em
ordem particular, com uma rota definida e com pouca troca física entre os
performers e os espectadores ao longo da caminhada, ou as que são
relativamente e informalmente organizadas, com uma rota indefinida e com
constante troca entre espectadores e performers, a qual transforma todos em
brincantes (players) no evento. (2003:97)
.
Este cortejo inicial do ciclo do boi é aberto para as pessoas que quiserem entrar na
brincadeira, o grupo sabe o caminho que vai percorrer, mas pode mudar no processo a sua
rota, porque é preservado um caráter da espontaneidade, permitindo abrir uma temporalidade
festiva, conectada com “outro universo”, das possibilidades que a surpresa pode oferecer. Ou
seja, essas procissões são performances que entrelaçam os dois tipos que
Mc Namarra e Barbara
Kirshenblatt Gimblett citam, porque pode mudar a todo instante a toda hora e a toda prosa, é uma rota
incerta, onde o jogo é o elemento principal da movimentação e o ritual é o que une, o que permite
agregar o coletivo construindo seus valores e sua história, apropriando-se de sua trajetória.
Este ciclo de brincadeiras intensas vai do dia 13 de junho até a culminância no dia de
São Pedro, dia 29 do mesmo mês, onde todos os grupos de boi da região visitam a capela do
Santo, localizada no bairro festivo e boêmio da Madredeus. É o dia em que os brincantes
chamam “da virada”, pois a intenção é que se vire a madrugada até o amanhecer do dia de São
Pedro, brincando boi, para homenagear e pedir a bênção ao Santo.
É uma festa muito impressionante que reúne todos os ritmos de boi do estado em um
único local, os sons das batucadas se misturam, hibridizam criando uma percussão única,
além de ser um ato de resistência pela festa, através da fé e da celebração. Os grupos
começam a aparecer no Largo de São Pedro na noite do dia 28 a partir das vinte horas, e
continuam até o dia seguinte à tarde, ininterruptamente.
Os espectadores participantes procuram seus bois prediletos de cada sotaque, é a
oportunidade de reencontrar um boi “do coração” e se despedir, porque a festa religiosa está
fechando o seu ciclo junino, além de ser o auge da festança. momentos em que o espaço
da festa está tão cheio, que não se consegue mais diferenciar quem é brincante ou quem é
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público, porque todas as pessoas fazem parte da mesma rede, como uma teia envolvendo os
participantes por inteiro.
É interessante ver a união de várias comunidades em proveito de um mesmo objetivo e
compromisso, é para São Pedro, é a continuidade de uma performance centenária.
Na capela de São Pedro não existe um sistema de organização de qual grupo vai fazer
sua performance dançante, é tudo ao mesmo tempo. Enquanto tem um boi brincando no meio
do Largo, tem um que está chegando, tem outro que está saindo por um lado, tem outro que
está chegando por cima da capela. É a maior festa junina maranhense, onde mais acumula
grupos e espectadores no mesmo local, dentre todos os dias das festas de São João. É
espontâneo, o acontecimento vai fluindo e é claro que há momentos que chegam a ter disputas
entre bois para saber qual está mais animado, “aguentando a pancada” da percussão a
madrugada toda. Percebe-se quando um boi começa a tocar a percussão mais alto e os
brincantes começam a gritar e dançar ainda mais animados, querendo contrastar a sua
chegada.
O amanhecer do dia de São Pedro é um momento que as pessoas vêm assistir e
participar do encontro, muitos vivem a emoção de passar a noite toda brincando no boi, e
outros presenciam e assistem a bravura da brincadeira que persiste e resiste na alegria do
coletivo, dando continuidade à tradição.
Desde o ano de 2001, brinco no Boi da Floresta e percebo que este dia tem uma
trajetória marcada pelas apresentações nos arraiais e depois nas casas de alguns parentes. A
última parada é no bairro onde reside um dos cantadores do boi, Seu Viana, em um
pequeno arraial. O boi se apresenta em uma praça e depois vai para a casa do cantor, que fica
ao lado do rio Bacanga. De lá a gente vê a capela de São Pedro toda iluminada e se escuta um
“bochicho” dos bois que já estão chegando no local do festejo.
Nesse momento da madrugada a brincadeira fica bem solta, o batuque não pode parar,
os brincantes estão com a indumentária incompleta, é um capacete de índia e um chapéu de
baiante que ficou guardado, é índia que resolveu dançar como cazumba, são os brincantes
experimentando tocar e dançar sem compromisso com coreografia e sua função determinada.
É um momento íntimo da brincadeira aguardando a hora de ir para a capela, além de ser a
ocasião para beber uma cerveja ou cachaça e tomar um mingau servido pelo dono da casa. O
som do apito do amo interrompe o momento solto da brincadeira, significando a hora de se
arrumar para chegar na capela, prestando as devidas homenagens a São Pedro.
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Nem sempre o Boi da Floresta amanhece, às vezes aparece na capela pela madrugada.
Antes de começar a brincadeira no largo, os fogos anunciam sua chegada e todos os
integrantes ficam entusiasmados mostrando a força da sua brincadeira.
A figura do boi e do vaqueiro sempre entram no interior da capela pedindo a benção
ao Santo, e às vezes mestre Apolônio, mesmo com sua idade de 90 anos, vai até a capela e
reza, mas tem ano em que ele não tem resistência, se sente cansado.
Antigamente a capela era bem simples e ficava em baixo no largo, depois do ano de
2002 o Governo fez uma modificação, colocando a capela em cima da ladeira, precisando
subir uma enorme escadaria ou caminho íngreme para chegar nela, o que dificultou para
muitos mestres de idade, mas o que mestre Apolônio diz é que o boi tem que cumprir a
obrigação de aparecer no largo para agradecer ao Santo; feito isso, o compromisso está
firmado.
O dia de São Pedro é o fechamento do compromisso religioso, amanhecer com uma
brincadeira de boi é como uma dádiva. É fazer parte de um movimento do início ao seu ápice,
completar uma madrugada inteira comprometida pela satisfação em estar na festa do boi, com
aquela irmandade ou coletivo específico, para dançar, cantar, tocar, beber e estar junto,
louvando a vida e homenageando os santos festeiros do mês de junho, desde Santo Antônio, a
São João, São Pedro e São Marçal, é uma realidade especial.
Nadir comentou, em uma conversa, que “aquela capela nova não foi pensada para os
boieiros, porque eles não se lembraram que alguns brincantes são de idade e não conseguem
subir aquelas escadas todas. Eu não tenho esses pecados todos para pagar e subir essas
escadas.”
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Mais uma vez percebemos como a manifestação cultural religiosa, toma um lugar
de importância menor do que o mercado turístico, fazendo com que o Governo modifique
uma capela de lugar, somente para valorizar a festa como espetáculo, pois o local onde ficou a
igreja permite a reunião de mais pessoas. E a forma como a brincadeira acontece agora traz
uma enorme arquibancada, modificando o espaço para uma organização de palco e platéia.
Podemos perceber como o mercado vai dominando as manifestações.
Após realizado o compromisso, o boi volta para sua sede, alguns brincantes se
espalham pela festa e outros vão descansar, pois no dia seguinte a brincadeira com
apresentações oficiais nos arraiais continua.
42
Conversa com Nadir Cruz, realizada no barracão do Boi da Floresta, em julho de 2004.
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Na manhã do dia seguinte, dia 29 de junho, começa uma procissão marítima com
vários barcos enfeitados, e um deles leva o andor com a imagem de São Pedro, santo protetor
dos pescadores. Nesse momento muitos fogos explodem no céu anunciando o movimento que
inicia a procissão da imagem.
Nessa mesma noite prossegue a contínua programação de muitos arraiais
43
espalhados
pela capital e em muitas cidades do interior do estado, com apresentações de bois e muitos
outros folguedos.
Na capital e em muitas cidades do estado, no período do ciclo religioso se incorporou
o ciclo dos arraiais com as apresentações, Abel diferencia a brincadeira no terreiro para a
brincadeira de apresentação, que tem tempo exato para durar e onde muita luz e pessoas
filmando e fotografando. Ele gosta de aparecer, mas sabe que a brincadeira acontece porque
tem uma crença e em São João, mas muita coisa vai virando moda, assim como o cazumba
que está nos outdoor, nos folders e cartazes de divulgação do período de festas juninas, mestre
Abel diz que tem “até boi de orquestra colocando cazumba em toada para dar ibope.” Nos
festejos juninos de 2008 estava com Abel em um arraial da cidade de São Luís, aguardando a
chegada do Boi da Floresta para uma apresentação, quando vimos e escutamos um boi de
orquestra cantando o seguinte refrão: “Balança a bunda que nem o cazumba.”
Este destaque é para fortalecer a imagem que a figura enigmática do cazumba foi
abrindo como referência e identidade para o São João no Maranhão.
No dia 30 de junho acontece a festa para São Marçal reunindo todos os bois de sotaque
de matraca: um grupo desfila atrás do outro, se apresentando como um cortejo na rua, tempo
de resistência ao cansaço de tantos dias, com festa e forte sol.
Quando termina o período junino se inicia uma temporada sem obrigações religiosas: é
o evento “Vale Festejar”, no Convento das Mercês, patrocinado pela Vale (empresa
mineradora) e organizado pela família Sarney, com apresentações fora da época tradicional,
aproveitando a presença de muitos turistas e apreciadores, no mês de julho, período de férias
escolares.
Esse evento caracteriza o momento em que a brincadeira e o ritual se transformam em
entretenimento, onde as pessoas vão assistir às manifestações, vão participar de um evento
social que não é mais ligado a nenhuma obrigação sagrada e sim uma brincadeira vendida, em
43
Espaços organizados pela Prefeitura e Governo do Estado, na cidade de São Luís e em algumas cidades do interior com
uma extensa programação de vários folguedos da região, com barracas de comidas típicas e área de apresentações.
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um espaço com grande palco e cadeiras para o público participar sentado, ou seja, cortando a
espontaneidade natural da interação dos brincantes com as pessoas que estão assistindo.
Nadir comenta que é um momento interessante, porque os grupos de boi vão assistir
uns aos outros, que durante os festejos juninos todos os grupos estão se apresentando em
variados arraiais. Alguns reclamam de ser palco e outros gostam porque traz um contexto
mais espetacular, com muita gente apreciando, além de câmeras de canais de televisão e
máquinas fotográficas.
O momento íntimo do “guarnicê”, da “brincadeira rolar solta”, acontece antes da
apresentação, quando os grupos estão esperando em um grande espaço atrás do convento, é a
hora do ritual da fogueira, “quentando” os tambores e puxando toadas, quando todos estão
compartilhando goles de “grogue”
44
, componente fundamental para sustentar o ânimo e
alegria da festa.
A bebida alcoólica é um elemento fundamental para manter a resistência e o
entusiasmo da brincadeira, existe até o personagem chamado “mandante da bebida” que vem
com uma bolsa cheia de cachaça, conhaque e vinho distribuindo entre os componentes. O
interessante é observar que ele tem critérios na quantidade e dosagem para cada integrante, ele
precisa animar os brincantes, mas não pode permitir que eles fiquem muito “alterados”.
No final de julho cessam as festas de São João, é o momento de ajeitar o que estragou, refazer
bordados de figurinos, consertar instrumentos, limpar o terreiro, sede do boi, iniciar uma leve
pausa de descanso para recomeçar a preparação para a festa de morte. O ciclo festivo é
contínuo e dinâmico, integrando-se com a vida pessoal e cotidiana de cada brincante, cada um
“a seu modo”.
4.3 A FESTA DE MORTE DO BOI: OS PREPARATIVOS, A PROGRAMAÇÃO E A
ORGANIZAÇÃO
A temporada com as festas de morte dos bois começa logo após o dia de São Pedro e
se estende até o final do ano, Cada comunidade toma suas decisões de acordo com suas
memórias e tradições. O Boi da Floresta realiza sua festa de morte no último fim de semana
de setembro e primeiro de outubro, e não existe um motivo aparente desta escolha, inclusive
44
Expressão utilizada pelos brincantes para falar da bebida alcoólica, normalmente aguardente de cachaça 51, catuaba,
conhaque de alcatrão São João da Barra, vinho ou cerveja gelada.
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se precisar mudar por conta de a data coincidir com outro acontecimento importante, eles
modificam. O importante é fechar o ciclo e dar continuidade à tradição, é perceber o valor que
agrega a festa de morte, é um fechamento de ciclo que abre para no ano seguinte dar
continuidade à brincadeira
.
A morte do boi é um ciclo contínuo, na idéia de “morte” fica embutido o valor da vida.
Esses questionamentos me fizeram recordar as conclusões de Regina Prado, no seu livro Todo
ano tem
45
, pesquisado na década de 70, a primeira dissertação sobre o assunto, onde ela
fortalece o sentido de que o boi vive em ciclo contínuo.
Se alguma conclusão se pode tirar a respeito do significado das festas, seria
justamente que elas se caracterizam por não exercer um papel conclusivo.
Muito ao contrário, o que as distingue é, como já vimos, seu poder de
regeneração e de reinstauração que repudia qualquer idéia de fim.
(2007:72).
O essencial é que essas festas continuem e se repitam, porque a cada ano seus
brincantes se renovam, garantindo o seu fortalecimento, através de muita alegria, e
disposição, assim como é importante a sociedade ter a regalia de conhecer as nossas festas
tradicionais brasileiras e perceber a consideração da memória como “região” privilegiada.
Por isso essas brincadeiras estão em constante dinâmica e reatualização dos seus
sentidos, sem perder a conexão com a tradição, mas repensando os valores no atual mercado
que envolve as culturas populares. Esta dinâmica é fundamental para manter o brinquedo vivo
e atual.
A matança do boi é uma irmandade e, ao mesmo tempo, a matança de boi é
uma separação de novo, a finalização de uma união. Com a morte do animal,
morre também fisicamente a irmandade. No entanto, é através desta morte,
desta separação que se afirma, que se apreende a união. Ela é um choro
resultado de alegria. (PRADO, 2007:183).
Ao morrer, o boi vai trazer a fartura das comidas que serão servidas, ao longo de sete
dias de festa; e o boi bordado de brincar, simbólico, se prepara para seguir os passos de sua
morte, que se chama comédia, matança ou auto.
No ano de 2005, alguns dias antes de a festa de morte começar, eu estava na sala da
casa de mestre Apolônio Melônio conversando sobre como era a morte e como a festa estava
hoje em dia e ele disse: “A comédia é a morte, colocou comédia para amenizar, porque você
45
Este livro é o resultado da dissertação de mestrado em Antropologia Social ao Programa de s-Graduação em
Antropologia Social do Museu Nacional (UFRJ), sob orientação de Roberto DaMatta. Aproveito para citar um trecho do
prefácio do livro escrito pelo professor e antropólogo Sergio Ferretti: “este trabalho de Regina Prado é, até hoje, considerado
por todos os pesquisadores do tema o melhor escrito sobre o bumba-meu-boi do Maranhão.” (2007:19).
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sabe que a morte é muito longa a representação”. O fato é que a representação da trama foi
perdendo espaço e agora a matança é a performance do batuque, das toadas cantadas com a
movimentação dos brincantes e uma encenação que fica mais no gestual, não mais os
diálogos entre os personagens da Catirina, do Pai Francisco, junto com o Doutor, atualmente
o que permanece é a dança simbolizando as ações do enredo.
Todo ano o grupo do mestre Apolônio sacrifica um ou até dois bois servindo de
alimento para toda a comunidade; além do simbolismo da morte do boi bordado, morre
fisicamente um boi.
Quando o boi foi trazido para a sede do grupo Boi da Floresta, que também é a casa de
Apolônio, onde o animal é abatido, a filha de Seu Apolônio, Talyene Melônio (2005)
comentou: “Ele entrou em casa sem muita resistência, sabia que ia morrer e curtia os últimos
momentos”.
Dizem que, na hora em que vão matar o boi, as pessoas não podem ficar com pena,
porque assim ele demora a morrer. Na madrugada, dois dias antes de a festa começar, o boi
morre com uma facada no pescoço, que o faz esmorecer, cair e ir morrendo. Todo ano surge
um monte de curiosos, interessados em ver se o boi é grande, gordo, se ele vai morrer rápido
ou vai ficar sofrendo.
Mestre Apolônio fala com alegria que o boi deste ano é mais gordo que o do ano
passado, e se satisfaz ao dizer a quantidade de animais que manda matar para o “seu povo”
comer durante a festa. Seu maior prazer como festeiro é poder proporcionar diversão e
abundância. Por isso todo ano, Apolônio compra 3 porcos, 50 kg de galinha, 10 kg de
camarão, 2 bois, além de cozinhar muito arroz, macarrão, feijão, maxixe, jerimum (abóbora) e
a farinha d'água da mandioca, presente em todas as refeições diárias. A intenção é que todos
se sintam satisfeitos e prontos para “brincar boi” todos os dias da festa. Todas essas comidas
são pagas com as economias das apresentações juninas, administradas e calculadas para todo
o ciclo de festejos.
Quando o boi morre, alguns brincantes ficam encarregados de cortar, separar e salgar
as carnes do boi, tirando o couro, que depois vai ser utilizado para encourar
46
pandeirões e as
parelhas
47
dos tambores de crioula. Durante a preparação da festa será distribuído
gratuitamente almoço e jantar todos os dias.
46
Cobrir, colocar o couro no instrumento para ser tocado.
47
Parelha é o nome utilizado para chamar os três tambores utilizados na manifestação do tambor de crioula.
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Antes de a festa começar, o grupo faz reuniões para decidir o andamento das
organizações, dividindo-se em várias funções para a realização desse ritual.
As tarefas são divididas através de funções e em distintas equipes como: benefício dos
animais
48
, cozinha, lenha, água, botequim, fichas e cerveja, limpeza, ingressos, revista de
mulheres, recolhimento de garrafas, segurança, responsáveis pela comida, portaria,
ornamentação (enfeites da mesa de bolos, as bandeirinhas e a feitura dos mourões e couro do
boi de pastilha), regente (são os mandantes da bebida, aquelas pessoas que têm a função
dentro da brincadeira de levar as bebidas e distribuir pelos brincantes), apoio, comissão
organizadora e administração (Figura 23).
Figura 23: Cartaz informando equipes da divisão de tarefas da Festa de Morte do Boi da
Floresta, setembro, 2005. Foto: Juliana Manhães.
O mourão é uma árvore, um pedaço de pau, que é todo limpo de folhas, ficando os
galhos, que vão ser enfeitados com papel de seda ou celofane, onde o boi vai morrer, depois
que for laçado pelo vaqueiro. O boi ficará preso junto ao “pau enfeitado” do mourão. Ele será
buscado em cortejo e trazido para a frente da casa de Apolônio (Figura 24). Depois do
48
São aqueles que ficam na função de matar o boi e depois dividir suas partes para as comidas da festa.
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“buscamento”
49
ele será fincado em um buraco feito no chão, simbolizando o equilíbrio e a
fartura da festa, criando também uma relação com o divino, o céu e a terra. No final da festa
ele será derrubado, as pessoas levam pedaços do mourão para guardar, dizem que sorte. O
que sobrar de madeira vira lenha para a fogueira, para quentar
50
a parelha do tambor de
crioula, que acontecerá no sábado seguinte da festa, finalizando a festividade do boi.
Figura 24:
Cortejo que leva o mourão da casa de Dona Maria para a casa de mestre Apolônio,
setembro, 2005. Foto: Juliana Manhães.
A morte do Boi da Floresta tem uma tradição, uma peculiaridade que é a morte de dois
bois: no domingo morre o boi grande, principal, com o couro do ano, o oficial Paz do Brasil, e
na segunda acontece a morte do boizinho, o boi dos cazumbas ou das torcedoras, como se
fosse o auxiliar do boi Paz do Brasil. Mestre Apolônio diz que a forma de brincar é a mesma
do domingo, mas os brincantes insistem em dizer que é mais animado.
Esta nomeação foi dada no mesmo ano em que o boi foi fundado, quem deu início a
esta história foram as mulheres, porque queriam ter um dia em que elas pudessem ter mais
liberdade de escolha. Elas continuaram organizando a festa, mas o nome firmou mesmo como
morte dos cazumbas, que na sua maioria são homens.
Inclusive, quando comecei a brincar não havia mulher cazumba dentro do boi,
disseram que muito tempo uma mulher de nome Augusta, esposa do cazumba mestre
Cândido, havia brincado. Como fui levada pelo mestre Abel, fui aceita e respeitada, mas
49
Expressão para explicar o momento de ir pegar o mourão da festa de morte do boi, é o momento de buscar o mourão na
casa de Dona Maria e levar para a frente da sede do boi.
50
Expressão que significa a ação de afinar os instrumentos na fogueira.
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alguns ainda me perguntavam porque eu não havia escolhido ser índia, que é mais bonita e
tipicamente uma coisa de mulher. Com o passar do tempo fui percebendo o interesse de várias
mulheres nesta figura do cazumba. Atualmente no grupo participam mulheres de fora e de
dentro da comunidade brincando de cazumba, mas continua sendo uma atividade
predominantemente masculina.
O jantar está sendo preparado, o terreiro está sendo enfeitado com bandeirinhas verde
e rosa, a cerveja está no gelo, tem uma caixa de som amplificada, microfone e refletores na
rua. É hora de aguardar a chegada dos convidados e brincantes do boi para ser oferecido o
jantar. O primeiro dia da festa de morte cai numa sexta feira, é o dia que termina ao
amanhecer!
Todos os dias da festa começam e fecham com uma ladainha, mas como cada vez mais
as pessoas estão perdendo o interesse em aprender a rezar a ladainha em latim, tem ano em
que não se consegue ter a reza na abertura e no fechamento. De qualquer forma, mestre
Apolônio e os mais antigos ainda se firmam na necessidade de ir até o altar fazer uma prece
de agradecimento por mais um dia de festividade.
A brincadeira do boi aguarda a chegada de um grupo convidado que vem dançar na
porta da casa de Apolônio para celebrar o encontro. No ano de 2005 foi um boi bem pequeno
chamado “Promessa de São João”, e no ano de 2006 foi o grupo de dança portuguesa “Amor
de Coimbra”.
É uma troca mútua de alegria, de receber e ser recebido. Mestre Apolônio fica sentado
em frente de casa recebendo os convidados, de vez em quando toma um gole de cerveja e
conversa muito com todos os que chegam cumprimentando-o. Ele observa a todos, tem o
domínio da festa, e de vez em quando chama um “pequeno”
51
para ver se estão fazendo
alguma tarefa que precisa ser executada naquele momento.
O grupo convidado brinca e depois vai jantar dentro do barracão, conversar com os
amigos do Boi da Floresta, e às vezes o grupo convidado, segue o boi nas suas andanças de
festa de morte de sexta para sábado ou depois de jantar vão todos embora.
Depois da reza, o boi sai em cortejo pelo bairro ou em dois ônibus lotados, que vão
circular pelas casas de pessoas que convidaram o boi para brincar, sabendo que vão brincar a
noite inteira, ou seja, vão dançar, cantar e tocar, mesmo que o corpo esteja exaurido,
esgotado; existe o pacto, entre os brincantes, de começar e fechar a brincadeira até o dia raiar.
51
Gíria, palavreado, maneira de chamar as crianças.
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momentos na madrugada, de uma noite para o outro dia, em que, se não fosse a
cerveja ou a cachaça para levantar, o cansaço dominaria o corpo, alguns param no meio da rua
“dormindo em pé”, mas aqueles brincantes que têm a obrigação de levar a boiada e seu grupo
até o final, dão sempre um jeito de sustentar o corpo e animar a brincadeira. Os festeiros, por
sua vez, têm o compromisso de fazer a brincadeira acontecer e para isso ficam tomados pelo
espírito da festa, trabalhando horas a fio sem cansar.
O último ponto de parada do boi é na casa de um mestre do boi de zabumba, Seu
Leonardo, que tem um dos bois mais antigos e respeitados pelos mestres e toda comunidade
“boieira”, no bairro da Liberdade, ao lado do bairro da Floresta. Nesse momento o céu
anuncia o início do amanhecer, significando o final da jornada do primeiro dia de festa. O boi
brinca na casa de mestre Leonardo e depois segue em cortejo cantando e batucando para a
sede do boi da Floresta, onde estarão pessoas aguardando a todos para servir o cozidão da
manhã.
Alguns voltam para casa e retornam à tarde para a busca do mourão, muitos brincantes
dormem em redes pelo barracão do boi mesmo, outros não dormem, carregados de
compromissos para a realização da festa ou por muita excitação festiva.
Nesse mesmo dia, sábado à tarde, o grupo se organiza para pegar o mourão, em
formato de cortejo, com batuque, dança e toadas o tempo todo. Sai a do bairro da Floresta
e vai até o bairro do Monte Castelo, atravessando ruas e avenidas com o batuque até chegar à
casa de Dona Maria, que estará aguardando com as outras mulheres, que a ajudaram nos
últimos quinze dias que antecederam a festa, cortando papel, fazendo enfeites e pregando no
mourão. São servidos água, mingau e descansa-se um pouco, para logo mais começar o
cortejo de retorno para a casa de Apolônio. Vários homens carregam o mourão até a sede do
boi, é um gesto cheio de cerimônias, ele é benzido, ao redor dele ficam brincantes
responsáveis e as torcedoras vestidas de verde e rosa (Figura 25).
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Figura 25: Derrubada e quebra do mourão a casa de mestre Apolônio, setembro, 2005. Foto:
Juliana Manhães.
Nesse momento o boi fica saliente e brabo, porque sabe que vai morrer, quando se
finca o mourão no chão, começa o ritual de matança do boi na frente da casa de mestre
Apolônio, sede do Boi da Floresta.
Na hora da brincadeira de morte forma-se um corredor, onde o boi vai ficar fugindo e
tentando escapar. Neste caminho estreito ficam de um lado as índias e do outro os caciques,
índios guerreiros, formando uma trincheira; os cantadores e tocadores ficam em um canto
fechando a passagem do corredor, no formato de uma meia lua, os cantadores ficam cantando
as toadas, que vão trazendo o contexto e o entendimento da situação do boi, o enredo e o
batuque seguram o ritmo incessante da festa. Enquanto isso, no meio desse corredor fica o
vaqueiro tentando laçar o boi com a corda, o boi foge e derruba as pessoas por quem ele
passa: neste dia ele não tem dó. E o cazumba fica dançando no seu movimento circular no
meio do corredor, ora atrapalhando o vaqueiro a laçar, tirando a corda do pescoço do boi ou
ajudando o boi para morrer, puxando a corda e tentando prendê-la no mourão.
Os vaqueiros são personagens que brincam ao lado do Boi, em uma viva
movimentação, uma espécie de bailado rústico, tipicamente masculino, visto
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que, até hoje, só os homens exercem esse papel. Eles estão sempre lidando
com o boi: se ele sai correndo, vão atrás, se ele se esconde, vão procurar...E
durante a morte do boi, o vaqueiro tem que mostrar que é bom de laço, na
sua habilidade com a corda na hora de segurar o novilho. (CARVALHO,
2007:50).
momentos em que muitos brincantes se desequilibram puxando essa corda e até
caem, instalando-se uma enorme euforia, através do jogo e da brincadeira em laçar e prender
o boi, para ele morrer. Nesse momento os cordões das índias e caciques permanecem com a
sua dança, mas os movimentos são mais soltos, cada personagem tem liberdade de trazer
outras possibilidades de movimentação e brincadeira, através de gestos e toadas cantadas.
Existe uma certa agressividade nesse momento da brincadeira, que até se confunde com a vida
real, o boi fica muito violento e nem liga se derrubar alguém ou não, mas o que prevalece é a
brincadeira em prender o boi no mourão. Fica esse movimento de prender o boi e ele se soltar
e, enquanto isso, o batuque e as toadas não param e as índias e os caciques começam a fechar
o corredor e dançar mais soltos e eufóricos para o boi, que dali a pouco será preso e morto.
