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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC/SP
DEBORA CRISTINE ROCHA
Janela Indiscreta
A Simulação do Mundo Vivido no Audiovisual
DOUTORADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA
São Paulo
2009
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC/SP
DEBORA CRISTINE ROCHA
Janela Indiscreta
A Simulação do Mundo Vivido no Audiovisual
Tese apresentada à Banca Examinadora
da Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo, como exigência parcial para
obtenção do título de DOUTOR em
Comunicação e Semiótica, sob a
orientação da Profª. Drª. Lucrécia
D’Alessio Ferrara.
DOUTORADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA
São Paulo
2009
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Banca Examinadora
Pesquisa de Doutorado realizada com o auxílio de Bolsa Capes
Obá Orixá,
Akiroobá yé!
Agradecimentos
Eu vou pedir a benção ao Criador, nada se faz sem a Sua presença.
Eu vou pedir a benção às Guardiãs e aos Guardiões, nossos guerreiros.
Eu vou pedir a benção às Yabás e aos Babás Orixás, luzes do universo.
Eu vou agradecer ao Colégio, exemplo de amor ao próximo.
Eu vou agradecer à minha orientadora Lucrécia, quebra de crenças.
Eu vou comemorar com os colegas do Espacc, amizade construída.
Eu vou comemorar com os filhos da Puc, amigos tão queridos.
Eu vou alegrar a vó Rosa, contadora de histórias.
Eu vou emocionar a mãe Cida, minha referência, meu chão.
Eu vou rir com o Edson, amigo de todas as horas.
Eu vou querer bem ao Marios, minha estrela.
Resumo
A pesquisa visa explorar a modelização da verossimilhança em sistemas
de comunicação do ponto de vista semiótico. Cada vez mais frequente, essa
forma de modelização se volta para a construção de textos que enfatizam o
referente e fundem ficção e realidade.
Nessa perspectiva, o trabalho procura mapear as estratégias e os
recursos de linguagem presentes no processo de tradução daquele referente,
em específico no audiovisual, com estudos de caso sobre a televisão e o filme
documentário. No trabalho, compreende-se o mundo vivido como o mundo
natural que os signos representam e considera-se, também, o mundo midiático
como o universo criado pela representação.
Como hipótese, admite-se que tal modelização simula, na tela, o mundo
vivido pela semiose de elementos do método etnográfico. Para tanto, os
elementos do método etnográfico, quando traduzidos para os sistemas de
comunicação, deixam a sua condição etnográfica e transformam-se em marcas
de veracidade do texto audiovisual. Ou seja, a etnografia é modelizada pelos
sistemas de comunicação audiovisuais.
Admite-se como hipótese, ainda, que a modelização da verossimilhança
construirá a simulação, que pretende apagar as marcas da representação aos
olhos do público, de modo a gerar uma plataforma de credibilidade para os
sistemas de comunicação. A simulação utiliza o fenômeno janela indiscreta,
isto é, o desejo do público de conhecer a vida privada do outro como
voyeurismo midiático e, simultaneamente, a sua vontade de revelar a própria
vida a terceiros. Nesse contexto, uma das estratégias e um dos recursos
utilizados pela simulação será o uso de histórias de vida de pessoas anônimas.
O corpus de pesquisa analisa o caso da televisão, com a telenovela
Páginas da Vida (TV Globo, 2006-2007) e o reality show BBB8 Big Brother
Brasil 8 (TV Globo, 2008), assim como a condição do filme documentário, com
Edifício Master (Eduardo Coutinho, 2002) e Ônibus 174 (José Padilha e Felipe
Lacerda, 2002).
A análise está fundamentada no pensamento da Escola de Tártu-
Moscou de semiótica da cultura e Jean Baudrillard, responsáveis pelos
conceitos principais que dialogam no trabalho: modelização e simulação. Mas
também inclui as contribuições de Bauman, Bateson, Jakobson, Luhman,
Certeau, Geertz, Clifford e McLuhan.
Palavras-chave
Semiótica da Cultura Simulação Etnografia Telenovela Reality Show
Documentário
Abstract
The research aims to explore the modelization of verisimilitude among
communication systems from the semiotic point of view. Becoming more and
more frequent, this form of modelization leads to a text construction which puts
emphasis on the the referent blending fiction and reality.
Based on such perspective, this work seeks to map the strategies and
language resources present on the translation process of such referent, more
specifically audiovisual production, taking as study cases television and
documentary film. On this work, the lived world is perceived as a natural world,
which the signs represent and the midiatic world is also seen as the universe
created by such representation.
Hypothetically, it is admitted that such modelization simulates, on screen,
the lived world through the semiosis of elements from the ethnographic method.
In order to accomplish such task, the elements from the ethnographic method,
when translated into the communication systems, abandon their ethnographic
condition, becoming marks of veracity on the audiovisual text. That is to say,
ethnography is modelized by audiovisual communication systems.
Another accepted hypothesis is that the modelization of verisimilitude will
constitute into the simulation, intending to erase representation marks from
public eyes, generating therefore a platform of credibility for these
communication systems. The simulation will utilize the phenomena called rear
window, that is to say, the public desire to know about the private life of others,
as a midiatic voyerism, simultaneously, their willingness to reveal their own lives
to others. In this context, one of the strategies and resources put in use by the
simulation will be the utilization of life histories of anonymous people.
The research corpus will analyse the television aspect, taking as starting
point the telenovela ginas da Vida (TV Globo, 2006-2007), the reality show
BBB8 Big Broter Brasil 8 (TV Globo, 2008), as well as the condition of the
documentary film, taking examples such as Edifício Master (Eduardo Coutinho,
2002) and Ônibus 174 (José Padilha & Felipe Lacerda, 2002).
The analysis is fundamented on the Tartu-Moscow school of the
semiotics of culture and Jean Baudrillard thoughts, responsible for the major
dialogued concepts reflected on this work: modelization and simulation. It also
includes contributions from Bauman, Bateson, Jackobson, Luhman, Certeau,
Geertz, Clifford and McLuhan.
Key words
Semiotics of Culture Simulation Ethnography Telenovela Reality Show
– Documentary
Sumário
1. Apresentação ...................................................................................................
.
001
1.1. A linguagem etnográfica ............................................................................
009
1.2. Relatos e imagens de anônimos ...............................................................
012
1.3. Ficção e realidade .....................................................................................
016
2. Páginas da Vida, a telenovela .........................................................................
020
2.1. Telenovela brasileira .................................................................................
020
2.2. Histórias de vida ........................................................................................
037
2.3. Televisão ...................................................................................................
042
2.4. Páginas da Vida ........................................................................................
045
2.5. Montar para conquistar credibilidade ........................................................
050
2.6. A biografia da tela .....................................................................................
059
3. Big Brother Brasil, o reality show ..................................................................
064
3.1. Reality TV ..................................................................................................
064
3.2. Reality show ..............................................................................................
071
3.3. Big Brother Brasil 8 ...................................................................................
082
3.4. O buraco da fechadura ..............................................................................
094
3.5. A montagem da simulação ........................................................................
105
4. Edifício Master e Ônibus 174, o documentário .............................................
110
4.1. Documentário ............................................................................................
110
4.2. A proposta de Coutinho .............................................................................
125
4.3. Edifício Master ...........................................................................................
127
4.4. A visualidade da face ................................................................................
133
4.5. O ritmo do inesperado ...............................................................................
136
4.6. A sonoridade da solidão ............................................................................
138
4.7. Ônibus 174 ................................................................................................
140
5. Considerações finais .......................................................................................
147
Referências bibliográficas ..................................................................................
154
1
Apresentação
Como se não houvesse lentes que refratassem a realidade, apenas
espelhos que a refletissem, simulações cada vez mais intensas tomam conta
dos sistemas de comunicação. Para obtê-las, estratégias e recursos que
enfatizam o referente e fundem a ficção e a realidade o faltam, ao contrário,
multiplicam-se como expedientes o utilizados que formam um legítimo
compêndio para espelhar a vida como ela é. Ao final, é possível entrever um
artifício eficaz, para ganhar credibilidade e conquistar público, num mundo
onde a competição entre as empresas de comunicação é acirrada.
Na TV, tais estratégias e recursos podem ser encontrados no decorrer
de toda a programação. É uma tendência que, no mundo inteiro, contamina os
mais variados formatos televisivos – da narrativa seriada ao talkshow – e chega
até mesmo a gerar um novo formato, o reality show.
Nesse panorama, a produção do Brasil não é exceção. As influências
dessa forma de televisão, conhecida como reality TV, podem ser sentidas em
vários segmentos, entre os quais, destaca-se um formato bem brasileiro, a
telenovela.
Para Manoel Carlos Gonçalves de Almeida, autor de inúmeras
telenovelas, quando se trata de sua obra, há de fato a necessidade de
aproximar ficção e realidade: Faço ficção, mas tenho compromisso com o
verossímil.” (Folha de São Paulo, 02.06.2006). Em busca da verossimilhança
nas telenovelas que escreve, ele introduz o diálogo entre pessoas reais e
personagens encenados por atores e inclui, na trama, assuntos que são motivo
2
de preocupação para a sociedade, como aqueles relacionados à saúde pública
ou a inquietações de ordem ética e moral. Além disso, Maneco ainda incorpora
fatos recentes da realidade brasileira aos capítulos que escreve.
Continuo com o sonho de escrever o capítulo de amanhã
depois de assistir ao de hoje. Estou cada dia mais perto disso.
Tudo o que acontecer de importante no Brasil vou dar um jeito
de colocar no ar o mais rápido possível (Manoel Carlos apud
Portal Terra, 09.07.2006)
Em Mulheres Apaixonadas (TV Globo, 2003), esse pensamento elabora
a cena da bala perdida, que retrata a rotina de violência no Rio de Janeiro e
ganha as primeiras páginas dos grandes jornais como se houvesse acontecido
no mundo real. No entanto, os esforços de Maneco para unir a ficção à
realidade vão mais adiante. Em Páginas da Vida (TV Globo, 2006), ele insere,
em cada capítulo, depoimentos de pessoas comuns sobre suas experiências
de vida. Desse modo, o cotidiano fictício, construído na telenovela, dialoga com
o cotidiano real, vivido pelos anônimos que contam histórias pessoais e
representam, por extensão, milhões de telespectadores que assistem
diariamente à telenovela. O cotidiano fictício, criado pelo autor da telenovela, e
o cotidiano real, vivenciado pelo público, interagem.
E a TV não é um caso isolado, a busca pela verossimilhança também
ecoa no cinema com o trabalho do documentarista Eduardo Coutinho que,
dentre os acontecimentos ditos históricos, procura a dimensão do cotidiano e
as pessoas anônimas que dela participam:
Todo fato histórico tem uma dimensão que é cotidiana, das
pessoas que estão na massa, se dissolvem na massa. Você
pode jogar essa idéia em qualquer quadro histórico: pega,
virando 180 graus, um comício do Hitler, com cem mil carinhas:
quem são esses caras? Festejos do fim da Segunda Guerra
Mundial, e você aqueles anônimos; quem eram? O que me
interessa é esse lado. (Coutinho apud Lins, 2004: 169)
3
Os relatos de anônimos, que conduzem seus documentários, são
testemunhos que humanizam seus autores aos olhos do público e apontam a
obra de Coutinho como avessa a falar sobre temas gerais, dando lugar a
especificidades, particularidades, um universo microscópico que constrói na
tela a simulação de pessoas densas, reais. Tal densidade torna os contadores
dignos de crédito, uma credibilidade que extravasa aquele indivíduo em
particular e adere a todo o sistema, o documentário.
É assim que Coutinho simula o homem real e suas produções mais
recentes primam pela “concentração espacial, a filmagem em apenas uma
locação” (Lins, 2004: 139), estratégias que serão utilizadas com êxito no
documentário Edifício Master (Coutinho, 2002), realizado num único prédio
residencial de Copacabana. Ele decide fazer esse documentário, “entre outros
motivos, porque isso ia na contramão da produção documental brasileira.”
(Lins, 2004: 140): o Master é habitado pela classe média, uma camada que
quase o é mostrada pelo documentário no Brasil. A maioria da produção
documental do país retrata camadas mais pobres, em geral, comunidades. Ao
exibir a classe média, mesmo a baixa classe média do Master, Coutinho
procura exibir o desconhecido, o outro.
Esse também é o objetivo de José Padilha, com a co-direção de Felipe
Lacerda, no documentário Ônibus 174 (2002). Em junho de 2000, um ônibus é
sequestrado no Rio de Janeiro por um dos sobreviventes da Chacina da
Candelária. Em transmissão ao vivo, a televisão cobre o episódio de violência
urbana de forma sensacionalista, destaca a atuação do bandido e a ação
desastrada da polícia que culmina com a morte de uma refém.
O documentário de Padilha questiona o ponto de vista unidirecional da
cobertura televisiva, traz à tona as condições sócio-econômicas que
contribuem para a tragédia. O cineasta simula o ponto de vista do sequestrador
para evidenciar o outro que se esconde à vista de todos. É o caso da situação
de abandono dos meninos de rua, realidade vivida pelo sequestrador. Segundo
4
Padilha, esse ponto de vista deve incomodar o público, mas tal incômodo lhe
vale críticas pesadas:
fiz o Ônibus 174 do ponto de vista do Sandro, porque é o ponto
de vista contra-intuitivo. É justamente o ponto de vista que
incomoda o espectador. Incomoda alguém olhar um
sequestrador torturando as pessoas por horas e horas e cortar
para o passado desse menino e você começar a ver de onde
veio aquela violência. Quando eu lancei o Ônibus 174, eu fui
acusado de radical de esquerda porque eu construí esse ponto
de vista. (Padilha apud Roda Viva, 08.10.2007)
As imagens transmitidas pela TV são modelizadas pelo documentário. O
filme é montado por cenas veiculadas ao vivo naquele dia e entrevistas de
especialistas sobre violência urbana, parentes e conhecidos do sequestrador.
Padilha usa o texto construído pela televisão para questionar a própria
televisão como simulação do mundo vivido. No entanto, ele precisa construir
outra simulação para discutir a primeira, ele precisa simular o ponto de vista de
Sandro para que os acontecimentos possam ser compreendidos de outra
maneira. Em Ônibus 174, o bandido será o resultado da exclusão social que,
após tantas dificuldades na vida, sucumbe diante da TV. Essa operação de
desvendar o menino de rua para conhecer o outro guarda marcas etnográficas,
revisita o buraco da fechadura e modeliza a janela indiscreta como estrutura de
linguagem.
O fenômeno janela indiscreta estrutura a etnografia, mas também se
apropriado pelos sistemas de comunicação para obter credibilidade e fazer
sucesso junto ao blico. Ele contaminará os sistemas em geral, mas será na
televisão que irá encontrar seu ponto alto, o reality show, formato que promete
a mais absoluta fidedignidade entre o mundo vivido e o mundo midiático, o
máximo de simulação. Com altos índices de audiência, essa é a fórmula de
programas como o Big Brother, criado pelo holandês John de Mol que, em
parceria com Joop van den Ende, fundou a Endemol Enterteinment, empresa
especializada em reality shows que, até o início de 2003, havia criado mais
de 300 programas (Revista Veja, 22.01.2003).
5
Carro-chefe da Endemol, o Big Brother é exibido em diversos países,
mas sempre com a mesma fórmula: um grupo de anônimos é confinado numa
casa vigiada por câmeras durante 24 horas por dia, a cada semana um
participante é eliminado por votação do público, restando, ao final, uma única
pessoa que irá faturar o prêmio milionário. O público pode acompanhar o que
acontece no programa ao vivo pela Internet, pelo celular ou pela TV por
assinatura, assim como assistir ao programa de TV aberta que resume os
melhores momentos do dia, exibe os diálogos entre o apresentador e os
brothers e submete os participantes a uma gincana de provas que reforça o
entendimento do Big Brother como jogo.
É interessante saber que apesar do título Big Brother fazer referência ao
romance 1984 de George Orwell, de acordo com De Mol, a fórmula não foi
baseada nessa obra. A idéia do Big Brother parte de um projeto científico, o
Biosfera 2, que pretendia criar, nos Estados Unidos, em pleno deserto do
Arizona, uma réplica em tamanho reduzido do planeta Terra, considerado a
Biosfera 1.
De Mol (...) alguém na mesa mencionou que havia lido num
jornal americano uma notícia sobre um projeto científico
chamado Biosfera 2, em que um grupo de pesquisadores se
isolara numa estufa por um longo período, como se estivessem
em outro planeta, e todo aquele blá-blá-blá. Logo de cara,
fiquei muito interessado em saber mais detalhes sobre o
Biosfera 2 e o que acontecera na experiência. A idéia básica do
Big Brother nasceu aí. Engana-se quem imaginar que o livro
1984, de George Orwell, tenha sido uma influência. Não foi. Na
obra de Orwell, é o governo que observa tudo o que as
pessoas fazem através de câmeras ele fala de autoritarismo,
e não de voyeurismo, como é o nosso caso. peguei o nome
Big Brother emprestado porque ele soava melhor do que o
título inicial do programa, A Gaiola Dourada.
Veja – O Biosfera 2 falhou em seus objetivos científicos. O que
o levou a crer que algo inspirado nele funcionaria na TV?
De Mol Antes de responder a essa pergunta, gostaria de
fazer uma observação: o Biosfera 2 era um projeto sério que
acabou se revelando uma piada, enquanto o Big Brother é um
programa de entretenimento que acabou se tornando objeto de
uma porção de estudos. A vida é curiosa, não? Bem, a meu
ver, os fatores que levaram ao fracasso do projeto são
6
exatamente os ingredientes que fazem o sucesso do programa.
Mas isso não ocorreu por acaso. Para conceber o Big Brother,
entrevistamos várias pessoas que ficaram isoladas no projeto
Biosfera 2 e tiramos lições que foram aproveitadas na TV.
(Revista Veja, 22.01.2003)
A meta principal do Biosfera 2 não foi alcançada, não foi possível criar
um ambiente totalmente auto-suficiente, sem qualquer contato com o exterior,
no qual fossem reproduzidas todas as condições ecológicas necessárias para
sustentar os cinco biomas implantados em seus mais de 12.000 m
2
. Os
pesquisadores não conseguiram reciclar o ar interior sem arriscar a vida das
duas tripulações que fizeram parte da experiência.
A primeira equipe contou com oito pessoas (quatro homens e quatro
mulheres) encerradas durante dois anos e a segunda com sete pessoas (cinco
homens e duas mulheres) por um ano. Ambas as equipes poderiam se
alimentar com o que produzissem nas instalações do Biosfera 2 e passaram
tanto tempo ocupadas com os cuidados para produzir a própria alimentação
que não tinham tempo para realizar experimentos científicos. O pior é que
mesmo com tanto trabalho do plantio ao preparo, chegaram a literalmente
passar fome, perderam peso e seus integrantes se desentenderam.
Porém, como afirma De Mol, se a idéia do confinamento de um grupo de
pessoas por um período significativo, vigiado em tempo integral, não obteve os
resultados esperados na ciência, ela foi adaptada com êxito para a televisão. A
TV criou uma janela indiscreta de sucesso ao canalizar o voyeurismo aquela
vontade de entrever pelos vãos das cortinas, olhar a vida alheia pelas frestas
de portas e janelas combinado ao exibicionismo aquele desejo de ser visto
e notado – para o mundo midiático.
De modo geral, nas sociedades ocidentais industrializadas, a
modernidade torna o indivíduo invisível, determina seu anonimato. Para
ultrapassá-lo, muitos voltam a valorizar suas experiências de vida e procuram
compartilhá-las como forma de fazerem-se vistos e ouvidos num mundo no
7
qual a obscuridade é angustiante. É uma forma de participar, tomar parte na
vida midiática, o santuário da visibilidade mundial.
Nos sistemas de comunicação, a janela indiscreta, o buraco da
fechadura e o par voyeurismo-exibicionismo serão estruturas de linguagem a
serviço da simulação. Os textos, que os utilizarem, serão apresentados ao
público como índices do mundo vivido, como se não houvesse lentes que
refratassem a realidade, apenas espelhos que a refletissem. Modelizada, a
janela indiscreta será tomada como marca de veracidade, capaz de criar
simulações extremamente verossímeis e dignas de crédito. Uma vez que o
sistema consiga tal confiança, poderá contar com a preferência do público.
Desse modo, a credibilidade e a veracidade, sua parceira inseparável,
serão canalizadas como simulação, na qual o referente será o personagem
principal e o texto, o faz-de-conta do mundo vivido. Para tanto, os sistemas de
comunicação irão dialogar com a etnografia para referencializar a sua produção
e construir as simulações que se façam necessárias para conquistar o público.
Nesse sentido, este trabalho não versa sobre o método etnográfico
propriamente dito, mas diz respeito ao processo de construção da simulação,
encontrado nos sistemas de comunicação e admite como hipótese que tal
processo encontra elementos na linguagem etnográfica para se constituir.
Tal processo indica que os sistemas de comunicação dialogam com
outros sistemas de cultura e adaptam os elementos e as estruturas de
linguagem que captam nesses sistemas culturais à sua gica de trabalho.
Dessa forma, considera-se que a ciência, assim como suas diversas disciplinas
e seus métodos de trabalho também alimentam os sistemas de comunicação
na geração de textos. Essa contribuição não se limita ao fornecimento de
conteúdo, caso das matérias jornalísticas que procuram traduzir termos
técnicos utilizados na ciência para o leitor comum, assim como mostrar o
impacto do avanço científico na vida diária.
Tal contribuição ocorre como diálogo, quando estruturas de linguagem
são traduzidas da etnografia para sistemas como a telenovela, o documentário
8
e o reality show, nos quais assumem outras características e funções, pois são
modelizadas por outras formas de ver e expressar o mundo.
Quando sistemas diferentes entram em contato e estabelecem o
diálogo, costumam ocorrer operações de tradução, de um sistema para outro,
entre as estruturas de linguagem que os constituem. Tal fenômeno segue a
lógica da assimetria entre sistemas, ou seja, existem distinções entre eles,
embora não absolutas, o que proporciona o diálogo e viabiliza a modelização.
Afinal, se fossem similares por completo, não haveria a necessidade de diálogo
e tradução e, se fossem diferentes por completo, não haveria a possibilidade
de diálogo e modelização.
De fato, no pensamento de Iúri Lótman (2001: 143), o mecanismo
elementar da tradução é o diálogo que, por sua vez, pressupõe a assimetria. A
resultante de todo esse processo é a geração de novos significados que o
são em si superiores ou inferiores aos anteriores, mas apenas diversos. No
entanto, tais significados sempre obedecem à lógica do sistema no qual se
apresentam, pois as estruturas de linguagem, que migram de um sistema para
outro, precisam fazer sentido no contexto criado pelo sistema.
Quando as estruturas de linguagem de um sistema de cultura são
deslocadas para os sistemas de comunicação, elas deixam de exibir o status
do sistema ao qual estavam vinculadas e passam a comportar-se de acordo
com a lógica de funcionamento dos sistemas para os quais foram movidas, ou
seja, seguem os processos de trabalho propostos por eles.
Ainda que esse fenômeno ocorra na ciência em geral, em suas
disciplinas e seus métodos de trabalho como um todo, na sequência, o foco do
trabalho privilegia a etnografia, disciplina que reúne, num único sistema,
estruturas de linguagem como a descrição, a observação participante e a
pesquisa de campo e também elabora simulações do mundo vivido.
É possível considerar a etnografia como uma versão do olhar pelo
buraco da fechadura, pois, mesmo ao estabelecer contato com o outro pela
observação participante, o etnógrafo não sai de seu universo, nunca deixa a
9
cultura na qual o seu olhar foi moldado. A visão etnográfica se comporta como
a lente que refrata a realidade observada e leva o pesquisador a examinar a
cultura alheia através de uma janela indiscreta, um fenômeno que os sistemas
de comunicação modelizam na telenovela do horário nobre, no reality show e
no documentário.
1.1. A linguagem etnográfica
A etnografia se posiciona como uma disciplina descritiva, cujo objetivo
principal é registrar com imparcialidade a diversidade cultural humana.
Descrição e etnografia caminhariam, assim, lado a lado. Porém, é preciso
lembrar que essa relação parte do pressuposto de que a descrição é uma
atividade associada à isenção, visto essa última se estruturar pelo registro
preciso e detalhado do referente. E mais, que a neutralidade está intimamente
associada à relação entre precisão e detalhamento, ou seja, quanto maior o
detalhamento, maior a precisão e quanto maior a precisão, maior a
neutralidade.
Portanto, ao identificar-se como disciplina descritiva, a etnografia busca
a precisão e a isenção, consequências diretas do detalhamento do referente,
que lhe conferem legitimidade e identificam-na enquanto linguagem científica.
Aliás, é importante esclarecer a terminologia do subtítulo acima, que
direciona toda a pesquisa, linguagem etnográfica. Neste trabalho, a etnografia
é considerada um sistema de cultura que se operacionaliza através de uma
linguagem própria, o método etnográfico. Da mesma forma, esse todo se
configura como um modo de expressão organizado segundo códigos, cuja
codificação, decodificação e recodificação serão realizadas por quem
reconheça a sua organização.
10
Nesse sentido, elementos como a descrição, a observação participante e
a pesquisa de campo fazem parte da linguagem etnográfica e articulam-se com
vistas à precisão e à isenção.
A descrição, por exemplo, é um processo que conduz o olhar rumo a
pormenores e minúcias e requer observação atenta, por vezes exaustiva, do
que enfoca. É o universo do pequeno, do minúsculo que caracteriza a visão
descritiva e, sendo a linguagem etnográfica marcada pela descrição, ela
também se mostra impregnada por essa perspectiva microscópica. Em
essência, a etnografia busca, nas culturas que se propõe a pesquisar, a
dimensão do pequenino, das coisas ínfimas, mínimas que se diluem no
cotidiano e se tornam quase invisíveis devido à repetição, mas que
caracterizam cada cultura de forma única.
Por sua vez, a observação participante nada mais é do que o exame
atento do cotidiano alheio, uma dimensão que permite à linguagem etnográfica
mapear as mais variadas culturas. Afinal, a rotina diária de cada grupo humano
fornece o material necessário à descrição. Afinal, os hábitos e os costumes que
tanto interessam aos etnógrafos podem ser acompanhados de perto no dia-
a-dia, onde e quando são construídos e disseminados, pois é a repetição
sistemática na esfera diária que lhes confere forma.
O cotidiano revela as particularidades de cada cultura, evidencia as
especificidades da organização gerada em cada sistema a tal ponto que, se o
ser humano se iguala ao fazer parte de uma mesma espécie, ele se diferencia
pelas diferentes culturas que organiza. Na verdade, o cotidiano se realiza nas
diversas culturas pela repetição sistemática e constrói o universo do uniforme,
imperturbável, inalterável e propicia certa invisibilidade aos mecanismos que o
estruturam. Trata-se de um modo de sedimentar tais culturas e o pensamento
que as qualifica pela reprodução metódica.
a pesquisa de campo constitui, em si mesma, uma marca de
veracidade. A presença do etnógrafo, no território onde a cultura estudada se
faz presente, configura-se como indício de credibilidade e legitimidade diante
do que ele irá relatar e exibir sobre o outro.
11
Juntas, a descrição, a observação participante e a pesquisa de campo
integram a linguagem através da qual a etnografia fala ao mundo, revelam em
detalhes tudo o que o etnógrafo viu através do buraco da fechadura, pela
janela indiscreta, dão a conhecer tudo o que ele presenciou e tudo do qual fez
parte no contato com a alteridade. A descrição, a observação participante e a
pesquisa de campo o elementos que a linguagem etnográfica articula de
modo único, porém, tais elementos podem ser deslocados a qualquer momento
para integrar outros sistemas de cultura e dialogar com outras linguagens.
Nesse momento, eles perderão o status que os identifica como etnográficos e
passarão a exercer outras funções nos sistemas que os incorporam, caso dos
sistemas audiovisuais.
Na linguagem etnográfica, tais elementos são responsáveis pelo
recolhimento dos chamados dados etnográficos, materiais que devem ser
contextualizados na cultura responsável pela sua criação para terem valor no
universo da ciência. Porém, nos sistemas audiovisuais, por vezes esses dados
serão utilizados apenas como indícios de referencialidade, provas da
veracidade do que é veiculado, o que exclui a necessidade de indicar seu
contexto original. Pelo contrário, em diversas ocasiões, o objetivo dos sistemas
de comunicação é de fato apagar o contexto do qual esses dados foram
retirados, pois a sua exposição poderia comprometer a credibilidade do sistema
ao revelar a adaptação que eles sofrem para corresponderem à sua lógica de
funcionamento.
Se a linguagem etnográfica visa coletar e analisar os dados etnográficos
sem modificar as amostras coletadas, os sistemas de comunicação logo tratam
de reorganizá-los à sua maneira. É verdade que eles procuram efetuar a coleta
de dados de forma similar à etnográfica e, nesse sentido, utilizam-se dos
recursos dispostos pela linguagem etnográfica, porém, não possuem o
compromisso do etnógrafo de elaborar textos sem alterar o material
organizado. Em sua dinâmica de trabalho e produção de textos, com total
tranquilidade, os sistemas de comunicação desmontam o material que lhes
chega às mãos e voltam a montá-lo conforme o seu entendimento. Portanto, se
12
a etnografia lida com o material organizado, os sistemas de comunicação
organizam o material de acordo com seus propósitos.
Apesar do etnógrafo nunca conseguir se eximir por completo de sua
própria cultura ao entrar em contato com outras culturas, ainda assim, ao
seguir a rotina de trabalho proposta pela linguagem etnográfica, ele o pode
interferir de modo intencional nas amostras coletadas em campo. O
desrespeito à essa premissa significaria abrir mão da abordagem científica e
mergulhar em outras instâncias.
Mas, na dinâmica proposta pelos sistemas de comunicação, os objetivos
são outros e necessitam do processo de montagem para se realizarem. Na
verdade, a montagem possui papel preponderante nesse contexto, pois será a
responsável pela adequação dos dados coletados em determinado contexto ao
universo da comunicação. É assim que relatos e imagens de pessoas
anônimas são deslocados do espaço da vida privada para o espaço da
superexposição pública.
1.2. Relatos e imagens de anônimos
De diferentes formas, a inclusão de relatos e imagens de pessoas
anônimas nos textos produzidos pelos sistemas de comunicação tem sido cada
vez mais empregada. Trata-se de uma estratégia de simulação que pode ser
detectada nos mais variados sistemas, a começar pelo rádio, pioneiro dessa
prática com as cartas de ouvintes, que hoje assumem o formato de e-mails, até
chegar à televisão e ao documentário. Porém, não sem antes passar pelo
teatro e pelo livro.
No teatro espontâneo, assim como no playback theatre, atores
profissionais ou psicodramatistas interpretam de improviso memórias e trechos
da vida da platéia.
13
Quando alguém da platéia “presenteia” o público com uma
história de sua vida, ele é convidado pela direção a sentar-se
perto do palco. Após contar sua história, que a direção
transforma em texto teatral, com cenas e personagens, o
narrador assiste, de perto, a versão dramatizada pelos atores.
De modo geral é uma experiência marcante, comovente e
catártica. Temos aqui a integração das vertentes estética, ética
e catártica do Teatro Espontâneo. (Vale, 2001: 47)
O público nos presenteia com sua história e nós a devolvemos
em forma de arte. (Ferrara apud Vale, 2001: 47)
no universo do livro, a editora alemã Mein Leben, em português
Minha vida, se especializou em coletar, organizar e publicar autobiografias de
pessoas comuns em tiragens limitadas que são distribuídas, na maioria das
vezes, a amigos e parentes dos biografados (Folha de São Paulo, 01.04.2004).
Também são cada vez mais triviais os programas e os quadros televisivos,
entre os quais se inclui a programação jornalística, que destacam a experiência
de gente anônima. Isso tudo sem falar da Internet que, em grande parte, exibe
páginas pessoais e blogs que dão conta da vida privada de seus autores.
Em geral, a estratégia de introduzir fragmentos da vida privada de
anônimos na produção dos sistemas de comunicação é tida apenas como uma
forma de fortalecer a interatividade, objetivo em alta devido à atuação das
mídias digitais. Nessa justificativa, cada relato, cada imagem ou experiência de
anônimo exibido é apresentado como a democratização do acesso aos
sistemas de comunicação. Ultrapassar o limiar entre o espaço vivido e o
espaço midiático significaria, então, oferecer ao cidadão comum a oportunidade
de expor a sua visão de mundo e participar dos acontecimentos do seu tempo.
No entanto, é preciso investigar essa justificativa. Do ponto de vista
semiótico, quando os sistemas de comunicação inserem depoimentos e
imagens de pessoas anônimas em seus textos, eles estabelecem um diálogo
com a etnografia para criar a simulação, ainda que tais estruturas
desempenhem funções diferenciadas nesses dois campos.
14
Na linguagem etnográfica, relatos e imagens de pessoas anônimas
compõem a descrição, a observação participante e a pesquisa de campo, pois
o seu recolhimento minucioso permite ao etnógrafo construir as representações
a partir das quais determinada cultura será apresentada à outra. Tal linguagem
se realizaria, então, através das histórias de vida orais, visuais, audiovisuais,
escritas e reescritas de pessoas anônimas. Nesse contexto, a etnografia nada
mais faz do que contar histórias, histórias desta ou daquela cultura, elaboradas
a partir das histórias de vida das pessoas que delas fazem parte.
Segundo a teoria etnográfica, não pode contar qualquer história sobre
certa cultura pesquisada, as suas histórias devem ser descritivas e isentas de
julgamento pessoal. Aqui, é preciso realizar uma ressalva, essa é a
recomendação, mas também pode ser o calcanhar de Aquiles dessa disciplina.
Ao contar histórias, a linguagem etnográfica instaura o seu próprio processo de
montagem, um processo que deve ser regido pela ética etnográfica, porém,
ainda assim, um processo de montagem. E enquanto tal, esse processo
depende dos princípios de conduta que o direcionam.
Mas os sistemas de comunicação também contam histórias, diferentes
das etnográficas, mas histórias. E essas histórias cada vez mais se constituem
a partir das histórias de vida de pessoas anônimas que abrem a sua vida
privada diante de microfones, câmeras e computadores. Mas o oferecem
qualquer garantia para diminuir o choque entre as histórias de vida de
anônimos em seu contexto original e a sua utilização em outro ambiente.
Isso o quer dizer que a etnografia represente o Bem, enquanto os
sistemas de comunicação encarnam o Mal. Em vários filmes, ditos
etnográficos, são utilizadas reconstituições, isto é, os nativos o instados a
encenar seus hábitos e costumes diante da câmera. Da mesma forma, a voz
over, que tudo sabe e tudo vê, chega a dar-se o direito de relatar os
pensamentos que passam pela cabeça do outro. É o que ocorre no filme Dead
Birds (Gardner, 1963), no qual o cotidiano dos dani, na Nova Guiné, é retratado
através do acompanhamento da rotina de um homem, uma mulher e um
menino:
15
Quando Laka, a mulher, vai ao campo colher suas batatas, a
“voz de Deus” explica que o trabalho é duro, o sol escaldante,
mas que ela fica feliz em poder encontrar as amigas e
conversar um pouco. Enquanto o menino observa a faina dos
adultos, essa mesma voz interpreta seus pensamentos e diz
que ele está a imaginar que, quando crescer, também estará
se dedicando àquelas tarefas. (Freire, 2005: 112)
Em Dead Birds, o exotismo se confunde com o sensacionalismo e
aspectos culturais que possam causar surpresa, estranheza ou repulsa o
ressaltados. Na montagem final,
As imagens privilegiam, pelo uso de grandes planos e longas
seqüências, os tempos fortes da manifestação observada. Tal
é o caso da morte dos porcos do menino para o ritual fúnebre.
O porquinho é seguro por um dos homens da aldeia enquanto
o chefe, distante apenas alguns centímetros do animal, dispara
uma flecha em direção ao seu ventre. O porco é solto no
terreiro, corre, estrebucha, sangra até perder as forças. A
câmera acompanha tudo com insistência e corta apenas para
mostrar o menino que chora a morte de seu animal. (Freire,
2005: 112)
Então, a linguagem etnográfica também é influenciada pelos sistemas de
comunicação. É possível detectar traços da lógica de funcionamento desses
sistemas nessa linguagem, pois no diálogo que a etnografia trava com a
comunicação, ela não sai ilesa. Também filmes etnográficos que
desconsideram o contexto original de relatos e imagens de anônimos, assim
como textos gerados pelos sistemas de comunicação que preservam o seu
contexto de origem.
