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ALEXANDRE LIMA
ATO E POTÊNCIA: UM ESTUDO SOBRE A RELAÇÃO ENTRE SER E
MOVIMENTO NO LIVRO Θ DA METAFÍSICA DE ARISTÓTELES
Florianópolis
2005
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
ATO E POTÊNCIA: UM ESTUDO SOBRE A RELAÇÃO ENTRE SER E
MOVIMENTO NO LIVRO Θ DA METAFÍSICA DE ARISTÓTELES
Dissertação submetida ao corpo
docente do departamento de
Pós-graduação em Filosofia da
Universidade Federal de Santa
Catarina, como parte dos
requisitos para obtenção do
título de Mestre.
Aluno: Alexandre Lima
Orientadora: Arlene Reis
Florianópolis
2005
1
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Esta dissertação foi julgada adequada
para a obtenção do título de Mestre em
Filosofia e aprovada em sua forma final
pelo Programa de Pós-Graduação em
Filosofia da Universidade Federal de
Santa Catarina.
__________________________________
Prof. Dr. Marco Antônio Franciotti
Coordenador do Programa de Pós-
Graduação em Filosofia da UFSC
Banca Examinadora:
____________________________
Prof.ª Dr.ª Arlene Reis
Presidente – UFSC
____________________________
Prof. Dr. Luís Felipe Ribeiro
Membro – UFSC
____________________________
Prof. Dr. Selvino José Assmann
Membro – UFSC
2
Agradeço muitíssimo à Professora Arlene Reis por ter me encaminhado na difícil
missão que é o estudo do célebre Estagirita.
3
À Professora Arlene Reis por sua
substancial dedicação, paciência e
sabedoria.
4
RESUMO
Com o propósito de analisar a relação entre ser e movimento a partir dos conceitos
de ato e potência, elaboramos um mapeamento do livro Θ da Metafísica, capaz de orientar
o entendimento de sua estrutura central. Visto como um dos modos de se dizer o ser, o ser
em ato e em potência é parte integrante e fundamental da investigação metafísica. A
distinção entre ser em ato e em potência pretende resolver o clássico problema do não-ser
que vem a ser, mostrando como o não-ser é apenas não-ser ainda em ato, mas já é ser em
potência e este guarda as condições para sua necessária atualização. A reconstrução
argumentativa de Θ procurou ressaltar três aspectos principais: (1) Ato e potência
funcionam como um elemento de conexão entre as outras ciências – práticas, produtivas e
teóricas – que são subordinadas à Ciência do Ser enquanto Ser, a Metafísica. (2) Há uma
forte relação entre o par conceitual ato/potência e os outros conceitos fundamentais da
filosofia aristotélica, tais como: substância, forma, matéria, ação, bem, natureza e fim.
Desse modo, ato e potência somente serão plenamente compreendidos se também forem
considerados esses outros conceitos. (3) Há uma relação direta entre os dois sentidos em
que ato e potência podem ser entendidos - o cinético e o metafísico - e a seguinte divisão
interna de Θ: de Θ1 a Θ5 a investigação está centrada sob o ângulo do movimento, é o
momento cinético, em que Aristóteles dedica-se mais à análise da potência caracterizada
como um princípio de movimento. A idéia central é ressaltar que se todas as coisas
estivessem já em ato não haveria possibilidade de movimento. De Θ6 a Θ10 a investigação
está centrada sob a perspectiva da substância, é o momento metafísico, com maior destaque
à análise do ato e suas relações com a forma e, portanto, com a substância. Por serem
conceitos originários, ato e potência só podem ser pensados de modo imediato, não
cabendo uma definição no sentido estrito, devendo ser compreendidos somente por meio da
analogia de proporção. Aristóteles defende ainda a anterioridade do ato perante a potência,
pois é necessário que exista algo já em ato para que um outro, em potência, venha a ser. O
livro Θ está inserido num plano maior de investigação, a Metafísica, cujo objeto central é a
substância, e desse modo, ato e potência são conceitos que somente se esclarecem e têm
sentido a partir da substância.
5
ABSTRACT
Actuality and Potency: a study concerning the relation between being and motion in
the book
Θ
of the Metaphysics of Aristotle
In order to analyze the relation between being and motion, we drew a map of the book Θ of
Metaphysics, based on concepts of actuality and potency, which is able to explain the
central structure of that book. Understood as one way of to say the being, the being in
actuality and in potency take a fundamental role in the metaphysical inquiry. The
distinction between actuality and potency intend to solve the classic problem of not-being,
that is to say, although the not-being is not being only in actuality, it is already being in
potency, and this carry the conditions for your necessary realization. The reconstruction of
the argument of the book Θ of Metaphysics aim to emphasizes three main aspects: (1)
Actuality and potency work as a connection element between the others – practical,
productive and theoretical - sciences, which are subordinated to science of being such as
being, Metaphysics. (2) There is a strong relation between the concepts actuality and
potency and others fundamental concepts of Aristotelian philosophy, such as: substance,
form, matter, action, good, nature and end. Because of this, actuality and potency can be
fully understood, only if we pay attention to these others concepts. (3) There is a direct
relation between the two senses in what actuality and potency can be understood – kinetics
and metaphysical – from the following internal distinction of book Θ: from Θ1 to Θ5, the
inquiry concentrate on perspective of the kinetics move; in this part of the book, Aristotle
deals with, in the most part of, the analyze of potency characterized as a source of motion.
The main idea is to emphasize that, if all things were already in act, there is no possibility
of motion. From Θ6 to Θ10, the inquiry concentrate on perspective of substance, the
metaphysical move, that pay more attention to analyze of the actuality and his relations to
form, and, therefore, with substance. Because these concepts are original ones, actuality
and potency can be thought of only immediately. There is no definition for these terms in
the strict sense; they need to be understood only by means of proportion analogy. Aristotle
defends still the priority of actuality over potency, because it need there to be something
already in act in order to another thing, in potency, become real. The book Θ is included in
a broader level of inquiry, the Metaphysics, of which central object are the substance, and
so, actuality and potency are concepts that only can become clearer and make sense after
substance discussion.
6
SUMÁRIO
Introdução ........................................................................................................................... 9
Capítulo I
O Ser e o Movimento...........................................................................................................15
1 A solução de Aristóteles .................................................................................................. 17
1.1 O Movimento em Aristóteles ....................................................................................... 18
1.2 Os modos de se dizer o Ser ........................................................................................... 21
2 Potência é princípio de movimento ................................................................................. 24
2.1 Os tipos de Potência ......................................................................................................32
2.2 Quando as potências ativa e passiva coincidem ou diferem ......................................... 35
2.3 A impotência enquanto Privação ...................................................................................37
3 Potências Racionais e Não-racionais ............................................................................... 39
3.1 Potência para os contrários ........................................................................................... 43
3.2 - Potência para agir ou padecer bem ............................................................................. 47
4 Sobre as condições e os limites para a atualização da Potência ....................................... 49
4.1 As condições para o potente se atualizar ...................................................................... 51
4.2 O Desejo e a Escolha como princípios dos contrários ................................................. 54
Capítulo II
Em defesa do Movimento ................................................................................................... 60
1 A polêmica com os Megáricos ......................................................................................... 63
1.1 Sobre a circularidade na definição do Possível ............................................................. 69
1.2 Ato e Movimento .......................................................................................................... 72
2 Possibilidade e Realização ............................................................................................... 75
3 O Possível e o Necessário ................................................................................................ 78
Capítulo III
Ato e Potência relativos à Substância ................................................................................. 81
1 Definição por Analogia .................................................................................................... 83
1.1 Ato e Potência por meio da Analogia ........................................................................... 87
1.2 Analogia: a unidade para os sentidos cinético e metafísico............................................89
2 O Infinito, o Vazio e o Movimento ................................................................................. 90
3 A distinção entre Ato e Movimento ................................................................................ 93
3.1 O Movimento é imperfeito ........................................................................................... 97
3.2 Ato e Ação .................................................................................................................. 100
4 Atualização da Potência enquanto Matéria......................................................................104
4.1 Matéria próxima e Matéria primeira.............................................................................108
4.2 Matéria e Sujeito...........................................................................................................110
7
Capítulo IV
A anterioridade do Ato........................................................................................................114
1 Modos da anterioridade do Ato........................................................................................115
1.1 Ato é Fim na ação e na produção..................................................................................122
1.2 Anterioridade nas Substâncias Eternas.........................................................................123
1.3 Movimento dos Seres Eternos......................................................................................126
2 Contra os Platônicos........................................................................................................127
3 Anterioridade do Ato no Bem..........................................................................................129
4 Anterioridade do Ato na Matemática...............................................................................131
5 Ser, Verdade e Ato...........................................................................................................134
Considerações finais.........................................................................................................138
Referências........................................................................................................................148
8
Introdução
Este trabalho tem como propósito estudar a relação entre ser e movimento a partir
dos conceitos de ato e potência definidos no livro Θ da Metafísica. Ato e potência são
indicados por Aristóteles, na Metafísica, como um dos modos de se dizer o ser, sendo, por
isso, fundamentais para se compreender sua filosofia.
Visando a elaborar um caminho que favoreça a compreensão do tema, optou-se pelo
mapeamento de Θ, ou seja, uma reconstrução de seus principais argumentos capaz de
orientar o entendimento de sua estrutura central. Apesar da complexidade e de todas as
dificuldades que o envolvem, procurou-se elaborar uma linha de argumentação que
possibilitasse explicitar melhor os objetivos centrais que Aristóteles pretendia destacar em
Θ, especialmente, a conceituação de ato e potência, pressupondo-o não tanto como
aporético mas como um texto capaz de proporcionar respostas sistemáticas ao tradicional
problema da relação entre ser e movimento.
Esta reconstrução argumentativa pretendeu também ressaltar que a grande
importância de Θ está em sua apresentação e análise do ser em ato (
e)ne/rgeia/e)ntele/xeia)
e em potência (
dunato/n/du/namij), mostrando como estes conceitos são fundamentais para
compreender não só a ontologia aristotélica como também as outras áreas do conhecimento.
Com base nessa constatação, o mapeamento de Θ destacará os seguintes aspectos: primeiro,
o par conceitual ato/potência é um elemento de conexão entre as outras ciências – práticas,
produtivas e teóricas – subordinadas à Ciência do Ser enquanto Ser. Ato e potência são um
amálgama que permite compreender outros âmbitos do conhecimento, especialmente a
Física, a Ética, a Política e a Teologia.
O segundo aspecto importante, e intrinsecamente relacionado ao primeiro, refere-se
às relações existentes entre ato/potência e os outros conceitos fundamentais da filosofia
aristotélica. Ato e potência não são conceitos isolados, eles pertencem a uma estrutura
conceitual que pretende expressar o ser em geral. Nesse sentido, as principais relações,
diretas e indiretas, verificadas ao longo de Θ são, por um lado, entre: ato e forma; ato e
substância; ato, ação e fim. Por outro, entre: potência e matéria; potência e movimento;
movimento e produção; potência, matéria e indeterminação.
9
O terceiro aspecto remete à relação entre os dois sentidos em que ato e potência
podem ser entendidos, o cinético e o metafísico, e a divisão interna de Θ, elaborada com o
propósito de evidenciar essas perspectivas diferentes, de acordo com a complexidade do
real. De Θ1 a Θ5 Aristóteles centra a investigação sob o ângulo do movimento, dedicando-
se mais à análise da potência caracterizada como um princípio de movimento. Nesses
capítulos o objetivo principal é provar a existência do movimento a partir da noção de que o
ser em potência é uma face do ser em ato e que já guarda em si as condições necessárias
para se atualizar. A idéia central é ressaltar que se todas as coisas estivessem já em ato,
fossem desde sempre completas, não haveria possibilidade alguma de movimento.
Aristóteles apresenta os tipos de potência e como estas se refletem em várias áreas do
conhecimento. Conseqüentemente, analisa também as condições necessárias e os limites
para a atualização da potência, especificando quando um ser é ou não é potencialmente
outro ser.
De Θ6 a Θ10 Aristóteles enfoca a investigação sob a perspectiva da substância
dedicando-se mais à análise do ato e suas relações com a forma e, portanto, com a
substância. Nesses capítulos Aristóteles destaca a conexão intrínseca existente entre ato e
potência, uma necessária reciprocidade, de tal modo que o conceito de um condiciona a
compreensão do outro. São conceitos originários e, sendo assim, só podem ser pensados de
modo imediato, não cabendo uma definição no sentido estrito. Aristóteles defende ainda a
anterioridade do ato perante a potência, pois é necessário que exista algo já em ato para que
um outro, em potência, venha a ser. Essa anterioridade é verificada tanto nos seres
sublunares quanto nos supralunares. É sob esse aspecto que fica mais explícita a associação
promovida, por um lado, entre ato, forma e substância; por outro, entre potência, matéria e
movimento.
Tal divisão interna, que tem como base o plano geral elaborado por Aristóteles, não
tem como objetivo sustentar uma separação estanque entre as duas perspectivas, cinética e
metafísica, pelo contrário. A primeira parte, Θ1 a Θ5, só pode ser plenamente
compreendida tendo como pressuposto a noção de substância, que aAri9ota< Tm.0 0 12 330.1804 1516ai869aubstna 171.9581 TT0 1 T154.00011 Tc 0.054 Tw 12 0 0Tw 55791.035 21gules 9581 . Ipl(5,ai8vsto f16.8m(ubsto livro1.9581 Tm(1 a )Tj/C2_0 1 Tf0 Tc 0 4j13438 0Tw 55791.0354 171.9581 Tm<012C>Tj/3o de)Tj1 0 00 1 Tf0 Tc 0 5j140.810Tw 55791.035 192t6.858in5, i(rnm(213.35 potência, m)T2Tf00 0 Tw 55791.035 316.85861 Tm(a)Tj4)Tj10 Tw 55791.035 5858m(teles, nubs)Tj0 0 0011 Tc 0.054 Tw 12 0 0Tj1570 0035 5nv92tig17 Tm(a separação145. es 0 0Tj1570 0035 ,171.9581TT1<012C>Tj esse )T0005 Tc 0.0287 6j1212 00Tj1570 0035 Me 171.9581 341rio. A prim
Este trabalho pretende mostrar que no livro Θ Aristóteles direciona sua atenção para
um dos principais modos de se dizer o ser: em ato e em potência. Entre as principais
perspectivas mais gerais de apreensão da realidade, o par conceitual ato/potência é
apresentado como uma evidente tentativa de Aristóteles para explicar a relação entre
movimento e estabilidade, entre mudança e identidade. O ser em ato e em potência pretende
dar conta das dificuldades indicadas por alguns pré-socráticos, sofistas e por Platão sobre a
relação entre o movimento e o ser, sendo que nenhum deles teria conseguido se
desvencilhar do impasse implicado numa possível passagem do não-ser para o ser.
Aristóteles elabora uma teoria que confirma uma passagem do ser em potência ao ser em
ato, mais próxima ao senso comum, eliminando a qualidade ontológica do não-ser e
evitando cair em contradições, visto que essa passagem ocorre sempre do ser para o ser.
Com isso, ele responde ao clássico problema do não-ser que vem a ser, mostrando como o
não-ser é apenas não-ser ainda em ato, mas já é ser em potência e este guarda as condições
para sua necessária atualização.
É especialmente no livro Θ que Aristóteles condensa boa parte de seus pressupostos
teóricos – tais como substância e acidentes, matéria e forma, as quatro causas, primeiro
motor imóvel, princípio de não-contradição – que ele expõe em outros lugares de sua obra e
os une ao par conceitual ato/potência para dar conta da relação entre ser e movimento, entre
o que é e o que não-é, entre aquilo que está sempre imóvel – permitindo assim o
conhecimento – e o que está sempre em mudança – possibilitando o devir, ou ainda, entre o
uno e o múltiplo. Desse modo, ato e potência devem ser entendidos sempre à luz de toda
concepção ontológica de Aristóteles. Assim como ato e potência são termos correlatos, ou
seja, um não pode ser entendido sem o outro, eles mesmos somente serão plenamente
compreendidos se também forem considerados os outros conceitos fundamentais, tais
como: substância, forma, matéria, bem e fim. Algumas dessas relações podem ser
verificadas inclusive em outras áreas do conhecimento.
A análise de Θ permite confirmar ainda uma característica marcante do pensamento
aristotélico, a teleologia, que por sua vez está atrelada à idéia de que, para Aristóteles, todas
as coisas tendem à realização do bem.
Procurando reconstruir o que há de fundamental na argumentação de Θ, este
trabalho, com base no próprio plano geral elaborado por Aristóteles, apresenta a seguinte
11
estrutura: o primeiro capítulo reúne Θ1, Θ2 e Θ5. Apresenta uma breve exposição sobre o
tradicional problema do movimento na filosofia anterior a Aristóteles e um resumo da
concepção aristotélica de movimento. Destaca o par conceitual ato/potência como um dos
modos de se dizer o ser e sua relação com os outros conceitos fundamentais na filosofia de
Aristóteles. Mostra o plano geral desenvolvido em Θ1 com o propósito de tratar dos
sentidos em que ato e potência podem ser entendidos: cinético e metafísico. Examina os
cinco tipos de potência destacando a definição de potência como um princípio de
movimento. Mostra-se que Aristóteles termina Θ1 com um esclarecimento acerca da
impotência e privação. Quanto a Θ2, os pontos principais são: a introdução de novas
distinções que envolvem tanto a sua teoria sobre a alma, como sua concepção ética e
política. A distinção entre potência racional e não-racional. A análise da potência para
produzir contrários e sua implicação com as funções da alma. Aristóteles termina Θ2 com
uma breve avaliação da potência para agir ou padecer bem. Em Θ5, os tópicos centrais são:
a distinção entre potências congênitas e adquiridas. A avaliação das condições e
implicações do potente enfatizando o desejo e a escolha como princípios dos contrários. O
Estagirita encerra Θ5 tratando dos limites da potência mostrando a incoerência e
inconsistência de um desejo de fazer duas coisas contrárias ao mesmo tempo.
O segundo capítulo deste trabalho reúne Θ3 e Θ4. Em Θ3, Aristóteles promove uma
polêmica com os megáricos, defensores da total imobilidade do ser. É em Θ3 que se
apresenta ainda um dos característicos métodos de Aristóteles para a “definição” de pares
conceituais originários e também retoma a explicação sobre o possível/impossível, desta
vez, incluindo a noção de ato. A finalização de Θ3 proporciona a apresentação de uma
primeira caracterização do ato a partir da comparação com o movimento. Em Θ4, primeiro
Aristóteles explica a relação entre possível/impossível e o realizável. A partir daí, apresenta
a diferença entre o falso e o impossível e encerra o capítulo acentuando a relação entre o
possível e o necessário.
O terceiro capítulo reúne Θ6 e Θ7. Em Θ6, Aristóteles trata especialmente de quatro
questões: primeiro expõe a diferença ontológica entre ato e potência, mostrando que a
potência quando tratada para além do movimento inclui, necessariamente, o conceito de
ato. Em seguida, por serem conceitos originários, ato/potência são caracterizados por meio
da analogia. Mostra ainda como algumas coisas (infinito e vazio) só existem em ato no
12
pensamento, ou somente existem em potência. Termina Θ6 apresentando a diferença entre
movimento e ato a partir de um novo critério, o da perfeição da ação. Em Θ7, Aristóteles
empenha-se em mostrar a relação entre matéria e potência tratando das condições, internas
e externas, necessárias para a atualização da potência enquanto matéria. Faz a diferenciação
entre matéria apropriada, próxima e matéria primeira. Discute brevemente a noção de
sujeito com o propósito de mostrar a semelhança entre matéria e atributos.
O quarto e último capítulo reúne Θ8, Θ9 e Θ10. As principais questões tratadas em
Θ8 são: relação entre potência e natureza enquanto ambos são princípio de movimento. Os
modos em que ato é anterior à potência. Nesta parte Aristóteles torna mais evidente a
relação direta entre o ato, a forma, a substância e o fim. Encerra Θ8 com a análise das
substâncias eternas incorruptíveis articulando cosmologia e metafísica. A análise da
anterioridade do ato tem sua continuidade em Θ9. Neste momento, Aristóteles faz a análise
da anterioridade do ato relativo ao bem e às demonstrações da matemática sempre
ressaltando a relação entre fim, forma e ato. Em Θ10, Aristóteles trata especificamente do
verdadeiro e do falso, destoando um pouco do tema central do livro Θ. Os pontos centrais
de Θ10 são: a tese de que verdade e falsidade pertencem ao juízo. Análise do verdadeiro e
do falso referente às substâncias simples e às compostas. A tese de que o critério da
verdade é a realidade e, finalmente, que o ser em ato é mais verdadeiro do que o ser em
potência porque a essência se mostra em ato.
O desenrolar do livro Θ deixa transparecer que, para Aristóteles, a distinção entre
ato e potência é fundamental, não só com o propósito de elucidar a relação entre ser e
movimento, mas, inerente a essa problemática, está a percepção de que o ser em
ato/potência auxilia no pleno entendimento da realidade. A análise de Θ, complementada
por outros textos, mostra que o ser em ato e em potência enquanto um dos modos de se
dizer o ser, não é um estudo isolado daquele que pretende responder “o que é o ser”, pelo
contrário, é parte integrante e fundamental daquilo que a tradição filosófica passou a
denominar de investigação metafísica.
Geralmente, qualquer escolha tem como conseqüência inevitável, no mínimo, uma
exclusão, por isso, convém advertir que, ao preferir conservar o caráter aparentemente
inconcluso e preponderantemente esquemático de Θ, muitos conceitos e problemas
importantes não serão analisados pormenorizadamente. A razão dessa opção é que a ênfase
13
será dada à estrutura do texto que, por ser muito abrangente, guarda um aspecto
acentuadamente panorâmico em boa parte de suas análises conceituais.
Nosso propósito neste trabalho não é exaurir a problemática analisada por
Aristóteles em Θ sobre a relação entre movimento e ser a partir do par conceitual
ato/potência. Trata-se apenas de uml32 Tw 12 0 0 12 8 Tmab7.9ceconstru32.4482 48ar com
CAPÍTULO I
O Ser e o Movimento
Um dos grandes temas da Filosofia desde seus primórdios é a questão do
movimento (
ki/nhsij). Qual filósofo não se perguntou sobre o que é o movimento?
Certamente Tales, Anaxímenes, Anaximandro e tantos outros constataram a intensa
movimentação da realidade. Perceberam que todas as coisas estão sujeitas ao nascimento,
crescimento e perecimento e como na filosofia grega, de modo geral, predominava a
convicção de que tudo no mundo converge para a imobilidade, cada filósofo elegeu um
princípio (
a)rxh/) que estaria na origem de toda essa movimentação. É necessário um
princípio capaz de sustentar a perfeição da realidade plena, do ser (
to\ o)/n), afinal, o
movimento constitui um fato transitório e sinal de imperfeição, devendo cessar tão logo
cessem os efeitos da causa que o determina. Assim, um grande problema para a filosofia
está colocado: é preciso refletir sobre as implicações do movimento para o ser a fim de se
fundamentar uma explicação convincente quanto à realidade plena.
Coube a Heráclito a tarefa de proclamar enfaticamente o movimento como
constituinte do ser, como algo inevitável porque é determinante da realidade. Por isso
sentiu-se à vontade para afirmar: “Nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e não
somos”.
1
A realidade está em perene movimento, em tudo há transformação,
conseqüentemente, é possível entender que, de algum modo, o ser (
to\ o)/n) e o não-ser
(
to\ mh\ o)/n) são ao mesmo tempo, atestando a intrínseca convivência dos opostos na
mesma realidade.
Esta compreensão do ser em constante movimento talvez não tivesse causado tanto
assombro caso não surgisse um outro filósofo justamente para negar a possibilidade da
simultânea convivência do ser e do não-ser. Desse modo, Parmênides, inconformado com
as contradições lógicas daí advindas, entre o ser – que sempre é – e o movimento – que é
1
potamoiÍj toiÍj au)toiÍj e)mbai¿nome/n te kaiì ou)k e)mbai¿nomen, eiåme/n te kaiì ou)k eiåmen. Diels, Hermann &
Kranz, Walther: Die Fragmente der Vorsokratiker. (Trad. José Cavalcante de Souza, in: Os pré-socráticos,
fragmento 49
a
).
15
sempre outro -, defende o imobilismo, classificando o movimento como simples aparência
2
,
como irreal, chegando à conclusão seguinte: “Necessário é dizer e pensar que o ser é, pois
é ser, e o não-ser não é”.
3
Se somente o ser é e o não-ser não é, então só o ser pode ser dito
e pode ser pensado, portanto, não há correlação de contrários porque o ser não é gerado
nem divisível. O ser é contínuo, inteiro, imóvel. Em outras palavras, partindo da evidente
contradição entre ser e não-ser e da constatação de que só o ser é, Parmênides concluiu que
o movimento mesmo não é real, é apenas aparente, caso contrário, seria preciso admitir que
aquilo que se to
.08e85.89978 Tm(ri,)T32.2399
A verdade é que, apesar dos memoráveis esforços para elaborar uma explicação
plausível sobre a relação entre ser e movimento, praticamente todas as soluções
apresentadas promovem grande aproximação entre movimento e não-ser, suscitando fortes
suspeitas quanto à possibilidade de estabelecer, definitivamente, fundamentos teóricos
satisfatórios para resolver esse problema.
1 A solução de Aristóteles
Aristóteles reconhece o grande valor de toda tradição filosófica, porém, nenhum
pensador conseguiu apresentar uma resposta satisfatória às suas perspectivas quanto ao
problema da relação entre ser e movimento, que representa, de fato, os limites entre o real e
o irreal. Após uma investigação das respostas de seus antecessores, o Estagirita recusa as
propostas unilaterais tanto de Heráclito como de Parmênides, bem como a divisão em dois
mundos proposta por Platão. Todas são insuficientes para responder, por exemplo, de onde
vem o movimento e como algo que está em movimento pode ser conhecido. Enquanto os
físicos (filósofos anteriores a Sócrates que tinham como objeto principal de investigação o
mundo da
fu/sij), por exemplo, acreditavam que o movimento das coisas se realizava
como passagem do ser que é para outro que também é, como se esse algo fosse completo
nos dois momentos, o Estagirita entendia que o ser não é somente o que já existe, aquilo
que é em ato (e)ne/rgeia ou e)ntele/xeia), mas o ser também é o que pode ser, o que é em
potência (
du/namij). Essa distinção era ignorada pelos filósofos e, por isso, incorriam em
erro ao afirmarem a geração do ser a partir do não-ser, ou mesmo, do ser ao não-ser.
Quando o não-ser é entendido de modo absoluto, então não é possível pensar que
algo possa ser gerado a partir dele, pois não há algo que possa ser gerado ou algo que possa
gerar a partir do nada, afinal, do nada, nada vem. Entretanto, quando se entende que o não-
ser nunca é em ato, mas apenas em potência, então se pode admitir, de certo modo, um
sentido inteligível para o não-ser: o ser que ainda não é em ato, mas que já é em potência.
Com isto, não há risco de uma geração ou de um movimento do não-ser ou a partir do não-
ser. A clara distinção entre os conceitos de ato e potência evita o paradoxo da “existência”
de algo que não-é e passa a ser, respeitando o princípio que rege: “do nada, nada vem”,
porque tudo o que é, é em ato, e a potência guarda a possibilidade de ser ou de não ser.
17
De acordo com Aristóteles, a concepção e distinção dos conceitos de ato e potência
dariam conta da relação entre ser e movimento sem transgredir qualquer princípio lógico.
Inclusive há comentadores que afirmam que a distinção ato/potência foi elaborada com o
objetivo central de responder ao fenômeno do movimento
6
, pesadelo dos filósofos desde
que Parmênides o declarou não existente.
1.1 O Movimento em Aristóteles
Para compreender toda a abrangência dessa solução, convém examinar a concepção
aristotélica de movimento que é muito ampla, contemplando o processo geral de mudança,
crescim 523.7998 Tm(ntf0c926 503.09973 Tmmento loa com)Tj12 0 0 1284.9189326 503.09973 Tmrdom que cho am trafoParm
ki/nhsij = passagem de um contrário (um sujeito) a outro (sua privação), ou de um
contrário a um intermediário
10
ge/nesij = passagem do não ser ao ser e do ser ao não ser
11
metabolh/ = mudança em geral
12
fqora/ = destruição, corrupção ou morte de algo
13
fora// = movimento local, como o deslocamento vertical (para cima ou para baixo) e
horizontal (para os lados)
14
a)lloi/wsij = alteração qualitativa, como mudança de cor ou de temperatura de algo
15
Na Física, essas classes de movimento são analisadas enquanto fenômenos que
afetam os seres não divinos, pertencentes ao mundo sublunar.
Todavia, na Metafísica, Aristóteles não segue rigidamente tais distinções, mantendo
o termo
ki/nhsij no sentido mais abrangente, englobando as demais classes. Isto se deve ao
fato de a Filosofia Primeira (
filosofi/a prw/th), a Ciência do Ser enquanto Ser
16
, não se
limitar à investigação do movimento, mas apenas de o incluir na qualidade de algo
pertencente à realidade. Essa diferença de abordagem pode ser melhor entendida a partir da
classificação elaborada por Aristóteles no livro E da Metafísica. Entre as ciências
teoréticas, a Física se ocupa dos seres que têm matéria e se movem, enquanto a Filosofia
Primeira se ocupa do que é eterno, imóvel e separado da matéria, ou seja, do ser enquanto
ser, e não enquanto material, sensível ou em movimento
17
. A Filosofia Primeira não se
10
“Se segue então que somente a mudança que seja de um sujeito a um sujeito pode ser um movimento.
Enquanto aos sujeitos, ou são contrários ou são intermediários (pois se segue que a privação é um
contrário).
a)na/gkh th\n e)c u(pokeime/nou ei¹j u(pokei¿menon metabolh\n ki¿nhsin eiånai monhn. ta\ d' u(pokei¿mena
hÄ e)nanti¿a hÄ metacu/ kaiì ga\r h( ste/rhsij kei¿sqw e)nanti¿onŸ.
Física, V1, 225b 2-6.
11
“A mudança por contradição que vai de um não-sujeito a um sujeito é uma geração”. h( me\n ouÅn ou)k e)c
u(pokeime/nou ei¹j u(pokei¿menon metabolh\ kat' a)nti¿fasin ge/nesi¿j e)stin.
Física, V, 225 a 15-18.
12
“Pois toda mudança é de algo até algo (como mostra a palavra µετά, que indica algo depois de outro algo,
isto é, anterior e posterior)”.
de\ pa=sa metabolh/ e)stin eÃk tinoj eiãj ti dhloiÍ de\ kaiì touÃnoma: met' aÃllo
ga/r ti kaiì to\ me\n pro/teron dhloiÍ, to\ d' uÀsteronŸ
. Física V, 225 a 2-6
13
“A mudança que vai de um sujeito a um não-sujeito é uma destruição”. h( d' e)c u(pokeime/nou ei¹j ou)x
u(pokei¿menon fqora/.
Física V1, 225
a
20-21
14
“E porque o movimento mais comum e principal, aquele que chamamos deslocamento, é um movimento
segundo o lugar.”
kaiì th=j kinh/sewj h( koinh\ ma/lista kaiì kuriwta/th kata\ to/pon e)sti¿n, hÁn kalou=men
fora/n.
Física, IV1, 208a 33-35.
15
“Alteração é, estritamente, mudança relativa a uma qu
ocupa deste ou daquele ser específico e sim, das causas e dos princípios do ser.
Obviamente, o fenômeno do movimento merece atenção privilegiada para compreensão do
próprio ser, devido, inclusive, à relação alegada por alguns filósofos entre o movimento e o
não-ser. O movimento tem o privilégio de marcar a tensão entre o que é e o que não é, bem
como, entre ser e devir. Seu estudo é indispensável, é necessário, embora não seja
suficiente para se compreender todo o real, caso contrário, bastaria a Filosofia Segunda, a
Física. O fenômeno do movimento é algo incontestável, mas nem tudo está em movimento.
Há algo que permanece a despeito de toda e qualquer mudança e que, por isso, determina e
define o ser enquanto tal. Esse algo é a substância (
ou)si/a
18
) que, como sendo a primeira
entre as categorias do ser, será imóvel, anterior e, por isso, objeto de investigação da
Filosofia Primeira.
Apesar dessa distinção, não se trata de querer isolar totalmente as duas ciências de
modo a classificá-las como autônomas ou completamente incomunicáveis. A delimitação
dos objetos próprios de cada ciência, da Física e da Filosofia Primeira, ressalta mais um
aspecto didático, metodológico e programático de toda análise proposta ao longo das obras
do Estagirita. Faz parte de sua exposição teórica tanto a delimitação do objeto a ser
investigado, como a enumeração e delimitação dos vários sentidos em que alguns termos
fundamentais podem ser entendidos. Sob muitos aspectos, as duas ciências são
complementares, e não concorrentes.
19
Apesar de a Filosofia Primeira ser essencialmente a
ciência do ser enquanto ser, ela contempla também o horizonte de análise a partir do qual se
concebe a realidade, ou seja, inclui entre seus propósitos o modo como o ser é interpretado
pelo homem.
18
Pelo fato de ainda não haver um consenso entre os atuais tradutores e intérpretes de Aristóteles, a tradução
de alguns termos importantes seguirá, por via de regra, a visão clássica (adotada, por exemplo, por Reale,
Tomás de Aquino, Tricot, Ross e Yebra). Desse modo,
ou)si/a é traduzido por substância; ti/ e)sti por
qüididade ou o que é;
to\ ti/ por o quê; to\ ti/ h)=n ei(=nai por essência.
19
“A física impregna toda a reflexão ontológica de Aristóteles. (...) Não se trata da filosofia de Aristóteles
ser primeiramente uma ontologia fundamental do ser e da física, uma aplicação de seus conceitos.”
Guillermo R. de Echandía. In: Aristóteles, Física, p.40.
20
1.2 Os modos de se dizer o Ser
Uma das principais estratégias metodológicas adotadas por Aristóteles para evitar as
contradições em que caíram seus antecessores na resolução da complexa relação entre ser e
movimento, é esclarecer sobre os diferentes sentidos em que o ser (
to\ o)/n) e o não-ser
(
to\ mh\ o)/n) podem ser entendidos. É claro que os modos de se dizer o ser ultrapassam a
questão do movimento e o ser, referem-se também à distinção entre o Uno e o Múltiplo que
de certo modo está implicada na questão geral do ser. Entre as várias passagens em que isto
ocorre, destacamos uma do livro E da Metafísica, na qual Aristóteles indica quatro modos
de se dizer o ser:
Mas, visto que ser simplesmente é dito de muitos modos, dos quais um é o
ser por acidente e outro o ser como verdade (e o não-ser como falso), e que
além desses, temos as figuras de predicação (por exemplo, o quê [
to\ ti/], o
qual, o quanto, o onde, o quando, e algum outro significado deste modo), e
ainda, além de todos esses, o ser em potência e em ato.
20
Nessa passagem Aristóteles confirma os quatro principais modos de se dizer o ser
também analisados, mais detalhadamente, no livro D da Metafísica (1017a 7-1017b 1-9) e
que podem ser assim entendidos:
(1) O ser por acidente (
sumbebhko\j): é aquele entendido sempre em função de outro ser,
sua existência é derivada de outro. O ser por acidente não é objeto de investigação
científica, pois a ciência trata do que ocorre sempre ou no mais das vezes, ou seja, se ocupa
das coisas que acontecem segundo uma regularidade, enquanto que o acidente é a exceção
às regras, é apenas uma relação casual entre os vários atributos que pertencem a um sujeito.
(2) O ser por si (
kaq )au(to/) ou segundo as categorias (kathgori/a): é aquele indicado
pelas figuras de predicação, as categorias
21
, que são os significados mais gerais do ser, os
gêneros supremos por meio das quais pode-se agrupar os demais seres. Nenhuma das
20
¹All' e)peiì to\ oÄn to\ a(plw½j lego/menon le/getai pollaxw½j, wÒn eÁn me\n hÅn to\ kata\ sumbebhko/j, eÀteron
de\ to\ w¨j a)lhqe/j, kaiì to\ mh\ oÄn w¨j to\ yeu=doj, para \ tau=ta d' e)stiì ta\ sxh/mata th=j kathgori¿aj oiâon to\
me\n ti¿, to\ de\ poio/n, to\ de\ poso/n, to\ de\ pou/, to\ de\ pote/, kaiì eiã ti aÃllo shmai¿nei to\n tro/pon tou=tonŸ,
eÃti para\ tau=ta pa/nta to\ duna/mei kaiì e)nergei¿#:
Metafísica Ε2, 1026a 33-1026b 2.
21
As categorias são: substância (ou)si/a); qualidade (poi/on), quantidade (poso/n), relação (pro/j ti), lugar
(pou/), tempo (pote/), posição (kei=stai), estado (e)/xein), ação (poiei=n) e paixão (pa/sxein). Metafísica
D7, 1071
a
22-29.
21
categorias pode ser deduzida de qualquer outra, no entanto, a relação entre elas não é
simplesmente de mútua reciprocidade, mas é uma relação em que a substância (
ou)si/a)
22
suporte e sustentação às demais categorias. Aristóteles afirma que o ser se diz de muitos
modos, mas não deixa de acentuar a primazia ontológica da substância em relação às outras
categorias.
23
(3) O ser como verdadeiro (
a)lhqh/j) e o não-ser como falso (yeu=doj): neste predomina,
de modo geral, o aspecto lógico, constituindo-se numa afecção do pensamento, ou seja,
verdadeiro/falso não pertencem às coisas mesmas, mas só existem no juízo, portanto seu
estudo é objeto mais da linguagem do que da Filosofia Primeira.
24
(4) O ser em ato (
e)ne/rgeia) e em potência (du/namij)
25
.
Os modos de se dizer o ser são as várias perspectivas mais gerais a partir das quais o
ser é visto pelo homem, tendo o ato e a potência importância fundamental para essa
compreensão porque falar sobre o real pressupõe a efetividade e a possibilidade.
A preocupação que permeia toda a Metafísica é saber o que é ser um ser
26
, isto é, o
que pode ser entendido como a realidade última, considerando desde o totalmente móvel ao
completo ser imóvel. Mas dizer o que é o ser é uma tarefa difícil e para isso, Aristóteles
procura tomá-lo em suas várias perspectivas, entre as mais importantes estão as de ato e
potência. Desse modo, o livro Θ da Metafísica insere-se num conjunto de livros (Ζ, Η, Θ,
Λ) cujo tema central é a questão da substância, aquilo que impede que a realidade seja
22
Em D7 1017
a
25, Aristóteles cita entre as categorias o ti/ e)sti, traduzido por qüididade ou o que é. Já em
Ε2, 1026
a
36, aparece entre as categorias o quê (to\ ti/). Entretanto, neste ponto específico, os dois termos
podem ser tomados como sinônimos, tanto de substância (
ou)si/a) quanto de essência (to\ ti/ h)=n ei(=nai).
23
“O ser se diz de muitos modos, ainda que relativo a uma só coisa e a certa natureza única e não
equivocamente”.
To\ de\ oÄn le/getai me\n pollaxw½j, a)lla\ pro\j eÁn kaiì mi¿an tina\ fu/sin kaiì ou)x o(mwnu/mwj.
Metafísica, Γ2, 1003
a
33-34.
24
Em regra, é essa a afirmação de Aristóteles, porém, a discussão sobre esse ponto é muito extensa e
riquíssima, alimentando muitas controvérsias entre os especialistas. A relação entre ser e verdade é também
tema deste trabalho, especificamente no capítulo IV, quando será analisado o décimo capítulo do livro Θ
(1051b 1-1052
a
11).
25
Em alguns momentos de sua obra, Aristóteles parece afirmar a primazia do ser em ato e em potência, o que
suscitou muita polêmica. É o que sugere a seguinte passagem do livro
L da Metafísica: “Assim, os primeiros
princípios de todas as coisas são: o que é primariamente isto em ato, e outra coisa que é em potência”.
pa/ntwn dh\ prw½tai a)rxaiì to\ e)nergei¿# prw½ton todiì kaiì aÃllo oÁ duna/mei. Metafísica, L5, 1071
a
18-19.
26
Em seu artigo, Michael Frede afirma que: “Na Metafísica, Aristóteles está preocupado com a questão: O
que é ser um ser. Visto que ele pensa haver também, inevitavelmente, seres em potência, naturalmente pensa
que uma completa resposta à questão, o que é ser um ser, envolverá também uma resposta à questão o que é
um ser em potência, como oposto a um ser em ato; portanto, sua teoria requer alguma elucidação das noções
de potencialidade e atualidade.” Frede, M. Aristotle’s notion of potentiality in metaphysics Θ, in: Unity,
identity, and explanation in Aristotle’s metaphysics, p. 174.
22
simplesmente o incessante movimento universal, é o que permite a unidade na pluralidade.
O movimento, por natureza ou por acidente, acontece sempre a partir da substância porque
ela é o sujeito de toda mudança. A substância é o que permite o movimento, mas também é
aquilo que o impede, pois movimento é ausência de identidade, é indeterminação. Enfim, a
ou)si/a é o que determina o ponto de chegada, bem como o ponto de partida da ki/nhsij.
Visando dar seqüência ao estudo da substância como meio de chegar ao melhor
esclarecimento sobre os modos de se dizer o ser
27
e, da mesma forma, solucionar o
problema da contradição que haveria numa passagem do não-ser para o ser, Aristóteles, no
decorrer de todo o livro Θ da Metafísica, também propõe uma distinção dos sentidos em
que ato e potência podem ser entendidos. Seguindo este caminho, ele pretende resolver
muitas ambigüidades e paradoxos constatados por alguns de seus antecessores, que se
perderam justamente por não terem percebido os diferentes matizes incorporados em
muitos conceitos. A importância desse momento da análise é tal, que há até um livro inteiro
dedicado às distinções e análises dos vários sentidos daqueles vocábulos fundamentais de
sua filosofia. Trata-se do livro D da Metafísica, lugar em que são explicados os seguintes
termos: princípio (
a)rxh/), natureza (fu/sij), uno (e(/n), causa (ai)/tion), ser (to\ o)/n),
substância (
ou)si/a) entre outros.
No âmbito de toda Metafísica a análise dos significados não se limita ao campo
semântico, pelo contrário, o foco está centrado no aspecto metafísico.
28
A análise
ontológica é precedida por uma análise semântica que serve sempre de instrumento para
dirimir dúvidas, evitar ambigüidades na interpretação e assim facilitar o conhecimento da
estrutura da realidade.
29
Não é simples questão de linguagem, visto que Aristóteles afirma
que sempre nos remetemos às coisas, à realidade última. A formulação dos conceitos serve
27
Este é o caminho traçado para a ciência do ser enquanto ser no livro Z da Metafísica, ou seja, estudar o ser
a partir da elucidação do que é a substância: “E assim, o que antigamente e agora e sempre foi procurado e
sempre foi objeto de dúvida: que é o ser?, isto é, o que é a substância? (pois há quem diga que esta é una, e
outros que são muitas; estes que seu número é finito, e outros que é infinito). Por isso também nós temos que
estudar principalmente, primeiramente e, por assim dizer, exclusivamente, o que é o ser assim
entendido.”
kaiì dh\ kaiì to\ pa/lai te kaiì nu=n kaiì a)eiì zhtou/menon kaiì a)eiì a)porou/menon, ti¿ to\ oÃn, tou=to/
e)sti ti¿j h( ou)si¿a tou=to ga\r oi¸ me\n eÁn eiånai¿ fasin oi¸ de\ plei¿w hÄ eÀn, kaiì oi¸ me\n peperasme/na oi¸ de\
aÃpeiraŸ, dio\ kaiì h(miÍn kaiì ma/lista kaiì prw½ton kaiì mo/non w¨j ei¹peiÍn periì tou= ouÀtwj oÃntoj qewrhte/on
ti¿ e)stin.
Metafísica, Z1, 1028b 2-7.
28
De acordo com Couloubaritsis: “a investigação da multiplicidade de sentidos de um termo constitui um dos
‘instrumentos’ da dialética.” Couloubaritsis, L., La notion d’entelecheia dans la Métaphysique, p. 132.
29
“Por outro lado, a intenção última de Aristóteles não era a de fornecer tais distinções, mas de servir-se
delas para obter uma clara concepção da estrutura do real.” Berti, E. Aristóteles no século XX, p.164.
23
para expressar com verdade, o que a coisa é. Desse modo, a análise dos significados visa a
expressar, do melhor modo possível, a verdade sobre a realidade. Como diz Aristóteles:
“Pois, tu não és branco porque nós pensamos verdadeiramente que és branco, mas que,
porque tu és branco, nós, que afirmamos, nos ajustamos à verdade”.
30
Esta afirmação
deixa claro seu realismo ontológico, qual seja, que na investigação metafísica toda análise
da linguagem tem como ponto de referência o próprio ser.
31
Primeiro há a coisa, depois há a
remissão a esta coisa por meio da linguagem via proposições e conceitos. É a partir desse
tipo de formulação que se pode perceber de que modo Aristóteles se insere na tradição
grega, cuja idéia central é a correspondência entre pensamento e ser
32
, entre linguagem e
realidade. Em vários momentos de sua obra é possível constatar que Aristóteles parece não
questionar a possibilidade de haver a correspondência entre o que se diz e o que a coisa é,
embora isso não deva ser confundido com a possibilidade de errar ou de mentir quanto à
realidade das coisas.
O processo de enumeração, delimitação e análise dos principais significados
daqueles vocábulos primordiais na filosofia aristotélica também se impõem no livro Θ.
