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WARLEY MATIAS DE SOUZA
LITERATURA HOMOERÓTICA: O HOMOEROTISMO
EM SEIS NARRATIVAS BRASILEIRAS
Belo Horizonte
Faculdade de Letras da UFMG
2010
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WARLEY MATIAS DE SOUZA
LITERATURA HOMOERÓTICA: O HOMOEROTISMO
EM SEIS NARRATIVAS BRASILEIRAS
Dissertação apresentada ao curso de Pós-Graduação em Letras, da
Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais,
como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Letras —
Estudos Literários.
Área de Concentração: Teoria da Literatura (Mestrado).
Linha de Pesquisa: Literatura e Expressão da Alteridade (LEA).
Orientador: Prof. Dr. Marcos Antônio Alexandre.
Belo Horizonte
Faculdade de Letras da UFMG
2010
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Ficha catalográfica elaborada pelos Bibliotecários da Biblioteca FALE/ UFMG
Souza, Warley Matias de.
S729l Literatura homoerótica [manuscrito] : o homoerotismo em
seis narrativas brasileiras / Warley Matias de Souza. –
2010.
153 f., enc.
Orientador: Marcos Antônio Alexandre.
Área de concentração: Teoria da Literatura.
Linha de Pesquisa: Literatura e Expressão da Alteridade.
Dissertação (mestrado) Universidade Federal de Minas
Gerais, Faculdade de Letras.
Bibliografia: f. 144-153.
1. Literatura erótica brasileira História e crítica Teses.
2. Literatura homoerótica História e crítica Teses. 3.
Erotismo na literatura Teses. 4. Homossexualismo na
literatura Teses. 5. Sexo Teses. 6. Homoerotismo
Teses. 7. Homofobia – Teses. 8. Caminha, Adolfo, 1867-
1897. Bom-Crioulo – Crítica e interpretação Teses. 9.
Maluco, Capadocio. O menino do Gouveia Crítica e
interpretação Teses. 10. Andrade, rio de, 1893-1945.
Frederico Paciência – Crítica e interpretão – Teses. 11.
Rosa, João Guimarães, 1908-1967. Grande sertão: veredas
Crítica e interpretação Teses. 12. Abreu, Caio Fernando,
1948-1996. Pela noite – Crítica e interpretação Teses. 13.
Assis, Machado de, 1839-1908. Pílades e Orestes Crítica
e interpretação Teses. I. Alexandre, Marcos Antônio. II.
Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de Letras.
III. Título.
CDD: 809.933538
Universidade Federal de Minas Gerais
Faculdade de Letras
Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários
Dissertação intitulada Literatura homoerótica: o homoerotismo em seis narrativas
brasileiras, de autoria do mestrando Warley Matias de Souza, aprovada pela banca
examinadora constituída pelos seguintes professores:
_______________________________________________________
Prof. Dr. Marcos Antônio Alexandre — FALE/ UFMG — Orientador
______________________________________________________
Prof. Dr. Carlos Magno Camargos Mendonça (FAFICH/ UFMG)
_______________________________________________________
Profa. Dra. Sara del Carmen Rojo de la Rosa (FALE/ UFMG)
_______________________________________________________
Profa. Dra. Leda Maria Martins
Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos
Literários da FALE/ UFMG
Belo Horizonte, 01 de dezembro de 2010
Av. Antônio Carlos, 6627 — Belo Horizonte — MG — 31.270-901 — Brasil — Tel.: (31) 3409-5112 — Fax: (31) 3409-5490
AGRADECIMENTOS
A meu amigo Paulo Fabrício dos Reis Silva, que revisou as traduções em francês
utilizadas neste trabalho.
A Terezinha Young, que, muito gentilmente, fez a compra e providenciou o envio de
duas publicações americanas constantes das referências deste trabalho. E à minha amiga
Rosiléa Aparecida César Verçosa, que intermediou esse contato.
Ao meu orientador Marcos Antônio Alexandre, por me dar a liberdade necessária e
respeitar os meus limites. E, acima de tudo, por respeitar as minhas ideias.
Ele passou as mãos molhadas nas minhas costas. Eu passei as mãos
molhadas nas costas dele. Ele afastou a boca da minha, depois deitou
a cabeça no meu ombro. Meu coração batia batia, ele podia ouvir. O
suor da gente se misturava. O coração dele batia batia, escutei quando
deitei a cabeça no seu ombro. Eu fiquei passando as mãos nas costas
dele. Elas ficaram todas meladas da água de prata que ele tinha me
ensinado a tirar de dentro de mim. Ele não se importava de ficar
melado da água de mim. Eu também não me importava de ficar
melado da água dele. Nojo nenhum, eu sentia. Ele passou a língua na
curva do meu pescoço. Eu enrolei os dedos naquele triângulo de
pêlos crespos na cintura dele. Não sei quanto tempo durou. Sei que de
repente a gente se afastou e, olhando um pro outro, começamos a rir
feito loucos outra vez.
Caio Fernando Abreu.
1
1
ABREU, 1988, p. 145.
RESUMO
Este trabalho discute a relação entre literatura e homoerotismo e propõe um
conceito de literatura homoerótica fundamentado a partir da análise crítica de seis
narrativas brasileiras que têm como foco o homoerotismo masculino. Procura entender
os mecanismos que envolvem a homofobia social e seus reflexos nos estudos literários.
E, ao separar o desejo homoerótico de uma identidade gay, o trabalho busca mostrar que
o homoerotismo pode ser lido como elemento estético, portanto literário, inerente a
estruturas de determinadas narrativas. Assim, fazemos um estudo comparativo dos
personagens Aleixo (Bom-Crioulo, de Adolfo Caminha) e Bembem (O menino do
Gouveia, de Capadocio Maluco), refletimos sobre o pecado e a transgressão a partir dos
personagens Juca (“Frederico Paciência”, de Mário de Andrade) e Riobaldo (Grande
sertão: veredas, de João Guimarães Rosa), além de fazermos uma análise comparativa
entre o conto Pílades e Orestes” (de Machado de Assis) e a novela “Pela noite” (de
Caio Fernando Abreu).
