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DON GIOVANNI OU O DISSOLUTO ABSOLVIDO
DE JOSÉ SARAMAGO:
UM NOVO HORIZONTE PARA O ANTIGO PECADOR
Alexandre Teixeira
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Letras
Vernáculas da Universidade Federal do
Rio de Janeiro como quesito para a
obtenção do Título de Mestre em Letras
Vernáculas (Literaturas Portuguesa e
Africanas).
Orientadora: Professora Doutora Luci
Ruas Pereira
Rio de Janeiro
Dezembro de 2008
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AGRADECIMENTOS
À Professora Doutora Luci Ruas Pereira, pela fraterna e paciente orientação e
pelo incentivo generoso.
À Professora Doutora Ângela Beatriz de Carvalho Faria, que teve decisiva
participação para a escolha do tema desta dissertação.
Ao Professor Doutor Wellington de Almeida Santos, pelas aulas em que tive
acesso ao universo operístico e pelo fraterno incentivo.
Ao amigo Américo Almeida, que revisou detalhadamente os esboços que
antecederam este trabalho.
À minha irmã Jaqueline Teixeira, pela ajuda paciente e atenta e pelas
observações que ajudaram a aperfeiçoar esta dissertação.
À minha companheira Cristiane Petito, pelo estímulo constante e pela
compreensão carinhosa.
Aos meus filhos Bruno e Mariana, inspiração para o que de bom possa haver
nesta dissertação e em mim.
SINOPSE
Estudo das principais características da
história e da personagem de Don Juan: as
transformações sofridas pelo tema, desde
Tirso de Molina até o século XX.
Abordagem intertextual: a versão de José
Saramago em diálogo com a tradição
literária formada em torno da personagem.
Identificação das marcas do universo
ficcional de José Saramago em Don
Giovanni ou o dissoluto absolvido.
RESUMO
Don Giovanni ou o dissoluto absolvido de José Saramago:
um novo horizonte para o antigo pecador
Alexandre Teixeira
Orientadora: Professora Doutora Luci Ruas Pereira
Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação
em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte
dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Letras Vernáculas
(Literaturas Portuguesa e Africanas).
A dissertação persegue dois objetivos: fazer dialogar a versão de José Saramago
com a tradição literária que se formou em torno da personagem de Don Juan ou Don
Giovanni e identificar na peça teatral traços e perspectivas do universo ficcional do
autor. Apresenta-se, então, um quadro parcial da tradição literária referida, desde a obra
inaugural de Tirso de Molina até o século XX, com destaque para as obras de Molière,
Mozart/Da Ponte, José Zorrilla e Gonzalo Torrente Ballester. Ressalta-se especialmente
o fundo religioso do tema, uma vez que esse é um dos aspectos mais relevantes da
subversão saramaguiana. Na segunda parte, depois de uma breve incursão por algumas
obras anteriores do escritor, com destaque para O evangelho segundo Jesus Cristo, a
dissertação identifica alguns processos próprios da intertextualidade no diálogo que
estabelece entre a versão do escritor português e as anteriormente apresentadas,
especialmente a ópera de Mozart e Lorenzo da Ponte, pré-texto direto da releitura de
Saramago. Verifica-se que a nova versão apresenta um novo horizonte para a
personagem marcada desde a origem pela punição divina, horizonte característico da
ficção saramaguiana: laicização do universo de Don Giovanni, onde a antiga ordem
religiosa cede lugar à afirmação da liberdade humana. Outra perspectiva característica
do autor é identificada na absolvição e transformação do protagonista, salvo e
humanizado pelo franco e generoso amor feminino, operando-se uma inversão radical
da história tradicional: Don Giovanni entrega-se trêmulo à humilde Zerlina, que toma a
iniciativa da conquista amorosa.
Palavras-chave:
Don Juan, Don Giovanni, castigo, absolvição, liberdade, Saramago.
Rio de Janeiro
Dezembro de 2008
ABSTRACT
Don Giovanni ou o dissoluto absolvido from José Saramago:
a new horizon for the old sinner
Alexandre Teixeira
Orientador: Professora Doutora Luci Ruas Pereira
Summary of the Master’s Degree Dissertation submitted to the Post Graduation
Program in Letras Vernáculas of Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, as
part of the necessary requirements for obtaining the title of Master in Letras Vernáculas
(Portuguese and Africans Literatures).
The dissertation pursues two objectives: make a dialogue between the version of
José Saramago and the literary tradition that has been formed around the character of
Don Juan or Don Giovanni and identify in the play traces and perspectives of the
ficcional universe of the author. It is presented, then, a partial sight of the mentioned
literary tradition, since the inaugural workmanship of Tirso de Molina until 20
th
century,
with emphasis in the work of Molière, Mozart/Da Ponte, José Zorrilla e Gonzalo
Torrente Ballester. It is pointed out, especially, the religious basis of the theme, since
this is one of the most significant aspects of the saramaguiana subversion. In the second
part, after a brief incursion by some previous works of the writer, with highlight to O
evangelho segundo Jesus Cristo, the dissertation identifies some proper processes of the
intertextuality in the dialogue established between the version of the portuguese writer
and the previously presented ones, especially the opera of Mozart and Lorenzo da
Ponte, direct pre-text of Saramago’s rereading. It is verified that the new version
presents a new horizon for the character marked by the divine punishment since the
origin, typical horizon of Saramago’s fiction: laicization of Don Giovanni’s universe,
where the former religious order yields place to the affirmation of human freedom.
Another typical perspective of the author is identified in the absolution and
transformation of the protagonist, saved and humanized by true and generous female
love, operating a radical reversal of the traditional history: Don Giovanni submits
himself trembling to the humble Zerlina, which takes the initiative of loving conquest.
keywords:
Don Juan, Don Giovanni, punishment, absolution, freedom, Saramago.
Rio de Janeiro
December 2008
SUMÁRIO
ABREVIATURAS.........................................................................................................8
1 – INTRODUÇÃO.......................................................................................................9
2 – DE TIRSO DE MOLINA AO SÉCULO XX........................................................13
2.1 – Tirso de Molina............................................................................................14
2.1.1 – O primeiro Don Juan: obra, autoria e fontes.......................................14
2.1.2 – El burlador de Sevilla y convidado de piedra: o sermão edificante...18
2.2 – A Comédia dell’Arte: deformação e difusão do tema..................................25
2.3 – Molière: idéias libertinas e glosa à hipocrisia..............................................28
2.4 – Mozart/Lorenzo da Ponte: preparando o herói e a heroína românticos.......36
2.5 – Do Romantismo ao século XX: as versões de Zorrilla e de Ballester.........42
3 – JOSÈ SARAMAGO...............................................................................................55
3.1 – O universo ficcional de José Saramago.......................................................57
3.1.1 – Relendo a História..............................................................................59
3.1.2 – Confrontando a religião......................................................................63
3.2 – Don Giovanni ou o dissoluto absolvido: a liberdade humana.....................72
3.2.1 – Epígrafe e prólogo: repetir para mudar...............................................76
3.2.2 – Cenas 1 e 2: o novo horizonte de Don Giovanni................................79
3.2.3 – Cenas 3 e 4: o castigo terreno.............................................................90
3.2.4 – Cenas 5 e 6: a absolvição....................................................................96
4 – CONCLUSÃO........................................................................................................108
5 – BIBLIOGRAFIA....................................................................................................112
ABREVIATURAS DOS TÍTULOS DAS OBRAS DE JOSÉ SARAMAGO
EJC – O evangelho segundo Jesus Cristo
HCL – História do cerco de Lisboa
HD – O homem duplicado
IM – As intermitências da morte
JP – A jangada de pedra
LC – Levantado do chão
MC – Memorial do convento
MPC – Manual de pintura e caligrafia
ND – In nomine Dei
1 - Introdução
De todas as ficções poéticas que a musa dramática lançou ao
mundo nos três últimos séculos, nenhuma como DON JUAN teve
tão grande descendência, nenhuma inspirou a tantos artistas, nem
provocou, com tão total e rápido deslumbramento, o aplauso dos
públicos.
Victor Said Armesto
1
Don Giovanni talvez seja a personagem ficcional que mais vezes reencarnou na
história da literatura universal, desde que, no início do século XVII, veio à luz sob o
nome de Juan Tenorio. Dezenas de autores ressuscitaram em suas páginas, entre textos
teatrais, libretos de óperas, roteiros de cinema, romances, novelas, contos e poemas, a
personagem central de El burlador de Sevilla y convidado de piedra, do escritor e
religioso espanhol frei Gabriel Téllez, que assinava as suas obras como Tirso de Molina.
Também o fez o escritor português José Saramago, que, em 2005, publicou a peça
teatral Don Giovanni ou o dissoluto absolvido, concebida em resposta a uma solicitação
do músico italiano Azio Corghi, a quem o Teatro alla Scala de Milão encomendara uma
ópera sobre o tema.
Diga-se, desde já, que Don Juan – e o donjuanismo – foi também objeto de
vários estudos, os quais chegaram, muitas vezes, a conclusões antagônicas entre si. Esse
fato é explicado, em parte, pela própria profusão de autores que retomaram o tema,
quando diferentes características foram aportadas à personagem. De outra parte, deve-se
ressaltar também que Don Juan suscitou interpretações desde pontos de vista diversos
(da arte à ciência), o que gerou múltiplas significações.
1
No original: “De todas las ficciones poéticas que la musa dramática lanzó al mundo en los tres últimos
siglos, ninguna como DON JUAN tuvo tan larga descendencia, ninguna inspiró a tantos artistas, ni
provocó, con tan total y rápido deslumbramiento, el aplauso de los públicos.” ARMESTO (1946), p.11.
São nossas as traduções de todas as citações referentes a este autor.
10
Um exemplo é a controvérsia a respeito, digamos, da pulsão de agir do
conquistador de mulheres. Para alguns, Don Juan é um permanente apaixonado, só
cambiando o objeto da paixão; para outros, só há nele a pulsão física, sexual; para
outros, ainda, a única motivação de Don Juan é a conquista da glória, sendo a mulher
um mero instrumento dessa ambição. Há, inclusive, os que vêem uma propensão
homossexual na personagem. E talvez todas essas interpretações sejam simultaneamente
possíveis, desde que escolhamos uma ou outra reencarnação do nosso herói.
Parece que Don Juan veio ao mundo exatamente para desestabilizar. Nada está
seguro, nem esposas, noivas ou filhas, nem conceitos. Mesmo os limites para se
considerar uma personagem como uma verdadeira reencarnação do burlador de Molina
não são precisos. E a sua descendência menos ainda. José Cardoso Pires, em Cartilha
do Marialva, alerta para o equívoco de se ver donjuanismo em todos excepcionais
sedutores, associando-o ao cosmopolitismo citadino e desestabilizador dos valores
tradicionais, os quais, no entanto, estão enraizados em muitos conquistadores,
representantes da sociedade rural e patriarcal, os marialvas. Assim, não seriam
donjuanescas, como é comum se classificarem, muitas personagens da literatura
portuguesa, como o Basílio, de Eça de Queiroz.
Sequer há consenso quanto às fontes originárias do mito, às fontes utilizadas por
sucessivos autores e mesmo quanto à obra que pela primeira vez trouxe Don Juan para a
história da literatura. Como afirma Carmen Becerra Suárez, uma das nossas principais
fontes teóricas, “Em que pese as muitas e bem argumentadas teorias que sobre este
assunto se formularam, nenhuma delas pode provar, sem qualquer dúvida, que a matéria
de Don Juan proceda de uma fonte espanhola; que seu criador seja Tirso de Molina e
que a primeira versão seja a de 1630”.
2
2
No original: “Pese a las muchas y bien argumentadas teorías que sobre este asunto se han formulado,
ninguna de ellas puede probar, sin ningún género de duda, que la materia de Don Juan proceda de una
11
Contudo, como no escopo deste trabalho não cabe o exame das diversas
polêmicas que envolvem o tema, serão adotados os dados e explicações que maior
fortuna encontram na crítica, conquanto não se deixe de assinalar eventualmente as
controvérsias existentes.
Para Carmen Becerra Suárez,
[…] Só poderemos descobrir o individual, o diferente nas literaturas nacionais recorrendo ao
uso da literatura comparada, porque unicamente depois do estudo comparado estaremos aptos
para considerar de modo crítico uma obra, um período, uma corrente; e apreciaremos de
maneira adequada a originalidade de tal ou qual tratamento, desta ou daquela obra, de um ou
outro movimento estético.
3
Essa perspectiva encontra maior razão quando o tema e a personagem analisados são o
resultado da intervenção de várias épocas, culturas e autores, como é o caso da história
de Don Juan. A prova disso é o fato de a sua característica mais popular, a de incrível
sedutor, ter sido fixada, como veremos, por versões posteriores à de Tirso de Molina,
autor, aliás, a quem poucos atribuiriam a criação da personagem. Teria, portanto, pouco
significado abordar a criação de Saramago sem a inserir na rica tradição literária que a
precede e que nos permite compreender porque a absolvição do dissoluto é uma radical
inversão da história original. É essa perspectiva que nos obriga a enveredar pelo campo
de trabalho da literatura comparada.
Assim, o objetivo da primeira parte desta dissertação é acompanhar as
transformações sofridas pelo tema (e conseqüentemente as que ocorrem na linguagem
que o sustenta), desde as prováveis fontes utilizadas por Tirso de Molina, cuja obra será,
quase sempre, paradigma para as nossas reflexões. No nosso percurso até o século XX,
fuente española; que su creador fuese Tirso de Molina y que la primera versión sea la de 1630.” SUÁREZ
(1997), p. 58. São nossas as traduções de todas as citações referentes a esta autora
3
No original: “[...] sólo podremos descubrir lo individual, lo diferente en las literaturas nacionales
acudiendo al uso de la literatura comparada, porque únicamente después del estudio comparado estaremos
en disposición para considerar de modo crítico una obra, un período, una corriente; y apreciaremos de
manera adecuada la originalidad de tal o cual tratamiento, de esta o aquella obra, de uno u otro
movimiento estético.”SUÁREZ (1997), p. 55.
12
algumas obras serão apenas citadas ou tratadas incidentalmente, enquanto outras
merecerão maior atenção, seja pela sua importância para história literária do tema, seja
por aportarem elementos e características úteis para a análise da versão de Saramago.
Entre essas, analisaremos especialmente as de Molière e Mozart/Lorenzo da Ponte
(libretista da ópera), cujas contribuições a maioria dos analistas aponta como as mais
relevantes para a conformação e difusão do mito.
Somente então verificaremos, na segunda parte, como o texto de José Saramago
dialoga com os anteriores. Ao contrário da primeira parte, são ainda escassos os estudos
sobre o Don Giovanni do escritor português. Utilizamos como apoio, as entrevistas com
o autor, a apresentação e o posfácio do próprio livro. Servimo-nos também de textos
críticos dedicados à produção geral ou a outras obras do autor com o objetivo de apurar
os traços característicos da criação saramaguiana e identificá-los na obra em questão,
outro e não menos importante objetivo desta dissertação.
13
2 – De Tirso de Molina ao século XX
Há diferentes interpretações sobre a caracterização de um mito. Dificilmente
Don Juan se enquadraria na definição de mito fundador ou de dramaturgia da vida social
ou da história de um povo, adotada por Mircea Eliade, no livro Mito e realidade. As
definições ético-psicológicas e filosóficas de mito, pela associação que estabelecem
com aspectos psíquicos e ético-morais, são mais pertinentes para o enquadramento do
nosso herói, devendo-se ressaltar, entretanto, que muitos teóricos apresentam
justificativas singulares, adotando uma interpretação mais ampla e livre para esse
impreciso conceito. Assim, Don Juan seria uma personagem mítica pela natureza sobre-
humana de suas façanhas – conquistou nada menos que 2065 mulheres; atestaria
também esse atributo o fato de ter sido insistentemente atualizado pela literatura ao
longo dos séculos, demonstrando o seu enraizamento nas pulsões primordiais do
homem.
Na verdade, a maior parte dos estudos ou não menciona tal aspecto ou considera,
sem averiguação, o caráter mítico de Don Juan como um pressuposto
4
. Outros, como
Jean Rousset, Carmen Becerra Suárez e Ian Watt, buscam fundamentar a atribuição
dessa natureza ao sedutor, apoiando-se, entretanto, em razões diferentes. E diferentes
são as definições a que chegam: Jean Rousset concede-lhe o estatuto dos mitos que
remontam às origens, ao tempo sagrado dos inícios; Carmen Becerra Suárez, após
analisar detidamente as diversas acepções de mito, nega-lhe a categoria de mito puro e o
insere num tipo específico, o mito literário, ressaltando que a personagem foi objeto de
sucessivas desmitificações e remitificações, como teremos oportunidade de verificar.
4
É o caso de Said Armesto, no livro La leyenda de Don Juan. Embora prefira o termo Leyenda, incluído
no próprio título, em várias passagens refere-se ao mito de Don Juan.
14
Já Ian Watt inclui Don Juan entre os mitos do individualismo moderno e afirma
que o nosso herói caracteriza-se pelas energias positivas e individualistas do
Renascimento, buscando o seu próprio caminho, e não o dos outros, característica
confirmada por Said Armesto quando diz: “...moço que com tal energia afirma seu eu
insolente e altivo, do homem que com independência orgulhosa põe sua personalidade
sobre todas as leis”.
5
Ian Watt, após breve incursão pelas caracterizações de mito,
assenta a definição que utiliza: “uma história tradicional largamente conhecida no
âmbito da cultura, que é creditada como uma crença histórica ou quase histórica, e que
encarna ou simboliza alguns dos valores básicos de uma sociedade.”
6
Embora este trabalho não examine a pertinência do caráter mítico de Don Juan,
essa condição será considerada eventualmente, principalmente em função das
interpretações de Carmen Becerra Suárez e Jean Rousset.
2.1 – Tirso de Molina
2.1.1 – O primeiro Don Juan: obra, autoria e fontes
Uma das mais famosas teses contra a autoria espanhola – e por conseqüência de
Tirso de Molina – de El Burlador de Sevilla é a do hispanista e professor italiano Arturo
Farinelli, que sobretudo reivindicava para a Itália as origens poéticas do drama.
7
Em La
5
No original: “...mozo que con tal energia afirma su yo insolente y altivo, del hombre que com
independência orgullosa pone su personalidad sobre todas las leyes...”ARMESTO (1946), p. 14.
6
WATT (1997), p. 16.
7
Conforme Said Armesto, Farinelli, baseado em dados colhidos de um historiador de arte chamado
Riccoboni, afirmava que o Burlador era encenado nas igrejas da Itália já em 1620, antes, portanto, de
Molina o ter escrito. Armesto, então, demonstra que da leitura da passagem da obra de Riccoboni, citada
por Farinellital e transcrita em La Leyenda, não se pode absolutamente extrair aquela informação. Da
mesma passagem, Armesto extrai a conclusão de que tais encenações, nas igrejas da Itália, são bastante
posteriores a 1620. Além disso, Armesto afirma não ser possível determinar a data exata em que Tirso
teria escrito o seu drama, defendendo que o poderia ter feito desde 1607. Nesse ponto rebate as teses de
que o frei espanhol o escrevera a partir de 1625, ano em que teria ocorrido a sua passagem por Sevilla.
Primeiro, porque Tirso, conforme Blanca de los Rios, já havia estado naquela cidade em 1616 e, segundo,
15
leyenda de Don Juan, Victor Said Armesto, embora reconheça que antes de Tirso a
linha de investigação adentra o campo das hipóteses, aponta as fragilidades dos
argumentos de Farinelli e junta um número abundante de relatos orais e de textos para
demonstrar existirem em várias nações lendas medievais e narrativas populares com os
núcleos temáticos presentes na peça, segundo ele, espanhola.
Said Armesto prova, pelo menos, que não era necessário a Molina recorrer-se a
terras estrangeiras para encontrar a matéria-prima de Don Juan, defendendo, ainda, que
na rica poesia oral espanhola
[…] não só transparecem os contornos do famoso Burlador de Sevilla y Convidado de pedra,
como estão contidas, como em tosca semente, toda a psicologia facetada e fulgurante daquele
grande desdenhoso, insaciável buscador de escândalos, desafiador de mortos, eterno
enamorado do prazer e do perigo, e que com gesto altivo e olhos frios olha o espectro
vingador cara a cara.
8
Embora tenda, como Carmen Becerra Suárez, a ver no Burlador a sobreposição
de dois temas distintos – o do frívolo e orgulhoso sedutor e o do banquete macabro –, o
autor de La Leyenda desenvolve especialmente a pesquisa em relação a este último, de
fundo moral e religioso associado à profanação dos mortos.
9
Também chamado duplo
convite ou banquete expiatório, seu núcleo é o convite para jantar feito
zombeteiramente a um morto, que comparece e retribui o convite, para surpresa do
profanador. Esse, após o jantar no cemitério ou igreja, é normalmente – mas nem
sempre – punido com a morte. Em muitas fontes, inclusive espanholas, esse tema já
porque o dramaturgo não precisava ter estado em Sevilla para beber das fontes disseminadas em toda a
Espanha. Ainda sobre a data da composição, Ian Watt afirma ter sido provavelmente entre 1612 e 1616.
8
No original: “[...] no sólo se traslucen los contornos del famoso burlador de Sevilla y Convidado de
piedra, sino que se contiene, como en tosco capullo, toda la psicología facetada y fulgurante de aquel gran
desdeñoso, insaciable buscador de escándalos, retador de muertos, eterno enamorado del placer y del
peligro, y que con altivo ademán y fríos ojos mira al vengador espectro cara a cara. ARMESTO (1946), p.
26.
9
Amparado em vasta documentação, Said Armesto vai buscar a fundamentação desse aspecto na antiga
superstição popular de que os mortos têm também sede e fome e no conseqüente costume de oferecer a
eles alimentos, especialmente no dia de finados, nas igrejas e túmulos – costume tolerado pela Igreja
Católica por muito tempo. Por via dos abusos e da proibição de tal prática, além da influência de outras
superstições, como, por exemplo, a crença de que não se deve comer da comida dos mortos sob pena de
morte, o tema desenvolveu-se associado à profanação dos mortos. Em sua defesa das origens espanholas
do Burlador, Said Armesto afirma que a representação do morto sob a forma de estátua é uma
contribuição oriunda especialmente da Espanha.
16
aparecia entrelaçado ao do frívolo sedutor. É o caso de um antigo romance popular
espanhol descoberto, em 1889, por Juan Menéndez Pidal
10
, o qual tanto Said Armesto
quanto Carmen Becerra Suárez consideram ser o mais provável antecedente de El
Burlador de Sevilla. Juntando mais quatro versões do mesmo romance e ressaltando
nelas várias características de Don Juan, como a sua condição aristocrática e a sua
impiedade, Armesto observa: “Note-se como os sinais desse rapaz temerário, frívolo e
burlão, coincidem, ainda que de forma abreviada e simplíssima, com as do moço
dissoluto que encheu os teatros da Europa com o estrondo de suas aventuras”.
11
O
crítico e professor espanhol acrescenta em reforço à sua interpretação as seguintes
palavras de Menéndez y Pelayo, referentes ao romance descoberto por Pidal: “Análogas
fantasias podem ser encontradas em poesias populares de diversos tempos e países; mas
não conheço nenhuma forma tão próxima a da lenda de Don Juan como esta”.
12
Quanto à autoria do primeiro Don Juan, Said Armesto concorda com Menéndez
y Pelayo, para quem o estilo poderia indicar ser obra de Lope de Vega. No entanto,
ambos defendem a autoria de Tirso, entre outros motivos, pelo fato de os dois
dramaturgos serem “poetas de um mesmo tempo e de um mesmo gosto, e mais afins do
que vulgarmente se crê”.
13
Embora afirme não ser o escopo da sua pesquisa, o autor,
para demonstrar as convergências com El Burlador, transcreve no apêndice de La
leyenda passagens de vários outros dramas do frade espanhol, “passagens com tal
10
O romance, descoberto em Riello (León), foi publicado no tomo X da Antología de Poetas Líricos
Castellanos, de Menéndez y Pelayo, conforme informação de Said Armesto.
11
No original: “Nótese cómo las señas de ese mozalbete temerario, frívolo y burlón, concuerdan, aunque
en forma abreviada y simplicísima, con las del disoluto mozo que llenó los teatros de Europa con el
estruendo de sus aventuras.”ARMESTO (1946), p. 31.
12
No original: “Análogas fantasías pueden encontrarse em poesías populares de diversos tiempos y
países; pero no conozco ninguna forma tan próxima a la leyenda de Don Juan como ésta”. Ibiden, p. 28
(Nota de rodapé).
13
No original: “poetas de un mismo tiempo y de um mismo gusto, y más afines de lo que el vulgo cree”.
Ibiden, p. 215. Palavras de Menéndez y Pelayo, citadas no Apêndice do livro. Na mesma página, Said
Armesto faz nova citação do mesmo crítico, que afirma que uma outra dificuldade para identificar a
autoria é o fato de os textos conhecidos serem uma versão mutilada e estragada do original desconhecido.
17
exatidão, mesmo no tipo de ação, ou nos sentidos e conceitos, que não deixam margem
para a dúvida”.
14
Surgida muito tempo depois da tese de Arturo Farinelli e do trabalho de Said
Armesto, a mais consistente oposição à autoria de Tirso de Molina parece ser aquela
que a atribui ao dramaturgo e ator Andres de Claramonte, defendida especialmente por
Alfredo Rodríguez López-Vazquez.
15
Essa tese, porém, é francamente minoritária e foi,
entre outros investigadores, rebatida por Laura Dolfi no ensaio El burlador burlado.
Don Juan en el teatro de Tirso de Molina, onde a autora compara El burlador com
outras peças teatrais do frade espanhol. Como não entraremos na análise deste ponto,
deixemos apenas registrado que Laura Dolfi foi buscar na peça Quien no cae no se
levanta, que pouca atenção mereceu de analistas anteriores, afinidades significativas,
porque fundadas em três elementos: o caráter do protagonista, a estrutura do enredo e
semelhança de diálogos.
Apesar das diversas polêmicas concernentes às fontes, autoria e data do
surgimento do primeiro Don Juan e apesar de Carmen Becerra Suárez concluir não
estarem pacificadas essas questões, a maior parte dos estudos, enfim, considera ser El
burlador de Sevilla y convidado de piedra a obra que introduziu a personagem na
história da literatura universal, fixando a data de 1630 como a da sua primeira
publicação. Considera também Tirso de Molina o seu autor.
14
No original: “pasajes com tal exactitud, bien en la pauta de la acción, o ya en los giros y conceptos, que
no dejan resquício a la duda”. Ibiden, p. 215-6.
15
Em trabalhos como Andrés de Claramonte. Autor de El Burlador de Sevillha, La Coruña, Gráficas
Coruñesas, 1982, e Aportaciones críticas a la autoria de El Burlador de Sevilla, Toulouse, Criticón,
1987. Citados por Carmen Becerra Suárez. Ian Watt propõe, ainda, a hipótese de a versão conhecida do
drama ter sido escrita por Molina e modificada por Andres de Claramonte.
18
2.1.2 – El Burlador de Sevilla y convidado de piedra: o sermão edificante
Ian Watt, citando Georges Gendarme de Bévotte, destaca que Don Juan seria
inconcebível na Antigüidade Clássica, uma vez que o paganismo celebrava a
sexualidade; a personagem só poderia encontrar justificativa diante da repressão cristã
às exigências da carne.
16
Mas o nosso herói não é um produto do cristianismo apenas
por essa razão, pois, com O burlador de Sevilha, Tirso de Molina, frade da Ordem das
Mercês, levou aos palcos a defesa da doutrina católica em oposição à protestante.
Porém, antes de analisarmos esse aspecto, façamos a apresentação das principais linhas
da trama.
Após burlar duas mulheres (a duquesa Isabela e a pescadora Tisbea) – ocasiões
em que se serve, respectivamente, do disfarce e de falsas promessas de amor para
“seduzir” suas vítimas –, Don Juan, já na metade do segundo ato, mata Don Gonzalo de
Ulloa em um duelo. O Comendador, pai de Dona Ana, fora em socorro da filha, que
gritara ao perceber o engodo: em seus aposentos estava Don Juan e não o seu noivo,
com quem havia acertado o encontro. Enquanto as personagens ultrajadas pelo burlador
buscam a vingança terrena, Don Juan, que acabara de conquistar a camponesa Aminta,
entra casualmente na igreja onde o Comendador está sepultado sob a sua estátua de
pedra. Confrontado com a inscrição que acusa o assassino de traidor e reclama
vingança, o burlador convida o morto para jantar em sua casa, onde será cumprido o
desafio. Inesperadamente a estátua comparece e, após a ceia, retribui o convite, que é
aceito por Don Juan, para que Sevilha se espantasse do seu valor. Terminado o jantar na
16
Teresa Cristina Cerdeira da Silva, ao abordar o erotismo como instrumento de transgressão do código
moral no romance Memorial do Convento, destaca os estudos de Michel Foucault, para quem “o século
XVII marca uma ruptura definitiva na forma de tratamento da sexualidade no nosso mundo ocidental.
Estaria aí o início da chamada ‘idade da repressão’, momento em que a sociedade burguesa,
fundamentada no trabalho como garantia do poder, sentiu a necessidade de coibir a atividade sexual,
fundamentalmente antiprodutiva”. SILVA (1989), p. 76.
19
tumba do Comendador, a estátua estende a mão a Don Juan, exortando-o a não ter
medo. Para demonstrar que nada receia, o dissoluto aceita o cumprimento e é, assim,
lançado às chamas infernais.
