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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
CENTRO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS – GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
Sandra Alves da Silva Santiago
EXCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA, EDUCAÇÃO
PARA QUÊ?
João Pessoa/PB
Junho, 2009
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2
Sandra Alves da Silva Santiago
EXCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA, EDUCAÇÃO
PARA QUÊ?
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Educação do Centro de
Educação da Universidade Federal da
Paraíba, como parte dos requisitos para a
obtenção do título de Doutora em
educação.
Orientador: Roberto Jarry Richardson
João Pessoa/PB
2009
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3
Sandra Alves da Silva Santiago
EXCLUSÃO MUNDIAL DA PESSOA COM DEFICIENCIA,
EDUCAÇÃO PARA QUÊ?
Aprovada em: ____/_____/_______
BANCA EXAMINADORA
______________________________________________
Prof. Dr. Roberto Jarry Richardson - Orientador - UFPB
______________________________________________
Profa. Dra. Janine Marta Coelho Rodrigues – UFPB/CE
______________________________________________
Prof. Dr. Wilson Honorato Aragão – UFPB/CE
______________________________________________
Profa. Dra. Wanilda Maria Alves Cavalcanti – UNICAP/PE
______________________________________________
Profa. Dra. Marlúcia Menezes de Paiva – UFRN/CCSA
4
Ao meu marido Edinaldo e minhas
filhas Nathaly e Beatriz pela
compreensão, apoio e entusiasmo
demonstrados ao longo de minha
vida pessoal e acadêmica,
reafirmando que me amam
incondicionalmente. Em nome do
amor mais sublime foram vocês que
souberam sonhar os meus sonhos,
respeitar meus limites e perdoar
minha ausência. Pelo mesmo amor,
dedico a vocês esta conquista.
5
AGRADECIMENTOS
À luz divina que habita em mim e em cada irmão de jornada, por manter-se
sempre acesa no meu coração, apontando na direção do conhecimento como
instrumento de libertação e de dignificação humana;
Aos meus pais, Joel Alves da Silva Santiago (In Memoriam) e Maria Selma
Rodrigues Santiago, pelo dom da vida e bons ensinamentos que alicerçaram
meus passos, fazendo-me buscar mais a sabedoria em meio aos
conhecimentos;
Aos meus irmãos e irmã, pela oportunidade de exercitar meu amor em todas as
suas dimensões;
A Glaydson A. S. Santiago, por participar mais de perto desta jornada,
enchendo-a de motivos para sorrir e comemorar;
Ao professor Dr. Roberto Jarry Richardson por todas as vezes que comungou
das minhas idéias e decisões, reforçando minhas convicções sobre a exclusão
social. Mas, agradeço-lhe especialmente pelas ocasiões em que esteve
contrário às minhas verdades, seja porque desvelou meus equívocos,
impedindo-me de seguir por caminhos incertos, seja porque me motivou ainda
mais a separar os mitos dos conhecimentos;
À professora Dra. Wanilda Maria Alves Cavalcanti, por fazer parte da minha
história, tornando-se exemplo de seriedade e humanidade a ser seguido. Ainda
pelo reencontro pleno de alegria, coroado pelas inúmeras contribuições
voltadas à qualificação desta tese;
À professora Dra. Janine Marta Coelho Rodrigues, por fazer parte de minha
trajetória profissional e acadêmica na Universidade Federal da Paraíba,
contribuindo de modo ímpar com suas reflexões sobre a educação da pessoa
com deficiência e os processos de exclusão/inclusão social;
6
Ao professor Dr. Wilson Honorato Aragão, pelo estímulo e pela participação
carinhosa e responsável durante o processo de construção desta tese;
À professora Marlúcia Menezes de Paiva, por aceitar o convite e tomar parte
nesta produção acadêmica, de maneira responsável e solidária;
Aos familiares e amigos, de perto e de longe, recentes e antigos, presentes e
ausentes, constantes e inconstantes, que de uma forma ou de outra,
aprenderam a estimular meus projetos e respeitar minhas escolhas,
encontrando, inclusive, a felicidade nas minhas realizações.
7
O processo pelo qual uma sociedade
expulsa alguns de seus membros obriga a
que se interrogue sobre o que, em seu
centro, impulsiona essa dinâmica.
Robert Castel
8
LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1: Trabalho escravo no Egito...........................................................28
FIGURA 2: Povos da Mesopotâmia................................................................31
FIGURA 3:
Agricultores Sumérios..................................................................32
FIGURA 4: O Porteiro Roma............................................................................90
FIGURA 5: Estela com anões..........................................................................91
FIGURA 6: Seneb e sua família.......................................................................92
FIGURA 7: Sistema Feudal..............................................................................99
FIGURA 8: Objetos Utilizados pelo tribunal da Inquisição .......................138
FIGURA 9: A Bussola Magnética..................................................................148
FIGURA 10: A Mesoamérica..........................................................................152
FIGURA 11: Manual da Inquisição................................................................156
FIGURA 12: O interior dos hospícios/hospitais/asilos...............................166
FIGURA 13: Hospital de Bedlan, 1676..........................................................167
FIGURA 14: Projetos de Leonardo Da Vinci................................................171
FIGURA 15: Sistema Braille...........................................................................195
FIGURA 16: O tranqüilizador.........................................................................198
FIGURA 17: O berço.......................................................................................199
FIGURA 18: Helen Keller e a professora Anne Sullivan (1887)..................204
FIGURA 19: Aparelho de amplificação sonora individual..........................210
FIGURA 20: Teclado colméia para pessoas com problemas motores......211
FIGURA 21: Telefone para pessoas com baixa visão.................................211
9
LISTA DE QUADRO E GRÁFICOS
QUADRO 1: Milagres e Deficiências.............................................................113
GRAFICO 1: Distribuição da matrícula de alunos com
deficiência......................................................................................................232
GRÁFICO 2: Matrícula de alunos com deficiência na rede pública e
privada............................................................................................................233
10
LISTA DE SIGLAS
OMS – Organização Mundial da Saúde
QI – Coeficiente de Inteligência
OIT – Organização Internacional do Trabalho
NARC - National Association for Retarded Children
CORDE - Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora
de Deficiência
CIF - Classificação Internacional de Funcionalidade, Deficiência e Saúde
CADEME – Campanha Nacional sobre as Deficiências Mentais
APAE - Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais
ABRADEF - Associação Brasileira dos Deficientes Físicos
SEESP - Secretaria de Educação Especial
LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
AIDP - Ano Internacional do Portador de Deficiência
CNE - Conselho Nacional de Educação
MEC – Ministério da Educação e Cultura
NAAH/S - Núcleos de Atividades de Altas Habilidades/Superdotação
MC – Ministério das Cidades
PDE - Plano de Desenvolvimento da Escola
TIC - Tecnologias de Informação e Comunicação
CENESP - Centro Nacional de Educação Especial
11
RESUMO
O presente trabalho de doutorado, cuja tese é “A Educação contribui para a
exclusão social da pessoa com deficiência, pois atende aos interesses de
classe”, tem por objetivo identificar as causas da exclusão social de pessoas
com deficiência e o papel da educação neste processo. Para tanto, faz uso de
uma abordagem materialista dialética, a partir de onde considera a exclusão
como fenômeno investigativo e a classe social como principal elemento de
análise. Dentro de uma perspectiva histórica, toma a relação essência/
aparência como a categoria central de reflexão para que se compreenda que é
o pertencimento de classe que vem determinando a condição de exclusão ou
inclusão de pessoas que possuem deficiências, sejam elas, físicas, sensoriais
ou mentais. Nesta direção, apresenta de maneira histórica as relações sociais
estabelecidas entre pessoas com deficiência e pessoas sem deficiência em
diferentes civilizações, tendo seu início na Antiguidade Clássica através de
diversos povos. Em seguida, analisa a Idade Média e Moderna nos mesmos
moldes, dando destaque à questão religiosa e científica que caracteriza cada
época. Da mesma forma, a tese chega à contemporaneidade demonstrando
que a condição de exclusão de que foram vítimas indivíduos com deficiência
esteve (e está) diretamente relacionada ao seu pertencimento de classe. A
síntese da referida tese aponta no sentido do reconhecimento do papel que a
educação exerce na legitimação ou superação desta situação, conclamando as
políticas públicas no Brasil para construírem uma sociedade inclusiva, ou seja,
uma educação para todos e para além dos interesses classistas.
Palavras-chave: Exclusão, Inclusão, Deficiência, História.
12
ABSTRACT
The present doctorate work, whose thesis is “Education contributes for social
exclusion of the handicapped person because it is in accordance with class
interest”, aims to identify the social exclusion causes of handicapped people
and the educational role in this process. For this reason, it uses a dialectical
materialistic approach from where it considers exclusion as an investigative
phenomenon and the social class as main element of analysis. Within a
historical perspective, it takes into account the essence/appearance relation as
a central category of reflection in order to understand that class belonging has
been determining exclusion or inclusion condition of those people who are
handicapped, either physically, sensorially or mentally. In this sense, this work
presents, in a historical manner, social relations between handicapped people
and people with no deficiency in different civilizations, having as starting point
the Classical Antiquity through several peoples. After that, it analyzes the
Middle and Modern Ages in the same way, emphasizing the religious and
scientific matters which characterize each era. Likewise, the thesis centers
around contemporaneity highlighting that the exclusion condition of those who
were victims, handicapped individuals, was and still is directly related to class
belonging. The summary of the mentioned thesis points out the role
acknowledgement that education impinges on legitimating or overcoming this
situation, claiming for Brazilian public policies to build an inclusive society, that
is, education for everybody and beyond class interests.
Word-key: Exclusion, Inclusion, Deficiency, History.
13
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO........................................................................................15
2. A EXCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIENCIA NAS CIVILIZAÇÕES
ANTIGAS................................................................................................24
2.1. As Primeiras Civilizações: as Classes Sociais e a Educação...............24
2.2. A Civilização Egípcia: aspectos gerais, luta de classes e
educação......................................................................................................26
2.3. A Civilização Mesopotâmica: aspectos gerais, luta de classes e
educação......................................................................................................30
2.3.1. A Civilização Suméria......................................................................31
2.3.2. A Civilização Babilônica.....................................................................35
2.3.3. A Civilização Assíria...........................................................................38
2.4. As Civilizações Mediterrâneas Orientais: aspectos gerais, luta de
classes e educação......................................................................................41
2.4.1. A Civilização Fenícia..........................................................................41
2.4.2. A Civilização Hebraica......................................................................42
2.4.3. A Civilização Persa.............................................................................50
2.5. As Civilizações Orientais: aspectos gerais, luta de classes e
educação......................................................................................................54
2.5.1. A Civilização Chinesa.........................................................................54
2.5.2. A Civilização Hindu.............................................................................63
2.6. A Civilização Greco-Romana: aspectos gerais, luta de classes e
educação......................................................................................................68
2.6.1. A Civilização Grega............................................................................68
2.6.2. A Civilização Romana........................................................................83
2.7. A exclusão da Pessoa com Deficiência nas Civilizações Antigas: Uma
questão de Classe Social.............................................................................89
3. A EXCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA NAS CIVILIZAÇÕES
MEDIEVAIS.............................................................................................96
3.1. A Época Medieval: aspectos gerais, classe social e educação............96
3.2. As Civilizações Medievais: aspectos gerais, luta de classe e
educação....................................................................................................100
3.2.1. As Influências Germânicas...............................................................101
3.2.2. A Influência Bizantina.......................................................................104
3.2.3. A Influência Muçulmana...................................................................108
3.2.4. A Influência Cristã e a questão da Deficiência.................................110
14
3.3. Educação, Religião e Classe Social na Idade Média..........................116
3.4. A Pessoa com Deficiência nas Civilizações Medievais: (pré) Conceitos
e Práticas Educativas.................................................................................123
3.5. Da Divinização à rejeição: uma questão de Classe Social.................131
4. A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA DEFICIÊNCIA NAS CIVILIZAÇÕES
MODERNAS E A NOVA FACE DA EXCLUSÃO.................................144
4.1. Civilizações Modernas: aspectos gerais, classe social e
educação....................................................................................................144
4.1.1. As Influências Renascentistas..........................................................145
4.1.2. As Influências Religiosas na Modernidade.......................................148
4.1.3. As Novas Configurações Sócio-econômicas da Modernidade.........150
4.2. A Ciência Moderna e as Deficiências: inclusão e exclusão de
quem?.........................................................................................................155
4.3. Os Novos Espaços de Segregação....................................................165
4.4. A Consolidação de uma Ciência Excludente......................................168
4.5. A Institucionalização da Deficiência: outro modelo, a mesma
exclusão.....................................................................................................172
5. A EXCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA NA
CONTEMPORANEIDADE....................................................................185
5.1. O Mundo Contemporâneo e os Processos de Exclusão.....................185
5.2. Ciência, deficiência e exclusão nos séculos XIX e XX........................190
5.3. A apesar da Ciência, a exclusão da deficiência..................................206
5.4. Da Exclusão à Inclusão, a luta das Pessoas com Deficiência por
Direitos.......................................................................................................212
5.5. A Inclusão como Política Pública........................................................216
5.6. A Política de Inclusão no Brasil...........................................................219
5.6.1. As Políticas Públicas Brasileiras para as Pessoas com Deficiência,
uma questão de classe social....................................................................220
6. POR UMA EDUCAÇÃO INCLUSIVA NUMA SOCIEDADE DE
CLASSES, ALGUMAS CONSIDERAÇÕES........................................235
REFERÊNCIAS..........................................................................................246
15
1. INTRODUÇÃO
A vida humana habita a terra muitos milênios, e pelo que se sabe
os homens primitivos viveram por muito tempo em bandos, em busca do
próprio alimento, obrigados a recolher somente o que era comestível, sem
dispor de habitação ou outros utensílios que tornassem sua vida mais segura e
tranqüila. É somente a partir do paleolítico (Primeira Idade da Pedra) que a vida
desses indivíduos começa a ser facilitada pela invenção de instrumentos
rudimentares. Ainda assim, o homem continua sujeito às mais diversas
ameaças: desde o ataque de animal selvagem aa própria fome, motivada
pela escassez de recursos para obter alimentos.
Estas dificuldades parecem ter sido o principal fator de aproximação
entre os humanos. A luta pela sobrevivência fez o homem descobrir a
necessidade de agrupar-se para tornar-se mais forte. Juntos, portanto, foi
possível unir esforços e desenvolver com maior rapidez os instrumentos de
intervenção no mundo material. Mas, foi também juntos que descobriram outras
práticas, nem sempre tão dignas, como: a exploração, a escravidão e a
exclusão de uns pelos outros.
É evidente que os agrupamentos facilitaram a sobrevivência das
pessoas. Coletivamente, os homens descobriram a utilização do fogo, das
pedras, dando início a uma nova Idade da pedra a Neolítica, ou da Pedra
Polida. Também em grupo inventaram o arco e a flecha, moldaram a argila,
fabricaram utensílios, utilizaram o couro dos animais. E, com isto,
transformaram o modo de obtenção dos meios de subsistência, fazendo uso da
pesca e da domesticação de animais; mais tarde, da agricultura, depois do
comércio e assim consolidou modos de produção cada vez mais sofisticados.
De início, o homem passa de uma vida nômade ao sedentarismo,
definindo territórios e ocupando-os através de grandes grupos humanos,
denominados tribos. Portanto, as necessidades fizeram com que os humanos
se aproximassem e descobrissem nos grupos um valor vital para a
sobrevivência. Mas, os mais fortes (e por que não dizer ‘saudáveis’) tiveram
mais oportunidades.
16
Neste contexto, vislumbramos nas palavras de Arendt, a idéia mais
clara de como os grupos foram fundamentais para o advento do homem:
“nenhuma vida humana, nem mesma a vida do eremita em meio à natureza
selvagem, é possível sem um mundo que, direta ou indiretamente, testemunhe
a presença de outros seres humanos” (ARENDT, 2007, p. 31).
Mesmo sendo evidente que todas as atividades que o ser humano
pôde desenvolver, estiveram desde os primórdios, condicionadas pelo fato
deste (o ser humano) estar convivendo com outros homens, mulheres e
crianças, naturalmente diferentes entre si, tais diferenças que afetam o
desenvolvimento (hoje compreendidas como deficiências) parecem ser alvo de
discriminação nas mais distintas sociedades; representando inclusive, um
empecilho ao grupo.
A literatura revela que desde épocas mais remotas, para as questões
de sobrevivência importava aos humanos as diferenças que o outro
apresentava. Os objetivos unificadores dos grupos e estes variaram entre
eles - encontravam nas diferenças físicas, de sexo, ou nas limitações físicas,
sensoriais ou mentais os obstáculos para sua consecução. Mas, o homem
deste período não possuía nenhum tipo de organização social e política que
assumisse o poder sobre a vida dos demais. Os conflitos se situavam
geralmente no plano pessoal e neste mesmo eram resolvidos.
Assim, a situação das pessoas acometidas por deficiências
1
, durante
os muitos milênios que se passaram da Idade da Pedra às primeiras
civilizações, não tenha sido motivo de preocupação ou rejeição no interior dos
grupos. Acredita-se, portanto, que a pessoa com deficiências
2
(ou doentes,
como deveriam ser identificadas) teria vivido de maneira muito semelhante as
1
Aqui cabe ressaltar que a distinção entre deficiência e doença não pode ser pretendida no
contexto antigo ou medieval, pois não era questão superada pelos conhecimentos da época.
Sendo assim, estaremos considerando para os objetivos deste estudo, os registros históricos
relativos a quaisquer dos termos, a fim de tornar possíveis as análises pretendidas, sabendo
que o mais comum é que limitações de ordem física, sensorial ou mental fossem tratadas como
doenças e não como deficiências.
2
As designações sobre as deficiências e sobre os sujeitos que as possuem foram
constantemente alteradas (excepcional, deficiente, especial, etc.). Apesar das inúmeras
controvérsias que acompanham estas mudanças, a partir da Carta de Guatemala (1999), foi
definido o uso do termo Pessoa com deficiência para nomear todos os sujeitos que possuem
limitações de ordem física, sensorial, mental ou múltipla. Neste estudo estaremos fazendo uso
desta terminologia a fim de precisar os sujeitos a quem nos referimos.
17
demais, exceto pelo fato, de que suas condições de saúde, locomoção, enfim,
de sobrevivência possam ter abreviado sua presença junto ao grupo.
Assim, embora, seja evidente que estas pessoas tenham tido muitas
dificuldades para sobreviverem, isso não assegura que as motivações sejam
grupais. E, mesmo sabendo que os registros desse período são escassos,
estamos certos que os poucos achados arqueológicos são suficientes para
atestarem a pouca interferência de uns sobre outros em épocas tão longínquas
e carentes de organização social.
Da mesma maneira que não se pode negar que as condições objetivas
de existência podem ter sido um grande obstáculo para que cegos, surdos,
paraplégicos ou pessoas com limitações cognitivas sobrevivessem junto aos
bandos; também não se pode esquecer que, certamente, uma grande parte
destas limitações foi adquirida junto ao grupo, a partir das atividades
desenvolvidas no cotidiano difícil onde se encontravam. Portanto, é bem
provável que o índice de pessoas acometidas por deficiências de causas
diversas (pré-natais, perinatais e pós-natais
3
) tenha sido alto, especialmente
vitimado pelos inúmeros acidentes, causados durante suas atividades diárias
de caça ou mesmo nas atividades dentro das cavernas. Mas, nenhum indício
parece indicar que pessoas com deficiência ou doentes fossem vítimas da
discriminação ou exclusão, especialmente porque este é um fenômeno que não
pode ser explicado a partir da prática individualizada.
A formação dos grupos e a legitimação entre os seus membros são
necessárias para que se pratique a exclusão de outros considerados
diferentes, especialmente com base na identidade grupal. É esta identidade,
baseada na semelhança, que divide os indivíduos entre os que pertencem e os
que não pertencem a determinados agrupamentos. Mas, foi preciso mais que
estar reunidos; precisavam estar organizados.
3
Na atualidade considera-se que as deficiências podem ter causas distintas. As causas pré-
natais referem-se àquelas contraídas antes do nascimento, geralmente de origem hereditária
ou genética. As causas perinatais dizem respeito aos problemas que podem ocorrer durante o
momento do parto, deixando seqüelas significativas por toda vida. As causas pós-natais são
adquiridas após o nascimento e em qualquer momento da existência. Os acidentes e
infecções são os mais comuns.
Considera-se importante, ainda, quanto às origens, as questões ambientais. Estas, por sua
vez, têm relação direta com a ausência de políticas públicas de prevenção, coberturas vacinais,
desinformação ou mesmo a falta de informação, de saneamento básico, adequadas condições
de saúde, habitação e educação (SANTIAGO, 2003).
18
De acordo com Arendt (2007, p. 33), “a capacidade humana de
organização política não apenas difere, mas é diretamente oposta a essa
associação natural cujo centro é constituído (...) pela família. Dessa forma,
mais que estarem juntos, os homens precisaram exercer domínios uns sobre
os outros para que pudessem definir os seus pares; como também, os
estranhos. Portanto, somente as questões de sobrevivência não foram
suficientes para sugerir a presença de uns, e a exclusão de outros. Foi preciso,
a criação de uma nova esfera na vida do ser humano; uma dimensão onde não
importa somente o que é útil e necessário a sua sobrevivência, mas um espaço
de domínio, de poder, de controle.
Como nas comunidades ainda muito primitivas, o grupo não se
encontrava organizado a ponto de decidir sobre a vida de outrem, tendo em
vista que neste primeiro momento de existência, o homem não dispunha de
preocupações coletivas - mas tão somente individuais - estas diziam respeito
exclusivamente à sobrevivência. Conseqüentemente, a morte de indivíduos
deficientes certamente ocorria em razão das próprias limitações destes para
buscar os meios para alimentar-se, defender-se e proteger-se.
Ainda na pré-história, foram encontrados alguns achados que retratam
a existência de pessoas com deficiência em diferentes grupos. A partir destes
materiais - descobertos e analisados por paleontólogos e por paleopatologistas,
se evidencia que a pessoa com deficiência nestes tempos não sofria a ação
discriminatória das civilizações organizadas social e politicamente (SILVA,
2008).
Os famosos ossos do chamado Homem de Neanderthal que apresenta
traços de traumatismo; o esqueleto descoberto em Krapina, com sinais de
fraturas e ainda, o esqueleto encontrado na França, com sinais de artrite
deformante
4
denotavam vida adulta atuante, ou seja, com todas as limitações
físicas evidentes estes homens sobreviveram e participaram da vida do grupo
5
.
4
Disponível em: http://www.crfaster.com.br/Atitudes.htm.
5
A espondilose foi encontrada num esqueleto de um homem pré-histórico conhecido como
Cro-Magnon. Há, ainda, em cavernas pré-históricas, inúmeros desenhos dos contornos de
mãos que faltam dedos. O registro mais surpreendente foi encontrado no ano de 1985 por
Henri Cosquer, um mergulhador profissional. Ele descobriu perto de Marselha, na França, uma
caverna pré-histórica parcialmente submersa, com sua entrada a mais de 35 metros de
profundidade. Nela notou-se que havia sinais de ocupação contínua desde mais de 25.000
19
No decorrer da história, nas grandes civilizações (chinesa, greco-
romana, egípcia, etc.) registros sobre o abandono, a morte, o sacrifício de
inúmeras pessoas com deficiência. A explicação mais comum para o fato é o
preconceito, o desconhecimento e os mitos que envolviam estes povos. Estas
respostas são insuficientes para justificar o fenômeno da exclusão que vitimiza
indivíduos deficientes.
Neste estudo pretende-se compreender as causas da exclusão de
pessoas com deficiência em diferentes sociedades humanas, entendendo que
nem mesmo no seu nascedouro, nem tampouco hoje, ela pode ser explicada
por questões de ordem biológica, de sobrevivência do grupo, ou discriminação
natural, desconhecimento, etc. Se, nas condições mais adversas da pré-
história, estes indivíduos deixam marcas de sua história e sobrevivem junto ao
grupo, por que então, em períodos seguintes, com melhores condições de
sobrevivência isso não foi possível e se registram tantos homicídios de
indivíduos com deficiência?
Assim, há que considerar-se que, embora saibamos que nestas
civilizações, permaneceram inúmeras dificuldades no que diz respeito à relação
homem-natureza e as limitações à sobrevivência eram ainda enormes, não
podemos desconsiderar o fato de nenhuma destas estabelecer equivalência de
dificuldade com àquelas vividas pelo homem do paleolítico. E, na atualidade,
como se explica o processo excludente que atinge estes sujeitos, se não
somos órfãos de informações e recursos? Portanto, não como explicar a
exclusão de pessoas com deficiência por este viés. Então, como se explica a
exclusão dos indivíduos que possuem deficiências?
Nossos estudos revelam que nas civilizações antigas, medievais,
modernas e contemporâneas aqui estudadas, a exclusão emerge da divisão
social em classes
6
. É, portanto, a distribuição das classes sociais, baseada na
propriedade privada e na figura essencial do Estado que inaugura a situação
de exclusão destes indivíduos.
anos e, além da ilustração de muitos animais, estão os claros contornos de mais de 56
mãos, das quais muitas apresentam dedos amputados (SILVA, 2008).
6
O conceito de classe tem importância central na teoria marxista e é o ponto de partida de toda
a teoria de Marx e Engels. Para eles existe uma divisão fundamental em classes em todas as
formas de sociedade que sucederam as antigas comunidades tribais.
20
Diante disto e a fim de comprovar a hipótese que é o pertencimento de
classe que determina a condição de exclusão da pessoa com deficiência,
faremos uso de uma abordagem materialista dialética, tomando a classe social
como principal elemento de análise, e a categoria essência/aparência como “os
conceitos básicos que refletem os aspectos essenciais, propriedades e
relações do fenômeno da exclusão, portanto, fundamentais para o
conhecimento científico (RICHARDSON, 1999, p. 45).
Na nossa análise serão estes os instrumentos potencialmente capazes
de captar as causas da exclusão de pessoas com deficiência no cenário
mundial, revelando, sobretudo, o papel contraditório que assume a educação
neste processo. Por um lado, como mecanismo de manutenção de classe e
conseqüentemente de exclusão dos indivíduos que não se adequam ao padrão
social estabelecido; por outro, como possibilidade de acesso aos bens culturais
produzidos e, conseqüentemente de transformação da realidade.
Nessa direção, optamos por uma abordagem histórica que analisa
diferentes civilizações que se inscreveram na história mundial. Por vezes,
precisamos recorrer à divisão da história por Idades (Antiga, Média, Moderna e
Contemporânea) elaborada pela historiografia francesa do século XIX, mesmo
sabendo do caráter ideológico que ela carrega e da imprecisão em termos de
data. Essa periodização, adotada por historiadores de modo geral, ou por
autores de manuais de história da educação
7
, é também a opção de diferentes
autores que discutem a questão da história das pessoas com deficiência
8
.
Neste sentido, algumas referências utilizadas apresentarão a mesma forma,
mas terão o cuidado de avançar nas análises, superando as explicações ou
marcações temporais e factuais oriundas do positivismo.
A primeira parte da pesquisa analisará diferentes civilizações
9
da
chamada Antigüidade, identificando aspectos diversos da vida destas
7
Como exemplos de autores que utilizam esta divisão histórica por idades temos: Mario
Manacorda, em seu livro História da educação: da Antigüidade aos nossos dias (1997), e
também Franco Cambi, na História da Pedagogia (1999), dentre outros.
8
Nos estudos sobre a educação de pessoas com deficiência, temos autores que utilizam
também a divisão da história por idades, como: Gilberta Jannuzzi, em sua obra A Educação do
deficiente no Brasil: dos primórdios ao início do século XXI (2004) e José G. S. Mazzotta, em
Educação Especial no Brasil: história e políticas públicas (1996), dentre outros.
9
De acordo com Jaguaribe (2001) uma necessidade evidente de critérios com base
empírica para determinar se uma cultura e uma sociedade representam uma civilização e estas
21
populações e suas relações com a pessoa coma deficiência, tendo como pano
de fundo, seu pertencimento de classe. Serão tomadas as civilizações onde se
desenvolveram formas complexas de organização política e social e
importantes registros sobre sua história (SCHNEEBERGER, 2003).
No capítulo seguinte, analisaremos diferentes civilizações da Época
Medieval, tendo como eixo norteador as relações estabelecidas entre a
sociedade e a pessoa com deficiência, considerando seu pertencimento de
classe e as repercussões disto na condição de exclusão social, apoiados ainda
pela presença da Igreja e do sistema feudal de produção, aqui compreendidos
como as principais expressões das idéias difundidas neste período histórico.
No quarto capítulo, discutiremos a situação da pessoa com deficiência
no contexto da modernidade, acrescentando à discussão as revoluções
culturais e econômicas, além do papel da ciência como novo instrumento de
análise que surge no contexto ocidental e que imprime outras características ao
tratamento dedicado àqueles indivíduos que, porventura, revelem limitações de
ordem mental, sensorial ou física
10
, com foco especial no processo de
institucionalização da deficiência.
No capítulo seguinte analisaremos a situação da pessoa com
deficiência na atualidade, focalizando o caso brasileiro e sua história, relações,
movimentos etc. dentro do panorama que marcaram os séculos XIX e XX,
tendo como pano de fundo, a discussão dos direitos humanos e o debate sobre
a educação inclusiva.
Pretendemos, assim, propiciar um debate fecundo sobre o fenômeno
da exclusão da pessoa com deficiência, de tal maneira que a educação
(inclusiva ou excludente) seja dialeticamente compreendida, pois
comprometida com diferentes interesses (inclusive de classe), nela se
encontram as principais contradições, sobretudo, na atualidade brasileira,
características são as seguintes: urbanização, mediante a construção de um sistema
habitacional bem mais amplo e complexo; uma cultura comum, inclusive língua, religião,
costumes e técnicas sociais; um sistema político, apresentando os traços básicos de um
Estado, ou dentro do sistema religioso ou separado e um sistema de escrita (JAGUARIBE,
2001, p. 86).
10
Na atualidade, as deficiências são classificadas em sub-grupos, assim distribuídos:
deficiência mental (também identificada como déficit intelectual); deficiência física (envolvendo
também os problemas motores); deficiência visual (incluindo cegueira e baixa visão),
deficiência auditiva e deficiências múltiplas (BRASIL, 2007).
22
quando os excluídos lutam pelo direito de pertencer à sociedade, e o modelo
sócio-econômico aponta para processos cada vez mais intensos de exclusão.
Por fim, vale destacar que nossas considerações possuem uma finalidade
propositiva, pois vislumbram elencar no bojo de uma sociedade excludente
como a brasileira, os germes de uma educação comprometida com o direito,
com a justiça e com a igualdade de oportunidades a fim de suplantar práticas
classistas, assistencialistas e elitistas.
23
Não pode haver felicidade, onde existe o
medo, a apreensão e o receio.
(Lourenço Prado)
24
2. A EXCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA NAS CIVILIZAÇÕES
ANTIGAS
2.1. As Primeiras Civilizações, as Classes Sociais e a Educação
A literatura revela que em períodos anteriores há 4.000 anos a.C. nas
comunidades primitivas, os homens se uniam e dirigiam a economia em
comum. Geralmente, a presença de um homem mais velho assumia a chefia
dos demais, dividindo o trabalho, resolvendo questões, repartindo os produtos.
Não há, portanto, propriedade privada, nem divisão de classes, nem a
presença do Estado e nem a exploração de uns pelos outros (MICHULIN,
1980). E, enquanto a vida permaneceu assim, a pessoa com deficiência não foi
excluída pelas não deficientes. A morte desses indivíduos parece ter sido fruto
tão somente de causas naturais ou acidentais. No entanto, à medida que as
comunidades foram se desenvolvendo, a organização comunal primitiva vai
desaparecendo e com ela, os deficientes e doentes.
Em lugar da primitiva ordem comunal surge o modo escravista. A
derrubada da ordem social primitiva foi motivada por muitas causas. Quanto
maior foi o progresso da técnica, mais se separou as atividades entre os
homens (trabalho manual, agricultura, etc.), e mais riqueza passou a ser
acumulada pelos grupos. A produção diferenciada de alimentos, utilização de
metais, a produção de instrumentos, etc. motivou o surgimento da atividade de
troca, estabelecendo o comércio entre as tribos. Alguns grupos acumularam
mais terras, mais gado ou mais ferramentas que outros. Dessa forma, a
igualdade que antes existia entre as pessoas vai pouco a pouco
desaparecendo e dando lugar à propriedade privada e a organização em
classes sociais.
No início era a propriedade da terra, do gado, dos recursos. Aos
poucos, essa posse também se estendeu aos homens, surgindo assim a
escravidão como modo de produção. Os mais ricos escravizavam os mais
pobres, e passavam a ser os dirigentes: a classe dominante, responsável pelo
julgamento, punição e dominação dos demais.
25
De início, os mais fortes e mais ricos reuniam grupos de guerreiros
para assaltar outras tribos como estratégia de enriquecimento. Nestas
investidas, onde se usava muita força física, o material arrecadado passava a
ser propriedade do chefe que se tornava cada vez mais rico. Mais tarde, não
somente os recursos alimentícios e materiais eram apropriados pelos ricos,
mas também os prisioneiros. Dessa forma, os ricos descobriram o trabalho
escravo e passaram a utilizá-lo de maneira cada vez mais intensa. Pouco a
pouco, não os inimigos eram escravizados, mas também “os membros da
própria tribo que haviam empobrecido e contraído dívidas com eles
(MICHULIN, 1980, p. 14-15).
É dessa forma que surge a figura do Estado e é ele que assume o
poder de decidir sobre os dominados, eliminando todas as formas de ameaça
ao bem estar da coletividade. A presença de pessoas deficientes, em alguns
casos, ameaçava o bem estar do grupo. Por exemplo, escravos deficientes não
tinham, em geral, nenhuma serventia aos seus senhores e recebiam a morte
como alternativa; como solução.
É preciso, assim, conhecer com certa profundidade as primeiras
civilizações a revelarem esse tipo de organização social baseada na divisão de
classes a fim de investigar através de seus registros as práticas de exclusão
adotadas. Sabe-se que as primeiras civilizações que se têm registros, seja por
documentos ou monumentos, surgiram no norte da África, na Ásia Menor, na
Índia e na China, e inauguram uma participação efetiva na vida do grupo e na
definição de suas relações. Nestas sociedades é possível encontrar os
resquícios materiais ou escritos de sua conduta em relação ao deficiente (ou
doente, como era o termo comumente utilizado para as diferentes
necessidades apresentadas no plano físico, sensorial ou mental).
Iniciaremos por aquelas que foram consideradas por diversos
historiadores como as primeiras sociedades complexas da história da
humanidade (ARRUDA, 1999). Nosso ponto de partida será a Civilização
Egípcia, a Civilização Mesopotâmica, as Civilizações Mediterrâneas Orientais,
E, ainda pelas Civilizações Orientais e a Civilização Greco-Romana, cujas
contribuições e influências o fundamentais para a compreensão do mundo
ocidental, inclusive na contemporaneidade.
26
O objetivo deste capítulo é evidenciar como as antigas civilizações se
organizavam em termos sociais, políticos, econômicos, educacionais e
culturais, para partindo desses elementos buscar compreender sua relação
com a pessoa com deficiência nas diferentes classes, identificando, por
conseguinte, os processos de exclusão desenvolvidos neste contexto e suas
causas.
2.2. A Civilização Egípcia: aspectos gerais, luta de classes e educação
Situado no nordeste da África, às margens do Rio Nilo, desenvolveu-
se uma das mais antigas civilizações do mundo: a civilização egípcia, com
registros que datam até quatro milênios antes da era cristã.
No início, as principais atividades egípcias foram: a agricultura, a
pesca, a caça e o pastoreio. No entanto, o Egito não se situava numa região
tão fácil do ponto de vista geográfico. Portanto, a presença humana naquela
região desértica ocorreu pela existência do Rio Nilo e de suas
características marcantes: inundações e secas. Um lugar de vida difícil para os
que se dedicam ao trabalho pesado. Mas, um oásis no deserto para as elites
faraônicas.
Quase não chove naquela região, principalmente nas montanhas. No
entanto, nos meados de julho o rio transborda e inunda todo o vale. A água se
mantém assim ao mês de novembro e então começa a baixar, deixando um
limo que aduba a terra, tornando-a muito fértil. É evidente que a civilização
egípcia embora tivesse uma agricultura muito primitiva - soube se beneficiar
deste fenômeno em diferentes aspectos, desde ao desenvolvimento de
técnicas de aproveitamento da água nos tempos de estiagem à organização da
sociedade e do trabalho. Os mais pobres trabalhavam duro para manter a
riqueza e a boa vida de uma minoria privilegiada.
Por outro lado, é bom lembrar que o Nilo não adubava os campos
como também inundava e destruía as habitações e outras construções
próximas às suas margens, certamente as mais humildes. Templos e palácios
não corriam o mesmo risco. É evidente que os egípcios pobres, habitantes
destas áreas precisavam fugir destas situações calamitosas.
27
Neste contexto, imaginamos a condição de pessoas com deficiência.
Certamente, muitas morriam vitimadas pelas inundações, dadas suas
condições físicas ou sensoriais para afugentarem-se a tempo.
Outro aspecto que merece consideração diz respeito ao trabalho. Pelo
grande acervo arquitetônico e cultural construído pelos egípcios, é notória a
necessidade premente de mão-de-obra. Certamente, os indivíduos vitimados
por deficiências eram preteridos neste campo, pois lhes faltava condição física
ou mental para desenvolver tais atividades. O que se esperar de um cego,
surdo ou paraplégico nestas circunstâncias?
Por outro lado, se este indivíduo pertencesse à nobreza, certamente
suas chances de sobrevivência eram sensivelmente aumentadas, seja por
dispor de melhores condições de vida, seja porque não necessitavam de um
corpo saudável para trabalhar.
Assim, fica evidente que a luta de classes sempre esteve presente na
civilização egípcia antiga constituída no topo, pelo faraó e sua família; em
seguida os sacerdotes e os que possuíam terras, formando a nobreza
fundiária; mais abaixo, os escribas (homens que sabiam ler e escrever),
responsáveis pela demarcação de propriedades, armazenamento da produção,
controle dos rebanhos e coleta de impostos. Por fim, os camponeses, que
tinham apenas a força de trabalho - para a lavoura em épocas de colheita e
para as construções em época de escassez, e há todo momento para as
guerras. A principal particularidade é a presença do escravo, que surge
somente a partir do Novo Império, sobretudo (mas, o somente), resultante
das guerras e conquistas de outros povos (JAGUARIBE, 2001).
É importante identificar o papel de cada uma destas classes sociais no
Antigo Egito e entender que a definição dos mesmos tem na economia e na
religião suas principais aliadas. Nesse sentido, a figura do faraó como
autoridade política e religiosa decidia sobre tudo e sobre todos. Contava, ainda,
com a ajuda dos sacerdotes e a nobreza para efetivação de suas ordens. Os
escribas, por sua vez, funcionavam como uma mão-de-obra qualificada, e
também assumiam posição de destaque, especialmente por saberem lidar com
28
os números e a escrita egípcia
11
(escrita hieroglífica). Eram os educadores
principais e se dedicavam aos filhos da nobreza.
Já os camponeses compunham a grande massa de trabalhadores
braçais que trabalhavam nas terras pertencentes ao faraó, aos nobres e aos
sacerdotes. A estes últimos, os trabalhadores deveriam entregar parte de sua
colheita, tendo em vista que a principal atividade econômica do povo egípcio
era a agricultura, e se voltada para suprir as necessidades da população, e
também guardar um excedente para os momentos de escassez.
Estes trabalhadores deveriam estar disponíveis também para trabalhar
na construção e manutenção de diques e canais, sempre que solicitado pelo
faraó. Sua educação era ministrada a partir das necessidades diárias de
sobrevivência e trabalho, sem nenhum atributo formal (CROUZET, 1974).
Figura 1: Trabalho Escravo no Egito
Fonte: http://www.paginas.terra.com.br
11
Desde o quarto milênio a. C. os Egípcios desenvolveram uma escrita chamada hieroglífica.
Os hieróglifos eram pequenos desenhos com múltiplos significados, gravados ou pintados nas
paredes dos templos e dos túmulos. A palavra grega hieróglifo significa caracteres sagrados.
Mais tarde, os hieróglifos passaram a ser escritos em papiros (uma espécie de papel fabricado
pelos egípcios) de maneira abreviada, dando origem a uma escrita simplificada, chamada de
hierática. E, mais tarde, os egípcios passaram da escrita hierática para a escrita demótica, uma
forma mais popular de escrita (ARRUDA,1999).
A escrita hieroglífica utilizava imagens para representar objetos concretos e, para representar
idéias abstratas, empregava o princípio do rébus, que consistia em decompor as palavras em
sons e representar cada som por uma imagem. Como essas imagens eram freqüentemente
mal interpretadas, já que o mesmo som era utilizado em várias palavras, foram introduzidos
mais dois sinais, sendo um para indicar como elas deveriam ser lidas e outro para lhes dar um
sentido geral. Os hieróglifos eram escritos em vários sentidos, da esquerda para a direita, da
direita da esquerda ou mesmo de cima para baixo. A colocação das palavras, do ponto de vista
gramatical, era seqüencial, primeiro o verbo, seguido pelo sujeito e pelos objetos diretos e
indiretos (Disponível em: http://www.casadomanuscrito.com.br).
29
Para guerrear, evidentemente os egípcios precisavam de homens
fortes, não de deficientes. Estes guerreiros eram recrutados entre as classes
mais baixas, mais precisamente entre os camponeses. No entanto, a parte
mais forte do exército faraônico era constituída dos regimentos de carros. Para
esta função, o perfeito funcionamento dos membros, dos sentidos, além da
forma física era decisivo, não havendo lugar de sobrevivência para pobres (os
guerreiros em potencial), se estes tivessem qualquer tipo de deficiência. À
frente dos regimentos estava sempre os aristocratas, pertencentes a uma
classe próxima do faraó e que ajudavam o mesmo nas decisões políticas,
comerciais e econômicas. A educação egípcia se define em razão da classe a
qual o sujeito pertence (SCHNEEBERGER, 2003).
Os inúmeros conflitos que acometeram a civilização egípcia, seja por
território, alimento ou poder vitimaram muitos de seus filhos. Um grande
número foi mutilado, tornando-se deficiente (esta era uma prática muito comum
na época: os vencedores mutilavam os vencidos, penalizando-os com a
cegueira, surdez, amputação de mãos, etc.).
De certa forma, no Egito como em outras civilizações, a deficiência que
até o momento era vista como fruto da ira dos deuses passa a ser utilizada
também como um artifício humano para castigar seus pares. Para tanto,
somente o poder de uma classe ‘superior’, cuja autoridade era outorgada pelos
deuses era capaz de imprimir esta marca aos sujeitos a ele subordinados.
É bom ressaltar que mesmo os egípcios figurando entre os primeiros
povos da antiguidade a fazer uso da escrita, da literatura, da ciência e da arte,
suas práticas foram essencialmente classistas; o acesso ao conhecimento era
definido pela classe social, assim como o seu usufruto. Logo, seu aprendizado
não se destinava a todos os egípcios. As classes mais abastadas tinham
acesso ao conhecimento. Nobres e sacerdotes se dedicavam ao estudo em
diversas áreas, e mesmo influenciado pelo viés religioso, conseguiam grandes
avanços. Para este grupo, a deficiência não foi sinônimo de castigo ou morte.
registros arqueológicos que denunciam a presença de pessoas deficientes
em estreita convivência nos palácios e templos.
No aspecto educativo, aos pobres restava apenas aprender o ofício de
seus pais: a agricultura, a pesca, a caça, dentre outros. Assim, a massa
popular não conhecia a escrita, a literatura e as ciências. E a educação voltava-
30
se para a manutenção destas classes. Ser deficiente nesta camada social
implicava em exclusão.
Assim, os conhecimentos sobre a questão da deficiência, bem como a
busca pela cura é também favorecida pela classe social a que o indivíduo
pertence. Assim, é evidente que não estando os conhecimentos à disposição
de todos, apenas um grupo muito seleto de egípcios tinha acesso aos
conhecimentos produzidos, pois a maioria do povo egípcio, evidentemente das
classes subalternas, era composta de analfabetos.
Nas escolas egípcias, os alunos permaneciam por aproximadamente
seis anos e os castigos físicos eram freqüentes. Mas, podiam freqüentar os
filhos dos ricos e notáveis. Era hábito entre os egípcios, as narrativas e contos.
As mais populares eram a do naufrágio de um guerreiro e do governador
Simhet. Estas eram bastante conhecidas entre os nobres, mas desconhecidas
pelos camponeses, pastores, carregadores e pescadores, que possuíam suas
próprias canções e contos e as utilizavam durante o trabalho, pois não
freqüentavam as escolas
.
Pode-se evidenciar, então, a partir das breves considerações feitas
sobre a civilização egípcia que os papéis sociais se distinguiam em razão da
classe social ocupada pelo indivíduo e que a educação assume papel essencial
neste processo, pois passa a legitimar a condição social e mantê-la inalterada.
É a luz desta distinção que pretendemos mais tarde, investigar as relações
estabelecidas entre não-deficientes e deficientes no mundo hodierno. A seguir,
vejamos outras civilizações antigas que nos ajudarão a entender o fenômeno
da exclusão de pessoas com deficiência.
2. 3. A Civilização Mesopotâmica: aspectos gerais, luta de classe e
educação
No vale situado entre o Rio Tigre e o Eufrates habita uma população
contemporânea do Egito: a Mesopotâmia, cuja expressão significa País dos
dois rios. Os reinos mais antigos formaram-se ao sul da Mesopotâmia, junto do
golfo rsico. A antiga Mesopotâmia corresponde maior parte do atual território
da República do Iraque (SCHNEEBERGER, 2003).
31
Do mesmo modo que o Egito, a Mesopotâmia vivia mais da metade do
ano com uma umidade excessiva e o restante com uma seca rigorosa. Nestas
condições, o solo mesopotâmico produzia se devidamente trabalhado.
Assim, para se obter uma boa colheita era preciso muito trabalho. E para muito
trabalho, muita força e boa condição de saúde, o que era ssimo para as
pessoas com deficiência.
Os principais povos dessa região foram os sumérios, os babilônios e
os assírios, mas, outros ali habitaram.
Figura 2: Povos da Mesopotâmia
Fonte: http://paginas.terra.com.br/educacao
A maioria dos historiadores considera que a história da Mesopotâmia
pode ser dividida em dois grandes períodos: o período Babilônico que vai de
4000-1275 a.C. que tem seu marco com a fundação das cidades-Estado e a
primitiva Babilônia e o período Assírio, compreendido entre 1275-561 a.C. Para
outros, como Jaguaribe (2001), mais importante que esses marcos iniciais e
finais é compreender os povos que ali viveram e as relações que
estabeleceram uns com os outros. Diante disto, optamos por analisar a história
dos principais povos que compunham a civilização mesopotâmica, destacando
sumérios, babilônios e assírios.
2.3.1. A Civilização Suméria
Os sumérios são considerados a população mais primitiva da
Mesopotâmia meridional e habitaram a região onde hoje é o sul do Iraque.
Foram os responsáveis pela criação de um complicado sistema de
conservação da água nos períodos de seca, construíram as primeiras
32
habitações e as redes de canais, além dos palácios sobre terraplenos artificiais
para protegerem os nobres das inundações, enquanto a grande massa de
trabalhadores geralmente era vitimada pelos acidentes ambientais. Seus
conhecimentos foram diversos e bastante aproveitados por povos
mesopotâmicos e de outras regiões, como os gregos e romanos, mas,
inacessíveis à maioria da população suméria.
A grande massa de trabalhadores sumérios semeava trigo, cevada,
cebolas, pepinos, legumes e tamareiras. Graças ao tipo de solo, os sumérios
dispunham de campos muito férteis. A terra era com certeza a riqueza principal
desse povo, o que fazia com que lutassem fortemente por ela. Por isso,
precisavam de homens fortes e saudáveis entre os trabalhadores, não de
deficientes (MICHULIN, 1980).
As cidades sumérias eram organizadas com um núcleo central rodeado
por terras cultivadas. Assim, a principal atividade econômica era a agricultura,
com grandes colheitas de cereais e frutas. O comércio vinha logo em seguida e
era realizado com as cidades vizinhas por meio da troca. Para estas atividades,
os sumérios necessitaram de pessoas com habilidades físicas e intelectuais
bastante claras; os deficientes certamente eram inúteis.
Figura 3: Agricultores Sumérios
Fonte: http://paginas.terra.com.br
Segundo Beard & Henderson (1998) a atividade comercial foi a grande
responsável pelo desenvolvimento da escrita cuneiforme
12
, pelos sumérios. De
12
Sistema de escrita que consistia na gravação de caracteres, com haste de ponta quadrada,
em tabletes de argila úmida, posteriormente cozidos ao forno, resultando em incisões em forma
de cunha, razão pela qual foi denominada de escrita cuneiforme. Tratava-se inicialmente de um
sistema pictográfico que gradualmente se transformou em um conjunto de sinais silábicos e
33
acordo com os autores neste tipo de escrita cada sinal representava um objeto
ou uma idéia.
Como na região da Mesopotâmia não havia papiros nem pedras, a
escrita suméria era feita sobre tabletes quadrangulares e escrita com estiletes.
Os tabletes escritos eram expostos ao calor aendurecer como pedra. Esta
escrita primitiva era semelhante aos hieróglifos egípcios e continham cerca de
500 sinais. Era considerada uma escrita difícil de aprender, especialmente
pelos principais educadores deste povo: os sacerdotes. Portanto, não acessível
a deficientes mentais, cegos ou surdos. Tampouco aos mais pobres.
A liderança do rei sumério era sempre muito disputada por outras
cidades, o que enfraqueceu os sumérios e tornou-os extremamente vulneráveis
a invasores. Em razão destas disputas, entre 2.530 e 2.450 a.C., a região foi
dominada pelos reis elamitas.
Após um período de domínio dos elamitas, os sumérios voltaram
a gozar de independência. As cidades de Lagash, Umma, Eridu,
Uruk e principalmente Ur tiveram seus momentos de glória.
Pouco depois os acádios - grupos de nômades vindos do
deserto da Síria - começaram a penetrar nos territórios ao norte
das regiões sumérias, terminando por dominar as cidades-
estados desta região por volta de 2550 a.C.. Mesmo antes da
conquista, porém, já ocorria uma síntese entre as culturas
suméria e acádia, que se acentuou com a unificação dos dois
povos. Os ocupantes assimilaram a cultura dos vencidos,
embora, em muitos aspectos, as duas culturas mantivessem
diferenças entre si, como por exemplo - e mais evidentemente -
no campo religioso (BEARD & HENDERSON, 1998, p. 234).
Recentemente foi encontrada uma biblioteca suméria inteira, com cerca
de 60.000 placas de barro, onde estavam registrados a partir da escrita
cuneiforme, muitos dos conhecimentos sumérios, principalmente no campo da
astronomia, da matemática, da medicina e da tecnologia. No entanto, estes
conhecimentos foram privilégios de uma minoria de sumérios.
A invenção da escrita possibilitou aos sumérios o armazenamento do
conhecimento e a possibilidade de transferi-lo a outros. Isso levou à criação de
escolas, oficialização da educação, desenvolvimento da matemática, religião,
burocracia, divisão de trabalho e, evidentemente, sistema de classes sociais. A
fonéticos onde eram empregados centenas de diferentes sinais.
34
educação era distinta para cada classe: os mais pobres, os ofícios mais duros
agricultura e guerras, os mais ricos, os conhecimentos da matemática,
astronomia ou medicina.
Os sumérios foram, ainda, muito hábeis com o metal, com a lapidação
de pedras preciosas e na escultura. Na arquitetura, destacaram-se com os
zigurates
13
, o arco, a abóbada e a cúpula. São responsabilizados também pela
invenção da roda. Também construíram sistemas legais e administrativos com
cortes judiciais e prisões. O controle político era exercido por uma elite que
obrigatoriamente também era o chefe religioso (patesi) e responsável pelo
templo (zigurate). Eram politeístas e dedicavam muito tempo à adoração dos
diversos deuses e deusas que possuíam.
Acreditavam que o Universo era governado por um panteão
14
formado
por um grupo de seres vivos, de forma humana, porém imortais e possuidores
de poderes sobre-humanos. Esses seres, segundo acreditavam, eram
invisíveis aos olhos dos mortais e guiavam e controlavam o cosmo de acordo
com um plano pré-estabelecido e leis rigorosamente elaboradas. Neste
contexto, as deficiências humanas eram penas previamente estabelecidas
pelos deuses para os mortais que as mereciam.
Segundo a tradição suméria, os deuses criaram o ser humano a partir do
barro, semelhante o que se acredita hoje em outras religiões. Entretanto,
quanto estavam zangados, os deuses criadores expressavam toda sua ira
através de catástrofes naturais (para grandes grupos) ou marcas físicas (para
indivíduos). Dessa forma, a essência da religião suméria estava alicerçada na
crença de que os homens se encontravam submetidos a vontade dos deuses,
devendo a eles total obediência.
A literatura suméria também deixou grande contribuição para que se
compreendesse esse povo, seus costumes e suas crenças. As casas dos
sumérios não tinham janelas e à noite eram iluminadas por lampiões de óleo de
gergelim. Os insetos eram abundantes nessas moradias.
13
Os zigurates ou templos em forma de torre - são da época dos primeiros povos sumérios e
sua forma foi mantida sem alterações pelos assírios. Na realidade, os zigurates (pirâmides com
degraus e rampas laterais coroada por um templo), tratava de edificações superpostas que
formavam um tipo de torre de faces escalonadas, dividida em várias câmaras. (Disponível em:
http://www.pegue.com/artes/mesopotamia.htm).
14
Templo dedicado ao conjunto dos deuses. Conjunto de deuses de um povo, de uma religião
politeísta (HOUAISS, 2001, p. 2119).
35
Evidentemente, além do patesi que habitava suntuosos palácios e os
sacerdotes que viviam nos templos (zigurates), o restante da população não
vivia em boas condições de moradia e alimentação, o que aumentava a chance
de se contrair problemas de saúde.
Embora, os ricos se alimentassem melhor e morassem em casas mais
confortáveis que os pobres, suas condições de higiene não eram mais
adequadas. Diante disso, quando as epidemias se abatiam sobre as cidades a
mortalidade era grande em todas as classes. Mas, o tratamento dispensado era
diferente. Os sacerdotes, médicos-magos sempre estavam disponíveis para o
soberano e sua família; nunca para os mais pobres (BEARD & HENDERSON,
1998).
Quando as constantes epidemias não levavam à morte, mas, à
mutilação de algum órgão sensorial ou motor, deixando uma deficiência, a
situação também se diferenciava para suas vítimas. Se, pertencentes às
classes menos favorecidas, o sacrifício era a alternativa mais adotada. Se,
pertencente às classes favorecidas, o cuidado, a proteção e até a adoração
seguiam por toda a vida.
Sob este ponto de vista, é possível que as atitudes assistencialistas que
se delinearam para com as pessoas com deficiência, especialmente a partir da
época medieval tenham sua origem num passado bastante longínquo, onde a
capacidade laboral, a autonomia e a independência destes indivíduos eram
inaceitáveis pelos demais.
2.3.2. A Civilização Babilônia
Do outro lado, na Mesopotâmia setentrional, onde se unem o Tigre e o
Eufrates, situava-se a cidade da Babilônia (hoje, Bagdá, capital do Iraque). A
princípio era apenas uma pequena povoação, mais com o tempo converteu-se
num importante centro comercial da região, pois para ela confluíam muitas
rotas de caravanas vindas do Oriente e do Ocidente.
A organização social e política dos babilônios contava com o rei como
figura central, com os sacerdotes, logo em seguida. A nobreza seguia logo
abaixo e, os camponeses compunham a grande massa. Após estes, somente
os escravos. Estes escravos que eram em número de milhares foram os
responsáveis pela construção de templos e palácios babilônios. “Os mesmos
36
eram escolhidos dentre os prisioneiros de guerra e trabalhavam com grilhões
nas mãos e nos pés, atados uns aos outros com correntes de ferro”. Guardas
armados vigiavam estes escravos que evidentemente não podiam ser
deficientes (MICHULIN, 1980, p. 49).
O rei mais importante entre os babilônios foi Hamurábi. Ele governou
entre 2067-2025 a.C e reuniu todo o seu poder conquistando as cidades
sumérias e dando início a Babilônia. Durante a liderança de Hamurábi, a
Babilônia tornou-se a mais rica e mais culta cidade da Mesopotâmia, mas as
riquezas não estiveram divididas para todos; havia também muita pobreza na
região e muita revoltas em razão das desigualdades sociais (JAGUARIBE,
2001).
Assim, durante o reinado de Hamurábi, inclusive para conter as disputas
entre grupos, foi elaborado um dos primeiros códigos de leis da Antigüidade,
conhecido como Código de Hamurábi, que contém 282 artigos. Além das
percepções e idéias do próprio rei, nele estão expressas todas as tradições e
valores da sociedade mesopotâmica, especialmente aquelas que protegem os
interesses dos possuidores de escravos. Em linhas gerais, muitos direitos aos
mais ricos e muitos castigos aos mais pobres, com destaque para a deficiência
produzida.
De acordo com o código, o escravo achava-se à mercê absoluta do
senhor e era obrigado a trabalhar pra ele, devendo-lhe total obediência. Em
caso de desobediência do escravo, o código assegura ao amo diversas
punições, variando da amputação de um órgão à morte. Em razão deste
código, muitos deficientes foram produzidos. Assim, todos carregavam a marca
impressa no próprio corpo do erro cometido e, conseqüentemente, do castigo
sofrido. De modo geral, as vítimas deficientes eram escravos, pois para estes
as penas eram sempre mais duras.
Por outro lado, a mesma lei que punia severamente os escravos, não
limitava as práticas dos sacerdotes e comerciantes. Os mesmos viviam
livremente e acumulavam grandes riquezas. Enriqueciam, sobretudo, com os
empréstimos que faziam aos pequenos proprietários de terras. Estes
empréstimos eram em dinheiro ou cereais, e se no prazo estipulado não fosse
pago, o devedor deveria abonar juros de 20% e se convertia ao longo de três
anos em escravo do credor. No código de Hamurábi não havia nenhum artigo
37
que fizesse esse novo escravo liberta-se da miséria e do pesado jugo dos
ricos.
De acordo com os textos do Código fica evidente que a punição a alguns
delitos variava de acordo com a posição social tanto da vítima como do infrator,
mas em geral, a justiça se baseava na lei de talião, ou seja, ‘dente por dente,
olho por olho’. Baseado nesta lei, muitas deficiências foram produzidas e
muitos escravos também.
Se um homem furar o olho de um homem livre terá o seu olho
também furado.
Se furar o olho de um escravo pagará metade do seu valor.
Se um médico tratou a ferida grave de um homem com faca de
bronze e ele morrer, o médico terá suas mãos cortadas.
Se um homem arrancar os dentes de outro homem
livre, seus próprios dentes serão também arrancados.
Se um arquiteto construir uma casa e ela cair matando o dono, o
arquiteto poderá ser morto. Se o filho do dono da casa morrer, o
filho do arquiteto também será
morto.
Se um homem roubar uma casa, será morto no local onde
praticou o roubo (CÓDIGO DE HAMURABI
15
).
De acordo com Michulin (1980), o código de Hamurábi nada mais é,
senão uma coleção de leis sobre a vida econômica, social, cultural, educativa e
familiar da civilização babilônica, e expressa as condições e interesses da elite
dominante da época, garantindo principalmente a manutenção das classes
sociais existentes.
Assim, enquanto às classes mais abastadas era possível pagar por seus
erros, os mais humildes pagavam com a vida ou com a mutilação. A
quantidade de escravos deficientes, por conseguinte, era imensa e estas eram
características (escravidão + deficiência) que, quando combinadas, facilmente
levariam os indivíduos à morte, tendo em vista que se tornavam
desnecessários à produção.
Parte das terras babilônias era arrendada por seus proprietários em
pequenas parcelas aos camponeses. No entanto, as condições de
arrendamento não eram nada fáceis. Em geral, por um pedaço de terra, o
arrendatário devia pagar um terço ou a a metade da colheita. Os
camponeses que não possuíam terra a maioria faziam-se diaristas dos
15
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38
grandes proprietários. Boa parcela da população vivia como escravo ou
camponês, e precisavam de muita força física e boas condições mentais e
sensoriais para sobreviver. Qualquer limitação condenava-os à exclusão.
Além do trabalho na lavoura, os camponeses eram obrigados a
participar com os escravos dos trabalhos pesados, como a criação de canais e
diques. Existia ainda um exército regular no reino da Babilônia. Na época da
guerra, os camponeses também eram recrutados para as batalhas. Os
mesmos também eram obrigados a pagar pesados impostos ao rei. Assim, a
quantidade de camponeses empobrecidos e escravizados aumentava
paulatinamente (BARBOSA, 1997).
É bom lembrar que os camponeses fracassados não podiam servir o
exército. Com isso, a falta de tropas em quantidade suficiente para combater as
tribos inimigas cresceu e após a morte do rei Hamurábi, o Império Babilônico
foi invadido e ocupado por povos vindos do norte e do leste. Os hititas foram
alguns dos povos que se estabeleceram numa região próxima da Mesopotâmia
e conquistaram a Babilônia em 1.600 a.C., permanecendo a1.200 a.C.,
quando foram dominados pelos assírios que continham grande poderio militar.
após a conquista da Assíria pelos caldeus, a Babilônia voltou a ser uma
cidade poderosa e rica
16
.
2.3.3. A Civilização Assíria
Os assírios foram povos que viviam também na região setentrional da
Mesopotâmia (atualmente, o Iraque). A capital mais antiga da Assíria foi Assur
e o Estado assírio formou-se cerca de 5000 anos a.C. O idioma assírio era
semelhante ao babilônio.
Os assírios ocupavam-se da agricultura, da criação do gado e da caça.
Eram ricos também em minerais, como o cobre, o chumbo, a prata e o ferro.
16
O mais famoso dos reis da Babilônia desse período foi Nabucodonosor, um estrategista
talentoso, que construiu muitos palácios e templos para os deuses. É dele também a
construção dos famosos jardins suspensos da Babilônia, em homenagem a sua esposa
Semíramis. Nessa época, a Babilônia converteu-se num centro de cultura e comércio,
enriquecendo e se desenvolvendo de maneira surpreendente. Ali foi construída a cidade real
que vivia separada do resto da população por um canal. Nela tinha o palácio e os templos.
Entre o canal e a muralha da cidade viviam os artesãos em pequenas casas de tijolos sem
cozimento. A parte comercial ficava por trás dos pórticos da cidade. Mas, todo esse império
não durou para sempre.Em 538 a.C. chegou à
Babilônia, o rei da Pérsia, Ciro. Acreditando que
unidos a Ciro poderiam prosperar, os babilônios abriram as portas da cidade ao exército persa
e foram conquistados sem luta (CROUZET, 1974).
