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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
(De) formação em S. Bernardo: a reificação de
Paulo Honório e seu aprendizado no percurso da
vantagem
Israel de França Monteiro
João Pessoa, PB
Fevereiro / 2009
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2
Israel de França Monteiro
(De) formação em S. Bernardo: a reificação de
Paulo Honório e seu aprendizado no percurso da
vantagem
Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba
como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre
em Letras. Área de Concentração: Literatura e Cultura.
Linha de Pesquisa: Estudos Comparados.
Orientador: Prof. Dr. Arturo Gouveia de Araújo
João Pessoa, PB
Fevereiro/2009
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3
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________________
Prof. Dr. Arturo Gouveia de Araújo
Orientador
UFPB
__________________________________________________
Prof. Dr. Marcos Falchero Falleiros
Examinador
UFRN
___________________________________________________
Prof. Dr. Rinaldo Nunes Fernandes
Examinador
UFPB
___________________________________________________
Prof. Dr. Milton Marques Junior
Suplente
UFPB
João Pessoa, Fevereiro de 2009.
4
RESUMO
Graciliano Ramos publica em 1934 o romance S. Bernardo. Esta narrativa é
determinada pela redução, dos seres e coisas, à visão do protagonista que seleciona um
mundo áspero, de relações diretas e decisivas, atos bruscos e hirtos sentimentos. Ao
narrar sua trajetória de vida, o eu - protagonista descreve suas ações. Destas ações
podemos inferir uma correspondência com o conceito de reificação, na medida em que o
personagem guia suas ações a fim de estabelecer relações objetivas, destinadas a lhe
prover alguma vantagem, ou seja, a trajetória do protagonista é delimitada e
intermediada por contatos que se desenrolam estritamente no âmbito de relações
objetivadas, aproximando-se do conceito de reificação. Ao considerarmos para esta
dissertação o conceito de reificação enquanto categoria analítica, temos em vista
aprofundar o debate acerca da reificação de Paulo Honório. Em alguns ensaios
desenvolvidos, já bem se demonstrou este aspecto como algo inerente ao protagonista e
um componente central para que se compreenda a singularidade desta obra literária. No
intuito de avançar nas discussões concernentes ao estudo da reificação nesta narrativa, o
presente trabalho de dissertação, partindo do pressuposto de que as ações do
protagonista são conscientes e são decorrentes de uma formação que as antecedem,
destina-se a identificar e estudar o processo formativo do protagonista; para tanto,
recorre às discussões teóricas acerca do romance de formação (Bildungsroman). Como
resultado, observa-se que, em seu percurso da vantagem, Paulo Honório recorre a uma
formação especializada (Ausbildung), em consonância com sua personalidade reificada,
pois a este interessa especializar-se para o acúmulo de capital. Todavia, a viabilidade
desta formação é questionada diante do suicídio de Madalena, motivo que leva o
protagonista a dedicar-se à redação do livro.
Palavras-chaves: S.Bernardo, reificação, Paulo Honório, romance de formação
(Bildungsroman), formação especializada (Ausbildung), Graciliano Ramos.
5
ABSTRACT
Graciliano Ramos publishes in 1934 the novel S. Bernardo. This narrative is
determined by the reduction, of beings and things, to the protagonist’s vision, which
selects a harsh world, made up of direct and decisive relationships, brusque acts and
stiff feelings. By narrating the trajectory of his life, the “I” as protagonist describes his
actions. From these actions we can infer a correspondence with the concept of
reification, as the protagonist guides his actions aiming at establishing objective
relationships, destined to provide him with some advantage. The protagonist’s
trajectory, delimited and intermediated by contacts which are strictly developed in the
field of objectified relationships, comes close to the concept of reification. When
considering, for this dissertation, the concept of reification as an analytical category, we
have in view the intention of deepening the discussion about Paulo Honório’s
reification. In some essays, it has been well demonstrated that this aspect is something
inherent to the protagonist and a central component for the understanding of the
singularity of this work. Aiming at advancing into the discussions concerning the study
of reification in this narrative, this present dissertation, starting from the presupposition
in which the protagonist’s actions are conscious and derived from a previous formation,
devotes to identifying and studying the protagonist’s formative process; therefore, it
relies on theoretical discussions about the novel of formation (Bildungsroman). As a
result, we notice that, in his advantage journey, Paulo Honório leans on a specialized
formation (Ausbildung), in agreement with his reificated personality, as he is interested
in getting specialized in capital accumulation. However, the viability of this formation
is questioned before Madalena’s suicide, the reason which motivates the protagonist to
devote himself to writing the book.
Key words: S. Bernardo, reification, Paulo Honório, novel of formation
(Bildungsroman), specialized formation (Ausbildung), Graciliano Ramos.
6
A Maria, minha mãe
A Danielle
7
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais, pela graça da vida.
A Danielle que, no percurso da vantagem, é o bem mais precioso que eu
obtive.
A Arturo, pelos inspirados Anos de Aprendizagem.
Aos irmãos distantes, pela vaga lembrança que o tempo deixou.
Aos irmãos próximos, pelos exemplos não ditos.
Ao tempo em que Ivan, Ismael e eu éramos três mosqueteiros.
À tia Rosane, pelas preces.
A Michelle Dayse, pelos momentos descontraídos.
A solidão, inestimável companheira de redação.
A CAPES, pelo indispensável suporte financeiro.
8
“De que me serve fabricar um bom ferro,
se meu próprio interior está cheio de
escórias? E de que serve também colocar
em ordem uma propriedade rural, se
comigo mesmo me desavim?”
(Wilhelm Meister)
“Quanto às vantagens restantes – casas,
terras, móveis, semoventes, considerações
de políticos, etc. – é preciso convir em que
tudo está fora de mim.”
(Paulo Honório)
9
SUMÁRIO
Introdução
10
Capítulo I: S. Bernardo: contextualização................................................................
15
1.1 Momento histórico brasileiro.........................................................................
15
1.2 Pré-modernismo brasileiro.............................................................................
22
1.3 Modernismo brasileiro...................................................................................
26
Capítulo II: Fundamentos teóricos para estudos sobre a reificação e
Bildungsroman em uma narrativa............................................................
42
2.1 Conceito de reificação....................................................................................
42
2.2 A questão da reificação na tradição crítica do romance S. Bernardo...........
49
2.3 Bildungsroman: origem e situação histórica .................................................
54
2.4 Tipologia de Lukács......................................................................................
59
2.5 Tipologia de Bakhtin.....................................................................................
61
2.6 Bildungsroman: forma romanesca ou gênero?..............................................
68
Capítulo III: (De) formação em S. Bernardo: a reificação de Paulo Honório e seu
aprendizado no percurso da vantagem..................................................
75
3.1 Um burguês garantindo a S. Bernardo bom sucesso...................................... 75
3.2 A (de) formação de Paulo Honório................................................................
85
Considerações finais............................................................................................
120
Referências bibliográficas....................................................................................
122
10
INTRODUÇÃO
Nos primeiros decênios do século XX, a História registra mudanças
significativas nos âmbitos político, econômico e cultural. No Brasil, as transformações
tornam-se evidentes com o advento da revolução de 30. Neste período, vemos grupos
políticos e ideológicos se arregimentarem. Simultaneamente, no campo das artes,
surgem escritores representativos da Literatura Brasileira. Dentre os grandes escritores
vemos figurar o nome de Graciliano Ramos. Tributário de uma liberdade estética já
preconizada entre os modernistas de São Paulo, as obras de Ramos, sem relegar a
preocupação com o texto, compreendem e incorporam no plano da fatura o contexto
deste período de transformações que o Brasil vivencia.