Para Lilian dos Santos Silva Ribeiro
17
, o tema central da peça é o bom uso do
livre-arbítrio, o que envolve um fervoroso debate teológico entre protestantes e
católicos. Os primeiros negam a existência do livre-arbítrio e afirmam a predestinação
do homem, incapaz de julgar o Bem e o Mal, excluindo a possibilidade de salvação em
função do mérito de suas obras – justificação pela fé apenas (sola fide) e salvação
mediante a graça divina. Já os católicos orientam-se pelas resoluções do Concílio de
Trento, que estabeleceu as bases teóricas da Contra-Reforma: o homem é capaz de
distinguir o Bem e o Mal e, dotado do livre-arbítrio, escolhe o seu próprio caminho –
justificação pelas boas obras e insuficiência da fé para a salvação.
18
A peça teatral de Molina possui uma intenção didático-moralizante, sob o
enfoque do catolicismo contra-reformista. Segundo Ribeiro, “Um dos principais
ensinamentos que o público de El burlador de Sevilla deveria depreender é o de que a
obra do homem deve ser superior à sua fé”.
19
Por isso Don Juan não poderia ser um
cético e muito menos um ateu. Capaz de discernir entre o Bem e o Mal,
[...] ele funciona como o exemplo de que, já que estão todos os homens dotados dessa
capacidade racional, não devem sob nenhuma hipótese guiarem-se simplesmente pela fé, já
que cada um será julgado, e o critério para o julgamento são as suas obras, cujo prêmio ou
castigo lhes são diretamente proporcionais, muito diferente das noções de fidúcia e da
percepção da graça dentro do Luteranismo. A ideologia em cena, ao enfocar a primazia das
boas obras, direciona a atenção para o uso da liberdade individual. Don Juan é livre para
mudar de rumo, e lhe são dados avisos que seriam um ensejo para essa mudança, mas, usando
sua liberdade de maneira equivocada, assinala sua própria condenação.
20
O burlador, então, não desdenha da punição divina, mas apenas sente-se livre
para cometer todos os pecados na juventude, desde que se arrependa na velhice. E o
17
Cf. RIBEIRO (2007), p. 10.
18
Cf. WATT (1997), p. 133-7; SUÁREZ (1997), p. 76-88; RIBEIRO (2007), p. 10-4. Destacamos apenas
as principais diferenças entre as teses católicas e protestantes, sem entrarmos nos complexos meandros da
polêmica religiosa.
19
RIBEIRO (2007), p. 11.
20
Ibidem, p. 13.
20
enunciado “Tan largo me lo fiáis”
21
(“Que longo prazo me dais”), repetido muitas vezes
pelo protagonista (com pequenas variações), é o fio condutor desse sentido. Mas, como
canta o coro quando Don Juan está prestes a ser lançado às chamas infernais, “não há
prazo que não chegue/nem dívida que não se pague” (MOLINA, p. 240).
22
Ao ser
surpreendido, ainda jovem, pela morte iminente, o pecador contumaz pede por alguém
que o confesse e absolva, não sendo, porém, atendido pela estátua, que diz ter Don Juan
acordado tarde e ser aquela a justiça de Deus.
A peça de Molina desenvolve-se, portanto, a partir de um argumento teológico,
sendo as palavras utilizadas pelo autor (como as evocadas acima) muito claras quanto à
defesa das teses católicas em oposição às protestantes. Contudo, a conciliação entre a
liberdade humana e a graça divina estava longe de ser pacífica no âmbito da Igreja
Católica, causando consideráveis polêmicas internas. Como não investigaremos tal fato,
registremos apenas que Tirso de Molina, conforme Ian Watt e Carmen Becerra Suárez,
adotou em muitas de suas peças a posição segundo a qual um pecador contumaz pode
ser salvo pela vontade de Deus. Ambos os estudiosos destacam El condenado por
desconfiado, no qual o perverso Enrico é salvo por sua fé e a virtuosa Paula é
condenada por pedir a Deus um sinal de Seus desígnios, atitude explicitamente
condenada pelo Concílio de Trento. Suárez afirma ainda que Molina, com El burlador,
tinha o objetivo de anular os maus efeitos daquela outra peça, cujo exemplo moral
levava ao entendimento de que bastaria o arrependimento de última hora para apagar
uma vida inteira de pecados.
Mas El burlador de Sevilla y convidado de piedra também comporta uma crítica
de cunho social e Don Juan encarna a dissolução da época, especialmente da Espanha
21
Esse é o título de uma outra peça de Molina. Todos concordam que ela e El burlador de Sevillha são
praticamente o mesmo texto, com algumas variantes. Embora aqui também haja divergências, a corrente
majoritária confere a Tan largo me lo fiais a precedência e também a atribuem ao religioso espanhol.
22
No original: “no hay plazo que no llegue/ni deuda que no se pague”. São nossas as traduções do texto
de Molina.
21
dos séculos XVI e XVII, embora, talvez por prudência, o autor situe a ação no século
XIV.
23
Segundo Ian Watt,
O fato é que na sociedade descrita em El Burlador não há um estilo de vida que possa ser
tomado como um límpido pano de fundo contra o qual se possa projetar a figura contrastante
de Don Juan, a fim de melhor avaliá-lo e julgá-lo. De um modo geral ele é mais perverso,
mais amoral, e também mais hábil, mais ativo e mais corajoso do que as pessoas à sua volta;
mas não difere essencialmente delas, tanto nos objetivos quanto nos métodos. Seu criador,
Tirso de Molina, era um escritor cuja visão moral da vida em seu tempo refletia tanto a
tristeza que lhe causava a decadência do período de Filipe III (1598-1621) e Filipe IV (1621-
65), quanto o seu desprezo pelo mundo em geral.
24
Apesar dessa observação, Ian Watt, assim como Lilian dos Santos Silva Ribeiro,
ressalta que as personagens humildes, que vivem nas aldeias, são retratadas de uma
forma mais positiva do que as da sociedade cortesã. O próprio Don Juan afirma que “a
honra se foi para as aldeias/fugindo das cidades” (MOLINA, p. 212).
25
Então, embora
quase todas as personagens sejam retratadas de forma mais ou menos negativa, é sobre a
classe representada, entre outros, pelo protagonista que a crítica recai mais virulenta,
como expressam as seguintes palavras da camponesa Aminta: “A sem-vergonhice em
Espanha/se fez cavalaria” (MOLINA, p. 213).
26
É significativo o fato de Don Juan
matar a única personagem representativa de valores exemplares (religiosos e seculares)
e de ser ela um Comendador da Ordem de Calatrava, importante instituição da cavalaria
cristã.
Don Juan atua sobre as fissuras morais das demais personagens, como nas burlas
às duas mulheres de extração nobre: a duquesa Isabela e Dona Ana acertam encontros
secretos, em seus aposentos, com os seus amados e Don Juan, protegido pela escuridão
23
Cf. RIBEIRO (2007), p. 65.
24
WATT (1997), p. 119.
25
No original: “el honor se fué a la aldea/huyendo de las ciudades”.
26
No original: “La desvergüenza em España/se ha hecho caballería”. A título de exemplo, destaque-se
que o Marquês de la Mota é um embusteiro da estirpe de Don Juan, como se depreende da conversa em
que ambos lembram antigas burlas. Apesar de se dizer apaixonado por Dona Ana, De la Mota continua a
planejar e a executar novas burlas amorosas. Don Juan o supera, é claro: aproveitando-se da confidência
do amigo, burla-o também e toma o seu lugar no encontro marcado com Dona Ana.
22
da noite, toma-lhes o lugar.
27
No mesmo sentido, Don Juan consegue escapar do Palácio
do rei de Nápoles (onde burlara a duquesa Isabela) com a ajuda de seu tio Pedro,
embaixador espanhol naquela corte e encarregado pelo rei de capturar o intruso. Nosso
herói espera contar também com a proteção paterna, como afirma a seu criado: “Se é
meu pai/o dono da justiça,/ e um dos privados do rei,/ que temes?” (MOLINA, p. 214).
28
E, de fato, Don Diego Tenorio, apesar de admoestá-lo, intercede em favor de seu filho,
que é tratado com evidente indulgência pelo rei, cuja disposição de castigá-lo é tardia e
vacilante, não chegando a se consumar. Como poderia Don Juan ser punido por uma
sociedade cujos vícios e dissolução ele representa? Daí a punição só poder ser levada a
cabo pela intervenção do Céu.
Conforme Said Armesto, não fosse a larga tradição do convite macabro a matriz
da composição de Tirso, “el punctum saliens de la leyenda”, seria brusca, incongruente
e ilógica a transição entre a cólera de Don Juan, encoberta pelo gracejo, e o convite que
faz à estátua para jantar:
Do mote quero rir-me.
E haveis vós de vingar-se,
bom velho, barbas de pedra?
............................................
Esta noite a jantar
vos aguardo em minha casa.
Lá o desafio acertaremos,
se a vingança vos agrada.; (MOLINA, p. 223)
29
A base folclórica parece justificar, para o público da época, não apenas o (para os
nossos dias, inusitado) convite, mas também a introdução do elemento sobrenatural
27
Na interpretação de Lílian Ribeiro, também a pescadora Tisbea e a camponesa Aminta não seriam tão
inocentes criaturas, já que ambas visariam, com o ato sexual, ao reconhecimento de uma união legal com
o nobre sedutor: a Igreja Católica aceitava como casamento o compromisso selado entre um homem e
uma mulher seguido da consumação carnal. Cremos duvidosa tal interpretação. Por outro lado,
consideramos mais plausível a hipótese de que, pela lógica do autor, esteja a ser censurada a
maleabilidade feminina no tocante ao sexo, o que inclui também a atitude das duas mulheres humildes.
Podemos, inclusive, ler como parte da intenção ditico-moralizante de Molina as seguintes palavras de
Catalinón: “Guárdense todos de un hombre/que a las mujeres engaña,/y es el burlador de España.”
(MOLINA, p. 197).
28
No original: “Si es mi padre/El dueño de la justicia,/Y la privanza del rey,/¿Qué temes?
29
No original: “Del mote reírme quiero/¿Y habéisos de vengar,/buen viejo, barbas de piedra? (…)
Aquesta noche a cenar/os aguardo en mí posada./Allí el desafío haremos,/si la venganza os agrada;”
23
numa trama que, até o meio do terceiro e último ato, desenrola-se no plano
exclusivamente terreno (o tema do galante frívolo e orgulhoso), não obstante a marcante
religiosidade da sociedade retratada e os avisos recebidos pelo impenitente sobre o
castigo divino.
Segundo Ian Watt, Tirso de Molina
[...] acrescentou plenitude, complexidade e força dramática não encontradas em nenhuma das
versões folclóricas da história; ao fazer da estátua uma representação do pai ofendido; e
daquele que o ofende o mesmo jovem arrogante que o matou e agora gratuitamente o insulta,
Molina deu ao conto uma poderosa lógica moral antes inexistente.
30
E assim entendemos, embora por razões não invocadas pelo crítico. Aliás, Watt parece
não ver necessidade de fundamentar tal afirmação. Cremos que, além de transformar o
embate entre as duas personagens no confronto entre os valores negativos e positivos de
um certo ideal de sociedade, Molina tornou mais palpável para o público a necessidade
de punição do burlador ao agregar ao morto a condição de pai ultrajado. Isso porque,
segundo o próprio Ian Watt, a honra era o código característico da sociedade
espanhola.
31
E a honra masculina estava depositada especialmente nas mulheres, como
afirma o rei de Nápoles: “Ah, pobre honra! Se és a alma/do homem, por que te
deixam/na mulher inconstante,/se é a mesma ligeireza?” (MOLINA, p. 156).
32
Portanto,
apesar de a estátua, como ressalta Ian Watt, não se apresentar como vingadora da honra
da família, tal aspecto, mesmo que secundário na caracterização do Comendador, não
pode ser desconsiderado.
Muitos estudiosos, como Renato Janine Ribeiro e Lilian dos Santos Silva
Ribeiro, além do próprio Ian Watt, entendem que o primeiro Don Juan está interessado
30
WATT (1997), p. 123.
31
Lilian Ribeiro ressalta a diferença entre honor, termo relacionado à idéia de dignidade, e honra,
relacionada à opinião dos outros sobre o indivíduo. A estudiosa, contudo, afirma que muitos autores
usavam os dois termos indistintamente. Em El burlador, prepondera a concepção de honra na sua face
externa. Apenas o Comendador parece ser portador da honra no sentido de dignidade, de virtude, sendo
Don Juan, sua antítese, aquele que mais explicitamente encarna o outro sentido. E é por querer que
Sevilha se admirasse do seu valor que o herói aceita o convite do segundo jantar (na tumba do morto); é
para não demonstrar temor que aceita o aperto de mão que o precipitará no Inferno.
32
No original: “¡Ah pobre honor! Si eres alma/del hombre,¿por qué te dejan/en la mujer inconstante,/si es
la misma ligereza?”
24
em conquistar menos as mulheres do que a fama de o maior burlador de Sevilha. E,
naquela sociedade, não poderia haver maior burla, nem mais escandalosa, do que
desonrar os outros homens. A mulher é apenas o instrumento. Por isso, as conquistas
amorosas de Don Juan, como afirma Catalinón, têm público pregão, devendo todos
defenderem-se “de um homem/ que as mulheres engana” (MOLINA, p. 197).
33
Por isso,
diz Don Juan:
Sevilha às vezes me chama
o Burlador, e o maior
gosto que em mim pode haver
é burlar uma mulher
e deixá-la sem honra. (MOLINA, p. 192)
34
Por tudo que foi exposto, pode-se perceber que na lógica de Molina não poderia
haver salvação para o nosso herói. Proporcionando a Don Juan o castigo mais severo – a
condenação eterna – Tirso é fiel à tradição dramática espanhola da época. Com efeito, a
maior parte da literatura barroca se submetia à exigência – religiosa e contra-reformista
– da subordinação da arte a um propósito moral, devendo constituir-se num exemplo
edificante.
Embora existam latentes no protagonista de Molina, muitas características que
normalmente se associam a Don Juan serão desenvolvidas ao longo do tempo. Apesar,
por exemplo, de transgredir todas as normas, religiosas e sociais, o primeiro Don Juan
não é exatamente um rebelde, não critica a moralidade ou a estrutura vigentes. Ao
contrário, em suas burlas, está protegido pelos privilégios de sua classe, beneficiando-
se, como vimos, das suas relações familiares. O burlador não é sequer um verdadeiro
sedutor, pois o seu método é enganar, seja tomando o lugar do verdadeiro amante (das
mulheres nobres), seja fazendo falsas promessas de casamento (para as mulheres
humildes).
33
No original: “de um hombre/que a las mujeres engaña”.
34
No original: “Sevilla a veces me llama/el Burlador, y el mayor/gusto que en mí puede haber/es burlar
una mujer/y dejarla sin honor.”
25
Desconsiderando os autores que abandonaram totalmente a trama original, as
atualizações da personagem têm em comum, no tempo da ação ou no passado, os
episódios que envolvem a morte do Comendador e a presença da sua estátua vingadora.
Segundo Jean Rousset, “para que a rede de relações donjuanescas seja completa e
coerente, deverá comportar três invariantes: 1 – o Inconstante; 2 – o Grupo feminino,
objeto necessariamente plural da conquista inconstante; 3 – o Morto”.
35
Outra
personagem que não faltará é a do criado. Como veremos, a Comédia dell’Arte
acentuará o seu traço cômico, apenas sugerido no texto de Molina, influenciando as
versões de Molière e de Mozart/Lorenzo da Ponte.
Com maior ou menor subversão do texto paradigmático, a dimensão religiosa foi
sendo atenuada, ajustando-se o tema à realidade dos novos valores e crenças da
sociedade cada vez mais laica e burguesa. Embora o sobrenatural esteja presente através
da estátua do Comendador e do castigo infernal (nem sempre concretizado), é diminuída
ou suprimida a intenção moralizante sob o ponto de vista católico.
2.2 – A Comédia dell’Arte: deformação e difusão do tema
Enquanto na Espanha se criam apenas duas novas versões
36
de Don Juan até o
surgimento da obra de Zorrilla em 1840, a personagem foi acolhida rapidamente em
outros países da Europa. Em primeiro lugar, em função da importância da Coroa
espanhola que, embora já estivesse em decadência naquela época, ainda desempenhava
uma grande influência em toda a região; em segundo lugar, porque os séculos XVI e
35
ROUSSET (s.d.), p. 28.
36
Versões de escassa importância para o desenvolvimento do mito: La venganza en el sepulcro, de
Alonso de Córdoba y Maldonado, provavelmente do final do século XVII, e No hay plazo que no se
cumpla ni deuda que no se pague, y convidado de piedra, de Antonio de Zamora, entre 1734 e 1744. Cf.
SUÁREZ (1997), p. 194.
26
XVII foram palco da criação de grandes nomes da literatura espanhola, incluindo Tirso
de Molina, que se projetaram para além de suas fronteiras.
Contudo, a difusão do tema foi impulsionada especialmente pela Itália, onde
surgiram as primeiras versões de Don Juan. Tanto Carmen Becerra Suárez como Franco
Quinziano ressaltam a intensa relação existente entre esses dois países, na época. Na
verdade, o território que hoje constitui a Itália estava dividido em diversos Estados,
parte deles submetida aos soberanos espanhóis. Nápoles, onde os laços políticos e
culturais hispano-italianos eram ainda mais intensos, foi o palco das primeiras
encenações do Burlador na Itália, segundo Quinziano.
Na verdade, houve uma invasão dos palcos italianos pelas peças teatrais
espanholas, fato justificado pela coincidência entre o florescimento do drama espanhol
do “Século de Ouro” e a fase de decadência do teatro italiano, carente de grandes
criadores. Essa situação cultural aliada à dominação política de parte da Itália pela
Coroa espanhola é ressaltada por Said Armesto ao defender que as mais antigas versões
do Burlador encenadas na Itália, ao contrário do que dizia Farinelli, eram traduções e
adaptações da obra espanhola.
O drama de Molina foi, então, rapidamente assimilado aos cânones da Comédia
dell’Arte, canal privilegiado da recepção do teatro áureo na cultura italiana.
Caracterizada por “companhias ambulantes de atores profissionais especializados em
por em cena um determinado tipo de personagem estereotipado”
37
, com objetivos
cômicos, a Comédia dell’Arte operou significativas alterações na obra de Molina.
Essas alterações já estão presentes na primeira versão italiana do Burlador,
atribuída a Jacinto Andréa Cicognini, intitulada Il Convitato di Pietra, anterior a 1650.
37
No original: “compañías ambulantes de actores profissionales especializados en poner en escena un
determinado tipo de personaje estereotipado”. SUÁREZ (1997), p. 108.
27
Vale destacar uma passagem do ensaio de Franco Quinziano para sintetizar esse
processo de assimilação pela Comédia dell’Arte:
[…] como na versão de Giacinto Cicognini, [as encenações italianas] vão atenuando – e em
alguns casos despojando – as evidentes conotações morais e religiosas da peça de Tirso para
reduzi-la, através da supressão ou substituição de episódios, cenas e personagens, a uma
sucessão vertiginosa de sucessos excêntricos e fantásticos, orientados fundamentalmente a
satisfazer o gosto do público. Neste processo de inevitáveis conseqüências semi-caricaturais,
o comediante de arte funda um novo modelo dramático, centrado na improvisação do ator em
cena, que irá configurando-se como uma embrionária indústria da diversão...
38
Além das novas características apontadas na citação acima, ganham também
relevo, na busca pela comicidade, os chamados lazzi – mímicas e gestos expressivos,
como bofetões e tapas. Outros elementos familiares ao público italiano, como o
disfarce, as substituições e especialmente as máscaras são também incorporados à
tradição do tema. Por essas características, é fácil compreender por que o criado de Don
Juan ganha maior destaque, chegando mesmo a desempenhar o papel de verdadeiro
protagonista.
Foi por intermédio das companhias ambulantes dos comediantes italianos que o
tema de Don Juan se difundiu por toda a Europa, observando-se nesse processo de
difusão a atenuação ou eliminação do aspecto religioso, configurando-se para Carmen
Becerra Suárez um exemplo de desmitificação do tema, já que o elemento sobrenatural
é neutralizado pela dimensão paródica e cômica de um subgênero hiper-codificado
como a Comédia dell’Arte.
38
No original: “[...] al igual que la versión de Giacinto Cicognini, [as encenações italianas] van atenuando
– y en algunos casos despojando – las evidentes connotaciones morales y religiosas de la pieza de Tirso
para reducirla, a través de la supresión o sustitución de episodios, escenas y personajes, a una sucesión
vertiginosa de sucesos excéntricos y fantásticos, orientados fundamentalmente a satisfacer el gusto del
público. En este proceso de inevitables consecuencias semicaricaturales, el comediante del arte funda un
nuevo modelo dramático, centrado en la improvisación del actor sobre la escena, que irá configurándose
como una embrionária industria de la diversión…” QUINZIANO (2006), p. 303. São nossas as traduções
de todas as citações referentes a este autor.
28
2.3 – Molière: idéias libertinas e glosa à hipocrisia
Na França, as primeiras versões da obra de Molina de que se tem notícia são as
de Dorimond (1659) e de Villiers (1660). Essas duas obras – muito semelhantes,
indicando que ou os autores se imitaram mutuamente ou as traduziram de um possível
original italiano – desempenham um importante papel na caracterização futura da
personagem, especialmente na de Molière. Recuperando o protagonismo cedido ao
criado na comédia italiana, assume a cena um Don Juan impregnado das idéias
libertinas.
Molière, já em 1665, publica o seu Don Juan ou le festin de pierre. As
influências mais diretas são atribuídas aos comediantes italianos
39
e às versões de
Dorimond e Villiers. Como os seus contemporâneos patrícios, Molière fixa o caráter
libertino do sedutor, cujas reflexões põem em relevo temas presentes na sociedade
francesa da época, articulando sua versão ao conjunto de sua dramaturgia, à qual não era
estranha a crítica de costumes. Ao contrário da obra de Molina, a hipocrisia moral – de
índole religiosa e de inspiração católica – passa a ser glosada por Don Juan. Muitos
estudiosos consideram, inclusive, ser a hipocrisia o verdadeiro tema da obra do autor
francês. Para se entender essa interpretação, transcrevemos abaixo partes de uma
passagem onde o protagonista, frente à ameaça paterna de supressão dos seus
privilégios, justifica a seu criado o diálogo que tivera com o pai, quando fingira passar a
viver uma vida exemplar:
Disso ninguém mais se envergonha. Ao contrário, se orgulha. A hipocrisia é um vício. Mas
está na moda (...) Mas a hipocrisia é um vício privilegiado, que tapa a boca de todos que o
percebem e transita na corte com vaidosa impunidade (...) Você não sabe quantos hipócritas
eu conheço que, com alguns poucos estratagemas, limparam as manchas e os crimes de sua
juventude. E aí, usando o escudo e o manto da religião, se transformaram em cidadãos
respeitáveis, isto é, os homens mais canalhas deste mundo (...) Serei o vingador dos interesses
39
Suárez revela que a companhia teatral de Molière alternou as suas representações, no Petit Bourbon,
com a companhia italiana de los Fideli, de Francesco e Isabella Andreini.
29
do Céu e, sob esse manto assustador, perseguirei meus inimigos, acusando-os de impiedade,
desencadeando contra eles o zelo e a perseguição dos carolas que, sem conhecimento de
causa, os cobrirão de injúrias, condenando-os à execração pública (...) É assim que se usa a
fraqueza, a ignorância e a pusilanimidade dos homens. É assim que um sábio torna virtudes
os vícios de seu tempo. (MOLIÈRE, p. 120-2)
Paulo Jonas de Lima Piva, no livro O ateu virtuoso – materialismo e moral em
Diderot, ensina que os filósofos ilustrados do século XVIII, opondo-se à visão
tradicional, segundo a qual a única e verdadeira moral era a das escrituras,
[...] argumentavam que uma moral laica, ou seja, que uma moral que não tivesse como
fundamento os dogmas da religião, seria perfeitamente viável e, sobretudo, eficaz. O primeiro
passo foi denunciar a precariedade e a ineficácia da moral ditada pela tradição recorrendo à
própria experiência do convívio social, na qual era possível verificar, com muita facilidade,
inúmeras contradições entre os sermões dos homens de batina e o comportamento cotidiano
dos fiéis. Seus costumes revelavam-se quase sempre dúbios. Em público, esforçavam-se para
convencer seus concidadãos de que eram pessoas virtuosas, na intimidade, pautavam-se pelo
vício e pelo desregramento. Em suma, tais pessoas faziam da virtude um manto sob o qual
escondiam seus pecados. Eram, portanto, hipócritas.
40
Parece que estamos a ouvir o próprio Don Juan “francês”. E em nada prejudica a
adequação da passagem acima o fato de Piva se referir ao século XVIII, se lembrarmos
que o materialismo mais radical desse século insere-se na “tradição filosófica que
remonta aos ‘livre-pensadores’ da França seiscentista”
41
– chamados libertinos por seus
inimigos. Embora existam diferenças, esses eruditos eram também marcados pelo
espírito anti-religioso, opondo “os ensinamentos da fé e da moral cristãs às constatações
da experiência sensível.”
42
Há várias outras passagens que apontam para o caráter libertino do protagonista.
Por exemplo, a resposta de Don Juan, quando indagado pelo criado sobre suas crenças:
“Eu acredito que dois e dois são quatro, Leporelo
43
, e que quatro e quatro são oito”
(MOLIÈRE, p. 71). São de Leporelo as palavras que mais explicitamente remetem Don
Juan para o grupo dos “livre-pensadores”. Afirmando dirigir-se a um patrão imaginário,
diz, com evidente efeito cômico:
40
PIVA (2003), p. 66.
41
MORAES (2003), p.13.
42
Ibidem, p.13.
43
No original, o nome do criado é Sganarelle. Utilizamos o nome consignado na tradução de Millôr
Fernandes.
30
Falo dos insensatos, libertinos sem saber por quê: posam de audaciosos porque acham que
fica bem. Não falo do senhor não. Se eu tivesse um patrão assim eu lhe diria claramente,
olhando-o bem no olho: “Ousa o senhor zombar do céu dessa maneira; não treme o senhor de
fazer o que faz, de escarnecer das coisas mais sagradas?” (MOLIÈRE, p. 19)
Parece-nos também que Molière, nessa cena, vocaliza a visão dos libertinos eruditos,
que lamentavam ou mesmo desprezavam a ignorância das classes inferiores,
reprodutoras de crenças irracionais. Isso se depreende de forma ainda mais nítida das
seguintes palavras do criado, anteriores às transcritas acima: “Mas, meu senhor, sempre
ouvi dizer que é muito grave zombar do Céu. Os que se atrevem a isso são libertinos –
jamais têm um bom fim” (MOLIÈRE, p. 18).
O Don Juan de Molière pode mesmo ser aproximado a protagonistas como os de
Les liaisons dangereuses (1782), de Chaderlos de Laclos, última obra-prima, segundo
Raymond Trousson, do romance libertino na literatura francesa do século XVIII.
44
Pelo
menos quanto ao seu método, de cuja aplicação prática, contudo, não temos exemplo na
peça:
Há uma doçura extrema em dominar, com cem ou mil galanteios, o coração de uma jovem
esplêndida, vendo, dia a dia, o progresso de nossa penetração... em sua ânsia. Invadindo, com
lances de arrebatamento, prantos e promessas, o pudor inocente de uma alma e vendo-a, aos
poucos, perdendo qualquer vontade de se defender. Forçando, passo a passo, todas as últimas
pobres resistências que ela nos opõe, vencendo essa teia de escrúpulos que formam sua honra,
levando-a carinhosamente até... até onde queremos. Mas, uma vez possuída, não há mais o
que dizer, ou desejar. (MOLIÈRE, p. 16)
Insinua-se (e apenas se insinua), portanto, um Don Juan muito mais calculista, metódico
e intelectualizado do que o original espanhol. Mais reflexivo, ganha relevo a sua
habilidade discursiva, apenas sugerida em Molina
45
, justificando a afirmação de Renato
Janine Ribeiro de que aos disfarces físicos do sedutor corresponde o disfarce
discursivo.
46
Essa sua habilidade, presente no jogo de palavras diante das camponesas
44
Cf. TROUSSON (1996).
45
As burlas de Don Juan Tenorio, entretanto, se apoiavam muito mais nas falsas promessas ou
simplesmente no disfarce físico.
46
Cf. RIBEIRO (1988).
31
(que lhe cobram simultaneamente a promessa de casamento) e na burla imposta ao
burguês e credor Domingos
47
, é explicitamente reconhecida por Leporelo:
Ora, ora, eu ... Só tenho a dizer que não tenho nada a dizer. Ou não sei como dizer. Porque o
senhor vira e revira as coisas de uma tal maneira que parece ter absoluta razão onde não tem
nenhuma. Trazia aqui dentro os mais claros pensamentos sobre o assunto, mas seu discurso
embaralhou tudo. (MOLIÈRE, p. 17)
Parece não caber dúvida de que Molière dotou Don Juan de algumas
características de um certo tipo de personagens libertinas e de algumas idéias dos “livre-
pensadores” do século XVII, idéias às quais, segundo Carmen Becerra Suárez, o autor
não era alheio. No entanto, isso não significa que a obra do dramaturgo francês possa
ser enquadrada na categoria de literatura libertina, ainda que tal categoria permita, como
revela Raymond Trousson, várias interpretações, podendo englobar desde obras
filosóficas e de um racionalismo militante até romances licenciosos.
48
Muitas considerações de Trousson sobre o romance libertino francês setecentista
poderiam ser aplicadas a Don Juan, como, por exemplo, a de que “o libertino erige o
instante intenso como norma da relação amorosa, teorizando assim a inconstância”.
