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UNIVERSIDADE VEIGA DE ALMEIDA
JULIE TRAVASSOS GALLINA
FICÇÃO E FIXAÇÃO: A AMARRAÇÃO DA
FANTASIA À REPETIÇÃO
Rio de Janeiro
2010
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Julie Travassos Gallina
FICÇÃO E FIXAÇÃO: A AMARRAÇÃO DA
FANTASIA À REPETIÇÃO
Dissertação apresentada ao Curso de
Mestrado em Psicanálise, Saúde e
Sociedade da Universidade Veiga de
Almeida por JULIE TRAVASSOS GALLINA,
como requisito para obtenção do grau de
Mestre.
Área de concentração: Psicanálise e saúde.
Linha de Pesquisa: Prática psicanalítica.
Orientadora: Profª Drª Maria Anita Carneiro Ribeiro
Rio de Janeiro
2010
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DIRETORIA DOS PROGRAMAS DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTU SENSU
E DE PESQUISA
Rua Ibituruna, 108 – Maracanã
20271-020 – Rio de Janeiro – RJ
Tel.: (21) 2574-8871 - (21) 2574-8922
FICHA CATALOGRÁFICA
Ficha Catalográfica elaborada pelo Sistema de Bibliotecas da UVA
Biblioteca Maria Anunciação Almeida de Carvalho
G168f Gallina, Julie Travassos
Ficção e fixação: a amarração da fantasia à
repetição / Julie Travassos Gallina, 2010.
114f. ; 30 cm.
Digitado (original).
Dissertação (Mestrado) – Universidade Veiga de
Almeida, Mestrado Profissional em Psicanálise,
Saúde e Sociedade, Rio de Janeiro, 2010.
Orientação: Profª Drª Maria Anita C. Ribeiro
1. Fantasia. 2. Repetição 3. Sigmund Freud.
4. Jacques Lacan. 5. Billie Holiday I. Ribeiro, Maria Anita
C. II. Universidade Veiga de Almeida, Mestrado
Profissional em Psicanálise, Saúde e Sociedade. III. Título.
CDD
Julie Travassos Gallina
Ficção e fixação: a amarração da fantasia à repetição
Dissertação apresentada ao Programa de
Mestrado em Psicanálise, Saúde e
Sociedade, da Universidade Veiga de
Almeida, para obtenção do título de Mestre,
tendo como orientadora a Professora Drª
Maria Anita Carneiro Ribeiro.
Área de concentração: Psicanálise e saúde.
Linha de Pesquisa: Prática psicanalítica.
Data da Defesa: 29 de setembro de 2010.
Banca Examinadora
_______________________________________________________________
Profª Drª Maria Anita Carneiro Ribeiro
Pós-doutora em Psicologia (PUC/RJ)
Professora do Mestrado em Psicanálise, Saúde e Sociedade da UVA
_______________________________________________________________
Profª Drª Rosane Braga de Melo
Doutora em Psicologia (UFRJ)
Professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
_______________________________________________________________
Profª Drª Sônia Xavier de Almeida Borges
Doutora em Educação (PUC/SP)
Professora do Mestrado em Psicanálise, Saúde e Sociedade da UVA
Suplente
_______________________________________________________________
Profª Drª Vera Pollo
Doutora em Psicologia (PUC/RJ)
Professora do Mestrado em Psicanálise, Saúde e Sociedade da UVA
Dedicatória
Para minha filha, Marie, por me
apresentar aos múltiplos significados da
palavra fantasia. Para minha mãe,
Elisabeth, por sua inigualável bravura.
Para minha irmã, Paula, por suavizar a
caminhada.
Agradecimentos
À minha orientadora Maria Anita Carneiro Ribeiro que por ter luz própria
abrilhanta cada encontro.
Ao professor Marco Antonio Coutinho Jorge pelo seu interesse e por suas
notáveis contribuições.
Ao professor Antonio Quinet pelas magnificentes elaborações e pelo
comprometimento com este trabalho.
À Rosane Melo e Sônia Borges pelas grandiosas disponibilidade e
generosidade.
Aos professores do Programa de Mestrado em Psicanálise, Saúde e
Sociedade da Universidade Veiga de Almeida pelo cuidado na transmissão da
psicanálise.
À Maria Helena Martinho por promover meu encontro com a psicanálise e por
me fazer crer no desejo.
Às amigas Tayná Nobre, Simone Ferreira, Aline Oliveira, Margarida La Croix
por compartilhar arrebatamentos e desassossegos.
A realidade não é senão constituída pela
fantasia, é a fantasia que dá matéria à
poesia.
Lacan, O seminário, livro 24: L`insu que
sait de l`une bévue s´aile à mourre.
RESUMO
Esta dissertação pretende analisar essencialmente os conceitos psicanalíticos
de compulsão à repetição e fantasia na medida em que percorrermos as produções
literárias de Sigmund Freud e Jacques Lacan. Nosso interesse é fazer uma
varredura bibliográfica das obras aludidas e articular a teoria à prática psicanalítica.
Trabalhamos paralelamente com os conceitos de inconsciente, sintoma, gozo,
alienação, separação, objeto a, das Ding, pulsão de morte.
Para tanto, apresentamos um caso clínico e a biografia de Billie Holiday, que
puderam ser descritos através de minha experiência na clínica aliada à pesquisa
teórica, respectivamente. Nosso objetivo reside em encontrar tanto os pontos
similares quanto os distintos nas duas histórias, ratificar a solidez significante com
base nesses dois casos, salientar a série de repetições que se apresentam e,
finalmente, construir a hipótese fantasmática de minha paciente Malu e de Billie
Holiday.
Palavras chave: fantasia, repetição, Billie Holiday, caso clínico.
ABSTRACT
This thesis attempts to analyze essentially psychoanalytic concepts of
repetition compulsion and fantasy whereas we’ve been looking at literary productions
of Sigmund Freud and Jacques Lacan. Our interest is to search all bibliography of
literary alluded and link theory to psychotherapy practice. We worked alongside the
concepts of unconscious, symptom, joy, alienation, separation, object a, das Ding,
death drive.
For both, we present a clinical case and the biography of Billie Holiday, which
could be described through my experience in the clinic together with theoretical
research, respectively. Our goal is to find both similar and different points in the two
stories, ratify the significant consistence based on these two cases, accentuate the
number of repetitions that are presented, and finally build the ghostly hypothesis of
my patient Malu and also of Billie Holiday.
Keywords: fantasy, repetition, Billie Holiday, a clinical case.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................... 12
1 DA AMARRAÇÃO DA FANTASIA À REPETIÇÃO ......... 14
1.1 O conceito freudiano: a fantasia ..................................... 14
1.2 O grafo do desejo ............................................................... 18
1.3 Alienação e separação ...................................................... 21
1.4 Das Ding e objeto a ............................................................ 25
1.5 O “ciclo da fantasia” ............................................................ 27
1.6 Complexo de Édipo e os três tempos da fantasia ...... 34
1.7 Fixação: repetição e sintoma ........................................... 45
2 UM RECORTE BIOGRÁFICO DE DUAS MULHERES:
MALU E BILLIE HOLIDAY ...................................................................... 57
2.1 Billie Holiday: com quantos “abandonos” se faz um
blues? ............................................................................................... 57
2.2 Malu, de abandonada à cuidadora ................................. 67
3 OS APANÁGIOS DA FANTASIA FUNDAMENTAL ............... 79
3.1 A mulher e as fórmulas quânticas da sexuação ............. 79
3.2 Os estigmas da pulsão de morte ........................................ 84
3.3 Tiquê, autômaton e a fantasia fundamental ..................... 89
CONCLUSÃO ................................................................................................. 98
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................ 107
ANDICE A Curso de extensão: O conceito de fantasia
em Freud e Lacan .................................................................................... 112
12
INTRODUÇÃO
O trabalho apresentado é o resultado da pesquisa feita ao longo dos dois
anos do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise, Saúde e Sociedade da
Universidade Veiga de Almeida. Esta dissertação se propõe a apresentar dois
conceitos prínceps para a psicanálise, quais sejam: a fantasia e a repetição, tal
como empregados por Freud e Lacan.
No primeiro capítulo do trabalho focalizamos os primórdios da construção
teórica, quando Freud, ao investigar a etiologia das neuroses, criou a teoria da
sedução, ou teoria do trauma, para dar conta dos fenômenos histéricos. Todavia, em
1897, Freud inaugura a teoria da fantasia alicerçada sobre o conceito de realidade
psíquica.
Seguindo os ensinamentos freudianos e lacanianos investigamos os avanços
teóricos produzidos pelos autores, na tentativa de compreender a forma como a
fantasia se constitui para o sujeito. Para tanto recorremos, com Lacan (1966), ao
grafo do desejo, onde explicita o processo de estruturação da fantasia.
Dedicamo-nos ainda da primeira parte desta dissertação aos textos
freudianos publicados entre os anos de 1907 e 1911, o que constitui o denominado
"ciclo da fantasia" tal como sistematiza Marco Antonio Coutinho Jorge, para então
passarmos ao artigo "Bate-se numa criança", de 1919, que assume o ápice da
13
investigação freudiana acerca do conceito de fantasia.
Encerramos o primeiro capítulo debruçando-nos na concepção de compulsão
à repetição, formalizada por Freud em 1920, com o texto "Mais-além do princípio do
prazer", conceito este atrelado à ideia de sintoma e, portanto, conectado à fantasia,
na medida em que esta é antecessora psíquica de todo sintoma.
No segundo capítulo registramos o recorte da biografia da consagrada
cantora de jazz Billie Holiday e o fragmento de um caso provindo da clínica da autora
desta dissertação, na tentativa de articulá-los posteriormente aos conceitos aludidos
anteriormente.
No desfecho da dissertação através da descrição e exame da história de Billie
Holiday e de Malu articulamos ambos os casos aos conceitos de repetição, pulsão
de morte, sintoma, gozo, fantasia, ressaltando o posicionamento subjetivo de cada
sujeito. Lançamos mão das fórmulas quânticas da sexuação estabelecidas por
Lacan (1972-1973) em O Seminário, livro 20: Mais, ainda, para entendermos o modo
como essas mulheres se colocam frente ao sexual. Tencionamos, assim, através da
articulação entre teoria e prática, elucidar questões referentes a fantasia
fundamental na neurose, demarcando a singularidade do sujeito, e ao gozo do
sintoma arraigado à repetição.
14
1 A AMARRAÇÃO DA FANTASIA À REPETIÇÃO
Este capítulo se propõe a apresentar dois conceitos primordiais na
psicanálise, quais sejam: a fantasia e a repetição. O interesse é abordar o
enodamento fundado a partir do estabelecimento da fantasia que acaba por instituir
uma série de repetições geradas sob tais contornos, enfatizando as duas formas de
repetição propostas por Lacan (tiq e autômaton). Esta primeira parte da
investigação abarca ainda o grafo do desejo estabelecido por Lacan (1966), as duas
operações de constituição do sujeito, a saber: alienação e separação, a distinção
entre objeto a e das Ding, o conceito de sintoma e sua relação com a compulsão à
repetição.
1.1 O conceito freudiano: a fantasia
Nos primórdios de sua construção teórica, no denominado período pré-
psicanalítico, Freud, ao investigar a etiologia das neuroses, criou a teoria da
sedução, ou teoria do trauma, para dar conta dos fenômenos histéricos. Nessa
época, ele defendia a ideia de que havia sempre uma cena sexual real à qual todo
neurótico teria sido submetido teoria estabelecida nos textos que compõem os
“Estudos sobre a histeria”, onde Freud (1893-1895) deixa claro que acreditava nas
15
cenas sexuais recordadas pelas histéricas, nas quais teriam sido seduzidas de fato
cuja constituição e desencadeamento da neurose se davam por suas influências.
Convocadas a falar de si, as histéricas acabaram por confidenciar que os
sintomas que as assolavam estavam acoplados a eventos traumáticos envolvendo
um familiar, frequentemente o pai. De acordo com essas premissas, a criança era
percebida como vítima de sedução sexual promovida por um adulto. A proeminência
determinante dos pais sobre os mecanismos psíquicos dos filhos foi uma das
questões preliminares, apontadas por Freud, a partir da escuta dessas pacientes.
Este fato levou Freud a elaborar a teoria da sedução com a qual supunha ter
desvendado a origem da histeria, que nesse momento da obra era designada por
episódios traumáticos de cunho sexual que incidiam na infância e imediatamente
eram recalcados. Em suas palavras:
Os histéricos sofrem principalmente de reminiscências, (...) de uma
experiência traumática que está constantemente forçando sua presença na
mente do paciente (...) que permanece fixado no trauma. (FREUD, 1893-
1895, p.42).
Freud (ibidem) se debruça também sobre a questão da técnica cujos
postulados foram criados com a escuta de suas histéricas. É notório o papel
relevante que essas pacientes têm para a psicanálise, inaugurando teorias e
instituindo técnicas empregadas posteriormente por Freud. A regra pilar da
psicanálise é criada justamente por uma paciente histérica. Emmy Von N. (FREUD,
1893-1895), ao expressar seu desejo de falar, funda a associação livre, e Freud faz
descobertas a respeito da sobredeterminação inconsciente. Freud, então, abandona
a perspectiva de trabalhar o sintoma por meio da hipnose para inaugurar a
psicanálise, em que o analista tem como parceiro o inconsciente.
Nesse ínterim, Freud, advertido de que para sustentar a teoria da sedução
teria de considerar que todo pai é perverso, sedutor de sua própria filha, e se dando
16
conta de tal impossibilidade, passa da teoria da sedução à teoria da fantasia. Desse
modo, o autor assegura que as fantasias inconscientes têm influência primordial na
realidade psíquica, e serão consideradas mais importantes do que a influência do
mundo externo para a investigação das neuroses e para o trabalho analítico. A um
tempo, Freud descobre a sexualidade infantil e as fantasias inconscientes cuja
interferência é inquestionável na realidade psíquica do sujeito.
Em 21 de setembro de 1897, Freud menciona sua nova descoberta em uma
correspondência endereçada a Fliess: “(...) não acredito mais em minha
neurótica. (...) A descoberta comprova que, no inconsciente, não indicações da
realidade, de modo que não se consegue distinguir entre a verdade e a ficção que é
investida com o afeto”. (FREUD, 1950b [1892-1897], p.309-10). Assim sendo, não há
para a psicanálise o objeto da realidade factual, mas somente o da realidade
psíquica.
A fantasia inconsciente é fruto de uma bricolagem que desvela,
concomitantemente, o assujeitamento e uma produção do sujeito. A fantasia é uma
encenação ativa produzida pelo desejo sexual inconsciente”. (QUINET, 2004, p.
167). Em “Rascunho L”, Freud (1950c [1892-1899]) descreve os atributos das
fantasias e a forma como o analista deve manejar o tratamento para que possa
alcançar as cenas primárias, que é o objetivo primordial de uma análise: o caminho
quando desimpedido leva a essas cenas, na medida em que elas se encontram
escamoteadas e obstruídas pelas fantasias”. (idem, ibidem, p.297).
Essa descoberta freudiana, de relevância essencial em sua obra, oferece um
novo status ao conceito de inconsciente, a partir de seu caráter subversivo. A
psicanálise é engendrada e oferece escopo particular que causa um impacto notório
na humanidade e na cultura do século XX. A revolução ocasionada com sua
17
invenção, o inconsciente, é trabalhada em “Uma dificuldade no caminho da
psicanálise”, onde Freud (1917b) enumera as denominadas feridas narcísicas
sofridas pelos homens ao longo do tempo.
A primeira ferida, a revolução copernicana, demonstra que a Terra não é o
centro do universo tal como se acreditava. A segunda refere-se ao descobrimento de
Darwin, quem afirma que os homens não são seres superiores inseridos na cadeia
evolutiva, e sim descendentes do reino animal. Com o advento da psicanálise, o
homem sofre sua terceira ferida, quando Freud demonstra que o inconsciente reina
no sistema psíquico, logo o “eu não é o senhor de sua própria casa”. (idem, ibidem,
p.153).
O inconsciente, tal como a psicanálise o propõe, ganha qualidade
imprescindível, passa a ser vislumbrado como força motriz do aparelho psíquico, que
faz o sujeito conduzir sua vida conforme seus desejos inconscientes sem um saber
consciente. Por isso, o inconsciente é entendido como alteridade, como se uma
força vinda de fora penetrasse no desejo e obrigasse o sujeito a cometer um ato que
não fosse propriamente seu.
Segundo Freud (1915), o inconsciente é aquele que está sempre se fazendo
notar, que surge onde não é esperado e se manifesta burlando as normas da
consciência, e é dotado de uma intencionalidade e temporalidade próprias que se
presentificam, tal como Lacan (1964) afirma em O Seminário, livro 11: Os quatro
conceitos fundamentais da psicanálise: como uma fissura, um hiato que promove
essencialmente um deslize, através de suas formações — os chistes, os atos falhos,
os sonhos e os sintomas. “Em suma, deve-se dizer que o inconsciente continua
naquilo que conhecemos como derivados”, diz Freud, “que é acessível às
impressões da vida”. (FREUD, ibidem, p.195).
18
Ao inaugurar a teoria da fantasia alicerçada sobre o conceito de realidade
psíquica, realidade relativa a cada sujeito e permeada por uma interpretação
subjetiva, Freud relevo ao inconsciente como aquele que serve de bússola para
as escolhas do sujeito. À medida que o inconsciente determina o sujeito a partir da
constituição da fantasia, faz com que ele vislumbre o mundo sob esta ótica própria.
A fantasia emoldura, enquadra a realidade. Na “Conferência XXIII: Os caminhos da
formação dos sintomas”, Freud (1917 [1916-17]) novamente imprime relevo à
realidade psíquica enquanto construção determinante em um processo analítico:
Subsiste o fato de que o paciente criou essas fantasias por si mesmo, e
essa circunstância dificilmente terá, para a sua neurose, importância menor
do que teria se tivesse realmente experimentado o que contêm suas
fantasias. As fantasias possuem realidade psíquica, em contraste com a
realidade material, e gradualmente aprendemos a entender que, no mundo
das neuroses, a realidade psíquica é a realidade decisiva. (idem, ibidem,
p.370).
1.2 O grafo do desejo
De que maneira uma fantasia se configura? A primeira experiência de
satisfação à qual o bebê foi submetido, discutida por Freud (1950 [1895]) no “Projeto
para uma psicologia científica”, indica uma percepção mítica inicial de plenitude que
em seguida é perdida e que jamais será alcançada novamente. Freud afirma que o
primeiro objeto erótico do bebê, e exterior ao seu próprio corpo, é o seio da mãe que
o alimenta.
Nesse ínterim, a origem do amor remetido à mãe está ligada à primitiva
necessidade satisfeita de nutrição. Entretanto, o seio materno é entendido não
apenas como aquele que alimenta, mas também aquele que oferece cuidado, e que
desperta no bebê sensações físicas agradáveis e desagradáveis, erotizando seu
corpo. Todavia, malograda sua expectativa de integralidade da satisfação, o bebê na
tentativa de recobrir essa fenda que se instala, traça sua fantasia.
19
Coutinho Jorge esclarece: “Se a fantasia é um elemento que se instaura para
a criança como uma verdadeira contrapartida ao gozo que ela perdeu, a fantasia se
dá, essencialmente, como uma fantasia de completude. A fantasia é fantasia de
completude”. (COUTINHO JORGE, 2006, p.33). Lacan (1966) se debruçará no
estudo dessa temática, na qual se pode localizar a constituição da fantasia. Para tal,
o autor propõe a construção de um esquema que nomeou de “Grafo do Desejo”.
No primeiro patamar do grafo, o Outro é entendido como Outro primordial (A),
ou seja, a mãe ou aquele que exerce a função materna. Ao se deparar com o
desconforto que o bebê lhe anuncia ao chorar, a mãe, por não deter um saber sobre
ele, o interpreta. O Outro materno ao perguntar Che vuoi? (Que queres?) para o
infans, faz com que a necessidade puramente de aplacar o desprazer ultrapasse seu
sentido e se transforme em demanda, uma vez que a resposta a este
questionamento passa pela pressuposição materna, isto é, pela interpretação
através do simbólico.
Lacan (1957-1958) observa, em seu O Seminário, livro 5: As formações do
inconsciente, que a necessidade está referida unicamente ao campo biológico,
20
enquanto a demanda retira o caráter natural da necessidade introduzindo um mais-
além para satisfazê-la e está sempre remetida ao campo da linguagem. O desejo na
articulação entre necessidade e demanda surge costurando os significantes da
demanda. Todo desejo é marcado pela falta, isto é, apenas onde falta pode
emergir o desejo. Então, à medida que a mãe interpreta o choro do bebê, permite
que se insira um furo, uma falta de significante. (idem, 1966).
Nesse sentido, a mãe aponta para o bebê o seu desejo, o que permite Lacan
afirmar que “o desejo do homem é o desejo do Outro”. (idem, 1953-1954, p.172). O
desejo do sujeito se constitui a partir da interpretação que ele faz do desejo do
Outro. Donde, a fantasia fundamental é construída justamente a partir desses
limites, como uma resposta do sujeito à incógnita do desejo do Outro. Segundo
Quinet:
O vazio da janela é a falta no Outro buraco deixado vazio pelo objeto
perdido desde sempre. A estratégia do sujeito é fazer com que o objeto
causa de desejo volte para a janela vazia. Para este fim, ele usa o eu como
imagem do outro [i(a)], envelope imaginário do objeto, seja a fantasia, [$a],
que encena sua relação com o objeto. (QUINET, 2004, p.12).
No segundo patamar do grafo, verifica-se que a operação da castração
oriunda da falta original é consumada. O modo como o sujeito irá se posicionar
diante da castração apontará para a constituição de sua estrutura. A partir dessa
operação, Lacan (1966) situa o sujeito que se dirige ao Outro na tentativa de fisgar
seu desejo, estabelecendo-o calcado naquilo que ele presume que o Outro queira
dele. A resposta ao Che vuoi?, que agora parte do sujeito em direção ao Outro,
determinará a fantasia na tentativa de dar conta da castração do Outro que se
inscreve para o sujeito como sua própria fenda. “A fantasia é o quadro que o sujeito
pinta para responder ao enigma do desejo do Outro; é sua forma de tapar
21
cenicamente o furo no Outro que lhe retorna como castração”. (QUINET, 2004,
p.170).
Lacan (ibidem) retira a expressão Che vuoi?” do romance escrito por
Jacques Cazotte, intitulado “O diabo enamorado” (1992 [1772]), no qual Álvaro,
protagonista da narrativa, é convidado por dois senhores a evocar o demônio no
ritual da cabala. Este que jamais havia se manifestado, surge sob a forma de uma
cabeça de camelo. Tão logo se sua aparição, lança, com uma voz tenebrosa, a
enigmática pergunta para Álvaro: Che vuoi? É a partir deste conto que Lacan
captura a questão “Que queres?” para dar conta da fantasia. O Che vuoi?” é,
portanto, sustentado pelo não-saber, instaurando um mistério sobre o desejo do
Outro.
