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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – campus V
PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA REGIONAL E LOCAL
HELVÉCIA – homens, mulheres e eucaliptos (1980 – 2005)
LILIANE MARIA FERNANDES CORDEIRO GOMES
Santo Antônio de Jesus
JANEIRO / 2009
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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – campus V
PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA REGIONAL E LOCAL
HELVÉCIA – homens, mulheres e eucaliptos (1980 – 2005)
LILIANE MARIA FERNANDES CORDEIRO GOMES
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
graduação em História Regional e Local da
Universidade do Estado da Bahia (UNEB),
como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Mestre.
Orientadora: Profa. Dra. Ely Souza Estrela
Santo Antônio de Jesus
JANEIRO / 2009
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HELVÉCIA - homens, mulheres e eucaliptos (1980-2005)
LILIANE MARIA FERNANDES CORDEIRO GOMES
Orientadora: Profa. Dra. Ely Souza Estrela
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em
História Regional e Local, da Universidade do Estado da Bahia - UNEB,
como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre.
Aprovada por:
BANCA EXAMINADORA:
_______________________________________________
Prof. Dr. (a) (orientador) Ely Souza Estrela
_______________________________________________
Prof. Dr. (a) Lídia Maria Pires Soares Cardel
________________________________________________
Prof. Dr. (a) Charles D’Almeida Santana
________________________________________________
Prof. Dr. (a) Suplente Alicia Ruiz Olalde
________________________________________________
Prof. Dr. (a) Suplente Wellington Castellucci Júnior
JANEIRO / 2009
4
Aos homens e mulheres de Helvécia, que, em
sua inteireza se (re)inventam cotidianamente
e, com os quais eu muito aprendi.
5
AGRADECIMENTO
Ao escrever este agradecimento várias pessoas me vêm à memória e dizem
de sua importância nesta caminhada, que foi possível de ser realizada em razão do
apoio e contribuição de cada uma delas. Entendo o ato de agradecer como uma
partilha e é com este sentimento que agradeço:
As pessoas de Helvécia que me acolheram com confiança e inteireza em
suas casas e se dispuseram a falar de suas vidas. De forma especial, agradeço a
Célia, Netinha, Jorge, João Vitor e Marília que intermediaram o meu contato com
muitos dos entrevistados.
Aos funcionários dos arquivos consultados, em especial os responsáveis pelo
arquivo da Associação Cultural Bahia Minas e pelo cartório de Helvécia.
Aos colegas do Departamento de Educação do campus X/ UNEB que
contribuíram de forma decisiva em minha caminhada com seus incentivos,
especialmente os colegas do colegiado de história. Neste sentido também os
discentes do colegiado de história tiveram um papel importante nesta etapa de
minha vida, e a eles do mesmo modo, eu agradeço.
Aos professores e funcionários do campus V - UNEB, que foram
responsáveis diretos pela minha formação: Charles D’Almeida Santana, Daniel
Francisco dos Santos, Ely Souza Estrela, Felipe Magalhães, Walter Fraga Filho,
Wilson Mattos e Suzana Severs.
Aos companheiros de turma que, ao me acolherem com carinho, contribuíram
para que as minhas longas viagens também significassem reencontros prazerosos,
durante o processo de construção desta pesquisa. De forma especial agradeço
Rosana, Philipe, Raul, Carlos, Edilma, Fabiana e Rose.
À minha orientadora, Ely Estrela, muito obrigada pela confiança, carinho,
profissionalismo, paciência, sabedoria e alegria.
Àquele que com sua sagacidade e bom humor contribuiu de forma definitiva
na história da minha vida, meu pai, seu Zeca, sempre presente na minha memória, e
a memória é viva.
A dona Tê, minha mãe, o agradecimento constante de quem reconhece e
sabe não só de sua torcida e carinho por mim como também dos poderes de sua
oração.
6
Aos irmãos Jorge, pelos dengos e Tarcísio pelos incentivos constantes,
contribuições e carinhos.
As irmãs Lúcia, pelas docilidades e Tânia pelos comentários sagazes,
indagações e carinhos.
Aos familiares: Beto, Denga, Karina, Bruno, Rafa, Gabriel, Camila, Talita,
João Vitor, Olívia, Pablo, Higor, e Vitor. É muito bom ter vocês sempre por perto, na
torcida.
Aos amigos Alzi, Rafael, Gean, Janete, Tata e Catiuscia, valeu o carinho.
Ao meu companheiro Osvaldo que soube tentar compreender minhas muitas
ausências e principalmente ouvir minhas angústias nos vários momentos em que a
vontade e necessidade de escrever não se transformavam em texto.
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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
Abecel – Associação das Empresas Brasileiras Exportadoras de Celulose
ABI – Associação Baiana de Imprensa
ACA – Associação e Comunidade Afro
AQH – Associação Quilombola de Helvécia
BNDE – Banco Nacional de Desenvolvimento
Bndes – Banco Nacional de Desenvolvimento Social
CAB – Centro Administrativo da Bahia
CAR – Coordenadoria de Ação Regional
Cedic – Centro de Documentação e Informação Cultural sobre a Bahia
Caema – Companhia de Ações Especiais Mata Atlântica.
Caerc – Companhia de Ações Especiais da Região Cacaueira.
Cepedes Centro de Estudos e Pesquisas para o Desenvolvimento do Extremo Sul
da Bahia
Cerflor – Programa Nacional de Certificação Florestal
Coorpin – Coordenadoria Regional de Polícia do Interior
CVRD – Companhia do Vale do Rio Doce
Detaq – Departamento de Taquigrafia, Revisão e Redação
FASB – Faculdade do Sul da Bahia
Flonibra – Empreendimento Florestais S.A.
FSC – Forest Stewardship Council
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
ICMS – Imposto sobre Circulação de Mercadoria e Serviços
PDU – Plano de Desenvolvimento Urbano
PND – Plano Nacional de Desenvolvimento
PNPC – Plano Nacional de Papel e Celulose
Proesp – Programa de Apoio à Educação Especial
PT – Partido dos Trabalhadores
Senai – Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial
Senar – Serviço Nacional de Aprendizagem Rural
Seplan – Secretária de Planejamento
UPM – Unidade de Produção de Mudas
UNEB – Universidade do Estado da Bahia
8
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 – Cemitério São Pedro............................................................................ 50
Figura 2 – Cemitério São Pedro e eucaliptos ........................................................ 51
Figura 3 – Cemitério São Pedro: fragmentos......................................................... 53
Figura 4 – Cemitério São Pedro: Lápide................................................................ 54
Figura 5 – Estrada de ferro Bahia e Minas ............................................................ 77
Figura 6 – Barracão na propriedade do sr. Kemi Krull........................................... 148
Figura 7 – Prensa manual, propriedade do sr. Kemi Krull ..................................... 150
Figura 8 – Cocho, propriedade do sr. Kemi Krull................................................... 150
Figura 9 – Forno, propriedade do sr. Kemi Krull.................................................... 151
Figura 10 – Residência do camponês Manoel Norberto Henrique de Sena........... 158
Figura 11 – Instrumentos de trabalho de um camponês........................................ 159
Figura 12 – Placa da reforma da escola João Martins Peixoto.............................. 199
Figura 13 – Cemitério do Sertão – marcas do tempo ............................................ 218
Figura 14 – Cemitério do Sertão – novas marcas do tempo.................................. 219
9
LISTA DE TABELAS
Tabela 01 – Produção de café da Colônia Leopoldina 1836-1853......................... 41
Tabela 02 – População residente por sexo e situação .......................................... 125
10
RESUMO
Helvécia, distrito de Nova Viçosa, está localizado no extremo sul da Bahia e desde
2005 foi reconhecido pela Fundação Cultural Palmares, como área remanescente de
quilombo. O modo de organização econômica desta comunidade, associado às
dimensões sócio-culturais está imbricado à lida/propriedade/posse das terras que no
passado remoto fizeram parte da Colônia Leopoldina. A eucaliptocultura se encontra
em franca expansão no extremo sul baiano e esta atividade se faz presente em
Helvécia desde os anos de 1980. À época de sua implantação, houve por parte de
integrantes da comunidade, a esperança de que estaria se iniciando um tempo de
progresso e conquistas sócio-econômicas. Com o passar dos anos, as fraturas entre
o prometido e o realizado começaram a se fazer visíveis, implicando na experiência
de “desmantelamentos” da vida de muitos camponeses, e na tessitura de tensões,
resistências e negociações. A pesquisa indica a existência de diferentes projetos
coexistindo em Helvécia, sugerindo a complexidade das relações entre os próprios
membros da comunidade e entre estes e os representantes da eucaliptocultura.
Também fica perceptível a mudança na composição de forças entre os
representantes destes projetos após o reconhecimento do distrito como área
remanescente quilombola. O objetivo deste trabalho é discutir as condições sociais e
as relações simbólicas dos homens e das mulheres de Helvécia, após o
desenvolvimento do agronegócio no distrito. A partir da realização de entrevistas,
analisou-se narrativas e silêncios tecidos pela memória de habitantes do distrito a
respeito do que significava viver naquele lugar antes da implantação da
eucaliptocultura e como estes indivíduos foram obrigados a se (re)inventarem e a se
(re)organizarem, através de estratégias diversas, para viver com o eucalipto.
Palavras-chave: eucaliptocultura, resistência, remanescente de quilombo, memória e
cotidiano.
11
ABSTRACT
Helvécia, district of Nova Viçosa, is located in the extreme south of Bahia and since
2005 was recognized by Cultural Palmares Foundation, as a Quilombola remaining
area. The economic organization way of this community, coupled with socio-cultural
dimensions is imbricated to labor / property / possession of land which in a remote
past was part of Leopoldina colony. The eucalyptus culture is booming in the
extreme south of Bahia but this activity has been present in Helvécia since the
1980s. At the time of its deployment there was ,from members of the community, the
hope that it would bring a time of progress and socio-economic achievements. Over
the years, the fracture between the promised and the accomplished started to
become visible, implying in the experience of "dismantling" the lives of many
peasants, and the arising of tensions, resistance and negotiations. The research
indicates the existence of different projects coexisting in Helvécia, suggesting the
complexity of the relationship between the community members themselves as well
as between them and the representations of the eucalyptus culture.It is also
noticeable the change in the composition of forces between the representations of
these projects after the recognition of the district as a Quilombola remaining area.
The aim of this research is to discuss the social and symbolic relationship of men and
women of Helvécia, after the development of agribusiness in that district. From
interviews applied, both narratives and silences produced by the memory of
inhabitants of the district about what meant living in that place before the deployment
of the eucalyptus culture and how these individuals were forced to (re) invent and to
(re) organize themselves, through various strategies, to live with the eucalyptus.
Keywords : eucalyptus culture, resistence, Quilombola remaining area, memory and
daily.
12
SUMÁRIO
Introdução............................................................................................................. 13
1º Capítulo – Velhos Tempos de Helvécia............................................................. 36
1.1 Helvécia – uma aproximação em três tempos................................................. 37
1.2.1 Colônia Leopoldina e Helvécia – Alinhavos.................................................. 39
1.2.1.1 Lugar de memória........................................................................... 48
1.2.2 Tempo do cativeiro – memórias indizíveis.................................................... 56
1.2.3 Tempo da fartura “Ah, mais aqui era muito bom”.......................................... 61
1.2.3.1 “Festa em Helvécia era superior” .................................................... 69
1.2.4 Tempo da estação – Estrada de ferro Bahia Minas...................................... 72
2º Capítulo – “Pensou que não chegou a firma”.................................................... 84
2.1 “Porque eu me senti comprada” ...................................................................... 99
2.2 “Desmantelamentos”....................................................................................... 115
2.3 “Se não ficasse rico”........................................................................................ 120
3º Capítulo – Viver com eucaliptos........................................................................ 137
3.1 Resistências miúdas........................................................................................ 146
3.1.1 “Pior de tudo é nada né?” .................................................................. 147
3.1.2 “Eu não vou viver de pau.................................................................. 153
3.1.3 Entre facho e preguiça – viver do carvão........................................... 161
3.2 “Assuma a sua identidade, seja orgulhoso de ser filho de Helvécia” ............... 174
3.2.1 Arranjos identitários. Ser quilombola, tornar-se quilombola................ 187
3.3 “A gente está em um jogo de cintura com a comunidade”............................... 205
Considerações finais............................................................................................. 213
Referências........................................................................................................... 221
13
INTRODUÇÃO
Uma estrada “antiga”, de terra batida, estreita, ladeada por eucaliptos, que
estão enfileirados, organizados, vicejantes e prontos para serem cortados,
empilhados e enviados através de caminhões capazes de armazenar e transportar
toras e mais toras da branca madeira até diferentes portos, rumo a outros cantos do
mundo.
Uma estrada principal, “nova”, ladeada por eucaliptos que não se fazem de
rogados, e aparecem em diferentes tamanhos e portes como a dizer que aquele
caminho é, natural e definitivamente, deles.
Espaços de ausência nas beiras das estradas. Não mais tantos sítios, não
mais jaqueiras frondosas, não mais fartura de gado, não mais casas avarandadas.
Silêncios e eucaliptos, eucaliptos e máquinas coletoras, eucaliptos, homens e
máquinas. Não há mulheres.
Espaços de existência na beira da estrada. Um pequeno sítio, jaqueiras
tímidas e frondosas, algumas reses, algumas casas, uma varanda. Possibilidades de
confrontos e conflitos se insinuam no meio das estradas.
Homens e mulheres vivem nos povoados que se situam às margens das
estradas por onde circulam as carretas que transportam o eucalipto. Eles buscam
recolher, das mais variadas formas, algumas sobras que se desprendem da riqueza
do eucalipto, que passa, cada vez mais rápido, rumo aos seus destinos, seus
distantes portos de desembarque.
Espaço de vivência para além das estradas e seus eucaliptais. Lugares
plenos de histórias, histórias que sugerem outro jeito de viver e lidar com a terra,
com o ritmo do tempo, com as relações de sociabilidade. Homens e mulheres.
Também eles já estavam ali e ali permanecem. Permanecerão?
A composição desses elementos sugere a existência de tensões não na
beira da pista, mas dentro das casas, das igrejas, das vendas, enfim dos lugares de
convívio.
É neste feixe de possibilidades, de leituras de lugar, que está situado o distrito
de Helvécia, pertencente ao município de Nova Viçosa-BA, a 958 km de Salvador
tendo a BR 418 e a BR 101 como rodovias de acesso. A princípio, o que chama a
atenção neste distrito, não é uma singularidade, mas sim o fato de o mesmo, como
14
tantos outros na região, ter sido, de certa forma, tomado pela plantação de eucalipto.
Entretanto, uma observação mais cuidadosa deste lugar nos faz ver suas
idiossincrasias, e nos revela a existência de uma comunidade predominantemente
afro-brasileira, reconhecida desde 19 de abril de 2005
1
como área remanescente de
quilombo, que, diante de desmantelamentos estruturais, busca se organizar a partir
de ações individuais e coletivas no sentido de continuar a existir.
Segundo dados preliminares do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE), referentes à elaboração do censo de 2006,
2
a população total do distrito de
Helvécia é de 4.298 habitantes, divididos entre 1.690 na área urbana e 2.608 na
área rural.
A partir das falas de pessoas que residem naquele distrito é possível
identificar dimensões do cotidiano que revelam o significado do viver com o eucalipto
em Helvécia, suas expectativas e conflitos. Essas falas também apontam os
imbricamentos deste cultivo com os projetos governamentais que defendem o
agronegócio em detrimento dos outros modos de viver pautados nas atividades
agrícolas associadas a outras, não agrícolas, utilizadas para complementação da
renda, com o intuito de manter a condição de agricultor.
3
Meu interesse de pesquisa sobre essa comunidade deu-se a partir de
contatos com ela estabelecidos, em razão de trabalhos orientados e desenvolvidos
por mim, juntamente com alunos dos cursos de turismo, pedagogia e letras,
4
desde
o ano de 2003. Estes primeiros contatos foram feitos a partir de leituras sobre
Helvécia, nos raros materiais escritos existentes a que tive acesso à época, visitas à
comunidade e conversas informais com alguns de seus membros.
Neste período, se concretizara no Brasil e na Bahia uma tendência de
valorização da cultura afro-brasileira, com uma espécie de exaltação de tudo aquilo
que se lia, se via e se dizia relacionado às tradições africanas. Em consonância com
este movimento, o debate a respeito da importância das comunidades quilombolas
suscitava estudos acadêmicos e ganhava espaço na mídia e na agenda política,
com repercussões sobre o fazer legislativo.
1
Reconhecimento através da Fundação Cultural Palmares, do Ministério da Cultura, portaria 7 de
6 de abril de 2005, publicado no Diário Oficial da União, de 19 de abril de 2005.
2
Informações obtidas no escritório do IBGE em Teixeira de Freitas - Bahia.
3
Maria José Carneiro. Pluriatividade da agricultura no Brasil: uma reflexão crítica. CPDA/UFRRJ.
4
Integro o colegiado de Turismo da Faculdade do Sul da Bahia FASB em Teixeira de Freitas e fui
convidada a ministrar aulas no curso de formação de professores em exercício – PROESP de
licenciatura em Letras da UNEB Campus XVII de Eunápolis.
15
Em conformidade com a Lei 10.639/2003, que, em seu artigo 26-A, trata da
obrigatoriedade do ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira nos
estabelecimentos de ensino fundamental e médio, tanto em escolas oficiais quanto
em escolas particulares, essa temática ganhou cada vez mais espaço nos
ambientes acadêmicos, principalmente nos cursos de pedagogia, em razão da
necessidade de que estes futuros profissionais tivessem conhecimento a respeito da
mesma. Nos debates passou a ser muito comum falas dos alunos sobre
comunidades negras. De forma específica acredito que em razão da proximidade
espacial, na cidade em que vivo e trabalho, Teixeira de Freitas –, Helvécia passou a
ser apresentada em sala de aula pelos discentes, como um lugar de referência da
cultura afro-brasileira, falada como sendo um espaço de resistência, um lugar onde
as pessoas tinham suas tradições associadas aos tempos da escravidão,
vivenciados na antiga Colônia Leopoldina, fundada por colonos europeus ainda no
início do século XIX.
Concomitante à valorização anteriormente indicada, somavam-se os
problemas relativos ao crescimento da eucaliptocultura, que compunha a paisagem
da região do Extremo Sul baiano. Esta atividade ganhava terreno e ao fazê-lo
contribuía para o aumento do deslocamento de pessoas de seus lugares de origem,
de seus sítios, de suas terras. O debate a respeito do impacto ambiental do plantio
do eucalipto também ocupava os espaços acadêmicos e ganhava uma relativa
visibilidade na mídia local. A discussão se pautava, em linhas gerais, na dicotomia
progresso versus preservação do meio ambiente.
Uma série de discursos apresentados pelas empresas representantes da
eucaliptocultura, seus agentes e defensores, queriam fazer ver unicamente os
benefícios deste plantio e se negavam a discutir os problemas que lhes eram
atribuídos por grupos ligados às organizações ambientais e/ou sociais.
Foi exatamente no exercício dos debates em sala de aula e em outros
ambientes acadêmicos, que vislumbrei as relações e a complexidade existente entre
a eucaliptocultura e o distrito de Helvécia.
Cabe recordar, com um pouco mais de detalhes, os meus primeiros contatos
com Helvécia. Esses aconteceram, antes de iniciar o desenvolvimento desta
pesquisa, a partir de visitas feitas à comunidade. O debate sobre a importância da
cultura afro-brasileira ensejou os discentes a provocarem este movimento de ida até
aquela comunidade.
16
A primeira delas deu-se em razão de um grupo de estudantes do curso de
Turismo, no desenvolvimento de uma atividade acadêmica, ter convidado para vir à
faculdade um grupo de Helvécia que iria “apresentar” a dança do “bate-barriga”, bem
como “encenar” a luta dos mouros e cristãos.
Naquela oportunidade, um dos eixos de debates desenvolvidos, junto com a
turma, estava relacionado às discussões sobre a premissa, comum em um curso de
turismo, da valorização da cultura local. Atrelada a esta questão, discutíamos os
riscos existentes em folclorizar as pessoas, em tratar a produção cultural como um
espetáculo.
Foi assim que, após a “apresentação”, abrimos um espaço de conversa com
algumas das pessoas da comunidade e combinamos uma visita a Helvécia para
conhecermos um pouco mais sobre aquele jeito de ser. Saber, por exemplo, como
se dera a elaboração das letras das músicas cantadas por eles, conversar sobre a
linguagem corporal ali utilizada e seus possíveis significados, buscando, desta
forma, ir além da postura de meros espectadores de um show que se encerrara com
aplausos e comentários entusiasmados da platéia sobre a “riqueza da cultura afro-
brasileira”.
Passados alguns dias, nos organizamos e fomos até o distrito de Helvécia. A
paisagem que se apresentou durante o trajeto até a comunidade foi se mostrando
impactante pela sua homogeneidade. Para onde quer que se olhasse, o eucalipto se
fazia presente, verde, pronto para o corte ou ainda se insinuando em mudas
ordenadas, enfileiradas. Aquele fato chamou a atenção do grupo e a minha, de
modo particular.
Ao chegarmos, fomos recebidos com carinho e tivemos de fato aquilo que
havia sido planejado, qual seja a oportunidade de conhecer um pouco o jeito de ser
de alguns membros da comunidade. Alguns fatos nos chamaram a atenção, um
deles foi a existência de quintais que não se separavam por cercas, dando uma pista
de que havia, naquele espaço, um jeito diferente de lidar com a noção de
propriedade. Outro dado referia-se ao orgulho com que a população fazia menção
ao prédio da estação ferroviária Bahia e Minas, fazendo questão de mostrá-lo como
se ele fosse um exemplo concreto da importância do distrito em outros tempos
vividos. Falava-se muito do passado, talvez para não falar da vida presente e do que
a mesma implicava.
17
Foi nesta oportunidade que comecei a perceber a existência de um desejo por
parte de membros da comunidade em falar de suas Merias, e ao fazê-lo percebi
que os tempos da estação eram lidos como tempos áureos e os tempos do eucalipto
como um tempo de tensões, suscitando emoções confusas e ambíguas. Era comum
a construção de frases que em linhas gerais expressavam a idéia de que o distrito
estava “cercado pelo eucalipto”, ao mesmo tempo em que se falava das “firmas”
5
como se as mesmas desempenhassem um importante papel na história daquele
local.
Algum tempo depois, exatamente no dia 29 de janeiro de 2006, voltei à
Helvécia, desta vez com uma turma do colegiado de Letras da UNEB Campus
XVIII, Eunápolis, onde ministrava a disciplina Cultura Afro-brasileira, no curso de
formação de professores em exercício, através do Programa de Apoio á Educação
Especial (Proesp). Naquele dia a comunidade realizava festejos em homenagem a
São Sebastião.
Além dos alunos regularmente matriculados na disciplina, algumas discentes
de outros cursos fizeram a viagem. Este fato acabou por requerer de mim uma
atenção especial a respeito dos comentários produzidos no caminho, e que
indicavam as expectativas daquele grupo no que dizia respeito a uma comunidade
quilombola.
Pude observar na fala de alguns estudantes, à medida que o ônibus se
aproximava do distrito, a manifestação de um imaginário segundo o qual estaríamos
chegando numa área intocada pelo tempo e que encontraríamos um modelo de
quilombo que teria se constituído de forma isolada do mundo, como se fora uma
área de negros fugidos do cativeiro que buscavam restabelecer em solo brasileiro
uma nova África.
6
Aquele imaginário indicava uma leitura de cultura como algo
estático, que não estivesse sujeito a transformações engendradas nas relações
cotidianas.
Os estudantes diziam de suas expectativas e me faziam pensar que, para
eles, aquela era uma viagem no tempo, como se fosse possível restaurar naquele
5
É comum os habitantes de Helvécia se referirem às empresas responsáveis pelo plantio de
eucalipto no distrito, quais sejam Aracruz e Bahia Sul Suzano e Celulose, como “as firmas”.
6
Arthur Ramos apud Flávio dos Santos Gomes. Histórias de quilombolas: mocambos e comunidades
de senzalas no Rio de Janeiro, século XIX. Ed. rev. e ampl. São Paulo: Companhia das Letras, 2006
.
18
lugar as “sociedades africanas” dos nagô, cabinda, congo, hauçá, benim, calabar,
moçambique, rebola e gêge,
7
que para ali foram trazidos à época da Colônia
Leopoldina.
Muitas das falas foram no sentido de essencializar aquela comunidade. Era
como se no momento em que descêssemos do ônibus todo um repertório “afro”
fosse se descortinar para nós através de ritmos, pratos “típicos” e uma plasticidade
associada àquele mundo, traduzida na beleza de homens e mulheres que estariam
com seus cabelos trançados e enfeitados com contas coloridas.
Falava-se de Helvécia como se aquela comunidade tivesse sido formada por
escravos fugitivos que lutaram para reconstruir Estados Africanos no Brasil. Assim,
entre os alunos havia a idéia de que naquele lugar eles iriam encontrar
“sobrevivências africanas”
8
ainda intocadas. Neste sentido, havia, por exemplo, uma
curiosidade em relação a como seria a caracterização lingüística da comunidade de
Helvécia, associada, no imaginário de muitos dos alunos, ao “falar crioulo”.
9
Observei que um tema era recorrente nas conversas, a religiosidade afro.
Havia ali, naquele grupo, uma expectativa velada e/ou revelada de que
encontraríamos vários membros da comunidade adeptos dos cultos afros e que
estes estariam dispostos a falar sobre suas crenças e rituais.
Todas essas observações convidaram-me a fazer uma pequena intervenção
no sentido de alertar para o fato de que aquele era um espaço historicizado e,
portanto, não se tratava de um lugar morto, parado no tempo como se fosse um
cenário de filme ou novela de época. Havia ali indivíduos vivendo o seu tempo,
aquele tempo em que nós também estávamos. Ainda assim, qual foi o choque
destas pessoas ao descerem do ônibus e se depararem com carros de som tocando
axé music e arrocha.
Ficamos ali por todo o dia e comecei a reparar a existência de outros ônibus,
além do nosso, com placas que indicavam lugares os mais diversos: Belo Horizonte,
Vitória, entre outros. Percebi, através de conversas informais, que havia, além de
turistas que vieram conhecer uma área remanescente quilombola, também pessoas
7
Guia para formação de processo. Fundação Cultural Palmares Reconhecimento da Comunidade
Negra Rural de Helvécia – Nova Viçosa – Bahia, fls 41.
8
Flávio dos Santos Gomes. Histórias de quilombolas: mocambos e comunidades de senzalas no Rio
de Janeiro, século XIX. Ed.rev. e ampl. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 11.
9
Antes da viagem a Helvécia, havíamos lido em sala de aula o texto produzido por Dante Lucchesi e
Alan Baxter, Projeto Vertentes do Português Rural do Estado da Bahia, disponível em
http://www.vertentes.ufba.br/helvecia.htm.
19
naturais de Helvécia que não mais moravam no distrito e estavam ali a passeio para
visitar amigos e parentes. Elas faziam questão de dizer que eram de Helvécia e
acentuavam, nas suas falas, um sentimento de orgulho.
Curioso observar que quando uma das alunas perguntou onde era que se
localizava o terreiro de candomblé obteve como resposta um taxativo: “Isso o
existe aqui”, indicando que este era um terreno interdito que não se deixaria ver ou
ao menos não se deixaria ver de pronto. Ainda não entendendo o que estava
acontecendo, a estudante resolveu buscar mais informações sobre essa temática e
passou o dia fazendo a pergunta para qual obtinha sempre a mesma resposta. Até
que ao se aproximar de algumas jovens que não eram de Helvécia encontrou uma
resposta diferente, qual seja, havia sim um terreiro e este se localizava em uma
determinada saída de Helvécia, a “estrada velha”. Para satisfazer a curiosidade, que
a essa altura havia sido despertada em todo o grupo, resolvemos fazer o caminho
de volta através da tal estrada passando pelo vilarejo denominado “Espora Gato”,
pertencente ao município vizinho, Caravelas.
O novo trajeto, de fato, deixou ver a existência de um terreiro. Este foi
identificado a partir de elementos que compuseram a descrição feita para a
estudante que integrava o nosso grupo. Após a constatação e conversas tecidas a
partir daí, continuamos a viagem pela “estrada velha”.
A estrada era bem mais estreita que a via principal e ladeada por eucalipto. À
medida que o ônibus andava, mais e mais plantios de eucalipto apareciam e
tínhamos a impressão de estar dentro de uma cerca viva. Este sentimento de estar
enredado por eucaliptos começou a me fazer pensar nas falas das pessoas que
moravam naquele distrito, principalmente como era para elas viver com tal cultivo.
Naquele momento começava a se desenhar algumas das indagações que
pretendo abordar nesta pesquisa, como: em que medida as relações entre os
membros da comunidade e as empresas que plantam eucalipto foram tecidas a
partir de expectativas e conflitos? Como os habitantes de Helvécia se organizavam
para viver com o eucalipto? Como lidaram com as tensões envolvendo as questões
da propriedade da terra? Até que ponto a eucaliptocultura influenciou a comunidade
no processo de busca de reconhecimento de uma identidade quilombola? Em que
medida eles utilizaram, frente à eucaliptocultura, mecanismos de resistência no seu
fazer cotidiano? De quais formas a memória da comunidade se compõe e
estabelece relações com seus elementos identitários? A existência dos
20
deslocamentos, que percebi através de falas de membros da comunidade, teria
relação com a implantação do agronegócio do eucalipto?
Mais tarde, em julho de 2006, ao assumir o cargo de professora substituta no
colegiado de História da UNEB campus X, em Teixeira de Freitas, deparei-me em
uma reunião de departamento com a leitura de uma carta enviada por pessoas da
comunidade de “Espora Gato”. Motivadas pelo reconhecimento de Helvécia como
área remanescente quilombola, solicitavam da academia um estudo sobre a sua
origem, que, ainda segundo a referida carta, era predominantemente afro.
Essa demanda do povoado instigou ainda mais a minha vontade por
desenvolver uma pesquisa. Foi quando tomei conhecimento do programa de
Mestrado em História Regional e Local da Universidade do Estado da Bahia,
campus V. Em seguida, decidi participar do processo de seleção com o projeto
então denominado: Helvécia: homens, mulheres e eucaliptos histórias de sonhos,
conflitos e dores.
Do ponto de vista conceitual, para não ficar presa à dualidade expressa no
binômio natureza/cultura, e buscando compreender as relações, por vezes
contraditórias, existentes dentro da comunidade de Helvécia, farei uso de categorias
de análise como cotidiano e experiência, memória, resistência e identidade.
Aqui é preciso que se esclareça em que sentido e a partir de quais leituras
compreendo a dimensão do cotidiano. Em primeiro lugar, devo elucidar que não o
entendo como associado à idéia de rotina, previsibilidade e repetição. Se assim o
fosse é provável que tal pesquisa estivesse fadada a se limitar a uma análise
descritiva do modo de viver em Helvécia.
Diferentemente desta concepção, do cotidiano como algo fixo e já dado,
compreendo este conceito associado à idéia de movimento e imprevisibilidade,
dando margens para novos arranjos sociais. Isso implica dizer que o cotidiano será
aqui trabalhado em sua dimensão relacional, nos espaços econômicos, políticos e
socioculturais. Possibilitando, assim, a problematização do mesmo, bem como a
desconstrução de estereótipos que servem a uma visão rígida dos papéis e
espaços, mas que não compreendem a complexidade exigida pela historicidade.
Naquilo que concerne aos estudos voltados para a dimensão do cotidiano,
Maria Odila Leite da Silva Dias, comentando as diferentes formas de se trabalhar tal
conceito, expressa sua crítica à idéia do mesmo como instrumento de mera
descrição e assinala a importância que este adquire à medida que
21
[...] estuda o cotidiano problematizando conceitos herdados do
pensamento tradicional e mostrando o impasse em que se
encontram. Nesse sentido vem trabalhando tensões e conflitos que
clamam por uma hermenêutica radical: a politização do privado, das
relações de gênero, de uma pluralidade de sujeitos e de diferentes
processos históricos de construção das subjetividades. É esse um
caminho bastante fecundo, que tornou visível a historicidade de
valores considerados estanques como natureza e cultura, público e
privado, sujeito e objeto, razão, emoções, paixões, dualidades que
têm por certo sua historicidade, a qual, porém, o pensamento
contemporâneo vem procurando transcender.
10
Ao romper com a dualidade natureza e cultura, público e privado, sujeito e
objeto, razão e emoção, estes universos passam a transitar e se comunicar de tal
forma que nos surpreendem com amálgamas que se expressam nos arranjos, nas
invenções, nas construções de alternativas, no jeito de ser. Assim, nesta pesquisa
se buscou conhecer indivíduos que transitavam nestes diferentes espaços. Pessoas
que, através de suas falas, indicavam uma defesa do jeito de viver pautado na
pluriatividade,
11
cujos integrantes da família exerciam mais de uma atividade
econômica, com especial destaque para as agropastoris, e associavam a estas suas
memórias dos “bons tempos”. Por outro lado, porém, perguntavam-se: “Como fazer
outro cultivo, como investir em outra produção se o que dá dinheiro hoje é o
eucalipto?”
Compreende-se, pelo exposto, que é necessário levar em consideração o
contexto simbólico das pessoas de Helvécia para se conhecer, minimamente, aquilo
que é vivenciado por elas, afinal, a análise da eucaliptocultura vista “a partir de cima”
pode encobrir fissuras, desalentos não quantificados, distante de uma perspectiva “a
partir de baixo”
12
, vivenciada e traduzida nas falas daqueles que moram em Helvécia
e que muito têm a nos narrar do lugar que ocupam. Como nos indica Roseli Ricardo
Constantino, integrante da Associação Quilombola de Helvécia (AQH), pedagoga e
professora da comunidade, ao dizer: “é muito fácil falar sobre uma realidade quando
10
Maria Odila Leite da Silva Dias. Hermenêutica do cotidiano na historiografia contemporânea.
Projeto História. Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de
História da Pontifícia Universidade Católica da São Paulo, São Paulo, EDUC, nº 17, p. 231, 1998.
11
José Graziano da Silva, Mauro Eduardo Del Grossi. O novo rural brasileiro. Este texto é parte de
uma pesquisa mais ampla denominada “Projeto Urbano” (www.eco.unicamp.br).
12
Edward P Thompson. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas: UNICAMP, 2001,
p. 245.
22
não se mora e não se está vivendo o dia-a-dia do lugar. Mostrar isso por intermédio
de gráficos bonitos e enfeitados é muito fácil.”
13
Exatamente por não acreditar que as mudanças econômicas analisadas de
forma pontual e descoladas da realidade sociocultural, através, por exemplo, de
“gráficos bonitos e enfeitados”, possam dar conta da complexidade existente nas
relações sociais, bem como por entender, a partir das leituras de Maria Odila Leite
da Silva Dias,
14
que o estudo do cotidiano seja de fundamental importância para que
se compreendam as tensões sociais, é que se pretende, nesta pesquisa, ir além da
descrição do impacto econômico da eucaliptocultura no distrito de Helvécia. De
modo a buscar, dentro dos limites possíveis, conhecer um pouco das experiências
destas mulheres e homens que têm um sentimento de pertencimento em relação à
Helvécia, analisando de que forma a implantação de uma atividade econômica
monocultora e agroexportadora se relaciona e/ou se fricciona com os costumes
existentes naquilo que diz respeito não ao universo do trabalho, mas também no
que é experienciado por essas pessoas nos seus mais variados espaços de
atuação. E que no dinamismo histórico faz ver suas transformações quando se
pensa no aqui-ontem e no aqui-hoje.
Convém dizer que a problematização do cotidiano de Helvécia, que ora se
pretende fazer, não tem a pretensão de, através das memórias e entrevistas
realizadas, dar conta de reconstruir o passado. Estou ciente de que esta é uma
tarefa inexeqüível, por outro lado, acredito que através das entrevistas realizadas,
bem como de sua análise, seja possível conhecer, por assim dizer, uma “nesga”
deste passado, visto que estou entendendo aqui a memória como uma construção.
Assim, o depoimento individual não é “solto”, sua memória está impregnada de
dimensões da vida coletiva.
Pierre Nora, ao escrever a respeito da memória, traduz suas potencialidades
e limitações dentro de uma atividade de pesquisa ao afirmar:
A memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, neste
sentido, ela está em permanente evolução, aberta à dialética da
lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações
13
Roseli Ricardo Constantino, Depoimento n. 1595/05 de 18/10/2005, na Comissão de Meio
Ambiente Sustentável da Câmara dos Deputados – DETAQ.
14
Maria Odila Leite da Silva Dias. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. 2. ed. rev. São
Paulo: Brasiliense, 1995.
23
sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipulações, suscepvel
de longas latências e de repentinas revitalizações.
15
Sendo assim, cabe ao historiador, ao trabalhar com pessoas e suas
memórias, ter clareza de que está lidando com leituras/interpretações sobre o real,
pois como nos diz Nora, ao tratar das diferenças entre história e memória, “a história
é a reconstrução sempre problemática e incompleta do que não existe mais”,
16
o que
significa dizer que ao trabalhar a partir das memórias construídas, uma limitação se
faz presente, visto que muito daquilo que foi vivenciado no passado não será
utilizado na composição da história daquele lugar e daquelas pessoas. Além disso, o
trabalho com memórias exige uma análise criteriosa e responsável daquilo que foi
apresentado pelos entrevistados à pesquisadora, constituindo-se um constante
desafio nem sempre aqui enfrentado em sua complexidade.
A importância que o estudo do cotidiano ganha nesta pesquisa está também
associada à idéia de conhecer um pouco das experiências sociais tecidas em
Helvécia, entendendo que aquelas pessoas atuam como agentes históricos dentro
daquela realidade, na medida em que nas relações engendradas se vive não a
concretude do vivido, como também aquilo que se dá no campo da imaginação.
O uso da categoria “experiência” foi feito a partir de leituras de Edward P.
Thompson, que afirma o quanto esta é de fundamental importância para o
historiador, tendo em vista que “[...] compreende a resposta mental e emocional,
seja de um indivíduo ou de um grupo social, a muitos acontecimentos inter-
relacionados ou a muitas repetições do mesmo tipo de acontecimento”.
17
Desta
maneira, os entrevistados compuseram suas memórias a partir daquilo que havia
sido sentido por eles, integrantes da comunidade de Helvécia, em seu convívio com
a atividade da eucaliptocultura.
O fato de entender essas pessoas como agentes históricos não significa
identificá-las como se pudessem escrever seus scripts de maneira idílica, segundo
suas vontades, como se a realidade não lhes apresentasse uma série de limites. Por
outro lado, tais sujeitos não são seres sem vez nem voz, vítimas de uma história que
se apresenta como um rolo compressor. Estes agentes constroem a sua história a
15
Pierre Nora. Entre Memória e História: a problemática dos lugares. Revistas do Programa de
Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História. PUC-SP, n° 10, p. 9, dez./ 1993.
16
Idem.
17
E. P. Thompson. A miséria da teoria ou um planetário de erros uma crítica ao pensamento de
Althusser. Rio de Janeiro: Zahar editores, 1981, p. 15.
24
partir de condições determinadas, conforme salientou Karl Marx, em um processo
contínuo em que há espaço para avanços e recuos, para ações marcadas por
consonâncias e contradições.
18
Os limites de ação da história também o
construções humanas, e por isso são cambiáveis.
Ainda no que diz respeito às experiências, sabemos que elas são plurais e no
fazer-se de uma comunidade espaços para fissuras, convergências e
divergências. As experiências humanas devem ser entendidas, como nos alerta
Thompson, dentro de seus contextos históricos específicos, sob o risco de, ao se
optar por generalizações, abraçar modelos universais esvaziados que não darão
conta da historicidade destes indivíduos. É, pois, a esta historicidade que o estudo
em questão daênfase, entendendo estas pessoas não como simples fontes de
pesquisa, não como modelos de uma comunidade quilombola que vivencia a
atividade do agronegócio, mas sim como pessoas que têm algo a dizer a respeito de
suas experiências, sobretudo de seu modo de viver.
No diálogo com esses sujeitos pretende-se uma aproximação de possíveis
interpretações das experiências dos habitantes de Helvécia. Não se tem aqui a
aspiração de se chegar a um modelo explicativo, nem muito menos conclusivo do
modo de viver desses indivíduos. Ao contrário, se pode desde agora afirmar que
nenhum modelo dará conta das possibilidades existentes. O que se pretende é uma
aproximação de algumas dessas possibilidades, através da análise de conceitos
como, por exemplo, aqueles ligados à idéia de trabalho, em diferentes unidades de
tempo. É sempre bom lembrar que, como nos fala Maria Odila Leite da Silva Dias,
“[...] projetos hegemônicos de uma sociedade dificilmente coincidiam com as
experiências concretas de setores oprimidos da população”.
19
Em relação ao método de pesquisa utilizado, vale dizer que os conflitos e as
violências simbólicas impetradas pelo modelo agroexportador serão analisados a
partir de dados qualitativos, uma vez que se compreende que não existe uma
implicação direta entre a importância simbólica da violência e a quantidade de
existência da mesma. Neste sentido, recorremos à defesa feita por Thompson, de
que o contexto simbólico deva ser levado em consideração na análise de episódios
18
Maria Aparecida de Moraes Silva. A luta pela terra: experiência e memória. São Paulo: UNESP,
2004.
19
Maria Odila Leite da Silva Dias. Hermenêutica do cotidiano na historiografia contemporânea.
Projeto História, op. cit., p. 233.
25
de violência, pois a esses episódios são atribuídos valores que variam em razão do
referido contexto e que não aparecem numa análise puramente quantitativa.
20
Não se trata, por exemplo, de fornecer dados sobre a quantidade de terra que
pertencia aos habitantes de Helvécia e que hoje pertencem às empresas produtoras
de eucalipto. O que nos preocupa é conhecer em que medida tais aquisições foram
pautadas em ações que constituem atos lidos e tidos pela comunidade local como
agressivos e/ou violentos.
Interessa-nos saber, por exemplo, como as pessoas se sentiram ao terem
seus espaços, antes conhecidos e individualizados, agora homogeneizados pelo
plantio do eucalipto. A fala a seguir dá uma pista dessa, por assim dizer, sensação,
Eucalipi pertinho assim do Comércio [Helvécia], tomando mermo.
Isso que eu não me senti bem [...] eucalipi dentro do
Comércio.[...] e a maioria desse pessoal perto venderam a terra
toda, então a terra que eles venderam foi tudo pra Aracruz, virou
eucalipi.
21
na qual a proximidade do plantio é denunciada nas entrelinhas como algo agressivo,
e a venda das terras para a Aracruz é interpretada como uma imediata
transformação destas em eucalipto, traduzida na expressão: “aí virou eucalipi”.
Outra ressalva que se acredita pertinente diz respeito ao seguinte fato: não se
pode imaginar que o distrito de Helvécia, independente da eucaliptocultura, pudesse
viver de forma a não entrar em contato com mudanças e transformações ocorridas
no Brasil no período da denominada modernização conservadora. Não se trata aqui
de entender uma comunidade camponesa, hoje reconhecida como área
remanescente quilombola, como se fosse uma comunidade parada no tempo,
vivendo de forma anacrônica.
A modernização da agricultura, iniciada no Brasil na década de 1950, estava
relacionada à tomada do campo, condição para a expansão capitalista. Segundo
José Graziano da Silva, “uma das características marcantes da modernização
conservadora da nossa agricultura nos últimos 25 anos foi a ‘territorialização da
burguesia’“,
22
que expropriou uma parcela dos trabalhadores rurais.
20
Edward P. Thompson. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas, UNICAMP,
2001.
21
Entrevista concedida à autora pela Sra. Célia Maria Silva Zacarias, em 15 de março de 2007.
22
José Graziano da Silva. Terra para quem nela não trabalha. Portal da Fundação Perseu Abramo.
Debate Programa para o Campo nº 7, 1989. www2.fpa.org.br. Acesso em novembro 2008.
26
A estrutura do campo, à época, contava com a presença de uma oligarquia
latifundiária, dividida entre latifundiários capitalistas e latifundiários “tradicionais”,
estes últimos quase sempre associados à atividade da pecuária. Abaixo destes
estavam os médios proprietários de terra que também faziam uso em suas
propriedades do trabalho assalariado. Na base desta estrutura havia a pequena
propriedade familiar, que conseguia produzir o suficiente para suprir suas
necessidades, e também existia outra parte integrante desta base que se destacava,
como afirmam Mello e Novais: “[...] no conjunto do país, a esmagadora maioria,
cerca de 85%, é formada por posseiros, pequenos proprietários, parceiros,
assalariados temporários ou permanentes extremamente pobres ou miseráveis.”
23
A
produção feita por essas pessoas era normalmente rudimentar e quase sempre
suficiente apenas para prover a alimentação da família. Quando havia sobra, esta
era comercializada nas feiras próximas aos lugares de produção, e o dinheiro
adquirido nesta atividade era utilizado na aquisição de roupas, sapatos ou utensílios
de casa que não eram produzidos pela própria família.
Os intelectuais e políticos, defensores do projeto modernizador, viam neste
cenário características associadas ao atraso e típicas de um remoto passado
colonial. Este precisava ser apagado, para que o Brasil, que desde o início do século
XX iniciara um processo de aproximação com o capitalismo industrial, entrasse,
definitivamente, na era da modernização. Estamos falando aqui da modernização
selvagem da agricultura, iniciada na década de 1960 e que deveria ser feita a
qualquer custo. Na verdade, um custo um tanto quanto alto para os pequenos
proprietários e posseiros, que engrossavam os 85% da população rural do Brasil e
que também se faziam presentes em Helvécia.
Em conformidade com este projeto de modernização, foi criado, em 1964,
através da Lei 4.504, o Estatuto da Terra.
24
Este incentivou o aumento da
produção e produtividade e transformou a paisagem rural à medida que ampliou e
consolidou a expansão capitalista através da industrialização do campo.
Tal industrialização se fez sentir com a chegada ao campo de maquinários
pesados, como o trator, o uso de inseticidas e implementos agrícolas sofisticados,
23
João Manuel Cardoso de Mello e Fernando A. Novais. Capitalismo tardio e sociabilidade moderna.
In: História da vida privada no Brasil: Contrastes da intimidade contemporânea. Volume 4, São Paulo,
Companhia das Letras, 1998, p. 575.
24
Maria Aparecida de Moraes Silva. A luta pela terra experiência e memória. São Paulo: UNESP,
2004. Coleção paradidáticos.
27
processo denominado revolução verde,
25
que alterou a maneira usual de produção
de muitos dos pequenos camponeses. Essas transformações estavam atreladas à
presença de grandes empresas internacionais e nacionais que contavam com o
apoio dos governos federal e estaduais, no sentido de ocuparem propriedades,
inclusive pequenas, familiares ou de posseiros.
A grilagem compôs este cenário de transformação do campo e implicou a
expulsão de pequenos proprietários, posseiros, agregados e arrendatários,
contribuindo de forma decisiva para a concentração.
Warren Dean,
26
ao discutir o “imperativo do desenvolvimento”, destacou, entre
outros aspectos, o apoio dado pelos governos militares à plantação do eucalipto no
Brasil. Em relação ao papel do Estado na concessão de exploração da terra, Dean
afirma:
A troca do patrimônio estatal pelo ganho de curto prazo dos
interesses privados é um tema constantemente repetido na história
brasileira, tão habilidosa e diversificadamente adotada e tão inerente
que se mostrava como a razão mesma da existência do Estado.
27
Outra ação governamental, significativa neste período, foi a construção de
estradas de rodagem incentivando o deslocamento permanente da fronteira
agrícola
28
bem como possibilitando o escoamento dos produtos provenientes das
ações das empresas que estavam à frente deste projeto de industrialização do
campo. Foi desta época, 1972, a construção da BR-101, que contribuiu com o
processo de reorganização dos papéis comerciais desempenhados pelos municípios
e distritos que eram, ou não, como Helvécia, perpassados por ela.
Entre 1950 e 1980, intensificou-se o processo de deslocamento populacional
do campo para as cidades.
Foi dentro deste contexto que a história de Helvécia foi sendo construída
diariamente, de maneira a conviver com a existência do novo, o que implicou o
desfecho de novas necessidades, organizações sociais, diferentes jeitos de ser,
diante de uma realidade que se mostrou ela própria diferente. Tal realidade não mais
25
JoGraziano da Silva. A globalização da agricultura. Palestra proferida no Centro Nacional de
Pesquisa de Monitoramento e Avaliação de Impacto Ambiental da Embrapa. Jaguariúna, 24/04/97.
Publicado em Silveira, M. e S. Vilela, eds. Globalização e a sustentabilidade da agricultura.
Jaguariúna, Embrapa Meio Ambiente – 1998. Série Documentos, p. 29 a 38.
26
Warren Dean. A ferro e fogo: a história e a devastação da mata atlântica brasileira. São Paulo:
Companhia das Letras, 1996.
27
Idem, p. 291.
28
João Manuel Cardoso de Mello e Fernando A. Novais. Capitalismo tardio e sociabilidade moderna,
op. cit., p. 580.
28
aceita, ou ao menos não aceita somente os mesmos ritmos de trabalho, as mesmas
organizações de lazer, os mesmos sonhos e expectativas.
Interessa-me saber como nas relações do cotidiano são feitas
intermediações, pelos moradores de Helvécia, com o intuito de lidar com a realidade
de forma criativa, fazendo uso de um repertório de atitudes que não estavam
prescritas, mas que foram (re) inventadas frente à situação dada. O fazer-se deste
cotidiano é, pois, ditado pelo vir a ser, eivado de imprevisibilidade. Mesmo quando
este passa a ser regulado por uma série de normas disciplinares, como por exemplo
aquelas ligadas ao ritmo do trabalho, é importante não se perder de vista uma
indagação proposta por Michel de Certeau a respeito das relações sociais: “que
procedimentos populares (minúsculos e cotidianos) jogam com os mecanismos da
disciplina e não se conformam com ela a não ser para alterá-los?”
29
É este agir,
minúsculo e cotidiano, que nos interessa estudar.
Acerca dessas ações, ou melhor, do desprezo dado às mesmas, James C.
Scott, em artigo intitulado “Formas cotidianas da resistência camponesa”, nos
provoca quando afirma que, de certa forma, muitas das pesquisas que tratam das
insurreições camponesas acabam por privilegiar aquelas que são lidas por
representantes do Estado como sendo significativas em razão de terem provocado
algum tipo de alteração visível, para as classes dominantes, na relação destes
camponeses no jogo das classes sociais.
Assim, o registro de ações camponesas comumente é mais rico nos
momentos em que essas representaram alguma ameaça à ordem vigente. Tais
registros, normalmente, constituem as fontes consultadas pelos pesquisadores a
respeito das insurreições camponesas. Este procedimento acaba quase sempre por
desvalorizar as resistências que acontecem no viver diário e que, neste sentido, por
vezes, dizem mais aos seus agentes, visto que eles as experienciam nas suas
relações diárias. Assim, no dizer de Scott:
Para os camponeses, pulverizados ao longo da zona rural e
enfrentando ainda mais obstáculos para a ação coletiva e
organizada, as formas cotidianas de resistência parecem
particularmente importantes.
30
29
Michel de Certeau. A invenção do cotidiano. Artes de fazer. Trad. Ephraim Ferreira Alves.
Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1994, p. 41.
30
James C. Scott. Formas cotidianas da resistência camponesa. Revista de Ciências Sociais e
Econômicas, Universidade Federal de Campina Grande, Programa de Pós-graduação em Sociologia,
vol. 1, n° 1, p. 11, jul./dez. 1982
.
29
São essas as formas de resistência que serão analisadas nesta pesquisa.
Elas se constituem em ações que na comunidade são memoradas e ditas, por
exemplo, quando seus membros mencionam o fato de que alguns “pegam, pegam
mesmo o facho”, referindo-se aos pedaços de eucalipto que recolhem daquilo que
restou nas plantações após as empresas efetuarem o corte da madeira que lhes
interessava. Este facho, por vezes retirado sem autorização das empresas, é
utilizado, por integrantes da comunidade, para produzirem carvão. Isso implica a
existência de tensões envolvendo os membros da comunidade e os representantes
das “firmas”.
Outra situação de resistência que aparece nas entrevistas como significativa
para os camponeses locais diz respeito às falas de pessoas mais idosas que se
orgulham de não terem vendido suas terras ou, ainda, de não se deixarem seduzir
pelas propostas de fomento. Este mecanismo consiste numa espécie de contrato
feito por proprietários
31
de terra e empresas de eucalipto. Por meio dele, os
proprietários plantam eucalipto em suas terras, com auxílio técnico e financeiro das
empresas. Dentro da lógica do agronegócio, esta produção depois é comprada pelas
empresas que descontam o valor investido anteriormente.
Ocorre que os habitantes de Helvécia possuem sua própria lógica e esta foi
construída a partir de suas experiências diárias, com base em um repertório próprio
que lhes permitiu agir no contato com o estranho, com o novo. A execução das
práticas sugeridas por esse repertório mostrou-se, como veremos no decorrer deste
trabalho, complexa e com possibilidades de diferentes arranjos.
Naquilo que diz respeito ao uso do conceito de identidade, importante na
discussão sobre o sentimento de pertencimento da comunidade de Helvécia como
quilombolas, fiz uso do referencial teórico construído por Stuart Hall em razão do
mesmo evidenciar seu processo de formação, quando afirma que
[...] a identidade é algo realmente formado, ao longo do tempo,
através de processos inconscientes, e não algo inato, existente na
consciência no momento do nascimento. Existe sempre algo
“imaginário” ou fantasiado sobre sua unidade. Ela permanece
sempre incompleta, está sempre “em processo”, sempre “sendo
formada”.
32
31
Nesta dissertação estou usando o termo proprietário de terra no sentido dado pela comunidade de
Helvécia, tendo eles, ou não, titulação da terra.
32
Stuart Hall. A identidade cultural na pós-modernidade. 8. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p. 38.
30
Na elaboração desta pesquisa, faz-se uso, entre outras, de fontes orais, o
por creditar ineditismo às mesmas, mas por compreendê-las como de vital
importância no processo de conhecimento das experiências vivenciadas em uma
comunidade em que o uso da oralidade é relevante como maneira de expressão.
Pressupõe-se que a partir das falas e silêncios, lembranças e esquecimentos dar-se-
á dizibilidade e visibilidade àquilo que os entrevistados compuseram como
significativo para sua história e do seu lugar, podendo traduzir ou indicar tensões
nas relações cotidianas dessa comunidade com os diversos segmentos
responsáveis pelo desenvolvimento da eucaliptocultura.
Tal opção traz em si a indicação de que o se espera coletar a partir das
entrevistas apenas meras informações ou dados quantitativos a respeito da
atividade produtora de eucalipto no distrito de Helvécia. Acredita-se na existência de
uma ligação enriquecedora entre oralidade, tradição e experiência, traduzida na
construção de narrativas, nas quais, “o narrador retira da experiência o que ele
conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas
narradas à experiência dos seus ouvintes”.
33
Esta tessitura, existente na troca de
experiência de pessoa para pessoa, possibilita o relato de saberes construídos em
um tempo passado, nem sempre passíveis de uma comprovação no tempo
presente. Talvez resida a riqueza de se ouvir o outro falar sobre o seu viver,
comunicando aquilo que se encontra para além do relato, aquilo que está no
universo do sentido, vivido, experienciado.
No trabalho com fontes orais os textos são produzidos a partir do diálogo
entre entrevistador e entrevistado, sendo sempre uma relação dialógica, em que se
deve predominar a delicadeza e a sensibilidade de ouvir.
34
Esta tarefa foi por vezes
árdua, no sentido de exigir uma escuta ao mesmo tempo participativa e de algum
modo solitária. Entretanto, a verdadeira aridez no trato com este tipo de fonte eu
pude sentir quando, após as inúmeras escutas e transcrições, comecei a selecionar
o que seria incluído no meu texto. Neste momento, por várias vezes, me senti
deixando de levar em consideração exatamente aquilo que havia me proposto desde
o início, ou seja, conhecer o que aquelas pessoas tinham a dizer de suas
33
Walter Benjamin. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7.
ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 201.
34
Paul Thompson. A voz do passado: história oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
31
experiências de vida dentro da problemática que elegi como objeto de estudo. São,
pois, as minhas escutas e os meus olhares que aqui serão apresentados.
A partir das conversas com os entrevistados é que pude aprender algo sobre
aquele lugar e sobre o significado de se viver ali com todas as questões e limitações
que estão postas, pela implantação da eucaliptocultura numa área remanescente
quilombola. Nisto consiste meu problema de pesquisa. Aquele lugar passou então a
ser para mim um espaço de aprendizagem, de conhecimento. Eu estive ali sempre
para aprender com aquelas pessoas, porque de fato elas expressam em suas
memórias aquilo que eu precisava conhecer para, minimamente, tentar responder às
perguntas que havia formulado.
Ao fazer, anteriormente, menção à idéia de dizibilidade e visibilidade daquilo
que foi composto pela memória dos entrevistados o estou pensando em fazê-lo
partindo da premissa de que serei eu a estar dizendo ou fazendo vê-los; ao
contrário, foi exatamente a partir daquilo que os entrevistados disseram e/ou
silenciaram e daquilo que eu pude ver nas oportunidades em que estive em Helvécia
que fui construindo tal texto, o que implica reconhecer que não há ninguém melhor
do que os habitantes de Helvécia para falar sobre o significado de viver a realidade
da eucaliptocultura naquele distrito. Aquelas pessoas m suas vozes, por vezes
dissonantes, seus rostos e jeito de viver, da sua forma narram suas histórias, e,
certamente, não reúno condições de atuar em nome daquela comunidade, pela
razão óbvia de que eles próprios se nomeiam e se dizem de forma clara, não
precisam de alguém alheio para falar por eles. Então, a que me refiro quando falo
em dizibilidade e visibilidade? Penso na possibilidade de, tendo acesso ao meio
acadêmico e aos mecanismos de divulgação, que este meio enseja fazer uso destes
com o intuito, sim, de que aquilo que está sendo (re)construído em Helvécia,
pelos seus habitantes, possa ser conhecido por outras pessoas.
Na realização desta pesquisa entrevistei vinte e três pessoas, destas, duas
residem em Teixeira de Freitas (BA), duas em Teófilo Otoni (MG) e dezenove em
Helvécia. Os entrevistados, em sua maioria, eram ou tinham sido pequenos
proprietários e/ou posseiros naquele distrito. Destes, alguns tinham vendido suas
glebas para as empresas de eucalipto ou para atravessadores.
Foi de fundamental importância para a realização das entrevistas o fato de,
antes do desenvolvimento da pesquisa, ter conhecido pessoas de Helvécia. Em
razão deste meu conhecimento prévio fui acolhida na comunidade e apresentada a
32
outras pessoas que se dispuseram a falar a respeito de suas vidas, de suas
experiências no convívio com a eucaliptocultura.
À medida que fui fazendo as entrevistas, surgiram informações que indicavam
a necessidade de buscar ouvir uma ou outra pessoa da comunidade. Também foi
imperativo entrevistar integrantes da Associação Cultural Ferroviários da Bahia e
Minas, na cidade de Teófilo Otoni (MG).
A partir da fala de um entrevistado, fui compreendendo também a fala de
outro. De forma que por vezes aquilo que se insinuara em uma reminiscência
aparecia com destaque em outra.
A respeito do número de pessoas entrevistadas, algumas questões de
natureza prática foram consideradas. Havia um tempo para realizar as pesquisas de
campo. Depois era preciso fazer a análise e cruzamento das fontes e então construir
o texto. As tarefas demandavam também uma organização temporal e por isso
quando percebi que possuía dados suficientes para trabalhar na construção da
dissertação, tomei a decisão de parar.
Na prática, no momento em que comecei a construir o texto senti necessidade
de fazer algumas novas entrevistas, o que me fez sair de novo a campo, desta fez,
porém, com o objetivo de buscar informações mais pontuais a respeito de um ou
outro tema que se mostraram relevantes no momento da análise dos dados
coletados.
Além das fontes orais, ou melhor, dos diálogos que tive com pessoas de
Helvécia, para a realização desta pesquisa foi feito o uso de documentos existentes
no Arquivo Público do Estado da Bahia, em Salvador. Na capital baiana também
pude consultar a hemeroteca do Instituto Geográfico Histórico da Bahia, o Acervo do
jornal A Tarde e os arquivos da Seplan CAB (Centro Administrativo da Bahia).
Também consultei monografias que tratam de temas afins, desenvolvidas na
Universidade Estadual de Santa Cruz, na Universidade Federal da Bahia e na
Universidade Federal de Minas Gerais. Recorri também às empresas Aracruz
Celulose e Bahia Sul Suzano Celulose, à Fundação Cultural Palmares e aos acervos
de Organizações não governamentais que atuam na região.
O projeto inicial desta pesquisa contemplava a possibilidade de entrevistar
pessoas que representassem a Aracruz Celulose e a Suzano Bahia Sul Celulose.
Iniciei os contatos com estas empresas por telefone e em seguida por e-mail. A
Aracruz Celulose não respondeu a nenhum dos e-mails enviados por mim. A Suzano
33
Bahia Sul Celulose respondeu a todos eles, enviou artigos produzidos por
pesquisadores sobre a atuação da empresa na região e dados a respeito das ações
de responsabilidade social desenvolvidas no Extremo Sul Baiano. Entretanto, em
relação às perguntas a respeito da atuação especifica da empresa em Helvécia,
alegou não ter as informações discriminada por distrito, mas sim pelo município.
Mesmo estas, quando solicitadas, não foram enviadas pela empresa.
Estabeleci contatos, através de carta enviada pela minha orientadora, com o
Centro de Documentação e Memória da Suzano Bahia Sul e Celulose, localizado em
São Paulo. Em resposta, tive as minhas questões encaminhadas novamente para
um representante da empresa que atua diretamente no Extremo Sul da Bahia. Este
funcionário sinalizou com a possibilidade de uma conversa futura, que não
aconteceu. Como o tempo para desenvolver a dissertação era exíguo, busquei
conhecer as vozes dessas empresas através das informações que as mesmas
divulgam em seus sites oficiais e através de jornais. Se por um lado a não realização
destas entrevistas, pelos motivos apresentados, constitui um hiato nesta pesquisa,
por outro, os silêncios podem sugerir algum tipo de dificuldade destas empresas em
falarem de suas atuações no distrito de Helvécia.
As fotografias, produzidas nas atividades de campo foram utilizadas não
como dados objetivos, uma reprodução fiel da realidade. Elas são construídas.
Como afirma Mauro Guilherme Pinheiro Koury, citado por Ariosvaldo da Silva Diniz:
a imagem significa, ao mesmo tempo, o olhar do criador e o olhar do
espectador, e a interpretação é a resultante desta interdependência,
ou desta ambigüidade de olhares, associada ou não a um terceiro
olhar que busca compreender os mecanismos sociais que
desconstroem e reconstroem as informações transmitidas pelo
intercruzamento dos diversos olhares.
35
Tendo essa clareza, a análise do material visual adquiriu um valor indiciário
significativo no processo de elaboração desta dissertação.
Acredito ser importante fazer algumas considerações a respeito do recorte
temporal utilizado, qual seja 1980-2005. Tal opção se justifica em razão deste
espaço de tempo contemplar duas balizas do tema que pretendo abordar: a
expansão da eucaliptocultura em Helvécia, que se deu a partir de 1980, bem como
35
Ariosvaldo da Silva Diniz. A iconografia do medo. In: Mauro Guilherme Pinheiro Koury (Org.).
Imagem e memória: ensaios em Antropologia visual. Rio de Janeiro: Garamond, 2001, p. 114.