49
Para comprovar tal afirmação, o autor acrescenta palavras de personagens libertinas que
sustentam a fugacidade do amor e do prazer, palavras semelhantes às que o protagonista
de Molière pronuncia, dirigindo-se ao criado: “Você pretende que uma pessoa se ligue
definitivamente a um só objeto de paixão, como se fosse o único existente? (...) As
atrações nascentes têm encantos inexplicáveis – todo o gozo do amor está na
renovação” (MOLIÈRE, p. 15-6). O próprio denominador comum, segundo Trousson,
das inúmeras manifestações da libertinagem enquadra perfeitamente o herói de Molière,
bem como o de Molina: “Seja como for, a libertinagem, não importa a forma em que se
apresente, conserva algo de transgressivo – o libertino só se realiza ao infringir
47
Molière parece pretender satirizar a nova classe em ascensão, rica mas néscia.
48
Cf. TROUSSON (1996), p. 166-7.
49
Ibidem, p. 177. Voltado para o instante, o protagonista de Tirso de Molina também é marcado pela
inconstância, característica, aliás, da imagem arquetípica de Don Juan. Entretanto, a personagem de
Molina, ao contrário da de Molière, jamais teoriza.
32
princípios que supostamente assegurariam o bom funcionamento da sociedade”.
50
ainda uma outra observação do mesmo autor que se aplica principalmente ao burlador
de Tirso de Molina: “A glória é tão importante ao libertino quanto ao herói corneliano,
seu gozo é ser visto e reconhecido como mestre, ele quer, como Versac, ‘tornar [seu]
nome célebre’”.
51
Mas há também sensíveis diferenças entre Don Juan e as inúmeras personagens
aristocráticas e desdenhosas, fechadas em seu círculo social, da estirpe de um Visconde
de Valmont ou de uma Marquesa de Merteuil, de Choderlos de Laclos, não obstante a
afirmação de Carmen Becerra Suárez de que Les liaisons dangereuses é um dos mais
importantes exemplos da combinação entre libertinagem e donjuanismo.
52
Em primeiro
lugar, mesmo o protagonista de Molière, apesar da teoria, não age como as personagens
dos romances libertinos franceses, para as quais “As vicissitudes do encontro são
substituídas por uma reflexão elaborada, um plano de batalha, um planning da
sedução”.
53
Em segundo lugar, e para além do corpus literário analisado por Raymond
Trousson, não há nenhum vestígio de erotismo nas versões aqui convocadas do nosso
herói. Aliás, na de Molière, bem como na de Mozart/Da Ponte, sequer vemos o sedutor
ter sucesso em suas empreitadas amorosas. Por último, ainda que fragilizado ou
inconsistente, o argumento religioso, tradicional e moralizante, subsiste também no
drama do autor francês, como veremos adiante.
As diferenças entre Don Juan e as personagens libertinas, todavia, se sustentam
apenas quando consideramos os traços mais permanentes do famoso sedutor, uma vez
que tantas reencarnações determinaram inúmeras interseções entre ele e a libertinagem,
50
Ibidem, p. 167.
51
Ibidem, p. 173.
52
Cf. SUÁREZ (1997), p. 113-4.
53
TROUSSON (1996), p. 172. A única ação planejada do protagonista de Molière é o seqüestro de uma
mulher, de quem só sabemos tratar-se de uma noiva apaixonada que resistira aos ataques de Don Juan.
Contudo, nem se trata de um real processo de sedução nem o plano é bem sucedido. Ademais, é um
episódio incidentalmente comentado, não sendo representado na peça.
33
como a apontada por Carmen Becerra Suárez na versão de Thomas Shadwell, The
Libertine (1676). Citando Jean Massin, a autora afirma que alguns traços aportados à
personagem pelos franceses não se fixarão no mito, mas abrirão o caminho que leva de
Don Juan às personagens do Marquês de Sade. Ainda segundo Suárez, o inglês
Shadwell, por exemplo, teria intensificado os traços de perversidade e crueldade
existentes nos protagonistas de Dorimond, de Villiers e de Rosimond (1669),
transformando Don Juan em um assassino, parricida e incestuoso.
Como já afirmado anteriormente, Molière assimilou características da Comédia
dell’Arte, algumas das quais encontramos reunidas nas primeiras cenas do segundo ato,
como a linguagem caricaturada das personagens humildes
54
e a pantomima burlesca dos
lazzi: Don Juan, por exemplo, esbofeteia seu criado ao tentar acertar o inconformado
noivo da camponesa Carlota. Mais volúvel que a sua ancestral Aminta (a camponesa de
Tirso de Molina), a noiva parece não corresponder ao amor do camponês, que sofre de
ciúmes da sua amada (mais do que Batricio, de Molina). E o noivo chama-se Pierrô.
Com esses dados, percebe-se que as cenas envolvendo os camponeses e Don Juan são
assimiladas ao clássico quadro da Comédia dell’Arte formado pelo trio Pierrô,
Colombina e Arlequim.
Por outro lado, o famoso dramaturgo francês salva o nosso herói da caricatura a
que o submeteram os comediantes italianos, equilibrando o excesso de comicidade e,
principalmente, recuperando, mesmo de forma mitigada e pouco consistente, o aspecto
religioso do tema, “que se havia feito laico na Itália e nas primeiras versões
54
Segundo Suárez, esse era um recurso cômico de grande efetividade nas encenações da Comédia
dell’Arte. A primeira cena do segundo ato começa com o seguinte diálogo, na tradução de Millôr
Fernandes, entre os camponeses e noivos Carlota e Pierrô:
CARLOTA: Nosso Deus, Pierrô, tu então chegou mesmo na hora?
PIERRÔ: Nossa mãe, foi prum fiozim assim qui num se afogaro us dois.
CARLOTA: Foi o quê? O pé di vento di manhãzim qui cuspiu dento dágua? (MOLIÈRE, p. 29).
34
francesas”.
55
Don Juan não é mais apenas o delinqüente social, a que havia sido
reduzido, mas também um pecador, que presta contas, não ao rei, mas ao Céu.
Jean Rousset considera não ser suficientemente motivada a intervenção do
Comendador, uma vez que Molière suprimiu a cena da sua morte, situando-a no passado
e a transformando numa breve referência por ocasião de um diálogo entre Don Juan e
seu criado. Já Carmen Becerra Suárez é mais radical e considera a presença da estátua
totalmente gratuita, já que despojada das funções de vingadora da honra e de emissária
do Céu. Suárez formula, então, a hipótese de ser a punição do protagonista uma
concessão do autor à tradição literária ou às imposições religiosas e morais da época.
Molière buscaria, desse modo, a captatio benevolentiae
56
do público e dos censores,
embora sem sucesso quanto aos últimos, pois a peça acabou sendo proibida após
algumas apresentações, sob a acusação de defender a libertinagem e o ateísmo.
Discordamos, contudo, da afirmação da autora de que a estátua não é emissária do Céu,
uma vez que assim ela se apresenta quando impõe o castigo ao pecador. Castigo divino
largamente vaticinado por diferentes personagens. Mas de fato o Comendador é pouco
convincente e, embora tenha sido morto por Don Juan, está totalmente despojado da
função de vingador da honra ultrajada: não é pai de nenhuma vítima do sedutor porque
Dona Ana simplesmente não existe.
Se Dona Ana desaparece, surge Dona Elvira, “cujo antecedente claro está na
personagem de Leonora de L’Ateista Fulminato”.
57
E mais uma vez discordamos da
interpretação de Suárez, que defende ser essa personagem o grande amor de Don Juan e
55
No original: “que se había hecho laico em Itália y en las primeras versiones francesas”. SUÁREZ
(1997), p. 117.
56
Acrescentamos que essa hipótese pode ser reforçada se considerarmos a ironia do desfecho da peça, no
qual Molière, pela boca de Leporelo, ironiza: “Eis, com sua morte, todos aliviados” (Ato V, Cena VII).
57
No original: cuyo antecedente claro está en el personaje de Leonora del escenario L’Ateista
Fulminato”. SUÁREZ (1997), p.118. Embora sem grande fortuna, há uma teoria, segundo Suárez, de que
já havia um auto sacramental supostamente representado na Espanha no século XV (El ateísta fulminado)
que poderia ser a fonte de Tirso de Molina. Comprovada, apenas a existência de uma peça com esse
nome, de autor e data desconhecidos. A partir dela teriam supostamente ocorrido representações em
Igrejas na Itália.
35
fonte para a remitificação romântica. Primeiro porque onde a autora vê o ressurgimento
de um amor ignorado, cremos tratar-se de apelo sensual.
58
E sobretudo porque os
estudiosos vêem em Dona Ana a fonte a partir da qual os românticos aportarão uma
nova face ao tema, a da busca da mulher ideal e do amor como instrumento de redenção.
Devemos ressaltar, ainda, que encontramos em Molière alguns aspectos do
original espanhol, embora não se possa afirmar que o dramaturgo francês o conhecesse.
Apesar de Suárez se inclinar a esta interpretação, entendemos que o protagonista de
Molière não pode ser considerado ateu, como também não eram necessariamente ateus
os libertinos de seiscentos. Quando o assunto é a fé ou a religião, Don Juan ironiza e até
galhofa, mas não nega a existência de Deus. E o próprio debate teológico – argumento
fundamental de Molina – ecoa ainda, embora deslocado, no seguinte enunciado de Don
Juan: “Apenas mais vinte ou trinta anos desta vida que você chama dissipada e, depois,
o arrependimento. E a absolvição” (MOLIÈRE, p. 111).
Por fim, citamos mais uma vez Suárez, que justifica assim as poucas cenas de
sedução (malogradas) e a débil presença da estua de pedra: “Molière utilizou um tema
popular como pretexto para, mantendo minimamente determinados traços tradicionais,
levar a cabo uma crítica da sociedade de seu tempo desde uma posição social, filosófica
e teológica que caracterizava os libertinos”.
59
58
A passagem referida é a seguinte, na tradução espanhola apresentada pela autora: “la sencillez de su
traje, unido a las lágrimas y a su lánguido ademán, han removido en mí las cenizas de un fuego que
juzgué apagado” (Ato I, Cena X). Béatrice Didier parece corroborar nossa interpretação ao dizer que
Dona Elvira “poderá ainda suscitar o desejo, se se desfaz em lágrimas”. DIDIER (s.d.), p. 86.
59
No original: Molière utilizó un tema popular como pretexto para, manteniendo mínimamente
determinados rasgos tradicionales, llevar a cabo una crítica de la sociedad de su tiempo desde una
posición social, filosófica y teológica que caracterizaba a los libertinos”. SUÁREZ (1997), p. 120.
36
2.4 – Mozart/Lorenzo da Ponte: preparando o herói e a heroína românticos
Os primeiros imitadores de Molière amplificaram o caráter libertino de Don
Juan, incluindo-o na rota que leva até o Marquês de Sade. Porém, como dito
anteriormente, o afortunado conquistador de mulheres e o libertino não seguiram juntos.
Enquanto a literatura libertina explode em diferentes direções, durante os últimos
decêndios do século XVII e quase todo o século seguinte diminui o interesse pelo nosso
herói, apesar de Franco Quinziano defender o contrário, alegando que foram
identificadas, só na Itália, 27 versões ou adaptações do Convidado de Pedra, entre as
obras de Molière e Mozart/Lorenzo da Ponte. Para Suárez, no entanto, nesse mesmo
período nenhuma outra obra contribuiu decisivamente para a evolução ou difusão do
mito de Don Juan.
Segundo Quinziano, neste ponto em uníssono com outros investigadores,
Foi principalmente no âmbito musical que o motivo do Convidado encontrou durante a
segunda metade do século XVIII novas e insuspeitáveis reencarnações através de inumeráveis
adaptações em vários melodramas trágicos, operetas cômicas e óperas de tipo popular, bailes,
vaudevilles, óperas bufas, farsas e comédias para música e pantomimas...
60
Dentre os diversos gêneros musicais, foi a ópera que mais contribuiu para a nova
emergência de Don Juan. Temos que recuar ao ano de 1669 para localizarmos na obra
intitulada Il Empio punito, de Melani e Pipo Acciaiuoli, o primeiro encontro da
personagem com esse gênero musical. Conquanto essa primeira obra se inclua no
gênero de música séria, o tema foi acolhido principalmente pela ópera cômica. Irene
Campéas, em sua dissertação de mestrado, convoca Jean Rousset e Giovanni Macchia
para concluir que Don Juan estava predestinado a se submeter aos comediantes italianos
e à ópera bufa para poder sobreviver.
60
No original:Fue principalmente en el ámbito musical donde el motivo del Convitato encontró durante
la segunda mitad del XVIII nuevas e insospechables reencarnaciones a través de innumerables
adaptaciones en varios melodramas trágicos, operetas cómicas y óperas de tipo popular, bailes,
vaudevilles, óperas bufas, farsas y comedias para música y pantomimas ...” QUINZIANO (2006), p. 304.
37
A primeira ópera cômica foi a de Le Tellier, Le Festin de Pierre, de 1713. Mas
foi entre 1777 e 1787 que o tema se popularizou, sendo identificadas dez versões
musicais. Só no ano de 1787 foram criadas, além da de Mozart/Da Ponte, três novas
versões, das quais se destaca a de Bertati e Gazzaniga, Don Giovanni, ossia il convitato
di pietra.
A mais importante, porém, é indiscutivelmente Don Giovanni, ossia il disoluto
punito, música de Wolfgang Amadeus Mozart e libreto de Lorenzo da Ponte. Nestes
termos Carmen Becerra Suárez ressalta a sua relevância:
E não somente por lograr reconduzir o mito ao caminho correto, perdido como estava entre
libertinos, galantes de salão e cômicos, senão porque consideramos que esta versão musical,
como conseqüência de determinadas modificações que contém e das interpretações a que elas
darão lugar, representa, e nisso estamos totalmente de acordo com a teoria de Jean Massin, a
passagem do mito barroco ao mito romântico, garantindo com isso a existência futura de Don
Juan, ou seja, sua transmissão e sobrevivência no tempo.
61
Embora Suárez busque influências na distante ópera de 1669 e nas diversas
versões surgidas entre 1777 e 1787 e Irene Campéas aponte fontes como Molina,
Molière e Goldoni
62
, os analistas são unânimes em afirmar que Lorenzo da Ponte
plasmou o seu texto a partir do libreto de Bertati. Campéas, lastreada por vários
estudiosos, é taxativa em afirmar que o libretista de Mozart copiou Bertati, ressalvando
que era atribuída pouca ou nenhuma importância ao plágio no século XVIII.
A mesma estudiosa, contudo, é a primeira a ressaltar as diferenças entre os
libretos, inclusive no próprio enredo, em cuja descrição não nos deteremos. O fato é que
o resultado foi a criação de uma outra obra, muito mais expressiva e poética. Segundo
61
No original: “Y no solamente por lograr reconducir al mito al camino correcto, perdido como estaba
entre libertinos, galantes de salón y cómicos, sino porque consideramos que esta versión musical, como
consecuencia de determinadas modificaciones que contiene y de las interpretaciones a que ellas darán
lugar, representa, y en ello estamos totalmente de acuerdo con la teoría de Jean Massin, el paso del mito
barroco al mito romántico, garantizando con ello la existencia futura de don Juan, es decir, su transmisión
y su pervivencia en el tiempo. SUÁREZ (1997), p. 128.
62
Carlo Goldoni, importante libretista que serviu de modelo a outros, foi autor de Don Giovanni Tenório
(1736). Celso Loureiro Chaves considera, de passagem, serem o libreto de Bertati e a peça de Molina as
principais fontes de Lorenzo da Ponte. Franco Quinziano, tratando superficialmente a questão, parece
atribuir ao texto de Molière uma influência decisiva, só dividida com o libreto de Bertati.
38
Campéas, Giovanni Macchia afirma que a falhada obra de Gazzaniga/Bertati se
transforma numa peça dramática e coerente. Porém, Celso Loureiro Chaves, ao mesmo
tempo em que qualifica como irrepreensível a composição musical, sustenta, como
veremos melhor adiante, a imperfeição dramatúrgica desse Don Giovanni, “mais uma
superposição de episódios cênicos periféricos do que um todo coerente”.
63
Consideramos irrelevante investigar quais os elementos transportados do libreto
de Bertati por Da Ponte, pois, sejam quais forem, a ópera que os consagrou e os
incorporou definitivamente foi a de Mozart. Um deles, por exemplo, remonta à versão
de Cicognini: o catálogo – consagrado pela ária mozartiana de Leporello – onde o
criado de Don Giovanni anota os nomes das mulheres conquistadas pelo patrão. É
oportuno destacar que foi, não Bertati, mas Molière – cujo texto Da Ponte e Mozart
seguramente conheciam – a fonte para o aproveitamento de Dona Elvira, personagem
que segue como a esposa abandonada do protagonista.
Há duas diferentes versões da ópera de Mozart/Da Ponte, a primeira composta
para a estréia em Praga, em 1787, e a segunda destinada a Viena, no ano seguinte.
Conforme Irene Campéas, era comum a rebeldia dos cantores, que exigiam maior
destaque cênico ou composições em que pudessem exibir sua capacidade vocal. Mozart,
especialmente sensível a essas exigências, teria alterado algumas composições e criado
novas árias para a estréia em Viena em função da presença de novos artistas. A versão
hoje conhecida “é um híbrido que incorpora elementos das duas versões”.
64
Apesar de classificada por Chaves como ópera bufa, Mozart dá à sua
composição o título de drama giocoso. Como ensina Irene Campéas, o drama giocoso
ou “ópera semi-séria” é o resultado de um período de transição onde, na estrutura
musical, a ópera “séria aceitou a orquestração mais elaborada e o espírito dos
63
CHAVES (1991), p. 13.
64
Ibidem, p. 17-8.
39
‘ensembles’ da ópera bufa enquanto que esta adotou o coro e o maior dimensionamento
da ópera séria.”
65
Segundo Chaves, há em Don Giovanni “um paradoxo quase palpável
entre o caráter noturno da ação e uma leveza ocasional que parece tomada de
empréstimo à mais descompromissada das opere buffe.
66
Com efeito, a face bufa relaciona-se às peripécias de Don Giovanni, sempre
acompanhado de seu criado Leporello, que, muito mais próximo da personagem de
Molière que do Catalinón de Molina, é o principal responsável pelo lado cômico da
ópera. Não faltam, inclusive, os chamados lazzi, como se pode verificar na cômica cena
em que Don Giovanni desfecha algumas bordoadas no camponês Masetto. Já a
atmosfera trágica é posta pela música desde a ouverture, marcada pelo tom solene em ré
menor, o qual será retomado no fatídico desfecho, onde o protagonista é tragado pelas
chamas infernais. No nível textual, logo na primeira cena, com o assassinato do
Comendador, a Morte impõe a sua presença, mantendo-se continuamente suspensa até o
final, ecoando as primeiras juras de vingança, as de Dona Anna e de seu noivo, Don
Ottavio.
Importa especialmente destacar a reabilitação de Dona Ana, que havia sido
negligenciada ou mesmo suprimida, como em Molière. Essa personagem – já
reincorporada, com outro nome, à ópera de 1669 – ganha ainda maior relevo do que o
atribuído a ela por Tirso de Molina, vindo a se transformar na futura musa romântica.
Apenas uma voz vinda do interior de um palácio espanhol e presença parcial em
Gazzaninga/Bertati, Dona Anna supera a condição de vítima (frustrada) do sedutor e de
filha do morto e avulta como a heroína que anima e dirige a oposição ao Don Giovanni
da famosa ópera. Na interpretação tanto de Carmen Becerra Suárez quanto na de Jean
Rousset, a presença de Dona Anna já na primeira cena serve para, junto com a morte do
65
CAMPÉAS (1992), p. 104.
66
CHAVES (1991), p. 11.
40
Comendador, recolocar de forma orgânica e coerente a intervenção da estátua
vingadora.
Para Celso Loureiro Chaves, entretanto, “Ao tentar trazer de volta o Don
Giovanni super-humano para o nível do mundano, Da Ponte comete um inevitável erro
de cálculo e o segundo ato é um interminável retardamento do desenlace que se queria
imediato”
67
. O crítico levanta tal aspecto com o objetivo principal de demonstrar a
imperfeição dramatúrgica da obra, onde a sucessão de vários episódios poria em cena
diversas personagens superpostas, que só artificialmente interagiriam. Embora sua
análise não seja clara quanto a este ponto, cremos que a sucessão desses episódios sem a
recolocação consistente do aspecto religioso parece inclinar o desfecho da trama para
uma vingança terrena. Afora o Morto (já nas cenas finais do segundo e último ato),
apenas Dona Elvira vaticina, em tom de lamento, o castigo divino: “... a cólera dos céus
e a justiça não podem tardar! Posso antever o golpe fatal, desabando como um raio
sobre a cabeça dele, e um abismo se abrindo diante dos seus passos” (DA PONTE, p.
121). Em outra passagem, entretanto, a própria Dona Elvira se propõe, ela mesmo, a
levar a cabo a punição: “Eu vou me encarregar de puni-lo” (DA PONTE, p. 117). Até
na versão de Molière – talvez para sanar a debilidade da intervenção divina – várias
personagens prevêem a punição do Céu. E, em Molina, o argumento teológico é
insistentemente pontuado pelo “Tan largo me lo fiáis”, enunciado por Don Juan, mesmo
antes de matar o Comendador.
Suárez e Rousset, todavia, são categóricos quanto à plena reabilitação da
significação religiosa na ópera. Para Rousset, Mozart, remontando à fonte espanhola e
contra o seu tempo, “restitui a aura sobrenatural, volta a dar à Morte, ao seu canto de
além-túmulo um terrível poder”.
68
E seria justamente de Dona Ana, por sua relação com
67
CHAVES (1991), p. 14.
68
ROUSSET (s/d), p. 35.
41
o Morto, a função de manter atualizado o confronto com o Além, garantindo a
consistência do desenlace trágico sob a intervenção do Céu. De nossa parte, entendemos
que o texto do libreto, isoladamente, não é suficiente para validar essa interpretação.
Com efeito, a última cena da ópera, conquanto se constitua em outro índice do
reatamento com a fonte espanhola e reforce a significação moralizante, apresenta uma
expressiva diferença em relação ao original seiscentista. No desfecho da peça de
Molina, o castigo infernal é imediatamente percebido pelas demais personagens (e pelo
público) como o fim natural e incontornável do ímpio, percepção que é sintetizada no
enunciado do rei: “Justo castigo del cielo!” (MOLINA, p. 244). Já no libreto de Lorenzo
da Ponte, pode-se flagrar uma certa surpresa nas palavras de Don Ottavio, que, junto
com outras personagens, demandava a justiça terrena: “Depois de tudo, então, minha
querida, fomos vingados pelos céus” (DA PONTE, p. 151). E, reforçando essa
perspectiva, vemos todas as personagens em cena, esquecidas dos céus, cantarem juntas
no desfecho da ópera: “Este é o fim de quem faz o mal! A morte de um pérfido é
sempre a imagem de sua vida!” (DA PONTE, p. 151).
Se a rigor não contestamos as interpretações de Rousset e de Suárez é porque o
significado pleno da ópera só se pode apreender pela integração entre o libreto e a
composição de Mozart, que muitas vezes sobrepujou ou mesmo contornou o texto de
Da Ponte. Segundo Carmen Becerra Suárez, Jean Massin assinala mesmo o
protagonismo exercido pela orquestra, que expressa as nuances das situações e da
psicologia das personagens.
A própria estrutura musical da ópera, com seus recitativos e árias, se
encarregou de conceder maior profundidade às personagens, entre as quais se destacam
as mulheres, principalmente Dona Ana, que passaram de mero pretexto para a ação do
sedutor a autênticas individualidades. Daí é que Jean Massin extrai a conclusão de ser a
42
música de Mozart a responsável por abrir a porta para a etapa romântica do tema e Jean
Rousset indaga se não foi Mozart o verdadeiro criador do mito. Carmen Becerra Suárez,
no mesmo sentido, defende que a ópera mozartiana abriu o processo que culminará com
a destruição do mito barroco e o ressurgimento do mito romântico, onde Don Giovanni
se reerguerá em demanda pelo ideal, pelo eterno feminino.
2.5 – Do Romantismo ao século XX: as versões de Zorrilla e de Ballester
Os poetas e músicos do movimento romântico aplaudiram o Don Giovanni de
Mozart como a “ópera das óperas”. Desprezando – e mesmo criticando – os aspectos
bufos da obra, esses artistas foram capturados pela música monumental, pelos cenários
grandiosos e especialmente pelo caráter rebelde e transgressor do protagonista, bem ao
gosto romântico. Na verdade, seria mais exato dizer que Don Giovanni é quem foi
capturado pela visão romântica, como veremos a seguir.
O principal responsável pela assimilação do nosso herói pelo Romantismo foi E.
T. A. Hoffmann, que em 1813 publicou um conto
69
cujo tema principal é a ópera de
Mozart. O escritor alemão leva ao extremo aquilo que dissemos acima, ou seja, que a
música do compositor austríaco se impõe e gera significados para além do texto de Da
Ponte. Com efeito, Hoffman, que além de poeta era compositor – inclusive de óperas –
e crítico musical, extraiu sua singular interpretação de Don Giovanni a partir da música
de “ce divin maître”, interpretação que orientou o acolhimento da ópera ao longo do
século XIX.
70
69
Carmen Becerra Suárez dá a designação de ensaio para o texto de Hoffmann. O título no original é Don
Juan, eine fabelhafte Begebenheit.
70
Cf. CAMPÉAS (1992).
43
Apesar de considerar uma extrapolação das intenções de Mozart, Jean Rousset
admite que a estrutura da ópera setecentista permitiu aos românticos enxergar em Dona
Ana uma paixão secreta por Don Giovanni
71
. Hoffman, que extrai conclusão semelhante
do canto dilacerado da personagem, vai mais longe e, além de fazer desaparecerem
Elvira e Zerlina, reduz as demais personagens a meras referências, concentrando-se
apenas no relacionamento entre Don Giovanni e Dona Ana:
[...] o narrador, alucinado, da história está deslumbrado por Ana, uma Ana dolorosamente
apaixonada por um Don Juan transformado em anjo caído, em idealista perseguindo de
mulher em mulher o infinito que nenhuma lhe pode oferecer, até à descoberta da amante
privilegiada, pronta a dar a vida para o salvar.
72
Segundo a interpretação de Jean Rousset, o perfeito equilíbrio alcançado por
Mozart entre o Inconstante, o Morto e o Grupo feminino se rompe pela desintegração
desse último, substituído por uma única e predestinada mulher, caminho sugerido pela
própria ópera ao atribuir a Ana a importância potencialmente reivindicada desde a sua
origem. Mesmo que assimilando características de Dona Elvira, como defende Suárez, é
Dona Ana quem assumirá o papel de heroína romântica, mulher idealizada, cujo amor é
capaz de redimir o nosso herói. Em conseqüência, o outrora febril conquistador de
mulheres deixa de ser o homem “para quem as vítimas femininas não passavam de
paragens indiferenciadas ao longo de uma caçada sem outra finalidade senão ela
própria”.
73
Giovanni ou Juan, “um laço profundo une-o agora àquela que resume em si
todas as mulheres.”
74
Transformando a perseguição em demanda, a personagem antes
marcada pelo instante projeta-se para o futuro e, embora ainda volúvel e infiel, sonha
71
Tal interpretação romântica, segundo Rousset, sustenta-se pela “estatura conferida à heroína, o seu
papel central no encadeamento das forças em presença, os laços afetivos que parecem estabelecer-se entre
dois parceiros que dominam soberanamente todos os que os rodeiam”. ROUSSET (s/d), p. 36. Carmen
Becerra Suárez agrega um outro dado para justificar essa interpretação: Dona Ana, depois da morte de
Don Giovanni, recusa-se a casar com Don Ottavio e pede um ano para consolar seu coração. Cf.
SUÁREZ (1997), p. 134-5. Apenas assinalamos que a motivação da personagem é ambígua, pois a
reivindicação do prazo pode ser em função da morte de Don Giovanni ou do Comendador.
72
ROUSSET (s.d.), p. 37.
73
Ibidem, p. 37.
74
Ibidem, p. 37.
44
com a fidelidade. O fracasso torna-o um amante romanticamente trágico, vítima da
ordem social ou divina.
Aliadas à romântica exaltação do eu, essas novas características de Don Juan
propiciam o estabelecimento de uma cumplicidade entre o antigo burlador e os
escritores, que, sob diversos matizes, se projetam na personagem. Nada mais natural,
portanto, o fato de o século XIX ter-se inclinado à glorificação e à salvação do herói.
Carmen Becerra Suárez afirma que a influência de Hoffmann pode ser detectada
em quase todas as versões românticas de Don Juan, as quais acentuaram, quando não
refundiram, uma das quatro facetas já delineadas na obra do escritor alemão: o buscador
do ideal, o rebelde, o amador irresistível e a heroína romântica (Ana).
Infelizmente, os objetivos da presente dissertação não comportam a análise
dessas obras. Entretanto, faremos ainda algumas considerações sobre a versão mais
popular na Espanha e à qual, segundo Suárez, Leo Weinstein imputa importância
comparável às de Molière e de Mozart para o desenvolvimento do tema: Don Juan
Tenorio, de José Zorrilla, publicada em 1840. Nesse drama, afirma Carmen Suárez,
convergem dois caminhos opostos: um de aproximação da fonte original, com a
reintrodução da dimensão religiosa, e outro de afastamento, pela entronização da
heroína romântica.
Registre-se de início que na peça de Zorrilla não há mais nenhum vestígio de
influência da Comédia dell’Arte, ainda presente na ópera de Mozart e Lorenzo da Ponte.
A história assume uma gravidade inédita (pelo menos em relação às versões convocadas
por esta dissertação), estando ausente qualquer traço de bufonaria ou comicidade –
mesmo o criado de Don Juan, Ciutti, mostra-se altivo em seu reduzido papel, não tendo
mais sequer as tradicionais funções de censurar o patrão e de vaticinar o castigo divino.
