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AUTRAN DOURADO EM ROMANCE PUXA ROMANCE
OU A FICÇÃO RECORRENTE
por
LEONOR DA COSTA SANTOS
(Doutoranda em Letras Vernáculas – Literatura Brasileira)
Tese de Doutorado apresentada à Coordenação
dos Cursos de Pós-graduação em Letras
Vernáculas, da Faculdade de Letras da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
parte dos requisitos necessários à obtenção do
título de Doutor em Letras Vernáculas (Literatura
Brasileira).
Orientador: Prof. Dr. Wellington de Almeida
Santos.
UFRJ - Faculdade de Letras
Rio de Janeiro, 1º semestre de 2008
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DEFESA DE TESE
SANTOS, Leonor da Costa. Autran Dourado em romance
puxa romance ou a ficção recorrente. Rio de Janeiro:
UFRJ, Fac. de Letras, 2008. 213 fl. Tese de
Doutorado em Letras Vernáculas (Literatura
Brasileira).
BANCA EXAMINADORA
Professor Doutor Wellington de Almeida Santos – Orientador
Professor Doutor Francisco Venceslau dos Santos - UERJ
Professor Doutor Godofredo de Oliveira Neto - UFRJ
Professora Doutora Ângela Beatriz de Carvalho Faria - UFRJ
Professora Doutora Carlinda Fragale Pate Nuñez - UERJ
________________________________________________________________________
Professor Doutor Luís Alberto Nogueira Alves (suplente) - UFRJ
_________________________________________________________________________
Professor Doutor Alcmeno Bastos (suplente) - UFRJ
Defendida a Tese
Conceito:
Em: 28/02/ 2008
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Dedicatória
A meu pai, que há pouco atravessou a rua, dobrou a esquina e não o vi mais.
(Aliás, se o encontrarem, digam que estou com saudade. Que ando capenga, sem graça e
sem gosto. Que ele apareça, dê notícias ou volte. Porque viver de lembranças, tenham
paciência, é chato demais!)
Agradecimentos
A Alexandre Cabral, pelo entusiasmo contagiante das muitas aulas de filosofia;
A Pedro Mello, pela disposição e disponibilidade na revisão minuciosa;
A Carlos Carvalho, pelos ensinamentos tantos de informática;
A Wellington de Almeida Santos pela renovação da aliança, feita lá atrás no mestrado,
quase uma década de convivência paradisíaca;
E a meus três filhos: Juliana, Cassiano e Cláudio, cada qual a seu modo, por estarem
comigo ainda hoje.
E a meu irmão Messias, que apesar de Júnior no nome, tem sido paternal na convivência.
SINOPSE
Intertextualidade e recorrência em Autran Dourado. A
carpintaria intermitente do escritor: a vista e revista da
palavra. O encontro de mestre e aprendiz: o ensino e a
aprendizagem. O mergulho da ficção na sua origem. O
narrativo de mãos dadas com o dramático. O salto do
personagem. O amálgama de gerações no sobrado dos
Honório Cota. O assessor e o presidente: via de mão
dupla - ficção e memória.
LISTA DE SIGLAS DAS OBRAS DE AUTRAN DOURADO
Armas & corações (1978) - A&C
A serviço del-Rei (1984) - SDR
Breve manual de estilo e romance (2003) - BMER
Confissões de Narciso (1997) - CN
Gaiola aberta (2000) - GA
Lucas Procópio (1985) - LP
Melhores contos (1995) - MC
Novelário de Donga Novaes (1976) -NDN
O meu mestre imaginário (1982) - MI
Ópera dos fantoches (1994) - OF
Ópera dos mortos (1967) - OM
O senhor das horas (2006) - SH
Solidão solitude (1972) - SS
Tempo de amar (1952) - TA
Um artista aprendiz (2000) - AA
Um cavalheiro de antigamente (1992) - CA
Uma Poética de romance: matéria de carpintaria (1976) - PRMC
Uma vida em segredo (1964) - VS
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO..........................................................................................................08
1.1. Construção do corpus e metodologia.........................................................10
1.2.A planta baixa da prosa de Autran Dourado – o moto-perpétuo da
escrita...................................................................................................................12
2. A INQUIETUDE DO CARPINTEIRO NA OFICINA DA PALAVRA................27
2.1. Uma poética de romance: matéria de carpintaria...................................... 32
2.2. Breve manual de estilo e romance................................................................44
3. A FICÇÃO EMERGENTE DA REFLEXÃO LITERÁRIA...................................49
3.1. Meu mestre imaginário..................................................................................51
3.2. Um artista aprendiz........................................................................................66
4. A FICÇÃO ATUALIZADA NA PRÓPRIA ORIGEM............................................83
4.1. Tempo de amar...............................................................................................84
4.2. Ópera dos fantoches ......................................................................................98
5. O SALTO DO PERSONAGEM................................................................................114
5.1. Lucas Procópio..............................................................................................120
5.2. Um cavalheiro de antigamente.....................................................................136
6. A FICÇÃO RASCUNHA O DOCUMENTO............................................................155
6.1. A serviço del-Rei............................................................................................158
6.2. Gaiola aberta..................................................................................................174
7. CONCLUSÃO...............................................................................................................186
8. ENTREVISTAS COM O AUTOR..............................................................................191
9. BIBLIOGRAFIA...........................................................................................................204
9.1. Bibliografia do autor......................................................................................204
9.2. Bibliografia sobre o autor..............................................................................205
9.3. Bibliografia geral............................................................................................206
1. INTRODUÇÃO
Esta pesquisa diz respeito à construção da narrativa do escritor mineiro Autran
Dourado (1926), mais precisamente a maneira pela qual ela se nutre dela mesma, ou seja, a
marca recorrente de sua prosa. A partir da análise de alguns de seus romances, bem como
de algumas obras ensaísticas e, até mesmo, uma de cunho memorialístico, busca-se
evidenciar o traço retroalimentativo que norteia boa parte da obra do escritor. Reflete-se,
pois, sobre o movimento interno de sua narrativa, para, então, ampliá-lo a uma segunda
característica, forte também, representada pelo dialogismo que a afeta. Numa intensa
cadência intertextual, a narrativa do romancista confirma a origem embrionária dessa
interpenetração. É Laurent Jenny quem confirma a natureza desse movimento: “Se qualquer
texto remete implicitamente para os textos, é em primeiro lugar dum ponto de vista
genético que a obra literária tem conluio com a intertextualidade.”
1
Por ordem de
publicação, o que não representa exatamente a maneira como serão aqui estudadas, mas
apenas a primeira apresentação, são elas: Tempo de Amar (1952), Ópera dos mortos (1967),
Uma poética de romance: matéria de carpintaria (1976), O meu mestre imaginário (1982),
A serviço del-Rei (1984), Lucas Procópio (1984), Ópera dos fantoches (1994), Um artista
aprendiz (2000), Gaiola aberta (2000), Um cavalheiro de antigamente (1992) e Breve
manual de estilo e romance (2003). Ressalte-se que O senhor das horas (2007), apesar de
não estudado minuciosamente, será eventualmente referido como a última “prova” da
escrita recorrente de Autran Dourado.
Dois fatores conduziram à seleção desse corpus. Inicialmente o que chamou a
atenção foi o livre trânsito dos personagens autranianos por entre seus romances. Por vezes,
1
JENNY, Laurent. (1979 ) p.6
com tal força, que chegam mesmo a originar um novo romance. Posteriormente, um
segundo aspecto a aguçar a curiosidade foi a recorrência de uma obra em outra,
evidenciando o traço obsessivo do autor na reconstrução de sua própria narrativa. Além
disso, o que se observa é que boa parte da fortuna crítica de Autran Dourado, como é de
praxe, recai sobre seus romances de maior prestígio junto à crítica. Afora esse conjunto,
pouco dedicado ao estudo das demais obras do autor. Por mais esta razão, julga-se
dispor de uma boa oportunidade para transferir o foco do lugar habitual de análise, para um
novo ponto de observação. Apesar de neste estudo serem tratados romances do peso de
Ópera dos mortos, incluída na seleção de obras representativas da Unesco, serão
privilegiadas narrativas que ecoaram praticamente dentro do circuito acadêmico.
Desta forma, a fim rascunhar o labirinto por onde é traçada a prosa do escritor,
pretende-se estruturar esta pesquisa em quatro abordagens pares e uma tríplice, ordenadas
da seguinte maneira: 1) Breve manual de estilo e romance ratificando, quase trinta anos
depois, os preceitos de composição literária contidos em Uma poética de romance: matéria
de carpintaria; 2) Um artista aprendiz contraponteando com O meu mestre imaginário, os
dois pólos da criação; 3) Ópera dos fantoches como reescritura de Tempo de amar; 4) numa
trilogia dialógica, Ópera dos Mortos, como matriz de Lucas Procópio e de Um cavalheiro
de antigamente, abraça a idéia de que em Autran Dourado, parodiando o poeta francês
Victor Hugo acerca da obra de Balzac: “Todos os seus livros não formam senão um
livro.”
2
; e, finalmente, 5) Gaiola aberta, o documento gestado, por dezesseis anos, da
ficção A serviço del-Rei, encerra o dialogismo proposto pelas obras de Autran Dourado,
2
HUGO, Victor. apud SALGUES, Luciana (2006), p.56.
momento em que o crítico Antônio Candido considera a maturidade literária do escritor: “o
escritor, ao escrever suas memórias, injeta ‘maioridade’ em sua literatura”.
3
Esta tese organiza-se seguindo a linha tradicional que reserva os espaços iniciais
para a Introdução e Conclusão e dispõe os capítulos intermediários para os pressupostos
teóricos, a metodologia e constituição do corpus, seguidos de cinco capítulos de análise
ordenados e intitulados da seguinte forma:
* Breve manual de estilo e romance e Uma poética de romance: matéria de carpintaria a
inquietude do carpinteiro na oficina da palavra;
* Um artista aprendiz e Meu mestre imaginário – a ficção emergente da reflexão literária;
* Ópera dos fantoches e Tempo de amar – a ficção atualizada na própria origem;
* Ópera do mortos, Lucas Procópio e Um cavalheiro de antigamente o salto do
personagem;
* Gaiola aberta e A serviço del-Rei. – a ficção rascunha o documento
1.1. Construção do corpus e metodologia
Embora o foco deste trabalho esteja voltado para os textos de Autran Dourado de
natureza especular, aqueles que se complementam em outros textos também do autor,
inclui-se nesta pesquisa Ópera dos mortos, cuja aparência não revela esse traço. A razão da
escolha reside em sua característica matricial intrínseca dessa narrativa nascem dois
outros romances oriundos do vigor de seus personagens. O avô e o pai de Rosalina, a
protagonista da história, escapam do sobrado onde tinham vivido e dão origem a dois novos
romances: Lucas Procópio e Um cavalheiro de antigamente. A força desses personagens é
3
CANDIDO, Antonio. apud REZENDE, Neide Luzia de (2003) p.129.
pois tamanha que os empurra para além do texto original. Havendo ainda mais Lucas
Procópio dentro do avô de Rosalina, bem como mais João Capistrano dentro de seu pai, a
solução encontrada pelo autor resultou em dois outros romances de teor biográfico, que
assinalam a saga da família Honório Cota, desde o auge do ciclo do ouro nas Minas Gerais
do século XVIII, até a decadente sociedade pós-mineração. Especulares e complementares,
como as demais obras escolhidas, a princípio como personagens, depois como romances
deles advindos, vêm formar aqui a quarta dupla de obras a serem estudadas. Embora já se
tenha falado, no começo deste estudo, em trinca de romances, quando se referiu a esse
grupo, daqui por diante serão tratados, também como par, vez que Ópera do mortos será
abordado na medida em que esclarece a origem dos demais.
Assim, mais uma vez, a narrativa do mineiro Autran Dourado provas não de
recorrência, mas também de construir-se, por vezes, em cima de pilares não
complementares, mas também antagônicos. Para se compreender melhor esse traço, é
importante que seja, dede já, destacada a diferença brutal entre Lucas Procópio e o filho
Honório Cota. O primeiro, amalucado, ao sair em caravana pelo interior de Minas,
costumava pregar a ressurreição das minas, recitando acalorado os mais variados poemas.
Assim, em companhia do negro Jerônimo e do capataz Pedro Chaves, teria virado as
cidades e bordéis de ponta cabeça: “Com mulheres a sua generosidade não encontrava
limites.(...) Ele o se dava ao respeito, não escondia de ninguém as suas aventuras. Bebia
dos finos vinhos às cachaças mais ordinárias. Brigava, se embriagava com freqüência”
(LP,101). o outro, ao contrário, portava a honradez amalgamada no próprio nome. Fora
batizado João Capistrano Honório Cota. Segundo Autran Dourado, o nome Honório foi
escolhido propositalmente, vindo de honra, do latim honor: “Desde menino fora João
Capistrano homem sério, nunca se misturava, mantinha sempre uma distância respeitosa.
Aquela tristeza nos olhos estava ali desde os tempos de menino” (LP,11). A fusão desses
opostos se dará em Rosalina, da terceira geração da família, que condensará a figura dos
dois ascendentes; manifestando-se um, pela noite, enquanto o outro, durante o dia.
Contudo, este assunto, a vertente barroca do texto de Autran Dourado, objeto de tantos
outros estudos, aqui interessa sobretudo na medida em que sugere antes a
complementaridade do que a escrita antitética:
Autran Dourado, mineiro, herdou a “torturada alma barroca” ...
Para mostrar que não se vive impunemente num lugar, Dourado
declara que é preciso perceber a influência do chão de Minas, “o
linguajar arcaico resultante do regime colonialista com que
Portugal tratou Minas, o claro-escuro antitético mineiro, as
contradições e proximidades, as mil e uma Minas.
4
1.2. A planta baixa da prosa de Autran Dourado – o moto-perpétuo da escrita
O universo ficcional autraniano contabiliza cerca de trinta e duas obras produzidas
em quase meio século. A primeira novela de Autran Dourado, Teia, data de 1947. Aos
oitenta anos de idade, ainda lúcido e escrevendo, foi por mim entrevistado em julho de
2006, em seu apartamento de Botafogo. Lutando para vencer um mal, que lhe rouba a
firmeza das mãos, o escritor me disse, com os dedos indicadores envergados no ar, que se
preparava para lançar, em 2007, O senhor das horas: uma coletânea de contos. Faço essa
referência para louvar-lhe o empenho na carpintaria textual. Apesar do tempo ter lhe tirado
a agilidade física para escrever (fora inclusive taquígrafo), não lhe roubou o entusiasmo.
Ele prossegue num lento “cata-teclas”, no microcomputador, encasulado no simpático
escritório, cercado pelo verde da montanha e emoldurado por uma vasta biblioteca: “Gosto
4
JOAQUIM, Sônia Marques (2003), p.1.
de escrever. Sou um ser literário por excelência. Agora, tenho lido desesperadamente. Na
semana que vem entrego meu último livro”.(Entrevista/2006)
O nome dessa primeira novela, Teia, não sem razão, prognosticava um conjunto de
textos que, atrelados uns aos outros, comporiam um mundo próprio e conjugado entre si.
Quase sempre tendo Minas Gerais como cenário e a sociedade patriarcal da primeira
metade do século XX como personagem principal, a narrativa de Autran Dourado alicerça-
se, sobretudo, na ausculta da alma humana, representada, principalmente, pelo mote contido
no ditado: “avós ricos, pais nobres e netos pobres”. Assim o autor delineia, em seus
romances, o perfil psicológico da aristocracia rural decadente. Entre tantas outras, mas,
sobretudo, na história das famílias Honório Cota, ou de João da Fonseca Ribeiro, o grande
narrador do romancista, bem como pela gente de Ismael (o Troca-pernas, de Tempo de
amar e de Ópera dos fantoches), descortinam-se as muitas histórias desse mineiro
fabulador.
A escolha do corpus a ser trabalhado, como dito, decorre da percepção de que,
por trás de uma escrita linear, corre uma outra conjugada em pares. A pena obsessiva que
vive a reiterar o dito se detecta na medida em que se abandonam os clássicos do autor e
se envereda por uma leitura diacrônica de sua obra.
Antes de prosseguir, cabe aqui esclarecer o que se entende por clássicos de Autran
Dourado. Fora dos meios acadêmicos, o escritor é comumente reconhecido por dois de seus
romances. O primeiro, O risco do bordado que, por muito tempo, nos anos 70, fora leitura
obrigatória no Ensino Médio com vistas ao vestibular. E o segundo, Uma vida em segredo,
menos pela qualidade do texto, do que pela versão cinematográfica feita pela cineasta
Susana Amaral, em 2003, ao romance. Além desses dois bastante conhecidos, ainda três
outros que, apesar de estudados apenas no circuito acadêmico, vêm fechar os clássicos do
romancista: A barca dos homens (1961), Ópera do mortos (1967) Os sinos da agonia
(1974).
Antes mesmo da garimpagem proposta, livro por livro, para encontrar algo de
insólito na obra desse mineiro que justificasse uma nova pesquisa, foi possível perceber
duas coisas. Primeiro, a estranheza da paisagem de A barca dos homens, em relação às
demais obras do autor, invariavelmente inseridas na topografia montanhosa de Minas. A
ilha, no litoral sul do país, é estranha ao cenário típico mineiro, onde o autor, usualmente,
desenvolve suas histórias. Segundo, a dissonância temporal de Os sinos da agonia, cuja
ação remonta ao século XVII e que encontra paridade apenas em Lucas Procópio, cuja
ambiência também remonta ao período colonial. Ora, pois fora justo pela discrepância
apresentada por esses três romances, uma de natureza espacial e as duas outras de cunho
temporal, que foi possível enxergar, nos demais, um todo homogêneo. Além disso, dois
outros fatores levaram à ratificação dessa idéia: a hegemonia da voz narrativa João da
Fonseca Ribeiro, o narrador constante, e o espaço físico invariavelmente presente, Duas
Pontes, onde se passa boa parte das histórias de Autran Dourado. Se, por um lado, os dois
romances mencionados rompem com o tom do universo autraniano, a constância do
narrador e da pequena cidade alinhavam uma obra uníssona. Pois é desse traço inicial, a
uniformidade de sua narrativa, que depois se pretende introduzir a noção de recorrência de
seu texto. Acresça-se a isto a facilidade com que os personagens circulam de uma obra a
outra. É possível deparar-se com um personagem ainda jovem num livro, e encontrá-lo
mais velho e diferente, num outro. Inclusive, ele segue seu destino como se comprometido
com o texto original. Esse é o caso de Evangelina Montserrat da Silveira que, em Armas &
Corações (1978), aparece bonita e jovem casada com o coronel Tote. Ali vive a luta diária
contra a insanidade do filho, Teteu Mão de Onça, por sua vez às voltas com as vontades da
anãzinha Jezabel, sua mulher. quando retorna ao texto autraniano, em Ópera dos
fantoches (1994), aparece bem mais velha, vivendo uma arriscada aventura extraconjugal
com Ismael, o protagonista insolente, nas ausências do marido, que viaja.
O êxodo de personagens do texto original para outros decorrentes constitui uma
característica forte do texto de Autran Dourado, mas é importante frisar que outros
escritores também ficcionaram dessa forma. Quincas Borba, por exemplo, o conhecido
personagem de Machado de Assis, surge primeiro como amigo de Brás Cubas, o defunto-
autor de Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881). Só mais tarde retorna à ficção
machadiana, no romance que leva seu nome. Dessa vez, como o falecido, que disponibiliza
a herança a Rubião, em troca de cuidados para com seu cão. Outro exemplo é Joãozinho
Bem-bem, personagem de Guimarães Rosa, que aparece inicialmente em “A hora e a vez
de Augusto Matraga” (Sagarana, 1946), como o temido jagunço que duela com nhô
Augusto e depois, regressa ao universo roseano em Grande sertão: veredas (1947), como
ícone de valentia e inspiração maior para o também desordeiro Bebelo. Mais ainda, vale
lembrar o coronel Lula, famoso personagem de José Lins do Rêgo, que aparece em apenas
esboçado em Menino de engenho (1932) e depois em Fogo morto (1943), revigora-se ao
extremo.
No âmbito da literatura infanto-juvenil, esse mesmo procedimento fez parte também
do universo ficcional de Monteiro Lobato. Guardadas todas as proporções de estilo e época,
naturalmente, o espaço físico permanente do Sítio do Pica-pau Amarelo, onde a maioria das
histórias de Lobato se passa, e a freqüência com que as personagens se evadem e voltam
sugere também a aproximação com a técnica utilizada por Autran Dourado.
Ainda mais longe, deixando os limites pátrios, e recuando-se ao século XIX, tem-se
a figura do escritor francês Honoré de Balzac, nessa mesma vertente. Segundo Glória
Carneiro do Amaral:
Balzac realizou a Comédia Humana a proeza de escrever cerca de 80
romances que compõem uma ampla descrição da sociedade francesa do
século XIX, tendo como modelo as ciências naturais de seu tempo. Esse
projeto monumental contempla temas fundamentais para compreender a
nova ordem econômica, como o dinheiro e o desejo de ascensão social,
além de criar uma técnica que consiste na circulação das personagens
pelos diferentes livros desse mosaico romanesco.
5
Aqui a semelhança com a ficção de Autran Dourado restringe-se à liberdade que
também o escritor francês aos seus personagens para transitarem de uma obra a outra.
Segundo Glória Carneiro do Amaral, teria sido, então, Balzac o primeiro romancista a
utilizar essa técnica de construção narrativa, portanto o seu criador.
Feitas essas colocações iniciais sobre o universo ficcional autraniano, suas
peculiaridades traços de semelhança e de diferenças parte-se para uma segunda etapa:
mostrar o critério usado para a escolha dos pares de obras a serem abordados.
O primeiro a ser apreciado é pertinente a sua escrita ensaística: Uma poética de
romance: matéria de carpintaria e Breve manual de romance. Excepcionalmente, pela
estreita ligação que os prende ao terceiro par de obras assinalado, Um artista aprendiz e
Meu mestre imaginário, nesse momento introdutório, serão abordados conjuntamente.
Antes de tudo, convém focar a gênese do espírito “crítico” do autor, que corre
paralelo à sua ficção narrativa. Segundo o próprio autor, “A glória do oficio” teria sido
onde tudo começou, ainda em 1957. Um traço importante da prosa desse mineiro é justo
deixar-se entremear por ensaios teóricos, de quando em quando, desnudando sua própria
poética. (O termo poética tem vários sentidos, mas aqui é entendido na acepção de
5
AMARAL, Glória Carneiro do (2006), p. 20.
Todorov
6
. Exatamente como o conjunto de artifícios estruturais - construção de um enredo,
noção de tempo, posição do narrador etc - através dos quais os romancistas constroem suas
obras o arcabouço literário que as sustenta.) A permanente busca da melhor escrita, não
só no momento da criação em si, mas também durante toda a sua vida de escritor, funciona
como um pequeno “cuco” que pula como de um relógio, regulando-lhe a hora de ajustar os
caminhos de sua própria criação. Não fosse o domínio tão perfeito da ficção, seria possível
arriscar que Autran Dourado traria dentro de si um crítico enrustido. De toda maneira,
como não é muito comum o desvelamento da carpintaria pelos escritores, esse traço passa a
ser mais um que o singulariza nesse cenário. Como apontado pelo próprio escritor, em um
universo tão vasto como o da literatura brasileira, apenas uns poucos como José de Alencar,
em Como e por que sou romancista (1893) e Manuel Bandeira, com Itinerário de
Pasárgada (1957) publicaram, através dessas obras, suas poéticas, revelando ao público os
mistérios da criação. O grande grupo, parece, vem utilizando o recurso da metanarrativa
para mostrar a própria carpintaria. A esse propósito escreveu Fernando Pessoa em seu
“Guardador de rebanhos” (1911):
E poetas que o artistas/ E trabalham nos seus versos/ Como um
carpinteiro nas tábuas!.../ Que triste não saber florir!/ Ter que pôr verso
sobre verso, como quem constrói um muro/ E ver se está bem, e tirar se
não está!.../ Quando a única casa artística é a Terra toda/ Que varia e
está sempre bem e é sempre a mesma.
7
Apesar do primeiro livro de ensaios ter chegado a público somente em 1973, (vinte
anos depois da estréia como romancista) com o lançamento de Uma poética de romance, já
em 1957, com “A glória do ofício (Nove histórias em grupo de três 1957), o autor
boas pistas de seu interesse pelo manejo do texto na sua gênese. É também, por essa época
6
TODOROV, Tzvetan (1976), p.20
7
PESSOA, Fernando (1975), p. 158.
e nesse volume, que surge nas páginas de Autran Dourado a figura emblemática de seu
narrador-mor João da Fonseca Ribeiro em Três histórias no internato. Dali em diante,
ele seria o grande porta-voz do autor, e dessa forma conduziria a maior parte de suas
narrativas. Mais tarde, iria até mesmo “ganhar” um “livro” para si, cujo teor seriam suas
memórias Um artista aprendiz (2000), que também reflete, apesar de ficcionalmente, a
gênese da carpintaria literária do próprio Autran. Como mencionado, adiante será
estudado ao lado de Meu mestre imaginário. O segundo grupo de novelas do escritor, doze
ao todo, foi reeditado sob o título de Solidão solitude, em 1972. Uma maneira possível de
atualizá-las no tempo, e não permitir que ficassem lá atrás, esquecidas para sempre. Pois, na
medida em que os romances mais fortes foram ganhando o público e a crítica, dificilmente
seriam lembradas. Segundo o próprio autor: “Há três outras histórias que são uma poética
da minha criação literária: ‘Homem, cavalo e praia’, ‘Marinha’ e principalmente ‘A glória
do ofício’ – esta uma antecipação de Uma poética de romance (PRMC,103).
Esse trajeto literário, entremeado de quando em quando por uma obra ensaística,
assegura, enfim, a idéia de que a ars poética constitui um mote contínuo, que subjaz à
narrativa ficcional do autor. O roteiro dessa produção seria, então, o seguinte: em 1973,
Uma poética de romance, com cerca de nove ensaios em torno da criação literária,
incluindo detalhes da composição de vários romances seus; três anos mais tarde, tem-se a
ampliação dessa “poética” com a adição de um ciclo de palestras realizadas na PUC-Rio,
para alunos de Letras, em 1974, destacando-se a carpintaria minuciosa de cinco de seus
grandes romances: A barca dos homens (1961), Uma vida em segredo (1964), Ópera dos
mortos (1967), O risco do bordado (1970) e Os sinos da agonia (1974). A partir de então,
apesar do relativismo das impressões do artista sobre sua própria obra, e, embora o autor,
modestamente, confesse não serem esses os melhores estudos de suas obras, tal aparato
passou a ser de grande valia para o estudo de sua ficção. Em 1982, é publicada a também
obra ensaística Meu mestre imaginário cuja análise, aqui, se atrela a Um artista aprendiz.
Finalmente, em 2003, Breve manual de estilo e romance, publicação da editora da UFMG,
cinqüenta anos depois da estréia, vem para ratificar que Autran ainda insiste em mostrar o
“risco do seu bordado”. Miúdo e singelo que quase cabe na palma da mão, esse pequeno
manual, que por força do nome é breve, nem por isso perde em peso. Organizado em dez
pequenos capítulos, é do segundo de onde, parece-me, vem a força de seu conteúdo: “Falo
do que fiz e do que sei”(BMER). Os cinqüenta anos de ofício, a serviço de quem aprecia ou
pratica literatura. Por mais uma vez, o mineiro, em mais um desvelamento poético, oferece
ao público e à crítica os bastidores de sua criação. Convida os leitores a sair da platéia e
entrarem no camarim. Tudo isso, à moda do encontro seleto de final de espetáculo, que
celebra o encontro artista/fã.
Em síntese, a narrativa de Autran Dourado desponta em 1947, com Teia,
ainda uma novela, e vem até hoje, 2008, com O senhor das horas (2007), “pespontada” de
ensaios críticos. Digo pespontada, porque lembra muito um bordado. Trata-se da incansável
busca do artífice pelo melhor produto. A vantagem é toda do público que passa a dispor,
para si, dos segredos e mistérios da criação.
O segundo par de obras a ser estudado relaciona as extremidades do processo de
ensino-aprendizagem. Para tal disponibilizamos, de um lado o mestre Godofredo Rangel
cujo saber consubstancia-se em Meu mestre imaginário e do outro João da Fonseca
Nogueira, o protagonista de Um artista aprendiz. As duas obras se completam, na medida
em que os ensinamentos, contidos na primeira, refletem o percurso de aprendizado relatado
na segunda.
As memórias do narrador João da Fonseca Ribeiro também, apesar de matéria
ficcional, podem ser consideradas material de carpintaria de Autran Dourado. Em entrevista
concedida aoCorreio da Bahia”, em outubro de 2001, ele confessa:“É o meu alter ego.”
8
Ora, se assim é, o que ali fora dito também se aproveita ao próprio escritor. Ratificando a
postura do autor, de que o exercício é o segredo do bom artífice, a epígrafe do livro veste
como uma luva a idéia central do romance. Retirada de Os anos de aprendizagem de
Wilhelm Meister, de Goethe, enaltece exercício e aprendizado: “Cada um tem sua felicidade
nas mãos como o artista a matéria bruta à qual ele quer dar forma. Na arte de ser feliz em
qualquer outra arte, a capacidade é inata: é preciso aprendizado e acurado exercício.”
9
O
livro conta a história desse menino, que nasce em Duas Pontes, vai para São Mateus estudar
e depois para Belo Horizonte, onde se torna bacharel em Direito e mais tarde escritor.
Copia, então, mutatis mutandi, a trajetória de vida do próprio autor. Ele também sai do
interior para a capital, forma-se em Direito e envereda pela literatura. Nessas memórias
falta identidade apenas com o lado do autor que se liga à política. Esse será retomado
também, mais adiante em A serviço del’Rei (1984).
Em 1982, é publicado Meu mestre imaginário, momento em que o autor
disponibiliza ao público sua relação “invisível” com o mestre por quem se diz guiado no
ato da criação Erasmo Rangel. Ali, também, o desvelamento de sua construção textual é
primorosa. Dessa vez, no entanto, o foco desloca-se do texto stricto sensu de antes, os
romances, para uma visão mais genérica da narrativa de ficção. De Homero a Stendhal, dos
gregos a Flaubert, passando por Freud e Jung, o escritor tece um plano de como aprimorar o
texto literário. Mais uma vez, ele traça a linha pontilhada do “bordado” de sua prosa.
8
SOUZA, Ana Fernanda (2001).
9
GOETHE, Johann Wolfgan von (1994), p.43.
O terceiro par de romances a ser estudado é Tempo de amar e Ópera dos fantoches.
Pouco mais de quarenta anos depois, o autor se apropria de seu romance de estréia e, com a
escrita muito mais firme, reveste-o de intensos monólogos interiores, técnica que constitui
uma de suas obsessões, conforme se registra na “orelha” (sem indicação de autoria), da
primeira edição em 1994:
A técnica que Autran escolheu para efetuar essa releitura reescritura
de Tempo de amar, e que lhe confere grande parte de sua modernidade
e autonomia como se fosse uma paródia séria, no sentido de que hoje
se ao termo, do seu romance inicial) se realiza por meio de doze
monólogos interiores, nos quais o uso pouco comum dos tempos dos
verbos lhes grande força e beleza. Com uma simplicidade que os
clássicos conseguem ter, Autran Dourado escreveu um grande romance.
O segundo romance resgata a trama do primeiro, dando-lhe uma roupagem bem
mais próxima da literatura intimista, a essa altura uma característica bem mais nítida da
prosa do escritor. Os monólogos interiores que, na primeira narrativa, eram apenas
esboçados, na segunda são muito mais densos, levando por vezes ao completo
desaparecimento do narrador. Abre-se aqui um espaço para delimitar a abrangência do
termo monólogo interior, comumente confundido com fluxo da consciência. Aproveita-se
aqui a definição de Robert Humphery que diz:
O monólogo interior é, então, a técnica usada na ficção para representar
o conteúdo e os processos psíquicos do personagem, parcial ou
inteiramente inarticulados, exatamente da maneira como esses
processos existem em diversos níveis do controle consciente antes de
serem formulados para fala deliberada.
10
Os personagens falam de si e por si, contam suas dores e sofrimentos, sem meias-
palavras e sem quase mediação. Essa é a grande diferença. Segundo Anatol Rosenfeld, em
estudo acerca desse tipo de narrativa:
10
HUMPHREY, Robert (1976), p. 22.
O romance se passa no íntimo do narrador, as perspectivas se borram,
as pessoas se fragmentam, visto que a cronologia se confunde no tempo
vivido; a reminiscência transforma o passado em atualidade.
11
O novo nome que leva o romance, agora associado à ópera, evidencia também
uma proximidade bem maior do personagem com o leitor/espectador. O cenário é Minas, o
protagonista Ismael, que vive assombrado pelas tragédias familiares e pessoais, que não lhe
dão sossego à mente. Em Tempo de amar, o escritor ainda rascunha seu próprio caminho
que, embora atrelado ao uso do monólogo interior, ainda se sujeita a uma prosa linear
embebida de lirismo. Se nessa narrativa o romancista é quase um aprendiz, na que refaz, ele
é dono de uma prosa vigorosa, construída à base de um intenso exercício. Habilidade
essa adquirida nas quase vinte obras que intermedeiam os dois romances.
Uma das perguntas que fiz ao escritor, quando estive com ele, dispunha sobre essa
reescritura. Para fustigá-lo, perguntei se o primeiro romance não teria saído a contento.
Então, ele me respondeu: “Não! Ficou. Mas como foi meu primeiro romance, tenho uma
visão crítica desse livro. Por isso resolvi reescrever o livro, mas a história é a
mesma.”(Entrevista/2006) Crítico de si mesmo, percebeu que saberia fazer melhor. Tanto
sabia que mostrou habilidade na nova versão. Afinal o segundo romance, pela técnica
narrativa empregada, aproxima-se bem mais do típico texto autraniano que o primeiro,
quase linear, de quando o escritor era apenas um aprendiz. Mais adiante, quando do estudo
detalhado dos dois romances, será aprofundada essa diferença. Por ora, a fim de que se
possa situar a prosa de Autran Dourado, vejamos o que diz Alfredo Bosi:
Há, naturalmente, faixas diversas nesse reino amplo da ficção moderna:
o romance escrito à luz meridiana da análise como Abdias, de Cyro dos
Anjos, ou o Lado direito, de Otto Lara Resende, não é o romance
noturno e subterrâneo de Lúcio Cardoso da Crônica da casa
11
ROSENFELD, Anatol (1969), p.92.
assassinada, nem o romance feito de sombra e indefinição de Cornélio
Pena e de Adonias Filho. Enfim, técnicas diferentes de composição e de
estilo matizam a prosa psicologizante, que pode apresentar-se partida e
mostrada em flashes, como nas páginas urbanas de José Geraldo Vieira:
empostada nos ritmos da observação e da memória(...) ; ou ainda pode
tocar experiências novas de monólogo interior, da “escola de olhar”,
como se nas páginas mais ousadas de Geraldo Ferraz, Samuel
Rawett, Autran Dourado, Maria Alice Barroso, Lousada Filho, Osman
Lins...
12
Junto desses tantos escritores que enveredaram pela sondagem psicológica, onde o
sujeito desloca-se da posição habitual oposta ao objeto, e mergulha na própria interioridade,
Autran Dourado cria um mundo próprio. Suas narrativas mostram o homem preso ao
passado, acorrentado aos laços familiares, lutando por um rompimento que nunca acontece.
No geral, são indivíduos solitários e introspectivos; isolados do grupo social, acalentados
num casulo de covardia, que os embala e nutre; amparados em salvadoras muletas, driblam
o cotidiano como podem. À custa do afeto de um cachorro, como Vismundo de Biela, de
Uma vida em segredo, ou pela fidelidade incondicional de Quiquina, de Ópera do mortos,
que tudo providencia para a sobrevivência da honra da patroa. Até mesmo pelo permanente
aconchego das raparigas da Casa da Ponte, Ismael, de Ópera dos fantoches, também, aplaca
suas frustrações amorosas. Ora, nesse universo prenhe de sentimento, somente uma prosa
calcada em associações, imagens oníricas, símbolos de todo o gênero, para traduzir, em
palavras, a alma aprisionada dessas criaturas, que apesar de feitas “de papel”, tanta vida
comportam.
O quarto par a ser estudado é Lucas Procópio e Um cavalheiro de antigamente.
Ambos originários de Ópera dos mortos, e aqui representados como sua extensão. Neste
estudo, o que se pretende é enfatizar a escrita obsessiva do autor que parece ter sempre algo
a acrescentar, mesmo ao romance publicado. Por isso os personagens escapam para
12
BOSI, Alfredo (1969), p.442.
novos romances, pela necessidade de completarem idéias. Em Ópera dos mortos, o que se
observa é que, dos nove capítulos que compõem a narrativa, apenas os dois primeiros
privilegiam a família de Rosalina, a protagonista. O primeiro, quando da descrição física do
sobrado e o segundo, quando da apresentação da linhagem Honório Cota. O peso que o
grupo familiar exerce sobre a herdeira única, em vez de ser exercido expressamente, será
polvilhado, em toda a narrativa, por símbolos que os representa tais como: o relógio, o
silêncio, o portão entreaberto, a escada que leva à parte de cima e tantos outros, fortes ou
fracos. Certamente pela intensidade de seus ascendentes, o avô e o pai, bem como pelo
pouco espaço de que dispuseram para se desenvolver, julga-se, surgiram os dois romances
biográficos, que retomam esses personagens e os fortalecem ainda mais.
Dessa insubordinação dos personagens autranianos, dessa sujeição do romancista à
vontade deles aproveita-se um pensamento de T. S. Elliot:
Uma pequena parte de si mesmo que o autor dá ao personagem pode ser
o germe de onde surge a vida desse personagem. Por outro lado, um
personagem que consegue interessar o autor pode vir a evocar
potencialidades latentes do próprio autor. Creio que o autor entrega
algo de si aos seus personagens, mas também creio que o autor é, por
sua vez, influenciado pelos personagens que cria.
13
A influência que aqui se vislumbra, associado ao que se conversou com o próprio
autor, leva a crer que o salto de personagens, por entre narrativas diversas, resulta antes
dessa imperiosidade vital, do que escassez de idéias para novas construções.
A quinta dupla de obra a ser aqui analisada são os dois livros que discorrem sobre a
vida do escritor nos bastidores do poder. A primeira de maneira ficcional, A serviço del-
Rei, gestou por dezesseis anos as memórias colocadas em Gaiola aberta, publicada em
2000. O próprio autor, nas primeiras páginas desse segundo livro, já de cunho
13
ELLIOT, T. S. (1972), p.136.
memorialístico, disse que resistiu muito em escrevê-lo, temia ser mal interpretado: “Relutei
com firmeza. Várias razões me levavam a essa resistência” (GA,7), diz ele. Ora, pelas
simples palavras do romancista, fica evidente que a ficção teria sido, então, a via primeira,
encontrada por ele, para exorcizar seus fantasmas, introjetados nos salões do palácio do
governo. Libertos esses, as memórias vieram mais fluidas e, a seu tempo, mostraram a via
crucis do escritor imiscuído com o poder.
Quando perguntado, na entrevista, num “bate-bola” sobre seu “pior dia”, respondeu:
É muito difícil dizer isso. Te responder, muito difícil. Eh... Coisa
negativa. O período da vida que eu passei sofrendo muito, por causa da
contradição pessoal. Foi o período do Juscelino. Exatamente pelo
problema do escritor. Nada pessoalmente contra o Juscelino. Eu tenho a
maior admiração por ele. Mas foi um período em que deixei de
escrever. Esse livro, Gaiola aberta, muitos da família do Juscelino e
alguns juscelinistas ficaram irritados. Ficam irritados porque muitos
brasileiros tratam o Juscelino não como um homem, mas como um
mito, uma criação. Um mito que eu mesmo ajudei a formar. É muita
bobagem do autor que assessora o presidente achar que ele pode mudar
o objeto. Não pode. Ele está cerceado. Certas coisas ele não pode fazer.
(Entrevista, 2006)
Em A serviço del-Rei, Autran Dourado aborda os bastidores do poder, na figura do
esperto e corrupto senador, depois presidente, Saturniano de Brito. Assessorado pelo zeloso
secretário de imprensa, João da Fonseca Nogueira, o livro mostra os meandros da política e
a dinâmica de administração da coisa pública. Será aqui cotejado com Gaiola aberta, na
tentativa de compreensão do fenômeno literário quando reconhece a ficção gestando
memórias. Outros escritores brasileiros também trilharam esse caminho. Oswald de
Andrade com Memórias Sentimentais de João Miramar (1924) e depois Sob as ordens de
mamãe (1954). José Lins do Rego inicialmente com Menino de engenho (1932) e depois
Meus verdes anos (1956). Também o cronista Fernando Sabino com Encontro marcado
(1956) e Menino no espelho (1982), numa oscilação visível entre a narrativa ficcional e a
memorialística, parece compor, nessas obras, suas memórias fantasiadas.
A princípio, parece que a força da ficção é mais forte que a necessidade de contar.
Depois, com as memórias propriamente ditas, tem-se uma forra do vivido, momento em
que o autor, cioso também de sua responsabilidade político-social, permite ao leitor um
“passeio” pela história “não oficial”, no mais das vezes, a única, de fato, verdadeira.
Pretende-se mostrar, portanto, nesta tese, como a narrativa autraniana evidencia o
seu entretecimento à própria teia original. Todos os romances estão intimamente ligados,
numa mágica cadeia intertextual. O entretecimento é tão bem ajustado que até mesmo no
último livro do romancista (O senhor das horas) esse mote persiste. Como veremos, ao
final deste estudo, sempre algo de trás ainda a ser explorado. Nessa coletânea de
novelas, resgata-se o sublime relógio de João Capistrano de Ópera dos mortos, o
inesquecível chevrolet do a do menino João, de O risco do bordado, e uns tantos
personagens que não se “cansam” de transitar. O segredo dessa obra é também
compreendê-la como um grande labirinto que, visto de cima, assim como o de Dédalo,
decifra-se a entrada e a saída. O fio de Ariadne são os próprios romances que, em um puxa-
puxa incessante, levam o leitor à saída, em um exercício de puro encantamento.
2. A INQUIETUDE DO CARPINTEIRO NA OFICINA DA PALAVRA - Uma poética
de romance: matéria de carpintaria e Breve manual de estilo e romance.
Falar de carpintaria textual, quando se analisa a obra de um escritor renomado, é
chegar bem próximo do lugar comum. Ora, se o que alavanca o romancista é justamente o
manejo com a linguagem, seria de se esperar que todos soubessem fazê-lo, e bem. Nesse
sentido, a arrumação precisa das palavras não parece ser um mérito, mas uma condição à
originalidade do texto literário. Em tese, quem não sabe escrever o merece ser lido. A
recepção pela crítica funciona de maneira lógica e, salvo raríssimas exceções, o sucesso
literário vincula-se ao talento do escritor. Entende-se, pois, que escrever bem é antes
obrigação do que virtude. Apesar disso, curiosamente, do lado oposto do texto, os críticos
não fazem outra coisa senão inspecionar, se assim se pode dizer, os meandros da criação.
Não obstante a subjetividade que envolve a composição textual, o ofício do crítico se
sustenta e se revigora na busca de uma resposta, que explique não a beleza, mas o
sentido da obra de arte. Às vezes, isso acontece com rigor tamanho que, conforme assinala
Antonio Candido: “Há uns que parecem preocupados, sobretudo, com o fundamento teórico
e chegam a dar a impressão de que estão querendo é fazer o texto analisado caber nele. Para
estes a obra parece pretexto para a reflexão teórica.”
14
Em Autran Dourado, o panorama muda um pouco, pois é ele mesmo quem insiste
em desvelar os mistérios de sua criação. Enquanto, na grande maioria dos autores, essa
tarefa cabe aos críticos, neste mineiro despojado, acontece o movimento inverso. Nos seus
cinqüenta anos de atividade literária e cerca de trinta e duas obras publicadas, pelo menos
três, de cunho ensaístico, têm esse propósito. Uma delas, ele admitiu, veio à tona, para
14
CANDIDO, Antônio (2006), p.01.
salvá-lo da eterna pergunta acerca de quais autores o haviam influenciado. Sempre me
perguntam, sobretudo quando vou a universidades, quais os autores que me influenciaram.
Fiz o Meu mestre imaginário, para não ter que responder mais a essa pergunta.”
15
Não é
isso. A trajetória literária do escritor, iniciada em 1947 vindo até nossos dias (2007),
encontra-se emoldurada por duas obras ensaísticas: Uma poética de romance (1973) e
Breve Manual de estilo e romance (2003). A primeira, publicada logo após o lançamento
do romance que o popularizou O risco do bordado (1970), parece uma explicação
pública para a sua insólita maneira de compor. A segunda, uma pequena súmula de sua
poética. A narrativa construída em blocos, até o momento, pouco conhecida fora dos meios
acadêmicos, apesar de bem aceita pelo leitor comum, fez brotar um segundo texto, que
embora não tenha apenas esse objetivo, explica-o. Esta me parece uma hipótese acertada,
pois, apesar de direcionada a um público restrito, o apêndice agregado à obra, em 1976,
dando conta do avesso de mais quatro romances do autor, parece indicar que a iniciativa
dera certo. Desvelar os mistérios da criação, exibir o “manuscrito” do romance, mostrar a
planta baixa da narrativa, justificar o nome dos personagens trouxe à obra do autor um
ingrediente novo: o desnudamento poético. Se o escritor contava com o aval do público
apenas com as obras ficcionais, no momento em que abre as portas da oficina de trabalho,
Autran Dourado cresce. Agiganta-se porque se humaniza, se humaniza porque se expõe.
Desprotegido revela-se um cuidadoso artífice da palavra. Um solitário empreendedor de
narrativas, um fabulador por excelência. O mesmo que, quando perguntado acerca da
melhor qualidade do homem, diz: “A fala humana em geral. Todo o sofrimento que as
pessoas usam para dar fala à sua angústia. Essa capacidade de driblar a angústia pela fala.”
(Entrevista/2006) Junto dessa confissão singular, o velho mineiro revela ainda mais sobre
15
FUKS, Julián (2005), p 01.
seu ofício, quando acrescenta: “É imperiosa a escrita. Escrever é uma maneira que encontra
o autor de reduzir à escrita toda a sua angústia.”(Entrevista/2006)
Sabe-se, então, que não é freqüente o desnudamento da carpintaria poética pelos
escritores. O próprio Autran Dourado, no primeiro capítulo de Uma poética de romance,
alude apenas a José de Alencar, Manuel Bandeira e Mario de Andrade no panorama
brasileiro. Ainda que outros existam, a maioria deles, serve-se do próprio texto literário
para especulações poéticas. Um bom exemplo é Carlos Drummond de Andrade que, em
“Procura da poesia” (A rosa do povo, 1945), mostra, na própria poesia, como nascem os
poemas – o delicado processo de gestação.
Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície inata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los,
Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.
16
Além do desnudamento do processo criativo, outras revelações pessoais também
contribuem para a ampla compreensão do leitor, referente ao significado da arte. Em
Itinerário de Pasárgada (1957), por exemplo, Manuel Bandeira vai muito além de sua
oficina poética. Citando um comentário de Otto Maria Carpeaux, diz o poeta:
Otto Maria Carpeaux, escrevendo uma vez a meu respeito, disse, com
certa intuição, que no livro ideal em que ele estruturaria a ordem de minha
poesia, esta partia “da vida inteira que poderia ter sido o que não foi” para
outra que viera ficando “cada vez mais cheia de tudo”. De fato esse é o
sentido profundo da “Canção do vento da minha vida”. De fato cheguei
16
ANDRADE, Carlo Drummond (1967), p.138.
ao apaziguamento das minhas revoltas pela descoberta de ter dado à
angústia de muitos uma palavra fraterna.
17
Nesse caso transcende-se, em muito, à mera confecção textual. Aqui, a confidência
do poeta excede à poética artística, para sua singular “poética” existencial. Bandeira, cuja
vida marcara-se intensamente pela dor física, confessa que um tanto da serenidade
adquirida ao longo do tempo originou-se também do consolo fraterno irmanado de seu
verso com o leitor. em A cinza das horas (1917), seu primeiro livro de poesias, o poeta
alertara o leitor: “Fecha o meu livro, se por agora/ Não tens motivo nenhum de pranto./
Meu verso é sangue. Volúpia ardente...”
18
Ora, ao contrário da modéstia na advertência, o
lirismo do poeta tornou-se um poderoso aglutinador de público em torno de sua poesia.
Se por um lado, a canção popular afirma que o “artista tem que ir aonde o povo
está”,
19
na outra ponta, também o povo mostra-se curioso por conhecer a intimidade
laborativa do artífice. A prova está no tradicional evento “Santa Teresa de portas
abertas”. Atualmente, um dos eventos turísticos de maior sucesso no Rio de Janeiro.
Naquele bairro, conhecido como o “Montmartre” carioca, anualmente, os muitos artistas
que ali vivem, abrem suas casas e ateliês, numa gigantesca mostra coletiva de arte. A
curiosidade popular é tamanha que, a cada ano que passa, o acontecimento se populariza.
Dessa forma, do outro lado da “rua”, não resta dúvida de que também o “povo quer ir
aonde o artista trabalha”.
Dentre os pintores brasileiros, convém lembrar, o caso de Iberê Camargo. Bem
antes desses eventos coletivos, o consagrado artista constituiu exceção à regra. Em
17
BANDEIRA, Manuel (1957), p.123.
18
Idem p.153
19
BRANT, Fernando (1998).
entrevista recente, a viúva do pintor divulgou seu hábito incomum: “Iberê tinha essa mania:
recebia amigos em seu próprio atelier de trabalho, algumas vezes trabalhando”
20
, disse ela.
Retomando, então, o caso específico de Autran Dourado, de seu trabalho em sua
oficina, se pode dizer que: essas portas se abrem logo após a sua primeira publicação de
sucesso. Parece que o êxito de crítica e público alcançado pelo O risco do bordado
determinou, de alguma forma, o desejo de tornar pública sua maneira de compor. Contudo,
à essa época eram decorridos vinte e seis anos de sua estréia literária. Naturalmente, por
tratar-se de texto teórico, o interesse restringiu-se à crítica literária e aos estudantes de
Letras, sobretudo os que se dedicavam ao estudo da obra do autor. Não me parece, contudo,
que o escritor aspirasse ao sucesso editorial alcançado com ficção. Suas palavras, ao final
do primeiro capítulo do livro, apontam para a finalidade desse trabalho:
A propósito ou sem nenhum propósito, uma vez em entrevista que me vi
forçado a dar, disse, mesmo com o risco da interpretação e de ter os
críticos voltados para mim, que as coisas mais importantes, para os
criadores, sobre o romance, foram ditas por romancistas, e as coisas mais
importantes sobre poesia foram ditas por poetas (PRMC,22).
Nessa medida entende-se que, apesar das limitações do artífice, também ao
romancista é possível a aventura na seara poética da narrativa para desvelar os mistérios
dessa teia. Autran aceita, então, a empreitada de destrinchar seu próprio texto, mostrando
não a sua origem, as influências recebidas, como também o seu sentido, mostrando que,
em arte, curiosamente, apesar de o artista não ser o seu melhor intérprete, ele também pode
o ser.
20
CAMARGO, Maria Cousirrat (2006).