RESUMEN
Este trabajo discute la relación entre literatura y homoerotismo y propone un
concepto de literatura homoerótica fundamentado en el análisis crítico de seis narrativas
brasileñas que tienen como foco el homoerotismo masculino. Procura comprender los
mecanismos relacionados a la homofobia social y sus reflejos en los estudios literarios.
Y, al alejar el deseo homoerótico de una identidad gay, el trabajo procura mostrar que el
homoerotismo puede ser leído como elemento estético, por lo tanto literario, inherente a
estructuras de determinadas narrativas. Así hacemos un estudio comparativo de los
personajes Aleixo (Bom-Crioulo, de Adolfo Caminha) y Bembem (O menino do
Gouveia, de Capadocio Maluco), reflexionamos acerca del pecado y de la transgresión a
partir de los personajes Juca (“Frederico Paciência”, de Mário de Andrade) y Riobaldo
(Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa), además de hacer un análisis
comparativo entre el cuento “Pílades e Orestes” (de Machado de Assis) y la novela corta
“Pela noite” (de Caio Fernando Abreu).
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.......................................................................................................... 008
HOMOSSEXUALISMO E HOMOEROTISMO.................................................... 018
Sexos, sexualidades e norma(li)tização........................................................................ 019
Homossexualidade e doença......................................................................................... 026
O desejo homoerótico................................................................................................... 042
A LITERATURA HOMOERÓTICA E SUAS CARACTERÍSTICAS................ 050
O homoerotismo e os estudos culturais........................................................................ 051
A narrativa homoerótica............................................................................................... 057
A influência do homoerotismo na produção literária................................................... 066
Por um conceito de literatura homoerótica................................................................... 071
LITERATURA HOMOERÓTICA BRASILEIRA................................................. 073
O menino do Gouveia e o grumete Aleixo................................................................... 074
Pecado e transgressão: Juca e Riobaldo....................................................................... 090
“Pílades e Orestes” e “Pela noite”................................................................................ 108
CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................................... 136
REFERÊNCIAS.......................................................................................................... 144
INTRODUÇÃO
9
Durante a história da humanidade, os indivíduos homoeroticamente inclinados
foram perseguidos, torturados e mortos. Louis Crompton (1978), em seu artigo Gay
genocide: from Leviticus to Hitler”, fala da falta de documentação referente ao
genocídio de gays durante toda a História e faz referência aos poucos documentos
existentes. Segundo Crompton, durante aproximadamente 1.400 anos, muitos homens e
mulheres homoeroticamente inclinados, no Ocidente, foram sistematicamente mortos ou
mutilados; contudo, não houve registro público desse “assombroso crime” contra a
humanidade
2
.
[...] não houve uma “história gayda mesma forma que existiu uma história dos
judeus, dos negros, dos índios e de seitas cristãs. Historiadores heterossexuais têm
sido impedidos de escrever sobre o assunto por causa do tabu que faz disso algo
“indizível”, “não mencionável” e “não apropriado para ser dito entre homens
cristãos”. Historiadores gays, que deviam ter tido um maior incentivo para lembrar
o martírio de seus irmãos e irmãs, têm sido contidos por essa convenção, e algo
mais: o medo de deixar de ser invisível
3
(CROMPTON, 1978, p. 67, tradução
nossa).
Crompton começa sua exposição dos registros existentes a partir do “Velho
Testamento”, citando o procedimento de punição aos indivíduos homoeroticamente
inclinados por meio da morte por apedrejamento. Em seguida, menciona o primeiro
decreto do império romano que condenava os homens homoeroticamente inclinados, em
342 d.C. E, então, refere-se ao período da Inquisição na Espanha e Portugal, em que
tantos indivíduos homoeroticamente inclinados foram mortos. Menciona alguns casos
na França durante esse período e a dificuldade, nesse país, em encontrar registros dos
fatos. Cita os casos documentados nos Estados Unidos durante o mesmo período. E
deixa muitas páginas para falar da “caça às bruxas” na Holanda, no ano de 1730, em que
homens e jovens foram queimados, enforcados, dentre outros tipos de penas de morte,
devido à acusação de “sodomia”; Crompton, inclusive, lista alguns nomes de
sentenciados, incluindo, em alguns casos, a reação dos mesmos diante da sentença de
morte. E, por fim, termina seu artigo falando dos campos de concentração nazistas
2
CROMPTON, 1978, p. 67.
3
“[...] there has been no ‘gay history’ as there been a history of the Jews, of the blacks, of the
Indians, and of Christian sects. ‘Straight’ historians have been inhibited from writing on the
subject by the taboo which made it ‘unspeakable’, ‘unmentionable’, and ‘not fit to be named
among Christian men’. Gay historians, who might have had a greater incentive to record the
martyrdom of their sisters and brothers, have been restrained by this convention, and something
more: the fear of ceasing to be invisible” (CROMPTON, 1978, p. 67).
10
durante a Segunda Grande Guerra Mundial.
Estimativas razoáveis do número de homossexuais que morreram de doença,
negligência, experiências médicas e na câmara de gás têm variado de 100.000 para
mais de 400.000,
4
mas nenhum esforço sistemático tem sido feito para determinar
os fatos. Uma vez que muitos registros nazistas foram destruídos, o total,
provavelmente, nunca será conhecido com exatidão
5
(CROMPTON, 1978, p. 81,
tradução nossa).
A invisibilidade do desejo homoerótico ou do indivíduo homoeroticamente
inclinado não está presente apenas nos estudos históricos, como nos mostra Crompton;
mas também nos estudos literários. Por muito tempo, a crítica especializada preferiu
deixar de lado a presença do homoerotismo nas obras literárias, considerando esse
desejo como um elemento sem importância para a análise crítica; principalmente em um
tempo em que a análise da obra era, necessariamente, vinculada à biografia do escritor.
Negar o homoerotismo da obra era também negar o desejo homoerótico de seu criador.
que esse desejo era associado, comumente, à doença e ao crime, ele tornou-se um
tabu para a crítica literária.