1.3 Alienação e separação
Em O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise,
Lacan (1964) salienta que podemos circunscrever dois campos: o campo do sujeito
e o campo do Outro. Calcado na lógica aristotélica, o autor define as operações
lógicas de constituição do sujeito, a saber, a alienação e a separação. Lacan toma
de empréstimo o termo “alienação” de Karl Marx, para designar que todo sujeito é
alienado ao significante do Outro. Segundo Lacan, “o Outro é o lugar no qual se
situa a cadeia do significante que comanda tudo que vai poder presentificar-se do
sujeito”. (idem, ibidem, p. 193-194). Essa operação tem como modelo a operação de
reunião da lógica aristotélica, em que o sujeito constitui-se como tal. A alienação
opera como o efeito da entrada do bebê no campo do Outro, ou seja, é responsável
pela condenação do sujeito à divisão estrutural. Lacan (1966), em seu escrito
“Posição do inconsciente”, retoma o tema e sublinha:
22
O registro do significante institui-se pelo fato de um significante representar
um sujeito para outro significante. Essa é a estrutura, sonho, lapso e chiste,
de todas as formações do inconsciente. E é também a que explica a divisão
originária do sujeito. Produzindo-se o significante no lugar do Outro ainda
não discernido, ele faz surgir ali o sujeito do ser que ainda não possui fala,
mas ao preço de cristalizá-lo. O que ali havia de pronto para falar..., o que
havia desaparece, por não ser mais que um significante. (idem, ibidem,
p.854).
Destarte, a relação engendrada entre sujeito e Outro exige uma hiância. Para
descrever a operação de alienação de todo sujeito ao significante, Lacan (1964)
propõe a seguinte ilustração, baseado na lógica dos conjuntos e através dos círculos
de Euler:
Na alienação o sujeito é confrontado com uma escolha forçada, pois não pode
escolher não ser um sujeito, não pode optar por ficar fora da linguagem. Sendo
assim, o sujeito escolhe forçadamente o sentido, o significante, a divisão. Ao abordar
a questão da escolha, Freud (1913) estudou a “escolha da neurose”, expressão que,
segundo Lacan (1946), não é acertada por não haver para o sujeito uma alternativa,
pois algo é a priori determinado pela estrutura e a qual ele traduz por “insondável
decisão do ser”. Ao tratar do tema, Lacan aponta para a “escolha forçada” como
aquela na qual o sujeito não é dotado do livre arbítrio esperado, uma vez que esta
se remete a uma força ininterrupta que o atinge, deixando-o sem escapatória.
Através da metáfora, “a bolsa ou a vida”, Lacan (1964) deixa claro que ao realizar
uma escolha perde-se inevitavelmente outra, o que acaba por ratificar a ideia de que
toda escolha é necessariamente perdedora. O essencial dessa primeira escolha é
23
que por meio da perda introdutória e estrutural algo pode ser exprimido através de
uma reedição.
Na tentativa de ilustrar a operação de alienação, Lacan (1964) emprega a
estrutura do vel, assertiva da lógica matemática, asseverando que o vel da alienação
demarca uma escolha cujo atributo depende de que, em uma reunião de
componentes, haja um elemento que em decorrência da escolha promova o
seguinte produto: “nem um, nem outro”. Em suas palavras: “Escolhemos o ser, o
sujeito desaparece, ele nos escapa, cai no não-senso escolhemos o sentido e o
sentido subsiste decepado dessa parte de o-senso que é, falando
propriamente, o que constitui a realização do sujeito, o inconsciente”. (idem, ibidem,
p.200).
A segunda operação de constituição do sujeito é mencionada por Lacan
(ibidem) como sendo a separação. A separação pode ser contemplada apenas nas
estruturas neurótica e perversa, pois esta operação implica na sedimentação da
metáfora paterna, significante este que representa para o sujeito a instauração da
lei, o Nome-do-Pai. Lacan sublinha então que para que a separação opere o sujeito
deve encontrar um espaço no desejo do Outro.
Esta separação é elucidada por Lacan (1966) por meio de uma combinação
de equívocos tecida com o vocábulo, originário do latim, “‘separere’, separar,
conclui-se aqui em se parere, gerar a si mesmo. (...) Aqui é por sua partição que o
sujeito procede a sua parturição”. (idem, ibidem, p.857). O autor cria o seguinte
esboço para expor a operação da separação:
24
Alicerçado na operação lógica matemática da interseção, Lacan (1964)
estabelece que na separação o sujeito depara-se verdadeiramente com o desejo do
Outro. Desse modo, o questionamento que impele o sujeito à separação diz respeito
ao lugar que ele ocupa no desejo do Outro: “Pode ele me perder?” A separação
engendra um distanciamento do Outro que permite o sujeito ansiar saber sobre
aquilo que está para além do que se encontra traçado no Outro.
A partir desta hiância entre o sujeito e o Outro emerge a falta, representada
pelo objeto mítico desde sempre perdido, objeto causa de desejo. A tentativa do
sujeito de recuperar este objeto jamais alcançado, que promoveria a união entre o
sujeito e o Outro, fornece à fantasia sua configuração. Assim, sublinha Coutinho
Jorge:
O resto que cai da operação simbólica do significante é o objeto a, que
retira a completude do ser do sujeito e o instaura numa relação desejante
de falta-a-ser. O valor fundante da fantasia torna-se, assim ressaltado (...) e
é esta para Freud, desde o momento fulgurante em que abandonou sua
teoria da sedução, a única realidade psíquica para o sujeito. (COUTINHO
JORGE, 1988, p.28).
É na tentativa de recobrir esta lacuna que o sujeito ensaia capturar o objeto a
que o uniria ao Outro, instituindo assim a fantasia. “O quadro da fantasia que é
para o neurótico, ‘a obra de arte de uso interno do sujeito é os óculos com os
quais ele vê a realidade”. (QUINET, 2004, p.13).
25
1.4 Das Ding e objeto a
Marco Antonio Coutinho Jorge (2005) sublinha em seu livro “Fundamentos da
psicanálise: de Freud a Lacan” a importância da distinção entre das Ding, objeto
primordialmente perdido, e objeto a, objeto causa de desejo, para salientar a
contradição entre o proibido e o impossível. O autor acentua a relevância de
assinalar a diferença entre tais conceitos e a justifica afirmando que:
Com a ênfase posta sobre o objeto perdido do desejo enquanto Coisa, das
Ding, e a nomeação do objeto causa do desejo como objeto a, uma
importante distinção veio a ser introduzida por Lacan no que diz respeito à
possibilidade de diferenciar o objeto perdido da espécie humana e o objeto
perdido da história de cada sujeito. (idem, ibidem, p.142).
Freud (1950 [1895]) retira do léxico kantiano o conceito de das Ding, a Coisa,
e o emprega como sendo o objeto desde sempre perdido, ou seja, que pôde ser
encontrado em um momento mítico pelo bebê. Ao examinar a primeira experiência
de satisfação, discutida anteriormente nesta dissertação, Freud (ibidem) assegura
que das Ding designa sempre algo da ordem do intervalo, da falta, instituindo uma
fenda estrutural no aparelho psíquico. A partir de então, o sujeito se empenha em
reencontrar este objeto perdido, impossível de ser apreendido. Lacan (1959-1960)
afirma que (...) é claro que o que se trata de encontrar não pode ser reencontrado.
É por sua natureza que o objeto é perdido como tal [...] não é ele que
reencontramos, mas suas coordenadas de prazer”. (idem, ibidem, p.69). O sistema
psíquico trabalha na tentativa de abastecer a satisfação, aniquilando, assim, o
estado de desprazer. Se houvesse meio de encontrá-lo, a busca cessaria levando
consigo a possibilidade de desejar.
Na tentativa de explorar a noção de impossibilidade, Lacan (ibidem) examina
o Projeto(1895) para destacar o conceito de Coisa das Ding empregado por
26
Freud. A ética da psicanálise proposta por Lacan retoma a noção de Coisa, na
medida em que das Ding designa a lacuna essencial em torno da qual o sujeito
circula para se constituir como tal, o objeto miticamente perdido, jamais revelado,
irrealizável, que o governa. “É o índice, ao mesmo tempo, do anseio de plenitude e
da sua impossibilidade”. (RINALDI, 1996, p. 69).
Das Ding representa o objeto perdido para o sujeito que opera como causa do
desejo central. Deste modo, das Ding é a outra denominação para o incesto, pois: “o
Bem supremo, que é das Ding, que é a mãe, o objeto do incesto, é um bem
proibido”. (LACAN, 1959-60, p.90). O conceito lacaniano de das Ding, diz respeito a
algo que resta, é o que resta do objeto a no real. Das Ding refere-se ao indizível, ao
gozo, é a faceta real do objeto a.
A perda primitiva do sujeito, a perda significante, marcará a relação sempre
desencontrada entre esse e o objeto a, aquele que supostamente viria completá-lo e
que, portanto funcionará como causa de seu desejo. É a parte perdida com a
fundação do sujeito enquanto falante que irá impulsionar nele toda uma busca para
recuperá-la.
O objeto a é um lugar e em consequência disso não é palpável, apenas os
objetos que o representam o são. Sem representação simbólica, o objeto a é,
outrossim, objeto de angústia.
O que soçobra da operação de significantização do real é o objeto a. Lacan
(ibidem), ratificando a construção freudiana, assegura que o sujeito, afastado do
objeto cobiçado, do objeto impossível de ser encontrado, se depara tão somente
com vestígios deste, o que concede à satisfação a propriedade de ser parcial. A
satisfação por não ser inteiriça, plena, faz com que a pulsão não cesse de se
inscrever. A finalidade pulsional elementar é garantir a satisfação, entretanto está
27
destinada ao inacessível, pois não é jamais saciada à medida que a pulsão é
metonímica, passa de objeto a objeto.
Destarte, das Ding, como representação do Outro absoluto, revela seu caráter
de proibição e interdição, pois tem em seu germe o desejo incestuoso, enquanto que
o objeto a é motor para o desejo, é a mola pulsional que faz com que o sujeito o
cesse de tentar encontrá-lo.
1.5 O “ciclo da fantasia”
O conceito de fantasia, primordial para a psicanálise, permeia toda a
produção freudiana. Entretanto, Marco Antonio Coutinho Jorge (2006) chama a
atenção para o fato de que, embora Freud se debruce constantemente sobre o
conceito de fantasia, há um período em sua obra — que se inicia no ano 1907 com a
publicação do texto “Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen” (FREUD, 1907
[1906]), e se conclui em 1911 com o artigo “Formulações sobre os dois princípios do
funcionamento mental” (FREUD, 1911) que se destaca por correlacionar a
fantasia a vários outros conceitos e teorias basilares para a psicanálise. Marco
Antonio Coutinho Jorge nomeia esta fase de “ciclo da fantasia”, no qual a fantasia
aparece relacionada somente ao princípio do prazer. Dentre os textos que compõem
este período, esta dissertação destacará somente aqueles que se articulam
prioritariamente com as questões relativas à sua investigação.
No texto “Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen”, Freud (1907 [1906])
ratifica a ideia lançada desde seus “Estudos sobre a histeria” (FREUD, 1893-
1995) — do comando do inconsciente no que tange os sintomas neuróticos, ou seja,
aponta o domínio do inconsciente e do material recalcado na constituição da
neurose. Freud se debruça sobre o direcionamento que “Arnold”, figura central do
28
artigo, dá a sua vida, elucidando de modo inquestionável que o que incide na
neurose é da ordem de um disfarce consciente que parece reger determinadas
condutas. Porém, constata que a verdadeira razão para tais ações está
fundamentada nas fantasias inconscientes.
Freud (1907 [1906]) demarca que as fantasias inconscientes são na realidade
substitutos e derivados provenientes do material recalcado que, pela impossibilidade
de atingirem a consciência em seu formato original, padece, tal como ocorre nos
sonhos através dos mecanismos de deslocamento e condensação, de deformações
produzidas pela censura. Este pressuposto acerca da equiparação estabelecida
entre as fantasias inconscientes e os sonhos pode ser vislumbrado no texto
inaugural da psicanálise, “A interpretação dos sonhos”, onde Freud (1900) salienta
que:
As fantasias como os sonhos, também são realizações de desejos, também
se beneficiam de certo relaxamento da censura. Se examinarmos sua
estrutura, perceberemos a forma pela qual a finalidade impregnada de
desejo, que atua em sua produção, misturou o material do qual foram
construídas: reformulou-o e o construiu num novo todo. (idem, ibidem,
p.526).
Em 1906, Freud (1906 [1905]) escreveu o texto “Personagens psicopáticos no
palco”, em que propõe a seguinte concepção relativa à encenação teatral: “trata-se
de proporcionar fontes de prazer ou de fruição em nossa vida emocional, da mesma
forma que, como no caso da atividade intelectual, as anedotas ou brincadeiras
abrem fontes semelhantes”. (idem, ibidem, p.289). Freud demonstra que, ainda que
a platéia que assiste ao espetáculo se depare com cenas de adversidade ou
consternação dos personagens envolvidos, pode ser obtido prazer a partir delas.
No artigo “Escritores criativos e devaneio”, Freud (1908a) estabelece os
alicerces para o trabalho psicanalítico com crianças, e indica que a fantasia
encontrada no adulto é análoga ao ato de brincar infantil, como uma sequência
29
lógica. A satisfação adquirida no ato de brincar não é aniquilada à medida que a
criança cresce, pois o que vem no lugar da brincadeira infantil é, na verdade, a
constituição da fantasia como uma formação substitutiva. A obra literária também
ganha a representação de um substituto do brincar infantil, uma vez que é capaz de
ser fonte de satisfação para os leitores, pois ocasiona uma sensação de exclusão
das tensões, tal como ocorre nos chistes. As fantasias surgem como um elemento
que oferece outros contornos à realidade desprazerosa.
Freud (ibidem) trabalha ao longo desse artigo, bem como ao longo de sua
obra, seguindo duas vertentes distintas em relação ao conceito de fantasia. Por um
lado, compreende a fantasia equivalendo-a a uma obra imaginativa, ao devaneio,
que se ajusta à forma como o sujeito se relaciona com as impressões variáveis da
vida. A dimensão criativa ganha estofo por meio da imaginação. É relevante
ressaltar que na “Conferência XXIII: Os caminhos da formação dos sintomas”, Freud
(1917 [1916-17]) assinala que os devaneios se equivalem a satisfações de cunho
imaginário de desejos ousados, megalomaníacos e eróticos. Por outro lado, Freud
(1908a) demarca a fantasia como algo que se tornou excessivamente intenso e
influente na vida do sujeito, o que permite o desencadeamento da neurose. Trata-se
assim de uma construção cristalizada que no lugar da realidade fatual faz emergir
uma realidade psíquica, peculiar a cada sujeito.
Embora Freud trabalhe a concepção de fantasia sob esses dois registros, o
conceito de fantasia é singular, ou seja, não se pode afastar uma noção da outra e
pensar no examine da fantasia consciente distante da ideia de fantasia inconsciente.
Ainda em “Escritores criativos e devaneio”, Freud (1908a) destaca a relação entre as
fantasias inconscientes e a atemporalidade própria desta instância. A fantasia surge
30
como um recurso que agrega as dimensões temporais de passado, presente e futuro
servindo, de forma indireta, à realização de desejos. Freud esclarece que:
O trabalho mental vincula-se a uma impressão atual, a alguma ocasião
motivadora no presente que foi capaz de despertar um dos desejos
principais do sujeito. Dali retrocede a lembrança de uma experiência anterior
(geralmente da infância) na qual esse desejo foi realizado, criando uma
situação referente ao futuro que representa a realização do desejo. (idem,
ibidem, p.138).
Freud (1908c) retoma a analogia entre as fantasias e o infantil no artigo
“Sobre as teorias sexuais infantis”. Neste, o autor diz que as crianças criam diversas
fantasias na tentativa de dar conta da diferença sexual que em determinado
momento passam a testemunhar. Freud (ibidem) defende que o estabelecimento do
complexo nuclear das neuroses, o complexo de Édipo, é resultado do conflito
psíquico suscitado pela oposição notória entre as informações que as crianças
recebem de seus pais acerca da diferença sexual e o que elas mesmas verificam
através das descobertas que fazem com suas investigações sobre a temática.
Sendo esses subsídios inconciliáveis, acabam por formar o conjunto de elementos
inconscientes e recalcados.
Ainda nesse artigo, Freud (ibidem) repertoria a respeito da masturbação
infantil, temática que será amplamente discutida em “Uma criança é espancada:
Uma contribuição ao estudo da origem das perversões sexuais” (FREUD, 1919a).
Neste, Freud (ibidem) chama a atenção para o fato de que a pesquisa realizada
pelas crianças pode ser vinculada à atividade masturbatória, o que acarreta em certa
medida no alheamento emocional relativo aos pais. Esta premissa é elucubrada no
ano seguinte, em “Romances familiares”, quando Freud (1909) destaca que há uma
conexão entre a constituição de uma neurose e um falha no afastamento do sujeito
de seus pais.
31
Percorrendo a obra freudiana, destaca-se a importância do texto “Fantasias
histéricas e sua relação com a bissexualidade” (FREUD, 1908b), pois este artigo
demonstra de forma evidente de que modo as fantasias inconscientes encontram-se
atreladas à formação dos sintomas. Freud (ibidem) descreve as fantasias bissexuais
e como exemplo uma de suas pacientes que pressionava seu próprio vestido
contra o corpo com uma de suas mãos, como uma mulher, ao mesmo tempo em que
tentava tirá-lo com a outra, como um homem. Antonio Quinet (2004), em Um olhar a
mais, descreve essa encenação histérica e a fantasia bissexual:
A fantasia é encenada no quadro em que a histérica está na posição de
objeto (como mulher) e como sujeito de desejo (como homem). Essa
representação da divisão do sujeito manifesta nesta encenação da fantasia,
divisão entre homem e mulher, é própria da histeria, divisão entre o que
deseja, mas ao mesmo tempo rejeita. Isto pode ser visualizado no quadro
de Magritte, Les jours gigantesques, no qual uma mulher nua tenta afastar o
homem cuja silhueta está desenhada em seu próprio corpo e que a toma
em seus braços. Ele está de costas com os braços em torno dela, e é
apenas uma sombra que acompanha o contorno do corpo da mulher.
(QUINET, 2004, p. 169).
Que relação há entre sintoma e fantasia? Freud esclarece que os sintomas se
encontram intimamente ligados às fantasias inconscientes, uma vez que elas são
antecessoras psíquicas de todos os sintomas. Em “Fantasias histéricas e sua
relação com a bissexualidade” (1908b), Freud assegura que “as fantasias
inconscientes são os precursores psíquicos imediatos de toda uma série de
sintomas histéricos”. (idem, ibidem, p.151). Por isso o analista deve realçar a
fantasia subjacente ao sintoma, construindo-a em análise, pois essa é a única forma
de acessá-la, uma vez que se trata de uma fantasia inconsciente, ou seja, que está
necessariamente sob a barra do recalque. Em “O Inconsciente”, Freud (1915)
corrobora esta ideia deixando evidente que:
Essa é a natureza das fantasias de pessoas normais, bem como de
neuróticas, fantasias que reconhecemos como sendo etapas preliminares
da formação tanto dos sonhos como dos sintomas e que, apesar de seu alto
grau de organização, permanecem recalcadas, não podendo, portanto,
32
tornar-se conscientes. Aproximam-se da consciência e permanecem
imperturbadas enquanto não dispõe de um investimento intenso, mas tão
logo excedem certo grau de investimento, são lançadas para trás. (idem,
ibidem, p.196).
Em “Algumas observações gerais sobre os ataques histéricos”, Freud (1909
[1908]) prossegue discorrendo sobre o relevo da investigação das fantasias
histéricas, delineando a concepção de que os ataques histéricos são, na realidade,
fantasias inconscientes desveladas por meio da esfera motora. O autor ratifica a
ideia de que há similitude entre as fantasias inconscientes e os devaneios e sonhos,
pois são de natureza análoga, embora estes últimos possam ser observados
diretamente, uma vez que conseguem burlar a censura ao se apresentarem
distorcidos. De acordo com o autor, o ataque histérico suscita um problema para o
sujeito e para o analista, pois se manifesta de forma incompreensiva sob a égide do
recalque. Nesse âmbito, Freud aponta alguns fatores que evidenciam a magnitude
da resistência no material recalcado e que, em função disso, embaraçam a
inteligibilidade do ataque histérico:
O ataque torna-se ininteligível por representar simultaneamente várias
fantasias em um mesmo material, ou seja, através da condensação. (...) O
ataque torna-se obscuro pelo fato de o paciente tentar realizar as atividades
de ambas as figuras que aparecem na fantasia, ou seja, por meio de uma
identificação múltipla. (...) Uma inversão antagônica de inervações,
processo análogo à transformação de um elemento em seu oposto, comum
no trabalho onírico, acarreta também uma distorção muito ampla. (...) Quase
tão desorientadora e enganosa é a inversão da ordem cronológica na
fantasia que é representada, a qual também tem seu correspondente em
certos sonhos que começam com o final da ação e terminam com seu início.
(idem, ibidem, p.209-10).
O término do ciclo da fantasia” se com a publicação do artigo
“Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental”, no qual Freud
(1911) se dedica ao exame do princípio do prazer e do princípio da realidade. Freud
(ibidem) corrobora a noção de que o ato de fantasiar se origina na brincadeira
infantil, conservando suas propriedades no devaneio, embora nesta construção o
33
sujeito prescinda dos objetos reais e obedeça aos preceitos do princípio do prazer,
esquivando-se do teste de realidade. Constata-se esse postulado freudiano no texto
“A perda da realidade na neurose e na psicose” (FREUD, 1924), onde o autor
confirma a ideia de uma substituição da realidade na neurose e na psicose, paridade
que atenua a diferenciação entre tais estruturas. Porém, essa concepção havia
sido lançada no texto “Minhas teses sobre o papel da sexualidade na etiologia das
neuroses” (FREUD, 1906 [1905]), quando Freud assinala a correspondência entre
neurose e psicose:
Somente com a introdução do elemento das fantasias histéricas é que se
tornaram inteligíveis a textura da neurose e seu vínculo com a vida do
enfermo; evidenciou-se também uma analogia realmente espantosa entre
essas fantasias inconscientes dos histéricos e as criações imaginárias que,
na paranóia, tornam-se conscientes como delírios. (idem, ibidem, p.261).
A realidade apresentada pelo mundo externo é desprezada em ambas as
estruturas, neurose e psicose, todavia, enquanto na primeira a realidade é
substituída pela fantasia, na segunda, a perda da realidade acarreta a instalação do
delírio. O delírio é construído como uma tentativa de cura do sujeito psicótico, ou
seja, um arremedo de fantasia, assim como a fantasia vem como anteparo contra a
angústia, como uma tela protetora, organizando a realidade para o sujeito neurótico.
Deste modo, a realidade pode ser dita apenas por meio da fantasia. Fantasia e
delírio são constituídos na tentativa de empreender um sentido à realidade. (idem,
1924).
Será no ano de 1919, com o artigo “Uma criança é espancada: Uma
contribuição ao estudo da origem das perversões sexuais” (FREUD, 1919a), que
Freud apresentará o ápice da investigação sobre a fantasia.
34
1.6 Complexo de Édipo e os três tempos da fantasia
No texto “Bate-se numa criança” (FREUD, 1919a), tal como é conhecido no
meio analítico, Freud abarca uma nova dimensão acerca do conceito de fantasia: “A
fantasia não surge mais, como no ciclo da fantasia, na regência do princípio do
prazer, e sim articulada ao seu mais-além, qual seja, o vínculo entre gozo e dor”.