Publicado em 1934, o romance S. Bernardo é representativo da modernização
conservadora característica à formação brasileira e tão corriqueira entre as classes
dominantes que aqui existem, a exemplo da assimilação do modo de produção
capitalista existente na propriedade S. Bernardo e a adoção de uma conduta social
extremamente condizente com os preceitos da classe patriarcal. Nota-se ainda neste
romance que o eu - protagonista considera os contatos que estabelece estritamente no
âmbito das relações coisificadas. Tais relações são permeadas por valores quantitativos
em todas as suas possibilidades. Ao admitir esta postura para si, o protagonista Paulo
Honório reduz tudo e todos à quantificação incondicional. A trajetória do protagonista
está correlacionada à obtenção de vantagens. No entanto, neste percurso da vantagem,
Paulo Honório assimila uma postura patriarcal extremamente conveniente para seus
objetivos sem, contudo, negar seu caráter capitalista.
Pode se perceber também que em sua trajetória a reificação constitui-se o fio
condutor de todas as relações, além de ser a característica intrínseca a Paulo Honório e,
conseqüentemente, a barreira que o impede de conhecer um mundo externo ao mundo
quantificado em que vive, o mundo das mercadorias com seus fetiches.
A crítica literária tem estudado com muita pertinência a questão da reificação de
Paulo Honório, ao delimitar as instâncias em que se observa a conduta reificada, como
esta implica no caráter do protagonista e como é uma conduta cíclica na medida em que
é passível de uma esquematização, excetuada a que Paulo Honório estabelece com
Madalena. Neste sentindo, os ensaios de Luis Costa Lima, João Luis Lafetá e Rinaldo
11
Nunes Fernandes procuram consubstanciar uma crítica capaz de evidenciar a
singularidade da narrativa S. Bernardo.
Esta dissertação, no intuito de contribuir para a fortuna crítica de Graciliano
Ramos e, especificamente, para os estudos que se desenvolvem em torno de S.
Bernardo, no que concerne ao conceito de reificação enquanto categoria analítica, na
medida em que a recorrência deste fato como componente da narrativa e do protagonista
é central, ao considerar o romance de formação (Bildungsroman) e incorporá-lo às
discussões acerca da reificação em S. Bernardo, pretende possibilitar uma leitura mais
rica da obra e um entendimento ainda mais lúcido da mesma, avançando nos estudos da
reificação de Paulo Honório.
Paulo Honório adota uma postura extremamente passível de ser associada ao
conceito de reificação. Ao se observar sua trajetória de vida, percebe-se claramente que
este extrai das relações constituídas toda a espécie de vantagem possível. Esta conduta,
entretanto, não pode ser admitida como algo aleatório, no sentido de que não é guiado
conscientemente; também não se pode desconsiderar os preceitos que norteiam a adoção
de tal postura e que são responsáveis pela ascensão social que Paulo Honório atinge. O
que se pretende é compreender o processo formativo do protagonista ao mesmo tempo
em que se identificam os momentos em que este assimila determinados aprendizados
necessários à obtenção do lucro. Ou seja, ao se acompanhar a trajetória de vida de Paulo
Honório, marcadamente caracterizada por um percurso delineado tendo em vista a
obtenção de vantagens, e compreender os aprendizados absorvidos pelo protagonista,
dentro de uma nova ordem a qual ele se vincula e representa, na medida em que é um
novo homem em formação diante das novas configurações históricas que se esboçam no
Brasil dos anos trinta, bem como identificar as conseqüências de se buscar uma
formação especializada (Ausbildung) destinada ao acúmulo de capital, intenta-se
elucidar os preceitos formativos que estão por trás das ações que debelam o caráter
reificado de Paulo Honório. Para tanto, esta dissertação subdivide-se em três capítulos
assim dispostos.
No primeiro capítulo, procuramos contextualizar a narrativa a partir de uma
perspectiva tanto histórica quanto literária, compreendendo uma relação entre literatura
e sociedade. Ao se considerarem os primeiros decênios do século XX, observamos as
transformações que surgem e como elas são sintomáticas das mudanças que estão
acontecendo em decorrência de uma nova ordem que se configura. As circunstâncias
históricas, diretamente correlacionadas às questões ideológicas, não deixam de intervir
12
na produção cultural. Assim sendo, enquanto se processam diversas mudanças nos
âmbitos político e econômico, ao ponto de em 1930 no Brasil tais transformações
resultarem em uma revolução, através da qual Getúlio Vargas assume a presidência da
República, no campo das artes tem-se o surgimento de novas posturas estéticas em
detrimento de escolas literárias como a Parnasiana, por exemplo. Arregimentada em
torno dos Andrades, um novo grupo surge nos anos vinte e se “denomina” futurista por
esta denominação estar atrelada a qualquer expressão artística que se distancie, em
algum aspecto, dos padrões vigentes na época, por pleitear a liberdade estética e a
estabilização de uma consciência criadora que permeie e viabilize a atualização da
inteligência nacional. Consolidada a experimentação estética, em um segundo momento,
um outro grupo de escritores, os escritores da geração de 30, desfruta dos caminhos
abertos pela geração anterior, podendo discutir questões correlacionadas aos aspectos
ideológicos da expressão artística, por exemplo; o que se observa por conseqüência é
uma grande preocupação com os problemas sócio-culturais que são expostos nas
narrativas através de aspectos socioeconômicos.
No cenário dos anos trinta temos Graciliano Ramos e suas obras, que prezam
tanto pela elaboração estética quanto pelo temário de conteúdo acentuadamente
ideológico. Dentre seus romances, pode se considerar a narrativa S. Bernardo uma obra
muito representativa do período literário por explorar com primazia o clima de tensão
presente nas relações homem/meio natural, homem/meio social, atrelada a uma
linguagem precisa e sintética, onde se tem a construção de períodos curtos, mas de forte
expressividade; por isso, também, que a questão da reificação do protagonista torna-se
tão patente na narrativa. No momento de elaboração e publicação de S. Bernardo, é
comum uma literatura que traz para a reflexão problemas sociais marcantes do momento
em que os romances são escritos. Esta narrativa surge em meio a um contexto em que as
posturas ideológicas encontram-se recrudescidas e os autores acabam por refletir em
suas obras, por exemplo, a realidade nordestina de oligarquias tradicionais e choques
ideológicos, além da situação dos proletários rurais, isto é, os dominados por um rude
esquema de trabalho sob o mando dos grandes proprietários de terra.
A fim de elaborar um quadro que fundamente o estudo do conceito de reificação
enquanto categoria analítica o segundo capítulo destina-se a uma abordagem de estudos
que tratam da questão da reificação e do modo de produção capitalista. A reificação é
um conceito que se encontra implícito no texto de O Capital, de Karl Marx, e sobre o
qual Georg Lukács, em seu livro História e Consciência de Classe, empreendeu análise
13
mais ampla. A reificação é resultante das relações sociais, “no mundo das mercadorias”,
através das quais o homem adquire um olhar quantificador sobre tudo. Assim, ao
coisificar as relações, o homem aniquila qualquer olhar qualitativo, percebendo apenas
as relações de maneira mensurável. Portanto, considerando a recorrência desse fato
como componente central da narrativa e do protagonista, a reificação como categoria
analítica torna-se pertinente na medida em que possibilita o entendimento e uma leitura
mais rica da obra. Porém, para que haja uma aplicação mais harmoniosa do conceito de
reificação enquanto categoria analítica à realidade brasileira, em especial à mimetizada
no corpus em análise, recorremos aos estudos empreendidos por Jacob Gorender em seu
livro O escravismo colonial acerca da coexistência de modos de produção e da sujeição
em comum a que se submete o trabalhador, seja ele servo, escravo, ou assalariado.