A história homossexual é, como adverte Balderston, a cicatriz de duas histórias:
insistência e escamoteação, brilho e negação, e as formas da escamoteação foram
tão variadas como o jogo erótico dos poetas com os caçadores de metáforas. Mais
ainda, a escamoteação não provém do texto, mas de seus leitores, que insistiram em
ludibriá-lo de forma a obrigar a sua rebelião a se adaptar aos bons costumes. […], e
convém ressaltar: o recato em torno da homossexualidade não se origina no texto,
mas em uma história que se torna “pudica” diante dele. Dessa forma, e fora dos
consabidos binarismos de composição, o esquema crítico impõe uma história de
evidências escritas e apagadas, proclamadas à meia voz, e cria um sistema no qual a
homossexualidade se mantém precisamente no terreno de uma “marca”, de um
4
Porém, numa nota do livro Pierre Seel, deportado homosexual, temos a seguinte informação:
“‘[...]. Es curiosa esa especie de censura a una parte de las víctimas de los campos de
concentración. Hubo ochocientas mil personas asesinadas por el hecho de ser homosexuales
(Michel Tournier, Gai Pied, n. 23, febrero de 1981)” (SEEL; BITOUX, 2001, p. 132, nota 30);
ou seja: “‘[...]. É curiosa essa espécie de censura a uma parte das vítimas dos campos de
concentração. Houve oitocentas mil pessoas assassinadas pelo fato de serem homossexuais’
(Michel Tournier, Gai Pied, n. 23, fevereiro de 1981)” (SEEL; BITOUX, 2001, p. 132, nota 30,
tradução nossa, grifos nossos).
5
“Reasonable estimates of the number of homosexuals who died from illness, neglect, medical
experiments, and the gas chamber have varied from 100,000 to more than 400,000, but no
systematic effort has yet been made to determine the facts. Since many Nazi records were
destroyed, the total, in all probability, will never be known with any exactitude” (CROMPTON,
1978, p. 81).
11
“rastro” que apenas chega à superfície para ser novamente relegado ao suplementar
6
(QUIROGA, 2004, p. 12, tradução nossa).
Assim, Quiroga nos fala da invisibilidade do homoerotismo nas obras literárias
como resultado da ação de leitores críticos que preferiram ignorar o homoerotismo nos
textos, em função de preconceitos sociais. Mas, segundo Quiroga (2004, p. 13, tradução
nossa): “Não faz sentido isolar o texto em si da homossexualidade que a crítica leu
como apêndice”
7
. O que a entender que é tempo de considerar o homoerotismo
como um elemento literário importante na história da literatura latino-americana,
condenado à invisibilidade pela crítica literária:
[…]: apesar de alguns escritores latino-americanos terem começado a falar da
homossexualidade e do desejo homoerótico faz mais de cem anos, […], e mesmo
que tenham aparecido também obras significativas desde os anos setenta a o
período em que são mais explícitas no tratamento do tema (às vezes de forma muito
transgressora, como nos casos de Perlongher e Lamborghini); no entanto, a história
da literatura tem sido extremamente cautelosa e evasiva na hora de chamar as
coisas pelo seu nome, assumir com franqueza o conteúdo de alguns textos e
analisar a construção do desejo homossexual (e também do desejo heterossexual)
nas letras latino-americanas. Se tem havido um flerte com os “segredos abertos” em
um século de textos literários latino-americanos, por outro lado, na crítica literária
— e ainda mais, na história literária — tem havido uma conspiração do silêncio. Se
não fosse pela importante obra nos últimos anos de críticos como Oscar Montero,
José Quiroga, David William Foster, Jorge Salessi, Claudia Schaefer e — com uma
lucidez e uma valentia consideráveis Sylvia Molloy, estaríamos ainda asfixiados
pelo silêncio de gerações de críticos. É importante falar clara e francamente desse
material e ensiná-lo nas aulas de Literatura: fazer o que Paulo Freire chamou, em
uma formulação célebre, uma “pedagogia do oprimido”
8
(BALDERSTON, 2004, p.
32-33, tradução nossa, grifos nossos).
6
“La historia homosexual es, como advierte Balderston, la cicatriz de dos historias: insistencia y
escamoteo, brillo y negación, y las formas del escamoteo han sido tan variadas como el juego
erótico de los poetas con los cazadores de metáforas. Más aún, el escamoteo no proviene del
texto sino de sus lectores, que han insistido en taimarlo para obligar a que su rebelión se acople
a las buenas costumbres. […], y conviene subrayarlo: el recato en torno a la homosexualidad no
se origina en el texto sino en una historia que se vuelve ‘pudorosa’ frente a él. De esta manera, y
fuera de los consabidos binarismos de composición, el esquema crítico conmina a una historia
de evidencias escritas y borradas, proclamadas a media voz, y crea un sistema en el que lo
homosexual se mantiene precisamente en el terreno de una ‘huella’, de un ‘rastro’ que apenas
llega a la superficie para ser nuevamente consignado a lo suplementario” (QUIROGA, 2004, p.
12).
7
No tiene sentido aislar al texto en de la homosexualidad que la crítica ha leído como
apéndice” (QUIROGA, 2004, p. 13).
8
“[…]: a pesar de que algunos escritores latinoamericanos comenzaron a tratar la
homosexualidad y el deseo homoerótico hace más de cien años, […], y aunque hayan aparecido
también obras significativas desde los años setenta hasta la fecha que son explícitas en su
tratamiento del tema (a veces de forma muy transgresora, como en los casos de Perlongher y
Lamborghini); sin embargo, la historia de la literatura ha sido sumamente cautelosa y evasiva a
12
No Brasil, a presença do homoerotismo nas narrativas literárias aparece desde o
século XIX. Pelo que se tem notícia, com o romance Um homem gasto (1885), escrito
por L. L., pseudônimo do dico Lourenço Ferreira da Silva Leal, segundo Green e
Polito (2006, p. 35).
O romance Um homem gasto, no entanto, não tem como principal temática a
homossexualidade. O ato homossexual é apenas um elemento desencadeador da futura
vida de devassidão em que viverá o personagem Alberto, iniciado nesse “vício” durante
os anos de internato.