(COUTINHO JORGE, 2007, p.35). Freud (ibidem) esclarece principalmente questões
referentes ao masoquismo e à perversão de modo geral, tal como indica o subtítulo
do artigo. Desse modo, o texto pode ser considerado um complemento à primeira
parte dos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (FREUD, 1905), “As
aberrações sexuais”, onde se trabalha a perversão. Apesar de ter como objetivo
trazer uma contribuição à gênese das perversões, o artigo “Uma criança é
espancada” tratará sobre a constituição da fantasia neurótica, indicando que toda
fantasia é perversa. Naquele, Freud (1919a) retoma o estudo detalhado da fantasia
concebendo sua etiologia em três tempos, a partir de uma investigação centrada em
seis pacientes: quatro mulheres e dois homens dos seis casos, foram destacados
nesta dissertação apenas os das mulheres, pois serão articulados ao caso de uma
paciente do sexo feminino, conforme será visto adiante.
A fantasia de espancamento é oriunda de uma relação incestuosa da menina
com o pai e por isso ele é invariavelmente o representante de toda fantasia.
Destarte, Freud (ibidem) ressalta que a fantasia de espancamento é a cicatriz, o
registro deixado pelo complexo de Édipo. O aparecimento dessa fantasia se
quando a criança possui tenra idade, jamais ultrapassando os cinco ou seis anos.
Freud baseia-se no mito de Sófocles em que Édipo estava fadado a matar
seu pai e desposar sua mãe —, para construir a teoria do complexo de Édipo,
processo de constituição a que todos os sujeitos neuróticos e perversos estão
35
submetidos. Freud (1925) afirma, em “Algumas conseqüências psíquicas da
distinção anatômica entre os sexos”, que o complexo de Édipo “é tão importante que
o modo pelo qual o indivíduo nele se introduz e o abandona o pode deixar de ter
seus efeitos”. (idem, ibidem, p.286). Toda criança está destinada a passar por ele,
uma vez que ele decorre inevitavelmente do fato dela ser cuidada por um adulto,
que participa ativamente desse processo. “É a experiência central dos anos da
infância, o maior problema do início da vida e a fonte mais intensa de inadequação
posterior”. (idem, 1940 [1938], p.205).
A criação da teoria do complexo de Édipo é viabilizada a partir do momento
em que Freud une os mitos de Édipo e do pai da horda primeva, de “Totem e tabu”
(FREUD, 1913 [1912-13]). Neste, o pai é gozador de todas as mulheres, feroz e
ciumento, dominava a horda e expulsava seus filhos tão logo cresciam. Até que os
irmãos que haviam sido expulsos reuniram-se, espancaram o pai até a morte e
devoraram-no, pondo fim à horda patriarcal e introduzindo as leis contra o incesto e
o parricídio. O mito do pai da horda primeva criado por Freud (ibidem) ganha relevo
ímpar para a clínica, pois o analista deve escutar o mito individual de cada sujeito,
mito este que discursa sobre sua fantasia.
As análises freudianas acerca da vida sexual das crianças partiam do menino,
com a suposição de que para a menina as coisas aconteciam da mesma forma. Em
“Algumas conseqüências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos” (1925),
retifica a ideia de uma simetria no complexo de Édipo da menina e do menino e
depois a corrobora em “Sexualidade feminina” (1931) e “Esboço de psicanálise”
(1940 [1938]). Ele observa que é no momento do complexo de Édipo que a diferença
entre os sexos encontra expressão psíquica pela primeira vez. Desta maneira,
existem peculiaridades no complexo de Édipo da menina que não podem ser
36
ignoradas. Assim, Freud (1925) passou a investigar como ocorre este desligamento
da mãe no caso da menina e também como ela encontra o caminho para a escolha
de um objeto amoroso.
Em sua averiguação a respeito da sexualidade, Freud (ibidem) depara-se com
inúmeros entraves e dúvidas em relação ao complexo de Édipo, já que a presença
do pênis no menino e a ausência na menina marcam a principal diferença do
complexo de castração nos dois sexos. Para entendermos o que acontece no
complexo de Édipo faz-se necessário retomarmos os primórdios da constituição do
sujeito. Freud (1925) afirma que o primeiro objeto erótico do bebê é o seio da mãe
que o alimenta.
Nessa relação reside a raiz da importância única, sem paralelo, de uma
mãe, estabelecida inalteravelmente para toda a vida como o primeiro e mais
forte objeto amoroso e como protótipo de todas as relações amorosas
posteriores para ambos os sexos. (idem, 1940 [1938], p.202).
Freud (ibidem) entende o complexo de Édipo como resultado final de uma
operação demorada criada pela influência do complexo de castração. Em
“Sexualidade feminina”, Freud (1931) fará observações a respeito da longa duração
do processo pré-edipiano da menina afirmando que o complexo de Édipo nas
meninas “tem uma longa pré-história e constitui, sob certos aspectos, uma formação
secundária”. (idem, ibidem, p.226). Discorre ainda no mesmo texto sobre a
existência de uma fase de rivalidade com o pai e afirma que “durante esta fase o pai
de uma menina não é para ela muito mais do que um rival causador de problemas,
embora sua hostilidade para com ele jamais alcance a rivalidade característica dos
meninos”. (idem, ibidem, p.232).
Ele aponta que para o menino, a e, que fora seu primeiro objeto amoroso,
continua o sendo e com a intensificação de seus desejos eróticos por ela, o pai se
torna um rival. O modo como se manifesta esse desejo do menino por sua mãe vai
37
variar, pois ele pode de fato verbalizar seu sentimento e seu desejo de tê-la para
ele ou agir de forma que demonstre a natureza erótica de sua ligação com a mãe”.
(idem, 1917 [1916-17], p.336).
Para as meninas, o complexo de Édipo suscita um problema a mais. Em
ambos os casos, a mãe é o objeto original, isto é, toda mãe ou figura materna, é o
primeiro objeto de amor de todo sujeito. No entanto, a menina abandonará seu
primeiro objeto de amor, sua mãe, e o substituirá por outro, seu pai.
Segundo Freud (ibidem), por volta dos três anos de idade, forma-se um
triângulo edípico que envolve a criança, a mãe e o pai. A partir daí, no caso do
menino, este começa a nutrir desejos libidinais com relação à mãe, desejo de posse,
exclusividade da mãe. No entanto, ele começa a perceber que o desejo da e
aponta para um terceiro, para o pai ou figura que o represente. Esse pai interdita o
desejo do menino pela mãe e a criança vivencia o desejo de morte do pai que quer
mantê-lo distante da mãe, causando impedimentos ao seu desejo incestuoso. A
criança experimenta sentimentos ambivalentes de amor e ódio remetidos ao pai e
acoplado a esses sentimentos, vivencia também o medo da retaliação, de castração.
Desta maneira, o menino abandona o complexo de Édipo, desistindo de seus
desejos referidos à mãe, por temer a castração.
Freud (1925) assegura que ambos, menino e menina, de início passam pela
fase inicial da crença que não diferença anatômica entre os sexos, o que
caracteriza o primeiro tempo do complexo de castração.
O desenvolvimento sexual de uma criança avança até determinada fase, na
qual o órgão genital já assumiu o papel principal. Esse órgão genital é
apenas o masculino, ou seja, o pênis; o genital feminino permaneceu
irrevelado. (idem, ibidem, p.194).
O segundo tempo do complexo de castração para o menino é marcado pelas
ameaças verbais dos pais contra suas manipulações auto-eróticas e o terceiro
38
tempo é o da constatação visual da região genital da menina onde o que o menino
vê não é a vagina, mas sim uma falta de pênis. A ideia de que indivíduos possam ser
desprovidos de pênis é inconcebível para os meninos e essa resiste às evidências
visuais a ponto de ele crer que a menina possui um pênis, mas que é pequeno e que
algum dia irá crescer, acreditando que mulheres mais velhas, como sua mãe,
possuiriam um pênis grande.
O quarto tempo é o momento de angústia, quando o menino percebe que
também sua mãe é desprovida de pênis. A rememoração das ameaças verbais do
segundo tempo vem corroborar sua significação plena à percepção visual de um
perigo até ali negligenciado. Em um momento posterior, a ameaça de castração
passa a ser dotada de significado.
Quando um menino pela primeira vez chega a ver a região genital de uma
menina, começa por demonstrar irresolução ou falta de interesse; não
nada ou rejeita o que viu. Somente mais tarde, quando possuído de alguma
ameaça de castração, é que a observação se torna importante para ele.
Então relembra a ameaça ou a repete e ela desperta nele uma terrível
tormenta de emoção forçando-o a acreditar na realidade da ameaça. (idem,
ibidem, p.281).
É somente sob o efeito da angústia que o menino aceita a interdição
determinada pela lei paterna com o propósito de evitar a castração. Freud diz que
enquanto o menino demora dois tempos para admitir a castração, o efeito na menina
é instantâneo e a visão do pênis a obriga a admitir sua castração. Ela passa, então,
a invejar o órgão masculino.
Elas notam o nis de um irmão ou companheiro de brinquedo,
notavelmente visível e de grandes proporções, e imediatamente o
identificam com o correspondente superior de seu próprio órgão pequeno e
imperceptível. Dessa ocasião em diante caem vítimas da inveja do pênis.
(idem, ibidem, p.280).
Freud (1925) declara que o término do complexo de castração é para o
menino também o término do complexo de Édipo, que “não é simplesmente
39
reprimido; é literalmente feito em pedaços pelo choque da castração ameaçada”.
(idem, 1925, p.162). na menina, o complexo de castração inaugura o complexo
de Édipo, como explicita em “Algumas conseqüências psíquicas da distinção
anatômica entre os sexos” (1925). “Enquanto, nos meninos, o complexo de Édipo é
destruído pelo complexo de castração, nas meninas ele se faz possível e é
introduzido através do complexo de castração”. (idem, ibidem, p. 285).
A partir das experiências sexuais infantis entre meninos e meninas, a menina
descobre a existência do pênis nos meninos, se dando conta de que não possui tal
órgão, mas acreditando ser a única criança nesta situação. Freud (1931) declara que
frente a esta decepção ela responsabiliza e culpa sua mãe por esta não ter lhe dado
o pênis. “Ao final desta primeira fase de ligação com a mãe, emerge outro motivo
mais forte para a menina se afastar dela, a censura por a mãe não lhe ter dado um
pênis, isto é, de tê-la trazido ao mundo como mulher”. (idem, ibidem, p.256).
Freud (ibidem) afirma que no caso da menina, a entrada no complexo de
Édipo se neste momento, onde ela depara-se com sua castração. Deste modo,
ela volta-se na direção do pai, enviando a ele desejos incestuosos, na tentativa de
obter o falo, entretanto o pai lhe nega. A menina então, diante desta frustração,
espera que o pai lhe um filho, ou seja, a libido da menina desliza para uma nova
posição ao longo da linha da equação simbólica – do pênis para o bebê.
A menina abandona seu desejo de um pênis e coloca em seu lugar o desejo
de um filho; com esse fim em vista, toma o pai como objeto de amor. A mãe
se torna o objeto de seu ciúme. A menina transformou-se em uma pequena
mulher. (idem, 1925, p.284).
No entanto, o pai também não lhe concede o filho que ela almejava. Desta
forma, a sexualidade da menina poderá trilhar três caminhos. Freud (1931) discorre
que o primeiro caminho leva a menina ao abandono de atividade fálica, sua
sexualidade em geral, bem como parte de sua masculinidade em alguns casos, pois
40
ela cresce insatisfeita com seu sexo, malograda devido às comparações com os
meninos. No segundo, a menina aferra-se a ideia de conseguir um pênis até uma
idade surpreendentemente tardia. Esperança esta, que torna-se o objetivo de sua
vida e ganha força na medida em que ela tem a fantasia de ser um homem. Ela
aferrra-se “com desafiadora auto-afirmatividade à sua masculinidade ameaçada”.
(idem, ibidem, p. 243). Esta corrente poderia levar as mulheres à homossexualidade
manifesta. Se o percurso seguir pelo terceiro caminho, a mulher então, atingirá a
atitude feminina final, tomando então o pai como objeto amoroso, norteando, deste
modo, o caminho para a forma feminina do complexo de Édipo.
Freud (1933 [1932]), na Conferência XXXIII “Feminilidade”, afirma que a
fixação da menina no complexo de masculinidade não necessariamente resultará
numa escolha de objeto homossexual no futuro, afirmando que “a experiência
analítica realmente nos ensina que o homossexualismo feminino raramente, ou
nunca, é continuação direta da masculinidade infantil”. (idem, ibidem, p.159). Ao
contrário, é necessário que a menina ingresse no complexo edipiano, ou seja, tome
o pai como objeto; depois, devido ao inevitável fracasso do seu investimento, a
menina retoma o complexo de masculinidade. Freud (ibidem) alerta para que não se
exagere na importância atribuída a esses desapontamentos, pois toda mulher sofre
esse desapontamento.
É somente a partir do momento que Freud promove a junção de “Totem e
tabu” (1913 [1912-13]) e “Análise de uma fobia num menino de cinco anos” (1909), o
caso do pequeno Hans, que o complexo de castração passa a ser correlacionado ao
complexo de Édipo. Quando Freud faz referência à universalidade do complexo de
Édipo, em suas “Conferências introdutórias” (1916), certifica-se que o tema dos
pais serve como pano de fundo para a constituição de toda fantasia. “A fantasia de
41
espancamento e outras fixações perversas análogas também seriam apenas
resíduos do complexo de Édipo, cicatrizes, por assim dizer, deixadas pelo processo
que terminou”. (idem, 1919a, p.208).
Retomando, então os três tempos da fantasia (idem, ibidem), tem-se que, no
primeiro tempo, a fantasia é consciente e surge em época ainda muito precoce da
infância. A frase que caracteriza esse momento é: Meu pai bate na criança”, que
tem como equivalente: Meu pai bate na criança que eu odeio”, revelando a
qualidade vitoriosa da menina, que esta pensa estar sendo privilegiada por seu
pai, pois este prova seu amor por ela batendo em outra criança que, por sua vez, é
degradada e desprovida de amor, pois “(...) gratifica o ciúme da criança e depende
do lado erótico da sua vida: mas é, também, poderosamente reforçada pelos
interesses egoístas da criança”. (idem, ibidem, p.200).
A criança espancada jamais é a criadora da fantasia, mas a que se encontra
em posição de rivalidade com aquela, aparecendo amiúde na figura de um irmão ou
uma irmã. Por isso, a fantasia não pode ser designada como masoquista nem
sádica, uma vez que a menina é apenas espectadora da cena. O agressor, de início,
aparece como uma pessoa indefinida, passando a ser percebido como um adulto e,
só então, compreendido como sendo o pai. (idem, ibidem).
No segundo tempo da fantasia, há alterações significativas em relação ao
primeiro, sendo mais relevante e expressivo. Seu enunciado é: “Meu pai me bate”. A
fantasia é inconsciente, logo jamais será recordada. Ela será fruto de uma
construção que pode ser realizada apenas pelo analista, conforme sublinha Freud:
“Esta segunda fase é a mais importante e mais significativa de todas. (...) Nunca é
lembrada, jamais conseguiu tornar-se consciente. É uma construção da análise, mas
nem por isso é menos uma necessidade”. (idem, ibidem, p.201). Nesse momento, a
42
fantasia indica uma posição masoquista, pois agora a criança espancada é a mesma
que produz a fantasia e o agressor continua sendo o pai, e acompanhada, segundo
Freud: “(...) por um alto grau de prazer, e adquire, então, um conteúdo significativo.
(...) Agora, portanto, as palavras seriam: Estou sendo espancada pelo meu pai.’ O
que é de um caráter inequivocamente masoquista”. (idem, ibidem, p. 201). Freud
afirma que o sadismo se converte em masoquismo quando o sentimento de culpa se
encontra em confluência com o amor sexual. Essa segunda fase configura o auge
do complexo de Édipo, fazendo emergir uma punição pela culpa que acarreta o
endereçamento do amor incestuoso da menina ao pai.
O terceiro tempo da fantasia se assemelha em parte ao primeiro, pois, além
de retomar seu caráter consciente, a criança volta a ocupar a posição de
espectadora do espancamento. A frase formulada nesse tempo é: Bate-se numa
criança”. Esta fantasia é dica: diversas crianças estão sendo espancadas.
“Embora a menina o possa reconhecer as crianças que estão sendo espancadas,
estas são apontadas como meninos”. (idem, ibidem, p.201). O pai perde seu papel
de agressor, sendo agora atribuído a uma pessoa que exerce poder como ele, um
professor, por exemplo, que se apresenta como seu substituto. A particularidade
fundamental dessa etapa é que a fantasia se encontra ligada a uma potente
excitação sexual, constituindo-se como um canal para a satisfação masturbatória.
Lacan (1956-1957) faz sua releitura do “Uma criança é espancada” (FREUD,
1919a) em seu O Seminário, livro 4: A relação de objeto, assegurando que a
primeira fase é constituída por uma relação intersubjetiva ternária, pois essa fantasia
institui três sujeitos distintos e específicos: a criança fundadora da fantasia, o pai que
espanca e a outra criança que é espancada. No segundo momento, a fantasia passa
a estabelecer uma relação intersubjetiva dual. Esta é a única fase em que o sujeito
43
propriamente dito, autor da fantasia, comparece como tal, aparecendo como aquele
que apanha na cena fantasmática. Lacan acentua o caráter efêmero desta segunda
fase, que logo se abrevia e passa ao terceiro tempo.
No segundo tempo, a fantasia está intrinsecamente relacionada ao auge do
complexo de Édipo, visto que indica “[...] o retorno do desejo edipiano na menina de
ser objeto de desejo do pai, com que isso comporta culpa, exigindo que ela seja
espancada”. (idem, ibidem, p.247). A fantasia é edípica, e é em torno deste tempo
da fantasia, designada como fantasia fundamental, que a vida do sujeito se encontra
amarrada, demarcando seu “destino”.
Na terceira e última fase, a fantasia aparece numa conjuntura absolutamente
dessubjetivada. Os sujeitos, personagens da fantasia, são incertos: algumas
crianças indefinidas apanham de um adulto que também pode ser qualquer um.
Lacan grifa o pronome “se” que representa a indeterminação do sujeito, para
ressaltar que o “bate-se” traduz a “dessubjetivação essencial que se produz nessa
relação”. (idem, ibidem, p.119).
Lacan (1960) em seu escrito, “Subversão do sujeito e dialética do desejo no
inconsciente freudiano”, descreve a fantasia como uma ficção fixada na qual o
sujeito se engessa permanecendo atado a ela, petrificado em sua posição
fantasmática. Conforme nos ensina Carneiro Ribeiro (2001), o sujeito neurótico
funda sua fantasia se colocando no lugar de sujeito barrado, sujeito do inconsciente,
dividido pela linguagem, pelo recalque, pelo sintoma, em todas as relações lógicas
possíveis com o objeto causa de desejo. Tal pressuposto é sintetizado no matema
da fantasia na neurose, estabelecido por Lacan: $ a. Segundo a autora:
Esse matema resume os tempos lógicos da fantasia descritos por Freud em
“Bate-se em uma criança”. (...) A travessia da fantasia no fim de análise
consiste em desvelar essa condição do sujeito como objeto de gozo do
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Outro, posição estruturalmente masoquista e incestuosa designada pelo
segundo tempo oculto. (idem, ibidem, p.51).
Com efeito, a fantasia fundamental não é somente uma bússola que serve
como norte para a interpretação dos significantes e das cenas que alcançam o
aparelho psíquico, mas ao mesmo tempo um meio através do qual o sujeito acessa
o gozo. Portanto, a fantasia cumpre a dupla função de confirmar o caráter
insuportável do encontro com o real e de munir o sujeito de material através do qual
a realidade pode tornar-se tolerável.
“A fantasia fabrica, ao mesmo tempo, a ilusão de uma relação de completude
do sujeito com o objeto apesar de seu duplo aspecto de conjunção e disjunção
assim como a ilusão de completude do Outro”. (QUINET, 2004, p.171). O sujeito
posiciona-se na fantasia em conexão com o objeto a ($ Λ a) e, paralelamente, em
desconexão com o objeto a ($ V a).
De acordo com Lacan (1958), em seu artigo “A direção do tratamento e os
princípios de seu poder”, a fantasia é aquilo que faz com que o sujeito se sinta o
maquinista de sua vida, o diretor da mise-en-scène de sua própria história. No
matema da fantasia proposto pelo autor verifica-se: de um lado, o sujeito barrado, no
pólo inconsciente, simlico, análogo à autômaton e de outro, o objeto a, no pólo
pulsional, real, equivalente à tiquê. Ao longo da vida o sujeito transita entre os dois
pólos, posicionando-se ora como sujeito barrado, desejando, ora como objeto a,
gozando.
Em psicanálise, a verdade é tecida nas malhas da ficção. A única forma de se
dizer a verdade é através da ficção, do mito. A fantasia fundamental é a ficção que
funda a realidade psíquica para cada sujeito, que tenta dar conta da lacuna
significante localizada no Outro, mediatizando a colisão do sujeito com o real. A
fantasia é, pois, estruturante, ligada à insuficiência significante.
45
“A fantasia é aquilo que nos é outorgado pelo Outro, para que nós façamos
face ao real (a chamada realidade objetiva recebe, para Lacan, o nome de real e é
algo para sempre inatingível) munidos de algum elemento de realidade psíquica”.
(COUTINHO JORGE, 2003, p.34).
Com Freud, podemos concluir que à medida que o sujeito constrói sua
fantasia e se fixa a ela, cria um movimento inconsciente e compulsoriamente
circular, produzindo o que ele denominou de compulsão à repetição.
1.7 Fixação: repetição e sintoma
O conceito de compulsão à repetição é formalizado por Freud (1914) em
“Recordar, repetir e elaborar”, quando nesse momento da obra o repetir é uma forma
de recordação produzida pelo paciente. Neste texto, Freud realça a repetição
contida no movimento transferencial, postulando que:
(...) o paciente não recorda coisa alguma do que esqueceu e recalcou, mas
expressão pela atuação ou atua-o (acts it out). Ele o reproduz não como
lembrança, mas como ação; repete-o, sem, naturalmente, saber que o está
repetindo. (idem, ibidem, p.165).
A transferência é em si mesma uma fração da repetição, onde o ato de repetir
substitui o recordar na análise, movimento este que ocorre em várias ocasiões da
vida do paciente e por isso mesmo se repete neste contexto.
Freud (ibidem) demonstra que o paciente, ao contrário de recordar e associar,
age sem saber, no entanto, a implicação de sua conduta ou motivo que leva a
irrupção da ação. A repetição surge como impedimento, como resistência ao
trabalho analítico, uma vez que o propósito da análise é fazer com que o sujeito
associe livremente através da fala. Freud se questiona: o que o paciente repete?
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A resposta é que repete tudo o que já avançou a partir das fontes do
recalcado para sua personalidade manifesta — suas inibições, suas atitudes
inúteis e seus traços patológicos de caráter. Repete também todos os seus
sintomas, no decurso do tratamento. (idem, ibidem, p.167).
Neste artigo, Freud (ibidem) estabelece que a recordação surge no decorrer
do tratamento como algo que pode ser rememorado, enquanto que a repetição
designa um modo de atuação ocasionada por elementos recalcados que se
atualizam na análise. O paciente repete o que é da ordem do recalque, logo o que
não pode ser recordado.