No entanto, o é uma prática muito comum dos sistemas de
comunicação, pois eles lidam, sobretudo, com a retórica. Criam um
macrodiscurso retórico a partir das micronarrativas do cotidiano e da
16
experiência de gente sem fama, sem qualquer notoriedade com vistas à
conquista de credibilidade e público.
Trata-se de uma estratégia que faz desaparecer as diferenças entre a
ficção e a realidade, ofusca os limites entre a história contada e as histórias
vividas. Porém, ao exibir relatos e imagens de anônimos, histórias de vida de
gente sem fama, sem notoriedade, os sistemas de comunicação contam a sua
própria história. Ao final, realizam a sua metalinguagem.
1.3. Ficção e realidade
Ficção e realidade se confundem na linguagem etnográfica, tanto quanto
nos sistemas de comunicação. Ambas, etnografia e comunicação, são duas
visões de mundo que nada mais fazem do que construir textos, é verdade que
cada uma à sua maneira, mas ainda assim, textos. E textos são apenas
interpretações da realidade. Para Clifford Geertz, essas interpretações são em
si mesmas ficções,
ficções no sentido de que são “algo construído”, “algo
modelado” o sentido original de fictio não que sejam falsas,
não-fatuais ou apenas experimentos de pensamento. Construir
descrições orientadas pelo ator dos envolvimentos de um chefe
berbere, um mercador judeu e um soldado francês uns com os
outros no Marrocos de 1912 é claramente um ato de
imaginação, não muito diferente da construção de descrições
semelhantes de, digamos, os envolvimentos uns com os outros
de um médico francês de província, com a mulher frívola e
adúltera e seu amante incapaz, na França do século XIX.
Neste último caso, os atores são representados como
hipotéticos e os acontecimentos como se não tivessem
ocorrido, enquanto no primeiro caso eles são representados
como verdadeiros, ou pelo menos como aparentemente
verdadeiros. Essa não é uma diferença de pequena
importância: é precisamente a que Madame Bovary teve
dificuldade em apreender. Mas a importância não reside no fato
da história dela ter sido inventada enquanto a de Cohen foi
apenas anotada. As condições de sua criação e o seu enfoque
17
(para não falar da maneira e da qualidade) diferem, todavia
uma é tanto uma fictio “uma fabricação” quanto a outra.
(Geertz, 1989: 11, grifos do autor)
Seja na etnografia, seja nos sistemas de comunicação, caso da literatura
apontada por Geertz, muitas vezes as ficções o construídas como se não
houvesse lentes que refratassem a realidade, apenas espelhos que a
refletissem. É uma estratégia que funde a ficção fortemente com a realidade
para gerar a simulação, o que leva o público a acreditar no que lhe é
transmitido.
Nessa associação, ficção e realidade, a etnografia e os sistemas de
comunicação utilizam recursos como os relatos e imagens de pessoas
anônimas, as histórias de vida de gente comum na elaboração de suas
respectivas ficções. Afinal, tidas como fragmentos do real, pequenos trechos do
mundo vivido, as histórias de vida de anônimos se comportam como índices e
são capazes de convencer e persuadir o público quanto à materialidade do que
simulam. Por extensão, são capazes de convencer o público não apenas sobre
a veracidade do que simulam, mas dos textos nos quais são inseridas.
A pesquisa que se segue investiga a modelização da verossimilhança
pelos sistemas de comunicação audiovisuais através do uso de elementos da
linguagem etnográfica. Dentre esses elementos, os privilegiados são as
histórias de vida de pessoas comuns que têm surgido cada vez mais nos textos
produzidos por esses sistemas.
Com esse objetivo, a pesquisa explora os formatos telenovela e reality
show na TV e o filme documentário. Sendo assim, foram selecionados quatro
estudos de caso, representativos dos formatos apontados, nos quais as
histórias de vida de anônimos possuem papel de destaque.
Os estudos de caso apresentados se referem à telenovela Páginas da
Vida (TV Globo, 2006), escrita por Manoel Carlos; aos documentários Edifício
Master (2002), dirigido por Eduardo Coutinho e Ônibus 174, dirigido por José
Padilha e Felipe Lacerda, assim como ao reality show BBB8 - Big Brother Brasil
18
8 (TV Globo, 2008). Mais do que casos pontuais, os objetos de tais estudos
foram escolhidos como representativos do conjunto da obra de seus autores e
diretores, caso de ginas da Vida, Edifício Master e Ônibus 174, além do
impacto de um formato novo como o reality show, caso do Big Brother,
tomando-se uma de suas versões veiculadas no Brasil, o BBB8.
Na obra de Manoel Carlos, dedicada a integrar ficção e realidade, ou
seja, a construir a simulação do mundo vivido na TV, a telenovela Páginas da
Vida foi escolhida por empregar, entre outras estratégias para obter esse efeito,
com relatos de pessoas reais e anônimas sobre experiências de vida. Tendo
em vista que os recursos da entrevista e da coleta de depoimentos são
amplamente utilizados pela etnografia, a reflexão sobre as diferentes
utilizações dadas à mesma atividade na telenovela e na pesquisa etnográfica
se torna valiosa.
O documentário Edifício Master também foi selecionado como amostra
da produção de seu criador, Eduardo Coutinho. Na obra desse diretor, ilustres
desconhecidos e as histórias por eles contadas se tornam os fios condutores
de filmes que falam, na verdade, sobre lugares, locais qualificados pelas
histórias e vivências que abrigam. Além disso, é de interesse para a pesquisa
analisar o processo de produção no Master, no qual Coutinho e sua equipe se
deslocam até o edifício e nele vivem por três semanas de forma semelhante à
empregada pelos etnógrafos que vão a campo e realizam a observação
participante.
o documentário Ônibus 174 foi escolhido por empregar o ponto de
vista do outro para contar uma história transmitida ao vivo pela TV de outra
forma. Além disso, a avaliação desse documentário como um dos melhores
filmes policiais brasileiros dos últimos tempos, expõe a construção da
simulação em grau avançado.
Uma vez que o gênero reality show se apropria da observação do
comportamento alheio, estrutura de linguagem cara à etnografia, e a
transforma em sucesso de público na televisão, a sua escolha também se torna
relevante para a pesquisa. Tal escolha significa compreender diferentes
19
aspectos da observação que se revelam em sistemas diversos, no caso, a
ciência e a televisão. E, por se tratar ao momento do reality show de maior
audiência e impacto na televisão, o Big Brother foi escolhido como estudo de
caso, em específico, uma das versões mais recentes veiculadas no Brasil, o
BBB8, uma vez que o programa no decorrer das várias temporadas tem
realizado diversas mudanças para agradar ao público.
A novela é o espelho mágico dos brasileiros. Reflete a nossa realidade.
Lauro César Muniz
A telenovela não é literatura nem subliteratura. É um produto industrial.
Glória Magadan
2
Páginas da Vida, a telenovela
2.1. Telenovela brasileira
A telenovela brasileira, apesar de suas origens e tradição
melodramáticas, comuns à produção de outros países da América Latina, no
decorrer do tempo, desenvolve-se de forma singular e procura avançar além do
sentimentalismo e romantismo, dramalhão e artificialismo que marcam o
melodrama. A experiência brasileira se expande e elabora formatos, em seu
interior, que a identificam de variadas formas, da comédia de costumes à
novela de época, incorpora elementos de linguagem que a projetam rumo à
intervenção e atrai o blico ao produzir obras cada vez mais fiéis ao mundo
vivido pelos telespectadores.
No início da telenovela diária no Brasil, esse efeito realístico é articulado
por diversas experiências que visam, do ponto de vista da linguagem, adaptar o
melodrama ao universo brasileiro pela identificação entre público e
personagens. Num primeiro momento, essa identificação leva à substituição de
cenários e figurinos que impregnavam o imaginário aristocrático, divulgado pelo
folhetim que se expandia através dos veículos impressos, por outros que
caracterizassem o repertório modernista:
[a telenovela] Antônio Maria [TV Tupi, 1968-1969], que não
teve um grande sucesso de audiência, também ilustra este
processo de aclimatação do melodrama no Brasil. Fiel ao
padrão folhetinesco, origem desconhecida do herói, relações
22
amorosas triangulares, polarização entre riqueza e pobreza, ela
procurava no entanto se adaptar ao panorama da vida urbana.
Os personagens do antigo folhetim, que reforçavam um
imaginário herdado da aristocracia (carruagens, reis, rainhas,
duques e condes) passam a circular pelas ruas de São Paulo,
agora de ônibus e automóvel, vestindo terno e gravata. (Ramos
e Borelli, 1989: 74)
A adequação de elementos de linguagem, como cenários e figurinos, ao
tempo presente, é acompanhada pela verossimilhança entre o enredo da
telenovela e a vida de seus telespectadores, o que obedece a objetivos de
mercado, entre os quais se destacam a obtenção de lucro e a ampliação da
audiência.
O testemunho de um supervisor de mídia da Colgate-Palmolive
[empresa patrocinadora que introduziu a telenovela diária no
Brasil] é interessante: “Compramos novelas estrangeiras, mas
essa compra pode ser arriscada pois muitas vezes a novela
tem muitos capítulos, sai bem cara e na hora de serem feitas
as adaptações, fica reduzida à metade, o que muito
prejuízo. Para escolher uma boa novela é preciso prestar
atenção nos seguintes itens: o enredo tem que ser realista,
plausível de acontecer com cada um dos espectadores, para
que melhor se identifiquem com os personagens; não se deve
apresentar problemas muito distantes, complicados ou
insolúveis”. (Mazzi apud Ramos e Borelli, 1989: 74-75)
Na indústria televisiva brasileira, a exemplo da soap opera nos Estados
Unidos e a radionovela no rádio, a telenovela “surge como uma narrativa
apropriada para ampliar o blico das emissoras” de TV (Ramos e Borelli,
1989: 58), o carro-chefe mais adequado para expandir o negócio da televisão.
E para fazer da telenovela um produto realmente atrativo, é preciso reformular
a linguagem que a estrutura nas diversas instâncias de produção, o que é
viabilizado pela criação e o fortalecimento de cnicas para exibir a vida como
ela é: o que acontece na tela acontece na vida real, o que acontece na vida
real é mostrado na tela. É uma reformulação pela simulação.
23
Assim, quando é lançada a telenovela Beto Rockfeller (TV Tupi, 1968-
1969), a busca pela fidedignidade, que já se encontra em andamento, explode.
Beto Rockfeller é considerada um marco no formato porque foi
a primeira novela a usar linguagem cotidiana coloquial e
cenários contemporâneos. Em um tempo em que muitas
novelas eram adaptadas de originais mexicanos, cubanos ou
argentinos e narravam histórias que aconteciam em tempos
e/ou lugares remotos, Beto Rockfeller introduziu a
temporalidade contemporânea e o cenário da cidade grande.
Escrita por Bráulio Pedroso, autor de teatro, sob argumento e
inspiração de Cassiano Gabus Mendes e dirigida por Lima
Duarte, a novela “pegou”. (Hamburger, 2005: 67-68)
Beto Rockfeller aproxima ainda mais o mundo vivido pelo blico do
mundo midiático na telenovela ao abandonar elementos da melhor tradição
melodramática. Com Beto, a fusão entre o mundo vivido pelo público e o
mundo construído na telinha brasileira transforma outros elementos de
linguagem, a telenovela substitui os diálogos rebuscados e formais pela
narrativa coloquial e cheia de gírias, troca as histórias desenvolvidas em
temporalidades longínquas pela atualidade e substitui os locais distantes e
exóticos pelo contexto da metrópole. E para fortalecer o ar de modernidade do
enredo, a novela também é a primeira a usar tomadas aéreas, além de renovar
a trilha sonora ao deixar de lado a sica orquestrada e colocar em seu lugar
sucessos pop da época.
Mas Beto ainda se distancia do melodrama ao apresentar o anti-herói
como personagem principal (Ramos e Borelli, 1989: 78), pois seu roteiro
conta a história de um malandro [interpretado por Luiz
Gustavo], um jovem de classe média-baixa, que trabalha como
vendedor em uma loja de sapatos da popular rua Teodoro
Sampaio e que se faz passar por milionário, como seu
sobrenome ironicamente sugere, para penetrar no reino da alta
sociedade. Beto trai sua namorada pobre com uma jovem
glamourosa e rica. Como jovem habitante de um bairro popular,
ele é um outsider quase um caipira que se envolve com
24
uma turma de jovens frequentadores da “fina” rua Augusta, usa
roupas, fala e faz coisas “modernas”. Motocicletas, carros
Mercedes Benz, cigarros, moda e penteados sinalizam o jeito
“moderno” e “liberado” de ser dos jovens personagens
(Hamburger, 2005: 68)
A reformulação das estruturas de linguagem da telenovela, um processo
de simulação que as emissoras brasileiras levarão adiante nos próximos anos,
surte o efeito mercadológico esperado, o formato conquista a audiência no
Brasil: do total de horas/audiência da programação nacional, em 1963, as
telenovelas representavam 2%, enquanto em 1969, significavam 18%
(Ramos e Borelli, 1989: 64). Além disso, com recursos tecnológicos e
financeiros importantes, a TV Globo, criada na década de 1960, irá se
especializar na produção de telenovelas e investir para criar um produto final
bem acabado, de alta qualidade que será até mesmo exportado para outros
países.
Grande parte desse sucesso se deve à busca pela verossimilhança, à
construção da simulação entre o que é exibido na telinha e o que é vivenciado
pelo público, uma mistura entre ficção e realidade que se trata, na verdade, da
elaboração e veiculação de metáforas e metonímias da realidade brasileira.
Desse modo, ao substituir cenários, figurinos, enredos, trilhas sonoras, formas
de falar e compor personagens por versões mais condizentes com a realidade
brasileira, a telenovela se utiliza da montagem por similaridade que a organiza
internamente e cria, nas relações internas ao sistema ou do ponto de vista de
um observador interior, metáforas da vida real. Nessas metáforas, a telenovela
sobrepõe ficção e realidade de modo a destacar pontos em comum, trata-se,
portanto, da montagem por similaridade que busca o pólo da semelhança.
Porém, ao mesmo tempo, a telenovela se relaciona externamente com a
vida real. Nesse nível, a telenovela é justaposta à vida diária e a contiguidade
entre esses dois sistemas, a ficção televisiva e a realidade cotidiana, contínua,
fluida. Dada a busca da telenovela pela semelhança, em sua organização
interna, a justaposição entre ela e a vida real não causa estranhamento ao
público, chega a assumir ares de naturalidade. Assim, a passagem de um
25
sistema para o outro é tênue, os sistemas se misturam e a telenovela se
transforma em parte da realidade, uma metonímia audiovisual do cotidiano do
telespectador.
Trata-se de um processo de simulação realizado com tanta propriedade
que o público de fato reconhece seu cotidiano no dia-a-dia dos personagens e
torna-se cúmplice da ficção, pois a similaridade transforma a vida na tela num
eco da vida real. Desse modo, telespectadores e personagens se tornam
parceiros.
Amigas, quase conselheiras, às vezes companheiras, quase
interlocutoras privilegiadas rompendo a solidão e o isolamento,
as personagens vivem uma vida em tudo semelhante à das
pessoas mergulhadas na concretude de suas rotinas diárias.
Umas e outras se habitam, trocam experiências e se
realimentam. (Motter, 1999: 29-30)
As origens dessa verossimilhança podem ser traçadas na etnografia,
cujo método de pesquisa, o todo etnográfico, disponibiliza suas estruturas
de linguagem na semiosfera e dialoga com outros sistemas de cultura, entre os
quais se encontram aqueles ligados à comunicação de massa. Quando
introduzidas nos sistemas de comunicação de massa, tais estruturas são
adaptadas à sua lógica de funcionamento, perdem a função que
desempenhavam no método etnográfico e assumem outra, estabelecida pelo
novo sistema, ou seja, contribuir para a conquista da credibilidade, alcançada
através da verossimilhança.
Assim, em seu desenvolvimento, a telenovela brasileira busca recursos
que imprimam credibilidade à sua produção de formas variadas, a
verossimilhança procura, por exemplo, identificar telespectador e personagem,
processo primordial para cativar e ampliar a audiência. Trata-se, a nível interno,
de uma metáfora, criada pela montagem por similaridade, pois o que o
personagem veste, usa, compra, fala e o modo como ele se comporta
corresponde analogicamente às atitudes do público na vida real.
26
Com o mesmo objetivo, a telenovela brasileira introduz, na rotina de
gravações, as externas, cenas gravadas fora do estúdio, muito comuns no
cinema. As externas o cenas que encarecem qualquer produção, pois
movimentam equipamento e pessoal, por vezes requerem aparelhagem
adequada e realizam intervenções nas áreas que servem de locação, mas a
sua utilização confere fidedignidade ao trabalho realizado, tanto que, hoje,
estão incorporadas às telenovelas globais como procedimento corriqueiro.
Em Pantanal (TV Manchete, 1990), uma apresentação mítica do
cotidiano rural brasileiro, as externas ganham destaque e criam cartões-postais
televisivos para exibir a beleza do pantanal brasileiro. Essa novela é marcada
pela iconicidade, explorada
pelo ritmo lento de edição, com longos planos gerais de
paisagens com pouca ação, sequências-clipes de canções
sertanejas, bem como pelo uso do nu feminino, elemento
presente na vinheta. A atmosfera mítica da apresentação da
novela contrasta com a vocação realista vigente no padrão
anterior. (Hamburger, 2005: 124-125)
É verdade, Pantanal contrasta com outras telenovelas ao exibir o Brasil
mítico, mas essa opção de produção não deixa de lado a identificação,
proposta pela telenovela em geral, entre a vida na telinha e a vida do público.
Pantanal segue a estratégia de preencher a tela com belas paisagens de um
país desconhecido por grande parte das pessoas que habitam a cidade grande,
mas que ainda é o seu país. Na verdade, a novela convida essas pessoas a
conhecerem sua própria terra através da janela indiscreta oferecida pela
telenovela. Para tanto, a novela oferece externas em abundância,
superdimensiona tais imagens, cria metáforas que sobrepõem a história vivida
pelo homem à história vivida pela natureza e elabora metonímias que tornam a
telenovela uma continuidade do imaginário brasileiro.
Na produção de Pantanal, a montagem por similaridade vai além de
adequações de cenários, figurinos e modos de compor os personagens da
27
ficção à vida real, a iconicidade materializa mitos fundadores do Brasil e das
Américas e permite à primeiridade invadir a tela.
A novela, como a letra da música afirma de maneira explícita,
valoriza um movimento de volta à natureza, “a redescoberta
das Américas 500 anos depois”, um movimento em direção à
“gente que fala a ngua das plantas e dos animais; gente que
sabe o caminho das águas, da terra e do céu”. (Hamburger,
2005: 124)
Há, porém, um traço realístico no interior dessa atmosfera mítica, uma
vez que a novela mostra o dia-a-dia da população rural, ou seja, em certa
medida, Pantanal exibe o Brasil tanto quanto as telenovelas que encenam a
vida urbana, mas se volta para o cotidiano de outra parcela da população
brasileira, aquela que habita o campo. No entanto, esse cotidiano real é
minimizado diante das simulações do imaginário brasileiro criadas pela novela,
nas quais o sonho e o anseio do território intocado, belo e farto, o mito do
Eldorado que se desenha no descobrimento se constroem como ícones que
preenchem a tela e invadem as casas de milhões de telespectadores.
Ao assistir Pantanal, cada brasileiro poderia redescobrir em si mesmo o
Brasil selvagem, rico e exótico que o país reconhece como identidade, a novela
é uma grande simulação do imaginário nacional, na qual a montagem por
similaridade justapõe ficção, imaginário e vida rural, uma interpretação do
Brasil destinada a disputar audiência.
A Manchete disputava o espaço conquistado pela concorrente,
de representação da nacionalidade, com uma interpretação
diferente do país que valorizava maravilhosas paisagens
bucólicas, mulheres sensuais, muitas vezes nuas, e o
misticismo. Ao Brasil “do futuro”, promovido pelos folhetins
eletrônicos produzidos pela Globo nos 20 anos anteriores, a
Manchete contrapunha uma nostalgia high-tech, em tons pós-
modernos, pelo Brasil do passado. Enquanto a Rede Globo
valorizava uma imagem do Brasil como país “desenvolvido”, a
28
emissora rival apelou para o Brasil exótico”. (Hamburger,
2005: 126-127)
Mas, no histórico da telenovela, os cenários das cenas gravadas em
estúdio também são modernizados, tornam-se mais e mais fiéis aos ambientes
que desejam reproduzir. Ao apresentarem a metrópole, esses cenários
compõem a vitrine da modernidade diante dos telespectadores, é assim que a
vinheta de abertura da novela Belíssima (TV Globo, 2005-2006) mostra em
primeiro plano uma linda mulher que se exibe para o blico, mas também
revela a cidade como pano de fundo. Na composição das duas imagens, a
belíssima mulher que se expõe é incorporada à belíssima cidade.
O mesmo ocorre com figurino, maquiagem, cortes de cabelo e produtos
usados pelos personagens, a telenovela passa a lançar moda e não apenas
exibir a vida real, mas a influenciá-la pelo merchandising. A pulseira-anel da
personagem Jade, protagonista de O Clone (TV Globo, 2001-2002) e
representante do mundo árabe, por exemplo, foi sucesso de vendas entre os
vendedores ambulantes da cidade de São Paulo durante a exibição da novela.
Também como estratégia de marketing, o início das vendas de sabão em pó,
da marca Omo, é mostrado na regravação de O Profeta (TV Globo, 2006-
2007).
Ainda com o critério de gerar verossimilhança, ao mostrar personagens
provenientes de outras culturas, a telenovela inclui elementos que costumam
distingui-las dentre as demais. É o caso da dança do ventre que identifica os
árabes em O Clone, os trajes dos ciganos em Explode Coração (TV Globo,
1995-1996) e o sotaque dos italianos em Terra Nostra (TV Globo, 1999-2000).
A novela se transforma na janela pela qual o público vislumbra o outro, janela
que modeliza imagens etnográficas na esfera midiática. Assim, a telenovela
opera com flashes de outros modos de vida.
Quanto a telenovelas como Terra Nostra, é importante esclarecer que a
adequação da telenovela brasileira ao contemporâneo não significa deixar de
exibir por completo enredos que transcorram em outras temporalidades. Na
29
verdade, temporalidades distantes são retomadas na telenovela e dão origem à
telenovela de época, no entanto, o temporalidades que se referem à História
brasileira. Em Terra Nostra, por exemplo, ao lado da trama central, o amor
entre Matteo, encenado por Thiago Lacerda e Giuliana, vivida por Ana Paula
Arósio, é mostrada a imigração italiana entre o final do século XIX e o início do
século XX, que substitui a mão-de-obra escrava nas fazendas de café do
interior do Estado de São Paulo.
A telenovela de época mantém a verossimilhança da narrativa diante da
vida real de tal modo que seus elementos de linguagem também são
modelizados pela montagem por similaridade e a relação entre a ficção e a
realidade ocorre por justaposição, como se uma fosse o prolongamento da
outra. Esse processo determina a probabilidade de que os acontecimentos
exibidos na tela possam ter acontecido de fato ou sejam sugeridos
imaginariamente enquanto espelho do mundo para o público. Além disso, a
telenovela de época acrescenta algo importante para conquistar a
fidedignidade inerente à sua forma de simulação: a reconstituição histórica.
Essa forma de telenovela situa a narrativa no passado, mas trabalha essa
temporalidade de tal modo que elementos de linguagem como cenários,
figurinos e dicção dos atores, dentre outros, sejam extremamente fiéis ao
período histórico retratado.
O formato telenovela de época constrói metáforas que simulam
temporalidades históricas, muito detalhadas visualmente, pois procuram ser
fiéis ao período que retratam para persuadir o público de que se trata
realmente de outro tempo e gerar continuidade entre a representação e a
época a qual se referem de modo a criar a simulação. Portanto, a busca pela
verossimilhança determina, na telenovela de época, uma modelização
específica de elementos de linguagem, destinada à restauração de um período
histórico, na televisão, com riqueza de detalhes num processo similar ao
cinema épico. Daí muitas vezes esse subformato ser anunciado por seus
produtores como uma megaprodução, dados os investimentos financeiros
necessários e as pesquisas acuradas para realizá-lo.
30
Na verdade, em toda a história da telenovela brasileira, a busca pela
verossimilhança tece variadas modelizações que se mostram na adaptação do
melodrama ao universo brasileiro, levam à reformulação de cenários, figurinos,
maquiagem, cortes de cabelo e forma de falar dos atores e determinam a
incorporação das externas na rotina de gravações. São modelizações que
propiciam a construção de uma linguagem própria da telenovela no Brasil e
contribuem para diferenciá-la de quaisquer outros programas de televisão, pois
organizam os alicerces que a caracterizam como formato televisivo.
O efeito espelho entre a ficção e a realidade é obtido, nessas
modelizações internas ao sistema, pela montagem por similaridade, nas quais
os elementos de linguagem do formato telenovela são organizados de tal
maneira que o cotidiano construído na tela se transforma no reflexo do
cotidiano vivenciado pelo telespectador. Desse modo, a vida midiática se
transforma numa extensão natural da vida real e as fronteiras entre a criação
televisiva e a vida real deixam de ser distinguidas com clareza, pois a
justaposição entre ambas, que têm suas semelhanças exacerbadas, oculta
suas bordas. Quanto mais indistintas essas fronteiras, mais o telespectador
reconhece a vida real na telenovela e deposita a sua confiança no que é por
ela veiculado.
Esse processo ocorre amesmo quando as referências ao dia-a-dia do
público são realizadas como paródia, o que tem caracterizado as telenovelas
globais no horário das 19 horas e constituem a comédia de costumes. É o caso
da telenovela Que Rei Sou Eu? (TV Globo, 1989), que exibe a situação política
de um reino imaginário europeu, Avilan, em 1786, três anos antes da
Revolução Francesa. Avilan representa o Brasil e a época na qual o enredo se
passa, as transformações políticas ocorridas no país com a abertura política e
a eleição direta de um presidente civil após vários anos de ditadura.
Que Rei Sou Eu? faz referências à História do Brasil ao parodiar
episódios marcantes como a morte de Tancredo Neves, representada na trama
pela morte do rei Petrus II. Além disso, a telenovela também se refere a
acontecimentos que se tornaram recorrentes na vida brasileira como a
corrupção em Brasília e o mau funcionamento das coisas, esse último
31
parodiado com a guilhotina de Avilan, importada da Alemanha, mas que nunca
consegue guilhotinar ninguém porque não funciona direito, a sua lâmina
sempre pára na metade do caminho.
Em entrevistas à Marília Sluyter-Beltrão (1993), no período de julho a
agosto de 1989, enquanto a novela era transmitida, telespectadores da
comunidade do Sapé, no nordeste brasileiro, reconheceram Que Rei Sou Eu?
como espelho cômico da situação política brasileira.
This argument that the telenovela showed the reality, the
corruption, of the Brazilian government was also expressed by
Dr. Roberto:
The castle represents the country, especially the class leading
the country, the dominant power. The meeting of the counselors
is a criticism of the situation of Brazil today. I think the court
counselors are the ministers and they show all the corruption
that is going on.
Tereza started the same opinion:
Avilan’s castle and the Palace of the Planalto (President’s
Palace) are the same. Everyone in general knows that the
wage policy going on in the castle is for real, as it is in Brazil,
and it even embarasses me. The counselors only think about
themselves and we compare their behavior with certain
ministers, don’t we? They spoke of the money that was in
Switzerland (the money was stolen from the bank by a court
counselor) and that would be good if it happened to those from
here also (in reference to Brazilian ministers who also have
money in the banks in Switzerland). The reality of our lives is
the same. (Sluyter-Beltrão, 1993: 73-74)
Para o entrevistado José Paulo, Que Rei Sou Eu?, por se tratar do
formato telenovela, mostra a corrupção melhor até do que o noticiário:
Interviewer: Why do you think the telenovela is more real than
the news?
José Paulo: Well, the telenovela makes a simulation. The news,
if it showed the reality, would show the pure reality and they
32
would not do that. The news would not show the corruption so
openly like that. In the news, they are an accomplice to that
stuff (corruption) and they do take some personal advantage
from it. (Sluyter-Beltrão, 1993: 73)
Que Rei Sou Eu? mostra mais uma modelização do processo de
verossimilhança, entre o mundo vivido pelo público e o mundo exibido na
telinha, estabelecido pela telenovela brasileira. Direcionada por simulações
diversas, a verossimilhança proposta pela telenovela se materializa como eco
entre esses dois cotidianos, o que repercute como credibilidade e consequente
audiência para as emissoras de TV. Enquanto parte integrante da indústria
cultural, a telenovela brasileira, que procura se colocar em primeiro lugar na
preferência do público com essa estratégia de refletir a vida como ela é, realiza
modelizações variadas durante o seu desenvolvimento, tendo em vista uma
necessidade constante de assegurar mercado. Que Rei Sou Eu? representa
mais uma modelização que atende a esse objetivo e caracteriza a comédia de
costumes.
Se Beto Rockfeller pode ser compreendido como metáfora da
modernidade, Pantanal, metáfora do imaginário brasileiro e Terra Nostra,
metáfora da imigração italiana, Que Rei Sou Eu? pode ser considerada
metáfora dos hábitos, costumes e conjuntura política dos brasileiros. Em todos
esses casos, a montagem ocorre por similaridade, na qual a telenovela procura
aproximar a vida real e a vida exibida na tela ao apontar as semelhanças entre
ambas. E, enquanto recepção, todas essas telenovelas se configuram como
metonímias da realidade brasileira ao constituírem prolongamentos dessa
realidade.
A busca constante por credibilidade também determina, a partir da
década de 1990, mais um caminho na montagem da telenovela. Vários autores
demonstram a consciência de que, por um lado, o formato espelha o dia-a-dia
brasileiro, mas por outro, intervém no cotidiano do público. A partir de então,
esses autores buscam o que tem sido denominado por eles como novela
educativa (Ruy Barbosa apud Motter, 1999: 34-35) e procuram consolidar ainda
33
mais a verossimilhança ao entremear, na ficção, a realidade de fatos ocorridos
no país. Esse amálgama ficção-realidade é intensificado em referências
explícitas sobre o mundo vivido na fala de personagens como Helena,
personagem de Regina Duarte em Por Amor (TV Globo, 1997-1998), quando
comenta o desabamento do edifício Palace II “quando o irmão vai se mudar
para um apartamento no Rio de Janeiro e em reunião de trabalho na empresa
construtora do marido de Branca” (Motter, 1999: 147).
O processo que visa relacionar realidade e ficção também leva à
inserção de depoimentos de pessoas reais no meio da trama, o que ocorre com
os relatos de ex-viciados em drogas veiculados em O Clone. Com fundo negro,
em tom confessional, ex-viciados falam “sobre sua experiência dramática de
decadência até a recuperação” (Hamburger, 2005: 134), eles não aparecem
por inteiro, são exibidas apenas partes de seus corpos (Hamburger, 2005:
135), o que alude, na televisão, à cnica empregada pelo telejornalismo para
preservar o anonimato de fontes que requerem sigilo sobre sua identidade.
Nesse caso, apesar das semelhanças entre as experiências de Mel,
personagem de Débora Falabella, viciada em drogas em O Clone e as
vivências dos ex-viciados em drogas na vida real, o processo de montagem
explicita a diferença entre a ficção e a realidade ao realçar audiovisualmente a
última. O depoimento dos ex-viciados é exibido com fundo negro, seu
enquadramento veicula fragmentos de corpos, a fala de cada entrevistado
assume o caráter da revelação de um segredo. Por sua vez, a ficção encenada
pelos atores é transmitida sem fundo negro, o enquadramento exibe a imagem
total das personagens e a fala de cada uma é aberta.
Essa urdidura se revela, ainda, nas imagens das mães de crianças
desaparecidas no Rio de Janeiro em Explode Coração, são cenas que inspiram
a formação do grupo de mães da Praça da que buscam crianças
desaparecidas em São Paulo. E, além disso, fazem a citação de fatos como a
Chacina da Candelária no Rio de Janeiro e o movimento das Mães da Praça de
Maio na Argentina:
34
Explode Coração, de autoria de Glória Perez, que foi ao ar em
1995, abriu espaço para mães divulgarem cartazes com fotos
de filhos desaparecidos. A função “mural de aviso” tinha como
cenário as escadarias da Igreja da Candelária no Centro do Rio
de Janeiro. A junção de imagens de mães e crianças
desaparecidas naquele cenário em particular gerou múltiplas
referências. A novela aludia a mais um evento de repercussão
ocorrido em 1992: a chamada Chacina da Candelária, quando
policiais militares assassinaram meninos de rua em frente
àquela mesma igreja. A imagem de mães em busca de seus
filhos em praça pública também remetia às Mães da Praça de
Maio, na Argentina dos anos de violência militar. (Hamburger,
2005: 134)
Essa é a novela de intervenção (Hamburger, 2005: 131-135), através da
qual têm sido deflagradas verdadeiras campanhas nacionais de
conscientização, em um misto de ação afirmativa e prestação de serviço”
(Hamburger, 2003: E10). Assim, Glória Perez procura conscientizar os
telespectadores a respeito da necessidade do transplante de órgãos em De
Corpo e Alma (TV Globo, 1992-1993), Benedito Ruy Barbosa torna o MST
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra amplamente conhecido em O
Rei do Gado (TV Globo, 1996-1997) e Manoel Carlos, ao exibir a cena da bala
perdida, discute a violência urbana em Mulheres Apaixonadas (TV Globo,
2003).
Por esse caráter instrutivo, a telenovela de intervenção também costuma
ser apresentada como novela educativa, aquela que, além de entreter,
conscientiza e educa o telespectador. É interessante notar como a estratégia
que associa entretenimento e formação educacional se vale de um instante de
repouso, relaxamento mental do público, no qual ele se encontra
desguarnecido pela emoção.
E quando chega no final da novela, se não fica um residual
lançado, algo produtivo que tenha valido a pena seu esforço, é
como contar um conto da carochinha, uma história de amor...
Eu venho tentando fazer isso desde 1971, quando fiz a
primeira novela educativa, usar a telenovela como instrumento
de educação também. Porque eu percebo uma coisa: o
telespectador quando está vendo uma novela na televisão, fica
35
desarmado pela emoção, ele entra na emoção da trama e
quando você encontra ele desarmado assim pode jogar
elementos educativos dentro da trama porque ele assimila
muito bem. (Ruy Barbosa apud Motter, 1999: 34-35)
A emoção é a chave que abre as portas para a persuasão. Enquanto o
público se emociona, a telenovela de intervenção aconselha, convence e induz
pontos de vista, ao mesmo tempo em que refreia e reprime modos de pensar
diferentes daqueles que veicula. Disfarçada como produto educativo, essa
telenovela transmite raciocínios em linguagem audiovisual que visam alterar o
comportamento, provocar condutas tidas como nobres, mas que nem por isso
deixam de atender a uma espécie de engenharia social. Portanto, as idéias
exibidas na telenovela de intervenção até podem ser qualificadas como
campanhas sociais por seus autores, mas visam, na verdade, a alcançar
objetivos pré-estabelecidos, procedimentos considerados desejáveis
socialmente.
Para tanto, a conquista da credibilidade pela telenovela e pelo sistema
de comunicação que a veicula, a televisão, é fundamental. Essa credibilidade
pode ser alcançada pelo fortalecimento dos vínculos entre a TV e o público, o
que pode ser feito através da aproximação entre o mundo midiático, exibido na
telinha e o mundo vivido, uma vez que o público tende a identificar a sua vida
com o que é transmitido. Tal estratégia leva a televisão a ultrapassar sua autor-
referenciação em direção à heterorreferenciação (Luhmann, 2005), a TV vai
além da centralização em si mesma, enquanto meio puramente técnico e
operacional, para se derramar no cotidiano do público. Trata-se de uma
dinâmica eficiente que confere legitimidade à televisão e capta a atenção do
telespectador.