O principal dos meus requestadores foi o professor de portuguez, homem versado
em latinidades, onde bebeu quiçá os germens dos proprios indecoros. Distinguiu-me
entre todos os condiscipulos, como o talento mais aproveitavel e como tal
apresentou-me ao director. Esses dotes, reaes ou exaltados, valeram-me privilegiado
accesso no seu aposento particular, onde me abarrotava de confeitos e especiarias,
arrematadas adrede para premio do adiantamento. Em compensação, não havia
paixão caprina com que não me ennodoasse, de tal fórma que nunca o deixava no
aposento, sem lhe haver esvurmado toda a peçonha da impudica bostella (L. L.,
1885, p. 185).
É na idade adulta, morando em Paris, que o personagem se entrega
verdadeiramente aos excessos sexuais.
Merece-me demasiado respeito para me permittir que lhe desvende sem
escrupulos o quadro nauseabundo dos meus excessos. Para lhe dar, approximada
idéa da realidade, basta referir-lhe que me tornei companheiro inseparavel e
respeitado do conde de Bobinaud, a maior celebridade crapulosa dos annaes da
devassidão parisiense, autor do famoso paradoxo de que a realisação exclusiva do
acto vulgar amoroso colloca o homem a par dos irracionaes, cumprindo-lhe, para
emancipar-se de tão aviltante pecha, o aperfeiçoamento do genero, assignalado na
transformação da mulher em machina de omnicorporeas sensações. Era assim que,
para nós ambos, tudo quanto a pintura e a litteratura pornographicas podiam
la hora de llamar las cosas por su nombre, asumir con franqueza el contenido de algunos textos
y analizar la construcción del deseo homosexual (y también del deseo heterosexual) en las letras
latinoamericanas. Si ha habido un flirteo con los ‘secretos abiertos’ en un siglo de textos
literarios latinoamericanos, en cambio, en la crítica literaria — y aun más, en la historia literaria
ha habido una conspiración del silencio. Si no fuera por la importante obra en los últimos
años de críticos como Oscar Montero, José Quiroga, David William Foster, Jorge Salessi,
Claudia Schaefer y con una lucidez y una valentía sobresalientes Sylvia Molloy,
estaríamos todavía asfixiados por el silencio de generaciones de críticos. Es importante hablar
clara y francamente de este material, y enseñarlo en las clases de literatura: hacer lo que Paulo
Freire llamó, en una formulación célebre, una pedagogía del oprimido’” (BALDERSTON,
2004, p. 32-33).
13
imaginar de mais variegado e extravagante era ardegamente acceito e executado (L.
L., 1885, p. 190-191, grifos nossos).
Tais excessos fazem de Alberto um homem gasto”. E ele começa a sentir no
corpo as consequências de uma vida desregrada: Na correnteza vertiginosa da
dissolvente lubricidade não podia perdurar a integridade physica sem grave abalo. Com
effeito, aos trinta e cinco annos de idade, comecei a sentir-me extenuado” (L. L., 1885,
p. 191).
Alberto, então, torna-se incapacitado para o sexo:
Eu que, ao principio, nas eras de vigor inquebrantavel, fôra procurado, requestado,
endeosado, pelas mais cubiçadas mulheres da vida galante, via-me agora, proscripto
do amor, posto de todo á margem, preferido á maior parte, apenas tolerado pela
sordidez do lucro e muitas vezes ridicularisado por motejos á bocca pequena e
commiserações ignominiosas (L. L., 1885, p. 192-193).
Segundo Alessandra El Far (2007, p. 301, grifos no original), o romance Um
homem gasto
rapidamente ganhou espaço nas colunas da crítica literária daquele período.
Tratava-se do drama de um rico brasileiro, recém-casado, que, em resposta aos anos
de libertinagem, via-se impedido de consumar seu casamento. Nas palavras
publicadas num jornal, faltava-lhe o “essencial para as funções matrimoniais” (A
Semana, 9/5/1885). Desesperado, o protagonista, “já gasto”, procurava a ajuda dos
médicos para remediar sua situação. Depois de provar em vão reagentes e
medicamentos, o herói enlouquecia e, em seguida, cometia o suicídio (L. L., 1885).
Além de possuir cenas provocativas, Um homem gasto, anunciado como um
“romance para homem”, [...], parecia acreditar nos preceitos científicos propagados
na época.
Em O Ateneu (1888), de Raul Pompéia, o homoerotismo também é condenado,
apesar de sua forte presença nas relações entre os estudantes do internato. Não
podemos, no entanto, afirmar que tal romance tem o homoerotismo como seu elemento
essencial, ele está presente em parte da obra, mas o é o fio condutor da mesma, que,
em nossa opinião, está mais relacionado a uma crítica ao sistema educativo da época e à
própria formação moral do homem. O clima do Ateneu é muito parecido com o clima de
nossas prisões brasileiras da atualidade, um ambiente em que se criam as próprias leis,
em que o mais forte vence o mais fraco, em que a lei da sobrevivência impera sobre as
leis morais. O Ateneu é um retrato cruel de uma sociedade que se animaliza em prol da
14
sobrevivência, mas que quer manter a casca da civilidade. O homoerotismo nessa obra é
claramente condenado, considerado como parte dessa deficiência moral que o romance
condena, como podemos observar diante da reação do personagem Sérgio à proposta
“indecente” de seu colega Sanches:
a voz, o simples som covarde da voz, rastejante, colante, como se fosse cada
sílaba uma lesma, horripilou-me, feito um contato de um suplício imundo. Fingi não
ter ouvido; mas houve intimamente a explosão de todo o meu asco por semelhante
indivíduo (POMPÉIA, 1977, p. 41).
Em O cortiço (1890), de Aluísio Azevedo, o homoerotismo também aparece na
iniciação sexual sbica de Pombinha por sua madrinha prostituta Léonie, e na presença
de Albino, personagem estereotipado, um tipo efeminado, que vive entre as mulheres,
comportando-se como tal. O desejo homoerótico, nessa narrativa, assim como em Um
homem gasto e O Ateneu, é condenado e acaba sendo associado a algum tipo de
comportamento “patológico”, segundo visões da época. Portanto, Bom-Crioulo (1895)
parece ser o primeiro romance da literatura brasileira a ter a temática homossexual
como elemento principal e condutor da trama, apesar da explícita condenação.
