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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL – UFRGS
INSTITUTO DE LETRAS
DEPARTAMENTO DE PÓS-GRADUAÇÃO
DOUTORADO EM LITERATURA BRASILEIRA
Luciana dos Santos Carvalho
GRACILIANO RAMOS:
A DOR E A NÁUSEA
Porto Alegre/RS
Março de 2009
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2
Luciana dos Santos Carvalho
GRACILIANO RAMOS:
A DOR E A NÁUSEA
Tese apresentada como requisito parcial para
obtenção do título de Doutor, pelo Programa de
Pós Graduação em Letras da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul.
Orientadora: Jane Fraga Tutikian
Porto Alegre/RS
Março de 2009
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3
FOLHA DE APROVAÇÃO
Luciana dos Santos Carvalho
GRACILIANO RAMOS:
A DOR E A NÁUSEA
Tese apresentada como requisito parcial para
obtenção do título de Doutor, pelo Programa de
Pós Graduação em Letras da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul.
Aprovado em ........./........./.............
BANCA EXAMINADORA
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Com todo o meu amor, dedico esta tese ao meu esposo,
Renato, e às minhas filhas, Mariana e Bruna, bem como àquele
que me serviu de inspiração durante todo esse percurso:
Graciliano Ramos (in memorium).
5
AGRADECIMENTOS
Agradecer significa demonstrar gratidão. Nesse sentido, o meu muito obrigada
especialmente à família: esposo, filhas, enteados, pais..., pela paciência e tolerância comigo
durante esses cinco anos em que me dediquei a este estudo, pois não foram poucas as vezes
que, quer soterrada numa montanha de livros, quer diante da tela do computador, necessitei
me ausentar do mundo real para percorrer caminhos até então insondáveis do mundo
literário e acadêmico.
Mas de uma coisa eu tenho certeza: jamais estaria hoje defendendo esta tese se não
fosse a presença inestimável da minha orientadora, Jane Tutikian, que tanto me motivou e
acreditou no meu potencial como pesquisadora, prestando-me auxílio a qualquer tempo,
sem medir esforços. A ela, o meu mais sincero agradecimento!
Agradeço, também, a todos os meus professores da UFRGS por, mesmo sem
saberem, terem contribuído para que eu realizasse este trabalho de fôlego. A alguns mais do
que a outros, pela proximidade maior nesse trajeto: Prof. Dra. Ana Maria Lisboa de Mello,
Prof. Dr. Luís Augusto Fischer, Prof. Dra. Maria do Carmo Alves Campos, Prof. Dra.
Márcia Ivana Lima e Silva, Prof. Dra. Rita Terezinha Schimidt e Prof. Dr. Ubiratan Paiva
de Oliveira, meus mestres durante o mestrado e o doutorado.
Não poderia deixar de citar, ainda, a Prof. Dra. Maria da Glória Bordini, pelas suas
palavras de incentivo por ocasião da minha prova de qualificação, em maio de 2007; nem
tampouco meus/minhas colegas da EJA da EMEF Ver. Carlos Pessoa de Brum pelo apoio
que sempre me deram.
Sem falsa modéstia, credito a mim também a coragem e a ousadia de chegar até
aqui, pois, confesso, não foram raros os momentos em que pensei em desistir, seja por
medo, seja por desânimo, seja por uma questão de falta de tempo para me dedicar a esta
pesquisa que, pela sua própria matéria, é complexa e exige máxima dedicação.
Por fim, agradeço a todos os personagens dos quatros romances de Graciliano: João
Valério, Luísa, Adrião, Paulo Honório, Madalena, Padilha, Luís da Silva, Marina, Julião
Tavares, Fabiano, sinha Vitória e tantos outros com os quais convivi na mais absoluta
intimidade durante anos da minha vida.
Muito obrigada, velho Graça!
6
Café noturno, Van Gogh - óleo sobre tela - 1924
... as solidões reúnem o que a sociedade separa.
(CAMUS, Albert. O avesso e o direito.).
7
RESUMO
O presente trabalho de doutoramento em Literatura Brasileira, intitulado Graciliano
Ramos: a dor e a náusea, consiste na análise dos quatro romances de Graciliano Ramos
Caetés (1933), São Bernardo (1934), Angústia (1936) e Vidas Secas (1938) à luz de
alguns preceitos básicos do expressionismo alemão, com o objetivo de propor um
deslocamento de perspectiva em relação ao discurso hegemônico da historiografia e da
crítica literária tradicional, que vêem essas obras como a expressão máxima de uma
determinada região, em uma determinada época, limitando-as, portanto, a um contexto
sócio-histórico e cultural bem definido. Para a leitura que aqui se propõe, no entanto, esses
romances iluminam, numa linguagem enxuta e prenhe de significados intemporais, a força
de convicção moral desse escritor que ostenta, através da deformação da realidade, uma
emoção intensa, com toda uma carga de prospecção da dor humana.
PALAVRAS-CHAVES: Literatura Brasileira, Graciliano Ramos, Expressionismo,
angústia, silêncio, solidão, deformação da realidade.
8
ABSTRACT
The present doctorate work on Brazilian Literature, entitled Graciliano Ramos: the
pain and the nausea, consists on the analysis of four novels by Graciliano Ramos Caetés
(1933), São Bernardo (1934), Angústia (1936) and Vidas Secas (1938) at the light of
some basic precepts of the German Expressionism, with the aim of purposing a
perspective’s displacement with regard to the hegemonic speech from the historiography
and the traditional literary criticism which see these works as the maximum expression
from a certain region on a certain period, restraining them, therefore, to a sharp-cut cultural
and socio-historical context. To the reading purposed here, however, these novels
enlighten, on a concise language full of timeless meanings, the force of moral conviction of
this writer who exhibits, through reality’s deformation, an intense emotion with a whole
burden of human pain prospection.
KEYWORDS: Brazilian literature, Graciliano Ramos, Expressionism, anguish, silence,
solitude, reality’s deformation.
9
RESUMEN
El presente trabajo de doctorado en Literatura Brasilera, intitulado Graciliano
Ramos: a dor e a náusea, consiste en el análisis de las cuatro novelas de Graciliano Ramos –
Caetés (1933), São Bernardo (1934), Angústia (1936) y Vidas Secas (1938) a la luz de
algunos preceptos básicos del expresionismo alemán, con el objetivo de proponer un
desplazamiento de perspectiva en relación al discurso hegemónico de la historiografía y de
la crítica literaria tradicional, que ven esas obras como la expresión xima de una
determinada región, en una determinada época, limitándolas, por lo tanto, a un contexto
socio-histórico y cultural bien definido. Para la lectura que aquí se propone, esas novelas
alumbran, en un lenguaje enjuto y lleno de significados intemporales, la fuerza de
convicción moral de ese escritor que ostenta, a través de la deformación de la realidad, una
emoción intensa, con toda una carga de prospección del dolor humano.
PALABRAS CLAVES: Literatura Brasilera, Graciliano Ramos, Expresionismo, angustia,
silencio, soledad, deformación de la realidad.
10
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 - Moscovo I, Kandinky – 1916 ............................................................................19
Figura 2 - Cena do filme Tempos Modernos, de Charles Chaplin – 1936......................37
Figura 3 – Abandono,Oswaldo Goeldi – 1937...................................................................39
Figura 4 - O viajante sobre o mar de névoa, Caspar David Friedrich – 1918.................40
Figura 5 - Trigal com corvos, Vicent Van Ghog – 1890....................................................41
Figura 6 - Milharal com ciprestes , Van Gogh – 1889.......................................................41
Figura 7 - Cristo amarelo, Gauguin – 1889.......................................................................42
Figura 8 - Jovens Taitianas, Gauguin – 1889....................................................................43
Figura 9 - O grito, Edvard Munch – 1889.........................................................................44
Figura 10 - Café em Berlim – Anos 10 do século XX.......................................................45
Figura 11 - Die Brücke (A Ponte).......................................................................................47
Figura 12 - Estúdio de Kirchner........................................................................................47
Figura 13 - Pôster promocional da primeira exposição importante do Brücke............48
Figura 14 – Vênus do amor, de Lucas Cranach – 1509....................................................49
Figura 15 - Criança em pé – xilogravura de Erich Heckel – 1910..................................50
Figura 16 - Após o banho - Karl Schmidt-Rottluff – 1912...............................................50
Figura 17 - Três banhistas, Otto Muller – 1914................................................................50
Figura 18 - Postdamer Platz, Kirchner – 1914..................................................................51
Figura 19 - Cena de rua berlinense, Kirchner – 1913.......................................................51
Figura 20 - Noiva do vento, Oskar Kokoschka – 1914......................................................52
Figura 21 - Veleiros na tempestade, Max Pechstein – 1910..............................................53
Figura 22 - A Crucificação, Emil Nolde – 1912.................................................................53
Figura 23 - Composição IV, Kandinsky – 1911.................................................................54
Figura 24 - O Tigre, Franz Marc – 1912............................................................................55
Figura 25 - A bela jardineira, Paul Klee – 1919................................................................55
Figura 26 - Guernica , Pablo Picasso, - 1937.....................................................................56
Figura 27 – Cena de O Gabinete do Dr. Caligari (a) – 1920............................................57
Figura 28 – Cena de O Gabinete do Dr. Caligari (b) – 1920............................................57
11
Figura 29 – Cena de Nosferatu: uma sinfonia do terror - Friedrich Murnau (a) –
1922.......................................................................................................................................58
Figura 30 – Cena de Nosferatu: uma sinfonia do terror - Friedrich Murnau (b) –
1922.......................................................................................................................................59
Figura 31 – Cenário de Metropolis – Fritz Lang – 1926..................................................60
Figura 32 – Cena de Metropolis – Fritz Lang – 1926.......................................................60
Figura 33- Cena de Blade Runner - Ridley Scott – 1982………………………………..61
Figura 34 - Cenário de Blade Runner - Ridley Scott – 1982............................................61
Figura 35 – Cena de O Despertar da Primavera, texto de Frank Wedekind (Direção
Mateus Zucolotto - Curitiba-PR) ......................................................................................64
Figura 36 – Cena de A Caixa de Pandora, texto de Frank Wedekind ...........................65
Figura 37 – Cena de R.U.R., de Karel Capek...................................................................66
Figura 38 – Cena de O homem-massa, de Ernst Toller (1921)........................................68
Figura 39 - Adaptação cinematográfica da peça Longa jornada noite adentro, de
Eugene O’Neill ....................................................................................................................69
Figura 40 - Adaptação para televisão de Berlin - Alezanderplatz, romance de Döblin,
por Rainer Werner Fassbinder. Lançado em 1980.........................................................80
Figura 41 - Terra Virgem - Mural de Diego Rivera – 1923..............................................84
Figura 42 - Enferma, Lasar Segall – 1920.........................................................................85
Figura 43 - Ritmo Tors , Anita Malfatti – 1915/1916........................................................85
Figura 44 – Abaporu, Tarsila do Amaral – 1928..............................................................85
Figura 45 - Ciganos, Di Cavalcanti – Década de 20.........................................................86
Figura 46 - Criança Morta, Cândido Portinari – 1944....................................................86
Figura 47 - Céu vermelho, Oswaldi Goeldi – 1950............................................................86
Figura 48 - Postal do lançamento da Batalha da Quimera. 1922...................................87
Figura 49 Cena de Bailado do deus morto, 1933 (Clube dos Artistas Modernos São
Paulo)....................................................................................................................................88
Figura 50 – Cena de Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues..........................................90
12
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................13
2 UM FASCINANTE PROBLEMA CRÍTICO LITERÁRIO............................21
3 O EXPRESSIONISMO: CONSIDERAÇÕES GERAIS .................................37
3.1 BREVE HISTÓRICO .........................................................................................37
3.1.1 PRIMEIRA GERAÇÃO EXPRESSIONISTA............................................46
3.1.2 SEGUNDA GERAÇÃO EXPRESSIONISTA ............................................53
3.2 EXPRESSIONISMO E CINEMA......................................................................56
3.3. EXPRESSIONISMO NA MÚSICA .................................................................62
3.4. TEATRO EXPRESSIONISTA..........................................................................63
3.5 EXPRESSIONISMO NA LITERATURA..........................................................69
3.5.1 LÍRICA EXPRESSIONISTA .......................................................................70
3.5.2 PROSA EXPRESSIONISTA.........................................................................77
3.6 RECEPÇÃO AO EXPRESSIONISMO..............................................................82
4 A DISSOLUÇÃO DOS VALORES TRADICIONAIS .................................. 91
4.1 CAETÉS ..............................................................................................................91
4.2 SÃO BERNARDO..............................................................................................108
5 A ANGÚSTIA PRIMORDIAL ........................................................................121
6 VIDAS SECAS E O DRAMA DAS ESTAÇÕES ............................................146
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................170
REFERÊNCIAS....................................................................................................179
13
1 INTRODUÇÃO
Auto-retrato aos 56 anos
Nasceu em 1892, em Quebrangulo, Alagoas.
Casado duas vezes, tem sete filhos.
Altura 1,75.
Sapato n.º 41.
Colarinho n.º 39.
Prefere não andar.
Não gosta de vizinhos.
Detesta rádio, telefone e campainhas.
Tem horror às pessoas que falam alto.
Usa óculos. Meio calvo.
Não tem preferência por nenhuma comida.
Não gosta de frutas nem de doces.
Indiferente à música.
Sua leitura predileta: a Bíblia.
Escreveu "Caetés" com 34 anos de idade.
Não dá preferência a nenhum dos seus livros publicados.
Gosta de beber aguardente.
É ateu. Indiferente à Academia.
Odeia a burguesia. Adora crianças.
Romancistas brasileiros que mais lhe agradam: Manoel Antônio de Almeida, Machado de Assis,
Jorge Amado, José Lins do Rego e Rachel de Queiroz.
Gosta de palavrões escritos e falados.
Deseja a morte do capitalismo.
Escreveu seus livros pela manhã.
Fuma cigarros "Selma" (três maços por dia).
É inspetor de ensino, trabalha no "Correio do Manhã".
Apesar de o acharem pessimista, discorda de tudo.
Só tem cinco ternos de roupa, estragados.
Refaz seus romances várias vezes.
Esteve preso duas vezes.
É-Ihe indiferente estar preso ou solto.
Escreve à mão.
Seus maiores amigos: Capitão Lobo, Cubano, José Lins do Rego e José Olympio.
Tem poucas dívidas.
Quando prefeito de uma cidade do interior, soltava os presos para construírem estradas.
Espera morrer com 57 anos.
14
Graciliano Ramos é, sem dúvida, um dos maiores expoentes da literatura
brasileira e, embora tenha pertencido à classe dos proprietários de terra (latifundiários) e,
também, tenha sido ligado ao comércio e ao governo, exercendo vários cargos públicos
(por eleição ou nomeação), fez da sua atividade literária um permanente motivo de
reflexão, sempre se colocando ao lado dos humildes, dos desprotegidos, da classe que não
era a sua. Ele não foi apenas um grande escritor, mas também um
homem de múltiplas
ocupações (jornalista, contista, romancista, crítico literário, membro do partido comunista,
etc.), que, crítico de si mesmo e dos outros, amaldiçoava os literatos e os editores e era,
acima de tudo, um apaixonado pela espécie humana.
O Bezerro-encourado (como era chamado por seus pais e irmãos) nunca abandonou
o sentimento de ser um estranho na própria família, de não pertencer, de ser expulso, de
viver num estado de dissonância com o mundo. Essa estranha sensação o levou, desde a
infância, a se refugiar nos livros. E, quando foi preso por um ano, em 1936, acusado de
comunista (na verdade, o motivo da sua prisão nunca foi claro para ele), tal situação
kafkiana, descrita em Memórias do cárcere (1953), pareceu-lhe um microcosmo de sua
vida inteira.
Graciliano Ramos escreveu quatro romances: Caetés (1933), São Bernardo (1934),
Angústia (1936) e Vidas secas (1938); dois livros de memórias: Infância (1945) e
Memórias do cárcere (1953); um livro de contos: Insônia (1947); dois livros de crônicas:
Linhas tortas (1962) e Viventes das Alagoas (1962); dois livros de literatura infanto-
juvenil: Alexandre e outros heróis (1962) e A terra dos meninos pelados (1939); e um livro
de impressões sobre a Tchecoslováquia e a URSS: Viagem (1954). Três obras de
Graciliano Ramos foram adaptadas para o cinema: Vidas secas (1963), São Bernardo
(1973) e Memórias do cárcere (1984), sendo que a primeira e a última, pelo renomado
cineasta, um dos fundadores do Cinema Novo, Nelson Pereira dos Santos; e, a segunda,
pelo não menos consagrado Leon Hirszman. Dessas adaptações, Vidas secas (1963) consta
como verdadeira obra-prima cinematográfica, tendo alcançado premiação internacional das
mais importantes (Festival de Cannes).
15
Muito se tem falado acerca do conjunto da sua obra, seja pela perfeição formal, seja
pelo sentido humano e social profundo que ela alcança. Mas o que se percebe é que, de
todas essas falas (acadêmicas ou não), raras o aquelas que se distanciam da órbita do
visível, conseguindo enxergar para além das aparências, nas lacunas, nos silêncios, nos
desvãos dos textos, pois, em Graciliano, as palavras adquirem contornos resistentes,
saliências agressivas, e são como pedras, pesam, machucam (Cf. MIGUEL-PEREIRA,
1954). É desse peso que dói na alma, denso e obstinado, mobilizando afetos, que surge a
máxima expressividade do escritor alagoano.
Quem dormiu no chão deve lembra-se disto, impor-se disciplina, sentar-se
em cadeiras duras, escrever em tábuas estreitas. Escreverá talvez asperezas,
mas é delas que a vida é feita: inútil negá-las, contorná-las, envolvê-las em
gaze. (RAMOS, 2002, p. 34).
A crítica, de um modo geral, tem enxergado a obra romanesca de Graciliano Ramos
pela lente um tanto quanto embaçada do Regionalismo. Se olharmos apenas para parte
visível do iceberg, iremos vislumbrar o Nordeste brasileiro, com todos os seus
condicionantes histórico-sociais e cenários geográficos. Mas isso seria um desperdício de
possibilidades especulativas. Desconfio dos estereótipos. Assim como Otto Maria
Carpeaux, “vou construir o meu Graciliano Ramos”. Esse não tem nada a ver com aquele
que os manuais rotulam como escritor regionalista. A noção de regional parece uma
categoria analítica anacrônica e inoperante, que marca bem a idéia da diferença em termos
de estudos literários, uma vez que se opõe ao que Antonio Candido, em Literatura e
subdesenvolvimento (1970), vai chamar de os melhores produtos da ficção brasileira”: as
obras de tema urbano.
Ora, é preciso relativizar tal afirmação categórica. Candido concede uma licença
por excelência, digamos assim, para as tendências regionalistas a partir de 30, mais
especificamente a partir do que ele estipula como sendo a segunda fase dessas tendências,
ditas sublimadas e transfiguradas pelo realismo social, e capazes, portanto, de atingirem o
alto nível das obras significativas, apresentando Vidas secas (1938), de Graciliano Ramos,
como exemplar nesse sentido. Mas de resto, segundo ele, o regionalismo tem sido, no caso
do Brasil, “uma tendência secundária, quando não francamente subliterária, em prosa e
verso”, desde o Romantismo.
16
Com isso devo argumentar que a trajetória da literatura brasileira, vista por esse
prisma, cancela de antemão o que o próprio Candido recomenda em outra ocasião: que se
considere o primado do estético”, acima de qualquer plataforma ou programa. O debate
que aqui se instala foge (ou pelo menos tenta fugir), pois, da pecha do regionalismo, ainda
que se para esse conceito uma nova e colorida plumagem. textos, como os que são
objetos desta análise, que “dizem por outras vias”, ou seja, são armados de modo a
driblarem o que ali aflora apenas de forma velada (Cf. HOLANDA, 1992), deixando espaço
de liberdade para o que Barthes, nos seus ensaios críticos, cunha como sendo uma “viagem
analítica”.
Minha hipótese é de que os textos de Graciliano Ramos revelam um rasgo
expressionista de quem deforma a realidade para recriá-la a partir de uma imaginação
demasiado sensível, que, com paradoxal dureza de martelo, repudia essa mesma realidade.
O ser humano, aos seus olhos, não passa de um ser despersonalizado, de um frágil joguete à
mercê das estruturas de poder e dominação. Seus personagens, incapazes de se integrarem
nessas estruturas, por pertencerem às classes oprimidas, externam sua insatisfação e
angústia através de comportamentos grotescos, por vezes monstruosos, constituindo uma
ameaça real à civilização urbana que os repele.
Em carta escrita a sua irmã, Marili Ramos, diz Graciliano: “Arte é sangue, é carne.
Além disso, não nada”. Para ele, um escritor (um bom escritor) precisa colocar no papel
os seus sentimentos pessoais, a sua vida. As suas personagens devem ser pedaços de si
mesmo. Dentro dessa linha de intenção, pois, sublinho o subjetivismo a ela inerente.
Evidencia-se, em tal concepção de literatura, um ataque à atmosfera banal que é meramente
exterior, na qual vivem os seguidores do Real/Naturalismo e do Regionalismo, em que
predominam os pormenores da realidade (realidade fotografada). A razão não deve se
sobrepor às emoções, às intuições e à experiência sensorial, embora não se trate apenas do
mundo entrevisto pela perspectiva da subjetividade, e sim de uma subjetividade alargada e
contaminada pelos problemas sociais de toda uma época.
Numa orientação temática dirigida para as mazelas e as angústias radicadas na
realidade presente, Graciliano Ramos nega criticamente essa realidade, entendida ora como
um vazio despojado de sentido (niilismo), ora como uma força ameaçadora (tirania), mas o
17
faz não através de um realismo vigoroso e profundo, como insistem os analistas da sua
obra, e sim de um expressionismo despido dos despotismos da linguagem. Isto é, a sua
linguagem é submetida a um processo de redução ao essencial, tornando-se eruptiva,
intensa, precisa e concisa, rejeitando o que ele chama de excessiva gordura na arte de
narrar: a repetição desnecessária, o divagar em torno de coisas bestas, enfim, os excessos,
tão caros aos escritores realistas, que se preocupam justamente com o descritivo minucioso.
Ao escancarar, portanto, as misérias da modernidade como um todo, e não apenas as
da modernização brasileira, a obra de Graciliano Ramos é capaz de expressar “qualquer
dor”, apontando para a destruição de um mundo estagnado, doente, sufocado por uma
burguesia desvitalizada, engessada numa ordem social dominada pela racionalização e
mecanização progressivas. Todos os protagonistas de seus romances são seres solitários,
embrutecidos, mutilados em sua natureza precípua, relegados à periferia da vida, habitantes
de um mundo minado por energias negativas, reduzidos a animais rastejantes.
Graciliano Ramos elimina tudo que não seja do homem, da miséria, da
condição trágica, de um fatalismo cruel (...) Tudo nele se concentra no que
é homem, no que á a tragédia de ser homem (...) Ele criou uma galeria que
é a mais dolorosa do nosso romance. Os homens e as mulheres, até os
bichos que ele cria, são criaturas que carregam a vida como o maior castigo
(REGO, 1943, p. 89).
De acordo com Maria Inês França (2002):
Essa temática sobre um sujeito desorientado e desamparado é constante em
toda a série de escritos expressionistas. Um universo incerto, que acentua o
caráter irrestrito da solidão e que é presença permanente nesse movimento
cuja expressão, na literatura e no teatro, busca mostrar a explosão de um
psiquismo em sofrimento. (FRANÇA, 2002, p. 133).
Por isso é legítimo pensar que essa sensibilidade expressionista de Graciliano,
autêntica e original, uma vez que não se reduz à mera imitação de modelos, se revela, e
muito, no silêncio que emana das suas narrativas. Em artigo publicado no Boletim de Ariel,
em 1938, Lúcia Miguel Pereira, referindo-se a Vidas Secas, diz tratar-se de “romance mudo
como um filme de Carlitos”. Ela percebe que não nessa obra nenhuma preocupação
fotográfica, mas sim a fixação de sentimentos de criaturas humildes, de sentimentos
também humildes e trágicos, justamente por não poderem nem ao menos se expressar.
18
É preciso ver que Graciliano Ramos, assim como, antes dele, Machado de Assis, é
um escritor que não pode ser enquadrado dentro dos limites do seu tempo, uma vez que sua
obra escapa aos paradigmas, emergindo como uma nova estratégia de composição
ficcional, que revela, em maior ou menor grau, a ausência de qualquer desejo de reproduzir
o mundo fenomenal. A minha leitura aqui propõe esse deslocamento, do romanesco
mimético, neo-realista, para um enfoque radicado na convicção de que os romances
graciliânicos, povoados de indivíduos marginalizados pela vida, criam verdadeiros
“antimodelos” humanos, através dos quais simbolizam ao mesmo tempo o desafio às
concepções vigentes (valores éticos e estéticos tradicionais) e as incertezas perante o valor
e o destino do homem como tal.
De minha parte, tenciono me aproximar dessa prosa que, condensada em imagens,
sugere e evoca com a mesma força com que designa. Para tanto, vou me deter mais
atentamente nos dois últimos romances do autor: Angústia e Vidas secas, sem deixar de
fazê-los entrar em ressonância, no entanto, com a produção romanesca anterior: Caetés e
São Bernardo.
Trata-se de uma dinâmica de idas e vindas pelo universo graciliânico, obedecendo
ao fio de uma idéia a qual aqui me exponho diante da ousadia da tese de que Graciliano
Ramos consegue expressar em seus textos uma dimensão diferente, inquietante,
insuportável e inapreensível do real, compartilhando, em larga medida, muito dos anseios
que marcaram a experiência estética do Expressionismo, principalmente a aguda
consciência da descontinuidade que se instaura entre a vida e a arte a partir da
modernidade, o que resulta na construção de uma nova linguagem artística para que a
imagem do mundo seja refletida de maneira pura e não deturpada, com máxima precisão no
emprego das palavras, concisão e vigor expressivo, o que implica uma postura
antipsicológica do próprio escritor, uma vez que a psicologia explica, comenta, deduz e
fundamenta. “A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi
feita para dizer”, proclama Graciliano (RAMOS, 2003, contracapa).
19
Wassily Kandinsky, artista russo, professor da Bauhaus
1
e introdutor da abstração
no campo das artes visuais, criticava, em suas teorias, a “arte pela arte”, porque, segundo
ele, uma obra não deve servir apenas para extrapolar sentimentos do artista ou levá-lo a um
exercício terapêutico; ela precisa, acima de tudo, buscar “educar o expectador, induzi-lo a
compartilhar o ponto de vista do artista”. Como, porém, conseguir tal feito? Basta que a
obra de arte se fixe em seu tempo, tentando expressá-lo, pois assim ela conseguirá
provocar, penetrar no expectador e levá-lo a um movimento de conhecimento. Sem isso,
“aquele que teria podido falar a seu semelhante nada disse, e aquele que teria podido ouvir
nada ouviu”.
Figura 1 - Moscovo I, Kandinky - 1916
1
A Staatliches Bauhaus (literalmente, casa estatal de construção, mais conhecida simplesmente por
Bauhaus) foi uma escola de design, artes plásticas e arquitetura de vanguarda que funcionou entre 1919 e
1933 na Alemanha. A Bauhaus foi uma das maiores e mais importantes expressões do que é chamado
Modernismo no design e na arquitetura, sendo uma das primeiras escolas de design do mundo.
20
O engagement proposto por Kandinsky parece ir, na verdade, na mesma direção
apontada por Graciliano Ramos em Linhas tortas, quando ele diz que “há uma literatura
antipática e insincera que só usa expressões corretas, se ocupa de coisas agradáveis, não
se molha em dias de inverno e por isso ignora que pessoas que não podem comprar
capas de borracha” (RAMOS, 2002, p.89). Para Graciliano, a literatura, ao contrário, não
pode se contentar em descrever “os lares felizes, que não existem, ou contar histórias sem
nem cabeça, coisas bonitas, arrumadas em conformidade com as regras” (IBDEM, p.
90.); a literatura deve se aproximar da realidade: das fábricas, das cidadezinhas decadentes
do interior, das casas de cômodos, das plantações de cacau e de café, dos prostíbulos,
enfim, de lugares onde milhões de pessoas aperreadas, descrevendo essa realidade não a
partir de uma visão puramente objetiva, mas refletindo-a nos espíritos torturados,
percebendo as personagens a partir de suas reações diante dos acontecimentos trágicos da
existência.
Desse modo, tendo como suporte teórico o Expressionismo Alemão, no primeiro
capítulo, estabeleço uma visada da obra de Graciliano Ramos à luz de uma crítica que a si
mesma se limita por sua desatualizada impostação teórica; no segundo, traço um breve
panorama histórico do Expressionismo enquanto movimento de vanguarda, buscando
apontar algumas características essenciais desse movimento, sobretudo em termos
literários, para que se possa, pois, entender os argumentos desta tese; no terceiro, no quarto
e no quinto capítulos, então, estabeleço as possíveis inter-relações entre a escrita de
Graciliano e a estética expressionista, abordando os temas fundamentalmente existenciais e
o estilo anti-sentimentalista, ainda que altamente personalizado desse autor cujo conjunto
da obra se tornou grito de um sofrimento sem limites e uma chamada para a fraternidade
humana.
21
2 UM FASCINANTE PROBLEMA CRÍTICO LITERÁRIO
Conforme a noção de sistema, desenvolvida por Antonio Candido, a obra tem
existência efetiva no momento em que alguém a recebe. Mas no caso da sociedade
brasileira, em que as desigualdades sócio-econômicas e culturais são tão grandes, essa
relação orgânica entre autor, obra e público, comunicação fechada em circuito, não se
processa efetivamente, entra em curto, pois o autor, numa condição privilegiada de dono
dos meios de produção, visa atingir sempre a mesma elite intelectual que o legitima, as
instituições culturais, sendo que o grande público, a massa, fica de fora desse processo.
Com efeito, coincide com o Romantismo o nascimento do romance-folhetim
2
no
Brasil, tendo em vista, nessa época, a demanda de leitura por parte da camada burguesa,
classe mais culta, irrequieta e curiosa que se formava, nas cidades, com a imigração de
fazendeiros, a ascensão de comerciantes e o desenvolvimento da burocracia. Esse romance
publicado aos pedaços agrada, pois, esse público mais amplo que vinha se constituindo.
Mas embora o número de leitores tenha aumentado em função do invento da imprensa, que
permitiu uma difusão até então impossível da prosa de ficção, o analfabetismo e a
debilidade cultural continuavam a ser uma realidade por aqui, o que significa dizer que a
literatura ainda estava fora do alcance das grandes massas.
De para cá, no entanto, tal debilidade não se modificou. Como afirma Antonio
Candido, em Literatura e subdesenvolvimento (CANDIDO, 1970), o número de leitores
reais, hoje, é muito menor do que o número já reduzido de alfabetizados. Cabe, pois, uma
questão intrigante, posto o analfabetismo não ser sempre razão suficiente para que a
literatura brasileira, dita erudita, atinja um número restrito de públicos restritos: quais as
causas dessa verdadeira penúria cultural que os nossos escritores enfrentam desde as
2
Surge, na França, em 1936. Trata-se de uma publicação seqüenciada de relatos ficcionais, num veículo
específico, o jornal, que, pelo baixo custo, estimula a leitura. A partir de 1840, o romance-folhetim se
configura como gênero específico de romance. Praticamente toda a ficção em prosa da época passa a ser
publicada em folhetim, para então, depois, conforme o sucesso obtido, sair em volume. No Brasil, é
publicada, em 1938, no Jornal do Comércio, do Rio de Janeiro, uma tradução de O capitão Paulo, obra de
Alexandre Dumas. Os grandes romancistas do período romântico, tais como José de Alencar e Joaquim
Manuel de Macedo, se formaram sob a leitura do folhetim. E esse também foi o modo de publicação de
Machado de Assis e Aluísio de Azevedo. Fixava-se assim o modelo matricial do que haveria de ser a grande
narrativa nacional: a telenovela.
22
origens das nossas letras? E a resposta quem nos fornece, de certa forma, é o próprio
Candido:
Jamais criamos quadros originais de expressão, nem técnicas expressivas
básicas, no sentido em que são o Romantismo, no plano das tendências; o
romance psicológico, no plano dos gêneros; o estilo indireto livre, no da
escrita. E embora tenhamos conseguido resultados originais no plano da
realização expressiva, reconhecemos implicitamente a dependência.
(CANDIDO, 1970, p. 41).
Com o Modernismo, a partir da Semana de 22, houve uma proposta radical (leia-
se emblemática) de se fazer uma arte genuinamente nacional, rompendo definitivamente
com a tradição. Oswald de Andrade, um dos ícones dessa revolução discursiva, declara em
seu Manifesto Antropófago (1928):
Nós queremos a revolução caraíba. Maior do que a Revolução Francesa.
Unificar todas as revoltas eficazes que convergem em direção ao homem
(...). Tínhamos a justiça: codificar a vingança. A ciência: codificar a magia.
A antropofagia: transformação permanente do Tabu em totem.
(ANDRADE, 1928, p. 18/20).
Contudo, assim como a Revolução Francesa, a qual Oswald nos remete com tanta
provocação, essa que ele propõe, a revolução caraíba, também foi uma revolução burguesa,
articulada e sustentada pela burguesia paulista, e, como tal, mais uma vez deixou à margem
a maioria da população brasileira, incluindo, agora, o consumidor médio, aquele que
eventualmente consome arte, na medida em que essa nova arte impunha uma erudição
ainda maior: uma releitura de toda a tradição aliada a uma visão cosmopolita.
Em Modernismo: dependência e memórias sentimentais de João Miramar, de
Oswaldo de Andrade (1990), João Hernesto Weber comenta que:
Esse descompasso marcou a vida cultural das elites, e dele, ou da
ambigüidade resultante, foram prisioneiros os produtores de cultura: ou se
dirigiam à elite da Corte e da costa, repondo constantemente os símbolos da
sua (dela) modernidade, buscados na Europa, ou se dirigiam ao escravo,
aos homens-livres e à massa de analfabetos perdida nas vastidões do
“hinterland” brasileiro. Dirigir-se a uns era sobreviver como produtor de
cultura; dirigir-se aos outros, ou mesmo erguer a voz em seu nome, era
submeter-se ao silêncio, fosse pela falta de leitores, fosse pela imposição
oficial... (WEBER, 1990, p. 67).
23
Ainda no mesmo ensaio, João Hernesto conclui:
Como processo cultural abrangente, no entanto, é possível afirmar que o
Modernismo reproduz, à sua maneira, a trajetória do movimento cultural
das classes dominantes nacionais (...) em 1922 assiste-se à nova
readequação cultural, com o grupo modernista de São Paulo voltando-se à
“Europa-mãe” para absorver os modelos que, aqui, deveriam expressar a
“nossa” – dos grupos dominantes paulistas, na verdade modernidade.
(WEBER, 1990, p. 75-76).
Todavia, tal descompasso entre produção e consumo precisa ser problematizado:
qual o papel assumido pelo escritor enquanto criador de arte “culta” numa sociedade
industrializada? Oswald de Andrade propôs uma ficção literária de vanguarda,
incorporando os novos padrões formais oferecidos pelas técnicas cinematográficas, mas o
fez sem levar em conta o sonho e a imaginação de um leitor emergente, recém escolarizado,
que exige, do texto, uma dose respeitável de identificação social e adesão emocional.
A alternativa oswaldiana “consiste em aferir, quase sempre em pauta irônica, a
capacidade enunciativa do procedimento romanesco, nomeadamente em sua versão
realista”, afirma Luís Augusto Fischer, em Alguns custos da radicalidade: o romance
modernista no Brasil (FISCHER, 1990, p.44). Ou seja, o desejo de Oswald não é que a
literatura alcance a unidade que a sociedade, cindida contra si mesma, nega-lhe; e sim que a
literatura nacional se emancipe, artisticamente, dos modos de dizer passadista.
Mesmo Mário de Andrade, que, em Macunaíma (1928), utiliza-se do acervo
folclórico para reconstituir as lendas e os mitos brasileiros, convidando o leitor a intervir
ativamente no processo criador do texto, conta, na verdade, com um público
antecipadamente cativo: a escola, a crítica, a academia, uma vez que sua revolta, assim
como a de Oswald, é uma revolta racional contra a estrutura narrativa e os estilos
tradicionais. “Autor de um livro chato e inventor de um falso herói, Mário optou por ir para
o céu das letras nacionais” (FISCHER, 1990, p. 60), isto é, optou por abrir mão de um
projeto efetivamente novo para o Brasil, que apontasse para a impotência do ser humano
diante da civilização que se construía nos trópicos.
“Adotar a ideologia da modernidade significaria a própria condenação da
burguesia cafeeira por isso, cabia rejeitá-la, construindo-se, no reverso, uma visão
positiva e otimista do mundo burguês paulista” (WEBER, 1990, p. 82), comenta João
24
Hernesto Weber, lamentando-se, pois, que o Modernismo brasileiro tenha privilegiado a
estética moderna em detrimento da ideologia da modernidade européia.
Como diz Marshall Berman
3
, em Tudo o que é sólido desmancha no ar (1940), onde
constrói um painel vertiginoso e lúcido dos tempos modernos, “uma arte desprovida de
sentimentos pessoais e de relações sociais está condenada a parecer árida e sem vida. A
liberdade que ela permite é a liberdade belamente configurada e perfeitamente selada... da
tumba” (BERMAN, 1940, p. 29), ou seja, o modernismo que simplesmente procura uma
arte-objeto pura, auto-referida, que não relaciona arte moderna e vida moderna, voltando as
costas para a sociedade e confrontando o mundo dos objetos, como sugeria Roland Barthes,
não pode ser pactuado por muito tempo.
Por esse mesmo viés de pensamento, Ernst Fischer
4
, em A necessidade da arte
(1959), comenta que, “no mundo alienado em que vivemos, a realidade social precisa ser
mostrada no seu mecanismo de aprisionamento, posta sob uma luz que devasse a
‘alienação’ do tema e das personagens” (FISCHER, 1959, p. 15).
Graciliano Ramos também era um crítico mordaz ao Modernismo. “Salvo
raríssimas exceções, os modernistas brasileiros eram uns cabotinos. Enquanto outros
procuravam estudar alguma coisa, ver, sentir, eles importavam Marinetti”, acusa ele, em
3
Marshall Berman é um importante crítico literário da modernidade que, sem dúvida, amplia os horizontes da
estética marxista. Professor de teoria política e urbanismo, na City University, em Nova York, investiga o
espírito da sociedade e da cultura dos séculos XIX e XX, propondo leituras originais e instigantes de autores
como Goethe, Marx, Baudelaire e Dostoievski, bem como das vanguardas artísticas contemporâneas, sempre
mostrando que ser moderno é viver uma vida de paradoxo e contradição, movido pela “vertigem e o terror de
um mundo no qual tudo que é sólido desmancha no ar” (BERMAN, 1986, p. 13).
4
Crítico marxista, falecido em 1972, trabalhou como comentarista político na rádio soviética, durante a
Segunda Guerra, e foi eleito deputado pelo PC austríaco. Em A necessidade da arte (1959), Ernst Fischer
afirma que “numa sociedade em decadência, a arte, para ser verdadeira, precisa refletir também a decadência”
(FISCHER, 1959, p. 58). Para Fisher, socialista por opção, o artista tem uma função social. E, segundo ele, “o
traço comum a todos os artistas e escritores significativos no mundo capitalista é a incapacidade por eles
experimentada de se porem de acordo com a realidade social que os circunda” (FISCHER, 1959, p. 118).
Mas, ao sugerir a necessidade de uma arte de protesto e revolta, não quer dizer com isso que o artista deva
reproduzir a realidade tal como ela é, e
sim uni-la à imaginação. “Se decidirmos definir o realismo não como
um método, mas como uma atitude a atitude que fixa a realidade na arte -, chegaremos à conclusão que
quase toda a arte (com exceção da arte abstrata, do tachismo, etc.) é realista” (FISHER, 1959, p. 123). Ou
seja, ele propõe, em oposição ao realismo crítico, um realismo socialista, que é “o resultado da adoção pelo
escritor ou artista do ponto de vista histórico da classe operária, o resultado da aceitação da sociedade
socialista, com todos os seus contraditórios desenvolvimentos, como matéria de princípio” (FISCHER, 1959,
p. 128), aproximando-se, pois, do pensamento de Sartre, para quem, em Que é a literatura? (1948), “a função
do escritor é fazer com que ninguém possa ignorar o mundo e considerar-se inocente diante dele” (SARTRE,
1948, p. 21).
25
entrevista concedida a Homero Senna, publicada, em 1955, no Diário de Notícias. Aliás,
Graciliano não perdia a oportunidade de tocar nas nossas mazelas sociais, observando que a
linguagem modernista dos paulistas era uma incongruência: “Escorregam, às vezes, no
solecismo e no lugar-comum. É, porém, natural neste país, onde os indigentes evitam
qualquer alusão à pobreza e os mulatos ignoram os pretos”. Em Linhas tortas (1962), diz a
respeito de Oswald de Andrade: “Boa parte de seu talento se gasta em pilhérias: nesse
homem espirituoso há um ator que representa, nas conversas mais agradáveis do mundo, as
peças que não escreve” (RAMOS, 1962, p.165).
Em O romance europeu e o romance brasileiro do modernismo (1990), Jo
Hildebrando Dacanal afirma, audaciosamente, que não romance modernista no Brasil,
pois, segundo ele, os dois livros mais representativos do nosso Modernismo: Macunaíma
(1928), de Mário de Andrade, e Memórias sentimentais de João Miramar (1924), de
Oswald de Andrade, são respectivamente um panfleto e um equívoco. Para Dacanal, esses
dois romances podem ser definidos, como obras, pelo futuro, ao contrário do romance
europeu de 1900-1930, que pode ser definido a partir do passado. Nesse sentido, “é
necessário analisar o que veio depois do romance modernista na literatura brasileira”
(DACANAL, 1990, p. 23), ensina o referido mestre.
Aqui me interessa justamente falar desse depois, mais especificamente do
chamado romance de 30, tendo em vista que os livros de Graciliano Ramos assim
costumam ser “enquadrados”. Convém assinalar desde logo, entretanto, que não tenho
como objeto os estudos produzidos acerca da obra de Graciliano, mas creio necessário
apontar para a repetição de determinados juízos de valor comuns entre os críticos a esse
respeito.
Dacanal, no ensaio supracitado, considera que, dentre os romances de 30, a única
exceção à regra de construir uma perspectiva do Brasil europeizado talvez seja Vidas Secas
(1938), de Graciliano Ramos, uma vez que “o herói do romance brasileiro de 30 está
calcado, em essência, sobre o herói do romance europeu da síntese burguesa. Vive um
contexto e uma situação completamente diferentes, sem dúvida, mas sua alma é a alma
gerada pela tradição da cultura pós-renascentista européia”. (DACANAL, 1990, p. 24). É
o caso, para ele, de Paulo Honório, em São Bernardo (1934), obra que considera, em ensaio
26
anterior, como a “súmula do romance de 30”: “Estabelecido o pressuposto de que o
conceito de romance de 30 possui validade, por ter um mínimo de univocidade, São
Bernardo, de Graciliano Ramos, deve ser considerado sua mula, o melhor exemplo dele,
tanto do ponto de vista temático quanto formal. “(DACANAL, 1986, p. 19).
Conforme Flávio Loureiro Chaves, em História e Literatura (1999), examinando
o quadro geral da ficção brasileira, chega-se à conclusão que o termo romance de 30 é
generalizador e conseqüentemente falho de substância crítica. Não sentido em agrupar
sob o rótulo de romance de 30 escritores tão diferentes e distantes quanto Graciliano e Cyro
dos Anjos, Erico Verissimo e Cornélio Pena, cujo único vínculo é estarem situados numa
faixa cronológica. Mas Loureiro Chaves, então, vai falar em “sertanismo romântico
renovado”, pecha que imputa indiscriminadamente ao romance brasileiro da época:
O romance brasileiro, atingindo então uma momento áureo, era sobretudo
romance regionalista. Vejam-se, a olho nu, os casos bem próximos.
estão o José Américo de Almeida d’ “A bagaceira” (1928), a Raquel de
Queirós d’ “O quinze” (1930), o José Lins do Rego de “Menino do
Engenho” (1932) e, neste mesmo ano de 1933, “Caetés” de Graciliano
Ramos e “Cacau” de Jorge Amado. A velha herança do sertanismo
romântico atualizava-se mais uma vez na tradição da literatura brasileira,
adquirindo um viés social. (CHAVES, 1999, p. 35).
Ora, o regionalismo literário tem sido tomado, num sentido amplo, como obras
que expressam regiões rurais e nelas situam suas ações e personagens, procurando traduzir
suas particularidades lingüísticas. Tanto do ponto de vista estético quanto ideológico, não
vão além do testemunho e do registro. Esse é o defeito que a crítica muitas vezes aponta ao
escritor regionalista, na medida em que se limita ao pitoresco, à cor local, ao descritivismo,
numa espécie de visão ingênua do reflexo fotográfico de determin
ada região.
Faço, pois, uma rápida retrospectiva do regionalismo literário no Brasil,
lembrando que, como afirma Antonio Candido, no segundo volume de Formação da
Literatura Brasileira: momentos decisivos (1959), “enquanto nas literaturas evoluídas do
Ocidente ele é quase sempre um subproduto sem maiores conseqüências (uma espécie de
bairrismo literário), no Brasil, que ainda se apalpa e estremece a cada momento com as
surpresas do próprio corpo, foi e é um instrumento de descoberta” (CANDIDO, 1959, p.
213). Na sua fase inicial, de pesquisa eufórica pelo país novo, com os românticos José de
27
Alencar, Bernardo Guimarães, Visconde de Taunay e Franklin Távora, o regionalismo
surge, ainda que esquemático e superficial, como uma fecunda vertente da nossa literatura,
que vai ter sua continuidade através do naturalismo de Inglês de Souza e Domingos
Olímpio, da literatura sertaneja de Afonso Arinos e Coelho Neto, da literatura gauchesca de
Simões Lopes Neto, do romance nordestino de José Américo de Almeida, Raquel de
Queirós, José Lins do Rego e Jorge Amado, até encontrar sua maturidade plena em
Guimarães Rosa e José Cândido de Carvalho, autores, respectivamente, de Grande sertão:
veredas (1956) e O coronel e o lobisomem (1964).
Uma década depois, em Literatura e subdesenvolvimento (1970), Antonio
Candido vai discorrer sobre o regionalismo na América Latina, trazendo importantes
contribuições para essa minha tentativa de deslocar a obra de Graciliano Ramos do
contexto literário em que está inserida, ainda que, para isso, tenha que, de certa forma,
distorcer as palavras de Candido, ou melhor, utilizá-las em proveito próprio, uma vez
estarem se referindo ao que ele chama de terceira fase do regionalismo literário, ou super-
regionalismo, quando então o realismo social, com sua “consciência de país
subdesenvolvido”, teria agora essa “consciência dilacerada”, atingindo um “refinamento
técnico, graças ao qual as regiões se transfiguram e os contornos humanos se subvertem,
levando os traços antes pitorescos a se descarnarem e adquirirem universalidade”
(CANDIDO, 1970, p. 73).