Estabelecida esta trajetória, procuramos discutir os ensaios de Costa Lima, Lafetá e
Rinaldo N. Fernandes a fim de situar os estudos sobre a reificação na narrativa, para que
então possamos identificar, de forma contundente, os aspectos ainda não privilegiados
nas discussões existentes na fortuna crítica de Graciliano Ramos, no que concerne à
reificação de Paulo Honório em especial. Ao se discutir este aspecto da obra,
implicitamente percebe-se que os estudos ainda não contemplaram algumas
possibilidades críticas decorrentes dos debates acerca da reificação de Paulo Honório,
em especial as questões formativas que estão por trás dos atos que tornam tão patente a
conduta reificada do protagonista. Constatamos que há uma possibilidade de discussão
profícua acerca da formação de Paulo Honório – uma formação especializada
(Ausbildung), destinada ao acúmulo de capital –, mas que ainda é muito tangencial,
principalmente se correlacionarmos às questões formativas que precedem as ações
reificadas de Paulo Honório e que são latentes em sua trajetória. Assim, ao se
considerar o conceito de formação na análise do romance S. Bernardo, o intuito é o de
averiguarmos como se constrói esse caráter reificado do protagonista, tornando-o
compreensível para além das ações que o revelam. Tal inserção não nos parece
aleatória, como procuramos evidenciar a partir dos muitos elementos que a narrativa nos
fornece para a devida associação ao conceito de formação. Para tanto, estabelecemos
também a correlação com os estudos elaborados por Lukács e Bakhtin, mostrando que
tal teoria, contrastada com o corpus em análise, além de propiciar o entendimento deste,
expõe, de forma patente, os pontos de intersecção entre os preceitos estabelecidos
dentro das discussões acerca das delimitações de que obra é ou não um romance de
14
formação, aborda ou não a questão da formação do protagonista enquanto motivo
central.
O capítulo terceiro destina-se à constatação dos estudos desenvolvidos nos
capítulos anteriores a partir da análise do corpus, sem, contudo, enrijecer o estudo da
narrativa em função de um quadro teórico conceitual estabelecido ou de uma análise
que se destine apenas a constatar aspectos do contexto que permeiam o texto. O estudo
desenvolvido no terceiro capítulo tem como finalidade identificar a singularidade da
obra literária. Este capítulo pretende delimitar a formação do protagonista a partir de
elementos da narrativa que, ilustrados por citações do romance S. Bernardo, destinam-
se a traçar e evidenciar sua formação reificada, uma formação utilitarista e especializada
(Ausbildung).
A questão da formação é central na narrativa, pois ao que nos parece há várias
instâncias de aprendizagem. O momento de maior aprendizagem (ou não) para Paulo
Honório será o reconhecimento de sua formação reificada como algo inútil e vazio de
sentido para uma existência plena, ao se deparar com o fato de Madalena haver se
suicidado, ato mais significativo no enredo no sentido de questionar a conduta
proveniente da formação reificada que Paulo Honório assume.
O presente trabalho, assim configurado, pretende contribuir para as discussões
acadêmicas, não apenas no âmbito das questões levantadas acerca do romance S.
Bernardo, mas também para uma discussão mais ampla sobre a reificação, ao se
delimitar um quadro teórico conceitual que viabiliza o estudo da referida categoria
analítica em narrativas outras. Ademais, pretendemos aprofundar as discussões
concernentes à assimilação de uma postura reificada para além dos atos que o revelam,
ou seja, fomentar o debate acerca de uma formação reificada.
15
I
S. BERNARDO: CONTEXTUALIZAÇÃO
1. Momento histórico brasileiro
O escritor alagoano Graciliano Ramos publicou em 1934 o romance S.
Bernardo
1
. Enquadrado pela historiografia literária como uma obra de cunho político e
social e pertencente ao grupo de obras produzidas pelos romancistas do Nordeste, S.
Bernardo logo adquiriu uma projeção e repercussão nos meios acadêmicos. Seu enredo
trata da ascensão de um burguês, Paulo Honório. Nessa sua trajetória, tomamos
conhecimento de como fora sua história de vida desde a infância até a idade adulta. Em
linhas gerais, trata-se de um narrador-personagem, que é, quando criança, guia de cego
e vendedor dos doces que a velha Margarida produz para o sustento de ambos. Já
crescido, gasta muitas horas de trabalho na enxada como trabalhador alugado, até o dia
em que se mete em uma confusão numa taverna e acaba esfaqueando um homem por
causa de uma mulata. Em decorrência deste ato, passa três anos preso, ocasião em que
aprende a ler. Liberto, trabalha como vendedor pelo sertão. Passado algum tempo,
retorna à terra natal, Viçosa, onde pratica agiotagem e almeja possuir a fazenda S.
Bernardo, o que consegue. Já como dono de S. Bernardo, vai em busca de uma esposa,
sem sentimentos que o motivem, a não ser o de garantir um herdeiro para tudo o que
constrói. Assim, casa-se com Madalena, uma professora com quem passa a conviver em
conflitos. Esta, após muitos sofrimentos, se suicida. O esposo solitário decide-se pela
composição do livro S. Bernardo, meio que busca para compreender o que fora sua vida
e o ato extremado de sua esposa.
É possível entrever o momento histórico em que vive o narrador personagem
Paulo Honório enquanto este relata sua trajetória de vida. Há certo consenso entre a
crítica literária de que o momento histórico a que o romance alude é o da revolução de
1930.
1
RAMOS, Graciliano. S. Bernardo. 82ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2005. Todas as citações da referida
narrativa são provenientes desta edição.
16
A revolução de 1930 é o resultado das contradições políticas e sociais que
afloraram nos primeiros decênios do século XX no Brasil, tornando insustentáveis as
estruturas até então estabelecidas em suas formas arcaicas. Parece-nos relevante
discorrer a respeito desse momento histórico por haver uma relação indissociável
quanto à trajetória de Paulo Honório e o deslindar dos acontecimentos históricos, o que
torna imprescindível para este trabalho a contextualização do romance S. Bernardo.
Os três primeiros decênios do século XX no Brasil são marcados por mudanças
econômicas, políticas e sociais em decorrência das elites que se alternarão no poder,
utilizando-se do Estado para benefícios particulares, ao mesmo tempo em que a
estrutura brasileira conduzida por tais elites é abalada por crises econômicas mundiais e
recrudescências ideológicas. Essas correntes ideológicas – Liberalismo, Fascismo,
Nazismo e Comunismo – constituem corpo claro no decênio de trinta, quando passam a
conflitar-se acirradamente ao ponto de se verem refletidas na literatura brasileira deste
período, marcadamente de cunho político e social. Simultaneamente expõe-se um Brasil
contraditório, esquecido pelos governantes, denunciando o embate entre o velho e o
novo.
O contraste entre o velho e o novo, na extensão territorial do Brasil, bem como o
desenvolvimento desigual entre as diversas regiões do país, confirmando um contexto
de modernismo conservador, na medida em que se moderniza na estrutura econômica,
mas conserva-se nas relações sociais, revelar-se-á no choque existente entre um sistema
econômico na base incompatível com a aparente modernização das idéias que se
processa. Esta aparente modernização é responsável pela impressão de o país estar
inexoravelmente adentrando a modernidade. Assim moderniza-se o Rio de Janeiro que
marginaliza um contingente de miseráveis, a Marinha de Guerra que se rege por
disciplinas do tempo da escravidão e o sistema político que associado a modernas
instituições como o voto universal e a autonomia estadual ainda admite arcaicas
estruturas como a grande propriedade rural e seus interesses particularistas.
É nesse período da história do Brasil que se registra o apogeu e decadência de
uma ordem oligárquica expressa nos fazendeiros de café, setor mais avançado, que
exercem a partir de então o poder diretamente através de uma política que se denominou
café-com-leite. Esta política representa um acordo firmado entre os estados de Minas
Gerais e São Paulo. Tal acordo deve-se ao fato de que, juntos, São Paulo e Minas Gerais
aliavam respectivamente o poder econômico, proveniente do café, ao poder político,
atrelado ao maior número de leitores, com o objetivo de controlar o poder político
17
federal, e, assim, defenderem interesses privados, assegurados em uma sucessão de
políticos dos dois estados que se alternariam no cargo máximo do executivo, a
presidência da república.
A política do café-com-leite provocou certa insatisfação nos demais estados com
suas respectivas oligarquias, já que o poder no nível federal revezou-se entre Minas
Gerais e São Paulo e propiciou o imobilismo gerado pela política dos governadores, por
meio da qual o mesmo grupo oligárquico permanecia indefinidamente no poder,
causando enorme descontentamento junto a outros grupos oligárquicos dos estados.
