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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
MUSEU NACIONAL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
CARLOS CESAR LEAL XAVIER
A CIDADE GRANDE DE ÑAPIRIKOLI E OS PETROGLIFOS DO IÇANA
– UMA ETNOGRAFIA DE SIGNOS BANIWA –
Dissertação apresentada como requisito
para a obtenção do grau de
Mestre em Antropologia Social
ao Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social / Museu Nacional / UFRJ.
Orientador: Professor Doutor Carlos Fausto
RIO DE JANEIRO
FEVEREIRO 2008
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AGRADECIMENTOS
“No Rio Negro, ninguém faz nada sozinho”, disse-me alguém que, ironia, teimava em
trabalhar sozinho. No Rio Negro, ninguém faz nada sozinho, e essa longa lista de
agradecimentos – aos quais certamente há de faltar alguém – comprova o dito.
Agradecimentos Especiais
A Ricardo Ventura, pela decisiva e fundamental intuição/ação de, a partir da leitura de
um despretensioso e ingênuo ensaio sobre Antropologia e Tradução, recomendar-me ao
curso do Museu Nacional e, especificamente, à orientação do prof. Carlos Fausto;
A Carlos Fausto, pela orientação amiga e firme e pela amizade ‘orientante’, baseadas no
respeito e potencialização de minha eclética formação pregressa, ao mesmo tempo que
numa verdadeira e paciente educação antropológica;
A Luiza Garnelo e Sully Sampaio, amigos que ‘dividiram’ comigo os conhecimentos sobre
os Baniwa e sobre o Içana, sem os quais eu jamais teria sequer conseguido escrever a
primeira linha deste trabalho;
A André Fernando Baniwa, um dos homens mais inteligentes, éticos e generosos que já
conheci, que incha de orgulho o povo a quem serve com sofrida dedicação e também
àqueles que conquistaram o privilégio de tê-lo como amigo.
Finalmente, a Ñapirikoli, por ter conquistado a primazia desta humanidade, por ter
estendido o (meu) mundo e por ter inscrito seu ensino nas pedras do Içana;
a seu filho Kowai, por trazer em seu corpo todos os elementos,
todos os sons e todos os signos;
e às Amaronai prometéicas, por terem roubado as flautas
e difundido os conhecimentos pelo mundo.
O que seria de nós, não fossem elas?
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Agradecimentos
Aos Baniwa do Içana, povo gentil e sábio;
Aos companheiros de viagem e narradores de histórias: Irineu, Basílio, Liveston, Tiago, Armindo,
Laureano, Antonio, Olimpio, Alberto, Damásio, Marcelino, Mário, Valentim, Alfredo, Paulo, Juvêncio
Dzoodzo, Raimundo;
Às mulheres curripaco da comunidade de Coracy, por meio de D. Laura e suas filhas;
Aos capitães e habitantes das comunidades onde paramos, pernoitamos, compartilhamos alimentos:
Ilha Grande, Ambaúba, Arapasso, Araco, Coracy, Barcelos, Camanaus, Siuci, Tunuí, Tamanduá,
Juivitera, Jandu, Bela Vista, Tucumã, Assunção;
Às organizações indígenas do Alto Rio Negro: FOIRN (Domingos), OIBI, OICAI (Laureano), CABC;
À Escola Pamáali;
Ao Instituto Socioambiental (ISA), por meio de Beto Ricardo, Geraldo Andrello, Laíse Diniz, Adeílson
Silva, Renata, Andrezza;
À Saúde sem Limites (SLL), pela acolhida e hospedagem, por meio de Patrícia Torres, Lirian,
Marcelino, Luís;
À Funai, por meio do então responsável em Tunuí, Caldas;
À Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Rio de Janeiro e Manaus;
Ao Museu Nacional/UFRJ; ao Núcleo de Transformações Indígenas (NuTI);
Ao Programa Capes-Cofecub e Rede Artimagem;
À Fundação Gaia, ao professor Francisco Ortiz e a Marcos Wesley;
Ao Grupo GIPRI (Colômbia), aos professores Guillermo Muñoz e Carlos Rodriguez;
À Denise, arqueóloga, pelas dicas fundamentais no primeiro momento;
A Eduardo Neves;
À Maria do Carmo Leal, pela compreensão e apoio a este trabalho, realizado em meio às minhas
atividades na Fundação Oswaldo Cruz;
Aos meus amigos da VPEIC/Fiocruz: Kadu, Marco Aurélio;
Aos professores do Museu Nacional: Aparecida Vilaça, Eduardo Viveiros de Castro, Federico Neiburg,
Giralda Seyferth, Ligia Sigaud, Márcio Goldman;
Aos professores do IFCS, amigos: Raquel Moscowitz, Roberto Machado;
À Carla, biblioteca do Museu; À Tania e à Bete, secretaria do PPGAS:
À Carminha e ao Fabiano gente-boa.