2.1. Uma poética de romance: matéria de carpintaria
O livro é composto por nove capítulos, quatro deles referindo-se diretamente à
composição de O risco do bordado. Os demais, embora possam eventualmente reportar-se
ao romance, tratam de temas diversos. O mais abrangente e penúltimo, na ordem, faz um
mapeamento estrutural da obra do autor: suas técnicas narrativas preferidas, sua maneira de
compor o personagem, o manejo com a livre associação de idéias etc. O título,
“Personagem, composição e estrutura”, fala do que aponta e enfatiza: o apreço do escritor
sobretudo pela técnica do monólogo interior e pela narrativa vertical construída em blocos.
Esta narrativa, cuja construção se apresenta compartimentada, tem sua dinâmica sujeita à
projeção especular. As histórias, temas e personagens projetam-se à frente, ao mesmo
tempo em que são refletidos para trás. Trata-se da construção em “mise en abyme”, cujo
estudo de Lucien Dällenbach, elucida:
Enquanto condensa ou cita a matéria duma narrativa, ela (mise em abyme)
constitui um enunciado que se refere a outro enunciado e, portanto, uma
marca do código metalingüístico; enquanto parte integrante da ficção que
resume, torna-se o instrumento dum regresso e origem, por
conseqüência, a uma repetição interna.
21
Conforme registrado na “orelha” (sem indicação de autoria), da edição da Rocco
(2001), Uma poética de romance significa muito mais do que um simples ensaio:
Este livro cumpre uma missão rara e difícil: a de escrever sobre o ato de
escrever, mas de maneira particular, que revele os segredos, os truques, a
invenção e as aflições do fazer poético. Essa tarefa, Autran Dourado
considera fundamental, não apenas como contraponto ao trabalho
acadêmico dos críticos, mas, especialmente, para a formação dos jovens
escritores brasileiros. O fazer poético que ganha muito mais força se
narrado pelo próprio autor é escasso entre os escritores nacionais.
Autran Dourado cita exemplos pioneiros como José de Alencar, Manuel
Bandeira e Mario de Andrade.
21
DÄLLENBACH, Lucien (1979), p. 54
Antes da análise do conteúdo dessa obra, valem à pena algumas observações. A
primeira, a que aponta sua gênese: a novela “A glória do ofício” (1957), publicada numa
reunião de novelas sob o nome de Solidão Solitude (1972). Decorridos cinco anos da
publicação do primeiro romance, o substrato da carpintaria poética já se esboçava nas
entrelinhas dessa novela. Depois veio o complemento de Poética de romance, um ciclo de
palestras proferidas na PUC-Rio, para alunos de Letras, sobre quatro de seus romances
mais conhecidos. A partir de então, com incremento do ensaio original, o livro passou a
chamar-se: Uma poética de romance: matéria de carpintaria (1976). Mais adiante surge
Meu mestre imaginário (1982), também uma obra de cunho ensaístico que esmiúça mais a
fundo a carpintaria do escritor. Desvelando as influências muitas recebidas, o livro trata
tanto de Homero a Henry James, como do texto bíblico a Freud. Mais uma vez, o assunto é
retomado por Autran Dourado que mergulha ainda mais fundo em seu próprio texto. Por
fim, última obra ensaística do escritor ratifica o traço recorrente de seu texto crítico.
Publicado em 2003, ele vem apenas reiterar o desejo do autor em falar de sua própria
poética. Breve manual de estilo e romance vem à baila como um singelo manual de difusão
dos princípios poéticos da chamada “boa escrita”. Embora embebida de conceitos
subjetivos, a construção da prosa literária pode também ser orientada. Ali, sob a égide da
vivência e sabedoria adquiridas ao longo de uma vida de quase oitenta anos, o romancista
ainda permite que se escute o, agora, lento barulho de seu martelo, todavia, persistente.
Uma poética de romance veio contribuir grandemente para a desmistificação do
fazer literário. Com o esmiuçamento da composição de O risco do bordado, o autor desvela
o subtexto que sustenta o romance intimista e deixa ver que, ao contrário do que se possa
imaginar, por trás do texto ficcional, há muito de simetria, cálculo e artesanato. Quase nada
ali é acidental. O trabalho rigoroso na composição romanesca não se sustenta apenas na
inspiração. Exige apuro na técnica, experimentos vários, seleção rigorosa de palavras e, até
mesmo, o cálculo de número de páginas de cada capítulo. Todo esse empenho para que o
leitor faça o mínimo de esforço ao ler o texto e, de preferência, o se aperceba dessa rede
invisível que sustenta o fazer literário. Curiosamente, nessa via de mão dupla representada
pelo texto literário, se de uma ponta o esforço do autor na criação concentra toda sua
energia poética, do outro, o leitor é convidado a transcender num suave deslizar. O
trabalho de um aproveita-se para o deleite do outro:
Essas descobertas técnicas, casuais ou buscadas, tiveram
importância para mim como escritor, como artista e não como
homem, embora possa ter dado a parecer o contrário. A não ser
que se considere a minha realização artística como uma
complementação do homem que sou. Porque não artista que
não sinta que à medida que se realiza como artista perde como
homem.(...) Foi então que vi que alguma coisa amarga e
desconsoladora tinha acontecido comigo durante aquele tempo.
Eu vi que tinha perdido a inocência de leitor e que nenhuma
alegria para mim seria mais possível (PRMC,120 e 123).
Apesar do caráter ficcional de A glória do ofício, por tratar-se do texto gênese da
poética de Autran Dourado, será visto antes de Uma poética de romance. Se o próprio
escritor assim o considera, é possível que dele se possa extrair algum fundamento.
A glória do ofício integra a primeira parte da novela “Três histórias na primeira
pessoa” (1957), e conforme indica o título, o narrador é também o protagonista. Trata-se da
história de Elias: relojoeiro, revisor e tratador de pássaros, sucessivamente. O conto expõe
de forma tênue, masvisível, algumas das características da escrita de Autran Dourado. A
primeira, e muito comum, ao longo das narrativas que apareceriam mais adiante, é o caráter
antagônico dos personagens principais. Já nesse texto, Elias, o narrador, é contraposto ao
primo Deolindo, numa peleja quase insana para a compreensão do diferente. Os romances
posteriores terão no antagonismo das personagens centrais uma marca particular: Rosalina
& Juca Passarinho, em Ópera dos Mortos (1967); Lucas Procópio & João Capistrano, em
Um cavalheiro de antigamente (2001); o menino João & Valente Valentina, em O risco do
bordado; Januário & Gaspar, em Sinos da agonia (1974), para citar alguns pares
díspares que colorem a narrativa autraniana. Pois em A glória do ofício, o escritor deixa
aflorar esse incômodo inato às suas criaturas. Esse enorme obstáculo à compreensão do
outro, se diferente. A tal ponto se dá essa indignação, que o conto se abre numa exclamação
estridente do narrador que, ao contrário do primo, que vivia de expediente, trabalhava
árduo:
Vivo de minhas habilidades, disse a meu primo Deolindo. É bem
diferente de viver de esperteza. A frase ficou durante muito tempo
bolindo comigo, me queimando interiormente; cristalizou-se no meu
espírito e hoje me define a minha personalidade. (GO,33)
O narrador-mor que virá mais tarde, João da Fonseca Ribeiro, precisará sim, viver
de suas habilidades, do duro ofício da escrita. Terá até mesmo que assessorar políticos,
emprestando a Saturniano Brito sua fluência vocabular e o poder encantatório de seu
discurso, em A serviço del-Rei (1984). Daí em diante, esse mesmo narrador, que o mais
deixará a ficção de Autran, se imcumbirá de ressaltar, nas entrelinhas do texto, o papel do
escriba:
Quem trilha os caminhos da arte, mesmo as modestas veredas do escritor
que vos fala, sabe que tem de deixar de se emocionar para que se
emocione os outros. Que tem de abrir mão do sonho para que os outros
sonhem. Que se tem de abrir mão da vida para que os outros vivam
(PRMC, 122).
Elias não é escritor, mas lida bem com a escrita e torna-se revisor. Depois de desistir
da vida de relojoeiro, por achar-se inábil, aventura-se na odiosa empreitada de correção do
texto alheio. Fracassa mais uma vez: “Comecei a me cansar dos textos a acertar.
Aborreciam-me os erros de sempre, os mesmos erros elementares (...) Eu, que no fundo do
peito sonhava um grande destino (...) ali me via apagado e murcho” (GO,49). Por fim,
aventura-se ao singelo ofício de tratador de pássaros. Não fosse a perigosa mania de
grandeza, no entanto, Elias teria triunfado. Não satisfeito com a beleza das aves nas mãos –
seu canto e plumagem o rapaz inventa de sacrificá-las, empalhá-las e, a seu modo,
recompô-las. Buscava o pássaro perfeito: um exemplar que nem mesmo a imensa natureza
concedera ao homem. O menino que, atrás, começara no reparo da pequena máquina do
tempo, sob as ordens do velho mestre Danilo Sottavento, agora, ambicioso, arruinara-se
consertando a natureza. Ressalte-se a força simbólica na escolha do pássaro. Segundo o
Dicionário de símbolos de Jean Chevalier, seriam eles a ponte entre o homem e os deuses.
Simbolizam também a imortalidade da alma, desempenhando um elo entre a terra e o céu.
“É ossaro que vai buscar a soma, isto é, a ambrosia, no alto de uma montanha e aos
homens.”
22
Trazendo o sagrado tão perto do homem, acaba por seduzi-lo à divindade.
Uma outra característica de Autran Dourado que se percebe nesse conto é a
preocupação com a medida exata dos capítulos. O processo metanarrativo expresso no texto
permite essa conclusão. Ao iniciar o terceiro capítulo, justo o que trata de Elias como
empalhador, tem-se: Este capítulo, ao contrário do que o precedeu, deve ser curto como
pede a matéria”(GO,51).
Ainda outro aspecto de relevância da escrita do romancista, que se percebe também
pelo traço metatextual do conto, refere-se ao caráter recorrente de sua escrita. Autran não se
furta em repetir o que acha importante. A ênfase que vem da repetição vale para sua prosa:
Por exemplo, se eu morasse nos Estados Unidos e fosse escritor, o
maior escritor daquelas terras não me viria pedir um livro de poesia
ou ficção, manual com um desses títulos The art of fiction e How to
22
CHEVALIER, Jean (2006), p.687.
make verses. Acredito que já disse isso em alguns parágrafos atrás. Não
importa continuemos. (GO,36).
Aqui, embora o narrador aperceba-se do traço reiterativo da narração, não o elimina,
prossegue. Essa vertente enfática do texto de Autran Dourado nasce do simples parágrafo e
reforça-se pelos romances, como veremos nos capítulos seguintes. Neles os personagens
reaparecem subitamente, as propriedades rurais se repetem várias vezes, algumas com
nomes novos, o narrador João Fonseca está em quase todas as narrativas e, por fim, Duas
Pontes serve de “pano de fundo” à maioria de suas histórias.
O último traço digno de destaque em A glória do ofício, e que aparece com muita
freqüência na prosa desse mineiro, sobretudo nas obras ensaísticas e nos romances de
cunho biográfico, são as questões filosóficas que cercam o homem contemporâneo. Em Um
artista aprendiz (2000), o fascínio do jovem pelas aulas de filosofia justifica algumas boas
páginas sobre o assunto. Mais tarde, em Breve manual de estilo e romance, o escritor
agradece a influência de Artur Versiani Veloso, seu professor de Filosofia, o responsável
pelo apreço aos clássicos.
23
Elias, cria do avô, embatuca-se com a afinidade maior que o aproxima de Deolindo,
o primo. Pesquisa, por isso, durante toda a narrativa suas afinidades e divergências. Pois é
nesse momento que aparecem os rudimentos filosóficos acerca da existência:
O mundo das essências não é para você, me disse um dia Deolindo, de
sobre um tamborete, o dedo em riste, a cabeça voltada para cima. Não
concordei com ele de imediato, embora lhe visse nos olhos o brilho de
dias venturosos, pois se vivo de um dom inato do meu espírito,
descobrindo o mecanismo das coisas, é porque busco as
essências.(GO,34)
23
Abre-se aqui um parêntese para comentar o gosto do romancista pela filosofia ainda hoje.
Quando em sua casa falávamos sobre ela, apontou para sua escrivaninha, no exato livro de
leitura: Aristóteles da coleção Os clássicos.
Além da aplicação prática dos princípios filosóficos de Platão, o primeiro a tocar no
mundo das essências e das aparências, com a famosa alegoria da caverna, o protagonista
discorre sobre o momento em que “munindo-se para pensar e discutir com Deolindo (...)
passou de novo pela livraria e comprou outro volume – a Lógica, de Hegel.(...) era como se
voasse a trinta mil metros de altura” (GO,47).
De tal maneira A glória do ofício aponta para a poética de Autran Dourado que, em
uma narrativa tão curta e ainda embrionária, pelo menos quatro traços importantes de sua
prosa se avultaram à nossa frente. Dessa forma, desvendada a gênese de Uma poética de
carpintaria, cabe agora falar uma pouco sobre ela mesma.
foi dito nos primeiros parágrafos deste capítulo que boa parte da obra direciona-
se à poética de O risco do bordado, todavia, ressaltou-se que esse não seria seu único
objetivo. Logo no primeiro capítulo, o romancista faz um intenso inventário de autores
estrangeiros que presentearam o grande público com textos reveladores de suas poéticas.
Nesse elenco estão: Henry James, André Gide, Edgar Alan Poe, Proust etc. Autran
metaforiza, com algum desdém, a grande maioria dos romancistas brasileiros subordinados
à crítica, comparando-os a meninos vestidos à marinheira, tendo de um lado um balão
colorido e, de outro, a mão preceptora do mestre. O romancista alude, nesse caso, à
subserviência de muitos autores à crítica. A franqueza deste comentário custou ao autor
alguns dissabores por parte da recepção crítica da obra. Disse-me a esse respeito em
entrevista:
Além de Uma vida em segredo um outro livro meu de que gosto
bastante. Aquele que um crítico brasileiro disse que eu, ao escrever
Uma poética de romance, estava fabricando uma receita de um
romance qualquer, um romance com bula (Entrevista/2006).
Sugerindo um “termômetro” que afere a “saúde do corpo”, o autor, ainda nesse
capítulo introdutório diz que obras dessa natureza no mínimo serviriam para que autores, na
idade madura, pudessem proceder a um balanço geral de seus textos, renovarem-se e
tentarem novos vôos. Alerta, contudo, que para os muito jovens o perigo de amarrar o
escritor a bragas e princípios que talvez ele não possa cumprir em sua vida de prova”
(PRMC, 20).
Longe de pretender regular o comportamento alheio, parece-nos, o autor desejava
formar uma aliança, nem que invisível, com os ficcionistas audazes aqueles que
desprezavam o modelo canônico do fazer literário. Além disto, ganhar em mudanças
formais na composição da narrativa, nem que para tal se perdesse em público.
O segundo capítulo do livro, embora foque bastante O risco do bordado, talvez seja
o mais sugestivo para a melhor compreensão de toda a narrativa de Autran. Parece ser nele
onde o escritor decifra quase todos os mistérios de sua criação. O ponto de partida refere-se
à reescritura de Tempo de Amar (1952), quarenta anos depois de publicado. Essa
apropriação de seu próprio romance será tratada no capítulo terceiro, mas alguns detalhes
dessa reescritura podem ser apontados, mesmo porque não se restringem apenas à
revigoração da narrativa feita em Ópera dos fantoches (1994).
Quais seriam então as observações importantes a serem extraídas da poética de
Autran Dourado que se inserem no capítulo “Narrativa em blocos e falsa pessoa”. A
começar pelo título, pode-se afirmar que o salto de qualidade da narrativa do romancista
fez-se justamente no exato momento em que ele começou a escrever em blocos verticais. A
escrita exercitada dessa forma se desprega do batido enredo linear de causa e efeito e
propicia o surgimento de uma nova estrutura narrativa, dessa vez aberta. Narrativa aberta
seria aquela, então, em que as histórias seriam proliferantes. Uma se desprenderia da outra
na medida que o romancista precisasse tecer seu texto. Não haveria mais elos temporais ou
causais. Agora os blocos podem interligar-se por temas, assuntos, personagens, e tudo o
mais que possa interessar ao escritor. De tal maneira se pode arrumar o romance em blocos,
que conforme a sugestão do próprio autor, várias ordens possíveis para sua leitura.
Perde-se aí, nesse momento, o ranço da literatura policial, onde são esperados para o final
da narrativa os grandes acontecimentos, que embalam e aprisionam o leitor comum. com
as “dores” da modernidade, o conceito de literatura alterou-se bastante. A construção
textual fragmentada, resultante de um sujeito também partido, abriga com fidelidade o
ideário do homem contemporâneo. Segundo Alfredo Bosi, em História concisa da
literatura brasileira:
A refinada arte de narrar de Autran Dourado (...) move-se à força de
monólogos interiores. Que se sucedem e se combinam em estilo indireto
livre até acabarem abraçando todo o corpo do romance, sem que haja, por
isso, alterações nos traços propriamente verbais da escritura. O que é
uma redução dos vários “universos pessoais” à corrente de consciência, a
qual, dadas as semelhanças de linguagem dos sujeitos que monologam
assumem um fácies transindividual. Assim, embora a matéria pré-literária
de Autran Dourado seja a memória e o sentimento, a sua prosa afasta-se
dos módulos intimistas que marcaram o romance psicológico
tradicional.
24
Em Tempo de amar, o primeiro romance do escritor, apesar da linguagem apurada e
do refino na técnica de narrar é ali que se esboça o estilo intimista de sua prosa Autran
Dourado ainda não dispunha o enredo por blocos verticais. Essa inovação, que, de fato,
faria o diferencial de sua prosa, se apresentaria quase dez anos adiante com a Barca dos
homens (1961). É Assis Brasil quem comenta:
E foi especialmente o romance A barca dos homens que nos levou,
inicialmente, e em relação a este autor, a fazer considerações em torno do
que é novo e de vanguarda nesta fase da literatura de ficção brasileira. A
barca dos homens é um romance bastante elaborado, formalmente bem
24
BOSI, Alfredo (1969), p.475.
feito, onde o autor usa, com propriedade, certas técnicas” que foram
usadas originalmente por alguns ficcionistas modernos.
25
Ora, a escrita em blocos veio também recheada de novidades. A alternância do
verbo no pretérito perfeito e no imperfeito, dentro do mesmo parágrafo pôde dar ao texto,
que por sua natureza é estático, salvo entendimento dos concretistas, uma dinâmica
semelhante à de uma câmera cinematográfica que, pelo zoom, aproxima ou distancia a
imagem à necessidade do diretor. Agora também o romancista, via Flaubert, interpretado
por Proust, pode dinamizar a sua narrativa conforme o seu interesse. O capítulo inicial de
Ópera dos mortos deixa isso bem claro. Nele o escritor soube mostrar bem o manejo com
essa técnica. É lembrar que a apresentação do sobrado é feita de fora para dentro,
narrada pelo coro, representado pelas pessoas da cidade que nunca puderam conhecê-lo.
Nessa hora, tem-se a exata impressão de que uma câmera de cinema vem, de longe, fazendo
a tomada do Largo do Carmo, depois do sobrado, suas formas, detalhes de arquitetura, para,
por fim, focalizar a figura de Rosalina, escondida atrás das cortinas espiando a cidade.
Três outras características do texto do escritor são destaque nesse capítulo em
estudo: o valor da ambigüidade em sua narrativa; o efeito da alternância de pessoa no
discurso do narrador e a força simbólica do substantivo. Valor permanente da boa literatura,
em Autran Dourado a ambigüidade também tem uma indicação específica. A ambiência
nevoenta e soturna, que dela advém, permite ao leitor a lenta assimilação da trama,
livrando-o do impacto bombástico das construções objetivas. Em Confissões de Narciso
(1997), o clima sombrio e misterioso, que envolve o início de cada relação amorosa do
protagonista, é uma prova evidente de que o autor deixa o texto ambíguo, não porque
trabalha mal a linguagem, mas porque se aproveita dela para sugerir mistério:
25
BRASIL, Assis (1973), p.88.
Farei todo o possível para ser objetivo, eu que sou dado aos vôos das
divagações desnecessárias. É preciso silenciar o coração, que acredita ter
muito a dizer, e procurar a objetividade que devem ter as coisas escritas,
mesmo quando se descrevem estados delirantes (CN,13).
Propõe-se o narrador, no momento em que inicia o relato das histórias de amor, que
coloriram sua vida. Mais adiante, contudo, desliza na dificuldade de manter-se objetivo:
“Como um pêndulo eu vacilava, ia de um extremo ao outro da dúvida, na ambivalente e
angustiante insegurança do coração” (CN,20).
É ainda nessa narrativa que se pode evidenciar as duas outras características acima
apontadas. Em Confissões de Narciso, embora o sugerido pelo tulo, a confidência é
narrada em primeira pessoa quando o autor fala de si. Nos momentos em que os relatos
referem-se a terceiros, a pessoa gramatical altera-se para a terceira do singular. Em Um
artista aprendiz, romance onde o autor usa dessa mesma dinâmica textual, Autran Dourado
dispõe de mais um recurso gráfico para distrair o leitor. Alterna o tipo comum com o
itálico. Cada vez que o narrador João fala em primeira pessoa, a forma gráfica é alterada.
Embora esse possa, à primeira vista, parecer um detalhe menor, sugere, que também a
forma pode contribuir para a melhor fruição do texto concretistas que o digam. Também
em A serviço del-Rei (1984), apreciado no capítulo seis, a Teogonia de Hesíodo, que
entremeia toda a narrativa, aparece em blocos grafados em itálico apontando para o
distanciamento espaço-temporal do texto grego.
Além do manejo com o verbo, o escritor encontra no substantivo uma outra fonte
densa de significado. Ora, se “Literatura é linguagem carregada de significado”,
26
se a
oração é a metáfora do texto, e o substantivo a da oração, por conseqüência, no nome
condensa-se a força maior de significação do texto. Nas histórias de Autran Dourado, os
26
POUND, Ezra (1989), p.32.
nomes, principalmente os próprios, são carregadíssimos de significado. Alguns deles,
exaustivamente explicados pelo próprio escritor em Uma póetica de romance: matéria de
carpintaria, valem ser mencionados. Do universo de seus personagens, o romancista
esclarece que Rosalina é nome de flor porque esta seria a única habilidade que lhe restara –
fazer flores. João Honório Capistrano, seu pai, carrega Honório no nome, por causa da
honra que traz no caráter. Ainda em Confissões de Narciso, o advogado e poeta Tomás de
Sousa, em cujas memórias baseia-se o narrador João da Fonseca Ribeiro para escrever o
romance, veste muito bem o nome do árcade Tomás Antônio Gonzaga. Também um
apaixonado, empresta ao protagonista sua fragilidade sentimental. sua esposa, embora
ciente, sempre se manteve à margem de suas aventuras amorosas, não poderia ter outro
nome que não o de Sofia aquela que sabe. Apesar de mais à frente Ópera dos
fantoches ser cotejada com Tempo de amar, neste capítulo, vale citar o nome insólito de
um de seus personagens: o Não Interessa. Cafetão da jovem Paula, de Duas Pontes, à época
mulher em São Paulo, o personagem ganha esse nome em função da resposta dada à moça,
quando se relacionam sexualmente, pela primeira vez. Mesmo num papel secundário, Não
Interessa condensa, em seu nome, toda a brutalidade do homem da baixa classe média,
quando investe sua falsa moral de forma reguladora junto às moças de vida fácil.
Desamparadas pela sociedade, são elas iscas fáceis desse tipo ordinário revestido com capa
de homem sério. No momento certo, a aventura da moça com o homem será abordada, mas
por ora destaca-se a adequação perfeita do nome ao personagem a ele, não interessava
revelar, sequer, o nome, à parceira.
Ao final dessa análise de Uma poética de romance, as palavras que melhor
exprimem o jeito mineiro de Autran Dourado construir sua prosa são:
Em outras palavras, mas na mesma clave: a boa prosa e a prosa de ficção
são coisas inteiramente diferentes. Eu tinha de optar entre ser um bom
prosador escrevendo ficção ou um bom romancista, mesmo correndo o
risco de ser um mau prosador. Escolhi o romance, não sei se fiz bem. (...)
Dessa descoberta e decisão, daí em diante, comecei a trabalhar na
linguagem buscando a minha própria expressão de romancista
(PRMC,113).
2.2. Breve manual de estilo e romance
Breve manual de estilo e romance vem, em 2003, apesar de pequenino, ratificar a
vocação ensaística do autor. Vinte e um anos depois da publicação de Meu mestre
imaginário, Autran Dourando mostra-se ainda preocupado em tornar públicos os preceitos
literários reguladores de sua prosa. De uma maneira geral, o pequeno livreto é uma
confirmação sucinta daquilo que, em 1973, fora dito em Uma poética de romance. E é
através de Yves Reuter que vem a idéia de intertextualidade apropriada para o momento:
“G. Genette reserva o termo intertextualidade à co-presença de dois ou mais textos, ou seja,
simplificando, a presença efetiva de um ou mais textos dentro de um outro texto.”
27
Contudo, mais do que o imbricamento textual, o que chama a atenção no novo manual
vem pela expressiva novidade que traz. Aqui, bem mais que nos ensaios anteriores, Autran
mostra-se responsabilizado por passar às novas gerações de estudantes ou romancistas suas
concepções literárias armazenadas ao longo de uma vida inteira dedicada ao fazer poético.
Todos os capítulos são orientações genéricas de bem fazer literatura e, estruturalmente, o
livro divide-se em relatos de sua experiência pessoal e aconselhamentos. Autran fala das
leituras e releituras indispensáveis aos “aprendizes” de escritor. Dos modelos a serem
preservados, o autor enfatiza a importância da Grécia Clássica, comumente referida em
seus romances. Também alguns episódios de seu cotidiano são relatados, na medida em que
parecem contribuir para a fluência do texto no ato da criação. São eles: a
27
REUTER, Yves (1996), p.155
incomunicabilidade do autor com o mundo nos minutos que precedem a criação; a leitura
prévia de poesia, antes da escrita textual, como um rito de preparação semelhante à
invocação das musas; a escolha do signo lingüístico adequado, auxiliado por um bom
dicionário; a proporcionalidade entre os capítulos etc.
O destaque, como sempre, vai para a fluência da prosa e para o embasamento
teórico que a sustenta. Ali são evidenciados alguns preceitos básicos para a composição do
texto literário. O primeiro deles é a simplicidade. O escritor é aquele que deve empenhar-se
ao máximo na escrita, para que a leitura seja fluente e límpida para leitor. Grosso modo, ele
é o produtor dessa matéria, enquanto que o leitor apenas o destinatário do texto. Cabe,
portanto, a quem o produz o esmero na confecção. Para ele: “Ser simples é mais difícil das
tarefas” (BMER,12). O melhor de seu texto, nessa matéria, está em Uma vida em segredo
(1964), sobre a qual disse: “É um livro que me toca muito” (Entrevista,2006). Também
nessa vertente, comenta João Alexandre Barbosa, em As redes da criação, momento em
que analisa o livro:
Eis o primeiro grande mérito de Autran Dourado: fazer deslizar o leitor
por sobre as iscas da expressão e fisgá-lo enfim pela significação total da
história. Mas, atenção, é um deslizar moroso em que todos os segmentos
da trajetória percorrida vão firmando aspectos importantes para a
determinação daquilo que, no fim, se apresenta como uma totalidade.(...)
Por entre crises e soluções, comportamento e situações, por força mesmo
da representação literária, o leitor é apanhado nas redes da criação. O
maior mérito da obra.
28
A segunda orientação do manual e recorrente de Uma poética de romance,
relaciona-se à comercialização do livro. Embora o mercado editorial tenha mudado bastante
nos últimos anos, o escritor garante que para escrever bem é necessário desvincular-se de
suas exigências. em 1973, o romancista alertara que não se deve fazer concessões à
critica, devendo o artista manter-se, na medida do possível, independente dela. “Não pense
28
BARBOSA, João Alexandre (1980), p. 133.
em venda, vender livros é função de editores e livreiros, não sua” (BMER,10) alerta
Dourado. Para escritor, o que ajuda a manter o viço da escrita é o contato permanente com
os clássicos e com o dicionário. Aqueles como fonte referendada do texto atemporal e
perene, e este, o “dormitório” da palavra – matéria prima da criação. Como receita infalível
deve-se ter o cuidado de ler, pelo menos uma vez ao ano, algum dos clássicos de Machado
de Assis: Dom Casmurro, Memórias Póstumas, etc. Sem que se perceba, eles fazem a
profilaxia da língua, garante o escritor. Também o dicionário, por seu turno, deve ter lugar
garantido na escrivaninha do aprendiz. A busca pela palavra exata deve ser uma constante
na peleja com a construção do texto. É de Flaubert, escritor referido em quase todos os
ensaios de Autran Dourado, que vem a expressão clássica “le mot juste” - a busca doentia
da perfeição daquilo que dizia ser a palavra acertada. Quanto ao ritmo diz o mineiro: “Em
cinco horas de trabalho produzo em média duas páginas. No final do livro volto a elas:
corto, corrijo, acrescento; volto a escrever. É trabalhoso mas é bom, você ficou sabendo que
escritor é aquele sujeito que escreve com dificuldade” (BMER,20).
A esse propósito vale ressaltar o artesanato lexical de Sinos da agonia. Segundo o
autor, o romance que mais tempo levou para concluir, cerca de três anos. Além da força da
narrativa construída de maneira perspectivada – a mesma história narrada por três pontos de
vistas distintos a riqueza vocabular do texto merece destaque. Por tratar-se de romance
ambientado no século XVIII, em Minas Gerais, Autran Dourado garimpou as palavras mais
próximas do contexto histórico da época da mineração. Muitas delas, por específicas da
vida social da época, já haviam caído em desuso. As relativas à indumentária, ao mobiliário
doméstico e às relações pessoais aparecem com freqüência no romance e, por sua vez,
levam o leitor de volta ao dicionário. Disse-me ele: “Uma das extravagâncias desse livro foi
escrevê-lo com o auxílio do Moraes, Dicionário do Moraes, de 1813. Eu gosto muito.
Sou um leitor de dicionário.” (Entrevista, 2006)
Sempre pairou muito mistério sobre como surge a inspiração no artista. Por isso,
também nesse manual o assunto foi objeto de reflexão. Com o título de “Afinal quem é a
musa?” Autran Dourado esmiúça o que de folclore e o que é fato nos momentos que
antecedem a criação. (Ressalva-se, contudo, que outros escritores pensarão de maneira
diversa, trata-se, aqui, apenas da concepção pessoal do romancista.) distante da
concepção romântica que atribuía um impulso supremo à criação artística, Autran Dourado
sugere o termo idéia súbita” para a semente do texto literário e, como na Grécia Clássica,
diz que o arrebatamento pela musa inspiradora determina o momento mágico da criação.
Diz a mitologia, que as musas, filhas de Júpiter e Mnemósine, protegiam as artes, as
ciências e as letras. Não se pode precisar, contudo, a chegada desse instante, nem tampouco
sua freqüência. Há casos em que ele chega tardiamente, surpreendendo até mesmo o
indivíduo, a exemplo de Pedro Nava, a quem a musa se mostrou aos setenta anos. E
como ele, alguns outros: Adélia Prado, Graciliano Ramos, Cora Coralina etc Também para
que ela permaneça é necessário arrumar o ambiente, devendo-se mesmo adubá-lo feito terra
de jardim. A leitura de poesia constitui uma boa prática para embalar a criação. Em seu dia-
a-dia, antes de começar a escrever, o romancista revela um segredo e orienta:
Se você, espero, escreveu contos (digo conto porque romance é obra de
maior fôlego), e achou-os bons, adote um regime a que me submeti
durante muitos anos. Todos os dias, antes de começar a escrever, lia um
poema de qualquer grande poeta da minha língua. Em geral Manuel
Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Mário de Andrade, Murilo
Mendes e João Cabral de Melo Neto que são os meus poetas preferidos”
(BMER,37).
Algumas metáforas ligadas à inspiração, embora não façam parte desse capítulo
merecem destaque. Interessam três, em especial: a do gato, do balão e do mergulhador. Ao
animal relaciona-se a abordagem do assunto, ao flutuante liga-se o instante mágico da
criação e ao escafandrista o isolamento do escritor.
Segundo o autor, o pulo do gato (aqui referido no sentido literal da expressão) deve
ser o modelo seguido pelo escritor ao abocanhar o assunto. Alguns minutos são gastos na
espreita silenciosa e inerte do bichano antes do salto. Deve-se imitá-lo: da concentração ao
salto certeiro. Agarrado o assunto, que se ter muito cuidado para que a fina camada que
o envolve não fure. Segundo o autor ela é tênue como uma bola de encher bem cheia.
Proteja-se do mundo, qualquer acontecimento pode transformar-se num alfinete e “furar o
balão”. Por fim e, sobretudo, preparar-se para ser um mergulhador. O escritor é aquele que,
na praia, priva-se da beleza dos ventos sobre as ondas, nos coqueirais e desce ao fundo do
mar. Neste vasto e silencioso mundo submerso, encontra-se o texto, seu tesouro escondido.
Deverá ele passar por âncoras enferrujadas, paredes inteiras de corais, cardumes
coloridíssimos em movimento, para sozinho, encontrar sua história e, na sua, a de todos.
3. A FICÇÃO EMERGENTE DA REFLEXÃO LITERÁRIA – Um artista aprendiz e
Meu mestre imaginário
Um artista aprendiz (2000) e Meu mestre imaginário (1982) podem ser abordadas
de várias maneiras no conjunto da obra de Autran Dourado. A escolhida para este estudo é
aquela que enxerga em ambas a complementaridade que vincula o aprendiz ao mestre. Pelo
menos, no processo ensino-aprendizagem, essas duas figuras formam uma polaridade
necessária: a existência de um pressupõe a do outro. Conforme apontado anteriormente,
Meu mestre imaginário veio para salvar o autor de falar, publicamente, das influências
recebidas ao longo da vida. Ali o escritor discorre exaustivamente sobre todos os mestres
que inspiraram a sua criação. Um artista aprendiz é um romance de memórias sobre o
aprendizado literário de João da Fonseca Nogueira, seu narrador maior. Por isso mesmo,
parte da crítica o considera um romance de educação, na linha de A educação sentimental,
escrito por Gustave Flaubert. A ligação entre os dois romances é pertinente, haja vista a
admiração do escritor mineiro pelo francês, especialmente no que diz respeito a sua
maneira de compor a procura incessante pela palavra certa. Segundo o entendimento de
Mikhail Bakhtin, em A estética da criação verbal (1979), o romance de educação seria
aquele no qual “a concentração de todo o enredo se no processo de educação do
personagem”.
29
Apesar de formarem um mesmo corpo, pois as duas obras focam o fazer
literário, colocam-se em extremidades distintas, e por isso mesmo, apresentam diferenças
importantes.
O primeiro traço distintivo entre as duas obras é que, enquanto Meu mestre
imaginário constrói-se com textos teóricos, Um artista aprendiz é ficção. O primeiro é
escrito em parágrafos soltos. Em sua maior parte, à semelhança de um código de leis, em
que a maioria deles inicia-se pela notação gráfica específica § –. o segundo segue a
estrutura tradicional de composição narrativa. Do ponto de vista formal, apesar de não
apresentar qualquer novidade relevante, vale lembrar a alternância de pessoa na narração.
29
BAKHTIN, Mikhail (2003), p.218.
Fluindo a primeira com forte carga expressiva, enquanto que a terceira, de forma
distanciada.
A segunda diferença significativa entre esses dois livros evidencia o momento
poético do artista. Meu mestre imaginário parece pegar o autor preocupado em organizar
seu legado literário à época cerca de quatorze obras. Poucos anos antes dessa publicação,
em 1976, ele cuidara não só de estender a sua Poética de romance, anexando a ela o ciclo
de palestras proferidas na Puc-Rio sobre seus principais romances, como também de
congregar suas novelas iniciais num volume Novelas de aprendizado (1980). Tem-se,
a nítida impressão de que Autran Dourado, ora agregando, ora condensando seus textos,
pretendia algum tipo de arrumação. Era como se ele, em um largo gesto de costura,
alinhavasse o conjunto da obra. em 2000, ano da publicação de Um artista aprendiz, o
que se percebe é que o momento é outro: agora não é mais a ordenação das obras o que
importa. Sua produção literária contabiliza um salto quantitativo significante cerca de
vinte e quatro volumes. A hora é de revisitação. Autran parece mais preocupado com a
atualização de alguns romances escritos no começo de sua carreira. Com esse em
especial, ele retoma aquilo que ficara atrás em O risco do bordado: o João menino. Em
Um artista aprendiz, o personagem “reacende-se”, com o foco, dessa vez, incidindo sobre
sua juventude. Também a esse tempo, 1994, o romancista sai em busca de seu primeiro
romance para ajustá-lo a sua nova maneira de compor. Ressalte-se que é desse movimento
recorrente que se ocupará este estudo. De Tempo de amar (1952) brota Ópera dos
fantoches (1994). O autor explica essa reescritura da seguinte maneira: “Foi o meu primeiro
romance (Tempo amar). Tenho uma visão crítica desse livro. Por isso é que resolvi
reescrever o livro. Eu resolvi aproveitar como técnica literária, em Ópera dos fantoches, o
chamado monólogo interior.”(Entrevista/2006) Daí que, em função desses dois movimentos
diferenciados, o primeiro de organização e o segundo de resgate, julga-se apropriada a
diferenciação desses livros. Parece então que, no primeiro momento, o escritor prioriza a
poética do romance, e, no segundo, o exercício da reescritura trama.
Apesar deste estudo basear-se na polaridade dessas obras, por ora, serão abordadas
considerando-se o tema. Meu mestre imaginário ao lado de Uma poética de romance:
matéria de carpintaria e Breve manual de estilo e romance enquanto Um artista aprendiz
com O risco do bordado e A serviço del-Rei. O primeiro grupo ligado à carpintaria poética
do escritor e o segundo relaciona-se à trajetória do personagem João da Fonseca Ribeiro:
sua infância, juventude e maturidade.
3.1. Meu mestre imaginário
Meu mestre imaginário representa o sumo das grandes influências de Autran
Dourado. Uma síntese dos escritores e filósofos que determinaram sua poética. Se com a
publicação de Uma poética de romance: matéria de carpintaria (1976) o autor revelara
como foram construídos seus maiores romances, em Meu mestre imaginário envereda-se
pelo caminho que aponta para a construção do escritor. Exaurido o avesso de seus livros
mais importantes, chegara a hora de falar sobre si mesmo. Para tal serve-se de um recurso
mitológico que encontra, na antiga Grécia, suas raízes: a invenção de um mestre. Se as
musas inspiravam os gregos na criação, quem o faz é seu próprio mestre Erasmo Rangel.
O étimo do nome é explicado pelo próprio autor, em um dos capítulos do livro. Trata-se de
uma combinação dos nomes de dois indivíduos admiráveis ao escritor: o primeiro deriva do
humanista e filósofo Erasmo de Roterdã, e o segundo, do amigo e escritor Godofredo
Rangel, cuja atividade literária restringiu-se ao público mineiro. Se o primeiro mantinha-se
distante no tempo e no espaço, o segundo, bastante próximo, representou o pai intelectual
do autor. Do primeiro, o livro destaca uma de suas obras mais conhecidas Elogio da
loucura. Do outro, a presença constante na supervisão dos textos iniciais do escritor,
gravada em conselhos memoráveis: “Felizmente você não é precoce. Guarde esse livro e
continue escrevendo, lendo, atualizando-se”,
30
disse seu mestre após a leitura do primeiro
livro de contos de Autran Dourado.
Se tomarmos a obra renascentista como parte do lume que clarifica a narrativa
autraniana, veremos quepertinência na escolha. Se a concepção renascentista de homem
sobrepuja a razão a tudo o mais, Elogio da loucura desmistifica esse preceito. Segundo o
próprio humanista: “Está escrito no primeiro capítulo de Eclesiastes: o número de loucos é
infinito. Ora, esse número infinito compreende todos os homens, com exceção de uns
poucos, e duvido que alguma vez se tenha visto esses poucos.”
31
No universo ficcional de
Autran Dourado a loucura também recebe um tratamento diferenciado. Vários de seus
personagens permeiam entre a sanidade e a demência, e ao contrário do alijamento social a
que são comumente submetidos, são vistos, sobretudo, em sua dimensão humana. Basta
lembrar de Rosalina, em Ópera dos Mortos, de quem o autor, com extrema comiseração,
falou: “A Rosalina, por exemplo, é um personagem que me fascina. Aquele sofrimento
dela. E a maneira de ser dela... Como ela tenta acabar com a solidão através do Juca
Passarinho. A Rosalina é a personagem mais sofrida que conheço.”(Entrevista/2006)
Também em “A extraordinária senhorita do país do sonho” (Armas & Corações), a
demência de Teteu Mão de Onça é acolhida em sua singularidade:
Ao contrário do que a fantasia esperava, Aristeu parou finalmente
de crescer, ficou apenas um homão de todo tamanho, nada de
espetáculo de circo ou gigante Gargantua. Na sua grandeza até
que era bem proporcionado e bem distribuído de carnes e ossos, a
sonora voz no mesmo diapasão do corpo – gargalhava de quebrar
30
RANGEL, Godofredo.apud DOURADO, Autran. Prefácio N.A.
31
ROTERDAM, Erasmo (2003), p. 114.
cristal. A mente parece que tirou o atraso, tinha boa cabeça para
os negócios, um faro para as altas e baixas do café descontada
uma ou outra maluqueira que de vez em quando dava nele. Mas
quem é que não tem um ou outro extravio de idéia, uma ou outra
mania? (Grifo meu) (A&C,135)
Como o renascentista que redimensionou a concepção de loucura, também o
romancista transcende ao entendimento trivial e supera, nos personagens, a idéia de
apartamento social que a doença enseja. Enfim, é deste humanista especial que Autran
Dourado retira parte do nome de seu mestre. o segundo, Rangel, como dito, é uma
homenagem ao escritor que primeiro incentivou sua carreira literária. Segundo a biografia
de Dourado, seu caminho estava direcionado para a área jurídica, quando acidentalmente
fora abraçado pelas musas da criação literária. Então com dezessete anos, o empurrão para
adiante ou a “puxada no freio de mão” ficara a cargo do velho escritor, amigo da família. A
relação com Godofredo Rangel era tão estreita que quando lhe perguntei sobre qual o dia
mais marcante de sua vida, Autran Dourado respondeu: “O dia em que fiquei conhecendo
Godofredo Rangel. Porque eu era um rapazinho de dezessete anos. Tinha um livro de
contos. É mais ou menos isso: eu aprendi a escrever assim, como um filho.” (Entrevista,
2006)
O nome Erasmo Rangel é, pois, fruto da mescla do humanista de Roterdã com o
velho escritor mineiro, Godofredo Rangel. E o que chama atenção nesse mestre diz respeito
ao tempo. O tempo dele não é o tempo dos homens. Erasmo Rangel é pan-temporal
32
, à
semelhança de Donga Novaes, também personagem de Autran o velho criador de
provérbios ele não dorme. Ali ele ia “Só inventando outro tempo de verbo que seja mais
32
Abre-se aqui um parêntese para ressaltar o interesse que o autor ainda nutre pelo assunto.
Seu último livro é uma prova, pois aborda, entre outras questões, a subjetividade do tempo.
Perguntado a esse respeito disse: “Aqui (SH) também o forte é o tempo interior. Ah...
existe o tempo interior” (Entrevista, 2008).
que passado e imperfeito, um passado-presente, um eterno presente-futuro, sempre o
mesmo, no entanto se refazendo, com um rio, um novelo” (NDN,7). Para Donga, dormir
seria uma maneira de abandonar a vida, espetáculo do qual não queria perder nada.
Mantinha-se acordado para que os habitantes da pequena cidade, a mítica Duas Pontes,
pudessem dormir sossegados. Ora, a impressão que se tem é que com o mestre a situação
era análoga a permanente vigília permite o sono do aprendiz. A inspiração, vinda a
qualquer tempo, mesmo que pegasse o discípulo dormindo descuidado, o mestre estaria a
postos para retê-la.
Outro dado interessante na relação mestre/discípulo diz respeito ao apelido deste.
Embora no corpo do livro haja referência expressa ao nome de Autran Dourado, Godofredo
Rangel o trata por João Evangelista. Ora, a carga semântica que reveste este nome liga-se
diretamente à fidelidade. Segundo a Bíblia, dos doze discípulos de Cristo, apenas João
acompanhou-o até a morte na cruz, momento inclusive em que lhe fora confiada a tarefa de
cuidar de Maria. A exemplo de João Evangelista, nesse vínculo de escritor/aprendiz
também a fidelidade faz-se pressuposto importante.
Curiosamente, também a linguagem do evangelho segundo São João, à semelhança
da praticada pelo escritor mineiro, é das mais metafóricas do Novo Testamento, se não,
pelo menos entre os demais evangelistas. Basta lembrar o início de sua narração, momento
em que explica a encarnação de Cristo, diz: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava
com Deus, e o Verbo era Deus. (...) E o Verbo se fez carne e habitou entre nós.”
33
Dos mais
herméticos, a narração feita pelo evangelista mostra boa afinidade com a linguagem do
romancista, principalmente no manejo com a metáfora. A proximidade entre o escritor e o
33
JOÃO, cap. I, versículo 1.
evangelista é tão nítida que, em Ópera dos Fantoches, esse versículo é citado quando
Paula, a namorada do protagonista, põe em dúvida o resquício de fé que ainda tem:
Faz anos que não entro nessa igreja. Me supunha desligada da religião,
mas não sei até que ponto expulsei toda a crença de minha alma. É esta
dúvida, um fundo de temor contrito, que me excita. Como uma voz muito
antiga que ainda ressoasse dentro de mim. Uma voz que vem se juntar à
cantiga dos meninos. ‘A mãe de Paula não presta,/A mãe de Paula não
presta.’ Como essa cantiga me persegue, nos piores momentos ela vem.
Melhor seria dizer puta. Não sei se teria sofrido menos. O poder de certas
palavras, é com a palavra que tudo se inicia. ‘No princípio era o verbo.’
(Grifo meu) (OF,200)
Nesse trecho, a busca pela palavra descarnada” (in natura) concretizada pela
preferência do termo “puta” ao invés de “mulher que não presta”, sugere um desvelamento
semântico, que vai justo ao encontro das necessidades pessoais de Paula: desmascarar a
moral hipócrita da pequena cidade de Duas Pontes.
Ordenados em vinte e cinco capítulos, a princípio não é possível notar um nexo de
causalidade entre os assuntos tratados em Meu mestre imaginário. Desses tantos, pelo
menos sete têm relação íntima com a cultura helênica. Na obra, a Grécia chega até nós por
Homero, pela tragédia e através dos mitos. Antígona e Prometeu ganham, cada qual, um
capítulo. Essa é uma das linhas mestras da criação de Autran Dourado: a força da
Antiguidade Clássica. A carga helênica que guarnece o ideário do romancista aparecerá em
seus romances, às vezes subliminarmente, outras, de forma clara. Sinos da agonia (1974) é
um exemplo típico. Nele Autran Dourado parece, melhor do que em outro romance, ter
absorvido o teatro grego. A tragédia de Fedra e sua paixão doentia pelo enteado Hipólito
veste sem algum ajuste as figuras de Malvina e Gaspar no interior de Minas, em pleno
século XVIII. A intensidade da tragédia em nada perde para a matricial: o pathos causado
pelo amor proibido reproduz-se com fidelidade. O esmero do escritor é tamanho, que até
mesmo o coro entra na narrativa. Este recurso foi utilizado pela primeira vez na obra de
Autran Dourado de maneira tênue, em A barca dos homens. Firma-se em Ópera dos mortos
(1967) e reaparece em Sinos da agonia, trazendo também a figura de Tirésias, o corifeu.
Dentre todos os romances de Autran Dourado, é neste que forma e conteúdo impregnam de
tal maneira a narrativa, que a influência helênica faz-se bem mais viva, do que nos outros.
Dito pelo próprio autor, quando perguntado sobre o peso dessa influência, confirma-se:
“Estou sempre lendo os gregos. Tenho até a coleção de todos os clássicos. Foi uma
influência decisiva na minha vida. Fundamental” (Entrevista, 2006).
Nesse manual de bem escrever, Autran Dourado cita rios autores que, de uma
maneira ou outra, contribuíram para a construção de seu texto. Três deles, no entanto,
recebem um capítulo cada um. Ali o autor avalia a importância desses romancistas para a
literatura, bem como para consigo. O primeiro analisado é Gustave Flaubert; o segundo é
Quevedo, e último, Stendhal. Do primeiro, além de outras influências, chama a atenção a
manipulação do verbo para regular o ritmo da narrativa; do segundo, a força da escrita
barroca “no mesmo fino estilo que corta a carne e expõe à mostra o ridículo da vida, o
‘teatro del mundo’” (MI,90). E do último o gosto pela sondagem psicológica dos
personagens, técnica que tão bem se ajustou às necessidades narrativas de Autran Dourado.
À propósito de Flaubert, cabe lembrar que, segundo Erasmo Rangel, o mestre
imaginário de Autran, uma das fontes prováveis para a construção da narrativa de Uma
vida em segredo (1964) teria sido o conto Un coeur simple (1877), do escritor francês.
Segundo Autran Dourado, este seria um de seus livros preferidos. E, Biela, a protagonista, a
personagem com a qual teria mais identidade. Disse-me ele: É um livro que me toca
muito.” E referindo-se à Biela declarou: “Há uma afinidade muito grande. Ela é um ser
muito complicado. Ela é incapaz de resolver certas coisas.” (Entrevista/2006) Curioso notar
que da identidade com a personagem, segue-se a confissão de incapacidade de lidar com o
insólito. Autran Dourado, com pouco mais de oitenta anos, não faz cerimônia em revelar
suas fraquezas e limitações. Identifica-se com a moça da roça, que não encontra na cidade
lugar algum para si. No isolamento de Biela, um tanto do seu. “Hoje, embora seja uma
bobagem dizer, eu sou bastante carioca.(...) Mas eu não conheço o Rio de Janeiro. A maior
parte do tempo vou do meu trabalho aqui para casa.(...) Que Rio é esse que o autor o
conhece, nunca foi a uma boate?” (Entrevista/2006)
Também à moda do escritor francês, na busca incessante da palavra exata, le mote
juste, até mesmo a manipulação do verbo para sugerir proximidade ou distância do objeto
narrado, visto no capítulo anterior teria sido referência para Autran Dourado. Contudo,
além do tempo verbal, outros recursos lingüísticos podem ajudar a acelerar ou retrair a
velocidade do que se quer narrar. Em A barca dos homens (1961), romance em que Autran
Dourado deliberadamente altera o ritmo da narrativa nas duas metades que o compõem, são
outras as estratégias usadas. Lento ou acelerado, mede-se também a cadência do texto, pelo
tipo de orações, se coordenadas ou subordinadas, pelo uso do verbo no gerúndio e até
mesmo pelo emprego sucessivo de adjuntos adverbiais. É de Márcia Oliveira Gomes o
estudo que verifica essas situações:
Do alinhamento das frases pode surgir um tom mais formal ou
mais coloquial, conforme o emprego de recursos de
subordinação ou coordenação, respectivamente. o volume
frasal acarreta velocidade do texto. O uso consistente de períodos
longos torna-o lento, assim como os curtos o aceleram.(...) A
frase longa se emprega na tentativa de apreender cada detalhe de
seu percurso. Contribui para tal matiz o uso sucessivo dos
adjuntos adverbiais ‘de praia em praia’, de ‘penedo em
penedo’que assinala os passos de Fortunato por todo lugar.