Seja qual for o nome usado, se “matança”, “comédia”, “palhaçadas” ou “auto”, o
fato é que está se extinguindo a encenação e performance cômica do boi, seja no interior,
onde se encontra mais, ou na capital. Quando o governo se interessou em resgatar esses
personagens, apoiou os grupos com indumentárias e contratando grupos que tivessem a
encenação, se percebeu que alguns grupos começaram a fazer a encenação e introduzir os
personagens do Pai Francisco e da Catirina, que ficavam dançando e raramente
conseguiam que a comunidade fizesse a encenação com diálogos. Temos um olhar a esse
respeito sobre o movimento que vem de fora para dentro, pois com a movimentação de
turistas perguntando sobre o auto o governo solicitou para os grupos essa brincadeira, sendo
em troca remunerados.
Dizem que o auto do boi tem um enredo específico, mas o que encontramos é uma
diversidade de contextos relacionados com a comunidade da brincadeira e com a realidade de
cada momento. Muitas vezes os brincantes introduzem novos personagens e toadas, de acordo
com o que está acontecendo naquele ano. Por exemplo, na época dos Jogos Olímpicos, um
brincante do Boi da Floresta introduziu a figura da Daiane, ginasta, na música, como um sinal
de vitória e alegria para o boi e para o Brasil. Ou seja, o uso de imagens expostas na mídia são
integradas ao enredo do boi, no sentido de manter uma conexão com os acontecimentos
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daquele momento, permanecendo atualizados e informados com a situação presente,
integrando essas informações dentro das toadas do boi.
Depois de várias tentativas em que o boi escapole e foge, o vaqueiro prende o boi pelo
chifre com a corda e o puxa, com a ajuda de outros brincantes, e finalmente amarra o boi no
mourão com a corda. A toada narra o que vai acontecer na encenação, que hoje em dia é mais
gestual do que em forma de texto e diálogo.
Nesse momento acontece o sangramento do boi, pegam uma bacia e um garrafão de
vinho, simbolizando o sangue do boi e compartilhando entre todos os presentes que o bebem.
O boi fica deitado junto com o miolo
52
e depois é guardado. Antigamente, quando a estrutura
do boi era feita somente de buriti e juta, ficava mais barato, ele era todo estraçalhado,
destruído. Agora o material é muito mais caro, com bordados em veludo, miçanga, canutilhos,
não permitindo ser destroçado. Atualmente o couro do boi é preservado para ser brincado
durante vários anos ou os seus materiais são reaproveitados para outras indumentárias.
O batuque e as toadas continuam a ser cantadas e os cantadores antigos vão
recordando músicas dos outros anos e no final mestre Apolônio fala algumas palavras,
concluindo as celebrações daquele dia e direcionando depois para o altar, onde sempre
agradece e finaliza cada dia de festejo.
Mestre Apolônio Melônio comenta:
Se um camarada não coloca as toadas no lugar, não adianta ele saber e dizer
que sabe fazer a matança do boi, ele sabe as toadas mas não tem a técnica,
você tem que representar a música na hora certa, as palavras que você tem
que fazer, o gesto, você tem que fazer de acordo com o que está programado.
Se você faz uma coisa, o que é de trás você bota pra frente, o que é da frente
bota pra trás, é uma mistura. Matança de boi de rua com a representação
normal, nesse tempo era obrigatória, o amo tinha que saber fazer, era tudo
dentro da risca.
53
A matança do boi é uma experiência em que vigora o batuque, o canto e a dança,
através de gestuais carregados de sentidos sagrados. Todas essas linguagens entrelaçadas é o
que chamamos de performance, ação artística ou ritualística agregada a contextos festivos.
No dia seguinte, domingo, é o momento de buscar o mourão (o tronco da árvore
enfeitado) da matança do boi de cazumba, que a cada ano pode ser em um lugar diferente. A
movimentação e dinâmica é a mesma da brincadeira de sábado, mas no domingo os cazumbas
52
Miolo ou tripa do boi é o nome da pessoa que brinca dentro do boi bordado.
53
Entrevista com Apolônio, em sua residência no bairro da Floresta, no mês de julho de 2005.
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ficam mais eufóricos, como se fossem os responsáveis pela festa, causando muito “rebuliço”
entre os brincantes. Depois que se laça o boi e faz o gestual de prendê-lo no mourão, pega-se
um facão simbolizando o abatimento e uma bacia para recolher o sangue, que é representado
pelo vinho tinto. Dentro dessa bacia um copo, e um integrante vai passando o vinho por
todas as pessoas presentes, distribuindo o vinho e compartilhando o simbólico sangue de
morte do boi. Para em seguida começar um tambor de crioula misturado com o ritmo do
tambor de mina, um ritmo que nem consigo descrever de tão confuso, onde os cazumbas
ficam dançando e brincando na frente dos tambores e da igreja de Santo Expedito. Mestre
Abel diz que é o momento de agradecer aos ancestrais.
No ritual de morte do boi, cada um diz uma coisa sobre a função e compromisso do
cazumba dentro da brincadeira, mas o que importa é que ele age no sentido da graça, da
artimanha. Dizem que o cazumba ajuda o vaqueiro e o Pai Francisco a prender o boi para ele
morrer, mas dizem também que ele atrapalha o mesmo vaqueiro na hora de prender no
mourão.
O boi das torcedoras está se extinguindo e o boi mesmo é o de cazumba, a
gente faz a matança grande e no domingo faz a matança de mina das
torcedoras, os de cazumba. A matança era maior, a gente ficava cansado
mesmo, quase não dormia. Antes do boi dançar ficava Catirina, Pai
Francisco fazendo as palhaçadas, correndo atrás das crianças, e isso tinha
aquela quantidade de cazumba, e o Pai Francisco era o chefe, ele trabalhava
na hora. Depois a gente inventava que ele arrumava uma namorada, o
caboclo ia prender o negro Chico.
54
Depois de toda a encenação da morte no mourão, colocam-se mesas e cadeiras na rua e
começa a festa noturna com a seresta e o pagode, além das radiolas
55
de reggae que animam
os jovens.
Na terça-feira chega o momento de derrubar e quebrar o mourão, dando todas as
prendas que ficam presas nele e distribuindo cinco bolos de uma mesa toda enfeitada nos tons
verde e rosa.
Nesse dia muita gente não vai participar, pois é durante a semana, e alguns
perderam a importância do fechamento. Mas “os de dentro tempos” aparecem para jantar,
derrubar o “pau enfeitado” e mais tarde ainda tem seresta até de madrugada.
54 Entrevista na casa de Apolônio, no mês de julho de 2005.
55 Sistemas de som com equipamentos sofisticados, que dão o tom de festas que circulam das periferias aos bairros mais
elitizados. Atualmente a palavra radiola não simboliza somente a aparelhagem, mas também a organização de uma festa, um
salão de reggae. Para mais informações pesquisar Carlos Benedito Rodrigues da Silva. (1995).
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Na quinta-feira ainda tem noitada com som eletrônico, e para sábado, quando acontece
o tambor de crioula Prazer de São Benedito, do grupo Boi da Floresta, indo até o amanhecer
no terreiro do boi. Às onze da noite se faz a ladainha de São Benedito e serve-se café com
bolo para todos, na intenção de “dar uma acordada” e o tambor continuar até às seis da
manhã, e depois ainda será servido um cozidão.
No domingo, as mulheres torcedoras organizam a feijoada com som mecânico, é a
festa das cozinheiras. A festa vai se encerrando, alguns não aguentam mais de cansaço, outros
têm uma animação que não cessa, como se não aceitasse o fim da brincadeira.
É uma festa com muitas transformações, pois muitos cantadores não sabem mais
seguir o enredo da história. A sequência das músicas não tem mais o mesmo sentido, e como
muitos brincantes não escutam a toada, pois com o batuque alto não para ficar atento ao
entendimento das letras, muitos jovens brincantes ainda não percebem os motivos do
desenrolar da brincadeira. Os jovens integrantes do Boi da Floresta querem pensar e discutir
sobre esses saberes que precisam ser repassados, estão querendo entender mais, além da
observação diária na brincadeira. Essa necessidade dos mais jovens fortalece o interesse dos
mais velhos em passar as suas experiências de uma forma mais efetiva.
Por isso essas brincadeiras estão em constante dinâmica e reatualização dos seus
sentidos, sem perder a conexão com a tradição, mas repensando os valores no atual mercado
que envolve as culturas populares. Esta dinâmica é fundamental para manter o brinquedo vivo
e atual!
E assim o Boi da Floresta vai cumprindo sua missão de realizar ano a ano seu ciclo de
festejos, aprendendo a conviver com as transformações, mas sabendo cuidar e respeitar sua
história, através da sua brincadeira e todos os brincantes que fazem gerar esta incrível e forte
manifestação, que representa o bumba-meu-boi no Maranhão.
4.4 A VIAGEM COM MESTRE ABEL RUMO À SANTO INÁCIO
Nos tempos da minha infância, escutava falar de Abel pela minha mãe, que trabalhava
em comunidades periféricas de São Luís e no bairro da Liberdade, onde conheceu Seu Abel,
na década de 80. Nessa época, ele era tesoureiro da Associação dos Palafitados da Liberdade,
ainda não era conhecido como artesão de careta de cazumba, mas minha mãe diz que Abel
chamava atenção pela ousadia no que falava e pela forma diferenciada como se posicionava
em relação aos outros companheiros.
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Depois de um tempo, foi convidado por ela, a escritora e psicanalista Elisabeth
Bittencourt, para participar de um desfile, dançando sozinho de cazumba, em um encontro de
psicanálise, que falava sobre moda, no Centro de Cultura Popular Domingos Vieira Filho.
Nesse momento inclusive ela aproveitou a aproximação e a curiosidade para realizar uma
entrevista com Abel, que originou um dos primeiros escritos sobre o personagem, o artigo
“Cazumbá de Picasso”. Essa aparição do cazumba chamou a atenção e no ano seguinte, em
2000, a diretora desse mesmo Centro Cultural, Michol Carvalho, e o antropólogo Sérgio
Ferretti fizeram o evento “A Cena do Cazumba” chamando alguns interessados pelo assunto,
como Raul Lody, Padre Bráulio Ayres e Elizabeth Bittencourt para falar sobre esta figura que
estava começando a se evidenciar na cena junina maranhense.
Nesse mesmo ano de 2000 fui encontrar Abel na PUC, no Rio de Janeiro, dando
oficinas de confecção de careta de cazumba. Naquele momento não pude participar, mas
fiquei com muita vontade de me aproximar do mestre e fazer uma careta (máscara), sabia que
teria algum outro momento propício. No final desse ano, concluí a Faculdade com o curso de
Educação Artística – Licenciatura Plena, na Escola de Teatro na UNIRIO (Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro) e voltei a morar no Maranhão, propus ao mestre Abel
coordenar a oficina, e por três meses confeccionei minha própria careta e convivi com o
mestre, criando afinidades e cumplicidade afetiva, seguindo no mesmo ano como brincante de
cazumba do Boi da Floresta até os dias atuais.
Mestre Abel tem uma rede de admiradores, amigos, uma legião de aprendizes entre o
Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, como Maria, Vanessa, Gustavo, Clara, André,
Carlos, Flávia, Lucimara e Moana. Ele fica feliz com os jovens se interessando pelo seu
trabalho, gosta muito de conversar, “beber latinha”, tomar uma cerveja gelada e falar sobre a
sua vida, suas memórias, além de cantar toadas batucando com as tampinhas das garrafas,
fazendo um som como se fosse uma matraca.
Não pretendo nesta dissertação escrever detalhadamente sobre a trajetória de mestre
Abel, inclusive existe uma publicação com suas histórias, pela série “Memória de
Velhos”
56
, além do livro “Careta de Cazumba” e muitas entrevistas sobre sua trajetória e seu
jeito de pensar sobre o cazumba, conforme faço referência na bibliografia.
56
MARANHÃO, Fundação Cultural. Centro de Cultura Popular Domingos Vieira Filho. Org: Zelinda de Castro e Lima.
Memória de Velhos: Uma contribuição à memória oral da cultura popular maranhense. São Luís, Lithograf, V.7, 2008.
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O que interessa é como sua trajetória se entrelaçou no meu aprendizado e como suas
memórias trouxeram um sentido para as reflexões desta pesquisa. O ponto culminante e
fundamental nessa trajetória de Abel entrelaçada na minha vivência aconteceu em junho do
ano de 2008, quando fui pesquisar os cazumbas da baixada, em sua companhia, e o objetivo
final de chegar ao povoado de Santo Inácio, lugar onde nasceu e teve sua iniciação dentro da
brincadeira do boi, local onde acontece todo ano uma festa para São Pedro, onde estavam seus
familiares e amigos que ele não via há quase quarenta anos.
E para finalizar esses entrelaçamentos se faz necessário demarcar a ida de meu pai,
Luiz Manhães, antropólogo e educador, que em 1978 e 1979, trinta anos, foi nessa mesma
festa e povoado fazendo registros fotográficos de vários cazumbas. Luiz diz que lembra que a
região de Santo Inácio, dita por Seu Bernardo, era “Terra de Santo”
57
, mas cobiçada por
grileiros nos anos 60 e 70, como relembra uma toada da época (Figuras 26 e 27):
Sampaio queria ficar
Com Piunzá Rio dos Peixes
Cajual e Cajueiro
Santo Inácio até Três Palmeiras
Povo da Vila Nova
Falaram com padroeiro
Ô Sampaio tu não é mais que Deus
57
Terra de Santo porque era doada pela igreja, conforme informação falada em conversa com o antropólogo e educador Luiz
Manhães, no mês de maio de 2009.
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Figura 26: Cazumbas na Festa de São Pedro em Santo Inácio, 1978. Foto: Luiz Manhães.
Figura 27: Cazumba na Festa de São Pedro em Santo Inácio, 1978. Foto: Luiz Manhães.
Este processo foi curioso, porque Abel desejava retornar a sua terra muitos anos, e
conversávamos sobre essa possibilidade de um dia chegar a esse lugar de seu nascimento.
Mas quando marcamos o dia para viajar, Abel começou a dizer que estava com medo, ele
falava “será que já está na hora de eu morrer?” Como se retornar à sua terra, fosse também um
fechamento de ciclo, que também estava comemorando cinquenta anos de ser brincante de
cazumba e dizia que lá, em Santo Inácio, ele iria ser coroado como forma de homenagem.
É fundamental demarcar estas pontes e registrar esta viagem, pois foi nesse percurso
que pude perceber a complexidade da brincadeira do boi e do personagem cazumba da
baixada maranhense. A partir desse novo olhar minhas reflexões se ressignificaram,
ampliando outros sentidos do que eu já conhecia na capital.
As próximas páginas são um registro de cinco dias de viagem pela baixada, passando
pelas cidades de Matinha, Penalva e principalmente Viana, onde ficamos mais tempo e
também onde havia estabelecido uma rede de afetividade com os familiares de Abel e
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também com a Fundação São Sebastião, onde a partir de Dona Lourdes e Cláudio Costa
fomos acolhidos.
Essa viagem começou no dia 25 de junho, saímos de São Luís eu, Chris Alcântara,
parceira de trabalho e Cris Candal, caixeira curiosa do Rio de Janeiro, além de Abel e o
cazumba Fabriciano, que aproveitava a carona para ir a sua casa em Viana e brincar com seu
boi no interior.
Na estrada, eu estava na direção, e fomos conversando no caminho, tentando entender
a diversidade de povoados e grupos de boi pelo interior de Viana. Ainda estava confuso como
chegaria em Santo Inácio, e Abel estava preocupado porque não sabia mais os caminhos
como chegar, tinha receio de não se lembrar mais. Fabriciano já começou a explicar que ainda
havia vários pedaços do campo cheios de água, que não seria fácil passar com um carro
pequeno como o nosso, um Gol alugado. Viajar pelo interior do Maranhão é trilhar caminhos
do desconhecido, onde é preciso “escutar” o inusitado dos encontros, e se tratando de boi
estar atenta onde tem batucada.
O tempo agora estava sendo guiado pelos mestres cazumbas e foi se construindo a
cada dia, conforme quem a gente encontrasse. É momento de se desprender das facilidades da
cidade grande e se permitir viver na simplicidade de dormir em uma rede, “banhar” de poço e
comer o que tiver de fácil acesso, além de aguentar o ritmo que quase não pára durante os
festejos juninos, já que todo dia tem festa até o amanhecer.
Após quatro horas de estrada chegamos à cidade de Viana e fomos conhecer a casa do
cazumba Fabriciano, logo depois fomos à casa do irmão de Abel, que estava pelo boi e
voltava quando terminasse, no dia 30 de junho. O boi do irmão de Abel é da turma de Marco
Roque, a cada dia ele brincava em um povoado que o chamasse. Aliás, fiquei espantada
quando soube que existe um caderno de contrato e que muitos grupos de bois tem
agendamentos por até cinco anos, são compromissos com festeiros que vão pagar promessa,
chamando o boi para brincar. Essa antecedência também acontece por conta da difícil
comunicação, muitos brincantes não têm telefone fixo nem celular, e moram em povoados
distantes com acesso não muito facilitado, então o período do boi é o momento em que se
organizam para os anos seguintes.
No interior da Baixada, muitas turmas de boi fazem a brincadeira pela comida, bebida
e o transporte, tem cachê quando é uma apresentação pela prefeitura ou alguém de fora da
comunidade com mais poder aquisitivo. É comum no interior chamar os grupos de boi de
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turmas, e normalmente o nome do grupo é o do patrão ou amo, aquele que comanda a
brincadeira, ou o nome identifica a comunidade ou povoado de onde vem a maioria dos
brincantes.
No primeiro dia ficamos em Viana e pela manhã conhecemos a Turma de um boi de
crianças, chamado Boi Encantado, no qual fui informada que fazia parte de um terreiro de
mina da região, enquanto de noite encontramos a Turma de Paulo brincando na rua. Foi
interessante porque havia os brincantes, a batucada, mas não havia o boi. Fiquei perguntando
onde estava a figura do boi e os brincantes diziam que ele estava vindo da casa do dono da
brincadeira, que era ao lado de onde acontecia a manifestação. Fui a essa casa e avistei dois
bois cobertos por um pano, que foram trazidos pela “carregadeira do santo”
58
na frente
(Figura 28), e as índias que faziam um gestual de balançar o boi, se assemelhando a um
movimento de “ninar” o boi, estavam “guarnecendo”, preparando para começar a ladainha e
depois o boi entraria na brincadeira. Junto com essa movimentação a percussão “troava”
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continuamente e as índias gritavam, como se estivessem protegendo o boi e também
expressando a alegria pela chegada dele, além de todos empurrarem para estar perto e olhar a
figura central da brincadeira chegar, o boi.
Figura 28: Carregadeira do Santo, Turma de Paulo, Viana, junho 2008. Foto: Juliana
Manhães.
58
São mulheres mais velhas, antigas da brincadeira, que andam todas de branco e carregam um quadro com a imagem de São
João, e normalmente iniciam o cordão ou roda da brincadeira.
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Os tocadores não paravam de tocar os instrumentos, que faziam um grande estrondo, uma barulheira.
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Nunca havia visto tal preparação na capital, pude perceber como no interior os bois
estão mais livres para a criação de seus próprios rituais, sem estarem tão pressionados pelas
apresentações oficiais, eles vão recriando a brincadeira e trazendo autenticidade nas suas
invenções. Seus rituais são apropriados de inovação, legitimados por serem situados no local
onde se designa como a região de origem do folguedo dos bois da baixada.
As mulheres começaram a rezar a ladainha em frente a um pequeno altar com a
imagem de São João e uma vela acesa e depois desse momento sagrado, foi retirado o pano do
boi, aparecendo seu couro bordado e ele entrou na brincadeira (Figura 29).
Figura 29: Ladainha, Turma de Paulo, Viana, junho, 2008. Foto: Juliana Manhães.
Durante a brincadeira fui procurar alguns cazumbas que estavam se arrumando,
quando tive a enorme surpresa enquanto fotografava, de encontrar um cazumba que me
reconheceu do ano de 2001, quando fui para a cidade de Matinha, ver o encontro de bois e
acabei colocando minha careta e dançando com os outros cazumbas homens, tendo somente
eu de figura feminina.
É importante que eu descreva essa situação, pois essa experiência me fez perceber no
corpo o sentido de um corpo ritualizado, entregue ao “giro” da movimentação da roda do boi.
Eu estava muito envergonhada e com medo de entrar na roda do boi, mas uma amiga do Rio
de Janeiro, Shirley, do Teatro de Anônimo, me encorajou já me empurrando para viver aquela
situação.
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Nesse dia fui submetida a uma espécie de “licença” para poder entrar na brincadeira.
Quando viram que eu era mulher e dizia que brincava de cazumba, eles fizeram com que eu
me vestisse junto com eles e depois me ofereceram a cachaça deles. Tenho na lembrança que
era um garrafão de uns dez litros de cachaça e os cazumbas botaram o garrafão na minha boca
me fazendo beber, eu fiquei tonta com toda aquela situação, em estar em uma brincadeira
nova, com pessoas que eu desconhecia e além de tudo tendo que beber “água ardente”,
daquele jeito, no meio dos cazumbas.
Depois dessa situação fui levada para dentro da roda do boi e por fiquei dançando
mascarada e literalmente girando por umas três horas ininterruptas, que no interior os bois
ainda dançam em roda e girando. Foi uma experiência intensa, onde pude sentir na pele um
corpo ritualizado, onde o guia era o cazumba que estava na frente, puxando o cordão e a visão
que tinha era dos brincantes ao redor da roda. A cada volta se repetia essa visão, porém a cada
repetição meu olhar se ampliava e percebia detalhes diferenciados, até que a suspensão
corporal vai criando peso e o corpo vai dominando a situação da brincadeira. O que no início
era pura sensação foi virando um movimento mais consciente, mas carregado de jogo e
brincadeira.
Naquele momento pude entender como é um “corpo inteiro” dançando repetidamente
como se fosse “um transe”, sendo guiado pelos estímulos da movimentação, brincadeira e
batuque da roda. Este “corpo inteiro” se relaciona com a entrega à dança e à festa, como
aponta Graziela Rodrigues, na sua pesquisa do “Bailarino-Pesquisador-Intérprete” quando
analisa a movimentação de brincantes em manifestações populares: ela descreve este processo
do corpo pleno como “um corpo que exprime o cotidiano e a festividade”. (1997:31).
Voltando ao encontro com o cazumba Domingos, que me reconheceu em Viana,
lembro que foi um encontro caloroso. Ele quis que eu fotografasse sua careta, bata bordada e
sua esposa, convidou-me para brincar, mas expliquei que estava pesquisando e escrevendo
sobre os cazumbas, preferindo ficar de fora, observando. Ficamos filmando, fotografando,
observando e também entrando na roda para dançar “a paisana”
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até o corpo não aguentar de
cansaço, quase amanhecendo o dia.
No dia seguinte fomos tentar descobrir como chegar ao boi de Marco Roque e
soubemos que daria com um carro de tração nas quatro rodas, e somente no dia 28 é que o
boi estaria em Santo Inácio e que talvez de carro pequeno chegasse, mas que corria risco de
60
É quando o brincante está na manifestação sem o figurino do personagem, somente com sua roupa própria.
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atolar na lama. Nesse dia Abel reencontrou um antigo amigo cazumba, Honório Serra, que
contou que iria brincar no Boi Meia Légua (povoado da cidade de Matinha), na disputa do
encontro de bois em Matinha.
Fomos à noite para a cidade de Matinha, levei um susto quando percebi a quantidade
de gente e como a festa havia crescido de sete anos para cá. Encontramos o Boi Meia Légua e
entramos com eles dentro do local da apresentação, onde ficam os jurados e microfones para
os cantadores e o batuque da percussão.
Foi interessante observar dentro do espaço da apresentação o esforço dos brincantes
em tornar a brincadeira bonita, com agilidade na dança e força no batuque. É um momento de
competição, onde a brincadeira é séria, no sentido de contar pontos para vencer, o jogo da
dança continua existindo, mas se percebe uma preocupação maior em apresentar-se para os
jurados.
O esquema do encontro em Matinha acontece da seguinte forma: cada grupo vai se
apresentar dentro de um espaço específico, que é o miolo da praça, fechado com telas de
alumínio, e o público fica olhando de fora, e depois os grupos de boi, ficam ao redor da praça,
brincando até o dia amanhecer. Um grupo ganha um troféu e dinheiro como o mais bonito e
harmonioso na sua evolução. Os bois vivem três momentos: a expectativa antes da
apresentação, onde se preparam na formação da entrada, afinam seus instrumentos e
“calibram
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sua animação com uma cachaça da terra, feita por eles e levada em grandes
baldes e recipientes de plástico; o segundo momento é a apresentação, a brincadeira e a tensão
de querer que tudo funcione bem na representação da brincadeira; e o terceiro momento é a
brincadeira solta, onde o compromisso é com o grupo e São João, mas não é competitivo,
inclusive se percebe que muitos brincantes circulam de um grupo para o outro, a roda dos
muitos grupos de boi nunca para, mas acontece um revezamento dos brincantes para o
descanso. Essa movimentação acontece naturalmente, por necessidade de divisão de
espaço/tempo da festa (Figura 30).
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Expressão para falar que os brincantes estão bebendo para se animarem para a festa.
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Figura 30: Brincadeira do Boi Meia Légua na hora da apresentação para os jurados em
Matinha, junho, 2008. Foto: Christiane Alcântara.
Mestre Abel não quis colocar sua careta e brincar, preferiu observar, disse que sua
careta é pequena e preferiu ficar vendo como os cazumbas do interior estavam fazendo. Eu
fiquei observando a dinâmica dos grupos e a movimentação dos cazumbas, quase não vi
cazumba mulher, mas por acaso fotografei uma que disse ter que colocar a careta logo para
que ninguém a reconhecesse. Muitos cazumbas, com caretas enormes, depois do momento de
apresentação, deixam suas “caretas descansando” ao lado e continuam a brincadeira sem a
careta mesmo, muitas caretas enormes com estilo torre, feitas de isopor e armação de ferro,
mas também percebi muitas caretas de látex, de plástico (Figuras 31 e 32). Na madrugada
voltamos de carro para Viana.
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Figura 31: Cazumba mulher no encontro de Bois em Matinha, junho, 2008. Foto: Juliana
Manhães.
Figura 32: Caretas com material de látex, junho, 2008. Foto: Juliana Manhães.
No dia seguinte fomos à cidade de Penalva, atrás do Boi de Machado, grande
cantador de boi da região, apresentado por Honório Serra, através de um CD que ganhamos e
que Abel disse ser cantado do jeito que ele escutava antigamente. A viagem para Penalva foi
um “perrengue”, porque a estrada estava muito esburacada e era noite, com perigo de ter
animais na estrada e até de assalto. Demoramos quase três horas em uma viagem que poderia
ser feita em apenas uma. Chegando lá, não sabíamos onde seria a brincadeira e começamos a
perguntar, e a cada resposta fomos procurando e nos aproximando da sede do boi de
Machado. Era uma casa de barro, de frente para um lago, onde os brincantes estavam se
arrumando para ir brincar em um arraial próximo.
Fomos seguindo os brincantes até uma rua e chegamos no arraial do Beto, onde alguns
grupos iriam brincar e se apresentar. Conhecemos Machado, seu boi é chamado de Boi de
Saubeiro, em alusão ao nome de um povoado de Penalva.
