
tempo rumo à criação de uma ordem política e civilizatória justa, razoável e feliz.
26
Ora,
nada há de semelhante em Platão, que, como frisamos, concebe o movimento histórico
antes como uma eterna e monótona oscilação do que como uma marcha progressiva rumo a
um estado de perfeição pré-estabelecido.
27
26
Como mostrou magistralmente K. Löwith, essa concepção otimista do processo histórico, que permeia toda
a modernidade, tem uma origem religiosa na tradição judaico-cristã e pode ser interpretada como uma
laicização da idéia bíblica do drama da salvação, segundo a qual o tempo dos homens na vida presente possui
um sentido e obedece a um plano divino, na medida em que é guiado pela Providência em direção a uma meta
definida: a consumação do saeculum, momento escatológico privilegiado, quando a separação definitiva dos
justos e dos pecadores tornará possível a restauração do Paraíso e o novo advento do reino dos Céus. Na
opinião de Löwith, a principal inovação da modernidade em relação a essa tradição foi despojá-la de sua carga
teológica e conferir-lhe uma significação puramente mundana e secularizada: a história tem, sim, um
significado, mas trata-se de um significado telúrico ou imanente, pertencente às fronteiras deste mundo. Ver
K. Löwith, histoire et salut. Les pressuposés theologiques de la philosophie de l’histoire. Traduit de
l’allemand par Marie-Christine Challiol-Gillet, Sylvie Hurstel et Jean-François Kevérgan. Paris: Gallimard,
2002. Como é sabido, os primeiros e mais contundentes sinais de uma tal reviravolta encontram-se no
movimento iluminista do século XVIII, cujo credo fundamental era precisamente a idéia de que a história
humana tinha um sentido e que este consistia essencialmente na realização da felicidade humana na terra,
graças ao triunfo progressivo da ciência, da Razão e da liberdade sobre as trevas do obscurantismo, da tirania
e do fanatismo religioso. Todavia, é lícito considerar que sua mais radical realização especulativa deu-se
apenas com o historicismo hegeliano que, concebendo o Absoluto não mais como substância, mas como
sujeito e identificando o Ser com o Devir – a essência é aquilo em que a coisa enfim se torna (“wesen ist was
gewesen ist”) – pretendeu explicar a história universal como um gigantesco movimento dialético de formação
do Espírito absoluto. A principal conseqüência teórica resultante dessa postura é, evidentemente, a
identificação do real e do racional e a redução da tarefa da filosofia à mera contemplação do processo
histórico – um processo que, para Hegel, encontrava-se, em suas linhas gerais, concluído e que, no plano
político e social, tem seu momento culminante com o aparecimento do Estado moderno, “o deus que caminha
pela história”. Como viu L. Strauss, What is political philosophy? Chicago: Chicago University Press, p. 88, a
postura historicista de Hegel, com sua identificação do real e do racional e sua glorificação do Estado atual
como suprema manifestação da Razão, situa-se em nítida ruptura com o pensamento platônico e com a
filosofia política clássica de um modo geral, para os quais a busca do melhor regime e, portanto, a clivagem
entre o ideal e o real, constituíam o princípio filosófico decisivo que animava a reflexão política: “Hegel’s
demand that political philosophy refrain from construing a state as it ought to be, or from teaching the state
how it should be, and that it try to understand the present and actual state as something essentially rational,
amounts to a rejection of the raison d’être of classical political philosophy”.
27
Cf. F. Châtelet, La naissance de l’histoire..., pp. 176-177. Châtelet observa com razão que, para Platão, o
movimento paradigmático a partir do qual a história humana é pensada é o movimento cósmico ou celeste,
isto é, “celui dont la revolution des astres fournit l’image: le mouvement circulaire. Il ne saurait donc y avoir
progrès au sens absolu”. J.-F. Balaudé, “Le temps dans les Lois (mythe, histoire)” In Revue philosophique 1
(2000) 3-20, acredita, em contrapartida, que o livro III das Leis, embora recorrendo à tradição mítica dos
cataclismos periódicos, nos fornece uma concepção da temporalidade depurada de qualquer contaminação
cosmológica, concepção essa que, dissociando nitidamente a história do mito, concebe o tempo humano não
como um círculo, mas como uma grandeza infinita, linear, desprovida de regularidades e na qual o futuro
aparece como algo relativamente indeterminado ou aberto. A nosso ver, porém, Balaudé, nesse ponto, se
equivoca por completo, pois Platão não dissocia tão claramente, em seu discurso, o mito da história, e afirma
de forma inequívoca, ao contrário, a idéia de uma certa repetição das formas políticas (ver, por exemplo, o uso
dos advérbios pollavkiς e au^), sugerindo, portanto, a concepção de que as transformações sofridas pelos regimes
obedecem a uma certa regularidade cíclica. Ora, se seguimos essa hipótese de leitura, a idéia da infinidade
(a*peiriva) do tempo contida no início do livro III deve ser interpretada, por conseguinte, não do ponto de vista
da extensão ou da quantidade, mas do ponto de vista da duração: o tempo, em seu eterno fluir, encontra-se,