39
Com o ferro, os assírios aprenderam a fazer instrumentos de lavrar a terra e
armas. Com isso, obtiveram uma superioridade militar muito grande.
Acostumados a manusear tais instrumentos e realizar caças difíceis e
perigosas, os assírios tornaram-se guerreiros endurecidos e ousados. Assim,
subjulgavam seus inimigos e obrigava-os a trabalhar para eles. Mas, de modo
algum poderiam apresentar limitações físicas ou mentais. Logo, pessoas com
deficiência não tinham muitas chances entre os trabalhadores ou guerreiros da
Assíria.
Pouco a pouco os assírios começaram a realizar incursões em regiões
cada vez mais afastadas e chegaram até o mediterrâneio. Assim, a Assíria
converteu-se em um poderoso Estado militar. Foram os Assírios, entre os
povos mesopotâmicos, os responsáveis pela criação de um dos primeiros
exércitos permanentes do mundo. Tratava-se de um exercito poderoso e bem
equipado: a infantaria utilizava lanças, escudos e espadas de ferro; a cavalaria
tinha carros de combate com rodas reforçadas, um aperfeiçoamento da
invenção dos sumérios.
Os assírios eram considerados povo guerreiro, detentor de grande força
militar, chegando a ser cruéis com os inimigos. Passou muito tempo sob o
domínio dos sumérios, e também dos babilônios, libertando-se mais tarde e
conquistando grande parte da Babilônia, quando começaram a alargar as
fronteiras do seu Império até atingirem o Egito. Depois de cada vitória, os
assírios ajustavam contas com os vencidos. Costumavam sentar os
prisioneiros sobre paus aguçados ou arrancavam suas cabeças. A maioria era
vendida como escravo. Também se apoderavam do gado, dos minerais e
outros objetos das tribos vencidas. vários registros que revelam as atitudes
rudes do povo assírio contra seus inimigos. Uma inscrição narrando as vitórias
de Teglatefalasar III, rei cujos exércitos conquistaram a Babilônia e a Síria diz o
seguinte:
Contra seus 20.000 guerreiros e 5 reis eu batalhei, e os venci.
Fiz que o sangue deles se derramassem nos vales e nas
planícies. Cortei-lhes as cabeças e empilhei-as como montes de
trigo diante das suas cidades. E as suas cidades eu as incendiei,
as demoli, as arrasei (Disponível em:
http://paginas.terra.com.br).
40
Todos os assírios podiam ingressar no exército, ricos ou pobres. No
entanto, os ricos batalhavam em carros ou a cavalos, ou seja, não
necessitavam de muita habilidade motora ou física, enquanto os camponeses
formavam a infantaria e eram armados com lanças, espadas, arcos e flechas.
Logo, deficientes não eram aceitos.
Por ordem do rei, tinham sido construídos, na Assíria, bons caminhos e
o exército avançava rapidamente. A travessia dos rios também o
apresentava dificuldades. Eles faziam balsas, pontes, catapultas, aríetes, etc.
Assim, as altas muralhas das cidades não constituiam proteção segura contra o
exército assírio que era sempre de homens fortes e saudáveis, nenhum
deficiente teria chance de sobrevivência, mas, entre os mais ricos, a deficiência
não se constituia num obstáculo. Pelo contrário, eram indivíduos protegidos e
até adorados.
Os chefes e sacerdotes da Assíria eram tão poderosos que obrigavam o
rei a isentá-los de todos os impostos e trabalhos reais obrigatórios. Com isso,
os camponeses e os artesãos pagavam impostos maiores para compensar o
privilégio dos ricos. Além de parte de suas colheitas, os camponeses deviam
entregar também certa quantidade de gado. Os artesãos pagavam os impostos
em dinheiro. Ambos, no entanto, estavam obrigados a fazer os trabalhos reais,
ou seja, a construção de canais, estradas, palácios e fortalezas. Tantos
impostos levavam grande parte dos camponeses e artesãos a se tornarem
dependentes dos ricos e, consequentemente, escravos dos mesmos.
Nos países conquistados residiam governadores e exércitos e, para
manter este sistema, a cobrança de impostos era uma constante. Tal situação
motivava muitas revoltas, seja entre as regiões conquistadas, seja entre os
assírios, o que gerara rebeliões que acabavam repreendidas cruelmente pelo
rei. De toda forma, os mais humildes eram compelidos à servidão e a educação
deste povo cumpria bem este objetivo, especialmente através do recrutamento
militar.
Certamente o período de maior glória e prosperidade dos Assírios foi
durante o reinado de Assurbanipal (até 668 a 626 a.C). mas, também este rei
cobrava pesados impostos dos povos vencidos, o que os levava a revoltarem-
se continuamente. Assurbanipal era um rei guerreiro que travou muitas guerras
e exibia muitas de suas conquistas pelas ruas da cidade. Diferente da maioria
41
dos reis, ele era instruído e além das batalhas, dedicou-se também a
construção de bibliotecas no seu palácio, cujo acesso era garantido aos
nobres, enquanto a educação dos mais pobres voltava-se para as atividades
guerreiras. Neste contexto, pobre deficiente era uma combinação
absolutamente imprópria para o Estado assírio (JAGUARIBE, 2001).
A escrita dos assírios constituía-se de pequenas cunhas feitas com um
estilete em tabuletas de argila é a chamada escrita cuneiforme.
Descobriram-se milhares de tabuletas na biblioteca de Assurbanipal em Nínive,
conhecendo-se grande parte da história do Império Assírio a partir de sua
leitura. Os palácios de Nínive eram cobertos de esculturas em baixo-relevo,
representando cenas de batalha e da vida dos assírios. Também por elas sabe-
se muito da história desse grande Império do passado; uma história de guerra,
conquistas, miséria e exclusão dos mais pobres e deficientes.
Com a morte de Assurbanipal, a decadência do Império Assírio se
acentuou, e em 610 a.C. a última de suas cidades caiu em poder dos
invasores. A assíria foi atacada por tribos iranianas e por caldeus. Os
guerreiros invadiram a cidade de Nínive, degolaram a população e saquearam
a prata, o ouro e os objetos valiosos. Os chefes assírios foram encarcerados,
toda a cidade foi destruída e o palácio real foi queimado.
2.4. As Civilizações Mediterrâneas Orientais: aspectos gerais, luta de
classe e educação
2.4.1. A Civilização Fenícia
Inúmeros foram os grupos que habitaram a região do Crescente Fértil
(atualmente, correspondente ao Líbano), entre os principais, destacamos:
cananeus, filisteus, hititas, cretenses, fenícios, hebreus e persas. Muitos
desses povos deixaram poucos vestígios, mas, outros, como os fenícios,
hebreus e persas, ao contrário, deixaram muitas contribuições para que se
vislumbre como se davam as relações sociais naquela época e como a pessoa
com deficiência era tratada. Abordaremos cada civilização em separado para
em seguida, estabelecermos relação com a exclusão da pessoa com
deficiência.
42
Sobre a Fenícia pode-se ressaltar que a mesma constituía numa
estreita faixa de terra espremida entre as montanhas e o mar. Portanto, dada
suas condições geográficas, com poucas áreas cultiváveis, a Fenícia
desenvolve outras atividades econômicas. A pesca, o artesanato e a extração
de madeira, seguida da construção de embarcações, seguido do comércio, são
as principais (LOVEJOY, 2002).
Como a Mesopotâmia, a Fenícia também possuía cidades autônomas
governadas por um soberano com a ajuda de sufetes, ou seja, grandes
comerciantes, construtores ou proprietários de terras. Cada cidade fenícia era
independente e constituía um reino a parte, portanto, cada uma tinha seu rei e
um conselho de comerciantes ricos. As cidades que mais se destacaram foram:
Biblos, Sidon e Tiro. Sob o domínio desta última, a Fenícia tornou-se o principal
centro comercial e de artesanato da região (MICHULIN, 1980).
A Fenícia, como as demais civilizações deste período, tinha a
escravidão como o modo de produção. Os escravos fenícios trabalhavam
geralmente como remadores nos barcos, acorrentados a bordo para que não
fugissem. Como exímios navegadores, atacavam e despojavam as
embarcações que encontravam no caminho e também as populações das
cidades e povos costeiros, raptavam habitantes pacíficos e negociava-os como
escravos. Para a escravidão precisavam ter um corpo forte e habilidades para
a navegação. Se fossem deficientes, nem como escavo serviam, logo, eram
sacrificados.
O comércio desenvolveu-se muito cedo na Fenícia. Os mercadores
fenícios exportavam pescado, azeites de oliveira, vinhos, cedro e artigos
elaborados a partir do ouro e da prata, além de tecidos coloridos. Em razão de
suas atividades e da própria expansão daí resultante, os fenícios
estabeleceram relações com diferentes povos e também foram os
responsáveis pela criação de um conjunto de 22 letras correspondentes a voz
humana: o alfabeto, que mais tarde foi aperfeiçoado pelos gregos e romanos.
Essa escrita fenícia era mais simples e mais cômoda que os hieróglifos
egípcios ou a escrita cuneiforme dos assírios, mas nem por isso acessível a
todas as classes. Somente os mais abastados tinham acesso (ARRUDA,
1999).
43
2.4.2. A Civilização hebraica
Não é necessário fazer grande esforço para demonstrar o quanto a
cultura do povo hebreu representa para os estudos aqui pretendidos,
especialmente por dispormos de um vasto referencial escrito sobre sua história
e inúmeras referências à questão da deficiência.
Desta civilização, cabe destacar que a mesma é considerada o
primeiro povo monoteísta da história e com uma das mais fortes organizações
religiosas que se tem conhecimento. Contando com uma forte estrutura
familiar de base patriarca, cujo poder da figura paterna era incontestável, o
povo hebreu defendia a poligamia e o comércio dos próprios filhos
17
.
Tal prática, institucionalizada entre os hebreus, servia como forma de
minimizar os problemas de ordem econômica que freqüentemente assolava a
região. Outra alternativa para os momentos de crise era “a saída do povo em
busca de outras terras” onde a escassez de recursos naturais não fosse
problema. Nestas empreitadas, no entanto, os mais fracos doentes ou
deficientes – ficavam para trás (SCHNEEBERGER, 2003, p. 37).
Por outro lado, o povo hebreu não era muito forte sob o ponto de vista
militar, por isso as tribos da Judéia e de Israel enfrentaram muitas dificuldades
em busca de novas terras. A prova disso é que, mesmo peregrinando por anos,
em busca da ‘terra prometida’
18
, os hebreus chegam à região da Palestina
por volta do ano 1000 a.C e, neste processo conseguiram consolidar uma vasta
tradição e crenças religiosas, que se caracterizam como a base de toda a
educação hebraica.
Os fundamentos educacionais hebreus (como outros aspectos da vida
deste povo) tinham a religiosidade como eixo norteador para toda conduta
17
Um exemplo da venda de membros da família como forma de minimizar os problemas pode
ser vista no caso se José, descendente de Jacó, filho de Israel, vendido pelos próprios irmãos
ao oficial do faraó egípcio encontra-se em Gênesis (cap 37, vs 26-36).
18
Segunda as escrituras bíblicas, Javé tinha feito um pacto com os hebreus através da figura
de Abraão, cerca de 4.000 a.C. Nesta ocasião, Abraão teria sido chamado por Javé para
deixar a Mesopotâmia e buscar outra terra onde fundaria outra nação. Outras ordens teria dado
Javé a Abraão e seus descendentes; algumas bastante violentas, como a ordem para Abraão
matar seu próprio filho (Isaac); a ordenação de um dilúvio para destruir toda a vida na terra ou
as pragas lançadas sobre o Egito, o que leva a historiadora Karen Armstrong, a definir o deus
hebreu como “um deus brutal, parcial e assassino: um deus de guerra, (...) deus dos exércitos,
(...) passionalmente partidário, tem pouca misericórdia pelos não favoritos” (ARMSTRONG,
1994, p. 48).
44
humana. Com isso, semelhante a outros povos antigos, o hebreu guiava-se
pelo aspecto religioso para definir suas relações político-sociais, culturais e até
econômicas. Difundiam a idéia de um deus imaculado, imortal e perfeito e
ainda constituído como a origem de todas as coisas que habitavam o mundo
(inclusive as doenças e deficiências vistas como castigo divino por alguma falta
cometida); a ele chamavam Iavé, traduzido por Jeová ou Javé, na Torá
19
e na
própria Bíblia Cristã, organizada somente na Idade Média (SOGGIN, 1984).
No entanto, de forma semelhante as demais civilizações antigas, o
povo hebreu mantinha uma figura humana em comunicação com a figura
divina; um intermediário entre deus e os homens. Esta figura, sempre era um
representante das classes sociais mais abastadas, obviamente com todo poder
econômico, político e militar e representando os interesses destes grupos,
usufruindo de regalias impensadas para os demais membros do povo.
Um de seus primeiros representantes teria sido Moisés e este fora
responsável por intermediar um conjunto de leis ditadas de deus para os
homens. Estas leis referiam-se aos mais diversos aspectos da vida social. As
leis acerca da mulher, das doenças e dos doentes, dos tratamentos, dos
sacrifícios, dos papéis sociais nas diferentes classes, especialmente do poder
dado aos sacerdotes, dentre outros, são bastante elucidativos sobre “os
desejos de deus para com a civilização hebraica” (LEVÍTICO, cap. 12 e 13).
Mas, são para nós, especialmente claros quanto à cultura de um povo que em
muito influenciou as épocas seguintes e que deixa marcas até hoje
Assim, vemos que a civilização da região da Palestina segue chefiada
sempre por um líder político, mas, principalmente por um chefe religioso que
recebe das mãos de deus, as orientações para educar o seu povo. Abraão,
19
A Torá é o nome dado aos cinco primeiros livros do Tanakh (também chamados de Hamisha
Humshei - as cinco partes da Torá) e que constituem o texto central do judaísmo. Contém os
relatos sobre a criação do mundo, da origem da humanidade, do pacto de Deus com Abraão e
seus filhos, e a libertação dos filhos de Israel do Egito e sua peregrinação de quarenta anos até
a terra prometida. Inclui também os mandamentos e leis que teriam sido dadas a Moisés para
que entregasse e ensinasse ao povo de Israel. Chamado também de Lei de Moisés, hoje a
maior parte dos estudiosos são unânimes em concordar que Moisés não é o autor do texto que
possuímos, mas sim que se trate de uma compilação posterior. Por vezes o termo "Torá" é
usado dentro do judaísmo rabínico para designar todo o conjunto da tradição judaica, incluindo
a Torá escrita, a Torá oral (ver Talmud) e os ensinamentos rabínicos. O cristianismo baseado
na tradução grega Septuaginta também conhece a Torá como Pentateuco, que constitui os
cinco primeiros livros da Bíblia cristã (MILES, 2002).
45
Isaac, Jacó, Esaú, Moisés, Josué, Salomão, Samuel, dentre outros são alguns
dos chefes religiosos que guiaram o povo hebreu.
Com Abraão, deus estabelece uma aliança; com Moisés, dita os
mandamentos ou leis que deviam ser seguidos por todos; e assim por diante.
No entanto, é com a figura de Jesus, hoje considerado pelos cristãos, como
mais um intermediário entre deus e o homem que se estabelece um grande
conflito entre os judeus. Embora, não se questione sua influência na história da
humanidade, nem seu importante papel como líder religioso do povo judeu,
Jesus fora bastante questionado pelas elites religiosas de sua época,
especialmente por não ser oriundo de família nobre, muito menos estabelecer
descendência com os reis, juízes ou sacerdotes como propunha a tradição
hebraica. Somente a estes era destinado o saber, a virtude e o poder (AQUINO
ET ALL, 1980).
Muito da história do povo hebreu pode ser encontrada na To(que
corresponde ao Pentateuco Bíblico). Nestes cinco livros estão delineadas as
normas de conduta e princípios espirituais do povo hebreu, com destaque para
a lei mosaica ou dez mandamentos (escritos por Moisés), um dos mais
importantes documentos do povo hebreu, que muito cedo desenvolveu a
escrita, podendo, assim, possibilitar que ficassem registrados muito de sua
história.
Nos livros escritos por Moisés
20
, é possível identificar todo o conjunto
de práticas religiosas, mas também e, principalmente educativas do povo
hebreu. Os dez mandamentos escritos por Moisés (a partir da orientação
divina) condensam toda a institucionalização educativa desta civilização e, de
longe se percebe que a base de toda educação era religiosa.
Eu sou o senhor teu deus, que te tirei da terra do Egito, da casa
da servidão. Não terás outros deuses diante de mim. Não farás
para ti imagem de escultura, nem alguma semelhança do que há
20
Segundo nesis, primeiro livro do Pentateuco, Moisés nasceu em terras egípcias durante
um período em que o povo hebreu habitou aquelas regiões em busca de alimentos. Também
de acordo com as escrituras sagradas que, neste período, o faraó vendo o crescente aumento
da população hebraica e temendo rebeliões e guerras por parte destes, ordenou algumas
medidas para inibir seu crescimento: primeiro, foi o aumento de tributos cobrados ao povo
hebreu; segundo, a exacerbação da exploração da população de escravos e por fim, o
sacrifício de todo recém-nascido do sexo masculino nascido entre os hebreus. Esta foi uma
época de extrema perseguição do faraó contra o povo hebreu (SCHNEEBERGER, 2003).
46
em cima dos céus, nem embaixo na terra, nem nas águas
debaixo da terra. Não te encurvarás a elas nem as servirás;
porque eu o senhor teu deus, sou deus zeloso, que visito a
iniqüidade dos pais nos filhos, até a terceira e quarta geração
daqueles que me odeiam. E faço misericórdia a milhares dos
que me amam e aos que guardam os meus mandamentos. Não
tomarás o nome do senhor teu deus em vão; porque o senhor
não tpor inocente o que tomar o seu nome em vão. Lembra-te
do dia do sábado para o santificar. Seis dias trabalharás e farás
toda a tua obra. Mas, o sétimo dia é o sábado do senhor teu
deus; não farás nenhuma obras, nem tu, nem o teu filho, nem
tua filha, nem o teu servo, nem a tua serva, nem o teu animal,
nem o teu estrangeiro, que está dentro das tuas portas. Porque
em seis dias fez o senhor os céus e a terra, o mar e tudo que
neles há, e ao sétimo dia descansou; portanto, abençoou o
senhor o dia do sábado e o santificou. Honra a teu pai e a tua
mãe para que se prolonguem os teus dias na terra que o senhor
teu deus te dá. Não matarás. Não adulterarás. Não furtarás. Não
dirás falso testemunho contra o teu próximo. Não cobiçarás a
casa do teu próximo, não cobiçarás a mulher do teu próximo,
nem o seu servo, nem a sua serva, nem o seu boi, nem o seu
jumento, nem coisa alguma do teu próximo” (ÊXODO, cap. 20,
vs. 1-17).
Ainda nos livros do Pentateuco Mosaico inúmeras leis para que o
povo cumpra. Assim, Moisés apresenta as leis acerca dos escravos e de suas
condições de servidão:
Se comprares um servo hebreu, seis anos servirá; mas, no
sétimo sairá livre, de graça. Se entrou só com o seu corpo,
com o seu corpo sairá; se ele era homem casado, sua mulher
sairá com ele. Se seu senhor lhe houver dado uma mulher e ela
lhe houver dado filhos ou filhas, a mulher e seus filhos serão de
seu senhor, e ele sairá sozinho. Mas, se aquele servo
expressamente disser: eu amo o meu senhor e a minha mulher e
a meus filhos; não quero sair livre, então seu senhor o levará aos
juízes e o fará chegar à porta, ou ao umbral da porta, e seu
senhor lhe furará a orelha com uma sovela; e ele o servirá para
sempre (ÊXODO, cap. 21, vs. 1-6).
Com respeito às agressões, é previsto no mesmo capítulo que: “quem
ferir alguém, de modo que este morra, certamente será morto. Porém, se lhe
não armou cilada, mas deus lho entregou nas mãos, ordenar-te-ei um lugar
para onde fugir” (ÊXODO, cap. 21, vs. 7) Tais leis se destinavam aos homens
livres. No entanto, aos mais pobres (escravos em sua maioria) é dito:
Se alguém ferir a seu servo, ou a sua serva, com pau e morrer
debaixo da sua mão, certamente será castigado. Porém se
47
sobreviver por um ou dois dias, não será castigado porque é
dinheiro seu. (...) e quando alguém ferir o olho do seu servo, ou
o olho da sua serva, e o danificar, o deixará ir livre pelo seu olho.
E se tirar o dente do seu servo, ou o dente da sua serva, o
deixará ir livre pelo seu dente (op. Cit. Cap. 21, vs. 26-27).
É uma época onde as agressões físicas, especialmente para com os
escravos eram muito comuns e a produção da deficiência entre os escravos
bastante estimulada, o que revela que a deficiência, vista como castigo divino,
passou também a ser adotada como punição humana, tal qual noutras
civilizações antigas. De certa forma é uma visão bastante inadequada para se
castigar indivíduos úteis para a produção econômica.
Como pouco ou nada se questionava acerca de tais atitudes, o
escravo o tinha o direito de revide, como o homem livre. Teoricamente, após
uma mutilação ou agressão grave, o escravo ganhava a liberdade, mas isso
não funcionava integralmente no cotidiano das tribos, pois caso o escravo ou
escrava mutilado fosse casado e houvesse contraído matrimônio sob o domínio
do senhor, não poderia levar seu/sua parceiro (a) consigo e o mesmo cabia
para os filhos. Evidentemente, mesmo doente ou deficiente, vítima de agressão
do seu dono, nada poderia fazer, senão aceitar a nova condição. Nestes casos,
o escravo ou escravo deveria, ainda para permanecer com o seu senhor, jurar
amor ao mesmo e prometer servi-lo até a morte. Portanto, a situação de
pessoas deficientes ou doentes também nesta civilização está fortemente
condicionada ao seu pertencimento de classe.
Os hebreus se estabeleceram em comunidades e estas passaram a
viver da agricultura; os israelitas ao norte e os judeus ao sul. Estes povos
desenvolveram um sistema tribal, baseado no sistema de propriedade familiar
dos meios de produção. Os idosos – patriarcas - eram muito respeitados,
especialmente pelo grande conhecimento das leis e tradições e por isso se
definiam como o líder, rei ou juiz de determinadas tribos, escolhidos por deus
para dirigir seu povo, logo, suas atitudes eram incontestáveis (ARMSTRONG,
1994).
Com o tempo, os filisteus, povo guerreiro ocupou a costa do mar
Mediterrâneo e assaltou as regiões vizinhas da Palestina. Assim, se passaram
quase 100 anos de luta. No decorrer destas lutas, os chefes mais audazes se
nomearam reis de Israel. No entanto, a união definitiva das tribos ocorreu
48
por volta do ano 1000 a.C, nos tempos do rei Davi, um dos chefes da tribo de
Judá, que dominou os filisteus e os jogou ao mar (CORNILL, 1983).
Assim, foi criado o Estado Judeu. Os reinos de Israel e da Judéia
ocuparam a Palestina, uma estreita faixa de terra, situada ao sudeste da
Fenícia, irrigada pelo Rio Jordão que corre por um vale montanhoso e
desemboca no mar Morto. A água deste mar é tão salgada que nenhum
organismo vivo pode subsistir nela. Portanto, a escassez de alimentos era algo
muito comum na vida deste povo e com isto, a fome e as doenças, além da
eliminação dos filhos mais jovens eram comuns, principalmente quando estes
revelassem deficiências.
A consolidação da monarquia hebraica foi conseqüência das guerras
na Palestina. O primeiro rei foi Saul, substituído por Davi que completou a
conquista da Palestina e iniciou a construção do Templo de Jerusalém. O rei
Davi era apoiado pela aristocracia que era constituída pelos antigos chefes de
gens e chefes militares. Era considerado um rei carismático e para legitimar
seu poder fez importantes alianças com sacerdotes e mercadores, sendo
bastante beneficiado por eles durante seu governo.
Segundo Schneeberger (2003), Davi organizou um exército de
mercenários e investiu na expansão territorial para garantir os gastos do
Estado. Mas, apenas homens fortes e saudáveis participaram destes projetos.
Os deficientes não tinham serventia. Após a morte de Davi, assumiu seu filho,
Salomão.
Salomão foi o terceiro rei hebreu e governou de 966 a 933 a.C.,
alcançando um importante desenvolvimento político e econômico. Dentre suas
principais obras têm-se a finalização da construção do Templo de Jerusalém
com a colocação da Arca da Aliança (importante símbolo da aliança de Javé
com os homens), consolidando a união entre o poder religioso e o poder
político.
Para a construção do Templo, Salomão
21
precisou de muitos
trabalhadores e muitos impostos, e foi o que ele fez: aumentou os tributos (que
21
Após a morte de Salomão, a região setentrional separou-se da Judéia e formou um reino
independente, Israel. A separação deu origem a formação de doze tribos. Esse período é
conhecido como o Cisma Hebraico. Ao norte, a tribo de Israel, cuja capital era a cidade de
Samaria, era formada por dez tribos. Ao sul, ficaram duas tribos formando o Reino de Judá,
cuja capital era Jerusalém. Assim, Hebreus ou Israelitas são todos os descendentes das doze
49
eram altos) e arrancou os camponeses de suas atividades para executar os
trabalhos reais.
Também para as construções, os trabalhadores precisavam de muita
força e condições adequadas; os deficientes não eram úteis neste processo.
Portanto, nesta civilização como em outras, as pessoas deficientes pobres, por
sua condição de exclusão para o trabalho, são excluídos da própria vida.
Além destes descontentamentos, outros marcavam os trabalhadores
ao longo dos tempos. Desde o século VIII a.C, nas cidades palestinas foram
criados importantes mercados. A aristocracia foi a maior beneficiada com o
comércio, pois além dos lucros, apoderou-se de terras camponesas. Os reis
eram os primeiros a tomarem os vinhedos, os jardins e as terras dos
camponeses, deixando-os revoltados.
Muitas guerras aconteceram por este motivo e muitos camponeses
foram feitos escravos dos reis, em Israel e na Judéia. Estas lutas internas
debilitaram o Estado de Israel e o fez refém dos assírios, no século VIII; a
Judéia resistiu um pouco mais, tornando-se prisioneira somente três séculos
depois. Os reinos da Judéia e Israel perderam assim a independência. O
drama da história dos hebreus é interrompido em 539 a.C quando o rei Ciro,
após conquistar a Babilônia permite que os judeus regressem às suas terras.
Mas, esta situação não dura muito tempo. Novas invasões e domínios eram
comuns, especialmente por gregos e romanos.
De toda forma, com os reis tradicionais ou com Jesus (que também se
autodenominava Rei dos Judeus), percebe-se na cultura deste povo, assim
como nas demais civilizações antigas que a divindade é responsabilizada pelas
situações de sofrimento comuns ao cotidiano das pessoas. Portanto, todos os
males que afligiam a pessoa humana, bem como os demais seres vivos, eram
compreendidos como castigo divino. Entre estes males, a doença e a
deficiência não passavam despercebidas.
Por outro lado, as questões materiais da população conservavam o
mesmo nível de dificuldade encontrado em outras civilizações. No que diz
respeito à pessoa com deficiência não seria diferente. O transporte ou a
tribos de Israel (Jacó). Judeus são apenas os descendentes de uma tribo (Judá). Por isso todo
Judeu é um Hebreu e nem todo Hebreu é Judeu (SCHNEEBERGER, 2003, p. 39).
50
simples movimentação de pessoas mais seriamente comprometidas, seja por
problemas físicos ou motores ou ainda sensoriais, representava um grande
obstáculo a sua própria sobrevivência.
Neste contexto, compreendemos melhor os significados das inúmeras
passagens bíblicas relativas à deficiência e observamos que mesmo entre
animais, a deficiência era entendida como um castigo e o ser que a portasse
seria concebido como imundo. A diferença se , no entanto, a partir da idéia
de que aos sacerdotes era dado o poder de intervir nestas condições,
buscando a cura. Porém, era necessário para isso, que a família da pessoa
deficiente garantisse importantes ofertas ao templo. Sem o poder econômico
das famílias para garantir estas oferendas que geralmente eram alimentos ou
moedas, os pertencentes às classes mais baixas tinham poucas chances de
esperar a cura, o perdão de deus ou da sociedade.
Nos textos do Novo testamento, percebe-se que são os judeus mais
pobres que buscam este tipo de ajuda junto a Jesus, ao saber de sua
existência nos arredores de Jerusalém e não é difícil compreender porque sua
fama se espalhou tão rapidamente entre estas camadas sociais.
Especialmente com respeito aos doentes e deficientes, a exclusão era
avassaladora e a esperança de cura ou mesmo do perdão, sem que
necessitassem pagar por eles arrebanhava multidões diariamente a procura de
Jesus.
(...) foram ter com ele conduzindo um paralítico que era
transportado por quatro. E como não pudessem apresentá-lo por
causa da multidão, descobriram o teto pela parte debaixo da
qual Jesus estava e, tendo feito uma abertura, arriaram o leito
em que jazia o paralítico (MARCOS, cap. II, vs. 1-12 ).
Assim, a questão de classe social também definia toda a vida deste
povo. E ser deficiente pobre fora sinônimo de exclusão, abandono, sofrimento
(SACCHI, 1976; SOGGIN, 1984).
2.4.3. A Civilização Persa
Os Persas pertenciam ao grupo étnico indo-europeu, também
chamado ariano e eram originários do Cáucaso. Os historiadores afirmam que
de início, medos e persas invadiram a região do planalto do Irã e saquearam,
subjugaram e conquistaram os povos do Oriente antigo. Assim, os persas
51
(tanto quanto os medos) são resultantes da fusão de inúmeros invasores com
as populações preexistentes nas cidades conquistadas (JAGUARIBE, 2001;
SCHNEEBERGER, 2003). A região habitada pelos persas hoje pertence ao
Nordeste do Irã.
Os medos e persas eram considerados povos guerreiros,
conquistadores e expansionistas, detentores de grande habilidade com o uso
de cavalos e carros de combate. Mas, por volta de 558 a.C, os persas lutam
contra os medos chefiados por Ciro II, reconhecido como o chefe das tribos
persas. A luta entre persas e medos dura anos e termina com a vitória dos
persas. Com isso, Ciro estimula a extinção do regime comunitário, ainda
existente e acelera a escravidão entre estes povos, mas diferente dos demais
conquistadores não destruía as cidades conquistadas nem exterminava os
povos dominados; tinha muita habilidade com os mesmos, pois concedia
liberdade religiosa, o que promovia certa tranqüilidade ao seu reinado.
Além das conquistas realizadas com muita força de seu exército, Ciro foi
favorecido pela aristocracia, os sacerdotes e mercadores babilônicos que
abriram suas portas ao exército persa, com o objetivo de alargar suas
operações comerciais e financeiras a um novo império. Dessa forma, Ciro
proclama-se também rei da babilônia, em 538 a.C. O império persa sobreviveu
por longo tempo, primeiro sob do domínio de Ciro II, em seguida por seu filho
Cambises e, mais tarde por Dario I, Artaxerxes, Dario II e III, mas acabou
sendo conquistado por Alexandre, em 331 a.C (NISSEN, 1990).
Na Antiga Pérsia, a civilização era essencialmente aristocrática e feudal;
as diferenças de classe eram profundas e definidas pelos recursos que
possuíam. O rei, no topo era seguido por três camadas da aristocracia; a
primeira era a dos vassalos, príncipes de importância variada que mantinham
seus tronos em troca do reconhecimento da autoridade central ou que
realmente tinham sangue real ou foram designados a governar as maiores
províncias. Outra camada aristocrática era composta pelos chefes das sete
grandes famílias.
Tinha ainda a pequena nobreza, formada por ministros e outras
autoridades. Abaixo, vinham os homens livres, proprietários e chefes de
aldeias. Paralelo a esta aristocracia estava a instituição religiosa. Por fim,
vinham os camponeses e artesãos que, embora livres, tornavam-se servos do
52
Estado e dos estratos superiores da nobreza. Seguiam-se ainda os escravos,
especialmente estrangeiros. Os escravos deficientes eram sumariamente
eliminados (GUIDI, 1983).
O império persa foi o maior em existência e o mais bem organizado. O
rei tinha o aconselhamento de sete conselheiros e de guardiães da lei, mas o
poder absoluto era seu. Podia escolher como herdeiro qualquer dos seus filhos.
Em todas as regiões conquistadas, o rei persa mantinha um representante,
espécie de inspetor real que cobrava altos impostos dos povos conquistados.
Estes tributos mantinham o império que incluía milhares de pessoas, além de
todo o exército, que era treinado em academias militares, com ênfase nos
costumes tradicionais persas: no hipismo, na prática do arco e flecha, na caça;
completados pelo estudo de história, religião e direito. Nestas atividades, a
presença de uma pessoa com deficiência era inaceitável.
Entre os persas, fazia-se uso de pelo menos três línguas: o antigo persa,
o elamita, e o aramaico. O persa e o elamita eram escritos em cuneiforme,
enquanto o aramaico possuía caracteres próprios que podiam ser registrados
com tinta sobre o papiro. Assim, o sistema legal persa tinha normas
reproduzidas em pedras, placas e papiros e eram aplicadas em todo o império.
Os persas eram politeístas, mas aos poucos receberam influências de
todos os povos conquistados. Desde os cultos com sacrifícios de sangue,
realizados por magos, como o uso de bebidas inebriantes e acultos fúnebres
eram práticas comuns entre os persas. Mais tarde, passaram a construir
templos e estátuas para cultuar os deuses, sendo bastante influenciado pelo
zoroastrismo
22
, religião baseada na noção de justiça, concebida por
Zoroastro
23
, no século VI a.C. Contudo, não havia um culto imperial, como
acontecia na babilônia e no Egito, por exemplo. De acordo com Jaguaribe
22
O Zoroastrismo concebia a existência de dois deuses principais que representavam
princípios diferentes e antagônicos. Aura-Mazda era o princípio da vida, luz, bem, verdade e
virtude. Ahriman, representado por uma serpente, simbolizava a morte, trevas, mal, discórdia,
doenças, conflitos e outras desgraças. Ambos estariam em luta constante e as pessoas que
seguissem o primeiro eram recompensadas, enquanto os que seguissem o segundo eram
castigados eternamente (SCHNEEBERGER, 2002, p. 44).
23
Zoroastro é considerado um sacerdote que conduzia sacrifícios e preces e pertencia ao clã
de criadores de cavalos. Historiadores contam que Zoroastro teve sua primeira visão aos 30
anos de idade e saiu a pregar pela Ásia Central. Teve vários discípulos e propunha importantes
reformas na religião tradicional. Dentre seus seguidores, um príncipe se tornou seu protetor.
53
(2001), embora o rei tivesse uma aura sagrada, o Estado não se fundava na
religião, como acontecia com outros povos antigos.
De toda forma, a questão do direito entre os persas era definida pela
vontade do rei, portanto, transgredir a lei emanada do soberano era
considerado uma ofensa grave a própria divindade. No entanto, os persas
diferenciavam os crimes de menor ou maior importância e as penas seguiam
exatamente na medida da gravidade. Assim, os crimes de menor importância
podiam ser punidos com chibatadas ou simplesmente com multas. Mas,
os
crimes mais graves eram severamente punidos e os castigos eram bastante
cruéis, indo desde a marca a fogo, a mutilação, a cegueira e até a própria
morte. Os casos mais comuns para punir-se com a pena de morte eram os
homicídios, estupros, abortos, além de graves desrespeitos à pessoa do rei ou
a traição. Alguns registros revelam alguns desses castigos praticados pelos
persas.
É conhecido o caso de Sesamnés, juiz real condenado à morte
por haver recebido dinheiro a fim de pronunciar uma sentença
injusta: após a sua morte, arrancaram-lhe a pele e forraram com
a mesma cadeira em que se costumava sentar para exercer
suas funções. Punição aplicada por Cambises (530-522 d.C.).
Outra pena tipicamente persa foi a do escaffismo, ou seja, o
suplício dos botes: tomavam-se dois botes ajustáveis, deitava-se
de costa num deles o malfeitor, cobria-se com o outro. A cabeça,
as mãos e os pés ficavam de fora, e o resto do corpo fechado.
Faziam-no comer a força e picavam-lhe os olhos, passando-lhe
na face uma mistura de leite e mel, deixando-o com o rosto
exposto ao sol, que ficava coberto de moscas e formigas,
restava no meio de seus próprios excrementos e os vermes que
iam surgindo no meio da podridão de suas entranhas iam-lhe
devorando o corpo. Evidencia a História que Mitríades (quem
teria criado tal pena) foi vítima desta pena, obra de sua própria
criação, morrendo depois de dezessete dias de doloroso martírio
(ZEQUERA, 2002, p. 245).
Em geral, os considerados rebeldes eram levados ao rei ou juiz onde
lhes cortavam o nariz e as orelhas. Suas partes eram apresentadas ao povo a
fim de que servissem de exemplo aos demais. Logo, em seguida a vítima era
conduzida à capital da província em que se haviam revoltado e eram
executados. Havia diversas outras maneiras de executar um prisioneiro,
destacando, o envenenamento, a empalação, a crucifixão, o enforcamento, o
apedrejamento, dentre outros não menos cruéis. Cabe destacar, no entanto,
54
que a rebeldia dizia respeito exclusivamente aos mais pobres escravos ou
homens livres - que reclamavam por direitos ou questionavam as atitudes dos
governantes (NISSEN, 1990).
Além das diferenças de classe, dois outros aspectos da civilização persa
são semelhantes às demais civilizações da Antiguidade: primeiro, o olhar sobre
a deficiência; segundo a produção da deficiência enquanto punição. Portanto, a
pessoa deficiente era severamente rejeitada entre os persas, por dois motivos
básicos: se nascidos deficientes, eram marcadas pelo deus do mal; se rebeldes
(e pobres, evidentemente) seriam transformados em deficientes pelos castigos
sofridos e tais marcas denunciavam que eram traidores ou ameaças potenciais
à ordem persa.
2.5. As Civilizações Orientais: aspectos gerais, luta de classe e educação
2.5.1. A Civilização Chinesa
Pelos achados arqueológicos, hoje se sabe que a presença de grupos
humanos no território que hoje é a China é bastante remota. registros que
mostram que foi nesta região quer foram achados os vestígios fósseis do
chamado Homem de Pequim, cujo nome científico é Homo erectus pekinensis,
um dos mais antigos hominídeos que se tem notícia, datando sua existência de
aproximadamente 400 mil anos a.C. Ao que tudo indica este homem andava
ereto e é possível que já tivesse descoberto o fogo (REIS FILHO, 1982).
Na parte leste do território que veio a se tornar a nação chinesa, é onde
se encontra a chamada Grande Planície de China. Dois rios que nascem nas
montanhas e correm por ela levando vida a toda região: o Huang-Ho (também
chamado de rio Amarelo) e o Yang-Tsé-Kiang.
Semelhante ao que ocorreu no Egito em relação ao rio Nilo, o rio Huang-
Ho favoreceu o desenvolvimento da agricultura e o surgimento de cidades na
região, pois após as chuvas, ele se enche e cobre as planícies por dezenas e
mesmo centenas de quilômetros, mas, ainda assim, o povo chinês vivia
momentos de seca. Portanto, a adversidade do lugar exigia um povo hábil e
forte para contornar os problemas; as deficiências não eram bem aceitas entre
os mais pobres.
55
Segundo Granet (1997), enquanto as condições geográficas no leste
favoreceram o surgimento de grupos sedentários que se dedicavam ao cultivo
do arroz e de outros cereais, as condições geográficas no oeste favoreceram o
surgimento de grupos nômades e de uma cultura vasta, mas ainda pouco
conhecida.
Hoje se admite que a civilização chinesa, infelizmente, é pouco estudada
por estudiosos ocidentais, sobretudo, quando comparada aos estudos
referentes às civilizações que mais influenciaram na constituição da cultura do
Ocidente. No entanto, é importante que se considere que o intercâmbio entre
os diferentes povos, especialmente a partir das grandes navegações, são
suficientemente válidos para justificar um olhar sobre a história destes povos
desde seus primórdios, identificando especialmente sua organização social e o
papel da educação, vislumbrando neste contexto a condição de vida de
pessoas com deficiência.
De acordo com os estudos (GRANET, 1997; BRUNDEN & ELVIN, 1997)
sobre a cultura oriental, desde cedo esta civilização parece ter buscado ou
desenvolvido concepções singulares sobre a vida, o mundo e o ser humano, e
que estas, por sua vez, estiveram ligadas a um complexo e antigo sistema de
crenças. Não dúvida, portanto, que este povo construiu uma cultura
altamente especializada, e desde muito cedo se aliou à ritualização e a
religiosidade como forma de fixar os conhecimentos adquiridos através de uma
série sucessiva de modelos civilizatórios testados desde seus períodos proto-
históricos.
De toda forma, os chineses acabaram delimitando uma organização
social com características próprias que favoreceram sua ascensão e
desenvolvimento no conjunto das antigas civilizações (BARNES, 1993).
Em linhas gerais, é notório que em muitos aspectos a civilização chinesa
se assemelha às demais (estudadas até o momento), pois, aspectos como a
existência de classes, o papel dado a religião, práticas escravistas, dentre
outros, asseguram a semelhança.
No que diz respeito às classes sociais, podemos admitir que no interior e
entre as classes, a mobilidade social, por exemplo, possui um ritmo próprio e
diferente daquele conhecido no Ocidente antigo. Esta particularidade se dá em
função do domínio dos conteúdos (pois o controle dessas práticas pressupõe
56
tempo e condições para estudo, passíveis, portanto, de uma situação social
favorável), mas também da especialização do trabalho e de sua estrutura
produtiva (BEARD & HENDERSON, 1998).
Sobre o modo de produção desenvolvido na China, pode-se afirmar que
o mesmo foi classificado pelo Marxismo como Modo de Produção Asiático
24
, ou
seja, um modo onde se encontravam articulados: a constituição dos modelos
de subsistência, cuja estrutura técnico-produtiva em si era um estruturador
dos papéis sociais, carregados em sua maioria da religiosidade e do
conservadorismo, tão comuns ao mundo chinês (LOVEJOY, 2002).
No entanto, acessando o conjunto das produções e idéias da época vê-
se que a história da China e sua relação com a pessoa com deficiência pode
ser conhecida principalmente por meio de dois autores fundamentais: Confúcio
(século VI a.C) e Sima Qian (século I e II a.C). Por meio de ambos, apesar das
divergências entre eles, é possível conhecer muito deste povo levando-nos a
crer que é impossível pensar o mundo antigo, ignorando o papel desta
civilização da Ásia (BRUNDEN & ELVIN, 1997).
Confúcio teria sido o organizador das principais fontes históricas da
Antigüidade chinesa. Destacam-se o Shujing (Tratado dos Livros); o Liji,
(Recordações dos Rituais), o Chunqiu (Livro das Primaveras e dos Outonos),
além dos livros filosóficos do Confucionismo. Sima Qian empreendeu um
trabalho comparativo e buscou ainda destacar os diferentes aspectos da
história chinesa, enfatizando as biografias, a cronologia e os tratados
científicos, buscando sempre a coerência do processo histórico.
A partir destes materiais, bem como favorecidos pelos achados
arqueológicos mais recentes, é possível compreender que a China não foi
sempre uma unidade; vários grupos habitaram o território chinês no período
antigo, mesmo nas épocas ditas imperiais, portanto, ao estudar as linhagens
24
O modo de produção asiático caracteriza os primeiros Estados surgidos no Oriente Próximo,
Índia, China, África e América pré-colombiana (incas e maias). A agricultura, base da economia
desses Estados, era praticada por comunidades de camponeses presos à terra, que não
podiam abandonar seu local de trabalho e viviam submetidos a um regime de servidão coletiva.
Todas as comunidades deviam tributos e serviços ao Estado ao qual estavam submetidas,
representado pelas figuras do imperador, rei ou faraó que se apropriavam do excedente
agrícola, distribuindo-o entre a nobreza, formada por sacerdotes e guerreiros (Disponível em:
http://pt.wikipedia.org).
57
históricas da China é bom que se lembre que, certamente, estas foram apenas
as mais poderosas, mas não as únicas.
Os achados arqueológicos são mais comuns a partir da dinastia Shang,
o que maior veracidade a existência deste período, deixando os outros
cobertos de dúvidas. Pode-se dizer, então, que a partir da dinastia Shang, a
cultura chinesa se mostrava bastante complexa.
Esta Dinastia teve início aproximadamente no culo 15 a.C. Era uma
cultura altamente desenvolvida, tendo construído uma capital, Anyang, e
possuído um domínio da arquitetura e do bronze sem igual. Esta civilização
conhecia o fabrico da seda, a exploração do jade, do marfim e utilizavam a
irrigação; possuíam também um sistema de escrita rudimentar; utilizavam
carros; criavam animais diversos; se organizavam em reinos compostos de
Cidades-Estado. Era, portanto, uma grande confederação de pequenos
estados e latifúndios, que abrigavam as comunidades produtivas mais que um
império (BARNES, 1993).
O registro escrito mais antigo do passado da Dinastia Shang está na
forma de inscrições divinatórias em ossos ou carapaças de animais. No século
12 a.C esta civilização vai ser derrotada pela ascensão dos Zhou.
Para Franke & Trauzetel (1989) os registros mostram que o período
Zhou foi próspero, conservando todos os avanços anteriores e expandindo na
colonização de novos territórios, reorganizando a política e a economia dentro
de uma estrutura praticamente feudal, onde força para o trabalho era condição
indispensável para a sobrevivência, e deficiência motivo de preocupação.
Por outro lado, cabe considerar que, todo o progresso desta civilização,
colocou este povo, obviamente em contato com tribos nômades, o que
inaugurou um longo período de conflito. Por sua vez, a organização do tipo
feudal entra em crise em razão da concentração de poder nas mãos dos donos
das terras. Com isso, a dinastia perde gradativamente seu poder, e os reinos
começaram a lutar entre si para conquistar o trono. No entanto, as constantes
disputas excluíam os deficientes de cargos, de lutas, e toda forma de inserção
social.
Após um processo de consolidação política, restavam, no final do
século V a.C., sete Estados proeminentes. A fase durante a qual estas poucas
entidades políticas combateram umas contra as outras é conhecida como o
58
Período dos Reinos Combatentes. Mas, Qin sai vencedor. Nesta fase, a China
foi unificada e o imperador subjugou grande parte das terras chinesas,
consolidando um governo altamente centralizado, com a observância de um
código legal e poder absoluto do monarca.
Tudo leva a crer que a maioria das escolas filosóficas (taoísmo
25
,
confucionismo
26
, legismo
27
e moísmo) surgiu durante esta dinastia que foi
marcada por processos de mudança radicais: o poder feudal é desarticulado; a
grande muralha é construída; a escrita e o dinheiro são unificados; a burocracia
torna-se cada vez mais forte e organizada para gerir os negócios do estado. E,
para estas conquistas foi preciso, dos trabalhadores muita força física, e dos
líderes, muita força política ou militar.
Os altos funcionários, seguidos pela nascente burguesia
mercantil e pelos donos de manufaturas e fazendas de seda e
cavalos compunham um estrato social que devidamente
organizava a sociedade numa estrutura produtiva que
assegurava a manutenção de seus privilégios. No tempo Han, no
entanto, algumas práticas de apaziguamento público, tal como a
distribuição de grãos, e a criação de escolas e hospitais públicos
asseguravam um controle maior sobre a massa. Além disso, o
método de exames para a admissão na burocracia imperial
permitia que houvesse uma mobilidade maior entre os grupos
sociais, permitindo ocasionalmente a ascensão de elementos
advindos das classes inferiores. O grande passo realmente dado
pelos Han no sentido de hierarquizar a sociedade foi a adoção
da doutrina confucionista, cujos aspectos ideológicos
contribuíram, em muito, para o controle da população. Uma
tentativa anterior havia sido feita pelos Qin com o Legismo, mas
que surtiu pouco efeito, restringindo-se ao campo jurídico. As
observações que podemos fazer com segurança em relação a
estes fatos nos mostram que a adoção de práticas ideológicas,
aliadas ao controle político e econômico da sociedade,
mantiveram um sistema de desigualdades que continuava a
responder as necessidades do poder central de hierarquizar e
25
O taoísmo surgiu no século II e incorporou alguns dos elementos religiosos mais antigos da
China. O taoísmo afirma que tudo possui uma identidade que vem de uma única fonte, o Tao.
O significado dessa palavra chinesa é “caminho, trilha, estrada” (FRANKE & TRAUZETEL,
1989).
26
Sobre o confucionismo é importante destacar que ele é considerado a ideologia política,
social e religiosa do pensador chinês Confúcio, que viveu entre 551 e 479 a.C.
De acordo com autores como Eliade (1998), o princípio básico do confucionismo é conhecido
pelos chineses como junchaio (ensinamentos dos sábios) e define a busca de um caminho
superior (tao) como forma de viver bem e em equilíbrio entre as vontades da terra e as do céu.
27
O Legismo, ou Escola das Leis (Fa Jia) foi mais uma das doutrinas que teria surgido no
período próximo dos Estados Combatentes, mas ela teve realmente alcance e destaque com
Han Fei e Li su, ideólogos fundamentais do regime Qin (GRANET, 1997).
59
dirigir a vida da população, inserindo-a numa nova perspectiva
de governo e de cultura que articulava a produção e transmitia
aos grupos sociais uma noção de ordem maior (GRANET, 1997,
p. 143) (grifos nossos).
Em geral, os reis investiam mais na força militar para governar a
população, pouco se importando com as condições materiais e humanas dos
menos favorecidos economicamente. O ponto crítico do império Qin, por
exemplo foi o silenciamento brutal da oposição (política ou religiosa) com a
queima de livros, o sepultamento de acadêmicos vivos que se mostravam
contrários aos interesses do Estado e também a exploração desumana
praticada contra a massa de trabalhadores (REIS FILHO, 1982).
Dessa forma, o reinado Qin não demorou muito tempo. Com a morte do
primeiro rei Qin, assume seu sucessor que enfrenta uma série de revoltas que
acabam culminando com a ascensão dos Han, considerados como os que mais
possibilitaram prosperidade para os chineses. As principais ações desta
dinastia foram: a expansão da política comercial; o aperfeiçoamento da
burocracia, as diversas descobertas cnicas; a organização do poder
internacional do país, além da oficialização do confucionismo como prática
religiosa, educativa e de governo.
As pesquisas revelam ainda que especialmente durante a dinastia Han,
o rei passou a governar com o que ele chamava de Mandato dos us e o
confucionismo contribuiu eficientemente para este entendimento. Esta idéia
servia para legitimar o seu governo, e esta foi uma idéia que influenciou todas
as dinastias subseqüentes. Portanto, a religiosidade era um elemento central
também na vida dos povos Orientais.
Durante o século II a.C. , exatamente na dinastia Han, o confucionismo
que se tornou a base ideológica do povo chinês e também dos regimes
políticos, proporciona grandes avanços nas artes e nas ciências, no comércio,
além da consolidação do império, mas conformava a população. Com isto, foi
possível que a China iniciasse estreitas ligações comerciais com o Ocidente.
60
Neste contexto, o grande destaque comercial é a seda, por isso, este foi um
período conhecido como a Rota da Seda
28
.
No que diz respeito às questões ideológicas e religiosas, além do
confucionismo, destaca-se ainda o budismo, que teve forte influência nas
manifestações artísticas chinesas como a literatura, a pintura e a escultura; e o
taoísmo.
Para os chineses, Confúcio é:
(...) considerado mais um filósofo do que um pregador religioso.
Suas idéias sobre como as pessoas devem comportar-se e
conduzir sua espiritualidade se fundem aos cultos religiosos
mais antigos da China, que incluem centenas de imortais,
considerados deuses, criando um sincretismo religioso. O
Confucionismo foi a doutrina oficial na China durante quase 2 mil
anos, do século II até o início do século XX (FRANKE &
TRAUZETEL, 1989, p. 104).
Assim, o confucionismo apontaria de acordo com sua doutrina, seis
idéias essenciais para a vida em sociedade: o Jen, o Chun-tzu, o Chen-ming, o
Te, o Li e o Wen, e foram estes princípios que muito influenciaram a civilização
chinesa. Primeiro, o Jen, que significa o humanitarismo, a cortesia, a bondade,
a benevolência. Depois, o Chun-tzu, que expressa a idéia de que o homem
para ser perfeito deve ter humildade, magnanimidade, sinceridade, diligência e
amabilidade. O Cheng-ming. Este conceito ensina que para uma sociedade
estar em ordem, cada cidadão deveria ter um título designativo ou um papel, e
afirmar-se neste papel no esquema da vida. O rei, atuando como rei, o pai
28
A Rota da Seda é conhecida como o principal elo de ligação entre o Ocidente e o Oriente na
Antiguidade. Envolveu civilizações da Ásia (principalmente a China), Europa e da África. No
período precedente da dinastia Han, a seda foi levada ao Ocidente através das vias populares,
por exemplo através das mãos das minorias étnicas, principalmete as etnias nômades que
habitavam as periférias da China antiga. No entanto, a exportação da seda no próprio sentido
iniciou-se na dinastia Han, porque a partir deste período o negócio era vultoso,
planejado, até organizado. Segundo algumas documentações do Ocidente da época, a seda,
além de ser bonita e agradável, protegia a saúde e tinha função contra bichinhos, chuva e
trovoada, até à seda foram dadas várias funções mágicas, de maneira que os bruxos
embrulhavam os amuletos com pano de seda. Nestas circunstâncias, as regiões desde a Ásia
Central até ao Império Romano tinham grande demanda da seda e nesta “onda de procura”, o
Império Romano foi o maior importador (GRANET, 1997).
61
como pai, o filho como filho, o servo como servo (e o deficiente como
deficiente). Portanto, não que se esperar que os homens procurem mudar
de papel, nem queiram intervir no que não lhe cabe.
Ainda o Te que designa poder, autoridade. E por fim o Li e o Wen. O Li,
compreendido como padrão de conduta exemplar, propriedade, reverência.
Sem esta conduta, o homem não saberia estabelecer a diferença entre o rei e o
súdito, não saberia a relação moral entre os sexos, e não saberia distinguir os
diferentes graus de relacionamento na família. E o Wen, como as artes nobres,
que inclui: música, poesia e a arte em geral, que os homens deveriam
respeitar. Estes seriam, portanto, a essência das idéias do confucionismo,
devendo ser seguidas por todos.
O Budismo, que também influenciou a cultura chinesa, é entendido
como sistema ético, religioso e filosófico, criado na região da Índia por volta do
século VI a.C. pelo príncipe hindu Sidarta Gautama, o Buda
29
, mas, que havia
sido trazido por monges chineses e se difundido por diversas partes do mundo,
inclusive na China.
Para o budismo, qualquer ação física, verbal ou mental,
realizada com intenção, pode ser chamada de karma (ação, trabalho ou feito).
Assim, boas atitudes podem produzir karma positivo, enquanto más atitudes
podem resultar karma negativo. Dessa maneira, a alegria ou o sofrimento, a
beleza ou a feiúra, a sabedoria ou a ignorância, a riqueza ou a pobreza -
experimentados nesta vida - seriam determinadas pelo karma passado. Aí
também se incluem as deficiências, compreendidas como culpas ou débitos
contraídos no passado (RICARDO & REVEL, 1998).
É bom lembrar que estas orientações atenderam a interesses de grupos
distintos. Em geral, o confucionismo e o budismo voltaram-se muito mais às
classes mais abastadas. Assim, os conflitos entre classes também existiram na
Antiga China, sejam estimulados pelas diferentes idéias religiosas e filosóficas,
sejam em razão da crescente exploração experimentada pelos camponeses
para as obras do governo chinês.
29
Buda é venerado como um guia espiritual e não um deus. Essa distinção permite a seus
seguidores conviver com outras religiões e continuar seguindo os preceitos budistas. A origem
do budismo esno hinduísmo, religião na qual Buda é considerado a nona encarnação ou
avatar de Vishnu. O budismo tem sua expansão freada na Índia a partir do século VII, após a
invasão muçulmana e o crescimento do islamismo. Mas expande-se intensamente por toda a
Ásia. Ramifica-se em várias escolas, ganhando novos matizes e rituais quando é adotado por
diversas culturas (Disponível em http://www.brazilsite.com.br).
62
A construção de grandes obras da China antiga, como as Muralhas ou o
Grande Canal, significou grandes sacrifícios para o povo chinês; pois milhares
de camponeses foram convocados para trabalhar na obra e vários deles
morreram enquanto realizavam a tarefa. Não bastasse isso, cada homem
convocado representou braços a menos para trabalhar nos campos.
Conseqüentemente houve queda na produção agrícola, o que significava
menos comida no país.
Entretanto, não se pode esquecer que, influenciada pelas crenças de
diferentes escolas filosóficas e religiosas, a atenção aos problemas de modo
geral, com destaque para os que integram nosso interesse - as deficiências -
permaneceu marcado por um misticismo que oscilava entre a aceitação das
anomalias como oriundas de males causados em outra vida ou problemas
sobre os quais somente os magos poderiam agir. Mas, nestes casos, apenas
os mais ricos tinham acesso.
Algumas lendas da literatura popular chinesa, como a intitulada Médico
Mago denota um pouco dessa relação entre doença-saúde. Esta narrativa é
uma das mais primorosas que nos auxiliam a iniciar reflexões sobre a atenção
dispensada à pessoa com deficiência e fica claro que a noção envolve
conceitos como energia, corpo e espírito em busca da cura dos diferentes
males. Mas, em todo o texto as referências se voltam apenas para os reis e
imperadores
30
.
De uma forma ou de outra, é evidente que o conhecimento da filosofia,
medicina e demais práticas chinesas, estiveram concentrados numa
determinada classe: os nobres. Quanto a isso, os poucos registros na área
demonstram que toda prática médica, em suas diferentes modalidades,
estiveram comprometidas com os estratos mais favorecidos economicamente.
Algumas histórias ilustram exatamente este fato. Num documento da
Antigüidade chinesa, intitulado Tuina Therapeutics, conta-se que Bian Que, um
30
Neste sentido, alguns métodos se desenvolveram em busca da cura; em todos eles
sempre a preponderância desses aspectos. O Tuiná, o Tai-Chi-chuan, as artes marciais ligadas
ao Kung-Fu e ao Chiao-Li-Chuan são alguns exemplos das mais antigas formas de intervenção
sobre o corpo em busca do equilíbrio e da saúde. Para alguns pesquisadores nos tempos
primitivos, quando não existia nenhum instrumento médico, nem mesmo o tratamento de
doenças com remédios, então, a tendência era usar os recursos mais fáceis, mais naturais e
disponíveis para a cura do corpo. Para outros, a questão se volta para a tendência oriental em
procurar harmonizar corpo e espírito.
63
excelente médico que vivia naquele tempo, usou uma vez uma terapia global,
incluindo Anmo, para tratar um príncipe herdeiro do Estado de Guo, que sofria
de uma doença chamada síncope, com efeitos curativos miraculosos, livrando-
o das garras da morte.
Segundo o mesmo manual, ainda na época dos três reinos, os
estudiosos contribuíram para a publicação do livro sobre Anmo, intitulado
Huang Di Qi Bo Na Jing Shi Juan - Clássicos sobre Massagem do
Imperador Amarelo e de Qi Bo. Este foi o primeiro livro da história da Medicina
Tradicional Chinesa. registros, ainda, que revelam a existência nas
diferentes dinastias de um Gabinete de Médicos Imperiais, portanto, a serviço
da nobreza chinesa.
Como se vê, em mais uma civilização, com características tão distintas
das demais analisadas até o momento, evidencia-se a opção de classe como
decisiva, especialmente para os aspectos que deveriam estar destinados a
todos. E isso se reflete diretamente na atenção dedicada às pessoas com
deficiência, ficando evidente que é possível inferir que também na China antiga
havia uma predominância de classe, definindo os destinos destes indivíduos.
2.5.2. A civilização Hindu
Seguindo os passos da história da Índia evidenciamos que enquanto
civilização, o povo hindu emergiu em época aproximadamente contemporânea
às civilizações do Oriente Médio, embora haja achados arqueológicos de
períodos bastante longínquos (LEITE, 1999).
A origem dos indo-arianos é um ponto de relativa controvérsia, mas bom
número de estudiosos no assunto, acredita na hipótese de migração indo-
ariana, segundo a qual os arianos (povo semi-nômade da Ásia Central ou do
norte do Irã), teriam migrado para a região entre 2000 e 1500 a.C. De toda
forma, os registros sobre a Índia em épocas tão longínquas é bastante
escasso, mas a partir do século II tem-se uma fase com maior número de
literatura que ajuda a compreender a civilização Indu, sendo aceito esta época
como o início do período histórico deste povo.
Assim, acredita-se que os árias (povos nômades vindos da região onde
hoje é o Irã), ocuparam a região do Punjab e dominaram os hindus, iniciando,
então o Período Védico. Este período de domínio dos Vedas se estendeu até
64
500 a.C., e os principais registros desta época podem ser encontrados nos
Vedas, importante livro hindu, escrito em sânscrito ao longo das eras.
Na verdade, os Vedas
31
são os livros Sagrados do hinduísmo, e
compõem-se de quatro volumes: o Sama Veda, que consiste em hinos; o Rig
Veda, que descreve as lutas destes povos que deram origem a civilização
hindu; o Yajúr Veda e o Atharva Veda narram a origem do hinduísmo e a
organização da sociedade.
É justamente a partir dos relatos contidos nestes livros que é possível
conhecermos a sociedade hindu. De acordo com o Atharva desde o surgimento
do hinduísmo, a sociedade esteve dividida em castas e muitos reinos e
repúblicas independentes conhecidos como os Mahajanapadas foram
estabelecidos ao longo do país.
Provavelmente a organização política anterior se devia as
concentrações étnicas diferenciadas que formavam os diferentes reinos e
povos da Índia. As varnas (ou castas) foram constituídas ao longo do processo
de integração entre estes povos e dividiam-se entre Brâmanes (religiosos),
khsatryas (guerreiros), vasyas (comerciantes e fazendeiros) e sudras
(trabalhadores, escravos, camponeses, etc.). Existiam ainda os párias, grupo
que teoricamente não tinha nem inserção social (LEITE, 1999).
Neste contexto, o tratamento dado às pessoas com deficiência variava,
evidentemente, em razão da casta ocupada. Se fosse um brâmane, sua
natureza divina era ressaltada, mas se pertencesse a um khsatrya, sudra ou
pária suas chances de sobrevivência eram sensivelmente diminuídas.
ainda os banghi
32
. Estes constituem uma faixa da população
condenada desde o nascimento a cuidar dos serviços mais repugnantes da
sociedade. Marginalizados do ponto de vista social, econômico e religioso,
levam a vida mais miserável possível. O serviço de limpeza - que inclui a tarefa
de esvaziar latrinas e transportar as fezes e urinas sobre a cabeça - foi imposto
31
Para os Hindus, os Vedas são revelações divinas feitas por ríshis ou videntes, através das
Eras. Foram eles revelados por meio de som, diretamente ouvidos (shrúti) pelos ríshis. São
essencialmente literatura de canto e recitação. Por isso durante milênios, as 100.000 estrofes
dos Vedas não foram escritas, mas transmitidas oralmente pelos sacerdotes brâmanes
(Disponível em: http://www.eradeaquario.com.br).