A esse respeito convém assinalar as palavras de Adolfo Casais Monteiro, que
tinha Graciliano como “anti-regionalista por excelência”. Conforme o crítico, em A
confissão de Graciliano, artigo publicado no Diário de Notícias do dia 7 de fevereiro de
1959, a obra de Graciliano é um diário da sua própria angústia, da sua imensa descrença
nos homens, do seu imenso desconsolo de viver. “De romance para romance o pesado fardo
se esvazia, até que Vidas secas irá encontrar o impressionista em estado de quase
serenidade”, indica Hélio Pólvora, em Retorno a Graciliano Ramos, uma série de artigos
publicados no Jornal do Brasil, nos dias 4, 11, 18 e 25 de outubro de 1972.
Como afirma Aurélio Buarque de Holanda, no Boletim de Ariel, de 5 de fevereiro
de 1934, Graciliano “com Caetés pode, sem favor, formar na fileira dos melhores escritores
do Brasil”. Para Adonias Filho, em O Romance brasileiro de 30 (1969), Caetés foi a
28
renovação de toda a novelística nordestina, na medida em que, segundo o crítico, parte do
localismo para o universal, empreendendo a sondagem da alma humana pela auscultação de
uma determinada zona geográfica.
Aliás, não foram poucos aqueles que compararam Graciliano Ramos a Machado
de Assis, justamente pelo fato de ambos penetrarem friamente no motivo da miséria e das
intenções humanas, eliminando todas as máscaras sociais: além de Aurélio Buarque de
Holanda, Álvaro Lins e Richard A. Mazzara, para citar três nomes adeptos do
impressionismo crítico, cujas análises estão centradas unicamente na biografia (vida e obra)
do autor. Álvaro Lins, em Valores e Misérias da Vidas Secas (1947), diz que os romances
de Graciliano “nos tentam confundir em análises convergentes, a sua figura de escritor e a
sua figura de homem” (LINS, p. 144.), sendo um dos primeiros críticos a formular a tese de
romance autobiográfico, a qual o próprio Graciliano refuta, embora tal concepção perdure
entre os críticos. Peregrino nior, por exemplo, seguindo idêntica opinião de que, no caso
de Graciliano Ramos, é a obra que explica o homem, comenta muitos anos depois que “a
vida de Graciliano está sempre presente em sua obra, no que ela tem de mais humano e
doloroso” (JÚNIOR, 1969, p. 75.).
Mesmo aqueles críticos que quiseram dar maior objetividade a esse tipo de
análise, tentando fugir do mero impressionismo, como é o caso de lio Pólvora, em Um
aspecto de Graciliano Ramos (1975), e, antes dele, Antonio Candido, no famoso ensaio
Ficção e Confissão (1973), ambos colocando a memória do autor como princípio que
explica sua obra literária, ainda assim ficaram muito presos ao intuitivo nas suas
observações. É verdade que Candido formou escola, uma vez que o seu senso estético lhe
confere um tom inovador, e nessa trilha por ele desbastada, aparecem, entre outros, Nelly
Novaes Coelho: Graciliano Ramos é “o autor que nunca se aparta de si mesmo” (COELHO,
1978, p. 72); e Osman Lins: “por trás de suas maiores figuras, entrevemos a sombra do
autor” (LINS, 1977, p. 179.).
Há também aqueles impressionistas que se voltam mais para o psicologismo.
Tendo por base as teorias de Freud, aplicam nas suas análises literárias o método
psicanalítico, a fim de revelarem possíveis complexos infantis reprimidos que,
simbolicamente, e de forma inconsciente, Graciliano teria refletido nas suas obras
29
ficcionais. Angústia constitui o foco principal desse tipo de abordagem. José Gaspar
Simões, Wilson Martins, o já citado Adonias Filho, Otto Maria Carpeuax e Otávio de Faria
são alguns representantes dessa tendência interpretativa. Mas ninguém mais do que Helmut
Feldmann foi tão longe nas investigações psicológicas da obra de Graciliano Ramos,
concluindo que “o que caracteriza a criança Graciliano é uma sensibilidade doentia que o
leva antes a suportar o ambiente do que opor-se a ele” (FELDMANN, 1967, p. 93.). Ele
chega a falar em psicologia criminal’ de Graciliano Ramos, como se essa fosse mesmo a
cosmovisão do romancista.
Quanto à crítica de base sociológica, cujo formulador mais claro e sistemático foi
Taine, essa se caracteriza pela visão da literatura como projeção da sociedade em seus
diferentes aspectos, tendo sido, no Brasil, Nelson Wernek Sodré um dos primeiros a se
manifestar em relação a esse tipo de análise. Em 1938, ele publica História da Literatura
Brasileira: seus fundadores econômicos, apresentando Graciliano Ramos como a primeira
grande expressão da literatura genuinamente brasileira:
Escritor claro, harmonioso e simples (...) deixando uma obra em que se
retrata com fidelidade exemplar a vida brasileira de nosso tempo, com seus
dramas e seus desencontros. Minucioso e exato no traço, reconstituindo a
paisagem física muito menos que a paisagem humana (...) foi o narrador da
decadência de uma classe, no meio nordestino, conseguindo superar, pela
sua vigorosa arte literária, tudo o que o regionalismo tem de meramente
superficial e exterior, ao mesmo tempo em que refletiu de maneira fiel o
resultado nas pessoas de todo o contraste e de todo o conflito apresentado
pela vida brasileira de seu tempo (...) Não só se destacou como figura
inexcedida em sua época, como denunciou o amadurecimento da literatura
brasileira, o momento que ela atingira como expressão natural de um povo.
(SODRÉ, 1976, p. 532.).
O social como ponto de caracterização da obra de Graciliano Ramos também
aparece nos estudos de Antonio Candido, mas o próprio crítico reconhece, em Literatura e
sociedade (1976), que esse tipo de análise é limitada, uma vez que “entende mais à
sociologia elementar do que à crítica literária” (CANDIDO, p. 13.).
Seja como for, tanto a biografia quanto a psicologia e a sociologia, tomadas como
método de análise literária, apenas ressaltam aspectos extrínsecos à obra, pois seus critérios
são antes ideológicos do que estéticos. Dentro dessa perspectiva, o que é possível extrair
em termos de linha comum entre os críticos impressionistas é que construíram o mito do
30
pessimismo radical e do negativismo de Graciliano. A humanidade para Graciliano Ramos,
segundo Agripino Grieco, faz sentido quando se enquadra no que ele denomina de
“galeria dos esquisitões”. Rubem Braga se refere a um “pessimismo desgraçado,
pessimismo de velhote ingênuo” (BRAGA, 1943, p. 122.).
A crítica imanentista, em contrapartida, no afã de buscar sempre a precisão
científica e a verdade literária, coloca em relevo os elementos internos que compõem a obra
literária de Graciliano Ramos, tendo como base os métodos de orientação lingüística. Ainda
que diferindo quanto aos aspectos relevantes para análise: estilístico, formalista ou
estruturalista, todos concebem a obra como uma realidade estética que se basta a si mesma.
posso citar Letícia Malard, com o ensaio Ideologia e Realidade em Graciliano Ramos
(1976), cuja proposta é determinar o processo de elaboração de Graciliano, partindo de
Caetés e atingindo Vidas secas; Benjamin Abdala Júnior, que aponta a metalinguagem
como um dos procedimentos estilísticos mais importantes em Graciliano Ramos; Vicente
Ataíde, que considera que a narrativa de Graciliano se apóia em simetrias, paralelismos e
oposições” (ATAÍDE, 1978, p. 202.); Afonso Romano de Sant’Ana, com seu “trabalho
analítico de decomposição estrutural” dos romances graciliânicos; e Eliane Zagury, que
caracteriza a estilística de Graciliano Ramos como tendo, no uso da metáfora, o seu
fenômeno mais constante.
Por fim, uma terceira tendência da crítica, que perdura até hoje, e a qual procuro
me filiar, é a crítica dialética, que entende como momentos necessários do processo
interpretativo a combinação entre texto e contexto. Nessa direção, pois, como diz Antonio
Candido, a análise de um aspecto deve conduzir a outro. Para Lukács
5
, toda análise
verdadeiramente dialética procura determinar “qual a forma específica a um conteúdo
específico”, que, em última análise, é o próprio homem, obviamente que não visto de forma
5
Com Luckács, dá-se um reforço hegeliano do marxismo, principalmente pela teorização da consciência de
classe. Ele considera que o proletariado só cumpre a sua tarefa suprimindo-se, levando até ao fim a sua luta de
classe e instaurando uma sociedade sem classes. Salienta que a consciência de classe do proletário é que pode
vencer aquilo que considera ser a reificação do homem, a transformação do homem num objeto, segundo um
modelo maquinal, porque, no capitalismo, a racionalização, fundada no cálculo, incorpora o trabalhador como
parcela mecanizada num sistema mecânico. Observa, também, que o sentido revolucionário é o sentido da
totalidade, uma concepção total do mundo, em que o conhecimento e a ação, bem como a teoria e prática são
identificadas.
31
abstrata ou subjetiva, mas concretamente, através da análise objetiva de sua configuração
estética.
O primeiro ensaio sobre Graciliano Ramos, produzido dentro dessa perspectiva, é
o de Floriano Gonçalves, Graciliano Ramos e o Romance Ensaio e Interpretação (1947),
o qual não chega, entretanto, a uma síntese dialética, pela estreiteza de sua concepção
estética (detém-se na análise da oposição homem-natureza); Tristão de Atayde, em Os
ramos de Graciliano (1980), embora seja possível se fazer alguma ressalva a respeito de
seu ensaio (é muito genérico), consegue ir além da fragilidade apontada em Floriano
Gonçalves, identificando, de forma mais sistemática, a interação de opostos como
característica marcante da obra de Graciliano; Sônia Brayner, por sua vez, apresenta a
memória (sem a conotação biográfica dada pelos críticos impressionistas) como o operador
estrutural dessa obra romanesca, ou seja, como elemento constitutivo dela; já Carlos Nelson
Coutinho considera Graciliano Ramos um realista crítico, “o maior dos realistas críticos da
literatura brasileira”, conforme conclui em artigo publicado, em 1966, na revista
Civilização Brasileira. Em O Estruturalismo e a Miséria da Razão (1972), coloca a
tipicidade dos personagens de Graciliano, encarnado sempre uma classe social dada, e a
busca de um sentido humano para a vida, como espinha dorsal desse estudo, tornando-se o
crítico que, sob o ponto de vista da teoria luckcsiana, sem dúvida melhor realizou a análise
dialética das obras de Graciliano Ramos. Outro foi Alfredo Bosi, em História Concisa da
Literatura Brasileira (1979), para quem Graciliano escreve “sob o signo dialético por
excelência do conflito”, donde advém o seu realismo crítico. Luís Costa Lima, baseado na
teoria da reificação, definida por Lucien Goldmann
6
, analisa as personagens de São
6
Para Goldmann, sociólogo da literatura, a relação entre a vida social e a criação literária sofre uma
transformação fundamental a partir da época do capitalismo nascente. Com o aparecimento da produção para
o mercado, surge o que o teórico chama de setor econômico da vida social, cuja ação apresenta dois traços
principais: tendência a tornar-se uma estrutura autônoma, que, exercendo ampla influência sobre os demais
setores da vida social, acaba por reduzir o estatuto da consciência ao de simples reflexo; transferência das
funções dos valores transindividuais (morais, religiosos ou históricos) para o valor de troca: o preço dos bens
tornados mercadorias. Em conseqüência disso, ocorre o fenômeno da reificação, responsável pela debilidade
da ação dos valores supra-individuais no conjunto da vida social e pela redução de sua autenticidade ao
estatuto da falsa consciência. Esse fenômeno teve consideráveis repercussões sobre a criação literária, das
quais a mais importante, segundo Goldmann, foi o aparecimento de um gênero novo: o romance do herói
problemático, que se converteu na expressão de uma oposição entre o indivíduo criador e o grupo social em
que se elaboram as categorias que estruturam a sua obra. Apesar de tal ruptura, um valor fundamental
32
Bernardo, e, tendo Paulo Honório como centro dessa análise, apresenta três níveis de
interpretação: reificação e natureza” (segundo ele, a natureza está ausente na obra, ela
aparece a partir do filtro da visão reificada de Paulo Honório); “a reificação dos outros”
(avalia as amizades e as relações comerciais e jurídicas de Paulo Honório, bem como o
casamento dele com Madalena, e tenta mostrar como todas essas relações se dão a partir de
uma proporção quantitativa de trocas: valores e/ou recompensas de acordo com o auxílio
prestado); e, finalmente, “a reificação de si próprio” (a reificação de Paulo Honório, fruto
de sua condição de proprietário, a qual confere o sentido trágico da sua existência
desumana e, portanto, solitária).
Osman Lins, analisando o primeiro capítulo de São Bernardo, e igualmente
preocupado em imprimir cunho estético à sua análise, assim se refere a essa obra:
Temos, então, o fenômeno de um romance realizado de tal modo que a
linguagem sem atavios, onde a simplicidade da sintaxe equivale-se à rudeza
do léxico, leva ao extremo o propósito de erguer em toda a sua
complexidade a figura do personagem-narrador, Paulo Honório, apenas
sendo possível evocar, como prova do resultado obtido, a força com que
essa mesma linguagem impõe a presença de um fictício emissor. (LINS,
1978, p. 295.).
Ainda a respeito de São Bernardo, João Luís Tafeé outro exemplo notável da
crítica dialética e estética, iniciando seu estudo, O Mundo à Revelia (1978), pela análise da
técnica narrativa empregada por Graciliano Ramos nessa obra, falando em estilo direto e
sem rodeios como a própria imagem do narrador. Para ele, o recurso narrativo
predominante é a marcação do tempo, rápido e preciso, com que Paulo Honório repassa, no
essencial, cinqüenta anos de sua vida, o que tem um significado social: serve para
caracterizar Paulo Honório como um típico burguês, representante da modernidade no
permanecia reconhecido e aceito tanto pela vida econômica quanto pelo universo romanesco: o do indivíduo,
embora o romancista constatasse que a sociedade que preconizava esse valor acabava, ao mesmo tempo, em
virtude dos processos de reificação e do caráter convencional, falso e inumano de suas estruturas, negando-o
na prática. Segundo Goldmann, essa relação foi evoluindo até que se chegou à época do chamado capitalismo
de organização, que deu origem a um tipo de homem de estrutura psíquica essencialmente passiva, orientada
especialmente para o consumo. Juntamente com esse novo homem, surge o Novo Romance, que descreve um
universo estruturado, equilibrado e autônomo, no qual o humano é dominado e anulado pelos objetos inertes
que passam a ocupar o primeiro plano e se tornam os verdadeiros elementos ativos do ambiente.
33
sertão brasileiro. Isso do ponto de vista formal (ou da estrutura). Do ponto de vista das
significações contextuais, essa representação de Paulo Honório, em contraposição à de
Madalena, que simboliza o humanismo, é que cria o conflito do romance e arrasta os dois
para ruína: ele porque nega o sentido humano da existência; ela, as forças de reificação.
Então, numa síntese estética, a objetividade da representação cede lugar à subjetividade e o
recurso narrativo passa a ser o monólogo interior de Paulo Honório.
Rui Mourão, em Estruturas (1972), se aproxima do estudo de Carlos Nelson
Coutinho e do de Costa Lima justamente por ser valer do conceito lingüístico de estrutura,
mas, ao contrário desses críticos, define seu campo de ação a partir da fenomenologia de
Edmund Husserrl, apostando na “intuição crítica” para tecer uma análise detalhada dos
romances de Graciliano Ramos. Conclui:
Fugindo a essa pregação despistadora, o conjunto de obras mais válido do
romance nordestino de 30 não se comprometerá com a mera visão lúdica da
realidade e terá no seu caráter de denúncia a feição mais imediatamente
reconhecível, o que o desloca da área de influência de Gilberto Freyre,
podo à mostra o influxo mais sério e decisivo de Euclides da Cunha. No
esforço de levantamento crítico da problemática regional, ninguém
alcançará sequer um efeito aproximado da alta contundência da parte mais
consistente da arte de Graciliano Ramos, fiel a uma pesquisa de
essencialidade. (MOURÃO, p. 177.).
Assim, embora a crítica de modo geral, elegendo ângulos de interesses
comprometidamente parciais, considere Graciliano Ramos um realista crítico (o maior
realista crítico da literatura brasileira), enquadrando-o precipitadamente no movimento do
romance nordestino de 30, prefiro discordar desde então. Para tanto, vou, mais uma vez,
aliar-me a Antonio Candido quando ele diz, em Formação da Literatura Brasileira:
momentos decisivos:
Interpretar é, em grande parte, usar a capacidade de arbítrio; sendo o texto
uma pluralidade de significados virtuais, é definir o que se escolheu, entre
outros. A este arbítrio o crítico junta a sua linguagem própria, as idéias e
imagens que exprimem a sua visão, recobrindo com elas o esqueleto do
conhecimento objetivamente estabelecido. (CANDIDO, 1959, p. 37.).
Usando a minha capacidade de arbítrio, portanto, quero sublinhar o meu desejo de
não ser apenas mais uma estudiosa a avolumar a vasta fortuna crítica de Graciliano
34
Ramos, mas alguém que, partindo do que foi dito, e sem querer desmerecer essas falas,
ao contrário, delas possa se valer para trazer algo de novo em relação a esse fascinante
problema crítico literário que Graciliano Ramos nos coloca no conjunto de sua obra. Desse
modo, encerro esse capítulo com dois poemas que, para mim, são a síntese de tudo o que
se pensou a esse respeito, e que me encantam pelo próprio encanto do objeto que
tematizam.
Graciliano Ramos é o escritor a quem João Cabral de Melo Neto
reconhecidamente admira e dedica um comovido poema no livro Serial (1961), em que a
voz em primeira pessoa de Graciliano, marcada pelos dois pontos incomuns do título,
confunde-se com a sua própria voz:
Graciliano Ramos:
Falo somente com o que falo:
com as mesmas vinte palavras
girando ao redor do sol
que as limpa do que não é faca:
de toda uma crosta viscosa,
resto de janta abaianada,
que fica na lâmina e cega
seu gosto da cicatriz clara.
* * *
Falo somente do que falo:
do seco e de suas paisagens,
Nordestes, debaixo de um sol
ali do mais quente vinagre:
que reduz tudo ao espinhaço,
cresta o simplesmente folhagem,
folha prolixa, folharada,
onde possa esconder-se na fraude.
* * *
Falo somente por quem falo:
por quem existe nesses climas
condicionados pelo sol,
pelo gavião e outras rapinas:
35
e onde estão os solos inertes
de tantas condições caatinga
em que só cabe cultivar
o que é sinônimo da míngua.
* * *
Falo somente para quem falo:
quem padece sono de morto
e precisa um despertador
acre, como o sol sobre o olho:
que é quando o sol é estridente,
a contrapelo, imperioso,
e bate nas pálpebras como
se bate numa porta a socos.
O poema de João Cabral apresenta não apenas uma interpretação da obra de
Graciliano Ramos, mas aponta exatamente para os locais de encontro entre sua própria
obra, em especial Morte e Vida Severina (1954), e as de Graciliano. “Falo somente com o
que falo”: a linguagem enxuta, cortante e densa. Falo somente do que falo”: a vida seca,
áspera e clara do sertão. “Falo somente por quem falo”: o homem sertanejo sobrevivendo
na adversidade e na míngua. “Falo somente para quem falo”: para os que precisam ser
alertados para a situação de miséria do nordeste. Mais do que uma síntese da obra de
Graciliano Ramos, Cabral volta-se para sua própria obra. Através de Graciliano, fala, a um
tempo, de Vidas Secas (1938) e de Morte e Vida Severina (1954).
É claro que Fabiano, Sinha Vitória e seus meninos "sem nome" são todos Severinos. Vidas
Secas (1938) é a fonte mais clara em que bebe João Cabral. Vidas Secas (1938), seu
cenário, sua crítica ácida e, principalmente, a linguagem seca e direta de falar do mestre
Graciliano.
Em Murilograma a Graciliano Ramos, poetiza Murilo Mendes:
1
Brabo. Olhofaca. Difícil.
Cacto já se humanizando,
Deriva de um solo sáfaro,
Que não junta, antes retira,
36
Desacontecer, desquer.
2
Funda o estilo à sua imagem:
Na tábua seca do livro.
Nenhuma voluta inútil.
Rejeita qualquer lirismo.
Tachando a flor de feroz.
3
Tem desejos amarelos.
Que amar, o sol ulula,
Leva o homem do deserto
(Graciliano, Fabiano)
Ao limite respirável.
4
Em dimensões de grandeza
Onde o confronto é vacante,
Seu passo trágico escreve
A épica real do BR
Que desintegrado explode.
É notável como aí, também, na voz de Murilo Mendes, Graciliano Ramos (re)
apareça com o seu “olhofaca”, agressivo, cortante como uma lâmina afiada, determinado a
despertar em nós um sentimento pungente de inquietação. Eis a vida seca e áspera do sertão
nordestino, que, em Vidas secas (1938), “rejeita qualquer lirismo” e expõe a nu, “na tábua
seca do livro”, as contradições do Brasil.
37
3 O EXPRESSIONISMO: CONSIDERAÇÕES GERAIS
3.1 BREVE HISTÓRICO
O Expressionismo, assim como todos os “ismos” das primeiras cadas do culo
XX (Futurismo, Dadaísmo, Surrealismo e Cubismo), é um movimento estético que revela,
de maneira insofismável, a fragmentação a que chegou o homem dos tempos modernos, o
qual, dissolvido na horda, é movido, a um tempo, pelo “desejo de mudança [...] e pelo
terror da vida que se desfaz em pedaços” (BERMAN, 1986, p. 13.).
Figura 2 - Cena do filme Tempos Modernos
7
, de Charles Chaplin - 1936
7
Trata-se do último filme mudo de Chaplin, que focaliza a vida urbana nos Estados Unidos nos anos 30,
imediatamente após a crise de 1929, quando a depressão atingiu toda sociedade norte-americana, levando
grande parte da população ao desespero e à fome. A figura central do filme é Carlitos, o personagem clássico
de Chaplin, que, ao conseguir emprego numa grande indústria, transforma-se em líder grevista, conhecendo
uma jovem por quem se apaixona. O filme focaliza a vida na sociedade industrial caracterizada pela produção
com base no sistema de linha de montagem e especialização do trabalho. É uma crítica à "modernidade" e ao
capitalismo representado pelo modelo de industrialização, onde o operário é engolido pelo poder do capital e
perseguido por suas idéias "subversivas". Em sua Segunda parte o filme trata das desigualdades entre a vida
dos pobres e das camadas mais abastadas, sem representar, contudo, diferenças nas perspectivas de vida de
cada grupo. Mostra ainda que a mesma sociedade capitalista que explora o proletariado alimenta todo
conforto e diversão para burguesia. Cenas como a que Carlitos e a menina órfã conversam no jardim de uma
casa, ou aquela em que Carlitos e sua namorada encontram-se numa loja de departamento, ilustram bem essas
questões. Se inicialmente o lançamento do filme chegou a dar prejuízo, mais tarde tornou-se um clássico na
história do cinema. Chegou a ser proibido na Alemanha de Hilter e na Itália de Mussolini por ser considerado
"socialista". Aliás, nesse aspecto Chaplin foi boicotado também em seu próprio país na época do
"macartismo". Juntamente com O Garoto e O Grande Ditador, Tempos Modernos está entre os filmes mais
conhecidos do ator e diretor Charles Chaplin, sendo considerado um marco na história do cinema.
38
Dentre as correntes de vanguarda, o Expressionismo é a que apresenta maior
dificuldade para se estabelecer traços unitários de identificação artística. Para ser bem
compreendido precisa-se, portanto, levar em conta o seu caráter multifacetado, delimitando
as diferenças e nuances perceptíveis no período de aproximadamente vinte anos que postula
a sua existência.
Até onde se sabe, a palavra "expressionismo" foi empregada, pela primeira vez, em
1850, pelo jornal inglês Tait's Edinburgh Magazine, evocando, em artigo anônimo, uma
"escola expressionista" de pintura moderna. Em 1880, Charles Rowley pronunciou em
Manchester uma conferência sobre a pintura contemporânea, identificando uma corrente
"expressionista" de artistas que procuravam exprimir suas paixões. Em 1878, no romance
The Bohemian, de Charles de Kay, um grupo de artistas referia-se a si próprios como
"expressionistas". Mais tarde, em 1901, o pintor Julien-Auguste Hervé expôs no Salão dos
Independentes em Paris oito quadros seus, nada expressionistas, sob o título
Expressionnismes. Em 1910, o marchand Paul Cassirer declarou, diante de um quadro de
Max Pechstein, que aquilo não era mais impressionismo, mas "expressionismo". Em 1911,
durante a 22ª sessão da Berliner Sezession (Secessão de Berlim), Wilhelm Worringer
chamou de "expressionista" a vanguarda estrangeira ali exposta - Braque, Dérain, Dufy e
Picasso, entre outros -, e o termo "expressionismo" passou a ser associado à nova pintura
belgo-francesa. Logo os teóricos e críticos Herwarth Walden, Walter Heymann, Louis de
Vauxcelles, Paul Fechter e Paul Ferdinand Schmidt, assim como o poeta Kurt Hiller,
passaram a chamar de "expressionista" toda arte moderna oposta ao Impressionismo.
Com a verificação de que o verdadeiro Expressionismo disseminava-se na
Alemanha, na Áustria, na Hungria e na Tchecoslováquia, o termo tornou-se uma referência
para a arte cujas formas não nasciam diretamente da realidade observada, mas de reações
subjetivas à realidade. Atualmente, é considerada "expressionista" qualquer arte onde as
convenções do realismo sejam destruídas pela emoção do artista, com distorções de forma e
cor, como é o caso da xilogravura abaixo, do desenhista, ilustrador, gravador e professor
brasileiro Oswald Goeldi, na qual um mendigo deitado no chão diante de uma casa enorme,
contorcido pela sua própria dor, com um coração vermelho pintado no peito (o vermelho
39
como metáfora do sangue), retrata melancolicamente a fragmentação do eu e a
desintegração social na modernidade.
Figura 3 - Abandono,Oswaldo Goeldi - 1937
De fato, a deliberada deformação das formas, o sacrifício do discurso ao essencial, a
captação de um mundo em frangalhos, a preocupação com a doença e a morte, a
sublimação da loucura em contrastes e dissonâncias, o gosto pelo insólito e a visão de um
absurdo que tira para sempre a alegria de viver são comuns a todos os escritores modernos
que atingiram os limites da expressão, desde Georg Büchner, August Strindberg, Franz
Kafka, Arthur Schnitzler e Frank Wedekind, até Elias Canetti, Samuel Beckett, Eugène
Ionesco, Fernando Arrabal e Dario Fo.
Na pintura, os chamados românticos idealistas, como o suíço Arnold Böcklin e o
alemão Franz Von Stuck, criavam naturezas carregadas de mistério, pathos e simbolismo;
nos quadros de Caspar David Friedrich, por exemplo, a paisagem (campos, mares, geleiras
e montanhas) parece esmagar o homem, fixado como uma figurinha perdida na vastidão da
natureza.
40
Figura 4 - O viajante sobre o mar de névoa, Caspar David Friedrich - 1918
Precursor direto do Expressionismo, Vincent Van Gogh criou plantas que
expressavam seu atormentado mundo interior. Antes de tornar-se pintor, via-se como o
figueiro estéril da parábola bíblica. Mais tarde, para dar forma à sua luta contra as pequenas
misérias da vida, projetou-se na imagem de uma planta cujas raízes agarram-se ao solo,
enquanto o vento as vai arrancando. Empenhou-se profundamente em recriar a beleza dos
seres humanos e da natureza através da cor, que para ele era o elemento fundamental da
pintura. Foi uma pessoa solitária. Interessou-se pelo trabalho de Gauguin, principalmente
pela sua decisão de simplificar as formas dos seres, reduzir os efeitos de luz e usar zonas de
cores bem definidas. Em 1888, Van Gogh deixou Paris e foi para Arles, cidade do sul da
França, onde passou a pintar ao ar livre. O sol intenso da região mediterrânea interferiu em
sua pintura, e ele libertou-se completamente de qualquer naturalismo no emprego das cores,
declarando-se um colorista arbitrário. Apaixonou-se então pelas cores intensas e puras, sem
nenhuma matização, pois elas tinham para ele a função de representar emoções. Entretanto
ele passou por várias crises nervosas e, depois de internações e tratamentos médicos,
dirigiu-se, em maio de 1890, para Anvers, uma cidade tranqüila ao norte da França. Nessa
época, em três meses apenas, pintou cerca de oitenta telas com cores fortes e retorcidas. Em
41
julho do mesmo ano, se suicidou, deixando uma obra plástica composta por 879 pinturas,
1756 desenhos e dez gravuras. Enquanto viveu não foi reconhecido pelo público nem pelos
críticos, que não souberam ver em sua obra os primeiros passos em direção à arte moderna,
nem compreender o esforço para libertar a beleza dos seres por meio de uma explosão de
cores. Obra abaixo destacada: Trigal com Corvos.
Figura 5 - Trigal com corvos, Vicent Van Ghog – 1890
No máximo de sua arte, quando descobriu o sol "em toda sua glória", Van Gogh se
identificava com um girassol, fixando velas acesas no chapéu, para pintar à noite,
desenhando girassóis murchos quando caía em depressão. Por fim, depois de romper com
Gauguin, seu melhor amigo, pintou ciprestes contorcidos como tochas vivas.
Figura 6 - Milharal com ciprestes , Van Gogh - 1889
42
Assim como Van Gogh, Paul Gauguin, iniciador de todo exotismo dos tempos
modernos (ele adotou técnicas orientais com diferentes intenções expressivas), exerceu
forte influência na primeira geração de pintores expressionistas. Depois de passar a infância
no Peru, Gauguin voltou com os pais para a França, mais precisamente para Orléans. Em
1887 entrou para a marinha e mais tarde trabalhou na bolsa de valores. Aos 35 anos tomou
a decisão mais importante de sua vida: dedicar-se totalmente à pintura. Começou assim
uma vida de viagens e boemia, que resultou numa produção artística singular e
determinante das vanguardas do século XX. Sua obra, longe de poder ser enquadrada em
algum movimento, foi tão singular como a de seus amigos Van Gogh ou Cézanne. Apesar
disso, é verdade que teve seguidores e que pode ser considerado o fundador do grupo
Navis, que, mais do que um conceito artístico, representava uma forma de pensar a pintura
como filosofia de vida. Suas primeiras obras tentavam captar a simplicidade da vida no
campo, algo que ele consegue com a aplicação arbitrária das cores, em oposição a qualquer
naturalismo, como demonstra o seu famoso Cristo Amarelo, onde as cores se estendem
planas e puras sobre a superfície, quase decorativamente.
Figura 7 - Cristo amarelo, Gauguin - 1889
43
No ano de 1891, Gauguin parte para o Taiti, em busca de novos temas, para se
libertar dos condicionamentos da Europa. Suas telas surgem carregadas da iconografia
exótica do lugar, e não faltam cenas que mostram um erotismo natural, fruto, segundo
conhecidos do pintor, de sua paixão pelas nativas. A cor adquire mais preponderância
representada pelos vermelhos intensos, amarelos, verdes e violetas. Quando voltou a Paris,
realizou uma exposição individual na galeria de Durand-Ruel. Ele retornou ao Taiti, mas
fixou-se definitivamente na ilha Dominique. Obra abaixo destacada: Jovens Taitianas com
Flores de Manga.
Figura 8 - Jovens Taitianas, Gauguin - 1889
Outro anunciador do movimento expressionista foi o norueguês Edvard Munch.
Nascido em Loten, Noruega, em 1863, Munch iniciou sua formação na cidade de Oslo, no
ateliê do pintor Krogh. Realizou uma viagem a Paris, na qual conheceu Gauguin, Toulouse-
44
Lautrec e Van Gogh. Em seu regresso, foi convidado a participar da exposição da
Associação de Berlim. Numa segunda viagem a Paris, começou a se especializar em
gravações e litografias, realizando trabalhos para a Ópera. Em pouco tempo pôde se
apresentar no Salão dos Independentes. A partir de 1907, morou na Alemanha, onde, além
de exposições, realizou cenários. Passou seus últimos anos em Oslo, na Noruega. Uma de
suas obras mais importantes é O Grito (1889).
Eu caminhava com dois amigos - o sol se pôs, o céu tornou-se
vermelho-sangue -eu ressenti como que um sopro de melancolia. Parei,
apoiei-me no muro, mortalmente fatigado; sobre a cidade e do fiorde, de
um azul quase negro, planavam nuvens de sangue e línguas de fogo: meus
amigos continuaram seus caminhos - eu fiquei no lugar, tremendo de
angústia. Parecia-me escutar o grito imenso, infinito da natureza.
Reconhece-se, nessa visão de Munch, a origem de O Grito, onde, como se na
figura abaixo, um homem, deformado pelo próprio espasmo, expressa em seu corpo uma
angústia que envolve a paisagem, enquanto ao fundo dois homens de fraque e cartola
afastam-se, indiferentes, como se nada estivesse acontecendo.
Figura 9 - O grito, Edvard Munch - 1889
45
O Grito é um exemplo dos temas que sensibilizaram os artistas ligados a essa
tendência expressionista. Nela a figura humana não apresenta suas linhas reais, mas
contorce-se sob o efeito de suas emoções. As linhas sinuosas do céu e da água, e a linha
diagonal da ponte, conduzem o olhar do observador para a boca da figura que se abre num
grito perturbador. Perseguido pela tragédia familiar, Munch foi um artista determinado a
criar "pessoas vivas, que respiram e sentem, sofrem e amam". Ele recusou o banal, as cenas
interiores pacíficas, comuns na sua época. A dor e o trágico permeiam seus quadros.
O grito de Munch ecoou na Alemanha, onde o Expressionismo floresceu por uma
série de condições propícias. Como o país industrializava-se rapidamente dentro de
estruturas sociais conservadoras, os jovens artistas reagiam pelo exagero e pela deformação
contra códigos morais anacrônicos e repressivos. A ordem do mundo afigurava-se diabólica
aos intelectuais e artistas mais sensíveis, que se reuniam, em Berlim, no Café des Westens
(Café do Ocidente) ou no Grössenwahn (Megalomania), locais de debates, leituras e
desavenças que poderiam durar minutos ou anos.
Figura 10 - Café em Berlim – Anos 10 do século XX
46
Nas cidades onde a velha cultura se dissolvia rapidamente junto com as estruturas
imperiais, literatos, pintores e gravuristas fundaram um sem-número de revistas, cabarés e
grupos de nomes bombásticos. Uma das primeiras associações foi a Die Neue Gemeinschaft
(A Nova Comunidade), da qual participavam os filósofos Gustav Landauer e Martin Buber,
adeptos da filosofia romântica do retorno à natureza como condição para o nascimento do
Novo Homem, exercendo forte influência nos poetas Else Lasker-Schüler e Ludwig
Rubiner. Em 1904, Herwarth Walden criou o grupo Verein für die Kunst (Sociedade pela
Arte), que organizava animados saraus, dos quais participava o escritor Alfred Döblin.
3.1.1 PRIMEIRA GERAÇÃO EXPRESSIONISTA
Foi na cidade de Dresden, em 1905, com um grupo de jovens artistas chamado Die
Brücke (A Ponte), que o movimento expressionista nasceu buscando “libertar a arte da
esfera do puramente estético, na qual ela havia sido confinada desde Kant, fazendo-a brotar
revigorada com a vida e o cotidiano” (MATTOS, 2002, p. 52.). Nessa fase inicial, que se
estende até 1914, com o rebentar da Primeira Guerra Mundial, havia a crença utópica de
que era possível se transformar a sociedade através de uma arte liberta das forças
reacionárias. Suas idéias estavam fortemente influenciadas pelo pensamento filosófico da
época, como o de Nietzsche e de sua ênfase na expressão pessoal, a partir de seu livro
Assim falou Zaratustra (1892), no qual o sábio Zaratustra se sozinho diante de um
mundo de homens incapazes de ouvir e entender sua mensagem. Ele prega, entre outras
coisas, que o homem supere a si mesmo, que se desapegue do mundo, que ame seu
próximo.
Influenciados, pois, pela idéia nietzscheana de conquista do self, esses novos artistas
se expressavam em resposta à sua força interior, rejeitando as velhas e bem estabelecidas
teorias. Para isso, buscavam uma linguagem plástica renovada, que desse conta das suas
utopias.
47
Figura 11 - Die Brücke (A Ponte)
O grupo era formado por quatro estudantes de arquitetura: Ernst Ludwig Kirchner,
Karl Schmidt-Rottluff, E. Heckel e Fritz Bleyl, todos autodidatas quanto à pintura e à
gravura. No mais velho subúrbio proletário do sul de Dresden (primeiro no sótão da casa
dos pais de Heckel e, a partir de 1907, no ateliê térreo que Kirchner comprou na mesma
rua), eles se encontravam diariamente para desenharem, pintarem e, enquanto as gravuras
se amontoavam no chão para secarem, discutirem apaixonadamente sobre arte, filosofia e
política.
.
Figura 12 - Estúdio de Kirchner
Com a colaboração de uma modelo amadora, Isabella, que assumia poses diferentes
e informais (poses de no máximo 15 minutos cada, para evitar qualquer semelhança com a
prática acadêmica), os quatro empreendiam seu trabalho coletivo, intensificando ao
máximo as cores e a deformação das formas. A imagem da modelo também foi usada para
ilustrar o pôster promocional da primeira exposição importante do Brücke, que ocorreu, no
48
ano de 1906, em um showroom de uma fábrica de lâmpadas e artigos de iluminação,
situada na área industrial de Dresden. Mas a divulgação do pôster foi negada pela polícia,
em razão do nu frontal da figura. E essa exposição inaugural, formada por desenhos,
xilogravuras, pinturas a óleo e aquarelas, devido ao exotismo do local onde aconteceu e por
sua aparência um tanto quanto incongruente e subversiva, acabou recebendo pouca atenção
da crítica.
Figura 13 - Pôster promocional da primeira exposição importante do Brücke
Os jovens do Brücke exploravam principalmente o potencial expressivo da
xilogravura, arte em que Kirchner, o der do grupo, acabou por se tornar um mestre.
Inspirados em ilustrações dos jornais de artes e ofícios e em gravuras japonesas,
recuperavam a linhagem “autêntica” dos expoentes alemães da Idade Média e da Alta
Renascença, tais como Dürer e Cranach
8
, com suas antigas matrizes de madeira exibidas
em Nuremberg.
8
Lucas Cranach, pintor e gravador alemão, contemporâneo de Dürer, é o pintor da Reforma Luterana. Os
gêneros em que se destaca são o nu feminino e o retrato (Lutero, O Eleitor da Saxónia). Nos nus de tema
mitológico evidencia-se um sentido naturalista da beleza pouco relacionado com o classicismo romano. A sua
obra mais importante, de cuidada composição, é A Batalha de Alexandre.
49
Figura 14 – Vênus do amor, de Lucas Cranach - 1509
Mas, por volta de 1909, o contato com a arte tribal da Oceania e da Ásia
transformou significativamente essa prática e, assim como Gauguin o tinha feito,
passaram a valorizar a espontaneidade de uma arte então considerada primitiva.
50
Figura 15 - Criança em pé – xilogravura de Erich Heckel - 1910
Durante os verões de 1909 e 1911, o grupo se reuniu no lago do castelo Moritzburg,
em Dresden, para sessões de banho e pintura. Afastados do olhar curioso e inquisidor de
guardiões da moral burguesa, os artistas e suas modelos se banhavam ao sol e se amavam
ao ar livre. "Nós vivíamos em absoluta harmonia, trabalhávamos e nos banhávamos", disse
Pechstein sobre aqueles tempos. Essas sessões estão retratadas em inúmeras pinturas de
banhistas, hoje incluídas entre as mais importantes obras do Expressionismo Alemão.
Figura 16 - Após o banho - Karl Schmidt-Rottluff - 1912
Figura 17 - Três banhistas, Otto Muller – 1914
51
Os artistas da Brücke se mudaram para Berlim em 1911. As experiências na capital
e o contato com as vanguardas internacionais, como o cubismo e o futurismo, levaram a
uma mudança nos temas e na auto-imagem do grupo. Principalmente as famosas pinturas
de Kirchner retratando o cotidiano da metrópole são impressionantes testemunhas dessa
época. Em Postdamer Platz, de 1914, ele retratou a prostituição de rua proibida pelo então
império alemão. A obra é considerada hoje como peça-chave do Expressionismo e
pertence, desde 1999, ao acervo da Nova Galeria Nacional em Berlim.
Figura 18 - Postdamer Platz, Kirchner - 1914
Muitas vezes a arte de Kirchner transmite poderosa sensação de violência, uma
violência contida com dificuldade. Kirchner usava imagens da cidade moderna para
comunicar com figuras e tons distorcidos a idéia de um mundo hostil e alienante. É o que
ele faz em Cena de rua berlinense, onde as cores estridentes e a histeria cortante de sua
visão lampejam inquietantemente.
Figura 19 - Cena de rua berlinense, Kirchner - 1913
52
Oskar Kokoschka foi outro nome de enorme força expressionista. Ele disse de sua
própria arte: “Era a herança barroca que assumi inconscientemente”. Rejeitava a harmonia,
mas insistia na visão, e sua obra aposta tudo nessa intensidade visionária, que destrói
convenções mais serenas. Em 1911, apaixonou-se perdidamente por Alma Mahler, viúva do
compositor austríaco Gustav Mahler. Em Noiva do vento, ao seu modo desenfreado e
sonhador, comemora com sofisticada percepção psicológica as turbulências e inseguranças
emocionais daquele relacionamento: Alma, a “noiva”, dorme complacente enquanto
Kokoschka, esfolado e desintegrando-se num espaço interior criado pelas pinceladas
retorcidas e pelas faixas sinuosas de cor, agoniza solitário e silencioso.
Figura 20 - Noiva do vento, Oskar Kokoschka
- 1914
Porém, esse programa que parecia estar integralmente definido, de fusão entre
suporte, processo e teoria, desenvolveu-se até 1911. Depois de sua mudança para Berlim,
sob as emoções da vida cultural intensa da metrópole, cada artista do Brücke formou seu
estilo individual (Por essa época, outros artistas tinham aderido temporariamente ao
grupo: Max Pechstein, Emil Nolde e Otto Muller; enquanto Bleyl havia, em 1909, deixado
os companheiros para se dedicar a sua carreira de professor). Então, em 1913, quando as
suas diferenças se tornaram óbvias demais, o grupo foi dissolvido.
53
Figura 21 - Veleiros na tempestade,Max Pechstein - 1910
Figura 22 - A Crucificação, Emil Nolde - 1912
3.1.2 SEGUNDA GERAÇÃO EXPRESSIONISTA
Pois também foi em 1911 que em Munique, rival artística de Berlim, outro grupo de
expressionistas se formou: o Der Blaue Reiter (O Cavaleiro Azul), o qual, diferentemente
do Brücke, não possuía uma forte unidade estilística. O que garantia a sua força enquanto
grupo era tão somente a busca pela espiritualização da arte, isto é, apenas a “necessidade
interior” desses artistas de expressarem em formas e cores sua intuição de uma ameaça
iminente de guerra. Eram eles: o russo Wassily Kandinsky, que, atraído pelas excelentes
54
condições de treinamento e exibição de Munique, ali havia se instalado desde 1896;
Gabriele Münter, que, onze anos mais jovem do que Kandinsky, com ele manteve um
intenso relacionamento amoroso, de 1902, quando ainda era sua aluna na Associação dos
Artistas de São Lucas, em Schwabing (bairro reservado aos artistas da cidade), até 1916;
Franz Marc; e Alfred Kubin, todos dissidentes do grupo Neue nstlervereinigung
München (Associação dos Novos Artistas de Munique), fundado, em 1909, junto com Alej
Jawlensky e Marianne Werefkin, expatriados russos, assim como Kandinsky. Jawlensky e
Werefkin entraram para o Blaue Reiter um ano depois, mas o grupo foi desfeito no início
da Primeira Grande Guerra Mundial.
Apesar da curta duração, o grupo foi bastante influente. Franz Marc concentrava-se
principalmente na representação de animais, seguindo as distorções expressionistas. O
artista morreu na Primeira Guerra Mundial. Kandinsky, além de suas obras artísticas,
como as pinturas, sem preocupações com a objetividade e sim com a expressividade e
espontaneidade, é considerado um dos mais importantes artistas do século. Seus escritos
sobre arte também exerceram grande influência sobre os artistas contemporâneos.
Figura 23 - Composição IV, Kandinsky - 1911
55
Figura 24 - O Tigre, Franz Marc - 1912
O suíço Paul Klee é outro importante nome da arte do culo XX que esteve ligado
a esse movimento expressionista de Munique a partir de 1912. Entretanto, Klee, ao longo
da carreira, mostrou-se dono de um estilo próprio e bastante individual, que tornam difícil
considerá-lo apenas um artista expressionista. Realizou pinturas, desenhos, trabalhos
gráficos (como a série de águas-fortes Invenções) e escreveu teorias sobre arte. É difícil
optar por qualquer obra representativa de seu trabalho, devido à enorme variedade que
existe entre elas. o algumas obras suas: Cabeças, de 1913, Cena de Batalha da Ópera-
Cômica Fantástica, Simbad, O Marujo, de 1923, e La Belle Jardinière, de 1939.
Figura 25 - A bela jardineira, Paul Klee - 1919
56
A última grande manifestação do protesto expressionista é o painel Guernica, do
espanhol Pablo Picasso, o qual retrata o bombardeio da cidade basca de Guernica por
aviões alemães durante a guerra civil espanhola. A obra mostra sua visão particular da
angústia do ataque, com a sobreposição de figuras, como um cavalo morrendo, uma mulher
presa em um edifício em chamas, uma mãe com uma criança morta e uma mpada no
plano central.
Figura 26 - Guernica , Pablo Picasso, - 1937
Os reflexos da angústia humana traduzida por essa arte expressionista logo se
estenderam pelo cinema, pela música, pelo teatro e pela literatura.
3.2 EXPRESSIONISMO E CINEMA
O cinema mudo expressionista ergueu-se como um movimento marcado pela
originalidade e pela inovação da linguagem. A estética dos filmes realizados neste período,
refletindo o sentimento coletivo de desolação, era sombria, fundamentada, sobretudo, no
contraste entre luz e sombra. Também os movimentos de câmera, os ângulos das tomadas e
a estrutura dos cenários contribuíam para se evidenciar o contexto tenso e pesaroso que a
Alemanha nazista, em plena crise econômica e social, atravessava.