Aos amigos de mestrado/doutorado, especialmente a meu parceiro de viagem ao Alto Rio Negro,
Bruno, e a meu parceiro de outras viagens, Martinho;
Às amigas, por muita compreensão, leituras, conversas: Ana Amstalden, Ana Beatriz, Cátia
Guimarães, Claudia Kamel, Érica Loureiro, Estela Vieira, Iaiá Leal, Kátia Machado, Luciana Alves,
Mariana Borges, Tânia Eberhardt;
Ao amigo de sempre, Sandro Lobo;
A Rose, por toda uma vida ao lado e por perto, pelas marcas em meu corpo e alma;
A Camila, Julia, Norma, Babi, mulheres das quais me orgulho, que de mim se orgulham;
À Bia, que chega agora a um mundo já pronto;
A Júnior, Márcia, Gabriel, Ivanise, Marcelo, família perto;
Ao meu oráculo predileto e ao número 19;
Aos bichos-gente, Billy, Laila, Shanti, ommm.
4
Ao meu pai
5
[A título de epígrafe...]
6
RESUMO
Este trabalho ocupa-se da rede sígnica que organiza, registra e recompõe a memória
social entre os Baniwa do Alto Rio Negro, tendo como principal objeto de estudo os
petroglifos ao longo do rio Içana. A autoria de tais signos gravados nas pedras, quase
sempre em lugares sagrados e cachoeiras onde importantes eventos ocorreram, é atribuída
ao herói-criador Ñapirikoli. Os desenhos são destinados a: i) mostrar aos walimanai (as
novas gerações) como era o mundo primordial; ii) registrar ensinamentos sobre técnicas
diversas (caça, cestarias); e iii) apontar modos de comportamento que devem guiar os
Baniwa. Esta pesquisa tem como base teórica a semiótica de Charles Sanders Peirce. As
questões que se impõem remetem à vida social dos signos e às relações entre oralidade,
memória e suporte material, isto é, ao lugar desses elementos não-humanos (signos,
paisagens-escrituras) na rede social dos Baniwa que, em sua maioria, são hoje evangélicos.
ABSTRACT
This research work has its focus on the relation between art/image based on how
the Baniwa ethnic group organize, register and recompose their social memory. This ethnic
group is based in a region known as Alto Rio Negro, Amazonas. The main object of this
study is the ‘petroglifos’ (signs carved on the stones), found along side ana River. The
authorship of those signs, found mostly in sacred places and waterfalls where important
events happened in the past, is accredited to the great creator and hero known as
Ñapirikoli. The ‘petroglifos’ were designed to: i) Show walimanai (the new generations)
how the primordial world used to be; ii) Register knowledge about various techniques such
as hunting and basket making amongst others; iii) Prescribe behavior patterns to be
followed by Baniwas. This research work is greatly supported by Charles Sanders Peirce´s
semiotic theory. The relevant matters pointed out in this study are deeply connected to
the social life of those signs in relation to their role in oral tradition, memory and
material support. This study investigates how those non-human elements (meaning signs,
landscapes–scriptures) are placed in today’s Baniwa´s social network, considering they’re
mostly evangelic nowadays.