34
as mudanças e permanências ali engendradas no bojo dessa expansão, que
suponho ocorreram simultaneamente ao processo de reconhecimento daquele lugar
como uma comunidade remanescente quilombola, formalizado em 2005 pela
Fundação Cultural Palmares.
Este período será referido aqui através da memória dos entrevistados.
Convém lembrar que estes, ao longo de suas falas, por vezes visitaram outros
tempos, que não aquele estabelecido no referido recorte temporal, para poderem
falar de si, das transformações e permanências tão importantes na construção da
memória e da história.
Por vezes usarei algumas expressões e construções dos entrevistados como
título e subtítulo dos capítulos. Justifico tal procedimento a partir do significado que
muitas das frases trazem consigo e que por si indicam sentimentos e leituras feitas a
partir das experiências daquelas pessoas sendo, portanto, de importância
fundamental para a construção desta dissertação.
No primeiro capítulo, intitulado Velhos tempos de Helvécia, abordarei o tempo
anterior à implantação da eucaliptocultura. O eixo deste será a Memória de seus
habitantes. Através das construções da memória, Helvécia se apresentará em
diferentes tempos e ritmos. Haverá assim espaço para que se possa conhecer um
pouco da Colônia Leopoldina, o tempo do cativeiro, o deslizar do trem nos trilhos da
estrada de ferro Bahia e Minas, o comércio incrementado na praça da estação, as
produções agrícolas diversificadas, as festas e os lugares de meria.
O interesse por elementos dos velhos tempos de Helvécia, de forma não
linear e pleno de hiatos, esteve associado à busca de aproximações que
esclarecessem o presente e contribuíssem para a compreensão do passado pelo
presente.
36
No capítulo seguinte, “Pensou que não, chegou a firma”, irei discutir o cultivo
de eucalipto em Helvécia. Falarei a respeito das expectativas vivenciadas à época
da implantação da eucaliptocultura no distrito, enfocando como essas foram tecidas
a partir de movimentos engendrados pela composição formada pela mídia, pelas
falas e ações dos representantes governamentais e por integrantes da comunidade
local. Nesta oportunidade, estarei discutindo questões como oferta de empregos,
buscando fazer o cruzamento e análise de dados fornecidos pelos diferentes
36
Marc Bloch. Apologia da história ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.
35
segmentos apontados, de maneira a enfatizar os encontros/desencontros entre as
expectativas geradas e o vivido. As experiências dos habitantes de Helvécia, através
de suas ações cotidianas, nortearam a construção do texto.
No terceiro e último capitulo, Viver com eucaliptos, tratarei dos compassos e
descompassos entre as perspectivas existentes em relação à atuação das empresas
de eucalipto e as experiências engendradas em Helvécia. Neste sentido, abordarei
um repertório de resistências cotidianas construídas por membros da comunidade,
seja de forma individual e/ou coletiva, com enfoque para o debate sobre a questão
da identidade quilombola daquele local.
36
1º Capítulo – VELHOS TEMPOS DE HELVÉCIA
Conversar com as pessoas de Helvécia sobre o significado daquele lugar
poderia ser descrito como uma espécie de viagem a outros tempos. Nas falas,
gestos e silêncios aparecem elementos que indicam como seus moradores
retornaram a diferentes períodos para falar de si, de suas maneiras de organização
social e econômica, de suas crenças e valores, de seus hábitos, de suas relações
sociais, da lida com a terra, de suas alegrias, de aflições e de tristezas. O passado,
os velhos tempos de Helvécia, ocupa um lugar
37
na fala dos integrantes da
comunidade. Por esta razão, fragmentos de tempo que não estavam contemplados
na periodização estabelecida, mas que apareceram nos diálogos presente/passado,
foram utilizados como indícios no processo de inteligibilidade das mudanças
significativas vivenciadas pelas pessoas daquele distrito.
Foi a memória que desempenhou o papel de fio condutor das entrevistas a
respeito do significado de viver em Helvécia. Sendo assim, é preciso que se diga
algo a respeito da complexidade que em se buscar conhecer a história de um
lugar a partir da memória de seus habitantes.
Entendo que a memória implique uma construção elaborada a partir de
sensações que mudam com o passar do tempo, e assim é bem provável que as
pessoas que foram entrevistadas por mim no decorrer desta pesquisa possam ter
tecido, elas mesmas, outras construções ao longo de suas vidas, ou então pode
acontecer de virem a fazê-lo no futuro. Neste sentido, Alistair Thomson diz que
Experiências novas ampliam constantemente as imagens antigas e
no final exigem e geram novas formas de compreensão. A memória
“gira em torno da relação passado-presente, e envolve um processo
contínuo de reconstrução e transformação das experiências
relembradas”, em função das mudanças nos relatos públicos sobre o
passado. Que memórias escolhemos para recordar e relatar (e,
portanto, relembrar), e como damos sentido a elas são coisas que
mudam com o passar do tempo.
38
37
Jacques Le Goff. História e memória. 5. ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2003, p. 47.
38
Alistair Thomson. Recompondo a Memória: questões sobre a relação entre a História Oral e as
memórias., Projeto História. Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do
Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, p. 57, 1981.
37
Essa flexibilização, por assim dizer, daquilo que se rememora não implica em
si um problema para a presente pesquisa, ao contrário, para este estudo ela é parte
intrínseca do objeto analisado. Essa característica contribuiu para o entendimento de
situações como, por exemplo, a venda de uma terra realizada num tempo passado
ter sido interpretada como um negócio vantajoso e justo, para depois passar a ser
entendida e sentida como um equívoco, uma vez que a pessoa se sentia lograda.
Buscar compreender quais ponderações foram levadas em consideração para uma
e outra sensação, pela mesma pessoa, pode significar uma riqueza de
interpretações das experiências que a composição da memória oferta aos
pesquisadores.
A proposta deste capítulo é apresentar, através da meria dos
entrevistados, entendida aqui como um dos objetos da história,
39
como era viver em
Helvécia antes da implantação da eucaliptocultura. Desde esclareço que não
entendo este tempo anterior como desconectado daquilo que se processou em
Helvécia na década de 1980. Interessa-me aqui ver como os habitantes daquele
distrito conjugaram em suas práticas diárias e em seu sentir as mudanças e
permanências que ali se processaram.
1.1 HELVÉCIA – UMA APROXIMAÇÃO EM TRÊS TEMPOS.
O senhor Manoel Peixoto, morador, proprietário de terra e comerciante em
Helvécia, ao falar sobre o distrito iniciou sua narrativa da seguinte maneira:
Eu cheguei, mais ou menos, deixa eu ver se lembro..., na década de
quarenta, no inicio de quarenta. Então, aqui era bem diferente, o
comércio
40
aqui sabe? O aspecto do comércio era um aspecto ainda,
do tipo assim, talvez colonial, europeu. Porque aqui tinha poucas
casas, mas as casas aqui eram uns prédios, eram uns prédios assim,
prédios tipo alto, tinha um porão embaixo, certo? Era erguido de
madeira, naquele tempo naturalmente era difícil cimento essas
coisas. Era de madeira, aqui tinha, eu lembro de três prédios, mas
tem umas casas grandes com aspecto mais ou menos de um prédio,
então, parece que o porão ali embaixo era para secagem de café,
cultivava aqui na região toda, café. Porque aqui fazia parte da
Colônia Leopoldina, né? Colônia Leopoldina era dividida em glebas,
em sesmarias, que cada uma delas pertencia a europeus, entendeu?
39
Jacques Le Goff. História e memória, op. cit., p. 49.
40
A expressão comércio está sendo utilizada nesta fala para significar o lugar de Helvécia.
38
Europeus de nacionalidade diferente e aqui parecia, eu não tenho
muita certeza, que era parte de onde cabia aos suíços, aos suíços.
41
É pouco provável que essa fala possa ser entendida sem que se tenha
acesso a outras informações, afinal o senhor Manoel Peixoto começou sua narrativa
sobre Helvécia nos anos 1940, para, através de elementos da arquitetura que ele
buscou na memória, retroceder ao século XIX, aos tempos da Colônia Leopoldina.
Talvez seja, então, o caso de nos aproximarmos da Helvécia desses tempos,
a partir de alguns dados que, ao dialogarem com aquilo que foi falado pelo senhor
Manoel Peixoto, possam contribuir para o entendimento deste lugar, afinal, como
afirma Jacques Le Goff, “a dialética da história parece resumir-se numa oposição
ou num diálogo – passado/presente (e/ou presente/passado)”.
42
Esta aproximação com os tempos da Colônia Leopoldina foi feita com o intuito
de conhecer um pouco do universo trazido pela memória das pessoas entrevistadas.
Estes tempos foram apresentados de forma não linear. O entrevistado buscava
naquilo que ouviu dizer algo significativo em sua construção de memória. Na fala de
alguns, os tempos do cativeiro apareciam, às vezes inclusive como uma negação
“não tinha vivido nele e não lembrava dele” –, entretanto aquele tempo havia
existido, um tempo passado integrante da história presente daquele lugar. Por
vezes, ele surgia na construção do imbricamento passado/presente, na expressão
“cativeiro remunerado” utilizada para dizer de como muitos moradores de Helvécia
se sentiram em relação ao tratamento que lhes foi dispensado pelas empreiteiras
acionadas pelas empresas produtoras de eucalipto, no processo de terceirização,
comum na atualidade. Os recortes feitos sobre estes velhos tempos colaboraram
para que eu pudesse indagar/compreender algumas dessas construções, que se
compuseram, não de forma neutra, em razão do diálogo passado/presente estar
associado a pares de valores,
43
entre eles, por exemplo, atraso/progresso,
tranqüilidade/insegurança.
Os hiatos entre os tempos da Colônia Leopoldina e o distrito de Helvécia
estão sendo entendidos aqui não como uma falta, mas como algo intrínseco à
própria dinâmica da pesquisa no campo da história que tem como matéria
fundamental o tempo. Este tempo histórico, segundo Le Goff, não se encerra no
41
Entrevista concedida à autora pelo sr. Manoel Peixoto em 14 ago. 2007.
42
Jacques Le Goff. História e Memória, op. cit., p. 8.
43
Idem.
39
tempo cronológico, “o tempo histórico encontra, num nível muito sofisticado, o velho
tempo da memória, que atravessa a história e a alimenta”.
44
1.2.1 COLÔNIA LEOPOLDINA E HELVÉCIA – ALINHAVOS.
Brasil, século XIX, período colonial, ano 1808. É neste contexto que D. João
VI assina um decreto permitindo a concessão de sesmarias a estrangeiros que
estivessem dispostos a vir residir no Brasil. Até então a doação de sesmarias estava
restrita a portugueses e colonos brasileiros.
Decreto de 25 de Novembro de 1808
Permite a concessão de sesmarias aos estrangeiros residentes no
Brasil.
Sendo conveniente ao meu real serviço e ao bem blico, aumentar
a lavoura e a população, que se acha muito diminuta neste Estado; e
por outros motivos que me foram presentes: hei por bem, que aos
estrangeiros residentes no Brasil se possam conceder datas de
terras por sesmarias pela mesma forma, com que segundo as
minhas reais ordens se concedem aos meus vassalos, sem embargo
de quaisquer leis ou disposições em contrário. A Mesa do
Desembargo do Paço o tenha assim entendido e o faça executar.
Palácio do Rio de Janeiro em 25 de Novembro de 1808. Com a
rubrica do Príncipe Regente Nosso Senhor.
45
Foi assim que em 1818 se deu a implantação de colônias estrangeiras no
Brasil, para atender aos interesses da Coroa portuguesa no sentido de garantir o
povoamento
46
de áreas consideradas desocupadas e aumentar a produção de
dividendos, a partir do incremento da lavoura. Interessa-me aqui a gênese de uma
em particular, a Colônia Leopoldina, criada neste mesmo ano e tendo em sua
formação a presença de suíços e indivíduos que compunham reinos que
posteriormente deram origem a atual Alemanha. A sua fundação foi, segundo
Henrique Lyra, obra do cônsul hamburguês Peyckr juntamente com os naturalistas
George Eilhem Freyreiss e Morhartdt e os suíços Abrão Laughan e David Pache.
47
44
Idem, p. 13.
45
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_48/dim251808.htm, in Brasil Leis etc. Coleção das
Leis do Brasil de 1808. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1891, p. 166.
46
Não se levava em consideração, em razão de uma postura etnocêntrica, que essas terras
estavam povoadas pelos nativos que aqui viviam antes da chegada dos portugueses.
47
Henrique Jorge Buckingham Lyra. Colonos e colônias – uma avaliação das experiências de
colonização agrícola na Bahia na segunda metade do século XIX. Dissertação de mestrado em
Ciências Sociais, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 1982, p. 25.
40
Foi ao longo das margens do rio Peruípe, doze léguas acima de Nova Viçosa,
na então comarca de Caravelas, no Extremo Sul da Província da Bahia, que a
Colônia Leopoldina se localizou, a partir da doação de cinco sesmarias de mata
virgem, e cada uma das sesmarias correspondia a meia légua quadrada.
48
Além dos suíços e alemães, outros estrangeiros se faziam ver no espaço da
Colônia Leopoldina. Tratava-se de africanos que foram utilizados como mão-de-obra
escrava. Segundo Henrique Lyra, essa foi a única colônia estrangeira instalada na
Bahia no século XIX a fazer uso deste tipo de mão-de-obra.
49
Lyra esclarece que
havia, neste período, uma proibição quanto à utilização do trabalho escravo nas
colônias agrícolas em razão das pressões que estavam sendo feitas, neste sentido,
pela Inglaterra.
Em contraposição a esta proibição, a Colônia Leopoldina, ao invés de ter
desempenhado, unicamente, a função agrícola de subsistência, utilizando mão-de-
obra familiar e livre, acabou por se destacar no cenário regional como colônia de
produção cafeeira para exportação.
A historiadora Albene Menezes em reportagem veiculada pelo Correio da
Bahia, intitulada “Pioneiros agrícolas”, destacou o uso da mão-de-obra escrava
como tendo sido de fato um diferencial da Colônia Leopoldina, posto que as demais
colônias teuto-brasileiras à época sobrevivessem fazendo uso do trabalho familiar,
enquanto que na Colônia Leopoldina, segundo dados da referida reportagem, “além
dos europeus, se ocupavam do trabalho agrícola naquelas fazendas cerca de dois
mil escravos”. Na mesma matéria, Menezes afirma textualmente que a Colônia
Leopoldina era “Subvencionada, em parte, pelo governo do Reino Unido de
Portugal, Brasil e Algarves, [e que] a iniciativa pioneira se caracterizou como um
empreendimento agrícola privado que em 1858 somava 40 fazendas de café, com o
rito de exportar da Bahia as primeiras levas do produto”.
50
Os dados relativos à produção de café (cf. tabela 1) corroboram esta
informação e podem nos ajudar a entender por que os estrangeiros, que eram agora
proprietários daquela terra e moradores daquele lugar, ao erguerem suas casas no
século XIX, fizeram-no de tal maneira que a arquitetura refletisse e se harmonizasse
com a produção econômica de café em larga escala que ali se realizava.
48
Idem.
49
Idem, p. 25-26.
50
http://www.correiodabahia.com.br/reporter/noticia_impressao.asp?codigo=99634, Jornal Correio da
Bahia, Pioneiros agrícolas, 8 de fevereiro de 2004. Acesso em 29 de abril de 2008.
41
Tabela 1
PRODUÇÃO DE CAFÉ DA COLÔNIA LEOPOLDINA 1836-1853
51
ANOS SACAS DE 60 kg.
1836 6.610
1842 8.570
1848 Entre 16.158 e 17.138
1851 17.138
1853 24.483
Esses dados ganham maior relevância quando se leva em consideração o
percentual de produção da Colônia Leopoldina em relação à Província da Bahia.
Lyra afirma que esta respondia no ano de 1842 por 60% da produção cafeeira, tendo
aumentado essa porcentagem para a casa dos 90% no ano de 1853.
52
Por outro lado, outras fontes sugerem a necessidade de se relativizar essa
importância, ao menos naquilo que concerne aos seus dados quantitativos, pois ao
compararmos a quantidade de café produzida em Helvécia com a produção da
Província de São Paulo, verificamos que a mesma era mínima. Senão vejamos:
aquilo que correspondia a 90% da produção da província da Bahia, 24.483 sacas de
60 K, passa a equivaler, quando realizada a conversão de unidade, a 97.932
arrobas, número infinitamente menor do que a quantidade de arrobas de café
produzida na Província de São Paulo no ano de 1854, que foi de 3.534.256
arrobas.
53
Entretanto, ao que parece, tais comparações quantitativas não ressoaram na
composição da realidade vivenciada em meados do século XIX pelos moradores da
Colônia Leopoldina, até porque é pouco provável que estes tivessem acesso a
dados a respeito da produção cafeeira paulista. Não tendo um parâmetro nacional
de comparação, estes habitantes, provavelmente, mediam a importância comercial
de sua produção econômica a partir de dados relativos às suas experiências locais e
aos meros advindos da produção cafeeira oriundos de outros tios da província
baiana.
51
Henrique Jorge Buckingham Lyra , op. cit., p. 26.
52
Henrique Jorge Buckingham Lyra , op. cit., p. 26.
53
Sérgio Milliet. Roteiro do café e outros ensaios: contribuição para o estudo da história ecomica e
social do Brasil. 4 ed. rev. e ampl. São Paulo: HUCITEC; Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1982, p.
21.
42
Além disso, as ponderações comparativas indicadas anteriormente com
certeza não foram levadas em consideração quando do momento de construção, por
parte dos habitantes de Helvécia, daquilo que seria, no seu imaginário, o papel da
Colônia Leopoldina, qual seja, uma área que tivesse cumprido, à época do século
XIX, um papel de relevância nacional, naquilo que concernia à produção cafeeira.
Foi possível perceber que, na composição da memória daqueles tempos da Colônia
Leopoldina, os moradores de Helvécia maximizaram a importância da cultura
cafeeira, assim como o fez Robert Ave-Lallemant, em seu livro Viagem pelo norte do
Brasil, ao falar da importância comercial da Colônia Leopoldina.
[...] Quase não se poderia compreender, como uma localidade
costeira tão isolada [o autor referia-se à Caravelas], possa alimentar
tão grande atividade comercial, se duas empresas coloniais, se
sobretudo e muito especialmente a Colônia Leopoldina, [...] não
operassem aí. [...] A algumas milhas Peruípe acima, fica a citada
Colônia Leopoldina, se é que merece o nome de colônia uma rica
zona agrícola que produz grande quantidade de café, até 80.000
arrobas por ano.
54
Ora, um lugar que assume para si a função de pujante produtor de café
externaliza este papel na organização de suas relações sociais, de seus espaços, na
construção de suas casas, “[...] O aspecto do comércio era um aspecto ainda, do
tipo assim, talvez colonial, europeu. Porque aqui tinha poucas casas, mas as casas
aqui eram uns prédios, eram uns prédios assim, prédios tipo alto, tinha um porão
embaixo, certo?”
55
Quando o senhor Manoel Peixoto chegou a Helvécia, ele encontrou na
arquitetura daquele lugar a memória da produção cafeeira e dos colonos
estrangeiros que ali viveram. As casas cumpriam não o papel de abrigo, eram
também usadas para a estocagem de café, “[...] aqui tinha, eu lembro de três
prédios, mas tem umas casas grandes com aspecto mais ou menos de um prédio,
então, parece que o porão ali embaixo era para secagem de café, cultivava aqui na
região toda, café”.
56
54
Robert Avé-Lallemant. Viagem pelo norte do Brasil no ano de 1859. volume. Trad. Eduardo de
Lima Castro Rio de Janeiro: Instituto Nacional do livro, Ministério da Educação e Cultura, 1961, p.150-
151. Coleção de obras raras VII.
55
Entrevista concedida à autora pelo sr. Manoel Peixoto em 14 ago. 2007.
56
Entrevista concedida à autora pelo sr. Manoel Peixoto em 14 ago. 2007.
43
Na adequação do Plano de Desenvolvimento Urbano (PDU) 2004, faz-se
menção à existência de um prédio associado à função de estocagem de produtos.
Este imóvel é apresentado como se fosse um antigo armazém,
Imóvel localizado à rua Caravelas, hoje utilizado como Clube Social,
tem grande probabilidade de ter sido o principal armazém para
estocagem de produtos agrícolas a serem embarcados para o litoral,
em virtude de suas dimensões e de sua localização. Este é o edifício
mais próximo do início do declive do caminho que leva ao porto.
57
Podemos observar nesta informação a indicação de que no período da
Colônia Leopoldina as riquezas produzidas naquele lugar também escoavam,
através do porto Santa Luzia, localizado a 23 km de Helvécia,
58
para outros lugares,
outros terras, outras pessoas.
Além de lembrar a arquitetura e os aspectos econômicos do distrito de
Helvécia, o senhor Manoel Peixoto fez algumas afirmações e indagações a respeito
do passado daquele lugar. Assim, ao falar de Helvécia, nos convidou a ver a
formação da Colônia Leopoldina.
59
Na formação desta colônia estiveram presentes pessoas de nacionalidades
hamburguesa e suíça. Além desses povos, segundo o documento apresentado a
seguir, indivíduos de outras nacionalidades também vieram viver naquelas terras.
Ilmo. Senhor Doutor Juiz de Direito
As plantações, que existem no lugar chamado Colônia Leopoldina e
que pertencem a estrangeiros, nas quais se cultiva o caem braços
de escravos, são as que enumero abaixo:
Banda do Norte do Rio Peruípe
Fernando Krunde, prussiano
Gustavo e Constancio Jattaros, suissos
Defunto Abrão Vouga, suisso
Henrique Borrel, suisso
[...]
Madame Jeoffroi, franceza
Felippe Moers, hanoverano
Ernesto e Francisco Krull, hanovereanos
Banda do Sul do Rio Peruípe
[...]
57
Adequação do PDU 2004 Nova Viçosa, p. 67. Acervo SEPLAN – CAR, CAB, Salvador.
58
Adequação do PDU 2004 Nova Viçosa, p. 79. Acervo SEPLAN – CAR, CAB, Salvador.
59
Este nome foi dado, pelos colonos, em homenagem à imperatriz D. Leopoldina.
44
João Martinho Flach, suisso
Defunto Augusto Coffrane, suisso
Defunto Alfredo Coffrane, suisso
Lambert, alemão
Fora destas fazendas nomeadas tem vários sítios lavrados por índios
e outras pessoas com suas próprias famílias, mas que são tão
pequenos que não merecem nem podem ser lembrados aqui, como o
dono muda de instante em instante, e as propriedades brasileiras
por fim não entram nesta enumeração.
João Conrado Lang
Doutor em Philos e Medicina
60
Acredito que agora seja possível alcançar o sentido relativo a uma das
declarações do senhor Manoel Peixoto:
Porque aqui fazia parte da Colônia Leopoldina, né? Colônia
Leopoldina era dividida em glebas, em sesmarias, que cada uma
delas pertencia a europeus, entendeu?
61
Em relação ao documento assinado por João Conrado Lang, apresento o
nome de João Martinho Flach em negrito porque a ele pertencia a fazenda
denominada Helvetia, em razão da origem suíça de seu proprietário. A respeito dos
nomes dados às fazendas, Avé-Lallemant disse
O número dessas fazendas, pequenas e grandes, que prosperam
com o trabalho escravo, pode montar a 40 ou 50. Seus nomes são
na maioria ecos da tria ou recordações de família do seu
proprietário; encontramos entre esses nomes uma Germânia,
Melusina, Helvetia, Wilhelmsee, Karlsruhe, Grutls etc., e, entre os
proprietários, nomes alemães, franceses e brasileiros, que têm
sobretudo ainda a peculiaridade de dividir seus proprietários em
grupos dissidentes, tendo-se, em Leopoldina, de ser ou Flach ou
Maulas, se não se quiser ser atenazado por ambos os partidos.
62
A fazenda Helvetia, segundo falas de membros da comunidade de Helvécia,
era produtora de café e uma das maiores e mais organizadas da região. Essa
importância também se deixou ver na afirmação de Avé-Lallemant a respeito do
poder exercido na Colônia Leopoldina pelos Flach. Talvez o senhor Manoel Peixoto
estivesse se referindo a este saber quando, mesmo proferindo não ter certeza, disse
ser a Colônia Leopoldina ocupada por “[...] Europeus de nacionalidade diferente e
aqui parecia, eu não tenho muita certeza, que era parte de onde cabia aos suíços,
60
Arquivo Público do Estado da Bahia, Colonos e Colônias, maço 4607, Salvador (grifo da autora).
61
Entrevista concedida à autora pelo sr. Manoel Peixoto em 14 ago. 2007.
62
Robert Avé-Lallemant, op. cit., p. 151.
45
aos suíços”.
63
Leio essa repetição final como uma espécie de comprovação daquilo
que o narrador, a princípio, apresentou como incerteza.
Interessa-me agora ressaltar algumas pistas fornecidas pelo documento
direcionado ao Ilmo. Senhor Doutor Juiz de Direito. Fica visível, nesta fonte, a
existência de pessoas vindas de diferentes lugares da Europa, o que nos sugere,
por um lado, uma composição social na Colônia Leopoldina um tanto quanto
matizada, diversificada e européia; por outro, o documento esclarece que nessas
propriedades a mão-de-obra utilizada era escrava, o que estrangeiriza ainda mais
aquele espaço.
Tal interpretação fica mais fortalecida se fizermos o cruzamento dessas
informações com os dados apresentados anteriormente (cf. tabela 1), em que se
pode notar que a Colônia Leopoldina cumpriria, em meados do século XIX, a função
de produtora de café voltada para a exportação.
O documento, ao se referir à vocação da Colônia Leopoldina como uma área
de produção que fazia uso da mão-de-obra escrava, mostrou-a em consonância com
o modelo econômico escravista típico do Brasil no período.
64
Havia ali, então, o
desenvolvimento de uma atividade que atendia aos interesses da política de
exportação imperial, qual seja a produção cafeeira.
Entendendo-se que tal produção ficava a cargo dos escravos, é curioso
observar seu significativo aumento no ano de 1853. Este crescimento foi da ordem
de 7.345 sacas, entre os anos de 1851 a 1853, ou seja, um incremento de
aproximadamente 43% na produção. A curiosidade a qual me refiro diz respeito ao
fato de que em 1853 se haviam passado três anos da implantação da lei que
proibia o tráfico de escravos para o Brasil, estabelecida em 1850, e ainda assim
tivemos na Colônia Leopoldina o crescimento da produção de café, que a princípio
estaria associada à utilização da mão-de-obra escrava. O dado pode indicar que
além do tráfico inter-regional e do contrabando de escravos que passaram a existir
após a proibição estabelecida pela lei Euzébio de Queiróz, a mão-de-obra de outras
pessoas, livres e/ou libertos, pode ter sido utilizada pelos proprietários estrangeiros
da Colônia Leopoldina para tocar seus empreendimentos.
Ainda neste sentido, gostaria de chamar a atenção para a informação que se
encontra no último parágrafo do documento assinado por João Lang, que oferece
63
Entrevista concedida à autora pelo sr. Manoel Peixoto em 14 ago. 2007.
64
Apesar da existência de pressões inglesas em sentido contrário.
46
informações a respeito de outros personagens que também tinham seu lugar nesta
história, mesmo que, segundo o seu redator, não fossem “dignos” de ser nomeados.
Fora destas fazendas nomeadas tem vários sítios lavrados por índios
e outras pessoas com suas próprias famílias, mas que são tão
pequenos que não merecem nem podem ser lembrados aqui, como o
dono muda de instante em instante, e as propriedades brasileiras
por fim não entram nesta enumeração.
João Conrado Lang
Doutor em Philos e Medicina
65
A alusão à existência de vários tios que não utilizavam a mão-de-obra
escrava, e que são lavrados por índios e outras pessoas com suas próprias famílias,
pode a meu ver indicar a coexistência de outras formas de mão-de-obra naquele
lugar. Ao dizer que estes não merecem, nem podem ser relacionados em razão de
serem pequenos, vários e de proprietários que mudam constantemente,
invizibilizando, portanto, sua identidade nominal, Lang acaba por nos dar uma pista
de que, para além da cafeicultura, havia ali, entre as bandas Norte e Sul do rio
Peruípe, diversos sítios que não engrossavam a produção de café e diversas
pessoas que não se adequavam ao perfil de estrangeiros grandes e médios
proprietários” de terra.
É provável que nestes sítios se desse uma produção de alimentos voltada
para a subsistência daqueles que viviam naquele lugar. Também é possível que esta
produção fosse construída em outro ritmo, bem diferente do da cafeeira, pois além
de essas propriedades serem pequenas, a mão-de-obra utilizada não era escrava,
sugerindo a existência de diferentes normas e ritmos de trabalho.
Lyra
66
registra que além do café havia na Colônia Leopoldina o cultivo de uma
série de produtos voltados para atender às necessidades do consumo interno, com
destaque para frutas, entre as quais o abacaxi, a jaca, a laranja, a manga e a
banana. Praticava-se também o cultivo de fruta-pão, cana-de-açúcar, algodão, fumo,
milho, mandioca e legumes diversos. O autor não esclarece se esta produção
variada se dava nas propriedades dos estrangeiros e/ou nos pequenos sítios que
João Lang faz referência.
Outra fala oficial se recusa a ver a existência de diferentes formas de
propriedade na Colônia Leopoldina. É como se a “pujança” do café não deixasse ver
65
Arquivo Público do Estado da Bahia, Colonos e Colônias, maço 4607, Salvador (grifo da autora).
66
Henrique Jorge Buckingham Lyra, op. cit., p. 27.
47
que naquele espaço outras pessoas viviam, tinham seus pequenos sítios e
produziam não para atender aos ditames da pauta de exportação, mas, muito
provavelmente, para atender às suas necessidades cotidianas relacionadas à
subsistência. Trata-se do pronunciamento feito em 1861, pelo então presidente da
Província da Bahia, ao anunciar que “A Colônia Leopoldina no Sul não existe mais,
pois que está toda transformada em fazendas de café de ricos proprietários,
quase todos estrangeiros”.
67
Contrapondo-se a esta afirmação que indica a dissolução da Colônia
Leopoldina, a Ata de eleição de 6 de novembro de 1898 faz referência à seguinte
situação: “Na sala da escola mista da Colônia Leopoldina primeira e única seção
eleitoral deste distrito com 58 eleitores...
68
Interessa-nos aqui frisar que ainda no
ano de 1898, um documento registra a existência da Colônia Leopoldina e indica
que na mesma se localizava uma seção eleitoral, portanto era um local reconhecido
pelo poder instituído à época. Sinal de que a Colônia existia, senão com o seu
estatuto e função originais, mas pela sua distinção.
O próprio reconhecimento da Colônia Leopoldina por parte do poder central
da Província diferia daquilo que se registrava através de atos oficiais desta mesma
instância do poder no local.
A Colônia Leopoldina existia, e para além do cultivo de café, havia ali, como
podemos ver pelas análises apresentadas até o presente momento, a insinuação da
existência de camponeses que lavravam a terra em pequenos sítios.
Teria sido então a partir desta Colônia, ou melhor, de uma das áreas que
pertencia a ela, que se originou o distrito de Helvécia. Este é apresentado no PDU
2004 da seguinte maneira:
[...] Com a introdução do plantio de café em outras regiões da Bahia
e com a abolição da escravatura, a colônia entrou em decadência,
mas até hoje a presença dos antigos colonizadores europeus ainda é
visível nas edificações e a grande concentração de escravos ocorrida
no século passado se faz notar na composição étnica da
população.
69
Esta população, a partir de suas experiências, lembra dos tempos da Colônia
Leopoldina, e ao fazê-lo o traz para o presente, traça com ele paralelos, entrelaça o
67
Henrique Jorge Buckingham Lyra, op. cit., p. 28 (grifo da autora).
68
Cartório de Helvécia, Livro 01, Contratos Diversos, fl 18. Helvécia – Bahia.
69
Adequação do PDU 2004 Nova Viçosa, p. 50-51. Acervo Seplan – CAR, CAB, Salvador.
48
ritmo do cativeiro nas roças do café, a partir do “ouvir dizer”,
70
com o trabalho árduo,
vivido no presente, nas empreiteiras de eucalipto.
Confrontos entre diferentes modelos econômicos permeando suas vidas e de
seus antepassados foram apontados nas falas, bem como a existência de
acomodações e resistências na relação entre tais modelos. Nesta composição,
alguns lugares do distrito de Helvécia foram trazidos pela memória de sua população
quando estes falaram do processo de transformações engendradas pela
implantação da eucaliptocultura, e daquilo que isso significou em suas vidas.
1.2.1.1 LUGAR DE MEMÓRIA
Pierre Nora, ao discutir a relação sobre memória e história, nos fala sobre a
aceleração do tempo na contemporaneidade e de como esta aceleração, no ritmo
das transformações que ocorrem em todo o mundo, teria sido responsável pelo fim
do equilíbrio associado a idéias de tradições e costumes, a ponto mesmo de indicar
uma ruptura com o passado. Neste tempo de rupturas, em que a memória se
apresenta de forma esfacelada, e diante das mudanças constantes que trazem em si
a possibilidade de que algo desapareça, os lugares assumem um papel importante,
pois, ainda segundo Nora, “o sentimento de continuidade torna-se residual aos
locais”.
71
David Harvey,
72
por sua vez, ao discutir a compressão espaço-tempo e as
articulações do tempo e espaço com as relações de poder, assinala que por mais
que as elites construam uma noção de tempo e espaço pautada na
homogeneização, as minorias inventam, constituem temporalidades mistas com a
emergência de situações novas ou a valorização de tempos tradicionais.
Em Helvécia, traços arquitetônicos distintos corroboram a pujança da antiga
Colônia Leopoldina no processo de construção da memória do distrito. Refiro-me
aqui ao cemitério São Pedro. Este “lugar de memória” apresenta-se, nesta pesquisa,
como um indicativo da importância daquele espaço em tempos passados. Desta
maneira, ganhou ares de “cemitério histórico”, sendo descrito no PDU 2004 como
70
Michael Pollak. Memória e identidade social. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol., 5, 10,
1992.
71
Pierre Nora. Entre Memória e História: a problemática dos lugares. Revistas do Programa de
Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História, PUC-SP, nº 10, p. 7, dez. 1993.
72
David Harvey
. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. 15. ed.
São Paulo: Loyola, 2006.
49
um local que “[...] conta com interessante conjunto de elementos escultóricos e
lápides que são importantes documentos para a recomposição da história de
Helvécia e apresenta potencial turístico a ser explorado”.
73
Também no PDU do município de Nova Viçosa, 2001, o item que trata dos
“Edifícios tombados fora da sede” informa que o Cemitério São Pedro faz parte do
patrimônio material da cidade, sendo tombado em 30 de dezembro de 1989 pela Lei
309, art. 98,
74
que reconhece, ao menos no que tange ao aspecto legal, a
importância daquele local como um “lugar de memória”, portanto legitimado pelo
poder público como sendo significativo para o referido município.
A importância dada, por pessoas de Helvécia, ao cemitério havia sido por
mim registrada na primeira entrevista realizada no início desta pesquisa, indicando
em relação ao Cemitério o Pedro uma vontade de memória,
75
para usar uma
expressão de Pierre Nora. Porém, diferente daquilo que poderia ser inferido, a partir
das informações constantes no PDU, 2001 e 2004, anteriormente apresentadas, a
entrevistada Célia Zacarias, natural de Helvécia, deixou entrever que aquele “lugar
de memória” não estava sendo respeitado:
[...] O ruim também quando eu vou lá em Helvécia, eu não gosto, o
eucalipi tomando o comércio, Nossa Senhora. Cê precisa de ver,
pra nós ir pra nossa roça ... eucalipi. O cemiteri tá no meio do
eucalipi.
76
Esta fala, somada a outras que foram sendo compostas ao longo da
pesquisa, indicava que a coexistência da eucaliptocultura com os lugares de
memória” do povo de Helvécia estava eivada de tensões.
No dia 15 de agosto de 2007, em uma das atividades de pesquisa de campo,
solicitei a um conhecedor dos caminhos daquele distrito, que me levasse até o
Cemitério São Pedro, talvez numa tentativa de entender melhor aquilo que Célia
Zacarias havia sugerido ao dizer “Cê precisa de ver [...]”.
A pessoa que me guiou por entre as estreitas estradas ladeadas pelos
eucaliptos foi o senhor Jorge Ferreira da Silva, que, nascido em Helvécia, 37
anos, labuta na terra herdada por ele e sua irmã. A permanência desta terra, na
73
Adequação do PDU 2004 Nova Viçosa, p. 73. Acervo Seplan – CAR, CAB, Salvador.
74
Adequação do PDU 2001 Nova Viçosa, não numeração de ginas. Acervo Seplan CAR,
CAB, Salvador.
75
Pierre Nora. Entre Memória e História: a problemática dos lugares, op. cit., p. 22,
76
Entrevista concedida à autora pela sra. Célia Maria Silva Zacarias em 15 mar. 2007.
50
atualidade em mãos da família, em virtude dos pais em vida terem resistido às
propostas de compra feitas pelas empresas de eucalipto, constitui motivo de
orgulho, além de uma fonte de geração de renda para o seu sustento, de sua mulher
e filhos. Na vida do senhor Jorge Ferreira, a convivência com as firmas de eucalipto
não esteve associada somente às proposições de compra das terras dos seus pais.
Ele, ainda proprietário dessas terras, nas quais, à época da entrevista, plantava
maracujá e eucalipto, também enaltece o fato de, no passado, ter trabalhado na
então Bahia Sul Celulose.
Conseguir alguém que soubesse o percurso e se dispusesse a levar-me até o
Cemitério São Pedro foi uma tarefa árdua. A sensação de ir até lá era para mim algo
inusitado. Afinal, havia toda uma expectativa, em razão de as leituras e informações
que havia tido, “[...] interessante conjunto de elementos escultóricos e lápides [...]”,
77
terem sido constantemente friccionadas pelas falas de moradores de Helvécia, no
sentido de denunciar a existência do plantio de eucalipto sufocando o Cemitério o
Pedro.
Após alguns minutos de trajeto pelas estradas, que, em razão da
homogeneização da eucaliptocultura, mais pareciam um labirinto, o senhor Jorge,
parou a moto e disse que havíamos chegado ao Cemitério São Pedro (cf. figura 1).
Figura 1 – Cemitério São Pedro, agosto 2007
Fotografia: Trabalho de campo.
77
Adequação do PDU 2004 Nova Viçosa, p. 73. Acervo Seplan – CAR, CAB, Salvador.
51
O senhor Jorge Ferreira da Silva me apresentava o Cemitério São Pedro, eu
olhava e via um emaranhado de cipós, raízes de árvores revoltas e mato. Aquele
espaço, mesmo levando-se em consideração que “os lugares de memória são, antes
de tudo, restos,
78
em nada se associava às minhas idéias do que seria um
cemitério.
O que o meu olhar via, provavelmente em razão do meu objeto de pesquisa,
era definido pela ausência e presença acintosa dos eucaliptos. Assim, no primeiro
momento, o que chamou a atenção foi o entorno do Cemitério São Pedro que eu
não conseguia ver como um cemitério. Este estava envolto por um primeiro círculo, o
da ausência, cujas marcas da anterior existência de pés de eucalipto se deixavam
ver (cf. figura 2).
Figura 2 – Cemitério São Pedro e eucaliptos, agosto 2007
Fotografia: Trabalho de campo.
Ao analisar essa fotografia, a partir das leituras de Roland Barthes, atentei-me
para a possibilidade da inconstância desta ausência, uma vez que “a fotografia não
fala (forçosamente) daquilo que não é mais, mas apenas e com certeza daquilo que
foi”.
79
Ainda por este prisma, passei a ver o segundo círculo, o da presença de
eucaliptos (cf. figura 2), como um indício do processo de mudanças e permanências
que estava sendo implantado em Helvécia. Talvez aquela pretensa ausência numa
78
Pierre Nora. Entre Memória e História: a problemática dos lugares, op. cit., p. 12.
79
Roland Barthes. A Câmara Clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 127.
52
área delimitada de 50 metros ao redor do Cemitério São Pedro, segundo
informações de entrevistados, seguida da imediata e teimosa presença dos
eucaliptos, sugerisse o quanto aquele lugar de memória se transformara em uma
arena de tensões, comportando o imbricamento de tempos passado, presente e
futuro.
Após a sensação de espanto, não para mim, mas também para o próprio
senhor Jorge Ferreira, que tempos não ia ao local, resolvemos entrar naquele
“lugar de memória”. O senhor Jorge começou a falar de suas lembranças e de como
o espaço havia sido no passado. Segundo ele, encontraríamos túmulos com lápides
e outros objetos como cruzes, além do muro do cemitério, que ele guardava em sua
memória inteiro e feito de pedras.
Andar naquele espaço requeria cuidado, e não fosse pela desenvoltura do
guia/acompanhante é bem provável que eu não tivesse podido conhecer o que
sobrara do cemitério tombado pela Lei Orgânica do município de Nova Viçosa.
80
Na
primeira incursão, não encontramos nenhum traço do muro de pedras ao qual fizera
referência o meu acompanhante. Fato que o deixava intrigado, evidenciando os
descompassos existentes entre aquilo que ele via e aquilo que trazia ainda nítido em
suas lembranças. Após algum tempo, encontramos um túmulo (cf. figura 3) e ao lado
uma lápide jazia no chão.
80
Lei orgânica do Município de Nova Viçosa – Bahia. Artigo 98, § 2, item VII, 30 de dezembro de
1989, p. 47.
53
Figura 3 – Cemitério São Pedro: fragmentos, agosto 2007
Fotografia: Trabalho de campo.
Esta foto, além de revelar vestígios de um mulo, bem como raízes expostas
e plantas rasteiras que dele se assenhoreavam, sugere a presença de uma ferida,
81
uma memória não respeitada, sufocada pelo descaso.
Ao levantar a lápide posta no chão ao lado do mulo, pudemos notar a
seguinte inscrição: Carlos Krull – 1890 (cf. figura 4). Aquele era um registro da morte
de alguém, provavelmente alguma pessoa que possuíra laços de parentesco com
Ernesto e Francisco Krull, proprietários hanoverianos que, como nos informou João
Conrado Lang, em documento apresentado no início deste capítulo, haviam se
instalado nas bandas do norte do rio Peruípe na então Colônia Leopoldina, em
outros tempos, nos tempos ainda do século XIX.
81
Roland Barthes, op. cit.
54
Figura 4 – Cemitério São Pedro: Lápide, agosto 2007
Fotografia: Trabalho campo
Mas não somente este século estava encerrado ali. Naquele lugar de morte,
em que os muros não eram mais inteiros, havia também fragmentos de outro
tempo. O registro feito através da fotografia (cf. figura 4) traz a possibilidade de
junção de tempos que na cronologia estariam irremediavelmente apartados.
Entretanto, “o tempo fotográfico recompõe o tempo da memória, alheio ao tempo
cronológico. São instantâneos irregulares e arbitrários ligados e separados pelo
esquecimento”.
82
Assim, a ação do senhor Jorge, ao levantar a lápide, com o
objetivo de que eu pudesse registrar o que nela estava escrito, possibilitou, num
átimo, que se revelasse o tempo esmagado,
83
no qual o tempo do passado,
82
Miriam Lifchitz Moreira Leite. Morte e a fotografia. In: Mauro Guilherme Pinheiro Koury (Org.).
Imagem e memória: ensaios em Antropologia visual. Rio de Janeiro: Garamond, 2001. p. 44.
83
Roland Barthes, op. cit.
55
associado aos rituais de enterros dos mortos de Helvécia, foi comprimido ao tempo
do registro da fotografia e ao tempo presente de quem a olhava.
Quando da colocação desta lápide, no século XIX (cf. figura 4), ela era um
objeto. Entretanto, no momento do registro fotográfico ela não era mais o mesmo
objeto, ela comunicava a existência, em outros tempos, de um integrante da família
Krull, Carlos Krull, que fora enterrado naquele lugar. A inscrição na pedra servia
como suporte a uma sobrecarga da memória. Desta maneira, este “arquivo de
pedra”,
84
segundo expressão de Le Goff, existente no cemitério São Pedro, ao tornar
pública e sustentar a durabilidade daquela memória lapidar, funcionou como um
antídoto ao esquecimento.
E não só os “arquivos de pedra” continuavam a fazer lembrar aquele lugar. Ali
foram enterradas pessoas que compuseram a história da Colônia Leopoldina bem
como a memória do povo de Helvécia. E por mais que o local estivesse abandonado
pelo poder público e cercado pela produção de eucalipto, aquele ainda era um
espaço revisitado pelas lembranças de seus moradores no processo de composição
de suas vidas:
Meu avô foi enterrado lá, minha avó foi enterrada lá... Minha família
quaes tudo foi enterrado lá, que nós morava na roça... botava o
caixão numa vara de bambu, e botava no ombro, né? Um numa
ponta outro na outra. Levava pra lá. A nossa família quaes tudo foi
enterrado lá. Agora, dos meus tio pra cá, enterrada aqui. Eu tinha
vontade de ir lá, mas quem me leva...
85
Essa narrativa foi construída por dona Maria da Conceição, conhecida desde
pequena como dona Cocota, parteira que, segundo informação dada por Gilsineth
Joaquim Santos, e confirmada pelo sorriso largo de dona Maria, “aparou mais de
trezentas crianças” na região. Ela nasceu no ano de 1908 em uma roça nas
proximidades de Helvécia e falava do Cemitério São Pedro como um espaço com o
qual a vida de sua família estava intrinsecamente relacionada: Minha família quaes
tudo foi enterrado lá...”
Ao recompor essas memórias, a entrevistada manifestou o desejo de voltar a
encontrar aquele lugar onde estavam enterrados seus ascendentes. Ao ser
84
Jacques Le Goff, História e Memória, op. cit., p. 428.
85
Entrevista concedida à autora por dona Cocota, em 14 out. 2007.
56
informada de que o Cemitério São Pedro estava abandonado,
86
pronunciou-se:
“Mais eu queria ir assim mermo, abandonado...” Esta fala, associada ao seu jeito de
dizê-la, deixou ver o quanto aquele “lugar de memória” estava vivo e cuidado pelas
suas lembranças.
1.2.2 TEMPO DO CATIVEIRO – MEMÓRIAS INDIZÍVEIS
Maria Isaura Pereira de Queiroz, em seu texto “Relatos orais: do ‘indizível’ ao
‘dizível’”,
87
nos remete, como o próprio nome sugere, entre outras questões, à
existência das memórias indizíveis, aquelas que por provocarem dor e tristeza não
são trazidas à lembrança, e se o são o são partilhadas. Como se o ato de falar
daquela situação por si fosse capaz de produzir novamente a sensação de dor,
opressão, a qual ela remete. Assim, em Helvécia, não foi de se estranhar que
poucas pessoas tenham trazido nas entrevistas dados a respeito dos tempos de
cativeiro.
Deste tempo sobraram indícios, fragmentos. Nas narrativas apareceu uma
referência à existência de senzala em uma fazenda, o registro de que havia ainda,
no prédio da antiga estação,
88
uma armadilha para capturar escravos que fugiam,
uma fala a respeito da doação de terras feita pela princesa Izabel quando da
abolição, mas nenhum entrevistado abordou essa temática em profundidade.
Analiso aqui, portanto, os silêncios, o que significou não querer falar deste tempo.
Ou, no máximo, falar dele como algo distante, de existência conhecida, “de ouvir
dizer”.
Nas narrativas das pessoas diretamente ligadas à Associação Quilombola de
Helvécia (AQH), o tempo do cativeiro apareceu como algo remoto, não definidor do
ser quilombola.
Dentre os entrevistados que construíram narrativas a respeito do cativeiro,
temos o senhor Manoel Norberto Henrique de Sena, camponês que, à época da
entrevista, vivia sozinho em sua pequena propriedade nas proximidades do distrito
86
Essa informação foi passada para dona Cocota pelo sr. Jorge Ferreira da Silva, que estava
presente no momento da entrevista.
87
Maria Isaura Pereira de Queiroz. Relatos orais: do ‘indizível ao dizível‘. In: Olga de Moraes Von
Simson (Org.). Experimentos com histórias de vida. São Paulo: Vértice/Ed. Revista dos Tribunais,
1988.
88
Havia, segundo informações de membros da comunidade, um projeto de transformar uma das salas
do prédio da antiga estação em um museu.
57
de Helvécia. Foi a partir daquilo que o seu pai, sua mãe e sua avó lhes contaram
que o entrevistado compôs a seguinte narrativa:
[...] agora na escravidão, que quando a criança chorava, não é minha
data não, heim! Quando a criança chorava o senhor, vinha o senhor
novo, mexia essa formiga lava olha, a mãe da criança estava
torrando farinha, ou estava apanhando café ou estava capinando, o
que era daquela data, aí mexia essa formiga lava e botava essa
criança assim olha, dançava aqui.
89
Durante toda a entrevista, o senhor Manoel Norberto Henrique de Sena fez
uso da linguagem corporal.
90
Com a agilidade que não deixava transparecer os 84
anos, o seu corpo falava de forma a indicar para aqueles que o ouviam como se
dera aquilo que sua memória estava trazendo através da oralidade. Assim, ao falar
dos castigos que ocorriam no tempo do cativeiro ele foi enfático, levantou-se para
dizer como a criança “dançava” em rao da dor que lhe era provocada pelas
picadas da formiga lava-pé, de forma a mostrar que o senhor expunha a criança de
uma escrava que estava trabalhando nas mais variadas tarefas a uma situação de
dor e humilhação. Essa reminiscência trazia para o presente, de uma forma quase
teatral, o caráter da perversidade daquele “senhor novo” ao mesmo tempo em que o
entrevistado deixava claro que aquela situação não fizera parte de sua experiência
individual, “não é minha data não, heim!”.
Alistair Thomson diz que “Reminiscências são passados importantes que
compomos para dar um sentido mais satisfatório à nossa vida, à medida que o
tempo passa, e para que exista maior consonância entre identidades passadas e
presentes”.
91
Talvez o senhor Norberto estivesse, naquele momento da entrevista
organizando suas reminiscências de modo a construir uma composição harmoniosa
com a sua identidade de não cativo.
Ao se referir a seus avós, o senhor Manuel Norberto demonstrou orgulho ao
pronunciar seus nomes, Paulina Eva Mina e Fidelis Geiso, para em seguida contar
sobre quem eram e como chegaram àquele lugar:
Ele contava para nós, eles não teve registro, não teve data deles,
nem nada, veio da África, parece que veio da África, mas o
89
Entrevista concedida à autora pelo sr. Manoel Norberto Henrique de Sena em 14 out. 2007.
90
Paul Zumthor. Perfomance, recepção, leitura. São Paulo: EDUC, 2000.
91
Alistair Thomson. Recompondo a Memória: questões sobre a relação entre a História Oral e as
memórias, op. cit., p. 57.
58
contava com nós, se eles teve registro, batistelo, veio comprado,
muitos negros caíram na água porque os alemães mandava vir no
navio, comprava os negros lá na Angola, na África, quando chegava,
vamos olhar um negócio no barco, quando chegava no barco o
sono estava pegado, quando os negros entrava eles destrancava o
navio e saia, muitos negros caia na água, quem contava era os meus
avós.
92
Acredito que essa fala, em alguma medida, contraria ou ao menos relativiza o
que foi tratado como memórias indizíveis, em que haveria uma necessidade de se
proteger das lembranças, estabelecer uma fronteira, uma distância do tempo muitas
vezes associado ao sofrimento e à dor. A leitura que faço desta narração é de que
ela, ao contemplar os laços de parentesco, acaba por indicar que aquelas pessoas,
em algum momento de suas vidas, tinham socializado com seus pares os
sofrimentos, as lembranças do seu cotidiano, afinal, tratava-se dos avós do
entrevistado, cujos nome e sobrenome ele insistiu em enfatizar como se quisesse
afirmar suas origens.
Pode ter acontecido que algo que foi, apesar e pela dor, dizível pelos avós do
senhor Norberto não tenha sido, para o entrevistado, aquilo a ser cultivado como a
identidade africana que ele proclamava para si mesmo, tendo, inclusive, como
alcunha “africano”. Ele é proprietário de uma pequena roça, na qual planta
mandioca, abacaxi e coco. E embora não negasse sua ancestralidade, fazia questão
de dizer que não tinha experienciado a situação de viver cativo. Tal afirmação diz do
seu não reconhecimento, o pertencimento àquela identidade cativa. Neste
sentido, das relações existentes entre memória e identidade, Thomson afirma:
[...] existe uma relação dialética entre nossas lembranças e nossa
identidade. Construímos nossa identidade em relação à história de
outras pessoas a nosso respeito e nossas próprias histórias a nosso
respeito, histórias a respeito do nosso passado e nosso presente e
acerca daquilo que queremos nos tornar. [...] A memória é
obviamente uma parte crucial disso, pois uma parte muito importante
é, “de onde vim”, “como me tornei quem sou agora”. Então as
maneiras pelas quais contamos nossas histórias do passado são
uma das formas cruciais pelas quais construímos nossa percepção
de que somos agora.
93
92
Entrevista concedida à autora pelo sr. Manoel Norberto Henrique de Sena em 14 out. 2007.
93
Alistair Thomson. Recompondo a memória: questões sobre a relação entre a História oral e as
memórias. Debate, Proj. História, São Paulo, (15): 80, abr. 1997.
59
E o agora do senhor Manoel Norberto, se por um lado mostrava seu orgulho
em ser “africano”, tencionava com as experiências da escravidão que seus avós
tinham vivido e que provavelmente chegaram para ele como memória herdada,
94
através da oralidade.
Como essas lembranças não eram vistas pelo entrevistado como algo que lhe
dissesse respeito, ele, que tinha muito o que falar (sua entrevista durou
aproximadamente duas horas) abreviou o tempo do cativeiro e rapidamente chegou
à abolição:
[...] se não fosse princesa Isabel, o pobre dos negros estavam frito,
viu? A senhora entende, se não fosse princesa Isabel que não
agüentou ver o devasto que estava fazendo com os negros. A
princesa Isabel falou, oh meu pai acaba com a escravidão, o negro
todos lavrados, dormindo na escalda, ou no tronco, sem roupa sem
nada, pode estar chovendo, pode estar verão, põe eles para dormir
ali, negro bravo que brigava não respeitava eles, botava lá no tronco,
viu, viu, viu? Colocava no tronco e ficava e quando descia de lá,
quando não era uma coisa era outra, pegava umbigo do boi, umbigo
do boi seco, passava na areia ou no sal e vai no lombo.
95
Essa construção a respeito da memória da abolição e do tratamento dado
pelos senhores aos seus escravos parece indicar aquilo que Michael Pollak afirma
existir na maioria das memórias, que seriam “(...) os marcos ou pontos relativamente
invariantes, imutáveis”.
96
A presença destes marcos estaria relacionada com aquilo
que ao longo do tempo foi sendo trabalhado de forma a se apresentar de maneira
solidificada, não viabilizando a ocorrência de mudanças, transformações.
Outra possibilidade de análise, a respeito das memórias indizíveis, seria a
simples inexistência de informações a respeito desta experiência, de forma mais
aprofundada, por parte do entrevistado. Estas podem ter chegado para ele de forma
fragmentada. Pois não se “[...] contava casos para criança” porque “[...] lugar de
menino e tamanco era debaixo do banco”.
97
Assim, o indizível pode ter sido também
simplesmente aquilo que não existe para ser dito.
Quanto perguntado se a terra que havia herdado do pai, havia sido legada
pelos avós, a resposta do entrevistado foi a seguinte
94
Michael Pollak. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, 10, p.
204, 1992.
95
Entrevista concedida à autora pelo senhor Manoel Norberto Henrique de Sena em 14 out. 2007.
96
Michael Pollak. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, 10, p.
201, 1992.
97
Entrevista concedida à autora pelo senhor Manoel Norberto Henrique de Sena em 14 out. 2007.
60
Não, não. É a libertação da escravidão. Olha, assunta bem, a
escravidão, quando a princesa Isabel libertou a escravidão, deu vinte
braça para cada, vinte braça para cada um escravo, entende? Vinte
braça para cada um escravo, agora a divisa quem faz... é fazer divisa
botar uma banana, um touceira de cana, botar uma coisa. Não tem
cerca não. Eu aqui a senhora, a senhora aqui e eu aqui, Jorge ali,
tudo iro. Agora não tem tamanho não. A frente era vinte braça,
vinte e cinco braça, não é vinte não, vinte e cinco braça para cada
um escravo e deixou tudo.
98
Não neste texto o objetivo de se discutir a maneira como a princesa Isabel
é apresentada. Ao que parece, nos dois últimos trechos transcritos da narrativa, ela
era vista, pelo entrevistado, como alguém a qual se deveria reconhecer, agradecer
não pela abolição como também pela doação de terras aos ex-escravos.
Entretanto, o que há de interessante aqui, para as questões que estarão sendo
tratadas nos capítulos seguintes, diz respeito ao significado da terra para aquelas
pessoas. Refiro-me ao fato de a terra, que antes era associada ao trabalho árduo e
cativo para um senhor, ter sido transformada em pequenos domínios de vinte e
cinco braças, com divisas que não se constituíam em cercas, e nas quais habitavam
indiduos considerados pelo narrador como “tudo irmão”.
Também a respeito do processo de transferência das terras dos antigos
colonos estrangeiros para os ex-cativos, Regina Constantino, professora e
integrante da AQH, disse:
[...] que muita gente possuía terra, aqui em Helvécia. É um fato assim
que a gente não sabe nem explicar, como que os negros daqui de
Helvécia conseguiram ter posse dessas terras, como que eles
conseguiram, que eram cativos e depois da abolição, não sei como é
que deu isso, aí. Muita gente. Meu avô fala que quem foi chegando
primeiro foi marcando os pedaços: Isso é meu, isso é meu e foi
tornando dono. Então tem muita gente que tem terra e assim
plantava de tudo um pouco, né? Na época de feijão plantava feijão,
época de abóbora plantava abóbora e nessa época também o clima
ajudava, então as pessoas viviam de uma certa forma bem, que pelo
menos uma alimentação boa eles tinha... então assim, eram felizes,
né? Eram felizes que faziam o que gostava de fazer.
99
Talvez este hiato tenha sido preenchido na memória das pessoas de Helvécia
buscando um fio condutor entre o fim do cativeiro e a posse das terras.
98
Entrevista concedida à autora pelo senhor Manoel Norberto Henrique de Sena em 14 out. 2007.
99
Entrevista concedida à autora pela sra. Regina Constantino em 15 ago. 2007.
61
Estudos recentes sobre a escravidão
100
apontam para a presença no pós-
abolição de lutas feitas pelos ex-cativos, associações abolicionistas e intelectuais
negros no sentido de garantirem o acesso e o domínio da terra por parte dos antigos
escravos.
A memória não se constrói do nada. Assim, talvez, quando seu Manoel
Norberto credita à princesa Isabel a doação de vinte e cinco braças para cada
escravo, esteja falando de algo que pode ter sido, pelo menos, insinuado, articulado,
pedido pelos negros daquele lugar.
Foram nessas terras que os ex-escravos se organizaram e passaram a
produzir para atender aos seus próprios interesses. Neste novo tempo, supõem-se
que aquelas terras passaram a ter outro sentido, outro significado associado à vida,
a idéia de liberdade. O ritmo de produção passou a ser marcado por novos códigos,
novas regras, novos jeitos de se organizar naquele espaço para viver.
1.2.3 TEMPO DA FARTURA “AH, MAIS AQUI ERA MUITO BOM”
Ah, mais aqui era muito bom, porque, antes, tudo que você plantava
dava, é feijão, abóbora, milho, amendoim, cebola, batata, na horta e
tal, basta roçar o lugarzinho, queimar, plantar. Dava cada uma
abóbora!
101
Faustina Zacarias, nascida em Helvécia, 53 anos, casada, faz neste relato
uma curiosa construção em sua memória, alinhavando passado e presente de tal
modo como se ambos os tempos subsistissem em suas práticas diárias. Os
diferentes tempos verbais utilizados pela narradora não foram lidos aqui como um
problema de concordância verbal, mas sim como uma maneira de ela indicar,
através da oralidade, que, em sua memória, o tempo de antes ainda era sentido e
desejado como possibilidade do tempo de agora.
Assim, ela começou falando do passado, rememorando a diversidade de
produção associada à generosidade da terra, “tudo que você plantava dava”, e
enfocando o fato de que ela, Faustina, integrante de uma família que havia sido
proprietária de uma pequena gleba, tinha autonomia, ela produzia. Continuando,
Faustina começou a tecer sua memória no presente ao dizer que “basta roçar o
lugarzinho, queimar, plantar”, para logo após dar-se conta de que falava do
100
Entre os quais, aqueles realizados por Walter Fraga, Wlamyra Albuquerque e Sidney Chalhoub.
101
Entrevista concedida à autora pela ra. Faustina Zacarias Carvalho em 14 ago. 2007.
62
passado,
102
e completar a frase com a afirmação “Dava cada uma abóbora!”, como
se fosse uma espécie de convite da narradora para a visualização de imagens
saudosas de fartura e qualidade dos alimentos produzidos em tempos distantes.
Outras narrativas, neste sentido, foram apresentadas pelos entrevistados. A
fala a seguir do senhor Manoel Norberto, pode nos ajudar a conhecer um pouco
mais dos laços de sociabilidade das pessoas, em Helvécia, nos momentos de
trabalho com a terra, de produção cotidiana:
[...] O filho que manobra os pais, agora na minha data quem
manobrava era os pais, olha, não teve hora, na minha data não teve
hora não, hora o galo batia asas... uma hora da manhã, o galo
marcava hora, zero hora da noite o galo marcava, se era uma da
manhã, marcava, se era duas horas da manhã aí ficava, está ali, está
ali, daí a pouco o galo... batia asas outra vez... quando o galo
pegava miudar, cantava mais adiantado, mais adiantado, o velho
ou a velha lá, Fulana? Senhora minha mãe? Está na hora,
heim. Aí ela pulava, pulava da tarimba, que não era cama não, hoje é
caminhazinha, de esteira ou de vara, chegava cuidava do café,
cuidava com o lanche pela manhã.
103
Essa narrativa nos deixa entrever a maneira como as pessoas se
organizavam, ou melhor, a partir de quais códigos se organizavam para
desenvolverem suas tarefas diárias. É assim que ao falar das suas relações
familiares o entrevistado acabou por nos dizer da maneira como se organizavam
com o tempo, com a divisão de trabalho entre os gêneros, como eram as relações
dos filhos e filhas com os pais, nos possibilitou entrar em sua casa, despertar na
tarimba.
Ele se remete a um tempo, “na minha data não teve hora não”, em que fica
implícito que o ritmo de trabalho não estava associado ao tempo do relógio, data em
que se sabia em qual momento do dia se estava através da interpretação da
cadência dos sons produzidos pelo galo. “Aí quando o galo pegava miudar,” era hora
de levantar:
os pais estava deitado, os pais levantava, quando chegava na
hora aí vestia essa roupinha que tinha, aí saia para fora, aí quem era
filho homem, para cuidar, se tem uma vaca de leite aí ia olhar, se não
tem uma vaca de leite, então um cavalo magro ali amarrado chega
aqui arreado com uma lona que se chama cangalha, um arreiozinho,
102
Em outro momento da entrevista, Faustina esclarece que não tem mais terra, as terras de
propriedade de sua família foram vendidas para a Aracruz.
103
Entrevista concedida à autora pelo senhor Manoel Norberto Henrique de Sena em 14 out. 2007.
63
as meninas soltava o cafezinho, a pessoa tomava, usava esse
cafezinho, aí saia, ia lavrar lavoura de mandioca, de café, de
mandioca, de batata, de abóbora ou de mandioca, a maniva e ia
lutar.
