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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
Carlos Eduardo de Albuquerque Filgueiras
“DO CIÚME AO CRIME”
crimes passionais no Recife da década de vinte
Recife
2008
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2
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
Carlos Eduardo de Albuquerque Filgueiras
“DO CIÚME AO CRIME”
crimes passionais no Recife da década de vinte
Dissertação apresentada por Carlos
Eduardo de Albuquerque Filgueiras em
cumprimento às exigências do Programa
de Pós-graduação em História da
Universidade Federal de Pernambuco
para a obtenção do grau de Mestre.
Orientador: Prof. Flávio Weinstein
Teixeira
Recife
2008
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Filgueiras, Carlos Eduardo de Albuquerque
“Do ciúme ao crime”: crimes passi
onais no Recife da década
de vinte / Carlos Eduardo de Albuquerque Filgueiras. -
Recife: O
Autor, 2008.
143 folhas : il., tabelas.
Dissertação (mestrado)
Universidade Federal de
Pernambuco. CFCH. História, 2008.
Inclui bibliografia.
1. História. 2 Crimes passionais
Década de 20. 3. Violência
conjugal. 4. Violência contra as mulheres. 5. Violê
gênero. 6. Honra. I. Título.
981.34
981
CDU (2. ed.)
CDD (22. ed.)
UFPE
CFCH2008/81
4
5
À mainha, Suzy e Marcela,
Pela força e compreensão de sempre.
6
AGRADECIMENTOS
Como o tempo passa rápido! Por mais clichê que isso possa parecer, parece que foi
ontem que eu estava aflito em decidir se deveria participar ou não da seleção de mestrado para
a turma de 2006. Era julho de 2005 e a seleção iniciaria em meados de novembro. Consultei
vários colegas e fui incentivado por praticamente todos. Decidi que faria. Larguei as turmas
em que dava aulas à tarde e fiquei praticamente três meses me dedicando somente à
construção do projeto e ao estudo para a prova da seleção. Nunca vou esquecer a tensão a
cada resultado das várias etapas do concurso. Enfim, no dia 19 de dezembro de 2005 recebi
um telefonema de Rogéria, secretaria do departamento de história e minha amiga, me
informando que eu havia passado. Passei! De lá pra cá o apoio dos antigos amigos só
aumentou e as novas amizades também só me ajudaram.
Para que tudo se realizasse não posso deixar de agradecer em primeiro lugar ao meu
orientador, professor Flávio Weinstein Teixeira. Mais do que uma relação entre orientador-
orientando, estabelecemos uma relação de amizade da qual muito me orgulho. A partir do
momento em que Antônio Paulo nos apresentou e ele me acolheu como orientando,
começamos uma parceria. Flávio é um observador nato. Em cinco minutos de conversa com
ele meu total desespero e angústia poderia se transformar num mar de novas possibilidades.
Não foi à toa que quando ele precisou se transferir para Brasília eu fiz questão de continuar
com as suas orientações mesmo via email. Perder as suas críticas e sugestões seria um
prejuízo sem tamanho para mim. Nesses dois anos e meio, vi que ele sabe dosar como
ninguém seriedade, bom humor, profissionalismo, cobrança e reconhecimento. Flávio, muito
obrigado por tudo!
Outro professor a que devo muito a minha formação de pesquisador é Antônio Paulo
Rezende. A experiência de dois anos como seu orientando no PIBIC me fez amadurecer
muito. Foi com Antônio Paulo que eu tive a minha primeira experiência em turmas da pós-
graduação. A sua prática de inserir os bolsistas da graduação em turmas da pós me deu um
pouco de uma coisa que é a sua cara: autonomia. Ele também me fez ver, assim como todos
que passam pelas suas turmas, que o ambiente acadêmico pode e deve ser um ambiente de
solidariedade. Além da cadeira de metodologia, tive mais duas experiências em disciplinas da
pós ministradas por ele (sem contar com introdução 2, na graduação). Em todas elas, além de
aprender para a academia e para a vida, fiz grandes amigos.
7
Quero muito agradecer à professora Suzana Cavani, que sempre me incentivou em
toda essa caminhada. Nossa aproximação começou quando consegui uma bolsa administrativa
na coordenação do curso de graduação na época em que ela era a coordenadora. Talvez ela
não tenha noção da força e do estímulo que ela me a cada encontro, por mais rápido que
seja. Professora, um beijo!
Também sou grato à professora Marion Teodósio por aceitar participar tanto da
qualificação como da banca de defesa e contribuir com sugestões valiosas para a construção
desse trabalho. Marion, junto com a professora Lady Selma, ambas da pós-graduação em
antropologia, ministraram uma disciplina chamada “Família, gênero e sexualidade”, de onde
saiu a idéia do capítulo 3 dessa dissertação. Ao professor Marc Hoffnagel, agradeço pela
riquíssima experiência de avaliar e ser avaliado por ele e por todos os colegas da turma na
disciplina “Seminário de dissertação”. Ao professor Jorge Siqueira, agradeço por quebrar um
pouco do rigor acadêmico e mostrar que para a fabricação de uma dissertação não se pode
prescindir da sensibilidade que os escritores e os filósofos oferecem. Do pessoal do
departamento também não posso esquecer o carinho de Rogéria, “secretária em chefe”, e de
Fátima, funcionária da coordenação.
Esse trabalho não poderia ser realizado se eu não contasse com o apoio do Memorial
de Justiça de Pernambuco, a quem agradeço na pessoa de Mônica Pádua, coordenadora da
instituição. A estrutura do arquivo para atender aos pesquisadores, a riqueza da documentação
e o profissionalismo dos funcionários e estagiários merecem ser experimentados por mais
pesquisadores. Além de Mônica Pádua, também agradeço aos funcionários Adílson Silva,
Ivan Oliveira, Carlos Amaral e Evaldo, e aos estagiários Raul Goiana, Emanuel, Valdilene,
Lígia e Carlos Bitencourt. A convivência quase diária durante boa parte do mestrado nos
tornou bons amigos.
A saudade dos amigos da turma de graduação não passa. A eles, que eu nunca vou
esquecer, também sou muito grato. Da minha turma agradeço especialmente a Enio Fagundes,
Maria Augusta Queiroz, Juliana Fazio e Filipe Domingues. Todos irmãos que a vida me deu.
Embora distantes e sem saber, todos me inspiraram e me ajudaram a fazer esse trabalho.
Sempre que me desesperava, pensava neles e tinha a impressão de voltar às aventuras dos
trabalhos e das descobertas da graduação, feitas muitas vezes em conversas de mesa de bar.
Outro cara que não era da minha turma, mas também considero um dos meus grandes amigos
é Flavinho, que mais tarde tive o prazer de tê-lo como companheiro na turma de mestrado.
Colega da bolsa administrativa na época de graduação, foi ele quem me chamou para
8
participar do PIBIC junto com ele e Antônio Paulo. Não fosse por ele, eu nem sei se estaria
aqui. Flavinho, essa dívida é eterna...
Durante esses dois anos e meio, fiz um círculo de amigos que não posso mensurar.
Conheci José Rogério mesmo antes da seleção em uma disciplina de graduação com Suzana
Cavani. Mesmo sabendo que seríamos futuros concorrentes, nunca nos tratamos dessa forma.
Ao contrário, Rogério sempre procurou me ajudar me emprestando textos e dando os mais
preciosos toques, dada a sua vasta carga de leitura. Depois que passamos pela seleção a
amizade só aumentou. O apartamento de Rogério foi o quartel-general de um grupo de estudo
(e de amigos, sobretudo) em que amos os trabalhos uns dos outros. Entre uma cerveja e
outra, nos ajudamos muito. Adílson Brito, responsável por observações valiosíssimas nesse
trabalho, é um desses amigos. Nada passa sem ser percebido pelo seu rigor metodológico.
Adílson e Rogério são desses caras que, seja qual for o assunto que se esteja conversando,
sempre têm um livro ou um artigo para indicar. Pela qualidade das nossas conversas, os
considero meus co-orientadores.Também participaram das discussões Carol Ruoso e Andreza
Cruz. A convivência com os demais colegas também foi gratificante. Vilmar Carvalho,
Geovani Cabral, Francivaldo Mendes, Emanuele Maupeou, Cinthia Barbosa, Taciana
Mendonça, Priscila Santos, Márcio Ananias e Pablo Porfírio foram excelentes colegas de
turma.
Ao pessoal do Colégio Bandeira, na pessoa do professor Adalberto Andrade, agradeço
pela compreensão quando, de repente, no meio do ano, decidi me afastar para me dedicar à
seleção do mestrado. Também agradeço a Andrea Matheus, minha coordenadora. Foi a ela
que primeiro confidenciei a decisão de me afastar do trabalho de modo tão brusco. Eu não
esperaria outra reação dela que não fosse o apoio. E assim foi.
Da parte da família, agradeço muito à mainha e Suzy pela compreensão do meu
afastamento de casa para me dedicar ao mestrado. Também agradeço a painho, tio Paulo, tia
Mana e Renata que, mesmo sem saber, também me ajudaram. À tia Júlia, por não deixar os
santos em paz sempre rezando por mim, e a Silvinha, por me ceder um instrumento
indispensável ao trabalho: o computador, também devo esse trabalho.
Quando o negócio ficava sério e era preciso relaxar um pouco, sempre pude contar
com a descontração dos amigos que nem tem conhecimento desse trabalho, mas me ajudaram
a esfriar a cabeça. Fábio, Bruno, o poeta Flávio, Rodrigo e Aluízio são alguns dos camaradas.
9
Também tenho uma vida enorme com Beto, grande companheiro com quem dividi sua casa
durante boa parte dessa trajetória.
Por fim, agradeço a Marcela por estar ao meu lado todo esse tempo sem nunca perder
a paciência ou cobrar as ausências que o mestrado me obrigou. Ao contrário, Marcela sempre
me ajudou a levantar quando o desânimo batia. Marcela me faz lembrar que a vida é mais.
Falar de Marcela faz a garganta engasgar...
A todos vocês, minha gratidão é eterna. Muito obrigado!
10
RESUMO
A violência contra a mulher no Recife da década de vinte, noticiada quase que
diariamente nos jornais da época, é o que este trabalho se propõe a discutir. Numa cidade e
tempo em que a ordem tradicionalista entrava em conflitos e diálogos com o advento de novos
comportamentos, a violência de gênero era um recurso corrente para homens que não
aceitavam que suas companheiras ou ex-companheiras desempenhassem condutas tidas como
não femininas. Para conservar uma ordem de gênero que comungava com práticas patriarcais,
os criminosos contavam com uma legislação tolerante para com esse tipo de crime, doravante
denominado “passional”. Os debates jurídicos da época davam sustentação às estratégias dos
advogados para defenderem seus clientes. Aliado a uma bibliografia que conta,
principalmente, com historiadores, antropólogos e juristas, o ponto de observação desses
conflitos de gênero que resultaram em crimes são processos judiciais. Através da observação
e análise dessas fontes, foi possível mapear aspectos gerais comuns aos crimes. Também foi
possível identificar a principal estratégia dos advogados para defenderem os agressores: ligar
o crime à defesa da honra. Embora aborde uma violência de gênero quase sempre favorável
aos homens, as mulheres não são vistas neste estudo como vítimas. Se os crimes contra elas
ocorreram, foram como resposta a tentativas de libertação de uma ordem social que
delimitava claramente os atributos do que era masculino e feminino. Ao serem agredidas por
desejarem “trabalhar fora” ou por não admitirem viver sendo maltratadas, as mulheres não
eram vítimas, mas agentes de transformação que não se conformaram com a idéia de que os
modelos são fixos e não podem ser quebrados. A partir dessa visão da mulher, este estudo
também pretende contribuir com as reflexões sobre os crimes passionais na atualidade, visto
que ainda é uma realidade bem presente no Brasil e, de modo particular, no estado de
Pernambuco.
Palavras-chaves: Recife – Crimes Passionais – Década de 20 – Violência de Gênero - Honra
11
ABSTRACT
This work aims at discussing about the violence against women in Recife in the 20s
decade, published almost daily in newspapers from that time. In a time and city where the
traditionalism was in conflict with the coming of new behaviors, gender violence was a
common resource used by men who did not accept that their partners or ex-partners had a type
of behavior considered not feminine. To keep a gender order that shared in common
patriarchal practices, the criminals had in their favor a tolerant legislation to this kind of
crime, called “passional”. The juridical debate of that time would give sustentation to the
strategies used by the lawyers to defend their clients. Combined to a bibliography that counts
with historians, anthropologists and jurists, the point of observation of these gender conflicts
that resulted in crimes are criminal processes. Through the observation and analysis of those
sources it was possible to draw general aspects common to the crimes. It was also possible to
identify the main strategy of the lawyers to defend the aggressors: connect the crimes to the
defense of honor. Although this work discusses the violence of gender almost favorable to
men, women are not seen as victims. If crimes against women occurred, those crimes were
like an answer to their attempts of freedom from a social order which clearly delimited the
characteristics of what was masculine and feminine. The women are not victims when they
are injured because they want to work outside or because they do not admit to be mistreated
but they are participants of transformation who did not accept the idea of fixed models that
cannot be broken. As from that women point of views, this study also intends to contribute
with the reflections about the nowadays passional crimes, as they are a present reality in
Brazil and especially in the state of Pernambuco.
Key words: Recife – Passional Crimes – the 20s decade – Genre Violence - Honor
12
LISTAS DE TABELAS
Tabela 1: Classificação dos crimes nos processos criminais
Tabela 2: Instrumentos Utilizados nos Crimes
Tabela 3: Horários em que os crimes foram cometidos
Tabela 4: Classificação de agressores e vítimas segundo o sexo
Tabela 5: Faixas etárias de agressores e vítimas
Tabela 6: Instrução de agressores e vítimas segundo o sexo
Tabela 7: Profissões de agressores e vítimas
Tabela 8: Tempo decorrido entre a o inquérito e a denúncia
Tabela 9: Duração dos processos
Tabela 10: Absolvições e condenações dos envolvidos
13
SUMÁRIO
Introdução.............................................................................................................................................13
Capítulo 1: Em nome da lei, em defesa da honra: a legislação e os crimes passionais ..................35
1. Código Penal de 1890: breve contexto histórico ...........................................................................36
2. Escola clássica e escola positiva: visões divergentes sobre o crime, o criminoso e a honra..........41
3. Defendendo a honra nos tribunais..................................................................................................47
Considerações finais...........................................................................................................................56
Capítulo 2: Os crimes, os criminosos e a justiça................................................................................59
1. O lugar da abordagem quantitativa na pesquisa.............................................................................62
2. Os crimes........................................................................................................................................64
2.1 Instrumentos.............................................................................................................................66
2.2 Locais e horas...........................................................................................................................69
2.3 Motivações...............................................................................................................................71
3. Os envolvidos.................................................................................................................................73
3.1 Relações entre agressor e vítima..............................................................................................74
3.2 Idades .......................................................................................................................................77
3.3 Instruções e ocupações.............................................................................................................79
3.4 Cor............................................................................................................................................83
4. Funcionamento da justiça...............................................................................................................84
4.1 Tempo ......................................................................................................................................84
4.2 Condenações e absolvições......................................................................................................87
Considerações finais...........................................................................................................................90
Cap. 3: Rupturas e permanências da ordem social...........................................................................93
1. Parâmetro teórico-metodológico....................................................................................................95
2.Os casos.........................................................................................................................................100
2.1 Traição e separação: pontos de vista distintos segundo o gênero ..........................................101
2.2 Trabalho e responsabilidade material.....................................................................................109
2.3 Honra, família e bom comportamento: métodos eficazes de permanência............................111
2.4 Colhendo os frutos do bom comportamento ..........................................................................122
Considerações finais.........................................................................................................................131
Conclusão............................................................................................................................................134
Referências bibliográficas..................................................................................................................137
14
I
NTRODUÇÃO
oje, ao lermos as páginas policiais dos jornais recifenses da década de
vinte, pode nos causar estranheza e até surpresa a quantidade de notícias
envolvendo crimes passionais. Notícias como “Do ciúme ao crime ou
“Quase foi assassinada por não querer reconciliar-se com o ex-amante”
1
eram vistas com freqüência durante o período. A partir do momento que essa constância foi
percebida, a curiosidade para saber dos meandros e do desenrolar dos casos aumentava a cada
novo crime. Logo surgem alguns questionamentos: o que levaria tantos homens a agredirem
ou assassinarem suas companheiras?; esses casos eram levados adiante?; e se eram, qual o
desfecho que eles tomavam? Por serem muito breves, as notas dos jornais não nos permite
saber mais nada além da ocorrência da infração. Como a curiosidade aumentava, resolvemos
procurar processos judiciais resultantes dos crimes. Qual não foi a nossa surpresa ao
constatarmos que os processos existem. Ler os processos apenas para matar a curiosidade
seria muito pouco diante da riqueza do material encontrado. O tema e as fontes mereciam uma
pesquisa.
2
O objetivo desta dissertação é estudar, basicamente através de processos criminais,
como os casos de crimes passionais eram tratados pelos atores jurídicos e resolvidos pela
justiça. Tomaremos como pano de fundo o contexto, já abordado em várias pesquisas, da
modernização das práticas sociais no recorte espaço-temporal proposto.
3
Nossa problemática
gira em torno de três questões básicas: 1 se a justiça estava acompanhando o que
costumamos chamar de modernização (e até que ponto ela não teria sido conservadora para o
campo jurídico
4
); 2 se é possível perceber regularidades nesses crimes; 3 quais
1
A Província, 24/02/1923 e Jornal do Comércio, 29/09/1928, respectivamente.
2
Todos os processos estudados nessa pesquisa estão arquivados no Memorial da Justiça de Pernambuco. Sem a
estrutura para a recepção de pesquisadores e visitantes, a presteza e o profissionalismo dos profissionais e
estagiários do memorial essa pesquisa certamente nem teria iniciado.
3
Quando dizemos que temos por objetivo estudar o discurso do judiciário em relação à modernização das
práticas sociais, não queremos “coisificar” as práticas sociais, uma vez que o conceito de “modernização” é
comumente ligado ao aspecto tecnológico. Procuramos seguir a sugestão de Modris Eksteins de estender os
conceitos de modernização e modernismo a aspectos políticos e sociais, sem que isso signifique tirar dos
mesmos o calor e as indeterminações da condição humana. Cf. EKSTEINS, Modris. A Sagração da Primavera.
Rio de Janeiro: Rocco, 1991, p. 14.
4
Não queremos suprimir da dinâmica da história a não-modernização, as forças contrárias a esse movimento que
eram declaradamente conservadoras. Ocorre que identificamos, em algumas ocasiões, idéias e medidas ditas
modernas cujos objetivos visavam muito mais a permanência do que a mudança. Tome-se o exemplo da
medicina social, que, em nome da ciência moderna, “provava” que o homem era predisposto à traição e a mulher
não. Isso significa que, adotada essa concepção, a traição do homem continuaria sendo aceita como normal,
H
15
argumentos eram utilizados para a defesa de aspectos tradicionais da família e da honra e que
atitudes eram tomadas em contrário.
A idéia de pesquisar o tema surgiu durante uma pesquisa de Iniciação Científica
(PIBIC/CNPq) intitulada Itinerários da modernidade: registros históricos da solidão no
Recife dos anos vinte”, orientada pelo professor Antônio Paulo Rezende. Foi essa pesquisa
que nos colocou em contato com os jornais e revistas que circulavam na época. Como foi
mencionado, nos surpreendeu o grande número de notícias relativas a assassinatos ou
agressões por motivos passionais nos jornais. A opção dos processos como fontes principais
se deu em função dos jornais não trazerem informações consistentes a respeito do desenrolar
dos crimes. Justificamos a escolha do recorte espaço-temporal no fato de já haver um
conjunto de trabalhos sobre o Recife dos anos vinte em várias áreas tendo como pano de
fundo a questão da modernidade. Nosso estudo sobre a visão do Estado, através da justiça,
sobre as relações de gênero na sociedade e quais as estratégias utilizadas pela justiça e pelos
envolvidos para tratar da questão vem somar-se a esse conjunto de trabalhos.
Pretendemos contribuir identificando como se davam as lutas entre os que defendiam
uma posição de permanência dos códigos sociais através das práticas de absolvição de
criminosos passionais, e os que se mostravam favoráveis a uma abertura em relação ao papel
da mulher na sociedade, admitindo uma igualdade, ainda que incipiente, de direitos com os
homens. O aprofundamento das discussões jurídicas e suas implicações diretas nos processos
criminais terão lugar nos três capítulos que compõem essa dissertação.
A escolha dos processos judiciais como fontes é justificada por neles haver um
confronto de direitos e deveres. Um processo expõe uma crise de valores que, ao ser resolvida
pela justiça, não se restringe apenas ao crime. O desfecho de um processo mostra à sociedade
o que o judiciário, enquanto instituição criadora e difusora de valores, esperava do
comportamento dos indivíduos. Nas palavras de Mariza Corrêa, o que é uma decisão
social.
5
Dada a importância e a complexidade dessa decisão, é certo que o estudo dos
processos não é tarefa das mais simples. A linguagem específica, a mediação das falas de
todos os envolvidos por escrivães, enfim, todos os rituais próprios dos processos foram
dificuldades que enfrentamos nos primeiros contatos com as fontes. Para Pierre Bourdieu, a
enquanto a traição por parte da mulher continuaria a ser severamente punida. A ciência moderna, nesse caso,
vem corroborar traços relacionais baseados no tradicional modelo de família patriarcal.
5
Cf. CORREA, Mariza. Morte em Família: representações jurídicas de papéis sexuais. Rio de Janeiro: Graal,
1983.
16
entrada no campo jurídico implica diretamente a redução daqueles que, ao aceitarem entrar
nele, renunciam tacitamente a gerir eles próprios o seu conflito (pelo recurso à força ou a um
árbitro não oficial ou pela procura direta de uma solução amigável), ao estado de clientes
dos profissionais.
6
A linguagem específica e a mediação das falas são exemplos de estratégias
de garantia do monopólio do campo jurídico pelos seus técnicos. Estas especificidades
técnicas foram superadas na medida em que o contato e a “intimidade” com os processos foi
aumentando.
Na introdução, nos preocuparemos em apresentar, embasados em artigos de jornais e
periódicos da época, bem como na historiografia, o Recife enquanto cenário da nossa
pesquisa. Uma cidade que, apesar de ter uma forte carga de tradicionalismo, não parava de
receber e ser surpreendida por novidades as mais diversas, nos mais diversos campos. Nas
linhas que seguem, mostraremos que o Recife aristocrático de Gilberto Freyre é o mesmo que
acompanhava, acomodando ou receando, novos comportamentos; que o Recife das reformas
urbanas nos moldes das mais avançadas cidades européias é o mesmo que amontoava seus
excluídos em mocambos, cada vez mais numerosos; que o Recife, cujas mulheres pareciam
aspirar um anseio de liberdade com a adoção de novos costumes, é o mesmo em que os
homens as agrediam e matavam por esse mesmo motivo.
Todas as obras, fontes e pesquisas que serão citadas aqui nos ajudarão a compreender
melhor os cenários do Recife na década de vinte, a pensar os contextos sociais diante de um
período tão agitado.
Ao lermos algumas pesquisas e obras sobre o Recife dessa época, percebemos que os
autores enxergam, no campo social, um conflito entre práticas sociais conservadoras e
tradicionais e o desejo de renovar algumas destas práticas. Antonio Paulo Rezende nos mostra
que os valores estabelecidos se confrontavam e dialogavam com uma ânsia de mudança de
comportamentos, idéias e valores. Isso ocorria em vários aspectos da atividade humana.
7
O
homem, ao mesmo tempo em que se fascinava pela modernidade, também parecia perceber
que o progresso científico estava dissociado do progresso moral. Ou seja, a promessa
iluminista de que o desenvolvimento científico e tecnológico beneficiaria a todos estava
6
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Coleção Memória e Sociedade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989,
p. 230.
7
REZENDE, Antônio. (Des)encantos modernos: histórias do Recife da década de vinte. Recife, FUNDARPE,
1997. Elegemos essa obra como o fio condutor que permitirá a visualização do nosso Recife. É a partir da
pesquisa de Antônio Paulo que contextualizaremos a cidade e as fontes. Foi, ainda, a partir de (Des)encantos
Modernos que se desenvolveu um conjunto de trabalhos sobre as faces da modernidade nesse cenário.
Consequentemente, sobre a literatura referente ao Recife na década de vinte, também nos concentraremos com
ênfase na produção oriunda do Programa de Pós-graduação em História da UFPE.
17
caindo por terra. Cada vez mais se percebia que os benefícios e privilégios modernos que
tinham como ideal aproximar as pessoas, na prática contribuía para separá-las, pois o
atendiam a todos os setores da sociedade de forma homogênea. Os artigos em jornais são
ótimas fontes para capturarmos tanto o fascínio como as desilusões em relação ao que se
esperava (ou se constatava) da modernidade. Não é difícil encontrar em um mesmo jornal
opiniões entusiasmadas e outras angustiadas como as que seguem nos próximos parágrafos.
Em 17 de novembro de 1927, num artigo publicado no Jornal do Comércio, o
colunista S.F. expressou as angústias e incertezas sentidas na época ao relacionar a onda de
modismos vividos pela cidade com um contexto mais geral:
A nossa época é de transição e tudo que agora fazemos uma resultante do profundo
abalo que o mundo sofreu com a guerra monstruosa de 14. Não foi impunemente
que a humanidade se pôs, durante um lustro, a afundar num maelstrom (sic) de
sangue, onde se confundiram e subverteram todos os valores culturais da espécie.
Esta convicção está hoje em todos os espíritos e poderemos ficar certos de que a
perversão do gosto, por mais generalizada, terá cedo ou tarde de corrigir-se ao
influxo das idéias menos materialistas e grosseiras.
S.F. enxerga as novidades de forma tão negativa que imediatamente as associa ao
colapso e a insanidade representados pela primeira grande guerra. Assim, a subversão cultural
(ou perversão do gosto) parecia ser uma coisa esperada após um evento tão trágico. Mas
como algo tão ruim não pudesse durar muito tempo, tudo isso é tomado como parte de uma
transição após a qual tudo seria corrigido (ou melhor, retomado). Em suas palavras, o
colunista deixa transparecer que nada parecia ser mais inseguro que a novidade, nem mais
seguro (e saudoso) que o estabelecido.
Com importância regional destacada, o Recife do início do século XX vivia um surto
de crescimento que pode ser expresso nos dados de crescimento demográfico: enquanto em
1900 havia 113 mil habitantes na cidade, em 1920 esse número já subia para 239 mil.
8
Sabemos que por trás dos números esse crescimento provocava efeitos práticos na sociedade.
Os benefícios trazidos por uma situação econômica favorável diante de regiões próximas
(advindos principalmente de um setor de serviços significativo
9
) se fizeram acompanhar de
8
REZENDE, Antônio Paulo. O Recife: histórias de uma cidade. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife,
2002, p. 94.
9
Idem.
18
problemas urbanos comuns a qualquer cidade que cresce desordenadamente e num ritmo tão
rápido. João Outro, editor d’A Pilhéria, registrou o clima de insegurança vivido pelo Recife
quando afirmou que a cidade passava por fatos lamentáveis, incidentes, suicídios, crimes,
além de outros casos menos sanguinolentos.
10
As páginas policiais estavam repletas de casos
de roubos, assassinatos e suicídios. Esses últimos, cometidos muitas vezes pelas largamente
denominadas “dificuldades de vida”, o que traduzia, geralmente, desemprego e dívidas, cuja
conseqüência imediata era a incapacidade de prover os sustentos da família. Assim foi o caso
do comerciante Januário Heráclito de Souza, morador da Várzea, que, endividado, ingeriu
permanganato de potássio.
11
Outro ponto que denuncia o desenvolvimento urbano é a mudança da paisagem através
de uma ampla reforma urbana que estava acontecendo na cidade desde o início do século.
Entre 1909 e 1916, as intervenções focaram-se na zona portuária, dada a sua importância para
o comércio regional. Entre os anos de 1922 e 1926, o governador Sérgio Loreto promoveu
reformas cujo objetivo era ligar o centro da cidade aos subúrbios. Para isso, largas avenidas
teriam que ser construídas “em cima” de diversas ruas estreitas, o que foi feito. Não por acaso,
foi nessa época que as populações de bairros como Graças, antes um dos menos populosos e
mais aristocráticos do Recife, teve um crescimento significativo de sua população com o
aumento, conseqüentemente, do número de mocambos. A população do subúrbio crescia
justamente por estar sendo expulsa pelas reformas no bairro do Recife. Se, por acaso, dentre
as intenções de tais reformas estava o quesito segurança, o governo deu um “tiro no pé” na
medida em que transferiu o problema do centro para o subúrbio da cidade. O resultado foi o
clima de insegurança descrito por João Outro no parágrafo anterior.
Nesse momento, a urbanização também se associa aos ideais higienistas amplamente
difundidos na época, principalmente após a nomeação de Amaury de Medeiros para o
Departamento de Saúde e Assistência de Pernambuco, em fevereiro de 1923. Até então, o
Recife estava entre as cidades menos higiênicas do país. Octávio de Freitas chegou a registrar
que num período de quarenta e nove anos (1851-1900), quatorze doenças provocaram noventa
e quatro surtos. Estes atingiam tanto os mocambos da Encruzilhada e de Afogados como as
10
A Pilhéria, nº 157 (27/09/1924).
11
Jornal do Comércio (25/02/1927). Os casos de suicídio eram comuns entre homens e mulheres. O que muda
são os motivos (pelo menos, o que era noticiado) que levavam ambos a atentar contra suas vidas. Como
dissemos, os suicídios dos homens eram geralmente atribuídos às “dificuldades de vida”, enquanto as notícias de
suicídios de mulheres relacionavam-se a questões amorosas. As mais comuns eram traições sofridas ou amores
não correspondidos.
19
famílias mais abastadas de Santo Antônio.
12
Uma das finalidades das reformas era justamente
tentar erradicar essas doenças da cidade. O saneamento era tido como a possibilidade mais
viável para isso.
Mas o higienismo não estava associado somente à questão da saúde. Gustavo Lopes
observa que, de acordo com os discursos da época, o “sanitarismo físico” estava diretamente
associado ao “sanitarismo moral”.
13
O projeto higienista transfigurou-se num projeto
civilizatório. O papel do governo era intervir não nos costumes, mas também em questões
objetivas como a melhoria das condições de habitação, o que não ocorreu. Como dissemos, o
que ocorreu foi a transferência da população do centro para outros bairros em condições
iguais ou até piores de moradia, como denunciou um colunista ao afirmar que em alguns
pontos da cidade era possível ver seres humanos habitando em mangue, o que é um choque
com os atestados de progresso
14
. O que está escrito nessa nota representa bem o que acontecia
e era percebido na época: admissão de que o progresso se fazia presente, mas não se estendia
a todos. No entanto, ao comentar sobre os “seres do mangue”, o colunista não deixa clara sua
posição de que o choque com o progresso deveria ser erradicado com a ampliação das
reformas a eles ou se o mangue era justamente o lugar destinado aos excluídos pelas reformas,
assim como eram os morros no Rio de Janeiro.
15
Mas alguns pareciam empolgados com as transformações da paisagem recifense.
Ironicamente, o mesmo colunista que denunciou os “seres do mangue” afirmou na mesma
nota que quem quer que tenha conhecido o Recife de algum tempo atrás e o visite hoje ficará
surpreso com as transformações por que tem passado. Ele exaltou a modernização presente
em obras como parques e jardins na Avenida Boa Viagem e a remodelação do Bairro do
Recife.
12
COUCEIRO, Sylvia Costa. Médicos e charlatães: conflitos e convivências em torno do ‘poder da cura’ no
Recife dos anos 20. In: Clio: revista de pesquisa histórica, nº 24, vol. 2, 2006, p. 10. Nesse artigo,a autora analisa
a convivência e os conflitos entre a medicina baseada no racionalismo científico europeu e as práticas de cura
populares largamente denotadas como charlatanices pelos defensores da “medicina oficial”.
13
LOPES, Gustavo Acioli A Cruzada Modernizante e os Infiéis no Recife: higienismo, vadiagem e repressão
policial. Mestrado em História. UFPE-CFCH, 2003. p. 79.
14
Jornal do Comércio, 16/01/1927.
15
Através das notas do colunista João do Rio, Nicolau Sevcenko mostra que surgiam dois Rios de Janeiro fruto
da reforma (urbana) o da Regeneração e da nova norma urbanística, racional e técnica e o outro, o labirinto
das malocas, do desemprego compulsório e “livre de todas as leis”. Sevcenko informa que a ocupação dos
morros se deu por conta da expulsão das pessoas dos cortiços pelo novo projeto urbanístico republicano,
denominado de “bota-abaixo”. O autor ironiza a situação de ocupação dos morros afirmando que enquanto
alguns subiam na escala social, outros, literalmente, subiam expulsos para os morros da cidade. Cf.
SEVCENKO, Nicolau. A Capital Irradiante: técnica, ritmos e ritos do Rio. In: História da Vida Privada no
Brasil, vol. 3. São Paulo: Cia. Das Letras, 1998, p. 541-545.
20
Outra reação às reformas urbanas pode ser percebida na nota “O Adeus do Pároco”
16
.
A nota traz a história da última missa realizada em uma igreja que seria derrubada para a
construção de uma avenida. Após contar todo o histórico da igreja, desde sua fundação,
passando pelos holandeses (que a transformaram em templo protestante) e a retomada
católica, quando se tornou matriz, a nota destaca a tristeza e a saudade dos fiéis, do sacristão
e do padre. Para estes, a reforma urbana deveria estar significando a própria destruição de
parte da história tanto do Recife como de suas próprias vidas. Por trás da tristeza e saudade
certamente também havia uma insegurança em relação à modernização: será que valeria a
pena abrir mão do que foi conquistado em nome de valores que não respeitam nem a
história? Ainda mais quando não se observavam melhorias nas reformas, como afirma Souza
Barros sobre a demolição da Igreja do Corpo Santo: a demolição destes monumentos não
resolveu nenhum problema urbano, agravou apenas os defeitos já existentes.
17
Mais triste que os fiéis, o padre e o sacristão, no entanto, deveria estar Manoel Caetano
Filho, o Maneco, que também reagia à nova face que o Recife adquiria em virtude das
reformas. Tradicionalista, Maneco adorava o Recife Antigo, Olinda e outras cidades coloniais
como Ipojuca, Igarassu, Rio Formoso, São Lourenço, Escada, Pau D’alho e Itambé. Em um
artigo d’A Pilhéria
18
é citado o sofrimento de Maneco a cada remodelação do Recife. O texto
traz algumas informações sobre o cotidiano do bairro de São José que Maneco tanto adorava,
com suas galinhas, seus cães magros e vadios, as cabras soltas, as roupas estendidas nas
calçadas, os meninos nus, pançudos e amarelos, as mulheres pálidas e desgrenhadas, para
Maneco era um encanto, motivo para passeios demorados. Quanto ao Recife moderno,
Maneco tem ojeriza, nem gosta de ver... Acha seus prédios imitados, franceses, pernósticos.
Segundo o autor da história, o Recife não sabe se remodelar e cresce confuso. Levado a um
passeio por vários bairros, Maneco se decepcionou ao ver o bairro dos Aflitos, onde o
modernismo tinha açambarcado aquele lugar. O que podemos perceber aqui é que Maneco
não via as reformas de forma positiva por uma questão apenas pessoal e estética. Os meninos
pançudos e amarelos e as mulheres pálidas não eram motivos de preocupação como também
não foi o paradeiro dessas pessoas (quem sabe expulsas para os mangues que citamos
outrora?) após as reformas.
A história de Maneco e da destruição da Igreja nos mostram que as intervenções
urbanas estavam acontecendo no Recife mexiam nas vidas das pessoas, até de quem não era
16
A Pilhéria, nº 153 (1924).
17
Apud. LOPES, Gustavo. Op. cit. p. 19.
18
A Pilhéria, nº 157 (27/09/1924).
21
alvo das mudanças, como Maneco, que deixa claro se incomodar com a mudança na
paisagem. Outro ponto que podemos concluir das notas acima é que a remodelação do Recife
atendia tanto às demandas higiênicas (os cães vadios e magros, as cabras soltas e as galinhas
pareciam não mais serem vistos nas ruas de São José) quanto estéticas (é bem provável que os
casarões dos Aflitos não tenham sofrido reformas pelo mesmo motivo do casario de São José;
a construção de avenidas com a conseqüente derrubada da Igreja era uma característica
das reformas urbanas que ocorriam desde o século XIX
19
). Gustavo Lopes observa que esses
eram, aliás, os argumentos dos defensores das reformas.
As edificações erguidas no período colonial e imperial passaram a ser consideradas
antiestéticas e insalubres, sobretudo aquelas que serviam de moradia, na forma de
pensões, cortiços, quartos de aluguel, em suma, de moradia popular.
20
Ainda no campo social, a já outrora mencionada importância regional do Recife
também proporcionou a formação de uma classe operária que logo soube construir
movimentos organizados. As greves e a difusão de idéias socialistas através de jornais
operários eram estratégias de resistência que não os trabalhadores, mas os menos
favorecidos de uma forma geral criavam para tentar reivindicar melhores condições de
trabalho e sobrevivência. Mas à medida que isso ocorria, os setores mais abastados passavam
a rever suas formas de dominação. Sylvia Couceiro traduz bem o clima da época quando
afirma que
os anos vinte apareceram como um momento importante (em que) novas formas de
luta dos trabalhadores e a ação cotidiana das camadas populares (contestava)
determinações oficiais, (gerando uma alteração na) visão das autoridades da cidade
em relação às condutas que deveriam ser usadas para garantir o domínio sobre a
cidade.
21
O uso da força, embora longe de ser abolido, abria espaço para negociações.
No campo artístico também havia embates entre tradicionalistas e modernistas. Souza
Barros chegou mesmo a afirmar que o movimento modernista do Nordeste localizou-se quase
19
Como exemplo da reforma em Paris, cf. HOBSBAWM, Eric. A cidade,a indústria, a classe trabalhadora. In:
A Era do Capital. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001. No Rio de Janeiro, cf. CARVALHO, José Murilo de.
“Cidadãos ativos: a revolta da vacina”. In: Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a república que não foi. São
Paulo: Cia. Das Letras, 1987 e SEVCENKO, Nicolau. Op. cit. p. 545.
20
LOPES, Gustavo. Op. cit., p. 19.
21
COUCEIRO, Sylvia. Op. cit., p. 25.
22
exclusivamente no Recife
22
. As citações que seguem podem nos mostrar esse ambiente de
divergências.
Como reação ao modernismo, a nota de uma revista de grande circulação local dizia
que um escritor resolveu não publicar mais seus escritos clássicos por achar que o futurismo é
um ídolo de um bando de imbecis
23
. Como contraponto, em outubro de 1924, o escritor Raul
Machado lançava o livro “Pelo Abolicionismo da Arte”, cujo objetivo era a batalha pela
abolição dos velhos preceitos, das antigas regras que obrigavam o verso a um
empartilhamento atrofiante. O autor saia em defesa do credo reformulador da arte
moderna.
24
Em cada caso, cada um constrói seu discurso tentando desqualificar o outro lado.
Se para um conservador a arte tradicional é pura e o modernismo é para os imbecis, para o
modernista a arte tradicional limita a criatividade ao restringir a forma.
A seção “Mundo das Letras”, publicada pela primeira vez no Jornal do Comércio do
dia 29 de janeiro de 1928, era destinada à publicação de poemas. Ao definir o caráter do
quadro que estreava, o colunista afirmou:
Não preferências passadistas nem modernistas. A questão está na qualidade (...).
Estamos numa época de grandes transformações, de grandes choques artísticos.
os que levem essa revolução a paroxismos inconcebíveis (...). os que não
admitem qualquer modificação na poesia tradicional (...) (grifo nosso).
Vemos aqui que uma síntese relativamente imparcial em relação aos embates literários
ocorridos na época. Mas ao mesmo tempo a citação mostra a visão dos extremos. Enquanto os
mais conservadores não admitiam mudanças, enxergado-as como uma blasfêmia, os
modernistas, ao levarem a arte a paroxismos inconcebíveis, pareciam buscar uma estética
revolucionária cuja compreensão era posta em dúvida.
Ainda no campo literário, não podemos deixar de registrar os debates entre Gilberto
Freyre e Joaquim Inojosa. Em “(Des)encantos modernos”, Antônio Paulo Rezende dedica um
capítulo ao estudo das visões desses dois personagens em relação à modernidade no Recife
dos anos vinte. Freyre apresentava uma certa antipatia com os excessos modernistas, um
relembrar da força significativa e imprescindível das tradições
25
. Antônio Paulo, estudando
22
Barros, Souza. A Década de 20 em Pernambuco. RJ: Editora Acadêmica, 1972.
23
A Pilhéria, nº 157 (27/09/1924).
24
A Pilhéria, nº 158 (04/10/1924).
25
REZENDE, Antônio Paulo. Op. cit., p. 143.