Vimos a riqueza da diversidade cultural da Baixada e a força de cada turma de boi,
com sua crença e animação. Tivemos que dormir em uma pousada próxima e voltamos a
Viana no dia seguinte pela manhã, encontrando vários brincantes voltando para suas casas a
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e até um boi perdido pela estrada, indo se esconder, porque depois dessa festança o boi se
esconde no mato para ser procurado e depois morrer, na realização da encenação da matança.
Dia 28 de junho, pela manhã, minhas amigas voltaram para São Luís, porque queriam
acompanhar o dia de São Pedro na capital, e eu continuei minha missão rumo a Santo Inácio,
junto com Abel e agora com a presença de Santinho, filho de Neco, irmão de Abel.
Antes de partir, encontramo-nos com Honório, que comentou que no dia seguinte de
São Pedro, iria acontecer a morte do Boi Meia Légua no povoado de Santa Maria, no retorno
de Santo Inácio. Até no interior está difícil ver matança, na tese de Luciana Carvalho (2005)
podemos perceber a dificuldade que foi encontrar o tal auto, que os brincantes chamam de
matança ou comédia.
Abel estava tranquilo, pois havia alguém no carro que sabia o caminho e mostraria
como fugir dos obstáculos que encontraríamos na estrada. Fomos “na coragem”, e a maioria
falando que o carro não passaria. Foi uma aventura, a estrada era de terra e passamos por
vários pedaços onde rio passava, onde a lama predominava, chegando a atolar uma vez, mas
sendo ajudada por pessoas que passavam de moto pelo caminho. Eu apertava o acelerador e
seguia, muitas vezes Santinho e Abel desciam do carro para este ficar mais leve, quando
passava por grandes aguaceiros, e também para pisar na água sentindo a profundidade, cada
obstáculo passado era uma comemoração aos gritos, na crença que iríamos conseguir chegar.
Passamos por muitos povoados, conforme Santinho foi me explicando um a um.
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Quando Santinho mostrou que depois da próxima curva chegaria o povoado, foi uma
grande alegria, com direito a fotografia e agradecimento a São João. Chegando
encontramos logo Neco, Seu Nicolau, irmão de Abel, e vimos o mastro para a festa de São
Pedro, e Neco começou a falar da festa. “Hoje é a festa de São Pedro e São Benedito para
pagar promessa de índio que matava muita gente. Levantam mastro no dia de São João com
tambor de crioula abrindo a festa e fechando até amanhã de manhã” (Figuras 33 e 34).
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No caminho de Viana para Santo Inácio, cruzamos pelos seguintes povoados: Santeiro, Bahia, Capoeira, Retiro, Santa
Maria, Poção Grande, Muambo, Santa Rosa, Carão, Vila Nova, Três Palmeiras, Santo Inácio e Cajueiro.
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Figura 33: Abel, Seu Neco e Dona Margarida se encontrando em Santo Inácio, junho, 2008.
Foto: Juliana Manhães.
Figura 34: Mastro da Festa de São Pedro em Santo Inácio, junho, 2008. Foto: Juliana
Manhães.
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Mestre Abel não sabia dizer ao certo onde havia nascido, mas seu irmão disse que ele
nasceu entre o povoado do Cajueiro e de Santo Inácio, na cidade de Viana. E começou a falar
de Abel, que ele “conheceu o mundo no Cajueiro para se entender e clarear em Santo Inácio,
mas foi criado no povoado de Pau de Sebo”. Desde cedo trabalhou duro na roça de mandioca
e arroz, sendo criado por tios. A primeira vez que brincou boi foi no Cajueiro, começou a se
interessar pela brincadeira, mas sua tia não lhe permitia frequentar, teve que criar
independência com seu trabalho na roça para poder fazer o que queria. Seu irmão Neco
brincava no boi, mas como não moravam juntos, eles não iam para o mesmo local. Abel diz
que resolveu ser cazumba porque era mais barato, a roupa era o que tivesse, normalmente
saco de estopa de estocar arroz. E a careta era um pano com os furos nos olhos e boca,
diferente do baiante que tinha que ter veludo bordado e chapéu com pena de ema. E nessa
época, década de 40 a 60, no interior cada brincante arrumava sua própria roupa.
Na chegada a Santo Inácio, o som ambiente era o reggae e a situação festeira
dominava todo o pequeno povoado. Havia uma escola com o nome Teixeira, sobrenome de
Abel, comprovando que ali era a região de sua família. Havia também um terreiro de mina e
algumas casas de farinha, além de poucas casas residenciais, a maioria de barro, tudo muito
simples.
Começaram a cantoria dentro do barracão e casa do festeiro. Fizeram a roda, puxaram
toadas e depois foram dançar e tocar ao redor do mastro, ainda “à paisana”, sem figurinos. O
festeiro ofereceu e serviu quentinhas de jantar para todos os presentes. Depois todos se
arrumaram e o batuque recomeçou na frente da igreja, primeiro com uma ladainha e depois
com as cantorias e batucadas do boi indo em cortejo até o mastro, centro de toda a festa, onde
a brincadeira ficou rodando a festa inteira, até o amanhecer do dia (Figura 35).
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Figura 35: Brincadeira na Festa de São Pedro em Santo Inácio, junho, 2008. Foto: Juliana
Manhães.
Fui apresentada a Albino, do Cajueiro, primo de Abel, considerado o melhor cantador
de boi da região. Ele ficou cego e teve um reencontro com Abel, emocionante, percebendo
quem era a pessoa, através do que Abel falava. Conheci também Esteva, prima de Abel e
Dona Margarida, irmã da mãe dele, e era impressionante pensar que Abel não via essas
pessoas há quase 40 anos, era como se estivessem se conhecendo de novo.
Eu e Abel, às vezes, revezávamos e dormíamos no carro mesmo, mas antes de
amanhecer estávamos acordados e todos os brincantes virados e muito animados, os
cantadores me chamaram para filmar um garoto novo, que era cantador de boi e foi uma
cena de renovação e certeza de que a brincadeira não iria cessar, o cuidado e respeito dos mais
velhos com os jovens aprendizes.
Quando o boi parou de dançar e a batucada cessou, a fogueira estava com uma
parelha de tambor de crioula quentando, afinando, para cumprir o compromisso com São
Benedito, protetor das manifestações afro-brasileiras. O tambor não durou muito, afinal esses
brincantes já estavam em festa sem parar desde o dia 23 de junho, véspera de São João até dia
29, dia de São Pedro.
Sem muito descansar, voltamos com Neco, que dormiu a viagem inteira, Santinho,
Abel e eu. No caminho encontramos o boi de Meia Légua correndo para o mato e
perguntamos que horas iria começar a festa de morte, e eles disseram que iria demorar, eram
oito horas da manhã e diziam que começaria meio-dia. Eu pensava que novamente não
conseguiria ver, porque não daria para esperar tanto, estávamos com fome e não havia
comida, cachaça e conhaque, e o cansaço iria dominar. Mas como Santinho conhecia o
pessoal do boi, ele disse que eu gostaria muito de ver a festa e filmar, eles resolveram
começar antes e de repente vejo um boi saindo do mato, correndo pela estrada com um monte
de meninos indo atrás.
Nessa hora fiquei encantada com a cena, mas também com muito medo do boi, que
não tinha pena de chifrar e derrubar qualquer um que estivesse pela frente, no momento da
morte o boi muda seu gestual, ficando muito brabo e se defendendo de todos que querem
laçá-lo para prendê-lo no mourão.
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A movimentação inicial foi de correria do boi e de todos atrás dele, levantando uma
enorme poeira no ar. Havia alguns cazumbas e vaqueiros com corda, tentando laçar o chifre
do boi para prender, mas no início toda essa movimentação é uma grande brincadeira de
querer prender, porque mesmo acertando, depois eles mesmos tiram a corda para dar
continuidade à brincadeira de laçar e ficam gritando “êh boi, êh boi” para vê-lo se enfurecer
mais ainda e correr atrás. Enquanto acontece essa brincadeira os tocadores estão segurando a
percussão do boi e o patrão está puxando as toadas que exprimem o sentido do que está
acontecendo. Mas como a percussão é muito alta não consegui entender quase nada da letra
cantada, mas Abel foi me dizendo que as toadas traziam cada momento do boi, como ele
havia me dito uma vez, em uma conversa gravada na sua casa, onde estava tentando entender
o roteiro das toadas em uma matança de boi. Aliás, há questões da morte do boi que são muito
complexas e que não poderei neste momento esclarecer, pois existem vários tipos de morte:
morte de terreiro, morte de promessa, morte de estraçalhar o boi, porque também o boi
animal que também é morto para alimentar a comunidade que está na festa e o boi de
brincar, feito de buriti. Abel falou sobre a matança do boi:
Tudo era verso, verso, verso, da hora que começasse a sair pra buscar
mourão até a hora que a gente prendesse o boi. Era cantando, patrão
canta Vaqueiro vai atrás do boi, Laça o Boi Vaqueiro, Dá no Boi
Vaqueiro. quando termina isso, uns dez a quinze versos, aí cantava a
de Laçar o Boi. mete amola facão, que é pros nego trazer o Boi
para o mourão. Ele vem, ele sai um mocado, ele vem, saiu um mocado,
não deixa nunca a corda... Depois que a corda encolhe, tem uma outra
que canta, depois de “Amola facão”: “Ô sim, ô não, eu quero esse Boi
no mourão”, ô sim, ô não, eu quero esse Boi no mourão”. Depois da
furada do Boi, então eles cantam “Morreu, morreu, morreu”.
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Abel mostra na sua fala como ele conheceu a matança do boi no interior, mas reclama
que na capital nunca viu ser feito dessa forma. O fato é que Abel traz a importância das toadas
cantadas, como um roteiro da encenação, mas na realidade quase não se escuta ou se entende
o que está sendo cantado, só os cantadores e aqueles que ficam mais próximos é que sabem as
toadas cantadas.
O que mais me marcou foi a movimentação e a gestualidade dos personagens do
vaqueiro e dos cazumbas que executam o movimento de prender o boi, e como essa sequência
demora muito tempo, sendo repetida por muitas horas.
Participamos desse festejo, das oito da manhã até umas duas da tarde, e pudemos
presenciar o boi sendo preso no mourão e a corrida para pegar o carneiro, outra novidade para
63
Entrevista na casa de Abel, no mês de junho de 2005.
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minha experiência. Quando resolvemos ir embora os dois bichos foram presos e levados para
uma casa. Disseram que a festa iria durar a tarde inteira, até a noite. Chamou-me a atenção o
fato de todos os brincantes estarem “virados”, tomados pela brincadeira e sem nenhuma
comida, somente bebida alcoólica. A questão da resistência é um indicador de hierarquia
dentro dessas festividades.
Foi interessante poder capturar algumas imagens e começar a conhecer um pouco mais
desse fechamento de festejo, que é considerado a morte do boi, festa que conclui um ciclo
para no ano seguinte recomeçar.
Nesse mesmo dia, ao chegar a Viana, retornamos para São Luís, com um cansaço
enorme e uma sensação de ter vivido coisas inusitadas, pois mesmo sendo repetidas a cada
ano, o corpo absorve de uma maneira muito própria e a situação se restaura a cada festejo,
firmando o valor do conceito de “comportamento restaurado” dado por Richard Schechner,
que irei aprofundar no capítulo 4.
A intenção dessa descrição é para o leitor perceber as diversidades expostas na
realidade da pesquisa de campo, no momento da brincadeira in loco, e também poder refletir
sobre a força dos ciclos de festas juninas que acontecem todo ano pelo Maranhão inteiro,
imprimindo uma identidade plena de diversos sentidos que existem até hoje com muito vigor.
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5 UM CORPO QUE FALA: COISA DE CAZUMBA
Como estudar um corpo brincante que está sempre respondendo aos diversos
estímulos do jogo e do ritual?
Corpo embalado pelos sons de tambores que pontuam as pulsações dos movimentos, é
a percussão que dita o ritmo do pé no chão. Corpo que se move na espontaneidade da
brincadeira, porém com formações espaciais pré-determinadas.
Refiro-me a um corpo marcado por sua própria história, sua vida cotidiana, que traz na
sua gestualidade sinais do seu trabalho e suas espiritualidades. Muitas danças são relacionadas
com ciclos de plantação, colheita, atividades pesqueiras ou agrícolas. Um “corpo produzido
em um espaço ritual”, como comenta o pesquisador Zeca Ligiéro
64
, trazendo uma expressão
particular e uma ligação intensa e visceral com o mítico!
Podemos pensar neste corpo como estrutura física, que se locomove com os pés no
chão, criando uma espécie de enraizamento, relação intensa com o solo ou como um corpo
afetivo que acolhe memórias, trazendo marcas de natureza simbólica, expressando sua
experiência enquanto ser humano, a partir da sua movimentação corporal e desenvolvendo
uma linguagem específica.
Laban presumiu o corpo como mídia primária da cultura, ou seja, como o
primeiro meio de comunicação do homem em seu processo e contexto
evolutivo, e propôs que, como tal, este corpo possui uma linguagem, que pode
ser articulada de diversas maneiras e assim produzir diversos significados,
sempre reunidos sob a hegemonia do movimento. (MIRANDA, 2008:17)
(grifos do autor).
Essa linguagem corporal na brincadeira do boi aparece através da dança, das
batucadas, músicas cantadas, fazendo parte do ciclo festivo, estabelecendo também uma
ligação entre os brincantes e os espectadores.
Neste capítulo pretendo escrever sobre alguns elementos dominantes do personagem
cazumba. Sua indumentária composta da careta (máscara), bata e cofo (figurino) e seu badalo
ou chocalho (instrumento musical). Além de investigar a sua movimentação na dança, nomear
e decodificar seus passos, desmembrando suas partes do corpo em movimento, propondo uma
nomenclatura apropriada, a partir do linguajar utilizado pelos cazumbas e das experiências
absorvidas no meu corpo, assim como visualizar a maneira como o cazumba evolui na
64
A palestra “O conceito de ‘motrizes culturas’ aplicado às práticas performativas de origens africanas na diáspora africana”,
foi realizada em São Luís do Maranhão, no projeto “A Rota da Ilha”, em dezembro de 2008.
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brincadeira, as relações e interações que ele estabelece na roda do boi, com o público e outros
personagens.
Também tenho os objetivos de esmiuçar a questão da utilização da careta e os valores
do ato de se mascarar, explicitando o espírito transgressor e cômico da figura do cazumba, e
de perceber as interrelações do corpo estudadas por Schechner como performance, pois a
brincadeira propicia uma harmoniosa combinação entre o artístico, ritualístico e cotidiano
(2002).
Os cazumbas do Boi da Floresta são o foco da minha pesquisa, embora estude também
outros cazumbas dos bois da Baixada Maranhense, principalmente da cidade de Viana e uma
cazumba mulher do Boi Unidos de Santa Fé.
Os mestres e mais antigos cazumbas do Boi da Floresta acolhidos nesta pesquisa são
Abel Teixeira, Cândido Pinheiro, Fabriciano Campos e Bigu Melônio, os mais novos são
Cassiano Pinheiro Ferreira, Charles Henrique Ribeiro Mendes e as cazumbas mulheres
Lucimara Corrêa, Flávia Moura e Laís Silva do Boi Unidos de Santa Fé. Da cidade de Viana
conversei com Honório Santos Serra, Mauro e Raimundo Mendes (Nico). Esses cazumbas
foram escolhidos por fazerem parte da minha trajetória brincante, fiz questão também de
diversificar os estilos, utilizando idéias de cazumbas mais velhos, jovens e mulheres.
5.1 CAZUMBA OU CAZUMBÁ? E SEUS DIVERSOS SENTIDOS.
Cazumba ou cazumbá marca no seu próprio nome a dubiedade deste personagem do
boi da Baixada. A grafia modifica sua sonoridade trazendo algumas dúvidas e deixando as
pessoas intrigadas. Na minha pesquisa utilizo o termo cazumba grafado sem o acento, pois
assim foi repassado pelo mestre guia Abel Teixeira e muitos cazumbas que conheci na
Baixada Maranhense. No interior se fala mais cazumba e na capital cazumbá, ou foi essa a
maneira mais reconhecida e difundida pela grande mídia. Alguns pesquisadores chamam
cazumbá, como Raul Lody (1995) e outros cazumba, como Michol Carvalho (1995).
O antropólogo Sérgio Ferretti comenta que existem essas duas possibilidades de uso
da palavra desse personagem e, no artigo do Jornal Vagalume, comenta sobre a origem da
palavra cazumba:
Segundo Aurélio Buarque de Holanda, na língua Quimbundo de Angola
(macrogrupo etnolinguístico banto), a palavra cazumbi ou zumbi significa
110
110
duende, alma ou fantasma, que de acordo com a crença popular afro-
brasileira, vaga pela noite, amedrontando e fazendo travessuras.
(1993:33).
Em uma entrevista que estava realizando na casa de Dona Zelinda, em São Luís do
Maranhão, o pesquisador Carlos Lima comentou sobre a nossa conversa: “A mídia influi
demais, tem o benefício da divulgação, mas a mídia altera as coisas conforme a sua
conveniência, às vezes até descaracteriza”
65
. Nesse caso, essa indefinição em sua nomeação
fortalece a sua característica de dubiedade, porém os conceitos dados ao cazumba e sua
imagem tão utilizada na mídia do Maranhão são uma forma de destacar uma identidade
mística, usada para despertar o turismo cultural, conforme explicitei no primeiro capítulo
desta dissertação.
As interpretações sobre quem é o cazumba são bastante contraditórias. O pesquisador
Raul Lody (1999:14) se refere ao cazumba da seguinte forma: “espírito dos animais,
remetendo aos rituais dos caçadores nas florestas. Espírito que veio de outro mundo. Fusão
dos espíritos dos homens e dos animais”. Mestre Abel diz que esse “negócio de espírito” não
existe não, é invenção das pessoas, ele não sente nada de espírito ou magia. Dona Zelinda
66
diz que cazumba também pode ser considerado um morto que vive e Carlos Lima afirmou que
cazumba é um espírito, um duende.
no cazumba um estado hipnótico, pela sua figura estranha, que mistura elementos
antropomórficos na sua careta e seu corpo, portando um badalo que toca repetidamente, som
que faz relação com o divino, pela lembrança dos sinos de igreja e os ferros utilizados no
tambor de mina, uma espécie de alarme. Padre Bráulio Ayres diz que “é um personagem que
tenta personificar a imagem do mito” (1999:10).
Antes de começar o período dos festejos juninos, eu, como brincante da brincadeira do
boi, sinto a necessidade de comparecer à casa do mestre Apolônio e visitar o altar do Boi da
Floresta, pedir licença para São João e agradecer por estar mais um ano brincando de
cazumba. Tenho um compromisso em cuidar da minha vestimenta, colocando um bordado
novo, fazendo uma bata nova ou até expondo a careta para pegar um sol, ou seja, preparando
para a brincadeira, tentando trazer “movimentos” para aquela peça de roupa, que se a
protagonista de todo o festejo junino.
65
Entrevista filmada, na casa de Dona Zelinda e Carlos Lima, no mês de abril de 2009.
66
Conversa registrada com câmera Sony, em mini-dv, na casa de Dona Zelinda e Carlos Lima em abril de 2009, em São
Luís do Maranhão.
111
111
Quando vou brincar de cazumba, tenho a bolsa específica em que cabe toda a
indumentária e que depois ficará guardada, dentro do cofo, durante a brincadeira; costumo
colocar um sapato neutro, para não perceberem se sou mulher ou homem, levo água e alguma
fruta ou biscoito para sustentar toda a noite de festejos. Dias antes de começar as festas de São
João, gosto de tomar arnica para os músculos aguentarem a “pancada” de tantos dias de festa,
porque vivi situações de ficar completamente doída a ponto de não conseguir levantar,
depois de uma noite com cinco brincadeiras. Essas são algumas de minhas preparações, coisas
simples do cotidiano de uma brincante, que também trabalha com o corpo como atriz e
dançarina. também as crenças, como gostar de acender uma vela antes dos festejos, para
clarear e fazer fluir as brincadeiras ou ir se vestir com os cazumbas mais antigos, como Abel e
Cândido do Boi da Floresta, na intenção de escutar suas histórias e me emaranhar nas suas
tradições e jeitos de fazer, nesse processo de “vestir o cazumba” e brincar.
No final das brincadeiras existe um cansaço que não é somente físico, mas também um
esgotamento pelas obrigações realizadas na brincadeira. Cada dia de festejo é como uma
missão realizada, como se a pessoa emprestasse seu corpo para a brincadeira, um grande
desgaste emocional.
A figura do cazumba traz um estado de “espírito” diferenciado, que transita entre
momentos de muita excitação e arrebatamento, provocados pelo aceleramento da respiração
dentro da careta, a rapidez e repetição na dança, além de um estado irônico e zombeteiro pelas
artimanhas e brincadeiras que desenvolve com os outros brincantes.
Conversei com dois cazumbas jovens do Boi da Floresta, que moram no mesmo bairro
do grupo do boi, Cassiano Ferreira e Charles Mendes, e eles comentaram o que acham do
cazumba e percebe-se que a definição de quem é o cazumba é bem ampla e pouco delineada
pela própria comunidade de brincantes. Cassiano diz que “o cazumba pelo que eu entendo, é
como se fosse um feiticeiro, e com o chocalho tenta curar o boi quando adoece, assim como o
pajé” e Charles diz que “é aquele que espanta os espíritos maus, que quando eles cortam a
língua do boi é ele quem ressuscita essas coisas assim” (Figura 36).
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Figura 36: Cazumba Charles do Boi da Floresta, junho 2008. Foto: Juliana Manhães.
Quer dizer, o cazumba tem um espírito que é capaz de afastar coisas ruins, como um
feiticeiro ou pajé com poderes de cura e divinatórios, dizem que é por isso que ele é o
primeiro a abrir a brincadeira dos bois da baixada, é como se ele pudesse dar a licença para a
brincadeira começar. Do mesmo modo, tem um temperamento infantil que aparece no
discurso do cazumba Cassiano do Boi da Floresta:
O cazumbá, ele é cheio daquelas brincadeiras assim, ele gosta de fazer aquelas
macacadas, puxa uma molecada, ele toca o chocalho dele, ele é um
personagem meio que extrovertido, bem alegre mesmo, bem animado, um
personagem que sempre ali ao redor, fazendo brincadeira, bem divertido, é
bacana.
67
No dicionário Houaiss a palavra “cazumbi”, traz sentidos relacionando a figuras de
alma, espírito ou fantasma, assim como espécie de mascarado comum no século XIX. E a
palavra zumbi, além de ter o sentido do título dado a um chefe de quilombo, traz a conotação
de uma alma que vagueia na noite.
O cazumba pode ser homem, mulher, bicho, espírito ou também não ser nenhuma
dessas coisas, ele transita entre essas posições e ocupa um lugar de fronteira, onde as margens
e limites não são muito determinados e por isso podemos dizer que ele fica no reino do entre,
entre o céu e a terra, entre os deuses e os humanos, são como mensageiros. São aqueles que
abrem a brincadeira, formando a roda, assim como os últimos a encerrar, são seres que fazem
a ligação, como os Exus nos cultos afro-brasileiros.
67
Entrevista filmada, no barracão do Boi da Floresta, no mês de junho de 2008.
113
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A cazumba Laís Silva, do Boi Unidos de Santa Fé, diz que “ninguém percebe se é
homem ou mulher, que ela enganou várias pessoas nas brincadeiras juninas, vai de tênis e
toda coberta para ninguém perceber. Diz que ele é indefinido, mas tradicionalmente ele é um
personagem masculino”.
68
Abel conta que “antigamente” não tinha mulher cazumba no boi,
mas que muitas delas brincavam escondidas, com bata emprestada. “As pessoas pensavam
que era a gente brincando, mas eram elas, namoradas, irmãs, primas e a gente dava a vez para
elas”.
Na Baixada Maranhense, até nos dias atuais, é raro ver uma cazumba mulher
brincando, se houver, elas costumam não tirar a careta em nenhum momento para não serem
reconhecidas. Na capital, começou a haver cazumbas mulheres de dez anos para cá, o Boi da
Floresta foi um dos primeiros a permitir a participação feminina. Na época em que eu
comecei a brincar de cazumba, no ano de 2001, não havia nenhuma mulher cazumba, mas no
ano seguinte começou a haver cazumba mulher da comunidade e logo depois a vir mulheres
de fora da comunidade para brincar. Dona Maria Augusta é esposa do cazumba Cândido, ela
brincou por alguns anos, mas logo deixou a brincadeira, ela diz que “o cazumba não se
aprende, se vê e se faz”.
69
Tempos depois, Creuza, mulher do cantador Anastácio, também foi
cazumba, mas não tenho registros sobre a sua experiência na brincadeira. De qualquer forma é
visível perceber que mulher vestida de cazumba é raridade e para muitos ainda existe um
preconceito, como se não fosse um lugar para ser ocupado pelo sexo feminino.
Figura 37: Cazumba mulher no Boi da Floresta, julho 2008. Foto: Juliana Manhães.
68
Entrevista na casa da brincante Laís Silva, em junho de 2008, em São Luís do Maranhão.
69
Entrevista realizada na casa de Dona Maria Augusta e mestre Cândido, no mês de janeiro de 2009.
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O cazumba canaliza o sentido atemporal na brincadeira do boi, é o grande responsável
pela vida do boi, bem como pode encontrar soluções para ressuscitá-lo. No interior o cazumba
se funde com o papel do Pai Francisco, do patrão da brincadeira ou até mesmo rezador da
ladainha. O Pai Francisco ocupa a função de cantar todas as toadas da matança do boi, além
de comandar a brincadeira. É um personagem tão importante no interior, que muitos
cazumbas são também os amos e chefes dos grupos, além de terem também grupos de
cazumbas que vão brincar no grupo que quiserem.
Mestre Abel gosta de dizer: “cazumba é pra fazer rir! E não adianta querer explicar
muito se não perde a noção da coisa”.
70
Essa afirmação do mestre traz a força de que é mais
importante viver a brincadeira do que entender, pois a lógica pode se perder quando achamos
que encontramos a noção correta, que o cazumba transita nas suas possibilidades e não é
importante o que está certo ou errado. o mestre Cândido, com seus 71 anos, diz que “o
sentido de ser cazumba eu ainda não descobri esse segredo, falta eu fazer o seguinte,
conversar com os mestres antigos” (Figura 38). Ou seja, o sentido está na tradição dos
ancestrais, algo que não pertence ao presente e por isso ocupa o território do sagrado, do não
dito ou reconhecido como humano.
Figura 38: Mestre Cândido e sua careta do Boi da Floresta, junho 2008. Foto: Juliana
Manhães.
A experiência do sagrado seria uma tentativa de: “substituir o isolamento do ser, a sua
descontinuidade, por um sentimento de continuidade profunda” (BATAILLE, 1987:15). Os
70
Entrevista realizada na casa do mestre Abel, no mês de setembro de 2005.
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fundamentos estão marcados pelas gerações mais antigas, é a continuidade dessas tradições
que permite captar as mais profundas experiências do sagrado, é através da coletividade que
se marca a força e o sentido das festividades e encontramos esse “espaço ritual”, onde
predomina no corpo a potência das nossas ancestralidades.
Abel acredita que quem diz o que é o cazumba é o outro que está olhando e não o
cazumba em si, o brincante. Ele diz: “Quem sentido é o outro. Eu faço a careta, acho que
parece com um cachorro, mas não digo nada. Aí quando alguém fala: ‘olha, parece um
cachorro’, eu começo a latir” (BITTENCOURT, 2003:5). O cazumba aproxima-se portanto
da idéia de performing art. Pois acontece diferentemente do teatro ortodoxo, que possui a
idéia clara de quem é o personagem. o cazumba é múltiplo, humano e animal, permite que
cada espectador complete com a sua imaginação e seu repertório de imagens, assim o
redefinindo de acordo com a sua própria concepção a partir do contexto em que vivencia a
performance do cazumba.