32
O banghi é traduzido para o inglês como Dalit, ou ainda em português como Pária.
65
a essa gente muito tempo; faz parte de seu dharma, ou obrigação religiosa,
segundo se acredita.
Também guiados pelas questões religiosas, os papéis sexuais eram
bem definidos dentro da sociedade. A mulher tinha seu campo de ação bem
restrito, e seu poder se limitava a casa e aos filhos.
Enquanto uma viúva por vezes era obrigada a se atirar numa
pira ardente junto com o corpo de seu marido, que não
poderia mais casar, no meio da população mais comum as
relações amorosas pareciam ter uma flexibilidade bem
semelhante à que conhecemos nas modernas sociedades,
permitindo que tal costume fosse de certa forma, tripudiado
pelos mesmos (ZIMMER, 2003, p. 87).
A questão da educação e do domínio das ciências também era restrito,
estando as classes superiores em condições de educar seus filhos pagando
tutores e gurus, além de enviá-los à escolas e viagens. Estes podiam aprender
gramática, matemática, religião e filosofia, além de artes e música. O mesmo
não ocorria em classes mais baixas. Os conhecimentos eram específicos para
o interesse da referida classe. Assim, os kshatryas, por exemplo, desde cedo
recebiam treinamento militar, enquanto os brâmanes, a formação religiosa
(LEITE, 1999).
Os Richis (sábios) e gurus (professores) procuravam divulgar parte dos
seus conhecimentos filosóficos para a população, de uma forma livre e
espontânea, mas não todos eles, pois estavam reservados especialmente à
classe dos brâmanes. Da mesma forma, ocorria com outros conhecimentos de
medicina, arte e artesanato, cada um deles reservado às classes
tradicionalmente responsáveis pelo seu exercício.
Durante o século III outros povos se apossaram de terras da Índia, com
destaque para os Persas (liderados por Ciro e Dario I) e os gregos (com
Alexandre Magno), mas, com Chandragupta Maurya, a maior parte do sul da
Ásia foi unida, denominando o período do império de Maurya.
À queda do império de Maurya, seguiram-se muitas invasões,
principalmente dos gregos. Mas, os conflitos não eram apenas de estrangeiros;
as lutas internas entre os diversos reinos também eram freqüentes. A cada
batalha, o reino vencedor acabava assumindo o controle de todo o império.
66
Paralelo a estas disputas pelo poder, a Índia viu surgir novas ideologias e
religiões que transformaram o ambiente intelectual da civilização. A ciência, a
engenharia, a arte, a literatura, a astronomia, e a filosofia floresceram sob o
patrocínio dos reis
Chandragupta, Asoka e Pushyamitra
(ZIMMER, 2003)
.
Entre os vários reformadores religiosos que pregaram novas orientações
dentro do contexto do Hinduísmo, destacam-se ainda Buda e Mahavira. E, da
mesma forma, além dos Vedas, os hindus possuem outros escritos
considerados sagrados como o Maabárata
33
, o Ramáiana
34
, o Bragavad
Guita
35
, além da bem conhecida Kama Sutra
36
.
O Kama Sutra parece ser o livro mais conhecido da literatura indiana,
especialmente do período védico, pelo menos para o Ocidente, especialmente
pelo seu cunho erótico e a quantidade de ilustrações que o livro apresenta
33
O Maabárata conhecido também como Mahabarata ou Mahabharata é um dos dois maiores
épicos clássicos da Índia, juntamente com o Ramáiana. Sua autoria é atribuída a Krishna
Dvapayana Vyasa. O texto possui mais de 74.000 versos em sânscrito, e mais de 1,8 milhões
de palavras, e aborda o desenvolvimento humano baseado em três metas principais: o kama,
entendido como o desfrute sensorial; o artha ou desenvolvimento econômico e o dharma, a
religiosidade mundana que se resume em códigos de conduta moral e rituais, obrigatórios para
quem deseja o desfrute e o poder econômico que adquire o desfrute (ZIMMER, 2003).
34
O Ramáiana, também conhecido como Ramayana é outro épico sânscrito. Sua escrita é
atribuída ao poeta Valmiki e consiste de 24.000 versos em sete cantos, através dos quais se
conta a história de um príncipe e de sua mulher. E, muito embora, possa ser visto como uma
leitura trivial, na verdade, o Ramáiana contém os ensinamentos dos antigos sábios hindus,
apresentados através de alegorias que narram e intercalam aspectos filosóficos e também
devocionais. Os personagens são todos fundamentais à consciência cultural da Índia.
35
O Bagavad guitá, também conhecido pela grafia Bhagavad Gita foi escrito tambem em
sânscrito e significa Canção de Deus. É um texto religioso hindu, mas de composição mais
recente, embora faça parte do livro Maabárata datado do Século IV a.C. O texto, escrito em
sânscrito, relata o diálogo de Críxena com Arjuna em pleno campo de batalha. Arjuna
representa o papel de uma alma confusa sobre seu dever, e recebe iluminação diretamente do
Senhor Krishna, que o instrui na ciência da auto-realização. No desenrolar da conversa o
colocados pontos importantes da filosofia indiana, que incluía na época elementos do
bramanismo e do Sankhya. A obra é considerada pelo indianos uma das principais escrituras
sagradas da cultura da Índia, e compõe a principal obra da religião Vaishnava, popularmente
conhecida como movimento Hare Krishna, difundido no ocidente por Bhaktivedanta Swami
Prabhupada, a partir da década de 60.
36
Por fim, tem-se o Kamasutram geralmente conhecido no mundo ocidental como Kama Sutra.
Este é um antigo texto indiano sobre o comportamento sexual humano e sobre o amor. O texto
foi escrito por Vatsyayana, um estudante celibatário de Pataliputa (importante centro de
aprendizagem indiano) como um breve resumo dos vários trabalhos anteriores que pertencia a
uma tradição conhecida genericamente como Kama Shatra. Kama significa o desejo, enquanto
o Sutra pode ser entendido como o discurso. O texto foi escrito originalmente como Vatsyayana
Kamasutram (Aforismos sobre o amor de Vatsyayana). Mas, não se sabe precisar em que
século. Ao que tudo indica, seu autor teria nascido por volta do século IV, o que leva a crer que
a obra é desta época (RAMPINI, 2003).
67
Com esta obra, é possível perceber o caráter sagrado que os indianos
reservavam às práticas sexuais e ao amor romântico. Num de seus textos
relata:
Quando o amor se intensifica, entram em jogo as
pressões ou arranhões no corpo com as unhas. As
pressões com as unhas, entretanto, não são comuns
senão entre aqueles que estejam intensamente
apaixonados, ou seja, cheios de paixão. São
empregadas, juntamente com a mordida, por aqueles
para quem tal prática é agradável (RAMPINI, 2003, p.
178).
Talvez esta preocupação da civilização indiana tenha sido pouco a
pouco sufocada pelas influências religiosas, sendo o budismo a mais forte
delas. Durante o reinado do imperador Asoka, que se converteu ao budismo
esta religião consolidou-se. Após ter conquistado a região de Kalinga pela
força, Asoka decidiu que a partir de então governaria com base nos preceitos
budistas. Assim, pautados nas idéias de Buda de evitar o mal, fazer o bem e
cultivar a própria mente (e não o corpo), o imperador ordenou a construção de
hospedarias para os viajantes e que fosse proporcionado tratamento médico
não só aos humanos, mas também aos animais.
Com isso, alguns afirmam que a Índia vive um período mais tranquilo,
outros que mais castrado. Mas, pelo menos para os mais desobedientes, o
saldo foi bastante positivo, pois o rei aboliu a tortura e a pena de morte. Além
disso, seguindo o culto a mente e o ao corpo, trocou a caça, desporto
tradicional dos reis, pela peregrinação a locais budistas. Apesar de ter
favorecido o budismo, Asoka revelou-se também tolerante para com o
hinduísmo e o jainismo
37
.
Asoka pretendeu também divulgar o budismo pelo mundo, como
revelam os seus éditos. Segundo estes foram enviados
emissários com destino à Síria, Egipto e Macedónia (embora não
se saiba se chegaram aos seus destinos) e para oriente para um
terra de nome Suvarnabhumi (Terra do Ouro) que não se
conseguiu identificar com segurança. O império mauria chegou
37
A teoria Jainista está baseada na razão. Ela baseia-se na reta fé, reto conhecimento, reta
conduta, moderação com misericórdia. O Jainismo não é um sistema teísta no sentido da
crença na existência de um Deus como Criador e o Regulador do mundo. O ser mais elevado
na filosofia Jainista é uma pessoa e o um Ser sem atributos como o Brahman no Vedanta
(ZIMMER, 2003).
68
ao fim em finais do século II a.C. A Índia foi então dominada
pelas dinastia locais dos Sunga (c.185-173 a.C.) e dos Kanva
(c.73-25 a.C.), que perseguiram o budismo (ZIMMER, 2003, p.
98).
Em linhas gerais podemos afirmar que os indianos antigos foram
guiados pelas principais ideologias que compunham a religiosidade daquela
civilização e que tinham uma vida de trabalho constante, baseado efetivamente
na questão de casta. Assim, os Brâmanes (religiosos) levavam a vida mais
calma, executando ofícios e rituais e vivendo de rendas e contribuições geridas
pelas outras castas. E, neste contexto, eram definidos os tratamentos dados às
pessoas com deficiência: exclusão ou inclusão.
As castas mais elevadas, além de seguirem rigorosas prescrições
alimentares e sociais, usufruíam de servos e escravos, embora tivessem o
receio de serem contaminados por eles, considerados os impuros. Os
deficientes também eram assim considerados pelos brâmanes, sendo
excluídos do convívio social.
2.6. A Civilização greco-romana: aspectos gerais, luta de classes e
educação
2.6.1. A Civilização Grega
A antiga Grécia ocupava a parte sul da península balcânica, as ilhas do
mar Egeu e a costa da Ásia menor. Portanto, possui uma parte continental, e
costas orientais, ocidentais e meridionais, podendo ainda ser analisada em
relação à parte setentrional. Sobre a parte continental pode-se afirmar que a
Grécia é campeã na quantidade de baías, possuindo por isto, muitos portos
que facilitaram as viagens gregas desde épocas longínquas. As costas
ocidentais e meridionais, pouco profundas e rochosas não facilitaram a
navegação por esta área.
Segundo historiadores, a própria natureza dividiu a Grécia em regiões
distintas
38
. A Grécia central é dividida por montanhas, enquanto sua parte
38
Como se vê, a Grécia é formada por regiões distintas, destacando-se a Grécia Continental, a
Península do Peloponeso e a Grécia Insular. A Grécia Continental é uma região fértil e grande
produtora de cereais e apropriada à criação de cavalos, enquanto a península do
Peloponeso é
caracterizada pela atividade agrícola e pastoril. Já a Grécia Insular, formada por ilhas, é uma
região com altos picos, cheios de bosques, onde se formaram importantes cidades
gregas.
69
meridional chamada Peloponeso possuía regiões muito férteis. Possuía, ainda,
várias ilhas. As maiores são Eubéia, Lesbos, Quios, Samos, Rodes e Creta,
além de pequenas ilhas, destacando-se as de Paros e Delos (MICHULIN,
1980).
É notório que as condições geográficas da Grécia contribuíram para que
o povo grego empreendesse grandes viagens, estabelecendo contatos com
outras culturas e civilizações. De alguns contatos resultaram fundações de
colônias e feitorias
39
. As principais regiões ocupadas pelos gregos foram: as
costas orientais da Ásia Menor, as regiões ao norte do mar Egeu, a Sicília e a
Magna Grécia, no ocidente, as colônias do Oeste e as colônias da África. Mas,
é importante compreender esse movimento do povo grego a partir de um
quadro histórico (COULANGES, 2006).
Estas características, por sua vez, vão influenciar diretamente a vida do
povo grego, que se tornou essencialmente ligado às atividades marítimas,
utilizando-as tanto nas conquistas como nas práticas comerciais. Mas, é bom
que se considere que não fora apenas a natureza que contribuiu para o
desenvolvimento da civilização grega, a religiosidade teve papel determinante.
Para Coulanges (2006: 42) “não saberíamos dizer se foi o progresso religioso
que induziu este progresso social; o certo é que ambos aconteceram ao
mesmo tempo e com notória harmonia”.
Para o autor, nada de mais poderoso existe sobre a alma do povo grego
que a crença; esta se impôs com autoridade, garantindo inclusive a estrutura
material e todas as suas desigualdades. Assim, se organiza o Estado grego. E
o homem grego, por conseguinte, o cidadão grego o é o homem do povo,
considerado fraco e ignorante. Mas o patrício, o nobre, poderoso e rico.
Magistrado, comerciante ou sacerdote tem sempre o seu pensamento voltado
para a glória e para o domínio absoluto.
Destacam-se nestas regiões as principais cidades gregas: Atenas, situada a sudeste da Grécia
Continental, na região da Ática e Esparta, na região do Peloponeso conhecida como Lacônia,
entre os montes Pármon e Taígeto (ZEIFERT, 2004).
39
Feitorias são agências de companhia comercial nos portos das colônias, onde se
armazenavam e se negociavam mercadorias, servindo também como fortificação primitiva,
provida de uns tantos soldados e armamentos para a defesa da colônia contra a intromissão de
aventureiros (HOUAISS, 2001, p. 1323).
70
Desde cedo, os processos educativos conduzem os gregos nesta
direção: os filhos da nobreza crescem assistindo diariamente às cerimônias e
cultos em prol das guerras, conquistas e atos heróicos. Os mais fracos,
colocados a serviço dos nobres, não têm chances, serão sempre escravizados
e excluídos.
Didaticamente a história grega é dividida em períodos: o Homérico
(antes do século VIII a.C.), o Arcaico (séc. VII e VI a.C.), o Clássico (séc. V
a.C.) e o Helenístico (séc. IV e III a.C.), e em cada um deles é possível
observar características distintas no que diz respeito à organização política,
econômica e social deste povo.
De forma muito breve pode-se dizer que o período homérico é
conhecido pela influência de Homero
40
, um dos mais antigos poetas e
mitógrafo
41
grego, autor dos dois maiores poemas épicos da Grécia antiga: a
Ilíada e a Odisséia, compreendendo a narração mítica dos acontecimentos,
desde a origem do mundo até os feitos heróicos. O período Homérico é, pois,
“um produto da vontade divina, sem leis universais, nem unidade na história”
(PINSKY & PINSKY, 2003, p. 24).
Cabe considerar, entretanto, que Homero não fora o único poeta grego
a registrar a história de seu povo. Outra figura de muito destaque na literatura
grega é Hesíodo, que viveu nos finais do século VIII a.C. e também produziu
importantes obras que revelam as idéias da civilização grega. Viveu por volta
de 800 a.C. na Beócia.
40
Pouco se sabe de concreto a respeito da vida de Homero e se contabiliza até o momento,
sete versões diferentes para a vida do poeta. Esmina, Rodes, Quios, Argos, Ítaca, Pilos e
Atenas são algumas das cidades que reclamam seu nascimento. Com base em informações do
próprio historiador Heródoto, Homero teria vivido por volta dos séculos IX e VIII a.C. e por isso
os historiadores chamam esta era de período homérico. Seria filho de uma jovem de nome
Creteidas, e desde cedo se destacou por suas qualidades artísticas. Na juventude, era
conhecido como Melesígenes e dado a uma vida boêmia. Uma enfermidade o deixou cego, e
desde então passou a chamar-se Homero, que significava aquele que não vê. Assim conclui-se
que a sua obra Odisséia tenha sido escrita no fim de sua vida. Morreu em Íos, durante uma
viagem a Atenas. Escreveu em grego e deu uma contribuição incontestável à cultura com suas
obras conhecidas até os dias de hoje (Disponível em:
http://www.dec.ufcg.edu.br).
41
Indivíduo que anota mitos ou escreve sobre eles (HOUAISS, 2001, p. 1936).
71
Em suas obras
42
exalta sempre a justiça, mas conta que depois da
morte de seu pai, corrompeu os juízes e se apoderou de seus bens de maneira
indevida (ZEIFERT, 2004, p.40-41).
A cultura grega, como das demais civilizações aqui visitadas, apareceu
numa época em que os homens ainda não sabiam muito sobre as causas dos
fenômenos naturais, nem dos sociais. Assim, atribuíam estes fenômenos a
vontade dos deuses. Neste sentido, as figuras da mitologia grega também são
importantes fontes de conhecimento sobre a vida desse povo, pois expressam
muito da dinâmica desta civilização e fornecem explicações sobre a relação
desta civilização com o mundo a sua volta. Os conceitos sobre o início do
mundo e a origem dos homens eram então advindos deste mundo místico
(JAEGER, 2001).
Com relação às pessoas com deficiência não seria diferente. A mitologia
grega, como em todas as outras questões, oferece elementos para que
entendamos a questão. A imaginação fértil do povo grego criou personagens e
figuras mitológicas das mais diversas. Heróis, deuses, ninfas, titãs e centauros
habitavam o mundo grego, influenciando em suas vidas e, muitas vezes,
dirigindo-as ou castigando-as. Por isso, de acordo com os gregos, os deuses
habitavam o topo do Monte Olimpo, e deste local, comandavam o trabalho e as
relações sociais e políticas dos seres humanos. Eram deuses imortais, porém
possuíam características de seres humanos, como: ciúme, inveja, traição e
violência (SCHNEEBERGER, 2003).
Os principais deuses gregos são: Zeus (deus de todos os deuses),
Afrodite (deusa do amor, sexo e beleza), Poseidon (deus dos mares), Hades
(deus dos mortos), Hera (deusa do casamento), Apolo (deus da luz), Artemis
(deusa da caça), Ares (deus da guerra), Atena (deusa da sabedoria) e
Hefestos, o único deus deficiente (deus do fogo e do trabalho) que habitava
regiões distantes, pois precisava ser escondido de sua mãe que sabendo de
sua deficiência teria tentado matá-lo (COULANGES, 2006).
42
Hesíodo foi tão admirado quanto Homero. Nasceu, viveu e faleceu em Ascra, na Beócia, no
século IX a.C. seus poemas mais conhecidas são: A Teogonia, que trata-se de um material
religioso e Os Trabalhos e os Dias, de natureza didática. Um terceiro também é conhecido,
mas somente um pequeno trecho, seu título é O Escudo de Hércules.
72
Dessa forma, entende-se porque entre os gregos agradar uma divindade
era condição fundamental para atingir bons resultados na vida material. Um
trabalhador do comércio, por exemplo, deveria deixar o deus Hermes sempre
satisfeito, para conseguir bons resultados em seu trabalho. Um marinheiro
devia obediência e respeito ao deus Netuno, e os indivíduos que possuíam
deficiências deveriam se aconselhar com o deus Hefestos e seguir seu
exemplo – afastando-se do convívio com os demais
43
(JAEGER, 2001).
Portanto, a partir das idéias mitológicas difundidas entre os gregos, é
possível se perceber que na civilização grega, as deficiências eram vistas
como deformações, comprometimentos que não prejudicam o desempenho
físico, mas afetavam a harmonia corpo e mente; a perfeição da raça e a beleza.
Assim, pessoas com deficiências eram banidas do convívio com as famílias,
mas se sobrevivessem, deveriam recorrer a locais distantes da cidade.
Ademais, baseado no fato de que todas as ações imprevistas eram tidas como
resultado de castigos dos deuses sobre o homem pode-se notar que a
deficiência era evidentemente, o saldo de dívidas que o indivíduo deficiente ou
sua família teria com a divindade.
Quando o sistema produtivo do período homérico desintegrou-se,
motivado pelo crescimento demográfico tornou insuficiente a produção dos
genos. Os parentes mais próximos do pater famílias (os eupátridas)
apropriaram-se das terras, transformando-as em propriedades privada; quanto
aos parentes mais afastados, estes se transformaram em camponeses sem
terra ou então emigraram. Separando-se dos camponeses, os eupátridas
passaram a morar em locais fortificados que, com o correr do tempo, e o
desenvolvimento do comércio, deram origem às polis, que vão marcar o
período Arcaico.
43
Segundo a mitologia grega, por muito tempo, Hefestos arquitetou sua vingança contra a sua
mãe, que o expulsara do Olimpo. Assim, usando sua habilidade na metalurgia, o deus rejeitado
forjou um belíssimo trono de ouro e o enviou a sua mãe. Encantada com o presente, sua mãe
aceitou imediatamente. Entretanto, quando se sentou, Hera ficou presa de tal forma, que
nenhum dos deuses, nem mesmo Zeus pôde tirá-la da armadilha. Assim, não restou outra
opção aos deuses do Olimpo, senão de acatar as exigências de Hefestos para soltar Hera, a
primeira era de voltar a viver no Olimpo e a segunda era a de se casar com a deusa mais linda
de todas, Afrodite. Obrigada, a deusa Afrodite se casou com Hefestos, mas não era fiel a ele,
teve vários amantes (LASSÉRE, 1983).
73
O Período Arcaico se caracteriza pelo aumento da população, bem
como pela diversificação das atividades econômicas, principalmente o
comércio e por uma nova organização social: o sistema de classes.
A história mostra que é nesse período que ocorre a desintegração da
atividade coletiva levando, por conseguinte, a redistribuição das terras. Essa
redistribuição realizada pelo pater-família beneficiou alguns e deixou muitos
membros dos genos sem nada. De acordo com Zeifert (2004, p. 43), assim
nascem as classes sociais e se estabelece um “modelo ‘urbano’ de civilização
na Grécia, marcado por uma economia financeira.
Também se desenvolveu o artesanato, com destaque para a cerâmica.
As ânforas
44
gregas transportavam vinhos, azeites e perfumes para os quatro
cantos da península. Com o comércio marítimo os gregos alcançaram grande
desenvolvimento, chegando a mesmo a cunhar moedas de metal. Das
viagens comerciais e do relacionamento com outras civilizações nascem
também o desejo de conquistas, os conflitos, as batalhas. Das guerras e
conquistas gregas resultaram inúmeros prisioneiros, conseqüentemente
transformados em escravos. Mas, estes não advêm somente dos povos
conquistados; os devedores gregos também eram transformados em escravos
até antes do período clássico.
Destas mudanças resulta uma onda de colonização e prosperidade
comercial das cidades-Estado. As duas cidades que mais prosperaram foram:
Esparta e Atenas. Mas, é interessante notar que cada cidade-estado
(totalizavam 160) tinha sua própria forma político-administrativa e organização
social.
A independência destas cidades foi resultante de vários fatores.
Podemos destacar:
O relevo montanhoso, que dificultava as comunicações
terrestres; o litoral recortado e as numerosas ilhas existentes no
Mar Egeu, que estimulavam a navegação; e a ausência de uma
base econômica interna sólida, que poderia aglutinar os gregos
em um Estado-Nação (COULANGES, 2006, p. 246).
De toda forma, a vida do homem grego na Grécia Arcaica não era fácil
para uma pessoa com deficiência. A própria geografia das cidades inviabilizava
44
Ânforas são vasos cerâmicos, de gargalo estreito e base pontiaguda, com um par de asas
simétricas usados pelos gregos para transportar e conservar quidos e cereais (HOUAISS,
2001, p. 216).
74
a vida destes indivíduos, além da presença de uma cultura fortemente investida
de valores estéticos que colocavam o deficiente em situação de desvantagem,
seja por explicações mitológicas seja pelos incentivos a força física e a prática
esportiva.
Neste contexto, cabe lembrar que diante das diferenças e adisputas
entre as diferentes cidades-Estado gregas, somente um único evento
conseguia minimizar as diferenças existentes entre estes povos e uni-los em
torno de um objetivo comum: o festival olímpico. Num único momento, que
ocorria a cada quatro anos, estas diferentes cidades, se reuniam num festival
religioso na cidade de Olímpia, deixando de lado suas divergências.
Sediado na cidade de Olímpia, em homenagem a Zeus (deus supremo
da mitologia grega), o festival Olímpico era muito antigo, mas foi a partir de 776
a C. (data da fundação dos jogos) passou a ser feito um registro ininterrupto
dos vencedores. Cabe lembrar que somente os homens participavam do
evento que premiava especialmente a capacidade para correr, lutar e saltar, ou
seja, a condição de perfeição física era imprescindível, não havendo, portanto,
espaço para as pessoas com deficiência neste evento (SCHNEEBERGER,
2003).
Apesar do espírito de competição, não podemos nos esquecer
que o Festival Olímpico era antes de tudo uma ocasião religiosa,
onde o centro de tudo era o grande templo de Zeus. Mais de
cem bois eram sacrificados no altar em frente ao templo e seu
interior era dominado por uma estátua do deus coberta de ouro.
Em frente a ela cada atleta tinha que fazer um sacrifício e orar
antes do começo. Existia um comitê organizador que decidia se
a moral do atleta lhe dava o direito de competir (ZEIFERT, 2004,
p. 123).
No entanto, a exclusão da pessoa com deficiência não se expressa
somente pela questão corporal; outros elementos coadunam para este
fenômeno. A questão de classe é um elemento decisivo. Em Atenas, como em
outras cidades-Estado os participantes das classes baixas, portanto,
destituídos de quaisquer propriedades, não participavam do governo da polis.
Por outro lado, as classes abastadas decidiam sobre o destino de todos e
concentrava a posse das terras. Evidentemente, dependendo da classe social
em que se encontrava a pessoa com deficiência, suas chances de não
sobrevivência aumentariam, seja pelas próprias necessidades, seja pelas
dificuldades econômicas.
75
Atenas possuía quatro classes sociais: as duas primeiras, os
pentacosiomedimnos e os hippeis, ficaram com as principais magistraturas.
Seguia-se a classe dos zeugitas, que eram camponeses de condição mediana.
E os integrantes da classe inferiores, os tetes, eram compostos pelas massas
de camponeses pobres e artesãos. Só os mais ricos participavam da
Assembléia (Eclésia), dos Tribunais (Heliae), do Conselho (Bulé) e das
Magistraturas (Arcondato). Os mais pobres podiam participar somente da
Assembléia. Além destes, tinham os escravos, sem direito algum (CAVALLO,
1989; CAMBI, 1999).
As classes mais baixas necessitavam da força física para sobreviver,
seja trabalhando no cultivo dos vinhais, seja como pastores seja treinando para
as batalhas sangrentas. As classes mais elevadas tinham a oportunidade de
atuar em atividades onde a força física era dispensada. E todos estavam
submetidos ao Estado, comandado pelos ricos.
De acordo com Zeifert:
(...) a cidade havia sido fundada sobre uma religião e constituída
como uma igreja, daí resulta sua força, sua onipotência e o
império absoluto que exercia sobre seus membros, pois a
religião que tinha gerado o Estado, e o Estado que conservava a
religião, apoiavam-se mutuamente, formando um corpo;
esses dois poderes associados e confundidos formavam um
outro quase que sobre-humano, ao qual a alma e o corpo se
achavam igualmente submetidos. Nada havia no homem de
independente. Seu corpo pertencia ao Estado e estava voltado a
sua defesa. (...) considerava o corpo e a alma de cada cidadão
como sua propriedade e, para tanto, queria que este corpo e
esta se acostumassem de modo a que deles pudesse tirar
melhor partido (2004, p. 72).
Sem dúvida, que as relações na polis grega era conflituosa. Muitos
lavradores, muitos escravos, muita escassez e muitos conflitos. Muitos
camponeses eram condenados por suas dívidas à escravidão, e muitos
comerciantes viviam indignados por não dispor de direitos políticos, mesmo
usufruindo de riqueza considerável. No intuito de minimizar os conflitos, o
Estado grego, através de seus legisladores, buscava diferentes alternativas.
Entre os atenienses, os principais destaques foram: Drácon (621 a.C.), Sólon
(594 a.C.), Psístrato (560 a.C.) e Clístenes (508 a.C.). Suas práticas, no
entanto, oscilaram da tirania à democracia (ZEIFERT, 2004, p. 75).
76
Na obra aristotélica, A Constituição de Atenas, o filósofo comenta que:
Três constituem as medidas mais populares do regime de Sólon:
primeira, e a mais importante, a proibição de se dar empréstimos
incidindo sobre as pessoas; em seguida, a possibilidade, a quem
se dispusesse, de reclamar reparação pelos injustiçados; e
terceira, o direito de apelo aos tribunais (...) (apud ZEIFERT,
2004, p. 44).
No que tange a pessoa com deficiência, se identifica que neste período,
independente do legislador, o tratamento dado aos deficientes era o mesmo
que dado aos escravos. E como o deficiente, assim como o escravo era inferior
por natureza, era de seu interesse ser tratado como tal. Portanto, não havia
cidadão deficiente. A maioria - senão todos - era sacrificada ou abandonada à
própria sorte.
A prática do abandono à inanição ou à exposição era comum entre os
gregos. No entanto, é possível que houvesse variações em razão do nível de
deficiência apresentado. Sobre o assunto Pessoti (1984) afirma que, embora,
os deficientes fossem entendidos como seres sem alma, raríssimos casos
poderiam sobreviver, crescer e envelhecer. A fim de ilustrar tal fato, o autor
apresenta o exemplo de um homem de nome Marguités, um adulto com
deficiência mental com comprometimentos leves que não fora sacrificado. Este
caso foi registrado ainda no século VIII por Suidas
45
e ilustra quão raro era a
presença de deficientes no meio social.
Pouco se sabe sobre este caso a fim de que possamos inferir sobre a
origem social de Marguités, mas, de alguma forma é conhecido que nenhum
estudioso ou literário daquela época se ocuparia de observar ou tratar os filhos
das classes baixas. Para ilustrar essa idéia, é possível encontrar na medicina
grega, os indícios claros dessa relação com a classe social (JARDÉ, 1977).
Neste período, ainda baseada na mitologia, a medicina grega associava
cura a diversas divindades. Para a civilização grega, Apolo, Ártemis, Atenas e
Afrodite, mas também os deuses do submundo eram capazes de curar ou
evitar doenças. Havia templos destinados a um certo deus de nome Esculápio,
45
Suidas foi um lexicólogo, que viveu provavelmente em Constantinopla durante o século X
a.C. Sua Enciclopédia contém citações de fontes depois perdidas, onde relata e analisa
problemas de fala (PESSOTTI, 1984).
77
onde realizavam-se rituais de cura. Os mais famosos ficavam em Epidauro,
Cnidos, Cós, Atenas, Cirene e Pérgamo.
Não se pode esquecer que havia os médicos leigos. Contudo, quando
se buscava os mesmos, mas não se obtinha sucesso, as pessoas procuravam
auxílio nesses santuários. O tratamento era constituído de banhos, poções e
jejum, até que se conseguisse a cura. Os gregos acreditavam que a cura
era possível durante o sono do paciente, por isso, as poções oferecidas ao
paciente tinham por meta fazê-lo adormecer para que os deuses pudessem
agir.
Entretanto, cabe ressaltar que antes da saída do templo, o doente (ou
sua família) deveria fazer oferendas em dinheiro ou objetos de valor e deixar
registro de sua cura numa placa a ser exposta na entrada do templo, para
divulgar os sucessos alcançados. Portanto, a cura, o tratamento ou mesmo a
investigação de tais moléstias nestes santuários se destinavam aos indivíduos
que possuíam posses, pois os mesmos deveriam pagar por isto, donde
inferimos que Marguités era um deficiente de posses. Baseado nisto, é fácil
perceber que a questão de classe social interferia diretamente sobre a situação
da pessoa com deficiência, definindo sua sobrevivência inclusive.
Ainda nesta direção, registros que revelam que na Grécia Antiga em
razão do desequilíbrio demográfico e da escassez de alimentos, as pessoas
deficientes eram as primeiras a serem condenadas à morte – não as únicas -, a
fim de garantir a sobrevivência dos ditos normais. Também os filhos mais
jovens de famílias pobres poderiam ser eliminados para diminuir a demanda
por comida. Certamente em períodos tão longínquos, quando a idéia de direito
praticamente inexistia no imaginário da civilização, essa prática com relação à
pessoa com deficiência pouco era questionada, sendo, pelo contrário, bastante
defendida como uma questão de caráter público importante para a sociedade.
De acordo com Tucídides:
Nossa politeía nada tem que invejar às leis que regem nossos
vizinhos; longe de imitar os outros, damos o exemplo a seguir.
Entre nós, o Estado é administrado no interesse da massa e não
de uma minoria, daí o nome que nosso regime adotou:
democracia. No que concerne aos diferentes indivíduos, a
igualdade é assegurada a todos pelas leis; mas, no tocante à
participação na vida pública, cada um obtém o crédito em função
78
do mérito, e a classe a que pertença importa menos que seu
valor pessoal; enfim, estando em condições de prestar serviço à
cidade, ninguém é cerceado pela pobreza ou pela obscuridade
de sua condição social (apud COULANGES, 2006, p. 156)
(grifos
nossos)
.
Assim, em linhas gerais, a condição de prestar serviço à cidade definiria
a sobrevivência e o próprio valor das pessoas. No caso, da pessoa com
deficiência, qual seria o entendimento sobre suas competências,
potencialidades, capacidades para produzir?
A conquista de cidades vizinhas, sendo uma constante entre os gregos –
com destaque os espartanos - a prática militar tornou-se o maior objetivo
educativo. Em função disto, ao nascer toda criança espartana era examinada
pelos mais velhos, a fim de que fosse analisada suas condições físicas para o
exercício militar. Caso apresentasse qualquer problema que viesse a
comprometer seu desempenho nesse sentido, seria eliminada.
O sacrifício de crianças com deficiências era amplamente utilizado em
Esparta. Portanto, caso a deficiência não fosse diagnosticada no nascimento,
mas se desenvolvesse ou tornasse evidente durante a infância, do mesmo
modo seria eliminada. Como o processo ‘educativo’ espartano de
responsabilidade do Estado tinha início tão logo a criança completasse os sete
anos de vida, as condições de saúde também eram analisadas neste período.
Aos doze anos, a criança era levada ao campo para que vivesse em condições
semelhantes aos dos combates que enfrentaria no futuro. Portanto, em
qualquer fase desta preparação, a questão da deficiência era vista como um
grande empecilho ao bom desenvolvimento do ser. Caso a criança
demonstrasse fraqueza, inabilidade, ou qualquer limitação para atender aos
objetivos do treinamento militar seria sumariamente eliminada.
Para Ceccim:
(...) “sabe-se que, em Esparta, crianças portadoras de
deficiências físicas ou mentais eram consideradas sub-humanas,
sua eliminação e abandono estavam em consonância com os
ideais atléticos, estéticos e a potência de guerreiros” (CECCIM,
2001, p. 27).
Cabe ressaltar que a polis espartana possuidora de três classes sociais
bem definidas (Esparcíatas, Periecos e hilotas), desde sua divisão social
79
estava decidindo sobre a vida dos possíveis deficientes que nascessem. Os
esparcíatas, considerados os cidadãos de Esparta, eram filhos de mães e pais
espartanos, logo, recebiam a educação espartana. Os membros desta classe
eram os políticos, integrantes do exército e ricos proprietários de terras.
Evidentemente, deficientes nascidos neste grupo teriam sempre mais chances
de encontrar condições de sobrevivência.
Quanto aos periecos, ou seja, pequenos comerciantes e artesãos, estes
moravam na periferia da cidade e não possuíam direitos políticos. Não
recebiam educação, porém tinham que combater no exército, quando
convocados. Eram obrigados a pagar impostos. Deficientes nascidos nesse
grupo viam suas chances de sobrevivência sensivelmente diminuídas.
Os hilotas levavam uma vida miserável, pois eram obrigados a trabalhar
quase de graça nas terras dos esparciatas. Não tinham direitos políticos e eram
alvos de humilhações e massacres. Chegaram a organizar várias revoltas
sociais em Esparta, combatidas com extrema violência pelo exército. Nenhuma
chance teria um hilota deficiente de sobrevivência.
Além das deficiências naturais, os combates e os treinamentos militares
tão comuns entre os moradores de Esparta levavam ao surgimento de
deficiências adquiridas. Entretanto, independente de quais serviços o sujeito
tivesse prestado na defesa da polis ou conquista de territórios, se o mesmo
viesse a possuir uma deficiência, sua eliminação era vista como a melhor
alternativa a ser tomada. Era, portanto, comum nos campos de combate, que
os soldados vitimados por mutilações de toda ordem, fossem sacrificados pelos
seus companheiros (MOSSÉ, 1982).
O Período Clássico é marcado por grandes guerras no mundo grego e
pela ascensão e poderio naval, econômico e intelectual de Atenas. Segundo
Schneeberger:
(...) as construções e as festas faziam de Atenas a primeira
cidade mediterrânea, onde se ouviam muitas línguas e muitos
filósofos. (...) Sófocles, Ésquilo e Eurípedes (...) Sócrates (...)
Platão, Demócrito, hipócrates,
Anaxágoras... jamais uma
sociedade reunira tantos talentos, tornados imortais (2003, p.
60).
80
É nesse período que o pensamento humanístico na Grécia tomava
consciência de seu próprio valor e de suas possibilidades, havendo campo
para o crescimento da filosofia e o surgimento da medicina científica. Mas,
também foi um momento onde muitas mudanças se deram nas instituições
gregas. Se, no passado, a Grécia conseguiu ter dias gloriosos, durante o
período clássico estabeleceu-se um lapso entre o poder público e os direitos
dos indivíduos.
De acordo com Zeifert (2004: 96) atitudes como “restrição à natalidade,
por razões econômicas para as famílias pobres e não-fragmentação do
matrimônio para os ricos” custaram tanto à Grécia (...) “quanto a peste e a
guerra e fizeram com que o individualismo predominasse na vida pública.
Todavia, fizeram com que as artes e as letras refletissem fortemente sobre a
situação desse povo. E as conclusões mais óbvias eram de que havia um
contraste grande entre os direitos estabelecidos pela democracia grega e a
realidade decepcionante que se instalava na Grécia.
Zeifert salienta que:
O que acentuava esse contraste era a oposição gritante entre o
luxo e a indigência. Os privilégios dos ricos podiam ser sentidos,
diariamente, na vida dos gregos. Esse fato violentava
profundamente o sentimento democrático e causava reveses ao
bom andamento da Constituição (2004, p. 99).
Neste contexto, a filosofia representou enorme influência, por seu
caráter inquisidor e racional. O primeiro período do pensamento grego é
denominado de período naturalista ou pré-socrático, porque a nascente
especulação dos filósofos é instintivamente voltada para o mundo exterior e
anterior a Sócrates. Os filósofos deste período preocuparam-se quase
exclusivamente com os problemas cosmológicos. Estudar o mundo exterior nos
elementos que o constituem, na sua origem e nas contínuas mudanças a que
está sujeito, é a grande questão que dá a este período seu caráter de unidade.
O segundo período da história do pensamento grego é chamado período
sistemático.
Nesse período realiza-se a sua grande e lógica sistematização,
culminando em Aristóteles, através de Sócrates e Platão, que
fixam o conceito de ciência e de inteligível, e através também da
precedente crise cética da sofística. O interesse dos filósofos
gira, de preferência, não em torno da natureza, mas em torno do
81
homem e do espírito; da metafísica passa-se à gnosiologia e à
moral. Daí ser dado a esse segundo período do pensamento
grego também o nome de antropológico, pela importância e o
lugar central destinado ao homem e ao espírito no sistema do
mundo, até então limitado à natureza exterior (COULANGES,
2006, p. 400).
Esse período do pensamento grego, embora tenha sido curto, não fora
menos explendoroso. Alguns filósofos foram figuras decisivas na formação do
pensamento grego: Sócrates
46
, Platão
47
, Aristóteles
48
foram os principais.
Sócrates não deixou nenhum material escrito, mas, importantes
seguidores. Um dos mais brilhantes foi Platão que fundou uma escola, a
Academia, e escreveu os famosos diálogos: Hípias menor, Alcibíades, Apologia
de Sócrates, Protágoras, Górgias, Mênon, Fédon, Banquete, Fedro, República,
Parmênides, Teeteto, Sofista, Político, entre outros (CAMBI, 1999).
Em A República, Platão idealiza uma cidade, na qual dirigentes e
guardiães representam a encarnação da pura racionalidade. Neles encontra
discípulos dóceis, capazes de compreender todas as renúncias que a razão
lhes impõe, mesmo quando duras. O egoísmo está superado e as paixões,
controladas. Os interesses pessoais se casam com os da totalidade social.
Platão estende as indagações a toda a realidade, inclusive a questão da
pessoa deficiente. Sobre estes indivíduos, as idéias platônicas são
essencialmente excludentes. O filósofo defende neste mesmo, a prática do
46
Sócrates nasceu em 470 ou 469 a.C., em Atenas, filho de família humilde. Aprendeu a arte
paterna, a escultura, mas dedicou-se inteiramente à meditação e ao ensino filosófico, sem
recompensa alguma, não obstante sua pobreza. Desempenhou alguns cargos políticos, mas
julgava que devia servir a pátria conforme suas atitudes, vivendo justamente e formando
cidadãos sábios, honestos, temperados (ADORNO, 1995).
47
Não menos importante foi Platão, discípulo de Sócrates. Platão que também nasceu em
Atenas, em 428 ou 427 a.C., de pais aristocráticos e abastados, de família nobre. Platão, ao
contrário de Sócrates, interessou-se pela política. Em Platão, a filosofia tem por objetivo a vida
prática; é a grande ciência que resolve o problema da vida. No entanto, para Platão, este fim
prático é possível através do intelecto, do conhecimento. Platão é considerado um grande
opositor de Homero e Hesíodo, devido a explicação da realidade através dos mitos, e busca a
realidade subjetiva numa estrutura lógica do ser. Existe, portanto, para ele, um mundo de
realidades ideais, o mundo da plena inteligibilidade, o mundo das justificativas cabais de todo o
processo racional, o mundo real por excelência (ADORNO, 1992).
48
O Filósofo grego Aristóteles nasceu em 384 a.C. e morreu em 322 a.C. Seus pensamentos
filosóficos e idéias sobre a humanidade têm influências significativas na educação e no
pensamento ocidental contemporâneo. Aristóteles é considerado o criador do pensamento
lógico. Suas obras influenciaram também na teologia medieval da cristandade.
.
82
abandono à inanição ou a exposição de crianças com deficiência, sempre em
prol de uma harmonia social.
No mesmo texto, Platão considera a classe dos trabalhadores como não
cidadã, pois não lhes sobrava tempo para a contemplação teórica da verdade e
para a práxis política, tendo em vista que o trabalho manual lhes roubava todo
o tempo. Para Platão, o ideal humano se realizava na figura do cidadão
filósofo, livre das incumbências da sobrevivência, constituindo um ideal
altamente elitista. Portanto, trabalhador não alcança o ideal humano platônico.
Assim, o período helenístico, além das influências filosóficas, é marcado
pelo domínio dos macedônios. Primeiro com Felipe, depois com Alexandre. A
conquista começou pela Grécia, e se estendeu aos persas, egípcios, parte da
Índia. Durante este período, a sociedade grega esteve dividida em três classes
sociais distintas: os cidadãos, os metecos e os escravos.
Os cidadãos eram aqueles que gozavam de todos os direitos civis e
políticos. Os metecos (estrangeiros residentes em Atenas) exerciam atividades
ligadas ao comércio, e não tinham direitos civis nem políticos, portanto, não
podiam casar nem possuir terras, entretanto, participavam dos encargos
públicos, prestavam serviço militar obrigatório e eram igualmente obrigados a
participar das festas religiosas (SCHNEEBERGER, 2003).
Quanto aos escravos, que por sinal eram numerosos em Atenas
pertenciam a um amo, eram bem tratados e protegidos legalmente. Nessa
época não se permitia que o amo maltratasse ou matasse um escravo. Tal
postura se dava em razão da necessidade que tinha o escravo para o modelo
de produção grego, pois a proporção da população escrava era quase
equivalente a de cidadãos livres.
A filosofia, por sua vez, permanece como um elemento forte da cultura
grega e um de seus mais contundentes representes neste período é
Aristóteles
49
. Ele é identificado como o criador da lógica, além de autor do
primeiro tratado de psicologia científica e primeiro escritor da história da
filosofia. Por muitos, é considerado também o patriarca das ciências naturais,
49
Aristóteles nasceu em Estagira e era filho de médico de Amintas, rei da Macedônia, em 384
a.C. Aos dezoito anos, em 367, foi para Atenas e ingressou na academia platônica, onde ficou
por vinte anos, mas estudou também os filósofos pré-platônicos.
83
sendo ainda, metafísico, moralista, político. Suas contribuições ainda hoje
estão presentes em meio às diferentes ciências.
No que diz respeito à pessoa com deficiência as idéias aristotélicas são
similares às platônicas. Ele recomendava o extermínio ou a expulsão das
crianças com deficiência do convívio social. E, “em nome do equilíbrio
demográfico e numa posição coerente com as linhas mestras aristocráticas e
elitistas” da sua Política, defendia que deficientes ou mesmo filhos normais,
mas, excedentes, poderiam ser eliminados sempre que implicasse
dependência econômica (PESSOTTI, 1984, p. 4).
Outro aspecto que merece atenção é o desenvolvimento da medicina
verificado neste período e Hipócrates
50
é a figura de maior relevância nesta
área. Os escritos de Hipócrates somam 72 livros que ele denominou Corpus
Hippocraticum (em português: Coleção Hipocrática), e trata de epidemias,
articulações e fraturas. Dado seu nível de conhecimento e sensibilidade,
Hipócrates é o primeiro a apresentar a presença de causas físicas ocasionando
as deficiências e rejeitar a idéia de intervenção divina como explicativa para o
fato. Por este motivo é o primeiro a defender o direito à vida de todos os
sujeitos, inclusive os deficientes, e protestar contra o aborto e o infanticídio.
2.6.2. A Civilização Romana
A região da antiga Roma ocupa uma posição intermediária na costa
setentrional do Mediterrâneo, tendo como limites: a leste, o mar Adriático, a
oeste, o mar Tirreno, a norte, a Gália e ao sul, a Sicília e o Mediterrâneo.
diferentes versões sobre a origem de Roma, mas deixando as visões
mitológicas à parte, os historiadores afirmam que a mesma foi formada por
povos pastores arianos que se estabeleceram na região do Lácio, na parte
centro-ocidental da península da Itália, por volta do primeiro milênio a.C
(SCHNEEBERGER, 2003, p. 64).
50
Ainda jovem, Hipócrates viaja a estudo por várias cidades gregas, onde aprende Retórica e
Filosofia. De volta à cidade natal, passa a ensinar e praticar Medicina na escola do Templo de
Esculápio. Seu trabalho marca o fim da Medicina como manifestação mágica e divina e
inaugura a ciência baseada na observação clínica, passando a considerar as doenças, como
resultado do desequilíbrio entre o que ele denominava de humores. Para ele, todo corpo traz
em si os elementos para a sua recuperação. Mas o conhecimento do corpo é possível a
partir do conhecimento do homem como um todo.
84
De acordo com Aquino et all (1980), o processo de expansão romana
começou desde o século V a.C e em cada região conquistada, uma parte das
terras era transformada em terra pública. Evidentemente, a maior parte do ager
publicus caía em poder da aristocracia escravista, que mantinha assim, o
controle da situação das províncias. Dessa maneira, Roma conseguiu o
domínio do mundo antigo.
A história da cidade de Roma nos anos que seguiram a sua fundação
pode ser dividida em três momentos: a monarquia (753-509 a.C.), a república
(509-27 a.C.) e finalmente o período do império (27 a.C.-476). No período
monárquico, a economia romana transformou-se, seja pela utilização de novas
técnicas, seja pelo surgimento de novos agrupamentos humanos. O comércio e
o artesanato também se desenvolveram com a vinda e a fixação de numerosos
comerciantes e artesãos. Junto às modificações econômicas, a organização
social também sofreu alteração. As gens formaram famílias restritas que se
apoderaram dos melhores e maiores lotes de terra.
O povo romano compreendia basicamente duas classes: os patrícios e
os plebeus. Os patrícios constituíam uma aristocracia de nascimento, cujo
poder econômico estava baseado na propriedade privada da terra. A maioria
da população que não possuía organização gentílica passou a constituir a
plebe, ou seja, homens livres, porém sem direitos políticos.
Os plebeus eram geralmente camponeses e artesãos. Não possuíam
direitos políticos, não podiam servir ao exército, nem possuir religião gentílica,
muito menos casar com elementos das famílias patrícias ou usar a terra
comum. Além disso, eram freqüentemente escravizados em razão das dívidas
que contraíam. Os escravos não eram tratados como pessoas, mas como
objetos e não possuíam nenhum direito.
Há evidências que os anos iniciais da república romana foram bastante
acirrados no que tange a luta de classes. Os plebeus desde cedo lutavam pela
igualdade de direitos com os patrícios e após muita pressão conseguiram
alguns avanços.
“Os tribunos da plebe, o Concilium Plebis, a lei Hortênsia, além da
publicação das leis escritas” (as leis das doze tábuas) significaram, de certa
forma, importantes conquistas dos plebeus e, de outro, verdadeiras manobras
do patriciado, pois antigas reivindicações dos plebeus não foram incorporadas
85
logo de imediato, como o casamento misto (entre plebeus e patrícios), a melhor
distribuição das terras e a igualdade religiosa (AQUINO et all, 1980, p, 232).
Constam nestas tábuas algumas referências bastante interessantes
sobre a pessoa com deficiência. É sabido que no Direito Romano havia leis que
se referiam ao reconhecimento dos direitos de um recém-nascido e em que
circunstâncias esses direitos deveriam ser garantidos ou poderiam ser
negados.
Dentre as condições para a negação do direito, a ausência da
chamada "vitalidade" e distorções da forma humana eram as principais. Desta
forma, tanto os bebês nascidos antes do sétimo mês de gestação quanto os
que apresentavam indicativos de deficiência, que os romanos chamavam de
monstruosidade, não tinham direitos. Assim, de acordo com a lei das doze
tábuas estava proibida a morte intencional de qualquer criança abaixo de três
anos de idade, exceto no caso dela ter nascido mutilada, ou se fosse
considerada como monstruosa. A Tábua IV proclamava sobre o Direito do Pai e
do Casamento. E dizia textualmente na Lei III: O pai de imediato matará o filho
monstruoso e contra a forma do gênero humano, que lhe tenha nascido
recentemente (SILVA, 2008).
Assim, Roma não é apenas a expressão de um grande império; é um
lugar a partir de onde se pode compreender o processo de exclusão de que
são timas inúmeras indivíduos deficientes. Além das disputas pelo poder, as
classes também lutavam pela sobrevivência de seus filhos deficientes.
Além disso, a história romana foi marcada por muitas guerras (entre
elas com a Magna Grécia, com Cartago e com a Sicília), e, muitos problemas
com a produção agrícola ocorreram, especialmente porque os mesmos vinham
se tornando insuficientes para a demanda da população que crescia em função
da expansão romana. Com isso cresciam também as revoltas das classes
mais pobres, levando a uma crise, mesmo com todas as reformas
implementadas por seus líderes. Crescia paralelamente a situação de
escravidão, pois a guerra era sua fonte mais importante.
Os prisioneiros de guerra eram convertidos em escravos e obrigados a
trabalhar nos campos, nas oficinas artesanais, nas minas e nos serviços
domésticos. Havia escravos públicos e particulares. Os públicos pertenciam ao
86
Estado; os particulares dividiam-se em urbanos e rurais. Porém, de todos era
exigida força física e saúde.
Quanto ao assunto, o filósofo romano Sêneca (4 a.C. a 65 d.C.)
comenta, em sua obra "De Ira", que os recém-nascidos com deformidades
físicas eram mortos no próprio momento do parto, por afogamento. Ao escrever
sobre o assunto, o grande pensador e filósofo romano não faz menção à
validade ou adequação da lei em si mesma. Ele argumenta:
Eliminai, então, do número dos vivos a todo o culpado que
ultrapasse os limites dos demais, terminai com seus crimes do
único modo viável... mas fazei-o sem ódio"... ..."Não se sente ira
contra um membro gangrenado que se manda amputar; não o
cortamos por ressentimento, pois, trata-se de um rigor salutar.
Matam-se os cães que estão com raiva; exterminam-se touros
bravios; cortam-se as cabeças das ovelhas enfermas para que
as demais não sejam contaminadas. Matamos os fetos e os
recém-nascidos monstruosos. Se nascerem defeituosos ou
monstruosos, afogamo-los. Não é devido ao ódio, mas à
razão, para distinguirmos as coisas inúteis das saudáveis".
(SILVA, 2008, s/p).
Neste contexto, a deficiência era eliminada em todos os casos, mas,
dependendo da classe social, poderia ser escondida, poupada. No entanto, se
nascida entre os plebeus, a morte seria inevitável, tendo em vista a
perseguição sofrida. Na fase adulta (no caso de deficiências adquiridas), a
deficiência era rigorosamente banida entre os trabalhadores e guerreiros, mas,
suportada entre os patrícios, embora, seus indivíduos fossem afastados do
convívio com os demais (CECCIM, 2001).
Entretanto, com a ascensão de Otávio ao poder, em 27 a.C. o regime
revestiu a forma monárquica de governo, mantendo as aparências
republicanas. Otávio pertencia à classe patrícia e durante seu governo auto-
consagrou diversos poderes em suas mãos. Realizou importantes mudanças
do ponto de vista social, econômico, político e artístico, sendo este período
reconhecido como o século do Augusto
51
. No entanto, nenhuma mudança
significativa se deu com relação aos mais pobres. O exército e o tesouro se
constituíram nas bases de sustentação do imperador; e não o seu povo.
51
Foi durante o governo de Otávio Augusto que nasceu Jesus (importante figura para o
cristianismo).
87
O império foi dividido em províncias. O comércio se desenvolveu
enormemente e ao povo ele oferecia pão e circo, ou seja, cereais e diversão
(espetáculos nos estádios envolvendo gladiadores e animais ferozes) (AQUINO
et all, 1980, p. 244).
Após a morte de Augusto sucederam-lhe imperadores pertencentes a
sua família: Tibério, Calígula, Cláudio e Nero. Todos eles seguiram o modelo
político de Augusto e em todos os governos, os problemas foram comuns e
culminaram com a deposição e o suicídio de Nero.
No ano de 284 assume Diocleciano e conseguiu introduzir mudanças
profundas na administração pública e no sistema de trabalho de modo geral,
mas nenhuma delas vinha a minimizar as dificuldades sentidas pelas camadas
mais pobres da população. Mais tarde, Diocleciano abdicou voluntariamente do
governo “preocupado com o envelhecimento e a doença”. No entanto, para um
patrício ela não significaria - de imediato - a condenação e a morte
(JAGUARIBE, 2001, p. 404).
Sucederam conflitos entre os descendentes de Constâncio e de
Maximiniano pelo trono imperial, após a abdicação de Diocleciano.
Constantino, de um lado, e Maxêncio, de outro, batalharam até 324, quando
Constantino tendo derrotado a todos, se tornara o único imperador de Roma.
Seu reinado se caracterizou pela fundação de Constantinopla, em 330 e por
uma forte tolerância religiosa, terminando com a adoção do cristianismo como
a nova religião oficial do império que deu ao imperador legitimidade pela graça
de deus.
A nova religião ganhou, ao longo dos séculos, um caráter
universal; seu igualitarismo e a promessa de salvação após a
morte deram, de início, um novo sentido à vida das massas
populares urbanas, para logo depois estender-se aos campos e
às classes de proprietários. Nascido como um movimento de
caráter popular e de oposição à opressão da ordem escravista, o
Cristianismo, à medida que se difundia, alcançando as camadas
ricas da sociedade, ganhou uma organização hierárquica,
modelado no sistema administrativo imperial, e aceitou a ordem
social escravista, exceto nos pontos que conflitavam com suas
práticas religiosas, como a adoração à figura do imperador. (...) o
reconhecimento do Cristianismo como religião do Estado
acrescentou à dupla centralização política e administrativa um
novo elemento: a centralização religiosa. Representante de deus
na terra, imagem viva da divindade, o Imperador é como um
deus presente e corporal (...) ao qual se deve obediência como a
deus mesmo (AQUINO ET ALL, 1980, p. 257).
88
No entanto, nem mesmo o novo poder religioso do imperador
conquistado com o advento do cristianismo conseguiu evitar a crise do mundo
antigo. Da mesma forma que a situação da pessoa com deficiência, mesmo
tantas intervenções curativas de Jesus (encontramos inúmeras registradas nos
Evangelhos bíblicos) não é alterada.
Ainda com Plutarco (45 a 125 d.C.), importante filósofo romano, as
idéias de exclusão de crianças nascidas com deficiência, permanece
inalterada. Para ele, os problemas ocasionados por recém-nascidos com
defeitos físicos podiam afetar duramente as famílias romanas, especialmente
quando ocorriam coincidências misteriosas. Plutarco salienta que no ano 280
de Roma, um temor supersticioso tinha invadido toda a cidade, porque as
mulheres grávidas davam à luz crianças quase todas elas defeituosas e
imperfeitas em alguma parte do corpo.
Paralelo ao declínio vivido por Roma durante os séculos IV e V, sob o
ponto de vista econômico, social e político, acelera-se progressivamente as
preocupações com nascimentos de seres deficientes. Recorrendo a mitologia,
os romanos constroem um templo
52
para o deus da medicina - Esculápio, com
instalações para abrigo de doentes e para atividades de culto similares àquelas
desenvolvidas em Epidauros, na Grécia.
uma interessante e quase desconhecida obra do pai do filósofo
Sêneca, intitulada Controvérsias que, em seu capítulo IV - Sobre os Mendigos
Aleijados discute detalhadamente esse assunto, falando inclusive sobre a
verdadeira chantagem feita por meio de crianças mendigas com marcantes
lesões, que batiam às portas de famílias patrícias e cujos membros muitas
vezes imaginavam ser aquela criança ou algum outro jovem que pedia
esmolas, um filho ou parente, exposto anos antes nas margens do rio Tibre
(COULANGES, 2006).
Assim, além de esmolar nas ruas, praças e portas dos templos da
cidade, o destino das pessoas com deficiência de classes sociais mais pobres
52
Foi construído um magnífico templo e seu acabamento externo, em pedra travertina, tinha a
forma de um barco. O visitante de hoje encontra no mesmo local do templo a Basílica de São
Bartolomeu. Se analisar com cuidado, notará com certa estranheza bem no centro dos degraus
do altar-mor, uma antiga e artística boca do antigo "Poço de Apolo", esculpida em mármore no
século XI, mas devidamente lacrada (ARIÉS & DUBY, 1990).
89
podia ser ainda pior. A literatura revela que adolescentes cegas eram
escravizadas e colocadas em prostíbulos e muitos homens cegos também
escravizados eram usados como remadores nas travessias do rio Tibre. De
acordo com Durant (1976), existia em Roma um mercado especial para compra
e venda de homens sem pernas ou sem braços, de três olhos, gigantes, anões
e hermafroditas; estes serviam mais tarde como atrações nos mercados
públicos para atrair compradores.
Na civilização romana, assim como em outras civilizações antigas, a
deficiência era um limitador das condições de sobrevivência. Mas, não para
todas as classes. Crianças pobres malformadas e monstruosas, quando não
eram sacrificadas (afogadas logo ao nascer) eram expostas em cestinhas
enfeitadas com flores nas margens mais distantes do rio Tibre para que os
escravos e as famílias plebéias mais pobres, que muitas vezes viviam de
esmolas, apossavam-se dessas crianças, criando-as para mais tarde utilizarem
como fonte de renda.
2.7. A Exclusão da Pessoa com Deficiência nas Civilizações Antigas: Uma
Questão de Classe Social
Seja no Egito, na Mesopotâmia, na Judéia, Pérsia, Babilônia, China,
Grécia, Roma ou Índia, as características políticas e a divisão de classe se
instalam desde a Antigüidade, acirrando as lutas entre os grupos e
determinando a vida ou a morte dos indivíduos que possuíam deficiências.
O povo estava destinado ao trabalho árduo, seja nas lavouras seja na
construção de estradas, diques, canais, muralhas, templos, palácios, e, além
disso, deveriam pagar impostos e/ou os saques provenientes das guerras aos
soberanos e guerrear sempre que convocados. (SCHNEEBERGER, 2003,
p.19). Mas, quando estes possuíam alguma deficiência, qual a utilidade que
tinham diante das expectativas e obrigações de sua classe? Como pagariam os
tributos cobrados?
A literatura da época podem ainda ajudar a ilustrar esta situação. Um
provérbio sumério é bastante ilustrativo sobre como a questão de classe
determinava sobre a vida e a morte de uma pessoa. O mesmo afirma num de
seus versos:
90
O pobre está melhor morto do que vivo.
Se tem pão, não tem sal,
Se tem sal, não tem pão,
Se tem carne, não tem cordeiro,
Se tem cordeiro, não tem carne.
Fonte: http://paginas.terra.com.br/educacao/
.
Os mais pobres e escravizados precisavam da força, portanto, da
saúde física e mental para sobreviver, e em sua falta (presença de deficiência),
a morte era a melhor alternativa. As práticas do sacrifício ou da proteção para
com pessoas com deficiência aparecem na história antiga, mas, o que de fato
determina a opção pela morte ou cuidado destes indivíduos é a questão de
classe social onde eles se encontram.
Para ilustrar esta situação encontramos registros no Museu de Artes
de Copenhague da existência de um guardião do templo que seria deficiente. O
achado arqueológico data de mais de 1000 anos a.C. e trata-se de uma
estela
53
da XIX Dinastia egípcia. A famosa estela retrata um homem
identificado como Roma, ocupante de um cargo de grande responsabilidade
em seus dias: porteiro do templo de um dos deuses egípcios, que apresenta
uma deficiência física muito evidente, certamente causada por uma
poliomelite
54
.
Figura 4: O Porteiro Roma
Fonte: http://www.crfaster.com.br/Atitudes.htm
53
Estela - coluna ou pequena placa de pedra em que os egípcios faziam inscrições. A estela
aqui referida trata-se de uma Estela votiva (classificada como AAEIN 134), da XIX Dinastia e
originária de Memphis. Tendo sua parte superior côncava, mede 0,27 cm de altura por 0,18 cm
de largura e sua coloração natural (cor de mel) está parcialmente conservada (HOUAISS,
2001; SILVA, 1986).
54
A Poliomelite é uma doença infecciosa aguda, causada por enterovírus, que acomete
sobretudo crianças, caracterizada emsua fase inicial por febre, cefaléia, dores musculares e
distúrbios gastrintestinais, e a seguir, por paralisia flácida de um ou mais grupos musculares e,
por fim, atrofia, paralisia epidêmica, paralisia infantil (HOUAISS, 2001, p. 2252).