É nesse contexto de heterorreferenciação que a introdução de histórias
de vida de pessoas anônimas se faz presente. A exemplo de suas
antecessoras, a telenovela de intervenção faz uso da montagem por
similaridade que busca o pólo da semelhança e elabora metáforas a nível
interno, afinal, a performance dos atores continua a ser montada dessa forma.
36
Inclusive quando os atores encenam fatos reais, caso da mãe que dá à luz um
bebê para que a placenta salve a vida de seu irmão. Em Laços de Família (TV
Globo, 2000-01), a personagem Helena, representada por Vera Fischer, diante
da leucemia da filha Camila, vivida por Carolina Dieckmann, e da falta de
doadores compatíveis para realizar o transplante de medula óssea, procede
dessa maneira.
No entanto, a telenovela de intervenção também passa a utilizar a
montagem por contiguidade quando justapõe, ao texto da performance dos
atores, textos de outra natureza, caso de depoimentos e imagens, histórias de
vida de pessoas anônimas. Essas histórias são textos ricos em indicialidade,
metonímias da vida real que trazem consigo a autoridade e o prestígio do
testemunho, o que as torna muito úteis para influenciar a opinião pública.
Ao mesmo tempo, se o capítulo do dia for considerado como um texto
amplo que comporta a performance dos atores e as histórias de vida de
anônimos, a presença da montagem por similaridade que busca o pólo do
contraste, pois é realizada uma intervenção no digo desse texto. A
intervenção é realizada de modo a substituir, em parte do tempo destinado
para a transmissão integral do capítulo, a performance dos atores pelas
histórias de vida.
É importante considerar que tornar as histórias de vida de anônimos
uma parte do capítulo exige a adaptação do telespectador à mudança de
código, tanto é verdade que a utilização desse recurso, ao final do capítulo
diário de Páginas da Vida (TV Globo, 2006-07), no princípio baixou os índices
de audiência:
Os depoimentos exibidos no minuto final de "Páginas da Vida"
têm derrubado a audiência da novela das oito da Globo em até
sete pontos no Ibope, o que significa um "megazapping"
coletivo de quase 400 mil domicílios na Grande São Paulo em
menos de 60 segundos.
Foi o que ocorreu no dia 12, uma quarta, quando foi ao ar o
terceiro capítulo. Naquele dia, "Páginas" caiu de 52,8 pontos
37
para 45,6 no último minuto – uma redução de 13,6%. (Folha de
São Paulo, 25.07.2006)
Páginas da Vida exibe depoimentos de anônimos sobre experiências
variadas que, no entanto, procuram enfatizar temas veiculados no enredo da
telenovela, casos da síndrome de down, anorexia, alcoolismo e
relacionamentos afetivos, dentre outros. Essas falas são mostradas ao final da
telenovela, em espaço próprio e audiovisualmente separado da ficção, mas que
dialoga com ela e, por vezes, a comenta e intensifica.
na telenovela O Clone, no meio do enredo, ex-viciados relatam sua
trajetória no universo das drogas e levam ao conhecimento do telespectador
trechos de suas vidas. Assim como os ex-viciados compartilham experiências
no espaço fechado de entidades que se dedicam à sua recuperação, eles
passam a compartilhá-las em rede nacional através da telenovela.
Em ambas as novelas, a veiculação de histórias de vida procura revestir
a telenovela brasileira de credibilidade ao aproximar ficção e realidade, afinal,
são histórias próprias de um método científico, o método etnográfico. Como
telenovelas de intervenção, O Clone e Páginas da Vida assumem abertamente
a sua pretensão de influenciar a opinião pública a respeito do que veiculam. Tal
posicionamento, que admite o propósito deliberado de formar opinião na
telenovela, vale-se das idéias de educação e conscientização.
Com tão nobres propósitos, não mais hesitação em unir, na
telenovela, sequências da ficção, dadas pela performance dos atores a
sequências do mundo vivido, tidas como amostras recolhidas segundo o
método etnográfico que, na TV, se dissolve e é reduzido a mero mecanismo
para atestar a veracidade do que é veiculado. Na montagem desses dois tipos
de sequências, é transmitida a moral da história, ou melhor, a moral da
telenovela que deve intervir, formar opinião e persuadir o público sobre o
politicamente correto.
Na relação entre a vida midiática e a vida real, a utilização de histórias
de vida de anônimos no texto da telenovela contribui para a elaboração de
38
metonímias, a parte pelo todo, nas quais cada imagem ou depoimento da vida
real não representa apenas a vida completa ou a biografia do anônimo que o
fornece, mas atua como espelho do mundo. A exibição de fragmentos da vida
de pessoas reais na telinha legitima o projeto da telenovela brasileira de exibir
a vida como ela é, como se o houvesse lentes que a refratassem, apenas
espelhos que a refletissem.
Os depoimentos são índices que, ao serem inseridos na telenovela,
atuam como verdadeiras provas de veracidade do que é exibido na ficção
diante da realidade. Desse modo, a credibilidade da telenovela passa a contar,
também, com a tessitura de índices que permite a persuasão do público.
um eco entre as narrativas coletadas no mundo vivido e as narrativas
construídas no mundo midiático, no qual as primeiras prestam serviço às
últimas.
2.2. Histórias de vida
O uso de histórias de vida de anônimos como método de pesquisa para
as ciências humanas tem se difundido amplamente nas últimas décadas, da
história oral à psicologia social, passando pela pedagogia. Contrapondo-se às
estatísticas e análises quantitativas de toda espécie, assim como ao
objetivismo e ao racionalismo que sustentaram o positivismo científico, essas
histórias conquistam espaço nos sistemas de comunicação de massa que
passam a exibi-las em diversos formatos com o objetivo de obter
verossimilhança e, desse modo, conquistar credibilidade.
Mas, se no âmbito das ciências humanas em geral, essas histórias têm
sido vistas como fontes de informação que, muitas vezes, suprem lacunas
deixadas por outras fontes, o que elas poderiam significar em particular na
esfera midiática? Nos sistemas de comunicação de massa, a atenção cada vez
maior dada a essas histórias indica a apropriação do método etnográfico, que
39
enfoca a subjetividade, a diversidade de experiências e o espaço do vivido,
com o objetivo de adentrar a intimidade do público.
Em essência, o método etnográfico aponta a multiplicidade do
comportamento humano ao captar algo além do raciocínio que padroniza a
experiência e exclui suas variações. No entanto, quando utilizado por sistemas
de comunicação de massa, caso da TV quanto a formatos como a telenovela, o
método por vezes se descaracterizado pelo abandono desse traço. Nesse
sentido, a telenovela inaugura uma estranha etnografia, pois desconsidera o
olhar que contempla a diversidade e privilegia a elaboração de modelos de
comportamento e pensamento. A telenovela constrói a identidade do público ao
apresentar-lhe padrões de conduta na vida diária ao seguir o seguinte
raciocínio o que acontece na novela pode acontecer com você.
Na verdade, o método etnográfico é uma janela indiscreta que a ciência
inaugura numa primeira fase com a observação destinada à pesquisa de povos
distantes e exóticos, mas que logo volta o seu interesse para a vida cotidiana
daquele outro mais próximo geográfica e existencialmente, algo similar ao que
ocorre com o protagonista de Janela Indiscreta (Hitchcock, 1954), o fotógrafo
com a perna engessada acompanha o cotidiano da vizinhança através da
janela de seu apartamento. É a partir desse olhar atento que a tudo espreita,
espiona e investiga minuciosamente que o todo etnográfico se desenvolve.
Para tanto, o etnógrafo questiona a rotina e indaga os indivíduos que a
realizam, “além de perseguir pessoas sutis com questões obtusas.” (Geertz,
1989: 20) para, ao final, realizar uma descrição da cultura pesquisada. Essa
descrição a nível macro é composta pela dissecação da vida de inúmeros
nativos em nível micro, cujas histórias pessoais constituem pequenos extratos
da cultura da qual fazem parte.
É assim que o método etnográfico guarda, em seu âmago, as
experiências, as trajetórias daqueles que fazem as culturas, um texto que não
se sujeita à repetição sistemática, ainda que conte com etapas usuais como
nascimento, morte, casamento, vida profissional e religiosa. Cada ser humano
pode ser considerado um texto em si mesmo, tanto o texto biológico que o
mapeamento genético revela, quanto aquele que se materializa como
40
existência coletiva e individual. Na diacronia, essa existência se transforma em
História, enquanto na sincronia, ela se concretiza como histórias de vida,
território investigado pelo método etnográfico.
Daí a relação indissociável entre os métodos etnográfico e histórias de
vida de pessoas anônimas, que se interpenetram e sustentam. As histórias de
vida alimentam a etnografia, conferem-lhe veracidade, fidedignidade e, em
contrapartida, o método etnográfico lhes fornece a visão microscópica.
Além disso, as histórias de vida de anônimos também são incorporadas
por outras disciplinas, influenciam outras áreas com o ponto de vista
microscópico inerente à etnografia. É assim que a etnografia dialoga com
outros campos de estudo e atualiza sua forma de trabalho em outras áreas do
conhecimento. Isto ocorre nos sistemas de comunicação de massa, caso da
televisão, rádio, cinema, Internet, dentre outros. Sistemas nos quais histórias
pessoais são tomadas como pormenores, fragmentos da rotina diária
recuperados dentre a avassaladora quantidade de informação gerada pela
modernidade.
As histórias de vida delineiam o espaço do vivido, o tempo da
experiência pessoal, na qual é possível acumular o saber que procede da
prática diária. Esse saber individual repousa na singularidade de cada ser
humano e não supre a experiência de outrem, ainda que possa ser
compartilhado como narrativa. A experiência, mesmo quando gerada pela
vivência de acontecimentos similares, caso de nascimento e morte, jamais se
repete de modo uniforme, idêntico sob todos os ângulos. Sem essa
uniformidade, a experiência de vida não pode ser reduzida ou simplificada com
vistas ao enquadramento em padrões pré-estabelecidos.
O método etnográfico é composto por fragmentos do cotidiano e supõe o
deslocamento da perspectiva macro de análise para o universo do pequeno,
diminuto, o mundo do detalhe. o pequenos pedaços do dia-a-dia coletados
aqui e ali que demonstram o fortalecimento da necessidade de incorporar
múltiplos pontos de vista, romper com o paradigma linear, unívoco, no qual um
grande narrador, um único narrador, investido de autoridade inquestionável,
41
determina a forma pela qual deve ocorrer a leitura, a análise do objeto e o lugar
do sujeito.
Ao atentar para o espaço do detalhe que reflete o individual, o particular,
as ciências humanas abrem uma janela para que as histórias de vida possam
ser consideradas um método de pesquisa tão válido quanto análises
matemáticas e contábeis, gráficos, tabelas, censos, enfim, o levantamento de
dados quantitativos de todo tipo. Mas esse enfoque dado ao pequeno, ao
espaço microscópico da vida diária e cotidiana que passa a influenciar as
ciências humanas e a manifestação midiática como um todo, nasce, na
verdade, com a perspectiva etnográfica. É o pensamento etnográfico que se
interessa pelo específico, irregular, por diferentes modos e maneiras de
vivenciar a rotina; é ele que busca inclusive microcosmos dentro da mesma
cultura e efetua uma análise qualitativa do objeto, procurando dimensioná-lo
em seu contexto e quebrar a padronização proposta pelos modelos
quantitativos de origem positivista.
Enquanto método, o chamado método etnográfico propõe procedimentos
de coleta de dados além da lógica do experimento, da pesquisa focada única e
exclusivamente em fatos mensuráveis e passíveis de recriação e repetição
sistemáticas em laboratório. Mas, se essa perspectiva pôde ser empregada
com sucesso nas ciências físicas, ela não se aplica ao estudo do
comportamento humano sem gerar distorções e comprometer seus resultados,
pois desconsidera que o comportamento é moldado pela interpretação, pelo
sentido, pela representação, numa palavra, pela cultura, enquanto conjunto de
significados:
Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal
amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu,
assumo a cultura como sendo essas teias e a sua análise;
portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis,
mas como uma ciência interpretativa, à procura do significado.
É justamente uma explicação que eu procuro, ao construir
expressões sociais enigmáticas na sua superfície. (Geertz,
1989: 4)
42
A natureza microscópica da etnografia pretende alcançar as minúcias de
cada sistema de cultura e examinar suas teias de significados, considerando o
contexto no qual o pormenor e o singular se fazem presentes e verificando as
relações que determinado detalhe trava com o sistema de cultura no qual se
inserido. Então, cada pormenor pode ser compreendido como um texto em si
mesmo, pode ser lido e interpretado enquanto texto de cultura, porém, sem
perder de vista o contexto, ou seja, o sistema de cultura que integra. Nessa
dinâmica, o contexto de fato é fundamental, afinal,
“Contexto” está ligado a outra noção indefinida chamada
“significado”. Sem contexto, palavras e ações não têm qualquer
significado. Isso é verdade não somente para a comunicação
humana através de palavras, mas também para todos os tipos
de comunicação, de todo processo mental, de toda mente,
inclusive daquela que diz à anêmona-do-mar como crescer e à
ameba o que fazer a seguir. (Bateson, 1986: 23)
E todo sistema tanto atua num contexto, quanto gera contexto. Na
verdade, o sistema de cultura é o próprio contexto no qual estruturas de
linguagem transitam e dialogam entre si para tecer textos diversos. Portanto,
nenhuma análise que envolva sistemas de cultura pode ser considerada com
seriedade sem levar em conta o contexto, no qual tais sistemas atuam, estão
imersos, assim como o contexto por eles gerado. Considerar o contexto é, na
verdade, uma operação que leva à homologia entre mente e natureza
(Bateson, 1986), o que atualiza, na ciência, a idéia da unidade entre os
diversos sistemas culturais construídos pelo ser humano e a biosfera. Seja
como for, não há dúvida: o método etnográfico toca a história pessoal, a
história de vida do indivíduo, na qual se encontram imersos o cotidiano, os
fazeres e saberes do dia-a-dia pelos quais tanto se interessam os etnógrafos.
Assim como a festa, a cantiga, o cerimonial, ritos e rituais, a história de vida
também se configura como texto da cultura, um texto resultante da experiência
singular, reflexo do contexto que o inscreve, imagem da cultura na qual tem
lugar.
43
2.3. Televisão
Em sistemas de comunicação de massa, como a televisão e o formato
telenovela, as histórias de vida, enquanto pormenores e fragmentos do dia-a-
dia passam a servir, por vezes, como argumentos para um discurso pré-
determinado, a elaboração de um conceito, um valor moral. Trata-se da
veiculação da idéia feita, do lugar-comum frequentemente empregado por
vários formatos televisivos com vistas à comunicação instantânea, à
transmissão de conceitos e valores que não costumam ser questionados, dado
o seu convencionalismo, conceitos e valores com os quais o senso comum
tende a concordar. É assim que a construção da espacialidade midiática se
mistura ao espaço do vivido.
As “idéias feitas” de que fala Flaubert são idéias aceitas por
todo mundo, banais, convencionais, comuns; mas são também
idéias que, quando as aceitamos, já estão aceitas, de sorte que
o problema da recepção não se coloca. (...) A comunicação é
instantânea porque, em certo sentido, ela não existe. Ou é
apenas aparente. A troca de lugares-comuns é uma
comunicação sem outro conteúdo que não o fato mesmo da
comunicação. Os “lugares-comuns” que desempenham um
papel enorme na conversação cotidiana têm a virtude de que
todo mundo pode admiti-los e admiti-los instantaneamente: por
sua banalidade, são comuns ao emissor e ao receptor. Ao
contrário, o pensamento é, por definição, subversivo: deve
começar por desmontar as “idéias feitas” e deve em seguida
demonstrar. (Bourdieu, 1997: 40-41)
Em geral, a televisão “Está perfeitamente ajustada às estruturas mentais
do público” (Bourdieu, 1997: 64), ou seja, ao senso comum e não busca nada
mais do que preservar tais estruturas, utilizando-se de lugares-comuns para
construir uma forma de comunicação rápida, fugaz, essencialmente fática. Uma
forma de comunicação que evita despertar o senso crítico, oferecer outros
modos de considerar quaisquer questões, uma forma de comunicação que
evita a complexidade a todo custo e simplifica a existência humana, expondo-a
44
como uma série de clichês. Eis a comunicação instantânea que tanto visa a
economia de tempo, caríssimo na TV, quanto impossibilita aprofundar o
raciocínio e transmite conceitos e valores convencionais para evitar a polêmica,
a discussão, o debate e reiterar uma espécie de moralismo. Portanto, em
grande parte dos formatos televisivos, a troca de lugares-comuns não ocorre
de forma casual, fortuita, ela é construída cuidadosamente por dispositivos,
elementos de montagem.
Montagem, nesse sentido, significa a organização das partículas
recortadas de um texto amplo, a vida humana, o cotidiano, que se pulveriza e
dilui na espacialidade midiática. É assim que trechos tomados da vida
particular, singular, da experiência vivida por esse ou aquele indivíduo em
específico são separados, descolados de seu contexto originário e aderidos à
outra realidade, o mundo midiático. Porém, nessa dinâmica, a montagem pode
alterar o sentido, o significado primeiro da experiência.
Enquanto a etnografia se propõe a descrever a experiência particular,
específica de certo agrupamento de seres humanos, indivíduos ligados por
laços diversos e, desse modo, busca preservar o significado original da
experiência em seu contexto originário para que a sua análise possua
credibilidade científica, os sistemas de comunicação possuem outras
preocupações. Adequar o que foi captado à sua própria dinâmica de
funcionamento, é uma delas, independente das alterações que possam ocorrer
entre o significado primeiro e o significado construído pelo sistema. Na
verdade, cada sistema possui uma coerência interna e os elementos que lhe
são apresentados são por ele moldados de acordo com sua lógica de trabalho.
Grande parte dos formatos televisivos, por exemplo, que buscam entreter e
veicular o lugar-comum, transformam a maior parte da matéria-prima que lhe é
apresentada em passatempo, diversão e troca de idéias feitas.
É verdade que, como defende Arlindo Machado em A televisão levada a
sério (2005), são encontrados programas de TV que rompem com esse
panorama, entre os quais o autor indica trinta como os “mais importantes da
história da televisão(2005: 31-66), além de relacionar, na mesma obra, vários
outros programas que não devem ser esquecidos. Como exemplos de
45
programação de alta qualidade, entre os trinta que fizeram história, Machado
aponta a TV Dante The Inferno (Grã-Bretanha, 1989), Dekalog (Polônia,
1988) e Ubu Roi ou Les Polonais (França, 1965) na TV mundial e Auto da
Compadecida (Brasil, 1998), Retrospectiva do Ano (Brasil, 1988) e Hitler
(Brasil, 1987) na TV brasileira.
Bons programas de televisão também podem ser encontrados, no Brasil,
nas minisséries que contam com profundidade dramática e alta qualidade
estética. Esse formato televisivo traz para a telinha obras consagradas da
literatura brasileira, caso de Grande Sertão: Veredas (TV Globo, 1985),
adaptação do romance de Guimarães Rosa; exibe momentos relevantes da
História do Brasil como em Amazônia, de Galvez a Chico Mendes (TV Globo,
2007) que mostra o povoamento do Acre e, em certas oportunidades, aborda a
literatura e a História simultaneamente, dinâmica d’A Casa das Sete Mulheres
(TV Globo, 2003), adaptação do romance de Letícia Wierzchowski, que conta a
História da Revolução Farroupilha (1835-1845) do ponto de vista feminino. Há,
também, minisséries que vão além, caso de Hoje é Dia de Maria (TV Globo,
2005) que une os universos do teatro, do circo e da farsa na tela para contar
uma bula: a pequena Maria, encenada por Carolina de Oliveira, órfã de mãe,
foge das maldades da madrasta em busca das franjas do mar. Numa atmosfera
de sonho, durante o caminho, ela vai encontrar a cultura popular brasileira.
Contudo, apesar tão bons exemplos de TV de alta qualidade que
comprovam a diversidade televisiva, a maior parte da programação, no Brasil e
no mundo, ainda se destina a gerar passatempo, diversão e comportamento
através do lugar-comum. Na telenovela, carro-chefe da televisão brasileira,
observa-se esses propósitos quando fragmentos da vida real são montados
junto à performance dos atores, tendo em vista educar e conscientizar o
público sobre o politicamente correto através de passatempo, diversão e
transmissão de lugares-comuns.
Nesse panorama, elementos de linguagem provenientes de outros
sistemas de cultura são transportados para a telenovela e adaptados à sua
lógica de funcionamento para que possam fazer sentido nesse novo contexto.
Portanto, quando o método etnográfico é utilizado pela telenovela, o processo
46
de montagem o modeliza de tal modo que passe a veicular apenas o
passatempo, a diversão e o lugar-comum, o que altera suas características
iniciais e coloca um método científico a serviço da comunicação de massa.
2.4. Páginas da Vida
Exibida em horário nobre, às 21 horas, na Rede Globo de Televisão,
Páginas da Vida é uma telenovela de Manoel Carlos, escrita por Manoel Carlos
e Fausto Galvão, com direção geral de Jayme Monjardim e Fabrício Mamberti.
O primeiro capítulo foi ao ar em 10 de julho de 2006 e a exibição do último
capítulo ocorreu em 2 de março de 2007, totalizando 203 capítulos. Como
telenovela das 21 horas, conta com um elenco de estrelas, entre as quais,
Regina Duarte que vive Helena, médica obstetra com 25 anos de profissão que
adota a menina Clara, portadora da síndrome de down e personagem de Joana
Morcazel.
A trama principal da telenovela se desenvolve justamente nesse núcleo:
Nanda, a jovem mãe de Clara, encenada por Fernanda Vasconcellos fica
grávida de gêmeos na Holanda. Mas, ao retornar para o Brasil, é atropelada e
seu parto realizado às pressas pela médica Helena. Seus dois filhos, Clara e
Francisco, sobrevivem, mas Nanda não consegue se salvar. É Helena quem
informa a mãe de Nanda, Marta, vivida por Lília Cabral sobre o falecimento da
filha e apresenta-lhe o diagnóstico de síndrome de down para Clara. Ao
falecer, Nanda não mantinha mais contato com o, o pai dos gêmeos que
desaparece sem assumir a paternidade das crianças, portanto, os
responsáveis legais pelos bebês passam a ser os avós maternos, Marta e Alex,
personagem de Marcos Caruso. Porém, em segredo, enquanto o marido Alex
se recupera de um enfarte, Marta cede a guarda de Clara para Helena, ela
acredita que uma criança com síndrome de down seria um problema em sua
vida. Para dissimular a sua atitude, Marta conta ao marido, assim como a
amigos e demais familiares que a menina Clara também havia morrido no
47
parto. A trama principal irá se desenvolver com o retorno do arrependido Léo
em busca dos filhos, enquanto Helena, ao adotar Clara, irá esclarecer o público
sobre a síndrome de down e a necessidade de inclusão social de seus
portadores.
Como telenovela brasileira, ginas da Vida conta com inúmeros outros
núcleos que aqui e ali assumem o papel principal no capítulo do dia e falam
sobre alcoolismo, relacionamentos afetivos, família, anorexia, adoção e
preconceito racial, assuntos que a sociedade brasileira tem procurado debater
no momento. Há, porém, uma peculiaridade em Páginas da Vida, a inserção de
fragmentos de experiências reais, histórias de vida de pessoas anônimas na
telenovela, o que ocorre basicamente a partir de duas modelizações: em meio
à trama, quando atores desconhecidos representam a si mesmos e ao final do
capítulo, quando são exibidos depoimentos de anônimos que relatam vivências
pessoais.
Entre aqueles que representam a si mesmos está a atriz Julia Carrera,
um rosto desconhecido na televisão brasileira que interpreta a personagem
Tatiana. Fonoaudióloga, Tatiana é procurada por Helena para auxiliar no
desenvolvimento de Clara e surge pontualmente em alguns capítulos
desenvolvendo esse trabalho, mas ela está grávida e solicita à Helena que faça
o seu parto, o que leva a personagem a aparecer, em outros capítulos,
realizando exames e conversando sobre parto normal. Porém, se na ficção, a
personagem Tatiana está grávida, na vida real, a atriz Julia Carrera também
está e o parto fictício de Tatiana na telenovela irá se confundir com o parto real
de Julia na Casa de Saúde São José, no Rio de Janeiro.
No capítulo 148 de Páginas da Vida, que vai ao ar em 28.12.2006, pela
primeira vez na teledramaturgia brasileira, o parto real de uma atriz é exibido
em meio à trama na qual ela atua. Um fragmento da história de Julia Carrera se
transforma na história da personagem por ela encenada, a sua filha Valentina
nasce simultaneamente na ficção e na realidade e confere credibilidade à
telenovela brasileira. A serviço da verossimilhança, Julia e Valentina, além do
papai Bruce Gomlevsky, ator que representa na novela o marido de Tatiana,
também chamado Bruce, encenam a si mesmos. É uma modelização que
48
opera através da montagem por similaridade que busca o pólo da semelhança,
na qual o parto exibido na tela é creditado à personagem Tatiana, mas conta
com um realismo que somente o parto de Julia poderia lhe conferir.
Mas quando são veiculados, ao final de cada capítulo, depoimentos de
pessoas anônimas sobre experiências reais, a modelização é outra. Em geral,
os depoimentos mostrados abordam os mesmos temas encenados pelos
atores, abrindo um diálogo entre a ficção televisiva e a realidade cotidiana. Na
verdade, são construídos dentro da telenovela dois espaços que muitas vezes
confrontam as atitudes dos personagens e as ações dos entrevistados. O
primeiro espaço é dado pela performance dos atores ao interpretarem seus
personagens, enquanto o segundo, dedicado aos depoimentos, é gerado pela
câmera constantemente fechada em meio primeiro plano e close-up, às vezes
contando também com o plano médio, mas sempre com a imagem emoldurada
no alto e no rodapé da tela por faixas coloridas, cheias de palavras manuscritas
que fazem lembrar as páginas de um diário escrito à mão. Trata-se de um
artifício que procura distinguir do ponto de vista visual o plano do real e o plano
da ficção.
É interessante notar que as palavras manuscritas são uma referência ao
termo páginas que faz parte do título da telenovela e, inseridas nas molduras
no alto e no rodapé da tela, delimitam um espaço que representa visualmente
os depoimentos de pessoas anônimas como textos do diário da vida, termos
finais do título. Cada história relatada é, portanto, tomada como uma página
desse diário, no qual os acontecimentos do cotidiano e as experiências
vivenciadas por cada entrevistado na vida real são inscritos como texto. Da
mesma forma, cada trama vivida pelos personagens também integra esse
diário, o que pode ser visto com clareza no capítulo de encerramento quando
um clip exibe os acontecimentos finais como páginas de um diário. Num único
trecho, há palavras, quando a personagem Telminha, vivida por Grazielli
Massafera, anuncia sua gravidez; em todos os demais, as imagens são
editadas apenas com a música tema da telenovela, Wave de Tom Jobim, pois
as palavras se tornam desnecessárias.
49
O recurso do diário expõe outra modelização que também objetiva tornar
a telenovela, do ponto de vista de seus produtores, “o espelho mágico dos
brasileiros” (Muniz, 2000), aquele que reflete a vida como ela é. Para tanto, a
telenovela é fabricada como “um produto industrial” (Magadan, 2000) que
busca obter credibilidade e consequente audiência, pois segue a gica de
mercado. Nessa linha de produção, o processo de montagem ocupa lugar de
destaque e transmite ao telespectador a sensação de realismo entre o que ele
na tela e o que vivencia no dia-a-dia. É assim que o espaço da ficção,
representado pela performance dos atores e o espaço do real, representado
pelos depoimentos de pessoas anônimas são confrontados em Páginas da
Vida e constituem dois textos que interagem, dialogam e geram o discurso
pretensamente educativo da telenovela de intervenção.
Assim, quando Marta coloca a neta com síndrome de down para adoção,
surge, ao final do capítulo 27, exibido em 9.8.2006, a mulher anônima que
conta ter se casado com um homem que tinha três filhas, entre elas, uma
menina com síndrome de down e, muito diferente da personagem, essa mulher
assume os cuidados com a criança:
É, eu casei com 16 anos, tive duas filhas, né? O meu
relacionamento durou um certo tempo, eu me separei e refiz
minha vida com outro homem. E esse homem tinha três filhas,
na qual uma delas tinha síndrome de down. Como é que você
pode pegar um problema desse? que pra mim, ela não é
um problema. Eu era uma mulher muito agitada, ansiosa e com
a Letícia, eu tive que parar, andar um pouquinho na marcha a
ré pra poder acompanhar o ritmo dela.
Quando a Letícia chega numa festinha, algumas mães
recolhem seus filhos, isso é muito triste, isso é deprimente, as
pessoas ainda pensarem que uma criança porque vim... nós
temos cinco dedos na mão e os cinco são diferentes, então,
todos nós somos diferentes e a gente tem que aprender a lidar
com essas diferenças.
Mesmo não parindo um filho especial, a gente pode amá-lo
com todo o amor da mesma forma que a gente ama os nossos
que saíram de dentro da gente.
50
Ao final do depoimento, Letícia surge e abraça a mulher anônima.
Na mesma semana, no capítulo 29, que foi ao ar em 11.8.2006, aparece
na tela uma menina com síndrome de down e sotaque americano que o seu
relato pessoal sobre tudo o que pode fazer e o quanto gosta de respeito:
Eu nasceu aqui no Rio de Janeiro, eu fiquei no Califórnia, no
Estados Unidos, muito tempo porque eu mora toda a minha
vida. Oh, e eu tinha uma ginástica que eu fiz muito tempo e
natação e eu ganhei três medal do natação e basquete e eu
gosto muito da astrologia e tocar bateria e eu toquei bateria
muitos anos.
Sente muito triste que alguém me encarar e fi... com olhos fixos
em mim e eu não gosto disso, não. Eu sou igual a todo mundo,
eu acho muito bom. Se alguém não respeita pra mim, eu senti
muito triste, mas quando pessoas respeita, eu acho muito bom
isso e faz muito bem no meu coração.
Eu tô feliz, eu estou feliz da vida. Eu gosto de ficar aqui no Rio.
A montagem por similaridade que busca o pólo do contraste exibe,
primeiro, a trama na qual Marta doa a neta com necessidades especiais e, logo
a seguir, depoimentos que mostram a atitude contrária na vida real e a
capacidade de ter uma vida normal pelos portadores da síndrome de down
gera um confronto, um conflito e condena a opção da personagem. É assim
que os relatos da vida real passam a atuar como a voz da consciência, porta-
vozes da moral e dos bons costumes. A montagem atua como a tela desse
confronto, organizado essencialmente pela construção de um espaço dedicado
à ficção e outro à realidade.
Isso não quer dizer que a intenção dos narradores anônimos, ao
conceder suas entrevistas, tenha sido originalmente reprovar essa ou aquela
atitude de quem quer que seja. O que realiza a idéia da existência de um modo
politicamente correto de proceder diante da situação de ver-se responsável por
uma criança especial não é a fala dessas pessoas, pois os narradores apenas
relatam experiências pessoais, compartilham situações vivenciadas e pontos
51
de vista. O que condena a atitude de transferir a guarda da criança para outrem
é a montagem realizada pela televisão num processo que extrai um pequeno
trecho, uma ínfima parte da entrevista total concedida pelo narrador anônimo e
cola esse recorte num contexto bem diferente.
Seja como for, na telenovela, se a montagem por similaridade, no pólo
da semelhança, procura realçar as semelhanças entre a vida real e a vida
midiática com a adequação de cenários, figurinos e modos de compor os
personagens; a montagem por similaridade, no pólo do contraste, permite o
diálogo entre textos ricos em indicialidade, portanto, legitimados como
fragmentos da vida real e a ficção no interior de um texto mais amplo, o
capítulo do dia.
No entanto, nos dois casos, a fidedignidade entre o que é exibido na
telinha e o que ocorre no cotidiano do público se transforma em ferramenta
para conquistar credibilidade e disputar mercado.
2.5. Montar para conquistar credibilidade
A montagem na telenovela Páginas da Vida serve às funções da
comunicação de massa, ou seja, entretém enquanto reitera normas sociais e
procura convencer o público sobre a veracidade do pensamento que constrói.
Então, os valores morais exibidos na telinha não provêm diretamente dos
entrevistados, mas fazem parte do senso comum, fortalecido pela atuação dos
profissionais da TV que seleciona, recorta e cola, monta trechos das falas
gravadas de modo a compor um discurso diferente do original. Afinal, ainda
que haja um esforço para que o conteúdo se mantenha, a própria natureza do
processo de montagem altera o que foi dito, ouvido e visto, pois a sua forma
de atuação, extrair fragmentos da vida e reorganizá-los na vida midiática, disso
se encarrega. Passa a existir, assim, um novo discurso que, muitas vezes,
aproveita os bons sentimentos demonstrados pelos narradores para compor
um coro à ordem estabelecida:
52
“Com bons sentimentos, dizia Gide, faz-se literatura”, mas,
com bons sentimentos, “faz-se índice de audiência”. Seria
preciso refletir sobre o moralismo das pessoas de televisão:
frequentemente cínicas, proferem palavras de um conformismo
moral absolutamente prodigioso. Nossos apresentadores de
jornais televisivos, nossos animadores de debates, nossos
comentaristas esportivos tornaram-se pequenos diretores de
consciência que se fazem, sem ter de forçar muito, os porta-
vozes de uma moral tipicamente pequeno-burguesa, que dizem
“o que se deve pensar” sobre o que chamam de “os problemas
de sociedade”, as agressões nos subúrbios ou a violência na
escola. A mesma coisa é verdade no domínio da arte e da
literatura: os mais conhecidos dos programas ditos literários
servem – e de maneira cada vez mais servil aos valores
estabelecidos, ao conformismo e ao academicismo, ou aos
valores do mercado. (Bourdieu, 1997: 64-65)
A montagem mediativa possui, em si mesma, um caráter conceitual e
ensaístico a partir do qual é possível a construção de idéias, a formulação de
modos de ver o mundo, conceitos e valores por quem dela se utiliza. Para
tanto, o processo inclui um movimento no eixo da seleção, no qual ocorre a
escolha de trechos específicos dentre tudo o que foi dito pelo narrador anônimo
durante a entrevista, um princípio que, na televisão em geral, está diretamente
ligado à busca do sensacional, do espetacular (Bourdieu, 1997: 25). Ou seja,
dentre tudo o que o narrador possa ter dito, o universo televisivo selecionará
justamente o que possa ser considerado formidável, exótico, algo capaz de
emocionar ou escandalizar, dificilmente algo capaz de levar à reflexão.
Tal montagem também inclui um movimento no eixo da combinação, no
qual os trechos selecionados são reunidos e estruturados numa certa
sucessão. Nos depoimentos de Páginas da Vida, assim como os trechos dos
relatos são encadeados entre si, eles também são alinhavados à performance
dos atores, o que gera uma sequência. E essa sequência, tanto na escolha dos
trechos que a compõem, quanto no encadeamento entre eles e em relação à
trama desenvolvida pelo autor da telenovela é a expressão de um pensamento.
Portanto, as operações de seleção e combinação não podem ser
consideradas aleatórias, mas realizadas de forma planejada. Tais operações
correspondem a etapas de feitura, fabricação de idéias em linguagem
53
audiovisual que, em ginas da Vida, alinhavam duas atitudes, expressões de
dois comportamentos possíveis: a atitude da personagem Marta e a atitude da
mulher na vida real. O contraste dessas duas atitudes cria um conflito, o
julgamento das partes envolvidas e transmite a mensagem de que a ação da
personagem é reprovável. Então, ao invés de apenas veicular a performance
do ator ou a fala de alguém do povo logo a seguir, o processo de montagem
confronta dois modos de encarar a realidade e veicula a opinião de que a
atitude tomada pela mulher na vida real é mais desejável do que a solução da
personagem.
É assim que a telenovela transforma histórias de vida em peças
publicitárias e deflagra uma campanha de conscientização específica sobre a
síndrome de down, campanha que funciona como ação de responsabilidade
social para a empresa que a produz e veicula, campanha que visa
desencadear um comportamento específico no público, o direcionamento, o
controle, efeito típico dos sistemas de comunicação de massa.
