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LIMA BARRETO E A LITERATURA DA URGÊNCIA:
a escrita do extremo no domínio da loucura
Luciana Hidalgo
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ), na área de concentração em Literatura
Comparada, na linha de pesquisa “Perspectivas
Filosóficas da Teoria da Literatura”, sob a orientação
do Professor Doutor Gustavo Bernardo Krause, como
requisito parcial para a obtenção do título de Doutora
em Letras, em março de 2007.
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Esta tese foi desenvolvida graças ao apoio da FAPERJ (Fundação Carlos
Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro)/ Governo do
Estado do Rio de Janeiro/ Secretaria de Estado de Ciência e Tecnologia.
Agradeço, antes de tudo, àquele que tudo orientou, Prof. Gustavo Bernardo: pelas
aulas, pela competência e prontidão, pela paciência e delicadeza nesse longo
processo.
Ao querido amigo e Prof. Sérgio Nazar David, tão presente e disponível a enriquecer
este trabalho com informações, livros, minúcias e palpites sempre felizes.
Ao Prof. João Cezar de Castro Rocha, detentor de um conhecimento e uma
generosidade docente que muito encorajaram o meu caminho acadêmico desde o
prólogo, bem como, especificamente, a construção desta tese.
Ao amigo e Prof. Roberto Machado, que me apresentou o texto-base deste estudo,
“A escrita de si”, de Michel Foucault, abrindo a brecha do meu pensamento neste
desafiador diálogo entre filosofia e literatura.
À Prof. Carlinda Fragale P. Nuñez, admirável oradora, e a toda a sua sólida base
cultural-filosófica greco-romana, generosamente compartilhada com os alunos.
Aos professores da Uerj que, com seus cursos e saberes, entusiasmaram-me e me
influenciaram: Flávio Carneiro; Italo Moriconi; Victor Hugo Adler Pereira e
Carmem Lúcia Negreiros de Figueiredo.
Ao amigo e psicanalista Miguel Calmon du Pin e Almeida, às suas pontuais e
generosas observações freudianas.
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A Jorge Bastos,
a-intelectual no melhor sentido
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SINOPSE
As interseções entre loucura e literatura em Lima Barreto. Diário do
hospício como forma de reconstituição de si no domínio da psiquiatria. A
construção de um espaço autobiográfico com ficções auto-referentes onde o
eu é premente. A criação de uma literatura da urgência contaminada pelo
hospício, com valor documental-histórico. A escrita do extremo como fator
que esgarça limites entre vida e obra, constituindo o espaço da expressão do
indizível.
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SUMÁRIO
1. Lima Barreto, loucura e literatura: interseções históricas
2. As multifunções da escrita de si: confissões de um eu sem filtro
3. A literatura de si: o eu maquiado domina a ficção
4. O a-intelectual entre a utopia e o caos
5. Literatura da urgência: a expressão do indizível
6. Referências bibliográficas
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(...) o alienado também é um homem que a sociedade não quis ouvir e quis impedir de
dizer insuportáveis verdades.
Antonin Artaud
Deve-se ser para si, e ao longo de toda a sua existência, o seu próprio objeto.
Michel Foucault
As nossas maiores bênçãos nos chegam por via da loucura.
Sócrates
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1.
LIMA BARRETO, LOUCURA E LITERATURA: INTERSEÇÕES HISTÓRICAS
Em Diário do hospício, Lima Barreto descreve o período da sua segunda internação no Hospício
Pedro II (de 25 de dezembro de 1919 a 2 de fevereiro de 1920), compondo simultaneamente uma
escrita de si
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e uma crônica do manicômio que desvela as particularidades de uma sociedade
artificial, forjada em nome do desatino. O texto é um relato íntimo pontuado por anotações
esparsas, impressões, confissões, inconfidências e, sobretudo, por uma visão muito peculiar da
instituição psiquiátrica e da loucura
2
. Sob os diagnósticos de neurastênico e alcoólatra (sendo que o
alcoolismo provocava delírios temporários, o estigma social e, por vezes, a perseguição da polícia),
Lima escreveu o registro da sua experiência no local que cunhou de cemitério dos vivos.
Transformou a escrita numa estratégia de sobrevivência ao hospício e produziu um raro documento
da história da psiquiatria no Brasil. Entre o diário e a crônica, criou uma literatura da urgência,
escrita detonada pela emergência da auto-expressão, de um eu empenhado em lidar com uma
situação-limite.
Desde o início do diário percebe-se como essa escrita é contaminada pelo círculo de vícios do
entorno, constituindo um reflexo imediato das experimentações perpetuadas desde que a sociedade
caiu na tentação do controle do incontrolável: a contenção da loucura. Frente à complexidade do
insano, a humanidade optou por isolar aqueles considerados loucos prática que ganhou
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O conceito escrita de si, extraído do texto homônimo de Michel Foucault, contempla a idéia da escrita
como exercício pessoal. O autor estipula dois tipos de escrita de si: os hypomnêmata (cadernos
individuais de notas que servem de ajuda-memória e são uma espécie de livro de vida, guia de conduta,
acumulando citações, fragmentos de obras, exemplos e ações dos quais fomos testemunhas ou dos quais
lemos uma narração, reflexões ou pensamentos que ouvimos ou que vieram ao espírito; podem também
ser livros contábeis ou registros blicos com anotações desta espécie) e a correspondência (as cartas
também como suportes para exercício pessoal). Este conceito será aprofundado no capítulo 2, intitulado
“As multifunções da escrita de si: confissões de um eu sem filtro”.