91
Ao analisar a obra, Silva (1986, p. 132) comenta que:
O porteiro Roma está em perto de uma pequena mesa
coberta de alimentos e de flores, que ele molha com água benta,
apresentando, com sua mão esquerda, um pão num vaso de
alto. A esposa, por sua vez, postada logo atrás, num vestido
longo e justo, leva uma pequena bandeja com algumas bananas
e conduz um antílope seguro pelos chifres. O pequeno
Ptahemheb está postado logo atrás.
Nota-se que o porteiro Roma, de cabeça raspada, veste uma
túnica de tecido muito fino, curta e pregueada, parcialmente
transparente. Sua perna esquerda apresenta uma evidente
anomalia de musculatura. Seu pé está atrofiado (pé eqüino),
provavelmente devido à poliomielite, segundo opinião de alguns
médicos atuais. Deve ter tido dificuldades para andar com
segurança, porque leva consigo um longo bastão de apoio, que
durante a cerimônia permanece apoiado em seu braço
esquerdo.
De toda forma, outros registros revelam que os egípcios (bem como
seus vizinhos) não sacrificaram seus deficientes (pelo menos o todos),
embora se diga que os mesmos eram atirados nos rios próximos.
Segundo historiadores e analistas de obras de arte antiga, os anões
55
parecem ter sido outro grupo que sobreviveu, inclusive participando e
trabalhando da sociedade. Para os mesmos historiadores, o nanismo era uma
das anomalias congênitas mais encontradas, mas não era a única. Cegos,
deficientes físicos e outros eram bastante comuns. E a prova de que os
deficientes nem sempre eram excluídos podem ser vistas, especialmente nos
achados arqueológicos e obras de arte antiga.
A arte egípcia é rica por retratar muito das evidências de seu tempo.
monumentos onde aparecem anões aos pés de seus mestres ou cuidando
de animais domésticos. Os mesmos eram também representados caçando
animais ou fazendo trabalhos de escultura, ourivesaria e joalheria.
55
O Nanismo é uma doença genética que provoca um crescimento esquelético anormal, que
geralmente resulta em um indivíduo de baixa estatura, inferior à da média populacional. Há
dois tipos, o nanismo pituitário e a acondroplasia. O nanismo pituitário gera baixa estatura,
porém o corpo é proporcional. a acondroplasia é a chamada deficiência dos anões, pois
gera indivíduos de baixa estatura, normalmente com altura inferior a 1,50m. Com aumento do
perímetro cefálico e membros curtos. Somente alguns sintomas podem ser tratados, a
exemplo, o pé torto (http://www.alunosonline.com.br/biologia/nanismo).
92
Figura 5: Estela com anões
Fonte: http://www.crfaster.com.br/Atitudes.htm.
Mas, talvez o monumento mais famoso é o que retrata um destacado
anão do palácio do faraó, de nome Seneb com sua esposa e filhos (sem
deficiência). Seneb foi supervisor dos anões no palácio do faraó. Além desse
cargo, ele era chefe do guarda-roupas real e sacerdote dos ritos funerários. De
acordo com Silva (1986), a esposa de Seneb fazia parte da corte do faraó e era
sacerdotisa. Portanto, ambos gozavam de privilégios.
Figura 6: Seneb e sua família
Fonte: http://www.crfaster.com.br/Atitudes.htm.
ainda referências a outras deficiências na Antigüidade, revelando
preocupação em relação a isso e dedicação acentuada dos médicos da época
para o esclarecimento de suas causas. Uma das áreas de maior interesse dos
egípcios foi a cegueira. Pesquisadores acreditam que esta preocupação se
deve ao fato da grande incidência de casos na época. O Egito, por exemplo, foi
considerado por Hesíodo como o “país dos cegos”.
Em Roma, houve casos destacados de cidadãos romanos com
deficiência que foram apreciados e que chegaram mesmo a ocupar posições
de destaque, sendo um dos mais notáveis o Censor Ápio Cláudio, conhecido
93
como "o Cego", responsável por muitas obras públicas, inclusive pela Via Ápia,
que chegou até os nossos dias.
Sobre ele, Cícero escreveu:
Ápio Cláudio, velho e cego responsabilizava-se por quatro filhos
robustos e cinco filhas, além de uma grande mansão e toda a
sua clientela. Mantinha um espírito tão tenso quanto um arco e
não se deixava subjugar pela velhice para se transformar num
homem sem energia. Mantinha também autoridade e poder
sobre os seus. Os seus escravos temiam-no, seus filhos o
veneravam e todos o queriam bem. Em seu lar reinavam os
costumes dos ancestrais e a disciplina (SCHIFF, 1994, p. 145).
Pesquisas mostram também que pessoas surdas:
(...) na Antiguidade chinesa eram lançados ao mar; os gregos os
sacrificavam ao célebre deus; em Esparta eram jogados do alto
dos rochedos e, em Atenas, e Roma eram enjeitados e
abandonados nas praças públicas (SOUZA, 1982, p. 25).
Entretanto, nas mesmas civilizações há registros que surdos eram
adorados, como se fossem semi deuses, sendo utilizados para mediarem a
comunicação entre os deuses e os soberanos. Portanto, qual a diferença entre
estas pessoas? A classe social de origem.
Ainda dados que revelam atitudes de rejeição das civilizações
Antigas para com as pessoas cegas ou com deficiência mental. Segundo
Souza (1982), estas deficiências possuíam tratamentos distintos em razão da
classe social. Pessoas com deficiência de toda ordem podiam ser
sumariamente sacrificadas ou podiam ser protegidas.
É preciso que se atente para estas questões como especialmente
importantes para compreensão da exclusão de pessoas com deficiência,
identificando na questão social um elemento, muitas vezes, definidor da vida e
das possibilidades de inclusão, desenvolvimento e aprendizagem.
Assim, para a pessoa com deficiência oriunda das classes mais
pobres, o abandono era estimulado, defendido e praticado, como prática
perfeitamente aceitável, especialmente “quando isso implicasse em
dependência econômica” (PESSOTTI, 1984, p. 4).
Portanto, o destino deste grupo era a morte. Mas, quando conseguiam
fugir ao controle do Estado, o melhor lugar era a rua, a praça, os caminhos.
Dependiam, portanto de esmolas para sobreviver. Era grande o número de
94
cegos, deficientes físicos, surdos, facilmente encontrados ao longo das
estradas, praças, portas do templo ou nos mercados.
No entanto, em muitas civilizações o Estado proibia a população de
alimentar toda criança disforme que encontrasse esmolando nas ruas, pois isto
significaria um desperdício sem precedentes para a economia. O mesmo
Estado-religioso era orientado, principalmente pelos filósofos a não investir na
educação destas pessoas e tinham seu poder legitimado por serem
representantes de um ou mais deuses; suas ações, portanto, eram
inquestionáveis (SANTIAGO, 2003).
registros que mostram que governantes da Antigüidade, assumiam
verdadeiramente esta posição e faziam a opção pela morte das pessoas
pobres deficientes. Como exemplo tem-se o caso de Cícero (século I a.C.), que
afirmou que aos que reúnem vários infortúnios, a morte é refúgio seguro
56
.
Ainda se acrescente a vinculação da deficiência à doença; a uma
enfermidade sem cura diante da dimensão humana, podendo apenas ser
curada por deus ou por um intermediário seu como outro elemento que ajudou
os mais privilegiados, pois se nascidos na aristocracia, os sacerdotes
assumiam a responsabilidade em empreender esforços em busca da cura. A
crença na imutabilidade da condição de doente ou deficiente, atribuindo-se
apenas aos deuses ou seus guardiões, a possibilidade de cura, afastava
camponeses e escravos da possibilidade de mudarem tal situação.
Não se pode esquecer, que entre os povos antigos foi a religiosidade
que exerceu maior influência sobre a formação de costumes e práticas
desenvolvidas junto às pessoas com deficiência, mas estas foram esquecidas
ou reinterpretadas de acordo com os interesses de classe.
Com o passar dos séculos, essa visão o se esgota, mas assume
outras características mais compatíveis com o novo modelo de sociedade que
vai se delineando. É, neste cenário, que a Igreja se apresentar como a única
capaz de minimizar as dificuldades que marcam a vida das pessoas com
deficiência, lançando seus conhecimentos e preceitos a serviço de abrigar os
desvalidos. Este é o novo elemento que se acrescenta à emergente civilização
Medieval.
56
Disponível em: http://www.crfaster.com.br/Roma.htm.
95
As religiões são caminhos diferentes
convergindo para o mesmo ponto. Que
96
importância faz se seguimos por caminhos
diferentes, desde que alcancemos o mesmo
objetivo?
(Mahatma Gandhi)
3. A EXCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA NAS CIVILIZAÇÕES
MEDIEVAIS
3.1. A Época Medieval: aspectos gerais, classe social e educação
A expressão Idade Média surge somente no culo XIV durante o
Renascimento, quando os renascentistas acreditavam viver um momento único
na história da humanidade, marcado por grande efervescência cultural,
comparável, segundo eles, somente ao período greco-romano. Assim, estes
dois momentos da história (Idade Antiga e Idade Moderna) estavam separados
por um período que acreditavam ser um tempo de ignorância, trevas e
barbárie; “um tempo vazio, um tempo em que a Igreja escondeu os
conhecimentos que naufragaram com o fim do Império Romano para dominar o
povo”; um tempo dominado pelo misticismo religioso (SOUZA, 2006, p. 78). No
entanto, esta idéia é típica dos renascentistas e na atualidade parece ser pouco
aceita e de certa forma, bastante preconceituosa.
A Idade Média, segundo uma parte significativa dos historiadores, teve
início em 476, quando o último imperador foi destituído pelos povos
germânicos, e final em 1453 com a tomada de Constantinopla pelos turcos,
compreendendo, portanto, do século V ao XV, ou seja, aproximadamente 1000
anos de história. Entretanto, esta divisão tradicional não leva em consideração
as transformações nas relações econômicas e sociais, por exemplo, focando
apenas as mudanças de cunho político. Assim a queda do império romano ou
as invasões bárbaras, por exemplo, não seriam suficientes na nossa visão -
para balizarem a análise de determinada sociedade. Outros elementos
precisam ser considerados para que se compreenda o novo contexto histórico
da humanidade.
97
A divisão da Idade Média em fases (Alta e Baixa) é uma destas
tentativas adotadas para facilitar os estudos. Este tipo de divisão toma como
referência o sistema feudal, situando a transição do escravismo ao feudalismo
na Alta Idade Média (séculos V ao X), e na Baixa Idade Média (séculos X ao
XV) como um período onde se completou o sistema feudal, deu-se seu apogeu
e também sua crise.
Segundo Schneeberger:
Na primeira parte destacam-se a civilização bizantina, a
civilização muçulmana, a formação dos reinos germânicos e do
feudalismo. Na segunda, as transformações ocorridas no
sistema feudal, que impulsionariam a Europa Ocidental ao
sistema capitalista e à sua grande expansão marítima (2003, p.
91).
Para compreendermos, portanto, a época que se convencionou
chamar Idade Média, é bom resgatarmos os acontecimentos mais importantes
que tiveram início anteriormente e que levaram a construção de uma nova
ordem social, política e econômica. Cabe ressaltar, então, que entre os séculos
IV e V, é possível identificar a tendência de as grandes propriedades,
exploradas com mão-de-obra escava, se transformarem em províncias auto-
suficientes, isto é, que se bastava a si mesmas.
Quanto a isso, Aquino et all (1980) afirmam que, em vez dessas
propriedades produzirem para o mercado, os mesmos trabalhavam para a
própria província e, ao mesmo tempo houve a interrupção da expansão, e com
isso, a mão-de-obra escrava foi pouco a pouco se tornando extremamente
cara, pois a própria concorrência da escravidão a desvalorizava. Assim, os
grandes proprietários começaram a arrendar parcelas de terras a agricultores
livres que pagavam a renda da terra com uma parte da produção. Desta forma,
o trabalho escravo deixa de ter importância fundamental para a economia
destas civilizações. O declínio também se fez notar no artesanato dos grandes
centros urbanos, na produção de metais preciosos e em outras áreas.
As crises do Império romano são reflexos das crises do próprio modo
de produção escravista. Somados ao enfraquecimento do poderio romano, à
crise político-institucional, e à crise econômica, alguns povos que habitavam
nas proximidades, considerados bárbaros pelos romanos, começaram a ocupar
98
(pacificamente ou não) o seu território. Assim, francos, burgúndios, alamanos,
ostrogodos, visigodos, saxões e anglos foram alguns deles. As chamadas
invasões bárbaras passam a influenciar diretamente na conjugação de outros
valores no interior das grandes civilizações.
É neste contexto que o imperador Teodósio dividiu o império em duas
partes: uma no ocidente, com capital em Roma, e outra no Oriente, sediada em
Constantinopla. Assim, o poderoso império romano do ocidente não resistiria
às pressões dando lugar a diversos reinos, nos quais surgiria um novo tipo de
sociedade, baseada em tradições germânicas e romanas.
A sobrevivência do império romano do oriente ou império Bizantino,
como passou a ser conhecido teve como principal motivação o controle das
vias marítimas do comércio internacional. O império bizantino, apesar de toda
pressão, dominava boa parte do comércio e seus lucros possibilitavam a
manutenção de um exército poderoso. Mas, os problemas permaneciam com
as famosas intrigas palacianas pelos cargos administrativos e interesses dos
grandes mercadores, os interesses do Estado teocrático, a opulência da corte,
além do divisionismo religioso e o declínio do império. Isto tudo, somado a
ameaça sofrida pela expansão árabe foi suficiente para provocar as
divergências entre as igrejas cristãs: de um lado, a do ocidente e de outro, a do
oriente. Assim, em 1054, ocorreu o Cisma do Oriente, ou seja, a divisão entre a
igreja ortodoxa e a igreja católica. É somente em 1453, que muçulmanos
1
conquistam definitivamente Constantinopla (SCHNEEBERGER, 2003, p. 94-
95).
De toda forma, é possível acrescentar ainda neste processo, um
acirramento na luta de classes, além de um declínio da cnica agrícola,
redução das áreas de cultivo, baixa produtividade do solo, concentração da
propriedade da terra nas mãos de uma minoria privilegiada – a aristocracia.
A obtenção da mão-de-obra tornou-se um problema para os grandes
proprietários “(...) praticamente não existia transações em moedas; as trocas e
os pagamentos eram feitos em produtos”, caracterizando um novo momento da
economia. Este conjunto de mudanças caracterizou o novo modelo produtivo: o
feudalismo (AQUINO ET ALL, 1980, p. 283).
99
Figura 7: Sistema Feudal
Fonte:
http://br.geocities.com/
Assim, vemos - embora muito mais lentamente do que é possível
traduzir em palavras - que o império romano do ocidente caminhou do
escravismo ao feudalismo durante alguns séculos e que, para que o sistema
feudal se consolidasse, atingisse seu apogeu e enfrentasse (evidentemente)
sua crise, muitos séculos se passaram. É neste contexto que focalizaremos a
condição da pessoa com deficiência nas diferentes classes sociais.
Neste sentido não se pode perder de vista a presença cada vez mais
marcante da religião e especificamente da Igreja romana na época medieval.
Alguns estudiosos dessa época insistem numa caracterização do período como
a Idade da Fé, tendo em vista a forte influência exercida pela Igreja.
Para os objetivos aqui pretendidos serão abordados tantos os
elementos de cunho político-econômico como os religiosos e educativos,
identificando os mesmos como necessários para que se compreendam todas
as nuanças dos destinos reservados aos deficientes de outrora.
Apoiados em autores como Schneeberger (2003), Jaguaribe (2001) e
Aquino et all (1980) compreendemos que é importante ressaltar que o
momento histórico reconhecido como a Época Medieval comportou sociedades
diferentes, com dinâmicas próprias, tão reveladores como a Antiguidade e, que
por esta razão merecem um olhar atento sobre sua cultura.
Assim, mesmo Roma sendo invadida e conquistada pelos germanos,
dando início aos reinos germânicos, a parte oriental do império sobreviveu,
dando início à civilização bizantina. Ambos conservaram muito dos seus
conhecimentos e práticas, mas também foram influenciados uns pelos outros e
100
pela civilização muçulmana, vizinha próxima do Oriente Médio, em plena
ascensão comercial e rica de valores, lendas e alegorias.
Nesse sentido é preciso destacar o quanto estas civilizações
produziram cada uma e o quanto deixaram de contribuições para que se
instalassem novos olhares sobre o mundo, sobre o homem e também sobre as
deficiências que seguiram acometendo as pessoas ou sendo produzidas pela
própria sociedade, como punições e castigos.
Para Aquino et all (1980) o legado deixado por estas três civilizações é
importante referência para que se compreenda que esta não foi uma época de
obscuridade, mas de vasta cultura com reflexos decisivos sobre as civilizações
posteriores. Desta forma, entendemos que muito que ser compreendido a
respeito da Idade Média, inclusive, no que tange a questão da pessoa com
deficiência.
3.2. As Civilizações Medievais: aspectos gerais, luta de classe e educação
A antiga unidade imposta ao mundo pelos romanos é interrompida em
fins do século IV quando o Imperador Teodósio determinou a divisão do
império romano, o ocidente com capital em Milão e o Oriente com capital em
Constantinopla. O império romano do ocidente tem seu fim no século V, com a
invasão dos povos germânicos, mas o império do oriente ainda sobreviveu a
o século XV.
Enquanto no império romano do ocidente ocorreram transformações
intensas no modo de produção e, conseqüentemente na vida das pessoas,
acirrando as contradições internas de maneira irremediável; a vida no oriente
seguiu um processo mais lento, coexistindo em certas áreas ainda o modo de
produção asiático.
De acordo com Engels (1985), o chamado modo de produção asiático
caracteriza os primeiros Estados surgidos no Oriente Próximo, Índia, China,
África e América pré-colombiana (incas e maias). A agricultura, base da
economia desses Estados, era praticada por comunidades de camponeses
presos à terra, que não podiam abandonar seu local de trabalho e viviam
submetidos a um regime de servidão coletiva.
101
Na verdade, estes camponeses (ou aldeões) tinham acesso a
coletividade das terras de sua comunidade, ou seja, pelo fato de pertencerem a
tal comunidade, eles tinham o direito e o dever de cultivar as terras desta.
Todas as comunidades deviam tributos e serviços ao Estado ao qual estavam
submetidas, representado pelas figuras do imperador, rei ou faraó que se
apropriavam do excedente agrícola (produção que supera o consumo
imediato), distribuindo-o entre a nobreza, formada por sacerdotes e guerreiros.
Lembrando que este "excedente" era freqüentemente extorquido mais pelas
necessidades da "nobreza" do que por realmente ser um excedente
propriamente dito nas comunidades.
Esse Estado todo-poderoso, onde os reis ou imperadores eram
considerados verdadeiros deuses, intervinha diretamente no controle da
produção. Nos períodos entre as safras, era comum o deslocamento de
grandes levas de trabalhadores (servos e escravos) para a construção de
imensas obras públicas, principalmente canais de irrigação e monumentos.
Esse tipo de poder, também denominado despotismo oriental, marcado pela
formação de grandes comunidades agrícolas e pela apropriação dos
excedentes de produção, caracteriza a passagem das sociedades sem classes
das primitivas comunidades da pré-história (modo de produção primitivo) para
as sociedades de classes. Nestas, predominam a servidão entre explorados e
exploradores, embora a propriedade privada ainda fosse pouco difundida.
(ENGELS, 1985).
3.2.1. As Influências Germânicas
Os reinos germânicos ou romano-germânicos foram em sua maioria
reinos efêmeros, não possuindo organização administrativa eficiente, apesar do
empenho de muitos chefes germanos em manter as instituições político-
administrativas romanas.
A efemeridade destes reinos também se deve ao fato dos germanos
desconhecerem a noção de Estado e ao choque entre diferentes tendências
religiosas; enquanto os germanos eram politeístas, os romanos se firmavam
como monoteístas e se rendiam ao cristianismo crescente. Então, para os
romanos, submetidos à influência da Igreja Católica, os cristãos não deviam
102
manter relações com os bárbaros. Além das diferenças de classe, incorporam-
se as diferenças culturais como instrumento de exclusão de uns sobre outros.
Foram muitos os reinos rbaros, mas alguns desapareceram muito
rapidamente, como foi o caso dos suevos e alanos. Os principais reinos
romano-germânicos que predominaram na Europa Ocidental foram: os
visigodos, na península Ibérica, os ostrogodos, na Itália e os francos, na Gália.
Para sobreviverem estes grupos buscaram alianças, especialmente com a
Igreja Católica, aumentando assim seus territórios e engrossando seus
exércitos pela incorporação de cristãos. Ainda assim as relações entre
romanos e bárbaros não foram fáceis.
Os culos se passaram, mas foi cada vez mais difícil a integração
entre estes povos, pois de um lado, os próprios bárbaros não conseguiam
incorporar os valores do império romano e, de outro, a Igreja católica romana
não permitia a aproximação entre eles, proibindo inclusive, o casamento entre
ambos.
Com o fim das guerras de expansão do Império, a mão de obra
escrava, base da economia romana desapareceu quase que completamente.
Assim, não era vantajoso possuir grandes latifúndios. Em seu lugar,
começam a surgir as vilas. Nestas, a mão de obra principal era dos colonos, ou
seja, dos trabalhadores que entregavam parte do que produziam ao senhor,
dono das terras.
A estas vilas e a relação de trabalho estabelecida no interior delas é o
que se convencionou chamar feudos. Evidentemente, esse processo foi
acelerado pelas invasões germânicas em toda a Europa ocidental, pois os
povos germanos trouxeram consigo certos costumes que se incorporaram à
sociedade ascendente – a sociedade medieval.
Por outro lado, certa insegurança e isolando marcou esse novo
período. Romanos e germânicos não conseguiram harmonizar-se com
tranqüilidade. E, nesse contexto, a Igreja Católica exerceu papel fundamental,
garantindo certa uniformidade em torno de suas idéias.
Essa uniformidade se revela na idéia de cristandade que pouco a
pouco foi se estabelecendo entre os diferentes povos, sugerindo um conjunto
entre aqueles que seguiam as idéias do cristianismo emergente. Mas, esse
103
processo não se deu de maneira tranqüila, muitos conflitos ocorreram e
quem diga que a paz jamais se consolidou.
A instabilidade dos reinos romano-germânicos também teve
motivações na questão da partilha das terras entre os vencidos e vencedores,
mas a Igreja da mesma forma também procurava melhorar estas relações, de
uma forma ou de outra.
De qualquer maneira, com o tempo, a Igreja se transformaria na maior
articuladora entre os interesses econômicos, políticos e sociais daquela época.
Sua influência e seu poder são hoje inquestionáveis.
A nova organização social que se configurou na Europa assumiu
forma por volta dos séculos VIII e IX e, as constantes disputas, lutas e invasões
acabaram por dificultar a convivência e as atividades econômicas da região,
transferindo a vida das pessoas para as propriedades rurais, onde crescia o
poder dos senhores feudais.
Esta foi uma época onde a mobilidade social praticamente inexistia e,
as rígidas tradições e vínculos acabavam determinando a posição social dos
indivíduos desde o nascimento. Essa prática, evidentemente, condenou muitos
ao abandono e sofrimento e privilegiou alguns no seio de uma sociedade
aristocrática.
Não é demais lembrar que em meio à crise do império romano, o
cristianismo surge como um questionamento a toda a situação social e política
da época. As idéias cristãs chocavam-se com os valores do Estado Romano. A
figura de Jesus
57
, marco do cristianismo, ainda incomodou os romanos por
muito tempo, desde suas ações espirituais, mas também por seu
posicionamento social e político e herança teológica deixada.
57
Jesus é a figura central do cristianismo. Para a maioria dos cristãos ele é o filho de Deus, que
teria sido enviado à Terra para salvar a humanidade. Acreditam que foi crucificado, morto, e
ressuscitou ao terceiro. Para os adeptos do islamismo, Jesus é conhecido no idioma árabe
como Isa que significa Jesus, filho de Maria. Os muçulmanos tratam-no como um grande
profeta e aguardam seu retorno antes do Juízo Final. Alguns segmentos do judaísmo o
consideram um profeta, outros um apóstata. A Bíblia é umas das principais fontes de
informação sobre ele.
104
3.2.2. As Influências Bizantinas
Com a divisão do Império Romano, a parte Oriental englobou a Grécia,
a Síria, a Palestina e o Egito se constituiu numa nova civilização que se
denominou Bizantina. Onde existia a antiga colônia grega de Bizâncio, o
imperador Constantino mandou construir a cidade de Constantinopla. Para
melhorar suas defesas foram construídas muralhas ao seu redor, o que fez
com que resistisse aos inúmeros ataques sofridos.
Um dos aspectos distintos dessa civilização foi comunhão entre
valores greco-romanos e orientais. Enquanto a Europa Ocidental se ruralizava
e tinha o poder descentralizado, na parte oriental, a sociedade bizantina
assumia a centralização como forma de governo, expandia o comércio e
fortalecia as cidades e as ideologias religiosas.
Os primeiros concílios responsáveis pela definição dos dogmas da
Igreja Católica foram realizados em Constantinopla, mas foi também aí onde se
deram os maiores conflitos religiosos entre iconólatras (praticantes do culto de
imagens) e iconoclastas (contrários ao culto de imagens).
É bom lembrar que este assunto, no entanto, não esteve embasado
em questões religiosas, mas, econômicas e políticas, pois o comércio de
imagens praticado principalmente pelos monges movimentava muito da
economia bizantina, e estava livre da cobrança de impostos pelo Estado.
Durante o governo de Justiniano houve muito esforço para conservar a
herança cultural romana, e muitos trabalhos foram organizados na área do
direito como o Código Justiniano (reunião de todas as leis romanas, desde
Adriano a o ano de 534); as Institutas (princípios fundamentais do direito
romano); o Digesto (síntese da jurisprudência romana) e as Novelas (nova
legislação romana). Mas, nada disso foi suficiente para eliminar as diferenças
sociais existentes.
A riqueza do Império bizantino permitia que seus moradores tivessem
um padrão de vida bastante elevado, entretanto, a pobreza existente entre os
camponeses não se distinguia em muito de outras civilizações.
Os mais humildes eram atendidos pelo serviço social mantido pelo
Estado e pela Igreja, principalmente os doentes e deficientes, a custa de
pesados impostos que eram cobrados pelo Imperador. Esta situação provocava
muito descontentamento na região e ocasionava inúmeras revoltas. A mais
105
famosa delas foi de Nika, em 532, quando para conter a população, um general
de nome Belisário agiu ferozmente degolando aproximadamente trinta mil
pessoas.
Tanto quanto na parte ocidental, o império bizantino foi influenciado
fortemente pela ideologia religiosa, mas viveu em luta com ela. Desde o culo
V, quando o bispo de Roma denominou-se sucessor de São Pedro e chefe
supremo e absoluto da cristandade o papa os atritos foram constantes,
incluindo principalmente os interesses econômicos e políticos.
Segundo Aquino et all (1980, p. 359), de toda forma: “o cristianismo
58
tranqüilizou os espíritos à medida que reduziu a natureza e todo o
conhecimento e ação humanos a uma ordenação divina”. Assim, a partir do
século IV, (permanecendo por cerca de 1000 anos), a Igreja se apresentava
como uma espécie de Estado dentro do Estado com uma forte organização que
já possuía enormes riquezas.
Reconhecida pelo Estado, a Igreja passou a se identificar-se com o
poder instituído e de certa forma, a única instituição que podia oferecer
proteção e socorro às populações, especialmente aos mais indefesos. De um
lado, a aristocracia judaica aceitava a dominação para obter vantagens
econômicas, e de outro propunha as regras da nova que deveria induzir as
atitudes e práticas de todos os homens, garantindo a ordem social.
Entretanto, a participação cada vez mais ativa da Igreja na política e
na economia vez por outra aumentava a insatisfação real. Não resta dúvida, no
entanto, que a Igreja tornou-se uma sólida organização mesmo num império
decadente. Certamente, este poderio da Igreja impressionou a realeza, levando
os imperadores a proclamarem:
58
O cristianismo foi uma das numerosas religiões orientais que se desenvolveu no mundo
romano, embora diferisse das demais em um ponto capital: enquanto as outras ficaram na
obscuridade ou desapareceram, a doutrina crisacabou se impondo. O cristianismo é uma
religião monoteísta baseada nos ensinamentos de Jesus de Nazaré. Os cristãos acreditam que
Jesus é o Messias e como tal referem-se a ele como Jesus Cristo. O cristianismo começou no
século I como uma seita do judaísmo. Aos poucos estes cristãos foram partilhando textos
sagrados e difundindo as idéias entre diversos povos. À semelhança do judaísmo e do Islão, o
cristianismo é considerado como uma religião abraâmica. Segundo o Novo Testamento, os
seguidores de Jesus foram chamados pela primeira vez "cristãos" em Antioquia (AQUINO ET
ALL, 1980).
106
Pois eu, Constantino Augusto, e eu, Licínio Augusto, viemos sob
bons auspícios a Milão e aqui tratamos de tudo o que respeitava
ao interesse e ao bem público, entre as outras coisas que nos
pareciam dever ser úteis a todos sob muitos aspectos,
decidimos, em primeiro lugar e antes de tudo, emitir regras,
destinadas a assegurar o respeito e a honra da divindade, isto é,
decidimos conceder aos cristãos e a todos os outros a livre
escolha de seguir a religião que quisessem, de tal modo que
tudo o que existe de divindade e de poder celeste nos possa ser
favorável, a nós e a todos os que vivem sob a nossa autoridade
(PILETTI & PILETTI, 1997, p.63).
Do ponto de vista social, pode-se afirmar que nos Reinos germânicos,
e na Civilização Bizantina, formadores da civilização cristã da Europa Ocidental
existiam três grandes ordens: a primeira compreendia os integrantes do clero
que cuidavam da fé cristã -; a segunda, os senhores feudais – que eram
responsáveis pela guerra e pela segurança - e a última, era constituída pelos
servos que trabalhavam para sustentar toda a população. Estes últimos
estavam presos a terra e dali não podiam sair.
Além destes, existiam os escravos, entretanto, em número agora
bastante reduzido e, aos poucos se constituíram os cavaleiros, senhores
menos poderosos que o senhor feudal e que com este mantinham relações.
Em geral, os cavaleiros haviam recebido terras do senhor feudal (suserano) e
em troca, lutavam a seu favor, pois tornavam-se seus vassalos (JAGUARIBE,
2001).
A condição de vassalo acarretava muitas obrigações para com o
suserano: o auxílio militar obrigatório, o auxílio financeiro e o auxilio judiciário.
Além disso, o suserano tinha plenos direitos de confiscar os bens do vassalo
que não cumprissem suas obrigações. Por outra parte, o suserano assumia a
proteção do vassalo, garantindo-lhe o cumprimento da justiça.
Os senhores feudais eram os proprietários da maior riqueza da época:
as terras ou feudos. Os feudos eram cleos com base nos quais, a sociedade
se organizava. Por volta do ano 1000, a maioria das pessoas na Europa vivia
em feudos.
As terras do feudo dividiam-se em manso senhorial (representava
cerca de um terço da área total e nela os servos trabalhavam alguns dias por
semana, cuja produção pertencia somente ao senhor feudal); o manso servil
(área destinada ao usufruto do servo, mas com uma parte da produção sendo
107
entregue ao senhor feudal como pagamento pelo uso); e as terras comunais
(área de usufruto dos senhores para pastagem do gado, da caça e da extração
de madeira – atividades executadas pelos servos).
Mas, a Igreja também se tornou grande detentora das terras e de
muitos vassalos. A vassalagem, característica do modo de produção feudal,
criava vínculos jurídicos e morais entre o suserano e o vassalo. Existia ainda
um juramento de fidelidade e proteção, celebrado através do Ato de fé e
homenagem, que se traduzia num contrato firmado entre as duas partes,
assumindo obrigações mútuas e simbolizado pela entrega de um objeto. A este
momento chamava-se investidura (AQUINO ET AL, 1980).
Os servos, principal mão-de-obra dos feudos tinham as seguintes
obrigações: a corvéia (prestação de trabalho gratuito no manso senhorial), a
banalidade (pagamento de taxa pelo uso do forno, do moinho, etc.), o censo
(pagamento efetuado com parte da produção ou em dinheiro), a capitação
(imposto per capita pago pelos servos); a talha (entrega ao senhor de parte da
produção obtida no manso servil) e a o-morta (taxa paga pelos familiares ao
servo para continuar explorando a terra após sua morte).
Os servos não tinham terra e viviam em estado de grande miséria.
Precisavam, ainda, ser fortes e saudáveis para o trabalho, caso contrário,
precisariam viver da caridade de outros, capitaneada pela Igreja. Pessoa com
deficiência nascida nesta classe social estavam destinadas a esmolar, viver
dos favores da Igreja ou morrer de inanição.
De acordo com Ceccim, ao longo da Idade Média, é que as pessoas
com deficiência “vão gradativamente ser reconhecidas como seres humanos”,
devendo à Igreja cristã grande responsabilidade sobre isto. Assim, como filhos
de Deus passam a ser vistos através de uma visão caritativa e também
postergadora, pois eram deixadas às mãos de deus ou entregues à igreja, sua
principal representante para os cuidados necessários ou para a expiação
redentora de seus pecados (2001, p. 27).
Do ponto de vista econômico o novo modelo feudal não facilitou a vida
da pessoa com deficiência, pois diferente do sistema escravista, no feudalismo,
o senhor feudal não tinha qualquer responsabilidade de sustentar os servos,
portanto, os servos que por qualquer razão tornavam-se deficientes eram
sumariamente mandados embora dos feudos (SOUZA, 2006).
108
3.2.3. As Influências Muçulmanas
Por outro lado, é importante considerar que o domínio cristão não era
universal como se pretendia. Outras seitas ou religiões se fortaleceram neste
período e orientaram as condutas e práticas sociais, também com relação às
pessoas com deficiência.
Assim, enquanto na Europa Ocidental a sociedade se estruturava com
base nos feudos, na península Arábica, constituída na sua maior parte por
desertos, ocorria um processo político-religioso que iria afetar não o destino
dos árabes, mas também dos povos europeus (PILETTI & PILETTI, 1997).
Esse processo teve início com a criação da religião muçulmana (ou
Islã) pelo profeta Maomé
59
. A nova crença ganhou rapidamente adeptos entre
os povos árabes. Unificados política e religiosamente pelo Islã, eles
empreenderam um movimento expansionista com a intenção de converter os
povos vizinhos. A expansão árabe alterou radicalmente o mapa político da
região do mar Mediterrâneo. Desde essa época, a influência muçulmana não
parou de crescer e hoje se faz sentir em cerca de um quinto da população
mundial.
O comércio era intenso, em função da localização da península, região
de passagem entre a África e a Ásia. Os principais centros urbanos eram Meca
e Yatreb, mas estas cidades também se tornaram importantes centros de
peregrinações religiosas. Em Meca ficava a Caaba, um santuário que abrigava
inúmeros ídolos, além da Pedra Preta, considerada sagrada.
Maomé conseguiu unificar os povos árabes sob uma mesma religião e
mesmo regime político e aumentar seus domínios com um expansionismo
invejável. Essa rápida expansão foi favorecida pelo esgotamento em que se
encontravam o império Bizantino e Persa, o que levava muitos povos a verem
os árabes como libertadores.
As conquistas árabes eram cada vez maiores, primeiro com Moaviá
Omíada, depois com Tarik, foram sete séculos de expansão iniciados na
59
Maomé nasceu em Meca durante o ano de 570 e passou boa parte de sua juventude
participando do comércio caravaneiro, quando concebeu uma religião sob influência do
monoteísmo judaico-cristão: o Islã ou Islamismo que teve seus ensinamentos reunidos no
Alcorão, principal livro sagrado dos muçulmanos. Entre seus principais preceitos está a idéia da
propagação do Islã pela força, a chamada guerra santa.
109
Península Arábica, atravessando o estreito de Gibraltar e avançando pela
França.
Boa parte das práticas educativas do povo muçulmano pode ser
conhecida através do Alcorão. Nele estão contidos os ensinamentos que
guiaram o mundo árabe através dos séculos.
O Islam nos ordena a sermos misericordiosos com todas as
criaturas. Porém, as vezes, a misericórdia pode exigir um pouco
de rigidez. O médico, quando realiza uma cirurgia, é obrigado a
cortar o corpo, quebrar osso, cortar membros, tudo isso por ter
misericórdia de seu paciente e para salvá-lo. A misericórdia,
então, não é apenas dar carinho; ela é algo maior, e isso é
notado na legislação islâmica. Quando olhamos para o
condenado à morte, sendo executado, sentimos pena, mas
Allah, Ta'ála, ordenou que isso fosse feito como um ato de
misericórdia para com seus servos e criaturas para que todos
vivessem em paz e segurança.
(Disponível em
http://www.alcorao.com.br/).
As principais idéias árabes que interessam diretamente a este estudo
dizem respeito a visão sobre as deficiências, e neste caso para os
muçulmanos, as pessoas com deficiência são tão incapazes quanto as
mulheres, não tem o mesmo poder de escolha, discernimento e opinião,
estando, pois totalmente submetidos aos desejos de outros, evidentemente os
sem deficiência.
Allah dividiu a misericórdia em cem partes, e colocou na terra
apenas uma, que, com ela as criaturas se tratam. O Islam
explica também grande parte dessa misericórdia deve ser
dedicada, em primeiro lugar, aos pais, porque são os que mais
merecem a nossa atenção e carinho. (...) Em segundo lugar
vêm os filhos. (...) Em terceiro lugar vêm os parentes. (...)Em
quarto lugar vêm os órfãos. (...) Em quinto lugar vêm os
doentes e portadores de deficiências físicas. A estes
devemos tratar bem e fechar os olhos quanto a seus defeitos. Se
Allah os desculpou, nós devemos fazer o mesmo. Porque o
doente torna-se um ser sensível, humilhado pela doença e o
amargor dos remedios. Pela sua paciência às dores, fica mais
próximo de Allah; se Lhe suplicar, Ele atenderá a sua súplica, e
quem tratá-lo com rigidez, estará se expondo à perdição. Em
sexto lugar vêm os empregados. Destes também devemos ter
pena e não exigir deles além de suas capacidades. (...) Em
sétimo lugar vêm os animais (Disponível em:
http://www.alcorao.com.br/).
110
Na ordem da misericórdia divina, pessoas com deficiência e pobres
estão numa situação não muito confortável. O que pensar dos indivíduos
pobres e deficientes?
Como empregado, o muçulmano não é visto segundo o Alcorão como
muito capaz, mas, como pessoa limitada do ponto de vista de suas habilidades
e potencialidades; um ser digno de pena do qual não pode se esperar muito. E,
se, além disto, for marcado pela deficiência, então, é duplamente digno da
misericórdia dos demais, pois como ser defeituoso, é constantemente
humilhado pelo problema que possui.
Como se percebe um olhar de grande preconceito perpassa as idéias
muçulmanas sobre a pessoa com deficiência desde épocas mais distantes.
Assim, é possível atentar para o fato que toda a Idade Média, seja com os
árabes, romanos ou germanos dentre outros, o fato é que o período medieval
teve suas marcas e entre elas destaca-se a forte influência da religiosidade
(islamismo, cristianismo ou catolicismo), fortalecidos e assumidos pelo Estado
que se fez cada vez mais presente nestas sociedades.
3.2.4. As Influências Cristãs e a questão da Deficiência
Durante maior parte de sua história, os romanos mantiveram a crença
em vários deuses. A partir de seu contato com os gregos, reforçaram ainda
mais suas idéias sobre as inúmeras divindades. Mas, além das influências
gregas, os romanos incorporaram outros cultos, como os orientais os
provenientes da Pérsia.
Com as várias invasões sofridas, os romanos aprenderam a incorporar
divindades de outros povos ou aceitar livremente cultos diferentes dos seus.
Mas, com o cristianismo os romanos viveram uma situação uma tanto diferente,
pois os cultos professados pelos cristãos começaram a assustar o poder
romano.
Os cristãos faziam reuniões secretas e desrespeitavam a hierarquia
social, rompendo decisivamente com a tradição romana, o que de certa forma,
passou a preocupar os imperadores.
Assim, teve início uma série de perseguições que, para alguns
historiadores, começaram no século I, com a figura de Jesus Cristo, que se
111
apresentava como rei dos judeus. Dentre outras razões, este grande líder foi
morto pela pena máxima da época, a crucificação.
Desde então, muitos cristãos foram presos, queimados vivos ou
usados para proporcionar diversão nas arenas, onde eram comidos por leões
famintos. Mas, a firmeza destes seguidores do Cristo atraia novos adeptos e
não intimidava o movimento.
A nova crença se difundiu principalmente entre as camadas mais
pobres da população. Pobres, oprimidos e escravos foram em particular
atraídos por esta nova doutrina que defendia que o valor das pessoas não
dependia de sua posição social de nascimento, ou seja, sua classe social. Aos
poucos, as idéias cristãs se disseminaram por todos os grupos sociais e por
todas as regiões do Império Romano, até se transformar na religião oficial.
No que diz respeito à pessoa com deficiência foram muitas as
repercussões das influências cristãs, desde seu nascedouro. Enquanto o
mundo vivia ainda pautado no ideal de perfeição divina e humana, o
cristianismo pregava a aceitação de todas as pessoas, independente de sua
aparência, posição social ou de seu comportamento. A mesma lógica utilizou
para se dirigir a ricos e pobres. Enquanto os líderes religiosos de seu tempo
serviam aos mais privilegiados, filhos da aristocracia, a mensagem de Jesus
voltava-se para os mais pobres, discriminados, doentes e deficientes.
Naquela época para pessoas com deficiência ricas, os sacerdotes
assumiam a responsabilidade em empreender esforços em busca da cura.
Mas, para os mais humildes, nenhuma atenção era dada.
Neste contexto, onde a deficiência é vista como uma enfermidade sem
cura para os mais pobres, o novo rabino representou mudanças importantes;
esperanças renovadas e mesmo após sua morte, as suas idéias foram
divulgadas, ainda com maior fervor. A presença de um novo líder religioso que
não servia às classes privilegiadas como era o costume da época, nem
cobrava pagamento por isso ou oferenda no templo não surpreende apenas os
vitimados, mas também os poderosos.
Uma grande demanda, sem recursos financeiros para buscar o
tratamento e a cura, especialmente nos templos se encontra agora em
movimento por todos os lugares onde o novo mensageiro dos céus e,
posteriormente, seus seguidores fazem suas pregações e intervenções. Os
112
registros bíblicos atestam a busca desenfreada de uma grande massa de
famílias de pessoas com deficiência ou deles próprios em Jerusalém e cidades
vizinhas.
Segundo os Evangelhos
60
, registrados na Bíblia Sagrada (mais
especificamente no Novo Testamento), Jesus curou inúmeros deficientes que
viviam esmolando nas ruas de Jerusalém. Estas curas, denominadas nos
evangelhos como milagres somaram em torno de quarenta e, de acordo com
nossas análises, pelo menos vinte e uma são relacionados às pessoas com os
mais variados tipos de deficiências ou doenças crônicas, conforme vê-se no
quadro a seguir:
60
A expressão surgiu com o cristianismo e significava boas novas, ou boas notícias, uma
referência à mensagem cristã. Desde Justino no ano 150 começou a ser dado o nome de
evangelhos aos livros que contivessem a mensagem do evangelho, ou mais genericamente,
narrassem qualquer atitude de Jesus Cristo ou elencassem seus ensinamentos (Disponível em:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Evangelho).
113
Deficiências ou doenças
61
curadas por
Jesus
Fonte/
Livro bíblico pesquisado
Cegueira
João 9:1-7; Marcos 8:22-26; Marcos 10:46;
Mateus 20:29-34; Mateus 9:27-31; Mateus
12:22.
Epilepsia
Lucas 9:37-43.
Deficiência auditiva (Surdez)
Marcos 7:31-37; Marcos 9:16-26; Mateus
12:22; Marcos 7:31-37.
Deficiência física
Lucas 13:11-13; Lucas 6:6; Mateus 8:5; Lucas
14:1-6; Mateus 12:9-13; Marcos 3:1-6;Lucas
6:6-11; Mateus 9:1-8; João 5:5-9; Marcos 2:1-
12; Lucas 5:17-26.
Hanseníase
Mateus 8:1-4; Lucas 5:12-14; Lucas,17:13-14.
Hidropsia
62
Marcos 1:4.
Catalepsia
Mateus, 9:18-26.
Doenças mentais
Mateus, 8:16-17; Lucas 8:41-.
Deficiências Múltiplas
Lucas 8:35-43; Mateus 9:32-34.
Outras doenças e deficiências não
identificadas
Mateus, 8:14-15; Mateus 15:29-31, Lucas, 8:
40-43; Lucas, 7: 1-5; Lucas, 8:27.
Quadro 1: Milagres e deficiências.
Fonte: Criado a partir dos Evangelhos contidos no Novo Testamento.
61
É evidente que tais deficiências ou doenças não eram assim nomeadas, portanto, não as
encontraremos com os termos utilizados acima. Os cegos são o único caso em que a definição
permanece. Os demais, no entanto, sofreram modificações ao longo do tempo. Os deficientes
auditivos ou surdos são nomeados nos livros blicos como surdos-mudos ou tão somente
mudos; os hansenianos são chamados de leprosos; os deficientes físicos de paralíticos; os
doentes mentais ou deficientes mentais são identificados como endemoniados, podendo
acontecer o mesmo com os epiléticos; a catalepsia, por vezes, é confundida com a própria
morte.
62
A hidropisia se caracteriza pelo derramamento de líquido seroso em tecidos ou em cavidade
do corpo; acumulação de serosidade de origem não inflamatória, numa cavidade natural do
corpo ou do tecido celular (HOUAISS, 2001, p. 1529).
114
O que se constata a partir da análise criteriosa das passagens bíblicas
sobre as curas realizadas junto aos indivíduos doentes ou possuidores de
deficiências, é que em sua grande maioria tratava-se de pessoas muito pobres
que vivam perambulando pelas ruas e sobrevivendo de esmolas dos
transeuntes. Com isso, temos um panorama da situação em que viviam os
indivíduos vitimados por deficiências e doenças de todas as ordens, sobretudo,
oriundos das classes mais pobres.
Parece haver entre os mais pobres a evidencia maior de problemas
mentais, sejam deficiências ou doenças, e nestes casos também um temor
maior por parte da população. Estas pessoas vítimas de problemas de
natureza mental, certamente ainda pouco conhecido e permeado por
misticismos, são comumente associadas a presença de demônios.
Em sua grande maioria o viviam junto às famílias e habitavam os
locais mais escusos, como os sepulcros.
E quando desceu para terra saiu-lhe ao encontro, vindo da
cidade, um homem que desde muito tempo estava possesso de
demônios, e não andava vestido, nem habitava em qualquer
casa, mas nos sepulcros (LUCAS, 8: 27).
Em Mateus (cap. 8:28) também identifica-se outro exemplo dessa
prática junto aos deficientes ou doentes mentais:
E, tendo chegado ao outro lado, à província dos gadarenos,
saíram-lhe ao encontro dois endemoniados, vindos dos
sepulcros; tão ferozes que ninguém podia passar por aquele
caminho. E, eis que clamaram, dizendo: que temos nós contigo,
Jesus, filho de deus?
Em outros relatos contamos com a presença de familiares ou amigos
junto aos parentes com deficiência, e nestas ocasiões, identifica-se uma
situação sócio-econômica diferenciada, confirmada pela forma como os
mesmos foram transportados até o local onde se encontrava Jesus ou por
indicação do cargo e função social exercida pelo parente ou amigo ilustre.
Nestas ocasiões, a pessoa com deficiência não vivia a esmolar, mas possuía
casa, roupas, etc.
115
E aconteceu que, quando voltou Jesus, a multidão o recebeu,
porque todos o estavam esperando. E eis que chegou um
homem de nome Jairo, que era príncipe da sinagoga; e,
prostrando-se aos pés de Jesus, rogava-lhe que entrasse em
sua casa; porque tinha uma filha única, quase de doze anos, que
estava à morte (LUCAS, 8: 40-42) (grifos nossos).
E ainda:
E, depois de concluir todos estes discursos perante o povo,
entrou em Cafarnaum. E o servo de um certo centurião, a quem
muito estimava estava doente, e moribundo. E, quando ouviu
falar de Jesus enviou-lhe uns anciãos dos judeus, rogando-lhe
que viesse curar o seu servo. E, chegando eles junto de Jesus,
rogaram-lhe muito, dizendo: É digno de que lhe concedas isto,
porque ama a nossa nação, e ele mesmo nos edificou a
sinagoga (LUCAS, 7:1-5).
É possível que entre os milagres apresentados, alguns não fossem
exatamente conforme a descrição, pois a falta de conhecimento sobre o
assunto e o medo que doenças e deficiências provocavam nas pessoas era
avassalador, sobretudo as mentais. Estas questões, evidentemente, envolvem
a educação da época, o misticismo, etc. De toda forma, as práticas e idéias
cristãs não cessaram com a morte de Jesus, e acabaram influenciando toda
uma época e culminam com a ascendência do cristianismo primitivo.
De toda forma, por toda a época Medieval, talvez como herança da
Antiguidade ou ainda reforçada pelo cristianismo, a religiosidade exerce grande
influência sobre a formação, costumes e práticas desenvolvidas junto aos
grupos humanos e encontra no mundo medieval o terreno fértil para se
estabelecer. Talvez, em razão disto, os grandes imperadores e também os
líderes religiosos foram encontrando razões para unirem-se em prol da
manutenção do poder. Com o tempo, o próprio cristianismo incorpora valores
aristocráticos e os aristocratas se tornam cristãos.
Por outro lado, é bom que se ressalte que as autoridades romanas
sempre haviam sido tolerantes com as religiões de outros povos, inclusive
bárbaros, embora tivesse na religião imperial, com o culto voltado para o
imperador, “enfatizando a lealdade à pátria, a unidade da civilização romana e
a supremacia de seus valores”, o centro da ética romana (JAGUARIBE, 2001,
p. 420). Mas, o cristianismo apresentava características que pareciam
116
suspeitas e ameaçadoras ao império e enquanto foi possível, o império resistiu
e provocou verdadeiras chacinas.
Com o imperador Nero tiveram início as perseguições aos cristãos. Por
isso, durante muito tempo, as autoridades romanas perseguiram os adeptos do
cristianismo. Diocleciano, no século II também tinha investido muito nisso, mas,
os resultados demonstravam que não era possível erradicar a nova crença nem
impedir sua difusão gradual.
Segundo Jaguaribe: “os cristãos (...) representavam uma oposição
interna ao Estado e, em muitos casos, à civilização e à ordem social de Roma
(...) consideravam o Império uma instituição satânica” (op. Cit, p. 421).
Diante disto, o cristianismo começou lentamente, especialmente com
os discípulos, seguidores diretos de Jesus e, mais tarde com os trabalhos de
Paulo
63
, mas aos poucos se tornou um movimento sócio-religioso importante e
em seguida, assume o status de religião oficial, com a conversão de
Constantino, então, imperador romano, no século III.
Os historiadores discutem se a conversão do imperador teria sido
verdadeira ou politicamente motivada. Há, os que acreditam que o cristianismo
pareceu ao imperador e demais membros do império como o instrumento pelo
qual seria possível revitalizar o poder, já tão desgastado.
Assim em 313, o imperador assinou o Edito de Milão concedendo
liberdade religiosa aos cristãos, e em 391, Teodósio reconhece o cristianismo
como religião oficial e que se pretende também universal (de onde deriva a
expressão católica).
3.3. Educação, Religião e Classe Social na Idade Média
A igreja era a mais importante instituição do mundo medieval, inclusive
do ponto de vista educacional, tendo seu poder legitimado pelo Estado. Os
63
Paulo de Tarso é considerado por muitos cristãos como o mais importante discípulo e,
depois de Jesus, a figura mais importante no desenvolvimento do Cristianismo nascente. Paulo
era um homem culto, freqüentou uma escola em Jerusalém, tinha feito uma carreira no Templo
(era Fariseu), onde foi sacerdote.
117
membros mais elevados de sua hierarquia eram recrutados entre os nobres.
Mas, inicialmente, as relações entre a Europa Cristã e o Mundo Islâmico eram
muito violentas.
Os muçulmanos eram bem sucedidos no comércio e para manter o
mesmo cada vez mais promissor necessitaram invadir as cidades européias,
saqueá-las e se apossar do butim
64
. Uma das conquistas árabes foi a
conversão dos turcos otamanos. Estes, por sua vez, asseguraram o poder
central e estenderam suas conquistas, alcançando mais tarde a capital do
Império Bizantino, Constantinopla. Assim, as populações das cidades da
Europa fugiam para o campo, favorecendo a ruralização e a feudalização da
economia.
Segundo Aquino et all:
A expansão árabe muito repercutiu sobre a Europa Ocidental:
durante séculos a Europa gravitara em torno do Mediterrâneo
que se tornou muçulmano e inseguro devido às incursões de
piratas muçulmanos o comércio decaiu, a vida urbana quase
se extinguiu e se tornou rural; daí, a terra passar a ser a fonte de
riquezas (1980, p. 388).
Nestas invasões, os que ficavam sob o domínio dos muçulmanos
acabavam se convertendo ao Islamismo, embora a cultura islâmica fosse
cosmopolita, ou seja, possibilitava que judeus e cristãos convivessem
pacificamente. Dessa forma, os muçulmanos alcançaram a hegemonia no
mediterrâneo durante o século VII e VIII.
Do ponto de vista cultural, não fora diferente, o império, especialmente
em Bagdá, produzia muito estabelecendo uma síntese entre o pensamento
grego e hindu. Contava com universidades, escolas de medicina e astronomia,
além de física, geografia e matemática.
As artes também eram bastante estimuladas e a tradução de livros de
Platão e Aristóteles para o Árabe era comum. Enquanto isso, na Europa
Ocidental a tradição era cada vez mais forte e imprimia as marcas do novo
64
Butim é o proveito, o lucro obtido através de uma batalha ou uma guerra. É, portanto, o
conjunto de bens materiais e de escravos ou prisioneiros que se toma do inimigo no curso de
um ataque, batalha ou guerra (HOUAISS, 2001, p. 535).
118
modo de produção e de vida do povo, especialmente marcados pelos efeitos
da expansão muçulmana, sobretudo a partir do século IX.
A sociedade medieval desenvolveu-se de maneira essencialmente
aristocrática, formada pela realeza, o clero, a alta e a pequena nobreza e, por
fim, pelos servos. Mas, nenhum outro grupo foi o decisivo para a Civilização
Medieval quanto a Igreja, principalmente a Igreja Católica Romana, grande
mentora e dominadora do saber necessário ao homem, pois fora de seus
princípios, tudo era considerado heresia.
Do ponto de vista ideológico, a igreja colocava-se como a única
intermediária entre a humanidade e deus. Mas, não se limitava a tratar dos
assuntos espirituais. Ao longo dos tempos, a igreja tornou-se possuidora de
grande patrimônio e recebeu muitas doações daqueles que queriam ser libertos
da condenação divina ou que possuíam filhos deficientes, pois a igreja se
encarregava de recolhê-los em troca de pagamentos sob forma de terras,
servos, ou outros bens: as famosas indulgências.
Era prática comum a venda ou troca de indulgências para cidadãos
como garantia de salvação ou perdão dos pecados cometidos. Estas
indulgências serviam diretamente para a criação de orfanatos, asilos ou abrigos
voltados para o recebimento dos mais necessitados, especialmente indivíduos
pobres vitimados por doenças ou deficiências. Dessa forma, instalou-se ainda
que de maneira embrionária, o caráter assistencialista para com pessoas com
deficiência, que vislumbramos ainda na contemporaneidade.
Dessa forma, numa sociedade de iletrados, a igreja mantinha o
controle absoluto do saber erudito, portanto, do poder e também da riqueza e
ainda podia dar continuidade a sua obra de caridade, a partir destes recursos,
conquistando espaço, também entre os miseráveis.
Num primeiro momento ou na alta idade média, uma enorme
dependência do clero para se conseguir uma formação intelectual; as ações
educativas ficam restritas aos padres e monges; mas no período seguinte, ou
seja, na baixa idade média, marcada pelo renascimento carolíngio, esses
dogmas são questionados e novas idéias começam a surgir, principalmente
com a criação das Universidades, a partir do século XII.
No que se refere à escola, a principal expressão da Idade Média o
as escolas episcopais e os mosteiros. As primeiras eram assim chamadas
119
porque funcionavam junto de uma catedral. Foram muito comuns no século VI,
eram freqüentadas praticamente por clérigos, com forte disciplina e
multiplicaram-se na época de Carlos Magno.
Os mosteiros, por sua vez, eram construções que mais pareciam
cidades, pois contavam com bibliotecas, igrejas e inúmeros quartos para
abrigar os alunos, no caso, os monges. Estes eram religiosos que optavam por
viver longe da vida mundana, dedicando-se ao estudo das obras religiosas,
além de latim, teologia e filosofia. Muitos monges dedicavam-se a cópia de
obras antigas.
No interior dos mosteiros também ocorria divisão em classes. Os mais
abastados se dedicavam a vida espiritual, enquanto os de menos posses, sem
condições de estudar, se dedicavam a vida religiosa, mas em geral,
trabalhavam no campo, na cozinha, ou na limpeza.
Ainda é bom considerar que seu empenho em impor sua unidade
religiosa não foi conquistado somente com base na propagação de seu
evangelho. Instrumentos repressivos como a Inquisição e as Cruzadas
também foram amplamente utilizados para manter a Igreja romana como a
única instituição detentora das crenças do homem.
Neste sentido, vale recordar o papel que teve as famosas Cruzadas
no contexto das pessoas com deficiência. As Cruzadas que tiveram seu início
desde o culo XI, quando o Papa Urbano II, defendendo os interesses da
Igreja na Palestina, incitou as populações européias a libertarem os lugares
santos das mãos de Satanás, foi um importante instrumento de perseguição
adotado pela Igreja durante o período medieval. E, a deficiência integrou o rol
de suas preocupações.
Segundo Aquino et all (1980), um dos interesses mais antigos da
Igreja é refazer sua unidade religiosa, rompida desde a cisma do Oriente, em
1054, e este objetivo foi suficiente para as cruzadas
65
. Evidentemente, a fusão
65
Atendendo ao apelo do papa Urbano II, em 1095, foram organizadas na Europa expedições
militares conhecidas como cruzadas (esses missionários assim se chamavam pela cruz de
pano que levavam na veste), cujo objetivo oficial era conquistar os lugares sagrados do
cristianismo (Jerusalém, por exemplo) que estavam em poder dos muçulmanos e turcos.
Entretanto, além da questão religiosa, outras causas motivaram as cruzadas: a mentalidade
guerreira da nobreza feudal, canalizada pela Igreja contra inimigos externos do cristianismo (os
muçulmanos); e o interesse econômico de dominar importantes cidades comerciais do Oriente.
Os cristãos eram estimulados pelas indulgências que lhes prometiam o perdão dos pecados e
a posse do céu. De 1095 a 1270, a cristandade européia organizou oito cruzadas, tendo como
120
entre as igrejas não teria sido o único elemento a motivar práticas tão
marcantes durante a era medieval, mas ajudaram bastante para legitimar estas
ações.
As famosas e inúmeras Cruzadas se estenderam até o século XIII e
levaram milhares de pessoas a se deslocar para outras regiões. Sem dúvida
alguma, que a questão religiosa influenciou bastante na realização deste
movimento, havendo cruzados motivados unicamente pela questão religiosa de
unificação da Igreja e seguidor de Cristo. Mas, existiam outros interesses
igualmente motivadores e que campeou inúmeros homens para sua efetivação.
Tais interesses dirigidos principalmente pelos grandes proprietários de terras
os senhores feudais mas, orquestrados pela Igreja, tinham a intenção clara
de conquistar terras e o butim daí advindo.
Diante disto, o agravamento do “crescimento demográfico da
população ocidental e a persistência do direito de primogenitura, em virtude do
qual o filho mais velho herdava as terras e títulos paternos”, agravavam
essas guerras, especialmente se este filho fosse pessoa com deficiência, tendo
em vista que suas posses passariam às mãos do Estado.
Ainda contribuindo nesta direção, têm-se os interesses das cidades em
expandir o comércio com o Oriente próximo. Evidentemente, o envio de
cruzados para outras terras favorecia a ampliação das relações mercantis entre
estas regiões e os feudos, mas também a Igreja teria a ganhar ao se utilizar
desses guerreiros em expedições a regiões fora do controle do Papado
(AQUINO ET ALL, 1980, p. 396).
É bom ressaltar que também no entendimento deste episódio histórico
faz-se necessário destacar a questão de classe. Para as Cruzadas, duas
classes estiveram diretamente envolvidas. De um lado, os mais ricos (senhores
feudais e membros da Igreja) que se beneficiavam das conquistas dos
cruzados, especialmente com o conjunto de bens materiais e escravos que
estes traziam para sustentar o luxo dos nobres. Por outro lado, tinham os mais
bandeira promover guerra santa contra os infiéis. Era a guerra santa, justa, pois eles estavam
difamando o santo sepulcro, a terra santa. Foram, ao todo, oito grandes incursões. Vemos a
Cruzada Popular ou dos Mendigos (1096), Primeira Cruzada (1096-1099), Segunda Cruzada
(1147-1149), Terceira Cruzada (1189-1192), Quarta Cruzada (1202-1204), Cruzada Albigense,
Quinta Cruzada (1217-1221), Sexta Cruzada (1228-1229), Sétima Cruzada (1248-1250), em
março de 1270, o rei Luís IX, São Luís, decide organizar uma nova cruzada - Oitava Cruzada
(1270), a qual fracassa e ele morre em combate (SOUZA, 2006).
121
pobres que nada possuíam e podiam entregar-se em busca de novas terras,
arriscando inclusive suas próprias vidas, em busca de oportunidades de
trabalho e de salvação. Evidentemente que nem sempre obtinham êxito em
suas empreitadas, pois muitas foram as derrotas dos cruzados.
A autoridade da Igreja foi reforçada porque o clero constituía os únicos
intelectuais, controlando assim a educação; monopolizando o saber e
dominando o ensino. Assim, reis podiam ser tão iletrados quanto os servos,
mas tinham perto de si representantes da Igreja os quais lhes serviam de
secretários, preceptores ou mentores.
A Igreja passou a regularizar outras esferas da vida social, instituindo,
por exemplo, o casamento, a caridade (assistência), os castigos lembrar
a Inquisição), e a a pena de morte para os que divergiam de suas
orientações.
É interessante lembrar que a distinção de classe permanece durante
toda a Idade Média e, principalmente no mundo eclesiástico. Mesmo entre os
monges havia uma hierarquia claramente definida.