104
Essa é uma rotina que está claramente associada à posse da terra e ao
tempo marcado pela cultura “[...] na qual as tarefas diárias [...] parecem se
desenrolar, pela lógica da necessidade, diante dos olhos do pequeno lavrador“
105
.
Foi com base nesta premissa que a sobrevivência do senhor Norberto e de sua
família foi construída desde a primeira “batida de asas do galo” até o momento em
que os diversos componentes da família começaram a manusear os apetrechos
adequados ao trabalho doméstico e à luta na lavoura.
A autonomia deste trabalho na terra ocorria, não a partir de ações
individualizadas, mas sim através do trabalho coletivo, no qual a família do senhor
Norberto, como tantas outras famílias camponesas se organizavam no desempenho
das mais variadas tarefas associadas à terra.
Tamm é possível perceber que não existia uma divisão entre o espaço de
trabalho e o lugar em que se vivia, estes mundos não eram apartados, a fronteira
era a porta da casa, “aí saia para fora”, e dava-se início à rotina com a lida dos
animais e da lavoura. No que diz respeito a esta, mais uma vez tem-se a afirmação
de que predominava em Helvécia a policultura. Perguntado como era o trabalho na
lavoura, o senhor Norberto respondeu: “Era terra, a terra que era a mãe, não teve
outra coisa [...].”
106
Naquilo que diz respeito à fartura, acredito que a narrativa a seguir possa
ajudar a compreender um pouco mais daqueles tempos nos quais existia uma
exuberância da atividade agrícola realizada pelos proprietários e posseiros de
Helvécia.
[...] meu pai plantava, humm... Era abacaxi..., tudo tinha fartura.
Tinha fartura. Feijão? is..., lá pai plantava feijão na época, olha
para você ver, era tudo mais fácil que hoje. Produzia, naquela época
produzia. Plantava feijão, pai colhia era cem sacos de feijão,
duzentos sacos de feijão na safra de feijão. Sem trator, sem nada,
arava a terra, na época pagava, plantava e colhia. Era fartura! Agora
hoje? Para achar uma melancia em Helvécia... Ave-maria! Não acha
não.
107
104
Entrevista concedida à autora pelo senhor Manoel Norberto Henrique de Sena em 14 out 2007.
105
Edward P. Thompson. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 271.
106
Entrevista concedida à autora pelo senhor Manoel Norberto Henrique de Sena em 14 out. 2007.
107
Entrevista concedida à autora pelo sr. Jorge Ferreira da Silva em 14 ago. 2007.
64
O entrevistado, senhor Jorge Ferreira, apresentou dados numéricos para falar
da fartura da produção de feijão, “[...] cem sacos de feijão, duzentos sacos de feijão”,
e parecia estar saboreando aqueles bons tempos que, em sua memória,
contrastavam com as dificuldades existentes naquele momento da entrevista para se
adquirir produtos agrícolas em Helvécia. A comparação que aparece na afirmativa
“era tudo mais fácil que hoje” foi feita com base na experiência do entrevistado, que
ainda vive labutando e plantando, inclusive um pouco de eucalipto, naquela terra
que no passado havia pertencido aos seus pais.
Outra entrevistada, Célia Maria Silva Zacarias, a partir de suas memórias, nos
falou o seguinte:
... o que eu alembro da minha época é assim. Quando eu tomei
entendimento nos meus treze, quatorze anos, a gente mexia com
roça. E era muita dificuldade, que a gente plantava muito e o que a
gente vivia era do plantio da roça: mandioca, amendoim, é... meus
pais gostava muito de plantar assim... é uma horta, nós tirava muito,
mermo nós colhia o que nós comia, nós tirava de mermo, meu
pai criava porco, essas coisas, muuito dendê.
108
Novamente temos a presença de alguns elementos recorrentes nas falas de
outros entrevistados, como por exemplo o senhor Norberto e a senhora Faustina, ao
relatarem a maneira como organizavam suas vidas em relação ao trato com a terra.
A idéia deste trabalho como uma tarefa árdua, “E era muita dificuldade, que a gente
plantava muito e o que a gente vivia era do plantio da roça”, traduzia uma labuta, ao
mesmo tempo em que poderia também indicar a existência de autonomia por parte
dessas pessoas, pois o fruto desta labuta era daqueles que trabalhavam em suas
terras, o que novamente nos faz ver toda uma organização familiar alicerçada na
posse da roça.
Percebe-se na fala de Célia a existência do trabalho coletivo, familiar. A
construção mexer com a roça” pode ser lida também como um indicativo de
proximidade entre aquelas pessoas e o ato de produzir, gerar alimentos que
garantissem suas vidas.
José de Souza Martins, em seus estudos sobre as lutas sociais no campo, ao
apresentar suas análises sobre a idéia de autonomia dos camponeses, afirma que
108
Entrevista concedida à autora pela sra. Célia Maria Silva Zacarias em 15 mar. 2007.
65
No campo, a categoria mais importante é a das pessoas que são
autônomas, que trabalham para si mesmas, não têm patrão e
também não têm empregados. [...] São parentes, a esposa, os filhos,
daquelas outras que trabalham para si mesmas. [...] Mas esses
trabalhadores autônomos não trabalham individualizados, trabalham
juntos, trabalham em família, como é normal entre os camponeses.
109
Desta maneira, aquilo que era produzido coletivamente compunha a mesa de
refeição daquela família, seus hábitos alimentares estavam ligados ao sucesso ou
fracasso de suas produções. Cuidar das hortaliças, dos cultivos e da criação era, em
última instância, garantir mesa farta, repleta de variedades.
A entrevistada também nos disse que vivia do plantio da roça na qual mexia,
na qual seus pais gostavam de plantar. Acredito que este tipo de construção não
diga respeito exclusivamente ao mundo do trabalho, vejo elementos de outras
dimensões de sua vida, da vida de sua família, em que, além do labor, aparecem os
laços de afeto e respeito com aquilo que faziam, das dificuldades, das maneiras
encontradas para lidar e responder a elas, do sentimento de alegria pela produção
farta.
Fiz uso da palavra afeto em relação à terra, numa clara alusão ao texto “O
afeto da terra”, no qual Carlos Rodrigues Brandão destacou a relação de
proximidade entre a terra e aquele(a) que a faz produzir. Desta forma, “A ‘terra’ do
afeto de Zé Tonhá é a terra próxima, física, qualificável segundo um código de
atributos naturais avaliados pelo seu poder de produção. A terra real sobre a qual se
trabalha; a terra em que se planta.”
110
Interpretei as narrativas de Faustina, de Célia
e do senhor Norberto como tendo sido construídas a partir desta relação de
imbricamento e afetividade com a terra. Estes entrevistados não estavam falando de
algo distante de suas vidas, de um trabalho mecânico ou de algo que estivesse
associado unicamente à idéia de produção econômica e sobrevivência, eles falaram
de si e para isso recorreram às suas lembranças no trato com a terra, no qual
encontravam, dentre outras imagens, familiares, rotinas de vida, sociabilidades e
uma produção agrícola variada.
Nestas memórias, o distrito de Helvécia aparecia de forma a constituir a idéia
de um lar, “no sentido especial em que ’lar’ representa uma lembrança e um
109
José de Souza Martins. Os camponeses e a política no Brasil As lutas sociais no campo e seu
lugar no processo político. 5. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995, p. 139.
110
Carlos Rodrigues Brandão. O afeto da terra. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1999, p. 63.
66
ideal”,
111
desta maneira as relações de sociabilidade foram lembradas naquilo que
ofereciam de melhor, de mais solidário, de mais tranqüilo e seguro.
Este tipo de percepção, por mais que estivesse repleto de saudosismo, não
pode ser desqualificado como sendo algo imaginado. Afinal, o imaginário não está
deslocado da realidade.
A relação com a terra também foi rememorada por dona Cocota. Para ela,
Ah minha filha a vida aqui é treita. A vida é cansada minha filha,
quem trabalha na roça, mora na roça, na enxada é pesado... Eu
comecei trabalhar na enxada e no forno, de tanto carregar peso me
acabei. [...] Agora que o serviço tudo leve, que os meninos tudo
na escola, né? Mais naquele tempo não tinha escola pra mim. Nem
que tinha, mãe não tinha pudido botar eu na escola, né? Fui criada
no mato, na roça. Com uns doze anos eu tava no forno torrando
farinha. Por quê? P sobreviver. [...] A gente vinha da roça com
cesto na cabeça, saco na cabeça, da roça [...] Coitada de mim fui
criada jogada, que eu não tinha pai, meu pai me deixou com um mês
de nascida. Morreu. Criei com minha e e meu gado, né? Minha
mãe não tinha recurso. [...] E trabalhava pra gente e pros outros,
tinha que trabalhar pros outros pra gente ter o que comer, né?
112
Essa narrativa ajuda a entender a complexidade existente naquele viver.
Dona Cocota, que por muito tempo fora parteira em Helvécia, ao afirmar que a vida
ali era cansada, sugeriu a insustentabilidade da imagem do trabalho na terra como
uma realidade paradisíaca, “[...] quem trabalha na roça, mora na roça, na enxada é
pesado...” Ela disse da dureza daquele labor e do significado dele em sua vida: “[...]
de tanto carregar peso me acabei.” Falou igualmente de suas perdas, de sua
ausência na escola que não existia, e de sua possível ausência, também, caso uma
escola se fizesse presente àquela época: Nem que tinha, mãe não tinha pudido
botar eu na escola, né?”
No alto dos seus cem anos, dona Cocota se recordou do tempo de criança.
Ao fazê-lo, sentiu o trabalho na terra como intenso, duro. Desta forma, ela tencionou
com outras merias apresentadas. No período decorrido entre a meninice e a
velhice, ela foi capaz de trazer memórias que destoam das narrativas anteriormente
evidenciadas. Os 88 anos existentes neste intervalo não foram capazes de amainar
ou fazer com que os problemas, distantes no tempo, perdessem sua força. Ao
111
Raymond Williams. O campo e a cidade na história e na literatura. Trad. Paulo Henrique Britto.
São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 377.
112
Entrevista concedida à autora por dona Cocota em 14 out. 2007.
67
contrário, a sua narrativa sinaliza um enfrentamento em relação a problemas que ela
trouxe a baila a partir de suas reminiscências: “Com uns doze anos eu tava no forno
torrando farinha. Por quê?” Ao responder “Pra sobreviver.[...]”, acabou por falar
daquilo que havia experienciado como uma necessidade, uma dura exigência que
ela, ainda criança, teve de assumir na construção de suas práticas diárias.
Neste sentido, também a morte do seu pai foi rememorada pela entrevistada
como uma perda. Esta ausência, acredito, teria sido, naquele universo social,
sentida por dona Cocota como algo que, se por um lado a fragilizara, “Coitada de
mim fui criada jogada, [...]”, por outro teria cobrado dela uma atuação familiar de
protagonismo no mundo do trabalho: “Criei com minha mãe e meu gado, né? Minha
mãe não tinha recurso.”
Dona Maria de Jesus Joaquim Santos, camponesa, moradora de Helvécia,
que na época em que foi entrevistada tinha 59 anos, quando indagada sobre como
havia sido a sua vida no cultivo da terra, comentou:
Ah minha filha se eu falar isso com você, você vai até chorar. Por
que minha filha, igualmente eu. Oh meu Deus do céu. Eu fui prá roça
né? Quarenta ano que eu moro na roça, quarenta e dois anos, né? Ai
eu criei meus filhos tudo foi na roça, né? Meus filhos andava nove
quilometro de da roça pra qui, pra vim estudar. E foi uma vida
mermo de... só eu podia entar, e güentei. Por causa de quê? Por
eu queria viver, fazer uma família. Por que hoje, ninguém num aceita
isso, o que eu passei, né? Então foi uma vida assim na roça, de
capinar, não existia trator. O trator era nos mermo, com nossa
enxada. Estocar a terra, plantar, depois colher, ir prá Posto da Mata
de , vender as coisas, né? Ia e voltava com filho enganchado do
lado. Então foi assim.
113
Neste registro, o trabalho na terra aparece como sendo uma tarefa árdua.
Morar na roça, para além daquela imagem idílica que por vezes é atribuída a este
universo,
114
requereu esforço, implicou sacrifícios, não só da entrevistada como
também dos filhos: “Meus filhos andava nove quilômetro de da roça pra qui, pra
vim estudar”. Ainda sobre as exigências do ritmo de trabalho na roça e das
implicações deste ritmo no seu trato para com os filhos, dona Maria de Jesus, em
outro ponto da entrevista, disse: “[...] fui uma mãe assim carrasca por que eu não
tinha tempo de colocar meus filhos no colo. O colo dos meus filhos era a rede... hoje
nós estamos no céu.”
113
Entrevista concedida à autora pela sra. Maria de Jesus Joaquim Santos em 15 ago. 2007.
114
Raymond Williams. O campo e a cidade – na história e na literatura, op. cit.
68
Estas foram memórias de uma mulher que viveu e construiu sua família a
partir do trato com a terra. Dona Maria de Jesus mostrou como as tarefas por ela
desempenhadas exigiam força e garra. Ela teria agüentado todas as situações que
aquele viver lhe exigia em nome de um projeto de vida que estava associado à sua
vontade de “fazer uma família”.
Essas narrativas que, a princípio, podem parecer dissonantes, são na
verdade enriquecedoras para essa pesquisa, na medida em que contribuem para
que a comunidade de Helvécia seja vista como diversa, não homogênea, não
monocromática.
Assim, pode-se ver, por algumas das narrativas analisadas, que lembrar dos
tempos de trabalho na roça não se resumia a falar de bons tempos. Aquele também
fora um tempo de dureza, de rusticidade no trato com os filhos pequenos. A labuta
na terra não era uma lida fácil, o trabalho segundo o ritmo da natureza exigia a
presença de mãos firmes na enxada, com exigências de esforço físico e de
abdicações, como, por exemplo, do ato de embalar os filhos no colo.
Estas dissonâncias não dizem respeito somente à memória dos tempos
anteriores à eucaliptocultura. Elas aparecem também em ações do tempo mais
recente quando, apesar das pressões existentes, alguns dos camponeses de
Helvécia se recusaram terminantemente a vender suas terras às empresas de
eucalipto, enquanto outros, de pronto, o fizeram.
Curioso observar que após falar das “treitas” da vida em Helvécia, dona
Cocota disse: “Mais eu gosto daqui... Já fui em Caravelas, já fui em Teófilo Otoni, em
Nanuque 4 anos, 4 anos em Belo Horizonte, trabalhando. Mais num esqueço daqui,
né?”
Ao comparar algumas das falas, analisadas anteriormente, de Faustina, de
Jorge, de Célia e do senhor Norberto, foi possível verificar que elas tinham em
comum uma memória construída a partir do trabalho realizado nas terras de suas
famílias. Dona Cocota trouxe um dado novo a respeito da relação do trabalho na
terra: “[...] E trabalhava pra gente e pros outros, tinha que trabalhar pros outros pra
gente ter o que comer, né?” Talvez resida aí uma das chaves para entender por que
aquelas lembranças não podem ser traduzidas unicamente pela construção “Ah,
mais aqui era muito bom”, talvez seja importante não perder de vista, como disse
Dona Cocota, que “Ah minha filha a vida aqui é treita”, ainda mais se levarmos em
69
consideração o que nos disse Raphael Samuel: “Há verdades que são gravadas nas
memórias das pessoas mais velhas e em mais nenhum lugar.”
115
1.2.3.1 “FESTA EM HELVÉCIA ERA SUPERIOR“.
Ao fazer uma consulta ao Guia Cultural da Bahia: Extremo Sul,
116
observei
que este, ao referir-se ao município de Nova Viçosa, apresentava com certo
destaque um conjunto de festas que aconteciam no distrito de Helvécia. Em um dos
itens do referido guia, denominado “manifestações populares”, existia um pico
intitulado Folclore e neste havia um breve histórico das festas realizadas em
Helvécia, entre as quais Bate Barriga, Mouros e Cristãos, Viola, Cosme e Damião,
além da festa da padroeira.
117
Estas informações aludiam à presença destas festas
na memória dos moradores daquela comunidade.
Seguindo esta pista, no decorrer da entrevista com o senhor Kemi Krull,
camponês de sessenta e quatro anos, que vive com a esposa em sua pequena
propriedade nas proximidades de Helvécia, perguntei que lembranças ele tinha das
festas daquele lugar. Antes de responder, ele, que havia revelado sua relação de
proximidade com o distrito, “fui nascido e criado e por aqui estou”,
118
compôs em seu
rosto uma expressão que interpretei como de alegria, como se fosse bom lembrar,
voltar àquelas festas.
Ah, era maravilhosa! Era bom demais, hoje em dia para mim não tem
grande prazer não, festa em Helvécia era superior, para mim, para
outras pessoas, eu não sei dizer que cada um tem uma natureza,
né? E agora diminuiu bastante, dá muita gente, mas não é como era.
Não, não é não. A gente farreava tranqüilo, o tinha problema de
confusão e hoje em dia... quando dava dia de sábado de meio dia
para tarde, chegava era quantidade de gente, aquela influência. Hoje
em dia o, vem gente de fora, de Vitória, esse cantos, mas para
mim não é igualmente era não.
119
115
Raphael Samuel. História local e história oral. Rev. Bras. de Hist. São Paulo, v. 9 n. 19, p. 230,
set.89/fev. 90.
116
Secretaria da Cultura e Turismo. Coordenação de Cultura. Guia Cultural da Bahia: Extremo Sul.
Salvador: A secretaria, 1997, v. 3. Acervo Cedic Centro de Documentação e Informação Cultural
sobre a Bahia, Salvador, Bahia.
117
. Idem, v. 3, p. 153-155.
118
Entrevista concedida à autora pelo sr. Kemi Krull em 15 ago. 2007.
119
Entrevista concedida à autora pelo r. Kemi Krull em 15 ago. 2007.
70
Aquela lembrança pareceu preciosa para o entrevistado, e ele fez questão de
realçar o seu sentimento de alegria ao compô-la, independente da ciência de dados
que, acredito, suspeitava pudessem ser levados em conta como sendo relevantes
para realçar a importância das festas do tempo presente, como, por exemplo, o
número de pessoas vindas de fora. Ele não titubeou ao proferir “... festa em Helvécia
era superior” para se referir aos tempos de outrora. Para o senhor Krull, as festas
eram espaços de sociabilidade nos quais imperava a tranqüilidade, a inteireza das
pessoas, “chegava era quantidade de gente, aquela influência”.
A tranqüilidade identificada nos festejos, em suas mais variadas dimensões
particular e/ou privado, profana e/ou religiosa –, envolvia pessoas que tinham
relações de parentesco e algum tipo de laço de solidariedade tecido em outros
espaços de convívio social. Talvez outra construção de memória deva ser aqui
apresentada para que se possa fundamentar aquilo que foi dito:
[...] fazendo uma comparação é com a minha vida quando criança o
que eu vivi, a forma, né? Como eu vivi, é esse período da minha
vida, eu vejo assim, uma, eu vejo uma, como é que eu vou colocar?
Uma diferença muito grande, eu me lembro, por eu morar no Rio do
Sul, que o Rio do Sul também é uma comunidade, negros,
tem negros. Então, existia muito a questão de muitas manifestações,
de um ir para a casa do outros, do final de semana ser na casa de
fulano, da questão dos ofícios, que era muito usado. Samba, bate
barriga, o samba de viola e o samba bate barriga, eu lembro muito,
porém eu não ia muito porque meu pai não deixava a gente sair, mas
isso existia, se este final de semana era na minha casa o outro final
de semana era na casa do outro, um final de semana em Helvécia,
outro final de semana em Volta Miúda, então, existia isso não só com
Helvécia, mas Helvécia e suas vizinhas...
120
Essa narrativa de Gilsineth Joaquim Santos, pedagoga e professora da única
escola existente em Helvécia, apresentou alguns elementos que me ajudaram a
pensar aquilo que anteriormente apontei. Observei, nesta composição da memória,
a formação de algo que vou chamar aqui, por falta de melhor termo, de rede.
Deste modo, os habitantes de Helvécia se reuniam em casas diversas, não só
de integrantes de suas comunidades, como também em residências de pessoas que
moravam nas comunidades vizinhas, para festejar. Ao fazer isso, inseriam este
tempo de lazer em um dinamismo espacial que requeria minimamente um
(re)conhecimento do outro. Desta forma, homens e mulheres se aproximavam, e
120
Entrevista concedida à autora pela sra. Gilsineth Joaquim Santos em 15 ago. 2007.
71
provavelmente fortaleciam/estabeleciam laços de amizade, de parentesco, de
compadrio, além de relações associadas ao mundo do trabalho, do labor, “[...] se
este final de semana era na minha casa, o outro final de semana era na casa do
outro, um final de semana em Helvécia, outro final de semana em Volta Miúda,
então, existia isso não só com Helvécia, mas Helvécia e suas vizinhas...“
121
Outro caminho, válido para compreender aquela afirmação do senhor Krull, “A
gente farreava tranqüilo, não tinha problema de confusão e hoje em dia...”, poderia
estar relacionado à situação de se falar do tempo passado somente naquilo que ele
tivera de bom, de satisfação proporcionada. Neste caso, a distância temporal talvez
tenha feito com que os possíveis conflitos existentes naqueles momentos de lazer
ficassem esmaecidos, não sendo dignos de serem apresentados naquela
composição que deixara saudades para o narrador. Ao contrário daquilo que ele
sente em relação às festas do tempo presente.
Outro aspecto que gostaria de realçar na construção de memória feita por
Gilsineth diz respeito à afirmação, “[...] eu lembro muito, porém eu não ia muito
porque meu pai não deixava a gente sair, mas isso existia [...]”, que explicita a
possibilidade de uma lembrança intensa, “eu lembro muito”, associada à existência
de uma prática cultural que era considerada significativa para sua comunidade,
mesmo que a entrevistada não tenha necessariamente participado como
protagonista das festas.
Ainda sobre as lembranças dos festejos em Helvécia, quando indaguei ao
senhor Krull se ele sentia saudades das festas que anteriormente qualificara como
sendo “superior”, ouvi a seguinte resposta:
Tem dia que eu lembro, me dá vontade de chorar. Mas gente, eu ia
no sábado a tarde, só chegava em casa na segunda-feira, saia
satisfeito e chegava satisfeito, graças louvado seja Deus, agora
fica com saudade...
122
121
Entrevista concedida à autora pela sra. Gilsineth Joaquim Santos em 15 ago. 2007.
122
Entrevista concedida à autora pelo sr. Kemi Krull em 15 ago. 2007.
72
1.2.4 TEMPO DA ESTAÇÃO – ESTRADA DE FERRO BAHIA E MINAS.
Ponta de areia
Composição: Milton Nascimento
& Fernando Brant
Ponta de areia ponto final
Da Bahia-Minas estrada natural
Que ligava Minas ao porto do mar
Caminho de ferro mandaram arrancar
Velho maquinista com seu boné
Lembra do povo alegre que vinha cortejar
Maria fumaça não canta mais
Para moças flores janelas e quintais
Na praça vazia um grito um oi
Casas esquecidas viúvas nos portais
123
Quando os compositores Milton Nascimento e Fernando Brant fizeram essa
letra eles estavam, como o nome da composição sugere, se referindo a uma estação
específica, Ponta de Areia, situada no distrito de Caravelas (BA), local em que,
segundo a música, encontrava-se o ponto final da Bahia e Minas, que na verdade
correspondia ao km 0.
124
Ocorre que esta estrada de ferro, ao ser desativada, pode ter deixado vazias
praças que ficavam em diferentes lugares por onde o trem passava e em que havia
estação. Assim, apesar de a letra da música não se referir ao km 74,
125
ou seja, à
estação Helvécia, o tema da letra é também pertinente à história do distrito de
Helvécia.
Aqui, nos interessa como a desativação da estação Helvécia foi representada
pelos moradores daquele distrito. É este interesse que faz com que a leitura dos
versos de “Ponta de areia” seja associada às falas dos habitantes de Helvécia que
ainda teimam em escutar, através de suas memórias, o aviso da chegada do trem.
Curioso observar que este tempo da ferrovia tenha sido rememorado, nas
entrevistas realizadas, mais pelos homens do que pelas mulheres, talvez como a
indicar que houvesse mais proximidade do gênero masculino com aquele universo,
seja naquilo que dizia respeito ao trabalho nas mais variadas funções, entre as
quais: maquinista, foguista, chefe-de-trem, chefe-de-estação, feitor de turma, mestre
123
Milton Nascimento, LP Milton Nascimento, Emi Odeon, 1969.
124
Adequação do PDU 2004 Nova Viçosa, p. 49. Acervo Seplan – CAR, CAB, Salvador.
125
Adequação do PDU 2004 Nova Viçosa, p. 49. Acervo Seplan – CAR, CAB, Salvador.
73
de linha, caldeireiro, torneiro;
126
como também poderia ter sido um indício de que,
àquela época, os homens viajavam mais enquanto as mulheres ficavam esperando
por eles e quem sabe pelas novidades que eles pudessem trazer como fruto de suas
andanças.
Deste tempo rememorações e fragmentos, partes destes estão
concretamente expostos no prédio da estação onde a escrita com indicação do ano
de inauguração da mesma, 1897, teima em mostrar que aquele espaço de
passagem, que outrora serviu de local para embarques e desembarques, fez parte
de diferentes tempos da história do distrito.
indício de que desde o momento da proposição de construção da estrada
de ferro Bahia e Minas já havia, em torno da mesma, toda uma expectativa em
relação aos dividendos que esta poderia gerar para a região. Em relatório feito pelo
então presidente da Província da Bahia, dr. Antônio de Araújo de Aragão Bulcão, em
maio de 1879, encontramos o seguinte argumento em defesa da construção da
referida estrada:
A estrada de que vos falo, partindo de Caravelas, porá em fácil
comunicação o sul da nossa província com o norte da de Minas. Será
incontestavelmente uma das mais importantes, e o seu custo ver-se-
em poucos anos resgatado, deixando ainda não pequena fonte de
renda.
127
Vê-se uma referência explícita ao papel de comunicação que esta ferrovia
desempenharia para a região, na qual estava localizado, entre outros, o distrito de
Helvécia, bem como a defesa de que o investimento seria superavitário.
O dr. Antônio de Araújo de Aragão Bulcão encerra o relatório dizendo: “Há um
ponto comum em que todos os baianos se encontrão: é o esforço pelo
engrandecimento e progresso de nossa terra.”
128
Cabe esclarecer que com a intensificação das lutas contra a escravidão, que
acabou por engendrar o processo que culminou na abolição, em 1888, e a
ocorrência do deslocamento da produção cafeeira para outras áreas do Brasil, a
Colônia Leopoldina entrou em crise e os colonos a abandonaram. Porém, ao que
126
Conforme documento mimeografado, intitulado Estrada de Ferro Bahia e Minas”, sem número de
página, encontrado nos acervos da Associação Cultural Ferroviários Bahia e Minas, situada na rua
Júlio Costa, 61, bairro São Diogo, Teófilo Otoni, Minas Gerais.
127
Benedito P. Ralile. Monografia histórica de Caravelas. Salvador: Tipografia São Miguel, 1949, p.
60.
128
Benedito P. Ralile, op. cit., p. 61.
74
parece, muitos dos ex-cativos permaneceram nas terras vizinhas das antigas
plantações de café, praticando uma cultura de subsistência, em que foram
sucedidos por seus descendentes.
129
Para essas pessoas que estavam vivendo a
crise da produção cafeeira, a chegada da estação no km 74 foi bem vinda, e desta
maneira, “A vila de Helvécia passaria a viver em função da estação da ferrovia Bahia
e Minas, inaugurada em 1897”.
130
A estação de Helvécia era, entre as que se encontravam na Bahia, a mais
sofisticada da estrada de ferro Bahia e Minas,
131
sendo composta por um edifício
“com planta regular, constituída por dois corpos justapostos: o da direita, térreo,
servia de armazém, enquanto que o da esquerda, assobradado, abrigava a
administração e estar dos passageiros”.
132
Este prédio seguia os padrões de
arquitetura européia, com telhado de planos inclinados recobertos com telhas
francesas
arrematados com lambrequins em madeira recortada no pavimento
superior e com grande balanço apoiado em mãos francesas, no
pavimento térreo, lembram os elegantes edifícios construídos no final
do século XIX baseados em padrões europeus.
133
Incrustada no centro de Helvécia entre as ruas Júlio Metizker e Henrique
Sulz –, encontra-se a estação de Helvécia como a ilustrar para o presente o tempo
de outrora. Fiz uso da palavra ilustração de maneira proposital, com o objetivo de
indicar que enquanto tal, a praça da antiga estação ali está para dizer daquilo que
foi, como se sua existência fosse atrelada agora à função de ser vista e quase
sempre fotografada pelos turistas e pesquisadores que por ali passam.
É um lugar de ausências. Naquela antiga praça da estação não mais o
burburinho de pessoas apinhadas para ver chegar ou pegar o trem, não mais,
como outrora,
134
o chamado dos ambulantes oferecendo cafezinho, bolos, beijus,
frutas, enfim, as guloseimas típicas daquele lugar, não há mais o frisson da chegada
129
Dante Lucchesi; Alan Baxter. Projeto Vertentes do Português Rural do Estado da Bahia,
Disponível em http://www.vertentes.ufba.br/helvecia.htm.
130
Idem.
131
Adequação do PDU 2004 Nova Viçosa, p. 65. Acervo Seplan – CAR, CAB, Salvador.
132
Secretaria da Cultura e Turismo. Coordenação de Cultura. Guia Cultural da Bahia: Extremo Sul.
Salvador: A secretaria, 1997, v. 3, p. 151-152. Acervo Cedic – Centro de Documentação e Informação
Cultural sobre a Bahia. Salvador, Bahia.
133
Adequação do PDU 2004 Nova Viçosa, p. 65. Acervo Seplan – CAR, CAB, Salvador.
134
Conforme documento mimeografado, intitulado Estrada de Ferro Bahia e Minas”, sem número de
página, encontrado nos acervos da Associação Cultural Ferroviários Bahia e Minas, situada na rua
Júlio Costa, 61, bairro São Diogo, Teófilo Otoni, Minas Gerais.
75
de parentes e amigos em tempos de festa, não mais o alarido de pessoas em
busca de encomendas, não há mais comércio. A praça da antiga estação é por
muitas vezes vista, ironicamente, por aquilo que ela não é mais, por aquilo que ela já
não mais traz consigo, por aquilo que ela já não mais representa para seu entorno.
Aquele é um espaço que no presente, pelos seus rastros, faz-se ver pelo que
foi no passado. Usando expressão de Pierre Nora, seria um lugar de memória.
135
A
edificação é apresentada pelos moradores àqueles que chegam como tendo sido
um espaço representativo de uma época áurea, é como se o sentimento de
continuidade com os significados daquele período tivesse se tornado residual àquele
local.
136
Em razão das narrações feitas por alguns dos entrevistados, a importância
daquela estação continuou sendo motivo de orgulho para os habitantes daquele
lugar.
Ah, o trem... O trem funcionou aqui até mil novecentos e sessenta e
três, sessenta e quatro começou a ser... Foi extinta a estrada,
então até sessenta e quatro era transportado toda a mercadoria
daqui no trem. Trem de ferro. Estrada de ferro Bahia e Minas. Então
o movimento aqui era um pouco mais ativo porque tinha bastante
funcionários aqui na Bahia e Minas porque aqui era um... era um
ponto aqui onde convergia o comércio quase da região toda...
137
A impressão que tive enquanto ouvia o senhor Manoel Peixoto falar da
estação era que ele trazia em suas palavras outro ritmo que outrora acontecera em
Helvécia. Falar do tempo da estação era também falar de um tempo de prosperidade
no “comércio”, tempo no qual aquele lugar fora convertido numa área de
concentração comercial.
Com o intuito de conhecer um pouco mais deste tempo, a partir de diferentes
olhares, entrevistei o senhor Amadeu Deolindo, 73 anos, funcionário “encostado” da
Bahia e Minas:
Entrei na Bahia e Minas em 1951 [...] a luta da gente... porque era
assim: tinha a Lei do Provisório, se não era bom ia pra fora, se
prestava, passava para diarista e depois passava para mensalista. Aí
era firme. Eu trabalhei nove meses e não ganhei um tostão,
comprava na cooperativa... eu passei a tarefeiro, eu comecei a ter
problema de vista...
138
135
Pierre Nora. Entre memória e História a problemática dos lugares. Proj. História, São Paulo, (10)
dez. 1993.
136
Idem, p. 7.
137
Entrevista concedida à autora pelo sr. Manoel Peixoto em 14 ago. 2007.
138
Entrevista concedida à autora pelo sr. Amadeu Deolindo em 23 maio 2008.
76
Este filho da Bahia e Minas, como ele mesmo se denomina, nascido em
Helvécia e residente, no momento da entrevista, na cidade mineira de Teófilo Otoni,
construiu sua narrativa da seguinte maneira:
Em primeiro lugar a nossa Bahia e Minas começou de Ponta de
Areia, né? Até Arassuaí. Em primeiro lugar a Bahia e Minas só
pegava mais negro. Por quê? Que era, as pessoas falam, que é
muito forte. O povo da Bahia e Minas ... não tinha curso, não tinha
preparo nenhum. Era chegar assim, é negão, é pra trabalhar?
Pode botar aí. Tava empregado. Não tinha cultura nenhuma. Se
que povo da Bahia e Minas antigo pode procurar que não tem
cultura nenhuma. Não tem cultura não. Os que tinha assim... tinha
mais, era mais foveiro um pouquinho, que eles falava que era
branco, esses trabalhava no escritório, telegrafista, agente, chefe de
trem, [...] e demais eu peguei um trecho da Bahia e Minas... que era
assim trem de carga, cargueiro...
139
Nesta construção destaco alguns elementos. Havia por parte da Bahia e
Minas a geração de emprego sem que houvesse em contrapartida a necessidade de
uma escolarização. Mesmo que a afirmação “O povo da Bahia e Minas... não tinha
curso, não tinha preparo nenhum” necessite ser relativizada, ela nos indica que
aqueles tempos podem ter sido fartos na oferta de empregos para muitas pessoas
de Helvécia que se viram na condição de receber uma resposta afirmativa da Bahia
e Minas ao pleitearem uma vaga para trabalhar. A fala nos revela que havia uma
demanda grande de emprego por parte destas pessoas que não possuíam
qualificação. É bom lembrar, segundo informações dadas pelo senhor Amadeu, a
respeito da existência da Lei do Provisório, que “estar empregado” na ferrovia Bahia
e Minas o implicava necessariamente garantia de permanência no emprego. O
mesmo narrador contou ainda que
Helvécia... que eu sou filho de Helvécia. Ah, era o lugar que tinha
mais negro, então tinha a estação de Helvécia, quando chegava lá
era a merma coisa, pegava um bocado de passageiro e vinha
embora, pra Posto da Mata, depois Argolo,... Naquela época que a
Bahia e Minas tinha movimento, negrão não ficava desempregado.
140
Talvez quando da desativação dessa estrada de ferro aqueles que não
ocupavam cargos especializados, que não eram “foveiros”, que não eram “firmes” se
viram desempregados, sem poder contar com direitos trabalhistas.
139
Entrevista concedida à autora pelo sr. Amadeu Deolindo em 23 maio 2008.
140
Entrevista concedida à autora pelo sr. Amadeu Deolindo em 23 maio 2008.
77
A narrativa a seguir pode ser esclarecedora em relação à importância da
estrada de ferro Bahia e Minas para certo dinamismo dos lugares por onde os trilhos
passavam:
E a Bahia e Minas é o que? Que que vinha a Bahia e Minas?
Antigamente as coisas que vinha prá aqui pra Teófilo Otoni,
Arassuaí, aliás, vou começar de Ponta de Areia,... ..., aí vinha
subindo Helvécia, Juerana, Posto da Mata,... chegava até aqui,......
as coisas que era mantido, que sustentava este povo desta região
que estou falando, tudo vinha em que? Vinha de aqui,
desembarcava do navio, chegava em Ponta de Areia, pegava o trem
que era o trem cargueiro, tinha um bocado de vagão, e aí vinha
trazendo esses trem e chegava em cada estação jogava um
bocado aqui,... aí vinha embora, tinha os comercinhos, a parada
sabe.
141
Figura 5 – ESTRADA DE FERRO BAHIA E MINAS
142
Uma destas paradas era a estação de Helvécia. O senhor Deolindo, quando
indagado sobre do que ele, funcionário do trem cargueiro, se lembrava a respeito da
produção de sua terra natal, disse:
141
Entrevista concedida à autora pelo sr. Amadeu Deolindo em 23 maio 2008.
142
Bruno Dias Bento. As matrizes e a fundação: A companhia de commercio e navegação do Mucury
& a estrada de ferro Bahia e Minas. Um breve estudo da formação do Vale do Mucuri. Monografia
apresentada ao Programa de Ciências Sociais, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2006, p. 135.
78
Aquela época... farinha. Farinha de mandioca. Então dava muita
farinha. Oh gente! Parece até brincadeira, muito abacaxi, vinha...
jaca. [...] O produto mesmo era abacaxi, ah não, primeiro vinha a
farinha, que lá is fazia a farinha era bastante mermo. AÍ vinha
despachando pra estes comércios pequeno, vinha distribuindo, os
comerciante comprava para revender. [...] O trem cargueiro pegava
cem sacos de farinha ia distribuindo, muito abacaxi, jaca. Deixa
ver o que mais vinha daquela região... coco.
143
Assim foi que “O trem, [...] trem de ferro” dinamizou a economia local,
incrementando o comércio interno de produtos agrícolas ao mesmo tempo em que
empregou membros da comunidade. A partir desta ferrovia, os habitantes de
Helvécia passaram a exportar farinha de mandioca para o porto de Caravelas e para
o interior de Minas Gerais.
144
Esta dinâmica tornou-se estável ao longo de décadas.
Esta idéia de movimento na praça e no tempo da estação, do km 74, que
apresentei ao longo deste tópico, foi tecida pelos entrevistados, tendo sido, pois,
realizada por eles em suas lembranças a partir dos parâmetros de suas
experiências, daquilo que eles entendiam por movimento, dinamismo comercial.
Uma informação a respeito do ritmo da locomotiva usada naquela época pode
contribuir para relativizar essa idéia de dinamismo e movimento:
A famosa locomotiva Maria Fumaça, da década de 60, inspira muitas
saudades. Não poderiam passar despercebidos alguns fatos
deleitosos, como o de que esta locomotiva percorria apenas 10 km
por hora. As vezes descarrilava daquele trilho enferrujado, ora
parava e ora faltava lenha. Além disso, quando algum dos
passageiros saltava para fazer suas necessidades conseguia
tranqüilamente retornar ao seu lugar. Isto nos faz sentir os bons
tempos dos anos 60.
145
Era neste ritmo, de aproximadamente 10 km por hora, que se processava a
ligação de Helvécia com os outros lugares por onde passava a estrada de ferro
Bahia e Minas.
Quando perguntado a respeito de como era o comércio em Helvécia na época
em que a estrada de ferro Bahia e Minas estava ativada, o senhor Kemi Krull
construiu a seguinte narrativa:
143
Entrevista concedida à autora pelo sr. Amadeu Deolindo em 23 maio 2008.
144
Dante Lucchesi; Alan Baxter. Projeto Vertentes do Português Rural do Estado da Bahia,
Disponível em http://www.vertentes.ufba.br/helvecia.htm.
145
40 anos da colonização japonesa no Extremo Sul da Bahia, Teixeira de Freitas, Bahia, s.a., s.ed.,
1997, p. 58.
79
[...] naquele tempo, tinha o pai de, ele já é falecido, chamava Oraldo,
o pai de Dalvo, então o camarada poderia levar quantidade de
farinha que ele comprava todinha, era farinha, dendê, arroz de casca,
isso tudo ele comprava, quando teve quantidade ele pegava
gente para carregar tudo no ombro, colocava na estação, agora para
levar para o estado de Minas para poder vender, Teófilo Otoni,
nesses cantos. Já hoje em dia...
146
A narrativa do senhor Kemi Krull é significativa na medida em que ele, além
de indicar a importância da estação para o escoamento da produção, sinaliza a
existência de uma variedade de produtos, “farinha, dendê, arroz de casca”, bem
como sugere que tal produção era feita por pequenos produtores. Leio tal assertiva
no instante em que o comprador, senhor Oraldo, é apresentado pelo entrevistado,
como se tivesse sido uma espécie de atravessador que comprava a produção local
e, “quando teve quantidade”, vendia aquilo que foi amealhado para o estado de
Minas Gerais, mais provavelmente a sua região norte, como indicado naquele
relatório produzido anos antes pelo dr. Antônio de Araújo de Aragão Bulcão.
Tamm o senhor Manoel Peixoto nos falou mais desse tempo:
E o movimento de trem era grande, aqui em Helvécia tinha umas três
linhas que a gente falava desvio, tinha umas três linhas principal e os
desvios [...] aqui era um dos comércios mais movimentados, era o
mais movimentado, né? Quanto aos habitantes daqui, eu falei, né?
Aqui tinha uns, na época tinha umas cinco famílias, mais tinha mais
umas oito famílias de brancos, né? E os... tinha muitos negros, que
aqui era muito negro, aqui era o foco onde eles também comerciava,
trazia as mercadorias que eles tinham e levava daqui, levava o que
precisavam. Roupas, o que fosse necessário para manutenção da
vida deles, né? Aqui os sábados e domingos ficavam muitos cavalos
amarrados aqui, no meio da rua, aqui tinha muitas estacas para
amarrar os cavalos que vinham carregados com aquelas cestas nos
cavalos. O comércio foi feito assim, então trazia muita... como eu
falei mesmo o principal aqui era a farinha, né? Que negociava aqui,
então vinha aqui, colocava os cavalos vendia farinha e levava a
mercadoria deles.
147
O senhor Manoel Peixoto, que planta eucalipto em terras de sua propriedade,
e também é dono de um pequeno estabelecimento comercial localizado na praça da
estação, fez, em sua fala, referência à existência de um contingente de pessoas que
ali moravam “[...] que aqui era muito negro, aqui era o foco onde eles também
comerciava, trazia as mercadorias que eles tinham e levava daqui, levava o que
146
Entrevista concedida à autora pelo sr. Kemi Krull em 15 ago. 2007.
147
Entrevista concedida à autora pelo sr. Manoel Peixoto em 14 ago. 2007.
80
precisavam”, indicando, no decorrer de sua fala, ter havido ali mais negros do que
“famílias de brancos”.
Como a residência do sr. Manoel Peixoto, onde realizei a entrevista, estava
localizada nas proximidades do prédio da estação, ele fez uso constante da
linguagem corporal, e ao falar, indicava com as os o movimento comercial dos
tempos de outrora, quando os negros traziam, nos sábados e domingos, as
mercadorias por eles produzidas para serem realizados os negócios de compra e
venda, logo ali em frente de sua casa, na praça da estação. Aquele lugar foi um
“foco” de comércio dos negros.
Enquanto a farinha produzida pelos camponeses, que chegava à praça em
cestas
148
ganhava novos ares através dos trilhos da ferrovia Bahia e Minas, o fruto
de sua comercialização circulava no distrito de Helvécia, sendo gasto ali com objetos
de necessidade que o eram produzidos a partir da lida na terra. Uma loja
comercial daquela época, provavelmente a mais sortida, pertencia ao pai do senhor
Manoel Peixoto, e a descrição que ele fez dela pode nos ajudar a compreender
como aquelas pessoas que vendiam seus produtos agrícolas na praça da estação
se organizavam para adquirir algumas das mercadorias de que necessitavam:
Ah, o comércio da época de meu pai aqui era interessante, tinha de
tudo, era uma miscelânea o comércio dele. Ele vendia muito mais
tecido, o forte dele mais era tecido. Mas ele vendia tecido, vendia
ferragem de um modo geral, vendia também cereais, vendia tudo,
era carne, feijão, sal, café, querosene, né? Que não tinha luz, sortido,
era sortido, o comércio dele era variadíssimo, [...]
149
Além de contribuir para o movimento comercial, a estação do km 74 era
também um espaço para ocupação de mão-de-obra, “Então o movimento aqui era
um pouco mais ativo porque tinha bastante funcionários aqui na Bahia e Minas”,
150
e
no distrito, em uma rua bem próxima à linha por onde passava o trem, foram
construídas as casas para os funcionários da estação. Na rua Júlio Metizker se
ergueram oito casas com telhados em duas águas geminadas duas a duas, eram as
habitações construídas para abrigar os funcionários da estação. Dessa maneira,
seus funcionários estavam sempre próximos, sempre à mão da empresa quando
148
É provável que o sr. Manoel Peixoto, ao falar de cestas, estivesse se referindo aos panacúns, que
são de fato uma espécie de cesta que se prende ao lombo dos animais, muito utilizado para
transportar mercadorias.
149
Entrevista concedida à autora pelo sr. Manoel Peixoto em 14 ago. 2007.
150
Entrevista concedida à autora pelo sr. Manoel Peixoto em 14 ago. 2007.
81
esta precisava de seus serviços. “As casas, como de praxe na época, foram
construídas dentro da faixa de domínio da estrada e hoje ocupam o leito da rua.”
151
Após a desativação da estrada de ferro, as casas, construídas pela
Companhia de Estrada de ferro Bahia e Minas para abrigar seus funcionários,
permanecem habitadas pelos moradores de Helvécia.
152
Mas o tempo da ferrovia foi também lembrado pelos entrevistados no seu
ocaso, e junto com este uma série de reminiscências pode nos ajudar a entender
como a desativação da ferrovia Bahia e Minas, e mais precisamente da estação do
km 74, foi sentida pelos sujeitos daquele lugar,
[...] então quando foi no dia dezessete de abril de mil novecentos e
sessenta e seis o trem de passageiro saiu de Teófilo Otoni com os
passageiros até Ponta de Areia, quando deu terça-feira, não, dia
dezoito, voltou com as pessoas que trabalhava nele, maquinista,
guarda-freio, bagageiro e o chefe, mas outro passageiro mais não. O
pai de Estela veio na reza da e dele que era minha avó, dia
dezessete, quando deu dia dezoito para ele ir embora para Moreis na
fazenda dele, foi obrigado ir andando metade a , pegando carona
não é igual hoje em dia que tem fartura de carro não, então a
chegou na fazenda dele, também de lá para cá trancou mesmo,
nunca mais, nunca mais aí depois pareceu uma firma por nome
Rodocar arrancando os trilhos, depois que começou arrancar os
trilhos aí a gente perdeu a fé memo.
153
Foi possível perceber, a partir desta fala, que a desativação da estrada de
ferro Bahia e Minas ocorreu para esta população de forma abrupta, sendo provável
que nem todos os seus usuários soubessem que a partir de um determinado
momento não mais poderiam contar com aquele meio de transporte e comunicação.
Teria sido este o caso narrado pelo Senhor Kemi, no qual “O pai de Estela veio na
reza da mãe dele que era minha avó, dia dezessete, quando deu dia dezoito para
ele ir embora para Moreis na fazenda dele, foi obrigado ir andando metade a pé,
pegando carona...”
Caminhos de ferro mandaram arrancar
154
”, e com estes a vida das pessoas
que moravam naquele lugar saiu dos trilhos. As ações de sociabilidade entre as
pessoas foram redirecionadas, posto que para se locomoverem elas não mais
151
Adequação do PDU 2004 Nova Viçosa, p. 71. Acervo Seplan – CAR, CAB, Salvador.
152
Adequação do PDU 2004 Nova Viçosa, p. 71. Acervo Seplan – CAR, CAB, Salvador.
153
Entrevista concedida à autora pelo sr. Kemi Krull em 15 ago. 2007.
154
Milton Nascimento e Fernando Brant. “Ponta de Areia”. LP Milton Nascimento, Emi Odeon, 1969.
82
poderiam contar com o trem de passageiro. Foi preciso, então, buscar em seu
repertório outras ações, andar a pé, pegar carona, reinventar-se em Helvécia.
É, dessa época depois que foi extinta a estrada de ferro Bahia e
Minas aqui houve uma queda muito grande, o comércio fracassou
muito, tornou dificílimo o transporte para as mercadorias. foi que
apareceu a BR 101, essa BR 101 tirou a vida daqui e aqui foi pela
sorte, foi meio cruel aqui, mudou completo a vida daqui, o movimento
comercial daqui caiu muito mesmo, foi parando, parando... Aqui
ficou numa época aí, acho que, por exemplo, de... na época de
sessenta até setenta, oitenta, aqui ficou, foi ficando um comércio
ruim, muito ruim, muito parado, os comerciantes daqui da época foi
embora, todo mundo foi embora, um dos poucos que conseguiram
resistir e ficar aqui foi meu pai
155
(grifo da autora).
Essa afirmação do senhor Manoel Peixoto, de que com a saída do trem o
comércio de Helvécia foi parando, parando, foi construída de tal maneira que
provocou em mim a sensação de que o entrevistado ao frisar a diminuição do ritmo
do comércio também o fazia em relação ao próprio trem, como se a velocidade do
trem estivesse diminuindo, diminuindo, incitando assim o desembarque não de uma
pessoa, mas do próprio distrito de Helvécia. É como se Helvécia houvesse descido
não na estação, mas sim da estação do ritmo acelerado de pessoas que se
juntavam para comercializar os produtos oriundos das pequenas roças, fazendo
assim circular o corcio local; do ritmo de oportunidades diversas em que se
estabeleciam os contatos familiares, as missas de domingo, os batizados, namoros,
as rezas dos parentes, os sambas.
Ironicamente, aquele que havia sido o lugar de movimento estava parado,
estático em um prédio que por mais que anunciasse sua presença, enquanto
estação ferroviária, o mais tinha vida. Esta situação ficou ainda mais evidente
quando a firma Rodocar arrancou os trilhos. Não havia mais trem. Se não havia mais
trem, também não havia por que ir à praça da estação. Faltava ali a circulação dos
funcionários, dos transeuntes. Restou a memória deste tempo que foi parando,
parando.
Ainda quanto ao prédio da estação, sua imagem poderia ser descrita como
um misto paradoxal de imponência e impotência, talvez essa combinação nos ajude
a entender a recomendação de seu tombamento, pelos profissionais que elaboraram
a adequação do PDU 2004 do município de Nova Viçosa. Este tombamento estaria
155
Entrevista concedia à autora pelo sr. Manoel Peixoto em 14 ago. 2007.
83
associado à implantação de um café-bar no antigo prédio, “[...] sem cozinha, com
mesas no interior, na varanda e na praça conjugado com exposições tanto nas
paredes do térreo como no pavimento superior pode criar a ‘animação’ necessária
da cidade às artes plásticas”.
156
Nem é preciso dizer que este projeto não foi implementado. O café não
tornou a ser o centro das atenções no distrito de Helvécia, nem mesmo como ponto
de encontro, de lazer, de animação”. Este é o típico projeto feito por “técnicos” sem
respeitar uma premissa básica, qual seja, conhecer minimamente a realidade local.
O desrespeito a tal premissa constitui um forte indicador da não importância que se
estava dando aos sujeitos de Helvécia. Os tempos da estação presentes na
memória dos habitantes de Helvécia, a partir das entrevistas por mim realizadas e
analisadas, em nada comungavam com a construção de um café-bar. Naquele lugar,
a “Maria fumaça não canta mais”.
Como bem nos disse o senhor Kemi Krull, data de 1966 a desativação da
estrada de ferro quando, sob seu impacto, os moradores de Helvécia passaram a ter
grandes dificuldades para escoar a produção agrícola. Este fato colaborou para que
a comunidade se voltasse à produção de subsistência, trabalhando a terra através
de núcleos familiares e desenvolvendo a prática de pequenos cultivos agrícolas
utilizados para abastecer o mercado interno, e em menor escala, em razão das
dificuldades de transporte, as feiras semanais das cidades próximas de Nova Viçosa
e Caravelas.
Com a implantação da BR 101 na década de 1970, o distrito de Helvécia
viveu mais um momento de perda de importância do papel que desempenhara até
então naquele microespaço regional, visto que a BR 101 deslocou o movimento
comercial para outros distritos e cidades que estavam, diferentemente de Helvécia, à
sua margem. A esse propósito é reveladora a fala do morador Manuel Assis Peixoto
sobre o significado desta mudança: A terra aqui em Helvécia em 70 e 80 não valia
nada.
157
Foi neste contexto que se deu a implantação da monocultura do eucalipto.
156
Adequação do PDU 2004 Nova Viçosa, p. 66. Acervo Seplan – CAR, CAB, Salvador.
157
Entrevista concedida à autora pelo Sr. Manoel Peixoto em 14 de agosto de 2007.
84
2º CAPÍTULO – “PENSOU QUE NÃO, CHEGOU A FIRMA...”
A chegada da eucaliptocultura no sul da Bahia, em meados dos anos 1970,
não poderia ter sido mais festejada e exaltada. Houve neste momento uma
consonância de vozes no sentido de apontar as benesses, tidas como certas, em
razão da vinda de empresas de “reflorestamento” para a referida região.
É importante cruzar diferentes fontes que, a partir de lugares diversos, nos
falam sobre as expectativas e vivências deste tempo.
O eucalipto, que hoje se faz viçoso no Extremo Sul da Bahia, ali chegou com
o aval do Governo Federal, representado à época pelo presidente Ernesto Geisel,
que assinou um acordo com o primeiro-ministro japonês,
158
abrindo um ciclo de
inaugurações de grandes projetos brasileiros de celulose. Como um dos resultados
deste acordo, foi criada a Flonibra – Empreendimento Florestais S.A., do Grupo Vale
do Rio Doce.
A respeito desta empresa, vejamos o que disse o coronel Dalmo Leme
Pragana, então presidente da Flonibra:
159
A Flonibra é resultado de acordo da Companhia Vale do Rio Doce
com as 15 maiores empresas japonesas produtoras de celulose. É
uma indústria brasileira, onde o Governo Federal tem maioria
absoluta, porque a Companhia do Vale do Rio Doce pertence em
85% ao Governo Federal e esta, por sua vez, tem 55% do controle
acionário. Desse modo, a companhia é inteiramente controlada pelo
governo da União.
160
Ainda nesta mesma reportagem, o jornal A Tarde trouxe alguns dados, todos
eles fornecidos pelo coronel Dalmo Leme Pragana e pelo chefe do Escritório
Regional da Flonibra no Estado, o ex-prefeito da capital baiana, Clériston Andrade, a
respeito da implantação da eucaliptocultura no Extremo Sul baiano. Chama a
atenção o teor persuasivo constante dos argumentos utilizados pelas autoridades
responsáveis pelo empreendimento. Analisei aqueles que pareceram relevantes em
158
Jornal A Tarde, Produção de celulose vai ter um bilhão de dólares, 26 de fevereiro de 1976.
Arquivo do jornal A Tarde, Salvador, Bahia.
159
A entrevista coletiva foi realizada no dia 25 de fevereiro de 1976, em Salvador, na sede da
Associação Baiana de Imprensa – ABI.
160
Jornal A Tarde, Produção de celulose vai ter um bilhão de dólares, 26 de fevereiro de 1976.
Arquivo do jornal A Tarde, Salvador, Bahia.
85
razão de portarem elementos que contribuíram para ensejar, na região, uma
expectativa positiva, quando se pensava na chegada da referida empresa.
Em primeiro lugar, é antecipada uma posição do investimento na hierarquia
dos empreendimentos existentes no Estado da Bahia. Conforme a entrevista, em
grau de importância econômica, o negócio perderia para o Pólo Petroquímico de
Camaçari. É bom lembrar que à época este Pólo tinha importância econômica
inquestionável. Portanto, a comparação feita através da mídia valorizava e impedia
qualquer questionamento a respeito da relevância do projeto que então se
apresentava.
Ampliando-se os fatores favoráveis à persuasão, o coronel Pragana informou
sobre a previsão de investimentos da ordem de, aproximadamente, um bilhão de
dólares para a compra de terras e implantação de três fábricas de celulose. Um
significativo percentual destas terras estaria concentrado no Estado da Bahia.
Segundo a reportagem, um dos objetivos da Flonibra era o reflorestamento de 400
mil hectares de terras distribuídas no sul da Bahia e norte do Espírito Santo. Dentre
estes, 4/5 na Bahia.
Conforme representantes da Flonibra, o empreendimento, compreendendo
três fábricas de celulose, somando uma capacidade produtiva de 765 mil toneladas
por ano, geraria 300 milhões de dólares para o Brasil.
Outro recurso usado pelo presidente e pelo chefe do Escritório regional da
Flonibra para exaltar as vantagens inequívocas do empreendimento tocava mais de
perto aos moradores das áreas de abrangência do projeto. Pela previsão destes, o
número de postos de trabalho criados seria tão expressivo que não haveria
população suficiente na região para ocupá-los: “[...] essa empresa oferecerá 15 mil
empregos diretos no Extremo Sul e 60 mil indiretos.”
161
Informavam também que
estavam
[...] encontrando dificuldade de pessoal especializado ou não. Quem
trabalhar na Flonibra terá casa, escola para os filhos, assistência
médica, entre outros benefícios, mas mesmo assim não
população nessas áreas para ocupar todas as vagas.
162
Todos os argumentos selecionados pelos entrevistados, como foi possível
observar, visavam à construção de uma imagem positiva do projeto com o fito de
161
Jornal A Tarde, Produção de celulose vai ter um bilhão de dólares, 26 de fevereiro de 1976.
Arquivo do jornal A Tarde, Salvador, Bahia.
162
Idem.
86
gerar uma unanimidade favorável, produzindo uma impressão de que se tratava de
algo a ser defendido em nome do interesse público da região.
Outra justificativa recorrente para a implantação do projeto consistia no fato
de que neste período o Brasil importava cerca de 300 milhões de dólares de
celulose por ano e, por sua vez, os exportadores tradicionais à época, notadamente
Suécia, Islândia e Canadá, estariam com suas capacidades esgotadas.
163
Tal
equação sinalizava uma possibilidade exitosa no investimento do agronegócio do
eucalipto.
Ainda a respeito da atuação do governo federal, no processo de incentivo às
companhias que investissem em plantações de eucalipto, é necessário destacar o
espaço garantido a essas iniciativas, a partir do II Plano Nacional de
Desenvolvimento - II PND, 1974, fortalecendo as denominadas políticas florestais
em consonância com o I Programa Nacional de Papel e Celulose voltado para áreas
dos Estados do Rio Grande do Sul, Paraná, São Paulo, Minas Gerais, Rio de
Janeiro, Espírito Santo, Bahia e Pará.
164
Segundo dados apresentados no Seminário
Internacional do Processo de Articulação e Diálogo, produzido por Daniel Silvestre,
O Governo Federal destinou cerca de US$ 466.846.200,00 ao setor
celulósico-papeleiro entre 1974 e 1980, o mediante
financiamentos por meio do BNDE (Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico), mas também pela participação
acionária do BNDE e de estatais com a Companhia Vale do Rio Doce
(CVRD) em empresas de papel e celulose.
165
Nas esferas do executivo estadual e municipal, o poder público também se
manifestava entusiasmado com a implantação do projeto. Tal entusiasmo não se
deu de forma pontual, ao contrário, este esteve presente ao longo do processo de
efetivação do agronegócio do eucalipto. A isenção fiscal
166
foi uma das maneiras
que o Estado encontrou para incentivar a indústria de celulose, o argumento
utilizado para esta prática era a possibilidade de ganhos futuros através do aumento
da arrecadação de impostos.
Esta conjunção de apoio do poder público à eucaliptocultura traduziu-se na
constatação de que “Entre 1980 e 1992, a produção de celulose de eucalipto para
163
Idem.
164
Daniel Silvestre. Seminário Internacional do Processo de Articulação e Diálogo, s.l., s.ed., s.d.
165
Idem, p. 2.
166
Idem, p. 2.
87
exportação cresceu aproximadamente 83%”.
167
Este crescimento ensejou a
fundação da Associação das Empresas Brasileiras Exportadoras de Celulose
(ABECEL), composta pela Aracruz, Cenibra, Riocell, Monte Dourado e Bahia Sul.
168
Destas, interessa aqui, neste momento, apresentar um breve histórico da
Aracruz Celulose e da Suzano Bahia Sul Papel e Celulose, posto que foram elas que
passaram a atuar no distrito de Helvécia.
No resumo público de certificação da Suzano Bahia Sul Celulose S.A., existe
o seguinte registro a respeito de sua origem e desenvolvimento:
A Bahia Sul Celulose S/A foi fundada em 1987, com participação
societária de 55% da Cia. Suzano de Papel e Celulose e 45% da Cia.
Vale do Rio Doce. A nova empresa incorporou ao seu patrimônio as
terras das Florestas Rio Doce, subsidiária da Cia. Vale do Rio Doce,
num total de 96.645 ha onde 44.814 ha eram plantações de
eucaliptos que haviam sido anteriormente estabelecidas no Norte do
Espírito Santo e Extremo Sul da Bahia entre 1974 e 1982.
[...]
Em junho de 2001 a Cia. Suzano de Papel e Celulose adquiriu a
totalidade das ações da Cia. Vale do Rio Doce na Bahia Sul
Celulose. Em junho de 2004, por acordo entre os controladores de
seu capital social, a empresa muda a sua razão social para SUZANO
BAHIA SUL PAPEL E CELULOSE S.A.
169
Ressalto o fato de que as terras anteriormente adquiridas pela Vale do Rio
Doce, da qual a Flonibra fizera parte, no Extremo da Bahia, foram após a criação da
Bahia Sul Celulose S.A., incorporadas a esta última. Desta maneira as análises
feitas até aqui a respeito da chegada da Flonibra passaram a ser desdobradas nas
ações realizadas pela Bahia Sul Celulose S.A.
Quanto aos dados sobre a origem da Aracruz Celulose, estes se encontram
disponíveis no site www.aracruz.com.br. Tal empresa foi fundada em abril de 1972 e
Suas operações florestais alcançam os Estados do Espírito Santo,
Bahia, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, com mais de 286 mil
hectares de plantios renováveis de eucalipto, [...] O controle acionário
da Aracruz é exercido pelos grupos Safra, Lorentzen e Votorantim
167
José lio Silveira Andrade. Conflito, cooperação e convenções: a dimensão político-institucional
das estratégias sócio-ambientais da Aracruz Celulose S. A. (1990-1999). Tese de doutorado em
administração, Escola de Administração, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2000, p. 85.
168
Maurício Otávio Mendonça Jorge apud José lio Silveira Andrade. Conflito, cooperação e
convenções: a dimensão político-institucional das estratégias sócio-ambientais da Aracruz Celulose
S. A. (1990-1999). Tese de doutorado em administração, Escola de Administração, Universidade
Federal da Bahia, Salvador, 2000, p. 85.
169
Resumo público de certificação da Suzano Bahia Sul Papel e Celulose S.A. unidade de Mucuri, p.
5.
88
(28% do capital votante cada) e pelo Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social - BNDES (12,5%).
170
A respeito da participação do governo brasileiro como agente acionário da
Aracruz Celulose, é preciso que se diga que esta ocorreu já em 1972, quando o
então BNDE estabeleceu uma política generosa “baseada na participação acionária,
financiamento de acionistas e controle direto de vários projetos de papel e
celulose.”
171
Em relação à Aracruz, ao que tudo indica, esta participação foi decisiva:
Em 1972, o projeto industrial da Aracruz Celulose, rejeitado pela
lógica empresarial devido às incertezas quanto à viabilidade técnico-
econômica de produção de celulose de fibra curta de eucalipto,
somente se tornou exeqüível pelo apoio integral do BNDE.