Em 1919, com o artigo “O estranho”, Freud enuncia algo inédito sobre a
repetição, inovação que marca o prenúncio da articulação que traçará, no ano
seguinte, no texto “Mais-além do princípio de prazer” (FREUD, 1920). Em “O
estranho” (1919b) o autor esclarece que:
É possível reconhecer, na mente inconsciente, a predominância de uma
‘compulsão à repetição’, procedente das moções pulsionais e
provavelmente inerente à própria natureza das pulsões uma compulsão
poderosa o bastante para prevalecer sobre o princípio de prazer,
emprestando a determinados aspectos da mente o seu caráter demoníaco e
ainda muito claramente expresso nos impulsos das crianças pequenas; uma
compulsão que é responsável, também, por uma parte do rumo tomado
pelas análises de pacientes neuróticos. (idem, ibidem, p.297).
Porém, será somente em “Mais-além do princípio de prazer” (FREUD, 1920)
que Freud introduz a ideia de pulsão de morte embora tivesse lançado o
conceito de pulsão desde os “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (FREUD,
1905) conjugando-a ao conceito de repetição e indicando sua verdadeira
finalidade: a satisfação integral.
Freud faz sua primeira referência ao conceito de pulsão de morte em uma
carta remetida a Eitingon, em 20 de fevereiro de 1920, mesmo ano em que escreveu
seu artigo “Mais-além do princípio do prazer” (FREUD, 1920). O eixo de investigação
ao qual Freud relevo nesse texto é o ponto de vista econômico dos processos
psíquicos, adotando uma descrição que ele nomeia de metapsicológica, embora
47
tivesse proposto uma exposição deste tipo no artigo “O inconsciente (FREUD,
1915).
O autor inicia o texto afirmando que o rumo dos processos psíquicos é regido
pelo princípio de prazer, isto é, que o curso de tais processos é inalteradamente
posto em movimento através de uma excitação desagradável, situação essa que
culmina em uma diminuição dessa excitação, visando evitar o desprazer ou produzir
o prazer.
Freud associa o prazer e o desprazer à quantidade de excitação, porém estes
dois pólos não se encontram de modo algum conectados, pois enquanto o desprazer
é representado por uma elevação no quantum de excitação, o prazer corresponde a
uma redução do mesmo. Os conceitos de quantidade de excitação, prazer e
desprazer são extensamente trabalhados por Freud desde “O projeto para uma
psicologia científica” (1950 [1895]), ao discorrer sobre a primeira experiência de
satisfação.
Uma das justificativas encontradas por Freud para o fato de o aparelho
psíquico ser regido pelo princípio do prazer é porque este se esforça por manter o
nível mais baixo de quantidade de excitação possível ou pelo menos o mais
constante, uma vez que é orientado pelo princípio de constância, princípio este
nomeado por Fechner como tendência à estabilidade.
Entretanto, Freud faz uma ressalva afirmando que não é correto assegurar
sobre o domínio do princípio de prazer acerca dos processos psíquicos, pois se
assim fosse tais processos conduziriam invariavelmente ao prazer, o que contradiz a
experiência universal. Pode-se dizer apenas que uma tenncia nos processos
anímicos ao princípio do prazer e não uma dominância.
48
O princípio do prazer será contido pelas pulsões de autopreservação que, sob
essa influência, será substituído pelo princípio de realidade, fazendo com que o
objetivo de alcançar o prazer seja adiado, ampliando a tolerância ao desprazer como
um passo no extenso percurso para alcançar o prazer.
Na maioria das vezes, o desprazer que sentimos é um desprazer de
percepção. Pode tratar-se da percepção do esforço das pulsões
insatisfeitas, ou de uma percepção exterior que é penosa em si mesma ou
que excita expectativas desprazerosas no aparelho psíquico, que é por ele
reconhecido como um ‘perigo’. (idem, 1920, p.11).
Freud (ibidem) reitera que a investigação dos sonhos deve ser considerada
como a técnica mais confiante para o estudo dos processos psíquicos. Analisando
sonhos produzidos por pacientes que haviam lutado na guerra, conclui que tais
sonhos levavam de volta o paciente repetidamente à ocasião de seu acidente,
atrelando esse fenômeno à tendência masoquista do eu.
Freud propõe a investigação dos processos psíquicos também através da
observação das brincadeiras das crianças. Após analisar novamente o jogo do Fort-
da de seu neto, onde este tenta prevalecer diante da situação de perda por meio de
uma prática que se repete, introduz a ideia de pulsão de morte, conjugando-a ao
conceito de repetição, como um movimento inconsciente e compulsoriamente
circular que retorna de modo incessante, indicando sua verdadeira finalidade como
sendo a tentativa de obter a satisfação plena.
O jogo de seu neto consistia em lançar quaisquer brinquedos que pudesse
segurar para um local que o fizesse desaparecer. Na medida em que procedia desta
forma pronunciava um longo ‘óóóóó’, que vinha seguido de uma expressão de
prazer. Este prolongado ‘óóóóó’ foi interpretado como sendo fort, ou seja, o menino
brincava de “ir embora” com os brinquedos. A ação de fazer reaparecer o brinquedo
era acompanhada de um sonoro ‘da’ (‘ali’). Esse era o divertimento continuamente
49
repetido: desaparecimento e retorno”. O jogo representava para a criança, a
renúncia da satisfação pulsional, como exige a cultura, que executara ao permitir
que a mãe fosse embora sem se rebelar. Além disso, repetindo a brincadeira, por
mais desagradável que fosse, a criança exercia um papel ativo diante da
experiência, ao passo que no início, encontrava-se numa posição passiva, pois o
que prevalece é a própria experiência.
Jogar longe o objeto, de maneira a que fosse ‘embora’, poderia satisfazer
um impulso da criança, suprimido na vida real, de vingar-se da e por
afastar-se dela. Nesse caso, possuiria significado desafiador: ‘Pois bem,
então: embora! Não preciso de você. Sou eu que estou mandando vo
embora’. O menino costumava agarrar um brinquedo, se estava zangado
com este, e jogá-lo ao chão, exclamando: ‘Vá para a frente’! Escutara nessa
época que o pai ausente se encontrava ‘na frente (de batalha)’, e o menino
estava longe de lamentar sua ausência, pelo contrário, deixava bastante
claro que não tinha desejo de ser perturbado em sua posse exclusiva da
mãe. No caso que acabamos de estudar, a criança, afinal de contas, foi
capaz de repetir sua experiência desagradável na brincadeira porque a
repetição trazia consigo uma produção de prazer de outro tipo, uma
produção mais direta. (idem, ibidem, p.27).
Assim, Freud (ibidem) sustenta que a brincadeira de seu neto, o jogo do Fort-
da, estabelece uma relação entre angústia e prazer, em que a cena a ser repetida é
da ordem do sofrimento, pois denota a ausência materna, contudo uma vez que a
cena é simbolizada através do jogo “fazer aparecer/desaparecer”, esta promove uma
satisfação.
Essa experiência de repetir um ato desagradável corrobora com a concepção
de que, ainda que o aparelho psíquico esteja sob a influência do prinpio de prazer,
meios satisfatórios para tornar o que é desprazeroso em uma questão a ser
recordada e repetida.
Freud esclarece sobre a compulsão à repetição, que diante do tratamento
clínico das neuroses “(...) temos acima de tudo de livrar-nos da noção equivocada de
que aquilo com que estamos lidando em nossa luta contra as resistências seja uma
resistência por parte do inconsciente”. (idem, ibidem, p.27). O material recalcado
50
inconsciente, ao contrário, tenta ininterruptamente alcançar a consciência, por isso
insiste na repetição. A resistência é oriunda do mesmo sistema que provocou o
recalque, o eu. Assim, a resistência do eu trabalha sob o comando do princípio de
prazer, que procura desviar o desprazer causado pela liberação do material
recalcado.
Para que uma análise tenha êxito o paciente deverá repetir o material
recalcado como se este fosse um evento contemporâneo, e não somente recordá-lo
que o recalcado jamais será relembrado inteiramente. O conteúdo repetido pelo
paciente ao longo do tratamento analítico se vincula a sua vida sexual infantil, isto é,
ao complexo de Édipo.
Freud, desse modo, formula que a compulsão à repetição é um indicativo do
princípio de prazer, pois nesse movimento também são recordadas experiências que
excluem qualquer possibilidade de prazer: “existe realmente na mente uma
compulsão à repetição que sobrepuja o princípio de prazer,” diz Freud, e se pode
“relacionar com essa compulsão os sonhos que ocorrem nas neuroses traumáticas e
o impulso que leva as crianças a brincar”. (idem, ibidem, p.33).
A pulsão aponta para um restabelecimento de um estado anterior, assinala
Freud (ibidem), ou seja, expressa a inércia inerente à vida orgânica: é a pulsão de
morte que sendo uma disposição natural reenvia o sujeito à condição inorgânica.
Freud toma de empréstimo a expressão “princípio de Nirvana”, de Bárbara Low, para
explicar a particularidade da pulsão de morte. Aprimora sua teoria asseverando que
as pulsões de autoconservação e sexuais fazem parte de um conjunto, o das
pulsões de vida, que são designadas como aquelas que instauram a sustentação da
existência. Freud descreve “(...) a oposição como se dando, não entre pulsões do eu
51
e pulsões sexuais, mas entre pulsões de vida e pulsões de morte”. (idem, ibidem,
p.63).
Para dar conta da oposição e concomitância das pulsões de vida e de morte,
Freud (ibidem) recorre a um modelo semelhante de ambivalência: amor e ódio que
coexistem. Há, desde o início, um elemento sádico na pulsão sexual. Este
componente pode se destacar e, sob o contorno de uma perversão, predominar toda
a atividade sexual. Pode surgir ainda como uma pulsão elementar dominante numa
das ‘organizações pré-genitais’. Porém, esse elemento sádico também pode:
(...) entrar em ação a serviço da função sexual. Durante a fase oral da
organização da libido, o ato de obtenção de domínio erótico sobre um objeto
coincide com a destruição desse objeto; posteriormente, a pulsão dica se
isola, e, finalmente, na fase de primazia genital, assume, para os fins da
reprodução, a função de dominar o objeto sexual ao ponto necessário à
efetivação do ato sexual. Poder-se-ia verdadeiramente dizer que o sadismo
que for expulso do ego apontou o caminho para os componentes libidinais
da pulo sexual e que estes o seguiram para o objeto. Onde quer que o
sadismo original não tenha sofrido mitigação ou mistura, encontramos a
ambivalência familiar de amor e ódio na vida erótica. (idem, ibidem, p.64).
Anteriormente, Freud (ibidem) defendeu que o masoquismo deveria ser
entendido como um sadismo que retornou ao próprio eu do sujeito. O autor sustenta
que essa visão antes adotada talvez deva ser revisada, pois acredita que pode
existir um masoquismo primário, ideia que até então era contestada. Retomando sua
concepção no que tange a finalidade da vida ele assinala que seu ponto de vista
coincide com o defendido por Goethe e Schopenhauer.
Se tomarmos como verdade que não conhece exceção o fato de tudo o que
vive morrer por razões internas, tornar-se mais uma vez inorgânico,
seremos então compelidos a dizer que ‘o objetivo de toda vida é a morte‘, e,
voltando o olhar para trás, que ‘as coisas inanimadas existiram antes das
vivas‘. (...) As pulsões de vida, tratam-se de pulsões componentes cuja
função é garantir que o organismo seguirá seu próprio caminho para a
morte, e afastar todos os modos possíveis de retornar à existência
inorgânica que o sejam os imanentes ao próprio organismo. (...) O que
nos resta é o fato de que o organismo deseja morrer apenas do seu próprio
modo. Assim, originalmente, esses guardiões da vida eram também os
lacaios da morte. (idem, ibidem, p.49-50).
52
As pulsões de vida têm mais relação com a percepção interna, que aparece
de modo a interromper a tranquilidade e gerar tensões cujo conforto é compreendido
como prazer, enquanto que as pulsões de morte executam sua tarefa com discrição.
Assim, o princípio de prazer serve, em realidade, às pulsões de morte.
Ao reler o texto freudiano “Mais-além do princípio do prazer” (FREUD, 1920),
Lacan (1964) afirma que “toda pulsão é pulsão de morte” (idem, ibidem, p.195). O
processo no qual se verifica esse prazer conectado à angústia, próprio do caráter
pulsional, Lacan o denominou de gozo do sintoma. A repetição se caracteriza por
essa atividade particular da pulsão de morte que reproduz persistentemente alguma
coisa incompreensível, de cunho traumático, necessariamente da esfera do real. O
sujeito, no entanto, sem se dar conta da natureza pulsional envolvida no ato da
repetição, o trata como se fosse um evento que surge por coincidência, como um
mero acidente.
A noção de repetição será retomada por Freud (1926 [1925]), em “Inibição,
sintoma e angústia”, onde reafirma a conexão entre sintoma e compulsão à
repetição, quando destaca que onde uma fixação no recalque se encontra a
repetição. Se a repetição sintomática atua inconscientemente, de modo incisivo, o
sujeito desconhece a significação de tal ato, destituindo sua implicação nas escolhas
que permeiam sua história.
Lacan oferecerá um seminário sobre quatro conceitos imprescindíveis para a
psicanálise, salientando a repetição como um deles. O autor apresenta, em O
Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise” (LACAN,
1964), dois conceitos, tomando de empréstimo termos retirados da física aristotélica,
para designar formas distintas de repetição: tiquê e autômaton.
53
A repetição indica sempre uma vacilação que esbarra em algo que se
apresenta como fenda, como hiato, denotando uma intencionalidade. Entretanto,
esta intencionalidade diz respeito à finalidade inconsciente que compartilha
paralelamente prazer e desprazer. Lacan trabalha os conceitos citados da seguinte
maneira:
Primeiro a tiquê que tomamos emprestada (...) do vocábulo de Aristóteles
em busca de sua pesquisa da causa. Nós a traduzimos por encontro do
real. O real está para além do autômaton, do retorno, da volta, da insistência
dos signos aos quais nos vemos comandados pelo princípio do prazer. O
real é o que vige sempre por trás do autômaton, e do qual é evidente, em
toda a pesquisa de Freud, que é do que ele cuida. (idem, ibidem, p.56).
A tiquê diz respeito ao trauma, ao inevitável confronto com o real, real esse
traumático, de encontro faltoso por excelência, que escapa ao significante, que não
pode ser amarrado no circuito simbólico. Trata-se da repetição relativa ao exercício
da pulsão de morte, isto é, que não tem representação. A tiquê se situa como
retorno contínuo ao mesmo lugar.
A tiquê é relacionada ao acaso, ao acidente, embora implique certo grau de
escolha do sujeito, pois, segundo Lacan: “O lugar do real vai do trauma à fantasia —
na medida em que a fantasia nunca é mais do que a tela que dissimula algo de
absolutamente primeiro, de determinante na função da repetição”. (idem, ibidem,
p.61). Dessa forma, verifica-se que a fantasia se instala na tentativa de recobrir a
falta do Outro, e à medida que é fixada incide a compulsão à repetição.
Lacan evidencia outro modo de presentificação da repetição que pode ser
constatada no deslizamento da cadeia significante, a autômaton, que consiste no
modo como o sujeito tenta dar conta do real através do simbólico, buscando
insistentemente inscrevê-lo na cadeia. Nesta modalidade se alocam as
possibilidades de repetição da rede simbólica.
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Pode-se associar a compulsão à repetição ao sintoma, pois se este é da
ordem da antinomia, do contraditório, revela e tentar suprimir simultaneamente algo
da ordem do inconsciente, um de seus modos de aparição é sob a forma da
repetição, pois nela evidencia-se seu caráter de gozo, em que o sofrimento está
intimamente unido ao prazer. Ao abordar seu sintoma em análise, o sujeito retorna
constantemente à sua questão fantasmática. O sintoma, bem como as outras
manifestações do inconsciente, constitui-se onde o recalque falha, regressando sob
a forma de retorno do recalcado.
Então, o sintoma surge como uma formação do inconsciente indicando aquilo
que se encontra recalcado, isto é, aquilo que é proibido e insuportável para o sujeito.
Na Conferência XXIII – “Os caminhos da formação dos sintomas”, Freud (1917
[1916-1917]) esclarece que pelo caminho indireto, via inconsciente e antigas
fixações, a libido finalmente consegue achar sua saída até uma satisfação real
embora seja uma satisfação extremamente restrita e que mal se reconhece como
tal”. (idem, ibidem, p.421-422). Portanto, os sintomas aparecem como infortúnio e
paradoxalmente como satisfação, acarretando uma parcela de prazer e outra de
desprazer, concomitantemente. Assinala Freud: “Assim, o sintoma emerge como um
derivado múltiplas vezes distorcido da realização de desejo libidinal inconsciente,
uma peça de ambiguidade engenhosamente escolhida, com dois significados em
completa contradição mútua”. (idem, ibidem. p.363).
Freud (ibidem), ao investigar sobre os caminhos percorridos pela libido até
que esta alcance um ponto de fixação, aponta a relevância das fantasias na
constituição dos sintomas:
Todos os objetos e tendências que a libido abandonou ainda não foram
abandonados em todos os sentidos. Tais objetos e tendências, ou seus
derivados, ainda são mantidos, com alguma intensidade, nas fantasias.
Assim, a libido necessita apenas retirar-se para as fantasias, a fim de
55
encontrar aberto o caminho que conduz a todas as fixações recalcadas. (...)
Partindo daquilo que, agora, são fantasias inconscientes, a libido
movimenta-se para trás, até as origens dessas fantasias no inconsciente
aos seus próprios pontos de fixação. (idem, ibidem, p.435-436).
Em “Inibição, sintoma e angústia”, Freud (1926) descreve o sintoma como
sendo “um sinal e um substituto de uma satisfação pulsional que permaneceu em
estado jacente; é uma conseqüência do processo de recalque”. (idem, ibidem,
p.112).
A proposição freudiana de que os sintomas têm uma significação, ou seja, de
que eles podem ser lidos, é tratada por Lacan (1953) que tem como base a
lingüística estruturalista. O sintoma desvela a verdade do sujeito do inconsciente.
Na medida em que o sintoma é uma mensagem que pode ser decodificada, traz em
sua raiz os significantes que escoram seu sentido. Destarte, o sintoma é instituído
como “o significante de um significado recalcado da consciência do sujeito”. (idem,
ibidem, p.282).
Em O Seminário, livro 10: A angústia, Lacan (1962-1963) aponta que “o
sintoma não está, como o acting out, pedindo a interpretação. (...) O que
descobrimos no sintoma, em sua essência, não é um apelo ao Outro, não é o que
mostra o Outro; o sintoma em sua natureza é gozo. (idem, ibidem, p.134).
Enquanto a psicanálise leva em conta o gozo do sintoma, a compulsão à
repetição e o sujeito como um ser desejante, ou seja, um sujeito guiado por seus
desejos inconscientes, a sociedade toma o sujeito na condição de vítima dos
infortúnios que o acomete durante sua vida. Desse modo, encerra a possibilidade de
refletir sobre a responsabilidade do sujeito em face à repetição. Mesmo a ideia de
escolha não é admitida socialmente, quando se trata de uma escolha inconsciente.
Procura-se uma causa exterior para determinados eventos ocorridos na vida de um
sujeito, e esquece-se de investigar o que este sujeito faz em relação ao seu sintoma.
56
Desse modo, o sujeito vitimizado encontra-se no âmbito da demanda, pois
responsabiliza outrem por determinada adversidade, isentando-se, ele próprio, de
qualquer responsabilidade sobre o evento que se repete.
Tendo sido estudado neste capítulo o caminho da formação do sintoma,
estabelecido por Freud e retomado por Lacan, desde os postulados da fantasia até o
conceito de compulsão à repetição, o segundo capítulo destinar-se-á a narrar sobre
a biografia de Billie Holiday e sobre um caso da clínica da autora desta dissertação,
para, então, no terceiro capítulo agregar teoria e prática psicanalíticas.
57
2 UM RECORTE BIOGRÁFICO DE DUAS MULHERES:
BILLIE HOLIDAY E MALU
Este capítulo dedicar-se-á a descrição das histórias de vida da consagrada
cantora de jazz, Billie Holiday e de Malu, paciente da clínica da autora desta
dissertação. Essas duas histórias serão relacionadas, no capítulo posterior, com a
teoria psicanalítica, pois se pretende, através do encontro entre teoria e prática,
elucidar questões referentes à fantasia fundamental na neurose, demarcando a
singularidade do sujeito, e o gozo do sintoma arraigado à repetição.
2.1 Billie Holiday: com quantos abandonos” se faz um
blue?
A pesquisa sobre a vida de Billie Holiday foi baseada primordialmente em sua
autobiografia, intitulada “Lady sings the blues(1985), onde ganham destaque cenas
de sua infância.
Billie Holiday passou grande parte desse período compartilhando a casa com
seus avós, primos e sua bisavó, pois seu pai excursionava com sua banda de jazz e
sua mãe viajava constantemente em busca de emprego. A convivência na residência
onde morava se tornou cada vez mais árdua, pois travava batalhas com sua prima
Ida que lhe espancava tendo ou o motivo que justificasse tal conduta, conforme
58
Billie assegura. “Quando estava nervosa me dava surras horríveis. E não era cinto
ou tapas na bunda, eram socos ou chicotadas”. (HOLIDAY, 1985, p.9). Sua infância
é povoada de acontecimentos de cunho agressivo e promíscuo. Billie descreve as
“surras” diárias que lhe eram infligidas pela prima como sendo algo ao qual estava
fadada a suportar. Dentre os golpes que a prima lhe reservava, contou que certa
vez, ao mencionar um termo grosseiro em sua presença, foi revidada com uma
panela de óleo fervente lançada em sua direção. Livrou-se da queimadura porque
conseguiu desviar a tempo.
Um de seus primos, filho de Ida, era outro indivíduo com quem Billie mantinha
uma relação hostil. Relata que se sentia violentada quando durante a noite seu
primo tentava fazer “aquilo” enquanto ela dormia. O pronome “aquilo” designava a
relação sexual. Billie enfatiza uma cena em que o primo lhe acertou o rosto com um
rato, deixando-a transtornada e lhe replicando o ato com uma sova de bastão de
beisebol, o que implicou na internação do rapaz.
Para Billie, ser acusada de praticar “aquilocom os rapazes sem que de fato
tivesse acontecido era extremamente ofensivo. Por esse motivo, com dez anos,
vingou-se de uma das mulheres que contou a sua mãe essa “calúnia”. O fato de
sentir-se aviltada era, para Billie, a justificativa que amparava seu revide. Lançou
mão de uma vassoura e espancou a tal mulher até que essa confessasse a sua mãe
que a notícia não passava de intriga.
A historia de Billie é, desde o princípio, conturbada. Quando Billie Holiday
nasceu, em Baltimore no dia 07 de abril de 1915, seu pai, Clarence Holiday, tinha
quinze anos de idade e sua mãe, Sadie Fagan, treze. A essa época, seu pai vendia
jornais e mais tarde se transformou em guitarrista de bandas de jazz. Sua mãe,
durante a maior parte de sua vida, exerceu o ofício de empregada doméstica,
59
“escrava” como indica Billie, com exceção do período que conseguiu manter seu
próprio restaurante. Servir aos outros como doméstica foi também a primeira
ocupação escolhida por Billie, aos dez anos, quando lavava banheiros, escadas e
cozinhas. Além dessas atividades, também entregava recados e cuidava de
crianças.