Ao eleger nosso corpus, preocupamo-nos em buscar obras em que a temática
homoerótica estivesse presente sem que essas obras fossem vistas como “marginais”
9
,
não porque fôssemos movidos por preconceitos acadêmicos, mas porque tínhamos o
intuito de ressaltar a “universalidade” do homoerotismo na literatura brasileira e,
portanto, a importância desse estudo no meio acadêmico. No entanto, selecionamos três
narrativas com características não canônicas: Bom-Crioulo (1895), que sofreu por muito
tempo ataques da crítica especializada e, ainda hoje, dificilmente é indicado nas escolas,
mesmo quando a temática é o naturalismo
10
; O menino do Gouveia (1914?), um conto
pornográfico, de qualidade duvidosa, que parece apenas ter o intuito de excitar os seus
leitores; e, por fim, a novela “Pela noite” (1983), de Caio Fernando Abreu, que só agora
começa a ser estudado com mais frequência, apesar de permanecer ainda desconhecido
por grande parte do leitor comum, mesmo aquele que aprecia a temática homoerótica,
mas que vê em Caio Fernando Abreu certa densidade”, dificultando sua leitura.
Além disso, procuramos selecionar narrativas que representassem um recorte mais
9
Não valorizadas pela crítica especializada.
10
Vale ressaltar, no entanto, que a obra foi um dos livros indicados para o Vestibular 2010 da
UFMG.
15
ou menos heterogêneo, inclusive em relação ao contexto histórico, e que pudessem nos
oferecer uma visão geral, sem grandes pretensões, da evolução da temática homoerótica
na literatura brasileira, no período de tempo delimitado pelo corpus. Optamos, ainda,
pela análise de narrativas que tratavam do homoerotismo masculino e preferimos não
considerar os gêneros lírico e dramático. Assim, além das três narrativas citadas,
analisaremos também o conto de Machado de Assis, “Pílades e Orestes” (1906), o conto
“Frederico Paciência” (escrito entre os anos 1924 e 1942 e publicado postumamente),
de Mário de Andrade e Grande sertão: veredas (1956), de João Guimarães Rosa.
No primeiro capítulo desta dissertação, intutilado “Homossexualismo
11
e
homoerotismo”, e no segundo capítulo, A literatura homoerótica e suas
características”, procederemos às análises teóricas, em que discutiremos a relação entre
“homossexualismo” e “homoerotismo”; pensaremos em como as diferenças entre os
sexos e as sexualidades funcionam como meio de normali(ti)zação social, em que essas
diferenças são tratadas como elementos mais do que naturais, mas culturais e políticos;
refletiremos sobre a relação entre homossexualidade” e doença”, a partir da teoria de
Sigmund Freud sobre a “inversão” sexual; pensaremos no conceito de “homoerotismo”,
retomado por Jurandir Freire Costa, que nos permitirá dissociar uma identidade gay ou
homossexual do desejo homoerótico; discutiremos a relação entre homoerotismo e
estudos culturais associada a uma literatura gay; e, por fim, procuraremos entender a
estrutura de uma narrativa homoerótica, discutiremos a influência do homoerotismo na
produção literária e proporemos um conceito de literatura homoerótica.
A análise crítica das obras será feita no terceiro capítulo, intitulado “Literatura
homoerótica brasileira”, em que faremos uma comparação entre os personagens
Bembem, de O menino do Gouveia (de Capadocio Maluco), e Aleixo, de Bom-Crioulo
(de Adolfo Caminha), refletiremos sobre o pecado e a transgressão, em sua relação com
o desejo homoerótico, por meio dos personagens Juca, de “Frederico Paciência” (de
Mário de Andrade), e Riobaldo, de O grande sertão: veredas (de João Guimarães
Rosa), e, por fim, faremos uma análise comparativa entre o conto “Pílades e Orestes”,
de Machado de Assis, e a novela “Pela noite”, de Caio Fernando Abreu.
11
Ao usarmos o termo “homossexualismo”, nesta dissertação, estamos nos referindo a um
conceito de homossexualidade associado a um comportamento patológico, necessário para as
discussões propostas aqui. Portanto, estamos cientes de que, na atualidade, é defendido o uso da
palavra “homossexualidade”, em detrimento da palavra “homossexualismo”, no intuito de
dissociar o indivíduo homoeroticamente inclinado de um comportamento doentio e associar o
seu desejo a uma natural maneira de ser.
16
Nesta dissertação, preocupar-nos-emos em utilizar os termos “homossexual” e
“gay” com sentidos diferentes, apesar de que, na atualidade, são usados comumente
para expressar uma mesma coisa. Portanto, quando usarmos a palavra homossexual”,
estaremos fazendo referência a um período de tempo anterior aos anos 1960/ 1970.
Assim, usaremos a palavra “gay” para indicar períodos a partir de 1960/ 1970, quando a
expressão “gay”
12
passa a ocupar espaço. No entanto, quando estivermos nos referindo a
uma identidade, podemos estar falando tanto de uma identidade homossexual quanto de
uma identidade gay, dependendo do período a que estivermos nos referindo, que a
identidade homossexual, neste trabalho, estará mais relacionada a uma identidade
patológica, historicamente construída, e a identidade gay estará diretamente vinculada a
uma identidade politicamente valorizada, associada ao chamado “orgulho gay”.
Por muito tempo, (des)valorizou-se o indivíduo homoeroticamente inclinado
13
,
definido por diversas e, muitas vezes, pejorativas classificações, tais como: “sodomita”,
“invertido”, “homossexual”
14
, “gay”, “bicha”, “viado” etc., como se esses indivíduos
tivessem características específicas, fossem mesmo uma “espécie” diferente de todas as
outras. Agora, acreditamos, devemos colocar os holofotes não mais sobre o sujeito nem
sobre o objeto do desejo; mas sobre o próprio desejo homoerótico, que, destituído de
sujeito, pode ser livremente sentido, independentemente de qualquer identidade.