71
A performance do cazumba só acontece por ser apropriada de interação com o outro. É
nesse sentido que Abel marca a importante participação e influência de quem descreve o que é
o cazumba é a pessoa que está olhando, que o brincante está apropriado do sentido de “ser”
e não de querer entender ou decifrar, normalmente quem está fora da brincadeira é que quer
dar sentido para ela, pois quem está dentro, está preenchido de pertencimento e sentidos
emaranhados na importância do jogo.
Esses conhecimentos de cazumba acontecem de forma espontânea e dependem muito
da relação de cada brincante com a brincadeira e seus mestres, como normalmente não
ensaios para cazumbas, eles aprendem fazendo.
O cazumba tem na sua originalidade a sua potência, como escreveu a psicanalista
Elisabeth Bittencourt (2000:2). Apropria-se do seu estilo de brincar, traz na sua careta
72
e
bata
73
sentidos para a sua brincadeira, o seu propósito está carregado de intenções articuladas
pelo performer, que atua brincando e vivendo essa relação do tempo festivo como
necessidade primordial.
A sua potência está na estranheza de sua careta e indumentária, assim como na graça
de sua gestualidade expressa na sua dança e comunicação dentro da roda de brincadeira do
71
Entrevista com Zeca Ligiéro em julho de 2009.
72 Sinônimo popular de máscara, a falsa cara. Encaretados, mascarados. A careta de cazumba pode ser de madeira paparaúba ou tecido, toda enfeitada de canutilhos e miçangas. Bata ou
farda é a roupa que o cazumba usa.
73 O figurino é chamado de bata ou farda, tendo o corpo todo coberto, só aparecendo as mãos e sapatos, no lugar da bunda é colocado um cofo, feito de folha de carnaúba.
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boi, onde cada personagem tem uma liberdade que imprime seu estilo pessoal, ou seja, sua
originalidade em potencial. A obrigação do cazumba é com a sua liberdade, como afirma a
cazumba Laís, do Boi Unidos de Santa Fé, de sotaque da baixada, na capital maranhense:
Um compromisso é a brincadeira, é a palhaçada, é a questão do
cazumba ser o que fazendo arruaça, vacilou ele faz uma brincadeira,
esse é o compromisso dele enquanto cazumba, porque ele não é aquele
de ficar ali na questão da coreografia, a liberdade é o compromisso.
(janeiro, 2008).
É interessante pensar que a obrigação do cazumba está no seu poder de fazer graça, ou
seja, de transgredir as regras, trazendo sua liberdade como fator primordial. E toda essa
brincadeira, tem como princípio o seu jogo, ou seja, sua potência de interagir com o outro de
forma divertida e espontânea, com o corpo vivo e atento.
5.2 INDUMENTÁRIA: BATA, COFO, CHOCALHO E SUA CARETA
A indumentária cria um segundo corpo, uma nova pele, não se trata de vestir alguém,
mas de literalmente construir a coisa com um corpo chamado cazumba. Essa roupa indica um
gestual, sugerindo ou interferindo na movimentação da brincadeira. Será que é o figurino que
determina a dança ou os movimentos se adaptam na roupa?
Os materiais escolhidos para a roupa trazem um peso que influencia na intensidade e
no esforço empregado pelo brincante.
Cada cazumba tem a sua careta, cada máscara é imbuída de sentidos individuais, assim
como a escolha da bata, a pintura da roupa é decisão de cada brincante que brinca de
cazumba.
Um cazumba que dança no Boi da Floresta e também brinca no Boi Meia Légua na
cidade de Matinha, chamado Fabriciano Campos ou “Cai na Piscina”, é um cazumba muito
inovador, carrega uma espingarda e tem um relógio enorme em cima da careta; ele afirma: “o
relógio é para os outros saberem as horas durante a festa” (Figura 39).
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Figura 39: Cazumba Fabriciano no Boi da Floresta, junho de 2008. Foto: Juliana Manhães.
O cazumba Mauro, do bairro Citel, em Viana, comanda o seu grupo de boi e usa
uma indumentária que foi sua invenção, usa a bata e o cofo do cazumba, mas na cabeça utiliza
um chapéu bordado de amo e dono da brincadeira. Mais uma vez evidenciando a força de suas
inovações, sua liberdade e o hibridismo de sua figura (Figura 40).
Figura 40: Cazumbas Mauro, Fabriciano e Abel em Viana, junho 2008. Foto: Juliana
Manhães.
A roupa do cazumba é chamada de bata ou farda. Na Baixada Maranhense se fala
mais farda, já na capital se usa mais a palavra bata. Essa vestimenta tem o corpo todo coberto,
assemelhando-se a uma túnica de padre, um “vestidão”, aparecendo as mãos e sapatos. E
existe cazumba que usa luvas ou garras para não ser reconhecido nem pelas mãos.
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No Boi da Floresta, mestre Apolônio orienta pintar na parte de trás da bata do
cazumba uma imagem de Santo Católico. E cada cazumba coloca o Santo de sua devoção ou
aquele que se quer homenagear. Alguns utilizam símbolos da natureza, como estrelas, sol e
lua, figuras públicas como políticos e artistas, figuras mitológicas como sereias, unicórnios, os
símbolos dos escudos de clubes de futebol ou imagens que representam alguma festa, como a
coroa e a pomba da Festa do Divino Espírito Santo.
Na parte da frente da bata, costuram panos, fitas, ou aplicam bordados, feitos de
canutilho e miçanga, mesmo material que o couro do boi. Antigamente, as batas eram de saco
de estopa; atualmente pode ser de brim, veludo, chita ou algum tecido bem colorido. Na parte
ao lado da bata, ficam as nesgas
74
, que abrem espaço para o cofo do cazumba.
No interior, na Baixada Maranhense, uma forte predominância de batas muito bordadas
que são bem mais pesadas e muito brilhosas. O processo de sua produção demora em torno de
cinco meses ou mais, e custam em média oitocentos reais, de acordo com o cazumba bordador
Walace, da turma Proteção de São João. Apesar do pouco poder aquisitivo dos brincantes,
eles conseguem mudar de bata quase todo ano (Figuras 41 e 42).
Figura 41: Cazumba Walace em festa da cidade de Viana, julho 2008. Foto: Juliana Manhães.
74
Segundo o dicionário Houaiss, nesga é um pedaço de pano triangular que se costura entre duas partes de um vestuário para
aumentar sua largura. E no caso da bata do cazumba, ajuda na abertura para o cofo, e é mais um local para enfeitar com
bordados e panos coloridos.
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Figura 42: Bordados na bata Turma de Paulo em Viana, junho 2008. Foto: Juliana Manhães.
O compromisso em trocar a indumentária todo ano é sério, não para impressionar e
querer ser o melhor, mas principalmente para inovar e não ser reconhecido. Há muitos
brincantes homens que bordam sua própria bata. Mestre Cândido, do Boi da Floresta, faz
muitas batas para a brincadeira. Ele comentou, na sua casa, sobre quando começou a
confeccionar:
Fiz uma farda pra mim, eu costurei ela na mão, não tinha máquina, foi na mão.
tem uma planta, que sai uma flor, como se diz, um cacho, um lilás e outro
vermelho; tirava aquele suco da fruta, e com o pedaço de folha da
juçareira
75
, cortava para poder pintar. A farda é essa chita disfarçada que a
gente faz. (junho, 2008).
Não existe um concurso oficial de qual é o melhor cazumba, mas se percebe entre eles
que a concorrência fortalece para os brincantes investirem na sua indumentária, tanto na bata
quanto na careta.
Eu estava fazendo o registro para minha pesquisa de campo, quando mestre Abel
reencontrou esse amigo cazumba, dos tempos em que ainda não tinha se mudado para a
capital. E foi muito especial conhecer e ouvir suas histórias, já que é um brincante do qual
muitos familiares também fazem parte da brincadeira do bumba-boi. Honório Serra diz que
75
Juçara é a fruta da árvore Juçareira, muito encontrada nas regiões alagadas do Maranhão e do Pará. É mais conhecido na
região Sudeste e no Pará como o Açaí.
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ele sempre ganhou em primeiro lugar, sendo o titular por muitos anos, porque sempre inventa
alguma coisa diferente (Figuras 43 e 44):
Não é disputa, o faço desafio com ninguém, faço o meu modo de
comparecer com meus amigos, todo mundo espera, quando vão para a boiada,
que sabem que eu brincando boi. Todo mundo vai para me olhar. Eu tenho
uma torcida grande já aqui em Viana, mas lá onde eu morava, a minha torcida
era tipo a do Flamengo e do Vasco. (julho, 2008).
Figura 43: Cazumba Honório Serra e o cantador Machado, Matinha, junho, 2008. Foto:
Juliana Manhães.
Figura 44: Cazumba Nico do Boi Urubu, São Luís, julho, 2008. Foto: Juliana Manhães.
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Nico, cazumba do Boi Urubu, da cidade de Viana, lembra da época dos seus avós e
comenta como era antigamente:
Hoje mais difícil, diferente, porque naquela época o cazumba brincava,
era graça, era pra se divertir, hoje é mais luxo, não tinha essa roupa bordada,
esse brilho todo, hoje cada um quer ser melhor do que o outro, tem gente que
passa quase o ano todinho se aprontando pra brincar esses oito dias, na
baixada são oito dias. (julho, 2008)
76
.
Atualmente o cazumba e o grande público valorizam o brilho, mas essas mudanças
interferem na intensidade da brincadeira, porque quanto mais pesada a roupa, mais rápido o
brincante fica cansado na brincadeira.
Antigamente não havia bordado na roupa do cazumba, ficavam mais à vontade para
fazer o seu jogo: se atirar no chão, se lambuzar na lama, correr para o mato. Os brincantes
dizem que, nessa época, década de 50 e 60, os cazumbas eram mais soltos e loucos, correndo
atrás de jumento, porco, cachorro e atrapalhando na hora da ladainha.
Nos tempos presentes o jogo continua, pois ele é a base da brincadeira, mas sua intensidade
está no molejo, no seu gingado e sua coreografia da dança e valorizando o “bando” de
cazumbas unidos, dentro da roda do boi (Figuras 45 e 46).
Figura 45: Cordão de cazumbas na Turma de Paulo, Viana, junho, 2008. Foto: Juliana
Manhães.
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Entrevista filmada com câmera Sony, no fundo do Convento das Mercês, durante o projeto Vale Festejar, antes da
apresentação do Boi Urubu, em julho de 2008.
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Figura 46: Cofo do cazumba. Foto: Juliana Manhães.
Um cofo de palha, feito da folha de carnaúba
77
, preso na altura do quadril, com uma
espécie de cinto ou pano, no lugar da “bunda”, traz uma protuberância enorme, que balança
de acordo com o movimento que o cazumba faz. Inclusive, alguns colocam dentro do cofo
pedras, garrafas de bebida, e até mesmo a sua própria roupa para pesar. Esse peso facilita na
dança, no sentido de trazer um equilíbrio ou precisão para o movimento, o peso ajuda no
balanço da pélvis. Tem cazumba que precisa tomar cuidado com o peso que carrega, já
aconteceu com alguns brincantes de cazumba adoecerem dos rins, por ficarem muito tempo
brincando boi, com peso do cofo na cintura.
Abel diz que o cofo serve para “abrir o desenho” da bata, o fato é que mesmo antes de
existir pintura nas batas dos cazumbas, existia esse objeto amarrado na cintura dos
brincantes, ele podia ser um pedaço de madeira ou de papelão, mas esse formato sempre
esteve presente, trazendo uma graça malemolente na sua dança e uma figura exótica.
O cofo dos cazumbas é chamado por eles de cofo-mala, é também um objeto usado no
dia a dia para transportar ou vender camarão seco, farinha, frutas, peixe e muitos alimentos
presentes nos mercados e feiras locais.
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Funciona também como uma bolsa para o cazumba
77
Segundo dicionário Houaiss, Carnaúba é uma palmeira solitária de até 15 m (Copernicia prunifera), nativa do Nordeste do
Brasil, de folhas palmadas e bagas ovóides; carandá, carandaúba, carnaíba, carnaubeira, coqueiro-carandaí, pau-do-
bebedouro [Seu produto mais importante é a cera, obtida das folhas; a madeira é us. na construção; o fruto tem polpa
comestível, us. em doces e farinha; da amêndoa extrai-se óleo; as raízes têm propriedades depurativas e, reduzidas a cinzas,
substituem o sal de cozinha.
78
Jandir Gonçalves e Wilmara Figueiredo, por meio da Comissão Maranhense de Folclore e patrocinados pelo Banco do
Nordeste e pelo Iphan nacional e estadual, estão realizando o projeto “Cofo de Segredo”, com a publicação de um livro sobre
os usos e a confecção de mais de 40 tipos de cofos. Foram feitas em torno de 85 entrevistas em 20 municípios situados no
sertão, na baixada e no litoral maranhense
.
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guardar seus pertences, enquanto está na brincadeira. O objeto cofo, traz a intenção de
balanço para a cintura e fortalece no sentido da horizontalidade para sua dança.
Na mão, um chocalho ou badalo, tipo sino de boi, que está sempre a tocar, marcando
seu ritmo, funciona como um abre-alas que anuncia a passagem e chegada do bando de
cazumbas. Esse som repetitivo também provoca uma atenção maior do público, “acordando a
todos”. Abel conta quando foi a primeira vez que ele presenciou um chocalho entrar na
brincadeira:
Eu e outro amigo meu, chamado Zé Teca, nós vinha da festa e o jumento tava
lá. Rapaz, vamo tirar o chocalho desse jumento? - Ah, não diz. Era noite. Aí
o jumento parou, nós pegamos a faca e cortamos dois. viemo embora,
corremo um pedaço, o chocalho não bateu mais, guardamos e viemos. No
ensaio do Boi, nos Penha, a gente foi, chegou eu comecei a bater o
chocalho, era até pequeno, esse: pen, pelén pelén pen. quando foi no
outro ensaio que a gente foi, por que no ensaio a gente brincava o cazumba,
mas não podia se aprontar. o outro cara também tirou um, também
roubado. levou, chegou lá, nós tocamo. Quando eu fui brincar cazumba,
tinha 3, 4 chocalhos no ensaio, e foi ficando, mas tudo assim, ninguém
comprava, não se achava pra vender, fazendeiro que tinha. Como deu certo
o som do chocalho no boi, a gente começou, onde a gente brincava, as
pessoas que criavam gado, davam o chocalho. pronto, começou o
chocalho com o cazumba.
79
Quando estamos aprendendo a brincar de cazumba, tocar o chocalho é uma tarefa
difícil, porque ele não tem um som preciso e o seu ritmo é diretamente relacionado com a
percussão de todo o batuque do boi e o balanço da dança, mas depois de compreendido o
andamento da movimentação, o chocalho torna-se fundamental para a brincadeira.
No interior, os cazumbas precisam se preocupar com tantos detalhes da sua careta e
farda, que muitos não usam o chocalho, mas pode-se afirmar que o cazumba que usa o
chocalho é mais respeitado, porque mantém a percussão na sua dança. Existem alguns
cazumbas que trocam o chocalho pelo instrumento do agogô
80
, ou como Bigu Melônio do Boi
da Floresta (Figura 47), que é cazumba desde os 5 anos, e toca dois chocalhos, usando uma
vareta para bater no ferro, com sonoridades diferentes, um mais agudo e outro mais grave,
para contrastar no meio da batucada.
79
Filmagem realizada na cidade de Viana, no mês de junho de 2008.
80
Segundo Câmara Cascudo, agogô é um instrumento idiofone, constituído por uma dupla campânula de ferro, que se
percute com um pedaço de metal, produzindo dois sons, um de cada campânula. É usado igualmente nas orquestras populares
do carnaval e mesmo nas exibições do maracatu Pernambucano, onde o dizem gonguê (1998:40).
124
124
Figura 47: Cazumba Bigu Melônio, do Boi da Floresta, junho, 2008. Foto: Juliana Manhães.
O cazumba utiliza na cabeça uma máscara, chamada de careta, conforme mestre Abel
afirma, “máscara é usada por um personagem do carnaval do Maranhão, o fofão, que é feito
de papel machê, mas careta é de cazumba”. Abel, na obra de Mazzillo, conta sobre a evolução
das caretas de cazumba: “Porque primeiro elas eram de pano, depois passou a ser só a boca de
madeira e passou a ser o queixo
81
com cara e tudo de madeira. A gente foi colocando
outras coisas e inventaram de colocar a torre, que chamam de igreja também” (2005:28).
A indumentária é a obra de arte do cazumba que vai se transformando ao longo do
tempo, tornando-se mais brilhosa, com tamanhos de caretas maiores, mas de qualquer jeito a
sua forma de brincar continua sendo através da espontaneidade e do jogo de cada brincante, e
o seu estilo está marcado no corpo que o cazumba imprime nesta roupa, de modo que a sua
performance é o seu jeito de brincar na roda do boi identificado pelos valores que a sua
indumentária apresenta.
81
Estrutura de madeira que faz a articulação da boca do cazumba.
125
125
Figura 48: Careta de madeira do mestre Abel Teixeira, junho, 2008. Foto: Juliana Manhães.
5.3 OS SENTIDOS DA MÁSCARA E SEU USO NAS TRADIÇÕES BRASILEIRAS
As máscaras são um elemento muito presente nas manifestações brasileiras, na Folia
de Reis existe a figura do palhaço, no Reisado maranhense os “bichos” mascarados dos
Caretas de Reis, os fofões do carnaval e no Bumba-meu-boi, a Catirina, o Pai Francisco, o
Pajé, a Burrinha e o Cazumba. Em Pernambuco os Papangus, na cidade de Bezerros, e na
Zona da Mata, o Cavalo Marinho, com as figuras do Mateus e Bastião; no carnaval carioca,
há o Clóvis ou Bate Bola. Essas máscaras podem ser simbolizadas pela pintura de cor preta no
rosto, ou confeccionadas com diversos materiais, como pano, papel, palha, madeira ou couro.
A máscara é um instrumento renascido de antigas tradições, sua natureza ambígua é
explorada a favor de uma construção de identidade considerada autêntica e legítima. O
significado da palavra máscara está vinculado à idéia de “persona”, a máscara materializa
uma “outra” identidade, essa “persona” se constitui tanto por seu aspecto espiritual quanto
corporal (KOCH,1998:26). A máscara assume a identidade de um ente múltiplo e ambíguo,
que através dessa outra face assume poderes de “ser” uma outra pessoa ou representar
imagens, que potencializam o seu valor particular. Para Câmara Cascudo, a máscara é de uso
universal e não pode ser calculada no tempo e na sua origem, sendo que no Brasil, de um
modo geral, todos os grupos indígenas possuíam bailados com máscaras (1998:563).
Muitas festas ritualísticas, sejam de tribos indígenas ou povos africanos, utilizam o
objeto da máscara como elemento ritual com diversos sentidos, o importante é perceber que a
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máscara ocupa um espaço nas suas celebrações, onde o “cantar-dançar-batucar”
82
estão
envolvidos.
As caretas de cazumba escondem o rosto e evidenciam o movimento de todo o corpo.
São um elemento fixo, que congela uma expressão, identifica o personagem, sustentando
mistérios e estimulando a imaginação dos espectadores. Cada brincante com careta traz um
jeito particular de comunicação, as imagens que o cazumba carrega na careta podem despertar
disputa, quando coloca um símbolo de futebol ou assombro, quando faz um bicho com dentes
grandes, e essa escolha na careta também influi na corporalidade e objetivo do brincante.
Mestre Abel Teixeira, diz que “a careta parece com um bicho, tem feições tortas, não é para
ser certinha, porque é feito na risca do olho”.
Mestre Abel é o artesão de caretas mais conhecido do Maranhão, e seu estilo
influencia muitos cazumbas, suas caretas estão expostas em vários museus do Brasil e alguns
lugares do mundo como: no Museu do Folclore e no Museu de Arte Popular Brasileira – Casa
do Pontal na cidade do Rio de Janeiro, no Museu Afro em São Paulo, além de museus em
Boston e Portugal. Seu estilo mais conhecido são suas caretas de pano, feito com brim
colorido, e enfeitadas com canutilhos e miçangas, toda costurada à mão, mas também
confecciona caretas de madeira, e vinte anos começou a confeccionar caretas em
miniaturas para vender e fortalecer na sua sobrevivência como careteiro (Figura 49).
Figura 49: Careta em miniatura de mestre Abel. Foto: Juliana Manhães.
82
Esse termo é um conceito criado por Fu-kiau, para denominar os momentos festivos e ritualísticos presentes nas culturas
africanas.The African Book Without Title, Cambridge, 1980.
127
127
5.3.1 Materiais da careta e modos de fazer
As caretas eram feitas de pambé de palmito (Figura 50), que é a folha da palmeira de
palmito seca, depois passaram a ser confeccionadas com couro de cotia, preguiça e outros
bichos. Quando a careta é de madeira, pode ser dos tipos da paparaúba ou imbaúba, também
podendo ser dos materiais de tecido, papelão, isopor.
Figura 50: Careta de pambé. Foto: Juliana Manhães.
A careta cresceu para cima, para os lados, não cobrindo mais somente o rosto, mas
criando uma enorme alegoria em cima da cabeça. Os cazumbas chamam de torre, que pode
ser no formato de igreja ou outra imagem que o cazumba escolher, essa armação pode ser
feita de arame, isopor ou outro material que traga sustentação para a careta. Inclusive, alguns
cazumbas utilizam luzes que ficam piscando (parecidas com as luzes de colocar em árvore de
Natal), o que facilita para pesar mais ainda as caretas, algumas podem ter até dez quilos
(Figuras 51).
128
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Figura 51: Careta Torre, Boi Santa Fé, junho, 2008. Foto: Juliana Manhães.
O focinho é a feição da careta, que pode ser imitando algum animal como: porco,
águia, cachorro, jacaré, cavalo etc. E o queixo é concebido com uma articulação que faz
mexer a boca, parecendo que o cazumba fala e ao mesmo tempo tornando-se ainda mais
assustador. Existem alguns artesãos que se especializaram em confeccionar o queixo, e o
outro faz o restante da careta, criando um circuito de cumplicidades na produção das caretas,
em que a troca e a divisão de tarefas fortalece o ato da brincadeira. também aqueles
cazumbas que confeccionam toda a sua careta e aparecem de surpresa para os outros
brincantes.
Após falar da indumentária do cazumba, iremos esclarecer a formação da brincadeira
do boi no espaço e como acontece a movimentação do cazumba dentro da roda do boi, sua
dança e o seu gestual.
5.4 A BRINCADEIRA E SEU ESPAÇO
A formação espacial de movimentação do bumba-meu-boi, de sotaque da baixada, no
Maranhão, é circular. Pode ser uma roda fechada, como presenciei no interior, na Baixada
129
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Maranhense, uma meia roda ou meia lua (roda aberta), conforme os brincantes costumam
chamar na capital ou em cordão (filas).
Nas cidades de Viana, Penalva e Matinha, da Baixada Maranhense, presenciei
brincadeiras de bumba-boi com a formação de uma roda dentro de outra roda. O movimento
das duas rodas segue no sentido anti-horário. Na roda de fora se encontram os cantadores e
batuqueiros, na roda de dentro os cazumbas, e bem no centro ficam os personagens do boi, do
vaqueiro, pajé, Catirina, Pai Francisco e outros bichos soltos como a onça e a burrinha. É
importante destacar que cada grupo pode ter todos esses personagens ou não. Algumas turmas
de boi foram deixando de apresentar figuras da brincadeira, quando os personagens vão
perdendo sua função e os interesses vão se modificando no tempo/espaço da brincadeira.
Os personagens da Catirina e do Pai Francisco, a partir do momento em que não
mais “o auto, matança ou comédia”, ou seja, a encenação com texto falado, ficaram com suas
funções meio perdidas e agora eles dançam no centro da roda junto com os outros
personagens, mas não realizam os diálogos, permanecem em um jogo corporal.
Os cazumbas circulam a roda, um atrás do outro, e seu olhar, através do orifício de sua
máscara os brincantes da roda de fora, essa imagem se repete a cada círculo realizado,
trazendo uma predisposição a um estado de exaltação ou abstração. Essa repetição estimula o
estado que lembra um “transe”, mas não no sentido de possuírem o seu corpo, mas como se o
corpo se movimentasse de forma fluida, sem pensar, mas com compreensão do que está sendo
executado. Marco Aurélio Luz e Georges Lapassade, no livro “O segredo da macumba”
dizem que o “transe se inicia por um estremecimento de todo o corpo, tremores que se
produzem no corpo do médium, como descargas nervosas pelo corpo, repentinas e violentas”.
(1972:9-10). Essas descargas são como estímulos produzidos pelo olhar do cazumba no ato da
brincadeira, mas sem perder o sentido de posse do seu próprio corpo, simplesmente como
uma reação motriz, de modo que gera a movimentação deste personagem.
A cazumba Lucimara Corrêa diz que, como não olham a expressão do rosto dela, ela
chora e vive variadas emoções dentro da careta (máscara), não se importando com o público,
ou seja, esse “transe” é a relação de entrega do brincante no ato da brincadeira, é um estado de
abstração ou de exaltação de alguém que se sente transportado para fora de si e do mundo
sensível, e em sintonia com algo transcendente, mas sem perder o discernimento de sua
função de fazer graça na roda de brincadeira do boi.
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Atualmente, na capital maranhense, os bois com sotaque da baixada brincam em meia
lua, numa roda que se abre, facilitando a admiração e interação do público. Os personagens
que circundam a meia lua são os baiantes cantadores e os batuqueiros da percussão. Dentro
dessa primeira roda outros personagens que dançam e formam outro círculo, onde os
cazumbas brincam e fazem sua movimentação. Outra forma espacial é o cordão (filas), feito
pelos personagens das índias e dos caciques, cada grupo de um lado, fechando a meia lua da
roda.
Mestre Apolônio diz que, antigamente, antes da década de 60, no período em que
ainda não havia arraiais organizados para apresentações, os grupos de boi que fundou
dançavam com os cantadores em formato de cordão e no meio destes dois cordões, um de
frente para o outro, brincavam o boi e os outros personagens. Mas como os cantadores não se
escutavam muito bem, devido à distância, resolveram juntar os cordões permitindo assim que
os cantadores se aproximassem para puxar as toadas do boi, começando a formar a meia lua
das apresentações atuais.
Dizem, também, que atualmente o cazumba “tem a função de controlar o espaço para
as apresentações, afastando o público sempre que necessário, ou abrindo caminho para o
grupo entrar ou sair do terreiro” (SOUSA, 2002:52). Isso acontece, principalmente, quando o
espaço da apresentação não está muito demarcado e o público fica misturado no local da
brincadeira. Nessa situação, o cazumba entra primeiro na brincadeira e vai abrindo a roda,
retirando o público do meio, para todo o grupo entrar.
A dinâmica da dança dos cazumbas acontece andando em conjunto com os outros
cazumbas, normalmente fazem uma fila dentro da roda e ficam brincando em formato de
zigue-zague, ou seja, indo do lado direito para o esquerdo, mas sempre seguindo em frente,
como uma tesoura recortando ou uma agulha costurando um espaço enviesado (Figura 52).
Figura 52: Cordão de cazumbas, Boi Santa Fé, junho, 2008. Foto: Juliana Manhães.
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Jandir Gonçalves, pesquisador e diretor da Casa do Nhozinho, comentou em uma
conversa em São Luís que os antigos cazumbas se cumprimentam como cumpadre ou
“cumpadi”, como mais um do “grupo”, um dos “nossos”, representando a idéia da irmandade.
