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NÓBREGA
MANUEL DA
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Ministério da Educação | Fundação Joaquim Nabuco
Coordenação executiva
Carlos Alberto Ribeiro de Xavier e Isabela Cribari
Comissão técnica
Carlos Alberto Ribeiro de Xavier (presidente)
Antonio Carlos Caruso Ronca, Ataíde Alves, Carmen Lúcia Bueno Valle,
Célio da Cunha, Jane Cristina da Silva, José Carlos Wanderley Dias de Freitas,
Justina Iva de Araújo Silva, Lúcia Lodi, Maria de Lourdes de Albuquerque Fávero
Revisão de conteúdo
Carlos Alberto Ribeiro de Xavier, Célio da Cunha, Jáder de Medeiros Britto,
José Eustachio Romão, Larissa Vieira dos Santos, Suely Melo e Walter Garcia
Secretaria executiva
Ana Elizabete Negreiros Barroso
Conceição Silva
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João Adolfo Hansen
NÓBREGA
MANUEL DA
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Fundação Joaquim Nabuco. Biblioteca)
Hansen, João Adolfo.
Manuel da Nóbrega / João Adolfo Hansen. – Recife:
Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010.
180 p.: il. – (Coleção Educadores)
Inclui bibliografia.
ISBN 978-85-7019-515-9
1. Nóbrega, Manuel da, 1517-1570. 2. Educação – Brasil – História. I. Título.
CDU 37(81)
ISBN 978-85-7019-515-9
© 2010 Coleção Educadores
MEC | Fundação Joaquim Nabuco/Editora Massangana
Esta publicação tem a cooperação da UNESCO no âmbito
do Acordo de Cooperação Técnica MEC/UNESCO, o qual tem o objetivo a
contribuição para a formulação e implementação de políticas integradas de melhoria
da equidade e qualidade da educação em todos os níveis de ensino formal e não
formal. Os autores são responsáveis pela escolha e apresentação dos fatos contidos
neste livro, bem como pelas opiniões nele expressas, que não são necessariamente as
da UNESCO, nem comprometem a Organização.
As indicações de nomes e a apresentação do material ao longo desta publicação
não implicam a manifestação de qualquer opinião por parte da UNESCO
a respeito da condição jurídica de qualquer país, território, cidade, região
ou de suas autoridades, tampouco da delimitação de suas fronteiras ou limites.
A reprodução deste volume, em qualquer meio, sem autorização prévia,
estará sujeita às penalidades da Lei nº 9.610 de 19/02/98.
Editora Massangana
Avenida 17 de Agosto, 2187 | Casa Forte | Recife | PE | CEP 52061-540
www.fundaj.gov.br
Coleção Educadores
Edição-geral
Sidney Rocha
Coordenação editorial
Selma Corrêa
Assessoria editorial
Antonio Laurentino
Patrícia Lima
Revisão
Sygma Comunicação
Ilustrações
Miguel Falcão
Foi feito depósito legal
Impresso no Brasil
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SUMÁRIO
Apresentação, por Fernando Haddad, 7
Ensaio, por João Adolfo Hansen, 11
Estudo biográfico do educador, 11
Notícia biográfica, 18
Os textos de Manuel da Nóbrega, 47
A catequese, 76
O ensino, 94
As cartas de Nóbrega, 111
O Diálogo sobre a conversão do gentio, 126
Nóbrega: sentido de uma ação, 134
Textos selecionados, 141
Diálogo sobre a conversão do gentio, 141
Textus, 143
Cronologia, 167
Bibliografia, 173
Obras de Manuel da Nóbrega, 173
Textos de jesuítas dos séculos XVI e XVII, 173
Outras referências bibliográficas, 174
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6
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7
O propósito de organizar uma coleção de livros sobre educa-
dores e pensadores da educação surgiu da necessidade de se colo-
car à disposição dos professores e dirigentes da educação de todo
o país obras de qualidade para mostrar o que pensaram e fizeram
alguns dos principais expoentes da história educacional, nos pla-
nos nacional e internacional. A disseminação de conhecimentos
nessa área, seguida de debates públicos, constitui passo importante
para o amadurecimento de ideias e de alternativas com vistas ao
objetivo republicano de melhorar a qualidade das escolas e da
prática pedagógica em nosso país.
Para concretizar esse propósito, o Ministério da Educação insti-
tuiu Comissão Técnica em 2006, composta por representantes do
MEC, de instituições educacionais, de universidades e da Unesco
que, após longas reuniões, chegou a uma lista de trinta brasileiros e
trinta estrangeiros, cuja escolha teve por critérios o reconhecimento
histórico e o alcance de suas reflexões e contribuições para o avanço
da educação. No plano internacional, optou-se por aproveitar a co-
leção Penseurs de l´éducation, organizada pelo International Bureau of
Education (IBE) da Unesco em Genebra, que reúne alguns dos mai-
ores pensadores da educação de todos os tempos e culturas.
Para garantir o êxito e a qualidade deste ambicioso projeto
editorial, o MEC recorreu aos pesquisadores do Instituto Paulo
Freire e de diversas universidades, em condições de cumprir os
objetivos previstos pelo projeto.
APRESENTAÇÃO
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8
Ao se iniciar a publicação da Coleção Educadores
*
, o MEC,
em parceria com a Unesco e a Fundação Joaquim Nabuco, favo-
rece o aprofundamento das políticas educacionais no Brasil, como
também contribui para a união indissociável entre a teoria e a prá-
tica, que é o de que mais necessitamos nestes tempos de transição
para cenários mais promissores.
É importante sublinhar que o lançamento desta Coleção coinci-
de com o 80º aniversário de criação do Ministério da Educação e
sugere reflexões oportunas. Ao tempo em que ele foi criado, em
novembro de 1930, a educação brasileira vivia um clima de espe-
ranças e expectativas alentadoras em decorrência das mudanças que
se operavam nos campos político, econômico e cultural. A divulga-
ção do Manifesto dos pioneiros em 1932, a fundação, em 1934, da Uni-
versidade de São Paulo e da Universidade do Distrito Federal, em
1935, são alguns dos exemplos anunciadores de novos tempos tão
bem sintetizados por Fernando de Azevedo no Manifesto dos pioneiros.
Todavia, a imposição ao país da Constituição de 1937 e do
Estado Novo, haveria de interromper por vários anos a luta auspiciosa
do movimento educacional dos anos 1920 e 1930 do século passa-
do, que só seria retomada com a redemocratização do país, em
1945. Os anos que se seguiram, em clima de maior liberdade, possi-
bilitaram alguns avanços definitivos como as várias campanhas edu-
cacionais nos anos 1950, a criação da Capes e do CNPq e a aprova-
ção, após muitos embates, da primeira Lei de Diretrizes e Bases no
começo da década de 1960. No entanto, as grandes esperanças e
aspirações retrabalhadas e reavivadas nessa fase e tão bem sintetiza-
das pelo Manifesto dos Educadores de 1959, também redigido por
Fernando de Azevedo, haveriam de ser novamente interrompidas
em 1964 por uma nova ditadura de quase dois decênios.
*
A relação completa dos educadores que integram a coleção encontra-se no início deste
volume.
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Assim, pode-se dizer que, em certo sentido, o atual estágio da
educação brasileira representa uma retomada dos ideais dos mani-
festos de 1932 e de 1959, devidamente contextualizados com o
tempo presente. Estou certo de que o lançamento, em 2007, do
Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), como mecanis-
mo de estado para a implementação do Plano Nacional da Edu-
cação começou a resgatar muitos dos objetivos da política educa-
cional presentes em ambos os manifestos. Acredito que não será
demais afirmar que o grande argumento do Manifesto de 1932, cuja
reedição consta da presente Coleção, juntamente com o Manifesto
de 1959, é de impressionante atualidade: “Na hierarquia dos pro-
blemas de uma nação, nenhum sobreleva em importância, ao da
educação”. Esse lema inspira e dá forças ao movimento de ideias
e de ações a que hoje assistimos em todo o país para fazer da
educação uma prioridade de estado.
Fernando Haddad
Ministro de Estado da Educação
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MANUEL DA NÓBREGA
1
(1517 - 1570)
João Adolfo Hansen
I – Estudo biográfico do educador
Entre março de 1549 e outubro de 1570, o Padre Manuel da
Nóbrega foi chefe, provincial e superior, da missão da Companhia
de Jesus enviada para o Estado do Brasil pelo rei português Dom
João III. Desenvolvendo o programa de “catequese e escola” que
põe o Estado do Brasil sob a jurisdição imediata da Coroa, a mis-
são funda colégios de ler e escrever, abre seminários para as voca-
ções religiosas, ensina ofícios mecânicos a jovens índios, mamelucos
e brancos. Ainda reduz ao catolicismo populações indígenas das
capitanias do Nordeste, Pernambuco, Bahia, Ilhéus, Porto Seguro, e
do Sudeste, Espírito Santo, Rio de Janeiro e São Vicente.
Quando se fala da educação, do ensino, da instrução e da catequese
desenvolvidos pela missão jesuítica, deve-se especificar a
historicidade desses conceitos nas circunstâncias luso-brasileiras em
que ocorrem para não generalizar anacronicamente os modos
como são entendidos hoje. A sociedade portuguesa do século XVI
não é burguesa, iluminista ou liberal. Sua experiência do tempo é
outra, diferente da experiência temporal moderna, pois pressupõe
a presença providencial de Deus como Causa e Fim da sua histó-
ria. Também é outra sua doutrina de poder, que não é democráti-
ca; de “pessoa humana”, que é escolástica; de linguagem e realida-
de, que é motivada como participação das coisas, homens, even-
1
Nos trechos de autoria de Manuel da Nóbrega reproduzidos nesta obra foi mantida a
grafia original. (Nota do editor.)
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tos e palavras na substância metafísica de Deus. Fundamentadas
metafisicamente e ordenadas pela teologia-política católica, as dou-
trinas de tempo, história, poder, pessoa, linguagem e realidade
mobilizadas nas práticas do programa catequese e escola são
corporativas, integrando-se nas malhas das relações pessoais que
constituem a hierarquia do Estado monárquico português.
Os meios e os fins da catequese, da educação, do ensino e da
instrução das faculdades da memória, da vontade e da inteligência,
que então definem a humanidade da pessoa, realizam a “política católi-
ca” portuguesa como um conjunto de normas. Estas definem saberes a
serem ensinados e condutas a serem inculcadas em crianças, jovens e
adultos indígenas, mamelucos e portugueses. Representam também
um conjunto de práticas, que permitem a transmissão desses saberes e
a incorporação de comportamentos, normas e práticas
2
.
Na carta que envia em 1546 para Diogo Laynez, Afonso
Salmerón e Pierre Favre, jesuítas mandados a Trento como teólogos
do Papa, Loyola expõe os preceitos que devem seguir para ajudar
as almas. As determinações disciplinares que dá aos três valem para
todos os padres da Companhia como noster modus procedendi, “nosso
modo de proceder”. Membros de um mesmo corpo, devem con-
duzir-se de modo adequado à sua representação de monopanto, “um
por todos ou todos por um”, na missão para a qual forem manda-
dos. Nesse caso, Loyola afirma que o objetivo principal da viagem
dos três é, depois de terem-se arranjado para viver juntos num lugar
decente, pregar, confessar, dar lições públicas, ensinar as crianças,
dar exemplo, visitar os pobres e exortar o próximo. Conforme seu
talento, cada um deles deverá animar os que puder para a devoção e
a prece. Nas pregações, não tocará em nenhum dos pontos que
separam os protestantes dos católicos, mas tratará dos bons costu-
2
A noção de “cultura escolar” como conjunto de normas e práticas é exposta por Dominique
Julia em “La culture scolaire comme objet historique”, texto mimeografado de uma confe-
rência feita pelo autor em Lisboa, em julho de 1993, no XV ISCHE.
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mes e devoções em uso na Igreja. As almas devem ser animadas a
conhecerem-se melhor e a amarem mais seu Criador; falarão fre-
quentemente do Concílio e rezarão por ele. Nas lições sobre as Es-
crituras, a mesma atitude da pregação, o mesmo esforço desejoso de
inflamar as almas com o amor do Criador, quando se fornece a
inteligência do texto explicado. Nas confissões, deverão falar aos
penitentes como se a fala fosse pública. Dando os Exercícios Espiritu-
ais, deverão começar com os da primeira semana para um grupo de
poucas pessoas capazes de ordenar a vida seguindo a escolha deles.
Durante esse tempo, não devem permitir que façam promessas;
também não obrigarão ninguém a permanecer e agirão sempre com
medida. As crianças serão ensinadas quando for oportuno; segundo
os recursos e a disposição dos lugares, devem-se ensinar os primei-
ros rudimentos, explicando as coisas com maior ou menor profun-
didade conforme a capacidade delas. Os hospitais serão visitados
em horas do dia mais convenientes aos doentes; os pobres serão
confessados e consolados; se possível, deve-se levar alguma coisa
para eles. As pessoas com quem se conversa serão exortadas a se
confessar, a comungar e a celebrar frequentemente e a fazer os Exer-
cícios e outras obras de caridade. Para determinar algumas questões,
é útil falar pouco e com reflexão; ao contrário, para estimular as
almas ao progresso espiritual, é útil lhes falar longamente, com or-
dem e com afetuosa caridade.
Loyola também especifica como deve ser a ajuda mútua dos
padres. Todo dia, devem tomar uma hora à noite para tornar co-
mum o resultado do dia e o objetivo do dia seguinte. Para as
questões passadas e futuras, devem pôr-se de acordo por meio de
voto ou outra maneira. A cada três dias, cada um deve pedir aos
outros que o corrijam em tudo que lhes parecer útil. O corrigido
não deve replicar, a menos que lhe seja pedido que explique o que
foi objeto de correção. No dia seguinte, outro padre pedirá que o
corrijam e assim por diante. Desse modo, todos poderão ajudar-
se com toda a caridade e para maior edificação em toda parte.
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Manhã, resoluções; duas vezes por dia, exame. A vocação da Com-
panhia não permite que o padre se abstenha de relacionamentos
com outras pessoas. Para que não sejam prejudiciais, Loyola deter-
mina, como se falasse de si mesmo:
Para mim, se devo falar, serei lento, refletido, pleno de amor, sobretu-
do se se trata de determinar questões de que o Concílio trata ou possa
tratar. Lento ao falar, serei assíduo em ouvir e calmo para penetrar e
conhecer os pensamentos, os sentimentos e as vontades dos que fa-
lam, para poder melhor responder ou nada dizer. Tratando das ques-
tões do Concílio ou de outras, que se deem razões dos pontos de vista
opostos, para não ter o ar de defender o seu próprio julgamento e
esforçando-se para não deixar ninguém descontente. Eu não consti-
tuirei como autoridade nenhuma pessoa, sobretudo de posição eleva-
da, salvo em questões maduramente examinadas; eu me adaptarei a
todos sem me apaixonar por ninguém. Se a questão debatida é tão
justamente expressa que não se possa nem se deva calar, dar-se-á então
seu conselho com toda a tranquilidade e a humildade possíveis e se
concluirá, exceto melhor opinião. Enfim, se se trata de relações e con-
versações sobre matérias de doutrina adquirida ou infusa e eu queira
falar delas, será muito precioso não considerar meu lazer ou a falta de
tempo que me apressa, em outros termos, minha comodidade. Mas
eu me regrarei de acordo com a comodidade e a situação de meu
interlocutor a fim de envolvê-lo para a maior glória de Deus
3
.
Como se pode inferir do exemplo, os pressupostos, meios e
fins das normas e práticas jesuíticas desse tempo não são os pres-
supostos, meios e fins liberais das sociedades de classes estabelecidas
no Ocidente a partir do século XVIII. Na prática catequética e
educacional de Nóbrega, não se encontram as noções que hoje
integram as conceituações correntes de educação, ensino, instrução, apren-
dizagem, como psicologia, individualidade, formação, democracia, cidadania,
igualdade de direitos, livre-concorrência, liberdade de expressão, autonomia,
reflexão crítica, direitos humanos, público, opinião pública etc. No Estado
do Brasil, a catequese e o ensino são práticas socioculturais do
3
Inácio de Loyola. “Aux compagnons envoyés a Trente. Rome, début 1546". In: Ignace de
Loyola. Écrits. Traduits et présentés sous la direction de Maurice Giuliani, sj .Paris,
Desclée de Brouwer, 1991, pp .686-688.
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chamado “capitalismo monárquico português” na nova situação
política mundial determinada pelos Descobrimentos, pela Refor-
ma protestante, pela Contrarreforma e pela disputa comercial e
política das potências da Europa pelas possessões coloniais. Inici-
ado no Estado do Brasil em um momento de aguda crise econô-
mica de Portugal, o programa concilia os interesses da Companhia
de Jesus, da Coroa portuguesa e dos coloniais luso-brasileiros.
A redefinição da Igreja Católica pelo Concílio de Trento como
comunidade de fé, magistério e autoridade então amplia o conceito
de communitas fidelium, a comunidade dos fiéis. Roma determina que
ele inclui as populações gentis habitantes das terras americanas, afri-
canas e asiáticas com que portugueses e espanhóis fazem contato.
Essas populações não conhecem a mensagem salvadora de Cristo e
as novas ordens religiosas fundadas para combater a heresia luterana,
calvinista e maquiavélica na Europa passam a exercer o magistério e
o ministério da Igreja entre elas. Seguem a ordem de São Paulo na
Segunda Epístola aos Tessalonicenses (3,15): tenete traditiones, “conservai as
tradições”. A catequese jesuítica é prática religioso-política essencial
para a expansão territorial, militar, política, agrícola e mercantil da
Coroa portuguesa. A integração dos indígenas ao corpo místico da
Igreja Católica por meio da redução, conversão, batismo e mais
sacramentos converte-os em súditos da Coroa. Como trabalhado-
res livres dos engenhos, lavouras de açúcar, fazendas de gado, ativi-
dades de extração de madeiras, pesca etc., recebem salários muito
inferiores aos dos pagamentos recebidos por trabalhadores brancos
livres
4
. Quase que invariavelmente, quando não fogem para o mato
ou não são mortos pelas doenças europeias e violências das autori-
dades e colonos, são escravos executando trabalhos mecânicos pró-
prios, como se diz então, de gente “suja de sangue”.
4
Stuart Schwarz informa que um trabalhador índio recebia – quando era pago – cerca de
um terço do salário de um barqueiro comum. Cf. Stuart B. Schwartz. Segredos Internos.
Engenhos e Escravos na Sociedade Colonial 1550-1835. Trad. Laura Teixeira Motta. São
Paulo, Companhia das Letras: 1988, p. 51.
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Desenvolvendo o programa, Nóbrega enfrenta conflitos com
homens da hierarquia eclesiástica, como o bispo Pero Fernandes
Sardinha, e da Companhia, como os padres Luís da Grã e Diogo
Mirão, defensores de outros métodos de catequese e modos de
organização e gestão dos colégios. O monopólio jesuítico da admi-
nistração temporal e espiritual dos índios aldeados choca-se frontal-
mente com os interesses econômicos dos colonos. Cumprindo de-
cretos anti-luteranos do Concílio de Trento, a missão jesuítica afirma
a humanidade dos índios e põe os aldeados para trabalhar, empres-
tando-os ou alugando-os para os colonos. Individualmente ou re-
presentados por Câmaras municipais e capitães-mores, eles acusam
a Companhia de usar os índios em benefício próprio. Alegando
contra ela que os índios são “escravos por natureza”, “selvagens”,
“bárbaros”, “animais” e convencendo as tribos de que a permanên-
cia delas perto dos engenhos e fazendas, onde fornecem serviços
braçais e defensivos, garante a manutenção de suas práticas guerrei-
ras, não têm escrúpulos em exterminá-las. Ainda alegam que os reli-
giosos os emprestam por tempos determinados ou os alugam para
os colonos, que sempre os capturavam como mão-de-obra escrava
abundante e barata, para substituir, com vantagem, os escravos afri-
canos traficados pela Coroa
5
. O resultado objetivo da catequese é a
destribalização das culturas indígenas e a subordinação de seus mem-
bros como súditos e escravos da Coroa e de particulares. Quanto
aos brancos e mamelucos, o ensino nos colégios e seminários os
integra na ordem dominante segundo os estamentos que os
hierarquizam ou classificam nas ordens sociais a que pertencem.
5
Cf. “(...) o que estava em jogo eram as alianças que os índios buscavam em condições que
se deterioravam cada vez mais para eles, à medida que a presença europeia se aprofundava.
As lideranças indígenas apresentavam estratégias das mais diversas para enfrentar a nova
situação, ora buscando os padres para evitarem o cativeiro, ora buscando os colonos para
poderem continuar suas atividades guerreiras, ora se posicionando de maneira independente
contra todos os europeus”. In: John M. Monteiro, “Dos Campos de Piratininga ao Morro da
Saudade: a presença indígena na história de São Paulo”. In: História da Cidade de São Paulo.
A Cidade Colonial. Org. de Paulo Porta. São Paulo, Paz e Terra, 2004, v. 1, p. 31.
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17
Quando se trata do programa de “catequese e escola” de
Nóbrega, não se deve ignorar que, desde o século XVIII, quando a
Companhia de Jesus foi expulsa do Império português pelo Mar-
quês de Pombal, as interpretações de sua ação no Estado do Brasil e
no Estado do Maranhão e Grão Pará entre 1549 e 1760, constituem
um campo disperso, contraditório e polêmico. Elas vão da sua mais
total apologia como obra civilizatória à sua mais severa condenação
como colonialismo responsável pela destruição das culturas indíge-
nas. Passando ao lado de juízos morais anacrônicos, que cobram
dos jesuítas do século XVI a conduta democrática e o discernimento
antropológico inexistentes em seu tempo, deve-se dizer que a ação
catequética da Companhia de Jesus integra-se objetivamente no pro-
cesso colonialista. Para afirmá-lo, basta considerar que a pacificação
de tribos inimigas resistentes à ocupação territorial e a conversão, a
subordinação e o controle de seus membros como trabalhadores
livres e escravos, colaboram materialmente para a fixação e o desen-
volvimento da empresa colonial. Como Bartolomé de Las Casas na
América Espanhola, Manuel da Nóbrega é um homem de grande
coragem e admirável determinação na condução do projeto de
“catequese e escola” que afirma a humanidade dos índios. Essa afir-
mação, que no caso dos índios aldeados se acompanha da discussão
sobre a legalidade e a legitimidade da escravidão, adapta-se objeti-
vamente ao dado bruto da conquista portuguesa, funcionando como
prática associada às estratégias militares de divisão e destruição das
tribos que resistem à empresa colonial
6
.
Para tratar da vida e obra do Padre Manuel da Nóbrega nos
limites determinados para este livro, recorre-se às cartas que escre-
veu entre 1549 e 1570, ao seu Diálogo sobre a conversão do gentio, de
1556, a textos de seus contemporâneos e a obras de autores cató-
licos e não-católicos dos séculos XX e XXI. Evidentemente, a in-
6
Cf. David Treece. Exilados, Aliados, Rebeldes. O Movimento Indianista, a Política
Indigenista e o Estado-Nação Imperial. São Paulo, Nankin Editorial/EDUSP, 2008, p. 52.
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18
venção da verossimilhança deste texto é parcial. Não tem preten-
são de recompor “fatos”, que permanecem latentes como reali-
dade passada intangível, nem de totalizar o campo dos debates. O
jesuíta Michel de Certeau dizia que, estudando Surin, distinguia-se
dele. Este texto trata de Nóbrega distinguindo-se dele.
Notícia biográfica
Na Crônica da Companhia de Jesus, Simão de Vasconcelos, jesuíta
do século XVII, compõe em gênero alto a vida de Manuel da
Nóbrega antes e depois de ele vir para o Estado do Brasil. Fazen-
do o encômio das ações mui virtuosas do “padre gago”, magro,
inteligente, douto, bem humorado, corajoso, doente, obediente,
determinado, andarilho, que se alimenta frugalmente com abóbo-
ras, velho aos 40 anos de idade, Vasconcelos informa que Manuel
da Nóbrega nasceu em Braga, Portugal, em 17 de outubro de
1517.
Depois de fazer seus estudos iniciais em Coimbra, bachare-
lou-se duas vezes. Primeiramente em Filosofia, pela Universidade
de Salamanca; depois, em Cânones, em 14 de junho de 1541, pela
Universidade de Coimbra
7
. Em 21 de novembro de 1544, com
27 anos de idade, entrou para a Companhia de Jesus, instituída em
1540 como ordem religiosa pelo Papa Paulo III.
Nos três Regimentos de 17 de dezembro de 1548 dados a Tomé
de Sousa, o rei D. João III ordena-lhe fundar uma cidade fortificada
na Bahia como sede do Governo Geral do Estado do Brasil. Em
1549, por intermédio de Simão Rodrigues, mestre de Nóbrega em
Coimbra e provincial da Companhia de Jesus na assistência de Por-
tugal, o rei nomeia Nóbrega chefe da missão religiosa enviada na
7
Cf. Simão de Vasconcelos, SJ. Crônica da Companhia de Jesus. 3 ed. Introdução de
Serafim Leite. Petrópolis, Editora Vozes, 1977, 2 v., v. I.
Na dedicatória de uma de suas obras canônicas ao P. Simão Rodrigues, provincial da
Companhia de Jesus na assistência de Portugal, o Dr. Navarro refere-se a Nóbrega: “O
doutíssimo Padre Manuel de Nóbrega, a quem não há muito conferimos os graus univer-
sitários, ilustre por sua ciência, virtude e prosápia”. Cf. Francisco Rodrigues, S.J. História
da Companhia de Jesus na Assistência de Portugal. Porto, Apostolado de Imprensa, 1931,
T.I, v. 2, p. 616.
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esquadra de Tomé de Sousa, primeiro governador geral. “Porque a
principal causa que me move a mandar povoar as ditas terras do
Brasil foi para que a gente dela se convertesse à nossa Santa fé cató-
lica”, declara no Regimento
8
. Três naus, duas caravelas e um bergantim
saíram do porto de Lisboa em 1 de fevereiro de 1549 com destino
ao Brasil. Levavam mais de mil pessoas; entre elas, cinco religiosos
da Companhia de Jesus comandados pelo Pe. Manuel da Nóbrega:
os Padres João de Azpilcueta Navarro, Leonardo Nunes, Antônio
Pires e os Irmãos Diogo Jácome e Vicente Rodrigues.
A frota chegou ao arraial do Pereira, Vila Velha, Bahia, em 29
de março de 1549. No início do mês de maio, Tomé de Sousa
começou a construção de uma cidadela cercada por paliçadas de
pau-a-pique na parte superior de uma falésia da baía de Todos os
Santos. Chamou-se São Salvador de Todos os Santos. O seu nú-
cleo inicial, conhecido como Cidade Alta, tinha a forma irregular
de trapézio adaptada aos acidentes do terreno, com fortificações
nos quatro cantos e nas metades dos lados maiores. No lado de
duas praças irregulares, o Terreiro de Jesus e o Largo do Palácio
do Governo, foram escolhidos os lugares para os edifícios das
instituições representativas do poder temporal e do poder espiri-
tual: o palácio do Governador, a casa da Câmara, a cadeia, o co-
légio dos jesuítas. A região abaixo da escarpa, chamada de Bairro
da Praia, foi destinada à construção naval e às atividades mercantis.
Com o tempo, novas edificações foram erguidas na Cidade Alta,
que foi ligada à Cidade Baixa por meio de guindastes pertencentes
aos jesuítas, beneditinos e carmelitas.
Desde a fundação, o espaço da cidade foi ordenado dando a
ver princípios corporativos da doutrina teológico-política que en-
tão definia e fundamentava catolicamente o Império português
8
Cf. “Regimento que levou Thomé de Souza, governador do Brazil”. In: Ignácio Accioli e
Brás do Amaral. Memórias Históricas e Políticas da Bahia. Bahia, Imprensa Official do
Estado, 1919, 7 v., v. I, p. 262.
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20
como “corpo místico” ou “corpo político” subordinado ao rei.
Os órgãos representativos da “cabeça” real, a parte superior do
corpo político, foram situados em posição dramaticamente privi-
legiada em relação aos inferiores, correspondentes aos “membros”
subordinados. É o que se observa na localização dos edifícios re-
presentativos do poder temporal e do espiritual na Cidade Alta,
sobre o platô da falésia, e das atividades da construção naval, da
alfândega, da alimentação e da escravaria na Cidade Baixa, junto
ao mar. A primeira capela do local, a de Nossa Senhora da Ajuda,
foi erguida por Nóbrega na parte baixa da cidade. Serviu de ma-
triz quando o bispo Pero Fernandes Sardinha chegou, em 1552, e
erigiu Salvador em paróquia. No ano seguinte, a Catedral da Sé
começou a ser levantada.
Imediatamente após chegar, Nóbrega estabeleceu em Vila Velha
uma “escola de ler e escrever”, que transferiu para Salvador quan-
do esta foi fundada. Inicialmente externato, no final de 1549 foi
transformada em internato. Nóbrega nomeou o Irmão Vicente
Rodrigues como seu diretor entre 1549 e 1550. Em 1550, quando
Salvador Rodrigues chegou de Lisboa trazendo sete meninos ór-
fãos, passou a dirigi-la até 1553. Vicente Rodrigues então foi envi-
ado para Porto Seguro. Os meninos órfãos tinham sido recolhi-
dos na Ribeira de Lisboa pelo Pe. Pero Domenech, que em 1549
fundou o Colégio dos Meninos Órfãos de Lisboa. Serafim Leite
informa que eram “moços perdidos, ladrões e maus, que aqui
chamam patifes”
9
. Foram juntados a “outros órfãos da terra, que
havia muitos, perdidos e faltos de criação e doutrina e dos filhos
dos gentios quantos se pudessem meter em casa”, informa
Nóbrega
10
. Em 1551, a escola passou a chamar-se Colégio dos
9
Cf. Serafim Leite, S. J. História da Companhia de Jesus no Brasil. (Século XVI. O
Estabelecimento) Tomo I; Tomo II (Século XVI. A Obra). Lisboa: Rio de Janeiro, Livraria
Portugália: Civilização Brasileira, 1938, T. I., p. 36.
10
Serafim Leite, S.J. Cartas dos primeiros jesuítas do Brasil. São Paulo, Comissão do IV
Centenário da Cidade de São Paulo, 1954, 3 v., v. II p. 150.
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21
Meninos de Jesus
11
. Em uma carta escrita do Rio vermelho em
agosto de 1557, Nóbrega informa que no colégio da Bahia há
órfãos que demonstram capacidade para serem da Companhia;
os outros são dados aos ofícios mecânicos, salvo dois ou três, que
não se dão a nada e que é melhor mandar de volta
12
.
Inicialmente, Salvador foi fortaleza, como se lê em papéis dos
séculos XVI e XVII que a classificam como “praça-forte”. Uma
das razões alegadas para a escolha do local era estratégica, a abun-
dância de água. As várias plantas da cidade feitas até o século XVIII
permitem inferir que foi situada no alto de uma escarpa para repe-
tir as soluções defensivas tipicamente medievais adotadas no Por-
to e em Lisboa. Desde a fundação, seu porto foi o centro do eixo
das rotas horizontais do Atlântico sul e das rotas verticais do co-
mércio costeiro. Salvador mantinha contato contínuo com
Pernambuco, Paraíba, Itamaracá e Sergipe, ao norte, e com Ilhéus,
Porto Seguro, Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Vicente e Buenos
Aires, ao sul. Recebia navios vindos da Índia que retornavam para
Portugal. Navios negreiros, que chegavam continuamente de An-
gola, da Costa da Mina e da Guiné. E navios mercantes que, saí-
dos de Lisboa para o Brasil com cargas de azeite, vinho, bacalhau
e mais drogas, retornavam para o Reino, depois de descarregar o
lastro de pedra de liós usada na construção de cais e edifícios, com
carregamentos de índios escravizados, açúcar, pau-brasil, animais,
peles, tabaco e outros produtos tropicais. Já no século XVI, a maior
11
Os meninos constituem a Confraria dos Meninos de Jesus, entidade jurídica com bens
imóveis e de raiz. Sua direção espiritual e docente fica por conta dos padres; a adminis-
tração temporal é atribuída a dois mordomos e um provedor, “para que fiquemos livres de
inconvenientes e somente nos ocupemos do espiritual, ensinando e doutrinando os
meninos”, diz Nóbrega. O fundo patrimonial da confraria dos Meninos de Jesus da Bahia
era constituído pela sesmaria de Água de Meninos, alguns escravos da Guiné e as 12
vacas iniciais mandadas de Cabo Verde por D. João III para “sustentação dos meninos”.
Cf. Luiz Alves de Mattos. Primórdios da Educação no Brasil. O Período Heroico (1549-
1570). Rio de Janeiro, Gráfica Editora Aurora, 1958, pp. 54-55.
12
Cf. “Nóbrega, Baía, Rio Vermelho agosto de 1557” . In: Serafim Leite, S.J. Cartas dos
primeiros jesuítas do Brasil. Ed. cit. v. II, p. 399.
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22
parte da renda da cidade provinha dos impostos sobre o açúcar e
o tráfico negreiro
13
.
O estabelecimento do Governo Geral e o envio da missão
jesuítica ocorriam em um momento crítico do chamado “capita-
lismo monárquico” da dinastia dos reis Avis, quando fracassava o
regime das capitanias hereditárias estabelecidas no Estado do Bra-
sil em 1534. Com exceção das capitanias de Pernambuco e
Itamaracá, no Nordeste, e a de São Vicente, no Sul, a colonização
das restantes vinha sendo derrotada pelas distâncias, pela falta de
capitais dos donatários, pelos ataques contínuos de índios e piratas
europeus. Ilhéus era devastada pelos aimorés. O donatário de Por-
to Seguro, Pero Tourinho, fora preso pela Inquisição. Vila Velha,
no Espírito Santo, era assediada pelos goitacases. São Vicente, ata-
cada por franceses e seus aliados tamoios. No planalto de Piratininga,
João Ramalho, português unido com Mbicy (Potira, Bartira), a fi-
lha do chefe tupi Tibiriçá, era amigo das famílias dos muitos guer-
reiros casados com suas filhas. Aliado dos chefes Tibiriçá e Piquerobi,
dedicava-se com seus homens e filhos mamelucos a caçar índios
de tribos inimigas, fazendo-os trabalhar como escravos em suas
propriedades e, como consta, vendendo-os no litoral para colo-
nos de Santos e São Vicente e castelhanos que demandavam o Rio
da Prata. Francisco Pereira Coutinho, donatário da Bahia, fora
morto e devorado pelos tupinambás de Itaparica em 1545.
O descentramento das capitanias era a principal causa do
insucesso, que se agravava com a ameaça constante de ocupação do
território pela França e outras potências europeias. As diretrizes da
fundação da cidade de Salvador pressupunham esses problemas,
determinando que seria a “cabeça” ou o órgão centralizador, admi-
nistrativo, fazendário, militar e religioso dos outros “membros” ou
capitanias do Estado do Brasil. O Regimento determinava que os
13
Stuart B. Schwartz. Burocracia e Sociedade no Brasil Colonial. São Paulo, Perspectiva,
1979, p. 79.
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23
portugueses manteriam a paz com as tribos indígenas amigas e fari-
am “guerra justa” contra os grupos inimigos, resistentes à ocupação
do território e à doutrinação religiosa, caso dos tupinambás do lito-
ral, que haviam comido Coutinho, e dos aimorés do sertão e do sul
da Bahia, que frequentemente atacavam o Recôncavo, Ilhéus e Porto
Seguro, destruindo os engenhos e apavorando as populações. Nos
três primeiros anos do governo de Tomé de Sousa, Salvador sofreu
ataques constantes dos tupinambás e tabajaras. Com a intervenção
de Diogo Álvares Correia, Caramuru, português casado com uma
índia, Paraguaçu ou Catarina Paraguaçu, e muito influente entre as
tribos, fizeram as pazes em 1553.
Chegando à Bahia aos 31 anos de idade, o Pe. Nóbrega aí per-
maneceu até julho de 1551, providenciando a construção da capela
e do colégio, enquanto delineava a política dos primeiros aldeamentos
indígenas. Chamados Aldeias d’El Rei, conforme o Regimento
14
, seri-
am distintos de outros agrupamentos de índios, chamados de “ad-
ministração particular”. Dependiam diretamente dos governadores,
que nomeavam para eles os Institutos Religiosos vocacionados para
as missões. Desta maneira, os missionários jesuítas eram delegados
do governador geral. As Aldeias d’El-Rei ficavam fora da alçada
das Câmaras municipais; os missionários eram diretamente indica-
dos pelos reitores dos colégios ou provinciais da Companhia com
os poderes das leis, de modo que eram, ao mesmo tempo, párocos
das aldeias e seus regentes seculares ou civis. As relações das Câma-
ras municipais com as Aldeias d’El-Rei eram, desse modo, reguladas
por leis que conferiam a jurisdição secular aos superiores delas; às
vezes, porém, as Câmaras assumiam tal jurisdição. A intervenção
14
Cf. Regimento, Ed. cit. “Porque parece que será grande inconveniente os gentios que
se tornaram cristãos morarem na povoação dos outros e andarem misturados com eles,
e que será muito serviço de Deus e meu apartarem-nos de sua conversão, vos encomen-
do e mando que trabalheis muito por dar ordem como os que forem cristãos morem
juntos, perto das povoações das ditas capitanias, e não com os gentios, e possam ser
ensinados e doutrinados nas cousas de nossa santa fé”.
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das Câmaras era considerada legítima, quando exerciam a jurisdição
por meio de poderes especiais que lhes eram confiados pelos go-
vernadores; contudo, quando se adiantavam a tais poderes, interpre-
tando-os livremente, sua intervenção era considerada ilegal, princi-
palmente porque a finalidade oficial do agrupamento dos índios nas
Aldeias d’ El-Rei era, como reza uma carta do governador geral do
Brasil, Afonso Furtado de Castro do Rio de Mendonça aos oficiais
da Câmara da Vila de São Paulo da Bahia, em 7 de outubro de
1671, “(...) para Sua Alteza os ter assim prontos a seu real serviço,
que é o fim de elas se perpetuarem”
15
.
Os grupos tupis habitantes do litoral eram nômades e uma das
primeiras medidas adotadas por Nóbrega foi fixá-los nas aldeias.
em abril de 1549, enviou sua primeira carta à Europa, informando
que havia confiado a “instrução” (a escola de ler e escrever) ao Ir-
mão Vicente Rodrigues. E que pedira a Diogo Álvares Correia,
Caramuru, a tradução de orações do português para o tupi. Na
carta de 10 de agosto de 1549, enviada para seu mestre de Coimbra,
Dr. Navarro, afirma que é grande maravilha Deus ter entregue terra
tão boa por tanto tempo a uma gente tão inculta que não conhece
nenhum Deus, regendo-se por apetites sensuais e sempre inclinada
ao mal, sem conselho nem prudência
16
. Nesta carta e em outros
textos de Nóbrega, encontra-se o núcleo do seu pensamento a res-
peito dos índios e da política da catequese: sabe que crer é obedecer
e, acreditando que os índios não têm nenhum Deus, conclui que não
obedecem a nada; logo, a catequese deverá fornecer-lhes a memória
do Deus verdadeiro, que ignoram, orientando-lhes a vontade e a
inteligência para adquirirem e manterem a constância da prática de
15
Serafim Leite, S.J. História da Companhia de Jesus no Brasil. (Do Rio de Janeiro ao
Prata e ao Guaporé. Estabelecimento e assuntos locais. Séculos XVII- XVIII). Rio de
Janeiro: Lisboa, Instituto Nacional do Livro: Livraria Portugália, 1945, T. VI , pp.228-229.
16
Manuel da Nóbrega. “Ao Dr. Navarro, seu mestre em Coimbra. Carta de 10 de agosto
de 1549”. In: Ignácio Accioli e Brás do Amaral. Memórias Históricas e Políticas da Bahia.
Bahia, Imprensa Official do Estado, 1919, 7 v., v. I, p. 284.
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boas obras cristãs decorrentes do conhecimento da culpa do peca-
do original. A ação religiosa da catequese é política, pois destribaliza
os grupos indígenas, subordinando-os aos poderes da Companhia
de Jesus subordinada a Roma e à Coroa.
Com muito entusiasmo inicial, os jesuítas acreditaram que as
tribos seriam imediatamente catequizáveis em massa e que passari-
am a levar uma vida catolicamente virtuosa, abandonando seus
maus hábitos antigos com o bom exemplo cristão dos portugue-
ses. O entusiasmo era equivocado, pois os índios resistiam e o
suposto bom exemplo português era, muito objetivamente, o ex-
termínio, a escravidão e a classificação deles como “sujos de san-
gue”, “inferiores por natureza”, “escravos por natureza”, “selva-
gens”, “bárbaros” e “animais”. Na carta encaminhada em 1549 ao
Pe. Mestre Simão Rodrigues, Provincial da Companhia de Jesus
em Portugal, Nóbrega dá conta dessas práticas cristãs:
...e é desta maneira que fazem (os cristãos) pazes com os negros para
lhe trazerem a vender o que têm, e por engano enchem os navios
deles, e fogem com eles; e alguns dizem que o podem fazer por os
negros terem já feito mal aos cristãos.(...)De maravilha se achará cá
terra, onde os cristãos não fossem causa de guerra e dissenção, e
tanto que nesta Bahia, que é tido por um gentio dos piores de todos,
se levantou a guerra contra os cristãos. Porque um padre, por lhe um
principal destes negros não dar o que lhe pedia, lhe lançou a morte,
no que tanto imaginou que morreu, e mandou ao filho que o vin-
gasse. De maneira que os primeiros escândalos são por causa dos
cristãos; e certo que, deixando os maus costumes que eram de seus
avós, em muitas coisas fazem vantagem aos cristãos, porque melhor
moralmente vivem e guardam a lei da natureza. Alguns destes escra-
vos me parece que seria bom juntá-los e torná-los a sua terra, e ficar cá
um dos nossos para os ensinar...
17
17
“Carta que o Padre Manoel da Nóbrega, da Companhia de Jesus em as terras do Brasil,
escreveu ao Padre Mestre Simão, preposito provincial da dita Companhia em Portugal,
anno de 1549”. In: Accioli, Ignácio e Amaral, Brás do. Memórias Históricas e Políticas da
Bahia. Bahia, Imprensa Official do Estado, 1919, v. I, p. 320. Nos textos jesuíticos do
século XVI, os índios são chamados de “negros” e “negros da terra”.
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26
Informações semelhantes são achadas em textos de outros je-
suítas desse tempo, como o escrito em 1584 por José de Anchieta,
Primeiros Aldeamentos da Bahia, em que faz o relato da espantosa
variedade de atrocidades praticadas pelos colonos contra os ín-
dios e das “guerras justas” ordenadas por governadores gerais
contra as tribos inimigas dos portugueses
18
.
Logo no início, quando começou a estabelecer os primeiros
seminários dos Meninos de Jesus, Nóbrega recebeu uma sesmaria
de Tomé de Sousa. Chamou-se Água dos Meninos e nela fundou
a casa para um deles. Dedicados ao ensino de meninos e rapazes,
a primeira finalidade dos seminários era a formação missionária.
Os jesuítas obedeciam ao Regimento
19
, que determinava que a
catequese devia priorizar a doutrinação de crianças e jovens indí-
genas, pois seriam mais moldáveis que os adultos já depravados
por “costumes bestiais”. Assim, enquanto os adultos catequizados
eram mantidos nas aldeias, os meninos ficavam com os religiosos
nos colégios, recebendo a doutrina. As leis não permitiam que
índios fossem ordenados padres e, na prática, os seminários aca-
baram sendo escolas de catequese onde houve ensino de artes e
ofícios manuais. Em 1561, quando avaliou os resultados desse en-
sino, Nóbrega afirmou que os moços índios que abandonavam a
escola e voltavam para suas tribos no mato pelo menos não torna-
vam a comer carne humana e censuravam os pais e os parentes
que o faziam. No mato, tiravam a roupa católica e ficavam nus,
mas demonstravam vergonha de ir à igreja pelados. Outros jo-
vens, porém, não abandonavam a escola e aprendiam ofícios ma-
18
José de Anchieta. Primeiros Aldeamentos da Baía. Rio de Janeiro, Ministério da Educa-
ção e Saúde, 1946 (Coleção Brasileira de Divulgação, Série IV, História, no. 1).
19
Cf. Regimento de Tomé de Sousa. Ed.cit.: “Aos meninos, porque neles imprimirão
melhor a doutrina, trabalhareis por dar ordem como se façam cristãos e que sejam
ensinados e tirados da conversão dos gentios. E aos capitães das outras capitanias direis
da minha parte que lhes agradecerei ter cada um cuidado de assim o fazer em sua
capitania. E os meninos estarão na povoação dos portugueses e em seu ensino folgaria
de se ter a maneira que vos disse”.
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27
nuais, como a ferraria, a fundição, a tecelagem, a carpintaria, a
marcenaria, a olaria e outros, ensinados pelos padres
20
.
Nos primeiros tempos, a missão jesuítica do Estado do Brasil
fazia voto de pobreza e era sustentada por esmolas dos governantes
e da população local. Em 1550, recebia do almoxarifado régio o
subsídio mensal de 1 cruzado (400 réis) para cada um dos seis reli-
giosos vindos com Tomé de Sousa. Em 1564, uma provisão real
estabeleceu o Colégio de Salvador para 60 padres da Companhia
de Jesus. Ainda em 1564, a Coroa emitiu um alvará que estabelecia a
redízima dos dízimos como “esmola para sempre para a sustenta-
ção do Colégio da Bahia”. Com o dinheiro do imposto, os jesuítas
passaram a ter recursos materiais para a manutenção dos colégios.
Em 1568, o benefício real seria estendido para o Colégio do Rio de
Janeiro e, em 1576, para o de Olinda, em Pernambuco.
Desde que chegou à Bahia, Nóbrega pediu mais missionários.
Em março de 1550, chegaram quatro, Afonso Brás, Francisco Pi-
res, Manuel de Paiva, Salvador Rodrigues e sete meninos órfãos
de Lisboa, que se integraram aos trabalhos da catequese
21
. Em
julho de 1553, vieram mais sete, os Padres Luís da Grã, Lourenço
Brás, Ambrósio Pires e os Irmãos Antônio Blázquez, João Gon-
çalves, Gregório Serrão e José de Anchieta. Com o bom humor
20
Manuel da Nóbrega. “Carta ao P. Geral Diogo Laynes (São Vicente,12 de junho de 1561)”.
In: Serafim Leite, S.I. Cartas dos primeiros jesuítas do Brasil. Ed.cit. v. III. A respeito dos
ofícios mecânicos e seu ensino, cf. Serafim Leite, S.J. Artes e Ofícios dos Jesuítas no
Brasil (1549-1760). Lisboa: Rio de Janeiro, Edições Brotéria: Livros de Portugal, 1953.
21
Dos três jesuítas que vieram com Nóbrega para o Estado do Brasil, o P. Leonardo Nunes
dedicou-se à catequese em S. Vicente, sendo chamado pelos índios de Abarebebê, “padre
voador”, porque se movimentava com muita rapidez, sendo visto no mesmo dia em diver-
sos lugares da capitania. Leonardo Nunes morreu afogado perto de Santos, quando naufra-
gou o navio que o levava a Lisboa, em 30 de junho de 1554. O P. Azpilcueta Navarro foi o
primeiro a aprender tupi, tornando-se intérprete. O P. Antônio Pires dedicou-se à catequese
em Pernambuco. Dos que chegaram em 1550, o P. Manuel de Paiva foi pregador em São
Paulo. O P. Afonso Brás dedicou-se à construção de colégios. O P. Francisco Pires dedicou-
se a visitar as aldeias indígenas, fazendo pregações. O P. Salvador Rodrigues cuidou da
educação dos meninos índios em Salvador. Quanto aos Irmãos, Vicente Rodrigues se
notabilizou por ser o primeiro mestre-escola do Estado do Brasil, enquanto Diogo Jácome
dedicou-se à capitania do Espírito Santo.