2
É importante ressaltar que o termo ‘loucura’, seus sinônimos e derivados não aparecerão em itálico ou
entre aspas ao longo de toda esta tese, mas deve-se subentender o caráter relativo intrínseco a esses
vocábulos.
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consistência teórica no século XIX, quando a medicina se apropriou do alienado, e a psiquiatria foi
formulada com base em argumentação científica.
Lima denunciou o saber-poder médico e documentou um dos períodos da História em que um
indivíduo socialmente inadaptado, portador ou não de sintomas psiquiátricos, recebia o lacre de
maldito e, por conseqüência, um prontuário médico no hospício. Sob o jugo do Estado, aprisionado
pela polícia numa instituição com o aval da família, Lima assistiu à desapropriação da existência em
meio à massa formada por casos graves de distúrbios mentais. O diário constitui a prova da sua
exceção: esta escrita da acusação, que colocava o social sob juízo e invertia o jogo perverso da
psiquiatria ao denunciar a sua arbitrariedade e o abuso do poder, consolidou-se como uma o-
ficção autobiográfica, marcada pela urgência do autor em se exprimir e se insurgir contra o sistema
dominante que tentava controlá-lo.
Para a construção do que nesta tese se pretende formular como literatura da urgência, intimamente
vinculada a uma noção de escrita de si (e do seu desdobramento como literatura de si), utiliza-se
como base o Diário do hospício, do referido autor, partindo-se para a investigação das interseções
entre loucura e literatura, e/ou, mais especificamente, entre psiquiatria e literatura. Busca-se
demonstrar como obras de autores produzidas em períodos de internação em hospícios revelam
aspectos de relevância para a compreensão de um lugar específico deste largo espectro que é a
literatura – Lima Barreto é o eixo desta análise, mas escritos do poeta e dramaturgo francês Antonin
Artaud, do artista plástico sergipano Arthur Bispo do Rosario e do poeta curitibano Loriel da Silva
Santos são mencionados em alguns momentos, quando a comparação se revela fértil. Marcada por
excessiva subjetividade e intrínseca semiologia, essa escrita produzida na instituição,
paradoxalmente antiinstitucional, reflete o intricado diálogo entre escritor e instituição.
Em História da loucura na Idade Clássica, Michel Foucault mostrou como o classicismo lidou com
a loucura, aprisionando-a em casas de internamento destinadas a miseráveis, doentes e tipos
considerados a-sociais sob o julgamento moral da época. A Europa dos séculos XVII e XVIII deu
início à prática da internação como forma peremptória de isolamento daqueles que a sociedade
considerava rebotalhos, refugos não absorvidos no cotidiano pela aristocracia e burguesia antes
disso, registros de hospitais reservados a loucos no mundo árabe desde o século VII, incluindo
música, dança e fábulas como formas de tratamento; sob esta influência, a Espanha realizou
experiências similares no século XV. Percebe-se como, ao longo dos séculos, o diagnóstico foi
acentuadamente moral, sendo o pedido de internação (em grande parte dos casos) uma iniciativa da
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família do louco, com o conseqüente referendo da Justiça. A medicina apropriou-se da insanidade
com todas as classificações nas áreas de frenologia, nosografia etc. a partir do século XIX, época
em que alienistas como Pinel e Esquirol consolidaram a psiquiatria como ciência responsável pelos
alienados.
Ao ser internado nas primeiras duas décadas do século XX, Lima Barreto recebeu a pesada herança
do século anterior, esquivando-se, no entanto, do período seguinte, marcado pelo surgimento das
parafernálias mais violentas inventadas para o controle do delírio. Ao interpretar a linguagem das
neuroses e psicoses no final do século XIX, a psicanálise de Freud abriu um caminho inicialmente à
margem dos manicômios. Enquanto estes prolongaram, ao longo do século XX, a vocação
experimental para a aplicação de métodos como o eletrochoque (criado como terapia em 1928), a
lobotomia (invenção do português Egas Moniz datada de 1936, que lhe rendeu o Nobel de
Medicina), e para a utilização de uma farmacologia psiquiátrica passível de amenizar sintomas em
troca de efeitos colaterais danosos (desde os primeiros neurolépticos criados na década de 1950, até
os mais recentes medicamentos), a teoria psicanalítica permaneceu paralela, à margem dos
hospícios, por boa parte do século em questão, sendo gradativamente absorvida, em alguns de seus
pilares, pela psiquiatria, a partir, sobretudo, da luta do movimento antimanicomial fortalecido nas
últimas décadas do século XX.