Porém, nem sempre o que aparece nesses recortes, fragmentos de
histórias de vida, exibe o politicamente correto. No depoimento que foi ao ar no
sábado, dia 15.7.2006, capítulo 6 de Páginas da Vida, uma senhora de 68
anos, que teve 17 filhos, posteriormente identificada pela imprensa como Nelly
da Conceição, descreve o seu primeiro orgasmo aos 45:
Esse negócio de, das pessoas dizer que tem que gozar junto,
mais no popular tem que gozar junto, que é isso que faz
neném, não sei que, é tudo mentira porque eu fiquei dos meus
14 aos meus 45 anos sem saber o que era isso, pra mim era
tudo normal, o homem terminava, eu terminava também.
que aos 45 anos eu ganhei, eu fazia coleção dos discos de
Roberto Carlos e eu ganhei um LP que tinha a música
“Côncavo e convexo”, não sei se saiu direito, “Côncavo e
convexo”, então, eu botei na vitrola, aquelas antiga e fui dormir.
E simplesmente, gente, quando eu acordei, eu estava com a
perna suspensa e a calcinha na mão e toda babada. foi que
eu comecei comentar com as amigas, falou assim “pôxa,
você gozou”, aí que eu vim saber o que era o gozo.
Moral da história, eu sou uma pessoa com 68 anos que o
homem pra mim não faz falta, eu mesmo dou o meu jeito.
54
A polêmica gerada pela exibição desse depoimento levou a emissora de
televisão a emitir nota oficial, na qual avaliava ter ocorrido excesso e afirmava
que os depoimentos passariam a ser acompanhados de perto por seu Controle
de Qualidade:
A TV Globo reconhece que houve um excesso e a direção da
empresa solicitou que, a partir de agora, todos os depoimentos
sejam acompanhados de perto pela área de Controle de
Qualidade. (Folha de São Paulo, 17.7.2006)
Na vida privada, o depoimento de Nelly, moradora do município de o
João de Meriti, no estado do Rio de Janeiro, levou-a a perder o emprego de
oito anos como empregada doméstica e banuma casa em Laranjeiras, no
município do Rio de Janeiro, 13 dias após a sua veiculação na telenovela. Em
29.8.2006, durante entrevista no programa A tarde é sua da RedeTV!, Nelly
falou sobre o seu depoimento e consequente desemprego, ela foi contratada
no ar pela escola de samba Imperatriz Leopoldinense.
“Eu tinha uma vida muito tranquila, nunca dependi de ninguém,
agora perdi o emprego por causa disso e minhas contas estão
todas atrasadas, nunca passei por isso. Eu dei um depoimento
de uma hora e eles exibiram essa parte, eu não sabia que iria
dar essa confusão”, disse ela. (O fuxico, 29.8.2006)
Desde então, os depoimentos sobre relacionamentos e sexualidade dão
lugar àqueles que se detêm sobre outras edificantes páginas da vida dos
personagens: histórias que retratam o pai que perde o filho num acidente dois
dias depois do Natal, depoimento que vai ao ar no capítulo 23, em 4.8.2006,
quando a personagem Nanda, vivida pela atriz Fernanda Vasconcellos, morre
após ser atropelada. Da mesma forma, são veiculados os relatos da mãe que
perde o filho com Aids no capítulo 34, em 17.8.2006 e da e que fala sobre a
quimioterapia do filho pequeno e sua cura no capítulo 36, no dia 19.8.2006,
assim como o relato do homem que fala sobre alcoolismo no capítulo 43, em
55
26.8.2006, quando o personagem Bira, interpretado por Eduardo Lago, é
encontrado bêbado na rua pela filha Marina, papel da atriz Marjorie Estiano.
Daí, ao lado da campanha para combater o preconceito contra a síndrome de
down, enredo central da telenovela, surgem outras campanhas como a
conscientização sobre os riscos do alcoolismo.
Conscientização que, nas vozes de narradores anônimos, pode ser
traduzida como comentários que lembram as ponderações do antigo coro
grego. Assim como a trama da telenovela se desenvolve na tela, tanto quanto o
enredo da peça era exibido no teatro grego, anônimos contam experiências
pessoais de modo a conscientizar o público sobre o comportamento mais
adequado diante de determinadas questões sociais, psicológicas, morais. Na
telenovela, existe um movimento similar à atuação do coro grego que faz
intervenções durante a encenação da peça, tendo como intenção comentar as
ações de seus protagonistas.
Em Páginas da Vida, uma das campanhas de conscientização que
causam maior impacto na opinião pública é, sem vida, a exibição da
violência urbana. No capítulo 200, que vai ao ar no dia 27.02.2007, os atores
representam o incêndio de um ônibus de viagem por bandidos, no qual a
personagem Gabriela, vivida por Carolina Oliveira, consegue se salvar, mas
sua mãe Angélica, encenada por Cláudia Mauro, o sai a tempo do ônibus e
morre queimada. Trata-se da simulação de um acontecimento real, no dia
28.12.2006, o ônibus 6011 da Viação Itapemirim, que vai de Cachoeiro do
Itapemirim, no Espírito Santo, para São Paulo, é abordado por assaltantes ao
passar pelo Rio de Janeiro. Os criminosos incendeiam o veículo com os
passageiros dentro, são vários mortos e feridos. A violência choca o Brasil.
Ao final do capítulo, é exibido o depoimento dos pais de João Hélio
Fernandes, o menino de seis anos morto durante um assalto no Rio de Janeiro.
É mais um caso que comove o país.
56
Mãe: No dia 7 de fevereiro, eu fui levar os meus dois filhos pra
fazer evangelização, como toda quarta-feira. Eu fui sozinha
porque o meu marido não podia ir comigo. Na volta, eu fui
abordada e, nesse assalto, arrastaram o meu filho, preso ao
cinto de segurança, por 7 quilômetros.
Eu queria ter poderes, poderes de super-herói mesmo, de
poder levantar vôo e tirar meu filho daquela situação. Eu corri,
corri com a minha filha, mas eu sabia que ali o fim dele já tava
traçado.
Pai: No dia que aconteceu essa brutalidade, durante o dia foi
um dia até atípico, né? Ele fazia futebol de salão e, nesse dia,
eu tive que resolver um problema exatamente do lado do clube.
Como eu tava aguardando uma pessoa chegar, eu resolvi
assisti-lo.
Ele marcou um gol durante o jogo, ele fez um gol, até o
professor falou que pela primeira vez ele fez um gol durante o
jogo, né?
E eu tenho certeza que naquele momento que eu vibrei junto
com ele, que eu participei, todo pai que estiver me assistindo
agora vai sentindo a minha dor, como é acompanhar o filho
no futebol, vibrar com ele, participar, ser pai acima de tudo.
Então, esse momento vai ficar, vai ficar marcado, como todos
os outros, pra sempre. Essa despedida. Essa foi a nossa
despedida. Através de um crime brutal.
Pai, abraçado à mãe: Eu queria saber quantos mais Joões vão
ser preciso ser sacrificados para que o país mude, quantos,
quantos precisam? E aí, não vamos fazer nada diante de tanta
violência?
57
Em silêncio, entra a foto do pequeno João lio. Na sequência, a
vinheta de fechamento e os créditos de Páginas da Vida, nesse dia, também
são exibidos em silêncio, o que funciona como um instante de reflexão para o
telespectador responder à pergunta do pai: “E , o vamos fazer nada diante
de tanta violência?” Na primeira pessoa do plural, o questionamento inclui o
público na ação. O depoimento não se limita mais a retratar um acontecimento
real, mas conclama a sociedade a posicionar-se diante do fato, ele intervém na
realidade, a pergunta do pai ecoa a manchete de capa da Revista Veja de
14.02.2007: ...não vamos fazer nada?”
Os pais de João Hélio não são somente os protagonistas de uma
tragédia pessoal, mas espelham a tragédia do povo brasileiro que convive com
a violência cada vez mais intensa no dia-a-dia. Por isso, a sua aparição na
telenovela do horário nobre, poucos dias após a morte do filho, toca a
consciência de quem os assiste. É o coro grego no lugar do entretenimento.
É claro que o assassinato brutal de uma criança de seis anos, arrastada
pelas ruas do Rio de Janeiro ao ficar presa no cinto de segurança sem
conseguir sair do carro da mãe, roubado por bandidos, choca qualquer ser
humano. Ainda mais quando se sabe que os criminosos chegaram a dirigir em
ziguezague para se livrar do menino, mesmo quando motoristas e motociclistas
buzinavam e piscavam os faróis para alertá-los que a criança era puxada pelo
carro (O Estado de São Paulo, 09.02.2007).
No entanto, é possível verificar como a montagem canaliza a indignação
do país diante de acontecimentos como a queima do ônibus 6011 e o caso
João Hélio para veicular a opinião de quem faz a telenovela. Exibir, no mesmo
capítulo, a simulação dos acontecimentos com o ônibus 6011 e, logo a seguir,
a fala dos pais de João Hélio é, sem dúvida, uma forma de veicular um
pensamento, uma opinião, o que não gera obrigatoriamente conscientização,
mas um desabafo que nem sempre é seguido das ações necessárias para que
a situação de violência no país seja alterada.
Aliás, a campanha contra a violência, veiculada em Páginas da Vida, vai
além desse capítulo. Na semana em que o testemunho dos pais de João Hélio
58
é exibido, a campanha começa no capítulo anterior, veiculado em
26.02.2007, quando a queima do ônibus é anunciada nas cenas dos próximos
capítulos e, logo a seguir, é exibido o depoimento do noivo de uma passageira
ferida no episódio:
Eu sou o namorado da Beatriz Furtado, a modelo que tava no
ônibus que foi incendiado no dia 28 de dezembro.
A gente já tá junto há oito anos.
Colocaram fogo na entrada do ônibus, as pessoas não sabiam
como sair do ônibus, que o ônibus era lacrado porque tinha ar
condicionado.
Ela conseguiu sair pela janela a hora que a janela estourou
com o calor do fogo. E ela, nessa altura do campeonato,
tinha se queimado bastante e muita gente, inclusive não
conseguiu sair do ônibus que já estava tomado por fumaça.
Quando ela chegou no hospital, os médicos disseram que ela
tinha 30% de chance de sobrevivência.
Ela queimou muito as mãos, queimou um pouco o rosto,
queimou bastante as costas.
É surreal ouvir ela contando essa história, parece uma cena de
terrorismo. É surpreendente saber que isso aconteceu aqui no
Brasil.
Eu fiquei pasmo com a falta de assistência do Estado, a falta
de assistência, a falta de comprometimento da própria empresa
de ônibus.
Ela me pergunta muito, inclusive, e agora como que vai ser,
como que vai ser sair na rua?
Ela se recuperando, graças a Deus, acredito que em breve
ela vai em casa e a gente vai se casando em setembro,
tendo filhos e realizando tudo que a gente sempre quis e
acredito que os nossos filhos vão, vão encontrar um Brasil
muito mais justo, muito menos violento e com muita paz.
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Já no capítulo 201, imediatamente posterior, veiculado em 28.02.2007, é
transmitido o depoimento da mãe do rapaz trabalhador, morto por policiais ao
sair de casa à noite para pegar um táxi e socorrer o pai, outro acontecimento
que choca e comove o Brasil:
Fui casada 37 anos, tive três filhos. Quando a mais nova tava
com 14 anos, eu tive o Bruno. Quando o pai ficou doente,
sempre o Bruno é que ia.
No dia 3 de novembro, quando foi pro lado de umas meio-dia, o
pai começou a passar mal de novo, pegou o pai no colo, que a
minha casa é segundo andar, desceu, botou na cadeira de
roda. Falou “Mãe, vai levando ele a que eu vou pegar um
táxi.” Ele pegou a moto, naquilo que ele tava chamando o táxi
que o táxi parou, que ele pediu que era pra socorrer o pai,
surgiu lá um... uns policial que não deram tempo dele, ele
ainda falou “Eu vim buscar socorro pro meu pai!”, ainda
levantou os braços pra cima, ele tava de shorts, tava até
descalço. A polícia não quis, disse que pensou que ele tava
sequestrando o táxi. Deram logo um tiro, um no queixo e outro
no peito. E ele ainda levantou a mão “Tô socorrendo o meu
pai!”
Quando eles vieram e que olharam o que que eles tinha feito,
já era tarde demais.
E o meu marido também morreu quase nas mesmas horas.
Ele ainda falou assim “Mãe, meu pai tá doente, olha, eu é que
vou tomar conta da senhora. Eu disse ‘É, agora é só eu e você,
você e eu.’”
Ao serem montados na telenovela, no contexto da reconstituição da
queima do ônibus 6011, esses três depoimentos espelham acontecimentos
específicos da vida real, atestam o panorama de violência das grandes cidades
60
brasileiras, assim como a revolta do público diante de crueldades como a morte
do menino João Hélio. Ecoando a manchete de capa da Veja, a mãe de Bruno
pergunta “Será que isso vai continuar? Hoje foi com meu filho, amanhã vai ser
com outros. Quando que isso vai terminar?”, ela quer saber se ninguém vai
fazer nada. Mas quem faz essa pergunta é, na verdade, a telenovela, pois é
nesse formato televisivo que esses depoimentos e a encenação do acontecido
com o ônibus 6011 são veiculados.
A telenovela exibe, portanto, o pedido por justiça da população brasileira
na vida real, pois em todos os casos a resposta das autoridades parece
demorar demais e a punição soa muito branda. Um dos bandidos que
arrastaram João Hélio, no asfalto por 7 quilômetros na zona norte do Rio de
Janeiro, era menor de idade e sua pena, educativa, seria muito suave diante de
seus atos. Mas a telenovela também persuade ao montar depoimentos como
esses, pois, ainda que a violência urbana o diminua, a sua exibição nesses
termos conquista credibilidade.
2.6. A biografia da tela
Os depoimentos de Páginas da Vida abordam o microcosmo do
cotidiano, terreno fértil para a telenovela que se preocupa em contar a pequena
história diária, na qual o público reconhece muito mais a sua realidade do que
nos programas jornalísticos:
enquanto os noticiários se enchem de fantasia tecnológica e se
espetacularizam a si próprios, é nas telenovelas e programas
dramáticos que o país se relata e se deixa ver. Enquanto, nos
noticiários, o vedetismo político ou farsesco se faz passar por
realidade escamoteada pela empobrecida e dramática
realidade que vivemos –, nas telenovelas, nas dramatizações
semanais, é onde se faz possível representar a história (com
minúscula) do que acontece, suas misturas de pesadelo com
milagres, as hibridações de sua transformação e de seus
anacronismos, as ortodoxias de sua modernização e os
61
desvios de sua modernidade. (Martín-Barbero e Rey, 2004:
161, grifo dos autores)
Portanto, na televisão, é justamente na telenovela, onde fragmentos do
dia-a-dia costumam ser encontrados, ainda que de modo ficcionalizado, que os
depoimentos de pessoas anônimas levam o método etnográfico a ser
modelizado com intensidade, uma vez que tanto a telenovela, quanto a
etnografia buscam a vida diária e a pequena história.
De qualquer modo e a despeito de questões morais, preconceito e
conscientização sobre problemas sociais e dificuldades pessoais; do ponto de
vista da linguagem televisiva, o que se observa na montagem entre a
performance dos personagens e os depoimentos é a formulação de opiniões e
conceitos, opiniões e conceitos que, apoiados em trechos de histórias de vida
deslocadas e utilizadas como argumentos, criam a atmosfera ideal para a
transmissão de uma escala de valores. Consideradas em seus respectivos
contextos, a performance dos atores e as histórias de vida dos narradores
anônimos podem ser compreendidas como objetos isolados com significados
pontuais, mas, ao serem combinadas, ou melhor, montadas, m suas
fronteiras diluídas e geram um produto, um resultado final que nada mais é do
que persuasão:
A questão é que a cópula (talvez fosse melhor dizer a
combinação) de dois hieróglifos da série mais simples não
deve ser considerada como uma soma deles e sim como seu
produto, isto é, como um valor de outra dimensão, de outro
grau; cada um deles, separadamente, corresponde a um
objeto, a um fato, mas sua combinação corresponde a um
conceito. (...) Sim, é exatamente isto que fazemos no cinema,
combinando tomadas que pintam, de significado singelo e
conteúdo neutro para formar contextos e séries intelectuais.
(Eisenstein, 2000: 151, grifos do autor)
Nos primeiros capítulos de Páginas da Vida, as fronteiras entre o final do
capítulo e o início do depoimento eram demarcadas por uma vinheta
62
puramente sonora: o início da música Wave de Tom Jobim, Vou te contar...,
soava no intervalo entre esses dois espaços. No decorrer da telenovela, essa
vinheta foi aprimorada e passou a contar com uma disposição de quadros que
inclui a última cena do capítulo do dia e as cenas do próximo capítulo. Desse
modo, o espaço da ficção e o espaço da realidade também foram delimitados
visualmente, porém, ainda assim, as fronteiras entre os dois espaços ainda não
são claras à recepção que, muitas vezes, termina por realizar uma fusão entre
ambos, elaborando-os em linearidade.
Ao brincar com pedaços de filme, descobriram uma
propriedade do brinquedo que os deixou atônitos por muitos
anos. Esta propriedade consiste no fato de que dois pedaços
de filme de qualquer tipo, colocados juntos, inevitavelmente
criam um novo conceito, uma nova qualidade, que surge da
justaposição. Esta não é, de modo algum, uma característica
peculiar do cinema, mas um fenômeno encontrado sempre que
lidamos com a justaposição de dois fatos, dois fenômenos, dois
objetos. Estamos acostumados a fazer, quase que
automaticamente, uma síntese dedutiva definida e óbvia
quando quaisquer objetos isolados são colocados à nossa
frente lado a lado. (Eisenstein, 2002: 14)
Esta tendência a juntar numa unidade dois ou mais objetos ou
qualidades independentes é muito forte, mesmo no caso de
palavras isoladas que caracterizam diferentes aspectos de um
único fenômeno. (Eisenstein, 2002: 15)
Esse traço da recepção é utilizado na montagem para interligar tomadas,
cenas, sequências e dar ritmo ao audiovisual, enquanto são construídos
conceitos, pensamentos. Em Páginas da Vida, as fronteiras entre a
performance dos atores e o depoimento dos narradores anônimos, mesmo com
a introdução e o aprimoramento da vinheta de passagem, são mescladas pela
recepção e geram um argumento difícil de ser refutado. Um argumento em
linguagem audiovisual que por vezes é justificado como fórmula pedagógica
para conscientização do blico sobre problemas sociais e experiências
cotidianas. Mas, num sistema de comunicação de massa como a televisão,
com fortes características persuasivas, a abordagem possivelmente
63
pedagógica se perde, revelando-se mais uma vez como controle e
direcionamento da opinião pública.
É assim que, no contexto televisivo, as histórias de vida, recortadas da
vida cotidiana e traduzidas em vida midiática, deixam de biografar seus
narradores e passam a biografar a própria TV. Elas migram da pequena
história de pessoas anônimas para a Grande História dos mecanismos de
funcionamento da televisão. Ao combinar e montar a pequena história no
horário nobre da telenovela, a televisão se autobiografa e revela o modo de
pensar e agir dos sistemas de comunicação de massa, sistemas que buscam a
persuasão através da montagem o mais atraente possível.
Miss Lejeune escreveu, no London Observer, que Janela Indiscreta era um
filme “horrível”, porque havia um sujeito que olhava o tempo todo pela janela.
Acho que não deveria ter escrito que era horrível. Sim, o homem era um
voyeur, mas será que não somos todos voyeurs?
Alfred Hitchcock
3
Big Brother Brasil, o reality show
3.1. Reality TV
A televisão vai adentrar a sua casa, vai revirar a sua vida em busca de
algo para exibir na telinha. Logo mais, à noite, no horário nobre, a sua história
de vida, a sua imagem será transmitida a milhões de pessoas e todo mundo vai
saber por um instante, ainda que pequeno, ainda que passageiro, quem é
você. Todo mundo vai saber por alguns minutos que você existe, a sua família
existe, a sua casa consta no mapa. Todo mundo vai saber que você é real e
mais, que a TV é para valer, ela transmite o real ao mostrar gente como a
gente, o nosso cotidiano. Portanto, a televisão pode ser digna de crédito,
merece a nossa atenção e precisa ser assistida.
Esse é o objetivo que move grande parte da produção televisiva, tornar o
sistema de comunicação chamado televisão confiável aos olhos do público
para, como mídia doméstica que adentra a moradia de tantos telespectadores
diariamente, não ter seus aparelhos desligados ou relegados ao esquecimento.
Então, é preciso encontrar lugar na vida privada e rotineira dos
telespectadores, é necessário se aproximar do público, criar laços, estabelecer
uma relação íntima e cotidiana com cada um para garantir audiência e realizar-
se como sistema de comunicação. Essa é uma exigência própria do sistema,
uma necessidade que o caracteriza e configura enquanto meio.
Nesse contexto, são inúmeras as estratégias de aproximação criadas
pela televisão. Se, em certa etapa de seu desenvolvimento, ela procurou
66
espelhar o cotidiano vivenciado pelo blico, agora vai além, quer trazê-lo para
dentro da máquina, para o interior da programação como marca de veracidade.
Trata-se de uma estratégia na qual o referente, o mundo sensível e real, o
mundo do vivido se torna o grande protagonista da TV, ele é o personagem
principal e estrutura essa forma de televisão que tem sido denominada como
reality TV, a TV realidade.
A reality TV é uma variedade da programação factual popular que
influencia os mais diversos formatos televisivos. Embora o formato mais
associado à reality TV seja o reality show, ela não se restringe a ele e
transporta, para a programação em geral, estilos e cnicas que visam torná-la
mais e mais real. Daí a referencialização da produção televisiva como um todo,
pois se busca um efeito de máxima realidade no que é veiculado, o que leva à
simulação.
Além dos reality shows, são exemplos de reality TV na televisão
brasileira: Domingão do Faustão (TV Globo), Domingo Legal (Sbt) e programas
de auditório similares ao exibirem as pegadinhas, pois utilizam a câmera
escondida; Linha Direta (TV Globo) que reconstitui crimes que ocorreram na
vida real; Pânico na TV (Rede TV!) ao criar performances que intervêm em
acontecimentos reais; Casos de Família (Sbt), talkshow com pessoas
anônimas, parentes e amigos e coloca no ar a terapia em grupo; O Programa
da Márcia (TV Bandeirantes) ao colocar o polígrafo em cônjuges para
identificar traições conjugais; Páginas da Vida (TV Globo), telenovela que
insere depoimentos de pessoas comuns ao final de cada capítulo; Caldeirão do
Huck (TV Globo) ao reformar a casa ou recuperar o carro de alguém da vida
real; Retrato Falado, quadro do Fantástico (TV Globo), que reproduz com
humor as experiências de mulheres anônimas.
Dada essa diversidade de formatos que a reality TV tem contagiado,
dificuldades para enquadrá-la em determinada categoria:
The category of reality TV is commonly used to describe a
range of popular factual programming. There are a variety of
styles and techniques associated with reality TV, such as non-
67
professional actors, unscripted dialogue, surveillance footage,
hand-held cameras, seeing events unfold as they are
happening in front of the camera. However, the treatment of
“reality” in reality programming has changed as the genre has
developed over the past decade. In the early stages of the
genre, reality TV was associated with on-scene footage of law
and order, or emergency services. More recently, reality TV is
associated with anything and everything, from people to pets,
from birth to death. So, how do we categorise this diverse
genre? (Hill, 2007: 41)
O que caracteriza um programa ou quadro televisivo como reality TV não
é propriamente o seu formato, mas a utilização de elementos de linguagem que
enfatizam o referente e geram simulações que aproximam a ficção e a
realidade. Essa é a essência da reality TV, o destaque dado ao referente, o que
o coloca como a menina dos olhos da televisão. Enquanto outros modos de
fazer TV respeitam limites entre o mundo vivido e o mundo midiático, a reality
TV procura fundi-los.
O processo que enfatiza o referente e procura fundir os acontecimentos
exibidos na telinha e os acontecimentos da vida real, como se não houvesse
lentes que refratassem a realidade, apenas espelhos que a refletissem,
configura-se como simulação. E esse processo se estabelece como um
conjunto de técnicas e recursos empregados na produção televisiva que
incluem a câmera escondida; a participação de pessoas anônimas na
programação ao vivo; a inserção de depoimentos, entrevistas e imagens de
pessoas anônimas em programas e quadros geralmente associados à ficção; a
participação e a inserção de depoimentos, entrevistas e imagens de
celebridades que exploram o seu lado de pessoa comum; a reconstituição de
fatos reais; a exibição do antes-e-depois; a observação do cotidiano ou das
reações de pessoas reais; a intervenção em acontecimentos reais através de
performances; entre outros.
Por um lado, o processo de simulação se deve a fatores econômico-
financeiros: “Reality programming provides a cheap alternative to drama.” (Hill,
2007: 6). De fato, é mais barato produzir programas que contem com a
participação de pessoas anônimas do que celebridades, pois as primeiras se
68
dispõem a aparecer na TV amesmo sem receber qualquer remuneração ou,
quando muito, fazem-no em troca de um cachê simbólico diante das cifras
astronômicas pagas às estrelas de televisão. Também é mais econômico para
as emissoras utilizarem formatos que não requeiram cenários e figurinos
dispendiosos, assim como o trabalho de profissionais muito especializados,
caso dos roteiristas.
Por outro lado, é preciso considerar o interesse manifestado pelo
público, afinal, agradá-lo significa audiência. Há, realmente, um voyeurismo
midiático do telespectador, uma vontade de entrever pelos vãos das cortinas,
olhar pelas frestas de portas e janelas, observar a vida alheia através do
buraco da fechadura. É uma fascinação pelo outro que a TV tem canalizado na
programação diária, uma isca que prende a atenção do telespectador. Afinal, o
voyeurismo midiático é uma prática na qual o indivíduo encontra prazer na
observação da vida privada alheia.
No entanto, essa forma de voyeurismo se diferencia da prática voyeur
descrita pela psicologia, na qual o prazer, que o indivíduo encontra na
observação do outro, é sexual. A utilização televisiva instiga a curiosidade em
outro sentido, leva o indivíduo a buscar o que se passa na privacidade de
outras pessoas, outras casas, outros estilos de vida. Assim, são coletados
hábitos, histórias e comportamentos, formas de fazer e viver do outro que
prendem a atenção do público.
Mas tal utilização também indica o quanto a televisão é muito mais do
que a telinha que emite imagens do cotidiano para um público que as recebe
passivamente. Com a reality TV, a televisão revela outra face, o olho
superpoderoso que vasculha o que se passa no espaço da vida privada e
transporta o que encontra para o espaço da mídia. Então, a TV não opera
apenas como emissora da programação, mas ao mesmo tempo como
receptora, pois capta a vida diária do público enquanto texto vivido e lhe
devolve o que encontrou como texto midiático.
Ou seja, a TV se propõe a colher textos que fazem parte do mundo
vivido, desmontá-los, selecionar partes impregnadas de referencialidade e
69
utilizá-las para elaborar outros textos que irão compor a sua programação.
Nessa pretensão, ela faz de si mesma um texto que se estrutura pelo processo
de montagem, um texto que nada mais é do que a tradução entre o texto do
mundo vivido e o texto do mundo midiático. E essa modelização, operada pela
montagem, desorganiza o vivenciado e reorganiza-o novamente segundo a
linguagem televisiva.
A televisão atua como uma janela indiscreta, cuja vidraça se acomoda
na tela de cristal que capta a realidade e exibe o mundo da mídia. Um mundo
que traduz a vida cotidiana em espetáculo e expõe o espaço da vida privada de
milhares de anônimos a milhões de curiosos, no qual milhares de anônimos
representam milhões de curiosos, pois anônimos são curiosos e curiosos,
anônimos. Portanto, o público assiste na telinha a si mesmo, trata-se de uma
auto-curiosidade que cria um mundo capaz de conferir legitimidade à TV
enquanto sistema de comunicação.
Na verdade, nada mais adequado. Afinal, se a TV é uma mídia
doméstica, exibir a vida privada, o que se passa na esfera doméstica, torna-se
pauta obrigatória. Então, o espaço da vida privada, comumente preservado do
olhar de estranhos, funde-se ao espaço da vida pública para alcançar o
patamar de vedete televisiva, transforma-se em espaço privado-público e
passa a ser exibido como o carro-chefe da programação.
Mas o que é a exibição desse espaço em rede nacional de TV a não ser
a simulação em andamento? E o que é a simulação a não ser o diálogo entre
os sistemas de comunicação e a linguagem etnográfica?
Dados etnográficos são captados por câmeras superpoderosas que
devassam a privacidade alheia e são reconfigurados na telinha segundo outra
forma de conceber a realidade, a forma dos sistemas de comunicação. Há,
portanto, uma semiose entre os dados etnográficos quando utilizados pela
etnografia e os mesmos dados quando inseridos num sistema como a
televisão. o duas modelizações diferentes que respondem aos olhares da
etnografia e da comunicação, duas visões diferenciadas sobre o mundo.
70
Entrever pelos vãos das cortinas, olhar pelas frestas da janela, observar
através do buraco da fechadura são atos associados à dinâmica do processo
de referencialização. E são todos, sem exceção, atos invasivos, proibidos que
seduzem o público pela bisbilhotice. Assim se constrói o voyeurismo midiático,
que procura manter a atenção do público neste ou naquele texto de cultura,
tendo em vista a variedade absurda de opções e estímulos para mudar de
canal, abandonar o texto inicial e mergulhar em outros. É nesse panorama que
um dos traços mais significativos da reality TV, a exibição da privacidade,
ocupa espaço na mídia.
uma mudança profunda na noção de privacidade dos tempos atuais.
Formada no culo XIX e preservada durante grande parte do século XX, a
idéia de privacidade nesse período se apóia no resguardo da vida doméstica a
todo custo, daí, evitar a exposição em público do que se passa na vida privada
se tornar um verdadeiro preceito a ser seguido. Mas, no final do século XX e
início do XXI, essa visão é alterada, pois o reconhecimento social passa a ser
obtido pela visibilidade. É preciso se fazer ver para ser considerado e, para
tanto, não há mais qualquer pudor em expor os detalhes da vida privada,
particularidades da vida pessoal. A privacidade deixa a clausura e é colocada à
vista de todos. Quanto maior a exposição da vida privada, maior a visibilidade.
Quanto maior a visibilidade, maior a inserção social.
E, numa cultura onde os sistemas de comunicação possuem papel
preponderante, onde encontrar a maior visibilidade possível se não na mídia?
Numa era onde a comunicação modeliza o mundo, o maior reconhecimento
possível só pode ser encontrado no espaço midiático, o espaço que transforma
a vida privada em vida pública através da superexposição, o espaço que dá
visibilidade ao anônimo ao exibi-lo como celebridade. Essa é a expectativa de
milhões de anônimos que se postam diante dos aparelhos de TV todos os dias,
aparecer na televisão e ser reconhecido em meio à multidão invisível. O
exibicionismo midiático é alimentado pela necessidade de reconhecimento.
Mas, para tanto, é preciso devassar a vida privada. E nada melhor do
que acompanhar a rotina, o dia-a-dia alheio, pois os atos cotidianos do outro
revelam o mundo individual. Não é à toa que a exposição da privacidade
71
explora os modos de viver e fazer de outras casas, outras famílias. No entanto,
esses modos de viver e fazer o exatamente o que os etnógrafos buscam
observar, é uma estrutura própria da linguagem etnográfica utilizada para
recolher dados em campo que, nos sistemas de comunicação, passa a captar
os detalhes da vida pessoal, dos anônimos que vivenciam a cultura midiática,
para dar-lhes uma dimensão desmedida na telinha.
Seja como for, é bem verdade que a rotina do outro, tanto quanto o dia-
a-dia de quem o observa o repetitivos. Aliás, se existe algo marcado ao
extremo pela repetição, pode ser o cotidiano: acordar, trabalhar, comer,
dormir, deslocar-se, tomar banho, lavar o rosto, lavar as mãos. Os atos
cotidianos são reproduzidos sistematicamente e trazem consigo o enfado, uma
espécie de cansaço e desinteresse dada a falta de novidade. Espiar pode ser
sedutor, mas espreitar a insistência, ainda mais na televisão, é enfadonho.
Será que o público quer assistir a um cotidiano tão tedioso quanto o
próprio? Espiar pode ser atrativo, mas apenas se for capaz de revelar a vida
privada alheia com todos os detalhes escabrosos e chocantes que quebram a
rotina. Esse é um viés muito utilizado na reality TV, advindo do jornalismo
tablóide que o se restringe aos sistemas impressos, caso dos jornais
tablóides tão populares no Reino Unido, mas que engloba uma categoria
jornalística inteira. Como tal, o jornalismo tablóide contamina outros sistemas,
inclusive os audiovisuais.
Desse modo, a vida privada não será apresentada ao público a partir do
contexto no qual foi captada. Na TV, a exibição da vida privada estará
condicionada à tradução, que opera através da montagem de fragmentos
audiovisuais captados no mundo do vivido, é verdade, mas transformados em
partículas compositoras de um produto destinado a conquistar audiência. E
uma das fórmulas de sucesso mais conhecidas na televisão é, sem dúvida, o
uso do jornalismo tablóide que ressalta a face escandalosa da vida diária.
Esse é um dos segredos da reality TV e pode ser detectado nos diversos
formatos televisivos influenciados por ela, principalmente naquele que a
distingue com maior clareza, o reality show. Afinal, se a reality TV contamina a
72
programação como um todo, é necessário considerar que esses formatos
existiam antes do advento dessa forma de televisão, no entanto, há um formato
que nasce com ela e chega a identificá-la enquanto variedade da televisão
factual popular, o reality show.
3.2. Reality show
Ainda que a reality TV influencie a programação como um todo, é
preciso considerar que os formatos contagiados por ela existiam antes do
seu surgimento. No entanto, com o reality show, a dinâmica muda, trata-se de
um formato elaborado no interior desse modo de fazer televisão e que não se
restringe ao gameshow, pois esse tipo de programa, a exemplo da reality TV,
também exibe um leque de opções.
reality shows que privilegiam a informação, outros dão mais atenção
ao entretenimento, embora o formato sempre exiba uma mistura dessas duas
vertentes. Tanto que, mesmo quando informa, o reality deve entreter e, quando
entretém, informar. Trata-se do infoentretenimento (Hill, 2007), no qual
programas e quadros televisivos, como o programa Caldeirão do Huck (TV
Globo) com o quadro Lata Velha que transforma o carro velho de um
telespectador num carrão – , informam e entretêm o público ao mesmo tempo.
O Lata Velha não é um game, apesar de possuir elementos próprios do
entretenimento. O que audiência ao programa é a transformação, o
chamado antes-e-depois, ao mostrar como o carro era e como ficou, após um
banho de loja nas oficinas parceiras do Caldeirão do Huck. Para o público, a
transformação acontece passo a passo, progride cena a cena, enquanto são
exibidas imagens que enfatizam a perícia dos profissionais especializados, as
técnicas e estratégias empregadas para realizar o sonho do telespectador. É
um show de tecnologia que entretém e, simultaneamente, informa o público
sobre mecânica de automóveis, restauração, materiais, funilaria e pintura,
história automobilística.
73
O componente lúdico se desloca para a corrida contra o tempo, pois os
profissionais dispõem de apenas alguns dias para deixar um carro velho, uma
verdadeira lata velha, impecável. o cuidado de restaurar o veículo, com
peças e acessórios originais e não apenas consertá-lo. Outro traço do
entretenimento nesse quadro é o mistério, o dono do carro não pode ver o
veículo durante o processo, ele sequer imagina como o carro vai ficar. Daí, o
ponto alto do quadro ser a exibição do resultado final: o veículo pronto no palco
do programa de auditório, o motor roncando diante das câmeras e a emoção
do feliz proprietário. É a espetacularização, o confronto entre o antes velho,
emperrado e quebrado e o depois incrementado, empolgante e poderoso causa
surpresa e animação, faz do carro, puro espetáculo.