34
34
GOMES, Márcia de Oliveira (1999), p.1
Também a narrativa barroca de Quevedo, do século de ouro (1580/1645), na
Espanha, serve de inspiração a Autran Dourado. A linguagem antitética, a capacidade de
falar pelas entrelinhas, cultivada para fugir aos censores do Concílio de Trento, e a
intimidade com a narrativa que brota do sonho fazem do espanhol uma referência para o
escritor. Com Los Sueños (1627), sua obra mais conhecida, Quevedo utiliza o sonho como
artifício estético narrativo para satirizar a sociedade de seu tempo. Apesar de intimista,
priorizando a sondagem do “eu” individual, boa parte da narrativa autraniana também se
compromete com o retrato da sociedade mineira. Abordando-a desde o Brasil colônia,
prioriza, no entanto, a sociedade da segunda metade do século passado. No mais das vezes,
é através do retrato da vida em família, que o escritor delineia o contorno do mapa social de
Minas.
Finalmente, no que diz respeito à influência vinda de Stendhal, o elo maior origina-
se em De l’amour, obra na qual o romancista inspirou-se, em boa parte, para construir o seu
Confissões de Narciso. “Influenciado principalmente por Stendhal e Goethe, Tomás deixa
para a posteridade um verdadeiro tratado sobre a desilusão e o amor, na forma de um
dossiê, escrito na cidade mineira de Duas Pontes, seu último refúgio”, aponta a orelha do
livro, sem indicação de autoria. Perito na sondagem psicológica de seus personagens, o
escritor francês empresta ao romancista exatamente a curiosidade pelo que acontece ao
homem quando apaixonado. Exercita, em diversas situações, a dificuldade humana de
compreensão do outro. Construído em forma de diário póstumo, o romancista reflete sobre
dez casos específicos. Stendhal é mencionado no primeiro capítulo, momento em que o
autor justifica sua empreitada, e alega a impossibilidade de sobrepor-se às teorias
stendhalianas:
Sei que não vou acrescentar nada de novo ao De’lamour de Stendhal, a
que volto sempre, quando nada pela prosa admirável. (...) A metáfora que
Stendhal foi buscar na Química (“cristalização” passagem do estado
amorfo, líquido ou gasoso, para o estado duro e preciso dos cristais) me
parece perfeita. Há também a descristalização, que ele chama de morte do
amor (CN,12).
Além de Flaubert, Quevedo e Stendhal, a literatura alemã também se faz presente no
cânone de Autran Dourado. Em Meu mestre imaginário, no capítulo ‘A Alemanha e a
fragmentação do absurdo’ o escritor reverencia o filósofo Shopenhauer como o precursor
da idéia contemporânea de fragmentação do homem. Além disso, no romance Tempo de
amar, a idéia do abandono divino, vivenciado na agonia de Paula grávida e abandonada
pelo namorado, é expressa na célebre frase do também alemão filósofo Nietzsche:
‘Deus morreu, Deus o pode existir!’ Repetiu com uma certeza
trágica. E o seu destino crescia ainda mais aos olhos. (...) O véu que lhe
cobria a cabeça escorregou pelos ombros, caiu no chão da nave
(OF,234).
À semelhança do louco que, em plena luz do dia, sai à rua com sua lanterna e grita:
Procuro Deus! Procuro Deus!” E diante do espanto e silêncio da multidão, ele mesmo
responde: –“Já sei, nós o matamos. Somos todos seus assassinos!”
35
É claro que o contexto
em que fora dita, século XIX, significava sobretudo que Deus não tinha mais força de
persuasão no mundo ocidental, e não simplesmente um desencanto pessoal, como no caso
de Paula. Percebe-se, pois, a influência da filosofia alemã, presente, também através de
Nietzsche na prosa de Autran Dourado. Em ambos, a síntese do pensamento alemão do
século XIX: Shopenhauer da primeira metade e Nietzsche da segunda. Os dois tomando a
vontade como cerne da realidade. O primeiro, numa perspectiva pessimista focando a
impossibilidade humana de satisfazer-se num mundo plural e fugaz, onde mal realizado um
35
NIETZSCHE, Friedrich (2002), p.147.
desejo outro se apresentaria à frente. para Nietzsche, esse seria justamente o tônico da
existência, a sua capacidade intrínseca de renovação a força proliferante vida. Mais
adiante, quando do estudo de Um artista aprendiz, a matéria será aprofundada. Das aulas de
filosofia com o professor Sinval de Souza virão as idéias filosóficas que rastrearão toda a
prosa do escritor.
Afora os capítulos que trataram da influência do mundo helênico e desses escritores
mencionados, a carpintaria textual se faz presente em dois outros bem específicos: “O
monólogo interior” e “Das cnicas narrativas: do monólogo interior ao stream-of-
consciousness”. Ratificando a idéia do mestre imaginário sobre a importância dessa técnica,
Autran Dourado confirmou, em entrevista, anos mais tarde, a extrema importância desses
recursos em sua narrativa. Perguntado acerca da reescritura de Tempo de Amar, respondeu-
me: “Eu resolvi aproveitar como técnica literária em Ópera dos fantoches o chamado
monólogo interior. Eu sempre fui muito preocupado com duas técnicas de escrever, de
narrar: uma é o monólogo interior e a outra o fluxo da consciência” (Entrevista/2006).
O texto de Autran Dourado salta, de fato, aos olhos da crítica em 1961, ano da
publicação de A barca dos homens. Ali ele mostra domínio na técnica de narrar com
estrutura polifônica: o narrador monocórdio sai de cena e lugar às múltiplas vozes que
brotam da narrativa. A polifonia, uma das marcas do pensamento bakhtiniano, estudada na
sua Poética de Dostoiéviski (1929) aponta para o texto em que as vozes não se sujeitam a
um narrador centralizante, como ocorre no romance tradicional, mas relacionam-se entre si
de forma equilibrada. Atropelados pelo risco iminente que representa um débil armado, os
personagens aproveitam a situação de perigo para “desnudarem-se” as confidências
podem ter caráter regenerador. Presos numa ilha, todos estão vulneráveis à morte senão
física, emocional. Para dar esse clima tenso, o autor regula a velocidade da narrativa,
conforme apontado pouco, intercalando-a com longos monólogos do protagonista,
durante sua perseguição. Além disso, para dar ao fato uma roupagem épica, ele a entremeia
com textos dos cronistas do descobrimento. A histórica perseguição a Fortunato, o bil
que porta um revólver, colore-se de beleza e encanto na medida em que os demais
personagens revelam um tanto de si, na persecução do rapaz. Contudo é através de Uma
vida em segredo, publicada três anos mais tarde, que o romancista confirma a qualidade de
seu texto. Vem ainda mais requintado o silencioso confronto pessoal da personagem
consigo mesma, nascendo, então, Biela. Sobre esse momento, também entende João
Alexandre Barbosa:
Se a novela de Autran Dourado não traz para a nossa ficção as ousadias
expressionistas de um Guimarães Rosa, ou se em relação à própria obra
do autor, neste sentido se afigura acanhada diante d’A barca dos homens,
é, a meu ver, um bom exemplo de amadurecimento da nossa ficção.
Porque nela o autor experimenta, ou se se quiser, ensaia a análise
psicológica com um rigor, uma superioridade evidente sobre a maioria
das novelas ditas psicológicas de nossa literatura. E sabe-se como é muito
importante para uma literatura freqüentemente horizontal, como a nossa,
o aparecimento de uma novela em que se procura a verticalização dos
significados humanos, ainda que “em segredo”, numa personalidade.
36
É no ruminar solitário de Biela que o romancista revela uma exímia habilidade na
ausculta da alma humana. Isolada do grupo familiar, somente os monólogos interiores
podem salvá-la do silêncio absoluto. Sem forças para o enfrentamento da vida, quando
tenta qualquer mudança, invariavelmente atrapalha-se. Em contato com o pretendente
arranjado pela família, assusta-se e retrocede:
Como conseguiu fugir do que a prendia, Biela foi logo para o quarto.
Deitou-se no escuro como fazia sempre que se achava desnorteada, e
ficou pensando. Pensou muito, mesmo assim não conseguia entender.
Como é que podia? Tinha a impressão que Modesto era um bicho, um
bicho que olhava no escuro com aqueles olhos gordos e parados,
faiscantes agora. O coração martelava surdo feito um monjolo desvairado
que batesse sem parar. Um medo maior que todos os medos sentidos,
36
BARBOSA, João Alexandre (1980), p.132.
ela que era cheia de medos. Ainda guardava no o outro que a
pisava. Na coxa, a pressão quente do joelho (VS,70).
É na fragilidade de Biela que o monólogo interior de Autran Dourado se aprimora.
Se com Fortunato e os demais personagens de A barca dos homens ele se esboçara, em
Uma vida em segredo ele revela um escritor sensível e hábil na ausculta da alma humana,
pronto para integrar o melhor da cena literária brasileira dos anos 1960.
O romance contemporâneo, sabe-se, quando se descomprometeu com a narrativa
linear de causa e efeito, priorizou a sondagem vertical dos personagens. O mundo,
inexplicável por qualquer teoria, deixou de ser visto de maneira lógica e conseqüente, e a
subjetividade humana, nas suas inúmeras faces, passou a representar o objeto de interesse
do texto literário. Para acessá-la, em sua amplitude mais abrangente, o romance escolheu a
personagem em seu recolhimento mais íntimo o exato minuto em que conversa consigo
mesma. O retrato fiel da realidade empírica apregoado pelos ideais realistas, bem como a
força da estética que supervisionava a influência do grupo social nos destinos do indivíduo,
dão lugar a um sem número de indagações que deságuam também numa narrativa
descontínua. Em estudo sobre o enredo como parte da narrativa, Samira Nahid Mesquita
também o relacionou com a utilização do monólogo interior pelos romancistas
contemporâneos:
O enredo é estruturado pelo princípio lógico da causalidade e pela lógica
temporal. Embora permaneçam as narrativas que obedecem a tais
procedimentos, no século XX viu-se desarticulado o enredo, na medida
em que estados interiores das personagens desestruturaram o tempo
cronológico e passaram para a uma ‘crono-ilogia’
37
.
Ora, exercitado por James Joyce, Gustave Flaubert, Henry James e tantos outros,
aqui no Brasil, a geração pós-1945 também trabalhou a narrativa de cunho intimista à
37
MESQUITA, Samira Nahid (1987), p.12.
exaustão, à custa do exercício sistemático do monólogo interior. Guimarães Rosa e Clarice
Lispector são, sem dúvida, os romancistas mais representativos desse grupo que congregará
ao longo do tempo, Osman Lins, Samuel Rawet, Nélida Piñon e o próprio Autran Dourado.
A respeito do escritor mineiro, colocou Ivo Barbieri em Situação e perspectivas:
Autran Dourado desde seus primeiros contos e novelas procurou articular
a sondagem psicológica com a percepção estruturadora do tempo e do
espaço. Manifestando, na caracterização dos personagens, uma constante
predileção por consciências primárias, surpreendidas num fluxo de idéias,
emoções e deslumbramentos.(...) O fluir do monólogo interior vem,
necessariamente, articulado com o curso de uma ação externa.
38
Para concluir essa etapa relativa à construção da narrativa a partir do monólogo
interior, aproveita-se aqui o conceito de ‘ambientação reflexa’ criado por Osman Lins, em
“Lima Barreto e o espaço romanesco”. Embora resultado de uma análise que privilegia o
espaço na narrativa, o escritor termina por tocar, ainda que de forma indireta, no ponto em
que tangencia a vida interior da personagem. Distinguindo a ambientação entre franca e
reflexa, aponta a primeira como resultado das descrições do escritor para formar o espaço
na narrativa; e a segunda, conforme sugere o próprio nome, como aquela que é refletida
pelo pensamento do personagem. É Antônio Dimas que, em Espaço e romance, citando um
trecho de Imaginações pecaminosas (1981), de Autran Dourado, afirma:
Num conto muito tenso de Autran Dourado, em que dois irmãos estão
sendo julgados pelo assassinato da irmã, surpreendida que fora com o
padre da cidade, temos acesso à sala do tribunal por meio de um dos
acusados, em cuja cabeça presente e passado se atropelam. É curioso
salientar que no espaço restrito de uma sala de júri, de onde ninguém pode
arredar o pé, emerge um conjunto de informações perfeitamente capazes
de situar o drama da personagem.
39
Para concluir a análise de Meu mestre imaginário, dois capítulos podem ser
destacados: o mais longo de todos e o que fecha a obra o primeiro, Proposições sobre o
38
BARBIERI, Ivo (1986), p. 573.
39
DIMAS, Antônio (1994), p.22.
labirinto” e o outro, “Carta a um escritor”. Em Autran Dourado, a obsessão pela estrutura
labiríntica de narrar revela-se, não pelo seu uso, como também pela análise do manejo
dessa técnica. Disposto em cinqüenta e sete parágrafos soltos, este capítulo é cópia fiel de
parte de outro utilizado em Uma Poética de romance: matéria de carpintaria, quando o
escritor discorre sobre a carpintaria de Sinos da agonia. Com origem na mitologia da antiga
Grécia, o labirinto do romancista encontra, no de Dédalo, as suas raízes. Desenhado sob
encomenda de Minos, o traço do arquiteto deveria aprisionar o monstro metade touro
metade homem, filho natural de sua mulher Pasífae. Ao contrário do traço do romancista,
as narrativas devem gerar outras tantas, seguindo o tracejado labiríntico à procura da saída.
É do décimo parágrafo que vem a definição dessa escrita: “Narrativa labiríntica, desenho de
linhas puras, convite à razão através do segredo e do mistério” (MI,156). Quando o autor
fala da narrativa de O risco do bordado, repete o conceito: “Técnica labiríntica, onírica,
amplificadora, através de desdobramento e fusões associativas, metafóricas” (MI,113).
Assim escolheu Autran a sua melhor maneira de narrar: associando símbolos, revolvendo
sonhos e desdobrando histórias umas das outras. A técnica apurada, através de longo
exercício, revela o trânsito sublime de personagens por entre livros, o elo fraterno que os
irmana e o painel gigantesco que os sustenta a escrita autraniana. Tudo isso é arquitetura,
tudo isso pressupõe rascunho. Nada que se possa deixar ao sabor do acaso, do vento, da
inspiração. Assim como Teseu precisou do fio de Ariadne para reconhecer o caminho da
saída e desvendar o mistério labiríntico, o romancista está sempre à procura desse rastro
para completar seu romance, seu conto, seu ensaio. Quando perguntei ao escritor como se
sentia no exato momento da criação, respondeu-me: “Na hora de escrever o autor sofre
muito. Escreve com muita facilidade, não! Ele escreve com muita dificuldade. Para se
escrever é muito difícil. (...) No momento em que se escreve é muito infeliz”
(Entrevista/2006).
O último capítulo de Meu mestre imaginário a ser objeto de análise é também o
último do livro. O título, como dito anteriormente, é sugestivo Carta a um escritor.
Lembra, curiosamente, uma interlocução, mas de forma espiralada. O escritor, embora
escreva para o público, parece escrever a si mesmo. A preposição usada no título “a” e
não “de” enseja esse entendimento. a impressão de querer checar conceitos, embora o
tom da narrativa seja lasso: “Acredito que os leitores conheçam melhor como são os
personagens de um romancista do que ele mesmo” (MI,121), sugere Godofredo Rangel. O
assunto é a construção da personagem e como ela escapa ao seu criador, se solta e passa a
ser tão sua como dos outros de todos. A eleita como exemplo é Rosalina de Ópera dos
mortos. “Como qualquer cidadão, você monta interiormente, com aqueles elementos do
real, a sua própria Rosalina” (MI,121). O texto é do autor enquanto gestado, até o limite
do ato criativo. Daí em diante, mesmo o leitor comum terá “reconstruído”– é claro que
com os elementos fornecidos pelo autor seu próprio texto. Conclui finalmente: “É um
jogo de armar misterioso e fantástico, uma construção inacabada, cuja obra final se
projetará no espírito do leitor” (MI,122).
3.2. Um artista aprendiz
Um artista aprendiz, embora possa contrapontear com Meu mestre imaginário,
merece ser observado numa trilogia temporal com dois outros romances de Autran
Dourado: O risco do bordado e A serviço del-rei. Como dito no início deste capítulo, o
elo possível entre os três é a vida do personagem João da Fonseca Ribeiro, o grande
narrador de Autran Dourado. Se O risco do bordado foca sua infância; Um artista aprendiz
trata da sua juventude, em Belo Horizonte, onde se torna escritor; e A serviço del-rei relata
um período posterior, João homem, momento em que vive a difícil trajetória do escritor
vinculado aos bastidores do poder. Aquele que cede o talento às artimanhas da política.
Um artista aprendiz seria o período intermediário, o aprendizado literário de João da
Fonseca Ribeiro, na sua juventude. A infância, presente nas histórias de família, é referida
praticamente nos capítulos iniciais, e eventualmente ao longo da narração. A hora então é
de abrir-se ao mundo. Deixar Duas Pontes para trás e sair em busca do futuro. São Mateus
como avant première: o ensaio para a grande viagem. Em Um artista aprendiz, tem-se o
relato da comovente aventura do menino João e seu ingresso na vida literária de Minas
Gerais – o internato, as aulas de filosofia, os passeios pelo centro, os amores – um ensaio de
liberdade. Aqui, a narrativa linear obedece a critérios temporais de presente, passado e
futuro. Inicia-se com o embarque na estação de trem, em Duas Pontes, e vai até a
publicação do primeiro romance do jovem escritor. Para escapar à monotonia, alterna-se em
primeira e terceira pessoas o narrador ora protagoniza, ora relata a ação. Para imprimir
uma textura nova à narrativa, a impressão também se alterna em consonância com o
discurso do narrador. Com itálico grafado na primeira pessoa, faz-se a diferenciação. São
ingredientes acessórios que servem para dar sabor ao principal. Como se sabe, nada é
despropositado no texto de Autran Dourado. Até mesmo o retorno ao texto linear passa a
fazer sentido, uma vez que o romance é do tipo de educação. Se nesse está em foco uma
vida que se educa, a narrativa linear veste-o melhor. E, se necessário deslocar o tempo para
dinamizar a ação, o autor utiliza-se da catálise: “a função narrativa que preenche os vazios
entre as funções cardeais, antecipando ou retardando a ação.”
40
Também a técnica do
flashback, que permite ao narrador a qualquer momento recuar ao passado e tornar o
40
LEITE, Lígia Chiappini de Moraes (1985), p.87.
pretérito vigente, é usada com relativa freqüência no romance. Em Um artista aprendiz, no
desabrochar para a vida, João efervesce nas ruas de Belo Horizonte. Da praça da Liberdade
à leiteria Nova Celeste, tudo convida à transformação. Desde o dedilhar literário à mais
justa distribuição de renda, tudo instiga o rapaz. Do ponto de vista da organização da
narrativa, o romance divide-se em vinte capítulos distribuídos eqüitativamente. A serviço
del-rei, ao contrário de Um artista aprendiz, é uma narrativa una, sem subdivisões. Nele o
artifício utilizado para dinamizar a narrativa é a inserção da Teogonia, de Hesíodo, ao longo
da narração. Enquanto os homens disputam o poder político a qualquer preço, a criação do
mundo é narrada pela voz do poeta helênico. O clássico e o contemporâneo se alternam.
Segundo comentário na orelha do livro, sem referência de autoria, o livro é um tratado
sobre a ineficiência da assessoria do artista ao político: A serviço del-Rei demonstra de
forma inequívoca que, ao flertar com o poder, o intelectual acaba invariavelmente se
tornando um traidor. Traidor de si mesmo, traidor de seus ideais, traidor de seu
empregador, traidor de seu povo.” Mais tarde, quando da publicação de Gaiola aberta, essa
noção de intelectual rendido se atualiza e se reforça. Da gaiola aberta sairá o pássaro aflito
sem lugar na política a ave deixa o palácio. “O período da vida que eu passei sofrendo
muito, por causa da contradição pessoal” (Entrevista/2006), disse-me Autran Dourado
referindo-se ao período em que assessorou Juscelino Kubitschek.
Mostradas as relações de proximidade dos três romances de Autran Dourado que
tratam da vida de João da Fonseca Ribeiro, enfatiza-se, então, o que discorre sobre sua
juventude em Belo Horizonte e as aventuras que coloriram aquele tempo singular.
Como dito anteriormente, esse romance é do tipo de formação, e encontra em
outros da mesma espécie, uma fonte de inspiração. Segundo George Lukács, em sua Téorie
de romans (1920), três seriam os tipos de romance: o de idealismo abstrato, o psicológico e
o de aprendizado. Em todos os casos, é a relação herói/mundo que os identifica. Nesse
último, ao contrário dos demais, onde indivíduo e mundo se chocam, o herói adestra-se à
realidade e aprende a viver. Educa-se e segue vida afora: o foco está no aprendizado. De
Gustave Flaubert e de Goethe, vêm as duas obras que balizaram Um artista aprendiz. Do
primeiro, A educação sentimental (1869) e, do segundo, Os anos de aprendizagem de
Wilhelm Meister (1796). O testemunho do escritor francês, nesse tipo de romance, constata
antes um anti-herói do que um jovem bem sucedido. Ali ele relata, a história de Fréderic
Moreau e Charles Deslauries, dois provincianos que vão morar em Paris, onde perseguem
suas ambições políticas, profissionais e amorosas. Desiludidos, regressam à província e
rememoram a vida parisiense. No fim, caminham nostalgicamente em frente à porta de um
bordel, lugar de perdição, que teriam freqüentado quando jovens. o modelo alemão,
remete ao pensamento de que o sentido de nossa existência encontra-se nela mesma, e não
em outro lugar. Nesse trajeto, a busca pelo sentido da vida, os próprios erros do homem
favorecem a sua transformação para melhor. O herói de Goethe debate-se com uma falsa
vocação teatral. Sonha em ser ator, mas o consegue. É, na verdade, um burguês, um
típico burguês, da alta classe média. Sua vida cotidiana, pelo simples fato de ser a sua
realidade, deverá conter, em si mesma, uma força mágica capaz de represá-lo, a contento,
nesse caminho. O maior mérito do homem seria, então, determinar as circunstâncias, e não,
ser por elas determinado.
A influência de Flaubert e de Goethe pode ficar mais clara pela intertextualidade
sugerida no capítulo quinto de Um artista aprendiz. Ali os dois romances de educação são
referidos como leitura do jovem João da Fonseca Ribeiro. O hábito de freqüentar
bibliotecas ia se consolidando com o passar do tempo. Ávido por novidade, formava-se, aos
poucos, um leitor voraz:
Passou a tarde inteira na Biblioteca Municipal lendo A educação
sentimental, de Flaubert. Poucos livros amaria tanto como a história
sentimental de Fréderic Moreau. De A educação sentimental se
aproximava em grandiosidade e beleza Os anos de aprendizagem de
Wilhelm Meister. (...) Comoveu-se com os amores do Wilhelm fascinado
pelo teatro, que, de esperança em esperança, acabará por achar seu
caminho e verdade. Em cada fase da sua vida Wilhelm encontrava numa
mulher seu espelho: da jovem Mignon, graciosa e frágil, romântica e
doentia, a Natália, de vontade e de alma, que o conquista, o porto seguro
em que termina o seu aprendizado sentimental. Também ele João iniciava
o seu aprendizado, a sua educação sentimental. Identificava mais com
Fréderic do que com Wilhelm, por sua alma romântica e dramática.
(AA,111)
Também segundo o E-dicionário de termos literários, o conceito de romance de
formação é aquele em que:
O protagonista é uma personagem jovem, do sexo masculino (às mulheres
não era, na época, possível a liberdade de movimentos que permite ao
herói o contato com as múltiplas experiências sociais decisivas no
percurso de auto-conhecimento), que começa a sua viagem de formação
em conflito com o meio em que vive, determinado em afrontá-lo e
recusando uma atitude passiva; deixa-se marcar pelos acontecimentos e
aprende com eles, tem por mestre o mundo e atinge a maturidade
integrando no seu caráter as experiências pelas quais vai passando; em
constante demanda da sua identidade, representa diferentes papéis e usa
diferentes máscaras; sofre pelo imenso contraste entre a vida que
idealizou e a vida que terá de viver; o seu encontro consigo mesmo
significa também um compreensão mais ampla do mundo.
41
Aplicando ao jovem João da Fonseca Ribeiro as linhas gerais dessa definição, torna-
se claro que Um artista aprendiz é também um romance de formação. Seu foco incide sobre
a trajetória educacional do jovem rapaz que, sacudindo no famoso trem de ferro mineiro,
deixa para trás a cidadezinha de Duas Pontes em busca de um futuro melhor. Com a mala
repleta de roupas e o espírito de sonhos, bate-se para a também provinciana São Mateus,
onde faz o estágio probatório para a vida na capital. Ali se a cisão do cordão umbilical
que o une à família. Os amigos das tardes compridas, do “sem-ter-o-que-fazer” com o
tempo, ficam para trás. Zito, o mais sabido de todos, convocado pelos reveses da vida, para
o trabalho precoce de balconista na loja de tecidos de seu Bernardino, perde-se nos
41
FLORA, Luísa Maria Rodrigues (2005), p.1.
encontros anuais de férias. Tuim, o mentiroso, também tivera o laço afetivo afrouxado. A
chatice do pirralho muito o afastara de João. O único a deixar a cidade, para estudar,
fora João. Na decisão da família, a evidência dos resquícios da aristocracia rural decadente:
não fosse a ajuda financeira de vovô Tomé, seria impossível mantê-lo em outra cidade. O
narrador refere-se assim à partida de Duas Pontes:
Quando ele abandonou o seu pequeno mundo antigo, deixava o cálido e
placentário casulo materno e ia sozinho enfrentar o mundo selvagem e
violento do internato em São Mateus, onde começaria o seu
aprendizado de homem, tão doloroso agora na memória” (AA,9).
O segundo salto, um tanto mais alto, requer a coragem conquistada no primeiro
exílio. Nele, João da Fonseca Ribeiro rompe os limites da província. Belo Horizonte será,
de fato, um novo horizonte de vida para o jovem. Se belo ou não, só o tempo dirá. É preciso
envolver-se nessa história e ir entretecendo a trama com o narrador. Na capital, a mineirice
interiorana do protagonista será posta a prova. Os conceitos, a cultura, a bagagem trazida
consigo para esse mundo novo que se descortina serão, ao mesmo tempo, força motriz e
entrave ao ingresso de João no mundo sem fronteiras, que a metrópole sugere ao rapaz. No
dia da chegada à república de estudantes, o recolhimento imposto pelo cansaço: “No
quarto, ele tirou a roupa e de cueca se deixou cair na cama. Cansado, mal inventariava
aquela longa viagem, tão imensa no tempo. Os olhos foram se enevoando, até que ele caiu
no sono” (AA,64). Ali, nesse mundo novo que se apresenta a João, várias são as
identidades a tentá-lo: o mundo mágico do pensamento filosófico, apresentado pelo
professor Sinval de Souza; a força restauradora do Partido Comunista Brasileiro que nos
anos 30 mobiliza boa parte da intelectualidade e dos estudantes; a literatura como exercício
puro de beleza sem jugo de ideologia e os relacionamentos amorosos que colorirão sua
vida. Todos esses ingredientes farão de João da Fonseca Ribeiro, não um simples estudante
interiorano em Belo Horizonte, mas um indivíduo atento e comprometido com seu tempo.
Ao contrário dos personagens de Goethe e de Flaubert, o jovem mineiro é exemplo
de superação. Se a vocação teatral em Wilhelm Meister frustra-se pela falta de talento, ao
contrário, a inclinação literária em João frutifica e cresce. Se para Fréderic Moreau o
glamour da cidade grande esmaecera na volta para casa, o herói mineiro alça ainda um vôo
mais longo para a então capital do país. Desta maneira, o aprendizado do herói de Autran,
dores à parte, cumpriu a missão.
Alguns aspectos desse aprendizado merecem menção especial. O primeiro deles diz
respeito à sexualidade do jovem. O duro aprendizado no silêncio da família, no escárnio
dos colegas, no namoro ressabiado com as moças de família e no “peito e na marra” com as
prostitutas. Tudo isso é retratado com detalhes na prosa de Autran Dourado quando compõe
o árido trajeto do tímido rapaz de Duas Pontes a Belo Horizonte. A primeira experiência
digna de nota concerne ao momento sexual escuso, praticado no silêncio dos dormitórios
nos internatos. Geralmente a sujeição psicológica de que são vítimas os meninos frágeis
redunda na escravização posterior e no domínio dos maiores. De um simples apelido
pejorativo ao coito anal coercitivo, a narrativa revela os medos, aflições e estratégias para
vencer o problema abafado na falsa moral dos adultos encasulados no silêncio protetor,
onde não era possível chegar.
A primeira referência à experiência sofrida, no internato, vem pelas divagações
durante uma viagem de volta das férias a São Mateus. A impressão que se tem é que
enquanto a paisagem desliza pela janela, os pensamentos também repassam a vida a limpo:
E sem querer ia inventariando aquele primeiro dia, aquela primeira vez. E
a lembrança terrível que ele não pôde evitar que chegasse. O dormitório
quase vazio, o colégio de férias, ele era um dos primeiros a chegar para o
exame de admissão. Sentiu uma umidade entre as pernas, como se tivesse
mijado. Cochichos no fundo do dormitório. De repente a luz se acende e
ele leva imediatamente a mão nos olhos. Depois viu o pijama novo
molhado de vermelho, as mãos vermelhas, o lençol manchado de
vermelho. Parecia sangue e os meninos gritando repetidamente ele está de
paquete, ele está de paquete! Ele não sabia o que era paquete, só sabia que
era nome feio, alguma coisa de medonho que ele não deveria dizer nunca.
A brincadeira absurda e selvagem que fizeram com ele, aquela dor para
sempre no peito, que às vezes subitamente lhe voltava agora, e os olhos
cegos para a paisagem (AA,15).
Na medida em que o adolescente vai crescendo, as dificuldades também se avultam.
A luta agora não é mais pela sobrevivência à chacota, mas pela integridade física e
psicológica. No trecho em evidência, a narrativa em primeira pessoa adensa a
dramaticidade do relato:
A primeira vez que entrei no rio eu ainda não sabia nadar, tinha pentelho
ainda não, o Alfredo quis me pegar e eu saí correndo de perto dele, acabei
caindo no rio, engoli muita água, ia me afogando, foi o próprio Alfredo
que me salvou, eu desmaiei, tiveram que fazer uma porção de coisas
comigo, acabei vomitando muita água, voltei a mim e na frente dos outros
meninos Alfredo me disse agora você me deve a vida, vou comer este
menininho, vai comer a tua mãe, eu falei, então ele me deu um tapa na
boca, na boca o gosto de sangue, então eu comecei a chorar, faz isso com
ele não, disse o Sebastião pro Alfredo, por que não faz comigo? então os
dois se atracaram por minha causa, é horrível lembrar isto, é como se eu
fosse uma menina, de uma coisa eu tenho orgulho, nunca ninguém me
pegou nos cinco anos que eu fiquei por lá, nunca aceitei proteção de
ninguém, proteção era o começo da submissão, o submisso podia se
amulherar, virar veado (AA,37).
O romance também retrata a vida afetiva de João, desde o flerte juvenil com
Dorotéia, em São Mateus, até o casamento com Maria da Glória com quem deixa Belo
Horizonte para tentar a carreira de escritor no Rio de Janeiro. Ao todo foram quatro os
amores do rapaz. Afora o último, que recebe apenas pequena menção no capítulo final, os
outros foram todos frustrantes. João é sempre abandonado, invariavelmente perdedor.
Dorotéia, cujo nome remete à mártir cristã executada pelo imperador romano por
professar sua fé, na narrativa autraniana, nada tem de sofredora. Ali escolhe o codinome de
Marília para, junto com o seu Dirceu, viver secretamente o amor. Assim descreve a medida
da paixão o narrador: “Ó deuses, como eles eram jovens, como eram puros, como eram
românticos! Desesperado como era feitio da sua alma, que tendia para o trágico, ele
tensamente apaixonado, ela mansamente amando” (AA,43). A distância geográfica esfria o
coração da moça e o termômetro que revela o desinteresse é a escassez das cartas. Também
nessa via vem a notícia de que Dorotéia está de casamento marcado com um advogado
recém chegado à cidade, mas é do amigo de João o relato. Desconsolado, João recolhe-se
em silêncio: “Naquele dia no colégio, seus ouvidos não escutaram, seus olhos perdidos no
vazio mal viam” (AA,109). A segunda namorada é Teresa, o encontro acontece quando
João cursa direito, mais amadurecido, portanto. Estudante de belas-artes, pertence à alta
burguesia mineira o convívio social com a família da moça agasalha o sonho do rapaz
interiorano interessado em arte. Não fosse a soberba do Country Clube de Belo Horizonte a
constranger os provincianos, o contato com a família de Teresa, posições políticas à parte,
se revela extremamente agradável e aponta para uma afinidade singular que se consolida no
gosto musical. Referindo-se ao bolero de Ravel, tocado numa vitrola, a sensação do jovem
é assim descrita: “Achou uma maravilha o ritmo circular e envolvente, os temas evoluindo
como as voltas de um parafuso, cada volta passando pelo mesmo ponto, mas um pouco
mais acima”(AA,144). Com o Stabat mater, de Vivaldi, e a Nona sinfonia, de Beethoven,
as tardes na casa de Teresa ganham um colorido especial e dão ao rapaz o aconchego da
infância, em companhia de vovô Tomé. Romance afinado e curto leva, todavia, o selo do
trágico: à moda romântica, Teresa morre tuberculosa. Dessa vez, não se trata da perda para
outra pessoa, como João experimentara, mas para a morte presença insuportável aos
jovens. O sentimento de frustração daí advindo é o responsável pela primeira tentativa de
suicídio do protagonista. O terceiro e mais intenso amor de João é Aurélia. O primeiro
contato se ainda no trem quando, acidentalmente, chegam juntos à capital mineira. A
princípio, além da beleza, chama a atenção a leitura que faz durante a viagem, Alguma
Poesia, de Carlos Drummond de Andrade, ficcionalizado na trama como Poesias. Com o
modernismo ainda embrionário, é ela quem apresenta o texto do poeta ao jovem rapaz. Daí
em diante, ela será sempre a presença do novo para João, aquela que mostrará a ele quão
vasto é o mundo. No trem onde se encontram, também se despedem. O reencontro
acontece mais tarde, de forma acidental, na sede do Partido Comunista, onde a moça é
militante. Engajada e ativista, membro participante das reuniões, e por isso mesmo, seduz o
tímido e amedrontado João. Nela, a parte arrojada que lhe falta, a garra incomum e a força
interminável para reformar o mundo. A conquista amorosa é muito difícil e o final também
é desalentador. Apontando a militância como a parte mais importante de sua vida, a moça
posterga, e muito, o início do namoro. Flerta com outro, também membro ativo, mas
finalmente, cede. O romance, bastante moderno à época, envolve relacionamento sexual e a
moça termina por engravidar. O resultado sofrido: um aborto clandestino e a partida de
Aurélia para o Rio. Tudo isso vivido intensamente por João: os encontros com a namorada,
em sigilo, no consultório dentário e depois na casa abandonada; o empréstimo para o
aborto, a responsabilidade pela vida da moça do lado de fora do consultório; o peso de um
amadurecimento a galope. Tudo isso por quase nada, pois quando Aurélia sabe da
disponibilidade do ex-professor casado, abandona a vida em Belo Horizonte e parte para o
Rio. A partir de então, João liberta-se do estilo apaixonado, e, racionalmente, faz a escolha
por Maria da Glória para o casamento e vida em comum. A lição desse aprendizado indica
que, mesmo nas relações amorosas, deve priorizar-se a razão. A paixão, segundo a
trajetória de João da Fonseca Ribeiro, representa perigo à identidade do sujeito.
Ao lado do aprendizado sentimental, corre o acadêmico. Sua matéria é vária: liga-se
à filosofia, à literatura, ao direito e à política. O rapaz viera do interior interessado em
bacharelar-se em direito, mas tem a alma embebida de filosofia e o corpo pronto a
participar da vida política do país. A sensibilidade afinada para a prática dos textos que
brotam em contos. João não é um bloco monolítico, pelo contrário, é múltiplo e está à
procura da identidade. Da filosofia, vale a menção da influência decisiva das aulas do
professor Sinval de Souza ainda no curso clássico. De Kant a Heidegger, passando por
Shopenhauer e Nietzsche, o pensamento de cada um foi, pouco a pouco, construindo o
perfil filosófico do aluno João. O gosto pela filosofia permeia boa parte da narrativa
autraniana. Dos ensaios teóricos à ficção, o leitor é envolvido. Em A glória do ofício,
novela que o próprio Autran considera a gênese de sua poética, é Elias quem se apaixona
pela ciência: “Na verdade, confesso que não sabia o que era lógica. Fui a um sebo da rua
São José e de saí com um livro que pudesse me ensinar alguma coisa. (...) Tranquei-me
no quarto e debrucei-me sobre o livro (SS,47). A aventura pelo pensamento filosófico era
de tal maneira desafiadora que o personagem se utiliza da metáfora do avião sem
combustível, a trinta mil metros de altura, para descrever sua aflição em compreender o
assunto. Em Um artista aprendiz, Autran Dourado resgata a metáfora do avião, reformula-a
e mostra como se sentia João nas primeiras aulas de filosofia: Inteiramente siderado, a
cabeça de João girava, os ouvidos zumbiam, feito estivesse numa cabine de avião não
pressurizada, voando a altíssima altitude” (AA,68).
Mas é ao lado da religião que a filosofia deixa as maiores marcas em João da
Fonseca Ribeiro. O episódio do flagrante do padre encontrado nu na cama com a irmã,
abafado pelo vigário de Duas Pontes, deixara o rapaz absolutamente descrente dos
ensinamentos da igreja. nos primeiros capítulos, quando o adolescente se recorda, com
ternura, dos conselhos maternos, ouve a voz da mãe orientando-o a permanecer rezando,
mesmo tendo perdido a fé. Segundo ela, essa seria uma das maneiras do rapaz conseguir
recuperá-la. Arrastado descrente pela vida, na primeira aula de filosofia, ouvindo falar em
Kant e na sua Crítica da razão pura, o rapaz se converte:
Todo o ateísmo rudimentar e adolescente de João encontrava ali o seu
fim. Dali em diante passaria a se dizer agnóstico: liquidado Deus, ia
edipianamente cuidar de seus afazeres. Mesmo participando da opinião do
professor sobre a Crítica da razão prática, que ele considerava inferior à
primeira Crítica, escreveu num papelão que ele mandou encaixilhar, o
imperativo categórico: “Aja de tal maneira que o teu modo de proceder
possa ser tomado como lei universal” que ele achava de uma beleza
comparável a outro trecho de Kant: “Duas coisas sempre me
impressionaram e deixaram meu coração mudo de medo e de espanto,
quanto mais freqüentemente nelas penso: o céu estrelado sobre a minha
cabeça e a lei moral dentro de mim (AA,76).
O entendimento do mundo à luz da filosofia libera o jovem João dos fantasmas da
Igreja Católica e impulsiona-o, daí em diante, a uma visão de mundo agnóstica, aquela que
“não acredita no sobrenatural, em Deus ou no divino. (...), a que declara incognoscível tudo
o que se encontra para além da realidade sensível”.
42
O gosto pela filosofia também pode ser notado na escolha de algumas imagens
usadas pelo próprio escritor, ao longo de toda a sua obra. Aquela do céu estrelado
abençoando os namorados, amparando-os em sua finitude é usada em Ópera dos fantoches
quando Ismael e Paula têm sua primeira experiência amorosa: “Ela vai aos poucos se
acostumando à construção abandonada, continua ele. O medo que Paula sentia das paredes
em ruínas desaparece. Como teto, o céu coalhado de estrelas. (...) Paula está pronta, vou
possuí-la” (OF,39). A igreja em ruínas, coberta pela imensidão de céu estrelado, sugere a
atmosfera de esplendor que o pensamento kantiano enseja. Tem-se a impressão de que,
assim como o jovem aprendiz assimilara que a lei moral interior e a grandeza do céu
42
JAPIASSÚ, Hilton e MARCONDES, Danilo (2006), p. 23.
estrelado se equivalem, também o jovem casal tornara-se vulnerável à magia da abóbada
sideral. Imantados, não mais pela lei interna, mas, possivelmente, pela lei cósmica que rege
o universo e a todos nós, acasalam-se.
A política aparece de maneira decisiva na formação do adolescente, principalmente
pelas implicações na construção do romancista, que ali é gestado. A sedução fica por conta
do Partido Comunista Brasileiro. Os opositores do ditador Getúlio Vargas se aglutinam em
torno do ideal propagado por Luís Carlos Prestes e se fortalecem com o partido. João custa
a decidir-se pela filiação partidária, mas termina por aceitá-la. Seu entusiasmo é tamanho
que, apesar de sua timidez, chega a participar, com demais ativistas, de pichações noturnas
pelos muros de Belo Horizonte. Mais tarde, em contato mais direto com as lideranças do
partido revê suas posições discorda da concepção da arte como veículo ideológico: a
literatura, como qualquer manifestação artística, não deve fazer concessões:
Cheio de conflitos e dividido interiormente, não sabia o que fazer, como
continuar no partido comunista e manter a sua liberdade de pensamento
sem quebrar o seu compromisso consigo mesmo, sem trair seu destino,
que era ser um romancista (AA,217).
Pouco depois da aliança de Luis Carlos Prestes com Getúlio Vargas, e a entrega de
Olga Benário aos alemães, o jovem romancista desliga-se do partido: “ele não estava
disposto a sacrificar o seu poder criador por coisa alguma do mundo. (...) Sua ambição:
escrever um grande painel de Minas, alguma coisa de grandioso, uma coisa forte, à Goya”
(AA,221 e 223).
Dos vários caminhos que trilha o narrador, o da literatura é, sem dúvida, o mais
expressivo. A trajetória de João da Fonseca Ribeiro começa com o gosto pelos livros. Antes
de escritores, nascem os leitores. Pois foram pelas mãos do doutor Alcebíades, o médico de
Duas Pontes, que chegaram os primeiros clássicos às mãos do rapaz. Machado de Assis,
por Dom Casmurro, e Antônio Vieira, pelos Sermões. Desse texto machadiano, em
especial, a supremacia da figura feminina, retratada em Capitu, reforça a fragilidade de
João em relação às namoradas. Dos sermões do padre, a rendição ao tempo como o melhor
remédio aos males da alma. Desde o menino chegando de trem, até a saída da capital para
tentar a sorte no Rio, o tempo é o tempero precioso em sua formação. A gênese do escritor
vem com o exercício textual praticado pelo hábito de escrever para a família. Isolado em
outra cidade essa seria a única forma de não interromper o convívio. Além dessas cartas
postadas, também as imaginárias engrossaram a lista do escritor: “(desde menino tinha o
vezo de mitificar os seres e as coisas, como escrevia longuíssimas cartas imaginárias às
mais disparatadas pessoas)”, (AA,176) A idéia da escrita perfeita nasce com a rigidez do
professor Tito, para quem a gramática deveria estar sempre acima de tudo. Curiosamente, é
no descumprimento das regras que o texto de João cresce.
A fim de entender o lugar do escritor no mundo, mais uma vez Autran se socorre da
metáfora. Agora ele não é mais aquele que vai ao fundo do mar conquistar o silêncio e a
paz dos cardumes para a criação. Desta vez, comparado à envolvente Xerazade, das Mil e
uma noites, que de história em história distraiu seu matador, o escritor seria aquele que
fabula para não morrer. “Quem sabe os romancistas só escrevem, contam as suas
histórias para continuar vivendo? Eu vou ser ainda um grande e importantíssimo
romancista, que ambição a minha, mamãe diria que é até pecado”(AA,32). “É imperiosa a
escrita.”, confirmou, mais tarde, Autran Dourado quando o entrevistei em 2006.
A influência do professor Sinval Souza junto ao jovem extrapola a filosofia. É ele
quem mostra, pela primeira vez ao jovem, Macunaíma (1928), de Mario de Andrade. Ao
contrário de Tito, Silval aposta na renovação sugerida pelos modernistas. Todavia, a maior
e definitiva influência que João receberia viria do escritor Silvio Souza. Uma das maiores
emoções do estudante corre por conta do encontro com o mestre. A sensação de plenitude é
tamanha que, ao sair da casa do romancista, revela o narrador:
Quando saiu da casa de Sílvio Souza, respirou fundo a noite fria estrelada.
Sabia que o caminho era duro e difícil, de pedras, mas se sentia confiante.
Pela primeira vez, desde que chegara a Belo Horizonte era um homem
inteiramente feliz (AA,92).
Durante o período em que João esteve na faculdade de Direito, apesar de
trabalhar como servidor público e preparar-se para a carreira jurídica, passou a freqüentar,
com assiduidade, as palestras de intelectuais que visitavam a capital mineira. No romance
referência expressa a Mario de Andrade e a Graciliano Ramos, este ficcionalizado como
Luciano Rêgo. O cargo do rapaz, revisor dos pareceres, dava a ele a folga necessária para
escrever durante o serviço e criatividade para publicar seus contos no suplemento literário
do jornal Estado de Minas. Das cartas maternas ao jornal, a via crucis do escritor ia sendo
traçada lentamente. Paralelamente, um diário cheio de anotações ia tomando corpo:
À maneira de Gide, escrevia simultaneamente o que chamava de Diário
de bordo, que poderia lhe servir muito no futuro. Quem sabe um dia ele
não ficaria famoso e poderia publicá-lo com o título de Gênese de um
romance? (AA,185)
O lado social de que necessita o artista até para se firmar, fazia-se nas conversas
alegres da leiteria Nova Celeste. Ali se reunia a nata da intelectualidade estudantil, os
amigos com os quais trocavam-se idéias, livros e esperanças. Na busca pela melhor escrita,
a escolha pela técnica, suor, e trabalho: “Me interessa sobretudo aprender todas as técnicas
narrativas possíveis e imagináveis. Se eu fosse acreditar que o romance é dom de Deus
estaria fodido. Aliás, tenho horror à palavra inspiração” (AA,136).
No penúltimo capítulo do romance, a primeira referência à conclusão do livro e à
vitória de João: “E ele vinha chegando ao fim do seu romance, em que, apesar de todo o
tumulto de sua vida, trabalhara afincadamente. E antecipadamente apossava-se dele a
sensação de euforia da obra terminada” (AA,252). O nome escolhido, Viagens na terra de
menino, remete a O risco do bordado, primeiro sucesso do escritor que é também um
passeio à cidade de João. Mais uma vez, ficção e realidade se mesclam. Mas é da última
página do livro que vem a mensagem maior da obra. Com o livro finalizado e a promessa
de viagem, o narrador conclui que, à moda de Xerazade, é preciso contar outra história para
permanecer vivo. outra completa a última narrativa. Na incompletude do texto, a do
homem e a da vida. João termina com o desabafo: “Não vou fazer isso, o que pretendo
fazer é um novo romance, que falhei no primeiro. Você não falhou, disse Laurentino.
Falhei, a gente só prossegue porque falhou, disse João” (AA,271).
Por fim, apontam-se as áreas de intercessão de Meu mestre imaginário e Um artista
aprendiz. Como já dito, o primeiro é resultado de uma bem cuidada compilação dos autores
que influenciaram Autran Dourado. Reunidos em um moldaram um único mestre,
Erasmo Rangel. Um artista aprendiz relata o processo de formação de João da Fonseca
Ribeiro como pessoa e como escritor. João, dito pelo próprio autor, é seu alter ego. Ora, se
assim o é, o mestre de um deverá ser também o do outro.
Se para Erasmo Rangel, a divisão dos homens entre platônicos e aristotélicos,
proposta pelo poeta inglês Coleridge, em Biografia literária (1817), era uma possibilidade
para compreensão das diferenças humanas, para o aprendiz também. Se a escrita labiríntica
toma um capítulo inteiro do livro de ensaios, também o aprendiz é pego tecendo uma
imagem labiríntica: “Ele ia desguiando, levando para rumos e veredas sombrias, corria o
risco dela tornar-se labirinticamente incontrolável (o seu pensamento quase sempre
labiríntico, o seu mecanismo interior tinha o risco de um labirinto)” (MI,229). Se no livro
do mestre as idéias centrais dos filósofos preferidos (Shopenhauer e Nietzsche) foram
selecionadas, no livro do aprendiz o painel da filosofia é didático e amplo. Mesmo assim,
no colégio, o professor Sinval Souza sugere ao menino o início do aprendizado por um
único filósofo e sugere Shopenhauer. Mais uma afinidade das obras. O texto de Gustave
Flaubert é estudado em dois capítulos específicos de Meu mestre imaginário e em Um
artista aprendiz, vários dos ensinamentos do escritor são destacados: a) a flexibilidade da
regra gramatical; b) a importância de estruturar-se o romance antes de começá-lo; c) de que
forma deve estar o autor na sua obra invisível, mas presente como Deus. Por fim, o
romancista é o selecionado como imprescindível a ser lido pelo jovem, na indicação de
Silvio Souza, escritor e amigo de João. “Escolhi apenas dois autores que você deve
conhecer bem, Stendhal e Flaubert” (AA,90). Citado no livro de aprendizagem, Stendhal
merece um capítulo inteiro no livro do mestre. Também a técnica narrativa do monólogo
interior e o manejo do stream-of-consciousness aparecem tanto no livro de ensaios como no
romance de educação. Edouard Dujardim, James Joyce, Henry James são discutidos por
Walter Gabriel, Francisco Hernandez, Silvino Moraes e Domingos, os também aprendizes,
amigos de João.
Fechando este capítulo, resta-nos assinalar o conceito de inspiração tratado também
nas duas obras aqui apreciadas. Para o mestre, resultado de duro penar: “Procuro escrever
daquela maneira, no duro rigor do estilo torturado, sofrido” (MI,23). Para o aprendiz, uma
emoção a regular: “A inspiração tem de ser domada com mão firme e muita disciplina”
(AA,33).
4. A FICÇÃO ATUALIZADA NA PRÓPRIA ORIGEM - Ópera dos fantoches e
Tempo de amar
O primeiro romance de Autran Dourado, Tempo de amar (1952), publicado em
1952, vem a público cinco anos após a publicação de sua primeira novela Teia (1947).
