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o fazer uma análise do trabalho do etnólogo, Clifford Geertz diz que a apreensão
da cultura de um dado grupo se dá, principalmente, pela observação de sua vida
cotidiana – ou, nas palavras do próprio Geertz, do fluxo de comportamento.
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Para
isso, é interessante que o pesquisador não se restrinja apenas aos rituais, sejam festas ou
outros tipos de cerimônias, mas se aproxime de ações ordinárias. Nesse sentido, consideramos
que as funções do etnólogo e do historiador se aproximam. Para uma pesquisa histórica,
também é fundamental a observação de ações espontâneas que não estejam diretamente
relacionadas a algum rito. Mas como fazer para “apreender” as relações cotidianas em fontes
que são, em si mesmas, o resultado ou o registro de um ritual? Não há nada em um processo
judicial que não envolva um procedimento normativo.
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Tudo é rigorosamente observado e
controlado, o que não nos leva a crer em nenhuma espontaneidade por parte dos
envolvidos.
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Uma possibilidade de saída para a tal apreensão das relações de um grupo
nesse tipo de fonte é a aproximação e comparação de informações que sejam recorrentes em
todos os processos.
Nosso objetivo nesse capítulo é mapear as características gerais dos crimes que
propomos estudar. Nossa problemática girará em torno da seguinte questão: havia
regularidades relativas à prática deles? Para respondê-la, buscamos nos processos criminais
informações que pudessem nos esclarecer a respeito. Através da análise do que as fontes
registraram, elegemos variáveis segundo as quais pudéssemos enxergar pontos de
aproximação ou divergência entre os casos. Dentre essas variáveis, damos destaque a pontos
que tocam: 1 – os envolvidos nos crimes, suas idades, ocupações e graus de instrução; 2 – o
próprio crime, com informações acerca dos instrumentos utilizados, locais e horários dos fatos
ocorridos, bem como suas motivações; 3 – a justiça e seu funcionamento, com a análise das
incursões no código penal, do número de absolvições, condenações e, nesses casos, os graus
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GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978, p. 27.
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Desenvolvendo a noção de “campo jurídico”, Pierre Bourdieu enfatiza esse controle endógeno da justiça. Para
o autor, a pessoa que busca a justiça para resolver um conflito renuncia resolvê-lo ela própria, na medida em que
delega essa resolução a um profissional. Esses profissionais, que detêm o monopólio do serviço jurídico, tornam
o leigo um mero coadjuvante. O uso da linguagem técnica, o efeito da apriorização (busca pela impessoalidade e
neutralidade), a universalização do discurso e o poder de nomeação são exemplos citados pelo autor do controle
e da restrição desse campo. Cf. BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Coleção Memória e Sociedade. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.
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Tratando do trabalho com processos inquisitoriais – em que podemos fazer muitas aproximações com o
trabalho com processos judiciais – Carlo Ginzburg afirma que as pressões exercidas em um depoimento podem
produzir testemunhos muito ricos, porém, distorcidos. Para que o pesquisador não se perca nessas distorções, o
autor sugere o trabalho com a noção de dialogismo, que implica em captar, por baixo da superfície uniforme do
texto, uma interação sutil de ameaças e temores, de ataques e recuos
. Cf. GINZBURG, Carlo. O Inquisidor
como Antropólogo. In: Revista Brasileira de História, vol. 11, nº 21. São Paulo: ANPUH/Marco Zero, setembro
90/fevereiro 91, p. 12. A noção de dialogismo será mais aprofundada no capítulo 3 dessa dissertação.