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28
que caracteriza muitas de suas ações, Nóbrega anunciou a venda
do Pe. Paiva em leilão para obter recursos, declarando que um
padre jesuíta tinha muitos usos. Com a brincadeira, denunciava o
estado precário da missão. Tomé de Sousa presenciou a cena, con-
tando-a em Lisboa como exemplo das virtudes de Nóbrega
22
.
Em julho de 1551, Nóbrega foi para Pernambuco com o Pe.
Antônio Pires. Em Olinda, oficiou o casamento de portugueses
amancebados com índias, batizou índios e negros, fundou um re-
colhimento de moças e uma Casa de Meninos. Voltou para a Bahia
em janeiro de 1552, ocupando-se sozinho das missas em Vila Ve-
lha e Salvador, pois os outros padres estavam no Sul, pregando o
jubileu do ano santo de 1550.
Em junho de 1552, chegou a Salvador o bispo Pero Fernandes
Sardinha. Era a maior autoridade espiritual no lugar e a missão
jesuítica se subordinava a ele. Sardinha polemizou com Duarte da
Costa, o segundo governador geral, usando o púlpito para censu-
rar o que considerou irregular no comportamento sexual de D.
Álvaro da Costa, filho do governador, com as mulheres do lugar.
Também teve atritos com os jesuítas. Serafim Leite afirma que,
vindo da Índia, Sardinha teria confundido os índios ágrafos do
Brasil com os hindus letrados de Goa. Julgava os índios incapazes
de receber a doutrina. Nóbrega havia determinado que não pode-
riam receber o batismo em massa e que os indivíduos batizados
deviam necessariamente viver nas aldeias administradas pelos jesu-
ítas
23
separados das restantes, para não retornarem aos “maus há-
bitos” de sua “natureza semper prona ad malum”, “natureza sempre
inclinada ao mal”, como escreve qualificando suas práticas, o
nomadismo, o xamanismo, a nudez, a poligamia, a guerra por
vingança, a cauinagem e a antropofagia ritual. Antes de receberem
22
Cf. Serafim Leite, S.J. Breve História da Companhia de Jesus no Brasil 1549-1760.
Braga, Livraria Apostolado da Imprensa, 1993, p. 5.
23
Idem, ibidem p. 6.
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29
o batismo, os índios catequizados deviam provar que eram “bons
cristãos” ou afastar-se da comunidade dos padres. Inicialmente,
estes permitiram algumas acomodações das práticas tupis às cató-
licas, como a nudez dos curumins, as crianças índias, e o uso de
instrumentos de música usados nos rituais de sacrifício de inimi-
gos. Com o tempo, supunham, os índios abandonariam seus cos-
tumes “abomináveis” e seriam bons cristãos. Sardinha censurou
duramente tais procedimentos, polemizando com Nóbrega sobre
a confissão feita por meio de “línguas” ou intérpretes capazes de
falar a “língua geral” ou nheengatu, o tupi do litoral
24
. Ainda em
1552, no dia do Anjo Custódio, Nóbrega fundou a aldeia de São
Tomé do Paripe, mandando que o Irmão Vicente Rodrigues e
dois meninos órfãos conhecedores de tupi ficassem nela para en-
sinar as crianças indígenas.
No final de 1549, tinha enviado o Pe. Leonardo Nunes com
dez meninos alfabetizados para São Vicente. Aí, Nunes construiu
uma igreja e organizou um recolhimento para a catequese de cri-
anças índias do litoral e do planalto de Piratininga. Provavelmente
para se distanciar da polêmica com Sardinha, Nóbrega foi com o
governador geral para São Vicente, em 1552. Na viagem, passou
pela Capitania do Espírito Santo, onde o Pe. Afonso Brás admi-
nistrava o Colégio de Santiago, em Vitória. Na Ilha do Governa-
dor, Rio de Janeiro, fez contato com a tribo de Maracajaguaçu, “o
24
Em carta de 17 de setembro de 1552 para Simão Rodrigues, Nóbrega diz: “Se nós
abraçamos alguns costumes deste gentio,os quais não são contra nossa fé católica, nem
são ritos dedicados a ídolos, como é cantar cantigas de Nosso Senhor em sua língua pelo
tom e tanger de seus instrumentos de música que eles usam em suas festas quando
matam contrários e andam bêbados; e isto para os atrair a deixarem os outros costumes
essenciais (...) e assim o pregar-lhes a seu modo em certo tom andando passeando e
batendo nos peitos, como eles fazem quando querem persuadir alguma coisa e dizê-la
com muita eficácia; e assim tosquiarem-se os meninos da terra, que em casa temos, a
seu modo. Porque semelhança é causa de amor. E outros costumes semelhantes a
estes”. Cit. por John M. Monteiro. In: “Dos Campos de Piratininga ao Morro da Saudade:
a presença indígena na história de São Paulo”. In: História da Cidade de São Paulo. A
Cidade Colonial. Org. de Paulo Porta. São Paulo, Paz e Terra, 2004, v. 1, p. 36.
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30
Gato Grande”, amiga dos portugueses. Chegando em 17 de janei-
ro de 1553 ao colégio fundado um ano antes pelo Pe. Leonardo
Nunes, ordenou-o juridicamente, em 2 de fevereiro de 1553, como
outro Colégio dos Meninos de Jesus.
Em agosto de 1553, Nóbrega subiu a serra de Paranapiacaba
pela trilha dos tupiniquins, chegando ao campo de Piratininga. Aí
deixou dois Irmãos, que construíram uma casa e uma capela auxili-
ados pelos homens do chefe Tibiriçá. Nóbrega pretendia permane-
cer em São Vicente, acreditando que a Capitania era a mais apropri-
ada para a redução do gentio por ser a entrada para o grande sertão
do planalto de Piratininga habitado por tribos indígenas classificadas
como “bravas”, arredias ao contato com os portugueses ou inimi-
gas deles. Queria permanecer em São Vicente para ir ao Paraguai. O
governador geral o dissuadiu da empresa, temendo que a Capitania
se despovoasse com uma corrida às minas de ouro descobertas no
Peru. Além disso, razão política, desde o Tratado de Tordesilhas as
terras paraguaias pertenciam à Coroa castelhana, ainda que muitos
portugueses acreditassem que Assunção fosse possessão lusa.
Em 9 de junho de 1553, conhecendo as opiniões do bispo Sar-
dinha sobre a catequese e seus atritos com Nóbrega, Inácio de Loyola
criou a Província do Brasil, nomeando Nóbrega seu primeiro pro-
vincial. Deixando de subordinar-se à autoridade do bispo, deu con-
tinuidade ao seu programa inicial de “catequese e ensino”. Ainda em
São Vicente, conseguiu resolver as pendências sobre a posse de ter-
ras que Brás Cubas mantinha com Pero Correia. Quando Correia
entrou para a Companhia, doou seus bens à confraria do Colégio
dos Meninos de Jesus. Brás Cubas tornou-se um benfeitor dela,
doando-lhe terras em Iguape. Nóbrega também tomou medidas
para solucionar a situação civil de João Ramalho, o português influ-
ente entre os índios do litoral e do planalto de São Vicente. Casado
em Portugal, vivia com Mbicy (Bartira) e outras mulheres índias com
quem tinha muitos filhos mamelucos. Em 1553, Nóbrega refere-se
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31
a ele negativamente, afirmando que anda nu e que vive incestuosa-
mente com as filhas. Logo depois, quando a amizade com Ramalho
foi conveniente, pois facilitava a penetração jesuítica no planalto de
Piratininga, mudou de opinião
25
. Nas guerras da chamada “Confe-
deração dos tamoios”, as alianças com os tupis de São Vicente seri-
am fundamentais para os portugueses, ainda que frágeis, pois deter-
minadas pelas múltiplas e cambiantes relações intertribais. Na região
de Piratininga, já havia três aldeias de índios que Nóbrega pretendia
juntar para melhor doutriná-los
26
. Desde esse ano, 1553, passou a
contar com o auxílio do Irmão José de Anchieta. Vindo de Tenerife,
nas ilhas Canárias, Anchieta falava e escrevia fluentemente portu-
guês, espanhol e latim. Aprendeu tupi com rapidez, tornando-se
exímio na língua e autor de textos de teatro e poesia nesse idioma,
além do poema épico em latim que celebra os feitos de Mem de Sá
nas “guerras justas” contra os tamoios; e outro, também em latim,
sobre a beata Virgem Maria.
Até esse momento, Nóbrega contava em Portugal com o apoio
do Padre Mestre Simão Rodrigues, um dos fundadores da Com-
panhia de Jesus, que afirmava querer ser o primeiro no Brasil, pois
– referindo-se à ação de Francisco Xavier no Oriente – não tinha
merecido ser o segundo na Índia. A Província de Portugal, consti-
tuída em 1546 com Simão Rodrigues como provincial, foi a pri-
meira da Companhia de Jesus. O Colégio de Coimbra tinha 80
estudantes e, nesse tempo, era caracterizado por manifestações de
fervor religioso consideradas extravagantes pelos superiores da
Companhia em Roma, como flagelações nas ruas, pregações de
padres semi-nus, ruidosas conclamações noturnas à penitência etc.
Os padres Favre e Araoz já tinham manifestado sua inquietação.
25
Cf. John M. Monteiro. “Dos Campos de Piratininga ao Morro da Saudade: a presença
indígena na história de São Paulo”. In: História da Cidade de São Paulo. A Cidade Colonial.
Organização de Paulo Porta. São Paulo, Paz e Terra, 2004, v. 1.
26
Serafim Leite S.J. Breve História da Companhia de Jesus no Brasil 1549-1760. Braga,
Livraria A.I., 1993, p. 12.
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32
As “santas folias” provocavam espanto, mais que edificação. Si-
mão Rodrigues era adepto da “loucura por Cristo” e as permitia.
Em maio de 1547, o Pe. Polanco, secretário de Loyola, enviou a
mando deste uma carta sobre a perfeição aos padres e irmãos de
Coimbra. Expondo o ponto de vista de Loyola, a carta trata do
zelo da vida interior, lembrando a excelência da vocação e a neces-
sidade de fervor etc. Mas adverte-os de que o excesso deve ser
contido, determinando que devem esforçar-se em ter um fervor
santo e prudente, para poderem trabalhar com afinco no estudo
das letras e das virtudes. Declarando que em umas e outras um
único ato enérgico vale mais que mil atos fracos, Loyola determi-
na que a medida da contenção é a obediência irrestrita
27
.
Desde a criação da Província de Portugal e da nomeação de
Simão Rodrigues, de origem fidalga, a assim chamada “esponta-
neidade espiritual” da Província portuguesa, a cumplicidade aris-
tocrática e a estreita cooperação política dos jesuítas portugueses
com o rei D. João III levaram Loyola, depois de vários apelos e
recomendações sobre as regras e o sentido da obediência, a “libe-
rar” Rodrigues do cargo, em 27 de dezembro de 1551, substituin-
do-o pelo Pe. Diogo Mirão. Este era membro do chamado “se-
gundo círculo” de companheiros da Companhia formado em 1549
por Polanco, Domenech, Frusius, Nadal e Oviedo
28
. Em 1552,
Simão Rodrigues desentendeu-se com Loyola. Sendo substituído
pelo Pe. Diogo Mirão como provincial, fora enviado para o reino
de Aragão e proibido de voltar para Portugal. Em 1553, sem per-
missão de Roma, voltou para tratar da saúde. Quando chegou ao
colégio de Santo Antão, que ele mesmo havia fundado em Lisboa,
proibiram-lhe a entrada. Inácio de Loyola o intimou a ir a Roma
27
Inácio de Loyola. “Aux Pères et Frères de Coïmbre, Rome, 7 mai 1547”. In: Ignace de
Loyola. Écrits. Paris, Desclée de Brouwer, 1991, pp. 693-701.
28
Inácio de Loyola. “A Simon Rodriguez. Rome, 27 décembre 1551”. In: Ignace de Loyola.
Écrits. Traduits et présentés sous la direction de Maurice Giuliani, sj. Paris, Desclée de
Brouwer, 1991, pp. 804-805.
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33
para explicar-se. Dom João III obteve do Papa um breve que o
eximia da obediência a Loyola. O breve foi-lhe entregue pelo
embaixador português em Roma e conta-se que Simão Rodrigues
o teria rasgado na frente de Loyola, declarando sua total obediên-
cia à Companhia. Nos vinte anos seguintes, teve que viver exilado
de Portugal, aonde só voltou para morrer, em 1579.
O novo provincial de Portugal, Pe. Diogo Mirão, deixou de
apoiar a missão de Nóbrega no Estado do Brasil supondo seu
comprometimento com Simão Rodrigues. Quando o Pe. Luís da
Grã chegou, em julho de 1553, vinha como emissário de Mirão.
Nos tempos iniciais, a Companhia de Jesus tinha feito voto de
pobreza. Agora, a sede romana determinava que devia acumular
bens de raiz, enriquecendo seu patrimônio temporal. A política
dos recolhimentos e as confrarias de meninos com bens próprios
não eram mais convenientes. Luís Alves de Mattos informa que
Nóbrega recebeu as novas orientações no final de 1553. Nesse
ano, o Pe. Luís da Grã teve a notícia da confirmação de Diogo
Mirão como provincial feita por Loyola e a determinação deste
de que a Companhia não mais podia ter o encargo das instituições
de órfãos
29
. Em julho de 1553, Tomé de Sousa passou o cargo a
Duarte da Costa, o segundo governador geral. Duarte da Costa
era amigo do Pe. Luís da Grã e demonstrava antipatia por Nóbrega.
Nesse momento, este se deparava com a oposição do bispo Sar-
dinha, com a antipatia de Duarte da Costa e com as novas diretri-
zes da Companhia de Jesus representadas no Estado do Brasil
pelo Pe. Luís da Grã. Mas sempre teve o apoio de D. João III, até
11 de junho de 1557, quando o rei morreu.
Esse apoio era, aliás, preocupação constante de Loyola, como
se lê na carta de 15 de janeiro de 1556 que enviou ao Pe. Luís
Gonçalves da Câmara, cronista da Companhia de Jesus, quando
29
Luiz Alves de Mattos. Primórdios da Educação no Brasil. O Período Heroico (1549-
1570). Rio de Janeiro, Gráfica Editora Aurora, 1958, pp. 106-107.
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34
este foi para Portugal como colateral do provincial Diogo Mirão.
Loyola lhe dá instruções acerca do modo como deve se ocupar
do rei e nobres, do povo, da Companhia e de si mesmo. Deverá
fazer tudo que possa auxiliando a pessoa do rei, para que este
continue com sua boa opinião sobre a Companhia e os padres
dela que vivem em seus Estados. Determina que, mais que isso, o
rei português deve ser estimulado a tornar efetiva sua boa opinião,
ajudando materialmente os padres em suas possessões. A
evangelização do povo de Portugal deve estender-se “...às novas
plantas das Índias e do Brasil e aos portugueses que aí se encon-
tram. Seria preciso muito especialmente ocupar-se deles e de tudo
que se refira à conservação e ao crescimento da religião nessas
regiões, como sendo seus anjos protetores. Seria preciso pensar
nos melhores meios de auxiliar essas almas, conferindo-o com o
provincial e o comissário...”. Em seguida, dando instruções sobre
a Companhia, Loyola determina: “Que todos andem no mesmo
espírito, para que pensemos, para que digamos a mesma coisa, fazendo o
esforço de que desapareça, se houver, toda distinção de nação ou
outros comportamentos que são mais humanos que espirituais”
30
.
Tentando defender o regime das confrarias, Nóbrega escreve
para Roma, afirmando:
“O que se adquiriu foi para os meninos dos gentios. Dos moços
órfãos de Portugal nunca foi minha intenção adquirir a eles nada,
nem fazer casas para eles, senão enquanto fosse necessário para com
eles ganhar os da terra e os ensinar e doutrinar. E esses haviam de ser
somente os que para esse efeito fossem mais necessários e cá se
pedissem. E, todavia, nos parece bem dar-lhes as terras, porque se
pediram para os meninos dos gentios, por não haver escândalo e
dizerem que com título de moços adquirimos para nós”
31
.
30
Inácio de Loyola.”A Louis Gonçalves da Câmara, Rome, avant le 15 janvier 1556”. In:
Ignace de Loyola. Écrits. Paris, Desclée de Brouwer, 1991, pp. 973-977.
31
Cit. por Luiz Alves de Mattos, op. cit. p. 109.
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35
Em janeiro de 1554, na véspera do dia de São Paulo, Nóbrega
e mais doze religiosos subiram a Serra do Mar pelo caminho do
Perequê e foram para Piratininga, onde, no dia 25, no sertão de
Santo André da Borda do Campo, ele, José de Anchieta e outros
religiosos participaram da fundação da vila de São Paulo de Piratininga,
erigindo a casa de pau-a-pique de um colégio na esplanada acima
do vale do rio Anhangabaú
32
. Aí Nóbrega confirmou as relações de
amizade com os chefes tupiniquins Tibiriçá, Piquerobi e Caiubi. Logo
depois da fundação da vila, entrou pelo sertão de Piratininga, des-
cendo o rio Tietê pela margem esquerda até a aldeia tupiniquim de
Maniçoba, onde tentou evitar a morte de prisioneiros carijós. Não
conseguiu impedir que fossem mortos, mas Antônio Rodrigues e os
Irmãos “pequenos” “converteram” os que iam ser sacrificados. Os
matadores proibiram o batismo deles, afirmando que morreriam
ao comer sua carne se fossem batizados
33
. Voltando a São Paulo,
Nóbrega escreve ao rei D. João III informando-lhe que os filhos
dos índios de Piratininga recebiam a doutrina. Ainda no início de
1554, o geral da Companhia passou-lhe todas as faculdades que
tinha na Santa Sé em Roma, menos a de dar indulgência plenária e a
de admitir à profissão. Em 1554, quando chegaram a São Vicente
os padres que vinham da Bahia, Nóbrega transferiu o colégio da vila
de São Vicente para a vila de São Paulo de Piratininga. Chamou-se
“São Paulo” em homenagem ao “apóstolo das gentes”, proposto
por Nóbrega como modelo a ser seguido na conversão dos genti-
os. Em 24 de agosto de 1554, enviou três Irmãos da Companhia
para fazer as pazes entre os carijós e os tupis. Dois deles, Pero Cor-
reia e João de Sousa, foram mortos pelos carijós instigados por um
castelhano do Paraguai, tornando-se os primeiros “mártires do Bra-
32
Serafim Leite, S.J. Nóbrega e a Fundação de São Paulo. Lisboa, Instituto de Intercâmbio
Luso-Brasileiro, 1953.
33
Cf. Há pormenores sobre esse caso na carta de São Vicente escrita pelo Irmão Pero
Correia em 18 de julho de 1554. In: Serafim Leite, SJ. Cartas dos primeiros jesuítas do Brasil.
São Paulo, Comissão do IV Centenário da Cidade de São Paulo, 1954, v. II, pp. 65-68.
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36
sil”. Ainda em São Paulo, Nóbrega pretendia ir para o Paraguai, mas
recebeu instruções de Lisboa determinando que, sendo o provincial
da Companhia de Jesus na assistência do Estado do Brasil, tinha que
residir na capital, onde devia dar princípio a um colégio.
Em 23 de maio de 1556, partiu para a Bahia, doente, pondo
sangue pela boca, em companhia do Pe. Francisco Pires, do Irmão
Antônio Rodrigues e mais dois Irmãos. Levava as Constituições da
Companhia de Jesus que tinham acabado de chegar ao Estado do
Brasil. Elas traziam novas determinações para o ensino e o funcio-
namento dos colégios. Proibiam que houvesse internatos para alu-
nos leigos que não pretendessem ingressar na Companhia, o que
determinou que os meninos índios internos fossem mandados em-
bora
34
. Chegando à Bahia em julho desse ano, 1556, depois de para-
das no Espírito Santo e em Porto Seguro, começou a fundar novos
aldeamentos indígenas. O primeiro deles foi estabelecido pelo Irmão
Antônio Rodrigues no Rio Vermelho. Nóbrega proibiu a confissão
de colonos que viviam em concubinato público com índias ou que
possuíam escravos índios “comprados sem justiça”. Na aldeia do chefe
Tubarão, fundou-se a igreja de São Sebastião.
Já em 1557, aparentemente a situação começou a mudar em seu
favor. O bispo Sardinha tinha sido moqueado pelos índios caetés
em 16 de junho de 1556, quando o navio que o conduzia à Europa
naufragou nas costas do Nordeste. O bispado de Salvador seria
34
Nóbrega escreve: “... comecei a desandar a roda que tinha caminhado e a diminuir os
meninos e a tirar as confrarias o quanto pude, sem escândalo, mormente depois que
vieram as Constituições. Assim se fez nesta Capitania de São Vicente, despedindo-se os
rapazes com assás compaixão minha e dor, porque muitos filhos de índios sabiam ler e
escrever e oficiavam as missas que era muita edificação para todos, assim portugueses
como índios. O mesmo se fez em outras partes, e tiraram-se as confrarias, exceto no
Espírito Santo, onde por devoção da gente a sustentaram, dizendo as missas seu vigário,
homem devoto, e os moradores os sustentaram com esmolas, dando o cargo deles a um
homem leigo... Na Bahia também se diminuiu tudo, os rapazes deram-se a ofícios e não
se recolheram outros”. In: Serafim Leite, S.J. Cartas dos primeiros jesuítas do Brasil.
Ed.cit. v. III. Em carta de 8 de maio de 1558 escrita na Bahia, afirma: “Meninos do gentio
não há agora em casa; os que havia eram já grandes e deram-se a ofícios, mas destes
os mais fugiram-se para os seus.” Idem, v. II.
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37
ocupado em 1559 por D. Pedro Leitão. Duarte da Costa fora subs-
tituído por Mem de Sá, adepto da política dos recolhimentos. Em
Portugal, o Pe. Diogo Mirão era substituído por novo provincial, o
Pe. Miguel Torres. Em 1558, Nóbrega também contava com a apro-
vação do Pe. Diogo Lainez, o novo superior geral da Companhia
em Roma. Quando os cônegos do cabido metropolitano de Salva-
dor começaram a atacar a Companhia disputando o legado que
Diogo Álvares Correia, Caramuru, lhe havia deixado, Nóbrega sou-
be aproveitar-se da oposição dos cônegos e do benefício do lega-
do, escrevendo para o Reino, em maio de 1558, que “os meninos
têm agora trinta mil réis que abastarão a uma dúzia deles para se
manterem. Afora esta dúzia, quer o governador Mem de Sá manter
à sua custa outra dúzia deles e já os começo de juntar”
35
.
Em maio de 1558, nove anos depois de chegar à Bahia, siste-
matizou a nova política da catequese em seis itens básicos. Nesse
momento, os padres estavam “resfriados”: seu entusiasmo inicial
com a catequese arrefecera e reconheciam que a maior dificuldade
para realizá-la era justamente a facilidade com que os índios aceita-
vam o cristianismo. O desânimo esfriava seu fogo apostólico, fazen-
do-os acreditar que a conversão era impossível. Extremamente efi-
cazes, os seis itens expostos na carta de 8 de maio de 1558 evidenci-
am o pleno conhecimento da organização social dos grupos tupis
do litoral e a mudança de orientação da catequese. As medidas subs-
tituem o que já foi chamado de “pedagogia do amor”, que teria
caracterizado as práticas catequéticas entre 1549 e 1556, pela chama-
da “pedagogia do medo”, fundamentada no aperfeiçoamento das
técnicas de controle e destribalização
36
. As novas medidas atingem o
35
Idem, ibidem.
36
Em carta quadrimestral datada da Bahia, maio de 1556, o Irmão António Blázquez
escreve: “Assi que por esperientia vemos que por amor hé mui dificultosa a sua conver-
são, mas, como hégente servil, por medo fazem tudo”. Cf. Serafim Leite. Cartas dos
primeiros jesuítas do Brasil. São Paulo, Comissão do IV Centenário da Cidade de São
Paulo, 1954, 3 v., v. II, p. 271.
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38
núcleo da organização social dos tupis – a guerra feita por vingança
e a antropofagia ritual associadas ao nomadismo. Impõem a
monogamia acompanhada da culpa católica evidenciada nas roupas
que cobrem as “vergonhas”, o sexo transmissor do pecado original.
As medidas preveem a repressão por meio de castigos exemplares
de grupos e homens resistentes à dominação portuguesa, caso dos
karaiba, pajés ou xamãs tupis inimigos dos padres e portugueses em
geral, que iam de tribo em tribo proclamando sabiamente que a
água do batismo matava enquanto ouviam em chocalhos a voz dos
mortos que anunciavam Mair Monhan, a terra sem mal dos tupis:
A lei que lhes hão-de dar é defender-lhes
37
comer carne humana e
guerrear sem licença do Governador; fazer-lhes ter uma só mulher;
vestirem-se, pois têm muito algodão, ao menos depois de cristãos;
tirar-lhes os feiticeiros
38
; mantê-los em justiça entre si e para com os
cristãos; fazê-los viver quietos, sem se mudarem para outra parte
senão for para entre cristãos, tendo terras repartidas que lhes bastem,
e com estes Padres da Companhia para os doutrinarem
39
.
Em 1556, para combater o desânimo dos padres, Nóbrega
escreveu o Diálogo sobre a Conversão do Gentio, de que se trata adiante;
em 1558, um texto perdido, Tratado contra a antropofagia e contra os
cristãos seculares e eclesiásticos que a fomentam ou consentem. Como informa
em julho de 1558, nesse texto disputou em Direito a falsidade da
opinião corrente de que era bom e vantajoso que os índios se co-
messem uns aos outros, pois assim deixavam os portugueses em
paz. Ainda em 1558, Fernão de Sá, filho de Mem de Sá, comandou
uma tropa de cerca de duzentos homens que atacou os aimorés do
Espírito Santo, sendo morto na luta. Baltasar de Sá, seu sucessor,
conseguiu fazer a paz, depois de muita violência. Georg Thomas
informa que o governador geral acreditava que os portugueses ti-
37
Proibir-lhes.
38
Nóbrega chama os karaiba ou xamãs tupis de “feiticeiros”, termo tipicamente medieval
relacionado à caça às bruxas europeias que fizeram pacto com o diabo cristão.
39
Manuel da Nóbrega. “Carta da Bahia, 8 de maio de 1558”. In: Serafim Leite, S.J. Cartas
dos primeiros jesuítas do Brasil. Ed. cit, v. II.
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39
nham o direito de posse das terras, podendo fazer “guerra justa”
contra qualquer grupo indígena que se opusesse aos brancos. Mem
de Sá tinha total apoio da Coroa e D. Catarina de Áustria, a rainha
regente enquanto D. Sebastião era menor, manifestou-lhe seu con-
tentamento com a vitória portuguesa no Espírito Santo, incentivan-
do-o a novas empresas contra os inimigos da Coroa
40
.
Em 1559, o novo provincial de Portugal passou ao Pe. Luís
da Grã as patentes do provincialato do Estado do Brasil e Nóbrega
voltou para São Vicente, onde tentou restabelecer os recolhimen-
tos. Assim, em janeiro de 1560, acompanhou a expedição organi-
zada por Mem de Sá à baía de Guanabara, no Rio de Janeiro, para
atacar o forte Coligny, ocupado pelos huguenotes franceses de
Nicolas Durand de Villegagnon desde 1555. A armada entrou na
Guanabara em fevereiro; em março de 1560, a fortaleza foi toma-
da e destruída. Quando voltou a São Vicente, Nóbrega passou o
cargo de provincial ao Pe. Luís da Grã, tornando-se superior das
Capitanias do Sul
41
. Em maio, Mem de Sá abriu um novo cami-
nho pela Serra do Mar ligando a vila de São Vicente à de São
Paulo de Piratininga. Em junho, Nóbrega escreveu uma carta ao
cardeal D. Henrique, que ocupava o trono, recomendando-lhe a
fundação de uma cidade no Rio de Janeiro para defender a região
dos franceses. Em Piratininga, Mem de Sá fundou duas aldeias
d’El-Rei, São Miguel e Pinheiros. Os padres forneciam índios
aldeados nelas como mão-de-obra aos colonos; ao mesmo tem-
po, os índios defendiam a vila contra ataques de franceses e tribos
inimigas. Em carta de 12 de junho de 1561 encaminhada para
Diogo Lainez, o geral da Companhia em Roma, Nóbrega diz:
Eu quisera suscitar esta obra nesta capitania onde se poderiam sus-
tentar com o que nos sobra da esmola de El-Rei e outras ajudas a
quantos eu puder juntar.
40
Cf. Georg Thomas. Política Indigenista dos Portugueses no Brasil – 1500-1640. São
Paulo, Edições Loyola, 1982, pp. 75-76.
41
Serafim Leite. Breve História da Companhia de Jesus no Brasil. Ed. cit. p. 26.
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40
Afirma então que há muita diferença entre doutrinar os meni-
nos índios nas povoações deles, onde estão conversando com os
pais, e doutriná-los sob a direta direção dos padres nos colégios
internos
42
. Na carta, opõe-se à diretiva de Luís da Grã que, contrá-
rio à aceitação dos escravos negros e do gado doados pela Coroa,
havia-o proibido de adquirir escravos para trabalhar nas obras do
colégio. Segundo Nóbrega, Luís da Grã acreditava que, mesmo
sendo casados, os escravos se multiplicariam muito e seriam causa
de vergonha para a Companhia. Em sua opinião, Luís da Grã
queria edificar a gente do mesmo modo que São Pedro e os após-
tolos ou São Francisco de Assis, que ganhou a muitos por penitên-
cia e exemplo de pobreza. Assim, Luís da Grã determinava que os
escravos fossem alugados e que se comprassem os mantimentos,
em vez de serem produzidos pelos negros. Nóbrega escreve:
Esta opinião do Padre me fez muito tempo não firmar bem o pé
nestas coisas, até que me resolvi, e sou de opinião – salva sempre a
determinação de santa obediência – de todo o contrário; e me parece
que a Companhia deve ter e adquirir justamente por meios que as
Constituições permitem, quanto pudesse para nossos Colégios e
casas de rapazes e, por muito que tenham, farta pobreza ficará, e não
devemos de querer que sempre El Rei nos proveja, que não sabemos
quanto isto durará; mas que por todas as vias se perpetue a Compa-
nhia nestas partes, de tal maneira que os operários cresçam e não
minguem. E temo que fosse isto grande invenção do inimigo vestir-
se de santa pobreza para impedir a salvação de muitas almas. Estamos
em terra tão pobre e miserável que nada se ganha com ela, porque é a
gente tão pobre que por mais pobres que sejamos, somos mais ricos
que eles. Quem aqui há de trabalhar na vinha do Senhor tem mister
sustentar o sujeito (=o corpo), porque os trabalhos são muito mai-
ores que em outras partes, e os mantimentos são muito fracos
43
.
42
Nóbrega. “Carta de 12 de junho de 1561 ao P. Diego Laynez”. In: Serafim Leite, SJ.
Cartas dos primeiros jesuítas do Brasil. Ed. cit., v. III, pp. 352-354.
43
Idem, ibidem.
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41
O Pe. Laynez respondeu, em 1562, aprovando a obra dos reco-
lhimentos e recomendando a fundação de outros
44
. No entanto, a
iniciativa estava condenada pela Província Portuguesa da Companhia
e, no Estado do Brasil, pela atuação contrária do Pe. Luís da Grã
45
.
Desde 1561, Nóbrega participou ativamente da organização
da “guerra justa” contra os tamoios confederados de Iperoig, em
São Vicente, que se haviam aliado aos franceses. Na ocasião, en-
viou o Pe. Manuel de Paiva como confessor da tropa de portu-
gueses, mestiços e índios cristianizados, e um Irmão, Gregório
Serrão, como língua dos índios catequizados. Os tamoios foram
derrotados em 6 de abril de 1561 e, nesse mês, Nóbrega tomou
parte nas negociações de paz. Em julho de 1562, os tupis do ser-
tão, até então amigos dos portugueses, aliaram-se aos tamoios para
atacar a vila de São Paulo. Como sempre, a razão do ataque era a
violência dos colonos. Atacaram a vila chefiados por Aimbirê,
Jagoanharo e Piquerobi, irmão de Tibiriçá, que se manteve aliado
dos portugueses. João Ramalho acudiu com seus muitos mamelucos
e índios, Brás Cubas enviou reforços de Santos e, auxiliados pelos
guerreiros do chefe Tibiriçá, os portugueses conseguiram resistir.
No ataque morreu Jagoanharo, sobrinho de Tibiriçá.
Em 1560, como foi visto, Nóbrega tinha acompanhado a ex-
pedição de Mem de Sá contra o forte Coligny, na Guanabara,
ocupado pelos huguenotes de Villegagnon. Mem de Sá os venceu,
desbaratando cerca de 800 guerreiros tamoios seus aliados. Os
habitantes de São Vicente passaram a atacar as aldeias dos tamoios
vencidos, pois eles continuavam a dominar o litoral desde Bertioga
até Cabo Frio. Quando Mem de Sá retornou à Bahia, os tamoios
apoiados pelos franceses retomaram os ataques. Segundo o Pe.
44
Serafim Leite, S. J. História da Companhia de Jesus no Brasil. (Século XVI. O Estabele-
cimento). Lisboa: Rio de Janeiro, Livraria Portugália: Civilização Brasileira, 1938, T. I. p.44.
45
O capítulo “Administração Temporal e Recursos Financeiros” de Primórdios da Educação
no Brasil, de Luís Alves de Mattos, traz informações esclarecedoras sobre a precariedade
das condições materiais da ação dos jesuítas entre 1549 e 1570 no Estado do Brasil.
Manoel da Nóbrega sumarizado_editado.pmd 21/10/2010, 08:2541
42
Quirício Caxa, Nóbrega sabia que a justiça estava da parte dos
tamoios pelos muitos agravos que haviam recebido dos portu-
gueses. Também os índios aliados dos portugueses teriam a mes-
ma opinião
46
. Nessa situação, em 21 de abril de 1563, Nóbrega e
Anchieta, que servia de língua, decidiram negociar a paz com os
tamoios e informar-se sobre suas forças. Saíram de São Vicente
por mar, passaram por Bertioga e, em 4 de maio, chegaram a
Iperoig, no Grão Cairuçu, entre São Sebastião e Ubatuba, sendo
recebidos pelos chefes tamoios Caaoquira e Pindobuçu e o
tupinambá Cunhambebe. Doze índios foram levados como re-
féns no navio que voltava a São Vicente; e cinco, no que ia para o
Rio de Janeiro. Aimbirê, chefe tamoio da Guanabara, falou em
nome dos chefes confederados de Cabo Frio e do vale do Paraíba,
afirmando que os peró, portugueses, eram gente malvada e sem
palavra que devia ser exterminada. Falando em nome dos tamoios,
exigiu que lhes fossem entregues os chefes tupiniquins aliados dos
peró. Para contemporizar, Nóbrega propôs que as autoridades de
São Vicente fossem consultadas. Redigiu mensagem para elas, de-
terminando que a exigência dos tamoios não fosse atendida e pe-
dindo que Aimbirê, que ia negociar, fosse tratado com honra.
Simão de Vasconcelos conta que, enquanto esperavam o resul-
tado das negociações, Nóbrega e Anchieta quase foram mortos pelos
homens de Paranapuçu, filho de Pindobuçu, que chegou da
Guanabara. Para fugirem deles, o jovem Anchieta teria carregado o
velho
47
, doente e alquebrado Nóbrega às costas, mas caíram em um
ribeirão que desaguava na praia, quando procuravam a taba de
Pindobuçu, onde supunham estar protegidos. Conseguiram abri-
gar-se nela e Paranapuçu não os matou porque teria ficado com
medo do Deus dos abaré, quando os viu ajoelhados rezando. É o
que afirma o discurso epidítico do jesuíta Vasconcelos
48
. Dois meses
46
Luiz Alves de Mattos, op. cit. p. 210.
47
Em 1563, Nóbrega tem 46 anos. Segundo os textos de época, é “velho”.
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43
depois, as autoridades de São Vicente ainda negociavam com Aimbirê
e exigiram que os dois voltassem. Depois de idas e vindas nas nego-
ciações, os tamoios permitiram que Nóbrega retornasse a São Vicente,
em 21 de junho. Anchieta permaneceu refém. Como diz Simão de
Vasconcelos, “na flor da idade de trinta anos, ainda não cabais, no
mor vigor da natureza, e quando a carne e o sangue mais senhoreiam,
metido em terra bárbara, entre homens feras, entre mulheres nuas,
ele consigo só”
49
. Na ocasião, deu-se ao amor da Virgem e escreveu
nas areias da praia, conta-se, seu longo poema em homenagem a ela,
De Beata Virgine Dei Matre Maria.
Serafim Leite informa que 21 canoas de tamoios, entre eles
Pindobuçu e Cunhambebe, foram à vila de São Vicente para
negociar a paz. Fugiram, informados de que se preparava um
ataque; evidenciou-se que era alarme falso e retornaram.
Cunhambebe seguiu para São Vicente para encontrar-se com
Nóbrega, enquanto Pindobuçu voltou para Iperoig a defender
Anchieta. Nóbrega conduziu Cunhambebe e seus tupinambás e
tamoios até Itanhaém, onde os tupis aliados dos portugueses
combatiam os tupiniquins levantados contra eles. Tupis e tamoios
eram inimigos e Nóbrega os reuniu na igreja de Itanhaém, onde
fizeram as pazes. Na igreja da vila de São Paulo de Piratininga, os
tupis e os tamoios que chegaram pelo rio Paraíba também fize-
ram amizade. Cunhambebe prometeu devolver Anchieta, que
chegou a Bertioga em 21 de setembro. Conforme Serafim Leite,
os tamoios sentiram-se inseguros sem o refém, mas “foram bem
tratados como antes pelos Portugueses e Tupis”
50
.
Não pensavam assim os tamoios do Rio de Janeiro que, saben-
do como tinham sido bem tratados antes, permaneceram em guer-
48
Simão de Vasconcelos. Crônica da Companhia de Jesus. 3 ed. Petrópolis, Vozes, 1977,
2 v., v. II, p. 89.
49
Simão de Vasconcelos, op. cit. p. 92.
50
Idem, ibidem p. 32.
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44
ra aliados aos franceses. Mas Caaoquira e Pindobuçu mantiveram a
palavra de paz. E Cunhambebe mudou-se com sua tribo para a ilha
de Santo Amaro, perto de Santos, mantendo a aliança com os por-
tugueses e combatendo por eles contra outros índios. Segundo
Serafim Leite, os tamoios do Rio de Janeiro eram irredutíveis. Man-
tinham prisioneiras algumas índias católicas de São Vicente, come-
ram um moço português e atacaram Bertioga. Nóbrega aconselhou
a prisão dos seus principais, enquanto os portugueses esperavam
que chegassem os galeões comandados pelo capitão-mor Estácio
de Sá, sobrinho de Mem de Sá. Quando chegou à Guanabara, em
fevereiro de 1564, Estácio e Nóbrega trataram de “assentar o que
havia de fazer”. No dia da Páscoa de 1564, 2 de abril, Nóbrega
celebrou missa na Ilha de Villegagnon. Uma tempestade dispersou
os navios na Guanabara e julgou-se mais seguro que se refizessem
em São Vicente. Daí, em 22 de janeiro de 1565, Estácio de Sá vol-
tou para o Rio de Janeiro e Nóbrega permaneceu em São Vicente.
Chegando ao Rio, os portugueses acamparam em Vila Velha, ao pé
do Pão de Açúcar. Em 1 de março, os padres José de Anchieta e
Gonçalo de Oliveira participaram da fundação da mui heroica e leal
cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Em 6 de março, os
tamoios atacaram em mais de duzentas canoas de guerra. Confor-
me Simão de Vasconcelos, cada uma delas conduzia quarenta, ses-
senta, até oitenta guerreiros, apoiadas por três naus francesas de alto
bordo. Os tamoios foram rechaçados. Em junho, atacaram em massa
com cento e trinta canoas de guerra, novamente apoiadas pelas naus
francesas. Os galeões de Estácio de Sá as atingiram e os índios alia-
dos dos portugueses atacaram duas aldeias dos tamoios, matando e
capturando grande quantidade deles. Em 15 de outubro, os navios
portugueses infligiram mais danos a franceses e tamoios. Outra al-
deia dos tamoios foi atacada e incendiada; cerca de trezentos ho-
mens foram capturados. Em 1566, Anchieta foi para a Bahia para
ser ordenado padre. Levava o relatório de Estácio de Sá para o tio,
com a incumbência de lhe pedir reforços. Nóbrega permanecia em
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45
São Vicente, mandando o Pe. Vicente Rodrigues para o Rio de Ja-
neiro com mantimentos, reforços e remédios que obtinha nas vilas
de São Vicente, Santos, Itanhaém e São Paulo de Piratininga. Em
novembro de 1566, Mem de Sá partiu para o Rio com o bispo D.
Pedro Leitão, o padre visitador Inácio de Azevedo, o provincial
Luís da Grã e José de Anchieta, já ordenado sacerdote
51
. Chegaram
em 18 de janeiro de 1567. No dia de São Sebastião, 20 de janeiro, as
tropas locais e as de Mem de Sá atacaram Uruçumirim, o reduto
tamoio onde também se achavam os franceses. Os portugueses ven-
ceram, Estácio de Sá morreu, nenhum dos tamoios sobreviveu e os
cinco franceses que ali se achavam foram enforcados “para
escarmento de outros”, como diz piedosamente Simão de Vascon-
celos. Em seguida, Mem de Sá atacou a aldeia tamoia de Paranapucuí,
na ilha do Governador, matando os seus habitantes. Os poucos que
sobreviveram foram escravizados. Os franceses tinham sido derro-
tados, o que facultou a expulsão definitiva deles do Rio de Janeiro e
a sujeição dos seus aliados tamoios
52
. Aimbirê foi morto em 1567.
Mais tarde, no Auto de São Lourenço, de Anchieta, dois dos diabos que
vêm atacar a aldeia de índios catequizados chamam-se Aimbirê, o
antigo inimigo que quis matá-lo em Iperoig, e Guaixará, o chefe
tamoio de Cabo Frio morto pelos portugueses. Justiça poética.
Em 1566, a Coroa determinou que se organizasse uma junta
para debater os “cativeiros injustos de índios”. A junta reuniu-se
em Salvador, sendo composta pelo governador Mem de Sá, o
bispo D. Pedro Leitão, o provincial da Companhia, Luís da Grã,
o visitador da Companhia, Pe. Inácio de Azevedo e os ouvidores-
gerais Brás Fragoso e Fernão da Silva
53
. Nóbrega não participou,
pois se achava em São Vicente; mas, em 1567, emitiu o parecer
51
Luiz Alves de Mattos, op.cit. p. 227.
52
Georg Thomas. Política Indigenista dos Portugueses no Brasil – 1500-1640. São Paulo,
Loyola, 1982, p. 78.
53
Idem, ibidem p. 35.
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46
que serviu de base para a lei portuguesa de 1570 a respeito do
assunto
54
. O parecer, Caso de Consciência, nega a legitimidade da es-
cravidão dos índios que vendiam os filhos e a si mesmos como
escravos para os portugueses durante a grande fome e a peste de
varíola e sarampo de 1562-1563, que dizimaram milhares deles
em todo o litoral brasileiro
55
.
Depois que os caetés comeram Sardinha, em 1556, o gover-
nador geral propôs organizar uma expedição punitiva contra eles,
coisa que não pôde realizar até 1562, por estar às voltas com
guerras contra outras tribos, principalmente em São Vicente, onde
atacavam São Paulo, e no Rio de Janeiro, onde os tamoios se
aliavam aos franceses. Em 1562, decretou que todos os caetés
eram escravos, permitindo aos coloniais encetar “guerra justa”
contra eles, matá-los, aprisioná-los e distribuí-los por suas pro-
priedades como escravos. O provincial da Companhia, Luís da
Grã, confirmou a legalidade do decreto, solicitando ao governa-
dor que não se aplicasse aos caetés aldeados pelos padres. Os
colonos não fizeram distinção entre caetés “bravos” e caetés
cristianizados, passando a prear as aldeias jesuíticas
56
, donde os
que puderam fugiram para o mato.
Como os outros jesuítas de seu tempo, Nóbrega não é con-
trário à instituição da escravidão, mas a alguns modos de exercê-la
considerados “ilegítimos” por contrariarem a lei natural da Graça
54
José Eisenberg trata com precisão do debate da questão por Nóbrega e o padre jesuíta
Quirício Caxa. Demonstrando que ambos pressupõem o conceito de dominium, domínio,
que permite ao pai vender o filho, Eisenberg evidencia que discordam quanto à condição
do exercício do dominium, fazendo distinções especiosas entre “grande necessidade” e
“extrema necessidade” de vender o filho como escravo. Nóbrega, diz Eisenberg, sustenta
que a prática deve ser limitada aos casos em que a “extrema necessidade” seja compro-
vada. Cf. José Eisenberg. As Missões Jesuíticas e o Pensamento Político Moderno.
Encontros culturais,aventuras teóricas. Belo Horizonte, Editora UFMG,2000, pp. 139-
158. Sobre o debate, cf. ainda Serafim Leite, S.J. Novas Páginas de História do Brasil.
São Paulo, Nacional, 1962.
55
Georg Thomas, op.cit. pp. 103-104.
56
Georg Thomas, op.cit. pp. 79-80.
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47
inata. Estabelecendo os “títulos justos” da escravidão, defende a
liberdade dos índios aldeados sob a tutela da Companhia de Jesus,
mas admite vários outros modos de sujeição que os faz escravos.
Depois que o Rio de Janeiro foi conquistado aos franceses e
tamoios, os superiores da Companhia determinaram que o colé-
gio de São Vicente fosse transferido para a cidade recentemente
fundada. Nóbrega foi indicado para ser seu superior e partiu para
o Rio, em junho de 1567. Em 24 de julho, tornou-se o reitor do
colégio. Estava muito doente, pondo sangue pela boca, e Anchieta
foi nomeado seu assistente. A jurisdição do colégio do Rio de
Janeiro abarcava os de São Vicente, Santos, São Paulo de Piratininga,
Vitória do Espírito Santo e algumas aldeias. Em 11 de fevereiro
de 1568, um alvará régio determinou a redízima dos dízimos das
capitanias do Sul para sustentar 50 missionários no colégio do Rio
de Janeiro e nas outras casas sob sua jurisdição
57
.
Manuel da Nóbrega morreu no Rio de Janeiro no dia de seu
aniversário, 17 de outubro de 1570, quando completava 53 anos
de idade, depois de uma vida de obediência a seus superiores hie-
rárquicos, o rei de Portugal e o geral da Companhia de Jesus.
Os textos de Manuel da Nóbrega
A maior parte dos escritos do Pe. Manuel da Nóbrega relati-
vos à sua ação no Estado do Brasil no século XVI foi publicada
pelo Pe. Serafim Leite, S.J., que teve acesso a manuscritos guarda-
dos em arquivos da Companhia de Jesus e instituições culturais de
Brasil, Portugal, Espanha, Itália, França, Bélgica e Holanda
58
. Ele
57
Luiz Alves de Mattos, op. cit. pp. 228-230.
58
A propósito do modo de edição das cartas jesuíticas, cf. Adriana Gabriel Cerello. O
Livro nos Textos Jesuíticos do Século XVI. Edição, Produção e Circulação de Livros nas
Cartas dos Jesuítas na América Portuguesa (1549-1563). São Paulo: Linear B; Faculda-
de de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP, 2008 (Coleção Dissertações e Teses
do Programa de Pós-Graduação em Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas da USP).