Raul Lody afirma que “os que usam careta experimentam uma irmandade, um sentimento de
integração, que respeita e valoriza as singularidades, marcadas sobretudo na autoria das
máscaras e batas” (1999:18).
O personagem cazumba nunca dança sozinho, sempre tem sua turma para circular a
roda e fazer suas travessuras. No Boi da Floresta, atualmente, o grupo de cazumba tem cerca
de 30 integrantes, mas esse número é variável de um ano para o outro, já que cazumbas
que vêm do interior da cidade de Viana para dançar na capital. Em uma festa de aniversário
da cidade de Viana, dia 07 de julho de 2008, presenciamos grupos enormes de cazumba com
cerca de 70 brincantes na mesma turma. O cazumba Cassiano Pinheiro Ferreira, de 20 anos,
brinca no Boi da Floresta dez anos, e comenta que “se faltar os cazumba fica uma coisa
muito raladinha, o que enche mais o centro do boi são os cazumba”.
83
Na Baixada Maranhense, os cazumbas são quase mais importantes que a própria figura
do boi. Mestre Nico, cazumba e criador do Boi Urubu, em Viana, diz que “nos tempos atuais,
as pessoas vêm mais para ver os cazumbas e antigamente vinham para ver o lombo (couro do
boi bordado)”.
84
Atualmente os cazumbas preenchem o espaço da brincadeira e chamam
muita atenção pelo brilho dos bordados das indumentárias e todo o estardalhaço que eles
provocam com sua movimentação.
Figura 53: Urubu do Boi de Seu Nico, Viana, junho, 2008. Foto: Juliana Manhães.
83
Entrevista filmada, no barracão do Boi da Floresta, no mês de junho de 2008.
84
Entrevista com o cazumba e artesão Nico, do Boi Urubu de Viana, antes da apresentação no evento Vale Festejar em São
Luís, no mês de julho de 2008..
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A movimentação do cazumba tem suas regras, mas quem não conhece pensa que é
uma brincadeira espontânea, mas dentro da liberdade a liderança dos mestres, que estão
comandando atentamente a brincadeira. Ela tem um sentido, uma direção, onde cada cazumba
segue o mesmo embalo, porém cada um imprime um estilo pessoal ao seu modo de fazer.
5.5 A DANÇA E JOGO DO CAZUMBA
Qual é essa ginga de movimentação? Como acontece a sincronia da indumentária da
bata com o cofo, a careta e o badalo? Como a dança interfere na roupa e vice-versa? Como o
corpo se mobiliza e se entrega naquela visão, através do orifício da máscara que favorece o
corpo estar inteiro e entregue? E como este personagem dialoga nesta performance-encenação
do boi?
A dança do cazumba acontece a partir desse contato do inteiro no chão, mesmo que
haja momentos em que se usa a meia ponta, calcanhar ou as bordas dos pés. A relação de
pisar, amassar, apertar o chão é fundamental para entender esse corpo brincante e festivo, que
canta, dança, toca um instrumento e tem uma devoção, integrando diversas linguagens e
aprofundando o significado do que seja “a dança”.
Essa dança traz um corpo que se movimenta a partir das relações de jogo que
estabelece, um fluxo entre o risco da espontaneidade e a força de uma verdade presente no
gestual das celebrações festivas. Schechner afirmou que “o jogar cria sua própria realidade
múltipla com fronteiras porosas e escorregadias” (2002:82).
Falamos de um corpo que se comunica a partir da sua gestualidade, e vive os seus
movimentos a partir da sua relação pessoal com a brincadeira, sua memória afetiva e sua
disponibilidade. Seus movimentos são elaborados a partir da repetição, ou seja, a força de sua
sustentação enquanto brincadeira é a resistência de um comportamento restaurado, que,
através da reiteração, se renova, criando variadas nuances, integrando divertimento e jogo,
transformados em dança. Graziela Rodrigues diz que “a dança exerce a função de revivificar a
memória, construindo-se a partir dos próprios sentidos da festividade” (1997:30).
A memória traz ao corpo sentidos para seu estilo na movimentação, são nossas marcas
corporais, vindas de trabalhos do cotidiano ou de lembranças dos mais antigos. As danças nas
133
133
brincadeiras populares são repassadas através dessas memórias, que transformam a
performance, trazendo autenticidade e renovando os sentidos das festividades.
Com o objetivo de verbalizar o movimento e apresentar algumas regras estabelecidas
nessa movimentação, através de dinâmicas e formatos específicos, é necessário explicitar que
este “termo corporal engloba os aspectos intelectuais, espirituais, emocionais e físicos, ou
seja, o corpo é uma totalidade complexa” (RENGEL, 2003:23).
Esse corpo brincante é movido por forças de variadas matrizes, são estímulos externos
religiosos, ancestrais, formas determinadas pelos mestres ou estímulos internos, impulsos que
trazem o movimento individual movido pelas forças motrizes, conforme o conceito que o
pesquisador Zeca Ligiéro afirma: “o termo matriz se tornou insuficiente. Ele remete a uma
única origem, quando o que se observa é que dessa origem, dinâmicas próprias foram
preservadas, entretanto muitas de suas formas iniciais foram perdidas ao contato e contágio
com outras culturas” (2009:2).
Estas formas iniciais da dança, as matrizes, ficam na memória, mas se torna impossível
que esses gestos fiquem intactos, pois a vida é dinâmica, e são as transformações que tornam
possível a “verdade” no jogo e na brincadeira. Neste sentido é importante valorizar o
momento presente e, simultaneamente, respeitar as tradições. Então, essa gestualidade não se
perde, mas se reinventa a partir dos fundamentos anteriores. Desse modo, a idéia de matriz
traz algo fixo e a força motriz traz o movimento, as relações e dinâmicas próprias criadas e
transformadas no cotidiano da brincadeira.
5.5.1 Estilos do cazumba: jeito de andar, passos e seus “caqueados”
Quando a careta é muito grande, modifica o jeito de brincar, comprometendo a
movimentação do cazumba. Como pesa muito, os cazumbas ficam mais se equilibrando do
que propriamente dançando, já a careta leve facilita a brincadeira, deixando o brincante mais à
vontade.
Dona Zelinda comenta sobre o cazumba que usa a torre: “é muito bonito ali, mas na
hora de dançar, você nota que eles não têm a agilidade pra fazer aquelas rodas que eles
faziam, as carreiras (as corridas) que eles davam, e ficam muito segurando a careta. O
crescimento deturpou um pouco a dança, né?E Carlos Lima acha que “essas máscaras estão
se tornando um exagero, porque é uma altura enorme! É inconveniente, hoje os cazumbas não
fazem aquela coreografia toda porque não dá. Exagerou muito. Ficam quase estáticos. Você
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não pode se mover com aquela coisa enorme”.
O jogo dos cazumbas é flexível, algumas vezes cercado de regras, noutras muito livre,
tem uma expressão anárquica, mas sempre confere um sentido de ação, de movimento.
Huizinga afirma que “reconhecer o jogo, é forçosamente, reconhecer o espírito, pois o jogo,
seja qual for sua essência, não é material determina que a categoria de jogo, fosse
considerada um dos elementos espirituais da vida” (2005:6).
A movimentação do cazumba depende muito da maneira como o brincante direciona
os seus olhos no espaço; este modo de usar os olhos traz gestos que expressam os estímulos
internos em contato com os estímulos externos da brincadeira (Figura 54). Quando os olhos
estão ativos, a reação se torna precisa, viva, presente. Segundo Barba, “o corpo do ator-
bailarino é conduzido à vida. Neste sentido, os olhos são como a segunda coluna vertebral do
ator-bailarino” (1995:19).
Figura 54: A direção dos olhos de cazumba, junho, 2008. Foto: Christiane Alcântara.
A coluna vertebral forma o eixo do brincante ou ator-bailarino, implica na relação de
equilíbrio presente e exige mais esforço, por estarmos falando de um corpo extracotidiano
ligado às performances artísticas, podemos afirmar que o molejo da coluna vertebral
demonstra as diversas possibilidades da dança do cazumba. O olhar direciona este
movimento, em conjunto com a relação com seu corpo, que para ver a brincadeira, precisa
virar o corpo por inteiro, ou seja, “para um ator, ver não é olhar com os olhos; é uma ação que
compromete o corpo inteiro” (BARBA, 1995:109). De modo que a direção do olhar interfere
135
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no gestual do corpo, trazendo diferentes estímulos para a movimentação corporal dentro da
manifestação do Boi.
A brincadeira do cazumba interage no gestual e se completa no jogo com o outro,
gesto que mestre Abel explica: “cazumba com cazumba se comunica através do aceno, sem
dizer nada. Conversam, mas não sabem o que estão dizendo. É um aceno”. (junho, 2003).
Intenção que cada um que está de fora vai entender do seu jeito.
Em uma brincadeira do Boi da Floresta, eu e mestre Abel, vestidos de cazumba,
começamos a nos olhar muito e mexer o corpo: eu mexia os quadris e ele respondia mexendo
a careta, e ele cochichou repetidas vezes algo no meu ouvido, que eu não entendi nada, no
final da brincadeira ele veio me contar que estava se comunicando comigo, me acenando.
Fiquei intrigada com este termo, e agora utilizo-o como base para entender esse processo de
interação do personagem do cazumba, que ele não verbaliza a comunicação
85
, fica no
corpo que fala, através da sua intenção gestual. Os gestos no nosso cotidiano são instintivos e
inconscientes e, como afirmou Câmara Cascudo, são a “primeira forma de comunicação
humana, mantém sua prestigiosa eficiência em todos os recantos do mundo” (2003:20).
O aceno é um gesto de saudação, de interação e diálogo, faz parte do nosso
inconsciente coletivo, mas como é um movimento, está aberto a diversos entendimentos.
Nesse lugar da diversidade é que se firma o acenar do cazumba, sua comunicação está na
necessidade de reação com aquele que também está se comunicando.
Em novembro de 2008, fui convidada para brincar de cazumba, interagindo por duas
horas com o público que estava visitando o Museu de Arte Popular Casa do Pontal (RJ), em
um evento de inauguração de uma nova sala de exposição. Estava sozinha de cazumba e não
havia uma percussão que embalasse meus movimentos, pude perceber que o meu estímulo
para o movimento era o retorno que as pessoas me davam, suas respostas gestuais, quando me
viam chegar vestida e mascarada de cazumba.
85
O cazumba pode até verbalizar com a fala. Isso acontece na festa de matança, na Baixada Maranhense, e principalmente se
for um cazumba que também saiba ocupar a função de Pai Francisco, mas sua essência de comunicação é através do corpo e
não de sua voz.
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Figura 55: Juliana Manhães de cazumba na Casa do Pontal, novembro, 2008. Foto: Cláudia
Barcelos.
Nesse momento, totalmente fora do contexto junino no Maranhão, compreendi ainda
mais o que Abel queria dizer com acenar, significava um “elo de ligação”, um fio de
comunicação. Brinquei com diversas pessoas, e normalmente elas gritavam, riam, ou se
assustavam quando me viam. Depois ficava olhando para elas e percebia que trazia um
incômodo, gerado pela necessidade de comunicação e o silêncio provocado. Muitas pessoas
reagiam se mexendo e eu respondia me mexendo também, até que ficávamos brincando em
mexer o corpo. Aquelas pessoas que não reagiam à minha presença vestida de cazumba não
sustentavam a troca e eu prosseguia ao encontro de outro diálogo. Compreendi que acenar é
manter uma “verdade”, no sentido da espontaneidade e atenção, para estabelecer uma
comunicação com o outro.
Essa verdade é produzida na interação da relação brincante espectador em conjunto
com uma movimentação fluida, onde o jogo é o elemento principal para que a brincadeira
aconteça de forma viva.
O aceno pode ser mexendo a cabeça e a careta balançando, ou um remelexo mais
intenso no quadril, trazendo uma evidência, um exagero, que pontua um momento de diálogo,
mas ao invés de palavras são os movimentos que sugerem a intenção. O aceno é um meneio,
um movimento que se faz com a cabeça, os olhos, as mãos, os quadris, é como se o corpo se
deixasse mostrar, quisesse atrair a atenção (Figura 56).
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Figura 56: Cazumba se comunicando com outro cazumba, junho, 2008. Foto: Christiane
Alcântara.
Eugenio Barba afirma que “a essência dos relacionamentos humanos é determinada
pelos gestos, posturas, comportamentos, olhares e silêncios. As palavras sozinhas não dizem
tudo” (1995:154). E em se tratando de cazumba, sua essência é puramente gestual, movida
pela relação de jogo estabelecida, dentro da brincadeira do Bumba-Boi Maranhense.
Sua movimentação se alterna de um lado para o outro, um movimento de oscilação,
onde o corpo balança, seu quadril requebra-se, bamboleia. Assim como a capoeira tem uma
ginga, o cazumba tem um “menear de quadris” (Figura 57).
Figura 57: Movimento de bambolear os quadris, Viana, junho, 2008. Foto: Christiane
Alcântara.
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Segundo o dicionário Vocabulário Crioulo, de Vicente Sales, ginga é uma maneira de
andar, bamboleando-se. É bambolear o corpo, incliná-lo, se curvar (2003:145). A ginga do
cazumba está presente no seu jeito de andar e interagir, é um gestual básico, que se repete no
seu movimento circular na roda, trazendo o estilo da brincadeira do cazumba. É um
movimento de ligação, entre as intenções do cazumba e suas particularidades, sua maneira de
se dispor na roda. Um exemplo dessa situação é quando o cazumba está simplesmente
andando e balançando seu cofo, e de repente para, e fica olhando para outro cazumba na
intenção de trocar com ele, jogar. A ginga une suas mudanças de foco e interesse, permitindo
que a diversidade da dança do cazumba deslize entre suas possibilidades.
O cazumba dança andando em bando com outros cazumbas, como uma fila, mas
desordenada, onde a cada hora um cazumba passa na frente do outro, brincando. É um
personagem muito solto, que pode estabelecer relações diferenciadas com o público e com
todos os brincantes da roda do boi. Tem liberdade no seu gestual, trazendo um “zigue-zague”
na movimentação, indo de um lado para o outro dentro da roda, seguindo o fluxo de seus
companheiros.
O cazumba pode variar o ritmo dos seus movimentos, utilizando-se de diversos
esforços e qualidades de movimentos, os quais serão descritos e avaliados de acordo com os
termos criados por Rudolf Laban (1978) e outros seguidores mais contemporâneos, como
Regina Miranda (2008) e Lia Robatto (2006).
Um mestre cazumba, Cândido Pinheiro, usa expressões muito próprias para designar a
dança do cazumba. Ele diz que tem um “jogo de corpo” no andar, com um “traçado”,
indicando o percurso do cazumba, sacudindo a bata e fazendo seu movimento dentro de um
“esquema”. Ou seja, o jogo é parte fundamental de sua dança, está no seu corpo. Sua
brincadeira parte de um percurso determinado a trilhar, mesmo que seja burlado, aliás isso
também faz parte da natureza do cazumba.
A dança do cazumba tem os pés inteiros no chão, joelhos flexionados, solto, livre,
dando espaço para a locomoção e os “caqueados” de surpresa, que a dança na roda do boi
revela.
O andar do cazumba é um requebrado, meio troncho, desajeitado, onde o interessante
é a possibilidade de ele surpreender e espantar os outros cazumbas e brincantes da
brincadeira.
O passo da dança reflete o jeito de o se locomover, os ombros acompanham o
139
139
movimento da coluna vertebral, com sentido enviesado, curvo, o molejo dos quadris marca
um “jogo de cintura” específico, com um rebolado acentuado, eis a figura do cazumba.
5.5.2 Movimentos de cazumba
O movimento do “raspa” do cazumba é uma tentativa de derrubar o outro, o que é
chamado na capoeira de rasteira
86
. É uma provocação entre os brincantes para ver se ele está
atento, na intenção de levá-lo ao chão. É uma espécie de enganação, em que o interessante são
os floreios de movimentos criados pelos cazumbas para escapar do tombo da “raspa”.
Quando os cazumbas não estão com muita vontade de brincar, eles ficam fazendo
um “h”, ou seja, fingindo que estão brincando, mas na verdade estão cansados e
permanecem nos movimentos básicos, sem muita energia dedicada para a brincadeira.
De uma forma geral, os cazumbas homens dizem que não se rebola, mas que tem um
“caqueado”, ou como diz o cazumba e artesão Nico de Viana, do Boi Urubu, “o cazumba tem
um gingado que faz mexer os quartos (quadris), os braços, a cabeça, os pés, corpo todo, a
gente inventa”. o jovem cazumba Cassiano diz que “o cazumba aquelas rodadas,
aquelas cortadas pra e pra lá, vai no meio da roda e volta, inventa uns passos, começa
a balançar o corpo”.
Esse “caqueado” é um movimento de surpresa, onde o cazumba muda rapidamente o
sentido e o fluxo do movimento, é uma quebra, uma malemolência que liga um passo a outro
e que a beleza da brincadeira do cazumba, movida por sua espontaneidade e preenchida
pelo jogo.
O significado da palavra “caquear”, para Domingos Vieira Filho (1979:36), “é
observar, seguir de perto os passos de alguém”. Caqueado é um movimento de intenção, é a
situação em que o brincante está atento aos passos dos seus “cumpadis” cazumbas, mas
permitindo uns deslizes, no sentido de cambalear, o corpo do cazumba está sempre em
movimento de oscilação, de balanço. Quer dizer, a expressão “caqueado”, utilizada por
brincantes cazumbas, remete a um movimento desequilibrado, sem direção certa, em que o
seu balanço e sua oscilação trazem o tom do seu estilo de dançar.
86 Nome de golpe utilizado na capoeira regional ou angola.
140
140
Os cazumbas Cassiano e Charles dizem que “uma perna arrasta no chão e a outra puxa
para caminhar”, a cazumba Flávia, do Boi da Floresta, descreveu em conversa que tivemos
aqui no Rio de Janeiro, em jantar na casa da outra cazumba Lucimara:
No início, sentia que o povo cazumba parecia manco, perneta, puxando a
perna. O movimento começa na cintura e nos membros inferiores. A parte de
baixo é que comanda a dança e o movimento dos membros superiores é
consequência, pois embaixo é a base.
87
Ela chamou o movimento de “ponto e vírgula”, por conta das paradas dos cazumbas e
seu movimento, ela afirma “o seria o ponto e a vírgula é o gingado”. E acha que são os
movimentos que fazem mexer os acessórios das indumentárias, justificando que, quando
vemos um cazumba dançar sem estar paramentado, a gente sabe que ele é cazumba pelo
jeito dele dançar. Então, é o movimento que leva a roupa, mesmo sendo influenciado, o que
puxa é a vida que o movimento do corpo agrega.
A partir de minhas memórias como brincante de cazumba e fazendo esse exercício de
dar nomes a movimentos e criar uma nomenclatura, é importante esclarecer o movimento do
corpo como um todo.
um movimento do cazumba que é levado pela força colocada nos braços, são eles
que puxam a dança nesse momento e normalmente são os dois braços dobrados para os lados,
como se estivessem correndo ou se preparando para uma ação forte. Esse movimento
concentra também uma energia intensa, meio animal, e dentro da careta nossa face muda,
depende do estado, podemos até gritar, mas ninguém sabe ou escuta (Figura 58).
Figura 58: Juliana Manhães brincando de cazumba no Boi da Floresta, na festa de morte,
setembro, 2002. Foto: Loreto Searle.
87 Entrevista filmada na casa da cazumba Lucimara Corrêa, no Rio de Janeiro, no mês de novembro de 2008.
141
141
Quando o cazumba não está dentro da roda ou entre uma brincadeira e outra, surgem
outros movimentos, como girar sobre si mesmo ou começar a girar em torno de outro
brincante.
momentos em que o badalo é que comanda a movimentação, tocar vira o centro da
atenção e o corpo todo vai naquele ritmo tocado pela mão direita, provocando um caimento de
corpo para um lado, o tronco inclina-se para a frente como se tombasse e os pés pisam ainda
mais fortes, como se estivessem tocando um instrumento nos pés, como um sapateado, mas
sempre bamboleando de um lado para o outro.
É difícil determinar onde o movimento do cazumba começa no corpo, mas percebo
que o cofo puxa muito o balançar da dança, trazendo o impulso inicial para a pélvis, nossa
bacia, formada por dois ossos do quadril, sacro e cóccix. Um dos pontos iniciais do
movimento vem do nosso centro de energia, região pélvica, que através dos quadris mexe e
remexe em sentido horizontal, de um lado para o outro. Essa região central irradia para o jeito
de caminhar, nos membros inferiores e para os braços, tronco e cabeça, membros superiores.
E os olhos determinam os acentos, as escolhas do local, onde o cazumba está dando atenção.
Os brincantes mais jovens têm uma dança mais acelerada e os mais idosos sustentam
na sua ginga um peso, uma tranquilidade nos seus passos, movida pelo cansaço da vestimenta
e da careta, além da malandragem em saber gingar na minúcia e simplicidade que o passo traz
na sua movimentação. Esse peso também é movido por uma “fluência livre”, ou seja, são
movimentos que se originam da coluna vertebral (região sacro), indo para o tronco, para o
centro do corpo e depois se espalhando para as pernas e braços.
O tronco “é aquela parte do corpo que inclui tanto a pélvis como as escápulas, sendo
movimentado pelas articulações dos quadris (LABAN, 1978:90). Essa parte do corpo no
cazumba está sempre entre o curvo e o ereto. Seu balanço, sua malemolência, traz um gingado
particular, que parece se estruturar a partir de algum desequilíbrio, marcado, sobretudo, pela
curvatura da sua coluna e pelos seus braços, onde em uma das mãos é tocado um chocalho ou
badalo que traz também uma percussão que dita sua dança.
Na cabeça está a careta do cazumba e, dependendo do seu tamanho, fica mais tensa ou
mais livre para sacudir ou balançar. A cabeça direciona o olho do cazumba, que está atento,
porém limitado; se ele muda a direção, o corpo inteiro responde, mudando a postura também.
Os ombros remexem de acordo com o movimento do quadril e dos braços, os ombros
e o tronco vão para um lado e o quadril para o outro; quando os braços se levantam, os
142
142
ombros se mexem para a frente, intercalando um de cada vez. Um braço toca o instrumento,
fica com o cotovelo mais dobrado e tem um movimento determinado pela ação de badalar, e o
lado esquerdo fica mais solto, equilibrando o movimento. Também podem balançar os braços
com os cotovelos para baixo, no sentido de cima para baixo e ambos ao contrário, trazendo
um equilíbrio para o corpo.
O cazumba tem um equilíbrio com desequilíbrio, ele se instaura nesse lugar do
equilíbrio extracotidiano, ou seja, é “o abandono do equilíbrio cotidiano em favor de um
equilíbrio “precário” (BARBA, 1995:34). Tem como finalidade instaurar uma condição de
equilíbrio permanentemente instável, natureza própria do personagem cazumba.
Os joelhos ficam flexionados permitindo que com qualquer postura haja fluidez,
trazendo um acento nas pisadas dos pés, que marcam o caminhar e o sentido do cazumba.
Os pés pisam com a “sola” toda no chão, ora distribuem o peso entre os dois pés, ora
tomba mais para um lado. A firmeza dos pés é essencial, para trazer o aspecto da leveza, seja
o pé arrastando ou pisando.
5.5.3 Qualidades dos movimentos do cazumba nas brincadeiras do boi
Laban chama de qualidades de movimentos a diversidade de esforços provenientes dos
“componentes constituintes das diferenças nas qualidades de esforço resultam de uma atitude
interior (consciente ou inconsciente) relativa aos seguintes fatores do movimento: Peso
(firme-suave), Espaço (direto-flexível), Tempo (súbito-sustentado) e Fluência (controlada-
livre) (1978:36).
Esses quatro elementos (peso, tempo, espaço e fluência), de acordo com Laban,
fundamentam a “Arte do Movimento”, suas combinações geram diversas qualidades que
agora vamos desmembrar e analisar, para a criação de um vocabulário da movimentação do
cazumba. Essas qualidades são distinções, não as de ordem quantitativa, mas referindo-se a
uma essência pessoal, própria, estabelecendo as diferenças na gestualidade do movimento,
apresentando suas características específicas e diversas.
O cazumba tem um movimento leve, parece até que flutua no seu caminhar, mas ao
mesmo tempo sustenta um peso na sua dança, que se projeta em um equilíbrio que puxa na
direção do chão e simultaneamente faz uma conexão na cabeça, como se sustentasse para
cima simultaneamente. São duas forças concomitantes, uma que projeta a cabeça para cima,
143
143
permitindo o pescoço ficar solto e firme, e outra para baixo, com joelho flexível, mas os pés
seguros em contato com o chão, mostrando a importância da verticalidade. É uma mistura de
tensão e relaxamento, em que sua energia pode ter uma força muscular entre o forte, o normal
ou o fraco. Essa estrutura física faz relembrar a questão de o cazumba ser uma figura que faz a
ligação, que vive nas fronteiras. Essa questão será aprofundada no capítulo seguinte.
A movimentação do cazumba acontece em um espaço circular indireto, porém
podendo ser direto, no sentido de algumas “normas” de sua movimentação. Tem sentido anti-
horário, mas flexível nas possibilidades que possui, dentro da roda de brincadeira do boi. Não
tem um percurso definido, porque pode surpreender na sua dança, mas ocupa um lugar
esperado pelos brincantes e pelo público espectador e participante, locomovendo-se do lado
direito para o esquerdo, como um “zigue-zague”, cortando o espaço e muitas vezes
ultrapassando o cazumba que está na frente, dançando na direção da direita para esquerda e
vice-versa, sempre em frente.
As partes do seu corpo podem se dirigir para vários pontos espaciais, podendo utilizar
os planos alto, médio ou baixo, através de um caminho curvo e angular, com movimentos
flexíveis, pouca rigidez e atenção multifocada.
No jeito destrambelhado do cazumba, seu olhar pode estar na frente, seu tronco e
ombros para um lado, sua cabeça para outro lado e seus braços soltos para qualquer lugar
entremeados pelas andadas do “zigue-zague”.
O cazumba esta no seu cordão, seguindo o fluxo dos outros cazumbas, de repente algo
da platéia lhe chama a atenção, modificando sua direção, ou quando um cazumba fica olhando
em direção a outro e um deles reage, joga, interage com aquela situação ou quando o som do
badalo traz uma atenção maior, modificando o valor e o foco da cena, esses são alguns
exemplos de como o cazumba muda seu foco espontaneamente.
A dança do cazumba tem um tempo diverso, porque pode optar por se movimentar por
qualquer um dos instrumentos de percussão, misturando os diferentes ritmos para o seu
gingado e tornando particular a sua movimentação, transitando nos ritmos rápido, normal ou
lento. A atitude sobre o tempo na brincadeira é a decisão, o poder da escolha de qual
movimento executar.
A movimentação do cazumba é fluida, uma ação contínua, mas que pode ser
interrompida e no seu recomeço voltar a fluir no espaço. Quando o brincante se encontra em
um estado de muita excitação não tem muito controle sobre sua performance, é descontínuo, e
144
144
seu corpo entra em um movimento constante. Esse elemento de fluência auxilia na integração,
trazendo a sensação de unidade corporal.
Para Laban, “o corpo é uma partitura obediente a um princípio ordenador: o esforço
aquilo que promove o deslocamento do peso” (KATZ, 2006:53). O esforço não se trata
somente como uma ação física de fazer força, mas também tece a idéia do movimento interno,
que está dentro do corpo. Ou seja, seus estímulos afetivos, emoções, sensações, memórias e
pensamentos, integrados à espontaneidade preservada na ação de jogar.