Conseqüentemente, a ordem oligárquica, que não estava isenta à abalos, viu-se
afrontada por dissidências nas eleições de 1910 e 1920 quando candidataram-se
respectivamente Rui Barbosa e Nilo Peçanha criando um clima de disputa eleitoral ao se
oporem a máquina coronelística manipulada por São Paulo, Minas Gerais e aliados.
Relativamente desgastado o cenário político, a eleição presidencial de 1930
também foi marcada por mais uma disputa eleitoral, desestruturando novamente o
esquema entre São Paulo e Minas Gerais.
O presidente em exercício, Washington Luís, político paulista, havia indicado à
sucessão presidencial o paulista Júlio Prestes contrariando a política do café-com-leite,
firmada com Minas, que via no governador do estado mineiro, Antonio Carlos, o
candidato natural à sucessão. Formou-se então a Aliança Liberal que lançou a
candidatura do governador do estado do Rio Grande do Sul, Getúlio Vargas, a
presidência tendo como vice o candidato João Pessoa, político paraibano, em oposição à
candidatura oficial de Júlio Prestes. A Aliança liberal aglomerou em torno da
candidatura de Vargas setores sociais díspares, quando não antagônicos, como os
tenentes e o partido democrático (PD) fundado em São Paulo em 1926. As eleições
ocorreram no dia 1º de março e resultou em vitória do candidato da situação, Júlio
Prestes. Nas eleições anteriores “os candidatos derrotados tinham sempre acusado de
fraude a contagem de votos, da mesma forma que reclamavam que a força, a ameaça e o
suborno eram usados à boca das urnas”
2
, em especial nas eleições de 1910 e 1922. A
disputa eleitoral de 1930 não havia sido diferente. Passou-se a falar em revolução com o
apelo à luta armada, à que os tenentes, em particular, eram tão sequiosos. O que
desencadeou a revolução foi o assassinato de João Pessoa a 26 de julho de 1930. “Sua
morte não foi atípica entre as sangrentas lutas dos clãs políticos da região nordestina do
2
SKIDMORE, Thomas. Brasil: De Getúlio a Castelo. 3ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975. p. 22.
18
país. Contudo, nesse momento tenso da política nacional, teve um efeito traumático,
porque Washintgton Luís havia apoiado o grupo político ao qual estava ligado o
assassino.”
3
. Em novembro deste mesmo ano, era empossado na presidência, através de
um movimento armado, em caráter provisório, Getúlio Vargas.
A revolução de 30 distinguiu-se em relação às antecedentes lutas pelo poder por
dar fim à estrutura republicana criada na década de 1890 e por ser fruto de um
descontentamento generalizado de pessoas que desejavam implementar novas formas
políticas. Entretanto, os setores sociais – constitucionalistas liberais e tenentes que
representavam forças políticas opostas, mas que havia, mesmo assim, convergido em
torno da figura de Vargas, e incorporado algumas de suas propostas a recente
constituição de 1934 – não consubstanciaram um todo coeso acerca de um reformismo
sócio-econômico, o que se verificaria depois. A política no Brasil, dessa forma, no
começo da década de 1930, marchava para a radicalização.
Os governos do período que antecede a posse de Getúlio Vargas caracterizaram-
se pelo monopólio político exercido por uma oligarquia que atuava em seu próprio
benefício e estruturava-se nos níveis federal, estadual e municipal através de
determinadas alianças. Na esfera federal a política era exercida pelos estados de Minas
Gerais e São Paulo que se alternavam na presidência. Esta política foi possível,
entretanto, devido ao apoio de outros estados, pois em última instância o presidente da
República estava submetido ao poder legislativo. Tal apoio fora consentido na condição
de o poder federal não intervir nos assuntos dos estados. Configurava-se a política dos
governadores em que estavam articulados o poder central e as oligarquias estaduais em
uma troca mútua na medida em que o governo federal permitiria a vitória de grupos que
o apoiassem irrestritamente. Valendo-se de meios ilícitos como fraude eleitoral e até de
uma Comissão Verificadora de Poderes que não diplomava, vetando consequentemente
aqueles que fossem candidatos da oposição, esta política viabilizou a permanência de
oligarquias locais quase sempre representadas por famílias. A fraude eleitoral, devida à
manipulação de votos, ficava a cargo dos coronéis, latifundiários que atuavam em seus
respectivos municípios e áreas de influência. Por serem os detentores do poder
econômico, também desfrutavam de prestígio social e político nas suas localidades. Os
donos de terras exerciam grande influência sobre a população. A população deveria ser
incondicionalmente subserviente. A subserviência da população existia em troca de um
3
Idem., p. 23.
19
assistencialismo prestado pelos coronéis, na inexistência de qualquer serviço público.
Em contrapartida, estes exigiam que se votasse em determinado candidato na época das
eleições. Detentor de um determinado número de votos, os coronéis negociavam suas
urnas com o chefe político local em troca de benefícios, conforme os interesses do
momento.
No romance S. Bernardo, durante a trajetória ascendente do burguês Paulo
Honório, o poder que este adquire e exerce perspassam em um determinado momento
por atitudes correlacionadas às práticas coronelísticas como as que acabamos de expor
quanto à manipulação de votos. Paulo Honório, depois de adquirir a fazenda S.
Bernardo, procura solidificar possíveis apoios que venha a necessitar para as suas
empreitadas destinadas a modernizar sua propriedade, tornando-a mais produtiva. Com
o intuito de obter favores, Paulo Honório, ao ser detentor de um determinado número de
votos, barganha junto a políticos o apoio as suas pretensas empreitadas. Claro está que,
diferentemente de outros fazendeiros, Paulo Honório não procura simplesmente firmar-
se no poder através de conchavos políticos, mas cada vez mais viabilizar o acúmulo de
capital, obtendo o máximo de vantagens nas relações pessoais. Quando Paulo Honório
passa por dificuldades, estas advêm da suspensão de crédito e não necessariamente da
queda dos políticos a que ele dera apoio com seus votos; a descensão das oligarquias o
prejudica enquanto empreendedor que não dispõe mais de crédito, mas não por ser ele
algum oligarca. Longe de enquadrar-se nos moldes do sistema patriarcal, Paulo Honório
revela-se um burguês, um novo homem que em sua dinâmica assimila apenas as
características do sistema oligárquico que lhe são pertinentes para o acúmulo de capital
como a sujeição pessoal de seus trabalhadores. Esse novo homem, configurado em
Paulo Honório, é reflexo das condições históricas em que se encontram as estruturas até
então vigentes no Brasil: o declínio das oligarquias, condição evidenciada nas inúmeras
dificuldades com que se depara esse sistema.
Retornando a situação histórica, a política adotada e os sucessivos governos que
procuravam se enquadrar neste modelo de governar, perpetuando uma estrutura
ineficiente, sem significativas modificações, foi o que invibializou o próprio sistema
estabelecido. A velha República, em desacordo com as necessidades do início do século
XX também, viu-se, para além de seus limites de atuação, confrontada e enfraquecida
por manifestações que denunciavam a situação esclerosada em que se encontrava o
sistema. Surgiram inúmeras reações às quais abordaremos a seguir, pois, de alguma
20
forma, contrárias à política vigente, tais reações são indícios do declínio das oligarquias,
ao mesmo tempo em que expõem as contradições do país.
Os anos de 1896-1897, diante da violência gerida pelo Estado, o arraial de
Canudos foi suprimido e dizimado como uma força que insurgia a fim de restabelecer o
regime monárquico. Balela. Liderado por Antônio Vicente Mendes Maciel, o Antônio
Conselheiro, o arraial, aldeia fundada em 1893 e denominada Belo Monte, na verdade
era fruto das situações excludentes como a estrutura agrária praticada no país em que
predominava a situação latifundiária caracterizada pela concentração de terras nas mãos
de poucos e o descaso das elites e do governo com uma população sertaneja humilde.