Nesse caso, a investigação conceitual tem como propósito, entre outros, resolver o seguinte
problema: como é possível conceituar o movimento sem que se incorra em contradições
tais como as que envolvem a passagem do não-ser ao ser, já indicadas por Parmênides e
Platão? Sabe-se que o movimento é, em suma, a passagem de um estado a outro, de uma
situação a outra, de um momento a outro. Mas estes momentos pertencem ao ser ou são o
próprio ser? É para solucionar estes problemas que Aristóteles propõe a distinção de
significados dos termos envolvidos numa investigação acerca do ser enquanto ser.
2 Potência é princípio de movimento
O livro Θ está inserido num plano maior de investigação filosófica cujo objeto
central é a substância, a
ou)si/a. É a partir disso que se pode compreender o modo como
30
ou) ga\r dia\ to\ h(ma=j oiãesqai a)lhqw½j se leuko\n eiånai eiå su\ leuko/j, a)lla\ dia\ to\ se\ eiånai leuko\n h(meiÍj
oi¸ fa/ntej tou=to a)lhqeu/omen.
Metafísica, Q 10, 1051b 6-9.
31
“Porém, ainda que seja uma análise da linguagem sobre os fenômenos, por fim tal análise tem que ter
como ponto de referência os fenômenos mesmos.” Guillermo R. de Echandía. In: Aristóteles, Física, p.48.
32
De acordo com Echandía, pelo fato de Aristóteles entender que o pensamento (a linguagem) é que deve se
ajustar à realidade, esta tese: “Seria a versão aristotélica da tese eleática da identidade entre pensamento e
ser.” Idem, p.48.
24
Aristóteles inicia Θ1: “Temos tratado do ser primeiro ao qual se referem todas as demais
categorias do ser, isto é, acerca da substância (pois segundo o conceito de substância se
enunciam os demais seres: o quanto, o qual e os demais que assim se enunciam, pois todos
implicam o conceito de substância, segundo dissemos no início da exposição)”.
33
A
substância é a principal categoria, é o ser primeiro ao qual se referem as demais categorias
e o lugar em que o ser dito segundo a substância é tratado com mais minúcias em toda
Metafísica é o livro Z.
Após ter investigado o ser por si e, especialmente, segundo a substância, Aristóteles
pretende, deste ponto em diante, investigar mais um dentre os principais modos de designar
o ser: “Mas visto que o ser se diz não só no sentido de algo (
to\ ti\), ou qual, ou quanto,
senão também segundo a potência (
du/namij) e o ato (e)ntele/xeia) e a obra (e)/rgon),
precisemos os limites da potência e do ato (
e)ntele/xeia)”.
34
A proposta de Aristóteles no
livro Θ é dar continuidade à investigação ontológica expandindo o universo dos modos de
se dizer o ser. Depois de referir-se ao ser segundo a
ou)si/a e segundo as demais categorias
pelas quais o ser pode ser entendido, é hora de examinar o ser entendido como ato e
potência. Ao anunciar este novo caminho, Aristóteles apresenta uma sentença que já deixa
antever uma imensa complexidade conceitual, especialmente quando um dos conceitos
fundamentais da investigação é desmembrado em dois sentidos cujas diferenças são sempre
pouco evidentes. Trata-se dos diferentes termos utilizados para expressar dois aspectos
principais contidos na idéia de efetividade: um deles é
e)ne/rgeia, que contém a idéia de
força, trabalho, atividade criadora, energia; o outro é
e)ntele/xeia, que encerra o
significado de acabamento, complementação, realização de alguma coisa com perfeição. A
tradição filosófica normalmente utiliza apenas uma solução de tradução para
e)ntele/xeia e e)ne/rgeia, ou seja, traduz-se por ato.
35
Especialmente no livro Θ esta
33
Periì me\n ouÅn tou= prw¯twj oÃntoj kaiì pro\j oÁ pa=sai ai¸ aÃllai kathgori¿ai tou= oÃntoj a)nafe/rontai
eiãrhtai, periì th=j ou)si¿aj kata\ ga\r to\n th=j ou)si¿aj lo/gon le/getai taÅlla oÃnta, to/ te poso\n kaiì to\
poio\n kaiì taÅlla ta\ ouÀtw lego/mena: pa/nta ga\r eÀcei to\n th=j ou)si¿aj lo/gon, wÐsper eiãpomen e)n toiÍj
prw¯toij lo/goij.
Metafísica, Θ1, 1045 b 27-32.
34
e)peiì de\ le/getai to\ oÄn to\ me\n to\ tiì hÄ poio\n hÄ poso/n, to\ de\ kata\ du/namin kaiì e)ntele/xeian kaiì kata\
to \eÃrgon, diori¿swmen kaiì periì duna/mewj kaiì e)ntelexei¿aj.
Metafísica, Θ1, 1045b 32-35. Colocamos, por
vezes, alguns termos no grego - aqueles com implicação direta sobre o tema - entre parênteses inseridos no
próprio texto quando estes suscitam algumas dúvidas (além das já tradicionais) quanto à tradução, como nesta
passagem em que
to\ ti pode ser considerado aqui como sinônimo de substância.
35
É a partir de Θ6, analisado no Capítulo III deste trabalho, que Aristóteles começa a explicar melhor o ser
em ato. Podemos, porém, antecipar a dificuldade de tradução para os termos
e)ntele/xeia e e)ne/rgeia. Yebra,
25
solução não compromete o entendimento desses sentidos, porquanto Aristóteles geralmente
utiliza os dois termos indiscriminadamente.
Como ficará evidente em seguida, é comum encontrar nas obras de Aristóteles uma
distinção preliminar de sentidos e ao longo dos textos, sem que essa distinção seja
completamente abandonada, esses mesmos termos são usados quase como sinônimos. Na
sentença acima, por exemplo, o termo
e)/rgon além de estar substituindo e)ne/rgeia, que é o
mais freqüente em todo livro Θ, também pode ser perfeitamente entendido como sinônimo
de
e)ntele/xeia.
36
Tal atitude metodológica deixa transparecer a recusa de Aristóteles em
aceitar a tentativa de expressar o real a partir de uma relação unívoca entre as palavras e as
coisas, isso porque não é possível e nem mesmo é viável querer estabelecer uma relação
direta segundo a qual para cada coisa haveria uma única palavra correspondente. A
realidade é muito complexa e não se deixa apreender facilmente. Assim, quando, a seguir,
em Θ, Aristóteles propõe uma delimitação e maior precisão dos conceitos de ato e potência,
seu objetivo não se fixa apenas na perspectiva semântica, mas principalmente nas diferentes
abordagens sobre esses conceitos com vistas a abarcar o real a partir de um ponto de vista
mais amplo e mais aprimorado.
É para se inserir nesta visão mais ampla que Aristóteles propõe um plano geral de
investigação, estabelecendo assim uma ordem voltada ao melhor esclarecimento acerca de
como o par conceitual ato/potência pode solucionar o problema da relação entre ser e
movimento: “Primeiro, da potência propriamente dita, embora não é a que mais interessa
para o que agora queremos; de fato, a potência e o ato se estendem para além das coisas
que só se enunciam segundo o movimento. Porém, depois de falar desta, nas delimitações
sobre o ato explicaremos também as demais”.
37
Reale e Tricot traduzem e)ne/rgeia por ato e apenas transliteraram e)ntele/xeia. Ross traduz e)ne/rgeia por
actuality” e
e)ntele/xeia por “complete reality”. Luís Felipe Ribeiro, em sua tradução do livro D da
Metafísica (Aristóteles: acerca dos vários modos segundo os quais as coisas são ditas) traduz
e)ntele/xeia por
perfeição e
e)ne/rgeia por ato. Para manter a coerência com o restante da tradução do livro Θ, preferimos adotar
a solução de Yebra.
36
“As expressões kata\ì e)ntele/xeian e kata\ to\ eÃrgon
,
têm o mesmo sentido.” Tricot, J. In: Aristote: La
Métaphysique, Tome II, p.482, nota 2.
37
kaiì prw½ton periì duna/mewj hÁ le/getai me\n ma/lista kuri¿wj, ou) mh\n xrhsimwta/th ge/ e)sti pro\j
o Áboulo/meqa nu=n: e)piì ple/on ga/r e)stin h( du/namij kaiì h( e)ne/rgeia tw½n mo/non legome/nwn kata\ ki¿nhsin.
a)ll' ei¹po/n tej periì tau/thj, e)n toiÍj periì th=j e)nergei¿aj diorismoiÍj dh lw¯somen kaiì periì tw½n aÃllwn.
Metafísica, Θ1, 1045b 35-1046a 4.
26
Neste plano geral fica estabelecido que os conceitos de ato e potência possuem dois
campos de abordagem ou dois grupos de significados específicos: o primeiro está
relacionado com o movimento, é uma abordagem sobre o ser numa perspectiva das
transformações de modo geral; o segundo é relativo à substância, é uma abordagem sob a
perspectiva imóvel ou constante do ser. O plano geral expressa bem toda a estrutura do
livro Θ, delimitando as perspectivas que orientam os conceitos de ato e potência.
A exposição inicia com a análise da potência propriamente (
kuri/wj) dita, entendida
em seu sentido mais estrito, o cinético
38
, referente ao movimento, estudado inclusive na
Física (livro III), bem como em 12 da Metafísica, cuja definição é repetida e ampliada no
livro Θ. Nessa primeira parte da análise (de Θ1 a Θ5), a inclusão do ato é esporádica e
secundária justamente porque é a potência que guarda uma relação mais próxima com o
movimento. Posteriormente (de Θ6 a Θ10), Aristóteles pretende analisar esses conceitos
não mais no sentido restrito ao movimento, mas naquele que dá continuidade à investigação
sobre a substância e que, por este motivo, guarda o aspecto metafísico propriamente dito. É
essa parte da análise que mais lhe interessa para constatar a relação com a substância, sendo
o momento em que estabelece a relação entre potência e matéria por um lado, e ato e forma
por outro.
Convém registrar que, apesar de Aristóteles estabelecer esse plano geral para o livro
Θ, muitas dificuldades não lhe permitem manter a delimitação definitiva entre os sentidos
de ato e potência. Também é muito difícil compreender como ocorre a unificação entre os
dois grupos de significados de ato e potência, o metafísico e o cinético.
39
De qualquer
modo, é preciso considerar os diferentes aspectos do ser em ato e em potência para que seja
possível, a partir destes conceitos, apresentar uma convincente defesa do movimento
proporcionando uma compreensão mais adequada da realidade.
Seguindo a orientação de Aristóteles, a compreensão desses dois aspectos da
potência pode ser facilitada a partir do uso dos seguintes vocábulos:
dunato/n, é uma força
para promover o movimento ou mudança em outro, portanto, expressa preferencialmente o
38
Giovanni Reale denomina com o termo metafísico o aspecto referente à substância, com cinético aquele
referente ao movimento. Cf., Reale, G., Aristóteles Metafísica, vol. III, p.455.
39
De acordo com Reale: “é difícil ver sobre o quê se funda a distinção do significado metafísico de potência
do seu significado cinético. A concepção metafísica funda-se e gira em torno da primeira categoria (a
substância), enquanto a concepção cinética da potência funda-se sobre as outras categorias (sobre as
categorias segundo as quais ocorre o movimento)”. Reale, G., Aristóteles Metafísica, vol. III, p. 455.
27
sentido cinético (Θ1, 1046
a
11); e du/namij, que é a potencialidade para passar a um novo
estado, expressando preferencialmente o sentido metafísico e, portanto, uma relação
intrínseca com a matéria (Θ6, 1048 a 31). Todavia, como já foi assinalado, Aristóteles
utiliza, ao longo da exposição, as duas palavras indiscriminadamente podendo suscitar
confusões e ambigüidades na compreensão de sua teoria. É exatamente esse modo de
exposição que tem alimentado a crítica de alguns intérpretes, entre eles, David Ross
40
que
acusa Aristóteles de não seguir as distinções que ele próprio estabelece no início,
confundindo-as constantemente durante todo o livro.
Pode-se alegar, porém, que essa mistura seja proposital e não simplesmente um
desleixo metodológico. É nessa linha de raciocínio que outros comentadores indicam uma
solução. Michael Frede, por exemplo, afirma que tal confusão não ocorre, pelo contrário, é
a noção de potencialidade adotada por Ross que é diferente daquela pretendida por
Aristóteles, tratando
dunato/n e du/namij como se fossem dois tipos diferentes de
possibilidade. De acordo com Michael Frede, há coerência na exposição de Aristóteles
verificada com a sustentação de uma noção fundamental de
du/namij - enquanto princípio
de movimento - e suas várias outras noções, mesmo aquelas que não interessam
diretamente a esta investigação, como no caso da matemática, visto que todas elas remetem
sempre àquela principal. Aristóteles está ciente dos vários usos de
du/namij, mas entende
que eles formam uma família de usos com uma certa estrutura interna e que sempre estão
relacionados com o sentido principal que é a potência enquanto princípio de movimento.
41
Pode-se concluir que ao restringir
dunato/n ao sentido lógico, corre-se o risco de perder
40
Para David Ross há dois sentidos de du/namij que podem ser indicados pelas palavras força (power) e
potencialidade (potentiality): “Força ele explica como sendo primeiramente uma força em A para produzir
uma mudança em B, ou em A mesmo para produzir mudança nele mesmo enquanto outro. Potencialidade,
por outro lado é a potencialidade em A de passar a um novo estado ou ocupar-se em nova atividade. Esta
pode ser a produção de mudança em B, mas a noção de um B ser submetido à ação não está necessariamente
implicada na noção de potencialidade, como, pelo contrário, encontra-se na noção de força. (...) Que
Aristóteles não preserva com êxito a distinção entre força e potencialidade é indicado, pelos fatos já
observados por Bonitz que, na discussão de força, introduz (1) uma definição de
dunato\n
que refere-se
claramente à potencialidade mais do que à força (1047
a
24), e (2) uma outra extensa seção também refere-se
à potencialidade mais do que à força (1047 b 3-30).” Ross, D. In: Aristotle’s Metaphysics, vol. II, p.240-241.
41
De acordo com Michael Frede, os especialistas não tratam com cuidado as distinções efetuadas por
Aristóteles: “eles pensam que quando Aristóteles distingue dois ou mais usos ou sentidos do termo
du/namij
ele também está distinguindo dois ou mais tipos de
du/namij
, dois ou mais tipos de possibilidade, dois ou
mais tipos de itens na ontologia. Bonitz e Ross, por exemplo, falam como se houvesse, por um lado, força
ativa e, por outro, potencialidades, como se houvesse dois diferentes tipos de possibilidade com os quais
Aristóteles estaria fazendo confusão.” Frede, M., Aristotle’s notion of potentiality in metaphysics Θ, in:
Unity, identity, and explanation in Aristotle’s metaphysics, p. 179.
28
uma das linhas centrais do pensamento de Aristóteles, aquela segundo a qual não é possível
promover sempre uma relação direta a fim de estabelecer um nome para cada coisa.
Dada essa especificida
visto que a investigação tem início com a potência relativa ao movimento e como não há
movimento em si, mas somente movimento das coisas e dos corpos físicos, não faz sentido
tratar de algo que consistiria justamente em abstrair aquilo que é pressuposto pelo
movimento, as coisas sensíveis. Assim, potência relativa ao movimento só há na
matemática por simples homonímia, mera semelhança, não de modo próprio.
46
Quando o
foco está centrado sobre a du/namij , Aristóteles dispensa a matemática, mas quando versa
sobre o ato, especialmente quando se refere à atividade estrita do pensamento (Θ9, 1051
21-33) e quando investiga a verdade e falsidade (Θ10, 1052
a
4-11), próprios do juízo,
freqüentemente ele cita os seres matemáticos.
Descartados os homônimos, Aristóteles restabelece o rumo da investigação
apontando para os tipos de potência que interessam, apenas aquelas que guardam uma
relação direta com a espécie (
ei)=doj), aquela propriedade constituinte da potência que a
define como tal. O
ei)=doj é o que permite distinguir e reconhecer que algo é isto e não
aquilo e no caso da potência, ele representa suas propriedades específicas, identificado pelo
fato de ser um certo princípio e, ao mesmo tempo, guardar uma relação direta com a
potência primeira cuja definição é: “um princípio de mudança em outro ou nele mesmo
enquanto outro”.
47
Potência é entendida como princípio de movimento e todas as potências
que interessam para esta investigação são aquelas que remetem a esta primeira (
prw=th)
potência. Essa estreita relação entre
du/namij, ki/nhsij e a)rxh/ fica mais clara quando se
tem em mente que princípio é condição fundamental do ser, do devir e do próprio
conhecimento
48
. Princípio não é simples começo, mas é algo fundamental para explicar o
que a coisa é, como chegou a ser o que é e como tal coisa pode ser conhecida. A definição
primeira da
du/namij, à qual todas as outras se remetem, é que deixa transparecer sua
aos quais os entes matemáticos pertencem. Isso é possível apenas metodologicamente, pois para Aristóteles,
as entidades matemáticas não existem independentes de um sujeito material.
46
A potência por mera homonímia não expressa o que há de mais característico da potência segundo o
movimento, por isso, segundo Heidegger: “é excluída desta discussão, a saber, porque ela não é
kata\ ki/nhsin. Não é kata\ ki/nhsin porque ela não pode ser conforme sua essência.” Essência aqui é o
movimento ausente na matemática. Heidegger, M. Aristotle’s Metaphysics Θ 1-3, p 50.
47
hÀ e)stin a)rxh\ metabolh=j e)n aÃll% hÄ v aÃllo. Θ1, 1046 a 11.
48
Em D1 da Metafísica (1012b 34 -1013
a
23), Aristóteles apresenta algumas definições de princípio (a)rxh/)
tomadas em seus significados mais comuns, menos técnicas, mas que guardam forte relação com aquele
significado principal que, geralmente (segundo Ross, op.cit., p.291), coincide com o sentido de causa (
ai)/tion)
e que podem ser assim resumidas: “De todos os princípios o comum é ser o primeiro desde que ou a coisa é
ou vem a ser conhecida.”
pasw½n me\n ouÅn koino\n tw½n a)rxw½n to\ prw½ton eiånai oÀqen hÄ eÃstin hÄ gi¿gnetai hÄ
gignw¯sketai.
Metafísica, D1, 1013
a
17-19. (Trad. Luís Felipe Ribeiro).
30
relação intrínseca com o movimento, pois, se potência é princípio de movimento então sem
potência não há movimento; potência é a origem, a própria possibilidade de algo estar ou
não em movimento. Entretanto, convém assinalar que o ser em potência é condição
necessária para o movimento, porém, não suficiente.
Cabe ainda um esclarecimento acerca da segunda parte da definição, o que está em
outro ou em si mesmo enquanto outro”. Para tanto, é preciso considerar inicialmente alguns
postulados básicos da concepção aristotélica do movimento que são expostos na Física. O
primeiro postulado diz respeito à necessidade de sempre haver um sujeito (
u(pokei/menon)
a partir da qual ocorre a geração (
gi/gnomai) ou o movimento.
49
2.1 Os tipos de Potência
Após essa delimitação inicial Aristóteles ocupa-se dos tipos de potência que são
importantes para a pesquisa proposta em Θ, aquelas relativas ao movimento
54
e, portanto,
referentes a mesma espécie. A tipologia da potência exposta em Θ1 (1046
a
10-30) é
praticamente a mesma exposta também no livro D da Metafísica (1019
a
15-1020
a
6), lugar
em que é melhor explicada e, por esse motivo, servirá também como base para a respectiva
análise. Os tipos de
du/namij relativas ao movimento são cinco, incluindo a potência
primeira à qual se referem todas as outras. São elas: potência ativa; potência passiva;
potência como apatia; potência para agir bem; e potência para padecer bem.
(1) Potência Ativa: é o primeiro tipo de potência relativa ao movimento e serve de
referência às outras potências, é a potência principal segundo a definição: “se chama
potência o princípio de movimento ou de mudança em outro ou nele mesmo enquanto
outro”.
55
Não há movimento sem potência porque se todas as coisas fossem sempre em ato,
tudo seria imóvel, então potência é princípio de movimento. Além disso, como todo
movimento/mudança pressupõe um movente e um movido, a
du/namij primeira pode ainda
ser entendida segundo dois aspectos: a) enquanto potência para produzir mudança em
outro: é aquela propriedade explicitada na própria definição da
du/namij enquanto
princípio de movimento, pois todo e qualquer movimento pressupõe um outro, “por
exemplo, a arte da construção é uma potência que não está na construção”
56
, mas está no
construtor. O agente do movimento é o construtor, enquanto a construção - que inclui desde
a atividade até o material necessário à execução da obra – é o outro que sofre o movimento.
b) Enquanto potência para produzir mudança em si: é a capacidade que a coisa tem de atuar
sobre si mesma, como se esta coisa se desdobrasse em duas: uma agindo, a outra sofrendo a
ação. O exemplo é o da “arte de curar, que é uma potência, pode estar no que é curado,
54
No que se refere aos cinco tipos de potência, seguiremos, em boa parte, a minuciosa explicação de Reale
elaborada sobre D12 da Metafísica que trata exclusivamente destes tipos de potência de modo mais detalhado
em seu livro Il concetto di ‘Filosofia prima’ e l’unità della Metafisica di Aristotele, Reale, G., p. 345-360. (La
dottrina aristotelica della potenza, dell’atto e dell’entelechia nella ‘Metafísica’).
55
Du/namij le/getai h( me\n a)rxh\ kinh/sewj hÄ metabolh=j h( e)n e(te/r% hÄ v eÀteron. D12, 1019 a 15-16.
56
oiâon h( oi¹kodomikh\ du/nami¿j e)stin hÁ ou)x u(pa/rxei e)n t%½ oi¹kodomoume/n%. Metafísica, D12, 1019a 16-17.
32
porém não enquanto é curado”.
57
Um médico que está doente, eventualmente, pode curar a
si próprio, atuando (enquanto médico) sobre si mesmo como se fosse um outro
58
(o doente).
A singularidade dessa situação é a coincidência entre aquele que promove e aquele que
sofre a mudança, mas a propriedade definidora da potência ativa permanece: promover a
mudança em outro.
(2) Potência passiva: esse segundo tipo é, de fato, o primeiro daqueles referentes à
du/namij fundamental, “é a potência passiva, que é no paciente mesmo um princípio para
ser mudado por outro ou enquanto é outro”.
59
A potência passiva (pa/qh) é semelhante à
potência ativa, apenas é tomada num sentido passivo, ou seja, referente ao ponto de vista do
paciente capaz de sofrer uma mudança proporcionada por um outro, ou considerado como
um outro. Há no paciente um princípio para sofrer a mudança promovida por outro ou por
si mesmo, enquanto outro. Esta potência para ser movida é constatada não só ma medida
em que o paciente é submetido à mudança, como também quando não a sofre. É o caso da
madeira que queima pela ação do fogo, mas mesmo que não esteja queimando, guarda essa
potência para ser queimada. A potência passiva não é simplesmente um estado de pura
inércia ou total indeterminação
60
, já que o paciente obedece a certas condições – analisadas
em Θ5 (1047b 31-1048
a
24) – que o tornam receptivo ao movimento e conivente com o
agente, formando assim um conjunto conciso .
(3) Potência como apatia: o terceiro tipo de potência é a capacidade de permanecer
imune àquele movimento que não seja condizente com o paciente: “é a disposição (
e(/cij)
de apatia à mudança para pior e à destruição por outro ou enquanto outro como princípio
de mudança”.
61
Esta impassibilidade ou apatia (a)pa/qeia) frente à mudança para pior se
deve, não exatamente a uma potência para sofrer mudança em geral, mas a uma ausência de
57
a)ll' h( i¹atrikh\ du/namij ouÅsa u(pa/rxoi aÄn e)n t%½ i¹atreuome/n%, a)ll' ou)x v i¹atreuo/menoj. D12, 1019
a
17-
18
.
58
De acordo com Giovanni Reale, “o atuar sobre si mesmo” refere-se a “todas as ações reflexivas que se
expressam mediante os verbos reflexivos”, ou seja, expressam qualquer ação do ser sobre si mesmo. Reale,
G., Il concetto di ‘Filosofia prima’ e l’unità della Metafisica di Aristotele, p. 345.
59
h( me\n ga\r tou= paqeiÍn e)stiì du/namij, h( e)n au)t%½ t%½ pa/sxonti a)rxh\ metabolh=j paqhtikh=j u(p' aÃllou hÄ vÂ
aÃllo.
Θ1, 1046 a 11-12.
60
“A passividade não é o estado de inércia e de indeterminação absoluta; o paciente está no estado de
padecer, de responder a um tipo de conivência às incitações e aos movimentos do agente”. Tricot, J. In:
Aristote: La Métaphysique, Tome I, p.284, nota 3.
61
h( d' eÀcij a)paqei¿aj th=j e)piì to\ xeiÍron kaiì fqora=j th=j u(p' aÃllou hÄ v aÃllo u(p' a)rxh=j metablhtikh=j. Θ1,
1046a 13-15.
33
potência passiva específica
62
, por isso essa potência se assemelha a um modo de resistência,
promovendo um momento de conservação de seu estado positivo; é apatia devido a uma
carência específica. Um tijolo cozido, por exemplo, não tem potência para ser dobrado, e
quando é forçado a isto, ele se quebra, mas isto não significa ausência de outras potências.
(4) Potência para agir bem: esse quarto tipo além de ser uma especificação da
potência enquanto princípio ativo de movimento, também salienta a necessidade, não
apenas de cumprir o movimento, mas de cumpri-lo bem: “Além disso, se chama potência a
de executar uma coisa bem”.
63
O agir simplesmente não é o mesmo que agir bem
(kalw=j); mesmo nas atividades mais corriqueiras é fácil verificar essa diferença.
Distinguimos, por exemplo, o simples falar do falar bem e costumamos dizer deste que ele
possui a potência para falar bem, e não simplesmente para falar.
(5) Potência para padecer bem: assim como o quarto tipo é uma especificação do
primeiro, esse quinto é uma especificação do segundo, da potência passiva. É a capacidade
de sofrer mudança da maneira designada, de se deixar afetar do modo como deve ser, para
melhor e não de qualquer modo. Não se trata de impassibilidade total, como, por exemplo,
no caso da pedra que não tem potência alguma para ser dobrada. Não é carência de potência
para sofrer toda e qualquer mudança, mas é uma suscetibilidade à boa mudança, é uma boa
passibilidade. Essa potência expressa melhor o cumprimento de um desígnio, de algo que é
próprio àquele que sofre o movimento. Por exemplo, os cinco sentidos (tato, paladar, visão,
audição e olfato) são meios de que o organismo animal dispõe para receber impressões dos
objetos exteriores, bem como da própria posição e do estado do corpo. Porém, é possível
verificar uma variação nessa receptividade principalmente por causa da saúde da pessoa.
Alguém doente ainda tem a capacidade de sentir, mas não tão bem quanto o saudável, que
sofre as transformações conforme o designado pelos sentidos.
Apresentados os tipos de potência, Aristóteles enfatiza que é preciso considerar
sempre que todas essas potências têm implicitamente o conceito principal, o da
du/namij
enquanto princípio de movimento:“Em todas estas definições (
o(/roj) está contido o
62
“As coisas, pois, que se quebram ou se esmagam ou se dobram e, em geral, se destroem, não por poder,
mas por não poder e por carecer de algo”.
kla=tai me\n ga\r kaiì suntri¿betai kaiì ka/mptetai kaiì oÀlwj
fqei¿retai ou) t%½ du/nasqai a)lla\ t%½ mh\ du/nasqai kaiì e)llei¿pein tino/j:
Metafísica, D12, 1019
a
28-30.
63
eÃti h( tou= kalw½j tou=t' e)piteleiÍn. D12, 1019a 15.
34
conceito (
lo/goj) de potência primeira”.
64
Todas são caracterizadas como sendo um certo
princípio de movimento, em outro ou em si mesmo considerado como outro. Esses tipos de
potência remetem sempre à potência primeira não por simples similitude, como no caso da
potência na matemática, mas porque todas são definidas por aquilo que lhes é peculiar, elas
apresentam as propriedades constituintes da potência que a define enquanto potência e não
como outra coisa qualquer.
2.2 Quando as potências ativa e passiva coincidem ou diferem
Tendo estabelecido os cinco tipos básicos de potência, Aristóteles pretende mostrar
as diferenças e semelhanças entre potência ativa e potência passiva: “Está claro, portanto,
que em certo sentido é uma mesma a potência de fazer (
poie/w) e a de padecer (pa/sxw)
(...), porém em outro sentido são distintas”.
65
Elas coincidem ou diferem a partir da
presença ou não das duas potências na mesma coisa.
Quando a potência passiva e a ativa pertencem a uma mesma coisa, então elas
coincidem. Uma coisa A tem potência (ativa) para mover uma outra B e, ao mesmo tempo,
A tem potência (passiva) para ser movida por uma terceira C. Assim, A tem tanto potência
ativa (sobre B) quanto passiva (de C). Entretanto, não é necessário haver três elementos
envolvidos, basta que A tenha uma potência ativa sobre B, enquanto B tenha uma outra
potência passiva sobre A. Em ambas situações deve-se entender que potência ativa e
passiva são apenas aspectos complementares de uma única realidade
66
, porque a coisa que
pode mover e ser movida é a mesma. No primeiro caso, A move B e é movido por C; no
segundo caso A move B e B é movido por A.
Quando a potência passiva e a ativa pertencem a duas coisas diferentes, então elas
diferem, ou seja, a potência passiva está no paciente e a ativa está no agente. O sujeito da
ação possui uma potência ativa, enquanto aquele que sofre a ação tem potência passiva
porque possui um princípio passivo, a matéria: pois, por ter certo princípio e também pela
64
e)n ga\r tou/toij eÃnesti pa=si toiÍj oÀroij o( th=j prw¯thj duna/mewj lo/goj. Θ1, 1049 a 15-16.
65
fanero\n ouÅn oÀti eÃsti me\n w¨j mi¿a du/namij tou= poieiÍn kaiì pa/sxein ...Ÿ eÃsti de\ w¨j aÃllh. Θ1, 1046 a 19-
22.
66
“A unidade da du/namij ativa e passiva está baseada no simples fato de que A pode mudar B; isto nos leva a
atribuir uma potência ativa para A e uma potência passiva para B. Assim, a potência ativa e passiva são
aspectos complementares de um único fato.” Ross, D. In: Aristotle’s Metaphysics, vol. II, , p.241.
35
matéria (
u(/lh) ser certo princípio é que o paciente padece, cada um por um outro”.
67
Pelo
fato de o objeto passível de sofrer ação ser a matéria apropriada para tal ação, esta matéria
tem potência passiva.
68
Alguns exemplos podem ser elucidativos: um construtor tem a
potência ativa (a arte de construir), portanto atua sobre a pedra que tem a potência passiva
(é a matéria propícia) para ser cortada e triturada de modo a servir numa construção. O
outro exemplo dado por Aristóteles é o do fogo e o óleo. O fogo tem potência ativa para
aquecer enquanto que o óleo tem a potência passiva para ser aquecido, serve de
combustível para a queima. O óleo é a matéria, o “certo princípio” passivo para que a
queima ocorra. Portanto, se por um lado é necessário um material adequado para que algo
possa sofrer uma ação, uma matéria que tenha tal potência passiva, por outro, é necessário
um agente que tenha a potência ativa para atuar sobre a matéria, porque, segundo
Aristóteles, “enquanto unidade natural, nenhum ser padece de si mesmo, já que é um só e
não outro”.
69
Como já foi visto, tudo que se move é movido por outro, por isso, enquanto é
algo físico - uma unidade natural (sumpe/fuken), tal como qualquer um dos quatro
elementos -, este ser, por definição, não pode sofrer a ação de si próprio. É assim, por
exemplo, com o fogo que só tem potência para queimar, não para ser queimado e por isso
não pode atuar sobre si mesmo, mas atua sempre sobre outro. O caso do médico é o mesmo.
Ele tem potência ativa para curar um outro, não para ser curado enquanto é médico, mas
tem potência para ser curado apenas enquanto é paciente dele próprio ou de um outro.
Todos esses esclarecimentos acerca da coincidência e da diferença da potência ativa
e passiva no sujeito têm também como propósito, preparar o caminho para uma análise
ainda mais complexa que trata das condições e dos limites para se reconhecer quando algo
tem ou não a potência requerida para fazer ou padecer algo. É o que vem a seguir.
67
dia\ ga\r to\ eÃxein tina\ a)rxh/n, kaiì eiånai kaiì th\n uÀlhn a)rxh/n tina, pa/sxei to\ pa/sxon, kaiì aÃllo u(p'
aÃllou
. Θ1, 1046 a 22-24.
68
Reale reconhece neste ponto o segundo significado da potência, o metafísico, por estar relacionada com a
matéria: “Está claro o sentido passivo de
du/namij já no âmbito do segundo significado, o metafísico: neste
âmbito, de fato,
du/namij coincide com u(/lh. Il concetto di ‘Filosofia prima’ e l’unità della Metafisica di
Aristotele, Reale, G., p.352.
69
dio\ v sumpe/fuken, ou)qe\n pa/sxei au)to\ u(f' e(autou=: eÁn ga\r kaiì ou)k aÃllo. Θ1, 1046 a 28-29.
36
2.3 A impotência enquanto privação
Após a análise dos tipos de potência relativas ao movimento, Θ1 encerra com um
breve e conciso esclarecimento sobre a impotência (
a)dunami/a) e o impotente (a)du/naton),
sempre com o propósito de mostrar com mais clareza os critérios para se identificar e,
posteriormente, classificar a
du/namij. Aristóteles afirma então que: “E a impotência e o
impotente é a privação contrária a tal potência, de modo que toda potência é contrária a
uma impotência do mesmo e segundo o mesmo”.
70
Se potência é princípio de movimento,
impotência é ausência desse princípio, é uma privação (
ste/rhsij).
Para cada potência se contrapõe uma impotência, desse modo, ste/rhsij é a
ausência de potência tanto para fazer como para sofrer algo correspondente àquilo que está
sendo avaliado. Privação só pode ser entendida enquanto correlato de algo que é, de algo já
determinado. Sendo assim, para cada potência corresponde uma impotência referente
sempre ao mesmo objeto e à mesma relação.
71
A privação não pode ser confundida com
pura negação. Enquanto a pura negação é a absoluta ausência da coisa, assim como, por
exemplo, o não-uno é a ausência total do uno
72
, a privação pressupõe a existência de um
certo gênero (
ge/noj) que possa ser dividido em espécies (ei)=doj), as quais possuem
algumas propriedades e não outras. Se não houver um gênero não será possível afirmar a
existência de atributos, portanto, não haverá qualquer tipo de potência e,
conseqüentemente, não haverá privação de alguma potência. Enfim, visto que a privação
exige um substrato, que é o gênero, a impotência é a remoção do princípio que caracteriza a
potência. O exemplo da visão é paradigmático: o princípio da visão é a luz e a privação de
luz não permite ao ser humano enxergar. Privação é a cegueira, total ou parcial, que está
num gênero, o animal.
70
ì kaiì h( a)dunami¿a kaiì to\ a)du/naton h( tv= toiau/tv duna/mei e)nanti¿a ste/rhsi¿j e)stin, wÐste tou= au)tou= kaiì
kata\ to\ au)to\ pa=sa du/namij a)dunami¿#
. Θ1, 1046 a 29-31.
71
Reale, G., Il concetto di ‘Filosofia prima’ e l’unità della Metafisica di Aristotele, p.352.
72
No livro G da Metafísica, Aristóteles apresenta a diferença entre privação – ausência de alguma qualidade
ou quantidade num certo gênero – e negação – a não existência de algo: “e é próprio de uma só ciência
contemplar a negação e a privação, porque em ambos os casos se contempla uma só coisa à qual se refere a
negação ou a privação (pois, ou dizemos simplesmente que não existe aquela coisa, ou que não existe em
certo gênero).”
a)po/fasin de\ kaiì ste/rhsin mia=j e)stiì qewrh=sai dia\ to\ a)mfote/rwj qewreiÍsqai to\ eÁn ou h(
a)po/fasij hÄ h( ste/rhsij hÄ <ga\r> a(plw½j le/gomen oÀti ou)x u(pa/rxei e)keiÍno, hà tini ge/nei:
G2, 1004a 10-13.
37
Do mesmo modo que há certas condições para a potência, também a privação,
enquanto impotência, ocorre numa coisa determinada e num momento específico. As
condições a serem respeitadas são esclarecidas a partir da exposição de alguns dos modos
de designar a privação:
Assim, dizemos que uma coisa está privada de algo se não o tem, ou se não tem o
que naturalmente teria ou absolutamente ou quando naturalmente teria, e se não o
tem de um modo determinado, por exemplo, completamente, ou de qualquer modo.
E em algumas coisas, se tendo naturalmente, não o tem por causa de violência,
dizemos que estão privadas disso.
73
Tais modos de definir a privação podem ser agrupados em dois segmentos: o
primeiro, mais geral; o segundo, contendo as especificações. São eles:
(1) Privação em geral: é a privação enquanto um simples não ter (
mh\ e)/xon) a
potência. É a privação entendida num sentido bastante geral, sem considerar suas condições
específicas. Uma planta, por exemplo, simplesmente não tem olhos, do mesmo modo que
um homem não tem asas. Nos dois casos há privação de uma certa qualidade que pertence
naturalmente a alguns gêneros (os olhos são próprios dos animais, enquanto as asas são
próprias das aves), mas não pertencem a outros. A privação da potência não ocorre ao
acaso, pelo contrário, há certas especificações analisadas a seguir.
(2) Privação específica: esse modo apresenta as especificações da privação, mostra
quando algo não tem o que naturalmente teria. Não ter algo que é próprio da constituição
de alguma coisa pertencente a um gênero, deixa transparecer seu aspecto de incompletude,
visto que possuir uma qualidade determinada seria natural de um gênero a que pertence, no
entanto, é uma qualidade que lhe falta por algum motivo. A privação de uma potência pode
acontecer principalmente de dois modos: a) Absoluto, que é quando uma potência típica de
um gênero é absolutamente ausente numa espécie. É o caso, por exemplo, da cegueira na
toupeira: a visão é uma potência, a cegueira é uma privação e a toupeira é uma espécie que
pertence ao gênero animal. Apesar de pertencer ao gênero animal, a toupeira não tem, em
absoluto, uma qualidade (a visão) que certos seres animados têm. b) Circunstancial, é
quando uma potência típica de um gênero e também de uma espécie está ausente num
73
h( de\ ste/rhsij le/getai pollaxw½j: kaiì ga\r to\ mh\ eÃxon kaiì to\ pefuko\j aÄn mh\ eÃxv, hÄ oÀlwj hÄ oÀte
pe/fuken, kaiì hÄ w¨di¿, oiâon pantelw½j, hÄ kaÄn o(pwsou=n. e)p' e)ni¿wn de/, aÄn pefuko/ta eÃxein mh\ eÃxv bi¿#,
e)sterh=sqai tau=ta le/gomen.
Θ1, 1046a 31-35.
38
indivíduo. É o caso, por exemplo, da cegueira no homem: a visão é uma potência que já
nasce com o homem, porém há um indivíduo pertencente a essa espécie que não a tem, é
privado dessa potência. Então um homem não é dito ser cego aleatoriamente, mas em
circunstâncias em que seria natural ter visão, de acordo com seu gênero e espécie. Essa
privação circunstancial da potência pode ser entendida ainda de três modos suplementares:
determinado, de qualquer modo e por violência.
(b1) De um modo determinado: quando a privação é classificada considerando o tempo e o
ambiente em que acontece. Essa privação pode ocorrer completamente tanto pelo fato de o
ambiente ser impróprio à potência (quando a escuridão é total, tornando inviável a visão),
como pelo fato de o tempo ser o fator determinante (quando alguém que nasce cego, então
é por todo tempo e em todo ambiente). A privação de um modo determinado ainda pode
ocorrer apenas parcialmente (quando a escuridão não é total).
(b2) De qualquer modo: considera o tempo e o ambiente, mas sem delimitações. Esse
modo inclui, por exemplo, a cegueira desde o nascimento do indivíduo até aquela adquirida
na senilidade.
(b3) Por violência: é quando algo que teria naturalmente uma potência não a tem porque
lhe foi tirada por meios violentos; por exemplo, a visão perdida por um golpe numa batalha,
ou a liberdade arrebatada por um tirano.
Finalizada a exposição das especificações (modo, tempo e ambiente) da privação,
conclui-se que não é qualquer situação que é classificada como impotência ou qualquer
coisa que é impotente. Privação é a carência de um princípio típico da potência,
correspondente sempre a um tipo particular de sujeito, num momento determinado e
segundo o mesmo aspecto.
Resguardado por essas prévias delimitações, tanto da potência como da privação,
Aristóteles encaminha-se para uma ampliação e aprofundamento do ser em potência,
abrangendo inclusive outros domínios de sua filosofia.
3 Potências Racionais e Não-racionais
Enumerar as principais propriedades da
du/namij é uma demorada e laboriosa tarefa
que Aristóteles pretende levar a bom termo, pois só assim será possível elaborar uma
39
explicação convincente quanto à relação entre ser e movimento. Segue-se assim a
introdução de uma importante distinção entre potência racional (
du/namij meta\ lo/gou) e
potência não-racional (
du/namij aÃlogoj), visto que não é o mesmo dizer, por exemplo,
que o homem tem potência para construir uma casa e o fogo tem potência para queimar esta
mesma casa. Para especificar em que consiste essa diferença, Ar 7 Tmm(renç)Tj121l 405.92729 667.630.2512 3smrençrençenç
confirmado com o exemplo de qualquer um dos quatro elementos: o fogo só tem a potência
para queimar, enquanto que e a água só tem potência para molhar.
As potências racionais e não-racionais nos seres animados: nos seres dotados de
alma (
yuxh/) a potência é mais complexa do que aquela dos seres inanimados. Funciona de
modo diferente porque a alma – conforme o exposto no De anima – possui três partes
(mo/ria)
75
diferentes, cada qual com sua função específica: a) parte nutritiva (qreptikh/):
comum a todos os seres vivos; b) parte sensitiva (ai)sqhtikh/): responsável pela sensação
(ai)/sqhsij); c) parte intelectiva (dianohtikh/): responsável pelo conhecer (gignw/skw) e
pelo pensar (frone/w).
A parte ou função nutritiva da alma está presente em todos os seres vivos (plantas e
animais) porquanto é responsável pelo que há de mais elementar na manutenção da vida: a
geração, a nutrição e o crescimento, que permitem a perpetuação dos seres.
76
A função sensitiva é a responsável pelos cinco sentidos (olfato, tato, audição, visão,
paladar) pertencentes aos animais. Embora nem todos possuam todos os sentidos, qualquer
animal possui, no mínimo, um deles, o tato, que é a atividade sensorial primordial.
77
Convém lembrar que é a partir da sensação que tem início todo conhecimento, que perpassa
a memória e a experiência, que proporciona uma regra prática resultante da junção de
muitas recordações do mesmo tipo de objeto e que, assim como a memória, só alguns
animais possuem. A etapa final do conhecimento é a
te/xnh (arte) que não é simples
repetição da sensação, mas é a pergunta pela causa, por essa razão é exclusiva do homem.
78
As potências não-racionais são próprias da alma nutritiva e da sensitiva e, como tais, não
ostentam alternativas, ou seja, não é a alma nutritiva que ostenta a alternativa de se
alimentar ou não, de se reproduzir ou não. Da mesma forma para a função sensitiva, porque
75
O termo mo/rion pode ser melhor entendido como uma função, um modo específico de funcionamento que é
exclusivo dos seres vivos.
76
“Conseqüentemente, deve-se afirmar inicialmente a respeito de nutrição e reprodução: pois a alma
nutritiva está presente também nos demais viventes, e é a potência primeira da alma, e a mais comum,
segundo a qual, o viver está presente em todos”.
wÐste prw½ton periì trofh=j kaiì gennh/sewj lekte/on: h( ga\r
qreptikh\ yuxh\ kaiì toiÍj aÃlloij u(pa/rxei, kaiì prw¯th kaiì koinota/th du/nami¿j e)sti yuxh=j, kaq' hÁn u(pa/rxei
to\ zh=n aÀpasin.
De Anima, II4, 415a 22-25. (Trad. Lucas Angioni).
77
“E, entre as sensações, é o tato que primeiramente pertence a todos. E assim como a capacidade nutritiva
é capaz de ser separada do tato e de toda sensação, do mesmo modo o tato é capaz de ser separado das
outras sensações.”
ai¹sqh/sewj de\ prw½ton u(pa/rxei pa=sin a(fh/: wÐsper de\ to\ qreptiko\n du/natai xwri¿zesqai
th=j a(fh=j kaiì pa/shj ai¹sqh/sewj, ouÀtwj h( a(fh\ tw½n aÃllwn ai¹sqh/sewn.
De Anima, II2, 413a 4-7. (Trad.
Lucas Angioni).
78
Cf. Metafísica, A1, 980a 21-981a 12.
41
o sentido do tato não pode se recusar a sentir, assim como o ouvido não pode se recusar a
ouvir. O funcionamento da potência não-racional nos seres animados é similar ao
funcionamento nos seres inanimados, pois também ao fogo não cabe a alternativa entre
queimar ou não queimar, assim como à água não cabe a alternativa entre molhar ou não
molhar.
Finalmente, a função intelectiva é caracterizada pelo pensamento, capaz de abstrair
(separar a forma da matéria), de calcular e deliberar sobre o melhor meio para alcançar um
fim
79
. Obviamente essa função intelectiva é exclusiva do homem, exceto no caso de haver
um outro ser semelhante ou superior a ele
80
. A potência racional é exclusiva da alma
intelectiva, porque somente esta tem a alternativa de fazer ou não fazer tal coisa, como
também de fazer deste ou daquele modo.