7
SUMÁRIO
I. INTRODUÇÃO: Em São Gabriel da Cachoeira
1. Reunião Baniwa e a Cidade Grande de Ñapirikoli
2. Ñapirikoli e os petroglifos: a forma conta a história
II. A MONTANTE
1. O rio Içana e os ‘içaneiros’
2. Caapi: o olho-umbigo e a trompa
2.1. Um método de registro dos petroglifos
3. Tunuí: Os padrões geométricos diakhe
4. Pamáali, a escola-comunidade
4.1. A Semiótica de Charles Sanders Peirce:
Peirception, metodologia possível
4.2. Ação dos signos, agência
4.3. O signo como tríade: Signo | Objeto | Interpretante
5. Jurupari: Kowai e as flautas
5.1. Remos? Casas? Armadilhas?
5.2. O Signo e(m) suas relações
6. Moolito: relação complexa entre signo, conhecimento e memória
7. Siuci: as estrelas e a filiação
7.1. Indicação: a idéia de índice segundo Gell e segundo Peirce
8. Buya: duas figuras de mulher e o ‘falsos’ petroglifos
III. ALTO CURSO
1. A Cidade Grande de Ñapirikoli: paisagem-signo
1.1. As três histórias de seu Antonio
1.2. Signos ‘naturais’ e apropriações
1.3. Pedras sem petroglifos, mundo sem desobediência
1.4. A caverna das Amaronai e outras paisagens-signo
1.5. A história de seu Olímpio: a riqueza de Manaus
e o conhecimento dos brancos
2. Camanaus: desenho longe do rio
2.1. “Ñapirikoli é o diabo!”- signos antigos (des) (re) apropriados
2.2. Religião social
8
IV. A JUSANTE
1. A história de seu Marcelino:
Os tempos antigos e a disputa pela ‘humanidade dominante’
2. As três histórias de Seu Alberto: Ñapirikoli, o criador
2.1. O Corpo de Kowai: Todos os elementos, todos os sons, todos os signos
2.2. As flautas Kowai
2.3. A flauta Moolito, voz-entre-mundos
3. Oficina de desenho: Alberto e a história sem equívocos
4. Juivitera: Seu Valentim e a ‘história total’
5. De volta a São Gabriel: ‘prestação de contas’
V. CONCLUSÃO: O rio visto do Rio
1. Signos embaraçados e o embaraço dos signos
2. Antigas x Novas tradições
2.1.Ñapirikoli: um criador em processo de descriação e recriação
VI. BIBLIOGRAFIA
VII. ANEXOS
1. Quadro geral dos petroglifos
2. As três histórias de seu Antonio, copiadas por Livestone
3. A história de seu Olímpio
4. A história de seu Marcelino
5. As duas histórias de seu Alberto
6. A história de seu Valentim
7. (CD) Arquivos de texto, áudio e imagens :
fotos de campo, registro dos petroglifos e gravações digitais
pelos narradores baniwa, em língua nativa
9
I. INTRODUÇÃO: Em São Gabriel da Cachoeira
São Gabriel da Cachoeira, Alto Rio Negro, estado do Amazonas, a 1.000 km (por rio) de
Manaus. Por aqui passou Ñapirikoli
1
, o ancestral baniwa, o herói criador que conquistou a
primazia desta humanidade enfrentando os macacos da noite e o povo-jaguar. Descendo o
rio Içana desde sua maloca em Kerhipani, à beira do igarapé Jawiari, Ñapirikoli perseguiu
as mulheres que lhe roubaram as flautas Kowai, até onde hoje está localizada a cidade de
São Gabriel da Cachoeira. Aqui, o herói transformou-se em cobra para alcançá-las, mas as
mulheres mataram a cobra sem ferir a Ñapirikoli e seguiram na direção do grande mar,
de Manaus, onde por fim ele encerrou a perseguição, fincando sua borduna baaraita na
terra. A riqueza de Manaus provém dessa borduna, que era de ouro. As mulheres, então,
espalharam-se pelo mundo, até o outro lado do céu, levando consigo os conhecimentos das
flautas que implicam a fabricação de todo tipo de material e equipamento e entregou-
os aos brancos. Ñapirikoli voltou, então, para a sua maloca e descansou.
Essa história repete-se à exaustão na região habitada pelos índios Baniwa, com
diversas variações. Na maioria das versões, Ñapirikoli consegue recuperar as flautas e as
mulheres são mortas ou castigadas. Na versão resumida acima, coletada por mim entre os
Curripaco do Alto Içana (comunidades de Barcelos e Coracy), Ñapirikoli não tem sucesso e,
por causa disso, o conhecimento e as riquezas terminam por pertencer aos brancos e não
aos índios. Independentemente do desfecho, porém, conta-se sempre que, por todo o
caminho, nessa ou em outras viagens, Ñapirikoli gravou desenhos nas pedras às margens
dos rios: formas circulares, espiraladas, zoomórficas, antropomórficas. Tais desenhos
costumam permanecer de oito a dez meses do ano submersos pelas águas dos rios, mas,
apesar da erosão, sempre aparecem, nunca se extinguem. As pedras, os Baniwa bem
sabem, são os únicos elementos estáveis num mundo instável, a permanência na constante
mutação, onde bichos podem ser gente e gente virar bicho, onde as águas sobem e
descem, onde as matas mudam a paisagem a cada estação.
