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intenção irônica, que se completa com o contrastante conteúdo dos enunciados de
Leporello:
LEPORELLO: Com todo o respeito que devo a Vossa Comendadoria, tenciona a estátua de
Vossa Comendadoria ficar em casa do meu patrão para sempre?
COMENDADOR: E a ti, imbecil, que te interessa? Por que queres tu sabê-lo?
LEPORELLO: É que se Vossa Comendadoria veio para ficar, então eu rogaria à estátua de
Vossa Comendadoria, por alma de quem lá tenha, o favor de se afastar um pouco para aquele
lado porque está a empatar o caminho
COMENDADOR: Semelhante atrevimento, semelhante insolência não se pagariam nem com
cinqüenta chicotadas. A ti o que te vale é eu estar morto.
LEPORELLO: Felizmente, senhor. (p. 54)
Quando Dona Elvira entra em cena, traz um embrulho nas mãos, segundo
informação do autor. Depois de contracenar brevemente com Leporello e em seguida
com a estátua
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– quando se apresenta com “Uma das pobres vítimas de Don Giovanni”
(p. 57) –, Dona Elvira, parecendo ser a mesma mulher disposta ao perdão, reivindica o
amor do pérfido sedutor:
DONA ELVIRA: Dás-me a vida se me devolves o teu amor, rouba-la se não me recebes nos
teus braços.
DON GIOVANNI: E na minha cama.
DONA ELVIRA: Sim, na tua cama. Recorda as horas deliciosas que gozámos na minha,
ouvindo os sinos da catedral de Burgos. Não posso ouvir um sino sem me arrepiar toda.
DON GIOVANNI: Cuidado com as expansões. Esse senhor que aí está, mal-encarado,
pertence à seita dos puritanos ortodoxos. Quanto a nós, já te disse que está tudo acabado.
DONA ELVIRA: Queres que te implore de joelhos? Queres que me arraste aos teus pés? O
amor aceita tudo, e eu amo-te. (p. 59-60)
Mas Don Giovanni intui bem ao dizer, antes de se retirar, que “Noutro tempo, talvez
sim, mas agora os teus discursos soam a falso” (p. 60). O leitor, que já vinha sendo
alertado para a artificialidade da personagem pelas marcações cênicas, é agora
informado de que o mal-estar de Dona Elvira, após a saída de Don Giovanni, é apenas
fingimento. Na verdade, o fingido mal-estar – ou o fanico, como dirá posteriormente
Leporello – é um estratagema para afastar o criado, a quem pede água e sais,
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O diálogo entre Dona Elvira e a estátua do Comendador tem aspectos interessantes, porém
secundários, que preferimos referir nesta nota. 1) A seguinte frase de Dona Elvira reforça o anacronismo
da presença do Comendador, resgatando ao mesmo tempo a afirmação de Don Giovanni de que a estátua
estava fora da comédia, resumindo-se a um adereço: “Realmente tinha-me parecido que era uma estátua,
mas pensei que fazia parte da decoração” (p. 57). 2) Reforça-se a perda da mejestática expressão do
Comendador: “Tal como a minha filha. Dona Ana na sociedade, Aninhas para a família” (p. 57). 3)
Inserção de um costume anacrônico: “É o que sucede quando não se lêem os jornais todos os dias” (p.
58). 4) Reforça-se o anacronismo da maldição quando o Comendador diz que seus métodos estavam
desatualizados e Dona Elvira confirma: “Isso foi chão que deu uvas, Comendador” (p. 59).