No entanto, entre os reality shows com os mais elevados índices de
audiência, estão mesmo os gameshows. Desenvolvidos, em grande parte, por
empresas especializadas, eles são comercializados como rmulas para as
emissoras do mundo todo. As fórmulas estabelecem as regras e a dinâmica de
funcionamento do jogo, prevêem premiações e punições, a participação ou não
do blico. o, portanto, prescrições gerais que identificam e diferenciam o
programa de qualquer outro, mas conseguem ser flexíveis o suficiente para
permitirem que as emissoras, compradoras dos direitos de exibição, realizem
alterações para adaptá-las à cultura em que serão mostradas. Daí, ao
chegarem a determinado país, as fórmulas sofrerem pequenas mudanças e
gerarem versões diferenciadas.
As fórmulas de gameshows são muito variadas, mas sempre associam
entretenimento a jogo, o que pressupõe a competição como eixo central. No
Brasil, gameshows que vão desde O Aprendiz (TV Record), versão
brasileira do americano The Apprentice, do mesmo criador de Survivor, Mark
Burnett, até o Grande Perdedor (Sbt), versão brasileira de The Big Diet; além
de fórmulas como Ídolos (Sbt; TV Record) e Astros (Sbt), versões brasileiras do
britânico Idols. O Aprendiz simula o mundo dos negócios: sob tensão, jovens
profissionais devem cumprir tarefas da vida corporativa, o prêmio final será
uma vaga de executivo com salário invejável. Em O Grande Perdedor, pessoas
que estejam bem acima do peso precisam perder a maior quantidade de quilos
74
por semana. em Ídolos (Sbt; TV Record) e Astros (Sbt), garotos e garotas
talentosos competem para se tornar pop star.
Em todos esses programas, a competição ocupa o lugar principal.
Algumas vezes está direcionada para a performance organizacional (O
Aprendiz), outras, depende do desempenho físico e biológico (O Grande
Perdedor) ou do talento (Ídolos; Astros), no entanto, virtudes como a força de
vontade e o esforço pessoal, muito valorizadas em provas e jogos esportivos,
são sempre evidenciadas.
E a estrela maior não apenas dos gameshows, mas de todos os reality,
dados os índices de audiência e o impacto midiático mundial, não foge à regra.
O Big Brother, fórmula que no Brasil passou a ser conhecida como Big Brother
Brasil ou, simplesmente, BBB, leva o conceito de jogo às últimas
consequências. O jogo do Big Brother é a competição por um prêmio
milionário, sem dúvida, mas também é a disputa pela fama, os participantes
não competem apenas por dinheiro, mas por um lugar ao sol nos sistemas de
comunicação. É a guerra pela visibilidade.
Também é o jogo entre voyeurismo e exibicionismo midiáticos,
representação e autenticidade, o público se transforma em voyeur e detetive ao
mesmo tempo. O público quer bisbilhotar a vida alheia, encontra prazer ao
olhar pelo buraco da fechadura, o blico quer espionar e apontar a falsidade,
assistir e premiar a veracidade.
De fato, entre todos os reality, O Big Brother é o que mais explora o
voyeurismo e o exibicionismo midiáticos, pois o maior atrativo do programa é
exatamente esse, possibilitar ao público observar durante 24 horas por dia a
rotina de um grupo de pessoas confinadas num estúdio televisivo chamado
sugestivamente de casa. A idéia é vigiar, bisbilhotar, acompanhar a vida alheia
sem trégua. Daí, o apresentador do BBB convidar repetidamente: “Vamos dar
uma espiadinha?!”
Porém, no Big Brother, a bisbilhotice não é apenas uma forma de invadir
a privacidade alheia. Ali, ela se transforma em jogo. Se a competição entre os
participantes pelo prêmio milionário explora o relacionamento interpessoal, o
75
jogo entre os participantes e o público é outro. O público bisbilhota, o
participante se mostra. O público é voyeur, o participante, exibicionista. Assim,
as duas faces da mesma moeda, voyeurismo e exibicionismo midiáticos, são
articuladas, pois quanto mais o participante for notado pelo público, maiores
serão as suas chances de permanecer na disputa. É o jogo pela visibilidade.
Nesse contexto, observar o outro, identificar o quanto existe de realidade
e ficção no que é exibido, tornar-se voyeur e assistir à performance do
exibicionista numa casa, que representa a vida doméstica, são elementos que
reforçam a idéia de invasão de privacidade. Na era de hackers e jogos digitais,
esse é um apelo muito grande, invadir é um desafio e o ingrediente que todo
jogo bom de verdade precisa ter. Vamos invadir, invadir a vida privada, invadir
a vida do outro ainda que de forma simulada, mas vamos descobrir os
segredos que o cotidiano guarda e transformar a própria vida em jogo.
É claro que existem outros reality shows que destacam o voyeurismo
midiático, como Troca de Família (TV Record), baseado na fórmula Trading
Spouses da emissora americana Fox. Durante uma semana, duas mulheres,
mães de família, com estilos de vida bem diferentes, irão trocar de lugar e viver
a vida uma da outra. Nesse período, uma substituirá a outra junto à família e
morará na casa dela, com o marido e os filhos dela, viverá a rotina e o
cotidiano de outra mulher com bitos, atitudes e crenças diversos dos seus.
Ao mesmo tempo, junto à sua família, na sua casa, com seu marido e seus
filhos, estará uma completa estranha desempenhando as suas funções.
Em um dos episódios da segunda temporada, em 2008, Zaynab, mãe de
uma família árabe de São Paulo, troca de lugar com Thereza, e de uma
família liberal de Recife. Zaynab usa véu e é submissa ao marido, que segue
fielmente os preceitos do Islã, enquanto Thereza não suporta ser mandada. Na
mesma temporada, Carol, de uma família japonesa de o Paulo, troca de
lugar com Zilma, uma mãe de origem alemã que vive numa barraca de
camping, dentro de uma colônia nudista de Balneário Camboriú. Mas,
contrariando o estereótipo, a japonesa Carol se revela extrovertida, ela e suas
filhas desfilam numa escola de samba; enquanto Zilma, a mãe naturista, é
muito tímida.
76
Porém, Troca de Família não é um gameshow como o Big Brother.
voyeurismo midiático, sim, mas o entretenimento não está na competição por
um prêmio milionário que será conquistado por um único participante, o que
costuma acirrar os ânimos. O game aqui é outro, está focado nas reações das
mães que trocam de lugar e das respectivas famílias que recebem as
substitutas, pois será preciso que compartilhem suas vidas com pessoas de
hábitos muito diferentes. As mães vão adentrar o espaço da vida privada de
outra pessoa, enquanto as famílias terão de receber as substitutas nesse
espaço tão pessoal que é a própria casa.
Na escolha dos participantes, a idéia é minimizar as semelhanças entre
as mães selecionadas, pois quanto maiores forem as diferenças de estilos de
vida, maiores as dificuldades de adaptação e as possibilidades de que surjam
surpresas, disputas e brincadeiras, aflorem as diferenças entre a família e a
substituta, seja despertada a saudade de quem foi substituída. Tudo isso será
utilizado na montagem final do episódio e pode ser a maior informação que o
público irá encontrar: como lidar com as diferenças.
Através dessa troca de lugares, o público tem a oportunidade de
observar a rotina diária de outras famílias e comparar diferenças e
semelhanças e pode, é claro, relacionar essa comparação com a sua própria
estrutura familiar. Trata-se de uma fórmula que utiliza recursos da linguagem
etnográfica, na qual o pesquisador observa atentamente as reações do nativo
em seu contexto de origem e, por vezes, realiza experimentos colocando-o em
outros contextos, além de relacionar a cultura estudada com a própria.
Nesse reality, a mãe de família, que troca de lugar com outra,
desempenha o papel de estudiosa, pois deve observar com cuidado a rotina
diária dessa outra tribo e verificar as necessidades que seus membros
possuem. Ao final do programa, ela vai apontar por escrito como o prêmio em
dinheiro, que cada família recebe pela participação, será gasto. Ou seja, a
partir do momento em que a nova mãe integra aquela família, ela deve procurar
compreender a melhor forma de distribuir o prêmio, o que pode ouo atender
às expectativas dos anfitriões. Alguns precisam consertar o carro, outros
77
querem viajar e cabe àquela que chega identificar essas necessidades, pois a
família que a recebe em geral não fala abertamente sobre isso.
Outro reality show no qual o midiático ocupa posição de destaque é
Supernanny (Sbt), a versão brasileira do programa de mesmo nome criado na
Inglaterra e exportado para Alemanha, Polônia, Holanda, Israel, China, Estados
Unidos, entre outros países. No Brasil, a apresentadora Cris Poli desempenha
o papel da supernanny, uma superbabá enviada às casas de pais que têm
problemas com os filhos. Ela irá lhes ensinar técnicas para disciplinar as
crianças e acabar com o choro sem motivo, a alimentação fora de hora, a
manha e a má criação.
Enquanto a supernanny ensina os pais na telinha, os pais que se
encontram em casa, assistindo ao programa, pegam carona nas aulinhas e
aprendem a educar os filhos com o auxílio da televisão. Mas, ao mesmo tempo,
encontram entretenimento, o público se diverte ao entrar na casa dos outros e
ver como criam seus filhos. Nesse tour, o telespectador se depara com a birra
infantil e o descontrole emocional dos pais, mas também se encanta com o
beijo e o abraço carinhoso entre pais e filhos.
No Limite (TV Globo), versão do programa americano Survivor,
inaugura a transmissão de reality shows pela TV Globo. Os participantes do
programa são levados para um local exótico e isolado, onde não poderão se
comunicar com o mundo exterior, nem solicitar auxílio e passarão por testes de
resistência física e psicológica, próprios dos treinamentos militares para
sobrevivência em lugares inóspitos. Na primeira temporada, veiculada em
2000, No Limite 1, o lugar escolhido foi uma praia no Ceará. As próximas duas
temporadas, No Limite 2 e 3, exibidas no primeiro e no segundo semestre de
2001, foram gravadas respectivamente numa fazenda no Mato Grosso e na
Ilha de Marajó, no Pará.
A fórmula do programa pretende exibir a luta pela sobrevivência de
pessoas anônimas num local hostil. Distantes das facilidades do mundo
moderno e sofrendo todo tipo de privações, os participantes são divididos em
equipes. Eles devem superar obstáculos e agradar à equipe, pois a cada prova
78
perdida, o grupo perdedor irá expulsar um dos seus componentes, o que
significa ter de deixar o reality. O ganhador leva um prêmio em dinheiro.
As provas fazem jus ao título do programa, de fato deixam os
participantes no limite psicológico e físico desde o início. No programa de
estréia da primeira temporada,
Após um dia de confraternização num resort das imediações,
os participantes partiram para a aventura, levando apenas uma
mochila com algumas mudas de roupa. As duas equipes em
disputa, batizadas de "Sol" e "Lua", foram largadas perto da
praia em questão, onde receberam a orientação de que teriam
de andar quarenta minutos, sob um calor de 35 graus, até
atingir o ponto onde receberiam veres e materiais básicos.
Quando chegaram, depois de muito subir e descer dunas,
ficaram sabendo que os caixotes destinados a eles não
estavam na areia, e sim boiando no mar, a uns 30 metros da
costa. Tiveram de nadar para buscar os suprimentos. Na hora
de abrir os caixotes, outra decepção. Em vez de comida farta,
apenas uma caixa com frutas exóticas. No lugar do material
mínimo para armar uma barraca, somente um pedaço de lona
e badulaques como bules velhos ou machadinhas.
(...)
a produção conta com a ajuda de sete fuzileiros navais
especializados em sobrevivência na selva, além de um médico
de plantão. Por um erro que ninguém soube explicar, quando o
programa começou a ser gravado os fuzileiros ainda não
estavam a postos apareceram no final do primeiro dia.
Apesar de o local ser habitat de cobras venenosas e
escorpiões, no início o médico de plantão não dispunha de soro
antiofídico. Essas falhas serviram para aumentar o stress
dos protagonistas de No Limite. (Revista Veja, 26.07.2000)
As privações incluem a alimentação diária:
De três em três dias, cada participante recebe uma ração
suficiente para garantir de 250 a 300 calorias diárias mais ou
menos o que recebia um prisioneiro de um campo de
concentração nazista. "Eles vão perder peso", diz a
nutricionista Márcia Madeira, encarregada de balancear as
esquálidas porções. A certa altura, haverá uma prova em que
os vencedores terão de saborear uma refeição asquerosa, que
pode ser até carne de cobra. "Não teremos de ninguém",
avisa Zeca Camargo, apresentador de No Limite. (Revista
Veja, 26.07.2000)
79
É importante lembrar que as provas são elementos próprios da narrativa,
caso dos contos de fadas, nos quais o enredo se organiza segundo uma
estrutura morfológica constante (Propp, 1928): o herói aspira conquistar um
objetivo, seja por um desejo próprio, seja devido às circunstâncias; o objetivo
será constituído ou contará com a superação de uma prova ou obstáculo com
alto grau de dificuldade; para tanto, o herói conta com auxiliares, mas também
se depara com opositores que dificultam a realização da tarefa; o herói cumpre
a prova, supera o obstáculo e atinge o objetivo; o herói recebe uma
recompensa. Ou seja, no interior do reality show, formato no qual se pretende o
máximo de realidade, subsiste uma estrutura ficcional que constitui o modelo
básico do entretenimento.
No caso de No Limite, a recompensa se mostra como um prêmio
significativo em dinheiro, mas também fama e sucesso. No Survivor americano,
os protagonistas se tornaram celebridades (Revista Veja, 26.07.2000), o que
também se repete no Brasil, ainda que de modo menos intenso.
A fórmula No Limite-Survivor conta com a necessidade dos
participantes, promovidos à condição de heróis, de fazerem parte do reality; o
programa será em si mesmo uma prova de resistência de difícil superação que
se desdobrará em provas menores a serem vencidas a cada episódio; os
heróis devem conquistar recursos e aliados para ultrapassar os obstáculos
propostos pelo programa e evitar a eliminação, mas também se depararão com
opositores; um único herói atingirá o objetivo ao permanecer até o final do
programa; esse herói remanescente conquistará a recompensa, um prêmio
financeiro significativo.
Na verdade, No Limite-Survivor apresentará ao público todos os
ingredientes com os quais o Big Brother, campeão de audiência dos reality
shows será construído, porém, se Survivor se torna sucesso absoluto nos
Estados Unidos, o Big Brother se torna sucesso no mundo inteiro. Em outros
países, Survivor não obtém índices de audiência tão elevados quanto na
América, mas o Big Brother repete seu desempenho em diferentes lugares do
planeta.
80
Então, qual será o segredo que faz do Big Brother um hit mundial?
Semelhanças à parte, uma das características de Survivor, que se
transformou na alma do negócio brotheriano, é o foco nas dificuldades de
relacionamento entre os participantes do programa, esse é o conflito principal
do Big Brother que costuma ser modelizado em cada país no qual o reality é
exibido. Survivor dispõe desse elemento, mas não faz dele o seu alvo
principal, o que marca o programa e possui o status de conflito principal são
mesmo as provas de resistência psicológica e física, o isolamento numa
locação distante da realidade cotidiana. Survivor concentra, nesses fatores, a
sua face lúdica que, de alguma maneira, respondem muito bem à cultura
americana, mas não em outras culturas.
O Big Brother oferece entretenimento ao fazer do voyeurismo-
exibicionismo midiático um jogo em si mesmo. Aliás, é exatamente isso que
distingue a fórmula Big Brother de outros reality que ressaltam o voyeurismo.
Enquanto os participantes do programa, os chamados brothers e sisters ou
apenas big brothers, jogam entre si para decidirem quem fica e quem sai do
programa, surgem picuinhas e intrigas, são firmados acordos e desacordos,
são realizadas alianças e fofocas. São situações comuns na vida diária, mas
que no programa são propiciadas e alimentadas pelo confinamento e pela
competição, além de supervalorizadas pelo processo de montagem.
É a repetição de uma estrutura de ficção no interior do reality show, uma
estrutura própria da narrativa que a montagem explora ao construir na telinha
personagens. Assim, o público revisita, numa nova roupagem, o protagonista, o
antagonista, os amigos do protagonista, os comparsas do antagonista. Os
personagens se dividem em grupos e enfrentam-se em busca de uma
recompensa, o tesouro das narrativas de aventura que no BBB assume a forma
de prêmio milionário. Os coadjuvantes, os personagens secundários podem até
não conseguir a recompensa para si, mas poderão colaborar para que o
protagonista ou o antagonista, ao qual se unem para reiterar o combate entre o
Bem e o Mal, conquiste-a.
81
Ao mesmo tempo, os participantes e o blico praticam um jogo
paralelo, a representação e a caça à autenticidade, pois é muito importante
para o telespectador saber o quanto do que o brother exibe no reality
corresponde ao seu comportamento no mundo vivido, sem a presença das
câmeras. É o jogo do faz de conta às avessas, no qual o público deve distinguir
o que é realidade, o que é ficção, deve identificar quem é quem no programa
para o ser ludibriado. Nesse ponto, as picuinhas e intrigas, os
relacionamentos afetivos, namoro ou amizade, quem fica ao lado de quem e
quem fica contra quem são elementos que assumem grande importância, pois
se destinam a apontar a veracidade desse ou daquele comportamento.
Trata-se, na verdade, da fofoca. Ao brincar de detetive sobre a
veracidade da conduta exibida na telinha, o público se coloca no papel não
apenas daquele que é capaz de identificar a falsidade e a fraude, mas do
mexeriqueiro. É um pacto entre o programa e o telespectador, o programa
exibe a vida alheia e o telespectador olha, o programa oferece a oportunidade
e o telespectador se transforma em voyeur. Como tal, ele se rende à
bisbilhotice, à investigação da privacidade de pessoas anônimas.
Faz parte da rmula Big Brother mostrar a transformação de pessoas
comuns em celebridades. É o que o diferencia em essência da Casa dos
Artistas (Sbt), reality que também confina um grupo de pessoas numa casa
durante um longo período. No entanto, todos os participantes da Casa dos
Artistas são famosos, entre as estrelas se contam atores, cantores, músicos
e assim por diante. Nesse caso, são as celebridades que se transformam em
gente comum, deixam o pedestal e se humanizam, enquanto o Big Brother
permite que os anônimos abandonem sua condição obscura.
Essa troca de papéis também é uma estrutura narrativa que refaz, na
linguagem do reality show, a história do mendigo que se torna príncipe (o
anônimo vira celebridade no Big Brother) e do príncipe que se torna mendigo (a
celebridade agora é pessoa comum na Casa dos Artistas). O príncipe e o
mendigo de Mark Twain (1881), que gerou filmes e peças teatrais no mundo
todo, assim como uma telenovela de mesmo título (TV Record, 1972) na
televisão brasileira, volta à telinha em formato reality.
82
Mas se o voyeur aprecia saber da vida das estrelas, os índices de
audiência mostram que ele também aprecia saber da vida de pessoas
anônimas. Afinal, o Big Brother não apenas sacia o desejo de conhecer a vida
alheia, mas também instiga o sonho de tornar-se famoso na televisão e ganhar
um prêmio milionário: o os sonhos de ser pop star e ganhador da loteria,
reunidos num só.
Aliás, nas oito temporadas do Big Brother Brasil exibidas entre 2002 e
2008, os ganhadores foram de fato pessoas sem destaque nos sistemas de
comunicação: um dançarino (Kleber Bambam BBB1), um domador de
cavalos (Rodrigo Caubói – BBB2), um assessor parlamentar (Dhomini – BBB3),
uma babá (Cida – BBB4), um professor universitário (Jean – BBB5), uma
auxiliar de enfermagem (Mara BBB6), um administrador de empresas (Diego
Alemão – BBB7) e um músico (Rafinha – BBB8).
Mas, se é verdade que os participantes entram na casa como pessoas
anônimas, o mesmo não acontece quando deixam o jogo. E isso vale para
todos os integrantes e não apenas para o vencedor final, pois ainda que
determinado brother não seja o ganhador do reality, o seu desempenho no jogo
poderá levá-lo à fama.
Por isso, a performance do psiquiatra Marcelo em BBB8, com direito à
confissão sobre homossexualidade, torna-se uma garantia de visibilidade. Após
a revelação súbita logo nos primeiros dias do programa, Marcelo alcança o
estrelato durante vários dias nos sistemas de comunicação mais variados, além
de marcar a oitava temporada do programa em definitivo. A temporada na qual
a montagem precisou trabalhar duro para desfazer a monotonia que se instalou
no jogo (MSN Entretenimento, 26.03.2008), mas obteve a final com a margem
de votação mais apertada da história do programa.
83
3.3. Big Brother Brasil 8
O BBB 8 – Big Brother Brasil 8, reality show transmitido pela Rede Globo
de Televisão, tem início em 8 de janeiro de 2008 com 14 participantes e
término em 25 de março de 2008, num total de 78 dias, quando um único
brother, Rafael de Carvalho, o Rafinha, é premiado com R$ 1 milhão. Na final
contra Gyselle, Rafinha recebe 50,15% do total de 76 milhões de votos do
público, na final mais disputada de todas as edições exibidas do programa até
o momento (Portal Globo, 26.03.2008).
Seguindo o formato Big Brother veiculado mundialmente, os 14
participantes, 7 homens e 7 mulheres, são isolados num estúdio televisivo,
vigiado por câmeras durante 24 horas, cujas imagens são veiculadas em
diferentes sistemas de comunicação. Diariamente a TV Globo, empresa das
Organizações Globo que opera na TV aberta, veicula um programa com o
compacto dos melhores momentos do dia e inserções ao vivo, além de
transmitir flashes ao vivo do que acontece com os brothers durante toda a
grade horária.
No entanto, o Big Brother também pode ser acompanhado através da
telefonia celular e do Multishow, canal de televisão a cabo, também
pertencente às Organizações Globo, detentora dos direitos de transmissão do
reality no Brasil. Na verdade, a programação da TV como um todo, e não
apenas da Globo ou do Multishow, falará a respeito do Big Brother Brasil. O
BBB sepauta obrigatória nos programas de fofocas e making of sobre a TV,
o que alimenta uma rede de informação, entretenimento e bisbilhotice
nacional.
O BBB ultrapassará, assim, o status do reality, que permite ao público
bisbilhotar pessoas anônimas, para se transformar no objeto da bisbilhotice de
outros programas televisivos. Os outros programas vão mostrar o que acontece
no Big Brother Brasil, vão monitorar tudo o que nele é exibido, selecionar e
reexibir. Desse modo, o reality da TV aberta não vai ao ar apenas durante o
84
seu horário na telinha, mas ocupa espaço em toda a programação através de
fragmentos selecionados e remontados em outros formatos televisivos.
Na Internet, também é possível acessar informação a respeito do reality
e tudo o que nele ocorre, vários portais disponibilizam links específicos para a
cobertura do BBB com informações atualizadas constantemente, a cada
momento são emitidos diversos boletins para dar conta das mínimas alterações
no jogo. Há, inclusive, imagens ao vivo na web, disponíveis aos assinantes do
provedor das Organizações Globo, que podem ser acessadas na página
www.globo.com, através do chamado pay-per-view que promete acesso
irrestrito a tudo o que ocorre em BBB.
A veiculação massiva contamina, ainda, a mídia impressa. Por um lado,
os grandes jornais falam sobre BBB nas editorias e cadernos especializados
sobre televisão, os artigos de colunistas e intelectuais de renome criticam e
analisam BBB, os jornalistas de plantão introduzem BBB na ordem do dia.
as revistas de celebridades, por outro lado, conferem aos brothers, em geral
pessoas anônimas com vidas corriqueiras, o status de famosos da noite para o
dia. Elas traçam o perfil dos participantes e fofocam sem parar sobre a vida
pessoal de cada um, assim como seu respectivo desempenho no jogo.
Nesse contexto, a menor picuinha captada pelas câmeras é ampliada
extraordinariamente por lentes superpoderosas e transforma-se em mega-
evento. Desse modo, a intimidade cotidiana alimenta os sistemas de
comunicação e disputa espaço com as notícias sobre economia, relações
internacionais e ecologia.
Enquanto isso, isolados do mundo exterior, os brothers competem por
um prêmio milionário. A cada semana, no mínimo dois jogadores devem ser
submetidos ao paredão, um seindicado pela votação dos companheiros no
confessionário e outro diretamente pelo líder. No entanto, a competição que
travam entre si busca mais do que o prêmio financeiro, a exposição reiterada e
excessiva almeja a fama, o troféu que deve transformar a pessoa anônima que
passa entra no programa em celebridade na saída. A princípio, quanto maior a
85
exposição, maior a fama, maior o caccorrespondente em outros trabalhos
no universo dos sistemas de comunicação.
Esse é o caso de Grazielli Massafera que participou do BBB5 (TV Globo,
2005) e, mesmo sem vencê-lo, tornou-se atriz da TV Globo. A estréia de Grazi,
Miss Paraná e Miss Brasil Beleza Internacional em 2004 o que a exclui do
anonimato completo ao participar do BBB5 como intérprete ocorre na
telenovela Páginas da Vida (TV Globo, 2006-07) no horário nobre da televisão
brasileira.
Portanto, mesmo que o participante não ganhe o prêmio final, ele pode
conquistar outras oportunidades, proporcionais à sua visibilidade no BBB. Em
geral, quanto maior a permanência no programa medida pelo mero de
semanas que o brother consegue permanecer no jogo , maiores serão os
seus índices de notoriedade. Daí a importância dos participantes continuarem
no programa a cada semana. Uma semana a mais no jogo significa uma
semana a mais de visibilidade, uma semana a mais no hall da fama.
Assim, a semana é tida como a unidade cronológica do programa. Tudo
ocorre no período de uma semana: a indicação ao paredão no domingo, o
estresse da eliminação na segunda-feira, o paredão na terça, a festa de quem
permaneceu no jogo na quarta, a prova do líder na quinta, as articulações
sobre a indicação ao paredão do novo líder na sexta, a prova do anjo-monstro
no sábado.
De uma semana para outra, tudo muda, tudo pode mudar. Afinal, um dos
companheiros foi eliminado e a rede de aliados e adversários dentro da casa
precisa ser revista. As relações serão alteradas a depender de quem saiu ou
permaneceu, de quem indicou quem ao paredão, das circunstâncias que
determinaram essa ou aquela indicação e da votação do público. Nessa
semana, os brothers irão modificar comportamentos, procurarão se adaptar à
nova configuração da casa em busca da visibilidade.
Os participantes devem se relacionar tanto entre si, quanto com o
público. Entre si, tentarão formar alianças numa tentativa de evitar, ou ao
menos retardar, a sua indicação ao paredão. Entre si, procurarão se agrupar e
86
proteger na disputa pelo prêmio final. com o público, tentarão angariar as
suas boas graças para, uma vez indicados, não serem eliminados da
competição.
Mas para influenciar o público, é preciso se expor. É preciso aparecer
para não ser esquecido, assim como é preciso saber a forma mais apropriada
de aparecer para não ser eliminado. A visibilidade não deve ser apenas
alcançada, mas construída como a boa visibilidade. Os jogadores devem
competir pela maior exposição possível diante das câmeras, é claro, mas a
quantidade de minutos que cada brother obtém na montagem final de cada
programa o é garantia de vida longa em BBB. Será necessário saber investir
na própria imagem, muitas vezes criar para si mesmo um personagem que
agrade tanto o público quanto os colegas da casa.
Nesse panorama, os jogadores costumam contribuem para transformar
o cotidiano do confinamento em espetáculo. Pequenos gestos e pequenas
atitudes do dia-a-dia, detalhes ínfimos do cotidiano, que seriam
desconsiderados em outro contexto, no reality assumem grandes proporções.
O anonimato deve ser transcendido pela supervalorização de acontecimentos
por vezes sem a menor importância.
Os 14 participantes de BBB8 são pessoas anônimas, desconhecidas do
grande público que, nessa versão, foram escolhidas pela produção do reality a
partir das inscrições enviadas por interessados de todo o Brasil. Os brothers
vêm de diversos Estados: três do Rio de Janeiro (Bianca, Fernando e Thalita),
uma do Distrito Federal (Thatiana), um de Minas Gerais (Marcelo), uma de
Teresina (Gyselle), uma do Rio Grande do Sul (Natália), cinco de São Paulo
(Alexandre, Felipe, Jaqueline, Juliana e Rafinha), um de Fortaleza (Rafael) e
um do Espírito Santo (Marcos). Também possuem várias profissões e, ainda
que tenham prevalecido, nessa edição, ocupações do show businessmodelo,
produtora de moda, atriz e músico , além de estudantes, é possível encontrar
o psiquiatra Marcelo, o eletrotécnico Marcos e o gerente de contas Fernando.
A idéia é garantir a variedade de locais de origem para fomentar a
torcida regional, assim como exibir uma atmosfera pseudo-democrática de tal
87
modo que o processo de seleção o privilegie determinado lugar do país. A
mesma gica tem sido aplicada para a escolha equilibrada do número de
participantes do sexo masculino e do sexo feminino, para a presença constante
de negros em cada edição, para a escolha de pessoas de origem sócio-
econômica mais humilde, para a diversidade de profissões dos brothers, a
mesmo para a escolha de alguns jogadores através de sorteio.
Seja como for, os brothers vão viver, durante quase três meses em
confinamento, o cotidiano da casa, nome dado ao estúdio observado
ininterruptamente por câmeras com uma área de aproximadamente 1800 m
2
.
Aliás, é significativo que o nome dado ao estúdio seja casa, ainda mais numa
mídia doméstica como a televisão. Afinal, em que outro local o cotidiano
poderia se fazer mais presente do que na moradia, residência, no lar, tantas
vezes tomado como sinônimo de família, proteção e aconchego? A casa está
presente nas artes de morar e habitar, casa de família; nas artes de divertir e
entreter, casa noturna; nas artes de ganhar dinheiro e fazer render, casa
bancária; nas artes de reter, casa de detenção e, a mesmo, nas artes de
morrer, casa funerária. Casa, portanto, remete na maioria das vezes a
ambientes nos quais as pessoas anônimas vivenciam o dia-a-dia, desde o
ambiente doméstico, na esfera privada até o espaço exterior, na esfera pública.
no Big Brother, casa significa o espaço limitado no qual o jogo deve
transcorrer, ela será um tabuleiro. E, se o jogo implica na arte de desempenhar
um papel diante das câmeras, o termo casa também passa a significar palco,
palavra que se procura evitar no programa, pois um dos elementos
supostamente mais prezado no jogo seria a sinceridade, o que não estaria de
acordo com a idéia de encenação inerente a palco ou, até mesmo, estúdio.
Mas há, sim, um estúdio, habilmente oculto sob a idéia de moradia, tanto que a
cada nova edição do reality, a casa é reformulada e grande atenção é dada à
decoração. Afinal, esse cenário será fundamental à simulação.
Em BBB8, os decoradores buscaram inspiração grega, principalmente
para a área externa, onde se destaca a piscina, espaço de grande importância
no jogo por ser um ponto de encontro dos participantes. Além disso, é o lugar
88
no qual os brothers desfilam em trajes de banho, o que costuma lhes render
ensaios sensuais nas mídias impressa e digital após a saída da casa.
A casa do Big Brother Brasil, como em grande parte das moradias, conta
com sala (onde os participantes se reúnem para conversar e, principalmente,
para falar com o apresentador do programa nas inserções ao vivo), cozinha,
quarto (são quatro quartos, três para todos os participantes e um para o líder
da semana), banheiro (um único banheiro para todos, sem separação entre
homens e mulheres) e a área externa (varanda, piscina, jardim, academia,
sauna, futton e hidrospa).
Cada quarto é decorado com um tema: quarto dos monstros (todo em
tons de azul com listras verdes e pretas, desenhos de árvores secas e
alienígenas nas paredes, além de almofadas de extraterrestres), quarto
xocante (em vários tons de vermelho e rosa com predomínio do rosa
fluorescente) e quarto muuu (tema rural que reproduz um pasto com grama
sintética no chão, estampas de couro de vaca nas paredes e almofadas, assim
como abajures em forma de leiteira).
Há, também, o quarto do líder que, decorado em clima praiano, conta
com guloseimas, cama king size e, como inovação dessa edição de BBB,
videoteca. A cada semana, sempre às quintas-feiras, uma prova irá selecionar
um dos participantes para assumir a liderança da casa. Como líder, ele terá o
direito de dormir nesse quarto e usufruir de suas pequenas mordomias.
O banheiro único, sem diferenciação para homens e mulheres, é
decorado com desenhos de baratas no chão e nas paredes. Existe, ainda, a
89
sala onde se fala ao vivo com o apresentador, cozinha americana, despensa e
academia.
Toda essa estrutura de Disneylândia está voltada à simulação. Simula-
se que a casa-estúdio de televisão seja uma casa no sentido de moradia,
simula-se que os participantes terão um comportamento diante das câmeras
exatamente igual ao que teriam em suas vidas particulares, nas suas casas de
verdade, quando se sabe que a simples presença de uma câmera oculta ou
não, basta quem está sendo gravado saber da sua presença – altera a conduta
do ser humano. Simula-se que os brothers representam pessoas comuns
quando, assim que entram na casa, deixam o anonimato para trás. Mas todas
essas simulações se destinam a uma simulação mais abrangente: simula-se
que o Big Brother é um espelho que reflete a realidade, o uma lente que a
refrata.
90
Fingir que a casa de BBB é uma moradia, tal qual a moradia do público,
aproxima a espacialidade do programa da espacialidade do laboratório, na qual
um ambiente controlado serve à observação de seres vivos expostos a certos
estímulos. E, por mais que os brothers afirmem, em vários momentos durante o
jogo, que os acontecimentos que ali dentro ocorrem não teriam lugar no mundo
exterior, o formato reality show promete o contrário. A casa simula o mundo
vivido a tal ponto que a sua existência, enquanto casa, não teria sentido se a
conduta de seus participantes o pudesse ocorrer na realidade. Para que a
simulação tenha sucesso, é preciso acreditar que a vida real, fora da casa se
repete na vida midiática, dentro da casa. Esse é o sentido da expressão reality
show, o espetáculo da realidade.
No entanto, o programa sempre permite a dúvida. A graça toda está em
desvendar o que do comportamento dentro da casa acontece mesmo do lado
de fora, o quanto existe de realidade e o quanto há de ficção nas performances
dos brothers. A graça toda está em decifrar o quanto a presença das câmeras
e o confinamento alteram a conduta dos participantes. Afinal, as pessoas não
se comportam assim no mundo vivido, não é mesmo? Elas se comportam
assim apenas no mundo midiático. Ou não?
Por mais que se saiba que as pessoas não se comportam em suas
casas-moradias como se comportam em frente às câmeras de TV, a
espacialidade do estúdio, que toma a forma de uma casa, simula algo diverso.
Por um lado, a simulação identifica a casa-estúdio dos participantes e a casa-
moradia do público como uma só. Por outro, a simulação introduz a incerteza.
O jogo será essa contradição.
Ao mesmo tempo, a casa de BBB simula ser um lugar quando é um não-
lugar. Todos por ali estão de passagem, evitam ao máximo passarem muito
rápido por ela, mas não podem evitar a condição transitória na qual se
encontram: “A reality house é um (não) lugar de trânsito, em que se passa no
máximo um certo tempo, e é como viajante ou hóspede que o jogador deve se
comportar.” (Kilpp, 2008: 56, grifos do autor) Daí, a unidade cronológica do jogo
ser mesmo a semana.
91
Essa reality house simulação de casa-moradia por um lado e, por
outro, muito associada à rua é construída para operar na fronteira entre o
público e o privado. A todo instante seus moradores poderão ser expulsos, o
que lhe confere um caráter instável, marcado espacialmente pelo
confessionário. Em BBB8, trata-se de uma saleta de paredes brancas com
círculos pretos, mobiliada apenas com uma poltrona da mesma estampa, na
qual cada brother deve comparecer todos os dias para falar sobre a sua
experiência no programa.
Uma vez por semana, no
confessionário, o brother também
deverá indicar outro ao paredão,
assim como os indicados terão a
oportunidade de pedir clemência
ao público (Kilpp, 2008: 72-74).