É preciso entender que o “masculino” e o “feminino” independem do desejo
sexual, não é o desejo que traça os contornos do “masculino” e do “feminino”. O desejo
homoerótico não está, necessariamente, associado a um corpo masculino feminilizado
nem tampouco a um corpo feminino masculinizado. Assim, um homem feminilizado ou
uma mulher masculinizada não têm, obrigatoriamente, de sentir desejo homoerótico, da
12
Segundo Jagose (1996, p. 72), “in the 1960s, liberationists made a strategic break with
‘homosexuality’ by annexing the word ‘gay’, thus redeploying a nineteenth-century slang term
which had formerly described women of dubious morals”. Ou seja, “nos anos 1960, os
liberacionistas fizeram uma quebra estratégica com a ‘homossexualidade’, anexando a palavra
‘gay’, retomando assim uma gíria do século XIX que antigamente descrevia mulheres de moral
duvidosa” (JAGOSE, 1996, p. 72, tradução nossa).
13
A tese Discursos sobre a homossexualidade no contexto clínico: a homossexualidade de dois
lados do espelho, de Maria Gabriela Martins de Nóbrega Moita, constante nas Referências deste
trabalho, traz um histórico muito interessante sobre a evolução da questão homossexual/
homoerótica no contexto ocidental.
14
“Károly Maria Kertbeny, em correspondência trocada com Ülrichs, usa pela primeira vez, em
Maio de 1868, as expressões homossexual e heterossexual. No ano seguinte, esta designação
aparece pela primeira vez a público, num folheto anónimo, proclamando liberdade para as
sanções legais para os homens homossexuais na Prússia” (MOITA, 2001, p. 77, grifos no
original).
17
mesma forma que um homem másculo e uma mulher feminina
15
não têm,
necessariamente, de sentir desejo heteroerótico.
Além disso, pensamos que “gay” não é, necessariamente, aquele que deseja uma
pessoa do mesmo sexo, mas aquele que tem um estilo de vida gay, seja referente a
gostos ou a maneiras de se vestir e de falar; “gay” é uma forma de ver e viver a vida.
Associar o desejo homoerótico exclusivamente a essa identidade é limitá-lo a um
produto da cultura; assim, teríamos de admitir que o desejo é puramente cultural, de
forma alguma natural.
15
Se pensássemos o gênero como algo associado diretamente ao sexo biológico, expressões
como “homem másculo” ou “mulher feminina” seriam redundâncias. No entanto, segundo o que
defendemos aqui, julgamos que essas expressões se mostram coerentes com a nossa proposta de
investigação.
HOMOSSEXUALISMO E HOMOEROTISMO
19
Sexos, sexualidades e norma(li)tização
Na sociedade grega antiga, em que vigorava o one-sex model
16
, a posição da
mulher era de inferioridade diante do homem, uma vez que esta era um homem
invertido, um homem incompleto. Essa posição de inferioridade e consequente
passividade no ato sexual determina em grande parte a recriminação ao homoerotismo
até os nossos dias.
Para os gregos da Antiguidade, se um homem sonhasse em ser possuído por outro
homem, se este era mais velho e mais rico, o sonho era bom; mas seria mau para o
possuído se o possuidor fosse um homem mais jovem e mais pobre do que ele
(FOUCAULT, 1985b, p. 29). Nessa sociedade, fica clara a valorização do homem mais
velho e rico, o que delinearia aí as posições socialmente estabelecidas e a estrutura do
poder. O homem mais velho e mais rico: superior ao homem mais jovem e mais pobre:
superior à mulher. Essa mulher, na categoria mais inferior da sociedade (junto com as
crianças, os escravos e os estrangeiros), carregava a condição sexual inerente à sua
inferioridade: a passividade sexual durante o coito.
A relação direta entre inferioridade e passividade está muito presente em nossos
dias, não de forma explícita, mas como parte inerente da dominação masculina. Assim,
pode-se compreender um pouco a homofobia, pois esta rejeita a inferiorização do
homem, inferiorização relacionada diretamente ao papel passivo (ser penetrada) da
mulher nas relações sexuais. Portanto, ao ser passivo em uma relação sexual, o homem
estaria fazendo o papel da mulher, consequentemente, inferiorizando-se. Ao
inferiorizar-se, ele colocaria em risco a dominação masculina; por isso, no two-sex
model
17
, essa prática, implícita ou explicitamente, em menor ou maior grau, é
combatida, que ela coloca em risco as bases dessa dominação, ou seja, as diferenças
entre homem e mulher.
Ainda sobre os sonhos, na Grécia antiga, Foucault comenta a inaceitabilidade das
relações sexuais entre mulheres. Isso se deve ao fato de que, nessas relações, uma das
mulheres “usurpa o papel do homem” (FOUCAULT, 1985b, p. 32), por meio de algum
artifício, ao possuir outra mulher. na relação entre homens, a ameaça o existiria,
pois um dos parceiros estaria exercendo a dominação própria de sua condição de
homem.
16
COSTA, 1996.
17
COSTA, 1996.
20
Entre dois homens, o ato viril por excelência, a penetração, não é em si mesmo uma
transgressão da natureza (mesmo se ele pode ser considerado como vergonhoso,
inconveniente, para um dos dois se submeter a ele). Em troca, entre duas mulheres
um tal ato que se efetua a despeito daquilo que elas o, e com recurso a
subterfúgios, é tão fora da natureza como a relação entre um humano com um deus
ou com um animal (FOUCAULT, 1985b, p. 32).
Toda a questão concentra-se no principal símbolo de dominação: a penetração
sexual. É esse símbolo do poder masculino que, em nossos dias, ainda o admite a
realização do desejo sexual homoerótico de nenhuma espécie, nem entre homens,
tampouco entre mulheres, pois, de formas diferentes, a realização desse desejo ameaça a
hegemonia masculina, uma vez que, na relação sexual entre pessoas do mesmo sexo, o
dominador, ou seja, o homem, é deslocado do seu papel ativo, para assumir também a
posição do dominado, ou seja, o papel passivo; e, por outro lado, o dominado, ou seja, a
mulher, é elevado à condição de dominador quando exerce o papel ativo na relação
sexual homoerótica. Assim, o poder masculino, simbolizado pela penetração, é
descentralizado.