Pode-se ler o diário de Lima Barreto como um paradigma do aspecto negativo da psiquiatria, uma
vez que o escritor enquadrou-se em inúmeros argumentos da época para a internação, sendo a
maioria de natureza moral, decorrência de um questionável juízo social. Diário do hospício possui,
entre outras funções, a de resposta à instituição endereçada a seus dirigentes. A leitura do texto
como o manuscrito de uma revolta requer, portanto, uma breve investigação da evolução da loucura
não desta em si, pois a complexidade do tema perpetua-se, impedindo a sua inoculação num
coeficiente absoluto, mas da forma como a sociedade classificou e lidou com a insanidade,
apropriando-se arbitrariamente do personagem louco.
Quando Lima Barreto deu ao hospício o epíteto de cemitério dos vivos (o título do romance
inacabado do autor passado no hospício, originado das anotações do diário e lançado
postumamente, sendo uma parte editada em vida, na Revista Souza Cruz), concentrou no termo
parte da história da loucura, desta poética mórbida capaz de simultaneamente atrair e aterrorizar.
Foucault mostrou como o tema da morte, que imperou no mundo ocidental até a segunda metade do
século XV, foi substituído, nos últimos anos desse mesmo século, pela loucura, no lugar que era do
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vazio da existência: “(...) agora a sabedoria consistirá em denunciar a loucura por toda parte, em
ensinar aos homens que eles não são mais que mortos, e que se o fim está próximo, é na medida em
que a loucura universalizada formará uma só e mesma entidade com a própria morte (FOUCAULT,
1995: p.16)”.
Segundo Foucault, a liberdade dos sonhos, alucinações e fantasmas da loucura mais fascinava do
que atemorizava o homem daquele século. Os loucos, no entanto, assumiram o lugar dos leprosos
na exclusão social, exatamente quando a lepra começou a sumir do universo medieval e do seu
imaginário. Na mesma margem destinada aos loucos, enfileiraram-se portadores de doenças
venéreas, pobres, vagabundos e presidiários hordas de mortos-vivos incapazes de gerir a própria
sobrevivência.
A associação era clara: a loucura denunciava a morte em vida, o fim, considerado “o advento de
uma noite na qual mergulha a velha razão do mundo (FOUCAULT, 1995: p.22)”. Enquanto o
pensamento medieval, eminentemente religioso, estabelecia a exclusão social como uma espécie de
reintegração espiritual, uma redenção pelo sofrimento, o classicismo acolhia uma novidade, a
grande descoberta: o terror por trás da loucura passava a ser reconhecido como pertencente à
própria natureza humana. O inferno não era o outro, mas residia no interior do homem; era o terror
em si, de si.
Lima Barreto escreveu para dar uma ordenação própria, singular, a este interior; escreveu para não
enlouquecer, ou simplesmente optou por “escrever para não morrer (BLANCHOT, 1987: p.90)”,
como enunciou Maurice Blanchot. Diário do hospício exacerba um ceticismo que muitas vezes
beirou o niilismo e flertou com a morte. Primeiramente, o escritor confessou: “Vejo a vida torva e
sem saída (BARRETO, 1993: p.50)”. Posteriormente, afirmou: “Suicidou-se no pavilhão um
doente. O dia está lindo. Se voltar a terceira vez aqui, farei o mesmo. Queira Deus que seja o dia tão
belo como o de hoje (BARRETO, 1993: p.51)”. A experiência no hospício levou Lima ao espaço
dialético em que vida e morte se unem. O diário reflete a explanação de defesa de um réu isolado
diante do tribunal social, provavelmente em busca de uma auto-absolvição. Na condição de interno,
o escritor não via possibilidade de ser ouvido em suas indagações existenciais. Neste grande vazio,
a proximidade de uma loucura equivalente à morte desfiou a memória e configurou um discurso de
si que tem explicação no seguinte enunciado de Blanchot:
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(...) não se pode escrever se não se permanece senhor de si perante a morte, se não se
estabeleceram com ela relações de soberania. (...) Por que a morte? Porque ela é o
extremo. Quem dispõe dela, dispõe extremamente de si, está ligado a tudo o que pode, é
integralmente poder (BLANCHOT, 1987: p.90).
Sob este prisma, o dramaturgo, ator e poeta francês Antonin Artaud viveu igualmente o extremo da
proximidade com a morte, experimentando um estado de soberania diante dela – conseqüentemente,
diante de si mesmo ao dispor da escrita como artifício de resistência durante os nove anos de
internação em diversos hospícios da França (ele freqüentou, de 1937 a 1946, Le Havre, Sotteville-
les-Rouen, Sainte-Anne, Ville-Evrard e Rodez). Diagnosticado como esquizofrênico, alternando
fases lúcidas e outras marcadas por um contato quase nulo com a realidade, Artaud distancia-se
bastante de Lima Barreto no prognóstico médico. A uni-los, a literatura da urgência, uma tentativa
de resgate da identidade que se consolidou como inscrição capaz de ir além das técnicas de controle
corporal no hospital psiquiátrico. No caso específico dos esquizofrênicos, funcionou como um
S.O.S., uma ferramenta útil na tentativa de compreensão de si, na recuperação de um eu
radicalmente partido, de um pensamento cindido para usar expressão próxima à etimologia da
esquizofrenia (do grego, alma fendida). No caso de Lima Barreto, fortaleceu a escrita de si e
rearrumou o pensamento perturbado por delírios alcoólicos.