Sem nenhuma dúvida, o maior expoente e o filme-síntese do Expressionismo
Alemão no cinema é O Gabinete do Dr. Caligari, dirigido por Robert Wiene em 1920: o
57
clima de desconcerto do mundo; o tortuoso; as sombras; a desorientação; a perturbação
mental; tudo está lá expresso em personagens, cenários, figurinos e atuações.
Figura 27 – Cena de O Gabinete do Dr. Caligari (a) - 1920
Tudo em Caligari é expressão: os cenários (concebidos e pintados por artistas
expressionistas) são desproporcionais; as ruas são tortuosas; a desordem é latente. No filme,
tudo está a serviço da expressão subjetiva; o mundo de Caligari não é o mundo real, e sim
o mundo mental e psíquico de um indivíduo incerto, cioso, perturbado e obscurecido. As
casas não representam as casas do mundo real, mas percepções distorcidas e contorcidas. A
fotografia contrasta fortemente o claro e o escuro, sendo o tumulto interior do indivíduo
expresso em neblinas e sombras.
Figura 28 – Cena de O Gabinete do Dr. Caligari (b) - 1920
58
Além disso, o roteiro de Carl Mayer e Hans Janowitz (baseado, não por acaso, na
convivência de Mayer com psiquiatras na Primeira Guerra e em casos reais) ressalta o
psiquismo e trabalha com temas como hipnose e sonambulismo, flertando com o
insondável, o terror, o não-dito - temáticas que rondavam o imaginário pessimista e
sombrio da época. As atuações também são ponto fundamental no Expressionismo e, em
Caligari, elas também ressaltam o tumulto interno, a confusão e o desajuste; daí a famosa
superinterpretação expressionista. O ator não deve interpretar realisticamente, mas sim
exprimir e recriar a expressão de maneira a escancarar, a desnudar, a literalmente GRITAR
seu universo subjetivo.
Filmes como Nosferatu, de Friedrich Murnau (1889-1931), e Metrópolis, de Fritz
Lang (1890-1976), também foram fundamentais para a consolidação estética e artística do
Expressionismo nas telas da Alemanha ao longo das décadas de 20 e 30.
Nosferatu é um filme clássico do Expressionismo Alemão. Produzido em 1922, suas
imagens de horror ainda conseguem nos surpreender. Foi baseado em Drácula, de Bram
Stoker (1897). Ao invés de Conde Drácula, Nosferatu é Conde Orlok, uma das mais fiéis
representações filmícas do vampiro. Alto, esguio, esquálido, com orelhas, nariz e dentes
pontiagudos, Murnau consegue representar com sucesso a figura do personagem macabro
de Stoker. Na verdade, o horror se transfigura em Nosferatu. É a própria representação (e
expressão imagética) do Mal e do estranhamento sugerido pela figura mítica do vampiro. O
conteúdo do Mal se exprime com vigor na forma de apresentação do personagem.
Figura 29 – Cena de Nosferatu: uma sinfonia do terror (a) - Friedrich Murnau - 1922
59
O Conde Orlock, é, em si, uma figura estranha e aterrorizante. Como salientei
acima, sua imagem expressa o próprio conteúdo do seu ser maligno. Não existe em
Nosferatu a dissimulação/ocultação da natureza maligna do vampiro. O horror se expressa
em-si e para-si. O mal está entre nós e assim se apresenta em corpo, espírito e verdade. De
certo modo, o vampiro de Murnau conseguiu ser a síntese estética do Horror que iria se
abater sobre a civilização do Capital na década seguinte - nos anos de 1930 ocorreria a
ascensão do nazi-fascismo na Alemanha, pré-anunciando o horror da II Guerra Mundial.
Nosferatu poderia ser considerado a própria expressão da “banalização do Mal”. Como Mr.
Hyde, o personagem de Robert Louis Stevenson em O Médico e o Monstro (de 1886),
Nosferatu consegue ser a expressão em imagem da essência do Mal. Como diz a abertura
do filme, “Nosferatu é a palavra que se parece com o som do pássaro da morte da meia-
noite”. Ele vive nas sombras e na escuridão. É um ser noturno, de um mundo das trevas,
perdido no passado de uma terra distante (a Transilvânia). A própria narrativa de Nosferatu
destaca que o vampiro é uma criatura da noite. “Os fantasmas da noite parecem reviver das
sombras do castelo” diz o narrador de Nosferatu. É na escuridão que está o horror do
vampiro. É interessante que a lenda do vampiro se difunde nos primórdios da sociedade
tecnológica, da II Revolução Industrial, onde a invenção da eletricidade ou da lâmpada
elétrica, em 1879 - deu o “golpe de misericórdia” nos poderes da noite e da escuridão
(embora, é claro, segundo a lenda, apenas a luz do sol pudesse matar o vampiro).
Figura 30 – Cena de Nosferatu: uma sinfonia do terror (b)- Friedrich Murnau - 1922
60
Metropolis, dirigido por Fritz Lang, em 1926, é um filme fundador de uma estética
própria, que influenciou inúmeras realizações posteriores, como Blade Runner, dirigido por
Ridley Scott em 1982, o qual cita e reelabora diversos elementos de Metropolis, ao mesmo
tempo em que se apresenta como um dos filmes mais representativos da década de 80.
Ambos se organizam em torno de três eixos principais: a cidade (a ponto de a cidade ganhar
status de protagonista), a metalinguagem (debate sobre fotografia, cinema e vídeo) e as
alegorias. A articulação entre tempo e espaço na metrópole ensejo a meditações sobre
elementos como o gótico, o kitsch, o expressionismo, o futurismo, o film noir, etc.
Também ganha destaque, tanto por Lang quanto por Scott, a discussão acerca dos
simulacros. Os dois filmes constroem as lendas de Metropolis e de Blade Runner, deixando
sobressair aspectos como a religião, o tema do duplo e os discursos político raciais.
Figura 31 – Cenário de Metropolis – Fritz Lang - 1926
Figura 32 – Cena de Metropolis – Fritz Lang - 1926
61
Figura 33- Cena de Blade Runner - Ridley Scott
-
1982
Figura 34- Cenário de Blade Runner - Ridley Scott
-
1982
Mas o nazismo, que domina a Alemanha a partir de 1933, acaba com o cinema
expressionista. Passam a ser produzidos apenas filmes de propaganda política e de
entretenimento. Muitos dos diretores mais importantes trocam o país pelos Estados Unidos.
62
3.3 EXPRESSIONISMO NA MÚSICA
A intensidade de emoções e o distanciamento do padrão estético tradicional marcam
o movimento na música. A partir de 1908, o termo é usado para caracterizar a criação do
compositor austríaco Arnold Schoenberg (1874-1951), autor do método de composição
dodecafônica
9
. Em 1912 compõe Pierrot Lunaire, que rompe definitivamente com o
romantismo. Schoenberg inova com uma música em que todos os 12 sons da escala de dó a
dó têm igual valor e podem ser
dispostos em qualquer ordem a critério do compositor.
Ainda muito jovem, Shoenberg conhece Alexander von Zemlisnky, compositor neo-
romântico que, muito mais preparado musicalmente do que ele, lhe lições de
contraponto. Shoenberg sabe reconhecer o talento de seu professor (e futuro cunhado),
mas, pelo fato de ser judeu, recentemente a obra de Zemlisnky sai do ostracismo. É nas
suas duas óperas extraídas de peças de Oscar Wilde, Eine florentinische Tragödie (Uma
Tragédia Florentina), de 1917, e Der Zwerg (O Anão), de 1922, que vamos encontrar os
sinais mais claros da influência expressionista. Naquela, o clima é noturno, apenas a luz
macilenta do luar ilumina o palco, onde se desenrola a perversa história do mercador
Simone; nessa, para descrever a paixão desesperada do anão, há um desequilíbrio cromático
da música, cheia de interjeições irregulares e de ritmos truncados sugerindo deformidade.
Em Tragédia Florentina, Simone surpreende sua mulher, Bianca, em companhia do
amante, Guido Balde, filho do duque de Florença. Ele se faz de desentendido, envolve o
rapaz num jogo de gato e rato, e finalmente o assassina com toda a crueldade. Bianca,
excitada com a prova de amor que o marido lhe dera, entrega-se a ele num ataque de furor
erótico.
O Anão é a história cruel do gnomo que se apaixona pela princesa espanhola a quem
foi dado de presente de aniversário; e que se suicida ao ver-se pela primeira vez diante de
um espelho, quando se conta de sua própria deformidade e percebe que nunca poderá
despertar qualquer tipo de afeto em sua gélida proprietária.
9
Nesse sistema, a harmonia tradicional, em que um tom 'rege' as outras notas, é trocada por um outro sistema
em que os doze semitons da oitava são agrupados numa ordem fixa e são repetidos ao longo da música,
dispostos horizontalmente para as melodias e verticalmente para a harmonia, sem que nenhuma nota seja
repetida antes que as outras onze tenham sido tocadas. É uma gama de possibilidades imensa.
63
3. 4. TEATRO EXPRESSIONISTA
Seguindo os passos de Strindberg, o Expressionismo inovou grandemente a
concepção tradicional de dramaturgia. Abrindo mão das noções tradicionais
de estruturação da cena segundo os princípios de unidade espaço-temporal,
os expressionistas fizeram do mundo interno da personagem principal o
único elo entre os diversos elementos da trama. (MATTOS, 2002, p. 61.).
No teatro expressionista, com tendência para o extremo e o exagero, as peças são
combativas nas transformações sociais. O enredo é muitas vezes metafórico, com tramas
bem construídas e lógicas. Em cena há atmosfera de sonho e pesadelo e os atores se
movimentam como robôs (Foi na peça expressionista R.U.R., do tcheco Karel Capek, que
se criou a palavra robô). Muitas vezes gravações de monólogos são ouvidas paralelamente à
encenação para mostrar a realidade interna de um personagem. A primeira peça
expressionista é A Estrada de Damasco (1898-1904), do sueco August Strindberg (1849-
1912).
Na Alemanha, o primeiro passo rumo ao drama nervoso, semi-realista,
semifantástico, que recebeu o nome de Expressionismo durante a primeira década do pós-
guerra, foi dado por um ultranaturalista, Frank Wedekind, que, com a intenção de descrever
as realidades da sexualidade, tão cercadas de tabus, e levar a esse tema todo o aparato da
ciência médica e psicológica, escreveu diversas peças que até mesmo excediam os ingênuos
instantâneos tirados por seus contemporâneos. Depois de uma negligenciável comédia
inicial, escreveu, em 1890, O Mundo da Juventude, que descrevia as condições existentes
num internato para meninas. Um ano mais tarde surgiu O Despertar da Primavera, crua
análise da adolescência e feroz ataque a um sistema educacional que omitia os problemas
sexuais que atormentam os alunos de escolas. Wedekind mostrou-se um ferrenho inimigo
da hipocrisia social, e foi encontrar as mais injuriosas hipocrisias na forma pela qual a
sociedade negava ou desvirtuava o instinto sexual. Nessa “tragédia de crianças”,
qualificação que outorgou à peça, um grupo de rapazes e moças adolescentes, cujas idades
oscilam entre os catorze e os dezessete anos, está diversamente preocupado com a libido.
Wendla, de catorze anos, cuja mãe recusa ajuda na crise que ameaça explodir quando a
menina se apaixona pelo estudante Melchior, engravida. A mãe, que sente mais medo do
escândalo do que da perda de sua filha, contrata uma parteira desajeitada e inábil, pois é
64
possível contar com seu silêncio. Melchior, o culpado, é um aluno franco e brilhante que
teria se comportado com maior discrição caso o houvessem instruído melhor. Á sua
maneira atabalhoada também figura numa segunda catástrofe quando, transmitindo
informações sexuais ao seu hiper-sensível colega Moritz, leva-o ao suicídio. Somente
Melchior se recusa a ser completamente engolido pelas dificuldades da adolescência.
Expulso da escola e enviado para um reformatório, é perturbado por sua consciência e
alimenta pensamentos suicidas, apenas para rejeitá-los.
Figura 35 – Cena de O Despertar da Primavera, texto de Frank Wedekind (Direção Mateus
Zucolotto - Curitiba-PR)
O Despertar da Primavera explodiu no teatro como uma bomba. Mas o que dizer
então do ressurgimento de Wedekind tecendo variações do tema com O Espírito da Terra e
sua continuação A Caixa de Pandora. Na primeira peça, Lulu, mulher que jovialmente
desconhece sua própria perversidade, é uma encarnação demoníaca do instinto primitivo
Demônio feminino que, segundo velha crença popular, vem pela noite copular com um
homem, perturbando-lhe o sono e causando-lhe pesadelos. Ela acaba por destruir um
amante após o outro. Sua traição provoca um colapso no primeiro marido e leva o segundo
a cortar a garganta; o terceiro ela mata pessoalmente, depois que ele a surpreende
intrigando com vários outros homens, inclusive seu próprio filho, vangloriando-se de haver
envenenado a anterior esposa do consorte.
65
Figura 36 – Cena de A Caixa de Pandora, texto de Frank Wedekind
Em A Caixa de Pandora, Lulu reaparece depois de fugir da prisão. Contudo, não é
mais um demônio triunfante e se transforma na sórdida vítima da mesma força erótica que a
levou a destruir seus maridos. Depois de matar um chantagista, foge para Londres, “morre
de fome” pelas ruas e é finalmente esfaqueada e esquartejada por um dos clientes que
arranja e que acaba não sendo senão um Jack, o Estripador.
O gosto pelo macabro acompanhou Wedekind mesmo quando passou para o campo
que vinha sendo explorado pelos naturalistas. Esse gosto bem como o amor que sentia pelo
sensacionalismo e a impaciência para com a elaboração artística organizada, o levou a
amarrar um final fantástico em O Despertar da Primavera. Quando Melchior, fugindo da
prisão, visita o túmulo de seu colega Moritz, esse volta à vida e insiste para que o amigo se
una a ele na morte. Mas surge um “Homem Mascarado” e dissuade Melchior do suicídio,
ante o que Moritz retorna à sua tumba. Em O Espírito da Terra e A Caixa de Pandora o
mesmo espírito levou Wedekind a criar situações e personagens que existem apenas
parcialmente no mundo real. Em sua maior parte são símbolos de Eros. Lulu é menos uma
pessoa real que uma representação alegórica do instinto sexual.
Desse turbilhão surgiu a obra de Walter Hasenclever. Seu talento febril,
expressando-se em diálogos entrecortados e situações extravagantes que mudavam
rapidamente, tratava de assuntos como o conflito de gerações, o mal causado pelo estado
gerador de guerra e a violência que surge num mundo enlouquecido. Em O Filho, concluída
66
em 1914, um jovem se ressente de tal forma da tirania do pai que seria capaz de matar os
progenitores. Homens, que escreveu em 1918, era um verdadeiro pesadelo; o herói é um
cadáver que volta a vida e toda a loucura do mundo se desenrolar à sua frente até
encontrar paz no túmulo (cadáveres ou fantasmas, para não falar em cadáveres mutilados,
agradavam particularmente aos dramaturgos do pós-guerra.).
O Expressionismo demandava, pois, a apresentação de estados íntimos mais do que
da realidade exterior, bem como a distorção dessa pelo olho interior. Esse tipo de drama era
em primeira instância desafiador e flagrantemente subjetivo, capitalizando a desilusão
pessoal e a revolta. Em formas mais objetivas também podia ser criativo ao invés de se
mostrar completamente distorcido pelo ego do criador, como é o caso de A Canção do
Bode, de Franz Werfe, e R.U.R., de Karel Capek. Mas inclusive a abordagem mais objetiva
exigia a estilização e freqüentemente se esforçava para representar o estado anárquico do
mundo (cenas elusivas de rápida transformação, alteração da fantasia e da realidade e
personagens fantásticas em si mesmas ou nas suas visões e estados de espírito).
Figura 37 – Cena de R.U.R., de Karel Capek
67
Em Homem-Massa, Ernest Toller visualiza seus pensamentos em cenas estilizadas e
fantásticas. O grande mundo é essencialmente irreal para o desfalcador bancário de Da
Manhã à Meia-Noite, de Georg Kaiser (proporcionalmente irreal por meio de cenas
extravagantes e fugidias).
O horror da guerra Mundial não podia ser levianamente esquecido e o amor pela
sanguinolência parecia ter-se tornado hábito. Alfred Kerr, o eminente crítico alemão que
defendeu a nova dramaturgia enquanto ela conservou um grão de sanidade, descrevendo A
Coroação de Ricardo III, de Hanns Henny Jahn, na qual as pessoas eram continuamente
chacinadas, torturadas e enterradas vivas (em dada ocasião o fígado de um cavalheiro era
extraído e comido), exclamou tristemente que se conhecia muito pouco sobre essa era da
dramaturgia alemã.
Os irmãos Capek deram ao teatro tchecoslovaco obras-primas. Estimulados pelo
movimento alemão, Karel Capek escreveu, em 1921, uma peça memorável, R.U.R. (Robôs
Universais Rossum). Observando a crescente mecanização do homem pela produção
industrial em massa, Capek concebeu um futuro no qual todos os trabalhadores seriam
autômatos ou “robôs” A seguir, Capek se voltou para o problema da longevidade e teceu
uma franzina fantasia, O Caso Macropoulos, para demonstrar o banal ponto de vista de que
a idade avançada não é uma benção. Porém sentindo a pressão dos terríveis anos 30, tornou
a pôr a mão sobre realidades contemporâneas em duas peças sérias e profundamente
conturbadas: A Peste Branca ou O poder e a Glória, tensa fantasia antifascista, e A Mãe,
lamento pelas mães européias que perdem seus maridos e filhos em guerras e discórdias.
Embora ambas as peças tenham conquistado apreço na Inglaterra, segundo os críticos,
Capek não conseguiu recapturar o poder dramático de R.U.R. A Peste Branca era muito
obviamente artificial, e A Mãe, estática e repetitiva. Entretanto, A Comédia dos Insetos ou
O Mundo em que vivemos, escrita em colaboração com seu irmão Josef, também deve ser
arrolada entre os legados do Expressionismo da Europa Central. Essa alegoria pessimista da
capacidade e da estupidez do homem, duplicadas no mundo dos insetos, é ao mesmo tempo
nitidamente artificial e incomodamente verdadeira. Adão, o Criador, escrita por Josef
Capek isoladamente, era mais um documento pessimista, mas de qualidade inferior,
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expressando a desesperança de ver a humanidade se libertar algum dia da sede de
propriedade e de poder.
Ernst Toller, o mais nobre e mais dramático de todos os expressionistas, recrutou
em um novo mundo, ao menos por algum tempo. Assim como muitos outros
expressionistas, Toller se voltou de início para a tragédia da guerra. Porém celebrou uma
ardorosa conversão ao pacifismo em Transfiguração, escrita em 1918, enquanto estava na
prisão por apoiar uma demonstração antibélica. Foi também que escreveu duas das mais
nobres peças do teatro germânico do pós-guerra, Homem-Massa e Os Destruidores de
Máquinas. Nenhuma das peças abria mão da no triunfo final da humanidade ou
encorajava a violência. Ambas exprimiam o idealismo do comunismo sem admitir métodos
violentos.
Em Homem-Massa uma mulher da alta sociedade abandona o marido e apóia o povo
numa greve antibélica. Mas quando a massa perde o controle e parte para a violência, ela
faz um apaixonado esforço para contê-la. É ridicularizada e desatendida, e a revolta
subseqüente é esmagada. Mas é ela que vai arrastada para a prisão e é forçada a sofrer pelo
povo, recusando-se a ser salva pelo inominado instigador da violência da multidão e
aguardando a execução. Em sua cela tem visões que, ao invés de arrasá-la, acabam por
fortificar-lhe o espírito.
Figura 38 – Cena de O homem-massa, de Ernst Toller (1921).
69
Carl Zuckmayer, dramaturgo da extrema-esquerda, começou a escrever pungentes
comédias populares em 1926, sendo a primeira O Vinhedo Feliz. Voltou-se depois para
obras fantásticas, e delas, a mais notável é O Capitão von Koepenick, baseada em uma
estória popular na qual um sapateiro se disfarça de capitão, prende o prefeito da cidade e
confisca o tesouro local. Essa fábula é aguçada por sua sátira implícita ao prussianismo, o
militarismo exacerbado, pois o “Capitão” atinge os objetivos almejados simplesmente
porque os alemães obedecem aos uniformes.
Ao Expressionismo se deve a renascença do teatro nos E.U.A. Durante o século
XIX só houve (como na Inglaterra vitoriana) peças poéticas para a leitura; os palcos
estavam, ainda no começo deste século, dominados por homens como Belasco e outros
autores de dramalhões populares. A salvação veio dos amadores, que se transformaram,
aliás, com o sucesso, em atores profissionais. Eugene O'Neill, em cujo primeiro caderno
programático declarou sua dívida para com Strindberg e Wedekind, foi o primeiro grande
dramaturgo norte-americano, o maior e - conforme a opinião de muitos críticos - quase o
último, pois seus sucessores não lhe alcançaram a estatura nem sequer a fecundidade.
Figura 39 - Adaptação cinematográfica da peça Longa jornada noite adentro, de Eugene O’Neill
3.5 LITERATURA EXPRESSIONISTA
Estendendo o expressionismo das outras artes para a literatura, começam a aparecer
os “problemas” de delimitação temporal e de caracterização do movimento, uma vez que
isso implica a possibilidade de descrição geral das obras de um período, baseada nos seus
elementos comuns, o que é, nesse caso, tarefa bastante árdua, tamanha a diversidade de
70
forma que os escritores expressionistas usaram. O que os aproxima, digamos assim, são tão
somente as suas atitudes de resistência e revolta contra a burguesia opressora e os seus
esforços de ultrapassarem o naturalismo científico e o impressionismo. “A esse espírito de
negação correspondem a busca de soluções poéticas e uma reorientação temática dirigida
para as mazelas, as angústias e inquietações de toda a sorte que obsedavam a época”
(FLEISHER, 2002, p. 146).
3.5.1 LÍRICA EXPRESSIONISTA
A primeira geração de poetas expressionistas surge ao longo da década de 1910, em
Berlim, com a publicação das revistas A Tempestade (Der Sturm), fundada por Herwarth
Walden, e A Ação (Die Aktion), fundada por Franz Pfenfert, bem como das poesias O
crepúsculo (Dämerung), de Alfred Lichtenstein, e Fim do Mundo (Weltende), de Jacob van
Hoddis, caracterizando-se justamente pela busca de expressão de um “eu” defrontado com
um mundo em colapso.
O Crepúsculo
Tradução de João Barrento.
Um rapaz gordo brinca com um lago.
O vento ficou preso em arvoredo.
O céu, de ar tresnoitado e de tom vago,
Parece que tirou pintura, a medo.
Dois coxos tortos, dobrados, de muleta,
Arrastam-se pelo campo em cavaqueio.
Enlouquece talvez louro poeta.
Um cavalinho tropeça num seio.
O gordo está colado ao guardavento.
Um jovem vai ao bordel em visita.
Calça as botas um palhaço cinzento.
Cães praguejam, carro de bebê grita. (Alfred Lichtenstein).
71
Fim do mundo
Tradução de João Barrento.
O chapéu voa da cabeça do cidadão,
Em todos os ares retumba-se gritaria.
Caem os telhadores e se despedaçam
E nas costas – lê-se – sobre a maré.
A tempestade chegou, saltam a terra
Mares selvagens que esmagam largos diques.
A maioria das pessoas tem coriza.
Os trens precipitam-se das pontes. (Jacob van Hoddis).
O que se percebe é que os dois poemas acima se enquadram numa perspectiva
apocalíptica, “descrevendo”, com simplicidade na forma e na linguagem, a destruição de
um mundo estagnado, doente, desumano e degradado. No primeiro, a imagem espaço-
temporal do crepúsculo exprime essa idéia de fim de um ciclo (imagem e hora da saudade e
da melancolia). O agora é triste, engessado pelo medo. Os seres humanos estão coxos, isto
é, fracos da alma, desequilibrados (coxear, do ponto de vista simbólico, significa um
defeito espiritual). “O vento ficou preso no arvoredo”. Como a alma, o vento destrói e
renova. Mas no presente, a vida está atrofiada, não mais valores transcendentais. Do
mesmo modo, no segundo poema, o que existe não existe, e o que advirá recusa-se a
aflorar nos lábios do eu-lírico. É um tempo de incertezas, de dúvidas, de indecisão, e que
pode se concluir bem ou mal (águas em movimento, o mar simboliza tanto um estado
transitório quanto a hostilidade de Deus). A tempestade é uma manifestação da cólera
divina e, às vezes, um castigo. Dirigindo-se aos homens, Deus desafia-os a realizarem
ações como as suas, dá-lhes uma lição de humildade.
Mas a despeito da preocupação fundamentalmente existencial que norteia a poesia
do período, essa ainda se apresenta bastante desarticulada em termos programáticos,
revelando uma rica pluralidade estilística. Destacam-se nomes como Gottfried Benn, Georg
Trakl, Georg Heym, Jakob Van Hoddis e Kurt Hiller, esse último fundador do Neue Klub
(Clube Novo), em 1909, e do Neopathetisches Cabaret (Cabaret Neo-Patético), em 1910,
índices de uma nascente identidade grupal que vai se consolidar, no entanto, a partir de
1914.
72
Em O Deus da cidade (1910), um dos seus poemas mais famosos, Georg Heym
apresenta Baal, deus do furacão e das forças primitivas, símbolo do Malvado,
incomensurável e descomunal, como figuração do poder tirânico das metrópoles de
espoliarem os homens, submetê-los às suas tentações, dominando-lhes o espírito,
enfraquecendo-lhes a consciência, que se volta perturbada para o indeterminado e para o
ambivalente:
O Deus da Cidade
Escarrapachado sobre um quarteirão,
À sua volta acampam negros ventos.
Ele olha irado, ao longe, a solidão
De últimas casas em campos nevoentos.
Baal ao pôr-do-sol, pança luzindo,
À volta ajoelham as grandes cidades.
De um mar de negras torres vem subindo
O eco monstruoso das trindades.
Milhões entoam música pela rua,
Em dança coribântica exaltada.
Das chaminés fabris o incenso escoa,
Sobe até ele, em fragrância azulada.
No seu sobrolho crepitam temporais.
Narcotiza-se em noite o escuro dia.
Como os abutres, esvoaçam vendavais
Em cabeleira irada, que arrepia.
Estende no escuro a mão de carniceiro.
Um mar de fogo varre, num estremecer,
Toda uma rua, que acaba num braseiro,
Até que o dia tarde a amanhecer. (Georg Heym).
Sem dúvida, tudo lembra os domínios do inferno, onde o homem e o animal
não se diferenciam, pois o gênero humano, despersonalizado, está cegamente submisso aos
instintos, “entoando músicas pelas ruas, em danças exaltadas”. Mais uma vez temos a
evocação por assim dizer profética do cataclismo final como metáfora expressiva do anseio
por algo”, por algum acontecimento incisivo que possa aniquilar esse ambiente vazio em
que os homens estão enclausurados.
73
Gottfried Benn, com seu bisturi afiado, secciona a realidade e analisa, poeticamente,
os pensamentos, os sentimentos, destruindo os tabus ainda existentes, expondo-os friamente
como cadáveres:
Ciclo
O molar solitário de uma prostituta
que morrera no anonimato
tinha uma aplicação de ouro.
Os restantes, como por mudo acordo tácito,
tinham caído.
O funcionário da morgue arrancou-o,
pô-lo no prego e foi dançar.
É que, dizia ele,
só o que é terra à terra deve voltar. (Gottfried Benn)
Temos nesse poema de Benn o corpo morto de uma prostituta de quem é arrancado,
no necrotério, um último dente (o último que lhe restara na boca, um dente de ouro),
revelando uma consciência fundamentalmente crítica (e de certa forma irônica) do eu-lírico
em relação a seu objeto de análise. Comparando metaforicamente a sociedade burguesa a
uma câmara frigorífica para cadáveres, ele vislumbra, nesse século arrasado pela guerra,
um lugar onde as pessoas, com as almas endurecidas, não resistem ao apetite dos desejos
materiais (o molar de ouro é, a um tempo, o símbolo dessa resistência e o da exaltação
impura dos desejos) e tendem à assimilação, ou seja, a se tornarem agressivas, combatendo-
se uma as outras para satisfazerem as suas ambições. Tanto a prostituta anônima como o
funcionário do morgue, também anônimo, são vítimas dessa sociedade que prega a
mastigação devoradora. Aquela porque vendia seu corpo por dinheiro, era puta e, portanto,
marginal; esse porque roubava para conseguir um pouco mais de grana para poder se
divertir, ainda que à custa da desgraça alheia. Nesse circum-ambulação que é a vida
moderna, dançam todos hostis e solitários, vencendo o furor guerreiro e o cinismo
hediondo.
É só com a guerra que o Expressionismo se torna um programa. Nesse novo
contexto (1914-1918), algumas mudanças fundamentais podem ser observadas na produção
expressionista, como a incidência cada vez maior de temas bíblicos (antes os temas eram
ligados em grande parte ao ritmo da vida moderna), como é o caso da poesia de forte
74
inspiração bíblica e judaica de Else Lasker-Schüller, laureada como uma das mais
proeminentes escritoras do começo do século XX. Trata-se, diferentemente de Benn, de
uma poesia em que predomina a suavidade, a delicadeza nostálgica, como se percebe no
poema abaixo, Reconciliação.
Reconciliação
Ttradução de João Barrento.
Há-de uma grande estrela cair no meu colo...
A noite será de vigília,
E rezaremos em línguas
Entalhadas como harpas.
Será noite de reconciliação –
Há tanto Deus a derramar-se em nós.
Crianças são os nossos corações,
anseiam pela paz, doce-cansados.
E nossos lábios desejam beijar-se –
Por que hesitais?
Não faz meu coração fronteira com o teu?
O teu sangue não pára de dar cor às minhas faces.
Será noite de reconciliação,
Se nos dermos, a morte não virá.
Há-de uma grande estrela cair no meu colo. (Else Lasker-Schüller)
De fato, o eu-lírico, num tom exaltado, faz um apelo aos corações humanos, no
sentido de se restabelecer um diálogo com Deus através da reconciliação universal, pois
assim, numa vida em que nada é mais certo do que a morte próxima e nada é mais incerto
do que o destino além-túmulo, se encontrará a felicidade cotidiana. O som harmonioso da
harpa, símbolo dessa felicidade, é o único capaz de ligar o céu à terra, promovendo a
fraternidade e a paz entre todos.
75
Mas há nesse período pós-guerra, sobretudo um engajamento político direto de
artistas que retornavam do front (vários deles se alistaram como voluntários, uma vez que
viam na guerra, e não em Deus, o caminho privilegiado para a “salvação da humanidade”),
como Johannes Robert Becher, um dos mais representativos poetas da segunda geração
expressionista.
O poeta evita acordes radiosos…
O poeta evita acordes radiosos.
Sopra por tubas, chicoteia o tambor estridentemente.
Subleva o povo com frases estilhaçadas.
Eu aprendo. Preparo-me. Exercito-me.
Como trabalho? – ah!, o mais apaixonadamente! –
Ao encontro de uma visão ainda sem contornos –:
Vou aplanando rugas.
E gravo aí, da forma mais exata,
O novo mundo
(– mundo que destrua o antigo, o místico, o mundo da dor –)
E visualizo uma paisagem: soalheira, extremamente organizada,
lapidada,
Uma ilha de humanidade feliz.
Isso exige muito (mas não é nada que ele não saiba já há muito).
Oh, trindade da obra criada: Vivência. Formulação, Ação.
Eu aprendo. Preparo-me. Exercito-me.
…em breve os vagalhões das minhas frases darão forma a uma insólita
figura.
Discursos. Manifestos. Parlamento. O romance experimental.
Entoar cânticos do alto de tribunas.
Vamos pregar o novo, o sagrado
Estado; injetar no sangue dos povos sangue do seu sangue.
Vamos construí-lo até ao fim
Chega a hora do Paraíso.
– Espalhemos a atmosfera de tempestade!
Aprendei! Preparai-vos! Exercitai-vos! (Johannes Robert Becher).
Em seu arrebatamento patético, ligado ao acontecimento histórico da guerra, Becher
debruça-se sobre o próprio fazer poético, num aberto desejo de renovação, propondo novos
conteúdos, uma nova linguagem, adequada ao seu tempo, anticonvencional e agressiva,
capaz de romper com a tradição prevalecente e dar início a uma radical transformação da
acepção artística.
76
O chamado “estilo simultâneo” (ou estilo ordenado em versos, em que cada um é
uma afirmação que se basta) traduz a totalidade da vida ansiada pelos jovens, um sem-
número de informações, dados e acontecimentos sem muita lógica entre si, com versos de
posições cambiáveis, mas que sugerem uma concomitância das mais variadas situações
cotidianas; esse “simultaneísmo” foi uma das formas poéticas mais usadas, e com êxito,
pelos poetas expressionistas.
A tragédia está presente em forma de clamor e sofrimento na poesia Schwrmut
(Melancolia), de August Stramm, poeta que leva a cabo a extrema redução lingüística,
introduzindo a ruptura mais radical do ponto de vista da forma:
Avançar almejar
Vida anseia
Arrepiar ficar
Procurar olhares
Morrer cresce
O vir
Gritem!
Profundamente
Nós
Emudecemos (August Stramm).
Aproximando-se do ideal de “palavras em liberdade” pregadas por Marinetti no
Manifesto Futurista, Stramm, tematizando a guerra, desloca as palavras de suas funções
gramaticais tradicionais e as usa em contextos e funções absolutamente inusitadas (“vida
anseia”, “morrer cresce”, “o vir”, etc.), provocando-nos, em meio a essa “confusão
situacional”, uma melancolia transposta por meio justamente da desorientação, da
martirização da própria sintaxe. A morte avança em combate e se precipita sobre os seres
humanos, silenciando-os profundamente. Não há saída.
A esperança, no entanto, aparece ainda que de maneira subjetiva e inalcançável,
conseguida somente através do reino lúcido das palavras, num dos mais belos e criativos
poemas da antologia Der Spruch (A sentença), de Ernst Stadler:
Num velho livro topei com uma palavra
Que me veio como um golpe e ainda arde em brasa:
E quando me entrego a um turvo prazer
Preferindo brilho, mentira e jogo em vez do puro ser,
Quando acho melhor com supérfluo me enganar,
77
Como se fosse claro o escuro, como se a vida não tivesse milhares
de portas a fechar.
E repito palavras cuja amplidão nunca senti,
E toco em coisas cujo sentido jamais revolvi,
Quando um sonho bem-vindo me acaricia com mãos de veludo
Aliviando-me do cotidiano sobretudo,
Longe do mundo, alheio ao mais profundo eu,
Então se ergue em mim a palavra: Homem, procura o teu apogeu!
(Ernst Stadler)
Para Stadler, o “despertar da humanidade” depende de uma sentença (ou, de um
juízo final), em que os seres humanos, despojados de todos os falsos atributos do mundo,
deverão buscar, antes de tudo, uma força interior (espiritual) para se redimirem dos seus
erros e alcançarem uma vida verdadeira. Sua contraparte, no entanto, é a impossibilidade
dessa redenção, tendo em vista a violência inumana do cotidiano, que embota a inteligência
e a afetividade.
3.5.2 PROSA EXPRESSIONISTA
À semelhança do que se verifica na poesia, é tarefa bastante problemática a
identificação de traços comuns e correlações entre as narrativas expressionistas, tamanha a
pluralidade de temas e princípios formais. Não obstante, como os textos líricos, a prosa de
ficção rejeita as formas estereotipadas, radicadas num repertório tradicional. Assim, a
linguagem é reduzida ao essencial, ou seja, torna-se eruptiva, intensa, precisa e concisa.
Predomina a fascinação pelo insólito, pelo incomum e pelo enigmático (ruptura da
normalidade, daquilo que a sociedade burguesa considerava normal).
[...] um estudo individualizado dos autores e suas obras mostra que
a prosa expressionista enveredou por caminhos insondados que, reflexo da
nova consciência, distinguem-na de um recente passado.
Poucas foram as manifestações teóricas concretas acerca de
questões formais, estilísticas e estruturais, que nos permitissem falar numa
poética ou poéticas da arte narrativa expressionista.
Não obstante, registra-se a presença de determinados autores que,
embora de maneira difusa, buscam descrever as alterações na percepção da
realidade – tida como despojada de sentido e coisificada – e postular
formas de transcrição poética, capazes de se opor a essa realidade
indesejada e de transcendê-la. (FLEISCHER, 2002, p.145.).
78
Carl Einstein e Alfred Döblin são os mais representativos narradores no panorama
da ficção expressionista alemã. Para blin, o texto deve ser estruturado de modo que os
fatos falem por si, isto é, sem a presença mediadora de um narrador. Nesse sentido,
desaparecem do texto as relações causais, cronológicas e a coerência espacial. Esse “estilo
cinematográfico”, de cenas ininterruptas, se constitui como traço definidor de muitas
narrativas do Expressionismo, conferindo-lhes vigor expressivo.
Como conseqüência dessa eliminação do narrador onisciente, o monólogo interior
indireto passa a ser a técnica narrativa exigida. Não há, pois, uma análise das causas ou das
forças que produzem os fatos; cabe ao leitor chegar às suas próprias conclusões a partir da
perspectiva pessoal de determinado personagem, que vai refletir um estado mental
patológico, não sendo possível se distinguir nitidamente mundo exterior e mundo interior.
O belo e o sublime coexistem com o feio, formando uma justaposição inesperada, própria
do grotesco. Vejamos o trecho final da narrativa de Döblin, intitulada O Assassinato de
uma Margarida, publicada em 1910, pela revista Der Sturn:
O senhor vestido de preto tinha contado os seus passos, um, dois,
três, até cem e de trás para frente, enquanto subia o largo caminho
entre pinheiros em direção a Santa Otília e, a cada movimento, ele
balançava o quadril para a direita e para a esquerda, de modo que às
vezes cambaleava; em seguida, esquecia-se dos trejeitos.
[...]
Tinha pulado à frente das flores e feito um massacre com a
bengalinha, sim, havia dado golpes com aqueles violentos, mas
certeiros movimentos de mão, com os quais estava acostumado a
bofetear os seus aprendizes, quando esses não eram suficientemente
hábeis em caçar as moscas no escritório e apresentá-las
devidamente selecionadas de acordo com o tamanho.
[...]
O que ele tinha a ver com a margarida? Ficou com uma raiva atroz
ao pensar que quase fora pego de surpresa. Ele havia se
descontrolado e mordeu o dedo indicador: “Fica atento, estou
dizendo, fica atento, velhaco, seu maldito”. Ao mesmo tempo um
grande medo apoderou-se dele traiçoeiramente.
[...]
Se ele removesse da floresta uma margarida, uma filha da falecida,
se a replantasse em casa, cuidasse dela com carinho, assim a velha
passaria a ter uma jovem rival. É, pensando bem, com isso ele
poderia expiar totalmente a culpa pela morte da velha, pois ele
salvaria a vida desta flor e compensaria a morte da mãe [...].
79
Enquanto fazia as contas, na manhã seguinte, inesperadamente algo
insistia que ele depositasse dez marcos numa conta em nome da
flor. Ele se assustou, entregou-se a amargas reflexões sobre a sua
debilidade e pediu ao procurador que continuasse a fazer as contas.
À tarde, ele mesmo colocou dinheiro numa caixa especial com
frieza taciturna; foi até mesmo compelido a abrir uma conta
bancária para ela; ele tinha ficado cansado, queria seu sossego.
Logo depois algo o forçou a dar-lhe comida e bebida como
oferenda. Uma pequena gamela foi colocada para ela próxima ao
lugar do senhor Michael.
[...]
Ocasionalmente, tratava-a amargurado, desdenhando-a, colocava-a
contra parede num rápido assalto, enganava-a em pequenas coisas,
virava bruscamente, como que inadvertidamente, a sua gamela,
enganava-se nas contas em prejuízo dela, tratava-a, às vezes, de
forma ardilosa como se fosse uma concorrente nos negócios. No
aniversario de sua morte, fez de conta que não se lembrava de nada.
Somente quando ela aparentemente insistiu numa comemoração
discreta e recatada, dedicou-se meio dia à sua memória.
Na passagem acima transcrita, observa-se o registro de uma sucessão de estados
mentais do pequeno-burguês “senhor Fischer”, os quais, de início, parecem pura
esquisitice, como a contagem dos passos pela rua, o movimento dos quadris, o
esquecimento momentâneo do trajeto, o “massacre no jardim”, mas que acabam evoluindo
para a loucura (mergulho da personagem na demência): a mordida no dedo indicador, a
“adoção” e abertura de uma conta bancária para a flor, o sentimento de culpa pela
“decapitação” brutal e a comemoração pelo aniversário de morte da margarida que ele
havia “assassinado”. Como se vê, o mundo exterior torna-se uma projeção de sua mente
enferma. Trata-se de alucinações traduzidas, no texto, através do grotesco e de
comportamentos irracionais.
Berlin Alexanderplatz é um romance de Alfred Döblin publicado em 1929. A
história é sobre um criminoso, Franz Biberkopf, recentemente saído da prisão, que está
atraído pelo submundo. Quando seu mentor criminal assassina a prostituta com a qual
Biberkopf conta como âncora, ele percebe que será incapaz de se livrar do submundo no
qual penetrou.
80
O romance se desenvolve na classe operária de Alexanderplatz, distrito da Berlin de
1920. É contado de muitos pontos de vistas , e utiliza-se de efeitos sonoros, artigos de
jornais, músicas, discursos e outros livros parar o enredo a frente. Seu estilo de narrativa
é reminiscente de James Joyce (na verdade, Döblin tinha terminado o trabalho quando
ele leu Ulisses (1922), obra que inspirou-o a reescrever radicalmente seu próprio livro). O
romance foi adaptado duas vezes para o cinema, a primeira em um filme chamado Berlin -
Alezanderplatz, em 1931. Döblin trabalhou na adaptação, junto de Karl Heinz Martin e
Hans Wilhelm. Foi dirigido por Piel Jutzi, e estrelado por Heinrich George, Maria Bard,
Margarete Schlegel, Bernhard Minetti, Gerhard Bienert, Albert Florath e Paul Westermeier.
A segunda adaptação foi uma série de televisão realizada por Rainer Werner Fassbinder.
Lançado em 1980, tinha ao todo duração de 15 horas e meia, e é considerada por muitos
como sua magnum opus.
Figura 40 - Adaptação para televisão de Berlin - Alezanderplatz, romance de Döblin, por Rainer
Werner Fassbinder. Lançado em 1980.
Esta técnica narrativa, na qual a distinção nítida entre mundo exterior e interior
desaparece, pode ser assinalada também, por exemplo, em A Metamorfose (1915), de
Kafka. "Uma manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregor Samsa deu por si na cama
transformado num gigantesco inseto". É deste modo que Kafka inicia a história de Gregor
Samsa, um caixeiro-viajante "obrigado" a deixar de ter vida própria para suportar
financeiramente todas as despesas de casa.
81
Numa manhã, ao acordar para o trabalho, Gregor que se transformou num inseto
horrível com um "dorso duro e inúmeras patas". A princípio, as suas preocupações passam
por pensamentos práticos relacionados com a sua metamorfose. Depois, passam para um
estado mais psicológico e até mesmo sentimental. Gregor sente-se magoado pela repulsa
dos pais perante a sua metamorfose. Apenas a irmã se digna a levar-lhe a alimentação, mas
mesmo assim a repulsa e o medo também começam a se manifestar. A metamorfose de
Gregor vai além da modificação física. É sobretudo uma alteração de comportamentos,
atitudes, sentimentos e opiniões. Gregor passa a analisar as coisas que o rodeiam com muito
mais atenção. Outra metamorfose ocorre no seio familiar: o pai volta a trabalhar, a irmã
também arranja um emprego e passam a alugar quartos na própria casa onde habitam. As
atitudes dos pais perante o filho sugerem que Gregor era apenas o "sustento" da casa.
A metamorfose de Kafka não conta apenas a história de um homem que se
transformou num inseto. É sobretudo uma história de alerta à sociedade e aos
comportamentos humanos. Com a sua escrita sui generis, Kafka retrata o desespero do
homem perante o absurdo do mundo (Interessante perceber que em nenhum momento da
obra Gregor se conta realmente que se transformou num inseto. Apenas observa seus
novos membros, órgãos e hábitos, mas com o tempo se acomoda na nova condição sem
realmente entender no que se tornara).
Carl Einstein, intelectual e ativista político-cultural que atuou como poeta,
escritor, historiador e crítico de arte, editor e tradutor, segue outro rumo na prosa
expressionista, embora, como Döblin, recuse a abordagem psicológica, que favorece o
princípio mimético (imitação da realidade empírica), e pregue a redução sintática com o
propósito de eliminar da narrativa os aspectos secundários, acidentais. Num pólo oposto,
entretanto, Einstein considera que a ficção, principalmente o romance, caracteriza-se por
seu teor intelectual, racional, não podendo ser destituído de comentários, como propõe
Döblin. Para ele, o que importa é justamente a idéia, o conteúdo veiculador de uma visão de
mundo. Assim, o papel do narrador, preferencialmente em primeira pessoa, é o de avaliar o
que é narrado. A plasticidade das imagens, pois, é substituída pela imaginação dessa
consciência que emite opiniões e hipóteses, através de longos diálogos que se desenvolvem
82
independentemente de qualquer conexão com os acontecimentos narrados e sem que se
possa definir a sua motivação na narrativa. São discursos que generalizam concepções
filosóficas. Entre suas realizações literárias podem ser destacadas: Bebuquin ou os
diletantes do milagre, romance publicado em 1912; a peça teatral A notícia, de 1921
(versão contemporânea da Paixão de Cristo); e o livro de poemas Esboço de uma paisagem,
de 1930.
3.6 RECEPÇÃO AO EXPRESSIONISMO
Ainda que chegado ao fim enquanto movimento, o Expressionismo estimulou novos
desdobramentos, não só na Europa, mas no mundo todo. O irlandês James Joyce (1882-
1941), com Ulisses, o tcheco Franz Kafka (1883-1924), o norte-americano Eugene O'Neill
(1888-1953) e o austríaco Georg Trakl (1887-1914) estão, pois, entre os principais autores
que usam técnicas expressionistas.
Transfiguração
Quando cai a tarde,
vem de ti um meigo rosto azul.
Um passarinho canta no tamarindeiro.
Tranqüilo monge
cruza as mãos mortas,
um branco anjo aparece a Maria.
Uma noturna coroa
de violetas, trigo e purpurinas uvas
é o ano do Contemplativo.
Ante teus pés
abrem-se as covas dos mortos
quando depões a fronte entre as mãos de prata.