23
as anotações pessoais de Gilberto Freyre e artigos publicados por ele em jornais, em que estão
presentes suas reflexões sobre as relações entre o moderno e o tradicional
26
, afirma que
durante sua estadia nos Estados Unidos e na Europa, entre 1918 e 1923 (período de
construção de suas referências, segundo o autor), Freyre não se deslumbrou com a
modernidade. Ao contrário, criticava um modo de vida segundo o qual além de exaltar
demais a saúde dos corpos, vem se esmerando em inventar máquinas capazes de substituir o
próprio pensar e o próprio sentir dos homens; e de poupar-lhes o próprio esforço de
abstração.
27
Diante dessa forma de ver a modernidade como tão negativa e impessoal, Freyre
adotou uma postura de crítica, defendendo as tradições, representadas pela permanência. Ele
certamente concordaria com Burckhardt, também citado por Antônio Paulo, quando afirma
que o homem moderno (...) renunciou alegre e estupidamente aos valores solidamente
estabelecidos do refinamento e da diversidade em favor dos dúbios benesses oferecidas pela
novidade.
28
E se mesmo tendo vivido na Europa e nos Estados Unidos Freyre percebeu que a
modernidade era um projeto adverso, o Recife passou a ser para ele uma referência da
tradição os pernambucanos, mesmo quando novos-ricos, são fidalgos. Até os plebeus em
Pernambuco são fidalgos.
29
Pelo que podemos perceber, Gilberto Freyre, ao assumir um
comprometimento com a tradição, não restringe suas ressalvas às implicações da modernidade
apenas ao campo da arte, mas à vida de uma forma geral.
Como contraponto ao tradicionalismo defendido por Gilberto Freyre, temos Joaquim
Inojosa, um intelectual envolvido diretamente com o movimento paulista de 1922. É,
inclusive, considerado o grande divulgador do movimento modernista no nordeste pelos
próprios protagonistas do movimento paulista, como Mário de Andrade, Rubem de Morais e
Menotti del Picchia. Ao contrário do gosto freyreano pelos mares calmos das permanências e
da tradição, a formação socialista de Joaquim Inojosa o torna próximo à vontade de
mudanças, tanto sociais, como deixa transparecer em alguns contos, como literárias, mesmo
antes de conhecer o movimento paulista. Após o engajamento com o movimento modernista,
Inojosa passa a defender suas posições principalmente em artigos de jornais. E sua ânsia de
renovação no campo das artes mistura-se às posições políticas, pois considerava que a
revolução dá-se pela evolução intelectual da humanidade
30
. Para Inojosa, o engajamento com
26
Idem, p. 139.
27
Apud. Rezende, Antônio Paulo. Op. cit, p. 145.
28
Apud. Idem, p.146.
29
Apud. Ibdem, p. 148.
30
Apud. Idem, p. 170.
24
os movimentos de inovação, muito além de apenas estético, deveria ser político. As
transformações no campo das artes não deveriam estar dissociadas das transformações sociais.
No campo artístico, para não ficarmos nos exemplos relativos à literatura, a música
também era fonte de polêmica. É o caso dos comentários relativos às jazz bands, a música
oriunda dos Estados Unidos bastante citada nas colunas sociais da época. Apesar de estar
presente nas festas mais seletas da cidade, um jornalista do Jornal do Comércio, em 10 de
novembro de 1927, afirmava que os brasileiros não deveriam adotar a música rbara,
destronando a música nacional!”. Para defender sua reação ao novo ritmo, o jornalista acaba
por se aproveitar da idéia e do sentimento de nacionalismo, o que mostra que muitos viam nas
novidades modernas uma invasão estrangeira nos mais diversos campos, gerando uma
descaracterização da própria cultura nacional.
Não era no campo das artes que as divergências surgiam. Para nos afastarmos um
pouco do mundo dos letrados, podemos apresentar exemplos de resistência e de fascínio em
relação às novidades na vida prática das pessoas. A cidade parecia entrar na onda do
progresso, convivendo com as novidades técnicas e os novos hábitos cotidianos. A tecnologia
se fazia presente na substituição dos fogões a lenha por fogões a gás; nos meios de transporte;
na energia elétrica, enfatizada nas propagandas de hotéis e pensões; nos automóveis, que,
apesar de maravilhar, também eram motivo de críticas: o automóvel, uma das mais belas
conquistas modernas, tem servido até agora para que o imbecis andem depressa
31
; na
máquina fotográfica, que permitia levar imperecíveis ao dia de amanhã, as doces lembranças
de ontem
32
; no cinema, que estava destinado a ser, talvez, a caracterização artística do nosso
século, como a música do século passado e a pintura da Idade Média
33
. Estes são alguns dos
exemplos mais recorrentes na imprensa do impacto que as novidades causavam na vida das
pessoas. Os mais eufóricos chegavam a declarar que o Recife estava equiparado às principais
urbes do mundo. Os telefones automáticos, desde sábado inaugurados, marcam um desses
progressos notáveis
34
.
Estas citações mostram que, ao mesmo tempo em que o cinema era louvado, os
automóveis eram vistos como um perigo constante, dados os riscos de atropelamentos. Em
31
Revista Ilustração (16/06/1928). Essa revista foi encontrada na documentação pessoal de Jota Soares, seção
produção intelectual a13 gl(s/v), presente no acervo da FUNDAJ. Ainda sobre os automóveis, é irresistível
aqui citar mais uma vez Nicolau Sevcenko quando escreve sobre a percepção das pessoas em relação à
velocidade dos bondes elétricos no Rio de Janeiro. Op. cit. p. 546-550.
32
Diário de Pernambuco, 03/01/1923.
33
Jornal do Comércio 08/03/1928.
34
Jornal do Comércio, 06/12/1927.
25
outras oportunidades, porém, é possível encontrar artigos louvando a chegada dos automóveis
e criticando o advento do cinema falado, que desestruturou as produções locais. Convém,
portanto, ter cautela em se afirmar que as novidades eram plenamente aceitas ou rejeitadas.
Como referência aos impactos e às reações das novidades modernas no Recife da
década de vinte, destacamos a dissertação de mestrado de Jaílson Pereira da Silva
35
. Na
pesquisa, o autor analisa os novos costumes impostos pelas invenções na vida prática das
pessoas, tomando a velocidade como característica da vida moderna. A pesquisa também
estuda o advento de outras “maravilhas modernas”, como os relógios públicos, que
inauguravam e massificavam a percepção visual do tempo; o rádio, que revolucionava a
velocidade na circulação das informações; e o telefone, que permitia o contato direto sem que
a distância, por maior que fosse, se tornasse um impedimento.
Outra pesquisa que nos ajuda a pensar sobre as relações entre o moderno e tradicional
no Recife é a dissertação de Gustavo Acioli Lopes.
36
Na pesquisa, encontramos uma análise
das políticas de higienização e repressão implementadas entre 1922 e 1926 pelo governo de
Pernambuco. O Estado ditava (e a imprensa reverberava) o que era moderno e atacava
práticas que considerava indesejáveis. Nesse sentido, a modernidade perde a posição
dicotômica de oposição ao tradicional e passa a corroborar posições conservadoras. O Estado
se apropria da idéia de modernidade e a instrumentaliza. Isso fica claro na análise do discurso
oficial higienista que o autor faz. Como exemplo, os discursos de Amaury de Medeiros
sempre eram no sentido de homogeneizar as camadas populares, vistas como as classes
perigosas que tanto incomodavam as elites brasileiras.
37
Ou seja, o discurso moderno da
higiene servia de imperativo de dominação das classes consideradas perigosas. Sem dúvida,
um forte indicativo do discurso moderno a serviço da permanência.
As citações utilizadas nos ajudam a perceber as reações causadas por toda essa onda
de pensamentos, atitudes, idéias e costumes que na época eram largamente denominadas
modernas. Constatamos que não havia uma homogeneidade na recepção de tais novidades.
Atribuía-se o rótulo de moderno a idéias, atitudes e costumes inovadores (forma de
uso, aliás, mais prevalecente), mas também a atitudes conservadoras e paternalistas, uma vez
que muitas dessas mudanças modernas vinham corroborar práticas tradicionais (já demos os
exemplos da medicina social e do discurso higienista). Para pensar esse aspecto contraditório
35
SILVA, Jaílson P. O Encanto da Velocidade: automóveis, aviões e outras maravilhas no Recife dos anos 20.
Mestrado em História. UFPE-CFCH, 2002.
36
LOPES, Gustavo. Op. cit.
37
Idem, p. 81.
26
da modernidade, nos valemos de Marshall Berman. No livro “Tudo que é Sólido Desmancha
no Ar”, o autor afirma que a contradição é uma predicado da modernidade. Para ele, é
impossível agarrar e envolver as potencialidades do mundo moderno sem abominação e luta
contra algumas de suas realidades mais palpáveis.
38
A partir daí, não tomamos a
modernidade como um fenômeno monolítico. Podemos vê-la disfarçada em atitudes
conservadoras. A modernidade tinha significados diferentes para pessoas e grupos diferentes.
Vários estudos foram feitos sobre as faces da modernidade no Recife da década de
vinte. foram temas de pesquisa, além das citadas, o estudo da identidade fotográfica e da
paisagem, críticas políticas através da análise de charges, entre muitas outras.
39
Pretendemos,
com a nossa pesquisa, nos inserir nessa temática identificando como as relações de gênero
eram vistas e tratadas nos processos criminais relativos a crimes passionais, bem como
observar e identificar suas características gerais.
vimos aqui o impacto causado pela modernidade em vários setores da sociedade.
No entanto, as transformações em um determinado campo dos relacionamentos sociais nos
interessam especialmente: o comportamento feminino.
40
Todas as fontes utilizadas direta ou
indiretamente nas linhas que seguem (jornais, revistas, arquivos pessoais, processos
criminais) nos mostram que alguns comportamentos e idéias adotados pelas mulheres não
estavam sendo assimilados por parte da opinião pública. Novas modas, idéias e costumes
femininos ganhavam adeptas, mas também angariavam muitos opositores. Através de fontes,
mostraremos alguns desses novos costumes bem como as reações que eles provocavam.
Natália Barros chega a afirmar que essas práticas passaram a embaralhar os lugares de
homens e mulheres instituídos socialmente.
41
A observação desse aspecto é relevante para
nossa pesquisa uma vez que terá influência direta nas relações de gênero que, por sua vez, não
podem ser dissociadas do nosso objeto de estudo – os crimes passionais.
O cartaz de um filme é emblemático no que diz respeito às mudanças do
comportamento feminino. Trata-se do filme “As filhas pródigas”. Com isso, não queremos
38
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Cia. das
Letras, 2000, p. 14.
39
Sobre as pesquisas citadas, confira: SANTIAGO, Roberval S. O Recife e a Medusa da Modernidade: a cidade
à luz da fotografia. Doutorado em História, UFPE-CFCH, 2001. VIEIRA, Daniel. Paisagens da Cidade: os
olhares sobre o Recife dos anos 20. Mestrado em História, UFPE-CFCH, 2003. PIRES, Maria. Humor, política e
cotidiano: um olhar sobre a modernidade do Recife dos anos 20. Mestrado em História, 2000.
40
Sobre as relações de gênero no Recife da década de vinte, cf. BARROS, Natália Conceição Silva. As mulheres
na escrita dos homens: representações de corpo e gênero na imprensa do Recife nos anos vinte. Mestrado em
História. UFPE-CFCH, 2006.
41
BARROS. Natália Conceição Silva. Os arriscados vôos da vida: representações, práticas e deslocamentos dos
espaços dos gêneros no Recife dos anos vinte.
27
afirmar que o cinema modelava comportamentos, mas tinha o poder de difundi-los,
divulgando outros modelos de comportamento e outros códigos de feminilidade e
masculinidade.
42
No cartaz, aparece a figura de duas jovens fumando. No comentário do
cartaz há a informação de que o filme trata dos excessos de liberdade concedido às filhas pela
educação moderna.
43
Dizemos que o cartaz é emblemático porque parece sintetizar tudo o
que incomodava nas mulheres: os “excessos de liberdade”. Tudo o que veremos adiante sobre
o comportamento feminino remete ora a conquistar o espaço de costumes e práticas
identificadas como masculinas, ora a lutar contra práticas construídas como femininas para
preservar o domínio masculino. Isso remete, direta ou indiretamente, à questão da liberdade.
Outro ponto que nos permite classificar o cartaz como emblemático é o fato de ser comentado
que no fim do filme as filhas reconhecem os erros e pedem perdão aos pais. Esse caráter
moralista era o tom da reação dos homens aos “excessos de liberdade” das mulheres.
Os exemplos mais manifestos dessa liberdade na imprensa estão no campo da moda,
na qual as inovações não ficaram apenas nos muito citados pela imprensa da época cabelos a
la garçone ou nas pernas a bataclan (na qual as mulheres andavam com as pernas nuas). O
colunista Blasco Vaz faz um comentário, em setembro de 1924, sobre um acessório usado
para seduzir os homens: um funil de pano colocado em volta dos seios.
Estes, presos, começam a agitar-se, chamando a atenção dos olhos ávidos,
nervosos. E seduzem, e arrastam, e apaixonam. Esses funis malévolos transtornam
cabeças, com o seu oscilar, entre rendas, os dois juntos, numa acenação (sic)
caprichosa, magnética, eletrizante.
Vaz, no entanto, resiste à inovação afirmando que uma mulher realmente bonita não precisa
destas coisas. A resistência aos novos costumes fica clara quando ele afirma que “a moda é a
eterna caprichosa. A grande deformadora da beleza simples, natural, flagrante...
44
Para
completar a crítica, Blasco Vaz abusa do machismo quando afirma que o poder de sedução
desse acessório, para a mulher, tem o mesmo efeito do talão de cheques, para o homem.
Em outro número da revista, Blasco Vaz também trata da moda da cor encarnada:
Como se fala tanto em renovação, em arte moderna, em futurismo, ninguém se espantaria se
uma mulher aparecesse de cabelos encarnados.” Bom observador, qualquer coisa servia de
42
Idem.
43
A Pilhéria, nº 153 (1924)
44
A Pilhéria, nº 156 (20/09/1924).
28
pretexto para que Blasco Vaz denunciasse e ironizasse costumes sociais da época. A
utilização, pelas mulheres, de sombrinhas de cabo grosso é um exemplo. O autor ironiza e
afirma que a causa do surgimento da moda é que os homens estão se tornando
extraordinariamente infiéis, e as mulheres precisam de um instrumento contundente para
refrear os ímpetos dos maridos e noivos. O beliscão, arma terrível e conservadora, está fora
de moda. Agora, com a renovação, é o cabo grosso da sombrinha.
45
O uso do vermelho ou, como é citado na maioria das vezes, a cor encarnada”,
associava-se diretamente à sedução. A seção d’A Pilhéria chamada “Do flirt, do footing, da
rua novaera dedicada à observação dos costumes da sociedade recifense. Em novembro de
1924, o colunista João da Rua Nova, numa nota intitulada “a crônica vermelha, etc. e tal”,
comenta que as mulheres têm usado o vermelho em tudo e que, em conseqüência disso, as
moças mais humildes trabalhavam para imitar as melindrosas. Assim como fazia Blasco Vaz,
João da Rua Nova também termina sua nota com uma crítica às novas modas: Contanto que
andem sempre à moda.../Pouco importa o resto/ Honra, Moral, Família.../ É letra morta.
46
Mesmo com toda a ironia e sarcasmo, os novos costumes das mulheres, apresentados em
notas com essas, pareciam representar uma verdadeira ameaça ao domínio dos homens.
Honra, moral e família constituíam a base do modelo patriarcal. Se esses conceitos passam a
ser letra morta, isso quer dizer que o próprio modelo patriarcal passava por uma crise,
principalmente se contextualizarmos essa nota com o que afirma Goran Therborn. Para a
autora, nas décadas de 10 e 20 do século XX, o patriarcado sofreu o seu primeiro grande
abalo
47
.
As novas modas adotadas pelas mulheres ganhavam um caráter mais inovador ainda se
compararmos imagens de mulheres em jornais e revistas da década de vinte com o que era
usado por elas em meados do século XIX. Como referência, temos os desenhos de autoria de
Gilberto Freyre inseridos em Sobrados e Mucambos.
48
Nas ilustrações de Gilberto Freyre, a
sensualidade fica restrita ao uso de espartilhos e ao colo à mostra. O excesso de pano dos
vestidos nem sugere a forma das pernas. Já na década de vinte, as pernas nuas eram uma
constante. Os cabelos curtos apontam mais uma diferença. Essas mudanças soavam como um
exagero para uma sociedade conservadora e mesmo ligada a uma tradição patriarcal.
45
A Pilhéria, nº 153 (1924).
46
A Pilhéria, nº 165 (22/11/1924).
47
THERBORN, Goran. Sexo e Poder: a família no mundo, 1900-2000. São Paulo: Contexto, 2006, p. 33.
48
FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos. Rio de Janeiro: Record, 1996.
29
Mas não eram só as modas adotadas pelas mulheres que causavam estranheza. A
participação da mulher no meio social também estava mudando. E isso se dava tanto no que
elas expressavam, como na participação em si. Na nota “Pelo levantamento do Brasil”,
assinada por Rego Lima, é sugerido que a mulher passe a ser produtiva no Brasil. É dado o
exemplo da Suíça que, com tantas adversidades, é um país próspero. Para o autor, esta
prosperidade está ligada ao civismo feminino.
49
Ao contrário de Rego Lima, em outras notas a conscientização política das mulheres e
sua conseqüente vontade de participar das decisões sociais eram ironizadas. Um diálogo entre
um casal inserido na coluna “Ridículos - reportagens ligeiras”, trata da questão. Segue um
trecho:
Ela: O país está atrasado. E muito atrasado. Não tem Moulin Rouge, não divórcio,
as mulheres não fumam, não jogam e não bebem. Não tomam banho de maiot, não
guiam automóveis, bondes elétricos e locomotivas. o viajam sozinhas, não
carregam pistolas e não voam em aeroplano...
Ele: Florzinha?! Você ainda quer mais liberdade?... Santo Deus! As mulheres cortam
o cabelo a La Garçone, até as velhas, pernas nuas, principalmente as cabeludas, à
bataclan, lábios encarnados de rouge, unhas polidas e grandes, verdadeiros suplícios
para os homens. As anáguas foram também abolidas, o andar, com o rebolar das
ancas, é capaz de perder São Pedro... Se isso é atraso, eu sou legalista até a
consumação dos séculos...
50
Analisando o diálogo acima, percebemos que o homem, apesar de citar os avanços nas
conquistas femininas, adota uma posição conservadora. Enquanto ela sugere mudanças que
certamente poderiam ser consideradas radicais em relação à ação das mulheres na sociedade,
como a própria defesa do divórcio, ele se utiliza da estratégia de tentar convencê-la de que as
transformações conquistadas, mas menos radicais e emancipatórias bastam. Notem que
ele se limita a citar mudanças apenas estéticas, tirando de foco o que é sugerido pela mulher.
Susan Besse contextualiza essas resistências por parte dos homens afirmando que o
surgimento de um novo tipo de sociedade (“urbano-industrial”) enfraquecia os laços
tradicionais da família e oferecia às mulheres novas aspirações e opções de vida. Assim,
49
A Pilhéria, nº 169, (20/12/1924).
50
A Pilhéria, nº 153 (1924).
30
muitos homens receberam e prenunciaram as mudanças nas relações entre os sexos com
insegurança, frustração e temores crescentes de perda da virilidade.
51
Não era na ficção (referindo ao diálogo transcrito logo acima) que os homens
tentavam evitar discutir a participação das mulheres nas decisões sociais. Uma discussão que
chamava atenção pelo espaço destacado na imprensa era sobre o voto feminino. Os debates
eram acirrados. Em abril de 1923, o jornalista Renato Alencar afirmava que o voto feminino
era uma ilusão. Além disso, as mulheres já teriam uma vida muito boa para se meter na
política intrigona dos homens. (...) Quanta ilusão...
52
Em 1927 e 1928, as discussões
voltaram à ordem do dia com mais intensidade, principalmente após o presidente do Rio
Grande do Norte, Juvenal Lamartine, ter liberado o voto feminino naquele estado em fins de
1927. A nota “dia-a-dia”, de autoria do colunista S.F., era o maior canal de discussão da
questão no Jornal do Comércio. No dia cinco de novembro de 1927, S.F. afirmou que as
repercussões da atitude de Lamartine chegaram aos jornais londrinos. A resistência na
imprensa local foi muito grande. O mesmo S.F., pouco mais de um mês depois, escreveu que
o ponto de vista que vai vencendo é o de que a mulher ainda não chegou a um estado de
cultura para investir-se dessa prerrogativa, embora reconhecesse que nada a(s) priva(sse) na
Constituição da República.
53
A “vocação doméstica” da mulher foi o principal ponto explorado para argumentar
contra a medida. Para os articulistas, votar requeria um conhecimento de mundo que a mulher,
fechada em casa, não tem, (pois) a educação, através dos nossos 4 séculos de história, as
encerrou nas paredes de casa.
54
Surpreendentemente as críticas mais veementes contra à
ampliação do voto às mulheres nos jornais vinham de mulheres. O argumento da vocação
doméstica e materna tornava a ser explorado por formadoras de opinião como a cronista
carioca Chrisantéme, que é enfática e fatalista nas palavras dirigidas às mulheres:
51
BESSE, Susan. “Crimes Passionais: a campanha contra o assassinato de mulheres no Brasil 1910-1940”. In:
Revista Brasileira de História, v. 9, 18. São Paulo: Ed. Marco Zero, 1989, p. 186. Nesse mesmo sentido se
manifesta a socióloga equatoriana Natalia Galarza quando afirma que as mudanças nas condições de vida
perturbam a ordem de gênero. Cf. GALARZA, Natalia Catalina León. Honor y violencia conyugal: rupturas,
desplazamientos y continuidade. In: CORRÊA, Mariza e SOUZA. Èrika Renata de (orgs.). Vida em Família:
uma perspectiva comparativa sobre os crimes de honra. Coleção Encontros. São Paulo, UNICAMP, 2006, p.
209-238. Obs: o artigo de Susan Besse fica restrito ao Rio de Janeiro, apesar da intenção (pelo menos no que está
expresso no título do texto) ser estudar o Brasil.
52
Jornal do Comércio, 03/04/1923.
53
Jornal do Comércio, 15/12/1927.
54
Idem, 26/11/1927.
31
não nos é possível desdenhar nosso papel de mãe, a nossa mais sublime e divina
missão de mulher (...). Entregar um filho a uma criada e correr às urnas a votar leis
(...) será sempre uma profanação e um crime que fará da mulher um ente dúbio,
complexo e... perigoso.
55
O argumento de que a política era suja e, por isso, macularia a mulher também era
comum nas palavras de mulheres conservadoras. É o caso da jornalista estadunidense
Margaret Culking Ranning, que admitia e até se admirava com a inclusão da mulher em
vários campos de atividade antes reservados aos homens. Sobre a política, no entanto, ela
tinha outra opinião:
a mulher está presente em todos os ramos da atividade humana, mesmo nos mais
profundos como as ciências ou nos mais audaciosos como o domínio dos ares
(...).Mas, por vários motivos, essa carreira (política), é a que menos se harmoniza
com o espírito feminino. (...) A política não foi feita para a mulher. Ela, é verdade, é
apta para sofrer revezes, mas os próprios do sexo, na criação e educação dos filhos e
na resistência aos golpes da adversidade.
56
Quando apareciam, as vozes a favor do voto feminino tinham um tom tímido e
moderador. É o caso da escritora Francisca de Bastos, que defendia o direito ao voto, mas era
contra a elegibilidade da mulher. Em outro exemplo, S.F. comenta que a experiência
implantada por Primo de Rivera na Espanha de promover o ingresso da mulher no parlamento
estava sendo bem sucedida. Mas o colunista questiona se a mulher brasileira estaria
“preparada” para o voto. Quando S.F. defende a entrada da mulher nas maras legislativas, é
muito mais para que ela desempenhe seu papel de mãe e educadora do que de cidadã: não
faria mal que metessem algumas senhoras nas câmaras legislativas, quando não fosse por
outro motivo, ao menos pela necessidade imperiosa de dar-lhes um pouco de decência e
ordem (grifo nosso).
57
O silenciamento das vozes que se empenhavam em lutar pelo voto feminino nos
jornais não pode nos fazer pensar que elas eram irrelevantes. Pelo contrário, elas existiam e
eram atuantes. Uma pequena nota informa sobre o fato de algumas mulheres, entre elas
Bertha Lutz, voarem pela capital do Rio Grande do Norte no avião Condor Syndicat,
55
Idem, 10/02/1928.
56
Idem, 27/01/1928.
57
Idem, 05/01/1928.
32
espalhando mensagens de propagandas dos direitos políticos da mulher.
58
O ato foi
promovido de Federação Feminina.
É nesse contexto de “confusão” da ordem de gênero que se davam as agressões e os
assassinatos contra as mulheres. A principal hipótese a que atribuímos essa violência é a não
aceitação, pelos homens, de espaços e atitudes que as mulheres desejavam se apropriar e que
eram tachadas como masculinas. Notícias de jornais citadas nessa introdução são indícios
mais do que suficientes de que o Recife vivia esse problema. Raimundo Arrais adianta que
por trás de todos esses crimes havia a questão da honra. Referindo-se à ênfase crescente dos
crimes contra a honra no Recife em meados da década de 10, o autor afirma que cabia ao
chefe da família prevenir, obter reparo ou punir com as próprias mãos quem ofendesse sua
honra.
59
* * *
No que diz respeito às perspectivas teórico-metodológicas, seguimos as trilhas abertas
pela Nova História. Pretendemos realizar um estudo interdisciplinar através da análise
qualitativa, e não apenas quantitativa e classificatória dos documentos a que nos dispomos
pesquisar. Não nos valemos da metodologia clássica, cartesiana, segundo a qual a realidade
apresenta uma objetividade e o historiador apenas voz aos documentos. Nos valemos do
princípio da incerteza, sem procurar uma realidade pronta, mas buscando uma resignificação
dos documentos através da análise de seus discursos inerentes.
Também não adotamos um rótulo em relação a determinado teórico ou corrente
teórica. Buscamos dar mais importância às leituras que fazemos das fontes sem nos
preocuparmos em encaixá-las em determinadas teorias. A visão teórica se em função do
andamento da pesquisa. Entendemos que uma visão teórica e uma metodologia são
fundamentais tanto para a produção dos desvios que iremos construir em relação às fontes,
como para a própria aceitação do trabalho no meio acadêmico
60
. Mas entendemos, também,
que a “adoçãoradical de tal ou qual teórico incorre no perigo de sempre se tentar enquadrar
as fontes na teoria. Nossa pesquisa se pretende livre de amarras, o que não quer dizer que
concebamos ecletismos incompatíveis e irresponsáveis.
58
Idem, 13/05/1928.
59
ARRAIS, Raimundo. Recife, culturas e confrontos. Natal: EDUFRN, 1998, p. 66.
60
Ver CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002, p. 81-93.
33
As contribuições de Michel Foucault foram fundamentais no que diz respeito ao nosso
projeto para esta pesquisa, uma vez que tínhamos como desejo o estudo, através de processos,
do judiciário enquanto instituição. Quando analisamos um processo (fontes principais de
nossa pesquisa), não analisamos fatos, mas discursos, uma vez que o fato em questão está
muito distante da produção da notícia ou do processo, pois passou pela reflexão do jornalista,
na notícia, do delegado, no inquérito policial, e do promotor, na denúncia, cada um relatando
os fatos de acordo com suas visões de mundo, seus valores e preconceitos. Os trâmites legais
por que passam um processo transformam o crime. Nos processos, a condição humana é
reduzida a normas legais. São formas de interdição do discurso pelo poder estabelecido.
Segundo Mariza Corrêa, no momento em que os atos se transformam em autos, os fatos em
versões, o concreto perde quase toda sua importância e o debate se dá entre os atores
jurídicos, cada um deles usando a parte do ‘real’ que melhor reforce seu ponto de vista. O
que nos interessa é saber quais as maneiras que a sociedade encontrou para decidir sobre a
justiça e a legitimidade deste ato de violência.
61
A idéia de diluição do poder, bem como o
conceito de vontade de verdade que Foucault desenvolve na Ordem do Discurso e em
Microfísica do Poder nos ajudam na medida em que o sistema judiciário é uma instituição
que estabelece verdades.
Mas, na medida em que estudávamos as fontes, nosso interesse foi se aproximando
cada vez mais dos atores que constituíam as partes dos processos: advogados, testemunhas,
réus, vítimas. Para isso, as idéias de Foucault já não nos supriam a contento por serem por
demais impessoais. A partir desse momento começou a nos interessar as reflexões de Pierre
Bourdieu sobre o funcionamento do campo jurídico e suas interações com a sociedade. Em
Bourdieu, encontramos o equilibro entre o nominalismo e a prática. Ele faz uma crítica à idéia
de que o direito é autônomo e não sofre o peso social (apesar de ser) relativamente
independente às pressões externas.
62
O campo jurídico abre mão de sua autonomia a partir do
momento em que suas discussões têm um fim prático. Aqui vemos a interação do direito com
a sociedade de forma concreta. A análise que o autor desenvolve sobre a divisão do trabalho
jurídico nos ajudou a olhar as estratégias de apropriação e instrumentalização não dos
advogados, mas também das testemunhas para defenderem suas partes e de réus e vítimas
61
CORRÊA, Mariza, Op. Cit, p. 40.
62
BOURDIEU, Pierre. Op. Cit. Essa discussão concentra-se principalmente entre as páginas 209 e 211.
34
para se defenderem. Na dimensão prática, os atores jurídicos acabam por sempre reinventar o
direito através da liberdade de apreciação, pois o direito puro não dá conta do vivido.
63
Organizamos a pesquisa em três capítulos independentes, porém complementares. O
primeiro tratará de contextualizar a legislação brasileira no que tange aos crimes passionais.
Para isso, iniciaremos o capítulo com a construção do Código Penal de 1890 e as correntes
jurídicas que o influenciaram. Faremos um mapeamento das discussões jurídicas que
ocorriam na época. As visões sobre a honra terão papel fundamental nesse capítulo. Como era
através da apropriação e instrumentalização desse conceito que os advogados e juízes
argumentam a favor ou contra os réus, é a partir dele que observaremos as discussões entre as
correntes jurídicas. Estudos na área da história e da antropologia nos ajudaram a situar essas
discussões na prática dos julgamentos de um modo geral.
O segundo capítulo terá como tema a observação de regularidades na prática e no
tratamento dos crimes. Serão analisadas principalmente informações sobre os crimes em si
(motivações, instrumentos utilizados nas agressões, locais e hora em que ocorreram), sobre os
envolvidos (idade, ocupações, instrução) e alguns pontos sobre o funcionamento da justiça
(tempo decorrido entre o início e o término do processo, número de absolvições e
condenações, penas). Como a problemática desse capítulo é a identificação de regularidades
em relação aos crimes e aos criminosos, optamos por analisar vinte peças judiciais sem nos
aprofundamos em nenhum caso específico.
No terceiro capítulo, trabalharemos com um assunto inerente ao tema da pesquisa as
relações de gênero. Nosso objetivo é apresentar como essas relações o explicitadas e/ou
sugeridas, reforçadas e/ou abolidas nos processos criminais. Nesse capítulo ficam claras
nossas aproximações com a antropologia através do trabalho dos conceitos de “gênero” e
“patriarcado”, que foram articulados com as fontes. Ao contrário do que ocorre no segundo
capítulo, optamos por nos aprofundarmos em alguns casos por nós selecionados. São sete
processos criminais que foram analisados a fundo. Foi em suas entrelinhas e interstícios que
buscamos, nas falas dos atores envolvidos nos processos, permanências e rupturas de práticas
patriarcais. Optando por uma análise mais aprofundada, privilegiamos a história dos crimes
em detrimento da noção generalizante de criminalidade.
Embora tenhamos apresentado aqui nosso panorama teórico, cada capítulo terá o seu
núcleo teórico de acordo com seus objetivos específicos. Mesmo não sendo largamente
63
Idem, p. 223.
35
citados em algumas ocasiões, não pensamos a documentação e o tema sem nossas escolhas e
concepções teóricas em nenhum momento.
36
CAPÍTULO 1
EM NOME DA LEI, EM DEFESA DA HONRA:
A LEGISLAÇÃO E OS CRIMES PASSIONAIS
37
s legisladores são competentes na adaptação das leis às mudanças das
práticas sociais? Essa é uma questão polêmica que muito é discutida. À
dinâmica das relações sociais nem sempre corresponde a dinâmica das leis.
Por isso, principalmente no Brasil e em toda América Latina, uma impressão geral de que
as leis estão enferrujadas e foram fabricadas para uma sociedade que pouco tem a ver com a
nossa. Essa impressão é realçada quando um tema específico é mencionado: a honra.
64
O fato
de ainda hoje muitos criminosos passionais serem absolvidos sob a alegação de defesa da
honra, reforça a imagem de uma legislação estanque que não acompanhou as transformações
sociais.
O objetivo desse capítulo é estudar como o Código Penal de 1890 que vigorou até
1940 e, portanto, cobre o nosso período de estudo contemplava essa questão, bem como a
instrumentalização da lei pelos advogados para defenderem os criminosos passionais. Que
influências as correntes jurídicas da época tiveram sobre a formação do conceito de honra no
código? Como a honra era entendida? Quais brechas a legislação oferecia que permitiam o
êxito na defesa de criminosos passionais pelos seus advogados? Para atender à problemática
central, procuraremos responder a essas questões com base em uma bibliografia composta não
apenas por historiadores, mas também por antropólogos e juristas que produziram a respeito.
Também não nos furtaremos a tecer alguns comentários e comparações com o Código Penal
de 1940.
Iniciaremos esse capítulo com a contextualização da construção do código de 1890.
Essa contextualização, embora breve, nos ajudará a entender que o perfil do código muito
teve a ver com transformações políticas e sociais que o Brasil passava no fim do século XIX.
Conhecendo as condições em que o código nasceu temos a oportunidade de saber se ele
acompanhou essas transformações ou se ele andou na “contramão” da história ao marcar uma
posição de continuidade com a ordem política e social.
1. Código de 1890: breve contexto histórico
Logo no início do capítulo falamos a respeito da percepção de que as leis são sempre
enferrujadas lugar comum que não pára de ser repetido cada vez que crimes, sejam eles
64
Para um panorama da legislação e da jurisprudência sobre honra na América Latina, ver PIMENTEL, Sílvia,
PANDJIARJIAN, Valéria e BELLOQUE, Juliana. Legítima defesa da honra ilegítima impunidade de
assassinos: um estudo crítico da legislação e jurisprudência da América Latina. In: CORRÊA, Mariza e SOUZA.
Èrika Renata de (orgs.). Vida em Família: uma perspectiva comparativa sobre os crimes de honra. Coleção
Encontros. São Paulo, UNICAMP, 2006, p. 65-134.
O
38
quais forem, ficam impunes. Quando se fala isso, se constrói uma oposição quase que
imediata a outros lugares onde, pelo menos no que é corriqueiramente exposto, “a lei
funciona” e criminosos são punidos. Países de origem anglo-saxônica são os exemplos mais
correntes desses lugares. Pierre Bourdieu explica a questão mostrando a diferença básica entre
a tradição jurídica romano-germânica – da qual somos herdeiros – e a anglo-americana.
Enquanto a tradição anglo-americana tem um caráter muito mais prático e jurisprudencial, a
romano-germânica é muito ligada à doutrina sobre a qual ergueu suas bases. Por isso essa
impressão de engessamento. Nossa legislação vem de uma tradição muito mais dogmática que
prática, em que não o mesmo espaço para decisões jurisprudenciais como na tradição
anglo-americana. Somado a isso, não é uma prática dos nossos legisladores promover
reformas nos códigos penais em períodos curtos de tempo.
Devido a essa questão, um confronto, ou, nas palavras do próprio Bourdieu, uma
concorrência entre aqueles que julgam e legislam (os teóricos) e aqueles que praticam o
direito (advogados, sobretudo). Enquanto os teóricos são mais presos à teoria e interpretam de
forma geral, os práticos centram-se nas especificidades de cada caso e procuram adaptar as
leis aos casos particulares; enquanto os teóricos entendem que o direito é supremo e pode
compreender todos os casos possíveis, os práticos lutam pela sua renovação. Ocorre que são
os teóricos que detêm o monopólio do direito na tradição romano-germânica. São eles os
responsáveis pelo “controle lógico” do direito. Como as interpretações no campo do direito
não são livres e precisam ser mediadas e embasadas em textos e autores “seminais” ou
“canônicos” (como ocorre com qualquer campo do saber com estatuto de ciência), são eles
que decidem quais serão os norteadores das interpretações do campo jurídico. Para Bourdieu,
essa concorrência entre teóricos e práticos é complementar e saudável, pois dinamiza o
campo.
Uma reforma das leis é um ponto interessante de observação dessa concorrência.
Enquanto os teóricos, apegados à teoria, tentam conservar o máximo que podem já que para
eles a lei conta de tudo –, os técnicos muito mais próximos das transformações sociais
pela prática profissional que os põe em contato com a sociedade lutam pela implementação
de novos recursos e dispositivos jurídicos que atendam a essas transformações.
No Brasil do fim do século XIX, houve um fato político que praticamente forçou uma
reforma do código penal de 1830 (o primeiro do Brasil independente). A abolição da
escravatura, em 1888, fez com que vários pontos do código se tornassem obsoletos. Todos os
artigos que tratavam dos escravos perderam o sentido com o fim da escravidão. É bem
39
verdade que a lei estava ultrapassada algum tempo uma vez que a presença de “escravos
livres” na sociedade já não era uma surpresa. Mas como a lei enquanto doutrina só se
preocupa com o oficial, somente a oficialização da abolição da escravatura tornou urgente
uma revisão do código penal. José Henrique Pierangeli informa que Joaquim Nabuco foi o
primeiro legislador a apresentar um projeto de revisão da lei penal.
65
Mas o Senado entendeu
que uma revisão seria pouco frente à nova situação social. Decidiu-se então optar por uma
verdadeira reforma do código. E todos os procedimentos foram tomados para que isso
ocorresse. Um ano depois, no entanto, outro fato político novamente mudaria o rumo das
coisas: a proclamação da república. Sucumbiram tanto a reforma do código como o próprio
código. Seria necessário agora criar um novo compêndio que estivesse a par do novo regime
político brasileiro.
Para a construção do novo código de 1890, que substituiria o de 1830, um fato chama
atenção. O relator da reforma do antigo código foi convidado para exercer a mesma função na
comissão de criação do novo. E aceitou. Isso mostra que, mesmo com a mudança do regime, a
elite política permanecia a mesma. Embora adaptações à nova ordem política devessem
ocorrer, a participação da mesma elite na gestação do código indica que mudanças
significativas na lei não aconteceriam. De qualquer forma, não seria fácil a tarefa de elaborar
um código penal que substituísse o de 1830. Este foi muito bem conceituado e teve boa
repercussão inclusive na Europa, chegando a ser traduzido para o francês. Pierangeli informa
que o sucesso do código foi tão grande que chegou a despertar o interesse dos juristas
europeus pela ngua portuguesa. Nas palavras de Edgard Costa, o código de 1830 foi, na
América Latina, o primeiro Código Penal independente e autônomo, efetivamente nacional e
próprio; a sua influência sobre a legislação espanhola e, através dela, sobre a dos países
latino-americanos foi forte e acentuada.
66
Por essas palavras podemos perceber a importância
e a referência que esse código representava para o sul da América. Também evidencia o que
já havíamos falado: a dificuldade do código de 1890 substituí-lo à altura.
E foi justamente o que ocorreu. Em cerca de três meses o novo projeto ficou pronto e
foi adotado quase sem modificações em outubro de 1890. Em decorrência dessa pressa, era de
se esperar que tivessem ficado muitas lacunas em um documento de tamanha complexidade.
A primeira lei adicional foi acrescentada apenas dois meses após a sua vigência e estabelecia
justamente não a adoção integral e imediata do código (como se esperava), mas gradual, em
65
PIERANGELI, José Henrique. Códigos penais do Brasil: evolução histórica. São Paulo: Ed. Revista dos
Tribunais, 2004, p. 74.
66
Apud. PIERANGELI, José Henrique. Idem, p. 73.
40
um prazo de seis meses. Muitas leis complementares ainda surgiriam nos cinqüenta anos de
sua vigência. A confusão que o acréscimo de tantas leis complementares causou fez
necessário um trabalho de organização em 1932, que resultou na Consolidação das Leis
Penais. As lacunas preenchidas por todas essas leis complementares nos mostram que, ao
contrário do que se poderia esperar do primeiro conjunto de leis da república antecedendo
em cerca de um ano a própria constituição as discussões em torno da criação do Código
Penal ficaram restritas apenas aos seus criadores. Com tudo isso, o que se poderia esperar com
um pouco de certeza é que as críticas não tardariam a aparecer. Pierangeli cita várias delas,
mas uma chamou a nossa atenção. Antônio José da Costa e Silva, considerado um dos
grandes juristas brasileiros do século XX, comentou sobre o código em 1930:
A prática incumbiu-se de pôr em evidência os seus não poucos e reais defeitos. A
necessidade de refundi-lo ou substituí-lo, de há muito reconhecida, é hoje uma
convicção geral. Para ela concorre, além da existência de numerosas leis
extravagantes, a circunstância de que, no derradeiro triênio, profundas
transformações se m operando no domínio do direito repressivo. Todos os povos
que caminham à dianteira da civilização sentem que as suas leis penais
envelheceram. E procuram esforçadamente rejuvenescê-las, de harmonia com
as aspirações da consciência contemporânea, para que elas se tornem mais
eficazes na luta contra a criminalidade. O mundo inteiro renova e vivifica as
suas leis penais neste primeiro terço do século (...). Não podemos ficar
estranhos a esse movimento quase universal (grifo nosso).