A relação homoerótica entre mulheres é rechaçada porque uma delas assume o
papel masculino, usurpa” essa posição, ameaçando os homens. Portanto, uma mulher
homofóbica é, simbolicamente, antes de tudo, submissa, concordante com o sistema
falocêntrico ao qual é submetida. Por outro lado, um homem com inclinação
heteroerótica que não reaja contra o homoerotismo é também motivo de “ameaça” ao
sistema heterofalocêntrico, por isso, colocam em dúvida a sua “masculinidade”, como
se masculinidade fosse característica exclusiva dos homens de inclinação heteroerótica;
essa dúvida, aliás, também é sugerida por muitos homens de inclinação homoerótica,
que não admitem que um homem possa aceitar tal desejo sem compartilhar do mesmo.
Por meio da penetração, são reafirmadas as posições de inferioridade e
superioridade. Os estupros são a maior evidência disso. O estuprador está reafirmando,
de forma violenta, o seu poder, a sua superioridade sobre a mulher ou a criança. Quando
a vítima é um homem, o objetivo é o mesmo, com um simbolismo ainda mais forte, uma
vez que está, de forma repentina, deslocando sua vítima de uma posição de
superioridade historicamente construída para outra inferior e depreciada. Não é à toa
que os estupros estão presentes de forma intensa em todas as guerras.
Para um homem, ser possuído, violentado sexualmente por outro, ser “reduzido” à
21
categoria de mulher, é a maior humilhação que ele pode sofrer. Assim, a relevância da
violação anal o está no ato em si, mas em sua significação: ocupar uma posição
feminina, de submissão, diante da violência. reside o sentido das brincadeiras (pelo
menos na sociedade brasileira, que tem uma facilidade imensa de colocar o humor onde
tensão) que estão sempre presentes entre os homens, que brincam com a ameaça de
ser penetrado. Diante da negativa risonha nessas brincadeiras, está implícito o medo de
ser rebaixado; como está implícita a superioridade daquele que faz a proposta”. Ou
seja, essas brincadeiras refletem a necessidade de os homens mostrarem sua
superioridade entre eles mesmos, uma disputa interna de poder.
Segundo Bourdieu, existe uma lógica da dominação”
18
, que tanto o dominante
quanto o dominado conhecem, que é manifestada de forma simbólica, como por
exemplo, ao identificar-se uma maneira de pensar ou de agir diferentes do considerado
“normal”, ou comum, ou ainda mais geral. Essa submissão à dominação masculina é
resultado de uma
violência simbólica, violência suave, insensível, invisível a suas próprias vítimas,
que se exerce essencialmente pelas vias puramente simbólicas da comunicação e do
conhecimento, ou, mais precisamente, do desconhecimento, do reconhecimento ou,
em última instância, do sentimento (BOURDIEU, 2003, p. 7-8).
Essa violência simbólica que oprime os dominados, muitas vezes, sai do campo do
simbolismo para configurar-se numa realidade de violência sica, verificada no estupro
e espancamento de mulheres, como também no estupro e espancamento de homens que
exercem o seu desejo homoerótico.
A homofobia e esse ódio ao feminino, que poderíamos chamar de
“feminofobia”
19
, não se manifestam de forma consciente no agressor, ele não
racionaliza que deve agredir para manter o poder do grupo a que pertence, ou seja, o
masculino. Assim, de certa forma, ele também é vítima da violência simbólica, suave,
insensível e invisível a que se refere Bourdieu.
Cada movimento contrário a essa violência é causador de uma pequena quebra
numa estrutura rígida, extremamente difícil de se dissolver. São responsáveis por essa
quebra, por exemplo, o feminismo e os movimentos gays e lésbicos. O perigo reside na
constituição de uma dominação oposta, comandada pelo feminino; uma dominação
18
BORDIEU, 2003, p. 8.
19
A homofobia, portanto, é um tipo de “feminofobia”.
22
feminina não traria para a sociedade nenhum benefício como não o faz a masculina.
Pensar numa sociedade brida tem algo de utópico quando entendemos que não temos
parâmetros conhecidos, pois estamos profundamente impregnados do sentido de
dominação.
A dominação simbólica assume uma característica particular quando o dominado é
o indivíduo homoeroticamente inclinado, que, com exceção daqueles naturalmente
efeminados, pode ocultar o seu desejo, e o faz de forma a não contrariar a dominação,
muitas vezes por medo. Dessa forma, a dominação exerce-se ao obrigar essa negação do
desejo homoerótico em público, ao provocar a “invisibilização” do sujeito
homoeroticamente inclinado.
20
Verifica-se que, no cerne dessa dominação masculina, construída historicamente,
está a questão sexual, apresentada de forma normativa, com papéis e regras bem
definidos. O homem deverá exercer o seu papel sexual de ativo, conquistador e
dominador, enquanto a mulher deverá ser passiva, receptiva e submissa.
No entanto, o desejo não pode ser historicamente construído
21
como são as
relações de dominação e submissão, para o desejo não se aplicam normas eficazes, pois
o desejo é um sentimento individual e natural, portanto, pode ser ocultado, mas não
pode ser transformado ou suprimido; o que faz com que o dominador, com o
conservadorismo inerente a essa posição, empreenda uma luta constante de contenção,
de repressão, do desejo. Surgem daí as normas, regras que ditam “o que pode” e “o que
não pode”, o “certo” e o “errado”.
Jurandir Freire Costa, em seu artigo “O referente da identidade homossexual”,
20
BOURDIEU, 2003, p. 143.