Em geral, os monges advinham das classes mais abastadas da
sociedade medieval; eram filhos de senhores feudais, mas, muito raramente,
quando estes eram oriundos de senhores em declínio econômico, - sem
condições de pagar pela educação e por isso, optavam pela vida religiosa para
ter um lugar onde morar -, sua função no interior dos monastérios voltava-se
para a realização dos trabalhos manuais e, conseqüentemente, a instrução
recebida tinha por objetivo “familiarizá-los com as doutrinas cristãs, mantendo-
os dóceis e conformados” (SOUZA, 2006, p. 67).
Para Ponce:
Dentro dos monastérios, tidos por alguns autores como um
modelo de vida perfeita, a divisão em classes continuava
existindo, sem qualquer modificação; de um lado os monges,
dedicados ao culto e ao estudo, do outro, os escravos, os servos
e os conversos, destinados ao trabalho (1991, p. 99).
Dessa forma, os mosteiros assumem o monopólio do conhecimento e,
por isso, os homens mais instruídos pertenciam à Igreja e toda educação
formal também. Entretanto, tal monopólio não durou para sempre. Com o
império carolíngio, se desenham algumas reformas importantes no mundo
122
medieval. Estas foram motivadas especialmente pelas mudanças que se
processaram no comércio e na própria urbanização.
É bom lembrar que paralelo ao processo de “enfeudação”, a Igreja
também se “enfeudou” e assumiu o poder mais alto que dominou todo o mundo
feudal - a autoridade máxima - pois detinha a maior parte das forças
produtivas: as terras.
Neste contexto, a educação assume características diferenciadas
dependendo da classe a qual se destina. Assim, para os nobres deveria seguir
alguns costumes: o primeiro filho de um nobre herdaria o feudo, enquanto o
segundo deveria seguir carreira eclesiástica. Logo, os primeiros deveriam
permanecer nos feudos para os aprendizados práticos, enquanto o segundo
deveriam ser enviados para os mosteiros. No entanto, para os vassalos, a
educação visa o aperfeiçoamento físico e ao adestramento militar, se
enfatizando o manejo de armas, a arte de cavalgar e as caçadas. Ainda para
os servos, nenhuma educação era necessária, pois os mesmos necessitavam
apenas da força física para arar, semear e colher nas lavouras do senhor
feudal.
Evidentemente, a pessoa com deficiência, dependendo da classe de
origem poderia receber cuidados e até educação, ou do contrário, mendigar ou
depender das obras de caridade investidas pela igreja. Foi certamente com o
advento do cristianismo que a Igreja conheceu o seu apogeu, pois neste
sentido, verifica-se uma profunda revolução cultural, talvez a mais profunda,
pois encerrou mudanças políticas, culturais, econômicas, institucionais, etc.
Para Cambi:
Nessa revolução, sobre a qual insistiram desde as origens os
Apologistas e os padres da Igreja, depois os grandes intérpretes
do cristianismo até a modernidade (...), delineou-se também uma
mudança igualmente radical no campo educativo:
transformam-se as agências educativas (como a família), uma se
torna mais central que as outras (a Igreja), toda a sociedade
enquanto religiosamente orientada torna-se educadora; mas
mudam também os ideais formativos Paidéia clássica
contrapõe-se a paidéia christiana, centrada na figura do Cristo) e
os próprios processos de teorização pedagógica, que se
orientam e se regulam segundo o princípio religioso e teológico
(e não segundo o antropológico e teorético). A revolução do
cristianismo é também uma revolução pedagógica e educativa,
que durante muito tempo irá marcar o Ocidente, constituindo
123
uma das suas complexas, mas fundamentais, matrizes (CAMBI,
1999, p. 123).
A tradição cristã abriu, portanto, uma nova perspectiva à educação
formal. Nos primórdios, podem-se observar as ações dos padres da Igreja e
dos monges, cujos trabalhos se desenvolviam nos mosteiros ou nas escolas
episcopais. Estes são considerados por Cambi (1999) como a estrutura
educativa que mais influenciou o ocidente. Foi um lugar de formação baseado
no princípio da ascese - necessário para purgar e disciplinar a vida interior das
tormentas das paixões e submetê-la a fé.
Com a expansão do comércio surgiram várias cidades ao longo de
suas rotas e com elas um crescimento econômico e cultural, o que foi
paulatinamente enfraquecendo o sistema feudal. Os senhores feudais, por sua
vez, procuraram de todas as formas desacelerarem este movimento, mas, os
grupos de pessoas com interesse comuns (artesãos e educadores, por
exemplo) se organizaram em corporações que tinham por objetivo lutar contra
as autoridades civis ou eclesiásticas.
É bom lembrar que os comerciantes e artesãos, antes excluídos da
salvação eterna por Santo Agostinho, pois não atendiam aos desejos divinos
de afastarem-se das coisas mundanas, tiveram seus ideais parcialmente
atendidos com a síntese teológica de São Tomás de Aquino, conciliando e
razão e dando ao homem o livre-arbítrio.
3.4. A Pessoa com Deficiência nas Civilizações Medievais: (Pré) Conceitos
e Práticas Educativas
Até início do culo XIV, quase todo o ensino estava sob o controle da
Igreja e era voltado para o ingresso na vida religiosa. A língua utilizada para
transmitir os ensinamentos era o latim, falado pelos integrantes do clero.
Nesse sentido, o Estado também favoreceu esta supremacia da Igreja,
especialmente durante o Império Carolíngio, quando Carlos Magno estimulou a
renovação cultural do reino, atraindo para a corte, sábios de diversas partes do
mundo, mas contanto especialmente com o apoio da Igreja na condução deste
processo. O mesmo ocorreu com outros imperadores e até mesmo quando
este império foi dissolvido em diversos reinos.
124
Para Le Goff, na Idade Média:
(...) a cidade é uma sociedade abundante, concentrada em um
pequeno espaço, um lugar de produção e de trocas em que se
mesclam o artesanato e o comércio, alimentados por uma
economia monetária (LE GOFF, 1998, p. 25).
De modo geral, foram os letrados da Idade Média que de posse da
grande benevolência pregada pela igreja, assumiram incluir no debate sobre a
natureza do homem, alguns aspectos de sua conduta como aceitáveis ou não.
Neste contexto, a questão da humanidade do ser também foi motivo de muitas
discussões, e as deficiências transitaram entre a normalidade e anormalidade
tendo a questão de classe como requisito básico.
Falar, enxergar ou coordenar os pensamentos e expressá-los com
coerência, dentre outras habilidades, passou a ser atributo do humano de
acordo com os preceitos religiosos da época medieval. Assim, qualquer
comportamento contrário a isto poderia ser alvo de perseguição e exclusão.
Entretanto, são os mesmos preceitos religiosos que contraditoriamente abrirão
perspectivas de inclusão da pessoa com deficiência.
Por influência do voto de silêncio, o surdo passou de um ser perigoso
ou suspeito a indivíduo passível de possuir uma alma que poderia manifestar-
se de forma gestual. À medida que os monges criaram e desenvolveram
estratégias de comunicação através das quais o uso da fala deixou de ser
determinante para a consideração do ser humano, tais reflexões e práticas
puderam alcançar pessoas com deficiência auditiva. Se os monges mesmo
calando-se diante do mundo, mantiveram sua humanidade e aumentaram a
espiritualidade porque nos sujeitos privados da audição e, conseqüentemente
da fala, não poderia acontecer algo semelhante?
Por outro lado, é bom que se considere que somente crianças e jovens
ricos tiveram chances de se beneficiar destas práticas e puderam ser educadas
e até instruídas por religiosos.
De acordo com Berthier (1984) são vários os registros de tentativas
para instruir e educar o surdo na Idade Média, mas todas são tentativas
isoladas de pais de crianças surdas com formação em medicina ou ainda de
125
religiosos a quem surdos foram confiados. Em todos os casos, não foram os
filhos do povo que tiveram suas histórias modificadas pela ação educativa.
Para a maioria dos surdos pobres da Antiguidade ou Idade Média:
A infortunada criança era prontamente asfixiada ou tinha sua
garganta cortada ou era lançada de um precipício para dentro
das ondas. Era uma traição poupar uma criatura de quem a
nação nada poderia esperar (BERTHIER, 1984, p. 165).
Sobre a deficiência mental, podemos afirmar que nos textos de
Medicina da época pouco ou nada consta sobre a questão. Parece que os
médicos teriam evitado o que era incurável, deixando toda a intervenção a
cargo das influências caritativas do Cristianismo, do Judaísmo ou do
Islamismo. Assim, os abrigos criados a partir da distribuição das indulgências
foram os refúgios para esta demanda. Evidentemente, as práticas
desenvolvidas nestes locais estiveram ainda distantes do que se entende por
escolarização nos dias atuais. As práticas educativas se situavam muito mais
no confinamento de seres estranhos e indesejáveis ao restante da sociedade.
Foi uma época de muito abandono e exclusão social onde a única
forma de ação assistencialista tinha na religiosidade a grande parceira. Nasce
neste período o papel dos intercessores divinos junto às pessoas,
especialmente junto aos com indivíduos com perturbações no desenvolvimento
ou deficientes mentais. Foi atribuída a vários Santos e Santas a proteção e
cura dos deficientes mentais, físicos, visuais e auditivos.
Dessa forma, Santa Dinfna de Gheel tornou-se a Padroeira dos
Deficientes Mentais, tendo esta relação sido estabelecida em virtude da sua
morte às mãos de um depravado, provavelmente doente Mental, seu pai. Foi
precisamente através do seu culto, na Bélgica, que ao longo de seiscentos
anos, se foi estabelecendo uma comunidade aberta, orientada para o
envolvimento familiar e que proporcionou uma forma de intervenção que
antecipavam muitos dos princípios da normalização que veremos mais adiante.
Na mesma direção, surgiu o culto a Nossa Senhora dos Desprotegidos
no século XV, quando foi fundada a Confraria dos Inocentes. É desta época
também a instituição do São Nicolau, que embora seja hoje associado somente
ao papai Noel, durante o Natal cristão, chegou a ser o patrono das crianças
126
com perturbações do desenvolvimento, ou seja, as doentes e deficientes
mentais.
Além da instituição dos santos protetores, destacamos o trabalho dos
doutores da Igreja cristã, especialmente Santo Agostinho, Santo Ambrósio, São
Jerônimo e São Tomás de Aquino na fixação dos dogmas e da moral da Igreja,
ingredientes fundamentais para sua difusão.
Estes autores cumpriram a missão de colocar os saberes da Igreja em
termos absolutos e inquestionáveis. Neste sentido, a Igreja Católica tratou de
oficializar uma única Bíblia para servir de base aos estudos teológicos. Assim,
ela se estruturou ideologicamente e construiu uma base sólida, especialmente
do ponto de vista econômico. Na produção destes eminentes nomes da Igreja
repousam muitas idéias sobre as deficiências humanas que o mundo medieval
deixou como herança para os séculos seguintes.
Nessa perspectiva, a ação da Igreja não se deu de maneira
desarticulada. A Igreja controlou o ensino durante a maior parte da Idade Média
e as escolas (episcopais ou mosteiros) tinham a obrigação de passar seus
conteúdos adiante.
Dessa forma, organizou o ensino em dois níveis: o elementar,
constando da aprendizagem da leitura, escrita e cálculo, e o superior que era
feito em dois ciclos: o Trivium
66
e o Quadrivium
67
. Segundo Aquino et all (1980,
p. 364):
(...) a tarefa assumida pela Igreja chegou ao apogeu depois
de séculos de esforços: o trabalho de organização da disciplina e
do culto da Igreja muito deveu ao papa Gregório, o Grande, ao
mesmo tempo que ao movimento monástico, iniciado por são
bento de Núrcia; e a elaboração da síntese teológica medieval
só se completou no século XIII com as obras de Santo Tomás de
Aquino, (...) que conciliando a fé e a razão defendeu que a
salvação do homem dependia de uma decisão racional do
próprio homem.
Graças à doutrina cristã, as pessoas com deficiência, assim como as
mulheres e as crianças tem seu status modificado; passaram a escapar do
abandono de que eram vítimas. Agora, possuidores de uma alma, ganham a
66
O Trivium compreendia o estudo de gramática, lógica e retórica.
67
O Quadrivium compreende o estudo de música, geometria, astronomia e aritmética.
127
humanidade como característica. É assim que passam a ser durante a Idade
Média, “les enfants du bom dieu”, expressão que segundo Pessotti:
(...) tanto implica a tolerância e a aceitação caritativa quanto
encobre a omissão e o desencanto de quem delega à divindade
a responsabilidade de prover e manter suas criaturas
(PESSOTTI, 1984, p. 4).
Para os mais pobres, vitimados por doenças, deficiências ou seqüelas
nos combates, a proliferação do sistema caritativo e a tendência ao
assistencialismo foram as principais marcas. Com as doações que recebia
constantemente em troca do perdão, a Igreja fundou e manteve várias
instituições voltadas para abrigar os excluídos: orfanatos, hospitais,
leprosários
68
, asilos, etc. eram cada vez mais comuns e neles a freqüência de
pessoas com deficiência passou a ser constante.
As deficiências e doenças de modo geral continuaram muito temidas,
mas dentre elas a lepra
69
(hanseníase) talvez tenha sido a que reuniu mais
preconceitos e medos. Talvez, a lepra tenha sido a primeira doença alvo de
preocupação social entre as diferentes civilizações. Certamente por que o
contágio era pouco (ou nada) conhecido e a sociedade atribuía-lhe uma origem
sexual, o pavor em torno da moléstia e especialmente, a exclusão social dos
leprosos (hansenianos) era constante e cruel.
Partindo desta idéia, os casos de lepra (ou suspeita) eram
denunciados às autoridades clericais que tratavam de excluir o doente,
afastando-o da sociedade. A lepra (hanseníase) era tida, portanto, como um
símbolo do pecado; um sinal visível de uma alma corroída pelo erro e, em
especial, pela transgressão sexual (LE GOFF, 1998).
Embora carente de informações sobre as doenças e deficiências, do
ponto de vista cultural, a Idade Média ao contrário do que se diz - foi uma
68
Leprosário estabelecimento, casa ou hospital destinado ao tratamento (ou simples
recolhimento) de pessoas vitimadas pela lepra (hanseníase).
69
Cabe considerar que esta expressão (lepra) não é mais utilizada na área médica; foi
substituída pelo termo hanseníase, considerado na atualidade mais adequado a descrição da
doença. A hanseníase é uma doença infecto-contagiosa causada pelo mycobacterium leprae
ou bacilo de Hansen, que se inicia, após uma incubação muito lenta, por pequenas manchas
despigmentadas onde a pele é insensível e não transpira, e evolui para a forma tuberculosa,
lepromatosa ou intermediária (HOUAISS, 2001, p. 1505).
128
época de discussões, sobretudo a respeito da educação, estando a origem das
universidades aí situada.
Assim, o apogeu da Igreja passa a ser francamente questionado com o
surgimento das corporações de mestres e alunos o que mais tarde
chamaram-se universidades.
Para Le Goff:
(...) a universidade encontrou na cidade o húmus e as
instituições. Isto é, de um lado, os mestres e os estudantes e, de
outro, as formas corporativas, que lhe permitiram existir,
funcionar e adquirir poder e prestígio. Uma universidade
completa constituía-se de quatro faculdades, aquilo que
conhecemos até um passado recente: as artes, que
chamaríamos de letras e ciências; a medicina; o direito, ou mais
exatamente os dois direitos civil e canônico e, a teologia.
Duas dessas quatro faculdades não impunham a seus membros
nem o celibato nem a abstenção do comércio. Eram o direito e a
medicina: os juristas e os médicos podiam casar-se, constitui
uma família e cobrar por seus serviços (1998, p. 62).
Funcionando como um grande centro de atividade intelectual, as
universidades começaram a ameaçar o dogmatismo da Igreja católica, mas
esta não se deixa intimidar. Para impor sua ordem e seus princípios passa a
punir todos os dissidentes, queimar os livros que desvirtuassem as pessoas
dos ensinamentos religiosos e também seus autores.
Ao mesmo tempo, a Igreja não poupou esforços para unir as pessoas
em torno da fé absoluta em deus e no cristianismo. Nesse sentido, os padres
da igreja foram os principais lutadores pela conversão dos pagãos e combate
as heresias. Os mais rebeldes pagaram com suas vidas, mas os conflitos não
cessaram com suas mortes. O momento é de inúmeras crises: demográfica,
institucional da Igreja e do Império, política, social e educacional.
A Igreja de fato não se limitou a regulamentar tão somente as
questões da vida eclesiástica, mas, também os demais componentes da vida
social, desde organização da família, casamentos, batismo, direitos e deveres
dos cônjuges, herança, dotes, testamentos, anulações, além da
regulamentação de atividades diversas, como as desenvolvidas pelas
universidades. Seu poder alcançou assim as diferentes esferas: social, política,
129
econômica, educacional. Mas, o se pode esquecer que desde o cisma do
Oriente as constantes crises internas do poder eclesiástico comprometeu o
poder da Igreja.
Documentos como o Dictatus Papae; a Reforma Gregoriana (ambos
do Papa Gregório VII); ou Penitência de Canosa (de Henrique IV) testemunham
estes conflitos.
70
A verdade é que, mesmo com uma força preponderante, a supremacia
da Igreja chega ao final da Baixa Idade Média enfraquecida. As transformações
ocorridas durante este período, com especial destaque para o desenvolvimento
da burguesia e a gradual afirmação das monarquias feudais romperam com o
absolutismo religioso. A crise entre os papas e os reis era freqüente,
culminando com o aprisionamento de um papa (Papa Bonifácio VIII) por um
monarca (Felipe, o belo, Rei da França), em 1302.
No século XIII estava definitivamente instalado o governo real,
desaparecendo as mais fortes expressões do feudalismo. Cada região
européia tratava de concatenar todos os elementos precisos à organização de
sua unidade política, mas a verdade é que os meios escassos de instrução não
permitiam uma existência intelectual mais avançada.
Os Estados que se levantavam, organizavam as suas construções à
sombra da Igreja, que tinha interesse em não dilatar os domínios da educação
individual, receosa de interpretações que não fossem propriamente dela. Os
pergaminhos custavam verdadeiras fortunas e o livro era dificilmente
encontrado.
Dessa forma, até o século XII as escolas se resumiam aos mosteiros,
onde os padres quase sem ocupação preocupavam-se tão somente dos
manuscritos mais antigos, e também da produção de outros para a
posteridade.
A ciência, se assim podia-se chamar, estava totalmente atrelada à
teologia, que se fazia senhora absoluta de todas as atividades do homem,
inclusive com poderes de vida e morte sobre as criaturas.
Estes problemas se arrastaram durante todo o século XIV, dividindo
grupos, fortalecendo lideranças, dividindo a Igreja que sempre buscou sua
70
Para compreender mais sobre estes conflitos, ver Aquino et all, 1980.
130
unidade. O exemplo mais caótico desta crise foi a eleição de dois Papas em
1378: Urbano VI e Clemente VII, os quais considerando-se legítimos, tiveram
sucessores respectivamente em Roma e Avignon.
Mais tarde, em 1409, também noutro concílio (de Pisa) mais um Papa
é eleito, Alexandre V (AQUINO ET ALL, 1980). Esta situação de divisão e
disputa no interior da Igreja faz nascer uma crescente oposição, além do
aumento das heresias e o fortalecimento de um movimento reformista intenso,
liderado por importantes representantes da escola eclesiástica, como: Lutero,
Melanchthon e Calvino (PESSOTTI, 1984).
Por alguns séculos, a Igreja se manteve como a maioria da minoria
intelectual, controlando assim, toda a educação ministrada. De início, os
mosteiros e, em seguida, novas ordens religiosas como os franciscanos,
dominicanos, beneditinos, etc., e finalmente as primeiras universidades. Mas,
viu crescer o interesse humano pelo questionamento, pela ciência,
distanciando o homem das explicações meramente religiosas.
Num espaço onde se concentravam muitas pessoas surge a
necessidade de produção intelectual crescente. Em todos os cantos, uma
“abertura para a sociedade”, que segundo Áries se justifica porque “a rua era a
sede central dos ofícios, da vida profissional e também dos falatórios, das
conversações, dos espetáculos e dos jogos” durante a época medieval (In:
CAMBI, 1999, p. 176).
Mas, certamente a grande inovação com achegada das Universidades
inaugura um conjunto de diferenças que envolverão o mundo em processo de
mudança no sentido da busca pelo conhecimento. Em 1088 é fundada em
Bolonha a primeira escola laica, que anos depois passou a ser a Universidade
de Bolonha. A ela se seguiram outras, como a de Paris (1170), de Coimbra
(1308) e de Oxford (1249), por exemplo.
Dos primórdios da Idade Média quando as ações educativas estavam
restritas aos padres da Igreja e aos monges, cujos trabalhos se desenvolviam
nos mosteiros não se pode imaginar que estas universidades tenham trilhado
caminhos tão distantes logo de início, mas, é evidente que a disseminação
destes ambientes de ensino teve também uma motivação prática, destacando o
ressurgimento urbano e comercial e a necessidade de certo número de
131
letrados para gerir os negócios públicos ou privados numa civilização em nítida
renovação.
O movimento da Reforma
71
é considerado o prelúdio da Modernidade
na Europa. Tal consideração ocorre porque tal movimento está totalmente
vinculado à liberdade política e ao capitalismo. A marca da Reforma é a
instauração da liberdade humana e parece ter alcançado toda a massa
populacional européia e não apenas as elites.
3.5. Da Divinização à Rejeição, uma questão de Classe Social
Durante a maior parte da Idade da Fé, nas diferentes civilizações
prevaleceu uma idéia sobre a pessoa com deficiência ainda dominada pelo
misticismo, mas, objetivamente expressa na distinção de classe. Não
duvidamos - conforme defendem Bueno & Ferreira (2003), Fonseca (1995),
Carvalho (1997) e tantos outros - que deste olhar místico emergiram duas
posturas distintas: uma de proteção e até divinização, e outra herdada de
períodos anteriores, de repulsa e rejeição.
No entanto, o que estes autores não reconhecem é que esta distinção
passa pelo crivo do pertencimento de classe. Se o deficiente é oriundo de uma
classe abastada, suas chances de sobrevivência, educação e,
conseqüentemente, de inserção social aumentam substancialmente, enquanto
que o mesmo não ocorre com relação aos deficientes oriundos de classes mais
desprotegidas economicamente.
De acordo com Ribas, as sociedades, muito mais que divididas entre
deficientes e não deficientes divide-se entre os que m a propriedade (neste
caso, das terras) e aqueles que trabalham. As pessoas deficientes, como todas
71
A Reforma Protestante foi um movimento religioso iniciado no século XVI por Martinho
Lutero, que através da publicação de 95 teses, protestou contra diversos pontos da doutrina da
Igreja Católica, propondo uma reforma do catolicismo. Os princípios fundamentais da Reforma
Protestante são conhecidos como os Cinco solas. Lutero foi apoiado por vários religiosos e
governantes europeus provocando uma revolução religiosa, iniciada na Alemanha, e
estendendo-se pela Suiça, França, Países Baixos, Reino Unido, Escandinávia e algumas
partes do Leste europeu, principalmente os Países Bálticos e a Hungria. A resposta da Igreja
Católica Romana foi o movimento conhecido como Contra-Reforma ou Reforma Católica,
iniciada no Concílio de Trento. O resultado da Reforma Protestante foi a divisão da chamada
Igreja do Ocidente entre os católicos romanos e os reformados ou protestantes, originando o
Protestantismo.
132
as outras se colocam num ou noutro grupo e sofrem as mesmas
conseqüências (1989, p. 80).
De acordo com Pessotti (1984), as pessoas com deficiência ganham
durante a Idade Média, o status de ser humano, mas paradoxalmente, é esta
posição que os condenam às cobranças que se farão daí por diante,
dependendo da classe que pertençam. Como cristãos, escapam do abandono
e da exposição (pregados por filósofos como Aristóteles, por exemplo), mas,
pela cristandade precisam ser verdadeiramente merecedores do amor divino,
tornando-se os filhos de deus, e para isto a um preço a ser pago.
Nesse sentido, a cristandade da pessoa com deficiência não deixa de
ser uma questão importantíssima para nossa análise, principalmente porque
são elas que vão explicar os castigos desenvolvidos contra os enfants du bom
Dieu
72
. Portanto, ao mesmo tempo em que, eles ganham chance de sobreviver,
inclusive com direito à alimentação, abrigo e cuidados; ganham também as
exigências éticas e religiosas formuladas pela Igreja e os castigos pelo não
cumprimento. Contraditoriamente, a mesma igreja que protege pode matá-los.
Mas, isto pode ser amenizado caso sua família possa pagar pelos seus
pecados, comprando assim, o perdão eterno.
Para Ribas:
No conjunto dos valores culturais que definem o indivíduo
normal, estão incluídos padrões de beleza e estética voltados
para um corpo esculturalmente bem formado. Aqueles que
fogem dos padrões, de certa forma, agridem a normalidade e se
colocam à parte da sociedade. (...) as pessoas estigmatizadas
são pessoas que, muito embora tenham sido criadas nesta
sociedade e nesta cultura, não são reconhecidas nem por esta
sociedade, nem por esta cultura. (...) estas pessoas são
sumariamente excluídos da sociedade (RIBAS, 1989, p.18).
Mas, para o autor este não é um processo automático. Pelo contrário,
é bem elaborado e construído a partir das condições objetiva da sociedade,
tendo a questão econômica papel central. Assim, a exclusão da pessoa com
deficiência vai assumindo formas diferenciadas, em razão dos interesses e
lutas que se travam entre os diferentes grupos no interior das sociedades.
Na Idade Média, a forma de exclusão encontrada para este grupo foi a
criação de instituições que garantissem à assistência destes. O primeiro abrigo
72
Esta expressão foi amplamente utilizada pela Igreja durante o período medieval.
133
para deficientes que se tem registro foi ainda no século XIII e era uma colônia
agrícola para deficientes construída sob a responsabilidade direta do arcebispo
de Milão, de nome Datheus.
Para Braverman apud Santiago (2003) a institucionalização a partir d
é cada vez mais crescente. Para ele esse movimento não representou
oportunidades de inclusão social para as pessoas com deficiência. Para ele:
O maciço aumento das instituições (...), das escolas e hospitais
de um lado, as prisões e manicômios de outro, representa não
precisamente o progresso da medicina, da educação ou da
prevenção do crime, mas a abertura do mercado para apenas os
economicamente ativos e em funcionamento na sociedade (apud
SANTIAGO, 2003, p. 31).
Seguindo a mesma lógica, em 1325 é escrita a primeira legislação que
versa sobre a sobrevivência deste grupo: a De Praerogativa regis
73
. Contudo,
cabe considerar que estas ações se destinaram a proteger os idiotas
74
ricos,
herdeiros ou proprietários de bens, que após a morte de seus tinham as
propriedades transferidas ao poder real, enquanto os idiotas pobres
permaneceram sem nenhuma proteção.
O De Praerogativa regis preocupa-se, portanto, com as razões
econômicas para acolher e cuidar dos indivíduos deficientes. Assim, o
deficiente agora merece sobreviver, e mesmo obter condições confortáveis de
vida, seja por ter alma, seja por ter bens ou direitos de herança (PESSOTTI,
1984, p. 5).
É mais provável, no entanto, que quer seja ação do Estado, quer seja
da Igreja, as práticas de proteção de pessoas com deficiência, ambas têm
antes motivações muito mais econômicas do que de qualquer outra ordem. Na
nossa visão, portanto, uma visão classista, pois a propriedade de terras, bens
ou escravos era a mercadoria de troca para suas vidas. Mas, e qual seria a
situação das inúmeras crianças e jovens com deficiência de classes pobres?
Nem teriam abrigo, nem proteção, nem alimentação, nem perdão, caso não se
adequassem aos padrões sociais estabelecidos especialmente pela Igreja
católica.
73
Documento publicado em 1325 por Eduardo II com o objetivo de destinar à Coroa os bens
dos deficientes (PESSOTTI, 1984).
74
Chamava-se idiota a pessoa com deficiência mental.
134
O fato é que as pessoas com deficiência em todas as épocas
encontraram grandes dificuldades para superar os limites impostos, levando
consigo toda a carga de preconceito que a sociedade constrói com relação a
sua condição de desvio. Portanto, há uma produção social da marginalidade
destes sujeitos, seja no seu abandono ou na sua segregação em instituições
caritativas, pois se estabelece previamente um limite muito estreito para sua
participação no interior da sociedade. O que acontece é que a deficiência se
enquadra no grupo das marginalidades produzidas pela ideologia da classe
dominante.
Em linhas gerais, para as pessoas portadoras de alguma deficiência,
as ações religiosas oscilaram da caridade à punição, conservando sempre esta
condição de estigmatização e, conseqüente, marginalização. A ação em defesa
de fracos e oprimidos, sobretudo, deficientes, teve muito mais de exclusão que
de inclusão, pois os asilos e abrigos de assistência social patenteadas pela
Igreja no período medieval, além da função explícita de cuidar destes
indivíduos, tiveram a função mascarada de difundir uma imagem estereotipada
da deficiência, que serve para construir um limite real nas suas oportunidades,
sobretudo educacionais e profissionais.
Associadas a estas práticas, fica inalterada a idéia que a pessoa com
deficiência é possuída é marcada por um justo castigo dos céus, sendo assim,
a Igreja era a única instituição que podia oferecer proteção e socorro às
populações indefesas, assumindo assim, um papel político de destaque junto a
este grupo, mas também educativo. Dessa forma, tornou-se premente para a
Igreja, precisar todas as regras éticas que viriam a nortear as ações humanas,
ou seja, educar os sujeitos ou puni-los, caso se desvirtuassem do caminho
certo.
Tal prática levou a perseguição de muitas pessoas, seja por
contestarem a doutrina cristã, seja por apresentarem comportamento
diferenciado daquele estimulado pelo cristianismo. Num dos concílios
realizados durante o século XVI, por exemplo, proclamava-se que “os católicos
que, marcados com o sinal da Cruz, se entregassem à exterminação de
hereges, ficavam a gozar da indulgência e dos mesmos santos privilégios de
todos os que vão à terra santa, e foram chamados de cavaleiros em terras do
Oriente, ou simplesmente, cruzados” (PESSOTTI, 1984, p. 11).
135
De toda forma, como se pode perceber, a situação da pessoa com
deficiência não foi menos difícil que em épocas anteriores, pois nenhuma
destas ações pôde assegurar a participação - ou pelo menos o direito à vida -
de indivíduos deficientes. Estes eram seres sem nenhuma serventia para a
civilização medieval e seus interesses. Não eram úteis para o trabalho nos
feudos, nem para as Cruzadas (a única cruzada que participaram foi a dos
Mendigos
75
), e menos ainda para as atividades eclesiásticas, pois ainda
carregavam a marca do mal.
Mas, cabe ressaltar que ao retornar das cruzadas, era comum alguns
voltarem vitimados pelos combates e com seqüelas, tornando-se deficientes.
Então, coube aos cruzados ou cavalheiros da Idade Média a criação de
instituições de apoio aos doentes internados, uma ordem leiga de caráter
assistencialista chamada de Hospitalários. Estas instituições surgiram desde
1113, e era uma espécie de hospital para os peregrinos que vinham feridos,
mutilados e cansados (DEMURGER, 2002).
E, embora, alguns autores afirmem que até a difusão do cristianismo, a
sorte destas pessoas era bem pior, não percebemos grandes diferenças, pois
nem a Igreja com todo o seu poder esteve verdadeiramente comprometida com
a inclusão de pessoas com deficiência na vida social, e não conseguiu remover
a diferença existente no tipo de tratamento dedicado a este grupo, conservando
e reforçando as distinções de classe e a visão sobrenatural e mística o
comum na Antigüidade.
O fato é, durante a Idade Média, o nascimento de um indivíduo com
deficiência entre os ricos, embora não recebido com naturalidade, trazia
consigo oportunidades de minimização de suas culpas e limitações. Entretanto,
o nascimento de uma criança com deficiência entre os servos era realmente
um castigo, pois o deficiente pobre não tinha recursos para realizar o mesmo
resgate, nem seriam úteis nas cruzadas, e ainda representavam para os
75
A Cruzada dos Mendigos, portanto, foi um desastre, pois chegou muito enfraquecida à Ásia
Menor, onde foi arrasada pelos turcos. Somente um reduzido grupo de integrantes conseguiu
juntar-se à cruzada dos cavaleiros.
136
senhores feudais mais um investimento, pois eram estes que financiavam os
abrigos.
De uma maneira ou de outra, a sociedade medieval educa através de
severos mecanismos de controle, seja na família, nos feudos ou nos mosteiros.
No entanto, a maioria do povo permanece analfabeta, e suas fontes de
informações situam-se na oralidade; enquanto, as classes altas são em geral
alfabetizadas e têm acesso aos registros escritos, sejam obras de estudiosos
da igreja, dos textos bíblicos ou mesmo de uma cultura laica, pautadas numa
epopéia cavalheiresca. Mas, é a filosofia escolástica que teve em Santo
Agostinho
76
seu principal arauto que prepara a pedagogia medieval, portanto, a
fé é o seu principal ingrediente.
Agostinho, fundiu em si mesmo o “caráter especulativo da patrística
grega com o caráter prático da patrística latina”, mas colocou sempre no cerne
de suas preocupações, os problemas práticos e morais, principalmente
relativos ao mal, a liberdade, a graça e a predestinação. Suas idéias reforçam a
questão da deficiência como castigo divino. Para ele, tudo que aparece em
desarmonia está deficiente e neste sentido é fonte de pecado. O pecado, pois,
tem em si mesmo imanente a pena da sua desordem, porquanto a criatura, não
podendo lesar a Deus, prejudica a si mesma, determinando a dilaceração da
sua natureza (SOUZA, 2006, p. 25).
Para resolver todos os problemas, no entanto, Agostinho espera em
Deus a solução, bastando aos homens, conformação (para os explorados) e
caridade (para os exploradores).
Afirma assim:
(...) amando o próximo e cuidando dele, vais percorrendo o teu
caminho. Ajuda, portanto, aquele que tens ao lado enquanto
caminhas neste mundo, e chegarás junto daquele com quem
desejas permanecer para sempre (SOUZA, 2006, p. 38).
Ainda segundo Santo Agostinho, a felicidade não pertence a este
mundo, nem seria digno ao homem conhecê-la. Também o conhecimento
76
Santo Agostinho, cujo nome de batismo era Aureliano Agostinho nasceu em Tagaste, em 354
numa família rica. Pertenceu à seita dos maniqueus, Foi influenciado pela filosofia estóica e
após os trinta anos de idade converteu-se ao cristianismo sob a influência de Santo Ambrósio.
Tornou-se padre e ocupou o lugar de bispo da igreja, sendo um de seus principais defensores.
A filosofia de Santo Agostinho foi influenciada pelas idéias neoplatônicas. Baseado na teoria da
iluminação defendia a superioridade da alma humana, a supremacia do espírito sobre o corpo
e da fé sobre a razão. Agostinho morreu em 430 (SOUZA, 2006).
137
estaria na mesma ordem de mistério. Sobre isto afirmava: (...) “creio em tudo o
que entendo, mas nem tudo em que creio também entendo. Tudo o que
compreendo, conheço, mas nem tudo em que creio, conheço”. Portanto, para o
filósofo, o é dado ao homem conhecer sobre todas as coisas, pois tal
conhecimento pertence a deus, bastando-lhe aceitar os acontecimentos como
são (COTRIM, 1988, p. 144).
Segundo o filósofo medieval, é preciso esperar pela vida futura, após a
morte, seguindo os ensinamentos de Cristo. Portanto:
(...) a paixão do Senhor mostra-nos as dificuldades da vida
presente, em que é preciso trabalhar, sofrer e por fim morrer. A
ressurreição e glorificação do Senhor nos revelam a vida que um
dia nos será dada (AQUINO, 2005, p. 34).
Em meio aos ensinamentos agostinianos, a condição de exclusão de
que é vitima a pessoa com deficiência é inquestionável. Portanto, muito embora
tenha sido a Igreja que outorga o status de humano à pessoa com deficiência,
também é ela que assegura sua culpa, pede sua conformação e acaba por
assumir a caridade junto a este público, provendo-lhes a sobrevivência (quando
remunerados por isso) e controlando-as para que as mesmas se comportem
como seres humanos.
Neste sentido, a Igreja assume também a tarefa de punir os que se
afastassem de sua doutrina. Para proceder ao afastamento deste mal (a
deficiência) do corpo dos deficientes utilizavam o exorcismo ou as flagelações,
e os casos mais graves eram punidos com a morte, como ocorreu com
inúmeras vítimas das leis inquisitórias.
Neste contexto, o castigo praticado pela Igreja é entendido como
caridade, pois liberta o corpo possesso do mal que o domina, dando-lhes
chances de salvação; isto resume toda sabedoria da Igreja em benefício dos
desprovidos da razão. Assim, compreende-se que a Igreja Católica
transformou-se na detentora de todo o saber do período medieval. Ela pensava
pelos homens e mulheres da época; definia o certo e o errado; o bem e o mal.
Mas, também conduziu de perto o destino de milhares de pessoas com
deficiência e contou com alguns instrumentos extremamente úteis a este fim;
destacando a Inquisição.
138
A tortura foi um recurso utilizado para extrair confissões dos que eram
acusados de alguma violação da lei. Para isso, os torturadores utilizavam
diferentes métodos de tortura, sendo os mais comuns: as gaiolas suspensas
(ou gaiolas dos idiotas); a cadeira de pregos; o berço de Judas; o serrote, o
esmaga cabeça; dentre outros não menos violentos.
As gaiolas eram feitas de madeira ou de ferro, eram uma das piores
torturas aplicadas pelos inquisidores. Foram utilizados desde meados da Idade
Média e permaneceram muito populares até o século XVIII. Este tipo de tortura
era feita geralmente com a vítima nua ou quase nua. Estas gaiolas eram de
tamanho não muito maior que o da vítima e depois de colocada dentro da
gaiola, a mesma era pendurada em local público, permanecendo o acusado
até a morte, sem alimento, água, cobertor, etc.
Dependendo da acusação, a pessoa poderia ser torturada e mutilada
antes de serem suspensas, para que também sofresse com as dores e
servisse de exemplo aos que porventura estivessem propensos a fazer algo
que os mandantes do suplício considerassem como errado ou contrário à
ordem vigente. Na maior parte das vezes os cadáveres em putrefação
permaneciam no local até que os esqueletos se desfizessem por completo
77
.
Figura 8: Objetos utilizados pelo tribunal da Inquisição
Fonte: http://images.google.com.br
77
Disponível em: http://www.fernandodannemann.recantodasletras.com.br/.
139
Dentre outros objetivos, a Inquisição
78
funcionou também para punir as
condutas anti-sociais dos corpos deficientes. Desde o século XIV, os textos que
regiam o processo inquisitorial induzem a pensar sobre os deficientes como
ameaças potenciais à hegemonia religiosa; os hereges
79
. Vários documentos
inquisitórios foram criados para banir as heresias e favoreceram, por sua vez, a
perseguição contra pessoas com deficiência. O Lucerna Inquisitorum e o
Malleus maleficarum
80
, de 1486 e o Directorium inquisitorum, de 1370 são
alguns exemplos disso. Estes documentos foram reeditados ainda muitas
vezes.
Em todo o Directorium, do Grande Inquisidor de Aragão,
aparecem argumentos ou instruções procedimentais claramente
perigosas para deficientes mentais dotados de linguagem,
ficando aparentemente intocados ou incapazes de tal
comunicação, a menos que praticantes contumazes de rituais
que pudessem significar, a juízo arbitrário e passional do
inquisidor, culto heterodoxo (PESSOTTI, 1984, p. 8).
O Directorium recomenda, o confisco dos bens do acusado em
benefício do inquisidor ou da própria inquisição como organização, caso o
mesmo fosse denunciado por práticas estranhas, conduta obscena, heresia ou
blasfema. Mas, se o denunciado não fosse detentor de posses, sua punição
era ser queimado vivo, castrado ou apedrejado.
Assim, o pertencimento a uma classe economicamente favorecida
resguardava a pessoa com deficiência da morte, pois mesmo acusado de
heresia, se pudesse pagar com os bens que possuía, estaria livre da fogueira,
mas, se do contrário, não dispusesse de posses para comprar seu direito à
vida, a morte seria o destino certo.
78
Em uma época em que o poder religioso confundia-se com o poder real, o Papa Gregório IX,
em 20 de abril de 1233 editou duas bulas que marcam o início da Inquisição, instituição da
Igreja Católica Romana que perseguiu, torturou e matou vários de seus inimigos, ou quem ela
entendesse como inimigo, acusando-os de hereges, por vários séculos. A Inquisição foi um
poderoso instrumento que a Igreja Católica desenvolveu para punir os ditos hereges
espalhados em diferentes partes do mundo.
79
Heresia é uma doutrina ou sistema teológico rejeitado como falso pela Igreja. Quando o
Império Romano impunha o culto às suas divindades, judeus e católicos o rejeitavam e eram
acusados de paganismo e de atrair a ira das divindades sobre Roma. Era uma heresia. Assim,
no contexto da doutrina cristã uma heresia significa uma doutrina contrária à Verdade revelada
e pregada por Jesus Cristo. Dentre as principais heresias dos primeiros tempos do cristianismo
destacam-se: o Gnosticismo, o Montanismo, o Nestorianismo e o Monofisismo.
80
O Malleus maleficarum publicado em 1486 foi reeditado ainda 29 vezes até 1669
(PESSOTTI, 1984).
140
É evidente que mesmo para os deficientes ricos a situação não era tão
fácil, embora se distanciem da condição de ser pobre e deficiente. Os cuidados
destinados aos deficientes pertencentes a nobreza situam-se muito mais no
âmbito da sobrevivência e da saúde, do que da educação, por exemplo. Mas,
não vida de que sem recursos financeiros, a sobrevivência deste grupo
parecia algo difícil de ocorrer, confirmando, portanto, que a classe social
continua sendo responsável pela situação de exclusão ou inclusão de um
indivíduo com deficiência.
De uma maneira ou de outra, seja por intermédio do Estado ou por
intermédio da Igreja, o ser deficiente precisaria de bens materiais para garantir
pelo menos sua sobrevivência. Pelo Estado, garantindo parte de sua
propriedade ou herança para manter-se vivo; pela Igreja, financiando sua
sobrevivência no interior de abrigos ou asilos construídos longe dos olhos da
população ou pagando para adquirir o perdão por faltas cometidas contra os
dogmas religiosos.
Durante mais de três séculos foi esta a situação da pessoa com
deficiência e os documentos produzidos pela Igreja Católica serviram para
prescrever a tortura e a morte destes sujeitos. Cabe lembrar ainda que estes
locais não tinham somente o objetivo de recolher pessoas com deficiência,
mas, antes disso, foram ambientes pensados para esconder alguns
perseguidos, refugiados, fugitivos da época.
Num breve trecho do Directorium, a recomendação de que, se o
acusado de praticar qualquer das condutas não aceitas pela Igreja, não
responder a pergunta, mudar de discurso ou parecer não compreendê-la,
agindo como um tolo deve o inquisidor praticar a tortura a fim de fazê-lo falar a
todo custo.
Imaginemos a situação de indivíduos com problemas mentais, cuja
deficiência afeta diretamente a cognição, levando a pessoa a ter limitações no
entendimento e na expressão do pensamento. Quantas pessoas com
deficiência mental - mais ou menos graves - teriam sido vítimas da inquisição?
na Alemanha do século XVII se registraram cem mil pessoas queimadas
vivas acusadas de heresia ou bruxaria. Quantas seriam deficientes mentais?
A mesma preocupação pode-se ter com relação à pessoa com
deficiência auditiva, pois nos diferentes níveis de perda da audição, sua
141
linguagem é afetada e a percepção da sonoridade das palavras igualmente.
Suas limitações lingüísticas teriam representado um grande risco durante a
inquisição, pois as especificidades comunicativas destes sujeitos seriam alvos
fáceis dos inquisidores para quem a tortura e a morte acabaram sendo a única
alternativa.
E quanto aos sujeitos que demonstraram comportamentos
identificados como dementes, pois não estabeleciam relação interpessoal e
comunicação? O que teria ocorrido com os dementes do mundo medieval?
Quantos teriam sido vitimados em razão de seu comportamento atípico?
Hoje sabemos que estes indivíduos são diagnosticados como
portadores de autismo, mas, esse entendimento é muito recente na história
médica e psiquiátrica
81
. É somente em 1906, que Plouller introduz o adjetivo
autista na literatura psiquiátrica, e Kanner retoma trinta e nove anos mais tarde
através de um estudo minucioso com onze crianças autistas
82
.
É bem possível que inúmeras pessoas autistas tenham sido
perseguidas e mortas em razão de suas condições. Portanto, fica evidente que
a situação da pessoa com deficiência, doenças ou com transtornos invasivos
no desenvolvimento
83
durante o período medieval não foi menos difícil do que
na Antigüidade.
Ainda analisando os efeitos da inquisição sobre a pessoa com
deficiência, é bom lembrar que a presença de testemunha da acusação era
suficiente motivo de condenação para os hereges. Desta forma, sendo a
pessoa com deficiência ainda associada a um ser maligno, não deveria ser
difícil encontrar testemunhas para suas faltas, especialmente sabendo que os
delatores e testemunhas eram fartamente recompensados pela Igreja. Mas, a
falta de uma testemunha sob hipótese alguma representava risco menor para
81
O termo autista é cunhado pela primeira vez por Plouller, em 1906. No entanto, na literatura
psiquiátrica a expressão é trabalhada e suas características mapeadas somente a partir de
1944, com Kanner.
82
O autista prefere estar só, não costuma estabelecer relações pessoais íntimas; evita contato
de olho; resiste às mudanças; apresenta comportamento estereotipado e repete continuamente
certos atos e rituais, além de apresentar sérios problemas com a linguagem: não falam, falam
tardiamente, de maneira ecolálica ou utilizando expressões de modo estranho, geralmente
incompreensível.
83
O autismo é também identificado como um transtorno invasivo do desenvolvimento. Outra
expressão utilizada durante os anos 40 e 50 para identificar o quadro de autismo infantil foi
esquizofrenia precoce.
142
os acusados, pois, conforme defendia o Directorium, se não houvesse
testemunha para o fato denunciado, então, bastava conduta do mesmo ser
conhecida como negativa, para que o mesmo fosse considerado culpado. E,
por conduta negativa, entenda-se um modo de vida ou até conversas diferentes
e desconexas da dos fiéis cristãos católicos.
De qualquer forma, mesmo que não fossem praticantes de atos
reprovados pela inquisição, as pessoas com deficiência não estavam salvas
das arbitrariedades da época. A credulidade sobre a deficiência como castigo
divino, maus espíritos ou demônios, somada ao pouco conhecimento sobre as
especificidades desta condição humana, levavam ao extremo de associarem-
se comportamentos característicos de determinadas deficiências com bruxarias
ou heresias.
Segundo Ceccim (2001), este foi um período da história onde a noção
de pecado e a teologia da culpa assume a hegemonia no que diz respeito à
deficiência. Assim sendo, as pessoas com deficiência são responsabilizadas
pela própria limitação apresentada e, por isso, justificam-se as torturas e as
flagelações.
A inquisição é, sem dúvida, o maior instrumento utilizado pela Igreja
nesta direção, mas não seria o último. Nos próximos culos, a modernidade
também deixará suas marcas sobre os corpos deficientes.
143
Não é a consciência do homem que lhe
determina o ser, mas, ao contrário, o seu
ser social que lhe determina a consciência.
Karl Marx
144
4. A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA DEFICIÊNCIA NAS CIVILIZAÇÕES
MODERNAS E A NOVA FACE DA EXCLUSÃO
4.1. Civilizações Modernas: aspectos gerais, classe social e educação
Enquanto os antigos manuais de história mais tradicionais consideravam
o marco inicial da Idade Moderna a tomada de Constantinopla pelos turcos
otamanos, em 1453, alguns compêndios mais inovadores propunham outras
datas para o início deste período, como a a viagem de Cristóvão Colombo ao
continente americano em 1492 ou a viagem à Índia de Vasco da Gama em
1497. Entretanto, os historiadores mais críticos chamam a atenção para o fato
de que é preciso ter muito cuidado com este tipo de divisão histórica, pois a
passagem de um período a outro é bastante controversa e não é plausível o
uso de datas ou fatos isolados para demarcar fases da vida humana, tão
complexas e tão dinâmicas.
Para os objetivos aqui pretendidos, evitaremos os marcos iniciais e finais
e atentaremos muito mais para a série de transformações que ocorreram ao
longo dos tempos para que a sociedade assumisse uma nova configuração,
tanto do ponto de vista social, político, econômico, quanto cultural. Salientamos
ainda que estas mudanças não se deram ao acaso, mas sua base consiste na
substituição do modo de produção feudal pelo modo de produção capitalista.
De maneira introdutória, podemos ressaltar que a partir do ano 1000,
verificou-se um crescimento populacional em toda Europa Ocidental e este
aumento permaneceu durante os séculos seguintes, motivado principalmente
pela diminuição do índice de mortalidade. Este, por sua vez, encontra razões
no menor número de epidemias e maior produção de alimentos.
Evidentemente, é difícil determinar qual a influência de um sobre o outro, mas o
fato é que o aumento da população significou multiplicação da mão-de-obra
disponível e ampliação do mercado de consumo, o que é certo, influiu no
aumento da produção agrícola (SAWAIA, 2006).
Diante disto, se observou que o aperfeiçoamento das técnicas na
agricultura possibilitou a ampliação das áreas de cultivo e a produção de
excedentes para as trocas comerciais, liberando uma parte da população para
o artesanato e o comércio, fazendo renascer as cidades (ou os burgos).
145
Evidentemente que a economia urbana se adequava ao feudalismo, mas
a expansão cada vez maior do comércio, geradora de uma nova classe, a
“burguesia mercantil”, atrelada ao próprio desenvolvimento das cidades
acabaram sendo os “elementos dissolventes do modo de produção feudal” (op.
Cit. p. 406).
De acordo com Aquino, inicialmente observou-se por parte da Igreja
Católica resistência ao novo modelo econômico, mas, rivalizada pela ascensão
das Igrejas protestantes, não teve força para intervir neste processo. Por outro
lado, o Estado moderno se consubstanciou numa instituição cada vez mais
forte e organizada, logo, independente do poder clerical.
Em meio a todo este dinamismo econômico, ainda outro marco
importante no cenário moderno: as contribuições das reformas, alimentadas
pelas inovações no mundo das artes, das ciências e das técnicas,
especialmente as que favoreceram a expansão marítima. Sobre isto, ressalta-
se o papel da renovação cultural que se alastrou a partir do século XIV,
influenciando as artes, a literatura, a ciência e a filosofia, que recebeu o nome
de Renascimento
84
.
4.1.1. As Influências Renascentistas
A partir das cruzadas, a mudança mais visível da Europa ocidental foi o
renascimento comercial e urbano, que significou dentre outras coisas, o
desenvolvimento do comércio das cidades, com pouca importância nos séculos
anteriores. O aumento do comércio estimulou inúmeras outras atividades
financeiras, mais também políticas e culturais nas cidades em pleno
desenvolvimento.
Estas novidades que imprimiram novas formas de enriquecimento, e
também o ordenamento de diferentes grupos sociais dão força a uma
renovação cultural que teve início na península itálica a partir do século XIV.
Os participantes deste movimento rejeitaram a cultura medieval, presa
aos padrões da Igreja e passaram a defender a diversidade de idéias.
Evidentemente, os principais centros de difusão dos princípios renascentistas
84
Este movimento costuma ser dividido em três períodos: o pré-Renascimento ou Trecento
(século XIV), o Quatrocento (século XV) e o Cinquecento (século XIV).
146
foram àquelas mais ricas, pois o ressurgimento do comércio nestes locais
permitiu à burguesia acumular riquezas suficientes para financiar artistas e
escritores.
Em linhas gerais, o Renascimento se caracterizou pelo individualismo,
que valorizava a capacidade de o ser humano fazer escolhas livremente, sem
apelar para o sobrenatural; pelo racionalismo, que enfatizava a razão como
principal instrumento para compreender o universo e a natureza, e pelo
humanismo, que colocava o ser humano como centro das preocupações e
indagações dos pensadores.
De maneira bastante resumida, pode-se afirmar que no pré-
Renascimento, ou momento inicial do movimento Renascentista, os
representantes do Trecento, embora carregassem traços medievais ainda
fortes, já apontavam para uma nova forma de expressão artística.
Ao contrário dos autores medievais que escreviam em latim, alguns
escritores e poetas do Trecento expressavam-se no idioma toscano, de onde
originou-se o italiano moderno. O principal centro foi Florença e durou de 1265
a 1321. São considerados representantes desse período: Dante Alighieri,
Francesco Petrarca, Giovanni Boccacio, na literatura, enquanto na pinturas, o
principal nome é Giotto di Bondone.
No Quatrocento, os artistas procuraram aperfeiçoar suas técnicas,
aproximando-se da ciência, especialmente da geometria. Entre os grandes
artistas dessa época destacam-se: na arquitetura, Filippo Brunelleschi,
responsável pela gigantesca cúpula da catedral de Florença; na escultura:
Donatello; na pintura: Masaccio, Botticelli, Uccello, Fra Angelico e Andrea
Mantegna.
No apogeu da Renascença ou Cinquecento é o período de maturidade
dos gênios das artes. Os principais nomes desse período são: Leonardo da
Vinci, Michelangelo, Sanzio, Ludovico Ariosto, Torquato Tasso e Maquiavel.
Entre os pensadores, os nomes mais notáveis são sem dúvida os de Erasmo
de Roterdã, Philip Melanchthon e Martinho Lutero.
A partir destas figuras ilustres, o movimento Renascentista se expande
por toda a Europa, alcançando maior expressão nos países em que o
desenvolvimento urbano e mercantil é mais intenso. Na Inglaterra, o
renascimento ocorreu tardiamente e seus principais representantes foram
147
escritores. Destacam-se Thomas More e William Shakespeare. Na França, o
movimento foi principalmente literário e filosófico, sendo François Rabelais o
nome de maior expressão na literatura, e Michel Montaigne, na filosofia. Na
Espanha, o grande nome do Renascimento espanhol foi o escritor Miguel de
Cervantes e, em Portugal, os destaques são: Francisco de Miranda e Luís
de Camões.
No entanto, o movimento Renascentista não atingiu apenas as artes. No
campo científico, especialmente na astronomia, matemática, física e medicina
os efeitos dos novos tempos pôde ser sentido. Os principais cientistas dessa
época são: Miguel de Servet, médico e humanista que descobriu a circulação
pulmonar; Francis Bacon, filósofo, responsável pela divulgação do método
indutivo do conhecimento.
E, ainda seguindo o mesmo grau de importância, o movimento
Renascentista contou com a presença de: Willian Harvey, fisiologista e
anatomista que também pesquisou a circulação sanguinea; Nicolau Copérnico,
astrônomo que desenvolveu a teoria heliocêntrica; Galileu Galilei, físico,
considerado o fundador da física moderna e Johannes Kepler, astrônomo que
se contrapôs a teoria de Copérnico, demonstrando que os planetas obedecem
a uma órbita elíptica (TARNAS, 2001).
Este é um período que contou com verdadeiras revoluções no campo da
ciência. As invenções técnicas desempenharam um papel essencial na
formação dos novos tempos. Destacamos, a invenção da bússola magnética,
permitindo as façanhas da navegação; a pólvora, contribuindo para o fim da
velha ordem feudal, alargando fronteiras; o relógio mecânico, mudando as
relações entre o homem e o tempo e, por fim, a imprensa ou tipos móveis de
impressão que produziu um aumento no aprendizado e disseminação das
informações para grande parte do mundo.
148
Figura 9: Bússola Magnética
Fonte: http://images.google.com.br
Evidentemente, as inúmeras transformações ocorridas em toda a
Europa, sejam no campo político, econômico ou cultural, acabaram atingindo
os princípios e valores religiosos tradicionais. Em geral, os princípios da Igreja
não se encaixavam nos ideais e objetivos do novo mundo. Esta situação
desencadeava inúmeras revoltas, agora, no entanto, respaldadas por um
conjunto de saberes desvinculados dos dogmas.
4.1.2. As Influências Religiosas na Modernidade
Do ponto de vista religioso, percebe-se que do catolicismo ao calvinismo
pouca coisa mudou, principalmente no que tange a pessoa com deficiência,
ainda vista nos moldes do mal, da punição e da condenação, afastando-a do
convívio com os demais. Mas, entre as disputas pelo poder, protestantes e
católicos, não estiveram - de fato - preocupados com as discussões a respeito
das deficiências humanas, mas, em consolidar estratégias capazes de garantir
sua influência junto às sociedades.
Com estes propósitos, muitas companhias foram fundadas a fim de
combater o espírito de independência anunciado pelo humanismo, combater a
razão e organizar o ensino nas diversas partes do mundo. A que mais se
destacou foi a Companhia de Jesus, fundada por Inácio de Loyola, ex-soldado
espanhol, que muito colaborou com a expansão portuguesa e espanhola,
especialmente combatendo o protestantismo e expandindo a católica,
sobretudo, nas terras americanas. No Brasil, tal movimento foi bastante
149
fecundo, especialmente para os portugueses, durante os anos posteriores a
1500
85
.
Por outro lado, cabe destacar que os principais efeitos dos movimentos
reformistas foram: o fim do monopólio espiritual da Igreja católica, do lado
religioso, e o estímulo ao desenvolvimento do capitalismo, do lado econômico,
especialmente porque criou uma ética favorável ao lucro, ao trabalho árduo e
ao enriquecimento pessoal. Mas, ainda do ponto de vista cultural, pode-se
acentuar o impulso dado a alfabetização, mas esteve longe de atingir os
interesses das massas, aparecendo quando muito como iniciativa isolada
(SCHNEEBERGER, 2003).
A Reforma de Calvino e Lutero
86
, embora apresentasse pontos de
discórdia com a Igreja católica, na questão de perseguição aos hereges e na
visão sobre as deficiências se assemelhavam. Assim, tão cedo, as pessoas
com deficiência não atrairiam sobre si olhares diferenciados; pelo menos não
através dos representantes de deus. Seria preciso, portanto, outra fonte de
interpretação do mundo e do homem para que este público alcançasse
esperanças de futuro, para que tantas crianças não fossem mortas desde cedo,
vítimas do abandono em praças públicas, comidas por animais, antes que
conseguissem ser recolhidas por alguma instituição de caridade organizada
pela Igreja.
Assim, entre reformas e contra-reformas
87
, a independência do homem
para pensar e organizar a sociedade é encabeçada por intelectuais que
85
Para compreender mais sobre o processo, ver: NOVAES, C. E. & LOBO, C. História do Brasil
para iniciantes – 500 anos de idas e vindas. São Paulo: Ática, 2005.
86
Martinho Lutero foi um monge agostiniano que pretendia purificar a religião e não produzir
divisões na Igreja. No entanto, a ação de Lutero acabou ocasionando inúmeros problemas com
a Igreja Católica que excomungou o monge. A reforma proposta pro Lutero ficou conhecida
como Reforma Protestante e foi apoiada pela nobreza, pois seu movimento se encaixava
perfeitamente nos interesse daqueles que pretendiam se apossar de terras clericais. Portanto,
embora os motivos religiosos fossem os mais evidentes, houve motivações também
econômicas para o nascedouro no protestantismo, pois, o grande objetivo do sistema
capitalista era o lucro e este era condenado pela Igreja Católica. Na Suíça, a reforma foi ainda
mais radical. O introdutor das idéias da Reforma na região foi Ulrich Zwinglio, apoiado no
humanismo de Erasmo de Roterdã, que defendia a necessidade de que a Igreja assumisse
uma posição mais humilde e desvinculada da vida material, em consonância com os
Evangelhos (WEBER, 2001).
87
Foi mais precisamente no Concílio de Trento, em 1544, que a Contra-Reforma Católica teve
início. A idéia era manter o monopólio do clero, reforçar a autoridade papal e a disciplina
eclesiástica, além de garantir a formação e ordenação dos padres nos seminários; continuar
150
destituídos dos poderes clericais se autorizam a produzir explicações e
alternativas para as situações normalizantes e desviantes que compõem o
mundo moderno.
Se na velha ordem era deus quem vencia o diabo, era a virtude
que vencia o vício, e era a graça que criava o homem livre (...),
na nova ordem deveria ser a educação que venceria a barbárie,
afastaria as trevas da ignorância e constituiria o cidadão. Enfim,
da educação se espera o milagre de configurar o novo homem
livre para o mercado econômico, social e político (SOARES,
1999, p. 9).
Por outro lado, não se pode esquecer que mesmo não sendo mais a
única fonte de saber, a Igreja seguiu disputando este espaço com a ciência em
ascensão, especialmente no sentido educativo. Neste contexto, a intolerância
religiosa segue fazendo vítimas em nome de deus.
Dessa forma, embora se processassem diferentes e importantes
mudanças no campo das idéias, evidencia-se que no terreno religioso, as
mesmas práticas excludentes permaneciam independentes de serem
praticadas por católicos ou protestantes, luteranos ou calvinistas. As lutas cada
vez mais sangrentas se arrastaram ao longo dos anos, contrariando todos os
avanços observados nesse período, principalmente no campo científico.
4.1.3. As Novas Configurações Sócio – Econômicas da Modernidade
É evidente que com as grandes navegações e a revolução comercial, o
mundo começou a tornar-se cada vez mais próximo. O comércio praticado em
várias partes colocou várias sociedades em contato, às vezes de maneira
pacífica, mas outras vezes, de maneira bastante violenta. Dessa forma, muitas
relações estabelecidas entre países e continentes se deram com base na
dominação dos mais fortes - sobretudo, do ponto de vista militar - sobre os
mais fracos.
A burguesia européia foi grande responsável pelo financiamento das
grandes expedições marítimas, pois a conquista de terras distantes favorecia o
enriquecimento da Europa e aumentava cada vez mais seu poderio.
com o celibato clerical; proibir a venda de indulgências; manter o direito canônico e editar
oficialmente a bíblia e o catecismo. Além disso, o Concílio decidiu pelo fortalecimento dos
tribunais de inquisição para combater o protestantismo.
151
Enquanto a parte Ocidental vivia intensas transformações, cabe lembrar
que no Mundo Oriental ou ainda nas Américas muita coisa acontecia. Primeiro,
é importante considerar que em outras partes do mundo, como a China
88
, que
contava com o dobro da população da Europa, vivia-se um pleno
desenvolvimento tecnológico; publicação de um grande número de livros;
extensas rotas comerciais; grandes invenções; expansão naval e grande
produção de ferro e de artesanato.