Ao narrar sobre seu empenho em cuidar de crianças, Billie assevera com
veemência seu desejo de ser mãe, porém, contraditoriamente, relata ter abortado
um bebê, fruto de sua única gravidez. Por dezoito horas ficou mergulhada em uma
banheira, imersa em uma combinação de água candente e mostarda na tentativa de
provocar o aborto. Sua decisão de encerrar a gestação é atrelada à opinião de sua
mãe, que lhe prevenia quanto ao fato de ter filhos em ocasiões impróprias. O
biógrafo Donald Clarke salientou uma afirmação de Billie: “Minha mãe se
preocupava com isso. Aconteceu com ela. E ela rezava para que não acontecesse
comigo. [...] Mas a única coisa que eu quis foi aquele bebê”. (CLARKE, 1995,
p.494).
Foi também sua mãe quem lhe enviou, aos treze anos, para morar em um
apartamento luxuoso administrado por uma cafetina. Admitia saber que o
apartamento era em realidade um “puteiro”, principalmente porque a dona do
negócio alcançava enorme fama no bairro, apesar de sua mãe negar tal fato.
Segundo sua mãe, reservam-se apenas dois destinos para uma mulher negra e
desprovida de recursos nascida em Baltimore: tornar-se prostituta ou doméstica.
“Com essas duas ocupações, apresentavam-se os dois modos de vida a que ela
podia aspirar: doméstica ou prostituta, tarefas de corpo cativo”. (MARTOCCIA &
GUTIÉRREZ, 2003, p.67). Não obstante ter se tornado uma prostituta, Billie tinha
pavor de sexo, pois se sentia aterrorizada diante da relação sexual.
60
Em sua autobiografia, Billie afirma que o jazz era frequentemente ouvido em
estabelecimentos de prostituição e por isso ficou conhecido como “música de
puteiro”. Talvez essa tenha sido uma das causas propulsoras que fez com que Billie
abandonasse a atividade de empregada doméstica, tornando-se prostituta, e mais
tarde cantora de jazz.
Em 1929, durante a “Grande Depressão” que se dissipava ligeiramente por
todos os Estados Unidos, Billie, então com quatorze anos, decidiu que não
regressaria para sua casa enquanto o conseguisse um emprego. Entrou em um
bar e se candidatou a dançarina, tendo seu primeiro contato profissional com a
música. Descreveu a execução do número de dança que realizou como sendo
“lastimável”. O pianista, então, lhe perguntou se sabia cantar. Billie pediu que
tocasse Travelin all alone (Viajando sozinha). Declarou em seu livro que: “Era a
que mais se parecia com o que eu estava sentindo naquele momento. E devo ter
cantado com muito sentimento. Todo mundo naquela baiúca ficou quieto.”
(HOLIDAY, 1985, p.36).
Elinore, Elenoir, Eleanor, Eleanora, acompanhados do sobrenome Fagan,
herdado de sua mãe, são nomes encontrados em documentos que designam
apenas um sujeito: Billie Holiday. Eleanora, como foi habitualmente denominada,
escolheu se transformar em Billie por dois motivos: durante sua infância foi batizada
de Bill por seu pai, que se comportava ao modo dos meninos e, além disso,
cativava extrema admiração pela atriz de cinema Billie Dove. Curiosamente, Bill não
foi a única designação masculina que recebeu, pois alguns amigos também a
chamavam de William, quando ela “bancava o homem”. Alguns anos mais tarde,
Billie recebeu de seus amigos a alcunha de Lady Day”, pois era a única cantora que
se negava a recolher as gorjetas nas mesas após as apresentações.
61
Apesar de Billie ter sido eternizada como Lady Dayatravés de sua música,
registros de duas participações no cinema: um musical de curta e um de longa
metragem. Desempenhou os papéis de prostituta e empregada doméstica,
respectivamente, atividades estas que exerceu amiúde em sua vida. Mostrem-me
uma garota negra no cinema que não faça papel de empregada ou puta”. (idem,
ibidem, p.123).
Billie deixa claro em sua autobiografia que a escolha de se tornar uma cantora
é consoante ao desejo de seu pai: ela devia cantar. Porém queixa-se dele, pois se
sentia “abandonada” em detrimento das excursões promovidas pela banda da qual
era membro. Billie afirma que, desde sua infância, sentia-se imbuída pelo sentimento
de abandono. Reclama “reconhecimento” em relação ao pai, uma vez que o foi
registrada como sendo sua filha; lastimava também o fato dele exigir discrição
quando ela se postava na entrada da casa de show em que se apresentava no
intuito de lhe pedir dinheiro, pois não gostaria que a sua paternidade pela jovem
fosse revelada; reclamava igualmente de sua mãe que quando trabalhava em outros
estados deixava-a sob os cuidados de seus familiares: da família paterna que a
renegava e da família materna que compreendia seu nascimento como um
equívoco. Billie expressou também revolta em relação à família para a qual sua mãe
trabalhava quando engravidou, pois a partir da descoberta do fato a mandaram
embora. Além disso, Sadie Fagan, sua e, havia sido rejeitada por seu pai, assim
como Billie. Esses acontecimentos lhe causaram repúdio, pois ela também foi vítima
de abandono.
Descreve, comumente, sua relação com a mãe como sendo de amor e
cumplicidade. Em outros momentos, todavia, Billie enuncia sua consternação em
decepcionar a mãe quando começou a usar drogas e quando recusou ampará-la
62
financeiramente enquanto recebia incomensuráveis quantias semanais. O
sentimento ambivalente que unia mãe e filha faz com que Billie apóie a decisão da
mãe de trabalhar em outros Estados, ao mesmo tempo em que a censura por ter
permanecido durante este tempo distante.
Segundo Billie, apenas a bisavó cuidava dela, assim como ela era a única
pessoa na casa que se dedicava aos cuidados que a doença da bisavó exigia.
Descreve o sentimento que unia as duas como um misto de “amor e fascínio”. Sua
bisavó teve uma história de vida que lhe causava “admiração” e “espanto”: tendo
sido escrava, trabalhava para um fazendeiro com quem teve dezesseis filhos.
Surpreendentemente, todos nasceram mortos com exceção de seu avô. Ela sofria
de hidropisia
1
e, de acordo com a recomendação médica, ela deveria se manter
sentada, visto que se se deitasse morreria. Após dez anos, a bisavó decide por
deitar e pediu à bisneta que a acompanhasse. Billie, com dez anos nesta época,
embora inicialmente relutasse, acata seu desejo e quando acorda sua bisavó estava
morta. Billie descreve esta cena da seguinte forma:
O braço de minha bisavó ainda estava em volta do meu pescoço, me
apertando, e eu não podia me mover. [...] Tiveram que quebrar o seu braço
para me soltar. Então me levaram para um hospital. Fiquei durante um
mês em estado de choque. (idem, ibidem, p. 11).
Billie afirma que, a partir de então, não suporta o contato com pessoas
mortas, o que fez com que ela “saísse de si” nos momentos em que se deparava
com a morte, tal como, por exemplo, nos velórios de sua e, seu pai e sua prima.
Embora assegure ter passado mal nestas ocasiões, “vomitando e desmaiando”,
confere extrema relevância a outra cena traumática relativa à morte que ocorreu logo
após o falecimento de sua bisavó. Aos dez anos Billie foi surpreendida por sua mãe
1
Hidropisia é uma doença caracterizada pela acumulação anormal de fluido nas cavidades naturais
do corpo ou no tecido celular. Pode ser reconhecida pela formação de pequenas depressões que
persistem quando se faz pressão sobre a parte afetada.
63
e por um policial sendo estuprada por um de seus vizinhos. Ela narra o
acontecimento da seguinte forma:
Certo dia, quando voltei da escola, minha mãe tinha ido ao cabeleireiro e
não havia ninguém em casa exceto o Sr. Dick, um de nossos vizinhos. Ele
me disse que minha mãe tinha lhe pedido que me esperasse e então me
levasse para a casa de uma pessoa, a alguns quarteirões dali, onde iria nos
encontrar. Sem que eu percebesse nada, ele me pegou pela mão e fomos
indo. [...] Já estava quase dormindo quando o Sr. Dick começou a se
encostar em mim. [...] Comecei a chutar e a gritar como uma louca. Assim
que fiz isso, a mulher da casa apareceu e tentou segurar minha cabeça e
meus braços junto da cama para que o homem conseguisse o que queria.
[...] De repente, quando eu estava prendendo a respiração, ouvi alguém
mais que gritava e chamava. A próxima coisa que vi foi minha mãe e um
policial arrombando a porta. (idem, ibidem, p.17-8).
Como punição por haver se envolvido com este homem, Billie foi condenada a
ficar reclusa em uma instituição católica. No período em que esteve recolhida nesse
estabelecimento, ressalta um evento que lhe suscitou intensa angústia, reeditando a
cena que havia vivido com sua bisavó. Se alguma das regras impostas pelas freiras
fosse transgredida, como punição a pessoa deveria usar um vestido vermelho. Na
primeira vez que presenciou essa cena, havia uma jovem com o determinado traje
agitando-se em um balanço. A Madre Superiora então mirou a jovem e enunciou
para um grupo de moças: “Apenas lembrem-se disso, Deus vai puni-la. Deus há de
puni-la”. (idem, ibidem, p.19). Em seguida, ouviu-se um estrondo. A jovem havia se
desprendido do balanço e sobrevoado o pátio. Quando a localizaram estava morta,
com o pescoço quebrado. Algum tempo depois, Billie estreou o vestido e foi
colocada para dormir em um quarto atípico, onde se encontrava o corpo da jovem
morta pela queda do balanço. Segundo ela, passou a noite esmurrando a porta até
suas mãos sangrarem. No dia de visitas posterior a esse episódio, implorou para que
sua mãe conseguisse sua liberação, e ela assim o fez.
Essa era somente a primeira de uma série de oito prisões. Refere-se a tais
ocorrências, que não cessavam de se repetir, como uma “maré de azar”. Billie era
64
com frequência fisgada em circunstâncias que tinham como pano de fundo, além da
agressividade, a “prostituição” e o sexo”. Havia dois motivos que levavam Billie à
polícia: durante a infância, o sexo tinha papel primordial, na idade adulta, seu
envolvimento com as drogas prevalecia. Curiosamente, desde a infância, Billie era
penalizada sob a acusação de ser uma “mulher de difícil trato”. Nos períodos em que
se encontrava reclusa, uma questão sempre retornava: sentia-se como uma escrava
trabalhando no campo.
Além de utilizar o termo “escrava” para designar uma condição de trabalhos
forçados, Billie também o empregava para dizer de sua relação com as drogas.
Desde os seus quatorze anos começou a fazer uso de maconha e bebidas
alcoólicas. O biógrafo Donald Clarke ressalta que seu pai demonstrava acentuada
predileção pela bebida. Diversos amigos de Billie entendiam seu ingresso nas
drogas por conta de sua extrema timidez. A droga serviria, assim, para encorajá-la.
Na opinião desses, Billie aplicava doses excessivas de heroína; porções que
imaginavam ser intoleráveis para qualquer ser humano.
Aos vinte e seis anos, por ocasião de seu primeiro casamento, Billie começou
a fazer uso do ópio e cerca de um ano depois de heroína. Quando seu corpo se
encontrava inteiramente perfurado por agulhas, Billie injetava a droga em sua
própria vagina. Responsabilizava-se por tal prática, isentando tanto sua mãe quanto
seu marido, que foi acusado de incentivá-la, de qualquer implicação, embora o faça
por meio de negativas.
Meu casamento estava desmoronando. E foi durante esse período que eu
comecei a me picar. Mas uma coisa não tem nada a ver com a outra. Na
realidade, Jimmy era tão inocente quanto minha mãe em relação a isso.
Nunca nenhum homem foi culpado pelas coisas que fiz. (idem, ibidem,
p.109).
65
Para Billie, a droga a encorajava para “enfrentar” o palco. Além disso, tinha o
hábito de ser “surrada” por seus companheiros para garantir um bom recital. Billie
casou-se quatro vezes. Arquitetava relacionamentos demasiadamente destrutivos,
pois os homens eleitos sucessivamente por ela obedeciam ao mesmo estereótipo:
“trapaceiros, hostis, desleais, agressivos”.
Os homens com quem escolhe se relacionar são, sem exceção, designados
por ela como “cafetões”, homens que “se aproveitam”, que “administram” seu
dinheiro. Administrar é a expressão eufemística que Billie utiliza para dizer daqueles
que a usurpavam. Estabelecia relações aniquiladoras, pois, segundo Donald Clarke,
“tudo que Lady parecia querer era apanhar, ter seu dinheiro roubado e ter suas
drogas”. (CLARKE, 1995, p.376).
Billie escolhia seus companheiros a partir dos atributos que atendiam à
preferência de sua mãe: “bom gosto, classe e verniz”. Sobre seus casamentos
afirmou que os concretizou, pois desejava invariavelmente provar algo para
alguém”. (HOLIDAY, 1985, p.106). Entretanto, afirmava ter sido ao longo dos anos
“traída”, “roubada” e “agredida”. Descobriu-se petrificada em uma posição
“escravizada” no que diz respeito aos seus relacionamentos afetivos, pois
necessitava permanentemente ser “liderada”. Vinculou-se aos homens porque estes
lhe abasteciam de bravura através da violência, sobretudo para enfrentar o palco.
Billie deixou-se explorar por seus maridos, ação que reproduziu em relação às
gravadoras. Gravou desde 1933 até 1944, milhares de faixas em diversos discos e
jamais foi inteiramente remunerada por seu trabalho, sem, no entanto, cobrar por
isso. Billie narra em sua autobiografia diversos momentos em que incitava seus
maridos a lhe agredirem. Entretanto, esse evento não se repetia apenas em relação
aos seus companheiros, pois Billie envolvia-se, desde a infância, continuamente em
66
episódios de violência alternando entre as posições de agressora e agredida. Billie
certifica-se de sua capacidade de “farejar” situações embaraçosas e envolver-se
com elas. “[...] Eu conseguia arrumar encrenca em qualquer lugar”. (idem, ibidem,
p.187). Foram registradas, por exemplo, vinte e sete brigas em uma semana
enquanto Billie se apresentava em uma boate. As passagens que envolvem brigas
com violência física, durante toda história de Billie, parecem ser incalculáveis.
Conforme assegura um de seus biógrafos:
Lady era dura o bastante e sempre deu quase tanto quanto levou. [...] Lady
carregava uma faca widdle wazor de lâmina dupla na parte de cima da
meia. Isso era Lady sendo durona. [...] Ela cortou Levy com facas, e uma
vez através do peito com um caco de vidro. [...] Outra vez, a arma mais
próxima foi um aparelho de televisão. Posteriormente, Louis McKay pensou
que tinha sido cortado com a widdle wazor. [...] Na verdade, Lady o atingira
com um garfo. (CLARKE, 1995, p.325 e 359).
Wee Wee Hill, padrasto de Billie, conta que sua mãe também apresentava
comportamentos violentos. Segundo ele, certa vez Sadie o ameaçou com um
revólver, no entanto a arma foi retirada de seu domínio. Assim sendo, encontrou
como saída atirar um cinzeiro em sua direção, cortando-lhe o pulso.
Ao registrar as violências sofridas ao longo de sua vida, Billie ênfase às
múltiplas ocasiões atravessadas pelo preconceito. Foi designada pejorativamente de
“preta, negrinha, cachorra, puta”, principalmente em suas excursões artísticas. “Você
pode estar elegantíssima, com seu vestido de cetim branco, gardênias no cabelo e
bem longe de qualquer pé-de-cana, mas ainda assim se sentirá como uma escrava
trabalhando numa fazenda”. (HOLIDAY, 1985, p.100).
Novamente Billie discorre sobre as agressões sofridas por ela: quando não
encontrava local apropriado para dormir, fazer as refeições ou mesmo realizar suas
necessidades fisiológicas, permanecia sem se alimentar e passava as noites em seu
67
próprio ônibus, além de urinar à beira da estrada. Foi expulsa de diversos hotéis, e
quando sua estadia era permitida deveria acessar a entrada dos fundos.
Billie expôs sua trajetória assinalada notoriamente pelo preconceito, pela
morte, por perdas, abandonos, agressões, roubos, exploração, violência sexual e
punições sofridas por suas contravenções. Após quarenta e um anos de uma vida
atribulada, no dia 17 de julho de 1959, morre Billie Holiday. Estava internada em um
quarto de hospital, e sendo vigiada sistematicamente por dois investigadores
federais como consequência de ter sido flagrada com resquícios de heroína em seu
nariz. Internada e presa sob a acusação de posse de narcóticos, cumpriu sua última
pena em seu leito de morte. Billie padecera de cirrose hepática, apresentando
dificuldades coronarianas, renais e infecção generalizada.
Como herança Lady Daydeixa o registro de seu “grande sonho”. Almejava
ter uma casa espaçosa onde pudesse “cuidar” de crianças e cachorros, segundo ela,
duas grandes paixões. Todavia impunha uma condição sine qua non para que o
projeto pudesse ser realizado com sucesso: teriam que ser todos abandonados e
órfãos, “só queria ter certeza de uma coisa que ninguém no mundo quisesse
essas crianças. Então as pegaria. Tinham que ser abandonadas, sem pai nem mãe”.
(idem, ibidem, p.177). Billie esclareceu a origem dessa aspiração: ela própria sentiu-
se, por toda vida, como uma criança abandonada.
Passemos neste momento ao caso de Malu, a fim de traçar, no capítulo
posterior, uma relação com a história de Billie Holiday.
2.2 Malu, de abandonada à cuidadora
A escolha pelo debate que tange este caso clínico se justifica, pois trata-se de
uma ilustração da clínica cotidiana. Malu é uma mulher, com idade em torno de
68
quarenta anos, que busca atendimento em uma instituição, quando é informada que
a analista que a atenderia não poderia fazê-lo imediatamente, pois se encontrava de
licença maternidade. Diante da possibilidade de iniciar um tratamento com outra
analista, Malu faz sua escolha: espera o retorno daquela.
A história de Malu é assinalada pelo significante “cuidado”, que se relaciona
em primeira instância com sua mãe. A posteriori, com o percurso da alise então
iniciada, pôde-se pensar que a transferência imaginária se estabeleceu antes
mesmo do primeiro contato, ligada aos significantes “mãe” e “maternidade”, que para
ela estão referidos ao “cuidado”.
Na trajetória do tratamento dessa paciente, o primeiro aspecto relevante é a
forma como a transferência se instituiu, visto que ela acompanha a analista de um
atendimento iniciado dentro de um curso de extensão, ao Serviço de Psicologia
Aplicada da Universidade Veiga de Almeida e segue ao seu consultório particular,
após sua formatura.
Malu procurou tratamento analítico e dizia ser portadora de Síndrome do
Pânico e sofrer de depressão. Desde a primeira entrevista, enuncia sua queixa:
“Tenho medo de ficar Malu-ca como minha mãe”. Malu faz referência ao seu próprio
nome gracejando com uma particularidade trágica da vida de sua mãe: a loucura.
Na cadeia associativa surge, tal como ela os designa, seus “sintomas”: não
saía de casa sozinha dez anos, tinha emagrecido muito, chorava
incessantemente, tinha medo de desmaiar e morrer na rua, medo este que era
intensificado pela possibilidade de não ser “cuidada”. Além desses, narrava também
sobre os “sintomas corporais”: “sensação de desmaio, palpitação, sudorese, mal-
estar, tontura, dispnéia, náusea”. Questiona-se se estes “sintomas” são indícios da
herança da doença da mãe e se poderia transmiti-los às suas filhas. Endereça uma
69
questão a analista: “Você, que também é mãe, me diz se isso pode acontecer? Será
que eu herdei essa doença da minha mãe? Será que isso pode passar para minhas
filhas?” Supõe que a analista saiba tudo sobre mães e filhos, estabelecendo a
transferência simbólica, amarrando seus significantes à analista, demarcando,
assim, sua entrada em análise.
Deslizando na cadeia de significantes, vincula o surgimento de seus
“sintomas” a um assalto ocorrido em sua casa, encontrando-a “arrombada, revirada
e com um buraco na estante”, pois seu vídeo-cassete havia sido furtado. Inquieta-se
sobre o fato de terem assaltado sua casa para “levar somente um vídeo”, e pondera
que há algum motivo obscuro que justifique tal “invasão”.
Ao relatar sobre o assalto, Malu passa a discorrer sobre sua infância:
comumente descrevia sua mãe como uma pessoa “cuidadosa, que penteava muito
bem seus cabelos, era mãe representante na escola”, mas começa a mencionar
algumas contradições. Em uma determinada entrevista, a paciente desvela algo de
insuportável para ela: sua e era esquizofrênica. A partir de então recorda muitas
“coisas doidas” que aconteciam com sua mãe: ela pôs fogo na casa por duas vezes
arriscando a vida da família; ao comer um “queijo quadrado ficou entalada e passou
dois meses sem poder fazer xixi nem cocô”; a filha primogênita também ficou
“entalada” e nasceu apenas depois de desatados vários s que haviam numa blusa
que pertencia à própria mãe. Além disso, conta que havia uma série de
“alucinações”, em suas palavras, que a mãe produzia: quando um vizinho estendia
no varal um lençol cor de abóbora isso significava que a estava chamando de porca,
que para sua mãe abóbora era a comida dos porcos. Se um vizinho pendurasse
no varal uma “colcha de dormirestava acusando-a de ter um amante. Ao ouvir sons
de marteladas, dizia que estavam preparando seu caixão. “Minha mãe perdia a
70
noção da realidade. Além dessas Malu-quices, ainda fumava sem parar, catava as
guimbas de cigarros pelo chão e as fumava até o fim, até queimar os dedos”.
Relata ainda que o que fez sua mãe ficar maluca foi “um abraço que recebeu
de uma vizinha, deixando-a toda estragada por dentro”. A mãe de Malu sai da casa
desta vizinha “passando mal”, e dias depois é internada em uma instituição
psiquiátrica. No entanto, essa ideia será substituída e Malu passa a associar a
doença da mãe não mais ao abraço da vizinha capaz de deixá-la “estragada”, mas à
ameaça feita pela mesma de roubar sua filha “Neném”, que na época ainda era a
caçula. Malu tem três irmãos, duas mulheres e um homem. O significante “Neném” é
atribuído a mais nova das mulheres, assim como “Novinho” é conferido ao irmão
caçula.
Malu, após algum tempo de análise, passa a associar seus “sintomas” a outro
evento posteriormente recordado e que marcou o episódio do assalto: a ameaça de
que sua vizinha roubasse sua filha caçula. Intrigada com o fato de ter tido roubado
de sua casa apenas um aparelho de videocassete pergunta à vizinha se esta podia
lhe fornecer alguma informação sobre o ocorrido. Ao ser interpelada a vizinha emite
sua opinião: “Acho que entraram na sua casa para roubar sua filha mais nova. Os
ladrões podem voltar”. Malu interpreta o que a vizinha lhe diz como uma ameaça e
cogita a possibilidade dela ser a ladra.
Ao contar que por volta de seus dez anos sua mãe foi internada em um
hospital psiquiátrico, onde permaneceu por vinte anos, até a sua morte, diz: “Minha
mãe não podia ter feito isso comigo. Eu sei que ela estava doente, foi internada, mas
me abandonou”. Um ano após a internação da e, Malu é a primeira dos quatro
filhos do casal a ser “distribuída” pelo pai que a envia para a casa de uma prima
distante. “Meu pai podia ter ficado comigo. Ele ficou com os outros, deu um jeito. Por
71
que eu tinha que ser justo a primeira a ser distribuída, justamente eu que cuidava de
tudo? Fui de novo abandonada”.