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48
os refere minuciosamente no Tomo X de sua obra monumental,
História da Companhia de Jesus no Brasil (1954)
59
. No prefácio da mesma,
afirma ter usado como fontes principais para escrevê-la as cartas e
os relatórios jesuíticos produzidos entre 1549, data da chegada de
Nóbrega à Bahia, e 1760, data da expulsão da Companhia de
Jesus pelo Marquês de Pombal. Transcreve-os fielmente, em um
trabalho admiravelmente paciente, minucioso e erudito. Embora
diga que vai manter-se neutro, afirmando que o material tem “va-
lor próprio, independente de teorias e tendências, nunca o é efe-
tivamente, supondo-se que alguma vez a neutralidade seja possí-
vel. Sua interpretação das matérias tratadas nos textos é feita pela
perspectiva do catolicismo como apologia da ação de Nóbrega e
de outros jesuítas. Principalmente quando trata das polêmicas e
conflitos que envolvem os jesuítas, índios, colonos, governadores
e outros religiosos do século XVI, hipervaloriza a ação dos padres
portugueses, em detrimento de jesuítas de outras nacionalidades,
como o canarino Anchieta. Caracteriza-os como homens justos e
injustiçados, quando os compara com seus inimigos e críticos, caso
do colono e cronista Gabriel Soares de Sousa, que no final do
século XVI escreveu contra eles
60
, ou do bispo Sardinha, que criti-
59
Serafim Leite, S. J. História da Companhia de Jesus no Brasil. Tomo I (Século XVI - O
Estabelecimento); Tomo II (Século XVI - A Obra). Lisboa: Rio de Janeiro, Livraria Portugália:
Civilização Brasileira, 1938; Tomo III (Norte - 1) Fundações e Entradas. (Séculos XVII -
XVIII); Tomo IV (Norte - 2) Obra e Assuntos Gerais. (Séculos XVII - XVIII). Rio de Janeiro:
Lisboa, Instituto Nacional do Livro: Livraria Portugália, 1943; Tomo V (Da Baía ao Nordeste.
Estabelecimento e assuntos locais. Séculos XVII - XVIII); Tomo VI (Do Rio de Janeiro ao
Prata e ao Guaporé. Estabelecimento e assuntos locais. Séculos XVII - XVIII). Rio de
Janeiro: Lisboa, Instituto Nacional do Livro: Livraria Portugália, 1945; Tomo VII (Séculos
XVII - XVIII - Assuntos Gerais); Tomo VIII (Escritores: de A a M (Suplemento Biobibliográfico
- I); Tomo IX (Escritores: de N a Z (Suplemento Biobibliográfico - II). Rio de Janeiro: Lisboa,
Instituto Nacional do Livro: Civilização Brasileira: Livraria Portugália, 1949; Tomo X (Índice
Geral). Rio de Janeiro: Lisboa, Instituto Nacional do Livro: Civilização Brasileira: Livraria
Portugália, 1950.
60
Cf. Gabriel Soares de Sousa. Capítulos de Gabriel Soares de Sousa contra os Padres
da Companhia de Jesus que residem no Brasil. Explicação de Rodolfo Garcia. In: Anais da
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Ministério da Educação e Saúde-
Imprensa Nacional, 1942, v. LXII.
Manoel da Nóbrega sumarizado_editado.pmd 21/10/2010, 08:2548
49
cou os métodos da catequese. Não expõe suficientemente as ra-
zões e os interesses das partes inimigas ou contrárias ao monopó-
lio jesuítico da administração dos índios aldeados. E, de maneira
semelhante à dos jesuítas do século XVI, postula a universalidade
do Deus católico como Verdade absoluta que fundamenta provi-
dencialmente a ação missionária no passado dos séculos XVI, XVII
e XVIII e no presente da escrita da obra:
Em Portugal, reinava D. João III. O grande monarca, recusando
infiltrações anglo-saxônicas, salvou Portugal da guerra civil e mante-
ve, nesta parte do Ocidente, as tradições intelectuais, morais, religio-
sas e estéticas, da raça latina. A Providência reservou à Companhia de
Jesus a principal colaboração nesta obra de saneamento espiritual.
Sobretudo na vastidão do Império Português, onde ela iria ser veículo
de tão grandes ideias
61
.
Partimos (...) do princípio de que a civilização cristã é boa
62
.
Em 2009, mais que nunca a Igreja Católica aparece publica-
mente como o que sempre foi e é – uma religião histórica entre
outras – cujo Deus foi universalizado como Verdade na expan-
são ibérica do século XVI. Embora reconheça que houve “ex-
cessos” e “omissões” da Igreja Católica em Portugal, no Estado
do Brasil e no Estado do Maranhão e Grão Pará, Serafim Leite
nunca põe em dúvida a Verdade que fundamenta a ação dos
missionários. No Tomo VII, quando indica prováveis causas da
oposição pombalina contra os jesuítas no século XVIII, repete
preceitos de teólogos e juristas do Concílio de Trento, como
Bellarmino, De Soto, Possevino, e de autores de tratados teológi-
co-políticos que sistematizaram e fundamentaram a doutrina ca-
tólica do poder em Portugal no início do século XVII, como
61
Serafim Leite, S.J. “Prefácio”. In: História da Companhia de Jesus no Brasil. Tomo I
(Século XVI - O Estabelecimento); Tomo II (Século XVI - A Obra). Lisboa: Rio de Janeiro,
Livraria Portugália: Civilização Brasileira, 1938, p. X.
62
Serafim Leite, S.J. “Prefácio”. In: História da Companhia de Jesus no Brasil. Tomo I
(Século XVI - O Estabelecimento); Tomo II (Século XVI - A Obra). Lisboa: Rio de Janeiro,
Livraria Portugália: Civilização Brasileira, 1938, p. XIII.
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50
Francisco Suárez, para de novo afirmar que a liberdade humana
necessariamente pressupõe Deus:
Não se trata de averiguar aqui as causas deste estado mental da Euro-
pa, lembrando apenas que alguns as atribuem à própria Companhia
de Jesus com o seu sistema filosófico-teológico do livre-arbítrio, em
que defende a liberdade, princípio revolucionário fecundo, sem dúvi-
da, mas a que logo unia outro de carácter conservador: toda a autori-
dade vem de Deus, todavia quem a recebe directamente não são os
Reis, senão o Povo, onde se conserva estável
63
.
Assim, quando escreve sobre as culturas indígenas e as africa-
nas, sua conceituação da diferença cultural não é antropológica,
mas religiosa. É certo que define catolicamente como humana a
cultura dos grupos indígenas aldeados pelos jesuítas - o que, aliás,
foi decretado em 1537 pela bula papal Sublimis Deus, que consti-
tuiu como heresia a tese contrária. Mas caracteriza os índios como
homens inferiores e desmemoriados da Verdade católica difundi-
da pela civilização superior dos agentes portugueses:
Que importa o debate acerca da sobrevivência de culturas e a verifica-
ção de que a cultura inferior, posta em contacto com a superior, ou se
desagrega ou morre? Não ficará sempre, como dado positivo, a mai-
or extensão duma cultura superior?” (...) uma das glórias portugue-
sas foi operar a substituição da cultura inferior (...) quasi só pelo
dinamismo latente da civilização superior, que por si mesma se im-
pôs, agregando a si os elementos inferiores
64
.
Serafim Leite opõe-se enfaticamente a interpretações como a
de Felner que, tratando da presença jesuítica na África nos séculos
XVI e XVII, afirma que os padres defendiam a liberdade dos
índios americanos com finalidades comerciais porque, sendo amos
dos sobas de Angola, obrigavam os colonos brasileiros a comprar
escravos negros e a recolonizar-se continuamente na dependência
direta da Coroa, que tinha o monopólio do tráfico. Como donos
63
Serafim Leite, S.J. Op.cit, VII, p. 336.
64
Serafim Leite, S.J. “Prefácio”. In: Op.cit. t. I, pp. XIII-XIV.
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51
dos sobas, afirma Felner, só os jesuítas podiam vender negros,
tendo lucros astronômicos
65
.
Quando postula e defende a suposta brandura da colonização
portuguesa, em geral, e da missão jesuítica portuguesa, em particu-
lar, falando do “(...) genuíno espírito colonizador de Portugal, escla-
recido, humano e cristão”
66
, Serafim Leite realça os feitos da Coroa
e dos padres portugueses para retratar positivamente o caráter e a
ação de grandes vultos lusos da Companhia de Jesus, como Nóbrega,
Fernão Cardim e Antônio Vieira. Ao fazê-lo, elimina as referências
às incontáveis violências colonialistas praticadas pelos portugueses
contra as populações indígenas em nome da verdadeira religião. Sua
interpretação tende a alinhar-se objetivamente com setores conserva-
dores, nacionalistas e colonialistas de Portugal e do Brasil dos anos
1938/1950, como os que, em 1954, por ocasião do IV Centenário
da Cidade de São Paulo, quando sua obra foi publicada, patrocina-
ram a invenção de uma memória dos bandeirantes paulistas como
heróis desbravadores do território nacional, eliminando a referência
à sua ação predatória como bandoleiros e assassinos de índios.
A obra de Serafim Leite permanece fundamental, contudo, como
publicação de informações essenciais sobre a Companhia de Jesus
no Estado do Brasil e no Estado do Maranhão e Grão Pará, mas é
prudente relativizar sua interpretação, cruzando-a com interpreta-
ções de outros agentes históricos não-jesuítas que, nos séculos XVI,
XVII e XVIII, foram contemporâneos dos eventos narrados, além
de historiadores, sociólogos e antropólogos não-católicos e não-
religiosos, brasileiros, portugueses e de outras nacionalidades, que,
desde o século XVIII, vêm tratando polemicamente do assunto.
65
Cf. Serafim Leite, S.J. op. cit. T. II p. 345. Luiz Felipe de Alencastro analisa de modo
exaustivo a triangulação Lisboa-África-Brasil, nos séculos XVI e XVII, e as questões
relativas à participação da Companhia de Jesus na escravidão de índios e no tráfico
negreiro. Cf. Luiz Felipe de Alencastro. O Trato dos Viventes. Formação do Brasil no
Atlântico Sul. Séculos XVI e XVII. São Paulo, Companhia das Letras, 2000.
66
Serafim Leite, S.J. Op. cit. II, p. 171.
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52
Condicionamentos históricos da ação missionária do Pe. Manuel da
Nóbrega no Estado do Brasil entre 1549 e 1570: O “capitalismo
monárquico português”. A Contrarreforma.
Quando Nóbrega chega, em 1549, a Coroa portuguesa esta-
belece o Governo Geral para centralizar as bases administrativas,
fazendárias e militares da exploração sistemática do plantio de açúcar
no Estado do Brasil. Nesse sentido, para situar a prática de Nóbrega
em seu tempo, é útil tratar brevemente do chamado “capitalismo
monárquico português”. Ele foi inicialmente, na bela alegoria do
historiador português Manuel Nunes Dias, a luta do mar e da
caravela contra o deserto e a caravana
67
.
Em 1415, interessada no ouro africano transportado pelas ca-
ravanas transsaarianas dos nômades cameleiros, a Coroa portu-
guesa obteve financiamento de banqueiros e mercadores portu-
gueses, italianos e alemães, para encetar uma campanha militar contra
Ceuta, cidade muçulmana do Marrocos. A expedição ocupou a
cidade, sem encontrar o ouro que a Coroa acreditava existir. A
ocupação do norte da África facultou aos portugueses o controle
do Estreito de Gibraltar e, pondo fim às invasões marroquinas da
Península Ibérica, garantiu o início da abordagem atlântica da Terra
dos Negros, nome que então se dava à África, pelas caravelas do
Infante D. Henrique.
As navegações iniciais, que iam dilatando a Fé e o Império, de-
vastando as “terras viciosas de África”, como diz Camões em Os
Lusíadas, de 1572, perseguiam um objetivo econômico e político, o
controle das regiões africanas produtoras de ouro e de especiarias
então muito valorizadas na Europa, como a pimenta malagueta. Na
chamada Idade Média, a malagueta, produzida principalmente na
Guiné, era transportada por cameleiros árabes que a adquiriam de
67
Manuel Nunes Dias. O Capitalismo Monárquico Português (1415-1549). Contribuição
para o estudo das origens do capitalismo moderno. Coimbra, Faculdade de Letras da
Universidade de Coimbra-Instituto de Estudos Históricos Dr. António de Vasconcelos,
1964, 2 v., v. II, pp. 7-16.
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53
populações negras ao sul do Saara, no atual Mali, e em outras regi-
ões africanas. Quando as caravanas chegavam ao Mediterrâneo, a
pimenta era comprada por mercadores italianos que a revendiam
para diversos entrepostos comerciais da Europa. Além da pimenta,
os portugueses então adquiriam escravos, madeiras de lei, marfim,
goma, peles, plumas e, principalmente, ouro. Por volta de 1500, com-
pram escravos negros dos sobas ou régulos do Benim, que captu-
ram enormes quantidades deles nas contínuas guerras intertribais.
Os portugueses pagam por peça cerca de 12 ou 15 manilhas, argo-
las de latão ou cobre. Os corretores de Lisboa então adquirem esses
metais em Antuérpia e em cidades do sul da Alemanha, como
Augsburg e Nuremberg. Na Costa da Mina, os portugueses reven-
dem os escravos pagos com as manilhas para outros africanos, rece-
bendo em ouro. Na Mina, os negros eram revendidos pelo dobro
do valor que tinham em Lisboa, o que era negócio bastante lucrati-
vo para a Coroa portuguesa, os comerciantes e os banqueiros de
Flandres e da Alemanha. A maior parte do ouro das trocas provi-
nha principalmente da Guiné, sendo transferida para o Norte da
Europa em pagamento das compras portuguesas de latão, cobre e
prata. A prata vinha principalmente das cidades alemãs e era a moe-
da usada pelos feitores portugueses para pagar as especiarias, como
a pimenta-do-reino, na Ásia.
Manuel Nunes Dias demonstra que o ouro africano e as especi-
arias asiáticas intensificam a circulação dos metais – a prata, o latão e
o cobre alemães – e dos tecidos flamengos, usados suntuariamente
na corte portuguesa, produzindo grande demanda de capitais mo-
biliários caracterizada fundamentalmente pelo uso progressivo do
crédito no estrangeiro. As novas exigências de capitais para financiar
as expedições e a construção e o sustento de feitorias e fortificações
na África e na Ásia para garantir o monopólio comercial e a regula-
ridade das trocas transformam a economia europeia. No final do
século XV, uma nova forma de cidade surge em Lisboa, onde se
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54
concentra uma população dedicada quase que exclusivamente ao
comércio exterior. Novos tipos sociais, o mercador, o artesão, o
banqueiro, gente do terceiro estado classificada juridicamente como
“vulgar” ou “plebeia”, passam a opor-se à ordem antiga dos se-
nhores da terra, da fidalguia da espada, do clero e dos servos
68
. A
monarquia de Avis conserva o monopólio do comércio, defen-
dendo-o militarmente com unhas e dentes, pois seu capital é o
patrimônio ultramarino. Como os lucros do tráfico são divididos
entre a Coroa e particulares estrangeiros, seus parceiros, nada, pra-
ticamente, é destinado à população. Portugal quase não tem mer-
cado interno e produz pouco para exportar.
Na segunda metade do século XV, depois que a Coroa portu-
guesa passa a dominar o ouro da Guiné, lança-se à conquista dos
mercados da África oriental, dos entrepostos da Malásia e dos
mercados do Pacífico asiático. Entre 1482, ano da construção do
castelo de São Jorge da Mina, e 1521, ano da morte do rei D.
Manuel, Portugal domina mundialmente os mares. A Coroa tem o
monopólio do ouro africano e da pimenta asiática; funda-se a
Casa da Índia, órgão de controle do tráfico ultramarino; organiza-
se em Antuérpia sua principal agência de captação de financiamen-
to para manter a empresa colonial com adiantamentos, tecidos
flamengos e metais alemães. Lisboa, a Índia, Flandres e as cidades
do sul da Alemanha dependem estreitamente umas das outras e
das frotas africanas e asiáticas. As cortes dos reis D. João II e D.
Manuel vivem um luxo extraordinário. Os contatos culturais com
Florença, Roma, Bolonha, Paris, Oxford, Cambridge, Heidelberg
e outros centros europeus são intensos e novas ideias e comporta-
mentos circulam. Mas a crise já está presente na dificuldade cres-
cente de obter novos créditos para financiar as expedições.
Manuel Nunes Dias propõe que a transição do patrimonialismo
agrário, continental, senhorial e militarista para o patrimonialismo
68
Manuel Nunes Dias, op. cit. pp. 7-42.
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55
mercantil e ultramarino da Coroa portuguesa como capitalismo
régio começou a falhar porque o rígido monopólio da Coroa
prejudicava e impedia a livre-iniciativa particular. Além disso, o
capitalismo monárquico subordinava o interesse econômico ao
interesse religioso-político. O investimento econômico pressupõe
a impessoalidade das relações financeiras e mercantis. O dinheiro
não tem pátria, cor ou religião, como já disse alguém que sabia das
coisas. Em Portugal, no entanto, os investimentos se chocavam
com a teologia-política escolástica baseada na intolerância religiosa
e em relações sociais corporativistas ou pessoais
69
.
Para tratar dessas determinações religioso-políticas das práticas
da missão jesuítica no Estado do Brasil entre 1549 e 1570, é útil
lembrar que o curto período de riqueza econômica da corte portu-
guesa entre o início do reinado de D. João II, em 1481, até a morte
de D. Manuel, em 1521, corresponde a grandes feitos náuticos, mi-
litares e culturais. Por ordem de D. João II, Diogo de Azambuja
funda o Castelo de São Jorge na Costa da Mina, em 1482; Diogo
Cão chega ao rio Zaire, em 1485, e em 1486 percorre toda a costa
de Angola. No ano seguinte, Bartolomeu Dias dobra o extremo
meridional da África, o Cabo das Tormentas, que D. João II rebatiza
com o nome de Cabo da Boa Esperança. Em 1498, Vasco da Gama
chega a Calecute (hoje Calcutá), na Índia. Em 1500, Pedro Álvares
Cabral encontra o Brasil e Gaspar Corte Real, o Canadá. Na Índia,
os vice-reis D. Francisco de Almeida, Duarte Pacheco e Afonso de
Albuquerque conquistam regiões produtoras de especiarias. As mer-
cadorias do Oriente chegam a Lisboa, que recebe navios de todo o
mundo como a principal capital da Europa. Nesse tempo, a corte
de D. Manuel conhece um florescimento extraordinário. Estabelece
trocas diplomáticas e comerciais com reinos do Congo e da Ásia,
com cidades de Flandres, da Alemanha, da Inglaterra, da França e
69
Manuel Nunes Dias. “O malogro do capitalismo monárquico: as contradições do siste-
ma”. In: Op. cit. pp. 367-380.
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56
da Itália. Letrados portugueses são mandados como bolsistas para
universidades europeias – Paris, Oxford, Cambridge, Pádua, Bolo-
nha, Salamanca, Alcalá de Henares, ou ensinam nelas. Uma extra-
ordinária inovação cultural, feita principalmente como arqueologia ou
restituição humanista da antiguidade greco-latina, associa-se ao
nominalismo e à experimentação empírica. Na corte, latim e grego
são línguas da conversação diária. Esse também é o tempo de gran-
des obras arquitetônicas, como o mosteiro dos Jerônimos e a torre de
Belém, em Lisboa, Santa Cruz de Coimbra e o convento de Tomar.
Em 1496, no reinado de D. Manuel, os mouros e os judeus
foram expulsos do país, levando para os Países Baixos, a França, o
Bósforo e o norte da África os capitais necessários à empresa colo-
nial. Os judeus que permaneceram no Reino foram obrigados a
converter-se ao catolicismo, passando a ser chamados de “cristãos-
novos”. A corte continuou gastando muito mais do que podia. D.
Manuel foi sucedido pelo filho, D. João III, que reinou de 1521 a
1557. No seu governo, o Império colonial português se desmantela.
Catolicíssimo, em 1535 D. João III estabeleceu o Santo Ofício da
Inquisição no Reino e patrocinou Inácio de Loyola, Francisco Xavier,
Simão Rodrigues, Alonso Salmerón, Diego Lainez, Pierre Favre,
Claude Jay e Nicolas Bobadilla na fundação da Companhia de Jesus.
Os oito homens haviam tentado obter patrocínio de reis da Ingla-
terra, da França e da Espanha, sem sucesso. Como braço direito da
Coroa, a Companhia de Jesus passou a controlar todo o ensino
elementar, colegial e universitário português, no Reino e nas colônias
ultramarinas, restabelecendo a Escolástica em chave contrarreformista
em todos os programas de estudo. A Índia passou a ser governada
por corruptos e os abusos colonialistas causaram inumeráveis guer-
ras com os rajás indianos, esgotando as finanças do Reino. Várias
praças do norte da África, como Azamor e Arzila, foram abando-
nadas aos mouros por falta de recursos defensivos. Quando o ouro
da África desapareceu, também faltaram totalmente o crédito, a prata,
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57
o latão e o cobre do Norte da Europa para pagar as especiarias da
África e da Ásia. Os gastos suntuários da corte continuaram, porém,
enquanto a concorrência internacional aumentava, com a reação das
cidades mercantis italianas, como Veneza, que retomaram o comér-
cio. O Islã atacou no Golfo de Aden e, sem capital, a Coroa não
mais conseguiu manter militarmente o monopólio comercial, como
fazia desde o tempo de D. João II. Os saques das frotas portugue-
sas por piratas ingleses e franceses tornaram-se rotineiros e ousados.
Os piratas não se davam mais ao trabalho de ir à África, à Ásia e ao
Brasil, mas esperavam na foz do Tejo as caravelas que voltavam.
Pesadonas, sem conservação e sem defesa, as velhas embarcações
da carreira da Índia frequentemente naufragavam. O grande afluxo
da prata levada do México e do Peru para a Europa pelos galeões
espanhóis tornou-se forte fator de retração do mercado dos metais
alemães e, em consequência, do comércio ultramarino português. Já
no tempo de D. Manuel, a Coroa não tinha dinheiro para pagar o
cobre reclamado pela tesouraria da Casa da Índia. Com D. João III,
a Coroa reconheceu sua impotência em manter o monopólio oficial
do tráfico. Decretou a falência da feitoria oficial de Antuérpia em
1548 e o fechamento da Casa da Índia, em 1549
70
.
Quando D. João III morreu, nenhum dos seus muitos filhos
vivia. O trono foi transmitido para seu neto, D. Sebastião, que
tinha três anos e meio de idade. A regência do Reino foi exercida
pela rainha viúva, D. Catarina de Áustria; depois, pelo cardeal D.
Henrique. Em 1568, declarou-se a maioridade do príncipe, aos 14
anos de idade. Recebeu educação contrarreformada, sempre cer-
cado de padres jesuítas, como seu preceptor Luís Gonçalves da
Câmara, e beatos
71
, possuído pelo imaginário heroico da cavalaria
andante e da guerra de cruzada contra os infiéis, tornou-se um
70
Manuel Nunes Dias, op. cit. pp. 352-356.
71
João Francisco Marques. “Confesseurs de princes, les jésuites à la cour de Portugal”.
In: Les jésuites à l’âge baroque 1540-1640. Sous La direction de Luce Giard et Louis de
Vaucelles. Paris, Jérôme Millon, 1996.
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58
fanático religioso. Já em setembro de 1564, todos os decretos
publicados pelo Concílio de Trento, em 1563, foram declarados
leis do reino de Portugal. Isso transformou o país no campeão
mundial do combate às heresias religiosas de Lutero, Calvino e
Melanchton e ao pensamento laico de Maquiavel e Guicciardini.
Desde 1535, ano do estabelecimento do Santo Ofício da
Inquisição em Portugal, as grandes inovações culturais dos reinados
de D. João II e D. Manuel passaram a ser duramente censuradas,
reprimidas, castigadas e perseguidas pela Contrarreforma, que as
constituiu como ideias libertinas. Opuseram contra elas o modelo
católico de uma vida beata iluminada pelo fogo dos autos-da-fé.
Assim, em 1547, pouco antes de Nóbrega vir para o Brasil, saiu em
Portugal a primeira lista do Índice dos Livros Proibidos. Nela constam
quase todos os títulos dos livros que vinham sendo lidos no país
desde o tempo de D. João II.
Movido pelo lema da cruzada contra infiéis e heréticos, pre-
tendendo recuperar o Marrocos e as praças africanas perdidas pelo
avô, D. Sebastião comandou uma expedição militar de surpresa
contra Tânger e Ceuta, em 1573, sem realizar os grandes feitos
heroicos esperados. Em 1578, o imperador do Marrocos, Muley-
Ahmed, destronado pelo tio, Abd-el-Melik, pediu-lhe auxílio. O
rei passou à África e desapareceu com milhares de homens na
batalha de Alcáber-Kebir, travada num remoto deserto africano,
em 4 de agosto de 1578.
Até 1548, quando D. João III estabeleceu o Governo Geral, o
Estado do Brasil tinha permanecido uma distante conquista secun-
dária, pois o capitalismo monárquico encontrava suas principais fontes
de lucro na África e na Ásia. Luiz Felipe de Alencastro demonstra
que a Coroa, patrocinada pelo capital estrangeiro e nacional, passa a
estimular a produção de mercadorias voltadas para o mercado
mundial, iniciando uma forma mais avançadada de exploração co-
lonial. Nela, evidencia-se a superioridade do sistema atlântico basea-
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59
do na pilhagem dos povos africanos e na agricultura escravista ame-
ricana
72
. A ação do Pe. Manuel da Nóbrega pressupõe essas deter-
minações econômicas e político-religiosas. Nela, é nuclear o modo
como a natureza do poder real é doutrinada.
Nas representações desse tempo, encontram-se frequentemente
fórmulas como corpo místico, corpo do reino, lei eterna, lei natural, luz da
Graça , bem comum etc., usadas para significar a totalidade da socie-
dade, seus modos de ordenação jurídica e política e suas finalida-
des terrenas e espirituais. As fórmulas são escolásticas e reprodu-
zem a doutrina exposta por Santo Tomás de Aquino no seu co-
mentário do Livro V da Metafísica, de Aristóteles, em que trata do
terceiro modo da unidade dos corpos. Tomás de Aquino define
essa unidade como unidade de integração, propondo que é o modo
correspondente ao corpo humano. Segundo ele, a perfeição de-
corre da integração e subordinação dos diversos membros como
instrumentos do princípio superior que o governa, a alma. O cor-
po humano é uma unidade de membros subordinados à cabeça; a
variedade deles, como o pé, a mão, o olho, é adequada à diversi-
dade das funções que desempenham no todo dele como harmo-
nia ordenada ou, mais simplesmente, como ordem. Por analogia, a
metáfora do “corpo natural do homem” é usada como termo de
comparação para outras realidades imaginadas como corpos, como
a Igreja e a sociedade. Quando se fala de corpus Ecclesiae mysticum,
“corpo místico da Igreja”, pressupõe-se que, assim como o corpo
humano tem membros com funções subordinadas à cabeça, a Igreja
é um corpo religioso. Sua cabeça é o Papa, como vigário ou vice-rei
de Cristo, e seus membros subordinados, o clero e o rebanho.
Aplicando a metáfora do corpo à esfera política, Tomás de Aquino
propõe que o rei é a cabeça do corpo político de sua sociedade e
que está nele assim como a alma está no corpo humano, o Papa na
72
Luiz Felipe de Alencastro. O Trato dos Viventes. Formação do Brasil no Atlântico Sul.
Séculos XVI e XVII. São Paulo, Companhia das Letras, 2000, p. 30.
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60
Igreja e Deus no mundo: o rei é o princípio que rege o corpo polí-
tico da sociedade como sua cabeça ou razão suprema. Ele a gover-
na em função da integração harmônica de todos os seus membros,
assegurando a manutenção da ordem social como a concórdia e a
paz do bem comum
73
.
As relações sociais dessa sociedade definida como “corpo polí-
tico” são corporativas, ou seja, relações pessoais: no século XVI, per-
tencer ao corpo político do Império português significava que cada
indivíduo tem responsabilidade imediata para com todos os outros
homens que também são partes dele. As funções dos indivíduos e
das ordens sociais a que pertencem são diferentes, no entanto, do
mesmo modo como são diferentes, por exemplo, as funções do pé
e do olho. Logo, a desigualdade é natural, sendo hierarquizada por
meio de privilégios e de representações das posições sociais em três
estados - fidalguia, clero, plebe. Cada um deles, por sua vez, tem
muitas subdivisões hierárquicas às quais correspondem posições so-
ciais, privilégios, representações, modos de ser, de agir e de fazer
específicos. No caso, para garantir o bom funcionamento do todo,
o bom governo do rei não pode dissociar-se da ética cristã, eviden-
ciando em suas decisões a íntima fusão de política e religião que
caracteriza o que se chamou de “política católica”.
A conceituação do reino português como corpo místico de ordens
sociais e membros cuja vontade unificada se aliena do poder, decla-
rando submissão à pessoa mística do rei, deve ser lembrada como
um dos principais fundamentos da difusão da “política católica” na
73
A Companhia de Jesus também é um corpo, “corpo místico” de vontades unificadas,
obedientes à cabeça, o Geral em Roma. Charlotte de Castelnau-L’Estoile lembra que as
Constituições da Companhia pressupõem a dispersão dos membros pelos quatro conti-
nentes, especificando uma “identidade jesuítica” pela descrição do itinerário que leva
quem pede para ser admitido na Companhia até a sua incorporação nela (por exemplo,
nas partes I a V). O itinerário só se completa quando o postulante incorporou essa
identidade “fazendo corpo” com os outros membros. Cf. Charlotte de Castelnau-L’Estoile.
Les ouvriers d’une vigne stérile. Les jésuites et la conversion des Indiens au Brésil 1580-
1620. Paris, Fundação Calouste Gulbenkian, Centre Culturel Calouste Gulbenkian, 2000.
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61
catequese e na educação realizadas pelos jesuítas no Estado do Brasil
no século XVI. A doutrina pressupõe e determina que a educação
deve levar os indivíduos à integração harmoniosa como súditos, ou
subordinados, desempenhando funções especificadas pelos seus
privilégios no corpo político do Estado. A liberdade do súdito é
definida como “servidão livre” à cabeça real:
A liberdade cristã não consiste em estar isentos das justas leis hu-
manas, nem em estar imunes da justa coação do castigo dos pecados
quando se cometem contra a paz e a justiça; mas consiste em uma
servidão livre, por amor e caridade, que não contradiz o regime hu-
mano, mas antes o ajuda, se efetivamente existe, e se não existe, a
supre com a coação”
74
.
Para obter essa “subordinação livre” que interessa à manuten-
ção do “bem comum”, a Companhia de Jesus propõe que a educa-
ção deve “tornar mais homem”, lema do Ratio studiorum usado por
ela a partir de janeiro de 1599. Para tanto, a educação deve dar conta
das três faculdades que, segundo a Escolástica, compõem a pessoa
humana: a memória, a vontade e a inteligência. A educação deve
ensinar a cada uma delas o autocontrole necessário à harmonia dos
apetites que caracteriza a tranquilidade da alma. A finalidade é a
amizade das três faculdades – memória, vontade, inteligência –, com
as mesmas faculdades de todos os outros membros do corpo po-
lítico do Estado. Por outras palavras, nesse tempo é “mais humano”
quem aprende a agir segundo a recta ratio agibilium e a recta ratio
factibilium da Escolástica: a reta razão das coisas agíveis ou o modo mo-
ral de agir racionalmente com prudência, orientando as escolhas para
causas consideradas livres e justas; e a reta razão das coisas factíveis ou o
modo eficaz de fazer coisas tecnicamente, segundo artes específicas,
que permitem atingir a adequação das formas aos seus fins.
74
Francisco Suarez, S.I. Defensa de la Fe Católica y Apostólica contra los Errores del
Anglicanismo. Reproducción anastatica de la edición príncipe de Coimbra 1613. Version
Española por José Ramón Eguillor Muniozguren, S.I. Madrid, Instituto de Estudios Políti-
cos, 1970, 4 v., v. III, IV.
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62
A partir de 1517, data das teses polêmicas e logo heréticas de
Lutero, as versões católicas do poder afirmam que ele só é legítimo
quando a normalidade das leis que institui é uma evidência da pre-
sença da luz natural da Graça que o orienta providencialmente para
garantir o “bem comum”. Definida e praticada como arte de man-
ter a unidade e a segurança do reino contra inimigos internos e ex-
ternos, a política católica portuguesa opõe-se à hipótese maquiavélica
de que o poder é um artifício da força independente da ética visan-
do o triunfo nas competições da cidade, reafirmando a ética medi-
eval como espelho ou modelo da ação dos príncipes. A política visa
a unidade e a segurança do reino; para tanto, pressupõe-se que é
necessária a concórdia de cada um consigo mesmo. O autocontrole
dos apetites exposto na Ética aristotélica relida em chave escolástica
como fundamento da amizade de todos os grupos e indivíduos
garante, em teoria, a concórdia do todo do corpo político do Esta-
do. Segundo a doutrina, a paz social nasce da concórdia individual e
da amizade das partes pelo todo. Para assegurar a paz, a Coroa
assegura o monopólio da violência fiscal, judiciária e militar; comba-
te as heresias religiosas; exerce a censura intelectual; aplica castigos
exemplares e patrocina a catequese de povos gentios de suas posses-
sões. O “bem comum” do Império obtido por tais expedientes é
definido como “paz” ou estado de equilíbrio dos interesses e confli-
tos particulares dos indivíduos e das ordens sociais. Tal equilíbrio é
obtido pela subordinação voluntária do todo do “corpo místico”
da comunidade à cabeça, o rei, como sujeição pela qual se alienam
do poder. Abrindo mão da liberdade para se declararem súditos,
recebem os privilégios que os hierarquizam como livres para obe-
decer. Nessa hierarquia, que desce da cabeça real até as plantas dos
pés escravos, os índios do Brasil têm garantida toda a liberdade
necessária para subordinar-se voluntariamente à hierarquia.
Sendo mandado ao Estado do Brasil como homem de confi-
ança do rei, obedecendo às determinações da Coroa portuguesa,
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63
no programa “catequese e escola” Nóbrega executa as determi-
nações teológico-políticas do Concílio de Trento(1540-1563) se-
guidas pela Companhia. A missão inclui-se no movimento de
renovação da Cristandade como prática da devotio moderna, a “de-
voção moderna” , sistematizada durante e após o Concílio de
Trento como Contrarreforma
75
.
Dando continuidade ao combate que então ocorre no Reino
contra as teses reformadas e a doutrina ateia da razão de Estado
exposta nas obras políticas de Guicciardini e Maquiavel, a missão
executa a política católica como conquista espiritual do Estado do
Brasil, entre 1549 e 1570. Isso ocorre nas três relações simultâneas
que correspondem, como foi dito, às suas negociações com a so-
ciedade colonial, com a Coroa portuguesa e com a sua sede em
Roma. Nelas, a ação missionária é caracterizada pela íntima fusão
de poder político e poder religioso doutrinada pelos teólogos e
juristas italianos, portugueses e espanhóis que participaram do
Concílio de Trento, como Bellarmino, Possevino, De Soto, Laynez,
e continuada no final do século XVI e início do XVII pelos auto-
res da chamada “segunda Escolástica” de Coimbra, Braga, Évora
e Salamanca, como o grande filósofo, teólogo e jurista jesuíta Fran-
cisco Suárez, autor de dois tratados teológico-políticos, De legibus
(1612) e Defensio fidei (1614), fundamentais na doutrina do “pacto
de sujeição” que estabelece o poder do rei português como cabe-
ça do Império; e o também jesuíta Giovanni Botero, autor do não
menos fundamental Della raggion di Stato (1586), ensinado como os
outros nos cursos jesuíticos da Universidade de Coimbra.
Nas negociações, os textos produzidos por Nóbrega e seus
subordinados são fundamentais. Cópias deles são enviadas para
Roma, sendo usadas nos processos de controle interno da Com-
panhia aí aplicados pela equipe chefiada pelo Pe. Juan de Polanco.
75
Cf. Quentin Skinner. The Foundations of Modern Political Thought. Cambridge, Cambridge
University Press, 1978, 2 v. (1.The Renaissance; 2. The Age of Reformation).
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64
Hoje, alguns deles, como o Diálogo sobre a conversão do gentio, de
Nóbrega, os autos teatrais e a poesia de José de Anchieta, o trata-
do descritivo do Brasil do Pe. Fernão Cardim, são incluídos nas
histórias literárias brasileiras, onde são classificados como literatura
de informação. Deve-se evitar o uso anacrônico do conceito de litera-
tura, que data da segunda metade do século XVIII, para classificá-
los. Em seu tempo, nenhum deles tem finalidade “literária” ou
“estética”, pois então não existe a instituição literária como foi cons-
tituída nas sociedades burguesas da Europa no final do século
XVIII e no século XIX. São textos instrumentais ou utilitários pro-
duzidos em meios materiais e com categorias e conceitos doutri-
nários, procedimentos técnicos, finalidades e usos didáticos,
catequéticos e devocionais. Obviamente não conhecem as noções
burguesas constitutivas da instituição literária, como as de autono-
mia crítica do autor, mercado dos bens culturais, propriedade privada da obra,
direitos autorais, plágio, expressão psicológica, originalidade, opinião pública,
crítica, negatividade, ruptura estética, contemplação estética desinteressada etc.
Logo, também não são manifestações literárias, como se costuma di-
zer, ou documentos marcados pela ausência da presença do “naci-
onal” que caracteriza a instituição literária brasileira dos séculos
XIX, XX e XXI. Não devem ser lidos como “manifestação”
prefiguradora do que quer que seja, mas segundo sua especificidade
histórica e os vários usos que tiveram desde o momento em que
foram publicados como manuscritos e textos impressos. Quando
são lidos, deve-se dar atenção aos sistemas de representação que
regulam sua produção, sua circulação e seu consumo como artefa-
tos que não podem ser usados como evidência documental posi-
tiva. Não há nenhum “realismo” neles – a não ser o realismo
escolástico – na observação da terra do Estado do Brasil. São
produzidos subordinando a experiência das novidades do Estado
do Brasil a princípios metafísicos, teológico-políticos, retóricos e
éticos universalizados como verdade e salvação exclusivas de Roma
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65
e do Império português. São elementos muito ativos na constru-
ção da realidade de seu tempo, não se dissociando dela, como
interpretações anacrônicas propõem.
A maioria deles é escrita em português e castelhano; alguns,
em italiano e latim; outros são compostos em “língua brasílica”,
“língua geral” ou “nheengatu”; outros, em menor quantidade,
em “língua de Angola”, provavelmente banto. Não há imprensa
no Estado do Brasil do século XVI e os textos circulam em
cópias manuscritas usadas didática e devocionalmente nos
aldeamentos, nos colégios e em circunstâncias solenes da hierar-
quia administrativa e eclesiástica, como entradas e saídas de go-
vernadores, bispos e padres visitadores. Nos usos, sofrem su-
pressões ou adições de partes, adequando-se às circunstâncias,
como se vê exemplarmente nos autos teatrais. O padre que os
escreve tem a posse, mas não a propriedade privada deles, pois
pertencem ao corpo místico da Companhia de Jesus. A escrita
nunca é informal, mas retoricamente ordenada: aplica lugares-
comuns e preceitos dos diversos gêneros, imitando estilos de
autores latinos e medievais. Categorias e conceitos teológico-po-
líticos da política católica contrarreformista – lei eterna de Deus, lei
natural, lei positiva, Graça inata, corpo místico, cabeça do reino, membro
subordinado, caritas, amizade, bem comum, discrição, honra, prudência etc.
– interpretam a significação dos enunciados, orientando-lhes o
sentido providencialmente. A íntima fusão de latinidade, retórica
e teologia-política escolástica caracteriza todas as práticas da es-
crita jesuítica entre 1549 e 1570 como forma cultural específica
que não deve ser ignorada quando os textos são lidos.
Deve-se saber que são produzidos por religiosos pertencentes
ao padroado português subordinado à Coroa. Desde o rei D. Di-
nis, no século XIII, o Papa concedeu aos reis portugueses o privilé-
gio de nomear homens de confiança da Coroa como bispos das
dioceses, vetando ou aprovando o nome dos padres designados
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66
por eles para ocupar cargos nas paróquias
76
. No século XVI, esse
poder determina a associação direta da Coroa com os negócios da
Companhia de Jesus constituída por D. João III como a principal
agência difusora dos princípios doutrinários de sua política
expansionista na África, na Ásia e na América. Evidentemente, essa
subordinação é atravessada continuamente por tensões e negocia-
ções. Por exemplo, em 1547, quando a bula papal Meditatio cordis
confirmou o estabelecimento do Santo Ofício da Inquisição em
Portugal, D. João III propôs que a Companhia de Jesus o dirigisse.
Essa era uma missão da Igreja e a direção devia ser aceita – mas por
mandato do Papa, a quem a Companhia tinha declarado total obe-
diência e não só por ordem do rei. Escrevendo ao provincial Diogo
Mirão, Loyola diz que confiou a deliberação a seis padres – Laynez,
Salmerón, Bobadilla, Olavo, Madrid e Polanco – declara:
Este cargo não sendo com efeito contrário ao nosso instituto, a Com-
panhia, que se considera como pertencendo em Nosso Senhor a Sua
Alteza, não tem razão de recusar esse trabalho em uma coisa que toca
de tão perto ao serviço de Deus e à pureza da religião em Portugal.
Propõe em seguida que, para evitar inconvenientes, se o rei con-
cordar, deve escrever uma carta ao Papa pedindo-lhe ordenar à
Companhia de Jesus que aceite o cargo. Quando o Papa era deão
dos cardeais inquisidores, queria que ela assumisse essa função em
Portugal. Ainda recomenda a Mirão que seriam muito úteis mais
duas cartas, uma para o cardeal De Carpi, deão dos inquisidores, e
outra para o embaixador. Caso a Companhia receba a ordem de
aceitar, escreve,
76
O Papa Paulo III elevou Miguel de Silva, antigo embaixador português, ao cardinalato.
O rei D. João III, contrário à elevação, chamou de volta seu embaixador em Roma,
Cristóvão de Souza. A Companhia de Jesus tinha obrigações para com o rei, que a havia
acolhido; ao mesmo tempo, para com o Papa, que a havia aprovado como Ordem. Em 18
de março de 1542, Loyola escreve para Simão Rodrigues. Declarando que a ingratidão é
um dos maiores pecados, lembra a Rodrigues o modo como D. João III o ajudou quando
se instalou em Lisboa. Afirma que a Companhia deve tudo ao rei de Portugal e determina
que, na circunstância polêmica, Simão Rodrigues testemunhe e apresente ao rei o
profundo respeito dela. Cf. Inácio de Loyola. “A Simon Rodriguez, Rome, 18 mars 1542”.
In Ignace de Loyola. Écrits. Paris, Desclée de Brouwer, 1991, pp. 667-669.
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67
faremos a Sua Alteza algumas propostas que, sem se afastarem do fim
visado, contribuiriam para que a Companhia se ocupasse melhor e com
mais edificação de uma obra tão santa. Se Sua Alteza não pensa que se
deva esperar a resposta do Papa para começar a se pôr a par, um ou outro
padre poderá exercer provisoriamente o cargo até que, com a ordem de
Sua Santidade, seja assumido oficialmente. Uma vez feitas essas repre-
sentações, eu escrevi fazer tudo quanto agradará a Sua Alteza
77
.
D. João III não se convenceu e foi o dominicano Jerônimo de
Azambuja, Grande Inquisidor em Évora desde 1552, que assumiu
o cargo.
Fundada por Inácio de Loyola (1491-1555) e seus companhei-
ros de estudos em Paris – Simão Rodrigues, Francisco Xavier, Al-
fonso Salmerón, Diego Laynez, Pierre Favre, Claude Jay, Nicolas
Bobadilla – a Companhia de Jesus foi estabelecida institucionalmente
pelo Papa Paulo III com a bula Regimini militantis Ecclesiae, em 27 de
setembro de 1540. Define-se como ordem militante orientada pelo
projeto missionário de levar a Verdade do Deus católico para po-
pulações que a mesma Verdade constitui como infiéis, que negam o
verdadeiro Deus, e como gentios, que o ignoram. Seus membros
declaram que partirão para onde o Papa os mandar, entre fiéis ou
infiéis. Caso um membro da Congregação queira ir para um lugar
em vez de outro, entre fiéis ou infiéis, não poderá, nem direta nem
indiretamente, por si mesmo ou por outro, recorrer ao Pontífice,
mas se submeterá à decisão da Congregação ou de seu prelado,
pronto a fazer tudo quanto for decidido
78
. Nessa subordinação
voluntária ao Papa e aos superiores da Companhia, Loyola retoma
o programa dos apóstolos, determinando que os infiéis – judeus,
muçulmanos, luteranos, calvinistas, anglicanos, anabatistas etc. – são
inimigos da Fé, que deve ser arrancada deles, se antes não tiverem
77
Inácio de Loyola. “A Jacques Miron. Rome, 20 juin 1555”. In: Ignace de Loyola. Écrits.
Paris, Desclée de Brouwer, 1991, pp.945-946. Como medida garantidora do monopólio
real da justiça, em 1554 D. João III proibiu os duelos. Em 5 de abril desse ano, Loyola
escreveu a Mirão, encaminhando ao rei propostas jurídicas sobre a defesa da honra de
pessoas ofendidas.
78
Inácio de Loyola. “Déterminations de La Compagnie”. In Ignace de Loyola. Écrits. Paris,
Desclée de Brouwer, 1991, pp. 283-284.
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68
sido destruídos pelo fogo e pelas armas. Quanto aos pagãos ou
gentios – índios da América, negros africanos, brâmanes e budistas
da Índia, xintoístas japoneses, confucionistas chineses – são infelizes
condenados ao Inferno, se a verdadeira Fé não lhes for comunicada.
Nas práticas dos jesuítas ativos no Estado do Brasil no século XVI,
sempre se acha o pressuposto de que é por caridade que se leva a Fé
aos gentios, pois é por amor ao próximo – mesmo quando distan-
ciado do Bem católico, como os selvagens tupis e os bárbaros tapuias
– que se tem a obrigação moral de aconselhá-los a aceitar a Verda-
de. Caso não queiram escolhê-la, ainda que em teoria a conversão
não possa ser forçada, deve ser-lhes imposta pela força das armas e
da vara de ferro: compelle eos intrare, “obriga-os a entrar”, declara
Anchieta, citando um apóstolo.
Em 8 de abril de 1546, os teólogos e juristas reunidos na IV
sessão do Concílio de Trento declararam herética a tese sola fide et
sola scriptura (“só com a fé e só com a escritura”) da teologia
luterana
79
. A declaração orienta o sentido da missão jesuítica no
Estado do Brasil. Com a tese, Martinho Lutero determina que o
fiel da sua Igreja deve fazer contato com Deus lendo a Bíblia soli-
tariamente, ou seja, dispensando a mediação do clero e dos ritos e
79
“O santo Concílio de Trento, ecumênico e geral, tendo sempre frente aos olhos o fim de
conservar na Igreja, destruindo todos os erros, a pureza mesma do Evangelho que, depois
de ter sido prometido antes pelos profetas nas Santas Escrituras, foi publicado pela boca de
Nosso Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, em seguida por seus apóstolos aos quais ele
deu a missão de anunciá-lo a toda criatura como sendo a fonte de toda verdade salvífica e
de toda disciplina dos costumes; e considerando que esta verdade e esta regra moral estão
contidas nos Livros escritos e nas tradições não escritas (in libris scriptis et sine scripto
traditionibus) que, recebidas da própria boca de Cristo pelos apóstolos, ou pelos apóstolos
a quem o Espírito Santo as havia ditado, transmitidas quase que de mão em mão (quasi per
manus traditae), chegaram até nós; o Concílio, portanto, seguindo o exemplo dos Pais
ortodoxos, recebe todos os livros tanto do Antigo quanto do Novo Testamento (...) assim
como as tradições concernentes e à fé e aos costumes, como vindos da boca mesma de
Cristo ou ditadas pelo Espírito Santo e conservadas na Igreja católica por uma sucessão
contínua; ele as recebe e as venera com um igual respeito e uma igual piedade. Se alguém
não receber inteiros esses livros e se desprezar com conhecimento de causa e propósito
deliberado essas tradições, que seja anátema” Cf. H. Denzinger e A. Schönmetzer. Enchiridion
symbolorum, definitionum et declarationum de rebus fidei et morum. Ed. XXXVI. Barcelona-
Freiburg-Roma, Herder 1976, no. 1501, pp. 364-365.