Seguida por Sombra e exílio (1950), essas duas novelas marcam o aparecimento do autor
no universo literário de Minas Gerais, e foram, portanto, o alicerce para o seu primeiro
romance. Anos mais tarde, foram republicadas com o nome bem sugestivo de Novelas de
aprendizado (1980), aludindo, pelo título, o período fundamental para a obra que viria a
seguir. Tempo de amar, segundo o próprio autor, assinala o período de “transição”. Trata-se
da passagem desse “aprendizado” inicial, para a produção de maior fôlego, aquela
representada pela coragem, se é que se pode assim falar, do pulo para uma narrativa mais
trabalhosa, como espelha um romance. Naturalmente, para os padrões atuais de escrita do
autor, dono de uma sólida consciência artesanal da obra de arte, esse romance inicial
mostra-se distante do texto requintado, que como dito, surgiria com o experimentalismo
da narrativa em blocos de A barca dos homens (1961). Contudo, já nesse primeiro romance,
Autran Dourado esboça, ainda que de forma tênue, as técnicas modernas de composição
textual assimiladas pelas leituras incessantes de escritores como Flaubert, Henry James,
Proust e outros mencionados, nos dois capítulos anteriores. Observa-se, pois, em Tempo
de amar, o esboço do talento narrativo do romancista e, ali, a “mão do aprendiz” revela
uma escrita firme. Também nesse romance inaugural, o caráter trágico que se amalgamará
ao universo ficcional do escritor aparece sugerido. Ingredientes como a tensão dos
contrários, a inexorabilidade do destino, a constante presença da morte, bem como da
solidão humana corporificam o cenário ficcional dessa narrativa. Tempo de amar traz
consigo uma característica ímpar: quatro décadas depois de seu lançamento, empresta seu
enredo para “vestir” uma nova narrativa que chega ao mercado editorial com o nome de
Ópera dos fantoches, em 1994. Nessa reescritura, a bagagem do autor, com vários
romances publicados, facilitou a manufatura do texto, que, “em segunda versão”, alcançou
dramaticidade e lirismo ímpares. Depois de A barca dos homens (1961), Uma vida em
segredo (1964), Ópera dos Mortos (1967), O risco do bordado (1970) e Sinos da Agonia
(1974), Tempo de amar pôde ser reescrito pelas mãos mais afiadas do que as de 1952. O
aguçamento poético do autor, bem mais refinado, então, apontaria para um romance
intimista, no qual a sondagem da alma humana exigiria uma acuidade artística, para a qual
o autor mostrou-se, de fato, preparado. Contudo, perguntado, em entrevista recente, se
Ópera dos fantoches teria surgido por insatisfação para com o primeiro, respondeu:
Não! Ficou a gosto. Mas como foi meu primeiro romance, tenho
uma visão crítica desse livro. Por isso é que eu resolvi reescrevê-
-lo, mas a história é a mesma. Embora eu parta do princípio de
que a história é apenas um recurso que o escritor usa quando quer
distrair o leitor para lhe bater a carteira (Entrevista,2006).
4.1. Tempo de amar
Tempo de amar (1952), como alude o título, baseia-se numa história de amor entre
dois jovens na pequena cidade de Cercado Velho. A paixão fugaz restringe-se à
adolescência, mas o narrador acompanha o casal vida afora. Ismael e Paula protagonizam a
curiosa história que mostra um homem abúlico e uma mulher vencida. Como frisado aqui,
já se percebe um traço importante na obra do escritor – a dificuldade humana em manejar o
destino. Os planos sempre fracassam à iminência de mudanças. Parece que a moldura
psíquico-social que aprisiona o indivíduo não lhe permite romper com o estabelecido. É
isso que fica evidenciado nessa história de amor que embala o romance. Ismael, embora
condenado a murmurar o nome Paula, como o da mulher mais forte que passara por sua
vida, não consegue fugir nem à mesmice da cidadezinha, nem da apatia de seu cotidiano.
Abandona a parceira sozinha, na estação, no dia previsto para a partida do casal. Paula,
filha bastarda de uma costureira amasiada com um bêbado, recusa-se ao estigma proposto e
à chacota permanente das outras meninas da cidade, cujo coro mirim reproduz a voz social:
“A mãe de Paula o presta/ A mãe de Paula não presta” (TA,240). Incomodada com a
rejeição, a moça entrega-se ao amor do rapaz como fonte de conforto para sua dor.
Descuidada, contudo, engravida. Ao assumir a gravidez sozinha e deixar Cercado Velho,
Paula liberta-se da cerca da cidade, mas não da sua. Em São Paulo tem a filha, contudo
prostitui-se para sustentá-la. É sobre esse conturbado amor que o romance discorre.
A narrativa constrói-se em três grandes blocos: Os retratos, a constelação e as
divindades obscuras. O primeiro subdivide-se em quinze capítulos, o segundo em sete, e o
terceiro em dezoito. Os retratos simbolizam a importância do passado na vida do
protagonista. Assim também será com a maioria dos personagens autranianos.
Considerando o grande novelo que é o texto literário, do mundo dos retratados vem o sonho
que alimenta a alma de Ismael. Perdido na inércia da atmosfera doméstica, uma de suas
distrações é a contemplação de retratos, alguns deles dependurados na parede da sala,
compondo a história de sua família. É também desse “sonhar acordado”, tão comum ao
protagonista, que se esboça a técnica de narrar calcada no monólogo interior, onde a lógica
da linguagem afrouxa-se e as ões carecem de nexo. Além disso, esse processo remissivo
e associativo, a que as introspecções dos personagens invariavelmente remetem, são
trabalhadas cuidadosamente por Autran Dourado para a construção de seu texto, no
contínuo mote da imagem lembrando imagem. A respeito desse tipo de narrativa comentou
Sônia Brayner, em o Labirinto do espaço romanesco:
A ficção do fluxo da consciência ao usar cnicas como as do monólogo
interior, direto ou indireto, o solilóquio ou a descrição dos estados
psíquicos feita por um narrador onisciente, entre outras, não pretendeu
apenas reformar o conhecido discurso interior da ficção. Invertendo o
nível da comunicação racional e controlada de um personagem tomado
como unidade reflexiva, abre mão da análise psicológica e penetra nos
domínios mais indevassados das manifestações psíquicas, na fluidez
contínua das sensações, fantasias e aspirações, a fim de desvendar os fatos
da consciência em contato com os fatos sociais, ambos de percepção
fragmentária a atomização da realidade convoca o indivíduo a valer-se
de um enfoque cada vez mais subjetivo.
43
As associações fazem-se na medida em que a narração transcorre. Ismael é fraco.
Anestesia-se do presente “mergulhando” nas imagens dos retratos pendurados na parede da
casa paterna:
O retrato, por artes misteriosas, virava sonho. Quando se aproximava,
desaparecia-lhe do rosto o sorriso, os olhos paravam o movimento
brincando. Muito estranha, com gestos de uma lentidão enervante,
desesperadora, dizia-lhe baixinho, como um conselho ‘Ainda é cedo
43
BRAYNER, Sônia (1979), p.180.
para você’. Mas a cabeça é que dizia. Ele não acreditava em outros
mundos dizia em sonho. Mas a friagem vinda da ausência branca de
Ursulina paralisava-lhe os passos, os lábios trêmulos não conseguiam
falar. Via-a afastar-se rápida, sem costas, para juntar-se a um bando de
crianças. o gramofone começa a arranhar o aranhol da música, sem
fim, sem fim... (TA,15)
É possível perceber o esmero do autor, que parte da simplicidade da atmosfera
doméstica e amplia o leque de sensações que ela sugere. Embora o protagonista esteja só,
dele se acompanha o clima etéreo que domina a casa. A sensação térmica de frio, sugerida
pela morte da irmã, aliada à música renitente que parte do gramofone, engrandece a cena de
abertura do romance o exato momento em que, evocado pela concretude do retrato da
parede, Ismael rememora a morte da irmã. A cisão com a ambiência onírica, tão a gosto do
protagonista, somente acontece ao final do capítulo, momento em que o pai, aflito com a
inércia do filho, tenta acordá-lo para apresentar-se no cartório de seu Tinoco. O jogo
translúcido que transita nessa dupla atmosfera a realidade e o sonho permeará a
narrativa de ponta á ponta. Haverá sempre um movimento de desligamento das coisas
terrenas contrapondo-se a um chamamento aos deveres a cumprir. Inclusive, é dessa tensão
de forças opostas que se delineia o caminho do personagem, que embora tente romper com
o imobilismo que o engessa, no mais das vezes, não consegue.
Na composição desse bloco, chega a ser quase matemática a alternância proposta
por Autran Dourado. A cada capítulo que discorre sobre o tempo presente, segue-se um
outro que evoca o passado. O movimento temporal da narrativa ziguezagueia com a mesma
simetria com que o protagonista troca suas pernas pela cidade. A ação dessa primeira
unidade foca o comportamento indolente de Ismael. Aflora, então, o primeiro conflito de
família do romance: Bento recusa-se a aceitar o filho como ele é. Por isso intima o rapaz a
aceitar o trabalho, não por mérito, mas à custa de influência, no cartório de seu Tinoco.
Para o pai, pior do que vê-lo assim é, ainda, rever no filho a sua própria história. Amargar a
sujeição ao outro pela via da dependência financeira. Ele mesmo agarrado ao armazém do
sogro, e o rapaz, cuja juventude fora cuidadosamente tratada no colégio interno,
desperdiçando a vida ao som de uma gaita e no fabrico de gaiolas. No abandono do curso
de Direito e no retorno precoce a Duas Pontes, a prova viva de que Ismael desejava
amalgamar-se definitivamente ao casulo doméstico. O pai trava então duas lutas: uma
externa e visível, tentando empurrar o filho para frente; outra interna e silente, evitando que
o rapaz refizesse o seu caminho.
Também já se percebe, nesse primeiro bloco, a gênese das primeiras manifestações
do narrador ao estilo câmera cinematográfica”, característico de alguns romances de
Autran Dourado. Acerca desse tipo de narração esclarece Lígia Chiappini: “Essa categoria
serve àquelas narrativas que tentam transmitir flashes da realidade como se apanhados por
uma câmera, arbitrária e mecanicamente.”
44
Obedecendo, naturalmente, a o que
direciona a máquina selecionando e montando o que quer mostrar. No romance, o narrador
atuaria como, no cinema, o diretor. Possivelmente, no primeiro capítulo de Ópera dos
mortos, quando da descrição externa do sobrado, tem-se a mais bela “tomada” do autor
nesse estilo de narração. Vale lembrar que o primeiro capítulo do romance inicia-se com
uma ampla descrição da fachada do velho sobrado dos Honório Cota, resvalando para o
olhar arredio e amedrontado de Rosalina que, por detrás das janelas, acostumou-se a espiar
a cidade. Também em Lucas Procópio (1984) e Um artista aprendiz (2000), o narrador
parte de uma macrocena para depois restringir e iniciar a narração do ponto de vista de um
personagem. No primeiro romance, a narração tem início com a descrição de três
cavaleiros, que chegando à cidade, são vistos ao longe numa estrada, como uma mancha
44
LEITE, Lígia (1985), p.62.
preta no verde da paisagem. O coro, primeiro narrador da história, que apenas começa, está
posicionado em qualquer lugar da cidade de onde se descortina a estrada de entrada da vila.
Também em Um artista aprendiz, é da imensa paisagem que emoldura a viagem de trem de
João que a narração tem início. A amplitude geográfica do evento narrado será minimizada
mais adiante, quando a paisagem é menosprezada em detrimento das recordações pessoais
do narrador. É quando a primeira pessoa assume o foco narrativo roubando o cenário físico
para o mundo interior do menino. O que se pôde constatar, neste estudo, é que o ensaio
desse tipo de cena aparece discretamente em Tempo de amar, quando a ambiência
externa preconiza as sensações que serão vividas pelo sujeito. À plasticidade do cenário
mineiro descortinado aos olhos do leitor, sua atmosfera barroca, com seu casario colonial,
disposto no oblíquo das ladeiras e no silêncio da paisagem morna da cidadezinha, associa-
se a uma linguagem simbólica, potencializada pelo requinte de metáforas e associações. As
descrições, que tomam boa parte do bloco, preparam os rumos da narração para um
mergulho posterior no íntimo do personagem:
Velha paisagem batida de todos os dias, sabia-a de cor. As luzes dos
postes banham como manchas amareladas o escuro das ruas. As horas
passam. As luzes das casas vão se apagando, como um brinquedo de
avisos combinados.(...) Uma a uma se apagam, desmaiam na escuridão de
Cercado Velho. Dos homens que vivem sob seus tetos, quantos dormindo,
quantos tristes, quantos amando? Por último a sua triste vigília, no
Bordel da Ponte para a noite as suas janelas acesas. Quantas mulheres
olharão também essas mesmas luzes? (TA,93)
Em Ópera dos fantoches, a disposição dos fatos atende a outras exigências do
enredo, e o primeiro dia de Ismael no cartório será focado no quarto capítulo do
romance. Com a trama ampliada, a introdução de outros personagens e o apuro do
monólogo interior, a história desliza e se estrutura com mais complexidade. A ênfase à
digressão, proposta pelo mundo dos retratados, será ainda maior. A vida exterior do
personagem vai, cada vez mais, cedendo lugar à sua interioridade anímica. O protagonista
deixa de falar de si e passa a falar para si mesmo. Os acontecimentos ganham relevância na
medida em que povoam suas contínuas reflexões. Não importa o fato, mas o seu significado
pessoal para o indivíduo que o vivenciou. O que em Tempo de amar apenas se esboça, na
reescritura do texto, anos depois, ganha tônus.
O segundo bloco, o menor deles, tem o tulo de “constelação”. É alusivo ao céu
que “abençoou” a primeira noite de Paula e Ismael quando adolescentes, numa igreja em
ruínas, tiveram seu primeiro momento de amor:
Aos poucos ela foi se acostumando à construção abandonada. Não tinha
mais medo das paredes escuras. O céu respingado de estrelas servia de
teto; pelas aberturas das janelas laterais, recortadas no céu via-se a adaga
da lua crescente. No alto das janelas, nas paredes em ruína, tufos de capim
aumentavam a aparência de casa abandonada. Os escravos pareciam ter
deixado ali algum feitiço. Era o que sentia Paula. (TA,146)
Essa imagem será retomada várias vezes durante a narrativa. O contraste se dá entre
o infinito representado pelo céu noturno, levemente colorido pelo amarelo das estrelas, e a
finitude humana que encarcera o homem em si mesmo. O jovem casal, embora nada
pressinta, terá seu destino assinalado pela dicotomia embutida na amplidão celeste e a
clausura do templo em construção. Paula simboliza o céu que se expande mundo afora,
Ismael o encarcerado em si mesmo. O movimento antitético, constante na narrativa de
Autran Dourado, mostra um pouco de sua gênese. Há, invariavelmente na obra desse
mineiro, um emparelhamento de criaturas opostas que vivem histórias comuns. A
singularidade da abordagem é que chama a atenção, a firmeza com que trabalha a zona de
intercessão que une os díspares. Num aprimorado movimento tangencial, Autran Dourado
coloca lado a lado as criaturas mais estranhas, vivendo as mais profundas intimidades. No
texto subjacente ao principal, sempre a mesma certeza: na ausculta da alma alheia é
possível ouvir os ecos da própria. Por paradoxal que pareça, é no reconhecimento do outro
que a subjetividade se aguça. Com apuradíssimo estetoscópio, a narrativa autraniana sonda
os mistérios do humano promovendo o encontro do grande com o pequeno, do corajoso
com o covarde, do tolo com o astuto e toda sorte de oponentes. Vêm à baila, então, pares do
tipo: Teteu Mão de Onça e Jezabel (Armas & Corações), Juca Passarinho e Rosalina
(Ópera dos mortos) e vovô Tomé e vovó Naninha (O risco do bordado). É deste jogo
denso e contínuo que a escrita se fortalece e aguça a curiosidade do leitor. No mais das
vezes, disposto a acompanhar a descontinuidade dessas relações exóticas e improváveis, ele
mal se apercebe do momento em que se entrega à trilha proposta: o curioso caminho da
criação.
Também nesse segundo bloco, o espaço físico romanesco sofre um deslocamento
importante. As descrições minuciosas, que antes focavam o ambiente externo da cidade,
dirigem-se agora para o interior das casas. A impressão que se tem é a de que, ainda à
semelhança de uma mera de filmagem, finda a tomada exterior da cidade, precisa-se
adentrar por espaço menor, para que a história possa começar a ser contada. Três ambientes
importantes são colocados à vista do leitor: O quarto de Paula, onde ela espera pelo
namorado; o interior da igreja, onde Ismael acompanha a mãe que reza ainda pela irmã
morta; e o interior do velho casarão da Fazenda dos Mamotes, lugar onde todos da família
guardam uma fatia poderosa de passado. As associações que aproximam o lugar físico do
mundo interior
45
tornam-se freqüentes e o ambiente externo, via de regra, reflete o interno:
Os passos ressoavam nas tábuas largas e secas que pavimentavam a
igreja, os grandes retângulos com números gravados. Sem nenhum receio
45
No pensamento moderno, principalmente no racionalismo cartesiano, a consciência, a
subjetividade, o pensamento, a mente, com suas idéias e representações, aquilo que
pertence ao sujeito pensante, em oposição o mundo exterior. (2006) p.195 (Dicionário de
Filosofia)
aquele mesmo receio que sentia quando criança ao entrar na igreja,
vendo as figuras dos santos e o misterioso silêncio cheio de sussurros
caminhando na doce calma que a manhã lhe trazia aos nervos,
vagarosamente Ismael atravessava a igreja, por entre os bancos. À
passagem de cada altar lateral a mãe fazia uma ligeira genuflexão. (Grifo
meu) (TA,117)
Agora não é mais o negrume dos telhados nem a fachada colonial do casario que se
quer realçar, mas o interior soturno e apaziguador das naves das igrejas apascentando os
fiéis em comunhão com o divino.
O terceiro e último bloco, “divindades obscuras”, direciona a trama para a
conclusão. Ali Ismael é comparado a Turnus, conforme aponta Beny Ribeiro dos Santos,
em estudo sobre Ópera dos fantoches:
Mito e literatura constituem atos de representação. Suas criações excedem
os referentes naturais à medida que incorporam significações imaginárias.
Compartilham a sede de criação que existe em todo coletivo humano. Um
desejo insaciável de fazer sentido.(...) Ismael se identifica com Turnus,
personagem da Eneida (29-19 a.C.) que conhece as aporias da errância.
46
Em Cercado Velho, pelo seu eterno vagar, a meninada apelidara-o de Troca-
Pernas. Embalado pela suave melodia extraída da gaita que toca, qualquer caminho lhe é
sugestivo, por isso mesmo, invariavelmente, perde o rumo: “A noite cai em Duas Pontes,
tiro a gaita do bolso e começo a tocar aqueles trechos do Noturno, continuo. Uma longa e
profunda tristeza se abate sobre mim. Não sei o que fazer, não sei para onde ir” (OF,244).
Nesse último bloco, o que está em jogo é, sobretudo, o destino do homem. O de
Ismael contraponteado ao de Paula e Gonçalo. Do alto da torre da igreja, onde se pôs a
contemplar a pequenina cidade, amiudado, observa:
Perdera o contato com a realidade, esquecera a tradição da terra. Pertencia
a essa espécie de homens que se afastam da terra por impossibilidade de
manter a sua tradição sanguínea, por não querer sofrer o perigo de ser
humano, a solidão sem fuga.(...) Longe dele aquele misto de heroísmo e
46
SANTOS, Beny Ribeiro dos (2004), p.01.
loucura que caracterizava Gonçalo e Paula. Não era homem para se
afundar na terra, se afogar na sua seiva, sentir amor, humildade, ódio,
sofrer, resistir, revoltar-se, enfim, tudo isso que forma grande construção
humana, o coração bárbaro da terra (TA,229).
Paula e Gonçalo representam, cada um a seu modo, a força vital vinda do solo. É a
valorização da terra, sinônimo de vida, conceito que supera dicotomia clássica que divide o
real em duas partes: o sensível e ultra-sensível, como se verifica na tradição ocidental,
desde Platão. O primeiro refere-se ao âmbito da pluralidade do real e de sua transitoriedade.
O segundo, ao contrário, é a dimensão absoluta e atemporal da realidade. Portanto é a idéia
de terra em oposição ao mundo ultra-sensível – o céu – de verdades absolutizadas, proposta
por Friedrich Nietzsche, em Assim falou Zaratustra: “Enfermos e moribundos eram os que
desprezavam o corpo e a terra e inventaram o céu e as gotas de sangue redentoras.”
47
A
terra como o lugar de lastro de vida. Aquele onde o homem, ao apropriar-se dela, resgata a
fonte da vitalidade. Vitalidade que exacerbam Paula e Gonçalo, e que falta a Ismael. O
contraste se fará de duas formas. Primeiro na figura de Gonçalo, que às raias do absurdo,
assassina o próprio pai. Ele, filho bastardo e ocultado, objeto de desejo da própria irmã. E
Paula, não tão radical, contudo mais próxima de Ismael, rompe também com a família, com
a cidade, com o namorado e com o mundo de sonhos planejados. Na outra ponta, Ismael
prefere o certo: o caminho seguro do casamento em família. Assim, aproxima-se da prima
Tarsila, cuja presença evoca a irmã morta, e de alguma forma a traz de volta. Na novena
mandada rezar em memória da irmã, descobre e externa afeto à prima:
De novo a luz dos olhos de Tarsila circundou-o. Faiscava neles a promessa
de um mundo belo, terno, desconhecido. A absurda semelhança entre
Tarsila e o retrato de Ursulina, a imagem que dela guardava, fez com que
um tremor frio corresse seu corpo. Era a lembrança da morte que marcava o
perdido caminho do amor (TA,182).
47
NIETZSCHE, Friedrich (2003), p.58.
O desafio de uma vida autêntica, longe da tutela da família, não seduz o Troca
Pernas, que acaba por preferir o marasmo da vida cartorária, escondido atrás de pilhas e
mais pilhas de certidões a transcrever: “Lentamente, a mão traçava as letras grandes e
caprichosas (seu Tinoco gostava de seu trabalho mais por causa da caligrafia), quase
bordava algumas. De vez em quando erguia os olhos do papel. Só então havia alguma coisa
de expressivo no seu rosto” (TA,151). Assim também, nessa cópia infinita, tece a trama de
sua vida, onde nenhuma “escrita” original acontece.
Gonçalo encarcera-se no presídio qual “trapezista pendurado” nas malhas do tempo.
Do alto da janela, pernas soltas e mãos agarradas ao ferro das grades “uma ave
machucada não seria mais triste” (TA,222), registrou Ismael ao vê-lo, depois do crime. Já,
Paula embarca solitária na estação de trem para São Paulo. E o namorado, que de longe a
tudo assistia, sai pelas ruas, onde termina “agasalhando” a alma no bordel da Ponte para
“dormir seu sonho”.
Do ponto de vista da linguagem, o texto aponta resquícios da escrita formal que, em
Ópera dos fantoches, o autor te definitivamente abandonado. Por exemplo, ao
descrever a cena de Paula entrando na sacristia, diz o romancista: “Se custasse mais, não
esperaria, estava decidida. Mas a porta se abriu e a luz que veio da sacristia fê-la fechar os
olhos” (TA,232). A proximidade com a fala cotidiana, caminho que escolherá o autor, pede
“a fez” em vez de “fê-la”, que pelo afastamento sugerido, esfria um pouco a narrativa e
distancia o leitor.
A notação de diálogos com o uso de travessões ficará restrita a Tempo de amar.
Aqui, embora o monólogo interior seja esboçado, o narrador ainda é o grande “maestro”
da narração, que se desenvolve em terceira pessoa. Nesta cena doméstica, onde Paula e a
mãe se completam no bordado noturno das costuras domésticas, tem-se:
- Quer que eu ajude? perguntou Paula, querendo mover a superfície
silente da lagoa, o silêncio que cresceu a ponto de ensurdecer, querendo
vencer o coração desordenado.
- Não obrigada... eu mesmo faço...
Tentou sorrir, não conseguiu, ficou a meio caminho. Os olhos
começaram a brilhar. Vendo o desapontamento da filha, ajuntou:
- Se quiser, pode ir puxando o fio do linho para o crivo que vou fazer
amanhã (TA,200).
Também em Ópera dos fantoches os verbos de dizer, utilizados com freqüência na
terceira pessoa do singular na voz do narrador onisciente de Tempo de amar, passarão à
primeira pessoa nos longos monólogos e, muitas vezes, desaparecerão. Nesse caso, a
urdidura textual será composta de tal maneira, que fica para o leitor a tarefa tão difícil
quanto instigante de decifrar as vozes do texto. Esse é, sem dúvida, um dos refinos do
romance posterior: a mescla silenciosa das falas dos personagens.
Da mesma forma que em Ópera dos fantoches, o último episódio narrado tem lugar
no bordel da pequena cidade. A diferença está na intenção do protagonista: enquanto em
Tempo de amar é o esquecimento, no segundo romance, ao contrário, a lembrança. Ismael
contrata o serviço do escritor João da Fonseca Nogueira porque não se conforma com o
grato esquecimento a que os humanos estão condenados. Planeja dessa maneira eternizar-
se. Em Tempo de amar o protagonista não demonstra qualquer interesse em perpetuar sua
história. Ali ainda debate-se com as solicitações de uma vida mais plena e as dificuldades
de aceitar desafios. Vive num eterno quero-não-quero, posso-não-posso, devo-não-devo. A
paralisia, a que se adapta complacentemente, tem sua gênese na maior de todas, aquela que
não lhe permitiu salvar a irmã da morte no açude. A imagem de Ursulina devorada pelo
rodamoinho das águas, e sua impotência face à voracidade da natureza, selarão também,
como um fado, a sua imobilidade para a vida.
A epígrafe que ilumina o romance, de Dante Alighieri, traz três versos do Canto XII
do Purgatório, da Divina Comédia. O famoso poema narrativo escrito pelo poeta italiano,
no século XIV, discorre sobre sua longa viagem pelo inferno, purgatório e paraíso. O verso
apropriado por Autran pertence ao segundo livro, aquele que descreve a viagem no
purgatório. Sobre o amor diz Dante: “Quince compreender puoi ch’esser conviene/ amor
sementa in voi d’ogni virtute/ e d’ogni operazion Che merta pene.”
48
O amor tanto gera a
virtude como um ato passível de punição. Ora, o amor que nasce com os adolescentes Paula
e Ismael é também embrionário, portanto, ainda ambíguo, passível de significação positiva
ou destrutiva. Na sua gênese, diz o poeta, o amor constitui ponto de partida tanto para o
bem como para o mal.
Na literatura universal, além de outros tantos amores, o de Dante por Beatriz
celebrizou-se. Neste poema, é com ela que ele conta para guiá-lo pelo paraíso. Vencidos
inferno e purgatório, ambos com o auxílio de Virgílio, a recompensa vem com o alcance
dos céus. Em Cercado Velho, Ismael não transpõe o purgatório e nem tampouco alcança o
paraíso. Também não se deixa, em momento algum, levar por Paula. mesmo o troca-
troca de pernas, nas ruas, como no nome conduzem o guarda-livros pelo vilarejo. A
topografia da cidade, em muito, favorece ao desânimo. O medo da aventura é tamanho que
Ismael, como já apontado, mesmo para casar-se, não se desliga do núcleo familiar. É com a
pacata Tarsila filha de tia Evangelina que a união se viabiliza. As montanhas, ao
contrário das vencidas pelo poeta italiano, aprisionam o jovem rapaz. O amor não floresce.
Na pequena vila de Autran Dourado, o amor fracassa. Não redunda em virtude, mas
punição.
48
“E assim poderás entender como o amor é ao mesmo tempo a semente de toda a virtude e
de todo o ato que merece punição”. (2002) p.193.
Além de prenunciar a técnica do monólogo interior, típica do romance moderno,
esboça o amálgama do escritor com a cultura helênica. Embora de forma ainda tênue, o
gosto do autor pelos ideais gregos se percebe com clareza. Sabe-se que, para eles, a palavra,
quando pronunciada, tinha a capacidade de trazer consigo a coisa nomeada. Também presa
ao passado, Tarsila, prima e esposa de Ismael, reflete:
Descobriu pequenos prazeres ao dizer de maneira diversa e
pessoal os nomes das coisas e dos lugares e das pessoas. Quando
falava Mamote, de cada jeito que dizia, parecia uma coisa,
lembrava-lhe uma face escondida do tempo: a fazenda do avô, a
mãe dizendo “Sila, vamos para os Mamotes”, a infância com
Ismael [...] uma infinidade de associações antigas e novas,
significados criados no momento em que ela tinha certeza de não
se repetirem igualzinhos como eram naquele segundo entre as
sílabas da palavra que dizia. E as cores que as palavras pareciam
ter quando ditas! (TA,190)
Conforme comenta Laura Goulart Fonseca, em Linguagem e verdade em Autran
Dourado:
49
“O caráter sagrado da palavra permanece quando ela é símbolo e não signo. O
símbolo não representa, mas significa o que é. (...) É a linguagem poética que liberta a
palavra de seus automatismos e faz aparecer sua originalidade.”
50
No dia-a-dia, o
significado original da palavra é encoberto e toda poesia se perde. Pois é justo na busca
originária de sentido que o texto literário opera, revigorando a palavra. Tarsila ao recordar,
divagava: “O nome Ismael parecia um pequeno e misterioso fetiche, tinha a existência dos
objetos, como uma estatueta de biscuit ou terracota. Sem que soubesse criava uma
mitologia” (TA,190).
Outra alusão ao mundo helênico, berço do teatro, é aquele que embute a idéia da
vida como representação teatral, e acontece quando é narrada a vida familiar de Paula. A
mãe, cansada, agarrada à máquina de costura para o sustento da casa, e o padrasto, bêbado,
49
no exame dos romances Sinos da agonia e Ópera dos mortos.
50
FONSECA, Goulart Laura (2005), p. 3.
cantarolando músicas indecentes entremeadas de palavrões. Para essa pesada atmosfera
cotidiana, é engendrada quase uma cena teatral. a Cacilda, a mãe, uma máscara própria
para seu personagem, como na Grécia Antiga: “Uma dessas máscaras que o teatro antigo
usava, máscaras para a dor, paradas, apenas o rictus que a caracterizava, cuja emoção era
dar uma emoção única, inconfundível e demorada no espírito do público. (...) Era difícil
saber o que se passava dentro dela...” (TA,197) A veia “teatral” do escritor pulsa nessa
passagem doméstica, em especial, onde não faltou nem público para o espetáculo. A
mescla do padrasto bêbado, a mãe solteira e a filha bastarda fazem da ambiência familiar
um palco repleto de conflitos para a encenação trágica da vida.
4.2. Ópera dos fantoches
Ópera dos fantoches, a vigésima primeira obra do autor, aponta para dois aspectos
importantes do texto de Autran Dourado: a escrita recorrente e, de certo modo, a vocação
teatral de seu texto. A seguir, começando pela segunda, investigam-se essas duas vertentes.
Se em Ópera dos mortos (1967) e Sinos da agonia (1974) essa tendência
aparece, com a reescritura de Tempo de amar, é que a inclinação do autor pela estrutura
dramática se consubstancia. Faz-se aqui um pequeno parêntese para explicar essa
inclinação do texto do romancista. Em Ópera dos mortos, a aproximação do texto narrativo
com o dramático se faz por mera sugestão. O velho sobrado, da maneira como é tratado,
assemelha-se a um grande palco onde se desenrola o espetáculo. Ali os atores, gente da
família Honório Cota, consubstanciam a raiz polifônica do texto. Representam, vivos ou
mortos, linhas melódicas que correm paralelas, cada qual com a sua sina. em Sinos da
agonia, a proximidade entre os gêneros está bem mais evidenciada. Acontece não pela
estrutura, também polifônica,
51
tal qual na tragédia grega, mas também pelo seu
emolduramento mitopoético, refletido pelo processo de apropriação de imagens literárias.
Nesse romance, Autran Dourado apropria-se de algumas calcadas no mito grego de Fedra,
de Eurípedes. Inspirado nele, o autor constrói sua Malvina, de Minas Gerais do século
XVIII, cujo amor pelo enteado Gaspar também leva a desfecho fatal. Desesperada por não
ser correspondida, assim como na tragédia grega, Malvina também manda matar o amante.
Em Ópera dos fantoches, o termo ópera vem atrelado a mais um elemento de teatro
o fantoche. Se ópera
52
contém a idéia teatral, fantoche veio então reforçá-la. Contudo,
desta vez, a ópera não será mais a dos mortos, do sobrado de Rosalina, e sim de gente, e
bem viva. A dificuldade dos personagens, todavia, atrela-se ao manejo com o destino: este
como tecedor do drama humano e um dos ingredientes prediletos dos tragediógrafos da
Grécia Ática. A esse propósito, Beny Ribeiro dos Santos aponta, dentre outros, o problema
da falta de destino de Ismael, o protagonista do romance:
As demandas do presente se tornaram um peso na vida de Ismael.(...)
Nenhuma decisão permanece diante de sua falta de força para se deixar
levar na corrente dos acontecimentos. Teme sua humanidade. Esconde-
se dela, quando se refugia no passado. Em contrapartida, deixa se
conduzir pelos subterrâneos da memória e da imaginação evasiva.(...)
Identifica-se com a ancestralidade de Cercado Velho e com a falta de
destino de Turnus.
53
51
Onde o narrador quase não interfere, vez que atua acoplando-se aos próprios personagens
em um multivocalismo absoluto.
52
É John Louis Digaetani que, em Convite à ópera, amplia o seu conceito. Apesar dela
consubstanciar-se numa arte musical, também se serve do canto para sua expressão e de
outros elementos para a sua composição: os cenários, a iluminação, o vestuário e a
representação teatral. O canto é desenvolvido através de vozes humanas com registros
especiais: tenor, soprano, barítono, baixo. A ópera, portanto, congrega outras formas de arte
(poesia, pintura, escultura, arquitetura etc) para sua plena realização.
53
SANTOS, Ribeiro Beny (2004), p.7.
Conforme apontado anteriormente, quando se focou a significação mítica do
comportamento de Ismael espelhado em Turnus, dele também se apropriando do estigma da
errância. Sua inadequação aos projetos da família adicionada à impossibilidade de ruptura,
leva-o à eterna procura de seu lugar no mundo. Daí ter sido comparado a Turnus, o herói
sem destino, da Eneida, de Virgílio. Como não se encontra, em nenhum ambiente,
perambula pelas ruas de Cercado Velho. A bem dizer, a Casa da Ponte, com Mariquinha
Bala e suas meninas é o único lugar onde o protagonista pára e descansa. Ali, inclusive,
fora o único espaço disponível ao narrador de Tempo de amar, para, ao final da trama
original, deixá-lo.
Nessa ópera segunda, a vez será dos fantoches. Aqui também o homem “vivo” será
descartado. Teatro de fantoches significa teatro de bonecos, onde a figura humana não
aparece em cena. Nem mesmo a mão do homem que os faz viver aparece ao público. Assim
são os personagens dessa narrativa de Autran Dourado. Bonecos manipulados por uma mão
que, por haver esquecido o roteiro da trama, não sabe como guiá-los: “Eu, porém, não
acredito em vida além-túmulo. Será que não representamos uma ópera de fantoches, os fios
movidos por ignota mão, que segue libreto de um deus que dele não cuida mais?” (OF,26)
Comenta o protagonista com o João da Fonseca Ribeiro, no primeiro encontro dos dois,
momento esse em que Ismael o contrata para escrever suas memórias. Ali uma panorâmica
da vida de Ismael é traçada. Resta saber se é possível romanceá-la. No desejo do
protagonista, o abrigo de uma enorme contradição: eternizar sua rala história pessoal.
Se antes o título vinha encharcado de uma concepção romântica da vida – Tempo de
amar –, agora apresenta um recrudescimento na abordagem. O tempo é outro, dos
fantoches, numa ópera: teatro com música. A pompa barroca trazida para a vida do dia-a-
dia. Desta vez o que é o “grande teatro do mundo”. As epígrafes também são bastante
sugestivas. A do primeiro romance, conforme visto, é retirada da Divina comédia de
Dante Alighieri. Mas a epígrafe de Ópera dos fantoches é do dramaturgo espanhol, do
século XVII, Pedro Calderón de la Barca, e diz: “...y pues que ya tengo todo el aparato
junto, venid, mortales, venid a adornaros cada uno para que representéis em el gran teatro
del mundo!”
54
A idéia central desse pensamento entende a vida como uma grande
representação teatral, para a qual todos estão convidados a participar. Não mais o
vaticínio de um tempo de amor, mas um convite à representação cênica da própria vida, em
que todos estão convocados.
Em Ópera dos fantoches, também o capítulo perde essa designação característica da
narrativa em prosa, e ganha o nome de cena, como acontece com o texto dramático:Toda
cena, toda palavra tem funcionalidade dramática.”
55
A cena apontada em cada início de
capítulo funciona como uma referência espaço-temporal e não está ali por acaso. Cada parte
do romance contém uma numeração em romanos, com o nome do personagem dono do
monólogo e, ao lado da palavra cena, a situação geográfico-temporal do monólogo narrado
que virá a seguir. O escritor serve-se desse recurso teatral para iniciar não o romance,
mas também cada um de suas partes: “I JOÃO Cena: Duas Pontes, Casa da Ponte, por volta
de 1950” (OF,15). A função deste pequeno “carimbo” é sugerir, de forma resumida, o que
virá em seguida.
Outro ponto que aproxima Ópera dos fantoches em relação à estrutura dramática é
sua composição peculiar. Cada cena corporifica um grande monólogo. E este narrado pelo
personagem cujo nome batiza o capítulo. Embora o primeiro momento do romance
54
BARCA, Pedro Calderón de la. El grand teatro del mundo. “...e pois que tenho todo o
aparato junto. Venham mortais, venham se enfeitar cada um, para que representem no
grande teatro do mundo!” (Tradução de José Bento).
55
STAIGER, Emil (1972), p.144.
reproduza o encontro de Ismael, o protagonista, com o escritor João da Fonseca Nogueira, é
este quem o relata. O protagonista, em sua primeira cena, perde o foco de luz para o
coadjuvante. A matéria narrada vem ao leitor pelo ponto de vista de João que, num bordel,
encontra-se com o Troca-Pernas, para ouvi-lo e avaliar se a sua história de vida daria, ou
não, um romance. Assim como a ficção interpreta o real para torná-lo inteligível ao homem,
aqui também não acesso ao fato bruto. João, intermediando os acontecimentos, fará a
vez do ficcionista ao retratar a realidade. Apesar de protagonizar a ação, ela se inicia pela
voz do outro, cuja importância é tão restrita, que se limita aos capítulos inicial e final.
Apesar do diálogo consistir numa das características identificadoras do estilo
dramático, em Ópera dos fantoches não há, nem por exceção, uma notação sequer de
travessão. Este traço físico parece ter ficado mesmo, lá atrás, em Tempo de amar. Nas
poucas falas diretas dos personagens, a predileção ficou, ou com as aspas, também uma
notação de conversa entre personagens, ou com refino do monólogo narrado, cuja fluidez,
como dito, permite a interpenetração das vozes da narrativa. Desde 1974, com Sinos da
agonia, o autor adota a narrativa perspectivada, aquela que reproduz um mesmo evento
narrado por vários pontos de vistas. Alguns romances de Autran privilegiam essa técnica,
cujo objetivo é justamente mostrar que a mundividência de cada indivíduo produz uma
compreensão diferenciada do fato vivido. Portanto, duas décadas antes da publicação de
Ópera dos fantoches, o romancista mineiro dominava esse recurso narrativo. O que sem
dúvida facilitou nessa “ópera” a retomada da técnica que, embora reconheça suas raízes no
romance contemporâneo, remonta à estrutura dramática da tragédia grega. Ora, com a
narrativa assumida por vários pontos de vistas diferentes, dos vários personagens, a
hegemonia do narrador cai por terra. Essa forma de mediação, típica do nero narrativo,
perdendo seu maior “personagem”, perde também sua força. Conforme entendimento de
Laura Goulart Fonseca:
Na vertente dramática do romance contemporâneo, que teve sua origem
em Gustave Flaubert, o narrador simplesmente desaparece da cena
narrada e passa a mostrar os eventos: o que acontece é uma teatralização,
o leitor vê a cena como se ela fosse representada em um palco. Os eventos
deixam de ser narrados e passam a ser refletidos na consciência da
personagem, de modo que o leitor visualiza a realidade ficcional do ponto
de vista de um personagem do romance, e não do narrador.
56
O que se vê, então, é um narrador enfraquecido, que à semelhança do texto
dramático, torna-se prescindível. Com a voz diluída por entre os personagens, como na
representação teatral, o narrador autraniano mergulha no indivíduo e assimila sua
subjetividade. Tem-se a impressão de que não necessidade de um ente maior que os
regule. Curioso notar como um mesmo episódio pode ser narrado de maneiras tão distintas,
por dois personagens. Passa a ser atraente ao leitor cotejar as versões. Uma das habilidades
do escritor, ao compor a narrativa, relaciona-se exatamente com a deslocação subjetiva:
narrar de múltiplos pontos de vista. A partida de Paula, na pequena estação de Cercado
Velho, parece desmembrar-se em dois episódios distintos, quando contado por ela, ou pelo
namorado. na narrativa tradicional, quase nunca o escritor desafiara a hegemonia do
narrador onisciente, o que tudo sabe e pode. Nem mesmo o autor, em Tempo de amar
(1952), o fez.
Por fim, na tentativa de definir algumas características do drama moderno,
comparando-o com o antigo, recorre-se a Mario da Gama Kury:
O drama antigo procura delinear o destino, enquanto que o moderno se
esforça por traçar os caracteres dos homens; o drama antigo apresentava
situações determinadas e manejadas por misteriosas forças superiores e
exteriores aos personagens, enquanto que o moderno expõe
56
FONSECA, Laura Goulart (2002), p. 2
situações trágicas produzidas e desencadeadas pela ação livre dos
personagens ou transfere para os setores patológico e social.
57
Sim, Ópera dos fantoches reveste-se de características modernas. As situações
trágicas ali produzidas foram desencadeadas pela ação livre de seus personagens e do meio
social em que eles estão inseridos. Não deuses, heróis, nada que possa transferir a
responsabilidade humana aos desígnios superiores. Como dito anteriormente, Ismael, em
sua precariedade existencial, é o novo Turnus da Eneida, de Virgílio, a procurar seu
destino. Esse ingrediente, a relação homem/destino, retirado do teatro clássico, nem que de
forma metaforizada, encontra-se presente nesse texto de Autran Dourado, em via oblíqua,
trazendo para os tempos atuais as errâncias antigas, o problema do destino como
inexorável. Um drama moderno com a adição de ingrediente clássico, assim entende-se
Ópera dos fantoches.
Além do aspecto dramático formal de Ópera dos fantoches, vale ressaltar também o
cunho trágico do conteúdo de sua narrativa. Vale aqui uma ligeira aproximação com a idéia
do poeta alemão Hölderlin, acerca do mito de Empédocles. O curioso paradeiro de Ismael
enseja uma analogia desse tipo, senão vejamos:
Hölderlin foi um dos pensadores modernos que mais se interessaram pelo
mundo grego. Não apenas como um mundo harmônico, solar, tal como
fez Winckelmann ou Goethe, mas também como um mundo sombrio,
mortífero definindo o trágico a partir da contraposição entre esses dois
elementos. (...) Em A morte de Empédocles, peça inacabada, na qual
Hölderlin trabalhou de meados de 1797 ao final de 1799, e nos textos
poetológicos dessa época, seu pensamento sobre a essência do trágico está
marcado pelo antagonismo, mas sobretudo da unificação desse
antagonismo, da contradição.
58
57
KURY, Mario da Gama (1965), p.8.
58
MACHADO, Roberto (2006), p.139.
Segundo a mitologia, de um momento para outro, Empédocles foi abandonado por
todos os que o seguiam e o idolatravam. Preferido pelos deuses e natureza, ele se
renegado pelo povo de sua cidade Agrigento. Todos se juntam ao sacerdote que o expulsa
da cidade. Sem alternativa, ele se exila. Pois é nesse exílio que o herói toma conhecimento
de seu destino: morrer no fogo do vulcão Etna. Ali, voltando ao nada, poderá fazer as pazes
com a mãe natureza. Assim conseguirá ser novamente amado pelos deuses e ficar em paz
com a humanidade.
Sabe-se que a marca fundamental do trágico é o conflito, sem o qual o texto
dramático não se consubstancia. Contudo, para Hölderlin, apenas a tensão dos contrários
não é suficiente para ensejar essa situação. Um de seus méritos, nessa questão, reside
justamente na abrangência que concede ao conceito, quando aponta não para o conflito,
mas, sobretudo, para a unificação deste. Segundo seu próprio entendimento: “O modo de
compreender a significação das tragédias é pelo paradoxo.”
59
Ora, Ismael, o herói sem destino de Ópera dos fantoches, também, ao final da
trama, se retira da cidade. À semelhança de Empédocles, refugia-se no “escuro quentume”
da Casa da Ponte, quando também, desolado, assiste impotente à partida da namorada. Para
camuflar a vida paralela dos homens da cidade, a localização geográfica do bordel é fora do
perímetro urbano. Daí a analogia com o exílio do siciliano: ele está fora da cidade física e
socialmente. As moças que ali vivem estão também à margem da sociedade de Duas
Pontes. Um exemplo típico desse isolamento é o caso de Zulu. Quando a prostituta
comparece, em plena luz do dia, ao cartório de seu Tinoco para tomar satisfações acerca de
uma afilhada, ele a intima a deixar a cidade, pelo delegado. É nesse contexto que se o
isolamento de Ismael. O bordel metaforiza o vulcão, na medida em que atrai o herói para o
59
HÖLDERLIN, Friedrich (2001), p.165.
exercício de seus instintos primitivos. Se a Empédocles chama à morte, a Ismael atrai pelo
possibilidade do gozo físico. Aqui, a “lava vulcânica”, que o lambe, faz-se presente na
sedução irresistível das prostitutas. Somente elas, a expressão mais forte da sexualidade de
Duas Pontes, podem resgatá-lo da vida insossa que leva. Apenas através delas, é possível
dar sentido a sua vida, devolvendo-lhe a sintonia com a natureza o regozijo advindo do
banho pelado, no açude da Fazenda dos Mamotes, com Ursulina, a irmã morta.
Também sobre a harmonia resultante da dualidade essencial da tragédia, aponta
Ronaldes de Melo e Souza: “O drama trágico de Ésquilo, Sófocles e Eurípedes é a
representação da disputa do cosmos e do caos, da vida e da morte, da luz e da treva, enfim,
da tensão harmônica dos contrários em luta em todos os aspectos da realidade cósmica.”
60
Como no drama trágico, Ismael vive permeando entre oposições: no amor, encontra na
coragem da namorada, que parte, a antítese para a covardia, de quem fica; no brilho da
carreira de advogado (a metáfora da luta por excelência) que deixa, a face oposta da
atividade pacata de escrivão a bordar letras, que abraça; na relação fraternal, a sujeição
natural ao brilho e a autoridade intrínsecas de Ursulina.
Apesar do mito de Empédocles associar seu exílio e morte à ingratidão do povo de
Agrigento, o poeta alemão entende que a morte do herói excede ao antagonismo de
personagens. Segundo Hörderlin, a motivação fundamental da morte do herói, ele encontra
em si mesmo. Conforme explica Roberto Machado, referindo-se ao mito estudado:
Embora Hörderlin saiba que para haver ação dramática é preciso que haja
motivação externa para sua morte, e deseje que sua decisão de unir-se aos
deuses apareça mais coagida do que voluntária, os fatores externos quase
não contam na tragédia. Assim ele concebe o herói trágico mais pelo
caráter, pelo ethos, do que pela ação, sem privilegiar no enredo a
composição das ações, como estabelecia Aristóteles, a ponto de ser o
ethos de Empédocles que o leva a abandonar Agrigento e se suicidar no
60
SOUZA, Ronaldes (2001), p.123.
Etna; desta forma, também falta a Empédocles um verdadeiro
adversário.
61
Também em Ópera dos fantoches, a “morte” do herói parece encontrar razões mais
prementes dentro do próprio Ismael do que em qualquer de seus antagonistas. Apesar das
oposições acima mencionadas, seu grande opositor mora dentro de si mesmo. “Cansado,
vou finalmente para a minha torre da igreja do Carmo, continuo. (...) E se eu me atirasse
daqui? (...) Tenho uma admiração enorme pelos que se matam (OF,248). Seu maior
antagonista é a voz interna de sua consciência com que sempre conversa.
O segundo aspecto a ser apreciado nessa “extensão” romanesca é caráter recorrente
da prosa do escritor. Considerando os dois capítulos iniciais, onde foram analisadas quatro
obras do autor, se esboçada essa tendência autocorretiva de seu texto. Breve manual
de estilo e romance vem acrescentar mais teoria às inevitáveis lacunas de Uma poética de
romance: matéria de carpintaria. Também Um artista aprendiz complementa
ficcionalmente o que escapou a Meu mestre imaginário. Mais adiante, esse traço ficará tão
intenso que, mesmo do romance pronto e acabado, surgirão personagens “transbordantes”,
ensejando novas narrativas. É assim que Lucas Procópio e Um cavalheiro de antigamente
configuram, de certo modo, uma extensão de Ópera do mortos. Se Rosalina, personagem
central deste romance, é o duplo do pai e avô, ali praticamente referidos post-mortem, os
outros dois textos nascem para desmembrar seus ascendentes dar vazão ao universo
ficcional compreendido desde a nese até a morte deles. Mesmo depois de publicada e
entregue ao público, o escritor não se contém e acrescenta ao texto original Ópera dos
mortos uma espécie de apêndice para dar mais vida a dois de seus personagens. A esse
respeito, a insubordinação do personagem, falou José Castello:
61
MACHADO, Roberto (2006), p.140.
Até que ponto os escritores controlam seus personagens? (...) A relação
entre escritores e criaturas não é serena. Leon Tolstoi não gostava de
Anna Karenina, que lhe parecia uma mulher tediosa e banal. (...) Clarice
Lispector desabafou, certa vez: “Não sei o que meus personagens querem
de mim.”
62
Tem-se a impressão de que é maior a força do personagem para escapar a outro
romance, do que as do autor para reduzi-lo ao texto original. Um impulso maior revitaliza-o
para além de suas fronteiras, fazendo com que o autor reabra a narrativa e, de certo modo,
seja impelido a reescrevê-la, adicionando a ela mais detalhes. Este assunto será tratado no
capitulo seguinte.
Como em Ópera dos fantoches a narrativa avança bastante no tempo, Ismael que,
em Tempo de Amar, era jovem tem então sessenta anos, novos personagens aparecem na
história dignos de menção. O primeiro deles, poderosa metáfora do machismo vigente no
século passado, é o Não Interessa, cujo nome reflete bem a carpintaria do autor. Em Uma
poética de romance: matéria de carpintaria, o autor comenta como escolhe o nome de seus
personagens:
Nomes comuns e existentes, em que se buscam vários níveis de
significação e nesse sentido são usados. Da mesma maneira que a
realidade pode ser lida como o simples real existente diante dos olhos e o
esconder-mostrar alguma coisa a mais ser uma realidade símbolo. (...)
Quanto mais rico em vivência e sensibilidade, mais verá o leitor. Às vezes
muito mais que o autor (PRMC,110).
Outro traço da narrativa de Autran Dourado que vem à baila junto com a análise
desse personagem é a “transferência especular (espelho, o duplo)” (PRMC,103). O Não
Interessa vem justo ressaltar a duplicidade de Paula. Em São Paulo, mãe solteira, para criar
a filha, ela se divide entre o escritório de advocacia e as “escapadelas” noturnas para
complementar a renda. Assim reflete: “O perigo da vida que eu estava levando era se um
62
CASTELLO. José (2007), p.04.
dia descobrissem tudo. Procuro lugares distantes do Centro, onde fica o escritório. Vestida
de puta, a cara muito pintada, exagero no carmim. Tão diferente de quando vou para o
escritório” (OF,68). O encontro entre os dois, Paula e o Não Interessa, acontece numa
dessas aventuras.