A princípio, Malu indica que o pai ao “distribuí-la quis se livrar dela e não teve
nenhum cuidado”. Entretanto, outra vertente é explorada quando admite a
possibilidade do pai tê-la “distribuído” com a expectativa de que tivesse uma vida
melhor daquela que ele podia oferecer naquele momento. Relaciona a expectativa
do pai à exigência gerada pelo dito da prima: “vou escolher você para ir embora
comigo, porque acho que você é a quem tem mais futuro”. Malu menciona que ficou
“presa” nessa sentença, fazendo dela um vaticínio. Alega que de fato ela, em
comparação aos três irmãos, foi a única que conseguiu “constituir uma família,
cursar uma faculdade, trabalhar”. Por outro lado, queixa-se de não ter conseguido
realizar um “sonho de infância: comprar uma casa própria para seu pai”.
Entre tantas cenas traumáticas, Malu recorda com intenso sofrimento o que
ela própria denominou de “cena do berço”. Aos dois anos de idade, ao ajudar sua
mãe a empurrar o berço da irmã caçula para dentro de casa, esse fica emperrado
entre a parede e o fogão, sobre o qual havia uma chaleira com água fervente que
com o impacto tombou e começou a derramar lentamente a água escaldante em
todo o lado esquerdo de seu corpo. Sua mãe, ao se deparar com aquela situação,
deu a volta pelo lado de fora da casa entrando pela sala e somente então
conseguindo alcançar a filha que tinha parte de seu corpo completamente
queimado. “Eu fiquei ali entalada. Com a Neném minha mãe teve cuidado, comigo
não”. Por conta da queimadura que sofreu, Malu ficou dois meses hospitalizada,
quando recebia visitas somente de seu pai, situação que foi interpretada como
“abandono”, denotando novamente o descuido da mãe. “Eu fui a única que cuidei
72
dela quando estava internada. Quando eu estava internada, por causa da
queimadura, minha mãe nunca foi me visitar”.
No período em que esteve hospitalizada, numa das visitas do pai, uma oferta
foi feita a ele: a vizinha do quarto ao lado queria levar Malu para sua casa. Segundo
o relato da paciente, o pai recusou veementemente o plano, todavia o medo de que
a tal mulher sequestrasse Malu, em um dos momentos em que estivesse sozinha no
hospital, o assombrava. Entretanto, ela põe em dúvida o receio do pai. “Mesmo com
a mulher dizendo que queria me levar, meu pai me deixou sozinha no hospital”.
Malu carrega no corpo as marcas da queimadura que adquiriu em tenra
idade, e leva também consigo outro registro indelével da mesma época: afirma que
aos dois anos já subia em um banquinho para alcançar o fogão e fazer “bolo de
panela”. Passa a infância como “ajudante” da mãe nos afazeres domésticos. No
entanto, após a internação psiquiátrica da mesma, passa da posição de “ajudante”
para a de doméstica”, ocupando o lugar da mãe, embora não fosse a filha
primogênita. Questionada sobre o que é ser uma doméstica, responde: “É como uma
mãe, também cuida”.
Lembra-se que é a única da família que efetuou visitas frequentes durante os
vinte anos em que a mãe passou internada, cuidando dela inclusive quando é
transferida para outros Estados. Malu diz que também cuida dos irmãos “como se
fosse mãe deles”, e do pai “como se fosse sua mulher”. Seu irmão “Novinho” é
“distribuído” alguns meses depois de Malu, sendo enviado a uma instituão para
menores abandonados. É Malu quem cuida dele nos anos em que passa recluso em
tal instalação, levando roupas, alimentos e objetos de higiene pessoal. Ao completar
a maioridade, Novinho é obrigado a deixar a instituição e é levado por Malu de volta
para casa. “Neném”, a irmã caçula, parte de sua casa para a de “parentes distantes”,
73
recebendo, como sua mãe, visitas semanais de Malu. A irmã mais velha, a última a
ser “distribuída”, é “despachada” também para a casa de “parentes distantes”. Malu
se preocupa com ela, pois não se adapta à outra casa” e a leva de volta para a
casa do pai, tal como fez com “Novinho”.
A falta de cuidado do pai, ao “distribuir e abandonar” os filhos, é recordada em
análise. Malu recorda-se que ao visitar o pai, quando já estava namorando seu atual
marido, não são bem recebidos e ela “se assusta” com a cena que assiste. Depara-
se com o pai saindo em companhia de “outra mulher” no mesmo momento em que
ela chega para visitá-lo, e isso faz com que ela sinta “ciúmes”. Para ela esta cena
também é oriunda da falta de cuidado paterno. “Ele devia respeito à minha mãe. Ela
estava internada, mas não morta. Senti-me traída”.
Tecendo sobre “traições”, Malu diz que ela própria “trai” o marido, mesmo que
seja apenas em pensamento, pois tem “fogo” por outros homens. A partir da análise,
a libido de Malu que se concentrava em seus “sintomas”, pôde assumir outros
destinos. Malu revela que seu “fogo está aceso” e se queixa da “impotência” do
marido, de sua falta de “vigor e juventude”. Malu inicialmente declarava que seu
marido era “grosseiro, bruto e agressivo quando transavam, pois ele bebia muito”. O
marido alcoólatra faz um “tratamento de reabilitação”, afastando-o da bebida. Malu,
que sempre se queixou do vício do marido, depois da “reabilitação” lamenta-se do
fato de “não transarem mais como antes, enérgica e diariamente”.
Em determinado momento da análise, frequenta salas de bate-papo da
internet, com intuito de conhecer pessoas “novas”. Na realidade, essas pessoas com
quem conversa são sempre “homens jovens”. Embora escolha as salas de bate-
papo cujo tema é o sexo, diz que “não quer conversas picantes”. Nessa época,
ainda trabalhava como “doméstica” e produz dois sonhos com o filho de sua patroa.
74
O rapaz era alvo de seu interesse algum tempo: ela reparava nos telefonemas
que ele recebia, ficava atenta às fotos de garotas” que ele tinha em seu quarto,
fazia seus pratos prediletos, cheirava suas camisas, olhava admirada seu corpo.
Malu leva para análise o primeiro sonho: “Eu estava na casa da Dona Alice
(sua patroa), no quarto do Rogerinho, quando vi pela janela uma mulher correndo e
um homem logo atrás dela, como se a estivesse perseguindo. Quando o homem
conseguiu alcançar a mulher, colocou-a de quatro e eles transaram ali, no meio da
rua”. Associa o “vigor” do homem do sonho à “juventude” de Rogerinho. Imagina que
por ele ser jovem seja “sagaz na cama”. Gostaria que o marido tivesse esse “fogo”,
pois ela o tem. Afirma que quem também tem “fogo” é o seu patrão, Seu Rogério,
que nunca perde uma oportunidade de lhe passar uma “cantada”. “Está tudo
invertido”, diz ela, “meu marido brocha e eu com um fogo... O Rogerinho é novo, tem
vigor, mas não posso ter nada com ele. E ainda por cima, tem o Seu Rogério
querendo se engraçar”. A analista pontua, no intuito de desvelar o conteúdo
incestuoso do sonho, sobre a proibição que a impede de se relacionar com
Rogerinho, e a paciente responde que é proibido por dois motivos: primeiro, porque
ele é muito ‘novinho’ e, em segundo lugar, é filho de sua patroa. “Ai, meu Deus, será
que tem alguma coisa a ver com o Novinho”?
um segundo sonho que é levado à análise: “Eu estava andando na rua de
mãos dadas com o Rogerinho e pedia para que ele me assumisse. Ele respondia
que já tinha problemas demais. Nós íamos até a casa dele, mas eu não subia, ficava
na garagem esperando por ele”. Afirma que quando acordou sentiu muita “angústia”,
porque o sonho estava “cheio de proibições”. Em primeiro lugar, não poderia trair o
marido; em segundo, não podia namorar o filho da patroa; e, em terceiro, não podia
namorar alguém o “novinho” porque ele podia ser seu filho. Continua dizendo: “O
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Novinho é quase um filho para mim. Eu sou como uma mãe para ele. Mas eu
também cuido do Rogerinho como se fosse mãe dele. Eu fiquei pensando no outro
sonho. O Novinho também tem aquele vigor da juventude, como o Rogerinho. O
problema é que eu cuido deles. Será que é por isso que meu marido não transa
mais comigo? Porque eu sou como uma mãe para ele, fico cuidando dele? Ir para
cama com a mãe não dá, né?”.
Impactada com a revelação do desejo incestuoso notório nos sonhos em
relação a seu irmão “Novinho”, Malu se lembra do seu primeiro namorado, que na
verdade era um homem casado e que não quis assumir nem o relacionamento que
tinham nem tampouco o filho que teriam. De uma só vez, perde sua virgindade e
engravida deste homem. Comete um ato falho ao dizer como foi dada a notícia da
gravidez ao namorado. Conta que ao saber da gravidez ele lhe responde: “Este pai
não tem filho”. A analista pontua o ato falho e ela diz: “Não, não foi isso que ele
disse. Ele falou: este filho não tem pai. O pai que não tem filho deve ser o meu
mesmo, foi ele quem me distribuiu”.
Diante da recusa do namorado em “assumir” tanto ela como o filho, Malu
rompe o relacionamento e faz seu primeiro aborto. Algum tempo depois, conhece um
homem por quem se apaixona, pois ele “cuida dela, é como um pai”. Casam-se e, ao
longo de vinte anos de união, outros quatro abortos são provocados. Recentemente
engravida mais uma vez, porém desta vez o aborto é espontâneo. Malu relata que
“são ao todo oito gestações, seis abortos e dois nascimentos”. Coloca em questão o
cuidado que oferece aos outros, à exceção dos filhos que foram abortados. Conclui
que não é tão cuidadosa como pensava e associa sua falta de cuidado à própria
mãe, que para ela representava o ideal de cuidado, admitindo que ela também não
foi uma pessoa muito cuidadosa.
76
Malu enumera sistematicamente episódios onde prevalecia o cuidado que
dirigia a outrem. Ao ser “distribuída” para a residência da prima, cuida desta, de seus
filhos, do cachorro e de toda casa, servindo de “doméstica”. Decepciona-se pelo
modo como é tratada nessa casa e da posição que ocupava, pois esperava que a
prima “fosse como uma mãe para ela”. “Eu fui muito humilhada. era como um
quartel, que as regras eram apenas para mim. Havia uma lista de horários e
tarefas para serem cumpridas no decorrer do dia. Meu horário ia das cinco horas da
manhã até as dez horas da noite. Por mais que eu me esforçasse nunca fui
elogiada, pelo contrário, porque até atestado de pobreza ela (a prima) me fez pegar
na delegacia para eu conseguir o material escolar de graça”.
ainda o cuidado que dispensa ao marido alcoólatra, que lhe “agride e
ameaça matá-la, para quem prepara as comidas que mais o agrada, e deixa as
roupas impecáveis”. Cuida das filhas que “tentam comandar sua vida”,
principalmente no que diz respeito ao emprego de seu próprio dinheiro sugerindo
onde, como e quando deve gastá-lo. Faz, sem cobrar nenhum valor, bolos e
salgadinhos para festas, pois assim acredita estar cuidando das amigas que
“aproveitam para explorá-la”.
Seus empregos estão também sempre de alguma forma vinculados ao
significante “cuidado”: quando trabalhava de merendeira de uma escola, cuidava da
comida; quando era babá, cuidava de crianças; quando era “doméstica”, cuidava da
casa e daqueles que nela moravam. Seu último emprego é em uma creche, onde
cuida novamente de crianças, de nenéns” e “novinhos”. Malu coloca-se sempre da
mesma maneira diante do outro: “cedendo”, “cuidando”, “qualquer coisa para não ser
abandonada”. “Qualquer coisa” não é exatamente qualquer uma: se resume sempre
77
em cuidar do outro para então receber a retribuição. “Cuido para ser cuidada em
troca”.
Através do processo analítico, Malu fez diversas retificações subjetivas, em
que modifica sua posição diante do Outro. Passa do lugar de doméstica e de mãe
que cuida dos outros para cuidar de si mesma. Malu que dez anos não saía de
casa, exceto acompanhada, passa a sair sozinha. Conclui o ensino médio que fora
interrompido vinte anos e ingressa em uma universidade com bolsa integral.
Deixa de cuidar o tempo inteiro dos irmãos, das amigas, do marido e das filhas para
cuidar de si mesma, retificação que culmina na mudança do relacionamento com os
outros que não a fazem mais “de gato e sapato”. Pede demissão de um emprego
onde era “doméstica” deixando de ser “escrava” e passa a se dedicar ao trabalho em
uma creche. Passa a cobrar pelos bolos e salgadinhos para festas, complementando
sua renda ao vendê-los. Abrindo mão de sua postura estacionada de “mãe e
doméstica” possibilita, inclusive, reatar sua vida sexual com o marido que havia sido
interrompida há alguns anos.
Entretanto, Malu ainda não é capaz de renunciar por completo ao cuidado que
oferece aos outros. Não se encontra mais petrificada em torno do significante
“cuidado”, tal como ocorria no início da análise, sendo possível dialetizá-lo, embora
ainda permaneça de algum modo enlaçada a ele. De uma posição menos
aprisionada, ainda insiste em cuidar dos amigos da faculdade, das crianças da
creche, da vida da “Neném”, do “Novinho”.
Após quatro anos de análise, Malu decide experimentar andar com suas
próprias pernas, sem muletas” e interromper o tratamento. Ao iniciar a análise, uma
de suas principais queixas era relativa ao fato de não sair de casa sozinha. Após
78
este percurso presume que possa “andar sozinha”. Em sua opinião “não precisa
mais de cuidado”.
Billie Holiday e Malu, duas mulheres que em seus relatos aparece repetidas
vezes os significantes “abandono”, “falta de cuidado”, “escrava”. O próximo capítulo
se prestará a relacionar os casos acima citados a com a teoria psicanalítica sobre a
fantasia e a repetição, tratadas no primeiro capítulo.
79
3 OS APANÁGIOS DA FANTASIA FUNDAMENTAL
Este capítulo tenciona articular as histórias de Billie Holiday e Malu,
apresentadas no item anterior, ressaltando suas particularidades, dessemelhanças e
pontos em comum, aos conceitos aludidos no primeiro capítulo.
3.1 A mulher e as fórmulas quânticas da sexuação
Lacan (1972-1973) expõe em O Seminário, livro 20: Mais, ainda, as fórmulas
quânticas da sexuação, apoiado nas quatro proposições aristotélicas, a saber:
particular, universal, possível e impossível. A partir desse esquema, revela que é
perfeitamente realivel a quantificação dos homens, porém o mesmo não pode ser
feito em relação às mulheres. Lacan (ibidem) indicação de que apenas duas
alternativas: inscrever-se do lado masculino ou feminino. Essa escolha se dará a
partir do estabelecimento da relação do sujeito com a função fálica, ou seja, denota
a forma como esse irá se posicionar frente à sexualidade. O autor aduz que "quem
quer que seja ser falante se inscreve de um lado ou de outro". (idem, ibidem, p.107).
Eis o diagrama lacaniano.
80
Lado masculino Lado feminino
Na parte superior do lado masculino, temos as seguintes equações: e
. A primeira formulação proposta é universal, afirmativa e possível, pois
designa que para todo x, x está referido ao falo. Quando o x em questão é o homem,
tal qual Lacan (ibidem) nomeou, tem-se: para todo homem, o homem está referido
ao falo, o que possibilita a formação do conjunto dos homens. Entretanto, para que
um conjunto possa ser constituído deve ser inserida uma exceção, que permita fazer
contraponto. Um conjunto existe se tem como referência algo que está excluído.
Daí decorre a segunda expressão que é lida como singular, negativa e necessária. A
partir desta entende-se que existe pelo menos um homem que não está referido ao
falo, que o está submetido à ordem fálica, que é o pai da horda primeva. O pai
real, que está fora da lei edipiana, precisa existir na lógica, para que o conjunto dos
homens se constitua como tal.
Na parte superior do lado feminino, Lacan (ibidem) escreve as seguintes
fórmulas: e . A primeira é uma proposição universal, negativa e
contingente, onde para não-toda x, o-toda está referida ao falo. O tulo de não-
toda que grifa o enigma feminino é explicitado pelo autor quando confirma que é
"somente por fundar o estatuto d'a mulher no que ela não é toda". (idem, ibidem,
p.99). Sendo não-toda o termo empregado por Lacan (ibidem) para nomear a
81
mulher, lê-se: para toda mulher, a mulher não-toda está referida ao falo. Não
como constituir um conjunto de mulheres, pois uma mulher não se coloca na posição
feminina por si só; é o desejo do Outro que lhe confere o estatuto de mulher. A
segunda proposição é particular, negativa e impossível. Não existe nenhuma mulher
que não esteja referia ao falo. Ou seja, a norma fálica vale para todas as mulheres.
Na parte inferior do esquema, no lado feminino tem-se a mulher barrada ( ),
pois a castração é condição sine qua non da mulher. Ela tem, portanto, uma relação
particular com a castração distintamente dos homens. A mulher tem algo que escapa
ao simbólico, algo fora da lei que dá acesso direto ao real, pois a ameaça de
castração não tem para ela o mesmo valor que tem para um homem.
Não há insígnias da feminilidade que a mulher não tem inscrição no
inconsciente, não se pode inscrever a falta. A angústia de castração experienciada
pelos homens tem, para as mulheres, como correlato o desamparo. Enquanto o
homem aterroriza-se com a possibilidade de perder algo que presume ter (angústia
de castração), a mulher por não ter esse registro, por não poder simbolizá-lo teme
perder-se, tragada pelo desamparo. À medida que é amada, é inaugurada a quimera
de que há um lugar para ela, lugar este pertinente ao desejo do Outro. Grande parte
das mulheres precisa criar uma invenção, na qual um homem se interessa por ela,
para que seja aceitável a viabilização de seu investimento nele.
Não será isso que Billie Holiday faz, na medida em que retorna sempre a
mesma posição diante dos homens, aqueles aos quais alcunha de “amor” e
“cafetão”? Ou seja, não será ela mesma quem cria o interesse de um homem por ela
oferecendo-lhe o lugar de dominador (inclusive de seu dinheiro), fornecedor (das
drogas que consome) e agressor? Billie se oferece para ser espancada, roubada,
abandonada, em suma, mortificada. Além de interpretar as canções, Billie Holiday
82
também escreveu algumas composições. Assim sendo as músicas citadas ao longo
deste trabalho são de sua autoria. Em "Stormy Blues" canta: “Every time I come here
/ Everything happens to me / I lose my man / I lose my head / I lose my money / Feel
like I'm almost dead(Toda vez eu venho aqui / Tudo acontece comigo / Eu perco
meu homem / Eu perco minha cabeça / Eu perco meu dinheiro / Como eu estivesse
quase morta).
Encarnando o objeto a Billie revela-se como “a espancada” enquanto Malu
assume o predicado da “descuidada”. Por serem não-todas, suas atitudes se
coadunam frente ao desamparo: ambas temem enlouquecer.
Nesta fronteira, Billie, através da heroína, “sai de si, fica louca” e Malu,
imbuída nos significantes maternos, receia ficar “Malu-ca”. Billie Holiday “fica louca”
com as drogas e “dá uma de louca” quando, por exemplo, desaprova o
comportamento da platéia, ergue o vestido e “mostra a bunda”. É igualmente como
louca que procede quando instiga os homens a agredi-la.
Malu fica desvairada com a possibilidade de “perder” sua filha, tal qual a
mãe. A ameaça de roubo feita por sua vizinha reedita a cena vivida na infância.
Embora sua mãe tivesse dado demonstrações de loucura, para Malu é somente
ao ter a maternidade abalada que esta “entra em surto”. Assim, Malu também
presume que ficará louca e teme “ficar pirada” quando seu corpo apresenta indícios
de desordem bem como ocorria com sua mãe: passa mal, vomita, tem tonteiras,
enjôos, fica sensível, chora sem cessar. Não é sem razão que o enodamento entre
Malu, sua mãe e sua filha provoca em seu corpo sinais equivalentes aos de uma
gravidez. “(...) Todas as mulheres são loucas, como se diz. É justamente por isso
que elas não são todas, isto é, não loucas-de-todo (...)”. (idem, 1974, p.70). Por
83
terem algo que escapa ao simbólico, que se extravia da lei, as mulheres têm uma
proximidade peculiar com a loucura, ou seja, têm acesso ao real de modo direto.
Retomando as fórmulas da sexuação, temos do lado feminino do esquema
lacaniano ainda o objeto a e o . A mulher não trava qualquer relação com o
objeto a se se posiciona do lado feminino, mas é, ela própria, colocada no lugar de
objeto a, objeto causa de desejo para um homem. Sendo assim, o homem busca na
mulher o objeto a ($ a), ao passo que a mulher tenta fisgar o falo através do
homem ( ).
exprime a falta de significante no Outro, aponta para um lugar onde não
significante. Em Freud, a expressão do seria concernente ao silêncio da
pulsão de morte. Com Lacan, podemos articular com o abismo do encontro com o
real. Billie flerta de muito perto com , trava uma relação de proximidade com o
precipício da pulsão de morte. Submete-se à relação de maneira
tresloucada, onde ela própria agencia cruzamentos ininterruptos com o real. Sua
história expõe a radicalidade da posição de objeto: se oferece como objeto para o
olhar, como corpo para maltrato. Billie duplica-se no lugar de objeto a, pois o é
enquanto artista e mulher, entregando-se ao público e aos homens como objeto
causa de desejo. Quando fala-se no senso comum que uma criança é olhada, o
olhar ganha a conotação de cuidado. Ao se fazer olhar Billie estaria demandando
cuidado ao Outro?
Malu, tal qual Billie Holiday, demanda cuidado, dando-se, porém ao lugar de
“distribuída”. Tenta se assegurar de que não irá ser “distribuída, abandonada”
quando cuida insistentemente do Outro, pois acredita que proporcionar cuidado
garante que não seja “largada”. Malu torna-se escrava do desejo do Outro ao tentar
84
prevê-lo e satisfazê-lo. A dedicação prestada tem finalidade inequívoca: cuidar com
o objetivo de ser cuidada em troca.
Billie Holiday e Malu: duas mulheres que se vêem às voltas com os
significantes “doméstica, escrava, abandono”, embora se posicionem de modo
distinto e tenham compreensões diferentes destes. A concretude do dito do Outro,
dito materno por excelência, anuncia a autômaton, que enlaça o sujeito em uma
rede de significantes apreendidos inconscientemente, que orientam sua vida,
fazendo com que o sujeito os contorne. Uma das formas dessa marca significante,
oriunda do Outro, se revelar é através do corpo, como veremos adiante.
3.2 Os estigmas da pulsão de morte
ReDescartes instituiu o dualismo cartesiano no século XVII, promovendo a
separação entre pensamento e corpo como duas instâncias que não se coligam,
excluindo, deste modo, o corpo do campo do discurso, vislumbrando-o como uma
máquina que tem como propriedade essencial o movimento. Será apenas três
séculos mais tarde, com Freud, que a temática do corpo toma nova dimensão. Freud
(1893-1895) apontou para conexão entre corpo e pensamento, desde suas primeiras
investigações sobre a histeria, assegurando que uma ideia recalcada pode
reaparecer no corpo sob a forma de sintoma conversivo. Além disso, ao examinar os
sintomas corpóreos das histéricas, Freud fez descobertas a respeito da
sobredeterminação inconsciente. Freud (ibidem) promoveu a aliança entre
inconsciente e corpo desde os primórdios da psicanálise, possibilitando-nos pensar
nas manifestações inconscientes presentificadas através do corpo.