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69
cerimônias visíveis da Igreja Católica. Lutero condena principal-
mente o que chama de “tradições humanas”, afirmando que des-
virtuam a palavra de Deus nas Escrituras: Omne quod in scripturis non
habetur, hoc plane Satanae addimentum est
80
.
O Concílio de Trento confirmou como fonte autorizada da
Igreja a traditio, “tradição”, decretando que provinha diretamente
“da boca mesma de Cristo” e que havia sido mantida por suces-
são contínua e passada adiante, “quase que de mão em mão”,
como uma das duas fontes autorizadas dos ritos, as palavras e as
orações; das cerimônias, os gestos e as ações; do magistério, o poder
de instruir as almas; do ministério, o poder de santificá-las; e do
governo, o poder de dirigi-las. Contra a tese, durante o Concílio e
depois dele, a Igreja Católica defendeu a transmissão oral das duas
fontes da Revelação, a traditio e as Escrituras
81
. Para isso, gêneros
literários gregos, latinos e escolásticos – o diálogo, o debate, a
diatribe, a controvérsia, a suasória, o sermão etc. – foram retoma-
dos no ensino das dioceses e dos colégios jesuíticos para treinar
pregadores. Em 17 de junho de 1546, tratando da pregação da
palavra de Deus, o Concílio publicou o decreto Super lectione et
praedicatione, ordenando a transmissão da verdade da tradição e da
Escritura por meio da palavra oral divulgada no púlpito por pre-
80
(“Tudo que não está nas Escrituras é simplesmente uma adição de Satã”) Lutero,1521.
In: Philippe Boutry. “Tradition et écriture. Une construction théologique”. In: Enquête. Usages
de la tradition. Paris, EHESS/CNRS/Ed. Parenthèses, second semestre 1995, nº. 2, p. 43.
81
“La Escritura y la Tradición contienen la Palabra de Dios y son la regla primaria de la fe.
La Tradicion excede a la Escritura en cuanto que la interpreta y nos transmite verdades
oscuramente contenidas en ella... La Iglesia excede a la Escritura y Tradición porque
delimita el Canon de la Escritura y las verdaderas tradiciones, las conserva y nos propone
infaliblemente su sentido. En cambio, la Escritura y la Tradición exceden a la Iglesia
porque contienen la revelación divina... La Escritura, finalmente, excede a la Tradición y
a las definiciones de la Iglesia por la prerrogativa de la inspiración... No hay, por tanto, en
la teologia católica lugar para una norma normans non normanda en sentido absoluto,
como pretendian los protestantes” Cf. Vargas-Machuca, S.J. Escritura, Tradición e Iglesia
como reglas de fe según Francisco Suárez. Granada, Facultad de Teologia, 1967, pp.27-
218. Cit. por D. Francisco Alvarez.” Introducción “.In: Francisco Suarez, S.J. Defensa de
la Fe Catolica y Apostolica contra los Errores del Anglicanismo. Madrid, 1970, Instituto de
Estudios Políticos, 1970, v. I, p. XX.
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70
gadores que seriam inspirados pelo Espírito Santo. Na XXIV ses-
são, em 1563, aprovou-se o Canon IV do Decretum de reformatione,
determinando que os sacerdotes que cuidavam das almas do re-
banho católico deveriam conhecer as ovelhas para celebrar o sa-
crifício com elas, alimentando-as com as boas obras e a palavra de
Deus na administração dos sacramentos. A pregação dependia da
formação sacerdotal e recomendou-se a abertura de seminários
diocesanos como instrumento para fornecer erudição e treinamento
de técnicas discursivas aos futuros pregadores. Sua educação devia
associar-se à exigência vocacional orientada para a adoção de uma
mentalidade profissional no cumprimento das tarefas pastorais:
pregação, liturgia e práxis sacramental. Com ela, deveria desapare-
cer grande parte do clero parasitário, ignorante, indisciplinado e
devasso. O Catecismo romano, acabado pouco depois do encerra-
mento do Concílio, em 1563, definiu os preceitos da fé para as
massas. O Breviário romano (1568) e o Missal romano (1570) restabe-
leceram a unidade romana dos ritos, opondo-se às particularida-
des dos cleros nacionais e aos diversos príncipes reformados da
Europa que disputavam o poder espiritual com o Papa.
A partir do século XVI, os tratados de retórica escritos por
autores católicos recorrem a textos latinos antigos pressupondo
que, no ato da invenção dos discursos, o juízo dos autores é acon-
selhado pela luz natural da Graça inata. Ela orienta sua escolha de
conceitos, da disposição dos argumentos e das palavras dos estilos
como eficácia didática, prazer engenhoso e envolvimento persua-
sivo. Nas suas diversas proporções verossímeis e adequações de-
corosas, os estilos bem formulados demonstram com justeza e
justiça a participação da presença divina nas coisas do mundo.
Essa orientação teológica está na base da definição da autori-
dade e da eficácia do ensino e da pregação jesuíticos aos povos
gentios do Estado do Brasil. Na catequese, o padre fala aos índios
de modo definido catolicamente como justo, reproduzindo dra-
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71
maticamente, mas sempre com o cálculo da prudência adequada
às ocasiões, as verdades reveladas da Fé. Evidencia externamente
(in foro externo) a presença da luz divina acesa na sua consciência (in
foro interno) como a sindérese, “a centelha da consciência que orienta
o livre-arbítrio para evitar o mal”, como diz Tomás de Aquino.
Como foro interno, a consciência humana é entendida então como
sendo simplesmente o “foro de Deus”. Segundo Suárez, que no
início do século XVII retoma Tomás de Aquino para sistematizar
politicamente as decisões do Concílio de Trento, “foro” significa
o lugar onde se executa o juízo
82
. O mesmo pressuposto escolástico
se acha nos textos de Nóbrega. Quando trata da justiça ou legiti-
midade da captura e escravidão de índios, pressupõe que tudo
quanto o Estado e os homens solicitam ou concedem deve ser
examinado à luz da razão desse foro, que contém permanente-
mente escrita nele a lei natural de Deus. Se o juízo conclui que o
Estado e os homens agem de acordo com a luz natural, acata o
que é solicitado ou concedido, como se o próprio Deus o man-
dasse. Mas se a diretiva do Estado e dos homens contraria a lei
natural, conclui que aquilo que pedem ou mandam é injusto e que
tem de fazer tudo quanto for necessário para corrigi-lo:
A injustiça não pode encontrar-se senão nas leis dadas pelos
homens...; logo, não podem ser guardadas tais leis contra a obedi-
ência de Deus”
83
.
Pautando-se pelo princípio escolástico que seria retomado por
Suárez no início do século XVII, Nóbrega defende que, se um
homem obedece a uma lei justa do Estado, é como se o próprio
Deus a ordenasse, pois a justiça da lei positiva – a lei feita pelos
homens para governar-se – espelha a luz natural que espelha a lei
82
Francisco Suarez. De Legibus ac Deo Legislatore. In decem libros distributus. Autore
P.D.Francisco Suarez Granatensi e Societate Iesu Sacrae Theologiae, in celebri
Conimbricensi Academia Primario Professore. Ad Illustrissimum, et Reverendissimum
D.D.Alphonsum Furtado de Mendonça Episcopum Egitaniensem. Cum variis Indicibus.
Conimbricae, Cum Privilegio Regis Catholici pro Castella, et Lusitania. Apud Didacum
Gomez de Loreyro. Annon Domini 1612, III, XXI, I.
83
Idem, ibidem, I, IX, 6.
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72
eterna de Deus. Nóbrega acredita que o missionário inspirado pelo
Espírito Santo tem total autoridade para doutrinar os povos gen-
tios, pois sua alma é animada pela mesma justiça revelada nas Es-
crituras e na traditio como vontade de Deus realizada nas leis posi-
tivas do Reino difundidas pela Companhia de Jesus.
Contra a sola scriptura, a Igreja Católica determinou que so-
mente teólogos autorizados pelas duas fontes da Revelação, a tra-
dição e o livro sagrado, poderiam ler e interpretar os dois Testa-
mentos e os textos dos doutores canônicos. A interpretação auto-
rizada garantia o monopólio papal do sentido profético da men-
sagem bíblica que era repetido na lectio, a lição, dos jesuítas em seus
colégios, seminários e universidades europeus, americanos, africa-
nos e asiáticos. Em 1558, a edição de um Index Librorum Prohibitorum
deu continuidade à censura de livros considerados inconvenientes,
subversivos e heréticos. A censura se acompanhou da publicação
de textos autorizados e da proibição da posse e leitura da Bíblia.
Os textos autorizados deram publicidade aos dogmas fixados e
confirmados no Concílio. Na catequese e na educação jesuíticas,
um deles é fundamental: o da luz natural da Graça inata.
No Concílio de Trento, foi oposto a outra tese de Lutero, lex
peccati, a lei do pecado original. Segundo ela, o pecado original cor-
rompe a natureza humana tornando os homens incapazes de distin-
guir o verum Deum absconditum, o verdadeiro Deus oculto”. Se indi-
vidualmente são incapazes de distinguir o Bem do mal, quando se
juntam tendem para a anarquia. A consequência da tese é política: a
doutrina do direito divino dos reis enviados diretamente por Deus para
impor ordem a suas sociedades. Lutero afirma que os reis reinam
por direito divino, por isso têm total autoridade para legislar sobre
matérias de poder espiritual, fundando igrejas que dispensam a au-
toridade delegada ao Papa por Cristo quando estabeleceu São Pedro
como seu sucessor, vigário ou vice-Cristo. Principalmente por meio
da Companhia de Jesus, a Igreja Católica divulgou em Portugal e
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73
suas colônias ultramarinas a doutrina do jesuíta Molina sobre a Gra-
ça inata, fazendo nova conciliação entre a presciência divina e o li-
vre-arbítrio humano. Repetindo os decretos conciliares, os jesuítas
afirmam que Deus certamente é causa universal, mas não a causa próxi-
ma ou imediata do poder político. Afirmam simultaneamente que,
apesar do pecado original, a luz natural da Graça inata permanece
presente na alma humana como a “centelha da consciência” doutri-
nada por Tomás de Aquino: acende-se na consciência, aconselhando
os homens a escolher e fazer o bem. Logo, como a lei natural é
ativa, o poder não é dado diretamente por Deus ao rei, mas nasce
de um contrato firmado entre ele e o povo. O contrato fundamenta
a sociedade como “corpo místico” de membros subordinados à
cabeça real em função do “bem comum”.
Na regulação jurídica da “política católica” da monarquia por-
tuguesa, conceitos e preceitos do Velho Testamento e do Novo
Testamento, fundidos com enunciados de doutrinas políticas gregas,
romanas, germânicas, patrísticas e escolásticas, afirmam a luz natural
da Graça inata como critério central da definição da natureza do
poder temporal dos reis como imitação do modelo do poder espi-
ritual do Papa. Catolicamente, o pecado não corrompe a natureza
humana totalmente, pois a luz natural da Graça inata atua no mun-
do, devendo ser universalmente apregoada como o critério definidor
da legitimidade dos códigos positivos inventados pelas comunida-
des humanas para governar-se. O fato de as sociedades gentias não
conhecerem a Revelação de Cristo não pode ser fundamento para a
classificação delas como sociedades “escravas por natureza”, pois
nelas a luz natural também está presente.
Em 1550, na última sessão do Concílio realizada em Valladolid,
o teólogo dominicano Juan Ginés de Sepúlveda debateu seu trata-
do, Democrates alter ou Tratado sobre as justas causas da guerra contra os
índios, com outro dominicano, Bartolomé de Las Casas. Estava em
questão a legitimidade dos massacres das populações do México,
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74
do Caribe e do Peru pelos espanhóis
84
. Sepúlveda é adepto da tese
aristotélica da “escravidão por natureza”, segundo a qual o inferior é
naturalmente subordinado ao superior, e defende a noção teológica
tradicional de que toda sociedade legítima se fundamenta no conhe-
cimento de Deus. Baseado nelas, valida a ação espanhola, argumen-
tando que o desconhecimento de Cristo pelos habitantes da Améri-
ca evidencia a ilegitimidade do poder de suas sociedades. Astecas,
incas e outros povos não vivem uma vida de “genuína liberdade
política e dignidade humana” porque não têm a verdadeira religião
revelada. Sua natureza é inferior porque distanciada do Deus de
Roma. Logo, a conquista é “guerra justa” feita contra infiéis inimi-
gos da verdadeira fé. Mencionando uma citação de Ezequiel 3 feita
por São Jerônimo – “o que fere os maus naquilo em que são maus
e têm instrumentos de morte para matar os piores é ministro de
Deus” – Sepúlveda alega que a escravidão dos indígenas significa,
desde que sejam convertidos ao catolicismo, a salvação de suas al-
mas, que doutra forma estarão condenadas ao Inferno
85
.
Os teólogos e juristas jesuítas e dominicanos do Concílio estabe-
leceram analogia entre a tese de Sepúlveda e a tese de Lutero que
afirma que a sociedade política só é legítima quando fundada na di-
vindade. Contra Sepúlveda, defenderam que qualquer sociedade hu-
mana segue a lei natural de Deus, mesmo quando não conhece a
Revelação de Cristo, pois a Graça está presente como aconselhamento
moral ainda nas sociedades mais bárbaras. O selvagem americano que
faz sacrifícios humanos ou come carne humana continua homem e
tem alma, que deve ser corrigida e salva do Inferno. Vitoria escreveu
que é ilegítima a conquista baseada na noção de que o poder é doação
da Graça divina. Las Casas usou o mesmo argumento na defesa dos
índios dos territórios conquistados pelos espanhóis.
84
Lewis Hanke. Aristóteles e os Índios Americanos. São Paulo, Martins, s/d, pp. 80-83.
85
Juan Ginés de Sepúlveda. Tratado sobre las Justas Causas de la Guerra contra los
Índios. México, Fondo de Cultura Económica, 1987.
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75
No Estado do Brasil, o argumento que o Concílio opôs à tese
de Sepúlveda pauta a ação de Nóbrega que, no Diálogo sobre a
conversão do gentio, afirma a humanidade dos índios, demonstrando
que possuem as três faculdades da alma humana, memória, vonta-
de, inteligência. Suas “abominações” não são naturais ou essenci-
ais, afirma, mas decorrem de costumes depravados que é possível
e necessário corrigir por meio da doutrina católica que os subordi-
na à Coroa e a Roma. Pressupondo essas orientações doutrinárias,
a devoção jesuítica é totalmente metódica, sendo ordenada e ori-
entada pelo preceito de Loyola: “Desenvolve-te a ti próprio, não
para a fruição, mas para a ação”. A prescrição pressupõe a pre-
sença do conselho de Deus na consciência. É não-contemplativa e
mesmo anti-contemplativa, específica da devotio moderna, e está na
base da catequese de índios e da educação ministrada nos colégios
da Companhia de Jesus no Estado do Brasil do século XVI.
Nos escritos de Manuel da Nóbrega e outros jesuítas do sécu-
lo XVI, sempre é evidente a obsessão de ser útil para a Igreja. O
imaginário do pecado, o desejo de viver em Cristo e, principal-
mente, o desejo de morrer por Cristo e com Cristo, definem o
programa da luta contra a heresia, que difunde a mensagem da
verdade da Fé para os gentios. Como novos apóstolos, os jesuítas
vindos para o Estado do Brasil no século XVI querem dar teste-
munho dela. Para eles, além dos santos e mártires do Cristianismo,
o grande exemplo desse testemunho era o próprio fundador da
Companhia. Nos Exercícios Espirituais – por exemplo, os de núme-
ro 93, 95, 137, 138, 140, 143 – Loyola inclui os infiéis na perspec-
tiva da Fé conquistadora. A conquista espiritual é feita ou por Deus,
que é evidentemente católico, ou por Satã, sempre calvinista,
luterano, maquiavélico, judeu, árabe e turco. Muitas vezes, tupinambá,
tamoio, caeté, carijó, goitacás e aimoré. Assim, a devotio moderna é
fundamentalmente ação que faz do padre jesuíta um soldado do
exército de Cristo. A regra número um da Companhia de Jesus é
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76
a obediência absoluta aos superiores, o que faz dos homens vin-
dos para o Estado do Brasil exemplos da corajosíssima determi-
nação de eliminar as veleidades individuais em nome do todo do
corpo místico da sua Ordem. Perinde ac cadaver é seu lema, “Até à
morte”. Como um cadáver, o padre deve ser imperturbável em
sua humildade: “Na Companhia de Jesus só é permitido desejar
duas coisas, a cozinha ou a China e a Alemanha”. Ou seja, as ta-
refas humildes e o martírio entre pagãos e heréticos.
Francisco Xavier e Simão Rodrigues, dois dos oito fundado-
res da Companhia de Jesus, entendiam que o missionário devia ser
um homem “simples”. Não importaria que não fosse letrado, mas
sim que fosse “bem exercitado”, dizia Francisco Xavier. Como o
ferreiro Nogueira, do Diálogo sobre a Conversão do Gentio, que o bom
humor de Nóbrega faz tão simples que entende “amor ao próxi-
mo” como “amor ao que está perto”. Na sua primeira carta do
Estado do Brasil, datada de março de 1549, Nóbrega declara:
“(...) cá não são necessárias letras, mas virtudes e zelo de Nosso
Senhor”, afirmando que o tipo do religioso humanista, letrado e
erudito, não seria imediatamente necessário para a conversão do
gentio, cuja mente seria branca e vazia como tabula rasa pronta
para receber as inscrições da doutrina. Considerando a deprava-
ção dos costumes do clero local e dos colonos amancebados com
índias, Nóbrega inicialmente afirmou que só os bons exemplos da
moral católica fornecidos pelos soldados de Cristo poderiam vin-
gar, donde sua ideia de uma conversão produzida mais pelo bom
exemplo de ações virtuosas que por palavras.
A catequese
Nos primeiros trinta anos depois da chegada de Cabral a Por-
to Seguro, em 1500, os portugueses estabeleceram relações de tro-
ca com as tribos tupis do litoral do Estado do Brasil, principal-
mente na forma do escambo. Elas forneciam mão-de-obra e o
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77
ibirapitanga, o pau-brasil, em troca de quinquilharias e objetos de
ferro
86
. A obra de Jean de Léry, Voyage au Brésil (1570), indica que
os huguenotes franceses se dedicaram às trocas esporádicas com
elas, ao contrário da colonização portuguesa, baseada na agricultu-
ra extensiva. As relações dos mair ou franceses com os índios fo-
ram pacíficas, em geral; provavelmente devido à crença calvinista
na predestinação, os textos de cronistas reformados que fizeram
contato com as tribos consideram os índios parceiros comerciais,
demonstrando certa isenção quanto a suas práticas. Villegagnon,
no entanto, classifica o indígena como bête portant la figure humaine,
“besta com figura humana”. Le Testu propõe que o desconheci-
mento de Deus é a razão da existência do sauvage
87
.
Na disputa pelo território e nos negócios com os índios, os
europeus capitalizaram o principal padrão cultural da memória
das tribos tupis do litoral, a guerra por vingança e a antropofagia
ritual. Lê-se nos autos teatrais e nas cartas do Pe. José de Anchieta,
que atuou no Estado do Brasil entre 1553 e 1597, que os franceses
que tentaram ocupar o Rio de Janeiro e partes do Norte e do
Nordeste foram aliados dos tupinambás, tamoios, caetés e
potiguaras, tornando-se inimigos dos inimigos desses grupos,
tupiniquins e tabajaras, que se aliaram aos portugueses. Nos pri-
meiros tempos, entre 1500 e 1530, o padrão de contato e trocas
esporádicos com os índios adotado pelos portugueses foi seme-
lhante ao dos franceses, mas o catolicismo os fazia interpretar as
culturas indígenas de modo diverso dos huguenotes.
86
Alexander Marchant. Do Escambo à Escravidão. As relações econômicas de portugue-
ses e índios na colonização do Brasil 1500-1580. São Paulo, Nacional, 1943.
87
Cf. Nicolas de Villegagnon.”Lettre à Calvin”.In: Paul Gaffarel. Histoire du Brésil français.
Paris, Maisonneuve, 1978, pp. 292-397; “... tous les habitants de cette terre... n’ayant
connaissance de Dieu”. In: Le Testu. Cosmographie universelle selon les navigateurs tant
anciens que modernes. Paris,Archives du Ministère des Armées, D.t.z, 1556. Cf. o livro
de Andrea Daher. O Brasil francês. As Singularidades da França Equinocial 1612-1615.
Pref. de Roger Chartier. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
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78
O novo modelo de colonização estabelecido em 1549 com o
Governo Geral supunha o fracasso do regime das capitanias heredi-
tárias e baseava-se em três frentes: exploração e defesa militares do
território, agricultura extensiva e conquista espiritual. As posições
polêmicas de jesuítas, colonos, governadores gerais, Câmaras etc.
sobre a escravidão e a “guerra justa” relacionam-se intimamente com
o padrão de ocupação territorial. Inicialmente, houve duas frentes
principais: no Nordeste, Pernambuco e Bahia, regiões do cultivo do
açúcar e outras plantas tropicais e de demanda crescente de mão-
de-obra escrava; no Sul, a capitania de São Vicente e, no planalto
acima da Serra do Mar, a vila de São Paulo de Piratininga. A grande
propriedade açucareira, estabelecida inicialmente no Nordeste, onde
as terras de massapé são férteis e não existe a barreira da Serra do
Mar, como no Sudeste, produziu a escravidão sistemática dos índi-
os, sendo acompanhada das “guerras justas” contra as tribos consi-
deradas bárbaras e inimigas
88
. Em São Vicente, a caça do “gentio da
terra” ou “negros da terra” foi uma das principais atividades econô-
micas dos habitantes, principalmente no século XVII, depois que os
holandeses ocuparam as praças fornecedoras de negros em Angola.
Em 1537, a bula papal Sublimis Deus proibiu a escravidão de
occidentales et meridionales Indos, índios ocidentais e meridionais, qualifi-
cando como heresia a tese de que eram “escravos por natureza”. A
proibição incluía o Estado do Brasil e, durante o Concílio de Trento,
quando as teses de Lutero foram declaradas heréticas, confirmou-se
que os índios eram homens livres, não seres inferiores e animais
destituídos da luz natural da Graça. Apesar da proibição papal, os
colonos nunca deixaram de matá-los e escravizá-los. A primeira lei
portuguesa oficial sobre a liberdade deles foi decretada pelo rei D.
88
Sabe-se que já nos primeiros anos do século XVI, várias expedições portuguesas e
espanholas foram enviadas ao Atlântico Sul, como as de Américo Vespúcio (1501), Solis
(1512-1515); João de Lisboa (1515); Fernão de Magalhães (1520); Loyasa (1525):
Sebastião Caboto (1526); Diego Garcia (1526); Martim Afonso de Sousa (1530) etc.
Quase todas elas escravizaram índios que habitavam o atual território do Brasil.
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79
Sebastião, em 20 de março de 1570. Proibia escravizar os já aldeados
pelos jesuítas, pois eram súditos do Império português; mas deter-
minava que era lícito escravizá-los por razões consideradas graves,
como a antropofagia, em guerras doutrinadas segundo a conceituação
de “guerra justa” de Santo Agostinho retomada pelos juristas
escolásticos. Era “justa”, por exemplo, quando feita como defesa
contra inimigos classificados como “bárbaros”, como os que “...
costumam atacar os portugueses ou a outros gentios para os come-
rem”, como se lê no Regimento de Tomé de Sousa
89
. Formalmente, a
lei de 1570 protegia os índios reduzidos nas aldeias sob a jurisdição
dos jesuítas. Fornecia, porém, justificativas jurídicas manipuladas como
álibi pelos colonos e traficantes de escravos para guerrear, matar,
capturar e escravizar os que viviam a liberdade natural do mato.
Novas leis sobre os índios foram baixadas pelos reis espanhóis, em
1587, 1595, 1596, 1609, 1611, 1618, 1628 e 1638, e pelos reis portu-
gueses, depois da Restauração. Todas elas regulam o direito de
escravizá-los, a sua redução em aldeias e o seu trabalho
90
.
Os jesuítas do século XVI chamaram de “sertão”, termo tal-
vez derivado do aumentativo de “deserto”, “desertão”, as regiões
desconhecidas com que os europeus ainda não tinham feito conta-
to. Em 1550, o termo era aplicado para nomear os arredores de
Salvador. Do mesmo modo, Nóbrega dá notícia da fundação da
89
O historiador português J.S. da Silva Dias examinou o Tratado sobre a guerra que será justa,
de um autor anônimo português do século XVI, provavelmente um dominicano. Demonstran-
do que o Tratado inclui as lições de Caetano, Vitoria e Tomás de Aquino, Silva Dias data-o de
meados do século XVI, propondo que foi escrito num momento em que o abandono das
praças da África e o desvanecimento dos “fumos da Índia” levavam à prudência na doutrina
da guerra. Assim, o Tratado preconiza “... a par de uma guerra limitada, de intimidação e
castigo, o condicionamento das relações comerciais com o gentio e a sua lusitanização
ideológica” (p. 184). A análise feita por Silva Dias dos tópicos principais da “guerra justa”
expostos no Tratado evidencia a lição escolástica tradicional, que faz da virtude cristã o
critério definidor da justiça da guerra. Neste sentido doutrinário, o Tratado é muito semelhante
ao de Sepúlveda. Cf. J.S. da Silva Dias. Os Descobrimentos e a Problemática Cultural do
Século XVI. 3 ed. Lisboa, Editorial Presença, 1988, pp. 182-191.
90
Georg Thomas. Política Indigenista dos Portugueses no Brasil – 1500-1640. São Paulo,
Loyola, 1982, p. 213.
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80
aldeia de Piratininga situando-a “(...) deste sertão adentro”. A no-
ção relacionava-se ao povoamento, não ao solo; nomeava um ter-
ritório sempre cambiante, que se alterava conforme as fronteiras
eram dilatadas pela ocupação. Pelos rios e vias terrestres, os jesuí-
tas as alargaram constantemente, quando penetraram mato aden-
tro para realizar a “conquista espiritual” das populações indígenas
dos novos territórios. Assim, várias entradas do sertão foram or-
ganizadas como reconhecimento missionário entre os séculos XVI
e XVIII, como as de Nóbrega, em 1549, de Porto Seguro ao sul
do rio do Frade; ou, em 1554, de São Paulo a Maniçoba, pela
margem do rio Tietê; a de Leonardo Nunes, em 1550, para o
Campo de Piratininga e pelo rio Tietê; a de Francisco Pires e me-
ninos órfãos, em 1552, ao sertão da Bahia. Em dezembro de 1553,
obedecendo a uma ordem de D. João III, uma entrada chefiada
pelo Pe. Azpilcueta Navarro avançou em direção do rio Jequitinhonha,
na atual Minas Gerais, ultrapassando o Rio de São Francisco, em
busca de ouro. Em fevereiro de 1574, o padre João Pereira pene-
trou na atual Chapada Diamantina, indo pelo rio Doce em busca
dos índios Paranaubis (Mares Verdes), com licença régia de fazer o
descobrimento das esmeraldas. Já no século XVII, novas entradas
foram realizadas, como a dos padres Luís Siqueira e Vicente dos
Banhos. A carta ânua de 1679 informa sobre padres do Espírito
Santo que foram ao sertão. O resultado prático das entradas jesuíticas
do século XVI foi o descimento de índios que foram catequizados e
aldeados no litoral. Já no século XVII, os padres começaram a fazer
entradas não mais para descê-los, mas para cristianizá-los e agrupá-
-los em missões no interior do território.
Os colégios maiores eram a base da evangelização indígena.
No centro do litoral do Estado do Brasil, achava-se o colégio da
Bahia; ao Sul, os do Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Vicente e
São Paulo; ao Norte, o de Pernambuco. Na Bahia, os padres en-
travam pelo rio Real e pelo rio de São Francisco. A região deste e
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81
a das serras de Arabó e Quiriris eram habitadas por muitas popu-
lações indígenas. Pelo São Francisco, o chamado “caminho das
boiadas”, chegaram ao atual Piauí; deste, pelo Maranhão, atingi-
ram a serra do Ibiapaba, no atual Ceará. Na Capitania do Espírito
Santo, a entrada principal era pelo rio Doce, principalmente no
primeiro quartel do século XVII, penetrando-se o território do
que hoje é Minas Gerais. Do Rio de Janeiro, desde o século XVI e
nas primeiras décadas do XVII, os padres iam por mar até Lagu-
na (atual Santa Catarina), chegando pelo interior ao atual Rio Grande
do Sul. O Colégio de São Paulo ficou subordinado ao Colégio do
Rio de Janeiro, não sendo diretamente uma base para o descimento
de índios. Mas os padres tinham postos em lugares distantes de
Piratininga, como Botucatu e São José dos Campos. Com o pas-
sar do tempo, as missões do Mato Grosso passaram a depender
da missão de São Paulo de onde, por exemplo, em 5 de agosto de
1750, saíram de Porto Feliz (antigamente Arariguaba), no rio Tietê,
os padres Estêvão de Crasto e Agostinho Lourenço, acompanhan-
do o governador Antônio Rolim de Moura, que ia fundar a Capi-
tania de Mato Grosso. Chegando ao destino em 12 de janeiro de
1751, Estêvão de Crasto fundou uma aldeia próxima a Cuiabá;
Agostinho Lourenço, outra, em território que hoje pertence à Bo-
lívia
91
. No Nordeste, o Colégio de Pernambuco foi o núcleo das
entradas à Paraíba e ao Rio Grande do Norte anteriores à invasão
holandesa de 1630. A mais célebre delas foi a dos padres Luís
Figueira e Francisco Pinto, em 1607, que atingiu a serra do Ibiapaba,
no atual Ceará. Em 1636, o mesmo Pe. Luís Figueira saiu por mar
do colégio do Maranhão para entrar no rio Xingu. Na Amazônia
do século XVII, a base das missões era o colégio do Pará; em
1653, o Pe. Antônio Vieira entrou no sertão pelo rio Tocantins.
91
Serafim Leite, S.J. História da Companhia de Jesus no Brasil (Do Rio de Janeiro ao
Prata e ao Guaporé. Estabelecimento e assuntos locais. Séculos XVII- XVIII). Rio de
Janeiro: Lisboa, Instituto Nacional do Livro: Livraria Portugália, 1945, t. VI, pp. 216-224.
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82
Muitas outras entradas foram feitas entre 1659, data da redução
dos índios Nheengaíbas por Vieira, e 1752, entrada de Manuel dos
Santos e Luís Gomes no rio Javari.
Da perspectiva missionária, o padre é um novo apóstolo que
toma sobre os ombros os pecados do mundo na “conquista espiri-
tual” das novas terras, repetindo os dogmas da Igreja Católica e
fazendo suas as armas de Cristo, segundo o imaginário do testemu-
nho e do martírio. Os fundamentos teológico-políticos da catequese
jesuítica são ortodoxos: reafirmam os dogmas estabelecidos em bulas
papais e no Concílio de Trento, como o da presença da luz natural
da Graça inata no indígena e no africano. Repetindo-os, combatem
a afirmação, corrente no século XVI, de que a conquista da nova
terra é feita de direito porque os índios tupis demonstram ser infe-
riores por não terem F, L e R em sua língua, ou seja, nem Fé, nem
Lei, nem Rei; ou o argumento de que as leis de suas sociedades são
ilegítimas porque não se baseiam na Revelação.
Obviamente, a redução dos índios e a educação das crianças
pressupõe a universalidade do Deus de Roma; logo, a determinação
nuclear da catequese e da educação é a teologia-política católica que
define e orienta as práticas colonialistas da monarquia portuguesa.
Ainda que evidencie grande conhecimento das sociedades indígenas,
a perspectiva pela qual o padre jesuíta as interpreta não é nem pode
ser antropológica, pois define o indígena a priori como alma ou
substância espiritual que, sendo criada por Deus, acha-se distanciada
do Bem devido às “abominações” dos maus costumes.
Desde o início, dentro da Companhia e em outros setores da
Igreja, houve posições diferenciadas acerca da possibilidade da con-
versão e da natureza da devoção dos índios. Por exemplo, o bispo
Pero Fernandes Sardinha afirmava que eram pouco aptos para se-
rem convertidos; o Pe. Luiz da Grã via no fato de não terem ídolos
um empecilho para a conversão; o Pe. José de Anchieta afirmava
que a sua malícia e os seus maus costumes os tornavam feras só
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83
disciplináveis com a espada e a vara de ferro; o Pe. Blázquez, que
não eram para se converter em geral, mas apenas em casos particu-
lares; o Pe. Manuel da Nóbrega, que eram humanos, pois tinham as
faculdades que escolasticamente definem a pessoa humana, a inteli-
gência, a memória e a vontade, embotadas e corrompidas pelas
abominações de péssimos hábitos; o Pe. Antônio Vieira, no século
XVII, que eram boçais e inconstantes. No caso, é definitivo o texto
em que Vieira utiliza as alegorias da estátua de mármore e da estátua
de murta para falar da catequese. Afirma que os apóstolos que pre-
garam aos pagãos inicialmente encontraram uma gente habituada ao
debate filosófico, dura e refratária à boa nova; depois de convertida,
manteve a forma com que recebeu a Verdade, permanecendo fir-
me na fé como estátua de mármore. O índio, diz, é como a murta:
totalmente empático, mole e dúctil, facilmente recebe forma; mas,
como a terra do Brasil e do Maranhão e Grão Pará é fértil em
pecados, basta o jardineiro descuidar-se, nasce-lhe o broto de um
braço pela orelha ou um galho de mão pelos olhos. Volúvel, super-
ficial, inconstante, nunca assume forma definitiva, exigindo poda
contínua. Selvagem, é necessário que seja atado energicamente à ca-
ridade do seu tutor, o abaré, padre, abaruna, vestido de preto, paiaguaçu,
pajé-mor, que faz a ortopedia de sua alma vegetal com o molde do
Verbo. Segundo Nóbrega, é preciso criar duas condições que favo-
reçam a conversão: uma delas depende dos missionários, que de-
vem dar o exemplo caridoso das boas obras; a outra, dos índios,
dos quais se espera a disposição para uma sujeição moderada.
Michel Foucault lembrou, com sua habitual lucidez, que o
fato brutal da ocupação dos territórios americanos habitados
por povos classificados pelos espanhóis, portugueses e ingleses
como “selvagens” e “bárbaros” antecede lógica e cronologica-
mente qualquer discussão jurídica sobre a legalidade e a legitimi-
dade das medidas adotadas contra eles ou a favor deles. Toda
discussão tem de incluir como pressuposto o fato bruto da vio-
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84
lência inicial da ocupação
92
. A conquista é uma situação de exceção
e, como tal, violência acompanhada de uma multiplicidade assus-
tadora de atrocidades, desterritorialização, destribalização,
genocídio, doenças europeias e escravidão em todos os lugares
onde os espanhóis, os portugueses e os ingleses estiveram com o
seu Deus. No México asteca e no Tahuantinsuyo inca, a conquista
espanhola destruiu sociedades-Estados e a situação de exceção fi-
cou evidente, tornando-se objeto de debates já nesses lugares e na
Europa. No caso das terras chamadas Estado do Brasil, no século
XVI, e Estado do Maranhão e Grão Pará, no XVII, a conquista
destruiu pela violência das doenças, das armas e da religião primei-
ramente os grupos nômades dos tupis que habitavam o litoral e,
depois, grupos inteiros de outras etnias do interior do território.
Como eram sociedades sem Estado, a conquista foi dada como
ocupação de um território vazio, “sertão”, habitado por selvagens
sem história. Nóbrega, no século XVI, e Vieira, no XVII, opuse-
ram-se a algumas modalidades de escravidão. Mas as violências fo-
ram naturalizadas em nome do Deus católico e, como ainda acon-
tece no ensino e nos meios de massa brasileiros, definidas, defendi-
das e divulgadas como “civilização”. De todo modo, os textos dos
debates sobre as questões decorrentes da ocupação inicial da terra,
como os de Vitoria, Molina, Oviedo, Acosta, Gómara, Las Casas,
Sepúlveda, na área espanhola, e os de Nóbrega, Luís da Grã, Anchieta,
Cardim e Vieira, na portuguesa, acomodam-se objetivamente ao fato
bruto da conquista, sendo determinados diretamente por ela ou
pela mediação dela. Assim, também a escrita jesuítica.
No Estado do Brasil do século XVI, a ocupação da terra deter-
mina os usos da escrita como instrumento colonizador. Quando se
fala de “educação”, “ensino”, “instrução” e “catequese”, é útil con-
92
Michel Foucault. “Il faut défendre la société”. In: François Ewald et Alessandro Fontana
(dir.). Cours au Collège de France (1975-1976), Paris, Seuil-Gallimard, 1997, p. 24.
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85
siderar sua violência simbólica como meio de universalização da
particularidade cultural da civilização ibérica. Em geral, não se dá
atenção à materialidade simbólica da escrita. A tendência é entendê-
la instrumentalmente, como meio neutro para fixar e comunicar
conteúdos refletidos da realidade. Quando é pensada desse modo
positivista, tende-se a priorizar os conteúdos que transmite sem sufi-
ciente atenção à sua materialidade de prática simbólica construtora
da realidade. No caso da colonização do Estado do Brasil, no sécu-
lo XVI, e do Maranhão e Grão Pará, a partir do XVII, ela é conquis-
tadora em si mesma, porque produzida para capturar as referências
locais com classificações exteriores sempre remetidas ao seu funda-
mento, o modelo metafísico da Letra da Verdade da Palavra de
Deus fixada nas Escrituras. A Palavra fundamenta todas as práticas
colonizadoras, discursivas e não-discursivas, do Estado do Brasil no
século XVI. No caso da escrita, fundamenta as práticas de arquiva-
mento de informações e de reordenação e descontextualização da
ordem social das populações que a desconhecem.
Michel de Certeau propôs que a escrita tem o poder de supe-
rar a distância espacial e temporal, por oposição à voz circunscrita
ao presente de sua enunciação. Como um formidável poder-sa-
ber, a escrita jesuítica é acumulação primitiva de referências sim-
bólicas extraídas dos corpos dos selvagens que são catequizados
pelas mesmas referências descontextualizadas. Como um arquivo,
conserva as referências para usos futuros, como a composição de
dicionários, gramáticas e catecismos, na Europa, ou autos e poe-
mas, no Estado do Brasil. Como dispositivo que acumula o saber
de uma memória do passado e o poder de uma previsão de futu-
ro, modela um corpo submisso para o índio com a invenção de
uma alma culpada para ele. Simultaneamente, por reproduzir au-
toridades beatas, propõe-lhe a unidade catártica. É essencialmente
colonizadora devido à dupla reprodução que a articula. Uma é
ortodoxa: voltando-se para o passado, fundamenta-se nos discur-
sos dos doutores da Igreja, das Escrituras e da traditio repetidos
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86
como autoridades que justificam a ação do padre na outra repro-
dução, que é missionária: avançando para o futuro, pressupõe a
ortodoxia do passado repetida no presente. Conquistando o es-
paço, a temporalidade, o corpo e a oralidade da diferença selva-
gem, a escrita jesuítica a integra no tempo português do programa
“catequese e escola”, executando as ordens de Roma e da Coroa.
É possível caracterizar os usos da escrita pelos jesuítas do século
XVI com as quatro oposições conquistadoras que Michel de Certeau
propôs para analisar Voyage au Brésil, de Jean de Léry
93
. Basicamente,
os usos opõem a oralidade tupi, entendida como comunicação pró-
pria de sociedades “gentias”, “pagãs”, “selvagens” e “bárbaras”, à
escrita, praticada como tecnologia que inclui e subordina o oral aos
fins conquistadores da civilização portuguesa; os usos opõem a
espacialidade selvagem, ou o espaço sincrônico dos sistemas sociais indí-
genas classificados como sociedades sem história, à temporalidade
providencialista da civilização portuguesa, que a escrita sempre re-
presenta como povo privilegiado ou escolhido por Deus no drama
universal da Salvação; os usos opõem a alteridade da diferença indí-
gena, que estabelece o corte cultural entre a América e a Europa, à
identidade católica, que subordina a diferença como mais uma seme-
lhança criada por Deus, mas semelhança inferior, selvagem, confusa,
escura, bárbara, deformada e distante, por isso mesmo passível de
ser controlada quando é levada a encontrar o seu Princípio; final-
mente, os usos da escrita opõem a inconsciência ou o estatuto de “sel-
vageria” e “barbárie” das práticas coletivas indígenas à consciência da
significação e do sentido católicos que lhes são estranhos e que lhes
são aplicados como um saber-poder repressor vindo de fora.
Quando se leem os textos que Nóbrega escreve entre 1549 e
1570, observa-se que seus enunciados se abrem para a nova terra
do Brasil, tratando das formas estranhas de vegetais e animais, das
maneiras selvagens e bárbaras de viver dos seus habitantes, dos
sucessos e desânimos da catequese e do ensino, das alianças com
93
Michel de Certeau. L´écriture de l´histoire, Paris, Gallimard, p. 221.
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tribos e “guerras justas” contra o gentio inimigo, os invasores fran-
ceses etc. Na dispersão analítica deles, cujos principais modelos
são, nas cartas, a História Natural, de Plínio, as cartas de Cícero e
Sêneca e os preceitos da ars dictaminis medieval, e, no Diálogo sobre a
conversão do gentio, os diálogos platônicos, a enunciação repete a Pa-
lavra do seu fundamento metafísico, capturando e unificando a
multiplicidade das coisas com os códigos teológico-políticos que
as hierarquizam. Repetindo o fundamento, a escrita traduz a
multiplicidade da terra nova como semelhança distante subordi-
nada ao seu Princípio criador, que então é lido e interpretado tam-
bém nas coisas empíricas e eventos. A constelação do Cruzeiro do
Sul demonstra que desde a Criação a terra tem destinação cristã; as
marcas produzidas pelo mar em pedras do litoral são interpreta-
das como pegadas humanas que testemunham a presença do após-
tolo São Tomé prefigurando a ação jesuítica; as sementes dispos-
tas em cruz da Musa paradisiaca, a banana, confirmam a Presença; a
flor-da-paixão, o maracujá, ostenta os cravos e o martelo da cru-
cificação, além do roxo das exéquias; os trovões, os raios e as
mudanças de ventos e marés atestam a intervenção da Providência
em prol dos católicos; pescas milagrosas, como a de uma cabeça
de peixe no navio de Tomé de Sousa, revelam a virtude do Pe.
Nóbrega
94
, visões, premonições, vozes etc., tudo soletra a Letra
que, como Causa Primeira e Final, orienta as ações e o sentido do
tempo. Todo dessemelhante que se encontra na nova terra é, en-
fim, uma variação semelhante, distanciada, deformada, escura e
invertida do mesmo. O Novo Mundo é a imagem invertida do
94
Há semelhança, não identidade, entre a ingestão do corpo de Cristo na hóstia e a
ingestão de carne humana na antropofagia ritual dos tupis. Os jesuítas interpretaram
formas produzidas pelo mar em pedras como pegadas de Sumé ou São Tomé, o apóstolo.
Os maus hábitos tupis seriam a lembrança deformada dos seus ensinamentos. Quanto à
cabeça de peixe, Simão de Vasconcelos conta que Tomé de Sousa fizera uma promessa
e, pagando-a, só comia peixe sem a cabeça. Na viagem para o Brasil, Nóbrega lhe disse
que isso era superstição. Como o governador não o ouvisse, o padre mandou um
marinheiro lançar ao mar uma linha com anzol. O marinheiro pescou uma grande cabeça
de peixe, que Nóbrega levou ao governador. Desde esse dia, convencido do milagre,
passou a comer peixe com a cabeça.
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88
Velho e cabe ao padre revertê-la, ou seja, convertê-la pela ação escri-
turária em signos proporcionalmente análogos à Letra divina. A es-
crita conquista e coloniza, pois seu pressuposto metafísico a faz tra-
duzir a diferença da novidade por meio dos códigos da semelhança
metafisicamente fundada no Deus de Roma. A semelhança norma-
liza os eventos: não os interpreta segundo seus próprios princípios,
mas adapta-lhes a significação e o sentido à Letra como eventos
desviantes dela que devem ser corrigidos. Logo, embora os padres
jesuítas demonstrem uma notável consciência “etnográfica” na ob-
servação da terra, não pensam nem agem antropologicamente quando
atuam sobre ela, pois a universalidade do seu Deus torna toda dife-
rença uma imagem distante Dele, sempre pressuposto nas operações
escriturárias como Causa e Fim do tempo.
Aqui, há mais duas determinações básicas da prática da es-
crita jesuítica. A primeira delas é local: a do próprio modo tupi
de ordenar a sociedade tupi. Evidentemente, é modo exterior à
metafísica platônica e aristotélica na base da escolástica cristã dos
padres que definem “homem” como a unidade criada de corpo
mortal e alma imortal participantes na substância metafísica do
Deus católico. Aquilo que a escrita jesuítica classifica como sendo
o principal obstáculo à conversão, a inconstância da alma selvagem,
talvez evidencie pelo avesso o que é ser homem na sociedade
tupi. Os tupis são homens sem a “alma” da metafísica católica,
pois a humanidade deles não é ocidental. Eduardo Viveiros de
Castro demonstrou finamente que não definem “homem” como
ser dotado da unidade de alma feita à imagem e semelhança da
Unidade divina, mas por meio daquilo que absorvem
95
. Os tupis
não são virtuosos ou pecadores, como os homens portugueses,
mas um devir constante. Quando Anchieta fica refém dos tamoios
em Ubatuba, o chefe tupinambá Cunhambebe abre um cesto e
lhe oferece para comer uma mão humana moqueada. Anchieta
95
Eduardo Viveiros de Castro. “O mármore e a murta: sobre a inconstância da alma
selvagem”. In: Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 1992, nº. 35.
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89
se horroriza e diz que ele e Cunhambebe são homens e que é
pecado o homem comer carne humana. Iauára ixé, diz
Cunhambebe, “eu-onça”: meu corpo é um devir onça quando
come carne humana: “eu” é o que “eu” come. A cultura tupi é
radicalmente canibal e esse devir contínuo pela absorção do ou-
tro articula suas práticas, como o nomadismo e a guerra ritual
para executar a vingança, mantendo o grupo unido enquanto
devém outras coisas comendo inimigos e o mais que passar per-
to da “boca infernal”, como diz Nóbrega.Amar o próximo”
significa o que para um tupi? Próximo é o que se come. Os
personagens do Diálogo sobre a conversão do gentio se lamentam de o
índio responder “– Pa, sim”, quando o padre lhe pergunta se
quer ser cristão. Se o mesmo padre lhe pergunta se quer negar
Cristo em troca de uns anzóis, responde “– Pa”. O Diálogo per-
mite inferir que, se um francês lhe pergunta se quer ser calvinista,
tem a mesma resposta. Para os jesuítas, que universalizam a noção
cristã de alma e a unidade substancial de seus hábitos de não-con-
tradição, coerência e constância, o comportamento indígena é
inconstância ou índice de uma alma corrompida e praticamente
irrecuperável. Para os tupis, provavelmente é outra coisa, pois no-
ções ocidentais como alma, pecado, vício, virtude, contradição, coerência,
constância, inconstância são apenas noções cristãs ocidentais.