O homem carrega a agressividade no próprio nome com que (não) se apresenta à
Paula. No primeiro contato entre os dois, um “programa”, despeja sobre a moça não a
ameaça de umas lambadas com o cinto para “esquentar” o coito, como irrelevância da
identificação pessoal: “Como é que você se chama? Procuro na memória um nome
qualquer. Digo Suely. E o seu, digo mais por dizer alguma coisa. Não interessa diz ele. Está
bem vou chamá-lo de Não Interessa. Não seja cretina sua puta! Diz ele” (OF,70). O
personagem atualiza o antigo coronel freqüentador de bordéis, no homem que mantém um
espaço extraconjugal para fins libidinosos:
Ele sorri, diz não costumo levar meus bijoux para hotéis, tenho meu nid
d’amour. Peço a ele para traduzir, não sei nada de francês. (...) por que
esse homem rico abusa da minha ignorância em francês? Como? Digo.
Ele ri, é o apartamentinho onde recebo meus casos, diz. Todo o
encantamento de que me achei possuída vai pelos ares (OF,69).
A força do personagem Não Interessa advém de dois pressupostos que norteiam a
narrativa: o comportamento transgressor amalgamado em Paula e sua capacidade de
transpor as dificuldades da vida. Se por um lado, relacionamento com homens dessa
espécie configura rompimento ao código moral, livrar-se dele também constituirá um
desafio. Este, bem mais forte, lhe custará um crime nas costas, momento em que desabafa:
“Estou salva, e meu perseguidor morto” (OF, 112).
Outro personagem que também não aparece em Tempo de amar, mas em Ópera dos
fantoches, e merece apreciação é Evangelina Montserrat da Silveira, viúva do coronel Tote,
e mais um dos casos de Ismael. Três são as razões desse destaque: as duas primeiras de
ordem formal, a segunda liga-se mais à trama propriamente dita. Assim como outros,
Evangelina é mais um personagem autraniano que escapa do texto original. “Nascida” em
“A extraordinária senhorita do país do sonho” (Armas & corações), em 1978, volta “às
páginas” em 1994, com a publicação de Ópera dos fantoches. Na primeira narrativa, o foco
incide predominantemente na relação amorosa do filho Teteu Mão de Onça e a anãzinha
Jezabel. Apesar de referida como mulher fina de vida tediosa, a infelicidade conjugal
atenuava-se pelo envolvimento com a música, bem como pela aliança matrimonial
construída em torno do filho doente. Do ponto de vista formal, a linguagem da novela
enseja até mesmo uma aproximação com a vertente fantástica do texto literário, onde o
referencial da realidade empírica dilui-se bastante. Ali o estranho casamento do grandalhão
Teteu com a mignon Jezabel, “rouba a cena” da vida familiar de Evangelina: “Se é que os
dois eram felizes assim feito diziam, a gente falava. A felicidade dos outros incomoda, é
morosa e sem acontecimentos” (A&C,186) Pois, fazendo a vida acontecer, um dia, a anã
aproveita-se do sono pesado de Teteu, após uma noitada naquela “maluqueira” de coroação
pelas prostitutas da Casa da Ponte, e pela boca aberta “mergulha a pistola” e o mata.
Em Ópera dos fantoches, João da Fonseca Nogueira a Evangelina um dos doze
monólogos, que compõem o romance. No exato dia de seus setenta anos, ela rememora o
caso de amor com Ismael, quando ainda casada com o coronel Tote. A aproximação que
teve origem nos saraus de sua casa e que acabou estendendo-se ao leito conjugal, nas
ausências do marido, fortalece-se na mesma proporção que a paixão esquenta. Contudo, a
proposta de fuga, outra vez rejeitada por Ismael, leva a frágil Montserrat à tentativa de
morte, sem êxito. O saldo do amor, apenas uma carta amarela na escrivaninha, queimada
justo em comemoração à passagem dos setenta.
Traço também comum de alguns livros do autor, esse é um dos episódios da história
com dupla refletorização. A conturbada relação amorosa entre o protagonista e a nobre
senhora Monserrat, é narrada pelos dois amantes. Primeiro, a cargo de Evangelina, captada
pela força da lembrança da paixão, e a segunda, relatada por conta de Ismael, tenta
impressionar João Fonseca Ribeiro. Ao final, conclui: “Você acha que a minha história
daria um romance?” (OF,251) E o romance, Ópera do fantoches, chega ao final.
A escolha do personagem de Evangelina vale também para cotejo com o de Ismael.
Ao lado de Paula e Tarsila, ela é a terceira mulher do protagonista. Das três, apenas a
primeira distingue-se dele, as demais repetem seu comportamento acovardado. Tarsila na
moldura bamba do casamento em família e Evangelina, na tentativa frustrada de ruptura do
casamento morno. Em relação a Evangelina, o aspecto recorrente da vida de Ismael: a
sedução, a promessa e o abandono. É ele quem diz quando percebe a semelhança na
proposta de fuga pela estação férrea: “Não é Evangelina, é Paula que tenho diante de mim”
(OF,245).
Assim como o incremento de personagens, o exercício metanarrativo constitui um
traço a mais no segundo romance em estudo. Ópera dos fantoches, certamente pela
presença de João da Fonseca Ribeiro, o escritor a serviço de Ismael, traz em seu bojo essa
característica. Além do conteúdo suas obras teóricas, nas entrelinhas desse romance, o
escritor mineiro se serve de João como porta voz da técnica romanesca. Ismael, sempre
ansioso, fustiga o amigo para saber a melhor maneira de colocar, no papel, a vida que se
vive. O embate entre os dois emerge de circunstâncias as mais variadas:
Poderia xingá-lo, dizer-lhe que você é um homem frio, não sei como
poderá escrever o meu romance, digo. João se mostra surpreso, diz não
consigo compreendê-lo. Me a carta para eu ler. Não ficaria igual
demais à primeira vez, quando lhe contei o meu caso com Paula, digo.
Acredito que os romances não podem ser assim. Inverossímil, dirão do
seu. Esse problema é meu, diz ele sempre suficiente. Quer dizer que não
vai me dar a carta? Não é bem isso, vou dar, você a lerá quando chegar
em casa, digo. Pelo menos termina a sua história com Evangelina, me
deixou curioso, diz ele. Vou terminar por uma questão de lógica e
coerência, digo. Todo romance não deve ter um fim? Suponho que sim,
diz ele. Há apenas uma teoria... (OF,250)
Além dessas incursões pela técnica de narrar, outro aspecto também nessa vertente
merece menção. São algumas referências a obras ou citações de escritores famosos
reverenciados em Meu mestre imaginário ou Uma poética de romance: matéria de
carpintaria. Madame Bovary, de Gustave Flaubert, livro de cabeceira de Paula é uma
inspiração para a ruptura social da jovem. Guerra e paz e A morte de Ivan Illitch, para
justificar, através da incansável produção de Leon Tolstoi, a arte também como um
regulador da sanidade do artista. É capaz de que escrevesse tanto para não enlouquecer,
para não matar os outros, para não se suicidar” (OF,218). no campo das citações, a
emblemática frase de Shakespeare (Rei Lear), que tão bem regula a trama de Ópera dos
fantoches: “Raramente o homem é senhor de seu destino.” Segundo o próprio Autran,
quando um autor fala de outro escritor, é de si mesmo que está falando. Nessa intensa
intertextualidade, é possível alcançar os múltiplos textos que engendram a narrativa do
autor.
Pois bem, finalmente, na reescritura desse texto, momento em que a ficção busca na
própria ficção a sua origem, um último detalhe chama a atenção e merece ser reavaliado.
Suspeita-se aqui que o enredo de um romance não é tão irrelevante quanto, modernamente,
parece. A impressão que se tem é que exauridas as histórias, vale tão-somente a novidade
ao contá-las. Destaca-se o texto que coloca a linguagem a serviço do relato. Contudo, o que
se pretende sugerir aqui é que, apesar dessa roupagem fluida do romance contemporâneo,
uma história interessante pode, sim, valorizá-lo. Tamanho é o fascínio do homem por
algumas delas, que o exemplo clássico seria a própria mitologia grega, que pelo
encantamento trazido em seus relatos permanece tão viva ainda hoje.
O resgate da história de Ismael, atrás, em Tempo de amar, além de evidenciar a
possibilidade de melhora do texto pela nova técnica narrativa, aponta também para a
qualidade da história que não quer se perder. Por isso, ao contrário do que sempre afirma
Autran Dourado, o enredo teria, sim, seu lugar garantido na boa prosa. Julián Fuks, a quem
o autor em entrevista dada à Folha de São Paulo, minimizou a importância da trama,
(alegando sua necessidade apenas para distrair o leitor e roubar-lhe a carteira), não se deu
por satisfeito e foi adiante na inquirição: Faz o que com a carteira do leitor? perguntou
ele. “Eu passo a tê-lo nas mãos. Não é mais ele que tem o livro, mas eu que o tenho.”
Sim, por isso mesmo também Autran Dourado tem seus leitores na mão. A
qualidade da prosa, invariavelmente embebida em excelentes histórias, cativa e acalenta o
leitor. O próprio Donga Novaes, velho prosador, personagem central de Novelário de
Donga Novaes (1978), é um vivo exemplo do manejo do autor com a fabulação. Na sua
teimosia mineira, Autran está sempre a remendar o texto, num pesponto aqui, num bordado
acolá obra inacabada sempre. Ele mesmo insiste em repetir, na obra prenhe de ditados,
que “Deus é que sabe por inteiro o risco do bordado”(PRMC,12) possivelmente para
eximir-se de responsabilidade na completude do texto. Pois mesmo o que ficou atrás,
quase esquecido no tempo, ele pinça e reconta, quando o apraz. Em Ópera dos fantoches,
tempero novo aos fatos: tanto no convite a outros personagens para participar da trama,
como na inserção do hábil narrador João da Fonseca Nogueira para gerenciar o relato.
Além disso, estendendo-se até São Paulo, espicha a história para além de Cercado Velho.
Instiga a curiosidade do leitor que, ávido em saber do futuro dos personagens, aceita o
convite para continuar a trama. A história inicial, engendrada nos idos de 1952, apesar de
intensa, como romance inaugural, ganha um novo colorido num relato diferente, denso e
revitalizado. Transformado em um texto constituído por doze monólogos encadeados e
conseqüentes, faz do leitor não só um confidente, mas, sobretudo, um cúmplice.
5. O SALTO DO PERSONAGEM
Este capítulo pretende focar, na obra de Autran Dourado, duas características
importantes: o transbordamento e a recorrência, ambas abrigadas pela conhecida idéia de
intextertualidade. Entendendo-se esta como a permeabilidade do texto literário.
Desdobrando o pensamento de Claude Duchet (1971) de que “Não existem textos puros”,
Gerard Vigner enfatiza: “Eles (os textos) existem em relação a outros textos
anteriormente produzidos, seja em conformidade ou oposição a um esquema textual
preexistente, mas sempre em relação a eles.”
63
Os romances do autor, também, em sua
maioria, encontram-se entrelaçados uns aos outros. O enredo de um, muitas vezes,
completa-se no outro. Também os personagens passeiam soberanos por diferentes
narrativas que se amplificam num megatexto. Transbordar é ultrapassar as bordas do corpo
em que está contido, ou, como aponta o étimo da palavra, aquilo que se movimenta para
além de sua margem. Já recorrência, do latim recurre, significa “correr para trás”
64
. Desta
forma, associando-se um movimento ao outro, pode-se dizer que a escrita autraniana escapa
à sua própria moldura e volta-se para a origem. Como afirma Laurent Jenny, em ensaio
acerca do fenômeno intertextual, onde particulariza a obra literária, a dinâmica entre textos
caracteriza-se “pela recusa do ponto final que poderia fechar o sentido e paralisar a
forma.”
65
É possível, pois, constatar essa assertiva com o manejo de três romances
63
VIGNER, Gerard (1988), p.31.
64
NASCENTES, Antenor (1966), p.640.
65
JENNY, Laurrent (1970), p.46.
específicos: Ópera dos mortos, Lucas Procópio e Um cavalheiro de antigamente. Nessa
trilogia, o primeiro desempenha tanto o continente como a origem, de onde surgem os
demais. O transbordamento configura-se justo no desdobrar-se romanesco, que, a seguir,
estuda-se.
Conforme apontado na introdução deste estudo, esta característica especial do autor
mineiro encontra em Balzac, certamente, uma de suas prováveis fontes. Retratando a
sociedade francesa do século XIX, em sua emblemática Comédia Humana (1842), o
romancista “teceu uma verdadeira colcha de retalhos” para, em múltiplas narrativas, retratar
à moda realista o cenário da França oitocentista em franca ebulição. Para Mônica Corrêa:
A Comédia humana é um compêndio de extraordinário teor artístico do
modo de vida capitalista ocidental no século XIX . Seu autor assistiu à
ascensão burguesa e pintou um grande afresco da França oitocentista, em
particular de Paris, conferindo uma representação ao mesmo tempo
monstruosa e sedutora e, ao cenário urbano, um estatuto épico.
66
(Grifo meu)
Daí poder se afirmar que a intertextualidade, típica dos romances de Autran
Dourado encontra referênciao em alguns escritores brasileiros, cuja forma de compor
sugere um mosaico inacabado, mas, sobretudo, no romancista francês que, se não
preconizou essa carpintaria textual, ao menos a popularizou. A esse propósito comentou
Leyla Perrone-Moysés: “A obra acabada é a obra historicamente liquidada, aquela que nada
diz ao homem (ao escritor de hoje), a que nada lhe permite dizer. A obra acabada, pelo
contrário, é a obra prospectiva, a que avança através do presente e caminha para o futuro.”
67
Ópera dos mortos é, possivelmente, dos romances do escritor, o que mais chamou a
atenção do público acadêmico, sendo, inclusive, arrolada na seleção de obras
representativas da Unesco
68
. Por isso mesmo, foi objeto de inúmeros estudos. Aqui,
66
CORREA, Mônica Cristina (2006), p.14.
67
PERRONE-MOYSÉS, Leyla (1970), p.218.
68
Esta seleção visa extrair o sumo da “melhor” literatura e canonizá-la como tal. É feita
atendendo também a critérios geográficos e, da América Latina, esse romance teria sido um
contudo, nesta análise trina, o romance nos interessa na medida em que sua narrativa
fornece dados para que, contraponteados com os dois outros, ajudem-nos a tornar claro o
mote retroalimentativo da escrita de Autran Dourado. Portanto, não obstante a qualidade do
texto matricial, aqui a prioridade de análise será dada a Lucas Procópio e Um cavalheiro de
antigamente que, escritos posteriormente, de alguma maneira, completam o primeiro.
Ressalte-se aqui, todavia, o caráter específico dessa extensão que pode, perfeitamente,
passar despercebida pelo público em geral. Estes entrelaçamentos romanescos, o mais das
vezes, ficam mesmo restritos a estudos teóricos, que pela própria natureza tendem a ser
abrangentes e contemplar, por vezes, romances pouco conhecidos.
Um dos traços mais interessantes de Ópera dos mortos é, sem dúvida, a presença
post mortem da família Honório Cota na vida cotidiana do velho casarão. Curioso torna-se
notar, durante toda a narrativa, como, apesar de mortos, os ascendentes de Rosalina, a
protagonista, impregnam a sua vida cotidiana. E mais um pouco, a duplicidade que
incorpora, por absoluta impossibilidade de proceder à separação interna do pai e do avô,
que apesar de antagônicos, amalgamam-se, com perfeição, dentro dela.
Pois é justo dessa permanência perene e irrestrita do pai e do avô de Rosalina, em
Ópera dos mortos, que é possível entender a mesma força que os fez escapar ao romance
original e brotar noutro. Ali, apesar de mortos, o pai morre também nos capítulos iniciais,
encontram-se vivos nas infinitas lembranças da vida do sobrado. Segundo Laura Goulart:
O título da obra revela a questão do tempo como um círculo
dinâmico, onde as instâncias passado presente e futuro se sobrepõem
continuamente. A ópera dos mortos é o trabalho que eles realizaram.
Tudo é determinado pelo sobrado e seus mortos. Mesmo em ruínas é o
sobrado que se mostra o narrador e a partir dele desenrola-se a
narrativa.
69
(Grifo meu)
dos indicados a figurar como um exemplar de qualidade incontestável.
69
FONSECA, Laura Goulart (2001), p.06.
Também na oficina do escritor permaneceram pedindo mais “texto” ou mais
“vida” para viverem além do romance inaugural. tão mais Lucas para além de Lucas e
João Capistrano para além de João Capistrano, que muitas histórias haveriam ainda de
serem contadas.
É da “imortalidade” dos ascendentes de Rosalina, da mágica presença de seus
ancestrais, que partirá, pois, a investigação desse transbordar da escrita autraniana que não
se restringe a um romance, mas adentra por dois outros, para esmiuçar, com detalhes, a
história dos Honório Cota. Em Ópera dos mortos, apesar de já bem delineados o avô, Lucas
Procópio, bem como o pai, João Capistrano, na maior parte das vezes são referidos para
compor o personagem Rosalina (ou, no mínimo, tudo que dela emana). Lucas, ao tempo em
que se passa a ação, é morto e João Capistrano, como dito, morre nos capítulos
iniciais. Apesar disso, permanecem vivos no texto e para além do texto, pulando para dois
outros romances num prenúncio claro e comovente de genuína autonomia. Esta pode ser
entendida como a liberdade de locomoção textual tipicamente balzaquiana de que fala
Glória Carneiro do Amaral, ao comentar a Comédia humana:
O pai Giriot é uma bela porta de entrada para a leitura da Comédia,
pois aborda temas balzaquianos fundamentais: dinheiro, ascensão
social, amor. O título, as notas do escritor, afirmações encontradas na
correspondência com Madame Hanska conduzem à centralização da
personagem-título e o tema do amor paterno inabalável. Mas
rapidamente o leitor perceberá que isso é apenas uma alavanca para a
primeira obra que trabalha o retorno de personagens de forma
sistemática e que coloca em ação personagens centrais da Comédia
humana.
70
Como se vê, do ponto de vista da genealogia familiar, Lucas antecede a João: o
primeiro é o pai do segundo. Também no que tange à publicação das obras, Lucas
Procópio vem antes de Um cavalheiro de antigamente, que, como sugere o nome, discorre
70
AMARAL, Glória Carneiro do (2006), p.26.
sobre a vida de João Capistrano, homem impecável por natureza. O curioso é que o
intervalo que entremeia as três obras sugere uma singular gestação. Em 1967, o público
conhece Ópera dos mortos. Dezessete anos depois, em 1984, é publicado Lucas Procópio.
E por fim, em 1992, chega até o leitor Um cavalheiro de antigamente. Se do primeiro
romance para o segundo transcorreram dezessete anos, para o terceiro o tempo é abreviado
em quase a metade. O gosto pela empreitada – o “renascimento” do personagem – abreviou
em muito a segunda gestação. Numa cadeia espiralada de intervalos próprios, os três
romances vasculham a família Honório Cota em suas contradições, dificuldades, erros e
acertos, em suma, a sua saga. Compreendido, aqui, este termo no sentido de história de uma
família, uma das acepções do Dicionário de termos literários, de Massaud Moisés.
Neste estudo, deixa-se de lado a ordem em que as obras foram publicadas e se
focaliza a genealogia de Rosalina. As marcas temporais servem para uma reconstituição
precisa dos Honório Cota, bem como o trajeto da família por Minas Gerais do período
colonial (extrativista) à implementação da cafeicultura. Por tratar-se do mesmo grupo
familiar, as histórias ali narradas via de regra são as mesmas, o insólito é que, como se
alternam os romances, o ponto de vista também varia. A leitura atenta das narrativas
termina por conduzir o leitor ao instigante cotejo de versões. Um mesmo acontecimento
narrado de dois pontos de vistas distintos pode perfeitamente sugerir dois outros. O
adultério de Isaltina com o padre Clemente, por exemplo, visto pelo filho adulto (João
Capistrano), dono de uma imagem idealizada da mãe, em Um cavalheiro de antigamente,
tem um sabor bem diferente de quando vivenciado pelo marido Lucas, no livro de mesmo
nome. Por outro lado, acontecimentos semelhantes tendem a irmanar pessoas, apesar de
distanciadas no tempo. A derrocada política do pai de Isaltina, o barão das Datas, é tão
desmoralizante, quanto a de João Capistrano em Ópera dos mortos. A primeira sepultou
(viva) a família no interior do estado (Diamantina), a segunda encarcerou todos na casa (o
sobrado). Fatos semelhantes, reações parecidas: o universal retratado no particular, a
vergonha da perda impele o homem para longe de seu par, no mais das vezes o isola. Dessa
forma, a começar pela análise do romance Lucas Procópio, pretende-se mostrar de que
maneira a narrativa de Autran Dourado pode ser tida como transbordante e recorrente.
Lucas Procópio, como dito anteriormente, aparece pela primeira vez no texto de
Autran Dourado em Ópera dos mortos como um dos ascendentes da protagonista do
romance. Ali, já no segundo capítulo, é apresentado ao leitor em contraposição ao filho:
Porém essa mostra de desprendimento, de alto juízo e siso, veio
acrescentar ainda mais na nossa estima e grandeza dum homem assim
tão bom e reto, que vinha para limpar de vez do céu a nuvem pesada e
escura, a presença ainda viva de Lucas Procópio Honório Cota
(OM,16).
Ao contrário do que afirma o narrador que o distancia do tempo da narração,
durante toda a narrativa, Lucas Procópio estará bastante presente. O auge dessa presença
consubstancia-se no momento em que a neta, de comportamento solitário e contido,
contrariando a própria natureza, entrega-se em arroubos de paixão ao aventureiro Juca
Passarinho. Pouco se teria a acrescer se o caso amoroso de Rosa fosse mera conseqüência
de seu recato e solidão. O relacionamento extrapola em muito o encontro do encasulado
com o extrovertido, tão comum nas histórias de amor. O que causa espécie é o mimetismo a
que a protagonista, assim como um camaleão, se submete. Impossibilitada de ficar com ou
sem Juca Passarinho, ela biparte-se. Torna-se duas para atender aos anseios da carne e do
espírito. Durante o dia, incorpora os valores nobres incutidos pelo pai João Capistrano, à
noite, embriaga-se e cede aos apelos do corpo. Pois é justo o comportamento noturno de
Rosalina que possibilita reconhecer a figura do avô, ainda tão vivamente internalizado na
neta. A transgressão dos valores repassados pelo pai ratifica a força da herança genética
advinda do avô. Como não consegue se livrar dos ascendentes, abriga-os em turnos
diferentes. E, embora, na maior parte de sua vida, bem como de seu dia, tenha incorporado
o comportamento paterno, a força do comportamento transgressor do avô fura toda essa
tradição e impõe-se antes como uma necessidade, do que como uma opção.
Ora, se mesmo morto Lucas Procópio estava ainda tão presente em Ópera dos
mortos, fácil seria para autor, e foi, ressuscitá-lo e recambiá-lo a outra narrativa, dessa vez
contando a história de sua própria vida.
Quando perguntei ao autor, na entrevista a que me referi, sobre o “pulo do
personagem” precisamente o de Lucas, respondeu: “Justamente a força do personagem. É
ele que manda na gente e não o contrário, como pode parecer”(Entrevista./2008).
5.1. Lucas Procópio
Dezessete anos depois do lançamento de Ópera dos mortos, é publicado Lucas
Procópio. E conforme apontado na orelha do livro, edição de 1985, da editora Record, sem
indicação de autoria, ela revive e reaviva o lendário avô da inesquecível Rosalina:
Quem conhece Ópera dos mortos, de Autran Dourado, romance com
sucessivas edições brasileiras e publicado em vários países, incluído na
Unesco na sua Coleção de Obras Representativas, terá um prazer todo
especial de reencontrar o velho Lucas Procópio, o avô de Rosalina
(Rosalina é uma personagem que não se esquece), que lhe atormentava
a carne e o espírito, levando-a a desvarios eróticos e à divisão
patológica de sua personalidade.
Do ponto de vista da técnica narrativa, Lucas Procópio significa também uma
retomada em qualidade na carpintaria textual de Autran Dourado. Sem demérito para os
demais romances que entremeiam o período compreendido entre Sinos da agonia e Lucas
Procópio, ao todo cinco, desde 1974, quando da publicação daquele, o autor não mais
trabalhara com narrativa em perspectiva, isto é, aquela que trabalha com múltiplos pontos
de vista narrativos. Aquela que se contrapõe ao relato monológico, cuja definição
aproveita-se de Ronaldes de Melo e Souza em estudo acerca da narrativa de Guimarães
Rosa:
A adoção de um tom, de um estilo único, de um ponto de vista
fixo determina o discurso de quem se julga dono do saber
monológico acerca do ser, mas não se compatibiliza com o escritor
que se delicia com o devir eterno do jogo vário da vida.
71
Outra característica pouco relevante, mas curiosa, a respeito do romance concerne à
sua ambiência. se frisou que a maioria dos romances de Autran Dourado tem o mesmo
pano de fundo: transcorrem na mítica Duas Pontes, na primeira metade do século XX.
Lucas Procópio, todavia, ao lado de Sinos da agonia, rompe com esse paradigma e instaura
um novo padrão: a Minas colonial. Dessa forma, os dois romances que fogem à regra geral,
reguladora dos demais, inauguram um novo cenário físico na poética autraniana. E Lucas
Procópio, embora uma narrativa genuinamente contemporânea (do ponto de vista da
técnica), figura como uma retomada do romance de ambiência colonial, que embora
escasso na obra do escritor, faz nascer uma de suas mais refinadas obras: Sinos da agonia.
A epígrafe do romance vem do Clã do Jaboti (1927), livro de poesias de Mario de
Andrade, relativo a sua fase de nacionalismo estético e pitoresco, com aproveitamento da
etnografia e do folclore brasileiro. É alusiva a contação de histórias e ao sentimento de
brasilidade que as envolve. “Eu queria contar as histórias de Minas/ Pros brasileiros do
71
SOUZA, Ronaldes Melo e (2001), p.1.
Brasil...”
72
Casa-se perfeitamente com as “suspeitas” de que Autran Dourado teria mais
histórias a contar, daí ter prolongado a “vida” de Lucas por mais um romance.
A narrativa divide-se em dois grandes blocos: o primeiro, chamado “pessoa” e o
segundo, “persona”. Os dois termos com valor semântico bastante aproximado guardam, no
entanto, uma nesga de distinção. Pessoa teria vindo do latim persona, através do arcaico
persoa. Na acepção moderna do termo, pessoa é marca de individualidade. persona,
também do latim significaria máscara, aquilo que serve justamente para esconder o
indivíduo. Mas é o dicionário de filosofia que entrelaça os dois termos: “Originariamente
máscara teatral, por extensão o próprio ator, e daí seu papel, as características de um
indivíduo, a personalidade”.
73
O dicionário de literatura, ao definir personagem, atrela-o ao
“latim persona(m), máscara de ator de teatro”.
74
No primeiro capítulo, Lucas é retratado de maneira lírica. Amante da poesia e da
beleza traz o “eu” à tona de todos os acontecimentos. Expõe-se, revela-se, transborda:
mostra sua individualidade. na segunda parte, veste a máscara do coronel despótico e
impiedoso e “representa” as cenas como se fora um ator. A máscara de latifundiário
poderoso, senhor de tudo, e principalmente, de todos, assenta-lhe bem.
No primeiro bloco, Pessoa”, o foco da narração incide sobre a figura de Lucas
Procópio e tudo que lhe diz respeito. Seu objetivo é concluir uma longa viagem pelo
interior de Minas e tomar posse da Fazenda do Capão Florido, cujo título de posse fora
encontrado junto com um pequeno tesouro enterrado no porão da casa, pelo pai, por medida
de segurança e para burlar o fisco. Contudo, tão segura teria ficado a pequena fortuna que,
72
ANDRADE, Mario (1966), p.133.
73
JAPIASSÚ, Hilton e MARCONDES, Danilo (2006), p. 216.
74
MOISÉS, Massaud (1988), p. 396.
por pouco, escapara aos próprios donos. Por puro acaso, Lucas a encontra, quando, então,
revitaliza-se moral e financeiramente. Por essa razão, parte em direção das terras da família,
uma vez que a escassez de ouro “secara” não suas reservas, mas também seus sonhos.
Para a longa jornada, cerca-se de dois companheiros diametralmente opostos: um negro
alforriado e um antigo feitor de escravos, Jerônimo e Pedro Chaves. Transcorrendo nesse
contexto o primeiro bloco do romance, a narração adensa-se pela tripla visão de mundo
dada pelo senhor (o patrão), o empregado de confiança (o feitor) e pelo escravo,
alforriado. Ali, ninguém é mais nada do que foi um dia. Vivem das lembranças de um
tempo que já passou, mas que ainda os atrela, simplesmente por não saberem como viver de
maneira diferente, um sem o outro. O opressor sem o oprimido e este sem aquele. Nessa
longa caminhada, o convívio dos três personagens com histórias de vida tão distintas
dinamiza a narrativa que se constrói num plurivocalismo especial. Plurivocalismo este
apontado por Mikhail Bakhtin, quando do estudo da poética de Dostoiésvski:
O enredo em Dostoiésvski é desprovido de quaisquer funções
concludentes. Sua finalidade é colocar o homem em diferentes
situações que o revelem e o provoquem, juntar personagens e levá-las a
chocar-se ente si .
75
Lucas se transveste de cavalheiro do império com as roupas do avô e segue
pregando a ressurreição das minas. Jerônimo rememora, no mais sublime banzo, a partida
da África, quando ainda jovem fora aprisionado e vendido como escravo. Enquanto Pedro
Chaves, “desempregado”, lastima o fim da escravatura.
O segundo bloco começa com a apresentação da família de Isaltina de Almeida
Sales, a futura senhora Lucas Procópio. Este cenário é preparado para receber um
cavalheiro que viaja e passa por Diamantina, onde a família voltou a morar depois da
75
BAKHTIN, Mikhail (2003), p.196.
derrota política de Cristino Sales. O encontro é tão casual que chega mesmo a acontecer na
rua. Não fossem as cidadezinhas capazes de darem conta, de imediato, da presença de
forasteiros, a indumentária extravagante de Lucas disso se incumbiria. Da janela, de onde
se descortina o universo da moça, ao interesse do pai no cabedal do pretendente, o caminho
é curto. Rápido o protagonista corteja a moça, “conquista-a”
76
, casa-se com ela e a leva para
a então Fazenda do Encantado. Ali Isaltina vive infeliz para todo o sempre.
Lucas não é mais a figura conciliadora do primeiro bloco, aquele que contemporiza
os desentendimentos entre seus dois empregados durante a longa jornada. A raiva contida e
condição social oposta dos dois homens fomentam a discórdia durante toda a viagem. A
estrutura triangular do primeiro bloco, quando ainda representava o fiel da balança entre o
opressor e o oprimido, desfaz-se. Despido de poder e francamente amalucado (tocado pelo
poder mágico da poesia), interessava-lhe, sobretudo, a pregação pelo interior de Minas, do
renascimento das minas auríferas, da “brilhante civilização do ouro” (LP,27).
Morto o pai, por pouco tempo Lucas Procópio manteve as lavras e
a Fazenda do Chá Cheiroso, no Ouro Preto, não sabia ainda da
existência da fazenda do Capão Florido. Tinha o suficiente para
viver com conforto e desfrutar o chamado ócio com dignidade.
Tocado pela graça da poesia, passou a se dedicar exclusivamente a
ela. Vendeu os escravos, os mais chegados com Jerônimo ele os
alforriou. Jerônimo resolveu ficar a seu serviço, mesmo tendo que
aturar a companhia de Pedro Chaves; louco manso acabou virando
o afidalgado Lucas Procópio Honório Cota (LP,33).
No segundo bloco, o bonachão e tresvariado Lucas cede lugar a um grosseirão sem
precedentes que, nos contatos iniciais, amedronta e distancia a própria mulher. A
fanfarronice inocente da primeira fase ficara atrás nos caminhos desbravados. O caráter
bruto e violento encorpa-se e cristaliza-se:
76
As aspas indicam que o conquistado fora, na verdade, o pai. E que a sedução ficara mais
por conta das posses de Lucas, do que pela pessoa em si.
Estouvado, parecia gostar de gastar, semostrador. Com as
mulheres a sua generosidade não encontrava limite. A uma certa
Elvira deu um anel de brilhante. Mesmo a uma mulata meio
boçal exageradamente presenteou. Ele não se dava ao respeito,
não escondia de ninguém. Bebia dos finos vinhos às cachaças
mais ordinárias. Brigava, se embriagava com freqüência
(LP,101).
Apenas no final de sua vida, a muito custo, a esposa teria conseguido dissuadi-lo
das piores idéias e abrandar-lhe o mau gênio. Contudo, em mais um traço de recorrência
dessa narrativa, quando lhe vieram moldar o rosto post mortem para uma máscara
mortuária, a expressão, ao contrário da que incorporara ao final da vida, era a do intratável
que fora ao longo de toda a vida. A persona, apesar de máscara (parte externa), capta a
fundo o sentimento essencial do homem. O verniz epidérmico passado pela mulher na
tentativa de atenuar-lhe a índole, não consegue, de modo algum, esconder o verdadeiro
Lucas do qual ele mesmo nunca se libertara:
Quando mandaram tirar a sua máscara mortuária, o que se viu
não foi a cara serena do velho Lucas Procópio Honório Cota, em
que o homem se transformara, nome pelo qual a gente o
conhecia, mas a cara enrugada, dura, má, sinistra, que ficara na
cera: na verdade as feições do terrível e antigo feitor Pedro
Chaves, tanto tempo escondido (LP, 154).
Como visto anteriormente, o primeiro bloco do romance (Pessoa), relaciona-se, na
íntegra, à viagem de Lucas Procópio para apossar-se da Fazenda do Capão Florido. O
“velho coronel da guarda nacional”, vestido com roupas do avô, sai Minas a fora a pregar o
renascimento da civilização do ouro e a importância da poesia. Bastante caricato,
acompanha-se por dois fiéis escudeiros, que não o escoltam como ajudam a carregar
todo o aparato para a viagem. Pois é nesse contexto que um objeto, em especial, chama a
atenção: a canastra que abriga os pertences de Lucas. É ela que remete à recorrência da
escrita autraniana. O móvel, tal como é ali descrito alude ao mesmo que serviu de
inspiração a Uma vida em segredo (1964), bem como ao que abrigou o material usado em
Meu mestre imaginário (1982). O mobiliário mineiro do Brasil colonial não prescindia das
enormes arcas, cuja função primordial ligava-se à guarda de objetos, roupas, livros,
pertences das famílias em geral. Em Uma poética de romance: matéria de carpintaria,
Autran Dourado explica de que maneira uma velha arca da casa de sua avó reacendeu as
mais antigas lembranças familiares e serviu de impulso para a escrita de Uma vida em
segredo:
Andava eu na época (1963/1964) às voltas com um livro ambicioso e
complicado, que me tomava as noites (então a saúde me permitia o
trabalho noturno), Ópera dos mortos. Uma noite, às voltas com
problemas de composição novos, cuja solução não conseguia encontrar,
o papel em branco na minha frente, já caía em desespero, na insopitável
vontade de jogar tudo fora, quando decidi suspender o trabalho e deixar
tudo para o dia seguinte. Talvez o meu subconsciente trabalhasse por
mim (era uma fantasia e esperança) e a solução viesse como coisa
natural e conseqüente no outro dia. Antes de me deitar, preparei um
uísque para relaxar os nervos tensos. O copo na mão, a cabeça pesada, o
peito se dilatando vagarosamente nas ondas que se espraiavam no peito.
Os olhos cansados e erradios, numa tentativa de me fixar nas coisas, de
sair de mim mesmo, da névoa em que estava envolto. Dei então com
uma canastra de couro taxeada, que foi de meu bisavô José de Almeida
Fernandes.Me lembrei então de minha avó Sina, sempre doente, no
quarto de quem eu passava as horas de menino recolhido e enrolado que
eu era, sentado justamente naquela canastra mineira, de muitas viagens
em lombo de mula. No sem-que-fazer de menino, contava e recontava
as taxas de guarnição, seus caprichosos desenhos, as letras J.A.F..
Proustianamente a canastra me devolveu o quarto de minha avó,
perdido no tempo, os seus cheiros e quentumes, a sua tosse seca e
miúda, que não me incomodava porque acostumado, eu a amava
muito. (...) E de repente, entre triste e sonolento, disse a mim mesmo
um dia vou escrever a história dessa canastra, daquele menino em mim
(PRMC,133).
Nas exatas palavras do autor, a primeira canastra teria sido a do bisavô, que
reavivada na memória embalou a imaginação para a construção do universo ficcional de
prima Biela, em Uma vida em segredo. Quando entrevistado por mim, o móvel foi referido:
“Eu ficava sentado numa canastra e minha avó me contava histórias” (Entrevista/2008) e,
no momento em que deixei sua casa, ele me exibiu, com carinho, o antigo móvel na sala de
estar. O velho baú, repositório de todo tipo de guardados, resvala do universo imagético
particular do escritor para entranhar-se nas suas histórias. Também no prefácio de Meu
mestre imaginário, quando o romancista explica a estrutura do livro, faz alusão a uma
canastra também taxeada, onde alfarrábios do mestre ficaram guardados à espera daquela
escrita. Diz ele, referindo-se a um pedido de Erasmo Rangel, seu mestre: “Pediu-me que
organizasse o material que retirou de uma canastra de couro antiga. Canastra que mais
parecia caixa de mágico, tantas as coisas que dela tirava”(MI,15).
Ora, o cunho gico da velha arca cheia de guardados acompanha também Lucas
Procópio na longa e penosa viagem Minas adentro. Em Lucas Procópio, o móvel além de
armazenar a memória da família Honório Cota, pelos álbuns de fotografia, abriga também
os livros prediletos de Lucas. Seus autores favoritos são: o poeta árcade Cláudio Manuel da
Costa, de quem não se cansa de declamar os sonetos de amor; Miguel de Cervantes, cujo
antológico romance Dom Quixote, leva-o a crer que negro Jerônimo seria uma espécie de
Sancho Pança mineiro; e Caldas Barbosa, o criador do gênero musical modinha, cujas
composições estão reunidas em Viola de Lereno (1798). À semelhança de Quixote, foram
também os livros os responsáveis pelo “destrambelhamento” do cavaleiro Honório Cota.
Embora durante a viagem o protagonista esteja mais preocupado com suas pregações do
que com a atualização de seu passado, sua obstinação não lhe permite enxergar outra coisa,
ainda assim ele repassa as fotos da família:
Lucas Procópio se voltou para o álbum de retratos. Era um
álbum todo aparelhado de prata, desses com fecho. De couro
trabalhado cheio de desenhos, um brasão estampado no centro.
Tinha sido do pai, do velho Mateus Romeiro Cota, português do
Minho. Aqui está ele velho, cercado da família toda, mais a
escrava Deolinda, que tinha sido sua ama de leite e agora
cuidava de Ordália, sua irmã caçula.(...) Tão bom aquele tempo.
Quando os dois iam para a Fazenda do Chá Cheiroso, pertinho
de Ouro Preto. o pai tinha uma plantação de chá preto. Que
bom era o cheiro das folhas torrando, se lembrou.(...) Tenho uma
memória olfativa incomum, gostava de se gabar (LP,71).
Os livros, de uma maneira geral, servem para “elevar o ânimo dos homens” (LP,25):
“De repente, Lucas teve uma idéia. Foi até a canastra dos livros, voltou de com uma
velha edição da Viola de Lereno, de Caldas Barbosa. Vou fazer uma experiência com você,
disse. Este livro aqui tem uns versos que vou ler para você” (LP,15). Disse tentando
suavizar o coração de Pedro Chaves, o “incorrigível” feitor, que ao final da leitura enxuga
as lágrimas. Nos livros e retratos, a âncora segura para a longa viagem, cujo caminho
desconheciam. O baú de guardados viabiliza o trajeto para o futuro, sem o desligamento do
passado. E dos inúmeros monólogos interiores que dali afloram, também resulta a
construção do personagem. Segundo Edward M. Foster, os solilóquios do personagem
permitem o seu desvelamento:
A particularidade do romance está no escritor poder falar sobre
suas personagens, tanto quanto através delas, ou permitir-nos
ouvi-las enquanto falam consigo mesmas. O autor tem acesso ao
monólogo interior e daí pode ir ainda mais fundo e espiar o
subconsciente. Um homem não é muito sincero nem mesmo
com ele próprio: a felicidade ou aflição sentidas por ele
secretamente provêm de causas que não pode explicar bem, pois
tão logo as coloca no nível do explicável elas perdem sua
qualidade original. O romancista tem aqui uma vantagem real.
Pode mostrar o subconsciente ligando-o diretamente à ação (o
dramaturgo também pode fazer isso); pode mostrá-lo ainda
relacionado ao solilóquio.
77
Na pequena e essencial bagagem, além dos animais que os transportam, apenas duas
canastras e um tamborete. Este também bastante simbólico: o lugar de onde Lucas, ao
chegar nas cidades, costumava iniciar suas pregações cívicas. O narrador, inclusive, ao
descrever a bagagem dos viajantes, projeta para o futuro a serventia do pequeno banco,
fazendo um gancho para prender o leitor à trama do romance: “Depois quatro mulas
77
FOSTER, Edward M (1998), p. 82.
carregadas de bruacas e canastras de ouro tacheado. Na última, amarrado entre duas
canastras, um tamborete alto, cuja serventia veio a se saber muito depois”(LP,15). Uma
metonímia de púlpito, que numa dimensão menor, adequava-se às necessidades do orador
que, a qualquer custo, desejava alardear a ressurreição de uma Minas que não mais existia
para além de sua própria cabeça.
Um segundo indicativo da escrita recorrente de Autran Dourado, ainda no primeiro
bloco do romance, diz respeito a um mote de composição da narrativa. Por tratar-se de uma
viagem, a imagem do horizonte do qual aparecem os viajantes é sempre registrada. na
abertura da narração tem-se:
Os três vinham de longes paragens e distantes horizontes, léguas
e mais léguas de uma viagem sem fim. Dias e mais dias, dias
luminosos e abrasadores, de um sol causticante torrando os
miolos, crestando a pele, tornando-a dura e seca, couro
esturricado: a infernal soalheira dos ermos e sertões, das minas e
dos gerais (LP,13).
Trata-se agora de uma recorrência interna, vez que se estabelece dentro da própria
narrativa. E, para que esse foco seja ressaltado, a “câmera” do narrador desloca-se para
dentro da cidade (preferencialmente a “entrada”) justo para aguardar a chegada dos três
forasteiros. Assim tem-se uma visão privilegiada dos três viajantes que se aproximam da
cidadezinha. Como o trajeto é polvilhado de pequenas vilas, o narrador assume essa postura
várias vezes, precisamente seis. Quem narra é o coro, no prosaico a gente” e,
invariavelmente, opinando. Nas páginas finais do bloco, a última narração de chegada,
evidencia também a metamorfose do protagonista, aludida neste estudo. Curiosamente, a
recuperação do juízo é também o final da bondade:
E os três vinham vindo, se chegando. Podia-se vê-los, estão eles
agora: o coronel Lucas Procópio e seus dois empregados, um preto e
um branco. Jerônimo se chega para junto de Lucas Procópio, que está
sentado numa canastra. Fica olhando para os olhos do patrão e os
estranha. Não são mais os olhos sonhadores que tanto lhe diziam
antigamente. Se fosse possível se aproximar de sua alma, se debruçar
sobre ela, se veria que no fundo havia a esperança de que Lucas
Procópio voltasse a ser o amigo e não apenas o patrão (LP,81).
O Lucas aventureiro, desbravador, combina com o divertido, apaixonado e
apaziguador. Amante da poesia e grandiloqüente orador, por vezes ridículo. Já o fazendeiro
assentado ajusta-se com o grosseirão, prepotente e egocêntrico indivíduo no qual se
transforma o personagem pouco depois de casar-se.
Também nesse contexto de viagem, uma recorrência secundária da trama diz
respeito às pregações de Lucas pelas cidades por onde passa. Não havia, para ele, público-
alvo. Mas como são as crianças que, inicialmente, o seguem, é para elas que Lucas,
invariavelmente, prega: “Ele mal pôde dizer os versos iniciais de um longo poema sobre a
infância. Os meninos começaram a vaiá-lo. Os assobios eram tantos e o agudos que ele
pensou estar delirando”(LP,68). Tal a mobilização que causa sua chegada aos vilarejos por
onde passa, só comparável à de um circo de cavalinhos, metaforiza o narrador.
Se no primeiro bloco predomina a viagem de Lucas até à “fazenda prometida”, o
trajeto do primeiro para o segundo também se faz através de uma outra viagem a
metamorfose do protagonista. No segundo bloco, Lucas está absolutamente distanciado
daquele profeta que encarna no primeiro. Com a obstinação serenada, não sem antes
contagiar o negro (que desiste de virar quilombola, para tornar-se seu discípulo), Lucas
estabelece-se em Duas Pontes, constrói o sobrado e constitui família.
No início do capítulo, o olhar do narrador parece apagar-se momentaneamente,
deslocando-se da esfera dos viajantes para narrar a história de dentro da casa de Isaltina, a
futura senhora Lucas Procópio. Neste exato momento, o foco narrativo assemelha-se ao que
Norman Friedman, citado no estudo de Lígia Chiappini, batizou de câmera: “Serve àquelas
narrativas que tentam transmitir flashes da realidade como se apanhado por uma câmera
arbitraria e mecanicamente.”
78
Suspende-se a narração da viagem para apresentar a moça ao
leitor e contextualizar sua família na trama do romance. A conexão entre um bloco e outro
se viabiliza no exato momento em que o forasteiro, todo paramentado, desfila em cima de
seu cavalo, em frente à janela da jovem. Nessa hora, os dois se conhecem e entrelaçam o
destino que dará origem à família dos Honório Cota. O casamento com Isaltina, ao estilo “o
amor virá com o tempo”, veio saldar as dívidas do pai e salvá-lo da derrocada financeira
que a derrota política lhe impingira. Ameaçando matar-se, o barão de Águas Claras
responsabiliza a filha pelo resgate da dignidade da família, que, então, aquiesce em viver
uma relação sem amor. A vida com Lucas, pontuada por inúmeros dissabores, será objeto
do segundo bloco do romance. Ali, Lucas personifica um indivíduo grosseiro, beberrão,
cheio de amantes, que antagoniza com a própria mulher, a clássica antítese dos personagens
autranianos. Essa mais uma recorrência da narrativa do romancista: a aproximação dos
opostos, já comentada anteriormente e que remete à estrutura dramática amalgamada na
tensão dos opostos, objeto do capítulo quatro deste estudo.
Nesse segundo capítulo do romance, o da chegada da viagem, a narrativa adensa-se.
A conturbada vida conjugal de Lucas e o adultério de sua mulher com o padre da paróquia
de Duas Pontes dão vigor ao texto, que cresce em qualidade. Essa relação espúria remete o
texto à situação narrativa trágica. Contrapondo situações existenciais antagônicas (o
presbítero versus a mulher casada), fortalece a tensão dos opostos e, à maneira dramática,
suscita o pathos no leitor. Segundo Emil Staiger: “...ele (o pathos) lança questões ao
coração do espectador, não a sua mente”.
79
Também o manejo do narrador tecendo a trama
78
LEITE, Lígia Chiappini Moraes (1985), p.304.
79
STAIGER, Emil (1972), p.139.
e o dinamismo que imprime à ação aprisionam o leitor ao romance. Por outro lado, ao
contrário do primeiro bloco, o traço recorrente abranda-se e lugar ao embrião de alguns
personagens e situações que, como dito, recrudescerão a trama. Tem-se a impressão de
que se antes a técnica da recorrência interna fortalecia o fio narrativo, agora o contraste das
situações existenciais díspares é privilegiado.
Nesse bloco, nascem o genuíno Lucas Procópio, tal qual referido em Ópera dos
mortos, o sobrado da família Honório Cota, de importância fundamental para a
compreensão da saga do clã, e a mesmo os relógios que “embalsamam” o casarão.
Esperando pelo marido, ainda na fazenda, sozinha e à noite, Isaltina atormenta-se:
Ela foi para o quarto, não voltou mais à sala. A noite caiu e ela imóvel,
insone no escuro. Ouvia e contava as batidas da pêndula da copa. Na
Diamantina era o relógio da sala. O pai velhinho doente numa cama.
Lucinda é que escreveu contando (LP,117).
Se na fazenda, as badaladas do relógio compassam a espera da mulher de Lucas, a
familiaridade com aquela sonoridade horrível remonta,atrás, à vida de solteira, quando o
pai e o “senhor das horas” direcionavam sua vontade. Em Ópera dos mortos, ele será bem
mais do que um marcador temporal. No ponteiro parado (ninguém o acerta), registra-se o
momento da morte de cada membro da família, assinalando concretamente a impotência
humana para com os desmandos da vida.
Da mudança da família para a cidade advém outro elemento de recorrência narrativa
de Autran Dourado: a casa. Tão logo constatou a gravidez de Isaltina, o dr. Maciel
Gouveia, médico da família, aconselhou a mudança do casal para Duas Pontes. É lá que
Lucas Procópio constrói a primeira parte do sobrado, mais tarde um referencial de sua
personalidade:
Nas Duas Pontes a vida dele pouco ou nada mudou, apenas passou a
acompanhar e comandar a construção de uma grande casa para ele.
Ficava o dia inteiro feitorando as obras. Tantas eram as opiniões e
ordens dadas aos oficiais e escravos, que o mestre disse um dia
agastado, eu acho que o senhor não carece de mim, vou me embora.
Ara, homem deixe de besteira! O serviço é seu, não me meto mais,
prometo. Se metia, e a casa acabou se levantando do chão. Mas era uma
casa como que saída das suas entranhas, bem ao seu jeito e feitio. De
grossas paredes, o enorme telhado, piramidal coisa do Oriente, recurso
e voando como o telhado de um pagode (LP,130).
Outra construção que também desponta em Lucas Procópio é a igreja do Carmo, na
praça da matriz, onde também se situa o sobrado da família. Em Ópera do mortos, este
cenário é parte integrante da narrativa: o largo e suas adjacências. Quando consultado
acerca da construção de uma capelinha na Fazenda do Encantado, Lucas, homem sem
religião, respondeu: “É melhor a gente se unir ao pessoal de Duas Pontes, eu tenho umas
datas por lá, dou para se fazer uma matriz bem bonita num largo, a gente dedica a Nossa
Senhora do Carmo, a santa de sua devoção, não é minha filha?” (LP,113)
A trama do segundo capítulo, Persona, à primeira vista carece de novidade: um
casamento, que mal arrumado, conserta-se com as amantes do marido e a infidelidade da
esposa. Seria simples se não se tratasse do colérico Lucas Procópio e da finíssima Isaltina
Sales. O código social da época, Minas Gerais do século XVIII, admitiria, na melhor das
hipóteses e veladamente, o adultério masculino. Mas o feminino, principalmente o da
esposa do coronel de Duas Pontes com o vigário da pequena vila, poderia legitimar até
mesmo o assassinato do rival. Pois é nesse clima de transgressões que Autran Dourado
dispõe seus personagens e prepara o “jogo de xadrez” que comanda a vida dentro e fora do
texto. E, como sempre, o romancista solidariza-se com o personagem que sofre: Isaltina,
então, a escolhida. O afunilamento a que ela é atirada pela solidão imposta com o
casamento equivocado faz com que o leitor dela se compadeça.