Essa breve exposição sobre as funções da alma deve servir de preparação para se
compreender como as artes (
te/xnai) e as ciências produtivas (poihtikaiì e)pisth=mai),
que são potências racionais, estão relacionadas com a alma intelectiva. Como explica
Aristóteles: “Por isso todas a artes e as ciências produtivas são potências, visto que são
princípios produtores de mudança que está em outro ou enquanto é outro”.
81
O conceito
aristotélico de arte é muito abrangente, reunindo inclusive aspectos da ciência. Todavia, ela
não é exclusivamente teorética já que sempre visa a produção (
poi/hsij), a criação de
algo.
82
A arte é uma faculdade que visa a produção e opera segundo a razão
83
e, assim
como a ciência prática, é uma potência racional. A partir da clássica oposição entre aquilo
que é por natureza – que nasce e se desenvolve a partir de um princípio interno, ou seja,
79
“Assim, portanto, a capacidade intelectiva intelige as formas nas imagens (...); e às vezes, com as imagens
ou as intelecções na alma, como se as visse, delibera-se e calcula-se o futuro em comparação com o
presente”.
ta\ me\n ouÅn eiãdh to\ nohtiko\n e)n toiÍj fanta/smasi noeiÍ, (...); o(te\ de\ toiÍj e)n tv= yuxv=
fanta/smasin hÄ noh/masin, wÐsper o(rw½n
. De Anima, III 7, 431b 2-7. (Trad. Lucas Angioni).
80
Depois de comentar sobre as faculdades que outros animais teriam (imaginação e locomoção), Aristóteles,
no De anima,
s
sem interferência externa - e aquilo que é por arte – que surge por obra de um agente
externo -, pode-se verificar a relação existente entre potência racional e arte por um lado, e
potência não-racional e seres naturais por outro. Certos seres naturais (água, terra, plantas)
têm potência não-racional; outros são capazes de criar algum objeto por meio da arte pois
possuem potência racional. Sendo assim, as artes e as ciências produtivas são potências
racionais porque são acompanhadas de razão (
lo/goj). Este é um fator determinante para
que se possa entender o aprofundamento da análise sobre potência racional e não-racional
que é apresentada na seqüência de Θ.
3.1 Potência para os contrários
Na seqüência de Θ2, Aristóteles finalmente apresenta um critério mais decisivo para
a distinção entre potência racional e não-racional. Tal critério é, inclusive, muito importante
para se entender sua teoria ética e política porque ressalta, entre outras coisas, a diferença
entre fazer e agir, entre seres naturais e seres artificiais.
Como já foi visto, as potências racionais são exclusivas da alma intelectiva, são
acompanhadas de razão. Se a alma intelectiva tem potência racional, nela há alternativa
entre realizar ou não um objetivo proposto. No entanto, há algo mais a dizer sobre esta
potência: “E as racionais, todas podem produzir elas mesmas os efeitos contrários, porém
as não-racionais se limitam a um; por exemplo, o calor só pode aquecer, enquanto que a
medicina pode curar e adoecer”.
84
O critério definitivo para distinguir potência racional da
não-racional é a capacidade para produzir contrários (e)nanti/a), ou seja, a potência racional
presente na alma intelectiva pode escolher entre fazer x ou fazer não-x. O exemplo da
medicina é pertinente: é uma arte, portanto é colocada em prática pela alma intelectiva, por
meio da qual o médico tem diante de si a alternativa de restaurar ou não a saúde do
paciente. Percebe-se assim que a distância entre a potência racional e a não-racional é
proporcional à existente entre a arte (
te/xnh) e a natureza (fu/sij), entre o artificial – o que
é produzido pela atividade de um outro (o homem) - e o natural – o que é resultado de
84
kaiì ai¸ me\n meta\ lo/gou pa=sai tw½n e)nanti¿wn ai¸ au)tai¿, ai¸ de\ aÃlogoi mi¿a e(no/j, oiâon to\ qermo\n tou=
qermai¿nein mo/non' h( de\ i¹atrikh\ no/sou kaiì u(giei¿aj
. Θ2, 1046 b 4-7.
43
atividade imanente. Ter potência racional é ter potência para produzir um entre os
contrários, enquanto ter potência não-racional é não ter alternativas.
É o
lo/goj que torna a potência racional bem mais complexa, exigindo avaliação
mais abrangente para seu cumprimento porque envolve outros elementos: o desejo
(
o)/recij) e a escolha (proai/resij).
85
Estritamente falando, somente a parte racional,
exclusiva dos seres animados, é capaz de agir segundo o
lo/goj e de acordo com o desejo e
com a escolha.
86
A arte da medicina é uma potência para contrários, então o médico pode
escolher entre fazer x (curar) ou fazer seu contrário, não-x (fazer adoecer ou matar o
paciente) segundo seu desejo de cumprir ou não aquele propósito da medicina que é o de
promover a saúde do paciente. Por outro lado, é fácil constatar que os seres inanimados têm
potência restrita a produzir um só efeito: o fogo que só é capaz de proporcionar calor, assim
como a pedra, por ela mesma, só pode cair.
Entretanto, a potência para produzir contrários não deve ser entendida como a
prevalência de contingência no âmbito das potências racionais, pelo contrário, o fato de a
alma racional poder desejar e escolher não indica o acaso, apenas limita o acidental. De
fato, existe a possibilidade do médico de promover tanto a saúde como a doença (privação
da saúde) do paciente, porém, não é por acaso que um médico cura, pois a medicina é
definida como arte para curar e restaurar a saúde do paciente. A potência racional, enquanto
arte ou ciência, não escolhe aleatoriamente entre os contrários, mas privilegia o aspecto
positivo e somente depois de encerradas as possibilidades do positivo, é que ela escolhe
entre o aspecto positivo e sua privação. É sobre a prioridade do aspecto positivo que
Aristóteles fala a seguir:
homem tem ciência e arte porque ambas têm como princípio o
lo/goj, o único capaz de
evidenciar a coisa mesma e sua privação. O homem pode escolher entre a coisa (o aspecto
positivo) e a não-coisa (o aspecto negativo). Todavia, mesmo que a ciência, por meio do
lo/goj, possa expressar os dois aspectos, positivo e negativo, isto não ocorre do mesmo
modo. A ciência privilegia o aspecto positivo porque é neste que se evidencia o que a coisa
é, a sua essência (
to\ ti/ h)=n ei(=nai). Cabe à ciência tratar tanto da coisa quanto de sua
ausência, mas enquanto trata da coisa a ciência expressa o conteúdo da definição e quando
trata da privação, a referência é apenas por acidente: “também tais ciências
necessariamente envolverão os contrários, porém a um enquanto tal, e ao outro não
enquanto tal, pois também a razão expressa a um enquanto tal e o outro, de certo modo,
acidentalmente, já que mostra o contrário por negação e supressão”.
88
É próprio da
ciência, por meio da razão, abarcar necessariamente (a)na/gkh) os contrários, o efetivo e
sua privação, afinal, que outra coisa se proporia a estudar somente a privação visto que esta
não existe por si? O
lo/goj pertinente à ciência é o que define, é o que apresenta a essência
da coisa, e mostra o contrário daquilo que a define somente por negação (
a)po/fasij) e
destruição ou supressão (
a)pofora\) do aspecto positivo. O que define a arte da medicina
enquanto tal não é o fato de ela adoecer ou matar o paciente, mas sim o de curar e restaurar
sua saúde.
Os contrários são, por um lado, o efetivo, o real, a coisa mesma; por outro, a
ausência, a negação e supressão da forma que define a coisa enquanto tal, em uma palavra,
a privação: “a privação primeira é, assim, o contrário, que é, por sua vez, supressão do
outro”.
89
A privação primeira (ste/rhsij prw¯th) não é um puro nada, mas é
simplesmente sinônimo daquilo que é contrário ao positivo, é a negação da forma, a
supressão do efetivo.
90
Enfim, a característica da ciência é, por meio do lo/goj, fazer
conhecer a essência da coisa e, acidentalmente, sua privação.
como já vimos outras vezes em casos paralelos, só pode ser traduzido de modo aproximativo, e todos os
intérpretes se mostram perplexos. (...) O significado, em todo caso, é claro: a ciência consiste na noção que
dá a essência da coisa.” Reale, G. Comentário à Metafísica, p. 457, nota 4
88
wÐst' a)na/gkh kaiì ta\j toiau/taj e)pisth/maj eiånaime\n tw½n e)nanti¿wn, eiånai de\ tou= me\n kaq' au(ta\j tou= de\
mh\ kaq' au(ta/j: kaiì ga\r o( lo/goj tou= me\n kaq'au(to\ tou= de\ tro/pon tina\ kata\ sumbebhko/j: a)pofa/ sei ga\r
kaiì a)pofor#= dhloiÍ to\ e)nanti¿on.
Θ2, 1046 b 9-14.
89
h( ga\r ste/rhsij h( prw¯th to\ e)nanti¿on, auÀth de\ a)pofora\ qate/rou. Θ2, 1046b 15.
90
“A privação primeira é, assim, to\ e)nanti¿on t$= e(/cei, isto é, a)pofora\ th=j e(/cewj”. Tricot, J. In: Aristote: La
Métaphysique, Tome II, p.487.
45
Após Aristóteles ter apresentado a potência racional e não-racional e ter demostrado
como a ciência dá conta tanto do efetivo quanto de sua privação, resta a dúvida de como o
lo/goj pode evidenciar aspectos contrários sem que eles se anulem mutuamente, o que
poderia ocasionar contradições. Para evitar isso, Aristóteles antecipa a discussão sobre a
necessidade de haver um sujeito (
u(pokei/menon) para que os contrários possam existir
91
,
não simultaneamente, mas sucessivamente: “Porém, visto que os contrários não se geram
no mesmo e a ciência é potência por ter a razão, e a alma tem um princípio de movimento,
o saudável só produz saúde e o que pode aquecer, calor, e o que pode esfriar, frio; porém o
que tem ciência, ambas as coisas”.
92
Como vimos acima, faz parte das opções do médico
promover a saúde ou a doença do paciente porque ele exerce uma arte e toda arte tem como
princípio o
lo/goj, capaz de expressar os contrários. À primeira vista parece surgir daí uma
contradição resultante da anulação recíproca dos contrários, do positivo pelo negativo e
vice-versa. Contudo, os efeitos contrários exigem que haja sempre um sujeito a partir do
qual eles possam co-existir, afinal, os princípios contrários não provêm uns dos outros, o
que é impossível, não só logicamente, mas ontologicamente. No exemplo da medicina, o
médico é o sujeito necessário para que haja possibilidade de escolha entre os contrários: a
saúde ou a doença.
Os contrários não aparecem ao mesmo tempo no mesmo sujeito, eles se dão
sucessivamente, visto que não há um sujeito capaz de gerar simultaneamente a coisa e sua
privação. Eles também não surgem de um modo qualquer: há primeiro a coisa, depois sua
privação e se não houver a coisa efetiva, não haverá sua privação. O negro não é gerado a
partir do branco, mas há um sujeito, um ser determinado que é branco e pode se tornar
negro. A cores negra e branca são atributos contrários de um sujeito.
Interessante observar como Aristóteles ressalta freqüentemente a relação existente
entre os contrários (
e)nanti/a), a razão (lo/goj) e a alma (yuxh/). Esses três elementos
estão diretamente imbricados, são inseparáveis; só a razão contém os contrários e só a alma,
especificamente a intelectiva, é fundamentada na razão: Pois a razão contém ambas as
coisas, mas não do mesmo modo, e está na alma, que tem um princípio de movimento,
91
Em Θ5 (1048
a
1-24) Aristóteles expõe pormenorizadamente as condições para a potência dos contrários e a
inclusão necessária de um sujeito.
92
e)peiì de\ ta\ e)nanti¿a ou)k e)ggi¿gnetai e)n t%½ au)t%½, h( d' e)pisth/mh du/namij t%½ lo/gon eÃxein, kaiì h( yuxh\
kinh/sewj eÃxei a)rxh/n, to\ me\n u(gieino\n u(gi¿eian mo/non poieiÍ kaiì to\ qermantiko\n qermo/thta kaiì to\
yuktiko\n yuxro/thta, o( d' e)pisth/mwn aÃmfw.
Θ2, 1046 b 15-20.
46
então moverá ambas as coisas a partir do mesmo princípio, unindo-as em vista do
mesmo”.
93
A alma contém o princípio da potência e de sua privação, conseqüentemente, a
alma é o sujeito na qual os contrários são produzidos. O princípio que a alma possui e que
tem a capacidade, tanto de produzir contrários (curar ou maltratar), como de proporcionar
sua união (
suna/feia) é, novamente, o lo/goj. A alma tem potência fundamentada no
lo/goj e, assim, pode proporcionar tanto o efetivo (o ter) quanto a sua privação (o não-ter):
“Por isso, as coisas que têm potência fundada na razão produzem efeitos contrários aos
daquelas cuja potência não se apóiam na razão, pois os contrários estão contidos no
mesmo princípio, isto é, na razão”.
94
A preocupação de Aristóteles é deixar claro que é o
lo/goj o princípio para os contrários.
95
Uma comparação entre seres inanimados, que só
têm potência não-racional, e animados é sempre ilustrativa: o calor só pode aquecer, o frio
só pode esfriar, mas a alma, que além de ser um princípio de movimento tem a potência
racional, pode produzir contrários. E a distinção não pára nesse ponto.
3.2 Potência para agir ou padecer bem
No fim de Θ2, Aristóteles explica melhor a distinção já apontada em Θ1 (1046
a
16-
19, sobre o 4º e 5º tipos de potência) entre fazer/padecer bem e fazer/padecer simplesmente.
Novamente é possível perceber a importância que Aristóteles atribui ao bom cumprimento
de uma atividade, tendo em conta que fazer/padecer bem é sempre mais difícil do que o
mero fazer/padecer: “Também é evidente que a potência de fazer ou padecer bem é
acompanhada pela de fazer ou padecer somente, porém esta nem sempre por aquela; pois
para fazer bem é necessário fazer, enquanto que fazer somente não é necessário fazer
bem”.
96
Toda teoria e toda arte, assim como todas as atividades e potências, possuem como
propósito último algum bem. Segundo Aristóteles, essa tendência que todas as coisas têm
93
lo/goj ga/r e)stin a)mfoiÍn me/n, ou)x o(moi¿wj de/, kaiì e)n yuxv= hÁ eÃxei kinh/sewj a)rxh/n: wÐste aÃmfw a)po\ th=j
au)th=j a)rxh=j kinh/sei pro\j tau)to\ suna/yasa.
Θ2, 1046b 20-23.
94
dio\ ta\ kata\ lo/gon dunata\ toiÍj aÃneu lo/gou dunatoiÍj poieiÍ ta)nanti¿a: mi#= ga\r a)rxv= perie/xetai, t%½
lo/g%.
Θ2, 1046b 23-24.
95
Não há um princípio para a coisa e um outro princípio para a sua privação: “‘o mesmo princípio’ e ‘a
mesma razão’ se referem a uma mesma coisa:
o( lo/goj. Os ‘dois contrários’ (
a)/mfw
) são a
e(/cij
e a
ste/rhsij
,
por exemplo, a saúde e a doença” Tricot, J. In: Aristote: La Métaphysique, Tome II, p.488, nota 1.
96
fanero\n de\ kaiì oÀti tv= me\n tou= euÅ duna/mei a)kolouqeh( tou= mo/non poih=sai hÄ paqeiÍn du/namij, tau/tv d'
e)kei¿nh ou)k a)ei¿.
a)na/gkh to\n euÅ poiou=nta kaiì poieiÍn, to\n de\ mo/non poiou=nta ou)k a)na/gkh kaiì euÅ poieiÍn.
Θ2, 1046 b 24-28.
47
ao bem não se restringe às ações humanas, pelo contrário, as ações humanas apenas dão
seguimento a uma ordem natural da realidade, uma ordem, não só implícita, mas
explicitamente inserida no real. Tal concepção é bastante cara ao Estagiríta e perpassa
vários momentos do livro Θ, ainda que sutilmente, como nesse final de Θ2, quando se
destacam os dois modos principais de fazer ou de padecer: a) fazer/padecer somente
(
mo/non); e b) fazer/padecer bem (eu)=).
O primeiro modo é mais simples, é somente fazer/padecer, é o meramente isto ou
aquilo. Inclui todos os modos de atividades ou potências, todas as artes ou produções, sem
especificação de suas qualidades, portanto, é mais abrangente. Já o fazer/padecer bem é,
justamente, essa qualificação de cada uma das coisas, especificando e destacando o modo
conveniente, aquele que é próprio da potência. Está claro que o mero fazer não é o mesmo
que o fazer bem. Fazer ou padecer simplesmente é mais fácil, mais acessível, mas fazer ou
padecer bem é o mais próprio porque está de acordo com o cumprimento do bem.
Essa rápida diferenciação confirma não somente o finalismo aristotélico, como
também, mostra que a ciência e a arte envolvem, além do
lo/goj, a possibilidade de
escolha. Um médico pode simplesmente exercer sua atividade recuperando a saúde do
paciente, limitando sua arte àquele momento da cura. Mas esse mesmo médico pode
escolher uma via mais difícil, mais árdua e, ao mesmo tempo, mais enobrecedora porque é
conforme o cumprimento do bem em todos os âmbitos que lhe são próprios. A partir dessa
sutil distinção entre o meramente fazer e o fazer bem talvez seja possível inferir uma outra
diferença entre potência racional e potência não-racional. Para as coisas inanimadas não
haveria a necessidade de tal distinção, pois o fogo, por exemplo, simplesmente queima; ele
não pode escolher entre o mero queimar e o queimar bem. É certo que se o fogo não
encontrar as condições externas necessárias para queimar, sua “atuação” será mais limitada.
Mas não se trata de opção, de escolha e sim, da total impossibilidade inerente a sua
potência. No caso dos seres animados dotados de potência racional, a situação é mais
complexa e somente a eles cabe o uso da distinção entre fazer/padecer bem e fazer/padecer
simplesmente. A maior complexidade que envolve a potência racional é exposta em vários
momentos e teremos a oportunidade de constatar alguns dessas elaborações,
principalmente, a partir do levantamento das condições para que a potência seja atualizada.
Por ora, basta constatar como Aristóteles mostra novamente que a realização da potência e
48
sua privação não refletem uma situação de mera possibilidade de fazer ou não fazer isto ou
aquilo, mas de fazer principalmente conforme o que melhor convém à realização da
essência, ao conteúdo da definição da coisa, afinal, não se faz ciência por acaso e muito
menos porque é mais fácil e sim, porque é próprio de
lo/goj.
4 Sobre as condições e os limites para a atualização da Potência
Desde o início do livro Θ, Aristóteles tem procurado mostrar os vários aspectos da
du/namij relativa ao movimento, apresentando alguns de seus tipos principais e analisando
pormenorizadamente suas propriedades mais relevantes, deixando, inclusive, antever várias
relações com outros âmbitos de sua filosofia. Também Θ5 segue essa mesma via, por essa
razão sua análise pode ser melhor compreendida se for considerado como o
aprofundamento de alguns pontos tratados em Θ1 e Θ2. Em Θ5, Aristóteles apresenta
outras propriedades das potências racionais e não-racionais a partir, principalmente, da
análise das condições e dos limites para a atualização da potência. Inicia com a
apresentação da última distinção da
du/namij relativa ao movimento, sendo, na verdade, um
desenvolvimento daquela diferenciação entre potência racional e não-racional, analisada
somente a partir dos seres animados. De acordo com Aristóteles: “Todas as potências ou
são congênitas, como os sentidos, ou vêm do hábito, como a de tocar flauta, ou por
aprendizado, como as artes”.
97
Nesse momento, a presença ou não do lo/goj na potência é
entendida a partir da divisão das potências em congênitas e adquiridas, remetendo
diretamente às partes (funções) da alma. É fácil perceber a atribuição dessas potências
somente ao âmbito dos seres animados, pois não se diz que o fogo, por exemplo, nasce com
a potência de queimar e muito menos que ele adquire esta ou aquela potência para tal coisa;
o fogo simplesmente queima e não cabe classificar sua potência em congênita ou adquirida.
As potências congênitas (
suggenh/j) são aquelas com as quais já nascemos, são
potências que possuímos naturalmente tal como nossos cinco sentidos (
ai)/sqhsij). São
exclusivamente não-racionais, portanto, são próprias das funções nutritiva e sensitiva da
97
¸Apasw½n de\ tw½n duna/mewn ou)sw½n tw½n me\n suggenw½n oiâon tw½n ai¹sqh/sewn, tw½n de\ eÃqei oiâon th=j tou=
au)leiÍn, tw½n de\ maqh/sei oiâon th=j tw½n texnw½n.
Θ5, 1047b 31-33. Preferimos traduzir e)/qoj por hábito, ao
invés de prática, e lo/goj, aqui sinônimo de ma/qhsij, por aprendizado, como faz Tricot. No restante seguimos
Yebra.
49
alma. Por serem inatas, obviamente não são passíveis de escolha. Ninguém escolhe com
quais sentidos vai nascer ou quando vai ter esta ou aquela sensação. Quando um animal
abre seus olhos (não sendo privado de visão) ele necessariamente vê, ou seja, não tem a
possibilidade de escolher entre ver ou não ver.
As potências adquiridas não são inatas, são racionais e podem ser subdividas em
dois grupos conforme seu modo de aquisição: podem advir pelo hábito (
e)/qoj) ou pelo
aprendizado (ma/qhsij): “para ter as que provém do hábito ou do aprendizado será
necessário exercitar-se previamente; para as que não são destas e para as passivas, não é
necessário”.
98
A potência adquirida pelo hábito requer uma rotina, um exercício prévio,
uma prática diária a fim de estabelecer os traços necessários à atividade pretendida. A arte
de tocar flauta, por exemplo, exige dedicação e constante treinamento, pois ninguém nasce
sabendo tocar bem um instrumento musical, mas deve exercitar insistentemente até se
tornar um bom músico. Do mesmo modo para a potência adquirida pelo aprendizado, pois
não se nasce sabendo matemática, porém, esta é ensinada por alguém que também recebeu
esse aprendizado de outro e assim sucessivamente. Então, ao contrário das potências
congênitas, as potências adquiridas são racionais, envolvem o
lo/goj e requerem uma
preparação constante para que possam ser executadas com sucesso.
Essa diferenciação entre potência congênita e adquirida estabelece também uma
outra relação: por um lado, entre congênita e passiva; por outro, entre adquirida e ativa. A
relação entre potência adquirida/potência ativa é dada a partir da constatação de que
qualquer exercício para adquirir uma potência (tocar flauta, exercer a medicina) é também
um agir, assim como o aprendizado (estudar matemática) é também uma atividade.
A relação entre potência congênita/potência passiva é verificada a partir da própria
definição dos cinco sentidos (tato, paladar, visão, audição e olfato) enquanto meios que o
organismo animal dispõe para receber impressões dos objetos exteriores. A função dos
sentidos é essencialmente passiva, é receber impressões (sentir, ouvir, cheirar), portanto, é
uma potência passiva.
99
Com isso pode-se perceber também a relação direta, por um lado,
entre as potências congênitas e as funções nutritiva e sensitiva da alma – que têm potências
98
ta\j me\n a)na/gkh proener gh/santaj eÃxein, oÀsai eÃqei kaiì lo/g%, ta\j de\ mh\ toiau/taj kaiì ta\j e)piì tou=
pa/sxein ou)k a)na/gkh.
Θ5, 1047b 33-35.
99
Apesar do aspecto essencialmente passivo dos cinco sentidos, em Θ6 (1048b 18-36) Aristóteles utiliza o
sentido da visão como exemplo de potência ativa para mostrar a diferença entre ato e movimento. Deixaremos
para tratar dessa dificuldade no Capítulo III deste trabalho, em que se faz a análise de Θ6 e Θ7.
50
passivas –; por outro, entre as potências adquiridas e a função intelectiva – que têm
potência ativa. É preciso lembrar ainda que essas relações somente são possíveis porque
nesse momento Aristóteles está restringindo a avaliação das potências racionais
(adquiridas) e não-racionais (congênitas) ao âmbito dos seres humanos.
4.1 As condições para o potente se atualizar
Toda a diferenciação anterior entre potência congênita (não-racional) e adquirida
(racional) é desenvolvida com o propósito de dar continuidade à análise da potência para
produzir os contrários. No entanto, tal divisão só é verificável nos seres animados -
exclusivamente nos racionais – e para incrementar a análise da potência para os contrários,
Aristóteles resolve retomar a distinção potência racional/não-racional incluindo novamente
toda a realidade, e não mais se restringindo à perspectiva do ser humano. Para isso, ele
recapitula a análise do potente
100
(dunato\n) visando a considerar melhor as condições, as
implicações e os limites para a atualização do potente: “Visto que o potente tem potência
para algo (
ti\) e em algum tempo (pote/) e de algum modo (pw\j), com todas as demais
determinações que necessariamente entram na definição”.
101
A fim de tratar das condições
necessárias para que o dunato\n se atualize, para que se efetive conforme sua definição
(diorismo/j), Aristóteles passa a explorar alguns fatores referentes tanto às potências
racionais quanto às não-racionais. Os fatores selecionados, determinantes de sua definição,
são (a) as particularidades do ser em questão, (b) o modo como o ser promove ou sofre a
transformação e (c) o tempo em que tudo isso ocorre.
O primeiro fator considerado são as particularidades deste algo (ti\\) que é dito ser
potente. Tais determinações, ou particularidades, envolvidas devem ser consideradas a
partir do pressuposto aristotélico de que há potência sempre de algo determinado, ou seja, a
potência não é mera potência de qualquer coisa; não há potência simplesmente, assim como
também não há só movimento, mas o movimento é de algo para algo. Esse algo que é
movimentado ou que é potente possui propriedades específicas tais como aquelas
representadas nas categorias (qualidade, quantidade, etc.). Relembrando o exemplo do óleo
100
Cf., Θ1, 1046
a
5-19 e D12, 1019
a
15-1020
a
5.
101
e)peiì de\ to\ dunato\n tiì dunato\n kaiì pote\ kaiì pwÜj kaiì oÀsa aÃlla a)na/gkh proseiÍnai e)n t%½ diorism%½.
Θ5, 1047 b 35-1048a 1-2.
51
(Θ1, 1046
a
24-26) pode-se verificar a importância dessas propriedades de cada ser: o
material recomendado para servir de combustível na fabricação de uma tocha que servirá
para iluminar um ambiente não pode ser a água, porque esta não possui as propriedades
necessárias para se dar a queima; mas o óleo sim é o material que tem poder para queimar.
O segundo fator relevante é modo (
pw\j) como algo se torna outro. A análise da
maneira ou modo como ocorre a transformação é importante para afastar aquelas
interpretações que costumam privilegiar o casualismo. O modo determinado para o potente
significa que a maneira como algo se torna outro não é aleatória, não acontece ao acaso
nem tão pouco de modo absoluto, porque não acontece em toda e qualquer situação.
O último fator é o tempo porque toda potência se dá em algum tempo
(pote/).
Embora esse tempo assinalado aqui por Aristóteles não seja uma especificação exata do
momento em que ocorre a transformação (o movimento), ele serve para demarcar uma
ordem de sucessão em que se dão as potências. Esse caráter mais geral do tempo e sua
importância enquanto fator determinante podem ser melhor evidenciados a partir de sua
definição exposta na Física: “É evidente, então, que o tempo é número de um movimento
conforme o antes e depois, e é contínuo, porque é número de algo contínuo”.
102
Tudo o que
está em movimento é passível de ser numerado, ou seja, de ser temporalizado.
103
Tal
movimento é classificado numa certa ordem: primeiro ocorre um movimento, depois outro
e outro. Sendo a potência um princípio de movimento, então há uma ordem que deve ser
respeitada na sucessão da potência; não é em qualquer momento que alguma coisa se torna
outra: primeiro se dá uma potência, depois outra e outra e assim sucessivamente. Uma
semente, por exemplo, tem a potência para ser uma árvore, porém não a tem em qualquer
tempo, mas somente após uma sucessão temporal. Convém ressaltar também que somente
as coisas em movimento é que estão submetidas ao tempo, portanto, aos seres imóveis, tais
como o Primeiro motor e os números, não lhes são atribuídos tempo algum.
102
oÀti me\n toi¿nun o( xro/noj a)riqmo/j e)stin kinh/sewj kata\ to\ pro/teron kaiì uÀsteron, kaiì sunexh/j
sunexou=j ga/rŸ, fanero/n.
Física, IV, 220
a
24-25. O tempo também é dito de muitos modos, bem como
expresso por termos diferentes. Na definição acima o termo usado é
xro/noj, porém, para efeito da presente
análise, utilizamos
pote/ e xro/noj como sinônimos sem considerar suas diferenças específicas. Para uma
análise detalhada desse assunto, confira: Puente, F.R. Os sentidos do tempo em Aristóteles. Loyola, São
Paulo, 2001.
103
“Esse número com que numeramos o movimento é precisamente o tempo.” Puente, F.R. Os sentidos do
tempo em Aristóteles, p. 62.
52
Estas são as condições que devem ser respeitadas para a avaliação da atualização do
potente, aplicáveis tanto às potências racionais quanto às não-racionais. A sentença a seguir
apenas relembra a distribuição dessas potências, tendo sempre o
lo/goj como fator
determinante: “e algumas coisas podem mover segundo a razão e suas potências são
racionais, enquanto outras são não-racionais e também suas potências são não-racionais,
e aquelas estão necessariamente no ser animado, enquanto que estas podem estar em
ambos”.
104
As potências racionais podem mover ou ser movidas segundo o lo/goj e, por
isso, pertencem necessariamente aos seres animados, não a todos, mas exclusivamente ao
homem que tem em comum com os outros seres animados (cão, cavalo) as potências não-
racionais típicas das funções nutritiva e sensitiva da alma. Por outro lado, os seres
inanimados só possuem potência não-racional.
Essa revisão tem como propósito principal introduzir uma peculiaridade muito
relevante entre as condições necessárias para a atualização dessas diferentes potências,
ressaltando a maior complexidade para as potências racionais visto que elas envolvem
outros elementos em sua constituição. A sentença abaixo destaca, novamente como fator
diferenciador, a potência para os contrários:
estas últimas potências [não-racionais], quando o agente e o paciente se aproximam
nas condições requeridas, fazem ou padecem necessariamente, enquanto que
aquelas não necessariamente. Pois todas estas limitam sua atividade a um só objeto,
enquanto que aquelas o estendem aos contrários, de modo que produzirão ao
mesmo tempo efeitos contrários, porém isto é impossível.
105
A atualização das potências não-racionais fica assegurada a partir da observância de
algumas condições básicas, tais como material adequado e proximidade entre agente e
paciente. Quando aquele que age está próximo o suficiente daquele que padece, o primeiro
(o fogo) age necessariamente, como também o segundo (a madeira) padece (será queimada)
necessariamente. Tomando o exemplo do fogo como agente do movimento e a madeira
como paciente tem-se que: “o fogo tem potência de queimar (e junto com ela de iluminar e
de aquecer); não, porém, em qualquer momento e condição, mas só quando esteja próximo
104
kaiì ta\ me\n kata\ lo/gon du/natai kineiÍn kaiì ai¸ duna/meij au)tw󵞙󷼷󱭵󰠁
do objeto e o objeto seja de modo a receber a ação do fogo, e todas as circunstâncias
sejam favoráveis ao caso”.
106
Como as potências não-racionais são capazes de produzir um
só efeito entre os contrários, apenas as condições mínimas já são suficientes para a
efetivação das potências, não acarretando qualquer absurdo.
Entretanto, visto que as potências racionais são as únicas que podem produzir
contrários, caso as condições mínimas (material propício e aproximação satisfatória) sejam
suficientes para que um atue enquanto o outro padece, então, em algum momento os efeitos
contrários poderiam estar simultaneamente no mesmo objeto devido à atividade do agente.
Para Aristóteles essa hipótese é um absurdo, é simplesmente impossível (
a)du/naton), pois
como já foi salientado, a potência racional para os contrários nunca ocorre
simultaneamente. Então deve haver algum outro princípio capaz de garantir a potência para
os contrários sem incidir em contradições.
4.2 O Desejo e a Escolha como princípios dos contrários
Que as potências racionais podem produzir contrários Aristóteles já deixou bem claro.
Porém, até então, ele apenas tinha afirmado que os seres dotados de potência racional têm a
alternativa entre a coisa e sua privação, sem especificar que outro elemento ou princípio,
além do
lo/goj, estaria envolvido na atualização de um dos contrários. É nessa parte de Θ5
que finalmente aparecem os outros princípios capazes de reiterar a potência para um dos
contrários sem ocasionar contradição: “Portanto, necessariamente haverá outra coisa que
decida entre os contrários: o desejo e a escolha racional”.
107
Os contrários não provêm
uns dos outros, mas requerem um sujeito (u(pokei/menon) capaz de sustentá-los. Nesse
caso, o sujeito é um ser animado, provido de princípios capazes de acrescentar as condições
necessárias para a realização da potência racional a fim de produzir um dos contrários sem
que haja um impasse entre tais contrários. Estes princípios são: o desejo (
o)/recij) e a
escolha (
proai/resij).
106
Reale, G. Aristóteles Metafísica, vol. III, p. 468, nota 3.
107
a)na/gkh aÃra eÀtero/n ti eiånai to\ ku/rion: le/gw de\ tou=to oÃrecin hÄ proai¿resin. Θ5, 1048a 10-11. Há muita
divergência quanto a melhor tradução para os termos
o)/recij e proai/resij. Nesta sentença, por exemplo,
David Ross traduz respectivamente por desire (desejo) e will (vontade); Giovanni Reale por desiderio
(desejo) e scelta (escolha, seleção); Yebra por deseo (desejo) e elección previa (escolha). Preferimos adotar a
tradução de Tricot que é também a de muitos comentadores contemporâneos: désir (desejo) e choix (escolha).
54
De acordo com o exposto principalmente na Ética a Nicômacos, o desejo, junto do
apetite (
e)piqumi/a), a paixão (qumo/j) e a vontade (bou/lhsij) pertencem à classe dos
eventos volitivos. Apesar de a escolha (
proai/resij) também fazer parte dos atos
voluntários, o desejo é mais amplo e se estende aos animais irracionais, porquanto todos os
animais têm paixões e desejos, mas só o homem é capaz de escolher. Por esse motivo,
Aristóteles alerta que é preciso ter cuidado para não confundir o desejo com a escolha:
“Aqueles que identificam a escolha com o desejo, ou a paixão, ou a vontade, ou uma certa
opinião, não parecem estar falando acertadamente, pois a escolha não é partilhada
também pelos seres irracionais, mas o desejo e a paixão são”.
108
A diferença entre desejo e
escolha é evidente: o desejo é comum a boa parte dos outros seres animados (cão, cavalo,
gato, etc), porém a escolha é exclusiva do homem.
A escolha também não pode ser confundida com a vontade (
bou/lhsij) porque a
plêiade de objetos da vontade, assim como a do desejo, é bem mais extensa que a dos
objetos da escolha. Qualquer ser humano pode desejar, por exemplo, a imortalidade, mas
ninguém tem a potência para decidir ser imortal. Sobre essas diferenças, diz Aristóteles:
Tampouco se identifica com a vontade, embora pareça ter afinidades com esta
(pois, a escolha não pode visar a coisas impossíveis, e se alguém dissesse que as
havia escolhido, seria considerado insensato, mas se pode querer até coisas
impossíveis, como por exemplo, a imortalidade).
109
A vontade pode se referir às coisas que são impossíveis de serem alcançadas ou
realizadas, enquanto que a escolha, ou decisão, remete somente às coisas possíveis ao
âmbito dos homens, assim como aos meios possíveis de alcançá-las.
110
De modo geral, a
escolha remete sempre aos meios para se realizar um fim e não ao fim propriamente dito.
108
oi¸ de\ le/gontej au)th\n e)piqumi¿an hÄ qumo\n hÄ bou/lhsin hà tina do/can ou)k e)oi¿ kasin o)rqw½j le/gein. ou) ga\r
koino\n h( proai¿resij kaiì tw½n a)lo/gwn, e)piqumi¿a de\ kaiì qumo/j
. Ética a Nicômacos, III2, 1111b 11-16. Nesta
sentença o termo
e)piqumi¿a é sinônimo de o)/recij, ambos traduzíveis por desejo .
109
a)lla\ mh\n ou)de\ bou/lhsi¿j ge, kai¿per su/negguj faino/menon: proai¿resij me\n ga\r ou)k eÃsti tw½n a)duna/twn,
kaiì eiã tij fai¿h proaireiÍsqai, dokoi¿h aÄn h)li¿qioj eiånai: bou/lhsij d' e)stiì <kaiì> tw½n a)duna/twn, oiâon
a)qanasi¿aj.
Ética a Nicômacos, III2, 1111b 19-27.
110
“A proai/resij é propriamente a escolha racional, deliberada e refletida. (...) A bou/lhsij
é vizinha da
proai/resij, mas esta última só se direciona aos objetos possíveis e relevantes a nossa atividade”. Tricot, J.
In: Aristote: La Métaphysique, Tome I, p.246, nota 4. Sobre a distinção entre escolha, vontade e deliberação,
além de outros temas referentes especificamente à teoria moral de Aristóteles, Cf.: Alberto Alonso Muños,
Liberdade e causalidade: ação, responsabilidade e metafísica em Aristóteles. Cf., também: Pierre Aubenque,
A prudência em Aristóteles.
55
Ninguém em sã consciência escolhe entre ter ou não ter saúde; todos desejam ter saúde,
mas ela mesma não é objeto de escolha; o máximo que se pode fazer é escolher, entre
alguns meios possíveis, aquele que proporciona o melhor resultado.
Retomando Θ5, o que está em jogo nesse momento da análise são as condições de
desejar e escolher entre os contrários. Qualquer pessoa pode desejar ou ter vontade de
adquirir qualquer coisa, mas a escolha, enquanto elemento integrante da alma intelectiva,
restringe-se às coisas possíveis de serem realizadas, conforme as potências próprias do
homem. Portanto, nas potências racionais, a necessidade de atualização da potência
permanece, mas de modo diferente, pois enquanto a proximidade nas condições requeridas
torna necessária e suficiente a atualização da potência não-racional, a potência racional
depende ainda de um outro princípio (aqui entendendo desejo e escolha como um único
princípio) que decida qual contrário se atualizará, um princípio capaz de evitar os absurdos
indicados por Aristóteles dos quais outros filósofos não conseguiram se esquivar.
Obviamente, esse princípio singular deve estar associado às condições mínimas
necessárias para efetivar a potência racional, pois o fato de desejar esta e aquela coisa e de
poder escolher entre esta ou aquela, não faz com que o sujeito de contrários possa efetivá-
los em qualquer situação. A escolha entre os contrários também não é efetuada ao acaso,
mas é sempre submetida à reflexão. Há limites para atuação desse princípio e é para esses
limites que Aristóteles aponta a seguir:
Assim, o que principalmente deseja entre os dois contrários, esse fará quando se
encontrar nas condições propícias a sua potência e se aproximar ao paciente, de
modo que todo o potente segundo a razão, quando deseja aquilo que tem potência e
na medida em que a tem, necessariamente o fará
.
111
Como a escolha trata apenas dos objetos possíveis e relevantes ao sujeito, ela é capaz
de efetivar a relação entre aquele que faz (que tem potência racional para fazer) e aquele
que padece. Também a potência racional requer condições mínimas para sua realização, tais
como proximidade entre agente e paciente, material disponível e propício à atividade. O
sujeito tem o desejo para os contrários, afinal, nele há potência racional; ele então escolhe
111
o(pote/rou ga\r aÄn o)re/ghtai kuri¿wj, tou=to poih/sei oÀtan w¨j du/natai u(pa/rxv kaiì plhsia/zv t%½ paqhtik%½:
wÐste to\ dunato\n kata\ lo/gon aÀpan a)na/gkh, oÀtan o)re/ghtai ou eÃxei th\n du/namin kaiì w¨j eÃxei, tou=to
poieiÍn: eÃxei de\ paro/ntoj tou= paqhtikou= kaiì w¨diì eÃxon toj [poieiÍn]: ei¹ de\ mh/, poieiÍn ou) dunh/setai.
Θ5,
1048a 11-16.
56
um dos contrários e, havendo as condições, necessariamente, a potência será efetivada.
Conforme sua potência, entre os dois contrários o agente racional realizará um deles, aquele
que ele tem preferência, sempre observando as condições mínimas para sua realização.
É importante destacar o aspecto de necessidade de atualização da potência, porque a
potência necessariamente se atualiza, basta que sejam respeitadas as condições externas e
internas da potência racional. Convém então, examinar um pouco mais quais são essas
condições. Primeiro Aristóteles especifica as condições mínimas externas:
e tem quando o paciente está presente e disposto de um modo determinado; e senão,
não poderá fazer (não é preciso, pois, especificar mais dizendo ‘sem que nada
externo o impeça’ pois tem a potência enquanto esta é potência para fazer, porém
não em absoluto, senão em certas condições, nas quais se excluirão também os
impedimentos externos, pois a estes os excluem alguns dos fatores presentes na
definição).
112
Para que a potência racional para contrários se atualize é necessário que nada
externo (
e)/cw) a impeça; é preciso que os fatores externos sejam favoráveis, que sejam
propícios à sua realização. Estes fatores envolvem a presença do paciente e sua adequação,
isto é, que o paciente também seja passível de receber a ação do agente. Por exemplo, o
exercício da arte da medicina requer o cumprimento de, no mínimo, três requisitos
113
:
primeiro, a existência de um paciente; segundo, que este esteja com alguma moléstia;
terceiro, que o paciente queira ser curado.
Os impedimentos ligeiramente indicados acima são aqueles que naturalmente estão
excluídos da própria definição da potência, afinal, como o próprio nome revela, potência é
algo não plenamente desenvolvido, também não é algo ilimitado, não é potência para
realizar tudo e de modo absoluto ou em qualquer circunstância. É por isso que a ausência
de impedimentos externos já está, implicitamente, incluída na definição de potência, seja
racional ou não-racional.
No exemplo da arte da medicina, foi desconsiderado um outro fator fundamental
para sua realização: a vontade do médico de curar o paciente. A vontade do médico é um
112
eÃxei paro/ntoj tou= paqhtikou= kaiì w¨diì eÃxontoj [poieiÍn]: ei¹ de\ mh/, poieiÍn ou) dunh/setai to\ ga\r mhqeno\j
tw½n eÃcw kwlu/ontoj prosdin󶜈󵬆󶀦%󺸊󶜈󳜉a
e󷼡󱜨󶞑󰬑󳴁󴀁󷼁󵞙󱀡󰾉󴮑v󲠁
eÅÃxo
exemplo das condições internas necessárias e talvez seja também, a mais relevante no que
se refere à potência racional. O médico tem vontade de curar o paciente e, para isso,
escolhe, entre os meios possíveis, aquele em que há melhores chances de promover o
resultado esperado. Porém, o médico pode querer matar esse mesmo paciente - embora não
seja essa atitude aquela que expressa a definição dessa arte -, logo escolhe um outro meio
para tal, diferente daquele que curaria o paciente. Em todas estas situações também já estão
consideradas as condições externas que, associadas às condições internas, tornam possível a
atualização de um dos contrários.
É preciso, entretanto, examinar também os limites tanto do agente - aquele que tem
potência ativa -, como da potência mesma, pois o âmbito da vontade (
bou/lhsij) é muito
abrangente; o ser humano possui desejos que, não raramente, ultrapassam o limite do
realizável. É o momento de analisar não somente a diferença, já indicada, entre escolha,
vontade e desejo, mas principalmente de avaliar os limites da própria du/namij como
maneira, inclusive, de melhor restringir os limites do desejo humano. É com esta análise
que Aristóteles encerra Θ5: “Por isso, ainda que queira ou deseje fazer simultaneamente
duas coisas ou contrários, não os fará, pois não tem a potência para isto, nem a potência é
para fazer simultaneamente, visto que fará aquelas coisas para as quais tem potência do
modo dito”.
114
Anteriormente foi dito que quando alguém deseja um dos dois contrários e
as condições (proximidade entre agente e paciente, matéria adequada, etc.) externas são
propícias à sua potência, então a potência necessariamente se realizará. Há, portanto,
limites para o agente, enquanto sujeito dos contrários, atualizar a potência. Porém, os
limites não são somente os externos ou os internos ao agente ou mesmo ao paciente, mas
também da potência. Os limites do agente são complementares aos da potência. No caso
dos limites do agente, mesmo que, por hipótese, o agente venha a querer (
bou/lomai) ou
apetecer (
e)piqume/w) fazer duas coisas contrárias simultaneamente (a(/ma), não poderá fazê-
las, pois nenhum agente é potente para realizar tal coisa. Nenhum médico pode, ao mesmo
tempo, curar e matar o paciente, mesmo que seja esse o seu desejo, porque tal escolha não é
realizável.
114
dio\ ou)d' e)a\n aÀma bou/lhtai hÄ e)piqumv= poieiÍn du/o hÄ ta\ e)nanti¿a, ou) poih/sei: ou) ga\r ouÀtwj eÃxei au)tw½n
th\n du/namin ou)d' eÃsti tou= aÀma poieiÍn h( du/namij, e)peiì wÒn e)stiìn ouÀtwj poih/sei.
Θ5, 1048a 21-24. Ao invés
de “efeitos ou efeitos contrários”, como traduz Yebra, preferimos “coisas ou contrários”, segundo a opção de
Reale e também de Ross. Para
e)piqume/w preferimos apetecer, sinônimo de desejo. No restante da sentença, a
tradução é de Yebra.