Silente mora
em tua boca a lua outonal,
bêbada da música misteriosa da papoula.
- Flor azul,
vago som de pedras antigas. (Georg Trakl).
83
O que é surpreendente nesse (como de resto nos demais poemas) de Georg Trakl
são as metáforas e as superposições de frases que lembram as montagens cinematográficas,
bem como as imagens que se podem encontrar no espaço gubre das trevas ou da meia-
luz: “quando cai a tarde”, “noturna coroa de violetas, trigo e purpurinas uvas”, “lua
outonal”. Esses versos, por exemplo, são ilustrativos de uma temática que é recorrente em
Tralk, a noite, que arrasta consigo a frieza e o silêncio da morte: “tranqüilo monge cruza as
mãos mortas”, “ante teus pés, abrem-se as covas dos mortos”. A noite engendra, também,
as angústias, os sonhos, o engano e a ternura: “vem de ti um meigo rosto azul”, “um branco
anjo aparece a Maria”. Mas ao mesmo tempo em que a escuridão está aí presente, essa é
amenizada por um resplandecer de cores: azul, branco, violeta, amarelo, uva e prata. Do
mesmo modo, o silêncio é aplacado pelo canto do passarinho, pela “música misteriosa da
papoula”, “pelo vago som de pedras antigas”. É como um clarão da vida, um prenúncio do
amanhecer. Sinestesia pura, esse poema traduz os conflitos mais íntimos de um ser
transfigurado. A papoula simboliza a terra, que, com efeito, é o local onde se operam as
transmutações (nascimento, morte e reinício). Tanto o pássaro quanto o anjo branco e as
pedras antigas também representam essa passagem de um estado a outro (essa
transfiguração): da imperfeição (trevas) para a perfeição (luz) espiritual, aqui figurada
através do monge (sabedoria intuitiva e experimental), da coroa (insígnia do poder e da luz)
e da flor (alquimia interior, sonhadora irrealidade).
Na América Latina, o Expressionismo é principalmente uma via de protesto
político. No México, o destaque são os muralistas
10
, como Diego Rivera.
10
O movimento muralista mexicano, ocorrido logo após a Revolução Mexicana de 1910, até hoje é
considerada a primeira grande mobilização social na América Latina no século XX. Seus artistas se
propunham a pintar para o povo. Mas não era apenas isso: para Rivera, Orozco e Siqueiros, os três grandes
pintores da Revolução, o mural possibilitou uma arte pública e coletiva, que rompia com o individualismo da
pintura de cavalete.
84
Figura 41 - Terra Virgem - Mural de Diego Rivera - 1923
No Brasil, observa-se, como nunca, um desejo expresso e intenso de pesquisar nossa
realidade social, espiritual e cultural. A arte mergulha fundo no tenso panorama ideológico
da época, buscando analisar as contradições vividas pelo país e representá-las pela
linguagem estética. Principais artistas nas artes plásticas: Lasar Segall
11
, Anita Malfatti
12
,
Tarsila do Amaral
13
, Di Cavalcanti
14
, Oswald Goeldi (já referido na página 31 desta tese) e
Cândido Portinari
15
.
11
Lasar Segall (em russo: Лазарь СегаЛ) (Vilnius, 21 de julho de 1891 São Paulo, 2 de agosto de 1957)
foi um pintor e escultor lituano que apresentou pela primeira vez a arte moderna no território brasileiro.
12
Anita Catarina Malfatti (São Paulo, 2 de dezembro de 1889 — São Paulo, 6 de novembro de 1964) foi uma
pintora, desenhista, gravadora e professora brasileira.
13
Tarsila do Amaral (Capivari, 1 de setembro de 1886 São Paulo, 17 de janeiro de 1973). Foi a pintora
mais representativa da primeira fase do movimento modernista brasileiro, ao lado de Anita Malfatti. Seu
quadro Abaporu, de 1928, inaugura o movimento antropofágico nas artes plásticas.
14
Emiliano Augusto Cavalcanti de Albuquerque e Melo, mais conhecido como Di Cavalcanti (Rio de Janeiro,
6 de setembro de 1897 Rio de Janeiro, 26 de outubro de 1976) foi um pintor, ilustrador e caricaturista
brasileiro. Fez sua estréia como desenhista no salão das Humoristas em 1916. Após se mudar para São Paulo
em 1917, conviveu com Mário e Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, Anita Malfatti e Brecheret. Foi dele
a idéia da Semana de Arte Moderna, que aconteceu no Teatro Municipal de 1922.
15
Candido Torquato Portinari (Brodowski, 29 de dezembro de 1903 Rio de Janeiro, 6 de fevereiro de
1962) foi um pintor brasileiro. Portinari pintou quase cinco mil obras, de pequenos esboços a gigantescos
murais. Foi o pintor brasileiro a alcançar maior projeção internacional.
85
Figura 42 - Enferma, Lasar Segall - 1920
Figura 43 - Ritmo Tors , Anita Malfatti – 1915/1916
Figura 44 – Abaporu, Tarsila do Amaral - 1928
86
Figura 45 - Ciganos, Di Cavalcanti – Década de 20
Figura 46 - Criança Morta, Cândido Portinari - 1944
Figura 47 - Céu vermelho, Oswaldi Goeldi - 1950
87
Como se observa nas telas acima, as figuras humanas são deliberadamente
distorcidas, pintadas com cores subjetivas. Trata-se, é verdade, de um “expressionismo
tropicalista”, antropofágico (com exceção das pinturas de Segall e Portinari, bem como da
xilogravura de Goeldi, as quais expressam uma ansiedade metafísica que é a própria
condição geral da humanidade nos tempos modernos: solidão, enfermidade e morte.
desarmonias capazes de causarem tensões psíquicas e visuais, o que é bem característico do
Expressionismo Alemão).
Na música, pode-se dizer que as primeiras composições experimentais da fase
modernista de Heitor Villa-Lobos apresentam uma filiação com o Expressionismo. Villa-
Lobos faz o acompanhamento musical da peça A última encarnação de Fausto (1922), de
Ricardo Viana
16
, com quem fundou o grupo “Batalha da Quimera”, junto ainda com Ronald
de Carvalho
17
. A intenção do grupo era justamente introduzir os novos conceitos da
encenação expressionista nos palcos brasileiros, mas a peça ficou poucos dias em cartaz,
pois foi massacrada pela crítica e pelo público.
Figura 48 - Postal do lançamento da Batalha da Quimera. 1922.
16
Renato Viana (Rio de Janeiro RJ 1894 - idem 1953). Autor, diretor, ator. Autor do único espetáculo que, no
ano em que nasce o Modernismo no Brasil, procura criar uma estética nova. Renato Viana tem em sua
carreira uma série de iniciativas voltadas para a transformação da cena e do processo de produção teatral.
17
Ronald de Carvalho (Rio de Janeiro, 16 de maio de 1893 Rio de Janeiro, 15 de fevereiro de 1935), foi
um poeta e político brasileiro. Em 1922, participou da Semana de Arte Moderna, em São Paulo, movimento
determinante do Modernismo brasileiro.
88
É a partir do Bailado do Deus Morto (1933), de Flávio de Carvalho
18
, que a
influência do Expressionismo tornar-se-á efetiva no teatro brasileiro, sendo que o ponto alto
mesmo se dá, em 1943, com a montagem de Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues
19
, pelo
encenador e ator polonês, de origem judaica, Zbigniew Ziembinski
20
.
Figura 49 – Cena de Bailado do deus morto, 1933 (Clube dos Artistas Modernos São Paulo)
Em Bailado do Deus Morto, atores negros, usando máscaras de alumínio, cantam e
dançam o nascimento e morte de Deus entre os homens/animais. O conteúdo dramatúrgico
primitivo/expressionista contrasta com a cenografia meio futurista, toda de alumínio; um
18
Flávio de Rezende Carvalho (Barra Mansa, 10 de agosto de 1899 Valinhos, 4 de junho de 1973) foi um
dos grandes nomes da geração modernista brasileira, atuando como arquiteto, engenheiro, cenógrafo,
teatrólogo, pintor, desenhista, escritor e filósofo.
19
Nélson Falcão Rodrigues (Recife, 23 de agosto de 1912 Rio de Janeiro, 21 de dezembro de 1980) foi
um importante dramaturgo, jornalista e escritor brasileiro. Ele escreveu dezessete peças teatrais. Sua edição
completa abrange quatro volumes, divididos segundo critérios do crítico Sábato Magaldi, que agrupou as
obras de acordo com suas características, dividindo-as em três grupos: peças psicológicas, peças míticas e
tragédias cariocas.
20
Zbigniew Marian Ziembiński (Wieliczka, 7 de março de 1908 Rio de Janeiro, 18 de outubro de 1978),
mais conhecido como Ziembinski, foi ator e diretor de teatro, cinema e televisão. Chamado carinhosamente
de Zimba, é considerado um dos fundadores do moderno teatro brasileiro por sua encenação inovadora do
texto Vestido de Noiva, em 1943 do dramaturgo Nelson Rodrigues. Com esta montagem e por seu processo de
ensaio, introduz-se a noção de diretor no teatro brasileiro, aquele que cria uma encenação, quase como um
pintor da cena, substituindo a de ensaiador, aquele que se preocupava apenas em distribuir papéis e ordenar a
movimentação em cena.
89
pano de boca às vezes é usado para projetar sombras e criar um cenário ainda mais
dramático. A música é toda feita com instrumentos percussivos dando um ritmo africano,
ritualístico, ao bailado.
Despojada da leveza da cena e compondo diálogos fortes e desnudados, Vestido de
Noiva apresenta ainda outra inovação, a subdivisão do palco que aparece iluminado de três
maneiras, representando três planos: o plano da realidade, o plano da alucinação e o plano
da memória. Através da intersecção desses três planos tem-se o conteúdo da peça.
Plano da realidade: é o que início à peça, o estrépito de um acidente de carro é
seguido de repórteres que comunicam o atropelamento de uma mulher. Esta é identificada:
Alaíde Moreira, 25 anos, casada com o industrial Pedro Moreira. Na mesa de cirurgia,
Alaíde delira assim o espectador passa aos planos da memória e da alucinação. Por fim,
os médicos anunciam a morte da jovem.
Plano da alucinação: sem a interdição da censura moral, todos os desejos de Alaíde
se libertam. Às cenas de delírio soma-se a lembrança de fatos reais, vividos pela
personagem. Divagando, Alaíde procura Madame Clessi, prostituta do início do século que
fora assassinada por um amante adolescente. Na representação da memória, o espectador
descobre que Alaíde tinha um diário da mundana, encontrado no sótão da casa em que
vivera antes de casar. O casamento sem grandes aventuras e o cotidiano banal haviam
transformado Alaíde numa Bovary carioca, o que a faz projetar seus impulsos e seus
desejos na figura da prostitua Clessi.
Plano da memória: Alaíde concentra o esforço ordenador da memória na
reconstituição das cenas do casamento. Um dado verdadeiro que surgira no plano da
alucinação: ela roubara Pedro da irmã, Lúcia. É da consciência culpada da protagonista que
surge a imagem da Mulher de Véu que depois se revelará como sendo a própria Lúcia.
Misturando num ritmo gradativo as ações dos três planos, a peça encaminha-se para o
desfecho no qual Lúcia acaba por casar-se com Pedro. É Alaíde quem entrega o buquê à
noiva, acompanhada de Madame Clessi. A peça se encerra com apenas uma luz sobre o
túmulo de Alaíde.
Existe o predomínio dos planos da memória e da alucinação, procedimento que se
tornará comum em inúmeras peças de Nelson Rodrigues. A realidade é apresentada a partir
90
do filtro da mente dos personagens. Ao situar a ação da obra no território livre do
subconsciente (em que se situam o plano da memória e mesmo o da alucinação) o autor
favorece as possibilidades de criação. Fora do alcance da censura que a psicanálise
chamaria de super ego –, a heroína pode liberar sua libido, seus desejos reprimidos. É assim
que surge, em Alaíde, como projeção de suas fantasias na figura da prostituta, Madame
Clessi. Infeliz no casamento, insatisfeita com a realidade mesquinha da vida ordinária, a
protagonista encontra na identificação com a prostituta uma compensação.
Percebe-se também em Vestido de Noiva, a inclinação do autor para uma estética
expressionista, em que o exagero, a deformação ou a obsessão dos personagens, ao invés de
proporcionarem o tom mico, funcionam como elementos intensificadores da
dramaticidade de cenas e situações. Além de reforçar a capacidade de criação visual,
imagética, os elementos grotescos da peça contribuem para estabelecer uma visão
pessimista e sombria da realidade.
Figura 50 – Cena de Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues
91
4 A DISSOLUÇÃO DOS VALORES TRADICIONAIS
4. 1 CAETÉS
Debruçar-me-ei agora sobre o romance de estréia de Graciliano Ramos, Caetés
(1933), narrado, em primeira pessoa, por João Valério, um sujeito que se defronta com o
vazio existencial: a vida medíocre, em Palmeira dos Índios, como guarda-livros no
escritório dos irmãos Teixeira e como colaborador do jornal Semana, de Padre Atanásio; e
a escritura do livro sobre os índios caetés, a qual permanece inacabada pela absoluta
ausência de qualquer passado a ser recuperado. Seu amor por Luísa, esposa de Adrião
Teixeira, é o momentâneo ponto de referência no seu dia-a-dia ocioso e entediante, dividido
entre a pensão, a casa de Luísa, a redação e as ruas da pacata cidade.
Indo além dos limites da moralidade (impulsos libidinosos), o adultério é uma
tentativa de destruir a banalidade do cotidiano (choque com a mesmidade); uma ação
disruptora (condição pulsional contrariada pelas normas sociais), cujo desejo deforma a
realidade (ilusão narcísica de totalidade) e é destruído por essa deformação: com o suicídio
de Adrião, João Valério, o assassino simbólico, tropeça no real inacessível (queda da
imagem desejável):
Dois meses sem ver Luísa. À noite, distraía-me a repetir a mim mesmo que
ainda a amava e havia de ser feliz com ela. Hipocrisia: todos os meus
desejos tinham murchado. Tentei renová-los, recompus mentalmente os
primeiros encontros, na ausência de Adrião, entrevistas a furto no jardim, a
tarde que passamos no Tanque, sob árvores. Mas apenas consegui recordar
com viveza um raio de sol que atravessava a ramagem e vinha arrastar-se
na pedra coberta de musgo, a garça displicente, um sinal escuro que Luísa
tem abaixo do seio esquerdo. Lembrei-me também de me haver ela uma
vez plantado os dentes no pescoço. Ao cabo de algumas horas a parte
mordida estava vermelha e necessitando o disfarce de uma rodela de pano.
Depois, a mancha se havia tornado gradualmente esverdeada, amarelada,
afinal desaparecera. (RAMOS, 2002, p. 208.).
Impõe-se, nesse livro, pois, a presença de um indivíduo problemático, que, imerso
numa realidade frustrante, da qual irrompe todo o seu anseio por libertação, inicialmente
tenta encontrar refúgio na escritura de um romance e, não conseguindo cumprir com a sua
tarefa de falar sobre matéria tão distante (episódio histórico do Bispo Sardinha, devorado
pelos índios caetés), encontra no seu caso amoroso com Luísa uma chance de romper com
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as normas sociais e, conseqüentemente, de deixar aflorar em si o limite selvagem que existe
dentro de cada um de nós: “Luísa quis mostrar-me uma passagem do livro que lia. Curvou-
se. Não me contive e dei-lhe dois beijos no cachaço”. (RAMOS, p. 7).
Trata-se de uma estrutura narrativa em dois planos: o romance dentro do romance.
Essa construção dupla tem como finalidade mostrar com clareza a estrutura da alma de João
Valério. Fica evidente que a essência (o todo) do texto não se apresenta como contada, e
sim como existente, uma vez que deriva da totalidade da psique do protagonista, um caeté
civilizado: “Ateu! Não é verdade. Tenho passado a vida a criar deuses que morrem logo,
ídolos que depois derrubo uma estrela no céu, algumas mulheres na Terra...” (IBID, p.
219.).
O mundo exterior torna-se apenas um registro dos fatos, cujas razões motivadoras
devem ser inferidas pelo próprio leitor, uma vez que os aspectos físicos são convocados tão
somente para a liberação da subjetividade do personagem-narrador, que se desloca
constantemente por diferentes cenários, tingindo-lhes, pois, com as cores do seu estado
interior:
Sentei-me no banco. Lá estava à beira do lago a garça pensativa e bicuda,
com a perna invisível encolhida sob a asa. Lembrei-me da entrevista que ali
tive com Luísa, uma noite, enquanto o luar brigava com as nuvens. Agora
não havia luar. As palmeiras, crescidas, iam quase ocultando a frontaria do
armazém; entre as folhas dos tinhorões brilhavam lâmpadas escondidas;
trepadeiras enlaçavam as grades. (IBID, p. 154.).
Do mesmo modo, os personagens que vão sendo elencados, página após página,
apesar de falarem abundantemente (recurso típico da literatura realista), comparecem
apenas para generalizarem as concepções filosóficas de João Valério e transformá-las em
“verdades”, isto é, com exceção de Luísa, em momento algum esses personagens evoluem
no texto; pelo contrário, sendo secundárias dentro da obra, não passam de portadores da
idéia de que, na pasmaceira daquela vida provinciana, os acontecimentos banais tornam-se
o centro das atenções, emprestando sentido a existências vazias:
Falaram de espiritismo, de pessoas conhecidas que se desgarravam da
Igreja. Aqui e ali apareciam timidamente alguns adeptos. Na opinião do Dr.
Liberato, eram eles os verdadeiros crentes: tinham uma convicção que
faltava aos outros.
- Crentes? Exclamou Pascoal. Então o Neves é crente?
93
- Com certeza. Não é o chefe da mixórdia?
- Um safado é o que ele é.
- E que tem isso? Fez o Doutor.
Interrompeu-se, engolindo o pigarro. Isidoro Pinheiro endireitou-se, ia
decerto defender o Neves, quando Nicolau Varejão entrou na sala:
- Espiritismo? É a única verdade que há neste mundo.
- Como é que o senhor sabe? Perguntaram.
- Pelos sonhos. Coisa que eu sonho é um evangelho. o falha, nunca
falhou. Assim que eu enviuvei... Nem gosto de pensar, é um caso triste. E
aqui para nós: eu me lembro da minha última encarnação.
- O senhor se lembra... Atalhou Pascoal.
- Positivamente. Sou reservado porque muito incrédulo, mas juro, meto
a mão no fogo.
- Extraordinário! Bradou Isidoro Pinheiro, sério, oferecendo-lhe uma
cadeira. O senhor era homem ou mulher?
Nicolau Varejão olhou-o por cima dos óculos de vidros rachados, sentou-
se, franziu as narinas, disse em tom confidencial:
- Homem.
- Brasileiro?
- Brasileiro, carioca. Como os amigos não ignoram, lembrar-se a gente do
que foi noutra vida é comum. E eu apelo aqui para o Doutor.
- Certamente, confirmou o Dr. Liberato. Vá contando. (RAMOS, p.15).
Forçando um pouco a comparação, poderíamos dizer que os personagens de Caetés
agem a partir de um “estilo marionete”, comum nos palcos expressionistas. Ou seja,
agrupados em cenas periféricas, que o autor enreda na ação central, seus diálogos
funcionam como comentários superficiais, condicionados às vibrações do espírito de João
Valério. Reduzidos a algumas características essenciais, transformam-se em elementos
cinéticos de um quadro cênico, parte de uma pintura em constante movimento:
Voltei-me. Tornava a contemplar Luísa, oculto por detrás das cortinas,
enlevado, enquanto lá dentro as conversações zumbiam.
- Joguem uma partida de xadrez, pediu o Dr. Liberato. Vamos apreciar isso.
Adrião sentou-se à mesa pequena, sob o lustre, e começou a dispor as peças
no tabuleiro; Nazaré, defronte dele, estendeu-lhe as mãos fechadas, a
sortear as cores:
- Peão de dama, hem? (RAMOS, p.50).
Esse “coro falado”, colocado assim fora de si, isto é, exibindo apenas traços mais
exageradamente salientes, ascende, entretanto, à condição de representante arquetípico de
uma sociedade provinciana, o que muitas vezes resulta numa caricatura grotesca. “(...) João
Valério os enxerga e mostra pelo lado de fora, como bonecos que se agitassem,
94
gesticulassem e declamassem, numa representação dramática”, diz Rui Mourão a esse
respeito (MOURÃO, 2003, p. 37.). Vejamos alguns exemplos:
Adrião, arrastando a perna, tinha se recolhido ao quarto, queixando-se de
uma forte dor de cabeça. (RAMOS, p. 7.).
Vitorino Teixeira, acavalando os óculos de ouro no grosso nariz vermelho,
abriria o cofre, contaria meu saldo com lentidão e, pondo o dinheiro sobre a
carteira, deixaria cair, naquela voz morosa e nasal, que arrepios (...).
(IBID, p. 8.).
Afinal eu não tinha culpa. Tão linda, branca e forte, com as mãos de longos
dedos bons para beijos, os olhos grandes e azuis... De Adrião Teixeira, um
velhote calvo, amarelo, reumático, encharcado de tisanas.
(IBID, p. 13.).
Nicolau baixou o carão trigueiro, coberto de marcas de varíola, ajeitou os
óculos, tomou o café e declarou com lealdade (...).
(IBID, p.17).
Às vezes, tempestuosa, surgia D. Engrácia, de vastas roupas negras, botinas
de elástico, mantilha e guarda-chuva. Como tinha trinta contos em depósito
no armazém dos Teixeira, dispensavam-lhe atenções especiais.
Terrivelmente indiscreta, censurava, diante de Luísa, os decotes baixos e os
cabelos curtos, imoralidades, e dizia a Clementina que histerismo é
descaramento. Esquadrinhava tudo, metia em tudo o rosto de fuinha, e se
alguma coisa via que lhe desagradasse, desembuchava logo. Agressiva e
espalhafatosa, falava como se quisesse espetar a gente com o nariz em bico.
(IBID, p. 55.).
A maior parte das vezes, em contraponto aos momentos contemplativos do
protagonista, esses grupos humanos (no refeitório da pensão, no armazém, na redação do
semanário local...) “entregam-se a animados bate-papos autênticos bate-papos que não
têm outra finalidade senão solidarizar os homens diante da necessidade geral de fazer
passar o tempo” (MOURÃO, 2003, p. 38.):
Fugi para a varanda. Veio do piano um tango arrastado. Acendi um cigarro.
As notas diluíam-se no barulho da usina elétrica.
Na calçado do armazém fronteiro duas mulheres iam e vinham; à direita
vultos esquivos esgueiravam-se para o Pernambuco-Novo; à esquerda um
automóvel rodava silencioso; em frente, além da estrada da Lagoa, negra
àquela ora, tremiam ao longe pequeninos pontos luminosos.
Voltei-me. Tornava a contemplar Luísa, oculto por detrás das cortinas,
enlevado, enquanto lá dentro as conversações zumbiam.
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- Joguem uma partida de xadrez, pediu o Dr. Liberato. Vamos apreciar isso.
(RAMOS, p.50.).
Lembremos que o jogo de xadrez é o símbolo de combate (estratégia guerreira),
bem como o tabuleiro é a representação do mundo manifestado (campo de ação). Como
todo enxadrista, Adrião “luta” contra seu rival, João Valério, com rigor e inteligência.
Valério, por sua vez, “não tem embocadura para o xadrez”, ou seja, sempre se resigna a
perder uma partida. Quando Adrião, após lhe mostrar a carta anônima que revela a sua (a
dele, João Valério) relação pecaminosa com Luísa, o faz prometer que deixará Palmeira dos
Índios (e, conseqüentemente, a amante), João Valério se limita a dizer coisas do tipo:
“compreendo”, “perfeitamente”, “prometo”, “muito obrigado, estamos de acordo”, ou seja,
colocado em xeque, entrega as armas, e, com o suicídio de Adrião, conforma-se com o
xeque-mate!
Valério diz sentir-se pequenino e mesquinho por abandonar Luísa, com quem teria
uma “obrigação moral”, mas, paradoxalmente, vacila apenas por um rápido instante antes
de virar-lhe as costas e deixá-la aos prantos, sem remorso algum, como veremos, um pouco
mais adiante, quando reflete que a sua “culpa realmente não é grande, pois estão vivos
numerosos homens que certas infidelidades molestam” (RAMOS, p. 216.).
Ele se inquieta ao se reconhecer como um sujeito inconstante, cujos “desejos
excessivos que desaparecem bruscamente” (
IBID
, p. 218) fazem dele um “caeté de olhos
azuis, que fala português ruim, sabe escrituração mercantil, jornal, ouve missas” (ibid, p.
218), mas essas “explosões súbitas de dor teatral”, como ele mesmo afirma, “logo [são]
substituídas por indiferença completa” (
IBID
, p. 218), ou seja, ele se realiza plenamente
nas suas fantasias, o que acaba por revelar toda a sua precariedade enquanto ser humano.
Nesse sentido, nada responde ao seu grito, isto é, nesse universo insuportavelmente
limitado (e limitador) de Palmeira dos Índios, de onde “não consegue escapar”, não há,
também, como fugir da radicalidade dessa angústia de estar sempre “além de si”, além de
qualquer controle de seus próprios atos (no plano sensual ou imaginário). Assujeitado à
ordem simbólica, João Valério não cessa jamais de buscar a satisfação completa, pois, nos
“desregramentos da imaginação”, esse “rodopiar erótico” o retira apenas ilusoriamente da
realidade para, logo em seguida, jogá-lo novamente no vazio existencial deixado ao longo
dessas trilhas desejantes:
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É isto, um caeté. Estes desejos excessivos que desaparecem bruscamente...
Esta inconstância que me faz doidejar em torno de um soneto incompleto,
um artigo que se esquiva, um romance que não posso acabar... O hábito de
vagabundear por aqui, por ali, por acolá, da pensão para o Bacurau, da
Semana para a casa do Vitorino, aos domingos, pelos arrabaldes; e depois
dias extensos de preguiça e tédio passados no quarto, aborrecimentos sem
motivo que me atiram para a cama, embrutecido e pesado... Esta
inteligência confusa, pronta a receber sem exame o que lhe impingem... A
timidez que me obriga a ficar cinco minutos diante de uma senhora,
torcendo as mãos com angústia... Explosões súbitas de dor teatral, logo
substituídas por indiferença completa... Admiração exagerada às coisas
brilhantes, ao período sonoro, às miçangas literárias, o que me induz a
pendurar no que escrevo os adjetivos de enfeite, que depois corto...
(RAMOS, p. 218).
Diante do amálgama brutal das forças pulsionais Eros e Thánatos João Valério
se julga “um selvagem, ligeiramente polido, com uma tênue camada de verniz por fora”
(
IBID
, p. 218), e é nessa borda da emoção que “denuncia e reage” à moral burguesa,
impositiva e homogeneizadora de discursos e valores, a qual, em nome de um “bem
coletivo”, se opõe aos movimentos singulares do sujeito. Valério, na sua linguagem-ação,
“transgride” esses princípios e se interroga sobre certezas históricas socialmente instituídas:
Que semelhança não haverá entre mim e eles! Por que procurei os brutos de
1556 para personagens da novela que nunca pude acabar? Por que fui
provocar o Dr. Castro com motivo e fiz de um taco ivirapema para rachar-
lhe a cabeça?
Um caeté. Com que facilidade esqueci a promessa feita ao Mendonça! E
este hábito de fumar imoderadamente, este desejo súbito de embriagar-me
quando expermento qualquer abalo, alegria ou tristeza!
Se Pedro Antônio, Balbino, pobres-diabos que por vivem, soubessem
exprimir-se, qauntos pontos de contacto!
Diferenças também, é claro. Outras raças, outros costumes, quatrocentos
anos. Mas no íntimo, um caeté. Um caeté descrente.
Descrente? Engano. Não há ninguém mais crédulo que eu. E esta exaltação,
quase veneração, com que ouço falar em artistas que não conheço, filósofo
que eu não sei se existiram!
Ateu! Não é verdade. Tenho passado a vida a criar deuses que morrem
logo, ídolos que depois derrubo... uma estrela no céu, algumas mulheres
na Terra... (RAMOS, p. 219).
Desse modo, Caetés põe em cena a especificidade do que é insuportável em nosso
mundo: a tensão de vivermos imersos e desamparados em meio a uma realidade hostil e
alienante, da qual derivam tabus que vão de encontro a muitos de nossos anseios. Essa
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realidade, que aí assoma na psique do protagonista, se traduz em acontecimentos banais que
se tornam o centro de sua vida vazia e ocupam sua mente:
Às quintas e aos domingos ia aos chás de Adrião. Ficávamos tempo
estirado cavaqueando e era para mim um verdadeiro prazer tomar parte
em duas conversações cruzadas sobre moda e câmbio. Algumas vezes
Luísa falava de contos, versos, novelas. O marido ferrava no sono. Ou
então, com enormes bocejos, se ia claudicando, a lamentar que a
enxaqueca o lhe permitisse saborear um enredo tão filosófico. Ele
entendia bem de comércio; o resto era filosofia. (IBID, p.8).
Mas apesar do enfoque dado a um pathos fundamentalmente niilista, nesse livro
um “humor algo cortante” (CANDIDO, 1992, p. 16) que contribui para envolver o leitor e
produzir assim um efeito de impiedoso sarcasmo perante as coisas inócuas:
Fiz a carta com inveja. Ora ali estava aquela viúva antipática, podre de rica,
morando numa casa grande como um convento, se ocupando em ouvir
missa, comungar e rezar o terço, aumentado a fortuna com avareza para a
filha de Nicolau Varejão. E eu, em mangas de camisa, a estragar-me no
escritório dos Teixeira, eu, moço, que sabia metrificação, vantajosa prenda,
colaborava na Semana de Padre Atanásio e tinha um romance começado na
gaveta. É verdade que o romance não andava, encrencado miseravelmente
no segundo capítulo. Em todo o caso sempre era uma tentativa. (RAMOS,
p.13).
Assim irônico, João Valério, ébrio de movimento, vai “perambulando pelos
cenários”, desvelando implacavelmente o frio cinismo que caracteriza as relações sociais e
econômicas nessa cidadezinha do interior do estado de Alagoas (destruição das fachadas
ainda existentes), conforme percebemos no fragmento abaixo, que revela
,
sem moralismos,
a podridão dos costumes através do comportamento dos personagens, pequenos burgueses
esnobes e tiranos (tabelião, advogado, vigário, jornalista, médico...):
- Veja que desgraça, veio dizer-me Isidoro. Não fiz o brinde, ninguém fez
brinde. Tanta lorota, e esqueceram a essencial. Nem o Barroca, nem o
Miranda, nem o promotor...
- Você ainda me vem falar nessa besta, homem?
E responsabilizei o Dr. Castro pela indiferença de Luísa. Resolvi alinhavar
uma desculpa, sair dali, meter-me em casa, arrancar os cabelos. Procurava
o chapéu, desejando que o teto viesse abaixo, quando Dr. Castro se
achegou, afável, numa tentativa risonha de camaradagem:
- O amigo, se não me engano, é comerciante.
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- Não senhor.
- Empregado público, talvez?
- Também não.
- Estudante?
- Nem isso. Com licença.
Dirigi-me à Teixeira, que entrava com um bandolim:
- D. Josefa, o meu chapéu... A senhora sabe?
- Para quê?
- Tinha necessidade de retirar-me.
- Não há necessidade. Ninguém sai antes das dez horas.
- É que estou meio doente. Se a senhora tivesse a bondade...
- Não há bondade. Cura-se dançando. Para o piano, Marta.
E obrigou-me a dançar com D. Priscila. O promotor deu o braço a
Clementina. Luísa recusou Isidoro, pretextando enxaqueca. Depois o
Barroca foi para o piano, a Teixeira desafinou o bandolim, arranjaram-se
outros pares. A um convite silencioso de Marta sorri constrangido, declarei
que o jantar tinha sido irreponchável. E abandonei-a ao Pinheiro, fugi para
o jardim, fazendo tenção de consultar, quando chegasse a casa, o
dicionário. (RAMOS, p. 84-85).
Enquanto o tempo vai evoluindo, o que vemos é o ser humano cada vez mais
próximo de tornar-se irracional, levado por instintos de sobrevivência, mesclados por
sentimentos muitas vezes assistidos, como o egoísmo e a violência:
Depois daquela crise, na promiscuidade e na azáfama dos dias de angústia,
existia entre nós todos uma familiaridade estranhável. Dormíamos quase
sempre juntos, homens e mulheres, sentados, como selvagens. Muitas
necessidades sociais tinham-se extinguido; mostrava-mos à vezes
impaciência, irritação, aspereza de palavras; pela manhã as senhoras
apareciam brancas, arrepiadas, de beiços amarelentos; à noite
procurávamos com egoísmo os melhores lugares para repousar. Enfim
numa semana havíamos dado um salto de alguns mil anos para trás.
(RAMOS, p.196).
Ao contrário de seus contemporâneos na década de 30 (José Lins do Rego, Jorge
Amado, Raquel de Queirós, dentre outros), Graciliano não se dá às expansões líricas.
Caetés revela isso. Valério, mesmo quando se diz apaixonado por Luísa, nunca chega a
tratar desse amor com arrebatamentos românticos: “(...) à noite fazia-lhe sozinho
confidências apaixonadas e passava uma hora, antes de adormecer, a acariciá-la
mentalmente. Até certo ponto isto bastava à minha natureza preguiçosa” (
IBID
, p.8), diz ele,
reticente. Aliás, se percebe que, satisfeito o seu desejo de possuir aquela “fêmea sublime”, a
paixão arrefece, o que não tarda em assumir para si mesmo:
99
Não lhe caí aos pés, com uma devoção mais ou menos fingida. A felicidade
perfeita a que aspirei, sem poder concebê-la, rapidamente se desfez no meu
espírito. Livre dos atributos que lhe emprestei, Luísa me apareceu tal qual
era, uma criatura sensível que, tendo necessidade de amar alguém, me
preferira ao Dr. Liberato, ao Pinheiro, aos indivíduos moços que
freqüentam a casa dela. (IBID p.140).
João Valério trata a hipocrisia, o adultério, a vaidade, a desconsideração ao
próximo, a imoralidade, com a maior naturalidade e complacência:
- Realmente, disse comigo, que prejuízo traz ao mundo a preferência que
ela me dá? E Deus liga pouca importância a bichinhos miúdos como nós:
tem em que se ocupar e não vai bancar o espião de maridos enganados. É
impossível que algum Deus considere as minhas relações com Luísa
censuráveis. Ninguém as conhece. nós podemos julgá-las e os nossos
corações não nos acusam. Padre Atanásio vive a dizer no público que usar
mangas curtas é imoralidade. E as mulheres desnudam o colo, mostram os
braços, convencidas de que procedem mal. Luísa é inocente: não se
envergonha do que faz. (IBID, p.142.).
O tema da sexualidade, recorrente na dramaturgia expressionista, em Caetés tem,
pois, valor de pretexto, sendo um instrumento para libertar Valério da dimensão do
cotidiano. Conquista, posse e devoração simbólica: esse é o tripé que sustenta a relação de
Valério com Luísa. Entretanto, seu querer não é um simples “capricho”; como vimos até
aqui, é a expressão de uma necessidade existencial:
Caciques? Que entendia eu de caciques? Melhor seria compor uma novela
em que arrumasse Padre Atanásio, o Dr. Liberato, Nicolau Varejão, o
Pinheiro, D. Engrácia. Mas como achar enredo, dispor as personagens, dar-
lhes vida? Decididamente não tinha habilidade para a empresa: por mais
que me esforçasse, conseguiria garatujar uma narrativa embaciada e
amorfa.
De repente imaginei o morubixaba pregando dois beijos na filha do pajé.
Mas, refletindo, compreendi que era tolice. Um selvagem, no meu caso,
não teria beijado Luísa: -le-ia provavelmente jogado para cima do piano,
com dentes e coices, se ela se fizesse arisca. Infelizmente não sou
selvagem. E ali estava, mudando a roupa com desânimo, civilizado, triste,
de cuecas.
- Por que foi que ela não contou aquilo?
Veio-me um pensamento agradável. Talvez gostasse de mim. Era possível.
Olhei-me ao espelho. Tenho o nariz bem feito, os olhos azuis, os dentes
brancos, o cabelo louro vantagens. Que diabo! Se ela me preferisse ao
marido, não fazia mau negócio. E quando o velhote morresse, que aquele
trambolho não podia durar, eu amarrava-me a ela, passava a sócio da firma
e engendrava filhos muito bonitos.
100
Embrenhei-me numa fantasia doida por aí além, de tal sorte que em poucos
minutos Adrião se finou, Padre Atanásio pôs a estola sobre a minha mão e
a de Luísa, os meninos cresceram, gordos, vermelhos, dois machos e duas
fêmeas. À meia-noite andávamos pelo Rio de Janeiro; os rapazes estavam
na academia tudo sabido, quase doutor; uma pequena tinha casado com um
médico, a outra com um fazendeiro – e nós íamos no dia seguinte visitá-las
em São Paulo. (RAMOS, p.20-21).
Em uma condição pulsional contrariada pelas normas sociais, Valério, no
transcorrer da narrativa, não demonstra desejo sexual apenas por Luísa. Vejamos como se
refere, por exemplo, à Marta Varejão, rica herdeira de D. Engrácia:
(...) Dedicava-me às minhas obrigações singelas e as idéias esvoaçavam
em redor de Marta Varejão.
Realmente não era feia, com aquele rostinho moreno, grandes olhos
pretos, boca vermelha de beiços carnudos, cabelos tenebrosos, mãos de
mulher que vive a rezar. E alta, airosa, simpática, sim senhor, ótima mea.
Se ela me quisesse, eu não tinha razão para considerar-me infeliz. (IBID,
p.34.).
Valério vê no casamento por dinheiro um dos meios de subir na escala sócio-
econômica:
(...) E se a D. Engrácia lhe deixasse a fortuna, bom casamento, negócio
magnífico. Não que se preocupasse exclusivamente com o dinheiro, pois se
Marta fosse vesga e coxa, não aceitaria por preço nenhum. Mas era bonita,
e os bens da viúva davam-lhe encantos que a princípio eu não tinha
descoberto. (RAMOS, p.33.).
No fim ele se aproveita de um incidente estúpido (suicídio de Adrião) para se dar
bem, uma vez que se torna sócio da firma dos irmãos Teixeira e realiza, então, seus ideais
financeiros.
Todos os trinta e um capítulos do livro abarcam, de alguma maneira, esse conflito
entre norma e instinto vivido pelo protagonista, seja nos seus momentos de isolamento
íntimo, seja sua na descrição do entorno. Para isso, há, por vezes, o recurso de elementos
simbólicos, que distorcem, pois, a realidade empírica. Nesse sentido, nas cenas em que João
Valério e Luísa se encontram às escondidas, no jardim do casarão dos Italianos, é sempre
sob o luar e observados pela garça de bronze, o que podemos associar, respectivamente, ao
desregramento sexual e à vigilância:
101
Ela ergueu-se de chofre:
- Fiz mal em ouvir essas loucuras.
Afastou-se quase sufocada. Compreendi então que estava num banco de
jardim. E espantei-me de encontrar em redor tudo em ordem. A lua andava
brincando com as nuvens, como se aquele extraordinário acontecimento
não alterasse a harmonia do universo. Moviam-se lentamente os tinhorões.
A fachada do armazém fronteiro não se tinha desmoronado. E a garça de
bronze, à beira da água, levantava a perna inútil com displicência,
mostrava-me o bico num conselho mudo, que não percebi.
Na rua, apesar da aparência calma do mundo exterior, pareceu-me que
havia em qualquer parte um cataclismo. É possível que naquele momento
alguma operação se realizasse no meu cérebro. Não tive disto nenhuma
consciência, apenas sei que duas ou três frases me feriram os ouvidos com
obstinação. (IBID, p.60).
A lua, elemento natural poético por excelência, aparece como uma metáfora
paródica das palavras falsas, sem valor, que João Valério profere à Luísa: “É a senhora que
eu amo, a senhora, a senhora” (
IBID
, p.60). Como uma criança, ela representa os impulsos
instintivos do protagonista, abandonado ao transe de um arrepio vital que arrebata sua alma
vagabunda, entregue ao sabor da aventura.
a garça, nas tradições européias e africanas, simboliza a indiscrição daquele que
mete o nariz (o bico) em tudo (Dicionário de Símbolos, p.460); e o bronze, uma fraqueza
psíquica e moral. Em Caetés, é a garça de bronze que, em mais de uma oportunidade, vai
“aconselhar” João Valério a controlar esse tumulto da emergência do desejo sexual. Valério
sofre a ação dos olhos vigilantes desse Outro que permanece parado, estático, como se
quisesse também imobilizá-lo com a força de um olhar perturbador. Como a Medusa, a
garça o petrifica de horror, o faz refletir sobre sua própria culpa (exaltação vaidosa dos
desejos), mas, sem que suporte a visão dessa culpa de forma objetiva, ele acaba
pervertendo-se em impulsos paralisantes da consciência, que não consegue evitar:
Abracei-a com furor. Sobre o banco do jardim os nossos suspiros
morreram. As folhas dos tinhorões agitavam-se em silêncio. E a garça
displicente erguia o bico no mesmo conselho
mudo, invariável, que nunca
pude compreender. (RAMOS, p.156).
Quanto à estrela vermelha que brilha sobre o monte negro, como o próprio Valério
diz, é a sua confidente e protetora, ou seja, funciona como um farol projetado na noite do
seu inconsciente:
102
Cerrei as janelas e levei-a para a alcova.
Quando, com a aproximação da madrugada, me retirei, Luísa veio
acompanhar-me. Na calçada, depois do último abraço, lembrei-me da noite
em que ela me repeliu naquele mesmo lugar. Tomei-lhe as mãos com
arrebatamento e cobri-as de beijos.
Afastei-me, tremendo na escuridão, receando que alguém me encontrasse.
À porta de casa retrocedi, com a idéia esquisita de procurar a minha estrela
protetora sobre o monte negro. E sorri interiormente. Fui à beira do açude,
avistei-a. Tinha mudado de lugar e estava menor.
Contemplei-a, supersticioso, quase convencido de que ela me enviava
parabéns lá de cima. (IBID, p.139).
Enquanto o olhar da garça o paralisa com seu “conselho mudo”, é como se a estrela,
perdida na imensidão do céu, lhe devolvesse um olhar que, embora parta do alto, cada vez
mais distante, tem a mesma ansiedade melancólica de quem, como ele, procura
desesperadamente ir contra um alheamento indesejado. É como se o astro cintilante, não
querendo se afastar da terra, se aproximasse do coração de Valério, solidário, íntimo,
arrebatando-o para um sonho de renovação e transcendência.
Sem o escudo protetor da racionalidade, portanto, João Valério se embrenha numa
fantasia doida, misturando realidade e ficção:
Continuei. Suando, escrevi dez tiras salpicadas de maracás, igaçabas, penas
de araras, cestos, redes de caroá, jiraus, cabaças, arcos e tacapes. Dei
pedaços de Adrião Teixeira ao pajé: o beiço caído, a perna claudicante, os
olhos embaçados; para completá-lo, emprestei-lhe as orelhas de Padre
Atanásio. Fiz do morubixaba um bicho feroz, pintei-lhe o corpo e enfeitei-
o. Mas aqui surgiu uma dúvida: fiquei sem saber se devia amarrar-lhe na
cintura o enduape ou a canitar. Vacilei alguns minutos e afinal me resolvi a
pôr-lHe o enduape na cabeça e o canitar entre parênteses. (RAMOS, p.40).
Essa busca de Valério por resgatar um passado remoto que lhe é desconhecido,
talvez seja uma tentativa de encontrar na cultura dos índios caetés uma primitiva energia
vital e reciclá-la, (re) aproveitando dela tudo o que é impensável no cotidiano mesquinho de
Palmeira dos Índios, como a liberdade de expressar, sem culpa, seus “desejos excessivos
que desaparecem bruscamente...”; de ora “vagabundear por aqui, por ali, por acolá”, ora de
passar “dias extensos de preguiça e tédio” atirado no quarto; enfim, de se deixar levar pelos
“desregramentos da imaginação”.
103
Valério não tem uma biografia. Muito pouco sabemos da sua origem, a não ser que
passou por uma derrocada financeira (perda da casa e do gado que herdara). Nesse sentido,
podemos dizer que ele procura se (re) construir através da identificação com os selvagens
caetés (ainda que tal identificação seja parcial, visto que ele se considera um “caeté
ligeiramente polido, com uma tênue camada de verniz por fora”).
Isso implica uma supressão do puramente individual, aparecendo, em seu lugar, a
representação de um protótipo mítico que, em oposição à sociedade civilizada, tenta se
desprender da ética pequeno-burguesa, da família e dos vícios” sociais, como a
religiosidade, tornando-se, “no íntimo, um caeté. Um caeté descrente” (
IBID
, p.219).
A discussão sobre a ética religiosa, aliás, abre uma fresta no texto, quando, no início
do capítulo 18, por exemplo, João Valério diz:
Várias vezes peguei a Bíblia para tirar dinheiro, e o livro sempre se abria
no Eclesiastes, mostrando-me a frase de Salomão enjoado. Repetindo-a,
senti uma atroz amargura. Uvas verdes? Que me importava Salomão?
(IBID, p. 133.).
Infere-se daí certo tom de desdém em relação aos ensinamentos bíblicos. Para
Valério, a Bíblia serve apenas como cofre, uma vez que é entre as páginas do Eclesiastes
21
que guarda o seu dinheiro. A própria figura do Padre Atanásio já é uma ironia em relação à
ganância e à indiferença da Igreja para com os mandamentos divinos, uma vez que, assim
como os demais personagens do livro, ele também tem uma moral utilitária:
Fui buscar ao quarto o chapéu e a bengala. Como tinha a certeira
desprovida, retirei a Bíblia da gaveta, procurei dinheiro entre as folhas do
Velho Testamento. Enquanto me fornecia, li: “E achei que é mais amarga
21
O livro contém as reflexões e experiências de um filósofo cuja mente estava em conflito sobre os
problemas da vida. Depois de falar das desilusões que havia tido, apresenta o enfoque do
materialismo epicureu - que não há nada melhor que o gozo carnal dos prazeres da vida. À medida
que esta idéia aparece repetidamente através do livro, é evidente que o escritor lutava com ela,
enquanto que ao mesmo tempo expressava verdades profundas acerca do dever e das obrigações
do homem para com Deus. Finalmente, parece sair de suas especulações e dúvidas até alcançar a
conclusão nobre de 12:13: "Teme a Deus", e guarda os seus mandamentos, pois isto é todo o
dever do homem.
104
do que a morte da mulher, a qual é laço de caçadores, o seu coração rede,
as suas mãos cadeias”.