172
Ainda a respeito do crescimento das empresas de eucalipto atrelado às ações
e aos planos governamentais, José Célio Silveira Andrade afirmou que
Grande parte deste crescimento concentrou-se entre 89 e 92,
quando entraram em operação os projetos de duplicação da
capacidade de produção da Aracruz e a partida da Bahia Sul
Celulose. O Estado atuou nessa fase através da edição, em 1987, do
II Programa Nacional de Papel e Celulose. Esse programa setorial
tinha como objetivo duplicar a capacidade instalada do complexo
através da implantação de novas unidades e ampliação das
existentes.
173
De fato, em 1989, registros que indicam o explícito apoio do poder
executivo estadual no processo de implantação de novas unidades da então Bahia
Sul Celulose no Extremo Sul baiano. Refiro-me à publicação feita pelo Jornal A
Tarde em uma matéria intitulada “Fábrica de celulose trará mais ICMS para o
Estado”, na qual o então governador do Estado da Bahia, Nilo Coelho, ao entregar a
licença do Centro de Recursos Ambientais (CRA), exigência para que ocorresse o
início das obras da fábrica de celulose da Bahia Sul,
174
destacou a importância do
empreendimento em razão de associá-lo à geração de empregos e, quando
efetivamente implantado, a uma grande fonte de ICMS para o Estado. Na
170
http://www.aracruz.com.br/show_arz.do?act=stcNews&menu=true&id=12&lastRoot=8&lang=1,
Quem somos, último acesso em fevereiro de 2008.
171
José lio Silveira Andrade. Conflito, cooperação e convenções: a dimensão político-institucional
das estratégias sócio-ambientais da Aracruz Celulose S. A. (1990-1999), op. cit., p. 94.
172
Ibidem.
173
José Célio Silveira Andrade. Conflito, cooperação e convenções: a dimensão político-institucional
das estratégias sócio-ambientais da Aracruz Celulose S. A. (1990-1999), op. cit.. p. 85.
174
Jornal A Tarde, 30 de junho de 1989, geral, p. 2, Fábrica de celulose trará mais ICMS para o
Estado, Arquivo do Instituto Geográfico Histórico da Bahia, Salvador – Bahia.
89
oportunidade foi dito que a brica seria instalada na cidade de Mucuri, no Extremo
Sul baiano.
Na solenidade de entrega da licença, em que também estavam presentes o
vice-presidente da Companhia Vale do Rio Doce, Bernardo Spiegel, e Darlan
Dantas, diretor do Bndes,
175
o governador Nilo Coelho, ao dirigir-se ao presidente do
grupo Suzano de Papéis, Leon Feffer, assim se pronunciou:
Entrego a licença a um pioneiro que traz para as novas gerações o
exemplo do trabalho e da dedicação que foi seguido no sul do país e
hoje chega na Bahia, um exemplo de empresários e industrial
brasileiro que os baianos recebem de braços abertos na certeza de
que vêm contribuir para o nosso desenvolvimento e progresso.
176
É certo que também, em um primeiro momento, os baianos de Helvécia
estiveram, como nos disse Nilo Coelho, de “braços abertos” para acolher as
empresas de eucalipto. Deixemos que a senhora Célia Maria Silva Zacarias nos fale
deste tempo:
foi, a gente trabalhando, né? não demorou a gente teve o
comentário que ia chegar a firma da Rio Doce, que é o eucalipi. [...]
veio o comentário logo do pessoal querendo vender as terra.
Meu pai falou assim: não, a minha eu não vendo o, a minha é pra
nós trabalhar, pra nós tirar nossos alimentos daqui. [...] Aí se mandei
pra firma do eucalipi. Chegou de Vitória. Aí começamos a trabalhar.
Mudou a vida de muitos lá, sabe? Era pertinho de nossa roça, aí todo
mundo trabalhava no eucalipi, trabalhava na roça, era essa a vida.
177
Parecia mesmo que estava ocorrendo ali “um abraço”,
178
no sentido de um
encontro de expectativas. Senão vejamos: havia uma empresa que tinha à sua
frente um futuro promissor em razão das potencialidades de mercado; um estado
que enxergava a possibilidade de ganhar duplamente, pois além de participar da
empresa, e portanto de seus dividendos, iria aumentar a sua arrecadação tributária;
e uma comunidade, que por sua vez sentia-se contemplada em suas expectativas e
necessidades com o surgimento de empregos para todos e, além do mais, sem que
isso ‘desmantelasse’ seus antigos jeitos de trabalho, pois “...aí todo mundo
trabalhava no eucalipi, trabalhava na roça, era essa a vida”. Será?
175
Idem.
176
Idem.
177
Entrevista concedida à autora pela sra. Célia Maria Silva Zacarias em 15 mar. 2007.
178
A imagem do abraço foi utilizada para fortalecer o significado da idéia de receptividade por parte
da comunidade de Helvécia à época da implantação da eucaliptocultura.
90
Na parte da entrevista transcrita e apresentada aqui, Célia Zacarias assegura
que a chegada da firma de eucalipto “Mudou a vida de muitos lá...”, para em seguida
indicar que “todo mundo trabalhava no eucalipi”. Quando instigada a falar sobre
essas mudanças, ela nos disse o seguinte:
[...] Até meu pai mermo deu de trabalhar fora. passou, chegou
outra firma de eucalipi, que é aquela que antigamente chamava...
Fronibra,
179
hoje é a Bahia Sul. Essa Fronibra ajudou os habitantes
de Helvécia mais ainda, nossa senhora, como foi bom! Que não
ficava ninguém parado dentro de Helvécia. mexia com a roça,
mexia com a firma. Trabalhava na roça, trabalhava na firma. Eu
mermo era uma. Trabalhava, quando dava na folga assim do sábado,
minha e falava assim: Agora vamos pra roça plantar
mandioca. s se mandava, eu e minhas primas.. foi lutando, foi
lutando até que não passava mais dificuldade, que passava muita
dificuldade... depois dessas firma cada um tinha seu lugarzinho de
ganhar seu pão, né? E graças a Deus.
180
A partir dessa narração, é quase possível ver a chegada das firmas
181
de
eucalipto ao coração da gente de Helvécia. Elas teriam chegado com possibilidades
de emprego e renda para a comunidade, que após a implantação das mesmas
passou a viver um período de melhorias, idéia essa traduzida na seguinte
construção: “Aí foi lutando, foi lutando até que não passava mais dificuldade, que
passava muita dificuldade... depois dessas firma cada um tinha seu lugarzinho de
ganhar seu pão.” Tal narração foi por mim interpretada como sendo uma memória
de um tempo de certezas, de tranqüilidade, em que o novo, a eucaliptocultura,
chegou e foi sentida como uma atividade que abria possibilidades de atuação para
os moradores daquele lugar. Isso teria acontecido de tal forma que, não obstante a
incorporação desse novo afazer, as atividades laborais precedentes foram
preservadas através da incorporação, pelos trabalhadores dos “eucalipi”, de
jornadas de trabalho nos dias de folga das “firma” em seus espaços de prodão
anteriores. Assim, “Trabalhava na roça, trabalhava na firma. Eu mermo era uma.
Trabalhava, quando dava na folga assim do sábado,... minha mãe falava assim:
Agora vamos lá pra roça plantar mandioca”.
Nesta situação, observa-se um ajuste no que se refere à distribuição do
tempo. O contrato com a empresa de eucalipto passou a regular mais amplamente o
179
A entrevistada refere-se à Flonibra.
180
Entrevista concedida à autora pela sra. Célia Maria Silva Zacarias em 15 mar. 2007.
181
Na fala da entrevistada faz-se referência às firmas Rio Doce e Flonibra como se elas não tivessem
ligação, entretanto como foi explicado no corpo do texto a Flonibra pertencia ao grupo do Vale do
Rio Doce.
91
cotidiano daquelas pessoas. Elas não mais podiam decidir suas rotinas levando
em consideração somente elementos e as correspondentes exigências do tempo
das tarefas domésticas, tal qual conceitua Thompson (Tempo e disciplina do
trabalho), como mencionado no primeiro capítulo. Elas, agora, estavam diante de
outra temporalidade, regida pelo relógio, na qual suas atividades anteriores estavam
sujeitas aos intervalos de folga definidos por este. Essa nova configuração insinua,
senão uma perda de controle do tempo por esses trabalhadores, posto que também
o tempo da natureza lhes impunha normas, ao menos uma necessidade de
adequação destes trabalhadores ao tempo de trabalho organizado pelas firmas, sem
que houvesse, por parte destas, necessariamente, algum tipo de respeito ao tempo
da natureza ao qual aqueles trabalhadores estavam acostumados. Esta situação
acabava repercutindo, de alguma forma, sobre a autonomia destes nas suas
organizações de sociabilidade diárias, ligadas, por exemplo, aos costumes
associados aos horários de dormir, levantar, alimentar-se.
Desta maneira, aquele quadro que a princípio sugeria harmonia, “Trabalhava
na roça, trabalhava na firma”, com integração entre mudanças e permanências, ao
ser olhado em suas nuances nos convida a ver alguns elementos que possivelmente
contribuíram para gerar dúvidas, incertezas.
O que trago aqui como questionamento é: será que o procedimento descrito
por Célia pôde ser adotado pela maioria dos pequenos proprietários ou posseiros de
terra? Como isso foi possível se, como informou
182
o coronel Dalmo Leme Pragana,
presidente da Flonibra, havia a necessidade de aquisição por parte da empresa de
uma grande parcela de terra para o plantio do eucalipto?
Quando a entrevistada fez menção à questão da posse da terra, ela nos
deixou uma pista ao dizer que “Aí veio o comentário logo do pessoal querendo
vender as terra. Meu pai falou assim: não, a minha eu não vendo não, a minha é pra
nós trabalhar [...]”. Tal argumento me levou a deduzir que ao tecer sua memória e
afirmar que as pessoas continuavam trabalhando na roça e nas firmas, “Até meu pai
mermo deu de trabalhar fora”,
183
ela se referia não a sua realidade familiar, visto
que tal afirmação indica que além do seu pai havia um movimento de outras
pessoas daquela comunidade em direção ao trabalho nas firmas. Ao reelaborar sua
182
Em entrevista concedida ao jornal A Tarde em 26 de fevereiro de 1976, em matéria intitulada:
Produção de celulose vai ter um bilhão de dólares. Arquivo do jornal A Tarde, Salvador – Bahia.
183
Deduzi que “trabalhar fora” referia-se ao trabalho na firma de eucalipto, pois a entrevistada
anteriormente estava falando exatamente sobre a chegada da empresa na comunidade.
92
memória, a entrevistada manifesta valores e procedimentos associados à sua
coletividade.
Entretanto, outro dado que a entrevistada sugere consiste no fato de que
uma grande quantidade de pessoas, quando da chegada das firmas na região,
passou a pensar em vender suas terras, e muitas delas, de fato, venderam-nas para
as empresas de eucalipto. Isso significa dizer que para essas pessoas a rotina do
trabalho foi alterada de modo mais substancial, posto que deixaram de ter a posse
da terra, com todas as implicações daí derivadas. É provável que, desta maneira,
para tais pessoas a permanência no distrito estivesse, agora, atrelada às
possibilidades de ocupação nas empresas de eucalipto.
Se levarmos em consideração, com foi indicado anteriormente, que a terra
em Helvécia sofrera desvalorização em razão da construção da BR 101, podemos
entender que a chegada de empresas ávidas por terra significou a possibilidade de
negócios vantajosos para muitos dos pequenos proprietários e posseiros daquele
distrito, ainda mais se no processo de negociação das terras estivesse implícito que
os antigos proprietários e seus familiares teriam emprego nas firmas. Em síntese, os
moradores de Helvécia conseguiriam a um tempo aferir ganhos com a
comercialização de áreas rurais, à época desvalorizadas, e garantir o emprego nas
“firmas” de eucalipto.
Teria havido, neste momento, por parte de integrantes da comunidade, a
expectativa de que ali estaria se iniciando um novo período de progresso e
conquistas para o distrito de Helvécia.
Muitos acreditaram, em razão de suas necessidades, das propagandas
midiáticas e dos discursos dos políticos locais e atores sociais que dispunham de
credibilidade junto ao segmento mais afetado pelo empreendimento, isto é, os
pequenos camponeses, que as empresas responsáveis pelo plantio do eucalipto
iriam gerar empregos e fazer uso da mão-de-obra da localidade, dando,
principalmente aos jovens, oportunidades de colocação no mercado de trabalho e
ascensão social. Este tempo foi assim apresentado por Roseli Ricardo Constantino:
Faço parte da AQH Associação Quilombola de Helvécia —, uma
comunidade que foi completamente destruída pela monocultura do
eucalipto. Como os colegas disseram, não somos contra o
progresso. Quando as empresas chegaram, houve euforia. Todos
93
quiseram a vinda das empresas, porque esperávamos que elas
trouxessem benefícios para a nossa comunidade.
184
Podemos observar, a partir desta fala, que houve uma ampla expectativa por
parte da comunidade em relação à vinda das empresas de eucalipto, mesmo sendo
presumível que, diferentemente daquilo afirmado pela Roseli, nem todos tenham
aderido à vinda das empresas.
Esclareço que, quando se deu a chegada das empresas de eucalipto em
Helvécia, Roseli era uma criança, pois, em 2005, ao proferir o depoimento citado,
deveria ter aproximadamente trinta anos. Assim é bem possível que sua afirmação
seja resultado de outras memórias que lhes foram apresentadas ao longo da vida.
Como essas merias chegaram até Roseli a partir de diferentes falas, e
levando-se em consideração que as palavras são multimoduladas”
185
e que,
portanto, nelas existem elementos que traduzem outros tempos, é de se esperar
que por mais que Roseli Constantino tenha se esforçado para dar conta da
completude das falas a que teve acesso sobre o tempo da implantação da
eucaliptocultura em Helvécia, algo tenha lhe escapado, pois é provável que além de
ter deixado de levar em consideração uma ou outra fala a respeito da implantação
da eucaliptocultura em sua comunidade, o sentido das palavras proferidas àquela
época não necessariamente correspondesse ao sentido das mesmas palavras no
tempo da construção do depoimento proferido pela declarante. Assim, a fala de
Roseli Constantino não conta de elaborar uma assertiva que ofereça uma visão
exata e completa do sentimento de sua comunidade, visto que “Tudo que dizemos
tem um “antes” e um “depois” uma “margem” na qual outras pessoas podem
escrever.
186
No caso em questão, pessoas podem ter dito coisas, naquele tempo de
implantação da eucaliptocultura que traduzissem um sentimento de não euforia e
não aquiescência ao referido projeto, entretanto, à margem de suas falas, outros
textos podem ter sido escritos.
A ênfase que Roseli deu a determinados aspectos deve ser lida como própria
daquele contexto, afinal, ao participar como depoente na Comissão de Meio
Ambiente Sustentável da Câmara dos Deputados, ela tinha, como é regra na
184
Roseli Ricardo Constantino, integrante da Associação Quilombola de Helvécia, pedagoga e
professora daquela comunidade. Depoimento n. 1595/05 de 18/10/2005, na Comissão de Meio
Ambiente Sustentável da Câmara dos Deputados – DETAQ.
185
Expressão utilizada por Stuart Hall, na obra A identidade cultural na pós-modernidade, para indicar
que o significado das palavras não é fixo.
186
Stuart Hall. A identidade cultural na pós-modernidade. 8. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p. 41.
94
construção dos discursos, um objetivo espefico e construiu sua fala no sentido de
atingi-lo.
Desta forma, quando convidada a representar sua comunidade numa
audiência pública e manifestar-se sobre este tempo da chegada do eucalipto, Roseli
Constantino construiu um discurso em que foi realçada a consonância, ao menos no
primeiro momento, de sua comunidade com o projeto da eucaliptocultura, frisando
que essa vinda foi entendida como sendo portadora de benefícios.
Interpreto esta expectativa como sendo principalmente associada à geração
de empregos. Faço tal leitura partindo do pressuposto de que, com a desativação da
estrada de ferro Bahia e Minas, os trabalhadores o efetivos, em razão da
existência da Lei Provisório,
187
foram dispensados. Quanto aos efetivos, estes,
segundo informações apresentadas pelo senhor Antônio Simões, ou se
aposentaram ou foram enviados para diferentes lugares do Brasil.
[...] Pai trabalhou 47 anos na Bahia e Minas, e assim mesmo não
queria aposentar não, ele não queria sair não. Pai era apaixonado
pela Bahia e Minas. Ele começou como aprendiz aos onze anos de
idade... Ele nasceu em 1896 e trabalhou 47 anos na Bahia e Minas.
Eu devo dizer pra vo[dirigindo-se para a entrevistadora] que eu vi
pai chorar duas vezes na vida. (...) e a segunda vez foi na extinção
da Bahia e Minas, que eu vi pai chorar. Não pai, todos os
ferroviários. Porque, imagina vouma empresa quarenta anos
atrás, uma empresa que tinha quase 2000 mil funcionários. Era uma
grande empresa, né? Então dois mil funcionários... sendo que depois
com a extião da Bahia e Minas esses funcionários foram embora
pra Divinópolis, Belo Horizonte, Lavras, Três Corações, enfim,
distribuiu funcionário pra tudo quanto é lado. Tem funcionário que
tem quarenta anos que nunca mais voltou aqui, até de tristeza.
Muitos funcionários morreram em decorrência disso... Os poucos que
ficaram aqui (funcionários) acho que foram remanejados para um
outro órgão do governo assim, né?... Tem gente que foi até pra perto
do Estado do Rio, então dispersou, cê entendeu?
188
Ainda a respeito do que significou para os trabalhadores daquela estrada de
ferro, a sua desativação, Antônio Simões, um dos integrantes da “família” Bahia e
Minas, ajuda a entender o que aconteceu com as pessoas e lugares que tinham
suas histórias associadas aos trilhos da estrada de ferro:
187
Abordada no item “Tempo da estação Estrada de ferro Bahia e Minas”, do primeiro capítulo, a
partir da narrativa do senhor Amadeu Deolindo.
188
Entrevista concedida à autora pelo sr. Antônio Simões em 23 maio 2008.
95
Isso foi assim uma das piores coisas que acho que aconteceu em
termos de economia,... quanta cidade pro lado da Bahia que morreu
em decorrência disso. Cidade que acabou.
189
Se, como vaticinou o senhor Antônio Simões, a cidade de Helvécia não
acabou, é possível afirmar que a produção agrícola, voltada para atender ao
comércio dinamizado pelos trilhos ao longo dos lugares existentes nos 587 km
190
da
ferrovia, foi abalada e com ela também as formas de organização sociocultural
daquela comunidade. A produção agrícola para o comércio local, e a renda
decorrente desta, também foi afetada em razão da construção da BR 101, que
deslocou o eixo comercial de Helvécia para outros lugares, como, por exemplo,
Posto da Mata e Teixeira de Freitas.
Muitos dos donos de terra em Helvécia, ao venderem suas propriedades e
posses para as empresas de eucalipto ou para seus intermediários,
191
passaram a
contar com a possibilidade de virem a se tornar funcionários das “firmas”, passando
a ter salários, para que pudessem prover seu sustento e expectativas.
Porém, com o passar dos anos, as fraturas entre o prometido, o esperado e o
realizado começaram a se fazer visíveis:
[...] pensou que não chegou a firma. Foi comprando a troco de nada,
e o pessoal, eles falavam muitas vezes que pudesse vender que ia
ser bom, comprando, né? O pessoal, que ia ser bom para as
pessoas, que ia ter muito trabalho. No início empregou muita gente,
até eu trabalhei na colheita, eu e meu esposo trabalhamos. O melhor
salário daquela época, vinte e sete anos atrás, trinta, era da
Fanibra [Flonibra]. E quando pensou que não, foi trazendo as
máquinas foi dispensando o pessoal, e aí? Tem máquina que
enquanto mil pessoas faz o serviço de um dia, a máquina faz
sozinha, com um homem manobrando ela. E foi desempregando
todo mundo [...].
192
Faustina Zacarias nos traz, a partir da construção “pensou que o chegou a
firma [...] empregou muita gente [...] pensou que não, foi trazendo as máquinas [...] E
foi desempregando todo mundo [...]”, a sua leitura de diferentes tempos históricos e
de seu significado para os moradores de Helvécia. É também possível interpretar
189
Entrevista concedida à autora pelo sr. Antônio Simões em 23 maio 2008.
190
Enciclopédia dos municípios brasileiros. Planejada e orientada por Jurandyr Pires Ferreira,
presidente do IBGE, supervisor da edição Dyrno Pires Ferreira, 2 de julho de 1958, Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística, Rio de Janeiro, XX volume, p.140. Acervo Cedic Centro de
Documentação e Informação Cultural sobre a Bahia, Salvador, Bahia.
191
O processo de venda das terras será abordado no próximo item deste capítulo.
192
Entrevista concedida à autora pela sra. Faustina Zacarias Carvalho em 14 ago. 2007.
96
uma idéia de descontrole por parte daquela que fala sobre o processo de introdução
da novidade, uma idéia de aceleração desenfreada na implantação da firma:
enquanto ela pensa, a firma chega. Essa construção uma indicação de distância
entre o tempo da firma e o da comunidade. A firma ainda bem nem chegou e
empregou, trouxe as máquinas e desempregou. Tem-se a idéia de
compressão do tempo na pós-modernidade de que fala David Harvey.
193
A fala de Faustina Zacarias também nos deixa entrever que a euforia e
certezas do primeiro tempo memorado deram lugar a dúvidas e incertezas à medida
que as pessoas venderam suas terras, “a troco de nada”, o que indica que o dinheiro
adquirido com a venda das terras, diferentemente daquilo que possa ter sido
imaginado à época, não foi nenhuma fortuna e foi corroído ao ser usado para
atender aos apelos consumistas de compra de uma casa, de utensílios dosticos e
coisas do gênero.
Tamm os empregos gerados não atenderam às expectativas,
intencionalmente alimentadas pelos defensores das empresas ao afirmarem, como
foi dito, que “Não haveria população suficiente na região para ocupar as vagas de
emprego que seriam geradas”.
194
Diante desta situação, a comunidade viu-se obrigada a deslocar-se de seu
lugar em busca de alternativas de emprego e sobrevivência. Esses deslocamentos
ocorrem tanto para destinos próximos do distrito, como a cidade de Nova Viçosa e
Teixeira de Freitas, como para centros mais distantes, entre os quais Vitória,
Salvador, São Paulo e Belo Horizonte.
O aumento destes deslocamentos nos últimos anos indica entre outros
aspectos que, além de “sobrar gente”
195
no local e faltar vagas, o “progresso”, aqui
entendido com o sentido que as pessoas lhes davam e que estava associado à
melhoria da qualidade de vida, geração de empregos e maiores ganhos salariais,
não se realizou a partir deste desenho, ao contrário, fez parte dele a expulsão da
gente que sempre viveu naquele lugar.
193
David Harvey. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. 15.
ed. São Paulo: Loyola, 2006.
194
Fala proferida pelo presidente da Flonibra, Coronel Dalmo Leme Pragana, em reportagem do
jornal A Tarde, Produção de celulose vai ter um bilhão de dólares, 26 de fevereiro de 1976. Arquivo
do jornal A Tarde, Salvador, Bahia.
195
Faço uso desta expressão em contraponto à afirmação feita por Pragana no sentido de que não
haveria população suficiente na região para ocupar as vagas de emprego que seriam geradas.
97
A respeito desses deslocamentos, o depoimento de Roseli Constantino, na
Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, nos indica a sua
leitura e interpretação da atividade da eucaliptocultura no ano de 2005.
Em Vitória, encontrei mais de 10 pessoas da minha comunidade, em
função deste êxodo: as pessoas têm saído de sua comunidade para
morar nas periferias dos grandes centros. Se há realmente uma
melhora, onde ela está? Por que todos os anos, nas festas
tradicionais da comunidade, recebemos tantos moradores de
Helvécia, do Município Nova Viçosa? Se como os expositores
mostraram no quadro, é realmente bom, não era para tantos
moradores do município de Nova Viçosa estarem morando em São
Paulo, Salvador e em outros Estados do País.
196
Este questionamento, “Se realmente uma melhora, onde ela está?”, nos
faz pensar que aquilo que foi prometido pelas firmas não atendeu ao que foi
esperado pela comunidade. Foi diante desta realidade que os habitantes de
Helvécia agiram. Alguns, como afirmou Roseli Constantino, saíram de Helvécia e
foram construir suas vidas em outros lugares. Outros ficaram e tiveram de se
organizar para continuar a viver naquele distrito. Estes habitantes, em geral, não
eram mais proprietários ou posseiros de terra e também não eram funcionários das
firmas, era preciso, pois (re)inventar-se, ocupar novas posições, novos espaços nas
relações sociais.
Por outro lado, é importante problematizar a fala da senhora Roseli
Constantino. Como afirma Ely Souza Estrela
197
os deslocamentos
198
das pessoas de
um lugar para outro também estão associados a projetos de vida, a escolhas; assim,
o ir para um novo lugar dá-se, por vezes, com o intuito de adquirir recursos, inclusive
para manutenção da vida camponesa. Também a busca de novas experiências,
principalmente para os jovens, na ânsia de “conhecer o mundo”, incrementa os
deslocamentos.
Reduzir o processo de deslocamento dos camponeses de Helvécia como se
fora uma espécie de conseqüência da eucaliptocultura traduz uma explicação
simplista da realidade. Este cultivo, contribuiu para o incremento dos processos de
196
Roseli Ricardo Constantino, integrante da Associação Quilombola de Helvécia, pedagoga e
professora daquela comunidade. Depoimento n. 1595/05 de 18/10/2005, na Comissão de Meio
Ambiente Sustentável da Câmara dos Deputados – Detaq.
197
Ely Souza Estrela. Os sampauleiros : cotidiano e representações. São Paulo: Humanitas/
FFLCH/USP/Fapesp/EDUC, 2003.
198
A opção pelo uso da expressão “deslocamento” está relacionada ao fato de este termo, segundo
Ely Souza Estrela, estar associado à idéia do constante ir e vir das pessoas.
98
deslocamentos, mas em última instância não foi seu definidor. As pessoas não
atuam na construção de suas histórias apenas reagindo, elas agem, tomam
iniciativas com o objetivo de atenderem a seus próprios anseios.
A respeito deste questionamento, nos contatos que estabeleci, através de
telefonemas e e-mail com a Suzano Papel e Celulose, obtive um artigo intitulado
“Estudo da sustentabilidade regional da produção industrial de eucalipto no Estado
da Bahia”. No caso deste estudo, os autores, após apresentarem uma série de
conclusões feitas por pesquisadores da universidade de São Paulo e da Federal de
Viçosa, afirmam que o eucalipto não seca nem empobrece o solo, minimizando,
assim, os problemas ambientais muitos vezes atribuídos a esta monocultura. Os
autores desenvolvem o artigo dizendo, em linhas gerais, que os problemas com o
eucalipto são inerentes a toda monocultura e que o maior desafio da eucaliptocultura
na atualidade se encontra nas questões políticas e sociais.
199
Nas conclusões que apresentam, afirmam, a partir de dados
macroeconômicos, que no Estado da Bahia a cultura do eucalipto não é nociva, ao
contrário, “[...] as cidades estão conseguindo melhoras com a presença dessa
espécie vegetal”.
200
Entretanto, seus autores deixam uma pista, algo que tenciona a
conclusão apresentada:
[...] Como se analisou indicadores macroeconômicos, pode-se estar
encobrindo problemas de ordem microeconômica, tais como o êxodo
gerado pela diminuição de empregos, que se espera que toda
monocultura necessite de um número menor de trabalhadores no
processo produtivo e do aumento dos custos de vida da população
em geral, pois estes devem consumir produtos de outras regiões em
que pese os custos de logística.
201
Estes problemas de ordem microeconômica, que aparecem na citação
anterior como uma obviedade de toda monocultura, pelo visto o foram
apresentados à comunidade de Helvécia quando da chegada das “firmas” àquele
distrito; ao contrário, pelo exposto, tem-se a impressão de que disseminou-se a idéia
daquele tempo, o da eucaliptocultura, como sendo um tempo de oportunidades, de
199
Jorge Emanuel Reis Cajazeiras, José Carlos Barbieri e Dirceu da Silva. Estudo da sustentabilidade
regional da produção industrial de eucalipto no Estado da Bahia, p. 7 (sem ano, sem editora, enviado
para mim por e-mail da Suzano).
200
Idem, p. 14.
201
Idem, p. 14.
99
geração de empregos e possibilidades de ascensão social para os integrantes da
comunidade de Helvécia, principalmente para aqueles que concordassem em
vender suas terras.
2.1 “PORQUE EU ME SENTI COMPRADA...”
A questão da propriedade e posse da terra esteve sempre no cerne das
relações entre a comunidade de Helvécia e os representantes das empresas de
eucalipto. Esta afirmativa se alicerça na importância que o contato com a terra
adquiria na organização das vidas das pessoas que moravam no distrito, e tinham,
na construção do seu cotidiano, vínculos com o labor na roça, não a partir do
plantio de produtos voltados para sua subsistência, como também em virtude dos
laços de sociabilidade, da relação com o tempo e o espaço na construção de
práticas culturais e seu respectivo imaginário, conforme apresentado no primeiro
capítulo.
Por outro lado, a terra era de fundamental importância para que os projetos
da eucaliptocultura se desenvolvessem. Para as empresas silvicultoras era
necessário que grandes extensões de terras contíguas fossem transformadas em
áreas exclusivas para o plantio de eucalipto.
Estas diferentes maneiras de lidar com a terra deixavam ver a existência de
dois diferentes desenhos daquilo que se planejava realizar no distrito de Helvécia.
Mas tanto um quanto outro só poderiam ser efetivados a partir do uso da terra.
A terra em Helvécia nos anos de 1970 e 1980 havia sido desvalorizada, em
razão da conjunção entre a desativação da estrada de ferro Bahia e Minas e a
posterior abertura da BR 101. Tais fatores contribuíram para o deslocamento do eixo
econômico daquela microrregião, como nos explicou o senhor Manoel Peixoto:
Então foi nesse período... que o comércio ficou fraco, muito fraco,
depois desse período que Teixeira começou a crescer com a BR
101, Posto da Mata também, então eles foram desenvolvendo e aqui
foi caindo, foi caindo e ficou mesmo fracassadíssimo mesmo. Então
a terra sem valor, depois que passamos bastante, bem no fim de
oitenta a principio de noventa começou a falar em, não sei se foi a
Aracruz, acho que foi a Aracruz primeiro, essas empresas aí. A Bahia
Sul que hoje é Suzano, Suzano e Aracruz. Começaram a ter noticia
que eles iam investir aqui na região. Então alguns fazendeiros de lá
100
da região de Aracruz
202
, lá do Espírito Santo, que já havia lá (o
agronegócio do eucalipto) estava implantado lá, começaram a vir
para , começaram vir e comprar terra e comprava terra
baratíssimo, né?
203
Este relato diz da existência de uma situação que pode ser apresentada em
diferentes momentos. Em primeiro lugar, os moradores de Helvécia que labutavam
com a terra tinham experienciado perdas significativas no que diz respeito ao seu
modus vivendi. Tais perdas se acumularam em um período relativamente longo, indo
desde o momento da desativação da estrada de ferro Bahia e Minas, em 1966, se
acentuando com a construção da BR 101, em 1972, e persistindo pelos anos
seguintes, pois, como disse o entrevistado, “Teixeira começou a crescer com a BR
101, Posto da Mata também, então eles foram desenvolvendo e aqui foi caindo, foi
caindo e ficou mesmo fracassadíssimo mesmo”.
Por seu turno, fazendeiros da região de Aracruz (ES), informados da
necessidade de amplas glebas para a implantação da eucaliptocultura, passaram a
comprar terras em Helvécia objetivando promover a especulação, “começaram a vir
para cá, começaram vir e comprar terra”.
A venda de terra em Helvécia não foi feita somente para fazendeiros vindos
de outros lugares, também representantes diretos das empresas responsáveis pelo
agronegócio do eucalipto compraram terras. Isto ocorreu em um tempo em que os
moradores de Helvécia sabiam, porque experimentavam uma depressão econômica,
que suas terras estavam desvalorizadas no mercado. Deste modo, acredito que esta
situação também tenha contribuído para o desfecho que se deu com o processo de
venda das terras, para aqueles que não eram daquela comunidade, por um valor
“baratíssimo, né?”
A observação, feita anteriormente, tem o intuito de alertar para que não se
faça uma leitura das atitudes dos moradores de Helvécia que efetivaram a venda de
suas terras por valores, hoje entendidos como insignificantes, como se aqueles
tivessem agido de maneira equivocada. Pode ter acontecido que na época da
transação comercial das terras, os vendedores tenham, a partir dos dados de que
dispunham e das pressões que sofriam, analisado aquela atitude como a mais
acertada e propícia dentro do contexto, uma vez que surgiam oportunidades de se
realizar negócio com áreas até então pouco cobiçadas.
202
O entrevistado referia-se à cidade de Aracruz – Espírito Santo.
203
Entrevista concedida à autora pelo sr. Manoel Peixoto em 14 ago. 2007.
101
Outra entrevistada, ao se referir ao processo de venda das terras no distrito,
deixou ver tamm a atuação de atravessadores que, diferente da situação
apresentada pelo senhor Manoel Peixoto, moravam na comunidade, conheciam as
pessoas daquele local, sabiam da situação de crise que os mesmos experienciavam,
tinham, pois, de alguma forma laços de sociabilidade com os prováveis vendedores
das terras, e viram na associação às empresas de eucalipto a possibilidade de obter
lucros: “[...] a gente não sabia que ele era um cara trançado. Já, vamos supor que
trabalhava para a firma procurando e sempre que dizer que tirando um pouquinho
para o lado dele, né?
204
Os registros da existência da figura do intermediário, fosse ele integrante da
comunidade ou não, apareceu também na fala do coronel Dalmo Pragana ao se
referir ainda aos primórdios da implantação da eucaliptocultura na região do Extremo
Sul baiano. Naquela oportunidade, ele se apressou em isentar a empresa, na época
denominada Flonibra, de qualquer tipo de vínculo ou responsabilidade com este
personagem, chegando mesmo a sugerir que os proprietários de terra, para evitar a
ação dos ditos intermediários, procurassem o escritório da empresa para efetuar,
diretamente, a venda.
205
Esses dados sugerem a necessidade de uma análise de outros elementos
que compuseram o cenário daquelas transações comerciais, para que se possa
entender o significado das vendas de glebas pelos integrantes da comunidade de
Helvécia às empresas de eucalipto ou seus intermediários. Posto que, pelo
apresentado até o momento, não pareça que tenha ocorrido uma simples operação
de compra e venda alicerçada na real autonomia dos indivíduos que atuaram nos
anos finais da década de 1980.
O êxito daquelas empresas estava intrinsecamente relacionado à
necessidade de terras para o plantio. A respeito desta necessidade, desde os
primórdios da eucaliptocultura no Brasil, o governo já havia sinalizado claramente
qual seria sua postura, com o intuito de garantir “grandes áreas de terras contínuas
que pudessem ser adquiridas para a implantação de distritos florestais”.
206
Segundo
informação apresentada por Andrade, no I Plano Nacional de Papel e Celulose
(PNPC) esta questão foi abordada da seguinte maneira: “(...) a etapa de obtenção
204
Entrevista concedida à autora pela sra. Faustina Zacarias Carvalho em 14 ago. 2007.
205
Jornal A Tarde, 26 de fevereiro de 1976. Arquivo do jornal A Tarde, Salvador, Bahia.
206
José lio Silveira Andrade. Conflito, cooperação e convenções: a dimensão político-institucional
das estratégias sócio-ambientais da Aracruz Celulose S. A. (1990-1999), op. cit., p. 92-93.
102
de terras é tão essencial ao êxito do projeto que o Governo deverá concentrar nela
todos os esforços, utilizando meios objetivos e realistas, inclusive
desapropriação...”
207
Este não foi o caso em Helvécia, uma vez que não haja registro de
desapropriação de terra. Entretanto, outros mecanismos foram utilizados para
aligeirar o processo de venda das glebas de maneira a garantir às empresas
grandes áreas de terras contínuas.
Ora, se levarmos em consideração que muitos dos homens e mulheres de
Helvécia tinham sobre seu domínio pequenas e médias áreas, isso significa dizer
que, para que se desse, por parte das empresas de eucalipto, a obtenção de terras
contínuas, foi necessário que o processo de venda fosse realizado não por um, ou
outro camponês, mas sim pela sua coletividade. Assim, os mecanismos utilizados
para convencer diferentes indivíduos constituíam um repertório variado, que oscilava
desde propostas aparentemente generosas, para aqueles poucos camponeses que
possuíam as escrituras das terras, até a divulgação incisiva dos digos legais do
Brasil que associam a garantia da propriedade das terras à aquisição de titulação.
A este respeito, o senhor Manoel Peixoto, dando prosseguimento a sua
narrativa, apresentou o seguinte relato:
Comprava terra quase dado, trocava terra por mercadoria, por
qualquer tipo de mercadoria, chegava aí, ficava aí para dentro,
comprava terra baratíssimo, umas pessoas que tinha dinheiro que
pegava a região aqui, comprou muita terra. Então, é como eu falei, aí
eles compraram terra barato, chegava em pessoas aí, que as terras
aqui eram apenas terras de herdeiros, tudo mais, então naquele
tempo dificilmente uma terra aqui tinha escrituras, essas coisas...
208
nesta narrativa uma clara associação entre a esporádica existência do
porte de escrituras das terras, pelos camponeses de Helvécia, e o fato de elas terem
sido vendidas por preços baixos ou mesmo terem sido trocadas por mercadoria, “por
qualquer tipo de mercadoria”. Por sua vez, a senhora Regina Constantino, ao falar
sobre essas transações de troca de terras por mercadorias diversas, disse do valor
207
Maurício Otávio Mendonça Jorge apud José lio Silveira Andrade. Conflito, cooperação e
convenções: a dimensão político-institucional das estratégias sócio-ambientais da Aracruz Celulose
S. A. (1990-1999), op. cit., p. 93.
208
Entrevista concedida à autora pelo sr. Manoel Peixoto em 14 ago. 2007.
103
simbólico que alguns objetos passaram a ter para integrantes da comunidade de
Helvécia:
[...] então as pessoas viviam de uma certa forma bem, que pelo
menos uma alimentação boa eles tinham e o que sobrava, meu avô
falava que eles iam vender em Teixeira ou então em Mucuri, no
jegue mesmo. Andava dias e dias vendendo isso, né? Levava o dia
todo achegar em Teixeira e Mucuri para vender as coisas que
eles plantavam, então assim, eram felizes, né? Eram felizes que
faziam o que gostavam de fazer e eram felizes. Aí as pessoas assim,
nessa de levar as coisas para Mucuri e para Teixeira, acho que
começaram a sentir falta, né? Teixeira tem isso e Helvécia o tem,
Mucuri tem isso, Helvécia o tem e essas empresas estavam
lá, estava começando a chegar na região, via uma bicicleta, uma
geladeira e não tinha condições de comprar porque eles plantavam
era para manter a alimentação adequada deles e comprar as
veste, nem estudava direito, fazia até a quarta série, aqui não
tinha escola, era o Mobral..., a filha de um vereador que dava aula
nas casas para as pessoas. As pessoas estudavam naquela época
em Helvécia assim, e as pessoas começaram a sair, viajar um
pouquinho. “Ah! Eu não tenho uma geladeira, eu o tenho uma
bicicleta.” Então quando as empresas chegaram para para
Helvécia muitas terras foram trocadas por geladeira, por bicicletas. O
meu avô, é... um mês atrás eu fui no Rio do Sul, o meu avô me
mostrou, “Essa terra toda era do finado Antônio e trocou por uma
bicicleta”. Uma bicicleta ele trocou a terra, como ele tinha muita,
achava que tinha muita, veio o pessoal da Aracruz e hoje as terras é
da Aracruz, ele vendeu para um outro senhor, né? Que trocou por
uma bicicleta com ele, depois de mão em mão estava na mão das
empresas.
209
A despeito daquilo que podemos pensar a cerca do valor monetário de uma
bicicleta ou de uma geladeira, ao que parece, segundo o relato da senhora Regina,
estes objetos foram identificados por alguns dos camponeses de Helvécia como
sendo algo valioso e desejado, possivelmente em razão dos contatos com o
universo de cidades imaginadas como desenvolvidas e modernas, como Teixeira de
Freitas e Mucuri. Para obtê-los, valia, inclusive, abrir mão de um pedaço de terra,
pois “achava que tinha muita”
210
.
A respeito da falta de escrituras das terras, em 1976, o presidente da
Flonibra ao falar das dificuldades para a implantação do projeto, na região do
Extremo Sul baiano, fez referência à existência de um problema no processo de
compra de terras. Segundo Pragana, esta situação decorria da constante não
legalização das terras por parte de quem queria vender. Com o intuito de resolver
este problema, qual seja o de possibilitar àqueles que tinham glebas de terra não
209
Entrevista concedida à autora pela sra. Regina Constantino em 15 ago. 2007.
210
Entrevista concedida à autora pela sra. Regina Constantino em 15 ago 2007.
104
registradas a condição de vendê-las, a Flonibra se dispusera a assumir o ônus da
titulação e pagar o mesmo preço, tanto ao proprietário legalizado quanto ao
posseiro.
211
Possivelmente, tal oferta foi utilizada como argumento para fazer com
que os proprietários de áreas consideradas não legalizadas fossem convencidos a
negociar suas glebas com a Flonibra, empresa capaz de assumir os custos deste
tipo de transação comercial.
Esta situação se fazia realidade em Helvécia quando da chegada da Aracruz
e da Bahia Sul, atual Suzano, “que as terras aqui eram apenas terras de herdeiros,
tudo mais, então naquele tempo dificilmente uma terra aqui tinha escrituras, essas
coisas...” Ocorre que eram nessas terras de herdeiros, sem escrituras, que as
pessoas de Helvécia organizavam suas vidas, e diferente daquilo que Pragana
apresentava como solução para o problema, talvez, vender as terras pudesse, para
aqueles camponeses, vir a se constituir, no futuro próximo, um novo problema.
Enquanto as terras do distrito de Helvécia o ocupavam uma posição
estratégica para o agronegócio, a organização das pessoas nas relações com suas
glebas se alicerçava, supõe-se, desde a abolição da escravatura, no direito pautado
no costume, “que as terras aqui eram apenas terras de herdeiros”.
Entretanto, tal configuração foi alterada a partir do momento em que o
agronegócio do eucalipto passou a exigir, para a sua implantação naquele distrito,
terras, muitas terras. Tal situação engendrou um aparato de ões desenvolvidas
com o intuito de garantir às empresas acesso àquelas terras.
No primeiro item desenvolvido, neste capítulo, vimos que houve uma espécie
de consenso entre os poderes nacionais, regionais e locais instituídos, no sentido de
atender aos interesses dos grupos que representavam o agronegócio do eucalipto.
Este tipo de atitude se concretizava com a aplicação do modelo de políticas e
práticas de organização do território nacional pautadas nos interesses e
necessidades da grande produção, no sentido de atender aos anseios do mercado
externo. Contudo, ao que parece, a organização de comunidades e famílias
camponesas que anteriormente lavravam a própria terra ou trabalhavam em
propriedades alheias no cultivo de pequenas lavouras foi desconsiderada e desta
maneira violentada por aquele modelo. Não se trata aqui de mitificar o passado e a
211
Jornal A Tarde, Produção de celulose vai ter um bilhão de dólares, 26 de fevereiro de 1976.
Arquivo do jornal A Tarde, Salvador, Bahia.
105
vida no campo, pois como nos alerta Raymond Williams,
212
é preciso lembrar
sempre que os ”bons tempos de antigamente” quando estudados tamm
apresentam suas dificuldades e relações de exploração. Cabe também recordar
Pierre Bourdieu quando ele alerta que “a força do costume jamais anula
completamente o arbitrário da força”.
213
Diferente daquilo que se poderia supor, em razão da sabida incidência de
conflitos violentos na luta pela propriedade da terra no Brasil, Maria Aparecida de
Moraes Silva
214
chama a atenção para o fato de que este processo, descrito no
parágrafo anterior, também ocorria através daquilo que ela denominou violência
escondida e legal, em que o Estado, detentor do monopólio da elaboração e
promulgação das leis, as fazia em defesa de projetos de modernização que
implicavam a expropriação de terras e destruição de parte do campesinato brasileiro.
No instante em que os posseiros do distrito de Helvécia começaram a
perceber que as terras estavam se valorizando, deram-se conta também de que não
possuíam os registros das mesmas. Como afirmou o senhor Manoel Peixoto, muitas
delas “fruto de heranças”. Regulamentar tais posses implicava gastos e para isso
era necessário ter recursos. Ora, muitos desses posseiros se viram em uma situação
na qual, não tendo dinheiro para regulamentar suas posses, sentiam-se ameaçados
de perder as terras, pois, na Lei, a terra tinha de ser documentada.
A partir das falas dos moradores de Helvécia, no período em questão,
percebe-se que ali estava se constituindo uma situação na qual O medo de ficar
sem as terras fez com que os camponeses as “vendessem”, a qualquer preço
[...]“,
215
na verdade, “baratíssimo, como disse o senhor Manoel Peixoto.
Esta configuração legal não foi feita de forma a deixar ver sua parcialidade. O
fato é que tal legislação acabava por atender e legitimar os interesses dominantes,
posto que para as empresas e fazendeiros o custo com a regulamentação da
propriedade era viável. Ao contrário, as leis davam a entender que eram imparciais
e, por isso mesmo, dignas de serem proclamadas legítimas. Sua eficácia, no sentido
de atender aos interesses dominantes, por vezes residia, paradoxalmente, na sua
capacidade de parecer não defendê-los. Neste sentido, Thompson nos alerta:
212
Raymond Williams. O campo e a cidade – na história e na literatura, op. cit.
213
Pierre Bourdieu. Meditações Pascalinas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001, p. 115.
214
Maria Aparecida de Moraes Silva. Errantes do fim do século. São Paulo: Fundação Editora da
UNESP, 1999.
215
Idem, p. 46.
106
Se a lei é manifestamente parcial e injusta, não vai mascarar nada,
legitimar nada, contribuir em nada para a hegemonia de classe
alguma. A condição prévia essencial para a eficácia da lei, em sua
função ideológica, é a de que mostre uma independência frente a
manipulações flagrantes e pareça ser justa.
216
Dentro desta lógica da legitimidade, os defensores da eucaliptocultura
afirmaram que o processo de aquisição das terras no distrito de Helvécia pelas
empresas de eucalipto se deu dentro das normas do mercado capitalista, expressas
nas leis de apropriação de terras no Brasil, através das quais os interessados na
compra das pequenas propriedades fizeram ofertas e seus donos aceitaram vendê-
las.
Os aspectos tratados anteriormente podem ser associados a partir de um
olhar capaz de evidenciar distâncias implícitas e não tornadas claras entre as partes.
Trata-se de dois pólos em negociação. De um lado estão os habitantes de Helvécia
com todo o seu intricado universo material e simbólico. De outro lado, estão os
interessados nas terras daquela micro-região para o sucesso do agronegócio.
Apesar das paridades formais das duas partes em jogo, quando revelados
seus elementos simbólicos ficam evidentes as desproporções que poderia ser
traduzida pela força do empreendimento econômico sobre a precariedade vigente na
comunidade. Tal desequilíbrio é, facilmente, manifestado enquanto disputa de
natureza simbólica, dotando-se o confronto de propriedades objetivamente válidas e
até legais, porém baseados em uma violência simbólica expressa pela distribuição
desigual dos códigos que, formalmente, permitem o equilíbrio entre as partes, porém
exigem dos participantes um preparo prévio, caso contrário
[...] amplia a imposição de uma fronteira entre os que estão
preparados para entrar no jogo e os que, quando nele se acham
lançados, permanecem de fato excluídos, por não poderem operar a
conversão de todo espaço mental [...] que supõe a entrada neste
espaço social.
217
Ainda mais quando se leva em conta a forma como foram construídos os
acordos ou as trocas econômicas nas quais as partes atuaram como se houvesse
equiparação entre os produtos intercambiados. Prevaleceu então, a crença por parte
216
Edward P. Thompson. Senhores & caçadores: a origem da lei negra. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1987, p. 354.
217
Pierre Bourdieu. O poder simbólico. 4 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001, p.225.
107
daquele que negociava a sua propriedade agrícola sobre a referida justeza da
negociação. Entretanto, as ferramentas acionadas para se chegar as conclusões
quanto ao valor foram aquelas disponíveis pelos referenciais locais, ou seja, a terra
não valia nada e a vida representada por Teixeira de Freitas e Mucuri exigia a posse
de objetos, como por exemplo uma bicicleta, como fator de inclusão no mundo que
estava à margem da BR101.
Percebe-se, nesse caso, o emprego de mecanismos de persuasão por parte
das empresas de eucalipto, a partir dos valores correntes do universo de Helvécia e
com isto se evidencia o uso do poder simbólico, que segundo Bourdieu “só se
exerce com a colaboração dos que lhe estão sujeitos porque contribuem para
construí-lo como tal.”
218
Entretanto,
Essa cumplicidade não é concedida por um ato consciente e
deliberado, ela própria é o efeito de um poder, que se inscreve
duravelmente no corpo dos dominados.
219
Todas as operações anteriormente descritas se constituem em violência
simbólica enquanto modo de dominação que impõe ao outro, comportamentos
regidos por mecanismos de coação dificilmente reveláveis.
Os dados a seguir, a respeito da região do Extremo Sul baiano, apresentados
no resumo público de certificação da Suzano Bahia Sul Papel e Celulose S.A. tratam
da perspectiva dos que compraram aquelas terras.
Com a falta de celulose no mercado e incentivos governamentais,
tais como financiamentos do BNDES e a isenção de ICMS sobre
exportações, a região passou a atrair ainda maiores interesses ao
reflorestamento econômico.
O desenvolvimento dessa atividade propiciou um avanço dos
reflorestamentos em áreas antes utilizadas pela pecuária
(principalmente) e pela agricultura. Ao contrário dos exploradores de
madeiras nobres do período de 50 a meados da década de 70, as
empresas de reflorestamentos adquiriam as terras de que
necessitavam para os seus plantios do eucalipto.
O desgaste das terras pelo modelo de pecuária adotado (extensivo,
baixa lotação, com queimas periódicas e esgotamento das terras), a
baixa produtividade dos cultivos agrícolas, e a falta de políticas
públicas de apoio à agricultura, além dos preços atrativos pagos
pelas empresas reflorestadoras e grandes pecuaristas, promoveram
218
Pierre Bourdieu. Meditações pascalianas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001, p.207.
219
Ibidem.
108
a venda de terras por parte de pequenos e médios produtores e o
êxodo rural
220
(grifo da autora).
Alguns dos elementos explícitos neste documento foram analisados
anteriormente. Eles voltaram a ser aqui apresentados com o intuito de demonstrar o
uso feito pela própria empresa Suzano Bahia Sul Papel e Celulose S.A. do apoio
dado pelo governo para, em certa medida, justificar a razão do seu crescimento em
detrimento de outras atividades na região do Extremo Sul baiano. De certa forma,
ele sintetiza a importância da existência de incentivos governamentais para que esta
região tivesse sido transformada em área de atração para o “reflorestamento
econômico”, maneira esta utilizada, no referido documento, para fazer menção à
plantação do eucalipto. Por outro lado, esta fonte também revela que a empresa
Suzano Bahia Sul Papel e Celulose S.A. adquiriu, a partir do mecanismo de compra,
as terras necessárias para o desenvolvimento de suas atividades.
Nas entrelinhas, as informações foram apresentadas de tal modo a deixar
implícita a idéia de que nas terras compradas pela empresa haveria o predomínio da
pecuária, o que poderia indicar a presença não de camponeses, mas sim de
proprietários de terra de médio e grande porte.
Saliento que tais informações dizem respeito à região do Extremo Sul baiano
como um todo. Ocorre que aqui nesta pesquisa, a discussão refere-se ao distrito de
Helvécia, o que implica a necessidade de cruzamento de fontes para que se possa
fazer uma aproximação daquilo que se desenhara como a realidade daquela
comunidade. Mesmo levando-se em consideração a hipótese de que ali houvesse a
existência de grandes proprietários de terra voltados à atividade da pecuária, esta
não era, como já foi possível perceber pelas entrevistas apresentadas até o presente
momento, a estrutura fundiária predominante naquele lugar.
Resta ainda analisar a informação de que as terras adquiridas pela Suzano
apresentavam uma “baixa produtividade dos cultivos agrícolas, e a falta de políticas
públicas de apoio à agricultura...” Novamente tem-se uma construção de forma
subliminar nesta informação. Refiro-me à idéia que a mesma traz em seu bojo de
que aquelas terras estariam sendo usadas de forma inadequadas e/ou ineficazes.
Além disso, a atividade agrícola estaria fadada ao fracasso, posto que não contasse,
como era o caso do “reflorestamento econômico”, com apoio que, como expresso,
220
Resumo blico de certificação da Suzano Bahia Sul Papel e Celulose S.A., unidade de Mucuri, p.
14 (grifo da autora).
109
recebia “incentivos governamentais, tais como financiamentos do Bndes e a isenção
de ICMS sobre exportações”.
Ora, teria sido então a somatória destes elementos, acrescida dos “preços
atrativos pagos pelas empresas reflorestadoras e grandes pecuaristas” que
“promoveram a venda de terras por parte de pequenos e médios produtores”,
contribuindo para que se engendrassem deslocamentos. Por fim, é revelador o fato
de a empresa reconhecer o movimento provocado por tais aquisições de terra, “o
êxodo rural”. Em outras palavras, não havia espaço para a coexistência dos modelos
agrícolas pautados pela experiência camponesa e pela política da indústria
agroexportadora de papel e celulose.
Partindo-se da premissa que alicerçava este olhar da Suzano Celulose, sobre
a realidade, a terra havia sido transformada em mercadoria. Os indivíduos que
venderam as terras foram contabilizados como fornecedores. Não importando aos
compradores o significado que, para aquelas pessoas, o viver naquelas glebas
adquirira, posto que, para além da “baixa produtividade dos cultivos agrícolas”, lhes
eram preciosas, significativas, como foi visto no item Tempo da fartura Ah, mais
aqui era muito bom” desta dissertação.
Por seu turno, integrantes da comunidade de Helvécia, ao construírem suas
memórias acerca do processo de venda das terras, apresentam um texto que indica
uma leitura diferente desta que consta no resumo blico de certificação da Suzano
Bahia Sul Papel e Celulose S.A.:
Então, é como eu falei, eles compraram terra barato, chegava em
pessoas que as terras aqui eram apenas terras de herdeiros, tudo
mais, então naquele tempo dificilmente uma terra aqui tinha
escrituras, essas coisas, então o cara também ia vender uma terra
para ele o proprietário era, ele dizia ter por exemplo, um exemplo que
eu estou dando, vinte alqueires, vinte alqueires, alqueirinho que nós
falamos aqui, mas ele chegavam para comprar e dizia: o
essa terra beneficiada aqui que você pode vender, são cinco
alqueires o resto não, não é? Não tem cultura, o tem... ninguém
está cultivando nada, não tem beneficio nenhum, então aquilo ali
praticamente eles não pagavam. É, mas media para eles, né? Não
pagava, mais ficava para eles. Então, muita gente que veio de fora,
principalmente uns dois ou três fazendeiros daqui, adquiriram uma
área grande mesmo de três mil alqueires e tudo mais, quatro, desse
jeito, muito barato. E aí é que começou a aparecer o plantio de
eucalipto, né? Então, eles começaram a plantar eucalipto e foram
110
devagarzinho aumentando, todo mundo foi aumentando o plantio de
eucalipto.
221
Alguns dados constituintes desta narrativa de alguma maneira dizem do
processo de compra das terras a partir de mecanismos de pressão. Um deles, a
inexistência da posse de escrituras por parte dos camponeses, foi utilizado como
instrumento de força por parte daqueles que tinham interesse em adquirir a
mercadoria terra. Ao que parece não se tratava de uma simples negociação, mas
sim de uma maneira de apropriação das mesmas a partir de recursos os mais
variados, senão vejamos.
Mesmo que não tenha havido em Helvécia, como foi dito anteriormente,
desapropriação de terras por parte do governo federal, o conhecimento da existência
desta possibilidade muito provavelmente foi insinuado por aqueles que queriam
comprar terras. Somava-se, a esta ameaça velada, o fato de muitos dos pequenos
posseiros se sentirem sem condições de agir em conformidade com o aparato legal,
que dizia respeito à comprovação, por meio de escrituras, da propriedade de suas
terras.
Sob este aspecto, Maria Aparecida de Moraes Silva em seus estudos a
respeito dos projetos de colonização e desenvolvimento rural do Estado de Minas
Gerais, afirma que a passagem de posse para propriedade deveria ocorrer através
da regularização segundo as leis fundiárias, mediante pagamento de taxas, o que na
prática, para muitos dos camponeses posseiros, implicava a inviabilidade de
legitimação de suas terras.
222
Desta maneira, o direito formal, positivo, ao
transformar a terra em mercadoria, agia com o intuito de mascarar o fato de que os
posseiros operavam em uma relação com a terra pautada pelo valor de uso.
Verifica-se processo semelhante ao descrito em Helvécia. Para muitos
daqueles camponeses, a terra era um meio de sobrevivência, e era a partir do
trabalho coletivo, familiar que ela oferecia seus frutos
223
e alimentava aquela
comunidade. Por esta razão, Martins afirma que “[...] uma preocupação com a
221
Entrevista concedida à autora pelo sr. Manoel Peixoto em 14 ago. 2007.
222
Maria Aparecida de Moraes Silva. Errantes do fim do século, op. cit., p. 46.
223
José de Souza Martins. Os camponeses e a política no Brasil As lutas sociais no campo e seu
lugar no processo político. 5. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995.
111
propriedade da terra é, também, necessariamente, preocupação com o principal
instrumento de trabalho que há no campo”.
224
Neste sentido, gostaria de analisar uma narrativa composta por um camponês
que apresentou um novo dado ao descrever como ocorreu o processo de compra
das terras em Helvécia. Refiro-me à informação dada pelo senhor Sérvulo
Constantino Filho, de que muitas pessoas venderam suas terras porque foram
“levadas no papo”. Ele, quando indagado por mim, explicou assim a situação:
Levar no papo é... Que as pessoas tinha a terra, chegava fazendo
conversa bonita, como que pra eles mesmo ali falaram (ao falar
gesticulava apontando com a mão em direção a outras pessoas que
participavam da entrevista), que vinham comprar as terras, mas não
ia tirar eles da terra, que eles iam ficar na mesma terra onde estava,
entendeu?
225
Diante da ameaça de perder as terras, visto que muitas não eram tituladas, a
possibilidade de vendê-las, acreditando nas promessas das empresas de que
poderiam permanecer nelas, pareceu uma boa alternativa.
Tais propostas, ainda segundo o entrevistado, foram feitas a partir de códigos
comuns aos negócios realizados pelos camponeses de Helvécia. Desta forma, esta
combinação não constava em documento escrito, tendo sido empenhada a partir da
palavra dos contratantes. O narrador, senhor Sérvulo, assim nos contou o
desenrolar da história:
que aconteceu. Depois que as empresas passaram a o nas
terras todas, foi empurrando, cada um saindo fora. “Agora vocês
vão desocupar porque de hoje em diante a terra é minha e tal.”
mudou de idéia, né? É a mesma coisa, tem horas que eu vejo uma
proposta comigo de alguma coisa e s leva na confiança, sem
fazer nada, nenhum documento, né? Quando chega depois, fala:
“Ah, não! Não falei nada não, nunca nós foi combinado assim.” Já
passou isso para mim também, então é isso que a gente tem
experiência, que hoje se você não fizer as coisas tudo no papel,
no cartório, não adianta fazer nada de boca que hoje ninguém
cumpre, mas antigamente... Eu mesmo, com algum colega, nós
fazia coisa assim conversando, e era negócio, estava registrado
mesmo, não tinha esse negócio de voltar para trás. Aqui eserrado
não, aqui está tudo certo. Era desse jeito.
226
224
Idem, p. 138.
225
Entrevista concedida à autora pelo sr. Sérvulo Constantino Filho em 15 ago. 2007.
226
Entrevista concedida à autora pelo sr. Sérvulo Constantino Filho em 15 ago. 2007 (grifo da autora).
112
Foi a partir das experiências que aquelas pessoas tinham nos seus acordos e
negócios cotidianos que elas se relacionaram com os estranhos recém-chegados.
Estes traziam consigo novos códigos, novas regras de conduta social,
227
em que
valia o que estava escrito e registrado em cartório.
Essa composição, venda de terras e permanência dos antigos posseiros nas
mesmas era algo impossível de atender a uma das necessidades prementes ao
desenvolvimento do agronegócio no Extremo Sul da Bahia. Refiro-me à necessidade
da separação entre o trabalhador e os meios de produção,
228
condição para a
relação capitalista se constituir plenamente.
Uma das condições primeiras para o estabelecimento da atividade
relacionada à eucaliptocultura, em Helvécia, consistia exatamente em comprar as
terras dos camponeses da região, transformando-os em trabalhadores com
necessidade e possibilidade de vender sua mão-de-obra para as empresas.
Essa transformação espacial contribuiu também para que ocorresse a criação
de novas necessidades para aquela comunidade, estabelecendo-se inclusive uma
dependência entre antigos camponeses e os representantes do capital. Tal fato nos
revela a dependência que se alicerçava na relação social que ora se apresentava,
em que não tendo mais a propriedade da terra e dos instrumentos para realizar seu
labor, restava aos camponeses negociar seu trabalho como possibilidade de troca
por salário.
229
Em Helvécia, os camponeses, ao venderem suas terras, perderam, em
grande medida, sua condição autônoma. Agora, para garantir a sobrevivência,
teriam que vender sua mão-de-obra aos representantes do agronegócio. Como esta
situação foi sentida pelas pessoas daquela comunidade?
Eu sinto aquela saudade, vontade de trabalhar naquela terra, eu vejo
as plantas que eu fazia, como era bonito, vochegava na roça e
você parava assim para olhar. E hoje se eu querer uma mandioca
mansa eu tenho que comprar, então acabou aquela liberdade de eu
lutar na terra pura. Acabou.
230
227
José de Souza Martins. A chegada do estranho. São Paulo: HUCITEC, 1991.
228
José de Souza Martins. Os camponeses e a política no Brasil – As lutas sociais no campo e seu
lugar no processo político, op. cit., p. 158.
229
Idem.
230
Entrevista concedida à autora pela sra. Faustina Zacarias Carvalho em 14 ago. 2007.
113
Além de falar de suas saudades, a entrevistada nos oferece o significado de
ficar sem a terra para ela, que acredito pode ser traduzido como falta de autonomia
e mudança na forma de produzir, de adquirir o alimento. Trabalhar na terra estava
associado à idéia de liberdade.
No decorrer da entrevista, quando perguntada sobre a sensação após a
venda da terra para as empresas de eucalipto e as expectativas em relação aos
benefícios das empresas para a comunidade, Faustina Zacarias relatou:
Não era nada disso que a gente pensava, tipo que agente foi assim,
comprado, hoje eu me sinto, se eu tivesse com a minha terra hoje, eu
não venderia e nem deixava o meu irmão ao lado vender também,
porque eu me senti comprada, não a terra, nós todos e era muita
terra, a chegou ficar organizada nossa terra estava bem
pequena, mas não era pouca não.