Autor de uma linguagem da violência, mentor do Teatro da Crueldade, Artaud pretendeu levar a
fronteira loucura/morte ao limite, ao conceber um teatro que atuasse como a peste, colocando o
homem diante dos seus conflitos à base do terror:
O teatro deslancha o conflito, libera forças, dispara possibilidades e, se são negras tais
possibilidades, não se culpe a peste, e nem o teatro, mas a vida. (...) Ele convida o
espírito a um delírio que exalta energias e, pode-se ver, resumindo, que do ponto de
vista humano, a ação do teatro, como a da peste, é salutar, pois, levando os homens a se
enxergarem tais como são, faz caírem as máscaras, descobre a mentira, a frouxidão, a
baixeza, a “tartufaria”. Ela sacode a inércia asfixiante da matéria que invade até os
dados mais claros dos sentidos e, revelando às coletividades de poderes obscuros, a sua
força oculta, convida-as a que tomem, frente ao destino, uma atitude heróica e superior
a que jamais chegariam sem isto. [Le théâtre dénoue le conflit, dégage des forces,
déclenche des possibilités et, si ces possibilités sont noires, ce n’est pas la faute de la
peste ou du théâtre, mais de la vie. (...) Il invite l’esprit à un délire qui exalte les
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énergies et l’on peut voir, pour finir, que, du point de vue humain, l’action du théâtre,
comme celle de la peste, est bienfaisante car, poussant les hommes à se voir tels qu’ils
sont, elle fait tomber les masques, elle découvre le mensonge, la veulerie, la bassesse, la
tartuferie. Elle secoue l’inertie asphyxiante de la matière qui gagne jusqu’aux données
les plus claires des sens et, révélant à des collectivités des puissances sombres leur
force cachée, elle les invite à prendre en face du destin une attitude héroïque et
supérieure qu’elles n’auraient jamais eue sans cela.] (ARTAUD, 1964: p.46).
O heroísmo, o martírio e a associação à santidade como exemplos de uma transcendência do
humano em nome do divino, do fantástico, constituem referências renitentes em escritos de
pacientes psiquiátricos. Heróis de epopéias, santos ou o próprio Cristo são figuras recorrentes no
imaginário do hospício, guiando ou assombrando aqueles que recebem o diagnóstico de delírio de
grandeza. Artaud postulou um teatro-convite ao delírio, contra a mentira, em prol de uma verdade
que ele vislumbrava na familiar (para ele) fronteira entre a loucura e a morte. O poeta foi além, ao
exigir uma atitude heróica e superior diante do destino, face ao fim. Em A arte e a morte, a
questão-título é central:
Quem, no seio de certas angústias, no fundo de alguns sonhos, não conheceu a morte
como sensação que despedaça e é maravilhosa, que não pode confundir-se com nada na
lei do espírito? tendo conhecido essa aspirante ascensão de angústia, de ondas que
nos atingem e fazem inchar como acionadas por insuportável bofetada. A angústia que
se aproxima e afasta cada vez mais espessa, cada vez mais pesada e farta. É o próprio
corpo que chega ao limite de distensão e forças, e assim mesmo deve ir mais longe. É
uma espécie de ventosa assente na alma, de acidez que escorre como um vitríolo até aos
derradeiros marcos do sensível. E a alma sem ter pelo menos o recurso de se quebrar.
Porque esta própria distensão é falsa. A morte não se contenta com tão pouco. Esta
distensão no plano físico é como que invertida imagem de um aperto que deve ocupar o
espírito ao correr de todo o corpo vivo. (ARTAUD, 1993: p.9).
A escrita de Artaud impregna-se desta experiência radical à beira da morte, da loucura que se
avizinha da morte, tendo no delírio a sua pulsão e, nesta, a redenção do tosco real. A literatura da
urgência provavelmente constituiu sólido meio de libertação dos sentidos do cárcere e de combate à
aniquilação do corpo freqüentes em instituições homogeneizadoras. Nos diários de Rodez (conjunto
de sete volumes de diários escritos por Artaud durante a permanência no hospício), o dramaturgo
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alterna alucinações, crises místicas e pensamentos coerentes, incutindo nos manuscritos uma
virulência que os torna uma resposta violenta à psiquiatria. Van Gogh, o suicidado da sociedade
livro escrito após a saída do hospício de Rodez (em 1946) durante os dois anos em que se manteve
vivo fora do asilo – é claramente um exorcismo literário da experiência da dor. Embora a obra traga
Van Gogh como tema-título, Artaud utilizou o pintor como signo-mor de uma semiótica perversa,
que refletia o martírio de todos os alienados tomados como reféns do Estado sob a administração
psiquiátrica. Ao dar a sua versão do louco, o autor se antecipou a Foucault no parecer moral dos a-
sociais:
É um homem [Van Gogh] que preferiu ficar doido, no sentido em que socialmente o
entendemos, a degradar uma certa e superior idéia de honra humana. Por isso a
sociedade mandou estrangular nos seus manicômios todos aqueles de quem quis livrar-
se ou defender-se por recusarem ser cúmplices, com ela, de certas e subidas
indecências. Porque o alienado também é um homem que a sociedade não quis ouvir e
quis impedir de dizer insuportáveis verdades. (...) Por isso houve bruxarias unânimes a
propósito de Baudelaire, Edgar Poe, Gérard de Nerval, Nietzsche, Kierkegaard,
Hölderlin, Coleridge (ARTAUD, 1993
2
: pp.21-22).