E a minha tristeza aumentou, porque a rede em que por muito tempo me
debati deixara fugir a presa por entre as malhas. E as cadeias, que desejei
arrastar, tinham-se afrouxado de repente, abandonando-me, livre e inútil,
junto a uma velha que chorava por um menino de chapéu de palha.
Saí pesadamente, fazendo curvas com a bengala na calçada. Quando
penetrei no largo, que tinha agora, com os estabelecimentos fechados e as
barracas desertas, uma aparência de acampamento abandonado, avistei
Padre Atanásio defronte do cinema, conversando com dois matutos.
- Ora viva! Gritou. Caiu-me a jeito. Ia agora... Casamento de parentes é
com o Bispo. Precisa tirar licença, gasta aí...
- Mas, seu Vigário, replicou um dos roceiros, eu não posso pagar a licença.
Se V.S.
a
me fizesse o favor...
- Já lhe disse que é com a Diocese. Vamos descendo por aqui, temos
negócio. Pois não case, filho de Deus. Se você nem pode pagar licença,
como sustenta família? Ou então pegue outra. Casamento de primos é ruim.
E vão-se embora, não me amolem.
Os matutos desapareceram. (RAMOS, p. 122.).
Aparece alinhavado na passagem acima um dos motivos nucleares do
Expressionismo: o conflito entre o “arcaico” e o “civilizado”. De um lado, os matutos, com
sua simplicidade natural; de outro, o Reverendo, impondo valores a partir do que considera
normal, adequado e conveniente aos seus interesses particulares (leia-se: individualismo
burguês). “No meio desse fogo cruzado”, João Valério reflete sobre a desorientação e a
deturpação do ser humano imerso numa realidade deprimente (muitas vezes restritiva e
constrangedora):
Às vezes Luísa se revoltava. E era sempre em razão de uma desgraça que
não podia suprimir. Atirava tumultuosamente expressões confusas, que
traduziam idéias justas, com certeza, e bons sentimentos, porque eram dela.
Falava do sapateiro que tem a mulher tísica e uma ninhada de filhos:
- Está na tripeça, batendo. E os pequenos esfarrapados, sujos... Ouço
daqui as pancadas do martelo e a tosse da mulher. Vocês não ouvem?
Ninguém ouvia.
- Os pés inchados, tão amarelos, as roupas imundas!
Adrião erguia os ombros com enfado:
- Que nos interessa isso, filha de Deus? O homem ganha a vida, é natural.
Deixá-lo.
- Mas é que morre de fome. Vocês sabem lá o que é ter fome?
Manifestei-lhe um dia a minha surpresa:
- Não sabemos. Com efeito não sabemos. Mas a senhora também não sabe.
Deve padecer muito. Faz pena. Afinal não é o único.
105
Levou as mãos no estômago, deitou-me uns olhos que me espantaram, e
julguei que até as dores físicas do desgraçado passavam para ela.
- Aquilo dói, deve doer muito. Uma casa nojenta. É duro. lá crianças
nuas.
Compreendi a razão por que Luísa não confessou ao marido a minha
temeridade. Uma criatura como ela não agravaria nunca o sofrimento
alheio. (RAMOS, p.56-57.).
Em Luísa, encontramos, pois, uma concentrada observação fecunda dessa sociedade
desigual. Nessa atitude contemplativa impera o gesto interior estendido interagindo com o
meio, quase como a expressão de uma oração. Valério, ainda que não tenha plena
consciência disso, de certa forma se sensibiliza com a desgraça alheia, e, como num
exercício de desdobramento, essa desgraça passa a dialogar com o próprio destino dele,
fazendo com que consiga transpor a sua realidade cotidiana:
Na rua, apesar da aparência calma do mundo exterior, pareceu-me que
havia em qualquer parte um cataclismo. É possível que naquele momento
alguma operação se realizasse no meu cérebro. Não tive nenhuma
consciência, apenas sei que duas ou três frases feriram-me os ouvidos com
obstinação. Ouvi distintamente alguém invisível dizer-me: “Pobre rapaz.
Tem sofrido muito.” Passados instantes a mesma voz continuou: “Por que
havíamos de ficar inimigos? Uma leviandade sem conseqüência.”
À entrada do Pinga-Fogo, o administrador da recebedoria cumprimentou-
me, parou:
- Faz o obséquio de me dar o seu fósforo?
Não retribuí o cumprimento e atentei naquele ser fantástico: alto, magro, de
preto e de gravata branca.
- Pedi-lhe fósforo. Faz favor,,,
Meti a mão no bolso, maquinalmente, dei-lhe a caixa de fósforos.
“Pobre rapaz. Deve ter sofrido muito...” martelou-me a voz nos ouvidos. E
pensei nas marteladas do sapateiro, que Luísa ouve. (RAMOS, p. 60-61).
Poderíamos dizer que: o sapateiro, um “morto de fome”, sujo, casado com uma
tísica, tendo que sustentar uma ninhada de filhos, pelas normas e imposições morais de
códigos de comportamento, é visto como marginal (alguém não aproveitável socialmente),
e assim como Valério, um simples guarda-livros que se interessa pela mulher do patrão, é
um injustiçado da sorte, uma vez que ambos, reservadas as devidas proporções, sofrem com
as conseqüências da falta de dinheiro:
106
Quinhentos contos, seiscentos contos, nem sei, dinheiro como o diabo nas
mãos de uma velha inútil. E a afilhada, a Marta Varejão, beata e sonsa, é
que ia apanhar o cobre. Mundo muito mal arranjado.
Arrumei as contas no diário, escriturei a razão, passei os lançamentos do
borrador para os livros auxiliares. Pouco a pouco vieram afligir-me as
preocupações da véspera. Luísa guardara segredo. Provavelmente
confessaria tudo depois. Senti uma espécie de frenesi. Quase desejei que
ela falasse e os Teixeira me mandassem logo embora. (IBID, p. 13).
Assim, é compreensível que João Valério rejeite as normas sociais, pelos desvios de
comportamento, de modo a poder refletir a sua relação com o mundo em que vive,
desnudando o drama humano através do microcosmo hipertrofiado de Palmeira dos índios,
onde identificamos a típica atmosfera mesquinha e provinciana. E para frisar a
importância desse ambiente inquietante em que está imerso, Valério faz questão de
intercalar ao texto imagens noturnas da cidade: ruas desertas e silenciosas, envoltas num
luar baço; sombras confusas de um arvoredo; formas vagas; montes por todos os lados;
vultos esquivos; enfim, a cidade surge fantasmagórica, como nos filmes expressionistas:
Encostei-me à grade de ferro que circunda a calçada. Montes à esquerda,
próximos, verdes; montes à direita, longes, azuis; montes ao fundo, muito
longe, brancos, quase invisíveis, para as bandas do São Francisco. Acendi
um cigarro. E imaginei com desalento que havia em mim alguma coisa
daquela paisagem: uma extensa planície que montanhas circulam. Voam-
me desejos por toda parte, e caem, voam outros, tornam a cair, sem forças
para transpor não sei que barreiras. Ânsias que me devoram facilmente se
exaurem em caminhadas curtas por essa campina rasa que é minha vida.
(RAMOS, p. 131).
Essa atmosfera noturna é, pois, uma presença viva capaz de controlar e determinar
os atos e as emoções de Valério, que, obcecado por desejos incessantes, sente-se
enquadrado numa realidade que a toda momento ameaça derrapar e sair fora dos trilhos.
Voltei a debruçar-me à grade. Surgiram luzes. Além da campina, mancha
pardacenta, as serras tornaram-se massas negras. Nos morros à direita
esmorecia um resto de sol. em cima tremelicaram estrelas espalhadas.
(IBID, p. 131-132.).
Até o fim do livro permanecerá a estreita relação entre a paisagem exterior e os
delírios do protagonista, que, por sua flutuação emocional, convive com os sentimentos os
mais antagônicos:
107
A cidade estendia-se, lá embaixo, sob uma névoa luminosa. O vento
continuava a zumbir no arame. Fazia frio. Violões passaram gemendo.
Um caeté, sem dúvida. O Pinheiro é um santo, e eu às vezes me rio dele,
dou razão a Nazaré, que é canalha. Guardo um ódio feroz do Neves, um
ódio irracional, e dissimulo, falo com ele: a falsidade do índio. E um dia
me vingarei, se puder. Passo horas escutando as histórias de Nicolau
Varejão, chego a convencer-me de que são verdades, gosto de ouvi-las.
Agradam-me os desregramentos da imaginação. Um caeté. (IBID, p. 218).
Como vimos, João Valério está em busca de dois ideais inalcançáveis, a escritura do
romance sobre os índios caetés e o casamento com Luísa. Mas se por um lado o suicídio de
Adrião vai dar um desenho melodramático ao texto, explicitando o tema da infidelidade
associada à idéia de morte, por outro, esse ato circunstanciado acaba servindo como um
divisor de águas na narrativa do protagonista, na medida em que, a partir daí, ele vai
abandonando de vez os seus antigos ideais:
Uma tarde, girando por essas ruas, parei na beira do açude, lembrei-me da
estrela vermelha e da noite em que Luísa me repeliu. Afastei-me lento, subi
pelos Italianos. O casarão estava fechado agora, e as grades do jardim eram
um muro verde de trepadeiras. O pequenino lago, os tinhorões, a garça de
bronze, tudo invisível. Como aquilo ia longe!
Entrei a vagar pela cidade, maquinalmente, levado por uma onda de
recordações. À boca da noite achava-me na calçada da igreja.
Da paisagem admirável apenas se divisavam massas confusas de serras
cobertas de sombras.
A estrela vermelha brilhava à esquerda. Pareceu-me pequena, com as
outras, uma estrela comum. Comum, como as outras. E estive muito tempo
a contemplá-la com respeito supersticioso, contando-lhe de baixo os
segredos do meu coração. E lamentei não ser selvagem para colocá-la entre
os meus deuses e adorá-la. (RAMOS, p. 217).
Valério olha para dentro de si mesmo e dá-se conta de que o seu relacionamento
amoroso com Luísa serviu como exorcismo de um drama pessoal: o de não conseguir
controlar os seus impulsos mais profundos na inútil busca da felicidade mundana. Casar
com Luísa provavelmente significaria assumir uma culpa que não sente. Nesse sentido, a
paisagem, sem a intensidade especial de antes, mais uma vez ilustra o seu estado
psicológico. Agora a sensualidade de alguns elementos parece deslocada nesse cenário
onde a ação se passa durante grande parte da narrativa.
108
Na verdade, Valério vê-se de novo confrontado com o selvagem que o habita,
semelhante aos caetés da novela que nunca conseguiu acabar (afinal, ele também é um
caeté inacabado). Trata-se de uma escolha deliberada que faz os valores burgueses
refletirem-se num espelho deformante, acentuando de forma grotesca a sua face
esterilmente subjetiva e individualista: “Que semelhança haverá entre mim e eles!”,
conjectura João Valério, do mesmo modo que, em São Bernardo (1934), nas últimas
páginas do livro, Paulo Honório, “trancado” dentro de um mundo destituído de qualquer
dimensão humana, dá-se conta de sua própria deformidade moral e amarga, solitário, o
drama de uma vida inútil e de sensibilidade embotada.
4.2 SÃO BERNARDO
Em São Bernardo, a dor de Paulo Honório é deflagrada no movimento de
permanente torção da narrativa, a partir da convulsão integradora entre o exercício de
escrever um livro e, ao mesmo tempo, falar de si mesmo, um homem rude e mesquinho,
cujo remorso pelo suicídio da esposa, Madalena, é justamente o que lhe impõe essa ânsia de
realizar uma escritura confessional, que se constrói, pois, num ritmo vertiginoso em busca
da totalidade: “Faz dois anos que Madalena morreu, dois anos difíceis. E quando os amigos
deixaram de vir discutir política, isto se tornou insuportável. Foi que me surgiu a idéia
esquisita de, com pessoas mais entendidas do que eu, compor esta história (RAMOS, 2003,
p. 215.).
Ao “atar as duas pontas da vida”, Paulo Honório se desfaz em pedaços, uma vez que
narrador e protagonista passam a ter, diante dos nossos olhos, personalidades diferenciadas:
aquele, distanciado dos fatos, derrotado pela emoção da perda e pela desagregação do
mundo que o cerca, é capaz de uma autocrítica impiedosa; esse, deslocado para um passado
longínquo, é um fazendeiro frio e calculista, que nunca se permite despertar por qualquer
tipo de afeto:
Graciliano Ramos envereda por um caminho trágico. Mais do que traduzir os
meandros psicológicos de um indivíduo infeliz, recorre à mistura de clima de pesadelo e
109
realidade prosaica para fazer-nos compreender a profundidade da tragédia que está sendo
narrada, aproximando-se novamente dos preceitos básicos do Expressionismo.
De um lado, obcecado pelo “diabo do ciúme”, Paulo Honório vai ficando “quase
maluco”. Ele não consegue mais dormir, ouvindo ruídos, “se roendo por dentro”, aflito,
imaginando que a esposa o trai. De outro, Madalena, cada vez mais magra e pálida,
chorando “como uma fonte”, perturbada com as desconfianças e com a crueldade do
marido. A relação entre os dois torna-se extremamente conflituosa, restando a
alternativa do aniquilamento.
Fui indo sempre de mal a pior. Tive a impressão de que me achava
doente, muito doente. Fastio, inquietação constante e raiva. Madalena,
Padilha, d. Glória, que trempe! O meu desejo era pegar Madalena e dar-
lhe pancada até no céu da boca. Pancada em d. Glória também, que tinha
gasto anos trabalhando como cavalo de matuto para criar aquela cobrinha
(IBID, p. 163.).
É a demonização da figura feminina. Madalena representa a imagem da nova
mulher que surge na plena vigência do Expressionismo; politizada, instruída, bem falante,
preocupada em encontrar seu próprio espaço no mundo e, por isso mesmo, perigosa e
destruidora.
Não gosto de mulheres sabidas. Chamam-se intelectuais e são horríveis.
Tenho visto algumas que recitam versos no teatro, fazem conferências e
conduzem um marido ou coisa que o valha. Falam bonito no palco, mas
intimamente, com as cortinas cerradas, dizem:
- Me auxilia, meu bem. (IBID, p. 158-159.).
Para Paulo Honório, “mulher é um bicho esquisito, difícil de governar”. De fato:
Madalena não hesita em competir com ele em pé de igualdade nem tampouco a rebelar-se
contra a submissão e a passividade:
No dia seguinte encontrei Madalena escrevendo. Avizinhei-me nas pontas
dos pés e li o endereço de Azevedo Gondim.
- Faz favor de mostrar isso?
Madalena agarrou uma folha que ainda não havia sido dobrada.
- Não tem que ver. Só interessa a mim.
- Perfeitamente. Mas é bom mostrar. Faz favor?
- Já não lhe disse que só interessa a mim? Que arrelia!
- Mostra a carta, insisti segurando-a pelos ombros.
110
Madalena defendia-se, ora levantando o papel com os braços estirados, ora
escondendo-o atrás das costas:
- Vá para o inferno, trate da sua vida.
Aquela resistência enfureceu-me:
- Deixe-me ver a carta, galinha.
Madalena desprendeu-se e entrou a correr pelo quarto, gritando:
- Canalha1 (RAMOS, p. 165 - 166).
Esse tema sobre o impasse nas relações homem-mulher, alinhado com o que de
mais radical em termos de propostas estéticas expressionistas, em São Bernardo encontra
no suicídio de Madalena, pois, o triunfo do niilismo total.
Pode-se dizer que, a partir daí, se inicia uma frenética experimentação de sensações
por parte do protagonista, que passa a se questionar agudamente sobre o sentido e a
validade de sua própria existência:
Sou um homem arrasado. Doença? Não. Gozo perfeita saúde. Quando o
Costa Brito, por causa de duzentos mil-réis que me queria abafar, vomitou
os dois artigos, chamou-me doente, aludindo a crimes que me imputam. O
Brito da Gazeta era um besta. Até hoje, graças a Deus, nunca um médico
me entrou em casa. Não tenho doença nenhuma.
O que estou é velho. Cinq6uenta anos pelo S. Pedro. Cinqüenta anos
perdidos, cinqüenta anos gastos sem objetivo, a maltratar-me e a maltratar
os outros. O resultado é que endureci, calejei, e não é um arranhão que
penetra esta casca espessa e vem ferir cá dentro a sensibilidade embotada.
Cinq6uenta anos1 Quantas horas inúteis! Consumir-se uma pessoa a vida
inteira sem saber para quê! Comer e dormir como um porco! Como um
porco1 Levantar-se cedo todas as manhãs e sair correndo, procurando
comida1 E depois guardar comida para os filhos, para os netos, para muitas
gerações. Que estupidez1 Que porcaria1 Não é bom vir o diabo e levar
tudo? (RAMOS, p. 216.).
O ambiente da fazenda torna-se decrépito e fantasmagórico, concretizando
espacialmente o transtornado processo mental de Paulo Honório:
Sol, chuva, noites de insônia, cálculos, combinações, violências, perigos
e nem sequer me resta a ilusão de ter realizado obra proveitosa. O jardim, a
horta, o pomar abandonados; os marrecos-de-pequim mortos; o
algodão, a mamona secando. E as cercas dos vizinhos, inimigos ferozes,
avançam.
Está visto que, cessando a crise, a propriedade poderia se reconstituir e
voltar a ser o que era. A gente do eito se esfalfaria de sol a sol, alimentada
com farinha de mandioca e barbatanas de bacalhau; caminhões rodariam
111
novamente, conduzindo mercadorias para a estrada de ferro; a fazenda se
encheria outra vez de movimento e rumor.
Mas para quê? Para quê? Não me dirão? Nesse movimento e nesse rumor
haveria muito choro e haveria muita praga. As criancinhas, nos casebres
úmidos e frios, inchariam roídas pelas verminoses. E Madalena não estaria
aqui para mandar-lhes remédio e leite. Os homens e as mulheres seriam
animais tristes. (IBID, p. 217.).
Submetido, assim, a outra ótica, o protagonista funde ao seu drama pessoal uma
visada esclarecedora da ética pequeno-burguesa, pautada na competição e na religiosidade,
confessando que a superioridade que o envaidece é bem mesquinha, ou seja, o fato de ter se
colocado acima da sua classe, transformando-se em um explorador feroz, não fez dele uma
pessoa melhor nem mais feliz; pelo contrário, “hoje não canto nem rio’. Se me vejo ao
espelho, a dureza da boca e a dureza dos olhos me descontentam”, pondera, depois de
reconhecer que se desnorteou numa errada.
Trata-se de uma nova forma de ascese: a imagem final é a de um sujeito que evoluiu
espiritualmente, mas essa evolução o chega a alterar o rumo dos acontecimentos, isto é,
não soluções habituais como nos romances realistas: ”Penso em Madalena com
insistência. Se fosse possível recomeçarmos... Para que enganar-me? Se fosse possível
recomeçarmos, aconteceria exatamente o que aconteceu. Não consigo modificar-me, é o
que mais me aflige” (IBID, p. 270.).
Nesse sentido, Paulo Honório, embora seja um “novo homem”, em virtude dessa
“revolução do espírito”, longe de ter alcançado o equilíbrio, permanece um sujeito
fraturado e incompleto, figura solitária, cuja identidade, construída paulatinamente a partir
do foco radical no próprio eu, expõe, justamente na passagem dos contrários, a finitude
escandalosa e a fragilidade do ser humano em meio ao embate de forças arquetípicas que o
aprisionam: “Se houvesse continuado a arear o tacho de cobre da velha Margarida, eu e ela
teríamos uma existência quieta. Falaríamos pouco, pensaríamos pouco, e à noite, na esteira,
depois do café com rapadura, rezaríamos rezas africanas, na graça de Deus” (RAMOS, p.
218), lamenta-se.
Associados a essa imensa experiência da solidão, alguns elementos exteriores são
recorrentes no texto e aparecem, à noite, como desencadeadores do processo narrativo: as
corujas, as laranjeiras, os sapos, os grilos, o vento, funcionando, pois, como pressupostos
112
estilísticos necessários à distorção subjetiva do objetivo. Em outras palavras, tais elementos
da natureza acentuam a distância entre a realidade e o delírio (auditivo e visual),
exprimindo com clareza as confusões entre o passado e o presente, o sonhado e o real, as
quais, a partir do capítulo XIX, se tornam cada vez mais freqüentes:
Procuro recordar o que dizíamos. Impossível. As minhas palavras eram
apenas palavras, reprodução imperfeita de fatos exteriores, e as dela tinham
alguma coisa que não consigo exprimir. Para senti-las melhor, eu apagava
as luzes, deixava que a sombra nos envolvesse até ficarmos dois vultos
indistintos na escuridão.
fora os sapos arrengavam, o vento gemia, as árvores do pomar
tornavam-se massas negras.
(...).
O tique-taque do relógio diminui, os grilos começam a cantar. E Madalena
surge do lado de lá da mesa. Digo baixinho;
- Madalena!
A voz dela me chega aos ouvidos. Não, não é aos ouvidos. Também não
vejo com os olhos.
Estou encostado à mesa, as mãos cruzadas. Os objetos fundiram-se, e não
enxergo sequer a toalha branca.
- Madalena...
A voz de Madalena continua a acariciar-me. Que diz ela? (...).
A toalha reaparece, mas não sei se é esta toalha sobre a que tenho as mãos
cruzadas ou a que estava aqui há cinco anos.
Rumor do vento, dos sapos, dos grilos. A porta do escritório se abre de
manso, os passos de seu Ribeiro afastam-se. Uma coruja pia na torre da
igreja. Terá realmente piado a coruja? Será a mesma que piava dois
anos? Talvez seja até o mesmo pio daquele tempo (RAMOS, p. 118
119.).
Interessante observar o apagamento corporal do protagonista, sentado à mesa, os
impulsos retidos na ação sincopada, a energia comprimida na imobilidade, a síntese
expressiva, numa espécie de transe extático.
Interessante também, nessa estranha mescla entre realidade e fantasia, é a
surpreendente alternância entre os tempos verbais: “Lá fora os sapos arrengavam (...). O
tique-taque do relógio diminui, (...)”, a qual contribui para caracterizar essa imagem ideal
do homem expressionista, dividido entre os extremos. A redução física, bem como os
ruídos exteriores e a quebra de luminosidade, aliados à concentração e intensidade da
cena, absorvem o leitor numa imagem visual dominante, traduzindo estrategicamente a
113
fuga do realismo. O resultado é o repositório de significações simbólicas que acabam por
revelar verdades essenciais sobre a condição humana.
A noite representa o atual estado de “loucura” de Paulo Honório, que assim
consegue perceber coisas que antes, quando “lúcido” (orientado pela razão), não
conseguia. A coruja, símbolo dos adivinhos, costumeiramente associada à morte ou ao
sacrifício, aparece na obra cumprindo bem esse papel de anunciar uma tragédia. A audição
é anterior à visão. Desconfiado de que algo muito ruim está por acontecer, Paulo Honório
ouve o pio dessas “aves amaldiçoadas”, mas não pode entender o seu significado, por isso
mesmo quer exterminá-las (como se as exterminando pudesse mudar o destino inevitável).
Entretanto, depois do suicídio de Madalena, é justamente a presença da coruja, agora
conotando a possibilidade do conhecimento, que se torna essencial no ato criativo a que o
protagonista se vê impelido.
Do mesmo modo, o som do vento (mensageiro divino), dos sapos (morte e
renovação) e dos grilos (promessa de felicidade) funciona nesse sentido de presságio e,
também, de pressão psicológica para o relato (demanda interna latente). Paulo Honório,
num monólogo que envolve as personagens num diálogo de surdos, frenético e
fragmentado na distorção da realidade, não se omite de expor os seus conflitos e
acaba dramatizando o próprio processo temporal da percepção:
um grande silêncio. Estamos em julho. O nordeste não sopra e os sapos
dormem. Quanto às corujas, Marciano subiu ao forro da igreja e acabou
com elas a pau. E foram tapados os buracos de grilos.
Repito que tudo isso continua a azucrinar-me.
O que não percebo é o tique-taque do relógio. Que horas são? Não posso
ver o mostrador assim às escuras. Quando me sentei aqui, ouviam-se as
pancadas do pêndulo, ouviam-se muito. Seria conveniente dar corda ao
relógio, mas não consigo mexer-me. (RAMOS, p. 120.).
Voltando-se para dentro de si, Paulo Honório “abole”, portanto, o tempo físico.
Petrificado, ele agora é quase inumano. O homem transforma-se aos poucos num monstro:
as mãos enormes, a boca enorme, o nariz enorme, as sobrancelhas cerradas, a barba por
fazer... Pois essa sua imagem grotesca revela a crueldade e a incongruência do mundo
moderno. De nada lhe adianta o poder (do capital) se o seu círculo social é restrito, se nem
ao menos tem laços de afeto com o próprio filho. Com a morte de Madalena, amesmo
114
os “amigos mais íntimos” se afastaram: “Bichos. As criaturas que me serviram durante
anos eram bichos. Havia bichos domésticos, como o Padilha, bichos do mato, como
Casimiro Lopes, e muitos bichos para o serviço do campo, bois mansos” (
IBID
, p. 217),
declara Paulo Honório.
É evidente que, por meio desse rigoroso domínio corporal do protagonista, com as
mãos cruzadas sobre a mesa e a “máscara” moldada no exagero dos traços fisionômicos,
lembramos de imediato O grito expressionista de Edward Munch (ver comentário na
página 44 desta tese). O cenário é deslocado pela violência das emoções de Paulo
Honório. Longe de ser passivo, interpreta a ação do drama:
Fecho os olhos, agito a cabeça para repelir a visão que me exibe essas
deformidades monstruosas.
A vela está quase a extinguir-se.
Julgo que delirei e sonhei com atoleiros, rios cheios e uma figura de
lobisomem.
fora uma treva dos diabos, um grande silêncio. Entretanto o luar
entra por uma janela fechada e o nordeste furioso espalha folhas secas no
chão.
É horrível! Se aparecesse alguém... Estão todos dormindo.
Se ao menos a criança chorasse... Nem ao menos tenho amizade ao meu
filho. Que miséria!
Casimiro Lopes está dormindo. Marciano está dormindo. Patifes!
E eu vou ficar aqui, às escuras, até não sei que hora, aque, morto de
fadiga, encoste a cabeça á mesa e descanse uns minutos. (IBID, p. 221.).
Assim como Madalena, as demais personagens que costumavam freqüentar São
Bernardo tornam-se espectros em meio ao monólogo impetuoso e explosivo de Paulo
Honório, contribuindo para criar um efeito de aparição absurda e nos precipitar ainda mais
no turbilhão profundo da alma desse narrador-protagonista, cujo desejo secreto é o de vir-a-
ser-humano:
Penso que chamei Casimiro Lopes. A cabeça dele, com chapéu de couro de
sertanejo, assoma de quando em quando à janela, mas ignoro se a visão que
me dá é atual ou remota.
Agitam-se em mim sentimentos inconciliáveis: encolerizo-me e enterneço-
me; bato na mesa e tenho vontade chorar.
Aparentemente estou sossegado: as mãos continuam cruzadas sobre a
toalha e os dedos parecem de pedra. Entretanto ameaço Madalena com o
punho. Esquisito.
115
Distingo no ramerrão da fazenda as mais insignificantes minudências,
Maria das Dores, na cozinha, dá lições ao papagaio. Tubarão rosna acolá no
jardim. O gado muge no estábulo.
O salão fica longe: para irmos temos de atravessar um corredor
comprido. Apesar disso a palestra de seu Ribeiro e d. Glória é bastante
clara. A dificuldade seria reproduzir o que eles dizem. É preciso admitir
que estão conversando sem palavras.
Padilha assobia no alpendre. Onde andará Padilha? (RAMOS, p. 119-120.).
Essa idéia nuclear de mundo visto através da alma de um único indivíduo, com
personagens movimentando-se em zonas de sombra ao redor do protagonista, coloca mais
uma vez em suspeita a impressão de realidade que São Bernardo estranhamente provoca,
afinal, o espaço restrito da ação é uma propriedade rural bem característica do sertão
nordestino (uma fazenda voltada para a prática da pecuária e da agricultura), com igreja,
estábulo, curral, serraria, horta, pomares, campos extensos para o gado pastar e uma casa de
alvenaria com alpendre para receber os visitantes. Mas o que faz a diferença em relação
ao estilo realista é o tratamento dado a esse cenário, cujo ambiente é a um só tempo
convencional e carregado de sugestões simbólicas:
Uma tarde subi à torre da igreja e fui ver Marciano procurar corujas (...).
de cima escutava o barulho que Marciano, invisível, fazia. E, pelas
quatro janelinhas abertas aos quatro cantos do céu, contemplava a
paisagem. Por uma delas via embaixo um pedaço do escritório, uma banca
e, sentada à banca, minha mulher escrevendo. Com um ligeiro desvio de
olhos, afastava a cena familiar e corriqueira, divisava o oitão da casa,
portas, janelas, a cama de d. Glória, um canto da sala de jantar. Levantava a
cabeça e o horizonte compunha-se de telhas, argamassa, lambrequins.
Mais para cima, campos, serras, nuvens.
O capim-gordura tinha virado grama, e os bois que pastavam nele eram
como brinquedos de celulóide. O algodoal galgava colinas, descia, tornava
a mostrar-se mais longe, desbotado. Numa clareira da mata escura, quase
negra, desmaiavam na sombra figurinhas de lenhadores.
Uma coruja gritava. E Marciano surgia de esconderijos cheios de treva, o
pixaim branco de teias de aranha:
- Mais uma. É um corujão da peste, seu Paulo.
Eu fungava:
- Em que estará pensando aquela burra? Escrevendo. Que estupidez!
(RAMOS, p. 183-184.).
A casa está no centro do mundo, ela é a imagem do universo. Próxima de um
templo, exprime ainda com maior precisão esse simbolismo cósmico. Na torre da igreja,
Paulo Honório parece buscar uma saída para a sua condição existencial. Ali,
116
aparentemente, ele divisa a paisagem através de “quatro janelinhas abertas aos quatro
cantos do céu”. Da mesma natureza do olho, a janela simboliza abertura para o ar e para a
luz. Assim, o que importa nesta cena, pois, não é o que Paulo Honório enxerga, e sim o que
ele consegue ver com a alma: o seu desejo orgulhoso e tirânico de dominação.
Mas enquanto se coloca assim, no topo do mundo, distante dele, Madalena escreve.
A escrita representa um poder divino. Nesse sentido, o que mais dói no protagonista é saber
que, por mais que edifique, nunca se aproximará desse poder, jamais subirá à altura de
Deus, o que significa que o seu poder é limitado (e esse limite é simbolizado pelas quatro
janelinhas: o quatro simboliza o sólido, o tangível, o sensível, enfim, o mundo material).
Entretanto, a despeito de todo o seu orgulho, Paulo Honório, a partir desse
momento, abre as portas para o aperfeiçoamento místico”, ou, em outros termos, assume
uma atitude humana, que é a de buscar a perfeição (ainda que essa perfeição não possa ser
atingida). inconscientemente uma vontade de transcendência. Pensamento, sentimento,
intuição e sensação, as quatro funções da consciência estão representadas (totalidade dos
processos psíquicos). Tanto que, neste mesmo capítulo (XXXI), depois de descobrir no
chão uma folha da carta que Madalena estava escrevendo, Paulo Honório, cheio de raiva,
exige da mulher uma explicação, mas, à medida que ela se mantém tranqüila nas suas
respostas, essa raiva, transformada em angústia, vai se abrandando aos poucos, a ponto
de dar lugar ao arrependimento. Quando Madalena, então, se despede dele na sacristia,
Paulo Honório sente que aquele ciúme ainda causaria infelicidades sem remédio: Por que
não acompanhei a pobrezinha? Nem sei. Porque guardava um resto de dignidade besta.
Porque ela não me convidou. Porque me invadiu uma grande preguiça” (RAMOS, p. 192).
Não parece ser por acaso que esse arrependimento se numa sacristia, local onde
são guardados os paramentos de culto. É ali, no chão, na mesma altura da esposa, que
Paulo Honório inicia a sua referida evolução espiritual. Ali, diante do oratório, “cai num
sono embrulhado e penoso”. Deus criou os sonhos para indicar um caminho aos homens. O
caminho de Paulo Honório é o de “rios cheios e atoleiros”, isto é, o curso da sua vida, dali
em diante, começa a sofrer uma mutação. A premonição da morte de Madalena o faz
renascer. É como se ele, “um homem rude e mesquinho”, ressurgisse de uma lama (água
117
contaminada, corrompida) que, através de seu simbolismo ético, o moldou, durante
cinqüenta anos, como um ser moralmente inferior:
Quando dei acordo de mim, a vela estava apagada e o luar, que eu não tinha
visto nascer, entrava pela janela. A porta continuava a ranger, o nordeste
atirava para dentro da sacristia folhas secas, que farfalhavam no chão de
ladrilhos brancos e pretos. O relógio tinha parado, mas julgo que dormi
horas. Galos cantaram, a lua deitou-se, o vento se cansou de gritar à toa e a
luz da madrugada veio brincar com as imagens do oratório. (IBID, p.193.).
“O luar entrava pela janela”, ou seja, houve uma renovação. Paulo Honório
intuitivamente percebe uma nova modalidade de existência. Como um bêbado, que acorda
sem de nada se lembrar, ele está modificado. Madalena, assim como apareceu na sua vida,
se retirou para que ele pudesse seguir outro itinerário. “O vento cansou de gritar à toa”, pois
a violência e a cegueira de Paulo Honorário foram embora. Agora, embora a vela esteja
apagada, “a luz da madrugada vem brincar com as imagens do oratório”, pois um evento
importante está por acontecer. Tal conhecimento imediato opõe-se à luz lunar que, por ser
refletida, representa o conhecimento indireto (intuitivo, portanto, aproximando o
simbolismo da lua ao da coruja).
Se, por um lado, Paulo Honório ficou com o corpo todo doído por ter dormido
sentado na sacristia, por outro, a sua disposição para a vida passa a ser outra: “Desci ao
açude. Derreado, as cadeiras doendo. Que noite! Despi-me entre as bananeiras, meti-me na
água, mergulhei e nadei” (RAMOS, p.193.). Pois mergulhar nas águas significa uma morte
simbólica. As águas trazem vida, pureza, tanto no plano espiritual quanto no corporal. É
esse imenso reservatório de energias que faz com que ele tenha forças para suportar a perda
de Madalena, reconhecendo, finalmente, que “para Deus nada é impossível”, isto é, que
Deus tem poder ilimitado.
Com o suicídio de Madalena, então, a narrativa uma guinada. Ciente de que
foram as suas próprias escolhas que o deformaram enquanto ser humano, por terem sido
todas voltadas apenas para a ascensão material, Paulo Honório se fecha dentro de casa e
passa a viver um inferno existencial. Tudo o que construiu deixa de ter valor e, sem que ele
se importe, começa a ruir ao seu redor. Agora a propriedade assume tanto o sentido de
refúgio temporário quanto o de identificação com o próprio corpo e com o ser interior que
118
passa por uma fase estacionária do desenvolvimento psíquico: “Vivia agora a passear na
sala, as mãos nos bolsos, o cachimbo apagado na boca. Ia ao escritório, olhava os livros
com tédio, saía, atravessava os corredores, percorria os quartos, voltava às caminhadas na
sala” (
IBID
, p.198.).
Podemos depreender desse passeio pelo interior da moradia ainda outras
simbologias: a de caverna e a do labirinto, as quais, na verdade, se associam, pois ambas
são figurações de provas discriminatórias, de iniciações anteriores ao encaminhamento na
direção do centro escondido (a transformação do eu). A primeira nos aproxima da idéia de
Platão, em A República (livro VII, 514, ab), de lugar de ignorância, de sofrimento e de
punição; a segunda, do mito do Minotauro, monstro de corpo de homem e cabeça de touro
para qual o rei Minos mandou construir o labirinto, onde o prendeu. Paulo Honório se sente
um monstro, e essa monstruosidade simboliza a sua culpa, o seu erro, recalcados e ocultos
no inconsciente.
A casa, assim, sombria, metaforizando o complexo processo mental do protagonista,
forma dramática à jornada solitária desse indivíduo que, completamente amargurado,
rejeita as relações inter-pessoais e trancafia-se dentro de si, passando a viver num mundo
alienante e estagnado:
Bocejava. Cada bocejo de quebrar queixo. Vida estúpida1É certo que havia
o pequeno, mas eu não gostava dele. Tão franzino, tão amarelo!
Se melhorar, entrego-lhe a serraria. Se crescer assim bambo, meto-o no
estudo para doutor.
Lá vinham os projetos.
- Diabo leve os projetos.
O mundo que me cercava ia-se tornando um horrível estrupício. E o outro,
o grande, era uma balbúrdia, uma confusão dos demônios, um estrupício
muito maior. (RAMOS, p. 206.).
A sala de jantar é o espaço preponderante da ação subjetiva. Dali Paulo Honório
parte para percorrer os caminhos do labirinto; para ali ele retorna e permanece “acorrentado
à mesa”, tentando escrever o seu livro de memórias, sob a luz de uma vela, a única que lhe
chega como um “sol invisível” a indicar-lhe o trajeto que sua alma deve seguir a fim de
encontrar o bem e a verdade transcendental. Lá fora, as laranjeiras, indistintas nas trevas, se
movimentam no pomar, como “massas negras”, a própria imagem das coisas fugidias,
irreais e mutantes.
119
Nada parece mais louco do que Paulo Honório, um homem habitualmente tão
contrário aos desregramentos da imaginação, sentado, escrevendo, acordando lembranças.
Como um iniciado, ele está fora dos limites da razão, fora da sociedade. O louco, segundo a
simbologia das cartas de tarô, quer dizer o limite da palavra, o lado de lá da soma que não é
outra coisa senão o vazio, a presença superada, que se transforma em ausência. Ele não é o
nada, e sim a totalidade humana e material, da qual ele se desligou para avançar mais a
frente.
Outra vez a escrita reforça o seu símbolo de manifestação divina. Ao escrever,
Paulo Honório expurga sua culpa e se aproxima de Deus. Trata-se de um esforço indireto (e
perigoso) de se reapropriar simbolicamente da presença de Madalena:
Quando os grilos cantam, sento-me aqui à mesa da sala de jantar, bebo
café, acendo o cachimbo. Às vezes as idéias não vêm, ou vêm muito
numerosas e a folha permanece meio escrita, como na véspera. Releio
algumas linhas, que me desagradam. Não vale a pena tentar corrigi-las.
Afasto o papel.
Emoções indefiníveis me agitam inquietação terrível, desejo doido de
voltar, tagarelar novamente com Madalena, como fazíamos todos os dias, a
esta hora. Saudade? Não, não é isto: é desespero, raiva, um peso enorme no
coração. (IBID, p117-118.).
Por meio de todos esses recursos simbólicos, Graciliano Ramos encontra uma
equivalência física entre o cenário e a tensão explosiva do protagonista, que representa,
corporalmente, ora o desejo desmedido do poder, através de gestos violentos, às vezes
incompletos; ora o arrependimento desse desejo que o levou à deformidade moral: “Se
Madalena me via assim, com certeza me achava extraordinariamente feio” (RAMOS, p.
221.).
Seja com for, São Bernardo é um exemplo expressivo da influência de Nietzche,
não pelo tom trágico da obra, mas também pela própria estrutura da narrativa, que,
devido ao fluxo interrompido de ações (as ações são separadas por cortes bruscos entre as
cenas), se configura como uma composição musical sinfônica. Cada capítulo é um episódio
diferente, relatado de acordo com os insites de consciência do narrador-protagonista. Esse
procedimento garante, a despeito da repetição de um leitmotiv, diferentes ângulos da
120
personalidade de Paulo Honório, a expressão plena da sua identidade essencial, sem
requerer, no entanto, uma continuidade naturalista.
O primeiro e o último capítulo “se tocam” em termos de ponto de origem. Fora isso,
ainda que exista certa linearidade temporal (seqüência de fatos), à medida que o enredo se
desenvolve, cria-se um vai-e-vem de reflexões existenciais, concentradas nos diálogos de
tonalidade operística entre Paulo Honório e Madalena, e uma descontinuidade dramática
que intensificam a beleza e o caráter absurdo do texto.
Paulo Honório se despersonaliza, tornando-se também protagonista de uma crise
espiritual e metafísica que abala todo o mundo moderno. Tal despersonalização expressa na
destruição paulatina do corpo da personagem, imobilizado numa cadeira (processo de
apagamento da fisicalidade viva), se acentua no final, quando Paulo Honório fica reduzido
a sobrancelhas, nariz, boca e dedos, lembrando os personagens de “Fim de Jogo”
(Endgame), de Samuel Beckett. “O fim está no princípio e, no entanto, prosseguimos”, são
palavras de Hamm, o patriarca, meio Hamlet, impossibilitado de ver e de se levantar, que
comanda o patético e trágico universo da peça e simboliza, segundo Beckett, um mau
jogador neste sórdido jogo existencial.
Mas essa despersonalização é levada ao paroxismo em Angústia, a obra de
Graciliano Ramos que, indubitavelmente, mais reatualiza o legado expressionista e, por isso
mesmo, merece um capítulo à parte.
121
5 A ANGÚSTIA PRIMORDIAL
Em Angústia, o primeiro parágrafo do livro já submete o leitor ao império do mundo
interior do narrador-protagonista, Luís da Silva, cujo estado anímico vai expressar de súbito
uma angústia primordial: “Levantei-me cerca de trinta dias, mas julgo que ainda não me
restabeleci completamente. Das visões que me perseguiam naquelas noites compridas umas
sombras permanecem, sombras que se misturam à realidade e me produzem calafrios”
(RAMOS, 2003, p. 7).
Inserimo-nos, pois, numa trajetória de leitura que nunca deixa de ser tencionada
pela violenta projeção dessa angústia capaz de deformar a mimese com seus fluxos e
contrafluxos de difícil conformação. No posfácio da 56ª edição de Angústia, Silviano
Santiago comenta que nesse romance a construção do discurso ficcional “se dá pela
contaminação abusiva da frase seguinte pela frase anterior, da seqüência seguinte pela
seqüência anterior” (SANTIAGO, 2003, p. 293). E, logo em seguida, Silviano completa
essa idéia dizendo que:
Estamos bem próximos do recurso retórico que se encontra na montagem
cinematográfica, conhecido como sobreimpressão. Uma imagem
desaparece pouco a pouco à anterior (fade out). Outra imagem, semelhante
e/ou diferente, vai sobrepondo-se pouco a pouco à anterior (fade in). (IBID,
p. 293).
Ou seja, não existe uma cadeia dos fatos. Existe a visão disso. Tempo e espaço são
submetidos às necessidades expressivas do narrador-protagonista, que vai tecendo uma
verdadeira colcha de retalhos. Ora lembra-se de acontecimentos recentes na capital,
Maceió, quando há um ano, por ciúme da amada, Marina, enforca Julião Tavares, o odioso
rival; ora lembra-se de acontecimentos remotos, que antecedem em muito o seu encontro
com Marina, trazendo à tona sua vivência no campo e, junto com ela, os vultos do passado.
Conservando um resíduo traumático dessas vivências coletivas anteriores, Luís da
Silva é um solitário que recria interiormente os objetos e os transforma em imagens
destinadas a traduzir as mais intensas vibrações da sua alma:
122
Em duas horas escrevo uma palavra: Marina. Depois, aproveitando letras
deste nome, arranjo coisas absurdas: ar, mar, rima, arma, ira, amar. Uns
vinte nomes. Quando não consigo formar combinações novas, traço
rabiscos que representam uma espada, uma lira, uma cabeça de mulher e
outros disparates. Penso em indivíduos e em objetos que não têm relação
com os desenhos: processos, orçamentos, o diretor, o secretário, políticos,
sujeitos remediados que me desprezam porque sou um pobre-diabo.
(RAMOS, p. 8.).
É justamente essa estratégia narrativa, alicerçada no foco radical do próprio eu, que
transforma o texto numa arena de luta moral, social e estética, na qual Luís da Silva acaba
por se tornar “carrasco de si mesmo”: “Enxoto as imagens lúgubres. Vão e voltam, sem
vergonha, e com elas a lembrança de Julião Tavares. Intolerável. Esforço-me por desviar o
pensamento dessas coisas. Não sou um rato, não quero ser um rato. Tento distrair-me
olhando a rua” (IBID, p. 10-11).
Temos um aberto desafio aos tabus sociais. Luís da Silva é um apaixonado
irracional. Tendo sido trocado por “um sujeito gordo, vermelho, suado, bem falante, de
olhos abotoados” (IBID, p. 111), seus atos e gestos passam a refletir um estado mental
patológico:
Decidi-me a ir pisar mais uma vez a terra que Marina havia pisado,
encostar-me ao tronco da mangueira, onde ela estivera nua, enrolada na
escuridão, torcendo-se e mordendo os braços para não gritar por causa dos
beijos que eu lhe dava na barriga e nas coxas. Desci os degraus. Na porta
do banheiro meti o pé numa poça.
Julião Tavares seria enforcado. Marina trabalharia no asilo de órfãs. (IBID,
p. 151).
O motor inquietante que domina a onipotência do pensamento de Luís da Silva é,
pois, o excesso pulsional derivado da dor e revolta por ter perdido Marina diante dos
próprios olhos:
À tarde eram aqueles manejos, mas pela manhã, quando eu saía para
repartição, plantava os cotovelos na janela e enxeria-se com Julião Tavares.
(...). Ao dobrar a rua Augusta, avistava Julião Tavares na prosa com ela,
vermelho, soprando, derretendo-se, a roupa de brim com manchas de suor
nos sovacos. Vendo-me, o canalha voltava as costas, porque estava
intrigado comigo. (IBID, p.
107).
Pouco a pouco nos fomos distanciando, um mês depois éramos inimigos. A
princípio houve brigas, reconciliações desajeitadas, conversas azedas com
d. Adélia. Tempo perdido. Marina estava realmente com a cabeça virada
123
para Julião Tavares. Comecei a passar trombudo pela calçada, remoendo a
decepção, que procurei recalcar. (IBID, p. 111).
Aqui, muito mais potencializada do que nos romances anteriores de Graciliano
Ramos, a angústia passa do limite da normalidade e entra, portanto, no campo da
psicanálise. Precisamos entrever, no circuito da linguagem, o impacto das impressões
afetivas decorrentes desse trauma experienciado pelo narrador-protagonista, um sujeito em
sofrimento, que, por não se sentir à vontade num mundo minado por energias negativas,
denuncia, no seu dizer-fazer, um horrível mal-estar, próprio da modernidade, quando a
excessiva busca pelo poder acaba por desvalorizar a vida humana:
Certos lugares que me davam prazer tornaram-se odiosos. Passo diante de
uma livraria, olho com desgosto as vitrinas, tenho a impressão de que se
acham ali pessoas exibindo títulos e preços nos rostos, vendendo-se. È uma
espécie de prostituição. Um sujeito chega, atenta, encolhendo os ombros ou
estirando o beiço, naqueles desconhecidos que se amontoam por detrás do
vidro. Outro larga uma opinião à-toa. Basbaques escutam, saem. E os
autores, resignados, mostram as letras e os algarismos, oferecendo-se como
mulheres na rua da Lama. (RAMOS, p.8.).