Pela citação, podemos perceber que o sentimento de inadequação das leis à
“consciência contemporânea” e a vontade de “refundi-las” ou “substituí-las” não é privilégio
do nosso tempo. Sueann Caulfield, que escreveu uma obra de referência sobre a presença do
judiciário na construção social, afirma que as transformações políticas representadas pelo
advento da República não foram acompanhadas de transformações em outros campos da
sociedade.
67
Como exemplo, as constantes absolvições de criminosos passionais denunciavam
uma parcela da sociedade e uma legislação ainda muito comprometida com um
comportamento tradicionalista. Nesse sentido, se Antônio José da Costa e Silva fala em
rejuvenescer as leis, o código de 1890 já nasceu velho.
67
Cf. CAULFIELD, Sueann. Em Defesa da Honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-
1940). São Paulo: UNICAMP, 2000, p. 69-73. Estudando a concepção de honra através de debates jurídicos, da
imprensa e de processos de defloramento e de crimes passionais, a autora analisa os conflitos entre a tradição e a
modernidade no Rio de Janeiro entre 1918 e 1940.
41
Especificamente, um dos pontos que mais foi criticado foi o título dado aos crimes
contra os costumes, doravante denominado “Dos crimes contra a segurança da honra e
honestidade das famílias e do ultraje público ao pudor”,
68
que, por exemplo, diferenciava a
pena aplicada ao estupro de uma mulher “honesta” e uma mulher “pública”.
69
Fica manifesta
a carga de moralismo do referido código. Natalia Galarza aponta para a incoerência da
presença moralista em um documento que, se orgulhavam seus criadores, tinha influência do
contrato roussoniano em detrimento do princípio tradicional do status. Para Galarza, as leis
coloniais é que tinham como marca a presença ativa de teólogos e moralistas. As leis
contemporâneas, por sua vez, têm um caráter mais universalizante e impessoal. Isso para que
se a impressão de que a lei expressa a vontade de todos. A principal ferramenta para a
eficácia dessa imagem é a ocultação da autoria das leis. O Código Penal de 1890, ao mesmo
tempo em que é uma lei contemporânea, apresenta o dedo dos moralistas que expressam a
defesa de interesses de uma parte da sociedade.
Sueann Caulfield também apresenta essa contradição. A elaboração do Código Penal
de 1890, ao tentar conciliar a liberdade individual (um valor burguês) e a honra familiar (um
valor tradicional cristão), representa bem esse conflito entre a ordem social estabelecida e
uma nova ordem que estava surgindo com a modernização da sociedade; entre uma legislação
estática e uma sociedade que adotava novos costumes. Tomando como tema a questão da
honra como legitimadora da violência de gênero, Caulfield exemplifica essa contradição ao
afirmar que no código de 1890 a intenção não foi combater práticas patriarcais, mas
modernizá-las. Sobre essa tentativa velada de manter códigos de comportamento tradicionais
em leis contemporâneas, Natalia Galarza comenta: uma lectura paciente permite encontrar
bajo varias capas discursivas um sentido ancestral: la referencia al honor.
70
A honra é,
portanto, um ponto chave para a desconstrução da imagem da lei moderna como livre de
valores tradicionalistas. A análise da honra na legislação permite perceber a preservação de
idéias e concepções moralistas em códigos de leis que não tinha mais esse perfil, como o
código penal de 1890.
Para que nos situemos melhor sobre as influências que o código recebeu, os próximos
parágrafos tratarão de apresentar as duas correntes jurídicas de pensamento que disputavam a
hegemonia do campo jurídico. A identificação de cada corrente nos proporcionará situar as
68
Código Penal da República, 1890, Título VIII.
69
Idem, art. 268.
70
GALARZA, Catalina León. Honor y violencia conyugal: rupturas, desplazamientos y continuidade. In:
CORRÊA, Mariza e SOUZA. Èrika Renata de (orgs.). Vida em Família: uma perspectiva comparativa sobre os
crimes de honra. Coleção Encontros. São Paulo, UNICAMP, 2006, p. 210.
42
noções de honra que cada uma defendia na época da adoção do no novo conjunto de leis, bem
como durante todo o período de sua vigência.
2. Escola Clássica e Escola Positiva: visões divergentes sobre o crime, o criminoso e a
honra
Para o jurista João José Leal, uma escola jurídica penal define-se como sistema de
idéias e teorias políticas-jurídicas e filosóficas que, num determinado momento histórico,
expressaram o pensamento dos juristas sobre as questões criminais fundamentais.
71
Duas
escolas jurídicas hegemonizavam e polarizavam as discussões no campo do direito penal
desde o século XIX: a Escola Clássica e a Escola Positiva. A polarização se dava na medida
em que as duas escolas tinham concepções completamente opostas sobre o ponto de partida
da ciência jurídica: o entendimento do indivíduo. Se o entendimento sobre o indivíduo
diverge, toda teoria, que parte do indivíduo, conseqüentemente também diverge.
A escola clássica é considerada pelo jurista Vicente Amendola Neto como “filha” do
iluminismo.
72
Devido a essa filiação liberal, a escola clássica tem como princípio a igualdade
dos homens perante a lei e o valor à razão. Cesar Bonesana, o Marquês de Breccaria, principal
expoente teórico dessa corrente, adotou o princípio rousseauniano de que a sociedade se
relaciona através de um contrato social. Se segundo a concepção do contrato social todos
aderiram a um acordo para que a sociedade funcione de modo satisfatório, fica também
explícito que cada indivíduo tem consciência das conseqüências da quebra do contrato. Caso
isso ocorra, também é de se esperar que o indivíduo aceite a punição que lhe for imputada,
pois ela faz parte do acordo.
Para os juristas clássicos, se todos os membros da sociedade estabelecem um acordo, e
nesse acordo está a submissão dos mesmos a uma lei, essa lei tem de ser aplicada de forma
geral. Daí a visão de direito universal e pré-existente à sociedade, tão defendida pelos
clássicos. O sentido prático dessa aplicação “universal” da lei reside no fato de não se levar
em conta a contextualização em que o crime ocorreu. Para que não se caísse na tentação de
particularizar, os postulados clássicos orientavam ter como foco do julgamento apenas o
71
Apud. MIRABETE, Júlio Fabbrini. Evolução histórica do direito penal.
72
NETO, Vicente Amendola. História e evolução do Direito Penal no Brasil. São Paulo: Julex, 1997, p. 58.
43
delito, pouco importando as circunstâncias que o envolveram.
73
Por isso o método penal da
escola clássica é o dedutivo, em que o caso particular é tratado em termos gerais, sem que
suas especificidades sejam consideradas. Ao proferir a pena, o juiz nada mais é do que a
pronúncia, a expressão da lei.
Uma conseqüência dessa visão penal dedutiva e da lei como expressão da vontade de
todos os cidadãos pelo contrato social, foi o fato dos magistrados não mais julgarem os
criminosos segundo sua consciência, como ocorria no Estado absolutista, na qual os
criminosos eram condenados a suplícios à revelia dos julgadores.
74
Nesse sentido, mesmo
adotando o conceito de pena retributiva (que visava o castigo e não a recuperação) e
intimidativa (desestimular comportamentos semelhantes ao ato condenado), a escola clássica
contribuiu no debate e nas ações de humanizar as penas. Em suma, se a pena é uma espécie de
castigo, ela coloca o indivíduo que quebrou o contrato social contra a sociedade. Mas por
mais escandaloso que o crime possa ter sido, ele é julgado sob a mesma lei que os demais
membros dessa mesma sociedade.
75
Outra conseqüência do respeito ao indivíduo adotado pela escola clássica em relação
aos regimes absolutistas, foi a idéia de que não caberia mais ao Estado interferir em esferas
que não fossem de sua competência. A adoção do ideal burguês de separação entre o público e
o privado ressalta bem o princípio liberal de respeito ao individualismo e evidencia essa
delimitação da área de atuação da intervenção do Estado, pois a esfera privada não mais seria
alvo de suas preocupações.
Juridicamente, o respeito ao individualismo e o valor dado à razão que a escola
clássica professava é demonstrado pela defesa do livre-arbítrio dos homens. Para sermos mais
objetivos, vamos observar o que a idéia de livre-arbítrio representava para os juristas clássicos
a partir da definição de crime desenvolvida por Francisco Carrara, um dos grandes
representantes e renovadores desta corrente. Para Carrara, o crime é uma infração da lei do
Estado, promulgada para proteger a segurança dos cidadãos, resultante de um ato externo
do homem, positivo ou negativo, moralmente imputável e politicamente danoso
76
(grifo meu).
Sendo o crime resultante de um “ato externo” do homem, qualquer motivação biológica,
73
Ao criar os dispositivos jurídicos dos atenuantes e agravantes e dos antecedentes criminais, Carrara, outro
expoente da escola clássica, insere, embora de forma tímida, um pouco do contexto do criminoso no julgamento.
Por isso alguns autores o consideram um neo-clássico.
74
Sobre as transformações da “arte de punir” com o advento da adoção do contrato social, ver FOUCAULT,
Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 2004.
75
A punição proporcional ao delito também consiste num avanço trazido pela escola clássica em relação aos
regimes absolutistas.
76
NETO, Vicente Amendola. Op. Cit.
44
psicológica, social ou ambiental (ou, nas palavras dos teóricos, qualquer fator criminógeno)
que pudesse determinar ou naturalizar o crime é descartada. Carrara considerava que duas
forças estavam presentes no ato delituoso: uma física e outra moral. Enquanto a força física
indica a ação propriamente dita, a força moral indica que o criminoso cometeu o crime porque
quis. Desse ato pensado, calculado, dessa decisão tomada sob consciência resulta o ato
externo grifado na citação acima. A importância e o valor que os clássicos atribuíam ao livre-
arbítrio residem no fato de não se admitir em hipótese alguma a atuação de outra força no ato
criminoso que não a vontade humana. Vimos que juridicamente e, sobretudo, penalmente,
nada distingue o infrator de outro indivíduo dentro da sociedade. Se ele se tornou criminoso,
foi porque quis. E como o criminoso tem inteligência e livre-arbítrio, também tem
responsabilidade sob os atos que comete.
E como o crime tivera sido cometido de forma pensada, o criminoso passaria, a partir
do ato, a representar perigo à sociedade. Por isso, ele deveria ser julgado tendo-se como
parâmetro o perigo que potencialmente poderia representar para a sociedade a noção de
“perigo social”. Independente de sua história de vida, ele deveria ser punido, pois praticou o
crime de forma consciente. Afinal, como postulou Carrara, o crime é “moralmente imputável
e politicamente danoso.”
De antemão, podemos perceber que o tratamento geral dado aos crimes e criminosos
pela doutrina clássica não faria do criminoso passional um infrator especial. Em tese, ele
representaria tanto perigo à sociedade como qualquer outro criminoso, pois violou o contrato
social (representado pela lei) de livre e espontânea vontade, tendo consciência das possíveis
conseqüências. Contudo, é bom lembrar que tudo isso está sendo considerado no plano
teórico.
* * *
A Escola Positiva tinha um entendimento diverso de tudo o que a Escola Clássica
defendia. Nascida do bojo do positivismo, os teóricos dessa corrente adotaram uma concepção
naturalista baseada no princípio da causalidade. reside a sua filiação com os positivistas,
que tentaram adaptar os conhecimentos das ciências exatas e naturais aos conhecimentos e
estudos sociais e humanos. O precursor da escola positiva foi Cesare Lombroso, que com a
obra “O homem delinqüente” lançou as bases dessa corrente, cuja principal marca é a ação
45
determinista de fatores externos ao indivíduo sobre suas atitudes. Essa visão do indivíduo,
portanto, em muito difere com a autonomia que a escola clássica atribuía ao mesmo.
Esse determinismo ficou expresso em uma de suas principais teses, que defendia que
os criminosos o eram não por vontade própria, mas devido a características biológicas que o
impulsionavam nesse sentido. É a tese do “criminoso nato”. Lombroso também achava que
essas características biológicas se apresentavam em sinais físicos comuns a todos os
criminosos. Essa idéia, se aceita, representaria um “avanço” não só no reconhecimento de
potenciais criminosos, mas na prevenção dos crimes que, criticavam os positivistas, não era
uma preocupação da escola clássica. O tamanho da caixa craniana, a fronte fugidia e a
distância entre os olhos eram alguns dos sinais físicos que Lombroso, através de suas
pesquisas “científicas”, viu como prováveis evidências de uma tendência delituosa por parte
de quem tivesse a falta de sorte de os possuir. Dessa forma, o infrator não é visto como tendo
vontade própria e inteligência que lhe conferissem a capacidade de escolher entre o bem e o
mal, por exemplo. Fatores internos e externos (que se resumem no trinômio bio-psico-social)
determinariam a impulsividade criminal. Observe-se que isso não poderia ser atribuído a
todos os membros da sociedade, mas apenas aos propensos.
Assim, os indivíduos não poderiam mais ser tratados com igualdade pela justiça.
Como a lei pode tratar da mesma forma indivíduos que nasceram tendenciosos ao crime e
outros que não? Com a particularização do criminoso, tem lugar outra oposição da escola
positiva em relação à escola clássica: o direito não pode nem deve ser tratado como universal.
A lei não pré-existe ao social, mas é uma resultante do convívio em sociedade e, por isso,
deve adaptar-se às transformações no tempo e no espaço. Além do mais, o crime para os
positivistas não é uma ação humana resultante do livre-arbítrio, mas de fatores biológicos e
sociais específicos a cada indivíduo. Aplicar a lei da mesma forma para todos seria uma
incoerência, já que todos são diferentes.
O juiz, então, não pode se comportar apenas como um porta-voz da lei, transmitindo-a
e aplicando-a a todos de forma pretensamente imparcial. Como o crime resulta de fatores
diversos, o juiz tem o dever de tomar suas decisões levando todos esses fatores em
consideração. A pena deve ser individualizada de acordo com o grau de periculosidade que o
criminoso apresente. Essa forma de julgar consiste do método indutivo ou experimental, onde
o particular é priorizado em detrimento de um tratamento generalizante. O peso da história do
criminoso no julgamento ressalta outro aspecto da escola positiva: a preocupação com o
infrator. A própria pena, que para os clássicos era retributiva e caracterizava uma espécie de
46
castigo da sociedade contra o criminoso, assume outra dimensão. Para os positivistas ela é
correcional e visa a reintegração social do criminoso, que ele pode ser “tratado”
recuperado ou neutralizado. O criminoso é visto como um indivíduo psicologicamente
anormal, uma patologia social, mas com possibilidades de recuperação.
Apesar de todo o determinismo e de todos os preconceitos que pudessem resultar do
positivismo jurídico, considerar as motivações que estavam por trás do ato criminoso foi uma
inovação sem precedentes. Se Lombroso enfatizava o determinismo biológico, um dos
maiores responsáveis pela inserção de aspectos sociais como fatores a serem considerados nos
julgamentos foi Enrico Ferri. Ele corroborou a idéia de Lombroso de que o infrator tem uma
propensão ao crime, mas essa propensão não é determinada apenas por fatores biológicos.
Dentre os fatores geradores do comportamento criminoso, Ferri inclui o contexto social em
que o indivíduo está inserido, sua história de vida e o que o motivou a cometer um crime.
Sua principal tese foi tentar reforçar o princípio da defesa social. Para ele, tanto o
infrator tinha responsabilidade social sob o seu ato, como a justiça tinha para julgar. Ao
afirmar a responsabilidade social, os positivistas reforçavam a idéia de que a lei surgiu do
contrato social e submeter-se a ela foi um compromisso de todos. Mas ao particularizar o
julgamento e considerar aspectos da vida do criminoso e sua relação com a sociedade, a noção
de defesa social é relativizada. É nessas construções teóricas de Ferri que os advogados que
defendiam os criminosos passionais vão se apoiar.
Ferri defendia que para o funcionamento satisfatório da sociedade alguns tipos
específicos de crimes deveriam ser tolerados. Mas se a escola positiva defendia a tendência
natural do criminoso ao crime, como aceitar que um indivíduo “doente” seja tolerado se ele
pode continuar a perturbar a ordem social? Como todo crime é movido por uma paixão, sendo
esta entendida como um estado emocional de larga duração e desenvolvimento, que provoca
mudanças efetivas no estado psíquico do indivíduo,
77
os crimes movidos por ela também
podem atingir homens “honestos”. E se estes agem em favor da sociedade, não merecem ser
tratados como qualquer criminoso. Para entendermos melhor, vamos à classificação das
paixões que podem mover um crime.
Ferri classificou dois tipos de paixões ligadas à prática de crimes: as sociais e as anti-
sociais. Enquanto as paixões anti-sociais deveriam ser severamente punidas por
77
BORELLI, Andrea. Da privação dos sentidos à legítima defesa da honra: considerações sobre o direito e a
violência contra as mulheres. Disponível em:
<http://sisnet.aduaneiras.com.br/lex/doutrinas/arquivos/141106v.pdf>, p. 31.
47
desestruturarem a ordem social, as paixões sociais deveriam ser preservadas porque se
relacionavam à defesa e manutenção de princípios morais da sociedade. A defesa da honra e
da família são os exemplos mais correntes de paixões sociais que, para Ferri, eram
socialmente úteis. Crimes cometidos para preservar essas paixões serviriam para manter a
sociedade em ordem.
O tipo de paixão que impulsionou o infrator a cometer um crime o enquadraria em
outra classificação também criada por Ferri. Desta vez dos criminosos. A combinação do tipo
de paixão que moveu o crime com o tipo de criminoso poderia proporcionar a atenuação da
pena ou até mesmo a absolvição. Foram cinco os tipos de criminosos criados por Ferri. São
eles: o criminoso nato (que apresentava atrofia do senso moral); o louco (estava entre a
sanidade e a doença, sendo seu estado quase patológico); o habitual (produto do meio em que
vive); o ocasional (falta de firmeza de caráter, podia cometer um crime se envolvido em uma
situação propícia); e o passional, definido pelo próprio Ferri como
antes de tudo, movido por uma paixão social. Para construir essa figura de
delinqüente concorre a sua personalidade, de precedentes ilibados, com os sintomas
físicos entre outros da idade jovem, do motivo proporcionado, da execução
em estado de comoção, ao ar livre, sem cúmplices, com espontânea apresentação à
autoridade e com remorso sincero do mal feito, que, freqüentemente se exprime com
o imediato suicido ou tentativa séria de suicídio.
78
Vemos que o criminoso passional começa a ser descrito como sendo motivado por
uma paixão social. Isso por si só já o coloca numa situação confortável, pois agiu para
preservar a ordem social. Mas Ferri continua. Esse criminoso tem precedentes ilibados e,
devido à comoção que o fez cometer o crime, se mostra arrependido e em não raras vezes
comete ou tenta cometer suicídio. O crime cometido por esse indivíduo é praticamente
legitimado. Lembremos que Ferri atribuía ao criminoso e ao julgador a responsabilidade
social. De acordo com a construção da imagem de criminoso passional, tenta-se questionar se
seria válido ou legítimo condenar uma pessoa que apenas queria manter a ordem defendendo
sentimentos e valores úteis à sociedade. Mais adiante veremos que essas idéias custaram caro
às mulheres, uma vez que legitimaram a violência de gênero.
Essas classificações mostram que Enrico Ferri deu continuidade e complementou o
que Lombroso já havia começado: cada caso deve ser tratado de forma específica, o criminoso
78
Idem, p. 7.
48
é impulsionado por fatores externos, a lei não pode ser generalizada, a pena deve visar a
correção, mas o criminoso tem que representar um perigo à sociedade.
* * *
Vimos as concepções e as diferenças entre as duas escolas que monopolizavam os
debates jurídicos da época e que ainda influenciam, sob vários aspectos, o direito hoje. A
visão, ainda que superficial, dessas duas correntes nos ajudará a entender as concepções de
honra e as estratégias que os advogados utilizavam para defender criminosos passionais.
Veremos que, apesar de díspares, as duas escolas ofereceram (e ainda oferecem) princípios
jurídicos que proporcionavam a defesa desses criminosos utilizando um conceito que Galarza
já havia nos alertado de sua existência constante, porém mutante nas legislações: a honra. Não
esqueçamos a afirmação de João José Leal citada no início desta seção: as escolas penais não
representam apenas as concepções jurídicas, mas também políticas e filosóficas que
circulavam em um determinado período.
3. Defendendo a honra nos tribunais
Como foi ressaltado, devido à pressa em que fora elaborado, o Código Penal de
1890 não suscitou grandes debates nem entre a população, nem entre os próprios juristas.
Como a tradição jurídica brasileira, desde o código de 1830, comungava com os preceitos
clássicos, a redação do código seguiu essa tendência, mas não de forma absoluta. Desde o
final do século XIX que os juristas positivistas ganhavam destaque ao adaptar as idéias dessa
teoria européia à sociedade brasileira. Questões como o desenvolvimento físico e racial da
população, não raros na época, são exemplos disso. Dessa forma, se os positivistas não
tiveram a chance de influenciar na elaboração do código de forma direta, vão aproveitar as
diversas brechas abertas pela redação do mesmo para difundir suas idéias no âmbito da
prática jurídica.
79
Ana Aguado e Andrea Borelli apontam a influência clássica no código penal de 1890.
Para Ana Aguado, a criação da oposição das esferas sociais em pública e privada é uma
79
Sobre as disputas entre clássicos e positivistas no contexto da construção do código de 1890, ver a seção 4 do
capítulo 1 do livro de Caulfield, intitulado “Defendendo a honra das famílias: os juristas da escola positiva e o
código penal de 1890. CAULFIELD, Sueann. Op. Cit, p. 69-72.
49
criação liberal e, conseqüentemente, atribuída à escola clássica por excelência.
80
Andrea
Borelli, por sua vez, afirma que o código se mostrou categoricamente clássico ao atribuir a
responsabilidade criminal apenas às pessoas dotadas de discernimento, inteligência e
capacidade de escolha, enfim, de pessoas que tivessem o pleno uso da razão e do livre-
arbítrio.
81
Sueann Caulfield vai na mesma direção em reconhecer a filiação clássica do
código, mas enxerga a influência positivista na medida em que, para os juristas que
participaram da construção do documento e atuaram na primeira república, caberia ao Estado
a garantia da moralidade pública através da intervenção na moralidade privada. Ainda para
Caulfield, os positivistas brasileiros não tinham o radicalismo dos europeus e muitas vezes
tentavam mesclar suas teorias a princípios clássicos. O que veremos mais adiante é que tanto
as idéias de uma como de outra corrente ofereciam inúmeras possibilidades para a defesa dos
crimes passionais, sempre atribuídos à defesa da honra.
Embora fosse citada em um título (aspecto geral que englobava vários artigos sobre
crimes relacionados a ele), não havia uma definição de “honra” no código penal de 1890.
Coube então aos juristas a discussão sobre o que se deveria entender por honra. As definições
se deram de acordo com o “partidarismo” jurídico de cada jurista. No livro “Os Crimes da
Paixão”, a antropóloga Mariza Corrêa apresenta o debate sobre as possíveis noções que a
honra poderia ter.
82
Questionava-se basicamente se a honra deveria ser entendida como
individual ou familiar. Teoricamente, a depender da escolha tomada, as conseqüências da
definição seriam completamente opostas e poderiam mudar o curso dos julgamentos dos
crimes em defesa da honra, dentre os quais os passionais. Vamos à explicação de cada noção.
Se a honra era entendida como familiar, qualquer ofensa à um dado membro da
família atingiria os demais membros. Dentro desse grupo, o chefe da família é responsável
por reparar a honra de todos, mas a honra de todos não depende dele. A mulher é responsável
80
AGUADO, Ana. Violencia de género: sujeto feminino y ciudadanía em La sociedad contemporânea. In:
OLIVEIRA, Suely de e CASTILLO-MARTÍN. Marcia. Marcadas a ferro violênca contra a mulher: uma visão
multidisciplinar. Brasília: Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, p. 30. Destacamos esse texto como
uma aula de como aliar o conhecimento teórico com a participação política nas transformações sociais. Ana
Aguado denuncia e desconstrói os mecanismos que mantém a violência de gênero, como a pressão social, a
tradição, as leis, a educação e a religião (entre outros), todos sustentando o patriarcado.
81
BORELLI, Andrea. Op. Cit, p. 20.
82
Nesse livro, Mariza Corrêa procura estudar as políticas de aplicação das leis relativas aos crimes passionais em
Campinas, no ano de 1974. Na primeira parte do livro, a autora procura contextualizar e historicizar o crime
passional no Brasil. Para isso, elabora uma possibilidade de explicação em relação à fundamentação histórica
desse tipo de crime. Esta fundamentação estaria no modelo de família baseada no patriarcado, no qual a honra
ferida é lavada com sangue. Há uma aproximação entre essa fundamentação e a idéia de continuidade das
relações sociais mesmo com transformações políticas importantes como a abolição da escravatura e o advento da
república, defendida por Caulfield e já esboçada por nós nesse texto.
50
pela honra do marido, depositada na sua fidelidade e no seu papel de mãe. Como trabalhamos
com crimes passionais, vamos a um exemplo nesse sentido. Se uma mulher comete adultério,
ela ofende a honra do marido e dos filhos, enfim, de toda a família. Isso margem e até
justifica a reparação da honra pelo chefe da família, geralmente através da agressão ou da
supressão da vida de quem cometeu a falta. A honra pode ser lavada com sangue uma vez que
o adultério desonra toda a família.
Se entendida como individual, a honra não é estendida à família. Ela é personalíssima
e suas atribuições não podem ser transferidas a outrem em hipótese alguma. Aludindo ao
exemplo dado anteriormente, um marido jamais poderia reparar a sua honra agredindo ou
assassinando uma mulher adúltera, pois ao cometer adultério ela feriu apenas a sua própria
honra. Ninguém mais foi maculado a não ser ela mesma, o que deslegitimaria qualquer ato de
reparação.
Fazendo uma ponte entre as concepções de honra e os perfis das escolas jurídicas, a
identificação entre uma e outra não é um trabalho complicado. Dada valorização de princípios
liberais como a igualdade entre os homens perante a lei, a valorização da razão, a adoção do
livre-arbítrio e, principalmente o respeito às liberdades individuais, os juristas clássicos
optavam pela defesa da honra individual. Os positivistas, por sua vez, ao relacionarem os
crimes a fatores sociais que influenciavam os criminosos, estendem o conceito de honra como
familiar. Como dissemos, teoricamente falando, a escolha de um ou outro conceito de honra
poderia significar a condenação ou não de um criminoso passional. Vejamos como os práticos
do campo jurídico lidavam com isso no julgamento de infratores passionais.
Em tese, o entendimento “clássico” da honra como individual teria como conseqüência
a não tolerância com infratores cujos crimes tivessem como motivação a passionalidade,
diretamente justificada pela defesa da honra. Além do crime não se justificar (pois sua honra
na verdade não fora ferida), o criminoso representava perigo, pois sua ação foi consciente.
Mas não podemos esquecer o contexto social em que os juristas estavam inseridos. Numa
época de transformações sociais e embates entre o tradicional e o moderno, os juristas, como
difusores de valores e representantes do establishment, tinham papel importante. Por fazerem
parte de uma elite conservadora que enxergava com desconfiança o advento de novos
comportamentos, sobretudo os das mulheres, eles se mostravam, geralmente, conservadores.
Por isso, na prática jurídica mesmo os adeptos dos ideais clássicos arranjaram formas de
driblar a idéia de honra individual e atenuar as penas ou mesmo absolver os criminosos
51
passionais. Algumas brechas na lei deram margem para que advogados conseguissem êxito
nesse sentido.
Embora, como dissemos, todos os princípios liberais dos clássicos dessem a
impressão da intolerância do campo jurídico com os criminosos, é a partir do livre-arbítrio,
princípio mais caro a essa escola, que observaremos a construção da estratégia de defesa mais
comum e mais explícita dos criminosos passionais. A razão, tão valorizada pelos clássicos,
deixava clara a idéia de que os crimes cometidos sob consciência poderiam ser passíveis
de punição. Essa idéia está expressa no parágrafo 4º do artigo 27 do código de 1890. Segundo
o artigo, estavam isentos de responsabilidade criminal os que se acharem em estado de
completa privação de sentidos e de inteligência no ato de cometer o crime.
83
Até então nada
mais coerente com os princípios da escola clássica. Se não o pleno uso da razão e, em
conseqüência disso, da consciência e do livre-arbítrio nas escolhas do indivíduo, ele não pode
ser tratado como sendo igual a todos os outros homens que desfrutam do pleno uso da razão.
Ocorre que essa isenção de responsabilidade é muito ampla. Percebemos na citação do artigo
que não uma definição de quem ou em que situação uma pessoa estaria passível de privar-
se dos sentidos. Essa imprecisão foi motivo de inúmeras críticas por diversos juristas. Citado
por José Henrique Pierangeli, o jurista Magalhães Noronha concluiu que o dispositivo atingia
a pessoa que estivesse impedida de realizar qualquer atividade, pois outra não é a situação de
quem se acha completamente privado dos sentidos e da inteligência.
84
Já que a lei nada definia, o caminho estava aberto aos advogados para que eles
definissem quem estaria privado dos sentidos e convencessem os juízes ou o júri, dependendo
do caso. E a depender dos advogados, a abrangência do dispositivo dava margem, segundo
Basileu Garcia, a toda sorte de abusos (...). A vida humana, especialmente, não tinha
garantias por efeito das facilidades que essa dirimente proporcionava aos matadores.
85
A
idéia dos advogados cujos clientes eram criminosos passionais, era atribuir aos seus clientes a
imagem de que eles haviam perdido os sentidos no ato do crime. Ou seja, estariam privados
de discernimento e inteligência. E como quem tem livre-arbítrio tem responsabilidade, os
criminosos teriam suas penas atenuadas ou seriam absolvidos. Os advogados já dispunham de
um dispositivo na lei que lhes permitia a isenção de culpa dos seus clientes. O problema agora
83
Código Penal da República, art. 27, § 4º.
84
Apud. PIERANGELI, José Henrique. Op. Cit, p. 75. A repercussão do uso do termo “privação” foi tão
negativa que Pierangeli informa que houve uma substituição pelo termo “perturbação”, sob a desculpa de que
houve um “erro tipográfico”.
85
Idem.
52
era: como e em que bases seria possível “encaixar” um indivíduo que cometeu um crime no
que estava expresso no parágrafo 4 do artigo 27 do código penal?
Nesse contexto tem lugar as idéias dos teóricos positivistas. É através do conceito de
criminoso passional, criado por Enrico Ferri, que os advogados tentarão convencer os
julgadores a acreditarem que seus clientes perderam momentaneamente a razão. Como
comentamos, ao partir do princípio de que os homens não são iguais e, devido a isso, a justiça
não pode tratá-los da mesma forma, Enrico Ferri criou classificações tanto para as motivações
dos crimes como para os criminosos. Se voltarmos a analisar a classificação do criminoso
passional e entendermos que, segundo Ferri, as motivações de seus crimes se originaram de
“paixões sociais”, aqui está o tipo certo para ser encaixado como privado de sentidos e de
inteligência no ato do crime. Ora, quem é o criminoso passional? Um homem honesto de
quem nunca se esperaria uma atitude contra a sociedade. Ao contrário, se cometeu algum
crime é porque foi movido por uma paixão social, cuja intenção era a de preservar a ordem
moral da sociedade.
A força que a influência social e ambiental exercia sobre o indivíduo é uma idéia da
escola positiva que repercutiu na jurisprudência brasileira. Apesar de o código, de influência
clássica, generalizar os cidadãos, jurisprudencialmente passou-se a julgar o criminoso não
apenas pelo seu crime (como defendiam os clássicos), mas pelo perigo que ele representava à
sociedade. Sua história passou a ser julgada, sendo seu local de moradia e suas relações
sociais possíveis agravantes ou atenuantes apresentados por acusação e defesa. A partir dessa
prática, a medida da pena do réu seria calculada pelo perigo que ele representasse à sociedade.
Essa é a noção de “defesa social”. Observe que uma diferença fundamental entre a “defesa
social”, resultante da prática positivista de observar o contexto social do crime, e o “perigo
social”, que para os clássicos significava uma vingança da sociedade ao criminoso, pois
independente da circunstância em que o crime fora cometido, o infrator o cometeu contra a
segurança e honestidade das honras das famílias.
86
Os advogados de defesa encontraram o que queriam na noção de “defesa social”. Esta,
quando instrumentalizada e associada à figura do criminoso passional que, por sua vez,
cometera o crime defendendo sentimentos úteis à sociedade (como o amor e a honra), serviu
de base pra absolvição de muitos criminosos. Mariza Corrêa explica que, como o código
penal de 1890 isentava de responsabilidade os que se achavam em estado de completa
86
CAULFIELD, Sueann. Op. cit, p. 74.
53
perturbação de sentidos e de inteligência no ato de cometer o crime,
87
os advogados de
defesa dos criminosos passionais aproveitavam para construir a idéia de que o crime houvera
sido fruto de uma loucura momentânea provocada pela paixão. Embasados pela idéia de que,
nas palavras de Ferri, o temperamento idealista de algumas pessoas as fazia perder a razão
quando decepcionadas ou provocadas por uma forte emoção,
88
a defesa, apropriando-se dela,
costumava postular que, como o crime de um criminoso passional foi um acidente (cometido
sob forte emoção), não precisaria ser punido. Até estudiosos da escola clássica, como Carrara,
que sagrava o princípio do livre-arbítrio, excluíam deste quem estivesse sofrendo de uma
paixão ‘cega’ que os fizesse perder a razão.
89
É interessante pontuar que, assim como Sueann Caulfield, Mariza Corrêa também
constatou que alguns juristas creditaram a invenção do crime passional como conseqüência da
construção do modelo de amor romântico. Esse modo de amar seria o responsável pelas
paixões cegas e pelos crimes que possíveis decepções amorosas poderiam ocasionar. Jurandir
Freire Costa procura desconstruir esse discurso romântico. E ele fez isso confrontando o ideal
amoroso com a prática amorosa. Para o autor, a imagem de amor transgressor sem amarras é
mais uma peça do ideário romântico destinada a ocultar a evidência de que os amantes,
socialmente falando, são, na maioria, sensatos, obedientes, conformistas e conservadores.
90
O amor desenfreado estava longe de ser uma prática e funcionava muito mais como uma
construção discursiva que defendia a hierarquia de gênero ao justificar uma ação criminosa
dos criminosos passionais. Isso fica claro quando observamos na prática jurídica a atribuição
da privação de sentidos e da defesa da honra segundo o gênero.
Com o advento da antropologia criminal e a inserção de elementos físicos,
sociológicos e psicológicos na análise dos casos, novos técnicos adentraram no campo
jurídico. Isso não quer dizer que eles passaram a ter a mesma importância que os técnicos
jurídicos, mas passaram a auxiliar as decisões destes.
91
Por isso, costumava-se afirmar que o
campo jurídico utilizava as teorias psicológicas e criminais consideradas mais modernas para
auxiliar na resolução dos casos. A inserção de áreas de conhecimento oriundos das ciências
exatas e naturais para interferir na sociedade é uma marca do positivismo. O discurso
87
CORRÊA, Mariza. Os Crimes da Paixão. São Paulo: Brasiliense, 1981, p.21.
88
Idem, p. 84.
89
Ibdem, p. 85.
90
COSTA, Jurandir Freire. Sem Fraude nem Favor: estudos sobre o amor romântico. Rio de Janeiro: Rocco,
1999, p. 17.
91
Uma forma de visualizar essa influência crescente de técnicos de outras áreas do saber no campo jurídico se
mostra na quantidade de laudos médicos nos processos criminais.
54
científico tinha como fim construir a imagem de imparcialidade, que, para eles, o
desenvolvimento social dependia do desenvolvimento científico-tecnológico. Certamente esse
pensamento não convenceu a sociedade de forma homogênea. Mas no campo jurídico essas
idéias encontraram muitos entusiastas. Sabemos que o campo científico, assim como o
jurídico, tem a imparcialidade como bandeira, mas sabemos também que esse campo é tão
manipulável como qualquer outro. Um exemplo dessa manipulação é a utilização da privação
dos sentidos quando atribuída às mulheres. Só os homens costumavam ter o benefício desse
dispositivo.
Mariza Corrêa, em “Os Crimes da Paixão” afirma que, segundo essas teorias
psicológicas e criminais modernas, o homem poderia ter motivos para trair (a “frieza” da
companheira poderia ser um desses motivos). Mas a mulher não tinha essa “predisposição” à
traição. Se ela o fez, não foi por “necessidade”, mas por falta de caráter, o que justificaria o
crime. Eis aqui um exemplo de como a modernidade poderia ser usada de forma
conservadora: em linhas gerais o homem poderia matar a mulher adúltera porque ela não era
“predisposta” à traição, como afirmava a medicina social. Mas se a mulher matasse por
motivos de traição, deveria ser punida, pois a traição masculina era vista como uma
necessidade.
Em um estudo realizado em processos criminais no Rio de Janeiro entre 1890 e 1930,
a historiadora Raquel Soihet mostra como essa legitimação da violência de gênero ocorria na
prática. Com base em 394 processos estudados, Soihet chega à conclusão que o recurso da
“privação de sentidos e inteligência” nunca era aceito pelos julgadores quando usado em
defesa de uma mulher, ao contrário do que ocorria com os homens. No próprio código penal
de 1890, as mulheres deveriam ser condenadas pela prática de adultério. Em um dos
processos estudados, os argumentos da defesa de uma criminosa de que o adultério do marido
instigou a ferocidade do ciúme pela tirania da paixão não foram suficientes. A acusação
conseguiu convencer o júri que a criminosa representava perigo à sociedade. Para Soihet, a
desigualdade chegava ao nível jurídico, pois, segundo as teorias criminais modernas baseadas
na medicina social, as leis contra o adultério (atingem) a mulher, cuja natureza não a
predispunha para esse tipo de transgressão.
92
A medicina social, portanto, reforçou a
diferenciação de tratamento entre homens e mulheres. O estudo de Soihet acabou por
evidenciar a parcialidade do sistema judiciário em relação às desigualdades de gênero.
92
SOIHET, Rachel. “Mulheres Ousadas e Apaixonadas: uma investigação em processos criminais cariocas
(1890-1930)”. In: Revista Brasileira de História, v. 9, nº 18. São Paulo: Ed. Marco Zero, 1989 p. 201.
55
* * *
Mesmo com todas as facilidades” que a lei oferecia, certamente nenhuma dessas
construções discursivas teriam efeito se não fosse a competência retórica dos atores jurídicos.
Quando analisarmos nos capítulos seguintes os processos sobre os crimes passionais, veremos
que as estratégias dos atores jurídicos levaram o crime passional a ser considerado um crime
em defesa da honra. Por isso a competência retórica tanto da acusação como da defesa era
importantíssima no resultado do julgamento. Tratava-se de um confronto de discursos. Os
representantes que defendiam a absolvição dos réus diziam que o crime era fruto de uma
paixão social e tentavam evidenciar a infidelidade da mulher em oposição à honra do marido;
a acusação, por sua vez, taxava o criminoso de anti-social, justamente por não saber lidar com
essas paixões. Eles sustentavam que se os réus eram considerados loucos no ato do crime,
tinham que ficar sob a guarda de alguma instância médica do Estado.
No livro “Morte em Família”, Mariza Corrêa analisa as falas de diversos atores
jurídicos e conclui que havia um “terreno comum” entre os discursos de acusação e defesa
para a apresentação de suas partes: a evocação de uma conduta “normal” que réus e vítimas
deveriam ter. A imagem ideal do homem e da mulher era o que realmente estava em jogo nos
julgamentos e nesse ponto também entra o poder de persuasão dos advogados. Mas que
apresentação ideal seria essa? Ela está ligada aos atributos sociais do homem e da mulher:
enquanto o papel do homem era trabalhar para garantir a sobrevivência da família, cabia à
mulher o papel de procriadora fiel. Apresentando as partes dessa forma, os advogados
procuravam mostrar aos julgadores que eles eram pessoas honradas segundo os códigos
sociais tradicionais (comungados, valorizados e difundidos pelos julgadores). Se um crime
gera uma quebra no sistema normativo da sociedade (representado pelo código penal), a
apresentação desses papéis ideais nos julgamentos objetiva mais defender o sistema
normativo do que elucidar o crime. Para Mariza Corrêa, o judiciário perpetua a construção
social dos papéis sexuais no que diz respeito à desigualdade em nome da manutenção de um
sistema normativo estabelecido.
