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desigual e injusta
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; encontra-se diante da necessidade, a cada estação de
seca, de retirar-se e, com isso, ver desarranjar-se definitivamente a família, já
precariamente mantida; um ponto central de sua luta para viver está no
relacionamento com aqueles que estão em situação social privilegiada,
principalmente os patrões
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; todas essas dificuldades parecem superadas
quando se realiza a reversão, por meio da picaresca, das humilhações e
ofensas a que os simples são submetidos em seu cotidiano. Principalmente, se
representa com o pícaro a possibilidade da efetivação da utopia, que se
manifesta no desejo e na expectativa de transformação das condições de
existência, antes de tudo materiais; essa preocupação, que se encontra em
muitas das artimanhas de João Grilo e de Cancão de Fogo, mas que também
pode encontrar-se expressa poeticamente, como nos devaneios de Chicó, ou
mesmo diretamente representada na própria arte popular, quando esta
consegue, ainda que muitas vezes tenha que se opor a condições
precaríssimas, imprimir alguma beleza e muito de sonho à crua realidade;
capacidade descrita por Suassuna da seguinte maneira:
O povo do Nordeste sabe, com uma arte estranha e poderosa, criar a
beleza a partir da miséria, e consegue manter sua grandeza no meio da
maior degradação. As moças vestem-se de dianas, princesas, damas e
rainhas; os homens, de reis mouros, cruzados, príncipes e cavaleiros,
com máscaras de couro e coroas de lata, espadas de madeira e
chapéus de formas estranhas, cravejados de pedrarias, que parecem
templos asiáticos. São os pobres e belos sonhos do povo que se veste
assim para sonhar com o poder e a glória, cujas portas, na vida, lhe são
trancadas
68
.
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“A errância do malandro, este incessante movimento, é também uma busca permanente de
meios de existência, de sobrevivência, em condições econômicas difíceis. Ganhar a vida torna-
se equivalente a „ter que se mexer‟, ou seja, deixar sua casa em busca de trabalho. O pão
cotidiano ganha-se „na luta‟”. Idelette Muzart Fonseca dos SANTOS, Em demanda da poética
popular, p. 253-254.
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Em sua análise da picaresca, Idelette Santos, apoiando-se na interpretação dos folhetos
populares realizada por Roberto DaMatta, chama a atenção para a denúncia que o folheto traz
da violência existente nas relações de trabalho, e que o antropólogo identificara em Pedro
Malazarte, o protótipo dos pícaros brasileiros, o mito do trabalhador brasileiro, “a saga daquele
que parte sempre em demanda do que não possui”. IBID, p. 254.
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Ariano SUASSUNA, Cinema e sertão. In: Almanaque armorial, p. 193-194. Num certo sentido
corroborando essa afirmação de Suassuna, lemos em Stanislávski: “Há quem diga que
camponeses e operários só poderão apreciar peças versando sobre a vida que eles levam.
Puro engano. Geralmente, essa gente prefere ver coisas „mais bonitas‟ que as que se passam
no meio estreito em que vivem”. Apud Sábato MAGALDI, Iniciação ao teatro, p. 76.