No entanto, os interesses da China não incluíam a apropriação de novos
territórios como prioridade. Com isso, a Europa pôde usufruir livremente da
conquista de outras terras, sem a concorrência daqueles que certamente
possuíam plenas condições para empreender as descobertas de outros
mundos.
Na Europa, a autonomia conquistada pelas cidades, seguida pela
criação de ligas de comércio, da generalização no uso de moedas e da
centralidade do lucro, vai dando forma ao novo modo de produção: o
capitalismo mercantil ou mercantilismo (política econômica e financeira
praticada pelos monarcas europeus) que pouco a pouco passa a dominar a
economia européia, até o século XVIII.
De acordo com este modelo, o Estado intervinha diretamente na
economia, por meio de regulamentos, assumindo um caráter
nacionalista. Estimulava o crescimento econômico nacional,
privilegiando os setores comercial, manufatureiro e de
transportes marítimos. E a colonização era um dos elementos
chave para o sucesso da política mercantilista
(SCHNEEGERGER, 2003, p. 160).
Por considerar que uma nação seria tão rica quanto mais metais
preciosos possuísse, a Inglaterra, Espanha, Holanda e França (dentre outros)
criaram as estratégias para favorecer o comércio e a expansão marítima. Para
expandir o comércio viram na Índia e suas infinitas especiarias até então,
pouco conhecidas pelo Ocidente, um grande achado.
88
A história da China tem mais de quatro mil anos. Ela teve uma das civilizações mais velhas
do mundo e, durante a Idade Média, a ciência e as artes chinesas eram mais avançadas do
que as européias. Os chineses inventaram o papel, a impressão, a pólvora, e tinham grande
talento para a poesia, pintura, teatro e cerâmica. Depois, sua grandeza caiu, e por muitos anos
sofreu a pobreza, as revoluções e as guerras.
152
Para exploração de riquezas naturais, a partir de 1492, os europeus
viram nas terras americanas a principal fonte de renda. Por isso não pararam
de chegar ao Novo Mundo, cada vez em maior número. Desencadeou-se,
assim, um rápido processo de ocupação das terras americanas. Inicialmente,
foram conquistadas as ilhas da América Central; em seguida, as terras firmes
do continente, e ao mesmo tempo as terras do pau brasil.
À conquista, segue-se a colonização, fato que mudou
radicalmente a vida dos povos americanos. Para os europeus, o
principal efeito foi sem dúvida a acumulação de riquezas que
mais tarde contribuiriam para impulsionar a industrialização da
Europa e o desenvolvimento do capitalismo moderno (...). Para
os ameríndios, a colonização significou o extermínio de povos
inteiros, a exploração da mão-de-obra nativa e a destruição de
grande parte de sua cultura (FERRO, 1996, p. 138).
As primeiras civilizações a sofrer as conseqüências deste processo
foram as da Mesoamérica
89
, representadas pelos Maias e os Astecas e os
povos da América do Sul, com destaque para os Incas e a grande nação Tupi
Figura 10: A Mesoamérica
Fonte: http://images.google.com.br
89
Por Mesoamérica conceito criado na década de 1940 entende-se a região onde se
desenvolveram as primeiras sociedades complexas do continente americano. Ela engloba
territórios da América central e também do extremo sul da América do Norte (FERRO, 1996).
153
São civilizações, cujos registros o escassos, pouco conhecidos e
divulgados. Tal situação ocorre, talvez porque esta parte da história moderna
mereça ser esquecida. Mas, é bom que se lembre que estes povos tinham
história, cultura, conquistas, crenças, trabalho, enfim, uma existência. Mas, que
foram sumariamente destruídos, desrespeitados, sacrificados em nome dos
progressos modernos.
De toda forma, é bom que se diga que, mesmo a ausência é reveladora,
pois conta uma história – a história dos excluídos e, assim, revela uma visão de
mundo, coloca a marca do fracasso sobre quem precisa ser esquecido,
escondido ou camuflado (BARDIN, 1977).
É no mínimo contraditório que diferentes civilizações possam ter sido
dizimadas pelos modernos europeus que haviam experimentado
significativos avanços no campo das artes, das letras e da ciência. Tal
comportamento não expressa o sujeito consciente, crítico e reflexivo
defendidos pelo projeto moderno de sociedade e nos leva a pensar o quão
distante estavam os europeus de modernizar as relações humanas,
compreendendo o significado do direito, do respeito, da diversidade, que os
ajudaria a compreender as diferenças (culturais, físicas, mentais, etc.) como
inerentes ao ser humano.
Sabe-se, por fim, que os habitantes das terras americanas eram muitos.
Entre os índios, estima-se que este número variava entre um milhão a seis
milhões; entre os astecas, quinze milhões. Mas, apesar da grandiosidade
cultural destes povos (e em alguns casos, também técnica), e das inúmeras
lutas travadas, eles acabaram sendo destruídos pelo invasor espanhol,
português, etc. bem mais preparado do ponto de visto bélico.
Muitos foram mortos, outros subjugados, humilhados, fragilizados. Os
que sobreviveram tiveram sua histórias e suas culturas mortas, desprezadas ou
anuladas. O que indica, que mesmo com todo avanço científico e tecnológico
verificados nos tempos modernos, a diferença (seja lingüística, cultural, social,
etc.) permaneceu incomodando o homem e dando-lhe a impressão que havia
uma superioridade da sua cultura em detrimento das demais. Talvez, este
mesmo sentimento existisse entre não deficientes e deficientes e fosse
utilizado com a mesma força para excluí-los.
154
Conclui-se, portanto, que a época Moderna foi mesmo de contradições.
Ao mesmo tempo em que assinala a expansão marítima e, com ela uma
verdadeira revolução nas relações internacionais, de onde se espera maior
nível de conhecimento e, conseqüentemente, a abertura da mentalidade
européia para a aceitação dos diferentes, testemunha exatamente o contrário.
Cresce a intolerância em todos os níveis e a sociedade européia, de maneira
cada vez mais elaborada busca instrumentos para eliminar os desiguais. E,
nesse contexto, a ciência foi posta a serviço da anulação do outro. E, a
educação, por conseguinte, é utilizada como o principal recurso em favor da
perseguição, discriminação e exclusão das diferenças. A catequese dos índios
foi um exemplo disso e a institucionalização da deficiência foi outro.
Sob este aspecto, Souza assinala:
A expansão dos limites do planeta está consumada. Fecha-se
um ciclo de ouro, de poder econômico, de extensão de impérios,
de encontros desiguais de culturas e civilizações, de início de
uma forma de escravagismo, de colonialismo, de descoberta do
outro, do diferente, do desigual. A mentalidade européia move-
se agora no sentido de assegurar a posse dos novos territórios,
colonizá-los e retirar deles as riquezas naturais, além de cativar,
no sentido de tornar cativos os nativos. A carne humana é
levada ao mercado. E há que se fazer com que se tornem
dóceis, convertidos ao cristianismo à força, abjurando de sua fé,
dos seus deuses e da sua cultura. Para tal fim, são enviados,
aos novos mundos, os catequizadores da fé cristã. A companhia
de Jesus se faz ao mar; como salvadora das almas dos gentios,
mas também como companhia por si mesma, é mercantilista.
Estabelecer-se-á em solo americano até o século XVIII e, das
pessoas daqueles lugares, retirará não a fé, a cultura, como
também a força do trabalho dos gentios. Ora, simultaneamente à
chegada dos Jesuítas ao continente americano, a marcha da
reforma avança insidiosamente na Europa (SOUZA, 2006, p. 83-
84).
Em geral, as diversas modificações ocorridas com o advento da
Modernidade, seja no plano social, econômico ou político, deixaram suas
marcas e, algumas destas não foram nada agradáveis, especialmente para os
povos que acabaram subjugados. Para as pessoas com deficiência também
subjugadas pela normalidade do outro, não foi diferente.
155
4.2. A Ciência Moderna e as Deficiências: inclusão e exclusão, de quem?
Para conquista de Incas, Maias, Astecas e Tupis, o homem moderno da
Europa utilizou-se não somente da força militar; os conquistadores europeus se
utilizaram também de elementos mais sutis, mas, nem por isso menos danoso:
a educação para eliminar as diferenças e tornar o conquistado igual ao
conquistador; para civilizá-lo, para controlá-lo.
No caso das pessoas com deficiência, o homem moderno também foi
bastante habilidoso. Seu principal recurso foi a ciência, colocada a serviço da
recuperação e normalização destes sujeitos. Da mesma forma, procurando
deixá-lo mais parecido com os seres humanos normais, completos, perfeitos.
A medicina é, portanto, a porta de acesso do indivíduo deficiente ao
mundo da normalidade instituída. Por isso, a categorização de pessoas em
grupos, tecnicamente identificados e classificados, a partir dos desvios
apresentados, define e fixa quem é normal - e quem não é - nos meados da
modernidade (SILVA, 1996).
Assim, as instituições são amplamente difundidas por toda a Europa. Os
hospitais, manicômios, asilos, prisões, são algumas das mais importantes,
demonstrando que a conformação aos valores modernos pelos indivíduos é o
grande objetivo e que a partir das categorias: loucos, surdos, paraplégicos,
cegos, etc. é possível assistir socialmente e educativamente a estes sujeitos.
O mundo moderno é atravessado por ambigüidades: ao mesmo tempo
em que se deixa guiar pelos ideais de liberdade, acena com uma constante
ação de controle. Defende a liberdade do homem, da sociedade e da cultura,
mas tende a moldar profundamente o indivíduo, segundo seus modelos de
comportamento, a fim de torná-lo produtivo e integrado socialmente.
Segundo Cambi:
(...) o mundo moderno se organiza, sobretudo, em torno dos
processos de civilização (Elias), de racionalização (Weber), de
institucionalização (Foucault) da vida social no seu conjunto,
dando lugar a um estilo de vida radicalmente novo. Nele se
afirmam comportamentos de autocontrole e de conformidade a
modelos de boas maneiras que revelam o nascimento de uma
nova sensibilidade social e de uma convivência que redescreve
cada âmbito de ação do sujeito (...), censurando
comportamentos demasiado grosseiros e solicitando um
minucioso controle (1999, p. 200).
156
Por outro lado, não se pode esquecer que mesmo com todo o espírito
crítico, nos seus primórdios, a ciência moderna nem sempre atingiu o
desvelamento dos fenômenos conforme o esperado. Primeiro, em razão de
suas fragilidades, inclusive no que diz respeito aos instrumentos e técnicas de
pesquisa, depois porque a Igreja ainda tentava exercer seu poder a todo custo,
especialmente durante o período inquisitório (e esse de maneira mais ou
menos intensa durou até o século XVIII).
Figura 11: Manual da Inquisição
Fonte: Pessotti, 1984, p. 13.
Neste contexto, muitos dos pioneiros da ciência foram perseguidos e
mortos. Nicolau Copérnico foi um exemplo disso. Sua teoria heliocêntrica
(completada no século XVII pelo italiano Galileu Galilei) foi alvo de muitas
polêmicas e o seu autor foi um dos inúmeros perseguidos pela Inquisição. O
polonês teve de retratar-se para escapar a morte. Copérnico foi perdoado
pela Igreja Católica em 2000, quando finalmente esta se convenceu de que a
Terra é redonda, gira em torno do seu próprio eixo e em torno do sol.
Giordano Bruno, teólogo e filósofo italiano do culo XVI, não tivera a
mesma sorte. Ele também foi chamado a se retratar por sua tese de que
somente um universo infinito seria compatível com a idéia de um Deus infinito.
Tal idéia considerada heresia pela Igreja levou Bruno ao tribunal da Inquisição
157
no ano se 1600. Por esta heresia, ele foi amarrado a uma estaca em praça
pública onde teve a língua perfurada por uma faca e foi queimado vivo
(PESSOTTI, 1984).
Além destes, evidentemente muitos outros cientistas sofreram, pois a
religião continuava envidando esforços para conter qualquer idéia contrária aos
seus preceitos. Seja com a Reforma Protestante, com Lutero e Calvino, ou com
a Contra-Reforma, levadas a cabo principalmente pelas Companhias de padres
católicos, os estudos científicos foram perseguidos e de certa forma,
cerceados.
Como Giordano Bruno ou Copérnico, Paracelso é também perseguido
pelos ideais religiosos e acusado de ateísmo e bruxaria por rejeitar explicações
de cunho essencialmente místico. Felizmente, as perseguições não são
suficientes para detê-lo e o médico e alquimista busca na astrologia, na
alquimia e na medicina, explicações sobre a origem das doenças (e também
deficiências). Neste sentido, deu importante contribuição para o entendimento
das deficiências, considerando-as como um problema médico, algo que até
então, era tratado como de natureza teológica ou moral.
Philipus Aureolus Paracelsus, cujo nome verdadeiro era Theophrastus
Bombastus Von Hohenheim, foi acusado de bruxaria e ateísmo, sendo muito
perseguido pela igreja. O médico e alquimista rejeitava as obras ditas
diabólicas, embora acreditasse em magia, astrologia e alquimia para explicar
os comportamentos de pessoas com deficiência mental, sem descartar,
contudo, as contribuições da medicina sobre as doenças e deficiências. Sua
mais importante obra foi Sobre as doenças que privam os homens da razão,
escrita em 1526, mas só publicada em 1567, após sua morte.
De acordo com Pessotti (1984), é nesta obra que, “pela primeira vez
uma autoridade da medicina, reconhecida por numerosas universidades,
considera médico um problema que aentão fora teológico e moral”. Ainda
segundo o autor, a visão de Paracelso, embora seja ainda supersticiosa, já não
é mais teológica, pois para ele o louco e o idiota (doentes e deficientes numa
visão mais atual):
(...) não são perversas criaturas tomadas pelo diabo e dignas
de tortura e fogueira por sua impiedade ou obscenidade; são
doentes ou vítimas de forças sobre-humanas, cósmicas ou não,
e dignos de tratamento e complacência (1984, p. 15).
158
Durante o século XVI, muitos pesquisadores como Paracelso
representam a oportunidade de se dedicar novas explicações para a questão
da deficiência, agora, procurando se distanciar da superstição e aproximar-se
da ciência. No entanto, a produção destes indivíduos ilustres como foi visto,
não era fácil, sendo necessárias algumas concessões para continuar fazendo
ciência.
Com a publicação de seu livro Sobre as doenças que privam os homens
da razão, Paracelso apresenta novas idéias sobre os indivíduos com
deficiência, pois os considera doentes ou vítimas de forças cósmicas, portanto,
dignos de tratamento e não da fogueira. Não se pode deixar de perceber os
progressos que estão contidos neste novo olhar, embora não descuidemos da
diferenciação promovida no atendimento destes indivíduos oriundos de classes
sociais distintas, pois é bom que se recorde que o acesso ao conhecimento
neste período ainda era bastante restrito a elite da sociedade.
Na mesma direção, o matemático, filósofo e médico Gerolano
Cardano
90
, também trouxe importantes contribuições para o entendimento das
deficiências. Cardano, nascido em Pavia, na Itália, em 1501 foi um cientista e
sábio à moda de seu tempo, mas com um diferencial: um dos primeiros a
creditar aos indivíduos com deficiência a capacidade de aprendizagem formal,
pois até aquele momento a idéia reinante era bem distinta. Por sorte,
professava a religião católica, o que o poupou de inúmeros problemas.
Pessotti (1984, p. 15-16) ressalta que Cardano “uniu ao misticismo
neoplatônico a magia, a astrologia e a cabala, professando também sua crença
em poderes especiais e em forças cósmicas” que justificariam os
comportamentos inadequados de pessoas doentes e deficientes. Estes,
portanto, seriam vítimas destes poderes, podendo também ser possuidores de
90
Cardano tem seu nome em diversas versões nas línguas ocidentais, tais como: Jerôme
Cardan, Hieronymus Cardanus, Hieronimo Cardano, Dzhirolamo Kardano, Jerônimo Cardano
(nome utilizado na obra de Pessoti, 1984), Gerolamo Cardano (nome utilizado na obra de
Soares, 1999) dentre outros.
159
poderes mágicos que encontram-se de maneira desordenada, merecendo,
portanto, orientação e cuidados médicos e não punição.
As principais contribuições de Cardano estão voltadas mais
especificamente para a questão da surdez. De acordo com a maioria dos seus
contemporâneos, os surdos, em razão dos comprometimentos auditivos,
estariam impossibilitados de adquirir conhecimentos. É Gerolano Cardano o
primeiro estudioso a defender publicamente a habilidade dos surdos para o
raciocínio, e, consequentemente para a aprendizagem, abrindo novas
perspectivas para esta demanda, pensada a partir de então, como
potencialmente capazes de adquirir educação e escolarização. Afirmava que “é
um crime não instruir o surdo-mudo” (expressão utilizada na época)
(GOLDFELD, 2002, p. 28).
Até que chegasse a esta compreensão, Cardano realizou inúmeras
pesquisas. Em suas investigações, o médico preocupou-se com aspectos
orgânicos e fisiológicos da surdez, verificando sobretudo o aproveitamento da
condutibilidade óssea, mas não limitou-se apenas a esta matriz. Aprofundou
suas investigações, ainda, nos diferentes tipos de surdez (congênita ou
adquirida), considerando, especialmente, o período de início da perda da
audição: a) antes do nascimento; b) após o nascimento, mas antes do
desenvolvimento da fala; c) após o desenvolvimento da fala ou d) após o
desenvolvimento da fala e da escrita (SOARES, 1999).
Os resultados destas investigações feitas por Cardano o levaram a
afirmar que os surdos estariam aptos ao aprendizado da leitura e da escrita,
pois a surdez não modifica a inteligência, e as limitações apresentadas tinham
relação mais direta com o início da surdez e falta de estímulos recebidos do
que com a própria perda auditiva. Dessa forma, Cardano é o primeiro a
advogar que a surdez (e consequentemente as limitações na fala) não seria
impedimento para o processo de aprendizagem da pessoa surda. Segundo ele,
a escrita poderia representar não somente os sons da fala, mas também as
idéias do pensamento. Sobre isto afirmava que aos surdos era possível: “ouvir
lendo e falar escrevendo” (SILVA, 2006).
Dessa forma, é notório que além das preocupações que Cardano
demonstrou com os aspectos de natureza mais clínica, frutos de sua formação
na área médica, seu olhar também voltou-se para a aprendizagem humana. No
160
entanto, é bom considerar que as descobertas de Cardano favoreceram
apenas os surdos ricos, pois a educação de surdos entre os séculos XVI e XVII
limitou-se exclusivamente aos filhos de nobres que precisavam letrar-se para
assumir responsabilidades econômicas junto às famílias.
Cardano foi um médico de alta reputação nas universidades da época, e
matemático de renome, cujos trabalhos na área mudaram a história da
matemática. Fez a maior parte dos seus estudos em Pádua e mais tarde
mudou-se para Milão, onde publicou importantes obras, como: The practice of
anthmétic and simple mensuration (1537); Ars Magna (1545); Liber de ludo
aleae (1663), dentre outros.
Pelas suas obras, logo se que, não fora somente para as deficiências
que Cardano deixou importantes reflexões. Na matemática foi o primeiro a
introduzir as idéias gerais da teoria das equações algébricas. Na medicina foi o
que primeiro descreveu clinicamente a febre tifóide. Em Física, escreveu sobre
as diferenças entre energias elétricas e magnéticas. E, muito embora,
desenvolvesse uma crença semelhante às de contemporâneos seus, é
inegável o destaque que deu a questão pedagógica.
Suas descobertas, bem como sua opção pelo estudo das deficiências
foram de grande importância para o momento e para a posteridade. Mas, no
contexto social, político e econômico onde viveu, é evidente que não conseguiu
avançar muito com relação à efetivação de uma proposta mais ampla de
educação de surdos, sobretudo para os mais pobres. E nunca é de mais
lembrar que os intelectuais modernos estiveram comprometidos com a
burguesia (ou mesmo com o clero), responsável pelo financiamento das
pesquisas e, conseqüentemente, ainda muito distantes das classes populares.
Chega-se às margens do século XVII, para além do racionalismo, do
universalismo, e do absolutismo político e despontando os germes do
pensamento iluminista. John Locke e suas obras mais importantes: Ensaio
sobre o entendimento humano, Carta sobre a tolerância, Guia para a
inteligência e Alguns pensamentos sobre a educação são alguns exemplos dos
novos ideais modernos.
Locke foi de maneira geral o representante mais fiel do pensamento
crítico “que pretende submeter toda afirmação à prova da experiência”, por
161
isso, é considerada a referência moderna do empirismo, pois suas idéias se
contrapunham radicalmente a qualquer idéia inatista (CAMBI, 1999, p. 316).
Mais importante é que Locke dedica-se à educação, oferecendo
importantes reflexões sobre o papel desta no mundo moderno, mas, é
importante que se identifique o compromisso das idéias de Locke com o
homem nobre, o fidalgo. Em suas obras As instruções para a conduta de um
jovem fidalgo e os Pensamentos referentes às leituras e aos estudos de um
fidalgo, o filósofo deixa isso muito claro.
Por outro lado, é bom considerar que as idéias contidas no Ensaio de
Locke trás implicações éticas e pedagógicas no campo das deficiências,
especialmente da deficiência mental. De acordo com Pessotti, o objetivo central
do Ensaio era “mostrar a natureza e as limitações do entendimento humano
como argumento para fundamentar a tolerância religiosa e filosófica, em lugar
do preconceito e da rigidez dogmática” (1984, p. 21).
Para Locke, a mente é entendida nas crianças e nas pessoas com
deficiência como “uma página em branco, sem qualquer letra, sem qualquer
idéia”; logo, “não idéias e nem operações da mente que não resultem da
experiência sensorial”. Assim, as deficiências não o definitivas, ou
irreversíveis, cabendo a experiência, ou seja, ao ensino papel fundamental no
sentido de beneficiar estes sujeitos (op. Cit.).
As propostas pedagógicas de Locke provocam alterações profundas no
entendimento da aprendizagem humana e também das deficiências. E, apesar
dos desdobramentos que tais idéias têm sobre o atendimento aos indivíduos
com deficiência, encontrarão terreno fértil muito tempo depois,
especialmente a partir da difusão dos ideais humanistas e libertários. As
contribuições de Locke irão influenciar muitos outros educadores dos séculos
seguintes, com destaque para Rousseau, Condillac, e mesmo o médico Jean
Itard.
O novo olhar que a teoria de Locke, de Paracelso e Cardano lança sobre
as deficiências, especialmente como carência de experiências sensoriais ou
ligadas a problemas orgânicos, reafirma a possibilidade de que o mesmo seja
treinado ou educado. Mas, infelizmente tais idéias apenas isentam a família e o
poder público da tentativa de educar as pessoas com deficiência, estimulando
a criação de instituições específicas a este fim.
162
Ainda neste campo, o século XVII testemunha a importante obra de
Thomas Willis, Anatome (1664), produção típica da neurofisiologia seiscentista.
Willis formula hipóteses explicativas sobre as deficiências (especialmente as
mentais) que tendem a afastá-las da visão demoníaca e aproximá-las cada vez
mais das ciências. Willis recorre às idéias de fluido nervoso, suco nervoso e
líquido dos nervos para explicar os problemas mentais, esquecendo de vez, as
explicações teológicas sobre a origem das deficiências mentais (In: PESSOTI,
1984).
A fim de descrever os diversos níveis ou graus de deficiência Willis
utiliza as expressões idiotia e estupidez e afirma que ambas, longe de serem
ações demoníacas sobre os seres humanos, são problemas de origem
orgânica que “dependem de uma falta de julgamento e de inteligência, que não
corresponde ao pensamento racional real” (PESSOTTI, 1984, p. 18).
De acordo com Willis, o “cérebro é a sede da enfermidade, que consiste
numa ausência de imaginação e memória”. Para ele, a imaginação humana,
assim como a memória tem uma localização cerebral específica, a primeira
localizada no corpo caloso ou substancia branca, e a segunda, na substancia
cortical. Assim, se um indivíduo apresenta imbecilidade ou estupidez
(deficiências mentais), “a causa reside na região cerebral envolvida ou nos
espíritos animais, ou em ambos” (op. Cit.).
Infelizmente, embora tantos avanços se façam presentes no campo
cientifico, de acordo com Pessotti (1984), as novas idéias científicas são
acessíveis somente aos estratos mais cultos da sociedade, portanto, também
os mais ricos do ponto de vista econômico, ficando os mais pobres destituídos
destes saberes e, evidentemente, de suas interferências e soluções. Por outro
lado, o poder clerical também ajudará para que as massas fanatizadas
permaneçam alheias aos conhecimentos científicos.
De toda forma, vemos que as explicações sobre as deficiências vão
perdendo seu aspecto sobrenatural e ganhando interesse da área médica.
Também Francesco Torti (século XVII) vem juntar-se a este grupo e aponta
outras causas para a deficiência, não vinculadas a questões sobrenaturais,
mas, físicas e geográficas. Para ele, o ar mau causa doenças (e deficiências),
devendo a pessoa portadora deste mal, mudar de ambiente a fim de recuperar-
se (PESSOTTI, 1984).
163
De uma natureza organicista passa a admissão de fatores ambientais
como determinantes. E mesmo admitindo na atualidade a ineficácia de tais
explicações, é importante notar que as novas idéias, longes da influência
religiosa, assumem pela primeira vez, um papel mais crítico e menos
dogmático, oferecendo as pessoas com deficiência, não somente chances de
vida, mas de cuidados, tratamentos e educação.
Anterior as contribuições científicas, a “repressão à crítica e ao bom
senso efetivamente impedia a demonstração sensata e lógica de que o dogma
levava à superstição, e ambos levavam à idéia fatalista ou expiatória” das
deficiências, levando os indivíduos à exclusão social (PESSOTTI, 1984, p. 20-
21).
A visão médica orientou desde os primórdios as intervenções e estudos
sobre a questão da deficiência, mas não esteve sozinha, alguns educadores
possibilitaram inovações neste campo. De toda forma, a medicalização dos
sujeitos, a correção e a reabilitação foram os elementos que deram maior
visibilidade ao modelo médico-patológico que acompanhou as discussões na
área ainda por muito tempo (CORRER, 2003).
Mesmo alguns dicos, assim como Cardano preocuparam-se com
questões de aprendizagem de pessoas com deficiência. Johann C. Ammam,
John Wallis e Wilhelm Kerger são alguns exemplos de influências dicas na
educação de pessoas com deficiência durante os séculos XVII e XVIII.
O médico holandês Amman renunciou aos recursos da medicina para
dedicar-se à educação de surdos, aprimorando a técnica da leitura labial
91
e da
propriocepção
92
(já utilizada pelo educador e lingüista Helmont), enquanto o
médico inglês Wallis publicou relevantes obras sobre reeducação de surdos e
91
A leitura labial é uma técnica em que sons e palavras emitidas pelo interlocutor são captadas
pela leitura (interpretação) dos movimentos de seus lábios.
Estudos demonstram que mesmo o leitor labial mais experiente consegue captar apenas em
torno de 50% do que se é dito. Boa parte de sua habilidade está ligada à sua capacidade de
intuir o que esta sendo dito, completando o restante, proferido de maneira ilegível, ou mesmo
naturalmente irreconhecível. Sons como “p” e “m”, “d” e “n” e “s” e z”, podem ser facilmente
confundidos entre si (Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Leitura_labial).
92
Propriocepção refere-se a capacidade em reconhecer a localização espacial do corpo, sua
posição e orientação, a força exercida pelos músculos e a posição de cada parte do corpo em
relação às demais, sem utilizar a visão. Resulta da interação das fibras musculares que
trabalham para manter o corpo na sua base de sustentação, de informações táteis e do
sistema vestibular. Este termo foi cunhado por Charles Sherrington (Disponível em:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Propriocep%C3%A7%C3%A3o).
164
também se dedicou à educação destes indivíduos com base na oralização e na
escrita. Kerger, por sua vez, também fez uso da leitura labial, mas acrescentou
outros recursos como figuras, desenhos e gestos para ensinar sua filha surda a
falar, ler e escrever.
Entretanto, não os médicos influenciaram diretamente na história das
pessoas com deficiência. Educadores como Ponce de Leon, Helmont, Bonet,
Pascha e Carrión são importantes referências na educação destes sujeitos
durante o século XVI e XVII.
Segundo Berthier (1984), escritor surdo do início do século XIX, antes de
Ponce de Leon (único mestre bastante divulgado na história da educação de
surdos), muitas tentativas isoladas de instrução foram feitas com surdos.
Muitos destes mestres não tiveram sua obra conhecida e divulgada, o que é
injusto.
De acordo com Berthier (1984), todas elas tiveram nível de sucesso
variável, tanto na França quanto em outras partes do mundo. Embora, não se
tenha muitos detalhes sobre os todos utilizados por estes mestres, sabe-se
que a preocupação central destes educadores – assim como de Ponce de Leon
era “o ensino da escrita, através dos nomes dos objetos” e, num momento
seguinte, o ensino da fala, “começando pelos elementos fonéticos” (In:
SOARES, 1999, p. 20).
Ainda para Berthier, Pascha, em 1578 treinou dois de seus próprios
filhos surdos, mas suas tentativas não tiveram o mesmo reconhecimento
público que Ponce de Leon, considerado o primeiro educador de surdos e
citado pela maioria dos pesquisadores atuais como principal referência na área
(op. Cit.).
Segundo Goldfeld (2002, p. 28):
(...) o monge beneditino Pedro Ponce de Leon ensinou quatro
surdos, filhos de nobres a falar grego, latim e italiano, além de
ensinar-hes conceitos de física e astronomia. Ponce de Leon
desenvolveu uma metodologia de educação de surdos que
incluía datilologia (representação manual das letras do alfabeto),
escrita e oralização, e criou uma escola de professores de
surdos.
Não menos conhecido é Juan Martin Pablo Bonet que publicou o livro
Redação das letras e da arte de ensinar os mudos a falar, em 1620, onde
165
abordava a questão do uso do alfabeto manual. Em 1776 Bonet publica outra
obra intitulada A verdadeira maneira de instruir os surdos-mudos com o mesmo
teor.
J. Bulwer é outro nome que também publicou obras importantes para a
educação de surdos, com destaque para Chirologia (em 1644) e Philocopus
(em 1648), ambos defendendo o uso da língua de sinais na educação de
surdos, pois a mesma era reconhecida nesta época como capaz de
expressar os mesmos conceitos que a língua oral.
De maneira geral, é evidente o surgimento de um novo olhar sobre as
deficiências, afirmando pela primeira vez na história que possibilidade de
que indivíduos que possuem deficiências possam ser treinados ou educados.
Mas, longe ainda de representar uma mudança significativa nas práticas
educativas modernas, o que se viu durante os séculos XVI, XVII e XVIII,
infelizmente, foi a isenção das famílias e o poder blico da responsabilidade
de educar as pessoas com deficiência, estimulando a criação de instituições
específicas para este fim, onde o abandono foi a marca principal.
4.3. Os Novos Espaços de Segregação
A segregação nas palavras de Houaiss (2001) sugere ato ou processo
de isolar, separar, afastar ou discriminar alguém com relação aos demais
membros do grupo. Portanto, sugerem a propagação do preconceito na base
das atitudes da sociedade para com os que se encontram segregados.
Durante os áureos tempos modernos ocorreu exatamente esta conduta
com pessoas com deficiência. E os avanços e conquistas dos tempos
modernos foram os principais ingredientes para consolidação de tais práticas.
A segregação passa a ser a medida adotada e as instituições
responsáveis pelo apartamento dos indesejáveis são os grandes hospitais,
leprosários ou hospícios. Estes abriram suas portas para abrigar
indiscriminadamente doentes, deficientes, delinqüentes, mutilados, livrando a
sociedade de suas figuras desviantes.
166
Figura 12: O interior dos hospícios-hospitais-asilos.
Fonte:
http://images.google.com.br
Uma das principais instituições famosas por segregar inúmeros
deficientes e doentes durante a Idade Moderna foi o Hospital de Bedlam. Na
verdade, o hospital era na verdade um mosteiro que não tinha utilidade no
contexto do século XVI e XVII.
A literatura revela que em 1547, o mosteiro de Santa Maria de Belém,
em Londres, foi transformado oficialmente num hospital-hospício-asilo. Mais
tarde, seu nome foi abreviado para Bedlam e ficou muito conhecido pelas
condições e práticas deploráveis. Abrigou pobres e desvalidos de toda a parte.
Os pacientes mais inofensivos eram obrigados a mendigar pelas ruas de
Londres para trazer contribuições para o hospital, enquanto que os mais
violentos viviam trancafiados e em algumas ocasiões eram atrativos de
espetáculos abertos ao público que rendiam alguns recursos financeiros
(COLEMAN, 1973).
167
FIGURA 13: Hospital Bedlam, 1676
Fonte: PESSOTTI, 1984, p. 25.
Estes hospitais ou asilos foram organizados gradativamente em outros
países para abrigar os mais pobres. O San Hipólito, no México, em 1566; o La
Maison de Charenton, em 1642, na França; outro em Moscou em 1764 e em
Viena em 1784, dentre outros. Nestes hospitais, os pacientes eram confinados
em espaços minúsculos e tratados como animais. Habitualmente eram
acorrentados às paredes de suas celas escuras, por argolas de ferro que
permitiam pouco movimento. Havia também uma cinta de ferro em torno da
cintura, das mãos e dos pés. Estas celas nunca eram varridas ou limpas, não
se recebia cobertores, roupas ou mesmo visitas.
Para Marques, a prática de internamento das pessoas portadoras de
deficiência em instituições filantrópicas ou em hospitais representa, dentre
outras coisas:
“uma espécie de condenação, uma vez que veio favorecer a
identificação do desvio, criando uma espécie de máscara ou
rótulo que só fez fortalecer ainda mais o estigma da inferioridade
em relação às pessoas entregues ao isolamento dos asilos,
clínicas, educandários” (MARQUES, 1998, p. 89).
Ao longo da Idade Moderna, as instituições para pessoas com
deficiência cumpriram dois papéis essenciais: primeiro, resguardou a
sociedade dos malefícios oferecidos pelos deficientes; segundo, fundamentou
168
o discurso de menos valia desses indivíduos. Isso, no contexto da época
significou afastar os indesejáveis para que o progresso social aconteça, tendo
em vista serem estes sujeitos totalmente dispensáveis aos objetivos
econômicos em voga.
Apesar de tantos avanços no campo científico, parece que pouco ou
nada repercutiu sobre o atendimento destinado às pessoas com deficiência.
4.4. A Consolidação de uma Ciência Excludente
Ainda sobre as contribuições científicas da época Moderna, é bom
destacar que os inúmeros estudos
93
na área também ajudaram a construir
algumas fronteiras entre pessoas com deficiência e pessoas sem deficiência,
que estiveram mais fortes que os muros do hospital de Bedlam.
As ciências modernas também foram responsáveis pela definição de
padrões de normalidade oriundos especialmente da medicina (e mais tarde da
psicologia) e chegaram ao campo educativo, com seus equívocos ainda não
resolvidos quanto aos limites entre normalidade – anormalidade, doença –
deficiência.
Para muitos teóricos da época os conceitos de normalidade e
anormalidade são importantes para que se possa diagnosticar, tratar e até
impedir que ocorram comportamentos anormais na sociedade, e apesar de
pensamento tão radical, o autor reconhece que é muito difícil estabelecer os
limites entre um e outro (COLEMAN, 1973).
Mesmo assim, sabe-se que progressivamente a ciência moderna
estabeleceu alguns critérios a partir dos quais sustenta tais idéias até os dias
hodiernos. E, nem sempre tão coerentes e estando longe de ajudar os
indivíduos, seguem rotulando sujeitos e condenando-os a uma vida, quase
sempre de isolamento, de exclusão.
De posse de normas eleitas por um grupo com seus respectivos
interesses, os séculos XVII e XVIII passaram a considerar anormal o indivíduo
que se afasta do modelo socialmente aceito, ou seja, que não se adapta às
normas impostas pelo grupo, afetando o progresso do mesmo e o seu próprio
93
Sobre o tema, ver: FERREIRA, 1995; COLLARES & MOYSÉS, 1985; GARCIA, 1996; KASSAR,
1996; MANTOAN, 1997, ROSA, 1990, SANTIAGO, 2003.
169
bem estar; demonstra dificuldades de ajustamento pessoal; enfim, apresenta
comportamento divergente do modelo socialmente esperado e considerado
correto.
De toda forma, entre os considerados anormais encontramos as
pessoas com deficiência, sendo a deficiência entendida como uma das
classificações de anormalidade, cuja preocupação recai sobre quase todos os
profissionais da área médica e, pouco a pouco, se amplia para outras
especializações.
O fato é que estes padrões serviram muito mais para segregar sujeitos,
afastando-os do convívio com os demais membros da sociedade, do que para
atender suas necessidades. Por isso compreende-se, apoiado nas idéias de
Giroux, que a exclusão moderna utiliza diferentes recursos, institucionalização
é uma destas formas que “tanto como fonte quanto como o efeito de práticas
sociais e institucionais, operam dentro de uma sociedade caracterizada
primordialmente por relações de dominação” (apud FERREIRA, 1995, p. 23).
Sobre este aspecto é importante considerar que a ciência moderna
operou exatamente nesta direção no que diz respeito às deficiências. De um
modo geral, as pessoas passaram a ser colocadas acima ou abaixo da
normalidade (e também fora ou dentro dos hospitais); geralmente, em função
de valores e de atitudes que dependem diretamente do nível cultural, social,
econômico e político de uma determinada civilização. Esta variável cultural que
se encontra na base do julgamento é responsável por estabelecer a distinção
entre as pessoas e grupos, considerando habilidades e capacidades eleitas a
partir de um modelo que busca igualar os indivíduos.
Segundo Ribas:
Vivemos numa sociedade em que os homens são
socialmente desiguais. São sociedades problemáticas,
com profundas divisões entre as classes sociais. Muito
mais critica que a divisão entre deficientes e não
deficientes, (porque) a divisão estrutural permeia todas as
demais divisões. Se a sociedade está dividida pela base
entre ricos e pobres, e (...) por extensão,
ideologicamente, entre superiores e inferiores, melhores
e piores, estas divisões vão acabar por permear todas as
outras (RIBAS, 1989, p. 13-14).
No entanto, como resultado deste julgamento que encontra motivações
sociais, políticas e econômicas se constroem e reforçam estigmas, enquanto
170
manifestação prática das relações de rejeição daqueles que impositivamente
possuem uma marca que os distingue das demais pessoas. A partir do
momento que certos grupos ou indivíduos são marcados pelo estigma, a
sociedade procura de alguma maneira excluí-los, pois os mesmos são
indesejáveis, perturbam ou ameaçam a normalidade instituída (GOFFMAN,
1988).
A exclusividade dos determinantes biológicos em detrimento de outros,
de natureza emocional ou afetiva, além das baixas estimativas de atendimento,
problemas de higiene, acrescentados ao desejo moderno de igualdade leva a
sociedade e as instituições a desenvolverem mecanismos de separação,
rotulação, localização de pessoas e grupos. Esses mecanismos são muito
perigosos, porque produzem verdades e regulam ações, dando-lhes o peso da
verdade, e a partir de então assumem o status de verdade científica, tão
inquestionável para o momento quanto foram explicações místicas, metafísicas
ou clericais de épocas anteriores.
Portanto, num contexto sócio-econômico influenciado por um modo de
agir sistemático e racional, onde trabalho e tempo são fortemente valorizados e
o desperdício inaceitável (herdeiros da ética protestante), o homem moderno
fora chamado a produzir de maneira racional e cada vez mais e melhor,
eliminando os entraves para que alcance os objetivos esperados. Nessa lógica,
os inaptos para completar o projeto moderno de sociedade são colocados em
instituições que podem assegurar para a sociedade (compreendida em termos
civis e políticos) a segurança, e para os excluídos, a assistência.
Além disto, outra questão não menos emblemática cabe ser
reconhecida: quem se beneficiou dos avanços científicos modernos? E, antes
que procuremos responder a esta questão é bom que se destaque que a
ciência nasceu sustentada pelo poder econômico burguês.
André Vesálio, Miguel de Servet, Fracastori, Giordano Bruno, Copérnico,
Galileu, dentre outros são alguns exemplos de notáveis nomes a serviço dos
interesses das elites. Seus inventos, na maioria das vezes, objetivavam
favorecer a classe dominante, inclusive com recursos tecnológicos e bélicos
para ampliar domínios ou assegurá-los.
A fim de ilustrar citamos Leonardo Da Vinci, por exemplo, que não
produziu somente belas obras de arte, mas, dedicou-se também às
171
descobertas e inventos de diversas ordens. Em todos eles, no entanto, nota-se
seu comprometimento com as elites políticas e econômicas
94
que traçaram os
destinos do homem moderno.
Atendendo aos interesses dos reis e governantes italianos projetaram
armas como a besta gigante, morteiros com projéteis explosivos, pontes
móveis que poderiam ser facilmente carregadas, canhão de canos veis e
um carro blindado do qual o homem pudesse atirar em seu inimigo de forma
protegida.
Diante do caos das cidades da época, que cresciam de maneira
desorganizada, idealizou a reurbanização de Milão com ruas retas e
pavimentadas, uma complexa rede de esgoto, dois níveis de calçadas, uma
superior por onde transitariam os pedestres e uma inferior para as carroças e
cavalos. Esboçou um seguro e amplo porto circula, dentre outras.
Figura 14: Projetos de Leonardo Da Vinci
Fonte: http://images.google.com.br
94
Atendendo aos interesses dos reis e governantes italianos projetaram armas como a besta
gigante, morteiros com projéteis explosivos, pontes móveis que poderiam ser facilmente
carregadas, canhão de canos móveis e um carro blindado do qual o homem pudesse atirar em
seu inimigo de forma protegida. Diante do caos das cidades da época, que cresciam de
maneira desorganizada, idealizou a reurbanização de Milão com ruas retas e pavimentadas,
uma complexa rede de esgoto, dois veis de calçadas, uma superior por onde transitariam os
pedestres e uma inferior para as carroças e cavalos. Esboçou um seguro e amplo porto
circular.
172
Desde a matemática ou a física, possibilitando o desenvolvimento
arquitetônico e a construção planejada de mansões e palácios às máquinas a
vapor e a água, além dos demais inventos (guindaste, bomba d’água, lunetas,
etc.) estiveram totalmente voltados para as classes dominantes, no sentido de
garantir sua segurança e advento.
Neste contexto, não seria menos comprometida a produção científica
sobre as deficiências. Quanto a isso, acrescenta-se que várias pesquisas se
destinaram a descobrir a causa das doenças, especialmente infecções, ainda
tão comuns ao mundo moderno. Neste contexto, as deficiências acabaram
sendo beneficiadas, pois muitas deficiências podem se instalar como seqüela
de problemas infecciosos.
No entanto, destacamos dois aspectos especialmente importantes para
nossas investigações: primeiro, a ciência moderna reconhecendo a capacidade
de aprendizagem de pessoas com deficiência e encontrando respostas fora do
misticismo; segundo, a ciência, e, por conseguinte, a educação ainda como
privilégio das classes mais abastadas e distantes da maioria das massas
trabalhadoras.
4.5. A Institucionalização da Deficiência: outro modelo, a mesma exclusão
O que é mais trágico nos tempos modernos é que nem mesmo todo
advento da ciência ou das reformas conseguiram pôr fim ao fenômeno da
exclusão de pessoas com deficiência. Na verdade, outra prática emergiu do
contexto das mudanças sociais que marcaram o mundo moderno, mas, não
menos excludentes: a institucionalização.
Na verdade, neste novo modelo, as instituições especializadas retiram
as pessoas com deficiência do convívio social e a ciência moderna lhe oferece
os recursos necessários para que sejam consertadas e posteriormente (não se
sabe quando) voltem à sociedade.
A nova ética da modernidade, pautada nos interesses da classe
dominante e no modelo capitalista ascendente exigia novas atitudes,
expressões e práticas. Segundo Heller (1982), a sociedade exigiu personagens
capazes de simular serem o que não são, enfim, de erigir o blefe, a fraude e a
pecúnia como seus tópicos principais de comportamento e adoração. Neste
173
sentido, o homem moderno precisa se comportar como aquele que pensa e
vive segundo os seguintes princípios:
Posso sorrir, e matar enquanto sorrio,
E proclamar-me feliz com o que me aflige o coração,
Molhar as minhas faces com lágrimas fingidas
E acomodar a minha cara a todas as ocasiões...
Posso acrescentar cores ao camaleão,
Mudar de forma mais depressa que Proteu
E mandar para a escola o sanguinário Maquiavel!
(SHAKESPEARE, Hamlet, séc. XVII.)
Os valores do mundo moderno, pautados essencialmente nos valores
cada vez mais burgueses são efêmeros; e o homem é feito de aparências; do
que ele pode mostrar, mesmo que não possua verdadeiramente tais
características. Para a pessoa com deficiência a situação era muito
complicada, pois, sua anormalidade patente concedera-lhe o estigma de
incapaz de participar da sociedade e de se igualar ao padrão social vigente.
Por outro lado, a sociedade moderna que almejava liberdade de
pensamento e progresso tecnológico encontraria as alternativas para resolver
os problemas da pessoa com deficiência. Assim, os inventos da modernidade
também atenderam a este fim, mas não estavam distantes do ideal de
enriquecimento e prestígio comuns à burguesia. Portanto, somente se
submetendo às intervenções científicas, especialmente da medicina, e
usufruindo de seus recursos, a pessoa com deficiência poderia alcançar a tão
cobiçada normalidade.
Alguns ajustes seriam necessários até que o sujeito se adaptasse as
condições sociais modernas. Esta conformação, entretanto, exigia
investimentos. E, neste sentido, somente alguns poderiam usufruir dos serviços
ou instrumentos adaptativos para benefício da normalização. Neste contexto, é
bom lembrar que a caridade, defendida nos áureos tempos de domínio do
cristianismo católico, o estava em alta. Agora, o enriquecimento
conquistado através do trabalho era a pedra do toque do mundo preocupado
com o constante desenvolvimento de suas forças produtivas.
Por isso é que para Engels:
174
Sem sombra de dúvida, a vontade do capitalista consiste em
encher os bolsos, o mais que possa. E o que temos a fazer não
é divagar acerca da sua vontade, mas investigar o seu poder, os
limites desse poder e o caráter desses limites (ENGELS, 1985,
p. 145).
Pessotti (1984) ressalta que este modo cada vez mais científico de
entender as deficiências se limita aos estratos mais cultos da sociedade. As
massas, por sua vez, continuaram sem informação e fanatizadas pelas
hierarquias religiosas, e controladas pelos donos do poder político-econômico.
Continua-se, pois, reafirmando que a questão da pessoa com deficiência se
vincula diretamente ao seu pertencimento de classe, podendo por esta
condição a mesma ser incluída ou excluída, em maior ou menor grau, dispor de
tratamento dico ou ser trancafiada em instituições, onde as condições eram
precárias. Tudo dependeria da origem social.
Para os mais esclarecidos (e também mais ricos), paulatinamente,
influenciados pelas idéias modernas, cresce o entendimento das deficiências
como doenças, e não mais como marcas malignas sobre o sujeito, portanto,
pautados em bases mais cientificas que dogmáticas. No entanto, é importante
notar que mesmo nesta compreensão avançada sobre as deficiências,
riscos reais em cometer outras formas de exclusão (ou de segregação),
especialmente porque esta nova tendência assegura a classificação dos
sujeitos deficientes em grupos que apresentam maiores ou menores ameaças
à sociedade.
A partir daí, emergem as expressões classificatórias: os normais e os
anormais; além das subcategorias: os idiotas (imbecis ou estúpidos), os
oligofrênicos
95
, os surdos-mudos, dentre outras
96
.
Nesse sentido, a escola, influenciada pelo olhar médico, cumpriu
consolidar os ideais da ideologia burguesa, sem abrir o do discurso de
95
A Oligofrenia é atualmente sinônimo de Deficiência ou Retardo Mental. A característica
essencial do Retardo Mental é um funcionamento intelectual significativamente inferior à média,
acompanhado de limitações significativas no funcionamento adaptativo em pelo menos duas
das seguintes áreas de habilidades: comunicação, auto-cuidados, vida doméstica, habilidades
sociais/interpessoais, uso de recursos comunitários, auto-suficiência, habilidades acadêmicas,
trabalho, lazer, saúde e segurança (SANTIAGO, 2003).
96
São expressões superadas na atualidade, mas que por muito tempo foram utilizadas para
identificar pessoas com deficiência mental, auditiva, etc.
175
igualdade de oportunidades e, para tanto, vale-se das noções presentes de
capacidades individuais, desigualdades naturais e adaptação para separar os
homens em categorias: normais e anormais, deficientes ou excepcionais
(SANTIAGO, 2003).
As designações: idiota, imbecil, demente, anormal são as expressões
mais utilizadas para se referir às pessoas com deficiência durante os séculos
XVIII e XIX e são reflexos deste tipo de enfoque que a deficiência como um
problema do indivíduo e, por isso, o próprio indivíduo teria que se adaptar à
sociedade ou ele teria que ser mudado por profissionais através da reabilitação
ou normalização.
A idéia de normalização da pessoa com deficiência nasceu como um
paradigma, no sentido de que propôs soluções para o problema, mas este foi
entendido puramente como pertencente aos sujeitos que possuíam a
deficiência.
Neste sentido, e compreendendo a partir de Kuhn o paradigma
enquanto:
Uma constelação de conceitos, valores, percepções e práticas
compartilhadas por uma comunidade científica que apresenta
uma determinada concepção da realidade, estruturada a partir
de um determinado tipo de pensamento (KUHN, 1978, p. 97).
Assim, a normalização não surgiu ao acaso. Ela é um produto histórico
de uma época e de uma realidade concreta, real, e cheia de interesses. É
considerada a base filosófico-ideológica da integração social, enquanto
perspectiva educativa para pessoas com deficiência.
Reconhecidamente um termo controverso, a normalização traz em seu
bojo diferentes idéias. Desde a noção de busca pela normalidade, como de
conformação dos sujeitos desviantes às normas sociais, esse princípio foi
defendido por muitos países e deu sustentação ao processo de
institucionalização da deficiência.
Nesse sentido, foi marcada pelo estereótipo e preconceito, comuns ao
entendimento sobre a pessoa com deficiência tão somente pautado num
referencial puramente médico. No entanto, o mais estranho é que este
176
paradigma tenha sobrevivido por tantos anos inalterado, negando o direito à
diferença de milhares de seres humanos.
Além da visão médica presente na trajetória educacional, do preconceito
evidente, e do desconhecimento, o caráter filantrópico também impregnou o
atendimento das pessoas com deficiência.
Pode-se verificar, assim que, sob um enfoque de caráter assistencialista,
contraditoriamente, a sociedade moderna atesta as capacidades destes
sujeitos, representa-os e organiza serviços e diretrizes políticas e culturais,
compreendendo-os como seres desprovidos de quaisquer condições de
desenvolvimento, de aprendizagem e possibilidades de sobrevivência,
precisando então, da benevolência e altruísmo das pessoas ditas normais.
A maioria das pessoas atendidas por este modelo de educação passou
a vida inteira dentro de instituições, segregadas do convívio social. Essa é uma
fase marcada por atitudes de segregação institucional que desponta, por
conseguinte, na exclusão social em setores como o trabalho, o lazer, as artes,
além da educação.
Das condições da sociedade à época é possível identificar, ainda, dois
aspectos relevantes. O primeiro reflete a concepção de pessoa com deficiência
deficiente enquanto doente, e o segundo diz respeito à questão do direito. É
preciso considerar, contudo, que a representação do direito é um reflexo das
condições sócio históricas e, por isso, tendem a se modificar em função das
pretensões dos grupos que assumem o poder, contando, ainda, com a
influência de toda a gama de recursos disponíveis para sua realização numa
dada sociedade.
Ainda na sociedade moderna, a definição dos direitos não era um
problema filosófico, mas político, sendo um dos maiores desafios, protegê-los e
não fundamentá-los. De certa forma, do Estado é esperado um papel de
articulador dos interesses da sociedade e, nesta perspectiva, Azevedo (1997)
afirma que o projeto de uma determinada sociedade:
(...) É construído pelas forças sociais que têm poder de voz e de
decisão e que, por isto, fazem chegar seus interesses até ao
Estado (...) influenciando na formulação e implementação das
políticas ou dos programas de ação (1997:60).
177
Com relação à sociedade moderna, a mesma autora chama a atenção
para o fato de que esta se organiza por setores e que os mesmos passam a
ser priorizados pelas políticas e programas de ação formulados pelo Estado, na
medida em que são vistos como uma questão problematizada pela sociedade.
Evidentemente, as pessoas com deficiência custaram a ser contempladas nas
políticas do Estado moderno ou mesmo a conseguir um nível de organização
capaz de exigir tais direitos.
Dessa forma, enquanto o direito esteve longe de ser assegurado para
todas as pessoas com deficiência, a educação ou qualquer outro benefício
ficou restrito aos indivíduos com deficiência pertencentes as camadas mais
abastadas da sociedade, enquanto os mais pobres estiveram longe de se
beneficiar com o advento científico e tecnológico dos novos tempos.
Os diferentes inventos para facilitar o acesso aos deficientes físicos; a
comunicação aos surdos ou a visão dos cegos seguiram a mesma lógica.
Custavam caro e nem todos puderam pagar por eles. Assim, era preciso pagar
pelos serviços de saúde e pelos tratamentos e equipamentos que a ciência
moderna colocava a disposição da sociedade, ou do contrário, depender da
filantropia, pouco prestigiada, das instituições religiosas que ainda restavam.
A ciência moderna tinha um destino: melhorar a vida das pessoas, mas
não significava que todos puderam usufruir disto. Na verdade pôde melhorar a
vida das pessoas de posses; os mais pobres continuaram na mesma situação
– com deficiência ou não.
Diante disto, mesmo que a ciência moderna se fundasse no espírito
crítico, superando as superstições e buscando empiricamente os fatos
detalhada e acuradamente, ela não esteve verdadeiramente acessível a todos.
Portanto, para as pessoas com deficiência para quem a ciência traria grandes
contribuições, no final, seus recursos não estariam ao alcance dos mais
pobres.
Alguns inventos surgiram da própria necessidade de quem possuía a
deficiência. A primeira cadeira de rodas foi um exemplo disso, ela foi criada no
século XVII na Alemanha por Stephen Farfler, um homem com as duas pernas
amputadas, e só depois do seu invento, a comunidade científica passou a
dedicar atenção ao fato.
178
As ações pessoais e de cunho assistencialistas ainda acompanham a
vida destes sujeitos. Foi assim com os surdos pobres que perambulavam pelas
ruas de Paris. Charles L’ Eppée, abade naquela cidade num gesto inteiramente
pessoal passa a abrigá-los a fim de ensinar-lhes as primeiras letras, utilizando
a combinação de gestos e o alfabeto manual.
As ações do abade tem início em 1750, quando o mesmo aprende com
os próprios surdos, os sinais utilizados durante o processo comunicativo. De
posse destas informações, L’ Epée cria os sinais metódicos, uma combinação
da língua de sinais com a gramática sinalizada francesa.
Assim, o abade teve imenso sucesso na educação de surdos e
transforma sua casa em escola. Em poucos anos passa a atender cerca de
setenta e cinco alunos surdos de todas as regiões. Segue assim, como um dos
principais representantes do método gestual na educação de surdos, ou seja
que faz uso dos sinais e outros recursos para o ensino de pessoas com surdez.
Nesta mesma época, Heinick, na Alemanha desenvolve método
completamente diferente de ensinar os surdos do seu país. Heinick defendia o
uso da língua oral no ensino de surdos em detrimento da língua de sinais. Por
tal iniciativa é considerado por muitos como o fundador da primeira escola
pública baseada no método oralista, ou seja, que utilizava apenas a língua oral
no processo de educação de surdos (GOLDFELD, 2002).
De certa forma, estas idéias são confrontadas durante todo o século
XVIII, e, por mais que se negue, sobrevivem até hoje entre os defensores do
oralismo e do gestualismo enquanto propostas metodológicas no ensino de
pessoas surdas.
A partir desta experiência, outros estudiosos passaram a se preocupar
com a condição de aprendizagem dos surdos em outras partes do mundo,
como Inglaterra, Estados Unidos, Brasil, dentre outros.
Com os cegos não foi diferente, ainda nos finais do século XVIII, um
jovem cego de Paris, Valentin Haüy reúne as informações e recursos
necessários para fundar o Instituto Nacional dos Jovens Cegos, contagiando
por suas iniciativas pessoais, outros profissionais e autoridades de diversas
partes do mundo. Outros institutos de cegos são fundados: em Liverpool, em
1791; em Londres, em 1799; e ainda em Viena e Berlim, já no século XIX.
179
É neste contexto que se compreende a situação das pessoas com
deficiência ao longo de toda Idade Moderna. Inicialmente, tendo por parte da
Igreja (ou das Igrejas) a mesma intolerância a tudo que revela indícios de
anormalidade; em seguida, vivendo sob as disputas entre travadas entre a
igreja e as ciências, e mais tarde, assistindo os conhecimentos científicos
sucumbirem aos interesses de classe e dependendo de iniciativas caritativas
ou dos próprios sujeitos acometidos pelas deficiências que possuíssem
condições e influência suficiente para contagiar outros.
Na Idade Moderna:
Amadurecem também atitudes de racionalização: de uma ética
da responsabilidade, em relação à da convicção (ideal e
ideológica), que elabora um cálculo, dos custos e dos benefícios
de uma ação, que indaga sobre sua produtividade e eficácia. (...)
depois a institucionalização, do minuciosos controle social,
articulado ao tecido da sociedade, exercido por meio de
instituições ad hoc e que diz respeito à classificação dos
indivíduos e dos comportamentos, à criação de tipologias sociais
diferenciadas (os loucos, os criminosos, os doentes, os pobres,
os órfãos, etc.) que são estudadas e dirigidas em vista ou de
uma integração produtiva na sociedade ou de uma separação
desta, para torná-las inofensivas (CAMBI, 1999, p. 200-201).
De toda maneira, para os mais cultos (conseqüentemente, de classes
altas) não se pode delegar à divindade o cuidado de suas criaturas
deficientes, nem se pode, em nome da e da moral, levá-las à fogueira ou às
galés. Não há lugar para a irresponsabilidade social e política diante das
deficiências, mas, ao mesmo tempo, não vantagens para o poder político
em assumir esta tarefa e, pior ainda, a maioria da população pobre o possui
acesso a tais idéias. Mas, dentro do projeto moderno de sociedade é preciso
conformar a sociedade, dominando os sujeitos e principalmente, suprimindo os
desvios existentes; a deficiência é um deles. Mas, o lugar de conformação de
pobres não é o mesmo lugar dos ricos.
De acordo com Goffman (1988), se os indivíduos são controlados a
partir do próprio corpo para alcançar suas consciências, no caso de pessoas
estigmatizadas esta ação é ainda mais organizada e até violenta.
Nesta perspectiva, Foucault (2007) entende que esse trabalho complexo
de controle do corpo e das consciências dos sujeitos é exercido pelas
180
instituições destinadas ao confinamento, especialmente as educativas que são
dirigidas essencialmente pela mão do Estado Moderno, sob o pretexto de
normalizá-los ou simplesmente escondê-los.
Ainda para o autor, embora, se saiba que estes ambientes de
confinamento proliferaram durante o século XVII e XVIII, poucos sabem que
estes lugares são destinados aos pobres (FOUCAULT, 1979, p. 49).
É, pois, nesta direção que se multiplicam as diferentes instituições de
controle. Desta forma, têm-se os hospitais para curar e endireitar os corpos e
as mentes doentes ou deficientes; os manicômios, que separam a loucura da
razão, livrando a vida social do perigo; as prisões, que reabilitam e reeducam
os inadaptados; e as escolas, que formam e conformam as gerações futuras
dentro dos padrões de normalidade, de eficiência e de produtividade social
(FOUCAULT, 1979; GOFFMAN, 2005).
Para as pessoas com deficiência, sem dúvida algumas instituições
que assumiram a responsabilidade de controle, no caso, os asilos e os
hospícios para os pobres. Os hospícios que não abrigavam apenas os doentes
mentais, mas também deficientes, prostitutas, delinqüentes, se prestavam a
segregar em suas instalações meros casarões todos os que ameaçavam a
sociedade. Em 1778, o Salpêtrière, em Paris, abrigava 8.000 pessoas.
Estes ambientes eram:
(...) essencialmente uma instituição de assistência aos pobres.
Instituição de assistência, como também de separação e
exclusão. O pobre como pobre tem necessidade de assistência
e, como doente, portador de doenças e de possível contágio, é
perigoso. Por estas razões, o hospital deve estar presente tanto
para recolhê-lo, quanto para proteger os outros do perigo que ele
encarna (FOUCAULT, 1979, p. 101).
Esquirol, médico francês, em seus relatos sobre o atendimento das
pessoas internadas nas instituições França do século XVII e XVIII, coloca:
Vi-os nus, cobertos de trapos, tendo apenas um pouco de palha
para abrigarem-se da fria umidade do chão sobre o qual se
estendiam. Vi-os mal alimentados, sem ar para respirar,sem
água para matar a sede e sem as coisas mais necessárias à
vida. Vi-os entregues a verdadeiros carcereiros, abandonados a
sua brutal vigilância. Vi-os em locais estreitos, sujos, infectos,
sem ar, sem luz, fechados em antros onde se hesitaria em
fechar os animais ferozes, e que o luxo dos governos mantém
181
com grandes despesas nas capitais (apud FOUCAULT, 2007, p.
49).
Nas classes favorecidas economicamente, o deficiente ou doente é
confiado ao médico, e este se responsabilizava pelos cuidados em hospitais
construídos pela burguesia com uma suntuosidade que parece irônica para
abrigar, prestar serviços de saúde e alimentar estes indivíduos.
Ainda segundo Foucault (1979), o personagem ideal dos hospitais
durante os anos iniciais do período moderno o era o doente, tal como o
concebemos na atualidade, mas, o pobre que estava morrendo e que
necessitava dos últimos cuidados e, evidentemente, do último sacramento.
Portanto, o hospital é o lugar onde se deve morrer. Dessa forma, as pessoas
que atendiam neste ambiente não eram os profissionais destinados a tratar ou
curar os enfermos, mas, os religiosos e leigos que faziam obras caritativas com
vistas à salvação espiritual, tanto do moribundo, quanto sua própria.
registros de hospitais da época que revelam que nestes ambientes
se misturavam todos os pobres que apresentassem doenças ou deficiências,
mas, também, os considerados devassos ou mesmo as prostitutas. Enfim, era
uma espécie de “instrumento misto de exclusão, assistência e transformação
espiritual” dos envolvidos, onde a função médica ou curativa inexiste (op. Cit.,
p. 102).
Este foi o principal espaço reservado às pessoas com deficiência pobres
durante os primeiros séculos da modernidade. Com este intuito, as primeiras
“instalações para pessoas deficientes eram construídas em áreas rurais; eram
instituições de exclusão social(SILVA, 1996, s/p).