Artaud é claro ao afirmar: o louco é um sujeito não ouvido em sua verdade. A literatura da urgência,
ou no caso de Van Gogh, a arte da urgência, funcionou como meio concreto de expressão desta
verdade de si, reprimida pela sociedade. A não-escuta provavelmente fortaleceu a escrita como uma
das poucas ferramentas à disposição do interno.
Assim como Artaud, Lima Barreto escreveu o Diário do hospício na região em que o grande temor
e o poder extremo e integral perante a morte complementavam-se e se aniquilavam. Viveu no asilo
sob o peso da psiquiatria, sofreu sob a vigilância da polícia, sentindo a vida desalojada pelo poder
social. O paradoxo: apesar de ser integralmente poder na experiência da loucura/morte, na prática
ele se fragilizou frente ao saber médico, destituído de poder para livrar-se da instituição quando
quisesse. O diário foi seu confessionário, o espaço vazio de juízes sociais, que não indício de
que Diário do hospício fosse lido pelos médicos, funcionários ou pacientes do Pedro II.
Nesses escritos do hospício, psiquiatras eram avaliados com desprezo intelectual. Prova disso é o
trecho em que o autor traçou o perfil de Henrique Roxo, médico do Pedro II:
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Acho-o muito livresco e pouco interessado em descobrir, em levantar um pouco o véu
do mistério que mistério! que na especialidade que professa. os livros da
Europa, dos Estados Unidos, talvez; mas não a natureza. Não tenho por ele antipatia;
mas nada me atrai nele (BARRETO, 1993: pp.24-25).
Lima criticou o médico, a grande autoridade do manicômio, desafiando a sua autoridade, na
condição de paciente. Trata-se de uma crítica ferrenha à psiquiatria, que não o ouve, não a
natureza e se pauta em dogmas dos livros da Europa, dos Estados Unidos. A relação do escritor
com Henrique Roxo poderia até ser melhor, que, em outro trecho do diário, ele conta que o
médico perguntou pelo seu pai o tipógrafo João Henriques de Lima Barreto que, após perder o
emprego em um jornal, tornou-se funcionário das Colônias de Alienados da Ilha do Governador em
1891, enlouquecendo anos depois. Ou seja, o médico mostrou um cuidado, uma atenção especial
em relação a Lima. Este, no que o tocava, entretanto, parecia sentir-se humilhado justamente porque
o médico detinha informações valiosas sobre a sua genealogia. Ao mostrar conhecimento dos
antecedentes familiares, era como se, automaticamente, o discriminasse. No diário, portanto, uma
fina ironia explode no epíteto dado a H. Roxo: “(...) o poeta épico da Psiquiatria (BARRETO, 1993:
p.48)”.
Historicamente, a relação entre o interno e a psiquiatra no espaço restrito do asilo foi
inevitavelmente contraditória. Se a medicina era o poder, o médico era o todo-poderoso. Quando o
Estado responsabilizou-se pela loucura e delegou poderes à psiquiatria, o psiquiatra tornou-se o juiz
do louco, aquele que, com base na leitura de sintomas, no depoimento das testemunhas (familiares e
amigos), determinava a condenação ou o livrava da instituição. Na hierarquia do hospício, uma
horda de enfermeiros e guardas foi formada para sustentar esta engrenagem, o que revela, por si só,
a natureza da experiência psiquiátrica: um misto de hospital e presídio, vigiado por uma equipe
transformada na polícia do interno.
Franco Basaglia, um dos líderes do movimento libertário que pregou a antipsiquiatria pelo mundo,
chamou atenção para a configuração do poder no hospício tradicional. Precursor do movimento
italiano conhecido como Psiquiatria democrática, o médico desenvolveu novo modelo de
assistência para os pacientes nos anos 1970, em substituição ao antiquado sistema manicomial, ao
assumir a direção do Hospital Provincial de Trieste. A denúncia da relação excludente e repressora
da medicina em relação ao interno constituiu, como bem assinalou Basaglia, a base da
argumentação do movimento antimanicomial:
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O puro poder do médico aumenta tão vertiginosamente quanto diminui o poder do
doente; este, pelo simples fato de estar internado, passa a ser um cidadão sem direitos,
abandonado à arbitrariedade dos médicos e enfermeiros, os quais podem fazer dele o
que bem entendem, sem que haja possibilidade de apelo (apud FOUCAULT, 1988:
p.126).