58
Para os limites da potência, cabe dizer que mesmo que o sujeito dos contrários
insista em querer fazer simultaneamente os dois contrários, não há na realidade tal
possibilidade; não há potência para realizar tal feito. Somente há potência para fazer coisas
compatíveis com sua definição e, portanto, com a realidade, e nenhuma realidade
concebível comporta a efetivação de dois contrários no mesmo sujeito e ao mesmo tempo.
Esses dois limites são, de fato, dois aspectos da mesma demarcação, fazem parte
daquelas condições necessárias para que a potência racional realize um dos contrários. A
existência de limites mostra que realizar a potência necessariamente não é o mesmo que
realizar a potência ilimitadamente, porque na definição da potência estão implicados vários
fatores, vários requisitos que precisam ser considerados. Ao estabelecer as condições
necessárias para a realização das potências racionais e não-racionais – que espelham os
cinco tipos de potência - e seus limites, Aristóteles mostra que a
du/namij não é mera
possibilidade de efetivação de algo ou de seu contrário, mas que dadas as circunstâncias
necessárias e respeitando a definição da potência, ela necessariamente se realiza. A partir
dessa delimitação fica mais fácil compreender também a argumentação desenvolvida em
Θ3 e Θ4, que é centrada numa polêmica com os megáricos em defesa do movimento,
assunto do próximo capítulo.
59
Capítulo II
Em defesa do Movimento
Depois de apresentar algumas noções relativas a um dos modos de se dizer o ser, em
ato e em potência, e tendo indicado, em Θ2 e Θ5, os tipos de potência e seus limites,
Aristóteles, no terceiro e quarto capítulos do livro Θ, parte para uma aguerrida defesa do
movimento. Sem dúvida, Θ3 é um dos capítulos centrais e mais complexos deste livro,
porque, além de partir daqueles tipos de potência já estudados, promove uma polêmica com
os megáricos
115
cuja tese principal parece ser a defesa do Imobilismo total. Tal posição
seria, por sua vez, derivada daquele ideal de Parmênides de fundamentar todo
conhecimento a partir da cisão total entre ser e não-ser, cerceando completamente qualquer
tentativa de discurso sobre o não-ser. O célebre enunciado de Parmênides acerca do único
caminho lógico possível é resumido por Aristóteles, no livro
A da Metafísica, do seguinte
modo: “fora do ser o não-ser nada é, pensa que necessariamente há uma só coisa, o ser e
nenhuma outra”.
116
De acordo com a interpretação mais comum, o que se pode inferir daí é
que não havendo qualquer possibilidade de algo diferente do ser, conseqüentemente, fica
negada a geração, corrupção e todo tipo de movimento, pois o que é, é; e o que não é, não
é. Se a coisa é, ela é sempre e não pode ser o que não é ainda.
Considerando a interpretação do Estagirita, os megáricos são perpetuadores diretos
da doutrina eleática e levaram ao extremo as conseqüências do caminho traçado por
Parmênides, afirmando, sem restrições: “que somente tem potência enquanto se atua, e
que, quando não se atua, não se tem potência; por exemplo, o que não constrói não tem
potência para construir, mas só o que constrói enquanto constrói e o mesmo para as
demais coisas”.
117
Em linhas gerais, os megáricos entendem que só é possível afirmar que
há potência no momento em que tal potência é exercida e que, quando não há atividade, não
há potência. Todas as coisas em todos os momentos seriam mônadas, ou seja, unidades
115
A Escola Megárica foi fundada por Euclides de Megára por volta de 400 a.C. Para maiores detalhes, Cf.,
Tricot, op., cit., p.488; Ross, op., cit., p. 244; e Rosales, A. Dynamis Y Energeia In: Revista Venezolana de
Filosofia, p. 78-80;
116
para\ to\ oÄn to\ mh\ oÄn ou)de\n a)ciw½n eiånai, e)c a)na/gkhj eÁn oiãetai eiånai, to\ oÃn, kaiì aÃllo ou)de/n.Metafísica
A5, 986b 28-30.
117
oÀtan e)nergv= mo/non du/nasqai, oÀtan de\ mh\ e)nergv= ou) du/nasqai, oiâon to\n mh\ oi¹kodomou=nta ou) du/nasqai
oi¹kodomeiÍn, a)lla\ to\n oi¹kodomou=nta oÀtan oi¹kodomv=: o(moi¿wj de\ kaiì e)piì tw½n aÃllwn.
Θ3, 1046 b 29-32
60
isoladas e autônomas. Cada momento é único, cada coisa é já determinada e assim
permanecerá sempre. Estando tudo já totalmente determinado, não há relação entre
passado, presente e futuro, portanto, não há espaço para o devir.
Preocupados em acabar com qualquer resquício de contradição aparentemente
presente no devir – em que haveria a convivência do que é com o que não é -, os megáricos
mantêm uma posição inflexível, defendendo peremptoriamente que há somente duas
possibilidades: (a) a existência necessária e irrestrita; ou (b) a impossibilidade de existir.
Em outras palavras, ou o que é, é necessariamente, ou é impossível que exista, então, não é.
Ao que parece, Aristóteles percebe que essa teoria é muito frágil basicamente devido a duas
falhas, simples, mas cruciais: primeiro, a uma interpretação absoluta do princípio de não-
contradição, que está implícito naquela delimitação de Parmênides; segundo, ao
desconhecimento da necessária distinção entre ser em ato e ser em potência.
Essas falhas são exploradas com maestria por Aristóteles e servem de apoio a toda
sua argumentação desenvolvida em Θ3. Visto que a estratégia traçada no livro Θ em defesa
do movimento ocorre tendo o ser em ato/potência como sustentáculo principal, o espaço
dedicado à análise dos erros de interpretação do princípio de não-contradição por parte dos
Megáricos é apenas esporádico, embora implícito e pressuposto em boa parte do
pensamento aristotélico, assim como na polêmica apresentada nesse capítulo.
O princípio de não-contradição tem sua origem na necessidade de se buscar um
princípio que seja o mais seguro, incondicional, necessário a todo conhecimento e que não
permita enganos. Sua formulação é expressa categoricamente por Aristóteles, no livro
G da
Metafísica, do seguinte modo: “É impossível que um mesmo atributo pertença e não
pertença simultaneamente ao mesmo sujeito e segundo o mesmo aspecto”.
118
A análise
desse princípio certamente envolve muita discussão, principalmente quanto aos propósitos
lógicos e/ou ontológicos de seu conteúdo. Para a presente polêmica com os megáricos, o
aspecto mais relevante é aquele segundo o qual a negação do princípio implicaria afirmar
que todas as coisas são uma só. Aceitar o princípio de não-contradição é entender, por
exemplo, que não é possível uma mesma coisa ser inteiramente branca e, ao mesmo tempo,
ser preta, ou ainda, existir e não existir no mesmo momento. É claro que um vaso pode ser
118
to\ au)to\ aÀma u(pa/rxein te kaiì mh\ u(pa/rxein a)du/naton t%½ au)t%½ kaiì kata\ to\ au)to/. Metafísica, G3, 1005 b
19-20.
61
branco agora e depois ser pintado com tinta preta, mas isso acontece em momentos
distintos. Enfim, o grande objetivo desse princípio é impedir a convivência simultânea de
dois atributos contrários no mesmo sujeito considerado sob um mesmo aspecto, porém
deixa aberta a possibilidade de sucessividade desses mesmos atributos. No futuro, dadas as
condições necessárias para a realização da potência, uma coisa poderá ser diferente do que
é por meio de uma passagem gradual de um estado a outro sem envolver contradição
alguma. O importante é compreender que a aplicação do princípio de não-contradição às
proposições futuras foge completamente ao seu escopo.
Tudo indica, entretanto, que os megáricos tomam o princípio de não contradição de
maneira absoluta
119
, aplicando-o irrestritamente, inclusive às proposições do futuro. Esse
uso indevido do princípio de não-contradição aliado ao desconhecimento da diferenciação
entre o ser em potência e o ser em ato faz com que os megáricos não dêem lugar a algo
intermediário entre um estado e outro do ser. Seu frágil posicionamento teórico não lhes
permite entender que uma coisa não pode ser o que não é, mas pode se tornar algo que não
é agora
120
e que essa possibilidade não envolve contradição alguma, além de proporcionar
uma apreensão da realidade bem mais convincente do que aquela que a fragmenta em
pequenas parcelas autônomas.
Talvez tal explicação fosse suficiente, mas Aristóteles preferiu um caminho mais
elaborado e resolveu contrapor a tese megárica à necessária distinção entre ato e potência.
Como essa distinção é evidente e, portanto, indemonstrável, restou mostrá-la
polemicamente por meio da refutação, passo a passo, da tese adversária, apresentando os
paradoxos que surgiriam caso esta tivesse sido aceita.
121
119
É assim que Tricot interpreta o posicionamento teórico desta doutrina: “Os Megáricos atribuem um valor
absoluto ao princípio de não contradição que eles aplicam sem restrição mesmo às proposições do futuro.
Dos dois futuros, um só é possível e exclui o outro como sendo contraditório. O que é verdadeiro é
verdadeiro, eternamente verdadeiro; o que é falso é falso, eternamente falso. Tudo está determinado por toda
eternidade, tudo é necessário ou impossível; em outros termos, entre o não-ser e o ser, não existe alguma
passagem, algo intermediário.” Tricot, J. In: Aristote: La Métaphysique, Tome II, p.489, nota 2.
120
“O paradoxo Megárico provavelmente tomou forma a partir de uma simples parte do argumento (natural
para seguidores de Parmênides): ‘Uma coisa é o que é, e, portanto não pode ser o que não é’. A resposta é
igualmente simples. Uma coisa não pode ser o que não é, mas pode se tornar o que não é agora. O ‘pode’
refere-se sempre ao futuro e não há contradição em dizer que uma coisa que não é agora pode ser no futuro.
O ‘pode’ significa que algumas das condições do evento estão presentes agora, e que se algumas outras
forem acrescentadas, o evento tomará lugar”. Ross, D. In: Aristotle’s Metaphysics, vol. II, p. 242
121
“O caráter imprescindível da distinção entre ‘potência’ e ‘ato’ não é ‘demonstrado’ (de fato, é por si
evidente e, como tal, indemonstrável), mas é mostrado polemicamente, por via de refutação da tese dos
62
1 A polêmica com os Megáricos
A julgar por seus argumentos, Aristóteles parece incluir os megáricos entre aqueles
que falam por falar
122
, que têm propósitos unicamente erísticos, ou seja, que se propõem às
controvérsias sem pretensões de verdade. Por isso, a estes não cabe apenas persuasão
porque, diferentemente dos filósofos (Anaxágoras, Empédocles e outros) que desconhecem
o princípio de não-contradição, os megáricos não o aceitam ou desconsideram suas
conseqüências. Sendo assim, resta o enfrentamento por meio do constrangimento levado a
cabo pela refutação de todos os pontos principais dessa tese, evidenciando os absurdos
(
aÃtopa) em que se incorreria caso fosse aceita: “Os absurdos em que estes incorrem não
são difíceis de ver”.
123
Para mostrar e refutar tais conseqüências da doutrina dos megáricos,
Aristóteles delineia as seguintes etapas da argumentação: primeiro, analisa as potências
racionais para atuar nas artes e nas ciências práticas; em seguida, trata das potências não-
racionais nos seres inanimados sensíveis; na terceira etapa, utiliza a mesma argumentação
inicial, porém aplicada às potências não-racionais nos seres animados; finaliza a refutação
com uma defesa do movimento e da geração.
(1) Sobre a negação da potência racional (
du/namij meta\ lo/gou) para atuar
enquanto não estiver atuando relativamente às artes (
ao sujeito a permanência ou mesmo a iniciação a uma arte de maneira gradual, porque
qualquer arte ou ciência prática exige um exercício contínuo pelo qual se dá o aprendizado.
Assim, ironicamente, Aristóteles pergunta: “Pois bem, se é impossível que possua estas
artes quem não as tenha aprendido ou recebido alguma vez e que deixe de possuí-las sem
havê-las perdido (...) não terá a arte quando cesse de exercê-la? E quando imediatamente
volte a construir, de onde haverá recuperado?”.
125
Caso se adote esse posicionamento, a
conseqüência direta será a inviabilidade do aprendizado. Se os megáricos afirmam que não
há potência ou uma faculdade para certa atividade (a construção de uma casa), o próprio
exercício para o aprendizado seria dispensável, até mesmo inútil. Essa inadvertida
conseqüência pode ainda ser assim esquematizada
126
: (1º) Não é possível alguém possuir
uma arte qualquer sem ter antes aprendido de um outro, como também, não possuirá tal arte
sem tê-la antes perdido de algum modo; (2º) por conseguinte, reter uma arte é o mesmo que
perdê-la; (3º) então, como alguém que retoma imediatamente o exercício de uma arte pôde
recuperá-la? De onde surgiria tal capacidade? A conclusão é que haveria, ao mesmo tempo,
um domínio técnico imediato e sua perda imediata e, desse modo, querendo se esquivar da
contradição os megáricos a realizam em maior grau promovendo a igualização do ser ao
não-ser. Segundo Aristóteles, para se possuir e dominar uma arte ou ciência prática é
preciso ter aprendido em algum momento
127
e depois de adquirida não a perdemos
facilmente, exceto por esquecimento ou por alguma enfermidade mental ou pelo tempo
transcorrido em virtude de uma idade avançada.
128
O agente guarda aquilo que define sua
arte, a sua essência,
e não a perde simplesmente pelo fato de estar dormindo ou parado, ou
mesmo em qualquer tempo, mas assim como o aprendizado acontece depois de algum
tempo, também só se pode perder essa potência racional depois de um tempo determinado.
Enfim, é preciso um acúmulo de experiência para se garantir tal conhecimento.
125
ei¹ ouÅn a)du/naton ta\j toiau/taj eÃxein te/xnaj mh\ maqo/nta pote\ kaiì labo/nta, kaiì mh\ eÃxein mh\
a)pobalo/nta pote/ ...Ÿ oÀtan pau/shtai, ou)x eÀcei th\n te/xnhn, pa/lin d' eu)qu\j oi¹ko domh/sei pw½j labw¯n.
Θ3,
1046 b 36-1047a 4.
126
Esquema baseado em: Tricot, J. In: Aristote: La Métaphysique, Tome II, p.489.
127
“Uma
te/xnh
(arte) é um saber adquirido através de uma aprendizagem. O aprendiz recebe esse saber de
alguém que já a possuía e a adquire ao trabalhar junto com aqueles que já sabem como se constrói uma
casa. Essa aprendizagem chega ao seu tempo que não pode ser qualquer quantidade arbitrária de tempo, por
exemplo, uns instantes ou algumas horas, mas sim um tempo determinado.” Rosales, A. Dynamis Y Energeia
In: Revista Venezolana de Filosofia, p. 84.
128
Metafísica, Θ3, 1047ª 1-2.
64
(2) Sobre as potências não-racionais nos seres inanimados sensíveis. A segunda
argumentação trata das conseqüências referentes às potências próprias dos seres inanimados
(
a)/yuxoi), como frio e calor. Segundo o caminho tomado pelos megáricos: “Nada, então,
será frio ou quente, ou doce, nem, em geral, sensível se não o estamos sentindo; assim, os
que afirmam isso terão de concordar com a afirmação de Protágoras”.
129
Quando não há
alguém para sentir frio ou calor, não há frio ou calor. Se esta potência não-racional (frio,
calor) não está em algo, então nada ou ninguém terá essa potência, exceto quando a mesma
estiver atuando, quando ela for sentida por algo, todavia, antes e depois da percepção não
haveria nada perceptível. O que se depreende disso é a dependência total da realidade ao ser
que está sentindo, estando tudo limitado à sensação e à opinião. Tal conseqüência remete à
conhecida doutrina de Protágoras, que segundo Aristóteles, identifica o conhecimento com
a sensação,
130
ou seja, reduz todo conhecimento ao fenômeno (faino/menon), àquilo que
está submetido aos sentidos, não havendo, portanto, nada além dos sentidos. Portanto, essa
posição teórica nega qualquer tipo de sujeito ou substância. Conforme a crítica de
Aristóteles, a tese megárica pode ser considerada derivada daquela de Protágoras, segundo
a qual o “homem é a medida de todas as coisas”, a partir de dois pontos fundamentais: (1º)
afirmar que só há potência para sentir quando há algo para sentir equivale a rejeitar uma
substância sensível (um sujeito) anterior à própria sensação. Assim sendo, não haveria um
ser independente das percepções sensíveis
131
e à luz delas é que se poderia decidir sobre a
verdade. (2º) O segundo ponto decorre da relação entre o princípio de não-contradição e o
relativismo que surgiria a partir da negação de qualquer tipo de substância pré-existente às
sensações. Uma substância (aqui tomada como sinônimo de sujeito –
u(pokei/menon) é
necessária, segundo Aristóteles, para evitar a hipótese absurda da simultaneidade de
atributos opostos num mesmo ser. Em suma, ao não diferenciar ato e potência e ao reduzir
tudo às sensações, a doutrina dos megáricos torna tudo dependente de alguém para sentir,
129
ouÃte ga\r yuxro\n ouÃte qermo\n ouÃte gluku\ ouÃte oÀlwj ai¹sqhto\n ou)qe\n eÃstai mh\ ai¹sqanome/nwn: wÐste
to\n Prwtago/rou lo/gon sumbh/setai le/gein au)toiÍj.
Θ3, 1047 a 4-7.
130
De acordo com o Estagiríta, tanto Demócrito como Empédocles e Protágoras: “E, em geral, por confundir
o pensamento com a sensação e esta com uma alteração, afirmam que aquilo que aparece segundo a
sensação é necessariamente verdadeiro.”
oÀlwj de\ dia\ to\ u(polamba/nein fro/nhsin me\n th\n aiãsqhsin,
d' eiånai a)lloi¿wsin, to\ faino/menon kata\ th\n aiãsqhsin e)c a)na/gkhj a)lhqe\j eiånai¿ fasin
. Metafísica, G5,
1009b 12-15.
131
“A identificação do ente perceptível com o percebido equivale a afirmar que o ente sensível não possui um
ser-por-si-mesmo, mas somente o que se mostra à percepção, o phainomenon.Rosales, A. Dynamis Y
Energeia, in: Revista Venezolana de Filosofia, p. 86.
65
para perceber algo. Contrário a isso, Aristóteles afirma que as coisas sensíveis (frio, calor)
são potências e permanecem mesmo quando não são sentidas atualmente por alguém
132
,
senão, elas desapareceriam toda vez que não fossem percebidas por algo.
(3) Sobre as potências não-racionais nos seres animados. Enquanto o segundo
argumento trata das potências não-racionais partindo do ponto de vista dos seres
inanimados, a preocupação nessa terceira etapa é ainda sobre as potências não-racionais (os
cinco sentidos), porém, desde a perspectiva do sujeito das sensações. As conclusões obtidas
são similares àquelas da primeira argumentação, referentes à aquisição da potência
racional: “Ainda mais, nenhum ser terá potência para sentir se não está sentindo
atualmente. Assim, pois, se é cego o que não tem visão, enquanto teria naturalmente de ver
e quando naturalmente teria e enquanto ainda existe, os mesmos serão cegos muitas vezes
ao dia, e surdos”.
133
Assim como no primeiro caso os megáricos afirmavam que somente é
construtor enquanto constrói, aqui, só tem visão aquele que está vendo no momento em que
está vendo. A conclusão é simples, a pessoa será cega muitas vezes ao dia, e o mesmo para
qualquer dos cinco sentidos. Por exemplo, se não houver qualquer ruído para alguém ouvir,
então essa pessoa será surda, retomando esta faculdade somente enquanto houver um outro
ruído.
(4) Sobre a defesa do movimento e da geração. A quarta argumentação conjuga as
conseqüências anteriores dessa doutrina, todas confluindo para a total negação do
movimento (
ki/nhsij) e da geração (ge/nesij), ou seja, do próprio devir. Uma breve
análise da noção de impotente (
a)dunaton) é o que permite compreender como se alcança
os desastrosos resultados da tese megárica: “Além disso, se impossível é o que está privado
da potência, o que não está se gerando será impossível gerar-se, e o que diga que o
impossível para gerar-se tem ou terá ser, errará (pois impossível significa exatamente
isto); de modo que estas doutrinas negam o movimento e a geração”.
134
132
“Os sensíveis, tais como, frio, quente, doce, amargo, permanecem tais mesmo se não são atualmente
sentidos; isto é, continuam como princípios capazes de mover os sentidos, mesmo que atualmente não os
movam”.Reale, G. Comentário à Metafísica, p. 460, nota 4.
133
a)lla\ mh\n ou)d' aiãsqhsin eÀcei ou)de\n aÄn mh\ ai¹sqa/nhtai mhd' e)nergv=. ei¹ ouÅn tuflo\n to\ mh\ À󲀁󵜋󳜊󴜥󴸊󶜈󳴁󷜁¯󶥓t¯e
Aristóteles retoma ligeiramente os conceitos de impotência/impossível confirmando
sua definição anterior: impotência é privação da potência. Para os megáricos, a existência é
necessária ou impossível ou a coisa existe de um único modo ou ela não existe de modo
algum. Entre esses dois caminhos não há um outro intermediário, não há uma potência
subsistente capaz de manter a continuidade entre os estágios do ser, então, o que não está
gerando-se não poderá, em hipótese alguma, dar início à geração, impossibilitando assim
qualquer tipo de geração. Desse modo, afirmar que o privado de potência para gerar-se tem
ou terá ser é um equívoco, porque o impossível, por definição, nega o ser àquilo que não é.
Se não há transição entre o que ainda não é e o que será, conseqüentemente não há
geração, que é o momento da passagem de um estado a outro possibilitando a manutenção
do devir. Aristóteles conclui então que só resta admitir um mundo permeado de momentos
estanques e de seres isolados: “Pois, segundo estas, o que está em pé estará sempre em pé
e o que está sentado estará sempre sentado, pois não se levantará se está sentado, visto
que será impossível que se levante o que não pode se levantar”.
135
Claro que estar sentado
é diferente de estar em pé, mas isto não significa dizer que o mesmo ser que está em pé é
outro completamente diferente daquele que está sentado, caso contrário a conseqüência
seria a multiplicação infinita dos seres: um ser em pé, outro sentado, outro deitado, outro
caminhando e assim sucessivamente. A negação da geração, do movimento e, portanto, da
diferença entre ser e devir, é um erro grosseiro decorrente da ignorância ou da não
aceitação da diferença entre ser em ato e em potência:
Portanto, se não cabe sustentar essa doutrina, está claro que potência e ato são
coisas diferentes (enquanto que aquelas doutrinas identificam a potência e o ato e
pretendem destruir algo importante). Cabe, portanto, que algo possa existir porém
não exista, e que possa não existir e exista, e o mesmo para as demais categorias:
que podendo andar, não ande e podendo não andar, ande.
136
Aristóteles finalmente chega à conclusão de sua polêmica: se é absurdo sustentar a
doutrina dos megáricos, então, necessariamente, ato e potência são distintos, caso contrário,
135
a)eiì ga\r to/ te e(sthko\j e(sth/cetai kaiì to\ kaqh/menon kaqedeiÍtai: ou) ga\r a)nasth/setai aÄn kaqe/zhtai:
a)du/naton ga\r eÃstai a)nasth=nai oÀ ge mh\ du/natai a)nasth=nai.
Θ3, 1047
a
15-17.
136
ei¹ ouÅn mh\ e)nde/xetai tau=ta le/gein, fanero\n oÀti du/namij kaiì e)ne/rgeia eÀtero/n e)stin e)keiÍnoi d' oi¸ lo/goi
du/namin kaiì e)ne/rgeian tau)to\ poiou=sin, dio\ kaiì ou) mikro/n ti zhtou=sin a)naireiÍnŸ, wÐste e)nde/xetai dunato\n
me/n ti eiånai mh\ eiånai de/, kaiì dunato\n mh\ eiånai eiånai de/, o(moi¿wj de\ kaiì e)piì tw½n aÃllwn kathgoriw½n
dunato\n badi¿zein oÄn mh\ badi¿zein, kaiì mh\ badi¿zein dunato\n oÄn badi¿zein.
Θ3, 1047a 17-24.
67
teremos um mundo formado de seres plenos, porém descontínuos. E como algo que não
existe pode vir a existir? A resposta é simples: o que ainda não existe, não existe em ato,
mas existe em potência, é um ser que guarda as condições necessárias para, no momento
propício, tornar-se um ser pleno, com todas aquelas propriedades que fazem parte de sua
definição. É claro que também pode acontecer de um ser que tenha uma potência para
fazer/padecer algo, simplesmente não efetue tal potência devido a vários fatores externos e
internos, que representam os limites, tanto do agente/paciente, como da própria potência.
Um simples exemplo pode aclarar essa constatação: o fato de Sócrates não estar sentado
agora não significa que não possa estar sentado num outro momento; também não significa
que Sócrates sentado seja um ser diferente de Sócrates em pé, pelo contrário, é o mesmo
sujeito (de contrários: em pé versus sentado) que estando sentado tem a potência para ficar
em pé e, antes ou depois de estar em pé, está sentado em ato. Do mesmo modo se pode
tomar outras categorias (
kathgori¿ai) e verificar que o resultado será o mesmo: alguém
pode andar, mas não tem o desejo de andar nesse momento, somente mais tarde, ou
construir, ou ouvir música, etc. O termo
kathgori¿a aqui expressa apenas outras atividades
(cantar, andar, dormir) que podem ser colocadas como representantes de uma potência a ser
ou não atualizada.
Em toda argumentação de Θ3 Aristóteles defende o movimento a partir da distinção
entre ato e potência, e para isso vale-se de uma polêmica com os megáricos porque estes
expressariam o ápice do determinismo
137
. Embora as duas teses centralizem o aspecto da
necessidade, Aristóteles procura apresentar uma tese mais flexível, respeitando o senso
comum a partir da elaboração de conceitos mais complexos e plausíveis. É claro que,
apesar de seus esforços para demarcar tais diferenças teóricas, Aristóteles também não
escapou da acusação de determinismo.
137
A teoria megárica apresenta muitos aspectos que foram simplificados ou mesmo desconsiderados por
Aristóteles, tendo ressaltado, provavelmente, apenas aqueles que mais lhe interessavam, uma atitude típica de
boa parte dos filósofos. Por isso, para maiores detalhes sobre os megáricos, Cf., Les Mégariques: fragments et
témoignages. Traduit et commentés par Robert Muller. Paris Librairie Philosophique J. Vrin, 1985.
68
1.1 Sobre a circularidade na definição do Possível
Após apresentar as conseqüências da inflexibilidade teórica dos megáricos,
Aristóteles, ao fim de Θ3 (1047
a
24-1047b 2) e ao longo de todo Θ4, retoma a explicação
do possível/impossível tendo sempre como parâmetro a distinção entre ato e potência. No
entanto, o ponto mais interessante nessa etapa é a inclusão de e)ne/rgeia em uma nova
definição do dunato/n. Pode-se pensar que nada há de surpreendente nessa inclusão, pois o
livro Θ é todo dedicado aos conceitos de ato/potência, contudo, apesar de Aristóteles ter
apresentado uma análise um pouco mais detalhada da potência, até o momento, não tinha
concedido a mesma atenção ao ato e resolve, subitamente, incluí-lo numa nova definição do
possível e do impossível. A ausência de uma análise prévia do ato poderia ser explicada
considerando o plano geral de investigação proposto logo no início de Θ, segundo o qual o
ato receberia as atenções devidas a partir de Θ6. Mesmo assim, tal justificativa não é
suficiente e a súbita aparição de
e)ne/rgeia num momento tão importante da investigação
se tornou objeto de grande discussão entre os grandes comentadores da filosofia
aristotélica.
A sentença a seguir, que tanta polêmica gerou, faz parte do levantamento das
condições (externas e internas) para a atualização da potência:
Uma coisa é possível (dunato/n) se, pelo fato de que tenha o ato (e)ne/rgeia)
daquele do qual se diz ter a potência (du/namij), nada impossível (a)du/naton)
ocorre. Por exemplo, se é possível que algo esteja sentado e cabe que se sente, nada
impossível ocorre se realmente se senta; e o mesmo se pode ser movido ou mover,
estar ou se colocar em pé, ser ou chegar a ser, não ser ou não chegar a ser.
138
Como já foi explicado em vários momentos, impossível/impotente é a privação do
possível/potente. Dada a diferença entre ato e potência, se alguma coisa tem potência para
fazer/padecer algo e não havendo nada interno e externo que a impeça de exercer sua
potência, então a potência se atualizará. Seguindo o exemplo acima, se algo tem a potência
para ficar em pé (é um bípede), possui as condições internas (pertence ao gênero animal e é
138
eÃsti de\ dunato\n tou=to %Ò e)a\n u(pa/rcv h( e)ne/rgeia ou le/getai eÃxein th\n du/namin, ou)qe\n eÃstai a)du/naton.
le/gw de\ oiâon, ei¹ dunato\n kaqh=sqai kaiì
da espécie homem) e também as condições externas (não estar amarrado) e fica em pé,
logo, pode ser classificado como tendo a potência para ficar em pé, porque nada há que o
impossibilite de ficar em pé. Também nada impossível decorre de alguém sentar se pode
sentar, e se ele se sentou é porque havia tal possibilidade. Pode acontecer de haver a
possibilidade de sentar e ele não se sentar, e isso não se deve a algo impossível, mas
simplesmente porque há um outro princípio considerado quando se trata de potências
racionais, por exemplo, o desejo e a escolha.
Quanto a essas condições e limites do agente/paciente, bem como da potência, Θ2 e
Θ5 já haviam esclarecido. O problema central nessa sentença é o modo como Aristóteles
define o possível, deixando sobressair, ao menos, três questões importantes referentes à sua
aparente insuficiência: 1) o possível (
dunato/n) tratado aqui é lógico ou ontológico?; 2) por
que sua definição inclui subitamente o conceito de ato, sem uma explicação prévia?; 3) por
que recorre a uma definição circular (define x por n-x)?
O primeiro problema surge a partir da explicação que Aristóteles apresenta para
dunato/n/a)du/naton, freqüentemente traduzido por possível/impossível o que, de certo
modo, pode suscitar a idéia de alguma prevalência lógica do termo.
139
Sobre isso é preciso
ressaltar dois pontos importantes: (1º) É típico de seu método promover inicialmente uma
distinção de significados, mesmo numa investigação ontológica, e em seguida, ao longo dos
textos, usá-los indiscriminadamente com o propósito de evitar uma separação estanque
entre as perspectivas lógica e ontológica. No livro Θ isto acontece especialmente com os
conceitos de ato (
e)ntele/xeia e e)ne/rgeia) e potência (du/namij e dunato/n). (2º) A
prevalência lógica do
dunato/n também pode ser descartada a partir da verificação dos
exemplos apresentados por Aristóteles em seguida à enunciação do potente: sentar, mover,
ficar em pé, tornar a ser, mover e ser movido, são exemplos que lembram ação e
movimento, indicando que o aspecto principal pretendido é o ontológico
140
, embora o
aspecto lógico nunca esteja excluído. Trata-se de uma possibilidade ontológica, expressa,
139
Brentano, por exemplo, interpreta dunato\n num sentido estritamente lógico. Cf., Brentano, F. De la
diversité des acceptions de l’être d’après Aristote, p.55.
140
Diferentemente de Brentano (cf. nota anterior), Giovanni Reale acredita que nessa definição o uso de
dunato\n está acentuando a questão ontológica, verificável a partir dos exemplos utilizados por Aristóteles,
como sentar e mover: “Não é possível entender
a)du/naton (como pretendem Bonitz, Brentano e outros) como
o contraditório ou a impossibilidade lógica: os exemplos que logo seguem parecem excluir que Aristóteles
pense nisso, ou, pelo menos, só nisso.” Reale, G., Aristóteles Metafísica, p. 463, nota 7.
70
como é característico de sua filosofia, por meio de termos que abarcam vários aspectos do
ser.
Sobre a súbita inclusão do ato na definição de possível, há pelo menos dois motivos
que podem justificá-la: (1º) devido à reciprocidade conceitual entre ato e potência que fica
mais evidente a partir de Θ6 (1048
a
35-1048b 6), quando Aristóteles deixa claro que ao se
definir um dos pares ato/potência é necessário remeter-se ao outro. Esta co-implicação
entre ato/potência é similar àquela existente entre os pares substância/acidentes e
matéria/forma, e pode ser verificada em várias passagens da Metafísica (Β1, 996
a
11,
26,1023b 33-34; Γ 1009
a
34). No caso de todos esses pares conceituais, quando se propõe
a explicar um dos termos envolvidos, Aristóteles geralmente cita o outro a fim de expressar
não só suas diferenças, como também sua respectiva implicação. (2º) A inclusão ocorre
também devido à anterioridade do ato sobre a potência, declarada em Θ8 (1049b 10-1050
a
14), quanto ao conceito (
lo/goj) e à substância (ou)si/a), mostrando que o conhecimento do
ato vem antes da potência. Por isso houve a inclusão do ato também no conceito do
possível.
A última observação sobre a definição de dunato/n é quanto à sua insuficiência e
circularidade. Aristóteles parece se utilizar do próprio definido, o impossível (
a)du/naton),
para explicar o que pretende definir, o possível (dunato/n). Para melhor compreensão desse
problema, vamos apresentar, resumidamente, as respostas de alguns estudiosos sobre este
ponto: (1º) Franz Brentano
141
interpreta dunato/n como sendo estritamente uma
possibilidade lógica e afirma, inclusive, que tal circularidade é dissipada quando se entende
que o que está em jogo aqui é o dunato/n lógico, um conceito que envolveria, portanto, a
concepção de contraditório. (2º) David Ross,
142
a fim de evitar essa circularidade e,
conseqüentemente, sua inutilidade, prefere conceber a passagem em questão não
exatamente como uma definição, mas somente como um critério prático para dirimir as
141
“A primeira restrição é dissipada pelo fato de que o adúnaton em questão se opõe a um outro dunatón,
aquele que investigamos, e que é na verdade, o dunatón lógico, do qual falaremos. É este que comporta uma
contradição”. Brentano, F., De la diversité des acceptions de l’être d’après Aristote, p.55.
142
“Considerado como uma definição de dunato\n, essa afirmação evidentemente seria circular e, portanto,
inútil, mas ela não pretende ser uma definição. É importante somente para dizer que, antes de se afirmar que
algo é possível é preciso verificar se nenhuma das conseqüências é impossível. Este é um critério para
determinação da possibilidade em casos duvidosos”. Ross, D. In: Aristotle’s Metaphysics, vol. II, p 245
71
dúvidas quanto à impossibilidade das conseqüências de um caso específico. (3º) Tricot
143
concorda com Ross e acrescenta que a condição para que algo seja possível é que este não
seja incompatível com a essência de um outro. (4º) Giovanni Reale parece apresentar uma
solução mais próxima ao pensamento de Aristóteles. Em primeiro lugar, Reale afirma que a
proposta de Ross não resolve o problema, apenas desloca a dificuldade para um nível
diferente, saltando da definição para o critério. Em segundo, Reale discorda também de
Brentano com base nos exemplos (sentar, ficar em pé, mover) apresentados por Aristóteles
depois da definição do
dunato/n, mostrando, com isso, que o sentido ontológico é o
preponderante. Portanto, de acordo com Giovanni Reale, o fato é que essa definição
envolve mesmo uma tautologia inevitável e sua justificação é simples: “potência e ato são
conceitos que não podem dissolver-se em outros elementos mais originários, sendo eles
mesmos originários, portanto instituem-se imediatamente e quando se os define, não se
pode evitar o idem per idem”.
144
Por serem conceitos originários, fundamentais, não é
possível extrair destes uma definição num sentido estrito, restando apenas uma
“apresentação” ou definição por meio de analogia. Algo semelhante se dá quanto aos
princípios e, especialmente, no caso do princípio de não-contradição, que não pode ser
demonstrado sob o risco de regressão ao infinito. Mas, enquanto o princípio de não-
contradição só pode ser “demonstrado” por meio de refutação, os conceitos originários,
como ato e potência, só podem ser demonstrados por analogia.
145
1.2 Ato e Movimento
Retomando a questão da inclusão do ato na definição de
dunato/n, parece que
Aristóteles estava ciente desse súbito acréscimo e por isso, para atenuar tal dificuldade,
apresenta em seguida uma primeira caracterização do ato
(e)ntele/xeia/e)ne/rgeia) a partir
da comparação com o movimento (
ki/nhsij). Pelo fato de o livro Θ também estar inserido
entre os grandes tratados em defesa do movimento – que marca a diferença entre ser e devir
–, neste são usadas várias estratégias para alcançar tal objetivo. Entre elas, em vários
143
“O sentido é o seguinte: A é capaz de ser B sob a condição de que, no momento da atualização, A não seja
destruído por ele mesmo; em outros termos, sob a condição de que B não seja incompatível com a essência
mesma de A”. Tricot, J. In: Aristote: La Métaphysique, Tome II, p.492, nota 1.
144
Il concetto di ‘Filosofia prima’ e l’unità della Metafisica di Aristotele, Reale, G., p. 463.
145
O método de demonstração por analogia é tratado em Θ6 (1048b 19), objeto de estudo do Capítulo III.
72
momentos, Aristóteles apresentou os conceitos de possível e impossível para marcar a
diferença entre atualização necessária e atualização ilimitada, além de requisitar as
primeiras noções de ato. E para dar conta dessa árdua tarefa, convém então marcar bem a
relação entre dois conceitos fundamentais nesse projeto: ato e movimento. Sobre isso, diz
Aristóteles: “A palavra ato (
e)ne/rgeia) aplicada à
e)ntele/xeia
tem passado também a
outras coisas principalmente a partir do movimento (
ki/nhsij), pois o ato (e)ne/rgeia)
parece ser principalmente o movimento”.
146
O termo e)ne/rgeia mantém estreita relação com e)ntele/xeia em boa parte da obra
do Estagirita e, em especial, no livro Θ em que eles raramente são diferenciados. Essa
sentença é uma das poucas em que os dois termos aparecem um ao lado do outro, porém,
mais do que ressaltar suas diferenças, o propósito aqui parece ser sobretudo o de expressar
a forte relação entre ato e movimento, mostrando como o movimento, de certo modo,
incorpora os dois aspectos do ato. Inicialmente, essa apropriação dos sentidos do ato por
parte do movimento é verificável pela constatação de que o uso de ser em ato para todas as
outras coisas ocorre sempre a partir do movimento, ou seja, a partir das coisas submetidas a
qualquer tipo de movimento (mudança, geração, corrupção, transformação, etc.). O
movimento é atividade e as coisas que estão a nossa volta se movem ou são movidas, já
foram movidas, estão se movendo ou se moverão. É por isso que o ato, enquanto atividade,
também mantém estreita relação com o movimento, porque movimento é também uma
atividade. É claro que, embora as coisas do mundo físico estejam sujeitas ao movimento,
algo permanece estável e é o que nos permite reconhecer e diferenciar todas as coisas. Essa
estabilidade é o ato, então
e)ne/rgeia parece ser o elo entre a completude (e)ntele/xeia) – a
estabilidade que permite reconhecimento/diferenciação - e o andamento (
ki/nhsij) – típico
das coisas do mundo submetidas ao devir. Desse modo, a verificação de que o movimento
merece ser reconhecido como ato deve-se ao fato de o ato incorporar os sentidos, tanto de
atividade como o de atualidade do seguinte modo: (a) Ato enquanto atividade,
didaticamente, pode ser entendido como
e)ne/rgeia, envolve um dinamismo,
movimentação; por exemplo, o branqueamento é a atividade de uma coisa que tem uma
certa cor e se torna branca; (b) Ato enquanto atualidade, didaticamente, pode ser entendido
146
e)lh/luqe d' h( e)ne/rgeia touÃnoma, h( pro\j th\n e)ntele/xeian suntiqeme/nh, kaiì e)piì ta\ aÃlla e)k tw½n
kinh/sewn ma/lista: dokeiÍ ga\r h( e)ne/rgeia ma/lista h( ki¿nhsij eiånai.
Θ3, 1047
a
30-32.
73
como
e)ntele/xeia, expressa melhor uma imobilidade devido sua completude, realização;
por exemplo, o resultado final do branqueamento é o próprio branco.
Entretanto, visto que Aristóteles utiliza os dois termos indiscriminadamente, é
preciso explicar a razão de
e)ne/rgeia poder ser entendida tanto como e)ntele/xeia como
ki/nhsij, aparentemente coisas opostas. Aristóteles afirma que o ato parece expressar
principalmente (ma/lista) o que é movimento e a partir deste é que o vocábulo e)ne/rgeia
passou a expressar as outras coisas. Sobre essa ampliação de sentidos do ato, Aristóteles
acrescenta: “por isso, às coisas que não existem não se lhes atribui movimento, mas sim
outros predicados, como ser pensáveis ou desejáveis, ainda que não existam; porém ser
movidas não, e isso porque, não existindo em ato (
e)ne/rgeia), existiriam em ato
(
e)ne/rgeia)”.
147
De acordo com esta afirmação, o movimento pode ser reconhecido como
ato com base em dois fatores: (1º) O movimento é nossa experiência mais imediata, ou seja,
não requer mediação do
lo/goj, sentimos o movimento de modo direto, espontâneo, sem
mediadores de qualquer tipo, por isso mesmo, é impossível negá-lo. Verificamos a todo
instante que as coisas estão mudando de um estado a outro e esta mudança requer atividade,
por isso, o movimento é, praticamente, sinônimo de atividade, de
e)ne/rgeia. (2º) Por outro
lado, o ser enquanto
e)ntele/xeia expressa a realidade plena, a coisa enquanto tal. Visto
que não há movimento de movimento, mas somente movimento de algo, portanto, do que é,
e é isto que pode ser movido ou mover, então o movimento de algum modo existe, ele é,
pois só as coisas que existem é que têm algum movimento, se não existissem não poderiam
se mover ou ser movidas. Sob esse ponto de vista, poucas coisas podem existir que sejam
tão reais quanto é o movimento, então movimento é realidade, é
e)ntele/xeia.
Tudo isso pode parecer evidente, porém há coisas que não existem efetivamente e
que só podem ser pensadas (um centauro) ou desejadas (uma cidade paradisíaca), mas não
são em
e)ntele/xeia, enquanto realidade plena. A estas não se pode lhes atribuir existência
e movimento, mas somente outros predicados (
kathgori¿ai) como seres pensáveis,
desejáveis, imagináveis, etc. Enfim, as coisas que não se movimentam não existem em ato,
só em potência, exceto o primeiro motor imóvel.
147
dio\ kaiì toiÍj mh\ ouÅsin ou)k a)podido/asi to\ kineiÍsqai, aÃllaj de/ tinaj kathgori¿aj, oiâon dianohta\ kaiì
e)piqumhta\ eiånai ta\ mh\ oÃnta, kinou/mena de\ ouÃ, tou=to de\ oÀti ou)k oÃnta e)nergei¿# eÃsontai e)nergei¿#.
Θ3,1047
a
32-36.
74
Evidentemente, essa relação entre ato e movimento torna-se clara a partir da
distinção entre ser em ato e em potência, a qual Aristóteles faz lembrar ao final de Θ3:
“Portanto, das coisas que não existem, algumas existem em potência, porém não existem,
porque não existem em
e)ntele/xeia
”.
148
Uma cidade ideal pode ser pensada e, por isso, ela
de certo modo existe, mas só em potência, porque ainda não se efetivou, não se tornou
realidade plena,
e)ntele/xeia. Sua existência plena poderá ocorrer depois, mas enquanto a
cidade estiver sendo construída, ela é em potência a cidade realizada, e a atividade de sua
construção é
e)ne/rgeia.
Essa parte do livro Θ ressalta muito bem o caráter intermediário, abrangente e por
vezes ambíguo que o termo
e)ne/rgeia guarda. Intermediário porque, por um lado parece ser
o caminho entre du/namij e e)ntele/xeia, por outro, marca a diferença entre móvel e
imóvel. Com isso, tomando
e)ne/rgeia como parâmetro é possível afirmar que Aristóteles
não é tão inflexível, ao menos na relação entre as palavras e a realidade.
O final de Θ3 expõe, portanto, como a relação entre
e)ntele/xeia, e)ne/rgeia,
du/namij e ki/nhsij é muito complexa. Expõe ainda que qualquer explicação que
desconsidere a leitura e compreensão da totalidade do livro Θ será sempre superficial. É por
isso que em Θ6 (1048b 18-36), por exemplo, Aristóteles retoma a relação entre movimento
e ato não só considerando as distinções e implicações acumuladas, mas complicando a
análise a partir de outros aspectos, neste caso, o da perfeição da ação.
2 Possibilidade e Realização
A polêmica com os Megáricos teve como ponto culminante o enfoque sobre as
fraquezas de seus pressupostos teóricos, exatamente por eles não terem compreendido a
distinção entre ato e potência. Entretanto, é preciso resolver as dúvidas sobre alguns pontos
específicos, que se forem relegados podem emperrar todo o projeto aristotélico em defesa
do movimento. É em Θ4 que Aristóteles se propõe a aprofundar a relação entre o possível e
o realizável para que não perdurem dúvidas sobre a ligação entre o ser em potência e ser em
ato, apresentando não somente os limites e sim, as garantias da atualização da potência. É
um capítulo curto onde são retomados alguns pontos das discussões anteriores.
148
tw½n ga\r mh\ oÃntwn eÃnia duna/mei e)sti¿n: ou)k eÃsti de/, oÀti ou)k e)ntelexei¿# e)sti¿n. Θ3, 1047b 1-2.