Nesses momentos, o apresentador
do programa costuma instigar os
votantes a justificar a indicação e
os indicados a defenderem-se. É a
hora de colher um material muito valioso para a montagem: tudo o que o
brother disser no confessionário será montado junto a outras falas que tenha
tido sobre o mesmo assunto em outros locais da casa ou, até mesmo, na
entrevista para participar do programa.
Agrupadas por similaridade, na qual se enfatiza o contraste ou a
semelhança, essas falas confirmarão ou não o que foi dito no confessionário.
Assim, é montada a credibilidade de cada participante, de cada personagem.
É interessante notar que, na fórmula comercializada pela Endemol, a
saleta do confessionário não possui essa denominação. Na fórmula do
fabricante, o local é conhecido como diary room, a sala do diário que, a
exemplo do diário de campo etnográfico, deve registrar as impressões de cada
participante sobre o jogo diariamente. Apenas nos países de forte tradição
católica, caso do Brasil, o lugar é chamado de confessionário (Killp, 2008: 59).
Nesses países, a confissão católica é traduzida como confissão na TV.
92
Quando a simulação da casa é perdida, cria-se outra, a simulação do
confessionário. No segredo do confessionário católico, o sacerdote indica a
redenção dos pecados através da oração. Em casos extremos, a punição
suprema pelos pecados seria a excomunhão, cada vez menos empregada nos
dias atuais. Mas, na TV profana, a redenção e a excomunhão sagradas o
retomadas às avessas: o jogador aponta os pecados alheios para dar o seu
voto, o indicado pede clemência o ao sacerdote, mas ao público. Ele pode
ser redimido e retornar do paredão, ele pode ser excomungado e sair da casa.
O confessionário também indica que, apesar de toda a simulação, o
local de gravação de BBB8 é de fato um estúdio televisivo, uma vez que nele
os brothers falarão diretamente ao público ao reconhecerem que ali existem
câmeras.
Tal estúdio conta com 21 câmeras-robôs, operadas à distância para
gravação de rotina; 5 câmeras-robôs para exibição de conteúdo exclusivo na
Internet e 6 câmeras-robôs para gravação em infravermelho. É interessante
lembrar que o Big Brother foi o primeiro programa de TV a gravar e exibir
imagens em infravermelho, além das gravadas pelas forças armadas em
situações de guerra e mostradas nos noticiários. Trata-se de mais um recurso
técnico a serviço da simulação do mundo vivido.
A casa-estúdio fica ao lado dos bastidores, onde uma equipe reforçada
trabalha ininterruptamente, afinal, o programa precisa cobrir o que acontece
com os brothers durante 24 horas por dia, inclusive enquanto dormem. E, além
das câmeras-robôs, também conta com a mão-de-obra de cinegrafistas que
percorrem o camera cross, um corredor escuro que, de acordo com a editora
chefe de BBB, Fernanda Scalzo (apud Feldman, 2006), “dá a volta na casa
toda”.
Esse corredor contorna todos os ambientes ocupados pelos
participantes e serve aos cinegrafistas que irão vigiar manualmente os
brothers. Tal vigilância é realizada através dos espelhos dispostos na casa, ou
seja, os espelhos funcionam como janelas para o mundo exterior.
93
A casa do BBB” é contígua aos bastidores, onde trabalham
cerca de 300 pessoas. São os cinegrafistas quem têm acesso
ao “camera cross” (corredor escuro onde se posicionam as
câmeras que filmam através dos espelhos). No “camera cross”,
é como se não existisse o lado de fora e este estivesse
contido e previsto dentro mesmo dos espaços da casa,
dentro dos espelhos. (Feldman, 2006)
Nesse corredor escuro, os cinegrafistas também usam roupas escuras,
fazem silêncio durante toda a gravação, pois a sua presença precisa passar
despercebida aos participantes. Nesse corredor escuro, reside a fronteira entre
a casa-moradia e a casa-estúdio, é a região de maior diálogo semiótico do
programa, a área de maior atividade semiótica porque nela a montagem estará
centrada. De um lado do camera cross, os pseudomoradores da pseudocasa
lutam por visibilidade, do outro, a produção transforma o seu cotidiano em
espetáculo televisivo.
94
A regra de ouro dos cinegrafistas é estar sempre a par do que se passa
na casa. Esse é um pré-requisito do trabalho que faz diferença no processo de
montagem, é assim que as imagens captadas se transformarão num episódio
subsequente aos acontecimentos do episódio anterior, tal qual os capítulos da
narrativa seriada. A seleção das imagens que serão mostradas no programa da
TV aberta se inicia na captação, os próprios cinegrafistas escolhem o que
será gravado ou o de acordo com a história que está sendo montada a cada
episódio.
Como o formato é importado, no começo ninguém sabia fazer e
agora os cinegrafistas estão ficando experts, pela
experiência mesmo. Eles sabem o que estão fazendo porque
estão acompanhando a história, não estão alheios aos fatos.
Se eles percebem que alguém brigou e que um clima, eles
vão fechar a câmera, vão fazer um close. Hoje conseguimos
até trabalhar com o olhar, uma coisa difícil, porque é preciso
estar muito atento para captar um olhar de uma pessoa com o
significado que isso tem, dentro desse contexto de reality, com
essa quantidade de câmeras. (Scalzo apud Feldman, 2006)
As imagens gravadas pelos cinegrafistas, que constituem o olho
humano, são mesmo diferentes das imagens captadas pelas meras-robôs, o
olho maquínico. Instaladas em pontos estratégicos para cobrir a rotina da casa,
as meras-robôs geram um material de grande importância, é verdade, mas
que não contém a riqueza do material captado pelo olho humano. Enquanto o
olho maquínico capta imagens gerais e se mantém na superfície do que ocorre
na casa, o olho humano é perspicaz, grava sutilezas como o olhar cheio de
significado de um participante.
Da mesma forma, se as imagens captadas pelo olho maquínico só farão
sentido, na sequência de episódios proposta pelo programa, quando montadas
pelos editores na ilha de edição; a montagem das imagens gravadas pelo olho
humano seiniciada na escolha do que gravar e nos movimentos de câmera,
caso do close, realizados pelos cinegrafistas. Em geral, os cinegrafistas
95
seguirão a lógica narrativa, ou seja, o olho humano imprimirá a marca da ficção
já na captação do material.
Para tanto, a fronteira, que tem como espacialidade o camera cross,
será imprescindível. Entre a casa-estúdio e seus bastidores, estará o olho
humano, a câmera e a ficção. De todos os profissionais envolvidos na
produção, apenas a figura do cinegrafista trafega nessa fronteira, pois
manuseia a câmera, a estrela maior do Big Brother. A câmera é o personagem
principal, como olho maquínico ou olho humano, somente ela podelevar as
imagens do outro até o público. Somente a câmera poderá saciar o voyeurismo
midiático. Para tanto, ela também sesimulação: o olho do telespectador que
invade a vida alheia, assim como o buraco da fechadura que permite tal
invasão.
3.4. O buraco da fechadura
O termo casa por si mesmo estimula o blico a olhar pelo buraco da
fechadura, chama o telespectador para invadir o território alheio, o espaço da
vida privada que guarda o segredo, o oculto, o proibido. E como tudo que é
proibido se torna um convite à curiosidade, nada melhor do que dar uma
espiadinha, convite reiterado pelo apresentador Pedro Bial a todo instante. Não
é à toa que a vinheta de abertura do BBB8 exibe um olho superpoderoso que
se confunde com a lente da câmera, a câmera-robô.
A vinheta começa com a câmera passeando pelo logotipo do programa,
Big Brother Brasil. O movimento, em vários ângulos, revela apenas fragmentos
do logo (Abertura 1). O logotipo inteiro surge ao final do passeio, no qual a
letra o de Brother é substituída pela lente de uma câmera (Abertura 2) que abre
e fecha suas lentes rapidamente numa piscadinha para o público. A imagem
abre em zoom out e o telespectador vê o logotipo de BBB dentro da cabeça de
um robô (Abertura 3), ele também pisca e o logo é substituído por um único
olho, o robô é uma espécie de ciclope (Abertura 4).
96
A imagem fecha em zoom in no olho do robô e é possível divisar na
pupila um mosaico (Abertura 5), a imagem fecha ainda mais e o mosaico é
ampliado (Abertura 6), a imagem fecha mais um pouco e o telespectador
mergulha no mosaico (Abertura 7). A mera busca um quadro do mosaico,
nele está a imagem do primeiro participante do BBB8, Alexandre (Abertura 8).
Mas ele foi eliminado, portanto, a sua imagem é desligada dentro do quadro
como se desligavam as TVs antigas com um clarão ao final (Abertura 9). A
câmera se move pelo mosaico em fusão (Abertura 10) e mostra um a um todos
os participantes de BBB8, os eliminados têm a imagem desligada como
Alexandre. Diante daqueles que permanecem no jogo, a câmera focaliza, faz
uma pausa mínima e segue adiante (Abertura 11). Em alguns momentos, a
imagem do participante volta ao mosaico que, agora se sabe, é uma
colagem dos rostos de todos os participantes do reality. Aí, o mosaico se
mostra novamente no olho do robô ciclope que pisca outra vez. Nesse ritmo,
após a exibição do último participante, Thatiana, o logotipo Big Brother Brasil
retorna (Abertura 12). Como um olho, a lente da mera dentro da letra o de
Brother pisca para o público.
A vinheta enfatiza a relação olho-câmera-robô e oferece, dessa forma, a
satisfação do voyeurismo midiático. BBB sabe o que o telespectador procura
esse prazer, compreende o anseio de olhar pelo buraco da fechadura e ver a
vida alheia. E deixa claro que dispõe dos recursos necessários para realizar a
vontade do público: o olho, a mera, o robô. É outra simulação. Olho, câmera
e robô são fundidos como um único equipamento, assim, o olho do público se
confundirá ao olho da câmera, será a sua extensão: tudo que o olho do público
quer ver, a câmera vai mostrar. O olho-câmera será operado 24 horas por dia,
a atividade será tão maquínica que caberá ao robô. Será uma janela indiscreta
ininterrupta.
BBB aaquela piscadinha para confirmar que é capaz de realizar o
que o público deseja. É uma piscadinha maliciosa que oferece a maçã do
Éden, quem a provar terá o prazer de conhecer o segredo do Bem e do Mal,
quem provar o programa terá o prazer de conhecer os segredos do outro. A
sedução é uma armadilha, recurso típico das narrativas de aventura, artifício
97
comum dos games, nos quais o jogador precisa superar obstáculos para
chegar ao próximo nível.
O próximo nível significa mergulhar no mosaico de participantes e
decifrar o quanto existe de ficção, o quanto existe de realidade no que eles
exibem diante do olho-câmera-robô. Para tanto, o público precisa
compactuar com a piscadinha e assistir ao programa, só precisa aceitar a
simulação. Ao tomar essa decisão, ele se cúmplice da invasão de
privacidade proposta e tecomo prêmio a satisfação do voyeurismo midiático.
Ao piscar, a vinheta simula: Vamos dar uma espiadinha?! Ao assistir, o público
pisca de volta. A simulação tem resultado.
De fato, é preciso haver cumplicidade entre o programa e o público para
atingir altos níveis de audiência. É assim que o apresentador do Big Brother
Brasil, desde a primeira temporada, Pedro Bial, torna-se o mestre de
cerimônias da sedução. Jornalista reconhecido, Bial empresta sua reputação
ao programa para carimbá-lo como sério, verdadeiro, real. Afinal, é sobre a
idéia de exibir a vida como ela é que repousa a credibilidade do reality show.
Abertura 1
Abertura 2
Abertura 3
Abertura 4
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Abertura 5
Abertura 6
Abertura 7
Abertura 8
Abertura 9
Abertura 10
Abertura 11
Abertura 12
99
Bial é o narrador da terceira pessoa, comporta-se como Deus, tudo sabe
e tudo vê, pois possui acesso a todos os segredos da casa, conhece tudo o
que foi gravado pelas câmeras. Ele também será Deus porque constituirá a
única ligação entre o que se passa no interior da casa e o que ocorre no mundo
exterior. Ele faz a ponte entre o texto vivido e o texto midiático tal qual a
piscadinha sugere os limites entre a realidade e a ficção no jogo de simulação
e autenticidade que caracteriza o Big Brother. A piscadinha assinala as
fronteiras entre o que é realidade e o que é ficção em tudo o que é exibido, a
piscadinha aponta a essência do jogo de BBB: descobrir o que se esconde
atrás das aparências.
Durante a sequência de imagens, a música-tema do programa, Vida
real, da banda RPM, dita o andamento. E a letra reafirma o Big Brother como
um jogo que explora a relação entre o Bem e o Mal (“Se pudesse escolher /
entre o Bem e o Mal”), um jogo de realidade e ficção (“Ser ou não ser?”), que
exige garra (“Se querer é poder / Tem que ir até o final / se quiser vencer”) e
superação (“O mundo é perigoso / E cheio de armadilhas / De mistério e gozo /
Verdades e mentiras”). E a letra deixa bem claro o maior desafio do Big
Brother: fazer da própria vida um jogo (“Viver é quase um jogo / Um mergulho
no infinito / Se souber brincar com fogo / Não nada mais bonito”), no qual
“Um mergulho no infinito” significa um mergulho no mosaico.
Seja como for, a oitava temporada de Big Brother Brasil é apontada pela
imprensa como monótona. É possível que a fórmula do programa tenha se
tornado tão conhecida que os participantes saibam de antemão como
agradar aos telespectadores, o que deixaria a espontaneidade de lado. Há,
também, a possibilidade dos perfis dos participantes serem muito semelhantes,
o que evitaria desentendimentos e diminuiria os conflitos na casa:
Monotonia. Essa foi a tônica da oitava edição do reality show
global "Big Brother Brasil". Com perfis muito parecidos, os
"brothers" e "sisters" selecionados pela produção do programa
entraram no confinamento certos de como deveriam agir para
conquistar os telespectadores e embolsar o tão cobiçado
prêmio de R$ 1 milhão. (MSN Entretenimento, 26.03.2008)
100
Em geral, a monotonia está relacionada à repetição do cotidiano, tanto o
próprio quanto o alheio. Por um lado, é prazeroso observar a vida alheia, o que
sacia a curiosidade. Porém, por outro, a observação ininterrupta da repetição
pode saturar ao extremo. A produção de qualquer reality show sabe disso e
procura evitar tal efeito que, sem dúvida, leva à troca de canal e faz cair a
audiência. Para tanto, é preciso criar artifícios para tornar o programa mais
atrativo. No caso de BBB, a solução encontrada tem sido elaborar vinhetas,
animações e caricaturas de situações vividas na casa com um toque de humor,
típico da cultura brasileira, na qual o programa tem lugar.
Apesar do Big Brother partir de um formato mundial, é comum serem
realizadas adaptações nas várias versões exibidas por país. Elas obedecem à
cultura local para que o programa alcance sucesso. No caso do Gran Hermano
argentino, o caráter melodramático costuma ser enfatizado, é um traço
característico dessa cultura que agrada o seu público.
No BBB8, o cartunista Maurício Ricardo Quirino criou caricaturas para os
participantes. Em todo programa, essas caricaturas são utilizadas em
animações que satirizam o cotidiano da casa e passam a funcionar como uma
marca de cada brother. No passeio de iate de Thatiana e Marcos, patrocinado
por um fabricante de sandálias, por exemplo, foi confeccionado para cada
brother um chinelo com a sua caricatura. Os desenhos se transformam em
merchandising. em dia de paredão, na arena onde se concentram as
torcidas dos indicados, as caricaturas dos brothers se transformam em grandes
bonecos que margeiam as arquibancadas.
Vinhetas, animações e caricaturas são recursos de montagem que
dinamizam o programa, mas também compõem o perfil de cada participante e
influenciam o voto do telespectador. O mesmo ocorre com videoclipes e
narrativas curtas dentro da narrativa mais ampla que constitui o programa. Para
adaptar o Big Brother ao Brasil, investe-se no texto dentro do texto.
Gyselle, por exemplo, é agraciada com uma sequência sobre a sua
personalidade quieta e silenciosa. Para lembrar a sua origem, a moça do Piauí
passou a ser chamada de menina cajuína no programa: cajuína é uma bebida
101
típica do seu Estado, que ficou conhecida no restante do Brasil com uma
música de Caetano Veloso.
Menina cajuína 1
Menina cajuína 2
Menina cajuína 3
Menina cajuína 4
Menina cajuína 5
Menina cajuína 6
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Menina cajuína 7
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Menina cajuína 15
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Menina cajuína 22
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Menina cajuína 22
Menina cajuína 23
Menina cajuína 24
Menina cajuína 25
Menina cajuína 26
A história de Gyselle começa com o quadro-legenda típico do cinema
mudo. Com fundo negro, o quadro exibe uma frase curta que constrói a
narrativa. A frase estampada no primeiro quadro é típica dos contos de fadas:
“Era uma vez”. No caso, adaptada à piauiense, “Era uma vez uma menina
Cajuína” (Menina cajuína 1). Os demais quadros-legendas seguem o mesmo
estilo e estampam as etapas da narrativa clássica: início, desenvolvimento e
desfecho.
105
O início destaca a personalidade introvertida de Gyselle (Menina cajuína
2 a 4) e a estranheza dos outros brothers diante do seu comportamento calado
(Menina cajuína 5 a 13). No desenvolvimento, a personagem encontra um
obstáculo, “Com o passar dos dias o tédio chegou (Menina cajuína 14) e
supera-o: “Depois de uma conversa com o seu melhor amigo”, um urso de
pelúcia que também não fala (Menina cajuína 16), “Gyselle decidiu falar”
(Menina cajuína 18). O desfecho mostra Gyselle como uma menina meiga
(Menina cajuína 21) que respira aliviada (Menina cajuína 22 e 23) e transforma-
se em heroína (Menina cajuína 25).
É interessante notar que, apesar da sequência construir na telinha uma
citação do cinema mudo, ela se desenvolve com voz over, um locutor narra as
frases dos quadros-legendas como contador de histórias, o que reforça o conto
de fadas. Um conto que se confunde às histórias em quadrinhos quando, no
desfecho, Gyselle surge não como princesa, mas a heroína de capa e máscara
(Menina cajuína 25).
O cinema mudo funciona como metáfora da personalidade da sister
calada, cujo comportamento silencioso intriga os companheiros de jogo. Tal
metáfora se torna evidente no quadro-legenda que exibe a imagem de Gyselle
na grande tela de cinema ao lado do título “Cinema quase mudo” (Menina
cajuína 11).
Sequências como Menina Cajuína compõem textos dentro de um texto
mais amplo, o reality Big Brother Brasil. São uma atração à parte que entretêm
o blico e seguram a audiência da versão brasileira, mesmo quando o
cotidiano da casa se torna monótono. Elas exploram a face cômica do dia-a-dia
dos brothers e utilizam recursos como a colagem (Animação 1), a fotografia
(Animação 2) e a paródia de outros programas (Animação 3), caso do desenho
animado Caverna do Dragão e a cerimônia de entrega do Oscar (Animação 4).
No entanto, esses recursos nada mais são do que mais um texto dentro
do texto. Como a matrioshka, a bonequinha russa que guarda outra
bonequinha em seu interior que, por sua vez, guarda outra bonequinha; o texto
dentro do texto também guarda outro texto em seu interior: o reality BBB8
106
guarda, em seu interior, sequências e animações que, por sua vez, guardam o
cinema mudo, o conto de fadas, a história em quadrinhos, a fotografia, o
desenho animado ou a cerimônia de premiação. Uma matrioshka textual que
configura o espetáculo.
Animação 1
Animação 2
Animação 3
Animação 4
3.5. A montagem da simulação
As sequências animadas têm a função de fazer do cotidiano da casa, da
rotina do confinamento do Big Brother Brasil, um evento que desmonta o dia-a-
dia tedioso e estressante dos brothers e remonta-o como espetáculo, mas o
são os únicos recursos utilizados para tornar o programa atrativo. É verdade
107
que se destacam pelo tom humorístico que agrada ao público brasileiro, mas
são apenas uma face da montagem, o processo por contiguidade. Afinal, tais
sequências justapõem, ao texto próprio do reality show ou à performance dos
participantes, textos de outra natureza.
Porém, o Big Brother Brasil também conta com a montagem por
similaridade da qual fazem parte as provas e os testes típicos do jogo
brotheriano. Aliás, o dia-a-dia de BBB é literalmente movido por provas, sendo
as principais a prova do líder e a prova do anjo-monstro, além dos testes para
garantir a alimentação semanal. Outros testes se juntam aos anteriores para
relembrar o público a cada instante que o Big Brother Brasil é, sim, um
gameshow, cujo entretenimento está em observar a batalha diária dos
participantes por visibilidade, o prêmio milionário será apenas consequência
disso. E essa batalha se desdobra tanto em testes físicos, psicológicos quanto
em lances de sorte e azar, assim como nos dilemas morais que afloram no
confinamento.
Caberá à montagem por similaridade colocar adrenalina na casa para
instigar atitudes e colher reações que fujam à monotonia do cotidiano. É
preciso não dar trégua aos participantes, eles precisam falar, dançar, fofocar,
articular. Só assim sepossível obter material suficiente e adequado para que
a montagem faça o seu trabalho: alinhavar e costurar cenas cotidianas para
compor a narrativa ficcional.
Em especial, quando os brothers diminuem os mexericos e ficam
quietos, a narrativa se ressente de elementos essenciais (obstáculos, prêmios,
tramas, amores, mocinhos e vilões) e torna-se necessário introduzir provas ou
recursos extras para agitar o lugar. No caso de BBB8, é instituído o Big Phone
e quando esse telefone toca, é imprescindível que um dos brothers o atenda de
imediato. Tal brother receberá, então, instruções que podem levá-lo a um
passeio fora da casa ou automaticamente ao paredão.
Provas e recursos estão destinados à criação do jogo, mas não se trata
da atividade leve e brincalhona atribuída à idéia de jogo por Huizinga (1999:
221): “no verdadeiro jogo, é preciso que o homem jogue como uma criança.”
108
Não, em BBB, o jogo será levado muito, muito a sério, pois o resultado final
significa ganhar um prêmio milionário que irá mudar a vida de um único
participante. Então, não jogo, uma vez que o elemento lúdico se perde.
Trata-se de uma competição bastante séria, cuja diversão é esvaziada e o
público, ao menos no Brasil, pressente tal processo. Tanto que a diversão
própria do jogo precisa ser retomada através da montagem por contiguidade,
pela inserção do texto dentro do texto.
O jogo brotheriano é a competição mais ria que existe, na fala de
Pedro Bial, “É jogo para gente grande. Então, não é o jogo, mas a sua
simulação reality. Simulação que dispõe de sequências cômicas, mas não
esquece aquelas que simulam a intriga, o choro, a briga e o desentendimento.
Simulações que exibem a solidão e o abandono para reafirmarem o melodrama
como mundo vivido na TV. Simulações que também exaltam os momentos de
amizade, solidariedade e diversão que fazem sucesso junto aos brasileiros.
A montagem por similaridade também movimenta a casa com as festas.
Em grande parte temáticas, as comemorações agitam o ambiente e colocam os
brothers para dançar, pular e cantar, vestidos e maquiados como super-heróis
ou gregos antigos. Por vezes, as festas contam com a exibição de shows
exclusivos de pop stars para esse grupo seleto de pessoas agraciadas pela
sorte. Os shows fazem o espetáculo, são mais um texto dentro do texto, uma
estratégia estatística vitoriosa: ao invés de exibir um grande show na TV, a
emissora transmite um grande show dentro do Big Brother e computa a
audiência desse show como audiência do programa.
Porém, nenhum recurso da montagem se compara à adesão ao
espetáculo que parte dos próprios brothers. Quando um dos participantes
perde o controle ou faz revelações bombásticas, o voyeurismo-exibicionismo
midiático atinge o auge. Em BBB8, duas situações que marcam a guerra
pela visibilidade: a primeira após flertar com Gyselle, Marcelo assume sua
homossexualidade; a segunda Thatiana confessa à Marcão, seu pseudo-
namorado na casa, ter dado beijo triplo. Nessas situações, o escândalo
sexual típico do tabloidismo invade a tela para construir mais uma forma de
espetáculo.
109
Em no meio de um dos quartos, tendo como testemunhas na casa
outras duas participantes surpresas, Marcelo primeiro solicita a atenção de
todas as câmeras. Só depois dispara:
Câmeras todas pra mim! Escutem vocês duas o que eu vou
falar. E eu preciso falar isso pro Brasil. E eu vou tirar os óculos
pra vocês olharem nos meus olhos e vocês vão saber o
seguinte: eu sou homossexual, sou.
Thatiana, por sua vez, parece ceder à pressão do confinamento.
Colocada sob suspeita quanto à sua possível homossexualidade, diante das
câmeras para filmagem em infravermelho e ao lado do seu pseudonamorado
na casa, confessa já ter dado beijo triplo:
beijei mulher? beijei mulher? Quer botar isso? beijei.
dei beijo triplo: duas mulheres e um homem, dois homens e
uma mulher. beijei? beijei. Quer mandar isso? Manda
isso. Já beijei, sim!
Revelações e confissões sobre orientação sexual espetacularizam essa
temporada de BBB8, espetacularizam o formato reality. Mas revelam e
confessam algo importante sobre o programa, o quanto a luta pela visibilidade
é fundamental para a montagem. Sem essas luta, o espetáculo deixa a desejar.
Sem essa luta, o jogo não existe e a simulação se desfaz.
O que o documentário documenta com veracidade é minha
maneira de documentar.
Geraldo Sarno
4
Edifício Master e Ônibus 174, o documentário
4.1. Documentário
Nos últimos anos, o cinema documentário tem sido cada vez mais
difundido nas salas de exibição (Duclos e Jacq, 2005: 28) no mundo todo.
Apenas no Brasil, “a audiência do documentário domina cerca de 15% das
exibições no país, o que é um salto muito grande ao índice de 1% a 2% de
anos atrás.” (Ramos apud Freitas, 2004: 58).
Com essa mudança, acredita-se que "o documentário deixou de ser
marginal e está, cada vez mais, ocupando um lugar central no cinema" (Ramos
apud Freitas, 2004: 58), ainda que os investimentos realizados pela indústria
cinematográfica nesse formato sejam reduzidos, diante dos destinados aos
filmes de ficção e a sua bilheteria o se equipare a campeões comerciais
como Titanic (Cameron, 1997), o filme de maior bilheteria da história do cinema
(IMDb, 2009) ou, no Brasil, Dona Flor e seus dois maridos (Barreto, 1976), a
maior bilheteria brasileira (IMDb, 2009).
menos de um século, os primeiros documentaristas brasileiros, os
chamados cavadores, que também costumavam ser os cinegrafistas dos
filmes, eram considerados malandros capazes de qualquer sordidez. Havia
exceções, é claro, mas muito raras:
Gilberto Rossi era respeitado, mas de modo geral estes
cinegrafistas eram malvistos; eles tinham é que descolar a
112
grana, qualquer trambique valia, e o filme resultante nem
sempre era aquela maravilha. Às vezes nem filme havia.
Eram os “cavadores” e não havia quem não desancasse os
cavadores, atribuíam-se-lhes todos os males do cinema
brasileiro. Porque cinema não era isso. Cinema era filme de
ficção, com estrelas glamourizadas. Aquele espetáculo
prestigioso que as telas exibiam no Brasil, mas que os
Brasileiros Deus sabe por que malefício não conseguiam
fazer. (Bernardet, 1979: 27)
O documentário realizado pelos cavadores o merecia crédito, nem
respeito. Estava sempre sob suspeita, suspeita de adulteração, suspeita de
fraude, era sempre uma obra engendrada pela má-fé. Assim, a associação
entre o formato documental e a falsidade ser corrente. Cinema mesmo, cinema
de verdade era o filme hollywoodiano, o filme no qual desfilavam as
celebridades, o documentário era apenas o marketing dos políticos, o filme
institucional que exibia obras e instituições blicas do ponto de vista de seus
padrinhos. O documentário exibia o Brasil exótico, a nação de grandes
recursos naturais e povo pacífico, um quadro típico do populismo. Era a
publicidade governamental, o carro-chefe da manipulação.
Mas, no decorrer do tempo, a mudança do paradigma é radical. Hoje, os
documentaristas são os cineastas mais bem vistos do cinema brasileiro.
Nomes como Eduardo Coutinho, João Moreira Salles e José Padilha são tidos
como sinônimos de ética audiovisual. O olhar sobre o documentário e o filme
de ficção é alterado, tanto que o interesse crescente do público pelo
documentário é explicado por críticos como Marie-Pierre Duhamel-Müller,
diretora artística do Festival de Cinema do Real de Paris, realizado no Centro
Pompidou, como uma certa desconfiança quanto à ficção e uma disposição
para ver a realidade (Duhamel-Müller apud Duclos e Jacq, 2005: 28).
Tal disposição pode ser compreendida como um dos sintomas do
fenômeno janela indiscreta que tem contaminado os sistemas de comunicação
em geral. O interesse pelo documentário é mais uma janela encontrada por
esse fenômeno para modelizar tais sistemas, no entanto, assim como janela
indiscreta os modeliza, também é por eles modelizado. Se a história do
documentário no Brasil prima pelo desenvolvimento de um modelo ético, capaz
de conferir credibilidade ao formato e seus textos, a presença do janela
113
indiscreta nesse sistema de comunicação se dará de maneira particular. A
questão ética será sempre central.
O fenômeno janela indiscreta pode ser compreendido como uma face do
grande impacto das novas tecnologias nos sistemas de comunicação que
demonstra como tais aparatos não alteram apenas meios técnicos. Quando as
novas tecnologias possibilitam acompanhar os acontecimentos em tempo real,
num mundo digital para o qual as distâncias geográficas não fazem mais
sentido; quando o planeta deixa de ser medido em quilômetros para ser
alcançado pela velocidade de conexão, em bytes por segundo, não ocorre
apenas uma mudança nos meios cnicos. O que se transforma é a cultura
gerada por tais meios, agora compreendidos como sistemas de comunicação
que constroem e alteram mentalidades, visões de mundo, formas de ver e fazer
o cotidiano.
Nesse contexto, ações como espreitar, observar ocultamente e devassar
a privacidade alheia, próprias da curiosidade humana, sofrem semiose. As
novas tecnologias permitem que essas ações, antes realizadas de forma
contida e individual aqui e ali, passem a fazer parte do dia-a-dia dos sistemas
de comunicação com abrangência planetária. Os aparatos responsáveis são os
novos olhos maquínicos, câmeras de todos os tipos em todos os lugares para
captar os atos mais corriqueiros, é verdade, mas também para gravar o
inesperado, o bizarro, o obsceno.
Trata-se da cultura da vigilância, onde todos observam e são
observados, todos praticam o voyeurismo e o exibicionismo em dada medida e
a punição, associada à vigilância por Foucault (1975), com o decorrer do tempo
poderá ser banida. As pessoas não apenas querem ver o outro, também
querem ser vistas por ele. Quando a punição ocorrer, se ocorrer, estará muito
mais relacionada à exposição desmesurada de aspectos que o exibicionista
considere inadequados ou insuficientes para atender o plano expositivo que
desenvolveu. Algo como o vídeo de sexo com o namorado carregado no
YouTube após o rompimento. Algo como a comunidade virtual que fala mal da
atriz de TV, depois que ela destratou o fã, líder dessa comunidade.
114
Essa será, portanto, uma vigilância às avessas e poderá ser tomada
mais como cultura da bisbilhotice do que vigilância no sentido proposto por
Foucault. A violência, a coação e o constrangimento físico e moral serão
transformados em caricatura, não farão mais sentido no universo burlesco e
cômico que se estabelece pelo entretenimento. O clima de terror é substituído
pela alegre diversão que envolve espreitar e ser espreitado, ver e ser visto,
expor e encobrir. Como o alegre jogo de esconde-esconde, agora a brincadeira
predileta será simular e dissimular.
Embora seja a Internet um dos sistemas de comunicação que mais
tenha se destacado na vigilância ininterrupta da privacidade alheia, a cultura da
vigilância extravasa os limites do computador. A TV o tem ficado para trás,
tal cultura pode ser notada na modelização de seus formatos mais tradicionais,
caso da telenovela no Brasil e na geração de novos formatos como o reality
show. O documentário, por sua vez, não será exceção, ainda que o impacto da
vigilância em suas estruturas de linguagem ocorra de maneira diversa.
A cultura da bisbilhotice, como se desenvolve nos sistemas de
comunicação atuais, está destinada à observação de tudo e de todos
indiscriminadamente. O alvo dos olhos maquínicos, verdadeiros paparazzi, não
serão apenas as celebridades da moda, os anônimos também terão lugar
garantido nos textos produzidos como índices do mundo vivido. Mesmo no
documentário, com toda a preocupação ética que o formato tem demonstrado
no Brasil nos últimos tempos, as pessoas comuns desempenharão o papel de
índices.
A princípio as pessoas anônimas serão tomadas como índices porque
falarão pelo todo do qual fazem parte: a família, a vizinhança, a comunidade, a
classe média. Haverá o indivíduo que fala pela sociedade em geral ou a partir
de algum de seus segmentos, basta ser reconhecido como membro para ter
representatividade. As pessoas anônimas serão índices de fato porque fazem
parte do mundo vivido, o elas que vivenciam o cotidiano, uma vez que as
celebridades se encontram em outro patamar, outra dimensão. As celebridades
possuem a aura do incomum, o que as torna casos especiais, exceções do
mundo habitual, corriqueiro. Ou seja, menos representativas quando o assunto
é exibir a vida como ela é.
115
Dar voz aos anônimos nos sistemas de comunicação significa tornar os
textos gerados mais próximos do mundo vivido, não apenas porque esse
mundo é a realidade, mas porque ele é dotado de características que, em
teoria, minimizam o inverossímil. Se algo ocorre no mundo vivido, tal
acontecimento não é impossível, não pertence à ordem da abstração, por mais
estranho ou bizarro que o fato possa ser, ele será digno de crédito porque se
deu no mundo material.
A materialidade do mundo vivido causa uma espécie de imersão. Daí
esse mundo se tornar o modelo para a construção de textos, façam eles ou não
referência direta ou explícita à vida real. Essa materialidade, essa capacidade
de transformar o texto numa espécie de universo fatual, mas verossímil será
uma estratégia de criação que, no cinema, não perpassará apenas o
documentário, mas todos os outros formatos cinematográficos, do drama
histórico em Gladiador (Scott, 2000) à ficção científica com O Exterminador do
Futuro 1 (Cameron, 1984), além da animação gráfica de Shrek 2 (Adamson,
2004).
A grande diferença entre os formatos documentais e os ficcionais seria o
cuidado ético na sua realização:
Sans précautions éthiques, sans choix esthétiques, le
documentaire rejoindrait alors paradoxalement... les dispositifs
industriels qui permettent de modeler des mondes toujours plus
irréels (Gladiator, Terminator, Minority Report, Matrix, I-Robot,
Harry Potter, Shrek). Les scénarios, même tirés de bons
romans, tel I-Robot, film américain (Alex Proyas, 2004), inspiré
des romans d’Isaac Asimov, y deviennent prétextes à la
prouesse d’un réalisme technologique à laquelle résiste mal
l’imaginaire de chaque auteur. Même les univers singuliers d’un
Enki Bilal (Immortel, 2004) ou d’un Jean-Pierre Jeunet
(Alien IV, La Résurrection, Amélie Poulain, Un long dimanche
de fiançailles), semblent contaminés par cet excès de facticité.
De leur côté, les acteurs servent d’armatures vivantes ou
donnent la réplique à des poupées comme dans Pole Express
(Robert Zemeckis, 2004). Quant au spectateur, il est réduit à
une crédulité tremblante devant la compétence suggestive de la
machine à illusions.
Ainsi, au travers d’un même culte du vrai, ciné-virtualité et ciné-
réalité peuvent converger: dans le documentaire comme dans
la fiction, l’auteur ne créerait plus un monde qui lui est propre,
l’acteur n’incarnerait plus cette vision, le spectateur ne pourrait
116
plus s’y reconnaître. Le réel régnerait désormais sur le 7e art,
nivelant tous ses protagonistes, devenus ses servants. (Duclos
e Jacq, 2005: 28)
Assim, o cinema-virtualidade ou ficcional e o cinema-realidade ou
documental convergem ao criarem mundos verossímeis em si mesmos,
mundos passíveis de crença, imersão. As duas vertentes cinematográficas
geram mundos simulados, ainda que utilizem processos próprios.