Luís da Silva não detém esse ambicionado poder, faz parte de uma “massa amorfa”
lançada diariamente num contexto de desamparo, assujeitada a um mundo indiferente aos
seus projetos singulares, um mundo que opõe em exclusão o individual e o coletivo. Ele
vive agitado, cheio de terrores, uma tremura nas mãos. “As mãos não são minhas: são
mãos de velho, fracas e inúteis. As escoriações nas palmas cicatrizaram” (
IBID
, p.8), diz ,
em pleno processo de desordem psíquica.
As cicatrizes que carrega são as marcas da intrusão dolorosa do real no imaginário.
Tal entrelaçamento faz surgir, na ordem simbólica, o “instante do despertar”, que é
justamente o momento em que Luís da Silva atualiza o passado recente e procura captar, na
imagem desprezível de Julião Tavares, algum reconhecimento de si:
Impossível trabalhar. Dão-me um ofício, um relatório para datilografar, na
repartição. Até duas linhas vou bem. Daí em diante a cara balofa de Julião
Tavares aparece em cima do original, e os meus dedos encontram no
teclado uma resistência mole de carne gorda. E vem o erro. Tento vencer
a obsessão, capricho em não usar a borracha. Concluo o trabalho, mas a
resma de papel fica muito reduzida.
124
À noite fecho as portas, sento-me à mesa da sala de jantar, a munheca
emperrada, o pensamento vadio longe do artigo que me pediram para o
jornal.
Vitória resmunga na cozinha, ratos famintos remexem latas e embrulhos no
guarda-comidas, automóveis roncam na rua.
Em duas horas escrevo uma palavra: Marina. (RAMOS, p.8.).
O efeito desse instante é o “silêncio de um espanto” diante da dor pela perda de
Marina, dor que se impõe como ausência radical e abertura para um vazio absoluto que
Luís da Silva tenta desesperadamente preencher com pensamentos explosivos sobre coisas
banais do dia-a-dia, colocando-se sempre numa posição de “pobre-diabo”, de vítima da
sociedade na qual está inserido:
Não posso pagar o aluguel da casa. Dr. Gouveia aperta-me com bilhetes de
cobrança. Bilhetes inúteis, mas dr. Gouveia não percebe isto. também o
homem da luz, o Moisés das prestações, uma promissória de quinhentos
mil-réis, já reformada. E coisas piores, muito piores.
(...).
Dr. Gouveia é um monstro. Compôs, no quinto ano, duas colunas que
publicou por dinheiro na seção livre de um jornal ordinário. Meteu esse
trabalhinho num caixilho dourado e pregou-o na parede, por cima do
bureau. Está cheio de erros e pastéis. Mas Dr. Gouveia não os sente. O
espírito dele não tem ambições. Dr. Gouveia só se ocupa com o temporal: a
renda das propriedades e o cobre que o tesouro lhe pinga.
Não consigo escrever. Dinheiro e propriedades, que me dão sempre desejos
violentos de mortandade e outras destruições, as duas colunas mal
impressas, caixilho, dr. Gouveia, Moisés, homem da luz, negociantes,
políticos, diretor e secretário, tudo se move na minha cabeça, como um
bando de vermes, em cima de uma coisa amarela, gorda e mole que é,
reparando-se bem, a cara balofa de Julião Tavares muito aumentada. Essas
sombras se arrastam com lentidão viscosa, misturando-se, formando um
novelo confuso.
Afinal tudo desaparece. E, inteiramente vazio, fico tempo sem fim ocupado
em riscar as palavras e os desenhos. Engrosso as linhas, suprimo as curvas,
até que deixe no papel alguns borrões compridos, umas tarjas muito pretas
(IBID, p.9 - 10.).
Como se percebe, Luís da Silva, dependente financeiramente de pessoas que detesta
(“tipo bestas”, como se refere a essas pessoas), eleva à dimensão trágica o drama
corriqueiro do homem comum, massacrado pela miséria, dentro desse mundo injusto e
insensível ao sofrimento alheio:
125
Penso no meu cadáver, magríssimo, com os dentes arreganhados, os olhos
como duas jabuticabas sem casca, os dedos pretos do cigarro cruzados no
peito fundo.
Os conhecidos dirão que eu era um bom tipo e conduzirão para o cemitério,
num caixão barato, a minha carcaça meio bichada. Enquanto pegarem e
soltarem as alças, revezando-se no mister piedoso e cacete de carregar
defunto pobre, procurarão saber quem será o meu substituto na diretoria da
fazenda. (RAMOS, p. 10 -11.).
Com uma mente doentia e destruidora, Luís da Silva é a presa fácil da angústia. A
presença derradeira da morte está desde a infância premente na vida desta personagem:
O poço de pedra era uma piscina enorme. Antes de entrar nela, o Ipanema
tinha dois metros de largura e arrastava-se debaixo dos garranchos de
algumas quixabeiras sem folhas.
Quando eu ainda não sabia nadar, meu pai me levava para ali, segurava-me
um braço e atirava-me num lugar fundo. Puxava-me para cima e deixava-
me respirar um instante. Em seguida repetia a tortura. Com o correr do
tempo aprendi natação com os bichos e livrei-me disso. Mais tarde, na
escola de mestre Antônio Justino, li a história de um pintor e de um
cachorro que morria afogado. Pois para mim era no poço da pedra que se
dava o desastre. Sempre imaginei o pintor com a cara de Camilo Pereira da
Silva, e o cachorro parecia-se comigo.
Se eu pudesse fazer o mesmo com Marina, afoga-la devagar, trazendo-a
para superfície quando ela estivesse perdendo o fôlego, prolongar o
suplício um dia inteiro... (IBID, p.17-18.).
Esse terrível pesadelo paranóico de existir é percorrido por mbolos fálicos e
vaginais (ratos, formigas, roseiras, cobras, galo, sapatos, pés, etc.), o que nos permite inferir
que a obsessão de Luís da Silva por Marina, capaz de conduzi-lo a um ato extremo de
violência, está focada na questão do desejo desmesurado, da paixão carnal e arrebatadora:
O rato roia-me por dentro. Senti cheiro de carne assada. Não, cheiro de
fêmea, o mesmo cheiro que antigamente me perseguia, em meses de
quebradeira. - Dona Aurora, veja se me arranja um quarto mais barato. Os
tempos andam safados, d. Aurora.”
As pernas de Berta eram assim bem torneadas. As pernas de Berta eram
nuas, tudo em Berta era nu.
- Chi, chi, chi.
Lá estavam novamente os quadris expostos. Para que aqueles panos?
gritei interiormente. Não era melhor que se descobrisse tudo? Coxas
descobertas, rabo descoberto.
Foi assim que vi Marina entre as pestanas meio cerradas, como Berta me
aparecia. As nádegas cresciam monstruosamente e eu mal podia
respirar. Se d. Adélia e Vitória viessem ali, veriam aquela armada: Marina
126
despida, curvada para frente, mostrando um traseiro enorme (RAMOS, p
71-72.).
Excitado por essa visão, Luís da Silva fica sexualmente estimulado:
Estava num entorpecimento estúpido. Tive a impressão extravagante de
que o ar havia tomado de repente a consistência mole e pegajosa de goma-
arábica. Nesse ambiente gelatinoso Marina se movia, nadava,
desesperadamente bonita, o peitinho redondo subindo e descendo, a querer
saltar do decote baixo, pimenta nos olhos azuis, os cabelos de fogo
desmanchando-se ao vento morno e empestado que soprava dos quintais.
Veio-me o pensamento maluco de que tinham dividido Marina. Serrada
viva, como se fazia antigamente. Esta idéia absurda e sanguinária deu-me
grande satisfação. Nádegas e pernas para um lado, cabeça e tronco para
outro. A parte inferior mexia-se como um rabo de lagartixa cortado. Mas eu
não reparava na parte inferior, que tanto me perturbava: recebia as faíscas
dos olhos azuis e desejava enxugar com beijos a saliva que umedecia os
beiços um pouco grossos da minha amiga. Estava linda. Tinha corrido por
ali alguns minutos como um rato, chiando. Eu era um gato ordinário. Podia
saltar por cima dela e abocanha-la: ao das estacas podres que Vitória
remove todos os meses, desafiava-me com os olhos e com os dentes
miúdos. Não saltei. O que fiz foi arranjar uma carranca séria, que devia ser
burlesca, porque Marina deu uma gargalhada (IBID, p. 73.).
No excerto acima, Marina, com seu olhar “medusante”, cabelos cor de fogo, aparece
como uma mulher licenciosa, cuja força sedutora tenta arrastar Luís da Silva para uma
sarabanda infernal. Mas até aí ele resiste a essa atitude provocadora, reprimindo seus
desejos mais violentos de possessão demoníaca”. Esse autocontrole, no entanto, faz com
que fantasias sanguinárias irrompam na sua psique obscura e assumam um valor de castigo
para essa figura feminina tão perturbadora.
Segundo Freud, sexo é uma potente fonte de energia, e quando essa energia não é
convenientemente descarregada surge a crise da angústia, associada à idéia da morte ou da
loucura e manifestando-se por palpitações, dor no peito, tremores, vertigens. É a neurose da
angústia, um dos principais motivos que levavam as pessoas ao divã do psicanalista o
que hoje se chama de transtorno do pânico, uma situação bem caracterizada e, sobretudo,
tratada com medicamentos e psicoterapia).
Essa radicalidade da experiência da angústia é um dos aspectos da existência
humana que o Expressionismo colhe na formulação da sua linguagem, no sentido de uma
expressão apropriada para uma abordagem poética da vida referida ao amor e à morte.
127
Em Angústia, o que se a ver é um desejo alteritário e um sujeito que é função
desse desejo. O que se passou é preservado no seu psiquismo, ou seja, elementos primitivos
se mostram preservados lado a lado com versões transformadas que dele surgiram, e esses
elementos podem ser trazidos de novo à luz (questão do eterno retorno, da fatalidade da
repetição):
Lembrava-me de sinha Germana, de sinha Germana, de Quitéria, das
negras da fazenda. Sinha Germana só tinha conhecido um homem. As
pretas não se envergonhavam de conhecer muitos homens. Que diferença!
Descendo de sinha Germana, que dormiu meio século numa cama dura e
nunca teve desejos. Adquiro idéias novas, mas estas idéias brigam com
sentimentos que não me deixam. Sinha Germana dormia no couro de boi
com o velho Trajano, e se dormisse de outra forma, não dava certo. Os
costumes de sinha Germana eram superiores aos de Quitéria. Por quê? Não
havia por quê, e isto me enraivecia. Um sujeito capaz de escrever sobre
muitos assuntos entendendo-os mal, ou sem entendê-los, aceitar as opiniões
de Camilo Pereira da Silva. De padre Inácio, de d. Rosália! Essas opiniões
não tinham pé nem cabeça. Marina valia o que tinha valido antes de
engrossar a barriga e procurar d. Albertina. As mesmas pernas bem feitas,
os mesmos braços que mexiam as roseiras do quintal pobre, os mesmos
cabelos que pareciam oxigenados, os mesmos olhos traquinas. Mas as
pernas não se curvavam para mostrar as nádegas apertadas na saia estreita,
os braços moviam-se vagarosamente, pesados, os cabelos amarelos caíam
sobre a testa enrugada, os olhos baixavam-se., cheios de culpa, desviando-
se dos outros olhos. Esta consciência de inferioridade era contagiosa.
Marina tinha descido. Logo me revoltava. Que absurdo. (RAMOS, p. 226-
227.).
O clima histérico e os sentimentos exacerbados do narrador-protagonista exigem de
nós uma análise mais profunda dos estados patológicos e da sexualidade reprimida que
dentro de si carrega o germe da morte. A deformação, o clima de pesadelo, o desvio de
comportamento, tudo nos provoca uma inquietante e mórbida sensação. Empenhado, como
vimos, em criar uma simbologia onipresente, Graciliano Ramos tece, neste livro, uma
verdadeira obra de gênio.
Pois voltemos à simbologia. A corda representa tanto a tensão de Luís da Silva,
esticada ao máximo, quanto o castigo perpétuo que ele inflige à Marina e Julião Tavares, a
quem põe termo à vida, cortando-lhe o fio da existência. Ambos, casal malvado, são a
própria imagem do “Eros livre e triunfante”, capazes de despertarem desejos avassaladores.
Ela, com seu cabelo cor de fogo, e ele, com sua pele avermelhada, possuem um calor vital e
corporal que Luís da Silva não possui, afinal é “um sujeito feio: os olhos baços, o nariz
128
grosso, um sorriso besta, atrapalhado, encolhido”, como ele mesmo se define. Acostumado
a mergulhar no poço (símbolo das profundezas, do silêncio e do inferno), a paixão que
sente por Marina é diabólica, no sentido de que é uma mistura de amor e cólera (amor
infernal, que mexe com sua libido):
Irritava-me um som de armadores de rede. Em noites de calor Marina
dormia em rede, balançava-se.
Os armadores rangiam. O que eu precisava era ler um romance fantástico,
um romance besta, em que os homens e as mulheres fossem criações
absurdas, não andassem magoando-se, traindo-se. Histórias fáceis, sem
almas complicadas. Infelizmente essas leituras já não me comovem.
Os armadores continuavam a ranger. Provavelmente estava deitada de
costas, as pernas caídas, os pés no chão dando impulso para o balanço.
Talvez estivesse nua por causa do calor.
(...).
Em que estaria pensando Marina? Provavelmente no outro. Um sujeito
gordo, vermelho, suado, bem falante, de olhos abotoados. Seria possível
que ela gostasse daquilo?
Seu Ramalho tossia. Assaltava-me o desejo de ver Julião Tavares sujo de
azeite e carvão, recebendo na cara as faíscas da fornalha. Por que não?
Derretendo as banhas. Inútil, preguiçoso, discursador. Canalha (RAMOS,
p. 110-111.).
a gordura aparece associada à riqueza e à abundância. Julião Tavares tem tudo o
que Luís da Silva gostaria de ter: poder (sexual, financeiro, discursivo). Por isso é preciso
aniquilar o rival (imagem da fornalha). assim, acredita, ficará livre desse desejo que
carrega como uma maldição. Solitário, sua vida é feita de prazeres passageiros:
(...) Antigamente era uma existência de cachorro. As mulheres tinham
cheiros excessivos, e eu me sentia impelido violentamente por elas. Mas a
voz do chefe da revisão estava colada aos meus ouvidos:
- Suspenso por cinco dias, seu Silva.
A unha suja de tinta riscava na prova o corpo de delito. Vida de cachorro.
Como iria pagar a pensão?
- D. Aurora, tenha paciência. Veja se me arranja um quarto mais barato. Os
tempos andam safados, d. Aurora.
As ruas estavam cheias de mulheres. E o rato roia-me por dentro.
(RAMOS, p. 42.).
Tendo, pois, um insaciável apetite pela carne feminina, Luís da Silva se propõe a
casar com Marina porque, antes de tudo, deseja levá-la para cama:
129
(...) Levantei-me, tomei-lhe os dedos. O contato da pele quente deu-me
tremuras, acendeu os desejos brutais que tinham esmorecido. Olhando-a
de cima para baixo, via-lhe os seios, que subiam e desciam, as coxas, a
curva dos quadris. Veio-me a tentação de rasgar-lhe a sais. E repetia como
um demente:
- É porque lhe quero muito bem, Marina.
Apertei-lhe a mão, mordi-a, mordi o pulso e o braço. Marina, pálida,
me fazia perguntar:
- Que é isso, Luís?
Mas não se afastava. Desloquei as estacas podres, puxei Marina para junto
de mim, abracei-a, beijei-lhe a boca, o colo. Enquanto fazia isto, as
minhas mãos percorriam-lhe o corpo. Quando nos separamos, ficamos
comendo-nos com os olhos, tremendo. Tudo em redor girava. E Marina
estava tão perturbada que se esqueceu de recolher um peito que havia
escapado da roupa. Eu queria mordê-lo e receava ao mesmo tempo que d.
Adélia nos surpreendesse, encontrasse a filha decomposta.
(...).
- Que foi que nós fizemos, Luís?
A cantilena chorosa arrasava-me os nervos. Cocei a testa, agoniado:
- É o diabo, Marina. Ninguém tem culpa. Foi uma topada. E agora é
continuar. Qualquer dia a gente casa. É verdade, precisamos tratar disso.
Você que acha?
- É. (IBID, p.76.).
Essa volúpia natural de Marina, embora contida por uma aparente ingenuidade, faz
com que Luís da Silva a compare com Berta, uma prostituta que conhecera ainda bem
jovem:
Berta, uma alemãzinha bonita que antigamente conheci, também tinha
unhas pintadas e pontiagudas. Aquilo arranhava docemente. A primeira
mulher de jeito com que me atraquei. (RAMOS, p. 44.).
Bonitinha, Berta. E mais decente do que a neta de d. Aurora. Bonde,
cinema, refrescos. Menina viciada. Dagoberto fugia dela. Uma piranha. Ser
roído por aquilo! Lembrava-me dos bancos do passeio, das botinas de
elástico bambo.
(...).
(...). Com semelhantes recordações, quem pensa em mulheres?
A mocinha, no lado de lá da cerca, não me dava atenção. Perua. Cabelos de
milho, unhas pintadas, beiços vermelhos e o pernão aparecendo.
- Às vezes aquilo é casca. Por baixo marcas de ferida e molambos.
Sirigaita. Sou um homem prático, passado pelos corrimboques do diabo,
lido e corrido. Para o inferno. (IBID, p. 45.).
Mas por mais que insista com Marina, ela não cede às suas investidas, só o casamento
parece, portanto, ser a solução para tal interdito:
- Marina, a gente deve acabar com isto, minha filha. Vamos para dentro.
- Vou nada!
Torcia o corpo, defendia a virgindade com unhas e dentes.
130
- Está direito. Então é melhor apressar o casório.
- Com que roupa? Disse Marina.
- Que é que falta?
- Tudo. Eu sou uma noiva pelada, meu filho.
Impacientei-me:
- Ora! Ora! Ora1 Entre s não cerimônia. Arruma-se. Eu tenho umas
economias, pouco, mas tenho. Também você não precisa de muita coisa.
Umas fronhas, umas camisas...
Como vêem, eu tinha boa vontade. O que receava era transformar nossas
relações, miúdas, num acontecimento social importante. (IBID, p. 82.).
O casamento, no entanto, não chega a se realizar. Antes disso, Marina se entrega a
Julião Tavares, o que provoca a ira de Luís da Silva:
Baixei a cabeça, mordi os beiços para não gritar os desaforos que me
subiam à garganta e que eu engolia, pus-me a marchar na sala estreita,
batendo os calcanhares com força. De uma parede a outra quatro passos. A
porta, que tinha ficado aberta, mostrava-me os paralelepípedos, as sarjetas,
as pernas dos transeuntes, as pernas, porque, como disse, eu tinha a
cabeça baixa. A minha curiosidade se concentrava nos sapatos dos
transeuntes. Passaram os tamancos de um carregador, os chinelos de
Antônia, umas botinas velhas que julguei serem do Lobisomen. As crianças
de d. Rosália corriam e gritavam, mas estavam descalças. (RAMOS, p. 92-
93.).
Interessante aqui é, mais uma vez, a associação simbólica com o falo. O sapato é
símbolo do direito de propriedade, mas o é o do desejo sexual. Entre o (falo) e o
sapato (vagina) pode haver um problema de adaptação e gerar angústia, que é justamente o
que Luís da Silva está sentindo nesse momento em que se conta de que Marina e Julião
Tavares estão “tendo (ou estão prestes a ter) um caso”.
Logo adiante na narrativa, ainda sob o efeito do duro impacto que sentiu ao chegar
em casa e encontrar a noiva flertando descaradamente com Julião Tavares, Luís da Silva
percorre as ruas à noite e os detalhes são esboçados em traços nervosos, acompanhando o
movimento agitado da cidade:
Passeei à toa pelas ruas, parando em frente das vitrinas, com a tentação de
destruir os objetos expostos. As mulheres que ali estavam em pasmaceira,
admirando aquelas porcarias, mereciam chicote. Fui ao jornal, li os
telegramas. Eram notícias sem importância, mas julguei perceber nelas
graves sintomas de decomposição social. Estive olhando sem ler os
cartazes do cinema, entrei maquinalmente. O porteiro sabe que trabalho na
131
imprensa e não pediu bilhete de ingresso. Na sala de projeção fiquei de pé,
no fundo, por baixo da cabina, sem ver a tela. Nunca presto atenção às
coisas, não sei para que diabo quero olhos. Trancado num quarto,
sapecando as pestanas em cima de um livro, como sou vaidoso e como sou
besta! Caminhei tanto, e o que fiz foi mastigar papel impresso. Idiota.
Podia estar ali a distrair-me com a fita. Depois, finda a projeção, instruir-
me vendo as caras. Sou uma besta. Quando a realidade me entra pelos
olhos, o meu pequeno mundo desaba. (IBID, p. 95-96.).
Toda essa tensão parece ter alívio no ardor dos devaneios. Como o próprio
protagonista diz, a realidade para ele é dramática e surge como força destruidora, tornando-
o presa de sua desventura. A atmosfera noturna não é leve, romântica ou sedutora, um mal-
estar inevitável domina o fragmento acima. Talvez por isso os olhos de Luís da Silva
captem, desnorteados, apenas um complexo de imagens corrompidas e sem brilho, que
acentuam, por um lado, a sua solidão, e, por outro, o seu anseio de existir:
Às onze horas achava-me encostado a uma banca do Helvética, bebendo
aguardente e não distinguindo bem as pessoas que se serviam nas outras
mesas, funcionários públicos, negociantes, chauffeurs, prostitutas. Uma
criaturinha magra empurrou uma das portinholas que dão para a igreja do
Livramento, avançou de manso. Ninguém lhe prestou atenção.
- Pst. Senta aí.
Chegou-se acanhada e esperou a repetição do convite.
- Senta aí.
Sentou-se. O peito era uma tábua, os braços finos, as pernas uns cambitos
que nem sei como agüentavam o corpo. A carinha o era feia, talvez
tivesse sido bonita.
- Beba alguma coisa.
- Não, muito obrigada.
E espalhou a vista pelas mesas.
- Procurando alguém?
- Era. Parece que hoje ele não vem. Já é tarde!
- Onde mora?
- Aqui na rua da Lama. É perto.
E mostrou-me a chave que trazia na mão.
- Beba alguma coisa, insisti.
- Não senhor, eu não bebo.
Tossia e olhava para a cozinha.
- Um petisco.
Pimentel entrou na sala e perguntou-me ao ouvido:
- Onde diabo arranjou este canhão?
Coitadinha. Não era feia, o que estava era estragada.
- Aceite.
A criatura hesitava, afogueada. Afinal se resolveu:
132
- Muito obrigada. Eu aceito. O senhor vai comigo, não? É aqui pertinho.
(RAMOS, p. 96-97.).
Luís da Silva acompanha a prostituta até o quartinho miserável e sujo dela.
despida, a rapariga o aguarda pacientemente, mas nada acontece entre eles, pois ela não o
agrada. Aquela presença insuportavelmente magra e desconhecida lhe desperta repulsa,
potencializando ainda mais a sua raiva em relação à Marina. Como a mulher insistisse em
não aceitar o pagamento pelos serviços prestados (ainda que os dois não tivessem transado),
Luís da Silva acaba se alterando:
A criatura recusou os dez mil-réis que lhe apresentei:
- Pode guardar. Nós não fizemos nada. Além disso pagou a ceia. Eu estava
com fome.
- Não senhora. Receba. É o que tenho.
- Muito obrigada. Já não lhe disse que não aceito? Eu estava com fome.
Encolerizei-me de verdade e despropositei:
- Não me faça cometer um desatino. A senhora é relógio para trabalhar de
graça? A senhora tem obrigação de andar nua diante de mim? Duas horas
de chateação, de conversa mole! A senhora é relógio? A senhora não é
relógio.
A mulher recebeu o dinheiro, espantada. Julgou-me doido, suponho.
Realmente as últimas palavras me haviam tornado furioso. (RAMOS, p.
101.).
Aqui um estranhamento do sujeito sobre si mesmo. Mas a sua obsessão em
relação à Marina vai adquirindo o caráter de um pesadelo do qual não pode mais escapar.
Luís da Silva inicialmente tenta se consolar através da constatação do fato, mas não
consegue suportar essa decepção. Cresce a sua angústia a cada minuto:
O meu desejo era desligar-me daquela gente, passar calado, carrancudo, as
mãos no bolso, o chapéu embicado. Esforçava-me por me dedicar às
minhas ocupações cacetes: escrever elogios ao governo, ler romances e
arranjar uma opinião sobre eles. Não há maçada pior. A princípio a gente lê
por gosto. Mas quando aquilo se torna uma obrigação e é preciso o sujeito
dizer se a coisa é boa ou não é e por quê, não livro que não seja um
estrupício.
O que eu devia fazer era mudar de casa. Esta é inconveniente, cheia de
barulhos, parece mal-assombrada. Os ratos não me deixavam fixar a
atenção no trabalho. Eu pegava o papel, e eles começavam a dar uns
gritinhos que me aperreavam. Tinham aberto um buraco no guarda-
comidas, viviam dentro, numa chiadeira infernal. Às vezes havia um
133
cheiro de podridão. Vitória se enfrenesiava, andava para cima e para baixo,
manejando um regador com água e creolina, molhando tudo. Mas fedor
resistia. Afinal íamos encontrar o armário dos livros transformado em
cemitério dos ratos. Os miseráveis escolhiam para sepultura as obras que
mais me agradavam. Antes, porém, faziam um sarapatel feio na papelada.
Mijavam-me a literatura toda, comiam-me os sonetos inéditos. Eu não
podia escrever. (IBID, p. 109.).
Obviamente que o que impede Luís da Silva de escrever não são os ratos, e sim,
numa analogia com a impureza desses animais asquerosos, a sua própria psique inferior:
Punha-me a passear pelo corredor, olhando as biqueiras dos sapatos, os
tijolos gastos, o rodapé vermelho da parede úmida. Por ali passava um
cano. Algumas porcas das juntas estavam mal apertadas e por elas a água
esguichava, formando poças no tijolo gasto. O cano estirava-se como uma
corda grossa bem esticada, uma corda bem comprida. Eu andava para cima
e para baixo, os ouvidos atentos aos mais insignificantes rumores da casa
vizinha. Preocupava-me sobretudo o silêncio. Enquanto estavam batendo
copos, tagarelando, nem por isso. Mas quando se calavam, vinham-me
suposições que me davam tremuras. Provavelmente d. Adélia tinha ido à
cozinha preparar o café. E os dois aproveitavam o tempo. Sem dúvida.
Imaginava o que eles faziam. Era aquilo, sem dúvida. (RAMOS, p. 113).
Do trecho acima podemos depreender a imagem do labirinto. Entregue às
profundezas do inconsciente, Luís da Silva está disperso numa multidão de desejos. A visão
do cano, associada à da corda, simboliza a sua vontade de se vingar de Julião Tavares. Sem
tirar os olhos do cano, tem consciência de que um pedaço daquilo é uma arma terrível.
“Arma terrível, sim senhor, rebenta a cabeça de um homem”, imagina (IBID, p. 114.).
Luís da Silva, em dado momento, já não conseguindo nem mais dormir (na verdade,
como ele mesmo reconhece, estava necessitando desesperadamente de mulher), chega a
pensar em se reconciliar com Marina: “Que me importava se Marina fosse de outro? As
mulheres não são de ninguém, não têm dono” (IBID, p. 124.). Comparando o amor de sinha
Germana e Trajano Pereira de Aquino Cavalcante e Silva “rápido amor dos brutos”, livre
de desejos, sem malícia nenhuma com o amor dos tempos modernos, ele reconhece:
“Como a cidade me afastara de meus avós! O amor para mim sempre fora uma coisa
dolorosa, complicada e incompleta” (IBID, p.125.).
134
Nu, deitado no quarto escuro, fumando um cigarro atrás do outro, o narrador-
protagonista se masturba ouvindo a vizinha da casa ao lado – d. Rosália fazer sexo com o
marido:
- “Ui!” Na escuridão a parede estreita desaparecia. Estávamos os três na
mesma peça, eu rebolando-me no colchão estreito, picado de pulgas,
respirando o cheiro de pano sujo e esperma, eles agarrados, torcendo-se,
espumando, mordendo-se. Aquilo iria prolongar-se por muitas horas.
Depois o silêncio, o cansaço, a luz da madrugada, o sono, a parede, nos
afastariam. Se nos encontrássemos, faríamos um ligeiro movimento de
cabeça, resmungaríamos uma saudação apressada. D. Rosália, pendurando-
se à janela, comentaria os modos suspeitos do Lobisomem e o
procedimento de Marina; o homem calvo e moreno prosseguiria nas suas
viagens pelo interior; eu redigiria informações: “Em conformidade com o
artigo tal do regulamento...” (IBID, p. 126.).
As pulgas, na qualidade de insetos, são como as estrelas, capazes de traspassarem a
obscuridade (capazes, portanto, de fazê-lo esquecer momentaneamente os “ratos”). Nesse
sentido, não é a realidade física do sexo (masturbação) que interessa ao simbólico, mas a
diminuição da tensão que esse instante proporciona a Luís da Silva (liberação do sêmen,
que, segundo o dicionário de mbolos, provém do rebro). É como se nesse lapso de
tempo efêmero de orgasmo seus problemas deixassem de existir. Porém, com o corpo
relaxado, novamente a angústia do real lhe perturba a mente inquieta e doentia:
Sentava-me e acendia um cigarro. Perdido o sacrifício de permanecer
imóvel, suportando as pulgas, fechava as mãos com força. Estertor de bicho
sufocado. O que eu desejava era apertar o pescoço do homem calvo e
moreno, apertá-lo até que ele enrijasse e esfriasse. Lutaria e estrebucharia a
princípio, depois seriam apenas convulsões, estremecimentos. Os meus
dedos continuariam crispados, penetrando a carne que se imobilizaria, em
silêncio. Este pensamento afugentava os outros. O espírito de Deus deixava
de boiar sobre as águas. Uma criatura morrendo e esfriando, os meus dedos
entrando na carne silenciosa. Não me lembrava de Julião Tavares. O que
me aparecia na mente era o sujeito calvo e moreno que eu presumia ser o
marido de d. Rosália e talvez nem fosse. Enfim deseja matar um homem
que me roubava o sono (RAMOS, p. 130.).
Testemunhamos a exasperação gradual da violência introjetada na personalidade
de Luís da Silva. No fundo dessa turbulência de sensações e sentimentos latejam, em
corrente alternada, o instinto assassino e o instinto erótico reprimidos do narrador-
protagonista. Inteiramente desprovido de ética cristã, o desejo de matar Julião Tavares é
135
revertido momentaneamente, nesta cena, no desejo de aniquilar o suposto marido de d.
Rosália, justamente pela força superior do sexo desse homem que, ao contrário dele, faz a
mulher gemer a noite inteira.
Uma vez no território da vida passional, portanto, Luís da Silva deixa entrever no
seu discurso a crueza de algumas palavras-chave como sangue, raiva, miséria e morte.
“Julião Tavares seria enforcado. Marina trabalharia no asilo de órfãs”, esse passa a ser o
seu desejo mais premente. Em contraponto a isso, começa a escrever um romance. Vai se
desligando cada vez mais da realidade:
Abro a torneira, molho os pés. Às vezes passo uma semana compondo esse
livro que vai ter grande êxito e acaba traduzido em línguas distantes. Mas
isso me enerva. Ando no mundo da lua. Quando saio de casa, não vejo os
conhecidos. Chego atrasado à repartição. Escrevo omitindo palavras, e se
alguém me fala, acontece-me responder verdadeiros contra-sensos. Para
limitar-me às práticas ordinárias, necessito esforço enorme, e isto é
doloroso. Não consigo voltar a ser o Luís da Silva de todos os dias. Olham-
me surpreendidos: naturalmente digo tolices, sinto que tenho um ar
apalermado. Tento reprimir essas crises de megalomania, luto
desesperadamente para afastá-las. o me dão prazer: excitam-me e
abatam-me. Felizmente passam-se meses sem que isto me aconteça
(RAMOS, p. 163.).
Assim sozinho e alienado, com a auto-estima diminuída, Luís da Silva fica horas no
banheiro, fantasiando maluqueiras (o banheiro da casa de Marina é junto ao dele, separado
apenas por uma parede). Ele acaba ouvindo (ou melhor, depreendendo da conversa entre d
Adélia e Marina) que Marina está grávida de Julião Tavares e foi abandonada por ele, o que
aumenta ainda mais o ódio de Luís da Silva pelo rival:
(...) Era evidente que Julião Tavares devia morrer. Não procurei investigar
as razões desta necessidade. Ela se impunha, entrava-me na cabeça como
um prego. Um prego me atravessava os miolos. É estúpido, mas eu tinha
realmente a impressão de que um objeto agudo me penetrava a cabeça. Dor
terrível, uma idéia que inutilizava as outras idéias. Julião Tavares devia
morrer. (IBID, p. 173.).
Exteriorizando esses sentimentos rebarbativos, acompanhamos, passo a passo, o
calvário do narrador-protagonista, até seu aniquilamento final, quando, após assassinar
Julião Tavares, passa a viver acuado pela própria consciência:
136
Um, dois, um, dois. Inútil. Não podia marchar. Um aleijado, um velho.
Mais cem metros, e talvez fosse a salvação. Horrível atravessar os espaços
iluminados. Se alguém desembocasse de uma travessa e me reconhecesse?
Desejava olhar para trás. Impossível. Consegui reunir uns restos de forças e
correr. Uma carreira bamba e trôpega, a boca aberta, contrações na carne
enregelada. Corria e chorava, certo de que o esforço era perdido, porque o
meu chapéu tinha ficado à beira do caminho, sobre as moitas. No dia
seguinte passaria de mão em mão e chegaria à minha cabeça.
- Trinta anos de cadeia. (IBID, p.248.).
Mas, antes disso, em meio a essa trajetória delirante, Luís da Silva, ainda que, de
certa forma, se apiede de Marina por ela ter sido “usada” por Julião Tavares, sente um
prazer mórbido em torturá-la com palavras quando ela decide abortar o filho:
- Puta!
Os beiços de Marina estavam como o de uma defunta, os olhos procuravam
socorro, e eu cravava as unhas nas palmas das mãos, mordia a ngua por
ter deixado escapar mais uma vez a injúria que nada significava. Deu-me
uma tontura, cambaleei. Meses antes Marina ficara nua, a carne arrepiada
se cobria de carocinhos. Quando o marido voltava do interior, d. Rosália
soltava uns gritos que não me deixavam dormir. A mulher da rua da Lama
ia para o hospital, vinha do hospital, continuava o trabalho enfadonho no
quarto sujo, nua e triste. Os dedos cruzavam-se nos joelhos agudos como
dedos mortos. “A água lava tudo, as feridas cicatrizam.” Repeti
mentalmente esta frase, mas não pude saber de quem era ela.
- Enfim tudo se acabou, não é? Perguntei. O filho morreu, boa solução.
Marina estremeceu violentamente e parou, olhando-me pela primeira vez.
O rosto contraído esmoreceu num desmaio, o corpo diminuiu. Pareceu-me
que ia enterrar-se todo na areia. A voz morria-lhe na garganta, sons roucos
e incompreensíveis, mas os olhos apavorados negavam, a cabeça agitava-se
desordenadamente, negando.
- Merecia estar na cadeia, resmunguei sentindo uma necessidade urgente de
justiça. (RAMOS, p. 218-219.).
Fácil de ser penetrada e plástica, a areia, por um lado, simboliza a quantidade dos
nossos pecados: quanto maior o número de grãos, maior a quantidade de pecados dos quais
temos que nos desfazer; por outro lado, é um regresso ao útero, uma busca de repouso, de
regeneração. Nesse sentido, o fato de Marina ter abortado o filho de Julião Tavares, por si
só, significa, para Luís da Silva, que Marina está purificada (Daí a comparação com a
água). Porém a “necessidade urgente de justiça” (obviamente que a seu favor) faz com que
ele insista em ultrajá-la:
137
- Ande. Que diabo tem você nas pernas que não caminha?
A marcha na areia solta era penosa em extremo.
- Vá-se embora. Me largue, pelo amor de Deus, arquejou Marina. Não lhe
fiz mal. Por que não em deixa em paz?
Em paz. Grunhi de novo o desaforo imundo. Em paz. (...).
- Sem dúvida. Os tempos estão duros. Em frente, ordinário, marche! Tudo
isto é uma peste.
Entramos na cidade e separamo-nos. Mas logo me veio a idéia de que ela ia
se juntar com o amante. (IBID, p. 221.).
A partir daí, sentindo-se vingado em relação à Marina, “como que ela sai de cena”.
Todo o foco da atenção de Luís da Silva passa a ser Julião Tavares:
Descobri por acaso que Julião Tavares tinha feito nova conquista. Foram
duas ou três palavras soltas na rua que deram a revelação. Pensei numa das
filhas do Lobisomem e na datilógrafa dos olhos verdes.
Tudo isso é infantil, mas a verdade é que durante dias me atormentou a
idéia de que Julião Tavares havia seduzido a menina de olhos verdes. Para
que lado morava ela? Nunca havia percebido a voz dessa criatura, o
conhecia nenhum dos seus gestos, mas tinha certezas esquisitas e andava
como um parente cheio de ciúmes ou como um cachorro que perdeu o faro
e não sossega.
Por que se tinha escondido a datilógrafa dos olhos verdes? Fugiria da
polícia? Ou estaria na cama com hemorragia produzida por uma
intervenção de d. Albertina? Agora Julião Tavares tomava um caminho,
depois tomava outro e eu imaginava que ele residia em Bebedouro, na
Levada, em Jaraguá, no Farol, enfim admitia que nos quatro pontos
cardeais existiam datilógrafas doentes. Todas elas estavam grávidas e
procuravam os serviços de d. Albertina. (RAMOS, p. 222.).
Completamente perturbado, pois, evidencia-se que, numa espécie de desdobramento
histérico (ou esquizofrênico) da personalidade, esse Outro (Julião Tavares), pelo seu poder
e apetite devorador, se apresenta para Luís da Silva como um duplo maléfico (adversário),
do qual, numa ressonância trágica e fatal, só poderá se separar através da morte:
Aqueles modos davam-me a impressão de que tudo em roda era dele. Os
passeios blicos eram dele. Certamente ninguém me proibia de andar nos
jardins, sentar-me, ver as mulheres. Mas as mulheres não reparavam em
mim, pessoas conhecidas olhavam-me distraidamente. Demais, enquanto
me achava ali, perseguia-me a recordação da vida ordinária, e isto me
estragava a hora mesquinha da folga. Os canteiros, o coreto, os globos
opalinos, não me serviam para nada. Estimaria que os fios do Nordeste
encrencassem e a cidade ficasse às escuras. Mover-me-ia como um cego,
138
esqueceria as mulheres pintadas que imitam d. Mercedes, esqueceria Julião
Tavares, que estava em todos os bancos. Mas dar-me-ia a recordação de
coisas mais desagradáveis ainda. (IBID, p. 226).
A figura de Julião Tavares desperta e revela, em Luís da Silva, tendências até então
ocultadas, reprimidas na sombra do inconsciente. Evocando falsos escrúpulos, insinua que
“Julião Tavares julgava-se superior aos outros homens porque tinha deflorado várias
meninas pobres. Pelos modos, imaginava-se dono delas.”, diz (IBID, p. 226). O que lhe é
abominável, talvez, é o poder de sedução (ou de eloqüência) do antagonista, que ele, um
cachorro, um ninguém”, não possuía: “A loquacidade de Julião Tavares aborrecia-me. Uma
voz líquida e oleosa que escorria sem parar. A minha cólera esfriava, o suor colava-me à
camisa ao corpo.” (IBID, p.93), confessa.
O freio da moral é rechaçado para Luís da Silva. Incompleto, mutilado, sozinho,
amor e morte são reflexos de um mesmo espelho. Condenado ao insucesso, o encontro com
o passado é uma forma de compreender o presente:
Retirei a corda do bolso e em alguns saltos, silenciosos como os das onças
de José Baía, estava ao pé de Julião Tavares. Tudo isso é absurdo, é
incrível, mas realizou-se naturalmente. A corda enlaçou o pescoço do
homem, e as minhas mãos apertadas afastaram-se. Houve uma luta rápida,
um gorgolejo, braços a debater-se. Exatamente o que eu havia imaginado.
O corpo de Julião Tavares ora tombava para frente e ameaçava arrastar-me,
ora inclinava-se para trás e queria cair em cima de mim. A obsessão iria
desaparecer. Tive um deslumbramento. O homenzinho da repartição e do
jornal não era eu. Esta convicção afastou qualquer receio de perigo. Uma
alegria enorme encheu-me. Pessoas que aparecessem ali seriam figurinhas
insignificantes, todos os moradores da cidade eram figurinhas
insignificantes. Tinham-me enganado. Em trinta e cinco anos haviam-me
convencido de que me podia mexer pela vontade dos outros. Os
mergulhos que meu pai me dava no Poço da Pedra, a palmatória do mestre
Antônio Justino, os berros do sargento, a grosseria do chefe da revisão, a
impertinência macia do diretor, tudo virou fumaça. Julião Tavares
estrebuchava. (RAMOS, p. 237-238.).
Resgatando aquilo que poderia resultar esquecido se não fosse ressuscitado pela
narração, o narrador-protagonista busca nesse recorte de experiências dolorosas uma
justificativa para a brutalidade do seu gesto. Ele se coloca como vítima de um mundo cruel
e estreito (mundo das subordinações subjetivas), que, por tanto tempo trinta e cinco anos
– lhe negou a própria individualidade.
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Se ficarmos bem atentos, veremos que, desde o início, submergem nas malhas do
texto, fortes indícios de que Luís da Silva, por todo esse complexo psíquico que o
atormenta, é um homem traumatizado e mentalmente desequilibrado, movido somente por
instintos, e capaz, portanto, de cometer um crime passional. Vejamos um exemplo:
Logo que me afastava da repartição, tudo mudava. Tropeçando no
paralelepípedo, via, meio encadeado pelo sol, os transeuntes juntarem-se e
apartarem-se, e isto me parecia cheio de malícia. Havia intenções
reservadas nos homens que se acercavam das mulheres, havia promessas
nos olhos das mulheres que se desviavam dos homens. Automóveis abertos
exibiam casais, automóveis fechados passavam rápidos, e eu adivinhava
saias machucadas, gemidos, cheiros excitantes. Todos os veículos
transportavam pecados. A cidade estava em cio, era como o chiqueiro do
velho Trajano. Que perigo! Três horas escondido e fora essa gente
desenfreada, bodejando, com estilo, com demoras e requintes, mas
bodejando como os bodes do velho Trajano. (RAMOS, p. 198.).
Antes de tudo, pensemos na imagem do bode, animal trágico, que serve, em
sacrifício, para a expiação dos pecados do povo. Fedorento, impuro, completamente
absorvido por sua necessidade de procriar, é um signo da maldição, futuro condenado do
inferno, como também o é do macho em perpétua ereção. Luís da Silva, ao evocá-lo na sua
lembrança, associados a do velho Trajano acostumado a gerar cria nas pretas -, parecem
designar uma “herança genética maldita”, da qual ele não consegue se desfazer. A diferença
entre ele e o avô é que Luís da Silva, assim como o João Valério de Caetés, é um sertanejo
“civilizado”, uma vez que veio para a cidade e arrumou emprego. Nesse sentido, lhe é
proibido andar de cuecas e deflorar moças brancas. Por isso consegue se relacionar com
prostitutas. Caso contrário, se tornará um animal imundo (como o bode, como o velho
Trajano).
Assim, com uma visão de quem está “de fora do mundo”, Luís da Silva, num tom
quase agressivo, compara a cidade, em sua relação metonímica com quem a habita, a um
animal no cio. Pois o animal, a besta que existe em cada um de nós (parte satânica do
homem), é, simbolicamente falando, o conjunto de forças profundas que nos animam, e a
libido está em primeiro lugar. Ou seja, ao deformar (ou recriar) uma referência concreta,
real, fazendo esse grosseiro esboço da devassidão do caos que é um espaço urbano, Luís da
140
Silva atesta sua psique instintual e, portanto, perigosa, em decorrência, justamente, da
sua não-integração em sociedade desde a infância, origem de todo o seu trauma:
Penso ma morte de meu pai. Quando voltei da escola, ele estava estirado
num marquesão, coberto com um lençol branco que lhe escondia o corpo
todo até a cabeça. ficavam expostos os pés, que iam além de uma ponta
do marquesão, pequeno para o defunto enorme. Muitas pessoas se tinham
tornado donas da casa: Rosenda lavadeira, padre Inácio, cabo José da Luz,
o velho Acrísio.
Fui sentar-me numa prensa de farinha que havia no fundo do nosso quintal.
Tentei chorar, mas não tinha vontade de chorar. Estava espantado,
imaginando a vida que ia suportar, sozinho neste mundo. Sentia frio e pena
de mim mesmo. A casa era dos outros, o defunto era dos outros. Eu estava
ali como um bichinho abandonado, encolhido na prensa que apodrecia.
Ouvia o barulho de um descaroçador de algodão, próximo, no Cavalo-
Morto. E via o corredor de nossa casa, por onde passavam a batina de padre
Inácio, a farda do cabo José da Luz, o vestido vermelho de Rosenda e o
capote do velho Acrísio.
Que ia ser de mim solto no mundo? Pensava nos pés de Camilo Pereira da
Silva, sujos, com tendões de grossura de um dedo, cheios de nós, as unhas
roxas. Eram magros, ossudos, enormes. O resto do corpo estava debaixo do
lençol branco, que fazia um vinco entre as pernas compridas. Eu não podia
ter saudades daqueles pés horríveis, cheios de calos e joanetes. Procurava
chorar – lembrava-me dos mergulhos no Poço da Pedra, das primeiras
lições do alfabeto, que me rendiam cocorotes e bolos. Desejava em vão
sentir a morte de meu pai. Tudo aquilo era desagradável. “Isto é um
cavalo de dez anos e não conhece mão direita.” (RAMOS, p. 21.).
Vivo ou morto, Camilo Pereira da Silva desperta medo no menino Luís da Silva,
que, mesmo agora, adulto, preserva esse medo no seu eu mais profundo. Parece que temos
uma explicação para essa forma de “autismo” que se manifesta enquanto traço marcante
da personalidade do narrador-protagonista. Quando ele reitera a imagem dos pés do pai (e
vimos que o é símbolo do falo), podemos pensar que havia uma relação incestuosa
entre pai e filho, não a termo, mas enquanto desejo reprimido (ou enquanto tentação
inconsciente), uma vez que a noção de normalidade (ou de imoralidade) se perde para essa
criança desde sempre. Cumpre distinguir, é gico, esse incesto, próprio de uma fase da
sexualidade infantil, do incesto relacionado à perversão sexual.