O tratamento e a compreensão da pessoa com deficiência também
durante os tempos modernos estão diretamente relacionados como seu
pertencimento de classe, que agora reinventados, com outros estilos de
vida, de relações sociais, de valores, tradições e instituições. Estas mudanças
afetam os sujeitos e as coletividades.
Sobre isto Bianchetti destaca o dilema do corpo deficiente no contexto
da Modernidade:
O corpo passou a ser definido e visto como uma máquina. Daqui
vai emergir um resultado desastroso, como veremos
posteriormente: se o corpo é uma máquina, a excepcionalidade
182
ou qualquer deficiência nada mais é do que a disfunção de uma
peça. Se na Idade Média a deficiência está associada ao
pecado, agora está relacionada à disfuncionalidade (1995, p.12),
Com esta compreensão, Bianchetti abre espaço para que se reflita sobre
a quem interessaria o corpo funcional e quais as limitações que a disfunção
representaria no contexto moderno. Certamente, os grandes obstáculos se
voltavam ao trabalhador que necessitava da força física para produzir e,
conseqüentemente, se manter. Logo, um indivíduo com deficiência e pobre se
não era pecador, era improdutivo.
A prática assistencialista está, portanto, diretamente relacionada ao
nascimento das instituições de confinamento de pessoas desviantes. De
acordo com este modelo o atendimento aos mais pobres é, pois, objeto de
práticas institucionais especializadas. Dessa forma, surgem os hospitais, asilos,
orfanatos, hospícios responsáveis pelo atendimento especializado a certas
categorias da população. É bom lembrar que estas estruturas sociais vão
ficando cada vez mais complexas e sofisticadas, e com o passar do tempo
também se profissionalizam.
Para Walber & Silva (2006, p. 2):
A condição social dos pobres que recebem assistência suscita
atitudes que vão desde a comiseração até o desprezo. Eram
desprezados pela própria condição de pobreza na qual se
encontravam e pelas condições físicas de deficiência e doença,
mas também recebiam comiseração que eram "alvo" da boa
ação de outras pessoas. Essa contradição se encontra em
modos específicos da "gestão da pobreza", na economia da
salvação: mesmo desprezado, o pobre pode, aceitando sua
condição de pobreza, auxiliar os ricos para que esses pratiquem
a caridade - a "suprema virtude cristã" - e obtenham assim a
salvação. Dessa forma, os pobres também obteriam a sua
própria salvação.
Neste sentido, a pobreza é também um valor de troca “na economia da
salvação, assim como a doença e o sofrimento, prova inconteste da pobreza
não econômica, mas física”. Por isto, pessoas doentes e com deficiência
permanecem conscientes ou não - na condição de pessoas inferiores,
incapazes, dignas de pena e, portanto, merecedoras da assistência, da
caridade, da esmola; e não de direitos e políticas sociais.
183
Para Castel (1998), essas pessoas fazem parte de uma zona
intermediária de vulnerabilidade social, que pode se dilatar, avançando sobre a
integração e alimentando a desfiliação em casos de crises econômicas,
aumento do desemprego ou do subemprego.
Pessoas com deficiência, portanto, fazem parte dessa zona de
vulnerabilidade social que alimenta a caridade e o assistencialismo de um
grupo que está longe de compreender a diferença entre direito e filantropia.
São pessoas, portanto, sem chances de inserir-se, de fato, na vida social. Na
grande maioria, estão condenadas a viver fora da escola, do mercado de
trabalho, da vida pública, etc.
São pessoas marcadas pela incapacidade, por isso, não tem chance de
galgar outros espaços, sonhar com outras possibilidades. Vivem condenadas
ao analfabetismo ou ao pouco nível de instrução e acabam acostumadas a
receber auxílio e assistência de diversos grupos sociais.
De certa forma, a prática da caridade e do assistencialismo é
responsável por manter as pessoas com deficiência nesse lugar de
necessitados, impedindo que os mesmos sonhem com direitos garantidos e
inclusão social; elas se sentem indignas de estar no mesmo nível de
compromisso social e usufruto de direitos que as demais.
Evidentemente, que para os oriundos de classes mais favorecidas
economicamente escapam à caridade alheia, pois tem os recursos para lutar
por espaços igualitários. Conseqüentemente, aos mais pobres restaram
diversas formas de exclusão, evidentemente, as mais duras. E, embora não se
negue que a deficiência em si é alvo de estranheza, o que tem colocado os
sujeitos em situação lastimável de exclusão, é a classe social a que ele
pertence, muito mais que as deficiências em si.
184
Como o Estado nasceu da necessidade de conter
o antagonismo das classes, e como, ao mesmo
tempo, nasceu em meio ao conflito delas, é, por
regra geral, o Estado da classe mais poderosa.
(...). Quando for possível falar de liberdade, o
Estado como tal deixará de existir.
Friedrich Engels
185
5. A EXCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA NA
CONTEMPORANEIDADE
5.1. O Mundo Contemporâneo e os Processos de Exclusão
A sociedade que começou a surgir com a Revolução Industrial na
Inglaterra, em meados do século XVIII, atinge seu esplendor no decorrer do
século XIX. Chamada muitas vezes de Sociedade Industrial ou de Sociedade
Capitalista, ela se caracterizou pelas idéias de liberdade de mercado, pela
mudança do foco da economia do comércio para a indústria -, pela
propriedade burguesa dos meios de produção e, por fim, pelo trabalho
assalariado.
Do ponto de vista ideológico, esta sociedade foi marcada pelo triunfo do
liberalismo; no plano político a marca foi a democracia representativa e no
social, no entanto, inúmeras foram as crises e tensões entre as principais
classes do novo modelo produtivo: burguesia e proletariado. Sob o ponto de
vista econômico, o liberalismo significava liberdade plena às empresas,
limitando-se a intervenção do Estado, pois segundo os liberais, somente assim
se poderia chegar ao bem estar de todos, corrigindo as injustiçãs sociais. Esta
foi a bandeira de luta da burguesia (STOER ET ALL, 2004).
Por outro lado, o proletariado vítima das péssimas condições de trabalho
precisava levantar sua própria bandeira. Neste sentido, o socialismo foi este
espaço de luta e representatividade dos trabalhadores. Seguiram-lhe alguns
movimentos organizados como o Movimento Operário, a Liga dos Justos, Liga
dos Comunistas, dentre outros. Os sindicatos também floresceram neste
período, e junto, algumas correntes ideológicas, como o anarquismo, o
comunismo e o marxismo.
A luta de classe entre burguesia e proletariado se estabelece e torna-se
cada vez mais acirrada. Em última instância pode-se dizer que as tensões
entre estas duas classes se instala porque a promessa do capitalismo não se
realiza.
Em seu sentido mais pragmático, desde os primórdios, a Revolução
Industrial significou a substituição da ferramenta pela quina, e contribuiu
186
para consolidar o capitalismo como modo de produção dominante. Esse
momento revolucionário, de passagem da energia humana para motriz, é o
ponto culminante de uma evolução tecnológica, social e econômica, que vinha
se processando na Europa desde a Baixa Idade Média.
Evidentemente, o resultado de tantas transformações culminou com a
certeza de que baseados numa outra lógica (presentes no iluminismo
98
), a
sociedade se tornaria mais justa e igualitária. No entanto, apesar de todo o
progresso econômico, as condições de trabalho não foram nada agradáveis,
chegando a ser desumanas. Salários, condições, direitos e garantias não eram
ponto de discussão entre os proprietários dos meios de produção.
Evidentemente, em diferentes contextos ocorreram mobilizações,
revoltas, guerras, mortes e poucos acordos. Assim, o século XIX pode ser
realmente o século da luta, dos conflitos, da guerra, pois não apenas as
conquistas, avanços tecnológicos e a expansão teritorial marcaram o período.
Mas, não fora esta a única crise do século. O continente europeu
cresceu internamente, mas também se expandiu para fora de seus domínios,
conquistando terras, pessoas e novas riquezas, principalmente na África e
Ásia. No entanto, estas o foram ações pacíficas, pois o homem europeu não
estava satisfeito em conquistar somente territórios, nem dominar a força outros
povos e culturas; era preciso justificar a razão do domínio de maneira
incontestável.
Com estes propósitos, a Europa teve na ciência seu melhor aliado, pois
esta lhe confere um saber superior e acessível a poucas pessoas,
demonstrando que os europeus, enquanto possuidores do saber eram povos
mais desenvolvidos. Conseqüentemente, suas ações para com populações
inferiores longe de representarem atitudes bárbaras, eram salvadoras.
O mesmo argumento foi suficiente pra o Imperialismo, as guerras
mundiais (primeira e segunda), o Facismo, o Nazismo e todo o conjunto de
98
O Iluminismo manifestou-se sobretudo no campo da filosofia, mas acabou se refletindo ainda
na política, na economia, nas artes e na literatura. Os pensadores deste período centravam
suas idéias no indivíduo, tendo como referencial os novos ideais burgueses que se
desenvolveram desde o fim da Idade dia. Portanto, a principal característica do movimento
que começou na França e Inglaterra e se espalhou por toda a Europa, era a valorização da
ciência e da racionalidade como forma de eliminar a ignorância dos seres humanos. Alguns
importantes nomes desse movimento foram: Voltaire, poeta, escritor e filósofo francês;
Montesquieu, filósofo e político francês; Rousseau, filósofo e compositor suiço.
187
ações desumanas e cruéis que se alastraram ao longo do século XIX e XX (e
por que não dizer que permanecem ainda hoje?).
Esta forma de se compreender o mundo, isto é, baseada no cientificismo
que transforma as realidades sociais - frutos da história - em verdades
absolutas e incontestáveis porque comprovadas pela ciência, negando
inclusive a totalidade e singularidade do que é humano, tornou-se em pouco
tempo a tônica de todo o pensamento do Velho Continente (e mais tarde, do
mundo), espalhando-se para diversos campos do saber, inclusive, para os
saberes necessários à compreensão da deficiência.
Não se pode negar que os avanços da ciência e da tecnologia
trouxeram importantes conquistas ao homem moderno, proporcionando uma
vida mais tranqüila e, acerto ponto, mais saudável e duradoura. Durante o
século XIX, descobertas e inventos proporcionaram alterações em diversas
áreas da vida moderna. O telégrafo, de Samuel Morse (1844); a teoria da
origem das espécies, de Charles Darwin (1858); o primeiro poço de petróleo,
de Edwin L. Drake; a lâmpada incandescente, de Thomas Edison (1879); a
geladeira doméstica, de Car Von Lind (1879); a vacina anti-rábica, de Louis
Pasteur (1885); o motor a gasolina, de Gottieb Daimbu (1885); o rádio, de
Guglirlmo Marconi (1895) e o cinema, com os irmãos Lumiere, além dos raios-
X, com Wilhelm Rontgen também são inventos do ano de 1895 que juntos aos
demais compõem o quadro das principais invenções deste século que
facilitaram a vida do homem. Mas, o culo da ciência também deu suas
contribuições para que o ser humano aprimorasse seu potencial destrutivo,
com a invenção da dinamite (por exemplo), em 1866, por Alfred Nobel. Este é o
paradoxo dos tempos modernos.
O século seguinte não foi diferente. O século XX é farto de descobertas
e inventos que fascinam o homem, e ao mesmo tempo em que, promovem
mais vida, também conseguem abreviá-la. É um século de muito brilhantismo,
mas também sangrento, pois neles se encontram as maiores e piores guerras
que a humanidade promoveu. Não é a toa que Eric Hobsbawn chamou este
século de era dos extremos (1997).
De fato, é um século intenso. Teorias são construídas, como a da
radioatividade (1906); dos neurotransmissores (1914); da relatividade (1916); a
quântica (1926) ou do Big Bang por George Lamaitre (1927). É também o
188
século dos tratamentos e combate a várias doenças, além de intervenções
cirúrgicas antes impensadas. Tudo isso fica possível com o surgimento do
eletrocardiograma (1903); do mapeamento da estrutura do átomo (1911);
descoberta das vitaminas A e do complexo B (1913); da sintetização da morfina
(1925); descoberta da penicilina (1928); criação do microscópio eletrônico
(1933); da invenção do primeiro computador (1941); do mapeamento da
estrutura do DNA (1953); invenção do coração artificial (1957); utilização do
raio laser (1960); descoberta da tomografia computadorizada (1971); ou da
identificação do vírus da AIDS (1982).
Por outro lado, outras descobertas menos gloriosas também ocorreram
no último culo. Como exemplos disso, podemos citar a invenção do tanque
de guerra, em 1915; ou a descoberta do dano que a humanidade causou na
camada de ozônio (1985). São acontecimentos que diagnosticam o paradoxo
vivido pelos nossos tempos modernos, entre um homem que busca perpetuar a
vida (como no caso da clonagem 1997) e ao mesmo tempo está face a face
com a destruição que causa a si mesmo e a seu único lar: o planeta terra.
Talvez, por já ter se dado conta de suas próprias contradições, o homem
moderno procura novos mundos e oportunidades de vida, para quando ele
houver destruído a sua própria. A descoberta de Plutão, em 1930; a criação da
nave espacial, 1957; do satélite, em 1962; a ida à lua, em1969; o bebê de
proveta, em 1978 e o telescópio espacial, em 1990, talvez sejam testemunhos
desta triste certeza.
Estes e outros acontecimentos deram ao homem moderno, outras
oportunidades e condições de vida e impulsionaram novas descobertas e
inventos não menos importantes, especialmente ampliando os espaços de
atuação do ser humano, acelerando o tempo produtivo e encurtando distâncias,
antes vistas como obstáculos intransponíveis. O celular (1973), a internet
(1983) e a TV digital (1998) são alguns desses importantes inventos que
encurtaram distâncias e favoreceram a comunicação e a aproximação entre as
pessoas (embora, alguns acreditem que estamos cada vez mais distantes uns
dos outros).
No que diz respeito ao modo de produção, novas idéias ofereceram ao
sistema capitalista maior eficiência e produtividade. A criação da linha de
montagem industrial, por Henry Ford (1913) foi um exemplo disso, que
189
provocou revoluções nas relações de trabalho, mas também na vida cotidiana
das pessoas, inaugurando um modelo de produção em massa que
revolucionou a indústria automobilística na primeira metade do século XX o
Fordismo
99
.
É bom que se considere, no entanto, que anterior ao fordismo, temos o
taylorismo
100
, enquanto um modelo de administração desenvolvido por
Frederick W. Taylor, que caracteriza-se pela ênfase nas tarefas, objetivando-se
aumentar a eficiência ao nivel operacional. Certamente, a influência deste
sobre o fordismo é perceptível.
Estes modelos não exercem influências somente no campo da
economia, mas em todas as áreas que com ela estabelece relação. Assim,
fortaleceram uma sociedade onde a organização das atividades deveria ser
bem planejada a fim de que tudo fosse realizado com eficiência e rapidez, sob
o controle de uma ou mais pessoas e com base na hierarquia e disciplina.
De acordo com Rago & Moreira (1984), foi esta a tendência que
predominou na indústria capitalista ao longo do século XX, e é um modelo que
ainda está bem vivo em algumas organizações, a despeito de todas as
inovações. Dessa forma, a tendência em se padronizar os comportamentos no
mundo do trabalho com ênfase na eficiência e rapidez possibilitou,
evidentemente, a exclusão de milhares de sujeitos deste ambiente profissional
e como esta prática se estende a vida social, assumindo diversas facetas, mais
excluídos são produzidos continuamente. Destacam-se evidentemente as
pessoas com deficiência, cuja produtividade, eficiência e rapidez
permaneceram desacreditadas.
99
Uma das principais características do Fordismo foi o aperfeiçoamento da linha de montagem.
Os veículos eram montados em esteiras rolantes que movimentavam-se enquanto o operário
ficava praticamente parado, realizando uma pequena etapa da produção. Desta forma não era
necessária quase nenhuma qualificação dos trabalhadores (GRAMSCI, 2008).
100
Taylorismo é um modelo de produção que vem consolidar o processo capitalista onde o
trabalhador perde a autonomia e a criatividade acentuando a dimensão negativa do trabalho
(RAGO & MOREIRA, 1984).
190
5.2. Ciência, deficiência e educação nos séculos XIX e XX
Dentre os nomes dos séculos XIX e XX, cujas produções influenciaram
diretamente a vida das pessoas com deficiência, destacam-se: Itard, Pinel,
ainda o Abade l’Épée, Pinel, Esquirol, Seguin, Pestallozzi, Maria Montessori,
Bethier, Desloges, Louis Braille, Helen Keller, Binet, Simon, dentre outros.
Alguns destes foram pessoas com deficiência que marcaram a história
contemporânea com suas vidas e seu exemplo. Outros somente pesquisadores
preocupados com o processo de desenvolvimento deste grupo.
Infelizmente, a visão dos próprios indivíduos que possuem deficiência é
pouco difundida, o que reafirma a idéia que, mesmo com todo o progresso que
a ciência moderna trouxe para a compreensão do homem e neste sentido, das
pessoas com deficiências, enquanto indivíduos potencialmente capazes, a
sociedade guarda seus conceitos e preconceitos ainda pautados no misticismo,
reforçando estigmas.
Destacamos de maneira especial as contribuições de Louis Braille que
produziu seu método, ainda muito jovem (15 anos), a partir das próprias
necessidades como indivíduo cego. Além dele, destacamos os surdos
Ferdinand Berthier e Pierre Desloges, pouco estudados no meio acadêmico,
mas que trazem mais que reflexões e investigações sobre o assunto; revelam a
própria experiência de ser pessoa com deficiência e os reclames de seus
respectivos contextos sócio-históricos. Por fim, não é possível esquecer Helen
Keller, um dos mais célebres exemplos de superação no campo das
deficiências múltiplas (até então desconhecidas conceitualmente).
Sobre Charles-Michel de L' Épée, abade francês, muito foi dito no
capítulo anterior. Apenas é possível acrescentar que suas ações como
educador e filantropo influenciaram muitos dos que lhe seguiram, inclusive
Bethier e Desloges, sem prejudicar o olhar crítico dos mesmos.
No caso de L’’ Épée, além das questões de ensino, ele também
pretendia a salvação dos jovens surdos das regiões pobres de Paris, por isso,
é considerado por estudiosos como Berthier, por exemplo, como um dos
poucos educadores de seu tempo preocupado com as camadas excluídas
economicamente. Certamente motivado por questões religiosas e caritativas, L’
191
Epée é o primeiro educador de surdos que congrega surdos de diferentes
classes sociais em sua escola.
Seu método baseado na linguagem própria dos surdos fez história nos
séculos seguintes e fortaleceu as teorias filosóficas que emergiam durante o
século XIX: as teorias gestuais, pautadas no uso da língua natural do surdo, a
língua de sinais combinadas com a gramática da língua oral
101
. Estas idéias
encontraram muitos opositores e abriram uma disputa acirrada com os
oralistas, como Deschamps, Bonet, dentre outros.
L’ Épée começou a desenvolver um sistema de instrução da língua
francesa e nos primeiros anos de sua experiência 1760, o seu abrigo tornou-
se a primeira escola de surdos, a nível mundial, aberta ao público. O Abade
morreu no início da Revolução Francesa (1789) e seu abrigo foi tranformado
em 1799, no Instituto Nacional de Surdos-Mudos de Paris, quando passou a
ser financiado pelo governo (SANTIAGO, 2003).
Ferdinand Bethier, surdo congênito, nasceu em 1803. Iniciou seus
estudos aos oito anos de idade no Instituto de Jovens Surdos de Paris, como
atualmente é conhecida a escola que L’ Epée fundou. Considerado aluno
brilhante, tornou-se professor e criou a primeira organização de surdos do
mundo, inaugurando o movimento de luta de pessoas surdas.
Berthier escreveu vários livros e numerosos artigos sobre a surdez,
focalizando a pessoa surda, sua educação e seus direitos. Demonstra em suas
obras muita criticidade. Embora, tenha tido muitas influências de L’ Epée e
escrito sua biografia, Berthier condenava o modo como o abade havia se valido
da língua de sinais francesa da época para criar o que ele havia chamado de
Sinais Metódicos (atualmente conhecido como francês sinalizado).
naquela época, Berthier enquanto surdo reconhecia o equívoco no
uso de sistemas orais sinalizados, pois estes não correspondem a línguas de
sinais, ou seja, conservam a estrutura “da língua oral considerada, e
emprestam o léxico da língua de sinais do país em questão de modo mais ou
menos sistemático”. A visão que o surdo Berthier tinha sobre o sistema de
L'Epée era bem próxima da compreensão atual sobre os sistemas orais
sinalizados (SOUZA, 2003, p. 4).
101
Esta metodologia ficou conhecida como bimodal que sustentou a filosofia da Comunicação
total. Para saber mais sobre o assunto ver: Goldfeld, 2002.
192
Outro importante nome é o de Pierre Desloges, ele nasceu em 1747, em
Le Grand-Pressigny, e ficou surdo aos sete anos, provavelmente, devido a
alguma doença infecto-contagiosa comum à época (sarampo, varíola, etc.).
Aos vinte e um anos de idade, quando se mudou para Paris passou a ter
contato com outros surdos e somente aos vinte e sete anos aprendeu a língua
de sinais francesa.
A situação sócio-econômica de Desloges era muito difícil; o mesmo
viveu perambulando pelas ruas e foi nestas condições que fez os seus
primeiros aprendizados com outros surdos que viviam em situação semelhante.
Desloges foi a primeira pessoa surda a publicar um livro. Nele o autor
defende que a língua de sinais dos surdos era o veículo mais apropriado para
ensiná-lo e explica, logo no início de seu prefácio, o motivo que o levou a
escrever:
Eu sou invariavelmente questionado sobre o surdo. Mas muito
freqüentemente as questões são tão risíveis como absurdas;
elas meramente provam que quase todas as pessoas têm as
mais falsas idéias possíveis sobre nós; poucas pessoas têm uma
noção de nossa condição, de nossas capacidades, ou de nosso
modo de comunicação uns com os outros em língua de sinais.
(...)
Como qualquer francês que veja sua língua depreciada por um
alemão, que conhece no máximo poucas palavras do francês,
me sinto extremamente obrigado a defender minha própria
língua dos falsos ataques dirigidos contra ela por Deschamps
(...) (DESLOGES, 1984: 30).
Desloges reconhece a importância das ações de L’ Epée, mas não
perde seu olhar criterioso.
De fato, uma vez que Epée concebeu o nobre projeto de se
devotar à educação do surdo, ele sabiamente observou que eles
possuíam uma linguagem natural para se comunicarem entre si.
Como essa linguagem não era outra senão a linguagem dos
sinais, ele percebeu que se ele conseguisse aprendê-la, o triunfo
de sua empreitada estaria garantido. (...) (no entanto), o abade
Epée não foi o inventor ou criador dessa linguagem; muito pelo
contrário, ele a aprendeu do surdo (DESLOGES,1984: 34).
Autores como Bethier e Desloges de fato anteciparam muito do que se
transformou em preocupação dos estudiosos da área. Infelizmente, foram
pouco considerados e respeitados em suas “falas” e em suas obras.
193
Sobre as deficiências, a sociedade do século XIX esteve mais atenta às
produções de médicos, fisiologistas, filósofos, e, mais tarde, de psicólogos,
principalmente a partir de 1879, com a criação do primeiro laboratório
experimental na área.
Nesta direção destacamos a figura de Jean M. Itard, médico e
pesquisador das deficiências humanas, além de diretor da instituição de
surdos-mudos de Paris, após a saída de L’ Epée.
Com relação aos surdos, suas idéias eram contrárias as de Bethier e
Desloges (e do próprio L’ Epée), pois defendia o uso da leitura labial e da
oralização e criticava o uso de gestos ou sinais. Com Itard coadunam as idéias
do abade Deschamps, que publicou um livro sobre educação de surdos
intitulado Como substituir o ouvido pela visão. A partir deste período se
intensifica um conflito entre oralidade e gestualidade na educação de surdos.
Com isso, percebe-se que a educação da pessoa surda vive desde então
continuamente marcada pelo conflito entre a língua de sinais e as línguas orais.
Sobre a deficiência mental, outra área de preocupação de Itard, a defesa
também era pela educação dos mesmos. Sobre o assunto produziu suas mais
importantes obras: A Educação do Homem Selvagem (1810); Memórias sobre
o desenvolvimento de Victor de l’ Aveyron (1801). Realizou ainda muitos
trabalhos sobre a gagueira, a educação oral e a audição, sendo apontado
como um dos precursores da fonoaudiologia, campo em que criou diversas
técnicas e instrumentos (PESSOTTI, 1984).
Itard conquistou fama de teórico da fala e da audição e desenvolveu
técnicas para o ensino da leitura labial e o uso da expressão oral como
principais recursos no processo de educação de surdos. suas idéias são
bastante influenciadas pelos pressupostos de Locke e Condillac. É assim,
considerado o pioneiro no campo da oligofrenia.
A oligofrenia foi a expressão utilizada ainda no século XIX para designar
a gama de casos onde um déficit de inteligência, compondo a chamada
tríade oligofrênica: debilidade, imbecilidade e idiotia. Felizmente estes termos
hoje estão em desuso e para identificar tais casos utiliza-se a expressão
pessoa com deficiência mental ou com déficit intelectual, identicando aquele
indivíduo que apresenta:
194
Um funcionamento intelectual significativamente inferior à média,
acompanhado de limitações significativas no funcionamento
adaptativo em pelo menos duas das seguintes áreas de
habilidades: comunicação, auto-cuidados, vida doméstica,
habilidades sociais/interpessoais, uso de recursos comunitários,
auto-suficiência, habilidades acadêmicas, trabalho, lazer, saúde
e segurança (OMS, 1990).
Ainda sobre as deficiências auditivas, a figura do dico francês Jacob
Rodrigues Péreire também representa um importante nome para os progressos
que se seguiram. Péreire preocupou-se com a questão da surdez em razão de
possuir uma irmã surda. Por ela passou a desenvolver pesquisas na área e
provou que a pessoa surda consegue perceber pelo tato as vibrações toráxicas
e guturais, além de captar muitos movimentos labiais feitos pelo outro.
De posse destas informações, criou o método que consistia em ensinar
“a articulação de fonemas e palavras a partir da sensação tátil e visual”,
somada às auditivas, utilizando ainda, a memória com base nos movimentos
datilológicos, ou seja, sinais criados por ele que não tinham relação direta com
o alfabeto manual, mas referiam-se a movimentos labiais ou orais (PESSOTTI,
1985).
Jacob ensinava também a percepção e reprodução da voz humana, a
partir do tato e de vibrações sonoras. A entonação e a acentuação tônica
também estavam presentes no método. Gesto e compasso compunham o
processo que continha os princípios básicos dos sinais digitais e da operação
articulatória, adotados anos mais tarde por seu discípulo, o abade Deschamps.
No campo da visão, o destaque foi Louis Braille, cego aos três anos de
idade, após um acidente com uma das ferramentas do pai. Ele é considerado o
criador do Sistema Braille um digo de leitura e escrita para cegos, em
1825.
Na época ele era estudante do Instituto dos Jovens cegos de Paris, teve
aulas com Valentin Haüy, que ensinava os jovens cegos a partir de um método
conhecido como Sistema Linear em Relevo. Assim, em contato com este
sistema, Louis Braille avaliou suas dificuldades e passou a buscar alternativas
metodológicas que proporcionassem não somente a leitura, mas também a
escrita para a pessoa cega.
Na época também existia outro sistema que chamou a atenção do jovem
Louis: O Sistema de Nicolas Marie Charles Barbier De La Serre. Este método
195
foi desenvolvido por um antigo oficial do exército francês e trazido ao Instituto
de Paris em 1821. Apesar dos progressos deste método, ele só permitia que se
escrevessem pequenas mensagens.
Assim, a partir das informações dos dois métodos – de Haüy e de
Barbier Louis concebeu um código de 63 sinais, tomando por base a
combinação de seis pontos, atribuindo-lhes valores simbólicos que seriam
usados nas diversas áreas do conhecimento humano: literatura, música,
aritmética e geometria (SANTIAGO, 2003).
Não resta dúvida que a contribuição de Braille repercutiu de maneira
significativa no processo de educação da pessoa cega, favorecendo outros
progressos na vida social dos mesmos.
O Sistema Braille é constituído por 63 sinais, obtidos pela combinação
metódica de seis pontos que, na sua forma fundamental, se agrupam em duas
filas verticais e justapostas de três pontos cada. Estes sinais não excedem o
campo til e podem ser identificados com rapidez, pois, pela sua forma,
adaptam-se exatamente à ponta do dedo.
Na leitura qualquer letra ou sinal braille é apreendido em todas as suas
partes ao mesmo tempo, sem que o dedo tenha que ziguezaguear para cima e
para baixo. Nos leitores experimentados o único movimento que se observa é
da esquerda para a direita, ao longo das linhas. Não somente a mão direita
corre com agilidade sobre as linhas, mas também a mão esquerda toma parte
ativa na interpretação dos sinais.
Figura 15: Sistema Braille
Fonte: http://images.google.com.br/
196
Dispondo de um processo cil de leitura, o gosto pelos livros estendeu-
se amplamente entre os cegos e ocupou um lugar importante na sua vida. À
instrução oral sucedeu a instrução pelo livro. O conhecimento intelectual, sob
todas as suas formas tornou-se mais acessível aos cegos.
Os benefícios do Sistema Braille estenderam-se progressivamente, à
medida que as aplicações revelavam todas as suas potencialidades. As
máquinas de escrever e a impressora braille foram em seguida, os
instrumentos que permitiram aos cegos ampliar rapidamente seus espaços de
atuação e inclusão social.
Importante destaque teve Edouard Seguin, considerado um grande
especialista em deficiências mentais. Seguin publicou a sua obra mais
importante em 1846, intitulada Tratamento Moral, Higiene e Educação dos
Idiotas.
A grande preocupação de Seguin é com a educação das pessoas com
deficiência mental, buscando estabelecer diferenças teóricas entre os
diferentes graus em que a mesma se apresentava: idiotia, cretinice e
imbecilidade
102
; assunto ainda controverso entre os pesquisadores do século
XIX. Diferentes classificações emergem nesse período
Ainda temos outras importantes figuras nestes últimos séculos quando o
assunto é deficiência. Jean-Étienne Dominique Esquirol é um dos importantes
nomes deste período e que também focalizou a questão da aprendizagem,
embora também fosse médico. Esquirol publica sua principal obra em 1818, no
Dicionário de Ciências Médicas, um tratado sobre Idiotia, onde procura
estabelecer as principais diferenças entre doença mental e deficiência mental.
Sobre isto ele afirma:
A idiotia não é uma doença, é um estado em que as faculdades
intelectuais não se manifestaram, ou não puderam desenvolver
suficientemente para que a idiotia adquirisse os conhecimentos
relativos à educação que recebem os indivíduos da sua idade, e
nas mesmas condições que ele. A idiotia começa com a vida ou
na idade que precede o desenvolvimento completo das
faculdades intelectuais e afetivas; os idiotas são os que virão a
ser durante toda a sua vida; neles, tudo revela uma organização
imperfeita ou incompleta no seu desenvolvimento. Não se
concebe a possibilidade de alterar este estado. Nada seria, pois
capaz de dar aos infelizes idiotas, por uns instantes que fosse,
102
Estas são expressões utilizadas na época.
197
um pouco mais de razão, um pouco mais de inteligência (apud
PESSOTTI, 1984, p. 87-88). (grifos nossos).
Philippe Pinel foi um importante neuropsiquiatra deste século (XIX), que
influenciou os tratamentos voltados às idiotias e problemas correlatos. Suas
preocupações diferiam muito das de Itard e Seguin. O médico considerava
inalteráveis os quadros de idiotia e, por conseguinte, os seus portadores,
totalmente incapazes de sociabilidade. Sugeria o internamento destes
indivíduos em instituições distantes do convívio com as demais. Sua obra mais
importante na área foi o Tratado Médico-filosófico sobre a Alienação Mental,
em 1801.
Evidentemente, que suas idéias em contraste com as de Itard e Seguin
dividiram as posturas e práticas voltadas para estas pessoas. Outras
publicações com idéias semelhantes as suas foram as obras de Fodé(Traité
Du goitre et Du crétinisme e Tratado de Bócio), onde ele estabelece relação
entre deficiência e doença; além das de Langdon Down, sobre a síndrome por
ele descoberta, onde ele estabelecia uma relação direta da deficiência com a
questão étnica (Observations on Ethnic Classification of Idiots) e os de Morel
(Tratado das Degenerescências) (PESSOTTI, 1984).
De acordo com Coleman (1973), as obras de Pinel inauguram a
superação do ceticismo e impulsionam uma reforma humanitária no que diz
respeito ao atendimento prestado a pessoas com doenças mentais, inclusive
estabelecendo distinções sobre estas e as deficiências. Junto a Pinel, Tuke
também influencia o mesmo movimento na Inglaterra.
Ainda segundo o mesmo autor, pouco depois da Revolução Francesa
Pinel assume a direção do La Bicêtre, hospital para doentes mentais em Paris
e realiza importantes reformas, bastante questionadas na época. Defendia a
bondade e a comiseração destas pessoas e dentre suas principais ações
temos: a eliminação das correntes que prendiam os internos; a promoção de
exercícios físicos nos terrenos do próprio hospital; a substituição dos
calabouços por quartos, além da limpeza periódica dos mesmos.
Pinel também dirigiu o hospital de Salpêtrière, realizando nele as
mesmas transformações que William Tuke estabeleceu na Inglaterra, mais
especificamente no York Retreat, onde desenvolveu campanhas contra a
198
brutalidade e a indiferença que se praticavam nos hospitais/asilos para
pessoas com problemas mentais.
Tais iniciativas repercutiram também nos Estados Unidos, onde
Benjamim Rush assumiu o mesmo papel no Hospital da Pennsylvania. No
entanto, apesar de seus notórios avanços, é considerado por alguns como
criador de instrumentos não muito agradáveis como sangrias, purgativos, além
de certo aparelho tranqüilizador, do qual se tem pouco conhecimento, mas
somente sua imagem é suficiente para retratar o grau de tortura que produzia.
Rush é responsável ainda pela organização de cursos de psiquiatria com o
mesmo fim, além da publicação de importantes obras nesta área.
Figura 16: O tranqüilizador
Fonte: Coleman, 1973, p. 53.
Apesar das contribuições destes autores, a reforma nas instituições para
pessoas com problemas mentais não ocorreu rapidamente. Para os indivíduos
com problemas mais graves o que demonstrassem comportamentos violentos,
instrumentos como o tranqüilizador de Rush ou o berço (não se sabe o
inventor) ainda eram muito usados.
199
Figura 17: O berço
Fonte: Coleman, 1973, p. 54.
Na mesma direção temos as contribuições de Binet e Simon. Alfred
Binet nasceu em 1857 em Nice, tendo um importante papel no
desenvolvimento da psicologia experimental na França. Foi advogado e
médico, mas dedicou-se mais de perto aos trabalhos na então área da
psicologia que começava a se desenhar no terreno das ciências. Seu nome é
lembrado principalmente pela contribuição fundamental que deu à avaliação da
inteligência, através de testes desenhados para esse fim.
Em 1878 abandonou uma projetada carreira em Direito para dedicar-se
à medicina. Seu primeiro interesse foi a experimentação com métodos de
associação de idéias (associativismo), objeto de seu livro La Psychologie du
raisonnement, publicado em 1886.
Binet trabalhou no laboratório de pesquisa da Sorbonne em 1891 e foi
seu diretor de 1895 a 1911. Em 1905 publicou a escala métrica da inteligência
junto com seu companheiro Simon. Os tais testes foram aplicados a estudantes
nas escolas primárias francesas, pois foram encomendados pelo governo, a fim
de medir o desenvolvimento da inteligência das crianças de acordo com a
idade (idade mental).
Este trabalho foi o ponto de partida para muitos outros testes, em
particular o de QI. Assim, a Escala de Binet-Simon, passou a ser usada não
somente para identificar estudantes que revelassem problemas ou dificuldades
na aprendizagem escolar, mas principalmente para separar aptos e inaptos;
deficientes e não deficientes; normais e anormais.
200
As contribuições de psiquiatria e da psicanálise passam a ativar outros
instrumentos de ação junto ao sujeito com deficiências, possibilitando
correções que visam a integração do mesmo no ambiente escolar. Nasce a
pedagogia especial e ortofrênica
103
e seus recursos altamente especializados.
Felizmente, além da presença da medicina, da psicologia e psiquiatria, a
sociedade contemporânea assistiu a ascenção da pedagogia enquanto ciência,
e os pedagogos assumindo um papel cada vez mais central nos processos
educativos de pessoas com deficiência. Neste cenário, filósofos como Dewey,
Comte, Marx, Gramsci reforçaram do ponto de vista teórico o caráter político-
ideológico e deram mais centralidade aos sujeitos da educação.
Dessa forma, a mulher, a criança e a pessoa com deficiência vão
ganhando mais espaço e, este último é posto no centro de uma pedagogia da
recuperação, que tem como objetivo a sua normalização e como instrumento o
reconhecimento de uma continuidade entre sentidos e mente, entre afinamento
das capacidades sensoriais e cognitivas voltados para uma ação
essencialmente corretiva e normalizadora.
Maria Montessori representou bem esse movimento em prol da
normalização via pedagogia que marcou o início do século XX. Montessori
nascida em 1870, em Chiaravalle, estudou medicina numa época onde as
mulheres não ousavam tal empreendimento, mas voltou-se essencialmente
para as questões de aprendizagem, sobretudo, de pessoas com deficiência
mental.
Em 1896, a médica alcançou o diploma de doutoramento, interessando-
se pelas doenças do sistema nervoso e pela psiquiatria, especialmente após
conhecer a quantidade de crianças com problemas mentais internas no hospital
psiquiátrico de Paris.
Diante do seu interesse por este grupo aproximou-a dos trabalhos de
Itard e de Séguin que eramconhecidos da sociedade médica. Em 1898, num
congresso em Turim, defendeu a tese de que Os deficientes e anormais (como
eram identificados na época) precisavam muito menos da medicina do que de
um bom método pedagógico. E, embora Montessori não dispensasse os
conhecimentos da medicina, assegurava com firmeza que qualquer
103
A ortofrenia é um ramo da psiquiatria que se ocupa da reeducação dos doentes mentais.
201
desenvolvimento das crianças com deficiência tinha no mestre, e não no
médico, o necessário para acontecer. É a partir destas primeiras idéias de
Montessori que a questão da deficiência mental é vista por um viés mais
pedagógico que patológico.
Para ela, não deveria se internar os indivíduos com deficiência mental
em casas de saúde e fazê-los desfilar pelas clínicas, como era comum no seu
tempo; tinha-se antes que se construir escolas onde se aperfeiçoassem, pela
observação quotidiana, métodos pedagógicos adequados. E, ao mesmo tempo,
se pudessem formar os professores; porque, sem bons professores, nada se
poderia fazer por este grupo.
Com a intervenção de seu ex-professor e ministro da Instrução Pública
de Roma, Maria Montessori assumiu a Escola Ortofrênica, uma espécie de
internato para crianças com deficiência mental. Assim, apesar dos possíveis
avanços neste campo, a pessoa com deficiência, agora sob o olhar de mestres
e menos de médicos, permaneceu excluída do convívio com as demais, em
centros ou escolas especializadas.
Criou um método conhecido como Montessoriano. Esta metodologia
objetiva a normatização do corpo deficiente, através da educação da vontade e
da atenção, com a qual a criança tem liberdade de escolher o material a ser
utilizado. Consiste em harmonizar a interação de forças corporais no sentido da
aprendizagem. Os princípios fundamentais do todo são: a atividade, a
individualidade e a liberdade, com ênfase nos aspectos biológicos, pois,
considerando que a vida é desenvolvimento, a função da educação é favorecer
esse desenvolvimento.
Assim, na sala de aula, a criança era livre para agir sobre os objetos
sujeitos a sua ação, mas estes estavam preestabelecidos, como os
conjuntos de jogos e outros materiais que desenvolveu. As escolas do Sistema
Montessoriano foram difundidas pelo mundo todo, inserindo-se no movimento
da Escola Nova
104
, como oposição aos métodos tradicionais (WALBERL &
SILVA, 2006).
104
A Escola Nova foi um movimento inspirado nas idéias político-filosóficas de igualdade entre
os homens e do direito de todos à educação, com ênfase na criação de um sistema estatal de
ensino público, livre e aberto, compreendido como o único meio efetivo de combate às
desigualdades sociais da nação.
202
O material criado por Montessori tem papel preponderante no
seu trabalho educativo, pois pressupõem a compreensão das
coisas a partir delas mesmas, tendo como função estimular e
desenvolver na criança, um impulso interior que se manifesta no
trabalho espontâneo do intelecto (op. Cit, p. 14).
Montessori produziu uma série de cinco grupos de materiais didáticos
para facilitar o processo de aprendizagem da criança: 1) Exercícios Para a Vida
Cotidiana; 2) Material Sensorial; 3) Material de Linguagem; 4) Material de
Matemática e 5) Material de Ciências. Estes materiais, construídos em peças
sólidas de diversos tamanhos, cores, formas, texturas, espessuras, sons, etc.,
intencionam desenvolver a concentração, atenção, inteligência, imaginação,
etc., a partir dos interesses e da ação da própria criança, ficando o professor
apenas como um auxiliar do processo. O caráter individual do método
montessoriano e o pouco papel dado ao mestre foram alguns dos pontos
críticos desta proposta.
O método Montessoriano, por fim, se propõe a desenvolver a totalidade
da personalidade da criança e não somente suas capacidades intelectuais.
Preocupa-se também com as capacidades de iniciativa, de deliberação e de
escolhas independentes, além de atentar para os componentes emocionais,
mas propunha não só materiais específicos (e caros) para os alunos com
deficiência, como também um ambiente minimamente projetado para este tipo
de atendimento. Nestas condições, é evidente que poucos privilegiados tiveram
acesso ao modelo montessoriano.
Outro importante educador deste período foi Johann Heinrich Pestallozzi
que nasceu na Suíça, em 1746. É considerado na atualidade um dos primeiros
defensores da educação pública, por defender o direito absoluto de toda
criança de freqüentar uma escola. Seu entusiasmo obrigou governantes a se
interessarem pela educação das crianças das classes desfavorecidas.
Pestallozzi é herdeiro de numa época onde a igreja controlava
praticamente todas as escolas e não havia preocupações com a melhoria da
qualidade, dedicando o ensino apenas às classes privilegiadas. Por outro lado,
os professores não possuíam habilitação, existiam pouquíssimos prédios
escolares e a ênfase educacional era dada à memória. Ele, no entanto, se
203
contrapõe a este modelo e defende a idéia que, somente a educação poderia
mudar a terrível condição de vida do povo.
Segundo Pestallozzi, a escola “deveria ser como um lar, pois essa era a
melhor instituição de educação, base para a formação moral, política e
religiosa”. De posse destas idéias, fundou sua própria escola, onde mestres e
alunos permaneciam juntos o dia todo. Condenava ainda a coerção e as
punições. Sua principal obra foi Leonardo e Gertrudes, publicada em 1872,
onde expressa suas idéias educacionais, mas também escreveu outras obras,
como: O Abc da Técnica e o Abc da Formação Moral (CAMBI, 1999, p. 329).
Pestallozzi acreditava que o desenvolvimento é orgânico, sendo que a
criança se desenvolve por leis definidas; a gradação deve ser respeitada; o
método deve seguir a natureza; a impressão sensorial é fundamental e os
sentidos devem estar em contato direto com os objetos, pois a mente é ativa.
Estas idéias abriram perspectivas diferenciadas para o ensino de crianças com
deficiência, além de impulsionar a formação de professores e um olhar sobre a
educação enquanto uma ciência.
Pestallozzi foi bastante influenciado pelas idéias de Rousseau, e
conduziu sua prática por este caminho. Defendeu a pedagogia do amor e da
confiança e realizou alguns trabalhos com crianças órfãs e também com
crianças com deficiência muito pobres.
Com estas últimas, traça um programa de ensino pautado em princípios
centrais, distribuídos em seis pontos: 1) toda a aprendizagem passa pelos
sentidos; 2) é necessário reforçar a aprendizagem através de exercícios; 3) os
progressos do aluno devem ser acompanhados passo a passo; 4) a atividade
da criança deve ser incentivada oferecendo-lhe oportunidade para ação,
iniciativas e criação; 5) a criança deve construir sua autonomia intelectual e
moral, aprendendo a aprender; e por fim, acrescenta que 6) os educadores
também devem ser educados.
Por fim, destacamos o nome de Helen Keller, que nasceu em 1880 na
Alemanha. Helen ficou cega e surda aos dezenove meses de idade, por causa
de uma doença. Até os sete anos de idade Hellen não havia recebido nenhuma
intervenção no sentido do ensino. Usava apenas alguns gestos para se
comunicar com os familiares, mas demonstrava dificuldades em compreender
os significados a sua volta.
204
Por esta razão, a familia de Keller, contratou uma professora: Anne
Sullivan que havia estudado na Escola Perkins para Cegos, pois, quando
criança tinha sido cega, mas recuperou a visão através de nove cirurgias.
Sua indicação para ensinar Helen foi feita por Alexander Graham Bell,
que havia sido procurado pelos pais de Helen. Desde essa época, professora e
aluna, tornaram-se inseparáveis até a morte de Anne Sullivan, em 1935.
Figura 18: Helen Keller e a professora Anne Sullivan (1887)
Fonte: http://helenkeller1880.vilabol.uol.com.br/
Sullivan ensina a Helen usando o método de Tadoma, que consiste em
tocar os lábios e a garganta da pessoa que fala, sendo isso combinado com
datilologia na palma da mão. Embora, Helen não seja a única surdocega que
se tenha notícia neste período, pelo menos é a que se têm mais registros sobre
seu processo de desenvolvimento e aprendizagem.
205
A respeito do processo educativo desenvolvido por Sullivan, cabe
salientar que:
Tão logo Anne Sullivan assumiu a tarefa de ensinar Helen, as
alunas cegas da Escola Perkins fizeram-lhe uma boneca pare
levar A Helen. O vestido dessa boneca foi feito por Laura
Bridgman, primeira cego-surda educada na Perkins. Anne
Sullivan iniciou seu trabalho com Helen utilizando a boneca e
tentando relacionar o objeto à palavra através da soletração da
palavra “BONECA” pelo alfabeto manual. Helen logo aprendeu a
repetir as letras corretamente e associar ao objeto, construindo
assim, o significado (Disponível em:
http://helenkeller1880.vilabol.uol.com.br/).
Apesar de todas as aparentes limitações de ordem sensorial, Hellen
aprendeu ainda a ler e escrever em várias línguas: inglês, francês, alemão,
grego e latim, fazendo uso do código braille. Aos vinte anos de idade Helen
formou-se em Radcliffe e mais tarde fundou o Hellen Keller International, uma
organização para prevenir a cegueira.
Em sua biografia destaca o trabalho realizado pela professora Sullivan.
O dia mais importante de toda minha vida foi o da chegada de
minha professora Sullivan. Fico profundamente emocionada,
quando penso no contraste imensurável das duas vidas que se
juntaram. Ela chegou no dia 3 de março de 1887, três meses
antes de eu completar 7 anos. Belos dias como estes, fazem o
coração bater ao compasso de uma musica que nenhum silêncio
poderá destruir. É maravilhoso ter ouvidos e olhos na alma. Isto
completa a glória de viver (Disponível em:
http://helenkeller1880.vilabol.uol.com.br/).
Helen publicou alguns livros sobre a questão da deficiência e da
metodologia de trabalho com pessoas com surdez e cegueira (a surdocegueira,
não era uma expressão utilizada, pois ainda não era vista como demanda
específica), sendo ainda hoje um exemplo não para as pessoas com
deficiência, mas para todos que reconhecem as potencialidades contidas nos
diferentes sujeitos, mesmo quando estes se apresentam diferentes do padrão
estabelecido socialmente para o que se convencionou chamar de normalidade.
206
5. 3. Apesar da Ciência, a Exclusão da Deficiência
É bem verdade que chegamos ao século XX com uma vasta rede de
informações e conhecimentos acerca das deficiências, no entanto, ainda
carentes de ações mais concretas no sentido da garantia de educação para os
indivíduos acometidos por elas. Mas, nosso principal obstáculo ainda se situa
no alcance das práticas educativas, principalmente para as classes
desprestigiadas economicamente.
Do ponto de vista da ciência, é inegável a amplitude das inúmeras
produções, invenções e reflexões conquistadas, mas cresceram com elas as
ações a negação das deficiências como fenômeno inerente ao humano. O
movimento eugênico iniciado na Inglaterra, ainda nos fins do século XIX dão
testemunho disto.
Se os testes de QI
105
- como ficaram conhecidos os testes de
inteligência -, longe de possibilitar algum avanço no campo educacional se
prestaram muito mais a classificação dos alunos e distribuição entre os
inteligentes e não inteligentes; deficientes e não deficientes; superiores e
inferiores, o movimento eugênico coroou a tentativa de eliminar definitivamente
as diferenças entre os seres humanos.
Seja pelos testes, seja pela tendência eugênica, as questões sociais,
culturais, econômicas e individuais foram negligenciadas, condenando
inúmeros sujeitos a processos de exclusão escolar e social. De acordo com os
defensores destes instrumentos:
(...) Nem todos os criminosos são débeis mentais, mas todos os
débeis mentais são pelo menos criminosos potenciais.
Dificilmente alguém questionaria o fato de que toda mulher débil
mental é uma prostituta potencial (FERREIRA, 1995, p. 27).
105
Várias críticas aos testes de inteligência surgiram com o passar do tempo. Algumas dizem
que eles foram criados em países cuja cultura é muito particular, diferente da do resto do
mundo. Outras mostram que os testes se concentram, em geral, em habilidades acadêmicas,
como a linguagem e o raciocínio lógico, deixando de lado outras características fundamentais
do ser humano, como o senso artístico e as habilidades motoras. Muitos pesquisadores, como
a americana Helen Bee (2003), especialista em desenvolvimento humano, demonstraram que
os resultados das crianças variam muito ao longo do seu desenvolvimento, ou seja, em
diferentes idades obtêm-se diferentes resultados. Assim, conseguiram provar que a pontuação
não é um "veredicto final" sobre a nossa capacidade. Todas essas críticas somadas fizeram
com que o prestígio dos testes caísse muito nos tempos atuais.
207
A eugenia foi introduzida como matéria na Universidade de Londres, em
1905 e, logo após a fundação da sociedade eugênica Inglesa, serviu de base
para a criação da sociedade eugênica americana em 1926. Nessa teoria não
existe espaço para pessoas consideradas de raça inferior, como as que
possuem deficiências.
De acordo com o movimento eugenista, cabe a alta sociedade
determinar os humanos inferiores e, geralmente estes o toda a massa que
compões o povo trabalhador e comum.
Segundo eles, as pessoas que estão no poder também têm o direito de
decidir se eles seriam retirados da sociedade ou mantidos em um regime de
vigilância para evitar a reprodução de seres inferiores desnecessariamente.
Neste contexto, é cil entender os riscos sofridos pelas pessoas com
deficiência, evidentemente, pertencentes às camadas mais pobres da
sociedade.
Desta forma, a eugenia foi aplicada em diferentes contextos, desde a
divulgação do aborto de bebês que não estavam dentro dos padrões de
normalidade, como a esterilização forçada, masculina e feminina, de pessoas
consideradas inadequadas para a reprodução ou ainda no seu mais extremista
modelo: o nazismo.
Segundo Zimbarg (2007):
As leis eugênicas adotadas pelos nazistas foram decorrências
diretas de estudos feitos pelo instituto de antropologia, genética
humana e eugenia e pela sociedade alemã de pesquisas.
Utilizando argumentos médicos do Professor Doutor Eugen
Fischer, chefe do departamento de psiquiatria, do psiquiatra
Professor doutor Ernest Rudin, chefe do departamento de
antropologia e do professor Von Verschuen, essas instituições
eram consagradas em suas áreas nacional e internacionalmente.
Foram elas as responsáveis pela orientação e organização da
política de esterilização, eutanásia e de extermínio praticadas
durante o regime nazista. Estes foram métodos muito utilizados
mundialmente para eliminar o nascimento de novos deficientes
(ZIMBARG, 2007, s/p).
Estas idéias, de maneira mais ou menos intensa influenciaram e
propagaram as instituições responsáveis pela reclusão de pessoas com
deficiência em todo o mundo. A maioria das pessoas atendidas por estas
instituições permaneceram segregadas do convívio social por toda a vida.
208
De uma forma ou de outra, as pesquisas orientaram as ações
eugênicas, oferecendo substratos teóricos e filosóficos para este importante
movimento que se verificou mais forte a partir do século XX.
Pode se dizer que os princípios da eugenia apareceram com Charles
Darwin na idéia da seleção natural, que estabelece a existência de raças
inferiores e superiores. Essa teoria não foi desenvolvida originalmente para se
descrever seres humanos e sim animais, mas acabou influenciando
diretamente nesta direção.
De toda forma, Francis Galton (primo de Darwin) foi quem desenvolveu
essa ciência que teve como foco aperfeiçoar a espécie humana com o auxilio
da genética. O movimento eugenista era baseado na “melhora” da raça
humana por cruzamento, com a finalidade de gerar a espécie perfeita
(SANTIAGO, 2003).
Os próprios estudos sobre a síndrome de Down foram diretamente
influenciados pelo olhar eugenista de Langdon Down. Para ele, o mongolismo
seria: “a degeneração da raça em direção regressiva, de modo a se
multiplicarem os nascimentos de tipos étnicos ultrapassados na história a
humanidade”. Por esta razão, a síndrome ficou conhecida por muito tempo
como mongolismo (apud PESSOTTI, 1984, p. 143).
Ainda na mesma direção, algumas descobertas de natureza corretiva
são reforçadas desde então. Geralmente elas se prestam a minimizar os
efeitos da deficiência, oportunizando ao sujeito melhores condições de inserção
na sociedade (aquilo que hoje se chama inclusão).
Neste sentido, podemos citar a invenção dos aparelhos auditivos, ainda
em 1898 e da cadeira de rodas patenteada, em 1869 como alguns dos
exemplos. No entanto, é bom lembrar que o acesso da população a estes
instrumentos que poderiam propiciar a inclusão social de pessoas com
deficiência ficou restrito às classes com maior poder aquisitivo, pois o poder
público não se responsabilizou por esta questão.
De toda forma, a evolução no pensamento médico, filosófico ou
pedagógico não favoreceu o conhecimento sobre as deficiências de maneira a
garantir o acesso de todos aos bens produzidos. Quanto a isso Pessotti (1984),
salienta que estes conhecimentos sobre as deficiências parecem fazer com
que a sociedade lide com o assunto, combata-o e o redima, sem procurar
209
explicá-lo, evitá-lo ou preveni-lo. A deficiência segue, portanto como um
problema médico, logo, orgânico, medicável e classista e distante das políticas
públicas.
A posição que a pessoa com deficiência ocupa nas sociedades
contemporâneas, apesar de todas as descobertas e avanços, é pautada pela
condição de produção e consumo, logo uma questão de classe, pois enquanto
consumidor a pessoa com deficiência pobre não representa mais que os
demais pobres sem deficiência e, enquanto produtor, condição fundamental
para sua classe, lhe falta os requisitos básicos: competência, eficiência e
eficácia (pelo menos é o que se pensa).
É bem verdade que esforços de todos os lados para se reverter esse
quadro. Todo o século XX (e também o XXI) empreende ações no sentido de
garantir direitos e assegurar políticas públicas comprometidas com a inclusão
social, mas os índices de exclusão social denunciam o contrário.
Ainda nos primeiros anos do século XX registros que nos Estados
Unidos, por exemplo:
(...) idiotas, epiléticos e insanos (...) viviam privados de proteção
e cuidados adequados; presos com correntes, postos a ferro e
com pesadas botas de ferro presas as correntes, lacerados por
cordas, flagelados com açoites e aterrorizados por tempestades
de injúrias e golpes cruéis; ora sujeitos ao escárnio, e à
zombaria e à tortura; ora abandonados aos mais ultrajantes
maus tratos (apud COLEMAN, 1973, p. 54).
De modo geral, não se pode negar que a racionalidade científica
garantiu avanços no campo do direito, pois as pessoas com deficiência
contaram com algumas proteções, no entanto, estão longe de alcançar os
patamares perseguidos pelo próprio grupo, que ainda sente-se vitima de
discriminação.
Mesmo conquistando atendimento menos desumano, as pessoas com
deficiência, de um modo geral esperaram muito tempo para ter alguns direitos
assegurados e reconhecidos pelo Estado. Esta situação é especialmente
preocupante porque significa a falta de atendimento, de serviços e de
oportunidades nas diferentes instâncias da sociedade.
Por outro lado, é óbvio que para os que possuem recursos econômicos
para buscar estes atendimentos por sua própria conta e responsabilidade, não
210
dependendo assim, da ação do Estado para tanto, a exclusão vai ficando mais
distante. Não resta dúvida que os avanços no campo tecnológico, por exemplo,
favoreceram o processo de inclusão de pessoas com deficiência, mas, não se
pode negar que eles não são acessíveis a todos.
Podemos citar os aparelhos de amplificação sonora utilizados para
colocar o surdo o mais próximo possível do mundo dos sons ou ainda os
computadores adaptados com programas de voz e teclados com o sistema
Braille, facilitadores para cegos, mas estes aparelhos têm um custo alto.
Figura 19: Aparelho de amplificação sonora individual
Fonte: http://surtec.sur10.net/tecnologia/aparelhos-de-amplificacao-sonora-individualassi/
A impressora Braille; a bengala telescópica, a cadeira motorizada ou
mesmo os novos softwares produzidos para promover acessibilidade a
pessoas com paralisia cerebral, cegos, surdos, etc. são outros exemplos claros
dos avanços científicos no sentido da inclusão, mas evidentemente distantes
das classes mais pobres.
211
Figura 20: Teclado colméia para pessoas com problemas motores
Fonte: http://images.google.com.br/
Figura 21: Telefone para pessoas com baixa visão
Fonte:
http://www.civiam.com.br/
Mas, para o trabalhador que possui um filho com deficiência e tem uma
renda mínima, todas estas ferramentas são inacessíveis. Então, o que define a
exclusão e a inclusão nos tempos atuais, a deficiência em si, ou a classe social
a que o sujeito pertence?
Se o direito à vida precisou de um período de amadurecimento da
sociedade para expandir-se a todos os indivíduos, tempo considerável reclama
discussão sobre o direito de todos à educação. E, com mais dificuldade as
212
idéias concernentes às diferenças, à diversidade, a importância das minorias, à
educação com qualidade e para a cidadania, e as tecnologias assistidas como
requisito imprescindível para o processo de inclusão de pessoas com
deficiência.
5.4. Da Exclusão à Inclusão, a luta das Pessoas com Deficiência por
Direitos Sociais
A partir da década de 40 e, mais especificamente após a segunda
grande guerra, percebe-se um movimento mais organizado no sentido de
discutir e ampliar o debate em torno dos direitos humanos. Como resultado
disto, temos a Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948) como o
primeiro marco de conquista dessas pessoas com relação à Educação. E,
embora o mesmo não verse exclusivamente sobre pessoas com deficiência, é
um dos primeiros documentos a universalizar a educação como um direito de
toda e qualquer pessoa.
A Declaração Universal defende que sociedade se empenhe, “através
do ensino e da educação” em promover os direitos e liberdades nela garantidos
a todos os seus cidadãos. Tal fato, inegavelmente, repercutiu nos organismos
envolvidos com a causa da pessoa com deficiência, especialmente nas
organizações e associações de pais e dos próprios sujeitos, fortalecendo suas
lutas por educação e outros direitos sociais.
O resultado destas lutas é a promulgação de outros documentos não
menos importantes, com destaque para a Convenção n.º 111/OIT de 1958 e a
Convenção n.º 159/OIT, que tratam da discriminação de pessoas com
deficiência no emprego e na profissão, garantindo a este grupo mais chances
de inserção no mundo do trabalho.
A Declaração dos Direitos do Deficiente Mental, publicada em 1971 e a
Declaração dos Direitos das Pessoas Portadoras de Deficiência, de 1975 são
outros documentos que seguiram esta mesma ordem: garantir educação,
assistência social, etc. às pessoas com deficiência.
A década de 80 não foi menos frutífera em termos legais. Em 1983 é
criado o Programa de Ação Mundial Para as Pessoas com Deficiência, uma
213
tentativa de unir esforços no sentido de promover a participação plena destes
indivíduos na vida social, eliminando ou minimizando o preconceito.
Tantos documentos versando sobre o mesmo tema denunciam a
presença de organismos articulados em prol da defesa destas pessoas, por um
lado, e por outro, a ausência de ações efetivas que bastem para a efetivação
de políticas reais de inserção.
De toda forma, é possível inferir que uma lacuna entre o anunciado
nos documentos oficiais e o vivido, no cotidiano. Assim, a escolarização dos
indivíduos com deficiência embora tão solicitada ao longo dos anos 70 e 80,
não consistia em preocupação pública, pois estas pessoas “não eram
necessárias como produtoras de mão de obra (...) nem como fator de
ideologização”, portanto, estavam distantes das proposições políticas
prioritárias (BUENO, 1993:87).
Pode-se acrescentar, ainda, que apesar do pressuposto da
imutabilidade do estado do indivíduo ter sido muito respondido, as práticas
segregativas não consistiam somente lembranças de um passado distante.
Certamente, sem mobilização e luta por parte dos grupos organizados de
pessoas com deficiência, esta situação ainda seria pior.
Durante estas décadas, as instituições especializadas ou escolas
especiais que proliferaram em todo o mundo a partir de 1920, passam a ser
mais questionadas e vistas pelos próprios indivíduos como locais inapropriados
para sua escolarização. Na verdade se questiona o isolamento que estes
ambientes proporcionaram e os interesses assistencialistas que se
mantiveram, pois estiveram longe de garantir ao indivíduo chances de inserção
social, profissional, educacional.
Segundo Correia:
Na realidade cotidiana dessas pessoas ainda predomina a
dependência econômica, o subemprego e a estagnação
profissional fatores que contribuem para que se mantenham a
margem da vida nacional, sem chances de participação social e
estigmatizadas (apud SASSAKI, 1997, p. 61).
De toda forma, os novos tempos e suas relações contraditórias e, por
isso mesmo, fecunda ao espírito reflexivo e desenvolvimento da consciência
política, eclodem as lutas por direitos civis, políticos e sócio-econômicos de
214
vários grupos e setores da sociedade. O discurso pelos direitos sociais deu
força para que os desfavorecidos e vitimados se organizassem em busca da
satisfação de suas necessidades. Da reivindicação, alguns direitos chegaram
ao reconhecimento, especialmente nos chamados países desenvolvidos.