Guardadas todas as proporções Isaltina é também a nese da neta Rosalina, de
Ópera dos mortos. O sofrimento silencioso que o abandono pelo marido, na Fazenda do
Encantado, impõe a ela, lembra em muito o da neta no velho casarão. A aproximação de Isa
com o vigário, a princípio, exclusivamente para a confissão, também remete ao elo criado
por Rosalina e Juca Passarinho. Aquele que sugere a ligação do encarcerado com o
libertário. Juca pelo estilo “sem eira nem beira” e o padre por representar uma via de saída
pelo mundo espiritual.
O romancista, quando entrevistado, confidenciou-se cativo da figura de Rosalina,
em grande parte, por causa de seu penar:
A Rosalina, por exemplo, é um personagem que me fascina. Aquele
sofrimento dela me fascina. E a maneira de ser dela. Como ela tenta
acabar com a solidão através do Juca Passarinho. A Rosalina é a
personagem mais sofrida que conheço (Entrevista,2006).
Em Lucas Procópio, é o sofrimento de Isaltina que empresta ao narrador uma
enorme simpatia, que a constrói com o máximo de ternura, carregando o leitor a reboque.
Nas descrições, o apuro nas noites de espera pelo marido:
Devia ser meia-noite e meia quando ele chegou. Vinha com um castiçal
na mão, cambaleante, bêbado certamente. Mal tirou a roupa, deixou-se
cair de ceroula e camiseta na cama. Não cuidou de apagar a vela, ela
que teve de fazê-lo. No escuro, era todo sentidos, sensitiva. Pelo
sentido nela aguçado, o olfato, viu que ele estava bêbado, estivera com
mulher. Não era Adélia porém, não havia aquela mistura de perfume
ativo e bodum. Agora o cheiro ativo e bodum. Agora o cheiro
ardido e nauseabundo de preto. Certamente com uma das suas negras.
No escuro o ódio e o nojo foram se tornando insuportáveis. Na cadeira,
o cinturão com o revólver. Seria fácil matá-lo, se matar. Ela era toda
feita de bipolaridade e indecisão (LP, 118).
Como visto, do sofrimento acumulado na Fazenda do Encantado, o abatimento
físico leva Isaltina à doença. Febres sistemáticas terminam por trazer o médico à casa do
coronel Lucas. Diagnosticado um mal também espiritual, veio em seguida o padre
Agostinho para ministrar-lhe comunhão. Sugerida a mudança da família para a cidade,
Isaltina recobra as forças, prossegue a gravidez e volta à musica, atendendo ao conselho do
clérigo. Pois é justo deste renascimento, que significara a retomada da alegria de viver, que
brota o envolvimento com padre Agostinho. Numa comovente atuação libertária,
exatamente como o sugerido pelo nome do sacerdote – o do homem que se transmuda.
80
Os
dois apaixonam-se, arriscam-se, mas fracassam na empreitada amorosa. Com uma surra
encomendada, o coronel expulsa o vigário da cidade e, com seu silêncio, isola a mulher
dentro do sobrado.
Um outro aspecto, que também aponta para a escrita embrionária do autor, diz
respeito à infertilidade feminina dos Honório Cota. Em Ópera dos mortos esse assunto
havia sido tratado. Ali torna-se quase um rito o enterro dos natimortos de dona Genu, no
cemitério da cidade, perto das voçorocas (goelas avermelhadas a engolir a vida). As
inúmeras tentativas de engravidar da mãe depositam na chegada de Rosalina, anos mais
tarde, uma expectativa a que não consegue corresponder. “E ia o preto Damião, seguido
da menina Quiquina, levar para o cemitério, sem nenhum acompanhamento, a miuçalha
perdida, os frutos pecos do útero de dona Genu” (OM, 18). Contudo, esse duro caminho
para vingar a vida teria sido percorrido por Isaltina, a esposa de Lucas. A espera do
primogênito é tão cansativa que o coronel consola-se nas aventuras com as várias amantes,
algumas delas, escravas. Depois de mais de ano casado, nasce Teresa, que de frágil morre
cedo. mais tarde vem João Capistrano que, tal qual Rosalina, vem suprir as lacunas do
casal e aparar as arestas de um casamento fracassado. Pois é justamente do enigma desse
80
Tal qual santo Agostinho, cuja vida marca-se também por dois períodos distintos o
primeiro mundano e o segundo de conversão. Este o da superação das tentações da carne,
tema constante de suas Confissões. Inspiração, inclusive, para os grupos anônimos que
pregam o viver no mote de “só por hoje”.
casamento prorrogado pelo silêncio dos cônjuges que nasce Um cavalheiro de antigamente.
Esse romance, de certa forma uma extensão de Ópera dos mortos e Lucas Procópio, vem
suscitar e dirimir as dúvidas de João Capistrano sobre a idoneidade da mãe, o caráter do
pai e os casamento dos dois.
5.2. Um cavalheiro de antigamente
É então que se aproveita o romance Um cavalheiro de antigamente, o terceiro da
trilogia publicado, para mostrar o salto do personagem. E analisar o processo criativo que
move João Capistrano de um livro a outro. Nas palavras de Mikhail Bakhtin tem-se: “A luta
do artista por uma imagem definida da personagem é, em grau considerável, uma luta
consigo mesmo.”
81
Como apontado pouco, o exato duelo de que fala Autran Dourado,
que faz o personagem, por vezes, escapar ao controle do seu criador. Se em Lucas
Procópio João era ainda menino, no livro que leva o seu nome, ou melhor, seu apelido, ele
está casado e feliz. Mas é justo o fim dessa felicidade que impulsiona a narração. O
tormento trazido por uma carta anônima obriga o protagonista a uma cega pesquisa na
história de sua família. Um cavalheiro de antigamente vem então para complementar,
esclarecer e dividir com o leitor novas descobertas em antigas histórias. Trata-se, como
apontado, do texto transbordando do próprio texto, objetivo segundo desse capítulo, dada
por finda a recorrência.
Publicado vinte e cinco anos depois de Ópera dos mortos, Um cavalheiro de
antigamente vem, então, completar a história da família Honório Cota. Como apontado
anteriormente, a saga tem início em Ópera dos mortos, no velho sobrado do Largo do
Carmo, com o foco da ação incidindo sobre a figura de Rosalina. Essa narrativa (Um
81
BAKHTIN, Mikhail (2003), p.5.
cavalheiro de antigamente) vem retomar o problema de família, aludido no primeiro
romance (Ópera dos mortos), focado intensamente no segundo (Lucas Procópio), mas
deixado em aberto para um terceiro. Trata-se do tumultuado romance de Isaltina, esposa de
Lucas Procópio, com o padre Agostinho. Em Um cavalheiro de antigamente, a história é
retomada sob o ponto de vista do filho adulto. Conforme aponta a orelha do livro, sem
indicação de autoria, da edição da Rocco de 2001:
João Capistrano Sales Honório Cota é o cavalheiro de
antigamente que nome a este romance. Lucas Procópio,
coronel da Guarda Nacional e político influente, permanece na
memória de João como um pai rigoroso, porém honrado. Isaltina,
sua mãe, era conhecida pela religiosidade, elegância, caridade e
beleza. Duas Pontes, a cidade recorrente da obra de Dourado,
esconde, no entanto, segredos do passado que se revelam
subitamente a Capistrano por obra de uma carta anônima.
Em Um cavalheiro de antigamente, a narrativa perde um pouco em qualidade, se
comparada aos dois outros romances anteriormente analisados. Nele, o texto é construído
de forma a lembrar, de certa maneira, um romance policial. A carta anônima que instiga a
busca de João Capistrano pela verdadeira face da mãe acaba por direcionar o enredo, de
certo modo, à construção causal. A despeito da freqüência de flashbacks, que pontuam a
narração, a busca pelo autor da denúncia reveste a narrativa de princípios semelhantes ao
texto investigativo pautado em causa e efeito. O romancista que já dera provas de talento ao
trabalhar com blocos e perspectiva, opta por uma narrativa mais linear quando constrói um
romance, cuja trama, de certo modo, baliza-se em antecedente e conseqüente. Muito
embora, por algumas vezes, as várias versões de um mesmo fato possam dar ao texto uma
impressão tênue de narrativa perspectivada, quem a conduz é um narrador onisciente e, por
isso mesmo, um tanto distanciado. O exemplo típico desse caso é a variedade de opiniões
acerca do envolvimento amoroso de Isaltina e o padre. A narração, bem a gosto do
suspense, alimenta-se por duas descobertas importantes: o autor da carta e a veracidade de
seu conteúdo.
Para dinamizar o relato, o escritor insere o narrador-coro característico de sua
prosa. Tal inserção devolve ao texto um pouco da qualidade de alguns romances de Autran
Dourado. Contudo, esse recurso não é suficiente. Cabe lembrar que da trilogia analisada
neste capítulo, Ópera dos mortos, Lucas Procópio e Um cavalheiro de antigamente, o
primeiro e o segundo utilizaram esse tipo de narrador. Além da objetividade do narrador
de terceira pessoa, que comanda a maior parte do relato, a inserção do coro permite também
o registro da opinião dos habitantes da cidade. Assim, durante toda a investigação do
protagonista, Duas Pontes manifesta-se sobre a história narrada. Se o que estava em jogo
era a dignidade de Isaltina, o caráter de Lucas e a idoneidade do delator, o ponto de vista do
povo requinta e amplifica a busca da verdade.
Outro ponto que, de certa maneira, contribui para que o texto perca também um
pouco da qualidade é a narração em terceira pessoa. Embora se saiba que é antes o manejo
da técnica de narrar, do que a técnica em si, que determina o valor da obra literária, a
impessoalidade da narração em terceira pessoa, de certo modo, “esfria” o relato. Ao
esvaziamento das emoções, segue-se, naturalmente, o distanciamento do leitor. Por ser o
mistério da trama um acontecimento pretérito, os personagens, via de regra, refletem e
conversam, bem mais, sobre ações passadas do que presentes. Geralmente, há um mediador
relatando sobre algo que se passou entre o casal” Isaltina e Agostinho o cerne do
desassossego de Capistrano. A esse respeito comentou Lígia Chiappini, quando pontuou a
narração que brota da mente do personagem com a do narrador onisciente:
Não propriamente narrador (na onisciência seletiva múltipla).
A história vem diretamente, através da mente das personagens,
das impressões que os fatos deixam nelas.(...) Difere da
onisciência neutra porque agora o autor traduz os pensamentos,
percepções e sentimentos, filtrados pela mente dos personagens,
detalhadamente, enquanto o narrador onisciente os resume
depois de ocorrido.
82
(Grifo meu)
Apenas nos capítulos finais, alguns monólogos interiores repassam ao leitor a
intensidade dramática da ação, sobretudo nas confissões de Isaltina, quando o tônus da
narração vivifica-se e se fortalece pelo desnudamento da personagem. O destaque fica para
a confissão da mãe no julgamento do filho que abordaremos mais adiante.
Assim, sem demérito para essa narrativa também comovente, seu valor como
romance, possivelmente, esteja relacionado, à complementaridade dos outros dois: Ópera
do mortos e Lucas Procópio. Visto de forma isolada, pouco acresce à obra do escritor, cuja
característica maior, a carpintaria textual, ali é pouco requintada.
Vinte capítulos curtos e proporcionais compõem Um cavalheiro de antigamente. À
moda de Autran Dourado, o livro apresenta uma medida padrão na distribuição da trama.
Em Uma poética de romance: matéria de carpintaria, por várias vezes o autor abordou
esse assunto, mostrando que a “engenharia de sua composição vai até mesmo ao número
de páginas de cada capítulo. A esse respeito afirmou: “Voltemos à objetividade. Nos
desenhos, o tamanho dos retângulos 20, 30 e 40 são milímetros, e correspondem ao
número de laudas datilografadas de cada bloco” (PRMC,73). Exceto o capítulo oito,
composto de uma única página, os demais se equivalem em tamanho. Neste, com apenas
uma fala do coro, tem-se a opinião do povo da cidade sobre o rompimento de João
Capistrano e o suposto caluniador de sua mãe, Godofredo Barbosa.
A intriga do romance dispõe-se em cinco fases. A primeira, entendida como estado
inicial, abrange do primeiro ao quarto capítulo, até o exato momento em que João
82
LEITE, Moraes Chiappini Lígia (1985), p.47.
Capistrano é considerado um homem feliz (casado e bem sucedido financeiramente). A
segunda fase caracteriza-se pela intervenção de uma força transformadora que impulsiona a
narrativa adiante a carta anônima deixada embaixo da porta da casa do protagonista,
roubando-lhe a paz. A terceira fase reflete o momento central da ação, quando todos os
esforços se voltam para a eliminação do problema – a morte do caluniador (até um matador
profissional é contratado para treinar a pontaria de João Capistrano). A quarta fase
caracteriza-se pela intervenção de uma segunda força o tiro dado à queima roupa em seu
Godofredo (o revide do ofendido). Por quinta e última tem-se um estado final específico: o
julgamento de João Capistrano e sua absolvição.
O romance, como afirmado anteriormente, é construído pela observação e
montagem que João Capistrano tenta fazer da história de sua própria família. Trata-se de
penetrar nos segredos e conseguir decifrar os mistérios enterrados no silêncio dos acordos
matrimoniais. O título cavalheiro de antigamente vem justo vestir-lhe a imagem atual
a do tempo da narração. Ao contrário do pai, um desordeiro contumaz, João Capistrano é
modelo de virtude e retidão. Tão metódico se comporta, que chega mesmo a funcionar para
a pequena cidade como um “relógio andante”:
João Capistrano era uma bela figura, chegavam na janela só para
vê-lo passar. Quando no seu cavalo branco todo ajazeado de
prata e couro trabalhado, cavalgava de tronco empinado feito
usasse espartilho (só que não carecia do aparato feminino era
magro e rijo), saudando as pessoas de modo elegante: levava a
mão ao chapéu num largo gesto.(...) Metódico, meticuloso e
pontual a gente costumava acertar o relógio quando ele passava
(CA,10 e 21).
Na medida em que a trama é tecida, ao mesmo tempo em que o protagonista
movimenta-se por descobrir mistérios, ele mesmo se revela. Suas reações, a cada passo da
investigação que persegue, valem para o leitor como um curioso e envolvente quebra-
cabeças de seu perfil:
Quando se perguntava a ele a razão de tal mudança, João
Capistrano dizia porque Fazenda da Pedra Menina é mais bonito
e encantado me lembra assombrado (feita casa mal-assombrada)
e morte. E que ele não gostava de coisas fúnebres, o que não era
certo. Não que João Capistrano mentisse, ele apenas
inconscientemente escamoteava de si e dos outros a verdade
(CA,8).
Em Ópera dos mortos, a intimidade da família com a ambiência soturna se
evidenciará mais fortemente. Ao tempo da narração de Um cavalheiro de antigamente, o
que se verifica é ainda o prenúncio da morbidez de Capistrano. Ali nem mesmo ele
conhecia seu lado escuro, silencioso, tão bem germinado no temperamento introspectivo e
solitário.
Como um genuíno Honório Cota, o protagonista traz no orgulho uma de suas
principais características. Escamoteado nessa capa de ferro, esconde-se o homem que nem
bem ele conhece: “Aquele homem nunca descanso a ele mesmo, era o que diziam”
(CA,26). Aliás, é em grande parte pela soberba que a denúncia anônima germina com
força. A ofensa contida na carta “sorrateira” é igual ou maior que orgulho trazido por João
Capistrano.
A narração, conforme referido, calca-se nas informações que o protagonista vai
colhendo daqueles que conviveram com sua mãe. É, pois, da montagem desse enorme
painel que a história flui. As fontes dessas vivências, do passado na Fazenda do
Encantado, são poucas e não fosse a “ressurreição” do romance com o padre, o caso
estaria praticamente esquecido. Cabe, pois, à carta anônima, ao médico da cidadezinha e a
empregada da família “narrarem” o adultério de Isaltina. A primeira apenas denuncia, mas
os dois outros modelam a narrativa de acordo com a vivência pessoal de cada um. Joana, a
serviçal trazida de antes do casamento, confidente e amparo à sinhazinha desde cedo,
servira esteio à patroa, recém-casada, enterrada viva na Fazenda do Encantado. o doutor
Maciel Gouveia representa a tábua de salvação para o naufrágio existencial oriundo do
matrimônio com Lucas Procópio. Contudo, a última e definitiva versão de sua história cabe
à própria Isaltina, no último capítulo do romance, num comovente monólogo, revelador de
sua alma:
Eu me lembro muito bem daquela tarde em que depois de mais
um ensaio do Oratório de Nossa Senhora das Dores, fiquei
dedilhando no harmônium as primeiras notas daquele lied de
Schumann. Depois do que aconteceu na véspera, quando as
minhas mãos e as de Agostinho ocasional e perigosamente se
encontraram e nós ficamos de mãos dadas um tempo que me
pareceu enorme, nos comunicando sem palavras o que nos
andava na alma e fomos interrompidos pela voz de Joana
chamando, não se pode dizer que havia mais em mim nenhuma
inocência ao voltar a tirar no harmônium os primeiros acordes do
lied. Na verdade eu queria que ele os escutasse e como da vez
passada viesse para junto de mim. Aquela música agora não era
mais dele, era minha também. Um terreno, uma propriedade
comum onde nos encontrávamos e nos amávamos (CA,241).
Como já dito, apesar da sugestão de um enfoque perspectivado, onde cada um relata
o fato sob seu prisma pessoal, pela interveniência demasiada do narrador onisciente, a
narração, ao contrário, perde força. Feita a narração através de monólogos interiores, o
efeito das multiversões, seria mais contundente. Ao tempo em que transcorre a narrativa de
Lucas Procópio, época em que ocorreu o perigoso adultério, o relato, por adotar essa
técnica, parece mais incisivo. A proximidade temporal do relacionamento proibido (a
narração coincide com o fato vivenciado), certamente, imprime vigor à narrativa. Nela o
narrador “parece” acompanhar pari-passu o crescimento da paixão interdita. Abaixo, tenta-
se contextualizar essa situação, ambas, ligadas ao momento que antecede a primeira visita
do padre Agostinho à Fazenda do Encantado. Época em que Isaltina, bastante isolada e
emocionalmente adoecida, seria merecedora de um conforto também espiritual. Pela
incapacidade de provê-la, o médico, agnóstico contumaz, solicita a visita do sacerdote:
Doutor Gouveia, eu acho isso tudo que o senhor está me dizendo
muito importante, mas sinto certa dificuldade de ir à Fazenda do
Encantado, confessar alguém que o me chamou. Eu não disse
confessar, que é um problema dos senhores dois. Mas acho que a
sua presença naquela casa e a conversa ajudariam muito um ser
humano confuso, desnorteado, sofredor, em desespero. É um
dever do ofício o senhor atendê-la. Mas ela não me chamou,
doutor Gouveia, seria um intrometimento de minha parte
(LP,124).
Assim conversam o padre e o médico no romance publicado primeiro. em Um
cavalheiro de antigamente, em tom claramente rememorativo, o diálogo entre os dois
assume uma nuance distanciada:
O senhor tem razão, deixemos esse assunto, voltemos à estrada real. Eu
lhe falei que não iria à Fazenda do Encantado para confessar alguém
sem ser chamado. O senhor disse que tinha falado em confissão,
problema a ser resolvido entre mim e Isaltina, mas achava que a minha
ida à fazenda e uma conversação bondosa e compreensiva ajudariam
muito um ser humano confuso, desesperado e sem rumo, que sofria
uma dor indizível. Era meu dever de ofício, o senhor diz, eu diria a
minha obrigação sacerdotal. Mas ela não me chamou, seria um
intrometimento meu, eu lhe falei. Não recordo exatamente as suas
palavras, acho porém que o senhor disse que pedir a minha presença ela
não tinha pedido, mas que Isaltina carecia de alguém como eu para
ajudá-la a sair do poço da angústia e do desespero em que estava metida
(CA, 131).
Sem dúvida, que descontextualizados do corpo do romance, os dois trechos acima
perdem ambos em força narrativa. Todavia, por tratar-se o segundo fragmento de relato do
acontecimento, ao passo que o primeiro reproduz a vivência do próprio acontecimento,
naturalmente, este supera aquele.
Para reforço da idéia acima descrita, outro episódio que também pode ser cotejado
para evidenciar a perda de tônus narrativo do terceiro romance (Um cavalheiro de
antigamente) é o relato da morte de Lucas Procópio. Também como os trechos cotejados
pouco, distanciam-se quanto à proximidade da consumação do fato (a morte de Lucas). Em
Lucas Procópio, inclusive, ele é narrado com dupla refletorização, ao término de cada
bloco. A tulo de elucidação aproveita-se, mais uma vez, o estudo de Ligia Chiappini,
ainda sobre o foco narrativo, porém no texto de Graciliano Ramos, que aqui também se
afina: “O contraponto das perspectivas em jogo vai tecendo o tênue fio da história,
fornecendo fiapos ao leitor do pobre quotidiano da família.”
83
Ora, o relato diversificado
dos personagens acerca do assassinato de Lucas, provê um caleidoscópio ao leitor, que de
seu manejo cria sua própria versão. Cada refletor (personagem que vivencia o
acontecimento e sente as emoções do evento narrado) ao relatar o episódio na sua versão,
oferece ao leitor a possibilidade de inventar a sua própria.
Enseja, por isso mesmo, um clima de ambigüidade um dos requintes da boa
prosa narrativa também comum à do autor. Lá atrás em 1973, em texto poético
comentando O risco do bordado, afirma Autran:
Inicialmente eu coloquei as marcações, as reações que o menino ia
sentindo com o desenrolar do caso do avô; depois as subtrai para
alcançar o efeito de ambigüidade, que acredito ter conseguido. A
ambigüidade em ficção é tão importante como em poesia (Willian
Empson, Seven Types of Ambiguity) (PRMC,25).
.
No primeiro bloco, a morte de Lucas é narrada quando os três viajantes ainda estão
a caminho da fazenda do Capão Florido e não fica muito claro se o tiro certeiro viera do
negro Jerônimo ou do feitor da fazenda. Tanto de um como de outro (seus fiéis escudeiros),
a olhos nus, a possibilidade seria remota. Contudo, a se considerar, o estigma da escravidão
ou mesmo a longa sujeição do empregado ao fazendeiro, viabiliza-se o assassinato:
83
LEITE, Moraes Chiappini Lígia (1985), p.50.
Jerônimo se afastou, tomou a direção do capão, de onde vinha vindo
Pedro Chaves. Quando se encontraram, pararam, se miraram nos olhos.
Depois cada um tomou o seu caminho. Pedro Chaves se sentou numa
pedra e voltou a assobiar. Lucas Procópio quis lhe dizer alguma coisa,
desistiu. Era um assobio forte e alto, um dobrado militar. Pedro Chaves
viu o patrão se levantar e ir em direção da canastra. Quando se voltou,
gritou espantado vendo a carabina apontada para ele, as mãos no ar.
Não faça isto, não faça isto, pedia. A arma apontada bem na cabeça de
Lucas Procópio. Um pássaro trincou o silêncio estagnado de cristal. A
figura de Lucas Procópio contra o fundo azulado e luminoso do céu.
Uma explosão, o corpo caiu. Está morto o coronel Lucas Procópio
Honório Cota, gritou Pedro Chaves para o céu alto, tinindo de azul
(LP,83).
Ao final do segundo bloco o episódio é novamente relatado, mas em circunstâncias
bem distintas. A longa viagem do primeiro bloco era conclusa e o agora fazendeiro
morava em Duas Pontes. A Fazenda do Encantado não teria sido alcançada, como
também abandonada pelo histórico sobrado do Largo do Carmo. Ali Lucas Procópio bem
mais velho vivia “domesticado” pela esposa:
Uma tarde, quando tudo parecia tranqüilo na sua vida e todos
esperavam que o velho tivesse se acalmado de vez, o destino lhe armou
uma peça. Aconteceu que se viu forçado a um gesto de legítima defesa,
por todos presenciado. Estava numa roda de amigos, viu passar um
preto, não lhe pareceu estranho. O preto andou alguns passos, se voltou.
E, sem que ninguém entendesse nada, disse Pedro Chaves! Um calafrio
correu a espinha do velho. Era a primeira vez em quinze anos que ouvia
aquele nome muito guardado na memória. Aí, foi, se virou. Armado
de uma garrucha o preto desferiu-lhe um tiro no ombro. Mesmo ferido
o coronel ainda foi mais ligeiro. Sacou do revólver e desfechou no preto
dois tiros seguidos, certeiros, que o prostraram no chão morto. Quem
era, lhe perguntaram. Não sei um preto que deve ter me tomado por
alguém que não sou, disse. E a si mesmo: Jerônimo, preto filho da puta
Ele se recuperou do ferimento mas não foi mais o mesmo homem. A
saúde abalada, em pouco tempo morria, sofrendo uma agonia lenta e
dolorosa (LP,154).
Como frisado tanto num relato como no outro, a tônica é a ambigüidade. Se no
primeiro bloco, o tom vago embutido no “cada um tomou o seu caminho” impossibilita a
certeza do lugar onde se posicionou o atirador. No segundo, a cor do assassino em vez de,
por si só, elucidar o caso (só Jerônimo era negro), ainda deixa o leitor confuso por conta da
esdrúxula saudação (Pedro Chaves!). Sem dúvida, o manejo da narrativa com a dúbia forma
de relatar um acontecimento engrandece a o texto autraniano e requinta o romance Lucas
Procópio.
Em Um cavalheiro de antigamente, a morte de Lucas Procópio é narrada, apenas
uma vez, pelo coro. A versão selecionada pelo narrador é a que encontra o coronel já velho.
Acontece já nos primeiros capítulos, até porque como a obsessão do filho liga-se à honra da
mãe, somente a partir da viuvez poderia legitimar-se um novo amor:
Foi no Ponto que um dia a gente viu uma coisa espantosa. Quando, ao
sair do banco, o coronel Lucas Procópio se deteve pra falar com alguém
sobre um negócio qualquer, de repente apareceu um preto retinto, gritou
Pedro Chaves, e deu um tiro no ombro dele. Mesmo ferido, o coronel
sacou do revólver e matou o crioulo com dois tiros. Quem era,
perguntaram pra ele. Não sei, um preto qualquer que deve ter me
tomado por alguém que não sou, ele falou. O coronel Lucas não chegou
nem ao menos a ser indiciado, nem inquérito o delegado abriu.
Ninguém pôs reparo nisso, todo mundo viu que tinha sido um revide,
legítima defesa. E por ser o morto quem era, um preto. Preto nunca teve
nenhuma importância, como pessoa quer dizer, no eito e no trabalho é
que tinha valia. (CA, 24)
Mesmo a narração sendo feita com a força dramática do coro, ainda assim, perde em
vigor para os dois relatos do romance anterior. Como dito, é do reaproveitamento da
segunda versão da morte (a da cidade), que nasce a do narrador de Um cavalheiro de
antigamente. Aquela em que Lucas Procópio “confundido” com o feitor torna-se alvo do
negro. Por trás do implacável feitor, não se pode esquecer, as severas ordens de Lucas,
eternizadas (como visto) nas feições amedrontadoras de sua máscara mortuária. Mas se
em Lucas Procópio a ambigüidade do texto enriquecia o relato, em Um cavalheiro de
antigamente a clareza da narração, por vezes, entedia o leitor. Ao contrário do primeiro
relato, quando Lucas murmura, ainda que para si só, o nome de Jerônimo; no segundo,
quando perguntado se conhecia o malfeitor, diz desconhecê-lo. É que deixa o leitor
“desocupado” das desafiantes investigações. Essas nuances de construção textual, sem
dúvida, nos permitem aquilatar um pouco da qualidade do texto literário.
Apesar de alguma perda na qualidade da narrativa, um aspecto curioso a ser
apreciado em Um cavalheiro de antigamente é a interessante analogia proposta entre as
etapas do jogo e as da vida. A história da família Honório Cota, apesar de soturna e lenta,
vem também ritmizada pela dinâmica lúdica de alguns jogos. Aparecem ali o xadrez, o
bilhar, o adestramento de cavalos e o artesanato de brinquedos para mostrar quão
simbólicas são as performances humanas.
Segundo o Dicionário de símbolos:
Os jogos apresentam os mais variados aspectos segundo as
necessidades de cada época. Não são apenas um passatempo. Podem
ser iniciáticos, didáticos, miméticos, competitivos. Inspiram-se na vida
social e desenvolvem as faculdades de adaptação social.(...) Mesmo
quando são puro divertimento, incluem gritos de vitória, pelo menos do
lado do ganhador. Combate, sorte, simulacro ou vertigem, o jogo é por
si só um universo, no qual, através de oportunidades e riscos, cada qual
precisa achar o seu lugar.
84
Nesse romance, o narrador busca no jogo de xadrez a dinâmica para movimentar a
trama. É ela que embala as confidências de João Capistrano nas conversas noturnas na casa
de Maciel Gouveia. A cada encontro do médico e João, uma partida é disputada. O
desabafo do cliente cadencia-se pela partida em andamento, a difícil catarse se faz
pausadamente, o convite para as partidas é o artifício do médico para ganhar o doente.
Tem-se a impressão de que, como no jogo, a vida é também uma questão de estratégia:
A partida no fim, apenas uma meia dúzia de peças no tabuleiro, e o
dr. Maciel Gouveia tinha quase certeza de que dificilmente venceria; se
distraíra, inquieto com a mudez de João Capistrano desde que chegara.
O xadrez exige mais concentração do que nenhum outro jogo, ele não
vinha conseguindo, tocado pela doentia e exasperante indecisão dos
movimentos de João Capistrano. Ele chega a tocar numa pedra, em
seguida recuava e voltava a mexer nela, para de novo voltar atrás.
84
CHEVALIER, Jean e CHEERBRANT, Alain (2006), p.518.
Certamente pensando não no que devia fazer no tabuleiro, mas na
sua vida (CA,145).
o jogo de bilhar aparece no romance como uma disputa de poder e determina o
ritmo do memorável encontro de Lucas Procópio com o barão das Datas, pai de Isaltina.
Aquele recém chegado a Diamantina e esse esperançoso de soerguer-se financeiramente. A
movimentação dos jogadores no perde-e-ganha das bolas e caçapas faz do entrosamento do
dois um momento ímpar:
Procurou saber quem era o cavalheiro, lhe disseram ser um forasteiro
muito rico que esbanjava dinheiro. O barão das Datas, que andava em
situação difícil, ficou conhecendo Lucas Procópio num salão de bilhar
da cidade. Lucas Procópio tentou a jogar com ele uma partida de bilhar
de caçapa, diziam que o barão era supina no taco. O barão vacilou não
tinha muito dinheiro, o homem podia fazer uma proposta alta e eleo
estava em condições de aceitar. Olhou para o dono do salão pedindo
apoio, o dono fez que sim com a cabeça. De qualquer maneira o barão
estava jogando uma partida muito perigosa.(...) Ele arriscou, a sorte lhe
foi favorável (CA,67).
O encontro aproxima os dois homens que, pouco adiante, estreitam os laços ao
parentesco. O barão, como cortesia ao hóspede, entrega a mão de sua filha ao forasteiro
abastado.
Como dito, além desses esportes, compõem o enredo duas outras atividades, de
carga bastante simbólica: o adestramento de cavalos e o artesanato de brinquedos. A
primeira relacionada a Lucas Procópio, a segunda a João Capistrano.
Como capitão do mato, depois de comprar e vender escravos, procurar ouro nas
grupiaras e aventurar-se nas estradas para apossar-se da fazenda do pai, Lucas dedicou-se
também ao adestramento de cavalos. Alvos precisos de sua eterna cólera, também os
cavalos eram submetidos às suas ordens e exigências: Achavam que ele jogava dinheiro
fora de propósito, para impressionar. Era Lucas Procópio que buscava mulher de pura
raça e qualidade, como mais tarde iria a Lagoa Dourada comprar cavalos para amansar e
revender” (CA, 56).
Ao final da vida, em um movimento inverso, o coronel deixa-se amansar pela
finesse da mulher que, da caligrafia às boas maneiras, nunca desistira de ensinar-lhe o
melhor da vida. “A senhora na verdade nos educou, a mim e a meu pai, amansou o cavalo
bravo que ele era”(CA,66), conclui João Capistrano ao ouvir as confidências da mãe.
Por fim, tem-se a arte do carapina
85
que acompanha João Capistrano desde a mais
tenra infância, na fazenda, época em que fazia os brinquedos de Teresa e Isabel, suas irmãs.
Na idade adulta, contudo a distração infantil transforma-se em terapia ocupacional prescrita
pelo médico da família. Desocupado de ofício e por vocação (Quincas Ciríaco é o grande
gerente de seus negócios!) o artesanato em madeira vem justo aplacar-lhe a dor do
desmantelo familiar, das imagens demolidas – de seu pai, sua mãe, o avô materno:
Por que você não faz um carrinho de bois, uma caminha de boneca para
criança brincar? disse o doutor Maciel Gouveia. Eu não tenho filho, o
senhor sabe, disse João Capistrano. É mais uma ocupação, faça
brinquedos para os filhos de Quincas Ciríaco, disse o dr. Maciel
Gouveia (CA, 108).
Capistrano que mostrara intimidade com a depressão e o suicídio, se salva pelo
dom artesanal inato que ocupa suas mãos e distrai-lhe a mente (remédio também poderoso
para os poucos, mas longos dias vividos na cadeia).
Dessa forma o xadrez, a sinuca, o adestramento de animais e o artesanato em
madeira guarnecem a narrativa de uma curiosa simbologia lúdica aproximando o jogo, da
85
Abre-se aqui um espaço, para fazer menção à freqüência com que o autor retrata, em sua
narrativa, a arte dos carapinas. Do conto “Os mínimos carapinas do nada”, numa alusão
direta à “matança” do tempo nas cidades do interior, afirma: “Podia se ver a qualquer hora
do dia, no enovelar lento do tempo, os carapinas do nada ocupado na gratuita e absurda,
prazerosa ocupação” (MCN,17)
vida, e vice-versa. A disputa no tabuleiro, o toque certeiro do taco, o domínio do animal e a
habilidade das mãos traz para a geografia do humano aquilo que, a princípio, parece restrito
ao lúdico.
Além da importância das atividades já referidas, cabe ressaltar também a simbologia
embutida na casa (o sobrado) e na música em Um cavalheiro de antigamente. Agora não
são mais os movimentos que dinamizam a trama, mas a imobilidade do sobrado e do piano
que a arrefece. O ritmo narrativo desacelera-se, a cada momento em que o narrador dispõe
sobre a moradia e o instrumento pessoal de Isaltina, em sutil obediência à estaticidade
deles.
O gosto do autor pelas formas arquitetônicas do barroco mineiro, evidente na
composição narrativa de Ópera dos mortos, aqui é ratificado pelo apego do barão das
Datas, pai de Isatina, a seu casarão. Embora não tenha o peso do sobrado dos Honório Cota
quase um personagem o de Diamantina representa também o fausto que não quer ser
perdido.
Se em Lucas Procópio a mudança da fazenda para a cidade enseja a construção de
um solar, em Um cavalheiro de antigamente, o imóvel ganha novo pavimento. É João
Capistrano que, respeitando a arquitetura original, assobrada a casa, ali se instala com a
família. Tem origem, então, o sobrado do Largo do Carmo, berço e “jazigo” da nobre
família.
Contudo o sobrado que ora interessa o é o dos Honório Cota, mas o de Cristiano
de Almeida Sales, pai de Isaltina. Aqui a casa da família perde a conotação de abrigo e
adquire significado de moeda de troca. Graças, também, ao resgate da hipoteca do casarão
da noiva viabilizado pelo casamento com Lucas. No gesto de redenção da dívida, a venda
velada da filha, jovem e bela, neste caso mercadoria. Num desabafo, Isaltina relata ao filho:
Os dois eram sócios na mineração das lavras de meu pai, Lucas tinha
levantado a hipoteca do sobrado, passou para o nome dele. (...)
Rompido o noivado, estava praticamente desfeita a sociedade de Lucas
Procópio com o barão das Datas. Lucas Procópio pediu de volta os seus
muitos contos de réis. Aqueles papéis que o senhor assinou eu tenho
comigo, disse ele. É cobrar na Justiça, o senhor vai ficar na rua da
amargura. Não seu belo sobrado mas tudo que possui será meu. (...)
Era como se Lucas estivesse mesmo negociando cavalo ou escravo. O
casamento ou o dinheiro de volta, disse ele (CA, 69 e 70).
Vista a simbologia da casa, analisa-se, pois, a da música. Veiculada ora pelo piano,
ora pelo harmônio representa uma antinomia e por isso será tratada à luz da oposição.
Enquanto o primeiro se fecha e silencia, o segundo abre e soa. O piano é registro da vida de
solteira, e na redução de seu tamanho (cauda para armário), a denúncia da decadência da
família: “O belo piano de cauda dos tempos da abastança do pai, a primeira coisa de valor
que tiveram de se desfazer quando a pobreza começou a ameaçar o sobrado do barão das
Datas”.(CA,134) o harmônio viabiliza o renascimento da jovem senhora, que recém
casada sucumbira na Fazenda do Encantado. De volta à cidade e a vida espiritual, o
engajamento com as atividades da paróquia revive em Isaltina o gosto pela música,
exercitada, então, no harmônio da igreja. Nos acordes iniciais dos lieder de Schumann,
tinha-se a passagem do sagrado ao profano: na prática, a ponte, para o irresistível namoro
com o padre. Ao término do ensaio coral, o código amoroso do casal dispunha que, na
permuta sonora dos hinos religiosos para o repertório romântico, embutia-se o sinal de que
ficaram sós. Portanto, na linguagem da música também o entrelaçamento dos dois:
E voltamos a nos encontrar todas as tardes, o lied de Schumann
era o código que avisava que eu estava sozinha esperando. Mas
ao contrário do que pensávamos aquilo não podia continuar. (...)
a comunicação que apenas duas almas privilegiadas podem ter,
como uma vagarosa tessitura de um tapete ou de um bordado,
que muito depois de começados revelam seu risco” (CA, 142
e 137).
Por fim, apesar do registro anterior de que esse romance traz pouca novidade
poética registra-se ainda, nessa análise, alguns rastros da carpintaria de Autran Dourado
entremeados na ficção de Um cavalheiro de antigamente. Apesar de o romancista mineiro
publicar, em separado, o “mapa” de sua construção textual, sempre que ficciona, não
descansa, procura uma brecha qualquer para metapoetar. Quer na falas dos personagens,
quer nas intervenções do narrador as diretrizes da prosa autraniana estão presentes. Quando
perguntei ao autor sobre essa característica de sua narrativa, respondeu-me simplesmente:
“Há uma obsessão mesmo, pela poética”(Entrevista, 2008).
Pois é da figura de Joana, a babá de Isaltina, que o narrador se serve para falar da
importância da oralidade. Nela, o valor das histórias que passam de geração em geração,
cativando as crianças e adultos. Era João Capistrano, que ainda menino, embriagava-se com
o dom da negra a hipnotizá-lo com os casos: “Com certeza eles herdaram dos seus avós o
talento narrativo, acharia João Capistrano, mais tarde quando homem. Aquele constante e
repisado contar era a maneira de memorizar e passar para os mais jovens as histórias das
suas tribos, que não tinham linguagem escrita” (CA,161). Na longa conversação que
ligava os dois, muitas vezes a mentira redentora necessária para aplacar suas angústias
infantis:
Joana viu que mentira é mesmo assim: dado o primeiro passo, tem-se
que dar o segundo e o terceiro, e ir consertando aqui e ali, para que a
mentira seja tida por verdadeira e o contador chamado de mentiroso.
Ela agora devia inventar uma história para sossegar o coração de João
Capistrano, amansar a sua ansiedade. E em matéria de inventar casos e
histórias ela estava sozinha (CA,168).
Da diversidade de versões dadas ao romance de Isaltina com o padre, o narrador se
serve para teorizar sobre uma das características mais fortes da poética de Dourado a
perspectivação. Como dito pouco, exatamente a possibilidade de um mesmo evento
narrado por pontos de vistas diversos, assumir uma “multiversão”. O relato passa, então, a
ser tão rio quanto o número de pessoas a montá-lo. Coube ao doutor Maciel Gouveia, o
médico de confiança de Capistrano, a versão final para elucidar o amigo. Guardava,
contudo, um pedacinho de verdade jamais revelado. Angustiado, a peça chave da história,
tentava, por isso mesmo, um alento qualquer:
Ele verificou, finalmente, de volta à sua teoria ou justificativa da
mentira a que fora levado pela dúvida, que tudo se originou do
arrependimento de ter dito uma mentira ou meia-verdade a João
Capistrano. Teria sido melhor, via agora, se ele tivesse considerado,
feito fazia antes, que a história da vida de uma pessoa, como toda a
história, se constrói através de muitos pontos de vistas às vezes
contraditórios ou das muitas faces de um poliedro ou de um jogo de
armar de que faltassem peças essenciais que dizem Deus possui...
(CA,169) (Grifo meu)
Um outro aspecto ainda a ser considerado remete-nos à teoria de Edward M. Foster,
acerca da composição do personagem. Segundo ele, uma das principais características
distintivas dos seres humanos para os de ficção é a aura de mistério que os envolve:
Mas as pessoas num romance podem ser completamente entendidas
pelo leitor, se o romancista quiser; sua vida interior, assim como a
exterior pode ser exposta. É por isso que não raro, parecem mais
definidas que as personagens na História, ou mesmo os nossos próprios
amigos; foi-nos dito sobre elas tudo o que pode ser dito; mesmo se são
imperfeitas ou irreais, não contêm nenhum segredo, enquanto nossos
amigos os têm e devem tê-los, sendo a reserva mútua uma das
condições de vida neste globo.
86
Em Um cavalheiro de antigamente, é justo Isaltina que faz a reflexão sobre o
mistério que envolve as pessoas. Temerosa de que o seu segredo fosse a qualquer momento
desvelado, confirma na narrativa ficcional o que o crítico apontou em teoria se a
incomunicabilidade protege os humanos, a permeabilidade revigora os “caracteres de
papel”. Conforme completa Antônio Candido: “É como se a personagem fosse inteiramente
86
FOSTER, Edward M (1998), p. 46.
explicável; e isso lhe dá uma originalidade maior que a da vida, onde todo conhecimento do
outro é, como vimos, fragmentário e relativo.”
87
O dr. Maciel não era homem de mentir, achava. Mas voltava a se
inquietar quando pensava que ninguém sabe o que se passa
dentro de ninguém, somos muralhas uns para os outros, não
comunhão completa entre os homens (CA, p.99).
Por fim cito ainda M. Foster para fechar este capítulo cujo objetivo, além da
recorrência e do transbordamento do texto autraniano, pretendeu mostrar a insubordinação
do personagem (razão do título) motivando, até mesmo, a fuga de um romance a outro.
Fuga essa que permitiu que Lucas Procópio e João Capistrano construíssem, juntos, a saga
da família Honório Cota, em Ópera dos mortos, Lucas Procópio e Um cavalheiro de
antigamente, romances por onde transitam livres e soberanamente:
As personagens apresentam-se quando solicitadas, porém cheias de
espírito de insubordinação. Pois m numerosas analogias com as
pessoas como nós. Tentam viver suas próprias vidas e, com
freqüência, atraiçoam o esquema fundamental do livro. “Fogem”,
“escapam do nosso controle”: são criações dentro de uma criação e,
em relação a esta, muitas vezes desarmoniosas.
88
6. A FICÇÃO RASCUNHA O DOCUMENTO – A serviço del-Rei e Gaiola aberta
O quinto e último capítulo deste estudo pretende consolidar a tese da escrita
recorrente de Autran Dourado, utilizando-se de mais duas obras onde é possível perceber
esse movimento. São elas: A serviço del-Rei (1984) e Gaiola aberta (2000). Apesar de
lidarem com o mesmo conteúdo, diferem pela escolha do texto que as representa. Em A
serviço del-Rei, Autran Dourado trata do assunto servindo-se de texto ficcional, aliás, seu
87
CANDIDO, Antonio (1964), p. 66.
88
FOSTER, Edward M (1998), p. 64.
melhor produto. em Gaiola aberta, aventura-se pela narrativa memorialista, cujo teor
confessional, tão ajustado à idade madura, abriga desalentadoras conclusões.
Ambas retratam o sofrimento do intelectual,
89
e sua impotência quando atuando nos
bastidores do poder. Revelando ali o quinhão amargo da assessoria a JK, desabafa: “Não
passei de um pássaro que foi em busca de sua gaiola” (GA,18). Pois é justo dessa
duplicidade textual que se pode, mais uma vez, detectar o movimento retroalimentativo que
assinala a narrativa do romancista mineiro. Sempre que se consegue evidenciar esse mote,
julga-se estar mais perto da proposta deste estudo, qual seja, o de assinalar o caráter
recorrente do texto autraniano. Volta-se aqui à questão da obra inacabada, referida no
capítulo anterior. Recorre-se, mais uma vez ao ensaio de Leyla Perrone-Moysés sobre o
fenômeno intertextual que diz: “A primeira condição da intertextualidade é que as obras se
dêem por inacabadas, isto é, que permitam e peçam para ser prosseguidas.”
90
Para Autran,
há sempre uma maneira nova de recontar o acontecido. A diferença entre o texto ficcional e
memorialístico se reduz à categoria que os exprime: a primeira, literária; a segunda,
documental. Então, se no primeiro texto, a escolha recaiu sobre a narrativa ficcional, sua
qualidade será aquilatada pelo valor literário do romance produzido, a segunda “versão”
da história, abrigada pelo texto memorialístico, a importância recai sobre o valor
89
Abre-se aqui um parêntese para comentar o tipo de sofrimento a que me refiro. Ao longo
da história política do país, vários foram os intelectuais que trabalharam em cargos, quando
não políticos, pelo menos de assessoramento. O poeta Carlos Drummond de Andrade,
talvez um dos mais emblemáticos nessa postura “contraditória”, passou bons anos de sua
vida no Ministério de Educação e Cultura, alguns dos quais assessorando o ministro
Gustavo Capanema, durante o Estado Novo. Trata-se de uma questão crucial que abrange a
luta entre o “feijão e o sonho”. Tema este tão bem trabalhado pelo romancista Orígenes
Lessa, em romance do mesmo título, cujo cerne é justamente a luta entre o provimento do
sustento físico diário e a entrega ao fazer literário, de remuneração incerta.
90
PERRONE-MOISÉS, Leyla (1979), p. 217.
documental do relato. Nada é tão novo que prescinda do que já foi dito; a “roupagem” dada
à narrativa, aqui nesse par em estudo, é que as diferenciará.
A princípio, é através da figura de João da Fonseca Ribeiro que o escritor se serve
para registrar o aprendizado, quase torturante, a que se submeteu quando assessor de
imprensa do então presidente Juscelino Kubitschek. Narrador-mor da prosa de Autran
Dourado, João, também mineiro e escritor, empresta-lhe a indumentária básica para, em sua
“pele”, representar a história que ele mesmo viveu. Ali, pode-se dizer, fez-se o ensaio das
memórias, que viriam, quatorze anos mais tarde, escancarar a alma do artista subjugado
pelos meandros do poder.
Como dito na introdução deste estudo, em entrevista que me concedeu, Autran
Dourado fez duas revelações importantes a serem relembradas e aqui aplicadas. A primeira
relacionada ao tempo trabalhado com JK não obstante a admiração pela figura do ex-
presidente, esse teria sido o pior de sua vida; a segunda, que relutara muito em escrever as
tais memórias dessa época, não pelas implicações com a família de JK, mas também
porque pessoas envolvidas, na história, ainda estariam vivas. Pois é justamente dessas duas
revelações, que se tem facilitado o caminho para entender a ficção, rascunhando as
memórias. Ora, escritor de tantos romances, era de se esperar que, em um deles, estivesse o
relato de seus dias mais sofridos. No entanto, como essa narrativa comprometeria algumas
pessoas, a solução mais fácil seria ficcioná-la. Camuflados, pois, na fumaça da prosa de
ficção, o texto atende às necessidades catárticas do escritor e evita que revelações
bombásticas vulnerabilizem a honra de terceiros. Nasce, então, A serviço del-Rei: a prosa
“possível” para os dias aflitos. Aquela capaz de viabilizar ao artista o relato de sua
experiência nos bastidores do poder.
Dito assim parece difícil, por outro lado, justificar e entender a publicação de
Gaiola aberta, uma década e meia mais tarde. Contudo, perto dos oitenta anos, a
necessidade pessoal do romancista toma outro rumo. Agora, servindo-se da experiência
vivida, o artista sente-se responsável, antes pela denúncia dos desmandos do poder político,
do que pelo relato poético. A maturidade autoriza o homem a fazer revelações que, se antes
o comprometeriam, agora o enobrecem. Não isso, mais além, ela instiga o artista a
deixar sua marca pessoal na transformação do mundo: nas memórias, uma maneira de
passar a limpo a vida, de examinar os erros cometidos, uma oportunidade também de se
de todo impossível, acertar” a história pelo menos desvendá-la: permitir vir à tona a
verdade. A esse respeito dispôs Neide Luiza de Resende, em ensaio acerca da produção
memorialística de Oswald de Andrade:
Oswald explica, no início das memórias, o empurrão que levou ao
escrevê-las: “Antônio Candido diz que uma literatura adquire
maioridade com memórias, cartas e documentos pessoais e me fez jurar
que tentarei escrever já este diário confessional.” (...) Suas personagens,
embora com lances autobiográficos (ou talvez por isso mesmo), não
possuíam grandeza, como aquela suposta nas palavras do crítico
quando insta o escritor a escrever suas memórias para injetar
maioridade a sua literatura.
91
Pois é nesse jogo do velar e desvelar-se, movimento que os gregos chamavam de
alethéia, que se constroem as duas obras que fecham o estudo da narrativa recorrente de
Autran Dourado. Entende-se que a ficção (A serviço del-Rei) aponta para o movimento de
velamento do fato narrado, enquanto as memórias (Gaiola aberta) descortinam e desvelam-
no. No cerne desse movimento antitético, estaria a verdade: as impressões pessoais do autor
do governo JK. Conforme aponta Laura Goulart: Aquilo que brota, que surge, tem a
91
REZENDE, Neide Luiza de (2003), p.110-111.
tendência do ocultamento. A verdade, para os pensadores originários, traz esse jogo de
velamento e desvelamento, é alethéia.
92
6.1 A serviço del-Rei
A serviço del-Rei revela uma construção textual das mais sofisticadas de Autran
Dourado. Artífice contumaz, nesse romance, em especial, o autor resgata o primor narrativo
deixado, atrás, em Sinos da agonia (1974). “Distraído”, nessa década com duas de suas
obras ensaísticas, apesar de ter escrito também prosa de ficção (três romances), é com este
romance que o escritor ousa uma mistura variada de gêneros narrativos. Nele é possível
encontrar, entremeado ao texto principal, desde o poema épico de Hesíodo, sua teogonia,
até longos trechos em diálogo, à maneira dramática de representar, prescindindo por
algumas boas páginas de narrador, como de praxe no texto teatral. Aproveita-se aqui o
comentário de Käte Hamburger, quando da distinção dos gêneros literários, em que
especifica o dramático bem como a sua forma dialógica:
Do ponto de vista da classificação dos gêneros literários, não importa o
respectivo estilo ou a potência da função narrativa em princípio, que
representa a existência externa e interna dos personagens de maneira
diferente, mais ampla do que o drama, mas trata-se primariamente
apenas da função ficcional específica da função narrativa como tal. Pois
a posição lógico-linguística do drama no sistema da criação literária
resulta unicamente da ausência da função narrativa, do fato estrutural
de que os personagens são formadas dialogicamente.