A perda da identidade e da cidadania, acrescida do abandono e da solidão impostos pela autoridade
social, é um dos temas dominantes do diário de Lima Barreto. Foucault dissecou essas práticas
realizadas em nome da moral e da ciência, revelando que a função do asilo psiquiátrico do século
XIX, além do isolamento, consistia na configuração de um espaço fechado para um confronto,
lugar de uma disputa, campo institucional onde se trata de vitória e de submissão (FOUCAULT,
1988: p.122)”. É de sua autoria uma das mais completas descrições do tratamento da loucura nesta
época:
Todas as técnicas ou procedimentos efetuados no asilo do século XIX isolamento,
interrogatório particular ou público, tratamentos-punições como a ducha, pregações
morais, encorajamentos ou repreensões, disciplina rigorosa, trabalho obrigatório,
recompensa, relações preferenciais entre o médico e alguns de seus doentes, relações de
vassalagem, de posse, de domesticidade e às vezes de servidão entre doente e médico
tudo isto tinha por função fazer do personagem do médico o “mestre da loucura”;
aquele que a faz se manifestar em sua verdade quando ela se esconde, quando
permanece soterrada e silenciosa, e aquele que a domina, a acalma e a absorve depois de
a ter sabiamente desencadeado. (FOUCAULT, 1988: p.122)
A atuação ambígua do médico e do monstro estendeu-se ao longo do século XIX e atravessou o
século XX com graves dissonâncias. O mestre da loucura não era, sob o olhar de Lima,
propriamente um mestre. Detinha, no entanto, o controle do destino do interno, enquadrando-o na
população de alienados sob prognósticos raramente convincentes. Lima era o ponto de interseção
dos clichês do hospício: pobre, mulato, bêbado, a-social. Sobre o primeiro destes rótulos, torna-se
importante lembrar como, desde o século XVII, a pobreza se irmanou à loucura. Enquanto a Idade
Média santificou a miséria, pelo mérito de redenção dos ricos, o classicismo isolou pobres e
excluídos: a Grande Internação foi decretada em 27 de abril de 1656 na França para impedir a
mendicância, o ócio, a desordem acontecimento que tem explicação no contexto histórico do
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século XVII, quando os serviços sociais gradualmente deixaram o âmbito altruísta da Igreja e
migraram para a esfera política do Estado em formação.
As casas de internamento destinadas a indigentes, loucos, criminosos, doentes e a-sociais
consolidaram-se, aliando assistência e castigo fora delas, mendigos eram humilhados e punidos
publicamente. O Estado assumia progressivamente a responsabilidade por pobres e loucos com a
perversão característica da relação paternalista: cuidava (embora não curasse), desde que pudesse
exercer direitos de proprietário sobre eles. A loucura passava a ser caso de polícia, metida no
cárcere, porém, diferentemente da prisão, não havia qualquer expiação de culpa ou brecha para
arrependimento. O louco era um presidiário sem crime. Seu delito maior era não pertencer à massa
produtiva do Estado, sendo um eterno tutelado pelo poderes sucessivos que disputariam a
propriedade da loucura. Outro invisível delito: o perigo a que expunham a sociedade, dado o seu
descontrole. No século XVII, os agentes do internamento encontraram, enfim, argumentos para a
consolidação do que Foucault chamou de mito da felicidade social: assim que o mal-estar na
sociedade foi julgado como risco, o Estado inoculou o perigo em espaços de segregação.
A triagem realizada no domínio do hospital na era clássica levava em conta a genealogia do
paciente, sobretudo a origem social. A psiquiatria mudaria as regras da internação no século XIX,
dispondo-se a isolar apenas os loucos e resgatá-los do caos de julgamentos sociais, morais e, no
Brasil, raciais. Os preconceitos, entretanto, estiveram invariavelmente presentes, à semelhança da
sociedade externa aos muros do asilo. No Brasil, num estudo realizado pelo Dr. Antônio Luís da
Silva Peixoto em 1837, intitulado “Considerações gerais sobre a alienação mental” e baseado nas
teorias de Pinel e Esquirol, o tratamento da doença mental levava igualmente em conta preceitos
morais e observações pouco científicas. Em Doença mental e cidade: o hospício de Pedro II,
Francisco Carlos da Fonseca Elia dá detalhes sobre essa avaliação do médico:
A dificuldade em precisar o conceito de loucura, visto como perturbação e não como
destruição da inteligência, assim como da sensibilidade e dos movimentos, levou-o a
enumerar uma lista vastíssima das possíveis causas do desequilíbrio mental, que
incluem: o clima, as estações, a idade, os sexos, os temperamentos, as profissões, os
modos de vida. Desta forma, nada escapa ao seu furor classificatório na constituição do
indivíduo louco: “o ócio e o aumento de civilização concorrem para o aumento do
número de loucos... uma educação viciosa pode ser causa da alienação mental... os
costumes também influem muito no desenvolvimento desta enfermidade. Por exemplo,
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o uso imoderado do vinho e das bebidas alcoólicas predispõe à loucura... os prazeres
venéreos, levados ao excesso e sem escolha, degradam e enfraquecem a razão do
homem; o celibato, sobretudo forçado, também concorre para aliená-lo”. (...) Diante das
causas físicas determinantes da insanidade, a alienação mental é caracterizada como
sendo uma doença hereditária e tanto a menstruação na mulher e as hemorróidas no
homem seriam causas que muito teriam contribuído para a perda da razão na cidade do
Rio de Janeiro. Do ponto de vista moral, as causas mais freqüentes de insanidade eram:
as emoções vivas, o terror, o amor levado ao excesso ou contrariado, o temor, a cólera, a
ambição, os reveses da fortuna, os desgostos médicos (ELIA, 1996: pp.6-7).