Tal “relação incestuosa” parece corresponder, pois, a essa sua situação psíquica
fechada (ou estreita), incapaz de assimilar o outro, traindo a sua deficiência. Trata-se de um
bloqueio, um nó, uma parada no seu desenvolvimento moral, uma vez que, nos termos da
141
psicanálise, o pai é uma figura castradora, representando a consciência diante dos impulsos
primitivos. Ele não é alguém que o ser quer possuir ou ter, mas também a pessoa que
quer vir a ser (supressão do pai “outropara o acesso ao pai “eu mesmo). Com a morte de
Camilo Pereira da Silva, Luís da Silva não progride nesse sentido, pois ele se vê sozinho no
mundo, sem uma figura inibidora que dê limites aos seus desejos espontâneos.
Luís da Silva não tem uma mãe como referência, e a figura materna é o símbolo da
segurança, do abrigo, do calor, da ternura e da alimentação, sensações essas que não
existiram para ele, a não ser em frações de segundos, quando, após o enterro do pai,
Rosenda lhe oferece uma xícara de café. Vejamos:
Sempre abafando os passos, dirigi-me novamente ao fundo do quintal, com
medo daquela gente que nem me havia mandado buscar à escola para
assistir à morte de meu pai. Até a preta Quitéria se esqueceu de mim. Ao
passar pela cozinha, encontrei-a mexendo nas panelas e lastimando-se.
Sentei-me na prensa, cansado, o estômago doendo. Que iria fazer por à
toa, miúdo, tão miúdo que ninguém me via? Encostei-me ao muro,
escorreguei por cima da madeira bichada, adormeci pensando nos
mergulhos no poço da Pedra, nos bolos e nos pés de Camilo Pereira da
Silva. E, enquanto dormia, ouvia a cantiga dos sapos no açude da Penha, o
burburinho dos intrusos que se acavalavam no corredor, o barulho do
descaroçador de algodão no Cavalo-Morto. Vozes chegavam-se, confusas,
e eu não conseguia apreender o sentido delas. Visões também. Via a casa
da fazenda, arruinada, os bichos definhando na morrinha, o chiqueiro
bodejando, relâmpagos cortando o céu. A chuva caía, eu andava pelo pátio,
nu, montado num cabo de vassoura. Quem me acordou foi Rosenda, que
me trazia uma xícara de café.
- Muito obrigado, Rosenda.
E comecei a soluçar como um desgraçado.
Desde aquele dia tenho recebido muito coice. Também me apareceram
alguns sujeitos que me fizeram favores. Mas até hoje, que me lembre, nada
me sensibilizou tanto como aquele braço estirado, aquela fala mansa que
me despertava.
- Obrigado, Rosenda.
Iam levando o cadáver de Camilo Pereira da Silva. Corri para a sala,
chorando. Na verdade chorava por causa da xícara de café de Rosenda, mas
consegui enganar-me e evitei remorsos. (RAMOS, p. 22.).
Talvez por não ter tido essa referência maternal, sempre tenha se sentido
abandonado, desprovido de natureza humana:
142
Tento lembrar-me de uma dor humana. As leituras auxiliam-me, atiçam-me
o sentimento. Mas a verdade é que o pessoal da nossa casa sofria pouco.
Trajano Pereira de Aquino Cavalcante e Silva caducava; meu pai vivia
preocupado com os doze pares de França; Quitéria, coitada, era bruta
demais e por isso insensível. Os outros moradores da fazenda, as criaturas
que viviam nos ranchos de palha construídos nas ribanceiras do Ipanema,
não se queixavam. José Baía falava baixo e ria sempre. Sinha Terta rezava
novenas e fazia partos pela vizinhança. Amaro vaqueiro alimentava-se, nas
secas, com sementes de mucunã lavada em setes águas, raiz de imbu, miolo
de xiquexique, e de tempos a tempos furtava uma cabra no chiqueiro e
atirava a culpa à suçuarana. Dores as minhas, mas estas vieram depois.
(IBID, p. 34.).
A casa tem tanto a conotação de aconchego, de proteção, quanto a de ser interior.
Segundo Gastón Bachelard, em A poética do espaço, “toda grande imagem é reveladora de
um estado da alma. A casa, mais ainda que a paisagem, é ‘um estado de alma’. Mesmo
reproduzida em seu aspecto exterior, fala de uma intimidade” (BACHELARD, p. 243.).
Quando Luís da Silva diz que a casa não era sua, era dos outros, podemos entender
justamente essa dupla significação de desabrigo e de desenvolvimento psíquico que não se
completou. Sem ter onde se refugiar, esse menino, hoje transmutado em adulto
problemático, teve uma existência horrível e solitária, cheia de medos, rolando pelo mundo,
vagabundeando em pensamentos “empastados e confusos”:
Meu pai cochilava, encostado ao balcão. Na saleta da nossa casa, por detrás
da bodega, eu recordava as lições, entorpecido. Enfiando os olhos pela
janela, via na rua o meu vizinho Joaquim Sabiá, de cócoras, fazendo
construções com areia molhada. Havia um grande silêncio, um silêncio
incômodo. Às vezes punha-me a tossir, para me convencer de que não tinha
ficado surdo. Era como se a gente houvesse deixado a terra. De repente
surgem vozes estranhas. Que eram? Ainda hoje não sei. Vozes que iam
crescendo, monótonas, e me causavam medo. Um alarido, um queixume,
clamor sempre no mesmo tom. As ruas enchiam-se, a saleta enchia-se e
eu tinha a impressão de que o brado lastimoso saía das paredes, saía dos
móveis. Fechava os ouvidos para não perceber aquilo: as vozes
continuavam, cada vez mais fortes. Que seriam? Tentava descobrir a causa
do extraordinário lamento. Supunha que eram patos gritando, embora
nunca tivesse ouvido a voz dos patos. Também me inclinava a admitir que
fossem sapos. Mas os sapos do açude da Penha cantavam de outra forma.
Não podiam ser sapos. A verdade é que muitas vezes perguntei a mim
mesmo se realmente ouvia aquele barulho grande, diferente dos outros
barulhos. Perguntei naquele tempo ou perguntei depois? Não sei. Tenho-me
esforçado por tornar-me criança e em conseqüência misturo coisas atuais
e antigas. (RAMOS, p. 19-20.).
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O silêncio envolve os grandes acontecimentos, assim como o som (muitas vezes
essas ocorrências o dramáticas). “A sensação do vasto, do profundo, do ilimitado, toma
conta de nós no silêncio” (BACHELARD, 225.). Na passagem acima, o silêncio é engolido
por vozes indistintas e lamentosas, numa espécie de eclipse mental. Presente e passado se
tocam e se confundem. É como se o adulto Luís da Silva tivesse comido a criança Luís da
Silva, que, ocultada no interior desse homem-monstro (glutão assassino), se debate,
enferma, para não desaparecer definitivamente. O patinho feio, ou o sapo, não conseguiu se
transformar em cisne (ou em príncipe). Nessa união dos opostos, se encontra, então, em
Luís da Silva, o valor de arquétipo do andrógino.
Nas doutrinas de gnoses cristãs, a androginia é apresentada como o estado inicial
que deve ser reconquistado. Mas Luís da Silva não consegue mais reintegrar-se a uma
plenitude. Em alguns momentos, como que se torna uma estátua viva, um bloco sólido, cuja
imobilidade visível de sua triste figura enfatiza a condição penosa da sua existência:
(...). Mexo-me, atravesso a rua a grandes pernadas.
Tenho contudo a impressão de que os transeuntes me olham espantados por
eu estar imóvel.
Imóvel. Camilo Pereira da Silva também estava imóvel, debaixo da terra.
D. Conceição vinha oferecer-me comida. As meninas dela, d. Maria e
Teresa, tentavam consolar-me. Retraía-me como um animal acuado,
fechava os ouvidos às consolações, cerrava os olhos, apalpava a cabeça e
sentia a dureza dos ossos, dava estalos com os dedos e ouvia o som dos
ossos.
- Obrigado, muito obrigado.
Não precisava de nada. Os ossos de Camilo Pereira da Silva
desconjuntavam-se na podridão da cova, e a alma não me fazia medo.
Era uma alma que envelhecia e estava fora da terra, provavelmente no
purgatório. Quitéria rezava alto na cozinha;
- Ofereço este padre-nosso e esta ave-maria às almas do purgatório.
Era lá que devia estar uma parte de meu pai, curando uns restos de pecados.
Leves pecados. Apenas muita preguiça. Por isso eu agüentava fome e ouvia
as lamentações de Quitéria. (RAMOS, p. 26.).
Ao comparar a sua imobilidade com a do pai morto, colocando-o no purgatório,
Luís da Silva, numa lógica maluca, acredita que, mesmo sendo um pecador, o fato de, em
vida, viver no inferno, ou seja, na desventura absoluta, na privação radical, na derrota
total, quando morrer, assim como Camilo Pereira da Silva, terá aliviado em muito o peso
144
dos seus pecados. Assassinar Julião Tavares, com certeza, é o maior deles. Porém
conhecera outros homens, em outros tempos, que, como ele, não sentiam remorsos de pôr
fim à vida de alguém. “Defuntos não me comovem”, pensou, ao ganhar uma corda de
presente de seu Ivo, caboclo bêbado que costumava bater à porta de sua casa em busca de
um prato de comida. Corda essa que acaba sendo a arma do crime. É com ela que Luís da
Silva enforca Julião Tavares, não sem antes lembrar-se de um sujeito que, na sua terra,
também havia sido enforcado num galho de carrapateira: seu Evaristo, homem de poucas
palavras, trabalhador, que passava necessidades.
Objetos de projeções nostálgicas, em suas deformações expressivas, vultos do
passado convertem-se, para Luís da Silva, em importantes referências no presente, como
José Baía, cangaceiro contratado pelo velho Trajano para extinguir proprietários vizinhos.
Tipo acaboclado, de músculos de ferro, José Baía contava-lhe histórias de onça no copiar;
ou como Chico cobra, “curandeiro que na vila andava sempre com uma cabaça cheio de
jararacas” e que, depois de matar um homem na feira, “entrou na mata, fez um rancho de
palha e cercou-se de surucucus e outros viventes semelhantes” (RAMOS, p. 178.); ou,
ainda, como Fabrício, criatura extraordinária, que narrava façanhas maravilhosas: “Esse
cangaceiro tornou-se para mim excessivamente grande, e nenhum dos defuntos que
encontrei depois, na vida ou em livros, foi como ele. Comparei Fabrício a mortos ilustres, e
Fabrício resistiu à comparação, porque foi o primeiro homem assassinado que vi” (IBID p.
180).
Ser como José Baía, Chico cobra e Fabrício, heróis que se incorporaram na sua alma
como uma tradição, é o contraponto que Luís da Silva encontra para a sua fragilidade física
e a sua incapacidade total de comunicação com os outros (ele praticamente se comunica
com a sua criada, Vitória, que é velha e surda, e com o papagaio, Currupaco, que é
totalmente mudo). Enforcar Julião Tavares representa o pagamento de uma dívida. Ali, de
cabeça para baixo, o rival está sendo punido pela tirania de uma idéia: matá-lo significa
tomar o seu lugar.
Luís da Silva não vai para cadeia, entretanto, passa a viver uma escravidão psíquica.
Completamente delirante, escrever um livro sobre si mesmo indica uma tentativa
inconsciente de regeneração, de expiração voluntária da sua culpa, de desejo de se libertar
145
do diabrete que lhe habita, das forças malignas que lhe perturbam (forças desintegradoras
da sua personalidade). Talvez ele não queira mais ser aquele menino que saía pinoteando,
nu, num cabo de vassouras, não se diferenciando dos animais da fazenda. Talvez ele queira
se aproximar do “espírito de Deus que bóia sobre as água”. Talvez depois de sair desse
estado de torpor em que se encontra (estado esse decorrente do ato insano que cometeu), ao
verbalizar as visões alucinantes que lhe perseguem, ele consiga encontrar o equilíbrio,
substituir o homem despedaçado entre seus desejos e compreender a si próprio. Talvez.
Mas essas incertezas, essas dúvidas, é que nos provocam essa sensação pungente que nos
acompanha até o final de cada livro de Graciliano Ramos, salientam um aspecto bem
característico do expressionismo: a tentativa de integração dos sentimentos mais violentos e
particulares de angústia, de morte, de poder, de liberdade, de separação, de isolamento e de
êxtase; ou seja, de busca da totalidade através da expressão desses sentimentos.
146
6 VIDAS SECAS E O DRAMA DAS ESTAÇÕES
Comparemos os fragmentos abaixo, extraídos, respectivamente, do conto de
abertura de Pelo sertão (1898), de Afonso Arinos, intitulado Assombramento (História do
sertão), de Os sertões (1902), de Euclides da Cunha, e de Vidas secas (1938), de Graciliano
Ramos, procurando observar o estilo narrativo de cada um desses textos cujo espaço onde
se desenrolam as ações é o mesmo: o sertão nordestino:
À beira do caminho das tropas, num tabuleiro grande, onde cresciam a
canela-de-ema e o pau-santo, havia uma tapera. A velha casa assobradada,
com grande escadaria de pedra levando ao alpendre, não parecia
desamparada. O viandante a avistava de longe, com a capela ao lado e a
cruz de pedra lavrada, enegrecida, de braços abertos, em prece contrita
para o céu. Naquele escampado, onde não ria ao sol, o verde-escuro das
matas, a cor embaçada da casa suavizava mais ainda o verde esmaiado dos
campos. (ARINOS, 1981, p. 51).
O planalto central do Brasil desce, nos litorais do Sul, em escarpas
inteiriças, altas e abruptas. Assoberba os mares; e desata-se em chapadões
nivelados pelos visos das cordilheiras marítimas, distendidas do Rio
Grande a Minas. Mas ao derivar para terras setentrionais diminui
gradualmente de altitude, ao mesmo tempo em que descamba para a costa
oriental em andares, ou repetidos socalcos, que o despem de primitiva
grandeza afastando-o consideravelmente para o interior. (CUNHA, 2002,
p. 21).
Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os
infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos.
Ordinariamente andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na
areia do rio seco, a viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que
procuravam uma sombra. A folhagem do juazeiro apareceu longe, através
de galhos pelados da catinga rala.
Arrastaram-se para lá, devagar, sinha Vitória com o filho mais novo
escanchado no quarto e o baú de folha na cabeça, Fabiano sombrio,
cambaio, aió a tiracolo, a cuia pendurada numa correia presa ao cinturão,
a espingarda de pederneira no ombro. O menino mais velho e a cachorra
Baleia atrás. (RAMOS, 1986, p. 9).
Percebe-se, nos dois primeiros excertos, uma linguagem bastante artificial
(vocabulário culto urbano para tratar de um tema rural) e uma atitude narrativa voltada para
a representação quase documental da realidade descrita, o que se não por força da
147
adjetivação e da sintaxe como pela preocupação em fornecer os pormenores da paisagem
física, ao contrário de Vidas secas, cujo foco é a ação das personagens e não o sertão em si.
Ou seja, em Vidas secas a função narrativa, como em um texto dramático,
praticamente se extingue. Os fatos falam por si. Sem a presença mediadora do narrador, na
maior parte da narrativa, Graciliano cria uma forma neutra, despersonalizada de narrar, em
que predomina o discurso indireto livre:
Porque tinham feito aquilo? Era o que não podia saber. Pessoa de bons
costumes, sim senhor, nunca fora preso. De repente um fuzuê sem motivo.
Achava-se tão perturbado que nem acreditava naquela desgraça. Tinham-
lhe caído todos em cima, de supetão, como uns condenados. Assim um
homem não podia resistir.
- Bem, bem.
Passou as mãos nas costas e no peito, sentiu-se moído, os olhos azulados
brilharam como olhos de gato. Tinham-no realmente surrado e prendido.
Mas aquilo era um caso tão esquisito que instantes depois balançava a
cabeça, duvidando, apesar das machucaduras.
Ora, o soldado amarelo... Sim, havia um amarelo, criatura desgraçada que
ele, Fabiano, desmancharia com um tabefe. Não tinha desmanchado por
causa dos homens que mandavam. Cuspiu, com desprezo:
- Safado, mofino, escarro de gente. (RAMOS, 1986, p. 30).
Assim sendo, o texto é estruturado, ou montado, de maneira que os acontecimentos,
os movimentos, sejam apenas registrados, sem uma análise das forças ou causas que os
produzem. A apresentação da proposição narrativa dá-se a partir da perspectiva pessoal de
determinada personagem. A sua caracterização ocorre, portanto, por via indireta, cabendo
ao leitor chegar às suas próprias conclusões. Com isso, o mundo interior das personagens se
funde aos eventos concretos evocados:
Ergueu-se, afastou-se, quase livre da tentação, viu um bando de periquitos
que voava sobre as catingueiras. Desejou possuir um deles, amarrá-lo com
uma embira, dar-lhe comida. Sumiram-se todos chiando, e o pequeno ficou
triste, espiando o céu cheio de nuvens brancas. Algumas eram carneirinhos,
mas desmanchavam-se e tornavam-se bichos diferentes. Duas grandes se
juntaram e uma tinha a figura da égua alazã, a outra representava Fabiano.
(IBID, p. 50).
Trata-se, pois, de procedimentos estilísticos que estruturam uma contraproposta à
prescrição científica e “clínica” do Naturalismo, uma vez que o sentimento da realidade
148
prevalece sobre a observação da realidade. Submetendo o tempo e o espaço às necessidades
expressivas das personagens, cada capítulo é um fragmento de humanidade, configurando-
se como uma tomada emotiva do tema. As características individuais dos personagens são
importantes apenas para multiplicar os pontos de vista em relação a um único fenômeno: as
conseqüências dramáticas da exclusão social.
A autonomia dos quadros escapa à uniformidade necessária ao verismo
realista/naturalista. A incidência dos fatos, e não as relações de contigüidade, sustenta a
narrativa. O primeiro e o último capítulo lidam diretamente com o tema e apenas nesse
sentido servem, respectivamente, como introdução e conclusão ao livro. Os demais se
aproximam do centro por diferentes ângulos, sem haver, entre eles, no entanto, qualquer elo
formal de ligação. O motivo é a dramatização do conflito social, mas, em contraposição à
abordagem naturalista, é tratado pelo autor como algo irredutível à análise, uma vez que tal
conflito se resolve, simbolicamente, na ficção, como operação do desejo contornando
um obstáculo.
Essa estrutura entrecortada, ou drama das estações, representa o modo de vida dos
retirantes nordestinos, ora vivendo como servos em feudos alheios, ora cumprindo sua
difícil peregrinação em busca de uma terra prometida. Mas, seja como for, as personagens
estão imersas no mundo pulsional. A razão não se sobrepõe às emoções, às intuições e à
experiência sensorial. E Graciliano Ramos, em termos de solução dramática, quer mostrar
especialmente o fato de que nenhuma solução é possível hoje, uma vez que o mundo
afetivo e a origem de classe não se dissolvem inteiramente, ou seja, mesmo que Fabiano e
sua família deixem o sertão e migrem para a cidade, sempre serão denunciados pelas
marcas dessa origem, da qual jamais conseguirão se desprender:
A cabeça inclinada, o espinhaço curvo, agitava os braços para a direita e
para a esquerda. Esses movimentos eram inúteis, mas o vaqueiro, o pai do
vaqueiro, o avô e outros antepassados mais antigos haviam se acostumado
a percorrer veredas, afastando o mato com as mãos. E os filhos
começavam a reproduzir o gesto hereditário. (RAMOS, p. 19).
Nesse sentido, a trajetória dos personagens é circular: a mesma situação de fuga está
no fim e no início do percurso dramático, quando, então, se abre em espiral, evocando uma
evolução das personagens, não nos moldes da estética naturalista, de fechamento
149
conclusivo do drama, mas de evolução espiritual, de continuidade cíclica, mas em
progresso. Interiormente, Fabiano e sua família já não são os mesmos, ainda que o ritmo da
vida seja repetido: Fabiano sentia distanciar-se um pouco dos lugares onde tinha vivido
alguns anos; o patrão, o soldado amarelo e a cachorra Baleia esmoreceram no seu espírito.
(RAMOS, p. 120).
Limitados pelas condições geográficas, existenciais e, até mesmo, ficcionais, tendo
em vista o seu caráter de homens-massa, os personagens obedecem a uma dança teatral
que atinge sua essencialidade expressiva através de uma pausa absoluta, isto é, através da
união entre o ser interior e o meio físico, numa espécie de catarse convulsiva.
Nesse balé, concebido estrategicamente por Graciliano, em treze atos, Fabiano,
sinha Vitória e os dois meninos seguem os seus próprios ritmos naturais, refletindo, no seu
instrumento-corpo, o desespero e a revolta provenientes de sua situação econômica e social:
Tinham fechado a casa, atravessado o pátio, descido a ladeira, e
pezunhavam nos seixos como bois doentes dos cascos. Fabiano, apertado
na roupa de brim branco feito por sinha Terta, com chapéu de abeta,
colarinho, gravata, botinas de vaqueta e elástico, procurava erguer o
espinhaço, o que ordinariamente não fazia. Sinha Vitória, enfronhada no
vestido vermelho de ramagens, equilibrava-se mal nos sapatos de salto
enorme. Teimava em calçar-se como as moças da rua e dava topadas no
caminho. Os meninos estreavam calça e paletó. Em casa sempre usavam
camisinhas de riscado ou andavam nus. Mas Fabiano tinha comprado dez
varas de pano branco na loja e incumbira sinha Terta de arranjar farpelas
para ele e para os filhos. Sinha Terta achava pouca a fazenda, e Fabiano se
mostrara desentendido, certo de que a velha pretendia furtar-lhe os retalhos.
Em conseqüência as roupas tinham saído curtas, estreitas e cheias de
emendas.
Fabiano tentava não perceber essas desvantagens. Marchava direito, a
barriga para fora, as costas aprumadas, olhando a serra distante. De
ordinário olhava o chão, evitando as pedras, os tocos, os buracos e as
cobras. A posição forçada cansou-o. E ao pisar a areia seca do rio, notou
que assim não poderia vencer as três léguas que o separavam da cidade.
Descalçou-se, meteu as meias no bolso, tirou o paletó, a gravata e o
colarinho, roncou aliviado. Sinha Vitória decidiu imitá-lo: arrancou os
sapatos e as meias, que amarrou no lenço. Os meninos puseram as
chinelinhas debaixo do braço e sentiram-
se à vontade.
(IBID, p. 71-72).
Para corresponder a isso, na natureza um silêncio grande, como uma orquestra
atonal interrompida, vez que outra, por interjeições e onomatopéias, que soam como um
150
acento da expressão interior desses personagens: Chape-chape. As alpercatas batiam no
chão rachado. O corpo do vaqueiro derreava-se, as pernas faziam dois arcos, os braços
moviam-se desengonçados. Parecia um macaco. (RAMOS, p. 19).
Essa postura de Fabiano reforça a idéia de que a intensidade do sentimento comanda
a intensidade do gesto. O corpo é mobilizado para a expressão. O torso flexionado da
personagem traduz o seu sentimento de anulação: - Você é um bicho, Fabiano” (IBID, p.
18), repetia ele, para si mesmo, triste por saber que “a sina dele era correr mundo, andar
para cima e para baixo, à toa, como judeu errante” (IBID, p. 19).
Em nenhum momento da obra, Graciliano menciona datas ou idades; nunca
sabemos exatamente quando os fatos acontecem e os entrelaçamentos cronológicos
permanecem bastante vagos. Isso causa um efeito cinemático. Como diz Arnold Hauser, em
A era do filme (HAUSER, 2000, p. 55), “quando Proust aproxima dois incidentes que
poderiam estar a trinta anos de distância entre eles, trata-se simplesmente de um truque
cinematográfico”.
Do mesmo modo, em Vidas Secas, a descontinuidade do enredo faz com que as
fronteiras do espaço e tempo se diluam. Passado, presente e futuro se sobrepõem, “numa
infindável e ilimitada corrente de inter-relações” (RAMOS, p. 55). Tudo o que sabemos dos
personagens é que estão cumprindo uma predestinação:
[Sinha Vitória] chegou-se a Fabiano, amparou-o e amparou-se, esqueceu os
objetivos próximos, os espinhos, as arribações, os urubus que farejavam
carniça. Falou no passado, confundiu-o com o futuro. Não poderia voltar a
ser o que já tinham sido? (IBID, p. 119).
Mas essa “vida anterior”, que surge projetada no futuro, não passa de uma utopia
em face do presente condenado” a reter o tempo comprimido. Não possibilidade de
fuga. A busca do tempo perdido é, na verdade, uma tentativa de “suspender” o vôo do
tempo. E o espaço serve para isso. O sertão mantém as personagens em seu papel
dominante. Se forem para cidade, estarão deslocadas do seu habitat natural e, assim sendo,
o medo da não-sobrevivência, da falta de confiança em si, será ainda mais exagerado.
No capítulo “Inverno”, esse valor de intimidade dos personagens com o espaço
oferece uma sensação de repouso:
151
A família estava toda reunida em torno do fogo, Fabiano sentado no pilão
caído, sinha Vitória de pernas cruzadas, as coxas servindo de travesseiros
aos filhos. A cachorra Baleia, com o traseiro no chão e o resto do corpo
levantado, olhava as brasas que se cobriam de cinza. (RAMOS, p. 63).
Trata-se de uma cena em que, como diz Bachelard, na Poética do Espaço (1957),
“no reino único da imaginação, o inverno evocado aumenta o valor da habitação da casa”
(BACHELARD, 1957, p. 223). A família está feliz. Em face das hostilidades, os valores de
proteção e de resistência da casa são transformados em valores humanos. “A casa vivida
não é uma casa inerte. O espaço habitado transcende o espaço geométrico” (IBID, p. 227).
E nesse espaço aquecido e seguro, de regeneração periódica, Fabiano, sinha Vitória,
os dois meninos e Baleia sonham acordados. “A casa era forte” (RAMOS, p. 66),
confortava-se sinha Vitória, pensando na possibilidade de uma inundação. E “Fabiano
contava façanhas” (IBID, p. 66), contente, enquanto os meninos escutavam as lorotas do
pai” (IBID, p. 67) e Baleia desejava adormecer, no calor, “sentindo o cheiro das cabras
molhadas e ouvindo rumores desconhecidos” (IBID, p. 70).
Mas esse repouso é passageiro. Logo “o mundo ficaria coberto de penas” outra vez.
E outra vez Fabiano e sua família teriam que “abandonar aqueles lugares amaldiçoados”
(IBID, p. 115), por mais que, nesse momento, Fabiano não quisesse pensar no futuro.
“Dentre em pouco o despotismo da água iria acabar” (IBID, p. 65).
Com efeito, essa bita certeza é um pesadelo ontológico. Como diz Bachelard,
“nesse drama da geometria íntima, onde é preciso habitar?” (BACHELARD, 1957, p. 339).
No capítulo “Fuga”, o pesadelo se torna radical. Até então, a seca era apenas uma palavra
que, registrada no íntimo dos personagens, provocava-lhes agitação. Agora havia a
evidência exterior: Nesse horrível ‘interior-exterior’ as palavras não formuladas, as
intenções do ser inacabadas, o ser, no interior de si, digere lentamente seu nada. Seu
aniquilamento durará “séculos”. (IBID, p. 339).
Assim, a representação da natureza em Vidas secas, à semelhança da configuração
do ser humano, é celebrada como feia. Os fenômenos naturais são entrevistos sob um
prisma negativo e deformante e geralmente considerados elementos de um reino despojado
de encantos, muitas vezes hostil e apavorante. A casa funciona, pois, como uma concha.
Ali os personagens estão protegidos do antagonismo do sertão. fora, “o barulho do rio
152
era como um trovão distante” (RAMOS, p. 63) e “a cantiga dos sapos e o rumor das
goteiras causavam estranheza” (IBID, p. 69). Ou seja, tanto “a fúria das águas” quanto a
ação cáustica do sol são uma ameaça para os retirantes.
Essas imagens antiidílicas revelam, numa perspectiva expressionista, o caráter
demoníaco da natureza, uma atmosfera condensada em formas monstruosas. Elas são o
sintoma de um mundo enfermo, ameaçado, que reflete a solidão e os temores do homem
moderno. Pois incontáveis são as imagens desencantadas que aparecem em Vidas secas. Aí
a os elementos da natureza escaldam, ferem, sangram, matam. E nesse espaço maldito,
desumano e impessoal, a vida dos retirantes se traduz num vegetar sem sentido:
Vivia longe dos homens, se dava bem com os animais. Os seus s
duros quebravam espinhos e não sentiam a quentura da terra. Montado,
confundia-se com o cavalo, grudava-se a ele. E falava uma linguagem
cantada, monossilábica e gutural, que o companheiro entendia. (IBID, p.
19).
Antes a natureza era símbolo do paraíso, agora um símbolo do inferno. E nesse
mundo ainda feudal não apenas o status, mas a sobrevivência dependem da proteção dos
mais poderosos. Tormento e aflição é tudo quanto esse mundo pode oferecer. E Vidas
secas, expressionista em sua desolada intensidade, constitui uma visão demoníaca de uma
época em que o peso da morte subjuga as pessoas, destruindo seus corpos, estrangulando
suas almas. Os personagens procuram escapar desse mundo medieval migrando em direção
a uma “terra prometida”, porém, no seu espírito, encontra-se um novo medo: “que iriam
fazer? Retardaram-se, temerosos. Chegariam a uma terra desconhecida e civilizada,
ficariam presos nela” (IBID, p. 126).
Ao contrário do Fausto de Goethe, as personagens de Vidas secas, destituídas de
uma visão romântica da realidade, não conseguem afirmar-se contra a arrogante tirania da
natureza. Nesse viciado mundo fechado e repressivo, inexiste qualquer arroubo efetivo de
reação. O único caminho que conhecem é cheio de seixos e espinhos. Ora um mormaço
levanta-se da terra queimada, ora as catingueiras estão dentro da água. Ou seja, o selvagem
ar moderno explode em calor e frio através de todos nós. Isso leva a um autêntico e urgente
problema humano: qual o caminho mais seguro para se sair das contradições da
modernidade?
153
Graciliano Ramos orienta-nos na direção dessa pergunta, deixando o final do livro
em aberto, isto é, Graciliano conclui a história praticamente negando-lhe um final, o que
nos coloca numa posição de expectativa: será que esses “nômades do Estado sem lar”, de
que fala Nietzsche, cujos sonhos são pateticamente limitados, entendem a inutilidade do seu
ato de protesto? Ou será que procuram abafar a sua consciência e decidem seguir adiante?
A atitude deles é de indecisão.
Como diz Flávio R. Kothe, em Graciliano e a antagonista silenciada (KOTHE,
1993, p. 20), “a continuação dessa história não foi escrita por Graciliano, que preferiu não
fazer ficção sobre a sua experiência carioca, escrevendo em seu lugar o relato de uma
migração forçada: Memórias do cárcere”. E Flávio segue expondo essa idéia,
argumentando que foi Clarice Lispector quem, em A hora da estrela (1977), promoveu tal
continuação, elaborando “em Macabéa um Fabiano feminino a procurar salvação dentro do
país e encontrando paredes e frustrações: a saída buscada era ilusão; a esperança, uma
deusa morta” (IBID, p. 21).
Desse modo, Graciliano Ramos, ao mesmo tempo em que recusa toda e qualquer
possibilidade de ufanismo ingênuo em relação à realidade, expondo-a cruamente,
dialeticamente permite que, a despeito de sua visão negativa e crítica, possamos vislumbrar,
no porvir, o que Flávio Kothe, no artigo supra-referido, vai chamar de uma “metamorfose
da lata de lixo da história em panelão de feijoada
22
” (IBID, p. 22).
Clarice Lispector deu uma resposta ao que Graciliano deixou suspenso no ar,
porém, ao fazê-lo, encerrou, na ficção, uma verdade última, como se essa fosse a única
solução possível, impedindo que se interrogue a razão de uma tendência histórica: a
exclusão social dos nordestinos, apenas apontando e reforçando, pois, o preconceito. Talvez
Clarice Lispector não estivesse prevenida do fato de estar se rendendo, na realidade, ao
mundo capitalista burguês, uma vez que assume tal ética fatalista. Ela deixa-nos amargo
testamento, legado intransferível de nossa negativa e miserável condição.
22
Segundo Flávio Kothe, “Graciliano, apesar de toda a negatividade social e política documentada em sua
obra, tem implícita a postura da ‘dialética da feijoada’, que acredita que, a partir de partes menos nobres do
animal menos nobre e de uma semente comum feito o feijão, pode acabar se formando, depois de muito
cozinhar, uma comida boa” (KOTHE, 1993, p. 21).
154
Graciliano, ao contrário, não se contenta com fatos registrados, nem tampouco se
propõe a resolvê-los. Fica evidente que o narrador de Vidas secas confere autonomia tanto
aos personagens quanto aos leitores no que tange à reflexão e ao pensar, enquanto Rodrigo,
narrador de A hora da estrela, estabelece uma relação de amor e ódio com Macabéa, que é
uma personagem vazia, inclusive de vida. Ela existe através desses sentimentos
ambivalentes que provoca em Rodrigo; nada tem a dizer, nada tem a pensar. Solitária,
pobre e feia, sua timidez denota passividade em face de um destino que parece certo e fatal,
opondo-se, portanto, ao ponto de vista adotado na obra graciliânica, em que o destino das
personagens, assim como o destino dos homens no mundo capitalista, é incerto. Não cabe à
literatura encontrar uma alternativa nesse sentido.
Nas suas Cartas (1982), Graciliano Ramos diz: no fundo todos somos como a
minha cachorra Baleia e esperamos por preás” (RAMOS, 1982, p. 201), ou seja, projetamos
no futuro um paraíso perdido, isto é, uma sociedade igualitária (sem classes), democrática
e não-autoritária, em que possamos viver numa harmonia edênica com a natureza.
É precisamente o reconhecimento desesperado do autor da ausência radical, no
mundo capitalista moderno, dessa harmonia, reciprocidade e cumplicidade entre o homem e
a natureza, que faz com que Vidas secas exprima uma visão do inferno, a qual revela o
universo por excelência da repetição, disfarçado em novidade. Não sendo possível
interromper a continuidade histórica, Graciliano interrompe a narrativa.
Em Vidas secas, pois, Graciliano Ramos traz do fundo de suas reminiscências, do
fundo de sua revolta contra os militares e a burguesia opressora, uma história que comove
não pelos fatos em si, mas, sobretudo, pela intensidade sensorial da narrativa. Com um
estilo antes expressionista do que naturalista, e através de técnicas características do
cinema, tais como o contra-plongèe
23
e o traveling
24
, Graciliano projeta, na própria
linguagem, uma série de imagens aviltantes e de vibrações sonoras que se expandem a
partir desse mundo de desolada miséria, repressivo e brutal, refúgio de ex-escravos e
excluídos em geral, até suspenderem a soberania da referencialidade lingüística e se
23
A câmara foca os objetos de baixo: “O vôo negro dos urubus fazia círculos altos em redor de bichos
moribundos” (RAMOS, 1938, p. 10).
24
Corresponde ao acompanhamento do movimento do objeto ou à aproximação da câmara ao objeto. É um
deslocamento espacial da câmara: “Os juazeiros aproximaram-se, recuaram, sumiram-se” (RAMOS, 1938, p.
9).
155
tornarem a expressão máxima de uma dor que ecoa como uma advertência contra a
condição de rias dos retirantes nordestinos, tidos como fanáticos e ignorantes, cujo
modus vivendi é o produto de uma desorganização econômica aliada a motivos de ordem
social:
Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os
infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos.
Ordinariamente andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na
areia do rio seco, a viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que
procuravam uma sombra. A folhagem do juazeiro apareceu longe, através
de galhos pelados da catinga rala.
Arrastaram-se para lá, devagar, sinha Vitória com o filho mais novo
escanchado no quarto e o b de folha na cabeça, Fabiano sombrio,
cambaio, aió a tiracolo, a cuia pendurada numa correia presa ao cinturão, a
espingarda de pederneira no ombro. O menino mais velho e a cachorra
Baleia atrás. (RAMOS, p. 9).
Temos o que Benjamim vai chamar de alegoria do autômato, do homem que
perdeu toda a experiência e memória, repetindo, mecanicamente, gestos carentes de
sentido, numa espécie de procissão infernal que multiplica sempre a mesma imagem
repugnante. E é interessante notar como essa cena pode ser lida, ou visualizada,
metonimicamente, a partir do inconsciente coletivo do leitor que conhece a passagem
bíblica do Êxodo, em que os israelitas, oprimidos pelos egípcios, são conduzidos por
Moisés, através do deserto, em busca de Canaã, a terra prometida pelo Deus dos hebreus,
Javé. Esse relato está na gênese da sociedade ocidental.
Nesse sentido, é viável traçarmos um paralelo entre o tempo histórico, profano, e
o tempo mítico, primordial, e “traduzir” essa sobreposição de imagens como uma
desmistificação, através da literatura, do que nos conta a história oficial a respeito de todos
os párias de todos os tempos, uma vez que, até hoje, os israelitas, disseminados pelo
mundo, não obtiveram sua promessa de redenção. Seus destinos foram, em geral, trágicos.
Como afirma Jacques Rancière, em artigo especial para a Folha de São Paulo
(RANCIÉRE, 1996, p. 5.), “sabemos, desde Hegel, que a morte é dialética, e os ossuários
da purificação étnica resolveram o problema. Matar o Outro como Outro é o meio mais
seguro de investi-lo em sua identidade, de impor a todos a evidência dessa identidade”
Por conseqüência, Fabiano e sua família, como que atirados no mundo, vagando
pelo sertão feito judeus errantes, vivem uma espera muda, fervorosa e interrogante,
156
transpirando a inquietude do ser humano entregue, sem piedade, a uma civilização técnica
que lhe escapa. Isso se manifesta de modo impressionante no capítulo “O mundo coberto de
penas”, quando Fabiano, observando a natureza dominada pelo retorno monótono e circular
do sempre-igual, “no silêncio comprido em que se ouvia um rumor de asas” (RAMOS,
p. 109), reflete sobre essa atmosfera infernal que, eminentemente contraditória, os assimila
e os expele ao mesmo tempo:
A cólera dele se voltava de novo contra as aves. Tornou a sentar-se na
ribanceira, atirou muitas vezes nos ramos de mulungu, o chão ficou todo
coberto de cadáveres. Iam ser salgados, estendidos em cordas. Tencionou
aproveitá-los como alimento na viagem próxima. Devia gastar o resto do
dinheiro em chumbo e pólvora, passar um dia no bebedouro, depois se
largar pelo mundo. Seria necessário mudar-se? Apesar de saber
perfeitamente que era necessário, agarrou-se a esperanças frágeis. Talvez a
seca não viesse, talvez chovesse. Aqueles malditos bichos é que lhe faziam
medo. Procurou esquecê-los. Mas como poderia esquecê-los se estavam ali,
voando-lhe em torno da cabeça, agitando-se na lama, empoleirados nos
galhos, espalhados no chão, mortos? Se não fossem eles, a seca não
existiria. Pelo menos não existiria naquele momento: viria depois, seria
mais curta. Assim, começava logo e Fabiano senti-a de longe. Senti-a
como se ela tivesse chegado, experimentava adiantadamente a fome, a
sede, as fadigas imensas das retiradas. Alguns dias antes estava sossegado,
preparando látegos, consertando cercas. De repente, um risco no céu,
outros riscos, milhares de riscos juntos, nuvens, o medonho rumor de asas a
anunciar destruição. Ele andava meio desconfiado vendo as fontes
minguarem. E olhava com desgosto a brancura das manhãs longas e a
vermelhidão sinistra das tardes. Agora se confirmavam as suspeitas. (IBID,
p. 112).
Em A metamorfose do silêncio (1968), ensaio publicado na revista Tempo
Brasileiro, número 17/18, Luiz Costa Lima comenta que “se o silêncio reside tanto na
natureza quanto no homem, se o silêncio pode ser resgatado mediante uma linguagem, é
que ele constitui o núcleo irredutível sobre o qual e em cujas fronteiras o sentido se
estabelece” (LIMA, 1968, p. 42). E, ainda nesse mesmo ensaio, Costa Lima estabelece uma
distinção entre calar e silenciar que nos parece fundamental para entendermos que, no caso
de Vidas secas, o silêncio dos personagens está muito mais relacionado com um juízo sobre
a falta de oportunidade da palavra do que com uma impossibilidade de articulá-la: “calar
implica geralmente numa ação humana. (...) Silenciar distingue-se do calar pela
incapacidade intrínseca de dizer sobre algo (IBID, p. 41/42). E Fabiano “admirava as
157
palavras difíceis e compridas da gente da cidade, tentava reproduzir algumas, em vão, mas
sabia que elas eram inúteis e até perigosas” (RAMOS, p.20).
Ou seja, Fabiano e sua família, por serem criaturas socialmente deslocadas, que se
encontram num nível econômico e cultural que constitui a parcela mais explorada e
oprimida da população brasileira, não conseguem, ou não podem formular claramente as
suas reivindicações. Como diz Sartre, num mundo em que falar é atuar e a palavra é ação,
mundo esse infestado pela presença do Outro como centro de referência, “a realidade-
humana pode escolher-se como bem entenda, mas não pode não se escolher; sequer pode
recusar-se a ser” (SARTRE, 1997, p. 590).
O que soa mais terrível em Vidas secas, portanto, é o fato desses sujeitos rarefeitos
terem a consciência de si mesmos, o que, segundo Marx, torna a opressão ainda mais
opressiva: “Não, provavelmente não seria homem: seria aquilo mesmo a vida inteira, cabra,
governado pelos brancos, quase uma rês na fazenda alheia” (RAMOS, p. 24), lamenta-se
Fabiano.
O soldado amarelo, personagem despersonalizado dentro da obra, representa toda a
revolta e impotência de Fabiano contra esse poder. Do mesmo modo como Graciliano
Ramos foi preso injustamente, sem sequer ter uma chance de defesa, ou melhor, sem ter
como se defender por não existir acusação, Fabiano, em Vidas secas, também é vítima de
uma injustiça.
No capítulo “Cadeia”, Fabiano vai à cidade comprar mantimentos e, parando na
bodega de seu Inácio, onde guardara os picuás, decide beber uma pinga. Por imposição de
um soldado amarelo, que o desafia no carteado, demora-se jogando um trinta-e-um, tonto
de aguardente, até que, tendo se encalacrado financeiramente, simplesmente vira as costas e
deixa a bodega, sem se despedir. O policial toma isso como uma provocação e vai atrás de
Fabiano, insultando-o e pisando propositalmente, com força, encima da sua alpercata.
Fabiano protesta e, impaciente por chegar em casa, devido o adiantado da hora, acaba
xingando a mãe do soldado. Esse apita e chama o destacamento da cidade para deter o
vaqueiro. Surrado e preso, Fabiano passa a noite inteira, na cadeia, remoendo a sua
indignação:
158
Era bruto, sim senhor, nunca havia aprendido, não sabia explicar-se. (...)
Seu Tomás daria informações. Fossem perguntar a ele. Homem bom, seu
Tomás da bolandeira, homem aprendido. Cada qual como Deus o fez. Ele,
Fabiano, era aquilo mesmo, um bruto. (RAMOS, p. 16).
E aqui cabe falarmos a respeito desse outro personagem: seu Tos da bolandeira¸
que, segundo Fabiano, dos homens do sertão era o mais arrasado pela seca, uma vez que
“falava bem, estragava os olhos encima de jornais e livros, mas não sabia mandar” (IBID,
p. 22), isto é, seu Tomás representa o mundo da cultura, inútil no sertão, onde o que vale é a
força bruta; inútil e perigoso, uma verdadeira ameaça para os governantes, para os
propósitos reacionários de uma oligarquia rural em luta, que temia uma eclosão antifascista
entre a massa miserável de camponeses, cobiçosa por necessidade e naturalmente
oposicionista, analisa Graciliano Ramos, em Viventes das Alagoas (1962).
Essa ambigüidade de seu Tomás da bolandeira: inútil e perigoso coloca-nos diante
dos pressupostos luckacsianos de que, para haver uma revolução proletária e se instaurar
uma sociedade sem classes, o conhecimento e a ação, bem como a teoria e a prática
precisam ser identificadas. Como Fromm, Graciliano aponta para o fato de que somos, ao
mesmo tempo, animais e humanos, com necessidades fisiológicas importantes e
imprescindíveis que precisam ser satisfeitas, assim como temos consciência, razão e
compaixão, que precisam ser exercitadas.
No caso do sertão nordestino, o sentido de totalidade inexiste. O que se tem é uma
oligarquia rural decadente, mantenedora das relações de classes. E nessa estrutura de
contradições múltiplas e desiguais, tanto seu Tomás da bolandeira quanto Fabiano e sua
família são coagidos a alienar-se, conferindo o caráter trágico dessa sociedade super-
repressiva, pautada pela ideologia e pelos valores do fascismo.
Em Graciliano: retrato fragmentado (1992), Ricardo Ramos fala da intenção do pai
na criação dos personagens, afirmando que, para o demiurgo, o soldado amarelo seria uma
representação da força que sustenta o fazendeiro e que, ainda de acordo com declarações do
escritor, uma ligação de Fabiano, sinha Vitória e o fascismo, bem como uma ligação
adulterina de sinha Vitória com seu Tomás da bolandeira. Ricardo interroga-se a esse
respeito:
159
não fica fácil, de um prisma histórico, localizar a mulata sinha Vitória e
o alourado Fabiano, em plena ascensão do fascismo, com o mito da
superioridade racial ariana, ela cafuza e inteligente a dirigir o marido
branco e bruto. Mais que isso, o que poucos percebem, capaz de enganá-lo.
(Como é que ia saber da cama de couro de seu Tomás da bolandeira?).
(RAMOS, 1992, p. 107).
De um lado, pois, temos o soldado amarelo como representante de uma tendência
política conservadora; do outro, seu Tomás da bolandeira como representante de uma
política reformista. Mas ambos representam, de qualquer forma, uma componente social
que legitima o status quo da civilização nordestina em relação aos sertanejos. Ambos, em
oposição a Fabiano e sua família, evidenciam as diferenças humanas, e até culturais, do
Nordeste, uma região de muitos contrastes, em que podem ser encontradas populações
vivendo num estádio de seminomadismo como é o caso dos moradores do sertão e
grupos, principalmente nas grandes cidades, que atingiram as etapas mais avançadas da
civilização moderna.