45
Don Juan, até certa altura do drama, é o mesmo burlador em busca da glória e da
afirmação do seu valor, para quem a conquista amorosa é apenas a mais saborosa forma
de suas burlas, como se depreende já do mote inicial da trama: a aposta que fizeram
Don Juan e Don Luis Mejía para ver “quem de ambos saberia obrar/pior, com melhor
fortuna,/ao cabo de um ano” (ZORRILLA, p. 28).
75
Contudo, o nosso herói é agora
mais letal que as criaturas de Tirso, Molière e Mozart/Da Ponte, triunfando sobre Mejía
não só nas conquistas amorosas, que somaram setenta e duas (em um ano), mas também
no número de mortes: trinta e duas.
Enquanto o protagonista de Tirso beneficiava-se ostensivamente das suas
relações de parentesco e o de Molière chegou a optar, em nome de seus privilégios, pelo
manto protetor da hipocrisia, o burlador de Zorrilla não se curva nem diante do pai nem
diante do rei. Quanto ao primeiro, temos a demonstração disso na peça, quando, após
ser renegado pelo pai e por ele chamado filho de Satanás e ameaçado com a justiça
divina, Don Juan diz orgulhosamente:
Largo prazo me concedeis:
mas vede que vos quero advertir
que eu não vos fui a pedir
jamais que me perdoásseis.
Então não empenheis vosso a
daqui em diante por mim
que como viveu até aqui
viverá sempre don Juan. (ZORRILLA, p. 40-1)
76
Embora nessa passagem ecoe o refrão “Tan largo me lo fiais” – várias outras evocam
enunciados de El Burlador –, vemos que não está colocada a questão do arrependimento
para o protagonista, que agora professa ostensivamente o ateísmo.
Talvez o caráter mais acentuadamente demoníaco desse Don Juan tenha a função
de pôr em relevo a sua transformação. Transformação inspirada pelo seu amor à Dona
75
No original: “quién de ambos sabría obrar/peor, com mejor fortuna,/en el término de un año”. São
nossas todas as traduções do texto de Zorrlla.
76
No original: “Largo el plazo me ponéis:/mas ved que os quiero advertir/que yo no os he ido a
pedir/jamás que me perdonéis./Conque no paséis afán/de aquí en adelante por mí,/que como vivió hasta
aquí,/vivirá siempre don Juan.
46
Inês, por ele raptada de um convento. Contrariando o seu caráter e a tradição literária,
vemo-lo de joelhos – aquele que não se curva nem diante do pai nem do rei – a oferecer
ao pai de sua amada o governo de sua vida. De nada adiantou, porém, invocar Dona
Inês e dizer que “Seu amor me transforma em outro homem,/regenerando meu ser,/e ela
pode fazer um anjo/de quem um demônio foi” (ZORRILLA, p. 115).
77
Don Gonzalo de
Ulloa, o Comendador, toma tal postura por covardia e, desafiando Don Juan, acaba
morto junto com Luis Mejía, que também fora ao encalço daquele que desfrutara de sua
amada, uma tal Ana de Pantoja.
Só na segunda parte da peça, quando nosso herói retorna a Sevilha após anos de
exílio, é que aquela transformação se consuma, não sem percalços. Depois de saber que
Dona Inês havia morrido “de sentimiento” ao ser abandonada por ele, Don Juan depara-
se com a sombra da amada, que lhe diz: “Eu a Deus minha alma ofereci/em penhor de
tua alma impura” (ZORRILLA, p. 135).
78
Mas, mesmo advertido por Dona Inês de que,
se obrasse mal, causaria a desventura de ambos, o antigo burlador – confuso, todavia
incrédulo – ainda, em defesa do seu valor, repete o sacrílego convite à estátua e mata
dois antigos camaradas. Zorrilla, porém, redime o seu protagonista. E não só o redime
como lhe concede a salvação, unindo argumento teológico e perspectiva romântica. Isso
porque é pela intervenção de Dona Inês que o impenitente é salvo, não da morte, mas do
Inferno.
79
77
No original: “Su amor me torna en otro hombre,/regenerando mi ser,/y ella puede hacer un ángel/de
quien un demonio fue”.
78
No original: “Yo a Dios mi alma ofrecí/en precio de tu alma impura”.
79
Se Zorrilla não foi o primeiro, foi o mais relevante autor, até então, a conceder a salvação a Don Juan.
Desconsiderando as obras totalmente alheias aos argumentos tradicionais, a salvação é concedida
anteriormente ao nosso herói por Blaze de Bury na pouco conhecida obra Le soupeur chez Le
Commandeur, de 1834. Zamora, em sua versão de 1744 , oferece um final ambíguo quanto a esse aspecto.
Alexandre Dumas (pai) concede a salvação a seu protagonista – e de forma muito semelhante a Zorrilla –
apenas nas últimas versões, em torno de 1864, de seu drama Don Juan de Mañara ou le chute d’um ange,
inicialmente publicado em 1836. Essas informações foram extraídas de Carmen Becerra Suárez, bem
como de José Luis Varela, na introdução constante da edição aqui utilizada da obra de Zorrilla.
47
Carmen Becerra Suárez e José Luis Varela
80
ressaltam a polêmica relativa à
adequação da salvação do impenitente no quadro das doutrinas da Igreja Católica. É que
o católico Zorrilla, no caminho oposto de Tirso, parece inadvertidamente sustentar a
tese protestante da salvação da alma desnuda de boas obras, mediante a misericórdia
divina. Com efeito, a estátua do Comendador, quando comparece ao jantar, apresenta-se
como emissária de Deus para anunciar ao impenitente que a infinita clemência divina
lhe concedia um dia de prazo para morrer com ventura. Nosso herói, contudo, não a
aproveita e mata os seus outros dois convidados.
81
Posteriormente, atendendo ao convite
retribuído, Don Juan assiste ao seu próprio enterro junto à tumba do piedoso Ulloa, cuja
estátua lhe avisa que “um ponto de contrição/dá a uma alma a salvação,/e esse ponto
ainda te dão” (ZORRILLA, p. 164).
82
Ao que responde Don Juan: “Impossível! Em um
momento/apagar trinta anos malditos/de crimes e delitos” (ZORRILLA, p. 164).
83
Mas
foi. Quando a estátua, como a de Molina, pronuncia “Já é tarde” (ZORRILLA, p. 167)
84
,
surge Dona Inês, que diz: “Deus te outorga por mim/tua duvidosa salvação”
(ZORRILLA, p. 171).
85
Como vimos na parte dedicada à obra de Tirso de Molina, essa questão teológica
não era pacífica na doutrina católica, tendo o autor de El burlador adotado em outras
peças, como El condenado por desconfiado, a posição de que um pecador contumaz
poderia ser salvo pela vontade de Deus. José Luis Varela defende a validade do
argumento teológico de Zorrilla evocando as Escrituras, a tradição eclesiástica e o
pensamento escolástico, os quais dariam sustentação à doutrina segundo a qual a
80
Na introdução constante da edição aqui utilizada da obra de Zorrilla.
81
Há uma outra polêmica de fundo teológico: se um dos seus últimos adversários de duelo o havia
matado, como afirma a estátua do Comendador, Don Juan não poderia ter-se arrependido antes da morte,
como seria necessário para a sua salvação. Contudo, parece-nos claro, como afirma Varela, ter sido Don
Juan apenas gravemente ferido nos duelos que não foram postos em cena, uma vez que abundam nos
diálogos finais referências explícitas ao tempo de vida que ainda restava ao pecador.
82
No original: “un punto de contrición/da a un alma la salvación,/y ese punto aún te le dan”.
83
No original: “¡Imposible! ¡En un momento/borrar treinta años malditos/de crímenes y delitos!”
84
No original: “Ya es tarde”.
85
No original: “Dios te otorga por mí/tu dudosa salvación
48
intervenção de um justo pode conseguir para o pecador tudo que para si merece,
inclusive a graça que move ao arrependimento. Acrescentamos que há uma outra peça
de Molina onde as cenas finais são muito semelhantes às de Zorrilla. Trata-se de La
Santa Juana, na qual o também libertino Don Jorge, igualmente avisado da sua morte
no dia seguinte e lamentando o pouco prazo que lhe era concedido, é salvo do Inferno
pela intervenção da piedosa e apaixonada Maria.
Teria esse drama influenciado Zorrilla? Não podemos afirmar, pois o certo é
existirem diversas variações em torno desse tema nas lendas e narrativas populares
antigas, bem como no teatro do “Século de Ouro” espanhol, tributário daquelas fontes.
Aliás, são diferentes temas que se cruzam, inclusive na história de Don Juan. Presente
na peça de Zorrilla, a visão do próprio enterro, por exemplo, já havia sido incorporada
por uma outra lenda, criada pela imaginação popular a partir da vida de Miguel de
Mañara, que, nascido em 1626, na cidade de Sevilha, corrigira-se da vida
escandalosamente dissoluta por amor a uma mulher, vindo a se tornar pio e caridoso
quando prematuramente falece a sua amada. Perfeitamente ajustada ao gosto romântico,
essa lenda se fundiu pela primeira vez à história de Don Juan na novela Les âmes du
Purgatoire, de Prosper Mérimée, publicada em 1834, suscitando a hipótese, hoje
descartada, de ter sido Mañara o modelo para a criação de Molina.
86
Seja ou não ortodoxo o argumento teológico, Zorrilla resgata a dimensão
religiosa para conceder ao amor um poder transcendente, bem ao gosto da época. Como
diz Dona Inês, “o amor salvou Don Juan” (ZORRILLA, p. 171).
87
Pela própria salvação
e por ela ter sido proporcionada pela filha do Morto – que, além de substituir todo o
86
Cf. SUÁREZ (1997), p. 150-4. José Luis Varela nega a influência de Mérimée sobre Zorrilla,
afirmando que a passagem da visão do próprio enterro pode ter como fonte El estudiante de Salamanca,
de José Espronceda, obra publicada em 1837. Em relação à possibilidade de Mañara ser o modelo de
Tirso de Molina, basta, como lembra Said Armesto, a sua data de nascimento (1626) para inviabilizá-la.
87
No original: “el amor salvó a don Juan”.
49
Grupo feminino, usurpa a função do pai – a estrutura tradicional do tema, segundo Jean
Rousset, desequilibra-se de vez, pondo um ponto final na carreira de Don Juan.
A obra de Zorrilla apresenta uma das diversas formas de reabilitação de Don
Juan, promovida pelos escritores românticos. Contudo, o mesmo século XIX assistiu
também a uma contundente reação à perspectiva romântica, legando-nos igualmente
burladores decadentes ou grotescos.
88
Mas, acrescenta Carmen Becerra Suárez, a crítica
mais destrutiva, os golpes mais duros contra Don Juan vieram “das mãos da ciência em
palavras de renomados psicólogos e brilhantes filósofos que o convertem em um caso
clínico”.
89
Apesar de ter havido especialmente na Espanha estudos e versões literárias
voltados para o resgate e reafirmação dos motivos tradicionais, durante o século XX
muitas foram as obras inspiradas por aquelas teorias, as quais descobriram em nosso
herói, por exemplo, ocultas tendências homossexuais, sentimentos bestiais ou
incapacidade de amar.
Mesmo não sendo particularmente alheio à interpretação psicanalítica, o escritor
espanhol Gonzalo Torrente Ballester é um exemplo daqueles que seguiram outra
direção. Para Carmen Becerra Suárez, o autor promove o renascimento do mito na sua
narrativa, de 1963, intitulada Don Juan, na qual o argumento religioso, embora sob um
ponto de vista crítico, é um dos elementos fundamentais.
Transportados para meados do século XX, Don Juan e Leporello cruzam em
Paris com o principal narrador da história, um jornalista e intelectual espanhol, que se
julga vítima da burla de uma dupla de farsantes. Esse é o mote para o autor, por meio de
um hábil jogo de intercalação de histórias, gêneros e narradores, apresentar,
88
Exemplos dados por Suárez: Lelia (1833) de George Sand, La Vieillese de Don Juan (1853), de Jules
Viard, e El nuevo don Juan (1863), de Adelardo López de Ayala.
89
No original: “de manos de la ciencia en palabras de renombrados psicólogos y brillantes filósofos que
le convierten en un caso clínico.” SUÁREZ (1997), p. 166.
50
retrospectivamente, a vida de Don Juan, desde a infância, no longínquo século XVII.
90
Desse modo, Ballester preenche as lacunas da história e da psicologia de Don Juan, as
quais suscitaram inúmeras e diferentes interpretações, muitas delas revisitadas e quase
sempre rebatidas, na obra, pela autoridade dos próprios Don Juan e Leporello. É o
criado quem nos esclarece sobre um erro fundamental, causa de tantos outros: “A
discrição do meu amo, esse silêncio sobre si mesmo tão teimosamente mantido, deu
lugar a muitos equívocos” (BALLESTER, p. 263).
91
Reservado, Don Juan não é aquele homem para quem o importante era a fama de
maior burlador da Espanha. Estudando em Salamanca desde os dez anos de idade,
mantivera-se não só virgem como totalmente alheio às exigências da carne até os vinte e
três anos, dispondo-se a assumir o sacerdócio. A passagem do homem ao mito, como
entende Suárez, ou o início da famosa carreira de sedutor, como afirma o próprio
protagonista, ocorre quando Don Juan elege livremente o pecado, depois de retornar a
Sevilha para as exéquias do pai.
O móvel dessa transformação é o Comendador, um nobre dissoluto e falido, que,
como parte de uma estratégia para tomar-lhe a opulenta herança, induz o ingênuo Don
Juan a iniciar sua vida sexual pelas mãos de uma prostituta. O último representante dos
Tenorios na terra terá que escolher: ou continuará seguindo as leis de Deus ou lavará a
honra da família com o sangue do Comendador, conforme exigido por seus
90
A vida de Don Juan é apresentada de três formas: informações de Leporello (mediadas pela narrativa
do jornalista, que inclui diálogos entre ele e o criado de Don Juan), longo texto escrito em primeira pessoa
por Don Juan e encenação da parte final da vida – no século XVII do burlador. Ressalte-se que o Don
Juan do século XX é praticamente apenas uma referência. Embora para ele convirjam as atenções, o
narrador – e o leitor, nesse plano temporal – só o encontra rápida e episodicamente, não ocorrendo entre
eles qualquer diálogo. Já o texto em primeira pessoa, esse é escrito, na verdade, pelo narrador, sob a
fantástica inspiração de Don Juan, cujo espírito, como o de Leporello, tem a capacidade de se apossar de
corpos alheios. Leporello, na verdade, é um dos demônios de Satanás, enviado para testemunhar uma
experiência sobre a liberdade do homem, ao fim da qual seria decidido se Don Juan deveria ser aceito no
Inferno. O protagonista acaba condenado a viver eternamente na terra, já que tanto o Céu como o Inferno
o recusaram. Ressalte-se que não abordaremos os sucessos decorridos no século XX, nos quais os
protagonistas são o jornalista (narrador) e Leporello.
91
No original: “La discreción de mi amo, ese silencio sobre sí mismo tan empecinadamente mantenido,
dio lugar a bastantes errores.”
51
antepassados. Dividido, na hora da decisão, o futuro sedutor joga uma moeda para que
Deus se pronunciasse. Diante do silêncio celeste – a moeda cai “de canto” –, sentencia:
“ante esta prova de minha liberdade, e por ficar bem para Deus, elejo desde agora
mesmo o pecado. Ele o sabia, e, sem embargo, quis dar-me uma oportunidade. Aceito-a.
Matarei o Comendador e me deitarei com Elvira. Depois...” (BALLESTER, p. 235-6).
92
Como diz Leporello logo em seguida, Don Juan poderia ter optado por um meio
termo entre a santidade e o pecado, como é próprio dos humanos. Poderia,
acrescentamos, ter optado também – como fizera seu antepassado “francês” – pela
hipocrisia da maioria dos respeitáveis membros daquela sociedade, desde os Tenorios
até os membros da Ordem de Calatrava e da Igreja, entre os quais se destaca o
Comendador, que passou a vida ofendendo a Deus, mas, como ele mesmo diz, “fazia de
outra maneira, com dissimulação. Eu guardava as formas” (BALLESTER, p. 328).
93
Como na peça de Molière, a hipocrisia é um tema importante na versão de
Ballester. Mas agora Don Juan é um homem que despreza os que disfarçam os pecados
sob a capa de uma aparente virtude. Ele sustentará os seus inclusive diante de Deus,
pois, como ele havia afirmado depois de ouvir dos Tenorios que o pecado, inclusive de
homicídio, se apaga com o arrependimento: “não posso cometer um homicídio com o
propósito de me arrepender em seguida. Seria uma hipocrisia inútil, uma fraude”
(BALLESTER, p. 174).
94
Mas a sua integridade mistura-se ao seu desmedido orgulho
(herança dos Tenorios) e Don Juan, mesmo sabendo que a perderia, estabelece uma luta
particular e ambígua com Deus. E no centro dessa luta está a mulher. Apesar de buscar
em seus corpos a apetecida, mas sempre frustrada, união mística com a Criação,
92
No original: “[...] ante esta prueba de mi libertad, y por dejar quedar bien a Dios, elijo desde ahora
mismo el pecado. El lo sabía, y, sin embargo, quiso darme una oportunidad. La acepto. Mataré al
Comendador y me acostaré con Elvira. Después...”
93
No original: “Lo hacía de otra manera, con disimulo. Yo guardaba las formas”
94
No original: “no puedo cometer un homicidio con el propósito de arrepentirme luego. Sería una
hipocresía inútil, una trampa”.
52
pressentida em sua primeira experiência sexual, o sedutor transforma a mulher no
instrumento de sua inimizade com Deus: vendo que elas se sentem demasiadamente
felizes em seus braços, como só o poderiam ser no Paraíso, Don Juan arrebata a Deus o
que apenas Ele deveria dar.
Segundo o Leporello de Ballester, quase todos os poetas se tinham enganado ao
descreverem o seu amo, especialmente quando o retrataram como um amante grosseiro
e apressado. Mas Tirso de Molina, querendo fazer dele uma história exemplar, teria
cometido um erro ainda pior com o seu “Tan largo me lo fiáis”, pois Don Juan nunca se
preocupou com o arrependimento futuro, “entre outras razões, porque se arrependia
todos os dias, porque tinha que lutar cada dia contra o arrependimento” (BALLESTER,
p. 264).
95
Como se vê, a subversão operada por Ballester não se restringe à
caracterização do herói e do seu antagonista, atingindo o argumento fundamental da
peça seiscentista.
A parte final da vida – no século XVII – do herói é encenada na peça teatral La
muerte de don Juan, assistida pelo principal narrador da história de Ballester. Essa é a
única parte que apresenta uma franca comicidade, que fica a cargo do Comendador –
Leporello é eventualmente irônico, mas nunca cômico. No tradicional jantar, Don Juan
é morto pelo Comendador, que, no entanto, jamais poderia ser o instrumento da justiça
divina. Em primeiro lugar, porque o morto era um hipócrita e um pecador contumaz,
castigado com o Inferno; em segundo lugar, porque Don Juan, apesar de continuar a
exigir uma resposta de Deus, já havia sido abandonado pelo Céu. Interessados por ele
apenas os demônios, que haviam comparecido ao jantar, disfarçados de músicos. Esses,
se ficasse demonstrada a predestinação de Don Juan, cerrar-lhe-iam as portas do
Inferno. E não bastava que o pecador se sentisse livre: “afinal queria arrepender-se e
95
No original: “entre otras razones, porque se arrepentía todos los días, porque tenía que luchar cada día
contra el arrepentimiento”.
53
não pôde. Por quê? Nós o impedimos, por acaso? Está claro que em nenhum momento
colaboramos em sua condenação! Se o Outro lhe negou a Sua Graça…” (BALLESTER,
p. 349).
96
A principal questão colocada pelos demônios parece ter ficado inconclusa: Don
Juan era ou não livre? A antiga polêmica religiosa que fez nascer o nosso herói talvez
seja mesmo insolúvel, pois, se os demônios cerraram as portas do Inferno para o
obstinado, mas íntegro pecador, as do Céu não se abriram. O tema fundamental da obra
de Ballester parece ser, nesse sentido, a investigação sobre a possibilidade de
conciliação da liberdade humana (várias vezes afirmada no texto) com a perspectiva
religiosa, pelo menos a cristã. E, se assim for, a conclusão é negativa. Se Deus existe, os
Seus desígnios são inapreensíveis ao homem, que não pode abdicar da sua liberdade de
escolha, como compreendeu Don Juan ao jogar a moeda na espera de um sinal divino
sobre a decisão de matar ou não o Comendador. E o trágico herói de Ballester,
convertido a mito, descobre que, ao contrário especialmente do protagonista de Molina,
não terá um mais além onde prestar contas: “Morri como Don Juan, e o serei
eternamente. O lugar onde o seja, que importa? O inferno sou eu mesmo”
(BALLESTER, p. 350).
97
Apesar de não nos aventurarmos a descobrir na obra em
questão influência do existencialismo ateu de Jean-Paul Sartre, cujo pensamento era
inconfundivelmente marcado pela idéia de responsabilidade e liberdade humanas, não
podemos deixar de assinalar, nessa conclusão de Don Juan, o eco da célebre frase do
filósofo francês, embora invertida.
Carmen Becerra Suarez, considerando a obra de Ballester uma exceção,
concorda com as conclusões de Jean Massin e Jean Rousset segundo as quais o mito de
96
No original: “al final quería arrepentirse y no pudo. ¿Por qué? ¿Se lo hemos impedido, acaso? ¡Está
claro que en ningún momento hemos colaborado en su condenación! Si el Otro le ha negado Su Gracia...”
97
No original: “He muerto como Don Juan, y lo seré eternamente. El lugar donde lo sea, ¿qué más da? El
infierno soy yo mismo”.
54
Don Juan desapareceu ou ficou detido no século XIX. Em seu lugar teria surgido um
Tipo, conformando uma conduta chamada donjuanesca, ou donjuanismo. A
personagem, distanciada da dimensão religiosa, voltaria a aparecer em diversas obras,
em nada associadas ao tradicional argumento, onde “a relação com o tema reside
exclusivamente no fato de que todos compartilham uma grande capacidade de
sedução”.
98
É assim, por exemplo, o Don Juan do brasileiro João Gabriel de Lima, que
em 2000 publicou o romance O burlador de Sevilha, um dos finalistas do Prêmio José
Saramago de 2002. Nele não há duelos, assassinato, estátua vingadora, condenação ou
salvação. Muito menos qualquer vestígio de dimensão religiosa. Diríamos que há uma
plena transposição, como viria a propor Saramago, para o horizonte exclusivamente
humano. Simplesmente tudo o que está fora desse horizonte desaparece da trama de
Lima, que nos oferece um burlador moderno, vivendo numa Sevilha dos nossos dias
laicos e sexualmente livres.
Conforme Carmen Becerra Suárez, essa vertente foi especialmente aberta pelo
poema inacabado Don Juan, de Lord Byron, escrito entre 1818 e 1824. Exceto pelo
nome e pela qualidade de amante irresistível, dificilmente o herói seria identificado.
Homem fascinante, diante do qual todas as mulheres se rendem, esse Don Juan nem é
propriamente um sedutor, pois nunca toma a iniciativa. Na verdade, é um sedutor
passivo: não seduz, é seduzido, aspecto que não será ignorado por José Saramago.
98
No original: “la relación con el tema reside exclusivamente en que todos comparten una gran capacidad
de seducción”. SUÁREZ (1997), p. 46.
55
3 – José Saramago
No capítulo anterior, selecionamos e analisamos algumas obras sem cuidarmos
explicita e concretamente das suas relações intertextuais, atendo-nos a mencionar fontes
e influências. Tal procedimento pode merecer censura, especialmente por ser o objeto
do nosso estudo um tema prodigamente atualizado ao longo da historia da literatura e,
portanto, incontornavelmente marcado pela intertextualidade. Leve-se em conta,
contudo, que o objetivo principal do nosso trabalho é analisar a realização de Saramago,
tendo a primeira parte, apesar de longa, apenas a função de oferecer o quadro de uma
tradição, construída ao longo de quase quatro séculos, com a qual o dissoluto absolvido
pudesse dialogar.
Laurent Jenny, em A estratégia da forma, observa que o conceito de
intertextualidade legado por Julia Kristeva pressupõe uma noção de texto muito
abrangente, significando “sistema de signos”, incluídos os sistemas simbólicos sociais
ou inconscientes, o que tornaria excessivamente complexa e fluida a identificação do
fenômeno. Por isso, propõe uma definição mais restrita:
Contrariamente ao que escreve Julia Kristeva, a intertextualidade tomada em sentido estrito
não deixa de se prender com a crítica das fontes:a intertextualidade designa não uma soma
confusa e misteriosa de influências, mas o trabalho de transformação e assimilação de vários
textos, operado por um texto centralizador, que detém o comando do sentido.
99
Essa conceituação também oferece a vantagem de colocar em primeiro plano o
“texto centralizador”, no nosso caso o de Saramago, “que detém o comando do sentido”
– ou intertexto, na definição adotada pelo mesmo autor. Relacionada a essa perspectiva,
a noção de “ideologias intertextuais” terá uma importante função no presente trabalho.
Embora também estejamos interessados em estabelecer diálogos entre discursos,
e não só entre o texto de Saramago e um ou outro dos seus antecessores, seguiremos,
99
JENNY (1979), p. 14.
56
sempre que possível, o procedimento proposto por Laurent Jenny, também decorrente
da sua definição de intertextualidade: “conseguir uma aproximação simultaneamente
mais ingênua e mais concreta, que não esquecesse o objeto-texto na sua
materialidade.”
100
Para isso, ressaltaremos, ao longo das próximas páginas, alguns dos
processos através dos quais, segundo Jenny, a intertextualidade opera.
Essa “aproximação simultaneamente mais ingênua e mais concreta” é necessária
para que possamos superar a dificuldade imposta, paradoxalmente, pela genérica
evidência do fenômeno intertextual entre obras que se constituem em diferentes versões
de uma mesma história. Por isso, teremos que olhar um pouco mais de perto o texto de
Saramago, não para surpreender relações insuspeitadas ou apenas suspeitadas – o que,
talvez, fosse mais instigante – mas para tentar oferecer respostas a questões como estas,
formuladas por Jenny: “como se opera a assimilação, por um texto, de enunciados pré-
existentes? Em que relação estão esses enunciados com o seu estado primeiro?”
101
A assertiva de Laurent Jenny de que a virgindade por parte do descodificador de
qualquer obra literária é inconcebível torna-se ainda mais pertinente em se tratando de
“uma história afinal arquiconhecida”, como diz da sua o narrador do Evangelho
segundo Jesus Cristo (p. 103). Embora a história de Don Giovanni não seja tão
conhecida quanto a de Jesus, ela o é suficientemente para “fazer estalar a linearidade do
texto”
102
, modo de leitura característico da intertextualidade, que, ao suscitar
referências paradigmáticas, semeia “o texto de bifurcações que lhe abrem, aos poucos, o
espaço semântico.”
103
E outro caminho, mais abrangente, a ser percorrido por esta
dissertação é o de iluminar tais bifurcações, de modo a enriquecer a nossa atribuição de
sentido.
100
Ibidem, p. 31.
101
Ibidem, p. 30.
102
Ibidem, p. 21.
103
Ibidem, p. 21.
57
Ressalte-se que o fato de Laurent Jenny referir-se exclusivamente a narrativas
(todos os exemplos do artigo aqui utilizado são de textos desse gênero) não é impeditivo
e nem poderia ser, porque a intertextualidade não é uma prerrogativa exclusiva da
narrativa.
3.1 – O universo ficcional de José Saramago
Se a produção literária de todos os tempos opera sobre textos anteriores e se os
textos sobre Don Juan são determinados por essa característica, uma das mais
significativas marcas da chamada pós-modernidade é a de reivindicar essa operação. É
bem verdade que a cultura renascentista e, durante muito tempo, parte considerável da
literatura francesa, por exemplo, produziram obras em que o diálogo com autores e
textos anteriores era um pressuposto. Porém, observa Teresa Cristina Cerdeira:
Se a intertextualidade não é apanágio da pós-modernidade, é entretanto aí que a ousadia da
apropriação parece ganhar corpo e o diálogo intertextual ultrapassar o eco das referências
intelectuais que justificam o reconhecimento de uma cultura humanística, para se transformar
no centro de interesse da ficção, roubo salutar de uma liberdade que ousa deslocar seus mitos
pertubadores ...
104
De forma semelhante, Linda Hutcheon, ao tratar do conceito pós-moderno de
“presença do passado”, esclarece: “Não é um retorno nostálgico; é uma reavaliação
crítica, um diálogo irônico com o passado da arte e da sociedade”.
105
Essa definição
ajusta-se perfeitamente à escrita de Saramago, cujo processo de apropriação textual é
geralmente paródico, no sentido amplo de introduzir novos e desviantes significados aos
textos convocados. Como faremos amiúde, deixemos o próprio escritor oferecer um
pouco do seu processo criativo, agora através do narrador de História do cerco de
Lisboa:
104
CERDEIRA (2000), p. 226.
105
HUTCHEON (1991), p. 20.
58
[...] os livros estão aqui, como uma galáxia pulsante, e as palavras, dentro deles, são outra
poeira cósmica flutuando, à espera do olhar que as irá fixar num sentido ou nelas procurará o
sentido novo, porque assim como vão variando as explicações do universo, também a
sentença que antes parecera imutável para todo o sempre oferece subitamente outra
interpretação, a possibilidade duma contradição latente, a evidência do seu erro próprio.