Relegada ao abandono, esta população sertaneja via no arraial uma alternativa para o
tradicional regime de exploração a que estavam submetidos. Esta face fatídica de nossa
história é a que será contemplada no livro Os Sertões. Revolta semelhante à de
Canudos foi o movimento do Contestado, por criar uma alternativa ao poder político
dos coronéis, na medida em que, distante de qualquer atenção oficial, grupos
marginalizados e de origens diversas constituíram comunidades místicas. A partir do
final de 1913 estas comunidades, lideradas pelo místico José Maria, passaram a ser
combatidas até a sua total destruição.
Enquanto o governo combatia os focos de revolta social que ao acaso surgiam no
Brasil com a intervenção de forças militares, um grande contingente de imigrantes
entrava no país e passava a constituir mais uma força perturbadora da ordem
estabelecida, portanto mais um caso de polícia
4
. Tratava-se da massa de operários
aglutinada nas cidades e que, sob a influência de idéias socialistas e anarquistas,
reivindicavam condições de trabalho minimamente dignas, inexistentes na época. A
dimensão das causas e conseqüências com que o operariado tinha seus direitos
suprimidos pôde manifestar-se na grande greve de 1917, quando em São Paulo cerca de
cinqüenta mil pessoas aderiram ao movimento de paralisação, revelando a insatisfação
geral. A assimilação de novas idéias – anarquistas e socialistas – denota de certa
maneira a presença de uma nova classe no Brasil, o proletariado. Devido à concentração
de fábricas nas cidades e o alto contingente de mão-de-obra empregado nestas, mais
facilmente esta classe adquiriu visibilidade, mas a presença do proletário rural, ou seja,
da mão-de-obra assalariada em trabalhos manuais e mecânicos, também se fez presente
4
Washington Luís declarara tratar-se de uma questão policial a questão operária. Não reconhecendo as
diversas agitações existentes na Velha República como conseqüência de problemas sociais, o governo
desde sempre abordara as questões sociais com atitudes violentas a partir de intervenções militares.
21
no campo. Esta mão-de-obra campesina, no Nordeste do Brasil, diferentemente da que
havia nas cidades, não se compôs de imigrantes, mas de sertanejos miseráveis em sua
maioria. A condição de assalariado não modificou em quase nada a relação entre os
trabalhadores e os empregadores; estas relações ainda se pautavam nos preceitos do
sistema patriarcal, com um agravante: acentuava-se a exploração. Aos que não se
submetessem as condições impostas nas fazendas restava a alternativa de migrar para os
arraiais, por exemplo.
No romance S. Bernardo, Paulo Honório remunera seus funcionários pelo
trabalho que estes prestam. A mão-de-obra por ele empregada é justamente a de
miseráveis que habitam o sertão nordestino. Nesta região, quase em sua totalidade, o
proletariado rural constituiu-se de pessoas como Marciano, funcionário da fazenda S.
Bernardo a que Paulo Honório refere-se como um molambo. Submetidos aos
desmandos do proprietário de terras, estes funcionários que em sua grande maioria
habitam as terras do patrão vêem-se comumente na condição de dependentes. Paulo
Honório impõe uma condição submissa aos seus funcionários, pois mesmo
remunerando estes, não considera somente o contrato dos serviços prestados;
absorvendo as relações sociais oligárquicas, Paulo Honório subverte o emprego da mão-
de-obra contratada ao considerar uma concessão, um favor prestado a aquele que lhe
fornece trabalho, a exemplo de Luís Padilha, último dono da propriedade S. Bernardo
antes de Paulo Honório, que se vê humilhado e sem o reconhecimento pelos serviços
prestados como professor na escola que há na fazenda. Em outras palavras, trabalhar
para Paulo Honório era um favor que este prestava. Essa mentalidade patriarcal a que
Paulo Honório recorre, é vantajosa na mediada em que ele remunera mal seus
empregados e os explora ao máximo. As relações intermediadas desta forma
aproximam-se do conceito de reificação, pois visa o aspecto quantitativo das relações
humanas. Mais adiante, nos deteremos nessa discussão sobre as relações reificadas.
Além dos fatos históricos que denotam a marginalização de um país diante de
um governo que de alguma maneira lhe virou as costas – o que propiciou o controle de
coronéis em certas regiões do país – setores pertencentes ao poder também
manifestavam descontentamento com o Estado, a exemplo do movimento tenentista que
insurgiu no forte de Copacabana em 1922 e em 1924 durante a Revolução Paulista. O
movimento tenentista exortava o apoio do povo, todavia rejeitando sua participação na
revolução. Aos tenentes caberia o dever de salvar a nação de seus governantes ineptos
advindos das oligarquias.
22
Segundo Luís Carlos Prestes
5
, a coluna armada que se originou da junção dos
revoltosos acuados de São Paulo, durante a Revolução Paulista, e de uma coluna
liderada por ele, vindo a percorrer aproximadamente vinte e cinco mil quilômetros,
passando por onze estados da federação, tinha a finalidade de manter a revolução como
algo iminente. Esperando uma ocasião que propiciasse uma investida do movimento, a
Coluna Prestes, como ficou conhecido o grupo que marchou pelo país, perdurou por
quase dois anos, de abril de 1925 a fevereiro de 1927.
Procuramos expor o período histórico que antecede a revolução de 30, os
aspectos que acabaram por ocasionar esta revolução e também seus desdobramentos.
Com isto, tentamos contextualizar o momento da publicação do romance S. Bernardo,
1934. Paralelamente, demonstramos alguns aspectos do romance no que concerne a sua
fatura, ao admitirmos o contexto histórico que permeia a obra literária como sendo o do
período da revolução de 30. Desta forma, esclarecemos certos procedimentos do
protagonista Paulo Honório, como a assimilação de condutas patriarcais, sem conduto
negar seu caráter burguês; e, ao mesmo tempo, demonstramos que é devido ao momento
histórico que este atua e existe enquanto um novo homem, um burguês.
Neste percurso, ao elucidarmos os percalços da velha República, também
acabamos por propiciar uma noção do cenário em que surgem os primeiros indícios de
transformações, lentas, mas que já denotam uma nova expressão literária brasileira em
contraposição à literatura passadista ainda em voga. Portanto, já feita a explanação do
momento histórico, passemos ao momento literário propriamente.
1.2 Pré-modernismo brasileiro
Pense-se nos últimos anos do século XIX e, em especial, nos primeiros decênios
do século XX. Comumente, a atividade relacionada às letras no país “descamba para um
terreno evidentemente falso, mundano e fútil. Isso se verifica facilmente através das
conferências, que se dirigem a um público absolutamente desinteressado de qualquer
5
Apud PRESTES, Anita Leocádia. A coluna Prestes. 2ª ed. São Paulo, Brasiliense, 1991. p. 189.
23
preocupação artística”
6
, com temas esdrúxulos propostos em debates a fim de que os
seus argüidores desfilassem suas divagações em linguagem torneada com floreios
literários e realces inconseqüentes, diria Brito Broca
7
.
A perfeição formal é levada ao extremo de uma erudição falsa, constituída pela
busca de uma linguagem privativa, estabelecendo uma separação entre aquele que
escreve, o artista, e aquele que lê, o homem comum, sendo o escritor entendido ou
tolerado pelos confrades.
Segundo Sodré, os escritores submetem-se à opulência verbal tida como
parâmetro, a crítica visa o purismo lingüístico, a oratória parlamentar aferra-se a
modelos distantes e as formas desinteressadas e unilaterais de erudição alcançam a
valorização máxima, isto é, os ficcionistas e os poetas esmeram-se mais na correção
formal do que na tradução dos motivos humanos, e a crítica os compreende e os valoriza
na medida em que estes obedecem rigidamente às regras gramaticais. Claro está que
tudo era o velho, o que declinava, o que tendia a desaparecer, mas tinha ainda condições
de atuar e disciplinar as criações, não impedindo porém uma nova atividade intelectual.