Por isso a apresentação das pessoas como seguidoras fiéis das normas sociais e
incapazes de violar a lei. O estudo de Raquel Soihet mostra bem a importância que a
56
apresentação dessa imagem “ideal” tinha na hora do julgamento, mesmo que ela fosse muito
distante da realidade. Seu tema de estudo foram crimes passionais em que as mulheres eram
as agressoras. Tendo como fonte processos criminais, a autora busca desmistificar o
comportamento feminino tido como normal para o gênero. O que Soihet faz é desconstruir
essa imagem através da análise do ato em si, bem como suas motivações. Com base em três
exemplos uma esposa que mata a amante do seu marido; uma mulher que se vinga do
desprezo de um amásio; e outra que renuncia à uma vida luxuosa e segura para viver
humildemente com um amante cuja vida pregressa era duvidosa a autora apresenta as
mulheres como agentes de transformação. No entanto, nas falas das testemunhas e de seus
advogados, as mulheres são apresentadas nos julgamentos como portadoras de um
comportamento exemplar com o claro objetivo de se mostrarem honradas para o julgador.
Toda a rebeldia e contestação que Soihet buscou nas atitudes das mulheres estudadas foram
reduzidas nos julgamentos ao papel social que elas mesmas contestaram quando cometeram
os crimes. A convergência com a tese de Mariza Corrêa se na admissão de que o modelo
ideal de mulher que aparece nos autos é o de e, ser cil e submisso cujo principal índice
de moralidade é sua fidelidade e dedicação ao marido.
93
A soma das brechas da lei, com as estratégias dos advogados e o conservadorismo dos
julgadores resultou numa prática de absolvição de criminosos passionais que chamou atenção
da sociedade em vários lugares. Além do Recife, o levantamento bibliográfico que fizemos
mostra que outras cidades brasileiras passavam pelo mesmo problema.
94
Em um artigo para a
Revista Brasileira de História, Susan Besse também analisa o impacto social da absolvição
dos criminosos. A autora estuda a campanha contra os assassinatos de mulheres no Brasil
entre 1910 e 1940.
95
Essa campanha surgiu como resposta de uma parte da sociedade ao
grande número de notícias jornalísticas referentes a esse tipo de crime assim como ocorria
no Recife. As reportagens traziam estatísticas alarmantes acerca do aumento do número de
vítimas fatais e da absolvição dos criminosos. Frente a esse quadro, o Conselho Brasileiro de
Hygiene Social liderou uma campanha contra os assassinos de mulheres que consistia em
quatro passos básicos, segundo constatou a autora. O primeiro seria desmascarar os reais
93
SOIHET, Rachel. Op. cit, p. 202.
94
Em um artigo para a revista Nossa História, Magali Engel analisa a ressonância dos crimes passionais nos
jornais e crônicas do Rio de Janeiro no início do século XX.
Cf. Magali Gouveia. Paixão e Morte na Virada do
Século. In: Revista Nossa História, ano 2, 19. Rio de Janeiro: Ed. Vera Cruz, 2005. As obras citadas de
Mariza Corrêa se concentram em São Paulo e Campinas. Além disso, grupos de trabalho sobre violência de
gênero em diversos congressos estão repletos de trabalhos relacionados ao tema em diversas cidades e recortes
temporais.
95
BESSE, Susan. Crimes Passionais: a campanha contra o assassinato de mulheres no Brasil 1910-1940. In:
Revista Brasileira de História, v. 9, nº 18. São Paulo: Ed. Marco Zero, 1989.
57
motivos do crime, que o mesmo tivera sido mascarado pela noção romântica de perda de
sentidos e inteligência diante de uma forte emoção. Era exatamente a crítica ao amor
romântico o segundo passo. O amor deveria ser baseado no autocontrole, de acordo com os
códigos da civilização. O terceiro passo foi questionar as convenções sociais em que o
passional é absolvido jurídica e socialmente. O quarto e último passo da campanha era a
defesa do conceito de honra individual em detrimento do conceito de honra familiar, que
justificava a lavagem da honra com sangue.
Nos julgamentos, os argumentos de acusação de criminosos baseavam-se na noção de
“perigo social” o criminoso mostrou que não soube conviver harmonicamente na sociedade
e por isso deve ser punido. A defesa, por sua vez, se aproveitava da noção de “defesa social” –
apresentando a vida pregressa dos réus, geralmente com um “passado limpo”, os advogados
tentavam mostrar que os mesmos não apresentava perigo à sociedade. Esta tese, como vimos,
era corriqueiramente utilizada pelos advogados de defesa dos criminosos. E aceita pelos
julgadores em várias e cidades e em tempos diferentes segundo a literatura consultada.
Considerações finais
De acordo com o que vimos, embora tivessem visões de mundo completamente
opostas, tanto os princípios da escola clássica como os da positivista ofereciam possibilidades
para se defender a honra. Esse conceito, embora nem sempre nomeado, estava presente em
todas as formas de defender os criminosos passionais que vimos aqui. E isso não acabou com
o código penal de 1940 que substituiu o de 1890 e está em vigor até hoje. Enquanto alguns
avanços foram tomados na teoria, na prática os advogados acharam novas formas de defender
seus clientes sempre evocando a honra.
Para Natalia Galarza, por ser uma mediação cultural, a honra passa por diversas
resignificações, mas sempre está presente. Durante a vigência do código penal de 1890, o
dispositivo da privação de sentidos e inteligência tornou a defesa dos criminosos passionais
um trabalho relativamente simples em que a honra nem sequer costumava ser mencionada. O
código de 1940 aboliu esse dispositivo, mas tornou a considerar um crime cometido sob
“forte emoção” um fator atenuante. Isso representou um certo avanço, principalmente se
comparado à legislação anterior. Mas os advogados não ficaram satisfeitos com a
possibilidade de atenuar a prisão de seus clientes quando antes eles eram absolvidos. Fazia-se
58
necessária a criação de novas estratégias de defesa para que o êxito fosse total e não apenas
parcial.
É nesse momento que tem lugar a imagem de “legítima defesa da honra”, uma
categoria criada pelos advogados, mas que não existia na lei. O parágrafo do artigo 42 do
código penal de 1940 considera como circunstância atenuante ter o delinqüente cometido o
crime em defesa da própria pessoa ou de seus direitos ou em defesa das pessoas e direitos de
sua família ou de terceiro. Ocorre que se tornou uma prática estratégica dos advogados dos
criminosos agregarem à noção consagrada de defesa própria a de defesa da honra. Os
advogados explicavam que, embora não definida no código penal, a honra era personalíssima,
ou seja, era constituinte da personalidade humana. De acordo com essa construção retórica, se
a honra do indivíduo era atingida ele também era atingido. Assim, procurava-se justificar um
crime praticado em reparação da honra como um crime em defesa própria. Pensando dessa
forma, os advogados procuravam mostrar que o crime não fora cometido contra ou
representava perigo à sociedade. Se o “ataque” à honra correspondia a uma agressão à pessoa,
a defesa da honra seria um ato legítimo de defesa.
Mas se essa forma de defender não estava embasada na lei, como ela era aceita nos
julgamentos? A promotora Maria Nagib Eluf explica que os casos de crimes passionais eram
em sua maioria julgados pelo tribunal do júri, formado na maioria das vezes por homens.
96
É
aos jurados, e não à lei e aos magistrados, que a autora atribui a permanência da absolvição
dos criminosos. Nagib conclui que isso ocorria porque os valores patriarcais ainda eram muito
presentes na população. Consideramos um tanto corporativista a visão da autora de excluir o
campo jurídico da questão. Afinal, os advogados foram os grandes responsáveis pela
construção da defesa da honra atrelada à defesa física.
A absolvição de criminosos tendo como base a defesa da honra ainda é muito presente
em nossa sociedade. Guita Debert afirma que a criação das Delegacias de Direito da Mulher
soaram como uma reposta às absolvições dos criminosos na década de oitenta.
97
O estudo de
Sílvia Pimentel (e outras, vide nota), analisa o fato nos anos 90.
98
Ana Aguado considera que
a separação na lei entre o público e o privado objetiva a isenção do Estado na promoção de
políticas públicas que visem combater a violência sexista. Rivail Rolim traça a mudança de
96
ELUF, Maria Nagib. Op. Cit. A autora estuda a construção e aceitação da legítima defesa da honra no capítulo
8 do seu livro.
97
Cf. DEBERT, Guita Grin. Delegacias de defesa da mulher: judicialização das relações sociais ou politização
da justiça? In: CORRÊA, Mariza e SOUZA. Èrika Renata de (orgs.). Vida em Família: uma perspectiva
comparativa sobre os crimes de honra. Coleção Encontros. São Paulo, UNICAMP, 2006, p. 15-38.
98
PIMENTEL, Sílvia, PANDJIARJIAN, Valéria e BELLOQUE, Juliana. Op. Cit.
59
postura dos juristas de um Estado de direito liberal para um Estado de direito intervencionista
(que culminou com o Estado Novo). Para Rolim, quando o Estado assumiu o
intervencionismo na ordem econômica e social, conseqüentemente, abriu espaço para intervir
ativamente no campo penal, com um controle também intervencionista sobre a criminalidade
e o criminoso.
99
Sueann Caulfield converge com Rolim ao concluir que a atuação da justiça
no Brasil foi de ordem intervencionista na moral privada através da afirmação da honra
familiar.
Hoje, com um maior envolvimento das mulheres e da sociedade de uma forma geral,
essa discussão não fica mais restrita a especialistas do campo jurídico. Ela ultrapassa, e muito,
os limites dos tribunais e se insere numa discussão política. Um exemplo dessa interação entre
sociedade e campo jurídico é a lei Maria da Penha, sancionada em agosto de 2006 e fruto da
pressão da sociedade civil organizada, que mostra que, apesar haver conquistas significativas,
muito ainda há por fazer.
99
ROLIM, Rivail Carvalho. “’Onde há um Mal a Conjurar, na Defesa de seus Interesses, Não Há Zonas
Subtraídas à Ação Repressiva do Estado’: idéias jurídico-penais no Brasil em meados do século XX”. In: Anais
do XXII Simpósio Nacional de História. João Pessoa, 2003.
60
CAPÍTULO 2
OS CRIMES, OS CRIMINOSOS E A JUSTIÇA
61
o fazer uma análise do trabalho do etnólogo, Clifford Geertz diz que a apreensão
da cultura de um dado grupo se dá, principalmente, pela observação de sua vida
cotidiana – ou, nas palavras do próprio Geertz, do fluxo de comportamento.
100
Para
isso, é interessante que o pesquisador não se restrinja apenas aos rituais, sejam festas ou
outros tipos de cerimônias, mas se aproxime de ações ordinárias. Nesse sentido, consideramos
que as funções do etnólogo e do historiador se aproximam. Para uma pesquisa histórica,
também é fundamental a observação de ações espontâneas que não estejam diretamente
relacionadas a algum rito. Mas como fazer para “apreender” as relações cotidianas em fontes
que são, em si mesmas, o resultado ou o registro de um ritual? Não nada em um processo
judicial que não envolva um procedimento normativo.
101
Tudo é rigorosamente observado e
controlado, o que não nos leva a crer em nenhuma espontaneidade por parte dos
envolvidos.
102
Uma possibilidade de saída para a tal apreensão das relações de um grupo
nesse tipo de fonte é a aproximação e comparação de informações que sejam recorrentes em
todos os processos.
Nosso objetivo nesse capítulo é mapear as características gerais dos crimes que
propomos estudar. Nossa problemática girará em torno da seguinte questão: havia
regularidades relativas à prática deles? Para respondê-la, buscamos nos processos criminais
informações que pudessem nos esclarecer a respeito. Através da análise do que as fontes
registraram, elegemos variáveis segundo as quais pudéssemos enxergar pontos de
aproximação ou divergência entre os casos. Dentre essas variáveis, damos destaque a pontos
que tocam: 1 os envolvidos nos crimes, suas idades, ocupações e graus de instrução; 2 o
próprio crime, com informações acerca dos instrumentos utilizados, locais e horários dos fatos
ocorridos, bem como suas motivações; 3 a justiça e seu funcionamento, com a análise das
incursões no código penal, do número de absolvições, condenações e, nesses casos, os graus
100
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978, p. 27.
101
Desenvolvendo a noção de “campo jurídico”, Pierre Bourdieu enfatiza esse controle endógeno da justiça. Para
o autor, a pessoa que busca a justiça para resolver um conflito renuncia resolvê-lo ela própria, na medida em que
delega essa resolução a um profissional. Esses profissionais, que detêm o monopólio do serviço jurídico, tornam
o leigo um mero coadjuvante. O uso da linguagem técnica, o efeito da apriorização (busca pela impessoalidade e
neutralidade), a universalização do discurso e o poder de nomeação são exemplos citados pelo autor do controle
e da restrição desse campo. Cf. BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Coleção Memória e Sociedade. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.
102
Tratando do trabalho com processos inquisitoriais em que podemos fazer muitas aproximações com o
trabalho com processos judiciais Carlo Ginzburg afirma que as pressões exercidas em um depoimento podem
produzir testemunhos muito ricos, porém, distorcidos. Para que o pesquisador não se perca nessas distorções, o
autor sugere o trabalho com a noção de dialogismo, que implica em captar, por baixo da superfície uniforme do
texto, uma interação sutil de ameaças e temores, de ataques e recuos
. Cf. GINZBURG, Carlo. O Inquisidor
como Antropólogo. In: Revista Brasileira de História, vol. 11, 21. São Paulo: ANPUH/Marco Zero, setembro
90/fevereiro 91, p. 12. A noção de dialogismo será mais aprofundada no capítulo 3 dessa dissertação.
A
62
das penas (inclusive segundo o sexo), assim como do tempo que o processo levava desde a
sua abertura até o seu desfecho.
Por buscarmos dados gerais, não nos voltaremos nesse capítulo a estudos de casos de
forma específica. Eventualmente utilizaremos um ou outro exemplo, mas nosso foco neste
momento é uma visão panorâmica. Descartamos, então, nesse momento, o trabalho com casos
isolados ou ditos excepcionais (para os quais a imprensa produzia grande reverberação), o que
levaria a um estudo de crimes em detrimento de um estudo da criminalidade. O que
pretendemos fazer traduz-se na imagem de um funil invertido: saímos do particular para o
geral. Nos apoiaremos, assim, no conceito de criminalidade elaborado por Boris Fausto. Para
o autor, “criminalidade” se refere ao fenômeno social na sua dimensão mais ampla,
permitindo o estabelecimento de padrões através da constatação de regularidades e
cortes”.
103
Outrossim, não enxergamos a criminalidade apenas como um desvio de conduta
através de uma infração do Código Penal. Mais do que isso, buscamos no estudo da
criminalidade valores sociais correntes entre a população. Para os julgadores, o tratamento
que se dava ao crime pode ser um indício do que se desejava em relação a certos
comportamentos. Como exemplo, dependendo de quem cometesse o crime, fica claro de
acordo com a historiografia consultada que muitas vezes não havia a punição por parte da
justiça. Isso, no mínimo, representa uma conivência do aparelho repressivo em relação a esses
crimes em certas circunstâncias.
104
O mesmo ocorre se invertermos o olhar e pensarmos nos
infratores. No caso dos crimes passionais, tratados quase até a sua vulgarização pela
imprensa, Boris Fausto chega a afirmar que é possível trabalhar com a hipótese da
explicitação de desejos reprimidos por parte dos agressores. Tudo isso pode nos dizer muito
sobre os padrões de comportamento e os valores sociais.
Como não seria possível estudar toda a documentação disponível, decidimos nos
apoiar numa amostragem de fontes para a observação dessas regularidades. São dezoito peças
judiciais cujos critérios para a seleção se deram conforme a presença dos dados citados no
parágrafo anterior. Uma de nossas preocupações na seleção foi colher processos que se
distribuíssem de forma equilibrada em nosso recorte temporal, já que nos propomos a analisar
o conjunto da década de vinte.
103
FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano. São Paulo: Edusp, 2001, p. 19.
104
Essa hipótese se mostra mais válida quando observamos que essa parcialidade do campo judiciário é
percebida em todas as obras consultadas nessa pesquisa.
63
Assim, quando afirmamos que temos como objetivo observar se havia regularidades
em relação aos crimes passionais, nos atemos ao universo de fontes selecionadas para a
pesquisa. No entanto, na medida em que todo estudo por amostragem tem anseios dedutivos,
consideramos que muito do que será afirmado ou inferido aqui pode ser associado a um
contexto geral.
A metodologia que julgamos mais conveniente para a busca dessas regularidades é a
análise quantitativa. Essa dimensão, no entanto, servirá como apoio às interpretações dos
dados e não como a tradução de uma verdade imanente aos números.
1. O lugar da abordagem quantitativa na pesquisa
Nesse capítulo, todas as informações colhidas nos processos foram contabilizadas e
transformadas em números. A utilização de tabelas nos servirá como recurso cujo objetivo
será a melhor visualização, exploração e problematização dos dados extraíveis desses
processos. Foi através da apresentação e confrontação desses dados numéricos que pudemos
apreender os cortes e regularidades a que nos propomos pesquisar. Não é nossa intenção, ao
trabalhar com números, alijar do tema a condição humana em detrimento da frieza dos dados
idéia, aliás, muito cara à história quantitativa. Ao contrário, os números nos ajudam a
perceber de forma mais ampla as diversas relações e experiências humanas e sociais e
destas não serão separadas.
A abordagem quantitativa que utilizamos não é aquela que ganhou terreno no pós-
guerra e era uma das principais linguagens de descrição do mundo nos anos sessenta do
século passado. Nessa época, para muitos historiadores o binômio estrutura-conjuntura
parecia explicar todo o funcionamento da sociedade.
105
O grande paradigma da história era os
estudos globais e totalizantes. A abordagem quantitativa, nesse contexto, ficou em evidência
nos estudos de populações, produções, etc.
106
Na década de setenta, uma vertente de historiadores partiu para abordagens teóricas
cada vez mais pontuais e a crescente especialização desses estudos históricos desobrigou a
história da ambição totalizante, o que ocasionou um distanciamento das pesquisas em relação
105
Na introdução d’A História Cultural, Roger Chartier afirma que a restrição às conjunturas econômicas e
demográficas e às estruturas sociais da história só sofreram uma renovação após uma espécie de desafio
institucional lançado por novas disciplinas na década de sessenta. Cf. CHARTIER, Roger. A História Cultural:
entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1988.
106
O grande símbolo dessa vertente da abordagem quantitativa é o estudo de Fernand Braudel sobre o
Mediterrâneo.
64
às análises quantitativas enquanto método de pesquisa. A estrutura econômica foi cedendo
espaço para os estudos baseados na política e na cultura. Dos anos 1980 para cá, vimos uma
maior diversificação dos estudos históricos. Enquanto a micro-história, tendo Carlo Gisnzburg
como um dos maiores representantes, dá prosseguimento às especializações regionais, locais e
até individuais (sem que se perca a relação com o contexto), os estudos sobre política
voltaram a apresentar uma abordagem mais abrangente. Esse retorno recoloca os estudos
quantitativos em lugar de destaque, porém, não da mesma forma como na fase estruturalista.
Fazendo um panorama da historiografia européia no século XX, Jean Boutier e
Dominique Julia afirmam que o estudo das sínteses coletivas havia sido anunciada n’A
Escrita da História (um clássico francês publicado em três volumes em 1974, a saber: novas
abordagens, novos problemas e novos objetos). Para os autores, o relativo ostracismo das
abordagens quantitativas nos anos setenta se deu porque
a realidade histórica (passou a ser) cada vez menos examinada como um objeto
dotado de propriedades que preexistam à análise, mas como um conjunto de inter-
relações que se movem no interior de configurações em constante adaptação.
107
Não é na perspectiva estruturalista, pois, que a abordagem quantitativa enquanto
método foi retomada pela história cultural, muito menos é assim que pretendemos trabalhar.
Embora o trabalho com números possa dar, à primeira vista, uma dimensão estática à
pesquisa, pensamos que os dados são válidos tão somente se estão a serviço de uma
interpretação ou de uma produção de sentido. Apesar de todas as inovações por que tem
passado a pesquisa histórica no que diz respeito aos seus instrumentos e métodos (falo,
inclusive, no uso da informática), temos convicção que a qualidade do trabalho depende do
tratamento do historiador, as questões por ele suscitadas, suas respostas e a pertinência da
documentação. Os dados apresentados nessa pesquisa se dão em função da qualidade das
fontes e das problematizações geradas a partir delas.
108
107
JULIA, Dominique e BOUTIER, Jean (Orgs.) Passados Recompostos: campos e canteiros da história. Rio de
Janeiro: Editora UFRJ/FGV, 1998, p. 31.
108
Aproveitamos ainda as discussões sobre as análises quantitativas para afirmar que os dados estatísticos que
utilizaremos serão retirados dos documentos por nós selecionados. A análise de dados provenientes de estudos
oficiais não será utilizada por dois motivos: o primeiro é o de que não temos como intenção estudar as políticas
de repressão do Estado (aqui sim seria necessário uma análise de dados provenientes da polícia e da justiça
enquanto representantes ou peças constituintes do próprio Estado). Nossa intenção é trabalhar com uma
amostragem de processos e, a partir deles, traçarmos dados que os aproximem. Trata-se então de um estudo
endógeno no que diz respeito às fontes. A relação com um contexto mais geral se dará no diálogo com outras
65
2. Os crimes
Em seu trabalho sobre a criminalidade em São Paulo entre 1880 e 1924, Boris Fausto
divide a violência física em quatro categorias, quais sejam:
violência empregada como meio para alcançar determinados objetivos materiais;
violência utilizada como mecanismo de resolução de ofensas ou conflitos
interpessoais; violência que resulta de frustrações muitas vezes inconscientes e toma
a forma de uma explosão súbita; e a violência que se constitui num instrumento
pedagógico.
109
O autor observa que, dentro dessa classificação, enquanto o emprego de alguns tipos de
violência é execrado, o de outros é tolerado.
É interessante perceber que, na literatura consultada, os crimes passionais se
encaixam, em momentos distintos, em duas das categorias vistas acima. Primeiramente, no
calor do momento em que o crime é praticado, ele se constitui numa resolução de um conflito
entre o criminoso e a vítima. No jargão popular, o que há é um “acerto de contas” por parte do
agressor cujo objetivo é reparar a ofensa com a morte ou agressão da vítima, com o fim de
nela “dar uma lição”.
No momento em que o processo é concluído, porém, vemos que o crime passional
muitas vezes muda de categoria: na medida em que a maioria dos criminosos passionais é
absolvida, a justiça transforma o crime em um instrumento pedagógico. Para exemplificar
essa mudança de categoria, a partir da documentação selecionada, temos o caso de Pedro
Pastor, que mata Quitéria Maria, sua ex-esposa.
110
Devido ao fato de Quitéria estar se
relacionando amorosamente com outra pessoa, Pedro a assassina covardemente se utilizando
de quase todos os termos agravantes que um assassinato pode ter (crime cometido à noite,
superioridade de arma, força e sexo, invasão do domicílio da vítima e surpresa). Para Pedro,
houve um acerto de contas com Quitéria que, a seu ver, mesmo separada, lhe devia fidelidade.
pesquisas. Dentre estas, destacamos o estudo de Boris Fausto por apresentar uma seção dedicada aos crimes
relacionados à honra também baseada em dados numéricos. O segundo motivo reside na dificuldade de obtenção
desses dados oficiais relativos ao nosso recorte temporal. Não obstante, dados oficiais são fontes que nem
sempre conferem confiança sobre os crimes na medida em que não trazem informações sobre os mesmos, mas
sobre a prática repressiva.
109
FAUSTO, Boris. Op. Cit. p. 108.
110
BR PE PJ MJ REC JM2VCR PROCESSO AÇÃO CRIMINAL 1923.05.29. As referências aos processos aqui
utilizadas seguirão o padrão da Norma Internacional de Descrição Arquivística-ISAD(G).
66
Após todos os procedimentos normais do processo, Pedro foi absolvido. Nesse
momento entra o tal caráter pedagógico assumido pela justiça. O réu não possuía no histórico
do crime nada que amenizasse sua culpabilidade vale ressaltar que nem ele mesmo negou o
crime. A “lição” que a justiça dá nessa sentença é a de repulsão do comportamento de
Quitéria, que se separou por conta própria por saber que seu marido não lhe era fiel e foi
buscar sua felicidade em outro relacionamento. A dimensão pedagógica traduz-se no caráter
genérico de moralidade presente nas sentenças. O Estado, representado pela justiça, aponta o
que se esperava da conduta social dos cidadãos e do próprio funcionamento da sociedade
como um todo.
* * *
Embora sejam figuras jurídicas distintas e tenham penas distantes em relação aos
graus, homicídio e agressão podem estar muito próximos, a depender do sucesso da
“empreitada” e da eficácia dos meios utilizados.
111
Como podemos observar na tabela 1, a
maioria dos crimes selecionados se constituem em agressões.
Tabela 1 – Classificação dos crimes nos processos criminais do Recife –
década de vinte
Tipo de crime Números %
Agressão
12 70,5
Homicídio
5 29,5
Total
17 100
Fonte: tabela elaborada a partir da coleta de dados em processos arquivados no Memorial de Justiça de
Pernambuco (MJPE)
Obs.: Não entrou nessa tabela o inquérito que investigou o suicídio.
111
Em caso de crime contra a vida, o Estado toma para si as providências de investigação independente de
denúncia por parte de familiares, amigos, etc. Caso o crime resulte em uma agressão, as diligências policiais
primeiro passo na apuração do crime dependem da disposição da vítima, ou alguém a ela ligado, denunciar o
caso à polícia.
67
Mas, conforme havíamos problematizado antes, o que separa uma agressão de um
homicídio? Muitas agressões podem ter sido, na intenção do criminoso, homicídios que não
deram certo. Da mesma forma, é possível que a intenção de agredir tenha tido como desfecho
a morte da vitima. Ainda que não se possa estabelecer uma correlação direta entre uma coisa e
outra, o estudo dos instrumentos utilizados nos crimes pode nos oferecer algumas pistas nessa
direção.
2.1 – Os instrumentos
uma corrente dos estudos sobre cultura material
112
que afirma que os artefatos
(segmento dos mais importantes da cultura material) têm uma biografia própria. Mas,
conforme afirma David Lowenthal em relação às relíquias, nenhum objeto ou vestígio físico
são guias autônomos para o conhecimento do passado.
113
Essa afirmação pode ser estendida
também aos artefatos ordinários de uso cotidiano. À biografia do objeto devem ser acrescidas
a suas condições de uso e suas interações externas. O objeto não é autônomo, e por isso não
deve ser separado de suas possibilidades de uso nem tampouco da história das pessoas que os
utilizaram. Para uma história interpretativa, o artefato deve servir como um documento, sendo
um suporte físico para a obtenção de conhecimento. Por isso deve sofrer, assim como também
sofrem os demais documentos, os deslocamentos necessários. Tratando de instrumentos
utilizados em crimes, o deslocamento se na medida em que o uso deles no momento dos
crimes sofre diversas interpretações ao serem tornados públicos nos processos. Os próprios
trâmites judiciais já iniciam esse deslocamento.
É nesse sentido que abordamos os instrumentos aqui: não na dimensão do simbólico,
mas nos seus usos práticos. Nossa observação a respeito desse assunto seguiu a questão
levantada por Ulpiano Meneses: que tipo de informação intrínseca podem os artefatos conter,
especialmente de conteúdo histórico?
114
Na medida em que buscamos informações intrínsecas
concebemos o objeto no contexto de seu uso. Procuramos os seus sentidos de uso, o que é
bem diferente de se buscar os supostos atributos intrínsecos do objeto, segundo o qual ele
seria visto de forma autônoma, fechado em si mesmo e revelador de uma verdade que
112
Tiramos a definição de cultura material do texto de Ulpiano Meneses, que afirma que a expressão refere-se a
todo segmento do universo físico socialmente apropriado. Cf. MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Memória e
cultura material: documentos pessoais no espaço público. Disponível em www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/238.pdf.
Acessado em 18/01/2008.
113
LOWENTHAL, David. Como conhecemos o passado. In Revista Projeto História (PUC-São Paulo).
Trabalhos da memória, nº 17, novembro de 1998, p. 149.
114
MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Op. cit.
68
independeria do contexto em que estivesse inserido. Um bom exemplo dessa visão do artefato
de forma não isolada é o uso de bengalas como meio para agredir: forma de uso bem diversa
do seu propósito original...
Dos instrumentos utilizados nos crimes passionais selecionados, podemos perceber
que as chamadas armas brancas figuraram entre as mais utilizadas pelos criminosos, como
podemos observar na tabela 2.
Tabela 2 – Instrumentos Utilizados em Crimes Passionais no Recife –
década de 20
Instrumentos Número %
Armas de fogo
2 11,7
Armas brancas (facas,
navalhas e foices)
8 47
Instrumentos
contundentes
4 23,4
Outros
3 17,6
Total 17 100
Fonte: tabela elaborada a partir da coleta de dados em processos arquivados no MJPE.
Obs.: Não entrou nessa tabela o inquérito que investigou o suicídio.
Podemos observar que as armas brancas respondem sozinhas por quase metade dos
instrumentos utilizados para ferir ou matar. As armas de fogo, por sua vez, foram de menor
utilização. Devido ao número de processos que estamos pesquisando e à restrição ao tipo de
crime, não podemos constatar que o uso do revólver, tão popularizado no início do século
XX, fosse restrito no Recife da década de vinte. Para isso teríamos que verificar os
instrumentos utilizados em outros crimes, principalmente os que se constituem contra a
propriedade.
Mas a utilização de armas brancas também pode nos dizer a respeito dos limites entre
a agressão e o homicídio. Quem espanca com uma foice quer somente ferir? É bem provável
69
que na impossibilidade de se portar um revólver, meio mais rápido e menos “trabalhoso” de
se matar, uma faca resolvesse o problema. Outra inferência poderia residir no fato dos crimes
não terem sido premeditados. Caso fossem, haveria tempo para se “arranjar” um revólver.
Mas quando admitimos a hipótese da não premeditação dos crimes devido ao baixo uso de
armas de fogo (num momento em que, pelas notícias da imprensa, elas eram largamente
utilizadas em assaltos),
115
é possível que se faça uma ponte com a idéia de que os criminosos
estivessem com ausência de discernimento no ato criminoso. Se aceitamos isso acabamos
corroborando a posição dos advogados de defesa de criminosos que espancavam e matavam
mulheres sob o dispositivo da “privação de sentidos e de inteligência no ato de cometer o
crime”, presente no Código Penal de 1890.
116
O que certamente pode explicar a utilização das armas não está apenas na
intencionalidade do criminoso, mas na relação social que elas possuem. As armas brancas,
além de objetos de uso cotidiano, também deveriam ser, principalmente entre o segmento de
baixa renda da população, instrumentos de trabalho de uso cotidiano. Além disso, o revólver
deveria ser como ainda é um objeto caro e, portanto, não acessível aos criminosos de que
tratamos.
De posse dos nossos dados, não podemos nem falar de uma maior facilidade em
utilizar armas de fogo com o passar dos anos uma vez que os dois casos em que o revólver foi
utilizado datam de 1923, período inicial do nosso recorte temporal. O que podemos constatar
com segurança, dentro dos nossos casos, é que as armas de fogo foram utilizadas por homens,
o que nos permite inferir que o acesso às mesmas pelas mulheres era bem mais complicado,
senso comum que permanece até os dias de hoje.
De qualquer forma, o que a tabela 2 apresenta é bem diferente do que Boris Fausto
observou em São Paulo no mesmo período. Segundo os números apresentados pelo autor, o
período por ele estudado pode ser dividido em duas fases, segundo o critério dos instrumentos
utilizados em crimes. Entre 1880 e 1905 as armas de fogo representavam 13% dos objetos
utilizados nas agressões. A partir de 1905 até 1924, no entanto, o percentual subiu e chegou a
115
Embora o capítulo V do Código Penal então vigente (1890), que cuidava “Do fabrico e uso de armas”, no seu
artigo 377, proibisse usar de armas ofensivas sem licença de autoridade policial, a pena pelo porte, por ser
muito leve 15 a 60 dias –, não deveria amedrontar pretensos usuários. Por isso, a proibição em si não diz muito
sobre a acessibilidade ou não às armas. Isso poderia colaborar com a “democratização”, embora ilegal, do uso de
armas de fogo. Vale ressaltar que os únicos excluídos da pena do artigo 377 eram os agentes da autoridade
pública em diligencia ou serviço e os oficiais e praças do Exército, da Armada e da Guarda Nacional.
116
Vale ressaltar que, de acordo com a bibliografia consultada, a mesma estratégia não costumava ser aceita na
defesa das mulheres.
70
49,7%, superando qualquer outro instrumento utilizado para agredir ou matar. Ressaltamos
que a alusão a São Paulo, nesse caso, é ilustrativa uma vez que Boris Fausto inclui todos os
tipos de crimes. A limitação numérica de fontes e a restrição do tipo de crime não nos
credencia a afirmar que as armas de fogo eram mais utilizadas em São Paulo do que em
Recife. Essa constatação, porém, passa a ser verossímil na medida em que, na década de
vinte, a população do Recife representava numericamente a metade da população de São
Paulo e que o índice de uso de armas de fogo em São Paulo no período entre 1905 e 1924
chegava perto das cidades mais violentas dos Estados Unidos, mesmo em anos recentes.
117
Dentre os instrumentos classificados como “outros” na tabela 2 estão: a agressão física
direta em dois casos, o uso do fogo em um caso bastante polêmico ocorrido em 1923, e o mais
inusitado dos casos, em que uma mulher quis matar, em janeiro de 1926, a esposa de seu
amante dando-lhe de presente” um quarto de tatu envenenado para uma refeição. A
presenteada não comeu a iguaria que lhe fora oferecida por algum motivo que não a ciência
do envenenamento, já que a ofereceu ao seu pai. Este, querendo dividir o mimo com a família,
acabou por servi-lo no jantar. Depois de tantas idas e vindas do tatu envenenado, ficou muito
claro que desde o começo o tiro atingiria o alvo errado. O resultado da ceia foi o internamento
de quatro pessoas e a morte da mãe da vítima “original” cerca de um mês depois.
2.2 – Locais e horas
Uma boa razão para não acreditarmos nos crimes sob efeito da “explosão súbita”
Boris Fausto cria a categoria da violência por “explosão súbita” como alternativa à privação
de sentidos, o que para nós não faz muita diferença em relação ao que era argumentado pelos
advogados –, pelo menos aos olhos da lei, pode ser vista nos horários em que os crimes foram
cometidos. O artigo 39 do Código Penal de 1890, dedicado à pontuação de termos agravantes,
logo em seu parágrafo caracteriza como agravante ter o delinqüente procurado a noite (...),
para mais facilmente perpetrar o crime.
118
A tabela 3 nos mostra as informações sobre
horários em que os crimes foram cometidos.
Tabela 3 – Horários em que os crimes foram cometidos – Recife, década de 20
117
Os dados sobre a população de Recife (238.843) e São Paulo (579.033) no início da década de vinte foram
colhidos em REZENDE, Antônio Paulo. Op. cit. p. 32. A comparação entre São Paulo, Houston e Filadélfia em
relação ao uso de armas de fogo são creditadas a FAUSTO, Boris. Op. cit, p. 111.
118
Código Penal de 1890, art. 39, par. 1º.
71
Horários dos crimes Números %
Manhã (05:00-12:00h)
0 0
Tarde (12:00-18:00h)
5 26,3
Noite (18:00-05:00h)
11 58,9
Não informados
1 15,7
Total 17 100
Fonte: tabela elaborada a partir da coleta de dados em processos arquivados no MJPE.
Obs: o inquérito acerca do suicídio não foi contabilizado nessa tabela.
À luz do Código Penal, o crime cometido à noite era visto como mais grave por
dificultar um pedido de socorro da vítima diante da menor circulação de pessoas nesse
horário, além de dificultar a identificação do autor e o flagrante do crime, o que poderia
caracterizar premeditação. A tipologia dominante dos crimes selecionados coincide com o que
consta no código: cinco dos onze crimes cometidos à noite ocorreram após as 21 horas
período nada provável para um encontro casual. Destes cinco crimes saiu a metade dos
homicídios verificados nas fontes.
O parágrafo 12 do artigo 39 do Código Penal também considera agravante ter sido o
crime cometido com entrada, ou tentativa para entrar, em casa do ofendido com intenção de
perpetrar o crime.
119
Um crime passional cometido na residência da vítima é uma coisa um
tanto lógica. Porém, nem todos os crimes eram cometidos entre pessoas que moravam na
mesma residência: amantes, ex-cônjuges ou apenas conhecidos fogem dessa situação. De
acordo com as informações das denúncias, oito dos dezenove crimes, o que corresponde a
quase 40%, foram cometidos nas residências das vítimas. Contudo, apenas quatro foram
enquadrados pelas acusações no parágrafo 12 do artigo 39. Dos outros crimes, sete foram
cometidos em vias públicas (ruas, praças, pátios e um na praia) e quatro foram cometidos em
locais privados que não residências (cafés, hotéis e bares).
Essa discussão específica sobre os horários e os locais em que os crimes foram
cometidos nos mostra que, pelo menos para o direito (na dimensão teórica do Código Penal),
119
Idem. Art. 39, par. 12.
72
essas informações muito diziam sobre a gravidade do crime. Para a justiça (na dimensão
prática do trabalho dos advogados, no caso, os acusadores), no entanto, essa gravidade
pareceu não ter muito peso, pelo menos em nossos casos. Apenas duas condenações (uma por
agressão física e outra por homicídio) tiveram a invasão de domicílio e a noite pontuados
como agravantes. Independentemente dos resultados finais que os casos tiveram, grande parte
dos criminosos que estamos estudando se enquadraram nos pontos agravantes do Código
Penal ao elegerem a noite e a invasão de domicílio da vítima para praticá-los. Isso, por si só,
não nos permite inferir se houve ou não premeditação. O uso e o jogo com os termos
agravantes é um trabalho dos advogados. O que queremos apontar é que esses potenciais
agravantes não foram explorados pelos acusadores. Ou seja, a tipologia dominante dos crimes
oferecia para as acusações a possibilidade de se trabalhar com a hipótese da premeditação,
mas isso não ocorreu.
2.3 - Motivações
O estudo das motivações dos crimes é, certamente, o menos “palpável” dos pontos
tratados nesse capítulo. A dificuldade da apreensão (ou “captação”) das motivações se na
medida em que os processos judiciais não buscam uma verdade dos fatos, mas trabalham com
a retórica das versões. Essa fluidez não conta das motivações reais do criminoso para
cometer o crime.
120
Vale aqui retomar o pensamento de Mariza Correa, que afirma que no
momento em que os atos se transformam em autos, os fatos em versões, o concreto perde
quase toda sua importância e o debate se entre os atores jurídicos, cada um deles usando
a parte do ‘real’ que melhor reforce seu ponto de vista.
121
Um bom exemplo dessa instrumentalização do real é a obliteração de versões um tanto
indesejáveis para as motivações dos crimes. O adultério masculino, por exemplo, raramente
foi exposto nas defesas finais, libelos ou sentenças, embora tivesse sido ventilado em alguns
depoimentos. O relato de uma mulher que apanhou do marido porque se recusou a sair de casa
quando esse levou para o lar uma amante só foi visto uma vez durante todo o processo – diga-
120
Quando falamos em apreensão do real, não temos a menor pretensão nem achamos possível de “resgatar”
o passado tal como ocorreu, nem tampouco tomar por real o discurso construído acerca do real. Nos referimos
à dificuldade de observação de ações que escapem à grande carga de envolvimento retórico dos depoimentos.
Para um panorama histórico e metodológico da Nova História Cultural, que envolve as discussões sobre as
possibilidades de apreensão do real, ver TEIXEIRA, Flávio Weinstein. “História e cultura: cruzamentos e
impertinências”. Ciências Humanas em Revista (UFMA), vol. 5, p. 109-119, 2007.
121
CORRÊA, Mariza, Op. Cit, p. 40.
73
se de passagem, no depoimento da vítima. Também foi mencionado uma vez que um
homem matou a amásia a tiros por não admitir a separação, sendo ele casado.
Mesmo com toda essa carga discursiva imanente à nossa fonte que cria nuances as
mais diversas nas histórias dos crimes e com toda a carga de subjetividade que o tema
carrega (ao contrário da objetividade dos números dos instrumentos utilizados nos crimes, por
exemplo), as motivações expressas na denúncia podem nos dizer um pouco a respeito dos
valores e dos costumes da sociedade. Se não do real, pelo menos do que se esperava da
realidade. O próprio silenciamento do adultério masculino não é gratuito e denuncia um
pouco do funcionamento dessa sociedade, com papéis sexuais bem definidos sob a égide do
tradicional modelo de família patriarcal. Ainda sobre a questão do adultério e da diferença de
tratamento entre homem e mulher, convém ressaltar que em nenhum caso a fidelidade do
homem foi explorada como ponto positivo para defendê-lo.