93
O primeiro estranhamento com que se depara o leitor é justo a superposição de
textos que estratificam a narrativa. A começar da própria epígrafe (será objeto de
comentário adiante), a tendência multitextual do romancista se mostra imperiosa. Para
“iluminar” a narrativa, o mineiro mostra, pelo excesso de “vozes”, do
92
FONSECA, Laura Goulart (2005), p.2.
93
HAMBURGER, KÄTE (1986), p.139.
que necessita para abrir o romance, o quão vário também é. Para tanto, vai desde
Shakespeare, com Rei Lear e a desastrosa partilha de suas terras, até Manuel Bandeira, com
seu reino paradisíaco de Pasárgada, passando pelos ensinamentos políticos das cartas do
padre Antônio Vieira. Quando perguntei ao romancista das razões da inserção da Teogonia,
de Hesíodo, respondeu-me: “Ali o destaque fica com as epígrafes: todas relacionadas com o
poder” (Entrevista/2008).
Longe da construção tradicional em capítulos, A serviço del-Rei possui um texto
único perpassado dezessete vezes pelo poema grego da criação do mundo. Tem-se a tida
impressão de que um texto costura o outro. Assim afirma Gerard Vigner, definindo
intertextualidade explícita, aquela de fácil identificação:
Será legível numa perspectiva intertextual: todo o texto que, pela
relação que estabelece com textos anteriores ou com o texto geral,
dissemina em si fragmentos de sentido conhecidos pelo leitor, desde
a citação direta até a mais elaborada reescritura. Ler significa
perceber este trabalho de manipulação sobre os textos originais e
interpretá-los.
94
Assim como no tecido é possível, por vezes, perceber a fibra maior sobrepondo-se
à menor, ou mesmo, o fio de uma cor entremeado ao de outra, nessa narrativa “em
camadas” os textos imbricam-se. Na medida em que a trama se desenvolve, o prefeito de
Duas Pontes, Saturniano, ascende à presidência da República. Também, na mesma passada,
a criação do mundo desenrola-se. O compasso entre o texto de Hesíodo e de Autran é de tal
maneira ajustado que o ritmo de um implica o de outro. Se no romance as ações arrefecem-
se, o trecho de Hesíodo aponta baixa dinamicidade. Ao contrário, se a trama se dinamiza, o
poema grego aponta para explosões, destruição e movimento. Assim é que a carreira
ascensional de Saturniano, abalada somente pela demência, apenas encontra par no último
94
VIGNER, Gerard (1988), p. 34.
trecho do poema, cujo tom apocalíptico, põe também termo à narrativa maior. Diz o grego:
“e então não haverá mais nada, apenas pedras, escarpas, crateras, planícies vazias: tudo um
só deserto, uma solidão só, o silêncio do eterno retorno, à aspereza de ressurreição”.
95
Também, nas microestruturas narrativas (pedaços menores da narrativa maior o
romance), a prosa de Autran Dourado revela um caráter recorrente: a história política de
João da Fonseca Ribeiro, narrada de forma “confessional”, entremeia-se à teogonia, de
Hesíodo, com a criação do mundo. Enquanto o narrador constrói politicamente o presidente
Saturniano, o poeta grego narra a criação do universo. Quando aquele caduca, o mundo
também explode. Há, pois, um paralelismo entre a narração do romance e a do poeta da
Antigüidade. Pretende o autor, no mínimo, uma analogia entre a escalada do poder e a
germinação da vida. Associada à decadência mental do indivíduo e o apocalipse do mundo.
Como apontado, também um longo trecho do romance em que se tem a nítida
impressão de estar diante de uma peça teatral. Cabe aqui, por isso, remeter ao capítulo
quatro desta tese, onde se aponta a vocação teatral da narrativa autraniana, evidenciada pela
análise comparativa entre os romances Tempo de amar e Ópera dos fantoches. Citando
ainda estudo de Käte Hamburger sobre os gêneros literários, especificamente a condução
dialógica da trama, que é o que aqui nos interessa, tem-se:
A primeira classificação é tentada por J. Petersen, que defina a epos
como o relato monológico de um enredo, a lírica como representação
monológica de um estado, e o drama como representação dialógica de
um enredo.
96
(Grifo meu)
Portanto, o gosto pelo gênero dramático não constitui novidade na prosa de Autran
Dourado. Aqui, como dito, aparece numa longa conversa, entre João e o poeta
95
Hesíodo apud DOURADO, Autran (2000), p.174.
96
HAMBURGER, KÄTE (1986), p.137.
Maldonado, toda em travessões, iniciados pelos nomes dos personagens, em caixa alta,
como se fora um texto para teatro. Por tratar-se de memórias, o romance é polvilhado de
momentos em que a narrativa recua, muitas vezes para explicar o tempo presente. Não são
poucas as vezes em que o narrador serve-se do passado, em Duas Pontes, para esclarecer a
formação política de Saturniano. Ali se foca, com nitidez, as etapas galgadas na escalada ao
poder e as inúmeras traições que o legitimaram. Há, inclusive, algumas frases clichês que
fazem mote permanente no texto: “Moral e política não tem nada a ver uma coisa com a
outra”, “A traição faz parte da política”, “Todo homem tem seu preço” (SDR,139). Todas
alusivas “à maneira Saturniano de ser” e de fazer política. Contudo, o diálogo referido
discorre sobre a possibilidade de moldar-se o outro, de construí-lo a bel-prazer. Queixando-
se de não possuir perfil para o cargo de assessor de imprensa, João, o jovem escritor, é
instado a aceitar o convite a qualquer custo. Bem mais experiente, Maldonado, então
prefeito de Duas Pontes, apropria-se do mito de Pigmaleão, e sugere ao jovem que modele
sua criatura:
Saturniano é fraco, vaidoso, podemos tirar partido disso tudo, fazer
dele o que quisermos. Você se resolve como escritor, terá uma
situação que lhe garanta as manhãs livres, que é o mínimo de que
carece um escritor, como você diz (SDR,24).
Aqui, como em tantos outros momentos do romance, as falas de João deixam
escapar aspectos biográficos do autor, clarificados, anos depois, em suas memórias. As
manhãs livres seriam a dourada moeda de troca, para o engessamento pessoal a que se
sujeitou Dourado, na tentativa de garantir um “tempo certo” para a literatura. A semelhança
entre o narrador e o romancista permite o constante aflorar deste nas falas daquele. Trata-se
da composição do rascunho aludida anteriormente. Em Gaiola aberta, logo no primeiro
capítulo, momento em que o autor explica as razões da publicação da obra, destaca-se:
“Então, o que você quer de mim, por que veio para o Rio comigo? disse Juscelino. Um
emprego não muito pesado, que me deixe as manhãs livres para que eu possa me dedicar
com exclusividade aos meus romances, disse eu” (GA,8).
Outra curiosidade digna de nota em A serviço de el-Rei, também pertinente à técnica
de narrar, é a mistura de vários idiomas na mesma enunciação. Ora suscitando um tom
jocoso, ora insinuando uma pseudo esquizofrenia do narrador, a novidade ganha tônus nas
obsessivas ruminações políticas de João da Fonseca Ribeiro:
Titânicos, são todos uns titãs! nus nascendo das águas. Botticelli,
Swan tinha na escrivaninha uma reprodução belíssima do nascimento
de Vênus, na qual ele via a vulgar Odete. Uranosino seria castrado
aquela noite sem nem piedade. “Tu quoque, Brute, fili mi?”
Suetônio, Tito vio, a fundação de Roma. Para que uma cidade
imperial floresça, destrói-se outra cidade, seu local é salgado, como
berço dos heróis mortos. “Delenga Carthago!” Rômulo matou Remo,
Caim a Abel. Os antigos sabiam de tudo, os gregos nem se fala. Sêneca
também julgou que podia educar um César, Sêneca, preceptor de Nero.
Pigmaleão apaixonado pela estátua saída de suas mãos. Vênus, se
mirando nela, deusa encantada no espelho, mudou-a em mulher. Os
latinos é que sabiam de tudo em política. Brutus e César. Os romanos
de sempre. “Insignare democrazia a noi, vecchio popolo cinico!”
Merece, velho Soba, você merece ser castrado. Ele também não viveu
traindo a vida toda? Todos traidores. Eu também, Brutus, “But Brutus is
an honourable man!” (SDR,13)
As citações clássicas afloram, contudo, grafadas com aspas, mantêm viva a linha
limítrofe entre o texto do romancista e os apropriados. Como se vê, mesclam-se ao texto
original de Dourado algumas afirmativas históricas relativas à política e traição para
embalar a trama de ascensão do prefeito interiorano a presidente da república. Da
emblemática expressão de César, surpreso com o senador e amigo que o traíra, advém as
demais. A conduta inescrupulosa do protagonista, apesar de legitimar a traição para
escalada política, esbarra sempre num conceito de ética e moral que, embora não apareça de
forma expressa, pode ser compreendido nas entrelinhas do texto. Na repetição enfática da
emblemática “Até tu, Brutus?”, destacando a surpresa de César com a deslealdade do
senador e amigo, embute-se a repulsa do narrador à perfídia no jogo político. A
desaprovação do assessor para com as artimanhas de Saturniano, almejando alcançar ou
manter-se na presidência da república, vem à baila como um divisor (embora subjetivo) de
águas entre o certo e o errado, o bem e o mal, o lícito e o ilícito. O narrador, durante todo o
desenrolar da trama, serve de contraponto aos métodos imorais que o chefe adota para
ascender. Nas reflexões pessoais, João admite: “Homens honestos como ele não tinham
muito futuro na vida política. Seriam sempre escravos, sempre secretários” (SDR,44).
Aparece, então, também nesse romance, mais uma vez, a combinação antitética que tanto
apraz o romancista mineiro, quando da disposição de seus personagens. Como visto em
capítulos anteriores, o gosto pela aproximação dos díspares (personagens diferentes
condenados à vizinhança), ressaltando o contraste, ganha também espaço em A serviço del-
Rei. Contudo, esse aspecto será tratado adiante, quando da análise dos personagens como
metáforas.
Além da mescla de idiomas acima apontada, outra peculiaridade da escrita do
narrador causa espécie. A liberdade de que dispõe é de tal ordem que é possível flagrá-lo
reproduzindo, em língua pátria, o sotaque da língua-mãe. Para tal, (veja-se!), nada,
nenhuma notação, destaca o trecho como recriação da pronúncia lusa. Diz Saturniano: “O
primeiro milho é dos pintos, se diz no jogo do truco. Dos bobos, dos que serão trapaceados
depois. Zapte, seu sacana! Mais três! Foge Pixote! Quem o taim cumpitência não se
estab’lece. Maldonado não tinha competência para aquele tipo de coisa” (SDR,44). (Grifo
meu) A inserção do sotaque luso, sem qualquer explicação prévia, é que constitui a
liberalidade da narrativa insólita, se é que se pode chamar assim, essa licença do narrador.
Embora o descompromisso com a gramática constitua uma das características da prosa de
Autran Dourado é preciso conhecer a gramática até mesmo para descumpri-la aqui a
transgressão parece ter outra finalidade que não a estranheza simplesmente. No
destrambelhamento do protagonista, que para galgar o poder trapaceia sem pudor, sua fala
irônica evoca o tom jocoso há pouco referido.
Ainda nas reflexões de João da Fonseca Ribeiro consubstancia-se uma clássica
assertiva poética a simbiose dos textos: “O escritor não era ele sozinho, mas todos os
escritores que escreveram bem antes dele” (SDR,35). O texto de um escritor é também o do
outro. “Quando um autor fala de outro é de si que fala” (MI,57). No fragmento abaixo,
onde são referidas simples palavras que consagraram outros escritores, cristaliza-se a
afinidade textual do romancista com os demais. Na fala, mais uma vez despropositada, do
narrador tem-se:
Todo gênio é andrógeno. Depois de Deus, Billy the kid criou
e matou tanta gente de sangue, músculos, alma. “Monstro da
escuridão e rutilância”. Augusto, criador de Anjos e de monstros.
Escarro, hemoptise. Diga trinta e três. Tango argentino.
Guilherme Shakespeare, the little kid. Os escleróticos
dramaturgos e críticos franceses chamavam Shakespeare de
carniceiro. Mas Racine aussi est un homme honorable! (SDR,14)
Na linguagem cifrada da poesia, a apropriação de termos notabilizados pelos poetas
Augusto dos Anjos e Manuel Bandeira, presentes nesse fragmento de texto, sugerem, no
mínimo, uma razoável afinidade do escritor mineiro com os demais. A impregnação viva de
sua escrita pelos que o antecederam. O emblemático beijo que antecipa o escarro, e este que
anuncia o pneumotórax, do poeta pernambucano, propiciam ao leitor atento uma nova
situação narrativa, dessa vez veiculada por João da Fonseca Nogueira. Do pessimismo
pesado de Augusto dos Anjos, ao humor refinado de Bandeira, o texto permeia pelos altos e
baixos do duro aprendizado político – tarefa tortuosa para o assessor, ingênuo interiorano.
Considerando que a vertente maior desta tese converge para o movimento recorrente
da escrita de Autran Dourado, cabe assinalar, no que concerne também à técnica narrativa,
mais um ponto que assim se constrói. Se nos remetermos ao capítulo quatro desste estudo, é
possível perceber a carga expressiva de situações metanarrativas. Como explicado, isso
acontece também em Ópera dos fantoches porque o narrador é também escritor. E mais,
não só isso, anda às voltas com a escrita de um romance, o que o instiga, a todo o momento,
repensar a melhor maneira de escrever o texto. Em A serviço del-Rei, como apontado, o
narrador é o mesmo João da Fonseca Ribeiro e, portanto, “sofre” do mesmo “mal” da busca
pela escrita precisa. Como assessor de imprensa, embora não esteja envolvido com prosa de
ficção, encontra-se o tempo todo comprometido com a redação dos discursos que
Saturniano profere. Por essa razão, o fato de estar grande parte de seu tempo rascunhando
falas políticas, o narrador acaba, no mais das vezes, refletindo, com freqüência, sobre a
melhor maneira de veicular as propostas do político:
João olhou para a cara do poeta Quintiliano Dantas, autor de
tantos livros de êxito, e deu uma gargalhada. De que você está
rindo numa hora dessas, seu escritorzinho provinciano? disse o
poeta irritado. De sua cara, o chapéu gelô não lhe fica bem, disse
João da Fonseca Nogueira, aquele era o ponto fraco do poeta.
Não adianta você ficar andando para e para cá, nesta aflição
toda, que não resolve. O momento é de escrever um discurso,
disse João. De usar o único poder que o homem realmente tem,
que é a palavra.(...) Às armas cidadão, às armas! A missão era
tirar da seringa o fiofó de Saturniano de Brito. O homem estava
apavorado, queria um pronunciamento enérgico para ele ler.
(SDR,50) (Grifo meu)
Ainda à luz do processo metanarrativo freqüentemente tratado no romance, é o
próprio narrador quem legitima a prosa recorrente como a única possível em literatura. Diz
ele: “Literatura é terreno baldio. Estamos reescrevendo a mesma história, recriando o
mesmo mito. O número limitado de situações dramáticas. Um crítico fixou em trinta e
quatro. Exagero muito menos. Muito difícil inventar em arte, nada é de ninguém”
(SDR,14). Ressalte-se aqui que a recorrência a que estão submetidos os artistas fora
apreciada no capítulo segundo desta tese, momento em que foram tratadas as obras
ensaísticas do romancista.
Outro traço característico de A serviço del-Rei no que tange à retroalimentação é a
íntima relação com Um artista aprendiz. Por abordar a juventude do narrador em Belo
Horizonte, várias vezes penetra pela trama de A serviço del-Rei, como se fora uma certidão
de nascimento. Por razões outras, nesse estudo, voltado também para o aspecto especular da
obra, achou-se por bem dispô-lo em par com Meu mestre imaginário. Assim aprendiz e
mestre, no capítulo dois, foram cotejados. Fácil seria, pois, tal a freqüência de seus
fragmentos em A serviço del-Rei, dizer que, de certa maneira, Um artista aprendiz fora o
“pretexto ficcional” para essas memórias políticas de João Fonseca. Contudo, aqui, prefere-
se o entendimento que a propósito de Gaiola aberta, que viria anos depois, a escrita
definitiva desse rascunho ficcional esboçado em A serviço del-Rei.
Como sugerido no início deste capítulo, a responsabilidade de denúncia pode ser um
dos germens dos romances biográficos. Aqui, claramente prenunciado na voz de João
Fonseca Nogueira, e mais tarde confirmado com Gaiola aberta. Dono de bom potencial
literário, mas preso aos ditames da escrita política, o narrador desabafa: “Algum dia
escreverei um romance político sobre aquele patife do Saturniano.” (SDR,15) ali, o
assessor fazia planos de deixar registrado em prosa aquilo que os olhos testemunhavam o
jogo sujo ocultado nos quintais palacianos.
Não são poucas as vezes em que a trama remete a situações vivenciadas pelo
narrador quando jovem, tempo em que se forma como pessoa e escritor. Trata-se, como
dito, dos flashbacks, comuns na narrativa de cunho memorialístico, que também polvilham
esse romance todas as vezes que o saudosismo do narrador o remete ao passado. Assim, nas
andanças pela cidade, recorda:
Agora, perto do Colégio Arnaldo, se lembrou de seu tempo de
escritor jovem, do seu tempo de Mario de Andrade cercado de
piás. Ali mesmo em Belo Horizonte, antes de ir para Duas
Pontes, para onde retornou depois de formado em Direito. Nas
margens do Lago da Pampulha, muitas vezes. João ficava lendo
poemas de Drummond, de Murilo. O Walter Gabriel ao lado. E
liam, importantíssimos, cartas que recebiam, de Mario de
Andrade. (...) João pensava em escrever um romance de fôlego,
pelo menos três dedos de lombada, nas águas de Thomas Mann.
A montanha de aço, um bom título, faltava o romance.
(SDR,19).
Walter Gabriel, por exemplo, personagem de ficção, como praxe na escrita
autraniana, nasce em um romance e, em seguida, aparece em outro. Como os demais
amigos de república de João Fonseca Nogueira, é apresentado ao leitor, nos primeiros
capítulos de Um artista aprendiz: “Eram poetas, contistas, ensaístas que vinham
aparecendo nos suplementos literários, nenhum deles tendo ainda publicado livro. (...)
Walter Gabriel era irreverente, engraçado e infatigável conquistador de domésticas”
(AA,116). A presença de Mario de Andrade, aludida também em Um artista aprendiz,
expressa a grandeza da conta em que também o tinham os estudantes: “Muitos deles se
correspondiam com Mário de Andrade, que pacientemente lia os trabalhos que lhe
enviavam, anotava-os e dava conselhos, da sua Lopes Chaves, em São Paulo. (...) Quem
não tem carta de Mário de Andrade não entra pra literatura brasileira. (AA,116)
Há, pois, uma íntima relação entre o enredo de A serviço del-Rei e de Um artista
aprendiz. Afinidade esta que se justifica, como dito, pelo enfoque da trama. Ambos
abordam a vida de João da Fonseca Nogueira (mocidade e idade adulta). Aliás, em se
tratando do narrador-mor de Dourado, é oportuno lembrar que também sua infância fora
tratada, bem mais lá atrás, em O risco do bordado.
Então, do ponto de vista da técnica de narrar, os traços predominantes de A serviço
del-Rei são o imbricamento textual e a recorrência. Do primeiro, destaca-se a costura
simultânea do fragmento épico e do dramático num “tecido” maior romanesco. Sobretudo a
inserção da teogonia de Hesíodo reforça o que também foi dito, qual seja, o apego do
autor às formas clássicas, aqui entendida como a cultura helênica. E pelo segundo, ressalta-
se a retroalimentação narrativa. Essa tanto pode ser vista como maior entendendo-se
como tal, o texto dos demais romancistas “alinhavados” nos de Autran, bem como
particular, onde “pedaços” de suas próprias narrativas interligam-se num grande espaço
sem fronteiras.
Finda a apreciação da carpintaria textual usada para narrar a fábula de A serviço del-
Rei, segue-se o estudo do romance abordando, então, os personagens que protagonizam a
ação. Como já visto anteriormente, para o romancista, desde o nome até o perfil psicológico
dos caracteres, tudo tem força simbólica:
Na fábrica de minhas idéias, que não são muitas, tenho uma meia
dúzia que me tem servido para a elaboração das minhas
narrativas, quando não são as idéias conseqüência da meditação
que venho fazendo sobre a minha poética, sobre a feitura das
minhas obras. Uma delas é o personagem como metáfora.(...) Em
Vico (“A metáfora é o mito em ponto pequeno”) encontrei a base
para a minha concepção do personagem como metáfora: o
personagem tem a mesma função na narrativa que a metáfora na
frase.
97
A começar pelo nome do político sagaz, Saturniano, tudo dirige o leitor ao caminho
simbólico. Se recuarmos à mitologia grega,
98
veremos que Saturno foi, sobretudo, bastante
falacioso em suas investidas. A primeira de suas espertezas foi contra seu próprio pai,
Urano, a quem mutilou com uma foice entregue pela mãe, Gaia. Pois foi do pai, de quem
teve o gosto de roubar, pela primeira vez, o poder constituído. Sua segunda disputa
acontece também dentro do seio familiar. Prometendo ao irmão primogênito, Titã, matar os
97
DOURADO, Autran (1985), p.126.
98
GENEST, Émile e FÉRON, José. et al (2006), p.124.
filhos homens para que, no futuro, os sobrinhos reinassem soberanos, conseguiu seu lugar
para comandar o mundo. Contudo, tendo escapado à armadilha paterna, Hades, Poseidon e
Zeus sobrevivem graças à artimanha da mãe que, para protegê-los, entregara ao marido, em
vez do bebê uma pedra enrolada em um pano. Nestes casos, o pai engolira pedras pensando
que fossem os filhos recém-nascidos. Por fim, a última desavença familiar ocorre entre
Saturno e o filho Zeus que o expulsando do céu, finaliza sua trajetória no poder e aloja-o no
Lácio. Portando, a trajetória de Saturno é pontilhada de disputas que vêm desde os
ascendentes, Urano, até os descendentes, Zeus, passando pelos colaterais, Titã. A gana pelo
poder é de tal ordem que a disputa não poupa nem mesmo o seio familiar.
O nome dado ao protagonista de A serviço del-Rei, como se pode ver, está
carregado de significação. As lutas que trava o personagem mitológico para manter-se no
poder, em muito se assemelham às do personagem autraniano. Se Saturno se debatia dentro
do núcleo familiar para a conquista do poder, Saturniano também usa do mesmo artifício. A
diferença é que em A serviço del-Rei a família usurpada é a família política, aquela que
gestara o futuro presidente da nação. Além do próprio nome que, de pronto, remete o leitor
a Saturno, o corpo do texto também dirige para esse caminho. Em conversa entre João e
Saturniano o episódio mitológico é expressamente mencionado:
O que temos pra hoje? Mais uma traição, perguntou João. Tinha
raiva, vontade de cuspir na cara de Saturniano. Para hoje temos
uma grande jogada, uma jogada de mestre, disse Saturniano não
passando recibo ao que João dissera. Abotoe a braguilha pelo
menos, pra gente continuar jogando o sublime jogo do truco.
Meu pequeno Maquiavel, disse Saturniano. Hoje eu quero ver a
sua habilidade política, a sua capacidade. Você poderá ser meu
secretário de cultura, criarei a secretaria. João sorriu feliz, ele era
o pequeno Maquiavel diante de um Médici de pijama. Os filhos
de Uranus castraram o pai, mas Saturno devorava os filhos. Cada
um tem sua vez (SDR,45).
Outro momento no romance que aproxima o texto ficcional do mitológico encontra-
se nas primeiras páginas do livro. Se o leitor, desatento ainda, não havia feito a analogia
entre o político astuto e o personagem mitológico, o nome do traído é também sugestivo:
“O velho Uranosino, presidente do partido, seria aquela noite traído por Saturniano. Moral
e política não tem nada a ver uma coisa com a outra, disse o senador” (SDR,11). O nome
do “pai político” de Saturniano remete ao pai mitológico de Saturno. No romance, como
apontado, Uranosino, velho prefeito de Duas Pontes, teria sido o mentor da carreira política
de Saturniano.
Outros nomes também muito sugestivos são os das mulheres que “colorem” a vida
sentimental dos políticos. São elas as responsáveis pelos melhores divertimentos nos
bastidores da vida palaciana. Batizadas de Elisa Felicíssimo, Dininha Imaginário e Juanita
Flores portam no próprio nome a idéia de felicidade, imaginação e promessa de primavera.
Nas relações amorosas descomprometidas e fugazes, esses três elementos formam uma
combinação bastante presente. A sonoridade agradável do nome se expressa na fala
enamorada de João:
“Deus me deu um amor em tempo de madureza”, disse João alto
usando o verso de Drummond para declarar o seu amor pela
milésima vez. A seu lado, Dina Imaginário ouvia feliz ouvia feliz
e lhe pedia mais versos. Ou ele continuava usando Drummond,
por meio de cuja voz gostava de falar em amor ou improvisava.
“No Brasil não outono mas as folhas caem.” Quando no
outono as árvores se despem despudoradas e o chão fica coberto
de folhas amarelas. Em Paris era assim, outubro, o chão coberto
de folhas douradas. Dina Imaginário, era bom dizer o seu nome.
Você sabia que em Minas, na longínqua Duas Pontes, se
chamava imaginário quem fazia santo? Havia um até, famoso
por sua arte e pelo assassinato do padre, pela sua fina arte, Pedro
Imaginário. Seu parente? (SDR,115)
Para terminar a análise de A serviço del-Rei, busca-se o sentido das epígrafes que
introduzem o romance. Vistas inicialmente apenas como uma superposição de textos,
agora, procura-se o sentido específico que pretendem lançar. Se antes formavam o mosaico
característico da prosa de Dourado, agora prenunciam as leis que regem o poder político de
que trata a obra.
A primeira vem de Willian Shakespeare e é extraída do Rei Lear. O texto em inglês
expressa uma fala do próprio rei que, demente, diz: “Let copulation thrive to’t luxury,
pell-mell! For I lack soldiers.”
99
O próprio narrador a traduz no corpo do romance: Grande
era o velho Shakespeare, disse alegre Maldonado. Como é que você traduziria para o vulgar
o verso do bardo, perguntou. E João, ‘Deixa a fodança campear, eu preciso é de soldados!”
(SDR,47) Faz, naturalmente, a ponte entre a necessidade de sobrevivência no poder e os
meios utilizados para esse fim.
Em Shakespeare, nesse momento da peça, quase no fim, o rei da França e
Cordélia (filha de Lear) invadiram a Cornualha para resgatar Lear. Reagan, Goneril e
Edmundo (o filho bastardo de Glocester) formam um exército para repelir os invasores.
Lear, enlouquecido, diz estas palavras para Glocester cego, a quem ele, aparentemente, não
reconhece. A idéia que nos interessa é de que a prioridade em política distancia-se da ética.
A proximidade com o romance de Autran Dourado é bem nítida. Nele, também, a
primazia para a manutenção no poder é o apoio das forças armadas e a temperança. Na
medida em que enlouquece, Saturniano para manter-se “imperador” municia-se com a
retaguarda do exército e procrastina. No último diálogo do romance entre João e
Saturniano, quando esse delira, a conversa sobre a instauração da monarquia ressalta a
necessidade de soldados e paciência:
Mas como faremos para proclamar a Monarquia, perguntou.
mandei o Carlos Branco, que é perito em matéria de golpe e de
Direito, para preparar um ato institucional, disse Saturniano.
99
“Copulem livremente! Ao trabalho: luxúria, à promiscuidade, necessito de soldados”
(1997), p.111. (Tradução de Millôr Fernandes).
Você vai procurá-lo, diga a ele que consegui o apoio militar, a
questão agora é dourar a pílula, institucionalizar o novo regime
(SDR,174).
O drama shakespeareano ressalta, sobretudo, o problema da traição como inerente à
condição humana. Trapacear o próximo é antes uma contingência humana e não um deslize
moral. Na trama, é o próprio pai quem trai o amor da filha que o o bajula. Assim,
entrega-a sem dote ao futuro marido. Depois, as herdeiras do reino traem a confiança do
pai, expulsando-o das próprias terras. Uma delas trai também o marido para agüentar a
monotonia conjugal. Paralela à trama principal, a história de Glocester, com seus dois
filhos, é também recheada de ardil. Edmundo, o filho bastardo, trai o pai fazendo-o crer que
o filho legítimo queria matá-lo. Assim, nas águas longínquas da renascença, se farta o autor
para atualizar o tema da deslealdade humana: da Inglaterra, de Lear, a Minas Gerais de
Saturniano, o que se vê é que pouco, ou quase nada, mudou.
A segunda epígrafe, a do padre Antônio Vieira, diz respeito à postura do súdito em
relação ao rei. A vida do próprio padre traduz o ensinamento maior para essa relação. Dono
de convicções próprias (avesso à escravidão negra e à exploração do índio) e de uma
retórica invejável, Vieira experimenta a intransigência da coroa portuguesa por desafiá-la.
Sugere então: “A serviço del-Rei, prudência; el-Rei de perto queima, de longe esfria.”
O nexo causal com o texto de Autran Dourado se liga à própria figura do assessor,
João da Fonseca Nogueira, que vive às tontas para saber como lidar com o chefe. É de sua
conversa com o poeta Maldonado, ainda em Duas Pontes, de onde se extraem as
semelhanças:
JOÃO (para agradar) – Eu sei o seu justo valor como poeta, você não
é ignorado como pensa. Os jovens começam a se interessar pela
sua obra, a descobri-la...
MALDONADO Obrigado, eu careço tanto de carinho! Todos me
consideram à antiga, um latinista, uma glória municipal. Eu sirvo a
el-Rei (sorrindo) municipal, dou-lhe algumas idéias, mas não sou
homem del-Rei como o sorrateiro e imaginoso Holanda é com o
governador Uranosino Vasconcelos.
JOÃO Sorrateirice que não lhe vale de nada. O político a quem ele
serve, se fingindo de bobo, o que ele absolutamente não é, embora
demonstre o contrário, se serve dele. É um se servindo do outro.
Holanda querendo ser o Pigmaleão que tem nas suas os a massa
amorfa com que pensa fazer a sua estátua ideal, a que os deuses da
política darão vida. Mas Uranosino pensa em fazer dele apenas um
seu escudeiro, um homem del-Rei. Um homem del-Rei, um bom
título.
MALDONADO – Por que não O dono del-Rei?
JOÃO Afasta de mim este cálice, Mefistófeles. E depois, não,
Homem del-Rei é melhor, dificilmente um rei admite dono (SDR,25).
Aqui o que se verifica é um antagonismo claro entre a concepção mineira e a do
padre. Enquanto que a primeira concebe o homem do rei como um protetor, a segunda
entende que melhor é dele proteger-se, usando então a prudência. Mais tarde, em Gaiola
aberta, essa noção é ratificada quando em conversa com Silviano Santiago, a mesma
epígrafe é mencionada:
Você viveu o diabo, disse Silviano. Como é aquela frase do padre
Antônio Vieira que você usou como epígrafe de A serviço del-Rei?
‘A serviço del-Rei, prudência; el-Rei de perto queima, de longe
esfria”, disse eu. Está numa carta dele. Você ficou bem queimado,
disse Silviano. Queimadura sim, até hoje tenho cicatrizes, disse (GA,
18).
Por fim, na epígrafe de Manuel Bandeira, da sua paradisíaca Pasárgada, tem-se o
fecho para o estudo do romance A serviço del-Rei. A aproximação possível entre os textos
viabiliza-se quando, ao final do romance, tanto o assessor quanto o político parecem ter
finalmente encontrado a paz. Serenados das duras investidas políticas, eles descansam no
jardim por onde passeiam. O emblemático “Lá sou amigo do rei”, de Bandeira, quesito
fundamental para a felicidade, estende-se a João. Com Saturniano, em tempos de
caduquice, nos jardins do Palácio Rio Negro, em Petrópolis, celebram o novo reinado:
Viva a Monarquia Constitucional Brasileira, gritou João. Os
meninos deram vivas. Saturniano segurava o cetro de ouro,
símbolo de realeza e poder. Finalmente o Poder e a Glória
encarnados numa pessoa. Nos olhos do Imperador havia uma
infinita paz (SDR,174).
5.2. Gaiola aberta
Como enfatizado, Gaiola aberta, último livro a ser analisado neste estudo, fecha
o capítulo contrapondo-se a A serviço del-Rei. Nas memórias, o romancista despe,
finalmente, o véu da ficção e historia a sua experiência de vida como assessor de imprensa
de Juscelino Kubitscheck. Se uma das propostas desta tese aponta para a paridade de
algumas obras de Autran Dourado, aqui, mais uma vez, isso se viabiliza. Gaiola aberta é a
reescritura de A serviço del-Rei considerado como as memórias ficcionais dos nove anos de
vida palaciana.
Diferenciando-se das demais obras que a antecederam, Gaiola aberta marca
também uma cisão com o universo autraniano, amalgamado à tradição cultural mineira.
Agora, o mineiro “exilado”, no Rio de Janeiro, deixará transparecer com que dificuldade
aderiu à atmosfera moderna, proposta pela política do presidente “bossa-nova”. A
ambiência barroca, em cima da qual repousa a ficção autraniana, daí em diante, se
percebe nos desabafos do autor. Não são poucas as vezes em que a inadequação à “corte
catetense” vem à baila em suspiros de impotência. Embora interiorizado, o narrador
muito conhecido pelas obras de ficção, agora, mostra sua cara. Não fosse o próprio
desabafo do autor de que João da Fonseca Nogueira é, de fato, seu alter ego, nessas
memórias, é bem fácil percebê-lo. Se Belo Horizonte havia ficado para trás, Minas estava
resguardada como um tesouro inalienável. Pois é justamente desse conflito interno do
romancista que nasce a beleza da narrativa memorialista de Autran Dourado no governo
JK. A vontade de alcançar auto-suficiência financeira para garantir a produção literária
fluente, ao lado dos desmandos e trapaças vivenciados pelo escriba da corte, fazem desse
livro de memórias não uma leitura deslizante, mas também uma oportunidade para se
avaliar as perdas e ganhos de uma assessoria política. Ainda que o governo de Juscelino
tivesse como característica o assessoramento privilegiado de intelectuais, e que os
bastidores do poder ofusquem os olhos do cidadão comum, no caso de Autran Dourado, a
experiência fez nascer mais espinho do que rosas.
A começar pelo título, a sugestão temática é dicotômica. Assim como apontado
acima, o conflito interno caracterizado pelo dilema pessoal do mineiro tímido e ingênuo
seduzido pelo fausto do palácio abriga, com perfeição, a idéia de prisão e liberdade. Gaiola
expressa a pior das cadeias inventadas pela mão humana; pássaro simboliza a expressão
máxima de liberdade. Embora muito comum, colocar uma ave na gaiola seria então tentar o
absurdo. Pois é dessa dualidade expressiva que o livro é cunhado. Há, ainda, como reforço
um subtítulo que ratifica o paradoxo Tempos de JK e Schmidt. Dispõem-se lado a lado o
político e o poeta. Fala-nos a história da sensibilidade do político e do empreendedorismo
do poeta. Contudo, a distância que separa os dois mundos é tamanha que, a título de
contraste, é possível colocá-los lado a lado. Nesse contexto, entende-se a figura de Augusto
Frederico Schmidt como metonímia de artista assessorando o poder. Segundo o romancista,
mola propulsora do governante: “É preciso que se diga, e disso dou testemunho: metade da
grandeza de JK se deve a ele (Schmidt), e eu agora lhe faço justiça.(...) Para mim, um das
virtudes de JK foi ter sabido escolher o Schmidt e saber usá-lo” (GA,22).
A segunda contradição que as memórias abrigam pertence à epígrafe que ilumina a
narrativa. Vinda da pena de Franz Kafka, cuja obra reconhece no absurdo um traço comum
da vida, ela ousa: “Um pássaro foi em busca da gaiola.” Ora, à primeira vista, a ave procura
a saída e o o confinamento. Contudo se desacostumada à liberdade, o cárcere significa
remédio. Pois é desse curioso movimento antitético que se vale Autran Dourado para dar
luz às idéias traduzidas nas memórias.
Numa linguagem simplória pode-se dizer que o livro é auto-explicativo. Na medida
em que a narrativa transcorre, o autor conversa com o leitor esclarecendo como a compôs.
Inclusive, logo nos capítulos iniciais, fala das razões que o levaram a sua escrita. Por vezes,
a insistência nas justificativas é tamanha que chega mesmo a dar a impressão de que deseja
desculpar-se pela obra. Justifica-se da demora da publicação apontando a irrelevância dos
registros e possível melindre a pessoas ainda vivas. Atribui ao amigo, também mineiro,
Silviano Santiago, o empurrão de que necessitava para começar: Você me venceu, vou
escrever as minhas reportagens históricas e sentimentais, contaminadas pela memória
(GA,18).
Considero, nesse ponto, oportuno um elo com o capítulo inicial de Memórias do
cárcere, de Graciliano Ramos. Objetiva-se com isso trazer para perto a voz preciosa da
literatura brasileira, aqui, como memorialista de primeira grandeza. Neste trecho, tem-se o
momento em que o escritor explica a peculiaridade de sua construção:
Nessa reconstituição de fatos velhos, nesse esmiuçamento,
exponho o que notei, o que julgo ter notado. Outros devem possuir
lembranças diversas. Não as contesto, mas espero que não recusem
as minhas: conjugam-se, completam-se e não dão hoje a impressão
de realidade. Formamos um grupo muito complexo, que
desagregou. De repente nos surge a necessidade urgente de
recompô-lo. Define-se o ambiente, as figuras se delineiam,
vacilantes, ganham relevo, ação começa. Com esforço desesperado
arrancamos de cenas confusas alguns fragmentos.
100
Assim como nos diz Graciliano Ramos, a recomposição dos fatos não é nada fácil.
A “garimpagem” a que se procede nas águas caudalosas dos fatos vividos é prenhe de
subjetividade. Pinço a frase do trecho acima para realçá-la: “Outros devem possuir
100
RAMOS, Graciliano (1979), p.36.
lembranças diversas”, admite, humildemente, o escritor. É, sobretudo, da compreensão de
que não se possui a verdade absoluta que advém a grandeza do relato memorialístico.
Também em Gaiola aberta, a pluralidade de visões assemelha-se a um caleidoscópio
regulador da narrativa. Resta ali, paradoxalmente, um retrato não dos anos JK de glamour,
reflexo de uma sociedade excitada com o crescimento econômico apoteótico, mas apenas a
visão parcial de um escriba abafado. Diz o autor:
E começo realmente o trabalho de escavação. Invoco os deuses da
narrativa, os únicos capazes de ordenar a memória e o tempo
(muitos fatos se passaram quarenta anos), que mergulham suas
raízes no chão movediço, instável e deformador do inconsciente
(GA,19).
Em Gaiola aberta, como dito, o próprio autor entremeia a narrativa com
explicações sobre sua composição. O processo metanarrativo, tão característico da prosa do
romancista mineiro, geralmente manipulado por seu narrador-mor, também escritor João da
Fonseca Nogueira, nessas memórias também se mostra bastante presente. A longa hesitação
do escritor em revelar o seu “tempo pessoal” no “tempo de JK” (assunto do capítulo
primeiro do livro) acaba por dirigir a narrativa aos bastidores da composição textual. É
que o autor, como debito, aparece desvelando sua carpintaria, e dividindo com o leitor o
manejo da pena. Em comentário sobre uma pequena dissidência com o poeta Schmidt,
acerca da reescritura de um discurso presidencial, escreve: “O incidente teve
desdobramento, um até bem engraçado que não interessa no momento e que não sei se
caberá mais tarde refletir, veremos”(GA,112). O tom fraterno com que reparte suas
conjecturas ganha o leitor e aprisiona-o ao relato, afrouxando em muitas vezes a densidade
do narrado.
Não subordinação expressa à cronologia dos fatos, nem tampouco à relevância
histórica que tiveram (a inauguração de Brasília, por exemplo, não é tratada). Eles chegam
ao leitor, na medida em que, por si só, representaram boa matéria para o desvelamento do
homem “escondido” atrás do presidente, que poucos conheceram:
Antes de prosseguir nestas memórias, gostaria de deixar clara duas
coisas. Primeira, elas não m sentido de fofocagem; não pretendo
dizer os nome das propaladas mulheres de JK.(...) Segunda, se não
apresentar, senão umas poucas vezes, o seu lado altamente
positivo, em que suas extraordinárias virtudes de político e homem
público são evidentes, é porque essa fase dele já foi exaustivamente
estudada e louvada. O lado que procurarei apresentar é aquele que
a história não nos mostra (GA,35).
Durante a leitura das memórias, alguns desabafos esparsos do romancista chamam a
atenção, em especial. Por mais que ele, escritor, possibilite, pela informalidade com que
narra, o acesso à falta de sintonia entre o político e o intelectual, no dia-a dia da vida
palaciana, um desafogo, já às vésperas da inauguração de Brasília, realça: ...político é um
animal diferente, é difícil que compreenda um artista...” (GA,225) Talvez, a incompreensão
de que fala o escritor possa também ter contribuído em grande parte para a escrita do livro.
Nem que escamoteado, esse sentimento armazenado ao longo dos nove anos de serviço
acabou enrijecendo-se qual estalagmite nascido do eterno pingar da água o longo
exercício de paciência. A inadequação não à tarefa, mas à “maleabilidade” necessária à
vida política, consolidou a alma gauche de Autran Dourado nos bastidores da República
brasileira dos anos 1960. Assim, farto material assomou-se proveniente das observações e
vivências silenciosas do artista. Apesar disso, é bom que se diga, que, simultaneamente à
assessoria, a produção literária continuou ativa (três publicações em nove anos), o que
certamente impediu que a inadequação se agigantasse. Em vários trechos das memórias, o
autor conta os momentos de alegria nos lançamentos de livro. O certo é que até mesmo
Nove histórias em grupos de três, da fase inicial do romancista, fora bastante alardeada no
ambiente palaciano, à custa do entusiasmo pessoal de Augusto Frederico Schmidt. O
espirituoso poeta, a esse propósito, alertara o presidente: “...se eu fosse você, não teria junto
a mim um escritor com uma capacidade de observação como a dele, como demonstra nesse
livro.” (GA,21) Desta forma, entre elogios e obrigações, o romancista tímido por natureza,
e mineiro de nascimento e conduta, gesta na alma, uma prosa, que nessa resistência
solitária, viria a se fluidificar tão bem em memórias.
Organizado em vinte e nove capítulos curtos, Gaiola aberta segue, mais uma vez,
uma característica do cânone autraniano a proporcionalidade. Curioso apenas o término
da escrita antes do trigésimo capítulo, uma vez que a praxe autraniana reduz a escrita a
blocos pares e a dezenas fechadas. Como exaustivamente explicado em Uma poética de
romance: matéria de carpintaria (1973), o número de páginas dos capítulos é também
apuro estético. Dessa obra, em especial, pode-se dizer que a organização em capítulos
pequenos imprime um ritmo mais célere à leitura. Se por um lado o conteúdo da narrativa
exige reflexão (trata-se, no mínimo, de um relato histórico), a pequenez dos blocos torna
mais fluida sua leitura. Há, pois, um contraponto entre o conteúdo reflexivo das memórias e
a maneira deslizante como se organizam. Como em qualquer texto, mas, sobretudo, em
relatos com base historiográfica, quão maior a bagagem do leitor, mais interessante a leitura
se torna. E para os que, além de conhecimento, viveram o momento histórico, ainda mais
lucrativa tenderá a ser a experiência estética.
Embora o autor tenha descartado, a priori, o critério temporal como regulador de
seu texto, de alguma forma ele esteve, sim, sujeito à cronologia dos acontecimentos. A
diferença é que ali o tempo fora escravo, e não patrão. Explica-se: o romancista priorizou
os temas e episódios de relevância dos anos JK e, então, ordenou-os em conformidade com
o vivido. Se os capítulos iniciais ainda transcorrem em Minas, quando Juscelino ainda era
governador do estado, os últimos o conta da mudança do presidente para Brasília.
Também o lançamento dos livros do romancista (Nove histórias em grupo de três, de 1957,
A barca dos homens, de 1961 e Uma vida em segredo, de 1964) comentados ao longo da
narrativa seguem a mesma linha em que foram publicados, provando então um certo
amálgama da narrativa com a cronologia dos fatos. Daí que, embora bastante maleável, em
Gaiola aberta, o tempo regula de certa maneira a narração.
Apesar da seriedade com que são tratados os assuntos da vida palaciana, o que se
nota, em contrapartida, é a acentuada freqüência de momentos pitorescos que os envolve.
Para tal, empenha-se o autor em desvelar o lado cômico das horas mais dramáticas da
política. Tem-se a impressão de que, se por um lado o jogo palaciano envolve pompa e
seriedade, qualquer solução ridícula pode acabar com um grande conflito. Assim, também
consegue o autor descontrair a tensão embutida nos fatos impactantes, que poderiam tornar
o relato pesado e maçante. Desta forma, a evidência de que, muitas vezes, a solução para
problemas sérios pode estar em arranjos bem simples, traz uma lição até mesmo de
improviso na condução dos negócios políticos do país – o famoso “jeitinho brasileiro”.
Sabe-se que o governo de Juscelino Kubitscheck, apesar da aura positiva que o
revestia, fora sacudido por inúmeras greves, fruto da insatisfação da classe trabalhadora
com salários corroídos pelo pique inflacionário da economia. Ali conviveram, lado a lado, o
otimismo da classe dominante que se regozijava no famoso jargão dos “Cinqüenta anos em
cinco” e o descontentamento da classe trabalhadora pela perda constante do poder
aquisitivo. A esse respeito comenta Marieta de Moraes Ferreira:
O governo JK representa no imaginário político brasileiro uma Idade de
Ouro. É visto como uma época marcante da história do Brasil, como o
momento de um grande arranco desenvolvimentista, consolidado
através de políticas que estimularam a industrialização e resultaram em
altas taxas de crescimento. São esses elementos positivos, que ficaram
gravados na memória coletiva nacional, que fazem com que muitos dos
líderes políticos atuais evoquem JK como referência para suas ações.
No entanto, o governo JK também enfrentou muitos desafios e
impasses: a inflação, o endividamento externo, os embates com o FMI e
a ameaça de desaceleração do crescimento.(...) só em 1958 foram
deflagradas 29 greves.
101
Em Gaiola aberta, um desses momentos em que o lúdico abafa a seriedade das
decisões políticas, diz respeito exatamente ao enfraquecimento de uma greve vivamente
alimentada pelo noticiário dos jornais e que preocupava os governistas. Aproveitando-se
de um incidente com o time do Botafogo, que excursionava pela África do Sul e que tivera
um jogador negro barrado no jogo local, a assessoria de imprensa decide potencializar o
acontecimento a fim de distrair a opinião pública:
Telefonei para o ministro do exterior, Negrão de Lima. Depois de ler o
telegrama que o presidente recebera da África do Sul, lhe disse que
cogitasse de mandar ordem ao nosso representante naquele país para
fazer retornar ao Brasil a delegação. Negrão de Lima me perguntou se a
coisa era invenção minha. O senhor acha que eu seria capaz de inventar
uma coisa dessas?! disse eu. Se quiser, pode falar com o presidente. No
seu lugar eu não o faria, ele não está de bons bofes.(...) Eu achava que
daria o maior escândalo, que a greve seria esquecida, os jornais
cederiam as primeiras páginas para o novo assunto.(...) Quando fui para
o Palácio Laranjeiras, encontrei o presidente alarmado. Por que você
fez isso sem me ouvir, me mostrando a página de um jornal. Foi uma
inspiração minha para ver se acabava com essa maldita greve, disse eu.
Depois não o encontrei, não sabia onde o senhor estava... (GA, 108).
Outro episódio, também curioso, foi solução inusitada para conter o discurso
ferrenho de Carlos Lacerda, conhecido, possivelmente, como um dos adversários mais
temidos do governo JK. Proibido o deputado de fazer pronunciamentos pela televisão, o
jornalista Helio Fernandes sucedeu-o não com o mesmo brilho, mas a mesma garra. Noite
após noite, denegria inclusive a imagem da família do presidente. Como a retirada do
101
FERREIRA, Marieta de Moraes (2002).
patrocinador do programa veiculado pela TV Rio demoraria dias, a solução mais rápida,
para não ter as dívidas executadas pelo Banco do Brasil, quem trouxe foi o próprio Pipa
Amaral, dono da emissora:
Achei a solução, disse ele eufórico, depois de algum tempo. À noite
vou ao Sumaré e na hora do programa mexo no cristal da antena, o que
tornará defeituoso o programa. Mas, por favor, ligue para o presidente
do banco, dizendo que reforme em boas condições os títulos meus e da
TV (GA,97).
Talvez, nos dias de hoje, quando se avizinha a televisão digital, pareça totalmente
inadequada a providência tomada, mas, à época, salvou, se não a pátria, o seu chefe.
Por fim, e talvez o mais curioso dos arranjos palacianos diz respeito à tão propalada
vida amorosa do presidente. Além de seu espírito empreendedor, ficou também conhecido
pelos casos extraconjugais que teve durante a vida, mesmo quando “vigiado” por todos os
cidadãos republicanos, até mesmo os de oposição ao governo. Inadvertidamente registrou-
os em um diário íntimo cuja guarda, apesar de vigilante, um dia perdeu. Pois é da
negociação para a retomada do pequenino livro de anotações, verdadeiro “barril de
pólvora”, que nasce a nomeação de um ilustre desconhecido (o homem que encontrara o
diário) para a tesouraria de uma grande empresa privada. Quando perguntado de quanto
seria o valor pelo valioso achado, o homem respondeu fluindo num duro diálogo:
Pois o que desejo é ser tesoureiro da X. Não me faça rir de novo, o
senhor está chutando muito alto, disse eu. A firma que o senhor
mencionou não é do Governo. Se fosse, seria um assunto a estudar. A
solução está no próprio presidente, disse ele. Mas como se ele mal
conhece o presidente da companhia? É o chefe do senhor telefonar
para ele, que ele atende. Essas companhias todas têm medo do
Governo, precisam dele. Se o senhor tem intimidade com o presidente,
diga a ele que sua alma sua palma (GA, 180).
Dada a preciosidade do objeto perdido, não restou alternativa outra ao presidente
senão atender, na íntegra, a “ordem” do desconhecido:
Me arranje o telefone da companhia, disse ele (presidente) ao Geraldo,
que produziu o endereço. JK se levantou, disse vocês ficam, eu vou
aqui ao lado telefonar. JK demorou bastante, o ouvido esticado, podia-
se escutar a sua fala macia de político todo simpatia. Quando voltou,
vinha sorrindo. Tudo bem, presidente? disse o Geraldo. Melhor do que
eu esperava. Não tive de dar nada, um jantar no palácio, assim
mesmo eu convidando, disse JK. Vocês procurem o tal vigarista,
combinem com ele. O que era para eu fazer fiz. Se é para fazer mais
alguma coisa, me digam. Isso iria me causar o maior problema (GA,
182).