O cazumba executa várias ações corporais como: deslizar, flutuar, caminhar, rebolar,
balançar, sacudir. Sua roupa comprida ajuda na imagem de flutuar ou deslizar. Laban
escreveu sobre o movimento de deslizar: “Ao deslizarem, o homem e sua divindade
envolvem-se na experiência da infinitude do tempo e da cessação do peso da gravidade,
embora estejam ambos atentos para a clareza dimensional de seus movimentos” (1978:44).
Essa experiência de grandeza está presente nesse estado vigoroso do cazumba, indo ao
encontro com a descrição da ação de deslizar e curiosamente também fazendo relações com a
questão do cazumba estar no “reino do entre”, ocupando posições entre o divino e o humano.
Sua dança acontece através da repetição de sua movimentação, o cazumba entra num estado
orgânico, de plenitude e leveza, trazendo a imagem de flutuar.
A dimensão do movimento do cazumba, no plano da altura, aparece através do
crescimento das caretas, com forma de torre, algumas quase do tamanho do próprio brincante,
além do eixo ereto que o personagem imprime. No plano da largura, enfatiza a
horizontalidade, imposta pelo cofo e pela movimentação de “zigue-zague”, o cazumba não
tem saltos, é sempre bem no chão e no plano da transversal confere sua potencialidade em
torno da liberdade, andando rápido, devagar, abaixando etc. Antigamente, os cazumbas se
jogavam no chão, utilizando esse plano baixo, mas mesmo hoje nas apresentações se percebe
que o cazumba faz o que quer, podendo ultrapassar qualquer regra imposta, é considerado um
transgressor e isso também imprime um estilo no seu gestual.
No próximo capítulo pretendo aprofundar a questão de o cazumba ser um personagem
ambíguo de identificação, não sendo homem, nem mulher, nem bicho, estando no reino da
liminaridade, através dos conceitos de Gennep (1978), Turner (1974 e 2005) e Da Matta
(2000), representando as fronteiras que ocupam o não-lugar, o entre, para falar da sua forte
relação com o sagrado, tanto nos rituais de batismo e morte quanto no seu jogo dentro da
brincadeira.
145
145
Figura 59: Tabela sobre os fatores da movimentação do brincante cazumba nos bois da
baixada maranhense
88
:
PESO
INTENSIDADE ENERGIA ACENTO IMPULSO
O movimento é leve e
ativo. Os cazumbas
mais velhos ou com
grandes caretas podem
apresentar um
caminhar mais pesado,
mas o que marca sua
dança é uma certa
suavidade e sua força
de gravidade fica
equilibrada entre o céu
e a terra.
O movimento pode
variar entre o
forte/fraco e o
tenso/relaxado.
Depende do
momento da
brincadeira e da
animação do
brincante. Essa
variação faz parte das
características do
personagem. Traz um
estado de excitação,
exaltação,
“catártico”,
desembaraço e
verdade.
O movimento é
repetitivo, algumas
paradas ou mudanças
de posição
determinam um
acento diferente,
com
ênfase no toque do
chocalho, na dança
do “zigue zague”, os
“caqueados”, o
“raspa” ou só
fazendo um “h”.
Esta diversidade
destaca e pontua sua
movimentação.
O ponto do corpo
que ativa o
movimento é a
região pélvica,
através do centro de
energia se espalha
para o resto do
corpo.
ESPAÇO
CAMINHO PLANOS EXTENSÕES DIREÇÕES
Movimento circular,
flexível, assimétrico e
variado. A brincadeira
pode ter uma roda
aberta ou meia lua,
roda fechada e cordão.
Existe um “traçado”,
mas o cazumba pode
brincar livremente no
desenho.
Dança no plano
médio, antigamente
se jogava no chão,
utilizando o plano
baixo. É raro um
cazumba pular.
Altura: a careta traz
uma verticalidade.
Largura: o cofo traz
uma
horizontalidade.
Profundidade: traz
um jeito oblíquo,
enviesado, trazendo
a transversalidade
para sua
movimentação.
É restrito no sentido
do movimento ser
dentro da roda, mas
amplo pela liberdade
de poder sair da roda
.
A distância é
marcada pela
repetição do
movimento
passando pelos
mesmos lugares.
Pode ser uma
brincadeira em
forma de cortejo,
para depois armar a
roda.
O cazumba dança
sempre no sentido da
roda, anti-horário.
Em zigue zague, da
direita para esquerda
e em frente.
Dança por dentro da
roda, circulando.
A brincadeira traz
uma movimentação
convergente, com
linhas e cordões.
88
Com base em Rudolf Laban, no livro “Domínio do Movimento” (1978) e nos artigos de Helena Katz e Lia Robatto, no
livro “Reflexões sobre Laban: O Mestre do Movimento” (2006).
146
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Figura 60: Tabela sobre os fatores da movimentação do brincante cazumba nos bois da
baixada maranhense.
TEMPO
VELOCIDADE DURAÇÃO ACENTUAÇÃO PERIODICIDADE
É variável, podendo
transitar entre o
rápido, o moderado e
nos momentos de
cansaço até
permanecer no lento.
O importante é saber
que é uma velocidade
inconstante, mesmo a
percussão mantendo o
seu ritmo.
Uma brincadeira
pode durar a
madrugada inteira ou
até vários dias de
festa, depende do
compromisso. Uma
apresentação nos
arraias na capital,
duram em média 50
minutos.
O sotaque do boi da
baixada, tem um
compasso
quaternário, seus
movimentos tem uma
sequência composta.
A movimentação do
cazumba pode variar
entre o compasso
binário e composto.
A movimentação do
cazumba é repetitiva
e variada, podendo
se transformar a
cada passo. Tem um
trajeto regular e
constante que se
interrompe somente
quando o brincante
sair da roda de
brincadeira.
FLUÊNCIA
FLUXO AÇÃO CONTROLE CORPO
A natureza da
movimentação do
cazumba é solta e
descontínua, apesar de
manter a continuidade
da roda. Sua
brincadeira tem uma
fluência livre.
Movimentação
contínua, demarcada
por mudanças de
foco. Ora brinca com
os outros cazumbas,
ora com a platéia, ora
valoriza o toque do
badalo, ora o balanço
de seu cofo.
Executa ações como:
andar, balançar,
rebolar, menear, tocar
seu badalo, olhar e
brincar.
As toadas do boi
trazem interrupções,
cada apitada que o
amo dá, simboliza o
início ou término de
uma música. E a
dança vai de acordo
com as toadas.
Quando só canta o
amo é momento de
mais descanso e
quando entra o
batuque é o momento
de brincar.
O corpo do cazumba
está repleto de
estímulos exteriores
e interiores, por isso
está sempre em
movimento dentro
da roda do boi, está
em estado de alerta,
aberto para o jogo.
147
147
6 ELEMENTOS DA PERFORMANCE DO CAZUMBA
Performances afirmam identidades, curvam o tempo,
remodelam e adornam corpos, contam histórias.
Performances artísticas, rituais e cotidianas – são
todas feitas de comportamentos duplamente exercidos,
comportamentos restaurados, ações performadas que
as pessoas treinam para desempenhar, que têm que
repetir e ensaiar. (SCHECHNER, 2003:27).
A performance é tudo o que se possa denominar enquanto ação e atitudes do coletivo
ou do indivíduo, são situações que podem ser representadas, como uma performance do
cotidiano, em que a repetição diária se transforma em rituais ou quando alguns ritos
transformam a performance diária, como é o caso do ciclo festivo do bumba-boi maranhense,
cujos integrantes absorvem a festividade para o seu cotidiano, no sentido do cuidado com a
sua manutenção de figurinos, instrumentos, além da relação afetiva que envolve os brincantes
do grupo.
A performance do cazumba é a sua movimentação durante a brincadeira, assim como
o seu simbolismo, seus mistérios, que elencam variados elementos como: sua relação com o
jogo e sua ambiguidade, através do seu lado grotesco e cômico, além do uso da máscara.
A performance completa uma experiência e essa vivência se transforma em uma forma
de expressão, uma performance exercida. Como afirma Schechner “uma performance ocorre
em ação, interação e relação. A performance não está em nada, mas entre” (2003:28). A
performance é o momento do presente que pode criar relações com outras situações, fazendo
rememorar um acontecimento real passado, estabelecendo uma conexão daquela vivência que
aconteceu com a situação atual, estar entre é exatamente estabelecer essa relação, é a
possibilidade da criação espontânea, de modo que o mais importante seja a ocupação desse
lugar que parece inacessível, mas que de fato se faz possível dentro da performance.
É como um jogo, que sobrevive pela disponibilidade dessa interação, assim como já
comentei, a brincadeira do cazumba se alimenta da troca, da reação do outro com quem o
cazumba está brincando. Essa reação é uma resposta a estímulos que o personagem do
cazumba provoca e remete a um conceito de Schechner, sobre comportamento restaurado, no
qual seu princípio fundamental é “ganhar novas forças”, é recuperar através da repetição uma
situação no tempo atual, que está entre a preservação das memórias e as modificações do
mundo globalizado. O comportamento restaurado é um comportamento vivo e relacionado a
148
148
momentos do passado, podendo remeter a antigas tradições. É restaurado porque se sustenta
nas repetições, permitindo ser transformado. Essa restauração pode acontecer através da
transmissão do conhecimento do mestre ao aprendiz no cotidiano ou nos ensaios, onde a
repetição é a reconstrução da encenação na brincadeira que virá posteriormente no período
das festas juninas.
No caso do cazumba, ele é um personagem que não ensaia, seu conhecimento é vivido
na hora da brincadeira, na situação do ritual e no momento em que de fato a manifestação está
acontecendo. Esse aprendizado acontece através da observação dos cazumbas mais velhos e
na descoberta do estilo particular de cada brincante. O comportamento do cazumba se restaura
a cada volta que ele na roda, estabelecendo diferentes interações e modificando sua
movimentação; mesmo que mantenha um gestual, seus estímulos se transformam na roda do
boi. É um personagem bem diferente das índias e caciques, que ensaiam durante muito tempo
antes das festividades, para na hora da brincadeira repetir o mesmo movimento de forma
idêntica.
O comportamento restaurado é usado em todos os tipos de representações
desde o xamanismo e exorcismo até o transe, desde o ritual até a dança
estética e teatro, desde os ritos de iniciação aos dramas sociais, desde a
psicanálise até o psicodrama e análise transacional. De fato, o comportamento
restaurado é a principal característica da representação. (BARBA, 1995:205)
(grifos do autor).
A representação do cazumba acontece através desse jogo de interação entre os outros
cazumbas, brincantes e a relação com o público presente, ou seja, as pessoas que estão “à
paisana” que não fazem parte da brincadeira no compromisso de brincar com um personagem.
Sua função está na liberdade que o jogo permitir, sua dança é caracterizada pela
espontaneidade e fluidez, articulando diversas energias, seu entendimento acontece através de
uma ação ou gesto.
Victor Turner classificou o jogo como o “curinga do baralho” (SCHECHNER,
2002:80). O curinga é aquele que pode ocupar diversos jogos diferentes, independentemente
do naipe, é uma carta valiosa, que se presta a múltiplas funções, que joga para todos os lados;
no teatro, é aquele ator que interpreta variados personagens. O cazumba também pode ser
comparado a uma espécie de curinga, pois sua movimentação é versátil, de modo que sua
diversidade marca sua liberdade de expressão, determinada pelo caráter lúdico do ato de
jogar.
149
149
O jogo é parte intrínseca da performance porque ele cria o “como se”, a arriscada
atividade do fazer-crer (SHECHNER, 2002:80). No momento da brincadeira todos os
brincantes acreditam e vivem aqueles personagens como se fossem eles, o brincante tem
consciência de sua representação, mas se confunde com esse “outro” até no cotidiano. No
caso do cazumba, por exemplo, existe um riso pelo seu jeito estapafúrdio na brincadeira, mas
ao mesmo tempo um respeito por todo valor que ele veicula, tanto de espantar coisas ruins,
como abrir a roda da brincadeira, quanto de ter o “poder”, mesmo que imaginário, de fazer a
ligação entre o céu e a terra. um cuidado com o seu mistério que aparece na relação fora
da brincadeira, sem a careta e sem a indumentária do cazumba.
A pessoa para ser cazumba precisa “vestir” a sua roupa e careta e nesse “outro corpo”
encontra a sua potência para a brincadeira, as suas marcas pessoais para sua dança e jogo.
Esse novo corpo que surge traz aspectos grotescos que definem seu comportamento
transgressor, transitando do burlesco à assombração.
6.1 O ATO DE SE MASCARAR
A máscara é um objeto que oculta a face e por isso foi perseguida pela igreja por
muito tempo, comparada a rituais diabólicos e recriminada pela sociedade. Desde então a
máscara é questionada como um lugar de poder, que se encontra nesse diálogo entre o homem
e seus deuses ancestrais; a máscara confere autoridade, autentica e legitima o ato ritualizado.
O rito de transvestir-se com máscaras está ligado à cultura da maioria dos povos, e traz o fato
de “ser um outro” e as pessoas não o identificarem. A máscara traz um estado de presença
permanente, no sentido de criar uma energia viva e aberta para qualquer relação de
performance. De modo que o brincante, quando está encoberto por uma careta, faz destacar a
presença do personagem, e a partir desse mascaramento evidencia o corpo brincante de cada
cazumba, ressaltando o estilo pessoal de cada pessoa que atua na brincadeira.
Donato Sartori, mestre italiano, criador de máscaras para teatro, em palestra na
ABRACE
89
, comentou que “falar de máscara é falar da história do homem”. O uso de
máscaras está associado a diversos segmentos da sociedade, nas festas, rituais de passagem ou
iniciação, dedicados aos mortos e aos deuses; no teatro da Commedia Dell”Arte na Itália, no
89 ABRACE – Associação Brasileira de pesquisa em Artes Cênicas, encontro que aconteceu em outubro de 2008, em Belo Horizonte.
150
150
e Butô do Japão e muitas outras manifestações teatrais, além do uso nas antigas
civilizações. Desde a pré-história se utilizavam máscaras para se aproximar dos animais,
utilizando materiais que se assemelhavam aos próprios bichos.
O ato estético e simbólico de se mascarar, disfarçando o eu convencional e
desnudando o gestual corporal, traz um estado de predisposição e entrega ao brincante, para o
personagem que ele vai viver, imbuído de muitos fundamentos e mistérios.
“A máscara contém uma síntese de bases histórica, política e religiosa e,
mediante esse conceito antropológico e sociológico, pode-se interpretá-la
enquanto objeto singular ou como acessório combinado a outros adornos
como uma viagem aos fundamentos da estrutura do grupo, aos princípios
elementares da criação do mundo, filtrados pelas percepções do olhar da
cultura sobre o momento imposto pelo ritual”. (LODY, 1999:11).
A máscara do cazumba tem origens africanas assim como ibéricas, com as máscaras
em madeiras dos Gueledês entre os Iorubás na Nigéria e os Caretos do Estado de Bragança,
na região do Alto-Trás-os-Montes em Portugal, que saem no período do carnaval a chacoalhar
e assustar as pessoas ao redor. O antropólogo Ferretti afirmou no jornal, durante uma visita a
Portugal, em uma bienal de máscaras que:
A careta de cazumba tem origem africana e portuguesa. Tem chocalhos, roupa
desenhada com santos e máscara de madeira. As máscaras lusas influenciaram
o aparecimento de máscaras no Brasil, através da colonização. Posteriormente
juntaram-se elementos ameríndios e africanos”. (Jornal Cultura Mascararte,
2007:8).
É difícil ter a precisão da origem da máscara do cazumba, mas é possível criar
hipóteses de suas influências, de modo que todos esses mascarados exercem um poder sobre a
sociedade, sendo respeitados nesse lugar de feitiçaria, onde esses personagens podem fazer do
uso da sua brincadeira ou do seu ritual a sua identidade. Tanto a sua indumentária tipo túnica
se parece quanto o seu mistério e fascínio do que ele representa.
O brincante cazumba gosta de confundir seus amigos e familiares, muda de careta ou
transforma-a para não ser reconhecido, satisfaz-se com essa possibilidade de manter sua
identidade oculta e assim vivencia esse outro “ser” que é o cazumba, abrindo espaço para a
criação de sua “outra” identidade. “Essa característica de ambiguidade cria uma capacidade de
mediação e transformação para constituição de identidades” (KOCH, 1998:30). A máscara
tem o poder de dialogar, assume a necessidade de um público não passivo; portanto, através
do seu uso o brincante atua no lugar do imprevisível, do improviso, assumindo para o
espectador a sua brincadeira.
151
151
O Grupo Teatral Moitará, do Rio de Janeiro, trabalha com a confecção e o uso da
máscara na cena teatral de seus espetáculos. Em uma demonstração prática na sua sede, no
ano de 2008, os seus coordenadores Erika Rettl e Venicio Fonseca comentaram que “toda
máscara propõe uma fisicalidade, um afloramento de linhas de força. Antes do caráter, as
linhas da máscara são o primeiro texto”. As linhas significam o formato, as marcas que a
máscara tem, assim como suas cores e materiais que também são carregados de sentidos,
trazem uma intenção gestual, são apropriadas de presença cênica, ou seja, abertos ao jogo do
momento presente.
Através dos materiais, da estrutura e do formato da careta do cazumba, podemos
perceber seu estilo e a partir disso tentar descobrir de que Turma faz parte ou em que cidade
da Baixada participa da brincadeira, pela careta e bata descobrimos suas preferências
religiosas ou alguma questão que ele exponha. Um cazumba que presenciei na cidade de
Matinha, tinha na sua bata um bordado com a imagem do Congresso em Brasília e os
políticos Lula e Sarney se cumprimentando. Então, cada cazumba traz fatos que ele quer
ressaltar.
A máscara do cazumba tem um estilo bem diverso, cada cazumba faz a sua invenção,
no interior da Baixada se usam mais caretas com queixos de madeira ou com enormes torres,
feitas de isopor, estruturas de arame com batas de veludo muito bordadas. Alguns cazumbas
preferem uma careta mais leve para brincar e rolar no chão, que pode ser feita de pano ou
couro, porém o fato importante é que normalmente é uma imagem engraçada e esquisita, com
formatos e adornos grotescos (Figuras 59 e 60).
152
152
Figura 61: Careta com material de arame, Viana, junho, 2008. Foto: Juliana Manhães.
Figura 62: Careta com material de isopor, Penalva, junho, 2008. Foto: Juliana Manhães.
O cazumba e artesão Zimar, da Turma João de Pixilau, no município de Matinha,
Baixada Maranhense, se apropria do seu jeito de fazer sua careta e mostra que mesmo a careta
sendo feia precisa estar arrumada, é necessário ter um cuidado, ter condição, e para a
brincadeira “rolar solta” é necessário ser espontâneo: “A primeira careta que fiz foi aquela
que tem um narigão, depois eu fiz essa que tem cicatriz. Eu vou fazer essa bicha com o queixo
torto. Vamos dizer, pegou um talho, os pontos, e fiz a cicatriz. Vou botar um tumor, pra dizer
que é um tumor. Pra uma careta ser boa ela tem que ser feia. Pra mim a boa é assim. Pra
brincar cazumba tem que ter a condição de se arrumar” (MAZILLO, 2005:119). É
interessante observar como a visão do bom traz um sentido diferenciado da beleza
estabelecida pela sociedade, pois a boa careta, como diz mestre Zimar, tem que ser feia.
153
153
O feio também tem uma condição para ser bom, necessita de uma arrumação para se
legitimar no lugar da feiúra, que tem a ver com a diferença, está relacionado à experiência
sensorial mais selvagem, crua, rude, incontrolável e assustadora, a beleza seria uma
experiência sensorial afetiva que a gente consegue filtrar e no feio é difícil digerir. Não é que
o cazumba seja feio, mas ele ocupa uma posição que traz sensações mais de horror que de
prazer para quem vê, ele amedronta pela sua careta e faz rir por ter um corpo engraçado e
atitudes diferentes, mas é este espanto que se espera dele. “A máscara tem um poder mediador
e transformador entre representação e representado, entre o significante e o significado”
(KOCH, 1998: 26). O poder de transformação da máscara autoriza, no plano religioso, uma
função de intermediação entre o mundo dos deuses e o mundo dos homens, colocando os
mascarados, assim como o cazumba, nesse lugar fronteiriço.
6.2 O GROTESCO NO CAZUMBA
A personalidade do cazumba é dúbia, de comicidade, através do riso, e demoníaca,
através da sua semelhança com uma figura diabólica, assustadora, que medo e faz rir.
Essas características são elementos do seu jeito grotesco, onde o exagero, o hiperbolismo e o
excesso são marcantes no seu estilo. A arte do grotesco aprofunda a vida cotidiana até que ela
pare de representar somente o que é comum, une, em ntese, a essência de contrários e induz
o espectador a tentar resolver o enigma do incompreensível. “O sentido com que
empregaremos a palavra grotesco é o de caricato, antinatural, ridículo. Grotesco vem de
grutesco ou brutesco, que representa a natureza de um modo exagerado, caprichoso e
fantástico” (MARTINS, 1998:3) (grifos do autor). O grotesco é risível, excêntrico e, ao
mesmo tempo, sublime, é aquele que suscita riso ou escárnio, é uma categoria estética que se
presta à troça ou à repulsa por seu aspecto estranho, bizarro, que traz um ridículo.
O cazumba traz na forma de sua indumentária um exagero, elementos do grotesco, que
aparecem através de seu enorme “traseiro”, moldado pelo cofo e a bata, sua careta animalesca,
além do seu jeito destrambelhado de dançar, podendo mexer todas as parte do corpo que tiver
vontade e mudando rapidamente de direção. Ao mesmo tempo, é esse excesso que traz seu
mistério. Sua bata até o chão traz a sensação de o cazumba flutuar, propiciando uma
comparação dele com o “espírito”, como uma figura mais angelical ou uma imagem
assustadora do diabo.
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Figura 63: Cazumba com careta diabólica, Morte do Boi Meia Légua, povoado Santa Maria,
junho, 2008. Foto: Christiane Alcântara.
Por meio do grotesco obriga-se constantemente o espectador a manter um duplo
comportamento para a encenação, que passa por mudanças súbitas e abruptas, mas uma coisa
é essencial: a tendência constante do artista brincante de transportar o espectador de um plano
recentemente alcançado para outro totalmente inesperado. Esse espanto é a característica
fundamental da brincadeira do cazumba, além da sua necessidade em manter um diálogo com
o público presente ou algum brincante da roda de brincadeira.
Bakhtin afirma que “o grotesco começa quando o exagero toma proporções
fantásticas, e quando o nariz de um indivíduo se torna o focinho de um animal ou um bico de
pássaro” (1999:276). A careta do cazumba atualmente concentra uma diversidade de
possibilidades na sua feitura, mas os “careteiros”
90
que trabalham com madeira, comentam
que a inspiração vem dos animais, podendo fazer um focinho de cachorro, cavalo, porco etc.
Assim como a sua boca pode se mexer, exibindo grandes dentes e fazendo o movimento de
abrir e fechar, tornando a careta ainda mais assustadora e parecendo que está viva, trazendo a
intenção de poder devorar e comer tudo que estiver pela frente (Figuras 64 e 65).
90 É uma maneira de chamar os artesãos que confeccionam careta de cazumba.
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Figura 64: Cazumba com focinho de cavalo, Viana, junho, 2008. Foto: Christiane Alcântara.
Figura 65: Cazumba com focinho de porco, Viana, junho, 2008. Foto: Juliana Manhães.
Depois da boca, como elemento importante do grotesco, vem em seguida o “traseiro”
ou a “bunda” do cazumba, parte do corpo fundamental para a movimentação desse
personagem. É através da região pélvica que o cazumba faz toda a sua evolução e a partir
desse gestual traz a sua graça. “O corpo grotesco é um corpo em movimento. Ele jamais está
pronto nem acabado: está sempre em estado de construção, de criação, e ele mesmo constrói
outro corpo” (BAKHTIN, 1999:277) (grifos do autor). Esse estado de ação e prontidão, de
não estar concluído e permanecer em processo é uma característica do jogo do brincante,
156
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assim como do ator, é a necessidade em manter a comunicação viva, trazendo uma verdade
cênica com um corpo marcado pelo seu modo de atuar na brincadeira e sempre em relação
com a reação do espectador, cujo retorno vira estímulo para a brincadeira do brincante
performer.
A brincadeira do cazumba é a expressão de sua dança, sua gestualidade reúne diversos
elementos que absorvem sentidos do grotesco: a sensualidade de seus passos, a bizarrice de
sua careta, que pode ter movimentos no maxilar, o volume de sua bunda que aparece no forte
rebolado, estão inseridos em contextos ligados a sua dança, que é feita de movimento. Como
afirmei anteriormente, o gestual é compreendido de maneiras diversas, já que cada pessoa
que vê, cria o seu próprio sentido, sua percepção. “Elementos de dança estão ocultos no
grotesco, porque o grotesco somente pode ser expresso através da dança (BARBA,
1995:156). Assim, a brincadeira do cazumba está imbuída de diversos sentidos, que vão do
riso à repulsa, através do ridículo expresso no seu corpo e sua transgressão representada na
sua movimentação.
O que é fundamental nesta teia de elementos grotescos é que essa irradiação tece o
estilo desse personagem. Sua interação na brincadeira com os brincantes, sua proximidade
com o público, provoca transgressões e suscita o riso, como uma espécie de cumplicidade
entre os cazumbas e todos aqueles personagens com os quais ele interage, fazendo parte dos
seus rituais festivos e suas vidas cotidianas, entrelaçados em um enredo, com música, dança,
encenação e o público, alimentando a dinâmica da performance.
6.2.1 O riso como alicerce para a figura do cazumba
O riso é um movimento que faz disparar o coração, onde a boca se abre, os dentes
aparecem e até o diafragma se agita com as risadas impetuosas de emoção, transmitindo um
som engraçado e uma alegria que ultrapassa qualquer pensamento imediato. É um elemento
de caráter transgressor, consentido pela sociedade, com um potencial regenerador e, às vezes,
subversivo. “O riso partilha com entidades como o jogo, a arte, o inconsciente etc., o espaço
do indizível, do impensado, necessário para que o pensamento sério se desprenda de seus
limites” (ALBERTI, 1999:11). O cazumba é um personagem que vive para gerar “graça”,
fazendo do riso sua provocação, seu estímulo de interação, mas esse sorriso pode vir pela
emoção da felicidade ou da assombração, permitindo trilhar entre esses dois caminhos, da
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possibilidade de causar alegria ou espanto. Seu jeito de caminhar e balançar a “bunda” é
muito engraçado, mas sua abordagem pode ser desafiadora e por isso espantar, não sabemos
até onde o cazumba é capaz de fazer da sua diversão o nosso assombro.
“O riso pode ter todos os sentidos e significados, não é bom nem mau por natureza. Há
o riso demoníaco e o riso dos deuses. E entre Deus e o Diabo todas as nuanças”
(BARROSO, 2008:1). Estas sutilezas são representadas, a partir de diversos tons de
possibilidades, essa diversidade é o lugar onde se encontram as peculiaridades e forças do
cazumba. Este mistério que ronda, fortalece a sua impossibilidade de fechar um sentido. Este
lugar do entre é o espaço onde o riso equilibra e desequilibra sua comicidade e transgressão,
permanecendo em estado de oscilações.
O cazumba traz elementos estéticos e funções que se afinam com a ética da
brincadeira exercida pela figura do palhaço, através do seu revés. O cazumba ri com o seu
quadril balançando e com sua careta se mexendo, ele pode não rir por dentro da máscara,
enquanto brincante, mas sua indumentária traz o riso.