No início do século XX, a atividade intelectual, ainda que imatura, começa a
manifestar uma criação artística, não significando necessariamente a vigência de uma
atividade literária autônoma. Todavia, têm-se as bases de um grande movimento de
idéias mais aberto à realidade histórica do Brasil em decorrência de alterações que
vinham se processando na estrutura econômica e social daquela época.
No ano de 1901 registra-se o início da reflexão crítica sobre a nossa própria
formação cultural com os Estudos de Literatura Brasileira e os Ensaios, do paraense
José Veríssimo e do sergipano Sílvio Romero, respectivamente.
Sodré, comentando Veríssimo, demonstra o quanto os parnasianos e sua escola
literária ainda em voga nos primeiros decênios do século XX encontravam-se apartados
da realidade, não havendo, em regra, aproximação entre idéia e forma e nem
repercussão para além do círculo de confrades, pois o homem comum, alheio ao
aperfeiçoamento meramente formal, não sentia que tal produção lhe dizia respeito
8
.
Candido é mais incisivo ao posicionar-se perante a literatura passadista ou de
“permanência” como classifica: “Uma literatura satisfeita, sem angústia formal, sem
6
SODRÉ, Nelson Werneck. História da Literatura Brasileira. 9ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
1995. p. 434.
7
BROCA, Brito. A Vida Literária no Brasil 1900. 4ª ed. Rio de Janeiro: Jose Olympio, 2005. p.137-38.
8
Cf. SODRÉ, op. cit. , p. 454.
24
rebelião nem abismos. Sua única mágoa é não parecer de todo européia; seu esforço
mais tenaz é conseguir pela cópia o equilíbrio e a harmonia, ou seja, o academismo.”
9
.
É no ano seguinte, 1902, que se registra a publicação de duas obras de grande
repercussão junto ao restrito grupo de leitores da época.
Uma obra é Canaã, livro da autoria de Graça Aranha. Neste romance se verifica
uma maior preocupação com o homem do que com o ambiente físico, ainda que narrada
com uma eloqüência e opulência verbal que acabam por afetar o conteúdo e a forma.
Em Canaã expõe-se um problema humano resultante dos contrastes estabelecidos pela
imigração, emoldurando o problema em uma linguagem rebuscada e destinada a seduzir
mais do que o próprio conteúdo. Desta forma, não transpondo os problemas a que se
deteve para além de um esquematismo, Aranha dilui o profundo e dramático conteúdo
dos quadros sociais que se refletem em sua obra.
A outra obra é Os Sertões, escrita por Euclides da Cunha, manifestação de
crítica ao Brasil arcaico. Seu conteúdo de caráter social expõe um Brasil esquecido,
onde prevalecem as mazelas; e se o estilo retórico-discursivo por vezes foi ao gosto do
público leitor da época, o que obscurece o conteúdo, não impede, entretanto, uma nova
interpretação do país através de contrastes tão inerentes à formação da nação brasileira,
como a crítica bem notou.
Lima Barreto, com uma escrita intencionalmente coloquial, associada ao
cotidiano carioca que permeia sua obra, antecipa os postulados modernistas. Como
resultado de um estilo propositadamente realista, próximo ao de compor crônicas, as
cenas de suas obras, assim narradas, não têm por finalidade exortar em si mesmas as
frases insólitas e isoladas como habitualmente os parnasianos procediam, mas deixar
transparecer figuras humanas, objetos e paisagens. Seu estilo – desleixado como fora
acusado pelos que viam na literatura um exercício de regras gramaticais e deploravam
os solecismos, cacófatos e numeras repetições existentes no autor de Triste Fim de
Policarpo Quaresma – expôs a deficiência social, econômica e política do país. Para
Alfredo Bosi, o protagonista deste seu romance mais bem elaborado formalmente, o
Major Policarpo Quaresma, é exemplo da incompatibilidade entre uma tentativa de
viver mais brasileiramente em um Brasil que já não é como aquele no sentido
romântico.
9
CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. 9ª ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2006. p. 120.
25
Segundo Candido
10
, os demais escritores contemporâneos, ao invés de
aprofundarem-se nas discordâncias estimulantes à atividade literária, optaram por traços
limitadores de que padeciam como o desequilíbrio verbal verificável no penúltimo e a
ironia superficial do último. Deste modo, os escritores como Lima Barreto e Euclides da
Cunha permanecem vozes isoladas neste período literário Pré-modernista.
Bosi esclarece que o Pré-Modernismo deu-se no âmbito da capacidade de
penetrar fundo na realidade brasileira, assim como o fizeram os escritores comentados
há pouco, na medida em que estes autores problematizaram de alguma forma nossa
realidade social e cultural. Antecipando as tensões existentes no cenário nacional e que
se efetivariam a partir do Modernismo, com o rompimento na linguagem e no conteúdo,
coroando a precedência temática e formal exercida por tais escritores em relação à
literatura modernista, considera-se pré-modernista toda manifestação que “enquanto
crítica ao Brasil arcaico, negação de todo academismo e ruptura com a Velha República,
desenvolve a problemática daqueles como o fará, ainda mais exemplarmente, a
literatura dos anos 30”
11
, cabendo aos demais escritores do período o prefixo “pré”
estritamente na acepção temporal de anterioridade.
É justamente à produção literária dos anos 30 que pretendemos chegar, pois é
neste momento que surge em livro o romance S. Bernardo, do escritor Graciliano
Ramos, de apurada elaboração estética e ideológica
12
.
10
Cf. CANDIDO, op. cit. , p. 123.
11
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. 3ª ed. São Paulo: Cultrix, 1969. p. 346.
12
Para Karl Marx, ideologia corresponde à distorção do pensamento, que, surgido em meio às
contradições sociais, oculta as incoerências da realidade material que são os verdadeiros problemas da
humanidade, tornando-se uma projeção que atenda aos interesses da classe dominante, portanto, a
universalização da particularidade na medida em que se processa a assimilação por parte das demais
classes sociais dos valores da classe dominante, valores estes que ocultam as relações contraditórias e
invertidas da uma determinada realidade. Dessa forma, o conceito de ideologia adquire uma conotação
negativa e restrita respectivamente por ser uma representação errônea das contradições sociais reais e por
não abranger todos os tipos de erros e distorções. As distorções ideológicas, sejam elas provenientes de
relações entre idéias ideológicas ou não, só podem desaparecer se forem resolvidas na prática as
contradições que lhe deram origem. Cf. MARX, Karl. A ideologia alemã. São Paulo: Hucitec, 1986.
Em O Capital, Marx considera o mercado a fonte da ideologia política burguesa; esta burguesia em suas
relações de troca apregoa a igualdade e liberdade, todavia essa ideologia burguesa oculta a desigualdade e
a falta de liberdade proveniente das relações superficiais de troca no mercado e da concorrência nas
sociedades capitalistas. Sobre os desdobramentos do conceito de ideologia dentro dos estudos marxistas
e na obra de Marx cf. BOTTOMORE, Tom (org). Dicionário do pensamento marxista. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1988. p.183 - 187.
S. Bernardo é um romance de contornos ideológicos marcados precisamente na concepção de se
difundirem valores que turvam as contradições sociais, valores expressos no e pelo personagem Paulo
Honório. Ao elaborar S. Bernardo, difundindo os valores burgueses do narrador-personagem Paulo
Honório, Graciliano Ramos, todavia, revela as contradições da ideologia burguesa, ao expor, por
exemplo, as relações reificadas estabelecidas pelo proprietário da fazenda S. Bernardo, não sendo ele
mesmo, Graciliano Ramos, um difusor da ideologia burguesa, diferentemente do protagonista Paulo
Honório. Paulo Honório, em meio a sua ascensão, admite as contradições sociais como naturais e
26
Para tanto, faz-se necessário, como temos feito até aqui, delinear as
circunstâncias que antecedem a produção literária de um determinado período tanto no
âmbito socioeconômico, como procedemos no primeiro tópico desta dissertação, quanto
no âmbito cultural, o que executamos neste tópico e daremos continuidade no tópico
subseqüente, pois, ainda que pautada em uma abordagem analítica imanente à obra, a
relação literatura e sociedade – linha de pesquisa a que nos filiamos para o
desenvolvimento desta pesquisa –, que se destina a compreender em profundidade
analítica a singularidade do romance S. Bernardo, ao abranger as relações entre texto e
contexto, requer que se pondere sobre esta relação. Ao recorrermos ao conceito de
reificação, elaborado no âmbito das ciências sociais, enquanto categoria analítica
imprescindível em nossa pesquisa, este deve ser devidamente inserido no contexto da
obra literária, para que não pareça improfícua sua utilização. Por isso temos procurado
contextualizar o romance S. Bernardo em perspectiva histórica e literária alinhavando
texto e contexto.