Que podemos dizer de trajetórias insistentemente permeadas pelo gozo que
se presentifica através do corpo? O percurso trilhado por Billie Holiday parece
85
evidenciar o modo peculiar como lida com seu próprio corpo, gozando deste,
fazendo tentativas infindáveis de atacá-lo.
Toda sua história de vida é permeada por episódios onde o corpo encontra-se
a serviço da exibição e do maltrato. Em sua autobiografia Billie dá destaque a
significantes imbuídos de torpeza utilizados para designá-la que parecem ter
assinalado seu corpo, determinando um modo próprio de perpetuar o gozo,
engessando-a em uma posição subjetiva peculiar: “puta”, “pobre”, “drogada”,
“negra”, “empregada”, “surrada”. Que mensagem Billie almejava transmitir através de
seu corpo?
Por que as surras antecedem cada novo espetáculo? Billie colide com o Outro
agressor desde tenra idade. Os substratos enraizados da prima Ida se multiplicam
ao longo de sua vida cada vez que se depara com os homens. Billie apresenta-se
como se o estivesse fazendo forçada, como se algo a obrigasse a responder
daquele lugar.
A história de sua bisavó traz igualmente a marca da morte. De dezesseis
filhos gerados por sua bisavó quinze nascem mortos. Quando a bisavó decide
morrer ao deitar-se, optando pela eutanásia, escolhe Billie para que a ajude a
consumar tal ato. Que efeitos podem ter tido para Billie ser cúmplice da morte da
bisavó? Que repercussão teve para ela o fato de deparar-se por duas vezes com
mulheres mortas (a bisavó e a jovem que usava o vestido vermelho) atadas a ela?
Algo se desencadeou em decorrência da morte de sua bisavó? A partir desta
cena traumática Billie passou a maltratar seu corpo das formas mais variadas:
incitava o outro a espancá-la; perfurava inteiramente seu corpo injetando heroína;
como prostituta vendia o corpo em troca de dinheiro; aos maridos oferecia seu corpo
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para massacre e pagava por isso, que estes roubam toda sua fortuna. Encerrava-
se, enfim, em um corpo cativo.
No percurso de Billie é notória a intensidade com que a pulsão de morte se
desvela. O conceito introduzido por Freud em “Mais-além do princípio de prazer”
(1920) indica uma tentativa de reintegração a um estado anterior, já que se trata de
uma inclinação natural que remeteria o sujeito a um estado inorgânico. “A pulsão de
morte leva o sujeito a sua própria destruição, justamente o caminho da busca do
gozo pulsional”. (QUINET, 2004. p.85).
Esta tendência ao encontro com a morte, presente em todo ser humano, para
o qual a flecha da pulsão orienta o sujeito com a finalidade de saldar os conflitos
internos, o que Freud (1920) denominou de princípio de Nirvana, é batizado por
Lacan (1972-1973) de “empuxo-ao-gozo”. Verificamos em Freud (ibidem) que o
movimento próprio do circuito pulsional visa a satisfação, o que na concepção
lacaniana significa dizer que a pulsão tem em vista tão somente o gozo, o gozo
mortífero.
Neste sentido, a relação do sujeito com a droga inclui um paradoxo salientado
por Lacan (ibidem). Em realidade, o toxicômano oferece em troca do gozo produzido
pela droga um pagamento e, além disso, paga pelos efeitos que advém no corpo
acarretados pelo consumo exacerbado da substância, conforme verificamos com a
história de Billie Holiday. O dispêndio de gozo conduz, necessariamente, ao
atrelamento com a pulsão de morte. Trata-se, pois, de um gozo relativo ao próprio
corpo, um gozo auto-erótico.
Assim, o sujeito pretende colocar-se como objeto que preencheria a falta do
Outro, o que é concebido pelo matema . A droga, objeto condensador de gozo,
funciona para o sujeito como suporte no enfrentamento com a castração; sem a
87
droga ele não a tolera. A droga é o objeto que produz no sujeito a miragem de um
gozo infindável. O toxicômano, ao tencionar conferir integralidade ao Outro, acaba
por fazê-lo igualar a um gozo revestido pela pulsão de morte, que introduz o sujeito
em outra dimensão, fora da cena fantasística na qual se ancorava em sua neurose.
No momento em que a fantasia deixa de dar suporte ao sujeito fazendo com que o
gozo se mantenha na demarcação do desejo, o sujeito esvanece.
O objeto perdido da história de cada sujeito, objeto a, pode ser re-
encontrado nos sucessivos substitutos que o sujeito organiza para si em
seus deslocamentos simbólicos e investimentos libidinais imaginários. Mas
nesses re-encontros, por trás dos objetos privilegiados de seu desejo, o
sujeito irá se deparar de forma inarredável com a Coisa perdida da espécie-
humana; o que significa que trata-se sempre, nos reencontros com o objeto,
da repetição de um 'encontro faltoso com o real', maneira pela qual Lacan
define a função da 'tiquê', que vigora por trás do 'autômaton' da cadeia
simbólica. (COUTINHO JORGE, 2005, p.142).
Segundo Lacan (1975) “a droga é o que permite romper o casamento com o
faz-pipi, ou seja, com o falo”. (idem, ibidem, p.116). Rescindindo com o gozo fálico,
donde o sujeito goza? Na conexão do sujeito com a droga, considerando a
obliteração do gozo fálico, resta ao sujeito gozar de seu próprio corpo, o que não se
sem consequência. Esta forma de velar a castração e defender-se da angústia
acaba por provocar um curto-circuito na fantasia.
O campo da fantasia do toxicômano grave vai se rarefazendo. Tudo o que
se oferece para ele, enquanto elemento de prazer e de gozo fálico, gozo
parcial, ele rejeita, porque ele está com aquela ilusão até certo ponto
ilusão, até certo ponto não, e que reside o poder da droga daquela
vivência de gozo absoluto. [...] O grande drama do toxicômano é que ele
chega a entregar tudo para o Outro, contanto que este lhe entregue a droga.
(COUTINHO JORGE, 2003, p. 37).
A fantasia é um expediente simbólico elaborado pelo sujeito que tem como
função fazer suplência à castração que o divide, assegurando-lhe uma satisfação
parcial perante a impossibilidade da integralidade do gozo. Esta aposta em ludibriar
o real pode ser experienciada de diferentes modos; uma delas é tentar atingir a
completude através das drogas. Em seu livro, Billie confessa ter injetado heroína em
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sua vagina algumas vezes, ação que tinha como justificativa a indisponibilidade de
outro lugar no corpo. Não é sem motivo que ela o faz, pois esta é uma tentativa de
falicizar a droga, no intuito de acessar o lugar de objeto a. O que fez com que Billie
maltratasse seu corpo de maneira desenfreada a ponto de precipitar sua morte?
A questão da morte surge mais uma vez na história de Billie quando ela
decide abortar um bebê, fruto de sua única gravidez. A pulsão de morte reaparece
neste episódio quando seu corpo fica mergulhado por dezoito horas consecutivas
em uma banheira que contém uma solução abortiva preparada por ela mesma.
Reserva para o desfecho de seu relato a revelação sobre seu desejo de exercer a
maternidade, oportunidade que lhe daria a possibilidade de cuidar de crianças
abandonadas e “cachorros de rua”. Identificada às crianças abandonadas e aos
cachorros de rua, Billie denuncia novamente a falta de cuidado do Outro para com
ela.
As histórias de Billie Holiday e Malu se cruzam neste ponto: ambas sentem-se
desamparadas, descuidadas. O cuidado e a falta dele são questões
sistematicamente abordadas por Malu ao longo de sua análise. A primeira
recordação de Malu que se refere à demonstração de falta de cuidado, de zelo,
aparece deixando uma marca no corpo. A partir da trágica “cena do berço”, Malu
sente-se “descuidada, abandonada, deixada de lado, sem importância”. Segundo
ela, seu corpo carregará eternamente o registro da negligência.
Consome inumeráveis sessões onde o assunto reinante é o desmazelo.
Requer cuidado, dedica-se com empenho, ao cuidado com o Outro, porém após
algum tempo de percurso analítico confessa que das oito gestações que já teve, seis
tiveram o mesmo destino, o aborto. “Distribui” fetos mortos, “manda embora” os
bebês. Malu goza de seu corpo e da extensão que adquire a cada nova gravidez.
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Lacan (1972-1973) esclarece em O Seminário 20: mais ainda que o lugar do
gozo é o corpo. “Gozar tem esta propriedade fundamental de ser em suma o corpo
de um que goza de uma parte do corpo do Outro”. (idem, ibidem, p.35). Goza-se
parcialmente, pois é da ordem do impossível gozar inteiramente.
Fere seu próprio corpo e elimina aqueles (bebês) que são malquistos. É
também através do corpo que manifesta sua angústia. Nomeados por ela, os
“sintomas corporais” ganham palco justamente no momento em que se depara com
a possibilidade de ser negligente com a filha e repetir a história vivenciada por ela
própria.
Uma das vertentes freudianas apreende o corpo no registro do real, embora
a noção de real advenha apenas com Lacan. O corpo pulsional marcado pela fusão
e desfusão de Eros e Tânatos, encontra-se prisioneiro do significante, assinalado
pela linguagem. Como alicerce pulsional o corpo é a via que acolhe e propaga
mensagens, “falando” através do gozo. O corpo pode ser concebido enquanto
aquele que padece das inscrições significantes deixados pelo Outro da linguagem,
pois segundo Lacan as “palavras introduzem no corpo algumas representações”.
(Lacan, 1974, p. 94).
3.3 Tiquê, autômaton e a fantasia fundamental
Na trajetória do tratamento Malu pôde desvelar demandas e significantes
mestres, evidenciando sua posição petrificada diante do Outro, podendo se
responsabilizar por suas escolhas, relatar cenas traumáticas, fazer emergir várias
formações inconscientes, elaborar conflitos, realizar retificações subjetivas. Toda a
história da paciente encontra-se amarrada ao medo de ser “distribuída”, assim
repete sua posição submissa na qual tem que obedecer sempre ao desejo do Outro,
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“cedendo” e “fazendo suas vontades para não correr o risco”. É assim que se coloca
diante dos “caprichos e horários de quartel” da prima, do marido alcoólatra, das
filhas que tentam comandar sua vida, da patroa que a faz de “escrava”, das amigas
que exigem seus serviços culinários de graça, qualquer coisa para não ser
abandonada”. É assim que Malu se revela ao longo do tratamento analítico,
demonstrando como toda a sua narrativa contorna sua posição fantasmática.
A paciente revela através da cadeia significante as repetições que atravessam
sua história. Todavia, quando, ainda no princípio do tratamento é questionada pela
analista sobre essa série, argumenta: “Isso é carma”. A paciente por não se dar
conta das repetições associa estas a uma eventualidade cármica. Lacan (1956-
1957) aduz em seu O Seminário, livro 4: A relação de objeto a ideia de que o sujeito
não percebe a implicação pulsional envolvida na repetição e por isso a trata como
uma casualidade que surge por acaso, como uma mera coincidência.
A compulsão à repetição é fruto da pulsão de morte que atém o sujeito em
seus pontos de gozo. A psicanálise se propõe então a investigar o modo como esse
processo se opera. O analisante é por excelência o sujeito que deseja sair da
petrificação que lhe ime o significante e busca um sentido ao deslizar na cadeia,
promovendo o atravessamento de sua fantasia fundamental. O trabalho do sujeito
no percurso de um tratamento analítico é abandonar o o-saber dando lugar ao
saber inconsciente, que determina suas escolhas, percebendo os alcances de suas
repetições, de seus sintomas.
Diversos episódios se repetem ao longo da vida de Malu, porém ela pode
se dar conta desta sucessão de fatos na medida em que os relata em análise. O fato
de sua vizinha ter lhe alertado sobre o perigo dos ladrões retornarem à sua casa
para “pegar” sua filha caçula, reedita os episódios onde a vizinha de sua mãe quis
91
“levar” sua filha “Neném” e aponta também para a passagem onde “vizinha de
quarto” realiza uma proposta com objetivo de levar Malu para sua casa.
Freud dirá que o sujeito repete inconscientemente em seus atos, justamente
os substratos que se ligam e que estão profundamente arraigados a sua fantasia. Os
sintomas se encontram profundamente ligados às fantasias inconscientes, pois elas
são antecessoras psíquicas adjacentes de todos os sintomas histéricos. Essa
convergência torna inacessíveis as lembranças que desencadeariam o surgimento
dos sintomas.
Malu desvenda sua série de repetições indicando seu gozo demarcado pelo
ato de cuidar. Fica evidente na repetição seu caráter de gozo tal como postula
Lacan, onde o sofrimento é unido ao prazer. Ao cuidar do Outro, Malu repete algo
que toca o núcleo de sua fantasia fundamental, visto que esta se baseia justamente
na ideia de que ela própria não foi cuidada. Malu, interpretando o desejo do Outro,
responde ao Che vuoi? à sua maneira. É diante da grande questão do enigma do
Outro que o sujeito estampa sua fantasia. O que o Outro quer de mim? é a questão
fundadora da fantasia. Ao se interrogar sobre isso parece que Malu responde: “Quer
que eu cuide”. É importante ressaltar que o percurso analítico dessa paciente foi
interrompido, logo esta não atravessou a fantasia.
À medida que a história de Malu se encontra enlaçada ao significante
“cuidado”, que se repete inconscientemente em seus atos, podemos supor esse
como o cerne de sua fantasia fundamental, que poderia ser traduzida como
“descuida-se de uma criança” e que aparece na equivalência “abandona-se”,
“distribuí-se”, “joga-se fora”, “larga-se”, “manda-se embora”. Assim, verificamos que
a fantasia tem sempre um cunho obsceno, abusivo, gozoso, vinculada diretamente
ao complexo de Édipo, e por isso é inconsciente, recalcada e nunca será
92
rememorada, como assegura Freud (1919) no artigo “Bate-se numa criança”. O
segundo tempo da fantasia tal qual descrito por Freud (ibidem) é configurado por
Lacan sob a forma do matema, $ a, onde encontramos do lado esquerdo o sujeito
do abuso e na outra extremidade o objeto do abuso.
Quinet (2005) em “A lição de Charcot” atenta para o fato de que um sujeito
que se coloca como vítima diante do Outro põe-se à disposição deste como objeto.
É em parte verdade que o sujeito é vítima do Outro abusador, sedutor, agressor,
gozador (elemento fantasístico pilar), ao mesmo tempo em que é mentira, pois o
sujeito participa de maneira ativa do gozo sobre o qual lamenta-se. “E qual a sua
participação? Trata-se de uma participação extremamente ativa: a de se fazer
desejar. Esta não se apenas com o parceiro sexual, mas também com o mestre,
os colegas, os amigos etc”. (idem, ibidem, p.117).
O sujeito vitimizado está continuamente no registro da demanda, uma vez que
pleiteia restabelecimento e indenização pela condição perdida. Se toda demanda é
demanda de amor, de reconhecimento, que almeja completude, sendo, portanto
impossível de ser atendida, converte-se sistematicamente na exigência do
cumprimento de um direito.
Reportando-se as histéricas Quinet (ibidem) alude a concepção de vitimativa
como sendo uma modalidade de funcionamento inconsciente típico da histeria.
Lacan nos “Outros escritos” (2001) ao comentar sobre o ato analítico afirma que o
objeto é ativo e o sujeito subvertido, concepção que será retomada por Quinet
(2004) em “Um olhar a mais”, declarando que “na distribuição entre sujeito e objeto
operada pela psicanálise, o objeto é a causa e o sujeito é o efeito”. (idem, ibidem,
p.66). Desta feita, podemos equiparar o lugar ocupado pelo objeto ao da atividade e,
93
em contrapartida, o lugar ocupado pelo sujeito como sendo aquele que diz respeito
ao resultado.
Eis a identificação com a vítima que pode ser totalmente inconsciente como,
por exemplo, a que está presente no sintoma. Esse é outro aspecto da
dissimulação histérica, pois trata-se, na verdade, de uma identificação com
a posição de objeto. (idem, ibidem, p.118).
Malu, por meio da identificação histérica, utiliza seu corpo como aporte para
transcrever os sintomas apresentados por sua mãe? A repetição incide mais uma
vez em sua história fazendo-a “passar mal como a mãe”, diante da ameaça de
“roubo” da filha. Para a paciente, frente a esta iminência sua mãe “enlouquece” e ela
inicia um processo de “depressão e Síndrome do Pânico”.
Bem como na história de Malu, os significantes “doméstica” e “abandonada”
aparecem ao longo da descrição biográfica de Billie Holiday, entretanto seus
posicionamentos se distinguem. Na fantasia da paciente o S1 “distribuída” ganha a
conotação de “descuidada”, enquanto Billie é a “espancada”. Sendo assim, no lugar
do Outro no matema da fantasia, no pólo do objeto a, Billie é “espancada, roubada
e Malu “distribuída, descuidada”. Na outra extremidade, no pólo do sujeito barrado
($), onde um significante, escolhido pela via identificatória, representa o sujeito para
o Outro, temos os unívocos doméstica e cuidadora” no caso de Malu e doméstica,
escrava e puta” com Billie.
Billie Holiday parece ter construído sua fantasia tendo como fundamento o
significante “espancada”. Com essa hipótese podemos supor sua frase fantasmática
como sendo “espanca-se uma criança”. É esse lugar ao qual retorna
insistentemente, lugar do desencontro, no pólo do objeto a no matema da fantasia
($ a), que indica a tiquê. No encontro com o real presentificado na fantasia, Billie
se faz espancar e Malu se faz descuidar. Fora da lógica significante, impossível de
simbolizar, esta modalidade de repetição que vislumbramos a partir do matema
94
mencionado, direciona Malu para a posição de descuidada e Billie para a de
espancada.
Billie identifica-se com uma série de significantes destrutivos, desprezíveis,
desqualificados: “puta, cachorra, empregada”. Como entender o artista performático,
na medida em que ele próprio se faz obra de arte? O artista performático faz isso
com sua própria pessoa? O artista deixa de ser sujeito quando se dá ao público, pois
se em lugar de puro objeto. Pelo fato de ser artista, Billie é ultrapassada pela
própria obra, e por isso revela o que para-além da fantasia; desvenda uma
verdade sobre o objeto a. Alain Badiou (1994), em seu livro "Para uma nova teoria
do sujeito" revela que:
"A arte é aquilo que faz com que o objeto de desejo, não simbolizável,
advenha em subtração no próprio cúmulo de uma simbolização. A obra de
arte faz desvanecer, em sua forma, a cintilação indizível do objeto perdido.
É assim que ela prende, inevitavelmente, o olhar ou o ouvido daquele que a
ela se expõe. A obra de arte provoca uma transferência porque exibe um
objeto que é causa de desejo". (idem, ibidem, p.24).
Billie Holiday exibe-se no show, na mostração, como um olhar que se faz voz
para o encantamento do Outro, fomentando o encontro dos dois objetos do desejo
formalizados na teoria lacaniana. Enquanto o olhar é objeto do desejo remetido ao
Outro, a voz é o objeto do desejo do Outro. Por ambos, olhar e voz, constituírem-se
como objetos a revestem-se de inapreensibilidade, inconsistência. "No âmbito
escópico do desejo, o sujeito se dá-a-ver para o Outro, se oferece em exibição ao
Outro do desejo, se mostra ao Outro do desejo". (LACAN, 1964, p.111). Por não
suportar o olhar do Outro, Billie precisa ser espancada, reduzida meramente a objeto
a, mortificada, destituída subjetivamente, para conseguir subir ao palco, fazendo
suplência ao S1 que parece falhar. Ela está no lugar de objeto a, "a espancada",
para o espectador que divide-se encantado. Como uma voz que se dá ao olhar Billie
faz aquele que a assiste gozar. Com isso, o público verifica a transmutação do
95
artista na própria obra de arte. À luz da teoria lacaniana constatamos que é o real
que permite que o artista se converta em obra de arte. Contraditoriamente, ao cantar
os significantes que demarcam as repetições inconscientes são esvaziados
resultando no estabelecimento da tiquê.
Se a tiquê diz respeito ao real, logo ao que não pode ser verbalizado, o
autômaton refere-se à insistência da palavra. A incidência significante é
inquestionável quando consideramos o dito materno que presumiu duas únicas
profissões para Billie, “prostituta e empregada”, que parece ter se tornado um
vaticínio, uma vez que ela exerceu ambas as funções durante toda sua vida. Para
Billie “putanão é somente a mulher que oferece o corpo em troca de dinheiro, mas
a mulher de um homem. o é por acaso que Billie nomeia os homens com quem se
relacionou de “cafetões”, pois estes “administravam”, segundo ela, seu corpo e seu
dinheiro, ou seja, a espancavam e lhe roubavam.
De que modo Billie interpretou a mensagem procedente do Outro? A escolha
pela música seria uma tentativa de fuga da profecia materna que encontrou uma
saída no desejo paterno? Parece que Billie se identifica ao pai como uma tentativa
de escapatória do presságio de sua mãe.
Na noite em que recebeu a notícia da morte de seu pai afirmou que, ainda
assim, fez sua apresentação, pois acreditava que esse era o desejo dele. De que
forma ela interpretou o desejo do Outro? Podemos pensar na hipótese de Billie ter
capturado, através da identificação com o pai, a música como S1 para fazer frente ao
destino de “puta, escrava e surrada"? Em seu relato autobiográfico afirma que foi
durante toda vida abandonada pelo pai em prol das excursões promovidas pela
banda da qual fazia parte. Billie demonstra que escolheu ser cantora a partir da
96
tradução tecida do desejo paterno. Para onde aponta o falo do pai? Billie interpreta:
para a música.
Billie optou por adotar o sobrenome paterno, Holiday, embora este jamais
tenha constado em seus registros. Inicialmente utilizava o sobrenome sob a grafia
Halliday. Foi somente após o primeiro comparecimento de seu pai a um espetáculo,
gesto ao qual ela atribuiu o sentido de prestígio e reconhecimento deste pela
originalidade de seu trabalho, que se autorizou a utilizar o sobrenome Holiday. Billie
endereça a seu pai o ofício artístico bem como as letras das canções por ela
compostas como uma tentativa de captá-lo?
Em Left alone”, ela canta: First they hurt me, then desert me / I'm left alone,
all alone / There's no house that I can call my home (Primeiro ele me machuca,
então me abandona / Eu fui deixada sozinha, totalmente sozinha / Não casa que
eu possa chamar de meu lar). Em outra canção, "God bless the child", entoa os
seguintes versos: “Them that's got shall have / Them that's not shall lose / So the
Bible said and it still is news / Mama may have, papa may have / But God bless the
child that's got his own(Aqueles que tem devem ter / Aqueles que não tem devem
perder / Então o que a bíblia disse ainda é notícia / Mamãe pode ter, papai pode ter /
Deus abençoe as crianças que tem o seu próprio).
Nestes trechos Billie evidencia o que para ela representava uma das questões
cruciais que alinhavavam sua trajetória: o abandono, a falta de cuidado. Em seu livro
descreve seus pais como aqueles que a abandonaram, a deixaram sozinha. Diante
disso, podemos nos questionar se estas composições foram endereçadas a eles,
constituindo mais uma via de demanda?