(HCL, p. 24)
Estamos em pleno campo da intertextualidade. A escrita de Saramago é uma
máquina pertubadora que perscruta a “contradição latente” de uma sentença, de um
texto, bem como do discurso que os compromete, desestabilizando os sentidos que se
queriam imutáveis. A operação insinuada pelo narrador de História do cerco de Lisboa
pressupõe uma característica do processo intertextual, apontada por Laurent Jenny, a
reativação do sentido. Parece, inclusive, que quanto mais enraizado estiver o sentido e
mais cristalizada a forma, maior ainda é o interesse do escritor, que procede
constantemente na forma anunciada pelo protagonista do mesmo romance, o ousado
revisor Raimundo Silva: “Nanja por isso, os lugares-comuns, as frases feitas, os
bordões, os narizes-de-cera, as sentenças de almanaque, os rifões e provérbios, tudo
pode aparecer como novidade, a questão está só em saber manejar adequadamente as
palavras que estejam antes e depois ...” (HCL, p. 11).
Se a escrita de Saramago é uma máquina pertubadora, a ironia é a sua arma mais
característica, acentuando a dimensão crítica subjacente à apropriação paródica. Sem
temer a denúncia direta e indignada e o tom emocionado, como teremos a oportunidade
de constatar, é especialmente pela retomada irônica de textos e discursos que Saramago
lhes expõe a matriz ideológica, confronta e desestabiliza as verdades instituídas ou
denuncia as diversas formas de opressão. Além de textos literários, entre os quais se
destacam os de Camões e de Fernando Pessoa
106
, as fontes principais da apropriação
106
Além de seus poemas freqüentarem quase toda a produção ficcional de Saramago, os dois maiores
poetas da literatura portuguesa são transformados em protagonistas de duas obras do Prêmio Nobel de
Literatura: a peça teatral Que farei com este livro, na qual Camões peleja para publicar o seu poema
épico, e o romance O ano da morte de Ricardo Reis, onde o heterônimo volta a Portugal no conturbado
ano de 1936 e lá se encontra com o seu recentemente falecido criador.
59
saramaguiana estão situadas nas áreas da história e da religião, dois temas que, como
veremos a seguir, são os alvos especiais da atenção do escritor.
3.1.1 – Relendo a História
Já em Manual de pintura e caligrafia, um pintor supostamente medíocre, em
seus primeiros exercícios de uma nova forma de expressão, antecipa uma relação com a
História da qual o consagrado escritor nunca se afastará:
Tudo, provavelmente, são ficções: a vida autêntica de Adriano é devagar esmagada, triturada,
desfeita, e recomposta com outra figura, na ficção de Marguerite Yourcenar. Podemos
apostar, ganhando, que de Adriano ainda alguma coisa falta, quem sabe se apenas porque
nunca ocorreu a Defoe nem a Rousseau escreverem eles a sua biografia daquele imperador
romano que em Itálica nasceu, mas que a ficção oficial quer que tenha nascido em Roma. Se
coisas assim a ficção oficial usa fazer, que coisas tão mais extraordinárias não teria feito a
ficção particular? (MPC, p. 97)
“Que coisas tão mais extraordinárias não teria feito a ficção particular?” Obras
como Levantado do Chão, O ano da morte de Ricardo Reis e Memorial do Convento, os
três romances analisados por Teresa Cristina Cerdeira da Silva em seu livro José
Saramago entre a história e a ficção: uma saga de portugueses. Ancorada
especialmente nos postulados da Nova História, a autora ressalta a consciência da
moderna historiografia de que as lacunas existentes nas fontes e documentos históricos,
aliadas à carga ideológica do pesquisador e do seu tempo, afastam a ilusão de
recuperação integral do passado e a da imparcialidade e objetividade do discurso
histórico.
107
Postas em epígrafe na introdução do livro de Cerdeira, as palavras de
Georges Duby parecem corroborar a ainda insegura visão de H., protagonista de Manual
de pintura e caligrafia: “A história é acima de tudo uma arte, uma arte essencialmente
literária.”
108
107
Cf. SILVA (1989), p. 24-5
108
DUBY e LARDREAU (1980) apud SILVA (1989), p. 23.
60
A professora Teresa Cristina Cerdeira demonstra, então, que Saramago faz
muito mais que inserir personagens fictícias em contextos históricos reais; ele não
apenas utiliza fatos históricos, como o faz por meio “de um discurso que, em sua
execução e propósitos, se revela organizador da História por intermédio do ficcional.”
109
Mas, como dirá o narrador de História do cerco de Lisboa, para compor uma história é
necessário juntar-lhe “uma parte suficiente de imaginação para a tornar mais real e
autêntica” (HCL, p. 277). E assim faz Saramago ao investigar o passado e reescrever a
História, não de Portugal, mas dos portugueses
110
, onde reis e rainhas cedem lugar
àqueles que são os verdadeiros protagonistas da história nacional. Esse projeto está
expressivamente resumido nas seguintes palavras do narrador de Memorial do
Convento:
[...] por via destes e outros tolos orgulhos é que se vai disseminando o ludíbrio geral, com
suas formas nacionais e particulares, como esta de afirmar nos compêndios e histórias, Deve-
se a construção do convento de Mafra ao rei D. João V, por um voto que fez se lhe nascesse
um filho, vão aqui seiscentos homens que não fizeram filho nenhum à rainha e eles é que
pagam o voto, que se lixam, com perdão da anacrónica voz. (MC, p. 248)
Se, como diz H. em sua incipiente caligrafia, “Tudo é autobiografia”(MPC, p.
169), é lícito supormos uma evolução das reflexões de Saramago sobre a relação da
ficção com a História, o que era previsível depois de tê-las aplicado ao revisitar, nos
romances analisados por Cerdeira, três “momentos da história portuguesa – a revolução
agrária do Alentejo, a Inquisição e a construção de um convento, ou o fascismo dos
anos 30 da Europa”.
111
Lembrados do “Tudo, provavelmente, são ficções” de H.,
ouvimos ecoar as de Georges Duby nas já firmes palavras do revisor Raimundo Silva,
no diálogo com o autor de uma ainda não emendada história sobre o cerco de Lisboa:
109
Ibidem, p. 26.
110
Cf. SILVA (1989), p. 268. Uma das epígrafes que abrem o livro de Cerdeira é uma frase pronunciada
por Saramago no auditório da Faculdade de Letras da UFRJ em 1984: “É preciso deixar de fazer História
de Portugal para se começar a fazer a história dos portugueses.”
111
CERDEIRA (2000), p. 203.
61
“tudo quanto não for vida é literatura, A história também, A história sobretudo, sem
querer ofender” (HCL, p. 12).
Nesse romance, além de demonstrar ser mesmo um profundo estudioso da
História, Saramago nos oferece um pouco mais do seu modus operandi, através do
trabalho do revisor, que escreve a sua versão sobre o cerco de Lisboa, depois de
emendar um “não” onde antes havia um “sim” no texto do historiador. Desse modo
podemos acompanhar a minuciosa pesquisa de fontes e a descoberta da sua
insuficiência, como esta: “Pensarmos nós que nunca nunca viremos a saber que palavras
disse realmente D. Afonso Henriques aos cruzados” (HCL, p. 41), apesar de tê-las
registrado um vero Osberno, de quem o fictício historiador as traduziu. Mas, como já
havia dito o narrador de A jangada de pedra, “querendo apurar o que ambiciosamente
denominamos rigor dos fatos, (...) à falta de convictas certezas faz-se de conta” (JP, p.
34-5), como na ficção.
É verdade que essa nova história não se enquadra perfeitamente na perspectiva
proposta pela professora Teresa Cristina Cerdeira, uma vez que parte da rasura a uma
convicta certeza histórica, a de que os cruzados, sim, ajudaram a tomar Lisboa aos
mouros.
112
Mas, assim como o rigor dos fatos exigiu que se esclarecesse não se dever “a
construção do convento de Mafra ao rei D. João V”, também era necessário mais uma
vez contestar o discurso oficial: a formação de Portugal não foi obra apenas de D.
Afonso Henriques e outros nobres, cruzados ou não. Lá estiveram assoldadados da
infantaria popular, como Mogueime, e barregãs de nobres cavaleiros, como Ouroana,
agora incorporados à saga de portugueses.
112
Referimo-nos à proposta de leitura constante do livro José Saramago entre a história e a ficção: uma
saga de portugueses. No ensaio intitulado Na crise do histórico, a aura da História, Cerdeira afirma que
o romance História do cerco de Lisboa está entre os textos de Saramago que “voluntariamente optavam
por radicalizar a ficção”, no caso, “pela recusa consciente da verdade histórica”. CERDEIRA (2000), p.
203.
62
Faltava, talvez, ir às origens de Portugal e lá na semente instilar a seiva de
homens que reivindicam o justo tratamento, como aquele de serem pagos pela tabela
dos cruzados, mesmo diante da ameaça do rei:
Ora, foi bonita coisa de se ver, provavelmente só possível naqueles inocentes tempos, como
se lhe alteou ainda mais a figura a Mogueime e como lhe veio clara a voz para dizer, Se vossa
alteza nos mandar cortar a cabeça e os pés, será todo o vosso exército que ficará sem pés nem
cabeça. (HCL, p. 312-3)
Já naqueles inocentes tempos, mas não só naqueles, houve um dia “levantado e
principal” (LC, p. 366). E, ao contrário do que disse el-rei antes de ceder, não foi um
mal começo, pois, como retrucou Mogueime, “este país em princípio de vida só
começará mal se não começar justo” (HCL, p. 313).
Assim como a professora Cerdeira, Rosemary Conceição dos Santos ressalta que
Saramago relê o passado com os olhos voltados para o presente, “através do olho,
magicamente crítico, da atualidade”
113
, acrescentando consistir o seu projeto literário
“em fornecer uma visão do passado sob uma nova perspectiva, iluminada por um
realismo crítico e social, que se fundamenta na ideologia marxista”.
114
Mas, se os olhos
de Saramago estão voltados para o presente, o novo e generoso princípio de Portugal
projeta-se para o futuro de forma exemplar, fundamentado num suporte ideológico cujas
raízes – para além do marxismo – estão francamente expostas nesta veemente
passagem: “...o que era ali motor das vontades e gerador de alegrias resultava
infinitamente mais do contentamento que no espírito sempre fará nascer uma justiça que
seja igual para todos e que de cada um faça destinatário escolhido de um integral e
incorruptível direito” (HCL, p. 315).
Registre-se que as reflexões de Saramago sobre a História não assumem apenas
a forma de releitura do passado e estão pontualmente presentes em grande parte da sua
ficção, mesmo em romances tão alheios ao tema como, por exemplo, O homem
113
SANTOS (2004), p. 20.
114
Ibidem, p. 23.
63
duplicado, no qual o narrador aponta a limitação e a parcialidade da matéria que o
protagonista ensina a seus alunos. Tertuliano Máximo Afonso é professor de História.
115
3.1.2 – Confrontando a religião
Assim como as reflexões de Saramago sobre a História estão presentes em
várias de suas obras, também está dispersamente manifestado o seu interesse por
questões religiosas, as quais assumem o primeiro plano e se constituem no próprio tema
em A segunda vida de Francisco de Assis, O evangelho segundo Jesus Cristo e In
nomine Dei, como bem registrou Beatriz de Mendonça Lima em sua tese de
doutoramento.
116
Embora, em seus textos, variadas sejam as intenções e muitas as situações
capazes de provocar a convocação do tema religioso, Saramago já com aquele
peremptório “Não há portanto Deus”, de Manual de pintura e caligrafia (p. 106),
anunciava que investiria contra a própria idéia de Deus. Apesar de H. complementar a
sua sentença afirmando que, embora fossem muitos os modos de o saber, o seu lhe
bastava, o escritor continuará investigando esses modos de saber, como é o caso do
narrador de Levantado do chão ao dizer, diante de uma criança faminta, que “a prova de
que Deus não existe é não ter feito os homens carneiros, para comerem as ervas dos
valados, ou porcos, para a bolota” (LC, p. 79).
Contudo, a par dessa investida mais geral, a principal referência, ou alvo, do
escritor português é sem dúvida o cristianismo, que, conforme observa Beatriz de
115
Diz o narrador: “A História que Tertuliano Máximo Afonso tem a missão de ensinar é como um bonsai
(...), uma miniatura infantil da gigantesca árvore dos lugares e do tempo, e de quanto neles vai
sucedendo”. HD, p. 15.
116
Lima não menciona Terra do Pecado “em consideração ao autor, que durante muitos anos se recusou a
admitir em sua bibliografia esse romance de juventude.” Lima (2003), p.18. Também assim o fazemos.
64
Mendonça Lima, é a base da cultura ocidental e, portanto, determinante para a formação
da nossa mentalidade. A passagem de Cadernos de Lanzarote II, transcrita pela autora
da tese, para ressaltar o reconhecimento de tal circunstância por Saramago, não difere,
é, antes, aprofundada literariamente nestas palavras de H.:
[...] se no Monte das Oliveiras tivesse Jesus morrido daquela hemorragia que benignamente e
não fatalmente o acometeu, haveria depois cristianismo? Não havendo, a história teria sido
outra, a história dos homens e das suas obras: tanta gente que não se teria emparedado em
celas, tanta gente que teria morrido de diferente morte, não nas santas guerras nem nas
fogueiras com que a Inquisição respondia a si própria, ela relapsa, ela herética, ela cismática.
Quanto a estas tentativas de autobiografia em forma de narrativa de viagem e de capítulo,
estou que haveriam de ser diferentes também. (MPC, p. 154)
A passagem acima já aponta para um outro aspecto ressaltado por Lima e que
nos importa destacar: a preocupação de natureza ética que está na raiz do interesse de
Saramago pelo tema religioso, principalmente cristão. E essa preocupação tanto se
refere à alienação advinda da própria crença na existência de Deus, que reduz o espaço
da liberdade e da responsabilidade humanas, quanto à manipulação de tal crença a fim
de submeter os homens aos interesses dominantes. Afinal, como revela o cardeal de As
intermitências da morte, “a vantagem da igreja é que, embora às vezes o não pareça, ao
gerir o que está no alto, governa o que está em baixo. (...) a nossa outra especialidade,
além da balística, tem sido neutralizar, pela fé, o espírito curioso” (IM, p. 19-20), que é
o mesmo que dizer espírito contestador. E imediatamente lembramos do padre
Agamedes, de Levantado do chão.
Além de ser um tópico recorrente em sua ficção, Saramago nos expõe, de forma
mais sistemática, as engrenagens pelas quais os intermediários de Deus, em conluio
com os representantes do poder secular, submetem a vontade dos homens em romances
como Levantado do chão, Memorial do convento e O ano da morte de Ricardo Reis,
sem esquecer a peça teatral In nomine Dei, onde o auto-proclamado representante do
Senhor, Jan Van Leiden, assume diretamente o poder político da cidade de Münster,
com conseqüências devastadoras. Também na História do cerco de Lisboa vemos, sob
65
um outro enfoque, como a cristianíssima missão dos cruzados mal esconde o desejo de
saque e de conquista territorial. Já em O evangelho segundo Jesus Cristo, Saramago
está mais preocupado em investigar a submissão ou a alienação da vontade humana à
onipotência de Deus, mesmo que sob uma forma determinada, como a que assumiu com
o cristianismo. E a insubmissão de Jesus nos convoca a “pensar em como teriam sido os
dois últimos milênios se a humanidade não tivesse assimilado à sua história, como fatos
inquestionáveis, o martírio e a ressurreição do filho de Deus”
117
, como propõe – com
outras, mas não incompatíveis premissas – Beatriz de Mendonça Lima.
Mas o que nos importa sobretudo averiguar é a realização daquilo que parece ser
a proposta do novo evangelista, inscrita já nas primeiras páginas: “...tudo isto são coisas
da terra, que vão ficar na terra, e delas se faz a única história possível” (EJC, p. 13). Ao
identificar em todos os romances anteriores a O evangelho segundo Jesus Cristo a
manifestação do interesse de Saramago pelas questões religiosas, Beatriz de Mendonça
Lima destaca que já em Levantado do Chão o escritor se apropriava do texto bíblico, de
forma irônica e sistemática, incorporando-o ao contexto histórico da narrativa e
projetando-o na saga dos camponeses alentejanos, em cuja trajetória Teresa Cristina
Cerdeira da Silva, orientadora da tese de Lima, já havia identificado “uma travessia
modelar que se inicia no Gênesis (capítulo 1) e termina na Ressurreição dos mortos (...)
caminhada épica dos levantados do chão”
118
, passando por referências intertextuais ao
dilúvio, à Via Crucis, à Santíssima Trindade e ao nascimento do Cristo-menina, Maria
Adelaide Espada.
119
117
LIMA (2003), p. 199.
118
CERDEIRA (2000), p. 242.
119
Cf. CERDEIRA (2000), p. 242-3. Beatriz de Mendonça Lima lembra que em Memorial do Convento o
dogma da Santíssima Trindade foi transformado em “trindade terrestre”, formada pelo padre Bartolomeu
Gusmão, Baltasar e Blimunda. Em Levantado do Chão forma ironicamente a Santíssima Trindade a
aliança entre Latifúndio, Estado e Igreja.
66
Em O evangelho segundo Jesus Cristo, é a vez de a vida de Cristo ser contada
doutra maneira. E estamos diante da mesma estratégia identificada por Cerdeira, pois,
também aqui, o autor preenche as lacunas das fontes para contar uma outra história
possível dentro dos marcos legados pela tradição cristã. Também aqui o narrador
recontextualiza, parodia e subverte o discurso canônico, o texto bíblico e as diversas
vozes que se juntaram em torno dessa tradição.
Cerdeira, agora em “O quinto evangelista ou da tigela ao graal”, propõe que a
exclamação do narrador de Levantado do Chão “Glória ao homem na terra” (LC, p.
300) bem poderia servir de epígrafe a esse novo evangelho. E assim é, pois que se trata
da trajetória de um Jesus que assumiu a sua humanidade, em toda a sua glória, dor e
responsabilidade. Até porque, por outro lado, torna-se impossível glorificar nas alturas
um Deus, cujo projeto ambicioso de poder, segundo o narrador (referindo-se à matança
das crianças de Belém), padece de um pecado original: “O remorso de Deus e o remorso
de José eram um só remorso, e se naqueles antigos tempos já se dizia, Deus não dorme,
hoje estamos em boas condições de saber porquê, Não dorme porque cometeu uma falta
que nem a homem é perdoável” (EJC, p. 107).
A visão crítica de Saramago atinge contornos dramáticos especialmente no
diálogo da barca, no qual são descritos, ao longo de várias páginas, os intermináveis
sofrimentos e mortes impostos pelo cristianismo – já sucintamente lembrados por H.,
em citação anterior. Tantos eram os horrores que estavam por vir – como historicamente
vieram –, que o próprio Diabo, também presente ao debate entre Deus e Jesus, se
compadeceu dos homens e propôs submeter-se humildemente à autoridade divina,
pondo, desse modo, fim ao Mal e à necessidade de sacrificar Jesus, livrando o mundo de
suas conseqüências. Se o Diabo foi capaz de um sentimento tão humano, talvez por
entre os homens andar como Pastor, Deus permaneceu insensível e, necessitando do
67
Mal para existir, perseverou em sua ambição de criar o cristianismo para alargar o seu
império no mundo.
A boa nova cristã é virada do avesso. A crucificação de Jesus – “um revulsivo
forte, qualquer coisa capaz de chocar as sensibilidades e arrebatar os sentimentos” (EJC,
p. 314) – não se destina a redimir os homens e a estabelecer uma nova aliança, mas a
impor “uma história interminável de ferro e de sangue, de fogo e de cinzas, um mar
infinito de sofrimento e de lágrimas” (EJC, p. 319). É a partir daí que Jesus começa a
elaborar o seu próprio projeto, alicerçado na solidariedade aprendida na sua convivência
com os homens. E também com o Diabo, transformado em Pastor. Subvertida a
simbologia cristã (“o Senhor é o meu pastor”), é com ele que Jesus aprende a defender a
vida, mesmo que seja a de uma ovelha do seu rebanho.
Outra subversão operada por esse novo evangelho é a da consagração do corpo,
que preside a própria concepção de Jesus: “... a carne dele penetrou a carne dela, criadas
uma e outra para isso mesmo (...) a semente sagrada de José se derramou no sagrado
interior de Maria, sagrados ambos por serem a fonte e a taça da vida” (EJC, p. 19). É
aqui que, para os objetivos desta dissertação, entra um dos mais importantes aspectos a
destacar do percurso de Jesus, que Beatriz de Mendonça Lima leu nos marcos de um
romance de aprendizagem: o seu encontro com Maria de Magdala, uma prostituta que
no “romance de Saramago herdou alguns dos traços das diferentes personagens que se
reuniram para formar o estereótipo da ‘Madalena penitente’”.
120
Foi com ela que Jesus “conheceu o amor da carne e nele se reconheceu homem”
(EJC, p. 242), ao final de um longo processo de superação de uma tradição – judaica e
posteriormente cristã – segundo a qual a carne é impura e o sexo a sede de todos os
120
LIMA (2003), p. 170.
68
males. Já em seus anos de convivência com Pastor, Jesus não conseguira rebater a
irresistível argumentação do seu primeiro mestre:
Quem criou o teu corpo, Deus foi quem me criou, Tal como é e com tudo o que tem, Sim, Há
alguma parte do teu corpo que tenha sido criada pelo Diabo, Não, não, o corpo é obra de
Deus, Então todas as partes do teu corpo são iguais perante Deus, Sim, Poderia Deus rejeitar
como obra não sua, por exemplo, o que tens entre as pernas ... (EJC, p. 195)
Jesus ainda resistiria, tempos depois, ao imperioso desejo que lhe fez inchar o “que
tinha entre as pernas” (EJC, p. 224), diante da nudez feminina, às margens do rio
Jordão. É, enfim, em Magdala que Jesus encontra a sua mestra definitiva: “Aprende o
meu corpo (...) Aprende o teu corpo, e ele aí o tinha, seu corpo, tenso, duro, erecto, e
sobre ele estava, nua e magnífica, Maria de Magdala” (EJC, p. 235). Como em outros
romances de Saramago, o erotismo, além de ser uma forma de aprendizagem, é o
indutor da plena comunhão amorosa, para cuja experiência o homem é conduzido pelo
franco e generoso amor feminino. A ele, mais uma vez, é concedido o poder
transformador, agora o de fazer Jesus se reconhecer homem.
O novo evangelista não podia negar a instância divina para colocar nas mãos dos
homens o seu próprio destino. Mas alienar a um Deus inexistente a responsabilidade
pela vida na terra não é pior do que aliená-la a um Deus pueril e cruel. A salvação, de
qualquer forma, não existe fora do próprio homem. Como em todos os evangelhos, a
vida de Jesus é aqui, mais uma vez, exemplar. Só que, claro, Saramago inverte a
mensagem cristã, deslocando “do céu para a terra o espaço da construção da
humanidade”.
121
Jesus, interessado mais em aplacar o sofrimento do que pregar o
arrependimento, vai gradativamente aprendendo com a companheira a não abdicar da
sua, no caso limitada, liberdade. Foi assim quando, por compaixão, decidiu não
ressuscitar Lázaro, pois “Ninguém na vida teve tantos pecados que mereça morrer duas
vezes” (EJC, p. 360). Dolorosamente dividido entre “o serviço de Deus e o serviço do
121
CERDEIRA (2000), p. 237.
69
povo” (EJC, p. 361), que raras vezes conseguiu conciliar, Jesus acaba por optar pela
solidariedade humana e apresenta aos discípulos o seu próprio projeto: deixar-se pregar
à cruz como um simples homem “que tivesse proclamado a si mesmo rei dos Judeus,
que andasse a levantar o povo para derrubar Herodes do trono e expulsar da terra os
romanos” (EJC, p. 367). Se o projeto de Deus representa a condenação dos homens, a
esperança de redenção nasce da autonomia reclamada por Jesus, que, mesmo sabendo
não poder ir contra a vontade divina, afirma: “mas o meu dever é tentar” (EJC, p. 367).
Jesus é agora exemplo de integral humanização, incansavelmente reclamada por
Saramago, não apenas nesse Evangelho.
Apontado pelo escritor como “a viga mestra do livro”
122
, o tema da culpa é
objeto especial das reflexões tanto do narrador do Evangelho segundo Jesus Cristo
quanto de Beatriz de Mendonça Lima, a partir da omissão de José no episódio da
matança dos inocentes, quando, preocupado apenas em salvar seu filho, não denunciou
a ordem de Herodes para matar as crianças de Belém. Lima contrapõe as trajetórias de
José e de Jesus, herdeiro da culpa e do conseqüente pesadelo do pai.
123
A postura de
José está condensada nesta passagem da tese:
Além da omissão indesculpável – que aliás o condena para sempre ao mais que terrível peso
da culpa – o erro de José foi ainda o de continuar preso à idéia de obediência a um poder
transcendente. Se a culpa resgata a sua dignidade, falta-lhe ainda o salto libertador. Porque
para se assumir como sujeito da história, teria de aprender a agir de acordo com a sua
consciência, o que equivaleria a dar o passo que faltava para sair do limiar em que se
encontrava paralisado e buscar um cominho para além da palavra sagrada e dos ensinamentos
recebidos.
124
122
SARAMAGO apud LIMA (2003), p. 116.
123
José foi, a partir da sua omissão na matança dos inocentes, atormentado o resto da vida por um sonho
em que ia junto com os soldados matar o seu filho. Jesus herdou esse sonho, no qual a sua perspectiva era
mesmo o da vítima.
124
LIMA (2003), p. 122.
70
José ainda tentaria resgatar a sua culpa, mas seria tarde. Já a postura de Jesus
constituiria o “exemplo de uma culpa tornada produtiva, pois é geradora de uma ação
sobre a História, de acordo com um projeto solidário e revolucionário”.
125
O modo como o tema da culpa é abordado é uma outra radical inversão operada
por esse romance relativamente à doutrina cristã, em cuja raiz está “o humilhante
sentimento de culpa que torna obrigatórios o arrependimento e o perdão”.
126
É isso que
Deus diz, a certa altura do diálogo da barca, quando expõe seu plano para atrair os
futuros fiéis da sua nova igreja. Inquirido por Jesus quanto ao modo de fazê-lo, Deus
revela como a difusão da noção de pecado, forma assumida pela culpa na tradição
judaico-cristã, será um dos pilares da nova religião: “Todo homem, respondeu Deus, em
tom de quem dá lição, seja ele quem for, esteja onde estiver, faça o que fizer, é um
pecador” (EJC, p. 314). E para garantir a introjeção do sentimento de culpa “há que
deixar as pessoas inquietas, duvidosas, levá-las a pensar que se não conseguem
compreender, a culpa é só delas” (ECJ, p. 314). Aplainado o caminho, lança-se, então, a
isca: “...a esses homens não terás de dizer mais do que Arrependei-vos Arrependei-vos
Arrependei-vos” (EJC, p. 314).
Jesus, porém, não exige o arrependimento dos homens que ele curava, pois,
conforme suas palavras, “ficar curado era como nascer de novo sem haver morrido,
quem nasce não tem pecados seus, não tem que se arrepender do que não fez”. (EJC, p.
362). Porque aqui a culpa não é conseqüência de um pecado original ou de uma
impureza congênita dos homens, muito mais inocentes, aliás, do que Deus. Ela nasce
das ações e omissões dos homens em relação à vida, especialmente dos seus
125
Ibidem, p. 122. Deve-se registrar que os pesadelos de Jesus cessaram depois do seu primeiro encontro
com Maria de Magdala. Pode-se, então, interpretar que Jesus se beneficiou da solidariedade e do amor da
futura companheira, para quem, sem poder segurar as grimas, contara o pesadelo e a sua origem. Essa
interpretação torna-se mais pertinente se lembrarmos que Jesus dissera ter-se sentido quase a renascer em
Magdala.
126
Ibidem, p. 201.
71
semelhantes, estando também nas humanas mãos a possibilidade de superá-la, de
corrigir os seus próprios erros.
A última frase pronunciada por Jesus, antes de morrer na cruz (como filho de
Deus e não como um revolucionário), é a síntese genial das inversões que tentamos
explicitar nos parágrafos anteriores; é a expressão precisa e concisa da perspectiva que
orientou esse novo evangelho: “Homens, perdoai-lhe, porque ele não sabe o que fez”
(EJC, p. 374).
Se, por ser a base da nossa formação ocidental, o cristianismo é o principal
objeto do interesse de Saramago, a visão crítica do escritor bem pode ser estendida a
outras religiões, como demonstra o narrador de História do cerco de Lisboa em relação
ao islamismo: “[...] Deus e Alá é tudo o mesmo, (...) os problemas sempre começam
quando entram em cena os intermediários de Deus, chamem-se eles Jesus ou Maomé,
para não falar de profetas e anunciadores menores” (HCL, p. 183-4). A crítica oblíqua,
presente nessa passagem, à mortandade que causam entre si cristãos e mouros revelar-
se-á inteira com a ilustração de um dos capítulos do “mar infinito de sofrimento e de
lágrimas” que Deus, no diálogo da barca, antecipou a Jesus:
[...] e foi então que, rompendo as últimas barreiras da dignidade e do recato, a fome se
mostrou na cidade em sua mais obscena expressão, que menor obscenidade é a exibição dos
comportamentos íntimos do corpo do que ver extinguir-se esse corpo à míngua de alimento
sob o indiferente e irónico olhar de deuses que, tendo deixado de guerrear uns contra os
outros por serem imortais, se distraem do aborrecimento eterno aplaudindo os que ganham e
os que perdem, uns porque mataram, outros porque morreram. Pela ordem inversa das idades,
apagavam-se as vidas como candeias exauridas, primeiro as crianças de colo ... (HCL, p. 316)
A intolerância religiosa, que não opõe apenas cristãos e muçulmanos, é o tema
de uma peça teatral de Saramago, na qual o autor expõe como, “em Münster, no século
XVI, como em tantos outros tempos e lugares, católicos e protestantes andaram a
trucidar-se uns aos outros em nome do mesmo Deus”. (ND, p. 9) In nomine Dei é
dedicada integralmente a essa outra veia da crítica de Saramago à religião, não única,
72
mas fecunda sementeira “da longa e, pelos vistos, irremediável história da intolerância
humana”. (ND, p. 9)
Analisadas algumas das características do universo criativo de Saramago,
tentaremos demonstrar a sua presença em Don Giovanni ou o dissoluto absolvido, peça
teatral constituída de um prólogo e de um único ato, dividido em seis cenas. Uma das
ausências mais sentidas é a do narrador, instância que, nos romances de Saramago,
comanda a maioria dos processos de apropriação discursiva e textual.