75
Nos capítulos anteriores vimos que dadas as condições (internas e externas) para
uma certa potência, esta deve se realizar. Todavia, algumas coisas podem ou não existir e,
para entender essa possibilidade, Aristóteles precisa marcar a diferença entre: (a) o possível
(
dunato/n) que é realizável mas que pode não se realizar; e (b) o impossível (a)du/naton),
aquilo que simplesmente não tem possibilidade alguma de realização, que nunca irá efetivar
sua forma
(ei)=doj) por incapacidade inerente ao seu gênero (ge/noj) ou à sua espécie
(ei)=doj). Trata-se, em linhas gerais, de esclarecer as diferenças entre possibilidade e
realização: “Se o possível é o que temos dito enquanto realizável (
a)kolouqi/a), está claro
que não é verdade dizer que tal coisa é possível, porém não ocorrerá, visto que, admitido
isso, não se veria o sentido de ser impossível”.
149
O possível é aquilo que pode se realizar,
que não guarda impossibilidades tais que sua realização interfira em sua própria existência
mas, apesar dessa condição, talvez não se realize. Conseqüentemente, aquele que afirma
que uma coisa é possível de ser algo, mas nunca o será, está eliminando a diferença entre
possível e impossível. É possível que uma criança, por exemplo, torne-se um homem, caso
nada exterior a impeça, mas é impossível que ela se torne uma andorinha porque ela sequer
tem potência para tal realização.
Para explicar essa diferença sutil entre possível e impossível, Aristóteles apresenta o
exemplo da incomensurabilidade da diagonal: “se alguém afirma que é possível que a
diagonal seja comensurável com um dos seus lados, mas que nunca será – sem considerar
o ser impossível -, porque nada impede que, sendo possível que algo seja ou venha a ser,
não seja nem venha a ser”.
150
Este é um exemplo típico em seus escritos e compreensível
pelo fato de que em seu tempo era desconhecida a possibilidade de medir a diagonal do
quadrado.
151
Qualquer grego sabe que a diagonal do quadrado é incomensurável e,
portanto, não haveria motivo plausível para medir algo que, por definição, não é passível de
ser medido. Contudo, utilizando-se de um recurso bastante criativo, Aristóteles supõe a
existência de um homem que desconhece tal impossibilidade: “Porém, é necessário que,
segundo o estabelecido, inclusive, se supomos que existe ou tem existido o que não existe,
149
Ei¹ de/ e)sti to\ ei¹rhme/non to\ dunato\n hÄ a)kolouqeiÍ, fanero\n oÀti ou)k e)nde/xetai a)lhqe\j eiånai to\ ei¹peiÍn
oÀti dunato\n me\n todi¿, ou)k eÃstai de/, wÐste ta\ a)du/nata eiånai tau/tv diafeu/gein.
Θ4, 1047b 2-6.
150
le/gw de\ oiâon eiã tij fai¿h dunato\n th\n dia/metron metrhqh=nai ou) me/ntoi metrhqh/sesqai ® o( mh\
logizo/menoj to\ a)du/naton eiånai®oÀti ou)qe\n kwlu/ei dunato/n ti oÄn eiånai hÄ gene/sqai mh\ eiånai mhd' eÃsesqai.
Θ4, 1047b 6-9.
151
Cf., Tricot, J. In: Aristote: La Métaphysique, Tome I, p.20, nota 2.
76
porém, é possível, não resulte nada impossível; e nesse caso resultará, visto que é
impossível que a diagonal seja comensurável com um dos lados”.
152
Somente uma pessoa
inconseqüente afirmaria a possibilidade de medir a diagonal de um quadrado, pior ainda
seria alguém que após afirmar essa aberração seguisse dizendo que, apesar da diagonal do
quadrado poder ser medida, esta nunca o será. Se alguma coisa tem potência para
fazer/padecer alguma coisa é porque, em algum momento, essa potência será atualizada,
caso contrário, o certo é afirmar que tal coisa é privada dessa potência e, portanto, é
impossível ser atualizada. Sem essa reparação, não há diferença entre possível e impossível.
O que ocorre nessa situação é que esse hipotético homem está fazendo uma
confusão entre o que é falso (
yeu=doj) e o que é impossível (a)du/naton). Se alguma coisa
tem potência para se realizar, então não é verdade que esta coisa nunca se realizará; o certo
é que ela pode ou não se realizar, porque se a coisa nunca se realiza é porque ela
simplesmente não tem potência alguma para se realizar. A diagonal do quadrado é
impossível de ser medida, assim como também é impossível que a soma dos ângulos
internos de um triângulo não seja igual a 180 graus. Dado um triângulo, necessariamente
seus ângulos internos terão a soma igual a 180 graus e quem afirmar algo diferente disso
estará confundindo falsidade com impossibilidade.
Aristóteles apresenta um outro exemplo, inclusive mais inteligível para alguém que
não pertence à Antiguidade Clássica, sendo mais fácil para visualizar a referida confusão
entre o falso e o impossível: “Assim, pois, não é o mesmo falso e impossível: que estejas de
pé agora é falso, porém não impossível”.
153
Com esses exemplos pode-se verificar que o
impossível é mais abrangente porque inclui o falso, mas não vice-versa, pois a realização de
alguma coisa pode ser falsa, mas não impossível. O que é impossível é sempre falso, mas o
que é falso num momento pode ser verdadeiro em outro. Estando alguém em pé e uma
outra pessoa afirma que o primeiro está sentado, tal afirmação é falsa, mas não é
impossível, pois aquela mesma pessoa que antes estava em pé pode ficar sentada. No caso
da comensurabilidade da diagonal, a situação é um pouco mais complexa, já que é
impossível medir a diagonal do quadrado. Logo, qualquer afirmação que não respeite essa
152
a)ll' e)keiÍno a)na/gkh e)k tw½n keime/nwn, ei¹ kaiì u(poqoi¿meqa eiånai hÄ gegone/nai oÁ ou)k eÃsti me\n dunato\n
de/, oÀti ou)qe\n eÃstai a)du/naton: sumbh/setai de/ ge, to\ ga\r metreiÍsqai a)du/naton.
Θ4, 1047b 9-12.
153
ou) ga\r dh/ e)sti tau)to\ to\ yeu=doj kaiì to\ a)du/naton: to\ ga/r se e(sta/nai nu=n yeu=doj me/n, ou)k a)du/naton
de/
. Θ4, 1047b 12-14.
77
impossibilidade é irrestritamente falsa. Aqui, além de impossível também é falsa, ou seja, é
falsa porque é impossível, mas não o contrário. Em suma, o impossível não possui a
mínima capacidade de se realizar, guarda a idéia do nunca poder ser
154
, enquanto que o
possível possui tal capacidade, guarda a idéia do ser e do talvez ser. Além disso, o falso é
uma afirmação contrária ao fato.
3 O Possível e o Necessário
Feita a distinção entre
a)du/naton e yeu=doj, Aristóteles encerra Θ4 apresentando a
relação entre o possível (
dunato/n) e o necessário (a)na/gkh), aprofundando o teor da
refutação àqueles que afirmam, primeiro, que uma coisa só é possível se já está em ato;
segundo, que uma coisa é em potência, mas nunca se realizará. Neste ponto da análise
Aristóteles ressalta a relação causal existente entre duas ou mais coisas envolvidas num
processo. Para isso, ele elabora um exercício lógico a fim de mostrar que, após o início de
um processo, este deve chegar ao seu cumprimento. Pode-se dividir este exercício em três
situações complementares: (1) Se A existe, então B existe: “Ao mesmo tempo, também é
evidente que se, existindo A, necessariamente (
a)na/gkh) existe B, sendo possível que exista
A, também B será necessariamente possível, pois se não é necessariamente possível, nada
impede que não seja possível que exista”.
155
Partindo da existência de A, esta acarreta
necessariamente a existência de B, como também, a possibilidade de A acarreta
necessariamente a possibilidade de B, ou seja, dado A, então B.
(2) Se B é impossível, então a existência de A é impossível: “Porém, se é necessariamente
impossível que exista B, também o será necessariamente que exista A. O primeiro era,
efetivamente, impossível, então, também o será o segundo”.
156
Este é o caso da
impossibilidade. Se a existência de B é impossível, então a existência de A será também
impossível, ou seja, impossível B, então impossível A.
154
De acordo com Reale, o a)du/naton é “o que intrinsecamente não possui a capacidade de ser ou de se
realizar,
dunato/n é o que intrinsecamente possui a capacidade de ser ou de se realizar”. Reale, G., Il
concetto di ‘Filosofia prima’ e l’unità della Metafisica di Aristotele, p. 359.
155
aÀma de\ dh=lon kaiì oÀti, ei¹ tou= A oÃntoj a)na/gkh to\ B eiånai, kaiì dunatou= oÃntoj eiånai tou= A kaiì to\ B
a)na/gkh eiånai dunato/n: ei¹ ga\r mh\ a)na/gkh dunato\n eiånai, ou)qe\n kwlu/ei mh\ eiånai dunato\n eiånai.
Θ4, 1047b
14-17.
156
ei¹ dh\ a)du/naton [a)na/gkh] eiånai to\ B, a)na/gkh kaiì to\ A eiånai. a)ll' hÅn aÃra to\ prw½ton a)du/naton: kaiì
to\ deu/teron aÃra.
Θ4, 1047b 20-22.
78
(3) Quando A e B estão intrinsecamente relacionados:
Porém, se realmente A é possível, também o será B, supondo que estejam
relacionados de tal modo que, existindo A, necessariamente existirá B.
Conseqüentemente, se estando A e B nesta relação, não é possível nas condições
ditas, tampouco A e B estarão na relação suposta. E se, sendo possível A,
necessariamente é também possível B, se existe A, necessariamente existirá
também B.
157
Se A e B possuem uma relação de necessidade, não é possível afirmar que se A
existe então B é impossível, pois sendo A possível, então também B é possível, porque os
dois mantêm uma relação, são contíguos. Assim, se A existir, também B existirá.
Mas afinal, que relação é essa cuja existência de um acarreta a existência do outro?
Aristóteles quer dizer que, mesmo que seja explícita a relação intrínseca entre a
possibilidade real (A) e sua atualização (B), isso não significa que sempre
158
, de modo
absoluto, independentemente de qualquer circunstância, A chegará a B, como se o destino
determinasse tudo. É verdade que, dada a relação intrínseca entre ato e potência, um exige o
outro, ou seja, a possibilidade ou realidade de um infere a possibilidade ou realidade do
outro, mas essa relação entre A e B não é puro determinismo. Caso fosse esta a idéia de
Aristóteles, não haveria sequer espaço para a liberdade, escolha, desejo, vontade e para a
própria possibilidade, porque tudo estaria determinado desde sempre.
Essas dúvidas quanto à relação necessária entre a existência de A e B podem ser
solucionadas a partir da seguinte explicação: “Pois dizer é necessariamente possível que
exista B se A é possível, significa que, se A existe quando (
o(te) e como (w(j) era possível
que existisse, então, também B existirá necessariamente e do mesmo modo”.
159
Em nenhum
momento, portanto, Aristóteles deixa de destacaMC /P <</MCID 6 >8to, portanto, Arist 0 12 85.07993 3640.7607i, portanto, Arist 0 12e290_83008 3640.7607i, poistia B podeda condiTj/TT65desa
potência ao ato. Nessa sentença, isso fica evidente ao se observar a inclusão do quando
(
o(te) e do como (w(j), que apontam para os fatores externos que podem facilitar ou
dificultar e, até mesmo, impossibilitar a passagem de A para B.
Em toda a argumentação que finaliza Θ4, o que se destaca é o acento sobre o
necessariamente (
a)na/gkh) acentuando a importância que Aristóteles atribui à relação
causal existente entre as coisas envolvidas num processo: a possibilidade de A acarreta a
possibilidade de B, ou seja, B é a atualização de A. Há uma irredutível relação causal entre
A e B. Em outras palavras, toda criança (potência) tende a se tornar um homem (ato), no
entanto, se a criança existe é porque, necessariamente, existe um adulto, caso contrário nem
haveria tal criança.
Encerra-se assim, a exposição da potência e do ato entendidos relativamente ao
movimento. Ao longo dos cinco primeiros capítulos do livro Θ, podemos verificar que,
apesar de inicialmente Aristóteles ter traçado uma exposição da
du/namij dividida em dois
sentidos (primeiro o cinético – Θ1 a Θ5 – , depois o metafísico – Θ6 a Θ10), constata-se a
grande dificuldade que é manter os dois âmbitos terminantemente separados. Aristóteles
mesmo insere exemplos, termos e argumentos que envolvem ambos significados. Isso se
deve provavelmente não a uma confusão metodológica do Estagirita, mas à complexidade
mesma do real. Mesmo que em alguns momentos apele para o exercício de abstração (tal
como se faz na matemática, quando se promove a separação entre seu objeto de estudo e a
matéria), Aristóteles, propositadamente, insere aos poucos diferentes elementos a fim de
evidenciar o quanto é difícil conceituar os modos de se dizer o ser, de se entender o real. O
mesmo pode se verificar nos capítulos seguintes, em que Aristóteles pretende tratar
centralmente o conceito de ato (Θ6 – Θ10). Portanto, uma das principais conclusões até o
momento é a impossibilidade de traçar uma separação absoluta entre a abordagem dos
conceitos de ato e potência referente ao movimento e aquela referente à substância, entre o
aspecto cinético e o metafísico propriamente dito.
80
Capítulo III
Ato e Potência relativos à Substância
De acordo com o plano traçado no início do livro Θ, Aristóteles pretende investigar,
a partir de agora, os conceitos de ato e potência relativos à substância. É essa perspectiva
que expressa o sentido propriamente metafísico de ato/potência, o sentido mais específico,
nem sempre aquele mais facilmente verificável por nós, porém é o mais próprio e, sendo
assim, é o que mais interessa a toda essa investigação. A exposição e análise do ser em ato
e em potência são, nesse momento, aplicáveis não somente aos seres móveis sujeitos à
geração e corrupção, como também, àqueles seres que apesar de móveis são imunes a tais
mudanças, são os seres celestes. E ainda nessa análise também são incluídos os seres
imóveis, aqueles completamente imunes a qualquer mudança, entre eles, o motor imóvel.
Neste capítulo do trabalho, vamos analisar Θ6 e Θ7. Boa parte do que há de mais
importante em toda exposição do par conceitual ato/potência está inserida em Θ6, reunindo
e aperfeiçoando a análise conceitual de Θ. Parece até que todos os capítulos anteriores de Θ
tinham como propósito preparar para a ampliação dos sentidos apresentados aqui. Isso fica
claro no modo como Aristóteles inicia Θ6, lembrando que nos capítulos anteriores havia
apresentado esses conceitos sob uma outra abordagem, aquela relativa ao movimento:
“Temos tratado da potência dita relativamente ao movimento, tratemos do ato, definamos
o que é (
ti/ e)sti) ato e qual coisa (poiÍo/n ti) é”.
160
A investigação agora irá centrar-se especialmente no conceito do ato, procurando
explicitar sua definição (
diorismo/j), aquilo que expressa a sua essência, ou seja, o que é
(
ti¿ e)stin) a coisa e, ainda, qual é (poiÍo/n ti) a sua propriedade principal. Dizendo isto,
Aristóteles parece insinuar que a análise da potência no sentido metafísico inclui,
necessariamente, a análise sobre o ato. É o que se pode confirmar na seqüência:
Ao fazer nossa análise, veremos que não só dizemos que é potente o que
naturalmente tem poder para mover a outro ou ser movido por outro, ora
160
¹Epeiì de\ periì th=j kata\ ki¿nhsin legome/nhj duna/mewj eiãrhtai, periì e)nergei¿aj diori¿swmen ti¿ te/ e)stin
h( e)ne/rgeia kaiì poiÍo/n ti.
Θ6, 1048
a
25-27. (Trad., Tricot)
81
absolutamente, ora de algum modo, senão também em outro sentido, o motivo pelo
qual em nossa investigação temos tratado também destas coisas.
161
Aristóteles relembra a definição da du/namij ressaltando seu caráter natural para
mover ou ser movido. O naturalmente (pe/fuke) aqui é sinônimo de essência
(
to\ ti/ h)=n ei(=nai), é, portanto, o conteúdo próprio de sua definição: du/namij é princípio
de movimento em outro ou nele mesmo enquanto outro.
162
Além disso, Aristóteles faz
menção aos tipos derivados de potência, resumidos aqui em: absolutamente (
a(plw½j); e de
algum modo (
tro/pon tina/). Por último, cabe considerar que, de acordo com a afirmação
acima, toda a investigação da potência relativa ao movimento tinha como propósito central
abrir caminho para uma investigação mais fundamental, aquela relativa à
ou)si/a, verdadeiro
objetivo pelo qual Aristóteles se propôs a pesquisar e classificar o sentido anterior. De fato,
de Θ1 a Θ5 o ato apareceu esporadicamente, sendo apresentado sempre de modo superficial
e secundário. Provavelmente porque, enquanto o sentido fundamental da potência é aquele
relativo ao movimento, o sentido fundamental do ato é o metafísico, aquele que mantém
uma relação direta com a substância.
Assim, o conceito de ato será apresentado mais detalhadamente e a potência é que
será mencionada para servir de apoio e para clarificar a importância do ser em ato. O
motivo dessa inversão é fácil de compreender a partir do que se segue: “O ato é, pois, o
existir (
u(pa/rxein) da coisa, embora não como quando dizemos em potência”.
163
O ato é o
modo próprio da coisa ser, como a coisa se encontra, o modo atual, diferente da coisa
161
kaiì ga\r to\ dunato\n aÀma dh=lon eÃstai diairou=sin, oÀti ou) mo/non tou=to le/gomen dunato\n oÁ pe/fuke
kineiÍn aÃllo hÄ kineiÍsqai u(p' aÃllou hÄ a(plw½j hÄ tro/pon tina/, a)lla\ kaiì e(te/rwj, dio\ zhtou=ntej kaiì periì
tou/twn dih/lqomen.
Θ6, 1048
a
27-30.
162
Cf., Θ1, 1046a 11.
163
eÃsti dh\ e)ne/rgeia to\ u(pa/rxein to\ pra=gma mh\ ouÀtwj wÐsper le/gomen duna/mei. Θ6, 1048
a
30-32. Nesta
passagem o problema de tradução é quanto ao verbo
u(pa/rxw (existir, começar, estar). Tricot traduz por
exister, Reale por l’esistenza stessa, Yebra por existir e Ross por presence. Segundo Yepes: “O verbo
u(pa/rxw
na voz ativa significa ‘ter começado a estar entre as coisas do mundo, ter nascido, ter começado a ser’. Vem
de
a)/rxw
que significa ‘começar’. Quer dizer, o significado próprio deste verbo é o começo de um ser, algo
que afeta a todo esse ser enquanto está no mundo como nascido, como vindo a ser. Logo significa
simplesmente ‘existir, estar já existindo’, que é o significado mais corrente em Aristóteles.” Yepes Stork, R.,
La doctrina del acto en Aristóteles, p.250. Lucas Angioni prefere outra solução: “O verbo ‘hyparchein’
guarda um sentido mais concreto, ao qual tentei ser menos infiel, traduzindo-o por ‘pertencer’, ‘ocorrer’, ‘se
dar’. Além do mais, em algumas ocorrências intransitivas, ‘hyparchein’ poderia ser traduzido por ‘existir’,
isto é, ‘se encontra existindo’”. Angioni, L. In: Aristóteles, De anima, Livros I-III (trechos), p.11.
82
quando é em potência, porque em ato a coisa está completa, plena, alcançou seu fim,
efetivou sua forma.
Portanto, para pesquisar a potência relativa à
ou)si/a, Aristóteles evoca o conceito de
ato porque a potência é dita ou entendida sempre em relação ao ato, sempre tendo o ato
como ponto de chegada, bem como o de partida. A série de exemplos acima mostra que a
potência enquanto princípio de movimento requer, para ser plenamente entendida no
sentido metafísico, a constante menção ao ato e isso não se deve unicamente ao fato de a
potência não ser dita somente em vista do movimento, mas, principalmente, porque a
potência sempre tem em vista o ato. É por essa razão que Aristóteles concentra-se no
conceito de ato pra definir a potência: é o ato que revela a potência
164
de alguma coisa. A
coisa é conhecida por sua realização e não enquanto potência, afinal, enquanto ser em
potência a coisa pode ser ou não ser, mas enquanto ato, ela é em definitivo. Desse modo, a
potência dirige-se ao ato porque ela é feita para o ato e assim, fica descartado o risco de ser
pura indeterminação.
1 Definição por Analogia
Apesar de a análise, a partir de Θ6, centralizar sua atenção sobre o ato, porque este
mantém certa proeminência sobre a potência, Aristóteles não apresenta uma definição
propriamente dita do ato, apenas lança mão de um conjunto de exemplos de coisas
particulares para que se possa identificar uma distinção entre o ser em ato e o ser em
potência. Esse modo de exposição não é apenas uma introdução à temática central, o ato,
mas perpassa toda análise porque é, como veremos a seguir, o modo próprio para explicar
conceitos desse tipo, conceitos originários.
Na seqüência de Θ6, Aristóteles formula um parágrafo bastante sintético cujo
conteúdo comporta um conjunto de conceitos centrais em sua filosofia, tendo por isso
alimentado muita discussão entre seus comentadores:“O que queremos dizer é evidente nos
particulares (
kaq' eÀkasta) por indução (e)pagwgh/), sem que seja preciso buscar uma
164
“A potência não visa simplesmente o ato, ela é feita para ele como o imperfeito para o perfeito e o relativo
para o absoluto”. Tricot, J. In: Aristote: La Métaphysique, Tome II, 498, nota 3.
83
definição (
o(/roj) de tudo, senão que basta intuir (sunora/w) a analogia (a)nalogi/a)”.
165
Nesse segmento está caracterizado o modo próprio para explicar conceitos originários
como ato e potência, que não podem ser elucidados por meio de uma demonstração direta.
Embora não seja o único método adotado para explicitar os conceitos originários,
Aristóteles entende que ato e potência só podem ser mostrados por meio de analogia
(
a)nalogi/a), ou seja, por meio da comparação entre dois pares de coisas singulares que
deixa transparecer uma proporção entre eles. Para compreender os pormenores desse
método é preciso considerar alguns dos elementos pressupostos em sua elaboração como,
por exemplo, a indemonstrabilidade de conceitos originários e o processo indutivo. A
indemonstrabilidade de conceitos originários é um dos pressupostos principais da filosofia
aristotélica. É a impossibilidade de definir conceitos originários (ser, uno, princípio)
justamente porque são eles que dão início a uma cadeia explicativa. Não podem ser
definidos porque são primeiros, simples e imediatos, tal como os princípios (
a)rxai/) que
servem como início do conhecimento científico.
166
Não há definição dos princípios
167
visto
que eles não podem ser incluídos em algum gênero, e toda definição é dada por meio da
inclusão do termo em algum gênero e, em seguida, é ressaltada sua diferença específica,
como por exemplo, homem racional: homem = gênero animal; racional = espécie racional.
Enquanto o gênero expressa uma propriedade comum de um grupo de coisas, a diferença
expressa suas propriedades específicas. No entanto, conceitos originários não podem ser
incluídos em algum gênero, pois não há um gênero que possa inclui-los, ou seja, tais
conceitos não se unificam sob uma definição comum. Do mesmo modo que os princípios
são indemonstráveis, por serem primeiros e imediatos, os conceitos originários não são
passíveis de uma definição propriamente dita e só podem ser explicados por outro método.
O segundo motivo para justificar a indemonstrabilidade de conceitos originários, ou
dos princípios, é a impossibilidade de o pensamento percorrer uma série infinita de
proposições científicas; a cadeia de conhecimento requer um início, afinal, o infinito não
pode ser alcançado.
165
dh=lon d' e)piì tw½n kaq' eÀkasta tv= e)pagwgv= oÁ boulo/meqa le/gein, kaiì ou) deiÍ panto\j oÀron zhteiÍn a)lla\
kaiì to\ a)na/logon sunora=n.
Θ6, 1048
a
35-37.
166
“Enquanto premissas primeiras e imediatas, a que nenhuma outra é anterior, os princípios são, por isso
mesmo, indemonstráveis”. Sobre a indemonstrabilidade dos princípios, ver o excelente trabalho de Porchat
Pereira, Ciência e dialética em Aristóteles, p. 126.
167
“Uma ciência deve por princípio definir todos seus termos, mas o mesmo não é verdadeiro para a
filosofia”. Ross, D. In: Aristotle’s Metaphysics, vol. II, p.251.
84
Quanto ao processo de indução (
e)pagwgh/), sabe-se que é, segundo Aristóteles, um
método comum da ciência e contém dois significados principais: primeiro, é a passagem de
uma multiplicidade de sensações a uma noção universal, ou seja, é um processo mediante o
qual passa-se do particular ao universal; segundo, é a passagem de juízos particulares a um
juízo geral. Os dois significados podem ser entendidos como um processo que conduz “o
pensamento em direção do conhecimento dos princípios, caminhando do mais particular
para o mais universal, do mais conhecido para nós ao mais conhecível por natureza, do
mais próximo da sensação ao que está mais afastado dela”.
168
O método indutivo procede
da percepção sensível, mas sua prática correta conduz progressivamente em direção ao que
é mais universal estabelecendo-se assim, as condições necessárias e suficientes para que a
inteligência (
nou=j), inscrita na alma (yuxh/), abarque ou se identifique com o objeto, com
a coisa mesma.
169
Agora é preciso examinar de que modo a indemonstrabilidade de conceitos
originários combinada à indução fundamentam a analogia. Na Ética a Nicômacos pode-se
compreender melhor a concepção aristotélica de analogia, que consiste na identidade de
relações que expressam uma proporção e possui dois sentidos principais: primeiro, como
proporção quantitativa (geométrica e matemática): expressa uma relação entre quantidades
numéricas e pode ser de dois tipos: (a) matemática
170
(aqui é sinônimo de aritmética),
quando é conhecido o resultado de uma operação matemática (9:12), infere-se o mesmo de
uma outra (3:4); e (b) geométrica,
171
que mostra a relação entre o todo e as partes de coisas
diferentes; por exemplo, o todo de A está para as partes de A, assim com o todo de B está
168
Pereira, O. P., Ciência e dialética em Aristóteles, p. 386.
169
Idem, p. 388.
170
“Mas a justiça nas relações privadas é, pois, uma espécie de desigualdade, mas não conforme à analogia
acima e sim conforme à [analogia] aritmética. Pois, é irrelevante se uma pessoa boa lesa uma pessoa má ou
se uma má lesa uma pessoa boa, ou se é uma pessoa boa ou má que comete adultério; a lei considera
somente o aspecto distintivo da justiça e trata as partes como iguais, se uma das partes cometeu e a outra
sofreu a injustiça, e se uma infligiu e a outra sofreu dano”.
to\ d' e)n toiÍj sunalla/gmasi di¿kaion e)stiì me\n
iãson ti, kaiì to\ aÃdikon aÃnison, a)ll' ou) kata\ th\n a)nalogi¿an e)kei¿nhn a)lla\ kata\ th\n a)riqmhtikh/n.
ou)de\n ga\r diafe/rei, ei¹ e)pieikh\j fau=lon a)peste/rhsen hÄ fau=loj e)pieikh=, ou)d' ei¹ e)moi¿xeusene)pieikh\j
fau=loj: a)lla\ pro\j tou= bla/bouj th\n diafora\n mo/non ble/pei o( no/moj, kaiì xrh=tai w¨j iãsoij, ei¹oÁ me\n
a)dikeiÍ oÁ d' a)dikeiÍtai, kaiì ei¹ eÃblayen oÁ de\ be/blaptai.
Ética a Nicômacos, 1132a 1-7.
171
“Os matemáticos chamam este tipo de analogia de geométrica, pois é na proporção geométrica que o
todo está para o todo assim como cada parte está para a outra parte”.
kalou=si de\ th\n toiau/thn a)nalogi¿an
gewmetrikh\n oi¸ maqhmatikoi¿: e)n ga\r tv= gewmetrikv= sumbai¿nei kaiì to\ oÀlon pro\j to\ oÀlon oÀper e(ka/teron
pro\j e(ka/teron.
Ética a Nicômacos, 1131b 12-15.
85
para as partes de B. O segundo sentido de analogia é como proporção qualitativa
172
(semelhança de relações) que expressa uma relação de semelhança entre coisas em geral,
pertencentes ou não a mesma espécie ou gênero. Por exemplo, na justiça distributiva
173
estão envolvidos, no mínimo, quatro elementos: duas pessoas e duas coisas a serem
distribuídas. Entre as duas pessoas, A = cidadão e B = escravo, enquanto que C = 4 moedas
e D = 2 moedas. A riqueza será distribuída de acordo com os méritos de cada pessoa
envolvida numa atividade qualquer: para o cidadão (A) são dadas quatro moedas (C), para
o escravo (B) são dadas duas moedas (D). Isto ocorre porque a diferença entre o cidadão
(A) e o escravo (B) é a mesma existente entre quatro (C) e duas (D) moedas.
Apesar dessa distinção, de modo geral, em Aristóteles os dois sentidos de analogia
se confundem porque ambas expressam a idéia fundamental, que é de proporção, a única
presente em sua concepção. Ainda na Ética a Nicômacos, a analogia de proporção
174
é
explicada do seguinte modo: “Assim, a analogia é uma igualdade de razões, envolvendo no
mínimo quatro elementos. (...) Então, o elemento A está para o elemento B assim como o
elemento C está para o elemento D e, portanto, por alternância, A está para C assim como
B está para D”.
175
A analogia é uma comparação entre, no mínimo, dois pares de coisas,
pertencentes ou não à mesma espécie ou gênero, que deixa transparecer uma proporção (a
mesma distância) entre eles. Aplicando um conteúdo à definição acima, diz Aristóteles:
“Certamente, o que a visão é para o corpo a inteligência é para a alma, e assim para os
outros”.
176
Na analogia, há quatro elementos envolvidos: por um lado, visão (A) e
inteligência (B); por outro, corpo (C) e alma (D). A relação existente entre os dois
172
A expressão qualitativa não está em Aristóteles, mas corresponde a um dos sentidos de analogia
identificados na divisão elaborada por Adela Rosa Maggi entre analogia como proporção geométrica e
matemática; e analogia como semelhança de relações. Cf., Maggi, A. R., Analogía y causalidade en
Aristóteles. (Texto inédito), p. 4, 2004.
173
“O justo é, então, uma certa analogia (a analogia não é uma propriedade somente das quantidades
numéricas, mas também da quantidade em geral)”.
eÃstin aÃra to\ di¿kaion a)na/logo/n ti. to\ ga\r a)na/logon
ou) mo/non e)stiì monadikou= a)riqmou= iãdion, a)ll' oÀlwj a)riqmou=
. Ética a Nicômacos, 1131
a
29-32.
174
O modo como Aristóteles entende a analogia é denominado de analogia de proporção, diferente da
analogia de atribuição que teve sua origem nas formulações da Escolástica. Segundo a analogia de atribuição,
todos os outros seres (secundários) convergem para um ser único (principal), fundamentando, assim, a relação
entre um Deus criador e um mundo criado. Cf., Aubenque, P., Le problème de l’être chez Aristote, p. 198-
206.
175
h( ga\r a)nalogi¿a i¹so/thj e)stiì lo/gwn, kaiì e)n te/ttarsin e)laxi¿stoij. (...) eÃstai aÃra w¨j o( a oÀroj pro\j to\n
b, ouÀtwj o( g pro\j to\n d, kaiì e)nalla\c aÃra, w¨j o( a pro\j to\n g, o( b pro\j to\n d.
Ética a Nicômacos, 1131
a
33 – 1131b 9.
176
w¨j ga\r e)n sw¯mati oÃyij, e)n yuxv= nou=j, kaiì aÃllo dh\ e)n aÃll%. Ética a Nicômacos, 1096b 29-31.
86
primeiros termos (a visão é o guia do corpo) é semelhante àquela entre os dois últimos (a
inteligência é o guia da alma). Desse modo, A está para B assim como C está para D.
Entre os vários propósitos, Aristóteles vale-se da analogia para descobrir as
semelhanças, para estabelecer os conceitos enquanto meio de generalização e, ainda, para
fundamentar a indução.
177
E como Aristóteles relaciona todos estes elementos
(indemonstrabilidade de conceitos originários, indução e analogia) ao par ato/potência?
1.1 Ato e Potência por meio da Analogia
Quando Aristóteles afirma que a compreensão dos conceitos originários, ato e
potência, é evidente a partir da comparação entre coisas singulares, ele quer dizer que estes
conceitos não se prestam ao conhecimento com base numa definição propriamente dita. Ato
e potência são evidentes, são pressupostos e reconhecidos a partir de uma relação com a
realidade, tal como os princípios – que também não são definíveis porque não cabem numa
definição única – e, nesse caso, essa relação se dá por meio da analogia. A relação (
pro/j) é
verificada a partir de uma mesma diferença (
diafora/) existente entre o primeiro e o
segundo par. Essa distância ou diferença é, na verdade, um princípio, portanto, é
apreendido intuitivamente, imediatamente, e como todo princípio, não é conhecido por
meio de uma definição. É no uso que se conhece e, na verdade, sempre se está utilizando
princípios, mesmo sem ciência disso. Sendo previamente conhecidos, compete à
inteligência (
nou=j), enquanto hábito, a apreensão imediata dos princípios.
178
A indução envolvida nesse processo é, em suma, uma operação que consiste em se
estabelecer uma regra geral desde a constatação de que um certo grupo de particulares
comporta-se, no mais das vezes, de um mesmo modo. Disso se induz uma relação entre os
pares envolvidos. As situações são diferentes, mas o princípio é o mesmo: a diferença
existente entre os pares de coisas particulares A e B é aquela mesma existente entre C e D.
177
Cf., Maggi, A. R., Analogía y causalidade en Aristóteles. (Texto inédito), p. 6, 2004.
178
Porchat Pereira apresenta uma excelente análise do processo de apreensão dos princípios, recusando o
caráter cognitivo sensualista atribuído a Aristóteles por parte de alguns intérpretes, bem como a acusação de
outros, de ser confusa a inclusão, por parte do Estagirita, do
nou=j. Segundo Porchat Pereira, a inteligência
teria a dupla função de apreender tanto os princípios primeiros e universais do processo demonstrativo
quanto, através da percepção sensível, dirigir-se do particular e contingente ao universal. Cf., Pereira, O. P.,
Ciência e dialética em Aristóteles, p. 337-393.
87
O último passo é identificar, entre os elementos de cada par, qual corresponde ao ser
em ato e qual corresponde ao ser em potência. Para elucidar essa proporção Aristóteles
apresenta exemplos de áreas bem distintas: “e dizemos que está em potência como está um
Hermes na madeira, a meia linha na linha inteira, porque poderia ser separada, e que é
sábio inclusive o que não especula (
qewre/w) se é capaz (dunato/n)
Duas conclusões principais podem ser tiradas até este momento: primeiro, ao
invocar um conceito a fim de explicar um outro, Aristóteles mostra como ato e potência
mantêm uma forte relação de reciprocidade, evidenciada por meio de exemplos de casos
particulares em que se pode verificar uma proporção.
180
A segunda conclusão é que ato e
potência, por serem conceitos originários, são apreendidos somente a partir de um
procedimento intuitivo
181
que inclui a apreensão imediata dos princípios do conhecimento
científico. Evidentes por si mesmos, ato e potência são demonstrados indutivamente por
analogia e devem ser apreendidos de modo imediato a partir da experiência das coisas
particulares.
1.2 Analogia: a unidade para os sentidos cinético e metafísico
O procedimento via analogia tem como propósito não só evidenciar a co-implicação
do par conceitual ato/potência, mas também mostrar o modo como se deve compreender a
relação de unidade que interliga os dois sentidos em que o ser em ato é entendido, os
sentidos metafísico e cinético:“Porém, estar em ato não se diz de todas as coisas do mesmo
modo, senão por analogia: assim como este está neste ou relativo a este, aquele está
naquele ou relativo àquele; pois algumas coisas estão em relação assim como o movimento
à potência, e outras como a substância a certa matéria”.
182
O conceito de ato expressa
mais propriamente a relação com a substância, porém também pode ser entendido por meio
da analogia, quando a investigação é centrada no movimento. A fórmula “A está para B
assim como C está para D” pode ser verificada do mesmo modo, tanto numa investigação
acerca da
ou)si/a, quanto numa investigação acerca da ki/nhsij. Visto que o ponto central
agora é a relação entre
e)ne/rgeia e ou)si/a, na sentença acima, Aristóteles começa a mostrar
a conexão entre ato/potência e forma/matéria, típica do sentido metafísico. Essa conexão
180
Dada esta reciprocidade “não é possível entender o significado do primeiro conceito a não ser
entendendo, juntamente, também o significado do segundo: um condiciona a compreensão do outro e vice-
versa”.
Reale, G., Il concetto di ‘Filosofia prima’ e l’unità della Metafisica di Aristotele, p. 361.
181
“Ato e potência são conceitos que conhecemos com o procedimento intuitivo-indutivo: devemos ‘vê-los’
imediatamente nos particulares; a justificação de sua validade é dada por sua própria evidência: trata-se de
um ver que as coisas são assim e não de outro modo”. Idem, p. 361.
182
le/getai de\ e)nergei¿# ou) pa/nta o(moi¿wj a)ll' hÄ t%½ a)na/logon, w¨j tou=to e)n tou/t% hÄ pro\j tou=to, to/d' e)n
t%½de hÄ pro\j to/de: ta\ me\n ga\r w¨j ki¿nhsij pro\j du/namin ta\ d' w¨j ou)si¿a pro/j tina uÀlhn.
Metafísica, Θ6,
1048b 6-9. Nesta sentença, adotamos a tradução “este está neste” – que é a de Tricot, Ross e Reale – e não
“este existe neste”, no restante, segue-se a tradução de Yebra.
89
também é entendida por meio da seguinte relação de analogia: o ato está para a potência
assim como a forma está para a matéria, ou seja: ato = forma; potência = matéria. Os
conceitos de ato e potência tomados no sentido metafísico são entendidos numa relação
(
pro/j) de proporção em que o ato está para a forma assim como a potência está para a
matéria. A forma (
ei)=doj) está subentendida na ou)si/a, que é o termo que aparece nesse
momento.
Os termos da analogia, portanto, são os seguintes: o ato referente à substância, que é
entendido como “este está neste” (tou=to e)n tou/t%), e aquele está naquele
(
to/d' e)n t%½de); por exemplo, assim como a visão está no olho, também a audição está no
ouvido. O ato é forma (
ei)=doj) porque ambos expressam acabamento e permanência. É por
esse motivo que, nesse ponto, forma é sinônimo de substância. Por outro lado, a potência
coincide com a matéria (
u(/lh) porque esta tem potência para isto ou aquilo. Lembrando o
esquema representativo da analogia: ato é A (visão) e C (audição); é contraposto à potência
que é B (o olho enquanto matéria da visão) e D (ouvido enquanto matéria da audição);
então A está para B assim como C está para D, ou seja, o ato está para a potência assim
com a forma está para a matéria. A mesma estrutura “A está para B assim como C está para
D”, elaborada para expressar o procedimento por analogia, é mantida. Desse modo, fica
expresso que é por meio da analogia que se pode verificar a conexão entre os sentidos em
que ato e potência podem ser entendidos: relativos à substância e ao movimento.
2 O Infinito, o Vazio e o Movimento
A solução é estabelecer um outro modo de se entender o ser em ato/potência, tanto
no aspecto cinético como metafísico:
O infinito, o vazio e as demais coisas semelhantes se diz que estão em potência ou
em ato de modo diferente que muitos dos seres, tal como o que vê ou anda ou é
visível. Porque a estes cabe ser verdadeiros algumas vezes em absoluto (pois o
visível é tanto quando é visto como quando pode ser visto); porém o infinito não
está em potência no sentido em que deva estar separado em ato, mas só no
conhecimento.
183
As atividades ou ações tais como andar e ver se enquadram perfeitamente no
esquema ato/potência, pois tanto há possibilidade de algo ser visto assim como deste
mesmo algo ser realmente visto. Ou ainda, alguém tem a faculdade da visão, mas está de
olhos fechados e quando os abre, vê naturalmente. No caso do infinito (
aÃpeiron) tal
doutrina deve ser interpretada singularmente, pois enquanto uma reta com uma medida
qualquer tem existência própria em qualquer situação, as sucessivas divisões dessa reta
cedem lugar sempre a outras divisões. É possível conceber mentalmente uma linha divisível
infinitamente, mas não se pode dividir infinitamente, tal ato de divisão infinita não é dado.
A interminável divisão não existe separada daquela primeira reta finita. Uma reta finita é
em ato, mas sua infindável divisão, não. Mesmo o infinito, resultante da divisão ou soma do
finito, não se realizará plenamente enquanto infinito, mas somente na ordem do
conhecimento (
gnw/mh), ou seja, no pensamento. Não há, nesse caso, um processo cuja
potência resulte num ato:“Pois do fato de que não termine a divisão (
diai/resij) decorre
que esse ato esteja em potência, mas não que exista em separado”.
184
A coisa que tem
potência para se tornar em ato não passa de um estado a outro de modo súbito, mas respeita
um andamento, um processo. Entretanto, no infinito, ato e potência são simultâneos porque
nunca falta uma potência para ser dividida e se tornar uma parte (resultante da divisão
anterior) em ato, que é novamente divisível em potência e assim sucessivamente, o que
torna impossível o ato estar separado da potência, exceto no pensamento. Ao que tudo
183
aÃllwj de\ kaiì to\ aÃpeiron kaiì to\ keno/n, kaiì oÀsa toiau=ta, le/getai duna/mei kaiì e)nergei¿# <hÄ>
polloiÍj tw½n oÃntwn, oiâon t%½ o(rw½nti kaiì badi¿zonti kaiì o(rwme/n%. tau=ta me\n ga\r e)nde/xetai kaiì a(plw½j
a)lhqeu/esqai¿ pote to\ me\n ga\r o(rw¯menon oÀti o(ra=tai, to\ de\ oÀti o(ra=sqai dunato/nŸ: to\ d' aÃpeiron ou)x ouÀtw
duna/mei eÃstin w¨j e)nergei¿# e)so/menon xwristo/n, a)lla\ gnw¯sei.
Θ6, 1048b 9-15. (Trad., Tricot).
184
to\ ga\r mh\ u(polei¿pein th\n diai¿resin a)podi¿dwsi to\ eiånai duna/mei tau/ thn th\n e)ne/rgeian, to\ de\
xwri¿zesqai ouÃ.
Θ6, 1048b 15-17.
91
indica, na questão do infinito, o ato guarda um novo sentido ou um novo ponto de vista a
partir do qual alguns outros seres podem ser compreendidos, pois o ato aqui, parece apenas
repetir constantemente a potência.
185
O infinito é sempre divisível, nunca está terminado,
está sempre em potência relativamente a outro, nunca termina de se tornar algo diferente.
Não é algo determinado (
to/de ti) tal como é um homem ou uma casa; ele se parece mais
com uma renovação perpétua.
186
Aristóteles reconhece que o infinito pode existir separado em ato, porém somente no
pensamento. Por meio de um exercício do pensamento é possível conceber a perpetuação
de uma divisão qualquer ao infinito.
187
No pensamento, o infinito é um ato que está ao
mesmo tempo em potência, porém não tem existência separada, nunca chega ao ato
pleno.
188
No pensamento podemos conceber, imaginar uma operação (o ato) de dividir ou
de somar indefinidamente, mas tal ato nunca existe como realidade efetiva.
Nesse momento da análise, o que primeiro sobressai é o sentido singular que
potência e ato adquirem quando se trata do infinito. No início de Θ4, Aristóteles refuta
aqueles que afirmam que uma coisa só é possível se já está em ato e, ainda, que uma coisa é
em potência, mas nunca se realizará. Ora, o infinito é exatamente a tal coisa que é possível,
mas que nunca se realiza, nunca se torna ato, exceto de um modo especial, no pensamento.
Disso parece seguir uma contradição direta com a doutrina da potência que tende ao ato
189
,
inclusive porque o próprio pensar é um ato.
190
Parece então que o ato do pensamento é que
guarda uma singularidade, porquanto algo conhecido no pensamento, como o infinito, não
guarda o mesmo valor de atualidade que tem, por exemplo, o ver ou o andar, visto que estes
185
“O infinito é certa potência que tem a particularidade de não poder passar nunca ao ato a qual tende; é a
potência que não termina nunca de estar em potência e na qual o ato, ou melhor, o substituto do ato, não
pode ser nada mais que a reiteração indefinida de tal potência”
. Aubenque, P., Le problème de l’être chez
Aristote, p. 454.
186
Idem, p. 455.
187
Tricot, J. In: Aristote: La Métaphysique, Tome II, p. 500, nota 2.
188
“Parece claro que o sentido próprio da energeia no caso do infinito é que, no e pelo conhecimento, é um
ato que está ao mesmo tempo em potência, porém que não tem existência separada, que não alcança a
entelecheia”. Yepes Stork, R., La doctrina del acto en Aristóteles, p. 257.
189
“Os exemplos mostram que a definição de potência como um movimento tendendo ao ato é
demasiadamente limitada, pois não comporta todos os tipos de potência.” Dumoulin, B., Analyse génétique
de la Métaphysique d’Aristote, p.285.
190
A solução dessa contradição – por um lado, a existência em ato só no pensamento, por outro, o pensamento
é ato – foge ao escopo deste trabalho, mas podemos entendê-lo, em parte, a partir da distinção que Aristóteles
faz, em seguida, entre ato e movimento. (Cf., Θ6, 1048b 18-36).
92
existem efetivamente, enquanto que o infinito nunca está fora do pensamento, é apenas um
exercício de abstração.