O ócio, a educação viciosa, a bebida alcoólica, os prazeres venéreos, o celibato, a menstruação, as
hemorróidas... A lista era numerosa e, para dizer o nimo, arbitrária. Porém, é digno de
observação o fato de que, quase um século depois, tenha sido este o discurso de Rodrigues Caldas
(de 1920), primeiro diretor empossado na Colônia Juliano Moreira, ao lançar o conceito do novo
manicômio (formado a partir da mudança das Colônias de Alienados da Ilha do Governador, onde o
pai de Lima Barreto trabalhou, o hospício de Jacarepaguá faria história como um dos mais temidos
por seus excessos punitivos no tratamento de doentes crônicos):
Foi, pois, jubiloso e esperançado, que compareci a esta festividade, a fim de saudar ao
Sr. Ministro da Justiça (Alfredo Pinto), que vem remodelando a Assistência a
Alienados, pela fundação destas colônias (...) e pela provável promulgação de uma nova
legislação na qual serão resolvidos delicados problemas atuais de higiene e defesa social
pertinentes aos deveres do Estado para com os tarados e desvalidos de fortuna, do
espírito ou do caráter, para com os ébrios, loucos e menores retardados, ou delinqüentes
e abandonados, assim como para com os indesejáveis inimigos da ordem e do bem
público, alucinados pelo delírio vermelho e fanático das sanguinárias e perigosíssimas
doutrinas anarquistas ou comunistas, do maximalismo ou bolchevismo (apud
HIDALGO, 1996: p.28).
A História mudou apenas a natureza da discriminação e suas denominações. Em 1690, no hospital
de Salpêtrière, na França, os adjetivos determinantes das internações de indigentes, vagabundos,
loucos e mendigos embutiam o mais amplo espectro do juízo: debochado, imbecil, espírito
arruinado, libertino, filho ingrato, prostituta, iluminado, visionário, homem muito mau, mulher que
não ama o marido (qualificativos listados por Michel Foucault em História da loucura na Idade
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Clássica). No Brasil, a psiquiatria também abusou de chavões moralistas e autoritários para realizar
a higiene mental teorizada na década de 1920. Verifica-se, pelo discurso de Rodrigues Caldas, que
os rótulos transformaram-se de acordo com o contexto social, econômico e político, mas a moral
invariavelmente os regeu ao segregar tarados, desvalidos de fortuna, ébrios, loucos, menores
retardados, delinqüentes, abandonados, anarquistas, comunistas e bolchevistas.
Lima Barreto, ao ingressar no Hospício Pedro II, foi admitido como indigente. Nem a distinção
literária tampouco os livros publicados àquela altura foram suficientes para redimi-lo do estigma
social. uma passagem do Diário do hospício em que se acentua a frustração ante o médico, por
não convencê-lo de seus méritos como jornalista e escritor. Ele cada vez mais percebia que também
naquela sociedade fabricada em torno da loucura pistolões e relações sociais privilegiadas
amenizavam a rotina. No seu caso particular, não foi uma obra publicada ou algum reconhecimento
de literato que o retirou da indigência no hospício. Foi um funcionário amigo de seu pai, dos tempos
em que trabalhavam juntos nas Colônias de Alienados da Ilha do Governador, quem lhe arranjou
um quarto especial, partilhado com um estudante de medicina. Sem este pistolão nada nobre na
hierarquia social do hospício e menos ainda em sua própria (já que era tão orgulhoso de suas
qualidades intelectuais) – ele teria permanecido eternamente no limbo do sistema de castas e
poderes estabelecido na instituição.
Dados biográficos explicam o tratamento recebido no manicômio: eterno inadaptado, Afonso
Henriques de Lima Barreto nasceu em 1881, mulato, carioca, filho de um mestre de oficinas de
composição tipográfica, e trilhou diversos caminhos institucionais, terminando, invariavelmente, à
margem. Embora tenha recebido instrução acima das expectativas para um mulato à sua época
(descendente de escravos, Lima nasceu sete anos antes da Abolição da Escravatura), ele apresentava
incapacidade de se institucionalizar. Freqüentou a Escola Politécnica, mas não obteve o diploma;
passou no concurso para amanuense na Diretoria do Expediente da Secretaria de Guerra,
trabalhando como tal, sendo, porém, precocemente aposentado; concorreu à vaga de acadêmico na
Academia Brasileira de Letras sem obtê-la; foi avesso ao casamento, terminando os dias na solidão,
na casa da família original que tanto desprezava.