A outra determinação fundamental da prática jesuítica da es-
crita é a tese luterana já referida, sola scriptura, que faz a catequese
ter um pé na Europa. Com ela, como se viu, Lutero declara que a
traditio da Igreja Católica – os ritos visíveis ou os costumes do
magistério, do ministério, dos sacramentos oficiados pelo clero e
também o próprio clero – não é necessária para o fiel pôr-se em
contato com Deus. Basta saber ler e possuir uma Bíblia, lendo-a
sozinho em silêncio, esperando que venha orientação da caridade
de Deus. A adoção da tese nos lugares reformados do Norte da
Europa determina a rápida alfabetização das ovelhas por iniciativa
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90
dos pastores. Para manter a unidade ortodoxa da fé na coloni-
zação do Estado do Brasil, a Coroa portuguesa e a Igreja Católica
escolhem o analfabetismo. A Igreja declara a tese anátema; em
1546, prevendo o perigo do livre exame, o Concílio de Trento
proíbe que os católicos tenham e leiam a Bíblia, determinando que
a divulgação da Palavra seja feita oralmente pela pregação de pa-
dres especializados em oratória. Segundo o dogma, inspirados pelo
Espírito Santo.
Para fazer os tupis crer em Deus, os padres seguem inicial-
mente o que Nóbrega diz na sua primeira carta de 1549 – “Aqui
poucas letras bastam, pois é tudo papel branco”. A oralidade da
pregação reproduz a Letra da Palavra de Deus escrevendo no
papel branco do corpo dos índios a memória da culpa do peca-
do. A culpa se evidencia nas roupas de algodão cobrindo as “ver-
gonhas” e nas virtudes decorrentes da reordenação do espaço, do
tempo, do trabalho e da sexualidade das páginas brancas. Objetiva-
mente, mesmo quando produzida como meio de defesa da liber-
dade de índios aldeados, a escrita é um instrumento de redução e
sujeição. No século XVI, a doutrina portuguesa do Direito não
conhece nenhum fundamento antropológico que permita fazer
ouvir e valer as razões da razão dos índios. O fundamento do
Direito português é teológico. Pode-se lembrar, evidentemente,
que o Direito é um limite pacífico que especifica o legal e o legítimo
das medidas adotadas. Mas, novamente com Foucault, também se
pode dizer o contrário: objetivamente, mesmo quando estabelece a
legalidade da ordenação política das sociedades indígenas e as de-
fende contra a predação dos colonos, o Direito é um dispositivo
de sujeição. Isso porque nenhuma das discussões quinhentistas so-
bre os indígenas é antropológica. Todas elas são teológicas, pois o
fundamento do Direito também é Deus. É impensado e impensável
então o pensamento iluminista que autonomiza a história do fun-
damento divino. Essa autonomização é, como se sabe, a condição
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fundamental da crítica dos privilégios instaurada pelo Iluminismo
desde o século XVIII. No século XVI, o indígena não é represen-
tado pelos jesuítas segundo o pressuposto que a antropologia cha-
mou de “pensamento selvagem”, ou seja, segundo as próprias
razões da “razão selvagem” que necessariamente determinam e
evidenciam a particularidade da razão do observador. No século
XVI, a universalidade da religião cristã na base do Direito portu-
guês inclui e neutraliza tais razões a priori, classificando-as como
falta de Bem. Em todos os casos, trata-se de um modo de agir
fundado metafisicamente como analogia escolástica, ou seja, modo
que estabelece relações de proporção entre as práticas indígenas e
o princípio metafísico da Letra que é aplicado à interpretação de-
las, para estabelecer semelhanças e diferenças entre elas e as práti-
cas portuguesas. Hoje, esse modo aparece como o princípio dou-
trinário e, ao mesmo tempo, como o limite do sentido da ação
dos padres. A religião católica afirma que a alma participa na subs-
tância metafísica de Deus como efeito criado e signo reflexo dela.
Assim, a alma é o núcleo teórico das classificações do indígena ou
como “animal” ou como “humano”. A atribuição ou a produção
de uma alma para ele, como ocorre nas práticas catequéticas, pres-
supõe que é “próximo”, como no mandamento “Amar o próxi-
mo”. Mas “próximo” metafísica e politicamente distanciado da lei
eterna de Deus, pois de alma boçal, emporcalhada pela bestialida-
de dos pecados. É preciso salvá-la, determinam os padres. Sua
caridade significa justamente a destribalização colonialista acusada
por muitos autores, como Florestan Fernandes
96
.
Os pressupostos teológico-políticos, éticos e jurídicos deter-
minam a produção de novos objetos de conhecimento nos usos
96
Florestan Fernandes. “Antecedentes indígenas: organização social das tribos tupis”. In:
Sérgio Buarque de Holanda. Dir. e introd. geral. A Época Colonial 1. Do Descobrimento à
Expansão Territorial. 6 ed. São Paulo/Rio de Janeiro, DIFEL, 1981 (História Geral da
Civilização Brasileira, t. I, v. 1).
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92
jesuíticos da escrita, principalmente “o índio”. Esse novo objeto –
chamado de “índio” devido ao equívoco geográfico de Colombo,
que acreditou ter chegado à Índia quando chegava ao Caribe em
1492 – é construído com tópicas retóricas de vários gêneros anti-
gos que fazem o mapeamento descritivo, denso e exaustivo, de
suas práticas. Nos primeiros contatos, a escrita começa por classi-
ficar a multiplicidade cultural das populações do Estado do Brasil
como “índios” e logo a unifica, produzindo a essência, “o índio”,
que define negativamente, ou como selvagem com alma
desmemoriada de Deus que pode ser salva, ou como bárbaro
inimigo a ser destruído e, ainda, como animal sem razão. As três
classificações – selvagem, bárbaro, animal – são negativas em graus
crescentes da distância pressuposta entre o corpo classificado e o
fundamento sagrado da Palavra revelada. Quando a escrita classi-
fica o novo objeto com as metáforas “gentio”, “índio”, “negro”,
“negro da terra”, “selvagem”, “bárbaro”, “animal”, “cão”,
“perro”, “porco”, também se classifica a si mesma positivamente
como universalidade civilizada. A escrita jesuítica aplica o termo
“índio” como sinônimo de “homem da natureza”, bom ou mau,
que as doutrinas do poder propõem como o “selvagem” pressu-
posto lógica e cronologicamente na constituição política das soci-
edades. A classificação dele como “homem da natureza” significa
principalmente que é homem sem história. Logo, a escrita autoriza
a intervenção civilizadora como ação justa determinada pela sua
Verdade. Em 10 de agosto de 1549, Nóbrega escreve a carta para
Roma em que caracteriza os tupis como almas sem traço escritu-
rário da Revelação cristã. Estão disponíveis para serem gravadas
com os bons exemplos dos padres
97
. Quanto ao “bárbaro”, é
definido por oposição a “civilizado” ou português: na escrita
97
Manuel da Nóbrega. “Baia, 10 de agosto de 1549”. In: Serafim Leite. Cartas dos
primeiros jesuítas do Brasil. São Paulo, Comissão do IV Centenário da Cidade de São
Paulo, 1954, 3 v., v. I, p. 142.
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93
jesuítica, “bárbaro” é diferencial; para que exista, pressupõe-se a
universalidade da civilização católica que ele destrói ou tenta des-
truir
98
. Bárbaros são os tapuias, os aimorés da Bahia, os tamoios
de Ubatuba e do Rio, os tupinambás de Ilhéus, os goitacases do
Espírito Santo, os caetés do Nordeste, que, ao contrário dos selva-
gens tupis já pacificados e aldeados pelos padres, resistem à civili-
zação portuguesa e constantemente a atacam.
A Coroa sempre alega que os meios e os fins da razão de
Estado visam a paz do “bem comum”. Logo, a guerra declarada
contra os que são produzidos como “bárbaros” porque não se
submetem é definida como “justa” porque feita para manter a paz
do corpo político do Estado. Como se viu, no Regimento trazido
por Tomé de Sousa em 1549, D. João III determina que se man-
tenha a paz com os índios pacíficos da Bahia e que se faça “guerra
justa” contra os tupinambás que comeram o donatário Coutinho
em Itaparica; também é “justa” a guerra contra os tamoios do
litoral de São Vicente e do Rio de Janeiro, em 1565/1567, classifi-
cados como “bárbaros” enquanto se recusam a subordinar-se ao
governador geral e a ser catequizados pelos jesuítas, como aliados
dos hereges, os huguenotes franceses.
Em todos os casos, nos textos de Nóbrega e outros padres,
as táticas e as estratégias adotadas na redução dos selvagens ao
catolicismo e no extermínio dos bárbaros são definidas como um
direito e um dever do Estado. A subordinação dos selvagens e a
extinção dos bárbaros significam caridade cristã para com “as na-
ções humanas” que, ocupando o território livres de resistência e
agressões, podem dedicar-se cristãmente aos negócios. Ao mes-
mo tempo, a subordinação e a matança demonstram o amor do
“bem comum” do Império.
Ou na forma da manuscritura individualizada, que mantém a
presença dos gestos do corpo do padre no traço da letra, ou na
98
Michel Foucault. Op. cit., pp. 174-175.
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94
forma do texto, que o impessoaliza na abstração do tipo impres-
so, a operação escriturária é uma interpretação realizada como co-
mentário unificado por esquemas teológico-políticos. Quando
Nóbrega usa fórmulas como “negro” e “negro da terra” para
classificar os corpos índios objeto da catequese, não confunde as
etnias locais com as africanas, mas faz equivaler as representações,
adequando-as ao modelo de um texto, a narrativa bíblica sobre os
filhos de Noé
99
. Quando escreve que o índio anda “nu”, usa um
termo descritivo, mas também valorativo e prescritivo, pois o Có-
digo do Direito Canônico determina que a roupa é “decência civil” que
demonstra o reconhecimento do pecado.
A catequese é uma poética, uma produção de almas, que molda
o produto com os saberes escriturários autorizados pelo Concílio
de Trento. Como tecnologia aplicada à disciplina do corpo indíge-
na, controla a vontade e os objetos da vontade, substituindo os
alvos do desejo guerreiro por virtudes católicas passivas, culpa,
contrição, arrependimento, submissão, humildade e obediência.
Modela a inteligência pela ética cristã do trabalho. Substitui a me-
mória tupi da guerra feita por vingança e a antropofagia ritual pela
memória cristã da culpa original e a ingestão da hóstia.
O ensino
Em meados do século XVI, havia cerca de 60 “escolas de ler
e escrever” em Portugal. Todas elas eram destinadas a alunos do
sexo masculino e a maioria concentrava-se em Lisboa e Coimbra.
Algumas escolas primárias particulares eram destinadas a crianças
e jovens nobres, que se preparavam para entrar na Universidade
de Coimbra. Ordens religiosas costumavam manter escolas que
99
No livro do Gênesis, lê-se a história de Noé e seus filhos. Noé, cultivador de uvas e
inventor do vinho, fica bêbado e nu, sendo visto pelo filho, Cam, enquanto os outros, Sem
e Jafé, o cobrem com um manto. A lei proíbe ao filho ver a nudez do pai e, quando fica
sóbrio, Noé amaldiçoa Cam: será escravo dos irmãos e a escravidão será passada
adiante, hereditariamente, na cor escura da pele de seus filhos.
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95
atendiam meninos pobres. Havia, ainda, as chamadas “escolas das
misericórdias” organizadas para os “patifes”, meninos órfãos e
abandonados. Os alunos que então aprendiam a ler e escrever es-
tudavam em cartilhas e gramáticas, como a Cartilha para aprender a
ler e a Gramática elementar da língua, de João de Barros; a Cartilha de
linguagem portuguesa, de Fernão de Oliveira; As regras de ensinar a ma-
neira de escrever a ortografia portuguesa, de Pedro de Magalhães; a Cartilha
para ensinar a ler com as doutrinas da prudência, adjunta uma solfa de can-
tigas para atiçar curiosidade, de Frei João Soares.
O ensino equivalente ao secundário era feito nas chamadas “es-
colas de gramática”, que ensinavam latim como preparação para os
cursos da Universidade de Coimbra. Em Évora, a primeira escola
municipal foi fundada em 1456, sendo regida por um bacharel de
Coimbra que ensinava escrita e gramática (latim). Em 21 de feverei-
ro de 1548, D. João III fundou o Real Colégio das Artes de Coimbra
ou Colégio dos Nobres, que passou a ser frequentado pelos filhos
da nobreza. Todo o ensino superior se concentrava na Universidade
de Coimbra. Os cursos eram dados pela Companhia de Jesus e a
maioria dos alunos frequentava os cursos de Direito.
No início de 1553, a Companhia estabeleceu o colégio de S.
Antão, em Lisboa, para onde vieram de Coimbra, como mestres,
Cipriano Soares e Manuel Álvares. Começando com 180 alunos,
poucos meses depois o colégio tinha 330. Em 1554, teria 600, no-
bres e plebeus, divididos em grupos chamados decúrias. Em julho
de 1553, o Pe. Nadal esteve em Lisboa, propondo que o ensino
seguisse o modelo dos cursos dados na Sicília e na Itália, com três
aulas de gramática (latim), uma de humanidades e outra de retórica,
além de lições de grego, hebraico e casos de consciência.
Nos anos iniciais da Companhia de Jesus, muitos dos homens
que se alistavam nela tinham estudado ou estudavam em universi-
dades. Em 1540, alguns futuros padres o faziam em Paris; em
1542, em Coimbra, Pádua e Lovaina; em 1544, em Colônia e
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96
Valência. O Pe. Polanco, secretário de Loyola em Roma, julgava
haver muitas desvantagens nesse modo de estudo, afirmando
que não havia assiduidade nem de mestres nem de alunos; que
faltavam exercitações escolares; que não se via nenhum avanço
na aprendizagem etc. Em 4 de março de 1541, foi decidida a
fundação de colégios
100
.
Em sua História da Companhia de Jesus na Assistência de Portugal, o
Pe. Francisco Rodrigues informa que a fundação dos colégios
jesuíticos ocorria quando um particular, um príncipe, uma cidade ou
todos em conjunto contribuíam com rendas para sua manutenção.
Três ou quatro mestres eram então enviados para o colégio: o pri-
meiro ensinava rudimentos de gramática (latim) para as crianças
menores; o segundo ensinava os que já possuíam algum conheci-
mento dessa língua; o terceiro cuidava do aperfeiçoamento da gra-
mática e o quarto, das humanidades, as letras. Quanto aos alunos, os
mestres os faziam decorar matérias, regras e estilos e a compor e
falar em latim, imitando Cícero, Virgílio e outros autores antigos,
visando sua educação intelectual e moral. O latim era a língua obri-
gatória no dia-a-dia e os mestres os ensinavam a disputar divididos
em dois grupos adversários, que aprendiam as técnicas dialéticas e
retóricas de argumentação para defender uma causa qualquer com
argumentos específicos e, mudando de posição, defendê-los com
os argumentos contrários. Quando os alunos estavam bem treina-
dos, indicava-se um mestre para que estudassem Artes (filosofia e
matemáticas)
101
. Sua admissão era gratuita; confessavam-se pelo menos
uma vez por mês; assistiam às lições dominicais de doutrina e ouvi-
am o sermão; deviam ser modestos e manter o decoro das ações; a
disciplina era rígida, ritmada por castigos, como a palmatória.
100
“(...) por tanto nos pareció a todos, deseando la conservación y aumento della (Compa-
nhia de Jesus) para maior gloria y serviço de Dios Nuestro Señor, que tomássemos outra
via, es a saber, de Collegios”. Cf. Const. S.I. Lat. et Hisp. Madrid, 1982, p. 307.
101
Francisco Rodrigues, S.J. História da Companhia de Jesus na Assistência de Portugal.
Porto, Apostolado da Imprensa, 1931, Tomo 1 (A Fundação da Província Portuguesa
1540-1560), v. II (Tribulação-Colégio-Missões), pp. 286-287.
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97
Nas Constituições da Companhia de Jesus de 1550 e na de 1552,
apresentada pelo Pe. Jerônimo Nadal em Portugal em 1553, as
rendas e propriedades antes proibidas pelo voto de pobreza pas-
saram a ser destinadas ao uso e necessidades dos estudantes dos
colégios. No Estado do Brasil, os colégios fundados por Nóbrega
a partir de 1549 realizavam a segunda parte do programa “catequese
e escola”, proposto inicialmente por ele para o colégio da Bahia.
Nos colégios que fundou em Pernambuco, em Ilhéus, em Porto
Seguro, no Espírito Santo, no Rio de Janeiro, em São Vicente e em
São Paulo de Piratininga, havia cursos de ler e escrever e ensinava-
se “gramática” ou latim. O estudo dessa língua fazia parte da edu-
cação básica de todo homem letrado e habilitava os alunos dos
seminários a serem futuros padres.
Em uma carta enviada de Roma em 21 de maio de 1547 para o
Pe. Diogo Laynez, o Pe. Juan de Polanco, secretário do geral Inácio
de Loyola, expõe o que este pensa do ensino das humanidades, as
letras. Laynez havia trabalhado na abertura dos colégios de Pádua e
Veneza, onde conciliara os fins da educação jesuítica com as corren-
tes humanistas. Polanco propõe que as letras, principalmente as lín-
guas, devem ser objeto de ensino, considerando sua necessidade
para o estudo das Escrituras. Os jesuítas devem ser bons latinistas
guiados pelos exemplos de São Jerônimo, Santo Agostinho e outros
de que o estudo das humanidades não amoleceu a inteligência, para
penetrar no conhecimento profundo das coisas. Polanco alega o
costume, afirmando que, desde os antigos até o presente, ele foi o
de começar os estudos por elas. Uma vez adquirida uma base sólida
nas humanidades, passa-se para outros estudos. Afirma que a expe-
riência demonstra que muitos eruditos, por causa da dificuldade de
se expressar, guardam sua ciência para si mesmos sem atingir o fim
essencial de torná-la útil para os outros. A seguir, apresenta mais
motivos para pôr as humanidades na base do ensino. O primeiro
deles é a constituição de hábitos: assim como o trabalho físico exige
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98
uma progressão que começa pelos exercícios menos pesados, para
tratar de coisas que exigem grande trabalho intelectual, como a filo-
sofia e a teologia escolástica, é necessário que a inteligência se habitue
progressivamente a trabalhar em coisas que não são nem demasiado
difíceis nem demasiado áridas, como as humanidades, mais adequa-
das às inteligências pouco exercitadas e pouco vigorosas. O segundo
motivo é o treinamento da memória. Quando os homens ficam
adultos, sua memória não está mais vazia como no tempo da juven-
tude para receber imagens das coisas. Assim, o estudo deve come-
çar cedo. Além desses motivos, Polanco reitera que o conhecimento
de línguas – latim, grego, hebraico – é fundamental para estudar as
Escrituras, principalmente na Companhia de Jesus, que mundialmen-
te faz contato com povos de línguas muito diferentes. O conheci-
mento das línguas e das humanidades é útil na pregação para as
pessoas simples, pois fornece exemplos adequados. Além disso, seu
estudo fornece coisas úteis para o futuro, como a história, a geogra-
fia, as figuras de estilo, os preceitos da retórica. O talento e a energia
têm no que se investir e gastar quando são exercitados em disputas
de retórica e composições pessoais em prosa e verso
102
.
Em 1551, a escola da Bahia foi chamada de Colégio dos Me-
ninos de Jesus e construída, como se viu, na sesmaria de Água dos
Meninos doada à Companhia por Tomé de Sousa. O colégio ti-
nha alguns escravos negros e 12 vacas presenteadas pelo rei para
“sustentação dos meninos”. Luiz Alves de Mattos informa que os
novos padres que chegaram com Luís da Grã em 1553, principal-
mente Antonio Blázquez, quiseram impor castigos corporais aos
meninos índios. Os índios não castigavam as crianças e elas iam
embora quando viam o padre usar a palmatória num colega. Em
uma carta de 8 de maio de 1558, Nóbrega escreve:
102
Juan de Polanco, S.I. “A Jacques Laines. Rome, 21 mai 1547”. In Lettres et Instructions.
In: Ignace de Loyola. Écrits. Traduits et présentés sous la direction de Maurice Giuliani,
SI. Paris, Desclée de Brouwer, 1991, pp. 703-707.
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99
Meninos do gentio não há agora em casa. A razão é porque os que
havia eram já grandes e deram-se a ofícios; mas destes os mais fugi-
ram para os seus e como não havia sujeitá-los, lá se andaram até
agora; outros, por não se poderem sustentar por causa da fome que
há dias anda por esta Bahia...
103
Em 1551, chegaram de Lisboa os 20 meninos órfãos que seri-
am, com os 7 vindos antes, distribuídos pelos colégios do Espírito
Santo e de São Vicente. Em 1553, quando ordenou juridicamente o
Colégio de São Vicente, Nóbrega determinou que a leitura e a escri-
ta fossem ensinadas também para os meninos externos, brancos e
mamelucos, filhos de portugueses, que aprenderiam como os ou-
tros internos a doutrina católica, canto, flauta e gramática (latim).
Observando que os índios gostavam de dançar e cantar, desde cedo
os padres usaram a música como instrumento catequético, julgan-
do-a eficaz na transmissão da doutrina. Todos os religiosos que vie-
ram para a Bahia com Nóbrega em 1549 eram cantores. Leonardo
Nunes, regente. Além da missa, do “Padre Nosso” e da “Santa
Maria” cantados, houve motetos, salmos e cantigas devotas adapta-
dos aos indígenas. A música e o canto foram utilizados primeira-
mente na Bahia, depois em Piratininga. Em São Vicente, o Padre
Antônio Rodrigues criou coros de flautas de curumins, meninos
brasis, que em 1559 foram oficiar missas cantadas em Salvador. Os
meninos órfãos também dançavam e há notícia de que, avançando
pelo sertão, entravam pelas aldeias de tribos classificadas como “bra-
vas” dançando e entoando cantares da língua tupi. Passada a fase
inicial dos meninos órfãos, as danças ficaram restritas às noites de
sábados, para impedir que o caxiri, o cauim e outras bebidas alcoó-
licas perturbassem a ordem das aldeias.
Em 1552, havia cerca de 55 alunos internos, meninos índios,
brancos e mamelucos, no colégio de São Vicente. Em 1553, eram
80. Entre eles, 4 órfãos vindos de Lisboa. Os meninos índios de-
103
Luiz Alves de Mattos. Primórdios da Educação no Brasil. O Período Heroico(1549-
1570). Rio de Janeiro, Gráfica Editora Aurora, 1958, pp. 54-55.
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100
veriam aprender português e bons exemplos com eles. Aí ensinou
Diogo Jácome, considerado o primeiro mestre-escola do Brasil.
Nóbrega informa, na carta escrita em São Vicente em 15 de junho
de 1553, que os meninos da Confraria do Menino Jesus têm os
exercícios ordenados, pois aprendem a ler e escrever e avançam
nos estudos; alguns aprendem a cantar e a tocar flautas. Outros,
“mamalucos”, são mais hábeis para aprender gramática (latim),
sendo ensinados por um moço de Coimbra que veio para o Brasil
degredado
104
. Na mesma carta, informa que mandou ensinar os
ofícios de ferreiro e tecelão a moços da terra. O Irmão Mateus
Nogueira, ferreiro, o mesmo que é personagem no Diálogo sobre a
conversão do gentio, foi encarregado de ensinar seu ofício aos meninos
índios. A partir de 1554, o Irmão recém-chegado, José de Anchieta,
foi professor de latim no Colégio de São Paulo de Piratininga.
Não havia livros e Anchieta ficava acordado escrevendo as lições
para suprir a falta deles. Com as Constituições de 1556, ficou proibi-
da a coabitação dos meninos com os padres, criando-se externa-
tos. Em 1568, a Congregação Provincial da Bahia propôs ao Ge-
ral a conveniência do estudo de Dialética no Colégio da Bahia. O
curso de Artes (Filosofia e Ciências) começou em 1572.
Serafim Leite informa que no Brasil era lido o livro de texto
Cursus Conimbricensis e que era extremamente comum o uso de ma-
nuais. Em 1593, o curso de Artes da Bahia tinha 20 alunos; em 1598,
40. A Teologia Moral, conhecida como Casos de Consciência, foi
ensinada a partir de 1556, no Colégio de São Vicente. Teologia
Dogmática (ou Especulativa) foi ensinada a partir de 1572 para os
membros da Companhia e, a partir de 1575, para os externos. No
104
Luiz Alves de Mattos levanta a hipótese de que esse moço degredado era Martinote,
aluno de Diogo de Teive, mestre do Real Colégio das Artes de Coimbra preso pelo Santo
Ofício da Inquisição acusado de luteranismo. Martinote possuía um catecismo de Calvino
anotado e, depois do processo inquisitorial, foi degredado para o Brasil. Cf. Mattos, op.
cit. pp. 147-155.
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101
Colégio da Bahia, havia 4 anos de leitura da Summa Theologica, de
Santo Tomás de Aquino.
O Real Colégio das Artes de Coimbra foi o modelo para as
colônias de Portugal. O ensino ministrado nos colégios fundados
por Nóbrega seguiu os seus programas e, como propõem alguns
autores, também os do Colégio de Évora, pertencente à Compa-
nhia de Jesus. O subsídio real dado aos Mestres de Coimbra era a
título de ensino; o subsídio dos Mestres ultramarinos era a título de
missões. O modo da concessão determinava obrigações diferentes:
em Coimbra, o subsídio escolar tinha o ônus jurídico de dar ensi-
no a todos que o quisessem ter segundo o estatuto da instituição;
no Estado do Brasil, o subsídio missionário não implicava o ônus
jurídico de ensinar indiscriminadamente a todos, mas o de formar
padres para tornar a Província do Brasil autônoma quanto aos
seus meios de evangelização. Segundo Serafim Leite, em ambos
os casos o ensino era público. Nos colégios, além de pública, a
instrução era gratuita, diferentemente dos seminários, onde conti-
nuava a ser gratuita, mas era particular, destinada apenas àqueles
que se dedicavam à carreira eclesiástica.
No Estado do Brasil, frequentavam os colégios os filhos de
funcionários da administração portuguesa, de senhores de enge-
nho, de lavradores de canas, de criadores de gado, de oficiais me-
cânicos etc. Segundo Serafim Leite, os três estados tradicionais do
Antigo Regime na Europa – clero, nobreza, povo – sofreram no
Estado do Brasil uma transformação em que eram representados
apenas por um deles, brancos e filhos de brancos, que domina-
vam política e culturalmente o lugar, ao passo que índios e negros,
mesclando-se com os brancos, tinham a aspiração de ascender na
hierarquia com os nomes de “mamelucos” e “moços pardos”. O
autor acredita no que chama “tendência portuguesa e católica para
a atenuação dos preconceitos de raça”, por isso afirma que “con-
viviam lado a lado todos os homens livres, quer fossem brancos
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102
quer mestiços; e abaixo deles, os homens escravos”
105
. Deve-se
lembrar que essa convivência era, com muitas evidências,
hierarquizada por vários processos verticais que determinavam “não
é nascido quem quer”, pois não havia igualdade também entre os
“homens livres” brancos, fazendo-se distinção entre fidalgos e ple-
beus e, em cada uma dessas ordens, outras distinções evidenciadas
nos privilégios e suas representações.
A instrução e a educação subordinavam-se à coexistência ten-
sa do elemento livre com o elemento servil. Os índios já integra-
dos, quando não eram escravos em mesmo pé de igualdade com
os negros, viviam sob a tutela dos padres no regime dos
aldeamentos. Os escravos negros não tinham liberdade para bus-
car a instrução média e superior. Segundo Serafim Leite, a Com-
panhia de Jesus tomou medidas para dar-lhes amparo: o jesuíta
Pero Dias, conhecido como Apóstolo dos Negros do Brasil, es-
creveu uma Arte da Língua de Angola com a finalidade deliberada
de ampará-los. Nos colégios, foi fundado o “apostolado do mar”,
que se ocupava das almas de escravos que chegavam nos navios
negreiros; e foram multiplicadas as missões discorrentes, que saí-
am dos colégios a favor das almas dos negros dos engenhos e
fazendas. Quanto à catequese dos índios, tratada por Serafim Leite
principalmente nos Tomos I e IV da História da Companhia de Jesus
no Brasil, não se reduzia ao ensino religioso do catecismo, como
ocorria com os adultos, pois os meninos índios também recebiam
ensino de ler e escrever ou “elementos”
106
. Brancos e filhos de
brancos recebiam instrução nos colégios. Os padres não tinham
105
Serafim Leite S.J. História da Companhia de Jesus no Brasil. (Séculos XVII- XVIII-
Assuntos Gerais). Rio de Janeiro: Lisboa, Instituto Nacional do Livro:Civilização
Brasileira:Livraria Portugália, 1949; t. VII, p. 143.
106
Simão de Vasconcelos conta como os padres trabalhavam nas aldeias: “O modo de
ensinar, que nelas (aldeias) se usava, e ainda hoje persevera nas aldeias do Brasil (com
pouca variedade em algumas delas) é o seguinte: rompendo a manhã, em se ouvindo pela
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103
aldeia o sino que tange à missa, todos os meninos dela se vão ajuntar na capela-mor da
igreja, onde postos de joelhos, em coros iguais, entoam em voz alta louvores de Jesus, e
da Virgem; dizendo os de um coro: Bendito e louvado sempre seja o santíssimo nome de
Jesus; e respondendo os do outro: E o da bem aventurada Virgem Maria mãe sua para
sempre, amém: e logo todos juntos: Gloria Patri et Filio, et Spiritui Sancto, Amen. E nisto
continuam até chegar a missa. Chegada esta, a ouvem em silêncio e, acabada ela (idos os
mais índios) esperam eles no mesmo lugar o religioso que tem cuidado deles, o qual lhes
ensina as orações da doutrina cristã em voz alta, e após esta da mesma maneira os
mistérios de nossa santa fé, em diálogos de perguntas e respostas, compostos para este
efeito em língua do Brasil, da Santíssima Trindade, criação do mundo, primeiro homem,
encarnação, morte, e paixão, ressurreição e mais mistérios do Filho de Deus, do juízo
universal, limbo, purgatório, inferno, Igreja Católica etc. E ficam tão destros, que podem
ensinar, e ensinam com efeito em suas casas aos pais, que são mais rudes ordinariamente
(suposto que também estes e as mães têm sua particular doutrina todos os dias santos e
domingos na mesma igreja, com práticas acomodadas sobre elas). Acabada a doutrina,
tornam a dizer os meninos em coros: Louvado seja o santíssimo nome de Jesus. Respon-
dem os outros: E o da Santíssima Virgem Maria, mãe sua para sempre, amém. E logo
esperam que os mandem e vão todos juntos a suas escolas, a ler, escrever ou cantar,
outros, a instrumentos músicos, segundo o talento de cada um; e saem no canto e
instrumentos tão destros, que ajudam a beneficiar as missas e procissões de suas igrejas
com a mesma perfeição que os portugueses. (A cuja vista achando-se presente um bispo,
não pôde ter as lágrimas, considerando a capacidade que nunca imaginara em tais sujei-
tos). Nestas escolas gastam duas horas da manhã; e outras duas da tarde, tornando-se-
lhes a tanger o sino, a que pontualmente acodem. Tangendo as Ave-Marias da noite,
tornam-se a juntar à porta da igreja, e daqui formam procissão com cruz levantada diante,
e postos em ordem vão cantando pelas ruas em alta voz cantigas santas em sua língua, até
chegarem a uma cruz destinada, a cujo pé, postos de joelhos, encomendam as almas do
purgatório na forma seguinte, em sua língua própria. Fiéis cristãos, amigos de Jesus Cristo,
lembrai-vos das almas, que estão penando no fogo do purgatório; ajudai-as com um Padre-
Nosso, e Ave-Maria, para que Deus as tire das penas que padecem. E respondem todos:
Amém. Rezam em alta voz o Padre-Nosso, e Ave-Maria, e voltam com a mesma procissão,
e canto até a portaria dos padres, onde por fim entoam, e respondem como acima: Bendito
e louvado seja o santíssimo nome de Jesus etc. esperam que os mandem, e mandados se
vão a suas casas. Este é o exercício dos meninos; o dos padres é o que se segue. Batizam
os inocentes, catequizam os adultos, administram-lhes o Sacramento do matrimônio na lei
da graça, e o da Eucaristia aos que são capazes; ensinam-lhes a boa inteligência, observân-
cia e perfeição des todas estas cousas. Defendem a sua liberdade, curam suas doenças,
preparam-nos para bem morrer, sepultam os que morrem em suas igrejas...”. Cf. Simão de
Vasconcelos. Crônica da Companhia de Jesus. 3 ed. Petrópolis, Vozes, 1977, 2 v., v. II,
pp.15-16.
107
Mais informações sobre a nomenclatura da instrução primária ministrada pelos jesuí-
tas podem ser encontradas às páginas 146 e 147 da História da Companhia de Jesus no
Brasil, Tomo VII, do P. Serafim Leite, S.J.
obrigação de ministrar o ensino (era benemerência pública), nem
os pais eram obrigados a enviar os filhos à escola
107
.
A escolha da via oral para transmitir a verdade canônica confir-
mada no Concílio de Trento determinou a extraordinária reativação
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104
da Retórica antiga no ensino jesuítico. A conjunção, nos decretos
tridentinos, de uma reforma do sacerdócio e do episcopado, de um
lado, e de uma reforma da eloquência, de outro, teve por
consequência dotar o modelo do orator ciceroniano de uma autori-
dade, de uma substância e de um campo de ação sem medida co-
mum com o prestígio que lhe havia sido conferido pelo humanismo
ciceroniano anterior
108
.
Ao lado da Gramática e da Lógica, a disciplina Retórica fazia
parte do trivium medieval e nunca havia deixado de ser atuante. Na
situação tridentina e pós-tridentina, tornou-se uma das principais
disciplinas do ensino jesuítico, sendo generalizada em Portugal como
técnica aplicada em todas as práticas de representação até o século
XIX, quando uma nova conceituação do tempo histórico elimi-
nou a instituição retórica e o artista romântico passou a expor
publicamente sua bela alma dilacerada pela livre-concorrência.
A Contrarreforma definiu e prescreveu a representação, em geral,
como theatrum sacrum, teatro sacro ou encenação da presença provi-
dencial de Deus na história. Para tornar a dramatização eficaz, o
ensino da Companhia buscou na doutrina da eloquência de autores
gregos e latinos, fundamentalmente Aristóteles, o anônimo do Ad
Herennium, Cícero e Quintiliano, e de padres e doutores da Igreja
patrística e escolástica, os modelos orais para a educação de prega-
dores. Loyola mandava os alunos com talento para a oratória ir falar
nas ruínas do fórum romano onde Cícero havia falado. Nas Consti-
tuições, feitas entre 1548 e 1550 para os colégios da Companhia, o Pe.
Polanco determinou que aos domingos fossem realizadas conclu-
sões públicas de poética e retórica
109
. Nos colégios, a retórica ocu-
pava quatro horas por dia, duas de manhã e duas à tarde. Na pri-
meira hora da manhã, um discurso de Cícero era recitado de cor e o
108
Marc Fumaroli. L’âge de l’éloquence. Paris, 1994, pp. 142-148.
109
Aníbal Pinto de Castro. Retórica e Teorização Literária em Portugal. Do Humanismo ao
Neoclassicismo. Coimbra, Imprensa da Universidade, 1973, p. 34.
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105
mestre explicava seus preceitos. Na segunda hora, a primeira meia-
hora era ocupada com repetições e a correção de trabalhos de al-
guns alunos, enquanto os outros desenvolviam temas dados pelo
mestre ou corrigiam na lousa textos escritos por colegas em prosa
ou verso. Na segunda meia-hora, fazia-se a explicação de um trecho
do poema ou da prosa, seguindo-se um resumo. À tarde, na primei-
ra hora, dava-se a explicação de um discurso de Cícero, seguindo-se
algumas repetições. Na segunda hora, estudavam-se autores gregos,
como Homero, Píndaro, Eurípides, Sófocles, Demóstenes, Tucídides
e Xenofonte. Evidentemente, os textos gregos e latinos eram “mo-
ralizados”, extraindo-se deles tudo quanto atentasse contra a uni-
dade da Fé e do Império.
Os cursos eram dados como estudo de preceitos, estilos e erudição:
regras de ortografia; regras e exercícios de caligrafia; regras do latim,
declinações de substantivos, adjetivos, pronomes; conjugação de ver-
bos, consecução de tempos; sintaxe etc.; regras de outras línguas,
como o grego; regras de retórica, tipos de decoro, caracteres, pai-
xões e verossimilhanças; lugares-comuns da invenção, espécies de
disposição em ordem natural ou não; partes do discurso; tropos e
figuras de estilo; técnicas da memória buscadas nas antigas
mnemotécnicas gregas ou artes memoriae latinas; técnicas da ação, modos
de empostar a voz, gestos do corpo, expressões faciais, movimen-
tos da mão etc. como declamação, dramatização etc. Quanto aos
exercícios, o primeiro deles era o trabalho de declinar; o segundo, o
trabalho de aprender os preceitos das artes e memorizá-los; o ter-
ceiro, o de perguntar e responder; o quarto, o exercício de falar; o
quinto, o de compor. No caso, todo dia o aluno escrevia durante
uma hora vigiado pelo mestre; passava de um gênero literário a
outro segundo sua progressiva complexidade. Cícero era proposto
à imitação como o principal modelo de pureza do latim,
engenhosidade dialético-retórica e perfeição da elocução artística.
No Estado do Brasil, o ensino de ler e escrever seguia o precei-
to genérico, aplicado nos colégios portugueses, de que os conheci-
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106
mentos são adquiridos por meio da imitação e repetição de mode-
los de autoridades (auctoritates) de diversas disciplinas e saberes. Como
em Portugal, a instrução e a erudição da memória eram fundamen-
tais. A repetição das coisas a serem memorizadas era feita na forma
de exemplos, que forneciam erudição e treinamento para as artes de
falar e escrever. A imitação das autoridades antigas na educação
jesuítica já foi acusada muitas vezes de ser um “memorismo”, ensi-
no baseado na decoração de lições que supervaloriza a memória de
saberes tradicionais em detrimento de outras faculdades mais “críti-
cas”. Para situar as coisas historicamente, deve-se lembrar que o modo
de pensar escolástico dos jesuítas do século XVI não é liberal ou
progressista e que o fundamento da memorização é a filosofia de
Aristóteles. Na Instituição oratória (11,2,1) Quintiliano afirma que a
disciplina retórica baseia-se inteiramente na memória. Duas ideias
aristotélicas fundamentam essa afirmação. A primeira é que só existe
pensamento por imagens, entendendo-se pelo termo “imagem
(eikon) a forma dada por signos ao phantasma mental ou conceito na
figuração exterior. A outra é que a memória inclui-se na imaginação,
ou seja, a memória também é constituída por imagens. Como diz
Aristóteles, quando lembramos, é preciso partir de alguma coisa e
essa coisa é um topos, um “lugar”. Nos Tópicos e na Retórica, sistemati-
za os topoi como lugares dialéticos e retóricos, definindo os primei-
ros como argumentos próprios da dedução lógica e, os segundos,
como argumentos usados pelo orador para persuadir a audiência
em causas particulares. Cícero adaptou retoricamente os topoi
aristotélicos aos usos da oratória forense, definindo-os como sedes
argumentorum, sedes dos argumentos. Para ensinar a memorização
dos lugares, os jesuítas fazem como Aristóteles e Cícero, colocando
os lugares (loci, loci communes) nos lugares físicos imaginários (loca) das
antigas artes da memória gregas e latinas. Eles são visitados pela
memória do aluno na invenção, na memorização e na proferição do
discurso. Em De differentis topicis, Boécio (480-524) redefiniu os luga-
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107
res ciceronianos e aristotélicos como verdades universais evidentes,
que constituem a premissa maior de silogismos. A conceituação do
lugar como kephalé ou caput, cabeça do argumento, inclui-se num
método lógico de produzir inferências que levam a conclusões. Nos
dois últimos livros da obra, Boécio trata dos lugares retóricos como
argumentos aplicáveis em causas particulares como silogismo retórico,
entimema ou dedução metafórica que visa efetuar a verossimilhança
apta a convencer a audiência da verdade do discurso, mais que prová-
la dialeticamente. Depois de Boécio, a Bíblia passou a fornecer luga-
res considerados verdades cristãs e diversas compilações deles, fei-
tas como concordâncias ordenadas por ordem alfabética de tópi-
cos, foram comuns no uso de sermonistas. No século XV, a im-
prensa facultou a edição de florilegia, antologias ou florilégios de enun-
ciados de prosadores e poetas que exemplificavam os bons usos do
latim. No ensino jesuítico, o lugar-comum aprendido de cor pelos
alunos foi entendido como argumento genérico ou questão
indeterminada como “sede de argumentos” a ser preenchida com
uma questão determinada ou particularizadora. O lugar também foi
uma rubrica, um índice classificatório de assuntos, como ocorre com
os conceitos predicáveis extraídos das Escrituras que os oradores
sacros então colecionam em caderninhos, adequando-os à invenção
dos sermões pregados nas datas litúrgicas da Igreja. O lugar tam-
bém era ensinado como a premissa maior de um silogismo
amplificada numa demonstração
110
. Não há, porém, uma lista me-
tódica de todos os lugares. O que mais se aproximou de uma tópica
ou sistematização deles foram os repertórios de exempla medievais
110
Quando o orador fala no gênero deliberativo, são lugares-comuns o útil, o honesto, o fácil,
o agradável, o necessário, o que se deve temer, o que se deve esperar etc. No gênero
demonstrativo, a nação, a pátria, os bens (males) do corpo, como a beleza e a feiúra; os
bens (males) do ânimo ou da alma, como as virtudes e os vícios. No gênero judicial, a culpa
(a inocência) do réu, o lugar do crime, os instrumentos do crime, as motivações, os castigos
etc. Quando fala o poeta, o lugar horrendo, o lugar ameno, a invocação da musa, a
dedicatória, o florebat olim studium, o bom saber antigo, o ubi sunt, onde estão as coisas
idas, o lugar da vanitas etc. Nos vários gêneros, também o lugar do natural efetuado como
artifício de dizer que as coisas, a ordem e as palavras do discurso não têm artifício etc.
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108
de virtudes e vícios ordenados alfabeticamente. No século XVI, foi
comum na Companhia de Jesus um gênero, polyanthea, composto
como antologia de definições de virtudes e vícios dispostas em or-
dem alfabética e trechos de prosa e poesia extraídos de autores gre-
gos, latinos, patrísticos e escolásticos que os exemplificam.
Além de Cícero, também Demóstenes, César, Tito Lívio e
Salústio eram lidos, explicados, memorizados e imitados nos exercí-
cios de prosa. Nos exercícios de composição poética, imitava-se
um Ovídio moralizado, considerado mais fácil; depois Virgílio, se-
guido de Horácio, sempre expurgados, como foi dito, de qualquer
passo onde houvesse vestígio de “impureza”. O sexto e último exer-
cício era a explanação de autores feita pelos mestres; alunos mais
adiantados expunham para os outros algum trecho escolhido das
letras, das belas letras, da filosofia e da teologia. Além desses, eram
contínuos os exercícios de memorização dos lugares-comuns
retóricos e dialéticos. Aos sábados, faziam-se conclusões especiais
em cada classe, com debates; no primeiro sábado de cada mês,
todos se juntavam numa sala grande, realizando cerimônias solenes.
Os mestres costumavam marcar alunos competidores em cada classe.
Quando um deles era interrogado, o outro prestava atenção para
corrigi-lo, se errava as respostas. Acreditava-se que a emulação os
fazia querer estudar mais
111
. No colégio de Coimbra, as disputas
dos dialéticos e filósofos aconteciam nas terças e quintas à tarde e
duravam duas horas. Também o teatro foi atividade didática. No
colégio de S. Antão foi levada em 31 de maio de 1556 a primeira
peça de professores da Companhia em Portugal, Acolastus (“licen-
111
Cf. Francisco Rodrigues, S. J. “Sistema de ensino e educação da juventude”. In:
História da Companhia de Jesus na Assistência de Portugal. Porto, Apostolado da Im-
prensa, 1931, Tomo 1 (A Fundação da Província Portuguesa 1540-1560), v. II (Tribulação-
Colégio-Missões).
Sobre o ensino jesuítico, cf. François de Dainville. L’éducation des jésuites (XVIe-XVIIe
siècles). Paris, Minuit, 1978;; João Adolfo Hansen. “Ratio Studiorum e Política Católica
Ibérica no Século XVII”. In: Diana Gonçalves Vidal e Maria Lúcia Spedo Hilsdorf (Org.).
Brasil 500 Anos: Tópicas em História da Educação. São Paulo, Edusp, 2001, pp. 13-41.
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109
cioso”, “pródigo”). As peças eram escritas e representadas em latim
e seus temas eram desenvolvidos visando à correção moral e à per-
feição da alma. Em todos os casos, cumpria-se a regra das Constitui-
ções: o fim dos estudos da Companhia é o proveito da própria alma
e das almas do próximo. Assim, desde a classe inferior de gramática
(latim), os alunos também aprendiam as cerimônias e os ritos cris-
tãos, que eram sistematizados doutrinariamente nos cursos mais adian-
tados de Artes, ou seja, filosofia e teologia.
No Estado do Brasil, o ensino dos colégios inicialmente se
concentrava na doutrinação dos meninos índios, que aprendiam a
ler, escrever e cantar. Como diz Anchieta,
estos trabajamos de tener debaxo nuestra mano para que después
vengan a succeder en lugar de sus padres y hagan pueblo de Dios
112
.
Na carta trimestral de maio-agosto de 1556, Anchieta infor-
ma como é feita a doutrinação dos curumins.
Quase todos vêm duas vezes por dia à escola, principalmente de
manhã, pois à tarde todos caçam e pescam. Se não trabalham, não
comem e, muitas vezes, nem os padres
113
.
O principal cuidado que os religiosos têm com eles é declarar-
lhes os rudimentos da fé, sem descuidar do ensino das letras. Anchieta
afirma que os meninos índios estimam tanto esse ensino que, não
fosse ele, os jesuítas não poderiam conduzi-los a mais nada. En-
quanto os meninos aprendem coisas da fé por meio de um formu-
lário de perguntas, também aprendem a negar sua cultura:
Se acaso algum deles pouco que seja, se dá, ou pelo jeito do corpo ou
pelas palavras ou de qualquer outro modo, a alguma coisa que tenha
ressaibo de costumes gentios, imediatamente os outros o acusam e
112
José de Anchieta .“Carta de Piratininga, setembro de 1554”. In: Serafim Leite, S.J.
Cartas dos primeiros jesuítas do Brasil. São Paulo, Comissão do Quarto Centenário da
Cidade de São Paulo, 1954, v. II, p. 121.
113
Antônio Blázquez informa, em carta escrita da Bahia em maio de 1556, que na povoação
do Tubarão há cerca de trinta moços recebendo a doutrina e aprendendo a ler. Ninguém sai
da aldeia sem pedir permissão aos padres. Como ela não fica perto do mar, os meninos têm
que ir muito longe para pescar. Só vão juntos, em grupo, com medo de inimigos acostuma-
dos a esperá-los, o que muitas vezes é causa de eles e seus mestres padecerem muita
fome. Cf. Serafim Leite, S.J. Cartas dos primeiros jesuítas do Brasil, Ed. cit. p. 269.
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110
se riem dele. Um, repreendendo-o eu por estar a fazer um cesto ao
domingo, trouxe-o no dia seguinte à escola e queimou-o diante de
todos por o ter começado ao domingo...”
114
.