Não seria incomum pelo menos para o senso comum atribuirmos uma das
principais molas propulsoras dos crimes passionais ao adultério feminino. A exploração da
imprensa nesse sentido parece ter mudado pouco dos anos 20 aos dias de hoje. Talvez a maior
surpresa encontrada por nós nesse sentido esteja no fato da motivação da maioria dos crimes
não envolver a presença de amantes. Dos vinte casos em estudo, apenas cinco ocorreram
tendo o adultério como motivo. Esse número sofre uma redução se subtrairmos um inquérito
que investiga um suicídio de um homem que, segundo informações, apenas soube que a
mulher não lhe era fiel e não conseguiu refrear o sentimento de ciúme.
122
O adultério não foi
comprovado, embora aceito pelos julgadores, em outros dois casos. Nestes, a traição serviu
muito mais como argumento para a defesa justificar o crime. Por exemplo, foi acatada a
justificativa de flagrante adultério de uma mulher assassinada que estava separada do
(ex)marido há três meses. Em contrapartida, no único caso em que o motivo do crime foi
adultério por parte do homem, esse fato logo foi silenciado, como já havíamos comentado.
O ponto mais citado como motivação de crimes foram as separações por parte das
mulheres. Isso desfaz a imagem esperada do papel sexual da mulher, que sugeria mansidão e
lealdade. Mas o que significava uma separação? A discussão em torno disso relativiza-se se
pensamos nas relações de gênero. Para os homens agressores a separação sempre surgia como
a motivação e justificação do crime. Seja pela presença de amantes, seja pela separação, o
tema que permeia as motivações é a defesa da honra. Sendo a honra diretamente ligada à
família há, consequentemente, uma relação com a manutenção dos papéis sexuais por parte
122
BR PE PJ JM4VCR INQUÉRITO POLICIAL 77, p. 4.
74
dos homens. Qualquer ameaça ao papel de liderança destes por parte das mulheres era
reverberado nos processos como pontos negativos para elas. Para dar um exemplo, vários
foram os casos de mulheres que se separaram para poder arranjar um emprego. Isso por si
se constituiu em motivo para seus amásios as agredirem. Das vezes em que apareceu,
constatada ou não, a infidelidade da mulher também foi bastante explorada.
Essas remições patriarcais caem na obviedade quando é analisada a visão masculina.
A pergunta, então, pode trazer alguma novidade se for alterada para: o que significava a
separação para as mulheres? Aqui sim observamos um panorama diverso, ou mesmo oposto.
A autonomia da decisão da separação, seja para trabalhar, seja mesmo para se livrar de um
relacionamento inconveniente, denuncia atitudes contrárias às práticas de um modelo
patriarcal. Ao nos depararmos com as histórias de mulheres que decidiram se separar,
percebemos que havia por parte delas uma reação à opressão que sofriam.
123
Uma atitude que
se traduz na ruptura de um modelo social conveniente aos homens, mas que não era universal
nem determinado. Essas mulheres nos mostram que o patriarcado vivido no Recife da década
de vinte tinha suas peculiaridades. A inversão do olhar sobre as mulheres, de vítimas passivas
a agentes de transformação pode ser uma dessas principais particularidades. Essas
particularidades destacam que esses modelos não são absolutos. Existem sempre muitos
espaços ou fissuras onde as “regras” do “modelo” não se fazem dominantes.
124
3 – Os envolvidos nos crimes
Mas de quem estamos tratando no tocante a este trabalho? A pretensa objetividade dos
números não nos pode fazer esquecer que estamos lidando com os mais humanos e não
menos sociais dos sentimentos: amor, paixão, decepção, vingança, desejo de liberdade...
125
123
No capítulo 3 serão vistos exemplos específicos de casos em que, num mesmo processo, a separação recebe
tratamento diferenciado em relação ao gênero.
124
Falamos em particularidades porque concebemos a mutação e o dinamismo que não existem nos modelos.
Num belo texto, Mariza Corrêa critica e desconstrói a idéia de que o patriarcado é o modelo matricial de família
no Brasil. Através de uma análise histórica em que são apresentados muitos outros “modos” de família, a autora
mostra que nem todos os brasileiros viviam o patriarcado. Para Corrêa, a construção (e aceitação) do patriarcado
como “matriz” do modelo da família brasileira deve-se à influência que autores como Gilberto Freyre e Antônio
Cândido tiveram, muitas vezes, sem o devido olhar crítico. Cf. CORRÊA, Mariza “Repensando a família
patriarcal brasileira (notas para o estudo das formas de organização familiar no Brasil) In: CORRÊA, Mariza
(et al). Colchas de Retalhos: estudos sobre a família no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1982, pp. 13-38. Nós
corroboramos a crítica aos modelos acabados, mas não negamos que nuances desses modelos no caso, o
patriarcado – possam se apresentar em outros contextos. A legislação é um campo em que podem ser observados
sinais do patriarcado, pois os legisladores participavam – e desejavam manter – esse modo de relacionamento.
125
Para a dimensão social dos sentimentos, ver COSTA, Jurandir Freire. Sem Fraude nem Favor: estudos sobre
o amor romântico. Rio de Janeiro: Rocco, 1999 e COMTE-SPONVILLE, André. O Amor a Solidão. São Paulo:
Martins Fontes, 2001.
75
O que o estudo de agressores e vítimas pode nos mostrar? A partir daqui vamos tentar saber
quem eram essas pessoas: suas idades, profissões, instruções e o que essas informações
podem nos dizer em relação aos crimes.
3.1 – Relações entre agressor e vítima
Seria redundante começar por dizer que agressores e vítimas eram todos próximos uns
dos outros. O que não é tarefa fácil é identificar o grau de aproximação entre eles. Isso porque
as informações a respeito são muito vagas. Tanto na imprensa como nos processos era comum
se dizer que os casais eram “amasiados”. De acordo com o que observamos nas fontes, o
termo “amásio(a)” ou “amasiado(a)” denomina tanto uma união estável, mas sem a
oficialização do casamento civil ou religioso, como uma relação extra-conjugal, sendo amásia
sinônimo de amante. Pelo que observamos na leitura de jornais da época, a primeira opção era
considerada normal nas camadas mais populares. Em diversos processos algumas testemunhas
afirmaram que eram solteiras quando questionadas formalmente, mas durante os depoimentos
informaram que viviam maritalmente com um companheiro(a). Da mesma forma, casais
envolvidos nos crimes que, pelas informações em seus depoimentos, assumiam que viviam
uma união estável, declaravam-se solteiras quando se apresentavam ao delegado ou ao juiz.
126
Em suma, queremos afirmar que, pelas informações contidas nas fontes, é muito difícil
enxergar os limites entre uma família “legal” tanto à luz da lei como dos preceitos da
religião e uma união estável sem as formalidades cíveis e religiosas. Também havia as
uniões que não podemos considerar como estáveis: casais que estavam unidos há pouco
tempo e outros que nem chegaram a morar juntos.
127
Em quatro casos, por exemplo,
encontramos um dos envolvidos declarando-se solteiro e o outro casado. Uma das
possibilidades de explicação que vemos reside no fato de o solteiro ser o amante. Mas
também é possível que, após o crime, um dos dois continuasse se considerando casado e o
outro não, já que não estavam casados de “papel passado”.
De qualquer forma, o que isso pode nos dizer é que essas pessoas que estamos
estudando, ao construírem suas famílias, possivelmente não se identificavam com a definição
126
Um exemplo disso pode ser visto no processo de Pedro Pastor e Quitéria Maria, em que tanto Manuel Araújo
como Leopoldina Araújo (testemunhas do crime) afirmaram ser solteiros quando perguntados formalmente.
Quando prestam depoimento, no entanto, ambos declaram que viviam maritalmente. Por outro lado, segundo a
fala da própria Leopoldina, Quitéria dizia ter conhecimento de que seu ex-marido tinha uma amásia, querendo
com isso fazer referência a uma relação extra-conjugal. BR PE PJ MJ REC JM2VCR PROCESSO AÇÃO
CRIMINAL 1923.05.29. Processo arquivado no Memorial de Justiça de Pernambuco (MJPE).
127
Esse tipo de união, que não chega a constituir-se como família, é mais fácil de identificar nos depoimentos.
76
de família que tanto preocupava os juristas brasileiros que haviam elaborado o Código Penal
de 1890 e o Código Civil de 1916. Ao analisar tanto os códigos como os debates surgidos em
volta deles, Sueann Caulfield afirma que a família [legítima] continuaria a ser a instituição
civil mais importante do novo regime [republicano].
128
Para os juristas, o “funcionamento
dessa instituição dependeria da manutenção das desigualdades jurídicas da família “oficial”,
resguardando os direitos do “cabeça do casal” e mantendo a mulher uma cidadã protegida
pelo Estado. Ou seja, com direitos, mas não ativa.
Não nos causou surpresa que dentre as fontes selecionadas a maioria dos crimes
tenham sido cometidos por homens. A tabela 4 apresenta os crimes segundo a autoria pelo
sexo. Nossos números, que conferem um menor índice de criminalidade às mulheres, seguem
a tendência do estudo de Boris Fausto em São Paulo. Estaria esse baixo índice associado à
uma aceitação pelas mulheres da posição de submissão desejada e propalada pelos homens na
esfera social, política e econômica? Difícil aceitar essa hipótese uma vez que trabalhamos
somente com os crimes registrados oficialmente.
Tabela 4 – Classificação de agressores e vítimas segundo o sexo –
Recife, década de 20
Homens Mulheres Total Tipo de
crime/
sexo
Números % Números % Números %
Homicídio 3 60 2 40
5 100
Agressão 12 85,7 2 14,2
14 100
Fonte: tabela elaborada a partir da coleta de dados em processos arquivados no MJPE.
O grande número de processos existentes que tratam de crimes passionais denuncia
que problemas ocorridos dentro da família não conseguiam ser resolvidos na esfera privada.
128
CAULFIELD, Sueann. Op. cit. p. 64. No primeiro capítulo do livro a autora trabalha com as relações entre a
honra, a família e a lei republicana, fazendo uma retrospectiva das tradições jurídicas brasileiras e apontando
suas influências no Código Penal de 1890 e no Código Civil de 1916. Mariza Correa tem uma definição objetiva
sobre o casamento oficial: a tradução legal da relação homem-mulher. Cf. CORREA, Mariza. Morte em
Família. Op. cit. p. 52.
77
Mas quantos crimes ficaram calados dentro dos lares? E não os cometidos por homens por
uma suposta submissão das mulheres. Quantas agressões praticadas por mulheres contra seus
cônjuges, amantes ou amásios deixaram de ser registrados por vergonha destes diante de um
machismo que chegava ao nível institucional? Lembramos que, ao contrário dos homicídios,
as diligências que investigavam uma agressão e que poderiam levar a um processo dependiam
da queixa, na delegacia, da parte ofendida ou alguém que a representasse. Por isso mesmo os
baixos números de crimes cometidos por mulheres tanto na nossa pesquisa como na obra de
Boris Fausto não podem servir para alardear uma submissão desejada. O mesmo argumento,
porém, também pode sofrer o efeito contrário. É muito difícil acreditar que todos os
espancamentos feitos pelos homens às mulheres tenham sido registrados. Mesmo com o
grande número de notícias na imprensa e de processos criminais, quantas agressões sofridas
por mulheres não ficaram e ainda ficam silenciadas por medo? Quantas mulheres não
tiveram coragem de denunciar seus companheiros? Essa reflexão mostra os limites das fontes
e dos dados que trabalhamos.
129
De qualquer forma, o desejo de submissão dos homens às mulheres é uma constante
nos processos. Um exemplo disso está no fato de que, mesmo quando vítimas, elas são
categorizadas como motivadoras dos crimes. Quando acusadas, quebram a hierarquia familiar
ou apenas sexual. Quando vítimas, quebram essa hierarquia da mesma forma ao serem
acusadas de exercerem ou almejarem papéis ou atribuições masculinas, como o trabalho ou
mesmo o adultério.
130
Um exemplo dessa culpabilização da mulher, mesmo quando ela é
vítima, pode ser visto em um dos dois únicos processos selecionados em que o crime ocorreu
entre pessoas do mesmo sexo. Um homem agrediu outro na Rua do Rangel, no centro do
Recife, por motivos de ciúme. O agredido declarou que a mulher do agressor era a culpada,
pois se insinuava para ele.
129
A questão central dessa discussão não é questionar o dado evidente de que os homens agridem mais. Sobre
isso, Helleieth Saffioti afirma que as mulheres não agridem na mesma proporção porque, ao contrário dos
homens, não têm um projeto de dominação. Queremos apontar para o cuidado de não julgarmos os dados
estatísticos, oficiais ou não, como tradutores do vivido.
A análise das estatísticas sem um devido olhar crítico
pode produzir formulações as mais deterministas. Como exemplo, temos a introdução do livro de Luiza Nagib
Eluf, que em vários momentos naturaliza categoricamente o comportamento agressivo do homem. Cf. ELUF.
Luiza Nagib. A Paixão no Banco dos Réus. São Paulo: Saraiva, 2002. Consideramos que pensar a respeito dos
números é mais produtivo que os tomarmos como verdades. A naturalização da idéia de que um padrão
natural de comportamento em que os homens agem; e as mulheres sentem é, para Maria Filomena Gregori, mais
um mecanismo de reprodução do que de contestação da ordem vigente.
130
Essa questão ficará mais clara e será melhor exemplificada no capítulo 3, com os estudos e a análise das falas
dos advogados de defesa dos criminosos.
78
3.2 – Idades
Uma informação que nos causou certa surpresa nesse estudo, dada a comparação com
outras pesquisas, foi a faixa etária dos envolvidos nos crimes passionais dentro de nossa
amostragem. Embora possa parecer, à primeira vista, um fator irrelevante nos estudo dos
crimes, as observações acerca das idades dos agressores e vítimas nos permitem fazer
inferências importantes sobre o relacionamento entre agressores e vítimas, suas concepções de
família e as relações de gênero no espaço urbano. A tabela 5 apresenta os dados relativos às
idades de agressores e vítimas segundo o sexo.
Tabela 5 – Faixas etárias de agressores e vítimas – Recife, década de 20
Homens Mulheres
Agressores Vítimas Agressoras Vítimas
Sexo/
idade
Número
% Número
% Número
% Número
%
15-25
7 41,1 1 5,8 3 17,6 8 47
26-35
4 23,5 1 5,8 __ __ 4 23,5
36-45
2 11,7 __ __ __ __ __ __
Não inf
__ __ 3 17,6 1 5,8 __ __
Total 13 76,4 5 29,4 4 23,5 12 70,5
Fonte: tabela elaborada a partir da coleta de dados em processos arquivados no MJPE.
Obs: excluímos desta tabela os dados referentes ao suicídio por neles não se caracterizar a relação agressor-
vítima. Outros dois inquéritos também foram excluídos por mutilação das informações.
O que vemos na tabela é que a faixa etária da maioria dos envolvidos está entre os
quinze e os vinte e cinco anos. Entre os agressores esse número corresponde a 58%, entre
as vítimas os números caem um pouco, mas permanecem acima da metade dos envolvidos,
52,8%.
131
Isso significa que a maioria dos envolvidos era formada por jovens dos
envolvidos com mais de trinta e seis anos só figuram dois agressores. Afirmar que questões de
131
Se elevarmos a faixa etária até os trinta e cinco anos, temos 82,2% dos agressores e 100% das vítimas.
79
honra motivaram jovens a cometer crimes não nos diz muita coisa. O que não parece ser
muito óbvio é a associação de um crime que envolve uma carga de tradicionalismo aos
jovens, geralmente ligados a uma imagem mais liberal e transgressora.
Nada impede, porém, que essas duas dimensões (uma liberal e outra conservadora)
aflorem em momentos diferentes. Para os jovens, principalmente, a convivência no espaço
urbano oferece uma maior possibilidade de encontros. Os espaços públicos, as diversas
opções de diversão e as festas públicas se constituem em atrativos para esses encontros, o que
pode resultar em um convite para uma liberação sexual (a remissão ao carnaval, que nos dias
de hoje tendemos a fazer, é “automática”). Esses atrativos da cidade ficam mais evidenciados
se o contrapomos à vida no campo, muito mais estática, dentre outros motivos, porque as
pessoas da comunidade tendem a se conhecer mais, o que torna os espaços mais controlados.
A cidade promove essa possibilidade de um relacionamento mais independente e menos
vigiado entre os jovens.
Em contraste a essa imagem transgressora do jovem da cidade,
132
os nossos números
mostram que para esses mesmos jovens a honra também pesava um indício de que os
valores patriarcais e machistas, embora resignificados, também estavam nesse segmento da
sociedade, que 76% dos agressores eram homens. Aqui entra a concepção tradicional de
família assumida por esses jovens agressores, que em nada difere da concepção dos demais
agressores, jovens ou não, nem das dos advogados de defesa destes.
Por outro lado, os números da tabela 5 também apresentam a dimensão da resistência a
esses valores, porém em bem menor escala. É o caso das, também jovens, agressoras que,
conforme vimos no item 2.3 deste capítulo (sobre as motivações dos crimes), relutavam em
aceitar o machismo mutante, embora constante, de seus companheiros. Para estas agressoras a
resistência tinha ainda mais peso, pois a idade deveria representar como ainda ocorre
fragilidade, dependência e falta de credibilidade, principalmente em um momento de
contestação como esse.
Essa tendência da prática de crimes passionais entre os jovens em nossa amostragem
diverge dos dados apresentados por Boris Fausto em São Paulo para o mesmo tipo de crime.
Analisando dezoito casos de homicídio (entre cônjuges), o autor observou que doze
envolveram pessoas com mais de trinta anos. Destes, a maioria situa-se acima dos cinqüenta
anos (o que vale tanto para o agressor como para a vítima), um quadro bem diferente do
132
Phillipe Áries chega a afirmar que o século XX teve a juventude como idade privilegiada. Cf. ARIÈS,
Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Zahar, 1978, p. 48-49.
80
nosso. Boris Fausto atribuiu o fato a motivos como crise no casamento em detrimento de uma
explosão bita (quando o crime era praticado) entre jovens.
133
afirmamos que, segundo
nosso ponto de vista, a expressão “explosão súbita” é inadequada por ser passível de
justificação dos crimes. O próprio autor, algumas linhas adiante, confirma que a explosão
súbita era o principal recurso de defesa dos advogados dos criminosos, que associavam essa
“explosão” à falta de discernimento no ato criminoso.
3.3 – Instrução e ocupações dos envolvidos
Não é difícil, principalmente em uma sociedade marcada pela violência, associar esta à
falta de educação formal. Até que ponto essa associação é verossímil? Para responder a esta
questão precisaríamos entrar em um debate que envolve desde pontos como a
responsabilidade do Estado na promoção de políticas públicas de fomento à educação, até o
terreno do preconceito. Não é esse o nosso objetivo aqui. Nos interessa mais traçar um perfil
de criminosos e vítimas quanto à sua instrução.
Mas mesmo para isso encontramos dificuldade uma vez que os documentos não
trazem informações específicas sobre o grau de educação formal dos envolvidos. O máximo
que era registrado era se a pessoa em questão sabia ler e/ou escrever, informação que será
traduzida na tabela referente como alfabetizado ou analfabeto, embora esses vocábulos não
tenham sido citados em nenhum processo.
134
Dentre os que sabiam ler e escrever, todos são
classificados da mesma forma nas fontes. Não diferenciação, por exemplo, entre uma
pessoa que terminou ou não os estudos. Vamos às informações sobre o que pode ser apurado
nesse aspecto.
Tabela 6 – Instrução de agressores e vítimas segundo o sexo – Recife, década de 20
Homens Mulheres Sexo/
instrução
Agressores Vítimas Agressoras Vítimas
133
FAUSTO, Boris. Op. cit. p., 125.
134
Sabemos que as teorias educacionais e pedagógicas atuais (e desde algum tempo) consideram a
alfabetização como muito mais que saber ler e escrever. A própria definição da UNESCO para o termo o liga
não à escrita e leitura, mas à interpretação. Nossa classificação, no entanto, tem como fim um melhor
entendimento e a simplificação da questão.
81
Número Número Número Número
alfabetizado
9 2 3 __
analfabeto
2 __ __ 9
Não inf.
2 3 1 3
Total 13 5 4 12
Fonte: tabela elaborada a partir da coleta de dados em processos arquivados no MJPE.
Obs: excluímos desta tabela os dados referentes ao suicídio por neles não se caracterizar a relação agressor-
vítima.
Embora reiteremos que as informações sobre a instrução sejam muito vagas, pelos
dados colhidos e apresentados na Tabela 6, a associação entre falta de educação formal (pelo
menos incipiente, no caso de saber ler e escrever) e criminalidade cai por terra. Se
analisarmos os dados relativos aos agressores, vemos que doze entre dezessete desenvolviam
a habilidade de ler e escrever. Destes, nove são homens. Curiosamente os números se igualam
– de forma inversa quando lançamos o olhar às vítimas. Entre dezessete , doze são
analfabetas e nove são mulheres.
O máximo que podemos inferir, de acordo com esses dados, é que havia uma
desigualdade de acesso à escolarização entre homens e mulheres, considerando que estas eram
a maioria das vítimas. Outra hipótese que poderia explicar essa questão (mas que derruba,
conseqüentemente, a inferência anterior) seria o fato desses crimes estarem ligados a relações
de maridos infiéis em condições sociais um pouco melhores (que tivessem garantido, pelo
menos, o acesso à escolarização) que suas amantes “decaídas” ou “desviadas” meretrizes
que não tiveram as mesmas oportunidades. Essa hipótese pode ser melhor apurada na análise
das profissões e ocupações dos envolvidos.
Assim como o grau de instrução, as informações sobre as ocupações dos envolvidos
são igualmente vagas. Mas através delas é possível perceber que a desigualdade social entre
agressores e vítimas (ou entre homens e mulheres, respectivamente), mencionada no
parágrafo anterior, existia. Como podemos observar na tabela 7, das mulheres vítimas de
crimes, nenhuma tinha uma profissão (os dois jornaleiros que figuram entre as vítimas eram
homens). Essa ausência de uma profissão entre as mulheres, somado ao fato de que algumas
82
motivações dos crimes decorreram da vontade delas trabalharem, mostra a vontade dos
homens de que elas continuassem dependentes. Ou, em outras palavras, o desejo, por parte
dos homens, de que houvesse uma permanência das atribuições dos papéis sexuais. A procura
de trabalho pelas mulheres, por sua vez, mostra um desejo de quebra da relação de
dependência e uma busca por autonomia.
Eis aqui uma nova feição do patriarcado: em tempos em que, na imprensa, se falava da
necessidade da mulher trabalhar, uma das formas de resistência era a agressão ou o
assassinato. As fontes também parecem evidenciar a falta de interesse em apurar a ocupação
das mulheres visto que boa parte não foi informada. Dos dois casos não informados entre os
agressores, um se trata de mulher.
Dados oficiais podem dar uma dimensão da dificuldade da entrada da mulher no
mercado de trabalho nos anos 20. Segundo dados apresentados pela advogada Glauce
Gaudêncio, em 1920 apenas 9,9% do operariado brasileiro era formado por mulheres. E
parecia não haver nenhuma vontade dos legisladores brasileiros em tratar do tema. Toda vez
que a discussão era levantada, as vozes contrárias reagiam alegando não admitir a
possibilidade da mulher não mais depender do marido.
135
Tabela 7 – Profissões de agressores e vítimas no Recife – década de 20
Profissão/envolvido Agressores Vítimas
Comerciante
2 __
Auxiliar de comércio
3 __
Chauffeur
1 __
Militar
1 __
Carregador
1 __
Cozinheiro
1 __
135
GAUDÊNCIO. Glauce. Mulher e trabalho. In: : OLIVEIRA, Suely de e CASTILLO-MARTÍN. Marcia.
Marcadas a ferro – violência contra a mulher: uma visão multidisciplinar. Brasília: Secretaria Especial de
Políticas para as Mulheres, p. 200. Infelizmente a autora não apresenta a procedência dos seus dados. Contudo,
seu texto é um bom, embora resumido, guia acerca da legislação trabalhista da mulher no Brasil.
83
Jornaleiro
3 2
Dona de casa
2 1
Meretriz
1 7
Não informado
1 7
Fonte: tabela elaborada a partir da coleta de dados em processos arquivados no MJPE.
Obs: excluímos desta tabela os dados referentes ao suicídio por neles não se caracterizar a relação agressor-
vítima.
Refletindo sobre os dados que dizem respeito à escolaridade e às ocupações dos
envolvidos (apresentados nas tabelas 6 e 7, respectivamente), fica mais plausível a hipótese de
que, mesmo sendo pobres, homens em condições um pouco melhores de vida tinham como
amantes meretrizes sem educação formal. Isso porque nove dos doze agressores (excluindo
desse número as agressoras) tinham emprego fixo no comércio e um era militar.
136
Por outro
lado, setenta por cento das mulheres timas que tiveram suas ocupações informadas era
formada por meretrizes, o que nos fez pensar: por que nesse caso a ocupação aparecia e era
identificada? É provável que a intenção tenha sido desqualificar a meretriz quanto à sua
honra, pois outras profissões que não proporcionassem o mesmo artifício sequer foram
mencionadas.
Voltando às relações entre agressor e vítima quanto às suas posições sociais: não
falamos de relações entre pessoas de classes sociais diferentes pois apesar de terem
empregos fixos, com exceção dos comerciantes, os homens não eram exatamente pessoas bem
postas socialmente mas de variações dentro de uma classe. O jogo com esses dados nos faz
apontar para o fato de que as diferenças sociais não se restringem apenas ao critério “renda”,
que é sempre o implícito quando se estratifica socialmente os indivíduos. Dentro de uma
mesma faixa de renda enormes variações de prestígio e reconhecimento social. Dentre
essas variações, a alfabetização e a “profissão” se apresentam com destaque.
Podemos afirmar que, por isso, nossos crimes não estão ligados à pobreza (pelo menos
quando tratamos dos agressores) e à falta de educação? Não temos certeza, mas a associação
136
Excluímos dessas profissões “estáveis” a de jornaleiro por ser, na verdade, uma ocupação com remuneração
muito baixa. Além do mais, a ocupação era geralmente estigmatizada e marginalizada pela imprensa por estar
ligada a criminosos. Preconceitos à parte, chegamos à conclusão de que os jornaleiros não poderiam ser
comparados a um auxiliar de comércio, por exemplo.
84
direta entre pobreza, falta de educação e criminalidade, muito sugerida e polemizada inclusive
por administradores contemporâneos nossos,
137
é por demais generalizante. A questão da
instrução e do nivelamento social dos envolvidos serve muito mais, independentemente dos
dados estatísticos, para barbarizar os atos dos menos instruídos, mostrar que a violência
passional é fruto da selvageria de pessoas que vivem como animais, ao passo que quando as
agressões se situam nas camadas letradas, são justificadas pela honra, pelo caráter, em nome
da família, etc
3.4 – Cor
Aspecto de difícil identificação é a cor da pele dos envolvidos.
138
Das fontes que
trabalhamos, apenas três trazem informações a esse respeito. Somente em um desses casos a
cor e as características físicas foram informadas na denúncia um preto de estatura mediana,
rosto cicatrizado de varíola (e) maus instintos.
139
Nos outros dois casos, um em 1923 e outro
em 1928, a cor é informada apenas no exame cadavérico, que se tratavam de vítimas de
homicídios. Interessante perceber que os exames eram baseados no que se considerava mais
moderno nas descobertas da medicina e da antropologia criminal. Em decorrência disso, os
médicos comportavam-se como porta-vozes da ciência e da imparcialidade, tornando os
exames os mais impessoais possíveis.
140
A presença da cor dos periciados, nesse caso, é regra.
Exceção é a sua presença nos inquéritos, denúncias e depoimentos em juízo.
141
Mas
isso não era uma peculiaridade da prática jurídica em Recife. Estudando os crimes que
envolviam honra no Rio de Janeiro entre 1918 e 1940, Sueann Caulfield observou que o
registro da cor dos envolvidos era fundamental nos inquéritos e processos desde o século
XIX. A autora informa, no entanto, que a partir de 1890 até 1930 intervalo que abarca o
137
Nos referimos mais diretamente às declarações do governador do Rio de Janeiro, que no dia 24 de outubro de
2007 defendeu a legalização do aborto como uma maneira de reduzir os índices de criminalidade em bairros
pobres. Para “embasar” sua teoria, o governador comparou as taxas de natalidade de Copacabana com as da
Suécia e as taxas da Rocinha com a Zâmbia e o Gabão, reiterando a associação entre criminalidade e pobreza. A
repercussão à declaração foi imediata. Para uma, entre inúmeras referências à polêmica:
ultimosegundo.ig.com.br/brasil/2007/10/26/declarações_do_governador__do_rio_causam_polemica_10060076.
html.
138
O termo “raça” era o mais corrente e traduzia mais firmemente a concepção pseudo-científica da antropologia
criminal.
139
BR PE PJ STJ 1CCR PROCESSO HABEAS CORPUS 15681, p. 2.
140
Como exemplo, em um auto de exame médico de um dos casos que analisamos aqui, os peritos Arsênio
Tavares da Silva e Frederico Curio relatam que vão fazer um exame cadavérico num indivíduo do sexo feminino
que se diz ser de Quitéria Maria Duarte Pastor. Em nome da imparcialidade científica, observamos a rejeição da
identidade social do periciado.
141
Antes de cada depoimento, tanto na delegacia como no tribunal, o escrivão apresentava os depoentes com
seus nomes, filiações, idades, profissões, instruções e endereço, mas não a cor da pele.
85
nosso período o registro da cor de agressores, timas e até das testemunhas deixou de ser
obrigatória uma tentativa republicana de esconder o preconceito institucional após o fim da
escravidão. Somente em 1930 essa informação voltou a fazer parte dos registros oficiais sobre
criminalidade.
142
Por fim, Caulfield conclui que a cor dos envolvidos chegava mesmo a
influenciar nas pronúncias.
Em São Paulo, para citar um contraponto, a cor da pele dos envolvidos se constituía
numa informação terminante tanto nos inquéritos como nas denúncias e processos pelo menos
até 1924. Boris Fausto chega a fazer um estudo dos homicídios tendo como base a relação
entre agressor e vítima segundo a cor. Ao contrário do que constatou Sueann Caulfield no Rio
de Janeiro, sua conclusão é que os “homens de cor” aparecem muito mais como vítimas do
que como agressores.
143
4 – O funcionamento da justiça
A partir daqui examinaremos alguns pontos específicos que dizem respeito ao
funcionamento do campo da justiça no que diz respeito aos processos selecionados para
estudo nesse capítulo. Neste campo, as observações não se enquadram naquelas em que é
possível, a partir do universo de fontes selecionadas, buscar padronizações ou fazer
generalizações. Para isso, o número de processos deveria ser muito mais representativo dado o
número de crimes ocorridos. Num exemplo, o fato de apenas uma entre três mulheres ter sido
condenada em nossos números não nos permite afirmar nada a respeito de um posicionamento
geral da justiça frente ao comportamento feminino.
4.1 – O tempo
As informações sobre o tempo que a justiça levava para “resolver” os casos são
importantes para se tentar traçar um perfil desta instituição no trato dos crimes. Queremos
deixar claro que não é nossa intenção em momento algum insinuar que uma demora no
desfecho dos casos esteja ligada à negligência do campo judiciário em relação ao nosso tipo
de crime. Esse tipo de julgamento torna a questão simplista e reducionista principalmente
142
Segundo as apurações de Caulfield, isso explica o registro da cor dos envolvidos em apenas 50% dos casos
entre 1917 e 1929 e o salto para 80% entre 1930 e 1941. Vale ressaltar que muitos dos registros apurados no
primeiro intervalo foram colhidos nos exames periciais que, como vimos, tinha como prática a identificação
de todas as características físicas dos periciados. Cf. CAULFIELD, Sueann. Op. cit. p. 281-291.
143
Para o autor, essa informação sugere a não-consonância entre a realidade e as imagens correntes do “preto
desordeiro ou valentão”. Cf. FAUSTO, Boris. Op. cit. p. 135-141.
86
devido ao fato de não se levar em conta as particularidades de cada caso e os obstáculos
corriqueiros no decorrer dos processos. Em nossas fontes, vários foram os casos de pedido de
vistas dos promotores ou do não comparecimento de testemunhas. Esse problema, aliás, foi a
causa de dois arquivamentos. Dessa forma, nosso objetivo aqui é tão somente saber em
quanto tempo ocorriam as investigações e os trâmites dos processos sem fazer um julgamento
da questão.
A tabela 8 apresenta o espaço de tempo que vai da abertura do inquérito, com a
prestação da queixa, até a denúncia realizada pelo promotor que, consequentemente, julgou as
investigações do inquérito procedentes.
144
Tabela 8 – Tempo decorrido entre a o inquérito e a denúncia
Tempo Número Porcentagem
Até 1 mês
10 58,8
1 a 2 meses
3 17,6
2 a 3 meses
1 5,8
3 a 4 meses
1 5,8
Acima de 4 meses
__ __
Não informados/ilegíveis
2 11,7
Total 17 100
Fonte: tabela elaborada a partir da coleta de dados em processos arquivados no MJPE.
Os dados acima nos mostram que a polícia se mostrou eficiente nos casos pesquisados.
Isso se mostra, em primeiro lugar, no percentual de inquéritos finalizados até um mês a
maioria dos casos. Em segundo lugar, nenhum dos inquéritos superou os quatro meses. O
único caso que superou os três meses foi um evento polêmico e controverso em que a esposa
144
Escolhemos também observar o tempo das diligências policiais devido ao fato da polícia civil ser uma polícia
judiciária, com atribuições de investigação, ao contrário da polícia ostensiva, com atribuições de prevenção e
repressão.
87
de um próspero comerciante italiano morreu queimada em seu apartamento no centro do
Recife. Enquanto algumas testemunhas afirmaram ter escutado uma discussão na manhã do
dia do acidente, outras diziam que o casal vivia em total harmonia e que o comerciante não
teria nenhum motivo para matar a esposa. No inquérito algumas testemunhas foram ouvidas
mais de uma vez. Pelo que percebemos, a complexidade do caso justificou a demora do
término do inquérito (em relação aos demais).
O tempo do processo, por sua vez, é outro. A leitura das fontes nos a impressão de
que a infinidade de normas e procedimentos formais “emperram” o andamento das apurações.
Os pedidos de vistas aos processos pelos advogados envolvidos ou um pedido de novo
depoimento pelo juiz a uma testemunha que havia deposto chegaram a levar, em alguns
casos, semanas. A tabela abaixo apresenta o tempo em que os processos chegavam ao seu
desfecho.
Tabela 9 – Duração dos processos
Tempo Número Porcentagem
Até 2 meses
1 5,8
2 a 4 meses
3 17,6
4 a 6 meses
2 11,7
6 a 8 meses
4 23,5
8 a 10 meses
1 5,8
10 a 12 meses
1 5,8
1 a 2 anos
1 5,8
Acima de 2 anos
2 11,7
Não informados
2 11,7
Total 17 100
Fonte: tabela elaborada a partir da coleta de dados em processos arquivados no MJPE.
88
Obs.: Os processos que constam no quadro “não informadostiveram a coleta das informações prejudicadas por
estarem mutilados. Não incluímos nesta tabela as peças referentes a habeas-corpus e suicídios.
Podemos observar que os desfechos dos processos se apresentam distribuídos de
forma equilibrada por todos os períodos contemplados na tabela. Mas é possível perceber que
aproximadamente sessenta e cinco por cento dos casos foram resolvidos em menos de um
ano. Coincidentemente, os dois únicos casos que duraram mais de dois anos ficaram
inconclusos por falta de testemunhas e foram arquivados.
Assim como uma hipotética demora na conclusão dos processos não nos permitiria
afirmar que o campo judiciário era negligente, a relativa rapidez em relação aos mesmos
também não nos credencia a afirmar que a justiça funcionava de forma isenta e eficaz. Não é
nesse âmbito que atuamos. Conforme foi mencionado, esses dados sobre o período em que
os casos levavam para serem resolvidos nos servem muito mais para conhecermos um pouco
do funcionamento do procedimento da justiça do que para julgá-la. Qualquer inferência nesse
sentido corre o risco de ser irresponsável e descuidada.
4.2 – Condenações e absolvições
Ao contrário do que ocorre com o estudo do tempo dos processos, o estudo dos
números sobre as condenações e absolvições permitem realizar observações mais críticas em
relação ao posicionamento do campo judiciário. Os números relativos às absolvições e
condenações na literatura consultada chegam mesmo a permitir observar uma parcialidade da
justiça no que diz respeito à violência contra a mulher. Isso se principalmente quando
analisamos a quantidade de absolvições ou, em caso de condenações, os graus das penas.
Também é possível observar essa parcialidade confrontando as absolvições e condenações
segundo o sexo do agressor.
É nas sentenças momento final do processo que geralmente se observa a mudança
de caracterização do tipo de violência classificada por Boris Fausto a que nos referimos no
início desse capítulo. Com a análise dos “resultados” dos processos, os crimes passionais, cuja
violência empregada até então se constituía como sendo utilizada como mecanismo de
resolução de ofensas ou conflitos interpessoais, passa a ser tratada como a violência que se
constitui num instrumento pedagógico.
145
Ou seja, a absolvição dos criminosos serviria para
145
FAUSTO, Boris. Op. cit. p., 108.
89
reforçar a autoridade dos homens mostrando às mulheres que a honra masculina não poderia
ser maculada por traições ou separações.
Praticamente todos os estudos que tratam de crimes passionais utilizados nesta
dissertação apontam nesse sentido, para uma tolerância ou mesmo conivência do campo
judiciário para com a violência de gênero. Esses estudos apontam essa tendência da justiça em
tolerar esse tipo de crime em nome da manutenção de um estatuto social estabelecido.
Algumas destas pesquisas chegam a concluir que a tolerância foi compartilhada muitas vezes
com parte da opinião pública.
146
As potenciais mudanças de muitas práticas sociais,
principalmente no comportamento feminino, deveria fomentar essa posição. A absolvição de
um criminoso não pela recusa, mas pela justificação do crime, é um exemplo dessa
parcialidade manifesta.
Dado o pequeno universo de nossas fontes frente à quantidade de crimes que ocorriam,
não podemos apontar alguma tendência da justiça recifense diante da questão. Mas se
pensarmos apenas no nosso universo documental, os números das absolvições e condenações
chegam a divergir dos demais estudos. A tabela 10 apresenta os dados.
Tabela 10 – Absolvições e condenações dos envolvidos
Homem Mulher Total Sexo/sentença
% % %
Absolvições
5 38,4 2 15,3 7
53,8
Condenações
5 38,4 1 7,6 6
46,1
Total 10 76,9 3 23 13 100
Fonte: tabela elaborada a partir da coleta de dados em processos arquivados no MJPE.
Obs.: Os números dessa tabela difere das demais tabelas porque dois processos inconclusos por falta de
testemunhas.
146
Boris Fausto afirma que, exceto casos de violência extrema, a agressão física contra crianças e mulheres
costumava ser tolerada na sociedade brasileira. Isso mostra que a aceitação por parte da opinião pública do
caráter “pedagógico” da violência não se restringia ao campo judiciário. Op. cit. p. 109. Um exemplo dessa
aceitação pode ser visto no texto de Magali Engel sobre a defesa dos criminosos passionais e suas repercussões
nas crônicas dos jornais do Rio de Janeiro no início do século XX. Cf. ENGEL, Magali Gouveia. Paixão e morte
na virada do século. In: Revista Nossa História. Ano 2, nº 19. Rio de Janeiro: Editora Vera Cruz, maio de 2005.
90
Dos dez casos em que o agressor era homem houve uma divisão exata em relação ao
número de condenações e de absolvições. Para cada circunstância (condenação ou absolvição)
não percebemos uma padronização dos agressores em relação aos fatores que foram
discutidos neste texto: encontramos de jornaleiros a auxiliares de comércio; dos instrumentos
utilizados, encontramos bengalas e facas; condenados e absolvidos manifestaram
inconformidade frente à separação da mulher.
Não nada, portanto, que indicie a conivência da justiça em relação aos crimes,
repetimos, nesses casos. Pelo que pudemos apurar, o perfil dos acusados e dos absolvidos
varia. Há perfis bem semelhantes (quanto aos dados dos agressores e às motivações dos
crimes, por exemplo) que transitam tanto de um lado como de outro.
No entanto, um fato que chama atenção é o de que, dos três homicídios praticados por
homens, apenas um figura entre as condenações. Poderíamos levantar a hipótese de que os
acusados não estariam dentro do modelo social do provedor. Nesse caso, três dos cinco
acusados apresentaram uma conduta duvidosa quanto às suas honras: um deles, citado,
levou a amante para dentro de casa e expulsou a mulher. Esta, ao se recusar a sair, foi
espancada. Essa forma “não convencional” de traição certamente desabonou e descredenciou
qualquer reivindicação de reparação da honra por parte do agressor uma vez que sua esposa
não feriu a honra de ninguém. Em outro caso, um homem inconformado com a separação
espancou a mulher grávida, fato que gerou certa repercussão. No terceiro, o homem
assassinou a mulher com quem vivera por cinco anos. um mês separada do esposo por
conta de seu comportamento agressivo e das constantes bebedeiras, a mulher teve uma faca
americana encravada na cabeça. O fato dela também estar grávida foi bastante explorado pela
acusação, o que certamente sensibilizou os jurados.