1.3 Modernismo brasileiro
É na esteira das manifestações artísticas em clara oposição aos padrões estéticos
preconizados pela já então defasada escola parnasiana, que, na tarde de 12 de dezembro
do ano de 1917, em face aos acontecimentos da realidade brasileira, Anita Malfatti
expõe seus quadros em um total de cinqüenta e três trabalhos que, por serem atrevidos e
rústicos, espantam e chocam até Tarsila do Amaral.
Monteiro Lobato, em artigo veiculado em O Estado de São Paulo a 20 de
dezembro do mesmo ano, tacha a exposição de arte como caricatural, destinada a
desnortear, a aparvalhar o espectador, não deixando nenhuma impressão de prazer
translúcida na fisionomia de quem a viu. E tal arte de orientação seja futurista, cubista,
impressionista a que adere o artista não é tão mais velha quanto a arte anormal ou
teratológica nascida com a paranóia e a mistificação. Assim, o artista, diz Lobato, vendo
necessárias, distorcendo as incoerências da realidade material ao considerar os valores burgueses e
difundi-los junto aos demais indivíduos. As próprias relações sociais estabelecidas por Paulo Honório
pautam-se no domínio das relações reificadas, admitidas dentro dos valores burgueses.
27
“anormalmente a natureza, a interpretam-na à luz de teorias efêmeras, sob a sugestão
estrábica de escolas rebeldes, surgidas cá e lá como furúnculos de cultura excessiva”
13
,
e prosseguindo aponta as obras aí criadas como produtos do cansaço e do sadismo de
todos os períodos de decadência; a postura assumida por Lobato e expressa neste artigo
é avessa às inovações artísticas por radicar-se nas lições acadêmicas e tradicionalistas
em detrimento de tendências estéticas de forçadas atitudes no sentido das
extravagâncias de um Picassso, como ele mesmo afirma, ao considerar as técnicas
adotas pelo pintor espanhol, e a que Anita Malfati recorre, procedimentos deturpadores
da realidade retratada.
À exposição estiveram presentes Oswald de Andrade e Mario de Andrade. Este,
tempos depois, afirmará que a revelação do novo e a convicção da revolta pela
modernização das artes brasileiras deveram-se à força dos quadros de Malfatti.
14
Três anos depois, em 1920, os opositores da estética em voga começam a
definir-se e movimentar-se como grupo, sendo então denominados futuristas, mesmo
não se enquadrando dentro da escola de Marinetti. Esta denominação dava-se de
maneira aleatória, designando tudo quanto parecesse diferente e inusitado, mesmo que
não fossem oponentes sistemáticos da renovação os que assim agissem ou procedessem.
Era a aplicação indiscriminada da palavra Futurismo e seus derivados à revelia,
rotulando em sentido comumente pejorativo o artista que se afastasse dos padrões
convencionais vigentes. É fato, arrematado sobre esse denominador comum, a que
aceitaram por representar um novo sentido estético, o grupo passa a discutir
intensamente suas idéias em reuniões e debates, polêmicos entre si, para meses depois,
em 1921, após um ano de planejamento e de opções, estabelecer o combate, o
rompimento, as hostilidades e as afirmações que principiariam o recenseamento de
valores, sempre em defesa de novos postulados artísticos.
O ano de 1921 inicia-se com a declaração pública de ruptura com a conjuntura
intelectual da época, através dO Manifesto do Trianon, discurso proferido por Oswald
no banquete em homenagem a Menotti del Picchia. O homenageado, por intermédio de
artigo intitulado Na Maré das Reformas, fixa os pontos básicos do programa de ação
renovadora a ser desenvolvido. Dando prosseguimento ao acordado entre os integrantes
do grupo, durante todo o ano, assiste-se aos debates polêmicos e revisionistas,
13
MONTEIRO, Lobato. A propósito da exposição Malfati. In: _________; BRITO, Mário da Silva.
História do Modernismo Brasileiro: Antecedentes da Semana de Arte Moderna. 6ª ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1997. p. 47.
14
Cf. BRITO, op. cit. , p. 65.
28
promovidos pelos escritores novos em sua oposição ao passadismo, e aí se inclui o
Romantismo, o Parnasianismo e o Sertanismo. Mais adiante é feita a divulgação das
produções da nova escola por meio da publicação na imprensa de poemas e trechos de
prosa escritos por autores nacionais e estrangeiros. Fixa-se, ainda em 1921, a posição
dos jovens frente à doutrina Futurista. Estas ações, dentre outras, que se sucederam
durante todo o ano e que tiveram entre os principais atuantes Oswald de Andrade, Mario
de Andrade, Menotti del Picchia, Candido Mota filho e Sérgio Milliet a postos nos
jornais a escrever a favor de uma nova expressão estética, foram imprescindíveis para o
ano subseqüente.
1922 foi o ano de comemoração do centenário da República do Brasil. Para este
ano, há pelo menos dois anos, o grupo renovador vinha divulgando a idéia de que a
independência do país se dera apenas no âmbito político e que o centenário, portanto,
deveria ser uma comemoração selada por algo mais além desta meia soberania, para
então firmar-se plena. Tinha-se em foco a concepção de uma comemoração que
debelasse a disposição mental e moral vigente. Oswald afirmaria mesmo ser, por parte
deles, o ano da independência mental e moral através de uma expressão artística digna
da data comemorativa, pois que a obra de arte que resiste ao tempo é a expressão
máxima da raça
15
. E, se pela arte desejavam se expressar, natural que dirigissem seus
atos a favor de uma comemoração da independência brasileira via valorização cultural.
Este momento literário de plenitude da “fase heróica” do movimento
corresponde a um intenso embate em prol da uma liberdade estética atrelada ao sentido
de atualidade, isto é, uma arte livre enquanto expressão de uma etapa histórica. São os
escritores novos de São Paulo trabalhando ativamente em defesa de seus ideais
renovadores. Tais ideais irão desembocar no Teatro Municipal de São Paulo na noite do
dia 13 de fevereiro de 1922, quando se tem o início do que se consagrou como A
Semana de Arte Moderna. A historiografia literária no Brasil convencionou este evento
como marco de uma nova etapa em nosso desenvolvimento: o Modernismo Brasileiro
ou Movimento Modernista Brasileiro, realização manifesta do grupo liderado pelos
Andrades.
O Modernismo Brasileiro, movimento literário que tem como marco oficial a
semana de 22, idealizado por Oswaldo de Andrade, Mário de Andrade, entre outros a
partir das vanguardas européias, surge como a literatura representativa de sua época,
15
Cf. BRITO, op. cit. , p. 170.