Alguns alunos quebravam as cuias em que os pais bebiam
cauim, admoestando-os
115
. O Irmão Antônio Rodrigues, mestre
no colégio de Piratininga, mandava os meninos buscar os pregui-
çosos que faltavam à lição. Eles os prendiam e carregavam nas
costas e, conforme Rodrigues, todos se divertiam. A partir de
1556, principalmente, a presença dos meninos e moços índios na
escola passou a ser garantida pelas medidas disciplinares do go-
vernador geral, como fica evidente na carta que o Irmão Antônio
Pires escreve ao provincial de Portugal no Colégio da Bahia, em
12 de setembro de 1558: a proibição de comer carne humana e a
pena de morte para quem o faz determinadas pelo governador
geral atemorizam os índios, servindo como “andaimes” da “pe-
dagogia do medo” na edificação das almas das crianças:
“Todos estes vão perdendo ho comer carne humana e, se sabemos
que alguns ha tem pera comer e lha mandamos pedir, ha mandão,
como fizerão os dias passados, e no-la trazem de mui longe pera que
a enterremos ou queimemos, de maneira que todos tremem de medo
do Governador, o qual, ainda que não baste pera a vida eterna, abastará
pera poderemos com elle edificar, e serve-nos de andaimes até que se
forme bem neles Christo; e a charidade, que Nosso Senhor dará, lhes
fará botar fora o temor humano pera que fique edeficio fixo e firme.
Este temor os faz habilis pera poderem ouvir a palavra de Deos:
ensinam-se seus filhos; os inocentes que morrem vão todos
bautizados; seus custumes se vão esquecendo e mudando-se em ou-
tros boons; e, procedendo desta maneira, ao menos a gente mais
nova, que agora há e delles proceder, ficará huma boa christandade”
116
.
114
José de Anchieta. “Carta trimestral, São Paulo de Piratininga, maio-agosto de 1556”.
In: Serafim Leite, S.J. Cartas dos primeiros jesuítas do Brasil, Ed. cit., p. 308.
115
“Carta do Irmão Pero Correia, S.Vicente, 18/7/1554”. In: Serafim Leite, S.J. Cartas dos
primeiros jesuítas do Brasil. Ed. cit., v. II, p. 70.
116
“Carta do P. Antônio Pires, Bahia, 12 de setembro de 1558”. In: Serafim Leite, S.J.
Cartas dos primeiros jesuítas do Brasil. Ed. cit. v. II, p. 471.
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111
As cartas de Nóbrega
Desde 1547 a correspondência é um dispositivo essencial no
programa da devotio moderna jesuítica. Nesse ano, o Pe. Juan de Polanco
determina que todas as Províncias da Companhia mandem cartas
para Roma relatando os acontecimentos das missões. A troca de
cartas é um dispositivo educativo e disciplinar. Fornece informações
e constitui as redes de sociabilidade em que elas garantem o controle
dos superiores. Todas as vinte razões para escrever cartas expostas
pelo Pe. Polanco em sua carta visam à união e ao fortalecimento da
Companhia com o amor e o encorajamento mútuos de seus mem-
bros. Ordenadas em torno do conceito central de caridade, as razões
podem ser resumidas segundo quatro finalidades principais,
observáveis nas cartas escritas por Nóbrega e outros jesuítas no
Estado do Brasil entre 1549 e 1570. A primeira delas é a coleta de
informações sobre os povos com que os religiosos fazem contato,
principalmente sobre suas línguas e costumes, para a confecção de
dicionários, gramáticas e catecismos usados, muitas vezes, no treina-
mento de jovens missionários antes de serem enviados para as mis-
sões. A segunda finalidade é o controle interno da Companhia. O
Pe. Polanco exige que em anexos das cartas sejam enviadas informa-
ções minuciosas sobre desânimos, desistências, crises e conflitos dos
religiosos. A terceira finalidade, relacionada à anterior, é o reforço da
unidade mundial da Ordem. Depois de lidas e censuradas por Polanco
e sua equipe romana, as cartas são traduzidas para outras línguas e
enviadas para todas as missões jesuíticas
117
. Jesuítas trabalhando no
117
Segundo Serafim Leite, as cartas jesuíticas passaram a ser traduzidas para o latim a
partir da insistência do P. Jerónimo Nadal que, de Innsbruck, em 5 de dezembro de 1562,
escreve ao P. Francisco de Borja: “(...) por el deseo que tengo tan grande que se ayude
Alemaña y la Compañia en ella, entre otras cosas, pensé mucho tiempo ha que las mejores
cartas de las Indias, imo todas las que pareciessen poder dar alguna aedificación, se
hiziessen latinas, y se estampassen”. A primeira impressão foi feita em Lovaina, em 1566,
seguida de Epistolae Iapanicae, editadas na mesma cidade, em 1569 e 1570. Nestas
últimas, incluiu-se a “Informação das terras do Brasil”, carta de Nóbrega datada de 1549 e
traduzida por Fúlvio Cárdulo. Em 1570, ano da morte de Nóbrega, a “Informação” tinha 6
edições, e estava traduzida em espanhol, italiano e latim; em 1586, saiu em alemão. Cf.
Serafim Leite,S.J. Op.cit. pp. 59-60.
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112
Estado do Brasil e em Angola, por exemplo, ficam informados
sobre o que está acontecendo com religiosos da Índia e vice-versa.
As cartas do Brasil demoravam em média quatro meses para chegar
a Lisboa; a Roma, seis. Por isso, Polanco exigia cópias remetidas por
vias diversas. Nas cartas de Nóbrega, encontram-se passagens onde
conta que os padres leem a correspondência como edificação da alma
e reforço da unidade da Companhia. Quando finalmente chegam os
navios que as trazem, ficam acordados até a madrugada, ouvindo um
companheiro lê-las em voz alta. Choram de júbilo com as notícias de
companheiros martirizados, desejando esse fim para si, pois sabem
que os mártires estão com Cristo. A quarta finalidade das cartas é
atender a demanda das elites letradas da Europa, que passam a inte-
ressar-se pelas maravilhas do Novo Mundo. O Pe. Polanco a eviden-
cia na carta de agosto de 1553 que envia para Nóbrega:
... y tanbién satisfazerse ha a muchos señores principales, devotos, que
querían se scriviese algo de lo que he dicho
118
.
Depois de enviar fórmulas da profissão e dos conselhos da
Ordem em uma carta para Nóbrega datada de Roma, 18 de julho
de 1553, Loyola determina disposições sobre a correspondência:
...V.R. tenga forma de scrivir y hazer que los suyos scrivan a Roma
(ultra de lo que querrán scrivir a Portugal), no solamente de cosas de
edificación, pero lo demás tanbién, que conviene que sepa el Prepósito
General; y las letras de edificación no contengan otros negocios.
Vengan de por si
119
.
Em agosto de 1553, por comissão de Loyola, o Pe. Polanco
escreve para Nóbrega especificando como e quando as cartas de-
vem ser escritas. A determinação sistematiza tanto o ato da escrita
quanto o teor das informações a serem transmitidas. Polanco de-
termina que o provincial (ou seu substituto) seja o responsável pela
118
Serafim Leite, S.J. Cartas dos primeiros jesuítas do Brasil. São Paulo, Comissão do IV
Centenário da Cidade de São Paulo, 1954, 3 v., v. I, p. 520.
119
Inácio de Loyola. “Carta de Roma, 18 de julho de 1553”. In: Serafim Leite, S.J. Op.cit.,
v. I, p. 513.
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113
remessa de cartas de todos os padres. Para não haver falta de
correspondência, deve ordenar que escrevam até com meses de
antecedência. Na mesma carta, referindo-se às “letras mostrables”,
Polanco faz o rol das coisas que deverão ser escritas com minúcias
que esquadrinham o dia a dia da missão:
En las letras mostrables se dirá en quántas partes ay residentia de la
Compañia, quántos ay en cada una, y en qué entienden, tocando lo
que haze a edificatión; asimesmo cómo andan vestidos, de qué es su
comer y beber, y las camas en que duermen, y qué costa (sic) haze
cada uno dellos. También, quanto a la región dónde está, en qué
clima, a quántos grados, qué venzindad tiene la tierra, cómo andan
vestidos, qué comen, etc.; qué casas tienen, y quántas, según se dize,
y qué costumbres; quántos christianos puede aver, quántos gentiles
o moros; y finalmente, como a otros por curiosidad se scriven muy
particulares informaciones, así se scrivan a nuestro Padre, porque
mejor sepa cómo se ha de proveer…
120
Prevendo informações não edificantes, ordena que não de-
vem deixar de ser comunicadas, mas secretamente, em anexos,
podendo-se supor que se acautela quanto à virtual apropriação
das coisas “não-edificantes” por inimigos da Companhia
121
. Como
foi dito, os vários motivos para escrever cartas podem ser agrupa-
dos em torno da ideia de caridade. Os exemplos são muitos, como
o de uma carta de Goa, de l de dezembro de 1552, em que Luís
Froes escreve para os Irmãos de Coimbra:
As cartas que de Portugal vieram, assim desse Colégio como do
Brasil, no ano de 52, sobre maneira nos alegraram, e houve com elas
assaz de fervor. Na noite que chegaram, se leram com campainha
tangida até à uma depois da meia-noite, e no refeitório todos os dez
dias seguintes. E logo, tresladado o sumário delas, foram mandadas
120
Idem, ibidem p. 520.
121
Serafim Leite adverte que se devem ler com desconfiança as cartas emendadas pelo P.
Polanco, pois este costumava fazer cortes e alterações muito livremente, antes de editá-las.
Serafim Leite cita WICKI, DI i 65: Versiones vero quae ex testibus a P.Polanco ortum habent,
aut ab ipso sunt correcta, caute adhiberi debent, cum sciamus qua libertate ipse textus
originales et versiones resecaverit, cuius rei plurima exempla codex Goa 10 (praeter alios)
praebet. Cf. Serafim Leite. Cartas dos primeiros jesuítas do Brasil. Ed. cit., v. I, p. 58.
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114
à China, Japão, Maluco e Malaca, e todas as mais partes onde os
Padres nossos andam. E se soubésseis, caríssimos, quanto cá soam
as novas que de lá vêm, e quanto o povo, além dos Irmãos, as deseja
e cobiça, e quantas relíquias se cá fazem de vossas cartas, sem dúvida
que me parece que vos ofereceríeis a qualquer detrimento do corpo
por dardes cá aos Irmãos recreações tão suaves
122
.
Nóbrega subordina a redação de suas cartas às diretivas
estabelecidas em 1547 pelo Pe. Polanco e às determinações
especificadas nas Constituições da Companhia publicadas por Loyola
em 1558. Este afirma que, enquanto observava certas coisas em
sua alma e as julgava úteis, parecia-lhe que poderiam ser úteis tam-
bém aos outros e por isso as escrevia. A prática da escrita deve
levar à eleição de uma vida virtuosa em que a purgação do pecado
e a iluminação da alma significam a eleição de Deus e a união com
Ele. Os Exercícios Espirituais são escritos como o livro de um mes-
tre que se dirige a alguém que os pratica para alcançar esse fim.
Nóbrega segue o preceito, escrevendo cartas que inicialmente são
lidas por homens da Companhia que, depois de corrigi-las, as trans-
mitem a outros como lição a ser memorizada e repetida. Assim,
compõe o remetente de suas cartas como tipo discreto, orientado
pela caritas inaciana, que o faz capaz de distinguir o meio-termo
justo das questões tratadas. O remetente domina os protocolos
dos decoros hierárquicos que regulam a forma da sua representa-
ção, da representação do destinatário e das informações enviadas.
122
Cf.Serafim Leite, S. J. Op. cit. v. I, p. 54. Serafim Leite refere a chegada de cartas à
Bahia, em 21 de julho de 1559, que têm recepção análoga à de Luís Froes em Goa:
“...começando-as a ler, começamos a receber novas forças e novos desejos, e novos
louvores ao Senhor começamos a pintar, pelas mostras das mui heróicas obras obradas
pelo Espírito Santo, aos que não conhecíamos”. Ou, ainda, em 20/21 de maio de 1564, na
Aldeia do Espírito Santo, Baía: “Consolou-nos também o Espírito Santo em sua Casa e em
sua mesma véspera, com as cartas que recebemos aquela noite de Portugal; porque,
segundo minha estimativa, seriam duas horas depois da meia noite quando por casa entrou
o que as trazia. Não cabiam os Irmãos de contentamento e prazer, vendo o muito que o
Senhor se dignava de obrar em suas criaturas, por intermédio dos da Companhia em tantas
e tão diversas partes do mundo. Daí até de manhã não havia quem pudesse dormir, porque
logo o Provincial começou a ler as cartas”. In: Serafim Leite, op. cit., v. I, p. 55.
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115
Para escrevê-las, aplica os preceitos antigos que definem as partes
e os estilos da correspondência:
salutatio; exordium (captatiobenevolentiae); narratio (argumentatio; petitio;
conclusio; subscriptio. Ou: saudação; exórdio (captação de benevolência); nar-
ração (argumentação); solicitação; conclusão; assinatura. Na composição
das partes, imita os preceitos das litterae ou cartas de Cícero, Sêneca
e Plínio; do tratado de Demétrio de Falero sobre a correspondên-
cia; dos textos de Hugues de Saint Victor e do Anônimo de Bolo-
nha sobre a ordem contínua da prosa epistolar etc.
123
Abrindo-se com breve salutatio, a saudação, a carta imita a sau-
dação das cartas e epístolas paulinas. Hierarquicamente decorosa, é
adequada à pessoa do destinatário: “A graça e o amor de N. Senhor
Jesu Christo seja sempre em nosso favor e ajuda. Amen”
124
. Desde
a primeira linha, o remetente firma o contrato com o destinatário
no diálogo em que se mescla amizade (Nóbrega escreve para o mes-
tre e amigo Simão Rodrigues) e sacralidade (inscrevendo o ato de
escrever na Presença divina, faz dele uma ocasião de iluminação do
remetente e do destinatário pela Graça). Seguindo as regras hierár-
quicas da Companhia de Jesus, aplica os decoros prescritos nas an-
tigas artes dictaminis: dirigida a superior, não pode ser jocosa; a igual,
não pode ser descortês; a inferior, não deve ser orgulhosa. As cartas
são graves, sem jocosidades, pois dirigem-se a autoridades, o rei
Dom João III, Mestre Simão Rodrigues, Inácio de Loyola, Diego
Laynez etc. Ou a iguais, como os Irmãos e amigos de Coimbra e
Lisboa, tratados sempre com muita cortesia como “irmãos em
Cristo”. No diálogo, o nome próprio ou o pronome de primeira
pessoa do singular representam o remetente, significando que seu
discurso é autorizado como repetição do discurso da Companhia.
Composto como autoridade, interpreta o que diz para o destinatá-
123
Cf. Alcir Pécora. “A Arte das Cartas Jesuíticas do Brasil”. In: Alcir Pécora. Máquina de
Gêneros. São Paulo, EDUSP, 2001.
124
Manuel da Nóbrega, S.J. “Carta de 10/4/1549”. In Serafim Leite, S.J. Op. cit., v. I, p. 109.
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116
rio reproduzindo códigos comuns a ambos. O destinatário está au-
sente, na Europa, e ignora as circunstâncias do Estado do Brasil
donde se extraem os assuntos da carta. A teologia-política comum a
ambos interpreta o que é dito, tornando-o familiar.
A participação dos negócios humanos na Coisa divina é pressu-
posta já na fórmula da saudação. Em geral, o discurso é composto
como sublimitas in humilitate, o sublime no humilde ou o estilo que
“leva aos humildes a verdade sublime das Escrituras”, de Bernard
de Clairvaux ou Bernardo de Claraval. Nas cartas, esse estilo pro-
duz o contraste das práticas humildes dos padres no Estado do
Brasil e o drama universal da Redenção, incluindo-as na perfeição
divina como ações que, iluminadas pela Graça, prefiguram profeti-
camente a realização do Reino de Deus. O remetente afirma partici-
par em seu Destinador essencial, o que implica a não-existência de
“psicologia” como expressão do seu “eu” individual, mas a com-
posição de um tipo institucional grave e prudente por meio da apli-
cação verossímil e decorosa do caráter retoricamente adequado a
um padre da Companhia de Jesus. Dotado de um caráter ou éthos
retórico, o “eu” do remetente é “ficção de pessoa” e, seu discurso,
imitação de uma fala de “pessoa natural”. A ficção de pessoa e a
imitação da fala de “pessoa natural” especificam a mensagem como
sermocinatio
125
. A carta refere a humildade das tarefas executadas na
missão com a obediência, a prudência, a paciência e a perseverança
próprias de um homem de Deus; simultaneamente, inscreve as tare-
fas na Palavra essencial de que recebem participativamente a
legitimação sublime. Assim, o remetente compõe a referência a se-
res e eventos da terra do Estado Brasil interpretando a sua diferença
em relação à Europa com a unidade da significação divina, que os
dota do sentido transcendente de sua orientação providencial.
125
Na Instituição oratória 9,2,29, Quintiliano a chama de “ficção de pessoa”, Ou seja:
fingimento da pessoa de um homem com a aplicação de afetos de idade, estudo, fortuna,
alegria, sexo, sofrimento, audácia etc.
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117
Como imitação da fala, o caráter de humildade é constante; às
vezes, Nóbrega compõe os afetos momentâneos do remetente
com caracteres como desânimo, indignação, espanto. Eles são le-
gíveis, por exemplo, na carta de 8 de maio de 1558, em que
Nóbrega fala sobre a morte do bispo Pero Fernandes Sardinha
126
.
A imitação do oral é feita como adequação verossímil da escrita a
uma informalidade de dicção que reproduz ritmos da fala de ti-
pos simples, humildes e virtuosos. Fazendo contínuas interpolações
de textos latinos do Velho e do Novo Testamento, Nóbrega os usa
como elementos costumeiros de composição da humildade da
fala; por vezes, cita versos latinos, como os de Virgílio. Diz, por
exemplo, numa carta de fins de agosto de 1552: “Por todas as vias
que posso escrevo a V.R. quia amo Patrem meum qui et ipse amat me”,
citando São João, 16,27; 21,15-17
127
. O uso de provérbios bíblicos
e versos latinos faz o presente brasileiro do remetente integrar-se
na exemplaridade de ações e eventos sublimes do passado.
Em uma carta para o Pe. Simão Rodrigues, em Lisboa, data-
da de São Vicente, 12 de fevereiro de 1553, Nóbrega fala do estilo
e da ordem dos assuntos da carta, afirmando:
Yo quando escrivo a V.R. no tengo cuenta con más que hablarle por
carta como en presencia sin tener respecto a la orden ni a lo que
escrivo si es mal si bien
128
.
A aparente desatenção à ordem de disposição das partes é
retoricamente adequada ad movendos animos, para comover os âni-
mos, como imitação do discurso de uma pessoa natural “en presen-
cia”. O desalinho aparente da disposição das partes e o uso do
estilo chão ou simples, quase sem ornamentos, produzem a
imediatez da presença do remetente como se estivesse falando
126
Manuel da Nóbrega, S.J. “Carta de 8/5/1558”. In: Serafim Leite. Cartas dos primeiros
jesuítas do Brasil. Ed. cit. v. II, p. 445.
127
Manuel da Nóbrega, S.J. In: Serafim Leite. Op.cit. v. II, p. 401 (“porque amo o meu Pai
o qual ele mesmo me ama”).
128
Manuel da Nóbrega, S.J. In: Serafim Leite, S.J. Op.cit., v. II, p. 422.
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118
diretamente com o destinatário. No caso, a escrita também evi-
dencia a ideia ciceroniana do De oratore: o discurso deve demons-
trar a qualidade da matéria tratada. O remetente vê as ações que
narra de uma perspectiva empenhada, favorável ou desfavorável
às causas tratadas. Mesmo nos momentos de maior desânimo de-
corrente da “inconstância” suposta nos índios, encontra-se a “sim-
patia” que o caracteriza como humanos e iluminados pela luz da
Graça; ou a “antipatia” pelos colonos, censurados como pecado-
res. Assim, a carta estabelece a qualidade dos assuntos especifican-
do descritivamente no estilo simples os atributos sensíveis dos se-
res e eventos. O estilo pouco ornado é adequado didaticamente à
verdade. O duplo padrão – humilde e sublime – relaciona a narração
à doutrina ético-jurídica de certo/errado fundamentada nos dogmas
católicos. O duplo padrão especifica a equidade do “eu” do re-
metente que, preferindo o sentido próprio do estilo simples, com-
põe a fala humilde como capacitada para convencer evangelica-
mente o destinatário quanto ao sublime de sua Causa eficiente e
final. Com isso, a escrita é inventada como a circumscriptio
129
defini-
da por Santo Tomás de Aquino na Ética: um esboço ou o resulta-
do sensível das escolhas prudentes do juízo do remetente que as
regula eticamente na escrita como proporção retórica “simples”
que comunica verdades. Por consequência, o decoro da escrita tam-
bém é conveniência moral e ética. Por meio da proporção do
duplo padrão de humildade e sublime da adequação da escrita aos
temas do Brasil, as cartas evidenciam para o destinatário que o
decoro do seu estilo corresponde à equidade da prudência do
“eu” do remetente. É estilo fundado de direito na Verdade. As
cartas também tratam dos assuntos propondo ao destinatário a
deliberação de medidas a serem tomadas no futuro. Aqui, o reme-
tente evidencia a qualidade moral do seu caráter prudente empe-
129
Santo Tomás de Aquino. Ética, 1.7. A circumscriptio é uma espécie de esboço exterior
do bonum finale hominis, quod est felicitas, “o bem final do homem, que é a felicidade”.
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119
nhando-se em aplicações práticas e úteis, definidas como caridosas
e justas, obedecendo ao lema de Loyola.
Depois da saudação, Nóbrega costuma escrever um exórdio.
Nele, quase sempre faz referência ao ato de escrever com pequenas
considerações, prescrições e resumos. Por exemplo:
Depois de ter scripto a V.R., posto que brevemente segundo meus
desejos, soccedeo nom se partir a caravela e deu-me lugar para fazer esta
e tornar-lhe a encomendar as necessidades da terra e ho aparelho que
tem para se muytos converterem. E certo hé muyto necessario aver
homens qui quaerant Iesum Christum solum crucifixum. Cá há clérigos,
mas hé a escoria que de lá vem: omnes quaerunt quae sua sunt. Non se
devia consentir embarcar sacerdote sem ser sua vida muyto approvada,
porque estes distruem quanto se edifica; sed mitte, Pater, filios tuos in
Domino nutritos, Fratres meos, ut in omnem hanc terram exeat sonus eorum
130
.
No exórdio é comum a captatio benevolentiae breve por meio da
referência aos pecados do “eu” do remetente. Constituído com o
caráter humilde, que o faz menor que as forças exigidas pela tarefa
evangélica, o remetente também se dignifica pela sua constância na
imitação de Cristo, segundo um lugar-comum da sublimitas in humilitate,
a perseverança nas boas ações. Declarando-se por meio de expres-
sões como “menor dos servos de Deus” ou de palavras de ordem da
Companhia, afirma sua obediência total como o “menor de todos” e
simultaneamente demonstra a perfeita subordinação de sua perseve-
rança como leal soldado de Cristo. Neste sentido, quando o remeten-
te afirma, como na primeira carta de 1549, “esta terra é nossa empre-
sa” e “cá não são necessárias letras, mas virtudes e zelo de Nosso
Senhor”, a figuração sublime e a tipificação humilde convergem na
escrita como laboriosa persistência na missão. O modelo do remeten-
te é nada menos que Cristo, que acende o fogo do caráter ardoroso
da sua fé. Ela se deseja imbatível, na medida mesma em que o reme-
tente afirma ser pecador. A ideia do pecado é o limite a partir do qual
130
Manuel da Nóbrega, S. J. “Carta da Baía, 15 de abril 1549”. In Serafim Leite, S. J. Op.
cit. v..I, p. 116 (“que busquem só Jesus Cristo crucificado....todos buscam suas próprias
coisas... mas envia, Pai, os filhos teus nutridos no Senhor, meus Irmãos, para que em
toda esta terra ecoe o som – a voz – deles).
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120
se determina o sentido da sua ação. Sempre pressuposta, permite-lhe
postular com firme determinação que, apesar de sua natureza peca-
dora, sua alma é perfectível. É da contínua referência ao pecado que
extrai a força que o move, pondo em cena a luta perene pelo auto-
controle de suas paixões empenhado na evangelização de colonos e
índios. Empenhadas de modo útil, as paixões gastam-se catarticamente.
Às vezes, o exórdio estende-se num ato de contrição com que o
remetente alega sua insuficiência moral, propondo que qualquer oca-
sião é momento de autoexame e obediência irrestrita às ordens dos
superiores. Reitera que a Companhia de Jesus é um “corpo místico”
que unifica as vontades de seus membros, que define aristotelicamente
como amigos. Pelo autocontrole, abrem mão das veleidades pessoais e
dominam as paixões, mantendo a concórdia e a paz necessárias para
o perfeito funcionamento do todo.
Assim, as cartas de Nóbrega reproduzem a educação e a discipli-
na da Companhia que determinam o “dever ser” da sua ação nos
negócios temporais e espirituais do Estado do Brasil. O remetente de
suas cartas é um tipo social previsto pelas Constituições e Regras da Com-
panhia: realiza publicamente o vínculo de obediência à sua Ordem
131
aplicando os modelos retórico-doutrinários da educação de seus ir-
mãos em Cristo que também fizeram o seminário, Teologia e os vo-
tos. Nóbrega é autor como tipo autorizado que imita a auctoritas dos
modelos da memória comunitária do corpo místico da Companhia.
131
Cf. Santo Inácio de Loyola. Constituições da Companhia de Jesus. Trad. e notas de
Joaquim Mendes Abranches, S.J. Lisboa, Província Portuguesa da Companhia de Jesus,
1975. Veja-se, por exemplo: [77]: “Se as pregações e ministérios se exerceram noutras
partes distantes do lugar e da casa, deverá trazer um atestado dos sítios onde tiver
passado um tempo notável, ou das autoridades públicas (tendo grande conta de todos os
Ordinários), que dê plena garantia de que semeou a palavra divina e cumpriu o ofício de
Confessor com sã doutrina, bom exemplo de vida, e sem ofensa de ninguém”; [109]: “ Para
exercer o ofício de semeador e ministro da palavra divina e se dedicar à ajuda espiritual do
próximo, convém ter suficiente cópia de conhecimentos intelectuais”; [111]: “Para maior
humildade e perfeição dos homens de letras, Coadjutores espirituais e Escolásticos, se
houver dúvidas sobre a suficiente aptidão de algum dos candidatos à Companhia para nela
ser Professo, Coadjutor espiritual ou Escolástico, deverá ter-se em conta que é muito
melhor e mais perfeito para ele deixar-se julgar e governar por ela. Esta saberá, tão bem
como ele, o que se requer para viver nela; e o súdito mostrará maior humildade e perfeição,
e dará provas de maior amor e confiança naqueles que o devem governar”.
Manoel da Nóbrega sumarizado_editado.pmd 21/10/2010, 08:25120
121
Duas articulações ainda devem ser consideradas na sua corres-
pondência. A primeira é a dos procedimentos técnicos e das categori-
as interpretativas que compõem a escrita do remetente. Como foi
dito, são procedimentos e categorias partilhados com o destinatário,
que os recebe como coincidência ou equivalência do ponto de vista,
numa nítida circularidade de código que os une, acima das diferenças
individuais e regionais. A segunda articulação é a do referencial ou os
discursos do Estado do Brasil que constituem as matérias ou assuntos
das cartas. Com a referência às coisas do local, Nóbrega particulariza
os lugares-comuns retóricos que aplica para compor temas e subtemas.
Suas cartas têm quatro recortes temáticos principais:
1. o do “índio” e os subtemas da inconstância, da cauinagem,
antropofagia, poligamia, falta de Deus, nudez, maus costumes,
guerras intertribais, guerras justas, castigos exemplares, aldeamento,
escravidão, karaiba ou feiticeiros, ensino de orações e leitura, con-
tatos de índios “bravos” e padres; língua escura do índio a que
faltam letras etc. No caso, as cartas evidenciam que a escrita é um
dispositivo de classificação que distribui aristotelicamente a metá-
fora “índio” por classes, espécies, indivíduos, acidentes e diferen-
ças específicas, operando uma exclusão inclusiva: ao mesmo tempo
que o exclui como inconstância e carência nas imagens de “falta de
Bem”, inclui-o nas práticas jesuíticas, que repetem a Palavra divina,
subordinando-o às instituições portuguesas
132
,
2. o tema do “colono” e os subtemas da imoralidade sexual e
político-econômica
133
dos portugueses; a mancebia dos brancos com
índias; a violência contínua dos coloniais contra índios aldeados; con-
132
Sobre as imagens de índios produzidas por Nóbrega e Anchieta, cf. o ótimo livro de Filipe
Eduardo Moreau. Os Índios nas Cartas de Nóbrega e Anchieta. São Paulo, Annablume, 2003.
133
Em carta datada de Olinda, 20/12/1546, o donatário de Pernambuco e Itamaracá, Duarte
de Albuquerque Coelho, diz o seguinte sobre os degredados ao rei Dom João III: “... são
piores cá na terra que peste pelo qual peço a V.A. que pelo amor de Deus tal peçonha me
cá não mande...”. Cit. por Georg Thomas. Política Indigenista dos Portugueses no Brasil
1500-1640. Trad. P. Jesús Hortal, S. J. São Paulo, Loyola, 1982, p. 84.
Manoel da Nóbrega sumarizado_editado.pmd 21/10/2010, 08:25121
122
flitos dos colonos com os padres; a instrumentalização das ordens-
régias sobre a guerra justa na captura de mão-de-obra escrava ou no
extermínio do gentio etc.;
3. o tema do “governo” e os subtemas das medidas administra-
tivas, econômicas, beneficentes e militares dos governadores gerais
Tomé de Sousa, Duarte da Costa e Mem de Sá; a edificação de
colégios; o provimento de necessidades materiais da Companhia; os
conflitos dos jesuítas com outros poderes e homens locais, o bispo,
capitães-mores de capitanias, as Câmaras; as lutas contra os fran-
ceses e o gentio tamoio; os aldeamentos e os castigos exemplares
dos pajés tupis avessos à catequese; castigos e extermínio das santi-
dades, cultos sincréticos com diversas manifestações, como a adora-
ção de uma cabaça com pedrinhas pregada numa cruz em capelas
erguidas no mato etc.
134
,
4. o tema do “clero” e os subtemas da ignorância e maus
costumes do “clero secular”, classificado como de má qualidade;
das práticas dos jesuítas no cotidiano da missão; dos conflitos com
o bispo Sardinha etc. Neste último caso, as cartas expõem as posi-
ções de Sardinha, contrário aos procedimentos de integração dos
índios adotados por Nóbrega. Na exposição do conflito, debate-
se o estatuto teológico e jurídico do índio e procedimentos da
catequese censurados pelo prelado, como a confissão feita por
meio de intérpretes e a integração inicial da nudez e de instrumen-
tos, adereços e cânticos indígenas na festa litúrgica como, mais
tarde, as penas azuis da arara canindé vão figurar o Bem dos anjos
nos autos de Anchieta ou meninos índios vestidos de penas verdes
de tuim cantarão na igreja, ad maiorem Dei gloriam.
A narratio ou narração costuma apresentar vários assuntos jus-
tapostos, segundo o decoro do gênero. Cada um deles é tratado
134
Ronaldo Vainfas. A Heresia dos Índios. Catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. São
Paulo, Companhia das Letras, 1995.
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123
com unidade de sentido e estilo, o que permite que seja isolado e
retomado em cartas posteriores. Pode-se, assim, traçar os tempos
do desenvolvimento de uma questão particular por meio da
sequência da datação dos papéis. Nas cartas, predominam os te-
mas “negociais”. Por exemplo, a primeira carta trata dos maus
costumes dos colonos, pedindo mulheres, “mesmo que erradas”,
para os casamentos que deverão evitar as mancebias. A segunda se
ocupa do comportamento dos colonos em relação ao clero. A
terceira, da má qualidade do clero secular. A quarta, principalmen-
te a quinta, do gentio. A décima segunda trata de questões teológi-
cas relativas ao Sacramento; nela também aparece a referência a
Sumé (ou Zumé), herói mítico dos tupis traduzido analogicamente
como São Tomé (ou Santo Tomás), apóstolo que teria antecipado
a catequese. Na décima sexta, Nóbrega trata da “guerra justa”,
escrevendo que os colonos instrumentalizam as guerras entre as
tribos em benefício próprio, pois visam o extermínio do gentio
e a mão-de-obra escrava. Nela, deduz que a mera cristianização
da nova terra não é suficiente para evitar o mal. Na décima séti-
ma, identifica como um dos maiores obstáculos à missão os
xamãs tupis portadores dos maracás com a voz dos mortos.
Classifica-os como “feiticeiros”, termo do imaginário europeu
da caça às bruxas.
Assim, a carta também é epístola tratando de matéria
argumentativa séria. Evidentemente, tanto a descrição quanto a
narração não são técnicas neutras, mas procedimentos retóricos
perspectivados por categorias e conceitos teológico-políticos
institucionais. Assim, a seleção das palavras indica os campos se-
mânticos do remetente como paradigmas institucionais que in-
terpretam os temas. Por exemplo, é corrente nas cartas o uso do
termo “negro” para nomear indiferentemente índios e africanos.
Não decorre de confusão ou incapacidade de distinção empírica
das etnias, como se diz quando a carta é lida como “realismo”
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124
ou reflexo de algo entendido como a “realidade brasileira” pos-
ta como totalidade prévia ao ato da escrita. O uso decorre do
pensamento escolástico que constitui índios e africanos
analogicamente por meio de uma mesma classe, “gentio”, ou
herdeiros do pecado de Cam. Da mesma maneira, o termo “ín-
dio” é uma metáfora resultante de procedimentos aristotélicos
de abstração, composição, amplificação e transferência retóricas.
Hoje, o exame da seleção dos vocábulos é elucidativo dos pro-
cessos conceituais e técnicos do autor da carta, mais que de algo
empiricamente dado, refletido e representado nela como unidade
empírica de “índio” ou “negro”.
Os enunciados prescritivos fornecem ao destinatário a orien-
tação pragmática sobre o modo como deve entender a significa-
ção e o sentido da mensagem. O remetente quase não discute os
preceitos que aplica, sugerindo à leitura que os considera univer-
sais. As verdades do dogma católico, a crença na justiça de reduzir
o selvagem, a caridade dos castigos exemplares aplicados a índios
renitentes, por exemplo, aparecem contrapostas à heresia calvinista
de franceses, aos maus costumes dos colonos, do clero secular e às
práticas de feitiçaria dos xamãs como evidência de que a razão do
remetente é universal, caridosa, prudente e justa.
Quando se observam os critérios implícitos e explícitos com
que o remetente avalia o que diz para o destinatário, pode-se
constituir o campo semântico geral do contrato que estabelecem
e propor que, no ato mesmo de escrever a carta, os objetos da
sua referência já se conquistam e educam, pois o remetente os
reduz à unidade da sua Fé como semelhanças distantes. Nóbrega
escreve, por exemplo, que o índio anda nu. O termo “nu”, apa-
rentemente apenas descritivo, cita Santo Agostinho, significando
a ignorância do pecado original. Santo Agostinho localiza o pe-
cado nos órgãos genitais, que o transmitem no ato da geração,
afirmando que a roupa que oculta as “vergonhas” é “decência
Manoel da Nóbrega sumarizado_editado.pmd 21/10/2010, 08:25124
125
civil”
135
. O uso do termo produz a prescrição: é preciso vestir o
índio, fornecendo-lhe a memória da culpa original. Num primei-
ro momento, a antropofagia poderia parecer análoga à ingestão
da hóstia, que é o corpo e o sangue de Cristo. Aliás, os calvinistas
não perdem ocasião de chamar os católicos de antropófagos
136
.
A hipótese causa horror, porque o Decálogo prescreve Não mata-
rás, ao passo que a antropofagia transforma os homens em meio
para a sua abominação de simulacro que mimetiza infernalmente
a ingestão do corpo de Deus
137
. A antropofagia só é admitida no
teatro, que se apropria educativamente dela, investindo-a do sen-
tido católico. Por exemplo, no Auto de São Lourenço, de Anchieta,
quando o Anjo ordena a prisão dos imperadores romanos pelos
demônios Aimbirê e Saravaia
138
.
135
“Uma vez que o homem pecou, cabe-lhe como quinhão, segundo justiça de Deus, a
corrupção, pena do pecado; é nisto que ele pode sentir o gozo, que se achou fundado nas
partes genitais dos pais. Daí também ter sido escrito sobre os primeiros pais: após terem
pecado, seus olhos foram abertos, desde então conheceram sua nudez; não que tenham
sido criados cegos, mas porque após o pecado a lei do pecado desceu às partes genitais
(post peccatum lex peccati in genitalia descendit). Essa lei, digo, achou-se fundada nesse
membro ao invés de um outro, pois dele descende a geração universal. De uma raiz ruim,
todos os humanos se disseminaram; do mesmo modo, em virtude da pena do pecado
original, cada ser humano, por sua vez, sente o pecado original”(Santo Agostinho). Cit. por
Pierre Legendre. O Amor do Censor (Ensaio sobre a ordem dogmática). Rio de Janeiro,
Forense Universitária/Colégio Freudiano, 1983, p. 114.
136
Guilherme Amaral Luz. Carne Humana. Canibalismo e retórica jesuítica na América
(1549-1587). Prefácio de Alcir Pécora. Uberlândia, Editora da Universidade de Uberlândia,
2006.
137
Alfredo Bosi propõe que “...os processos de sublimação cristã mantêm nítidas as
diferenças que os separam dos rituais tupis. Se os espíritos espalhados pela selva baixam
na tribo que os invoca, inspirando-lhe visões violentas e célebres como o clarão do raio, o
Deus dos cristãos ‘que está nos céus’, rogado em solitária oratio e em bem-composta
meditatio, virá à mente serena do fiel sob a forma absolutamente humana de Cristo. Se nas
cerimônias tupis há a difusão do sagrado com a perda da identidade anterior (a cada ritual
antropófago seguia-se uma renomeação dos seus participantes), no itinerário cristão orto-
doxo busca-se a mais perfeita realização da alma individual que os teólogos medievais,
mestres de Inácio de Loyola, denominam visio beatifica“. Cf. Alfredo Bosi. Dialética da
Colonização. São Paulo, Companhia das Letras, 1992, pp. 84-85).
138
Abápe jaú raéne?/ São Lourenço rupiaroéra: “A quem vamos nós comer?/ Inimigos de
São Lourenço”. In: Auto de São Lourenço. In: P. Joseph de Anchieta, S.J. Teatro de
Anchieta. Originais acompanhados de tradução versificada, introdução e notas pelo P.
Armando Cardoso S.J. São Paulo, Edições Loyola, 1977, Obras Completas, 3º. v. , Ato
III, vs. 714-715, p. 168.
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126
O Diálogo sobre a conversão do gentio
Para ler este texto de Nóbrega, pode ser útil saber que o diálogo
é um gênero dialético. O termo diálogo o indica: diá+logos = através da
razão/linguagem. Nele, dois ou mais personagens participam de uma
controvérsia figurada em que debatem uma questão. O exercício de
dialética pressupõe a parcialidade das opiniões dos debatedores, que
são inventados como tipos dotados de um caráter permanente e de
caracteres secundários, que aparecem momentaneamente, durante a
conversação. A escrita do diálogo imita a fala, sendo formulada
com discursos tendencialmente breves, respostas e contradiscursos,
também admitindo exposições mais longas, feitas para definir e de-
senvolver teórica e argumentativamente a questão debatida.
Retoricamente, o diálogo costuma ter três articulações: 1. Ataque/
acusação: chamados de prima pars, primeira parte, e defesa, secunda
pars, segunda parte. No caso, cada debatedor apresenta seu ponto
de vista sobre a questão tratada, opondo-o à tese contrária do
interlocutor que, por sua vez, responde. 2. Correspondência recíproca das
partes. Cada debatedor deve, necessariamente, falar algo que
corresponda à causa debatida, o que faz segundo três modalidades:
a) aceita a validade do que o interlocutor diz, do tipo “concedo”; b)
nega o que o outro afirma, como contradiscurso do tipo “nego”; c)
aceita parcialmente o que o interlocutor diz, em enunciados do tipo
“aceito isso, mas distingo ou nego aquilo”. 3. Persuasão do interlocutor
com as provas da justeza do próprio ponto de vista. Costuma ocorrer no
final, depois que um dos debatedores acumulou diversas provas
parciais que validam e demonstram a sua tese.
Nóbrega compõe o Diálogo sobre a conversão do gentio pouco
depois de Sardinha ter sido morto pelos caetés, num momento
em que os jseuítas estão desanimados com a possibilidade de con-
versão dos índios. Nesse momento, o programa inicial da catequese
como “pedagodia do amor” começa a ser substituído pela cha-
mada “pedagogia do medo” apoiada pelas medidas repressivas
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127
do governador geral Mem de Sá. O Diálogo é uma “ficção de
existência” ou conversa imaginária de dois padres realmente exis-
tentes, que Nóbrega apresenta no exórdio:
Porque me dá o tempo lugar pera me alargar, quero falar com meus
Irmãos o que meu spirito sente, e tomarei por interlocutores ao meu
Irmão Gonçalo Alvarez, a quem Deus deu graça e talento pera ser
trombeta de sua palavra na Capitania do Spiritu Sancto, e com meu
Irmão Matheus Nuguera, ferreiro de Jesu Christo, o qual, posto que
com palavra nam prega, fá-lo com obras e com marteladas.
Os personagens figuram dois tipos jesuíticos e dois modos de
agir na catequese: o padre letrado e o padre não-letrado. Cada um
deles sintetiza procedimentos adotados pela missão brasileira: o
trabalho com palavras, pregando e ensinando a Palavra de Deus, e
o trabalho com obras, dando exemplos e persuadindo com boas
ações. Na cena inicial, entra Gonçalo “tentado dos negros do Gato
e de todos os outros e, meio desesperado de sua conversão”. Os
“negros do Gato são os índios de Maracajaguaçu, o Gato Gran-
de”, chefe na ilha do Governador, que, nesse momento, se acham
no Espírito Santo. Gonçalo está “meio desesperado” da conver-
são deles e dos outros. Ambos passam a discutir as dificuldades da
conversão. Gonçalo caracteriza o índio como ser bestial que só
pensa em matar e comer, afirmando que pregar a ele é “pregar no
deserto a pedras”. Nogueira responde, evidenciando a íntima as-
sociação de poder e saber da catequese, ao afirmar que, se tives-
sem rei ou se adorassem alguma coisa, poderiam converter-se:
“como não sabem o que é crer ou adorar, não podem entender a
pregação do Evangelho, pois ela se funda em fazer crer e adorar a
um só Deus, e como esse gentio não adora nada, nem crê nada,
tudo o que lhe dizeis se fica nada”. Ambos concordam num pon-
to: o principal obstáculo à conversão é a inconstância dos índios,
evidenciada no exemplo dos anzóis que fazem o convertido mu-
dar de opinião e negar a verdade cristã, retomando seus costumes
“bestiais”. A inconstância é traduzida por meio do Evangelho – “Não
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128
deis o Santo aos cães, nem deiteis as pedras preciosas aos porcos”.
Feita a caracterização negativa, Nogueira afirma que os padres es-
tão resfriados: perderam o entusiamo inicial. Passando a discutir a fé
dos padres, voltam à tópica da “inconstância”, citando exemplos
de experiências pessoais com índios. Estabelecido o “estado da
questão”, Nogueira pergunta quais razões tem Gonçalo para des-
confiar de que os padres não farão fruto. Gonçalo reitera o tema
da inconstância, afirmando que a tudo os índios dizem pa, “sim”,
aani, “não”, e neim tia, “já vou”. Passam a tratar do amor de Deus
que fundamenta e orienta a dedicação dos padres e, num pequeno
excurso, expõem os fundamentos da fé católica que justifica a cau-
sa em questão. Em seguida, retomam a discussão: “...mas torne-
mos ao propósito”. Gonçalo pergunta a Nogueira o que pensa
dos índios (“Que vos parece deste gentio...?”). Nogueira responde
que não é necessária muita inteligência para convertê-los; mas suas
obras demonstram a pouca possibilidade de se converterem.
Gonçalo define-se como um homem da palavra: “de que me apro-
veita a mim a minha língua?”. Retoma a tópica “índio”, fazendo a
pergunta fundamental:
Dizei-me, Irmão Nogueira, esta gente são próximos?”. A questão é
teológico-política. Gonçalo quer saber se os índios são homens e se é
aplicável a eles o mandamento “Amai-vos uns aos outros como vos
amei”. Nogueira responde literalmente, entendendo "próximo» como
“perto no espaço”. Diz que sim, acrescentando: “Porque nunca me
acho senão com eles”.
Aqui, Gonçalo introduz a tese da não-humanidade do índio
defendida por colonos e por Juan Ginés de Sepúlveda no Tratado
sobre la justas causas de la guerra contra los indios. Ambos começam a
discutir critérios para definir “humanidade”. Com a nova referên-
cia aos jesuítas e as opiniões sobre os índios, Nogueira enuncia o
lema da Companhia de Jesus: “morrer na demanda”, dizendo que
muitos padres continuam na evangelização só por obediência aos
superiores, pois não têm nenhuma esperança nos resultados.
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129
Novamente, depois de afirmarem que o índio é muito vicioso,
inconstante etc., concluem que “tem a porta cerrada para a fé, natural-
mente, se Deus por sua misericórdia não lha abrisse”. Gonçalo enun-
cia o estado de desânimo dos padres com metáforas do ofício de
Nogueira: “... quiséramos uns foles para nos assoprar o fogo que se
nos apaga”. Apesar de tudo, argumenta Nogueira, os padres forne-
cem razões para a continuidade da obra. Nesse ponto, introduz as
tópicas da “sujeição” e do “medo” como condições para o índio
converter-se: “Que alguns têm acertado que trabalhamos debalde, ao
menos até que este gentio não venha a ser mui sujeito, e que com
medo venha a tomar a fé”. Em seguida, tratam do tema da fé impos-
ta à força: “Este parece o melhor e o mais certo caminho”, afirma
Nogueira, declarando que, ainda que não converta os pais, a subordi-
nação forçada converterá filhos e netos. Em seguida, com metáforas
do seu ofício, expõe outro critério: “...a caridade tudo desfaz e derre-
te, como o fogo ao ferro muito duro amolenta e faz em massa”.
Gonçalo nega, dizendo que não tem razão, porque a caridade não
pode tirar a verdade dessa massa. As razões pertencem ao entendi-
mento e a caridade à vontade, que são coisas diferentes: “Assim como
o fogo não tira ao ferro senão a escória, e não gasta o ferro limpo e
puro: se as razões são boas a caridade não será contra elas, porque
seria contra a verdade, e assim não ficaria caridade senão pertinácia”.
Nogueira fala do “zelo”, afirmando que onde houver bom zelo,
às vezes haverá de cortar-se as razões ou usar pouco delas. Gonçalo
lhe pergunta se isso não é mau. Nogueira afirma que a regra que
mede todas as obras é a vontade de Deus. Gonçalo concorda e
afirma que nem tudo que parece bem se há de fazer, mas só o que
realmente for bom. Para chegar a esse argumento, antes dá os exem-
plos da matança dos judeus no reinado de D. Manuel, em 1506, e
do rei visigodo Sisebuto. Nogueira pergunta: “E como saberá ho-
mem (=alguém) sempre acertar ?”. “Tomando conselho com Deus
e com os homens desapaixonados, e que tenham boa consciência”,
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responde Gonçalo. A seguir, pede ao outro que lhe conte as razões
que tem ouvido dos padres para se animarem a trabalhar com os
índios. Quer ouvir razões que contrariem as que discutiram no início.
Nesse momento, ocorre o fundamental do Diálogo e é No-
gueira, o ferreiro, quem o diz, recorrendo novamente às metá-
foras de seu ofício:
Estou eu imaginando todas as almas dos homens serem humas e
todas de hum metal, feitas à imagem e semelhança de Deus, e todas
capazes da glória e criadas pera ela; e tanto vale diante de Deus por
naturaleza a alma do Papa, como a alma do vosso escravo Papaná
139
.