231
Quando a entrevistada nos disse que não foi a terra que foi comprada, mas
sim ela própria, talvez estivesse nos dizendo exatamente aquilo que Martins nos
convidou a pensar na obra Os camponeses e a política no Brasil As lutas sociais
no campo e seu lugar no processo político. A liberdade de ser dessa narradora
estava intrinsecamente relacionada ao fato de ela ter o domínio sobre uma gleba, o
que na prática significava que a mesma era capaz de, fazendo uso de sua força de
trabalho, gerar os produtos necessários à sua sobrevivência, à sua vida. Ao passar à
condição de não mais possuir terras, mesmo que isto tenha ocorrido a partir de
transações comerciais de compra e venda legitimadas pelo campo jurídico, Faustina
Zacarias expõe a dor da perda que não se restringe ao bem material, mas sim a
todo um conjunto de práticas associadas à lida com o campo. A narradora, por fim,
reforça sua indignação atribuindo a toda uma coletividade o seu sentimento, uma
vez que agora não lhes resta muitas opções, a não ser vender-se enquanto mão-de-
obra, talvez por isso a enfática afirmação “eu me senti comprada, não a terra, nós
todos”.
Outra possibilidade, considerando o contexto no qual o distrito de Helvécia
está inserido, seria uma releitura de outros tempos. Neste sentido, fiquei me
indagando a respeito do significado que teria para alguém construir uma narrativa
em que afirma ter se sentido comprada? Afinal, essa parece ser uma construção
231
Entrevista concedida à autora pela sra. Faustina Zacarias Carvalho em 14 ago. 2007 (grifo da
autora).
114
paradoxal, ao menos naquilo que tange às possibilidades temporais, posto que
Faustina Zacarias, no momento da entrevista, tivesse somente 53 anos de idade,
não tendo, pois, experimentado o tempo da escravidão. Entretanto, aquele tempo se
fazia presente na memória dos moradores de Helvécia e talvez, por este motivo,
frente a uma situação de perda, Faustina Zacarias tenha recorrido a este tipo de
paralelo para falar da sensação de ter sido lograda, perdido a liberdade.
Relacionando a eucaliptocultura ao tempo do cativeiro.
Cabe registrar e ressaltar que nem todos os camponeses agiram segundo o
script das empresas. Por exemplo, o senhor Manoel Norberto se recusou a vender
sua pequena gleba: “Minha mãe eu não vendo, quando ela não dá uma coisa, ela
outra. Vocês gostam de dinheiro, eu gosto da minha mãe. Ela não acaba. Todo o
tempo ela é a mesma.”
232
Mais uma vez vemos aqui a idéia de afetividade em
relação à terra.
nesta construção uma clara associação entre a idéia de mãe com a idéia
de terra, mas para além desta obviedade, o narrador nos deixou ver que a sua
relação com a terra pressupõe a crença na existência infinita da mesma. Em
consonância com Martins quando este afirma:
A terra também é distinta do capital, dos outros instrumentos e
objetos de trabalho, e da força de trabalho, porque ela, tratada
corretamente, não se desgasta, não desaparece. [...] Como a terra
não tem valor, não é produzida pelo trabalho nem pode ser
reproduzida, não se transfere para os frutos que dela são extraídos.
Mil anos depois poderemos encontrá-la produzindo.
233
. Certamente por isso, o senhor Norberto não vendeu sua terra, hoje cercada
pelas empresas de eucaliptos ou por aqueles proprietários rurais que aderiram à
prática do fomento.
232
Entrevista concedida à autora pelo sr. Manoel Norberto Henrique de Sena em 14 out. 2007.
233
José de Souza Martins. Os camponeses e a política no Brasil As lutas sociais no campo e seu
lugar no processo político, op. cit., p. 166.
115
2.2 “DESMANTELAMENTOS...”
Em um determinado momento da entrevista com a senhora Faustina, indaguei
a respeito da produção agrícola em Helvécia após a implantação da eucaliptocultura.
Em sua resposta diferentes tempos foram trançados para falar dessa produção:
Muito pouco, que as vezes você para comprar um quilo de quiabo
você tem que procurar muito onde você vai encontrar. Não está
tendo mais, a abóbora a gente sai daqui para ir comprar em Posto da
Mata. Caa nossa abóbora nós tirava da nossa terra? Mandioca
mansa praticamente a mesma coisa, cadê? Uma coisa que você
plantou um pedacinho de manaíba, com oito meses, ano, você está
tirando cada raiz de mandioca, você não tem onde plantar mais, [...]
as vezes você leva quase ano sem comer uma espiga de milho, uma
coisa que vocomia de vez em quando, que você mesmo tirava,
mais saboroso, não tem nada de química, nem nada. Tomate, quem
querer comer tem que comprar fora, muito difícil porque não tem
onde plantar [...] Onde s tirava e jogava. o era vendido também
não, se eu queria um quiabo, eu ia na sua casa, você pegava uma
bacia de quiabo Toma. É abóbora e tudo não usava estar
vendendo não. Hoje para você comer, você tem que comprar, tem
que comprar um quilo, dois, quantos você quiser, e se achar, porque
as vezes não acha não.
234
Essa é uma fala rica de possibilidades de análises. Nela se explicitou que o
problema da falta de produtos agrícolas em Helvécia está diretamente ligado à
questão da posse da terra, afinal era da “nossa terra” que se “tirava” mandioca,
milho, tomate, abóbora. Mas agora não tem onde plantar” o que implica dizer que
as terras que antes eram ocupadas pela lavoura de subsistência não constituem
mais espaço para tais cultivos.
Podemos ver, tamm, nesta fala que tal situação acabou por contribuir para
uma série de mudanças no jeito de ser daquelas pessoas, pois como a entrevistada
nos disse a fartura da produção trazia consigo uma prática de troca pura e simples
do produto da safra, visto que “não usava estar vendendo não”.
Ora, essas pessoas que foram criadas desta maneira e assim criaram seus
filhos elaboraram uma série de práticas a partir de premissas que hoje não mais se
sustentam na sua vida cotidiana. Desta forma, dona Faustina, ao nos dizer, com
certa estranheza, que quem quisesse comer quiabo agora tinha de comprar, talvez
estivesse nos chamando a pensar que ali existia outra maneira de organização
234
Entrevista concedida à autora pela sra. Faustina Zacarias Carvalho em 14 ago. 2007.
116
produtiva e de práticas culturais, e estas não foram respeitadas por aqueles que ali
chegaram para implantar o agronegócio do eucalipto.
A existência de relações de troca foi vista pelas empresas produtoras de
eucalipto como prova do atraso em que vivia aquela comunidade. Isto consistiria em
mais uma razão para a introdução de novos formatos de investimentos portados, à
época, pelas firmas.
Sobre a desvalorização dada à agricultura de subsistência, é ilustrativo do
contexto sociopolítico e econômico da época o trecho da matéria Agricultura
brasileira II Pesquisa, tecnologia e os desafios”, do Caderno Econômico do jornal
A Tarde, 6 de janeiro de 1980, no qual o cientista Paulo de Tarso Alvim afirmou:
Primeiramente, é preciso enfatizar que a colonização de novas áreas
deve ser feita com o firme propósito de contribuir efetivamente para
melhorar as condições de vida de nossa população rural. Se é este
de fato o nosso propósito, então não nos deve interessar uma
colonização que visa meramente ampliar as fronteiras da agricultura
de baixa renda ou de subsistência. Cremos que todos os
economistas reconhecem que não se pode promover
desenvolvimento à custa desse tipo de agricultura. Poderemos
mesmo ironicamente afirmar que a única vantagem aparente da
agricultura de baixa renda é a de esconder a nossa pobreza no
interior do país ao invés de mantê-la exposta nas favelas de nossas
cidades.
235
No desenrolar da matéria, o senhor Alvim apresentou as seguintes sugestões
para que houvesse o desenvolvimento das condições de vida da população rural, a
saber: criação de pólos agroindustriais de crescimento, produção preferencialmente
voltada para o mercado externo e o implemento de medidas governamentais que
oferecessem vantagens às empresas integrantes dos pólos agroindustriais.
Teria se dado, então, no contato entre o modo de viver da comunidade de
Helvécia e os representantes do projeto do agronegócio do eucalipto, um olhar
estigmatizador, a partir do qual toda a vida comunitária foi percebida como atrasada,
desprovida de riquezas e de valores dignificantes. Portanto, aquele seria um espaço
a ser tratado como alvo de uma espécie de saneamento, tendo em vista as
perspectivas de avanços e progressos que se vislumbravam naquelas terras antes
usadas para uma produção de subsistência.
235
Jornal A Tarde de 6 de janeiro de 1980, Caderno Econômico, “Agricultura brasileira II Pesquisa,
tecnologia e os desafios” p. 8. Arquivo do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia.
117
É oportuno associar essa dimensão à idéia das máquinas, que foram,
anteriormente, indicadas por Faustina como aquela que vai substituir a mão-de-obra
local:
E quando pensou que não, foi trazendo as máquinas, foi
dispensando o pessoal, e aí? Tem máquina que enquanto mil
pessoas faz o serviço de um dia, a máquina faz sozinha, com um
homemmanobrando ela. E foi desempregando todo mundo [...]
236
Metaforicamente esse maquinário teria suprimido práticas sociais, valores,
hábitos, regras próprias àquele microambiente.
Em nenhum momento estou aqui sugerindo que antes da implantação da
eucaliptocultura na comunidade de Helvécia não se registrasse vínculos com redes
comerciais. Esta afirmação seria despropositada e não condizente com a realidade
daquele lugar que desde a sua fundação, nos tempos da Colônia Leopoldina,
experimentara a prática comercial, tendo inclusive se destacado como centro
produtor de café da Bahia no século XIX. Helvécia, como vimos no primeiro capítulo,
estava integrada aos mercados regionais e nacionais.
Tamm é importante recordar que após a desativação da ferrovia Bahia e
Minas verificou-se uma depressão econômica que contribuiu para a adoção de
práticas baseadas no cultivo de subsistência. Estes processos não podem ser
interpretados apenas em suas dimensões econômicas, certamente houve
adaptações socioculturais relevantes.
Em relação a este período vale observar a existência, concomitante ao uso
do dinheiro como moeda de troca, de uma prática comum de permuta de mercadoria
in natura que se dava de forma a evidenciar os laços de solidariedade, reciprocidade
e parentesco entre as pessoas que ali viviam, posto que se depreenda das falas dos
entrevistados que as trocas, “de quiabo por abóbora”, ocorressem entre vizinhos,
amigos, parentes. Revela-se ainda que estes intercâmbios o se limitassem à
dinâmica dos meros objetos, ao contrário, circulavam também as trocas de notícias,
de receitas culinárias, dos “mexericos”, dos ensinamentos de orações, das
lembranças a respeito daqueles que não mais viviam na comunidade, enfim, eram
ocasiões ricas no que se refere à sociabilidade.
236
Entrevista concedida à autora pela sra. Faustina Zacarias Carvalho em 14 ago. 2007.
118
Outro dado que pode contribuir para que se entenda as relações existentes
naquela comunidade diz respeito aos arranjos feitos por seus habitantes no sentido
de orquestrar, em seu cotidiano, ações que dessem conta de dialogar com as
necessidades que lhes eram apresentadas.
Oh minha filha. Nem toda vez vendia as coisas, foi logo no início que
abriu essa estrada, essa estrada 21,
237
...nóis pegava essas coisas,
trocando minha filha as coisa, trocando, por um pouquinho de arroz,
um pouquinho de feijão, um pouquinho de óleo, pedaçinho de sabão.
Não vendia tudo, não dava pra trocar tudo, nóis ia pra Posto da Mata
vender, porta em porta vender. Voltava com aquela feirinha que já
trocou, com aquela mixaria de dinheirinho pra poder ir passando a
vida até...
238
Parece visível que a prática da troca, que foi abordada neste tópico como
sendo de vital importância para a vida cotidiana daqueles homens e mulheres no
sentido de adquirirem aquilo que lhes era necessário para viver, tinha seus limites,
“não dava pra trocar tudo”, e também “Nem toda vez vendia as coisas”, em Helvécia.
Naquela situação de desmantelo era preciso buscar novas maneiras de agir. Havia
agora um novo caminho, uma nova estrada, a BR 101, e por ela um grupo de
pessoas se deslocava, “nóis ia pra Posto da Mata vender, porta em porta vender”,
para que se pudesse amealhar aquilo que se fazia necessário à sobrevivência da
família.
Estas exigências cotidianas de trabalho intenso, nas reminiscências de dona
Maria de Jesus, duraram até certo período. Ela, ao continuar sua narrativa, disse:
“Voltava com aquela feirinha que trocou, com aquela mixaria de dinheirinho pra
poder ir passando a vida até... quando deu pro meu marido empregar.” Quando
indaguei em que lugar o seu marido se empregou, a entrevistada respondeu: “Na
Suzano.Este emprego, que foi conseguido de forma árdua, “foi uma luta, foi uma
luta prá empregar também”, na memória da entrevistada, esta ocupação do cônjuge
foi responsável por amainar as suas labutas diárias. Fiz tal interpretação a partir da
entonação que a mesma deu a palavra “até...”, como se após aquele momento
tivesse inaugurado um novo tempo em sua vida.
Essa análise ajuda a compreender um pouco da complexidade existente na
comunidade de Helvécia, como em todo sistema social, visto que as transformações
237
A entrevistada referia-se à BR 101.
238
Entrevista concedida à autora pela sra. Maria de Jesus Joaquim Santos em 15 ago. 2007.
119
processadas contribuíram para o surgimento de novas necessidades, que por sua
vez ajudaram o na (re) invenção de práticas sociais como também na (re)
leitura destas. Deste modo, a introdução das firmas de eucalipto naquele espaço
também aparece na memória de seus moradores como tendo sido um tempo de
melhoria naquilo que concernia à segurança e à qualidade de vida no trabalho. Isso
mostra a existência de dissonâncias.
Tamm a reflexão sobre as relações baseadas nas permutas não
negligencia a existência de fissuras e tensões dentro daquela comunidade, como se
a mesma se pautasse exclusivamente por relações harmoniosas. Mesmo antes da
implantação da eucaliptocultura havia em Helvécia a existência de diferenças sociais
e obviamente nem todos que moravam eram pequenos proprietários de terra.
Como informou dona Cocota, conforme já salientado, ela labutava na terra de outros
para sobreviver. Não se trata de idealizar o povoado de Helvécia. O que estamos
sugerindo é que naquela comunidade havia, para além das diferenças sociais, um
modo de sobreviver e de viver que comportava códigos morais e de conduta
associados a valores como: a reciprocidade, a solidariedade, a independência na
organização e gestão das tarefas cotidianas.
Ainda a respeito dos desmantelamentos ocorridos na comunidade de
Helvécia após a introdução da eucaliptocultura naquele espaço, podemos também
ouvir o que o senhor Sérvulo Constantino nos disse: “[...] hoje ninguém planta nada,
hoje ninguém planta nada porque tudo virou eucalipto, acabou [...].”
239
De novo aparece nesta fala a idéia de que a terra que antes era portadora da
possibilidade e prática da diversidade se transformou naquilo que é denominado
pelos ambientalistas de deserto verde.
240
O senhor Sérvulo sentencia que “hoje
ninguém planta nada porque tudo virou eucalipto, acabou [...]”.
Ele traz uma imagem que sintetiza a sua posição (talvez de grande parte da
comunidade), a propósito do empreendimento que fora instalado como sendo a
grande promessa, a solução, o progresso. Em uma única frase sua o “castelo” do
eucalipto foi reduzido a nada: “hoje ninguém planta nada porque tudo virou
eucalipto, acabou [...]”.
239
Entrevista concedida à autora pelo sr. Sérvulo Constantino Filho em 15 ago. 2007.
240
Daniel Silvestre. Seminário Internacional do Processo de Articulação e Diálogo, s.l., s.ed., s.d., p.
22.
120
Este camponês, ao dizer que “ninguém planta nada” retira qualquer dúvida
sobre a participação (ninguém) dos membros da comunidade e a reminiscência das
velhas práticas (nada). E o motivo para esta inexistência completa foi uma mutação:
“[...] tudo virou eucalipto.”
O somatório dessas duas parcelas teve como produto a expressão “acabou”.
Sem aquela relação social com a terra, muitos dos antigos camponeses
daquela comunidade passaram a necessitar cada vez mais da possibilidade de
empregos e salários para que pudessem adquirir as mercadorias necessárias,
muitas das quais, inclusive, em um passado presente em suas memórias, eram por
eles produzidas ou então lhes eram ofertadas pelos vizinhos de propriedade.
2.3 “SE NÃO FICASSE RICO...”
Na adequação do Plano de Desenvolvimento Urbano de Nova Viçosa, ano
2004, encontramos a seguinte afirmação a respeito das atividades desenvolvidas
pela população de Helvécia:
A maioria dos membros da comunidade de Helvécia trabalhava em
pequenas propriedades agrícolas familiares, dedicando-se sobretudo
à cultura de subsistência e o eventual excedente do fabrico artesanal
da farinha de mandioca assim como de produtos de horti-fruti-
granjeiros eram absorvidos pelo comércio da região.
Hoje, com a implantação das grandes plantações de eucalipto houve
uma concentração da propriedade da terra e muitas famílias que
viviam do cultivo em suas pequenas propriedades foram desalojadas.
Esses indivíduos e seus descendentes agora trabalham no plantio e
corte de eucalipto.
241
Essa informação foi construída de maneira a equilibrar e equacionar as
transformações ocorridas no distrito. O tempo passado é apresentado como o da
produção de subsistência e venda dos excedentes eventuais para os lugares
próximos. Em seguida, apresenta-se aquilo que seria o elemento transformador
daquele mundo, a introdução da eucaliptocultura provocando uma concentração de
terras nas mãos daqueles que estavam associados ao plantio do eucalipto, o que
concomitantemente implicou o ato de desalojar “muitas famílias que viviam do cultivo
em suas pequenas propriedades”. Logo depois aparece a informação segundo a
241
Adequação do PDU 2004 Nova Viçosa, p. 51. Acervo Seplan – CAR, CAB, Salvador.
121
qual os que trabalhavam em pequenas propriedades agrícolas familiares, bem como
seus descendentes, “agora trabalham no plantio e corte de eucalipto”.
É como se fosse simples assim: aqueles que antes tinham suas terras e
viviam a partir daquilo que delas produziam deixaram de possuí-las e passaram a
trabalhar nas empresas de eucalipto, mais precisamente no plantio e corte de
eucalipto.
O que talvez esteja óbvio, apesar de não estar escrito no PDU 2004, é que
essas pessoas que tinham suas vidas alicerçadas em uma atividade costumeira e
permanente, que lhes dava segurança, e em última instância dependiam, afora
determinações de ordem clitica, do trabalho familiar para garantir a produção de
alimentos para seu sustento e de sua família, tinham também em suas pequenas
glebas um lugar para morar, livre de aluguel. Além disso, naqueles espaços podiam
desenvolver atividades de lazer como a pesca ou caça, realizar encontros com os
vizinhos,
Antes era comum, todo sábado, haver uma festa, um bate-barriga,
242
um samba de viola. Era muito comum no local: hoje, na comunidade
do Sr. João; amanhã, na de D. Maria. Atualmente, nada disso existe.
As pessoas estão morando em pequenas casas, porque tiveram de
vender suas terras.
243
Nesta fala de Roseli, uma das integrantes da AQH, gostaria de ressaltar o
imbricamento existente entre a ocorrência de transformações estruturais, indicadas
na venda das terras, e a mudança do tamanho das casas, assim como o processo
de modificação do jeito de ser, do jeito de experienciar o lazer, de festejar os dias de
sábado na referida comunidade.
Em razão de não mais possuírem terras, somou-se a todas estas
transformações a perda de autonomia e a instalação de uma condição de
dependência.
242
Diferentemente daquilo que é afirmado, o Bate-barriga não deixou de existir em Helvécia. Para
saber mais sobre o Bate-barriga, ver a dissertação A dança Bate-barriga em Helvécia, um espaço
fabricante de performances afrodescendentes no Extremo Sul da Bahia, desenvolvida pelo professor
Valdir Nunes dos Santos na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.
243
Roseli Ricardo Constantino, integrante da Associação Quilombola de Helvécia, pedagoga e
professora daquela comunidade. Depoimento n. 1595/05 de 18/10/2005, na Comissão de Meio
Ambiente Sustentável da Câmara dos Deputados – Detaq.
122
Desta forma, aquelas pessoas passaram a buscar empregos, nas empresas
de eucalipto, para ter salários que iriam garantir a compra daquilo que lhes era
necessário à sobrevivência.
Ressalto o fato de que tanto uma quanto outra atividade ocupacional
atribuída, no texto do PDU 2004, aos membros da comunidade de Helvécia na
atividade da eucaliptocultura fosse sazonal. Teria havido, então, uma ocupação
temporária para aquelas pessoas, nos momentos do plantio e da colheita do
eucalipto.
Mesmo se não questionássemos se de fato as antigas famílias camponesas
foram efetivamente empregadas nas empresas de eucalipto, tais dados, ainda
assim, mostram que aquelas transformações ocorridas em Helvécia trouxeram no
seu bojo problemas que, diferente daquilo que o texto do PDU 2004 intenta mostrar,
não foram equacionados. Afinal, atividades temporárias pressupõem salários
temporários. Ora, dificilmente estes poderiam suprir as necessidades cotidianas
daquela comunidade.
Experiências deste tempo de transformações atreladas à implantação da
eucaliptocultura ficaram registradas na memória de Jorge Ferreira, ao recordar a
chegada da Aracruz Celulose no distrito de Helvécia:
[...] em oitenta e oito que a Aracruz chegou aqui encheu, aqui de
Helvécia saia uns três ou quatro caminhão, chegou falando que trinta
por cento dos funcionários da Aracruz iam ser de Helvécia quando
ela chegou para a região comprando terra, né? Comprando terra... e
trinta por cento do contrato, trinta por cento vai ser funcionário de
Helvécia.
244
Este relato indica a existência de uma associação entre promessas de
empregos, para membros da comunidade de Helvécia, e a compra de terras, por
parte da Aracruz Celulose.
Tamm os jornais divulgaram, em 1989, matérias que contribuíam para
incrementar as expectativas da população do Extremo Sul baiano, inclusive dos
moradores de Helvécia, naquilo que concernia à certeza de que aquelas firmas iriam
gerar muitos empregos.
244
Entrevista concedida à autora pelo sr. Jorge Ferreira da Silva em 14 ago. 2007.
123
Bahia Sul aprovada
O Conselho de Proteção do Meio Ambiente (Cepram) aprovou,
ontem, a licença de implantação da Bahia Sul Celulose S.A., o que
permite a empresa iniciar suas obras. O Cepram havia autorizado
a licença de localização. A Bahia Sul que se implantada no
município de Mucuri (Extremo Sul do estado) representa um
investimento de 800 milhões de dólares e produzi 420 mil
toneladas ano de celulose de eucalipto branqueado, de acordo com
informações do superintendente regional, Élio Régis. A empresa é
associada à Vale do Rio Doce e a Suzano, e vai gerar quatro mil
empregos diretos
245
(grifo da autora).
Neste texto ficou claro, a geração de empregos era tida como certa. Não se
tratava, pois, de indicar uma possibilidade, mas sim de divulgar uma certeza.
Os jornais de circulação local no Extremo Sul baiano, igualmente, noticiavam
a importância da chegada das empresas de eucalipto e mostravam como estavam
incrementando a oferta de empregos na região.
Bahia Sul investe em treinamento
A Bahia Sul Celulose está investindo maciçamente no treinamento de
seus funcionários. Ao todo, mais de 1.500 pessoas já receberam
treinamento para operar a fábrica no primeiro semestre de 1992.
Desde janeiro de 1990, um grupo contratado para a fábrica recebe
do treinamento básico ao específico, através de aulas teóricas e
práticas complementadas por estágio em diversas bricas de
celulose e papel do país. Cerca de 32 supervisores ministraram,
nesse período, 440 horas/aula de matemática, 400 de física, 520 de
química e 890 de segurança industrial. Na área florestal, o
treinamento foi concentrado principalmente em colheita de madeira,
e a empresa está contratando na região cerca de 500 novos
funcionários até março, que também receberão treinamento.
246
Essa notícia, divulgada no ano de 1991, mostra uma preocupação da
empresa Bahia Sul Celulose em treinar pessoas da região para compor o seu
quadro de funcionários. Neste texto se explicita a preponderância do treinamento de
pessoal para a atividade de colheita da madeira.
Essa prática da empresa, de oferecer cursos de profissionalização, também
foi lembrada com admiração pelo senhor Jorge Ferreira:
245
Jornal A Tarde, 23 de junho 1989, Caderno de Economia, Acervo Instituto Geográfico Histórico da
Bahia, Salvador.
246
Jornal Alerta, Medeiros Neto, Ano V, nº. 46, 25 de novembro a 10 de dezembro de 1991, p. 2.
Arquivo jornal Alerta, Teixeira de Freitas, Bahia.
124
[...] quando chegou o eucalipto, no início beneficiou muita pessoa.
Empregou os funcionários, empregou depois acabou. Eu trabalhei na
Bahia Sul no início, que hoje é Suzano. Quer dizer que hoje de
Helvécia trabalhando só tem um companheiro que entramos junto, só
ficou ele. Então era melhor antes. E veio o outro lado também, que o
eucalipto trouxe boas coisas para a região em um aspecto e em
outro piorou. Que eu vejo que assim... profissionalização de... no
caso de... Eu antes, eu nunca pensava em ser um carreteiro, através
do eucalipto hoje eu sou um carreteiro. Posso falar que sou um
carreteiro. Fiz curso de carreteiro, que na época começou o porto de
Caravelas, eu fui escolhido um dos dez da região, um dos melhores
para treinar outros motoristas, então eu senti!
247
No contexto de implantação da eucaliptocultura, houve de início a geração de
empregos, e pelo apresentado na narrativa anterior, não somente no plantio e corte
de eucalipto, como também em atividades que demandavam maior especialização.
No caso, a atividade de carreteiro, ou seja, aquele que dirigia carretas transportando
o eucalipto até o Porto de Caravelas. O entrevistado salienta a importância que ele
dava à atividade desempenhada: “eu fui escolhido um dos dez da região, um dos
melhores para treinar outros motoristas, então eu senti!”
248
Mas este tempo foi
apresentado na narrativa como um tempo que havia acabado: “[...] quando chegou o
eucalipto, no inicio beneficiou muita pessoa. Empregou os funcionários, empregou
depois acabou.”
249
O descompasso entre empregos gerados na implantação da eucaliptocultura
e sua diminuição no decorrer do tempo está relacionado também com o fato de ter
havido um processo de mecanização, voltado principalmente para a atividade do
corte de eucalipto. Desta forma, homens foram substituídos por máquinas.
Apresento, agora, dados a respeito da população de Helvécia. Trata-se de
informações do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Segundo este,
em 1970 a população total de Helvécia era de 6.846, sendo 652 urbana e 6.194
rural.
250
Na década seguinte, 1980, a população daquele distrito atingiu o número de
10.009. Neste censo, a informação a respeito deste total é segundo o gênero, sendo
247
Entrevista concedida à autora pelo sr. Jorge Ferreira da Silva em 14 ago. 2007.
248
Entrevista concedida à autora pelo sr. Jorge Ferreira da Silva em 14 ago. 2007.
249
Entrevista concedida à autora pelo sr. Jorge Ferreira da Silva em 14 ago. 2007.
250
VIII recenseamento geral 1970, série regional, volume I, tomo XIII. Arquivo IBGE Teixeira de
Freitas (BA).
125
5.066 homens e 4.943 mulheres.
251
Por sua vez, os dados da década de 1990
trazem informações conjuntas de situação de residência e gênero (cf tabela 2).
Tabela 2
HELVÉCIA – NOVA VIÇOSA (BA), 1991
POPULAÇÃO RESIDENTE POR SEXO E SITUAÇÃO
252
HOMENS MULHERES
Urbana Rural Urbana Rural
759 7.154 776 6.865
Apesar de não haver, nas fontes consultadas, uma padronização dos dados
que o IBGE disponibiliza sobre a população de Helvécia, é possível afirmar que a
maioria dos moradores de Helvécia se encontrava na área rural, e, como foi visto na
análise de documentos apresentados ao longo desta dissertação, as empresas de
eucalipto compraram terras naquele distrito para que pudessem desenvolver o
agronegócio. Essa conjunção implicou aquilo que chamei de desmantelamentos,
bem como a posterior necessidade de estas pessoas se empregarem para
conseguir sobreviver.
Desajustes foram sendo sentidos por aquela comunidade, estes implicaram
novos arranjos, reajustes inventados cotidianamente por aquelas pessoas que
viviam em Helvécia.
Se não mais podiam contar com o sistema de troca de mercadoria que foi
afetado em razão da produção agrícola de subsistência ter sido seriamente
comprometida pelo uso das terras para o plantio da monocultura do eucalipto, essas
pessoas, em razão das necessidades que lhes eram impostas, começaram a exigir
das firmas que lhes oferecessem alternativas para que pudessem adquirir aquilo que
lhes era vital para a sobrevivência.
As expectativas de muitos dos habitantes de Helvécia em relação à satisfação
de necessidades inerentes às suas vidas passaram a ser associadas àquelas
empresas que ali chegaram na década de 1980 com todo um discurso de progresso
e desenvolvimento da comunidade: “[...] porque a população do lugar eles gritam por
emprego, eles quase não acreditam mais no trabalho da terra, entendeu, eles
251
IX recenseamento geral do Brasil, censo demográfico dados distritais. 1980, volume I, tomo 3,
número 13. Arquivo IBGE Teixeira de Freitas (BA).
252
http://www.ibge.gov.br/home/ , http://www.sidra.ibge.gov.br/
126
querem ser empregados de uma determinada empresa”,
253
nos disse Malzinéia
Henriqueta Ambrósio, professora da escola municipal de Helvécia e integrante da
AQH.
É possível que o ajuste, para muitos destes habitantes, tenha se pautado na
idéia de que se foram essas empresas que alteraram seus labores e relações
cotidianas com a terra, deveriam ser tamm elas a lhes possibilitar o acesso aos
salários, que, ao menos nas expectativas, lhes garantiria o acesso às mercadorias
que outrora eles conseguiam obter a partir da produção própria e do mecanismo de
troca.
Como os empregos não chegaram, ou ao menos não chegaram para atender,
não apenas àquilo que foi prometido como também àquilo que foi esperado pelas
pessoas, criou-se uma sensação de engodo. Habitantes de Helvécia se sentiram
lesados e construíram relatos sobre esta sensação.
Acabou, acabou, se eu querer melância tenho que comprar, que eu
não vou achar ninguém para me dar mais, tenho que comprar, ainda
se eu achar para comprar. Porque é difícil vim até aqui, tem que ir
em Posto da Mata, as vezes até de Teixeira. [...] agora para você
comprar voprecisa estar trabalhando e cadê o emprego? Cadê o
emprego?
254
A entrevistada é contundente ao perguntar de forma incisiva pelo emprego.
Neste sentido, o que ela disse, “[...] agora para você comprar você precisa estar
trabalhando e cadê o emprego? Cadê o emprego?“,
255
tenciona a informação
existente no PDU 2004 apresentada logo no início deste tópico: “Esses indivíduos e
seus descendentes agora trabalham no plantio e corte de eucalipto.”
256
Convém discutir as diferenças existentes entre aquilo que foi prometido pelas
empresas e aquilo que a comunidade criou enquanto expectativas do que significaria
a vinda das mesmas para Helvécia.
Obviamente existiu uma interlocução entre as esperanças e o que foi
efetivamente prometido pelas empresas e seus defensores, pois se compreende que
uma expectativa se cria a partir de algo dado, sinalizado, sugerido. Entretanto ela
não se conforma apenas a estes aspectos, ela se pauta também no mecanismo de
construção individual e coletiva das pessoas a partir da conjunção entre o que ficou
253
Entrevista concedida à autora pela sra. Malzinéia Henriqueta Ambrósio em 14 ago. 2007.
254
Entrevista concedida à autora pela sra. Faustina Zacarias Carvalho em 14 ago. 2007.
255
Entrevista concedida à autora pela sra. Faustina Zacarias Carvalho em 14 ago. 2007
256
Adequação do PDU 2004 Nova Viçosa, p. 51. Arquivo Seplan – CAR, CAB, Salvador.
127
nas entrelinhas do prometido e o que os indivíduos desejavam de melhor para suas
vidas.
O relato a seguir mostra o quanto, no imaginário dos habitantes de Helvécia,
o trabalho nas empresas de eucalipto estava associado à projeção e status social:
“Lembro, lembro que aquelas pessoas que entrou na Flonibra, o povo se sentia que
nós..., que eu fazia parte, eu e meu esposo, que nós ia ficar... se não ficasse rico
mais ia ficar remediado, que era firma boa, né?”
257
Trabalhar para tais firmas era garantia, dentro deste imaginário, de ascensão
social dentro da comunidade, assim talvez, quando a firma prometia emprego é
pouco provável que as pessoas se pensassem ocupando funções de baixo escalão,
afinal, “a firma era boa, né?”
Com base nesta premissa, os integrantes daquela comunidade começaram a
projetar o futuro. Possivelmente, este passou a ser imaginado com a presença de
algumas garantias daquilo que apareceu em algumas entrevistas como parte
constitutiva de “firma boa”. Por exemplo, plano de saúde, plano dentário, bons
salários. Esta prefiguração do futuro, construída no imaginário, alimentou o sonho de
consumo daqueles habitantes e estes passaram a desejar para si outras rotinas,
outros ritmos que fossem diferentes daqueles associados à labuta na terra em prol
de uma produção agrícola voltada à subsistência.
A eucaliptocultura, por sua vez, ao gerar empregos permanentes fez, em
geral, uso de uma mão-de-obra especializada, sobretudo a industrial, não
absorvendo a população local. Ao contrário do esperado pelos moradores dos
municípios nos quais a eucaliptocultura foi implantada, foi significativa a quantidade
de pessoas vindas de fora, principalmente da região Sudeste, para ocuparem cargos
do alto e médio escalão nas empresas. Prova disso é a existência de bairros, em
formato de vilas residenciais, dentro das cidades de Teixeira de Freitas, Mucuri e
Itabatã, destinados a atender estes grupos que se deslocaram para o Extremo Sul
baiano.
Restou à população local se contentar com a possibilidade dos serviços
temporários. Ocorre que a geração de um mero expressivo de empregos
aconteceu apenas no momento das obras de construção das fábricas das empresas
de eucalipto. Passado este tempo, aproximadamente 80% dos empregados foram
257
Entrevista concedida à autora pela sra. Faustina Zacarias Carvalho em 14 ago. 2007.
128
mandados embora.
258
A isso se somou à substituição de muitos funcionários
envolvidos com a atividade de corte do eucalipto, em razão do intenso processo de
mecanização implementado pelas firmas. Além disso, paulatinamente, tanto na
Aracruz quanto na Suzano Celulose, ficou cada vez mais usual a terceirização dos
serviços:
A Aracruz dava emprego para todos. Hoje, apenas 2 pessoas da
comunidade trabalham na empresa. Esses trabalhadores são
jogados para as empreiteiras. A cada dia que passa, surgem novas
empreiteiras, que não têm o mesmo compromisso com seus
funcionários. Os salários são bem mais baixos.
259
Vê-se, neste depoimento, um misto de desejo e frustração. a idéia de que
o trabalho na Aracruz era bem remunerado, e por isso mesmo compreendemos que
desejado, e de que a empresa, ao implantar o processo de terceirização, teria
mudado sua relação com a comunidade, deixando de ter compromisso com seus
funcionários, jogando-os para empreiteiras, frustrando-os. Esta dualidade deve ser
pensada para além de uma construção contraditória. Ela faz parte de um repertório
de ões desta comunidade, repertório este que comporta simultaneamente a idéia
de resistência e acomodação.
260
Um dado existente no Resumo Público de Certificação da Suzano Bahia Sul
Papel e Celulose S.A., da unidade de Mucuri, com data de 14 de dezembro de 2004,
permite, como indicado anteriormente, verificar também nesta empresa a tendência
para a terceirização dos serviços: “A Suzano Bahia Sul Papel e Celulose S.A. tem
170 funcionários próprios e realiza o manejo florestal contando os serviços de 24
empresas que empregam um mero aproximado de 2.500 trabalhadores em várias
funções”
261
(grifo da autora).
Estes não são números que possam confirmar as promessas feitas e
veiculadas, de geração de 4.000 empregos diretos, na matéria Bahia Sul
aprovada,
262
” do jornal A tarde, no ano de 1989, anteriormente analisada.
258
Segundo dados do Centro de Estudos e Pesquisas para o Desenvolvimento do Extremo Sul da
Bahia (Cepedes).
259
Roseli Ricardo Constantino, Depoimento n. 1595/05 de 18/10/2005, na Comissão de Meio
Ambiente Sustentável da Câmara dos Deputados – Detaq.
260
Maria Cristina Wissenbach. Sonhos africanos, vivências ladinas: escravos e forros em São Paulo
(1850-1880). São Paulo, HUCITEC, 1998, p. 27.
261
Resumo Público de Certificação da Suzano Bahia Sul Papel e Celulose S.A., da unidade de
Mucuri, 14 de dezembro de 2004, p. 5
262
Jornal A tarde, 23 de junho de 1989, Caderno de Economia, Acervo Instituto Geográfico Histórico
da Bahia, Salvador.
129
A narrativa a seguir faz referência à idéia de uma expectativa a respeito das
ações das firmas de eucalipto no sentido de que elas efetivamente atuassem
atendendo à demanda de emprego da mão-de-obra da comunidade de Helvécia:
[...] então eu vejo isso, que se a gente pudesse melhorar... se essa
firma pudesse nos ajudar recuperar um pouco para ajudar os
mais carentes... já digo assim, que aqui ainda tem algumas pessoas
que tem suas terras, tem bastante ainda que tem, mas as deles as
vezes não emprego para ninguém porque é coisa deles e de
seus filhos trabalhar. Então por isso que tem que ter emprego, e vejo
isso como uma coisa muito triste porque se não tiver um comércio ou
então uma terra para trabalhar, emprego também o tem, então é
uma coisa que a gente ver e é muito triste
263
(grifo da autora).
na fala de Faustina Zacarias, filha de uma família que no passado havia
vendido suas terras para a Aracruz Celulose e, também no passado, havia sido
empregada na antiga Flonibra, a expressão do sentimento de tristeza, demonstrando
a fissura entre o prometido e o realizado. Quantos sonhos de emprego, estabilidade
e ascensão social foram se desfazendo neste percurso transposto entre os
sinalizados 4.000 empregos e os 170 efetivamente disponibilizados pela Bahia Sul
Celulose?
A resposta a esta indagação pode se configurar ainda mais robusta, se
levarmos em conta que em razão deste discurso, grande oferta de emprego, muitas
pessoas de outras regiões se deslocaram para o Extremo Sul baiano com a intenção
de “fazer a vida”. É provável que muitos desses homens e mulheres hoje habitem as
periferias das cidades da referida região engrossando o número de desempregados,
da violência, dos distúrbios familiares, das tristezas, dores e solidão.
Quanto às promessas feitas pela Aracruz, fissuras também se fizeram
visíveis:
[..] Chegou na região, falou, vou comprar, estamos instalando na
região, então, trinta por cento vai ser de Helvécia, mais trinta por
cento de outro lugar, mais trinta por cento, hoje só tem três
funcionários aí. E a promessa que ela fez e não cumpriu.
264
263
Entrevista concedida à autora pela Sra. Faustina Zacarias Carvalho em 14 ago. 2007.
264
Entrevista concedida à autora pelo sr. Jorge Ferreira em 14 ago. 2007.
130
No caso da área que corresponde hoje ao distrito de Helvécia, se buscarmos
ver como era sua paisagem antes da introdução do “plantio em massa” de eucalipto,
encontraremos o registro da existência de dendê, bromélias, orquídeas de espécies
diversas, sapé, bambu, maracujá e araçá, bem como de uma atividade agrícola com
produção de abóbora, amendoim, melancia, mamão, quiabo, feijão, mandioca,
milho, batata-doce, enfim, um modelo agrícola voltado para a policultura, além de
uma atividade pecuária voltada para criação de bovinos, eqüinos, suínos e aves.
Entretanto essa diversidade, foi interpretada e lida pelo discurso da
modernidade como um universo rural atrasado e de subsistência que poderia ser
transformado numa área de progresso, desde que aderisse ao projeto do
agronegócio, cantado em verso e prosa por jornais
265
como a “salvação da lavoura”,
na medida em que, entre outras vantagens, geraria empregos e oportunidades para
o desenvolvimento local.
Levando-se em consideração que o distrito de Helvécia tem uma população
que não se caracteriza como mão-de-obra especializada, podemos inferir os
impactos ali provocados pela monocultura do eucalipto que desalojou os homens e
mulheres de suas atividades habituais e não os inseriu no mercado de trabalho
monocultor.
Gostaria agora de salientar algumas questões que dizem respeito ao campo
de trabalho para as mulheres de Helvécia. Estas, segundo dados do IBGE (cf. tabela
2), eram, na década de 1990, em número de 7.641, numa população total de 15.554
pessoas, perfazendo, pois, uma porcentagem de aproximadamente 49% da
população. O senhor Kemi Krul, ao rememorar as dificuldades de conseguir um
serviço em Helvécia, falou, entre outras coisas, dessas mulheres:
[...] serviço por aqui era meio difícil, mais era na Bahia e Minas, mas
custava empregar as pessoas, só daqueles que estava. Mas hoje
em dia serviço apareceu, não trabalha quem não quer. Agora o
problema do serviço de antigamente, tanto faz de roça ou outro tipo
de serviço, se o camarada poderia está até com oitenta ano, se ele
teve coragem para trabalhar e fosse ele trabalhava. Já essas firmas
não aceita mais o camarada de sessenta, setenta anos, né? Criança
pior, mulher só se for para trabalhar no escritório, mas no campo a
firma não aceita. Numa parte melhorou e na outra não, em
265
Refiro-me aqui de forma mais precisa à reportagem veiculada no Caderno Econômico do jornal A
Tarde de 6 de janeiro de 1980, em que o cientista Paulo de Tarso Alvim defende a idéia de que se
deva criar no Brasil pólos agroindustriais com produção voltada preferencialmente para o mercado
externo, contando, para isso, com medidas governamentais de incentivo.
131
Juerana
266
na época que era roça, muito japonês, dia de segunda-
feira, saia carro trator lotado de gente para a roça, tanto faz homem
novo como mais idoso, mulher e criança. Quando dava a tarde
chegava todo mundo. No dia do pagamento, que era sábado, todo
mundo recebia seu dinheiro. O homem recebia, mulher e criança,
aquele dinheiro ficava somente dentro de uma casa, hoje em dia
não, hoje em dia as vezes tem muita mulher que quer a
trabalhar, mas não sendo na roça não tem mais serviço, roça na
região acabou é só eucalipto e a firma não aceita mulher ir
trabalhar no meio do eucalipto, né?
267
(grifo da autora)
Essas são lembranças representativas do significado do trabalho coletivo e
familiar para os integrantes daquela comunidade. Refiro-me aqui de forma específica
ao trabalho feito nas roças de outrem, no caso, japoneses. No início, dos anos de
1960, estes chegaram à região do Extremo Sul baiano. Instalaram-se em povoados
diversos, entre os quais Juerana, Taquari, Aparajú e Helvécia, desenvolvendo
cultivos variados de produtos agrícolas,
268
e empregando moradores da região em
suas lavouras: “...dia de segunda-feira, saia carro trator lotado de gente para a roça,
tanto faz homem novo como mais idoso, mulher e criança.” O fruto deste trabalho,
recebido nos dias de pagamento, era somado pelos integrantes de uma mesma
família: “O homem recebia, mulher e criança, aquele dinheiro ficava somente dentro
de uma casa...”
No início de sua narrativa, o senhor Krull afirmou: hoje em dia serviço
apareceu, não trabalha quem não quer.” Entretanto, no decorrer de sua fala ele foi
oferecendo pistas da existência de uma série de obstáculos ao trabalho de homens
idosos, crianças e mulheres. Estes obstáculos possivelmente contribuíram para que
se realizassem mudanças nos papéis sociais desempenhados por cada um destes
componentes no universo familiar, afinal os impedidos de trabalhar, homens idosos,
crianças e mulheres, não mais poderiam levar para suas casas seu quinhão de
salário para ser agregado àquele que fora recebido, supõe-se, pelo homem jovem.
Mudanças também devem ter se processado nas relações de sociabilidade
entre os membros das famílias. Ao que parece, o trabalho nas “roças dos japoneses”
era, para as crianças, também um espaço de aprendizagem.
266
Povoado localizado nas proximidades do distrito de Helvécia.
267
Entrevista concedida à autora pelo sr. Kemi Krull em 15 ago. 2007.
268
40 anos da colonização japonesa no Extremo Sul da Bahia. Teixeira de Freitas, Bahia, s.a., s.ed.,
1997.
132
Em Helvécia hoje es difícil, está difícil, que nem era antes não.
Antes era verdura, amendoim, pimentão, melancia, tomate, era
caminhão mais caminhão. Era caminhão mais caminhão, melão,
pepino, saia de tudo aqui, o que você pensava sai daqui, tinha um
grupo de japonês ali... hoje tem eucalipto, né? Que plantava de
tudo, inclusive eu estudava de manhã e depois de meio-dia vinha o
trator de lá do japonês, deslocava de para vim buscar os meninos
que estudavam de manhã, trabalhava de tarde e os que estudavam
de tarde ele trazia, e eu trabalhava como menino. É que eu tive
oportunidade de aprender alguma coisa, trabalhando com os
japoneses...
269
Interessa-me aqui analisar algumas das transformações que atingiram
aproximadamente 49% da população de Helvécia, ou seja, suas mulheres. A
chegada das firmas de eucalipto marcou um tempo, que leio, como de agruras para
elas. Como foi visto, através das informações do PDU 2004, a mão-de-obra da
população de Helvécia, desalojada de seus domínios territoriais, teria sido
incorporada pelas empresas de eucalipto para realizar tarefas de plantio e corte.
Nenhuma destas atividades era feita por mão-de-obra feminina, pois, como disse o
senhor Krull, “hoje em dia às vezes tem muita mulher que quer até trabalhar, mas
não sendo na roça, não tem mais serviço, roça na região acabou é eucalipto e a
firma não aceita mulher ir trabalhar no meio do eucalipto, né?
270
Esta afirmação, “roça na região acabou”, pode ser melhor dimensionada
quando levamos em consideração a concentração de terras nas mãos da Aracruz
Celulose e Suzano Bahia Sul Celulose no município de Nova Viçosa, ao qual
pertence o distrito de Helvécia. De uma área total de 91.952 ha, 45.118 ha
pertencem às referidas empresas, ou seja, 49% da área daquele município está a
serviço do modelo agroexportador e monocultor de eucalipto.
271
Ora, muitas das mulheres de Helvécia não tinham mais suas glebas para
produzir e também não tinham mais a opção de trabalhar em roças de outras
pessoas, “roça na região acabou”.
Desta forma elas tinham perdido sua autonomia no trato com a terra ao
mesmo tempo em que, não conseguindo mais vender sua mão-de-obra, perderam
também a posição de alguém que contribuía com dividendos para os gastos
familiares, ficando provavelmente na dependência daquilo que seus pais e/ou
269
Entrevista concedida à autora pelo sr. Jorge Ferreira em 14 ago. 2007.
270
Entrevista concedida à autora pelo sr. Kemi Krull em 15 ago. 2007.
271
Pe. José Koopmans. Além do eucalipto: o papel do Extremo Sul. 2. ed. Revisada e atualizada.
Teixeira de Freitas: Centro de Defesa dos Direitos Humanos, 2005, p. 74.
133
esposos e filhos provessem para seu lar. Conflitos, abertos ou ocultos, em relação
às repartições das decisões cotidianas da família
272
podem ter sido formados, porém
a este respeito nas entrevistas prevalece o silêncio.
Isso significou a entrada de uma menor quantidade de dinheiro nas casas das
famílias da comunidade de Helvécia, ao mesmo tempo em que havia tido no distrito
uma diminuição de produtos agrícolas básicos para a sobrevivência de seus
moradores. A vida de fartura aparecia agora como lembrança:
[...] todo mundo alimentava bem, não tinha essa miséria que tem hoje
não. Tem nego que diz, não vejo, mas tem gente que fala que tem
nêgo passando fome por causa que não tem alternativa nenhuma.
Principalmente para as mulheres que é sozinha, não tem serviço
para as mulheres sozinhas, empregos não tem empresa
nenhuma aqui que pega mulher para trabalhar, não tem
nenhuma, antigamente tinha, mulher o ficava parada, ia
trabalhar para os japoneses, ia trabalhar. Na época tinha um
fazendeiro que mexia muito com pé de mamão que ele tinha loja
em Campinas, trabalhava um monte de mulher na roça de
mamão, hoje não tem mais, ninguém ficava parado, hoje você a
maioria das mulheres que não tem um serviço, o que emprega aqui
mesmo hoje mesmo é a prefeitura, mas trabalha quem é
concursado... mas hoje, para trabalhar em Helvécia hoje não
tem empresa nenhuma que pega mulher para trabalhar.
273
Conforme a narrativa do senhor Jorge, a miséria não fazia parte do cotidiano
de Helvécia. Aquele era um lugar no qual a possibilidade de produzir alimentos, seja
nas glebas sob o domínio do próprio camponês, seja em propriedades de outrem,
voltadas para o cultivo agrícola, se traduzia em fartura e alimentação para todos os
integrantes da comunidade. Este tipo de afirmação evidentemente pode ser
contestado por antigos moradores de Helvécia que tenham passado momentos de
crise, seja em razão de uma colheita, um gasto inesperado para cuidar de
enfermos na família, dentre outros. Entretanto, também é provável que com a
implantação da dinâmica de trabalho e regras das firmas, alguns atores sociais
tenham, em razão de sua mão-de-obra desqualificada, sido alijados. No caso das
mulheres sozinhas esta situação de exclusão foi ao que parece taxativa: hoje, hoje
para trabalhar aqui em Helvécia, hoje não tem empresa nenhuma que pega mulher
para trabalhar.”
272
Michelle Perrot. Os excluídos da história operários, mulheres, prisioneiros. 3 ed. Rio de Janeiro:
Paz e terra, 2001.
273
Entrevista concedida à autora pelo sr. Jorge Ferreira em 14 ago. 2007.
134
Na voz de mulheres de Helvécia, esta situação se configurou como uma
dívida das empresas para com a comunidade:
[...] porque setenta e quatro por cento das terras de Helvécia são
ocupadas com plantio de eucalipto e pertence a Aracruz, então tem
uma dívida muita grande conosco, a firma tem uma dívida muito
grande, plantou no início, ofereceu muitos empregos, muitos
empregos foram dados, de repente as pessoas foram todas
mandadas embora, né? Ah você não serve mais, não serve mais e
aí essa situação está até o dia de hoje...
274
Entendo a fala de Regina Constantino em relação à Aracruz, “ofereceu muitos
empregos”, como uma afirmação que dizia respeito ao universo masculino. Faço
essa interpretação em consonância com as narrativas do senhor Kemi Krull e do
senhor Jorge Ferreira.
Nessas circunstâncias, em que a mão-de-obra feminina o encontrava
espaço no campo do trabalho assalariado, mulheres sós, que não podiam contar
com filhos ou companheiros para prover o sustento, passaram a viver precariamente
de trabalho temporário, autônomo. Não tendo mais o trabalho na roça “sem
oportunidade de emprego e tendo que improvisar a própria sobrevivência”
275
elas se
reinventaram, passaram a viver do fabrico da muqueca, doce feito de goma com
coco e assado na folha de banana, para ser vendido nas feiras dos lugares
próximos. Outras transformaram suas casas em pousadas e/ou restaurantes simples
e improvisados para atender eventuais pesquisadores e visitantes que chegavam
ao distrito.
A senhora Maria Henriqueta Ambrósio nos fala de sua sensação a respeito
das mudanças trazidas no bojo da eucaliptocultura:
Para que uma fazenda mais bonita que aquela, eu morei lá, hoje
você pode, doutor é Antônio Alfredo, o povo era de Minas Gerais,
Teófilo Otoni, eu morei quase dois anos, era uma fazenda bonita,
criava muito gado, muita galinha, muito pato, eu recolhia tanto ovo de
cocar em um dia que eu ficava besta, falava: “Meu Deus seu Alfredo
onde o senhor vai levar esse tanto de ovo?”, “Vou levar para Teófilo
Otoni e vocês pegam e comem e para quem quiser.” Era desse
jeito. Hoje,... o filho dele pegou e vendeu, hoje você passa e é só
eucalipto. Essa fazenda aí, do japonês, né? Era muita verdura,
274
Entrevista concedida à autora pela sra. Regina Constantino em 15 ago. 2007.
275
Maria Odila Leite da Silva Dias. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. 2 ed. rev. São
Paulo: Brasiliense, 1995, p. 20.
135
plantava de tudo, batatinha, pimentão e tudo. Hoje você passa é
só eucalipto, não tem nada mais. Dá uma revolta, sabia?
276
Conforme aquilo que foi apresentado, a senhora Maria Henriqueta, ao afirmar
que hoje você passa é eucalipto”, talvez estivesse também dizendo que hoje,
naqueles lugares nos quais ela havia trabalhado, não havia mais espaço para sua
atuação: “hoje você passa é só eucalipto, não tem nada mais. uma revolta,
sabia?”
Neste comentário, a entrevistada fala não só das transformações ocorridas
nos seus espaços de vida, ela nos diz também de como sente tais mudanças
indicando que, para além de saudades e tristezas, havia também naquela
comunidade um sentimento de revolta com aquela situação.
Foi naquele contexto histórico específico que as mulheres de Helvécia
atuaram como seres sociais, mesmo não sendo assalariadas nem proprietárias.
Maria Odila Leite da Silva Dias é incisiva ao afirmar que mulheres nesta situação
continuam a ter sua organização familiar, a integrar redes de dominação e de
convívio comunitário.
277
Tamm neste sentido, Michelle Perrot
278
alerta para o fato de que as
mulheres do povo m saberes e poderes médicos, religiosos e culturais. A posse
destes poderes e saberes não permitiu que as mulheres de Helvécia deixassem de
ocupar o seu lugar de agente histórico naquele distrito. Elas continuaram, por
exemplo, a ser responsáveis pela realização dos ofícios solicitados por membros de
uma família que perdeu um ente querido, pois segundo a senhora Elzira Peixoto em
Helvécia “... ainda predomina o ofício de nossa senhora, ele é cantado muitas partes
em latim”,
279
revelando que aquelas mulheres que sabiam fazer o ofício eram/são
respeitadas na comunidade, independente de serem ou não proprietárias e/ou
assalariadas, em razão do seu saber e do poder religioso atrelado a ele no
imaginário dos moradores do distrito.
Entretanto, os habitantes de Helvécia o experienciaram apenas
permanências e, diante do desemprego e da desestruturação do seu modo de vida,
276
Entrevista concedida à autora pela sra. Maria Henriqueta Ambrósio em 15 ago. 2007.
277
Maria Odila Leite da Silva Dias. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. 2 ed. rev. São
Paulo: Brasiliense, 1995.
278
Michelle Perrot. Os excluídos da história operários, mulheres, prisioneiros. 3 ed. Rio de Janeiro:
Paz e terra, 2001.
279
Entrevista concedida à autora pela sra. Elzira Peixoto em 14 de ago. 2007.
136
de suas novas expectativas e necessidades culturais, bem como de seus
sentimentos em relação ao imbricamento destes elementos, as pessoas se
organizaram para viver com o eucalipto e com o que isso representava no seu
cotidiano de homem e mulher da comunidade.
137
3º CAPÍTULO – VIVER COM EUCALIPTOS
À primeira vista, nas pesquisas de campo, realizadas em Helvécia, o
desenrolar dos dias em nada indicava como sendo aquele lugar um espaço no qual
existisse algum tipo de conflito e/ou fissuras entre diferentes projetos de vida. Ao
contrário, ao realizar algumas das entrevistas com moradoras daquela comunidade,
sentada embaixo da sombra de uma generosa amendoeira, saboreando a fala, sem
pressa, das entrevistadas e observando o movimento das pessoas que circulavam
nas ruas, tive a impressão de que tudo estava correndo em um ritmo marcado pela
tranqüilidade. Em uma tarde quente de um dia de semana, algumas mulheres
andavam pelas ruas, crianças jogavam bola em um campinho improvisado e, nas
vendas, que também funcionavam como bares, havia a presença de um ou outro
freguês nas poucas cadeiras e mesas de plástico dispostas nas calçadas que davam
acesso direto à rua principal. Algumas bicicletas, conduzidas por homens adultos,
circulavam de vez em quando. Também o silêncio chamava a atenção. Será que ele
significava tranqüilidade?Ou indicava ausências?
Compondo este cenário, as pessoas, ao falarem de suas rotinas, deixavam
por vezes ver imagens que revelavam a existência de impasses vivenciados no
cotidiano da comunidade.
[...] A maioria do povo es passando necessidade, a maioria do
povo. O povo hoje minha senhora, nesse mundão de meu Deus aqui,
[...] porque aqui tem terra, tinha terra, não faz um plantio de terra,
não faz um plantio de roça de abóbora, antigamente dava muito
serviço o povo. Ali era meu vizinho [apontando em direção a um
camponês que estava sentado à sua frente], plantava feijão, era roça
de mamão, tinha de tudo, de tudo, quando chegava com quinze dias
ele fazia pagamento do povo aqui na rua, rolava dinheiro, hoje,
cadê? Acabou. Seu fulano fazendeiro está plantando eucalipto, seu
fulano de tal está plantando eucalipto, zerou, todo mundo está
parado, não tem serviço, só melhorou para quem plantou, que entra
o dinheiro. para ele e pronto, e a comunidade está passando
necessidade. Eu vejo aí olha [indicando um senhor que neste
momento passava a pela rua em frente à venda na qual
estávamos sentados e onde se realizava a entrevista], está passando
muita necessidade. E é problema, que a gente não acha que só a
gente pode viver, todo mundo precisa de viver bem, né? Ou que vive
bem ou que vive mal, todo mundo precisa de viver, né? Então é o
que a gente sente. Ah fulano está passando necessidade, está
138
passando fome, vamos dar uma ajuda. Mas é pessoa que tinha e foi
na conversa dos outros, que existe muita gente boba ainda.
280
O senhor Sérvulo falou sobre um pouco daquilo que não era tranqüilidade e
deixou implícito que aquela situação, “A maioria do povo está passando
necessidade”, atingia pessoas que, em um passado recente, tinham possuído terras.
Havia, segundo sua narrativa, uma relação entre a venda das terras, o subseqüente
plantio de eucalipto e aquela situação de penúria para a maioria do povo”. Ele
traçou um paralelo entre a atividade agrícola existente no distrito antes e depois da
eucaliptocultura. Este teve como eixo os benefícios gerados por uma e outra
atividade. Ficou claro que o eucalipto trouxe benefícios. Entretanto, para o
entrevistado, estes se concentraram nas os daqueles que plantaram: “[...]
melhorou para quem plantou, que entra o dinheiro. para ele e pronto, e a
comunidade está passando necessidade.”
As benesses não foram pulverizadas, distribuídas na comunidade, como nos
tempos em que os donos de terra no distrito, inclusive muitos japoneses, faziam
cultivos agrícolas variados: “plantava feijão, era roça de mamão, tinha de tudo, de
tudo, quando chegava com quinze dias ele fazia pagamento do povo aqui na rua,
rolava dinheiro, [...].” Dinheiro que provavelmente circulava nas vendas, nos bares,
na compra de roupas e sapatos para os dias de folguedo, nos lances dados nos
animados leilões de frango assado, realizados no último domingo de setembro,
quando da festa de Nossa Senhora da Piedade padroeira de Helvécia. Ocasião
em que a população do distrito recebia/recebe parentes e amigos que chegavam
das mais diversas cidades do Brasil.
Na narrativa, o senhor Sérvulo não fez menção à existência de penúrias antes
da eucaliptocultura. Entretanto esta ausência deve ser relativizada. Moradores de
Helvécia já haviam passado necessidades, entretanto, elas não foram descritas
talvez porque, contrapostas à situação atual, o passado estivesse sendo lido pelo
entrevistado de uma forma idílica.
Nesta fala há também uma pista de como os laços de sociabilidade existentes
são acionados, através das informações veiculadas na comunidade, no sentido de
ajudar os conhecidos: “– Ah fulano está passando necessidade, está passando
280
Entrevista concedida à autora pelo sr. Sérvulo Constantino Filho em 15 ago. 2007.
139
fome, vamos dar uma ajuda.”
281
Viver com o eucalipto também era conviver com
antigos moradores de Helvécia que, por não terem mais nem terra nem trabalho,
experienciavam privações básicas de sobrevivência e passaram a contar com a
solidariedade de integrantes da comunidade para viverem. Pois, como disse o
senhor Sérvulo, “ou que vive bem ou que vive mal, todo mundo precisa de viver,
né?”
Um questionamento possível, a partir daquilo que nos foi apresentado pelo
senhor Sérvulo, seria por que, em Helvécia, camponeses que ainda possuem terras,
ao invés de continuarem a plantar os produtos agrícolas dos tempos de fartura, vivo
nas memórias, estão plantando eucalipto? A informação, elaborada através de uma
indagação feita pelo senhor Milson Silva Zacarias, jovem residente em Teixeira de
Freitas, filho de filhos de Helvécia, ligado àquele distrito por laços afetivos, diz algo
sobre este questionamento:
[..] Se for vê o que tá dando mais dinheiro hoje é o eucalipto. Num é?
a tendência de quem tem uma terrinha é o que? Plantar eucalipto.
Então com isso vai acabando né? vai engolindo a cidadezinha
[referindo-se à Helvécia]. O único jeito de fazer um bom dinheiro... aí
quem tem sua terra é arrendar prá uma boa empresa dessa ou
então... plantar eucalipto, não é isso? E com isso a terra tá acabando
hoje em dia, por causa disso. Rola muito dinheiro no eucalipto.
282
Ele parte do pressuposto de que as pessoas de Helvécia, que ainda têm suas
terras, almejem ganhar dinheiro, aderindo desta maneira ao plantio do eucalipto, “o
único jeito de fazer um bom dinheiro”. Ainda segundo o entrevistado, esta realidade
seria responsável pela “cidadezinha” estar sendo engolida pelos eucaliptos.
Quanto à afirmação “rola muito dinheiro no eucalipto”, esta será aqui
analisada, em relação ao distrito de Helvécia, com cuidado, em razão de alguns
elementos. Em primeiro lugar, nas pesquisas de campo, não pude observar
manifestações exteriores de riqueza. Nos espaços privados, destacava-se a
simplicidade dos equipamentos mobiliários e eletro-eletrônicos, bem como dos
meios de transporte e comunicação. As edificações recentes, construídas depois da
chegada do eucalipto, em nada se aproximam da idéia de opulência. Existe uma ou
outra construção residencial que se destaca, seja pelo tamanho, seja pelo estilo,
mas isto é uma exceção. Em geral as casas de alvenaria são simples e ainda
281
Entrevista concedida à autora pelo sr. Sérvulo Constantino Filho em 15 ago. 2007.
282
Entrevista concedida à autora pelo sr. Milson Silva Zacarias em 15 mar. 2007.
140
existem casas de pau-a-pique. Nas propriedades rurais, os sinais externos
indicavam/indicam rusticidade e improvisação. Também não há bem feitorias
públicas no distrito que, de alguma forma, traduzissem, ou mesmo indicassem que
ali estaria “rolando muito dinheiro”. Na grande maioria das ruas de terra batida do
distrito e sem sistema de esgotamento sanitário, circulam poucos veículos
automotores, de modelos populares e bem marcados pelos sinais do uso. Se, rola
muito dinheiro no eucalipto”, ele segue outros caminhos, que não os trilhados pela
maioria dos habitantes de Helvécia e seus arredores.