No lugar onde termina essa viagem de Ñapirikoli, inicia-se a nossa, seguindo os
desenhos nas pedras, seguindo o dedo do herói até o local onde ele surgiu e para onde
voltou, a sua ‘Cidade Grande’, uma serra de pedra de cujo cume ele enxergava todo o
mundo então existente. Os desenhos de Ñapirikoli e a sua cidade remetem-se, e nos
1
A grafia das palavras baniwa varia muito. Não há padronização mesmo entre as escolas das comunidades ao
longo do Içana, embora haja, atualmente, um grande esforço nesse sentido. Neste trabalho, adotei o seguinte
critério. A princípio, assumo a grafia que os próprios índios da expedição indicavam, quando eu inquiria acerca
de algum termo específico. A maioria dessas palavras são nomes de animais ou de lugares. Aqui, há diferenças
que decorrem tanto das formas de aprendizagem de cada um, como de variações dialetais (baniwa/curripaco).
Com relação aos termos mais gerais e nomes dos heróis míticos, utilizo a grafia do Dicionário Baniwa-
Português, de Henri Ramirez. Finalmente, quando faço uso de histórias e mitos recolhidos por outro pesquisador,
preservo a grafia original.
10
remetem, a um mundo primordial e antigo, e de falam a esta humanidade aqui, que
então estava por nascer. O que dizem esses signos? Alguém ainda hoje é capaz de os
escutar? E se os escuta, é capaz de entendê-los? E se os entende, de que modo o faz? Em
resumo, como se configura, atualmente, a vida social desses signos?
A decisão de assim construir este relato, cujo sumário foi construído a partir do
roteiro de viagem e em terminologia que remete ao curso do rio, baseou-se em três
premissas. Em primeiro lugar, os Baniwa são grandes viajantes, à semelhança de seus
heróis fundadores. ‘Seguir o nativo’, no caso baniwa, é quase como ‘seguir o rio’. Os
cânticos e as rezas dos pajés baniwa, como comprovam os trabalhos de Jonathan Hill
(1993), Robin Wright (1993, 1998) e outros, citam e descrevem cada local por onde esses
heróis passaram e o que aconteceu em cada estação. Nada mais adequado, portanto, do
que seguir o exemplo dos cânticos kalidzamai, a forma narrativa tradicional baniwa por
excelência, construindo este relato segundo os mesmos critérios.
Em segundo lugar, a narrativa construída desse modo evidencia o gradual
‘descobrimento de questões e dados, de minha parte, à medida em que avançava na
viagem de campo. Ofereço ao leitor um percurso análogo ao meu, no qual ele irá se
deparando com os problemas enquanto os dados surgem e os invocam e, por
conseqüência, e quando se faz pertinente, com as teorias a eles relacionadas. Tal decisão
conduz também a uma complexificação progressiva dos enunciados e dos enunciadores,
que, num primeiro momento, somos tentados a ‘estacar’ na aparente simplicidade dos
signos e dos relatos, dando-nos por satisfeitos com as primeiras ‘explicações’. Por fim, em
terceiro lugar, a narrativa cronológica e seqüencial nos permite transitar entre os espaços
de dúvida-crença-dúvida da abdução peirceana
2
(CP 5.388-410) à medida em que seguimos,
proporcionando a nós mesmos (pesquisadores, leitores) um ‘mapa da construção do
conhecimento’ semelhante ao que os próprios Baniwa de certo modo experimentam.
2
A obra e as propostas de Charles Sanders Peirce terão especial relevância neste trabalho. A Abdução é um dos
três modos de raciocínio por ele identificados, em conjunto com a Dedução e a Indução (ver tópico II.4.1). Para
ele, a Abdução configura-se como o único modo de raciocínio capaz de propiciar a formação de idéias novas, a
partir dos trânsitos cognitivos entre a crença e a dúvida que, gerando-se uma à outra mutuamente, permitem que
avancemos na compreensão do mundo.
11
1. Reunião Baniwa e a Cidade Grande de Ñapirikoli
O Rio Negro, em sua época mais seca, março de 2007
São Gabriel da Cachoeira, cidade de 40 mil habitantes à beira do Rio Negro, no
estado do Amazonas, é o terceiro maior município brasileiro em extensão, conta com 87%
de população indígena e é ponto de partida para a maioria das viagens de barco para as
terras dos integrantes das 23 etnias indígenas da região. Em 2002, o município tornou-se
célebre pelo ineditismo de co-oficializar, junto com o português, três idiomas indígenas: o
nheengatu (ou Língua Geral Amazônica), o tukano e o baniwa.