O mesmo raciocínio pode ser aplicado ao vazio (
keno/n). Pode-se tirar todos os
corpos de um dado espaço ou lugar, mas não há um vácuo total em ato. Fisicamente,
sempre há algo, havendo também no vazio uma simultaneidade entre potência e ato. Além
do infinito e do vazio, há outras coisas semelhantes que seguem o mesmo sentido, tais
como o espaço, o número e o tempo, que são infinitos de modos diferentes. O espaço
(distância) pode ser entendido como infinito a partir de uma infindável divisão, mas não a
partir de uma infindável adição porque o espaço é finito. De modo contrário é entendido o
número, pois este é infinito segundo a adição, embora não o seja no sentido que um número
infinito exista em ato, mas no sentido em que um número maior que o anterior pode ser
pensado. Mas o número não é infinito segundo a divisão porque ao dividir sempre
retornamos finalmente à unidade, que é o numero limite na direção descendente. Sempre há
a unidade que deriva uma cadeia de números subseqüentes. Quanto ao tempo, este é
infinito tanto a partir da divisão quanto a partir da adição. Mas, assim como no caso do
número, tal infinitude não persiste, é sempre um devir, é sempre sobrepujada por um outro
que vem a seguir.
191
Também o movimento (ki/nhsij) guarda esse aspecto semelhante ao
infinito, pois o movimento parece ser algo que nunca chega ao ato. Todavia, há uma
diferença crucial entre movimento e essas outras noções. Enquanto, por exemplo, o infinito
não guarda a possibilidade de ser verificado numa experiência sensível, o movimento é algo
real, algo facilmente percebido em nosso cotidiano, não é concebível apenas mentalmente;
é um processo que tem início e fim. Portanto, apesar das dificuldades que envolvem sua
definição, o movimento existe, é também ato.
3 A distinção entre Ato e Movimento
Vimos que, no final de Θ3 (1047
a
30), Aristóteles destaca a relação existente entre
ato e movimento, mostrando como a aplicação de ser em ato para todas as outras coisas é
realizada a partir do movimento, ou melhor, a partir das coisas submetidas ao movimento,
já que não há movimento de movimento. Além disso, o fato de o ato incorporar os sentidos
191
Ross, D. In: Aristotle’s Metaphysics, vol. II, p.252.
93
de atividade e de atualidade, e o movimento, reconhecidamente, ser uma atividade,
e)ne/rgeia e ki/nhsij se aproximam ainda mais. No entanto, esta relação não se mostra de
fácil compreensão, por isso, no fim de Θ6, o Estagirita retoma essa discussão enriquecendo-
a com novos elementos conceituais sendo a imanência da finalidade na ação o mais
importante.
Entre os vários propósitos de Θ6, um dos mais importantes é mostrar não mais a
relação entre movimento e ato e sim, a distinção entre eles a partir da imanência ou não da
finalidade (
te/loj) na ação (pra=cij). Esse critério de distinção torna Θ6 um dos lugares
privilegiados para se perceber algumas ligações com outros âmbitos da filosofia
aristotélica, destacadamente, o ético e o político. É a partir dos exemplos apresentados a
seguir que se pode perceber a conexão entre metafísica e ética, esquematizada nas seguintes
relações: por um lado, a ação perfeita tem fim imanente, por isso é ato, então
e)ne/rgeia
coincide com
pra=cij
192
; por outro lado, ação imperfeita tem fim extrínseco, por isso é
movimento, então produção (
poi/hsij) coincide com ki/nhsij. Para deixar mais claro o
propósito de Aristóteles, vamos antecipar as relações que são apresentadas em Θ6. Por um
lado: ação perfeita (
te/leia) é a ação (pra=cij) propriamente dita, por isso coincide com o
ato. Por outro lado: ação imperfeita (
a)telh/j) é dita imperfeita porque é produção
(
poi/hsij) e, desse modo, coincide com o movimento.
A distinção entre
e)ne/rgeia e ki/nhsij é salientada na seguinte passagem:
Visto que das ações que têm limite nenhuma é fim, senão que todas estão
subordinadas ao fim, por exemplo, o fim do emagrecimento é a magreza, e as partes
do corpo, enquanto emagrecem, estão assim em movimento, não havendo aquelas
coisas a qual se ordena o movimento, estas não são uma ação ou, ao menos, não
uma ação perfeita (pois não são um fim). Ação é aquela em que se dá o fim.
193
192
A distinção entre ato e movimento, segundo Ackrill, “está estreitamente relacionada com a distinção
entre ação (
pra=cij) e produção (poi/hsij)”. Ackrill, J. L., Aristotle’s distinction between Energeia and
Kinêsis, in: Essays on Plato and Aristotle, p. 142.
193
¹Epeiì de\ tw½n pra/cewn wÒn eÃsti pe/raj ou)demi¿a te/loj a)lla\ tw½n periì to\ te/loj, oiâon to\ i¹sxnai¿nein hÄ
i¹sxnasi¿a [au)to/], au)ta\ de\ oÀtan i¹sxnai¿nv ouÀtwj e)stiìn e)n kinh/sei, mh\ u(pa/rxonta wÒn eÀneka h( ki¿nhsij, ou)k
eÃsti tau=ta pra=cij hÄ ou) telei¿a ge ou) ga\r te/lojŸ: a)ll' e)kei¿nh <vÂ> e)nupa/rxei to\ te/loj kaiì [h(] pra=cij.
Θ6, 1048b 18-23. Nessa passagem, preferimos não usar o termo “processo”, acrescentado por Yebra – “esses
processos não são uma ação, ou ao menos, não uma ação perfeita” – por ser uma palavra, aparentemente,
ausente do vocabulário de Aristóteles. Também Tricot, Ross e Reale não inserem esse termo em suas
respectivas traduções.
94
A propriedade singular que permite entender a diferença entre ato e movimento é,
segundo Aristóteles, o fato de uma ação ter ou não o fim diferente dela própria. Com base
então na imanência ou não do fim na ação, esta se divide em: perfeita (
te/leia), aquela que
contém em si mesmo o fim e, por isso, é considerada como sendo sinônimo de ato; e
imperfeita (
a)telh/j), aquela que tem limite (pe/raj), que tem o fim distinto da própria
ação, por isso, é entendida como sinônimo de movimento. Para ilustrar essa diferença,
Aristóteles apresenta uma série de exemplos caracterizando ora o ato, ora o movimento:
Por exemplo, alguém vê e ao mesmo tempo tem visto, pensa e tem pensado,
entende e tem entendido, porém não aprende e tem aprendido nem se cura e está
curado. Alguém vive bem e ao mesmo tempo tem vivido bem, é feliz e tem sido
feliz. Senão, seria preciso que em um dado momento pare, como quando emagrece,
porém, agora não, senão que vive e tem vivido.
194
Nessa lista, ver (
o(ra/w), pensar (frone/w), entender (noe/w), viver bem (euÅ za/w) e
ser feliz (
eu)dai/mone/w) representam ações perfeitas, enquanto que aprender (manqa/nw),
curar (
u)giai/nw) e emagrecer (i)sxnai/nomai) representam ações imperfeitas.
Quando alguém se propõe a emagrecer, seu objetivo não é simplesmente o
emagrecimento, mas é a conservação ou reabilitação da saúde do corpo. Logo, a saúde é o
fim, o emagrecimento é apenas o meio. Também a cura tem como propósito restabelecer a
saúde, então, a cura é apenas o meio, a saúde é o fim. O mesmo ocorre no caso do
aprendizado, afinal, todos se propõem a aprender algo para se tornarem sábios, aprender é
apenas o meio, o saber é o fim. Todas essas ações são transitivas porque têm um limite, são
apenas meio para se alcançar um fim diferente delas mesmas
195
, eis o porquê de serem
imperfeitas. São sinônimos de movimento porque todas estão em movimento em direção ao
fim.
Entretanto, na ação de ver algum objeto não é possível separar o ato de ver num
momento e o de ter visto num outro diferente, os dois momentos ocorrem ao mesmo tempo
(
a(/ma), coincidindo, desse modo, meio e fim. Também o ato de pensar algo se confunde
194
oiâon o(r#= aÀma <kaiì e(w¯rake,> kaiì froneiÍ <kaiì pefro/nhke,> kaiì noeiÍ kaiì neno/hken, a)ll' ou) manqa/nei
kaiì mema/qhken ou)d' u(gia/zetai kaiì u(gi¿astai: euÅ zv= kaiì euÅ eÃzhken aÀma, kaiì eu)daimoneiÍ kaiì eu)daimo/nhken.
ei¹ de\ mh/, eÃdei aÃn pote pau/esqai wÐsper oÀtan i¹sxnai¿nv, nu=n d' ouÃ, a)lla\ zv= kaiì eÃzhken.
Θ6, 1048b 22-27.
195
“Todas as ações que têm um limite são meios e não fins”. Tricot, J. In: Aristote: La Métaphysique, Tome
II, p. 503, nota 1.
95
com o de ter pensado algo, ou seja, não é possível separar o pensar e o pensado, assim
como é impossível (em condições ideais) abrir os olhos e não ver. O mesmo se dá para o
entender, o viver bem e o ser feliz. Em todos esses casos, é plenamente aceitável estarem
unidos o tempo presente (ver, pensar) e o tempo passado (visto, pensado); os dois
momentos se confundem e por isso, não são realmente momentos distintos.
Para mostrar que ações imperfeitas (
a)telh/j ou poi/hsij) são o mesmo que
movimento, Aristóteles apresenta uma nova série de exemplos:
Assim, pois, destes processos, uns podem ser chamados movimentos, e outros, atos.
Pois todo movimento é imperfeito: assim o emagrecimento, o aprender, o caminhar,
o construir; estes são, então, movimentos e, portanto, imperfeitos, pois ninguém
caminha e ao mesmo tempo chega, nem constrói e tem construído, nem se torna e
tem se tornado ser, ou se move e tem terminado de se mover, mas são coisas
distintas, como também mover e ter movido. Entretanto, ter visto e ver ao mesmo
tempo é o mesmo, e pensar e ter pensado. A este último chamo ato e ao anterior,
movimento.
196
Nessa lista, além de repetir alguns exemplos, tanto de ações perfeitas (ver e pensar),
como de imperfeitas (emagrecimento e aprendizado), Aristóteles acrescenta outros ao
grupo das ações imperfeitas: caminhar (
badi/zw), construir (oi)kodome/w), tornar-se
(
gi/gnomai) e mover (kine/w). Como não poderia ser diferente, também nessas últimas
ações, fim e meio não coincidem, por isso são ações imperfeitas: o caminhar é sempre a
partir de um lugar em direção a outro; o construir é sempre com o propósito de erguer uma
obra, seja uma casa ou uma ponte; do mesmo modo o tornar-se ou gerar-se, afinal, toda
geração tem como fim último um ser; finalmente, o exemplo mais emblemático, o de
mover, pois o movimento é sempre movimento de algo, que é diferente do próprio
movimento. O mais interessante nesses exemplos é que todos expressam mais propriamente
um fazer, uma produção (
poi/hsij), representam uma realização exterior àquele que a
realiza, assim como uma obra que é exterior ao artista. Esta é a caracterização própria do
movimento, que é imperfeito por definição, também por isso a ação imperfeita é o mesmo
que produção.
196
tou/twn dh\ <deiÍ> ta\j me\n kinh/seij le/gein, ta\j d' e)nergei¿aj. pa=sa ga\r ki¿nhsij a)telh/j, i¹sxnasi¿a
ma/qhsij ba/disij oi¹kodo/mhsij: auÂtai dh\ kinh/seij, kaiì a)teleiÍj ge. ou) ga\r aÀma badi¿zei kaiì beba/diken, ou )d'
oi¹kodomeiÍ kaiì %©kodo/mhken, ou)de\ gi¿gnetai kaiì ge/gonen hÄ kineiÍtaikaiì keki¿nhtai, a)ll' eÀteron, kaiì kineiÍ
kaiì keki¿nhken
e(w¯rake de\ kaiì o(r#= aÀma to\ au)to/, kaiì noeiÍ kaiì neno/hken. th\n me\n ouÅn toiau/thn e)ne/rgeian
le/gw, e)kei¿nhn de\ ki¿nhsin.
Θ6, 1048b 28-35.
96
Para as ações perfeitas, Aristóteles não acrescenta outros exemplos além daqueles já
inseridos na primeira listagem, apenas ressalta o ver e o pensar, que parecem melhor
representar essa ação.
Na primeira lista de exemplos foi salientada a coincidência entre ação e fim. Já na
segunda lista, a coincidência é, por um lado, entre ação e ato - verificável a partir da
repetição de dois exemplos (ver e pensar) nas duas listas –; por outro, entre movimento e
produção. Cabe examinar melhor tais relações a partir, primeiro, de uma retomada da
análise sobre a relação entre ato e movimento considerando a potência; posteriormente,
com a avaliação das implicações quanto à coincidência entre ato e ação e também entre
movimento e produção.
3.1 O Movimento é imperfeito
Toda ação cujos meios são nitidamente distintos do fim é caracterizada como um
movimento. A diferenciação entre ação perfeita e imperfeita pode ser enriquecida com o
auxílio da análise do movimento elaborada no livro III da Física, em que Aristóteles
apresenta de modo mais explícito uma definição do movimento a partir do par ato/potência:
“O movimento é, pois, o ato (
e)ntele/xeia) da potência, quando o estar em ato atua
(
e)nergv=) não enquanto ao que é em si mesmo, mas enquanto é móvel”.
197
Nessa sentença,
movimento é considerado como
e)ntele/xeia, mais especificamente, como atividade da
potência, ou ainda como o colocar a potência em atividade. Parece bem confuso,
principalmente depois de ter sido proposta a divisão de sentidos – embora seja apenas uma
divisão didática – cujo termo
e)ntele/xeia revelaria melhor o atualizar ou atualidade, e
e)ne/rgeia o atuar ou atividade. Contudo, isso pode ser esclarecido a partir da
caracterização da
du/namij enquanto disposição
198
ou propensão para algo e,
respectivamente, da
e)ne/rgeia enquanto exercício dessa disposição.
199
Logo, movimento
197
h( de\ tou= duna/mei oÃntoj <e)ntele/xeia>, oÀtan e)ntelexei¿# oÄn e)nergv= ou)x v au)to\ a)ll' v kinhto/n, ki¿nhsi¿j
e)stin.
Física, III 1, 201ª 29-33.
198
“Cabe entender também o potencial como disposição, in casu, como disposição para chegar a ser uma
estátua; energeîn é no corpus o vocábulo usual para indicar o exercício de uma disposição.” Guillermo de
Echandía, in: Aristóteles, Física, livro III, p. 179, nota 8.
199
“O verbo energein (‘operar’) é apropriado para o exercício de uma disposição ou capacidade.” Edward
Hussey in: Aristotle, Physics, p. 61, nota 201a 27.
97
como atividade da potência é o mesmo que colocar a potência em atividade, não enquanto a
atividade é plena (atualizada), mas enquanto está em movimento, em processo.
Considerando o duplo aspecto do ato - como
e)ne/rgeia, enquanto atividade criadora, e
como
e)ntele/xeia, enquanto acabamento, como atualização -, percebe-se que nessa
definição do movimento, Aristóteles acentua o caráter operativo do ato, ou seja, da
e)ne/rgeia enquanto atividade, deixando em segundo plano o seu caráter estático, o da
e)ntele/xeia.
O exemplo dado, na Física, oferece meios de melhor elucidar esta definição do
movimento: “e o ato (
e)ne/rgeia) do construível, enquanto construível é o estar em
construção, porque o ato do construível é o estar em construção ou a casa, porém quando
a casa existe já, não é construível; o que se constrói é o construível. Esse ato, então, terá
que ser o estar em construção; e o estar em construção é um certo movimento”.
200
O que
define o ser construível é a atividade, é o exercício da construção e não o fato de a
construção ter chegado ao seu acabamento, pois isso significaria estar parado. Movimento é
a casa apenas enquanto está sendo construída, não enquanto está acabada. É por isso que o
movimento se dá somente enquanto a potência é exercida, enquanto é atualizada, caso
contrário, o movimento seria identificado com o próprio ato enquanto atualidade, enquanto
ato pleno.
No exemplo da construção de uma casa é possível identificar a seguinte relação: os
materiais disponíveis para a construção de uma casa (pedras, tijolos, cimento) são uma casa
em potência. Essa potência é verificada no exercício da construção, ou seja, na medida em
que se está construindo. Esse mesmo processo de construção é um movimento, portanto,
uma atividade que é o exercício daquela potência. Finalmente, a casa é a atualização de
todo o processo anterior, tanto do exercício da potência como o fim último da atividade,
identificada aqui com o movimento.
Note-se como o movimento parece estar no limbo entre potência e ato, não podendo
ser qualificado definitivamente como sendo qualquer um dos dois isoladamente. Em outra
sentença da Física, o próprio Aristóteles reconhece a dificuldade em promover uma
200
kaiì h( tou= oi¹kodomhtou= e)ne/rgeia, v oi¹kodomhto/n, oi¹kodo/mhsi¿j e)stin hÄ ga\r oi¹kodo/mhsij h( e)ne/rgeia
[tou=oi¹kodomhtou=] hÄ h( oi¹ki¿a: a)ll' oÀtan oi¹ki¿a vÅ, ou)ke/t' oi¹kodomhto\n eÃstin: oi¹ kodomeiÍtai de\ to\
oi¹kodomhto/n: a)na/gkh ouÅn oi¹kodo/mh sin th\n e)ne/rgeian eiånaiŸ: h( d' oi¹kodo/mhsij ki¿nhsi¿j tij.
Física, III,
201b 9-18.
98
definição clara do movimento: “O motivo pelo qual se pensa que o movimento é indefinido
(
a)o/riston) está no fato de que não se pode entendê-lo em sentido absoluto como uma
potência nem como um ato das coisas; (...) E se pensa que o movimento é um certo ato,
ainda que imperfeito”.
201
Por um lado, Aristóteles afirma que só há movimento enquanto a
potência está sendo atualizada, entendendo o movimento como uma atualização (um ato)
que em cada momento de sua realização é incompleta e, por isso, é ação imperfeita, é
produção. Por outro lado, mesmo a potência sendo definida como princípio de movimento,
ela mesma é entendida sempre em conexão com o ato, da qual depende a realização de sua
forma. Ao mesmo tempo em que não é plausível negar o movimento, pois é nossa
experiência mais imediata, ele mesmo não se deixa ajustar inteiramente nos padrões
conceituais elaborados pelo Estagirita.
O movimento é sempre divisível, não tem fim, também não é um isto (
to/de ti),
algo que seja passível de ser indicado isoladamente, que seja separado das outras coisas,
portanto, não tem existência independente dos seres. Enquanto o ato é o próprio existir da
coisa, o movimento não existe sem a coisa. Além disso, movimento não é ato propriamente
dito, tampouco é potência, mas é algo que está entre um e outro, promovendo uma ligação
entre eles e, justamente, essa característica de oscilação e de elemento de ligação subscreve
a definição de movimento como sinônimo de ação imperfeita.
Apesar das dificuldades para estabelecer a diferença entre
e)ne/rgeia e ki/nhsij, é
preciso assumir que o movimento é a atualidade do que é passível de sofrer ou promover
movimento por meio da atividade daquele que tem a capacidade para mover ou ser movido.
Em suma, movimento é o estar realizando aquilo que está em estado potencial. Mesmo que
não seja possível estabelecer uma definição mais detalhada, todos têm, a partir da
experiência, uma apreensão imediata do movimento. Desse modo, Aristóteles parece apelar
novamente para o processo de apreensão imediata de um conceito, porque o movimento “é
um certo ato, um ato tal como temos dito, difícil de captar, porém admissível”.
202
Ao se
admitir seu entendimento, de algum modo o movimento é captado, é apreendido.
201
tou= de\ dokeiÍn a)o/riston eiånai th\n ki¿nhsin aiãtion oÀti ouÃte ei¹j du/namin tw½n oÃntwn ouÃte ei¹j e)ne/rgeian
eÃstin qeiÍnai au)th/n: (…) hÀ te ki¿nhsij e)ne/rgeia me\n eiånai¿ tij dokeiÍ, a)telh\j de/.
Física, III, 201b 28-32.
202
e)ne/rgeian me/n tina eiånai, toiau/thn d' e)ne/rgeian oiàan eiãpamen,
Embora essa sentença seja da Física, também em
Q pode-se perceber que, ao
aprofundar a análise da relação entre ser e movimento, os conceitos de ato e potência não
respondem totalmente às pretensões de Aristóteles, o que ele mesmo deixa transparecer nas
entrelinhas. Isso ocorre, por exemplo, no caso do infinito, do vazio e agora também no
próprio esquema elaborado para destacar a imanência do fim na ação.
3.2 Ato e Ação
Para entender a identidade entre ação e ato é preciso considerar a idéia de
completude e de ausência de limites. O limite (
pe/raj) é entendido como o cessar da ação
em cada instante, como se o tempo de execução da ação fosse diferente do tempo em que
esta mesma ação alcançou seu propósito final. Segue-se que o fazer é ação imperfeita
porque cessa depois de realizar seu propósito, como ocorre no caso da construção de uma
casa, pois ninguém continua construindo a casa depois de já ter terminado sua construção.
Já as ações perfeitas são assim consideradas porque são indefinidamente contínuas
203
em
que o momento da execução não difere do seu propósito, como no exemplo do pensar em
que fica clara a identidade entre pensar alguma coisa e ter pensado sobre essa mesma coisa.
Portanto, é a existência do limite que expressa a possibilidade ou não de continuidade no
tempo. Assim, estar vendo e ter visto são compatíveis, porque acontecem ao mesmo tempo,
sendo então, uma ação (
pra=cij) por excelência
204
. No entanto, construir uma casa e ter
construído uma casa não acontece ao mesmo tempo, então é uma ação imperfeita, é um
fazer, uma produção (poi/hsij).
Essa diferença entre ação e produção é exposta mais explicitamente na Ética a
Nicômacos, o que permite mostrar melhor a relação entre ato/ação e fazer/movimento.
Como afirma Aristóteles: “Assim, pois, enquanto o fazer tem um fim diferente de si mesmo,
o fim na ação não pode ser senão a própria ação, pois agir é um fim em si”.
205
Entre os
203
“A primeira distinção entre atividades que têm um limite e aquelas que não têm, sugere naturalmente a
distinção entre atividades que são indefinidamente contínuas e aquelas que não são”. Ackrill, J. L.
Aristotle’s distinction between Energeia and Kinêsis, in: Essays on Plato and Aristotle, p. 143.
204
“Essa atividade imanente é, para Aristóteles, o tipo de atividade por excelência (e)ne/rgeia), o ato em
sentido próprio, que está apto a se perpetuar, é completo e acabado em todos seus momentos, e não termina
quando seu fim é alcançado”. Tricot, J. In: Aristote: La Métaphysique, Tome II, p. 502.
205
th=j me\n ga\r p
󹜁Q
]󰁧
t
t
exemplos de ação estão o viver bem (
euÅ za/w) e ser feliz (eu)dai/mone/w), que remetem
diretamente à sua concepção ética, cujo propósito é investigar qual o bem supremo para o
ser humano. Aristóteles declara que a felicidade (
eu)daimoni/a) é o fim último do homem,
ao qual tendem todas suas ações; é o bem supremo porque todas as outras ações são
exercidas visando a esse último bem.
206
A felicidade é fim em si mesma, perfeita e auto-
suficiente. Expressa o tipo de vida mais desejável e satisfatória conforme uma escolha
racional. Não é definida como um processo ou movimento, mas como a própria ação.
207
A
auto-suficiência da felicidade é o aspecto que lhe permite a continuidade no tempo, que é o
mesmo que ausência de limites, por isso é ação e não uma produção. Desse modo, ver,
pensar, viver ou ser feliz são imediatos e depreendem da idéia de completude, tal como o
ato que está inteiro no agente e não precisa de um objeto para se concretizar
208
; a visão está
inteira no sujeito que vê, o pensar se confunde com o pensado. Porém, o aprender e o
construir requerem prática, hábito, requerem um processo cujo início e término estão bem
delimitados, tal como o movimento que se encerra na medida em que a coisa é realizada, é
terminada.
Apesar de a identificação entre ato/ação surgir a partir da diferença entre ato e
movimento, para não se correr o risco de reduzir a teoria aristotélica a um sistema restrito e
inflexível a partir de seus exemplos, convém examinar tais relações a partir do mesmo
método proposto para definir o par conceitual ato/potência: o procedimento via analogia.
Com isso, além de se eliminar algumas controvérsias a respeito da utilização confusa que
Aristóteles faz dos seus exemplos
209
, também se evita a estagnação de sua teoria, que
206
“Parece que a felicidade, mais que qualquer outro bem, é tida como este bem supremo, pois a escolhemos
sempre por si mesma e nunca por causa de algo mais”.
toiou=ton d' h( eu)daimoni¿a ma/list' eiånai dokeiÍ:
tau/thn ga\r ai¸rou/meqa a)eiì di' au)th\n kaiì ou)de/pote di' aÃllo.
Ética a Nicômacos, 1097
a
34-1097b 3.
207
Cf., Ética a Nicômacos, 1099b 24-30.
208
“O ato está, assim, inteiro no agente e não se concretiza em um objeto: a visã
ocorreu quando alguns filósofos, medievais e modernos, tentaram classificar sua filosofia
como um sistema fechado e estanque.
Aristóteles coloca num mesmo grupo as ações de ver e pensar juntamente com ser
feliz, no entanto, sabe-se que a visão é, na verdade, um meio para se alcançar um objetivo:
ver um objeto. Seria possível, inclusive, incluir todos os outros sentidos (tato, paladar,
audição e olfato) nesse mesmo grupo, pois também não há como separar, por exemplo, o
momento em que se sente algo e o momento em que algo é sentido. Porém, por definição,
os nossos sentidos são apenas meios (que o organismo animal dispõe para receber
impressões) para satisfazer um fim (reconhecer os objetos exteriores). Portanto, ver, sentir
ou ouvir, estariam todos aparentemente mais próximos da noção de movimento do que de
ação. Então como a visão poderia assemelhar-se à felicidade? A resposta está em não se
prender demasiadamente às coisas (visão, construção, pensar, felicidade) as quais
Aristóteles utiliza como exemplos, porque essas mesmas coisas podem aparecer num outro
momento de sua teoria para representar uma situação aparentemente controversa à anterior.
O uso desses exemplos ocorre sempre com o objetivo de ressaltar um princípio, uma regra,
um padrão, uma lei, enfim, uma relação na qual se possa identificar e, conseqüentemente,
expressar um conceito ou situação que, geralmente, não admite uma definição estrita. Na
analogia, o importante não é os objetos, as coisas, ou elementos usados e sim, a relação
existente entre coisas pertencentes a gêneros, por vezes, totalmente díspares, mas que
agrupados de um certo modo permitem identificar semelhanças e diferenças proporcionais
entre seus elementos.
O método da analogia de proporção pode, por exemplo, ser requisitado para
expressar melhor a diferença entre ato/ação e movimento/produção. Adotando a estrutura
característica da proporção, A está para B assim como C está para D, pode se estruturar a
seguinte relação: o ato está para o movimento assim como a ação está para a produção. A
diferença que caracteriza a separação entre ato e movimento é a mesma que caracteriza a
distância entre agir e fazer. Nesse caso, a distância/diferença entre esses elementos tem,
inclusive, um nome: limite (
pe/raj). Esse é o critério para entender a diferença entre os
dois pares e que permite reconhecer a imanência ou não do fim na atividade, porque
nos movimentos não há
te/loj
imanente, senão limite (
pe/raj
).” Yepes Stork, R., La doctrina del acto en
Aristóteles, p. 105.
102
enquanto ato e ação têm fim imanente, o movimento e o fazer só possuem limites. Desse
modo, é a clara demarcação entre a ação e sua finalidade que determina se esta ou aquela
ação é
pra=cij ou poi/hsij, e)ne/rgeia ou ki/nhsij.
Além disso, é preciso não perder de vista o motivo de estabelecer essa distinção.
Aristóteles não está aqui estabelecendo uma oposição entre dinâmico (em movimento) e
estático (parado).
210
Ato (e)ne/rgeia) e ação perfeita (te/leioj) por um lado, movimento
(ki/nhsij) e ação imperfeita (a)telh/j) por outro, pretendem delimitar a existência de uma
ação (
pra=cij) que mantém certa estabilidade expressa, por exemplo, numa vida boa cujas
atividades combinam presente e passado, como também, presente e futuro, ser e devir,
atividades que guardam certa completude, que não são um processo.
A relação entre ato/ação e movimento/produção caracterizada pela imanência do fim
também pode ser evidenciada ao se invocar os elementos constitutivos na definição do
vocábulo
e)ntele/xeia. A própria construção da palavra já expressa uma correspondência
total entre a ação e o fim:
e)n + te/loj + e)/xw (em + fim + ter), ou seja: ter + em + fim,
ter o fim na coisa mesma. A simples conjunção desses três elementos já é suficiente para
expressar a imanência do
te/loj no e)/rgon, não significando, nada mais nada menos, do
que a diferença entre ser e devir. Enquanto na
ki/nhsij o ser é diferente do devir, na
e)ntele/xeia o ser é igual ao devir, o tempo presente (ver, pensar) se confunde com o tempo
passado (visto, pensado) porque o fim não se distingue da ação. Para demarcar mais
consistentemente a diferença entre ação e produção, talvez seja melhor conceber o ato
como
e)ntele/xeia, pois o termo e)ne/rgeia não explicita esse aspecto. Evidentemente, esse
posicionamento só pode enriquecer a compreensão sobre Aristóteles caso nunca seja
desconsiderada a flexibilidade no uso que ele mesmo faz de muitos vocábulos envolvidos
em sua filosofia.
A finalização de Θ6 com a distinção entre ato e movimento expressa bem o novo
caminho da análise dos conceitos de ato e potência, enfocada agora diretamente na
substância. A correlação entre ato e potência, evidenciada a partir da analogia de proporção,
mostrou a complexidade da investigação quando o aspecto principal é o metafísico. O ato é
210
“Para penetrar na compreensão dessa noção, devemos renunciar à oposição entre o dinâmico e o estático
(e, nós modernos expontaneamente consideramos que o dinâmico é a vida, e que o estático é a morte); há
uma estabilidade da vida em suas atividades mais elevadas, como a atividade sensitiva e a atividade
intelectual.” Dumoulin, B., Analyse génétique de la Métaphysique d’Aristote, p.284.
103
o conceito que expressa realmente esse sentido fundamental, deixando transparecer sua
relação com a forma e, portanto, com a substância.
4 Atualização da Potência enquanto Matéria
Em Θ7, Aristóteles se empenha definitivamente em mostrar a relação entre matéria
e potência, tratando mais detalhadamente das condições necessárias para a atualização da
potência enquanto matéria. Essa análise repete em muitos pontos aquela outra efetuada nos
primeiros capítulos do livro Θ, entretanto, como o foco é todo voltado ao aspecto
metafísico, Θ7 pressupõe toda a análise realizada em Θ6, pois é nesse último que se torna
mais evidente o sentido metafísico de ato/potência. Nesse momento da investigação, é
fundamental compreender a potência não mais estritamente como princípio de movimento,
mas como matéria
(u(/lh).
A necessidade de especificar as condições da potência enquanto matéria deve-se,
provavelmente, à preocupação de Aristóteles em não ceder espaço para algumas teses que
sustentam que todas as coisas se encontram unidas de tal maneira que é impossível
distinguir o que é do que não é, o ser do não-ser, assumindo com isso conceitos confusos e
incapazes de explicarem a realidade.
Entre as condições analisadas a seguir, Aristóteles destaca o tempo (
pote/), o lugar
(
to/poj), a disposição (e(/cij) e a própria composição material (u(/lh) que, de algum modo,
estão incluídas nas potências passiva e ativa. O início de Θ7 ressalta a importância dessa
análise:
Devemos determinar quando uma coisa está em potência e quando não, pois nem
sempre o está. A terra, por exemplo, é em potência um homem? Ou não, mas só
quando já se converteu em sêmen, ou talvez, nem mesmo assim? Do mesmo modo
nem tudo pode ser curado pela medicina ou pelo acaso, porém há algo que pode, e
este é o saudável em potência.
211
211
Po/te de\ duna/mei eÃstin eÀkaston kaiì po/te ouÃ, dioriste/on: ou) ga\r o(poteou=n. oiâon h( gh= aÅr' e)stiì duna/mei
aÃnqrwpoj; hÄ ouÃ, a)lla\ ma=llon oÀtan hÃdh ge/nhtai spe/rma, kaiì ou)de\ to/te iãswj; wÐsper ouÅn ou)d' u(po\
i¹atrikh=j aÀpan aÄn u(giasqei¿h ou)d' a)po\ tu/xhj, a)ll' eÃsti ti oÁ dunato/n e)sti, kaiì tou=t' eÃstin u(giaiÍnon
duna/mei.
Metafísica, Θ7, 1048b 37-1049
a
5.
104
Não é em qualquer momento ou circunstância que alguma coisa pode atualizar sua
potência. Sabe-se que todos os seres da natureza (do mundo sublunar) são compostos de, no
mínimo, um dos quatro elementos, mas tais seres não são resultantes de mera junção dos
elementos. O homem não é um amontoado de ar, água e terra. A união acontece num certo
tempo, de certo modo e ocorre por meio de um processo. O sêmen não é, de imediato, um
homem em potência, pois requer também uma outra coisa para isso, nesse caso, o óvulo,
mesmo assim, ainda não é suficiente. Do mesmo modo, não é qualquer coisa que pode ser
curada pela arte da medicina, mesmo considerando a hipótese da cura por acaso. Uma pedra
não é potencialmente um paciente para um médico, mas uma pessoa sim, e mesmo essa
pessoa, na qualidade de paciente, deve apresentar algumas pré-condições para que o
exercício da medicina possa efetuar-se com sucesso.
Toda a análise da atualização da potência enquanto matéria refere-se tanto às coisas
que têm origem a partir da arte quanto às naturais, não desconsiderando suas
especificidades. Desse modo, Aristóteles propõe analisar as condições da potência
conforme o princípio do devir seja externo (artificial) ou interno (natural).
(1) Princípio externo para o devir: todo ser cujo princípio de geração está em outro
que não nele mesmo passa do ser em potência ao ser em ato sempre por meio da
interferência de um agente externo:
E a definição do que a partir da inteligência chega a estar em e)ntele/xeia desde
seu estado em potência é quando, tendo querido, chega a ser, não impedindo-o nada
externo, e ali, no que é curado, quando nada no paciente o impeça. E de maneira
semelhante está em potência também uma casa; se não há nesta, isto é, na matéria,
nada que impeça que venha a ser casa, nem que haja nada que deva se acrescentar
ou se suprimir ou mudar, esta é em potência uma casa.
212
No caso daqueles seres que para passar da potência ao ato dependem da arte,
(
te/xnh) o princípio do agente é a inteligência (dia/noia). Assim sendo, há alguns fatores
que envolvem tanto a potência passiva quanto a potência ativa: primeiro, a vontade
(
bou/lhsij), tanto do agente quanto do paciente; segundo, havendo vontade, essa potência
212
oÀroj de\ tou= me\n a)po\ dianoi¿aj e)ntelexei¿# gignome/nou e)k tou= duna/mei oÃntoj, oÀtan boulhqe/ntoj
gi¿gnhtai mhqeno\j kwlu/ontoj tw½n e)kto/j, e)keiÍ d' e)n t%½ u(giazome/n%, oÀtan mhqe\n kwlu/v tw½n e)n au)t%½:
o(moi¿wj de \duna/mei kaiì oi¹ki¿a:
ei¹ mhqe\n kwlu/ei tw½n e)n tou/t% kaiì tv= uÀlv tou= gi¿gnesqai oi¹ki¿an, ou )
d' eÃstin oÁ deiÍ prosgene/sqai hÄ a)pogene/sqai hÄ metabaleiÍn, tou=to duna/mei oi¹ki¿a:
Θ7, 1049
a
5-11.
105
se realiza caso nada externo (tempo,lugar) ou interno ao paciente o impeça de sofrer a
atuação do agente.
Pode-se tomar como exemplo a arte da medicina.
213
O médico quer curar e o
paciente quer ser curado.
214
Porém não basta vontade, é necessário que o paciente tenha já a
potência, uma pré-disposição para ser saudável, porque se o paciente estiver fatalmente
debilitado ou for irreparavelmente incurável (como uma cegueira), então sequer há potência
para ocorrer a cura. Não é só o caso citado anteriormente da pedra que não pode ser curada
pela medicina; mesmo para um animal, se o seu estado de debilidade é irremediavelmente
incurável, não há potência. A matéria é o paciente (doente), o agente é o médico e a forma a
ser alcançada é a saúde, que é também o ato.
Há ainda o exemplo da construção de uma casa. Para se afirmar que há uma casa em
potência numa certa matéria é preciso que não exista nada nesta matéria que impeça o vir a
ser da casa. Ela precisa de tijolos, mas isto não é o suficiente, esses tijolos não podem ser
irremediavelmente defeituosos (quebrados ou mal cozidos) a tal ponto de inviabilizar seu
aproveitamento; eles precisam chegar às mãos do construtor da maneira apropriada para
que potencialmente sejam uma casa. Além da matéria apropriada, nada deve ser
acrescentado ou suprimido desta matéria, nem mesmo modificada. Caso ela precise sofrer
alguma modificação, algum ajuste posterior, é porque ela não é adequada. Se não houver
interferência (acréscimos, modificações) então há um processo único, ou seja, o material é
apropriado, chega a seu destino sem precisar daqueles ajustes que o desqualificam enquanto
matéria potencialmente atualizável. Isso porque não é função do construtor acrescentar,
suprimir ou modificar algo desse material; sua função é estritamente construir a casa.
Portanto, para os seres gerados pela arte há duas exigências: (1º) o processo que
expressa a passagem da potência ao ato precisa ser único, deve efetuar-se por meio de uma
única ação; (2º) esse processo depende também de um princípio ativo de mudança, uma
capacidade no agente. No caso da construção da casa, não basta o material ser deste ou
daquele modo propício, mas é ainda necessária a ação específica de um construtor, daquele
que possui a arte de construir para se efetivar tal processo.
213
A explicação dos dois exemplos, da medicina e da construção, tem como base a minuciosa análise de
Michael Frede. Cf. Frede, M., Aristotle’s notion of potentiality in metaphysics Θ, in: Unity, identity, and
explanation in Aristotle’s metaphysics, p. 188-189.
214
A cura também pode ocorrer por acaso, mas isso não interfere no raciocínio que estamos expondo.
106
A análise da atualização da potência, mesmo enquanto matéria, não apresenta
muitas novidades em relação àquelas condições e limites da potência indicados em Θ5,
exceto por destacar a inteligência (
dia/noia) como fator que ultrapassa as condições
próprias da matéria. A inteligência é o que reflete a prevalência da potência ativa sobre a
potência passiva, da forma sobre a matéria, do ato sobre a potência. Qualquer que seja o
material envolvido, para a arte, a verdade é que o ser em potência sempre depende de uma
atividade exterior que tenha potência ativa para promover a mudança em questão. A terra,
por exemplo, enquanto não é transformada em tijolos não é em potência uma casa, caso
contrário seria correto afirmar que tudo está em tudo irrestritamente. Somente a partir de
uma atividade específica capaz de transformar uma porção de terra em tijolos - que depois
são cozidos e transportados de modo que um construtor possa trabalhá-los - é que se pode
constatar que tal matéria pode se atualizar. Em suma, para todo ser cujo princípio de
geração está em outro, a matéria requer o exercício da potência ativa.
(2) Princípio interno para o devir: mesmo os seres naturais precisam obedecer
algumas condições para atualizarem suas potências:
E, das que o têm em si mesmas, quantas, se nada externo o impede, serão por si
mesmas; por exemplo, o sêmen ainda não (pois deve cair em outro e mudar), porém
quando por seu próprio princípio seja tal, então é este em potência; em seu primeiro
estado necessita de outro princípio, do mesmo modo que a terra ainda não é uma
estátua em potência (pois deve mudar e se converter em bronze).
215
A primeira e principal condição é a ausência de impedimentos externos. O ser
natural, por possuir um princípio interno, tende espontaneamente (por si mesmo) à
atualização de sua potência. A segunda condição é, de fato, a compreensão da matéria mais
próxima, pois não é qualquer matéria em qualquer tempo ou situação que pode se atualizar.
Aristóteles cita o exemplo do sêmen; este não é matéria potencialmente atualizável, não é já
um animal ou homem em potência, pois o sêmen precisa ainda ser depositado no ventre. O
sêmen guarda uma distância muito grande do homem em potência, mas o embrião sim pode
ser considerado potencialmente homem, porque é um certo tipo de matéria resultante de
dois princípios (masculino e feminino) que unidos são potencialmente atualizáveis na
215
kaiì oÀswn dh\ e)n au)t%½ t eÃxonti, oÀsa mhqeno\j tw½n eÃcwqen e)mpodi¿zontoj eÃstai di' au)tou=: oiâon to\
spe/rma ouÃpw deiÍ ga\r e)n aÃll% <peseiÍn> kaiì metaba/lleinŸ, oÀtan d' hÃdh dia\ th=j au(tou= a)rxh=j vÅ toiou=ton,
hÃdh tou=to duna/mei: e)keiÍno de\ e(te/raj a)rxh=j deiÍtai, wÐsper h( gh= ouÃpw a)ndria\j duna/mei meta balou=sa ga\r
eÃstai xalko/jŸ.
Θ7, 1049
a
13-18.
107
forma homem. Do mesmo modo, não se pode simplesmente afirmar que a terra é uma
estátua de bronze em potência, afinal, a terra é muitas coisas em potência e tal afirmação
não acrescenta conhecimento algum sobre as condições da matéria. O correto é afirmar que
a terra é o bronze (minério) em potência e este bronze, extraído e depois manufaturado, é
sim uma estátua de bronze em potência.
A principal conclusão até aqui sobre as condições da matéria, ou da potência, tanto
para a geração a partir da arte quanto para a natural, é que, apesar de tratar da
matéria/potência, Aristóteles torna evidente que não é simplesmente a partir de uma extensa
série de mudanças que uma coisa chega a ser outra. Não há uma série indeterminada para a
atualização da potência. Há um caminho da potência ao ato, da matéria à forma, e esse
caminho é viabilizado por meio de um agente capaz de promover o movimento ou o
repouso, ou seja, uma causa motriz
216
. Essa causa (ai)ti/a) é o fator que explica o
movimento ou qualquer processo de geração.
Assim, ser em potência não é mera possibilidade de vir a ser, como se ao longo da
história um punhado de terra, ar, fogo e água viessem a ser ou não um homem. Há um
processo específico que requer a observação de algumas condições para se atualizar,
principalmente uma causa motriz, um agente dotado de potência para atuar na matéria.
4.1 Matéria próxima e Matéria primeira
Como parte da delimitação da potência enquanto matéria, Aristóteles propõe-se a
investigar a causa material do ser enquanto potência. A causa material – aquilo de que são
feitas as coisas – é identificada por meio de um processo de seleção do material constituinte
mais próximo em direção ao mais distante até se encontrar a matéria originária, a primeira
da série. A matéria que tem potência para se atualizar é a matéria próxima, de acordo com o
que Aristóteles afirma a seguir: “Mas parece que, quando dizemos de algo que não é ‘tal
coisa’, mas ‘de tal coisa’ (...) aquilo é em potência, sempre e sem limitações, o que segue
216
Aristóteles não utiliza o termo causa motriz, mas a idéia fundamental, que está no livro III da Física e no
livro A da Metafísica, é de um princípio de movimento. Desse modo, entendendo causa motriz como
sinônimo de causa eficiente, Brentano explica:“Tudo que é alguma coisa em potência não chega ao ato senão
sob a influência de uma causa eficiente. Assim, a cada ser em potência corresponde uma causa eficiente
determinada e respectiva atividade, seja a partir da arte, em que o princípio de perfeição é exterior ao ser em
potência, seja a partir da natureza, em que o princípio é inerente. Brentano, F. De la diversité des
acceptions de l’être d’après Aristote, p. 62.
108
imediatamente”.
217
A matéria próxima é a que se segue imediatamente, é aquela passível de
ser atualizada, enquanto a matéria prima é a mais distante da série. Aristóteles cita os
exemplos da terra e da madeira para que se possa fazer a distinção: “a caixa não é madeira,
mas de madeira, e a madeira não é terra, mas de terra, e por sua vez, a terra, se está no
mesmo caso, não é tal outra coisa, mas de tal outra coisa”.
218
A caixa é a “tal coisa” e é
feita de “tal coisa”, é feita de madeira. Assim, a caixa não é madeira e sim de madeira,
também a madeira não é terra, mas de terra. A terra não é ar, ou fogo, mas é de ar ou de
fogo. Não é totalmente correto afirmar que a caixa é de terra e sim, que é de alguma matéria
mais próxima: a madeira. É essa matéria mais próxima, a madeira, que é potencialmente a
coisa em questão, a caixa, enquanto que a terra é somente a matéria distante.
Aristóteles finalmente explica o que é a matéria primeira (
prw/th u(/lh), que está
no outro extremo da matéria próxima: “Porém, se há algo primeiro, do qual já não se diz,
com referência a outro, que é ‘de tal coisa’, este será a matéria primeira; por exemplo, se
a terra é de ar, e se o ar não é fogo, mas de fogo, o fogo será matéria primeira sem ser
algo determinado”.
219
Caso exista algo originário, uma matéria primeira, ela não é algo
completamente ausente de forma, sem qualquer determinação. Caso fosse absolutamente
sem forma (o que é impossível em ato), nem sequer poderíamos dizer algo dessa coisa
disforme ou, no mínimo, nunca poderíamos conhecer essa “total ausência de forma”. A
matéria primeira possui forma
220
, que é um dos quatro elementos constituintes do mundo
sublunar, por exemplo, a forma do fogo, aquela pela qual nós o chamamos de fogo, assim
como os outros elementos mantêm sua forma que os tornam passíveis de separação e
determinação. Na série acima, terra é de ar, ar é de fogo; o fogo é a matéria prima, enquanto
que a matéria próxima é o ar.