A preocupação do senhor Milson em relação ao que está acontecendo em
Helvécia diz dos laços afetivos mantidos com membros da comunidade e das
memórias associadas aos seus ascendentes:
[...] antes do eucalipto chegar a cidade... Cara [dirigindo-se à
entrevistadora], era várias frutas, tinha vários sítios em Helvécia,
você vê o pessoal naquele ânimo trabalhar em sua roça, meu avô,
pai do meu pai tinha uma roça, hoje é eucalipto. Nós ia plantar e
colher, torrar a farinha .... então hoje cabou.
283
Este mesmo jovem que nos falava das mudanças, identificadas na tendência
de plantar eucalipto por donos de uma “terrinha”, também experienciou a sensação
de permanência, pois a gleba que pertenceu aos seus avós maternos, diferente
daquilo que acontecera com as terras do avô paterno, continuou nas os de sua
família, como fruto de herança. Ela não foi vendida, apesar das ofertas feitas pelas
firmas de eucalipto. Fato que, pelo visto, envaidece e orgulha a família Zacarias.
284
A respeito da suposta “escolha” dos camponeses pelo plantio de eucalipto em
detrimento de outros cultivos, um camponês relatou
[...] o eucalipto hoje para quem planta é o melhor empreendimento
que o camarada pode fazer, que não tem agricultura nenhuma que
mais que o eucalipto, não tem gado, o tem, e a maioria hoje
está vivendo, está partindo para o eucalipto. Porque eu gosto de
mexer com a agricultura né? Mas tem um lado bom e um lado ruim
que o eucalipto ele... Eu hoje se eu for mexer com a agricultura, eu
emprego hoje, emprego não, dou trabalho para umas quatro ou cinco
pessoas e o eucalipto não, eu vou ter o plantio dele, caso for,
dependendo uma pequena área eu mesmo cuido. Porque, eu com
283
Entrevista concedida à autora pelo sr. Milson Silva Zacarias em 15 mar. 2007.
284
A entrevista com o sr. Milson Zacarias foi realizada na presença de sua mãe e esta manifestou,
assim como o filho, orgulho por ainda possuir terras em Helvécia.
141
um trator, eu vou pulverizo com o maquinário pronto, depois daqui
a três meses eu pego duas pessoas vou lá adubo, pronto.
285
Alguns proprietários de terra em Helvécia, que não as venderam para as
firmas de eucalipto, se associaram aos interesses destas empresas, plantando
eucalipto, com o intuito de obter lucros individuais, bem como uma redução na
jornada de trabalho na roça, pois, pelas informações colhidas em diversas
entrevistas, o cultivo do eucalipto não demandaria uma exigência de cuidados
diários. Além disso, o número de pessoas envolvidas nesta atividade é menor e o
serviço é temporário, o que, na lógica capitalista, significa menos investimento,
menos gasto com mão-de-obra e mais lucro.
Esta colaboração, ou associação entre os camponeses e os grupos
identificados com o agronegócio, encobria/encobre discrepâncias existentes entre
dois projetos. Um no qual a terra era vista como provedora não só das condições
materiais de sobrevivência, mas também como um lar, um lugar de sociabilidade ao
qual se estava ligado por laços afetivos, e por esses motivos era importante manter
a propriedade da terra. Para isso, naquele contexto, uma das maneiras encontradas
foi aderir à pratica do fomento e realizar o plantio de eucalipto.
O outro projeto, por seu turno, associava a terra à produção de eucalipto em
consonância com os ditames do mercado, de maneira a atingir as metas de
produtividade, vendas e lucros estabelecidas pelas empresas.
Quando perguntei ao senhor Jorge a respeito da existência ou não de
incentivos do governo para o plantio de produtos agrícolas, ele disse o seguinte:
A maioria, quando alguém vai plantar um plantio, por exemplo,
assim, vai plantar abóbora, ele tem um sério risco de tomar um
empréstimo no banco e não pagar esse empréstimo a terra dele
fica em jogo, porque, hoje para você mexer com a agricultura,
agricultura pesada no caso, em um tamanho maior, você tem que ter
uma irrigação porque você corre risco de perder, as vezes é muita
sol ou muita chuva e o eucalipto o. As vezes a pessoa chega
assim, eu já cansei de tomar veneno na cara... Tem um colega meu
que hoje ele tem duzentos hectares de eucalipto, ele falou assim:
Jorge meu trabalho aqui era de agricultor mesmo, mexia mesmo,
pegava no pesado, eu parei, porque não tem, não tem incentivo
nenhum na agricultura, você toma um dinheiro emprestado em um
banco e às vezes você não tira. Trabalha, trabalha, trabalha e não
tira, chega no final do ano você tem que pagar, você tem que tirar um
bezerro dali, um bezerro de lá e vai ter que pagar para vo não
285
Entrevista concedida à autora pelo sr. Jorge Ferreira da Silva em 14 ago. 2007.
142
perder a sua terra, para sua terra não ser hipotecada... então ele
falou: Hoje eu tenho eucalipto lá cem hectares, duzentos mais
novas, cem hectares mais velha. Diz ele que depois de um período
de dois anos a Aracruz paga dois por cento ao ano por hectares,
ele falou: Jorge eu estou ganhando por ano trinta mil, sem fazer
nada, ganhando sem fazer nada. que ele é um cara que ele, ele
cria o boi dentro do eucalipto, então ele o acabou, só que ele não
mexe com a agricultura mais, então a vantagem do eucalipto é isso.
Ele mesmo e o filho dele que cuida do eucalipto, vai ter mão-de-
obra a partir do corte. como é que fica? Como é que a pessoa
sobrevive? Não tem como.
286
Essas informações trazem a idéia de um contraste entre a atividade da
eucaliptocultura e a atividade agrícola. Explicita os riscos inerentes a esta última em
razão das exigências de investimento, por exemplo, com o processo de irrigação.
Este processo obrigava o camponês a contrair empréstimos em bancos, quase
sempre hipotecando a terra. O não pagamento da dívida podia implicar a perda da
propriedade para a instituição credora. Por outro lado, o cultivo do eucalipto não
exigia irrigação e, além da diminuição dos custos com a mão-de-obra, contava com
os recursos das empresas através da prática do fomento.
Em relação à situação do amigo ao qual o entrevistado faz referência, convém
frisar a existência da criação de gado dentro da plantação de eucalipto, traduzida
pelo senhor Jorge como uma permanência: “Só que ele é um cara que ele, ele cria o
boi dentro do eucalipto, então ele não acabou, [...].” Em Helvécia, o plantio do
eucalipto em consórcio com a pecuária foi uma das maneiras encontradas por
alguns dos proprietários de terra, que aderiram à eucaliptocultura, para continuarem
a desenvolver seus antigos labores.
No que diz respeito à prática do fomento, esta, muitas vezes, foi lida por
alguns camponeses, não só como sendo certeza de ganhos, como também de
ganhos sem grandes esforços. Segundo senhor Jorge, ele ouviu de um outro
camponês: “Jorge eu estou ganhando por ano trinta mil, sem fazer nada, ganhando
sem fazer nada.”
287
Entretanto, em relação ao fomento, existem na comunidade
vozes que destoam:
O fomento, ela [referindo-se à “firma”] entra com todas as despesas,
um exemplo assim, eu tenho a minha terra lá, o que está influindo é
isso, quem tem suas terras prontas para venda, manga, está tudo
beneficiado, ela paga trezentos e cinqüenta reais por hectares,
286
Entrevista concedida à autora pelo sr. Jorge Ferreira da Silva em 14 ago. 2007.
287
Entrevista concedida à autora pelo sr. Jorge Ferreira da Silva em 14 ago. 2007.
143
esses trezentos e cinqüenta reais é para você limpar sua terra,
estocar, tirar toco, mas quem tem suas terras tudo prontinha, ele
pega esses trezentos e cinqüenta e sem, sem fazer nada, ali é
meu, a terra está ali e pronto. Mas que ele, o que eu vejo, o
fomento para quem não tem opção nenhuma é a melhor coisa para
quem não tem opção, mas que a partir do momento que ela
ganha ali ela já está pagando sua madeira, daqui seis anos ela
está começando pagar, quando chega daqui dois anos ela paga dois
por cento em cima do valor dos hectares que vai tirar, ela faz um
cálculo e paga, está te pagando, você o está percebendo que
está te pagando, quando chega a época de vocortar você vai
ver o peso, o desconto, quanto é aquele adubo, aquela muda, aquela
herbicida, aquele dinheiro que te deu para destocar, aí ela quer tudo
em madeira, mas na fábrica não é aqui na roça não, tem que
pagar o frete. Então é bom, para quem não tem opção, mais ela
cobra tudinho, ela está incentivando, mas ela deu não, ela quer
tudo de volta.
288
A riqueza desta fala consiste na descrição dos detalhes que envolvem a
transação do fomento. Em primeiro lugar, fica claro o interesse das firmas na
expansão do plantio de eucalipto. Diferente do momento de chegada ao distrito, em
que as mesmas faziam oferta de compra das terras, o meio utilizado para atingir o
objetivo passou a ser o fomento. Acertado o acordo entre o dono da terra e os
representantes das empresas de eucalipto, iniciava-se o investimento. O primeiro
incentivo era em forma de recursos para que fosse feita a limpeza da terra, “limpar
sua terra, estocar, tirar toco”. Os camponeses que tinham sua terra preparada
para o plantio levavam vantagem em relação aos demais, pois embolsavam o valor,
investindo-o em outros negócios. Em seguida, o camponês recebia o adubo, as
mudas, os herbicidas. Os valores correspondentes a estes produtos seriam
descontados ao final do contrato, afinal, como asseverou o senhor Jorge, ela está
incentivando, mas ela deu não, ela quer tudo de volta”.
Através deste mecanismo, as empresas estabelecem com os proprietários de
terra uma relação na qual eles irão contribuir com suas produções para que ela
atinja suas metas de produtividade. Neste tipo de contrato, não se configura uma
relação patrão e empregado. Desta forma, não cabe às empresas o ônus com o
pagamento de direitos trabalhistas e impostos, o que significa diminuição nos custos
da produção. Havia/há ainda um outro expediente, usado pelas firmas de eucalipto
para “convencer” as pessoas a aderirem àquele cultivo. Este consistia em “ilhar” as
pessoas.
288
Entrevista concedida à autora pelo sr. Jorge Ferreira da Silva em 14 ago. 2007 (grifo da autora).
144
Assim, por exemplo, eu tenho a terra aqui e oferecendo um valor
mais alto que sua terra vale, as pessoas sentem seduzidas por isso,
pagando mais pelas terras e você fica ali cercada, você acaba
vendendo. Eu vendo a minha, você vende a sua e fica ali no meio e
aquilo é uma pressão muito grande, a pessoa acaba ali se sentindo
sufocada e fazendo a mesma coisa vendendo suas terras, [...].
289
Dentro da lógica capitalista, atender às necessidades do mercado e obter
lucros ofertando aquilo que estava sendo demandado justificava, para os
representantes da Aracruz e Suzano, o uso de diferentes estratégias, no sentido de
expandir a área de cultivo do eucalipto.
Viver com eucaliptos não era somente uma escolha feita pelos donos de terra.
Em Helvécia, viver com eucaliptos, era/é uma realidade que estava associada à
expansão do capital e ao aumento da demanda do mercado internacional.
Entre 1980 e 1992, a produção brasileira de celulose para
exportação cresceu cerca de 83% e as maiores empresas do
complexo agroindustrial de celulose de mercado (Aracruz, Cenibra,
Riocell, Monte Dourado e Bahia Sul), todas constituídas entre os
finais das décadas de 60 e 80, foram consideradas os atores
responsáveis pela especialização do país como o principal
exportador de celulose de fibra curta de eucalipto. Assim, o Brasil
passou a ocupar, em 1993, o quarto lugar no ranking mundial de
produção e exportação de celulose de mercado e o primeiro no que
se refere à celulose de fibra curta de eucalipto.
290
Satisfazer essa demanda do mercado exigia das empresas ações que
garantissem atingir suas metas de produtividade, vendas e lucros. Uma das
estratégias utilizadas neste sentido foi exatamente incrementar a prática do fomento.
Assim, em um mercado ávido pelo produto, também para alguns dos
proprietários/posseiros de terra em Helvécia, produzir eucalipto, dentro dos padrões
exigidos pelas “firmas”, significava a possibilidade de obter algum ganho e, em
última instância, garantir a propriedade de sua terra. Ocorre que ao fazer este
contrato, os camponeses também ficavam sujeitos às oscilações do mercado, e
estas se faziam/fazem presentes no cotidiano dos camponeses de Helvécia.
291
289
Entrevista concedida à autora pela sra. Roseli Ricardo Constantino em 15 ago. 2007.
290
Gertner et al (1997) e Kenny (1997). In: José Célio Silveira Andrade. Conflito, cooperação e
convenções: a dimensão político-institucional das estratégias sócio-ambientais da Aracruz Celulose
S. A. (1990-1999). Tese de doutorado em Administração, Escola de Administração, Universidade
Federal da Bahia, Salvador, 2000, p. 67.
291
Em razão do agravamento da crise mundial, uma onda de temor no Extremo Sul baiano, uma
vez que a Aracruz Celulose já sinalizou o rompimento dos contratos de fomento. Caso isso ocorra, os
camponeses dependentes unicamente da eucaliptocultura entrarão em ruína.
145
Por outro lado, havia, nas relações de mercado, mais do que a demanda pelo
crescimento da eucaliptocultura. O incremento da competitividade no mercado
internacional estabeleceu novos padrões de regulação, nos quais “a unidade não é
mais propriedade privada individual, mas o seu coletivo, que é o território”.
292
O maior incremento a esta prática, em substituição a compras de terras, após
o reconhecimento do distrito como área remanescente de quilombo, tanto pode está
ligado ao fenômeno capitalista, de se apropriar da renda da terra sem ter sua
propriedade, como sugerir uma estratégia das empresas de se esquivarem do
enfrentamento direto com os habitantes de Helvécia que, a partir daquele momento,
passaram a ter amparo das leis no sentido de, independente de terem ou não a
titulação individual da terra, poderem continuar vivendo nas mesmas.
A respeito das relações estabelecidas na atualidade entre empresas e
comunidades, José Graziano da Silva afirma:
Não globalização que funcione sem alguma inserção no território;
e o território é por definição um espaço local. A globalização
revaloriza o território como um espaço onde os agentes sociais
fazem compromissos, acordos, estabelecem programas. Por isso,
cada vez mais as formas de controle social emergem a nível dos
municípios, das comunidades.
293
Desta forma, não interessava, por exemplo, às empresas Aracruz Celulose ou
Suzano Bahia Sul Celulose terem os seus nomes envolvidos em uma situação de
conflito de terras com integrantes daquela comunidade, sob pena de implicar perdas
comerciais e de imagem.
Diante daquela realidade, em que Helvécia foi reconhecida como área
remanescente de quilombo, as empresas de eucalipto que atuavam na comunidade
precisavam fazer notar suas ações de responsabilidade social, no viver com
eucaliptos. A este respeito, a Suzano Papel e Celulose, em material intitulado “Uma
história de Sucesso”, divulgado através do seu site,’ informava:
A Bahia Sul Celulose segue uma gestão transparente e
fundamentada na ética e adota o respeito às pessoas e ao meio
ambiente como princípio fundamental de sua atividade. Desde a sua
implantação no final da década de 1980, no Extremo Sul da Bahia, a
292
José Graziano da Silva. A globalização da agricultura. Palestra proferida no Centro Nacional de
Pesquisa de Monitoramento e Avaliação de Impacto Ambiental (CNPMA) da Embrapa. Jaguariúna,
24/4/97. Publicado em Silveira, M. e S. Vilela (eds.). Globalização e a Sustentabilidade da Agricultura.
Jaguariuna: Embrapa Meio Ambiente, 1998. p. 7.
293
Idem, p. 9.
146
empresa vem contribuindo para fomentar o desenvolvimento da
região. Investimentos de porte garantiram a construção de vilas
residenciais, escolas, hospital, estradas e infra-estrutura para
comunicação, trazendo benefícios diretos para os moradores locais.
Passados mais de dez anos da sua instalão, a Bahia Sul Celulose
continua a incentivar programas voltados para o desenvolvimento
regional e a incentivar e promover ações, com ênfase nas áreas de
educação e saúde, contribuindo para o processo de inclusão social
da população local. Promover o desenvolvimento em bases
sustentáveis e tornar a cultura acessível para a população carente da
região sul da Bahia são os dois grandes desafios da Bahia Sul
Celulose. Desafios que a empresa adotou como metas e que vêm
sendo atingidas.
294
.
Qual terá sido a ética que fundamentou a estratégia, revelada por Roseli
Constantino, de ilhar pessoas? Em que medida aquelas pessoas que viveram sob
pressão tão bem descritas pela entrevistada foram respeitadas?
3.1 RESISTÊNCIAS MIÚDAS
James Scott faz uma crítica aos estudos sobre camponeses que valorizam
unicamente as atuações destes, quando elas implicam algum tipo de perda
significativa para o Estado ou para a ordem vigente. Por aquilo que foi apresentado
até o momento, é possível afirmar que as ões dos camponeses em Helvécia nas
suas relações com o agronegócio do eucalipto não implicaram obstáculos que
comprometessem o desenvolvimento dos projetos das empresas que ali atuam
desde 1980. Entretanto este dado não deve ser motivo de recusa em se realizar
estudos dos camponeses como sujeitos históricos que participam no processo de
construção de sua realidade, transformando-os, como também nos alerta Scott, em
meros “[...] contribuidores mais ou menos anônimos para as estatísticas sobre
densidade populacional, impostos, migração da mão-de-obra, propriedade de terras
e a produção agrícola”.
295
Outra maneira de não registrar os camponeses como sujeitos históricos pode
ser encobrindo as fissuras existentes entre os seus projetos de vida e os das
empresas de eucalipto através de estudos que, ao fazer uso de análises macro,
acabam por desconsiderar os indivíduos. Seria o caso, por exemplo, de autores de
294
http://www.suzano.com.br/suzano/responsabilidade_social/balanco_social.pdf
295
James C. Scott. Formas cotidianas da resistência camponesa. Revista de Ciências Sociais e
Econômicas. Universidade Federal de Campina Grande, Programa de Pós-graduação em Sociologia,
vol. 1, n° 1, p. 11, jul./dez., 1982.
147
um artigo sobre a sustentabilidade da produção industrial de eucalipto no estado da
Bahia, no qual afirmam que “a presença de investimentos florestal e agroindustrial
tem gerado um impacto na região, alterando a organização socioeconômica e
inaugurando na região uma nova lógica de crescimento econômico”
296
, e
apresentam dados a respeito do crescimento de renda per capita, bem como
comprovações do aumento do Índice de Desenvolvimento Humano Municipal. Eles
não apresentam os camponeses como atores históricos, uma vez que não discutem
os significados das alterações sinalizadas para as pessoas que viviam/vivem
naquela região, suas ações e reações em relação às mudanças e permanências
processadas, não somente no universo socioeconômico, como também cultural e
político.
Ainda segundo Scott, a ênfase nas rebeliões camponesas deveria considerar
a luta cotidiana “entre os camponeses e aqueles que querem extrair deles o
trabalho, o alimento, os impostos, os aluguéis e os lucros”.
297
Ele salienta que,
mesmo os fracassos, muitas vezes resultantes destes embates, podem representar
algum ganho, em forma, por exemplo, de determinada concessão por parte do
Estado, uma pequena pausa em relação ao ritmo das novas formas de produção, ou
ainda uma meria de resistência que nortearia as ações futuras dos camponeses.
Scott, ao mesmo tempo em que chama a atenção para a possibilidade da existência
destes ganhos, destaca, entretanto, sua incerteza, contrapondo-a à certeza da
existência de repressão por parte dos grupos que detêm o poder.
3.1.1 “PIOR DE TUDO É NADA, NÉ?”
Um camponês de Helvécia, senhor Kemi Krull, após falar dos bons tempos e
de suas memórias sobre as festas e a fartura do comércio na localidade, rememorou
o tempo da eucaliptocultura. Falou de sua labuta na terra e das dificuldades do
tempo de agora, da “dureza do cotidiano”:
298
[...] hoje em dia... Se por acaso o camarada levar três sacos de
farinha em Helvécia ele pede graças a Deus se vende nem que seja
296
Jorge Emanuel Reis Cajazeiras, José Carlos Barbieri e Dirceu da Silva. Estudo da sustentabilidade
regional da produção industrial de eucalipto no estado da Bahia, s.l., s.ed., s.d., p. 4 (material
enviado pela Suzano Papel e Celulose, por e-mail, para a autora).
297
James C. Scott. “Formas cotidianas da resistência camponesa”, op. cit., p. 11.
298
Idem, p. 18.
148
dois sacos ou um, quer dizer, nessa parte aí caiu, muito, muito, muito
mesmo. Nem roça está existindo mais né? Acabou tudo, acabou tudo
rapaz [dirigindo-se a um senhor que estava presente durante a
entrevista], tudo, tudo, todo lado que a gente olha é só eucalipto, mas
vamos dizer que está bom né? Que serve também né? Porque
vamos dizer, se eu vender dois, três sacos de farinha, quem vai
comprar essa farinha é o povo que trabalha na firma, quer dizer que
de qualquer maneira eu estou ganhando dinheiro que a pessoa está
ganhando na firma.
299
Quando falou da dificuldade de vender os produtos da terra, “[...] hoje em
dia se por acaso o camarada levar três sacos de farinha em Helvécia ele pede
graças a Deus se vende nem que seja dois sacos ou um, [...]”, é razoável que se
diga aqui que esta pode ter sido uma experiência de sua própria labuta, sendo
possível que ele tenha sido “o camarada” que levou sacos de farinha para vender no
comércio de Helvécia e encontrou dificuldades para fazê-lo.
Alguns registros fotográficos feitos no momento da entrevista podem
contribuir para que se compreenda, a partir da análise das imagens, o lugar ocupado
pelo senhor Kemi Krull, ou seja, a partir de que lugar aquele camponês está falando.
Figura 6 – Barracão na propriedade do senhor Kemi Krull, agosto 2007
Fotografia: Trabalho de campo.
299
Entrevista concedida à autora pelo sr. Kemi Krull em 15 ago. 2007.
149
Este barracão (cf. figura 6) está localizado em sua propriedade. Se nos
ativéssemos a olhar apenas esta primeira foto, poderíamos fazer uma leitura
panorâmica: é um galpão, coberto com tabuinhas, de difícil definição quanto ao seu
uso.
Nesta fotografia/panorama, tem-se a impressão de um ambiente caótico (cf.
figura 6). Uma vara de bambu, utilizada como suporte para pendurar apetrechos,
apoiada sobre a tesoura de sustentação do galpão, ao lado direito uma corda
amarrada com um frouxo nó, várias cordas de embira dispostas na trave central, um
tampo de madeira apoiado no lado direito mais ou menos em baixo da segunda
trave, um feixe de tábuas junto ao esteio central, entre outros objetos que parecem
estar ali, simplesmente, amontoados.
Entretanto, se utilizássemos lentes próprias para captar os elementos que
compunham o espaço fotografado, estas seriam capazes de atribuir funções/vida
aos objetos aparentemente desprovidos de funções/mortos. Talvez com essa lente
fosse revelado que as cordas de embira, à esquerda, na primeira estaca de
sustentação do galpão, teriam utilidade precisa na lida com os animais, nas amarras
de feixes de lenha; as peneiras, com aros de madeira, penduradas logo na estaca
posterior, um pouco à esquerda das cordas de embira, seriam usadas no processo
de peneirar a farinha; a bicicleta verde, encostada no tonel vermelho, poderia ser
empregada como meio de transporte da produção de farinha até o povoado de
Helvécia. Passaríamos a ver, a partir do uso dessas lentes sensíveis, que estes
objetos podem ser representados por um sistema, com suas funções precisas e
complementares, associadas ao universo de produção daquela micropropriedade e
das pessoas que ali vivem.
Para melhor visualizar os artefatos existentes naquele galpão, fundamentais
no processo de produção da farinha, feita pelo senhor Krull e sua esposa, vale
operar cortes fotográficos, de primeiro plano, na tentativa de contribuir para a
identificação e função daqueles instrumentos de trabalho dispostos ao fundo do
galpão (cf. figura 6).
150
Figura 7 – Prensa manual, propriedade do senhor Kemi Krull, agosto 2007
Fotografia: Trabalho de campo.
Figura 8 – Cocho, propriedade do senhor Kemi Krull, agosto 2007
Fotografia: Trabalho de campo.
151
Figura 9 – Forno, propriedade do senhor Kemi Krull, agosto 2007
Fotografia: Trabalho de campo.
A seqüência de imagens (cf. figuras 7, 8 e 9) indica o processo de produção
da farinha. A mandioca, cultivada na gleba pelo senhor Krull e esposa, era
descascada e levada até a prensa artesanal (cf. figura 7), ali era processada e
armazenada no cocho (cf. figura 8), para só então ser levada até o forno (cf. figura 9)
e torrada.
Estes registros visuais representam uma permanência que, muitas vezes, se
oculta ante as imagens da sociedade moderna do agronegócio do eucalipto. Talvez
por isso, agora, seja preciso explicá-las detalhadamente, para que as mesmas
possam informar que aquele universo está vivo.
A respeito do destino da farinha produzida, aquele camponês contou que
“quando dá para vender a gente vende, quando não dá o consumo é da casa
mesmo”.
300
E continuou dizendo que a venda, quando ocorria, era feita na feira de
Teixeira de Freitas: “É exatamente em Teixeira, tem vez que o preço está bom, tem
vez que está ruim, mas pior de tudo é nada né?”
301
Este deslocamento de
camponeses de Helvécia para os lugares próximos em busca de mercado
consumidor para seus parcos produtos nos sugere que aquele distrito já não mais
300
Entrevista concedida à autora pelo sr. Kemi Krull em 15 ago. 2007.
301
Entrevista concedida à autora pelo sr. Kemi Krull em 15 ago. 2007.
152
vivia nos tempos da estação, nos tempos do comércio “promissor”, e que diante de
uma impossibilidade real, no presente, de transformar aquela situação, os
camponeses ajustavam suas ações às circunstâncias existentes. Scott afirma que
essas adaptações possuem um caráter pragmático, o que significa que as mesmas
não implicam a exclusão de certas formas de resistência, ao mesmo tempo em que
se adaptar “não implica um consentimento normativo daquelas realidades”.
302
Continuando sua narração, o senhor Krull, alinhavou a dificuldade em
comercializar não só a partir da desativação da estrada de ferro Bahia-Minas como
também devido à inexistência de roças na região. Sua fala explicitava sua
experiência: “[...] nem roça está existindo mais né? Acabou tudo, acabou tudo
rapaz,
303
tudo, tudo, todo lado que a gente olha é só eucalipto, [...]”
304
É bom que se informe que o entrevistado que afirma que acabou tudo e diz
que olhando se vê eucalipto, estava fazendo uma descrição do ambiente no qual
ele se encontrava quando da entrevista. O encontro com o senhor Kemi Krull se deu
na sua pequena e isolada propriedade, cercada pela plantação de eucalipto. A
constatação de que “acabou tudo” é indicativo da solidão em que ele se encontrava.
Acabou o contexto de pequenas propriedades que compunham a sua vizinhança. A
sua gleba de terra, pelo simples fato de ter se mantido naquele lugar, adquiriu a
condição de elemento extraordinário.
Ao mesmo tempo em que o senhor Krull é exemplo de permanência, é
também testemunha ocular das mudanças. O impacto da magnitude destas foi
sentido por ele de tal forma que a sua manifestação sobre o assunto suprime um
dado essencial, qual seja, o fato de que ele é a prova viva de que nem tudo havia
acabado.
Por outro lado, caberia uma indagação. Em certo sentido, o senhor Kemi Krull
não teria razão quando afirma que tudo acabou? Responder a esta questão implica
compreender o que é esse “tudo” por ele mencionado. foi indicado que ele é um
“resto”, quando antes ele era uma parte no interior de um modelo vigoroso de laços
sociais, econômicos e culturais. Portanto, a sua permanência em condição de
isolamento tal como passou a ser deve ser interpretada também como sinal de que
302
James C. Scott. Formas cotidianas da resistência camponesa, op. cit., p. 18.
303
Esclareço que no dia da entrevista com o senhor Kemi Krull, fui levada até a sua roça pelo senhor
Jorge, que, sendo de Helvécia, me apresentou e acompanhou a referida entrevista, daí em sua fala o
senhor Kemi Krull ter se referido a um “rapaz”.
304
Entrevista concedida à autora pelo sr. Kemi Krull em 15 ago. 2007.
153
“tudo acabou”. E neste “desmantelamento” ele passou a forjar novos arranjos e
maneiras de atuar no novo cenário.
[...] mas vamos dizer que es bom né? Que serve também né?
Porque vamos dizer, se eu vender dois, três sacos de farinha, quem
vai comprar essa farinha é o povo que trabalha na firma, quer dizer
que de qualquer maneira eu estou ganhando dinheiro que a pessoa
está ganhando na firma.
305
Este tipo de prática e reflexão sobre a prática mostra a sabedoria do
entrevistado em lidar com as transformações que estavam sendo processadas em
Helvécia sem abrir mão dos seus saberes. A permanência da produção da casa de
farinha em sua propriedade, apesar das perdas que aquele labor havia acumulado
ao longo dos anos, foi lida por mim como sendo uma espécie de memória da
resistência” diária do senhor Krull e de sua esposa Benedita.
3.1.2 “EU NÃO VOU VIVER DE PAU”
Levando-se em conta o caráter de permanência, além do senhor Krull,
identifiquei dois outros pequenos proprietários resistentes à venda de suas terras.
Estas três glebas estão localizadas distantes umas das outras, e podem ser
representadas como três ilhas, cercadas pelo eucalipto, tal como os próprios
entrevistados se referiram. Esta diluição no “mar de eucaliptos” não contribuiu para
que se pudesse pensar na existência dessas glebas como parte de um movimento
de resistência devidamente organizado, com estratégias de enfrentamento comum.
na história de vida destes pequenos proprietários, entretanto, alguns
pontos similares. Em primeiro lugar, de acordo com as entrevistas, foi possível
observar um caráter de tenacidade nestes homens, expresso nas suas falas
fluentes, de narradores natos, e também na “[...] corporeidade, o peso, o calor, o
volume real do corpo, do qual a voz é apenas expansão”.
306
Todos eles viveram
longos e diferentes tempos em Helvécia, à época das entrevistas, suas idades
variavam de 64 a 84 anos. Em dois dos casos pode-se observar que tal resistência
era objeto de certo embate familiar, pois membros da geração mais nova da família
eram, por vezes, favoráveis à venda das terras; os pais, por seu turno, se opunham
305
Entrevista concedida à autora pelo sr. Kemi Krull em 15 ago. 2007.
306
Paul Zumthor. Perfomance, recepção, leitura. São Paulo: EDUC, 2000, p. 19.
154
e chamavam para si a condição de poder e autoridade para decidir sobre o futuro da
propriedade.
Em relação a esta questão, quando perguntei ao senhor Norberto se ele
havia recebido alguma oferta de compra de suas terras por parte das firmas de
eucalipto, ele enfaticamente respondeu:
Fica calado. Filho que vem com bestagem, eu não dou. Filho, no dia
que filho de ser pai eu mudo dessa vida. Eu fui filho, eu não atentou
meu pai. Ah, que botar, aqui não bota. Bota batata, bota mamão,
bota abacaxi, bota o que for, mas, eu trabalhei quinze anos, eu
trabalhei encostado do viveiro [referia-se a um viveiro de mudas de
eucaliptos], eu o trouxe uma muda de eucalipto para o meu
lugar, eu o vou viver de pau, eu vou viver de alimento. Chega
tira meus coco, panho uma coisa que eu quero, mas é coisa de
alimentar, não dou não, não dou não, meus filhos plantou uma
areazinha lá, trouxe duas caixas de eucalipto, botou lá, disseram que
era para fazer cerca, mas eu não dou liberdade, eu ensinei vocês o
que presta, o que não presta vocês aprenderam [...]
307
O entrevistado não cogitava a venda de suas terras, “Filho que vem com
bestagem, eu não dou”. Ele nem mesmo queria em sua gleba a presença de plantios
de mudas de eucalipto, nem para o uso da madeira como cerca. O senhor Norberto
apresentou sua terra como o seu lugar de produção de alimentos e foi enfático ao
dizer “eu não vou viver de pau”.
Havia uma indicação de que aqueles homens queriam demonstrar que
estavam vivos e eram eles que comandavam as suas vidas e garantiam a segurança
dos seus descendentes, atuando conforme ensinamentos recebidos de seus
progenitores. Essa era uma resistência saboreada como sendo um ganho, “uma
memória da resistência e da coragem que pode servir para o futuro”
308
.
Igual eu, tenho pouca leitura, já tenho uma experienciazinha que meu
pai sempre falava com a gente: Olha você tem que crescer,
trabalhar para ter suas coisas, não vai na conversa de ninguém. [...]
Olha quando o meu pai morreu, eu estava com dezessete anos de
idade, graças a Deus nunca saí de cima da terra que ele deixou para
nós, até hoje estou com ela e eu estou com setenta e sete anos,
estou em cima dela. Vou pego meu trator, vou para a roça,
trabalho. Tem o meu genro, nós sempre trabalha junto, pego um
animal vou juntar o gado no campo e dessa maneira. E se não tiver
como é que vai fazer? Fica pior, meu neto chega aqui, tudo chega
307
Entrevista concedida à autora pelo sr. Manoel Norberto Henrique de Sena em 14 out. 2007 (grifos
da autora).
308
James C. Scott. “Formas cotidianas da resistência camponesa”, op. cit., p. 11.
155
aqui, fala: Ah eu vou na roça hoje! Mas por causa de quê? Que tem
alguma coisa lá e se não tivesse? Fica difícil, fica difícil.
309
Conforme as recordações do senhor Sérvulo, havia, no momento da
entrevista, uma possibilidade de desfrutar de certo sentimento de vitória no que se
referia à decisão, tomada no passado:
A gente se sente bem porque justamente amanhã se eu morrer de
hoje para amanhã largo para eles né? Se eles quiserem vender aí é
caso deles, não estou vendo nada entendeu? E eu vou deixar igual o
meu pai deixou aí, não vendo não, se vender vai para a pior né?
310
A decisão, de não ceder às propostas de compra de suas terras pelas
empresas de eucalipto ou seus intermediários, foi inicialmente vista, por muitos
membros da comunidade, como despropositada:
Ave Maria, eu tive oferta, teve carrão na minha porta, eu disse:
Rapaz voacha que eu vou trocar a minha terra por um carro? Sou
algum palhaço? Então foi o que aconteceu e hoje eu tenho minha
terra. Está lá, tenho minhas vaquinhas, tenho meu trator, estou com
vinte e poucos alqueires de terra e nós estamos vivendo. Aposentei
por ali, minha mulher aposentou nessa terra, então é o que
aconteceu, vi vários que todo mundo tinha terra e hoje ninguém
tem mais nada e cadê emprego? Cadê?
311
Essa atitude de vanglória chegou mesmo a ser exacerbada. Pude constatá-la,
por exemplo, ao presenciar um diálogo do senhor Sérvulo com o senhor Gabriel
Cercílio Monteiro, em que o primeiro falava das vantagens que lhes coubera por não
ter cedido às pressões outrora feitas para que vendesse sua propriedade, ao mesmo
tempo que zombava do amigo por ele não ter agido da mesma forma. Este, por sua
vez, se defendia: “O que foi foi, o que foi ninguém vai mais contar né? Eu
estou com setenta e quatro anos de idade, foi, já vendeu, pode ser por mil réis,
pode ser por dois, pode ser por três.”
312
A voz não chegava a ser embargada, mas
não era uma voz altiva. Ao contrário do amigo, o senhor Gabriel não queria falar do
passado, insistia que não fazia sentido ficar falando do que passara, importava o
presente, e, no presente, ainda lhe restava um pedaço de terra.
309
Entrevista concedida à autora pelo sr. Sérvulo Constantino.Filho em 15 ago. 2007.
310
Entrevista concedida à autora pelo sr. Sérvulo Constantino.Filho em 15 ago. 2007.
311
Entrevista concedida à autora pelo sr. Servulo Constantino.Filho em 15 ago. 2007.
312
Entrevista concedida à autora pelo sr. Gabriel Cercílio Monteiro em 15 ago. 2007.
156
Quando perguntei ao senhor Gabriel se ele havia vendido muita terra para as
empresas de eucalipto, antes que ele tomasse a palavra, o senhor Sérvulo se
antepôs, respondendo: “Vendeu, ele tinha para mais de quarenta alqueires
313
de
terra não era? Mas ele ainda ficou arranjado, está com dois alqueires de terra,
dentro da rua, ele estava bem, terra boa, na Jacutinga.”
314
Ao ouvir do amigo
aquele comentário, o senhor Gabriel, com voz que indicava constrangimento, disse:
“Estando com saúde está bom, o ruim é ficar doente e morrer, não é?
315
Esse diálogo pode ser interpretado como uma espécie de acerto de contas
entre as duas posições antagônicas aqui indicadas. Inicialmente, é possível que
tenha cabido ao senhor Gabriel a posição daquele que zomba, diante da resistência
do amigo Sérvulo em não vender a sua terra, em se recusar a fazer um “excelente
negócio”. Imediatamente após a venda, o senhor Gabriel estaria cheio de razão.
Posteriormente, houve a inversão de papéis. Isto consiste no que chamei de acerto
de contas.
No que tange às semelhanças entre as experiências do senhor Krull, do
senhor Sérvulo e do senhor Norberto, é perceptível, a partir das respostas dadas,
que eles apesar das idades avançadas, continuavam atuando diretamente em suas
propriedades e desenvolvendo a prática agrícola.
A narrativa a seguir fala da variedade da produção agrícola, mas está
centrada no tempo presente, no tempo da eucaliptocultura:
Aqui tem banana plantada, tem laranjeira, tem abacaxi, mandioca,
feijão de corda, tem coqueiro, jaqueira, tudo isso tem né? Agora não
planto mais coisa, vamos dizer uma melancia, abóbora, falta de
condição e outra que aqui nessa área aqui não tem água, disse que
vai puxar energia e nunca que essa energia aparece né? Todo ano o
imposto eu pago, todo ano eu pago, mês que vem é hora de pagar o
imposto e acabando, cadê? Nada da energia, mas Deus é bom,
Deus dá o poder.
316
O senhor Krul nos falou da existência de uma produção variada, e ao fazê-lo
nos permitiu conhecer um pouco dos seus hábitos alimentares, daquilo que,
produzido por ele, compunha, na atualidade, sua mesa. As dificuldades de produção
aparecem nesta fala associada à ineficiência do poder público, que cobra impostos
sem, em contrapartida, disponibilizar os serviços necessários ao bem-estar dos
313
Na Bahia o alqueire corresponde a 19.36 hectares.
314
Entrevista concedida à autora pelo sr. Sérvulo Constantino Filho em 15 ago. 2007.
315
Entrevista concedida à autora pelo sr. Gabriel Cercílio Monteiro em 15 ago. 2007
316
Entrevista concedida à autora pelo sr. Kemi Krull em 15 ago. 2007.
157
indivíduos da comunidade. Diante desta constatação, o senhor Krull finaliza o trecho
de sua fala recorrendo às suas crenças, ao poder divino, que sendo bom, dará,
senão a energia, o poder.
O senhor Sérvulo, por sua vez, também nos falou dos cultivos que continua a
desenvolver em sua propriedade:
eu tenho, nós temos roça de mandioca, planto milho, feijão,
melancia, abóbora, entendeu? Crio gado, animal, você entendeu? E
também laranja, coco, jaqueira. É, graças a Deus, nós plantou
maracujá, fizemos uma roça de maracujá muito grande, e agora nós
vamos fazer outra, se Deus quiser.
317
A recorrência à força divina também apareceu nesta fala. Viver com
eucaliptos era uma tarefa que demandava a necessidade de outros apoios.
Quanto ao senhor Norberto, ao entrevistá-lo, fiz perguntas utilizando o tempo
verbal no passado, e ele, ao respondê-las, enfatizou a idéia da permanência. Ao
analisar as, respostas identifiquei uma fricção entre aquilo que o narrador tinha a
dizer e minha falta de sensibilidade, naquele momento, em perceber o que estava
acontecendo. Era como se eu não estivesse vendo que o senhor Norberto me
falava de suas ações no tempo presente. Quando fiz a primeira pergunta “E
quando o senhor era mais jovem, trabalhando na terra, como é que era? O que o
senhor lembra, quando saía para trabalhar na terra, para lidar com a terra, como era,
seu Norberto?
318
–, referia-me às lembranças do trabalho na terra quando ele era
jovem. Mas o trabalho na terra continuava a fazer parte da sua vida, ele não
precisava recorrer àquele artifício que eu criara na pergunta, tempos da juventude,
para lembrar da dinâmica do seu trabalho na terra.
Eu lido com a terra era braçalmente, na minha caneta, machado.
Olha, assunta bem: facão, foice, enxada e machado e outra sombra
minha na minha caneta, eu não tombo terra, meu tombo quem dá
sou eu.
Pesquisadora – Essa terra que o senhor trabalhava era do senhor?
Senhor Norberto – Que eu trabalho é minha...
319
317
Entrevista concedida à autora pelo sr. Sérvulo Constantino Filho em 15 ago. 2007.
318
Pergunta feita pela pesquisadora no decorrer da entrevista com o sr. Manoel Norberto Henrique de
Sena em 14 out. 2007.
319
Entrevista concedida à autora pelo sr. Manoel Norberto Henrique de Sena em 14 out. 2007 (grifos
da autora).
158
A caneta, a qual o entrevistado se referia, era sua enxada. Curiosa alusão ele
fizera, ao ser entrevistado por alguém da universidade, a respeito do orgulho que
tinha de sua caneta, com a qual ele limpava, revirava a terra, abria sulcos, preparava
a terra para acolher as mudas de abacaxi, as raízes de maniva. Sua “caneta” dizia
de si, daquilo que o senhor Norberto era e fazia, tanto que, após a entrevista, que
ocorreu em Helvécia, fui levá-lo em sua propriedade e, ao chegar à sua casa, ele
abriu a porta, pegou a enxada, que estava atrás da porta, e me apresentou com
orgulho a “sua caneta” (cf. figura 10).
Figura 10 Residência do camponês Manoel Norberto Henrique de Sena, outubro 2007
Fotografia: Trabalho de campo.
Esta é uma imagem rica. A vida daquele camponês, que lida braçalmente na
terra, é organizada, naquele espaço, de forma a mostrar como diferentes dimensões
se entrelaçam na construção de sua vida. Antes de proceder a análise, é necessário
lembrar-se da existência na fotografia de uma pluralidade de sentidos,
320
tanto no
lado do fotógrafo quanto no lado do fotografado e do espectador da fotografia.
No mesmo espaço havia um fogão, que desempenhava naquele momento a
função de suporte para colocar os mantimentos que ele havia comprado em
Helvécia. Uma bacia ao lado do mesmo indicava que aquele utensílio era utilizado
320
José de Souza Martins. Sociologia da fotografia. São Paulo: Contexto, 2008.
159
para lavar os pratos, e nos falava também da ausência de água encanada. Outra
ausência aparece nesta imagem, não havia lâmpadas, a energia elétrica não havia
chegado àquela pequena propriedade. A existência de uma única cadeira dizia da
ausência de outros integrantes da família do senhor Norberto, da solidão daquele
camponês nos momentos de refeição, de oração. O espaço central daquela casa
nos fazia ver a importância do sagrado, do divino, na vida de seu dono. Na parede
várias imagens de santos, na mesa, coberta por uma toalha branca, um oratório
rústico com duas imagens de santos, além de símbolos cristãos como uma cruz. Um
copo com água, tampado com um pires, logo à frente do oratório, talvez sugerisse a
presença concomitante de outros mbolos, outras crenças. A força do divino estava
presente no cotidiano daquele camponês, assim como havia aparecido nas falas do
senhor Krull e do senhor Sérvulo. Do outro lado da mesa um filtro de barro e sobre
ele um copo. Li essa organização como sendo as fontes de alimentação daquele
homem. Naquela mesma parede, lado a lado, havia o lugar da comida, das suas
crenças, e da água.
Alguns instrumentos de trabalho, como a enxada e uma bota apropriada para
a lida no campo (cf. figura 11), estavam dispostos atrás da porta, que era a fronteira
com a terra, com a labuta.
Figura 11 Instrumentos de trabalho de um camponês, outubro 2007
Fotografia: Trabalho de campo.
160
As marcas de terra e a disposição destes instrumentos (cf. figura 11)
indicavam o seu uso freqüente, pelo senhor Norberto. Eles não estavam guardados,
trancados em um armário, mas sim a postos para ser utilizados de pronto, no
presente, “eu lido com a terra era braçalmente, na minha caneta [...]”.
Quando perguntado se não se sentia sozinho morando ali, o senhor Norberto
nos mostrou seu companheiro, um dio de pilha, que, além das noticias de outras
partes do mundo, trazia-lhe entretenimento.
Ao falar de suas ações no presente, ressaltando a dimensão do significado de
não terem vendido suas terras, aqueles camponeses, talvez, demonstrassem,
através desta associação, a evidência de que estavam vivos e íntegros, o apenas
em termos físicos, mas também no que se referia ao plano subjetivo, que comporta
uma relação de simbiose com a terra, sendo dela parte e junto a ela todo, inteiro.
“Minha mãe eu não vendo, quando ela não dá uma coisa ela dá outra. Vocês gostam
de dinheiro eu gosto da minha mãe. Ela não acaba, todo o tempo ela é a mesma.”
321
Entendo esta ão do senhor Norberto como uma forma de resistência
porque parto da seguinte definição proposta por James Scott:
Micro-resistência entre camponeses é qualquer ato de membros da
classe que tem como intenção mitigar ou negar obrigações (renda,
imposto, deferência) cobradas a essa classe por classes superiores
(proprietários de terra, o estado, proprietários de máquinas, agiotas
ou empresas de empréstimo de dinheiro) ou avançar suas próprias
reivindicações (terra, assistência, respeito) em relão às classes
superiores.
322
.Esses homens precisavam então diuturnamente vestir as suas convicções,
independente de todos os julgamentos contrários a elas. Atuavam como se
estivessem protegidos de todas as intervenções externas que buscavam
desestabilizar as suas posições. Havia que se ter uma teimosia e um senso de
perseverança e confiar que um dia aquela resistência miúda iria se revelar razoável,
tornando mais uma vez aceitável a existência de pequenas propriedades voltadas
para o cultivo de produtos variados.
Sobre este aspecto, da existência de outras possibilidades de se organizar a
vida diária, é relevante citar uma provocação feita por Edward Thompson:
321
Entrevista concedida à autora pelo sr. Manoel Norberto Henrique de Sena em 14 out. 2007.
322
James C. Scott. “Formas cotidianas da resistência camponesa”, op. cit., p. 24.
161
Nunca retornaremos à natureza humana pré-capitalista; mas lembrar
como eram seus códigos, expectativas e necessidades alternativas
pode renovar nossa gama de percepção de possibilidades implícita
no ser humano.
323
Talvez tenha sido exatamente essa percepção da existência de outras
possibilidades que tenha contribuído para as ações tenazes destes homens, Krull,
Norberto e Sérvulo, no sentido de continuarem a organizar suas vidas a partir das
relações com a terra.
A resistência foi também expressa na fala de uma entrevistada, que, mesmo
não possuindo terras, afirmou: “[...] Eu, se eu tivesse minha terra eu não vendia não.
Porque a terra não acaba nunca. Eu não [...].”
324
Esta fala contrariava muitos dos
interesses daqueles que chegaram a Helvécia propagando as vendas das terras
como uma real oportunidade de aquisição de segurança e tranqüilidade. Na
experiência de dona Cocota, com seus 100 anos de idade, não funcionava assim:
“[...] Esse dinheiro eu como, e ele acaba. E a terra não acaba nunca, cria eu, cria
quem vem...
325
3.1.3 ENTRE FACHO E PREGUIÇA – VIVER DO CARVÃO
Em Helvécia, apesar das ressalvas e dos titubeios, identifiquei que a retirada
do facho dos eucaliptais, para ser transformado em carvão, fazia parte do cotidiano
das pessoas do lugar.
[...] Hoje em dia se vê o... É, é até feio a gente falar. Hoje o pessoal...
saindo assim de noite, pegando esses eucalipto, por causa de quê?
Por causa do eucalipto. Seo fosse os eucalipto. [...] Hoje os
quintal tudo cheio de forno aí vira essa fumaceira. Essa fumaça
fazendo o quê? Causando o quê? Uma doença. Dentro do Comércio,
cheio de fumaça, né? De calvão. Por causa de quê? Por causa do
eucalipto.
326
A fala da senhora Maria de Jesus Joaquim Santos, 59 anos, dimensiona o
significado daquela prática para muitos dos integrantes da comunidade: “É, é até
feio a gente falar. A entrada sorrateira, nas plantações de eucalipto, feita
323
Edward P. Thompson. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 23.
324
Entrevista concedida à autora pela sra. Maria Conceição, dona Cocota, em 14 out. 2007.
325
Entrevista concedida à autora pela sra. Maria Conceição, dona Cocota, em 14 out. 2007.
326
Entrevista concedida à autora pela sra. Maria de Jesus Joaquim Santos em 15 ago. 2007.
162
normalmente na calada da noite, por pessoas protegidas pelo anonimato, se
apresentava/apresenta visível nas construções dos artefatos necessários à
produção do carvão, “[...] os quintal tudo cheio de forno”, bem como nos sinais de
fumaça dentro do Comércio, alterando a composição do ar respirado pelos
moradores, interferindo na qualidade de saúde daquela população.
Esta camponesa nos disse também que aquela atividade não era algo que
fazia parte da tradição de labores em Helvécia. O fazer carvão estava associado à
introdução da eucaliptocultura naquele distrito.
A construção “É, é até feio a gente falar. Hoje o pessoal... saindo assim de
noite, pegando esses eucalipto” me instigou a pensar que aquela prática era
geradora de conflitos entre seus adeptos e as empresas. Ao entrevistar outras
pessoas, abordei a questão e obtive diferentes opiniões.
Não, conflito não teve porque aqui a comunidade é muito pacifica,
eles não... teve uma época assim que eles [referindo-se aos
representantes das empresas de eucalipto] estava exigindo, eles não
estava querendo que pegava aqueles facho aí... é o restolho,
aqueles restos de resíduos que corta, sobra, não estava querendo, aí
em Juerana [Distrito de Caravelas, próximo a Helvécia] tem um...
uma grande reivindicação. Botou fogo em ônibus, botou fogo em
trator, botou fogo em dois trator, botou fogo em um ônibus,
descarregou um caminhão. [...] Aí teve uma discussão e tal que
esse restolho, esse facho... aí foi indo que liberou. [...] aqui em
Helvécia o pessoal pega normalmente, ninguém fala nada, facho eles
não perturba. Agora sou contra o camarada entrar lá na área deles,
que eles plantam, vai e corta, porque teve custo ali. Então, se deu
pega, agora se não deu, não pega. Mas conflito nenhum, não teve
não.
327
O fato de, em Helvécia, não ter havido, como na vizinha Juerana, um
confronto explicitado através de reivindicações, queima de tratores e ônibus,
polarizando os interesses da comunidade e os das empresas produtoras de
eucalipto, quando estas proibiram a retirada do facho, é suficiente para que
aceitemos a idéia daquela comunidade como sendo pacífica? E ainda, será que a
ausência destes eventos identificadores de uma revolta coletiva pode ser entendida
como indicativo de que em Helvécia não haveria nenhum conflito em relação à
apropriação do facho?
327
Entrevista concedida à autora pelo sr. Jorge Ferreira da Silva em 14 ago. 2007.
163
O que seria feio até de falar, segundo a senhora Maria de Jesus, não estaria
associado àquele vestígio que o senhor Jorge deixou entrevisto ao dizer “Agora sou
contra o camarada entrar lá na área deles, [...]”?
Percebi, nas atividades de campo, que o facho passou a constituir, nas
franjas da eucaliptocultura, um elemento importante no desenvolvimento de uma
outra atividade econômica, o fabrico do carvão, que estava sendo realizada, não
sem obstáculos, por integrantes da comunidade. Como esta atividade, que havia
mudado a paisagem dos quintais das casas de Helvécia, se imbricava no cotidiano
daquele lugar? Quem eram essas pessoas que produziam carvão? Elas obedeciam
às regras, “Então, se deu pega, agora se não deu, não pega”, de aquisição do
facho? Como eram tecidas as relações entre os representantes das empresas
produtoras de eucalipto e a comunidade quando o assunto era a apropriação do
facho?
O senhor Jorge comentou a este respeito:
Quando corta na área [em que a madeira já havia sido retirada pelas
empresas] pega sem problemas. Anteriormente, antes estava
sendo... eles estava mandando, quando topava um trator com facho
eles mandava descarregar. O pessoal da Visel que toma conta da
área mandava descarregar, mas depois que houve esse conflito em
Juerana, aí foi liberado.
328
Gostaria de problematizar algumas questões presentes nesta fala. Primeiro,
parece claro que teria havido um direito baseado no costume,
329
as pessoas podiam
retirar o facho sem que as empresas se opusessem a isto. Imagino que este direito
estivesse associado à retirada do facho em pequenas quantidades, para ser
utilizado como lenha pelas famílias que residiam próximas aos eucaliptais.
Transportados em lombos de animais, em bicicletas ou mesmo, carregado em forma
de feixes, nos braços, ou nas cabeças. Assim, as migalhas do facho eram liberadas,
“pega sem problemas”.
Entretanto, integrantes da comunidade começaram a perceber que o facho
poderia lhes render mais, poderia ser transformado em carvão e vendido para
empresas do ramo. Não bastava mais pegar migalhas de facho, era preciso uma
quantidade maior, e estas eram transportadas em tratores. Em quantidade, a
328
Entrevista concedida à autora pelo sr. Jorge Ferreira da Silva em 14 ago. 2007.
329
Edward P. Thompson. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
164
retirada do facho foi reprimida pelas empresas, “quando topava um trator com facho,
eles mandava descarregar”, e tal repressão, no vizinho distrito de Juerana, incitou a
população a reivindicar o seu direito, nos moldes que atendessem aos anseios de
continuarem produzindo carvão.
Ainda segundo o entrevistado, o conflito ocorrido em Juerana produziu a
liberação da retirada do facho também em Helvécia. Isto sugere que aquele não
havia sido um conflito delimitado somente ao distrito de Juerana, se assim o fosse,
porque as empresas teriam agido daquela maneira? Teriam elas ciência de que,
também em Helvécia, a retirada do facho era uma arena de tensões, de conflitos
velados, desenvolvidos em ações sorrateiras durante a noite? A suposta liberação
não seria uma tentativa de amenizar essas tensões, com o intuito de evitar outra
“grande reivindicação”?
Essa suposta liberação do facho nos faz lembrar Scott,
330
quando ele fala
sobre a possibilidade de os camponeses, mesmo em revoltas fracassadas, obterem
pequenos ganhos. Através, por exemplo, de breves pausas feitas pelas empresas
em relação às novas regras por elas impostas.
A senhora Maria Sérvulo Henriqueta nos disse algo mais desta composição
entre aquilo que era liberado, pelas empresas, e aquilo que era tomado, por
membros da comunidade:
que assim, a quantidade que eles liberam às vezes não é muita,
né? Então a pessoa pega aquele tantinho, que está reservado
para liberar, está liberado já e já quer meter a mão no que não é, e aí
param de fazer isso, falaram até que ia fazer uma cooperativa, né?
Aqui em Helvécia começou a fazer, teve algumas reuniões, parou
e ninguém falou mais nada e está do mesmo jeito que está aí, o
povo pegando madeira escondido.
331
Como a opção da cooperativa não vingou, a retirada do facho em Helvécia
continuou noite adentro, ocupando anônimos que desafiavam as normas das
empresas, “o povo pegando madeira escondido”.
Pelo que pude deduzir, a partir da análise do conjunto de entrevistas, havia,
em relação à apropriação do facho, situações diferenciadas. Uma, na qual as
empresas, após cortar o eucalipto, liberavam a retirada do facho, por membros da
comunidade, “[...] aquele tantinho, que está reservado para liberar”. Outra em que
330
James C. Scott. “Formas cotidianas da resistência camponesa”, op. cit.
331
Entrevista concedida à autora pela sra. Maria Sérvulo Henriqueta em 15 ago. 2007.
165
esta liberação era vedada, ocorrendo, pois, a retirada do mesmo sem a autorização,
de forma sorrateira, “[...] o povo pegando madeira escondido”. Havia, ainda, uma
terceira possibilidade, em que integrantes da comunidade entravam sem autorização
nos plantios de eucalipto e retiravam dali, não o facho, mas sim a madeira que ainda
não havia sido cortada pelas empresas, “Agora sou contra o camarada entrar na
área deles, que eles plantam, vai lá e corta, porque teve custo ali
332
.
Havia ainda um outro mecanismo, usado para transformar o eucalipto em
facho. Colocar fogo nos eucaliptais. A comunidade sabia que a madeira afetada
pelas chamas não mais serviria para as empresas, e era ideal para ser transformada
em carvão.
Normalmente este tipo de ação acontecia em áreas de plantio de eucalipto
que pertenciam às firmas.
Nas atividades de campo, fiquei intrigada com a existência de muitas áreas
em que havia o plantio de eucalipto sem nenhuma cerca delimitando a plantação, e
normalmente eram áreas enormes. Também observei a existência de plantios que
estavam cercados, em áreas com medidas variadas. O senhor Jorge me explicou
que a existência ou não das cercas dizia da propriedade da terra. Terras cercadas
pertenciam a particulares que plantavam eucalipto através do sistema de fomento ou
ainda de forma autônoma. As plantações sem cerca pertenciam às empresas,
Aracruz ou Suzano. Com base nesta informação, deduzo que a retirada dos fachos,
quando o autorizada, devesse ocorrer com mais freqüência nas áreas não
cercadas, uma vez que a existência de cercas dificultaria, um pouco mais, o
desenvolvimento daquele tipo de atitude.
Além disso, este tipo de atitude talvez sugerisse uma prática alicerçada na
sensação de que roubar o grande, empresas de eucalipto, fosse visto com
complacência; já roubar o fraco, pequenos proprietários, fosse visto com reprovação.
Não tenho conhecimento da existência de registros a respeito da quantidade
de facho retirada por integrantes da comunidade das plantações de eucalipto
pertencentes às empresas, Aracruz e Suzano. Acredito que eles não existam. Talvez
a falta de dados possa ser explicada em razão de esta ação ser praticada quase
sempre na calada da noite, por vezes de forma individualizada e sempre sem que
332
Entrevista concedida à autora pelo sr. Jorge Ferreira da Silva em 14 ago. 2007.
166
seus praticantes, por motivos óbvios, queiram sair da condição de anonimato.
Levando-se em consideração a possibilidade da sua existência, não há, por parte
das empresas, interesse em sua divulgação, talvez para não admitir a prática. Em
suma, nem aqueles que se apropriam dos fachos, nem as empresas que
rotineiramente têm perdas em razão desta prática, querem que este tipo de assunto
ganhe visibilidade. Os primeiros, provavelmente, porque terão suas ações, na
perspectiva da lei, entendidas como furto, e não como resistência passiva; e os
segundos porque, certamente, não têm interesse algum em ver estampado nas
mídias a dura realidade da vida de pessoas que, para conseguirem sobreviver, estão
tendo de se sujeitarem, muitas vezes, inclusive, arriscando suas vidas, a realizar
aquele tipo de prática, ilícita, que em nada confirma as promessas de emprego e/ou
responsabilidade social propagadas pelos representantes das empresas e seus
pares.
A narrativa a seguir, construída por Regina Constantino, professora da escola
João Martins Peixoto em Helvécia, nos conta um pouco do contexto que incitou
integrantes da comunidade a se arriscarem para produzir carvão, bem como permite
certo conhecimento a respeito da realidade dessas pessoas, suas trajetórias a partir
de diferentes labores.
[...] ele [referindo-se a uma pessoa do seu círculo de relações que
tinha vendido terras para as empresas de eucalipto] de início
trabalhava na Aracruz e depois ele foi mandado embora, mas não
tinha leitura nenhuma, não sabia ler nem escrever direito e ele
empregou na roça [...] foi quando ele começou a ir na feira, de
Nanuque, ele plantava maxixe, quiabo, abóbora, um pouquinho de
cada, agricultura de subsistência, um pouquinho de cada para
consumo e o resto vender né? Ai ele começou a ir para Nanuque
para vender as coisas dele lá, todo fim de semana, saia na quinta-
feira e retornava no sábado à tarde né? Só que ele começou a sentir
problema de coluna né? Assim problema de coluna, pegando peso
levando as coisas na feira, ele parou também de trabalhar com
essa atividade. Foi quando chegou a questão do carvão. Ah, é um
dinheiro rápido não sei o quê. ele começou com essa atividade e
via saída nisso e foi quando ele perdeu a vida dele né? Quatro
filhos para criar, todos estudando, a mulher dele também era
doméstica mesmo, trabalhava na roça com ele para ajudar e sair
para pegar madeira à noite. Numa dessas noites aí, ele deu azar que
perdeu a vida dele lá na estrada, caiu o facho né? O trator, coloca
o facho naquelas carretas né? E aí foi descer a ladeira, estava
chovendo, acho que ele colocou uma marcha lá que não era para
colocar e o trator disparou e ele pulou, ele foi o primeiro a pular do
trator pulou e caiu no barranco, nessa que ele caiu... caiu o facho
167
né? Do eucalipto, foi e perfurou a barriga dele, ele morreu a
caminho, ia tirar para São Mateus, não agüentou.
333
Essa narrativa mostra as várias tentativas de inserção feita por aquele
camponês até chegar ao fabrico do carvão. Ele, que tinha sido dono de terras, havia
vendido sua gleba para a Aracruz, e no primeiro momento chegou a ingressar “na
firma”, provavelmente no desempenho de tarefas temporárias de plantio e/ou
colheita de eucalipto, pois, como disse a entrevistada, “não tinha leitura nenhuma,
não sabia ler nem escrever direito”. Ao ser demitido, voltou a laborar na roça, não
mais na condição de dono, mas sim de empregado. O fruto daquele trabalho não
encontrava mercado no seu distrito, sendo então preciso se deslocar para a cidade
de Nanuque MG, carregando produtos variados e pesados para serem
comercializados na feira daquela cidade. Este labor, que exigia um esforço físico
demasiado, foi interrompido: “[...] ele começou a sentir problema de coluna né?” Era
preciso, então, para sustentar seus filhos, buscar outro tipo de atividade, “foi quando
chegou a questão do carvão [...] ele começou com essa atividade e via saída
nisso...” Ocorre que aquela saída implicava riscos, e, para este camponês, estes
riscos trabalhar de forma ilegal, na calada da noite, sem fazer uso de
equipamentos apropriados, sobressaltado pela real possibilidade de ser descoberto
e reprimido – provocaram a sua morte.
Quando abordei a estratégia de as empresas não divulgarem as fissuras de
suas relações com a comunidade, expressa na existência da retirada do facho sem
sua autorização, ou ainda na retirada da madeira inteira, não estava afirmando que
as empresas desconhecessem o que acontecia. Elas não só sabiam, como se
organizavam para reprimir este tipo de ação.