Em São Gabriel também está localizada a sede da Federação das Organizações
Indígenas do Alto Rio Negro (FOIRN), centro político de todas as decisões dos povos
indígenas da região. Nessa grande maloca de telhado de caranã e chão de terra vermelha,
acompanhei, em janeiro de 2006, a Conferência Distrital de Saúde Indígena. Ali, tive a
oportunidade de conhecer algumas importantes lideranças indígenas - como eles mesmos
se autodenominam de várias etnias, e rever André Fernando Baniwa, então vice-diretor
da FOIRN, a quem conhecia de um encontro na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em
Manaus. Na ocasião, André havia apresentado uma palestra sobre os lugares sagrados
baniwa, a convite da antropóloga Luiza Garnelo, e sua seriedade e inteligência
impressionaram a todos, principalmente a mim.
Durante a IV Conferência Nacional de Saúde Indígena
3
, eu e André tivemos chance
de conversar bastante sobre os lugares sagrados e sobre a noção de conhecimento para os
Baniwa. A partir do que André me disse, é possível afirmar que, para os Baniwa,
‘conhecimento’ tem sentido predominantemente coletivo, em detrimento de uma
construção individual, e encontra-se intrinsecamente ligado aos lugares sagrados. Segundo
ele, todo conhecimento pode vir a ser completamente perdido, caso tais lugares sejam
3
A Conferência aconteceu em março de 2006, em Rio Quente, Goiás. As necessárias etapas que antecedem o
grande encontro nacional, que são as etapas Locais e Distritais, tiveram lugar durante o segundo semestre de
2005. Eu, na época, coordenava a Comunicação da Conferência, e André era o relator da etapa distrital do Alto
Rio Negro, que acompanhei em São Gabriel da Cachoeira, em dezembro de 2005.
12
destruídos. André e eu combinamos uma viagem pelo rio Içana acima – o ‘rio dos Baniwa’ –,
em época seca, para ver e registrar os inúmeros desenhos gravados nas pedras às suas
margens, petroglifos que, segundo ele, eram sagrados para os Baniwa e que, com raras
exceções, não haviam ainda sido devidamente registrados. O convite pôde ser
concretizado um ano depois, quando eu cursava o mestrado em Antropologia Social no
Museu Nacional
4
.
Após quatro dias em São Gabriel, aguardando a ‘autorização’ de André para partir,
e também uma conversa mais específica acerca do planejamento da viagem, soube que
havia sido convocada uma reunião extraordinária da CABC (Coordenadoria das Associações
Baniwa-Curripaco) e que na pauta, entre outras coisas, estava a exposição de ‘meu’
projeto de pesquisa. À noite, havia cerca de vinte lideranças baniwa em torno de uma
grande mesa no centro da maloca, enquanto outros sentavam-se nas arquibancadas
laterais, acompanhando com interesse. Eles já haviam discutido, durante toda a tarde, um
extenso planejamento estratégico das ações para o próximo ano, que envolviam saúde,
educação, pesquisas. Adeílson Lopes da Silva, ecólogo, e Laíse Lopes Diniz, educadora e
coordenadora pedagógica da Escola Pamáali, no Médio Içana, ambos do Instituto de Saúde
Ambiental (ISA)
5
, ajudavam os Baniwa a sistematizar suas propostas numa grande tabela,
com a ajuda de um notebook e de equipamento multimídia. Tais profissionais, e mais Sully
Sampaio, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz-Manaus) têm atuado em estreito regime de
parceria com os Baniwa, e emprestavam apoio ao meu projeto.
Assim, na presença de praticamente todas as lideranças mais importantes do Baixo,
Médio e Alto Içana na verdade, um movimento estratégico e certeiro de André, que
vislumbrou na reunião a oportunidade para que todos me conhecessem e validassem
conjuntamente o projeto -, relatei o que sabia. E o que eu sabia, até então, era muito
pouco:
“Estou aqui a convite do André”, disse, “e alguns de vocês me conhecem da
última Conferência Distrital”. Os acenos de cabeça e os típicos on-homafirmativos me
incentivaram a prosseguir no mesmo tom. Continuei, portanto, a descrever o meu projeto.
Relatei, diante da assembléia das lideranças, que havia pouco mais de um ano que André
falou-me dos lugares sagrados baniwa e dos desenhos das pedras. Disse ele que, com
poucas exceções, tais lugares não havia, ainda, sido bem registrados, com raras exceções.