21
Há correntes de pensamento que não dissociam o desejo da cultura, na defesa de que “onde há
desejo, há norma”, de que “o desejo é condicionado pela cultura”, de que não existe um desejo
“livre”, independente, de que ele é, portanto, cultural, construído historicamente. Acreditamos,
no entanto, que a manifestação do desejo é o que é condicionada pela cultura e não o desejo
enquanto “impulso” natural, forma como o conceituamos nesta dissertação. Assim, parece-nos
que é o sujeito do desejo que é alvo das normas, do condicionamento, o que define a forma
como esse sujeito lida com o próprio desejo. “Pederastia”, “sodomia”, “homossexualismo”,
“inversão”, “vício”, “crime”, “orgulho gayforam formas de classificar ou manipular o desejo
homoerótico durante toda a História. Poderíamos, sim, afirmar que o desejo é cultural se
entendêssemos que o “impulso” presente noamor grego” é diferente do “impulso” presente no
“amor gay”, por exemplo; isso seria uma prova de que cultura e desejo estão intrinsecamente
associados. Na verdade, a visão do desejo como algo cultural é defendida por aqueles que
entendem que desejo e sujeito são indissociáveis; e, nesse sentido, estamos de acordo com essa
visão. Contudo, para os objetivos de nosso trabalho, optamos por nos ater ao “impulso” como
elemento estrutural, uma escolha teórica que tem o intuito de afastar nossas análises críticas de
subjetividades políticas.
23
questiona os mecanismos que nos fazem identificar o que é a atração sexual. Ele
compara o sentimento de prazer sexual ao sentimento de prazer religioso, esportivo,
científico etc. e conclui que a diferenciação desses sentimentos existe em função do
“aprendizado e acordo prático no julgamento do que é ou não sentimento de prazer
sexual” (COSTA, 1996, p. 64). Isso vale também, segundo ele, para a ideia de atração,
“que só pode ser articulada ao sexual quando descrita de uma maneira específica”
(COSTA, 1996, p. 64); pois, se não houver essa descrição de “maneira específica”, a
atração pode ser “estética ou moral” (COSTA, 1996, p. 64) e independente da questão
sexual.
Percebemos, portanto, que o “sexual” pode ser interpretado como aquilo que a
sociedade considera como tal. Assim, se pode identificar, por exemplo, um olhar
libidinoso, em uma sociedade que o tempo todo expõe a sua libidinosidade. Ou seja, a
sexualidade é, acima de tudo, produto de uma sociedade. Para um indivíduo identificar
ou exercer a sua sexualidade, ele precisa ser “educado” para tanto. Contudo, essa
educação social ainda está vinculada a conceitos de “certo” e “errado”, de “pode e
“não pode”, de “sim” e de “não”.
Quando pensamos em questões polêmicas como a pedofilia, por exemplo,
concluímos que a criminalização, tanto moral quanto legal, é resultado de normas
sociais específicas. Portanto, de acordo com esse raciocínio, essa prática, hoje punida
moral e legalmente em nossa sociedade, poderia ser aceitável e estimulada em uma
sociedade que a “normalizasse”.
A determinação do que deve ser (ou não) moral ou legalmente aceito faz parte
desse “aprendizado e acordo prático” a que Jurandir Freire Costa faz referência.
Portanto, a sexualidade do indivíduo é, fortemente, guiada pela sociedade. Na sociedade
brasileira, como em tantas outras, o prazer sexual e, portanto, a atração sexual presente
entre indivíduos de sexos opostos, ou seja, o prazer ou a atração heteroerótica, fazem
parte desse “aprendizado e acordo prático”. No entanto, culturas diferentes veem a
sexualidade de formas diferentes; assim, esse “aprendizado e acordo prático” ocorre de
diferentes maneiras de acordo com cada cultura.
Jurandir Freire Costa exemplifica essa diferença ao comentar os costumes de uma
tribo da Nova Guiné, a tribo dos Sambia. Para os Sambia, as práticas sexuais existem de
acordo com o uso e a função do esperma.
24
A evolução sexual de um Sambia dá-se em três etapas. Na primeira, os meninos
adquirem o sêmen dos homens adultos por meio da felação. Isto vai permitir-lhes
crescer, adquirir força e estocar sêmen para procriar futuramente na relação com
mulheres e transmiti-lo a outros meninos. Na segunda, as mulheres recebem pela
felação o sêmen dos maridos para preparar as condições de geração e nutrição dos
fetos e dos bebês. O leite materno também é concebido como um derivado do
sêmen. Na terceira, o men é transmitido pelo coito vaginal, com vistas
à
procria-
ção. Os jogos eróticos em que se desperdiça o sêmen são regulados a fim de
garantir o estoque demen suficiente para a geração de novos indivíduos. A
masturbação individual é desconhecida. O recurso a certos alimentos como o
amendoim ou a certos componentes de árvores sagradas permite o aporte extra-
-humano de substâncias formadoras de sêmen. Por fim, o sêmen também transporta
“os espíritos” que habitam o corpo dos sujeitos (COSTA, 1996, p. 67).
Em nossa atual sociedade, e em muitas outras, a prática de felação por um menino
em um homem seria considerada como um ato de pedofilia por parte desse homem e
punida criminalmente.
Nosso objetivo é mostrar como a sexualidade e suas diferentes manifestações
podem ser aceitas ou rejeitadas de acordo com os costumes de uma sociedade. Os
conceitos de certo” e de “errado”, de “normal” e “anormal”, de algo “aceitável” ou
“não aceitável”, dependem da tradição de uma sociedade, de uma cultura construída
historicamente. Mas é a diferença entre as culturas que nos faz questionar o certo” e o
“errado” sociais, o “normal” e o “anormal”, o “aceitável” e o “não-aceitável”. Conhecer,
entender, culturas diferentes, de tempos diferentes, faz-nos questionar nossa própria
cultura, nossos hábitos, nossos costumes. Leva-nos a questionar os mecanismos da
norma(li)tização, que fazem uma sociedade em determinado contexto condenar,
internar, aprisionar, classificar pessoas devido ao seu desejo homoerótico
22
ou uma
sociedade de cultura tribal, como as antigas populações indígenas da América do Norte
mencionadas por João Silvério Trevisan, aceitar como natural a existência dos
bardaches
23
.
Também temos a descrição do mesmo escritor relativa aos índios kraô
24
, obtida
por meio de uma entrevista com um estudante de Filosofia que trabalhava na