Enfim, a matéria primeira não é pura indeterminação, apenas é indeterminada em
relação a uma coisa determinada, por exemplo, em relação à madeira de uma caixa. Sua
217
eÃoike de\ oÁ le/gomen eiånai ou) to/de a)ll' e)kei¿ninon (...) a)eiì e)keiÍno duna/mei a(plw½j to\ uÀstero/n e)stin. Θ7,
1049
a
18-22.
218
to\ kibw¯tion ou) cu/lon a)lla\ cu/linon, ou)de\ to\ cu/lon gh= a)lla\ gh/i+non, pa/lin h( gh= ei¹ ouÀtwj mh\ aÃllo
a)lla\ e)kei¿ninon
. Θ7, 1049
a
19-21.
219
ei¹ de/ ti¿ e)sti prw½ton oÁ mhke/ti kat' aÃllo le/getai e)kei¿ninon, tou=to prw¯th uÀlh: oiâon ei¹ h( gh= a)eri¿nh, o(
d' a)h\r mh\ pu=r a)lla\ pu/rinoj, to\ pu=r uÀlh prw¯th ou) to/de ti ouÅsa.
Θ7, 1049
a
24-27.
220
“Para Aristóteles esse é o mais próximo que se pode chegar para uso de prw/th u(/lh no sentido de
matéria inteiramente sem forma. Mas, mesmo aqui, ela não significa mais do que matéria com o mínimo de
forma.” Ross, D. In: Aristotle’s Metaphysics, vol. II, p.256.
109
identificação evidencia-se por meio de um exercício de pensamento que termina num dos
quatro elementos.
221
4.2 Matéria e Sujeito
Aristóteles encerra Θ7 com uma análise do sujeito (u(pokei/menon) enquanto (a)
matéria e (b) substância individual, retomando a discussão do livro Z da Metafísica sobre o
que determina a coisa: a matéria ou a forma. De modo geral, a matéria diz o de que a coisa
é, enquanto a forma diz o quê a coisa é. Antecipando um pouco algumas conclusões, pode-
se perceber que na ânsia de promover a aproximação entre potência, matéria e atributos,
elaborada ao final de Θ7, Aristóteles retoma a discussão sobre o sujeito juntamente com o
problema de estabelecer qual é o critério para se definir o que é sujeito
222
.
Tomando o exemplo analisado em Z (1034
a
1-8), o de carne e ossos, pode-se
observar, em parte, a complexidade do problema que acompanha a explicação da matéria
que pode ser em potência alguma outra coisa. A matéria de que um homem é feito é carne e
ossos, enquanto homem é a própria forma. Por outro lado, homem é sujeito de atributos tais
como músico, branco, etc. Mas se a forma é homem e homem é de carne e ossos, então a
forma está em algo, a matéria, que de algum modo é sujeito. Daí a dificuldade em se definir
o que é sujeito.
Visto que o sujeito também se diz de muitos modos, cabe agora indicar os dois
sentidos expostos em Θ7, ou os dois níveis de sujeito ou substrato: um é determinado, o
221
A noção aristotélica de matéria sempre suscitou muita polêmica quanto à existência ou não da matéria
primeira para além do âmbito lógico. A despeito disso, parece que, ao menos em Θ7, o mínimo de matéria
que se pode admitir, no sentido ontológico, é um dos quatro elementos e não a pura indeterminação.
222
Na busca do sujeito – discussão intrinsecamente ligada ao critério da substância – Aristóteles, no livro Z
da Metafísica, toma como possíveis candidatos: a forma (
ei)=doj), a matéria (u(/lh) e o composto (su/nolon). A
discussão sobre o
u(pokei/menon ultrapassa o propósito deste trabalho que no momento pretende apenas
apresentar os seus sentidos em Θ7, porém, de modo geral, Aristóteles descarta a matéria por ser
indeterminada. No entanto, a matéria parece ser o sustentáculo das determinações e isso é verificado após se
promover um exercício lógico que suprime todas as determinações de uma substância, por exemplo, um
homem. O resultado seria a matéria enquanto completa indeterminação, mas Aristóteles afirma que essa
possibilidade é um absurdo. Dito isso, pode-se concluir que a forma é o fator determinante. Para melhor
compreensão sobre o tema, Cf. Brunschwig, J. La forme, prédicat de la matière? In: Aubenque, P. Études sur
la Métaphysique D’Aristote; 1979. Para maior detalhes sobre a análise dos vários sentidos de sujeito, Cf.,
Reis, Arlene; O princípio de Substancialidade; um estudo sobre o livro Z da Metafísica de Aristóteles. Tese
de doutorado, UFRGS, 2001. (Inédito). Para uma análise a partir de um outro ponto de vista, Cf., Gill, M. L.
Aristotle on substance; the paradox of unity. Princeton, Princeton University Press, 1989.
110
outro é indeterminado
223
: “Pois nisto se diferenciam o substrato ou sujeito, em ser algo
determinado ou não”.
224
O seguimento do texto mostra como Aristóteles admite, por um
lado, que a matéria é também sujeito, por outro que a forma pode ser propriedade desse
sujeito.
(a) Sujeito determinado: é o sujeito entendido como base de atributos acidentais, as
afecções (
pa/qh). Nesse caso o sujeito é uma substância individual:
por exemplo, seja o que está sujeito às afecções um homem, corpo e alma, e seja a
afecção o músico e o branco (porém, quando se tem gerado a música neste sujeito,
não o chamamos música, mas músico, nem dizemos que o homem seja brancura,
mas branco, nem caminhada ou movimento, mas algo que anda ou que se move,
como dizemos que algo é ‘de tal coisa’).
225
Aqui o sujeito não é matéria, é um indivíduo e o que define o indivíduo é a forma.
Os atributos (cor branca, tocar um instrumento, caminhar, mover) são acidentais, enquanto
o sujeito que os sustenta possui propriedades essenciais, é um sujeito determinado
(
to/de ti), um homem, de corpo e alma. Quando um homem executa uma música, ele não é
essa música (atributo), ele é um homem (substância) que é músico, assim como homem não
é brancura, mas é branco. A essência de homem é o
lo/goj e seus atributos podem ser
músico, branco, andar, mover-se, etc.
(b) Sujeito indeterminado: enquanto no caso anterior o sujeito era um indivíduo,
aqui é um substrato primeiro cuja determinação é conferida pela forma que é a propriedade
essencial: “Porém, quando não é assim, senão que o que se predica é uma espécie e algo
determinado, o último é matéria e substância material”.
226
A matéria é o conteúdo
expresso por uma forma. Tal conteúdo pode ser tanto a matéria próxima (carne e ossos)
223
Sobre o sujeito em Θ7:“Fica claro que sujeito aparece neste contexto como princípio natural de
sustentação do ser em dois sentidos: como base determinada que suporta as demais características do ser ou
como base indeterminada que suporta a determinação de algo”. Reis, A., O princípio de Substancialidade;
um estudo sobre o livro Z da Metafísica de Aristóteles, p.100.
224
tou/t% ga\r dia fe/rei to\ kaq' ou kaiì to\ u(pokei¿menon, t%½ eiånai to/de ti hÄ mh\ eiånai. Θ7, 1049
a
27-29.
Ross, Tricot e Reale traduzem
kaq' ou por substrato em substituição a kaqo/lou (universal) que, segundo
Ross, teria sido introduzido por um copista, mas que não corresponderia à discussão do restante do texto. De
acordo com Ross o sujeito aqui é sinônimo de substrato. Cf., Ross, D. In: Aristotle’s Metaphysics, vol. II, p.
257.
225
oiâon toiÍj pa/qesi to\ u(pokei¿menon aÃnqrwpoj kaiì sw½ma kaiì yuxh/, pa/qoj de\ to\ mousiko\n kaiì leuko/n
(le/getai de\ th=j mousikh=j e)ggenome/nhj e)keiÍno ou) mousikh\ a)lla\ mousiko/n, kaiì ou) leuko/thj o( aÃnqrwpoj
a)lla\ leuko/n, ou)de\ ba/disij hÄ ki¿nhsij a)lla\ badi¿zon hÄ kinou/menon, w¨j to\ e)kei¿ninonŸ.
Θ7, 1049
a
29-34.
226
oÀsa de\ mh\ ouÀtwj a)ll' eiådo/j ti kaiì to/de ti to\ kathgorou/menon, to\ eÃsxaton uÀlh kaiì ou)si¿a u(likh/. Θ7,
1049
a
34-36.
111
como a matéria distante (os quatro elementos). É preciso ressaltar que a forma ou espécie,
apesar de ser um predicado (
kathgori/a), não deve ser confundida com os atributos desse
sujeito, pelo contrário, enquanto os atributos poderiam
Assim termina a análise da atualização da potência enquanto matéria. Interessante
observar que Θ7, além de dar segmento à investigação do ato/potência no sentido
metafísico iniciado em Θ6, estabelece a ligação com o conteúdo de Θ8. Quando trata das
condições da potência, Aristóteles mostra que, além do material condizente com a situação
(tempo, lugar, modo), é necessário uma causa motriz para que o processo seja efetuado. A
matéria, enquanto princípio passivo, é insuficiente, requer sempre um princípio ativo,
interno (no caso dos seres naturais) ou externo (para os seres artificiais). Essa causa motriz
expressa a importância da anterioridade ou primazia do ato sobre a potência, tema central
de Θ8.
113
CAPÍTULO IV
A anterioridade do Ato
No oitavo capítulo de Θ se expressam vários pressupostos fundamentais da filosofia
aristotélica destacando-se a intrínseca relação entre ato e fim que é, inclusive, o que
explica, em parte, a anterioridade do ato. É o ato que explica o modo como a matéria se
atualiza, é o que permite identificar a potência, pois o real é anterior ao potencial.
A anterioridade do ato sobre a potência ocorre sob vários aspectos. A idéia central
de Θ8 é provar como a realização de algo seria impossível se não houvesse um outro ser
anterior e completo, em ato. De modo geral, para que algo possa vir a ser é preciso que
antes haja algo já efetivo, pleno, realizado, caso contrário nem sequer surgiria um outro
posterior.
Num primeiro momento, Aristóteles introduz a idéia de natureza (
fu/sij) como
princípio de movimento apresentando sua relação com a potência:
Essa inclusão da natureza deve-se provavelmente ao aspecto teleológico
predominante na filosofia aristotélica, expresso pela tendência imanente dos seres naturais
em cumprir seu fim, que é natural. A teleologia no sentido metafísico, predominante em
Aristóteles, pode ser entendida principalmente como uma tendência intrínseca à auto-
suficiência, a uma completude já inscrita na própria coisa sendo que, o que é auto-suficiente
guarda a idéia de perfeição intrínseca
232
. Desse modo, a passagem do ser em potência para
o ser em ato só pode ser plenamente compreendida a partir da idéia de um fim imanente,
que é tão natural quanto o fato de o anterior ser princípio e causa do posterior. O exemplo
da semente é paradigmático: assim como uma semente é em potência uma árvore, ela
naturalmente se transformará numa árvore porque essa é sua essência. Cabe lembrar ainda
que se não houver substância não tem sentido falar em teleologia, embora o
te/loj não se
limite à substância.
1 Modos da anterioridade do Ato
Dada a inclusão da natureza como princípio imanente de movimento, Aristóteles
propõe uma especificação dos modos em que se pode apreender a anterioridade do ato: “A
todas essas potências é anterior o ato no conceito e na substância, porém, no tempo em
certo sentido é, em outro não é”.
233
A anterioridade ou precedência do ato sobre a potência
se verifica de três modos: no conceito; na substância (considerando os seres corruptíveis e
os eternos); e no tempo, em parte.
(1) Anterioridade do ato no conceito (
lo/goj): o termo lo/goj aqui se aproxima
muito do sentido de conhecimento (
gnw=sij). É devido ao ser em ato que podemos
conceituar e, portanto, conhecer o que está em potência, pois o ato é princípio de
conhecimento da potência:
232
Sobre a teleologia em Aristóteles, confira o excelente artigo de Lucas Angioni em que ele defende que a
filosofia aristotélica da natureza pode ser caracterizada como um hilemorfismo teleológico que consiste numa
cooperação entre matéria e forma a fim de os seres naturais manterem suas respectivas perfeições e atingirem
o nível de autuac a qusnaç( )Tj10.02 0 0 10.02 3714761102 0 7 respeco –(a ( q)Tj10.02 0 0 10.03 44047150.02 0 7 respec(u)Tj10.02 0 0 10.03 15087210.02 0 7 respec(l)Tj10.02 0 0 10.0263010973802 0 7 respec izad)Tj10.02 0 0 10.02730191010.02 0 7 respeconatsmtt rrool
(c)Tj10.02 0 0 10.02714555340.02 0 7 respecon(t)Tj10.02 0 0 10.0288..61010.02 0 7 respec(r)Tj10.02 0 0 10.029306602571 131.40007 Tm(r)Tj10.02 0 0 10.029602.2 20.02 0 7 respecs(r)Tj10.02 0 0 10.02944941350.02 0 7 respec(t)Tj10.02 0 0 10.02 507029571 131.40007 Tm(e co)Tj10.02 0 0 10.05 417Ý89 131.40007 Tmnumarna qrol s sstssmsmt rrrtrs
Que é anterior quanto ao conceito, é evidente (pois por ser possível que chegue a
estar em ato é pelo que está em potência o que primeiramente está em potência; por
exemplo, digo que está em potência para construir o que pode construir e para ver o
que pode ver, e em potência para ser visto o que pode ser visto. E este mesmo se
aplica nas demais coisas, de modo que o conceito e o conhecimento do ato serão
necessariamente anteriores ao conhecimento da potência).
234
Algo só é considerado ser em potência porque pode ser em ato, pois toda potência
tende ao ato. Quando se afirma que alguém tem potência para construir é porque ele pode
construir e se sabe que pode construir a partir de algo já construído, a partir de algo que se
já é conhecido enquanto construção em ato. Do mesmo modo, a capacidade de ver é
definida em relação ao ato mesmo de ver. Somente conhecemos e conceituamos o ser em
potência a partir do ser em ato porque a potência tende sempre ao ato.
235
Se todas as coisas
fossem sempre em potência não poderíamos ter conhecimento, afinal o ser em potência
pode ser ou não ser algo, enquanto que o ser em ato já é efetivamente.
(2) Anterioridade no tempo (
xro/noj): há uma peculiaridade neste caso conforme a
anterioridade seja considerada: (a) segundo o número (
a)riqmo/j) em que a potência é
anterior; ou (b) segundo a espécie (
ei)=doj) em que o ato é anterior.
(a) Anterioridade segundo o número: número aqui é sinônimo de indivíduo. Isto porque
número guarda a idéia de sucessão (antes, depois) e de individualidade (este homem, esta
criança, este trigo, esta semente) como pode ser verificado nos exemplos a seguir: “E digo
isto porque a matéria, a semente e o que pode ver, que em potência são um homem, trigo e
algo que vê, porém ainda não em ato, são anteriores no tempo a esse homem já existente
em ato, ao trigo e ao que vê”.
236
Esses exemplos podem ser assim agrupados: matéria,
semente e poder ver são em potência; homem, trigo e ver são em ato. A matéria (feto) é
anterior a tal homem (Sócrates); também a semente é anterior ao trigo considerando
somente cada indivíduo separadamente. Neste sentido, o ser em potência é anterior ao ser
em ato.
234
t%½ lo/g% me\n ouÅn oÀti prote/ra, dh=lon (t%½ ga\r e)nde/xesqai e)nergh=sai dunato/n e)sti to\ prw¯ twj
dunato/n, oiâon le/gw oi¹kodomiko\n to\ duna/menon oi¹kodomeiÍn, kaiì o(ratiko\n to\ o(ra=n, kaiì o(rato\n to\
dunato\n o(ra=sqai: o( d' au)to\j lo/goj kaiì e)piì tw½n aÃllwn, wÐst' a)na/gkh to\n lo/gon prou+pa/rxein kaiì th\n
gnw½sin th=j gnw¯sewjŸ
. Θ8, 1049b 12-18.
235
“Definimos um feto como ser humano em potência em termos de sua eventual forma e realização e não do
modo inverso. Um ser humano não é definido como um feto maduro”. Witt, C. The priority of actuality, in:
Unity, identity, and explanation in Aristotle’s metaphysics, p. 216.
236
le/gw de\ tou=to oÀti tou=de me\n tou= a)nqrw¯pou tou= hÃdh oÃntoj kat' e)ne/rgeian kaiì tou= si¿tou kaiì tou=
o(rw½ntoj pro/teron t%½ xro/n% h( uÀlh kaiì to\ spe/rma kaiì to\ o(ratiko/n, aÁ duna/mei me/n e)stin aÃnqrwpoj kaiì
siÍtoj kaiì o(rw½n, e)nergei¿# d' ouÃpw.
Θ8, 1049b 19-23.
116
(b) Anterioridade segundo a espécie: enquanto individualmente a criança é anterior ao
homem, considerando a espécie, o homem é anterior à criança, não só porque a criança
precisa de um ser em ato para ser gerada, mas principalmente porque o ser em potência é
sempre em vista do ser em ato. Desse modo, o ato é anterior porque é princípio e fim da
potência. A anterioridade na espécie pode ser desmembrada ainda em duas partes
complementares: na primeira (b1) Aristóteles enfatiza a relação entre ato e causa motriz; na
segunda (b2) trata da relação entre ato, hábito e arte.
(b1) Anterioridade e causa motriz: mesmo no caso do indivíduo (número) sempre há um
outro ser em ato que proporciona o movimento inicial, por isso é causa motriz, é o fator
explicativo das coisas e dos processos, como afirma Aristóteles:
porém, no tempo, anteriores àquelas potências são outras coisas existentes em ato
das quais se geraram aquelas; pois sempre, desde o existente em potência, é gerado
o existente em ato por algo existente em ato; por exemplo, um homem por outro
homem, um músico por outro músico, havendo sempre um primeiro motor, e o
motor existe já em ato.
237
O ser em ato, sendo a causa motriz, é sinônimo de primeiro motor (prw¯tou
kinou=ntoj
), um ser que move porque já é em ato.
(b2) Anterioridade do ato e sua relação com o hábito (
e)/qoj) e com a arte (te/xnh): o
processo de geração está diretamente relacionado com a anterioridade do ato no tempo
porque no processo de geração, aquilo que é gerado é da mesma espécie que o gerador,
conforme as palavras de Aristóteles: “Ficou dito nas considerações referentes à substância
que tudo que se gera vem a ser algo a partir de algo e por algo que é da mesma
espécie”.
238
Na geração da substância (um indivíduo tal como um homem ou uma árvore) a
forma do gerado e daquele que gera é a mesma, pois a form
abre caminho para mostrar a relação entre ato, arte e hábito, apresentada a seguir: “Por isso
também parece impossível ser construtor sem ter construído algo, ou citarista sem ter
tocado a cítara, pois o que aprende a tocar a cítara aprende a tocá-la tocando-a, e o
mesmo para os demais”.
240
A partir do princípio da causa motriz pode-se concluir que
ninguém nasce dominando uma arte ou ciência prática qualquer, sempre há um outro,
anterior, que ensina, que transmite seus conhecimentos porque já executava tal arte antes.
Além disso, para que alguém se torne um músico ou construtor é preciso algum tempo de
prática, não basta dizer que é construtor, nem mesmo é suficiente receber lições sobre
construção. Não é possível dizer que alguém é músico simplesmente após algumas
tentativas ou execuções imprecisas de tal arte. Enfim, mais do que a simples potência para
ser músico ou construtor é necessário o hábito (
e)/qoj), a experiência suficiente para tal e
isso pressupõe o ato
241
, a atividade plena, a realização da arte.
A pressuposição do ato é condizente com a necessidade da causa motriz. No
entanto, o próprio Aristóteles suscita uma possível objeção a partir de um argumento,
segundo ele, sofístico, que põe em dúvida a necessidade da anterioridade do ato, visto que a
potência racional (arte ou ciência prática) é exercida mesmo por aqueles que não a
dominam: “Nisto se baseia o argumento sofístico de que, sem ter a ciência, alguém fará
aquilo que é objeto da ciência; pois o que aprende não a tem”.
242
Como pode haver
alguém que, mesmo sem conhecer a arte da construção, constrói uma casa? Para resolver
essa aporia, Aristóteles enfatiza a diferença entre aquele que está aprendendo e aquele que
já sabe uma tal arte. Desse modo, ele não nega conhecimento ao aprendiz, alguém que está
iniciando nas artes, apenas pressupõe a diferenciação entre ação perfeita, o domínio pleno
da arte, e ação parcial, ainda incompleta. É certo que o aprendiz em relação ao mestre não
eÃstin au)tou= ge/nesij, ou)de\ to\ ti¿ hÅn eiånai. Metafísica, Z8, 1033b 5-7. Ainda sobre a não geração da forma,
Arlene Reis mostra como a forma, por ser o princípio de substancialidade, não é criada: “A forma em cada
substância sensível é o sustentáculo da unidade; neste sentido é primeira em relação à matéria e ao
composto, é princípio de substancialidade”. Reis, A. O princípio de Substancialidade; um estudo sobre o
livro Z da Metafísica de Aristóteles, p. 169.
240
dio\ kaiì dokeiÍ a)du/naton eiånai oi¹kodo/mon eiånai mh\ oi¹kodomh/santa mhqe\n hÄ kiqaristh\n mhqe\n
kiqari¿santa: o( ga\r manqa/nwn kiqari¿zein kiqari¿zwn manqa/nei kiqari¿zein, o(moi¿wj de\ kaiì oi¸ aÃlloi.
Θ8,
1049b 29-32.
241
“Embora uma simples du/namij para construção possa existir em um homem antes mesmo dele construir
algo, tal homem não é um
oi)kodo/moj. Ser um oi)kodo/moj não é uma simples du/namij, mas uma e(/cij, e isto
pressupõe
e)ne/rgeia. Ross, D. In: Aristotle’s Metaphysics, vol. II, p. 261. Visto que adotamos disposição para
e(/cij e hábito para e)/qoj, nesta sentença de Ross entenda-se por e(/cij um hábito (e)/qoj).
242
oÀqen o( sofistiko\j eÃlegxoj e)gi¿gneto oÀti ou)k eÃxwn tij th\n e)pisth/mhn poih/sei ou h( e)pisth/mh: o( ga\r
manqa/nwn ou)k eÃxei.
Θ8, 1049b 33-34.
118
tem o conhecimento suficiente, porém em relação a um outro que nem sequer iniciou nessa
atividade, o mesmo aprendiz tem ciência. Isto é o que sugere a sentença a seguir: “Porém,
porque algo do que se gera está já gerado e algo de que se move em geral está já movido
(...), também o que aprende terá, sem dúvida, necessariamente algo de ciência”.
243
Ter
algo da ciência significa ter em parte, não plenamente, mas parcialmente, e isto já é o
suficiente para afirmar que tal homem é músico ou construtor, pois a qualidade permite a
variação entre o mais e o menos.
(3) Anterioridade na substância: ser anterior na substância significa dizer que o ato é
mais real que a potência
244
no sentido de que já realizou a forma, enquanto a potência ainda
não. Isso não significa que se deva imaginar que para Aristóteles há diferentes graus de
realidade, mas apenas que o ato expressa a efetividade do real e, sendo assim, é anterior
também na substância. Para essa explicação, Aristóteles diferencia os seres
sensíveis/corruptíveis dos seres eternos/incorruptíveis. Para os sensíveis, congrega e
aperfeiçoa todos os argumentos referentes à anterioridade do ato no conceito e no tempo,
além de confirmar as relações, por um lado entre matéria e potência, por outro entre forma,
ato e fim. Os argumentos podem ser assim ordenados: (a) anterioridade na geração; (b) fim
é princípio da geração; (c) fim é ato; (d) matéria visa a forma.
(a) Anterioridade na geração: nesta modalidade, a idéia principal é marcar a
contraposição entre a ordem na geração (
ge/nesij) e a ordem na forma e substância, ou
entre anterioridade quanto ao indivíduo e quanto à espécie: “porque o que é posterior
quanto à geração é anterior quanto à espécie e quanto à substância (por exemplo, o adulto
é anterior ao menino, e o homem é anterior ao sêmen, pois um já tem a espécie, o outro
não)”.
245
O adulto é anterior na espécie porque já possui a forma homem; a criança é
gerada para realizar a forma homem, mas ainda não a tem. Porém, todo adulto um dia foi
uma criança, então a criança é anterior considerando a geração, o vir a ser algo.
(b) O fim é princípio da geração: o posterior na geração (o adulto) é anterior quanto
à forma e substância porque tudo o que é gerado tem um fim ao qual tende: “e porque tudo
243
a)lla\ dia\ to\ tou= gignome/nou gegenh=sqai¿ ti kaiì tou= oÀlwj kinoume/nou kekinh=sqai¿ ti (...) kaiì to\n
manqa/nonta a)na/gkh eÃxein ti th=j e)pisth/mhj iãswj.
Θ8, 1049b 34-1050ª 2.
244
“Isto quer dizer que o ato é mais real, mais substancial”. Tricot, J. In: Aristote: La Métaphysique, Tome
II, p.510.
245
prw½ton me\n oÀti ta\ tv= gene/sei uÀstera t%½ eiãdei kaiì tv= ou)si¿# pro/tera (oiâon a)nh\r paido\j kaiì aÃnqrwpoj
spe/rmatoj: to\ me\n ga\r hÃdh eÃxei to\ eiådoj to\ d' ouß.
Θ8, 1050ª 4-7.
119
o que se gera visa um princípio e um fim (pois é princípio aquilo em vista de que se faz
algo, e a geração se faz devido ao fim)”.
246
O te/loj é princípio da própria geração, porque
toda geração tem um fim, lembrando que princípio é aquilo que explica não só a origem
como também o fundamento e a condição da coisa.
(c) O fim é ato: o princípio do ser em potência é o ser em ato, pois toda potência
tende ao ato, logo, ato é também fim: “e fim é o ato, e a potência é em vista deste”.
247
A
causa final da potência é o ato, ou seja, o ato é o em vista de que (to\ ou eÀneka) a potência
se faz.
248
O ato é o que cumpre o fim da potência.
249
Se toda geração tem como princípio
uma causa final e se o fim é ato, então fim é o mesmo que princípio, e o ato é condição da
geração, portanto condição da potência, afinal fim é o mesmo que ato. Em suma, ato é
anterior à potência.
250
O te/loj é o ponto de chegada, é perfeição, é causa final tanto das
ações quanto do movimento em geral; é o bem de cada coisa. Assim sendo, se ato é fim e se
ato é anterior à potência, então as coisas existem para algum propósito, não simplesmente
por acaso. Os exemplos de Aristóteles confirmam a importância do
te/loj e do ato: “Os
animais, assim, não vêem para ter visão, mas têm visão para ver, e do mesmo modo se tem
arte de construir para construir, e a de especular para especular”.
251
O fim da natureza
não é a simples potência para exercer uma atividade como ver, ouvir ou sentir, pelo
contrário, seu fim é atualização das potências. Os animais têm a potência da visão para que
a exercitem, para que vejam, para realizar seu fim e não simplesmente para cultivá-las em
potência. O mesmo sucede com as potências racionais como construção ou especulação
(
qewrhtiko/j). Os homens não especulam para ter ciência, eles têm ciência para então
especularem.
246
kaiì oÀti aÀpan e)p' a)rxh\n badi¿zei to\ gigno/menon kaiì te/loj (a)rxh\ ga\r to\ ou eÀneka, tou= te/louj de\ eÀneka
h( ge/nesijŸ
. Θ8, 1050ª 7-9.
247
te/loj d' h( e)ne/rgeia, kaiì tou/tou xa/rin h( du/namij lamba/netai. Θ8, 1050ª 9-10.
248
Entre outros termos, também: “Fim, como causa final, se expressa em grego por to\ ou eÀneka. Yepes
Stork, R., La doctrina del acto en Aristóteles, p. 314.
249
“Portanto, o fim da geração é um ato que cumpre a referência do movimento segundo o término, isto é,
aquele que é fim do movimento é ato, e move ao que é potência até o ato, segundo a própria atualidade da
morfh/. Idem, p. 317.
250
Essa complicada argumentação é organizada por David Ross do seguinte modo: “(1) O te/loj de uma
gigno/menon é sua a)rxh, sua origem (...): O ou eÀneka é a a)rxh. O te/loj é o ou eÀneka. (2) A e)ne/rgeia é o
te/loj. Portanto (3) a e)ne/rgeia é a a)rxh, e, portanto, é anterior à du/namij. Ross, D. In: Aristotle’s
Metaphysics, vol. II, p. 262.
251
ou) ga\r iàna oÃyin eÃxwsin o(rw½si ta\ z%½a a)ll' oÀpwj o(rsin oÃyin eÃxousin, o(moi¿wj de\ kaiì oi¹kodomikh\n
iàna oi¹kodomw½si kaiì th\n qewrhtikh\n iàna qewrw½sin
. Θ8, 1050ª 10-14.
120
(d) A matéria visa a forma: a matéria existe somente para realizar a forma, assim
como a potência deve se atualizar: “Além disso, a matéria está em potência porque pode
chegar à espécie; porém, quando está em ato, então, está na espécie”.
252
Mais uma vez
Aristóteles confirma a dupla relação entre matéria/potência e entre forma/ato. A matéria é
potência enquanto tende a realizar a forma; quando a potência é atualizada, em tal caso,
realiza a forma. Ato e forma se implicam mutuamente: se A então B, se B então A. Isso
ocorre porque tanto a geração como o movimento e a ação (tanto a que tem fim imanente
quanto a que tem fim extrínseco) têm como fim o ato, que coincide com a forma. Como
afirma Aristóteles: “E de modo semelhante nas demais coisas, inclusive naquelas cujo fim
é um movimento”.
253
A potência existe em função do ato tanto na ação propriamente dita, a
pra=cij, como na produção (poi/hsij) cujo fim é o movimento porque tem o fim extrínseco
à atividade. A matéria visa à forma assim como a potência visa ao ato e, desse modo,
Aristóteles elabora uma breve comparação entre seres naturais e artificiais, mostrando que
em ambos a anterioridade do ato enquanto fim se verifica do mesmo modo: “Por isso,
assim como os que ensinam acreditam ter alcançado o fim quando tem mostrado o aluno
atuando, assim também a natureza, pois se não fosse assim, seria como o Hermes de
Pausón, não se saberia se a ciência está dentro ou fora, igual àquele”.
254
Assim como o
fim da natureza é a atualização da potência, também o fim de uma arte é seu exercício. No
exem
o aluno exerce tais conhecimentos
255
. Isso porque enquanto está em potência o
conhecimento pode estar apenas superficial, estar “fora” do aluno, mas quando é exercido,
quando é mostrado, tem-se a certeza de que a ciência está “dentro”, foi apreendida.
Conclui-se então que fim é o exercício, é o ato, não a potência.
1.1 Ato é Fim na ação e na produção
Um dos pontos centrais na explicação da anterioridade do ato é o da relação da
e)ne/rgeia com a pra=cij, enfatizada também em vários outros momentos do livro Θ.
Especialmente em Θ8, Aristóteles enfatiza, não só essa relação, como também a
fundamenta a partir da própria construção da palavra
e)ne/rgeia: “Porque a obra é um fim e
o ato é a obra; por isso também a palavra ato (
e)ne/rgeia) está diretamente relacionada
com a obra (
eÃrgon) e tende à e)ntele/xeia..
256
O propósito de Aristóteles ainda é mostrar
como o ato é fim da potência tanto para a
pra=cij como para poi/hsij. Entretanto, essa
complexa sentença merece mais atenção por ser uma das únicas em Θ que explicita a sutil
diferença entre
e)ne/rgeia e e)ntele/xeia. Segundo Aristóteles, o termo e)ne/rgeia é
derivado de
eÃrgon, este último entendido como obra, operação ou mesmo um exercício da
ação. Como já foi dito, ato é o fim da potência, mas o que se pretende ressaltar aqui é que o
ato enquanto exercício, na medida em que coloca a potência em exercício, tende à
atualidade desse exercício. Por isso é que a e)ne/rgeia, enquanto atividade, tende à
e)ntele/xeia porque esta expressa a plenitude de tal atividade. Aristóteles insiste em
acentuar a diferença entre
pra=cij e poi/hsij a partir da imanência ou não do fim, mesmo
que em ambos se verifique que o ato é sempre o fim da potência:
E visto que o último de algumas potências é o uso (por exemplo, o último da vista é
a visão e além desta nenhuma outra coisa resulta senão a visão), porém em algumas
potências se produz algo (por exemplo, na arte de construir, além da construção se
255
Este parece ser o significado da comparação que Aristóteles faz com a figura do deus Hermes, pintada por
Pausón, cujo jogo de perspectiva proporcionava a ilusão de realidade. Para mais detalhes, confira Ross, op.
cit., p. 263 e Tricot, op.cit., p. 511.
256
to\ ga\r eÃrgon te/loj, h( de\ e)ne/rgeia to\ eÃrgon, dio\ kaiì touÃnoma e)ne/rgeia le/getai kata\ to\ eÃrgon kaiì
suntei¿nei pro\j th\n e)ntele/xeian.
Θ8, 1050ª 21-23.
122
produz uma casa), sobretudo o ato é ali fim e aqui mais fim que a potência; pois a
construção está no que se constrói e se produz e é simultâneo com a casa.
257
A diferença entre pra=cij e poi/hsij ocorre agora em outros termos. Tomando os
vocábulos último (
eÃsxaton) como sinônimo de fim e uso (xrh=sij) como sinônimo de
atividade (
e)ne/rgeia)
258
, fica mais claro verificar que o fim da visão é o ato de ver e nada é
obtido além do próprio exercício da visão, ou seja, visão é o mesmo que ver, e fim é o
mesmo que ato, o “ato é ali fim”. Todavia, a arte de construir tem como fim algo extrínseco
ao próprio exercício da construção, o fim não é a própria construção, mas algo resultante
dela, uma casa. Isto é o que significa dizer que ato “aqui é mais fim que a potência”, pois
nessa arte há um outro fim para além do uso dessa potência.
Apresentada a anterioridade do ato no conceito, no tempo e nas substâncias
sensíveis sujeitas à geração e corrupção, Aristóteles passa a mostrar que essa mesma
anterioridade se confirma nos seres eternos, de um modo progressivo, “até chegar ao que
sempre move primordialmente”
259
, ou seja, o Primeiro Motor Imóvel. É na anterioridade do
ato nas substâncias eternas que se pode, inclusive, perceber melhor a importância do ato
enquanto
e)ntele/xeia, embora esse vocábulo não apareça nos momentos finais de Θ8.
260
1.2 Anterioridade nas Substâncias Eternas
Toda a explicação sobre a anterioridade nas substâncias incorruptíveis incursiona
pela Cosmologia e Teologia aristotélica, sendo melhor compreendida após uma prévia e
resumida exposição. Em vários momentos, por exemplo, da Física é possível constatar que
257
e)peiì d' e)stiì tw½n me\n eÃsxaton h( xrh=sij (oiâon oÃyewj h( oÀrasij, kaiì ou)qe\n gi¿gnetai para\ tau/thn eÀteron
a)po\ th=j oÃyewjŸ, a)p' e)ni¿wn de\ gi¿gnetai¿ ti
(oiâon a)po\ th=j oi¹kodomikh=j oi¹ki¿a para\ th\n oi¹kodo/mhsinŸ,
oÀmwj ou)qe\n hÂtton eÃnqa me\n te/loj, eÃnqa de\ ma=llon te/loj th=j duna/mew¯j e)stin: h( ga\r oi¹kodo/mhsij e)n t%½
oi¹kodomoume/n%, kaiì aÀma gi¿gnetai kaiì eÃsti tv= oi¹ki¿#.
Θ8, 1050ª 23-28.
258
eÃsxaton tem o sentido de te/loj, e xrh=sij tem o sentido de e)ne/rgeia. Tricot, J. In: Aristote: La
Métaphysique, Tome II, p.513.
259
eÀwj th=j tou= a)eiì kinou=ntoj prw¯twj.. Θ8, 1050b 5-6.
260
Como já foi dito, e)ntele/xeia guarda melhor o aspecto de te/loj imanente, entretanto, Aristóteles o utiliza
bem menos do que
e)ne/rgeia, mesmo para os casos em que e)ntele/xeia seria o mais indicado. É difícil
responder definitivamente o motivo desta opção. Talvez pelo fato de o termo
e)ne/rgeia ser mais abrangente e,
por isso, mais condizente com a complexidade do real. Yepes Stork, por exemplo, acredita que “assim como
e)ne/rgeia expressa uma pluralidade de sentidos, e)ntele/xeia se limita ao segundo sentido do ato de modo
principal, e só derivadamente chega a significar o primeiro sentido do ato (movimento) ou o terceiro
(operação). Yepes Stork, R., La doctrina del acto en Aristóteles, p. 300.
123
para Aristóteles, além do mundo sublunar há um mundo supralunar cuja constituição é
diferenciada de acordo com o movimento típico dos seres celestes. Assim como a matéria
sublunar é constituída pelos quatro elementos, o elemento celestial é o éter (
ai)qh/r), que
não é submetido à geração e corrupção, mas somente ao movimento local, portanto,
circular.
261
A necessidade da matéria se deve ao fato de todo movimento requerer algo para
ser movido, caso se retirasse a matéria não haveria mudança local, pois não haveria algo
que ora esteja num lugar, ora em outro, não haveria algo para receber as afecções.
Entretanto, as classes de movimento são de acordo com o tipo de matéria. De acordo ainda
com o texto da Física, há três tipos de movimento: qualitativo, quantitativo e local
262
.
Enquanto as substâncias sensíveis corruptíveis têm movimento qualitativo (alteração ou
transformação) e quantitativo (aumento e diminuição)
263
, as substâncias sensíveis eternas só
têm movimento local
264
, apenas mudam de lugar, embora voltem constantemente ao mesmo
lugar. Este deslocamento não é retilíneo (para cima ou para baixo) e sim, circular
265
, por
isso é contínuo e infinito e corresponde ao movimento da lua e dos outros corpos celestes
que giram em volta da Terra.
Esse breve resumo da Cosmologia aristotélica permite compreender melhor a
anterioridade do ato no sentido mais fundamental (
kuriwte/rwj) aludido pelo Estagirita
referente às substâncias eternas, os seres incorruptíveis:
Porém também em um sentido mais fundamental, pois as coisas eternas são em
substância anteriores às corruptíveis, e nada é eterno em potência. E a razão é esta:
toda potência é ao mesmo tempo potência da contradição, pois o que não é possível
que exista não pode existir em nada, e, por outro lado, tudo que é possível pode não
estar em ato. Assim, pois, o que é possível que exista pode existir e não existir;
portanto uma mesma coisa pode existir e não existir.
266
261
“Todas as coisas que mudam têm matéria, porém diferente; e, das coisas eternas, as que, não sendo
geráveis, são movíveis por translação; porém matéria não gerável, apenas transladável”. Metafísica, Λ3,
1069b 24-26. Comentando a relação entre o tipo de movimento e a correspondente matéria, em Λ, Reale
esclarece que: “Segundo estejam ou não sujeitas à geração e à corrupção, as coisas têm um gênero diferente
de matéria. As coisas que são sujeitas à geração e à corrupção têm uma matéria sujeita a esta e a todos os
tipos de mudança (os quatro elementos). As substâncias sensíveis mas não corruptíveis (os Céus) têm, ao
contrário, uma matéria capaz de movimento local (éter)”. Reale, G. Aristóteles Metafísica, vol. III, p.588.
262
Física, V1, 225b 5-6.
263
Física, VIII7, 261
a
23-24.
264
Física, VIII7, 216
a
1-2.
265
Física, VIII8, 265
a
10-11.
266
a)lla\ mh\n kaiì kuriwte/rwj: ta\ me\n ga\r a)i¿+dia pro/tera tv= ou)si¿# tw½n fqartw½n, eÃsti d' ou)qe\n duna/mei
a)i¿+dion. lo/goj de\ oÀde: pa=sa du/namij aÀma th=j a)ntifa/sew¯j e)stin: to\ me\n ga\r mh\ dunato\n u(pa/rxein ou)k aÄn
124
As substâncias eternas não estão submetidas à geração e corrupção porque nelas
prevalece o ato, por isso são anteriores às corruptíveis; nelas não há potência porque tudo o
que é em potência pode ser ou não ser alguma coisa, estar em algum lugar ou em nenhum
lugar. Se toda potência guarda a contradição (ser e não-ser) não há como conceber que
seres eternos tenham potência, senão, em algum momento, fatalmente, eles poderiam ser
algo diferente do que são. Os contraditórios somente podem acontecer na potência, nunca
no ato. Visto que os seres eternos são desde sempre os mesmos, eles não podem ora ser, ora
não ser. Portanto, os seres eternos são sempre em ato e não têm potência.
Apesar disso, Aristóteles confirma que os seres eternos são constituídos de matéria e
que, por essa razão, de algum modo, eles têm movimento, e o movimento é uma
característica do que pode ser ou não ser, pois ora se está num lugar, ora não. Dessa forma,
os seres eternos guardam uma característica própria da potência, parecendo contradizer a
afirmação anterior de que eles não a teriam, porque em caso contrário ameaçaria sua
própria existência. Para evitar a contradição, Aristóteles esclarece que a corruptibilidade,
intrinsecamente associada à potência, tem que ser entendida de um modo específico,
diferenciado: “Porém, pode não existir o que é possível que não exista; e o que pode não
existir é corruptível, ou absolutamente ou no sentido em que se diz que pode não existir, ou
segundo o lugar ou a quantidade ou a qualidade; e absolutamente segundo a
substância”.
267
Pode-se concluir que a coisa pode ser corruptível (fqarto/n) de modo
absoluto ou relativo. Ser corruptível de modo absoluto se refere à principal categoria, a
ou)si/a; é quando a coisa perde sua essência e perder a essência é deixar de ser o que é.
Caso os seres celestes fossem corruptíveis neste sentido eles não poderiam ser eternos, pois
perderiam sua essência que é ser eterno e incorruptível. A corrupção relativa se refere
somente às outras categorias
268
(qualidade, quantidade, lugar, etc) e, como os corpos
celestes mudam de lugar, eles estão submetidos à corrupção relativa, apesar de nunca
mudarem sua qualidade ou sua quantidade.
u(pa/rceien ou)qeni¿, to\ dunato\n de\ pa=n e)nde/xetai mh\ e)nergeiÍn. to\ aÃra dunato\n eiånai e)nde/xetai kaiì eiånai
kaiì mh\ eiånai: to\ au)to\ aÃra dunato\n kaiì eiånai kaiì mh\ eiånai.
Θ8, 1050b 6-12.
267
to\ de\ dunato\n mh\ eiånai e)nde/xetai mh\ eiånai: to\ de\ e)ndexo/menon mh\ eiånai fqarto/n, hÄ a(plw½j hÄ tou=to
au)to\ oÁ le/getai e)nde/xesqai mh\ eiånai, hÄ kata\ to/pon hÄ kata\ to\ poso\n hÄ poio/n: a(plw½j de\ to\ kat' ou)si¿an.
Θ8, 1050b 12-16.
268
“Uma coisa é corruptível a(plw½j quando perde sua essência; kata\ to/pon, se ela muda de lugar (o Sol, por
exemplo, em seu deslocamento no espaço);
kata\ poso\n, se ela muda de quantidade (a planta que cresce), etc.
Mas, de qualquer modo, há corruptibilidade”. Tricot, J. In: Aristote: La Métaphysique, Tome II, p.515.
125
1.3 Movimento dos Seres Eternos
Os seres eternos são sempre em ato. A partir dessa conclusão, ou pressuposto,
Aristóteles promove a seguir uma relação entre ser necessário e ser em ato, afirmando que,
assim como as coisas não corruptíveis não são em potência, “tampouco as que existem por
necessidade (afinal, estas são primeiras, pois se elas não existissem, nada existiria)”.
269
O
que é necessariamente (
a)na/gkhj) não pode ser ou não ser, ele é sempre e irrestritamente,
porém o que não é necessariamente pode ser, pode não ser ou pode deixar de ser o que é. O
que é necessário se assemelha ao que é em ato porque também em ato o ser é sempre, e não
pode não-ser. Quanto ao que não é necessário, este se assemelha ao que é em potência
porque também em potência o ser é e pode não-ser. A relação entre ser em ato e ser
necessário é fácil de perceber a partir da seguinte hipótese: e se não houvesse tais seres
necessários? Sem os seres necessários então sequer os não-necessários poderiam existir
porque os necessários são primeiros e sem o primeiro, obviamente, não há o segundo, o
terceiro e assim sucessivamente. Portanto, ser necessariamente é ser em ato, é ser primeiro,
logo se pode concluir que o ato é anterior à potência.
Uma característica bastante evidente em Θ8, apesar de não declarada, é a
preocupação de Aristóteles em harmonizar a Cosmologia – em geral, herdada da concepção
astronômica de sua época
270
– com sua metafísica e neste ponto a anterioridade do ato
cumpre papel fundamental. Talvez por isso ele não se esqueça de ressaltar as objeções
levantadas por aqueles físicos preocupados com a possibilidade de o movimento eterno dos
astros um dia cessar. Essa preocupação não é totalmente impertinente, não só porque todo
movimento tende a um momento de estabilidade, de imobilidade típica do ato, mas
inclusive porque o movimento promove desgaste, fadiga e corrupção. Aristóteles expressa e
responde a esta questão nos seguintes termos:
e se há algo que é eternamente movido, tampouco é movido potencialmente, exceto
de algum lugar a outro (e nada impede que haja matéria disto); por isso estão
sempre em ato o sol e os astros e todo o Céu, e não é de temer que uma vez se
detenham, como temem os que tratam da natureza. Nem se cansam fazendo isto,
269
e)nergei¿# aÃra pa/nta: ou)de\ tw½n e)c a)na/gkhj oÃntwn (kai¿toi tau=ta prw½ta: ei¹ ga\r tau=ta mh\ hÅn, ou)qe\n aÄn
hÅnŸ
. Θ8, 1050b 18-19.