4
A concretização do trabalho foi possível mediante o auxílio para pesquisa composto em parte por recursos do
Museu Nacional, do Núcleo de Transformações Indígenas (NuTI) e do programa Capes-Cofecub, além de apoio
da Fiocruz na aquisição das passagens aéreas Rio-Manaus-São Gabriel da Cachoeira.
5
O Instituto Socioambiental (ISA), é uma entidade não-governamental que tem como missão propor soluções de
maneira integrada a questões sociais e ambientais, bem como defender bens e direitos sociais, coletivos e difusos
relativos ao meio ambiente, ao patrimônio cultural, aos direitos humanos e dos povos. O ISA tem sede em São
Paulo e escritórios em Brasília (DF), São Gabriel da Cachoeira e Manaus (AM), e Canarama (MT).
13
O registro pretende fazer com que esses lugares, essas pedras e desenhos, sejam
preservados e reconhecidos por todos como lugares sagrados eu disse, afirmando
entender, também, que muitos desses desenhos estão ligados a histórias, e as histórias
estão se perdendo porque não há mais velhos que as saibam contar.
Evidenciei minhas pretensões de, além de registrar os desenhos, registrar também
as histórias ligadas a eles. Nesse momento, achei sensato comprometer-me a compartilhar
os registros com todas as comunidades, para que elas pudessem deles se utilizar para
produzir materiais educativos para escolas baniwa. Para isso, comprometi-me ainda – o que
havia feito particularmente, com André a levar comigo dois pesquisadores baniwa,
para apoio na viagem e também para que aprendessem métodos e técnicas de registro dos
desenhos e das histórias.
Por fim, contei sobre as vagas diretrizes de André, que havia me falado de um local
bem distante, próximo à Colômbia, ainda não visitado nem registrado, e que se encontrava
em grande perigo de ser esquecido ou depredado. Eu disse:
– Também pretendo ir até lá. Confesso que é só até aí que eu sei. Ainda espero uma
nova conversa com André para estabelecer melhor meu roteiro e minha ‘missão’. Acho que
ainda tem muita coisa na cabeça dele, que ele ainda não me contou! - brinquei, sorrindo.
Voltei-me para o André, que ouvia calado, na cabeceira da grande mesa de
madeira: “É essa a idéia, André?”. Ele sorriu de volta, se aprumou na cadeira e disse:
- É essa a idéia, Caco. Agora eu vou explicar a idéia!...
Todos gargalharam e assumiram uma posição mais atenta. André contou, então, que
em 2002 chegou a Barcelos, uma comunidade baniwa do Alto Içana
6
, localizada no igarapé
Jawiari, com o objetivo de visitar os ‘lugares de reza’. Nessa época, ele sabia dos
lugares mais conhecidos, como Uapuí e Jandu Cachoeira. Ele encontrou, então, o seu
Pacheco
7
, bem velhinho, e perguntou-lhe sobre os ‘lugares de conhecimento’. À noite,
vendo o interesse dos visitantes, seu Pacheco reuniu todos no Centro Comunitário e
revelou sua grande preocupação com um lugar chamado ‘Cidade Grande de Ñapirikoli’.
Ñapirikoli é o herói-criador dos Baniwa, pai de Kowai (Jurupari, em língua geral) e
responsável por legar aos walimanai (‘os que vão nascer’)
8
todo o conhecimento sobre o
6
Os Baniwa referem-se aos diversos grupos localizados às margens do Içana e de seus afluentes como
‘comunidades’, e sentem-se algo desconfortáveis quando alguém as denomina ‘aldeias’. A palavra utilizada em
baniwa é ‘Iyakale’. O termo também é traduzido por ‘cidade’. A ‘Cidade Grande’ de Ñapirikoli é dita Iyakale
Maakakoe.
7
Assumo, agora e doravante, o tratamento comum entre os Baniwa, quando se referem aos mais velhos das
comunidades: ‘seu Pacheco’, ‘seu Marcelino’, ‘seu Alberto’, ‘seu Antonio’... Os mais jovens, mesmo quando são
importantes lideranças, são chamados apenas pelo primeiro nome: ‘André’, ‘Irineu’, ‘Tiago’... Quanto aos
pesquisadores brancos, os Baniwa referem-se a eles quase sempre pelo primeiro nome, qualquer que seja a idade
ou posição: ‘Laíse’, ‘Sully’, ‘Beto’ (do ISA), ‘Caco’, ‘Robin’ (Wright)...