Se pegar vai para a cadeia, se pegar vai para a cadeia, como já foi,
vai para a cadeia entendeu? O povo apanha de teimoso. Quando
eles liberam, né? Menos mal, mas quando não libera, eles pega e
bota na cadeia. [...] foi gente, umas pessoas que já pagou cinco
mil, né? Comomenino... já foi preso, um magrinho.
334
A repressão existia e era desafiada, “o povo apanha de teimoso”, correndo
riscos de prisão e perdas materiais.
333
Entrevista concedida à autora pela sra. Regina Constantino em 15 ago. 2007.
334
Entrevista concedida à autora pelo sr. Sérvulo Constantino Filho em 15 ago. 2007.
168
Teve que pagar com os bens que na verdade nem foram adquiridos
com essa atividade de carvão, que muita gente tinha tratores, teve
sua moto, então antes né? Teve essas coisas às vezes trabalhando
na terra, antes de mexer com carvão e aí, quando veio essa
atividade de trabalhar com carvão, nessa ilusão de que carvão
estava dando dinheiro, né? Muita gente parou de trabalhar na terra e
foi trabalhar com carvão e aí veio a Caema, né? Eles pegavam a
madeira à noite, pegava o pessoal aí roubando madeira, que na
verdade estava roubando, né? Pegando escondido, pegando
madeira escondido e prendia, leva o trator lá, apreendia o trator,
moto... e para tirar era a maior dificuldade. Tem gente que está
com trator a hoje enferrujando no pátio da Aracruz, mas não
consegue tirar. Quer dizer, para soltar, para sair da cadeia era cinco
mil reais, seis e, para pegar os trator esses trem eles não devolvem
não, quem não tem esse dinheiro vai tirar de onde? se vender as
terras, né?
335
Esta repressão ocorria a partir de práticas muitas vezes violentas. A
comunidade sabia disso e denunciava inclusive o uso da Caema, como uma força
do Estado, utilizada para defender os interesses dos representantes das empresas,
colocando em risco a vida de camponeses.
[...] e quanto essa atividade de carvão que todo mundo agora em
Helvécia... tornou outra praga, que todo mundo quer fazer isso,
isso, isso, tinha uns fachos, eles cortavam o eucalipto, pega a
madeira melhor e levava, ficava aqueles facho ali no meio, eles
começaram a pegar esses fachos, que quando eles iam pegar
esses fachos também aproveitavam e pegavam o que era da
empresa, que era útil para a empresa, a madeira boa. veio a
Caema que é aquele pessoal lá da Mata Atlântica... e veio para estar
controlando isso. Veio a serviço, acho que principalmente da
empresa, que acho que veio mais para isso, e aí minha filha, a gente
perdeu um... [referindo-se a um ente querido], em dois mil e cinco,
porque ele foi lá pegar um eucalipto, uma madeira à noite, lá perto do
Rio do Sul e aí, ...pegando a noite, escondido, roubando, e teve
um acidente de trator, acabou morrendo. Perdeu a vida, novo, deixou
aí quatro filhos, quatro filhos todos novos e assim sei lá, tem gente
perdendo a vida à toa, perdendo o que tinha antes e cada vez
mais afundando né? Ninguém consegue as coisas mais aqui em
Helvécia, as pessoas falam que parece que enterraram uma cabeça
de bode aqui em Helvécia, que tudo de ruim está em Helvécia e
nada de bom.
336
As firmas contam com o apoio do Estado, através da atuação da Caema, no
sentido de coibir a retirada, não autorizada, do facho. Estas ações repercutem na
comunidade, explicitam tensões que perpassam aquele distrito, dizem de um outro
335
Entrevista concedida à autora pela sra. Maria Sérvulo Henriqueta em 15 ago. 2007.
336
Entrevista concedida à autora pela sra. Regina Constantino em 15 ago. 2007.
169
ritmo no cotidiano, bem diferente daquela impressão primeira de tranqüilidade a que
fiz alusão. A idéia da dor está presente nesta narrativa, bem como uma espécie de
determinismo: “ninguém consegue as coisas mais aqui em Helvécia, as pessoas
falam que parece que enterraram uma cabeça de bode aqui em Helvécia, que tudo
de ruim está em Helvécia e nada de bom”
337
. Vê-se aqui a recorrência ao campo
das crenças, “enterraram uma cabeça de bode aqui em Helvécia”, em busca de uma
explicação para aquilo que se processava. Ao mesmo tempo em que a entrevistada
constrói essa narrativa falando da falta de esperança que estaria grassando em
Helvécia, ela atua em seu cotidiano no sentido de construir novos caminhos para si
e para o seu lugar. Apesar das dificuldades, concluiu o segundo grau, fez o curso de
pedagogia, através do programa Rede UNEB 2000, no vizinho distrito de Posto da
Mata, atua como professora na escola de sua comunidade e participa da AQH.
Em relação à atuação da Caema, no combate à retirada ilícita do facho, não
em Helvécia como em outros distritos do Extremo Sul baiano, o coordenador da
Coordenadoria Regional de Polícia do Interior 8ª Coorpin afirmou, segundo
matéria do jornal Alerta:
No âmbito da Coordenadoria Regional de Polícia do Interior foi
criada uma “força tarefa” integrada por todas as unidades policiais no
intuito de prevenir e reprimir a prática desses grupos armados,
adotando providências no sentido de identificar e responsabilizar os
autores através do devido procedimento legal, além de operações
policiais em conjunto com a Polícia Militar, através das companhias
especializadas – Caema e Caerc.
338
Outra entrevistada, Cecília Joseph Bastos, de 69 anos, natural de Helvécia,
que se orgulha de ter vivido muitos anos fora do distrito, apresentou a sua leitura a
respeito da prática da retirada do facho:
[...] o mal do povo daqui também é que o povo com preguiça de
trabalhar, vendeu as terras todas e agora fica atentando os outros.
Além de dar emprego pra eles, a Aracruz não deu emprego pra eles?
Porque eles não vão trabalhar? Por que ficam roubando eucalipto. A
Aracruz não conhece dinheiro, só conhece mato. Tenho certeza que
337
Entrevista concedida à autora pela sra. Regina Constantino em 15 ago. 2007.
338
Queimadas criminosas já destruíram mais de 30 mil m
3
de eucalipto da Suzano e Aracruz
Celulose. Caema, Caerc e PC empenhadas no combate aos incendiários. Alerta, ano 21, número
831, 7 a 11 nov. de 2007, p. 7 (jornal semanal fundado em 1 de julho de 1987, circulação nas
principais cidades do Extremo Sul).
170
quem vendeu as terras ninguém tem dinheiro Porque eles dão
emprego, por que eles não vão trabalhar? São preguiçosos.
339
Esta narradora foi enfática, em seus gestos e tom de voz, ao afirmar a
preguiça dos habitantes de Helvécia, “o mal do povo daqui também é que o povo
com preguiça de trabalhar, vendeu as terras todas e agora fica atentando os outros”.
Segundo ela, a Aracruz oferecia emprego, mas as pessoas, preguiçosas, “ficam
roubando eucalipto”. Para ela, não se tratava de retirada de facho. Sem fazer uso de
eufemismo algum, a narradora afirmava a existência da prática do roubo e associava
esta à característica do povo de sua comunidade de não querer trabalhar.
A preguiça, a qual faz referência a entrevistada, não poderia também ser
interpretada como uma espécie de resistência à situação de transformações
engendradas pela eucaliptocultura? Talvez aqueles que não tinham mais suas terras
não quisessem voltar a trabalhar nelas na condição de empregados, plantando “pau”
para as “firmas”. Quanto aos empregos oferecidos pela Aracruz, este não era um
terreno de certezas, de tranqüilidade na garantia dos recursos necessários à
sobrevivência de camponeses de Helvécia, “[...] que se espera que toda
monocultura necessite de um número menor de trabalhadores no processo produtivo
[...]”.
340
A senhora Cecília continuou a construir sua narrativa dizendo de que maneira
interpretava a realidade do distrito na atualidade:
[...] Velhas, as casas velhas aqui. [...] Fala em botar uma polícia aqui!
Fala em botar uma polícia aqui! Todo mundo briga prá tirar, por que...
prá poder ficar... sabe, aqui, eles quer viver esse lugar aqui como se
fosse, vou falar português claro ... igual verme, vivo quando
no produto... Eles quer que Helvécia seja isso. Helvécia não pode
crescer. Eles briga pra não chegar ninguém aqui trazendo nada p
melhorar isso. Eles quer que isso fica ... não sei... pior que o tempo
dos escravos [...]
341
Alguns elementos desta construção deixam ver a insatisfação da entrevistada
em relação às ações de membros da comunidade. Interpretei essa insatisfação, a
partir da fala e dos gestos da senhora Cecília, como sendo em razão daquilo que ela
339
Entrevista concedida à autora pela sra. Cecília Joseph Bastos em 15 ago. 2007 (grifos da autora).
340
Jorge Emanuel Reis Cajazeiras, José Carlos Barbieri e Dirceu da Silva. Estudo da sustentabilidade
regional da produção industrial de eucalipto no estado da Bahia, op. cit.
341
Entrevista concedida à autora pela sra. Cecília Joseph Bastos em 15 ago. 2007.
171
considerava ações contrárias à chegada do progresso em Helvécia. Havia ali
também pequenos indícios de uma crítica às ações da AQH, em razão desta
associação ter implementado o projeto que resultou no reconhecimento de Helvécia
como área remanescente quilombola.
Talvez a preguiça, a possibilidade de ganhar dinheiro rápido, a resistência em
manter a casa com a fachada tal qual no passado, “velhas, as casas velhas aqui...”,
tenham sido um jeito encontrado por algumas pessoas de falarem de suas
insatisfações com o modelo de progresso que prometeu, seduziu e depois os
ignorou.
A fala do camponês Sérvulo Constantino, apresentada a seguir, tenciona o
que foi sugerido pela senhora Cecília:
[...] a maioria o tem nada mesmo, está queimando esse carvão
para sobreviver. Porque pai, não tem, porque vendeu as terras. E
muita gente, às vezes a pessoa que tem [terra], às vezes com o sol
desse desanima, não dá para plantar nada, a pessoa joga a semente
debaixo da terra e não tira nada, é prejuízo. a pessoa ver esse
negócio de carvão, parte para o carvão é que na hora o bicho
pega para o lado deles, porque parte para o carvão, [...] achando
que vai dar dinheiro e como às vezes dá, quando a Aracruz libera,
libera o facho. Liberava, que hoje também não libera, quando chega
liberar não dá nada, acho que é que eles partem para pegar
madeira e dá esse problema todo.
342
Produzir carvão funcionava também como uma alternativa para quem estava
sem terra e sem emprego, vivia em um distrito no qual as opções de trabalho eram
reduzidas e, muitas vezes, exigia estudos e qualificações não disponibilizadas pelo
poder público para os membros da comunidade, como era o caso em Helvécia.
É isso mesmo. Que tem muita gente que não tem estudo, né? Agora
mesmo aqui, quantas pessoas saíram da prefeitura, daqueles que
estavam trabalhando, quantos eram... saíram umas oito pessoas,
estava vinte e tantos anos trabalhando na prefeitura. Os vereadores
não correm atrás de nada para ajudar esse povo.
343
A ausência de um poder público que oferecesse condições de estudo, através
de escolas regulares de segundo grau e/ou cursos técnicos de capacitação
profissional, somada à escassez de emprego tanto nos espaços públicos quanto em
342
Entrevista concedida à autora pelo sr. Sérvulo Constantino Filho em 15 ago. 2007.
343
Entrevista concedida à autora pelo sr. Sérvulo Constantino Filho em 15 ago. 2007.
172
empresas particulares, contribuiu para que o fazer carvão se apresentasse como
uma possibilidade de sobrevivência.
Caso houvesse a possibilidade de somar a quantidade do facho retirado, o
montante, provavelmente seria expressivo, sobretudo sabendo-se que esta prática,
relevante na aquisição daquilo que era necessário para a sobrevivência de alguns
dos integrantes da comunidade, passou a ser também estimulada por empresas
clandestinas de carvão, atuantes na região, desejosas de adquirir o produto por um
preço mais baixo que o praticado no mercado.
A produção clandestina de carvão, em matéria publicada no jornal Alerta, de
circulação regional, foi tratada de maneira a informar como o poder público se
posiciona diante da mesma:
cerca de três semanas uma série de incêndios criminosos vêm
sendo provocados, principalmente nos municípios de Prado,
Alcobaça, Nova Viçosa, Mucuri e Caravelas. Segundo o que se
apurou aagora, o fogo vem sendo provocado por empresas que
atuam ilicitamente na exploração de carvão ilegal, um mercado que
movimenta milhões de reais todos os meses na exportação do
produto para as grandes siderúrgicas do estado do Espírito Santo,
[...]
Segundo dados levantados a agora pela Pocia, o grande
problema com relação a esse carvão é a procedência, qual (sic) na
grande maioria é de madeira furtada das fazendas de eucaliptos da
Suzano e Aracruz Celulose, furto que ocorre geralmente durante a
madrugada.
“Os carvoeiros roubam essas madeiras em depósitos ou as arrancam
utilizando-se de tratores ou caminhões. Quando a fiscalização é
constante, esses carvoeiros provocam os focos de incêndio,
destruindo os plantios de eucaliptos e árvores nativas da Região,
como forma de retaliação”, disse um policial que trabalha na
investigação. [...]
344
A maneira como esta reportagem apresenta a situação a entender que se
trata de uma organização criminosa de grande vulto objetivando lucros significativos
a partir de suas práticas ilícitas. Não é meu objetivo discutir se este tipo de
afirmação procede. Entretanto gostaria de chamar a atenção para as ausências,
nesta matéria. Faz-se referência ao “roubo de eucalipto” como sendo algo realizado
344
344
Queimadas criminosas já destruíram mais de 30 mil m
3
de eucalipto da Suzano e Aracruz
Celulose. Caema, Caerc e PC empenhadas no combate aos incendiários. Alerta, ano 21, número
831, 7 a 11 nov. de 2007, p. 7 (jornal semanal fundado em 1 de julho de 1987, circulação nas
principais cidades do Extremo Sul).
173
por empresas de carvão, por ladrões ou por grupos criminosos organizados. Não se
levanta a possibilidade de que esse tipo de ação também esteja sendo desenvolvido
por pessoas que, longe de estarem ganhando milhões, tiveram suas vidas alteradas
pela prática monocultura do plantio de eucalipto e, tendo sido, posteriormente,
alijadas do processo de produção da eucaliptocultura, manifestem sua insatisfação,
ao mesmo tempo em que desenvolvem atividades econômicas alternativas em
busca da garantia de sua sobrevivência.
Essas ausências e a não existência de dados quantitativos a respeito da
retirada, não autorizada, do facho em Helvécia, não apagam o que está sendo feito
por alguns membros da comunidade. Mesmo que suas investidas na calada da
noite, de forma individualizada, sem armamentos, não ganhem as manchetes de
jornal, suas ações reverberam no cotidiano daquele lugar.
Este modo de resistência não é insignificante, havendo inclusive uma
associação entre as empresas de eucalipto e instituições ligadas ao Estado, no caso
a Caema, para proteger as empresas produtoras de eucalipto.
Outro indício da relevância desta forma de resistência aparece no fato de que
a produção de carvão no distrito de Helvécia esteja sendo coibida: “[...] agora
mesmo não está entrando caminhão aqui para pegar carvão, o que aconteceu,
não está entrando e aqui o povo está tudo com o carvão queimado para vender pra
quem? Está parado aí passando necessidade.”
345
Quando indaguei porque o caminhão não estava mais entrando em Helvécia
para comprar o carvão produzido pela comunidade local, o senhor Sérvulo titubeia,
para logo dizer: “Não sei o que aconteceu..., uns falam que a fábrica está muito...
está fazendo limpeza.” Em seguida, deixa de ser lacônico e informa:
Essa noite eu ouvi falar que é a firma que estravando, para
poder o povo parar. Vão baixar até trinta reais para poder o povo
parar de tirar o carvão, e a pessoa vai viver de quê? Roubar vai
roubar. Só o povo mesmo que está botando o pobre para a rua para
roubar.
346
Poderíamos, pelo exposto, perguntar se a aquisição do facho, sem
autorização das empresas, teria elementos de uma justiça popular.
347
Se assim o
345
Entrevista concedida à autora pelo sr. Sérvulo Constantino Filho em 15 ago. 2007.
346
Entrevista concedida à autora pelo sr. Sérvulo Constantino Filho em 15 ago. 2007 (grifos da
autora).
347
James C. Scott. “Formas cotidianas da resistência camponesa”, op. cit., p. 23.
174
fosse, parece que as empresas encontraram uma maneira de diminuir o poder de
ação dos seus agentes, “é a firma que está travando”, proibindo, no distrito, a
entrada de caminhões que compravam a produção de carvão. Sem comprador,
provavelmente, os membros da população que não estavam se contentando em
pegar apenas o “tantinho” de facho liberado, diminuiriam suas incursões noturnas
pelos eucaliptais. Com a proibição da entrada de caminhões responsáveis pela
retirada do carvão produzido em Helvécia, feita pelas “firmas” provavelmente em
consonância com as ações da Caema, ficou difícil para os anônimos produtores de
carvão se encarregarem do transporte e comercialização daquele produto,
comprometendo a dinâmica da atividade. Para viverem com o eucalipto, fazia-se
necessário, para aqueles camponeses, o implemento de novas formas de atuação.
3.2 “ASSUMA A SUA IDENTIDADE, SEJA ORGULHOSO DE SER FILHO DE
HELVÉCIA”
As transformações vivenciadas em Helvécia após a implantação da
eucaliptocultura teriam contribuído para o processo de organização de arranjos
identitários daqueles homens e mulheres enquanto comunidade remanescente de
quilombo?
Este questionamento se fundamenta na idéia defendida por Kobena Mercer,
citado por Stuart Hall,
348
quando afirma: “a identidade somente se torna uma
questão quando está em crise, quando algo que se supõe fixo, coerente e estável é
deslocado pela experiência da vida e da incerteza.”
349
Assim, podemos perguntar
em que medida a implantação da eucaliptocultura trouxe para o distrito de Helvécia
dúvidas e incertezas, e como isso transformou o sentimento de pertencimento e
identificação num questionamento, numa indagação que precisasse ser respondida
através de sinais identitários reconhecidos o só pelos membros da comunidade
como também pelo grupo dos outros, dos diferentes.
Teria sido essa a situação vivenciada em Helvécia pelos seus moradores ao
verem que suas antigas terras estavam sendo utilizadas para o plantio em massa de
eucalipto e que seu distrito estava sendo sufocado pelo projeto agro monocultor? A
348
Stuart Hall. A identidade cultural na pós-modernidade. 8. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
349
Kobena Mercer apud Stuart Hall. A identidade cultural na pós-modernidade, op. cit., p. 9.
175
narrativa a seguir traz elementos importantes para a compreensão daquilo que
ocorreu em Helvécia:
[...] Além da monocultura do eucalipto não ter trazido o progresso
que tanto esperávamos, trouxe a destruição. Para onde Helvécia vai
crescer? Uma comunidade com cinco mil habitantes está
completamente cercada pelo eucalipto, sem nenhuma perspectiva de
crescimento, porque não tem para onde. O plantio o respeitou o
espaço. [...] A nossa cultura, como comunidade remanescente
quilombola, es se perdendo a cada dia. Havia dois meios de
Helvécia crescer: pela monocultura do eucalipto na região e por
intermédio da cultura. Pelo tempo que essas empresas estão
instaladas na região, vimos que o progresso por intermédio do
eucalipto não se dará. Estamos, então, tentando resgatar a nossa
cultura, a nossa história.
350
A fala da senhora Roseli Constantino Ricardo, líder comunitária da
Associação Quilombola de Helvécia, foi proferida, em Brasília, numa audiência
pública, que tinha por finalidade discutir o impacto da expansão da eucaliptocultura
no Brasil. Isto se deu em 18 de outubro de 2005, portanto no mesmo ano em que
Helvécia foi reconhecida, oficialmente, como área remanescente de quilombo.
Nesta audiência estiveram presentes representantes de segmentos diversos,
entre os quais Sindicato dos trabalhadores rurais de Itamarajú-Bahia e de Eunapólis-
Bahia, IBAMA, membros da Aracruz, da Suzano Papel e Celulose, comunidades
indígenas, Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico Nacional (Bndes), além
de deputados e do Ministério do Meio Ambiente.
Na fala da depoente, pode-se observar a apresentação da existência de dois
caminhos/projetos diferenciados para o distrito de Helvécia. “Havia dois meios de
Helvécia crescer: pela monocultura de eucalipto na região e por intermédio da
cultura”. O primeiro deles, ainda segundo a depoente, além de não ter trazido o
progresso esperado, “trouxe a destruição”. O caminho do crescimento “por
intermédio da cultura” apresentou-se como alternativa diante da constatação de que
“[...] o progresso por intermédio do eucalipto não se dará [deu]”. Diante desta
realidade, avaliada em razão do tempo de atuação das empresas de eucalipto na
região, a valorização da cultura de Helvécia, apresentada “[...] como comunidade
350
Sra. Roseli Ricardo Constantino em Depoimento n. 1595/05, de 18/10/2005, na Comissão de
Meio Ambiente Sustentável da Câmara dos Deputados – Detaq.
176
remanescente quilombola, [que] está se perdendo a cada dia”, passou a ser o único
caminho: “Estamos então tentando resgatar a nossa cultura, a nossa história.”
Ao identificar a comunidade de Helvécia como uma cultura quilombola
associando o crescimento do distrito a ações agregadas ao “resgate” cultural e
histórico, a senhora Roseli Constantino, talvez, estivesse dando uma pista de como
se processara a construção de uma estratégia de preservação da identidade e da
memória coletiva daquele lugar.
Compreendendo-se a identidade como definida historicamente, isto é,
construída ao longo do tempo,
351
e com espaços para fissuras e discordâncias,
havia/há em Helvécia, apesar do reconhecimento oficial como área remanescente
quilombola, o que poderia indicar uma pretensa unidade, outras identidades, outros
sentimentos de pertença que não necessariamente atendem ao modelo esperado
como pico ou tradicional de uma comunidade quilombola, segundo, por exemplo,
as expectativas dos poderes públicos e de alguns integrantes dos espaços
acadêmicos.
Neste construir, houve espaço para diferentes processos identitários, o que
significa dizer que o ser quilombola em Helvécia foi/é lido por alguns de seus
membros como uma fantasia, uma inverdade, enquanto que para outros ser de
Helvécia se traduz no fato, para eles vivido e, portanto, inquestionável, de ser
quilombola.
Além dessa possibilidade de diferentes processos identitários defendidos por
distintos sujeitos históricos, Hall nos convida a perceber a complexidade desta
fluidez identitária quando afirma que “o sujeito assume identidades diferentes em
diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um “eu”
coerente”.
352
Com esta afirmação, o autor desloca a existência de uma diversidade
identitária para um sujeito particular, tendo este a possibilidade de se reconhecer
como pertencente a várias identidades, sem que exista a necessidade de uma liga,
uma concordância entre elas. Assim, um sujeito, no seu fazer-se, pode assumir para
si identidades diversas e inclusive contraditórias.
351
Stuart Hall. A identidade cultural na pós-modernidade, op. cit..
352
Idem, p. 13.
177
Tendo clareza da complexidade do conceito de identidade, a partir das
pontuações feitas, acredito ser possível dialogar com a temática com mais
tranqüilidade.
Para tentar conhecer como se deu o processo de reconhecimento de Helvécia
como área remanescente de quilombo, foi necessário analisar algumas das ações
realizadas pelos habitantes daquela comunidade no processo de construção e/ou
negação desta identidade.
A partir das entrevistas realizadas, pude conhecer alguns elementos
constituintes do dinamismo de construção deste processo. A senhora Regina
Constantino, professora e integrante da AQH, fez o seguinte comentário:
[...] enquanto aluna, enquanto você é estudante havia aquela
angústia de não conhecer um pouquinho da nossa história, nada era
falado, nada era dito, aquilo foi passando, passando, terminamos o
ensino dio do mesmo jeito, aí fomos para a faculdade [referia-se
ao curso de pedagogia realizado pelo Programa Rede UNEB 2000
em Posto da Mata] graças a Deus, e alguns professores
despertaram isso em nós, questão da luta né? Questão de valorizar
mesmo a história da gente, ainda mais Helvécia, igual minha tia
falou, muito conhecida: Ah, Helvécia é uma antiga Colônia...
Helvécia era muito importante... Nós não nos sentia tão valorizado,
quem está valorizando Helvécia? Ninguém, e aí lá na faculdade,
começou essa indagação essas coisas, foi aí que a gente teve um
pesquisador do Rio de Janeiro [referia-se a Tomas Martin
Ossowicki]... ele também veio fazer uma pesquisa aqui em Helvécia
e sempre em contato com a gente, que é professor me leva
para conhecer fulano que eu quero entrevistar. A gente ia levar e
sempre conversando, numa dessas conversas ele falou: Olha
gente Helvécia tem todas as características de uma comunidade
remanescente de quilombo, que tal vocês pedirem esse
reconhecimento do pessoal da Fundação Cultural Palmares? E a
gente naquela euforia, Ah, vai ser bom. Conversou tudo direitinho,
vamos pedir para tentar melhorar, para ver se melhora né? E nós
pedimos [...]
353
Regina Constantino revelou, nesta narrativa, a presença e importância de
pessoas, não integrantes da comunidade de Helvécia, no processo de orientação a
respeito da valorização da história daquele distrito. Ela identificou o espaço
acadêmico como um lugar do qual partiu o interesse e incentivo às ões voltadas
para a valorização da história de Helvécia, “questão de valorizar mesmo a história da
353
Entrevista concedida à autora pela sra. Regina Constantino em 15 ago. 2007.
178
gente”. Ainda segundo ela, foi também a partir do convívio com um pesquisador
354
do Rio de Janeiro que Helvécia foi apresentada a integrantes do distrito, como tendo
“todas as características de uma comunidade de quilombo”. Diante desta
constatação, feita por alguém de fora, e da provocação no sentido de que a
comunidade de Helvécia pedisse o reconhecimento através da Fundação Cultural
Palmares, deu-se início ao processo que resultou no efetivo reconhecimento de
Helvécia como área remanescente de quilombo.
Em relação aos trâmites legais
355
para que se desse este reconhecimento, o
primeiro documento, ao qual tive acesso, data de 21 de setembro de 2000, quando
foi encaminhado a então presidente da Fundação Cultural Palmares, senhora Dulce
Maria Pereira, a seguinte solicitação, assinada pelo procurador da República Márcio
Andrade Torres:
Cumprimentando-a cordialmente, solicito a V. Sª. encaminhar a esta
Procuradoria da República no Município de Ilhéus/BA, no endereço
abaixo, as informações porventura existentes nessa fundação acerca
da comunidade negra rural de Helvécia, localizada no Município de
Nova Viçosa/BA.
356
Em resposta, datada de 11 de outubro de 2000, o senhor natas Nunes
Barreto, presidente substituto da Fundação Cultural Palmares, dirigiu-se ao senhor
rcio Andrade Torres, afirmando:
Em atenção ao ofício PRM/IOS/BA 702/2000, informa a
Vossa Senhoria, que foi aberto no âmbito desta Fundação processo
administrativo, referente ao reconhecimento da Comunidade Negra
Rural de Helvécia, localizada no município de Nova Viçosa/BA, nos
termos do Art. 68 do ADCT e Arts. 215 e 216 da CF/88.
Em breve esta Fundação Cultural Palmares estará deslocando
equipe para trabalhar com esta comunidade para fins de
reconhecimento da área que ocupam, se for o caso, bem como
354
A partir de dados coletados em outras entrevistas, pode-se afirmar que a sra. Regina Constantino
referia-se ao antropólogo Tomas Martin Ossowicki, que desenvolveu, em Helvécia, suas pesquisas
de mestrado pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do
Rio de Janeiro.
355
Solicitei à Fundação Cultural Palmares o acesso ao material sobre o processo de reconhecimento
de Helvécia como área remanescente quilombola e recebi uma cópia impressa dos diversos
documentos que constam deste processo.
356
Ministério Público Federal, Procuradoria da República Ilhéus Bahia. OF./PRM/IOS/BA
702/2000, Ilhéus, 21 de setembro de 2000. In: Fundação Cultural Palmares, Reconhecimento da
Comunidade Negra Rural de Helvécia, Nova Viçosa/BA, fl. 04.
179
compatibilização de ações conjuntas com demais órgãos envolvidos
neste processo, inclusive o Governo Estadual.
357
A abertura do processo foi efetivada através do memorando 90/2000,
358
encaminhado pela Coordenação Nacional de comunidades remanescentes de
quilombos, sob o comando do senhor Murilo da Costa Santos, a chefe de divisão de
serviços gerais somente em 10 de novembro de 2000.
Enquanto os documentos transitavam em Brasília, em Helvécia, professoras
e professores da escola municipal desenvolviam atividades que valorizavam a
história da comunidade, incitavam os estudantes a esta valorização a partir de frases
do tipo “assuma sua identidade, seja orgulhoso de ser filho de Helvécia, se sinta
orgulhoso hoje de ser filho de Helvécia, porque Helvécia é história.
359
Esta mesma
professora, a senhora Malzinéia Henriqueta Ambrósio, lembrou:
[...] acho que foi em dois mil e dois, nós tivemos aqui um
acontecimento muito bom, aconteceu aí o quinto encontro do da
Semana Zumbi e nós estávamos assim ligados com as pessoas
de várias localidades, da rede de vários lugares, de Comuruxatiba,
de Caravelas, de Eunápolis e vários lugares, que foge da mente e
a gente passava para eles, conversava e depois eles viam para cá
mesmo, procuravam conversar com a gente, nós passávamos para
eles sobre esses conflitos, o que nós estávamos vivendo...
360
Este evento, “quinto encontro da semana Zumbi”, contou com a participação
de membros da “Rede Alerta Contra o Deserto Verde” e, segundo a entrevistada,
após a realização do mesmo, intensificou-se as conversas entre integrantes da
comunidade de Helvécia e membros desta rede: “[...] a gente passava para eles,
conversava e depois eles viam para mesmo, procuravam conversar com a gente,
nós passávamos para eles sobre esses conflitos, o que nós estávamos vivendo...”
A “Rede Alerta Contra o Deserto Verde” é um movimento que luta contra a
expansão da monocultura do eucalipto para a produção de celulose e carvão vegetal
357
Fundação Cultural Palmares, ofício 1104/2000 PRES/GAB/FCP/MinC, Brasília, 11 de outubro
de 2000. In: Fundação Cultural Palmares, Reconhecimento da Comunidade Negra Rural de Helvécia,
Nova Viçosa/BA, fl.05.
358
Fundação Cultural Palmares, Coordenação Nacional de Comunidades Remanescentes de
Quilombos, memorando nº 90/2000, 10 de novembro de 2000. In: Fundação Cultural Palmares,
Reconhecimento da Comunidade Negra Rural de Helvécia, Nova Viçosa/BA, fl. 02
359
Entrevista concedida à autora pela sra. Malzinéia Henriqueta Ambrósio em 14 ago. 2007.
360
Entrevista concedida à autora pela sra. Malzinéia Henriqueta Ambrósio em 14 ago. 2007.
180
no Espírito Santo, Bahia, Rio de Janeiro e Minas Gerais”.
361
Representa diversas
comunidades quilombolas, além de outras comunidades. Seus integrantes, que
estabeleceram contatos com a comunidade de Helvécia, conheciam as exigências e
ações necessárias para que o processo de reconhecimento daquele distrito
alcançasse êxito.
Data de 23 de outubro de 2004, o pedido de reconhecimento como
comunidade remanescente de quilombo, devidamente assinado pela Associação e
Comunidade Afro ACA, Maria da Conceição, Benício Ricardo, Manoel Norberto,
Amâncio dos Santos e Sérvulo Constantino Filho, encaminhado para a Fundação
Cultural Palmares. Transcrevo, a seguir, alguns trechos deste documento.
Nós, comunidade de Helvécia, nos autodefinimos
remanescentes de quilombo, portanto, pedimos e requeremos o
registro no livro de cadastro geral, expedição de certio pela
Fundação Cultural Palmares.
Esta carta é, portanto, uma declaração comunitária, feita
através da Associação e Comunidade Afro do Município de Nova
Viçosa, Bahia, visando o reconhecimento da comunidade negra e do
distrito de Helvécia, deste mesmo município, e as comunidades e
terras negras adjacentes, como Comunidades Remanescentes de
Quilombo, perante o artigo 68 da Constituição Brasileira de 1988, e
diante o decreto 4887, feito pelo Presidente da República no dia
20 de novembro de 2003.
[...]
A área acima mencionada constituía, entre, mais ou menos, os anos
1820 e 1900, a Colônia Leopoldina, grande empreendimento
cafeeiro, movido por mão-de-obra escrava, [...] A partir da abolição a
área se tornou uma comunidade quase exclusivamente negra. [...]
Atualmente estamos perdendo a nossa liberdade de ir e vir em
busca do nosso próprio sustento devido o grande plantio de eucalipto
ao nosso redor e nas nossas terras. O eucalipto tem destruído o
resto da Mata Atlântica e da nossa terra, e empobrece as nossas
roças. Somos impedidos, através de forças polícias (sic), e das
empresas (Aracruz e BahiaSul (sic) ), de caçar, pescar e tirar lenha
nas nossas próprias terras.
Portanto reiteramos pedido de certificação como remanescente
de quilombos, reconhecendo (sic), delimitação, demarcação e
titulação de nossas terras pelo órgão competente.
362
Destaco alguns elementos. Em primeiro lugar, a utilização da construção “nos
autodefinimos remanescentes de quilombo” diz da existência de uma organização
361
Rede Alerta Contra o Deserto Verde. Fomento Zero por que dizer não ao plantio de eucalipto?
Publicação FASE, Espírito Santo, 2003, p. 21.
362
Pedido de reconhecimento como comunidade remanescente quilombola, Helvécia, 23 de outubro
de 2004. In: Fundação Cultural Palmares, Reconhecimento da Comunidade Negra Rural de Helvécia,
Nova Viçosa/BA, fls. 09 e 10.
181
social, de um grupo de pessoas organizado politicamente,
363
na época através da
ACA, para garantirem os seus direitos nas terras que ocupavam, em conformidade
com aquilo que está definido no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias: “aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam
ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado
emitir-lhes os títulos respectivos.”
364
No que concerne ao uso da categoria remanescência, José Maucio Andion
Arruti chama a atenção para o fato de que esta “levou a uma atualização do termo
quilombos, permitindo que, cada vez mais, ele seja apropriado como uma auto-
identificação política”,
365
não estando mais atrelado a reminiscências, como, por
exemplo, restos de senzalas, documentos e/ou locais emblemáticos, mas sim a “[...]
uma elaboração social e simbólica em torno das suas formas de existir e resistir, que
se manifestam nas formas de organização contemporânea do grupo”.
366
Arruti
salienta que
[...] as formas de resistência sempre estiveram historicamente
ligadas às formas de negociação das diferenças e interações e é
sobre elas (e não apesar delas) que suas demandas se sustentam.
367
Assim, no viver com eucaliptos, a comunidade de Helvécia organizou-se,
resistindo e negociando, diante das difereas e interações existentes na relão
com os projetos defendidos pelas “firmas”.
O fato de constar, no pedido de reconhecimento enviado à Fundação Cultural
Palmares, por membros da comunidade de Helvécia, um parágrafo no qual os
signatários denunciam mazelas associadas ao plantio do eucalipto nas terras de sua
comunidade, é um indicativo de que o processo de reconhecimento de Helvécia
como área remanescente de quilombo estava inserido nas estratégias de grupos
organizados daquela comunidade, de resistência e negociação nas relações com “as
firmas”.
363
José Maurício Andion Arruti. As comunidades negras rurais e suas terras: a disputa em torno de
conceitos e números. Dimensões Revista de História da Ufes. Vitória: Universidade Federal do
Espírito Santo, Centro de Ciências Humanas e Naturais, nº 14, 2002.
364
Constituição da República Federativa do Brasil. Texto constitucional promulgado em 5 de outubro
de 1988. Brasília: Senado Federal, Subsecretária de Edições Técnicas, 2002, p.159.
365
José Maurício Andion Arruti. As comunidades negras rurais e suas terras: a disputa em torno de
conceitos e números, op. cit., p. 246.
366
Idem, p. 248.
367
Idem, p. 248.
182
A AQH o foi a primeira organização voltada para discutir a questão da
remanescência quilombola em Helvécia. De fato, o auto-reconhecimento e o pedido
de certificação foram encaminhados à Fundação Palmares, acompanhados de Ata e
Estatuto da Associação e Comunidade Afro do Município de Nova Viçosa ACA,
cuja sede era em Posto da Mata. Data de 22 de abril de 2005,
368
o registro da
descentralização da Associação Quilombola de Helvécia da ACA, feita por seus
membros que residiam em Helvécia.
Na ata da segunda reunião da AQH, em 9 de julho de 2005,
369
registro da
presença do então deputado federal Luiz Alberto (PT/Bahia), que, na ocasião,
proferiu uma palestra a respeito dos temas tratados naquele dia – Comunidade
remanescente quilombola e Plantio de eucalipto na região. O contato deste
deputado com integrantes da AQH foi freqüente no ano de 2005, tendo sido ele,
juntamente com o deputado César Medeiros (PT/Minas Gerais), a requerer,
370
na
Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável e na Comissão de
Direitos Humanos e Minorias, a realização de audiência pública para discutir o
impacto da expansão da eucaliptocultura no Brasil, em 18 de outubro de 2005, da
qual a senhora Roseli Constantino Ricardo participou, na condição de líder da AQH.
A presença, de um integrante do poder legislativo federal atuando de forma
direta na comunidade de Helvécia sugere, e a fala de entrevistados ligados à AQH
endossam, a existência da mediação e orientação feita por estes representantes
para que ocorresse o reconhecimento.
Houve um protagonismo, no processo de reconhecimento de Helvécia como
área remanescente de quilombo, de pessoas que integravam a AQH e/ou
educadores de Helvécia, em consonância com membros do poder executivo e
representantes ligados ao universo acadêmico de diferentes instituições que, em
razão de pesquisas realizadas naquele distrito, acabaram contribuindo, à medida
que levaram informações sobre os procedimentos necessários, para que se desse o
referido pedido de reconhecimento.
Aquela não era apenas uma disputa por terras envolvendo camponeses e
representantes do agronegócio, havia um novo contexto, relacionado à existência do
Artigo 68 da Constituição de 1988, e, provavelmente, as ações dos habitantes de
368
Ata da Associação Quilombola de Helvécia fl. 3, Helvécia – Bahia.
369
Ata da Associação Quilombola de Helvécia fl. 3, Helvécia – Bahia.
370
Conforme dados constitutivos do Depoimento n. 1595/05, de 18/10/2005, na Comissão de Meio
Ambiente Sustentável da Câmara dos Deputados – DETAQ.
183
Helvécia se relacionaram com as novas experiências que eles tiveram, inclusive com
o conhecimento do teor do artigo. Arruti, em estudos sobre o processo de
reconhecimento de outras áreas quilombolas, alerta para a importância de se
compreender que
A noção de “territorializaçãoindicaria, portanto, o movimento pelo
qual um objeto político-administrativo se transforma em uma
coletividade organizada, implicando: a criação de uma nova unidade
sociocultural mediante o estabelecimento de uma identidade étnica
diferenciadora, a constituição de mecanismos políticos
especializados, a redefinição do controle social sobre os recursos
ambientais e a reelaboração da cultura e da relação com o
passado.
371
Não se tratava, simplesmente, de um processo de auto-reconhecimento por
parte dos habitantes de Helvécia no sentido de se afirmarem como quilombolas.
Existia concomitantemente também um processo externo, vinculado àquele auto-
reconhecimento, do qual o Estado havia tomado para si as diretrizes, visando definir
os espaços que constituíam aquela comunidade. Desta maneira, ela ficou
territorializada, e isso não significava de forma alguma uma mera definição física,
também a idéia de territorialidade encontrava sua essência nas questões associadas
às maneiras dessas pessoas que ali viviam de lidar com a natureza, com suas
representações sociais, suas produções associadas à religiosidade, lazer, pois,
conforme salienta Eliane Cantarino O’Dwyer,
Ao contrário do que o termo “remanescente” possa sugerir com
referência às sobras e restos de um passado sempre ressuscitado,
essa forma de identificação é utilizada por eles no presente para a
ação coletiva em defesa do território que ocupam e na garantia da
reprodução de seu modo de vida característico.
372
Esta defesa estava expressa no pedido de reconhecimento feito por
integrantes da comunidade de Helvécia: “Atualmente estamos perdendo a nossa
371
JoMaurício Arruti. Mocambo Antropologia e História do processo de formação quilombola.
Bauru, SP: Edusc, 2006, p. 41.
372
Eliane Cantarino O’Dwyer. “Remanescentes de quilombo” na fronteira amazônica: a etnicidade
como instrumento de luta pela terra. In: Clóvis Moura (Org.). Os quilombos na dinâmica social do
Brasil. Maceió : EDUFAL, 2001, p. 305.
184
liberdade de ir e vir em busca do nosso próprio sustento. [...] Somos impedidos, [...]
de caçar, pescar e tirar lenha nas nossas próprias terras.
373
Ainda a respeito da importância do Estado, Arruti alerta para o risco de se
supervalorizar o seu papel neste processo de territorialização: “[...] desconsiderando
que as coletividades organizadas antecedem a tal objetivação e podem ser as
propositoras de uma auto-objetivação,”
374
ou seja, as transformações relacionadas
ao processo de territorialização como, por exemplo, aquelas relativas à identidade, à
unificação política e à adaptação cultural podem ter antecedido a territorialização
feita pelo Estado. Para Arruti, ainda que o Estado seja a figura central neste
procedimento de territorialização, na medida em que é o Estado que certifica, ou
não, uma área como sendo remanescente de quilombo, ele não deve ser visto como
o único agente importante neste processo de reconhecimento. Integrantes da
comunidade de Helvécia se organizaram na construção de sua identidade
quilombola.
Partindo do pressuposto de que a identidade é relacional,
375
os homens e as
mulheres de Helvécia se sabiam pertencentes àquela comunidade no momento em
que, nas suas relações cotidianas, vivenciavam situações em que ficava visível, a
partir do contato com o outro, as semelhanças que poderiam sugerir a idéia de
pertencimento, reconhecimento de si. Da mesma forma, também nas relações com
os outros é que foram observadas e identificadas as diferenças e a idéia de não-
pertencimento, o-reconhecimento de si em determinadas atitudes, jeitos. Sendo a
construção identitária relacional, ela se na observação, no diálogo e no convívio,
nem sempre tranqüilo, com o outro.
Assim os habitantes de Helvécia viram chegar ao seu lugar novos sotaques,
vindos de outras regiões do Brasil, pessoas acostumadas com outro ritmo de
trabalho, marcado pelo horário das firmas e não pelo ritmo da natureza. Pessoas
que desconheciam o significado religioso dos ofícios em Helvécia, o sabiam do
costume de soltar fogos para avisar/comemorar o nascimento de uma criança, o
373
Pedido de reconhecimento como comunidade remanescente quilombola, Helvécia, 23 de outubro
de 2004. In: Fundação Cultural Palmares, Reconhecimento da Comunidade Negra Rural de Helvécia,
Nova Viçosa/BA, fls. 09 e 10.
374
José Maurício Arruti. Mocambo Antropologia e História do processo de formação quilombola, op.
cit., p. 42.
375
Raymond Ledrut apud Jacques D’Adesky. Pluralismo étnico e multi-culturalismo: racismos e anti-
racismos no Brasil. Rio de Janeiro: Pallas, 2005, p. 40.
185
batizado, a conclusão de um curso de graduação.
376
Estranhavam o espocar de
fogos na madrugada do dia 14 de agosto, comunicando à comunidade a saída de
um grupo de habitantes de Helvécia para a festa de Nossa Senhora D’Ajuda que
acontece, todos os anos, em Arraial D’Ajuda – Porto Seguro.
Desse desconhecimento construíram-se as estranhezas, as não-adaptações
aos modelos, por exemplo, de higiene. Neste sentido, podemos pensar numa
situação prosaica e ilustrativa do constrangimento provocado pelo encontro de
diferentes hábitos alimentares, em que os moradores locais estavam acostumados a
comer animais criados no fundo de seus quintais ou nas suas propriedades, como
galinhas e porcos, animais esses que eram abatidos na hora, e isso significava para
eles a certeza de uma refeição saborosa e digna de ser oferecida como um deleite
para qualquer pessoa. os engenheiros e demais funcionários do primeiro escalão
das empresas, designados para permanecerem alguns dias no distrito - durante as
negociações, medições de terra, estabelecimentos de acordos - estavam habituados
a se alimentar com produtos adquiridos em supermercados, congelados e
devidamente identificados com selos de inspeção de qualidade e padrão de higiene.
O encontro entre estes dois jeitos de ser/saber em uma refeição causava
constrangimento para ambos os envolvidos, pois enquanto o dono da casa
acreditava estar servindo o que de melhor havia para oferecer, o convidado via-se
diante de uma situação que não atendia às normas de segurança alimentar as quais
estava habituado. Desta forma, a relação com o outro era a relação com outro jeito
de fazer, outros gostos, outras formas de construir as normas. Esta estranheza
377
fazia-se presente tanto para os moradores de Helvécia quanto para aqueles que ali
chegavam com o objetivo de implantar a atividade do agronegócio de eucalipto.
D’Adesky, citando Erik Erikson, afirma que o processo de identificação social
ocorre a partir de ajustes que vão sendo feitos nas relações do eu com o outro, o
que significa dizer que ele não é mecânico, imediato. Ainda para Erikson, este
[...] processo é, em sua maior parte, inconsciente, exceto nos casos
em que condições internas e circunstâncias externas se combinam
para reforçar uma consciência de identidade dolorosa ou exaltada.
378
376
Informações dadas à autora pela sra. Gilsineth Joaquim Santos em 13 ago. 2007.
377
José de Souza Martins. A chegada do estranho. São Paulo: HUCITEC, 1991.
378
Erik Erikson apud Jacques D’Adesky. Pluralismo étnico e multi-culturalismo: racismos e anti-
racismos no Brasil. Rio de Janeiro: Pallas, 2005, p. 41
186
A narrativa da senhora Roseli Constantino, a respeito do processo de
valorização da identidade quilombola em Helvécia, fornece algumas pistas sobre a
existência desta combinação entre condições internas e circunstâncias externas.
[...] o que a gente observa aí [referindo-se a Helvécia] é a falta de
oportunidade, não tem emprego, não tem nada e foi aí que nós
começamos a fazer esse trabalho né? Foi através disso que surgiu o
fato da gente ter pedido o reconhecimento, porque Helvécia hoje está
ilhada [...] mas, uma vez, que a gente cedeu espaço, a comunidade
cedeu esse espaço para a monocultura, a gente viu que não
melhorou, não mudou nada, muito pelo contrário e a gente vê,
começamos a observar né? A questão da cultura, o quanto isso é
rico, sempre a gente via pesquisadores, desde criança a gente
depara com pessoas indo pesquisar, a gente até não entendia, ia
para a casa de um ia para a casa do outro e convivendo né? Depois
mesmo que nós terminamos o ensino dio a gente até tentava
trabalhar já na sala de aula aquilo que a gente conseguia né? Sem
conhecimento até para desenvolver um trabalho melhor, mas a gente
tentava e no ingresso na Universidade que foi assim o caminho que
nos impulsionou mesmo, para dizer: Não, é por mesmo, temos
que procurar trabalhar, incentivar mais as crianças, levar esse
conhecimento para a sala de aula, para que a gente tenha, digamos,
aliados né? Nessa luta aí por uma Helvécia diferente né?
Resgatando esses valores que eram tantos antes da vinda do
eucalipto, porque as manifestações, elas aconteciam com mais
freqüência, cada semana a gente ia, eu mesmo fui várias vezes
com meus avós, a samba, a festas na casa dessas pessoas e, com
a venda dessas terras, tudo isso foi acabando, então a gente sentiu
a necessidade de está fazendo esse resgate, explicando para o
aluno na sala de aula e até mesmo para a comunidade, através de
palestras, de feiras, para que o aluno conheça, para que a
comunidade conheça essa importância, o valor que a comunidade
tem e a partir daí começar a valorizar isso aí.
379
Quando a entrevistada, após explicar que o pedido de reconhecimento foi
pensado a partir da realidade expressa na construção “não tem emprego, não tem
nada”, realidade esta que teria contribuído para que “a questão da cultura” fosse
valorizada, ela esmiuçou o dinamismo desta valorização, falando da atuação feita na
escola
380
junto às crianças de Helvécia. Ao fazê-lo, produziu em sua narrativa uma
pista de que aquele não tinha sido um caminho consensual: “temos que procurar
trabalhar, incentivar mais as crianças, levar esse conhecimento para a sala de aula,
379
Entrevista concedida à autora pela sra. Roseli Constantino Ricardo em 15 ago. 2007.
380
Na época em que realizei as entrevistas, alguns dos membros da AQH eram pessoas que
atuavam como professoras(es) na escola João Martins Peixoto.
187
para que a gente tenha, digamos, aliados né? Nessa luta aí por uma Helvécia
diferente né?”
381
Assim, por mais que as condições internas, expressas na fala da entrevistada
valorização da história local, transformações engendradas pela monocultura do
eucalipto, desilusões quanto às expectativas de emprego e ascensão social
tenham se somado a circunstâncias externas aprovação do Artigo 68 do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias na Constituição de 1988, criação do
programa Brasil Quilombola pela Secretaria Especial de Políticas de Promoção da
Igualdade Racial, aprovação da Lei 10.639/2003 –, alinhavadas de forma a “reforçar
uma consciência de identidade”,
382
esta situação não impediu que membros daquela
comunidade se posicionassem de forma contrária ao processo de reconhecimento.
3.2.1 ARRANJOS IDENTITÁRIOS. SER QUILOMBOLA, TORNAR-SE
QUILOMBOLA.
O pedido de reconhecimento como Comunidade remanescente de quilombo
enviado para a Fundação Palmares em outubro de 2004 não demorou a ser
respondido. A certidão de Auto-reconhecimento
383
foi expedida pelo então
presidente da Fundação em 2 de março de 2005, editada na portaria 7 de 6 de
abril de 2005 e publicada no Diário Oficial da União em 19 de abril de 2005.
Em Helvécia, esta informação foi divulgada através de um panfleto.
Comunicado da AQH:
HELVÉCIA AGORA É QUILOMBO!!!
O Governo Federal reconheceu
HELVÉCIA
Como
Comunidade Remanescente de Quilombo
no dia 6 de abril de 2005
384
.
381
Entrevista concedida à autora pela sra. Roseli Constantino Ricardo em 15 ago. 2007.
382
Erik Erikson apud Jacques D’Adesky. Pluralismo étnico e multi-culturalismo: racismos e anti-
racismos no Brasil. Rio de Janeiro: Pallas, 2005, p. 41.
383
Panfleto da AQH. In: Fundação Cultural Palmares, Reconhecimento da Comunidade Negra Rural
de Helvécia, Nova Viçosa/BA, fl. 35
384
Panfleto da AQH. In: Fundação Cultural Palmares, Reconhecimento da Comunidade Negra Rural
de Helvécia, Nova Viçosa/BA, fl. 37.
188
Além deste comunicado, o referido panfleto trazia um xerox do Diário Oficial
da União no qual estava publicada a portaria nº 7.
Como a população de Helvécia recebeu este comunicado?
Ave Maria, foi uma revolta para aqueles que acham que ia ser
poderoso em Helvécia, uma meia dúzia, que Helvécia ia ser mudada,
que Helvécia quem tinha suas casas não podia vender. Chegou
pessoas, sei lá, pessoas da nossa cor, [o entrevistado referia-se a
ser negro] pessoas do nosso nível [provavelmente referia-se à
condição de pequeno proprietário de terra] sair fazendo abaixo-
assinado aí dentro de Helvécia, falando que se Helvécia fosse
quilombola não ia ter escola, não ia ter energia, que ia cortar isso
tudo, para as pessoas assinar, quem tinha suas casas não poderia
vender, se você fosse vender sua terra você tinha que vender para
um que era da comunidade não podia vender para outra pessoa que
era de Posto da Mata, se vofosse embora tinha que largar sua
casa aí. Mas falou tanta coisa...
385
A reação ao “comunicado” deixou ver que aquele não era um projeto de toda
a comunidade. Além disso, dúvidas em relação àquilo que aconteceria com a
propriedade da terra e os direitos individuais sobre as mesmas foram levantadas por
“uma meia dúzia” de pessoas, “aqueles que acham que iam ser poderoso em
Helvécia”. Este grupo, segundo a fala de outros entrevistados, não era assim tão
pequeno, e se organizou através da confecção de um abaixo-assinado com o intuito
de negar aquilo que lhes havia sido comunicado. Eles não se reconheciam como
remanescentes de quilombo, mas, por outro lado, se sabiam pertencentes à
Helvécia. Aquele foi um tempo de tensão.
Hoje a nossa Associação, ela esmais ou menos com umas doze
pessoas, por aí, pode ter mais algumas, mas aparece de vez em
quando, logo quando surgiu a Associação ela tinha um número muito
bom de pessoas, mas a opressão ela foi tanta da população e os
falatórios eram tantos e nem todo mundo tem esse sangue guerreiro,
né? De lutar ao fim, de ir até o fim, [...] então a maioria por medo
afastou, [...] o inicio foi doloroso demais, foi muito doloroso, nós
éramos apontados na rua, né? Como pessoas que vai roubar terra
dos outros, [...], teve pessoas que chegou adizer que muitas de
nós, ia acontecer com nós o que aconteceu com Chico Mendes,
então era um sofrimento muito grande para as nossas famílias, para
nossos filhos [...]
386
385
Entrevista concedida à autora pelo sr. Jorge Ferreira da Silva em 14 ago. 2007.
386
Entrevista concedida à autora pela sra. Malzinéia Henriqueta Ambrósio em 14 ago. 2007.
189
Ao abaixo-assinado somaram-se os falatórios, as ameaças, “chegou até dizer
que muitas de nós, ia acontecer com nós o que aconteceu com Chico Mendes”.
Aquela memória era dolorosa, a senhora Malzinéia nos falou de pressão, de sua dor
ao ser apontada na rua, “Como pessoas que vai roubar terra dos outros”.
Outra entrevistada, Jilsimere Joaquim Santos e Silva, 31 anos, falou sobre
este período doloroso, silenciando: “de início eu estava engajada no grupo mas... eu
preferi, eu gostaria de estar, mas por questões, né? Eu preferi...
387
A opressão, o
medo, denunciados pela senhora Malzinéia, talvez estivessem ditos nesses
silêncios.
Pelo exposto fica claro que a questão crucial que causava descontentamentos
no processo de reconhecimento de Helvécia como comunidade quilombola dizia
respeito à propriedade da terra. No panfleto, elaborado pela AQH, comunicando a
ação do governo federal aos habitantes de Helvécia, constava algumas informações
a este respeito.
O Artigo 68 da Constituição Federal garante aos
negros descendentes dos escravos e quilombolas o
direito legítimo de suas terras.
90% da população de Helvécia é
NEGRA!!!
Portanto temos o direito e a chance de usufruir da
Lei Federal, existente desde 1988, o centenário da
Abolição da Escravatura.
O Quilombo veio para beneficiar
principalmente OS MENOS
FAVORECIDOS da nossa
COMUNIDADE!!!
Veio para garantir TERRA para nós
TODOS!!!
Não veio para tomar a terra de
387
Entrevista concedida à autora pela sra. Jilsimere Joaquim Santos e Silva em 14 ago. 2007.
190
ninguém da nossa comunidade!
Não veio para excluir ninguém, independente de
cor, religião, renda ou simpatias políticas!
Vamos LUTAR juntos para melhorar o
lugar que é NOSSO!!!
Para maiores informações: Associação Quilombola de Helvécia
(AQH)
388
Alguns elementos deste texto deixam claro que a AQH tinha conhecimento
dos descontentamentos que ele provocaria. Havia neste panfleto uma apresentação
sucinta daquilo que tinha sido decidido no campo jurídico, através da elaboração do
Artigo 68. Tal decio foi apresentada como uma conquista, e a população de
Helvécia teria “o direito e a chance de usufruir da Lei Federal”. A questão da terra
apareceu em negrito, ocupando, no papel, lugar de destaque, o mesmo que assumiu
nas conversas, nos burburinhos, nos debates e nos embates feitos nas vendas do
distrito, na igreja, na AQH. O texto dizia da não-exclusão, mas não foi suficiente para
acalmar os ânimos e garantir a tranqüilidade aos moradores de Helvécia. As dúvidas
ganharam as ruas, as casas, os espaços de sociabilidade.
A senhora Roseli Constantino, líder da AQH, a respeito da relação entre a
comunidade e a associação que assinou o panfleto, comentou:
É, não tem um relacionamento assim muito bom, né? Porque quando
nós pedimos o reconhecimento, muitas pessoas, eu acho que houve
falha nossa, em relação assim, divulgamos pouco e por falta de
conhecimento muitos têm uma idéia completamente equivocada do
que vem a ser uma comunidade remanescente de quilombo, que tem
um grupo de pessoas que passaram principalmente para o povo
mais carente, mais pobre, que ser quilombola não seria uma coisa
boa e isso está ligado às próprias pessoas que ainda continua tendo
terra e são muito ligadas à empresa [referia-se à Aracruz Celulose.],
então elas começaram a passar para a comunidade que ser
quilombola não era uma coisa boa, que você iria perder sua casa,
entendeu? Iria perder sua casa, você não iria ser dono de mais nada,
chegaram a ponto de dizer que a escravidão ia voltar e a
388
Panfleto da AQH. In: Fundação Cultural Palmares, Reconhecimento da Comunidade Negra Rural
de Helvécia, Nova Viçosa/BA, fl. 37.
191
comunidade acreditou, ela acreditou e começou um certo conflito
entre a Associação Quilombola e essas pessoas[...]
389
A idéia de impetrar o processo de reconhecimento do distrito de Helvécia
como área remanescente de quilombo não foi previamente debatida com toda a
comunidade. A entrevistada inclusive avaliou que tal procedimento, por parte da
associação, contribuiu para que uma série de equívocos fossem divulgados junto à
população. A este respeito, a senhora Roseli Constantino falou da existência, dentro
de Helvécia, de proprietários de terra aliados aos interesses das empresas de
eucalipto, e que, por esta razão, eram contrários à aceitação do reconhecimento
daquela comunidade como área remanescente quilombola. Deduzo que esta aliança
tenha se dado em razão da adesão destes proprietários, ao fomento praticado pelas
empresas responsáveis pela monocultura do eucalipto.
Tanto a Aracruz Celulose quanto a Suzano Bahia Sul Celulose sabiam das
implicações legais da certificação do reconhecimento e do processo de
reterritorialização que a mesma poderia trazer em seu bojo. Daí o discurso de seus
representantes, junto aos seus pares – parceiros da prática do fomento, proprietários
de empresas terceirizadas que atuavam no distrito, empregados das empresas –,
“ser quilombola não era uma coisa boa, [...] Iria perder sua casa, você não iria ser
dono de mais nada”.
390
Havia no distrito pessoas que tinham interesses econômicos em defender a
expansão da eucaliptocultura, que o desejavam a ocorrência de nenhum tipo de
obstáculo ou embargo a este desenvolvimento. Esta situação, ao ilustrar a existência
de alianças entre membros da comunidade e representantes das empresas, coloca
em xeque uma visão simplista de que a comunidade de Helvécia se manifestava,
toda ela, de forma adversa à implantação da monocultura de eucalipto.
Outra situação possível pode ter sido organizada por representantes da
comunidade, possuidores de terras e interessados em garantir seus direitos
individuais, temendo o estabelecimento de uma lei que se apresentava defensora do
coletivo, veio para beneficiar principalmente os menos favorecidos da nossa
comunidade!!!
391
389
Entrevista concedida à autora pela sra. Roseli Constantino Ricardo em 14 ago. 2007.
390
Entrevista concedida à autora pela sra. Roseli Constantino Ricardo em 14 ago. 2007
391
Panfleto da AQH. In: Fundação Cultural Palmares, Reconhecimento da Comunidade Negra Rural
de Helvécia, Nova Viçosa/BA, fl. 37.
192
O movimento de pressão e boatos a respeito do significado daquele
reconhecimento também foi feito a partir de uma “elite local”, identificada pelos
entrevistados como grandes proprietários de terra, em geral brancos e
representantes do poder político local, que, associados ou o às empresas de
eucalipto, divulgaram informações que desqualificaram o reconhecimento da
comunidade e ainda impingiram à população um sentimento de nico. Os velhos
tempos de Helvécia, os tempos do cativeiro, das memórias indizíveis deixaram ver
sua força: “[...] chegaram ao ponto de dizer que a escravidão ia voltar e a
comunidade acreditou, ela acreditou.”
392
Será?
Não tenho como responder a esta questão, entretanto, nas pesquisas de
campo, alguns dos entrevistados, ao serem convidados a falar da história de
Helvécia e da chegada da eucaliptocultura naquele lugar, trouxeram, a partir de suas
memórias, o sentido de pertencimento e de reconhecimento de si nas relações com
os outros, sem ao menos fazer menção à idéia de Helvécia como quilombo; outros
buscaram explicar por que não se reconheciam como quilombolas e outros ainda se
viam e se valorizavam como tal.
Pode parecer paradoxal, e talvez o seja, mas o fato é que a riqueza da
história de gente comum não está atrelada à idéia de verdade. Ela é apenas, e isso
não é pouco, uma construção feita a partir de olhares de sujeitos históricos que m
muito a nos dizer dos lugares que eles vivem, freqüentam e interpretam. Assim, por
exemplo, a fala da Presidente de uma Associação talvez não seja suficiente para dar
conta das várias leituras que seus diversos membros fazem de uma determinada
situação. Do mesmo modo que, em não se fazendo parte daquele grupo especifico,
outros sujeitos possam elaborar diferentes análises de uma mesma realidade.
A estratégia de preservação de identidade em Helvécia pode ter acentuado o
caráter ilusório
393
da mesma. Talvez este tenha sido maximizado quando da
organização de uma associação para lutar pelo reconhecimento de Helvécia como
área remanescente de quilombo, visto que existisse dentro da comunidade uma
variedade de noções de pertencimentos e identificações que não se referia a ser ou
não ser quilombola. Essa variedade se pautava, por exemplo, em relações
392
Entrevista concedida à autora pela sra. Roseli Constantino Ricardo em 14 ago. 2007.
393
Maria de Fátima Araújo Di Gregorio. Memória Coletiva: estratégias de preservação da identidade
cultural dos imigrantes italianos em Itiruçu – BA, 1950-2000. Salvador: EDUNEB, 2003.
193
construídas no campo das sociabilidades políticas, religiosas e de parentesco, e, ao
que parece, eram fluidas.
Essa idéia de fluidez identitária nos convida a dialogar com as narrações
feitas nas entrevistas, entendendo-as não como verdades cabais, mas sim
historicizando o tempo em que foram produzidas, compreendendo que aqueles
mesmos sujeitos podem construir diferentes narrativas em outros tempos e espaços.
Tal fluidez não desqualifica as narrações nem as invalida, ao contrário, nos faz
perceber, segundo o que foi proposto por Hall, que os sujeitos históricos vivenciam
uma situação por ele denominada de descentramento,
394
na qual uma pessoa
assume para si um repertório de identidades e não uma única e excludente.