127
Uma
conseqüência imediata, por exemplo, é a quase total inexistência da metalinguagem na
obra que nos ocupa, ferramenta freqüente no escritor, consciente da sua produção.
3.2 – Don Giovanni ou o dissoluto absolvido: a liberdade humana
José Saramago não poderia mesmo resistir ao convite de Azio Corghi para
escrever uma nova versão de Don Giovanni, destinada a servir de fundamento
dramático a uma nova composição operística do músico italiano, porque duas das suas
grandes tentações o convocavam: revisitar um texto consagrado da tradição literária e
confrontar o discurso religioso.
Embora pretendamos estabelecer um diálogo entre a versão saramaguiana e as
dos demais autores estudados na primeira parte desta dissertação, a fonte direta da
releitura do escritor português é, para além do libreto de Lorenzo da Ponte, a ópera
resultante da composição de Mozart. Trata-se da primeira experiência de Saramago em
recontar a história de uma personagem literária, isso se desconsiderarmos a afirmação
do revisor Raimundo Silva, já evocada anteriormente, de que “tudo quanto não for vida
é literatura”. Porque aí teríamos que admitir Jesus Cristo como uma personagem
127
Cf. CERDEIRA (2000), p. 231.
73
literária e teríamos um rigoroso precedente em O evangelho segundo Jesus Cristo,
romance cuja composição segue uma orientação a que se assemelha, em alguns
aspectos, à de Don Giovanni. E o principal ponto de contato entre essas duas obras é
exatamente o tratamento da questão religiosa, como veremos.
O tema, contudo, era pouco convidativo para o interesse de Saramago pela
História. Aliás, excetuando a referência a uma certa Burgos, retirada do texto de
Lorenzo da Ponte
128
, não há na peça teatral nenhuma identificação do espaço onde
decorre a ação, da mesma forma que na ópera célebre e no drama de Molière. Também
não há marcas temporais precisas, embora a presença de certos elementos tradicionais,
como o duelo com espadas, remeta a ação para o tempo em que viveram os principais
antecessores do dissoluto absolvido. A presença de referências mais modernas pode ser
integrada ao que a professora Teresa Cristina Cerdeira chama enunciação profética em
relação ao tempo do enunciado, constituindo-se em um importante veículo de
comicidade.
Não é incomum, é bem verdade, a ausência de marcadores temporais e espaciais
na ficção de Saramago, como ocorre, por exemplo, em A segunda vida de Francisco de
Assis, bem como em As intermitências da morte e nos dois Ensaios, obras em que o
autor busca expor as misérias e a grandeza da condição humana, em qualquer tempo ou
lugar. Mas aqui essa circunstância decorre principalmente do fato de o pré-texto direto
da peça ser a ópera de Mozart e Lorenzo da Ponte. Contudo, se não é uma conseqüência
da condição mítica da personagem, a ausência de marcadores temporais e espaciais
pode bem representar, desde Molière, o reconhecimento (ou a reivindicação) da
universalidade de Don Giovanni. Sua origem espanhola não se pode identificar no texto
do dramaturgo francês e, no de Lorenzo da Ponte, está consignada apenas no número
128
Exatamente nas mesmas circunstâncias do libreto de Da Ponte, essa referência é feita por Dona Elvira
ao recordar os prazeres que tiveram em sua cama ela e Don Giovanni. Por ser uma recordação de outro
lugar, essa referência não ajuda a situar a ação da peça.
74
discrepante de conquistas amorosas do herói naquelas terras, conforme anotado no
famoso catálogo.
Mas, como dizíamos no início, a empresa de reescrever a história de Don
Giovanni tentava Saramago. Também porque a música e a parceria com o compositor
italiano são caras ao escritor, conforme suas próprias palavras, dirigidas a Corghi: “Não
sei como lhe agradecer por tudo o que você fez (e continua a fazer), elevando a minha
literatura ao céu da música”.
129
Além de outras composições derivadas de textos do
escritor português, o músico italiano compôs as óperas Blimunda e Divara, inspiradas,
respectivamente, em Memorial do Convento e In nomine Dei.
130
Saramago, além disso,
não é indiferente à ópera. Em seus romances encontramos referências a esse universo,
como a convocação do caráter trágico dos heróis wagnerianos pelo narrador de A
jangada de pedra ao se referir aos galegos e portugueses que se recusavam a abandonar
a península a deriva. E a sua admiração suprema é mesmo Don Giovanni de Mozart,
conforme nos informa Saramago na apresentação do livro que contém a sua versão do
sedutor: “Se há uma ópera no mundo capaz de pôr-me de joelhos, rendido, submetido, é
esta” (p.14).
Quando Saramago, também na apresentação do seu livro, afirma a sua
resistência à proposta de Azio Corghi, aduz como razão o fato de tudo já ter sido dito
sobre o sedutor. Mas logo emenda: “Era certo que sempre havia pensado que Don
Giovanni não podia ser tão mau como o andavam a pintar desde Tirso de Molina” (p.
15). Todos esses motivos reunidos fizeram surgir Don Giovanni ou o dissoluto
absolvido, comprovando que na ficção saramaguiana tudo pode ser contado de outro
modo.
129
SEMINARA (2005), p. 93. No posfácio à edição da peça teatral de Saramago, Graziella Seminara
apresenta várias correspondências entre o escritor português e o compositor italiano.
130
Cf. SEMINARA (2005), p. 91-2.
75
Antes de entrarmos na análise do texto, façamos uma advertência. Dominique
Maigueneau chama a atenção para aquilo que ele denomina a dupla leitura da
enunciação teatral, ou seja, uma peça de teatro pode ser recepcionada pelo espectador da
encenação ou pelo leitor do texto, o que acarreta significativas diferenças na atribuição
de sentido. Quando se trata de uma ópera, então, essa circunstância é ainda mais
relevante, haja vista o protagonismo da partitura musical. Nesse sentido, quando
abordamos o libreto de Lorenzo da Ponte, ressaltamos que a ausência da música
limitava a nossa análise, uma vez que o significado pleno da ópera só podia ser
apreendido perfeitamente com a integração da composição de Mozart. E foi necessário
fazer essa observação porque a ópera setecentista – e não apenas o libreto – foi decisiva
para a história de Don Giovanni, influenciando, portanto, o nosso trabalho.
Embora seja agora outro o caso e devamos abordar o objeto desta dissertação
como um texto dramático autônomo, resta o fato de que a peça de Saramago foi escrita
com um objetivo específico: o de ser parte de uma obra a ser representada e cantada nos
palcos. Conforme revelam as correspondências eletrônicas trocadas entre os artistas,
inseridas no pósfácio de Graziella Seminara, o escritor foi construindo o seu texto em
estreita conexão com a composição musical, e vice-versa. Portanto, o sentido integral ou
pretendido e o efeito estético se ressentem, na leitura, da ausência daquela outra e
poderosa componente, como declara Saramago na apresentação do seu livro: “Faltará a
música, que é sempre o melhor de tudo” (p.16).
Como abordaremos quase exclusivamente a realização textual, deixemos
registrado que Azio Corghi utiliza em seu processo criativo técnicas típicas da pós-
modernidade, como a remissão a partituras consagradas, predominando, no caso, às da
ópera mozartiana.
131
Muitos efeitos perseguidos pelos dois artistas – para decifração ou
131
Cf. SEMINARA (2005), p. 99.
76
fruição da obra – só estarão plenamente acessíveis aos espectadores, de acordo, claro,
com o seu grau de conhecimento não apenas do pré-texto literário, mas também
musical.
3.2.1 – Epígrafe e prólogo: repetir para mudar
A epígrafe da obra, “nem tudo é o que parece”, confirma que Saramago foi
mesmo fisgado pelo seu pensamento de que “Don Giovanni não podia ser tão mau
como o andavam a pintar desde Tirso de Molina”. Na verdade, tal epígrafe poderia ser
aposta em toda a sua ficção, não só quando relê a história, desaloja o já dito ou interpela
a religião, mas também quando cria situações inusitadas em busca da essência humana.
Porque há, como na atitude de Saramago, um veio inconformista e inquiridor na raiz
desse provérbio, que freqüenta, por isso mesmo, outros textos do escritor, como este
onde o narrador de História do Cerco de Lisboa alerta que nem tudo o que se vinha
apresentando como de autoria de Raimundo Silva era de fato do revisor:
Estas prevenções novamente se recordam para que sempre tenhamos presente a conveniência
de não confundir o que parece com o que seguramente estará sendo, mas ignoramos como, e
também para que duvidemos, quando creiamos estar seguros duma realidade qualquer, se o
que dela se mostra é preciso e justo, se não será apenas uma versão entre outras, ou, pior
ainda, se é versão única e unicamente proclamada.” (HCL, p. 141)
Embora Don Giovanni não tenha uma única versão, as que fixaram o seu caráter não são
para o escritor justas e precisas. Como apontado na passagem acima, Joaquim Sassa,
personagem de A jangada de pedra, defende a relatividade de qualquer verdade quando
reformula o provérbio, radicalizando-o: “A minha sabedoria está-me aqui a segredar que
tudo só parece, nada é” (JP, p. 126).
A proposta da (sub)versão de Saramago é já sugerida pelo título: Don Giovanni
ou o dissoluto absolvido, indicando ser o seu principal pré-texto a ópera de Mozart e
Lorenzo da Ponte intitulada Don Giovanni ou o dissoluto punido. E não só pela evidente
77
alusão contida no título ou por se tratar de uma peça escrita para ser o suporte textual de
outra ópera, mas porque o nó da trama gira em torno do catálogo onde o criado de Don
Giovanni anota os nomes das mulheres conquistadas pelo sedutor. Lembremos que o
catálogo, embora seja provavelmente uma criação do italiano Jacinto Andréa Cicognini
(Il Convitato di Pietra, anterior a 1650), só viria a ganhar popularidade e a se tornar um
elemento consagrado da história de Don Giovanni com a ópera de Mozart/Da Ponte. O
relevo dado ao catálogo é percebido quando o leitor se depara, já no prólogo, com a
famosa ária mozartiana, integralmente repetida pela mesma personagem, Leporello,
também aqui criado do protagonista.
Como na famosa ópera, quem contracena com Leporello é Dona Elvira, só que
agora “apresentada na forma de um manequim, de um corpo à espera de ser vestido, não
com a tradicional roupagem da ingenuidade enganada, mas de uma enganadora e
dissimulada ingenuidade”
132
, conforme afirma Jorge Valentim e confirmaremos adiante.
No prólogo, proposto por Azio Corghi, também são enxertados outros fragmentos do
texto de Lorenzo da Ponte, como o diálogo entre essas duas personagens e o recitativo
de Dona Elvira, respectivamente, anterior e posterior à ária. Em correspondência a
Saramago, o músico italiano justifica assim a sua proposta: “devemos tornar
compreensível a reviravolta de um arquétipo cultural (o mito de Don Giovanni)
aceitando de saída o déjà vu (ária de Leporello) a fim de evidenciar melhor a sua
primeira idéia”.
133
Que idéia é essa veremos ao longo da análise. Agora, interessa-nos
ressaltar que as palavras de Corghi são uma outra maneira de dizer que “Basta uma
alusão para introduzir no texto centralizador um sentido, uma representação, uma
história, um conjunto ideológico”
134
, como afirma Laurent Jenny sobre o estatuto da
palavra intertextual. O fato de estarmos diante de muito mais que uma alusão não
132
VALENTIM (2006), p. 377.
133
SEMINARA (2005), p.99.
134
JENNY (1979), p. 22.
78
modifica o efeito da operação intertextual, pois aqueles fragmentos evocam nos leitores
um Don Giovanni fixado pela tradição, ou seja, provocam o déjà vu. Talvez para
compensar a ausência da música e do contexto operístico, na peça teatral, em português,
a filiação à versão de Mozart/Da Ponte é enfatizada pelo aproveitamento dos enunciados
no idioma original, o italiano.
O trecho da correspondência aqui citado revela também um objetivo: o de tornar
patente a reviravolta do arquétipo cultural. Visto de outro ângulo, a função daqueles
enxertos é a de criar uma expectativa a ser frustrada no decorrer da obra, podendo-se
identificar aí uma das figuras de retórica de que se serve o processo intertextual para
alterar o texto assimilado, conforme propõe Jenny. Trata-se da elipse, “repetição
truncada dum texto ou dum arquitexto”, no caso, a que se dá “em relação a um tópico
esperado, provocando desse modo um sentimento de frustração no leitor, impaciente por
ver realizar-se o arquitexto”.
135
Entremeando aqueles fragmentos textuais, há um complemento de diálogo, em
português, no qual é reforçada a indignação de Dona Elvira e o seu desejo de vingança,
já expressos nos textos assimilados de Lorenzo da Ponte. Contudo, acrescenta-se um
interesse de Dona Elvira pelo catálogo, inexistente no original:
DONA ELVIRA: Dou-te dinheiro se me deixares arrancar a folha onde está escrito o meu
nome.
LEPORELLO: Não posso.
DONA ELVIRA: Porquê?
LEPORELLO: Porque nessa folha estão escritos os nomes doutras mulheres. Se cobrasse de
uma, teria de cobrar de todas. E vá lá saber-se por onde andarão elas nesta altura! O mais
provável é estarem todas casadas... Os maridos não ficariam nada contentes.
DONA ELVIRA: Descarado!
LEPORELLO: Também nasceu com esse defeito, sim senhora.
DONA ELVIRA: É de ti que estou a falar, não de Don Giovanni.
LEPORELLO: A cada um o seu papel. Aos criados mandam-nos que sejamos descarados,
medrosos e cobardes. Não podemos ser outra coisa.
DONA ELVIRA: Dá-me esse livro.
LEPORELLO: Sou um cão de guarda fiel, senhora. Descarado, medroso, cobarde, mas fiel.
DONA ELVIRA: Se eu fosse homem arrancar-to-ia das mãos agora mesmo. (p. 20-1)
135
Ibidem, p. 39.
79
O interesse de Dona Elvira pelo catálogo indica, mais uma vez, o relevo que
ganhará esse elemento, o qual, apesar de consagrado pela famosa ária, não impôs
nenhuma relevante conseqüência para a versão de Lorenzo da Ponte. Ao contrário, a
peça de Saramago desenvolve-se, como já alertamos, em torno dele. E junto com o
catálogo cresce a importância de Dona Elvira, enquanto decresce a de Dona Ana,
personagens que, na interpretação de Saramago, não podiam ser “tão inocentes
criaturas” (p. 15). Vemos que o prólogo já inicia o percurso intertextual indicado por
Laurent Jenny de “Repetir para delimitar, para fechar num outro discurso”, já que “A
análise do trabalho intertextual mostra bem que a pura repetição não existe”.
136
3.2.2 – Cenas 1 e 2: o novo horizonte de Don Giovanni
A primeira marcação de cena reforça a importância do catálogo, pois o leitor é
informado de que Don Giovanni o folheia saudosa e melancolicamente. Seu primeiro
enunciado evoca a famosa ária: “Espanha, Turquia, França, Alemanha, Itália, tudo
somado...” (p. 27). Há uma mudança significativa no perfil do protagonista, que não é
mais aquele jovem arrojado e voltado exclusivamente para o instante, para quem é
alheia qualquer reflexão sobre o passado ou qualquer avaliação crítica sobre a sua
própria conduta. Como uma parte significativa dos protagonistas de Saramago, Don
Giovanni é um homem maduro, como ele mesmo diz (ou lamenta): “Antigamente era
mais rápido na conquista, mais veloz no triunfo, mais conclusivo na retirada. E ainda
por cima tive de matar o idiota do Comendador. Don Giovanni está a fazer-se velho” (p.
28).
137
Mesmo que o envelhecimento da personagem não seja a razão em que se apóia o
136
Ibidem, p. 44.
137
Por curiosidade, pesquisamos as idades de alguns protagonistas anteriores: Ricardo Reis tem 48 anos;
o revisor Raimundo Silva, mais de cinqüenta; o violoncelista de As intermitências da morte fez cinqüenta,
quando deveria ter morrido aos 49 anos; o Sr. José de Todos os nomes tem 25 anos de serviço no
80
autor para conferir um novo caráter a Don Giovanni, como veremos adiante, essa
característica não pode ser desconsiderada, inclusive porque ela sublinha o simbolismo
do catálogo. É o passado que justifica a fama do incrível conquistador, que, na versão de
Saramago, não seduzirá nem tentará seduzir nenhuma mulher.
Vimos, no início deste trabalho, como na origem de Don Giovanni foi
assimilado um tema popular de fundo moral e religioso, associado à profanação dos
mortos, chamado convite macabro ou duplo convite. Esse tema, diluído ao longo do
tempo, ainda ecoa nas versões de Molière e Lorenzo da Ponte. No primeiro, de uma
forma artificial e abrubta, já que o autor, além de ter sido influenciado pela Comédia
dell’Arte, aproveitou a popular história de Don Juan como pretexto para fazer uma
crítica à sociedade da época, sendo o seu principal alvo a hipocrisia moral, de inspiração
religiosa. Mas Lorenzo da Ponte e Mozart recuperam, mesmo que de forma ambígua e
atenuada, o fundo religioso da história do sedutor, realizando uma integração mais
orgânica do convite macabro, embora se deva reconhecer que o libretista possivelmente
apenas incorporou uma situação dramática tradicional e capital do enredo, sem
necessariamente atentar para a sua origem popular e supersticiosa.
Na versão de Saramago, o convite macabro é apenas uma reminiscência evocada
pelas palavras do Comendador: “Convidaste-me a jantar e aqui me tens” (p. 28). Isso
decorre da opção do escritor em começar a sua peça por onde terminaram as principais
versões, com o objetivo de subverter os cânones tradicionais, ou, na expressão de Azio
Corghi, dar uma reviravolta ao arquétipo cultural. Com efeito, a cena inicial da peça de
Saramago corresponde à última de Lorenzo da Ponte, quando o Comendador,
comparecendo ao jantar, a convite do sedutor, entra na casa de Don Giovanni e lhe
Conservatório de Registro Civil; Camões, protagonista da peça teatral Que farei com este livro?, é um
homem a entrar na velhice; o jornalista Torres, da peça A noite, diz que vai pra velho.
81
inflige o castigo infernal – a rigor, há ainda uma última cena, na qual se extrai uma
espécie de moralidade, como nas versões de Molina e de Molière.
138
Saramago evoca a gravidade do desenlace trágico da ópera setecentista ao fazer
a estátua pronunciar seqüencialmente: “Aqui estou”, “aqui me tens”, “O dia é hoje” (p.
28-9). Mas a reviravolta do arquétipo cultural começa imediatamente após essa entrada
solene do Comendador, seguindo-se um diálogo em que o humor desestabiliza aquela
atmosfera
139
:
COMENDADOR: O dia é hoje.
DON GIOVANNI: Como queiras. Mas senta-te, por favor, não gosto de ver ao meu lado
pessoas mais altas do que eu.
COMENDADOR: Não posso sentar-me.
DON GIOVANNI: Porquê?
COMENDADOR: Uma estátua tem de ficar para sempre como a fizeram. A mim fizeram-me
em pé, por isso não me posso sentar. É uma questão de articulações.
DON GIOVANNI: Vais estar em pé por toda a eternidade? Isso cansará muito, suponho.
COMENDADOR: Não sei. A eternidade, para mim, só agora é que começou.
Ressalte-se que, no texto de Lorenzo da Ponte, não há, nem poderia haver, gracejos
entre Don Giovanni e o Comendador; apenas a covardia ostensiva de Leporello, aqui
ausente da cena, constitui-se num tênue contraponto à gravidade da situação.
A estátua ainda tenta reassumir a sua função moralizante e exige o
arrependimento do pecador. Acusado de ter violado a filha do Comendador, Don
Giovanni nega a consumação da burla e a tentativa de violação, esclarecendo que Dona
Ana descobrira a tempo não se tratar do noivo Don Otávio
140
, “a quem pelos vistos,
costuma receber no seu quarto, às ocultas do pai. Ou tu sabias, e calavas? Também por
respeito?” (p. 33). O mais importante dessa fala de Don Giovanni é a introdução da
138
No libreto de Da ponte, não há duplo convite (forma completa e original do tema folclórico), pois o
Comendador inflige a morte a Don Giovanni já no primeiro jantar, na casa do pecador. Na peça de Tirso
de Molina, o castigo é imposto ao impenitente junto à tumba do Comendador, pois o tema folclórico foi
incorporado na sua versão completa. Na de Molière, há o segundo convite, mas Don Juan não comparece
e a estátua retorna à casa do sedutor e lhe inflige o castigo. Tanto Molina como Molière também inserem
uma última cena, na qual se extrai uma moralidade, irônica no caso do dramaturgo francês.
139
No pósfácio do livro, Graziela Seminara revela que a música de Azio Corghi reforça essa situação.
Aliás, o tema musical do Comendador se reveste de um espírito carnavalesco que, junto com o texto,
corrói a autoridade e a imponência da personagem. Cf. SEMINARA (2005), p.107.
140
Em Molina e Lorenzo da Ponte, Don Giovanni toma o lugar do noivo e é repelido por Dona Ana. Em
Molière não há o episódio, pois Dona Ana sequer existe.
82
glosa à hipocrisia, ponto de contato entre o texto de Saramago e o de Molière. Só que
agora o Comendador representará metonimicamente a hipocrisia social e religiosa,
diferente da versão francesa, onde a personagem é inconsistente, não tendo outra função
senão a de castigar o libertino. As imprecações do Comendador, “És um miserável
pecador, mereces ser castigado” (p.33) e “Arrepende-te” (p.34), Don Giovanni revida
assim:
Nunca perante ti, hipócrita. Conheço bem os da tua espécie. Andais pela vida a distribuir
palavras que parecem jóias e afinal são enganos, colocais com fingido amor a mão sobre a
cabeça das criancinhas, desviais das tentações da carne os vossos olhos falsamente pudicos,
mas lá por dentro roei-vos de despeito, de ciúme, de inveja. Alimentais-vos da vossa própria
impostura e quereis fazê-la passar por virtude sublime. A gente como vós cospe-a Deus da
Sua boca.
Além de se aproximarem das proferidas pelo Don Juan de Molière, essas
palavras nos trazem à memória outros textos de Saramago, como aquele em que o
narrador de História do cerco de Lisboa ironiza os ciúmes do revisor Raimundo Silva,
que imagina uma cena não acontecida entre Maria Sara e o diretor literário da editora:
“Foi só um apalpão, senhor revisor, foi apenas um beijo, senhor revisor. Não importa,
foi de mais, em nome da minha própria e incurável inveja vos condeno, (...) o mais
provável é estarem a rir-se do moralista hipócrita” (HCL, p. 148).
Se o Comendador não chega a ser o vigarista alcoviteiro da narrativa de Gonzalo
Torrente Ballester, que também faz uma severa crítica à hipocrisia, pelo menos sua
imponente exemplaridade se esvaiu, preparando o terreno para o novo horizonte da
tradicional história. É pela interversão da situação dramática, uma das figuras da
intertextualidade apontadas por Laurent Jenny, que Saramago assenta esse novo
horizonte, modificado “o esquema das ações da narrativa recuperada”.
141
Antes, porém,
a peça parece inclinar-se para o mesmo desfecho trágico, o que servirá para evidenciar a
reviravolta do arquétipo:
141
JENNY (1979), p. 42.
83
COMENDADOR: Não sabes nada de Deus, incrédulo, não ofendas o Seu santo nome. Fica-te
com o teu único senhor, fica-te com o Demónio. Ao inferno, maldito.
DON GIOVANNI: A minha hora ainda não chegou, e se o meu destino for realmente o
inferno, espero, se há justiça, encontrar-te lá quando entrar.
COMENDADOR: A tua justiça não é a de Deus, eu já estou no paraíso. Pela última vez,
arrepende-te.
DON GIOVANNI: Não.
COMENDADOR: Arrepende-te.
DON GIOVANNI: Não.
COMENDADOR: Assim o quiseste, assim o terás. Que as portas da morada do Demônio se
abram então para ti, que te abrasem as chamas do castigo eterno, que sofras mil anos de
torturas por cada uma das vítimas da tua concupiscência. Vai, maldito, o inferno espera-te, tu
já não és deste mundo. Vai! (p. 34-5)
A estátua de bronze, cada vez mais irada diante do seu fracasso e das galhofas de
Don Giovanni, repete duas vezes a imprecação “Vai!” e, com desespero, tenta ainda
uma última vez: “Vai, maldito, vai! Ordeno-te que vás!” (P.36), enquanto as marcações
cênicas vão informando ao leitor sobre as chamas que, como nas obras de Molina,
Molière e Mozart, ameaçam tragar o protagonista. Só que na versão de Saramago elas
vão diminuindo até se transformarem, na última maldição, numa insignificante labareda,
que logo desaparece. Enfim, a estátua, contrariando a tradição, fracassa na sua tentativa
de infligir a condenação eterna ao impenitente, que, rindo às gargalhadas, ironiza:
“Acabou o gás” (p. 36).
O esquema da ação foi modificado, não se efetivando a punição, consumada no
texto recuperado. Ao alterar o desfecho da cena – ou, em outras palavras, ao “re-
enunciar de modo decisivo certos discursos cujo peso se tornou tirânico”
142
–,
Saramago, além de operar a interversão acima indicada, impõe um novo significado ao
texto, produzindo o que o teórico chama de “desvio cultural” da intertextualidade:
Repetir para delimitar, para fechar num outro discurso, (...) Sendo o esquecimento, a
neutralização dum discurso impossíveis, mais vale trocar-lhe os pólos ideológicos. (...) Abre-
se então o campo duma palavra, nova, nascida das brechas do velho discurso, e solidária
daquele. Quer queiram quer não, esses velhos discursos injectam toda a sua força de
estereótipos na palavra que os contradiz, dinamizam-na. A intertextualidade fá-los assim
financiar a sua própria subversão.
143
142
Ibidem, p. 44.
143
Ibidem, p. 44-5.
84
Laurent Jenny observa que as interversões são encontradas, “particularmente, na
intertextualidade parodística”.
144
E é em geral pela paródia que Saramago quebra “a
argila dos velhos discursos”
145
, não sendo diferente nesta peça teatral. É de forma
paródica, por exemplo, que a personagem do Comendador é retomada no texto de
Saramago, identificando-se nesse processo uma outra forma de interversão, a de
qualificação: a personagem é qualificada antiteticamente, passando de imponente
vingador da moralidade, portador da justiça divina, à impotente amaldiçoador,
representante da hipocrisia social e religiosa. Ao ser ridicularizado, junto com os valores
que ele representa, o Comendador perde a sua solenidade e ganha uma jocosidade que o
acompanhará pelo resto da peça. O contrário ocorre com Don Giovanni, também
especial objeto de tal interversão, conforme o projeto do autor:
O importante é a dignidade de quem é capaz de dizer NÃO quando não só a sua vida mas
também a salvação da sua alma se encontram em perigo. É certo que Don Giovanni é um
fraco com as mulheres, mas “compensa-o” bem com a sua força ética no momento em que é
tentado pela facilidade hipócrita do perdão. Estamos perante um paradoxo: Don Giovanni, o
sujeito imoral por excelência, é um homem fiel à sua própria responsabilidade ética.
146
Essa idéia do autor suscita uma questão instigante, mas que deixaremos para
abordar adiante. Voltemos, por ora, ao confronto entre Don Giovanni e o Comendador,
cada um representando um tipo de discurso bem delimitado. Avançando para a segunda
cena, Don Giovanni diz consigo mesmo: “O pobre velho ainda era dos que acreditavam
no poder justiceiro das maldições” (p. 43). E logo adiante, dirigindo-se à estátua,
interpela: “Ainda crês na existência do inferno?” (p. 43). Na mesma seqüência, parece
que estamos a ouvir o próprio autor pela boca de Don Giovanni, o qual, após afirmar
que “a morte dos malvados não é para o inferno que se abre, mas para a impunidade” (p.
43), reafirma o novo horizonte proposto:
Se queres saber a minha opinião, o ser humano é livre para pecar, e a pena, quando a houver,
aqui, ouves-me?, aqui na terra, não no inferno, só virá dar razão à sua liberdade. Nunca se
144
Ibidem, p. 41.
145
Ibidem, p. 48.
146
SEMINARA (2005), p. 96.
85
pronunciaram palavras mais vãs do que quando se disse: “Deus te dará o castigo.” Seria para
chorar se não fosse para rir. (p. 44)
O Comendador não argumenta, apenas tenta invocar a sua antiga autoridade,
aquela que, junto à sua sepultura e diante dos risos do imoral sedutor, ainda tinha no
libreto de Lorenzo da Ponte, ao qual o leitor é remetido pelo aproveitamento da frase na
forma e no idioma original: “Di rider finirai prima dell’ aurora” (p. 44). A inadequação
do enunciado é apontada por Don Giovanni, que aproveita para, mais uma vez, troçar do
Comendador: “Veremos. O último a rir será sempre o que ri melhor. Tu já estás fora da
comédia. Não passas de um adereço” (p. 44). Repetida a sentença, nova galhofa:
“Nunca te disseram que a repetição faz perder o efeito dramático?” (p. 44).
147
Dominique Maingueneau salienta que “Confrontado a indícios pertinentes, o
leitor ativará o roteiro correspondente, se a sua familiaridade com o intertexto literário
for suficiente. Disso resulta que o percurso de leitura será muito variável”.