Outro aspecto observado na composição dessas memórias é a adjetivação pejorativa
chancelada a alguns homens públicos ali retratados, sem nenhum pudor narrativo. Muitos
dos que estão ali delineados exerceram cargos de importância no governo, contudo, a
fidelidade sobrepôs-se à polidez do relato. Vale a pena registrar aqui o perfil de alguns
desses nomes conhecidos da história. Acerca de Negrão de Lima, indicado para ministro do
Exterior, na vaga pleiteada pelo poeta Schmidt, o presidente pondera: “Sugira alguém
medíocre como o Negrão de Lima, que é quem na verdade me convém” (GA,91). Outro
que também não é poupado é João Goulart, à época vice-presidente da República, de quem
se diz: “Jango era sabidamente ignorante. Eu guardava comigo uns bilhetes que escrevia ao
presidente.(...) A fim de não cair em erro de regência, ele os escrevia à maneira de
mensagem telegráfica” (GA,166). Também de Darcy Ribeiro, o valor literário de seu texto
é notado: “Depois voltou (Darcy), publicou um bom romance, Maíra. Publicaria outro que
não presta. Apressado e inquieto, ele voltara a se afogar na política e escrevia velozmente:
não seguia o conselho bíblico de que é impossível servir a dois senhores” (GA,141).
Certamente pela transparência das observações, a gestação das memórias se fez tão longa.
Para terminar esta breve análise de Gaiola aberta vale, assim como fizemos até
aqui, atrelá-la a outras obras do autor. São elas, além de A serviço del-Rei, naturalmente,
Um artista aprendiz e Uma poética de romance: matéria de carpintaria. A ligação com
Um artista aprendiz diz respeito à própria juventude do autor, que por muitas vezes
confunde-se com a de seu narrador-mor João da Fonseca Nogueira. Quando, em Gaiola
aberta, o autor relata sua experiência de filiação ao partido comunista, faz-se de imediato
uma associação ao protagonista de Um artista aprendiz. Torna-se quase inevitável a
comparação entre os dois. Tal qual João, em Gaiola aberta, Autran nos conta: “Pertenci ao
Partido Comunista durante a ditadura do Estado Novo. Era a única saída que um jovem de
dezoito anos achava para se afirmar e se manifestar.(...) Quando vi que não podia suportar o
marxismo-leninismo-stalinismo, que aquilo era um equívoco, deixei o partido” (AA,119).
O elo de Gaiola aberta com Uma poética de romance: matéria de carpintaria é
estabelecido na medida em que o autor discorre sobre sua própria poética. Todas as vezes
que o romancista mostra sua técnica de composição, automaticamente nos remete à sua
“bíblia”, o sumo de sua poética. Numas das vezes em que o presidente fora flagrado numa
paixão, ao romancista, como tal, é cobrada uma explicação:
Me espanta que você já tenha escrito um romance e pretenda
escrever outros e seja tão insensível ao coração humano, disse
ele. Não é insensibilidade, disse eu. Quando estou escrevendo,
não penso no coração humano, mas em coisas muito objetivas,
como ritmo, palavra, técnica, estilo, sintaxe, disse eu (GA,153).
Das três obras acima citadas, a ligação mais forte acontece mesmo entre Gaiola
aberta e A serviço del-Rei. A explicação para a íntima relação entre as duas obras vem do
próprio romancista. Nela, a evidência de que a ficção rascunha o texto memorialístico se
expressa textualmente:
No meu romance A serviço del-Rei, usando o “manto diáfano da
fantasia” apresentei a crueza de uma realidade ameaçadora.
Narro agora, dando o nome das pessoas e caracterizando
objetivamente os fatos, o que no romance me pareceu
impossível, devido principalmente ao que pretendia fazer e seria
anacrônico, romance realista (GA, 102).
7. CONCLUSÃO
Durante este estudo, aguçamos nossa atenção a tudo que pudesse avalizar a
recorrência na escrita autraniana: desde o ensaio mais complexo sobre intertextualidade às
frases mais banais entremeadas na própria narrativa do autor. Daqueles, retiramos material
teórico para dar suporte científico a esta pesquisa; das declarações triviais, o suporte
prático. Não fosse a idéia de que “A primeira condição da intertextualidade é que as obras
se dêem por inacabadas”,
102
teríamos prosseguido um tanto inseguros. Das muitas
expressões, uma nos chamou, em especial, a atenção pela incidência com que apareceu: “o
risco do bordado”. Aparentemente despropositada, o sintagma nominal que batiza o
romance mais conhecido do autor associa a idéia da criação literária ao singelo oficio da
bordadeira. O bordado seria, pois, o texto pronto e acabado, enquanto que o risco se
assemelharia ao itinerário do autor durante a criação. Como a ênfase se em risco, e não
em bordado, remete de pronto a idéia de escrita rascunhada, portanto transitória. Das
102
PERRONE-MOYSÉS, Leyla (1979), p. 218.
narrativas estudadas à recente conversa com o autor, a idéia do tracejado prévio autoriza-
nos a afirmar que o definitivo é atributo apenas do divino. É então que a sabedoria popular
reforça, em provérbio, nosso entendimento: Deus é que sabe por inteiro o risco do
bordado.” Para nós, humanos, pequeninos bordadeiros” de uma história que nunca
sabemos como termina, estaria reservado somente o provisório. Todavia, por tratar-se aqui
de literatura, a fugacidade estaria ligada, é claro, ao texto em especial ao de Autran
Dourado.
À força do ditado alia-se o gosto do autor pelo exercício. Exercício este que faz
Autran Dourado escrever “mil” vezes o que não saiu a contento. Por isso a constância da
reescritura, da volta atrás, do experimento, da “reciclagem do material” durante a
carpintaria textual. Uma mistura de teimosia (expressa nas inúmeras combinações dos
blocos de O risco do bordado em PRMC), de perfeccionismo (perceptível na busca do
“mot juste”, de Flaubert, em Meu mestre imaginário) e de obstinação (mensurável, no
mínimo, pela intermitente publicação de matéria poética de 1973 a 2003).
Aproveito o momento para reproduzir o trecho da entrevista a que me refiro acima.
A pergunta relacionava-se com o uso constante da expressão “risco do bordado”:
É uma metáfora, o risco serve para a gente não se perder. Na
construção narrativa em blocos, se não houver esse planejamento,
posso me perder. A gente tem que ir deixando rastro, se não, não se
acha o fio da meada. (O risco do bordado para você corresponde a um
rascunho?) Sim. Primeiro faz-se o risco, depois se borda por cima
dele. Gosto de lembrar que conforme diz o ditado popular, “Deus é
que sabe por inteiro o risco do bordado” (Entrevista/2008).
No começo deste estudo, mapeou-se a narrativa do autor e em seguida dispôs-se
algumas obras em pares. Apurando a relação dessas duplas, buscou-se também o sentido
destes casamentos. Como dito pouco, a primeira (Uma poética de romance: matéria de
carpintaria(1973) e Breve manual de estilo e romance(2003)) aponta para a obsessão de
Autran Dourado em escrever a sua poética. Ao autor a publicação de seus romances não
bastava. Era também necessário revelar como e por que os escrevia. A segunda dupla (Meu
mestre imaginário e Um artista aprendiz) faz um contraponto da ficção com o texto
poético. Mestre e aprendiz confrontam com ternura o processo de criação literária. Em
roupagens distintas, as duas obras têm, entretanto, um objeto comum: o artista. Enquanto o
texto poético prioriza as influências recebidas pelo romancista, o ficcional confirma-as em
algumas das absorvidas por João da Fonseca Nogueira, o grande narrador de sua prosa. A
terceira (Tempo de amar e Ópera dos fantoches) aponta para a reescritura do primeiro
romance do autor, quatro décadas mais tarde, atualizando na trama novas técnicas
narrativas. Apesar do menosprezo que nutre pelo enredo, é exatamente para onde se volta o
autor cioso das possibilidades de, em revendo-o, melhorá-lo. A quarta “dupla” (Lucas
Procópio e Um cavalheiro de antigamente) estreitou romances em função do livre trânsito
de seus personagens. A insubordinação destas criaturas, ao texto original, revela além da
lassidão das fronteiras narrativas a autonomia que ganham depois de concebidas pelo
criador. A orquestração do romancista parece restringir-se ao momento em que vem ao
texto. Fortalecidas, são como meninos criados, seguem sozinhos vida afora. A nós
humanos, restam as boas lembranças; ao escritor, muito melhor sina, o renascimento em
outro romance. O quinto e último par (A serviço del-Rei e Gaiola aberta) evidencia que a
ficção serve também para rascunhar memórias, quando estas custam a emergir.
Examinando esse processo em outros escritores tais como Fernando Sabino, Oswald de
Andrade e José Lins do Rego, e guarnecidos na idéia de Antonio Candido de que, nas
memórias a escrita alcança “maioridade”, assinalamos a de Autran, em Gaiola aberta,
momento em que conseguiu liberar para o texto a experiência de sua maior contradição
pessoal.
No mote contínuo de romance puxa romance, a narrativa autraniana sai como da
cartola de um mágico, no arremesso de lenços e lenços afora, na tentativa de distrair o
público e sacar finalmente o coelho atônito de orelhas puxadas. Neste caso, não coelhos,
a não ser que o entendamos como o símbolo máximo da fertilidade, que propicia esse
eterno criar de Autran Dourado, partindo de seus próprios textos ou não.
Vimos, pois, que enquanto o universo ficcional de Autran Dourado constrói-se
numa espiral recorrente, a grande maioria dos escritores mostra uma escrita projetiva,
alguns até em fases (urbana, regionalista, do ciclo do açúcar, intimista etc.) conforme o
momento pessoal de cada um. Nos ensaios teóricos abordados, vimos, dentre outras coisas,
que: o texto é alimento do texto; a intertextualidade é genética (nasce no próprio texto),
103
“a intertextualidade poética é tácita”,
104
o “texto não tem outra lei senão o infinito suas
repetições”
105
etc. São eles então que reforçam nosso entendimento acerca desta enorme
colcha de retalhos que sintetiza a obra de Autran Dourado. Nelao foi possível descartar-
se das velhas narrativas, pois, ainda que “ultrapassadas”, estão todas costuradas
emprestando colorido umas às outras, numa complementariedade quase genética.
Além de tantas narrativas que se escondem na sua própria nos mais das vezes a
apreensão é tácita pelo seu mote reatroalimentar, vimos que seu texto é, muitas vezes,
além de produto, insumo de sua imensa fábrica de ficção. O fenômeno da intertextualidade,
sobretudo a recorrente, faz-se prática contumaz da poética de Autran Dourado. A
particularidade do autor está justo na recomposição de seu próprio texto, quer reescrevendo
romances, quer reorganizando-os em memórias, quer resumindo-os em manual de poética,
o mote da retroalimentação aplaca a obsessão da escrita perfeita.
103
JENNY, Laurent (1979), p. 6.
104
PERRONE-MOYSÉS, Leyla (1979), p. 210.
105
Ibidem p.228.
Retomando, pois, a idéia de que a dinâmica da narrativa autraniana assemelha-se ao
risco de um bordado, cuja agulha ziguezagueia à frente e atrás na aplicação constante da
linha, compreendemos, também, que somente o tracejado do bordado divino seria, a priori,
conhecido. Metaforizando a criação suprema com a literária, torna-se fácil compreender a
busca eterna da melhor palavra, expressão, frase, parágrafo, narrativa. A pena hesitante,
reparadora e inquieta do romancista teima em retocar o texto, quem sabe, num
esquecimento absoluto de sua inevitável humanidade. Suspeita essa “rascunhada” em
A glória do oficio
106
(1978), quando o jovem Elias, desnorteado, embalsamou seus pássaros
e construiu um exemplar perfeito numa insana divina ousadia.
106
Segundo o próprio autor, a origem de sua poética.
8. ENTREVISTAS COM O AUTOR – Autran Dourado
Primeira Entrevista
Data: Dia 19 de julho de 2006.
Local: casa do escritor, Botafogo, Rio de Janeiro às 16:00 horas.
O risco dramático na narrativa de Autran
1ª) Quais as suas experiências, o seu relacionamento com o teatro grego trágico? Que
peso tem esse conhecimento na sua obra?
R.: O meu conhecimento foi bastante, vamos dizer, é bom. Porque eu tenho a maior
admiração e acho que, no meu trabalho, é essencial. Eu fiz muito com a estrutura barroca,
que era uma outra característica mineira, não é? O estilo barroco. Eu, então, estou sempre
lendo os gregos, tenho até a coleção de todos os clássicos.
(De tal maneira que o senhor acha que houve uma influência decisiva em sua obra?)
Acho. Foi decisivo na minha vida. Foi fundamental.
2ª) Que aproveitamento tem a ópera como uma forma de teatro em sua narrativa? O
que ela significa na composição do seu romance?
R.: Ópera do ponto de vista de...O que é que você tinha falado primeiro? Tem o maior
aproveitamento possível, sobretudo porque eu o parto do princípio que é o esteio para o
estilo barroco mineiro. A ópera para o barroco é uma representação íntima. Vamos dizer
assim...Como você vê, por exemplo, em Minas, em Ouro Preto, o teatro é chamado Casa da
Ópera. E como eu não pretendo seguir, eu digo, me inspirar. A ópera.... Mas eu não sou
fanático por ópera. Eu raramente vou ao Municipal.
(O que não significa que seria um gosto pessoal.)
Não pessoal, é mais intelectual. Mais da cabeça.
3ª) Ópera dos Fantoches representaria reescrever um romance numa outra estrutura
narrativa? O que distinguiria Ópera dos fantoches de Tempo de amar?
R.: A releitura, por coincidência, foi feita no ano que eu completava cinqüenta anos, trinta
anos atrás. Nessa releitura, eu resolvi me apropriar, entre aspas, do Tempo de amar.
(Por que isso?)
Porque foi o meu primeiro romance. Mas eu só pego, a minha versão de Ópera dos
fantoches, é em virtude de que eu resolvi reescrever Tempo de amar como...
(Uma narrativa mais madura)
Eu resolvi aproveitar como técnica literária, em Ópera dos fantoches, o chamado monólogo
interior. Eu sempre fui preocupado com duas técnicas de escrever, de narrar: uma é o
monólogo interior e a outra o fluxo da consciência, em que as coisas são ditas e escritas, de
uma maneira muito informal, como se fosse um sonho.
(Tipo um monólogo narrado aonde o personagem vai ele, por si só, tomando conta da
narrativa, conduzindo-a, quase que apagando a figura do narrador?)
Eu dou o formato de ópera. Ponho uma epígrafe. (“AUTOR - ...y pues que ya tengo todo el
aparato junto, venid, mortales, venida adornaros cada uno para que representeis em el gran
teatro del mundo!” El gran teatro del mundo, Calderón de la Barca.”) Cada personagem eu
ponho dentro dele um monólogo.
(Aos capítulos também você o nome de cena, como no teatro. Isso significaria que
Tempo de Amar não ficou a seu gosto?)
Não! Ficou. Mas como foi meu primeiro romance, tenho uma visão crítica desse livro. Por
isso é que eu resolvi reescrever o livro, mas a história é a mesma. Mas eu parto do princípio
que a história é um dos recursos que o escritor usa quando quer distrair o leitor para lhe
bater a carteira.
(Seria de fato o que menos conta o enredo?)
O enredo é uma certa armação...
(Para construir uma narrativa.)
Perfeito.
4ª) E Ópera dos Mortos? Está ligada a uma tradição barroca?
R.: Não. Era só ...É um livro bastante moderno.
( Sob que aspecto Ópera dos Mortos é moderno?)
É moderno no sentido de que... Alguns dos... Recentemente, um professor de literatura, que
tem até um livro, uma gramática boa de Filologia, ele explicou qual o sentido da obra. Eu
expus a ele no Brasil, pouquíssimos escritores conhecem essa técnica. Sobretudo a técnica
do stream, o fluxo da consciência. A narrativa feita à base de associação de idéias, que é o
que caracteriza o stream, o fluxo da consciência. E o monólogo interior é a visão da ópera
como se fosse uma ópera barroca.
(Essa seria a sua visão crítica sobre a Ópera dos mortos?)
Eles confundem os narradores, confundem o monólogo interior com solilóquio. Confundem
até com outras técnicas tradicionais na literatura brasileira. Enquanto que o monólogo
interior foi uma criação de Dujardin. Edouard Dujardin, que era um escritor francês que
influenciou muito Joyce. É mais a influência... Eu sou um leitor de Joyce, mas nunca pelas
extravagâncias do Dujardin. Ele ficou mais como uma raridade, o monólogo interior.
Dujardin usa o monólogo simples. Ele, Dujardin, chegou a dizer, eu tenho um livro aí, que
diz que o monólogo interior fica bem na primeira pessoa. O que é um engano dele. Eu
fiz muitas das falas em terceira pessoa.
(E ficou muito bom!)
Ficou? Eu acho que ficou bom.
(E dá um resultado também tão bom como de primeira pessoa)
Tem vários elementos que eu uso em Ópera dos Mortos para caracterizar a ligação possível
e arbitrária, minha, da ópera barroca. Eu coloco, por exemplo, a epígrafe que é uma fala do
teatro grego. Epígrafe que é a forma do teatro grego [“O deus de quem é o oráculo de
Delfos não diz nem oculta nada: significa”. Heráclito] Como é função do monólogo grego.
5ª) Que uso você faz do coro (típico do teatro grego) em alguns de seus romances?
Ele aparece em Opera dos mortos, ele aparece em Sinos da agonia. você fala em
Tirésias.
Sinos da agonia é um livro muito barroco. Sinos da agonia é um livro que tem toda a
consciência do personagem principal. É um livro em que eu adoto toda a história de Minas
com uma forma particular, minha, como me apropriasse do contexto ali.
(Como você conseguiu trabalhar tão bem essa narrativa perspectivada, dando a cada
personagem a possibilidade de recontar a história de sua forma?)
Isso entrou, como nós vimos, se falou em o Joyce, um dos maiores autores a usar o
monólogo interior. Foi ele é que foi o principal autor a tentar esse aspecto pessoal da
narrativa “desfazendo-se” através de monólogos interiores. O Valéry também adotou muito
o monólogo interior.
(Teria sido em Sinos da agonia onde você melhor colocou isso? A técnica em evidência?)
Sim, eu parto do princípio... Eu sou um leitor bastante assíduo dos livros de história de
Minas. Então, eu tinha sempre uma preocupação em dois aspectos da arte barroca. Mas eu
...toda a técnica de Guimarães Rosa, por exemplo, eu não me aproximo dela, é uma obra
bastante pessoal.
6ª) Qual o porquê dessa recorrência de personagens e situações em sua obra?Que
sentido tem isso?
R.: Foi crescendo em mim. Porque eu preciso sempre de um extrato barroco. Mas o barroco
literário meu, que eu uso em meus livros é um barroco deformado por mim. E não o
barroco estilo de época. Eu conheço uma coisa...Meu genro providenciou para mim. Eu
estava muito interessado no tema da música barroca, que é bastante diferente do teatro
grego. Diferente, mas o conhecimento da ópera, o conhecimento veio do barroco. É um
conhecimento mais moderno, do barroco como estilo de época.
Como curiosidade, sobre os Sinos da agonia... Havia durante a colonização uma coisa que
dizia o seguinte: Se matou uma pessoa... Morte em efígie. Apanha, pega um boneco, ou
coisa que o valha, coloca em praça pública. Esse aqui é fulano de tal.
(Você falou que esta foi a mola que te levou...)
Um detalhe, esse livro foi um livro muito combatido por alguns autores.
(Sob que argumento? É um livro primoroso. A decadência do ouro. Minas ali tão... É claro
que não é um romance histórico. É um passeio pela história do Brasil)
É... você colocou muito
(Casamentos direcionados...)
Você colocou muito bem. Meus parabéns!
Segunda parte da entrevista
Eu tenho um roteiro de entrevista feita pelo José Carlos Sussekind ao Oscar Niemeyer.
Como eu pensei que, um dia, viria aqui, guardei essas perguntas para fazê-las a você e
conhecer um pouco mais da sua pessoa. Lá vai!
O cotidiano por ele mesmo
1) Para você qual seria o cúmulo da miséria?
R.: Eu acho que seria a alma maldosa. O máximo da miséria moral.
2) Onde o senhor gostaria de viver?
R.: Eu gostaria de viver onde estou vivendo, no Rio de Janeiro. Porque eu não me sinto
deslocado. Em Minas, Belo Horizonte, uma cidade construída, assim como Brasília. Eu
não me sinto à vontade lá. Gosto de Belo Horizonte mas eu não botei, só botei um
pedaço de uma narrativa minha que se passa em Belo Horizonte.
(Se lembra qual é?)
Não.
(Provavelmente as memórias de João da Fonseca Ribeiro – O artista aprendiz)
A cidade minha de adoção, que eu sou do triângulo mineiro, norte de Minas, mas fui
educado e adotei a cidade de Monte Santo, que era no sul, para a qual meu pai, que era
juiz de Direito foi transferido. E aquelas histórias todas da minha infância são baseadas
na minha experiência, no tratamento da narrativa. Eu gostaria e vim a realizar que esta
cidade do interior mineiro, eu não posso já não tem mais vivência. Ao passo que o Rio
de Janeiro, hoje, pensando bem, comparando com os meus tempos de Belo Horizonte
etc , foi o lugar onde eu mais tempo vivi. Hoje, embora seja uma bobagem dizer, eu sou
bastante carioca.
(Mais carioca do que mineiro.)
Que os mineiros não me ouçam. Eu não conheço o Rio de Janeiro. A maior parte do
tempo vou do meu trabalho aqui para casa. A zona norte, se eu fui uma vez fui muito.
Para mostrar que de tal maneira eu sou estranho ao Rio, é que eu estou escrevendo um
livro de contos, histórias que se passam no Rio de Janeiro. É tão estranho que você vai
pensar. Você vai ficar abismada de saber.
(Que Rio é esse?)
Que Rio é esse onde o autor não conhece, nunca foi a uma boate?
(É um Rio diferente.)
Da classe média, da classe que vai à boate.
( E as praias o senhor chegou a freqüentar?)
Não, muito pouco. Quando os meninos eram pequenos.
3) Qual é o seu ideal de felicidade?
R.: Ser feliz é muito difícil. Eu acho que... E essa pergunta?Você é feliz? É uma
pergunta muito direta. Eu não posso... Eu sou feliz, no sentido, por exemplo, literário.
Eu sou feliz ao fazer, escrever a narrativa. Mas logo após a escrita da narrativa eu sou
muito ligado... Na hora de escrever o autor sofre muito. Escreve com muita facilidade,
não!Ele escreve com muita dificuldade. Para se escrever é muito difícil. Quando estiver
escrevendo bem, uma parada, porque alguma coisa está acontecendo de errado. Mas
escrever é muito difícil para o escritor. Já quem escreve rápido é o orador.
(Sim, aquele homem que gosta de falar em público. Quer dizer é difícil analisar... se é
realmente no momento em que se escreve).
No momento em que se escreve é infeliz. Porque é difícil.
(Sofre, sente aquilo?)
Sofre. Sofre, eu não tenho prazer, nenhum prazer em escrever.
(É imperiosa a escrita?)
É imperiosa a escrita.
(Há como abafá-la?)
É necessário que ela... Agora, você deve ter reparado que eu tenho...é que os autores são
diferentes... Atente para o princípio: a minha narrativa, por exemplo, não duas
iguais. Um romance diferente do outro. O outro escrito de uma outra maneira. Escrever
não um estilo... Escrever é uma maneira que encontra o autor de reduzir à escrita
toda a sua angústia.
(Fiquei pensando a esse propósito, quando eu relia em Ópera dos mortos o momento
em que Rosalina ia ter a criança. Também em Sinos da agonia o momento em que
Januário tenta entrar na cidade. E ainda em Ópera dos Fantoches o momento em que
Paula deixa a cidade, sozinha na estação, sem Ismael. Todas essas agonias me levaram
a pensar: como esse homem sofreu para escrever tudo isso!) O autor está escondido
para não ser visto.
4) Qual seria a melhor qualidade no homem?
R.: Para mim seria algo ligado à fala.
(Poderia dizer um pouquinho mais sobre isso?)
A fala humana em geral. Todo sofrimento que as pessoas usam, para dar fala à sua
angústia. Essa capacidade de driblar a angústia pela fala.
5) E qual a qualidade da mulher? (Um casamento longo, uma trajetória de vida)
R.: Na mulher, eu acho que seria a paciência.
(risos) (Isso é para dona Lúcia?)
Brincadeira, se não ela vai ficar aborrecida comigo.
6) Qual é a sua ocupação preferida?
R.: A minha ocupação preferida...
(Leitura? Escrever ainda? Música?)
Não, eu gosto de escrever. Eu sou um ser literário por excelência. Agora tenho lido
desesperadamente. Porque eu... Agora eu acabei... Vou entregar... Na semana que vem
eu entrego o meu último livro.
(Já está batizado?)
Já está batizado.
( A gente pode saber o nome?)
Amor de madureza. Não...não... O senhor das horas. É o título desse conjunto de
narrativas.
(Curtas?)
Nem tanto.
(Quantas reunidas?)
Seis.
( E o nome é...)
O senhor das horas.
(São todas novas?)
São todas novas.
(Que beleza! Escritas recentemente? Quer dizer que o senhor continua produzindo?)
Recentemente é o modo de dizer. Porque se leva muito tempo para escrever um livro. O
conto menos porque é mais fácil. Mas o romance, não.
(Qual foi o romance seu que lhe tomou mais tempo?)
Mais tempo foi Os Sinos da agonia.
( Inclusive, eu me lembro, li não sei onde que você usou um dicionário... fez uma
pesquisa séria.)
Foi de tal maneira... Eu para escrever esse livro... Eu gosto muito, sou muito leitor de
dicionário. Só agora que com o computador eu não preciso estar no dicionário, é uma
das formas de expressão.
(Esse que então lhe demandou mais tempo, Os sinos da agonia?)
Mais sendo porque... eu usei até uma das extravagâncias desse livro. Foi escrever esse
livro só com o auxílio do Moraes, Dicionário do Moraes, de 1813.
(Foi então uma epopéia.)
Foi então o que demorou mais tempo. E é o maior.
(Lembra, mais tempo é o quê? Sabe precisar?)
Não eu não posso...
(Uns dois anos. – dona Lúcia, intervém.)
Sinos da Agonia foram três anos escrevendo. Boa parte em Petrópolis. Nessa época eu
passava o mês lá.
( Por falar em Petrópolis, que influência tem essa cidade na vida da família? Me parece
que passam lá todos os fins de semana. É assim? Se sentem mais acolhidos?)
Todos os fins de semana nós passamos em Petrópolis. Eu gosto muito de Petrópolis. É
uma cidade muito bonitinha.
(E o frio não assusta?)
Assusta demais da conta!
(A família não vai mais. A família ia. – corrige da. Lúcia)
(Mas agora o casal vai.)
Os garotos ficaram grandes e agora não querem saber de lá.
(Quantos filhos são?)
Quatro.
(Família grande.)
Eu já sou bisavô.
(Que idade tem o bisneto?)
Seis.
(Seis anos. Já é bisavô há seis anos.)
7) Qual o futuro do Brasil? A gente tem visto aí a política, o poder. Você esteve
tão pertinho do poder, junto com o Juscelino, nos bastidores.
R.: Aquele livro todo (apontando para Gaiola Aberta) é feito com um propósito:
discutir o papel do escritor no poder, e o que sofre o escritor no poder. Pode trazer
benefícios para ele de ordem pessoal, mas ele sofre muito. É uma luta tremenda com o
poder.
(Faço uma idéia...)
Eh...
(Vamos então, daqui a pouco a gente retoma os tempos JK. Como é que você hoje?
Como você vê o Brasil hoje?)
Eu olho com muito pessimismo. Não está nada bonito o Brasil.
(O que é que lhe incomoda mais?)
Me incomoda mais a violência.
(E essa violência vem de onde? É resultado de quê?)
Todo mundo é responsável. O presidente da república é responsável pela violência. O
governador do estado é responsável pela violência.
(Nós somos responsáveis?)
Somos.
(De que maneira?)
De que maneira? Fugindo da nossa responsabilidade. Eu quase não saio mais de carro
para ir... de carro.
(Não se expõe?)
Não me exponho. De medo. Infelizmente... é o medo.
(Medo que nos trancou em casa?)
O que está acontecendo em São Paulo é um absurdo! É quase um sinal de guerra civil.
Guerra em que se mata à vontade.
(Então você vê o futuro com muito pessimismo?)
Eu vejo com muito pessimismo. A não ser que haja uma mudança.
(E você percebe alguma coisa caminhando do nesse sentido? Ainda é possível mudar?)
É possível.
(O que é que falta para mudar?)
Falta ânimo. um certo cansaço do povo. Nós estamos com um presidente da
república que se confessa, tem prazer de confessar que ele é ignorante. Então não posso
realmente aceitar. Ele é culpado também, está aí, podia usar o exército, ou qualquer
coisa que o valha, uma maneira de barrar essa quase guerra civil em São Paulo. O Rio
também não está fácil!
(Como é que você essa trajetória de um metalúrgico que vai de alguma forma e
chega até lá.)
Eu encaro isso de uma maneira assim. Ele é uma experiência. É um orador, não. Tem a
mania de falar. Ele fala muito e diz muita besteira. Claudica em toda concordância
tremendamente. Já não digo da regência, que seria exigir muito. Agora vamos mudar de
falar em política.
(Sim, já mudamos.)
8) O que ainda sonha fazer?
R.: Eu sou grato ao que já fiz. Eu não sei ainda mais quanto tempo mais eu ainda vou
ter de vida. Estou com oitenta anos. Mas eu levo para escrever um livro uma média de
dois anos. Eu calculo assim ... Eu sou muito medido. Eu espero que eu consiga mais
quatro anos. Só peço mais quatro anos. Depois de quatro anos eu já fico satisfeito.
9) Uma bobagem. Qual a sua cor predileta?
R.: Minha cor predileta é o verde.
(Pela esperança?)
É, pela esperança.
10) Qual a fruta de sua preferência? Como mineiro lá dos quintais de Minas.
R.: Minha fruta predileta, a preferida é a banana. (risos)
Terceira parte da entrevista - Bate-bola
(Agora o bate bola.)
Um pingue-pongue.
18) Um livro. Seu e de outro.
R.: Um livro pelo qual eu tenho grande admiração, mas que se distancia de mim
enormemente é o Grande Sertão: veredas, do Guimarães Rosa. É um escritor brasileiro
que eu gosto muito.
( E um livro seu? Se passasse um tufão que livro você seguraria?)
Eu esqueci de falar com você que você es citando grandes livros meus, grandes
romances.
(Mas eu li todos)
O que mais falou. O que mais sai, o que os colégios têm adotado É um livrinho
pequenininho: Uma vida em segredo. É um livro que me toca muito. É uma novela. É
um livro pequeno.
(Alguma afinidade com a Biela?)
afinidade muito grande. Ela é um ser muito complicado. O que se passa com ela é
quase... Ela é incapaz de resolver certas coisas. Também tem um livro que eu lembrei
agora. Que um crítico brasileiro disse que eu ao escrever Uma poética de romance, ele
não leu, com certeza. Escreveu: “Autran Dourado está, vamos dizer assim, fabricando
uma receita de um romance qualquer, um romance com bula”.
19) Um autor. Sem ser o Guimarães Rosa que você já citou pelo Grande sertão.
R.: Eu prefiro. Fui amigo dela, a Clarice Lispector.
(Chegou a conviver com ela?)
Ela costumava vir aqui em casa para passar o resto da tarde. Vinha, fazia o lanche
comigo, e conversava.
(E pessoalmente, que tal ela?)
Era uma mulher estranhíssima.
(Pois é...)
Era muito sofrida embora parecesse o contrário. Era de uma extraordinária beleza, a
Clarice. Era uma mulher...uma das mais bonitas que eu conheci.
(Tinha olhos achinesados)
Olhos acidentados. Era muito estranha. Eu, por extravagância, peguei a mão dela e
disse: “Me a sua mão que eu vou ler para você.” Ela ficou muito curiosa achando
que eu ia ler... (risos)
(Quer dizer que ela sim era uma autora interessante.)
Muito interessante.
20) Um personagem. Escolha um personagem. Nesse universo enorme de
personagens. Mas se passasse um tufão...
R.: Tem tantos personagens. Eu fugiria do tufão.
(Ah... fugiria? Não há nenhuma em especial? Nesse universo, dê três?)
A Rosalina, por exemplo, é um personagem que me fascina. Aquele sofrimento dela. E
a maneira de ser dela...Como ela tenta acabar com a solidão através do Juca Passarinho.
A Rosalina é a personagem mais sofrida que eu conheço.
21) O melhor dia. Me fale de um melhor dia.
R.: (Silêncio)
(O primeiro prêmio? O primeiro livro publicado no exterior?)
O dia em que... É muito difícil dizer qual é o dia mais marcante.
(Mas um dos dias...)
O dia em que eu fiquei conhecendo o Godofredo Rangel. Porque eu era um rapazinho
de dezessete anos. Tinha um livro de contos. É mais ou menos isso: eu aprendi a
escrever assim, como um filho. No dia em que eu fui à casa dele. Hoje não me diz nada
o Godofredo. É um autor que ninguém mais fala.
( Me perdoe a ignorância, mas ele chegou a ter projeção na época?)
Não, não chegou a ter projeção. Mas para mim, eu tinha chegado a Belo Horizonte, e
tal, depois, ele era o escritor que eu mais admirava.
(Ele escrevia prosa?)
Ele escrevia prosa. Um dos livros dele é Vida ociosa. E Os bem casados também. Ele
me deu uma série de conselhos, no começo.
(Que idade você tinha? Dezoito, dezessete?)
Dezessete anos, era um rapazinho.
O pior dia. Um momento de aperto. Uma situação.
R.: É muito difícil dizer isso. Te responder, muito difícil.
(Coisa negativa?)
Eh...Coisa negativa.
(Com oitenta anos ele teve vários dias ruins – apontou dona Lúcia)
Não. O período da vida que eu passei sofrendo muito, por causa da contradição pessoal.
Foi o período do Juscelino. Exatamente pelo problema do escritor. Nada pessoalmente
contra o Juscelino. Eu tenho a maior admiração por ele. Mas foi um período em que
deixei de escrever, de tal maneira que... Eu tenho de escrever bastante. Apesar do
Juscelino.... Esse livro, Gaiola aberta, muitos da família do Juscelino e alguns
juscelinistas ficaram irritados. Ficam irritados porque muitos brasileiros tratam o
Juscelino não como um homem, mas como um mito, uma criação.
(Sim)
Ele, o Juscelino, es destituído de qualquer... Está sempre tratado como um mito. Um
mito que eu mesmo ajudei a formar. É muita bobagem do autor que assessora o
presidente achar que ele pode mudar o objeto. Não pode. Ele está cerceado. Certas
coisas ele não pode fazer.
Uma boa idéia.
R.: Cada livro tem uma história. Cada um tem a sua maneira, o seu estilo. Aquilo que
eu falei a você: muita diversidade de estilo. Nenhum livro é parecido com o outro. A
não ser Ópera dos fantoches que foi uma reescritura de Tempo de Amar.
22) A melhor lembrança.
(Silêncio)
Não posso te dizer qual a melhor lembrança.
(Alguma, dentre várias. Da vida de menino. Que tal os tempos de Belo Horizonte?
Foram agradáveis?)
Foram agradáveis, mas não tinha muita diversão.
(Mas você era de se divertir?)
Não, não era muito. Em geral sempre fui muito fechado. Embora na aparência eu possa
parecer o que não sou. Sou muito trancado.
23) O ditado mais sábio (nem que para o dia de hoje!) Mostra para mim, junto
com o Donga Novaes.
R.: Donga Novaes é um dos meus personagens.
(Você disse que quando o compôs, dos cento e cinqüenta provérbios, cinqüenta eram
seus,)
Inventados.
(Qual seria um provérbio para encerrar a entrevista?)
Não pode, não poder fazer hoje o que não pode ser feito amanhã.
(Não poder fazer hoje o que...)
Deixar sempre para dia seguinte. Amanhã eu faço. É uma maneira que eu tenho de
escapulir. (Risos)
Segunda entrevista
Data: Dia 08 de janeiro de 2008.
Local: casa do escritor, Botafogo, Rio de Janeiro às 16:00 horas.
no final deste estudo, resolvi entrevistar novamente Autran Dourado. Apesar do
trabalho estar praticamente concluído, precisava do seu “aval” para os novos rumos que a
pesquisa tinha tomado. Quando o entrevistei em julho de 2007, pensava em investigar o
traço dramático de sua narrativa. Depois acabei enveredando pela recorrência contumaz de
seus escritos, e tentei fazer desse traço, então, minha tese. Foi uma conversa muito
agradável que, a seguir, reproduzo:
1) Qual a sua narrativa mais primorosa?
R.: A que mais gosto, mais me toca é Uma vida em segredo. Nasceu de uma situação vivida
por mim. Eu ficava sentado numa canastra e minha avó me contava histórias.
(em Matéria de carpintaria, você coloca isso: que da canastra de sua avó germinou a idéia
que deu início a Uma vida em segredo. É real, então?)
Sim, isso é real.
È uma narrativa muito delicada, mas não é uma obra de porte, como, por exemplo, Sinos da
agonia.
2) O que levou você a estender, de alguma forma, Ópera do mortos, que num salto de
personagens gera duas outras narrativas: Lucas Procópio e Um cavalheiro de
antigamente?
R.: Justamente a força do personagem. É ele que manda na gente e não o contrário, como
pode parecer.
3) Um de seus traços é a escrita em blocos, vide o trabalho tão interessante de O risco
do bordado. Como surgiu a idéia de escrever dessa forma?
R: Surgiu naturalmente. Comecei a escrever, fiz um capítulo e quis ir adiante, mas pensei:
não quero uma história linear. Daí parti para a montagem em blocos, exatamente como uma
construção...
(sem o alinhavo muito claro do enredo...)
O que é que você falou?
(Alinhavo)
Gostei do termo. Isso mesmo!
4) Tenho percebido, em sua narrativa, o uso freqüente de um termo ligado à costura.
O termo é “risco” e sempre relacionado a bordado, que além de título de livro,
epígrafe de um outro, é citado com muita freqüência em O senhor das horas. O que
sugere esse risco a você?
R.: É uma metáfora, o risco serve para a gente não se perder. Na construção da narrativa em
blocos se não houver esse planejamento, posso me perder. A gente tem que ir deixando
rastro, senão não se acha mais o fio da meada.
(O risco do bordado para você corresponde a um rascunho?)
Sim, primeiro faz-se o risco, depois se borda por cima dele. Gosto de lembrar que conforme
dispõe o ditado popular “Deus é que sabe por inteiro o risco do bordado”.
5) Eu lhe perguntei, mas gostaria de perguntar de novo. O que havia em Tempo de
amar para que você, depois de tanto tempo, voltasse a ele?
R.: O que havia era um escritor mais maduro que poderia melhorar aquela narrativa
primeira. Sabia lidar com técnicas mais apuradas de narrar e então me dispus a reescrevê-
lo. Não ficou melhor?
(Sim, deu uma boa melhorada. O que não despreza o valor do primeiro romance, que
você era um jovem escritor, ainda um estreante)
6) Agora, uma mera curiosidade, como se situava um jovem escritor, numa família
mineira que à época (1942) pretendia vê-lo advogando? Como era a sua relação com
os seus pares, os jovens da sua faixa?
R.: Pensei em cursar Filosofia ou Letras, mas o meu pai, que era quem pagava os meus
estudos, disse que continuaria pagando se eu estudasse Direito. Não tive outra
alternativa, se não acatar a vontade dele.
(Como foi para a sua família quando você apareceu com sua primeira novela?)
Meu pai não deu a mínima importância. Minha mãe que reparou em mim algo promissor.
Daí a importância de Godofredo Rangel, que foi em quem me inspirei para começar.
7) Como era a sua relação com os seus pares, os jovens da sua faixa? Você era muito
diferente?
R. Sim, eu vivia muito isolado. Meus primos vinham a minha casa, mas eu não estava
interessado nas coisas em que eles estavam. Desde cedo vivi muito sozinho.
8) Estudei A serviço del-Rei e fiz um paralelo com Gaiola aberta.
R.: Muito bem! São muito próximos. Quando escrevi Gaiola aberta pretendia contar o
período em que trabalhei como assessor de imprensa do Juscelino. A serviço del-Rei é a
mesma experiência vivida por João da Fonseca Nogueira também assessor de político.
Aparece influenciando e sendo influenciado. Apesar de em Gaiola aberta a repercussão ter
sido maior, já em A serviço del-Rei alguns juscelinistas se doeram com a publicação.
9) Por falar em A serviço del-Rei, por que você entremeou esse romance com a
Teogonia, de Hesíodo?
R. Não sei.
(Não se lembra?)
R.: Não.
(Qual será a relação entre a escalada do poder e o nascimento do cosmos?)
R.: Não sei. Hoje não me lembro mais. Ali o destaque fica com as epígrafes: todas são
relacionadas com o poder. De Shakespeare a Bandeira, passando pelas cartas de Vieira.
[Neste momento levantei-me para pegar meu exemplar e juntos, apreciarmos as epígrafes.
Quando abri o livro o escritor soltou uma gostosa gargalhada. Minhas anotações (quase
frenéticas) deram a esse momento um tom muito bem humorado.]
Eu não escrevo mais nada. Nem um mero algarismo. Eu sofro muito com isso. Cheguei
mesmo a praticar taquigrafia, quando jovem.
(É uma punição inominável, não?)
É uma punição. Faço tratamento com o neurologista, mas ele não me muita esperança.
Isso me abate.
(Mas são as perdas da velhice, não é mesmo? Quando da publicação de O senhor das
horas, saiu uma matéria no caderno de literatura de O Globo, frisando, na sua fala as perdas
que o tempo traz. E ainda há gente que diz que tudo se renova... Que vem outras coisas...)
Os meus oitenta anos foram muitos comemorados. Um rapaz da Folha de São Paulo me
ligou dizendo que queria fazer uma entrevista comigo. Pelo telefone mesmo. Desagradável.
Ele me perguntou: “Autran Dourado, como é fazer oitenta anos?” Eu disse: Dói pra burro!
Não vou dizer que tá bom, não. (risos)
(Acredito que só não possa ser pior do que quem já se foi.)
Ah... É mesmo.
(Quem já foi aos sessenta, aos cinqüenta..)
10) Quero mostrar-lhe os pares que fiz de suas obras para você avaliar se são
pertinentes, está bom?
Meu primeiro par foi Tempo de amar e Ópera dos fantoches. Eu disse que aqui a ficção
vem à própria origem beber nas suas águas. O segundo par casei Um artista aprendiz
com Meu mestre imaginário.
R.: Você fez um bom casamento. Como é que você percebeu a afinidade entre os dois?
(Muitas madrugadas de estudo...)
Isso não é consciente, essa ligação entre as obras. Pelo menos não pretende ser consciente.
(Achei que ficava bem o casamento do mestre com o aprendiz)
(Aqui está um outro assunto que me interessa conversar contigo)
11) Tomando o par Uma poética de romance: matéria de carpintaria e Breve manual de
estilo e romance. Eu pergunto o seguinte: Acho que é um traço obsessivo, no bom
sentido do termo, essa sua reiteração constante de poética. Estou certa?
R.: Há uma obsessão mesmo, pela poética.
(Você é um ficcionista, que volta e meia interrompe a ficção, para mostrar como é que se
constrói o texto literário.)
[O escritor folheou o pequeno manual com ternura] e disse: Ficou um guia muito singelo.
Não saiu quase, saiu? (Pouco, não é? Esses livros das editoras universitárias costumam
circular mais nos meios acadêmicos.) Um âmbito restrito. (Interessa diretamente ao público
acadêmico, que é quem vai pesquisar como se escreve, como o se escreve. O leitor
comum está interessado em ficção porque quer se anestesiar.) Gosto muito das suas
metáforas. Das suas metáforas e das do Lula. (Risos)
12) Bom... o próximo par [enquanto falava resolvi mostrar os romances]
R.: Estou impressionado com a sua acuidade para perceber a minha obra. Você acompanha
tudo.
13) Finalmente tem-se Ópera dos mortos como base de onde surgem dois romances
Lucas Procópio e Um cavalheiro de antigamente. Aqui não se trata de um par como os
outros, mas eu usei o matricial (Ópera dos mortos)...
R.:E é mesmo a matriz.
(Particularmente, desses dois, Lucas Procópio e Um cavalheiro de antigamente,
particularmente achei Lucas uma narrativa mais sedutora, esse aqui (Um cavalheiro de
antigamente) não tanto. Embora eu também tenha gostado porque eu sou uma...)
Só ter tido uma leitora como você valeu a pena... (risos)
(Eu quero saber. O que você me diz desses dois romances?)
Ah...É difícil...
(Fala dos personagens) (Eu fiquei imaginando construir uma narrativa sobre um
destrambelhado como o Lucas deve ser mais interessante do que sobre um cara todo
certinho como o João Capistrano)
Ah... o Lucas é muito mais interessante que o próprio filho, o Capistrano.
14) Por fim chegamos ao O senhor das horas, que li recentemente e que, embora não
faça parte diretamente do meu trabalho, aponta fortemente para o tema da
recorrência na sua narrativa.
R.: Eu gostei muito da ilustração da capa. Mostra um relógio sem ponteiros.
(Em Ópera dos mortos os ponteiros param quando morrem alguém) (Interessante que você
retoma a história dizendo que o relógio que aqui aparece é o do espólio de João Capistrano.
Então um daqueles do sobrado de Ópera dos mortos.)
(Outra recorrência sua aqui ocorre quando você retoma o chevrolet de vovô Tomé, de O
risco do bordado, de Um artista aprendiz. Fica clara essa sua característica de vir atrás e
buscar, no passado, alguma coisa.)
Aqui também o forte é o tempo, o tempo interior. (Você fala muito que a única coisa que
vale mesmo é o tempo interior. Como os nossos tempos são realmente muito diferentes uns
dos outros)
Valeu a pena, não é?
[Assim terminou a entrevista, numa mensagem otimista, apesar das perdas de que falamos,
do relógio que já se mostra sem ponteiros, e das diferenças do tempo interior]
{Enquanto desligava o gravador dei uma passada d’olhos na sua biblioteca, nesse momento
vendo alguns livros de poesia, espichei a conversa um pouco mais}
15)Vamos falar um pouco de poesia. Você falou que antes de começar a escrever é
bom ler um pouco de poesia. É isso mesmo?
R.: É bom. Antes de mergulhar no texto. Mas eu não sou poeta. Fiz pouca coisa e vi logo
que não tinha habilidade para isso.
16) Qual é o seu poeta preferido?
R.: Drummond e João Cabral. João Cabral eu me dava com ele.
17) Qual a grandeza da poesia de Drummond?
R.: A novidade.
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Literatura Brasileira.
RESUMO
Esta tese trata de intertextualidade e recorrência na obra de Autran Dourado. Para
este estudo disponibilizamos onze obras das trinta e duas que formam o acervo literário do
romancista. Agrupamos os livros estudados em pares conforme a pertinência do assunto
que os atrela. O primeiro foca a carpintaria literária do autor e todos os segredos de sua
poética. Compõe-se de Uma poética de romance: matéria de carpintaria e Breve manual
de estilo e romance. Em seguida, utilizando Meu mestre imaginário e Um artista aprendiz,
abordamos os dois extremos da criação literária: o que ensina e o que aprende. Momento
em que enfocamos o romance de educação sentimental, que discorre sobre a formação
artística do jovem. A terceira dupla abrigou dois romances: Tempo de amar e Ópera dos
fantoches. O foco incidiu sobre a ficção que busca na própria origem o seu vigor. O recuo
de quarenta e dois anos para a apropriação do romance de estréia de Autran Dourado,
avalizou o mote da recorrência em sua narrativa. A sedução do enredo fez com que o autor
reescrevesse a velha história, revestindo-a com novas técnicas narrativas, desta vez de
cunho intimista. O quarto par abre espaço para mais um romance e abriga, de fato, uma
trilogia romanesca: Ópera dos mortos, Lucas Procópio e Um cavalheiro de antigamente.
Aqui a ênfase recaiu sobre a insubordinação do personagem ao texto matricial. Esta é
também a razão por que estudamos como dupla e não do trio, pois Ópera dos mortos é vista
apenas como a matriz dos demais. Por fim, ratificando a escrita obsessiva do romancista
mineiro, contraponteamos A serviço del-Rei e Gaiola aberta. Aqui, mais uma vez, trata-se
de uma reescritura, pois a história é a mesma. O que muda é tipo de representação literária:
o primeiro, uma ficção; o segundo, memórias. O assunto a vida palaciana e a imobilidade
a que fora condenado o escritor, quando assessor de impressa do presidente Juscelino
Kubistchek.
À semelhança de um carro que para alavancar à frente retrocede para ganhar
impulso, a escrita autraniana volta-se para trás, revitaliza-se e projeta-se à frente
revigorada. O responsável pelo molejo: o motorista Autran Dourado. Zeloso em sua
tarefa despreza a perda do recuo para ganhar o bônus da renovação.
SANTOS, Leonor da Costa Santos. Autran Dourado em romance puxa romance ou a
ficção recorrente. UFRJ. Faculdade de Letras, 2008. 215 fl. Tese de doutorado em
Literatura Brasileira.
ABSTRACT
This thesis deals with the intertextuality and recurrence in Autran Dourado´s work.
For this study we have offered eleven books out of the thirty-two which compose the
novelist´s literary property. We have gathered the books which were studied in pairs in
agreement with the relevance of the subject which hitches them. The first focus on the
author´s “literary carpentry” and all the secrets of his poetic. It is composed of Uma
poética de romance: matéria de carpintaria and Breve manual de estilo e romance.
Afterwards, we used Meu mestre imaginário and Um artista aprendiz, where we have
approached the two extremes of the literary creation: the one that teaches and the one that
learns. The moment in which we focus on the novel of sentimental education, that discusses
about the artistic formation of the young man. The third pair sheltered two novels: Tempo
de amar and Ópera dos fantoches. The focus reflected on the fiction that searches in its
own origin its force. The distance of forty-two years for the appropriateness of Autran
Dourado´s first novel, allowed the recurrence subject in his narrative. The seduction of the
plot made the author to rewrite the old story, covering it with new narrative techniques,
this time with an intimist characteristic. The fourth pair opens a space for one more novel
and shelters, in fact ,a romanesque trilogy: Ópera dos mortos, Lucas Procópio and Um
cavalheiro de antigamente. Here the emphasis is on the insubordination of the character in
relation to the original text. This is the reason why we have studied the content as a pair and
not as a trio, as well, because Ópera dos mortos is seen only as the matrix of the others.
Finally, we ratify the obsessive writing of the novelist from Minas Gerais, by combining
two different works: A serviço del-Rei and Gaiola aberta. Here,once again, it deals with a
re-writing, once the story is the same. The change is in the type of the literary
reperesentation: the first one is a fiction; the second, memories. The subject – the court life
and the immobility to which the author was doomed, when he was in president Juscelino
Kubistchek´s press office.
Similar to a car that, in order to lever ahead, turns back so as to boost, autraniana´s
writing turns back, renews itself and projects itself ahead refreshed. The main responsible
for the movement: the driver Autran Dourado. Careful in his skill, he despises the loss of
the distance in order to earn the bonus of renewal.
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