Durante a década de 40, é fundada nos Estados Unidos a primeira
organização de pais de crianças com paralisia cerebral, a “New York State
Cerebral Palsy Association”, com o intuito de levantar fundos tanto para centros
de tratamento quanto para pesquisas na área, estimulando as organizações
governamentais no sentido de propor nova legislação que garanta tais
recursos, além de treinamento profissional e tratamento dos seus filhos.
Dez anos mais tarde é fundada mais uma associação de pais, a National
Association for Retarded Children NARC, com objetivos semelhantes, mas
tendo como meta principal a inserção das crianças com “retardo mental”,
classificadas como treináveis
106
, nas escolas públicas primárias (FERREIRA,
1995).
O germe da inclusão social de pessoas com deficiência muito
desponta entre aqueles que estão excluídos. Alguns princípios como o respeito
à dignidade humana, à igualdade de direitos, à liberdade de pensamento e de
escolha para todos os homens, foram os grandes propulsores da abertura, da
discussão e das lutas que se travaram a partir de então, no âmbito da
educação.
A luta das pessoas com deficiência e também das minorias étnica,
sexual, religiosa ganha mais força, a partir da década de 70. Mas, são os anos
90 que testemunharam maiores esforços no sentido da inclusão social e
educacional de pessoas com deficiência, buscando romper com a dicotomia
existente entre educação regular (para as pessoas sem deficiência) e
educação especial (para as pessoas com deficiência).
Em 1990, acontece a Conferência Mundial sobre Educação para Todos,
na Tailândia, onde foi apresentada a Declaração Mundial sobre Educação para
Todos. Este documento representa, para muitos teóricos e políticos, uma
combinação de pesquisas, reformas e inovações a fim de se garantir educação
106
Sobre a deficiência mental diversas classificações que, geralmente, se baseiam nos
resultados apresentados nos testes de Q.I. Algumas delas classificam a pessoa com
deficiência mental em níveis progressivos de comprometimento, assim distribuídos: deficientes
mentais educáveis, treináveis e dependentes.
215
básica de qualidade para todos os homens e mulheres, de todas as idades, no
mundo inteiro
107
, incluindo-se evidentemente as pessoas com deficiência.
A Declaração Mundial traz em seu texto, os objetivos e estratégias para
a satisfação das necessidades básicas de aprendizagem a partir dos esforços
conjuntos das nações, com o propósito de desenvolver políticas eficazes para
os grupos excluídos socialmente da escola, especialmente focados nos países
pobres onde os índices de evasão, repetência e exclusão eram alarmantes.
Dentre outras coisas, retoma a idéia central da Declaração Universal
dos Direitos Humanos, de 1948, especialmente em relação à educação, e
reconhece, ainda, a inacessibilidade, o analfabetismo e a interrupção do ciclo
básico de estudos por inúmeras crianças e jovens do mundo inteiro, como os
principais problemas mundiais a ser enfrentados nos finais do século XX.
Além de focalizar a satisfação das necessidades básicas de
aprendizagem, a Declaração Mundial Sobre Educação Para Todos objetiva
expandir o enfoque de atuação, visando, dentre outras coisas: universalizar o
acesso e promover a eqüidade; desenvolver uma política contextualizada de
apoio nos setores social, cultural e econômico; mobilizar recursos e fortalecer a
solidariedade internacional para a consecução dos seus objetivos, ou seja, o de
educação para todos os povos de todas as nações, pois era patente a imensa
divergência entre pobres e ricos, ou seja, exclusão social como reflexo da
imensa diferença entre as classes sociais.
Neste contexto se incluem as pessoas com deficiência. O problema de
acesso deste grupo à educação relaciona-se diretamente com seu
pertencimento de classe. Os pobres estavam fora da escola ou marginalizados
dentro dela, independentes de possuir ou não deficiência.
Na mesma direção, ou seja, como tentativa de minimizar os efeitos
perversos da exclusão social, pautada nos interesses de classe, a resposta
dada aos indivíduos com deficiência é mais um documento. Em 1993, em
Assembléia Geral das Nações Unidas se divulgam As Normas Uniformes sobre
107
A Conferência Mundial sobre Educação para Todos, realizou-se em Jomtiem, na Tailândia,
entre 5 e 9 de março de 1990.
216
a Equiparação de Oportunidades para a Pessoa Portadora de Deficiência
108
.
Estas Normas tiveram o objetivo de explicitar as obrigações dos Estados sobre
a igualdade de oportunidades para as pessoas com deficiência, revisando os
conceitos de incapacidade e de deficiência e defendendo a prevenção, a
reabilitação e a equiparação de oportunidades
109
, como os princípios sicos
das políticas públicas.
Longe de resolver os problemas da exclusão, este foi mais um
minimizador de conflitos. Os reclames da pessoa com deficiência não se
resumiam apenas a estar na escola, mas poder aprender de fato, pois o que se
sabe é que quanto mais a escola pública abriu suas portas para o povo, mais
se desqualificou. Acrescentamos ainda que quanto mais se inseriu pessoas
com deficiência nas escolas, mais as isolou do convívio com as demais, seja
colocando-as em classes especiais localizadas no fundo da escola ou em
banheiros improvisados, seja oferecendo-lhes currículo, professor, recursos
‘especiais’ (entenda-se inferior).
Apesar das ambigüidades e controvérsias a respeito do assunto, a tão
conhecida Educação Especial foi um exemplo deste descomprometimento do
Estado com as pessoas com deficiência, embora alguém teime em dizer o
contrário. Uma educação diferente para pessoas diferentes é no mínimo
preocupante, pois para torná-la especial fazem-se necessárias mudanças.
Entretanto, o que se muda e o quanto se muda foi e sempre será um risco.
5.5. A Inclusão como Política Pública
As primeiras discussões sobre a inclusão foram marcadas pelos
movimentos anti-segregacionistas iniciadas ainda na década de 60. No
entanto, é somente a partir dos anos 80 que esta prática começa a efetivar-se
em diferentes países.
108
Durante a década de 90 diferentes expressões foram utilizadas para referir-se à Pessoa
com deficiência: Pessoa Portadora de Deficiência, Pessoa Portadora de Necessidades
especiais ou ainda Pessoa Portadora de Necessidades Educativa (ou educacionais) especiais.
109
O termo “equiparação de oportunidades” significa o processo através do qual os diversos
sistemas da sociedade e do ambiente, tais como serviços, atividades, informações e
documentação, são tornados disponíveis para todos, particularmente para pessoas com
deficiência.
217
No Brasil, o processo de fato tem início a partir da criação da Corde
(Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência),
em 1986 que passou a promover ações que pudessem garantir o ingresso e
permanência dos alunos com deficiência na escola.
Do ponto de vista mais amplo, pode-se dizer que como no Brasil, outros
países instituíram ações na mesma direção e estiveram preocupados com as
mesmas questões. No entanto, não somente as instâncias governamentais
estiveram atentas ao problema da pessoa com deficiência, os próprios sujeitos
permaneceram cada vez mais organizados em torno dos seus interesses
comuns e, em certa medida, imprimiram força ao debate político.
É, portanto, nesse movimento pelo reconhecimento do direito de todos à
educação que se realiza em 1994, uma nova conferência sobre o assunto. A
mesma ocorre na Espanha e intitula-se Conferência Mundial sobre Educação
para Necessidades Especiais.
Nesta conferência, promovida pela Unesco e pelo governo Espanhol, é
elaborada a tão conhecida Declaração de Salamanca, compreendida na
atualidade como um dos mais importantes documentos produzidos com a
contribuição de 300 representantes de 92 governos e 25 organizações
internacionais diretamente ligadas a causa das pessoas que possuem
deficiências. “A Declaração de Salamanca constitui um marco importante na
história da inclusão, porque oficializou o termo no campo da educação”
(TESSARO, 2005, p. 43).
Dentre outras coisas, a Declaração retoma o compromisso de garantia
de direitos educacionais para todos os cidadãos quando recomenda, dentre
outras coisas “(...) que as escolas se ajustem às necessidades dos alunos
quaisquer que sejam suas condições físicas, sociais, e lingüísticas (...)”
(WERNECK, 1997:50).
Portanto, é um documento que não discute apenas a
questão das deficiências, mas de uma educação para todos. Por isso, usa a
expressão “Portadores de Necessidades Educacionais Especiais”
110
na medida
110
A Declaração de Salamanca rediscute o conceito de deficiência e apresenta o conceito de
Portador de Necessidades Educativas Especiais como esclarecedor dos inúmeros aspectos
que envolvem a dinâmica da aprendizagem destes indivíduos.
218
em que reconhece nesta modalidade, todos os alunos, independente das
diferenças ou necessidades apresentadas (op. Cit.).
A aprovação de princípios, políticas e práticas voltadas para o
atendimento das diferenças significa, dentre outras coisas, a necessidade que
a escola promova processos metodológicos diversificados a fim de não excluir
nenhum aluno.
O princípio fundamental contido na Declaração de Salamanca pode ser
sintetizado a partir da idéia de que:
As escolas devem acolher todas as crianças,
independentemente de suas condições físicas, intelectuais,
sociais, emocionais, lingüísticas ou outras. Devem acolher
crianças com deficiências e crianças bem dotadas; crianças que
vivem nas ruas e que trabalham; crianças de populações
distantes ou nômades; crianças de minorias lingüísticas, étnicas
ou culturais e crianças de outros grupos ou zonas
desfavorecidos ou marginalizados (1994: 9).
Ainda assim, a Declaração de Salamanca utiliza em diferentes partes
do seu texto a expressão integração para sugerir o ingresso e permanência do
aluno com deficiência na escola regular, ou seja, sugere ações e princípios que
estarão na base de todo o debate que seguirá em prol da inclusão social.
Foi a partir da Declaração de Salamanca que a maioria dos países
começou a implantar políticas de inclusão no ensino regular de alunos com
deficiência e outras diferenças, no entanto, o uso da nova nomenclatura para
definir o conjunto de pessoas foco das novas políticas de inclusão esteve longe
do consenso.
De certa forma, no âmbito educacional a expressão pessoa com
necessidade especial, utilizada desde a Declaração de Salamanca foi bem
aceita, mas, o mesmo o pode ser dito em relação a outras áreas do
conhecimento. A amplitude da expressão e até dubiedade de significados,
abriu fecundos debates e acabou culminando com a realização da Convenção
Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra
as Pessoas Portadoras de Deficiência, em 1999, onde nasceu a conhecida
Carta de Guatemala.
Além deste, outro documento importante foi a Classificação Internacional
de Funcionalidade, Deficiência e Saúde (CIF), documento aprovado pela 54ª
219
Assembléia da Organização Mundial da Saúde, em 2001. Nestes dois
documentos são retomadas as expressões pessoa com deficiência.
Certamente, nenhum destes termos resolve o problema do preconceito e
discriminação que vitimiza a pessoa com deficiência, principalmente porque a a
utilização de um adjetivo para qualificar determinado sujeito, por si só,
denota discriminação. Entretanto, quanto o adjetivo trás consigo a idéia de
incapacidade, limitação, impossibilidade, fica claro que com o seu uso a
sociedade traduz a imagem que tem e faz daquela pessoa.
5.6. A Política de Inclusão no Brasil
No Brasil, como na maioria dos países pobres têm-se as mais duras
condições de discriminação e exclusão comuns ao capitalismo. Por isso, uma
análise mais detalhada da história nos fornece importantes reflexões sobre sua
condição social e os reais obstáculos para a construção de uma política
inclusiva.
A pessoa com deficiência oriunda da classe dos trabalhadores ou
mesmo dos escravos
111
não tinham chances de receber educação e sua
sobrevivência esteve gravemente comprometida.
Os comerciantes de escravos portugueses vendiam os africanos como
se fossem mercadorias aqui no Brasil, mas o interesse era somente para os
mais saudáveis que chegavam a valer o dobro daqueles mais fracos,
deficientes ou velhos. Portanto, ser escravo e ter deficiência era condição para
a morte, pois não interessaria aos compradores adquirir escravos que não
pudessem suportar o árduo trabalho que lhe era reservado nas fazendas de
açúcar. se tratando de homem ou mulher livre, com sorte teriam chances de
sobrevivência.
Sabendo que a escravidão no Brasil iniciou-se no século XVI e teve
fim no século no final do século XIX, fica evidente que nenhuma ação política
foi dispensada para este grupo, caso fosse possuidor de alguma deficiência.
Por outro lado, as pessoas mais pobres mesmo livres - estavam alijadas de
111
Os escravos brasileiros não tinham nenhum direito assegurado. O índice de mortalidade
entre eles era alto, em razão das péssimas condições de moradia, higiene e educação, o que
agravava as epidemias, doenças e deficiências.
220
qualquer ação educativa, enquanto os nobres contavam com preceptores
contratados para garantir a educação de seus filhos, quando estes não eram
enviados à Europa para estudar.
De acordo com Mazzotta, a história da educação das pessoas com
deficiência no Brasil divide-se em dois momentos distintos: um primeiro, de
iniciativas isoladas (oficiais e particulares), e um segundo momento, de
iniciativas oficiais de âmbito nacional. Para o autor, pode-se dizer que o
primeiro momento é marcado pela inexistência de políticas públicas voltadas
para o atendimento destas pessoas, e o segundo caracteriza-se pela definição
mais clara de tais políticas (MAZZOTTA, 1996:27-28).
5.6.1. As Políticas Brasileiras para a Pessoa com Deficiência, uma questão de
classe social
É somente a partir do final do século XIX e, mais precisamente no
século XX que temos registros detalhados das ações políticas brasileiras com
respeito à educação. Assim, vê-se que os interesses de classe sempre guiaram
os caminhos educativos do nosso país e, no caso da pessoa com deficiência
não foi diferente. Não é sem motivos que as primeiras instituições criadas
foram: O Imperial Instituto dos Meninos Cegos, 1854 e o Imperial Instituto dos
surdos-mudos, em 1857.
De acordo com as pesquisas de Jannuzzi (2004), o Imperial Instituto dos
Meninos cegos (hoje, Instituto Benjamin Constant) tem sua origem ligada ao
cego brasileiro José Álvares de Azevedo, filho de família abastada que
estudara em Paris no Instituto dos Jovens cegos, fundado por Haüy.
Este jovem rico publica um livro que impressiona o médico do
imperador, que também possuía uma filha cega. Em meio a sensibilidade de
pessoas influentes a respeito do atendimento educacional especializado para
cegos, o imperador resolve fundar o instituto. Portanto, a instituição não fora
criada para jovens cegos pobres, pois também a indicação dos cegos para
estudar no instituto imperial foi feita pelo Imperador.
Não é de se estranhar, portanto, a informação de que em 1874 este
instituto tenha atendido somente 35 alunos cegos, quando o registro do
recenseamento brasileiro indicasse a existência de pelo menos 15.848 cegos.
221
Quanto ao Instituto de surdos-mudos (hoje, Instituto Nacional de
Educação de Surdos), sua fundação também se pautou na sensibilidade de
alguns nobres e o ingresso de alunos também foi indicação do Imperador. Logo
após sua fundação, o instituto contava apenas com 7 alunos surdos. E, em
1872 quando este número chegara somente a 17 matrículas, o Brasil possuía
de acordo com dados do censo uma população de 11.595 surdos. Onde
estariam os demais, se não havia outras instituições de atendimento?
Nesta direção, podemos citar conforme Jannuzzi que a educação das
pessoas com deficiência, sobretudo pobres, sempre viveu distante dos
interesses políticos do país: “(...) surgiu institucionalmente, mas de maneira
tímida, no conjunto das concretizações possíveis das idéias liberais, que
tiveram divulgação no Brasil no fim do século XVIII e começo do XIX”
(JANNUZZI, 1992, p. 19).
Para a autora, o liberalismo brasileiro esteve claramente comprometido
com as elites, concretizando um projeto de educação somente voltado para
estes interesses. A educação do povo foi relegada ao esquecimento, assim
como a educação para crianças deficientes oriundas do povo.
Também para Ferreira (1995, p. 25), as poucas instituições criadas
neste período, se fundavam “na perspectiva do tratamento moral ou medicina
moral, na linha do treino psicomotor, com imposição de hábitos regulares e
freqüentes, como oposição à anomalia fisiológica”. Portanto, a
institucionalização da deficiência no caso brasileiro, baseou-se num olhar de
descrédito sobre a condição destes sujeitos aprenderem e incluírem-se
socialmente, o que foi calamitoso para os mais pobres, pois os mais ricos
puderam assumir a responsabilidade sobre a educação de seus filhos pagando
aos especialistas.
Nossa situação durante o século XIX foi: uma vasta população de
iletrados, poucas escolas e uma elite cultural e econômica responsável pelos
destinos do país. Diante disto, o que progrediu no Brasil foi o ensino superior,
facilitado pelo apoio do governo e interessante às camadas com as rendas
mais altas da população.
Salienta-se, ainda neste contexto, a predominância do atendimento
médico em detrimento do pedagógico, exatamente como acontecia em outras
partes do mundo. Seguindo esse olhar médico em relação às pessoas com
222
deficiência temos em 1874, o início do atendimento a “deficientes mentais” no
Hospital Estadual de Salvador (hoje, Hospital Juliano Moreira).
Após a fundação dos institutos imperiais para surdos e cegos, somente
registro de ação voltada para esta demanda trinta anos mais tare, com a
realização do I Congresso de Instrução Pública, que abordou dentre outros
temas o currículo e formação de professores para cegos e surdos
112
.
Outras iniciativas serão vistas somente no culo XX. Destacam-se a
fundação do Instituto de cegos de Recife, em 1906 e os trabalhos publicados
no início do século XX por importantes nomes da história de atendimento aos
indivíduos com deficiência no Brasil.
Os principais são: Da educação e tratamento médico - pedagógico dos
Idiotas, por Carlos Eira; A educação da Infância Anormal no Brasil, por
Clementino Quaglio; Tratamento e Educação das crianças anormais e A
Educação das crianças mentalmente atrasadas na América Latina, por Basílio
de Magalhães; Infância Retardatária, por Norberto de Souza Pinto.
Como se pode constatar, o Brasil demonstra nestas obras a mesma
tendência medicalizante ao discutir a questão da deficiência. Um dos mais
conceituados médicos brasileiros que atuaram na área das deficiências foi
Ulisses Pernambucano. É considerado por muitos como importante referência
na questão das doenças mentais, tendo fundado o sanatório Recife.
Por sua história e toda sua obra foi a principal referência nos estudos de
psicologia no Brasil, tendo fundado nas terras pernambucanas o Instituto de
psicologia, em 1925. Sua atuação voltou–se essencialmente para os excluídos
e marginalizados de seu tempo, com destaque para as crianças com
problemas mentais. Exemplo disso é sua monografia para o concurso de
professor catedrático da Escola Normal, onde Ulisses discutia sobre a
classificação de crianças deficientes (Disponível em
http://www.psiquiatriainfantil.com.br).
Por outro lado, o Brasil também foi um dos primeiros países a ter um
movimento eugênico organizado. Ainda nos primeiros anos da década de 20, o
médico Renato Kehl lança uma campanha pró-eugenia. O movimento eugênico
no Brasil foi bastante heterogêneo, trabalhando com a saúde pública e com a
112
Sobre o congresso de Instrução Pública, realizado em 1883, ver Mazzotta, Educação
Especial no Brasil: História e Políticas Públicas, 1996.
223
saúde psiquiátrica. Uma parte, que pode ser chamada de ingênua ou menos
radical do movimento eugenista no nosso país, se dedicou a áreas como
saneamento e higiene.
Nesta época foi fundado o sanatório Pinel de Pirituba, um local usado
como depósito de pessoas que não eram aceitas pelos padrões eugenistas.
Assim, o eugenismo propôs ainda meios de transformação da sociedade por
adoção de estratégias mais ou menos drásticas.
De início, o exame pré-nupcial, a castração, a esterilização e a
educação higiênica seriam as normas básicas para melhorar a cara do nosso
povo, considerado doente, pobre e inculto. Mas, as idéias eugenistas
chegariam a atitudes mais radicais
113
como: a pena de morte, controle na
entrada de imigrantes, proibição do casamento inter-racial e o confinamento
dos portadores de doenças contagiosas ou anomalias, em outras partes do
mundo. Como se sabe, o eugenismo ganhou força em muitos países, mas em
nenhum deles com tamanho desempenho como na Alemanha, onde o nazismo
foi sua maior expressão (ZIMBARG, 2007).
Em alguns momentos foi a psicologização; noutros, a higienização e até
a eugenização os movimentos que mais influenciaram as instituições
brasileiras voltadas para o atendimento de pessoas com deficiência. O
movimento higienista, de acordo com seus seguidores, ocupava-se
principalmente em garantir melhores condições sociais e individuais para o
país. o eugenismo, segundo eles, tinha como propósito, a constante
melhora da raça humana.
Estas ações levaram a fundação da Liga de higiene mental que atuou
não apenas nos hospitais, clínicas, asilos, mas também nos muitos
estabelecimentos de ensino existentes; especialmente àqueles onde existiam
pessoas com problemas mentais.
Até l950 registros que foram criados 54 estabelecimentos de ensino
regular e 11 instituições que prestavam algum tipo de atendimento as pessoas
113
As leis eugênicas foram amplamente adotadas pelos nazistas. E estas, por sua vez,
decorrências diretas de estudos feitos pelo instituto de antropologia, genética humana e
eugenia e pela sociedade alemã de pesquisas. Utilizando argumentos médicos do Professor
Doutor Eugen Fischer, chefe do departamento de psiquiatria, do psiquiatra Professor doutor
Ernest Rudin, chefe do departamento de antropologia e do professor Von Verschuen, essas
instituições eram consagradas em suas áreas e foram elas as responsáveis pela orientação e
organização da política de esterilização, eutanásia e de extermínio praticadas durante o regime
nazista (ZIMBARG, 2007).
224
com deficiência. Estas instituições se dividiam em públicas e privadas (de
caráter filantrópico), sendo essas últimas as de maior número. Dentre as de
maior destaque, citamos: o Colégio dos Santos Anjos, em Santa Catarina; a
Sociedade Pestalozzi, no Rio de Janeiro; o Instituto Pestalozzi, na Bahia e a
Escola Estadual Ulisses Pernambucano, em Pernambuco, dentre outros.
Aqui, como em outras partes do mundo, a utilização dos testes de QI foi
constante, motivados especialmente pela educadora Helena Antipoff. Suas
idéias como as de seus antecessores também definem a diferenciação no
atendimento da pessoa com deficiência; mas ela acrescenta a importância do
diagnóstico, influenciada principalmente pelos conhecimentos da psicologia.
Sua defesa, no entanto, é pela organização de classes especiais em escolas
públicas, especificamente distribuídas em função do problema apresentado
pela criança.
A educação das crianças débeis e anormais não pode ter êxito
senão depois de estabelecido o respectivo diagnóstico. (...) E
depois de uma observação atenta e metódica da conduta dessa
criança, de acordo com os exames do médico e do psicólogo,
depois de profunda reflexão acerca de todos esses lados, das
observações e dos exames, é que o professor terá conhecido e
compreendido os seus alunos e resolvido o complexo problema
da personalidade (apud JANNUZZI, 2004, p. 125).
Assim, desde os seus primórdios permanece na educação brasileira um
conflito básico entre ensino especializado X ensino comum. E ao que parece,
no ensino comum, de responsabilidade do Estado, pouco ou nada se
desenvolveu em benefício da escolarização destes indivíduos. As ações são
mínimas em todo o território nacional. Por outro lado, isto deu margem para
que desenvolvesse um ensino especializado, geralmente de responsabilidade
de instituições particulares ou filantrópicas (mas, mantidas também com
recursos do governo).
É, pois, somente nos anos finais da década de 50 que surgem as
primeiras ações mais organizadas por parte do governo federal, as chamadas
campanhas de reabilitação e educação para surdos, cegos e deficientes
mentais. Pouco se sabe dos resultados destas campanhas para os alunos com
deficiência, mas, certamente, num país onde 50% das crianças na faixa etária
de 7 aos 14 anos ainda estavam fora da escola, não era de se estranhar que
crianças deficientes não tivessem oportunidades.
225
A medida que ampliaram-se o número de escolas, aumentaram com
elas o número de classes para alunos com deficiência. No entanto, as crianças
de alto poder aquisitivo não participaram destas classes, pois contavam com os
serviços de apoio especializado, seja de terapeutas, psicólogos, médicos, etc.,
pagos pelas famílias, de modo que pudessem com estes recursos permanecer
em classes regulares. De acordo com Jannuzzi:
Geralmente as chamadas classes especiais têm sido ocupadas
pelas crianças de camadas mais desfavorecidas, atestando
assim, muito mais a diferença cultural ou até muitas vezes
dificuldades provenientes da própria ineficiência da escola
(JANNUZZI, 1989, p. 21).
Os interesses de classe sempre acompanharam a educação brasileira.
Nos textos oficiais fica claro a vinculação da educação aos interesses
econômicos e de mercado. E as pessoas com deficiência, vistas certamente,
como as menos capazes neste processo, embora não fugissem a estes
reclames não era prioridade. Mas, para os deficientes de famílias com alto
poder econômico estas questões eram resolvidos a partir do financiamento da
própria educação. No entanto, o mesmo não pode ser dito para os
trabalhadores.
Enquanto não se puder abrir largamente as portas da educação
a cada um, o interesse nacional recomenda que se favoreça a
ascensão cultural dos mais talentosos, os mais capazes de
mobilizar a ciência e a técnica em favor do progresso social. O
único bem que nação alguma está em condições de desperdiçar
é o talento de seus filhos. (...) Mas o mesmo interesse social
exige que se eduquem os deficientes, no sentido de torná-los,
quanto possível, participantes de atividades produtivas. (apud
JANNUZZI, 2004, p. 179). (grifo nosso).
O segundo momento da Educação Especial no Brasil tem como marco
inicial o ano de 1957. Em termos gerais, é interessante ressaltar que o
momento brasileiro era de inúmeras transformações nos processos
econômicos e nas relações de poder, e que o Estado passava a assumir,
seletivamente, a reprodução da força de trabalho e da educação escolar como
incremento do modelo vigente.
Em relação às pessoas com deficiência, os momentos que denunciam
as ações diretas do Estado, se iniciam com a promoção de várias Campanhas
226
de Educação e Reabilitação, em nível nacional. Ressaltamos aqui, a
Campanha para a Educação do surdo brasileiro (1957); a Campanha Nacional
de Educação e Reabilitação de Deficientes da visão (1958); Campanha
Nacional de Educação e Reabilitação de Deficientes mentais – a Cademe
(1960).
Tais campanhas tiveram suas motivações em movimentos e
documentos internacionais, como a Declaração Universal dos Direitos
Humanos, e o próprio movimento em defesa dos direitos sociais que se
estendia fecundamente pelo mundo. Este cenário leva profissionais, além de
seus pais e amigos, a se organizarem em associações brasileiras
representativas destas pessoas. Surgem, então, em todo o país, as Apaes
114
,
evidenciando um movimento de fortalecimento da sociedade civil, mas ainda
pautado no caráter filantrópico e não de direitos.
O surgimento das Apaes tem influência direta das primeiras
organizações internacionais de pais, especialmente dos Estados Unidos, a
exemplo da NARC. Começam a despontar desde então, os fundamentos de
uma política de integração
115
, tendo como princípios a normalização e o
mainstream
116
.
Com a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional,
Lei n.º 4.024/6l, os princípios da integração permanecem praticamente
inalterados e o pouco envolvimento do Estado com as pessoas com deficiência
também. Essa Lei determinou que “a educação de excepcionais, deve, no que
for possível, enquadrar-se no sistema geral de ensino, a fim de integrá-los na
sociedade”. No entanto, suas idéias não conseguiram sair do papel.
De forma ainda embrionária, em 1961, com a criação da Associação
Brasileira dos Deficientes físicos Abradef surge o primeiro movimento dirigido
pelos próprios indivíduos com deficiência, pois a então, predominavam as
associações organizadas e dirigias por pessoas sem deficiência, amigos e
voluntários que se voltavam à filantropia.
114
APAE Associação de pais e amigos dos excepcionais o instituições filantrópicas
difundidas em todo o Brasil a partir de 1954.
115
O processo de Integração no Brasil procurou inserir as pessoas portadoras de deficiência
nos sistemas sociais gerais como a educação, o trabalho, a família e o lazer.
116
Mainstream consiste numa tentativa de integração dos alunos portadores de deficiência em
classes regulares, em momentos específicos.
227
Com o Golpe de 1964
117
, muitos movimentos foram desarticulados e na
esfera oficial as alterações são intensas, tanto do ponto de vista estrutural,
como de valores e concepções. Há um fortalecimento do Estado em detrimento
da sociedade civil, predominando as forças ditatoriais e a coerção.
A prioridade do Estado brasileiro expressa nos seus Planos de
Desenvolvimento de 1964 a 1975 é o crescimento econômico em detrimento
das condições sociais da população. Neste contexto, a Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional, Lei n.º 5.692 nada mais é senão um reflexo da
nova política. Nela, as diretrizes de atendimento aos indivíduos com deficiência
remetem à integração e a racionalização dos serviços, ou seja, o máximo de
economia.
Nesta fase crescem as classes especiais dentro das escolas regulares
como forma de atendimento público, revelando que a ampliação deste tipo de
atendimento teve muito mais de motivação econômica que pedagógica. Por
outro lado, no âmbito particular, prevalecem as instituições especializadas para
o atendimento desta clientela.
Como parte das novas políticas educacionais é criado em 1973, o
Cenesp (Centro Nacional de Educação Especial) com a finalidade de
“promover, em todo o território nacional a expansão e melhoria do atendimento
aos excepcionais” (expressão utilizada na década de 70 para as pessoas com
deficiência) (MAZZOTTA, 1996:55).
Influenciado, em grande parte pelos movimentos internacionais que
culminaram com a assinatura da Declaração dos Direitos das Pessoas
portadoras de deficiência é organizado em São Paulo, em l977, o I Congresso
Paulista sobre a Problemática da Cegueira. Ainda este ano, o Cenesp elabora
o Plano Nacional de Educação Especial (1977-1979), com o objetivo de
assegurar aos excepcionais o direito a um atendimento educacional que
responda às suas necessidades especiais, condição básica e indispensável
para sua realização pessoal e integração social, ou seja, o ideário da
integração continua povoando as ações públicas brasileiras.
No novo contexto político brasileiro, denominado de Nova República, o
Cenesp é transformado em Secretaria de Educação Especial Seesp e conta
117
Sobre as repercussões do Golpe de 64 na Política Educacional brasileira ver: Romanelli,
2000.
228
com o apoio de um novo órgão: a Corde (Coordenadoria para Integração da
Pessoa Portadora de Deficiência
118
), responsável pela formulação do primeiro
Plano de Ação para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência
desenvolvido no período de 1986 a 1989.
Do lado da sociedade civil, observa-se uma crescente articulação entre
as entidades para pessoas com deficiência e as organizações de pessoas com
deficiência. As primeiras carregam ainda o viés assistencialista que marcou sua
origem. As segundas, no entanto, representam muito mais os interesses e lutas
das pessoas com deficiência. O surgimento das federações de cegos, surdos e
pessoas com deficiência física e mental se constituiu num importante
mecanismo de participação do povo na definição de políticas públicas no Brasil.
Desde 1988, com a nova Constituição Federal Brasileira, fica
estabelecido no seu Art. 208, parágrafo III, que é dever do Estado garantir “o
atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência,
preferencialmente na rede regular de ensino”. ainda outros artigos e incisos
referentes às pessoas com deficiência na área da saúde, trabalho, assistência
social, ampliando os alcances da política pública para este grupo.
A cada de 90, tão próxima do novo milênio, ainda testemunhou a
condição de exclusão deste grupo, declarando a necessidade de que algumas
ações políticas fossem assumidas pelos governos dos diversos países em prol
dos mais pobres. A Conferência Mundial de Educação para todos (1990) foi um
dos mais expressivos eventos neste sentido, onde se reconhece a urgência em
se promover políticas públicas que promovam educação de qualidade a todas
as pessoas, independente de suas condições sociais ou econômicas.
Para nós, o mais importante nestas declarações é o reconhecimento que
a situação econômica interfere diretamente na possibilidade ou não de inclusão
social, mesmo para as pessoas com deficiência. E que se não atentamos para
estes aspectos não possibilitamos nenhuma oportunidade efetiva de inclusão
para estes sujeitos.
Quanto a isto, salienta-se ainda que, embora reconhecendo todas as
contribuições que a ciência trouxe para a pessoa com deficiência, nenhuma
delas se efetiva, se o sujeito não tem meios financeiros para isso. Portanto, e
118
A partir dos anos 80, a terminologia adotada para referir-se à pessoa com deficiência é
Pessoa Portadora de Deficiência.
229
urgente que o Estado, ao formular sua política de inclusão contemple aspectos
econômicos na definição de suas metas, para que não continue promovendo a
inclusão de alguns e a exclusão de milhares.
Outras leis brasileiras coadunam com esta tendência: a Lei Federal
7.853, o Estatuto da Criança e do Adolescente e a própria LDB 9.394. A partir
da nova LDB, a Educação Especial perpassa transversalmente todos os níveis
de ensino, desde a educação infantil até o ensino superior, e é considerada,
ainda, como um conjunto de recursos educacionais e estratégias de apoio que
estejam à disposição de todos os alunos, oferecendo diferentes alternativas de
atendimento (SANTIAGO, 2003).
Neste contexto e influenciados pela Década da Reabilitação, instituída
internacionalmente a partir de 1983, grupos de pessoas de todo o Brasil
mobilizaram-se junto aos indivíduos com deficiência, organizando o AIDP
Ano Internacional do Portador de Deficiência. Este acontecimento motivou
diversos encontros na área, especialmente reunindo entidades formadas pelos
próprios sujeitos e seus familiares. Dessa forma, eles começam a assumir a
direção de seus movimentos, reelaborando suas práticas e questionando as
atitudes paternalistas e assistencialistas da sociedade.
Paralelo a isto, a comunidade acadêmica, além de algumas instituições
sociais e as próprias organizações de pessoas com deficiência reivindicam
políticas públicas mais eficazes no sentido de garantir a participação social
destes indivíduos nos diversos espaços da vida social.
A expressão integração é paulatinamente substituída pelo conceito de
inclusão, compreendida enquanto a inserção total e incondicional de todas as
pessoas aos bens sociais.
Na perspectiva da inclusão:
As escolas precisam ser reestruturadas para acolherem todo
espectro da diversidade humana representado pelo alunado em
potencial, ou seja, pessoas com deficiências físicas, mentais,
sensoriais ou múltiplas e com qualquer grau de severidade
dessas deficiências, pessoas sem deficiências e pessoas com
outras características atípicas, etc. É o sistema educacional
adaptando-se às necessidades de seus alunos (escolas
inclusivas), mais do que os alunos adaptando-se ao sistema
educacional (escolas integradas) (SASSAKI, 1997, p. 9).
230
Nessa direção, R. Edler Carvalho (2000) como estudiosa da proposta
inclusiva, assinala que para viabilizar as estratégias transformadoras e
concretizar as ações que o contexto de cada instituição educacional brasileira
exige, é preciso em primeiro lugar, vontade política dos dirigentes, além de
recursos econômicos e competência dos sistemas de ensino. Portanto, a
conquista destas condições no caso brasileiro pressupõe a elaboração de um
projeto coletivo que integre toda a sociedade em prol da transformação da
escola pública numa escola para todos, ou seja, uma política de fato, inclusiva.
Com esta preocupação, o Conselho Nacional de Educação (CNE), em
2001, a partir do Parecer nº. 17 estabelecem que os sistemas de ensino
conheçam a demanda real de alunos com deficiência mediante a criação de
sistemas de informação que possibilitem a identificação, análise, divulgação e
intercâmbio de experiências inclusivas.
Por outro lado, reconhece-se que não basta identificar onde estão os
sujeitos com deficiência, é preciso induzir as escolas a matricular estes alunos,
e, inclusive, refletir sobre o que os deixou de fora da escola por algum tempo.
Neste sentido, a resolução do CNE/SEESP n.º 02 declara que:
Os sistemas de ensino devem matricular todos os alunos
cabendo as escolas se organizarem para o atendimento aos
educandos com necessidades especiais, assegurando às
condições necessárias para uma educação de qualidade para
todos (MEC/SESSP, 2004).
O Decreto n.º 5.296, de 2006, na mesma direção vem estabelecer
normas gerais e critérios básicos para promoção de acessibilidade das
pessoas com deficiência ou com mobilidade reduzida. Para tanto, as escolas
precisam ser adaptadas sob o ponto de vista arquitetônico, de modo que
possam receber os alunos que possuem problemas físicos, motores ou de
visão. Mas, estes não são os únicos limites que as escolas brasileiras
enfrentam: falta de recursos pedagógicos e despreparo dos professores e
demais profissionais talvez sejam os piores.
Algumas medidas nesse sentido vêm sendo implementadas, através de
programas e projetos, como os desenvolvidos pelo Ministério da Educação e
Cultura (MEC) em parceria com o Ministério Público Federal.
231
Alguns programas de educação presencial e à distância vem sendo
desenvolvidos pelas Secretarias de Educação Especial em conjunto com a
Secretaria de Educação à Distância no sentido de habilitar professores e
gestores das escolas públicas de todo o país para o a atendimento educacional
especializado de alunos com deficiência no ensino regular, ou seja, objetivam,
pouco a pouco, consolidar a política de inclusão no Brasil.
Nesse processo de mudança, a Resolução 02/2001 que dispõe sobre as
Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica; o Plano
Nacional de Educação (2001), que destaca seu compromisso com a
construção de uma escola inclusiva que garanta o atendimento à diversidade
humana; o Decreto n.º 3.956, que defende os direitos das pessoas com
deficiência e promove a eliminação de barreiras que impedem o acesso à
escolarização são algumas das medidas legais adotadas para a inclusão social
e educacional.
Além destes, a Resolução CNE/CP n.º 1/2002, que estabelece as
Diretrizes nacionais para a formação de professores voltada para atenção à
diversidade, contemplando, inclusive, conhecimentos específicos sobre as
deficiências; ou ainda a lei 10.436/02, que reconhece a língua brasileira de
sinais como meio legal de comunicação e expressão de pessoas surdas,
garantindo que sejam implementadas formas institucionalizadas de apoiar seu
uso e difusão na escola ou o Decreto 5.626, de 2005 que institui a disciplina de
libras como componente curricular das escolas são outras ações que do ponto
de vista institucional viabilizam a construção de uma educação inclusiva.
Programas como Educação Inclusiva: direito à diversidade,
implementado em 2003 pelo MEC; Brasil Acessível, desenvolvido pelo
Ministério das Cidades, em 2004; além da implantação dos Núcleos de
Atividades de Altas Habilidades/Superdotação (NAAH/S) desde 2005, em todos
os estados e Distrito Federal, são evidências que a do ponto de vista legal,
as também filosófico e político um compromisso com a inclusão de alunos com
deficiência na rede regular de ensino.
Coadunam com esta premissa, a implementação do PDE Escola (Plano
de Desenvolvimento) e a instituição do Decreto n. 6.094, de 2007 que
estabelece nas diretrizes do Compromisso Todos pela Educação buscar o
232
fortalecimento do atendimento regular de alunos com deficiência em todas as
escolas do Brasil.
Os dados de matrícula de pessoas com deficiência na rede pública
brasileira expressam de fato uma mudança quantitativa nos alunos que
ingressaram na escola, mas ainda denuncia uma discrepância absurda entre
os alunos que estão em classes regulares e os que ainda são atendidos por
serviços ou classes especiais, bem como o grande número ainda de alunos
atendidos pela rede privada. Em 1998, registra-se 179.364 alunos com
deficiência atendidos pela rede pública de ensino, contra 157.962 alunos
atendidos nas escolas particulares, principalmente filantrópicas. Estes números
crescem em 2006 na rede pública, mas quase 40% do percentual total de
alunos com deficiência permanecem atendidos pela filantropia.
Gráfico 1: Distribuição da matrícula de alunos com deficiência
Fonte: Revista Inclusão, 2008, p. 13
O quantitativo de alunos atendidos pelo ensino regular que em 1998
(rede pública e privada) era de 43.923 alcança a margem dos 325.316 em
2006. Ainda assim, fica bem abaixo dos números de alunos atendidos pela
educação especial (classes ou escolas), que era 337.326 alunos matriculados,
em 1998, e atinge a casa de 700.624 (escolas públicas e privadas) em 2006.
De maneira geral, salientamos, então que, em termos propositivos, a
política de inclusão brasileira não deixa lacunas significativas; sua legislação e
programas sugerem uma efetiva promoção de respeito às diferenças e
valorização da diversidade humana como estímulo para as aprendizagens e
233
não como obstáculo. Entretanto, na prática as proposições políticas parecem
não conseguir efetividade, sobretudo, quando analisamos os dados do censo
escolar.
Gráfico 2: Matrícula de alunos com deficiência na rede pública e privada
Fonte: Revista Inclusão, 2008, p. 13.
Diante disto, nos perguntamos: o que ocorre de fato no conjunto destas
políticas que inviabilizam sua consecução? Que ações são necessárias para
que possamos garantir que os discursos se realizem no cotidiano das escolas
brasileiras? Que elementos ainda faltam para que o Brasil consolide uma
política de educação inclusiva e que pessoas com deficiência oriundas das
classes populares tenham a mesma chance de inclusão social? Como a
educação pode ser um instrumento nesta direção?
234
Eu sou um intelectual que não tem medo de ser
amoroso, eu amo as gentes e amo o mundo. E é
porque amo as pessoas e amo o mundo, que eu
brigo para que a justiça social se implante antes
da caridade.
Paulo Freire
235
6. POR UMA EDUCAÇÃO INCLUSIVA NUMA SOCIEDADE DE CLASSES,
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
O debate sobre a exclusão de pessoas com deficiência, antes de
constituir-se num campo repleto de constructos teóricos fundamentais para que
a realidade seja desnudada ante os olhos críticos do pesquisador, revela-se
como uma oportunidade ímpar de revisitar a condição humana dos seres,
alcançando a essência de nossos limites físicos, psicológicos e sociais e o
poder que os mais fortes exercem sobre os mais fracos nos diferentes tempos
históricos.
Desta forma, compreender o fenômeno da exclusão de um grupo tão
peculiar como o de pessoas com deficiência foi ao longo desta tese - sem
dúvida alguma -, um exercício onde razão e emoção puderam caminhar muito
próximas, sendo inclusive necessárias uma a outra, e, somente assim, foi
possível que as forças não fossem desperdiçadas e o investimento valesse à
pena.
Diante disto, referendamos a opção metodológica adotada,
principalmente em sua abordagem materialista dialética, como o principal
instrumento que possibilitou que não nos perdêssemos na história, nem
deixássemos de enxergar a essência do nosso fenômeno, superando as
aparências e alcançando a essência do problema da exclusão de pessoas com
deficiência definida pela classe social.
Nesta direção, é preciso reconhecer que as diferentes civilizações e
tempos históricos analisados, embora familiares ao debate acadêmico,
puderam ser vistos com novos olhares, imunes a obviedade e atentos a
dinâmica da realidade objetiva, ou seja, comprometidos com o mundo
contraditório, confuso, conflituoso e, por isso mesmo, passível de mudanças,
de intervenções e novas proposições.
De tal maneira, os estudos realizados apontaram no sentido de que a
educação inegavelmente contribui para a exclusão social da pessoa com
deficiência, pois atende aos interesses de classe.
236
Com este propósito, evidenciamos desde as civilizações antigas, que,
embora guiadas por mitos, as atitudes da sociedade para com os indivíduos
com deficiência não pode ser explicada por outro viés, senão o da classe social
como pôde se constatar desde as primeiras páginas desta tese.
Seguindo a mesma direção, noutros tempos históricos as análises
revelaram que a situação da pessoa com deficiência pouco se altera. Assim,
embora se constate que na Idade Média, novas lógicas se expressam no
campo social, os desafios para este grupo são muito semelhantes.
Na era moderna, constatam-se modificações ainda mais complexas
nas esferas sociais, econômicas, mas também culturas. Dessa forma, a ciência
vem exercer papel de destaque, não se negando a amplitude de
conhecimentos e recursos disponíveis para a demanda de indivíduos com
deficiência. No entanto, é notório como estes referenciais e toda gama de
instrumentos que deles deriva não conseguem transpor os obstáculos impostos
pelo pertencimento de classe.
É a partir deste ponto, de maneira ainda mais latente que a educação
se confirma como estreitamente vinculada aos interesses classistas, reforçando
inclusive a condição de exclusão social que atinge as pessoas com deficiência.
Assim, percebe-se que os maiores entraves e riscos envolvendo sujeitos com
deficiência são definidos numa nova razão que tem na educação formal um de
seus melhores aliados, pois reproduz uma ideologia que define o ser pela
posição social por ele ocupada e o reduz ao que modelo social lhe outorga.
Nos diferentes contextos, é a presença de uma ordem estabelecida
que dita as oportunidades dos grupos sociais. O faraó no Egito Antigo, o Papa
no mundo medieval ou a ciência moderna representam o poder instituído para
o bem da coletividade. Assim, os recursos à vida, à sobrevivência ou a
condenação à morte são atributos desta figura que paulatinamente seja arauto
da exclusão de indivíduos pobres das oportunidades sociais.
A história é extremamente reveladora, mas é preciso que ao lê-la
estejamos atentos as contradições inerentes ao cotidiano dos povos, pois, é
somente o olhar atento sobre os diferentes aspectos (políticos, sociais,
econômicos, culturais, educacionais) da vida em sociedade que nos possibilita
identificar e compreender as causas da exclusão de pessoas com deficiência.
Assim, é que afirmamos que seja na Antiguidade, Idade Média, Moderna ou
237
contemporânea, a exclusão social de pessoas com deficiência é referendada
pelo seu pertencimento de classe, e não pela deficiência em si.
Nesta perspectiva, desvelar as causas da exclusão da pessoa com
deficiência aponta para a constatação de uma realidade objetiva fria e cruel,
pois reforça a supremacia do princípio do ter em detrimento do ser que toma
conta do mundo moderno e se alastra em nossos dias, de maneira
irremediável.
Dessa maneira, a capacidade da pessoa com deficiência é medida em
função do quanto ela dispõe para manter-se, sem deixar prejuízos aos demais.
Este é, de fato, o atributo exigido de cada indivíduo, pois se tratar-se de um
homem das classes privilegiadas economicamente, ser deficiente o lhe trará
riscos potenciais, pois sua invalidez
119
pode ser financiada.
Por outro lado, possuir deficiência entre as classes populares representa
um grande desafio: à sobrevivência nos primórdios na humanidade e à
cidadania nos tempos hodiernos. Ontem ou hoje a capacidade destes sujeitos
se atrela a classe que pertence.
Se no passado o valor dos mais pobres residia no quanto de força física
ele dispunha para dedicar as atividades na agricultura ou no pastoreio, no
presente, a situação não é diferente.
Na mesma medida, pode-se afirmar que, enquanto o enriquecimento
dos povos esteve diretamente atrelado aos recursos conquistados nas
batalhas, a habilidade dos homens para a guerra foi a moeda de troca para que
garantissem sua sobrevivência. Logo, homens limitados fisicamente tornaram-
se sem nenhum valor para o grupo e, portanto, dispensáveis.
Nesta perspectiva, pode-se inferir que enquanto a sociedade
permanecer valorizando as pessoas em razão de suas posses seja terra, força
ou dinheiro, estaremos muito distantes de conseguir a inclusão de todos e,
ainda pior, estaremos lançando cada vez mais pessoas ao abismo da exclusão
social. Em outras palavras, numa sociedade dividida entre possuidores e
possuídos, ricos e pobres, fracos e poderosos, sempre haverá mais e mais
119
Geralmente a pessoa com deficiência é vista como inválida, ou seja, sem valor para as
diversas instituições sociais. Não concordamos com esta idéia e, seu uso neste contexto se
somente pela tentativa de ilustrar a visão preconceituosa que se tem destes indivíduos.
238
espaço para que as diferenças sejam anuladas e as deficiências de alguns
negadas.
Não somos ingênuos de pensar que somente destituindo a sociedade
de classes resolveremos a situação da pessoa com deficiência, mas não nos
furtamos de pensar num novo homem e um novo mundo (como sonhou Paulo
Freire) onde esta distinção seja somente uma lembrança do passado. Mas,
enquanto isso não se aproxima dos nossos dias, não é utópico acreditar que é
possível construir ações que viabilizem a valorização das pessoas em
detrimento do seu pertencimento de classes e inaugurem outra lógica.
Nas civilizações hodiernas é papel do Estado, enquanto articulador dos
interesses e necessidades de todos os cidadãos promover políticas públicas
que reconheçam a relação conflituosa entre as classes e apontem no sentido
da superação destas diferenças e democratização dos bens e serviços.
Defendemos, portanto, uma política pública que atente para este viés e
reconheça a exclusão conforme Castel:
Processo pelo qual, certos indivíduos e grupos são
sistematicamente impedidos de aceder a posições que lhes
permitiriam uma forma de vida autônoma dentro das normas
sociais enquadrados por instituições e valores, num determinado
contexto (CASTEL, 1998, p. 73).
Além disso, tais políticas precisam atentar para a divisão de classes e no
interior delas a diversidade humana como condição indispensável para que se
efetive a cidadania plena. Por isso, compreendemos que a negação destes
elementos no bojo das políticas públicas é responsável pela inoperância do que
é proposto.
Olhando mais de perto a realidade brasileira, tais assertivas são ainda
mais contundentes, pois não somos carentes de propostas inovadoras e
referenciais consistentes; mas, de reconhecimento de que há uma discrepância
entre nas oportunidades educacionais que as diferentes classes sociais
acessam que precisa ser debatido de maneira mais enfática.
E evidente que no último século (como no atual) o Brasil e o mundo
testemunharam avanços significativos no campo científico e tecnológico,
alguns nunca antes imaginados para o ser humano com deficiência. No
entanto, estes recursos continuam disponíveis apenas aos privilegiados
239
economicamente, pois custam muito além do que uma pessoa com deficiência
pobre pode receber quando consegue inserir-se no mercado de trabalho,
conseguido, sobretudo pelo estímulo a isenção de impostos assegurada pelo
Estado brasileiro.
Podemos citar os aparelhos de amplificação sonora utilizados para
colocar o surdo o mais próximo possível do mundo dos sons, os de ampliação
de imagens para possibilitar os de baixa visão ter acesso a todos materiais
impressos em tinta, os computadores e os programas de voz; a impressora
Braille; a bengala telescópica, a cadeira motorizada, ou ainda os inúmeros
softwares produzidos para promover acessibilidade, dentre tantos outros. Mas
a quem são acessíveis?
O TVi Color, por exemplo, é um circuito fechado de televisão para
ampliação de imagem concebido para pessoas com necessidades de ler texto
ou ver imagem ampliada. Nele, a imagem é ampliada e apresentada num
televisor a cores ou a preto e branco. A câmara desliza-se facilmente por meio
de cilindros rolantes, permitindo a detecção e leitura de texto sem quaisquer
dificuldades.
Um aparelho como este facilita bastante o processo de inclusão da
pessoa com baixa visão na sociedade, especialmente do ponto de vista do
acesso aos materiais impressos amplamente utilizados pela escola, mas custa
em média R$ 1.600,00, ou seja, mais que três salários mínimos de um
trabalhador brasileiro.
Da mesma forma, podemos verificar que um aparelho auditivo digital
custa atualmente R$ 5.580,00, portanto mais de dez salários mínimos de uma
pessoa que trabalha. E uma cadeira de rodas motorizada, R$ 11.319,00.
Então, é bom que se pergunte se os avanços da ciência e da tecnologia
moderna estão de fato ao alcance de pessoas com deficiência, ou se ainda,
para os pobres, resta o assistencialismo e a caridade que marcaram a vida
medieval?
Sabe-se que as novas tecnologias vêm se tornando, de forma crescente,
importantes instrumentos de nossa cultura, tornando-se um recurso utilizado na
inclusão das pessoas que possuem deficiência. São as chamadas tecnologias
240
assistivas
120
, ou seja, diz respeito a todo o arsenal de recursos e serviços que
contribuem para proporcionar ou ampliar habilidades funcionais de pessoas
com deficiência e conseqüentemente promover a inclusão dos mesmos na
sociedade.
É conhecido que as novas Tecnologias de Informação e Comunicação
(TIC) vem causando um impacto significativo no processo ensino-
aprendizagem, abrindo perspectivas novas de acesso ao conhecimento
universal e possibilitando uma interessante maneira de produzir conhecimentos
em rede digital de comunicação. Essas tendências expandiram o espaço da
sala de aula para muito além de suas paredes físicas, levando professores e
alunos a mergulhar em novos conhecimentos bem mais diversificados e
atualizados.
O progresso tecnológico permite oferecer melhores condições de vida às
pessoas, principalmente às com deficiência, favorecendo sua inserção no
mercado de trabalho e na vida social. Mas, o progresso está disponível para
que pode comprá-lo e ele custa caro. Assim, pessoas com deficiência vivendo
em situação de miséria não disporão de chances de incluírem-se socialmente,
estão condenados a viver à margem da sociedade, dependendo
essencialmente da caridade de alguns benevolentes.
O resultado desta distância entre o que está acessível às pessoas com
deficiência de classes sociais distintas, no caso brasileiro, é negado pelas
políticas públicas e, algumas vezes, utilizado como engodo para mascarar a
realidade social e atribuir ao individuo a responsabilidade sobre seu sucesso ou
fracasso, características marcantes do liberalismo.
Dessa forma, defendemos que a negação desta dimensão na
elaboração das políticas públicas brasileiras, no que tange as deficiências, vem
afugentando qualquer possibilidade de inclusão. Por outro lado, também atrela
sua inoperância às condições e características físicas, intelectuais, auditivas ou
visuais do sujeito em evidência. Assim, quanto mais próximo das classes
menos favorecidas economicamente mais incapacitado o indivíduo se torna,
120
O objetivo das tecnologias assistivas é proporcionar à pessoa com deficiência maior
independência, qualidade de vida e inclusão social, através da ampliação de sua comunicação,
mobilidade, controle de seu ambiente, habilidades de seu aprendizado, trabalho e integração
com a família, amigos e sociedade
241
seja porque as atribuições de sua classe lhe exigem o que não possui, seja
porque o terá condições de dispor dos recursos, materiais e instrumentos
necessários a melhoria da qualidade de vida que a deficiência lhe impõe.
Tanto de um ponto de vista quanto de outro, tais constatações nos
inquietam no sentido de que se reflita urgentemente sobre o fato e que não
bastem mais as explicações meramente mitológicas ou religiosas sobre a
exclusão da pessoa com deficiência. A exclusão não se explica nesse patamar,
mas está intimamente imbricada de razões materiais que precisam ser
reveladas.
Há, portanto, no Brasil como em outros países, especialmente nos mais
pobres, uma ação sistemática que impede que as pessoas com deficiência
participem da vida social. Há sempre um grupo que elege as normas e regras a
ser seguidas e, estes representam os mais poderosos tanto do ponto de vista
econômico como intelectual.
Dessa forma, a análise sobre os processos de exclusão da pessoa com
deficiência, dentro de uma perspectiva histórica, torna evidente que se muda as
instituições e os discursos, e em alguns momentos até as estratégias, mas
conserva-se a condição de impedimento porque a escola e sociedade são
classistas.
A diferenciação existente entre deficientes ricos e deficientes pobres,
restando aos últimos à marginalidade, é antes de tudo uma vergonha. Para
além da deficiência, tem sido sua condição social a definidora de seu sucesso
ou fracasso. Sem negar o papel que exerce o estigma que a deficiência é
capaz de imprimir sobre os sujeitos, tal marca como relativa a algo que lhe falta
pode até ser superada ou normalizada com os aparatos que o dinheiro pode
comprar: cadeiras motorizadas, bengala digital, aparelhos de amplificação de
som ou de imagem, etc. Mas, para os mais humildes será sempre um sinal
inequívoco de sua anormalidade; um atributo conferido para garantir sua
exclusão, em razão de uma inferioridade econômica.
Em linhas gerais, é preciso acrescentar ainda que os resultados deste
estudo, embora num primeiro momento nos deixem perplexos, pois confirmam
a hipótese de que é o pertencimento de classe que determina a condição de
exclusão da pessoa com deficiência, as evidências não anulam as esperanças
242
de poder, numa dimensão reflexiva, contribuir para a construção de uma
sociedade mais justa e fraterna para este grupo.
A verdade é que a história mostra que ontem e hoje, pessoas com
deficiência das classes altas podem sonhar e conquistar seus sonhos, pois
estes são compráveis. Certamente, para isso terão escola de qualidade,
professores qualificados e recursos tecnológicos especiais. Contudo, os pobres
ainda estão longe de almejar igualdade de oportunidades.
As idéias aristotélicas sobre a deficiência como um mal irreparável à
sociedade não estão tão distantes como se pensa.
Nesta perspectiva, acreditamos que as práticas educativas
desenvolvidas para pessoas com deficiência estiveram e permanecem
diretamente vinculadas a estas idéias próprias do dominador. Assim, a história
de segregação deste grupo se sedimenta nas instituições sociais
comprometidas com os mesmos princípios presentes na cientificidade
burguesa, refletida em muitos movimentos desenvolvidos nos culos
passados.
Assim, a história de exclusão de que é vítima a pessoa com deficiência
não se altera na sociedade contemporânea, apenas assume um discurso
diferente. O olhar preconceituoso do dominador saudável e perfeito
identifica gradativamente todas as inúmeras imperfeições que o deficiente
possui, quando comparado ao não deficiente. Mas, este olhar se agrava
quando a pessoa com deficiência é também oriunda de país subdesenvolvido,
e neste, pertencente ao proletariado, pois no contexto atual capitalista o
indivíduo só se mantém se puder produzir, por um lado, e consumir, por outro.
A cisão estabelecida entre ricos e pobres aparece na sala de aula e
nenhuma política pública tem conseguido superar isto. A legislação específica,
a exemplo dos documentos produzidos diretamente para fomentar a inclusão
na escola, ou mesmo àqueles que visaram garantir outras condições de
acessibilidade no trabalho, no lazer e na sociedade como um todo não
conseguiu que as diferenças de classe fossem superadas ou minimizadas.
Estudar, trabalhar ou passear nas ruas da cidade ainda é mais difícil para
pessoas com deficiência da classe popular, pois nos morros ou comunidades
pobres, quase nunca se podem fazer adaptações; nem sempre é possível
construir rampas, elevadores ou plataformas, como se fazem nos prédios dos
243
bairros nobres, em locais que nasceram da invasão, do aterramento, da
exclusão.
A existência de um aparato legal e institucional específico para a
educação dos alunos com deficiência, longe de contribuir para a garantia e a
ampliação do direito destes alunos à educação, como muitos pensam, tem
corroborado para dificultar o processo de entendimento dos verdadeiros
problemas que atingem a escolarização destes indivíduos.
Muitos indivíduos com deficiência permanecem em espaços de
segregação e mecanismos de exclusão, diferentes daqueles do passado,
somente pela sutileza das condições ou porque se encontram travestidos num
discurso de atendimento às peculiaridades e respeito às diferenças.
Ao focalizarmos a educação brasileira, todas as suas contradições
instigam a reflexão na busca de respostas mais democráticas em relação a
grande parcela de excluídos sociais. Sob esse ponto de vista, fica evidente
que, apesar de todas as conquistas, muito que se fazer no âmbito das
políticas públicas, principalmente quando o foco é o aluno com deficiências.
Fica evidente que a política educacional brasileira vive um momento de
sérias contradições, no entanto, a mais importante é a constatação da
impossibilidade de se construir uma escola democrática a partir de um modelo
pautado na negação da condição de classe como definidora dos processos
excludentes.
A análise criteriosa do fenômeno da exclusão permitiu desmistificar falsas
verdades sobre a questão da pessoa com deficiência, bem como sobre a
política de inclusão que se proclama no Brasil, atentando para os aspectos
legais e institucionais desta política e sua discrepância da realidade. Reforçam,
ainda, a presença de práticas educacionais elitistas, excludentes e desiguais,
portanto, uma política discriminatória com um grupo que muito é vitimizado
pela ausência de ações mais concretas.
No Brasil, o que se é uma democracia puramente liberal e oligárquica,
calcada na suposta igualdade de direitos e nas liberdades individuais. Dessa
forma, o produto resultante, para os alunos com deficiência são formas
variadas de exclusão, confirmadas na negação de direitos humanos muito
proclamados pela humanidade para todos os povos, como o direito ao trabalho
e a educação.
244
O poder cristalizado e opressor da discriminação é ainda grande marca
identificada durante toda a história da educação dos alunos com deficiência e
encontra um terreno fértil na forma como se estrutura o sistema educacional
brasileiro, ainda na atualidade. De forma geral, é possível dizer que, todos os
instrumentos da política educacional brasileira embora, justifiquem suas
proposições no direito à educação e a reivindique para todos os brasileiros,
estão, ainda, distantes de garanti-la aos alunos com deficiência, pois não
estabelecem os recursos necessários aos que não podem ter acesso sozinho.
A pessoa com deficiência de classe pobre enfrenta os limites que a
pobreza impõe e que são muito maiores que qualquer diferença sensorial,
física ou intelectual pode exigir. E estes limites não são contemplados nas
políticas públicas brasileiras porque se insiste em negar que embora possamos
tentar compreender e definir o ser humano pela consciência, pela linguagem e
pela religião, o que realmente o caracteriza é a forma pela qual produz e
reproduz suas condições de existência. Fundamental, portanto, é analisar as
condições materiais da existência societária de pessoas com deficiência.
Felizmente, como a realidade não é estática, mas, dinâmica e está
sempre em transformações, tanto qualitativas quanto quantitativas, não
pudemos desistir de que se construam políticas mais comprometidas com a
superação destas contradições.
Por fim, se percebemos o mundo de forma dialética e neste sendido
também as pessoas (gestores, professores, alunos, pais) estão em constante
movimento, ou seja, não são passivos nem mecânicos como os instrumentos
que produzem, podendo inclusive reagir sobre eles, sobre as leis, sobre os
fatos, reeditando sua própria história, então, isso significa que a consciência
sobre a situação de exclusão de pessoas com deficiência que ora se anuncia
nesta tese, mesmo estando circunscrito num primeiro momento ao universo
acadêmico, representa o mundo vivido a realidade e, por isso mesmo
alcançará sua legitimidade neste âmbito.
De tal forma, o conhecimento que ora produzimos não visa atestar o
determinismo que isola, aprisiona e condena o homem a permanecer onde
está, mas, pelo contrário, tenta instaurar perspectivas de análise que
confirmam o poder de libertação deste homem por meio de sua ação sobre o
mundo, possibilitando inclusive a ação transformadora, pois acredita nela
245
quem se o direito de se revoltar com o instituído, denunciar seus equivocos
e propor saídas na construção de um mundo mais humano e mais justo, onde
caibam todos os sujeitos, independente de sua classe, etnia, deficiências ou
mesmo potencialidades.
246
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