148
Então,
além de conhecer a ópera de Mozart/Da Ponte, melhor seria se o leitor também
conhecesse o texto e o contexto de Tirso de Molina, a fim de integrar à sua
interpretação, realçando dessa maneira o contraste existente na peça de Saramago, todo
o peso do discurso moralizante e religioso do frade espanhol.
Como sintetizou Graziella Seminara, “A laicização do universo de Don
Giovanni, a reintegração dos temas essenciais da responsabilidade moral, da culpa e do
castigo no horizonte existencial da pessoa humana acabam por constituir, portanto, um
nó central da releitura saramaguiana do mito”.
149
A laicização do universo de Don
Giovanni é percebida logo nas primeiras cenas, quando as falhadas chamas não são
capazes de tragar o antigo burlador, expondo o anacronismo do Comendador (“O pobre
velho ainda era...”), representante da ordem religiosa antiga, que pressupunha, como no
147
Esses dois enunciados de Don Giovanni são uns dos poucos exemplos de metalinguagem da peça.
Embora não sejam reflexões sobre a sua própria produção, muito comuns em Saramago, o escritor não
deixa, pelo menos, de jogar com as regras do gênero.
148
MAINGUENEAU (1996), p. 50.
149
Ibidem, p. 100.
86
tempo de Molina, a ampla crença na condenação eterna e no fogo do inferno.
Subvertendo o cânone religioso da peça do século XVII, que subjaz ambiguamente na
ópera setecentista, Saramago institui um novo contrato de leitura: as maldições e todo
tipo de discurso apoiados na dimensão sobrenatural perderam a legitimidade, impondo-
se agora o discurso laico, centrado no homem, do qual Don Giovanni é o portador.
Como em O evangelho segundo Jesus Cristo, são os pilares da tradição judaico-
cristã que estão a ser confrontados, como as noções de pecado, punição e
arrependimento. Semelhante àquele romance, nesta peça também o que se afirma é a
liberdade e a responsabilidade humanas. O que conta não são os duvidosos desígnios
divinos, tão indecifráveis e contraditórios que nem os seus mais credenciados
intérpretes são capazes de explicar coerentemente, como o escriba do Templo de
Jerusalém. Como disse o inconformado israelita ao escriba, “Só o querer do homem é
verdadeiro querer” (EJC, p. 171). O que conta mesmo é a vontade dos homens, a que
está na hóstia consagrada, que move o mundo, sustenta as estrelas e faz voar a passarola
no Memorial do convento.
150
Como vimos mais acima, para Saramago, o seu protagonista possui a dignidade
e a responsabilidade ética de quem “é capaz de dizer NÃO quando não só a sua vida
mas também a salvação da sua alma se encontram em perigo”. É a mesma dignidade
que, em O evangelho segundo Jesus Cristo, anima a figura do Mau Ladrão, “rectíssimo
homem afinal, a quem sobrou consciência para não fingir acreditar, a coberto de leis
divinas e humanas, que um minuto de arrependimento basta para resgatar uma vida
inteira de maldade ou uma simples hora de fraqueza” (EJC, p. 10-1). Como parecem
próximas as palavras do Don Juan de Zorrlla: “Impossível! Em um momento/apagar
trinta anos malditos/de crimes e delitos” (ZORRILLA, p. 164).
151
Ou estas do
150
Cf. SILVA (1989), p. 60.
151
No original: “¡Imposible! En un momento/borrar treinta años malditos/de crímenes y delitos!”
87
protagonista de Gonzalo Torrente Ballester: “não posso cometer um homicídio com o
propósito de me arrepender em seguida. Seria uma hipocrisia inútil, uma fraude”
(BALLESTER, p. 174).
152
Porém, mais do que demonstrar um fundo comum entre a
criação de Saramago e a desses dois escritores espanhóis (inexistente, no caso de
Zorrilla), o que se quer no momento é discutir a questão do arrependimento na história
do nosso herói.
Ao primeiro Don Juan não foi concedida a oportunidade do arrependimento,
pois o sentido moralizante da peça de Tirso de Molina assentava sobre o argumento
teológico contra-reformista, segundo o qual o arrependimento, sem as boas obras, não é
capaz de redimir os pecados. Ao ser surpreendido ainda jovem pelo castigo divino, Don
Juan pede que o deixem chamar quem o confesse e absolva, recebendo da estátua do
Comendador a definitiva resposta: “não há tempo; já acordas tarde” (MOLINA, p.
241).
153
Já a partir de Molière esse argumento teológico é anulado pela introdução da
possibilidade do arrependimento redentor. Enquanto o protagonista de Molina quer se
arrepender e não pode, os de Molière e Lorenzo da Ponte podem e não querem, assim
como o Don Giovanni de Saramago. Só que nas obras daqueles escritores o que anima a
recusa do sedutor é o seu orgulho, herança daquele primeiro “gran burlador de España”.
É o que se depreende, por exemplo, das seguintes palavras dos protagonistas,
respectivamente, de Molière e Lorenzo da Ponte: “Não, não, aconteça o que aconteça,
152
No original: “no puedo cometer un homicidio con el propósito de arrepentirme luego. Sería una
hipocresía inútil, una trampa”.
153
No original: “No hay lugar; ya acuerdas tarde”. Lembremos do enunciado constantemente repetido
“Tan largo me lo fiáis”, que significava a crença do protagonista na possibilidade de redenção com o
simples arrependimento na velhice.
88
ninguém poderá dizer que o meu orgulho cedeu ao meu arrependimento”
154
e “Jamais,
em tempo algum, qualquer pessoa teve motivos para me acusar de covarde”.
155
Muito diversa é a postura do Don Giovanni de Saramago: “... o ser humano é
livre para pecar, e a pena, quando a houver, aqui, ouves-me?, aqui na terra, não no
inferno, só virá dar razão à sua liberdade” (p. 44). A diferença entre ele e seus
antepassados – os de Molière e Da Ponte – não é o fato de se negar ao arrependimento,
mas aquilo que o inspira a isso: “a dignidade de quem é capaz de dizer NÃO quando
não só a sua vida mas também a salvação da sua alma se encontram em perigo (...) a sua
força ética no momento em que é tentado pela facilidade hipócrita do perdão”. Porém,
conquanto sobressaiam no texto a dignidade e a responsabilidade ética apontadas por
Saramago na sua personagem, cremos ser problemática a concretização de tal idéia. Em
primeiro lugar, porque Don Giovanni agora desdenha de forma ostensiva da punição
divina. É verdade que ele profere frases como estas, dirigidas ao Comendador: “A gente
como vós cospe-a Deus da Sua boca” (p. 34) e “se o meu destino for realmente o
inferno, espero, se há justiça, encontrar-te lá quando entrar” (p. 34-5). Mas a ironia
dessas palavras é reforçada quando as comparamos a estas outras, que parecem fixar o
ateísmo da personagem: “Nunca se pronunciaram palavras mais vãs do que quando se
disse: ‘Deus te dará o castigo’” (p. 44). Então, essa circunstância tende a não colocar no
horizonte do protagonista a questão da salvação da sua alma. Em segundo lugar, Don
Giovanni também não acredita mais em maldições, como já visto, o que retira da estátua
do Comendador o poder de ameaçar a sua vida.
154
MOLIÈRE (1997), p. 130. Isso é o que diz Don Juan quando o espectro de uma mulher, incitando-o a
aproveitar a misericórdia divina, exige-lhe o arrependimento, na cena imediatamente anterior ao desfecho
trágico. Note-se que não é a estátua do Comendador que oferece a possibilidade de arrependimento.
155
DA PONTE (1991), p. 145. É o que diz Don Giovanni quando a estátua o convida para jantar em sua
sepultura. Entretanto, não haverá novo encontro, pois já na mesma cena o pecador é lançado às chamas
infernais.
89
Cremos identificar na versão de Gonzalo Torrente Ballester a concretização mais
cabal dessa idéia de Saramago. Isso e o fato de os dois escritores possuírem perspectivas
semelhantes foram motivos determinantes para que a trouxéssemos a este trabalho. Um
ponto de contato pode ser percebido na caracterização dos protagonistas, pois ambos
desprezam o homem que disfarça o pecado sob a capa de uma aparente virtude. Se não
chegamos a afirmar que o Don Giovanni de Saramago recusa, como o Don Juan de
Ballester, o arrependimento hipócrita, é pelos mesmos motivos expostos no parágrafo
anterior, ou seja, se a estátua não é representante de Deus, ela não pode conceder o
perdão. Mas, em ambas as versões, também os papéis das duas principais personagens
foram trocados: o sedutor é marcado pela dignidade e responsabilidade ética, enquanto
o Comendador representa a hipocrisia. Mas o mais relevante é que tanto Ballester
quanto Saramago destacam a questão da responsabilidade e da liberdade humanas,
apesar de o primeiro o fazer no âmbito das doutrinas cristãs, problematizando-as,
enquanto José Saramago as contesta integralmente.
156
E, do mesmo modo que o Don
Giovanni de Saramago reivindica a liberdade do homem para pecar, o Don Juan de
Ballester, apesar de animado pelo desmedido orgulho dos Tenorios, afirma que “ante
esta prova da minha liberdade, e por ficar bem para Deus, elejo desde agora mesmo o
pecado” (BALLESTER, p. 235-6).
157
E o sustentará sempre, tendo a dignidade de dizer
NÃO quando – agora com certeza, pois é um crente fervoroso e profundo conhecedor
da teologia – a salvação da sua alma se encontra em perigo. Enfim, a proposta do
escritor espanhol também se assemelha à de Saramago relativamente ao castigo, pois
Don Juan, abandonado por Deus e pelos demônios, terá que cumprir a sua pena aqui
156
Assim como não o fizemos em relação à obra do escritor espanhol, também não ousamos tentar
descobrir na versão de Saramago influências do existencialismo ateu de Jean-Paul Sartre. Registre-se
apenas que o pensamento de Saramago, como o do filósofo francês, é marcado, condicionando o conjunto
da sua produção, pela idéia de responsabilidade e liberdade humanas, excluída a possibilidade de aliená-
las a um Deus inexistente, ou cruel, como em O evangelho segundo Jesus Cristo.
157
No original: “ante esta prueba de mi libertad, y por dejar quedar bien a Dios, elijo desde ahora mismo
el pecado”.
90
mesmo na terra: “Morri como Don Juan, e o serei eternamente. O lugar onde o seja, que
importa? O inferno sou eu mesmo” (BALLESTER, p. 350).
158
É curioso notar que as visões tão opostas de Tirso de Molina e de Saramago se
tocam pelo menos na negação ao arrependimento de última hora. Mas em História do
cerco de Lisboa temos um bom exemplo do que o segundo pensa sobre as boas obras
pregadas pela igreja católica: “Que o melhor pago, meu senhor, é no céu que está, e lá,
para conquistar a cidade do paraíso, outras torres se necessitam, as das boas obras, como
esta que nos prometemos de não deixar aqui um mouro vivo se se obstinarem na teima
de não se renderem” (HCL, p. 280).
3.2.3 – Cenas 3 e 4: o castigo terreno
Assentado o novo horizonte da ação, à estátua do Comendador resta unir-se às
vítimas dos ultrajes de Don Giovanni, as quais, sob a liderança de Dona Elvira, lançam-
se à vingança nas cenas três e quatro da peça. Mas antes da entrada da esposa
abandonada em cena, a estátua continua sendo alvo de galhofas, agora do criado de Don
Giovanni, em cuja fala identificam-se dois procedimentos característicos da escrita de
Saramago, sendo eles o aproveitamento de frases feitas (na forma definida pelo revisor
Raimundo Silva em citação anterior) e a enunciação profética: “Agora que estamos
sozinhos, com as paredes por únicas testemunhas, e uma vez que, contrariamente ao
dito, elas não terão ouvidos enquanto não forem inventados os microfones, dá-me Vossa
Comendadoria licença que lhe faça uma pergunta?” (p. 53). No diálogo abaixo, a
repetição do inusitado e pretensamente respeitoso pronome de tratamento já instila uma
158
No original: “He muerto como Don Juan, y lo seré eternamente. El lugar donde lo sea, ¿ qué más da?
El infierno soy yo mismo”.
91
intenção irônica, que se completa com o contrastante conteúdo dos enunciados de
Leporello:
LEPORELLO: Com todo o respeito que devo a Vossa Comendadoria, tenciona a estátua de
Vossa Comendadoria ficar em casa do meu patrão para sempre?
COMENDADOR: E a ti, imbecil, que te interessa? Por que queres tu sabê-lo?
LEPORELLO: É que se Vossa Comendadoria veio para ficar, então eu rogaria à estátua de
Vossa Comendadoria, por alma de quem lá tenha, o favor de se afastar um pouco para aquele
lado porque está a empatar o caminho
COMENDADOR: Semelhante atrevimento, semelhante insolência não se pagariam nem com
cinqüenta chicotadas. A ti o que te vale é eu estar morto.
LEPORELLO: Felizmente, senhor. (p. 54)
Quando Dona Elvira entra em cena, traz um embrulho nas mãos, segundo
informação do autor. Depois de contracenar brevemente com Leporello e em seguida
com a estátua
159
– quando se apresenta com “Uma das pobres vítimas de Don Giovanni”
(p. 57) –, Dona Elvira, parecendo ser a mesma mulher disposta ao perdão, reivindica o
amor do pérfido sedutor:
DONA ELVIRA: Dás-me a vida se me devolves o teu amor, rouba-la se não me recebes nos
teus braços.
DON GIOVANNI: E na minha cama.
DONA ELVIRA: Sim, na tua cama. Recorda as horas deliciosas que gozámos na minha,
ouvindo os sinos da catedral de Burgos. Não posso ouvir um sino sem me arrepiar toda.
DON GIOVANNI: Cuidado com as expansões. Esse senhor que aí está, mal-encarado,
pertence à seita dos puritanos ortodoxos. Quanto a nós, já te disse que está tudo acabado.
DONA ELVIRA: Queres que te implore de joelhos? Queres que me arraste aos teus pés? O
amor aceita tudo, e eu amo-te. (p. 59-60)
Mas Don Giovanni intui bem ao dizer, antes de se retirar, que “Noutro tempo, talvez
sim, mas agora os teus discursos soam a falso” (p. 60). O leitor, que já vinha sendo
alertado para a artificialidade da personagem pelas marcações cênicas, é agora
informado de que o mal-estar de Dona Elvira, após a saída de Don Giovanni, é apenas
fingimento. Na verdade, o fingido mal-estar – ou o fanico, como dirá posteriormente
Leporello – é um estratagema para afastar o criado, a quem pede água e sais,
159
O diálogo entre Dona Elvira e a estátua do Comendador tem aspectos interessantes, porém
secundários, que preferimos referir nesta nota. 1) A seguinte frase de Dona Elvira reforça o anacronismo
da presença do Comendador, resgatando ao mesmo tempo a afirmação de Don Giovanni de que a estátua
estava fora da comédia, resumindo-se a um adereço: “Realmente tinha-me parecido que era uma estátua,
mas pensei que fazia parte da decoração” (p. 57). 2) Reforça-se a perda da mejestática expressão do
Comendador: “Tal como a minha filha. Dona Ana na sociedade, Aninhas para a família” (p. 57). 3)
Inserção de um costume anacrônico: “É o que sucede quando não se lêem os jornais todos os dias” (p.
58). 4) Reforça-se o anacronismo da maldição quando o Comendador diz que seus métodos estavam
desatualizados e Dona Elvira confirma: “Isso foi chão que deu uvas, Comendador” (p. 59).
92
permitindo-lhe, sob a cumplicidade do Comendador, substituir o catálogo das
conquistas amorosas por um livro igual, conteúdo, afinal, do embrulho que trazia.
Completada com sucesso a primeira parte do premeditado plano de vingança, a
dissimulada mulher desenrola cinicamente um rançoso discurso de amor desiludido,
recheado de clichês, que acentuam o tom afetado: “Vou-me embora para sempre.
Murchas, deixo aqui as minhas esperanças, caducas, as minhas ilusões. A vida deixou
de ter sentido para mim. Quem sabe? Talvez vá acabar os meus dias num convento” (p.
62). A artificialidade das suas palavras, seguida da sua dramática saída, mereceu a
seguinte observação irônica de Leporello: “Desconfio que se fosse actriz ninguém a
chamaria para lhe oferecer um contrato...” (p. 62).
160
Convocamos com detalhes a atuação de Dona Elvira para demonstrar que
também sobre ela incide a interversão de qualificação. Ela não é mais aquela inocente
criatura, na qual, como vimos, Saramago nunca acreditou. Devemos ressaltar, porém,
que o desejo de vingança é uma das marcas da personagem desde Molière, responsável,
senão pela sua criação, pela sua assimilação na história do sedutor. No texto do
dramaturgo francês, entretanto, Dona Elvira, que tem apenas duas participações, termina
por perdoar o traidor e, antes de se retirar para um convento
161
, suplica-lhe o
arrependimento. Na ópera de Mozart/Da Ponte, a personagem é muito mais complexa,
dividida entre o desejo de vingança e o amor, como é exposto em um dos seus
recitativos:
Ah, não, a cólera dos céus e a justiça não podem tardar! Posso antever o golpe fatal,
desabando como um raio sobre a cabeça dele, e um abismo se abrindo diante dos seus passos.
Pobre Elvira! Que sentimentos contraditórios estão em conflito na tua alma! Por que esses
suspiros e essa angústia? (DA PONTE, p. 121)
160
Leporello ainda complementa: “Que opina Vossa Comendadoria sobre a representação de Dona
Elvira? Pareceu-lhe sincera?”, seguindo-se a pergunta da estátua: “Sincera como representação, ou como
realidade?”, a qual tem esta resposta: “Como representação, a realidade não conta aqui pra nada” (p. 62).
Mais uma vez, o texto joga com elementos da arte cênica.
161
Na peça de Molière a ida para um convento é subentendida, pois a personagem diz que foi tocada pelo
Céu e que se retirará do mundo. Aliás, ela se transforma em mensageira do Céu, advertindo Don Juan
sobre o iminente castigo.
93
Apesar de denunciar a Dona Anna e a Don Ottavio a impostura de Don Giovanni, a
dilacerada mulher é realmente uma inocente criatura, pronta para acreditar em todos os
embustes do amado. A contradição dos sentimentos de Dona Elvira continua até o fim,
quando, depois da morte de Don Giovanni, ela diz que terminará os seus dias em um
convento.
Na altura em que paramos da peça de Saramago, já era clara a impostura, não do
sedutor, mas de Dona Elvira e a certeza de que a possibilidade de sua ida para um
convento era apenas uma irônica referência à fala da infeliz personagem de Lorenzo da
Ponte. A contradição de seus sentimentos está presente apenas no prólogo da peça, no
seguinte diálogo, que antecede a retomada da “ária do catálogo” por Leporello:
DONA ELVIRA: Vou-me embora.
LEPORELLO: Não vá, senhora. Deixe que lhe explique melhor o que está no livro.
DONA ELVIRA: Não quero.
LEPORELLO: Tem medo de sentir ciúmes?
DONA ELVIRA: Não.
LEPORELLO: Ou sim?
DONA ELVIRA: Não. Talvez. Sim. (p. 22)
A contradição dos sentimentos de Dona Elvira na abertura da peça insere-se, todavia, na
estratégia sugerida por Azio Corghi de aceitar o déjà vu, não se confirmando como uma
característica da nova personagem, que agora é plana, movida apenas pelo desejo de
vingança. Dela, ninguém poderia dizer, por exemplo, o que dizem Dona Anna e Don
Ottavio na ópera de Mozart/Da Ponte: “Céus, quanta nobreza! Quanta doçura e quanta
majestade! Esta palidez e estas lágrimas me enchem de piedade” (DA PONTE, p. 55).
Função concedida à filha do Morto naquela ópera, agora é Dona Elvira quem organiza
as forças da vingança, desta vez indubitável e definitivamente terrenas.
Ao retornar à casa de Don Giovanni, Dona Elvira traz Dona Ana e Don Otávio,
personagens aqui bastante esvaziadas, embora com a importante função, principalmente
a filha do morto, de corroborar e testemunhar o que fora planejado pela primeira. Dona
Ana parece querer apresentar-se com a antiga solenidade que caracterizava a
94
personagem de Lorenzo da Ponte, suscitando, contudo, o riso dos leitores ao se dirigir
nestes termos à estátua do Comendador: “Pai, meu querido e chorado pai, por que foi
que vieste do campo-santo a este antro ignóbil onde a maldade se multiplica como a
rainha da colmeia às abelhas? Que foi que te fez abandonar o silêncio e a fatal
imobilidade da morte?” (p. 73). Reforçando a afetação e a inadequação dessas palavras,
o tom mudará radicalmente logo em seguida, quando, depois de a estátua reafirmar a
desatualização dos seus métodos, frustrando o objetivo que o levara a casa de Don
Giovanni, o plano de vingança se revela quase inteiro:
DONA ANA: Enganas-te, pai, o inferno existe mesmo. Don Giovanni não precisará de
morrer para cair no inferno, o inferno será a sua própria vida a partir deste momento.
COMENDADOR: Que queres dizer? Dás-me uma alma nova!
DONA ANA: Elvira, minha amiga, conta-me, alguma vez amaste a Don Giovanni?
DONA ELVIRA: Não.
DONA ANA: Alguma vez foste para a cama com ele?
DONA ELVIRA: Nunca.
DONA ANA: Ele afirma que sim.
DONA ELVIRA: Mente.
DON GIOVANNI: Que comédia é esta? Aonde quereis chegar, demónios?
DONA ELVIRA: Ana, minha amiga, conta-nos agora o que realmente se passou no teu
quarto.
DONA ANA: Ao princípio, pensei que se tratava do meu noivo, Don Octávio aqui presente, e
o desejo dispôs-me logo para os jogos do amor, mas não tardei muito a aperceber-me de que
o homem que me apertava nos braços era impotente. Ora, devo esclarecer, com o meu saber
de experiência feito, que o meu Don Octávio, de impotente, não tem nada. Empurrei de cima
de mim o desgraçado e então vi quem era. O resto já sabem. Fugiu, meu pai cortou-lhe o
passo e isso custou-lhe a vida. Para matar um velho, Don Giovanni ainda serviu, mas não para
levar uma mulher ao paraíso. (p. 73-4)
A última intervenção de Dona Ana evoca um conjunto de enunciados de sua
antecessora dapontiana. Mas Saramago retoma o texto anterior parodicamente,
rasurando o recato suposto na personagem da ópera setecentista. Se não falamos de
qualificação antitética em Dona Ana é porque, além de ser agora uma personagem
totalmente esvaziada, ela nunca foi exatamente uma inocente criatura. Mesmo que se
lhe queira descobrir um amor latente por Don Giovanni, Dona Ana é na célebre ópera a
encarnação do desejo de vingança.
162
E, se no texto de Da Ponte há um recato suposto
162
Como ressalta Jean Rousset, entre os românticos houve a tendência em ver na personagem de Da
Ponte um amor secreto por Don Giovanni. Embora afirme que essa interpretação extrapola o pensamento
de Mozart, Rousset admite que na ópera Dona Ana e Don Giovanni parecem ligados por laços afetivos.
95
na personagem, muito diferente é na peça de Molina, onde já se insinuava o que agora
ela deixa claro com a convocação de um verso de Camões, o que não poderia mesmo
faltar em uma obra de Saramago: “Ora, devo esclarecer, com o meu saber de
experiência feito, que o meu Don Octávio, de impotente, não tem nada” (p. 74).
Dona Ana, agora, une-se a Dona Elvira na acusação: “A tua apregoada vida de
sedutor é que é uma falsidade do princípio ao fim, um invento delirante, nunca seduziste
ninguém, farejas como um cão fraldiqueiro as saias das mulheres, mas nasceste morto
entre as penas” (p. 75). Quando Don Giovanni pede a Leporello o catálogo, para atirar-
lhes “com a verdade à cara” (p. 76), suas páginas estão em branco, os nomes das
mulheres desapareceram. Burlado, esse é o castigo terreno do outrora burlador de
Sevilha. Fechando a quarta cena, o Comendador triunfante profere a sentença: “Agora,
sim, caíste no inferno” (p. 78). Essa frase confirma o que já havia dito Dona Ana: “Don
Giovanni não precisará de morrer para cair no inferno, o inferno será a sua própria vida
a partir deste momento” (p. 73). E os dois enunciados nos remetem para a conclusão do
protagonista de Ballester: “O inferno sou eu mesmo” (BALLESTER, p. 350).
O catálogo, portanto, é, no termo utilizado por Laurent Jenny ao definir o
processo intertextual denominado amplificação, um “tópoi” ampliado na nova versão, já
que a sua presença era pontual no texto de Lorenzo da Ponte. Mas, conquanto sem
conseqüências para a trama, esse elemento foi alçado pela ópera setecentista a símbolo
das extravagantes conquistas amorosas de Don Giovanni, o que tornou possível ser a
troca dos livros o instrumento de punição do sedutor e a convocação da “ária do
catálogo”, no prólogo da peça, a forma de suscitar o déjà vu proposto por Corghi.
Saramago, nesse sentido, transforma o “texto original por desenvolvimento das suas
Camen Becerra Suárez, por sua vez, formula a hipótese de Hoffmam, entre outras razões, ter descoberto o
secreto amor de Dona Ana na sua resposta a Don Ottavio, que depois da morte de Don Giovanni pede que
ela recompense o seu amor: “Meu querido, agora, preciso de apenas um ano para consolar o meu
coração” (DA PONTE, p. 151). O que a teria inspirado não foi o luto pelo pai assassinado, mas por Don
Giovanni.
96
virtualidades semânticas”
163
, fazendo sua peça girar em torno do famoso e simbólico
livro.
Antes de passarmos para as últimas cenas, ainda queremos destacar que Don
Octávio também não foi poupado na peça de Saramago. Na apresentação do livro, o
autor diz que essa personagem “mal consegue disfarçar a cobardia sob as maviosas
tiradas que no texto de Lorenzo da Ponte vai debitando” (p. 15). A sua breve passagem
pela peça – três falas no total, uma delas em conjunto com as outras vítimas do
protagonista parece pouco justificada, servindo apenas, mas de forma cabal, para a
concretização daquele pensamento do autor
164
:
DON GIOVANNI: Leporello, a minha espada. Vou matar um idiota que desde que isto
começou não tem feito outra coisa que esconder-se atrás das saias da sua mentirosa amásia...
DON GIOVANNI (para Don Octávio): Defenda-se, senhor!
DON OCTÁVIO: Não cruzarei o ferro com um falso e um caluniador, seria envergonhar os
meus antepassados. Não mancharei a minha honra.
DON GIOVANNI: A minha espada é que vai ser manchada pelo teu sangue de poltrão. Se
não te defendes, escarro-te na cara, miserável. Pode ser que com essa última provocação a tua
honra se digne dizer-te o que é tua obrigação fazeres. Pela última vez te ordeno, defende-te!
(p. 77)
Don Octávio está morto. Mas suas palavras, “... cada dia que vivas será como uma
morte para ti” (p. 76), as únicas que poderiam justificar o desafio sofrido, ainda
continuarão a pertubar Don Giovanni.
3.2.4 – Cenas 5 e 6: a absolvição
Não havíamos ainda mencionado, mas no final da segunda e da terceira cenas
irrompe na casa de Don Giovanni o camponês Masetto, personagem que no texto de
Lorenzo da Ponte é o alvo preferencial, ao lado de Leporello, das ameaças e dos
163
JENNY (1979), p. 39.
164
No libreto de Lorenzo da Ponte, Don Ottavio, embora bem mais desenvolvido, é pouco mais do que
uma sombra de Dona Anna. Mas é a sua presença que impõe uma ameaça terrena ao sedutor, criando a
atmosfera de um iminente confronto entre ele e Don Giovanni. Só que não há sequer o duelo: Don
Ottavio permanece vivo e o sedutor é castigado pelo Céu.
97
“punhetaços” do protagonista, herança da Comédia dell’Arte, cuja influência ainda pode
ser sentida, na peça de Saramago, principalmente nas adjetivações – como “imbecil”,
“estúpido”. Apesar de ser uma personagem com um número significativo de
intervenções, a principal função do ciumento Masetto parece ser a de criar no leitor a
expectativa quanto à entrada em cena da sua amada Zerlina, mulher que, como na ópera
de Mozart/Da Ponte, o conquistador não lograra seduzir.
165
,
Em suas duas primeiras participações, Masetto fora à casa do sedutor em busca
da amada desaparecida. À pergunta de Don Giovanni, “Por que pensaste que a tua
Zerlina tinha vindo para aqui?” (p.45), o ciumento camponês responde: “Porque
enquanto existir Don Giovanni, tudo é possível” (p. 46). Mas Don Juan refuta, mais
adiante, a possibilidade de Zerlina tomar a iniciativa de vir ao seu encontro, insinuada
por Leporello:
LEPORELLO: O pobre Masetto, coitado, anda com a ideia fixa de que a sua Zerlina veio
para aqui. Já são duas vezes que vem cá perguntar. Imagino que algum motivo ela lhe terá
dado para que ele pense assim.
DON GIOVANNI: Seja ele qual for, não a trouxe a esta casa.
LEPORELLO: Até agora, senhor, até agora.
DON GIOVANNI: Leporello, és um ignorante, não entendes nada de psicologia feminina.
Uma mulher que se negou uma vez poderá não negar-se segunda, mas nunca o faria por
iniciativa própria, esperaria até que a rodeassem de novas súplicas, de novas implorações, em
suma, de novas manobras de sedução. Então, sim, içaria a bandeira branca que já tinha
preparada. (p. 69-70)
Don Giovanni ainda guarda na memória as marcas de um tempo em que
“Transformadas em objeto de uso, de trabalho e de prazer, às mulheres cabia a
passividade e a subserviência”.