Gonçalo faz a pergunta que condensa os discursos então cor-
rentes sobre os índios: “Estes tem alma como nós?” Nogueira lhe
responde ironicamente com a doutrina escolástica:
Isso está claro, pois a alma tem três potentias, entendimento,
memoria, vontade, que todos tem. Eu cuidei que vós éreis mestre já
em Israel, e vós não sabeis isso! Bem parece que as theologias que me
dizeis arriba eram postiças do Pe. Brás Lourenço, e não vossas. Que-
ro-vos dar hum desengano, meu Irmão Gonçalo Alvarez: que tão
ruim entendimento tendes vós pera entender ho que vos queria
dizer, como esse gentio pera entender as cousas de nossa fé.
Após a concordância de Gonçalo, Nogueira continua:
Despois que nosso pai Adam peccou, como dis o psalmista, não
conhecendo a honrra que tinha, foi tornado semelhante à besta, de
maneira que todos, asi Portugueses, como Castelhanos, como
Tamoios, como Aimurés, ficamos semelhantes a bestas por nature-
za corrupta, e niso todos somos iguais...
Novamente, Gonçalo concorda e pergunta qual é a causa de
os negros (= índios) serem tão bestiais e todas as outras gerações,
como os romanos, os gregos e os judeus, terem sido tão avisadas
e discretas. Nogueira lembra que também os hebreus adoraram
um bezerro de ouro e que os mouros acreditam em Maomé. Não
139
Papaná. Grupo indígena do sul da capitania do Espírito Santo que se comunicava com
o interior da capitania de São Vicente pelo rio Paraíba. No início de 1555, os homens de
Martim Afonso Tibiriçá, o chefe tupiniquim de Piratininga, capturaram um Papaná que
queriam matar em terreiro, sendo impedidos de fazê-lo pelos jesuítas.
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diferentemente, os índios dão crédito a feiticeiros, que lhes ensi-
nam que o bem é a vingança de seus inimigos e as muitas mulheres.
Os gregos e os romanos adoraram ídolos ; os índios temem o
trovão. Comparando os erros de todos, acha-se a mentira, que
procede do diabo. Gonçalo retruca, dizendo que os outros sou-
beram ler e escrever, fizeram filosofia etc. Os índios nunca soube-
ram mais que andar nus e fazer flechas.Nogueira responde, repe-
tindo a decisão do Concílio de Trento:
Terem os romanos e outros gentios mais polícia que estes não lhes
veio de terem naturalmente milhor entendimento, mas de terem milhor
criação e criarem-se mais politicamente. (...) nas cousas de seu mester e
em que elles tratão, tem tam boas sotilesas, e tão boas invenções, e tão
discretas palavras como todos, e os Padres o esperimentaram cada dia
com seus filhos, os quais achão de tão boom entendimento que muitos
fazem avantagem aos filhos dos christãos.
Novamente, Gonçalo pergunta a causa de os índios terem pior
criação e não terem recebido da natureza a mesma polícia que os
outros povos. Nogueira afirma que isso lhes adveio da “maldição
de seus avós”: são descendentes de Cam. Em seguida, afirma que
acredita ser mais fácil converter um ignorante, como o índio, que
um malicioso e soberbo, como um herege judeu, perguntando a
Gonçalo o que julga mais fácil fazer. Gonçalo replica que é mais fácil
converter ignorantes, mas lembra que um judeu convertido perma-
neceria constante na fé, diferentemente dos índios. Nogueira passa a
falar das coisas mais essenciais da fé católica e de condições para
torná-las firmes nos índios. Lembra que não se provam por razão
demonstrativa e que é mais difícil crer nelas para um filósofo, que se
fundamenta em sutilezas da razão, que para um índio. Gonçalo lhe
dá razão, lembrando que os índios morrem da imaginação do que
seus feiticeiros lhes dizem mas que, tendo falado de Deus a eles
desde que chegou ao Brasil, nunca viu nenhum deles ter tanta fé que
morresse por ela. Nogueira afirma que os índios não se convertem
com a maneira dos padres e que é preciso saber como o ofício de
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converter almas é o maior que há no mundo e por isso requer mais
alto estado de perfeição que outro. Gonçalo retruca, perguntando-
lhe se não é suficiente ser língua e bem dizer a verdade. Nogueira diz
que não, pois é preciso mais: o padre deve ser como os apóstolos,
que ardiam dentro do fogo do Espírito Santo, com muita fé, confi-
ando em Deus e desconfiando de si; há de ter graça de falar muito
bem a língua e virtude para fazer milagres. Sem isso, diz, ninguém se
converte, concluindo:
Nem tem rezão de vos darem crédito a vossas palavras, porque on-
tem lhe pedíeis o filho por escravo, e estoutro dia os querieis enga-
nar. E tem rezão de se temerem de os quererdes enganar, porque isto
é o que commumente tratão os maos christãos com elles.
Gonçalo retruca que é verdade o que Nogueira diz, pergun-
tando-lhe por que, se os Padres falam aos índios com tanto amor,
não os creem? Nogueira responde que, até o momento, não viram
diferença entre os padres e os outros cristãos. A seguir, refere vá-
rios índios exemplares na fé, como o velho Caiubi, que abando-
nou sua aldeia e roças e veio morrer de fome em Piratininga por
amor aos padres; o carijó Fernão Correa, que veio de longe para
pedir o batismo e morrer em seguida; o índio que se ofereceu
para morrer no lugar dos carijós que iam ser sacrificados em
Maniçoba etc. Quando Deus quer, afirma, transforma pedras em
filhos de Israel. Gonçalo responde que isso é tudo da parte de
Deus e que também é necessário o empenho de si mesmo, repe-
tindo Santo Agostinho: “Deus que me fez sem mim não me salva-
rá sem mim”. Nogueira afirma, com uma alegoria da sua prática
de ferreiro: o gentio é ferro frio que, quando Deus quiser pôr na
forja, logo se converterá. Terminando, compara o índio com um
filósofo romano: o índio é bestial, sua bem aventurança é matar e
receber nomes; não guarda a lei natural, porque come outros; é
muito luxurioso e mentiroso; nenhuma coisa aborrece por má,
nenhuma louva por boa e acredita em feiticeiros. Já o filósofo é
muito sábio, mas muito orgulhoso; sua bem aventurança é a fama
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; não guarda a lei natural no vício da sodomia, embora a entenda ;
tirânico, amigo de dominar, cobiçoso, adora ídolos etc. Segundo
dizem os padres que confessam índios, afirma Nogueira, têm o
que fazer com eles em dois ou três mandamentos, pois entre si
vivem muito amigavelmente. Qual é o maior obstáculo para des-
fazer, pergunta, a conversão do índio ou a do outro? Gonçalo
ainda lhe pede mais explicações, mas Nogueira afirma que, pelo
que disse, a resposta é bem clara.
A resposta é bem clara: significa que a tópica da lei natural é
central na catequese e no ensino, sendo formulada em enunciados
prescritivos como fundamento da justiça das leis positivas do Im-
pério português. Escolasticamente, como faz seu personagem
Nogueira dizer, Nóbrega pressupõe que Deus é a lei eterna ou
causa e origem de toda e qualquer lei. Norma universal, perfeita e
imutável das leis humanas imperfeitas e mutáveis, a lei eterna se
manifesta no mundo por intermédio da lei natural, que evidencia a
participação do tempo em Deus. Como luz da Graça divina
imanente à alma humana, a lei natural fundamenta o discernimento
do bem e do mal, fazendo cada homem, seja tupi, tapuia, negro,
francês ou português, participar da universalidade do gênero hu-
mano. Exprimindo o fundamento de uma ética, a lei natural deter-
mina o que é adequado à natureza humana, expressando-se nas leis
dos homens, cujo princípio é o “bem comum”. As leis humanas
obrigam os indivíduos a orientar a realização de seus interesses
particulares segundo o “bem comum”. É a adequação ao “bem
comum” que fundamenta a legitimidade delas. Pela justiça legal,
conferem ao “bem comum” valor transindividual e supra-indivi-
dual que, por sua universalidade, transcende as partes individuais.
Logo, as leis humanas atribuem efetividade política ao poder mo-
ral que expressam. Enquanto a lei natural mostra o que o homem
deve ou não fazer para ser humano, usando de sua razão e liber-
dade, as leis humanas têm a função de fundamentar a adequação
da moral e do político pela mediação da justiça legal.
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134
Fundamentada escolasticamente por esses princípios, a ação
de Nóbrega determina não só o que é legal, mas principalmente o
que é legítimo, em termos ético-políticos, combatendo as versões
luteranas, calvinistas e maquiavélicas do poder. Tratando de ques-
tões locais, como a escravidão de índios e a guerra justa contra
eles, toma posição nos debates que no século XVI constituem a
doutrina católica da monarquia absolutista aliada a Roma. No caso
dos índios, Nóbrega especifica que certamente suas leis positivas
são legais, como códigos humanamente instituídos, mas não legíti-
mas, pois seus maus costumes desviam-se da lei natural.
Logo, suas cartas e o Diálogo sobre a conversão do gentio afirmam
a unidade do sentido teológico-político da ação jesuítica, distri-
buindo-o em feixes de codificações institucionais que convertem
e submetem índios, mamelucos e brancos com a lei eterna do
Deus católico visível nas leis positivas da monarquia portuguesa
no Estado do Brasil.
Nóbrega: sentido de uma ação
Para responder a questão sobre o significado da prática do Pe.
Manuel da Nóbrega no Estado do Brasil do século XVI, algumas
coisas básicas podem ser lembradas. A primeira é que seus condici-
onamentos institucionais e seus códigos doutrinários não conhecem
as estruturas políticas e culturais burguesas constituídas na Europa a
partir do final do século XVIII. Em seu tempo, não há o Brasil, mas
o Estado do Brasil, extensão colonial do Império português na
América. Essa distinção é fundamental, porque não é historicamente
adequado avaliar o significado da ação do jesuíta por meio de crité-
rios e valores próprios do Brasil-nação. Nóbrega não é “o primeiro
educador brasileiro”, como se costuma dizer, pois evidentemente
não foi “brasileiro” nem podia prever que no futuro o território do
Estado do Brasil seria parte de uma nação independente de Portu-
gal. A segunda coisa a lembrar é a particularidade histórica de sua
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prática e as relações muitas vezes tensas e conflituosas dela com
outras práticas contemporâneas. A terceira é que não há nenhum
consenso sobre o significado de sua ação nas interpretações que
desde o século XVI se ocupam do significado da ação da Compa-
nhia de Jesus no Estado do Brasil e no Estado do Maranhão e
Grão-Pará. É pertinente não julgar a prática dos jesuítas do século
XVI com critérios morais e políticos negativos ou positivos anacrô-
nicos. Passando ao lado dos muitos juízos de valor que cobram
deles ou atribuem a eles uma conduta democrática e um discernimento
antropológico que não existiam em seu tempo, pode ser mais ade-
quado tentar compreender as motivações históricas de sua prática e
os modos particulares como tomaram posição nelas.
Em março de 1549, Nóbrega chega à Bahia como chefe da
missão jesuítica. Vem como religioso do padroado português su-
bordinado ao rei D. João III. Conhece o Regimento dado a Tomé de
Sousa pelo rei e suas determinações a respeito da paz que os portu-
gueses devem manter com as tribos indígenas inclinadas a receber a
catequese e integrar-se no Império português. Obviamente, tam-
bém as determinações sobre a “guerra justa” que devem mover
contra as tribos que não aceitam a autoridade real. Pouco tempo
depois de chegar, começa a implantar o programa de “catequese e
escola” em vários lugares do território colonial, Vila Velha, Salva-
dor, Olinda, Vitória, Rio de Janeiro, São Vicente, São Paulo de
Piratininga etc. O programa não se dissocia da política expansionista
do capitalismo monárquico português. É, objetivamente, uma prática
do colonialismo português. Seu objetivo principal é pôr todo o Es-
tado do Brasil sob a imediata jurisdição da Coroa portuguesa.
Para caracterizá-lo segundo os pressupostos e os fins doutriná-
rios expostos por Nóbrega nos papéis que chegaram ao presente,
deve-se lembrar que, assim como os outros padres da Companhia
de Jesus, ele entende e orienta sua experiência da história teologica-
mente. Executa no Estado do Brasil a política católica determinada
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pelo Concílio de Trento (1543-1563): levar a fé de Roma como
verdade universal para as populações gentias, reconfirmando os
dogmas que a Igreja Católica então decreta contra as heresias refor-
madas e a tese ateia de Maquiavel sobre o poder político. Seu pensa-
mento é escolástico. Quando define os procedimentos, os objetos e
os fins da catequese, não pressupõe nenhum dos conceitos antropo-
lógicos que hoje definem a diferença cultural das sociedades indíge-
nas. Acredita firmemente que o Deus católico é o Criador da natu-
reza e do tempo, interpretando os grupos indígenas como socieda-
des de homens criados por analogia com Ele, mas pervertidos por
péssimos costumes – o nomadismo, a nudez, a poligamia, a guerra
por vingança, a cauinagem, a antropofagia ritual – que os distanciam
da Lei eterna e do conselho da luz natural. Quando os reduz, forne-
ce-lhes a memória do Bem católico, obedecendo irrestritamente às
determinações do Geral da sua Ordem, em Roma; entre 1549 e
1553, enquanto Inácio de Loyola não cria a Província do Brasil,
também se subordina à autoridade do Bispo de Salvador e do Pro-
vincial da Província Portuguesa da Companhia de Jesus.
O programa catequético toma partido nos debates teológico-
políticos que então dividem os cristãos na Europa. Lutero afirma
que a Graça está ausente da alma humana devido ao pecado origi-
nal, fundamentando com a ausência sua tese do direito divino dos
reis. Diretamente enviado por Deus, o rei da doutrina luterana
impõe ordem à anarquia da comunidade de seus súditos incapazes
de distinguir o Bem do mal, devendo ser absolutamente obedeci-
do. E funda sua própria igreja, pois é senhor do poder espiritual
que dispensa a autoridade do Papa e as tradições da Igreja roma-
na. A posição anti-luterana de Nóbrega se evidencia, por exemplo,
quando condena as representações sobre os índios que circulam
no Estado do Brasil. Interessados nas terras das tribos e em mão
de obra escrava barata e imediatamente disponível no mato para a
lavoura da cana e outros serviços, os colonos afirmam que os
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137
índios não são humanos porque desconhecem Cristo; e que, se o
forem, são homens naturalmente inferiores, que têm a obrigação
de servir aos seus superiores.
Provavelmente, a maioria dos colonos não saberiam que re-
petiam o lugar-comum aristotélico de que há homens “servos por
natureza” aplicado em 1550 pelo teólogo dominicano Juan Ginés
de Sepúlveda em seu tratado Democrates alter para justificar as atro-
cidades cometidas pelos espanhóis no México e no Peru. Em 1550,
Las Casas e Sepúlveda debateram o tratado em Valladolid e os
teólogos presentes identificaram o argumento da “servidão por
natureza” dos índios americanos à tese luterana de que as leis posi-
tivas inventadas pelos homens para ordenar suas sociedades só
são legítimas quando fundadas na Revelação de Cristo. Já antes do
debate, em 1537, a bula papal Sublimis Deus proibira escravizar “os
índios ocidentais e meridionais”, declarando herético o argumento
de que não são homens ou de que são escravos por natureza.
Contra Lutero, os teólogos do Concílio decretaram que o poder
político não é doado por Deus como “causa próxima” dele, mas
nasce de um pacto social, um pacto de sujeição, entre a comunida-
de e o rei. Assim, também decretaram que os códigos positivos
inventados pelas sociedades humanas para se governarem não
dependem diretamente do conhecimento da Revelação. Nóbrega
repete o dogma em suas cartas e no Diálogo sobre a conversão do gentio,
demonstrando a humanidade dos índios com as evidências
empíricas de que têm as três faculdades – inteligência, memória,
vontade – com que a Escolástica define “homem”.
Fundamentalmente, a catequese é uma poética, uma produção de
corpos que produz almas: fornecendo aos índios a memória do pe-
cado original e da culpa, produz corpos dóceis, controlando o espaço
e o tempo e reprimindo os corpos indígenas por meio das virtudes
católicas e mais medidas coercitivas que subordinam as almas submis-
sas como trabalhadores livres e escravos do Império português.
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138
A coragem de Nóbrega no enfrentamento dos colonos para
defender a liberdade dos índios administrados pela missão jesuítica
é admirável e sempre pautada pelos conceitos de “justiça” do Direi-
to Canônico em que é doutor. Mas não se deve esquecer que o
fundamento do mesmo Direito é o Deus católico, que Nóbrega
acredita ser universal. E, ainda, que a defesa da liberdade dos índios,
ou, melhor dizendo, do monopólio da Companhia de Jesus na ad-
ministração dos índios aldeados, reforça objetivamente a depen-
dência colonial da mão-de-obra africana fornecida pela Coroa. Deve
ser óbvio que a Coroa portuguesa não se opõe a que os colonos se
recolonizem continuamente. Além disso, Nóbrega não é contrário à
própria instituição da escravidão, mas a algumas de suas formas,
que julga ilegítimas porque não lhe parecem fundadas na lei natural.
O mesmo pensamento teológico e a mesma subordinação a Roma
e à Coroa determinam que também não se oponha à destruição de
grupos e de indivíduos indígenas que recusam a dominação portu-
guesa, como é o caso dos tamoios confederados de Iperoig e da
Guanabara aliados aos franceses, e dos karaiba, os pajés tupis, que
combatem os jesuítas e a doutrinação católica.
Quanto às escolas de ler e escrever e as escolas de ofícios,
Nóbrega é o primeiro agente promotor da educação ministrada
pela Companhia no Estado do Brasil e no Estado do Maranhão e
Grão-Pará até meados do século XVIII. De novo, é preciso qualifi-
car o que se entende por “educação”, pois os atuais conceitos de-
mocráticos de “educação” não devem ser generalizados para seu
tempo. O ensino jesuítico depende, antes de tudo, de condições
materiais – terras doadas por governadores-gerais à Companhia
para a construção dos colégios; verbas da redízima dos dízimos
determinada pela Coroa para pagar salários aos padres; escravos
africanos, roupas, livros e vacas doados pelo rei; e, evidentemente,
homens dispostos a executá-lo em condições muito precárias e pe-
rigosas com uma espantosa determinação. O ensino também não se
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139
dissocia das determinações institucionais de Roma, como fica evi-
dente quando ordens da sede romana da Companhia determinam
que a missão acumule bens de raiz, pondo de lado o projeto inicial
de pobreza; ou quando as Constituições, de Inácio de Loyola, chegam
ao Estado do Brasil e os métodos de ensino mudam.
O ensino ministrado nas escolas de ler e escrever civiliza o Esta-
do do Brasil com os conceitos de “civilização” da política católica
portuguesa. Reproduz as humanidades latinas, interpretando-as
escolasticamente segundo os fins católicos da doutrina teológico-
política do poder. Ou seja, não se dissocia dos processos da con-
quista da terra, reproduzindo nela a hierarquia do reino. Assim, o
ensino prevê e aplica um conjunto de normas, que definem os saberes
a serem ensinados e condutas a serem inculcadas em crianças e jo-
vens indígenas, mamelucos e portugueses, e um conjunto de práticas,
que permitem a transmissão desses saberes e a incorporação de
comportamentos, normas e práticas. As normas e as práticas atuam
sobre as faculdades que então definem a humanidade da pessoa
humana, a memória, a vontade e a inteligência, integrando os alunos
socialmente como membros subordinados do Império português.
De modo semelhante, o ensino de ofícios aos jovens índios os isola
do tempo das suas tribos com o tempo cristão do trabalho para
incluí-los como plebeus nas ordens mecânicas dos trabalhadores
manuais do Império.
Quando Nóbrega morre, em outubro de 1570, o território
do Estado do Brasil está pontilhado pelas aldeias e colégios
jesuíticos. Em cada um deles, os padres repetem as mesmas nor-
mas e práticas, comunicando-se com Roma, com Lisboa e com as
vilas coloniais por meio de manuscritos que, armazenando mais e
mais informações sobre a terra, permitem calcular os novos pas-
sos da catequese e do ensino, constituindo a unidade do “corpo
místico” da Companhia de Jesus como o cimento espiritual que
dá coesão à autoridade real.
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140
Complementarmente, podem ser lembradas as cadeias históri-
cas das interpretações sobre a prática de Nóbrega feitas desde o
século XVI. Quando são observadas, evidencia-se a dispersão con-
traditória dos valores que lhe atribuem significação e sentido. Os
valores não são idênticos e, muitas vezes, são produzidos por agen-
tes históricos situados em campos teórica e politicamente inimigos.
Assim, por exemplo, quando a significação da prática de Nóbrega é
avaliada por padres da Companhia de Jesus, que pressupõem o
mesmo Deus como causa e sentido da história, como José de
Anchieta, no século XVI, Simão de Vasconcelos e Antônio Vieira,
no XVII, e Serafim Leite, no século XX, louva-se na ação de Nóbrega
toda a obra da Companhia como civilizatória, necessária, justa e
caridosa. Quando a avaliação é feita em campos inimigos, como
acontece no feroz combate movido contra a Companhia de Jesus
pelo Marquês de Pombal no século XVIII, a significação atribuída à
prática de Nóbrega também se altera radicalmente. Também as muitas
interpretações feitas por historiadores, sociólogos, antropólogos,
ideólogos e literatos dos séculos XIX e XX são polêmicas. Eviden-
ciando a inexistência de consenso, alinham-se à direita e à esquerda
em posições católicas, liberais, ateias, agnósticas, deterministas, fas-
cistas, anarquistas, marxistas, comunistas etc., constituindo um cam-
po muito dividido onde se pode achar, por exemplo, desde a mais
total apologia da prática da Companhia como obra civilizatória até
a sua mais total condenação como colonialismo responsável pela
destruição das culturas indígenas.
João Adolfo Hansen é doutor em literatura brasileira pela Universidade de São Paulo, da
qual é professor titular. É membro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São
Paulo (Fapesp), do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPq) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes)
.
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141
TEXTOS SELECIONADOS
Diálogo sobre a conversão do gentio do Padre Manuel da Nóbrega
[BAÍA 1556-1557]
Prefácio: Este Diálogo, pelo género, ê o primeiro documento verdadei-
ramente literário escrito no Brasil. Tema de missiologia fundamental, a capaci-
dade dos Índios para se converterem. Os Índios, não obstante a antiga condição
em que vivem e se criaram, são capazes de se converter: em direito, porque são
homens: e, de facto, porque já muitos se converteram. Mas importa criar
novas condições, extrínsecas aos Índios, aptas a facilitar a conversão: umas, da
parte dos missionários, que devem tender cada vez mais à perfeição de
evangelizadores; outras da parte dos Índios, com uma sujeição moderada. Com
a santidade de vida, os missionários atrairão de Deus a graça da conversão dos
Gentios; com a sujeição, facilita-se a reeducação dos adultos com a aprendiza-
gem e prática da lei cristã, na medida do possível (sempre foi difícil em todas as
partes do mundo a conversão de adultos), e promove-se a educação cristã dos
filhos sob um regime de autoridade paterna.
S
TREIT (1 34 n. 81) viu assim o Diálogo de Nóbrega: "Ein apolo-
getischer Traktat iiber die Berechtigung der Heidenmission und iiber die Art
und Weise, sie su betreiben. Die Abhandlung ist in Gesprãchsform gehalten
und spiegelt die Ideen und Auffassungen der portugiesischeu Kolonisten iiber die
Christianisierungsfãhigkeit und rechtliche Stellung der Neger und Eingeborenen
in Brasilien getreu wider».
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142
Se fosse de pura literatura ou doutrina, este notabilissimo documento não
teria cabida numa colecção como esta; mas encerra elementos de história positi-
va, em particular no ponto em que fala dos índios, que de facto já se conver-
teram, razão bastante para a sua inclusão em MHSI.
I. Bibliografia: S
TREIT 1 34, n. 81; LEITE, História IX II.
II. Texto: Único. Biblioteca de Évora, cód. CXVI/r-33, ff.
208r-215r. Título: "Dialago do Padre Nobriga sobre a Conversão
do Gentio. Interlocutores Gonçal’Alvares e Matheus Nugueira».
Apógrafo português, não muito perfeito. Cf. L
EITE, Diálogo 49-50.
III. Data: 1556-1557. Nóbrega tratou com Mateus Nogueira
na Capitania de São Vicente de 1553 a 1556 e com Gonçalo Álva-
res na do Espirito Santo por Junho de 1556. Escrito entre esta
última data e a chegada do Governador Mem de Sá (fins de 1557).
Cf. L
EITE, Diálogo 47-48.
IV. Impressão: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
43, 1.
a
Parte (Rio de Janeiro 1880) 133-152; NÓBREGA, Cartas do
Brasil (Rio de Janeiro 1931) 229-245; Diálogo sobre a Conversão do
Gentio pelo P. Manuel da Nóbrega. Com Preliminares e Anotações
Históricas e Críticas de Serafim Leite S. I. [= IV Centenário da
Fundação de São Paulo I] (Lisboa 1954) 53-70; L
EITE, Cartas de
Nóbrega (Coimbra 1955) 215-250.
V. Historiada Impressão: A Revista imprime uma cópia mo-
derna (não perfeita), existente no Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, tirada do Códice de Évora e cotada no mesmo Institu-
to: “Biblioteca de Évora”, tomo 2, ff. 44 ss.; em Cartas do Brasil
reproduz-se a impressão da Revista; L
EITE, no Diálogo, imprime
directamente de Évora, primeiro o texto apógrafo (pp. 53-70) e a
seguir o mesmo texto em português actualizado (pp. 73-102); e
nas Cartas de Nóbrega (1955) o apógrafo.
VI. Edição: Reimprime-se o apógrafo de Évora. Para mais fácil
distinção das falas, dão-se em itálico os nomes dos interlocutores.
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143
Textus
1. Collocutores. 2. Condiciones Indorum quae conversioni christianae
opponuntur. 3. Sed amore Dei laborandum est, quia etiam Indi filii Dei sunt.
4. Et homines, sicut nos. 5. Opiniones circa conversionem Indorum. 6.
Reductis Indis sub ditionem, facilior evenit eorum filiorum et nepotum educado.
7. Sed facienda reductio absque zelo indiscreto. 8. Etiam Indorum animae a
Deo creatae sunt, idcirco ipsi etiam capaces sunt Deo gloriam dandi. 9. Effectus
peccati originalis. 10. Diversitas hominum. 11. Diversitas tamen oritur ex
educatione aliisque circunstanti-is, non vero ex natura quae aequalis est in omnibus
hominibus. 12. Sed absque Dei gratia non obtinetur conversio christiana.
13. Ad quam iuvat sanctitas Evangelii praeconum. 14. Iam inveniuntur Indi
conversi ad fidem. 15. Et alii christiani efficientur, cum venerit eorum hora,
quae in manibus Dei est. 16. Indi minora habent impedimento quam Romani,
qui tandem christiani facti sunt.
1. Porque me dá o tempo lugar pera me alargar, quero falar
com meus Irmãos o que meu spirito sente, e tomarei por
interlocutores ao meu Irmão Gonçalo Alvarez, a quem Deus deu
graça e talento pera ser trombeta de sua palavra na Capitania do
Spiritu Sancto, e com meu Irmão Matheus Nuguera, ferreiro de
Jesu Christo, o qual, posto que com palavra nam prega, fá-lo com
obras e com marteladas.
Emtra logo ho Irmão Gonçalo Alvarez, tentado dos negros
140
do Gato
141
e de todos os outros e, meio desesperado de sua con-
versão, diga:
140
Negros por oposição a brancos, mas trata-se de índios. Na mesma acepção escreve
Nóbrega a D. João III, de Olinda, 14 de Setembro de 1551 (carta autografa): “negras
forras do gentio” (Mon. Brás. 1 290), falando de índias livres. O mesmo irá usar Camões:
“Con certam-se que o negro mande dar” (Lusíadas VIII 93), referindo-se a um funcionário
hindu; e a hindus, que se restituem: “tornando alguns negros” (ib., IX, 12). Com a palavra
‘negros’, Nóbrega emprega também a de índios, como se lê várias vezes neste mesmo
Diálogo, em particular na fala de Nogueira sobre os índios convertidos da Capitania de
São Vicente (§ r4).
141
Os índios do Gato vieram por Março de 1555, presente o P. Luís da Grã, que escreve,
do Espírito Santo, a 24 de Abril daquele ano, o motivo e modo como vieram (carta 35).
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144
2. [Gonçalo Alvarez]: – Por demais hé trabalhar com estes; são
tão bestiais, que não lhes entra no coração cousa de Deus; estão tão
incarniçados em matar e comer, que nenhuma outra bem-aventurança
sabem desejar; pregar a estes, hé pregar em deserto ha pedras.
Matheus Nugueira: – Se tiveram rei, poderão-se converter, ou se
adoraram alguma cousa; mas, como nam sabem que cousa hé crer
nem adorar, não podem entender ha pregação do Evangelho, pois
ella se funda em fazer crer e adorar a hum soo Deus, e a esse só
servir; e como este gentio nam adora nada, nem cree nada, todo o
que lhe dizeis se fiqua nada.
Gonçalo Alvarez: O que bem dizeis, quão fora estes estão de se
converterem hum dia 5 [cinco mil]
142
e no outro três mil
143
por
huma soo pregação dos Apóstolos, nem de se comverterem reinos,
cidades, como se fazia no tempo passado por ser gente de juizo.
Matheus Nugueira
144
: – Huma cousa tem estes pior de todas, que
quando vem à minha tenda, com hum anzol que lhes dê, os conver-
terei a todos, e com outros os tornarei a desconverter, por serem
incostantes, e não lhes entrar a verdadeira fee nos coraçõis. Ouvi eu
já hum evangelho a meus Padres, omde Christo dizia: “Não deis o
Sancto aos cãis, nem deiteis as pedras preciosas aos porquos”
145
. Se
alguma geração há no mundo, por quem Christo N. S isto diga,
deve ser esta, porque vemos que são cãis em se comerem e mata-
rem, e são porcos nos vícios e na maneira de se tratarem, e esta deve
ser a rezão porque alguns Padres que do Rreino vierão os vejo [208v]
resfriados, porque vinhão cuidando de converter a todo brasil
146
em
4° huma hora, e vem-se que não podem converter hum em hum
anno por sua rudeza e bestialidade.
142
Act. Apost. 4, 4.
143
Act. Apost. 2, 41.
144
No ms. Nug.a: Iemos Nugueira (com u) ; escreverá também Nog.* e leremos Nogueira
(com o).
145
Mat. 7, 6.
146
A todo brasil, tomado aqui por “índio” (brasil), não por “terra” (Brasil), como é claro na
linha seguinte: “hum” (brasil).
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145
Gonçalo Alvares: – Ora isso deve ser, porque não sei a qual ouvi,
que quando vinhão na nao, maginavão-se hum São João Bautista
junto de hum rio Jurdaam a bautizar quantos a elles viessem.
Matheus Nugueira: – Se forão tainhas do Piraiqué
147
podera ser...
Gonçalo Alvarez: – Não há homem en toda esta terra, que co-
nheça estes, que diga outra cousa. Eu tive hum 5° negro
148
, que
criei de pequeno, cuidei que hera boom christão e fugiu-me pera
os seus: pois quando aquelle não foi boom, não sei quem o seja.
Não hé este o que soo me faz descomfiar destes serem capazes do
bautismo, porque não fui eu soo o que criei este corvo; nem sei se
hé bem cha-mar-lhe corvo, pois vemos que os corvos, tomados
nos ninhos, se crião e amanção e ensinão, e estes, mais esquecidos
da criação que os brutos animais, e mais ingratos que os filhos das
biboras que comem suas mãis, nenhum respecto tem ao amor e
criação que nelles se faz.
Nugueira: – Pois que rezõis mais vos move[m] a desconfiar de
nossos Padres, que a isso forão mandados do Senhor pera lhes
mostrarem a fee, não farão fructo nestas gentes? Por de mais!
Gonçalo Alvarez: – Muito bem lhes chamais. Sabeis qual hé a
mor dificuldade que lhes acho? Serem tam faciles de diserem a
tudo si ou pâ, ou como vós quizerdes; tudo aprovão logo, e
com a mesma facilidade com que dizem
149
, dizem aani
150
. E
147
“Piraiqué, na língua da terra, quer dizer entrada de peixe”, explica Jácome Monteiro que
descreve como se praticava no Rio Magé, Baía de Guanabara: “No mês de Junho vêm
desovar a este rio infinitos cardumes de tainhas e corimás. Nas águas vivas de lua nova
tapam a boca deste rio com varas e esteiras; depois pisam muita quantidade de timbó,
que em Portugal responde ao barbasco; na vazante da maré enchem o rio de sumo destes
paus com o qual se embebeda o peixe, de sorte que nenhum escapa, e toma-se tanto que,
com passarem as embarcações que dele se enchem, de 120, 140, ficam serras de peixe
sem se aproveitar. Este piraiqué se chama real, porque se não pode dar sem ordem da
Câmara, pera o qual se bota pregão 15, 20 dias antes. Disseram-me que se ajuntava nele
perto de duas mil almas” [1610]. Cf. Leite, Historia VIII 399.
148
Negro, isto é, índio. Cf. supra, nota 1. curta] outra ms. muito] muitos ms. || 102 amem]
amão ms.
149
Pâ, “sim”, como diz o texto.
150
Aani, “não”.
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146
se algumas vezes chamados dizem neim tia
151
, hé poios não
emportunardes, e mostra-oo bem a obra, que se não hé com o
bordão não se ergem; pera beber nunqua dormem! Esta sua faci-
lidade de tudo lhe parecer bem, acompanhada com a esperientia
de nenhum fructo de tanto pâ, tem quebrado os corações a mui-
tos. Dizia hum de nossos Irmãos que estes erão o filho que disse
no Evangelho
152
a seu pai, que o mandava, que hia e nunqua foy.
3. Nugueira: – Pois que remedio, emos de cansar debalde? A
minha forija de dia e de noite, e o meu trabalho não me renderá
nada entre elles pera levar diante de Christo quando nos vier julgar,
pera que ao menos cu[209r]rta
153
alguma parte de meus peccados
muitos?...
Gonçalo Alvarez: – Disso, Irmão, estais seguro que vós não perdeis
nada; se Christo promete por hum pucaro de agua fria, dado por
seu amor o reino dos ceos
154
, como hé possível que percais vós
tantas marteladas, tanto suor, tanta vigília, e a paga de tanta ferra-
menta como fazeis? As vossas fouces, machados, muito boons são
para roçar-des a mata de vossos peccados, na qual o Espiritu Sancto
prantará muitas graças e does seus, se por seu amor trabalhaes.
Nugueira: – Ay! Ai!
Gonçalo Alvares: – Porque daes esses ays?
Nugueira: – Porque vós meteis esse pontinho
155
: se vós por seu
amor trabalhais.
151
Neim tia: “Bem! Já vou”. Cf. Leonardo do Vale. Vocabulário na Língua Brasílica,
palavra “anda”. Cf. infra, carta 52 § 12.
152
Mat. 21, 28-30.
153
No ms. “outra”, que não faz sentido e falta o verbo: "curta” podia ser a palavra do
original e não destoa da imagem da forja, no
154
Mat. 10, 42; Marc. 9, 40.
155
Pontinho, dificuldade ou qualquer coisa que se não compagina bem com outra, como
insinua Camões, falando dos diversos estados de vida: “a dos frades, inda que por baixo
dos hábitos, tem uns pontinhos, que quem tudo deixa por Deus, nada havia de querer do
mundo” (Visconde de Juromenha, Obras de Luiz de Camões, 1 [Lisboa 1860] 17; cf.
Serafim Leite, Camões Poeta da Expansão da Fé [Rio de Janeiro 1943] 49).
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147
Gonçalo Alvares: – Pois que cuidais? Desenganai-vos, que se as-
sim não hé tudo perdeis quanto fazeis.
Nugueira: – Pois digo-vos, Irmão meu, que me meteis em
comfussão. E como saberei eu que trabalho por seu amor, se eu
vejo que trabalho pera quem não no ama, nem no conhece?
Gonçalo Alvarez: – Conhece logo o Senhor, por quem vós aveis
de fazer que desejais vós que o conheção, amem e sirvão todos
estes e todo o mundo.
Nugueira: – Desejo serto, e sempre lhe pesso que elle seja
sanctificado, de todos conhecido e amado, pois hé muita rezão
que a criatura conheça a seu Criador, pois todo o ser e perfeição
elle lhe comunicou, e a criatura rational sobre todas o conheça e
honre; pera ella forão criadas e feitas todas as cousas, e hé obriga-
da a ser a boca de todas pera louvar a Deus, por tamanho bem,
que de tudo o fez senhor.
Gonçalo Alvares: – Pois, meu Irmão, isso me parece que basta
pera se Deus contentar de vosso serviço ou sacrificio; chamo —
lhe assi porque esse vosso oficio parece que vos faz o sacrifficio
que na Lei Velha se chamava holocausto
156
, que ardia todo e nada
se dava a ninguem delle.
Nugueira: – Irmão, não digais isso por amor de Deus, não hé
bem que hum peccador, como eu, ouça isso de tão inperfecto
serviço como faz a Deus, e mais que ouvi eu já que isso era figura
do amor grande com que o Filho de Deus ardeu en fogo de
charidade por nós na crux.
Gonçalo Alvares: – Assi hé, perdoai-me, Irmão, que a humilda-
de não sofre bem louvores, e eu descuidei-me.
Nugueira: Agora me amastes bem! Chamais humildade à viva
soberba! Não sejais vós como o Padre ou Irmão que o Pe. Leonar-
156
Lev., cap. 1.
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148
do Nunez
157
, que está em gloria, nos contava que por se desculpar se
emmelava como mosca no mel.
Gonçalo Alvares: – Oxalá estivesse eu tanto avante [209V] que me
parecese eu com elle, que hé Sancto. Mas tornemos ao proposito.
Irmão Nuguera, por amor de N. Senhor que livremente e segundo
o que entendeis diante de N. Senhor digais: que vos parece deste
gentio segundo a experientia que tendes delle os annos que há que
com elles conversais ?
Nugueira: – Que aproveita conversar, que os não entendo? Ainda
que, segundo me parece delles, pera este fim de se comverterem e
serem christãos não há mister muita inteligentia, porque as obras
mostrão quão poucas mostras elles tem de o poder vir a ser.
Gonçalo Alvares: – Logo, de que me aproveita a mim a minha
lingoa?
Nugueira: – Ha, ha, ha... Sabeis de que me rrio? De me
preguntardes de que aproveita a vossa lingoa, porque vos pregunto:
de que aproveita a minha forija?
Gonçalo Alvares: –Ya vos eu respondi a essa pregunta.
Nugueira: – Tomai a mesma reposta.
Gonçalo Alvares: Não, que os ofícios são diferentes, porque o
meu hé falar, o vosso fazer.
Nugueira: – Não hé logo diferente o fim, porque cada hum de
nós á-de fazer o seu.
Gonçalo Alvares: – E qual hé esse fim?
Nugueira: – A charidade ou amor de Deus e do proximo.
Gonçalo Alvares: – E vós, Irmão, sois já theologo?
Nugueira: – Alguma cousa se me á-de pegar de meus Padres,
pois lhe eu pego quando se chegão a mim das mascarras do car-
vão da forja, e queira o Senhor que com meu mao viver não lhe
pegue algum escandalo, ainda que pois são espirituais, ensinados
estão a sofrer os emfermos e fraquos.
157
Leonardo Nunes, cf. Mon. Bras. 1 37-38.
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149
Gonçalo Alvares: – Dizei-me, Irmão Nugueira, esta gente são
proximos?
Nugueira: – Parece-me que ssi.
Gonçalo Alvares: – Por que rezão?
Nugueira: – Porque nunqua me acho senão com elles, e com
seus machados e fouces.
Gonçalo Alvares: – E por isso lhe chamais proximos?
Nugueira: – Si, porque proximos, chegados quer dizer, e elles
sempre se chegão a mim, que lhes faça o que am mister, e eu
como a proximos lhos faço, cuidando que cumpro o preseito de
amar ao proximo como a mim mesmo, pois lhe faço o que eu
queria que me fizessem, se eu tivesse a semelhante necessidade.
4. Gonçalo Alvarez: – Pois a pessoas mui avisadas ouvi eu dizer
que estes não erão proximos, e porfião-no muito, nem tem pera si
que estes são homens como nós.
Nugueira: Bem! Se elles não são homens, não serão proximos,
porque soos os homens, e todos, maos e boons, são proximos.
Todo o homem hé huma mesma natureza, e todo pode conhecer
a Deus e salvar sua alma, e este ouvi eu dizer que era proximo.
Prova-se no Evangelho do Samaritano
158
, onde diz Christo N. S.
que aquelle hé proximo que usa de misericordia.
Gonçalo Alvarez: – Deveis de ter boa memoria, porque vos
[210r] lembrão bem as cousas que ouvis. Ouvistes já disputar entre
os Irmãos ou falar nisto, em que praticamos da conversão destes
gentios?
Nugueira: – Muitas vezes, ou quasi sempre, entre meus Ir-
mãos se fala disso, e vós bem o sabeis, pois sois de casa. Cada
hum fala de seu officio, e como elles não tem outro, senão andar
trás esta ovelha perdida, sempre tratão dos inpedimentos que
achão pera a trazer.
158
Luc. 10, 30-37.
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150
Gonçalo Alvarez: E que comcruem ou em que se detreminão
os mais dos que nesse officio andão, das partes que achão nestas
gentes pera virem à nossa sancta fee?
Nugueira: – Todos remetem o feito a Deus, e determinão de
morrer na demanda, porque a isso são obrigados, assi porque a
obedientia lho manda, como porque não fique nada por fazer a
esta gente. Alguns não tem quá grande esperança delia, olhando a
sua rudeza e as cousas da fee serem delicadas, e que requerem
outros entendimentos e custumes, porque dizem elles que hé mui
grande dispocissão pera hum vir a ser christão, ter mui boom en-
tendi mento (que, ainda que soo este não abasta pera entender as
cousas da fee, ajuda a lhe fazer entender que não há nella cousa que
seja contra a rezão natural) de que estes carecem ; e daqui dizem
que naceo que no tempo dos Apostolos, quanto os homens erão
mais sabios e de boa vida, mais facilmente vinhão ò conhecimento
da verdade, e os martires mais lhos contrariavão os maos custumes
dos tiranos, que as rezõis que nenhum delles tivesse contra o que
lhe pregavão; e que, porque estes gentios não tem rezõis
159
e são
muito viciosos, tem a porta serrada para a fee naturalmente, se
Deus por sua misericordia não lha abrisse.
5. Gonçalo Alvarez: – Parecem boas rezõis essas, a memoria das
cousas de Deus. Dizei-me, Irmão, por amor de de N. Senhor, não
há, entre meus Irmãos e Padres, quem este da parte destes negros?
Nugueira: – Todos, porque todos os desejão converter e estão
detreminados de morrer na demanda, como disse.
159
No ms. “não tem rezão”. A palavra podia entender-se no sentido com que hoje dizemos
de quem contradiz abertamente qualquer verdade ou facto certo: “Fulano não tem razão”.
Mas aqui é a contraposição da frase precedente relativa aos tiranos, que viviam em maus
costumes [“viciosos”] e não tinham razões que opor aos mártires. Tratando esta fala do
parecer de alguns da Companhia, embora no plano das objecções, não é crível que
nenhum jesuíta julgasse o gentio “sem razão”, no sentido de irracionais, e portanto não
homens como os outros. E neste mesmo sentido se deve entender a frase “sem rei, sem
lei e sem razão” (carta 40 § 2).
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151
Gonçalo Alvarez: – Não duvido eu que todos tem esses desejos,
mas como isso hé cousa de necessidade, quizera eu que ouvera
hum que dera rezõis pera nos acender o fogo; e, pera vos falar por
nossos termos, quizeramos huns foles pera nos asoprar o fogo
que se nos apaga.
Nugueira: – Não falta isso, bastão os nossos Padres pera fazer
fogo artificial que nos queime a todos os que neste negotio nos
ocupamos, porque como o elles devem de ter no espirito, não
fazem senão [aiov] destruir rezõis e dar outras, ainda que a frios
como eu, não satisfazem.
Gonçalo Alvares: – Por que?
Nugueira: – Porque todas ellas parece que não convem mais,
senão que, já que avemos de trabalhar com esta gente, seja com
muito fervor, o que a todos nos convem muito, pois, segundo a
charidade com que trabalharmos na vinha do Senhor, nos pagará
quando chamar à tarde os obreiros pera lhes pagar seus jornaes, os
quais já ouvireis que só derão, não comforme ao trabalho e tem-
po
160
, senão ao fervor, amor e diligentia que se puzer na obra.
Gonçalo Alvarez: – Não falemos como ferreiro.
Nugueira: – Não sei como falo, falo como me vem à boca, se
for mal dito perdoai, que não hé ninguem obrigado a mais que ao
que tem e sabe.
6. Gonçalo Alvarez: – Deixemos
161
, isto! Sou tão descuidado
que logo me esquece que esperais, como vos louvão, como o fio
quente quando o batem! Eu me guardarei de vos dar mais marte-
lada porque me não queime. Por amor de Deus que me digais
algumas das rezõis que os Padres dão pera estes gentios virem a
ser christãos? Que alguns tem asertado que trabalhamos debalde,
ao menos até que este gentio não venha a ser mui sogeito, e que
com medo venha a tomar a fee.
160
Mat. 20, 1-16.
161
Parece que em vez de “disemos” se deve ler “deixemos”, de acordo com o seguimento
da frase: “eu me guardarei de”...
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152
Nugueira: – E isso que aproveitaria se fossem christãos por
força, e gentios na vida e nos custumes e vontade?
Gonçalo Alvarez: – Aos pais, dizem os que tem esta opinião, que
pouco, mas os filhos, netos e dahi por diante o poderião vir a ser,
e parece que tem rezão.
Nugueira: – E a mi sempre me pareceo este muito bom e milhor
caminho, se Deus assi fizesse, que outros. Não falemos em seus
segredos e potentia e sabedoria que não há mister conselheros,
mas humanamente como homens assi falando, este parece o milhor
e o mais certo caminho.
Gonçalo Alvares: – Mas as rezõis dos Padres, se vos lembrão,
desejo ouvir, porque as que eu apontei no principio não sei como
mas elle[s] desfarão.
Nugueira: Olhai quá, Irmão, a charidade tudo desfaz e derre-
te, como o fogo ao ferro muito duro amolenta e faz em massa.
Gonçalo Alvarez: – Nisso me parece que vós não tendes rezão,
porque a charidade não poderá tirar a verdade, e mais que rezõis
pertencem ao entendimento, e a charidade à vontade, [211r] que
são cousas diferentes. Asi como o fogo não tira ao ferro senão a
escoria, e não gasta o ferro limpo e puro: se as rezõis são boas a
charidade não será contra ellas, porque seria contra a verdade, e
assi não fiquaria caridade senão pertinatia.
Nugueira: – Parece-me que hé isso verdade, e que onde ouver
sobejo zelo, às vezes averá segar-se as rezõis ou usar pouco delias,
o que cada dia se vê nos muito afeiçoados a huma cousa.
Gonçalo Alvarez: – E isso não hé mao?
7. Nugueira: – Não sei eu hora quam mao será! Parece-me que
ouvi dizer que S. Paulo não aprovava tudo o que com boom zello
se fazia
162
; e que a huns dava testemunho do zelo, ainda que era
boom, a circunstantia necessaria, que hé saber se hé comforme a
vontade de Deus
163
, porque esta hé a regra que mede todas as
162
I Cor. 3, 3.
163
Heb. 13, 20-21.
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153
obras, e tanto vão direitas e boas quanto com ella conformão, e
tanto desvião da bondade quanto desta se desvião.