Estes casos contrastam com outro em que um auxiliar de comércio assassinou a ex-
esposa e foi absolvido sob a afirmativa de que cumpria seus deveres de esposo e pai.
Lembramos mais uma vez que não temos como objetivo julgar a justiça e que nossa
amostragem não nos permite inferir essa ou aquela posição da instituição frente à questão.
Porém, os resultados finais dos processos podem mascarar a corroboração da violência de
gênero presente nos depoimentos e debates dentro dos processos.
147
147
Um estudo mais aprofundado de alguns casos está feito no capítulo 3. Os estudos de caso nos mostram que
nos debates e discursos dos envolvidos nos processos havia muitas referências às desigualdades de gênero, como
a inferioridade “natural” da mulher ou a sua “vocação” doméstica.
91
Entre as mulheres temos três casos: duas absolvições e uma condenação. Esta
condenação corresponde a um homicídio um caso em que uma mulher matou o marido com
um único golpe de foice enquanto ele dormia. Dos dois casos em que houve absolvição, um
foi o caso já mencionado de tentativa de envenenamento e o outro foi uma agressão à navalha.
A pena da mulher condenada foi, no entanto, muito superior à média das penas dos homens.
Enquanto ela pegou doze anos de cadeia, três dos cinco homens condenados pegaram menos
de um ano, outro pegou um ano e dois meses e apenas um o que encravou a faca na cabeça
da companheira – pegou vinte e nove anos.
Fazendo uma análise geral dos resultados dos julgamentos em suas fontes. Sueann
Caulfield conclui que predicados da escola positiva – ignorada na construção do Código Penal
de 1890 foram sendo integrados paulatinamente à jurisprudência brasileira até o final da
década de trinta. Como um dos principais atributos da escola positiva era o tratamento do
crime não apenas à luz da lei, mas de suas particularidades, a autonomia e a autoridade dos
juízes crescia cada vez mais. Dada essa autonomia, a partir da década de vinte fica cada vez
mais difícil identificar uma “posição oficial” do judiciário diante dos crimes através de seus
resultados. Para Caulfield, de posse desse “poder interpretativo”, os juízes teriam uma
infinidade de critérios para julgar os criminosos.
148
Boris Fausto converge com Caulfield ao
afirmar que a lei não era a única norteadora para as decisões tomadas pelos juízes. Muito mais
amplas, as identidades sociais tinham peso considerável nos critérios de decisão. É bem
verdade que entre esses critérios poderia estar a reprodução de preconceitos sociais que
existiam.
149
Com a ausência, no nosso caso, de um quadro em que os criminosos tenham sido
absolvidos em sua maioria, o que indicaria um posicionamento do judiciário diante da
violência de gênero, a discussão levantada por Caulfield contribui na hipótese de que os juízes
que participaram das finalizações dos processos selecionados para esse estudo já estivessem
imbuídos dos preceitos da escola positiva: os que condenaram mostrando autonomia frente às
idéias de defesa da honra do código penal; os que absolveram reforçando preconceitos
tradicionais.
Considerações finais
148
Cf. CAUFIELD, Sueann. Op. Cit., p. 255-257.
149
FAUSTO, Boris. Op. Cit., p. 249-252.
92
É chegada a hora de fazermos o balanço da problemática deste capítulo: foi possível
apreender regularidades a respeito dos crimes que propomos estudar? Nas linhas que seguem
procuraremos responder a essa questão fazendo um apanhado geral do que foi abordado.
Para começar, é preciso dizer que enquanto algumas constatações pareciam óbvias,
outras se mostraram como grandes surpresas ao contrariar outros estudos mais abrangentes
sobre o tema. É o caso da não detecção da interferência da justiça nos resultados dos crimes
no que diz respeito às relações de gênero. Todas as pesquisas utilizadas por nós enfatizam o
judiciário como instância que assume o protecionismo das relações tradicionais de gênero
através da absolvição dos agressores. Em nosso caso isso não ocorreu. É claro que não
tínhamos como expectativa a absolvição de todos os agressores, mas a condenação de 50%
deles é um percentual suficiente para que a justiça não seja rotulada como uma instituição
que, antes de “fazer justiça”, se preocupava com a defesa do sistema normativo. Nesse caso o
judiciário não reforça a “dimensão pedagógica” dos crimes de gênero ao tolerar os agressores.
Repetimos que essa conclusão se baseada no estudo dos casos selecionados e que ainda
não é de bom senso estendê-la a toda prática jurídica recifense da década de vinte.
Por outro lado, quando analisamos não os resultados, mas as falas dos atores jurídicos,
outros dados mostram uma prática jurídica um tanto conservadora. Isso se mostrou na não
exploração de fatores presentes nos crimes que complicassem a situação do agressor. Um bom
exemplo disso foi a não exploração de termos agravantes dos crimes como a invasão de
domicílio e o crime cometido a noite sob surpresa, embora muitos crimes tenham ocorrido
nessas condições. A não exploração de versões indesejáveis para os agressores também
denuncia uma falta de empenho em incriminá-los: em várias ocasiões fatos negativos
atribuídos aos acusados foram silenciados. A parcialidade da justiça também se mostrou na
identificação das profissões das mulheres: para que a honra masculina se sobressaísse, apenas
as meretrizes tiveram suas ocupações classificadas.
Tudo isso mostra que a modernidade enquanto advento de novos padrões de
comportamento não encontrou no campo judiciário um aliado. Nesse sentido, é possível
perceber que esse campo ainda se assentava em bases conservadoras que difundiam e
corroboravam práticas patriarcais. Esse é um ponto importante que mostra que os números
não devem ser absolutizados. Se observássemos apenas os números sem uma devida análise
do contexto, não perceberíamos essa dimensão conservadora que se manifestava nas
entrelinhas.
93
Os dados sobre as armas utilizadas nos crimes nos permitem frisar que o acesso às
armas de fogo ainda não estava disseminado entre a população como em outros centros. Nos
crimes prevaleciam instrumentos, como facas e objetos cortantes em geral e até bengalas. Por
serem instrumentos de uso cotidiano e até ferramentas de trabalho, o uso deles não
representou nenhuma novidade. Mas a ausência das armas de fogo também ajuda a construir o
perfil dos criminosos de que estamos trabalhando. O não uso das armas de fogo não está
ligado apenas à possível não disseminação do revólver por aqui na época, mas sobretudo a
falta de poder aquisitivo dos criminosos para o adquirirem.
Uma homogeneização dos dados pôde ser percebida em relação a alguns pontos dos
envolvidos nos crimes, a começar pelas idades. Todos eram muito jovens, o que indica que
eles comungavam dos mesmos valores sociais de seus pais e avós, dadas as motivações dos
crimes, geralmente ligadas à intolerância a alguns desejos das mulheres, como a iniciativa da
separação e do ingresso no mundo do trabalho.
As condições sociais dos envolvidos também se mostram dentro de um quadro bem
definido. É muito difícil ou mesmo até impossível calcular o grau de riqueza ou pobreza dos
acusados e das vítimas, visto que os processos não trazem informações que digam respeito ao
patrimônio dos envolvidos. Mas informações sobre ocupações e alfabetização nos ajudaram a
elucidar um pouco isso. Pelas ocupações, suspeitamos que quase todos os envolvidos não
tivessem uma posição social favorável. Já os dados acerca do letramento indicam que havia
uma diferenciação entre agressores e vítimas que pode muito bem ser traduzida, de uma
forma geral, por homens e mulheres. O que chamou atenção foi o fato dos homens terem, em
geral, suas ocupações mencionadas enquanto as ocupações das mulheres eram silenciadas. A
ocupação delas era mencionada quando se relacionava ao meretrício, como foi citado. O
que os números, aliados a um estudo do contexto, indicaram, foi que, dentro da mesma faixa
social, ter uma ocupação fixa diferenciava o indivíduo.
De qualquer forma, o analfabetismo, a idade, o desemprego (ou as ocupações
precárias) e toda uma cadeia de valores tradicionais que chegavam a ser defendidos no âmbito
institucional não se tornaram empecilhos que fizessem com que as mulheres se tornassem
passivas e deixassem de lutar pela amenização, embora ainda incipiente, das desigualdades de
gênero.
94
CAPÍTULO 3
RUPTURAS E PERMANÊNCIAS DA ORDEM SOCIAL
95
omo vimos na introdução, na década de vinte era comum a apresentação
pelos diversos meios de comunicação da imagem de uma mulher que
começava a sair à rua, aderindo a costumes e modas até pouco tempo nunca
pensados para elas. E isso não ocorria só nas propagandas. No plano político, o direito ao voto
era discutido; nas ruas, os passeios na cidade com os cabelos à la garçone e as pernas a
bataclan eram alguns exemplos dessa saída da mulher de dentro de casa. Quem lê os anúncios
de automóveis ou até mesmo as colunas sociais das revistas em circulação na época pode
chegar a pensar que não havia mais nenhum ranço de patriarcado na sociedade de então.
150
A
mulher mudara, a família mudara...
O objetivo deste capítulo é mostrar que essa liberdade que começava a se insinuar no
cotidiano da mulher, levando ao surgimento de uma nova imagem de mulher emancipada era,
na verdade, bastante precária. De maneira que, a qualquer momento em que houvesse um
maior tensionamento, valores e concepções tradicionais de família voltavam à tona e a mulher
tornava a ser tutelada, inferiorizada e submetida ao domínio masculino. O que chamo de
momento de tensão pode ser configurado por mais de uma situação social. No nosso caso,
abordaremos essa tensão a partir de crimes configurados em processos criminais por
agressões físicas, tentativas de homicídio e homicídios propriamente ditos. Os valores da
família patriarcal se mostram tão fortes e presentes que vão se manifestar num modelo de
família urbana que não seguia mais os moldes patriarcais. Contudo, essa manifestação se
torna tanto mais explícita quando esses valores são questionados ou afrontados.
Na medida em que analisamos nesse capítulo permanências e resistências ao
patriarcado através de estudos de casos particulares, não temos o objetivo de traçar um
panorama da criminalidade recifense acerca dos crimes passionais. Faremos, sim, um estudo
de crimes. Para Boris Fausto, o estudo de casos particulares se justifica uma vez que a riqueza
em certos casos não se encerra em si mesma, como caso individual, mas abre caminho para
muitas percepções.
151
Esses processos nos permitem perceber valores, representações e
comportamentos sociais através da transgressão da norma penal.
152
Nesse sentido, não
vemos o crime isolado do todo social. E para perceber esses valores, representações e
150
Uma ótima fonte para visualizar tanto a imagem, nas propagandas, como o cotidiano nas colunas sociais, é a
revista “A Pilhéria”, que circulou na cidade durante toda a década de vinte, presente no acervo de periódicos
raros da FUNDAJ. Além do espaço para discussões literárias e crônicas sociais, várias seções da revista se
propõem a satirizar costumes da sociedade recifense da época.
151
FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1880-1924). São Paulo: Brasiliense,
1984, p. 09. Na introdução do seu trabalho, o autor faz uma discussão sobre os conceitos de “crime” e
“criminalidade”. Essa discussão já foi abordada no início do 2º capítulo dessa dissertação.
152
Idem, p. 17.
C
96
comportamentos não analisamos somente os casos ditos excepcionais, ao contrário do que
ocorria e ainda ocorre na imprensa, mas os casos ordinários, de pessoas comuns. Foi isso
o que procuramos fazer aqui.
As penas reduzidas e a absolvição dos agressores foi o critério utilizado para a escolha
dos processos nesse capítulo. Dessa forma, não só observamos com mais clareza as estratégias
utilizadas para defender os agressores, e conseqüentemente, a ordem social vigente, como
também percebemos de forma mais radical o que desejavam as vozes contrárias. Enfim,
consideramos que essa escolha proporciona uma melhor observação do processo dialógico nas
fontes.
1. Parâmetros teórico-metodológicos
A metodologia que empregamos foi a análise das falas dos atores envolvidos nos
processos, a saber: as testemunhas inquiridas pelo delegado no inquérito policial; o promotor,
na denúncia; o advogado de defesa, o promotor, as testemunhas e o próprio acusado no
julgamento, além do juiz na sentença. A importância das falas das testemunhas está no fato de
nelas podermos buscar os valores, comportamentos e representações de que fala Boris Fausto.
As testemunhas são as pessoas comuns que ao apresentarem seus relatos sobre o crime e seus
envolvidos deixam transparecer os valores e concepções mais próximos da população dentro
dos quais procuram “enquadrar” o crime ocorrido. Isso pelo menos nos inquéritos, por elas
supostamente não terem entrado em contato com os técnicos da área jurídica.
153
Isso, porém,
não as isenta de entrarem em acordos e mudarem suas versões sobre os fatos por interesses
diversos que escapam a esse estudo, o que ocorreu em alguns casos tratados nesse capítulo.
Nas falas dos atores jurídicos que, pelo lugar social que ocupam, apresentam a frieza do
domínio da técnica buscamos as estratégias para acusar ou defender as partes envolvidas
nos processos. Também buscamos nas falas de advogados, promotores e juízes valores
sociais. Porém, a diferença entre os valores, presentes ou implícitos, nas falas das testemunhas
e dos atores jurídicos é que, nos primeiros, é possível perceber os valores que circulam entre a
população (embora muitas vezes percebamos a vontade de encaixar as partes interessadas em
modelos ideais). As falas dos atores jurídicos, por sua vez, apresentam valores que se desejava
153
Na maior parte dos processos que pesquisamos os depoimentos das testemunhas ocorrem logo após o crime, o
que nos faz inferir que, nesses depoimentos, não há orientação de advogados.
97
difundir, principalmente se pensarmos o poder judiciário como uma instituição construtora de
verdades.
154
Para Mariza Corrêa, a mobilização gerada em torno de um crime é um importante
ponto de observação das relações sociais, uma vez que o crime representa uma crise de
valores decorrente de uma quebra no sistema normativo estabelecido. Além disso, um
processo expõe um confronto de direitos e deveres seguidos de uma decisão social.
155
Mas o
estudo de processos, tomando-os como fontes, também tem suas armadilhas. Por exemplo, a
fala das testemunhas e demais partes envolvidas é mediada pelo escrivão no inquérito policial,
nas audiências e no julgamento. o que o escrivão registra é passível de análise e desses
registros dificilmente estão explícitas as argüições (e os prováveis direcionamentos) do
delegado e dos advogados. Por isso, afirmamos que o ato, no caso, o crime, está muito
distante do próprio processo que o julga, pois, além dessa mediação do escrivão, passou
pelas reflexões do delegado, no inquérito e do promotor, na denúncia, cada um com seus
pontos de vista, seus preconceitos, suas idéias e valores.
Para a análise das falas das pessoas nos processos, foi de fundamental importância as
orientações de Carlo Ginzburg sobre o trabalho com fontes jurídicas. Para o autor, a imensa
pressão que em um ambiente jurídico principalmente toda formalidade e todos os rituais
de fala gera uma distorção nos depoimentos. Estes se tornam muito mais o que os
inquisidores queriam ouvir do que o que os depoentes queriam falar. Embora Ginzburg
trabalhe com processos da inquisição, a procedência jurídica dessa fonte nos permite fazer
uma ligação direta com os processos que estamos trabalhando. Observamos em muitos casos
que testemunhas mudaram completamente suas versões dos crimes quando depuseram em
juízo. Uma hipótese pertinente para explicar isso é a pressão sobre o depoente. A grande
contribuição do autor é criar uma ferramenta metodológica que permita ao pesquisador
detectar essas pressões e observar onde elas se fizeram mais presentes. O resultado é a
percepção de vozes distintas (...) e até conflitantes
156
em relação à fala do julgador. Trata-se
154
Nos referimos aqui a Foucault quando ele trabalha com a idéia de “vontade de verdade”. O discurso jurídico,
presente nas falas dos atores jurídicos, engloba todos os mecanismos de controle do discurso enumerados pelo
autor, a saber: tabu do objeto, ritual da circunstância e direito privilegiado ou exclusivo do sujeito que fala. Por
isso, esse discurso se constitui num suporte institucional da vontade de verdade. Cf. FOUCAULT, Michel. A
Ordem do Discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1996.
155
Cf. CORREA, Mariza. Morte em Família: representações jurídicas de papéis sexuais. Rio de Janeiro: Graal,
1983. Para a autora, que trabalha com crimes passionais, através dessa decisão social o poder judiciário acaba
por perpetuar a construção social dos papéis sexuais do homem e da mulher, corroborando a desigualdade de
gênero.
156
GINZBURG, Carlo. O Inquisidor como Antropólogo. In: Revista Brasileira de História, vol. 11, nº 21. São
Paulo: ANPUH/Marco Zero, setembro 90/fevereiro 91, p. 14.
98
do conceito de “dialogismo”, que consiste em observar conflitos constantes entre pontos de
vista diferentes. Em processos judiciais a estrutura dialógica pode aparecer tanto explícita
como implicitamente. O primeiro caso ocorre nas séries de perguntas e respostas de um
procedimento de identificação do réu, por exemplo. A forma implícita pode aparecer no
depoimento de uma testemunha no inquérito policial, quando esta não sofre argüições. A
visão dialógica em nosso trabalho nos ajudou a perceber os interesses e valores daqueles que
não tinham nenhum conhecimento técnico do funcionamento do campo jurídico. Como
exemplo, o dialogismo contribuiu para que percebêssemos o que significava a separação e o
trabalho não para os homens (o que está por demais explícito), mas para as mulheres. Estas
não gozavam do aparato institucional para defendê-las na sua tentativa de desafiar seus papéis
sociais comodamente estabelecidos pelos homens. Em suma, a utilização do conceito de
dialógica nos serviu para detectarmos a visão conflitante, a ruptura.
Nesse trabalho, nosso argumento envolverá a articulação de duas categorias de análise:
gênero e patriarcado. Aqui, não entenderemos gênero como um conceito essencialista e
embasado na naturalização dos sexos. Ao contrário, o conceito de gênero será uma
possibilidade de observação de desigualdade de poder na dimensão da relação entre os sexos.
Conforme orienta Joan Scott, nosso esforço será abordar o conceito de gênero historicamente,
de forma analítica e o causal ou descritiva, o que quer dizer que não queremos apenas
relatar os fatos, nem temos a preocupação de buscar a natureza última das relações de gênero
na família recifense da década de vinte. Nossa intenção aqui é utilizar o conceito de gênero
como um instrumento para interpretação.
157
E um processo é uma fonte em que as relações de
gênero estão sempre presentes, explícita ou implicitamente. Para Miguel Vale de Almeida,
somente ao nível da negociação cotidiana, das interações carregadas de poder, da
reformulação das narrativas de vida, (é) que o gênero como processo e prática pode ser
apreendido.
158
Interações carregadas de poder, negociações e reformulação de narrativas de
vida são partes constituintes de um processo judicial.
157
Cf. SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para a análise histórica. 2ª edição. Recife: SOS Corpo, 1995.
O trabalho de Joan Scott é uma referência no que diz respeito ao estudo de gênero enquanto construção histórica
e em como trabalhar com essa categoria.
158
ALMEIDA, Miguel Vale de. Gênero, masculinidade e poder: revendo um caso do sul de Portugal. In:
Anuário Antropológico/95. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1996, p. 164. Embora trate especificamente de um
estudo de masculinidade em uma aldeia ao sul de Portugal entre 1990 e 1991, a discussão teórica promovida pelo
autor sobre gênero e poder foi muito proveitosa para nosso trabalho.
99
Quanto ao patriarcado
159
, buscaremos em nossa análise de processos criminais
vestígios desse modelo de família. Falamos em vestígios por dois motivos: o primeiro se deve
ao fato de sabermos que no espaço-tempo em questão (o Recife da década de vinte) a família
patriarcal descrita por Gilberto Freyre
160
, por exemplo, não existia; além disso, não
consideramos o patriarcado um modelo determinante e universal. Ele teve seu auge em um
determinado momento da história, mas sofreu e continua a sofrer mutações, ora velando-
se, ora manifestando-se. A tutela da mulher é um exemplo dessas permanências patriarcais
resignificadas. A tutela que estudamos em nosso período não é a mesma que ocorria na
sociedade açucareira, por exemplo. Outros sinais e estratégias, tanto de manutenção como de
resistência, são criados. Como exemplo, é bem improvável que o desejo da mulher trabalhar
fora de casa que causou uma reação considerável em nossos processos tenha sido um
problema em épocas anteriores.
Dado esse caráter dinâmico do patriarcado, o conceito que resolvemos adotar foi o
desenvolvido por Ana Aguado. Para a autora, o patriarcado, por ser um fenómeno histórico de
relaciones de poder entre los sexos, que ha ido evolucionando em cada momento, não pode
ser concebido estaticamente. A autora define o conceito como um
Conjunto de sistemas familiares, sociales, ideológicos y políticos que determinan
cual es la función o papel subordinado que las mujeres deben interpretar con el fin
de adecuarse y mantener un determinado orden social.
161
E para manter essa ordem vários mecanismos podem ser utilizados como a violência, a
tradição, a lei, a educação, etc. – pois, como lembra Heleieth Saffioti, a ideologia por si só não
é suficiente para o êxito da dominação dos homens.
162
Confrontando os textos de Parry Scott e Goran Therborn
163
encontramos o contexto
histórico e social das famílias em nosso estudo na medida em que Scott afirma que, nesse
159
Está clara aqui nossa opção de observar o patriarcado do ponto de vista relacional. No entanto, processos
também são ótimas fontes para a observação do ponto de vista geracional. Por exemplo, é comum, em processos
de defloramento, o pai da vítima exigir do réu a correção da falta com o casamento.
160
FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos. Rio de Janeiro: Record, 1996.
161
AGUADO, Ana. Violencia de género: sujeto feminino y ciudadanía em La sociedad contemporânea. In:
OLIVEIRA, Suely de e CASTILLO-MARTÍN. Marcia. Marcadas a ferro violênca contra a mulher: uma visão
multidisciplinar. Brasília: Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, p. 28.
162
SAFFIOTI, Heleieth I. B. Contribuições feministas para o estudo da violência de gênero. Cadernos Pagu,
16, 2001, p. 115-136. Disponível em: http://www.unicamp.br/pagu/Cad16/n16a07.pdf, p. 115.
100
período, algumas práticas patriarcais estavam passando das mãos do patriarca para as mãos do
Estado, ficando, então, mais fluido, mais latente, porém não menos presente. Isso criou uma
dubiedade, pois o conceito ora remetia à força do Estado (se a ele associado), ora à imagem de
atraso da família, principalmente se comparada às mudanças nas famílias européias e norte-
americanas. Therborn, por sua vez, contextualiza o patriarcado nas décadas de 10 e 20 do
século XX como sofrendo o seu primeiro grande abalo. Como exemplo, cita os códigos civis
e penais, que sofriam reformas desfavoráveis às práticas patriarcais. Por outro lado, nem tudo
era ruptura. Práticas patriarcais também permaneciam na medida em que, por exemplo, o
autor mostra que a instituição do casamento ainda era sinônimo de desigualdade no início do
século XX, o que indica desigualdade de gênero.
164
Outro autor que concorda não com a extinção, mas com a crise do patriarcado é
Miguel Vale Almeida. E é na crise que, segundo o autor, as disparidades tornam-se mais
evidentes (ou, nas palavras do próprio Almeida, os ruídos tornam-se mais agudos), o que nos
permite pensar e discutir sobre o assunto. Para ele, o patriarcado é uma ordem de gênero que
define a inferioridade do feminino por uma masculinidade hegemônica.
165
É nesse cenário de contradições que nos moveremos. De acordo com as orientações
acima esboçadas, o patriarcado, enquanto prática, se mostrava fluido em relação à “solidez”
percebida em outros tempos. Ou seja, nem era um modelo hegemônico como fora outrora,
nem havia desaparecido de vez. Isso nos margem para afirmar que é possível buscar
vestígios desse modelo em famílias urbanas, o que representa essa indefinição ou mesmo
confusão entre uma modernidade comportamental sugerida e mesmo apresentada ora pelos
meios de comunicação, ora pelo próprio Estado, e a força dos costumes tradicionais. Essas
contradições são reforçadas principalmente se pensarmos a família em processo global de
adaptação aos modelos europeu e norte-americano, como sugere Parry Scott
166
.
Para a compreensão desse capítulo, não podemos prescindir das discussões trabalhadas
no primeiro capítulo sobre as noções de honra. Uma importante discussão que ocorria no
campo jurídico e que está diretamente ligada às desigualdades de gênero e à tentativa de
163
Cf. SCOTT, Parry. A família brasileira diante das transformações do cenário histórico global. In: Revista
Anthropológicas, ano 9, volume 16(1). Recife: Editora Universitária, 2005, e THERBORN, Goran. Sexo e
poder: a família no mundo, 1900-2000. São Paulo: Contexto, 2006.
164
THERBORN. Op. cit., p. 33.
165
ALMEIDA. Op. cit., p. 162 O autor estende a idéia relacional contida no patriarcado na medida em que essa
“masculinidade hegemônica” não torna submisso apenas o feminino, mas também o que ele chama de
“masculinidades subordinadas”. Ou seja, o autor não concebe o gênero masculino como monolítico e unívoco.
Dentro do próprio gênero masculino o autor enxerga várias “masculinidades”. Nessa diversidade é possível
identificar o patriarcado através de uma cadeia de superioridade.
166
SCOTT. Op. cit.
101
manutenção do patriarcado
167
. Consideramos interessante retomarmos esse debate aqui,
mesmo que de forma rápida, a fim de enfatizarmos que as transformações nas relações de
gênero geravam inquietações também na área do direito. Conforme foi argumentado, o
ponto básico das discussões jurídicas em relação à honra era se se deveria entendê-la como
individual ou familiar. Sendo familiar, a honra aproxima-se da concepção de domínio
patriarcal, pois, se a mulher trai, não fere apenas a sua honra, mas a do marido e dos filhos
também, o que justificaria a reparação da honra através da agressão. Juristas menos
conservadores defendiam a honra individual, que, em nosso exemplo, atingia e envergonharia
apenas a mulher que cometeu a traição. Uma conseqüência dessa concepção seria a punição
dos homens que agredissem por motivos passionais.
Antes de entrarmos nos crimes, também é interessante vermos rapidamente como se
estrutura a nossa fonte de pesquisa o processo –, que com ele trabalharemos logo a
seguir.
168
Seguindo a ordem cronológica, o primeiro procedimento a ser tomado após o crime
era se prestar uma queixa na delegacia, caso a vítima da violência não tivesse morrido. Em
caso de falecimento da tima, o processo já se inicia com o inquérito policial. No inquérito,
conduzido pelo delegado, era realizado o exame médico pericial de corpo delito (se a vítima
estivesse viva) ou cadavérico (em caso de falecimento). As testemunhas também eram
ouvidas e só então o caso, se considerado procedente, era levado pelo promotor ao juiz.
As testemunhas eram novamente ouvidas pelo juiz e tanto o promotor como o
advogado, responsáveis por acusação e defesa, respectivamente, buscavam convencer o juiz
de suas posições inquirindo as testemunhas. Em seguida, o advogado de defesa e a promotoria
apresentavam a defesa e a acusação final do réu por escrito. Só então o juiz dava seu parecer
sobre o caso.
2. Os casos
Feito o balizamento teórico-conceitual que fundamenta esse estudo quanto às suas
escolhas em termos de estratégias de pesquisa e análise do material empírico, partiremos
agora para os processos. Não procuraremos seguir uma linearidade na apresentação dos casos.
167
Para um aprofundamento do debate, ver. Caulfield, Sueann. Em Defesa da Honra. São Paulo: UNICAMP,
2005, e Corrêa, Mariza. Os Crimes da Paixão. São Paulo: Brasiliense, 1981.
168
Para uma explicação mais detalhada, ver o primeiro capítulo do trabalho de Hermelino Góis dos Santos,
intitulado “O Sexo da Norma: processos de defloramento em Aracaju (1901-1930)”, defendido na Universidade
Federal de Sergipe, em 2003. O primeiro capítulo dessa pesquisa tem como tema a explicação das etapas de um
processo criminal.
102
O texto será organizado em temas gerais ou características recorrentes em vários processos.
Eventualmente nos deteremos mais em uns do que em outros, dependendo das reflexões que
as fontes nos ofereçam.
De qualquer forma, antes de tratar de algum caso, achamos por demais importante
fazer uma breve descrição da história dos crimes e dos motivos que o levaram a acontecer.
Para isso, nos serviremos das informações da denúncia, dos depoimentos das testemunhas no
inquérito policial e de indiciados e vítimas, quando possível. Fizemos questão de registrar
características pessoais, quando aparecem, como nome, idade e ocupação de todas as pessoas
citadas nesse texto. A apresentação da história desses crimes e de seus envolvidos, além de
servir para que nos situemos, é uma forma de ressaltarmos a dimensão ética com que
encaramos a pesquisa histórica. Em vez de vermos essas pessoas como vidas que passaram ou
meros dados estatísticos, preferimos vê-las na leitura das fontes como vidas em plena
construção. Por isso aparecem aqui seus nomes, suas idades e ocupações. Isso também nos
ajuda a não esquecer da condição humana que existe por trás dos dados.
169
Começaremos com a análise de um caso ocorrido em 1923, considerado por nós como
emblemático por apresentar várias das recorrências ao patriarcado presentes na literatura
consultada. Dada essa característica, o caso de assassinato de Quitéria Maria por Pedro P. será
o fio condutor desse capítulo para os demais casos.
2.1 – Traição e separação: pontos de vista distintos segundo o gênero
Segundo as informações da denúncia, Pedro P. era um comerciante alfabetizado, de
quarenta anos de idade, dono de uma loja (não informações sobre o que ele negociava) na
rua do Fogo. No dia doze de maio de 1923, Pedro foi ao bairro da Torre, mais precisamente
num local chamado Sítio do Cardozo e, invadindo o sítio em que viviam Manuel A. e
Leopoldina A., aparece o denunciado de pistola em punho, segurando Quitéria Maria por um
braço, dispara contra esta três tiros (...) causando-lhe a morte cerca de meia-hora depois.
Sendo socorrida pelos donos da casa e por pessoas que passavam na hora, a vítima, ainda
viva, apontou o assassino, dizendo – Pedro P. matou-me com três tiros
170
. Pedro fugiu.
169
Embora, pela distância que o recorte temporal impõe, seja improvável a identificação dos envolvidos nos
casos aqui estudados, achamos prudente preservar seus sobrenomes.
170
BR PE PJ MJ REC JM2VCR PROCESSO AÇÃO CRIMINAL 1923.05.29, p. 2v. A fim de facilitar a
compreensão do texto, todas as citações e transcrições tiveram suas ortografias atualizadas.
103
No decorrer do processo, aos poucos vão surgindo informações sobre o que levara
Pedro P. a cometer esse crime. No inquérito policial, dirigido pelo delegado Gasparino
Moreira de Oliveira Lima, na delegacia do 2º distrito policial da capital, a primeira
testemunha, um operário (cujo nome está ilegível) de 22 anos que passava pelo local e ajudou
a socorrer a vítima, descreveu o crime sem maiores diferenças com o que foi descrito acima.
Apesar de não ser uma testemunha ocular, ele afirmou saber que Quitéria tinha um amante e
que o móvel do crime foi o ciúme.
Leopoldina A., costureira de 26 anos, alfabetizada, foi a segunda testemunha do
inquérito. Ela estava oferecendo hospedagem a Quitéria, que três meses estava separada de
Pedro, e também não diferiu da descrição feita na denúncia. Ressaltamos que ela foi a única
pessoa presente no momento do crime. Leopoldina afirmou ao delegado que Quitéria recebia
em sua residência, na condição de amante, Severino B., e que este passou a freqüentar sua
residência. Leopoldina afirmou ainda que Pedro havia procurado Quitéria e que mais de
uma vez Quitéria teve ocasião de lhe dizer que ele pedia para se unir novamente a ele,
porém, ela não queria, porque, dizia que Pedro a tinha maltratado muito quando viviam
juntos, isso motivado pelo fato dele possuir uma amásia.
171
Vemos aqui duas situações semelhantes vividas por réu e vítima concebidas dentro de
quadros de valores extremamente diversos. Opostos, de fato. Pedro insistia para que Quitéria
voltasse mesmo tendo consciência de que ela sabia de seu relacionamento extra-conjugal.
Mas, ao saber do relacionamento dela com Severino, movido pelo ciúme, a matou. Parece ser
irrefutável aqui, na visão de Pedro, a permanência do patriarcado na presumida submissão da
mulher ao homem e no aprisionamento da mulher ao que se esperava dela – fidelidade
absoluta, mesmo estando separada do marido.
Essa diferença de comportamentos socialmente esperados, que denota a desigualdade
de gênero, era comum quando uma terceira pessoa surgia em um relacionamento conjugal,
seja de qual lado fosse cometida a traição. O caso de Reitor C. e Maria Edith é outro exemplo
disso.
De acordo com a denúncia e com os depoimentos das primeira e segunda testemunhas
no inquérito policial, Reitor C. fora amante de Maria Edith, uma mulher de vida fácil, estando
separados pouco tempo. No dia vinte e dois de junho de 1923, Reitor, sabendo que a dita
mulher o difamava após a separação, por volta das dezenove horas e vinte minutos foi à casa
171
Idem, p. 14v. Sobre a definição e os significados dos termos “amásio(a)ou “amasiado(a)”, ver o item 3.1 no
capítulo 2 dessa dissertação.
104
onde ela morava, uma pensão na rua do Sol. Armado com um revólver e acompanhado por
dois homens, invadiu o apartamento em que a vítima morava, indo buscá-la dentro de um
guarda-roupas, espancando-a em seguida. No exame médico feito no dia seguinte, consta que
houve ferimento de ofensa física [causado por] instrumento contundente e que o estado
anterior da vítima não agravou a agressão.
172
Ou seja, todos os ferimentos sofridos pela
vítima foram decorrentes da agressão.
No auto de prisão em flagrante, o guarda civil Armindo Pedro da Silva Batalha, de
vinte e oito anos, declarou que estava de serviço na rua do Sol quando ouviu gritos de socorro
no segundo andar do prédio em que residia a vítima. Indo ao local, encontrou Reitor
agarrado com a mulher, a qual gritava pedindo socorro, que Reitor subjugava Edith,
junto à porta da varanda; que o declarante separou Reitor da dita mulher, dando-lhe
voz de prisão; que Edith em seguida caia acometida de forte ataque (...) estando a
mesma ofendida fisicamente.
173
A primeira testemunha, outro guarda civil, José Damasceno Brasil, de 22 anos,
confirmou o depoimento do colega de farda, pois auxiliou a prisão e presenciou o grande
escândalo provocado pela agressão de que foi vítima a mulher.
174
Maria do Carmo, meretriz de trinta anos e dona da pensão em que se deu o fato,
afirmou que vítima e agressor eram amantes, mas a amizade desaparecera tempos. Nos
quatro meses em que Maria Edith residia em sua pensão nunca foi procurada por Reitor, mas
a vítima lhe prevenira de que ele o faria naquele dia com intenção de fazer-lhe um mal. Por
isso a vítima pediu para que dissesse que não estava. Maria do Carmo assim o fez quando
Reitor bateu à sua porta. O indiciado, então, sacou de um revólver e invadiu o apartamento
pouco ligando às ameaças que a dona da pensão lhe fez de chamar a polícia, afirmando que
ali não entrava polícia.
175
Em seguida, Reitor arrombou a porta do quarto de Maria Edith encontrando-a dentro
do guarda-roupa. Após afirmar que não era a autora dos boatos sobre Reitor, a vítima
ajoelhou-se e pediu para que a não esbordoasse. Reitor, impiedoso agarrava a vítima e
jogava-a sobre o assoalho. Indo atrás de Maria Edith, que conseguiu fugir para a varanda,
172
BR PE PJ MJ REC JM3VCR AÇÃO CRIMINAL 1923.07.20, p. 2v.
173
Idem. p. 10 e 11
174
Ibdem. p. 11v e 12.
175
Idem. p. 12.
105
Reitor machucou a testa enquanto a perseguia. Pouco depois os soldados da guarda civil
chegaram e perceberam que Maria Edith fora acometida de forte ataque.
176
no depoimento da própria vítima vamos encontrar o motivo do crime. Para Maria
Edith a causa última da agressão foi a separação. Na sua versão dos fatos, ela defendeu-se
afirmando que não foi a autora dos boatos que tinham como alvo a difamação de Reitor.
Admitiu que foi “amigada” com Reitor por uns meses e disse ainda que o motivo da
separação foi o fato de Reitor ter contraído casamento (grifo meu). Maria Edith deixa claro
que a opção da separação foi sua por não admitir continuar vivendo com um homem casado.
Para o homem, ou pelo menos para Reitor, no entanto, isso não seria problema. Mais
uma vez vemos a presença do ranço patriarcal que levava homens como Reitor, mesmo
quando casados, a não admitirem a possibilidade de não poder ter amantes. A presença de
terceiros no relacionamento, assim como ocorreu com Pedro P. e Quitéria Maria, mais uma
vez tem tratamento diferenciado. Podemos até associar essa situação com um atributo das
relações sociais que envolvem o amor, a família e a união conjugal, trabalhadas por Jurandir
Freire Costa. Para este autor, a idéia de que é socialmente permitido ao homem ter amantes
remete ao século XVIII. Sendo o esteio da sociedade, a família deveria existir com ou sem
amor. O sofrimento da mulher traída era recompensado com o reconhecimento social de
conduta moral, sendo exemplo de esposa e mãe. Mesmo com o advento do modelo de amor
romântico, no século XIX, em que a união conjugal não poderia estar dissociada da presença
do amor e, consequentemente, da exclusividade mútua, o consentimento, embora velado, do
homem casado possuir amantes não deixou de existir.
177
É o caso de Reitor, que foi afrontado
com a separação decorrente do fato de haver contraído matrimônio. É também o caso de
Pedro Pastor, que mesmo amasiado com outra mulher insistia para voltar para Quitéria.
Esses casos que envolvem amantes sempre são favorecidos, socialmente aceitos ou
mesmo amenizados quando se tratam de traições cometidas por homens. É improvável que
encontremos um caso em que uma mulher tenha feito o que fez Francisco A. (vulgo Chico),
um jornaleiro analfabeto de 31 anos, com Maria Alice, doméstica de 30 anos.
De acordo com a denúncia, datada de sete de fevereiro de 1925, em dezoito de janeiro
do mesmo ano, por volta da meia-noite e quinze minutos, Francisco A., armado de
176
Idem. p. 13.
177
Cf. COSTA, Jurandir Freire. Sem Fraude nem Favor: estudos sobre o amor romântico. Rio de Janeiro:
Rocco, 1999. No capítulo intitulado “Sobre a gramática do amor romântico” o autor procura desconstruir a
imagem de que o amor romântico é puramente sentimental e o insere num contexto social e histórico de
interesses e racionalidade.
106
instrumento contundente, produziu na pessoa de sua própria amásia os ferimentos leves
constados no exame pericial.
178
O Terceiro Promotor Público, que foi muito breve na denúncia, pareceu não aproveitar
de forma estratégica a violência sofrida pela vítima, pois no ofício remetido pelo delegado,
Alcindo Correa, ao promotor consta a informação de que houve um verdadeiro
“espancamento”. No lugar dos “ferimentos leves descritos pelo promotor, as testemunhas
que presenciaram o crime, assim como o delegado, também descreveram a violência sofrida
pela vítima de forma diferente. Maria Magdalena, uma doméstica de trinta e cinco anos,
vizinha do casal, foi despertada por grande barulho e, indo à calçada para saber do que se
tratava, viu a vítima aos gritos tanto que ficara surpresa no momento em vista dela se achar
ensangüentada. Também viu Francisco A. armado de um grosso cacete empunhado na mão,
dando por várias vezes bordoadas (...), se abandonando depois que ela depoente fizera
também alarme.
179
E para rechaçar a idéia de que o que Maria Alice sofreu foram apenas
“ferimentos leves”, o exame pericial a que o promotor se referiu, constatou que houve ofensa
física com instrumento contundente com ferimentos na mão direita, braço esquerdo, joelho
direito e perna esquerda.
180
Maria Magdalena, embora tenha presenciado parte do espancamento, não soube
informar o motivo que levou Francisco a cometê-lo. Outros três vizinhos que depuseram na
delegacia também foram acordados com o barulho e os gritos, foram à rua, viram a cena e
souberam no dia seguinte que a violência teve como motivo questões de ciúme, tema bastante
vago para explicar o caso de forma objetiva.