8
Num sentido amplo, todos os homens, nascidos depois daquele mundo primordial; num sentido estrito, os
Baniwa.
14
mundo criado, desde as muitas armadilhas de pesca e as plantas domesticadas até os
benefícios do tabaco e da pimenta, passando por preceitos éticos e estéticos, como as
figuras das cestarias e raladores de mandioca. Ñapirikoli é, ainda, o autor dos desenhos nas
pedras às margens dos rios.
A ‘Cidade Grande’ ficaria numa serra, pouco abaixo da comunidade de São
Joaquim, onde há um pelotão de fronteira do Exército brasileiro, e estaria localizada numa
região bastante erma. Antigamente, dizia-se, havia uma comunidade perto, mas agora
não mais. Seu Pacheco manifestava duas preocupações em relação à ‘Cidade Grande’. A
primeira dizia respeito ao garimpo, pois na época em que este estivera em alta, há poucos
anos, muitas pessoas passaram por lá, quebrando tudo para achar ouro. A segunda
preocupação dizia respeito ao Exército. Segundo ele, os pelotões estavam avançando sobre
os lugares sagrados, chegando por barco e helicóptero, tirando fotos e desrespeitando os
locais, sem compreender o que significavam para os Baniwa. Seu Pacheco expressou,
então, seus desejos aos visitantes. Não queria ver a ‘Cidade Grande de Ñapirikoli’ ser
destruída ou esquecida. “Precisamos proteger aquele lugar”, teria dito, “porque ali vivia
Ñapirikoli, dali ele saía para os caminhos de Norte, Sul, Leste, Oeste!”.
Após reproduzir as palavras de seu Pacheco, André disse-nos que nunca ouvira essas
histórias e que elas jamais haviam sido registradas. Segundo ele, são histórias anteriores
àquelas que localizam o centro do mundo em pana, e mesmo as complementam, que
se remetem à casa de Ñapirikoli: “Onde ele nasceu? Onde e como vivia com seus irmãos?”,
são perguntas enfim respondidas pelas histórias da Cidade Grande. O problema era a
ausência de registros dos lugares a montante de Jandu Cachoeira, pois, dizia, “se nós não
registrarmos os nossos conhecimentos, qualquer um pode vir e dizer que tais
conhecimentos são dele”. Em Barcelos, havia apenas um velho, chamado ‘seu Antonio’,
que conhecia essas histórias, apenas ele e a mãe dele, já bem velhinha. Além destes, havia
seu Marcelino, da comunidade de Tamanduá, e seu Alberto, que vive em Jandu Cachoeira.
Seu Pacheco tinha morrido logo após a visita de André, e André contou-nos que
passara muito tempo tentando viabilizar os registros e realizar o desejo do velho. A minha
chegada, disse, “casou duas vontades”: a dele, de cumprir o compromisso assumido, e a
minha, de estudar os signos baniwa. A preocupação central, portanto, era com a Cidade
Grande de Ñapirikoli. “Quando nossos avós morrerem, e também nossos pais, será a nós
que nossos filhos vão perguntar sobre essas coisas. E o que teremos a dizer para eles?”.
Com essas palavras, André encerrou a reunião.
Eu me encontrava, assim, no ponto de conjunção entre as demandas dos Baniwa em
relação ao resgate de suas tradições, as exigências de um projeto de pesquisa acadêmico
que, no final das contas, tem como objetivo principal e objetivo a escrita de 120 páginas
15
de texto
9
, e minhas próprias inclinações e interesses acerca dos objetos gráficos.
Relacionar o segundo ponto e o terceiro não seria um grande problema. Mas eu me sentia
totalmente despreparado para a tarefa que estava sendo colocada sobre meus ombros, em
relação às chamadas ‘tradições baniwa’. A que essas lideranças estavam se referindo,
exatamente? Que tradições eram essas, como eram (ou seriam) validadas? E qual seria a
intenção em promover tal ‘resgate’? Para memória, para museus, para retomar antigas
práticas e torná-las (novamente) vivas nos seios das comunidades, para promover novas
práticas? Igualmente, o que seria, exatamente, um resgate’? Intuí que, para bem
compreender os signos nas pedras, eu teria que me instrumentar e me preparar para
entender minimamente o momento em que vivem os Baniwa do Içana, em relação ao que
eles mesmos chamam de ‘sua cultura’ e ‘suas tradições’. Percebi mesmo que um ponto e
outro se complementam: entender os signos me proporcionaria melhor entendimento dessa
relação, ao mesmo tempo que entender as tradições me diria muito sobre os signos.