A questão da identidade quilombola em Helvécia fez-se presente, enquanto
processo e construção, a partir do momento em que as pessoas daquela
comunidade passaram a ter dúvidas sobre sua própria organização social, isto é,
quando a dinâmica de suas atividades de produção não mais lhes garantiu o
sustento, em razão de o mais possuírem terras para plantar, posto que estas, em
sua maioria, foram adquiridas pelas empresas de eucalipto. Concomitante a esta
situação, homens e mulheres de Helvécia não encontravam espaços de emprego de
sua mão-de-obra “nas firmas”.
O que estou afirmando é que em Helvécia aconteceram transformações, e
essas se deram nos espaços do cotidiano. O movimento dessas transformações foi
marcado por diferentes interesses que traduziram aquilo que Hall denomina de
“duplo movimento de conter e resistir”.
395
Portanto as pessoas daquele lugar, em
razão de interesses individuais e coletivos, foram organizando um repertório de
ações no sentido de marcarem seu espaço de atuação bem como o espaço de
atuação das firmas e de tudo aquilo que elas trouxeram consigo.
Nos convívios ou contatos esporádicos com os outros, por exemplo, com os
funcionários das empresas que eram de outras cidades e regiões eles se sabiam
diferentes e não se identificavam com traços destes outros grupos. Nestes contatos,
a comunidade teve suas representações sociais muitas vezes desvalorizadas pelos
funcionários do alto escalão, freqüentemente vindos das regiões Sul e Sudeste do
Brasil, havendo ainda situações em que heranças culturais da comunidade de
394
Stuart Hall. A identidade cultural na pós-modernidade. 8 ed. Rio de Janeiro, DP&A, 2003.
395
Stuart Hall. Da Diáspora identidades e mediações culturais. Belo Horizonte, ed. UFMG, 2003, p.
233.
194
Helvécia foram folclorizadas
396
por este grupo. Segundo Selim Abou, citado por
Jacques d’Adesky, um dos caminhos trilhados pela história oficial, para
homogeneizar e enfraquecer o sentimento de identidade de um grupo, consiste
exatamente em uma ação que “[...] tenta folclorizar sutilmente as heranças culturais
dos grupos étnicos dominados, enfraquecendo seu sentimento de identidade e seu
poder de contestação”.
397
Essa espetacularização do outro pelos canais oficiais pode ser aqui ilustrada
através das informações que o guia de turismo do município de Nova Viçosa
398
traz
a respeito de Helvécia.
Neste documento, Helvécia é descrita como se fora um patrimônio histórico
pronto para ser degustado por turistas que quisessem conhecer elementos típicos
do Brasil colonial bem como provar das maravilhas do exotismo daquela cultura
negra, traduzido, entre outras coisas, numa dança associada ainda ao tempo do
cativeiro, denominada de bate-barriga.
399
Parte da população de Helvécia, ao ter, nas suas relações com o outro, o
diferente, percebido que estava sendo preterida e desqualificada, seja através dos
sinais econômicos e/ou de status social, fez uso de um discurso juridicamente
reconhecido
400
no Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias,
401
para fazer valer suas reivindicações coletivas, associando à questão da identidade
quilombola a possibilidade de garantia da propriedade das terras bem como daquilo
que estaria associado a esta propriedade e que dizia respeito a práticas do seu
cotidiano.
Foi naquele contexto de transformações originadas “pela intervenção de
forças externas e da configuração de um novo campo de relações de poder e
396
A expressão “folclorizada” está sendo utilizada aqui no sentido de espetacularização, em que
práticas culturais existentes em Helvécia foram lidas por pessoas que não são daquele lugar como se
fossem espetáculos, apresentações.
397
Jacques D’Adesky. Pluralismo étnico e multi-culturalismo: racismos e anti-racismos no Brasil, op.
cit., p. 42.
398
Publicado pela Secretaria de Turismo e Meio Ambiente da Prefeitura de Nova Viçosa no ano 2000.
399
Guia de turismo do município de Nova Viçosa, Secretaria de Turismo e Meio Ambiente da
Prefeitura, 2000.
400
José Maurício Arruti. Mocambo – Antropologia e História do processo de formação quilombola, op.
cit.
401
Constituição da República Federativa do Brasil, Ato das Disposições Constitucionais Transitórias,
Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2002, p.159.
195
resistência
402
que a referência à identidade quilombola adquiriu sentido para
integrantes daquela comunidade, que se organizaram coletivamente, que
individualmente teriam mais dificuldades em dialogar com as empresas de eucalipto,
fazendo essas se posicionarem de maneira a respeitar e atender algumas de suas
demandas. Então, no bojo das pressões, se organizaram para jogar, com mais
propriedade e assertividade, o jogo das identidades.
Neste jogo, pudemos observar que não existia consenso, pertencer a
Helvécia não significava necessariamente se reconhecer como quilombola, e este
não-reconhecimento o implicava um pertencimento menor do ponto de vista
daquele que não se identificava.
Havia/há em Helvécia diferentes visões de Helvécia, bem como diferentes
noções do que significava pertencer a esse distrito. A senhora Elzira Rafael Peixoto,
natural dessa comunidade, por exemplo, elaborou a seguinte narrativa:
Hoje aqui tombado como quilombo, mas na verdade mesmo os
primeiros descendentes daqui não foram escravos. Vieram com eles,
né? Vieram com eles, alguns escravos pra trabalhar nas fazendas de
café.
Antigamente aqui era fazenda de café. Então os suíços, os
alemães, os portugueses, os holandeses que a minha
descendência é holandesa, aqui o vizinho já é de alemão..., mas eles
foram fazendeiros, como a minha bisavó, chamava Ermínia Krismia,
a minha avó era Ermínia Krismia e meu avó pertencia ao Krull
então são duas raças que vieram e trouxeram seus escravos para
trabalhar nas fazendas de café. Depois de fundado, então eles
trouxeram muitos escravos. Uns morreram aqui, outros voltaram pra
sua origem... [referindo-se aos antigos colonos] e os escravos
permaneceram nas suas lavouras, nos seus trabalhos, que eles
sabiam fazer. Mas como quilombo mesmo..., que quilombo é uma
terra que, é uma área reservada para aqueles negros trabalhar
forçado. Trabalhar e vender aquilo que eles possuíam. Mas aqui
nunca foi isso. Tem muito negro? Tem. Oitenta por cento, noventa
por cento de negros? Tem, mas foi dessa maneira.
Mais que nasceu a história de Helvécia... nasceu a história de
Helvécia assim. Porque que Helvécia tem muitos negros? Os
brancos trouxeram os negros, através de navios, naquela época o
único transporte que tinha. Aqui os negros foram ficando, foram
progredindo. E a raça branca como era a minoria muitos voltaram e
houve essa mistura de raça...Aqui tem pessoas negras com olhos
azuis, negros dos cabelos loiro, loiro assim, liso. Índio, tem muita
402
Eliane Cantarino O’Dwyer. “Remanescentes de quilombona fronteira amazônica: a etnicidade
como instrumento de luta pela terra. In: Clóvis Moura (Org.) Os quilombos na dinâmica social do
Brasil. Maceió: EDUFAL, 2001, p. 301.
196
raça aqui misturada, misturou as raças, então predominou essa
cor.
403
Interessa-me seguir algumas das pistas sugeridas na fala da senhora Elzira
Peixoto. Em primeiro lugar, nas entrelinhas, ela teceu uma interpretação do motivo
de Helvécia ter na atualidade uma população predominantemente negra, ao mesmo
tempo em que buscou demonstrar que Helvécia, apesar de ter sido “tombada”
404
como quilombo, não o é. É como se para ela a evidência de Helvécia como quilombo
estivesse na presença maciça de negros, “80, 90% de negros”. Foi então preciso
memorar a gênese de Helvécia para desconstruir essa, ainda segundo a
entrevistada, não-verdade.
Para isso, ela foi buscar, em sua memória, elementos da formação da Colônia
Leopoldina, falou da chegada dos colonos que vieram para desenvolver o cultivo de
café e trouxeram consigo escravos para trabalhar nas lavouras. A partir dessa
informação ela indicou que quem primeiro chegou não foram africanos, na condição
de escravos, mas sim europeus provenientes de diferentes nações, vindos para
aquela região na qualidade de fazendeiros. É com este grupo que a entrevistada se
identificava/identifica, “Antigamente aqui era fazenda de café. Então os suíços, os
alemães, os portugueses, os holandeses – que a minha descendência é holandesa”,
sendo, portanto, para ela, importante trazer à tona uma identificação de Helvécia
como uma colônia de estrangeiros europeus.
Existia na fala da senhora Elzira Peixoto uma necessidade de dizer que ela se
associava à história daquele lugar, que ali estavam os seus vínculos identitários
associados à questão do parentesco, “[...] mas eles foram fazendeiros, como a
minha bisavó, chamava Ermínia Krismia, a minha avó era Ermínia Krismia, .e meu
avó pertencia ao Krull,”
405
que ela reconhecia Helvécia como tendo uma população
predominantemente negra, mas que isso de Helvécia ser quilombo não era verdade,
pelo menos não para ela.
Considerando que a identidade coletiva não se esgota na idéia de
pertencimento e que essa é também produto de um processo de identificação,
entendo, a partir da leitura do texto de Jacques D’Adesky, que uma coisa é dizer “eu
sou de Helvécia”, idéia de pertencimento, outra é dizer “eu sou quilombola”, idéia de
403
Entrevista concedida à autora pela sra. Elzira Rafael Peixoto em 14 ago. 2007.
404
Uso aqui a expressão “tombada”, que foi utilizada pela entrevistada para indicar que Helvécia foi
reconhecida como quilombo.
405
Entrevista concedida à autora pela sra. Elzira Rafael Peixoto em 14 ago. 2007.
197
identificação.
406
Tais diferenças ficaram evidentes no distrito de Helvécia após a
chegada das empresas de eucalipto. A presença do estranho contribuiu para que
estranhamentos entre os integrantes da própria comunidade fossem expressos e
exigiram novos arranjos e acomodações nas relações de sociabilidade dos
moradores do distrito.
Quanto ao clima de animosidade estabelecido entre parcela da população e
os integrantes da AQH, após o reconhecimento as relações foram sendo
contemporizadas.
[...] ameaças nós tivemos por conta disso, mas a gente tem um ano
que se deu e eu vejo que hoje está havendo uma abertura,
porque a gente está levando a informação, até a gente deu uma
recuada que no inicio estava bem tenso mesmo ameaças, nós
sofremos e hoje a gente que a Comunidade ela quer benefícios,
né? E ela percebeu que através da Associação, Helvécia pode
melhorar, ana televisão mesmo eles têm escutado pessoas que
vêm de outras comunidades, de outros lugares e falam que é uma
coisa boa, então a gente já vê essa abertura por parte de muita gente
em está aderindo, né? A Associação, mas ainda uma resistência
por parte de muitos, o aquelas pessoas que possui terras, mas
pessoas que não têm nem onde morar também, mas que o aceita
ser Quilombola e eu acredito que isso é falta de conhecimento
mesmo, né? Então estamos tentando trabalhar nesse sentido de
fazer um trabalho mesmo de formiguinha, de estar sentando com as
pessoas e explicando o que é, a gente tem um material aqui até
riquíssimo, a gente tem levado, mostrado para as pessoas para estar
lendo, para se informar melhor sobre a Associação.
407
Aquela comunidade passou a ter mais informação a respeito dos benefícios
atrelados ao reconhecimento feito pelo governo federal. Integrantes da AQH
colocaram em prática o “trabalho mesmo de formiguinha, de estar sentando com as
pessoas e explicando o que é”. A resistência ao reconhecimento persistiu, “mas
ainda uma resistência por parte de muitos, não só aquelas pessoas que possui
terras, mas pessoas que não têm nem onde morar também, mas que não aceita ser
Quilombola”.
Este trabalho de informação, de esclarecimento da AQH, ganhou os espaços
das salas de aula.
Esse reconhecimento para nós é importante por isso, que nós vamos
estar trabalhando com essa nova geração, a importância de você ser
406
Jacques D’Adesky, op. cit., p. 41.
407
Entrevista concedida à autora pela sra. Roseli Constantino Ricardo em 14 ago. 2007.
198
negro de você ser Quilombola e de aceitar né? [...] que a gente só
tem praticamente dois anos de luta, mas a gente hoje essa
abertura por parte de muitos alunos que assumiram, quando você
pergunta, por exemplo, sua religião, ? Aqueles que vão com seus
pais freqüentar o centro de Candomblé eles já falam em público ?
Eu sou dessa religião e sem vergonha nenhuma, então isso é
importante para nós, de ter todo esse resgate cultural e religioso es
melhorando também a situação do negro na parte social, na parte
econômica, que são os mais sofridos aqui, então nós, você
aquela, que ainda aquela submissão das pessoas por algumas
famílias que se dizem elite dessa comunidade, a gente que tem
uma submissão muito grande, então ter pedido esse reconhecimento
é importante por isso, é consegui ser libertado [...]
408
Segundo a entrevistada, o reconhecimento também havia contribuído para
transformações no campo das relações cotidianas entre integrantes da comunidade.
Nesta fala, elementos de valorização do ser quilombola que dialogam com o que
foi proposto por Arruti, ao afirmar que
Ao serem identificados como remanescentes”, aquelas
comunidades, ao invés de representarem os que estão presos às
relações arcaicas de produção e reprodução social, aos misticismos
e aos atavismos próprios do mundo rural, ou ainda os que, na sua
ignorância, são incapazes de uma militância efetiva pela causa
negra, passam a ser reconhecidas como símbolo de uma identidade,
de uma cultura e, sobretudo, de um modelo de luta e militância
negra, dando ao termo uma positividade [...]
409
A militância negra em Helvécia, organizada através da AQH, conquistara, não
sem obstáculos, espaços de ação e valorização, e o reconhecimento da comunidade
como remanescente quilombola foi decisivo no processo de valorização daquela
militância. Também sobre benefícios associados ao reconhecimento, ouvi do
senhor Jorge o seguinte:
A comunidade teve muito beneficio inclusive, eu fui fazer um
cadastramento para energia rural lá na Coelba e dei referência,
Helvécia é remanescente de quilombola, ele falou: Olha, então
pode ter certeza que vai sair logo, tem prioridade. Ele falou comigo, o
cara da Coelba, o lugar que é reconhecido como quilombola tem
prioridade.
410
O reconhecimento implicou mudanças de tratamento para com o distrito, “o
lugar que é reconhecido como quilombola tem prioridade”, e essas mudanças se
408
Entrevista concedida à autora pela sra. Roseli Constantino Ricardo em 14 ago. 2007
409
José Maurício Arruti. Mocambo – Antropologia e História do processo de formação quilombola, op.
cit, p. 82.
410
Entrevista concedida à autora pelo sr. Jorge Ferreira da Silva em 14 ago. 2007.
199
fizeram ver na qualidade da merenda da escola, na agilidade de serviços de
cadastramento para energia rural. Também mudou a relação das empresas de
eucalipto com a comunidade.A senhora Jilsimere Joaquim Santos e Silva, 31 anos,
natural de Helvécia e uma das integrantes da AQH no início de sua fundação, deixou
ver, nas entrelinhas de sua narrativa, a mudança de comportamento da Aracruz
Celulose na relação com a comunidade após o reconhecimento.
Então hoje a empresa [referia-se à Aracruz Celulose] reconhece
que... e também por ter a associação né? A AQH, então hoje a
empresa reconhece que Helvécia é unido, que a gente tem uma
força né? Então eles hoje procuram por Helvécia, por representantes
deste grupo [referindo-se a AQH].
411
Este reconhecimento da existência de novas forças na comunidade de
Helvécia exigiu das empresas de eucalipto diferentes formas de abordar o grupo.
Entretanto isto não significou o fim das tensões existentes, senão vejamos.
No campo da educação, houve, em Helvécia, investimento por parte da
Suzano Papel e Celulose. A análise da fotografia a seguir (cf. fotografia 12) ajuda a
conhecer e problematizar alguns dados referentes à esta atuação.
Figura 12 Placa da reforma da escola, agosto 2007
Fotografia: Trabalho de campo.
411
Entrevista concedida à autora pela sra. Jilsimere Joaquim Santos e Silva em 14 ago. 2007.
200
A escola João Martins Peixoto é a única existente em Helvécia e oferece
apenas o ensino fundamental. Segundo os dados da placa, ela não foi construída
pela Suzano Papel e Celulose. O investimento feito por esta empresa foi no sentido
de reformar a unidade escolar em parceria com a prefeitura municipal e com apoio
do Bndes. Esta reforma ocorreu somente em meados de 2007, portanto mais de
duas décadas depois da atuação da empresa no distrito. As crianças que ali
estudam usufruem, na atualidade, em relação à estrutura sica, de uma escola com
amplas salas de aula, em um prédio recém-pintado, com um pátio interno espaçoso
e sem cobertura que as proteja nos dias de chuva. Um dos diferenciais da escola
João Martins Peixoto, apresentado por alguns entrevistados, diz respeito à boa
qualidade da merenda escolar. Quando, em uma entrevista, perguntei se havia
alguma contribuição das empresas de eucalipto para esta melhoria, obtive a
seguinte resposta:
Não, com as empresas não, não tem porque a relação que teve
porque foi reconhecida um quilombola, então a merenda de Helvécia
é diferenciada das merendas dos outros municípios. De outro local,
é diferenciada de Posto da Mata, de Argolo e de Nova Viçosa, então
a merenda de Helvécia é melhor por causa do reconhecimento.
412
A vistosa placa (cf fotografia 12) não encobre a realidade cotidiana dos jovens
de Helvécia, que após concluírem a oitava série
413
ou param de estudar ou, para
terem acesso à escola de grau, acordam às cinco horas da manhã e percorrem
aproximadamente 24 km até o distrito de Posto da Mata, muitas vezes em ônibus
com condições precárias de segurança.
Ressalto o ano de realização da reforma feita na escola João Martins Peixoto,
2007, posterior ao reconhecimento do distrito de Helvécia como área remanescente
de quilombo, ocorrido em 2005. O questionamento que estou propondo é o seguinte:
porque a Suzano Papel e Celulose, instalada em Helvécia desde os anos 80, que
tem como meta “[...] incentivar programas voltados para o desenvolvimento regional
e a incentivar e promover ações, com ênfase nas áreas de educação [...],”
414
iniciou
a reforma da única escola existente no distrito de Helvécia apenas no ano de 2007?
Haveria contribuído para isso a existência de algum novo elemento na composição
de forças estabelecida entre a comunidade de Helvécia e a empresa? A comunidade
de Helvécia teria contribuído de que forma para que se desse o estabelecimento
412
Entrevista concedida à autora pelo sr. Jorge Ferreira da Silva em 14 ago. 2007.
413
Série que equivale ao nono ano.
414
http://www.suzano.com.br/suzano/responsabilidade_social/balanco_social.pdf
201
daquela parceria entre a Suzano Papel e Celulose, a prefeitura municipal de Nova
Viçosa e o Bndes? O fato de Helvécia ter sido reconhecida, desde 2005, como área
remanescente quilombola teria dado àquele distrito uma visibilidade que convidava a
empresa a mostrar, em placas também visíveis, suas ações no campo da
responsabilidade social?
Este questionamento fundamenta-se na existência de uma série de
exigências para que uma empresa do ramo da eucaliptocultura obtenha e/ou renove
o Forest Stewardship CouncilFSC, isto é, “[...] o selo verde que atesta a qualidade
do manejo florestal e verifica se o mesmo está dentro dos padrões socioambientais
definidos como classe mundial [...]”,
415
ou o Cerflor, adaptação, para os padrões
brasileiros, do FSC. Entre os vários itens avaliados para que se possa certificar uma
empresa, destaco: a) direito dos povos indígenas e das comunidades
tradicionais; b) relações comunitárias e direito dos trabalhadores.
416
A posse
destes certificados, no jogo da concorrência capitalista internacional, é, nos tempos
atuais, fundamental e justifica a necessidade da realização de ações que revelem a
existência de uma política de responsabilidade social.
Isso não significava atender efetivamente às necessidades prementes da
comunidade. Nas pesquisas de campo não coletei, por exemplo, nenhuma
informação que fizesse referência à atuação das empresas de eucalipto no
incremento de ações ligadas à melhoria da saúde da população local. Não existe
hospital em Helvécia. O que existe é um posto de saúde, atendido por um médico
que não reside na comunidade. Também não há ambulância. Em caso de urgência
os membros da comunidade se organizam para levar seus doentes até Posto da
Mata, Nova Viçosa ou Teixeira de Freitas, em busca de assistência médico-
hospitalar. Isto não conta de suprir as necessidades locais, e a comunidade,
através de apoio político, de membros externos, e da atuação da AQH, tem buscado
agir.
[...] vamos estar trabalhando nesse momento a questão cultural, já
teve alguns benefícios igual, é a gente deu apoio ao deputado Luiz
Alberto que desde o início ele tem nos ajudado nisso e aí ele
conseguiu um recurso para de cento e trinta mil reais e esse
recurso ele veio através da Associação que também é uma outra
área que a gente tem procurado trabalhar e esse recurso ele veio
415
Jorge Emanuel Reis Cajazeiras, José Carlos Barbieri e Dirceu da Silva. Estudo da sustentabilidade
regional da produção industrial de eucalipto no estado da Bahia, op. cit., p. 8 (material enviado pela
Suzano Papel e Celulose, por e-mail, para a autora).
416
Idem.
202
para a área da saúde, onde vai ser construído um novo posto e esse
que existe vai ficar funcionando como a creche.
417
É provável que este novo posto esteja sendo pensado de forma a ser melhor
equipado e possa contar com mais profissionais da saúde. Ressalto a menção feita
à necessidade e possibilidade de criação de uma creche no distrito, e entendo que
ela indica uma nova dinâmica de trabalho, diferente daquela realizada nas roças,
nas quais as crianças acompanhavam seus pais na labuta da terra.
No trabalho de campo, uma entrevistada falou do seu sentimento de
estranheza em relação à maneira como as empresas de eucalipto passaram a lidar
com a comunidade após o reconhecimento desta como área remanescente de
quilombo. Ela se referiu de forma específica à Aracruz Celulose:
[...] É fica um pouco meio confuso, a gente fica um pouco meio
confuso e a Aracruz hoje, interessante que hoje ela não folga,
quase todos os dias tem uma pessoa de Aracruz aqui em Helvécia,
vem conversar, chega senta na praça conversa com um,
conversa com outro, hoje vem um, amanhã vem outro... Esses dias
doou um computador para a escola,
Isso aqui é um presente meu, não é da Aracruz, é um presente
meu. Então são migalhas que vêm para calar, é um bico né? Para
calar a boca né? Quando está chorando bico né? Não tem nada
ali, é só para sugar mesmo né? E vem para calar a boca mesmo.
418
Esta presença constante de membros da empresa Aracruz Celulose,
entabulando conversas com diversos integrantes da comunidade, após o
reconhecimento de Helvécia como área remanescente de quilombo, tem sido
recorrente e constitui-se, na atualidade, em um novo elemento na tessitura das
relações sociais daquela comunidade no seu “viver com eucaliptos”.
O contato da comunidade com integrantes das empresas não é algo novo,
que possa ser associado ao período posterior ao reconhecimento como área
remanescente de quilombo. Nova é a postura dos representantes das empresas
que, segundo alguns dos entrevistados, agem como se estivessem sondando,
buscando saber mais sobre a comunidade, em busca principalmente de informações
sobre as ações da AQH.
417
Entrevista concedida à autora pela sra. Roseli Ricardo Constantino em 15 ago. 2007.
418
Entrevista concedida à autora pela sra. Gilsineth Joaquim Santos em 15 ago. 2007.
203
Ainda sobre a presença de integrantes e equipamentos das empresas de
eucalipto em Helvécia, nas estradas que dão acesso ao distrito, ela ocorre de forma
ruidosa através das carretas que transportam o eucalipto pela BR 418, levantando
poeira. Esta estrada, apesar de constar no mapa como sendo pavimentada, não o é.
A poeira fica entranhada nas casas, objetos e corpos daqueles que insistem em
viver próximo “à rodagem”, dificultando aquele viver, provocando doenças e
sufocando pessoas. O constante ir e vir de carretas contribuiu de forma decisiva
para o intenso desgaste das estradas. Além de torná-las potencialmente perigosas
para as pessoas que transitam em veículos automotores, a cavalo, de bicicleta, com
carroça ou que costumam realizar o translado a pé.
Em Helvécia, os “investimentos de porte” em estradas e infra-estrutura para
comunicação, se existiram, não garantiram benefícios diretos para os moradores
locais. Nas pesquisas de campo, pude observar que muitos deles diuturnamente
trafegam por um caminho que acesso ao distrito passando pela ponte do rio
Peruípe, construída ainda nos tempos da Colônia Leopoldina, pela qual escoava a
produção cafeeira. Esta não oferece nenhum tipo de segurança, ao contrário,
atravessá-la chega a ser quase uma aventura. O uso da ponte, feito pela
comunidade em seu dia-a-dia, não foi levado em conta nem pelo poder público nem
pelas empresas, que não tiveram interesse em investir na recuperação da mesma
em razão do seu uso ser inviável para o tráfego das pesadas carretas. Dentro desta
lógica, foi construído um desvio que atende aos interesses das “firmas”, mas não,
necessariamente, os da comunidade. Além disso, o espaço em que está a ponte do
rio Peruípe significa um lugar de encontro para os moradores. Em pequenos grupos,
eles ali se reúnem, em busca do frescor da água, das brincadeiras com amigos, de
um refresco nos dias ensolarados, tão comuns naquela região. Estes significados
não foram valorizados pelas empresas de eucalipto.
Viver em Helvécia era/é transitar por estradas ladeadas por eucaliptos. Como,
nas atividades de campo, tive informações de pessoas que haviam se perdido nos
eucaliptais, em razão de os caminhos de eucalipto parecerem iguais, resolvi, em
uma entrevista, abordar esta questão. Qual foi minha surpresa ao ouvir do senhor
Jorge o seguinte:
Não, não aqui em Helvécia. Eu, por exemplo, não perco aqui nessa
região. Não perco em lugar nenhum, porque mesmo com o eucalipto
204
você sabe mais ou menos a área que voestá e quem mora aqui
não perde no eucalipto não, e crianças também no eucalipto não tem
caso nenhum de perdimento de ninguém no eucalipto perdido não.
Aqui, aquele que é daqui que vai embora, quando volta que... essa
área, sim pode perder, se ele não for com alguém que conhece...
igual mesmo, aqui tem uma estrada que vai para Nova Viçosa, vo
entra aqui por dentro e vai sair em Nova Viçosa , na estrada do
boi, eu perdi um dia, porque eu cheguei passei o eucalipto
estava grande quando eu cheguei a área estava toda cortada e
estrada tudo do mesmo jeito, falei Agora, como é que eu vou
fazer? De noite, estava vindo de Nova Viçosa, estava eu e os
meninos todos no carro. Aí eu parei, parei e olhei desci e falei, – Não,
estou perdido. Voltei cheguei no lugar e falei É aqui. ...falou, Ah,
você vai dormir no eucalipto. Falei Não, pode ficar tranqüilo, não
vou dormir no eucalipto não. Essas áreas todinha trabalhei,
puxando madeira e já vi como é que é o esquema né?
Pesquisadora – Se você que conhece tanto...
Senhor Jorge Ferreira Perdi. E quem não conhece não adianta
nem entrar, que se entrar fica perdido se não tiver alguém que
conhece, agora as pessoas daqui não têm dificuldade nenhuma
quase para falar que vai perder não, a não ser aquele que sai, fica
um tempo fora e depois volta
419
A fala do entrevistado sugere o quanto “a construção da narrativa revela um
grande empenho na relação do relator com a sua história”,
420
no caso, a história de
um conhecedor de Helvécia, conhecedor dos caminhos de Helvécia, que afirmava
não existir a possibilidade de se perder dentro dos eucaliptais ao mesmo tempo em
que ilustrava sua fala com um exemplo claro de que também ele se perdera.
Cabe aqui a proposição feita por Raymond Williams,
421
que nos faz pensar
que as interferências feitas na natureza o podem ser entendidas como
dissociadas da exploração humana. Assim, seria no mínimo ingênuo imaginar que
“as firmas”, ao se apropriarem de terras em Helvécia e imprimirem nas mesmas o
verde monocromático do eucalipto, não estivessem, ao mesmo tempo em que
anunciavam a chegada do progresso, produzindo desajustes nos modos de viver
daquela comunidade. Essa não-separação entre exploração dos recursos naturais e
dos homens implicou transformações, traduzidas pelo senhor Jorge, na expressão
“perdi. Tais desajustes exigiram daqueles homens e mulheres todo um trabalho de
(re) construção de suas vidas.
.
419
Entrevista concedida à autora pelo sr. Jorge Ferreira da Silva em 14 ago. 2007 (grifos da autora).
420
Alessandro Portelli. O que faz a história oral diferente. Projeto História, São Paulo (14): 31, fev.
1997.
421
Raymond Williams. O campo e a cidade na história e na literatura. Trad. Paulo Henriques Britto.
São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
205
Então hoje é o que está acontecendo aqui em Helvécia. Que nem eu
falei no início que a cultura antes era mais alegre porque tinha muita
agricultura, todo mundo mexia com... um mexia com a roça de feijão,
outro mexia com abóbora, com mamão, outro mexia com a melancia,
então ninguém saía daqui para procurar serviço fora, porque todo
mundo trabalhava por aqui mesmo, tinha vários japoneses também.
depois que chegou o eucalipto, todo mundo foi... algumas
pessoas entraram na firma, outros indo embora que acabou. Então
foi acabando a cultura de Helvécia, por isso que eu falo eucalipto é
bom numa parte e ruim em outra, no aspecto de as pessoas não
estar diariamente na comunidade, que várias pessoas saem da
comunidade para trabalhar fora por causa disso, que o tem mais
agricultura, aqui em Helvécia hoje mesmo quem mexe com a
agricultura pode contar de dedo, pode contar de dedo, não tem mais
ninguém que mexe com agricultura. Eu comecei agora porque, eu
comprei um trator. E quem não tem um trator para mexer com
agricultura não adianta. Então... assim ficou assim... uma coisa que
fica difícil de explicar mas o eucalipto tem as vantagens e tem as
desvantagens.
422
Essa percepção da concomitância de vantagens e desvantagens do plantio
do eucalipto expressava-se nas ações e nas expectativas das pessoas da
comunidade, contribuindo para torná-la ainda mais complexa. Complexidade esta
presente nas negociações existentes entre os representantes das empresas de
eucalipto e os habitantes de Helvécia. Tais negociações não implicaram relações
harmoniosas, havia um espaço social que se tecia tanto de barganhas quanto de
conflitos”,
423
e este espaço foi perpassado pela articulação entre as condições de
vida dos habitantes da comunidade, o reconhecimento de Helvécia como área
remanescente de quilombo e as ações de responsabilidade social das empresas.
Estas ações, quando realizadas, não o foram somente para atender às exigências
do mercado internacional, mas também às da comunidade, cuja atuação, organizada
politicamente para lutar pela regularização dos territórios sociais tradicionalmente
ocupados, compôs, não sem fissuras, as forças daquele jogo.
3.3 “A GENTE ESTÁ EM UM JOGO DE CINTURA COM A COMUNIDADE”
No pedido de reconhecimento como comunidade remanescente de quilombo,
enviado à Fundação Cultural Palmares, em outubro de 2004, os signatários, após
422
Entrevista concedida à autora pelo sr. Jorge Ferreira da Silva em 14 ago. 2007.
423
João José Reis, Eduardo Silva. Negociação e conflito a resistência negra no Brasil escravista.
São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 7.
206
um breve relato sobre Helvécia, encerraram assim o documento: “portanto
reiteramos pedido de certificação como remanescente de quilombos, reconhecendo
(sic), delimitação, demarcação e titulação de nossas terras pelo órgão
competente
424
”. Entretanto, após o reconhecimento e os embates suscitados por ele,
a AQH passou a agir, segundo a senhora Roseli Constantino, da seguinte maneira
Helvécia, como eu estava falando foi reconhecida como
comunidade remanescente, que a gente deu essa recuada por
conta dos conflitos que surgiram, até ameaça de morte e aí em
relação a outras comunidades remanescentes, nós tínhamos dois
problemas, porque as outras é uma briga entre a comunidade e os
latifundiários e aqui o, aqui a gente tinha uma briga com as
empresas [referia-se a Aracruz Celulose e Suzano Bahia Sul
Celulose] e uma briga interna em relação à própria comunidade
não se aceitar, tanto é que teve abaixo-assinado, pessoas que
passaram, saíram por aí fazendo abaixo-assinado para as pessoas
não aceitar, então esse abaixo- assinado voltou para nós de novo
né? E aí, esses dias mesmo tivemos contatos com o povo da...,
ligaram para nós, o povo da Fundação Cultural Palmares e onde eles
iam discutir já a questão da territorialidade, a gente falou –: Não,
vamos dar um tempo né? Vamos estar trabalhando nesse momento
a questão cultural, [...] o estamos ainda discutindo a questão da
territorialidade até por conta dessa falta de conhecimento do povo
que é negro, a gente também entende que em Helvécia muitas
pessoas têm tido suas terras né? E aí eu sei que muitas pessoas não
vão aceitar, por exemplo, uma titulação única, então também isso
gerou medo em algumas pessoas, até negras mesmo que têm terra
em saber que vai ter essa titulação única e se mudar de governo e se
mudar alguma coisa, [...]
425
Nesta fala, a líder da AQH deixou clara a permanência do clima de tensão em
Helvécia ao mesmo tempo em que identificou dois pólos de conflitos existentes:
aqui a gente tinha uma briga com as empresas e uma briga interna em
relação à própria comunidade não se aceitar”” O fato de a AQH ter, diante das
ameaças veladas e/ou reveladas, recuado e pedido, informalmente, aos integrantes
da Fundação Cultural Palmares que não desse andamento ao processo de
demarcação e titulação das terras indica a complexidade que este adquiriu na
comunidade. Ainda em relação aos conflitos internos, a fala da senhora Roseli
evidencia que estes estão vinculados à não-aceitação e até mesmo rejeição da
424
Pedido de reconhecimento como comunidade remanescente quilombola, Helvécia, 23 de outubro
de 2004. In; Fundação Cultural Palmares, Reconhecimento da Comunidade Negra Rural de Helvécia,
Nova Viçosa/BA, fl. 10.
425
Entrevista concedida à autora pela sra. Roseli Constantino Ricardo em 14 ago. 2007 (grifos da
autora).
207
identidade quilombola e aos receios e dúvidas em relação à dinâmica/forma da
titulação terra.
Mas não era só, um outro elemento compunha essa relação de tensão em
Helvécia. Ele aparece na fala da senhora Roseli quando a mesma discorre sobre o
comportamento das empresas após o reconhecimento de Helvécia.
Olha com a Suzano a gente não tem muito contato, mas desde que
nós pedimos o reconhecimento a Aracruz já nos procurou, dias após
a minha ida à Brasília, ...começou as ligações, a ligar lá para casa,
querer dialogar. Mais de vinte anos de empresa na região, eles
nunca vieram, essa vinda dela a partir do reconhecimento... tem nos
procurado sempre e nos colocando em uma situação muito
complicada, porque enquanto que a Associação, a gente sabe que
Associação é contra né? Essa monocultura, mas a comunidade
por aquilo que eles prometem...
426
Por que a mudança de comportamento das empresas de eucalipto – em
especial da Aracruz Celulose tem deixado as integrantes da AQH “em uma
situação muito complicada”? Possivelmente porque, dentre as tantas promessas, as
firmas traziam novamente à baila um tema caro à população de Helvécia: a geração
de empregos. A promessa de ocupação, através da criação de um viveiro, segundo
a senhora Malzinéia, seduzia/seduz a população, obrigando a Associação a “ter jogo
de cintura”. Sobre as investidas da Aracruz Celulose, após o reconhecimento de
Helvécia como comunidade quilombola, a referida senhora dá mais detalhes:
E quando o senhor Walter [referia-se a um representante da
Aracruz Celulose], ele esteve aqui ao ouvir as nossas reivindicações
e de alguns líderes da comunidade, ele colocou que nós
pudéssemos nos acalmar né? Que ia surgir, já estava previsto,
estava quase que tudo certo... a implantação de um viveiro nas
proximidades de Helvécia para favorecer a comunidade de Helvécia.
E a gente fica naquele impasse Poxa, uma Associação que
briga... né? Para ter as suas terras de volta e no mesmo instante
aceitando o viveiro de eucalipto. É porque a população do lugar eles
gritam por emprego, eles quase não acreditam mais no trabalho da
terra, entendeu? Eles querem ser empregados de uma determinada
empresa, então s da Associação, que é um grupo bem menor,
ficamos quase que espremidos entre eles. Então é o que eu falei
para você, a gente tem que ter um jogo de cintura, porque somos nós
que moramos aqui dentro, somos um pequeno grupo, então exige
todo um manejo de levar a situação.
427
426
Entrevista concedida à autora pela sra. Roseli Constantino Ricardo em 14 ago. 2007.
427
Entrevista concedida à autora pela sra. Malzinéia Henriqueta Ambrósio em 14 ago. 2007.
208
Este encontro aconteceu em 2007. Na oportunidade, o representante da
Aracruz Celulose sinalizou com a possibilidade de implantar um viveiro de eucalipto
em Helvécia, gerando empregos, inclusive para as mulheres do distrito. Esta
proposição foi feita em reunião com membros da comunidade, incluindo os
integrantes da AQH, estes “quase que espremidos entre eles”, e frente à uma
população que anseia por emprego de uma determinada empresa” tiveram que ter
“jogo de cintura”. Para Malzinéia, que participava da AQH desde sua fundação
aquela foi uma situação de “impasse entre defender a terra e apoiar o viveiro que
está vindo justamente para plantar o eucalipto, então é uma contradição muito
forte para a gente, muito forte e dolorosa”
428
.
A respeito destas reuniões feitas amiúde pela Aracruz Celulose com a
comunidade de Helvécia, logo após o reconhecimento, a professora Regina
Constantino fez a seguinte análise:
[...] a gente não sabe com que interesse eles estão fazendo isso,
toda vez que eles marcam uma reunião, falam assim: Chama as
meninas da Associação, né? A gente vai, aí quando chega lá é
aquela briga né? Vereador brigando e tal – Ah tem que ser em
Helvécia, tem que ser em Helvécia [referindo-se à implantação do
viveiro de eucalipto]
[...] E aí a gente fala assim: – Gente será que no meio dessa reunião,
eles não vão falar, não querem jogar o povo contra a gente né? – Ah,
não pode ser em Helvécia porque Helvécia é terra de quilombo, não
pode mais plantar esse tipo de atividade aqui em Helvécia. Então por
isso estamos com medo disso de ser uma jogada da empresa né?
Para tentar acabar com a Associação, ninguém nunca vai saber o
que está querendo né?
429
A senhora Regina vislumbra na ação da Aracruz Celulose, de convidar as
“meninas da Associação” para as reuniões feitas por esta empresa com integrantes
da comunidade, a possibilidade de uma estratégia de “jogar o povo contra” a AQH.
Mesmo sem elementos para asseverar como este tipo de estratégia estaria sendo
pensada, a narradora está alerta, afinal, em sua memória, a Aracruz Celulose, para
desenvolver seus projetos em Helvécia, não respeitou, em um passado recente, as
organizações existentes no lugar.
Por outro lado, é importante lembrar que, ao ser reconhecida como área
remanescente de quilombo, Helvécia ganhou visibilidade, exigindo das empresas de
428
Entrevista concedida à autora pela sra. Malzinéia Henriqueta Ambrósio em 14 ago. 2007.
429
Entrevista concedida à autora pela sra. Regina Constantino em 14 ago. 2007.
209
eucalipto que atuam na região ações que fizessem ver a sua propalada
responsabilidade social. Corrobora esta análise, por exemplo, a criação da
Associação Arte Helvécia, parceria da Aracruz Celulose com artesãs da cidade para
a construção de “produto socialmente justo e ecologicamente correto, [...] com
resíduos florestais de eucalipto e sementes da região”.
430
Destaco aqui o fato de
esta associação ser composta apenas por mulheres, alijadas do campo de trabalho
em razão dos “desmantelamentos” ocorridos no distrito. Essas, possivelmente, antes
da criação da Associação Arte Helvécia, pela Aracruz Celulose, talvez constituíssem
um grupo insatisfeito, inclusive propenso a participar de movimentos de resistência
e/ou questionamento ao projeto das empresas de eucalipto.
Jornais locais veiculam matérias divulgando ações das empresas em
Helvécia, destacando a geração de empregos para integrantes da comunidade.
“Aracruz oferece cursos de capacitação em Helvécia”
[...] No último dia 17 de março teve início, em Helvécia, distrito
de Nova Viçosa (BA), novos cursos de capacitação voltados para
atender aos moradores da Região. Parte dos cursistas vai atuar na
Unidade de Produção de Mudas (UPM) que a empresa vai construir
no Distrito neste ano; a outra parte estará disponível no mercado.
As primeiras 240 qualificações foram concluídas e, no
momento, 120 novos alunos, todos moradores de Helvécia,
aprendem ofícios de pintor, bombeiro hidrossanitário e armador de
ferragem para atuarem na área de construção civil.
Em parceria com o Serviço Nacional de Aprendizagem
Industrial (Senai) de Salvador, a Aracruz também abriu processo de
seleção dos candidatos a instrutores voluntários para trabalharem no
centro de informática que a empresa construiu juntamente com uma
biblioteca.
No mês de maio terá início o curso de viveirista, que será
realizado em parceria com o Serviço Nacional de Aprendizagem
Rural (Senar) da Bahia, que vai receber 600 alunos. [...]
431
As parcerias da Aracruz Celulose com o Serviço Nacional de Aprendizagem
Industrial e o Serviço Nacional de Aprendizagem Rural indicam o apoio que esta
empresa continua a ter das instituições públicas, ao mesmo tempo em que o título
da matéria, “Aracruz oferece curso de capacitação em Helvécia”, a entender que
o referido curso foi uma iniciativa da Aracruz. Leio esta reportagem como um
430
Conforme material de divulgação da Associação Arte Helvécia entregue à autora em outubro de
2007.
431
Aracruz oferece cursos de capacitação em Helvécia. Alerta, ano 21, número 867, 26 a 30 de março
de 2008, p. 4.
210
indicativo claro da intenção da empresa em divulgar suas ações em Helvécia, uma
espécie de resposta às criticas feitas a sua atuação na região. Criticas que
ganharam maior visibilidade em razão de o distrito ser remanescente de quilombo. A
Aracruz atua em outros municípios, nos quais o jornal Alerta, que veiculou a matéria,
circula, como, por exemplo, Caravelas, Teixeira de Freitas, Alcobaça, Prado. Por que
então especificar “120 novos alunos, todos moradores de Helvécia”? Por que a
construção de um centro de informática e uma biblioteca em Helvécia? Por que a
instalação da Unidade de Produção de Mudas – UPM em Helvécia?
Estas ações são indícios de que Helvécia ocupava um novo lugar. Não era
apenas mais um distrito que desde 1980 havia sido tomado pela eucaliptocultura.
Este novo lugar havia sido galgado a partir do momento em que fora nomeado e
reconhecido como área remanescente de quilombo. Arruti, ao falar do significado
deste termo, remanescente quilombola, afirma que o mesmo
implica, para a população que o assume (indígena ou negra) a
possibilidade de ocupar um novo lugar na relação com seus vizinhos,
na política local, frente aos órgãos e às políticas governamentais no
imaginário nacional e, finalmente, no seu próprio imaginário[...]
432
Este novo lugar, ocupado agora pela comunidade de Helvécia, na relação
com as empresas de eucalipto, é identificado pela senhora Roseli Constantino:
Às vezes eu fico observando que as pessoas acreditam naquilo
que elas querem, que no fundo, no fundo elas sabem que a vinda da
Aracruz aqui só está acontecendo por causa desse reconhecimento,
mas eles ainda não atentaram para isso, e ao invés de abraçar [a
AQH] ainda um certa resistência, então a nossa relação com ela
tem sido isso aí, a gente não entrou ainda em conflito, mas em todo
momento a gente deixa claro quais são os nossos objetivos, algumas
pessoas do grupo, da rede [referindo à Rede Alerta Contra o Deserto
Verde] que a gente faz parte até ficavam Cuidado com esse povo
da Aracruz. Então todas as vezes que nós reunimos com eles a
nossa fala tem sido sempre a mesma, [...] independente de qualquer
coisa que vocês vierem trazer, vocês estão sabendo que vocês estão
cumprindo a responsabilidade social que é de vocês e que a
comunidade em geral quer receber esse beneficio, mas que nós não
vamos abrir mão dos nossos direitos, que a luta da Associação vai
ser discutir a questão cultural, social e mais tarde com certeza a
questão da territorialidade, pode ser que hoje muitas pessoas não
queiram aceitar, mas daqui cinco anos, dez anos tenho certeza que
as crianças, as novas gerações elas irão querer. Quem quiser abrir
mão de seu direito hoje que faça isso, mas eu não abro mão do meu
432
José Maurício Arruti. Mocambo Antropologia e História do processo de formação quilombola.
Bauru, op. cit., p. 82.
211
e a Cartilha da Fundação Cultural Palmares deixa claro isso, até que
uma pessoa, uma pessoa tiver pedido o reconhecimento é válido,
né? Então aquele que não quer... mas ele não pode impedir os
outros de querer e eu tenho certeza que a gente está trabalhando
para que as novas gerações tenham esse beneficio, daqui cinco,
dez anos com certeza, eles vão sentir essa necessidade e vão
abraçar melhor a Associação, que é ser quilombola né?
433
Ela sabe da mudança de composição de forças, engendrada pelo processo
de reconhecimento de Helvécia, e percebe que outros integrantes da comunidade
também o sabem, mas não admitem, em razão dos conflitos internos com a AQH.
Referindo-se às relações entre a AQH e a Aracruz Celulose, a entrevistada compôs
uma narrativa como se fosse um recado à empresa. Neste, ela falou dos benefícios
esperados pela comunidade através de ações de responsabilidade social, ao mesmo
tempo em que reafirmou a continuidade das etapas seguintes do processo de
reconhecimento de Helvécia como área remanescente de quilombo, o que irá
implicar a titulação coletiva da terra. Ainda nesta fala, a senhora Roseli disse do
alerta feito por integrantes da Rede “Cuidado com esse povo da Aracruz”. Este
alerta apareceu na fala de outra entrevistada de forma mais explicita:
O pessoal da Rede né? De outras localidades, nos critica, mas eu
gostaria que eles morasse aqui para sentir um pouquinho o que nós
sentimos, porque a gente está em um jogo de cintura com a
comunidade, porque perdeu o apoio da comunidade você não tem
nada, então você fica quase que numa sinuca de bico, tem que saber
jogar [...]
434
Sinalizando que as ações da AQH, no sentido de recuar frente à questão da
titulação das terras, não é consensual entre os pares que contribuíram com o
processo de implementação do reconhecimento de Helvécia. Malzinéia, por seu
turno, nos convidou a ver a complexidade existente no cotidiano, “porque perdeu o
apoio da comunidade você não tem nada, então você fica quase que numa sinuca
de bico, tem que saber jogar”.
Lutar pela sobrevivência dessa comunidade, Helvécia, era batalhar pela
existência da mesma no tempo presente e, portanto, a partir das necessidades,
costumes e problematizações agora postas, nas quais se entrelaçava o agronegócio
433
Entrevista concedida à autora pela sra. Roseli Constantino Ricardo em 14 ago. 2007.
434
Entrevista concedida à autora pela sra. Malzinéia Henriqueta Ambrósio em 14 ago. 2007.
212
do eucalipto, a aceitação e/ou negação da identidade quilombola, as resistências
das elites locais e de pessoas que possuíam uma pequena propriedade em aceitar
uma titulação única da terra, as expectativas de movimentos sociais externos à
comunidade, os anseios da comunidade por empregos e ascensão social.
Em conversas nas vendas, nos encontros nas igrejas, nos banhos no rio
Peruípe, nas reuniões nas associações existentes se tecia a história daquele lugar, a
partir das ações, de resistência e acomodação, de seus homens e mulheres.
213
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A introdução da eucaliptocultura em Helvécia constituiu-se na chegada do
estranho. A partir desta sensação de estranhamento, entre os integrantes da
comunidade e aqueles que chegaram, portando novos e diferentes códigos, foram
sendo construídas novas relações e novas territorializações.
Nestas relações não tivemos o estabelecimento de um esquema simplista e
linear, traduzido na idéia de grupos antagônicos, rivais ou estereotipado no binômio:
dominados e dominadores. Os habitantes de Helvécia não devem ser pensados
como vítimas da eucaliptocultura, essa visão não daria conta de entendê-los em
toda a sua riqueza de ações diante das mudanças que ali se processaram. Na
verdade, tais pessoas atuaram/atuam como sujeitos na composição da história
daquele lugar.
É importante ressaltar aqui o fato de que o poder e a força das camadas
populares devem ser entendidos como diversos e contraditórios, ou seja, nas
atuações destes grupos houve espaços para negociações, omissões e apatias frente
a processos que lhes eram estranhos e que ao se estabelecerem provocaram
desajustes, ajustes e novos arranjos, novas relações. Sendo assim, as ações das
camadas populares não devem ser tomadas como uma maneira de mitificar esses
grupos, homogeneizando-os e praticando uma espécie de heroicização do povo. O
que existe de significativo, neste tipo de ação, é a premissa de que os
acontecimentos históricos o são um mero reflexo dos interesses dos
dominadores, mas sim o resultado de conflitos que envolvem diferentes anseios,
projetos, modelos de vida, e que nem sempre os resultados destes conflitos
atendem por inteiro aos interesses dos grupos dominantes.
Desta forma, as mudanças e permanências que ali se processaram não foram
feitas necessariamente de modo exógeno, verificou-se também a participação
daquela comunidade no processo de implantação da eucaliptocultura. Entendo que
esta participação tenha se dado por meio de diferentes formas, incluindo omissão,
resistência passiva, medo, aceitação e negação/rejeição. Obviamente, tal
participação se deu a partir de limites explicitados e impostos pela correlação de
forças, econômica e política, que se desenhara principalmente no que concernia à
propriedade da terra. Esta foi a questão central no jogo de mudanças e
214
permanências que se processaram em Helvécia. Afinal, a maneira como as pessoas
se organizavam para produzir seus alimentos, assim como administravam o seu
tempo de trabalho, realizavam suas festas, criavam espaços de lazer,
incrementavam suas práticas de trocas materiais e culturais estava alicerçada na
lida e no domínio que aqueles camponeses tinham sobre pequenas glebas de terra.
A este respeito, é emblemático o depoimento de Roseli Constantino,
apresentado no corpo deste trabalho e aqui retomado com o intuito de ressaltar o
seu significado a partir daquilo que foi apresentado nos dois primeiros capítulos.
Antes era comum, todo sábado, haver uma festa, um bate-barriga,
um samba de viola. Era muito comum no local: hoje, na comunidade
do sr. João; amanhã, na de d. Maria. Atualmente, nada disso existe.
As pessoas estão morando em pequenas casas, porque tiveram de
vender suas terras.
435
Para aquelas pessoas, a casa não era entendida como um espaço exíguo,
cumprindo apenas a função de abrigar os integrantes da família. As casas eram
construídas nas glebas, provavelmente com quintais ou terreiros amplos, nos quais
amigos e parentes se reuniam para festejar, brincar, dançar. Todos estes fazeres e
saberes estavam imbricados a esta de dimensão de lar.
Por seu lado, a atividade da eucaliptocultura necessitava de grandes
extensões de terras contínuas para que pudesse ser realizada. Diante deste
impasse uma série de ações protagonizadas por diferentes agentes sociais foi sendo
tomada no sentido de garantir a aquisição destas terras pelas empresas de
eucalipto.
No que tange a ações de apoio de integrantes daquela comunidade no
momento da chegada das empresas de eucalipto no distrito, a pesquisa revelou que
elas foram realizadas com base em informações e códigos que eles partilhavam, e
que nas relações estabelecidas esteve presente a violência simbólica, expressa no
poder de uma ordem dominada por forças enfeitadas de razão”,
436
como aquelas
que agiam através da propagada necessidade de existência da titulação de terras
para que o camponês pudesse ser reconhecido como proprietário legal das
mesmas.
435
Depoimento n. 1595/05, de 18/10/2005, na Comissão de Meio Ambiente Sustentável da mara
dos Deputados DETAQ, dado pela senhora Roseli Ricardo Constantino, integrante da Associação
Quilombola de Helvécia, pedagoga e professora daquela comunidade.
436
Pierre Bourdieu. Meditações Pascalianas.Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001, p. 101.
215
Em um momento posterior, marcado pelos descompassos entre as
expectativas, promessas e realizações, integrantes daquela comunidade se
organizaram de modo a “se servir mais da razão para se defender contra formas
crescentemente racionalizadas de dominação”,
437
neste sentido, por exemplo, se
apropriaram de todo um aparato constitucional fazendo uso da categoria
“remanescentes de quilombos” que desde a aprovação do artigo 68 da Constituição
Federal de 1988 havia assumido uma natureza jurídica e instituído desta maneira
uma nova figura de direito. Desta forma, estabeleceu-se em Helvécia, uma nova
composição de forças, mas isso não implicou em apaziguamento ou harmonização
entre os diferentes projetos ali coexistentes.
Pressões outras foram sendo feitas, pois se a comunidade tinha, como disse
anteriormente, um repertório de ações
438
utilizadas no seu cotidiano, também os
defensores da eucaliptocultura o tinham no sentido de apresentar o projeto do
agronegócio como sendo o que de melhor poderia ocorrer para a comunidade de
Helvécia.
Em razão do reconhecimento do distrito como comunidade remanescente e
também da necessidade da aquisição e/ou renovação do FSC, as empresas que
atuam em Helvécia e, mais especialmente, a Aracruz Celulose, ressignificaram
discursos e práticas, passando a desenvolver projetos de responsabilidade social.
Entre estes projetos, realizou-se a reforma da escola municipal João Martins
Peixoto, a criação da Associação Arte Helvécia, a instalação de um centro de
informática e construção de uma biblioteca. Tais ações contribuíram para acirrar
ainda mais as oposições internas em relação ao processo de construção da
identidade quilombola e seus desdobramentos em relação a uma nova
territorialização. Entendo-se aqui, território como espaço de relações, de domínio e
de apropriação de poder.
O processo de reconhecimento de Helvécia como área remanescente
quilombola estava inserido nas estratégias de grupos organizados daquela
comunidade, de resistência e negociação nas relações com as firmas”. Neste não
houve/há consenso. Pertencer a Helvécia não significava necessariamente se
437
Pierre Bourdieu. Meditações Pascalianas.Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001, p.102.
438
José Sérgio Leite Lopes (Coord.). A ambientalização dos conflitos sociais – participação e controle
público da poluição industrial. Rio de Janeiro: Relume Dumará, UFRJ, 2004.
216
reconhecer como identidade quilombola, e este não-reconhecimento não implicava
um pertencimento menor do ponto de vista daquele que não se identificava.
O reconhecimento de Helvécia como área remanescente não significou o fim
das tensões existentes naquele distrito. Após o mesmo, novos elementos passaram
a perpassar o cotidiano daquela comunidade de modo a deixar ver a existência dos
diferentes projetos de vida que ali coexistem. Ainda neste sentido, a pesquisa
revelou a influência da chegada do estranho, o agronegócio, potencializando o
surgimento de estranhamentos outros entre os membros da própria comunidade.
Outro aspecto que observei, a partir das pesquisas e análises realizadas, diz
respeito ao fato de Helvécia ser tratada em fontes diversas como um lugar onde a
realização potencial se deu no passado e pode vir a se dar novamente no futuro.
Neste sentido, é evocado o potencial turístico de Helvécia, que segundo o PDU 2004
“apesar de ainda inexplorado, é muito grande”
439
e ao ser desenvolvido se
constituirá uma alternativa de trabalho e renda para os habitantes do distrito.
A Colônia Leopoldina foi trazida na memória das pessoas como um tempo,
para além do cativeiro, de produção de café para exportação, de importância
singular para a província da Bahia. Também o tempo da estação foi mostrado como
um período de fortalecimento da atividade comercial que contemplava os anseios da
população de Helvécia, uma vez que abriu espaço para a comercialização dos
excedentes nas pequenas propriedades e incrementou a vida do distrito. Afinal o Km
74 era parada obrigatória e nesta ocorriam não somente as trocas comerciais como
também o conhecimento de novas pessoas. Aquele era um espaço de sociabilidade.
Para além da memória, dos discursos e dentro dos limites existentes,
integrantes da comunidade de Helvécia tem se organizado cotidianamente para
conviver e viver com aquilo que efetivamente existe, o como potencialidade ou
promessas, mas sim como realidade construída.
Nas minhas idas a Helvécia e nas entrevistas que fiz durante o transcorrer da
pesquisa com alguns de seus moradores não pude, como de fato não era o meu
objetivo, elaborar nenhuma explicação que pudesse dar conta do repertório de
ações daquela comunidade como um todo. Como afirmei no corpo deste texto, não
se tratava, aliás, como nenhuma comunidade o é, de um grupo monocromático e
homogêneo. o tenho, pois, nenhum tipo de afirmação categórica a respeito da
439
Adequação do PDU 2004 Nova Viçosa, p. 51. Arquivo Seplan – CAR, CAB, Salvador.
217
maneira como aquelas pessoas se (re)inventaram para conviver/coexistir com o
eucalipto.
Considero esta situação positiva, pois se tivesse minimamente me
aproximado de algum modelo teria cometido o equívoco de ter me deixado levar
pela idéia de totalidade que, além de não consistir no objetivo destas considerações,
encobriria as ações, leituras, interpretações, elaborações feitas, entre outros, pelo
senhor Manoel Peixoto, senhor Kemi Krull, senhor Norberto, senhora Faustina, Dona
Cocota, que me foram tão importantes, como disse, não para postular modelos,
mas sim para falar de como as pessoas naquela comunidade se organizaram a
partir de seus repertórios de conhecimento, de laços de sociabilidade, de valores e
crenças para lidar com aquilo que lhes estava sendo posto pela sociedade
capitalista em que estão inseridos e com a qual se relacionam de forma diária.
Apesar dos códigos próprios da dinâmica do agronegócio lhes parecerem estranhos.
A memória dos entrevistados buscou diferentes tempos para falar do viver em
Helvécia e trouxe consigo toda uma riqueza de possibilidades ao mostrar como a
realidade era interpretada e sentida a partir de olhares variados. Enquanto muitos
entrevistados falaram dos tempos de outrora como sendo bons tempos de fartura e
tranqüilidade, outros nos fizeram olhar para o trabalho na terra como algo árduo,
exigindo esforço e abnegação, indicando também a existência em Helvécia da
necessidade de se trabalhar em terras alheias em busca do sustento.
A partir desta multiplicidade de olhares pude me aproximar do significado das
palavras de alguns habitantes daquele lugar quando me diziam, nas entrevistas, que
estavam ilhados, cercados por eucaliptos. Neste sentido, posso afirmar que a
imagem a seguir (cf. figura 13), apesar de suas limitações em relação à qualidade,
traz em si a possibilidade de algumas leituras que creio sejam úteis para a
compreensão deste sentir que pouco me referi. A fotografia foi tirada de um lugar
de morte, trata-se do “cemitério do sertão”, utilizado na atualidade pela comunidade
de Helvécia. Os túmulos e cruzes evidenciam que ali é um lugar de mortos. No
primeiro plano, temos um portão que contém em si as marcas do tempo, indicadas
na forma dos diversos pontos de ferrugem, como se estivessem a fazer referência à
existência de algo carcomido e apartado do tempo presente, uma espécie de portão
entre os tempos. Ao fundo, no que poderíamos chamar de terceiro plano, encontra-
se um muro de cimento cuja função seria a de, juntamente com o portão que se
encontra no primeiro plano, delimitar o espaço daqueles habitantes de Helvécia que
218
ali se encontravam. Ironicamente, no terceiro plano da fotografia, e para além deste
muro, com uma luminosidade que poderia estar associada à idéia de vida,
encontramos os eucaliptos, enfileirados, imponentes como se estivessem cumprindo
o papel de sentinelas daquele lugar e, mais do que isso, daquilo que aquele lugar de
memória representava para a comunidade.
Ao reler o parágrafo anterior, fiquei me perguntando se o mesmo o estaria
retratando algo mórbido. Talvez agora, tenha entendido o que significava “estar
cercada por eucaliptos”.
Figura 13 – Cemitério do Sertão – marcas do tempo, agosto 2007
Fotografia: Trabalho de campo.
Na segunda oportunidade em que estive no “cemitério do sertão”, fiz um
registro, de outro ângulo, que endossa aquilo que descrevi, entendendo, segundo
José de Souza Martins, que o discurso visual de uma imagem fotogfica seja
dotado de vida e legalidade próprias,
440
, como sendo uma possível análise da
imagem anterior. Com o agravante de que nesta segunda fotografia temos uma
invasão daquele lugar de memória materializada em um de eucalipto que caiu
sobre um dos muros que cercava o cemitério, tombando, também morto, no espaço
delimitado para os mortos de Helvécia.
440
José de Souza Martins. Sociologia da fotografia. São Paulo: Contexto, 2008.
219
Figura 14 – Cemitério do Sertão – novas marcas do tempo, outubro 2007
Fotografia: Trabalho de campo.
Este pé de eucalipto não caiu de forma acidental, e também não foi derrubado
pelos membros da comunidade, ou ao menos não o foi por suas próprias mãos. Ele
tombou, porque foi cortado. Sua queda sobre o muro do cemitério, esta sim foi
casual. Este corte se deu no momento em que, através de diversas pressões e
negociações, membros da comunidade manifestaram seu descontentamento e
insatisfação com o fato de os cemitérios de Helvécia, tanto o São Pedro quanto o do
Sertão, estarem enterrados pelo eucaliptal. As falas de integrantes da comunidade
foram contundentes, e sinalizaram que aquilo para eles era um acinte. então a
empresa Aracruz Celulose, responsável pelo referido plantio, ordenou o corte de pés
de eucalipto que estivessem em um raio de 50 m dos cemitérios de Helvécia. Leio
esta ação como um indicativo de que as falas dos habitantes daquela comunidade
não puderam ser totalmente ignoradas. Por outro lado, paradoxalmente, a falta de
cuidado da empresa em não reparar de imediato o muro do cemitério, retirando de
dentro dele o de eucalipto que tombara, é um indício de sua postura de
resistência em reconhecer e agir de forma a respeitar os direitos da comunidade.
Esta imagem (cf. figura 14) revela outra possibilidade de análise. O fato da
comunidade não reparar, ela mesma, o muro do “cemitério do sertão”, não sinaliza
também uma forma de resistência? Deixar aquela marca da invasão expressa por
220
um de eucalipto tombado no lugar dos mortos de Helvécia, não seria uma
denúncia do descaso da empresa em relação à comunidade?
Em relação à Helvécia muitos silêncios, cortes e hiatos; ditos e não ditos.
Memórias fragmentadas, tempos ilhados”, histórias não escritas... Neste trabalho,
busquei ligar alguns fios, conectar alguns pontos que as narrativas dos entrevistados
trouxeram como possibilidades. O modo como os camponeses de Helvécia
contaram as suas histórias revelou o sentido dado por eles as suas vidas. Seria
aquilo que Clifford Geertz chama de interpretação de primeira mão.
441
No texto
desta dissertação, uma interpretação deste sentido, uma leitura, entre outras
possíveis, daquilo que foi contado, narrado.
441
Clifford Geertz. A interpretação das Culturas. Rio de Janeiro, Livros Técnicos e Científicos Editora
S.A., 1989, p. 25.
221
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Regina Constantino – Entrevista feita em 15 ago 2007
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