Seu Tomás, embora não saiba mandar, detém naturalmente o poder: “Esquisitice um
homem remediado ser cortês. Até o povo censurava aquelas maneiras. Mas todos
obedeciam a ele. Ah! Quem disse que não obedeciam?” (RAMOS, 1986, p. 22), questiona-
se Fabiano. Ao contrário do atual patrão, de quem Fabiano reclama que:
(...) quase nunca vinha à fazenda, só botava os pés nela para achar tudo
ruim. O gado aumentava, o serviço ia bem, mas o proprietário
descompunha o vaqueiro. Descompunha porque podia descompor, e
Fabiano ouvia as descomposturas com o chapéu de couro debaixo do braço,
desculpava-se e prometia emendar-se. (IBID, p. 22-23).
E ao contrário, também, do soldado amarelo, que se impunha pela farda; segundo
Fabiano, “uma fraqueza fardada que vadiava pela feira e insultava os pobres” (IBID, p.
107).
Graciliano Ramos, através da presença constante dessas duas personagens no
imaginário da família de retirantes, consegue moldar com exatidão as antinomias sociais do
Nordeste. Totalmente “coisificados”, para usar uma expressão de Adorno, Fabiano, sinha
Vitória e os dois meninos fundamentam o seu existir a partir da “lei da indiferença”, ou
seja, impotentes nessa relação de dominação, suas necessidades são falseadas:
160
Podia reagir? Não podia. Um cabra. Mas as contas de sinha Vitória deviam
ser exatas. Pobre de sinha Vitória. Não conseguiria nunca estender os ossos
numa cama, o único desejo que tinha. Os outros não se deitavam em
camas? Receando magoá-la, Fabiano concordava com ela, embora aquilo
fosse um sonho. Não poderiam dormir como gente. E agora iam ser
comidos pelas arribações. (RAMOS, p.113).
Essas diferentes relações de poder se desdobram, ainda, no nível familiar.
Retomando as questões da superioridade racial ariana e da ligação adulterina de sinhá
Vitória e seu Tomás da bolandeira, levantadas por Ricardo Ramos na biografia do pai,
apontamos para o fato de que sinha Vitória é uma mulher combatente, que traça o destino
dos seus. É ela quem induz Fabiano a abandonar o sertão calcinado. Assim como é ela
quem, no primeiro capítulo, “Mudança”, indica o caminho a ser seguido, designando os
juazeiros invisíveis.
Sinha Vitória é uma sonhadora: deseja possuir uma cama de lastro de couro, igual à
de seu Tomás da bolandeira. Fabiano considera isso um desatino, mas não a contraria, pois
sabe que “mulher é bicho difícil”, além do mais, Fabiano encanta-se com a esperteza de
sinha Vitória: Uma pessoa como aquela valia ouro. Tinha idéias, sim senhor, tinha muita
coisa no miolo” (IBID, p. 109), matuta ele em determinado momento.
E é essa admiração de Fabiano pela mulher, que sabia fazer contas melhor do que o
patrão, que o coloca numa condição de vassalo diante dela, uma cabocla que, acocorada
junto à trempe, com a saia de ramagens entalada entre as coxas, pensa em “viver como
tinham vivido, numa casinha protegida pela bolandeira de seu Tomás” (IBID, p. 120).
Fabiano é branco, tem olhos azuis, barba e cabelo ruivos. Mas é diferente dos outros
brancos, pois, como ele mesmo diz, “vivia em terra alheia, cuidava de animais alheios,
descobria-se, encolhia-se na presença dos brancos e julgava-se cabra” (IBID, p. 18). Ou
seja, embora pertença a uma raça tida como superior, a raça ariana, “a sina dele era correr
mundo, andar para cima e para baixo, à toa, como judeu errante. Um vagabundo empurrado
pela seca” (IBID p. 19).
A cama e a bolandeira: dois objetos de desejo; duas interpretações possíveis. Em um
nível psicanalítico, tais objetos simbolizam o falo de seu Tomás, figura que, quando
“passava, amarelo, sisudo, corcunda, montado num cavalo cego, aqui, pé acolá” (IBID,
p. 22), inspirando respeito em todos pela sua sabedoria, “virava-se para um lado e para o
161
outro, abrindo muito as pernas calçadas em botas pretas com remendos vermelhos” (IBID,
p. 22).
Seu Tomás seria, pois, o fantasma originário do pai, isto é, uma representação de
toda forma de autoridade: chefe, patrão, professor, protetor, deus. A ausência do falo, fonte
geradora de energia, princípio vital, deixa em seu lugar um vazio simbólico, o qual é
preenchido, pelas personagens, por uma busca radical de sentido para a sua existência
miserável.
Por esse prisma, o comentado adultério de sinha Vitória talvez esteja relacionado
com tal função protetora exercida por seu Tomás. Talvez houvesse entre eles uma relação
de trocas: ela, uma matuta de coxas grossas, servindo sexualmente um velho de pernas
fracas, que, em contrapartida, dava a ela e a sua família abrigo e proteção. Junto com
Fabiano, o marido traído, formariam uma tríade: Pai, Mãe e Filho. Fabiano, o filho cuja
pureza de espírito faz com que ele se deixe dominar cegamente por um estado edênico,
anterior ao pecado; estado prévio à obtenção do conhecimento, próprio da infância, símbolo
de inocência.
Ou seja, para Fabiano, com sua simplicidade natural, sinha Vitória é a Grande Mãe,
aquela que tem sempre razão, atilada, que percebe as coisas de longe. “Que mulher!”
(RAMOS, p. 125), exclama Fabiano, quando sinha Vitória, no último capítulo, Fuga”,
percebendo “a inquietação na cara torturada” (IBID, p. 125) do marido, desata-lhe “a
correia presa no cinturão” (IBID, p. 125), a fim de lhe aliviar a carga.
Mas é preciso ressaltar, entretanto, que essa leitura do suposto adultério não passa
justamente de uma suposição, ainda que o próprio Graciliano Ramos a tenha sugerido.
Fabiano e sinha Vitória, na brutalidade do sertão, são seres que não vivem, sobrevivem.
o elemento animal torna-se humano e o humano animal, conforme palavras de Marx,
referindo-se à situação de alienação dos trabalhadores, proletários ou campesinos, que não
se sentem como sujeitos de seus próprios destinos, como pessoas que sentem, que pensam,
que amam. Fabiano e sua família são figuras comuns e, paradoxalmente, epopéicas
25
, uma
25
O conceito de épica aparece pela primeira vez na Poética de Aristóteles, definido, em síntese, como um
longo poema narrativo que exalta ações humanas grandiosas e maravilhosas, que interessam a toda uma
coletividade. Mas o epos grego, a partir de Hegel, é aplicado a uma nova realidade: à da moderna sociedade
burguesa. Em A teoria do romance (1914), Luckács apresenta o romance (romance europeu real-naturalista)
162
vez que não são unos, são a coletividade, o povo, independente de espaço geográfico ou
temporal.
Nesse sentido, o drama que está sendo retratado é o drama de todos os usurpados, os
perseguidos, os excluídos em face da escalada materialista que envolve o mundo capitalista.
Ou, como já dissemos, mundo totalitário, nazi-fascista, desigual, perverso, dominado pelas
“forças do mal dos homens de bem”, em que o trabalhador desce até o nível de mercadoria,
uma vez que, conforme Marx, no Manifesto Comunista (1848), a valorização do mundo das
coisas aumenta em proporção direta à desvalorização do mundo dos homens.
Assim, o adultério não encontra ressonância nesse mundo sem amor. Como nas
sociedades pré-letradas, a liberdade conjugal é muito mais amplamente permitida do que
nas sociedades civilizadas, onde a super-repressão, de que fala Marcuse, é a tônica. Tanto
que Fabiano e sinha Vitória, dormindo num catre de varas, com um calombo grosso bem no
meio dos dois, têm raros momentos de carinho, mais precisamente de animalização lírica,
posto o estado de selvageria em que se encontram submetidos.
Esse diálogo constante entre o primitivo e o civilizado produz um estranho efeito de
inquietude, exatamente pela dificuldade de se estabelecerem as fronteiras da realidade, da
ficção e do grotesco. Como é possível nesse universo da civilização científica e técnica, da
grande produção industrial, ainda existirem seres humanos se sentindo livremente ativos
nas suas necessidades animais? E dessa inquietude podemos extrair outra interpretação
possível, de cunho político, para a cama de seu Tomás, que se conjuga, sem dúvida, com a
psicanálise para então se unirem ao criticismo próprio da modernidade.
Nessa nova abordagem interpretativa, a cama de lastro de couro é percebida como
um fetiche, uma mercadoria, a qual se associa ao desejo desesperado de sinha Vitória de se
sentir amparada, de ser aceita num mundo que lhe é inacessível. A cada vez que esse desejo
é enunciado podemos entrever o impacto da impressão afetiva no circuito da linguagem:
como um “novo gênero épico”, ou, como uma epopéia de “um mundo sem deuses”, degradado, no qual
caminha um herói também degradado (herói problemático).
Em O Expressionismo (2002), Marion Fleischer, citando Döblin, comenta que a essência do estilo épico está
na descrição pura e simples, sem comentários, das coisas e dos acontecimentos, devendo o narrador abster-se
de toda e qualquer interferência analítica, de comentários, interpretações e explicações lógicas
(GUINSBURG, 2002, p. 148).
163
“Pensava na cama de varas e mentalmente xingou Fabiano. Dormiam naquilo, tinham se
acostumado, mas seria mais agradável dormirem numa cama de lastro de couro, como
outras pessoas” (RAMOS, p. 40), queixa-se consigo mesma sinha Vitória, que, logo
adiante, depois de ter se ofendido pelo fato de Fabiano dizer que os sapatos de verniz que
ela usava nas festas eram caros e inúteis e que “calçada naquilo, trôpega, mexia-se como
um papagaio” (RAMOS, p. 40-41), agora pensava na cama de mau humor: “Julgava-a
inatingível e misturava-a às obrigações da casa” (IBID, p. 41).
Desse modo, a ausência do objeto de desejo se revela como ausência de sentido no
horizonte acabrunhado de sinha Vitória. O discurso dos personagens e suas experiências
trágicas abrem caminho para pensarmos a sociedade moderna como um campo de
diferenças. E essas diferenças se ampliam no capítulo “Festa”, quando, então, Fabiano e
sua família são lançados num contexto excessivamente manchado pela imagem do Outro: o
caixeiro, o comerciante, o proprietário, o soldado, o juiz de direito.
“A sensação que experimentava não diferia muito da que tinha tido ao ser preso. Era
como se as mãos e os braços da multidão fossem agarrá-lo, subjugá-lo, espremê-lo num
canto da parede” (IBID, p. 75), constrangia-se Fabiano enquanto assistia à novena na igreja
da cidade, sentindo-se ridículo com “a roupa nova cortada e cosida por sinha Terta, o
colarinho, as botinas e o chapéu de baeta” (IBID, p. 76). Mas “não se arriscaria a prejudicar
a tradição, embora sofresse com ela” (IBID, p. 76).
Os efeitos dessa experiência traumática se refletem e se refratam no olhar dos
meninos (O Menino Mais Novo e o Menino Mais Velho), que espiam, amedrontados, “os
ouvidos cheios de rumores estranhos” (IBID, p. 74), aquele mundo diferente da fazenda,
esquisito, em que “viam Fabiano e sinha Vitória reduzidos, menores que as figuras dos
altares” (IBID, p. 74). Tal era esse mundo, minado por energias negativas, em que eles,
seres repelentes, relegados à periferia da vida, agora se embrenham, mutilados em sua
natureza precípua.
Os dois meninos, em casa, geralmente andavam nus, soltos no barreiro, enlameados
como porcos. Essa imagem grotesca aponta para a existência indigna dessas crianças. A
comparação com porcos revela, de um lado, a ignorância delas e, de outro, a face cruel da
164
realidade e seus efeitos sobre a vida humana, uma vez ser o porco símbolo da sujeira e da
perversidade.
Não seria possível esquecer, a esse propósito, a parábola das “pérolas lançadas aos
porcos”, imagem das verdades espirituais reveladas de maneira desconsiderada àqueles que
nem são dignos de recebê-los nem capazes de apreendê-las. Fabiano achava indispensável
os meninos entrarem no bom caminho, saberem cortar mandacaru para o gado, consertar
cercas, amansar brabos. Eles precisavam ser duros, virar tatus” (IBID, p. 24), pois, segundo
Fabiano, “os meninos estavam perguntadores, insuportáveis” (RAMOS, p. 21). Ou seja,
habitantes de um mundo miserável, destituídos de valores habitualmente considerados
válidos, não podiam se meter com o que não era da conta deles. “Se não calejassem teriam
o mesmo fim de seu Tomás da bolandeira” (
IBID
, p. 24), analisa Fabiano.
O Menino Mais Novo sentiu uma grande admiração pelo pai, quando, “metido nos
couros, de perneiras, gibão e guarda-peito” (IBID, p. 47), Fabiano “botou os arreios na égua
alazã e entrou a amansá-la” (IBID, p. 47). Então, no capítulo que leva o seu nome, o
menino deseja “realizar qualquer ação notável que espantasse o irmão e a cachorra Baleia”
(IBID, p. 47). Para isso, ele monta num bode a fim de virar Fabiano, mas, impelido para
frente pelo animal, “ficou ali estatelado, quietinho, um zunzum nos ouvidos, percebendo
vagamente que escapara sem honra da aventura” (
IBID
, p. 51).
Essa cena retrata um arroubo patético da personagem, que, despojada de
personalidade, tenta imitar o único modelo de homem que conhece. Trata-se de uma
tentativa de manter a tradição: “Ia crescer, espichar-se numa cama de varas, fumar cigarros
de palha, calçar sapatos de couro cru” (IBID, p. 52), conformava-se o menino, enquanto “o
irmão ria como um doido, Baleia, séria, desaprovava tudo aquilo” (IBID, p 51-52).
Assim, tal passagem reflete drasticamente a realidade dessas vidas inutilizadas e
esmagadas em suas essências, projetando os seus futuros predestinados, sem redenção, sem
utopias. É uma questão hereditária, pois, como os judeus, os sertanejos exercem um papel
maléfico na sociedade. Com uma aparência externa esquisita e desagradável, uma total
165
ausência de qualquer expressão humana, podem pseudo-exprimir-se, contentando-se em
ser parasitas em terras alheias
26
.
O Menino Mais Velho, “que tinha um vocabulário quase tão minguado quanto o do
papagaio que morrera no tempo da seca” (IBID, p. 55), certa vez desejou saber o
significado da palavra inferno. Primeiro ele foi perguntar à mãe, que, distraída na cozinha,
“falou em espetos quentes e fogueiras” (IBID, p. 54), aludindo vagamente a certo lugar
ruim demais. Não satisfeito, ele foi interrogar o pai, mas, não obtendo resposta, retornou à
cozinha e insistiu com sinha Vitória, que, zangada, lhe aplicou uns cocorotes. Sentindo-se
injustiçado, o menino foi chorar à sombra das catingueiras, na companhia de Baleia, que
escutava as suas tristes lamentações. Depois de muito pensar a respeito daquela
“curiosidade funesta”, a qual lhe trazia infelizes associações aos tempos ruins em que ele e
sua família fugiam da seca, cansados e famintos, o menino acabou concluindo que o inferno
era o próprio sertão, ou, metaforicamente falando, a vida sofrida que ele levava: “O inferno
devia estar cheio de jararacas e suçuaranas, e as pessoas que moravam recebiam
cocorotes, puxões de orelhas e pancadas com bainha de faca” (RAMOS, p. 61).
Ora, Graciliano Ramos, nas suas memórias de Infância (1945), relata, num conto
chamado “O inferno”, a sua curiosidade acerca da mesma palavra que o Menino Mais
Velho tanto teve vontade de aprender e que, por força da sua existência desgraçada, acabou
vendo transformar-se em coisa. Graciliano também foi castigado por isso. Assim como o
Menino, não se satisfez com a resposta da mãe. E, como ele, associa a idéia de lugar ruim,
com chamas eternas e caldeiras medonhas, ao seu universo infantil, marcado pelo medo e
pela infelicidade.
Dona Mariquinhas, mãe do escritor, enfezada, ranzinza, agressiva, chamava-lhe
“meu besta” e batia muito nele. Nesse sentido, o inferno é usado como elemento
26
No primeiro capítulo de O expressionismo (2002), onde traça o quadro histórico em que a estética
expressionista nasceu e se desenvolveu, Luiz Nazário comenta que Lanz von Liebenfels, ex-monge austríaco,
“acreditou descobrir a origem de todas as doenças na mestiçagem” (NAZÁRIO, 2002, p. 18). Para o ex-
monge, as “raças inferiores” deveriam ser deportadas para o deserto, numa “liquidação indolor da escória
animal”. Pois em termos de Brasil, sabe-se que essa “política de higienização”, ou, “sociologia baseada na
idéia de raça”, que, desde o triunfo da burguesia vinha se fortificando na Europa, foi o verdadeiro motivo do
massacre de Canudos (1896-1897). O próprio presidente da República, Prudente de Moraes, declara: “em
Canudos, não ficará pedra sobre pedra”.
166
disciplinador, lugar de violência extrema, para onde, em nome da religião e da autoridade,
são enviadas as almas condenadas ao suplício eterno.
Em Ficção e confissão (1992), Antonio Candido comenta que o menino brutalizado
de Infância e o prisioneiro de Memórias do cárcere permitem entendermos melhor a atitude
literária de Graciliano Ramos em Vidas secas: vontade como condição de sobrevivência e
oposição ao mundo como forma de resistência. Fabiano e sua família são um exemplo
disso. Apesar da “sorte ruim”, eles brigam com ela. Nem a fome, nem a sede, nem o
cansaço, nada os impede de seguirem adiante, na sua difícil peregrinação pelo sertão
nordestino.
No primeiro capítulo, “Mudança”, o Menino Mais Velho fica caído pelo meio do
caminho, sem forças para continuar, mas Fabiano, embora, a princípio, pense em abandonar
o filho naquele descampado, sente pena do menino e resolve colocá-lo no cangote para que
seguissem a viagem. Esse seu gesto vai de encontro ao conteúdo sagrado que aí está
presentificado: de acordo com a lei divina, todos os primogênitos devem ser sacrificados
em sinal de gratidão pelo fato de Deus, com sua mão poderosa, ter tirado os judeus do
Egito, libertando-os da escravidão, com a promessa de lhes dar a terra de Canaã.
Graciliano Ramos subverte esse código, contestando, através da literatura, o mito do
filho imolado
27
. O esperado sacrifício, símbolo da renúncia como prova de dependência e
obediência, não acontece. O sacrifício humano é substituído por sacrifícios de animais: o
papagaio e a cachorra Baleia.
Ainda nessa saga inicial, o papagaio, que “morrera na areia do rio, à beira de uma
poça” (RAMOS, p. 11), serve de alimento para os retirantes, pois “a fome apertara demais e
por ali não existia sinal de comida” (IBID, p. 11). Sinha Vitória é quem resolve de supetão
aproveitá-lo, justificando-se a si mesma que ele era mudo e inútil. Como a Fênix, o
papagaio é o símbolo da ressurreição, ou, de acordo com o pensamento ocidental, símbolo
de uma vontade irresistível de sobreviver, bem como do triunfo da vida sobre a morte:
27
No Capítulo 22 do Gênese, Deus coloca Abraão à prova, exigindo que ele ofereça em sacrifício àquele que
mais amava, seu filho, Isaac. Abraão obedece à vontade divina e, na hora do holocausto, tendo amarrado o
menino sobre o altar, o anjo do Senhor aparece e lhe diz que, por não ter se recusado a fazer isso, seria
abençoado e sua descendência, multiplicada, dominaria os inimigos.
167
Baleia jantara os pés, a cabeça, os ossos do amigo, e não guardava
lembrança disto. Agora, enquanto parava, dirigia as pupilas brilhantes aos
objetos familiares, estranhava não ver o baú de folha e a gaiola pequena
onde a ave se equilibrava mal. Fabiano também às vezes sentia falta dela,
mas logo a recordação chegava. Tinha andado a procurar raízes, à toa: o
resto da farinha acabara, não se ouvia um berro de rês perdida na catinga.
(IBID, p.11).
No capítulo “Baleia”, a cachorra que leva esse nome transcende a condição de
animal para se tornar um dos personagens mais carismáticas da literatura brasileira. Nas
suas Cartas (1982), Graciliano refere-se a ela, dizendo que escreveu um conto sobre a
morte duma cachorra: “um troço difícil, como você vê: procurei adivinhar o que se passa na
alma de uma cachorra” (RAMOS, 1982, p. 201). Pois é a partir desse conto que Graciliano
elabora Vidas secas.
Fabiano decide matar Baleia, imaginando que ela estivesse com um princípio de
hidrofobia. Os meninos, fechados com sinha Vitória na camarinha, para não ouvirem os
tiros e os latidos, começam a gritar e a espernear, suspeitando do acontecido. Baleia era
como uma pessoa da família. Ela morre sem morder Fabiano, a quem obedecera com
submissão durante toda a sua existência, desejando acordar num mundo cheio de preás:
A tremura subia, deixava a barriga e chegava ao peito de Baleia. Do peito
para trás era tudo insensibilidade e esquecimento. Mas o resto do corpo se
arrepiava, espinhos de mandacaru penetravam na carne meio comida pela
doença.
Baleia encostava a cabecinha fatigada na pedra. A pedra estava fria,
certamente sinha Vitória tinha deixado o fogo apagar-se muito cedo.
Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E
lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se
espojariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme, num chiqueiro
enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes. (RAMOS,
1986, p. 91).
Em seu aspecto nefasto, o simbolismo do cão une-se ao do bode expiratório,
mencionado, na bíblia, pelo Levítico
28
. O mal é levado embora , cessa de ser uma carga,
sem que possa apresentar a sua defesa: Sinha Vitória, embalando as crianças, enjoou-se da
28
No 16º capítulo da terceira parte de o Levítico (Pureza Legal), intitulado O dia das expiações, Deus ordena
a Moisés que um bode seja enviado, uma vez por ano, ao deserto, levando consigo todos os pecados dos
israelitas. Diz Ele: “O homem que tiver conduzido o bode a Azazel no deserto, lavará suas vestes e banhar-se-
á. Depois disso poderá voltar ao acampamento”.
168
cadela achacada, gargarejou muxoxos e nomes feios. Bicho nojento, babão. Inconveniência
deixar cachorro doido solto em casa. (IBID, p. 86).
Mas talvez Baleia não estivesse doida. Talvez a execução não fosse indispensável,
porém, Fabiano não quis adiá-la:
A cachorra Baleia estava para morrer. Tinha emagrecido, o pêlo caíra-lhe
em vários pontos, as costelas avultavam num fundo róseo, onde manchas
escuras supuravam e sangravam, cobertas de moscas. As chagas da boca e
a inchação dos beiços dificultavam-lhe a comida e a bebida.
Por isso Fabiano imaginara que ela estivesse com um princípio de
hidrofobia e amarrara-lhe no pescoço um rosário de sabugos de milho
queimados. Mas Baleia, sempre de mal a pior, roçava-se nas estacas do
curral ou metia-se no mato, impaciente, enxotava os mosquitos sacudindo
as orelhas murchas, agitando a cauda pelada e curta, grossa na base, cheia
de roscas, semelhante a uma cauda de cascavel.
Então Fabiano resolveu matá-la. Foi buscar a espingarda de perdeneira,
lixou-a, limpou-a com o saca-trapo e fez tensão de carregá-la bem para a
cachorra não sofrer muito. (IBID, p. 85).
Por essa razão, Baleia, até então fiel companheira, guia protetora da família, é
sacrificada, assim como o papagaio, para que Fabiano e sua família possam sobreviver: “as
idéias de Fabiano atrapalharam-se: a cachorra misturou-se com as arribações, que não se
distinguiam da seca. Ele, a mulher e os dois meninos seriam comidos” (RAMOS, p. 114).
Baleia, assim como o patrão e o soldado amarelo, transformou-se, no espírito de
Fabiano, numa figura insuportável. Era “necessário abandonar aqueles lugares
amaldiçoados” (IBID, p. 115), aterroriza-se Fabiano, que “ultimamente vivia esmorecido,
mofino, porque as desgraças eram muitas” (IBID, p. 114).
Assim, os personagens de Vidas secas, nessa permanente insistência de desejar o
indesejável, expostos à vida, vulneráveis ao duro impacto do real, se apresentam como
expressão do lugar do sofrimento. E Graciliano Ramos, na sua aguda percepção dessa
realidade despojada de sentido, rejeita tudo o que transcende a representação cênica e a
plasticidade dos acontecimentos, os quais são permeados, como estamos tentando propor,
por uma negatividade radical.
A influência de Nietzche mais uma vez parece ser determinante. Graciliano resgata
imagens que se ligam à mística judaico-cristã para combatê-las com o decreto nietzschiano
169
da morte de Deus, produzindo um efeito de vácuo metafísico que desfaz as convencionais
visões de uma comunhão universal entre os homens, uma vez que a experiência da ditadura,
com a violência que lhe é inerente, destruiu toda e qualquer aura de solidariedade humana,
deixando como rastro apenas o silêncio que traduz a impossibilidade de utopia e redenção.
170
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Sem pedir desculpas às referências do mundo, Graciliano expressa um conturbado
modo de sentir e de ser do homem moderno. Numa linguagem singular e intercambial em
termos semióticos, seus textos, determinados pela concisão e pela visualidade, aguçam os
nossos sentidos e, mais do que uma surpresa estética, temos uma transformação ética.
Captando com olhos livres os movimentos residuais das massas humanas, a impressão que
temos é de que os temas que merecem a preferência dos expressionistas miséria, taras
sexuais, exploração do trabalho, infância desamparada os quais vão bem mais além do
que denúncias da realidade social e política, estão todos aí, apontando para a intrincada
relação desses problemas imediatos com outros que estão dentro do homem, revelando suas
angústias pessoais por meio de um processo de perscrutação do insondável. Trata-se, como
no Expressionismo, de resgatar o avesso das coisas como forma de melhor conhecer o seu
lado direito, que jamais será o mesmo.
Marcados pela exaltação do instinto e das exasperações existenciais, os
protagonistas dos romances graciliânicos, sobretudo João Valério, Paulo Honório e Luís da
Silva, exorcizam o poder do sexo como forma de revelar a hipocrisia da sociedade
decadente, cujos tabus, como o adultério, são expostos friamente e destruídos, uma vez que
são apenas convenções inspiradas pelo proselitismo cristão. Ao contrário dos heróis
românticos, impelidos pela paixão, essas personagens são movidas pela atração sexual e
pelo desejo de posse. Luísa, Madalena e Marina, respectivamente em Caetés, São Bernardo
e Angústia, representam a visão de uma mulher desejável, que, exercendo a função de
faísca, leva à combustão a vida psíquica em estado de latência, isto é, lança o protagonista
na vida passional, e uma vez nesse território conflitos de outra ordem se impõe (conflitos
próprios da condição humana, que extravasam o campo restrito da personalidade e se
projetam sobre a idéia de civilização).
Embora tanto o suicídio quanto o assassinato sejam soluções habituais dos romances
realistas, em Graciliano Ramos esses procedimentos aparecem como operação do desejo
contornando um obstáculo, indicando quer o caminho de um assassinato simbólico (em
Caetés e o Bernardo) quer um acontecimento de importância no plano psíquico (em
171
Angústia), sugerindo uma situação adequada para expressar estados anímicos ou problemas
existenciais imperativos, como nos dramas expressionistas. Mesmo em Vidas secas, quando
Fabiano mata a cachorra Baleia, essa cena criminosa também tem a intencionalidade de
eliminação alegórica de um mal-estar num mundo insuportavelmente incerto e excludente.
Graciliano Ramos, simpático aos movimentos sociais, parece empenhar-se na irrisão
dos valores e do modo de vida da burguesia, contrapondo a esse universo os valores da
fruição do mundo e da exaltação da vida passional. O sertão erige-se como região infernal.
A cidade é demonizada por uma associação implícita com um bestiário, lugar da devassidão
do caos, onde as pessoas encarnam a parte animal ou satânica do homem, causando
embaraços ao moralismo cristão. Tanto num quanto noutro espaço, as personagens
transitam silenciosamente, submetidas a um determinismo econômico que aniquila
individualidades e sufoca o élan vital de todas as classes. João Valério e Paulo Honório, ao
contrário de Luís da Silva e Fabiano, passam de trabalhadores humilhados a patrões, mas,
ainda assim, têm uma ferida incurável. Resta-lhes como território indomado o mundo
interior.
Os grandes artistas expressionistas consistem naqueles que conseguem ir bem mais
além de denúncias de uma realidade social. Insisto em dizer que Graciliano Ramos parece
ser um deles, uma vez que não buscava apontar apenas para os problemas imediatos que o
nordeste brasileiro veiculava, mas para intrincada relação desses fenômenos com outros que
estão dentro do homem e que trazem implicações psicossociais e filosóficas, revelando,
assim, suas próprias visões interiores e sofridas enquanto participante integral (e não
simples observador) do aviltamento humano.
Nesse sentido, dentro dessa linha de preocupação com o homem, em suas
vicissitudes existenciais, Graciliano parte da camada visível do ser posto numa condição de
miséria para buscar nesse ser os movimentos mais íntimos, suas esferas mais complexas.
Trata-se de um movimento de fora para dentro (do centrífugo ao centrípeto) que, ao atingir
a dimensão de dentro, manifesta-se no fora, de modo a conferir uma expressão que subverta
as dimensões do automatizado, daquilo que é dado como verdadeiro pelo hábito.
Exatamente por isso, por mais que tenhamos reticências em considerar Graciliano Ramos
como escritor expressionista, não podemos negar certa “filiação”, ou certo aproveitamento
172
de alguns aspectos importantes desse movimento estético em sua obra romanesca.
um Expressionismo com cicatriz, isto é, um novo Expressionismo, singular, marcado com
novos traços sobre a humanidade.
Em O Expressionismo no Brasil (2002), comenta Luiz Nazário:
(...) a vertente social encontrou seu ponto mais alto nos romances secos,
engajados, carregados de medo e ódio à autoridade, de Graciliano Ramos.
Em Angústia (1936), ele faz o narrador, um escritor fracassado, reviver um
crime e mergulhar na náusea de existir, dois anos antes da publicação de A
Náusea, de Jean-Paul Sartre; nas Memórias do cárcere, ele se torna o
personagem principal do absurdo da vida, registrando sua kafkiana
detenção de março de 1936 a janeiro de 1937; e em Vidas Secas (1938),
retrata como ninguém a catástrofe natural e social do Nordeste, incluindo o
monólogo interior incoerente e fragmentado do o que acompanha a
família de retirantes em desagregação. (NAZÁRIO, 2002, p.639.).
Adrião Teixeira, Luís Padilha e Julião Tavares, antagonistas dos três primeiros
romances de Graciliano, têm uma moral utilitária e um comportamento predador do
pequeno-burguês, aparecendo como figuras ridículas e estúpidas, dados os exageros dos
traços grotescos dessas personagens, delineados, respectivamente, como velho, coxo, calvo,
reumático, encharcado de tisanas; bichinho amarelo, de beiços delgados e dentes podres; e
sujeito gordo, vermelho, risonho, patriota, falador e escrevedor. Pois, no Expressionismo, a
caracterização dos vilões é sempre exagerada. Em Vidas secas, o Soldado amarelo, inimigo
de Fabiano, símbolo da autoridade, também é descrito de uma forma patética, como
magrinho, enfezadinho e trêmulo.
Quanto às personagens femininas, são mulheres que projetam sensualidade, e o
segredo da sua sedução, como o das musas silenciosas do cinema expressionista, está nas
mãos, nos lábios, nos olhos, nas cadeiras, enfim, em algum destaque de sua anatomia que
melhor sugere certo erotismo, ou, certa luxúria indefinível. Em Caetés, os detalhes
exaltados em Luísa são os dedos longos, “bons para beijos”, conforme João Valério, o colo
decotado, os cabelos louros e os olhos grandes e azuis; em São Bernardo, Madalena
também é loura, magra, com mãos finas e dedos longos; em Angústia, Marina, igualmente
loura e de olhos azuis, tem os beiços vermelhos, as unhas pintadas, o pernão bem feito, as
coxas e as nádegas apertadas na saia estreita; e, em Vidas secas, sinha Vitória é uma
cabocla de peitos cheios, nádegas volumosas e pernas grossas. Todas elas têm a
173
sexualidade remetida por símbolos fálicos e por fetiches como a garça do jardim de Luísa, a
agulha dos bordados de Madalena, os sapatos de sair e as meias de seda de Marina e o
vestido vermelho de ramagens de sinha Vitória.
Como vimos, a questão da metáfora (que surtiu efeitos em escritores decisivos da
modernidade, como James Joyce e Kafka, por exemplo) é central em Graciliano (e no
Expressionismo): as imagens dos índios caetés, das corujas, dos ratos, dos urubus,
sucessivamente em Caetés, São Bernardo, Angústia e Vidas secas, se manifestam como
abstrações, poderosos núcleos dos sentimentos dos protagonistas, gerando significações
profundas dentro das narrativas. São essas imagens, aparentemente simples, mas que ficam
na mente sensorial do leitor, que servem como fios condutores das ações dramáticas.
Pelo que se observa, pois, algumas influências do Expressionismo, ainda que
transmudadas, são determinantes nos livros de Graciliano Ramos, escritor habilíssimo e de
inteligência penetrante, que fez do elemento silêncio o signo de uma querência: o poder da
palavra como forma de apropriação do mundo (ou de exorcização dos demônios). Como diz
Lourival Holanda, em Sob o signo do silêncio, “interessante os tantos que escrevem, nas
obras de Graciliano” (HOLANDA, 1992, p.26.). Interessante como esse desejo é
condicionado pelo olhar alheio, e como todo desejo está sempre posto além do real. João
Valério reconhece que tem inteligência confusa, fala um português ruim e não consegue
acabar um romance, assim como Paulo Honório e Luís da Silva; e Fabiano, por sua vez,
que um sujeito como ele não nasceu para falar certo. No fundo são todos uns brutos, e têm
consciência disso, porém, é essa necessidade quixotesca de buscar o que não se sabe, ou o
que não se consegue, que postula a sua existência, que permite com que eles tenham um
horizonte de esperança.
Aqui se acrescenta que essa redução ao silêncio, repito, é uma questão de alteridade
(“O inferno são os outros”, na acepção de Sartre). Daí a aversão de João Valério por
Evaristo Barroca; de Paulo Honório por Azevedo Gondim; e de Luís da Silva por Julião
Tavares; bem como a admiração de Fabiano por seu Tomás da bolandeira, personagens cuja
loquacidade empolada e pedante causa profundas aflições nos heróis narradores, provoca-
lhes uma dor e uma náusea que passam a ser o motivo axial do drama que se arma em torno
de Caetés, São Bernardo, Angústia e Vidas secas, posto que a rejeição das relações
174
interpessoais funciona como pressuposto necessário à solidão, e essas relações se dão
justamente através da palavra. Ao colocar esses indivíduos isolados no centro de suas
narrativas e subjetivá-los, Graciliano elege a diferença como norma expressiva, acentuando,
portanto, as antinomias básicas do Expressionismo.
Na tentativa, pois, de engendrar a realidade, quer através do uso de narrativas
autobiográficas, como é o caso de Caetés, São Bernardo e Angústia, em que os
protagonistas se aventuram pelo mundo romanesco (letrado, portanto) para narrarem a si
mesmos, quer do estabelecimento de um vínculo entre o homem e a sua região, como
ocorre em Vidas secas, em que o mutismo das personagens aparece associado a sua origem
social, Graciliano Ramos instala a ambigüidade de um espaço forjado sob a relatividade dos
signos, ou seja, essa realidade aparente dos seus quatro romances nada mais é do que um
simulacro dentro de outro simulacro, um artefato muito bem elaborado pelo poder da
linguagem para redimensionar o consenso ocidental (originário tanto do pensamento
judaico-cristão quanto da teoria greco-latina) de que a palavra é que confere ao homem a
sua humanidade frente à urdidura paranóica do existir.
Mesmo quando a pena do silêncio (de Fabiano) é substituída pela obrigação da fala
(de João Valério, Paulo Honório e Luís da Silva), todas essas personagens se em
permanentemente confrontadas com a incomunicabilidade e com a inacessibilidade
irredutível do outro, sendo condenadas a um presente perpétuo, a um “tempo saturado de
“agoras”, cuja vacuidade absoluta (solidão) se expande de um passado estocado em
resíduos de linguagem para um futuro que está sempre além.
Nesse sentido, “afinado com a estética expressionista”, Graciliano Ramos consegue
dar visibilidade a um moto contínuo de toda a sua obra: o eterno retorno do mesmo,
discutindo os próprios limites da representação da realidade, uma vez que essa nada mais é
do que um princípio estruturador em meio a imediatidade das cenas e dos fatos, que,
espacializados, não têm duração nem profundidade.
em Caetés (1933), seu romance de estréia, Graciliano Ramos, embora apresente
aí certas características de uma crônica de província, sendo possível se notar a influência de
Eça de Queiroz (sobretudo em O Primo Basílio), ensaia, ainda que timidamente, os
primeiros passos de um estilo expressionista, pela opção do narrador em primeira pessoa;
175
pela extrema redução lingüística; pela presença de imagens recorrentes que se transformam
em símbolos: a garça do jardim, a estrela vermelha, o selvagem caeté (imagens de absoluto
non-sense); pela técnica do devaneio (embora não chegue à deformação mental, como no
caso de Luís da Silva, em Angústia); e pela demolição de tradições, tanto éticas quanto
estéticas, numa reorientação temática voltada contra tudo aquilo que a sociedade burguesa
considerava normal, adequado ou convencional.
Em São Bernardo (1934), Paulo Honório é um indivíduo bruto, mesquinho,
indiferente à experiência sensível do humano. Após a morte da esposa (Madalena, que se
suicida por não agüentar mais o ciúme doentio do marido), decide escrever um livro de
memórias, a fim de refletir sobre si mesmo e sobre o erro que cometeu. A solidão do
personagem se confunde com a solidão de todo o homem que se dedica a um acerto de
contas com o destino. Com as “sobrancelhas cerradas e grisalhas” num “rosto vermelho e
cabeludo”, ele é a própria imagem do monstro (imagem reiterada e ampliada ao longo da
narrativa):
(...) Sou um aleijado. Devo ter um coração miúdo, lacunas no cérebro,
nervos diferentes dos nervos dos outros homens. E um nariz enorme, uma
boca enorme, dedos enormes.
Se Madalena me via assim, com certeza me achava extraordinariamente
feio. (RAMOS, 2003, p. 221.).
Essa imagem acentua, portanto, a intenção expressiva do texto, o seu empenho em
descentrar o ideal de beleza e imitação, próprio da arte clássica, e, por conseguinte, em
valorizar o feio, expondo, dessa forma, a dimensão inquietante, por vezes demoníaca, da
existência. Trata-se de um realismo deformado, que, desfigurado nas suas proporções
naturais, exagerando determinados aspectos físicos, embrenha-se para além das aparências
e penetra as camadas mais profundas da alma do narrador-protagonista.
Do mesmo modo, em Angústia (1935), o narrador-protagonista, Luís da Silva, tendo
sido traído pela futura esposa, Marina, com Julião Tavares, “um sujeito inútil (...), gordo,
bem vestido e falador” (RAMOS, 2003, p. 52.), arquiteta um plano para derrotar o odiado
rival: decide enforcá-lo, friamente, numa árvore. Assim, revelada sua natureza monstruosa,
completamente delirante, trancafia-se dentro de casa e passa a viver um inferno existencial:
176
Vitória afastou-se e daí a pouco saiu com uma trouxa de roupa suja. A
porta da frente abriu-se e fechou-se. Acabei de cortar as unhas arroxeadas.
As mãos engrossavam e deformavam-se,a direita com uma esfoladura na
palma,a direita cheia de fibras de madeira, que extraí com a ponta da
tesoura. A gravata estava enrolada, como uma corda, exatamente igual a
todas as gravatas que tinha tido, mas senti a necessidade de destruí-la.
Cortei-a em pedacinhos, que desfiei, juntando os fios em cima da coxa.
Vitória, arrastando os s, ficaria muito tempo na rua. Dediquei-me
nervosamente a desfiar os pedaços da gravata. Tossia e limpava os olhos,
que lacrimejavam. Uma felicidade estar com febre, Os rumores eram os
mesmos de todos os dias. (,,,). Aquele silêncio, aqueles rumores comuns,
espantavam-me. Seria tudo ilusão? Findei a tarefa, ergui-me, desci os
degraus e fui espalhar no quintal os fios da gravata. Seria tudo ilusão?
Voltei, atravessei o corredor, cheguei à sala, olhei a rua pelas tabuinhas da
rótula. (...). Estava doente, ia piorar, e isto alegrava-me. Deitar-me, dormir,
o pensamento embaralhar-se longe daquelas porcarias. (RAMOS, p. 259 -
261.).
Para escapar do patético inevitável de ter que assumir para si o seu próprio
sentimento de culpa (afinal, ele se tornara um assassino), Luís da Silva evita sequer se olhar
no espelho, metáfora da reflexão, da consciência e da autocontemplação: “Quis ver-me ao
espelho. Tive preguiça, fiquei pregado à janela, olhando as pernas dos transeuntes”.
(RAMOS, p. 261.). Mas, assim como João Valério e Paulo Honório, decide escrever um
livro. Assim como eles, esse homem, confessadamente solitário: “Sempre brinquei só. Por
isso cresci assim besta e mofino” (RAMOS, p. 144.), busca na escrita, pois, a revelação
trágica e dolorosa de sua identidade.
Quanto à obra Vidas secas (1938), aparentemente realista (ou naturalista), essa se
organiza para resistir a uma interpretação que possa ser detectada empiricamente, sem
provocar um efeito inquietante, uma angústia pungente a partir da percepção gradual de
que, num mundo em que se observa em toda parte a miséria humana, estamos condenados à
periferia da vida, cientes de que a natureza não mais nos abriga, nem suaviza os nossos
sofrimentos, e de que a cidade constitui o destino inevitável do homem moderno e a prisão
desumana da qual não poderá escapar, ou seja, de que qualquer tentativa de fuga é inútil.
Em História Social da Arte e da Literatura (1951), Arnold Hauser fala acerca de
Dostoiévsky: “É certo que a forma de Dostoiévsky representa a continuação direta do
romance social e psicológico, mas significa também o princípio de uma nova evolução”
(HAUSER, p. 1035.). Segue dizendo, um pouco mais adiante, ainda no mesmo parágrafo:
177
Representa antes um regresso ao romance picaresco, pois que as suas
cenas dramáticas, dispersas, formam vários pontos nodais independentes.
Com esta abolição da continuidade, a que se prefere um conjunto apertado
de episódios combinados, expressivos, mas constituindo como que um
mosaico, o romance de Dostoiévsky prenuncia a moderna forma
expressionista. (IBID, p. 1035.).
Tal comentário de Hauser serve perfeitamente para o propósito desta tese, uma vez
que o que ele aponta, na obra de Dostoiévsky, como prenúncio da moderna forma
expressionista, é justamente o que mostrei como sendo constitutivo em Vidas secas: a
dispersão das cenas dramáticas, formando pontos nodais independentes. Sabemos que
Graciliano é um ávido leitor/admirador dos russos (“Esses russos são uns monstros”,
costumava dizer com entusiasmo), sobretudo de Tolstoi e Dostoiévsky, e, nesse sentido,
nada mais “natural” do que colocá-lo em linha com aqueles que são, sem dúvida, seus
maiores mestres.
Por isso, ainda que sem querer forçar relações simpatizantes de Graciliano Ramos
com o Expressionismo, o que de fato nunca ocorreu, insisto em ler Vidas secas (bem como
toda a obra graciliânica) como uma experiência expressionista, uma vez que o autor vai
expor a sua relação pessoal com o mundo através de procedimentos deformantes da
realidade, conseguindo objetivar não só os pensamentos de criaturas tão embrutecidas como
Fabiano e sua família como também os de um animal (cachorra Baleia), sem provocar no
leitor uma sensação de descrédito.
Ao contrário. Essa perfeita junção dos elementos estéticos aos ideológicos reprime o
antinaturalismo das cenas (dar voz aos que não sabem, ou não podem, analisar os próprios
sentimentos). As deformações adquirem fundamento psicológico justamente porque
Graciliano inventa um expressivo universo mental para essas personagens verbalmente
inábeis, as quais ziguezagueiam num cenário cuja aridez corresponde ao seu processo
interior. Isso é o que produz em Vidas secas a sensação pura, artística. E é esse ilusionismo
que impede com que o viciado olho realista” da crítica tradicional perceba algo para além
do “espelho do real”.
Enfim, se fizermos um exercício de distanciamento, veremos que essa impressão de
retrato (representação realístico-visual do sertão nordestino) se dá por uma prodigiosa
técnica capaz de criar imagens próximas a esse mundo exterior, mas que nos remetem a
178
outros tempos/espaços possíveis e adquirem tamanha intensidade que se sobrepõem, muitas
vezes, ao tempo/espaço da narrativa. Trata-se de uma revue filosófica acerca do que a vida
humana possui de mais importante, de mais profundo, que não pode ser dito por meio de
palavras.
Daí o silêncio que pesa sobre toda a obra, resistindo, gina após página, à redução
da realidade a seus aspectos visíveis, mostrando o que dela não se enxerga, expressando o
que parece ser algo indizível. A força dramática do texto, pois, não está nem na fala do
narrador nem nos escassos diálogos entre as personagens, e sim nessa “zona de silêncio”
em que a família de retirantes é lançada comoventemente em busca de um sentido
totalizante para suas vidas miseráveis, mediante o duro impacto de uma realidade
ameaçadora.
Assim, disciplinado por essa vontade férrea e obstinada de alcançar o despojamento,
de chegar ao dado objetivo limpo, fazendo uso significativo do elemento silêncio e
apontando para outras formas de manifestação da linguagem, Graciliano Ramos reduz a
realidade a uma força vital singular, e por mais que os sertanejos de Vidas secas sejam
reconhecidos como sertanejos, algo definitivamente novo ali: trata-se de novos
sertanejos, diferentes dos que aparecem em Os sertões (1902), de Euclides da Cunha, por
exemplo, pois aqueles, ao contrário desses, são subjetividades que lutam com sua existência
e como que se afirmam apesar dela, avançando na temática radical do sentido do humano,
tão cara aos artistas expressionistas.
Mas é o simultaneísmo de linguagens que mais evidencia nos romances
graciliânicos a falibilidade da representação realista, como propus nos capítulos de análise.
Incorporados à palavra do narrador, outros códigos cinematográficos, sonoros, plásticos –
dão um trato semiótico ao constructo narrativo, no inútil afã de capturar e traduzir a vida
que se esvai aos pedaços, os fluxos de pensamento, o estar-se aí, para cuja apreensão,
portanto, a sintaxe verbal parece ser insuficiente. É a literatura fazendo a crítica de sua
própria linguagem, requerendo do leitor outro olhar.
179
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