O motivo que levou Francisco a cometer o crime aparece pela primeira vez no
inquérito policial no depoimento da própria vítima, que declarou que
vive maritalmente a uns dez meses com Francisco A. na maior harmonia; que
ontem pelas vinte e quatro horas mais ou menos, ela depoente aguardava a chegada
de seu amásio Francisco, como era costume fazê-lo; que nesta hora, mais ou menos,
ela depoente viu que Francisco vinha acompanhado de uma mulher, o que ela
depoente pensava que se tratasse de uma sua parente; que ao chegar à porta de sua
residência, Francisco apresentou-lhe a mulher que trazia em sua companhia para
dar abrigo, dizendo que assim fazia uma vez que não queria fazer mais vida com ela
depoente, pois assim procedia para fazer pouco; que ela depoente observou seu
modo, dizendo a Francisco que de forma alguma ele Francisco botaria a referida
mulher dentro de sua casa de residência; tanto bastou para que ela depoente
178
BR PE PJ MJ STJ PROCESSO APELAÇÃO CRIME 15.170-1925, p. 2.
179
Idem. p. 9.
180
Ibdem. p. 17 e 18.
107
recebesse nessa ocasião várias bordoadas, apresentando várias eschimoses (sic)
pelo corpo, e ferimentos na mão direita, produzido pelo referido Francisco; que
nessa ocasião de luta, ela depoente viu a mulher que chegara em companhia de
Francisco correr em direção à rua não mais voltando ao local.
181
Embora no inquérito todas as opiniões convergissem com a versão da vítima, no
tribunal todos mudaram suas versões. A única testemunha que não alterou seu depoimento e
confirmou que houve espancamento procurou justifica-lo. Ottmal L., também vizinho do
casal, afirmou que ouviu da vítima que foi ter o denunciado levado para casa, digo para as
imediações da casa da mesma Maria Alice uma outra amante, que havia dito ao seu amante
que se ele assim procedia, ela iria fazer o mesmo.
182
A intenção ou ameaça de traição,
explícita nessa frase atribuída a Maria Alice, se constitui numa atitude de rebeldia ou mesmo
afronta e contraria radicalmente o que se esperava de uma mulher.
O mesmo ocorreu com Pedro P. e Quitéria Maria. Num pedido de habeas-corpus pelo
advogado do agressor, Leovigildo Junior, a versão da denúncia é modificada. Segue a
transcrição:
Sábado último, pelas dezenove horas, mais ou menos, na rua Campos Salles,
distrito da Torre, Pedro P. chegando em casa, de volta de uma viagem que fizera a
Caruaru onde residia com sua mulher Quitéria Maria P. e seus quatro filhos,
encontra sua dita mulher nos braços de um desconhecido, em flagrante delito de
adultério e atônito, sem poder conter a brusca revolta de que no momento se achava
possuído sendo como testemunha ocular da infame traição de sua própria esposa,
sacou de um revólver que fez detonar contra ela ferindo-a gravemente.
183
Podemos perceber que, para justificar o crime, o advogado informa que Pedro ainda
era casado com Quitéria, tendo-a encontrado em “flagrante delito de adultério”, fato negado
pelas testemunhas do inquérito, que disseram saber que o casal estava separado. Fica clara
aqui a intenção do advogado não de negar, mas de justificar o crime de duas formas: a
primeira, através da afirmação, velada, da honra familiar, ferida com a traição de Quitéria e
reparada com a sua morte pela parte atingida, no caso, Pedro e os filhos do casal; a segunda
forma relaciona-se à própria morte de Quitéria, fruto de uma “brusca revolta” que “possuiu”
Pedro. Também de forma velada, o advogado sugere a ausência de discernimento no ato de
cometer o crime devido a uma forte emoção.
181
Idem. p. 7 e 7v
182
Idem. 31v
183
BR PE PJ MJ STJ PROCESSO HABEAS CORPUS 13.798-1923, p. 2.
108
O que vemos acima é bem emblemático e representa bem toda a desigualdade de
gênero presente nas permanências patriarcais, principalmente quando o assunto é traição. Em
todos os casos citados até agora a traição da mulher, mesmo quando apenas sugerida, é
inadmissível. A traição do homem, no entanto, ou o fato dele desejar possuir uma amante
mesmo sendo casado parecia normal. Mas nem tudo era permanência. Algumas atitudes
tomadas pelas mulheres mostram que essa ordem era questionada por elas. Dentre essas
atitudes, a que mais despertava resistência era a separação.
Como vimos no caso de Pedro P., recorrer à agressão era um recurso comum em casos
de separações em que a decisão era tomada por mulheres. Assim também foi o caso do
auxiliar de comércio de vinte e três anos, Pedro M. e Maria Francisca V., meretriz de dezoito
anos.
No dia dois de julho de 1923, por volta da meia-noite e quinze minutos, segundo
informações da denúncia, Pedro M. e Maria Francisca V. encontraram-se na praça da
Independência, em frente ao prédio do Diário de Pernambuco, e, então, o denunciado,
sacando de uma navalha, agrediu a citada mulher. Ainda segundo as informações da
denúncia, Pedro fora amasiado com Maria Francisca, mas ela se separou dele em
conseqüência do mau tratamento que dele recebia. O crime, precedido por perseguições, teria
sido praticado por Pedro não se conformar com a separação.
184
As testemunhas que prestaram depoimento no inquérito os guardas que auxiliaram a
prisão de Pedro – acrescentaram informações sobre o que ocorreu na cena do crime. O
testemunho de Manuel F., guarda civil 72 que efetuou a prisão de Pedro foi a base para a
denúncia. Nesse auto, o guarda afirmou que prendeu o acusado na ocasião em que feria a
navalha a mulher Francisca Maria, cuja arma foi apreendida pelo declarante em poder do
delinqüente.
185
Todas as testemunhas foram unânimes em confirmar essa versão.
Interrogado, Pedro afirmou ter se separado de Maria Francisca pela oposição que a
mãe dela fazia à união. No entanto, mesmo depois da separação continuou tendo encontros
com a amásia. Após deixá-la de vez, passou a ser frequentemente insultado e ridicularizado.
E foi em uma situação dessas que o crime ocorreu. Estando no local e hora citados pela
denúncia, Pedro declarou que foi insultado por Maria Francisca com palavras injuriosas. O
184
BR PE PJ MJ REC JM5VCR PROCESSO AÇÃO CRIMINAL 1923.07.19, s/n
185
Idem, p. 7.
109
depoente estando no momento armado de uma navalha, e exasperado com os insultos,
186
golpeou a vítima.
Vemos que Pedro não nega ter cometido o crime. Justifica-o pela exasperação do
momento, o que poderia dar margem para sua defesa alegar a, já conhecida por nós, forte
emoção na hora de cometer o crime, recurso sugerido pelo advogado Leovigildo Junior para
defender Pedro P., como vimos há pouco.
A versão de Maria Francisca, no entanto, é diferente. Para a vítima, foi ela quem
tomou a iniciativa da separação devido ao fato de Pedro ser muito malvado a ponto de não
maltratar a depoente como esbordoava a mãe da depoente. E não podendo continuar com
aquele estado de coisas, resolveu separar-se do mesmo.
187
A partir da separação, começaram
as perseguições por parte do indiciado.
A negação da autonomia da mulher por parte do homem – em optar por viver
separada é mais uma vez evidenciada nesse caso. Como ocorreria em uma vivência patriarcal,
a decisão da separação ou não, não cabe à mulher. Maria Francisca sofreu a agressão por ter
fugido a esse modelo. E é essa atitude de fuga que nos mostra o outro lado da moeda. Ao ter a
iniciativa da separação, Maria Francisca mostra um desejo de romper com o que os homens
esperassem que fosse um modelo. A mudança da mulher da condição de vítima para a de
agente de transformação uma dimensão dinâmica ao tema e nos mostra que as
permanências, embora fortes, não eram inquestionáveis. Aqui vemos um exemplo da
importância da visão dialógica desenvolvida por Carlo Ginzburg em nosso trabalho. Sem uma
preocupação em observar os pontos de vista conflitantes, o pesquisador corre o risco de
repetir o que os advogados de defesa queriam que fosse repetido a mulher como culpada da
violência que sofreu e não enfatizar o que não está implícito a mulher como agente de
transformação.
Maria Filomena Gregori atribui às próprias feministas uma parcela de culpa no reforço
da vitimização da mulher, mesmo quando ela é a agente. A autora afirma que isso é uma
herança do conceito de sujeito não constituinte, criado por Simone de Beauvoir. Adotada essa
visão, perdem-se de vista as tensões nas relações entre os papéis de gênero.
188
186
Ibdem, p. 8v e 9.
187
Idem, p. 10.
188
Cf. GREGORI, Maria Filomena. Cenas e Queixas: um estudo sobre mulheres, relações violentas e a prática
feminista. São Paulo: Paz e Terra, 1992, p. 130.
110
Para Jurandir Freire Costa, a lavagem da honra com sangue é uma característica típica
do patriarcado, em que ao homem era permitida a traição – caso o seu papel de provedor fosse
cumprido –, mas à mulher cabia o papel de dona de casa. Dessa forma, se o homem cumprisse
o seu papel, estaria “liberado” para trair. Para Mariza Corrêa, essa era a fundamentação
histórica de um crime passional,
189
pois a traição ou a separação não eram atitudes
socialmente atribuídas às mulheres. Era contra isso que essas mulheres lutavam.
Esses casos nos mostram que assim como a traição, a separação também era tratada de
forma diferente em casos de violência de gênero. Enquanto para o agressor, a separação por
pare de uma mulher é uma ofensa à honra; para a agredida, a separação foi uma medida
tomada para se livrar da violência de gênero sofrida em casa.
2.2 – Trabalho e responsabilidade material
Outro fator que permite observar e analisar a desigualdade de gênero nos processos
são informações relativas à prática do trabalho e às responsabilidades materiais na vida do
casal. Nos trechos que veremos a seguir, observamos que as atribuições dos papéis sexuais
estão diretamente ligadas a essas questões.
Retomando as perseguições que Maria Francisca começou a sofrer por parte de Pedro
M., ela afirmou que se mudou para Limoeiro para tentar trabalhar sem ser importunada,
mas Pedro tornou a buscá-la. Segundo ela, uma das justificativas para as perseguições era o
fato de o acusado não deixá-la trabalhar, ou, em suas palavras, fazer a vida. Além disso, a
justificativa da vítima para voltar com o relacionamento foi a falta de dinheiro. A atribuição
das responsabilidades materiais e dos proventos do lar ao homem é uma recorrência patriarcal
por si só. Em primeiro lugar, observamos a resistência ou, nesse caso, impedimento mesmo da
mulher poder trabalhar. Depois vemos a vontade de dependência econômica da mulher pelo
homem. Do ponto de vista do establishment, o próprio ofício de Maria Francisca, que era
meretriz, por si bastava para atingir a honra de Pedro M. e justificar sua decisão de o
deixá-la trabalhar.
E como não bastasse, ainda foi dito por uma testemunha em juízo que o denunciado a
havia abandonado, tendo vivido como seu amante algum tempo, até que não podendo mais
189
CORRÊA, Mariza. Os Crimes da Paixão. São Paulo: Brasiliense, 1981. Para a autora, essa fundamentação,
baseada na tradição patriarcal, vale mesmo após a primeira metade do século XX, uma vez que seus estudos aqui
utilizados abordam as décadas de cinqüenta e setenta. As discussões sobre essa fundamentação perpassa todo o
trabalho da autora, mas se encontra mais explícita entre as páginas 14 e 26.
111
sustentá-la, deixou-a.
190
Se pensarmos no “modelo ideal” de homem citado por Mariza Correa
e Sueann Caulfield, ou pelo menos no que se esperava dele enquanto provedor, o abandono da
mulher pela impossibilidade de mantê-la poderia ser vista como uma legitimação da
separação. Essa testemunha sugere que o denunciado preferiu deixá-la a continuar vivendo
com ela sem poder exercer o seu papel de provedor. Precisamos lembrar, no entanto, que
estamos na versão do crime que procura justificar a inocência de Pedro. Mas, mesmo a versão
de Maria Francisca que alegava “fazer a vida” em Limoeiro por necessidade poderia ser
instrumentalizada pelos defensores de Pedro como ilegítima, uma vez que o trabalho era uma
atribuição masculina.
Não muito diferente foi o caso de Pedro P. Durante os depoimentos das testemunhas,
foi dada a informação por um dos advogados dele, José de Brito Alves
191
, de que ele,
enquanto estava com a vítima, cumpria seus compromissos de provedor da família
sustentando Quitéria. Dos cerca de duzentos e vinte mil réis mensais que ele lucrava por mês,
aproximadamente cinqüenta mil eram destinados ao aluguel da casa, por exemplo. Assim, o
advogado afirma não saber como ela, em cerca de quarenta e cinco dias afastada de casa,
esteve se sustentando sem o referido dinheiro uma forma de levantar suspeita contra a
vítima. Afinal, como Quitéria estaria se sustentando ou quem a sustentava se ela não
trabalhava? Certamente a intenção do advogado é sugerir que qualquer uma das formas de
sobrevivência trabalhando ou sendo sustentada por alguém seriam agravantes da conduta
dela, o que poderia justificar o crime. É importante ressaltar que, ao contrário de Maria
Francisca, o trabalho de Quitéria não envolvia nenhuma conotação de prostituição, o que nos
leva a crer que o trabalho em si e, consequentemente, o sustento do lar era uma atribuição
diretamente relacionada ao gênero masculino. Mais uma referência ao patriarcado está
presente aqui. Mesmo que não tivesse com um amante, Quitéria estava sob suspeita pelo
simples fato de não estar dependendo dos proventos do marido. As duas hipóteses possíveis
para Quitéria estar se sustentando são repreensíveis: ou saindo de casa ou dependendo de um
amante.
Em suma, Pedro, que sustentava Quitéria, tinha uma amante, mas mesmo assim
achava justo pedir uma reconciliação. Por outro lado, parecia não se admitir que Quitéria,
190
BR PE PJ REC JM2VCR PROCESSO AÇÃO CRIMINAL 1923.07.19, s/n.
191
Ao contrário de Leovigildo Samuel da Silva Júnior, que entrou com o pedido de habeas-corpus preventivo no
STJ, José de Brito Alves foi muito mais atuante durante os depoimentos. A contratação de dois advogados para a
defesa não foi uma coisa recorrente nos casos pesquisados por nós, o que indica uma posição social favorável do
denunciado.
112
mesmo separada, pudesse viver por meios que não fossem os aceitos convencionalmente, ou
seja, “sob as asas” do marido. Estão, portanto, presentes os ranços do patriarcado.
Esses exemplos em que se tenta mostrar que cada parte cumpria o que a sociedade
esperava deles, por exemplo, de que o homem sustentasse sua mulher em troca da sua
fidelidade, é uma estratégia de defesa por parte dos envolvidos nos crimes. Concordamos
aqui, mais uma vez, com Mariza Correa quando ela afirma que diante do juiz o que importava
era a representação do papel ideal que cada um deveria ter, mesmo que esse papel nada
tivesse a ver com a vida real dos envolvidos.
192
Mas Maria Francisca e Quitéria Maria não demonstraram estar conformadas com os
seus “papéis sociais”. Caso estivessem, não teriam se “desviado” dele. Ao saírem para
trabalhar e, conseqüentemente, desafiarem os papéis sociais reservados ao homem e à mulher,
Maria Francisca e Quitéria Maria mostraram autonomia, mesmo estando na contra-mão do
estabelecido. É nesse sentido que a historiadora Raquel Soihet aborda o tema. Mesmo
admitindo a existência dos “modelos ideais” nos julgamentos, a autora trabalha com a
desconstrução desses modelos tomando por base as atitudes e motivações das mulheres nos
crimes. Assim como a separação, o trabalho também foi uma forma de resistir ao domínio
masculino. Por trás do desejo de trabalhar está o desejo de não depender de ninguém.
A agressão sofrida por essa busca de autonomia presentes na busca por trabalho ou
pela separação, ou, nas palavras de Maria Filomena Gregori, pela prática de novos padrões de
gênero, decorre do fato de que essas novas atitudes supõem transformações nas relações de
reciprocidade que atingem o outro.
193
Só a agressão porque não uma “negociação”
eficiente ou exitosa entre homens e mulheres no que diz respeito à execução de seus papéis.
Dessa forma, tais atitudes são vistas pelos homens como ameaças.
2.3 – Honra, família e bom comportamento: métodos eficazes de permanência
Sempre que se colocavam diante do juiz havia um esforço de ambas as partes para se
encaixarem num quadro que se mostrasse favorável. A intenção parece ser apresentar cada
parte ao julgador como portador de uma honra acima de suspeitas. Em alguns momentos, o
crime parece não estar mais sendo julgado, mas sim a própria história de vida tanto do réu
192
Cf. SOIHET, Raquel. Mulheres Ousadas e Apaixonadas: uma investigação em processos criminais cariocas
(1890-1930)”. In: Revista Brasileira de História, v. 9, nº 18. São Paulo: Ed. Marco Zero, 1989.
193
GREGORI. Maria Filomena. Op. cit, p. 140.
113
como da vítima. Por isso, os argumentos e a retórica do promotor e do advogado são
essenciais na apresentação de suas partes. Eles jogam de acordo com o que mais se valorizava
no julgamento – a honra.
No caso de Pedro P., a própria acusação, no pedido de prisão preventiva, não nega que
Quitéria, mesmo separada, estava desviada da vida que deveria levar: em harmonia com o
marido e os filhos. Esse era o papel que ela deveria cumprir.
E se argumentamos permanências do patriarcado em uma família urbana, a própria
noção de família é usada para culpar Quitéria. Segundo o advogado de Pedro, após Quitéria
abandonar o lar, uma de suas filhas, que era noiva, quase enlouqueceu, tendo repetidos
ataques e dizendo que além da desgraça e vergonha da família o procedimento de sua mãe
veio concorrer para o acabamento (sic) de seu casamento (grifo meu)
194
. Vemos aqui que,
embora já não se tratasse da família patriarcal clássica, esse modelo ainda era o referencial na
hora de se pesar a honra. Nesse ponto o advogado reforça a noção de honra familiar. A atitude
de Quitéria desgraçou e envergonhou toda a família. Tanto que o noivo da filha de Quitéria
não quis mais casar. Dessa forma, Pedro, tendo sua honra e a dos filhos ferida, reparou isso
com o crime. E como se tudo isso não bastasse contra Quitéria, seu suposto amante, Severino
Toscano de Brito, também era casado, afirmou Leopoldina respondendo a outra argüição do
advogado José de Brito Alves.
Um simples boato que desonrasse um homem justificava uma agressão. Assim foi o
caso de Reitor C.. De acordo com o que vimos na denúncia e nos depoimentos do guarda que
efetuou a prisão em flagrante, das testemunhas, da tima e do próprio acusado, trata-se de
mais um crime que, embora não de forma explícita, envolveu a honra. Indo tomar satisfações
com Maria Edith, de forma violenta ou não, Reitor queria mesmo “limparseu nome do que
estava sendo falado dele. Os boatos confirmados tanto pelo acusado como pela vítima
estavam pondo em cheque sua honra. Infelizmente não há informações sobre a natureza dos
boatos.
Também em defesa da honra se pronunciou Henrique B., suspeito de matar sua esposa,
Assunta M., queimada. No seu depoimento ao delegado, afirmou que
é público e notório a veracidade do que alega, pois mantém relações de amizade
com várias famílias da sociedade pernambucana; que procurou todos os meios para
194
BR PE PJ REC JM2VCR PROCESSO AÇÃO CRIMINAL 1929.05.29, p. 34.
114
salvar sua esposa e para provar sofreu uma queimadura de grau em uma das
mãos.
195
Henrique B. afirmou ainda que depõe não para tirar de si a pedra de mau esposo,
capaz de assassinar de uma forma tão bárbara sua própria esposa, como também para que
não paire sobre sua esposa a dúvida de ser ela capaz de tornar o depoente seu assassino.
O caso de Henrique se diferencia dos demais casos pesquisados na medida em que não
foi caracterizada a agressão por parte dele. As suspeitas levantadas foram baseadas nos
depoimentos de vizinhos que escutaram a confusão na hora em que Assunta M. sofreu o
acidente. Essas testemunhas afirmaram ter escutado palavras comprometedoras atribuídas a
ele, o que traz a suspeita de crime passional. Para nos situarmos melhor, vamos às
informações sobre o crime.
O Terceiro Promotor Público, Ulysses Luna, denunciou Henrique B., um rico
comerciante italiano de trinta e cinco anos, por haver matado por queimaduras sua esposa,
Assunta Martini, também italiana, que aparentava ter 32 anos
196
, na ocasião em que com o
marido mantinha forte alteração.
197
O fato ocorreu na residência do casal, que havia se
estabelecido no Recife há apenas oito dias, na rua do Riachuelo, número 480.
Como o fato ocorreu na residência do casal e não houve testemunhas presenciais,
temos que contar com os depoimentos das testemunhas arroladas no inquérito policial para
descrever o que se passou. Para isso, trabalharemos primeiro com os vizinhos do casal, que
constituem um conjunto de testemunhas que ouviram a confusão na hora em que ela ocorreu.
Esses depoimentos, aliás, formaram a base para denúncia da promotoria. Desse conjunto de
depoimentos, tomaremos por base o de Eutrópia L., uma dona de casa de trinta e nove anos,
casada, residente na rua do Riachuelo, número 484 (portanto, vizinha “de parede” do casal). O
depoimento dela é o mais detalhado e as demais testemunhas pouco acrescentaram em relação
ao que por ela foi informado.
Eutrópia começa por dizer ao delegado que por volta das 15 horas fazia refeição
quando ouviu uma briga entre os vizinhos, não dando a isso maior importância. Em seguida,
foi alertada por Antônio P., um rapaz considerado como que da família, que lhe disse: esse
homem mata hoje a mulher. Indo ao muro a fim de escutar melhor o que se passava, Eutrópia
195
BR PE PJ MJ REC JM5VCR PROCESSO AÇÃO CRIMINAL 1923.11.26, p. 10v e 11.
196
As informações sobre as características físicas de Assunta Martini só foram encontradas no exame cadavérico
anexado ao processo. Por isso a imprecisão da informação sobre a sua idade.
197
Idem, p. 2v.
115
disse que os vizinhos pareciam que mudavam de lugar de instante a instante; que ouviu
discussão entre os dois em voz relativamente baixa, sem nada entender, ouvindo depois
choros e alguns gritos. Com a finalidade de tentar acabar com o mal estar que a discussão
causava, Eutrópia chegou a bater no muro do casal com uma e pediu que acabassem com
aquilo, que estava incomodando os vizinhos (percebendo) claramente uma voz de homem
dizer “cala a boca!”. Talvez por acanhamento, a discussão parou por alguns minutos, mas
depois se voltou a ouvir choro alto e a mesma voz de homem a dizer “psiu!... Cala a boca!”,
ao que a mulher respondeu: “eu morro!”. O que se ouviu a seguir foi o barulho de muitas
louças quebrando seguidos de gritos alarmantes e correria da sala da frente para de trás.
Não sendo mais atendida pelos vizinhos, dona Eutrópia mandou chamar um guarda civil que
chegando ao local, e também não sendo atendido, pulou pela janela. Foi dito ainda que os
gritos ouvidos em casos graves são dados. O guarda civil acionou a Assistência Pública e
então se soube que Assunta M. havia sido vítima de graves queimaduras por todo o corpo.
Ciente de que teria havido uma discussão entre o casal por um longo tempo, a testemunha
aconselhou ao guarda civil deter Henrique B., mas o guarda disse não poder fazê-lo pois havia
escutado da própria Assunta M. que fora vítima de um acidente casual.
198
Reforçando o que Eutrópia afirmou, também depôs Antônio P., um agricultor de 24
anos que morava na mesma casa da primeira testemunha. Antônio informou que já pela
manhã ouvira uma forte discussão entre o vizinho e sua mulher e que às 15 horas, quando
estava no banheiro, ouviu umas pancadas e uns gritos de mulher (e que) julgava que o vizinho
queria matar a mulher, pois a estava espancando. Não soube informar, no entanto, se o
incêndio foi causado pelo vizinho ou se fora um acidente. Beatriz L., filha de Eutrópia pouco
acrescentou, mas afirmou que também escutou eu te mato!” repetidas vezes enquanto o
Guarda Civil chamava a Assistência Pública. A novidade trazida por Antônio L., auxiliar de
comércio de 30 anos, que morava no número 488 da mesma rua e que mesmo mais distante
também ouviu as discussões de vozes alteradas foi o fato dele ter entrado na casa do casal
após a chegada da Assistência Pública, tendo sido o único a ver Assunta M. queimada e
deitada na cama no local do fato ocorrido. Antônio L. também ouviu do guarda que Assunta
teria lhe dito ter sido vítima de um acidente.
O outro bloco de testemunhas é formado por pessoas que, ao contrário das que vimos
até agora, não tiveram o mínimo conhecimento da confusão na hora em que ela aconteceu e se
limitaram, nos depoimentos, a dar informações sobre o caráter do denunciado e a convivência
198
Ibdem, p. 14v.
116
do casal. É a partir desses depoimentos que observaremos o peso que tem a honra e a família,
pois a tônica de todo esse bloco de testemunhas é afirmar que Henrique B. era um homem
extremamente cortês não só com a sua esposa, mas com todos os que com ele tiveram contato,
seja pessoal ou profissionalmente.
Carlos S., um comerciante e conselheiro municipal de vinte e nove anos, conhecia o
indiciado há mais de dez anos e em seu depoimento enfatizou seu cavalheirismo e corretismo,
sendo tanto ele como a sua esposa pessoas distintas não havendo menor resinga entre eles,
pelo contrário, a maior harmonia existia entre ambos. Harmonia esta reforçada por Maria G.,
uma dona de casa de quarenta e oito anos que abrigou o casal em sua casa por vinte cinco
dias, não notando nesse período a menor desavença entre ambos, pelo contrário, conhecia-se
haver entre ambos a maior harmonia. Maria G. informou ainda que não julga Henrique B.
capaz de atentar contra sua senhora, pois é testemunha do tratamento carinhoso para com
ela.
199
Carlos S. acrescentou ainda que por volta das 18 horas soube do ocorrido, indo visitar
a vítima no Hospital Português. Chegando lá, viu Assunta M. em gritos, com certeza devido
às dores provenientes das queimaduras que sofrera (lhe dizer que) tinha sido vítima
casualmente de uma explosão de um fogareiro a álcool na ocasião em que esquentava
comida. Uma amiga de Assunta M., Antonieta F., locadora do imóvel em que residia o casal,
foi visitá-la assim que soube do ocorrido. Perguntando como ocorreram as queimaduras,
também teve como resposta que ao acender um fogareiro de álcool houvera uma explosão
incediando-se a mesma dona Assunta. Diante dos gritos, nada mais quis perguntar, mas não
terminou seu depoimento sem frisar que entre o casal existia grande afeto de parte a parte.
200
Para finalizar as informações e versões sobre o que ocorreu com Assunta M., temos o
depoimento do próprio Henrique B. Ele afirmou que a esposa foi esquentar comida, como de
costume, num fogareiro. Mas sucedeu explodir o fogareiro tendo ateado fogo às vestes da sua
senhora. Ao vê-la em chamas lembrou-se que poderia apagar o fogo abafando-a com um pano
grande. Por isso, pegou o pano de mesa, quebrando diversos pratos e garrafas, (o que
provocou) algum ruído; que efetivamente procurou abafar a sua esposa ao que encontrou
dificuldade por estar ela como uma louca a correr por toda a casa.
201
Quando conseguiu
199
Idem, p. 8 e 8v.
200
Idem, p. 9v.
201
Idem, p. 10v e 11.
117
apagar o fogo, ela já estava muito queimada. Foi nesse momento que, ao gritarem por socorro,
chegou o guarda civil, que escutou da própria vítima a narrativa do ocorrido.
Pelo que vimos até aqui, podemos perceber que o tratamento do caso envolve certa
complexidade na medida em que algumas testemunhas ouviram o que se passava, mas não
viram, o que dificulta bastante qualquer tentativa de acusação. Por outro lado estão as
testemunhas que se declaravam amigos de longa data do casal. Estes, além de afirmarem ter
escutado a versão da boca da própria vítima (embora só tenham tomado conhecimento do
caso horas depois), não deixaram uma só vez de enfatizar o bom comportamento do indiciado,
fator bastante valorizado no julgamento. Essa imagem de marido afável, atencioso e
cumpridor de suas obrigações era o grande trunfo mesmo em casos de violência comprovada.
A complexidade do caso está justamente na dúvida sobre quem levar em consideração:
quem presenciou e afirmou ter escutado indícios que incriminavam o denunciado, mas que, no
entanto, nada viu, ou quem nada presenciou, mas garantia que o casal vivia em harmonia?
Além do seu bom comportamento e da inconsistência dos testemunhos contrários,
Henrique B. também pôde contar com a ausência de acusador. As informações de que o réu
era um homem honrado fizeram com que o promotor (em tese, responsável pela acusação),
pedisse o arquivamento do inquérito por duas vezes. Essa insistência chegou a provocar uma
indisposição entre o promotor e o juiz. Após o primeiro pedido de arquivamento pelo
promotor sob a argumentação de que os depoimentos não ofereciam base para a denúncia, o
juiz municipal da Vara Criminal, Murillo Martins, embasado na doutrina e na
jurisprudência do Supremo Tribunal, afirmou que cabe à promotoria pedir arquivamento
de diligências quando dela se constata um fato não classificado crime pela lei penal e que em
caso de morte sempre é necessário que se instaure o sumário, único meio legítimo para a
apuração da responsabilidade do agente causador ou da casualidade do acidente. Além do
mais, o juiz enfatiza que os depoimentos das testemunhas no inquérito são apenas
informativas, só tendo valor jurídico depois da confirmação perante o juiz da culpa.
202
Alguns dias depois, o promotor insiste no pedido de arquivamento alegando não ver o
menor indício de culpabilidade por parte de Henrique B., havendo apenas informações vagas,
imprecisas, não merecedoras de crédito pelo fato de ninguém ter visto nada e com base nos
depoimentos dos amigos do casal. Na leitura do processo fica claro que o novo pedido de
arquivamento por parte da promotoria contraria o juiz, que indefere novamente sugerindo o
202
Idem, p. 29 e 29v.
118
flagrante conflito da opinião do Dr. Terceiro Promotor com os princípios do Direito. O juiz
ainda afirma que nas diligências da morte de Assunta M. suspeitas bem fundadas de que
tenha o seu marido responsabilidade criminal pela morte de sua mulher.
203
Em juízo as testemunhas mantêm as versões dos depoimentos prestados no inquérito
policial e novidades não são apresentadas por parte das mesmas. Eutrópia L. confirmou que já
havia escutado discussões pela manhã e sua filha, Beatriz, voltou a afirmar que ouviu “eu te
mato” distintamente em português. Antônio P., inquirido pelo promotor sobre a distância
entre o local onde estava (o banheiro da casa de Eutrópia, onde residia) e a casa do casal,
afirmou que qualquer pessoa estando no gabinete sanitário da casa onde reside o depoente
poderá ouvir qualquer frase ou palavra proferidas na sala de jantar ou cozinha da casa dos
vizinhos.
204
Isso para mostrar que as pancadas e gritos de mulher vinham realmente da casa
do casal, o que foi contestado pelo denunciado.
A fim de mostrarem que não houve espancamento anterior ao acidente, advogado e
promotor (ambos tentando inocentar o denunciado) inquirem as testemunhas no sentido de
saber quanto tempo durou o surgimento das “vozes alteradas” até o acidente em si. Embora
imprecisas, as respostas ajudam a defesa do denunciado. Por exemplo, numa segunda
inquirição, dona Eutrópia L. disse que não sabia o tempo exato, podendo afirmar, porém, que
foram mais demorados que rápidos. Ao contrário do absoluto relativismo da resposta de dona
Eutrópia, Antônio P. afirmou que os gritos ocorreram em um espaço de tempo de vinte
minutos mais ou menos.
205
A grande novidade é o depoimento de Renato R., soldado número 182 da Guarda
Civil, com vinte e um anos de idade, que entrou na casa onde ocorreu o acidente.
206
Renato
afirmou que ouviu da vítima, em português, que fora queimada casualmente por uma
explosão de fogareiro de álcool.
207
Em juízo, nos depoimentos dos amigos do casal, tenta-se evocar novamente o bom
comportamento não do denunciado, mas do próprio casal. É difundida a imagem de um
Henrique B. muito aflito e choroso após o crime, fato que indicaria seu sofrimento, mas não
citado no inquérito. Ao contrário dos casos de assassinato, a intenção nesse caso parece ser
não construir a imagem positiva apenas do agressor, como costumava ocorrer. Ao inquirirem
203
Idem, p. 31v.
204
Idem, p. 46.
205
Idem.
206
Renato R. depôs no inquérito, mas seu depoimento está ilegível.
207
Idem, p. 47.
119
as testemunhas sobre a harmonia em que viviam, advogado e promotor parecem defender não
Henrique B., mas o próprio casal. Essa harmonia indica implicitamente (ou até
explicitamente mesmo) que tanto o marido como a esposa não tinham o menor motivo para se
agredirem, tanto mais se matarem. Foi assim que o promotor, ao inquirir Carlos S. obteve
como resposta que este era amigo íntimo do casal, nunca tendo notado a menor desarmonia
no casal, parecendo que marido e mulher se estimavam mutuamente.
208
O bom comportamento era bastante evocado por advogados, testemunhas e pelos
próprios envolvidos diretamente no caso por se saber que contava a favor dos agressores.
Seguindo a lógica da apresentação da honra limpa nos julgamentos, o bom comportamento,
quando não era considerado um ponto que muitas vezes livrava o acusado, poderia, pelo
menos, amenizar a pena. O comportamento compatível com os códigos de civilidade era
evocado por se saber ser determinante na construção da imagem do réu.
Assim também fez Reitor C., que confessou que há tempos foi amante de Maria Edith.
Sabendo que esta estava falando mal dele, foi procurá-la a fim de interpelá-la a respeito.
Mudando radicalmente a versão das testemunhas, que afirmaram que Reitor agiu com muita
violência, disse que ao chegar à sua residência, encontrou a tima toda amedrontada correr
para a varanda. Pensando que ela se jogaria, correu com o fim de ampará-la,
209
tendo se
ferido na testa. Reitor afirmou, ainda, estar desarmado na hora do fato ocorrido fato negado
pelas testemunhas. Assim como Henrique B., a forma como Reitor se apresenta, além de
negar que cometeu o crime, tem como objetivo construir a imagem de um homem tranqüilo,
incapaz de qualquer ato de violência. Segundo seu relato, ele não ofereceu nenhum motivo
para que Maria Edith tivesse medo. Pelo contrário, vendo-a amedrontada, quis até ampará-la.
Mas será que a presença dele, disposto a apenas conversar, fez Maria Edith tentar se jogar
da varanda com medo?
Se um crime em defesa da honra era costumeiramente tolerado, Reitor vai contar com
um fato que infelizmente foge ao alcance do nosso estudo: todas as testemunhas que antes o
apontavam como acusado mudaram seus depoimentos com a clara intenção de inocentá-lo. O
que teria provocado tal mudança? Acordos, ameaças, intrigas? Não temos como saber.
Contudo, nosso objetivo é identificar nos depoimentos das testemunhas as justificativas para
inocentá-lo da agressão. O bom comportamento do acusado é mais uma vez a melhor forma
encontrada para isso.
208
Idem, p. 57.
209
BR PE PJ MJ REC JM3VCR AÇÃO CRIMINAL 1923.07.20, p. 13.
120
Antônia L., doméstica de vinte e quatro anos que morava na mesma pensão em que
ocorreu o fato e citada por Maria do Carmo como tendo sido a pessoa que foi chamar a
polícia, desmentiu tudo. Afirmou, inclusive, que estava ausente da cidade quando ocorreu o
crime. Também declarou não se dar com Maria Edith e que, assim que voltou de viagem,
providenciou mudar-se da pensão.
José D., que auxiliou a prisão e que corroborou a versão do seu colega de farda que
efetuou a prisão, cuja descrição do crime no inquérito enfatizou a culpabilidade de Reitor,
disse que a prisão se deu por uma discussão entre o colega e o denunciado. Afirmou ainda
conhecer o denunciado, nada sabendo que desabone a sua conduta. Ao promotor, respondeu
que não notou que a mencionada mulher estivesse ferida ou tivesse as vestes dilaceradas.
210
Maria L., doméstica de vinte e dois anos, também moradora da pensão, percebeu o
histerismo da vítima, mas não notou ferimentos. Esta soube que o denunciado foi preso
porque estava de brincadeira com Edith, esta correu para varanda que para a rua Nova,
procurando o mesmo denunciado agarrá-la e foi de encontro a um ferro, ferindo-se na
cabeça.
211
Vemos que um ato de extrema violência e covardia transforma-se, de uma ora para
outra, na conseqüência de uma brincadeira, mais uma tentativa de apresentar a imagem de um
homem com comportamento exemplar.
Outra tentativa da testemunha de negar o crime foi a afirmação, após argüição do
promotor sobre uma possível aglomeração na frente do prédio, de que a agressão
supostamente praticada por Reitor não foi a causa dessa aglomeração. O regresso de pessoas
do cinema e o costume das pessoas de ficarem em frente às pensões chics foram, para a
depoente, os verdadeiros motivos do ajuntamento. Segundo ela, as pessoas da rua não tiveram
sequer como escutar os gritos de Edith, o que contraria o guarda civil que efetuou a prisão,
que disse ter sido atraído pelos gritos.
A outra testemunha que seria capital para a condenação de Reitor por ter visto tudo
também modificou sua versão para beneficiar o acusado. Maria do Carmo, que outrora foi a
mais contundente contra o denunciado, diz agora que o recebeu em casa com dois amigos.
Omitindo a invasão do domicílio, relatou ter havido discussão, mas não viu o denunciado
armado de revólver, não tendo havido disparos nem ferimento algum produzido pelo
210
Idem, p. 37.
211
Ibdem, p. 38.
121
denunciado. Também afirmou conhecer o denunciado nada sabendo que desabone sua
conduta.
212
O mesmo ocorreu com Pedro M. na sua apresentação pelas testemunhas em juízo. Das
quatro testemunhas, apenas o guarda que efetuou a prisão confirmou o que disse ao delegado.
Sua descrição do crime não foi alterada e ele ainda acrescentou, respondendo ao Dr.
Leovigildo Samuel da Silva, advogado do denunciado, que ninguém gostava dele (do
denunciado) quando ele pertencia a Guarda Civil (pois se mostrava) pretensioso, querendo
ser mais que os outros.
213
O mesmo advogado inquiriu as outras testemunhas sobre a vida
pregressa do denunciado, que todos eram guardas civis e Pedro também havia sido, tendo
sido expulso uma semana antes de cometer o crime por abandono de trabalho. As respostas
que o Dr. Leovigildo obteve foram contrárias ao que afirmou a primeira testemunha. O
histórico de boa conduta e bom comportamento foi uma constante entre as outras três
testemunhas que auxiliaram a prisão do denunciado. Um dos quais confessou ter uma
surpresa com o envolvimento do réu no caso.
214
Em outro caso, Francisco A., cuja violência foi explicitada tanto na denúncia quanto
no inquérito, também contou com a construção da sua imagem como sendo de um homem
comportado pelas mesmas testemunhas que na delegacia o acusaram. Com os depoimentos do
inquérito tudo parecia correr a favor da vítima não fosse essa mudança de postura das
testemunhas em juízo. Nenhuma testemunha negou o que ocorreu, mas duas das três, em
juízo, afirmaram conhecer o denunciado muito tempo, sendo o mesmo de boa conduta e
batalhador. É o caso de José O., que afirmou conhecer o denunciado mais de sete anos e
sabe ter ele boa conduta, quanto à ofendida conhece-a pouco tempo não sabendo seu
modo de proceder.
215
Além da boa conduta, a violência sofrida pela vítima Maria Alice também foi
minimizada se comparamos os depoimentos no inquérito e em juízo. Como exemplo, Maria
Magdalena afirmou em juízo que viu a vítima com um pequeno ferimento após o fato
ocorrido, o que leva a crer que Francisco não usou de violência exagerada. No inquérito,
porém, a testemunha afirmou ter visto Maria Alice ensangüentada.
Outra intenção da evocação do bom comportamento era ofuscar o crime cometido.
Com Pedro P. não foi diferente. A segunda testemunha, Adolpho S., que passava perto do
212
Idem. s/n.
213
BR PE PJ REC JM2VCR PROCESSO AÇÃO CRIMINAL 1923.07.19, s/n.
214
Idem. s/n.
215
BR PE PJ MJ STJ PROCESSO APELAÇÃO CRIME 15.170-1925, p. 26.
122
local na hora do crime, disse que conhecia a vítima de vista e não conhecia o denunciado
presente, não podendo nada afirmar quanto aos seus comportamentos. Manuel A., que
conhecia Pedro há mais de um ano, afirmou, por sua vez, que sempre reconheceu (no
denunciado) um bom chefe de família com comportamento bom. Um dos advogados de Pedro,
José de Brito Alves, inquirindo Leopoldina, fez com que a mesma admitisse que nas três
vezes que ele foi procurá-la a fim de reconciliação nunca a maltratou ou ameaçou, mas foi
para pedir que voltasse para casa e fosse criar as filhas
216
. Além de se deixar claro o que se
esperava de uma mulher (cuidar da casa e criar os filhos), vemos aqui mais uma vez a
estratégia bastante difundida entre os defensores de criminosos passionais de apresentar o
cliente como um homem de boa conduta, de bom temperamento, sem nenhum histórico de
atitudes violentas ou covardes. Reforçando a boa conduta de seu cliente, o advogado disse
ainda que Pedro P. nunca teve amantes ao contrário de Quitéria, que, ao ter um, mesmo após a
separação, pareceu justificar sua morte.