Lima Barreto ingressava em instituições e delas, quando possível, sempre saía, mantendo uma
independência e um inconformismo que lhe valeram uma vida de percalços. Chegou, por fim, a um
clímax marcado pela armadilha: apesar de certa autonomia adquirida como jornalista e escritor – foi
sempre extremamente crítico e denunciou a hipocrisia em esquemas políticos, sociais e econômicos
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nos poderes de sua época –, acabou sob a amarra de uma das piores instituições do seu tempo: o
hospício. Foi também outra instituição, a polícia, que o deteve e determinou a sua internação a
priori. A parte inicial do Diário do hospício descreve o rito de entrada: tiraram-lhe a roupa,
substituindo-a pelo uniforme, e atiraram-no num colchão com um cobertor puído. Segue-se um
auto-retrato em tom de reclamação:
Não me incomodo muito com o Hospício, mas o que me aborrece é essa intromissão da
polícia em minha vida. De mim para mim, tenho certeza de que não sou louco; mas
devido ao álcool, misturado com toda a espécie de apreensões que as dificuldades de
minha vida material, seis anos, me assoberbam, de quando em quando dou sinais de
loucura, deliro (BARRETO, 1993: p.23).
A leitura da polícia como órgão invasor e arbitrário, como instituição inapta a prendê-lo e conduzi-
lo ao hospício, tem explicação razoável no sistema da época, afinal, a sociedade brasileira livrava-se
ainda muito lentamente do espectro escravocrata e da discriminação racial. Com freqüência a
polícia detinha homens perambulando pelas ruas, por vezes alcoolizados (era o caso de Lima
Barreto, alcoólatra confesso), sem documentos. Como a vadiagem era uma das doenças sociais da
época, vagabundos eram por vezes internados como indigentes uma prática tão antiga quanto a
Grande Internação do século XVII. Após a identificação, caso fossem mulatos, negros e/ou pobres,
caíam na vala comum do hospício até o resgate por parte das famílias. E assim a psiquiatria
brasileira acumulou números bárbaros: um censo realizado em 1981 na Colônia Juliano Moreira
revelou que 22% da população de alienados, internados ali desde a década de 1930, jamais haviam
apresentado qualquer quadro psiquiátrico. Abandonados pelas famílias de origem, sob a tutela do
Estado, tinham-se perdido nos trâmites burocráticos da instituição e na insanidade alheia, sem
condições financeiras para a restituição da cidadania – eram, simplesmente, mendigos.
Lima Barreto encarou toda essa história de preconceito e loucura ao dar entrada no Pedro II, o
primeiro hospício oficial do Brasil, criado por decreto do Imperador em 1841 e inaugurado em 1852
com seu nome. Era um a-social, acrescido de um detalhe da ordem da raça: era descendente de
negros em um período conturbado da psiquiatria no Brasil, quando germinavam entre os psiquiatras
brasileiros as noções de eugenia alemã. Em História da psiquiatria no Brasil, Jurandir Freire Costa
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conta como Juliano Moreira
3
, diretor do Pedro II, reuniu-se a uma turma de discípulos no Rio de
Janeiro das décadas de 1910/20 para fundar a Liga Brasileira de Higiene Mental. A tese central
baseava-se na hereditariedade como causa da doença mental, desdobrando-se em séria
conseqüência: valendo-se deste preceito, o objetivo consistia em segregar e esterilizar pacientes,
especialmente os não-brancos, dotados de imaginárias, supostamente diabólicas tendências
psíquicas, supostamente lesivas a uma idealizada raça brasileira. Uma das máximas do pensamento
eugenista prescreveu a esterilização como método de depuração da raça, incluindo entre os
proscritos os loucos e/ou negros, estabelecendo o dever de afastar “os anormaes da possibilidade de
reprodução e utilizando-se de uma forma moderna que prescreve esterilizar alienados delinqüentes,
degenerados alcoólicos inveterados, quer como penalidade, quer como prophylactico (COSTA,
1981: p. 56)”.
A perseguição eugenista assombrou internos, sobretudo, negros na história da psiquiatria brasileira.
Surpreendentemente, Lima Barreto mostrou-se relativamente bem-informado sobre a eugenia em
confissão transcrita em Diário íntimo:
Vai se estendendo, pelo mundo, a noção de que umas certas raças superiores e umas
outras inferiores, e que essa inferioridade, longe de ser transitória, é eterna e intrínseca à
própria estrutura da raça.
Diz-se ainda mais: que as misturas entre essas raças são um vício social, uma praga e
não sei que cousa feia mais.
Tudo isto se diz em nome da ciência e a coberto da autoridade de sábios alemães.
Eu não sei se alguém já observou que o alemão vai tomando, nesta nossa lúcida idade, o
prestígio do latim na Idade Média.
O que se diz em alemão é verdade transcendente. Por exemplo, se eu dissesse em
alemão o quadrado tem quatro lados seria uma cousa de um alcance extraordinário,
embora no nosso rasteiro português seja uma banalidade e uma quase-verdade.
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um trecho no Diário do hospício em que Lima Barreto se