270
Sobre a Astronomia Antiga e suas influências sobre a cosmologia aristotélica, confira o detalhado
comentário de Ross; op. cit., p. 383-395.
126
pois o movimento não implica para eles, como para as coisas corruptíveis, a
potência da contradição, o que torna fatigante a continuidade do movimento, visto
que a substância que é matéria e potência, não ato, é causa disto.
271
Apesar do movimento manter forte relação com a matéria e com a potência, isso não
significa que um sempre implique o outro. Se há matéria, há movimento, porém não
necessariamente há potência porque, além da matéria dos astros ser de tipo diferente, o
movimento ao qual estão sujeitos é circular e contínuo, não havendo mudança absoluta,
apenas relativa que é de lugar, há apenas mudança de uma posição que eles periodicamente
atingem.
Assim, considerando o éter como matéria celestial unido ao movim
sensíveis, causando confusão quanto à anterioridade do ato sobre a potência. É sobre tal
assunto que o texto trata na seqüência: “E se existem algumas naturezas ou substâncias tais
como dizem os dialéticos que são as Idéias, haverá algo muito mais científico que a ciência
em si e mais móvel que o movimento em si; pois aquelas são muito mais atos, e estes são
potências daquelas”.
273
Caso exista uma natureza ou uma substância para além daquelas
existentes nos seres sensíveis, esta substância - a Idéia (i)de/a) - será mais real. Por
conseguinte, a idéia de ciência e a idéia de movimento serão mais reais que a própria
ciência. Aristóteles se recusa a aceitar essa teoria. As idéias não são substâncias no sentido
de estarem separadas de um ser concreto; elas apenas são resultado do reconhecimento de
uma propriedade comum a vários indivíduos. As idéias são universais, algo que é comum a
porque o real é em ato e o ideal pode ou não vir a ser em ato. Esse resultado antecipa de
certo modo uma discussão a seguir, no final de Θ9, quando Aristóteles analisa a
anterioridade do ato na matemática, mostrando como as figuras geométricas são
apreendidas a partir de sua individualização, ou seja, quando convertida em ato por meio,
por exemplo, de um desenho. Isso mostraria a anterioridade do indivíduo (ato) sobre os
universais (potência).
3 Anterioridade do Ato no Bem
A análise da anterioridade do ato em Θ8 tem continuidade em Θ9, sempre
ressaltando a relação entre fim, forma e ato, acrescentando que, relativamente ao bem, o ato
é melhor que a potência e, assim, tem prioridade. Em Θ9, Aristóteles faz a análise da
anterioridade do ato relativo ao bem (
a)gaqo/n) e às demonstrações da matemática. O
argumento central fundamenta-se no fato de a potência ser de contrários e o contrário do
bem é o mal, por isso o ato é melhor (
belti¿wn) e mais valioso (timiwte/ra) que a potência
do bem:
Que o ato é também melhor e mais valioso que uma boa potência é evidente pelo
que vamos dizer. Tudo que é dito ter potência para uma coisa, também tem para o
contrário; por exemplo, o que dissemos que pode estar saudável pode também estar
enfermo, e pode simultaneamente, pois a potência de estar saudável e de estar
enfermo, e a de estar quieto e se mover, e a de construir e destruir, e a de ser
construído e ser destruído, é a mesma.
276
A boa atualidade é melhor do que a boa potencialidade porque a potência é sempre
para os contrários. Ser capaz do bem também é ser capaz do mal, mas ser em ato é só um
deles, e porque não há simultaneidade de contrários em ato, sendo o bem em ato, é melhor
do que em potência.
Quando afirma que aquele que é saudável também pode, ao mesmo tempo, ser
enfermo, Aristóteles recorre a um sentido mais geral, como mera potência de ser ou não ser,
para ressaltar a diferença com o ato, que comporta apenas um dos contrários. Ademais,
276
àOti de\ kaiì belti¿wn kaiì timiwte/ra th=j spoudai¿aj duna/mewj h( e)ne/rgeia, e)k tw½n de dh=lon. oÀsa ga\r
kata\ to\ du/nasqai le/getai, tau)to/n e)sti dunato\n ta)nanti¿a, oiâon to\ du/nasqai lego/menon u(giai¿nein tau)to/n
e)sti kaiì to\ noseiÍn, kaiì aÀma: h( au)th\ ga\r du/namij tou= u(giai¿nein kaiì ka/mnein, kaiì h)remeiÍn kaiì kineiÍsqai,
kaiì oi¹kodomeiÍn kaiì kataba/llein, kaiì oi¹kodomeiÍsqai kaiì katapi¿ptein.
Θ9, 1051
a
4-10.
129
como já foi visto, as potências de construir e de curar são racionais e como tais, comportam
contrários. É como se houvesse graus de bem e, nesse caso, o ato é o grau máximo de bem.
Se no bem o ato é anterior à potência, no caso do mal (
kako/n) a situação é inversa:
“Porém, nas coisas más, o fim e o ato serão também necessariamente piores que a
potência, pois a potência para ambos contrários é a mesma”.
277
Como o ato é atualização
de somente um dos contrários, quando se trata do mal o ato é pior que a potência, pois a
potência guarda ainda a possibilidade do bem enquanto o ato já é a atualização do mal.
Nesse caso o grau de bem é maior na potência, enquanto no ato o grau de bem é igual a
zero.
Apesar da relação direta existente entre ato e bem, não se pode inferir disto que
assim como o ato é igual ao bem a potência seja igual ao mal. O bem é princípio do ato e da
potência, pois a potência tende ao ato, ou seja, ao bem. Além disso, ato e potência não são
contrários, são apenas aspectos diferentes do mesmo ser.
Finalmente, cabe lembrar as implicações da identidade entre bem e ato que podem
ser avaliadas, especialmente, sob duas perspectivas: (a) metafísica; e (b) ético/política.
Considerando a perspectiva metafísica, o bem da potência é sua atualização,
conseqüentemente, o mal seria a potência não se realizar. Neste sentido a análise do bem a
partir do par conceitual ato/potência tem uma conotação neutra, não moral. Por exemplo, a
não realização do processo natural que faz da semente uma árvore não é moral. A morte da
semente expressa apenas a não realização de seu fim natural. Por outro lado, sob a
perspectiva ético/política, a idéia de fim e bem, portanto, da identidade en
tre ato e bem, te
m
conotações morais, relacionadas com a questão da escolha correta dos meios para a
realização do bem próprio à cada ação. Apesar de suas diferenças, em ambas perspectivas,
metafísica e ética/política, o bem é princípio do ato e da potência.
Ao afirmar que o ato é pior que a potência referente ao mal, Aristóteles percebe a
possibilidade de se entender o mal como um princípio tão importante quanto o bem. Sobre
isso diz o Estagirita: “É evidente, pois, que o mal não está fora das coisas, pois o mal é por
natureza posterior à potência. Portanto, nem nas coisas primordiais nem nas eternas há
277
a)na/gkh de\ kaiì e)piì tw½n kakw½n to\ te/loj kaiì th\n e)ne/rgeian eiånai xeiÍron th=j duna/mewj: to\ ga\r
duna/menon tau)to\ aÃmfw ta)nanti¿a.
Θ9, 1051
a
15-16.
130
algum mal, nem erro nem corrupção (pois também a corrupção é um mal)”.
278
O mal não
existe separado das coisas particulares e, na verdade, nem o bem, pois Aristóteles não
admite a idéia de bem ou de mal como realidade separada, caso contrário, implicaria a
duplicação desnecessária da realidade. Essa análise do bem/mal, além de mostrar a
anterioridade do ato, tem outros dois propósitos bem específicos
279
: o primeiro é a recusa
em aceitar a idéia do mal como realidade, em ato, fora das coisas sensíveis, inclusive
porque o mal em ato é posterior ao bem, pois se todas as coisas tendem ao bem e o fim da
potência é o ato, que é sinônimo de fim, então o mal vem somente depois do bem. Desse
modo, assim como o ato vem antes da potência também o bem vem antes do mal.
O segundo propósito, intimamente ligado ao primeiro, é mostrar que a tese do mal
como sendo um princípio tanto quanto o bem é princípio, não se sustenta. Se todas as
coisas tendem ao bem, então só o bem é princípio e fim de todas as coisas. Prova disso é
que o bem é realizado em maior grau nos seres eternos, porque são ato em sua totalidade,
não existe o mal como princípio. Segundo Aristóteles, corrupção e carência são um tipo de
mal porque representam a ausência de algo, e o que tem carência de algo é porque não é
completo, não é em ato. Entretanto, os seres eternos são plenamente em ato, nada lhes falta,
então não há lugar para o mal.
4 Anterioridade do Ato na Matemática
Aristóteles encerra Θ9 analisando a anterioridade nas demonstrações matemáticas,
especificamente, nas geométricas, porque o objeto de estudo da matemática parece existir
separado e independentemente das coisas sensíveis individuais. Essa questão perpassa
vários momentos da Metafísica, mas em Θ, para dirimir algumas dúvidas, Aristóteles
explica: “Também as figuras geométricas são encontradas por um ato, pois as encontram
dividindo. Se estivessem divididas se veriam claramente, porém antes da divisão só existem
278
dh=lon aÃra oÀti ou)k eÃsti to\ kako\n para\ ta\ pra/gmata: uÀsteron
em potência”.
280
A divisão (diai/resij) pela qual é possível encontrar (eu(ri/skw) e,
portanto, conhecer as figuras geométricas, não é simplesmente um desenho executado pelo
uso de um lápis ou de algo semelhante. Divisão é o ato de apreensão, é o meio para se
compreender algo (uma figura geométrica) que está apenas em potência no pensamento.
Obviamente as proposições (as regras e objetos matemáticos) não estão em ato nas figuras
ou nos desenhos esboçados. Estes são apenas instrumentos de auxílio para se operar a
passagem ao ato, que é o traçar a figura tornando-a visível para que se possa conhecê-la.
Não é o “desenhar a figura com um lápis” que expressa o ser em ato e sim o resultado da
proposição matemática. De certo modo, as proposições matemáticas já estão no
pensamento do geômetra, mas ganham existência no momento em que são demonstradas e
os instrumentos da demonstração permitem que aquelas proposições, outrora apenas no
pensamento, venham a ser em ato a fim de serem conhecidas. É algo semelhante à lição do
mestre, que somente é provada quando o aluno a executa.
Aristóteles admite que se todo objeto da matemática estivesse desde sempre
desenhado ou representado, todas as proposições nela implicadas seriam evidentes, porém,
não sendo assim, essas proposições enquanto não forem desenhadas (divididas) estão
apenas em potência. A atividade de traçar uma reta é o que permite apreender todo o
conteúdo anteriormente implícito. Logo, o que estava em potência, agora está em ato:
“Portanto, está claro que as figuras que existem em potência são encontradas ao ser
levadas ao ato”.
281
O que antes era apenas um apanhado de hipóteses e proposições no
pensamento do agente passa a ser em ato no momento em que é representado por uma
figura desenhada. Enfim, as demonstrações geométricas só são conhecidas mediante a
apreensão, que é possível a partir do ato de desenhar uma figura, se não for assim não
podemos saber se elas existem ou não, embora possam ser conhecidas enquanto universais,
porque são os universais que são definidos, não os particulares.
Quando o problema da demonstração matemática parece razoavelmente
solucionado, Aristóteles faz uma afirmação que desperta muitas dúvidas: “E é assim
porque o pensamento é ato, assim a potência procede do ato e, por isso, ao fazer as figuras
280
eu(ri¿sketai de\ kaiì ta\ diagra/mmata e)nergei¿#: diairou=ntej ga\r eu(ri¿skousin. ei¹ d' hÅn divrhme/na,
fanera\ aÄn hÅn: nu=n d' e)nupa/rxei duna/mei.
Θ9, 1051
a
21-24.
281
wÐste fanero\n oÀti ta\ duna/mei oÃnta ei¹j e)ne/rgeian a)go/mena eu(ri¿sketai. Θ9, 1051
a
29-30.
132
as conhecem (pois o ato individual é posterior quanto à geração)”.
282
A afirmação de que
pensamento (
no/hsij) é ato suscita novas objeções quanto à anterioridade do ato, pois as
proposições matemáticas são em ato, conforme dito acima, somente quando expostas numa
figura. Se pensamento é ato, então os objetos da matemática na medida em que estão
apenas no pensamento podem também ser considerados como ser em ato. A solução
indicada por Aristóteles está na anterioridade do ato no tempo, ou geração no tempo, que é
diferente conforme se considera a espécie ou o indivíduo
283
. Quando se trata do indivíduo a
potência é anterior ao ato e, nesse caso, a potência da construção geométrica – que
representa uma figura particular – é anterior ao ato, à atividade do pensamento.
Por outro lado, a própria figura, que é ser em potência, sempre pressupõe esta
mesma figura no pensamento, em ato. Portanto, quando se refere à espécie, o ato é anterior
à potência, isso enquanto o ato é considerado apreensão, ou seja, o modo pelo qual os seres
matemáticos são conhecidos
284
. Por exemplo: o círculo universal é anterior a um círculo
particular.
Enfim, o ato é anterior à potência nas demonstrações somente quanto à espécie, pois
no pensamento um círculo é anterior à figura desenhada, por exemplo, na argila. Todavia,
quando se refere ao indivíduo, a potência é anterior porque o desenho do círculo em
particular é anterior ao ato do pensamento, porque quando está apenas no pensamento não é
possível o conhecimento do círculo individual.
A anterioridade do ato é o tema que finaliza a discussão metafísica do par
conceitual ato/potência no livro Θ, ao menos, essa tem sido a conclusão predominante entre
muitos comentadores aristotélicos. Isso porque Θ10 é, para alguns, uma discussão que
estaria desvinculada do aspecto estritamente metafísico. Quanto à Θ9, pode-se concluir que
está perfeitamente inserido na temática central, ato e potência, destacando-se o esforço de
Aristóteles para mostrar o aspecto metafísico do bem duplamente relacionado com o ato e a
forma.
282
aiãtion de\ oÀti h( no/hsij e)ne/rgeia: wÐst' e)c e)nergei¿aj h( du/namij, kaiì dia\ tou=to poiou=n tej gignw¯skousin
(uÀsteron ga\r gene/sei h( e)ne/rgeia h( kat' a)riqmo/nŸ. Θ9, 1051
a
30-33.
283
É desse modo que Ross interpreta a solução de Aristóteles no contexto de Θ. Cf., Ross, D. In: Aristotle’s
Metaphysics, vol. II, p. 273.
284
A complexidade do tema e a brevidade com que é discutido em Θ, não permitem indicar uma solução
definitiva sobre a questão do pensamento ser ato. Permanece a dúvida sobre o que afinal é anterior: o objeto
matemático no pensamento ou sua materialização por meio de uma figuração particular.
133
5 Ser, Verdade e Ato
O último capítulo do livro Θ trata especificamente do verdadeiro e do falso, tema
analisado em vários outros textos da obra aristotélica, entre eles em E4 da Metafísica e em
Categorias. A sua inclusão originariamente em Θ provocou muitas dúvidas entre os
especialistas que questionaram desde o lugar mais coerente de Θ10 dentro da Metafísica,
até sua autenticidade
285
. Tudo isso em virtude de a discussão do ser como verdadeiro e o
não-ser como falso remeter a um estudo propriamente lógico/semântico, envolvendo a
análise dos termos de uma proposição, do sujeito e do predicado da proposição, temas que
são, geralmente, analisados por Aristóteles em seus livros sobre lógica
286
. A despeito desse
debate, pode-se verificar que Θ10 apresenta uma relação com o tema, ato e potência,
especialmente nas passagens que Aristóteles trata das substâncias não compostas, que são
sempre em ato
287
.
Em Θ10, Aristóteles confirma sua tese de que a verdade ou a falsidade não pertence
às coisas, mas pertence ao juízo que se formula sobre as coisas, ou seja, o verdadeiro e o
falso não estão nos objetos e sim no pensamento - enquanto é apreensão da natureza das
coisas. O pensamento está fundamentado nos objetos, portanto, as coisas são
ontologicamente anteriores ao pensamento. Em conseqüência disso, considerando a
anterioridade do objeto perante o pensamento, no início de Θ10, Aristóteles indica o
critério para se saber quando se diz ou não a verdade sobre as coisas:
285
David Ross apresenta o problema tanto dol
nt
nt
de modo que está com a verdade o que pensa que o separado está separado e que o
unido está unido, erra aquele cujo pensamento está em contradição com as coisas;
então, quando existe ou não existe o que chamamos verdadeiro ou falso? Devemos,
pois, considerar o que dissemos. Pois tu não és branco porque nós pensamos
verdadeiramente que és branco, mas que, porque tu és branco, nós, que afirmamos,
nos ajustamos à verdade.
288
O critério da verdade são as coisas (ta\ pra/gmata) e a verdade é verificada a partir
da correspondência entre o pensamento
289
e a realidade. Primeiro há a coisa, depois vem o
juízo sobre a coisa e se esse juízo corresponder à realidade, então é verdadeiro, caso
contrário, é falso.
Em Θ10, Aristóteles apresenta dois casos diferentes em que a análise sobre
verdade/falsidade pode ser considerada: (a) para os seres compostos; e (b) para os seres
simples.
Segundo Aristóteles, para o caso dos seres compostos, um juízo é verdadeiro
quando separa dois termos que, na realidade, são separados, ou une os termos quando são
unidos. O juízo é falso quando separa o que na realidade é unido ou une o que é separado.
Para as coisas que estão ora unidas, ora separadas, o juízo deve corresponder a essa
variação afirmando que no momento x tal coisa é separada e no momento y essa mesma
coisa é unida. Para os seres compostos pode-se tomar o exemplo da seguinte asserção:
“homem é branco”. Se o homem em questão é branco, é verdadeiro afirmar que “homem é
branco”, e é falso afirmar que “homem não é branco”. Preto e branco, assim como círculo e
quadrado, são sempre separados, enquanto que homem e
lo/goj são sempre unidos; porém,
homem e branco às vezes são unidos, às vezes são separados.
Para o caso dos seres simples, ou não compostos (
a)su/nqeta), a análise é mais
complexa e pode ser entendida a partir do contato ou não com a coisa. Se há contato, há
percepção, há conhecimento, caso contrário, só há ignorância. Sobre os seres não
compostos, Aristóteles explica: “aqui isto é o verdadeiro ou o falso: alcançar e dizer a
coisa é verdadeiro (pois não é o mesmo afirmar e dizer), e ignorar é não alcançar a coisa
(pois se enganar acerca da qüididade (
to\ ti/ e)sti) não é possível, exceto por acidente; e o
288
wÐste a)lhqeu/ei me\n o( to\ divrhme/non oi¹o/menoj divrh=sqai kaiì to\ sugkei¿menon sugkeiÍsqai, eÃyeustai
de\ o (e)nanti¿wj eÃxwn hÄ ta\ pra/gmata, po/t' eÃstin hÄ ou)k eÃsti to\ a)lhqe\j lego/menon hÄ yeu=doj; tou=to ga\r
skepte/on ti¿ le/gomen. ou) ga\r dia\ to\ h(ma=j oiãesqai a)lhqw½j se leuko\n eiånai eiå su\ leuko/j, a)lla\ dia\ to\ se\
eiånai leuko\n h(meiÍj oi¸ fa/ntej tou=to a)lhqeu/omen.
Θ10, 1051b 3-9.
289
Pensamento aqui tem um sentido mais amplo, não significa exclusivamente o processo de abstração, e sim
um pressentir (
o)i/omai), presumir, esperar que a coisa seja de certo modo.
135
mesmo ocorre com as substâncias não compostas, pois não é possível se enganar”.
290
Se
há contato, se há um modo de se alcançar (
qigeiÍn) essa coisa, então não se trata de cometer
um erro ou de se dizer algo falso, mas de apreender ou não a própria coisa. Quando há
contato, há apreensão imediata de sua qüididade, ou essência (
to\ ti/ h)=n ei(=nai), caso
contrário, sequer pode haver possibilidade de erro ou de falsidade, pois nem se conhece tal
coisa para se fazer algum juízo sobre ela. Portanto, do mesmo modo que não há um
intermediário entre ser e não-ser, também não há intermediário entre apreensão e não
apreensão
291
, caso contrário não haveria correspondência entre a verdade e a coisa.
Aristóteles estabeleceu aqui uma relação entre seres simples (indivíduos tais como Sócrates
ou Cálias) e substâncias simples (a forma). Por serem simples, ambos, seres simples e
substâncias simples, são em ato.
A partir da verdade da apreensão nos seres não compostos pode-se perceber a
relação entre verdade e ato. De acordo com Aristóteles, todas as substâncias simples são em
ato, nunca em potência. Essas substâncias simples são as formas, por isso são ato, pois o
ato coincide com a forma, a qual nunca sofre processo de geração e corrupção. Sobre essas
substâncias simples Aristóteles esclarece que: Todas são em ato, não em potência, senão
se gerariam e se corromperiam; porém o mesmo não se gera nem se corrompe, pois se
geraria a partir de algo”.
292
Se as substâncias simples fossem em potência elas sofreriam o
processo de geração e corrupção, então ora seriam, ora não seriam o que são. O simples é
de onde parte o composto e se não houver o simples não há o composto. Portanto, o simples
é sempre em ato, pois o ato é a garantia do ser; nele não há o não-ser. As coisas simples são
em ato e delas não é possível o erro, mas só o conhecimento verdadeiro ou a ignorância.
Então, o que é em ato é o que pode ser verdadeiro em grau máximo porquanto o ato sempre
é, tal como a substância, tal como a verdade. O ser em ato é mais verdadeiro do que o ser
em potência.
290
a)ll' eÃsti to\ me\n a)lhqe\j hÄ yeu=doj, to\ me\n qigeiÍn kaiì fa/nai a)lhqe/j ou) ga\r tau)to\ kata/fasij kai
fa/sijŸ, to\ d' a)gnoeiÍn mh\ qigga/nein a)pathqh=nai ga\r periì to\ ti¿ e)stin ou)k eÃstin a)ll' hÄ kata\ sumbebhko/j:
o(moi¿wj de\ kaiì periì ta\j mh\ sunqeta\j ou)si¿aj, ou) ga\r eÃstin a)pathqh=nai:
Θ10, 1051b 23-28.
291
Sobre a correspondência entre o ser do objeto e a verdade da apreensão, comenta Ross: “Ou seja, assim
como do ponto de vista subjetivo as únicas alternativas são apreensão e não-apreensão, do ponto de vista
objetivo as únicas alternativas são ser e não-ser. Não estamos agora tratando com a questão de se A é deste
ou daquele modo, isto é, unido ou separado à B, mas simplesmente com a questão de se A é (no caso em que
só pode ser A) ou não é”. Ross, D. In: Aristotle’s Metaphysics, vol. II, p.278.
292
kaiì pa=sai ei¹siìn e)nergei¿#, ou) duna/mei, e)gi¿gnont
o
Essa conclusão talvez explique o motivo da inclusão do ser como verdade numa
discussão sobre ato e potência. Porém, o caso dos seres não compostos envolve também a
distinção entre os dois sentidos principais em que verdade/falsidade podem ser entendidos
no contexto de Θ10: o sentido lógico/semântico e o ontológico.
O simples no sentido lógico/semântico remete à questão da predicação, portanto, da
palavra, e nesse caso fica mais difícil compreender sua relação com ato e potência. No
sentido ontológico, o simples se identifica com o indivíduo e num mundo marcado pela
multiplicidade de indivíduos, nesse caso, a forma coincide com o individuo, com o que é
simples, e o simples é ser em ato.
Nesse sentido a inclusão de Θ10 numa discussão sobre ato e potência seria coerente,
pois o indivíduo não-composto (Sócrates, Cálias, o primeiro motor imóvel) é, por
excelência, ser em ato. Porém, é preciso considerar que Sócrates é um individuo não-
composto somente em relação ao mundo composto de vários tipos de indivíduos, mas que
Sócrates mesmo é composto, pois é constituído de matéria e forma. Conseqüentemente, o
motor imóvel é o único indivíduo que é sempre o exemplo de ser não-composto.
De qualquer modo, é muito difícil compreender claramente os motivos que levaram
Aristóteles a encerrar o livro Θ com uma discussão sobre verdade/falsidade, bem como sua
relação com os conceitos centrais, ato e potência. Porém, apesar do caráter aparentemente
disperso e inconcluso de todo livro Θ – e sua finalização com uma discussão sobre a
verdade parece intencional –, talvez o propósito central de Aristóteles seja mesmo o de
mostrar como o par conceitual ato/potência é fundamental para explicar outros contextos da
realidade, tais como a física, a ética, a psicologia e a teologia. Assim, o ser em ato e em
potência também pode se inserir numa análise do ser como verdade.
137
Considerações finais
Com o propósito de analisar a relação entre ser e movimento a partir dos conceitos
de ato e potência, procuramos elaborar um mapeamento do livro Θ da Metafísica, capaz de
orientar o entendimento de sua estrutura central. Essa reconstrução argumentativa permite
indicar algumas conclusões que incluem desde a solução de Aristóteles para a relação entre
ser e movimento, até a importância do ser em ato e em potência como conceitos
fundamentais para se entender sua filosofia a partir de uma perspectiva mais abrangente.
Para perceber a importância de ato e potência enquanto conceitos capazes de fazer a
conexão entre as várias ciências, bem como suas relações com os outros conceitos
fundamentais, é preciso ressaltar alguns aspectos particulares de Θ que, sob um certo ponto
de vista, justificam sua reputação de ser um texto complicado, fragmentado, superficial e
obscuro. Alguns desses adjetivos provavelmente se sustentam a partir da abrangência
temática de Θ e de seu caráter esquemático. É um livro que incorpora e relaciona várias
áreas do conhecimento, por exemplo, a Física, a Psicologia, a Ética, a Política e a Teologia.
Seu caráter fragmentário e inconcluso pode ser percebido logo em seu início quando, para
explicar os tipos de potência, Aristóteles inclui conceitos e exemplos de vários campos do
saber. Ora se empenha em mostrar alguns detalhes que, por vezes, mais confundem do que
esclarecem, ora trata-os de modo menos aprofundado quando se esperaria uma análise mais
cuidadosa. Tudo isso dificulta bastante qualquer pretensão de encontrar um elemento que
permita sua unidade. Entretanto, como Aristóteles parece decidido a elaborar uma filosofia
capaz de proporcionar a explicação mais convincente possível do que seja o real, fica difícil
conceber que um texto que trata de um tema tão importante – a relação entre ser e
movimento a partir dos conceitos de ato e potência – guarde o aspecto de um amontoado de
análises heterogêneas e desconexas. A chave para tentar dirimir parte dessa dificuldade está
justamente nos conceitos centrais do livro Θ, ato e potência, pois juntos formam o elemento
de conexão entre as outras ciências – práticas, produtivas e teóricas – subordinadas à
Ciência do Ser enquanto Ser. Então, aquela estrutura aparentemente desconexa de Θ tem
sua unidade garantida por esses conceitos que
diferença entre o falso e o impossível. Desse modo, encerra sua investigação sobre ato e
potência relativos ao movimento.
A segunda parte também pode ser subdividida em dois seguimentos: 1º) Θ6 e Θ7;
2º) Θ8, Θ9 e Θ10. Nesta segunda parte de Θ, o encadeamento entre os temas é mais
complexo porque Aristóteles expande as áreas do conhecimento em que ato e potência são
aplicados, por exemplo, na Cosmologia e na Teologia. Ao centrar a investigação sobre o
sentido metafísico, o aspecto teleológico de sua teoria é explicitado, pois é intrínseco à
ato/potência. No primeiro segmento de Θ6, Aristóteles inicia a apresentação da diferença
ontológica entre ato e potência, assim como o modo próprio de conhecer conceitos
originários, ou seja, por meio da analogia. A conexão que ato e potência promovem com as
ciências práticas fica por conta da imanência ou não do fim na ação. Quanto ao sentido
metafísico da potência, Aristóteles, em Θ7, analisa as condições, internas e externas,
necessárias para a atualização da potência enquanto matéria. Com isso, ele acentua a
semelhança existente entre potência, matéria e atributos, graças ao caráter indeterminado
constituinte destes conceitos.
O segundo segmento, Θ8, Θ9 e Θ10, envolve enormes dificuldades quando se trata
de encontrar sua unidade, pois Aristóteles geralmente passa de uma área a outra do
conhecimento de modo abrupto. No entanto, caso não se perca de vista a função associativa
que ato e potência possuem, a linearidade do texto pode ser constatada. Nesse sentido, a
discussão sobre a anterioridade do ato sobre a potência é fundamental, pois é desse modo
que Aristóteles evidencia a relação direta existente entre o ato, a forma, a substância e o
fim. Essa múltipla relação perpassa várias áreas do conhecimento e, em Θ8, isto se verifica
especialmente quando se trata das substâncias eternas incorruptíveis, os corpos celestes e o
motor imóvel. A análise da anterioridade do ato sobre a potência continua em Θ9,
destacando aquela relativa ao bem e às demonstrações da matemática. Aristóteles encerra o
livro Θ com uma análise do verdadeiro e do falso, mostrando que o ser em ato é mais
verdadeiro do que o ser em potência porque a essência de cada coisa está sempre em ato.
Feita a distinção entre os dois momentos da investigação em Θ, pode-se constatar
algumas relações entre ato/potência e alguns dos conceitos centrais em sua filosofia.
Primeiro, há uma relação direta entre, por um lado, matéria e potência; por outro, entre a
forma e ato. Desta dupla relação pode-se concluir que quanto maior o distanciamento do ser
140
em relação à matéria, menor a potencialidade e maior será a perfeição, caracterizada pela
proximidade com o primeiro motor imóvel, o ato puro. Em linhas gerais, Aristóteles
reconhece a prioridade ontológica da forma sobre a matéria, assim como do ato sobre a
potência. É conhecida a tese aristotélica na qual todos os seres da natureza se movem e são
imperfeitos, porque são constituídos de forma e matéria e, por isso, estão sujeitos ao
processo de geração e corrupção deles próprios. No entanto, no outro lado, no mundo acima
da lua, existem os seres perfeitos que representam o acabamento final, portanto, a
imobilidade caracterizada por sua plenitude. Apesar dessa demarcação, mesmo no mundo
sublunar é possível verificar algo estável, a substância, ainda que não cesse a constante
oposição entre movimento e imobilidade. É essa oposição que Aristóteles conceitua por
meio da relação entre ato e forma, potência e matéria. Enquanto a matéria é maleável,
potencialmente capaz de receber a forma, esta última se configura como atualização da
capacidade da matéria, sendo o ato, o acabamento final. O ato expressa a realização da
forma, ou melhor, é a atualização da forma, logo, eles coincidem. Assim como a forma diz
o que é a coisa, o ato é o que dá a razão da potência. Todo movimento se dá em função da
aquisição de uma forma que o ser já possuía potencialmente. Enfim, a forma é a atualização
da potência, ou o resultado final do processo gradual, da passagem da potência ao ato.
Por outro lado, a relação entre matéria e potência, aludida ao longo de Θ, é
confirmada especialmente em Θ7, ao tratar da potência enquanto matéria. Aristóteles
afirma que não é simplesmente a partir de uma extensa série de mudanças que a potência,
enquanto matéria, se atualiza. Há um processo específico que requer a observação de
algumas condições para se atualizar, principalmente uma causa motriz. Além disso,
Aristóteles promove a aproximação entre potência, matéria e 02.8pm oe
O mapeamento de Θ permitiu mostrar também como ato e potência somente podem
ser plenamente compreendidos a partir da noção de substância, pois é o parâmetro para o
plano geral elaborado por Aristóteles no início de Θ, mostrando como as duas partes de sua
divisão interna – a primeira de Θ1 a Θ5; a segunda de Θ6 a Θ10 – não são estanques. Elas
se complementam, são interdependentes, sendo que a segunda parte, por ter como suporte o
conceito fundamental de toda filosofia aristotélica, a substância, guarda algumas
complexidades a mais. No mínimo, elas subtendem ou pressupõem um conhecimento da
teoria geral da substância, caso contrário, não haveria motivo algum para Aristóteles
afirmar, no início de Θ1, que o sentido que mais lhe interessa na investigação sobre ato e
potência é aquele para além do movimento.
Quanto à relação entre substância e ato, embora ela possa ser verificada por todo o
texto, há um momento em que isso ocorre de modo explícito, é em Θ8, quando Aristóteles
defende a anterioridade do ato na substância. O objetivo principal aqui é confirmar o
sentido de completude do ato, e a completude é própria da substância porque esta expressa
a continuidade e permanência no ser. Essa relação é verificada a partir da constatação de
que a substância é identificada sempre no ser em ato, nunca em potência, porquanto a
potência guarda a possibilidade de ser ou não ser, na medida em que o ato é sempre ser e a
substância é a expressão última do ser.
Também há um outro aspecto constituinte da filosofia aristotélica que somente
ganha sentido e importância ao pressupor a noção de substância, trata-se da teleologia. Se o
ato está relacionado com a substância por causa da completude, esta mesma completude
expressa um fim. No caso dos seres da natureza, o fim é uma tendência intrínseca à auto-
suficiência já inscrita na própria coisa. No caso dos seres oriundos da ciência e da arte, o
fim é verificado a partir de uma estreita relação entre a coisa e a atividade criadora. Por
todo livro Θ, a co-implicação entre ato e potência torna esta concepção teleológica bastante
evidente. Em nenhum momento Aristóteles descuida-se da enumeração das condições e dos
limites da atualização da potência, porém, ele faz questão de ressaltar que, a partir do
momento em que o processo tem início, deve chegar ao seu cumprimento, ao seu fim, que é
a atualização da forma, porque o ato é o que de fato existe, afinal, enquanto potência, o ser
pode ser ou não-ser, mas enquanto em ato o ser somente é. É desse modo que se pode
142
entender que a potência só tem razão de ser na medida em que tende ao ato, ela não visa a
si mesma, o ato é o fim da potência.
Não se poderia deixar de citar também a importância da relação entre fim e natureza
no sistema aristotélico e que permeia todo o livro Θ. Isso porque, nos seres naturais, há uma
tendência imanente em cumprir seu fim. Desse modo, a passagem do ser em potência para
o ser em ato só pode ser plenamente compreendida a partir da idéia de um fim imanente,
que é natural, pois a
fu/sij é um princípio interior, imanente, e causa de movimento ou
mesmo de repouso.
Obviamente, a teleologia aristotélica é intrinsecamente ligada a idéia de realização
do bem. A tese de que o bem é intrínseco ao fim decorre da inserção do Estagirita na
tradição grega em que predominava, de modo geral, a convicção de que todas as coisas no
mundo convergem para a imobilidade, e o movimento é um fato transitório, sinal de
imperfeição que impera em toda natureza, onde tudo se move e se transforma. O ser tem
um propósito, não está à deriva. Em geral, tudo tem uma finalidade, o bem, não importando
se é produto da natureza ou da arte, se é
fu/sij ou se é te/xnh. A partir disso, pode-se
inferir uma outra relação: entre ato e bem. O que está em potência só guarda sentido de sua
existência porque tende ao ato, que é seu fim: a realização do bem. O fim de todas as coisas
é o bem, e o bem da potência é o ato, portanto ato é o mesmo que bem. Claro que não se
pode atribuir essa relação de modo irrestrito, mas é uma idéia que perpassa boa parte do
livro, especialmente em Θ9 onde Aristóteles afirma que o bem é princípio do ato e da
potência, já que a potência tende ao ato. A identidade entre bem e ato se revela tanto numa
perspectiva metafísica – em que o bem da potência é sua atualização e o mal é sua não
realização –, como numa perspectiva ético/política – que tem conotações morais.
A teleologia aristotélica perpassa todos os âmbitos do saber, servindo inclusive
como princípio delimitador entre ação e produção em sua filosofia prática. Essa diferença
tem como conseqüência uma dupla relação: por um lado entre ato e ação; por outro, entre
produção e movimento. Enquanto a ação perfeita, ação propriamente dita, tem um fim
imanente, por isso é ato, a ação imperfeita, uma produção, tem fim extrínseco, por isso é
movimento. Então, a partir da imanência do fim na ação percebe-se que o ato coincide com
a ação, enquanto a produção coincide com o movimento.
143
Ainda sobre a teleologia aristotélica, é possível perceber em Θ que a distinção entre
ato e potência vai além de uma defesa do movimento. A perspectiva de ato e potência serve
também para demarcar a diferença entre finalismo e determinismo, transmitindo a idéia de
que a concepção filosófica de Aristóteles é mais flexível e respeita mais o senso comum
porque guarda um importante lugar para a imprevisibilidade e, portanto, para a liberdade.
Aristóteles defende uma potência que necessariamente pode se atualizar, enquanto o
determinismo só aceita ou a total necessidade, ou o impossível. É claro que, apesar de seus
esforços, a história não deixou de cunhar o seu sistema como sendo uma das grandes
expressões do determinismo exacerbado e, nesse caso, ato e potência isoladamente não se
apresentam como fatores suficientes para dirimir tal julgamento. Seria necessário um
estudo mais extenso e cuidadoso para verificar de que modo a inserção desses conceitos em
todos os âmbitos da filosofia aristotélica poderiam, ou não, resolver esse dilema.
A centralidade de ato e potência em Θ e a importância destes conceitos como um
elo de ligação entre as várias ciências podem ser verificadas ainda a partir de alguns
sentidos de ato e potência que Aristóteles desenvolve ao longo do texto. De modo geral, ato
e potência podem ser entendidos a partir dos seguintes vocábulos (que ao longo da
exposição são utilizados indiscriminadamente): para a potência há o termo
dunato/n, uma
força para promover o movimento/mudança em outro; e
du/namij, uma potencialidade para
passar a um novo estado. Apesar de a potência guardar a possibilidade tanto de ser quanto a
de não-ser, ela não é algo ilimitado, não é potência para realizar tudo e de modo absoluto
ou em qualquer circunstância. Por outro lado, também não é mera possibilidade porque há
um desígnio, o chegar a ser em ato. De maneira geral, é pressuposta a possibilidade de
alguma coisa tornar-se uma outra, mas esta outra não é completamente diferente da
primeira. Também não é uma coisa qualquer que pode se transformar numa outra, mas é
necessário que certos fatores possibilitem essa passagem que ocorre por meio de um
processo gradual e contínuo. Ao destacar as condições e os limites, Aristóteles mostra que
realizar a potência necessariamente não é o mesmo que realizar a potência ilimitadamente.
Para o ser em ato, tem-se:
e)ne/rgeia, que contém a idéia de atividade criadora; e
e)ntele/xeia, que contém a idéia de atualidade, perfeição e guarda melhor o aspecto de
te/loj imanente. O termo e)ne/rgeia aparece bem mais do que e)ntele/xeia, provavelmente
144
por ser mais abrangente e, portanto, mais condizente com a complexidade do real. Além
disso, conforme seus objetivos específicos, Aristóteles acentua ora o caráter operativo do
ato (
e)ne/rgeia), ora o seu caráter estático (e)ntele/xeia). São essas nuances dos usos e
aspectos destacados por Aristóteles para ato e potência que a reconstrução e análise de Θ
revela. O vocábulo
e)ne/rgeia mostra bem o grau de complexidade que ato e potência
adquirem na teoria aristotélica. Visto como o correlato da potência, um dos propósitos
principais da
e)ne/rgeia é o de resolver o problema do movimento. No entanto, Aristóteles
afirma que o movimento também merece ser reconhecido como
e)ne/rgeia com base em
dois fatores. Primeiro, a verificação de que as coisas estão sempre mudando de um estado a
outro sendo que essa mudança requer atividade. Visto que
e)ne/rgeia ostenta a idéia de
atividade, então movimento é, praticamente, sinônimo de atividade. O segundo fator, o de
movimento enquanto realidade, é ainda mais desconcertante, pois exige a admissão de
e)ntele/xeia como movimento. O ser enquanto e)ntele/xeia expressa a realidade efetivada
e como só há movimento de algo, portanto, do que é, então o movimento de algum modo
existe, porque só as coisas que existem é que têm algum movimento. Desse modo, o
movimento é uma das coisas mais reais a qual se pode constatar, conseqüentemente
movimento é realidade, é
e)ntele/xeia.
Para dificultar ainda mais qualquer proposta de delimitar seus múltiplos sentidos,
e)ne/rgeia é identificada com ação (pra=cij) e oposta ao movimento que, por sua vez, é
identificado com produção (
poi/hsij). Além disso, e)ne/rgeia é o caminho entre du/namij e
e)ntele/xeia e o limite entre móvel e imóvel, sendo novamente identificado com o
movimento. Tal caráter intermediário, abrangente e, por vezes, ambíguo que o ato guarda,
tanto como
e)ne/rgeia quanto como e)ntele/xeia, não se deve provavelmente à
incapacidade do Estagirita em efetuar uma demarcação definitiva dos vários sentidos e usos
dos termos, mas à própria dificuldade de conceituar a relação entre ser e movimento, ou
seja, a própria realidade.
Essa complexidade de usos e sentidos que envolve o par conceitual ato/potência se
reflete em várias áreas do conhecimento. Como o movimento também está presente em
quase todos os âmbitos da realidade, as dificuldades que o envolvem não são irrisórias. Em
Θ é possível perceber como o movimento parece estar num limbo entre potência e ato, não
145
podendo ser qualificado definitivamente como qualquer um dos dois isoladamente. Alguns
momentos de Θ – diríamos, em suas entrelinhas – há a impressão de que Aristóteles
percebe que os conceitos de ato e potência não respondem totalmente às suas pretensões,
por exemplo, no caso do infinito e do vazio que nunca chegam a ser em ato. Também o
movimento guarda esse aspecto semelhante ao infinito, pois o movimento parece ser algo
que nunca chega ao ato. Para dirimir um pouco estas dúvidas, é preciso lembrar que o
movimento não é um estado, tal como entendemos o repouso. Movimento não é algo que
está no meio do caminho entre potência e ato, mas é um processo finito que deixa de ser
quando alcança seu término, sendo, portanto, o próprio devir. A diferença crucial entre
movimento e essas outras noções também pode ser melhor esclarecida a partir da inegável
experiência sensível que temos do movimento em nosso cotidiano, é a realidade mais
familiar ao homem no mundo sublunar. O movimento não é algo concebível apenas
mentalmente, mas é um processo que tem início e fim, é algo real. Enfim, o movimento não
é um transformismo total ou um caos, pelo contrário, ele ocorre dentro de certas leis que
permitem sua apreensão e, portanto, o conhecimento do ser.
A reconstrução argumentativa do livro Θ permitiu constatar a importância dos
conceitos de ato e potência, tanto para elucidar a relação entre ser e movimento, como para
compreender sua função de promover o vínculo entre as várias ciências. Visto como um
dos modos de se dizer o ser, o ser em ato e em potência não é um estudo isolado daquele
que pretende responder “o que é o ser”, mas está sempre implicado no plano da ciência do
ser enquanto ser, da ciência que tem como propósito explicar a realidade. Logo, se o objeto
próprio da Filosofia Primeira, a metafísica, é o ser enquanto ser, o par conceitual
ato/potência está sempre implicado no entendimento do ser entendido no sentido mais
amplo e não só do que está em movimento, mas, principalmente, daquilo que permanece
imóvel: a substância.
Apesar de em nenhum momento termos tido a pretensão de defender que a filosofia
de Aristóteles é sistematicamente fechada, plenamente consumada, a centralidade dos
conceitos de ato e potência no encadeamento do livro Θ, permite constatar também uma
unidade em seu pensamento. Obviamente, esta unidade não o isenta de apresentar
oscilações e contradições – algumas delas indicadas no trabalho – difíceis de solucionar.
Desse modo, embora nossa posição particular seja a de que a filosofia raramente
146
proporciona respostas satisfatórias ou definitivas, isso não vale do mesmo modo para as
pretensões dos filósofos. Especialmente no caso de Aristóteles, não parece que ele tenha
como propósito principal, e nisso Θ é bem claro, o de simplesmente colocar as questões que
são próprias da filosofia, pelo contrário, seu objetivo é o de apresentar uma resposta
definitiva às questões, e ato/potência fazem parte desta pretensão.
Finalmente, queremos salientar que o mapeamento do livro Θ não deve ser
interpretado como uma tomada definitiva de posição ou mesmo como um afã de resolver
problemas contemporâneos a partir da revisão e recuperação de uma linha de pensamento.
Contudo, a importância do pensamento de Aristóteles, sob vários aspectos, é inquestionável
e, também por isso, merece um cuidadoso estudo. Por mais que se gastem toneladas de
papel e tinta, parece nunca se esgotar a análise da filosofia aristotélica, mesmo numa época
em que, para boa parte dos filósofos contemporâneos, os fundamentos de sua teoria já
tenham sido refutados. A despeito desses problemas, o fato é que nunca foi uma tarefa fácil
justificar o estudo de uma linha de pensamento filosófico ou da própria filosofia. Todavia,
se é verdade que toda a história da filosofia não é mais do que notas ao pé de página da
filosofia de Platão, também é verdade que as notas mais interessantes, perspicazes e
influentes são as de Aristóteles, afinal, nenhum pensamento imperaria durante tantos
séculos simplesmente por capricho de alguns discípulos e admiradores.
147
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