A intenção era sugerir que o ato do crime foi uma loucura momentânea, que o
código penal de 1890 isentava de responsabilidade os que se achassem em estado de completa
perturbação de sentidos e de inteligência no ato de cometer o crime.
217
Sendo o crime fruto
de um momento de loucura, o criminoso, sem uma vida pregressa desfavorável, não
representava perigo à sociedade, o que justificaria sua absolvição.
De uma forma geral, a construção e o recorrente reforço do bom comportamento e dos
bons antecedentes dos criminosos objetivam sugerir que o mesmo não representava perigo à
sociedade, o que justificaria a inexistência de qualquer motivo para sua prisão preventiva e
condenação. Se a atribuição desses pontos positivos por parte dos advogados de defesa tivesse
sucesso nas audiências e inquirições, a influência no resultado poderia ser determinante. Por
isso, é de extrema importância o recurso às estratégias de retórica que os atores jurídicos
utilizaram para manipular suas margens de liberdade dentro dos requisitos legais. Além da
exploração do conhecimento técnico com o rigor e a objetividade das normas jurídicas
também entra aqui a subjetividade e a independência do ator jurídico no “jogo” com os
recursos e as “brechas” por ele criadas e exploradas.
216
BR PE PJ REC JM2VCR PROCESSO AÇÃO CRIMINAL 1929.05.29, p. 20v e 29, respectivamente.
217
CORREA, Mariza (1983). Op. cit., p. 21. A autora observou que esse dispositivo passou a ser utilizado pelos
advogados de criminosos passionais como o principal ponto estratégico de suas defesas.
123
2.4 – Colhendo os frutos do bom comportamento
Um exemplo dos benefícios colhidos pelo bom comportamento dos acusados está no
julgamento do próprio Pedro P. Logo na denúncia, o promotor pede a prisão preventiva de
Pedro por achar que esses elementos (a descrição do crime pelas testemunhas) induzem a
certeza da criminalidade do denunciado (...). Este agiu de surpresa, sem um motivo que
atenuasse sua culpa, uma vez que, tendo buscado viver com a esposa desviada, revelou-se
temível.
218
O pedido foi negado. O argumento utilizado pelo juiz para negar a prisão
preventiva de Pedro foi a falta de necessidade social do pedido de prisão. A falta de
necessidade social levava em consideração a vida pregressa do denunciado. Se o denunciado
não tem uma história que macule seu passado em outras palavras, se tinha bom
comportamento era passível de se encaixar na falta de necessidade social de um pedido de
prisão. O juiz ainda afirmou que esse procedimento estava de acordo com a jurisprudência
dos nossos tribunais
219
(grifo meu), o que indica que essa era uma prática constante.
Do outro lado, o advogado de Pedro, Leovigildo Júnior, entrou no STJ pedindo um
habeas-corpus preventivo para seu cliente. Segundo o advogado, baseado em duas
testemunhas, Pedro estava sendo procurado pela polícia mesmo tendo se livrado do flagrante,
o que ia de encontro ao artigo 72, parágrafo 13 da Constituição Federal, que dizia que à
exceção de flagrante delito, a prisão o poderá executar-se senão depois de pronúncia do
indiciado, salvo os casos determinados em lei, e mediante ordem escrita de autoridade
competente.
220
O juiz indeferiu o pedido com base nas informações passadas pelo delegado do
2º distrito, que confirma a continuidade das diligências, mas sem nenhuma intenção de
prender o indiciado na atual fase de investigações policiais uma vez que, não tendo sido ele
preso em flagrante delito, não foi pedida nem decretada a sua prisão preventiva. No entanto,
o delegado informa que é de toda conveniência que Pedro preste as suas declarações sobre o
crime de que é acusado. O ofício do delegado destinado ao juiz termina por informar que
Pedro deve ser intimado logo que se conheça o seu paradeiro, que é até agora ignorado pela
polícia.
221
Não sendo atendido o habeas-corpus preventivo, o caso seguiu para o seu desfecho.
Mesmo parecendo que tudo estava contra Quitéria, a promotoria pediu a acusação e
218
BR PE PJ REC JM2VCR PROCESSO AÇÃO CRIMINAL 1929.05.29, p. 2v.
219
Idem, p. 3 e 3v.
220
BR PE PJ MJ STJ PROCESSO HABEAS CORPUS 13.798-1923, p. 2v. Obs: o que foi atribuído ao artigo 72
da Constituição Federal de 1890 foi transcrito aqui do próprio pedido de habeas-corpus.
221
Idem, p. 9 e 9v.
124
confirmou o que sugeriu na denúncia. O argumento é de que houve a soma tanto da
objetividade do crime (o exame cadavérico provou que ela foi assassinada) como da
subjetividade (a coincidência dos depoimentos das testemunhas, que disseram que Pedro agiu
covardemente). O libelo apresentado pela promotoria, cujo objetivo é pontuar os agravantes
para a fixação da pena contra o réu, apresenta alguns pontos interessantes, dois dos quais
merecem uma observação mais crítica.
O primeiro desses pontos está diretamente relacionado às relações de gênero, pois diz
que Pedro agiu em superioridade de arma e de sexo. O segundo ponto diz que o réu agiu com
traição. Nenhum dos dois pontos apresentados pela acusação procura negar o modelo
patriarcal de família tão defendido pelo advogado de defesa. Ao contrário, a promotoria
reforça a relação de domínio do homem sobre a mulher. A afirmação de que ele agiu em
superioridade de sexo é um parágrafo do artigo 39 do próprio Código Penal republicano e
sugere que a superioridade do homem em relação à mulher era considerada natural. Mesmo
não distinguindo ou especificando essa superioridade no sentido físico ou moral, a afirmação
da desigualdade é evidente, embora admitamos a hipótese desse dispositivo ser utilizado para
reforçar a covardia do ataque masculino às mulheres. A atitude de traição presente no segundo
ponto não está relacionada ao fato de Pedro ter uma amante, mas ao fato dele ter agido com
covardia, invadindo a casa onde Quitéria estava hospedada.
A promotoria, por sua vez, defendia Quitéria sem contestar as desigualdades de gênero
certamente por saber que, caso houvesse contestação, seria um ponto a favor do réu. Uma das
testemunhas, mais uma vez a dona do sítio onde Quitéria estava hospedada, tentou aliviar sua
situação afirmando que ela estava na sua casa enquanto seu irmão, um marítimo, voltava para
resolver sua situação. Assim, uma das formas de tirar a culpa de Quitéria é sempre através da
dependência e submissão dela a um homem. Se antes era dependente do marido, agora seu
irmão é quem deveria resolver sua vida. São muito pertinentes, mais uma vez, as declarações
de Mariza Corrêa a respeito disso. Para ela, isso ocorre porque apresentar acusados e vítimas
de forma que essa apresentação coincida com uma aceitação pelos julgadores é a principal
forma de defender suas partes.
222
Advogados e testemunhas sabiam que apresentar uma
mulher independente não acarretaria nessa “aceitação pelos julgadores”.
No dia do julgamento, Pedro, que não foi acompanhado pelos advogados, negou ao
juiz ter disparado os três tiros em Quitéria certamente um erro estratégico, que seus
advogados em nenhum momento trabalharam com essa hipótese, buscando apenas melhorar a
222
CORRÊA, Mariza (1983). Op. Cit. p.33.
125
sua imagem para tirar o crime de foco. Além disso, todas as testemunhas, inclusive a ocular,
afirmaram que foi Pedro quem disparou os tiros. Por outro lado, também é provável que
Pedro tenha sido bem orientado, pois de acordo com o Código Penal de 1890, o testemunho
ocular só era válido com mais de uma testemunha, o que não era o caso.
O resultado do julgamento, ocorrido no tribunal do júri em dez de maio de 1925, foi a
absolvição de Pedro. Infelizmente não há uma justificativa do júri para a absolvição.
O parágrafo do artigo 39 do Código Penal, que naturaliza a desigualdade de gênero,
também foi a base da acusação de Francisco A. No seu interrogatório, Francisco afirmou não
estar no local e hora relativos ao crime e desconheceu os motivos que o levaram à denúncia.
Sua defesa escrita, feita pelo advogado Demócrito Cezar de Souza, foi breve e sem
argumentos. Em três pidos parágrafos apenas a descrição do processo até aquele
momento e a afirmação de que não procede em absoluto a prova existente nos autos e da qual
não resulta a criminalidade do sumariado, restando ao Doutor julgador impronunciá-lo por
ser de justiça.
223
Quase um mês depois, o promotor, ausente em todas as inquirições, pede vistas ao
processo e confirma sua opção pela condenação no grau máximo das penas do artigo 303 do
Código Penal (um ano de prisão celular) com agravantes nos parágrafos 1º, e do artigo
39 do mesmo código. Os três parágrafos estão relacionados, respectivamente, ao fato do crime
ter sido cometido à noite, o que facilitaria a ação criminosa; à premeditação do crime; e à
superioridade em força, sexo ou arma, o que não chance de defesa para a parte ofendida.
Assim como ocorreu com Quitéria Maria, mesmo a tentativa de defender a ofendida não lhe
dá a posição de igualdade ou independência em relação ao seu amásio.
Na sentença, o juiz acatou como agravantes apenas o fato do crime ter ocorrido à noite
e a superioridade em força, sexo e arma, pois a premeditação, segundo ele, não foi provada
nos autos. A pena de oito meses, vinte e dois dias e doze horas de prisão (grau médio) deveu-
se à consideração de que, em favor do réu, milita a circunstância atenuante de bom
comportamento anterior ao fato criminoso.
224
Constata-se então que o crime não era o alvo
único do julgamento. A história de vida pregressa do criminoso se constituía, nesses casos,
como pontos favoráveis, se não para absolver, ao menos para atenuar a pena. Dessa forma,
vemos que todos os esforços de advogados e testemunhas para apresentarem o agressor como
223
BR PE PJ MJ STJ PROCESSO APELAÇÃO CRIME 15.170-1925, p. 44.
224
Idem, p. 47.
126
um homem de bem e, consequentemente, a agressão como um comportamento atípico, eram
recompensados.
Francisco A. ainda recorreu à instância superior requerendo um defensor público. O
primeiro, nomeado pelo desembargador, negou a defesa argumentando que o réu tinha
condições de pagar um advogado. O segundo, Dr. Lourenço Castelo Branco, aceitou. Para
livrar Francisco da pena, apontou contradições nos depoimentos das testemunhas bem como
sugeriu ser exagerada a indicação da pena do artigo 303 por um pequeno ferimento. A pena,
no entanto, foi mantida e considerada muito justa, tendo o juiz de direito consultado a prova
dos autos, a qual é evidente mostrando a certeza da autoria criminal
225
a Francisco A.
O advogado de Francisco A., Dr. Demócrito Cezar de Souza, também defendeu Reitor
C. Nesse caso, a defesa escrita também se deu de forma breve e sem argumentos que
apresentassem a inocência de seu cliente, como parecia ser costume desse advogado. Ele
limitou-se a dizer que em absoluto não procede a denúncia (pois) das cinco testemunhas
ouvidas em juízo, não paira uma acusação contra o mesmo.
226
O advogado não chega nem
a citar o bom comportamento do cliente ressaltado pelas testemunhas, um ponto forte na
defesa de todos os acusados estudados por nós, principalmente se levarmos em consideração
os princípios do perigo social e da necessidade social da prisão, ambos geralmente atenuados
pelo bom comportamento.
A acusação do Primeiro Promotor é bem mais contundente. Diante da mudança de
posição das testemunhas que, no inquérito, acusavam o denunciado, o promotor denuncia que
o visível intuito das testemunhas é o de inocentar o acusado, desdizendo-se,
negando o que haviam afirmado na polícia, mostrando-se alheias ao fato, (...)
procurando assim impedir ou dificultar a ação da justiça, tentando confundir os
acontecimentos (...). Resta, todavia, a prova material, sólida, robusta e perfeita do
corpo de delito e acresce ainda o fato da prisão em flagrante.
227
O promotor busca no fato da prisão em flagrante a prova de que houve violência: se
não houve o crime, por que o denunciado foi preso em flagrante? Sabendo que os
depoimentos do inquérito são apenas informativos e que os depoimentos em juízo têm
valor de prova, a tentativa de fugir dos depoimentos abstratos das testemunhas para se basear
225
Idem, s/n.
226
BR PE PJ MJ REC JM3VCR AÇÃO CRIMINAL 1923.07.20, s/n.
227
Idem, s/n.
127
no fato concreto da prisão em flagrante, que, realizada indevidamente, se constitui ilegal, foi a
estratégia do promotor. Além da prisão do acusado em flagrante, também foi constatada a
objetividade do crime no exame médico, em que fica claro que a vítima foi ferida por
“instrumento contundente”.
A fim de também mostrar a mudança de versão das testemunhas, ele ainda busca nas
falas destas indícios da criminalidade do denunciado. Assim, o promotor frisou, por exemplo,
que José D., a segunda testemunha, afirmou ouvir gritos que indicavam luta ou que Maria L.,
a terceira testemunha, viu uma porta arrombada, também denotando a existência de luta,
presenciando também o histerismo de Maria Edith – comoção nervosa muito natural e
conseqüente à agressão sofrida pela vítima.
228
Por fim, lembra que Maria do Carmo chegou
mesmo a presenciar uma discussão.
O objetivo da acusação aqui é desfazer toda a imagem construída nos depoimentos em
juízo de que Reitor teve bom comportamento na hora do fato ocorrido e que tudo não passou
de um acidente, seja por parte do desespero da tima (que, para Reitor, não tinha razão de
ser, já que ele disse que foi apenas conversar com ela), seja por conseqüência de uma
brincadeira de Reitor, segundo afirmou uma testemunha. Para tanto, o promotor enfatizou a
prisão em flagrante e as contradições nos depoimentos das testemunhas.
Os esforços do promotor, no entanto, não foram suficientes para que o juiz João
Batista do Amaral Filho, suplente em exercício da terceira vara criminal, procedesse à
denúncia. Seus argumentos se baseiam nas considerações de que para que haja pronúncia são
necessários indícios veementes da criminalidade do sumariado. Esses indícios, por sua vez,
encontram-se nos depoimentos tanto de testemunhas de ciência própria ou pelo relato de
pessoas certas e determinadas prestados em juízo. Assim, de acordo com os depoimentos
prestados em juízo, nada ficou apurado. Não houve, então, veementes indícios e
responsabilidade do sumariado no fato articulado na denúncia.
229
Nesse caso, o argumento legal de que os “indícios de criminalidade” podem ser
buscados nos depoimentos em juízo se mostrou muito conveniente para a defesa do
criminoso. Não foram levadas em consideração, em nenhum ponto da sentença, o fato de ter
havido a prisão em flagrante do agressor e o exame de corpo delito, apesar dos apelos do
promotor.
228
Ibdem, s/n.
229
Idem, s/n.
128
Mais complicada, no entanto, foi a acusação de Pedro M., dada a inversão do crime
apoiada nos depoimentos das testemunhas, que mudaram suas versões transformando a vítima
em acusada. A estratégia utilizada pelo advogado esteve ligada à arma do crime. Em todos os
depoimentos, ele inquiriu as testemunhas no sentido de questionar se a arma apresentada no
tribunal era a mesma utilizada no momento do crime, que todas as testemunhas foram
presenciais. Com exceção de uma, todas as testemunhas afirmaram que a arma não era a
mesma. A diferença era a de que a arma utilizada no crime, sendo enferrujada e cega, não
podia ocasionar de modo algum qualquer ferimento a não ser de simples arranhão (pois)
estava completamente estragada e sem o referido fio ou lâmina
230
, ao contrário da navalha
apresentada em juízo.
Tendo conseguido da maioria das testemunhas, através de suas argüições, as
informações de que o denunciado era portador de boa conduta e comportamento e que a arma
apreendida no momento do crime estava estragada e não era a mesma apresentada no
tribunal, o advogado de defesa preparou o terreno para a peça fundamental do seu plano para
inocentar Pedro: a inversão do crime apoiada nos depoimentos das testemunhas que outrora o
acusaram. Como exemplo, uma testemunha disse que a agressão partiu da vítima contra o
denunciado e, na hora do crime, viu o denunciado agarrado com a vítima, a fim de tomar uma
navalha com que a mesma se achava armada para feri-lo. Outra testemunha presencial
contestou ser Pedro o autor do fato em questão, pois também o viu tomar das mãos de uma
mulher uma navalha, tendo-se a mesma mulher ferido igualmente o denunciado (...). O
denunciado tomou a navalha para evitar que a mulher o ferisse, pois foi agredido por esta,
chegando a receber um ferimento. Como se explicaria então o ferimento sofrido por Maria
Francisca se ela era a agressora? A explicação parece primária e ilógica: com a navalha, a
mulher agrediu o denunciado, que defendendo-se naturalmente dos golpes sucedeu a citada
mulher ferir-se.
231
E para que a inversão ficasse plausível, o fato criado para justificá-lo também sofreu
alteração. Se na versão anterior Pedro cometera o crime por não admitir a separação, versão
na qual não caberia à mulher a menor autonomia diante do relacionamento, agora, Maria
Francisca cometera o crime por ciúmes. Isso certamente representava uma inversão de
valores, que vimos que, de acordo com os papéis sexuais tradicionais, a fidelidade é uma
atribuição feminina. Se ela agrediu por ciúme, tentou-se, então, construir o papel de uma
230
BR PE PJ REC JM2VCR PROCESSO AÇÃO CRIMINAL 1923.07.19, s/n.
231
Idem, s/n.
129
mulher rebelde, que não sabia se colocar no seu devido lugar social. Se na primeira versão do
crime ela é agredida por buscar autonomia, na segunda ela continua na contramão dos
costumes patriarcais por cobrar do homem o que ele não era obrigado a oferecer: fidelidade. E
como não bastasse, ainda foi dito que havia da parte da mulher certa animosidade contra o
denunciado.
232
Como foi dito aqui, os depoimentos prestados no inquérito têm valor
informativo. o que é dito em juízo possui valor jurídico. Assim sendo, a situação de Maria
Francisca realmente se invertera de vítima para acusada uma vez que três das quatro
testemunhas depuseram contra ela. Mesmo assim o promotor Barreto Campelo, embora
ausente nas inquirições, opina, de forma brevíssima, pela pronúncia do denunciado nos
termos da denúncia.
233
Isso significa que o promotor confirmou que, de acordo com o seu
ponto de vista diante do exame dos autos, o denunciado merecia ser punido, como havia
sugerido na denúncia. Geralmente, na pronuncia o promotor apresenta argumentos que
embasem o seu parecer, retomando o histórico do crime, apresentando pontos nos
depoimentos que contenham indícios da criminalidade do denunciado, etc., o que não ocorreu
nesse caso. Pedro M., por sua vez, teve seu prazo de apresentação de defesa por escrito (que
havia requerido no seu interrogatório) expirado.
Na sentença, o juiz João Baptista de Amaral Filho considera apenas os depoimentos
que acusavam Maria Francisca:
A mulher Maria Francisca V., é que se achava armada com uma navalha,
procurando investir contra o sumariado, usando de expressões injuriosas; ao
desarmar a mulher, o denunciado chegou a ser por ela ferido em uma das mãos;
Maria Francisca V. foi vítima de si mesma no momento em que tentou golpear a
navalha o seu ex-amante.
234
A única declaração testemunhal que amparava Maria Francisca foi desqualificada pelo
juiz. Manuel F. sustentou seu depoimento na delegacia no qual dizia ser Pedro arrogante e
pretensioso. O juiz entendeu que essa declaração significava que a testemunha não gostava do
denunciado, circunstância que por si só macula este espírito de presunção.
235
232
Ibdem, s/n.
233
Idem, s/n.
234
Idem, s/n.
235
Idem, s/n.
130
Nesse caso, podemos constatar que o julgamento do histórico dos agressores era uma
via de mão única e funcionava para beneficiá-los. O histórico pessoal de Pedro M., tendo
apresentado indícios de discórdia entre os colegas de trabalho, além de relatos de violência
doméstica não só contra sua amásia, mas também contra sua sogra, não foi levado em
consideração.
Curiosos foram os argumentos para defender Henrique B. Embora, como foi dito,
não tivesse havido um caso claro de violência, mas apenas uma suspeita, as conseqüências da
construção da imagem de um homem com bons antecedentes e comportamento foram
determinantes no resultado do processo.
A chave para rebater os indícios de criminalidade do denunciado foi construída pelo
promotor e baseava-se no idioma nativo do casal. As quatro últimas testemunhas a depor no
processo (duas das quais requeridas pelo promotor com o deferimento do juiz), afirmaram que
os envolvidos falavam entre si tão somente em italiano, como disse Oswaldo S. Antonieta
Florentina e Maria Guimarães disseram, respectivamente, que nunca ouviu o Sr. Henrique
falar em português com a sua mulher e que nunca ouviu o mesmo comunicar-se com a sua
mulher senão em italiano.
236
A última testemunha disse que ouviu do sumariado que, enquanto Assunta M. foi
atingida pelo fogo e começou a correr pela casa, sem saber que ela pegava fogo, o mesmo
gritou tu sei malta”, que significa, ainda segundo a testemunha, tu estás louca”. É a partir
dessa informação que a defesa sugere que houve uma confusão entre a expressão “tu sei
malta” e “eu te mato”. Argumento esse corroborado pela promotoria, que considera a
explicação razoável, que em falta de provas em contrário deve ser aceita.
237
A defesa final ainda ressalta que as “vozes alteradas” escutadas pelos vizinhos devem-
se tão somente ao fato do casal ser italiano e que, como tais, costumavam sempre conversar
em voz alta, o que, aliás é muito comum entre os seus patrícios. Então, por que os vizinhos
não escutaram tal falatório anteriormente, que o casal morava ali uma semana? Não se
descuidando em deixar margem para possíveis lacunas na defesa, o advogado José Manuel do
Rego Barros disse que a conversa em voz alta foi escutada naquele dia por ser o primeiro
domingo que o casal passava em casa, e como sendo o domingo dia de descanso, o
denunciado não tinha afazeres, permanecendo em casa. Para o advogado, os testemunhos que
236
Idem, s/n.
237
Ibdem, s/n.
131
levantaram suspeita contra seu cliente não foram dadas de acordo com a verdade e sim saídas
de cérebros levados pelo romantismo.
238
Antes da sentença, é importante ressaltar que a promotoria não isenta Henrique B. da
possibilidade de ser responsável pela morte de sua esposa, uma vez que a casualidade do
delito não é manifesta, se bem que não haja fatos, indícios com os quais se possam adquirir a
certeza da responsabilidade do denunciado.
239
Dessa forma, o promotor pede a impronuncia
do denunciado baseado no princípio “in dubio pro reu”.
Outro fato que nos chamou atenção no parecer do promotor foi a sua visão sobre o fato
do casal viver ou não em harmonia. Para ele, esse particular pouco interessa, tendo um valor
todo relativo.
240
Com essa afirmação, o promotor vai de encontro às noções de necessidade
social e perigo social, comentadas nesse trabalho, em que o histórico dos acusados era uma
peça essencial para a sua defesa ou acusação. Em todo caso, o promotor afirmou que a
harmonia em que viva o casal não importava no estágio final do processo, quando a situação
do denunciado era evidentemente confortável. A posição do promotor nos chamou atenção
também pelo fato dele mesmo ter feito as argüições acerca da harmonia do casal no
depoimento das testemunhas em juízo.
Dentre as diversas considerações do juiz na sentença para impronunciar a denúncia,
estão os fatos de não haver testemunhas oculares no momento do ocorrido e a declaração da
própria Assunta M., que não depôs nem no inquérito, mas foi ouvida por cinco das onze
testemunhas. Isso, para o juiz, passou a ser o elemento mais valioso à elucidação do caso.
Curiosa é a justificativa do juiz para desconsiderar o testemunho de que houve discussão antes
e durante o ocorrido. O juiz acata a idéia de que houve logicamente um equívoco na
percepção da testemunha em relação às expressões “sei malta” e “eu te mato”. Assim também
a expressão
“cala a boca” se explica por uma ilusão auditiva, desde que a testemunha estava
francamente sugestionada pela idéia de que se estava passando uma grande luta
entre o réu e a vítima, mesmo porque não é admissível que quem quer que seja se
pronuncie em idioma estrangeiro, em momento aflitivo, para exprimir os seus
sentimentos.
241
238
Idem, s/n.
239
Idem, s/n.
240
Idem, s/n.
241
Idem, s/n.
132
Considerações finais
Estudando os processos selecionados nesse capítulo, percebemos que na prática
jurídica as desigualdades de gênero eram corroboradas tanto pelos valores sociais
apresentados nos depoimentos das testemunhas, como pelos valores sociais difundidos e
defendidos pelos advogados. Até aí, nada muito diferente do que encontramos em outros
estudos sobre o tema. As peculiaridades das fontes aqui estudadas se mostram na diferença
das estratégias de defesa dos agressores – ou seja, nas estratégias de manutenção da ordem.
Nesse sentido, uma das coisas que mais nos chamou atenção foi que o recurso da
perda de inteligência no ato de cometer o crime, garantido pela lei, não foi utilizado pelos
advogados, embora elementos oferecidos pelas testemunhas pudessem ser explorados para
essa finalidade. Por exemplo, o reforço constante e regular da boa conduta dos acusados e a
harmonia atribuída à vida conjugal anterior ao crime de alguns casais poderiam ser utilizados
para construir a idéia de que o ato criminoso tivera sido fruto de uma “explosão súbita”, na
expressão de Boris Fausto. A observação se torna mais relevante na medida em que esse
recurso foi largamente utilizado nas fontes de toda a bibliografia consultada que aborda o
tema. Dado o pequeno universo de processos pesquisados aqui, não podemos afirmar que os
advogados recifenses não estavam “sintonizados” com as discussões jurídicas da época, que
tanto debatia sobre a legitimidade desse recurso. Ao invés disso, é mais razoável considerar
que em suas práticas jurídicas os advogados recifenses optavam por um recurso diferenciado,
mas fundado numa mesma premissa. Não haveria a necessidade de se recorrer ao dispositivo
da perda de juízo e inteligência se a exploração do bom comportamento e do cumprimento das
normas que previam o papel masculino na vida em sociedade garantia bons retornos em
termos de absolvição ou obtenção de penas leves, pois atribuía aos acusados a idéia de que
eles não representavam perigo.
Outra ausência observada nas fontes foi a do vocábulo “honra”, também muito
utilizado nas fontes que embasam a bibliografia consultada a respeito. Mais estranho é
perceber a ausência da exploração da palavra em um momento em que muitas discussões
jurídicas se davam em torno dela. Além disso, todos os casos envolveram o conceito, seja em
um homicídio após uma traição, seja numa agressão para reparar a má fama atribuída a
boatos. Tanto nesse caso da ausência do termo como na diferenciação estratégica dos
advogados citados no parágrafo anterior, vemos que, mesmo de forma diversa da literatura
133
consultada, o princípio lógico-conceitual era o mesmo. Se os atributos da honra estavam
presentes mesmo sem ela a “honra” ser mencionada, da mesma forma não foi preciso que
o de privação dos sentidos viesse à tona para que ela – novamente a honra – fosse defendida.
Em compensação à ausência do recurso da privação de sentidos e da exploração da
honra, a ênfase no bom comportamento dos agressores foi levada em consideração em todos
os casos. E com resultados positivos, pois teve papel importante em algumas absolvições.
Mesmo nos casos de condenação, a boa conduta serviu como atenuante às penas sugeridas
pela acusação.
Além de todas as estratégias vistas tanto na literatura consultada como nas próprias
fontes, percebemos que uma forma conveniente e cômoda de defender os criminosos era
através dos depoimentos das testemunhas em juízo. Vários foram os casos em que os
depoimentos das mesmas pessoas foram completamente invertidos do inquérito para a sala de
audiências. Seria uma peculiaridade local? Infelizmente isso está fora do nosso alcance, dado
o universo das fontes pesquisadas nesse trabalho. O que dificulta ainda mais a apuração dessa
hipótese (se é que é possível estudá-la) é o fato de haver nesses casos, possivelmente, acordos
entre testemunhas e defesa ou testemunhas e acusado. Outro obstáculo é o fato da acusação
nada poder fazer de objetivo contra essa prática, dado que legalmente os depoimentos do
inquérito são tidos como sem valor algum.
Seja por qual motivo ocorresse, é bem provável que a mudança de versão nos
depoimentos fosse fruto da pressão exercida sobre os depoentes. Pressão essa que segundo
Carlo Ginzburg é própria de processos judiciais.
242
Todavia, ressaltamos a conveniência (ou
conivência) desse artifício uma vez que, em nome desses depoimentos, até os exames
médicos, provas objetivas de agressões ou homicídios cujo caráter científico era bastante
evocado, eram omitidos nas sentenças.
243
A principal conclusão a que chegamos nesse capítulo é a de que a defesa da
manutenção de práticas sociais estabelecidas e o questionamento a essas práticas viviam em
uma relação de retroalimentação. Nos vários tópicos que compõem esse texto, vimos que os
jogos de defesa e questionamento da ordem social dependiam uma da outra. Um se torna mais
242
GINZBURG, Carlo. Op. cit.
243
Uma hipótese a ser levantada, que pode ser tema de um estudo específico, é se o campo jurídico estava
aceitando ou não a “invasão” de técnicos de outros campos, como os médicos. Em nossos casos, os pareceres
médicos não foram levados em consideração, pelo menos a ponto de ser determinante na condenação de algum
agressor, embora provassem que as agressões existiram.
134
manifesto se o outro se constitui em uma ameaça. Não seria justo enxergar apenas a
permanência de práticas patriarcais e deixar de enfatizar a coragem e a postura das mulheres
em romper com isso. Da mesma forma, essa coragem não seria devidamente valorizada se não
observássemos o esforço de alguns setores que muitas vezes chegava até o nível
institucional – em combater o que se considerava desviante.
Assim ocorreu com a separação e a procura de trabalho por parte das mulheres, cuja
intenção não era ferir a honra de seus maridos e amásios, como pensavam os homens, mas
justamente se libertar de um modelo social que as culpavam e vitimizavam por qualquer
motivo. O campo jurídico aqui entra na defesa dos costumes e contra suas renovações. Mas
esse campo não se pronuncia abertamente. Só se manifesta quando provocado, e mesmo assim
de forma muito sutil. Sua atuação se manifesta na cobertura parcial uma vez que, como
vimos no capítulo 2, há um grau razoável de condenações – àqueles homens que, movidos por
práticas tradicionais/patriarcais, reagiam contra tais mudanças de comportamento. Embora,
mesmo de forma discreta, o campo judiciário não defendesse uma renovação comportamental,
mulheres como Quitéria Maria, Maria Alice e Maria Francisca nos mostraram que uma parte
da sociedade já havia mudado. Hoje vemos que elas tinham razão...
135
CONCLUSÃO
Tudo o que vimos nessa pesquisa desde os debates jurídicos que influenciaram a
legislação, passando pela visão panorâmica e generalizante dos crimes até o estudo de casos
isolados nos mostra que mesmo uma cidade anunciada aos quatro ventos, principalmente
pela imprensa, como moderna, não estava livre de valores e sentimentos tradicionais que
insistiam em aflorar e se manifestar. Os crimes passionais se constituem em um ponto
estratégico para se observar a tensão entre o tradicional e o moderno.
Embora a bibliografia consultada e tantas outras pesquisas tenham mostrado que a
violência de gênero corroborada pela defesa da honra ainda é uma prática, várias autoras
demonstraram uma certa estranheza ao identificar isso em um tecido urbano,laico,
industrial.
244
Parece não haver uma cadeia de coerência entre uma sociedade
tecnologicamente modernizada e as práticas comportamentais dessa mesma sociedade,
sobretudo quando se trata de relações de gênero. No recife da década de vinte, a modernidade
sempre se mostrava mais concreta quando associada ao aspecto do progresso tecnológico. No
campo do comportamento as mudanças sofriam muito mais resistência. Como exemplo, a
violência masculina em prol da submissão feminina sempre ocorria quando as mulheres
tentavam assumir comportamentos indicados como modernos, como a procura de trabalho ou
a autonomia da decisão da separação. Essa violência é uma evidência de que elementos
estruturais das relações patriarcais continuavam particularmente ativados e que era possível
abraçar da modernidade só o que fosse conveniente.
Mesmo que os números de absolvições e condenações dos processos pesquisados
tenham se mostrado equilibrados contrariando os números da bibliografia consultada –, as
justificativas dos advogados e das testemunhas para apresentarem suas partes como honradas
mostra o peso que a honra – um valor tradicional – ainda tinha.
Nesse sentido, mais do que se sobreporem, os tempos e as idéias se interagem e se
confundem. A modernidade não foi avassaladora nem pretendia aniquilar a tradição. Ela
muitas vezes corroborou valores tradicionais. A medicina social e a antropologia criminal,
na época saudadas como modernas, acentuaram as desigualdades de gênero com o discurso
científico de que o homem é naturalmente inclinado à traição, enquanto a mulher não. No
244
A citação é de GALARZA, Natalia Catalina León. Honor y violencia conyugal: rupturas, desplazamientos y
continuidade. In: CORRÊA, Mariza e SOUZA. Èrika Renata de (orgs.). Vida em Família: uma perspectiva
comparativa sobre os crimes de honra. Coleção Encontros. São Paulo, UNICAMP, 2006, p. 215.
136
caso da disputa de espaço segundo o gênero, a tradição e a modernidade deixavam suas
oposições de lado e se uniam para manter uma ordem social há muito estabelecida. E isso não
cessou.
Como exemplo da atualidade da questão, essa junção entre o tradicional e o moderno
foi bem captada no documento de resultou da VI Conferência Mundial sobre a Mulher,
realizada em Pequim no ano de 1995. Na Plataforma de Ação 224 ficou estabelecido que é
preciso proibir práticas habituais, tradicionais ou modernas
245
que violem os direitos da
mulher. A associação entre um crime passional e a defesa da honra como justificativa dos
crimes ainda é uma realidade nos tribunais. O Brasil hoje ainda é
um dos países da região latino-americana com o mais tradicional, largo e profundo
histórico de decisões jurisprudenciais que acolheram – e muitas vezes ainda acolhe –
a tese da legítima defesa da honra em crimes de homicídio e agressões praticados
contra mulheres por seus companheiros e ex-companheiros
246
(grifo nosso).
E a que se deve isso? A naturalização do gênero não seria nada mais do que um
discurso cínico. A questão é estritamente cultural. E se é cultural pode ser transformado,
coibido, no caso. Isso não é tarefa fácil, não dúvidas de que os valores introjetados pelas
relações culturais deixam sinais, se incorporam ao que Bourdieu chama de habitus. Pudemos
ver isso quando réus e vítimas eram apresentados por advogados, testemunhas e por eles
mesmos como portadores de hábitos e costumes que eles provavelmente não partilhavam.
Como afirma Natalia Galarza, a honra enquanto produto cultural está na nossa “configuração
emotiva”.
247
Mas isso não deve servir de desculpa para que nada seja feito. Repetimos, a
cultura pode e deve ser transformada.
248
As mulheres envolvidas em casos de crimes passionais nesse estudo são exemplos
louváveis das possibilidades de transformação. Elas procuraram não só transformar suas
vidas, mas alterar uma cultura que as desfavorecia. Mesmo timas de agressões ou
homicídios, as motivações dos crimes nos mostraram que eles ocorreram porque as
245
PIMENTEL, Sílvia, PANDJIARJIAN, Valéria e BELLOQUE, Juliana. Legítima defesa da honra – ilegítima
impunidade de assassinos: um estudo crítico da legislação e jurisprudência da América Latina. In: CORRÊA,
Mariza e SOUZA. Èrika Renata de (orgs.). Vida em Família: uma perspectiva comparativa sobre os crimes de
honra. Coleção Encontros. São Paulo, UNICAMP, 2006, p. 93.
246
Idem, p. 86.
247
GALARZA, Natalia Catalina León. Op. Cit, p. 216.
248
Por mais de uma vez as autoridades do estado de Pernambuco atribuíram a ineficácia das políticas públicas no
combate à violência de gênero à questão cultural, dando a entender que não seria possível promover uma
mudança dessa prática.
137
mulheres não aceitaram viver submissas, seja financeiramente (nos casos em que foram
agredidas por insistirem em trabalhar fora), seja moralmente (nos casos de se separarem por
estarem sendo traídas ou por não admitirem maus tratos). Embora anônimas, a parcela de
contribuição dessas e de tantas outras mulheres em diferentes épocas e lugares para as
conquistas femininas não pode ser suprimida da história. Como afirma Maria Filomena
Gregori refutando uma vertente da literatura feminista que insiste em vitimizar a mulher, a
mulher não apenas sente, mas age.
No seu texto, Natalia Galarza afirmou que há mais interstícios do arcaico a nossa volta
do que podemos imaginar. A permanência da prática de agressão às mulheres e a proteção aos
criminosos é um exemplo disso. Luiza Nagib Eluf afirmou que esse tipo de violência
cessará quando o patriarcalismo estiver enterrado.
249
Não acreditamos nisso. O patriarcado é
mutante, se resignifica a cada novo contexto social. Muito mais eficaz que nos preocuparmos
com a morte do conceito é nos concentrarmos em identificar e combater suas práticas.
Lutamos para que o combate a essas práticas saia do paliativo e passe para o campo
preventivo. sim, não será preciso que as mulheres apanhem ou morram para que
lembremos de combater as práticas patriarcais.
249
ELUF, Luiza Nagib. A paixão no banco dos réus. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 171.
138
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARQUIVOS CONSULTADOS
Arquivo Público Jordão Emereciano
Biblioteca da Faculdade de Direito da UFPE
Biblioteca Central da UNICAP
FUNDAJ
Memorial de Justiça de Pernambuco
FONTES MANUSCRITAS
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Código de referência: BR PE PJ STJ 1CCR PROCESSO APELAÇÃO 18940
2. Ação criminal. 1923. R. Pedro Pastor
Código de referência: BR PE PJ REC JM2VCR PROCESSO AÇÃO CRIMINAL 1929.05.29
3. Ação criminal. 1923. R. Pedro Cavalcanti
Código de referência: BR PE PJ REC JM2VCR PROCESSO AÇÃO CRIMINAL 1923.07.19
4. Ação criminal. 1923. R. Henrique Bellasalma
Código de referência: BR PE PJ PROCESSO AÇÃO CRIMINAL 1923.11.26
5. Autuamento de petição. 1926. R. Maria dos Anjos do Nascimento
Código de referência: BR PE PJ STJ 1C PROCESSO AUTUAMENTO PET 1926.08.05
6. Ação Criminal. 1927. R. Bráulio Muniz Falcão
Código de referência: BR PE PJ 1VCR PROCESSO AÇÃO CRIMINAL 1927.06.04
7. Ação Criminal. 1926. R. Antônio Pedro de Lima
Código de referência: BR PE PJ JM1DCR PROCESSO AÇÃO CRIMINAL 1926.05.12
8. Ação Criminal. 1926. R. Samuel da Silva Santiago
Código de referência: BR PE PJ JM1DCR PROCESSO AÇÃO CRIMINAL 1926.11.16
9. Apelação. Apelada: Bemvinda G. da Conceição
Código de referência: BR PE PJ STJ 1CCR PROCESSO APELAÇÃO 16812
10. Inquérito Policial. 1929. R. Camilo Correa da Silva
Código de referência: BR PE PJ JM4VCR INQUÉRITO POLICIAL 771
11. Habeas Corpus. Impetrante: José N. da Costa
Código de referência: BR PE PJ ITA PROCESSO HABEAS CORPUS 14078
12. Habeas Corpus. Recorrido: Josepha Calisto da Silva
Código de referência: BR PE PJ STJ 1CCR PROCESSO HABEAS CORPUS 15681
139
13. Habeas Corpus. Impetrante: Pedro Pastor
Código de referência: BR PE PJ MJ STJ PROCESSO HABEAS CORPUS 13.798-1923
14. Ação Criminal. R. Reitor de Castro
Código de referência: BR PE PJ MJ REC JM3VCR AÇÃO CRIMINAL 1923.07.20
15. Apelação. Apelada: Maria Alice Alves
Código de referência: BR PE PJ MJ STJ PROCESSO APELAÇÃO CRIME 15.170-1925
16. Ação Criminal. R. João Domingos da Costa
Código de referência: BR PE PJ MJ REC JM2VCR AÇÃO CRIMINAL 1924.11.04
17. Ação Criminal. R. Fernando Pires Cavalcante
Código de referência: BR PE PJ MJ REC JM2VCR AÇÃO CRIMINAL 1924.22.12
18. Ação Criminal. R. Adalgisa Telles de Menezes
Código de referência: BR PE PJ MJ REC JM2VCR 1926.06.04
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