É interessante notar que o mesmo fenômeno relaciona o filme
documentário a formatos característicos de outros sistemas de comunicação,
por exemplo, o reality show. Obviamente existem ressalvas, não se pode negar
que entre o documentário e o reality show, há uma grande distância. No
entanto, na cultura da vigilância, ambos se aproximam pelo emprego de
mecanismos semelhantes na busca por um universo de não-ficção que
corresponde à simulação da própria realidade:
Curieusement, on ne rapproche guère cette vogue réaliste des
émissions de télé-réalité telles que “Strip-tease”, “Loft Story”,
“Survivor”, aux Etats-Unis, “Big Brother”, ou “Gran Hermano”,
aux Pays-Bas ou en Espagne, aux ressorts pourtant analogues:
caméras postées pour saisir des comportements spontanés,
acteurs non professionnels devenant objets consentants. Bien
sûr, dire que le documentaire en appelle au même désir
d’emprise que les shows, considérés comme la lie des
programmes, serait abusif. Mais soyons vigilants: tous les
dispositifs réalistes peuvent servir une manipulation: celle des
non-acteurs, à la merci des réalisateurs guettant ce qui leur
échappe; celle des spectateurs croyant qu’on filme pour eux la
vie même. (Duclos e Jacq, 2005: 28)
Entretanto, em sistemas de cultura cuja plataforma de trabalho pretende
exibir a vida como ela é, os textos construídos irão ultrapassar a idéia de
representação do mundo vivido. Esses textos tenderão à simulação, procurarão
formular um mundo no qual o expectador possa mergulhar e navegar em total
imersão. Daí, no caso desses sistemas, a necessidade da reprodução cada vez
mais fiel, cada vez mais próxima ao mundo vivido. Essa será a estratégia pela
qual os sistemas de comunicação que trabalham com o documental criarão
mundos simulados.
117
Todos os aparatos e todas as técnicas, dos recursos mais simples aos
mais sofisticados, dos mais antigos aos de última geração, devem acentuar as
semelhanças entre o mundo midiático, exibido pelos sistemas de comunicação
e o mundo vivido, experienciado no cotidiano. A realidade exibida pelos
sistemas de comunicação será tomada, então, como o fragmento legítimo,
autêntico do mundo vivido, recortado pelo olho da mera e montado como
mundo midiático.
A percepção da diferença entre a realidade do mundo vivido e a ficção
do mundo midiático será deliberadamente apagada para que a simulação não
seja notada. Assim, ao encobrir os processos mediativos, será possível tornar a
vida midiática tão digna de crédito quanto a realidade de tal modo que o público
as considere equivalentes no critério veracidade. E a estratégia utilizada para
tanto será a exploração do modelo indiciário, uma vez que o índice impregna o
texto no qual se vê inserido com uma aura de realidade.
Essa autenticidade, conferida pelo índice, dilui limites, reforça a fusão
entre ficção e mundo vivido, mas também é um ardil que permite aos sistemas
de comunicação anunciarem ao público que funcionam como espelhos fiéis e
dignos de confiança do mundo vivido. Como se não houvesse lentes que
refratassem a realidade, apenas espelhos que a refletissem.
De fato, se a mídia exibe o mundo vivido exatamente como ele é, por
que não acreditar no que veicula? Se a mídia exibe o mundo vivido exatamente
como um espelho, para que questionar o que ela mostra ou como, de que
forma isso é feito?
Quando os sistemas de comunicação o vistos como meros espelhos
do mundo vivido, a mediação é desprezada, a montagem ou a organização
interna dos textos produzidos é desconsiderada e a ficção, no sentido proposto
por Geertz (1989: 11) como algo construído, disfarçada. Afinal, se o sentido
original de fictio é construção e todo texto possui uma organização interna, uma
montagem que pode ser compreendida como processo construtivo, não
texto sem ficção. Em algum grau e de alguma forma, todo texto sempre será
construído, todo texto sempre será ficcionalizado.
118
Mas o segredo do efeito espelho será encobrir a ficção existente em
cada texto. Desse modo, nos dias atuais, os sistemas de comunicação
estariam se dedicando cada vez mais à produção de textos o-ficcionais.
Fortemente indiciário, o universo da não-ficção possui o pré-requisito
fundamental para a construção do efeito espelho, índices em abundância.
Porém, trata-se de um ardil. Tais sistemas não conseguem eliminar a ficção de
nenhum de seus textos, pois ficção e realidade são, na verdade, os dois pólos
de um contínuo semiótico responsável pela geração textual.
Desse modo, o universo da não-ficção guarda, em seu interior, o diálogo
entre ficção e mundo vivido, entre ficção e realidade. Na semiosfera, esses dois
sistemas de cultura dialogam sem limites muito definidos, sem separações
nítidas, uma imprecisão que enriquece esse universo do ponto de vista
semiótico, mas também oculta um amplo projeto de credibilidade dos sistemas
de comunicação. Será a credibilidade necessária ao sucesso da simulação.
O diálogo impreciso entre ficção e mundo vivido, que pode ser muito
criativo, é reduzido à simulação que torna invisível um desses pares
dialogantes. A ficção não é assumida, ela é deixada de lado quando se anuncia
que esse ou aquele texto retrata a vida como ela é.
Eis uma estratégia de persuasão. A aproximação entre ficção e mundo
vivido deve induzir a certeza, a convicção de que os textos elaborados sob
critérios ditos objetivos irão corresponder aos acontecimentos como de fato
são. Assim, em teoria, a prática da manipulação estaria afastada e os textos
assim gerados contariam com grande autoridade aos olhos do público. Tais
textos seriam certificados como reais, ainda que o real que exibissem fosse, na
verdade, um pseudo-real. Pseudo, construído, imitado, simulado.
Como se não houvesse lentes que refratassem a realidade, apenas
espelhos que a refletissem, o processo de simulação prima pelo paradigma
indiciário e destaca a imagem do tipo fotográfico. Como parte do objeto, essa
imagem não se limita a apontar o mundo vivido, mas dilui as bordas entre
ficção e realidade pela força da conexão óptica entre imagem fotográfica e
realidade, assim se faz crer que a simulação não existe. A força dessa imagem
metamorfoseia a representação em algo mais. Tomada como prova retórica
119
sobre a veracidade, a imagem fotográfica determina a simulação nos sistemas
de cultura que a adotam.
No centro do processo, está a verossimilhança que, além de
característica da imagem fotográfica, pode ser reconhecida como um elemento
de modelização importante nos sistemas de cultura atuais. Trata-se de um
elemento capaz de modelizar variados sistemas, que operam na fronteira entre
a ficção e o mundo vivido, entre os quais se encontram a etnografia, o
jornalismo, a história, o documentário, a telenovela e o reality show.
O documentário, por exemplo, exibe a força da verossimilhança na
captação do mundo vivido, durante muito tempo realizada com exclusividade
pela película fílmica e pela fita de áudio:
Pela capacidade que têm o filme e a fita de áudio de registrar
situações e acontecimentos com notável fidelidade, vemos nos
documentários pessoas, lugares e coisas que também
poderíamos ver por nós mesmos, fora do cinema. Essa
característica, por si só, muitas vezes fornece uma base para a
crença: vemos o que estava lá, diante da câmera; deve ser
verdade. Esse poder extraordinário da imagem fotográfica não
pode ser subestimado, embora esteja sujeito a restrições
(Nichols, 2008: 28)
A capacidade da imagem fotográfica de reproduzir a aparência
do que está diante da câmera compele-nos a acreditar que a
imagem seja a própria realidade reapresentada diante de nós
(Nichols, 2008: 28)
Na verdade, a verossimilhança diz respeito ao quanto a ficção parece a
realidade à qual se refere. Essa relação induz a crença na completa
equivalência entre verossimilhança e veracidade na transmissão do mundo
vivido: quanto maior a verossimilhança, maior a veracidade. São grandezas
diretamente proporcionais.
É preciso compreender, no entanto, que a relação entre o mundo
midiático, aquele exibido pelos sistemas de comunicação e o mundo vivido não
significa necessariamente veracidade, uma vez que a transmissão do real não
conta com um grau zero. Tal transmissão sempre estará marcada pela
mediação, cuja primeira manifestação se dará através do sistema perceptivo.
120
Afinal, o real é uma abstração que exige tradução perceptiva para ser
compreendida. a mediação lhe fornece linguagens, códigos e textos com os
quais se torna possível dialogar na vida cotidiana. E o diálogo é, em si, uma
operação de tradução:
We have mentioned that the elementary act of thinking is
translation. Now we can go further and say that the elementary
mechanism of translating is dialogue. (Lótman, 2001: 143)
um artifício de retórica no processo que faz equivaler o mundo vivido
e o mundo midiático, como se não houvesse qualquer diferença entre eles.
Quando esses dois mundos o levados à equivalência, o reconhecimento da
mediação é comprometido e os textos que afirmam exibir a vida como ela é
adquirem o caráter de fidelidade e veracidade integral. Essa é uma manobra
retórica com grande poder de persuasão.
No entanto, todo texto é construído. A construção implica naturalmente
em mediação, ou seja, em operações de seleção e combinação que refratam a
realidade. A construção também implica naturalmente em ficção, considerando-
se ficção algo construído. Ou seja, no mundo vivido, que é mediação, existe um
processo de tradução inerente à sua própria existência enquanto linguagem e
pensamento: a tradução entre o real e os textos que o traduzem. Daí, o mundo
vivido contar, na sua construção, com a ficção.
As relações entre ficção e mundo vivido, ficção e realidade são o ponto
de partida para a exploração de vários formatos audiovisuais. No
documentário, a definição do formatose estabelece na fronteira entre ficção
e mundo vivido. A definição de documentário só é construída pelo contraste em
relação a outros formatos, em geral, o filme de ficção ou experimental, o filme
de vanguarda:
A definição de documentário” é sempre relativa ou
comparativa. Assim como amor adquire significado em
comparação com indiferença ou ódio, e cultura adquire
significado quando contrastada com barbárie ou caos, o
121
documentário define-se pelo contraste com filme de ficção ou
filme experimental e de vanguarda. (Nichols, 2008: 47)
Para o documentário, a comparação com outros formatos é tão decisiva
que, por vezes, procurar defini-lo sem esse recurso pode comprometer a sua
compreensão enquanto formato.
É verdade que muitos documentaristas avisam que seu trabalho não
objetiva espelhar a vida como ela é. No entanto, a pretensão de exibir a
realidade, o mundo vivido não se refere à essa ou àquela maneira de
determinado cineasta realizar seu trabalho. Espelhar a vida como ela é trata-se
de uma exigência do formato documental e não de seus realizadores
individuais. Sempre que se puder detectar alguma forma de simulação, o
formato documental nela estará presente, seja como o documentário
propriamente dito, seja como o texto dentro do texto na telenovela, no reality
show, entre outros.
O documentário prima por simular o mundo vivido e chama a atenção do
público ao anunciar a exibição do real como se não houvesse lentes que
refratassem a realidade, apenas espelhos que a refletissem. Para tanto, os
elementos específicos da linguagem cinematográfica dados pela câmera
(enquadramento, plano, ângulo de filmagem, movimento), assim como os
elementos não específicos (iluminação, figurino, cenário, cor, tela, interpretação
do ator) conforme a tipologia de Martin (1990) , são articulados de modo a
compor simulações do cotidiano. Tais simulações o marcadas por uma
verossimilhança extrema em relação ao mundo vivido, que modeliza todo o
material audiovisual.
uma gramaticalidade no cinema documentário, um conjunto de
regras de funcionamento que modelizam os elementos da linguagem
cinematográfica, específicos e não específicos, de modo muito particular.
Trata-se de uma configuração que conta com convenções de representação,
ditas documentais, em geral vistas como capazes de minimizar a subjetividade
e evitar que o trabalho se torne tendencioso.
122
São as convenções documentais que atestam a seriedade do
documentário, revestem o formato por uma aura que o valoriza como
expressão do mundo vivido, fatual e verídico. Objetividade e isenção são
estratégias que materializam o modelo indiciário e, assim, conferem
credibilidade ao texto.
É claro que existem vários tipos de documentário, cada qual modelizado
por um modo de representação, o que leva o formato a transitar entre
extremos. Na tipologia de Bill Nichols (2008), que compreende seis formas
documentais, o documentário abrange desde o modo poético, o auto-
referente que gera mundos midiáticos muito próximos da ficção até o modo
observativo, que pretende acompanhar os acontecimentos que se desenrolam
diante da câmera sem que haja qualquer interferência do documentarista. Em
teoria, como se o cineasta sequer existisse.
Nesse sentido, as diferenças entre os vários modos de representação
documentais são tão grandes, tais modos se distanciam tanto uns dos outros
que os reunir sob o mesmo rótulo, documentário, é passível de contestação por
alguns cineastas: “Porque não nada mais diferente de um ‘documentário’ do
que outro ‘documentário’." (Bragança, 2007)
Seja como for, uma característica, um objetivo que aglutina todos
esses modos de representação: a exploração da fronteira entre ficção e mundo
vivido. Essa exploração pode determinar configurações muito distintas, mas
que sempre serão construídas enquanto simulação, uma vez que sempre
buscam o referente. A simulação seria, então, o ponto alto do processo de
referencialização, que desponta aqui e ali nos sistemas de comunicação, mas
na atualidade se consolida como forma de geração de textos que possuem um
nível de referencialidade o grande que, por vezes, são vistos pelo público
como a própria realidade.
Nesse contexto, o documentário, principalmente nos modos de
representação que valorizam o referente, caso do modo observativo, dialoga
com vários sistemas de comunicação de maneira muito significativa. O modo
observativo ou observacional advém do método etnográfico, que procura criar
simulações do mundo vivido como se o etnógrafo não fizesse parte das cenas
123
que transcorrem à sua frente. Nessa concepção, o fato de que a simples
presença do pesquisador já é capaz de alterar os acontecimentos e interferir na
cultura observada é desconsiderado.
Porém, na presença de um estranho, é inevitável que o cotidiano seja
alterado. Em teoria, várias técnicas podem ser empregadas para minimizar os
efeitos do contato, mas todas serão recursos que irão impregnar o texto
produzido de referencialidade.
Clássico do documentário observacional, Nanook of the North (Flaherty,
1922) pretende documentar o modo de vida da cultura esquimó como se
Flaherty e sua câmera sequer existissem durante a filmagem. O referente é
enfatizado todo o tempo, mesmo quando algumas sequências, caso da caçada
das morsas, o encenadas por Nanook e sua família a pedido de Flaherty.
Nessas sequências, o formato documental faz prevalecer o referente e gera a
docuficção, na qual o cinema documentário dialoga com o teatro.
Nanook é uma simulação, mas não é falso. O documentário simula o
cotidiano de uma família esquimó, nunca se o cotidiano propriamente dito
dessa família, mas essa sua condição não fará dele uma fraude. Nanook
apenas reproduzirá da forma mais referencial possível o que é visto pelas
lentes da câmera e da cultura de Flaherty. O filme irá refratar a realidade
encontrada num lugar o inóspito e exótico quanto o Ártico, ainda que muitas
vezes seja compreendido como mero espelho do que ali é encontrado.
Nanook é a experiência do mundo vivido, ainda que esse mundo
pertença à outra cultura. Também é a experiência do indivíduo, ainda que esse
indivíduo seja parte de outra cultura. Aqui, o indivíduo retrata a parte pelo todo
tanto quanto outros indivíduos, em outros documentários, são transformados
em porta-vozes de culturas mais próximas das nossas. O princípio é o mesmo
e leva-nos à questão primordial que envolve o documentário, assim como todos
os sistemas de comunicação que utilizam pessoas anônimas na construção de
seus textos: “O que fazer com as pessoas?” ou “Como devemos tratar as
pessoas que filmamos?” (Nichols, 2005: 26-46).
124
Assim, no documentário, o ato de construir textos implica
primordialmente em observar “O que fazer com as pessoas?. O que é uma
questão ética.
Ao contrário do filme de ficção, o documentário o costuma utilizar
atores profissionais para desempenhar papéis, acordados de antemão. Em
vários documentários, são entrevistadas celebridades, sejam pessoas famosas
no mundo midiático, sejam pessoas famosas em outras áreas que repassarão
sua autoridade em seus campos de atuação ao discurso veiculado. Outros,
cada vez mais frequentes, preferem trabalhar com pessoas anônimas. No
entanto, será o modo de representação documental que indicará a forma como
essas pessoas serão tratadas eticamente e essa forma é determinada pelo
processo de montagem.
Um caminho é fazer do anônimo um tipo sociológico, estratégia de
Viramundo (Sarno, 1965), documentário sobre a migração nordestina para o
Estado de São Paulo na década de 1960. Parte do trabalho enfoca o
movimento operário paulista, formado em grande parte por nordestinos. Para
tanto, contrasta dois operários, duas pessoas comuns que contam suas
histórias de vida, intercaladas pela entrevista de um empresário. O contraste
entre os operários é obtido pela montagem paralela que intercala tomadas de
um operário, sem qualificação profissional e o outro, qualificado.
É a montagem que constrói a oposição e, por contraste, cria tipos
sociológicos. Esses tipos apagam a individualidade, desconsideram a
complexidade do comportamento humano ao transformarem as pessoas em
simples matéria-prima para o discurso do cineasta. Esse processo transforma
as pessoas em personagens. Vistas dessa maneira, as pessoas serão peças
na linha de produção, peças a serem encaixadas aqui e ali no processo fabril
do texto audiovisual, funcionarão como argumentos retóricos que conferem
credibilidade ao discurso transmitido.
Nessa impessoalidade, de alguma forma, as pessoas deixarão a
singularidade que as identifica enquanto pessoas.
125
O tipo com o qual se trabalha condiciona a matéria-prima que
se vai selecionar da pessoa. Mas os caracteres singulares
dessa pessoa (expressividade, gestualidade, etc.) revestem o
tipo de uma capa de realidade que tende a nos fazer aceitar o
personagem dramático que encarna o tipo sociológico como a
própria expressão da pessoa. Mas o que ocorreu, é que o
tratamento dado à pessoa foi determinado pelo tipo a construir,
e nele se dissolve a pessoa. Ficamos com a impressão de
perfeita harmonia entre o tipo e a pessoa, quando o tipo
abstrato e geral é todo-poderoso diante da pessoa singular
que ele aniquila. (Bernardet, 1985: 19)
Esse processo não deve ser tomado como manipulação, no sentido de
falsificar ou induzir resultados. Trata-se apenas do funcionamento de
determinado modo de representação documental que toma a história de vida
ou a experiência humana como suporte. Essa limitação é reconhecida pelos
próprios documentaristas, tanto que o diretor de Viramundo, Geraldo Sarno,
anos depois dirá: “O que o documentário documenta com veracidade é minha
maneira de documentar” (Sarno, 1984). Ou seja, além da expressão singular
de cada cineasta realizar sua obra, o documentário será apenas a ficção, a
construção semiótica que enfatiza o referente. E será esse molde semiótico
que permitirá ao formato gerar a simulação.
“Simular é fingir ter o que não se tem.” (Baudrillard, 1991: 9) Nos
sistemas de comunicação, simular é fazer de conta que o texto é o mundo
vivido, fingir que entre o texto e a realidade não diferença. Para tanto, será
gerada uma forma de texto tão referencializada que ao público só restará
acreditar que o cotidiano vivenciado por ele é exatamente o cotidiano exibido.
O texto será, então, apresentado como um espelho tão fidedigno à vida real
que por vezes a dispensará. A simulação refaz a viagem de Alice através do
espelho (Carroll, 2002).
Nesse panorama, cada documentarista elaborará a simulação do seu
modo, mas não te como fugir a tal efeito. Mesmo que ele não veja o seu
trabalho dessa maneira, o formato modelizará o que lhe for submetido como
simulação. Comparem-se, por exemplo, as diversas formas de exibir o
movimento operário paulista que surgem em Viramundo (Sarno, 1965),
Entreatos (Salles, 2004) e Peões (Coutinho, 2004). O que separa esses
documentários é a forma de organizar o pensamento, enquanto Sarno
126
contrasta as experiências de dois operários anônimos; Salles acompanha Lula,
o sindicalista que chega a Presidente da República e traça o perfil do anônimo
que se transforma em celebridade. Coutinho procura dar voz aos operários
anônimos que participaram das greves do Grande ABC paulista, lideradas por
Lula no período de 1979 a 1980. Mas, ainda que esses documentários trilhem
caminhos muito diferentes para mostrarem a realidade dos mesmos
trabalhadores, algo que os une enquanto formato: a criação da simulação,
ainda que de formas distintas.
No documentário de Coutinho, em específico, a simulação gerada pelo
tipo sociológico sedeixada de lado, mas outra tomao seu lugar. A forma
de tratar as pessoas no trabalho desse cineasta, a princípio mais ética, mais
humana nem por isso terá como dispensar a construção . No entanto, ainda
assim, o formato documental construirá a simulação, de outro tipo, de outra
ordem, mas simulação.
4.2. A proposta de Coutinho
Não são poucos os documentários sobre histórias de vida e eles se
distribuem por todos os modos de representação do formato. São diferentes
maneiras de exibir experiências da vida privada, que contam com linguagens
próprias, mas se aproximam ao mostrarem o cotidiano de pessoas comuns
que, por vezes, participam da História no anonimato.
No Brasil, o documentarista que mais tem trabalhado com histórias de
vida, de pessoas anônimas, é Eduardo Coutinho. A proposta de trabalho de
Coutinho é responsável por filmes que exibem, por exemplo, as aspirações de
trabalhadores rurais, caso de Cabra marcado para morrer (1984); as
experiências de moradores das comunidades cariocas, em Santa Marta, duas
semanas no morro (1987) e Babilônia 2000 (2000); a fé dos devotos, em Santo
Forte (1999); a luta dos operários por melhores condições de trabalho, em
Peões (2004); o cotidiano dos moradores do condomínio de classe média
baixa, caso de Edifício Master (2002).
127
O processo de criação de Coutinho, segundo a sua compreensão, não
utiliza a entrevista, tanto que ele prefere substituir as palavras entrevista ou
depoimento por conversa ou diálogo. Em primeiro lugar, porque o cineasta
afirma não contar com pauta ou roteiro prévio do que será falado com o
entrevistado (Coutinho, 2003) e, em segundo, “porque entrevista, depoimento,
pressupõe uma formalização que destrói o clima de diálogo espontâneo que é
importante” (Coutinho, 1997: 16) para a construção da obra.
Para manter a espontaneidade da conversa, Coutinho busca estratégias
próprias, entre elas, manter-se próximo fisicamente da pessoa:
entrevistas feitas com teleobjetiva em que o diretor fica a
dez metros do personagem, o que torna absolutamente
impossível um diálogo. Eu não conheço nenhuma pessoa no
mundo que converse com outra a dez metros de distância,
porque ou a pessoa grita, ou então quando você faz isso, está
falando para a história, fica ruim, fica falso, e o personagem
torna-se rígido, formal e mais falso ainda do que deveria ser.
Por isso, não filmo nunca a cinco, dez metros; prefiro aparecer
no quadro, tornar a câmera mais pobre, tendo que filmar em
close, mas estou sempre próximo do personagem, a meio
metro, um metro. (Coutinho, 1997: 168)
No entanto, é possível que Coutinho conceba o termo entrevista apenas
em sentido jornalístico, dada a sua experiência na imprensa como editor,
redator e diretor do programa Globo Repórter (TV Globo) de 1975 a 1984.
Segundo Paul Thompson, que utiliza a entrevista de acordo com o método
proposto pela História oral: “há muitos estilos diferentes de entrevista, que vão
desde a que se faz sob a forma de conversa amigável e informal até o estilo
mais formal e controlado de perguntar” (Thompson, 1992: 254). Thompson
afirma, em contraponto ao pensamento de Coutinho, que “Uma entrevista não
é um diálogo, ou uma conversa. Tudo o que interessa é fazer o informante
falar. Você deve manter-se o mais possível em segundo plano” (Thompson,
1992: 271).
Sendo assim, a entrevista jornalística pode ser considerada apenas um
tipo dentre inúmeros outros, utilizados nas situações mais variadas. É possível
citar aquelas realizadas na psicologia como forma terapêutica, assim como as
128
entrevistas do método estatístico, utilizadas por institutos como o Ibope, o
Datafolha ou a Fundação Seade, entre as quais se destacam as necessárias
ao censo demográfico. na vida cotidiana, a entrevista é a ferramenta mais
usada pela administração nos processos de seleção profissional.
Seja como for, no jornalismo, a entrevista tanto é uma técnica de
captação de informação, quanto um gênero. Luiz Beltrão divide os gêneros
jornalísticos em três categorias: jornalismo informativo (Beltrão, 1969),
opinativo (Beltrão, 1980) e interpretativo (Beltrão, 1976). O primeiro,
informativo, é um gênero que procura se ater ao fato, tendo como subgêneros
a notícia, a reportagem e a entrevista.
De acordo com essa classificação, é possível localizar traços da
linguagem jornalística no trabalho de Coutinho, que passeia pela reportagem e
pela entrevista. Além disso, esse trabalho também exibe elementos do método
etnográfico, principalmente na tentativa de apreender o mundo do vivido
através da observação participante. Coutinho entra em contato com a pessoa
comum, o anônimo de seus documentários como o etnógrafo atual se aproxima
do nativo de outra cultura: sem negar a interferência da sua presença no
ambiente, mas acreditando que o seu impacto pode ser reduzido.
Mas, em Coutinho, a etnografia surge mesmo através da imensa
curiosidade de decifrar o outro, o diferente em seu próprio meio, em seu próprio
habitat. Dessa forma, na maioria de seus filmes, é reservado um papel de
grande importância à espacialidade na qual o encontro com o outro acontece.
Tanto que em Edifício Master, o personagem principal do documentário será o
lugar, criado e recriado pelas histórias de vida de seus moradores e o as
histórias propriamente ditas.
4.3. Edifício Master
A um quarteirão da praia, em Copacabana, o Edifício Master conta com
12 andares e 23 apartamentos por andar, num total de 276 apartamentos
conjugados. São quase 500 moradores. No documentário sobre o prédio, que
129
tem como título o seu nome Edifício Master (Coutinho, 2002), as histórias de
vida de 37 moradores desfilam diante da câmera.
Amostras da diversidade de histórias contadas são a experiência de
Henrique, major aposentado da marinha norte-americana, que canta My way; o
relato de Alessandra que fala abertamente sobre a profissão de garota de
programa e o depoimento de Luiz, o porteiro-chefe que achou um be no
corredor. São experiências que se unem à fala de rgio, o síndico que
transformou o Master num edifício “de família”, seguindo um modelo próprio de
administração: “Eu uso muito Piaget, quando não certo, eu parto prá
Pinochet.”
E sobre o que exatamente falam os moradores do Master? Alguns, como
o síndico, falam diretamente do condomínio, mas não é o caso da maioria.
Nesse prédio, grande parte das histórias contadas pelos moradores diz
respeito à sua vida privada. No entanto, se essas histórias se referem à vida
pessoal dos moradores, como podem estar num documentário cujo título
sugere a coletividade? Ora, mesmo que as histórias contem experiências
individuais, elas terminam por compor a imagem de algo mais amplo,
funcionam como peças de um mosaico. No caso, o edifício.
O documentário é, na verdade, a descrição de um lugar que se a
conhecer pela imagem e pelo discurso de quem o ocupa. É um local apropriado
que desse modo se faz lugar. Aliás, é exatamente a posse desse local, o uso
por seus moradores, cada qual a seu modo, que o define urbanisticamente
como lugar:
Lugar, conforme tradicionalmente interpreta o Urbanismo, é um
espaço qualificado, isto é, um espaço que se torna percebido
pela população por conter significados profundos,
representados por imagens referenciais fortes. Por isso
mesmo, em sua gênese comparecem fatores físicos e
psicológicos, que tanto têm a ver com o desenho da
configuração morfológica urbana, quanto com o
comportamento interativo adotado pelas pessoas na utilização
dessas formas (Castello, 1997, grifos do autor)
130
Portanto, ainda que os moradores falem sobre acontecimentos de suas
vidas particulares, numa perspectiva mais ampla, as narrativas retratam o
edifício porque qualificam o local onde seus autores residem. Mesmo que os
depoimentos não façam referências diretas ao prédio, ele estará presente, pois
cada morador falará como parte do condomínio. Assim, será constituído o
lugar no documentário.
Para realizar o documentário, a equipe de Coutinho passa sete dias no
edifício Master, convivendo com os moradores e gravando suas histórias de
vida. O cineasta havia realizado trabalhos similares, voltados à exploração
de lugares, mas nas favelas cariocas, o num prédio de classe média. Em
1987, realiza Santa Marta: duas semanas no morro, filme que exibe os
depoimentos de moradores do Morro Santa Marta, favela de Botafogo, Rio de
Janeiro. No ano 2000, na virada do século XX para o XXI, Coutinho grava
Babilônia 2000, documentário no qual os moradores do Morro Babilônia fazem
um balanço de suas vidas (Lins, 2004: 121-122) e manifestam suas
expectativas com a mudança de século.
Nesses trabalhos, a produção de Coutinho aproveita os mecanismos da
vida em comunidade para obter informações sobre quem entrevistar, quando e
onde, o que facilita a sua atuação. no Master, devido à ausência desse tipo
de organização social, a equipe enfrenta problemas para conseguir as mesmas
informações. Trata-se de outro lugar, que se organiza de outra forma e conta
com outras regras de funcionamento: a classe dia, moradora do Master,
isola-se dentro de apartamentos conjugados.
O que se ao percorrer o condomínio são longos corredores pouco
iluminados, com inúmeras portas absolutamente iguais, que não deixam saber
quem se encontra por detrás. É difícil cruzar com alguém nesses corredores,
isso acontece poucas vezes. uma sensação de solidão nessas tomadas,
quase 500 pessoas moram no mesmo prédio, mas os corredores são vazios.
É assim que Consuelo Lins (2004: 144), integrante da produção de
Coutinho descreve o Master:
131
No Master, o que entre os 276
apartamentos são portas idênticas,
corredores desertos e escadas sinistras.
Era o mesmo bairro, o mesmo prédio, os
apartamentos podiam ser vizinhos, mas a
cada porta que se abria deparávamos com
um mundo inesperado e moradores sem
qualquer conexão com quem vive ao lado.
A maior parte não se conhecia nem tinha o
menor interesse em se relacionar com os
outros. Não havia um “acúmulo” de
conhecimento entre um morador e outro,
não havia questão ou tema a ser
retomados sob um outro ponto de vista.
(...)
Era como se cada apartamento fosse um
planeta diferente e, ali dentro, um mundo
possível, com valores, hábitos, moral,
enfim, uma vida própria e autônoma. E
tínhamos a cada entrevista de nos
readaptar a esse novo mundo.
Esse retrato do edifício, traçado por Consuelo Lins, “portas idênticas,
corredores desertos e escadas sinistras”, é encontrado nas cenas de
passagem do filme. São flashes rápidos que fazem a transição de um
depoimento ao outro e mapeiam um território físico, o edifício, que a câmera
percorre para transportar a arquitetura do prédio para a tela.
O público percorre esse território junto com a câmera, o olho humano se
transforma em olho maquínico para ver o que existe além do que consegue
alcançar, para enxergar o que onde não pode estar presente fisicamente.
Para tanto, a espacialidade do edifício Master em Copacabana, construída por
ferro e concreto no mundo vivido, transforma-se em espacialidade midiática.
132
Centrada no referente, essa espacialidade midiática, documental, faz o
público percorrer o Master de forma labiríntica, leva-o de apartamento em
apartamento para descobrir pelas frestas das portas trancadas, desvendadas
pela câmera, o universo da vida privada. Em cada apartamento, o público irá
descobrir um “planeta diferente e, ali dentro, um mundo possível, com valores,
hábitos, moral, enfim, uma vida própria e autônoma.” Será o conjunto desses
planetas que irá compor, na tela, a simulação do edifício no qual não entramos
pessoalmente.
Documentarista e blico realizam
um percurso juntos ao se moverem pelo
Master, uma cartografia, tanto que o
documentário pode ser compreendido
como um mapa construído pelo
movimento do andar e do olhar. O
documentário será o diagrama de um
lugar fechado, cuja observação do que
ocorre entre quatro paredes é sugerida
logo nas cenas iniciais: a chegada da
equipe de filmagem é exibida através do
olhar das meras de segurança do
condomínio.
O depoimento da primeira entrevistada, Vera, revela essa nuance
cartográfica do documentário claramente. Em sua fala, ela dá a conhecer todos
os apartamentos do Master nos quais morou, num total de 28 apartamentos,
durante seus 49 anos de idade:
133
Vera – Eu vim prá cá com 1 ano.
Coutinho – Quer dizer que praticamente a
senhora passou todos esses 49 anos
aqui.
Vera Aqui, todos eles. Todos os 49
anos eu passei aqui sem nunca mudar do
prédio.
Coutinho Sempre nesse apartamento
aqui?
Vera Não, não. Eu morei do... o meu
primeiro apartamento que eu morei foi o
813; morei depois do 813, eu fui pro 715;
do 715, eu morei no 714, morei no 1102,
morei no 306, morei no 209, morei no
123, morei no 117.
Vera – Vinte e oito apartamentos.
Coutinho – Explica isso.
Vera Porque foi assim. Ela alugava os
apartamentos e com a ordem dos
proprietários, ela sublocava. Ela mobiliava
o apartamento e a pessoa gostava do
nosso apartamento, entendeu? Então, a
gente pulava prá outro. Sempre às vezes
a nossa vida era de cigano, mas sempre
dentro do mesmo edifício.
É um relato detalhado que enumera o percurso de Vera dentro do
condomínio. Esse percurso possui uma temporalidade, 49 anos, que não se
refere simplesmente aos 49 anos de Vera, mas diz respeito a 49 anos da
história de todo o Master. Esse percurso também marca uma espacialidade, a
quantidade de apartamentos nos quais Vera residiu nesse período mostra as
dimensões gigantescas do edifício. Afinal, ela conseguiu morar em 28
apartamentos diferentes dentro do mesmo prédio.
Trata-se da espacialidade da grandiosidade, muito apropriada para
acomodar o número elevado de moradores do Master, mas que também
contribui para as relações impessoais, expressas por corredores repletos de
portas idênticas, embora vazios da presença humana.
134
Ainda assim, o primeiro depoimento começa a descortinar o que ocorre
por detrás dessas portas idênticas. O documentário revela que as portas tão
parecidas, o padronizadas do Master guardam, em seu interior, pessoas e
histórias de vida muito diferentes.
Quem abrirá essas portas será a câmera, mas não para mostrar a
arquitetura interior, a forma de ocupação ou passear pela decoração de cada
apartamento que permite a sua entrada. O alvo da gravação será a pessoa
anônima que vive atrás de determinada porta, a pessoa e sua história. A
câmera irá coletar depoimentos, é claro, mas também expressões faciais,
gestos, pausas, risos e até mesmo lágrimas. Todas essas manifestações serão
índices que serão aproveitados para criar a simulação, a sensação de que
adentramos ao Master junto com a câmera.
4.4. A visualidade da face
Durante cada relato, a câmera dificilmente se abre. Em primeiro plano,
estará sempre fechada, algumas vezes em meio primeiro plano (corte dos
ombros para cima), outras em plano dio (corte abaixo dos cotovelos para
cima). Desse modo, a visualidade será construída pelo corpo humano em
movimentos corporais, gestos das mãos. O destaque será o rosto em
expressões, mudanças de semblante, risos, emoções que transpassem pela
face. Esse enquadramento fechado é repetido em todas as entrevistas, sendo
alterado poucas vezes para exibir aqui e ali algo no ambiente que possa
compor a personalidade de quem fala.
Planos amplos nunca são exibidos. Não há, por exemplo, nenhuma
imagem da fachada do edifício Master. Afinal, o que interessa ao documentário
não está no exterior, mas no interior do edifício, assim como na vida interior de
seus moradores. Trata-se da câmera intimista.