A imagem do palhaço pode remeter a diversas origens, como na manifestação da Folia
de Reis, que representa a Jornada dos Três Reis Magos, tendo a figura do palhaço,
simbolizando os soldados do Rei Herodes que perseguiram o menino Jesus. Este palhaço é
um integrante com habilidades acrobáticas na dança e no desafio de cantar e inventar rimas.
No universo circense, o palhaço, ou clown, é o artista cômico, que explora característica de
excêntrica tolice em suas ações, através do exagero no seu corpo, nos seus adereços, na sua
maquiagem e nas suas atitudes.
O palhaço é um transgressor, um excêntrico; esfora dos eixos, das regras,
da lógica, do bom senso, do bom gosto e das boas maneiras. Um palhaço é um
ser estranho que bota a mão no fogo, que põe a cabeça na guilhotina e se
expõe nu em sua tolice e estupidez. O palhaço é diferente do comediante. Ele
não conta uma história engraçada. Ele é a graça, ele é o risível. (CASTRO,
2005: 257).
O cazumba, assim como os palhaços, é fundamental para manter o equilíbrio da
brincadeira, pois, conseguindo trazer a pureza de mostrar o seu próprio ridículo e mantendo
uma performance viva com sua espontaneidade e sua gestualidade cômica, traz a alegria e o
prazer da vida, como mestre Abel diz “só sei que o cazumba é feito para fazer graça”. Abel
fala da graça, como qualidade da comicidade, mas também podemos pensar como a graça
divina, de inspiração, novamente elevando-o a um caminho do sobrenatural.
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O cazumba apresenta um corpo cheio de dualidades, ora grotesco, engraçado e
também sagrado, um personagem que faz de sua própria transgressão sua personalidade. O
ridículo e o feio no cazumba simbolizam a possibilidade de conviver com uma realidade do
avesso e dentro deste lugar é permitido transgredir, é a partir desta mudança de perspectiva
que sobrevivem os seres que estão no “reino do entre”.
Bakhtin afirma que o “riso carnavalesco”, “antes de mais nada é festivo”. “Esse riso é
ambivalente: alegre e cheio de alvoroço, mas ao mesmo tempo burlador e sarcástico, nega e
afirma, amortalha e ressuscita simultaneamente” (1999:10).
Esse riso festivo atinge as coisas e pessoas da comunidade e os de fora dela,
igualando-os; todos se tornam parte desse tempo fora do cotidiano, ocupando espaços
consagrados a festas e rituais.
A careta do cazumba e o seu jeito de dançar podem instigar diversos sentimentos, indo
de um lado a outro na sua movimentação e provocando risos que mostram variadas facetas, de
forma simultânea. Essa qualidade de poder “ser”, ao mesmo tempo, duas coisas ou mais é a
sua ambiguidade, fortalecida por esse poder de se manter na obscuridade de um sentido único
e pleno.
6.2.2 O sobrenatural como alicerce na figura do cazumba
Como afirmei anteriormente, a palavra cazumba, tem origem banto
91
e vem de
cazumbi, e zumbi se refere à alma ou espírito que vagueia. O fato é que a figura do cazumba
pode ser comparada a outras imagens mitológicas, que remetem a ancestrais do passado ou
energias de fortes religiões como no candomblé ou na umbanda.
O candomblé é uma religião de origem africana, cujas entidades são chamadas de
orixás e cada um representa uma energia da natureza, mas Exu é também chamado de
mensageiro interagindo com esses “dois mundos”, terreno e místico. Dizem que Exu é o orixá
mais humano e respeitado, por isso sendo o primeiro a ser invocado; é aquele que “abre os
91
Banto é família linguística e não etnográfica ou antropológica. O domínio de Portugal na Guiné, Angola e Moçambique
facilitou a exportação escrava em grande massa para o Brasil, onde o negro de Angola era sinônimo de cativo e a
popularidade dos bantos se afirmou, desde o séc. XVII, nas agremiações e irmandades para Nossa Senhora do Rosário, onde
eles dirigiram e defenderam suas festas sob a égide católica. Quando foram enviados para a América do Sul os bantos tinham
elementos fortes da cultura árabe e por esse intermédio lendas, mitos, tradições orientais vieram nas suas memórias.
(CASCUDO, 1998:137).
159
159
caminhos”. Segundo as lendas de Reginaldo Prandi no livro “Mitologia dos Orixás”, Exu,
sempre muito atento e esperto, foi evoluindo na hierarquia dos orixás, de mais novo dos
orixás passando a ser o primeiro a receber os cumprimentos de saudação; além de representar
o guardião da casa e da entrada, tendo suas oferendas servidas em primeiro lugar, assim como
protegendo e cuidando de outros orixás. Oxalá lhe consagrou o poder sobre as encruzilhadas
(2001:40) e Olodumare como mensageiro e intermediário (2001:43), o pesquisador Zeca
Ligiéro define que “Exu é o responsável pela comunicação deste mundo (Ayé) com o mundo
dos deuses (Orum)” (1998:54).
A encruzilhada é um lugar onde pontos se convergem, se encontram, local de
fronteiras, de transitoriedade. Iremos comparar a performance do cazumba à encruzilhada
como um espaço que tem o compromisso com a sua liberdade, e que a partir do ritual e da
brincadeira faz da sua transgressão um ato compreendido, como já mencionei sobre a figura
do cazumba. Essa formação se organiza no espaço da brincadeira do boi como um cordão
enfileirado com os encaretados dançando no seu passo que transita entre um lado e outro, ora
se movimentando para uma direção ora interagindo com algum personagem da roda, mas
sempre circulando pelos espaços fronteiriços, podendo brincar dentro da roda, assim como
sair desse movimento circular e compartilhar alguma zombaria com outro personagem.
Na umbanda, Exu pode ser chamado de Marabô, Tiriri, Tranca Rua, Pomba Gira,
Maria Padilha, além de ser confundido e sincretizado com a figura do diabo. Representa a
bagunça, a licenciosidade e a sexualidade. “Exu propõe a diluição das regras, da ordem e a
entrega total aos desejos emocionais e à sexualidade (numa forma simbólica)”
(LAPASSADE; LUZ; 1962:60). Diabo, demônio, satanás ou belzebu são diferentes
expressões para qualificar um “espírito” das trevas compreendido, pela sociedade cristã, como
a personificação do mal, assim como uma entidade libertária, provocadora, em outras
interpretações como na umbanda.
O cazumba é aquele que também pode conviver com suas normas de maneira amena,
de modo que dentro da roda e durante as festividades ele não é levado muito a sério, podendo
fazer o que tiver vontade, aproveitando-se de suas emoções para ludibriar as pessoas
presentes, é um personagem que pode abusar de sua indisciplina, zombando de todos, mas
que, mesmo assim, sempre estará ocupando o lugar de iniciar a brincadeira do boi, abrindo a
roda para todos os personagens que vêm a seguir.
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Outra similaridade que vejo com o personagem do cazumba é que Exu “está sempre
lidando sem qualquer compromisso com as duas faces de todas as coisas”
(LIGIÉRO,1998:54). Essa possibilidade de transitar entre duas condições é outra
característica importante no cazumba, não somente na brincadeira, agregando o riso e o
espanto, quanto nos seus simbolismos relacionados a figuras sobrenaturais.
Pierre Verger define que “Exu é um orixá de múltiplos e contraditórios aspectos, o que
torna difícil defini-lo de maneira coerente” (1997:67). Assim como o cazumba, traz uma
imagem mitificada, não sendo completamente bom nem mau. Tem o compromisso com a sua
liberdade, de poder ser incoerente nas suas atitudes e ser compreendido neste lugar da
transgressão. Existe também um ritual dos eguns, morte que volta à terra em forma espiritual
e o Egungun
92
ancestral individualizado que está de novo "vivo", cuja indumentária e atuação
podem se associar à brincadeira do cazumba..
Duas cazumbas mulheres, do Boi da Floresta, que são de São Paulo e foram morar em
São Luís, se encantaram com a figura dos cazumbas, começando também a brincar com este
personagem. Flávia Moura diz que “o cazumba pra mim não é humano, ele é um ser né? É um
ser assim ancestral, é um ser assim, um espírito mesmo né?” E Lucimara Correa faz a ligação
do cazumba com um erê “ele tem essa infantilidade, ele é criança, ele é brincalhão, tem os
cazumbas mais velhos, mas ele tem esse espírito infantil”.
93
Olga G. Cacciotore assim define Erê”: “Vibração infantil pertencente à
corrente vibratória de um Orixá”. Os Erês desempenham a função de
intermediários entre os homens e os Orixás, durante os rituais. Nesse sentido a
atuação dos Erês é análoga àquela realizada por Exu no oráculo de Ifá e na
mitologia dos Orixás, uma vez que ele normalmente não se incorpora nos
candomblés. (LIGIÉRO, 1998:106).
O cazumba tem a energia que o brincante trouxer para seu movimento, mas a sua
imagem presentifica um ser diferenciado dos humanos, que pode trazer tanto uma vibração
infantil como animal, através da representação mitológica que o preserva. Mircea Eliade
92
O Egungun simplesmente surge no salão, causando impacto visual e usando a surpresa como rito. Apresenta-se com uma
forma corporal humana totalmente recoberta por uma roupa de tiras multicoloridas, que caem da parte superior da cabeça
formando uma grande massa de panos, da qual não se vê nenhum vestígio do que é ou de quem está sob a roupa da qual não
se nenhum vestígio do que é ou de quem está sob a roupa. http://aulobarretti.sites.uol.com.br/Egungun.htm. Artigo O
Culto dos eguns no candomblé.
93 Entrevista filmada, na casa de Lucimara Corrêa, no Rio de Janeiro, no mês de novembro de 2008.
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escreve que “o mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no
tempo primordial, o tempo fabuloso do princípio” (1972:11). E os personagens dos mitos são
relacionados aos seres sobrenaturais, revelando uma forte atividade criadora, considerando a
história sagrada e verdadeira.
Não temos como comprovar o surgimento do personagem cazumba, mas sabemos que
ele desde o “início” está presente na manifestação dos Bois da Baixada Maranhense e mesmo
com suas transformações a sua marca está nessa imagem sagrada e grotesca que confunde,
mas o que importa não é descobrir o segredo desses mascarados e sim usufruir da sua graça
comprometida com a sua espontaneidade.
6.3 O CAZUMBA DO “REINO DO ENTRE”
As características da liminaridade se encontram em um estado, uma condição de
ambiguidade, uma fase transitória, por não ser ainda nem isto nem aquilo e ao mesmo tempo
poder ser as duas coisas, é o lugar do entre, se situa no meio. É um lugar onde se escapa uma
rede de classificação na sociedade, é a transição, o processo em movimento.
Que lugar é esse que o cazumba ocupa, permitindo preencher duas funções ao mesmo
tempo? Ser ridículo e sagrado, sentir medo e atração, temor e fascinação. Tudo junto? Esta
dualidade é ambígua e tem uma lógica que não é a tradicional, na perspectiva de que a
tradição é concebida através da construção de um conjunto de valores da sociedade. Nas
festas essa herança é a garantia da consciência histórica e da continuidade, a festa e a
brincadeira são lugares que modificam a realidade das coisas, por pertencer ao tempo do
sagrado e remeter a um tempo simbolizado no passado. A ambiguidade do cazumba traz um
estado que abarca variadas energias e representações, fortalecendo antigos elos de irmandade
e comunhão.
A leitura da liminaridade é considerada contraditória e por isso tende a ser encarada
como “algo invariavelmente paradoxal, ambíguo e, no limite, perigoso e negativo”, como
escreve Roberto DaMatta (2000:5). Esse lugar do estranho é colocado na margem como ato
perigoso e por isso fascinante, é o não saber, o misterioso. A impureza transgride as fronteiras
classificatórias, é onde residem as crenças e a vivência em cerimônias com finalidades bem
definidas apesar de se encontrarem em estados de ambiguidade. Sua força está na experiência
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vivida pelo coletivo e o entendimento que essa communitas para o seu sentido de
existência.
Por isso quem sentido ao cazumba é o outro, esse outro representado pela
sociedade, que precisa classificar e impor utilidade em todas as questões da vida. O brincante
brinca, se diverte, traz seu estilo de maneira involuntária, não tem o objetivo de esclarecer o
que representa, mas o ser humano tem necessidade de dar significado a cada ato realizado
pela comunidade.
Outro questionamento importante é sobre a relação do cazumba com o “reino do
entre”, permitindo um sentido abstrato, que apesar de ser julgado inferior, excluído da
sociedade, ele é sustentado pelo valor simbólico que é relativizado. O relativismo tem mais
liberdade e traz a questão da escolha, não tem um modelo, ocupa um lugar de reinventar e
todas essas idéias se afinam com a identidade do mascarado cazumba, que se sustenta nesse
estado duvidoso. Hegel afirma que:
A sociedade desvia o olhar do pensamento abstrato, não porque ele possui um
caráter inferior para ela, mas porque lhe é muito superior; não porque o
pensamento abstrato lhe parece mesquinho, senão porque lhe parece nobre
demais (1986:3).
Fazemos uma comparação deste abstrato com o estado de liminaridade ocupado pelo
personagem cazumba e por todos “os seres” que estão ou vivem em estado de transição,
porque a liminaridade caracteriza essa elevação de status. Por exemplo, no período dos
festejos juninos ou no carnaval, os superiores são aqueles que fazem parte da manifestação,
que são de dentro da comunidade e todos devem aceitar este momento, Victor Turner
denomina como “ritos de inversão de status”. Esse é o momento no qual os brincantes
ocupam um lugar de importância, de passagem e transformação, onde o seu valor está
misturado com o sagrado.
Torna-se fácil para esse personagem surpreender, a nobreza do cazumba está na
possibilidade de despertar diferentes sensações, mesmo sendo estranho, e provocar a alegria.
É esta capacidade de rir que nos aproxima dos deuses, mas como a sua comunicação é no
gestual, seu entendimento é cercado de simbolismos, recolocando-nos diante da nossa mais
pura essência animal. O cazumba tem histórias de atrapalhar até a reza na hora do batismo do
boi, mas por ser uma figura cômica, seus atos são admitidos; ora transgride com suas
brincadeiras se profanando, ora se torna objeto sagrado; consegue se comunicar no “reino do
entre”, da permissão dos excessos, entre o tempo sagrado e o tempo profano.
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Victor Turner, ao reler as teorias de Van Gennep, definiu os ritos de passagem como
“ritos que acompanham toda mudança de lugar, estado, posição social de idade”. Mostrou que
esses ritos se caracterizam por três fases: separação, margem ou limiar e agregação (Turner,
1974:116).
A margem simboliza um lugar sagrado e ao mesmo tempo pode ser considerada como
um lugar privilegiado e cercado de caráter voluntário. Estar na margem nesta perspectiva é
fazer parte de uma performance de resistência, onde o ato é simbolizado há muitas gerações, e
a margem é resignificada, faz parte da fase de liminaridade, fase de fronteiras e limites de
relação e entendimentos: estar à margem traz um elemento de fascinação e, neste sentido, é
visto como um lado positivo, diferindo da margem como um local sem muito valor.
Penso que a liminaridade é estar entre o sagrado e o profano, o ritual e o jogo, entre a
uniformidade da coreografia em linha e sua liberdade em ter sua performance solo,
subvertendo-a. Permanecer o mistério para quem faz e para quem vê. Ele protege o boi, mas
também participa da matança e o come. Enfim são inúmeras as dualidades e portanto é um
personagem em um processo contínuo de construção/desconstrução, por isso se aproxima do
universo mítico, dos arquétipos, das formas ancestrais africanas que ultrapassaram o rito
católico ao qual ele está filiado, mas nunca confinado.
94
O valor do cazumba está nesse lugar em que o sentido se excede, trazendo ao mesmo
tempo o riso e o medo, é um ser comparado a um monstro e ao mesmo tempo a uma
divindade. É um personagem que transita simbolicamente por diversos sentimentos, mas
dentro da roda do boi ele traz um valor de sua irmandade, sua brincadeira está relacionada
com sua interação com seus parceiros.
Sua performance está diretamente relacionada com o jogo, através da sua
espontaneidade, e com o ritual, através de sua máscara que sustenta a comunicação através do
aceno, da sua gestualidade.
Esse lugar do ritual e do jogo são misturados e é difícil distinguir os limites de suas
fronteiras. Sua brincadeira está nessa possibilidade de ritualizar o jogo e brincar com a
seriedade dos ritos, interagindo o momento do jogo com o ritual.
O cazumba ocupa um lugar onde o sagrado é risonho, mas mesmo assim delimitado
pelo religioso. A comunidade reconhece e legitima seus cruzamentos simbólicos trazendo
uma importância para sua função de abrir a brincadeira e interagir com o público.
94
Diálogo com o orientador Zeca Ligiéro em julho de 2009.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS – DESPEDIDAS
Como diz mestre Apolônio “nossa obrigação é continuar com esse suspense”,
comentando que tudo é simbolismo no boi, mas que “é para o público acreditar que é
verdade”.
95
Nas palavras do mestre percebo que o papel da brincadeira é dar continuidade a alguns
mistérios e segredos que não podem ser desvendados, porque o interessante é o recorte que
cada pessoa faz, de modo que o entendimento sobre os elementos da manifestação do boi
podem variar, assim como o sentido do cazumba na sua performance. E pensar que o papel do
público é reforçar a importância de que aquele ritual e brincadeira são “como se” aquela
encenação fosse verdade e parte fundamental para a realidade daquela comunidade, de modo
que a manifestação sentido a esses brincantes que fazem da sua própria vida uma
continuidade a tradição do boi.
Relembro também a fala de mestre Abel quando disse “não pode explicar muito se não
perde o sentido da coisa”. Ele sempre teve o cuidado de ir abrindo o universo do cazumba
para mim aos poucos, dizia que a cada descoberta, ele podia falar mais alguma coisa, quando
ficava muito ansiosa com tantas perguntas ele soltava essa frase e dizia que o importante
estava na hora da brincadeira. Aprendi que mesmo querendo buscar sentidos, justificativas e
comparações teóricas, as respostas estão na observação da brincadeira e na convivência com o
coletivo, a construção desse olhar está nas palavras ditas por esses brincantes e nos objetos
que eu quero ressaltar. E neste caso o foco é a brincadeira do cazumba, através de sua
movimentação na roda do boi, criando um estilo próprio de dançar e interagindo com os
outros personagens, a partir da sua relação de jogo e espontaneidade.
Esta pesquisa não seria possível sem a generosidade desses dois mestres e de todo o
Boi da Floresta que me permitiu ser participante do boi, como cazumba, percebendo os
entremeados dizeres e modos de fazer desse coletivo, além dos diálogos com cazumbas da
cidade de Viana, no Boi Turma de Paulo, Turma de Marco Roque e Boi Urubu e em Matinha
no Boi Meia Légua, que me propiciaram descobrir atitudes inovadoras com suas
indumentárias e no jeito do cazumba brincar. Aliás, é importante destacar que a pesquisa no
interior iniciou, pois a diversidade de bois que pude presenciar em Viana trouxe detalhes
95 Entrevista gravada em fita cassete, na casa do mestre Apolônio, em setembro de 2005.
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das inúmeras possibilidades que ainda posso aprofundar, já que o recorte feito aqui nessa
dissertação foi criar a opção por valorizar uma experiência e contato com o Boi da Floresta.
No percurso deste trabalho me deparei com a necessidade em decodificar os passos e a
movimentação do personagem cazumba, além de buscar suas ambiguidades ligadas a questões
de comicidade e assombração, que ele faz graça, mas também assusta as pessoas com sua
indumentária grotesca e misteriosa. Através das palavras de alguns brincantes e minhas
memórias de um corpo brincante, presente na brincadeira, surgiram os movimentos do zigue-
zague, que vai de um lado a outro dentro do cordão dos cazumbas, o raspa, com intuito de
derrubar o outro brincante, o “menear de quadris” que é o balanço que o corpo do cazumba
faz, os “caqueados” que traz a ginga e quebras de movimento, trazendo um jeito próprio de
brincar, o “ponto e rgula” que é o jeito de andar, onde um arrasta, trazendo a outra perna
em seguida, fazendo semelhança com um gestual de um “manco” e todo esse gestual agrega
muitas energias e sensações, ora o cazumba contém um sentimento mais animal, ora mais
infantil ou sagrado.
O fato deste personagem ser um encaretado traz poderes ligados ao “divino” e ao
sobrenatural permitindo ao cazumba ter uma atuação incontrolável, sustentada pelos desejos e
aspirações do brincante e pelos sentidos que as outras pessoas dão ao cazumba dentro da
brincadeira e nos rituais do ciclo festivo. O mascarado cazumba ocupa um espaço de
fronteiras, onde ele pode transitar entre ser homem, mulher ou animal, esse lugar do “entre”
coloca este personagem nas margens das possibilidades de uma tradição com influência afro,
com o catolicismo sempre presente, através dos santos homenageados, suas ladainhas e a
relação de obrigação com a brincadeira.
O cazumba ainda permanece como um personagem enigmático em relação as suas
origens e funções. Sua careta pode ter tido influências com os mascarados em rituais na
África, como os Gueledês e Eguns, ser comparado aos Caretos de festas carnavalescas da
Península Ibérica ou nos tempos atuais sofrer interferência com os brilhos das fantasiais e
gigantescas alegorias do carnaval carioca.
Na Baixada Maranhense o cazumba pode atuar como Pai Francisco ou até mesmo
como amo do boi, desempenhando outros papéis e funções dentro da brincadeira, no interior
ele tem mais liberdade na condução de sua movimentação dentro da manifestação do boi.
Provavelmente por não fazer parte da estrutura dos arraiais, como é organizado na capital,
onde um dos principais focos são as apresentações. De modo que a invenção do cazumba fica
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mais sob o critério do brincante, propiciando uma independência nas suas atitudes, tanto de
poder ir brincar em bois diferentes, como não permanecer no cordão do cazumba e parar a
hora que tiver vontade, quanto na criação de sua indumentária e careta, podendo usar
diferentes materiais como madeira, isopor, arame ou até mesmo a careta pronta de látex,
máscara dificilmente vista na cabeça de algum cazumba de Boi da Baixada na capital.
Durante o processo deste trabalho as fotografias me ajudaram a rememorar as
festividades percorridas, trazendo detalhes de situações que busquei acentuar. Essas imagens
também estabeleceram uma trajetória de escolha do olhar, por si próprias descrevendo e
explicando o que foi enquadrado ou escolhido como tema a ser desenvolvido. O sociólogo
José de Souza Martins diz que “composição fotográfica é também uma construção
imaginária” (2008:11). A fotografia e ilustrações funcionam como instrumento evidenciando
um meio de registro para trazer ainda mais clarezas a respeito da movimentação do cazumba e
os personagens do Bumba-Boi do Maranhão.
No ano de 2008 acompanhei mestre Abel na baixada, rumo a sua terra, Santo Inácio.
Foi curioso perceber a relação do mestre com o que presenciou antigamente e suas
transformações. O mestre agora está mais interessado em retornar ao interior e observar como
a brincadeira está acontecendo, do que brincar de cazumba no boi, diz que não agüenta mais o
cansaço e o incômodo do peso que a careta traz, gostando de poder levar outros aprendizes
para fora da capital e também se reencontrando com sua própria história.
No dia 23 de junho de 2009, dia do batizado do boi e véspera de São João, liguei para
mestre Abel dizendo que estava escrevendo e ele queria me contar que ía junto com
pesquisadores interessados para o interior, ver uma matança de boi de promessa no boi de seu
irmão, turma de Marco Roque. Ele diz com satisfação que sabe que essas pessoas vão
continuar voltando nesses lugares, só pelo rastro que ele vai deixando.
É interessante perceber a importância que mestre Abel para a continuação de sua
história mesmo depois que for para outra “existência”, a curiosidade das pessoas em quererem
estar próximas dele com seus conhecimentos, engrandecem a sua autoestima e o seu valor
enquanto mestre. Inclusive neste ano Abel fez a farda e a careta de seu neto Rauan, de quatro
anos, que estreiou no Boi da Floresta como cazumba e ele diz “tô passando a chave para ele,
não posso deixar a nossa brincadeira cair né?”. Mais uma vez demonstrando a importância em
persistir na brincadeira, através da sua geração familiar, porque se o mestre está cansando é
necessário ir iniciando outro da família para continuar.
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Neste ano de 2009 tive que ficar longe do ritual da festa para escrever e finalizar este
trabalho que apesar de fazer parte da minha vida nove anos, começa a trilhar um novo
percurso, que está em processo, por isso compreendo que não chego a uma conclusão, mas
abro um caminho de discussão a ser explorado em alguns segmentos de pesquisa: na cultura
popular, no teatro, na dança e na antropologia.
É necessário demarcar que a brincadeira do cazumba se une com diversas linguagens
artísticas como a dança, o teatro e o ritmo, combinando elementos do jogo, do ritual e da
festa, fazendo parte de uma estrutura social marcada pelo simbolismo dessas manifestações,
por meio do seu ciclo festivo de vida e morte, reunindo política, através das articulações com
o turismo, delimitando hierarquias por intermédio da existência de uma grande diversidade de
sotaques.
Este olhar é a construção das minhas memórias e dos mestres e brincantes que fazem e
fizeram parte desta história. São questões que tem uma dinâmica própria e que estão vivas e,
portanto, sempre com profundas transformações. As reminiscências dessa experiência estão
nessas memórias marcadas no corpo, desde maneiras de dançar a sentimentos que a
brincadeira produz no brincante, tanto no ato da manifestação, através do contato com aquela
comunidade, amadurecendo relações afetivas, quanto na força que essas festas reúnem nas
vidas de cada brincante, tornando essas datas de celebração, momentos de usufruto e
comunhão.
De qualquer forma é uma etapa que se encerra, como o ciclo festivo, para no momento
seguinte, fazer surgir novas crenças e questões a respeito desse personagem tão enigmático e
esplendoroso que é o cazumba.
Interrompo essa viagem, não para acabar, mas para indicar novos pontos de partidas.
Como o ciclo de vida e morte do boi, que se fecha para abrir...
“Toda brincadeira tem hora digo adeus e vou embora, oh meu bem querer, adeus meu
povo, vim cumprir com meu dever, a turma de São João Batista agora eu vou guarnicê.”
(Toada de despedida do Boi da Floresta)
96
.
96 Está toada faz parte do primeiro CD gravado do Boi da Floresta. É cantada por Seu Mundoca, um dos amos da brincadeira.
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NADIR. Conversas Nadir. Entrevista concedida a Juliana B. Manhães. São Luís, julho de 2004.
ROSALINO; BIGU; NADIR. Conversas barracão boi da floresta com Rosalino, Bigu e Nadir.
Entrevista concedida a Juliana B. Manhães. São Luís, junho de 2004.
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TEIXEIRA, Abel. Conversas Sr. Abel. Entrevista concedida a Juliana B. Manhães. São Luís,
setembro de 2005.
TEIXEIRA, Abel. Entrevistas e conversas gravadas na casa do cazumba Abel Teixeira. Entrevista
concedida a Juliana B. Manhães São Luís, jul. 2001, jun. 2003 e set. 2005. 3 cassetes sonoros.
MELÔNIO, Maria. Festa de morte do boi da floresta. Entrevista concedida a Juliana B. Manhães.
São Luís, setembro de 2005.
MELÔNIO, Apolônio, CRUZ, Nadir. Festa de morte do boi da floresta. Entrevista concedida a
Juliana B. Manhães. São Luís, setembro de 2005.
Imagens em movimento (filmagens realizadas e documentários consultados)
ABEL cantando toada, Convento das Mercês. Filmagem de Maguelo, São Luís, julho 2008.
AIYÉ [documentário]. Direção: Jorge Murad. São Luís, Geia, 2006.