Billie reivindica cuidado e afeto e acento a relação estabelecida entre ela e
sua bisavó. De acordo com sua exposição esta parece ser seu mais valioso objeto
97
de amor. O significante “escrava”, procedente de sua bisavó, admite um duplo
registro, pois conjuga as posições de escrava enquanto “puta”, escrava sexual, e
escrava como aquela que cuida da casa, “doméstica”. Igualmente a bisavó, Billie é a
escrava que trabalha sem obter remuneração, pois é roubada. Como doméstica,
Billie escraviza-se limpando banheiros, cozinhas e escadas desde os dez anos,
repetindo a conduta materna.
A escravidão perpassa todas as suas relações amorosas, fato versado nas
canções "Long gone blues" e "I love my man". Na primeira declara: Tell me, baby
what's the matter now? / Are you tryin' to quit me, baby / But you don't know how /
I've been your slave / Ever since I've been your babe / I've been your slave(Me
diga, baby qual o problema agora? / Você está tentando me deixar? / Mas você não
sabe como / Eu tenho sido sua escrava / Desde quando tenho sido sua babe /
Tenho sido sua escrava). Na segunda letra corrobora a mensagem aludida: Ever
since I've been your way / I've been your slave / Ever since I've been your babe / But
before I'll be your dog (Desde que estou no seu caminho / Eu tenho sido sua
escrava / Desde que eu seja querida por você / Mas antes eu vou ser sua cachorra).
Billie evidencia sua posição em relação aos homens. Em lugar de objeto dejeto
oferece-lhes o brilho e a opacidade simultaneamente.
Podemos concluir que nesta báscula, Malu ora (des)cuida, ora é descuidada,
ora distribui, ora é distribuída, alternando entre as polaridades $ e a. Com Billie
verificamos movimento análogo: enquanto sujeito barrado ($) agride, rouba e na
posição de objeto a é espancada, roubada.
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CONCLUSÃO
Esta investigação objetivou desde o princípio percorrer os conceitos que
sustentam e baseiam o estudo da fantasia, da repetição e do gozo, para alcançar
tais definições nas teorias freudiana e lacaniana, respaldada no conflito entre a
proposta da psicanálise que visa a implicação do sujeito em relação ao seu sintoma
e a sociedade que o destitui de tal responsabilidade.
Este estudo, calcado nas obras de Freud e Lacan, teve como finalidade
primordial investigar de que forma a fantasia se relaciona com o gozo e a repetição.
A partir da experiência clínica da autora desta dissertação intentamos ilustrar e
corroborar a teoria psicanalítica ressaltando o caráter social da pesquisa,
demonstrando que o sujeito para a psicanálise é sujeito do desejo, portanto
impassível de vitimização.
Nos primórdios da construção teórica, Freud criou a teoria da sedução, ou
teoria do trauma, para dar conta dos fenômenos histéricos. Nessa época, ele
defendia a ideia de que havia sempre uma cena sexual real à qual todo neurótico
teria sido submetido. Todavia, em 21 de setembro de 1897, Freud menciona sua
nova descoberta em uma correspondência endereçada a Fliess, inaugurando a
teoria da fantasia alicerçada sobre o conceito de realidade psíquica.
99
De que maneira uma fantasia se configura? A primeira experiência de
satisfação à qual o bebê foi submetido, discutida por Freud (1950 [1895]) no “Projeto
para uma psicologia científica”, indica uma percepção mítica inicial de plenitude que
em seguida é perdida e que jamais será alcançada novamente. Malograda sua
expectativa de integralidade da satisfação, o be na tentativa de recobrir essa
fenda que se instala, traça sua fantasia.
Lacan, ao construir o grafo do desejo, demonstra que a partir da consumação
da operação de castração o sujeito se dirige ao Outro e lança-lhe a seguinte
pergunta: Che vuoi? Que queres? para então estabelecer seu desejo calcado
naquilo que ele presume que o Outro queira dele. A resposta ao Che vuoi?
determinará a fantasia na tentativa de dar conta da castração do Outro que se
inscreve para o sujeito como sua própria fenda.
Em 1919, com o artigo “Uma criança é espancada: Uma contribuição ao
estudo da origem das perversões sexuais”, Freud (1919) elabora um estudo
detalhado da fantasia concebendo sua etiologia em três tempos. O segundo tempo é
o que interessa particularmente neste trabalho, pois constitui o que Lacan nomeará
de “fantasia fundamental”.
Lacan (1960) em, “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente
freudiano” propõe a fantasia como uma ficção fixada na qual o sujeito se engessa
permanecendo atado a ela, petrificado em sua posição fantasmática. O sujeito
neurótico funda sua fantasia colocando-se no lugar de sujeito barrado em todas as
relações lógicas possíveis com o objeto causa de desejo. Tal pressuposto é
sintetizado, na neurose, no matema da fantasia estabelecido por Lacan: $ a.
À medida que o sujeito constrói sua fantasia e se fixa a ela cria um movimento
inconsciente e circular, produzindo o que Freud denominou de compulsão à
100
repetição. A repetição indica uma intencionalidade que diz respeito à finalidade
inconsciente, em que compartilha paralelamente prazer e desprazer.
Lacan utiliza dois conceitos para designar formas distintas de repetição: tiquê
e autômaton. A tiquê diz respeito ao trauma, ao inevitável confronto com o real, de
encontro faltoso por excelência, que escapa ao significante. A tiquê é relacionada ao
acaso, ao acidente, embora implique certo grau de escolha do sujeito, pois, segundo
Lacan: “O lugar do real vai do trauma à fantasia na medida em que a fantasia
nunca é mais do que a tela que dissimula algo de absolutamente primeiro, de
determinante na função da repetição”. (idem, 1960, p.61).
Lacan evidencia outro modo de presentificação da repetição que pode ser
constatada no deslizamento da cadeia significante, a autômaton, que consiste no
modo como o sujeito tenta dar conta do real através do simbólico, buscando
inscrevê-lo na cadeia.
Na tentativa de ilustrar os conceitos psicanalíticos aludidos apresentamos a
biografia de Billie Holiday e a construção de um caso clínico, que puderam ser
descritos através da pesquisa teórica aliada à experiência clínica.
A pesquisa sobre a vida de Billie Holiday foi baseada primordialmente em sua
autobiografia, onde ganham destaque cenas de sua infância. Billie nasceu no ano de
1915 e passou grande parte da infância compartilhando a casa com seus avós,
primos e sua bisavó, pois seu pai excursionava com uma banda de jazz e sua mãe
viajava constantemente em busca de emprego. A convivência na residência onde
morava se tornou cada vez mais árdua, pois travava batalhas com sua prima Ida,
quem lhe espancava tendo ou não motivo que justificasse tal conduta, conforme
Billie assegura.
101
Aos dez anos de idade, Billie escolheu servir aos outros como doméstica, tal
qual sua mãe. Aos treze sua mãe enviou-lhe para morar em um apartamento
luxuoso administrado por uma cafetina. Admitia, ao contrário de sua mãe, saber que
o apartamento era em realidade um “puteiro”. Segundo sua mãe, reservam-se
apenas dois destinos para uma mulher negra e desprovida de recursos nascida em
Baltimore: tornar-se prostituta ou doméstica.
Billie ressalta que, durante a infância, apenas a bisavó materna cuidava dela.
A bisavó havia sido escrava, trabalhando para um fazendeiro com quem teve
dezesseis filhos. Surpreendentemente, todos nasceram mortos com exceção de seu
avô. Billie zelava, principalmente, pela saúde de sua bisavó, uma vez que de acordo
com a recomendação médica, ela deveria manter-se sentada, visto que se se
deitasse morreria. Após dez anos, decidi-se que se deitaria e pediu à bisneta que a
acompanhasse. Billie, embora inicialmente houvesse relutado, acatou seu desejo e
quando acordou sua bisavó estava morta.
A morte é uma questão recorrente no relato de Billie Holiday. A história de sua
bisavó traz igualmente a marca da morte. Que efeitos podem ter tido para Billie ser
cúmplice da morte da bisavó?
A partir desta cena traumática Billie passou a maltratar seu corpo das formas
mais variadas: incitava o outro a espancá-la; perfurava inteiramente seu corpo
injetando heroína inclusive em sua vagina; como prostituta vendia o corpo em troca
de dinheiro; aos maridos oferecia seu corpo para massacre e pagava por isso, já que
estes roubam toda sua fortuna. Encerrava-se, enfim, em um corpo cativo.
Temas que se aproximam à questão da morte são: as inumeráveis prisões, o
uso de drogas, a violência, a prostituição. Billie coloca seu corpo ininterruptamente a
serviço da exibição e do maltrato. destaque a significantes imbuídos de torpeza
102
utilizados para designá-la, determinando um modo próprio de perpetuar o gozo,
engessando-a em uma posição subjetiva peculiar: “puta”, “pobre”, “drogada”,
“negra”, “empregada”, “surrada”.
Billie Holiday tinha o hábito de ser “surrada” por seus companheiros para
garantir um bom recital. Com estes construía relações demasiadamente destrutivas,
pois os homens elegidos por ela obedeciam, sucessivamente, ao mesmo
estereótipo: “trapaceiros, hostis, desleais, agressivos”. Todos os homens com quem
Billie se relacionava tornavam-se, a pedido dela, seus agenciadores, o que
acarretava invariavelmente em ter seu dinheiro roubado. Billie colide com o Outro
agressor desde tenra idade. Os substratos enraizados da prima Ida se multiplicam
ao longo de sua vida cada vez que se depara com os homens. Billie apresenta-se
como se o estivesse fazendo forçada, como se algo a obrigasse a responder
daquele lugar.
Billie expôs sua trajetória assinalada notoriamente pelo preconceito, pela
morte, por perdas, abandonos, agressões, roubos, exploração, violência sexual e
punições sofridas por suas contravenções. Em seu percurso é notória a intensidade
com que a pulsão de morte se desvela. O conceito introduzido por Freud em Mais-
além do princípio de prazer” (1920) indica uma tentativa de reintegração a um estado
anterior, que se trata de uma inclinação natural que remeteria o sujeito a uma
condição inorgânica.
Ao morrer Lady Day”, conforme era alcunhada, deixa de herança o registro
de seu grande sonho”. Almejava ter uma casa espaçosa onde pudesse “cuidar” de
crianças e cachorros, segundo ela, duas grandes paixões. Todavia impunha uma
condição sine qua non para que o projeto pudesse ser realizado com sucesso:
103
teriam que ser todos abandonados e órfãos. Billie esclareceu a origem dessa
aspiração: ela própria sentiu-se, por toda vida, como uma criança abandonada.
O significante “abandonada” surge na obra de Billie Holiday, tal qual no
discurso de Malu. A paciente, uma mulher de quarenta anos, procurou tratamento
analítico, pois se autodiagnosticava como portadora de Síndrome do Pânico e
depressão. Desde a primeira entrevista enuncia sua queixa relativa ao “medo de
ficar Malu-ca como a mãe”. Vincula o surgimento da Síndrome do Pânico e da
depressão a um assalto ocorrido em sua casa. Posteriormente, passa a associar sua
“doença” a outro evento que marcou o episódio do assalto: a ameaça de que sua
vizinha roubasse sua filha caçula. Malu revela que o que fez sua mãe ficar maluca
foi a ameaça feita por uma vizinha de roubar uma de suas irmãs, que na época
ainda era a caçula. Malu, tal como a mãe, adoece a partir da iminência de que a
vizinha roube sua filha caçula.
As questões desveladas por Malu durante o processo analítico envolvem
invariavelmente o significante “cuidado”. A primeira recordação da paciente que se
refere à demonstração da falta de zelo aparece deixando uma marca no corpo. A
partir da trágica “cena do berço”, tal como ela a denomina, que ocorre quando conta
apenas dois anos de idade e tem o lado esquerdo de seu corpo completamente
queimado por um “descuido” da mãe, Malu sente-se “descuidada, abandonada”.
Segundo ela, seu corpo carregará eternamente o registro da negligência.
Coloca-se sempre da mesma maneira diante do outro: “cedendo”, “cuidando”,
“qualquer coisa para não ser abandonada”. “Qualquer coisa” não é exatamente
qualquer uma, se resume sempre em cuidar do outro para então receber a
retribuição. “Cuida para ser cuidada em troca”.
À medida que a história de Malu se encontra enlaçada ao significante
104
“cuidado”, que se repete inconscientemente em seus atos, podemos supor esse
como o cerne de sua fantasia fundamental, que poderia ser traduzida como
“descuida-se de uma criança” e que aparece na equivalência “abandona-se”,
“distribuí-se”, “joga-se fora”, “larga-se”, “manda-se embora”. É assim que Malu se
revela ao longo do tratamento analítico, demonstrando como toda a sua narrativa
contorna sua posição fantasmática.
Freud dirá que o sujeito repete inconscientemente em seus atos, justamente
os substratos que se ligam e que estão profundamente arraigados a sua fantasia. Ao
cuidar do Outro, Malu repete algo que toca o núcleo de sua fantasia fundamental,
visto que esta se baseia justamente na ideia de que ela própria não foi cuidada.
Malu, interpretando o desejo do Outro, responde ao Che vuoi? à sua maneira. É
diante da grande questão do enigma do Outro que o sujeito estampa sua fantasia. O
que o Outro quer de mim? é a questão fundadora da fantasia. Ao se interrogar sobre
isso parece que Malu responde: “Quer que eu cuide”.
Assim, verificamos que a fantasia tem sempre um cunho obsceno, abusivo,
gozoso, vinculada diretamente ao complexo de Édipo, e por isso é inconsciente,
recalcada e nunca será rememorada, como assegura Freud (1919) no artigo “Bate-
se numa criança”. O segundo tempo da fantasia tal qual descrito por Freud (ibidem)
neste texto é configurado por Lacan sob a forma do matema, $ a, onde
encontramos do lado esquerdo o sujeito do abuso e na outra extremidade o objeto
do abuso.
Com o advento da psicanálise o homem passa a ser vislumbrado como
sujeito desejante, responsável portanto por suas escolhas, mesmo inconscientes,
por seu posicionamento diante da vida. Malu e Billie Holiday se apresentam de modo
desimplicado, pois acreditam que não podem responder por seus atos, condutas,
105
comportamentos, uma vez que são vítimas do outro. A construção deste trabalho
viabilizou a desmistificação desta premissa, pois como afirma Lacan o objeto é ativo
e o sujeito subvertido, concepção que culmina na ideia de vitimativa abordada
anteriormente nesta dissertação.
Ao longo da pesquisa pudemos constatar que há diferenças significativas
entre os dois casos estudados, embora à princípio parecesse haver uma
equivalência. Bem como na história de Malu, os significantes “doméstica” e
“abandonada” aparecem ao longo da descrição biográfica de Billie Holiday,
entretanto seus posicionamentos se distinguem. Na fantasia da paciente o S1
“distribuída” ganha a conotação de “descuidada”, enquanto Billie é a “espancada”.
Sendo assim, no lugar do Outro no matema da fantasia, no pólo do objeto a, Billie é
“espancada, roubada” e Malu “distribuída, descuidada”. Na outra extremidade, no
pólo do sujeito barrado ($), onde um significante, escolhido pela via identificatória,
representa o sujeito para o Outro, temos os unívocos “doméstica e cuidadora” no
caso de Malu e “doméstica, escrava e puta” no caso de Billie.
Billie Holiday parece ter construído sua fantasia tendo como fundamento o
significante “espancada”. Com essa hipótese podemos supor sua frase fantasmática
como sendo “espanca-se uma criança”. É esse lugar ao qual retorna
insistentemente, lugar do desencontro que indica a tiquê. No encontro com o real
presentificado na fantasia, Billie se faz espancar e Malu se faz descuidar.
Os significantes que formam a rede primordial dessas mulheres se encontram
em determinado ponto, pois são similares. Contudo, apresentam significados
completamente distintos em cada história. Interessou-nos tocar o âmbito subjetivo
onde ganham destaque a fantasia fundamental e a repetição que conduz a vida
desses sujeitos. Certificamo-nos da amarração entre a fantasia, enquanto realidade
106
psíquica, e a repetição que visa apreender o que é da ordem da falta, que por sua
vez promove a edificação da fantasia. Destarte, o elo de ligação entre fantasia e
repetição é a falta estrutural de todo sujeito neurótico.
107
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______. Do amor ao gozo: Uma leitura de "Bate-se numa criança". Revista Marraio:
O mal-estar na infância II, n 13. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2007, p.35-54.
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Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (ESB). Rio de
Janeiro: Imago, 1996. Vol. 2.
______. (1900) Interpretação dos sonhos. In: ESB, op. cit. Vols. 4 e 5.
______. (1905) Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: ESB, op. cit. Vol. 7.
______. (1906 [1905]) Minhas teses sobre o papel da sexualidade na etiologia das
neuroses. In: ESB, op. cit. Vol. 7
______. (1906 [1905]) Personagens psicóticos no palco. In: ESB, op. cit. Vol. 7.
______. (1907 [1906]) Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen. In: ESB, op. cit. Vol.
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______. (1908a) Escritores criativos e devaneio. In: ESB, op. cit. Vol. 9
______. (1908b) Fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade. In: ESB,
op. cit. Vol. 9.
______. (1908c) Sobre as teorias sexuais infantis. In: ESB, op. cit. Vol. 9.
______. (1909 [1908]) Algumas observações gerais sobre os ataques histéricos. In:
ESB, op. cit. Vol. 9.
______. (1909) Análise de uma fobia num menino de cinco anos. In: ESB, op. cit.
Vol. 10.
______. (1909) Romances familiares. In: ESB, op. cit. Vol. 9.
______. (1911) Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental. In:
ESB, op. cit. Vol. 12.
______. (1913) A disposição à neurose obsessiva. Uma contribuição ao problema da
escolha da neurose. In: ESB, op. cit. Vol. 12.
______. (1913 [1912-13]) Totem e tabu. In: ESB, op. cit. Vol. 13.
______. (1914) Recordar, repetir e elaborar. In: ESB, op. cit. Vol. 12.
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______. (1915) O inconsciente. In: ESB, op. cit. Vol. 14.
______. (1917) Uma dificuldade no caminho da psicanálise. In: ESB, op. cit. Vol. 17.
______. (1917 [1916-17]) Conferências introdutórias sobre a psicanálise
Conferência XXIII: Os caminhos para a formação dos sintomas. In: ESB, op. cit. Vol.
16.
______. (1919a) Uma criança é espancada: uma contribuição ao estudo da origem
das perversões sexuais. In: ESB, op. cit. Vol. 17.
______. (1919b) O ‘Estranho’. In: ESB, op. cit. Vol. 17.
______. (1920) Mais-além do princípio do prazer. In: ESB, op. cit. Vol. 18.
______. (1924) A perda da realidade na neurose e na psicose. In: ESB, op. cit.
Vol.19.
______. (1925) Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os
sexos. In: ESB, op. cit. Vol. 19.
______. (1926 [1925]) Inibição, sintoma e angústia. In: ESB, op. cit. Vol. 20.
______. (1931) Sexualidade feminina. In: ESB, op. cit. Vol. 21.
______. (1933 [1932]) Novas conferências introdutórias sobre psicanálise
Conferência XXXIII: Feminilidade. In: ESB, op. cit. Vol. 22.
______. (1940 [1938]) Esboço de psicanálise. In: ESB, op. cit. Vol. 23.
______. (1950 [1895]) Projeto para uma psicologia científica. In: ESB, op. cit. Vol. 1.
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In: ESB, op. cit. Vol. 1.
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In: ESB, op. cit. Vol. 1.
______. (1950c [1892-1899]) Extratos dos documentos dirigidos a Fliess: Rascunho
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110
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______. (1953-1954) O Seminário, livro 1: Os escritos técnicos de Freud. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1986.
______. (1956-1957) O Seminário, livro 4: A relação de objeto. Rio de Janeiro
Jorge Zahar Editor, 1995.
______. (1957-1958) O Seminário, livro 5: As formações do inconsciente. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999.
______. (1958) A direção do tratamento e os princípios do seu poder. In: ______
Escritos, op. cit., p. 591-652.
______. (1959-1960) O Seminário, livro 7: A ética da psicanálise. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 1997.
______. (1960) Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano.
In: ______ Escritos, op. cit., p.807-42.
______. (1962-1963) O Seminário, livro 10: A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2005.
______. (1964) O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da
psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
______. (1966) Posição do inconsciente. In: ______. Escritos, op. cit, p.843-64.
______. (1972-1973) O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 2008.
______. (1974) A terceira. In: Intervenciones y textos 2. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1988.
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______. (1974) Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993.
______. (1975) RSI. Versão não editada.
______. (2001) Outros escriros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
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poderosas. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.
QUINET, Antonio. A descoberta do inconsciente: Do desejo ao sintoma. 2ª ed. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.
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Jorge Zahar Editor, 2004.
______. A lição de Charcot. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.
RINALDI, Doris. A ética da diferença: Um debate entre psicanálise e antropologia.
Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed./ EDUERJ, 1996.
112
ANDICE A Curso de extensão: O conceito de fantasia
em Freud e Lacan
Este curso se propõe a investigar o conceito de fantasia principalmente na
obra de Freud, considerando-o como cerne de seus essenciais avanços. O próprio
conceito de inconsciente, pilar na teoria psicanalítica, está atrelado à fantasia desde
o momento em que Freud rompe com a ideia de uma realidade factual, passando da
teoria do trauma ou da sedução, para dar relevo à noção de realidade psíquica,
inaugurando a teoria da fantasia. Como advertiu Lacan (1969-1970), “se há algo que
a experiência analítica nos ensina, é justamente o que se refere ao mundo da
fantasia”. (idem, ibidem, p.47).
Sendo a fantasia o objeto de nosso estudo, pretendemos produzir uma
articulação entre este conceito e um dos quatro conceitos fundamentais da
psicanálise postulados por Lacan, qual seja: a repetição. Esta proposta requer que
nos debrucemos sobre a investigação da fantasia como eixo primordial em torno do
qual se articula o conceito de repetição.
Neste seminário serão examinados os principais textos de Freud e Lacan
sobre o tema, tais como, “Extratos dos documentos dirigidos a Fliess: Carta 69”
(FREUD, 1950b [1892-1899]), “Projeto para uma psicologia científica” (FREUD, 1950
[1895]), “Escritores criativos e devaneio” (FREUD, 1908a), “Recordar, repetir e
113
elaborar” (FREUD, 1914), “Uma criança é espancada: Uma contribuição ao estudo
da origem das perversões sexuais” (FREUD, 1919a), “Mais-além do princípio do
prazer” (FREUD, 1920), O Seminário, livro 4: A relação de objeto (LACAN, (1956-
1957), Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano (LACAN,
1960), O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise
(LACAN, 1964), entre outros.
Local: Universidade Veiga de Almeida – Campus Tijuca.
Público Alvo: Psicanalistas, profissionais ou estudantes de psicologia e áreas afins.
Programação: Leitura e discussão das obras freudiana e lacaniana que elucidam o
conceito de fantasia.
I - Estudo teórico sobre o tema:
- A criação do conceito psicanalítico de fantasia
- A concepção freudiana
- A fantasia em Lacan
- Fantasia e repetição
II - Ilustração clínica sobre o tema da fantasia a partir de um relato
autobiográfico:
- Biografia de Billie Holiday
- Fantasia e repetição em sua história
114
Carga horária: 15 horas.
Certificado: O aluno que preencher de forma satisfatória os quesitos assiduidade e
aproveitamento terá direito a certificado.
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