Gonçalo Alvarez: – Parece muita rezão que seya isso muita ver-
dade. Comforme a isso não foi boom fazer El-Rei Dom Manoel
os judeos christãos despois da matança
164
, ainda que os mais delles
dezião que si, mas tomou-os com os portais cheios de sangue que
derramarão os ministros do demonio percutiente, que por justiça
de Deus os ferio, yncitados por dous frades dominicos, que despois
pollo mesmo caso morrerão no Porto por mandado do dito Rei,
e assi se pagou hum mal com outro, como se custuma no mundo,
permitindo e disimulando Nosso Senhor até o dia em que mani-
festara todos nossas obras quais forão. E El-Rei Sesebuto
165
, Rei
d’Aragão, não se lhe condena nos sagrados canones
166
o zelo com
que contra vontade dos pais, judeus, mandou en seu reino bautizar
seus filhos, mas o fim não lho louvão. Logo nem tudo o que
parece bem se á-de fazer, senão o que realmente for boom.
Nugueira: – E como saberá homem sempre acertar, que hé
homem ignorante e fraco, se reis com seus conselhos não acertão?
Gonçalo Alvarez: – Tomando conselho com Deus e com os
homens desapaixonados, e que tenhão boa consientia.
Nugueira: – E onde se acharão esses? Acerta-se muitas veses,
que não se acham [211v] senão huns rejalados e frius, como eu,
que por se poupar não querem sair do ninho, não se lembrando
164
A matança dos judeus em Lisboa no tempo de El-Rei D. Manuel I, não por ordem régia,
mas por motim popular, começou na Igreja de S. Domingos, no domingo de Pascoela, 19
de Abril de 1506 e durou três dias. Cf. J. Lúcio de Azevedo, História dos Christãos Novos
Portugueses (Lisboa 1922) 59-61; Fortunato de Almeida, História de Portugal II (Coimbra
1923) 244-247.
165
Sesebuto ou Sisebuto, Rei de Aragão ou mais propriamente dos visigodos, faleceu no
ano de 621. Nóbrega chama-lhe Rei de Aragão, porque foi nessa região que se estabele-
ceram os visigodos donde irradiaram pela Península, incluindo parte da antiga Lusitânia.
166
O IV Concílio de Toledo reuniu-se em 633 (Miguel de Oliveira, História Eclesiástica de
Portugal [Lisboa, 1940] 41) e tratou da questão judaica então muito agitada (Zacarías
GarcÍa Villada, Historia Eclesiástica de Espana, II/I [Madrid 1932] 173). O ponto a que se
refere Nóbrega é o Cânon 57 e transcreve-o Fortunato de Almeida, História da Igreja em
Portugal I (Coimbra, 1910) 113.
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154
quanto as almas custarão a Christo, e estes tais parece que não
podem aconselhar bem em semelhantes negotios.
Gonçalo Alvares: – À falta doutros, que tenhão zelo e saber,
todavia me aconselharia com esses, porque alguma ora falou já o
Espiritu Santo, e aconselhou hum profeta
167
, ainda que não muito
virtuoso, por bem do povo que elle amava; e se elle quer fazer
bem a estes, como hé de crer que quer, porque não aborrece nada
do que fez, ainda que se o que nós fazemos, elle aconselhara por
maos o que se deve fazer. Mas já folgaria ouvir-vos as rezõis que
tendes ouvido dos Padres pera nos animarmos a trabalhar com
elles, e as que tem en contrario das que demos no principio.
8. Nugueira: – Já que tanto apertais comigo, e me pareceis de-
sejoso de saber a verdade deste negocio, creo que vos tenho esgo-
tado, dir-vos-ei o que muitas veses mar-telando naquele ferro duro
estou cuidando e o que ouvi a meus Padres por muitas vezes.
Parece que nos podia Christo, [que] nos está ouvindo, dizer: Ó
estultos e tardios de coração pera crer
168
! Estou eu imaginando
todas as almas dos homens
169
serem humas e todas de hum metal,
feitas à imagem e semelhança de Deus, e todas capazes da gloria e
criadas pera ella; e tanto val diante de Deus por naturaleza a alma
do Papa, como a alma do vosso escravo Papaná
170
.
Gonçalo Alvares: – Estes tem alma como nós?
Nugueira: – Isso está claro, pois a alma tem tres potentias, en-
tendimento, memoria, vontade, que todos tem. Eu cuidei que vós
167
Profeta Balaão (Num., cap. 22-24).
168
Luc, 24 25.
169
Homens huma nos, no ms. As duas últimas palavras, não unidas, parecem erro do
copista. Mas poder-se-ia admitir a redundância (“homens humanos”) para significar ho-
mens verdadeiros, excluindo as lendas da antiguidade, de seres fabulosos em figura de
homens, como os ciclopes com um só olho na testa.
170
Papaná: parece que habitavam o Sul da Capitania do Espírito Santo e teriam comuni-
cação, pelo Rio Paraíba, com o interior da Capitania de São Vicente, porque em princípios
de 1555 os índios do Principal de Piratininga Martim Afonso Tibiriçá cativaram um índio
“papaná” que o mesmo Principal queria matar em terreiro, impedindo-lho os Jesuítas. Cf.
supra, pp. 206-207.
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155
ereis mestre já em Israel
171
, e vós não sabeis isso! Bem parece que
as theologias que me dizeis arriba eram postiças do P.
e
Brás Lou-
renço
172
, e não vossas. Quero-vos dar hum desengano, meu Irmão
Gonçalo Alvarez: que tão ruim entendimento tendes vós pera en-
tender ho que vos queria dizer, como este gentio pera entender as
cousas de nossa fé.
Gonçalo Alvarez: Tendes muita rezão, e não hé muito, porque
eu ando n’agoa aos peixes bois
173
e trato no mato com brasil
174
,
não hé muito ser frio; e vós andais sempre no fogo, rezão hé que
vos aquenteis, mas não deixeis de proseguir adiante, pois huma
das obras de misericordia hé ensinar aos ignorantes.
9. Nuguera: Pois estai atento. Despois que nosso pai Adam
peccou, como dis o psalmista
175
, não conhecendo a honrra que
tinha, foi tornado semelhante à besta, [2i2r] de maneira que todos,
asi Portugueses, como Castelhanos, como Tamoios
176
, como
171
Palavras de Jesus a Nicodemos, Ioan. 3, 10.
172
Brás Lourenço, cf. Mon. Bras. J 43.
173
Peixe-boi: “Este peixe é nestas partes real e estimado sobre todos os demais peixes e,
para se comer, sadio e de muito bom gosto, ora seja salgado ora fresco”, e mais parece
carne de vaca que peixe. Já houve alguns escrúpulos por se comer em dias de peixe; a
carne é toda de febras como a de vaca, e assim sè faz em tassalhos e chacina, e cura-
se ao fumeiro como porco ou vaca, e no gosto, se se cose com couves ou outras ervas,
sabe a vaca, e concertada com adubos sabe a carneiro, e assada parece, no cheiro e
gosto e gordura, porco; e também tem toucinho” (Fernão Cardim, Tratados 79-80). É o
manatim do Amazonas onde hoje principalmente vive: Manatus inunguis, Natterer; o que
vivia no Espírito Santo, M. australis, Tilesius, segundo Rodolfo Garcia, nota ao lugar cit.
de Cardim, Tratados 136.
174
Cf. infra, nota 44: “Não é, essa, rezão de quem anda fazendo brasil no mato”. “Tratar
no mato com brasil”, “fazer brasil no mato”, isto é, comprar, agenciar, cortar “pau brasil”
(Caesalpina echinata L.). Cf. Gustavo Barroso. O Brasil na lenda e na cartografia antiga.
São Paulo: 1941, 83.
175
“Homo cum in honore esset, non intellexit: comparatus est iumentis insipientibus, et
similis factus est illis”. Ps. 48, 13, 21.
176
Tamoios, índios de língua tupi, que habitavam a região do Rio de Janeiro, ainda então
não incorporados ao Estado do Brasil, por se terem metido com eles os franceses. A
supressão deste quisto, que teria impedido a unidade do Brasil, é posterior à data do
Diálogo, e na supressão interveio o seu autor: “O primeiro Reitor do Colégio dos Jesuítas
do Rio foi o P. Manuel da Nóbrega, que tanto concorreu para a fundação da Cidade, sem
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156
Aimurés
177
, ficamos semelhantes a bestas por natureza corrupta, e
nisto todos somos iguais
178
, nem dispensou ha naturaleza mais com
huma geração que com outra, posto que em particular dá milhor
entendimento a hum que a outro. Façamos logo do ferro todo
hum, frio e sem vertude, sem se poder volver a nada, porem,
metido na forija, o fogo o torna que mais parece fogo que ferro;
assi todas as almas sem graça e charidade de Deus sam ferro frio
sem proveito, mas quanto mais se aquenta no fogo, tanto mais
fazeis delle o que quereis. E bem se vê em hum que está em peccado
mortal, fora da graça de Deus que pera nada presta das cousas que
toquam a Deus, não pode rezar, não pode estar na igreja, a toda a
cousa espiritual tem fastio, não tem vontade pera fazer cousa boa
nenhuma; e se por medo ou por obedientia ou por vergonha ha
faz, hé tão tristemente e tão preguisoçamente, que não vai nada,
porque está escripto que ao dador com alegria recebe Deus
179
.
o qual Estácio de Sá não poderia ter vindo reforçado de São Vicente, de modo a arrostar
Franceses e Tamoios durante quase dois anos. Esse Jesuíta benemérito não tem sido
condignamente apreciado: com grande desprezo da perspectiva histórica, Simão de
Vasconcelos esfumou-o na irradiação de Anchieta, seu discípulo querido; tácita ou expli-
citamente outros o têm imitado” (Capistrano de Abreu, notas a Porto Seguro, História
Geraldo Brasil 4.ª ed. (São Paulo s. d.) 431 e 393; cf. Leite, História I 389; para outras
referências aos Tamoios, ib. X 128; id., Nóbrega e a Fundação de São Paulo 190).
177
Os Aimurés habitavam perto da costa, nas Capitanias de Porto Seguro, Ilhéus e Baía.
De língua "travada» (não tupi) e a quem os Tupinambás chamavam “bárbaros”, isto é
“Tapuias”. Classificam-se hoje no grupo gê, sob a denominação genérica de Botocudos
(Estêvão Pinto, Os Indígenas do Nordeste I [São Paulo 1935] 130).
178
Foi para vincar melhor esta igualdade natural dos homens, dentro da doutrina cristã do
pecado original, que Nóbrega aos homens mais cultos, portugueses e castelhanos, uniu
logo os que no Brasil se consideravam mais bárbaros, que eram os Tapuias Aimurés.
Quem prescindir da doutrina de Nóbrega terá dificuldade e talvez impossibilidade de
atingir o pensamento nuclear do Diálogo sobre a Conversão do Gentio, que não fala do
homem em abstrato, mas no plano concreto da Religião de Cristo.
179
2 Cor. 9, 7. Toda a imagem, expressa com precisão de doutrina e de arte.
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157
Gonçalo Alvares: – Isso bem entendo eu, porque ho vi em mim
antes que fosse cassado
180
, que andava en peccados e ainda agora
praza a Deus que não tenha muito disso.
Nugueira: – Pois que direi eu, que envelheci nelles, e como ho-
mem que foi ferido falo!
10. Gonçalo Alvares: – Pois [se] assim hé, que todos temos huma
alma e huma bestialidade naturalmente, e sem graça todos somos
huns, de que veyo estes negros serem tão bestiais, e todas as outras
geraçõis, como os romanos, e os gregos, e os judeus, serem tão
discretos e avissados?
Nugueira: – Esta hé boa pergunta, mas clara está a reposta.
Todas as geraçõis tiverão tãobem suas bestialidades: adoravão
pedras e paos, dos homens íazião deuses, tinhâo credito en feitiça-
rias do diabo”, outros adoravão os bois e vaquas, e outros adoravão
por deus aos ratos e outras inmundicias; e os judeus, que erão a
gente de mais rezão que no mundo avia, e que tinha conta com
Deus, e tinhão as Escripturas des ho começo do mundo, adorarão
huma bezerra de metal, e não os podia Deus ter que não adoras-
sem os Ídolos e lhes sacrificavâo seus próprios filhos, não olhando
as tantas maravilhas que Deus fizera [212v] por elles, tirando-os
do captiveiro de Faraoo. Não vos parece tam bestiais os mouros,
a quem Mafamede despois de serem christãos converteo à sua
bestial secta, como estes ? Se quereis quoteijar cousa com cousa,
cegueira com segueira, bestialidade com bestialidade, todas achareis
de hum jaez, que procedem de huma mesma segueira. Os mouros
creem em Mafamede, muito visioso e torpe, e põe-lhes a ben-
aventurança nos deleites da carne e nos vicios, e estes dam credito
a hum feiticeiro que lhes põe a bem-aventurança na vingança de
180
Casado (e não caçado), porque está de acordo com os mais dizeres do Diálogo
referidos a Gonçalo Álvares, e com a grafia “cassados”, conferida com o que escreve na
fala seguinte do mesmo G. A. “avissados”; e confirma-se, porque, ai mesmo, graça está
com ç (“graça”) e não com dois ss (grassa).
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158
seus imigos e na valentia, e en terem muitas molheres. Os roma-
nos, os gregos, e todos os outros gentios, pintâo e tem inda por
deus a hum idolo, a huma vaqua, a hum galo, estes tem que há deus
e dizem que hé o trovão, porque hé cousa que elles acham mais
temerosa, e nisto tem mais rezão que os que adorão as rãas ou os
galos
181
; de maneira que, se me coteijardes error com error, cegueira
com cegueira, tudo
achareis mintira, que procede do pai da mentira
182
, mintiroso
desd’o começo do mundo.
Gonçalo Alvares: – Bem estou com isso. Mas como são os ou-
tros todos mais polidos, sabem ler, escrever, tratão-se limpamente,
souberão a filosofia, inventarão as sientias que agora há, e estes
nunqua souberão mais que andarem nus e fazerem huma frecha?
Ho que está claro que denota aver [desigual] entendimento em
huns e outros.
11. Nugueira: – Não hé essa rezão de homem que anda fazen-
do brasil
183
no mato, mas estai atento e entendereis. Terem os ro-
manos e outros gentios mais policia que estes não lhes veio de
terem naturalmente milhor emtendimento, mas de terem milhor
criação e criarem-se mais politicamente. E bem creo que vós o
vereis claro, pois tratais com elles e vedes que nas cousas de seu
mester e em que elles tratão, tem tam boas sotilesas, e tão boas
invenções, e tão discretas palavras como todos, e os Padres o
esperimentão cada dia com seus filhos, os quais achão de tão boom
entendimento que muitos fazem avantagem aos filhos dos christãos.
181
Nóbrega não pretendeu fazer um estudo comparado das religiões; e é evidente o seu
intuito de buscar, nas religiões não cristãs, pontos de apoio para favorecer os índios.
Observe-se que Nóbrega não considera a antropofagia dos índios como demonstração
religiosa, senão tê-la-ia incluído e também para ela teria achado comparações como,
entre outros, os sacrifícios humanos nas religiões dos Celtas. Sobre essas religiões, e
como, a par de ideias altas, se praticavam aberrações do gênero das que indica Nóbrega,
pode consultar-se, entre outros, Joseph Huby, Christus – Manuel d’histoire des religions,
Paris 1927.
182
Ioan. 8, 44-45.
183
Cf. supra, nota 35.
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159
Gonçalo Alvarez: Pois como tiverão estes pior criação que os
outros e como não lhes deu a natureza a mesma policia que deu
aos outros?
[Nugueira]
184
: – Isso podem-vos dizer chãmente, falando a ver-
dade, que lhes veo por maldição de seus avoz, porque estes creemos
serem descendentes de Chaam
185
, filho de Noé, que descobrio as
vergonhas de seu pai bêbedo, e em maldição, e por isso, fiquarão
nus e tem outras mais misérias. Os outros gentios, por serem [213r]
descendentes de Set e Japher, era rezão, pois eram filhos de benção,
terem mais alguma avantagem. E porem toda esta maneira de gen-
te, huma e outra, naquilo em que se crião, tem huma mesma alma e
hum ente[n]dimento, e provasse polia Escriptura, porque logo os
primeiros dous irmãos do mundo
186
hum segio huns custumes e
outro outros. Isac e Ismael ambos forão irmãos
187
, mas Isac foi
mais politico que ho Ismael 45° que andou nos matos. Hum ho-
mem tem dous filhos de igual entendimento, hum criado na aldeã e
outro na cidade; o da aldeã empregou seu entendimento em fazer
hum arado e outras cousas da aldeã, o da cidade em ser cortezão e
politico: certo está que ainda que tenham diversa criação, ambos tem
184
Fala deste interlocutor, que o copista se esqueceu de indicar no ms.
185
Depois de escrever o Dilúvio e a aliança de Deus com Noé, diz o Génesis 9, 18-27: “Eram
pois os filhos de Noé, que sairam da arca, Sem, Cam e Jafete. Este mesmo Cam é o pai
de Canaã. Estes são os três filhos de Noé: e deles se propagou todo o género humano
sobre toda a terra. E Noé, que era lavrador, começou a lavrar a terra e plantou uma vinha.
E bebendo do seu vinho ficou embriagado e deitou-se desnudo no meio da sua tenda. O qual
tendo visto Cam, pai de Canaã, isto é, a desnudez vergonhosa do seu pai, saiu fora a contá-
lo aos seus irmãos. Mas Sem e Jafete, deitando uma capa ou manta sobre os ombros e
caminhando às arrecuas, cobriram a desnudez do seu pai, tendo as caras voltadas, e assim
não viram as vergonhas do pai. Logo que despertou da embriaguês, sabendo o que havia
feito com ele o seu filho menor, disse: Maldito seja Canaã, escravo será dos escravos dos
seus irmãos. E acrescentou: Bendito seja o Senhor Deus de Sem, seja Canaã seu escravo.
Dilate Deus a Jafete e habite nas tendas de Sem, e seja Canaã seu escravo”. Comentando
esta maldição, Nóbrega dá como absurdo que a escravatura nela cominada tivesse sentido
de “iure perpetuo, a saber, que toda a geração de Cam fosse escrava das outras gerações
(Cartas de Nóbrega [1955] 412).
186
Abel e Caim, filhos de Adão e Eva; Abel pastor, Caim lavrador, Gen. 4, 2.
187
Filhos de Abraão, Gen. 16, 11; Gen. 17, 19.
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160
hum entendimento natural exercitado segundo sua criação. E o que
dizeis das sientias que acharam os philosophos que denota aver en-
tendimento grande, isso não foi geral benefficio de todolos huma-
nos, dado polia naturaleza, mas foi especial graça dada por Deus,
nam a todos os romanos nem a todos os gentios, senão a hum ou a
dous, ou a poucos, pera proveito e fermosura de todo ho universo.
Mas que estes, por não ter essa policia, fiquem de menos enten-
dimento para receberem a fee que os outros que a tem, me nam
provareis vós nem todas as rezõis acima ditas; antes provo quanto
esta policia aproveita por huma parte, tanto dana por outra, e quan-
to a simplicidade destes estorva por huma parte, ajuda por outra.
Veja Deus isso e julge-o; julgue-o tâobem quem ouvir ha esperientia
des que começou a Igreja, e ver que mais se perdeo por sobejos e
soberbo[s] entendimentos que não por simplicidade e pouco saber.
Mais fácil hé de converter hum ignorante que hum malicioso e so-
berbo. A principal guerra que teve a Igreja forão sobejos entenderes:
daqui vierão os hereges e os que mais duros e contumases ficaraam;
daqui manou a pertinácia dos judeos, que nem com serem conven-
cidos por suas próprias Scripturas nunqua se quizeram render à fee;
daqui veio a dizer São Paulo: Nós pregamos a Jesu Christo crucifi-
cado aos judeus escândalo e às gentes estultícia
188
. Dizei-me, meu
Irmão, qual será mais fácil de fazer? Fazer crer a hum destes, tão
faciles a creer, que nosso Deus morreo, ou a hum judeu que espera-
va ho Mesias poderosso [213V] e senhor de todo o mundo?
Gonçalo Alvarez: – Com mais dificuldade a hum judeu, mas des
que elle caisse na conta ficaria mais constante, como ficaram mui-
tos que logo davâo a vida por isso.
12. Nugueira: – O mesmo vos digo que des que estes cairem na
conta o mesmo farão. Dai-me vós que lhe entre a fee no coração,
que ho mesmo será de hum que do outro, e o tempo e o trabalho,
188
1 Cor. 1, 23.
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161
e a diligentia que hé necessária pera convencer hum judeu ou hum
p[h]ilosopho, se outro tanto gastardes con doutrinar de novo hum
destes, mais fácil será sua conversão de coração, dando Deus igual
graça a hum que a outro. E está clara a rezão, porque como as
cousas de nossa fee das mais esenciais, como são da S. Trindade e
que Deus se fez homem e os mistérios dos sacramentos, não se
podem provar por rezão demonstrativa, antes muitas são sobre
toda rezão humana, claro está que mais difícil será de crer a hum
philosopho, que todo se funda em subtilezas de rezão, que não a
hum que outras cousas muito mais somenos cree.
Gonçalo Alvares: – Hé verdade, porque estes se lhe deitais a
morte, cuidão que os podeis matar, e morrerão da imaginação
pello muito e sobejo que creem; e crem que o panicum
189
há-d’ir à
rossa, e outras cousas semelhantes que seus feiticeiros lhes metem
na cabeça. Mas ainda nem isso não farta, porque muito me há que
estou na terra e tenho falado de Deus muito por mandado dos
Padres, e nunqua vi a nenhum ter tanta fee que me parecesse que
morreria por ella se fosse necessário
190
.
Nugueira: – Se me vós desses licença, eu vo-lo diria.
Gonçalo Alvares: – Dizei, meu Irmão, que eu vos perdoo.
Nugueira: – Parece-me que por mais faciles que fossem a se con-
verterem, não se converterião da maneira que lhes dizeis nem lho
dizem os Padres, e por isso estai-me atento. Sabereis como o officio
de converter almas hé o mais grande de quantos há na terra e por
isso requere mais alto estado de perfeição que nenhum outro.
Gonçalo Alvarez: – Que requere? Não abasta ser lingoa e saber-
lho bem dizer?
13. Nugueira: – Muito mais á mister. Vede vós o que tinha hum
dos Apóstolos de Christo que converterão o mundo e por ahi vos
189
Panicum, cesto.
190
A esta objeção responde Nóbrega mais adiante (§ 14) com o índio que, em Maniçoba,
se ofereceu a morrer pela fé.
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regereis. Primeiramente tinhâo muito espirito, tanto que ardião de
dentro do fogo do Spiritu Sancto, porque, doutra maneira, como á-
de atear [214r] fogo divino em ho coração de hum gentio, ho que
tem o seu hum caramelo? Há-de ter muita fee, comfiando muito
em Deus e desconfiando muito de ssi; há-de ter graça de falar mui
bem a lingoa; há-de ter virtude pera fazer milagres quando comprir,
e outras graças muitas que tinhão os que converterão gente, e sem
isto não tenho ouvido que ninguém se convertesse. E vós quereis
converter sem nada disto, e que de graça sejão logo todos sanctos?
Esse seria o maior milagre do mundo; e ainda que vós sejais lingoa
e lho sabeis bem dizer, não me negareis que se algum vos não fala à
vontade, logo perdeis a patientia e dizeis que nunqua aonde ser boons.
Nem tem rezão de vos darem credito a vossas palavras, porque
ontem lhe pedieis o filho por escravo, e estoutro dia os querieis
enganar. E tem rezão de se temerem de os quererdes emganar, por-
que isto hé o que comummente tratão os maos christãos com elles.
Gonçalo Alvarez: – Isso hé verdade, mas os Padres que lhes
falão con tanto amor, porque os naum creem?
14. Nugueira: – Porque até agora não tem os índios visto essa
diferença antre os Padres e os outros christãos. Seja logo esta a
comcrusão, que quando Santiago, com correr toda Espanha e fa-
lar mui bem a lingoa, e ter grande charidade, e fazer muitos mila-
gres, não comverteo mais que nove disipulos
191
, e vós quereis e os
Padres, sem fazer milagres, sem saber sua lingoa, nem entender-se
com elles, com terdes presumssão de apostolo e pouca confiança
191
Tradição recolhida na V lição do Breviário e diz que converteu “poucos”; mas a estada de
Santiago em Espanha é objeto de discussão, e já no século XIII dizia a Igreja de Toledo
(defendendo o seu primado) contra a de Compostela, “que lo de la predicación del Apóstol
en Espana era un cuento de monjas y viudas piadosas”. Cf. Zacarías García Villada,
Historia Eclesiástica de Espana 1/1 (Madrid 1929) 30, que faz remontar os documentos
duvidosos ao século IV e os certos ao VII, donde arranca a tradição. Questão diversa desta
é a história do culto de Santiago; e sobre esta, cf. Justo Pérez de Urbel, Orígenes del culta,
de Santiago en Espana, in Historia Sacra, vol. V, n.° 9 (1952) 1-31.
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163
e fee em Deus, e pouca charidade, que sejão logo bons christãos?
Porem, por vos fazer a vontade, vos contarei que já vimos indios
desta terra com mui claros sinais de terem verdadeira fee no cora-
ção e amostraram-no por obra, não somente dos meninos que
criamos comnosco, mas tãobem dos outros grandes de mui pou-
co tempo comversados. Quem vio na Capitania de São Vicente
192
,
que hé terra onde se mais tratou com os índios que nenhuma do
Brasil, a morte gloriosa de Pero Lopes
193
. Quem vio suas lagrimas,
os abraços de amor aos Irmãos e Padres? Diga-o quem vio a
virtude tam viva de sua molher, quam fora dos custumes que antes
tinha, quam honesta viuva e quam christãmente vive, tanto que
pareceo a todos digna de lhe darem o Sanctissimo Sacramento
194
!
Pois que direi de suas filhas, duas, a qual milhor christãa! Que direi
192
Aludirá a esta Capitania, e ao maior trato com os índios nela do que em nenhuma outra
do Brasil, a carta de Nóbrega a Tomé de Sousa, da Baía, 5 de Julho de 1559. Ali, diz ele,
entraram na Companhia vários Irmãos – e já achou quando aí esteve (1553-1556) – que
já sabiam a língua dos índios, e os índios estavam menos "escandalizados» e se
ensinavam os seus filhos. Por isso na Capitania de S. Vicente houve mais trato com os
índios e se acharam alguns “predestinados”. Cf. Cartas de Nóbrega (1955) 322-323. A
alguns destes “predestinados” se refere aqui nominalmente.
193
“A morte gloriosa de Pero Lopes”. O louvor, que Nóbrega dá a este índio e à sua família,
merece estudo mais pormenorizado dos historiadores paulistas.
194
A comunhão eucarística deixara de ser frequente na Europa e os laicos, até os de maior
devoção, só comungavam de longe em longe. E embora se iniciasse a reação a favor da
sua frequência, S. Inácio dá como regra aos Reitores a respeito dos Irmãos Estudantes,
que eram religiosos e não laicos: “Más amenudo que cada 8 días no se permitia, sino por
speciales causas y tuviendo más respecto a la necessidad que a la devoción”
(Constitutiones, pars IV, cap. IV, 3 B). Nóbrega, admitindo esta índia à comunhão, dava
pois um passo avante, equiparando-a às pessoas piedosas da Europa. E quando as
aldeias, que então se organizavam, deram provas de maior estabilidade, todos os índios
se admitiam à comunhão, supostas as condições comuns a todos os cristãos, sem
distinção étnica ou de cor. Na Aldeia de Santo António, da Baía, com uma população de
oitocentos índios, o movimento de comunhões em 12 anos (1581-1592) foi de 16.700, o
que dá a média de 1.400 por ano (Leite, História II 34). Os índios comungavam, quase
todos, mais do que uma vez por ano, não apenas pela “desobriga”, segundo a percenta-
gem material; mas nesta, não se devem incluir os meninos e meninas antes da primeira
comunhão, que naquele tempo também não era precoce, como hoje, o que avoluma a
percentagem real da frequência.
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164
da fee do grão velho Cayobi
195
, que deixou sua aldea e suas roças
e se veo morrer de fome em Piratininga por amor de nós, cuja
vida e custumes e obedientia a[214v]amostra bem ha fee do cora-
ção! Quem vio vir Fernão Correa
196
de tão longe com fervor de fé
vir a pedir o bautismo e despois de tomado levá-lo N. Senhor! E
muitos outros da Aldea, os quais ainda que alguns não deixem a
vida viciosa por exemplo de outros maos christãos que vem, to-
davia se cree delles terem fee, pois o principal peccado e que lhe
mais estranhão, deixarão, que hé matarem em terreiro e comerem
carne humana. Quem não sabe que indo à guerra estes e tomando
contrairos os matarão e emterrarão? E pera mais vos alegrar,
tãobem vos direi que se vio
197
na Mandisoba, onde se matavão
huns indios Carijós, outro indio, que com os Padres andava,
195
No ms. Sayobi. O copista vendo C leu com cedilha escrevendo S; mas trata-se de
Caiubi; e este nome identifica o velho de mais de cem anos, cuja morte sem dizer o nome,
narra Anchieta em Piratininga por meados de 1561: “sendo morador noutro lugar duas
léguas de Piratininga, dizendo-lhe os Padres que viesse para Piratininga para aprender as
coisas de Deus, logo deixou quanto tinha e foi o primeiro que começou a povoá-la, indo de
certos em certos dias buscar de comer com a sua gente ao outro lugar que por amor de
Deus tinha deixado, onde tinha as suas roças e fazenda” (Carta de Anchieta, de 12 de Junho
de 1561, em espanhol, que, por andar incorrectamente traduzida, vertemos do apógrafo,
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Cartas dos Padres [antigo Códice de S. Roque,
Lisboa], 1-5, 2, 38, f. 125V). Como em junho de 1553, Nóbrega tratava de fundar a Aldeia
de Piratininga e se procedia à reunião de outras aldeias nesse lugar (Leite, História I 270;
Nóbrega e a Fundação de São Paulo, 46, 79, 82), a ida de Caiubi coloca-se nesse período,
antes de 29 de agosto de 1553 pois foi o primeiro, segundo o testemunho citado.
196
Este índio, Fernão Correia, parece, vindo “de tão longe”, que seria Carijó: e que é o
mesmo vindo com o Ir. Pero Correia, e cujo falecimento se narra, supra, p. 107.
197
A narrativa impessoal diz “se viu” e Nogueira, de fato, poderia não estar presente, mas
Nóbrega “viu” em pessoa. Depois de fundar a Aldeia de Piratininga (29 de Agosto de
1553), seguiu para Maniçoba com um Irmão “grande” (António Rodrigues) e quatro ou
cinco Irmãos “pequenos” (meninos). Os Tupinaquins iam matar em terreiro e comer, “uns
índios carijós”. Nóbrega procurou evitar o morticínio, sem o alcançar. (Foram estas e
outras verificações positivas e pessoais, que o levaram ao plano de 1558, que Mem de Sá
executou). António Rodrigues e os Irmãos “pequenos” pregaram e “converteram” aqueles
índios que iam ser mortos; e também aqui os matadores impediam o batismo e os
vigiavam muito bem, dizendo que, se eles se batizassem quem comesse a sua carne
morreria. O fato é contado em pormenor pelo Ir. Paro Correia, que tinha ido adiante de
Nóbrega, e provavelmente também assistiu à matança, na carta de 18 de julho de 1554
(supra, carta 17). Ao índio, que se ofereceu para os batizar secretamente (“para que
aqueles morressem cristãos”), parece referir-se Nóbrega.
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165
offerecer-se com grande fervor e lagrimas a morrer polia fee, só
porque aquelles morresem christãos, e outros muitos casos parti-
culares que acontecem cada dia, que seria largo contar. Pois antre
tão poucos colher-se logo tal fructo e com tão fraquos obreiros,
como será posivel, se N. Senhor mandar boons obreiros à sua
vinha com as partes necessarias, não se colher muito fructo? Por
serto tenho que se vos achareis no tempo dos Martires e vireis
aquellas carniçarias daquelles infiais, que não abastava tantos mila-
gres e maravilhas pera os amolentar, nen tão boas pregaçõis e
rezõis, vós e eu diseramos: nunqua estes an-de ser boons. Resol-
vendo-me logo, digo: emfim rezõis! Que ho negocio de converter
hé principalmente de Deus, e ninguam trás a conhecimento de
Jesu Christo senão quem seu Pai traz
198
, e quando elle quer faz de
pedras filhos de Isrrael
199
, como tão pouco ninguem pode salvar-
se nem ter graça sem elle
200
.
15. Gonçalo Alvares: – Isso hé tudo da parte de Deus, mas da
parte do gentio tãobem hé necessario aparelho, porque ouvi dizer
que dis S. Agustinho que Deus que me fez sem mim não me salva-
rá sem mim
201
.
Nugueira: – Da parte do gentio digo que huns e outros tudo
são ferro frio, e que quando os Deus quizer meter na forja logo se
converterão; e sse estes na fragoa de Deus fiquarão pera sse mete-
rem no fogo por derradeiro, ho verdadeiro ferreiro, senhor do
ferro, lá sabe ho porque, mas de aparelho de sua parte tão mao o
tem estes como ho tinhão todas as outras geraçõis.
198
Ioan. 6. 44.
199
Mat. 3, 9; Luc. 3, 8.
200
Ioan. 15, 5.
201
S. Agostinho: "Qui ergo fecit te sine te, non te justificat sine te. Ergo fecit nescientem,
justificat volentem» (Serm. 169, II, 13). Cf. Hermannus Lange, De Gratia (Friburgi
Brisgoviae 1929) 242; M. J. Rouet de Journel, Enchiridion Patristicum (Frib. Brisg. 1932)
n.° 1515; Tito Lívio Ferreira, De Santo Agostinho ao Padre Manoel da Nóbrega, in Revista
da Universidade Católica de São Paulo VII (1955) 58-62.
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166
Gonçalo Alvarez: – Isso desejo saber mais claro.
16. Nugueira: – Quanto mais inpedimentos hum tiver pera a
comversão, tanto diremos que está menos disposto, e quanto me-
nos do mal tem Deus que tirar delles, tanto mais dispostos serão.
Gonçalo Alvares: – Ide adiante e provai isso.
Nugueira: – [215r] Contai-me o mal de hum destes e ho mal de
hum philosopho romano. Hum destes, muito bestial, sua bem-
aventurança hé matar e ter nomes, e esta hé sua gloria por que mais
fazem. Ha lei natural nam a guardão porque se comem; sam mui-
to luxuriosos, muito mentirosos, nenhuma cousa aborresem por
má, e nenhuma louva[m] por boa; tem credito em seus feiticeiros:
aqui me emçarrareis tudo. Hum philosopho hé muito sabio, mas
muito soberbo, sua ben-aventurança está na fama ou nos deleites,
ou nas victorias de seus inimigos; muito malisioso, que a verdade
que lhe Deus ensinou, escondeo, como diz São Paulo
202
; não
guardão a lei natural, posto, que a entendão; muito vitiosos no
vitio contra a natura; muito tiranos e amigos de senhorear; mui
cobisosos e mui temerosos de perderem o que tem; adorão idolos,
sacrifiquão-lhe sangue humano, e senhores de todo o género de
maldade: ho que não achareis nestes porque, segundo dizem os
Padres que comfessam, em dous ou tres dos mandamentos tem
que fazer com elles; antre si vivem mui amigavelmente como está
claro: pois qual vos parece maior penedo
203
pera desfazer?
Gonçalo Alvares: – De rroim gado não hai que escolher, mas
todavia queria que me respondesseis às rezõis de riba mais dis-
tintamente.
Nugueira: – Pollo que está dito bem clara está a resposta.
202
Cf. Rom. 1, 18-23.
203
Penedo. No ms. “pimido”, termo desconhecido, erro do copista, por “pinedo” ao que
parece. Não acertamos com outro vocábulo mais próximo, coerente com o sentido da
frase — coisa confrontada, dura para desfazer: “Coisa de penedo ou dura como hum
penedo”, traz Rafael Bluteau, Vocabulario Portuguez (Lisboa 1720), verb. “Penedo”.
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167
CRONOLOGIA
1517 - 17 de outubro. Nascimento de Manuel da Nóbrega em Braga.
1541 - 14 de junho. Diploma em Cânones pela Universidade de Coimbra.
1544 - 21 de novembro. Ingresso na Companhia de Jesus.
1549 - Nomeado chefe da missão jesuítica enviada à Bahia na esquadra de Tomé
de Sousa, primeiro governador geral do Estado do Brasil.
1º de fevereiro. Saída do porto de Lisboa .
29 de março. Chegada ao arraial do Pereira, Vila Velha, Bahia.
Abril. Envia a primeira carta à Europa, informando que confiou a “instrução” (a
escola de ler e escrever estabelecida em Vila Velha) ao Irmão Vicente
Rodrigues e que pediu a Diogo Álvares Correia, Caramuru, a tradução de
orações do português para o tupi.
10 de agosto. Carta para seu mestre de Coimbra, Dr. Navarro, afirmando que é
“grande maravilha Deus ter entregue terra tão boa por tanto tempo a uma
gente tão inculta que não conhece nenhum Deus, regendo-se por apetites
sensuais e sempre inclinada ao mal, sem conselho nem prudência”.
No final do ano, manda o P. Leonardo Nunes com dez meninos alfabetizados
para São Vicente.
1550 - A missão jesuítica passa a receber do almoxarifado régio o subsídio
mensal de 1 cruzado (400 réis) para cada um dos seis religiosos vindos
com Tomé de Sousa.
1551 - Julho. Vai para Pernambuco com o P. Antônio Pires. Em Olinda, oficia o
casamento de portugueses amancebados com índias, batiza índios e ne-
gros, funda um recolhimento de moças e uma Casa de Meninos.
1552 - Janeiro. Volta para a Bahia, ocupando-se sozinho das missas em Vila Velha
e Salvador, pois os outros padres estão no Sul, pregando o jubileu do ano
santo de 1550.
Junho. Chegada do Bispo Pero Fernandes Sardinha a Salvador.
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168
No dia do Anjo Custódio, Nóbrega funda a aldeia de São Tomé do Paripe,
mandando que o Irmão Vicente Rodrigues e dois meninos órfãos conhe-
cedores de tupi fiquem nela para ensinar as crianças indígenas.
Conflitos com o Bispo Pero Fernandes Sardinha, que discorda dos métodos
catequéticos adotados pelos jesuítas.
Nóbrega vai com o governador geral Tomé de Sousa para São Vicente. Passa pela
Capitania do Espírito Santo, onde o P. Afonso Brás administra o Colégio
de Santiago, em Vitória. Na Ilha do Governador, Rio de Janeiro, faz
contato com a tribo de Maracajaguaçu, “o Gato Grande”, amigo dos
portugueses.
1553 - 17 de janeiro. Chegada de Nóbrega ao colégio fundado um ano antes pelo
P. Leonardo Nunes.
2 de fevereiro. Nóbrega ordena o colégio juridicamente como outro Colégio dos
Meninos de Jesus.
9 de junho. Inácio de Loyola cria a Província do Brasil e nomeia Nóbrega seu
primeiro provincial. Nóbrega deixa de subordinar-se à autoridade do
bispo de Salvador e dá continuidade ao programa inicial de “catequese e
ensino”.
Em São Vicente, participa da solução das pendências de Brás Cubas e Pero
Correia sobre a posse de terras.
Informa que João Ramalho vive nu com muitas índias, cometendo incesto com
as filhas. Toma medidas para solucionar a situação civil de João Ramalho,
casado em Portugal.
Julho. O P. Luís da Grã chega ao Estado do Brasil como emissário do novo
provincial de Portugal, P. Diogo Mirão. Nóbrega recebe novas orienta-
ções. A sede romana da Companhia determina que a missão deve acumu-
lar bens de raiz, enriquecendo seu patrimônio temporal. A política dos
recolhimentos e as confrarias de meninos com bens próprios não são mais
convenientes. Mirão determina que a Companhia não mais pode ter o
encargo das instituições de órfãos. Tomé de Sousa passa o cargo a Duarte
da Costa. Amigo do P. Luís da Grã, o novo governador geral demonstra
antipatia por Nóbrega.
Agosto. Sobe a serra de Paranapiacaba pela trilha dos tupiniquins e chega ao
campo de Piratininga. Aí deixa dois Irmãos, que constroem uma casa e
uma capela auxiliados pelos homens do chefe Tibiriçá.
Passa a contar com o auxílio do Irmão José de Anchieta, vindo de Tenerife, nas
ilhas Canárias.
1554 - 24 de janeiro. Na véspera do dia de São Paulo, Nóbrega e mais doze
religiosos sobem a Serra do Mar pelo caminho do Perequê e vão para
Piratininga.
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169
25 de janeiro. No sertão de Santo André da Borda do Campo, Nóbrega, Anchieta
e outros religiosos participam da fundação da vila de São Paulo de
Piratininga, erigindo a casa de pau-a-pique de um colégio na esplanada
acima do vale do rio Anhangabaú.
Nóbrega confirma as relações de amizade com os chefes tupiniquins Tibiriçá,
Piquerobi e Caiubi.
Entra pelo sertão de Piratininga, descendo o rio Tietê pela margem esquerda até
a aldeia tupiniquim de Maniçoba, onde tenta evitar a morte de prisionei-
ros carijós.
O geral da Companhia passa a Nóbrega todas as faculdades que tinha na Santa Sé
em Roma, menos as de dar indulgência plenária e admitir à profissão.
Nóbrega transfere o colégio da vila de São Vicente para a vila de São Paulo de
Piratininga.
24 de agosto. Envia três Irmãos da Companhia para fazer as pazes entre os carijós
e os tupis. Dois deles, Pero Correia e João de Sousa, são mortos pelos
carijós, instigados por um castelhano do Paraguai, tornando-se os primei-
ros “mártires do Brasil”.
Pretende ir para o Paraguai. Recebe instruções de Lisboa, determinando que,
como provincial da Companhia de Jesus na assistência do Estado do
Brasil, tem que residir na capital (Salvador).
1556 - 23 de maio. Parte para a Bahia, doente, pondo sangue pela boca, em
companhia do P. Francisco Pires, do Irmão Antônio Rodrigues e mais
dois Irmãos. Leva as Constituições da Companhia de Jesus que acabaram de
chegar ao Estado do Brasil.
16 de junho. O Bispo Pero Fernandes Sardinha é morto e comido pelos caetés no
Nordeste.
Julho. Nóbrega chega à Bahia, depois de parar no Espírito Santo e em Porto
Seguro. Funda novos aldeamentos indígenas. O primeiro é estabelecido
pelo Irmão Antônio Rodrigues no Rio Vermelho. Nóbrega proíbe a con-
fissão de colonos que vivem em concubinato público com índias ou que
possuem escravos índios “comprados sem justiça”. Na aldeia do chefe
Tubarão, funda-se a igreja de São Sebastião.
Escreve o Diálogo sobre a Conversão do Gentio.
1557 - 11 de junho. Morte do rei D. João III.
1558 - O trabalho de Nóbrega tem a aprovação do P. Diogo Lainez, o novo
superior geral da Companhia de Jesus em Roma.
8 de maio. Carta em que sistematiza a nova política da catequese em seis itens
básicos. A chamada “pedagogia do amor” inicial é substituída pela cha-
mada “pedagogia do medo”.
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Escreve um texto perdido, Tratado contra a antropofagia e contra os cristãos seculares
e eclesiásticos que a fomentam ou consentem.
Julho. Informa que nesse texto disputa em Direito a falsidade da opinião corrente
de que é bom e vantajoso que os índios se comam uns aos outros, deixando
os portugueses em paz.
1559 - O novo provincial de Portugal passa ao P. Luís da Grã as patentes do
provincialato do Estado do Brasil. Nóbrega volta para São Vicente, onde
tenta restabelecer os recolhimentos.
1560 - Janeiro.
Acompanha a expedição organizada por Mem de Sá, o terceiro governador geral,
para atacar o forte Coligny, na baía de Guanabara, ocupado desde 1555
pelos huguenotes franceses de Nicolas Durand de Villegagnon.
Junho. Carta ao cardeal D. Henrique, regente durante a menoridade de D. Sebas-
tião, recomendando a fundação de uma cidade no Rio de Janeiro para
defender a região dos franceses.
1561 - Avalia os resultados do ensino de jovens índios, afirmando que os moços
que abandonam a escola e voltam para suas tribos pelo menos não tornam
a comer carne humana e censuram os pais e parentes que o fazem.
Participa ativamente da organização da “guerra justa” contra os tamoios confe-
derados de Iperoig, em São Vicente, aliados dos franceses. Envia o P.
Manuel de Paiva como confessor da tropa de portugueses, mestiços e
índios cristianizados, e um Irmão, Gregório Serrão, como língua dos índi-
os catequizados.
6 de abril. Os tamoios são derrotados. Nóbrega toma parte nas negociações da
paz.
1562 - Julho. Os tupis do sertão de Piratininga, até então amigos dos portugue-
ses, aliam-se aos tamoios para atacar a vila de São Paulo chefiados por
Aimbirê, Jagoanharo e Piquerobi, irmão de Tibiriçá, que se mantém alia-
do dos portugueses. João Ramalho acode com seus mamelucos e índios,
Brás Cubas envia reforços de Santos e, auxiliados pelos homens de Tibiriçá,
os portugueses conseguem resistir. Na luta, morre Jagoanharo, sobrinho
de Tibiriçá.
O P. Lainez escreve a Nóbrega aprovando a obra dos recolhimentos e recomen-
dando a fundação de outros.
1563 - 21 de abril. Nóbrega e Anchieta saem por mar de São Vicente para
negociar com os tamoios de Iperoig.
4 de maio. Nóbrega e Anchieta chegam ao Grão Cairuçu, entre São Sebastião e
Ubatuba, em Iperoig, sendo recebidos pelos chefes tamoios Caaoquira e
Pindobuçu e o tupinambá Cunhambebe.
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171
Nóbrega e Anchieta são ameaçados de morte pelos homens de Paranapuçu, filho
de Pindobuçu.
21 de junho. Os tamoios permitem que Nóbrega retorne a São Vicente. Anchieta
permanece refém.
1564 - Fevereiro. Estácio de Sá, sobrinho de Mem de Sá, e Nóbrega chegam à
Guanabara.
2 de abril, dia de Páscoa. Nóbrega celebra missa na Ilha de Villegagnon.
Volta para São Vicente com Estácio de Sá.
Uma provisão real estabelece o Colégio de Salvador para 60 padres da Companhia
de Jesus. Ainda em 1564, a Coroa emite alvará que estabelece a redízima
dos dízimos como “esmola para sempre para a sustentação do Colégio da
Bahia”.
1565 - 22 de janeiro. Estácio de Sá volta para o Rio de Janeiro. Nóbrega perma-
nece em São Vicente.
1567 - Emite o Parecer, Caso de Consciência, que serve de base para a lei portuguesa
de 1570 a respeito da escravidão dos índios. Nega a legitimidade da escra-
vidão dos índios que vendiam aos filhos e a si mesmos como escravos
durante a fome e a peste de varíola e sarampo de 1562-1563.
Junho. É indicado como superior do Colégio do Rio de Janeiro e parte de São
Vicente.
24 de julho. Torna- se reitor do Colégio do Rio. Muito doente, põe sangue pela
boca. Anchieta é nomeado seu assistente.
1568 - 11 de fevereiro. Um alvará régio determina a redízima dos dízimos das
capitanias do Sul para sustentar 50 missionários no Colégio do Rio de
Janeiro e nas outras casas sob sua jurisdição.
1570 - 17 de outubro. Manuel da Nóbrega morre no Rio de Janeiro no dia de seu
aniversário. Está completando 53 anos de idade.
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Este volume faz parte da Coleção Educadores,
do Ministério da Educação do Brasil, e foi composto nas fontes
Garamond e BellGothic, pela Sygma Comunicação,
para a Editora Massangana da Fundação Joaquim Nabuco
e impresso no Brasil em 2010.
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