166
É verdade que José Cardoso Pires alerta para o fato de
que o nosso herói, ao contrário de ser um representante da cultura marialva (à qual a
citação da professora Teresa Cristina Cerdeira se reporta), é uma ameaça aos valores
tradicionais. Contudo, para além de ter nascido na machista Espanha, e no século XVII,
165
No libreto de Lorenzo da Ponte, há a cena em que Don Giovanni tenta seduzir Zerlina, que quase cede
à ousadia do conquistador. Quem contribui para o malogro da tentativa é Dona Elvira ao denunciar,
também nesse caso, a impostura de Don Giovanni. Aqui, Zerlina é sempre citada, mas só aparece na
quinta cena.
166
SILVA (2000), p. 214.
98
também é certo que Don Giovanni, em todas as suas típicas reencarnações, sempre se
deparou – e disto se aproveitou – com uma situação de inferioridade da mulher, cuja
honra sequer lhe pertencia, como ressalta Renato Janine Ribeiro no ensaio A política de
Don Juan.
167
De qualquer forma, cabia ao homem a conquista, e Don Giovanni é o
conquistador por excelência.
As próprias palavras de Don Giovanni, acima transcritas, não indicam que ele
veja nas mulheres meras vítimas a serem subjugadas; não autorizam vermos nele um
representante da cultura marialva. Mas, conquanto menos escandalizada, a sua
perspectiva não está muito distante daquela que é glosada ironicamente pelo narrador de
A jangada de pedra, quando, diante da melindrosa questão de se saber como se
acomodariam os quatro companheiros na casa de Joaquim Sassa, Joana Carda diz que
ela e José Anaiço ficarão juntos: “...em verdade está o mundo perdido se já as mulheres
tomam iniciativas deste alcance” (JP, p. 163). Ainda na passagem acima transcrita, há
uma intenção irônica do autor, a qual, entretanto, só se completará mais adiante, quando
o dissoluto for absolvido.
Por enquanto, é a vez de o Comendador troçar do duvidoso sedutor: “Vencido,
Don Giovanni?” (p. 81). Mas não por muito tempo, pois entra finalmente em cena a
constantemente citada, e sempre ausente, Zerlina, para surpresa do sedutor:
DON GIOVANNI: Zerlina. Que fazes aqui?
(Don Giovanni corre à porta, traz Zerlina pela mão.)
DON GIOVANNI: Não esperava tornar a ver-te. (Mudando de tom.) Masetto tem andado à
tua procura. Já veio duas vezes perguntar por ti. Não sei por que se lhe meteu na cabeça que
poderias estar em minha casa...
ZERLINA: Não precisa fingir, todos sabemos porquê. Tentou seduzir-me e eu estive a ponto
de ceder. E ele teve medo de que eu tivesse vindo entregar-me por minha livre vontade. (p.
83)
Ao contrário do que diz Zerlina, nada indica que Don Giovanni estivesse a
fingir, mais um dado a reforçar a interversão de qualificação apontada anteriormente.
Em primeiro lugar, porque conhecemos a sua opinião sobre a possibilidade de Zerlina
167
Cf. RIBEIRO (1988), p. 14.
99
procurá-lo para entregar-se espontaneamente, o que é reforçado pela informação do
autor sobre o desconcerto do nosso herói imediatamente após aquela ousada fala da
humilde mulher. Em segundo lugar, porque Don Giovanni mostra-se dono de uma
integridade ética que não se restringe à sua postura diante da “facilidade hipócrita do
perdão”, postura, aliás, duvidosa, de acordo com a nossa interpretação anterior. Mas é o
que se percebe no caso do reencontro com Dona Elvira: ele não pretende divertir-se a
custa dela, como o protagonista de Lorenzo da Ponte, e tampouco lhe nega a
possibilidade de reconciliação no tom explicitamente afetado e irônico do herói de
Molière, que ainda tenta seduzi-la posteriormente (nas outras versões a esposa
abandonada não existe). Apesar de um certo sarcasmo anterior, ele diz francamente: “Se
não te retiras, terei de retirar-me eu. É inútil tudo quanto aqui se diga” (p. 60).
Embora o seu passado não seja negado, não se pode afirmar que esse novo Don
Giovanni tenha agido com a falta de escrúpulo que caracteriza especialmente o
protagonista de Tirso de Molina e que não é alheia nem ao de Molière nem ao de
Lorenzo de Ponte. A tentativa de burlar Dona Ana é o exemplo mais concreto, embora
não possamos comparar o episódio com a versão francesa, na qual Dona Ana sequer
existe. Com efeito, na peça de Molina, o burlador toma intencionalmente o lugar do
noivo
168
, que lhe confidenciara o encontro acertado. Na famosa ópera, ele age sob
disfarce e chega a ser acusado por Leporello de violentar a filha do Comendador.
Apesar de negar a consumação, Dona Ana confirma, mais adiante, a tentativa de
violação, o que pelo menos parece condizer com a sua enérgica e indignada reação
quando da ocorrência do fato, na primeira cena. Já o protagonista de Saramago não
toma o lugar de ninguém, não se disfarça, nem é acusado de tentativa de violação pela
mulher, não nos permitindo duvidar da sua resposta à acusação do Comendador: “Duas
168
Na peça de Molina, o noivo de Dona Ana é o Marquês de La Mota, amigo de Don Juan. Existe um
Duque Octavio, que, entretanto, é amante da Duquesa Isabela. Don Juan também se passa pelo Duque ao
burlar Isabela no palácio do rei de Nápoles, cena que abre a peça de Molina.
100
mil e sessenta e cinco disso a que chamaste faltas ou infâmias. Mas toma nota nessa tua
dura cabeça de que o estupro nunca foi uma actividade sexual do meu gosto. Don
Giovanni é um cavalheiro, não viola, seduz” (p. 33).
Saramago, nesse ponto, confere ao seu herói um perfil muito mais próximo do
arquétipo cultural, se comparado com as personagens das três mais importantes versões:
“Don Giovanni é um cavalheiro, não viola, seduz”. Parece ser essa a imagem que
importava ao autor imprimir no seu protagonista, pois, em entrevista ao jornal Folha de
São Paulo, ele justifica deste modo a absolvição de Don Giovanni: “Condeno, sim, a
hipocrisia pessoal e social que pretendia condenar um homem ao inferno só, como se
costuma dizer, por ter sorte com as mulheres”.
169
Retirada a carga de embusteiro, o
herói parece mais apto à absolvição, o que ocorrerá pela intervenção de Zerlina. Mas foi
preciso que a camponesa soubesse da existência, da substituição e da destruição do
verdadeiro catálogo, para se decidir a procurar Don Giovanni. Esse, ao saber da trapaça
e da destruição do símbolo das suas viris empresas, exclama, deixando-se cair numa
cadeira: “Enganado! Miseravelmente enganado! (Mudando de tom) E então resolveste
vir aqui para te rires de Don Giovanni... Tu também” (p. 85).
Enganado estava o protagonista ao chegar a tal conclusão, pois Zerlina supera a
condição de vítima vingativa do agora decaído sedutor e exerce a solidariedade que
caracteriza especialmente as personagens femininas de Saramago
170
: “Não vim para me
rir de ti. Vim porque havias sido humilhado, vim porque estavas só, vim porque Don
Giovanni se tinha tornado de repente num pobre homem a quem haviam roubado a vida
e em cujo coração não restaria senão a amargura de ter tido e não ter mais” (p.85-6).
Também aquele seu irônico engano de negar à mulher a possibilidade de entregar-se
“por iniciativa própria” será agora desfeito. Invertem-se os papéis impostos – senão, no
169
Folha de São Paulo, caderno Ilustrada, 02 de abril de 2005.
170
Embora em outro contexto, a solidariedade é uma característica especialmente marcante, por exemplo,
na mulher do médico, de Ensaio sobre a cegueira.
101
caso, pela cultura marialva – pela tradição donjuanesca: perdida, junto com o catálogo, a
aura de conquistador, é a vez de o nosso herói entregar-se, trêmulo, à Zerlina:
DON GIOVANNI: Já viste esse homem, agora podes ir-te. Don Giovanni está tão morto
como Don Octávio.
ZERLINA: Não irei.
DON GIOVANNI: Que queres que faça contigo?
ZERLINA: É tempo de que eu te conheça e me conheça a mim.
DON GIOVANNI: E Masetto?
ZERLINA: Não amo Masetto, amo-te a ti.
DON GIOVANNI: Tremem-me as mãos. Este não é Don Giovanni.
ZERLINA: Este é Giovanni, simplesmente. Vem. (p.86)
Graziella Seminara afirma que a supressão do título de “Don”, como vemos
acima, “dá lugar a um renascimento no sentido da libertação do peso do ‘mito’”
171
,
interpretação autorizada por Saramago ao dizer, em correspondência ao compositor
italiano, que “No lugar de Don Giovanni vai nascer Giovanni, outro homem”.
172
Mas é
também o próprio escritor quem demonstra a substancial concorrência do destino do
catálogo – queimado o verdadeiro, por Dona Elvira; lançado à chaminé, por Leporello,
o falso
173
– para a humanização do herói. Naquela mesma correspondência, Saramago
recusa a proposta de o criado de Don Giovanni iniciar um novo catálogo, inscrevendo o
nome de Zerlina: “Mas você se esqueceu de que aquilo que chama de “novo catálogo”,
isto é, o livro de páginas brancas, foi queimado (...). Tal “auto-de-fé” significa que, para
Don Giovanni, vai começar outra vida. Acabaram-se os catálogos com os nomes das
mulheres”.
174
Enfim, se até Jesus Cristo, sob a pena de Saramago, assume a sua humanidade, não
poderia ser diferente com Don Giovanni.
Dissemos mais atrás que a perspectiva do espanhol Gonzalo Torrente Ballester
assemelhava-se à do escritor português. Entretanto, é igualmente verdade que os
percursos de seus protagonistas são exatamente opostos. Assim como Carmen Becerra
171
SEMINARA (2005), p. 115.
172
Ibidem, p. 114
173
Informação do autor no início da sexta e última cena.
174
SEMINARA (2005), p. 114
102
Suárez viu na obra do espanhol a remitificação de Don Juan, provavelmente veria o
processo inverso na peça de Saramago, pois, enquanto o primeiro morre para tornar-se
um mito, o segundo ganha uma nova vida, livre daquele peso. E cremos que Jean
Rousset não haveria de discordar, já que não resta agora nenhuma das invariantes por
ele apontadas, nem o Grupo feminino, nem o Morto e nem mesmo, supõe-se, o
Inconstante. Só que o papel de desequilibrar a estrutura do tema, atribuído no século
XIX à Dona Ana, é agora de Zerlina: irrompendo na penúltima cena, impõe-se sobre
todo o Grupo feminino e, salvando o decaído e trêmulo Don Giovanni, faz em pedaços a
estátua de bronze.
Vimos que o Romantismo, além de tender a substituir o Grupo feminino por
uma única e predestinada mulher, estabeleceu uma certa cumplicidade com Don Juan,
em quem os escritores se projetavam, resultando na tendência à salvação do herói.
Saramago – que, embora longe da exaltação romântica do eu, projeta-se na personagem
– não foi, portanto, o primeiro a absolver Don Giovanni ao fazer “nascer Giovanni,
outro homem, que o amor perdoou.”
175
Foi também amor, inclusive, o instrumento de
salvação do protagonista do romântico Zorrilla, como verbaliza a heroína redentora,
Dona Inês: “...o amor salvou Don Juan” (ZORRILLA, p. 171).
176
Contudo, bem distante
estamos agora do argumento teológico do texto oitocentista, segundo o qual “um ponto
de contrição/dá a uma alma a salvação” (ZORRILLA, p. 167)
177
ou que a outorga à
intervenção de um justo, Dona Inês. Do protagonista de Saramago não se exige o
arrependimento e muito menos ele diria, como o outro, “Clemente Deus, glória a Ti!”
(ZORRILLA, p. 173).
178
Trata-se, afinal, de um escritor que proclama a glória do
homem, aqui mesmo, na terra.
175
SEMINARA (2005), p. 114.
176
No original: “...el amor salvó a don Juan”.
177
No original: “un punto de contrición/da a un alma la salvación”.
178
No original: “¡Clemente Dios, gloria a Ti!”
103
Muito distante estamos também do etéreo e idealizado amor dos românticos. A
perspectiva de Saramago é a da comunhão amorosa, aquela que, para ser plena,
reivindica o espaço sagrado do corpo. Dos corpos, por exemplo, de Jesus e Maria de
Magdala, que fizeram o filho de Deus reconhecer-se homem. É esse mesmo amor da
carne que fará Zerlina conhecer-se: “É tempo de que eu te conheça e me conheça a
mim” (p.86). Amor, ao mesmo tempo, sem a interdição da repressiva cultura judaico-
cristã, que está lá na raiz da criação de Tirso de Molina, como vimos. Por isso podem
M. e H. olhar a sua nudez “sem vergonha, porque o paraíso é estar nu e saber” (MPC, p.
270), por isso é sem culpa o amoroso pensamento de Ouroana: “Mogueime dirá, Não há
outro paraíso, e eu responderei, Assim não foram Eva e Adão porque o Senhor lhes
disse que haviam pecado” (HCL, p. 300). Enfim, enquanto o sublimado amor de
Zorrilla é capaz de livrar Don Juan das chamas do inferno, o sublime amor de Saramago
– além de absolver, na terra, Don Giovanni – faz arderem os amantes, rodopiarem todos
os planetas e as paredes do apartamento de H., faz abrirem-se para Maria Sara e
Raimundo Silva todas as comportas do dilúvio.
Aquém de uma possível investigação sobre a semelhança entre o pensamento de
Saramago e o dos filósofos ilustrados do século XVIII, não podemos deixar de assinalar
como coincidem as perspectivas do autor de Evangelho segundo Jesus Cristo e de
Diderot, pelo menos o autor destes fragmentos, extraídos do livro de Paulo Jonas de
Lima Piva:
Se a nossa religião não fosse uma triste e chata metafísica (...); se esse abominável
cristianismo não fosse estabelecido pela morte e pelo sangue; (...) se nossas idéias de pudor e
de modéstia não tivessem proscrito a visão dos braços, das coxas, das mamas, dos ombros,
toda a nudez; se o espírito de mortificação não tivesse murchado essas mamas, amolecido
essas coxas (...); se a virgem Maria tivesse sido antes a mãe do prazer do que a mãe de Deus,
se tivessem sido seus belos olhos, suas belas mamas, suas belas nádegas que tivessem atraído
o Espírito Santo (...); se a Madalena tivesse tido alguma aventura galante com o Cristo; se,
nas bodas de Canaã, o Cristo meio embriagado, um pouco não conformista, tivesse percorrido
o colo de uma das meninas do casamento e as nádegas de santa Joana ...
179
179
Apud PIVA (2003), p. 57-8.
104
E tampouco o alicerce moral do filósofo parece diferir daquele que testemunhamos na
ficção de Saramago:
Ao invés de edificar a moral sobre noções transcendentes como a de Deus e a da
espiritualidade e imortalidade da alma, Diderot apregoa alicerces extremamente opostos. Sua
moral materialista adota, com moderação, a imanência dos pendores naturais, isto é, as
paixões e os desejos, em última instância, a fisiologia como fundamento.
180
Assim como para os escritores libertinos – entre os quais Luiz F. Franklin Matos
inclui Diderot, o autor de Les bijoux indiscrets (1748) –, o erotismo para Saramago é
também uma forma de confrontar a moral tradicional, cuja base é religiosa. O narrador
de A jangada de pedra, embora se refira aos momentos de crise, levanta, inclusive, a
hipótese de que o livre exercício da carne “é o que mais convém aos interesses
profundos da humanidade e do homem, ambos costumadamente aperreados de moral”
(JP, p. 226). Ainda mais aperreados de moral eram os portugueses do século XVIII,
época dos transgressores Baltasar e Blimunda, os quais – dentro da instável, mas
pousada passarola – oferecem-nos um dos mais belos exemplos da poesia que sempre
acompanha o erotismo nas páginas de Saramago:
Em profunda escuridão se procuram, nus, sôfrego entrou ele nela, ela o recebeu ansiosa,
depois a sofreguidão dela, a ânsia dele, enfim os corpos encontrados, os movimentos, a voz
que vem do ser profundo, aquele que não tem voz, o grito nascido, prolongado, interrompido,
o soluço seco, a lágrima inesperada, e a máquina a tremer, a vibrar, porventura não está já na
terra, rasgou a cortina de silvas e enleios, pairou na alta noite, entre nuvens, Blimunda,
Baltasar, pesa o corpo dele sobre o dela, e ambos pesam sobre a terra, afinal estão aqui, foram
e voltaram. (MC, p. 262)
Mas o erotismo é apenas uma das faces do amor de Saramago. A outra é a
solidariedade e o respeito mútuos, possíveis apenas pela superação do opressivo poder
masculino. A professora Teresa Cristina Cerdeira demonstra que na escrita de Saramago
a opção pelo feminino integra-se ao projeto do escritor de revisão da cultura portuguesa,
no contexto de um país pós-74, apontando “para um sentido mais radical do processo
revolucionário, lá onde a questão ideológica ou política é ultrapassada para se chegar a
180
PIVA (2003), p. 56-7.
105
rasurar um modelo cultural de raízes patriarcais”.
181
Cerdeira identifica nos romances
que vão de Manual de pintura e caligrafia até Todos os nomes
182
as mulheres que, no
espaço textual, conquistaram o lugar que lhes fora negado pela cultura marialva, que
modelou as relações sociais desde o século XVII até o Estado Novo português.
Mulheres às quais se vem juntar Zerlina. Embora não seja uma personagem
desenvolvida na peça de Saramago, sua ação sobre o tema do conquistador é tão
revolucionária quanto à de M., na Revolução dos Cravos, ou à de Maria Adelaide
Espada, na revolução agrária.
Mas Zerlina insere-se num contexto mais amplo, aquele para o qual, mais além
do aspecto pátrio, o escritor português aponta ao colocar na boca de Simeão estas
palavras: “Se a lei não tivesse feito calar as mulheres para todo o sempre, talvez elas,
porque inventaram aquele primeiro pecado de que todos os mais nasceram, soubessem
dizer-nos o que nos falta saber” (EJC, p. 49-50). Talvez por isso sejam geralmente os
homens os aprendizes e mestras as mulheres, na ficção de Saramago, situação que não
se encontra apenas na relação entre Jesus e Maria de Magdala, mas também, embora em
variados graus, na de H. e M., Baltasar e Blimunda, Maria Guavaira e Joaquim Sassa,
Ricardo Reis e Lídia, sem falar na mulher do médico, guia de cegos, mais cegos ainda
os homens. Inspirados por uma mulher – mesmo que desconhecida, como em Todos os
nomes – ou sob o influxo direto do generoso amor feminino, a vida dos homens se
transforma. Deixemos em paz o filho de Deus e ofereçamos como exemplo Raimundo
Silva, que ultrapassa a condição de revisor e dá conseqüência ao seu “não”, assim como
Don Giovanni supera a sua condição de mito e se transforma em outro homem.
181
CERDEIRA (2000), p. 216.
182
O ensaio intitulado Mulheres e revolução: a cultura marialva posta em questão foi escrito em 1995 e
atualizado em 1999. Embora a professora não analise os Ensaios, é citada a mulher do médico,
personagem das duas obras.
106
Don Giovanni agora já sabe que as mulheres tomam, sim, a iniciativa. Na obra
de Saramago é assim geralmente, desde que H. reconheceu, apesar de parecer o
contrário, que fora a secretária Olga quem o havia seduzido. Já que o narrador explicita
e resume a história da sedução, peguemos o exemplo de Maria Sara “que em todas as
circunstâncias, desde o princípio, tomou as rédeas e a iniciativa, sem contemplações”
(HCL, p. 233). O comando, definitivamente, é das mulheres, como tem consciência
Maria Guavaira, que diz a Joaquim Sassa: “puxei o fio e vieste até à minha porta, até à
minha cama, até ao interior do meu corpo, até à minha alma” (JP, p. 187).
Em correspondência ao compositor italiano, Saramago confirma aquele
pensamento de H., negando até as anteriores e famosas conquistas do pretenso
conquistador: “A minha idéia é que Don Giovanni, ao contrário do que sempre se diz,
não é um sedutor, mas antes um permanente seduzido”,
183
como é explicitamente o caso
do Don Juan de Lord Byron. E também, pelo menos em relação à Zerlina, o do Don
Giovanni de Saramago, que, na sexta e última cena, transforma essa idéia numa espécie
de moralidade da sua peça, não no sentido moralizante do desfecho das obras de Molina
e de Da Ponte (Molière é irônico). Novamente à procura da amada, Masetto troca o
seguinte diálogo com Leporello:
MASETTO: Então é verdade que Zerlina está aí dentro?
LEPORELLO: Talvez sim, talvez não. Já te disse que não sei. Mas se ela está onde decidiu,
então, caro Masetto, tira o sentido dela, não lhe tornarás a tocar nunca mais.
MASETTO: Hei-de vingar-me.
LEPORELLO: Não vale a pena, Masetto, não percas o seu tempo. Deus e o Diabo estão de
acordo em querer o que a mulher quer.” (p. 90)
Mas não se pode esquecer que o principal pilar do projeto do escritor português
é a afirmação da liberdade humana. E é isso que ele declara quando questionado, em
entrevista ao Jornal Folha de São Paulo, sobre o que propunha de novo em relação às
outras versões de Don Juan:
183
SEMINARA (2005), p. 95
107
Salvo na versão de Byron, que de certa forma regenera Don Giovanni, todas as outras o
condenam. Eu, permita-se-me o pronome aparentemente imperioso, não só o não condeno,
como o absolvo, e não só o absolvo, como o deixo livre para pecar outra vez, se assim tiver
de ser...184
Apesar de não constar do texto de Saramago, sabemos por Graziella Seminara
que os últimos compassos da ópera, aprovados pelo escritor, são cantados por Dona
Elvira: “Absolvido, mas... por quanto tempo?”
185
Don Giovanni está livre para pecar
novamente, se assim decidir.
184
Folha de São Paulo, caderno Ilustrada, 02 de abril de 2005.
185
No original: “Assolto ma ...per quanto tempo?” (Nossa tradução) SEMINARA (2005), pág. 117.
108
4 – Conclusão
Terá a carreira de Don Giovanni chegado ao fim? Como vimos, Jean Rousset e
Carmen Becerra Suárez entendem que isso já havia ocorrido no século XIX, surgindo
no seu lugar uma diversificada prole de tipos donjuanescos, afastados do tradicional
argumento religioso. Mas essa interpretação baseia-se na perspectiva da condição mítica
do herói, perspectiva, aqui, apenas subsidiariamente adotada, por influência desses
estudiosos, duas das principais fontes teóricas da primeira parte desta dissertação, na
qual foi apresentado o percurso da personagem entre os séculos XVII e XX.
Independente do caráter mítico do herói, o certo é que, durante esses mais de
trezentos anos, modificaram-se substancialmente os valores e as crenças que fizeram
nascer o primeiro Don Juan como instrumento de um sermão edificante, através do qual
o escritor e religioso seiscentista, defendendo as teses contra-reformistas em oposição às
protestantes, pretendeu demonstrar didaticamente ao seu público o destino daqueles que
se comportassem como o seu protagonista: as chamas do inferno. Ainda no século
XVII, foi preciso que a personagem fosse assimilada pela Comédia dell’Arte italiana
para que ela pudesse ganhar rapidamente os palcos de outros países da Europa, quer
fossem eles protestantes, quer fossem menos rigidamente submetidos à tutela da
inquisitorial Igreja Católica. Embora recupere o fundo religioso do tema, que havia sido
completamente anulado pelos comediantes italianos, Molière o faz de forma
inconsistente, pois sua peça constitui-se numa sátira social, onde o principal alvo é a
hipocrisia inspirada justamente pela moral ditada pela religião.
Se é verdade que Mozart e Lorenzo da Ponte recuperaram a importância do
Morto, integrando de forma mais orgânica a presença da estátua de pedra, também é
certo que o argumento religioso não é mais o tema central da ópera, a ponto de uma das
109
personagens, Don Ottavio, se demonstrar surpresa com o castigo imposto pelo Céu,
como poderia ser o caso do público da época. Mas coube aos românticos a função de
extrair, a partir da influência da célebre ópera, novos significados da história do antigo
burlador de Sevilha. O sentido moralizante original não podia conviver com a tendência
à glorificação do herói, atormentado agora mais com o amor do que com o castigo
infernal. O espanhol Zorrilla foi uma das exceções, pois voltou a colocar o argumento
teológico como a viga-mestra da sua obra, mas com o objetivo de conferir ao amor um
poder transcendente.
Se Gonzalo Torrente Ballester – na metade do século passado, quando Don Juan
já vinha sendo destrinchado pela psicanálise – pôs a questão religiosa no centro da sua
narrativa, o fez para problematizá-la e para sustentar a liberdade humana. Hoje, de fato,
parecem inconciliáveis os pressupostos que fizeram nascer a personagem de Tirso de
Molina com os valores e as crenças de um mundo menos aperreado de religião e de
moral religiosa, onde castigos infernais e mortos retornados dificilmente conseguem
assombrar os leitores ou os espectadores, onde a sexualidade é menos transgressiva,
onde a mulher vai vencendo os últimos obstáculos à sua liberdade, seja no campo
sexual, seja em qualquer outra área dos seus direitos. Embora, claro, nada disso seja
uma verdade absoluta, nem uma realidade para todos.
Seja como for, essa é a realidade do universo de José Saramago e ela está
presente na sua peça teatral. Aliás, o confronto entre o Comendador e Don Giovanni é o
confronto entre a nova ordem e a antiga, de onde o autor, inclusive, extrai grande parte
dos efeitos cômicos da peça, especialmente pela exposição do anacronismo da estátua
vingadora. Se para Molina o Comendador era o portador dos valores que importava
sustentar, agora é Don Giovanni quem, embora não tenha a função de ser exemplar,
encarna a perspectiva do autor. Faltava ao sedutor aprender que a mulher pode, sim,
110
tomar a iniciativa; faltava assumir a sua humanidade, como Jesus Cristo, através do
generoso amor feminino.
Essas são algumas marcas do universo ficcional de Saramago que este trabalho
identificou em Don Giovanni ou o dissoluto absolvido, ao lado de outras, entre as quais
se destaca a afirmação da responsabilidade e principalmente a liberdade humanas. Para
cumprirmos esse outro objetivo, revisitamos algumas obras do escritor e procuramos
identificar perspectivas e procedimentos presentes na peça teatral.
José Saramago reabilitou e absolveu o antigo pecador, deixando-o livre para
pecar de novo, idéia que não está no texto, mas na ópera, que, como vimos, termina
deixando um espaço de ambigüidade sobre o futuro de Don Giovanni. Mas, pelas suas
próprias palavras, o dissoluto absolvido tem pouca chance de retomar a fulgurante
carreira de sedutor: “Antigamente era mais rápido na conquista, mais veloz no triunfo,
mais conclusivo na retirada (...) Don Giovanni está a fazer-se velho” (p. 28).
Como ele, o ancestral burlador talvez tenha que se adaptar à nova realidade. Sua
carreira pode estar encerrada como mito – e a versão de Saramago a encerra novamente
–, mas não como uma personagem que há quase quatro séculos desperta o interesse de
tantos artistas e, mais recentemente, de psicólogos e filósofos. Como contar histórias é a
arte de contá-las novamente, estão aí a obra de Saramago e as versões cinematográficas
para provar a vitalidade de Don Juan. E também o romance do brasileiro João Gabriel
de Lima, que, se não fosse anterior à peça do escritor português, bem poderia ser a sua
continuação. Se José Saramago, como ele diz, não só absolveu o dissoluto como o
deixou livre para pecar de novo, no romance de Lima o encontramos exercendo essa
liberdade num mundo alheio ao sobrenatural, nas ruas da moderna cidade de Sevilha. E
já consciente pelo menos de que, senão foi sempre assim, “Hoje em dia, a capacidade de
seduzir é prerrogativa das mulheres” (LIMA, p. 110), como ele afirma em entrevista à
111
jornalista que o havia burlado. O protagonista de João Gabriel de Lima também conclui
que está envelhecido e que “talvez fosse hora de sair de cena” (LIMA, p. 124). Mas não
se enganou quando, antes de morrer, teve este último pensamento:
A única eternidade possível é a da memória. E essa parecia garantida. Algumas mulheres,
claro, o esqueceriam. Mas tinha 1301 chances de que, pelo menos em alguns casos, isso não
ocorresse. Que, ao contrário, suas histórias fossem contadas para amigas e destas para outras
amigas, amantes e destes para outros amantes, filhos e destes para netos e bisnetos. Era uma
reflexão tranqüilizadora.
186
Para quem já morreu tantas vezes, provavelmente essa não será a última. Seja como for,
esta foi a sua maneira de burlar a morte: apossar-se da memória alheia. E teve êxito.
186
LIMA, João Gabriel de. O burlador de Sevilha. Op. cit., p. 125.
112
5 – Bibliografia
ARMESTO, Victor Said. La leyenda de Don Juan. Buenos Aires: Espasa-Calpe
Argentina S.A., 1946.
AZORÍN. Don Juan. Madrid: Espasa-Calpe S.A., 1974.
BALLESTER, Gonzalo Torrente. Don Juan. Barcelona: Ediciones Destino, 1963.
CAMPÉAS, Irene. “Don Giovanni”, uma trajetória pelas letras. Dissertação de
mestrado. Rio de Janeiro: PUC Rio/Faculdade de Letras, 1992.
CERDEIRA, Teresa Cristina. História e memória cultural: José Saramago e a sedução
camoniana. In: — O avesso do bordado – ensaios de Literatura. Lisboa: Editora
Caminho, 2000, p. 224-230
——. Mulheres e revolução: a cultura marialva posta em questão. In: — O avesso do
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——. Na crise do histórico, a aura da História. In: — O avesso do bordado – ensaios
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——. O evangelho segundo Jesus Cristo ou a consagração do sacrilégio. In: — O
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