A sensação dada por essa linguagem passa pelo lugar cerrado, pela
privacidade resguardada que se aberta pela mera. O olho maquínico da
135
câmera sea fresta pela qual o público poderá entrever o que se encontra no
interior desse lugar fechado. Apenas entrever, pois cada entrevistado falará
somente durante alguns minutos, nesse tempo tão curto, eles revelarão
algumas poucas coisas sobre si mesmos, mas tudo o que revelarem esta
gravado no documentário como registro.
Na verdade, a mera procura traduzir visualmente a condição de
quase 500 pessoas morarem num único edifício, encerrarem-se dentro dele em
pequenos apartamentos e, apesar da proximidade física, conseguirem se
manter distantes umas das outras. Quase 500 pessoas moram lado a lado,
muito próximas geograficamente, mas muito distantes em relações humanas.
Sem vida comunitária, elas mantêm em comum os corredores vazios, cheios
de portas idênticas. Elas mantêm em comum apenas o edifício no qual residem
e assim fazem dele um lugar, ainda que não o enxerguem como uma
construção coletiva.
Nada como a face humana para revelar a beleza e a dificuldade de viver
assim. Tanto que, por vezes, os entrevistados de Coutinho o o escolhidos
apenas pelo que têm a dizer ao público. A expressão facial, os traços
fisionômicos do rosto também desempenham papel central nessa forma de
documentário que utiliza o enquadramento fechado. O que o público irá
conhecer sobre a história de vida, as experiências daquela pessoa anônima
serão a sua fala e, sobretudo, a sua face.
Com expressão marcante, os entrevistados do Master podem discorrer
sobre os assuntos mais banais, mais corriqueiros e prender a atenção do
público. A tela é tomada pela face humana, a câmera atualiza o
enquadramento fotográfico dos retratistas. Em primeiro plano, a pessoa. A
câmera se posiciona muito próxima do entrevistado, quase colada a ele e
realiza poucos movimentos, quando muito um zoom que evidencia uma
expressão, um gesto.
Há, inclusive, um morador que não diz absolutamente nada. Bacon,
vestido com capa de chuva amarela, óculos escuros e capacete de parafusos,
permanece mudo diante da mera durante a gravação inteira. Enquanto os
colegas João e Fábio, que dividem o apartamento com Bacon, cantam e tocam
136
diante da câmera, ele não diz uma única palavra. No entanto, na seqüência de
depoimentos que o seguem e precedem, a sua aparição se situa logicamente
como uma forma de depoimento não-verbal. Uma entrevista, um diálogo,
depoimento ou conversa sem palavras, puramente visual.
Coutinho – Ele fala? (referindo-se
a Bacon)
Fábio – Não.
João – Ele trabalha no restaurante
chinês.
Coutinho – Ele nem responde
também.
João – É, quando ele tá com essa
roupa, é proibido falar.
Coutinho – Explica isso prá mim.
João – Pô, porque a nossa
intenção com ele é que ele seja
uma mensagem visual. Ele
interpreta corporalmente o que a
gente quer passar com a música.
Então, se ele falar, perde o sentido
porque é uma imagem, é prá ser
uma mensagem visual, não
sonora.
A questão da face sempre foi importante para os sistemas que
trabalham com o registro. Na etnografia, por exemplo, Pierre Verger destaca a
visualidade da face em vários momentos. Em seu trabalho, fotos com as
marcas dos lugares do mundo aos quais pertencem, faces características tidas
como dados etnográficos tão valiosos quanto quaisquer outros. São as caras
do mundo retratadas por seu olhar viajante (Verger, 2002: 47-49).
137
Vietnã (Ásia) - 1938
Benin (África) - 1948-1979
Canudos (Bahia) - 1946
A questão do registro é importante no Edifício Master e, nesse contexto,
a visualidade do corpo humano, em especial do rosto, marcará a diversidade
que se esconde por detrás de corredores vazios e portas idênticas. As
semelhanças dos moradores do Master estarão mais nesses corredores e
portas do que na sua variedade de faces, vozes e histórias de vida.
4.5. O ritmo do inesperado
Em alguns casos, será exibido um pouco mais do apartamento do
morador. Trata-se de forma de compor o personagem, a arrumação do lugar
falará sobre o seu ocupante. Na entrevista de Roberto, por exemplo, a
apresentação do apartamento, cheio de caixas de papelão, roupas entulhadas
e objetos dispersos, traduzirá as condições de saúde e as dificuldades
financeiras do camelô.
138
Coutinho – O senhor trabalha aonde?
Roberto Olha, meu filho, eu trabalho de
camelô. Mas já fui um homem bem de
vida, tive muitas casas. Mas, ah... Eu
morava em Santa Teresa, morava em
Santa Teresa, tive muitas profissões na
minha vida, trabalhei muito nesse mundo.
Enquanto muita gente ia tomar a sua
cervejinha, eu ficava trabalhando.
Trabalhei muito dia e noite sem parar.
Mas, infelizmente eu fiquei doente, eu tive
um derrame cerebral, fiquei seis meses
num hospital sem poder me mover.
Roberto Olha, eu com 65, vou fazer
66 anos, doente, nessas condições, quem
é que vai me dar emprego? Prá dar
emprego prum garoto novo difícil!
Quanto mais prum velho cheio de
problema. Então, não tem emprego prá
uma pessoa igual a mim. O senhor quer
me dar um emprego?
Coutinho Eu, eu não tenho emprego prá
dar. É claro que hoje em dia nem com 50.
Roberto O senhor é uma pessoa muito
simpática e muito amável, eu lhe
agradeço. É ou não é? Mas é isso, a
realidade é a realidade, né, meu amigo?
Roberto surpreende ao perguntar se Coutinho não quer lhe dar um
emprego, faz o cineasta titubear na resposta. No entanto, na montagem final,
Coutinho mantém esse trecho, o corta o questionamento. Por um lado, é um
tratamento ético para com o entrevistado. Por outro, manter o inesperado, o
que se encontra fora de qualquer roteiro no texto confere credibilidade ao
sistema, contribui para a construção da simulação.
No documentário de Coutinho, a montagem incorpora a captação do
instante, do evanescente. Ele conta com o acaso, o imprevisível para realizar o
filme e procura manter o frescor do contato com o entrevistado, será esse
frescor o responsável pela elaboração de um ambiente capaz de gerar o
inesperado. Para preservar a espontaneidade do primeiro contato com o
entrevistado, num primeiro momento, Coutinho envia apenas a equipe de
139
pesquisa. Ele o conversa com o entrevistado antes da gravação, seleciona
quem será filmado ou não a partir dos relatórios dessa equipe.
Também para manter a espontaneidade, Coutinho procura nunca
interromper o entrevistado. Para tanto, evita fazer perguntas desnecessárias e
grava em vídeo. Não usa película para que o haja interrupção sequer para a
troca do rolo de filme, necessária a cada 15 minutos. Outra recomendação é
evitar julgamentos, uma história pode até parecer irrelevante, mas nem por isso
deve ser interrompida. Essa metodologia é atestada pela História oral, pois
Se você interrompe uma história por considerá-la irrelevante,
estará interrompendo não apenas essa, mas toda uma série de
ofertas posteriores de informações que serão relevantes.
(Thompson, 1992: 263)
Para evitar a interrupção da performance e do fluxo memorial que a
acompanha, Coutinho (2003) afirma que “É preciso deixar o outro à vontade, se
sentir bem para dar o seu espetáculo”. Somente assim será possível captar o
“instante imprevisível”, sempre estimulado pela postura que não julga. Para
Coutinho, essa poderá ser uma postura até mesmo ética, mas para o
documentário enquanto formato, a captação do acaso será o carro-chefe da
simulação. O acaso deve fazer aflorar a espontaneidade que fará da entrevista
um registro confiável e enfatizará o referente. A espontaneidade Ofereceà
simulação o que lhe é mais caro, a sensação de veracidade.
4.6. A sonoridade da solidão
A voz over é utilizada por Coutinho com muita discrição. As imagens são
encobertas por essa voz apenas no início do documentário, quando são
exibidas as primeiras imagens de corredores e portas internos do Master.
Nesse caso, o narrador é o próprio Coutinho que fala pouco e busca o tom
descritivo:
140
Coutinho (voz over) Um edifício em Copacabana a uma
esquina da praia: 276 apartamentos conjugados, uns 500
moradores, 12 andares, 23 apartamentos por andar.
Alugamos um apartamento no prédio por um mês. Com três
equipes, filmamos a vida do prédio durante uma semana.
Também não música de fundo, a sonoridade do filme é totalmente
construída pelos sons do ambiente e pela voz dos entrevistados. Assim, o ritmo
do documentário é construído pela fala de pessoas anônimas a partir de
elementos como velocidade, pausa, entonação e até mesmo sotaque. A
sonoridade do filme é marcada, então, pelo canto e pelo silêncio de alguns
entrevistados e elabora temporalidades que dependem da sua atuação: esses
falam depressa; aqueles, bem devagar. A duração da entrevista está
intimamente ligada à velocidade da fala.
Quando música, são os moradores que cantam, o que acontece em
alguns momentos como na performance de Henrique que conheceu Frank
Sinatra pessoalmente e com ele cantou My way. Brasileiro que morou nos
Estados Unidos, exerceu importante cargo numa grande empresa e tornou-se
major da marinha americana. Militar aposentado, Henrique nunca esqueceu o
dueto, costuma colocar o vinil da canção e cantar junto com ele todos os
sábados pela manhã.
Em frente à câmera, Henrique coloca o disco de My way e canta outra
vez junto com Sinatra. Ele se emociona, chora. A câmera grava a sua emoção,
o seu choro. Durante a entrevista, ele conta que os filhos moram em definitivo
nos Estados Unidos, só ele voltou ao Brasil. Mora sozinho, outro dia caiu
dentro do apartamento, foi um vizinho que o ouviu e trouxe ajuda. A música My
way é a extensão do tempo bom que viveu no exterior, ela é memória, ela é
referente. A emoção de Henrique confere veracidade ao documentário, a sua
solidão dá voz e rosto aos corredores vazios e às portas idênticas do Master.
141
Coutinho Como você conheceu Frank
Sinatra?
Henrique É muito interessante. Não por
mim, mas por causa da minha
companhia, quando os astronautas
voltaram da lua, houve uma recepção
para eles no Astrodome de Houston. E eu
fui uma das pessoas convidadas. Eu
estava sentado na arena, ele estava
sentado mais ou menos uns quatro ou
cinco cadeiras além de mim com um
monstro da máfia junto com ele. Aí eu
cheguei e falei: “Eu vou falar com ele”.
Cheguei prá ele e falei assim: “How do
you doing, Blue Eyes?” Ele riu, apertei
a mão com ele, comecei a conversar com
ele, etc. Tinha Dione Warwick, Frank
Sinatra, várias personalidades. E eu falei:
“Olha, a música que eu gosto muito de
você é My way.” “Então, você vai subir
comigo e cantar dois versos.” Subi no
palco e ele lá, abri a boca e cantei dois
versos.
Serão dois versos que perdurarão na memória do público como índices
do mundo vivido.
4.7. Ônibus 174
Quando o documentário é compreendido como espelho e as
contradições que desafiam essa visão afloram, o texto por ele produzido pode
ser tomado como falsidade. Em outros sistemas de comunicação, caso da
telenovela, não o observadas contradições nesse sentido. Para a ficção, os
142
desafios são outros, em grande parte dizem respeito à fabulação, à busca da
narração. Já para o documentário, é fundamental dissimular a simulação.
Segundo Baudrillard (1991: 9), “Dissimular é fingir não ter o que se tem.
Simular é fingir ter o que não se tem.”. Assim como o documentário faz de
conta que seus textos correspondem à realidade sem filtros finge ter o que
não tem para construir a simulação, para que o processo seja aceito, para
evitar o estigma de fraude, o formato precisa dissimular a sua existência – fingir
não ter o que se tem. Faz parte da natureza documental ocultar, encobrir a
simulação, uma vez que sem esse disfarce o processo será notado e
comprometerá o seu funcionamento. Para simular, é preciso dissimular.
Por paradoxal que possa parecer, no documentário, uma das formas de
dissimular a simulação é evidenciar a estrutura narrativa que existe em seu
interior. cnicas e recursos documentais que enfatizam o referente são
combinados a técnicas e recursos narrativos que constroem a fabulação.
Dados os elementos documentais, o documentário constrói textos
verossimilhantes para parecerem verossímeis, embora sejam simultaneamente
ficcionais, voltados à fabulação ao serem articulados pela narrativa. Para tanto,
o diálogo entre o documentário e formatos, reconhecidos como narrativos, será
valioso. Quanto mais feliz for a comunhão entre elementos documentais e
narrativos, mais convincente será a simulação gerada.
Afinal, mais difícil será traçar limites claros entre o que advém do
documentário e o que advém de outros formatos. Para criar a simulação, o
documentário conta com a fronteira, a região de maior atividade semiótica no
diálogo com outros formatos.
No diálogo com formatos que enfatizam a narração, o documentário
utilizará a estrutura narrativa para compor, por exemplo, a reconstituição de
acontecimentos. Quando bem utilizada, essa fórmula confere grande
intensidade à simulação. Em alguns casos, o documentário, filmado como
documentário pelo cineasta e anunciado como documentário para o público,
chega a ser confundido com o formato com o qual dialoga.
143
É o que ocorre em Ônibus 174 (Padilha e Lacerda, 2002), considerado
pelo cineasta Felipe Bragança o melhor filme policial brasileiro dos últimos
tempos:
Lembremos que o melhor filme policial brasileiro dos últimos
anos foi Ônibus 174 proposta de filme-narrativo que constrói
suas cenas em torno de entrevistas que narram eventos e
fragmentos de imagens de TV. (Bragança, 2007, grifos do
autor)
Ônibus 174 não é mesmo um filme policial na verdadeira acepção da
palavra, mas um documentário sobre um episódio de violência urbana no Brasil
que, por sua linguagem, dialoga com o formato policial. O enredo é simples e,
como todo filme policial, gira em torno do crime, do criminoso e da polícia: no
dia 12 de junho de 2000, na cidade do Rio de Janeiro, o ônibus que faz a linha
174, Central-Gávea, é sequestrado por Sandro Rosa do Nascimento. O
inusitado está na origem de Sandro, ele é um dos sobreviventes de outro caso
de violência urbana de grande repercussão, a Chacina da Candelária em 1993.
Sandro, o Mancha, iria apenas assaltar o ônibus, mas perde o controle
da situação e faz onze reféns. Cercado pela polícia, ele protagoniza uma
tragédia: após quase cinco horas de negociações, Sandro desce do ônibus
com uma das reféns como escudo (174 ao vivo 1); um policial se aproxima e
atira no sequestrador, mas erra o tiro e atinge a refém na cabeça (174 ao vivo 2
e 3); o policial e o sequestrador se atracam, mas antes de ser imobilizado,
Sandro ainda atira três vezes na refém. A multidão que acompanha o
sequestro à distância se revolta e invade a área de isolamento para linchá-lo
(174 ao vivo 4).
Sandro é preso e retirado às pressas do local, porém, não chega à
delegacia. No caminho, morre asfixiado. Segundo a polícia, o sequestrador
havia tentado reagir. O enterro da refém morta, a professora Geísa, em
Fortaleza, é acompanhado por mais de três mil pessoas.
144
174 ao vivo 1
174 ao vivo 3
174 ao vivo 2
174 ao vivo 4
O documentário é montado a partir de cenas de arquivo, transmitidas ao
vivo pela TV naquele dia e entrevistas de amigos, parentes e conhecidos de
Sandro, assim como de pesquisadores sobre o fenômeno da violência,
profissionais que trabalham com crianças de rua e policiais que participaram do
caso. Há, também, a avaliação sobre a ação policial realizada por Rodrigo
Pimentel, ex-comandante do Bope – Batalhão de Operações Especiais da
Polícia Militar do Rio de Janeiro. Rodrigo também aparece em Notícias de uma
guerra particular (Lund e Salles, 1999) e será um dos policiais que dará origem
ao personagem Capitão Nascimento na ficção Tropa de Elite (2007), também
do diretor José Padilha.
Ônibus 174 conta a história de vida de Sandro e aponta a falta de
amparo à infância como origem da tragédia. Quando garoto, ele presencia o
assassinato da e, é recolhido pela tia, mas foge de casa. Na rua, torna-se o
menino que sobrevive ao massacre da Candelária. Viciado em cola de
sapateiro e cocaína, ele faz pequenos assaltos para conseguir algum dinheiro.
145
A montagem alinhava essa história de vida, contada por amigos e
parentes às imagens veiculadas pela televisão. São imagens documentais,
foram transmitidas ao vivo por várias emissoras de TV e dominaram a
programação, imagens típicas do telejornalismo que contam com tomadas
aéreas, cenas do bandido em ação, gritos dos reféns, movimentação da
polícia. Imagens que deixam claro se tratar de um fato real, captadas no
instante exato em que ocorrem que o presenciadas por dezenas de
populares atrás dos cordões de isolamento, assim como assistidas pela
televisão por milhões de telespectadores.
Mas não há diferença entre estar presente fisicamente no local e
acompanhar os acontecimentos pela TV, a tensão é a mesma. O filme policial
se instaura e recria no documentário mais um formato, o suspense. As imagens
dos fatos transmitidos pela mídia, cheias de ansiedade e estresse, são
entremeadas às entrevistas que debatem a condição de Sandro e as chances
dele executar alguém. Vários entrevistados afirmam que Sandro era incapaz
de matar, mas as imagens contrastam as declarações, a montagem sugere a
dúvida. As imagens mostram Sandro intimidando os reféns, circulando dentro
do ônibus com a arma em punho, aparentemente drogado; colocando um
lençol sobre uma refém e apontando o revólver para a sua cabeça.
Apesar do desfecho do caso ser bem conhecido do público, dada a
repercussão na mídia, a montagem de Ônibus 174 consegue impor um ritmo
que recria o suspense, ou seja, todos sabem que Sandro irá matar Geísa, mas
a sensação de que poderia ter sido diferente é palpável: se ele fosse amparado
na infância, se não houvesse o massacre da Candelária, se a polícia não
cercasse o ônibus e conduzisse a ação de outra forma, se aquele policial não
se aproximasse de Sandro, se não tivesse errado o tiro. Esse é o cerne da
dúvida, a possibilidade de alterar os acontecimentos poderia evitar o desfecho
tão trágico. Insinua-se, portanto, outra fronteira para o documentário, dessa
vez, da ficção para o mundo vivido, da ficção que deseja e pode interferir na
sequência dos fatos e da vida.
Mas, ainda assim, uma simulação. A tensão, o medo e a ansiedade
são gerados por um texto que simula a incerteza de um desfecho que, no
146
mundo vivido, foi fixado no tempo. No mundo vivido, se sabe que Sandro
matou uma refém e logo após foi morto pela polícia. No mundo midiático,
dúvida. Essa incerteza é o ponto de partida necessário para o desenvolvimento
da ação dramática, alicerça a estrutura narrativa. A simulação não dispensa
essa estrutura, ao contrário, dela faz uso para fabular.
Nessa fabulação, a imagem de bandido associada a Sandro pela
imprensa será desconstruída. As origens dos acontecimentos serão associadas
à falta de proteção às crianças de rua, a difíceis condições sócio-econômicas.
Mas a fabulação também irá narrar a ação da polícia que, mesmo desastrada,
fará o filme de ação. Nesse sentido, há uma dinâmica própria do filme policial
de ação, ainda que não se enquadre na fórmula inocente de bandido-mocinho,
na qual Sandro é o homem mau, enquanto a polícia representa o bom moço
que irá salvar a donzela em perigo.
Mas é um policial. Mas é um filme de ação. As ações da polícia militar, a
análise de Rodrigo Pimentel, o depoimento dos policiais envolvidos, do
comandante aos profissionais anônimos para preservar a identidade, um
deles dá entrevista com touca ninja, o que parece aumentar tanto o grau de
violência do episódio quanto o mistério sobre que envolve a morte de Sandro
são recursos de linguagem que exibem uma versão técnica dos
acontecimentos.
É assim, de forma técnica, que Pimentel analisa o o-uso do atirador
de elite, o sniper, pela polícia:
Um tiro ali, um tiro de sniper seria uma solução ideal e,
logicamente, ao vivo para todo o Brasil iria resultar ali em talvez
meio quilo de massa encefálica sendo projetada nos vidros do
ônibus. Eu não gostaria de ver isso. Meus parentes em casa
também não gostariam de ver uma cena dessa. Mas,
tecnicamente falando, seria o mais viável a ser feito. Seria o
mais certo a ser feito.
A afirmação ilustra o conflito entre o que seria tecnicamente correto a
ser feito do ponto de vista policial e o que seria politicamente correto a ser
transmitido pela mídia. Indica, também, tanto a complexidade da operação
147
policial em curso para finalizar o sequestro quanto a referencialização
necessária para garantir a simulação. O sniper é o personagem principal, o
herói do filme policial norte-americano. É o sniper que mata o bandido, salva o
refém e a honra da corporação, ele é a um tempo o recurso técnico, a
habilidade humana e a precisão do momento num homem, o super-homem.
Mas o sniper o é usado e o suspense, a tensão e a violência aumentam até
o final trágico.
Ônibus 174 faz fronteira com os formatos policial, de suspense, de ação,
mas é alinhavado pela história de vida de Sandro, o que também lhe o
caráter de filme psicológico. Criança abandonada, o menino parece destinado à
bandidagem e torna-se a estrela do documentário por protagonizar um
acontecimento tão triste. Já as pessoas que conviveram com ele, os estudiosos
sobre a violência urbana ou os policiais que o confrontaram por um curto
espaço de tempo são coadjuvantes. Nenhum entrevistado é identificado por
legenda, o blico intui o papel que cada um desempenha no documentário,
assim como a relação que mantém com Sandro a partir de seu depoimento ou
do contexto proposto por outras cenas.
A visualidade, por sua vez, desenha a história de vida do personagem
principal como parte da história de vida da grande cidade. Daí os planos que
focalizam a via pública, das imagens na Candelária às cenas do ônibus
cercado pela polícia. O cenário do documentário é o cenário da rua, é o cenário
do menino abandonado, o que nos leva mais uma vez à questão fundamental:
“O que fazer com as pessoas?” (Nichols, 2005: 26-46).
Ônibus 174 será uma tentativa de tratar Sandro de forma diferente,
talvez mais humana, do que as propostas pelas emissoras de TV que exibiram
os acontecimentos ao vivo. A TV o condena como bandido, o documentário de
Padilha e Lacerda procuram mostrar o que o colocou como sequestrador e a
ficção o recria como vítima ou quase-herói. Será a simulação dialogando com a
simulação? Ou seja, nem sempre a simulação estará a serviço da alienação ou
levará ao desencanto.
5
Considerações Finais
No panorama atual, a simulação do mundo vivido no universo midiático
não se restringe aos sistemas audiovisuais. Trata-se de um processo de
modelização da verossimilhança muito amplo que se encontra em andamento
em todos os sistemas de comunicação. Porém, neste trabalho, o audiovisual foi
escolhido, em especial a televisão e o documentário, como o sistema no qual o
impacto dessa forma de modelização pode ser sentido, no momento, com
maior intensidade. O que pode ser observado nos estudos de caso
apresentados.
A quantidade de textos audiovisuais que tem privilegiado a
verossimilhança, como fio condutor de sua construção, chama a atenção. A
reprodução do mundo vivido na tela
seja a tela de TV, seja a tela
cinematográfica, de modo cada vez mais vívido e verossímil, tem sido um efeito
tão procurado pelos sistemas de comunicação que, mesmo nos textos
assumidamente ficcionais, são encontradas marcas cada vez mais importantes
desse processo. Assim, a ficção e a realidade se aproximam para simular o
cotidiano e a presença da pessoa comum, anônima nos sistemas de
comunicação.
Em geral, a simulação tem sido considerada em seus aspectos
econômicos, sociais e culturais, mas os seus mecanismos de funcionamento,
enquanto processo de linguagem, ainda precisam ser compreendidos. Nesse
sentido, o trabalho propõe o diálogo entre a simulação, conceituada por
Baudrillard (1981) e as idéias de tradução e modelização, conforme
desenvolvidas pela Escola de Tártu-Moscou, escola que se constitui na década
149
de 1960 (Machado, 2003: 26-27). Aparentemente inconciliáveis, por serem
gerados por formas de pensamento bem diversas, esses conceitos podem,
sim, entrar em contato e contribuir para esclarecer a ênfase dada ao referente
nos textos atuais. Da mesma forma, esse diálogo também pode contribuir para
a discussão sobre os conceitos em si mesmos.
Como hipótese, o trabalho propõe a simulação como um processo de
linguagem, gerado pela modelização da verossimilhança, que evidencia o
referente. Tal processo é complementado por outro, a dissimulação, que
pretende apagar as marcas da representação aos olhos do público. Juntos, os
processos de simulação e dissimulação se esmeram em criar, por imersão,
uma plataforma de credibilidade para os sistemas de comunicação. Um
requisito de grande importância na disputa acirrada das empresas de
comunicação para seduzir o mercado consumidor.
Porém, se o trabalho aponta o motivo pelo qual a simulação do mundo
vivido tem sido enfatizada pelos sistemas de comunicação, o foco principal da
análise não é esse. Ao contrário, busca-se estudar como determinados
elementos de linguagem se agrupam e entram em diálogo tanto para simular o
mundo vivido quanto para dissimular a simulação. Ou seja, como fazer de
conta que entre o mundo vivido e o mundo midiático não há qualquer distância.
A simulação é compreendida como o processo de linguagem capaz de
imitar o mundo vivido, nos sistemas de comunicação, da forma mais
convincente possível. Ou seja, “Simular é fingir ter o que o se tem.”
(Baudrillard, 1991: 9): fingir que o mundo vivido está na tela quando se sabe
que ele não está ali propriamente, mas, sim, a sua representação. Da mesma
forma, a dissimulação é considerada como o processo de linguagem capaz de
encobrir a simulação ao disfarçar a existência da representação: “Dissimular é
fingir não ter o que se tem.” (Baudrillard, 1991: 9). Dissimular é fazer crer que
não há simulação quando, na verdade, ela existe.
Para tanto, a questão da verossimilhança é central, pois a sua
modelização, quando realizada com propriedade, será capaz de fazer
representar o mundo vivido no mundo midiático de tal forma que as marcas da
150
representação permaneçam ocultas. A modelização da verossimilhança será o
caminho que a simulação irá trilhar para fazer de conta que o mundo vivido e o
mundo midiático o um só. Também será o caminho que a dissimulação irá
tomar para fazer de conta que a simulação o está presente. Daí, a
necessidade primordial do trabalho mapear as maneiras pelas quais a
simulação, assim como a sua contraparte, a dissimulação, irão utilizar para
traduzir a verossimilhança no audiovisual sem que o processo seja notado pelo
público.
O trabalho admite como hipótese que a simulação é responsável por
modelizar o fenômeno janela indiscreta, isto é, o desejo do público de conhecer
a vida privada do outro como voyeurismo midiático e, simultaneamente, a sua
vontade de revelar a própria vida a terceiros. Ao traduzir tal fenômeno, a
simulação traduz a verossimilhança, pois quando se olha através da janela
indiscreta, ou pelo buraco da fechadura, busca-se naturalmente o referente, a
realidade, o texto que se assemelha ao mundo vivido. É a idéia de ver a
realidade alheia que seduz. A sedução é persuasão. A persuasão é imersão.
Mas inúmeras outras modelizações dentro dessa modelização tão
ampla e a janela indiscreta não é utilizada de forma única no audiovisual. O
fenômeno se diversifica. Entre as várias possibilidades, o trabalho identifica
uma exemplar: o uso cada vez mais frequente, na construção de textos
audiovisuais, de histórias de vida de pessoas anônimas. Tais histórias operam
como índices das experiências reais de pessoas que, dada a sua condição de
não-celebridades, representam o público em geral.
A hipótese mais desafiadora, no entanto, que permeia o trabalho indica
que, entre as estratégias e os recursos de linguagem que levam à simulação, a
modelização da verossimilhança realiza a semiose de elementos do método
etnográfico. Para tanto, tais elementos, quando traduzidos para os sistemas de
comunicação, deixam a sua condição etnográfica e o transformados em
marcas de veracidade do texto audiovisual. Ou seja, a etnografia é modelizada
pelos sistemas de comunicação audiovisuais.
151
Nesse processo, os elementos etnográficos serão incorporados aos
sistemas audiovisuais como componentes capazes de gerar e sustentar a
verossimilhança nos textos em que forem introduzidos. O que se busca com o
uso da etnografia é, portanto, um projeto no qual a coerência entre o mundo
vivido e o mundo midiático possa ser medida pela semelhança entre o que é
captado na vida real e o que é exibido na tela.
A análise semiótica desse processo considerará a etnografia, tanto
quanto os sistemas audiovisuais, um sistema de linguagem. Afinal, é possível
distinguir a existência de códigos em seu interior, que atuam conforme regras
de funcionamento bem definidas. Sendo assim, o trabalho opta pela concepção
de linguagem etnográfica para se referir tanto à etnografia quanto ao seu
método de pesquisa, o método etnográfico. Logo, o que interessa ao trabalho
não é a etnografia ou o método etnográfico propriamente ditos, mas as
estruturas de linguagem que os compõem e o diálogo possível entre seus
códigos e aqueles códigos dos sistemas audiovisuais.
Trata-se de uma abordagem inquietante, pois a etnografia sob outro
prisma: o sistema de linguagem dotado de códigos que dialoga com sistemas
além da ciência. Será assim que, de modo imprevisto, essa disciplina
descritiva, sempre tão atenta à verossimilhança, alimentará a simulação dos
sistemas de comunicação atuais.
A concepção geral do trabalho obedece ao pensamento da Escola de
Tártu-Moscou, a escola de semiótica da cultura que propõe os fundamentos
teóricos de modelização, tradução, linguagem, código, diálogo, semiosfera,
sistema de cultura e sistema de comunicação, entre outros. É essa base que
permite compreender a etnografia como sistema de linguagem e a simulação
como modelização da verossimilhança.
Nessa perspectiva, é importante considerar que os conceitos de
simulação e dissimulação de Baudrillard são analisados como processos de
linguagem que independem do desencanto característico desse autor. Ao
contrário de Baudrillard, este trabalho propõe que nem toda simulação é
prejudicial, posição sustentada pela análise do filme documentário.
152
Aliás, pela intensidade com a qual o documentário, assim como a
televisão têm criado simulações, o corpus de pesquisa é formado exatamente
por estudos de caso desses dois sistemas. Na TV, foram selecionados dois
formatos: a telenovela e o reality show. O primeiro foi escolhido por ser muito
representativo da televisão brasileira, o seu carro-chefe tanto na transmissão
nacional quanto na exportação de programação. Desde a adaptação da
telenovela para exibir a realidade brasileira e a modernidade, diversos autores
têm procurado abertamente fundir a ficção e a realidade. A pesquisa procura
demonstrar como essa fusão constrói simulações cada vez mais convincentes
do mundo vivido.
Para tanto, a telenovela escolhida foi ginas da Vida (TV Globo, 2006-
2007) de Manoel Carlos. Na sua análise, foi possível verificar como duas
formas de montagem, por contiguidade e por similaridade, constroem a
simulação do mundo vivido de modos diversos na mesma obra. Ou seja, a
simulação se multiplica como simulações no interior do mesmo texto.
Dada a promessa explícita de exibir a vida como ela é, o reality show foi
outro formato selecionado. O grande impacto que as simulações reality têm
causado no mundo todo aponta o formato como o ponto ximo da
modelização atual por verossimilhança. Nesse sentido, o reality show é o
formato que expressa a simulação extrema.
Entre os inúmeros programas reality, semvida, o mais expressivo tem
sido o Big Brother, chamado no Brasil de BBB Big Brother Brasil. A sua
análise procura mapear os elementos de linguagem e os mecanismos de
montagem, por contiguidade e por similaridade, mais utilizados para criar a
simulação do mundo vivido na pseudocasa. Com esse objetivo, técnicas de
vigilância são usadas em nível avançado, assim como a alocação de recursos
humanos: profissionais cada vez mais especializados estão envolvidos na
realização dos reality shows.
Porém, no interior dessa janela indiscreta, utopicamente destinada à
transmissão da realidade sem qualquer mediação, subsiste uma estrutura
narrativa semelhante às histórias de aventura e peripécias de heróis. Ou seja, o
153
sucesso da simulação do mundo vivido no Big Brother Brasil depende da
construção da ficção a cada programa, a cada texto.
No documentário, foram selecionados dois filmes: Edifício Master de
Eduardo Coutinho (2002) e Ônibus 174 de José Padilha e Felipe Lacerda
(2002). Ambos são construídos a partir de histórias de vida de pessoas
anônimas que, conforme apontado pela pesquisa, tem sido um recurso muito
utilizado pela simulação. O primeiro foi escolhido porque constrói na tela uma
forma de simulação do mundo vivido que se aproxima da linguagem
etnográfica. Nesse filme, as histórias de vida de moradores do edifício Master,
em Copacabana, atuam como índices de um personagem mais amplo, o
próprio condomínio. Através dessas histórias, o diretor cartografa a cultura da
baixa classe média que ali reside.
Ônibus 174 irá contar uma história de vida única, a trajetória de
Sandro, o bandido que protagoniza o sequestro de 11 reféns dentro de um
ônibus no Rio de Janeiro. Esse documentário foi escolhido porque utiliza as
imagens transmitidas pela televisão, ao vivo durante o acontecimento, para
propor uma obra que repensa essa forma de cobertura. Ou seja, o
documentário utiliza o material gerado pela TV para debater a própria TV.
Mas Ônibus 174 também é uma simulação. Para contestar a simulação
televisiva, o documentário precisa elaborar outra que, para ser digna de crédito,
precisa ser dissimulada. Trata-se de uma exigência do formato, o documentário
obtém credibilidade se estiver o mais próximo possível da simulação da
realidade do mundo vivido. No entanto, como a simulação sempre é construída
e o sentido original de ficção é algo construído (Geertz, 1989: 11),
compreende-se que a ficção sempre estará presente nesse processo. Por
vezes, como em Ônibus 174, a ficção se comportará, no interior da simulação,
como um mecanismo para dissimular a existência do processo.
Os estudos de caso relacionados neste trabalho demonstram que a
modelização da verossimilhança é operacionalizada pela montagem, que
organiza a relação entre ficção e a realidade em cada sistema, formato e texto.
A verossimilhança nunca elimina a ficção, apenas a traduz de acordo com a
154
proposta de cada sistema, formato e texto. Ficção e realidade são, assim, pólos
extremos da linguagem que dialogam de inúmeras formas e criam, em certos
momentos, sob certas circunstâncias, a simulação do mundo vivido.
Desse modo, afirmar que este ou aquele sistema, formato ou texto
pertence à ficção ou à não-ficção pode ser encarada como uma visão muito
restrita do processo. Considerar a realidade e a ficção como los
complementares, e não opostos, da linguagem significa evidenciar o diálogo, a
tradução e a modelização que fazem da linguagem algo vivo, dinâmico, flexível
e muitas vezes inesperado.
Será justamente a relação entre ficção e realidade que a simulação
saberá utilizar para fazer de conta que entre o mundo vivido e o mundo
midiático não há diferenças. Nesse caso, tal relação destacará sempre a
verossimilhança como prova retórica da veracidade desse discurso. Estratégias
e recursos de linguagem enfatizarão, muito além da tecnologia, o pólo da
realidade, mas a montagem não deixará de lado a ficção e fará, do programa
televisivo ou do filme documentário, a narrativa da aventura de heróis e seus
opositores.
Como várias serão as configurações dessa relação entre ficção e
realidade nos diferentes sistemas audiovisuais, várias poderão ser as
modelizações que a verossimilhança assumirá a cada sistema, formato e texto.
Porém, no início do processo, sempre será possível perceber a influência de
um sistema de linguagem deslocado da sua base de origem, ou seja, um
método de pesquisa científica em migração para o universo do entretenimento,
a etnografia.
Os estudos de casos permitem ao trabalho propor a modelização da
verossimilhança como a modelização da etnografia. Será ao método
etnográfico que os sistemas de comunicação recorrerão primordialmente para
simular o mundo vivido na tela.
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