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constância moral e identitária ao longo desse percurso. O distanciamento temporal e espacial
que se estabelece, pois o autor estar em liberdade no momento da escrita do livro revela uma
formalização que não contempla a espontaneidade enquanto necessidade emocional de narrar:
“Analisando hoje, percebo quanta estupidez e arbitrariedade cometeram contra mim”, (p.35).
Tendo em vista os mecanismos mobilizados e o modelo discursivo adotado para essa
representação, tal objeto revela uma vontade literária, ou seja, é uma construção com fins
“artísticos”.
Por outra parte, não se pode ignorar que o rap encerra um percurso particular enquanto
forma cultural hoje reconhecida por certos traços formais e expressivos recorrentes, como a
sonoridade, a gestualidade, a atitude, o emprego de um discurso com marcas de uma oralidade
coletiva, dentre outros. No dicionário Aurélio, é definido como “tipo de música popular,
urbana, de origem negra, com ritmo marcado e melodia simples, pouco elaborada”. Mércia
Pinto
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, por sua vez, chama a atenção para o aspecto semântico e formal dessa modalidade
cultural: “com seu palavreado provocativo, cheio de gíria e de complexidades semânticas, o
Rap desafia pesquisadores. Inquieta-os sua rítmica, o jogo das rimas na totalidade do texto, o
deslocamento de acentos, as múltiplas síncopes, as violações do metro e suas subdivisões,
bem como sua profusão de estilos e usos”. Em ambas as definições há uma associação direta a
sua origem periférica e urbana, sua peculiaridade rítmica e, sobretudo, sua natureza oral, que
agride os padrões e a “harmonia” ilustrados.
O rap
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, que integra a cultura do hip-hop
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, se caracteriza por uma sonoridade
particular, com letras que narram situações e temas ligados à realidade periférica, como a
violência, as drogas, o preconceito e a desigualdade social, representados e denunciados por
meio da música numa atitude de contestação, agressão e crítica ao sistema sócio-político. É
uma forma de expressão cultural na medida em que reinventa um cotidiano à luz de recursos
linguísticos singulares, valendo-se da fabulação para recriar cenas de uma realidade periférica.
Nesse sentido, essas “narrativas” assumem um forte sentido coletivo e axiológico ao
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PINTO, Mércia. Rap: gênero popular da pós-modernidade. Anais do V Congresso Latinoamericano da
Associação Internacional para o Estudo da Música Popular (2006-2007). Disponível em:
<http://www.hist.puc.cl/iaspm/rio/actasautor3.htm.>. Acesso em 23 jan. 2009. Rio de Janeiro - Unirio
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O termo Rap significa rhythm and poetry (ritmo e poesia). É um estilo musical que surgiu nos bairros negros e
hispânicos nova-iorquinos, de onde se propagou para muitos países. Vinculado desde inícios da década de 1980
aos ambientes da cultura hip hop, integra diversas correntes, como o break dance, o electro, o graffiti urbano ou
o scratch.
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Hip Hop é o movimento cultural que engloba o rap, o break e o grafite, e cuja expressividade se intensificou a
partir dos anos 90. Ligado às camadas sociais subalternas, tornou-se logo conhecido e difundido por sua postura
crítica frente ao sistema social dominante. Sua origem e raízes estão contidas no sul do Bronx em Nova Iorque
(EUA). PINHO, Osmundo de Araújo. “Voz ativa”: rap – notas para leitura de um discurso contra-hegemônico.
Sociedade e Cultura, v. 4, n. 2, jul./dez. 2001, p. 67-92 67.