No dia seguinte, eu tinha um encontro marcado com André, para que ele e Irineu
seu cunhado e o prático que iria me acompanhar durante toda a viagem aprofundassem
mais o assunto e para que definíssemos os últimos preparativos para a partida. Se tudo
corresse bem, no sábado, 3 de março, embarcaríamos na voadeira
10
da OIBI (Organização
Indígena do Baixo Içana) e, movidos a ‘motor 40’, em estimados seis dias estaríamos na
Cidade Grande de Ñapirikoli, de onde o criador partiu para percorrer seus quatro
caminhos.
2. Ñapirikoli e os petroglifos: a forma conta a história
André Fernando Baniwa
9
Bruno Latour, Reassembling the Social, Quinta Fonte de Incerteza (2005).
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Como são chamados os barcos abertos, com motor de popa e espaço suficiente apenas para bagagem,
combustível e cerca de seis pessoas.
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Tudo ainda me parecia incipiente e de certa forma desorganizado. Eu sabia muito
pouco acerca do que deveria ou poderia fazer, não conhecia a equipe indígena que viajaria
comigo, não sabia em que barco seguiríamos, ou quem cederia o motor, não tinha idéia de
roteiro de viagem ou distâncias em tempos de rio seco. Mas, sem escolha, confiava em
André e nos preparativos de Irineu, que se movia de um lado para outro descobrindo
palhetas de motor em bom estado e negociando com as lideranças das comunidades ali
presentes e que nos receberiam rio acima.
Após a reunião com a CABC, relatada, eu e André agendamos uma reunião, para
que ele expusesse sua visão acerca dos petroglifos e da idéia de conhecimento entre os
Baniwa. André Fernando Baniwa é diretor da OIBI e diretor vice-presidente da FOIRN.
Jovem, é uma das lideranças mais respeitadas no Alto Rio Negro, por sua inteligência,
senso político, opiniões e ações ponderadas e firmes em favor dos povos da região. Nesse
depoimento, André abriu-me pelo menos três campos de problemas que, como eu viria a
descobrir em seguida, estariam presentes em cada ponto da viagem, nas falas dos
narradores que eu encontraria e, ainda, nas relações estabelecidas entre os desenhos nas
pedras, as comunidades baniwa e o seu corpo de conhecimento. O primeiro campo diz
respeito à polaridade (não necessariamente contraditória ou em franca oposição) entre as
‘velhas tradições’ e o que André tem chamado de ‘novas tradições’. O segundo campo diz
respeito aos lugares sagrados e à noção de conhecimento. O terceiro campo, por fim,
conta especificamente dos desenhos nas pedras. Esses três campos, evidentemente, estão
implicados entre si, como se segue.
Valorização das tradições Não é de hoje que os Baniwa se relacionam com os
antropólogos e outros pesquisadores discutindo com eles a fundo os objetos e intenções de
suas pesquisas, e também demandando pesquisas que eles acham necessárias em sua área.
A idéia de ‘retorno para as comunidades’ está sempre presente nessas negociações. André
diz que uma preocupação constante nessas conversas, principalmente com os
antropólogos, é “a questão da memória, a valorização das tradições”. André revela não
gostar muito da palavra ‘memória’, porque o conceito o remete a “uma coisa que você
tem e não vale mais, algo em que não se tem mais uma coisa viva, para sua vida”. Diz ele
que, tradicionalmente, para os Baniwa, a ‘memória’ é, ao contrário, uma coisa viva. Ela
está ali, é usada. Ele cita a Bíblia como comparação, já que, como a base da crença cristã,
é algo vivo e está na vida das pessoas por meio do amor, da fé, dos atos de fazer o bem.
Segundo ele, os petroglifos e as histórias narradas, bem como os chamados lugares
sagrados são, igualmente, “coisa viva”, porque é a partir dessas histórias que os velhos dão
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conselhos para seus filhos. “Aquilo é para o Baniwa”, diz André, “está vivo, e não depende
se você é evangélico, cristão ou não”. Diz ele que, hoje, todos aqueles que nascem e
crescem numa comunidade baniwa, em algum momento ouvem falar e vêem, fazem uso
dos desenhos nas pedras e das histórias, em certa medida. Ele assegura que, mesmo que
hoje, “por causa da crença”, as pessoas digam que não conhecem, que se esqueceram, não
é assim, tem um pouco de mentira”. É que, para ele, quando se descobre novamente o
sentido, as pessoas se lembram. E é a