APRESENTAÇÃO Boi da Floresta, apresentação Boi de Santa Fé, Boi Turma de Paulo.
Viana/Encontro de Boi, Matinha, junho 2008.
BOI da Floresta: gravação no barracão do Sr. Apolônio. Filmagem de Manguelo. São Luís, outubro
2006.
CONVERSA Sr. Apolônio com Beth e Agostinho. Filmagem de Maguelo, São Luís, julho 2008.
CONVERSA Bigu/ Bigu se vestindo de cazumba. Filmagem de Maguelo, Cidade, julho 2008.
CONVERSA com Mestre Abel. CUFA, São Luís, 2008.
CONVERSA cazumbas Charles e Cassiano. Filmagem de Juliana Manhães, São Luís, julho 2008.
CONVERSA Sr. Nico – Boi Urubu. Filmagem de Juliana Manhães, São Luís, julho 2008.
CONVERSA mestre Cândido. Filmagem de Maguelo, São Luís, julho 2008.
ENCONTRO de Boi Matinha/ Casa de Neco em Viana/ Festa de São Pedro -Santo Inácio / Morte
Boi Meia Légua. Filmagem de Juliana Manhães. Santa Maria, junnho, julho 2008.
ENTREVISTA Sr. Abel, por Venício Fonseca. Filmagem de Julia Limaverde, São Luís, junho 2008.
ENTREVISTA com as cazumbas Lucimara e Flávia. Filmagem de Juliana Mnhães. Rio de Janeiro,
outubro 2008.
ENTREVISTAS com Sr. Abel, Cazumba Laís, Vaqueiro Louro, Catirina Paulo. Filmagem de Juliana
Manhães, São Luís, janeiro 2008.
ENTREVISTA Sr. Abel – Casa do Pontal e casa da Ângela Mascelani. Rio de Janeiro, outubro 2007.
FESTA de São Pedro Santo Inácio/ Morte Boi Meia Légua. Filmagem de Juliana Manhães. Santa
Maria, junho, julho 2008.
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PAPO de Cazumba com Sr. Abel – Moitará. Filmagem de Zeca Ligiéro. Rio de Janeiro, outubro 2008.
REUNIÃO de cazumbas no barracão Boi da Floresta. São Luís, 23 janeiro 2008.
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GLOSSÁRIO
A
Agrado: Ajuda ou troca de favores, uma gratificação ou cachê pela apresentação, que pode
ser em dinheiro, comida, bebida ou transporte para o grupo.
Aleluia: Na época da quaresma, quarenta dias após o carnaval, os tambores param de soar em
muitos lugares do Brasil e retornam no sábado de aleluia. No Maranhão os batuques renascem
no aleluia, como um mbolo de resistência à festa e alegria. É um momento de celebrar a
cultura e festejar os encontros. É hora de reunir!
Amo: É um personagem do grupo que representa o dono da festa e do boi, o patrão,
fazendeiro, coronel, latifundiário, o chefe com toda a arrogância e poder; normalmente são
fundadores, brincantes mais antigos ou aqueles que têm o talento de cantador. É a pessoa
responsável em “puxar as toadas”, cantar as músicas e tocar o apito, dominando a situação do
grupo como um todo, indicando a hora de parar e recomeçar o batuque e as toadas.
Arretirada: O momento de saída do Boi do terreiro ou arraial em que estava se apresentando.
Auto: É a encenação cômica do Boi, que acontece através das toadas cantadas e os diálogos
entre alguns personagens como Catirina, Pai Francisco e o Amo. Os mestres mais antigos
chamam o auto de matança ou comédia. Essa representação também é relacionada ao ciclo de
festa de morte do Boi.
B
Badalo: Instrumento musical, tipo sino de boi, que está sempre a tocar, marcando seu ritmo,
funciona como um abre-alas que anuncia a passagem e chegada do bando de cazumbas. O
som lembra um sino de igreja ou o ferro do tambor de mina.
Baiante: Brincante do boi. Nos bois da baixada são os personagens que sustentam um grande
chapéu de pena de ema com uma grande testeira bordada e ficam no cordão tocando uma
matraca ou simplesmente balançando seu chapéu.
Baixada: Região a oeste e sudeste da ilha de São Luís, formada por campos baixos que
alagam na estação das chuvas, envolvendo cerca de 15 municípios do estado, é berço do estilo
de boi que tem a presença do brincante mascarado cazumba.
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Barra da saia: Tecido colorido e brilhoso que vai até o chão, com a função de cobrir as
pernas e o corpo da pessoa que fica brincando dentro do boi. É como uma saia que traz um
movimento para a dança do boi.
Barracão: Sede do grupo de boi, local onde acontecem os ensaios e as festividades de
batismo e morte, além de ponto de encontro para reuniões e manutenção das indumentárias
fora do período festivo.
Bata ou Farda: É o figurino do personagem cazumba. Uma espécie de “vestidão” ou túnica,
cobrindo todo o corpo. No interior fala-se farda e na capital usa-se mais bata.
Batalhão: São todos os integrantes e os agregados de uma brincadeira de boi, reunindo um
grande número de pessoas, principalmente se o boi é de matraca ou da ilha, que são os grupos
com maior número de brincantes.
Batismo: É festa de batizado do boi, que acontece na véspera de São João, na noite de 23 para
24 de junho, quando se conhece o novo couro bordado e as rezadeiras rezam em latim de
frente para o altar.
Batuqueiro: São os tocadores percussionistas, que ficam encarregados de buscar a lenha,
fazer a fogueira e “quentar” os tambores, com o compromisso de segurar o andamento
musical do grupo, durante todo o percurso do boi. Durante a roda do boi ficam parados ao
lado dos cantadores e alguns revezam afinar os tambores, enquanto outros tocam seus
instrumentos.
Boi: É o
personagem central do enredo, confeccionado em diferentes tamanhos, com armação de
varas e casca de buriti que segura o “Couro” de veludo, ricamente bordado à mão com miçangas e
canutilhos utilizando como tema os mais originais motivos. Também é designado como o conjunto do
grupo, a brincadeira ou a festa. Conhecido ainda como novilho ou touro.
Boieiro: Denominação a todos os brincantes do bumba-meu-boi, também significa o
guardador e condutor do gado na fazenda.
Brincadeira: São todas as manifestações culturais, as festividades com seus jogos e
divertimentos tradicionais cantados, declamados, ritmados e dançados. É o espetáculo
popular, a encenação e movimentação de todo o grupo ou batalhão.
Brincante: É a pessoa integrante da brincadeira, aquele que dança, canta e toca, fazendo parte
da manifestação.
Brinquedo: É outra maneira de chamar a brincadeira, assim como folguedo. É um coletivo
que brinca uma manifestação popular.
180
180
Bumba: Choque, batida e pancada.
Buriti: Madeira leve, muito utilizada para fazer a estrutura do boi, chamada no Pará de
Meriti, onde fazem muitos brinquedos e artesanatos. É mais achado na região Norte do Brasil.
Burrinha: A cabeça da burrinha imita um “burro”, tem o rabo feito de corda, armação de
buriti, madeira leve, com um buraco no meio, onde uma pessoa fica montada, essa armação é
sustentada por cordas, como suspensórios, presos nos ombros. Utiliza uma saia toda colorida,
um sino no pescoço, um chapéu bordado e pode estar com máscara feita de pano. Tem a
função de brincar ao redor do boi e brinca solta pelo espaço.
C
Caboclo: Termo para designar a participação indígena no boi, além dos caboclos das
manifestações religiosas. Também é uma expressão de cumprimento entre os brincantes.
Caipora: É uma boneca gigante de 2 a 3 metros de altura, onde um brincante fica dentro da
estrutura para realizar a sua movimentação. Semelhante aos bonecos usados nos carnavais de
Pernambuco. É um personagem lendário também que assusta, uma entidade fantástica da
mitologia tupi, muito difundida na crença popular, talvez derivada da crença no curupira, do
qual seria uma variante, e que é associada às matas e florestas e aos animais de caça, dele se
dizendo que aterroriza as pessoas e é capaz de trazer sorte e mesmo causar a morte;
caapora.
Careta: É a máscara do personagem cazumba dos bois da Baixada Maranhense, pode ser feita
de pano, madeira, isopor, alumínio ou algum outro material que o artesão inventar.
Catirina: Esposa de Pai Francisco que está grávida, representada por enchimento na barriga e
também com máscara de pano. A maioria das vezes representado por um homem vestido de
mulher.
Chegou: Dentro do roteiro das toadas cantadas é o momento de chegada, significa a louvação
ao boi e ao dono do terreiro, afirmação vaidosa da presença do grupo.
Cofo: Serve para “abrir o desenho” da bata, normalmente é de palha, mas pode ser um pedaço
de madeira ou de papelão, trazendo uma graça malemolente na dança do cazumba. É chamado
por eles de cofo-mala, é também um objeto usado no dia a dia para transportar ou vender
camarão seco, farinha, frutas, peixe e muitos alimentos presentes nos mercados e feiras locais.
Comédia: É a denominação da encenação cômica do boi, também pode ser chamado de
matança ou comédia.
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Cordão: É a maneira de expressar a disposição espacial da brincadeira, que pode ser em roda
ou filas.
Couro do Boi: É a capa do boi feita de veludo bordado a mão com canutilhos, miçangas e
paetês. Uma verdadeira obra de arte que apresenta imagens de valor para a comunidade
boieira. Muitos grupos de boi trocam o couro todo ano batizando na véspera do dia de São
João.
D
Desafio: É o encontro dos cantadores desafiando o outro com suas toadas de improviso, assim
como uma forma de comunicação entre os grupos de bois dando recados.
Despedida: É o momento final da brincadeira, uma toada para ir embora.
Dona Maria: Representa a esposa do dono da fazenda, a patroa. Atualmente é um
personagem quase desaparecido. Era vivenciado por um brincante travestido de mulher, com
um vestido comprido.
Doutor: Pode ser definido como o veterinário ou médico que era chamado para socorrer o
boi. Atualmente se mistura com a figura do pajé, não mais nas encenações os dois
personagens juntos.
E
Encourar: Ação de trocar o couro dos instrumentos de percussão.
F
Farda: É a indumentária utilizada pelos brincantes das brincadeiras.
Festeiro: Pessoa que organiza e comanda uma festa.
Flecha: Utensílio utilizado pelas índias e caciques do boi, fortalecendo seu caráter guerreiro.
G
Gola: Peça da indumentária dos brincantes do boi, com bordados de paetês, miçangas e
canutilhos, cada qual uma obra de arte. Utilizado junto ao pescoço, é de formato redondo,
bordado em veludo preto.
Guarnicê: É o momento de reunir, preparar, juntar os brincantes para começar a brincadeira,
o instante que o apito do amo começa a tocar, simbolizando os últimos ajustes da organização
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dos integrantes, momento de cada brincante se posicionar dentro do cordão e cortejo de
entrada da brincadeira, é a integração dos participantes na formação da brincadeira.
I
Índia: Representam as mulheres guerreiras, dançam no formato de um cordão ou fila em
conjunto, com marcações definidas de movimentação, coreografias elaboradas e muito
ensaiadas. Sua indumentária é feita de pena de ema com cocar, saia e pulseiras na perna e nos
braços, presas em veludo bordado.
L
vai: Durante a apresentação é a ordem de partida, o deslocamento e entrada no local onde
o público está aguardando, simboliza o primeiro momento da apresentação.
Ladainha: Oração ou reza cantada por homens e mulheres, uma forma de culto onde, através
de Santos de Devoção, elevamos o nosso pensamento a Deus. Em passado não tão distante, as
ladainhas constituíam a base essencial dos festejos religiosos, propiciando um acontecimento
de grande vulto, despertando um forte sentimento de confraternização. No ciclo de festas do
batismo e festa de morte sempre acontece uma ladainha antes de começar e para finalizar a
festa.
Lança: Instrumento de madeira, utilizado pelas índias, imitando uma lança real indígena.
Licença: Uma espécie de canto pedindo licença, trazendo autorização para começar a
brincadeira ou alguma movimentação, cujo gestual remete ao sentido ligado a permissão.
Lombo: Maneira de chamar o veludo bordado do boi, assim como couro do boi.
M
Mandante: É o brincante responsável pela distribuição das bebidas alcoólicas. Ele fica com
uma bolsa cheia de cachaça, conhaque e vinho.
Maracá: É um instrumento musical, tradicionalmente confeccionados de cabaça, mas aqui
feito de alumínio, com formato diferenciado, em cuja cavidade são colocados contas ou
esferas de chumbo que produzem som quando sacudidos. São tocados pelos amos e alguns
baiantes do bumba-meu-boi.
Matança: Designa a festa de morte do boi, assim como a encenação também chamada de
comédia ou ato.
183
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Matraca: Instrumento com dois pedaços de madeira que são batidos um contra o outro, como
se estivesse “batendo as palmas das mãos”. Algumas podem trazer um furo escavado no meio
para darem melhor som, unidas por um fio ou cordão, criando uma percussão alta e contínua.
Mestre: É um brincante antigo, conhecedor dos fundamentos da brincadeira. Pessoa a que
todos reverenciam e tem muito respeito. Aquele que comanda a manifestação ou algum setor
da brincadeira, como a batucada, a dança ou a cantoria.
Miolo: Denominação para o brincante que brinca debaixo da armação do boi, também pode
ser chamado de tripa do boi.
Morte: Fechamento do ciclo do boi. Há vários tipos de festas de morte, pode ser de promessa,
de terreiro, de estraçalhar e etc.
Mourão: Peça de madeira enfeitada com papel colorido, um tronco de árvore que será
fincado no terreiro e onde o boi será preso. Local onde depois acontecerá a encenação da festa
de morte.
Mutuca ou torcedoras: São pessoas que não participam de dentro da brincadeira do boi, mas
estão sempre juntas para ajudar no que for necessário. São as companheiras, namoradas,
esposas, mães, tias, avós que acompanham os seus entes queridos desde o início até o final da
brincadeira, tendo a função de animar os companheiros e ajudar carregando bolsas, ou os
“comes e bebes” de seus baiantes.
O
Orquestra: É um sotaque do boi que vem da região da cidade do Rosário e Axixá, lugar onde
passa o rio Munim. Os instrumentos de sopro e cordas como o saxofone, trompete, clarinete,
flauta, banjo, além dos instrumentos percussivos como os maracás, caixas e o tambor-onça
formam a orquestra do boi. Suas indumentárias são muito brilhosas e adornadas de enfeites, e
as figuras são as índias, os chapéus de fita, o amo e o boi. É o estilo de boi que mais cresce
em todo o estado, sendo que alguns não realizam ciclo festivo religioso, surgem para fazer
apresentações.
P
Pai Francisco ou Nêgo Chico: Representa o empregado da fazenda, casado com Catirina,
que a seu pedido corta a língua do boi predileto do patrão e, normalmente, é o responsável
pelo andamento e roteiro da comédia do boi. Sua movimentação é junto com Catirina, vivem
correndo um atrás do outro, mas podem interagir com qualquer brincante do boi ou com o
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público. Sua indumentária é composta de uma máscara feita de pano, com buracos para os
olhos e a boca, um grande nariz feito de corda ou pano, calças e blusas compridas, e pode
utilizar uma espingarda ou outros adereços.
Paisana: Quando uma pessoa de dentro ou de fora do grupo está dançando, brincando, sem
estar vestido com a indumentária apropriada da brincadeira do boi.
Pajé: Representa o curandeiro ou feiticeiro dentro da tradição indígena brasileira, o
conhecedor da medicina.
Palafita: Conjunto de estacas que sustentam habitações construídas sobre a água.
Pandeirão: São pandeiros grandes, alguns ainda rústicos cobertos com couro de cabra,
afinados no fogo, e muitos feitos de material sintético, que não precisa ir na fogueira para ser
tocado, possuem tarrachas que são apertadas com alicates para atingir a afinação e são tocados
com as palmas das mãos, uma segura o instrumento e a outra “bate” no couro. No sotaque de
matraca, o pandeirão é tocado suspendendo-o para cima e no caso do boi da baixada é tocado
para baixo, vertical às pernas. São confeccionados em madeira flexível, geralmente genipapo.
Parelha: Denominação para chamar os três tambores do tambor de crioula no Maranhão.
Pequeno: Gíria para chamar uma pessoa, que não necessariamente é uma criança ou pessoa
pequena. É um jeito carinhoso de comunicação.
Peitoral: Parte da indumentária confeccionada com veludo preto e bordada a mão com
canutilhos, miçangas e paetês. Utilizado em vários personagens do bumba-meu-boi.
Pesado: É uma expressão para designar que o grupo está bonito e bem ensaiado, com um
grande número de tocadores da percussão boieira.
Pindaré: Cidade da Baixada Maranhense que deu a origem para o nome do sotaque dos bois
da baixada.
Puxar: É quando os amos cantam as toadas do boi, puxando todo o grupo.
Q
Quentar: É a maneira como chamam para afinar o couro dos instrumentos, sob o fogo da
fogueira.
R
Rebanho: O conjunto de brincantes que formam o grupo de boi, assim como é chamado um
coletivo de animais.
185
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Repique: É uma toada de resposta a alguma provocação feita por algum grupo.
Reunida: É o momento de reunir, guarnicê na brincadeira do boi.
S
Saiote: Peça da indumentária, mini saia de veludo preto bordado com miçangas, paetês e
canutilhos.
Seco: Boi seco é uma expressão para dizer que o grupo quer uma bebida alcoólica.
Sotaque: É um termo utilizado para mostrar a diversidade de estilos do boi no Maranhão,
trazendo um conjunto de signos indicativos.
T
Tambor-onça: Da mesma família instrumental da cuíca, apresenta o formato de barrilzinho
ou cilindro, geralmente feito de zinco, coberto com couro de cabra, e no lado de dentro, em
seu centro, possui uma vareta. Para ser tocado molha-se um pano e com uma das mãos vai
puxando a vareta, fazendo um movimento contínuo. Alguns brincantes comentam que produz
um som semelhante ao rugido do boi ou até mesmo da onça. Possui uma alça ou corda para o
tocador segurar o instrumento, apoiado no ombro.
Tapuio: Representa o índio, o mestiço. Com essa denominação é mais presente nos bois de
sotaque de zabumba. Usando na sua indumentária perucas e tangas de fibra.
Terreiro: Sede do grupo onde acontecem as celebrações festivas ou local da brincadeira onde
o boi se apresenta.
Testeira: É a peça frontal dos chapéus dos baiantes, um semi-círculo de veludo bordado.
Utilizado principalmente nos bois de sotaque da baixada.
Tirar toada: Criar as melodias e letras para o boi. É a composição das músicas.
Toada: Denominação dada para as músicas do bumba-meu-boi.
Torre: Estilo de careta do cazumba, pode trazer a imagem de uma igreja ou simplesmente ser
uma careta alta.
Turma: Expressão para designar um grupo ou coletivo de boi. Palavra utilizada mais no
interior do que na capital.
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U
Urrou: É a fase que se inicia o “auto”, a encenação da peça, a “comédia”, cujo enredo gira
em torno do desejo de Catirina. É também o momento onde as toadas refletem o conflito da
trama e também seu ponto culminante, quando o boi ressuscita
V
Vadiar: Expressão para falar do ato de brincar e dançar o boi.
Vaqueiro: É uma figura muito importante, é empregado de confiança do patrão, o
responsável em laçar o boi na festa de morte e durante as brincadeiras, além de estar sempre
ao lado do boi, no centro da roda, guiando o seu movimento ou fugindo da chifrada do boi.
Utiliza um enorme chapéu como dos baiantes, mas como dança muito, sua movimentação traz
o equilíbrio com sua indumentária.
Vara: Objeto utilizado pelo vaqueiro simbolizando a vara de ferrão. É a vara que dá o sentido
da movimentação da brincadeira do boi com o vaqueiro. É um pedaço de madeira enfeitada
com papel celofane e flores coloridas.
Z
Zabumba: São grandes tambores de madeira, com couro de cabra ou veado, amparados por
uma forquilha (vara de madeira), tocados com baquetas de madeira, alguns brincantes
chamam de “soca-pilão”, além de também ser a designação de um sotaque de boi da região da
cidade de Guimarães.
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APENDICE 1: DIÁLOGO COM MESTRE ABEL TEIXEIRA
Local: CASA DO MESTRE NO BAIRRO DO COROADINHO
Data: 16 DE JANEIRO DE 2008
- Mestre Abel Teixeira, na presença da autora da pesquisa Juliana Manhães e o orientador
Zeca Ligiéro.
- Conversa sobre a ida do mestre Abel para participar de uma exposição em Portugal,
conhecendo os caretos de Bragança:
Abel – Rapaz, eu não podia era brincar, né? Que o toque deles não dá pra mim brincar, é pior
do que o do boi de zabumba, é umas gaita que eles tocam, de cabo, de fole, e tem uma banda
de música que vem lá de traz também, mas tudo um toque diferente pra mim poder dançar.
Juliana - E tu nem esperava por essa, lembra? E tu tava doido pra ir pro Rio, mas que nada,
foi pra Portugal.
Abel – Outro presente, dos meus 50 anos de cazumba, eu queria ficar no (afro reggae?) com
vocês lá, fazer um showzinho lá.
Juliana - É esse ano, 2008, 50 anos de cazumba?
Abel – É.
Abel – Eu sempre digo, por onde a gente tá que acontece uma coisa, eu sempre digo que graça
a Deus e a vocês que incentivaram, por que senão. Sua mãe me botou pra brincar cazumba
sozinho, por que nesse caso eu já podia brincar só e vc continua a trabalhar, me incentivando,
faz isso, faz aquilo, porque senão eu parava num ponto que só ia fazer quando chegasse uma
pessoa ‘faz uma careta’, ai era que eu ía fazer. Tem muitos pessoal também, como o Claúdio
Vasconcelos, Jandir, Michol, ela sempre foi a maior compradora de careta, e você que tão
sempre me incentivando pra mim não parar e até agora eu não parei, já cheguei até...Deus... já
fui longe, né? E onde eu tô eu me alembro disso, se a doutora não tivesse incentivado eu não
ía chegar a esse ponto aí. É só essas coisas que eu me lembro. Agora, entrevista comigo tem
que tá pronta com uma câmera escondida quando eu começar a falar, principalmente se eu
tiver tomando uma latinha, que é pra ir mais longe.
Juliana - Por que o senhor me fez ser cazumbá?
Abel - O cazumba foi curiosidade sua não fui eu que fiz, você quis brincar cazumba e me
procurou porque queria brincar cazumba, e me perguntou por que mulher não podia brincar
cazumba, e eu disse que podia brincar cazumba sim, qualquer ser humano pode brincar
cazumba.
188
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Juliana - Mas não tinha nenhuma mulher cazumba.
Abel – Já tinham brincado, mas saíram, porque o pessoal começaram a dizer que cazumba era
pra homem, mas já teve, teve você, teve a Lucimara, a Maria é que não segurou muito tempo,
mas brincou também, tem umas menina lá no boi tão brincando, tem a Ana que ainda brinca
cazumba de vez em quando, não brinca mais porque teve um filho.
Juliana – Mas foi por causa do senhor que eu resolvi brincar, porque eu só queria fazer a
careta.
Abel – É, tu só queria fazer a careta, mas tu procurou também se mulher podia brincar, e o
que foi que eu te disse? Que podia, mulher pode fazer tudo que o homem faz.
Juliana – Mas é porque tu já é moderno.
Abel- É porque as mulheres não se aprontavam diretamente pra brincar cazumba, quando eu
comecei a brincar elas brincavam, pediam a bata da gente emprestada. De manhã elas
pegavam, quando a gente tirava, elas caiam dentro e pensavam que era a gente que tava
dançando e era elas, namorada, irmã, prima ... a gente dava vez. Agora, não faziam era o
trabalho de cazumba, porque o trabalho era pesado mesmo, principalmente se fosse matar um
boi, correr atrás de um cavalo, de um porco de uma coisa assim, esse trabalho não era pra
elas, mas dançar, só dançar podia dançar, e pode.
Juliana – E quais são os trabalhos que o cazumba faz?
Abel – Têm muitos. Pra mim te explicar só se eu for fazer o trabalho, se eu disser você não
entende. Não pode, não pode dizer tudo assim. Porque que se eu te digo, olha, o cazumba fala
através de aceno, por exemplo, eu não tô vestido e não tem ninguém pra me arresponder, mas
quando vestido se faz esse trabalho.
Zeca – O cazumba fala?
Abel – Fala, canta, fala sim,
Juliana – Mas ele já falou mais, e hoje em dia não fala muito?
Abel – Não, ele todo tempo que você precise, fala,
Juliana – Mas ele não fala como Pai Francisco fala.
Abel – De acordo com o que ele esteja falando, de acordo com o que ele estiver falando, fala
sim. O cazumba pode cantar, pode fazer tudo, puxar tambor onça, pode bater pandeiro.
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Juliana – Cazumba pode fazer o que quer.
Abel – Pode, ele é limpo pra fazer tudo,
Juliana – mas normalmente ele tem uma regra importante que é aquele que abre, né?
Abel – Isso aí, não tem como não ter, só se o boi não tiver cazumba, se tiver cazumba..
Juliana – Sempre foi assim,
Abel – É.
Juliana – Como é que ele anda?
Abel – Ele dança, ele dança em zigue-zague. É meio difícil de explicar também, só basta fazer
as coisas fazendo.
Zeca – E a pessoa só aprende a fazer também, fazendo, participando da dança.
Abel – Exatamente, se eu disser aqui, mesmo ensinando, aqui agora já podia se ensaiar,
porque hoje os poucos que vieram do interior pra cá, ou já tão velho, ou já não tão mais
brincando, e os novo não aprenderam, eles vive só seguindo, só pra frente, só pra frente, eles
atropelam os outro, e no interior a gente brincava até 60, 70 cazumba, tudo naquele cordão
saindo, e não atropelava, quando tinha um que passava batido, ele ía bater no outro e tinha
que parar ele pra ele olhar, pra ver como é que era pra poder seguir, ou então a gente caçava
um jeito dele cair porque quando ele alevantava ele ía procurar saber se tinha derrubado ele –
não tu caiu porque tu saiu da areia – era assim.
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ANEXOS
ANEXO A - CONVITE DA FESTA DE MORTE DO BOI DA FLORESTA, NO ANO DE
2005
ANEXO B - ORÇAMENTO DO FESTEJO DE MORTE DO BOI DA FLORESTA, 2005
ANEXO C – PROGRAMAÇÃO DA FESTA DE MORTE DO BOI DA FLORESTA, 2006
ANEXO D MATÉRIA DE JORNAL COM MESTRE APOLÔNIO: MESTRE NO BOI,
MESTRE NA VIDA, 2004
ANEXO E – MATÉRIA DE JORNAL COM MESTRE APOLÔNIO: FESTA PARA UM
MESTRE DA CULTURA, 2008
ANEXO F MATÉRIA DE JORNAL COM MESTRE ABEL TEIXEIRA: CARETOS NAS
RUAS DA CIDADE, EM PORTUGAL, BRAGANÇA, 2007
ANEXO G - FOLDER DE PROGRAMAÇÃO DAS FESTAS JUNINAS DE SÃO LUÍS
AXEJO H CONVITE DA EXPOSIÇÃO: CAZUMBÁ: MÁSCARA E DRAMA NO BOI DO
MARANHÃO, RIO DE JANEIRO, 2000
ANEXO I FOLDER DA PREFEITURA NO PERÍODO DOS FESTEJOS JUNINOS,
DIVULGANDO A IMAGEM DO CAZUMBA
ANEXO J MATÉRIA DE JORNAL COM MESTRE ABEL TEIXEIRA: MESTRE DAS
CARETAS, JORNAL IMPARCIAL, 2009
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