29
naturalmente, tendo sua concepção de arte embasada no rearranjo da forma, pois
partindo desse pressuposto conseguiria ao mesmo tempo expressar o novo, a
modernidade e inserir plenamente a “cor local”. Em outras palavras, os modernistas
atuam na concepção de arte e nas bases da linguagem, impingindo-lhes uma deformação
do natural como fator construtivo, o popular e o grotesco como contrapeso ao falso
refinamento academista, a cotidianidade como recusa à idealização de real e o fluxo da
consciência como processo desmascarador da linguagem tradicional. Ao mesmo tempo,
combatem a literatura passadista, continuando o embate já anunciado em Os Sertões de
Euclides da Cunha, Triste Fim de Policarpo Quaresma de Lima Barreto e outros a
respeito do Brasil arcaico e ineficiente. Enfim, o movimento critica a velha linguagem
com sua estética habituada a procedimentos rotineiros através do confronto com uma
nova linguagem, esta referente a um projeto estético de experimentação revolucionária e
expressiva, que se percebe marcadamente acentuada na primeira fase do Modernismo
(1922 – 1930), e que em si já contém um projeto ideológico, evidentemente divergente
da escola precedente por combatê-la. Assim ambos, o projeto estético e o projeto
ideológico, se complementam na razão da ordem artística, por desestruturar a produção
cultural anterior e, na razão da ordem ideológica, por incorporar, ainda que
estilisticamente, o popular e o primitivo.
Ainda sobre A Semana de Arte Moderna, evento ocorrido no Teatro Municipal
de São Paulo, pesam algumas observações. O caráter de ruptura atrelado ao evento
como mola propulsora a gerir novas possibilidades no campo das artes, por vezes,
perfeitamente distinguível como tal, é conseqüência de notícias veiculadas, ao que nos
parece, não sem muito alarde, por parte de seus idealizadores, como Menotti del
Pichhia, o “porta-voz público dos vaivens em que se encontravam os modernistas”
16
,
redator chefe do Correio Paulistano e escritor consagrado com a obra Juca Mulato de
1917, enfim um nome de projeção nacional e tido por celebridade. Já Candido Mota
filho busca valer-se do prestígio a que gozava o diplomata Graça Aranha, recém
chegado da Europa, pois era “um nome de larga ressonância nacional contra os
recalcitrantes adversários”
17
, ou seja, o autor de Canaã empenharia a importância de
seu nome para o êxito da arremetida da juventude intelectual de São Paulo.
O que pretendemos esclarecer é a conduta do grupo que, empenhado em formar
uma opinião favorável às suas investidas, cercando-se de meios que viessem a propagar
16
BRITO, op. cit. , p. 163.
17
Idem p. 317.
30
e revalidar seus ideais inovadores, acabou assumindo uma postura que resultou em uma
superestimação da Semana de 22. Porém, uma crítica mais preocupada em balizar a
sucessão dos fatos reconhecerá sua importância meramente episódica, “um momento de
exaltação”
18
, diferentemente do que se propalava entre seus idealizadores. Em outras
palavras, embora sob muitos aspectos o evento catalise o caráter do movimento, a
conjuntura histórica era favorável e necessitava de uma nova estética, por isso, acima
afirmamos ser tal acontecimento, como início do Modernismo Brasileiro, uma
convenção para a historiografia literária brasileira.
Sobre este aspecto parece-nos relevante apontar uma posição assumida por
Antonio Candido em seu livro Literatura e Sociedade, por dois motivos: primeiro pela
envergadura deste intelectual brasileiro, figura ímpar na elaboração e formação de
opiniões em nosso país, e segundo, que é decorrência do primeiro, a repercussão deste
seu livro dentro dos quadros acadêmicos.
Para Candido, o “movimento [modernista] é o único, na literatura em São Paulo,
cujo início pode ser precisamente datado: começa na famosa Semana de Arte
Moderna realizada em 1922 no Teatro Municipal.”
19
(grifo nosso).
A datação da Semana de 22 é uma convenção quando considerada para efeitos
de determinação do início do movimento literário modernista, o que diverge da opinião
emitida por Candido, à qual procuramos dar relevo na citação acima. Isto, todavia, não
nos parece uma imperícia na sua refinada capacidade de análise, mesmo discordando do
que este crítico afirma tão enfaticamente no corpo do ensaio. Expliquemo-nos. O ensaio
em questão, A literatura na evolução de uma comunidade, que é parte constituinte do
livro, fora escrito com a intenção primeira de veicular-se no número comemorativo do
IV Centenário da Cidade de São Paulo que o jornal O Estado de São Paulo publicou
em janeiro de 1954. O fator comemorativo que antecedeu a composição do ensaio talvez
tenha induzido o ensaísta a uma tendência propositada de enaltecer o evento que se
sucedeu no Teatro Municipal, dando-lhe ares de grandiosidade ao fixar veementemente
uma data como prerrogativa de um divisor de águas, o que efetivamente não cabe ao
evento. O texto, em sintonia com a data comemorativa que se destinava a prestigiar o
aniversário de São Paulo em tom laudatório, porém, acabou sendo enxertado em um
livro indispensável, desde sua edição, no meio acadêmico. Com isso queremos apenas
ressaltar as circunstâncias que influíram para a elaboração do ensaio, e que a informação
18
FACÓ apud SODRÉ, op. cit. , p. 526.
19
CANDIDO, op. cit. , p. 168.
31
estritamente aqui debatida, sobre a fixação de uma data para o início do Modernismo a
partir da Semana de 22, como apresentada no ensaio de Candido, fora uma
eventualidade e assim deve ser lida.
Para Sant’ana
20
, a conferência O Espírito moderno, proferida na Academia
Brasileira de Letras, por Graça Aranha, polêmica em suas colocações, reverberou nos
meios intelectuais do país, estimulando o debate acerca do movimento modernista. Se
considerarmos esta observação de Sant’ana , temos um acontecimento a mais que
contribuiu para mudar os rumos da produção artística brasileira além da Semana de 22.
A repercussão desta conferência foi tão significativa para a época em que foi
proclamada que Raul Bopp chegou a considerá-la posteriormente uma segunda Semana
de Arte Moderna
21
. O jornal Diário da Manhã de Maceió, em cinco de julho de 1924,
estampou em sua primeira página um artigo intitulado O motim da Academia
comentando o pronunciamento de Graça Aranha e a renúncia à cadeira que lhe cabia
naquela instituição. Ainda, segundo Sant’ana, no ano de 1928, também em decorrência
do que se sucedera na ABL, o modernismo já encontrava-se relativamente bem
difundido em Alagoas, assim como em outras partes do país. Os estudos de Sant’ana,
que têm por objetivo mapear os desdobramentos e influências do movimento
modernista nas artes do estado de Alagoas, atêm-se sobretudo as matérias vinculadas
em jornais de circulação no Estado de Alagoas para demonstrar quando e onde se teve
notícias desse movimento. É no mesmo ano de 1928, quando já se encontrava,
conforme Sant’ana, bem divulgado o movimento modernista, que Graciliano Ramos
conclui seu primeiro romance: Caetés, publicado somente em 1933. Este escritor
alagoano, atento ao que circulava nos jornais, realmente mantinha-se informado acerca
do movimento que irradiava de São Paulo, e dele não se considerava integrante. Ramos,
inclusive, desprezava o movimento modernista paulista em muitos aspectos, acusando-
os de ignorantes e/ou desonestos
22
.
Independente de muitos escritores, além de Graciliano Ramos, considerarem-se
integrantes ou não do movimento modernista, as bases para a configuração de uma nova
expressão da arte brasileira já estavam delineadas com as modificações que vinham se
processando. Os três primeiros decênios do século XX no Brasil foram marcados por
20
SANT’ANA, Moacir Medeiros de. História do Modernismo em Alagoas (1922-1932). Maceió:
EDUFAL, 1980. p. 107.
21
Apud SANT’ANA, op. cit. , p. 107.
22
Cf. SENNA, Homero. Revisão do Modernismo. In: _________; BRAYER, Sônia (org.). Graciliano
Ramos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 46 - 59.
32
transformações significativas, correspondentes às modificações de velhos quadros
econômicos, políticos e culturais do século XIX, que culminaram na revolução de 30.
Estruturas esclerosadas, como o patriarcalismo e suas oligarquias rurais, passaram a
coexistir com novas estruturas que adquirem caráter dominante. Delineia-se um novo
quadro econômico-estrutural, mais complexo, com modificações no sistema de
produção. Trata-se, no fundo, do processo de incorporação do capitalismo no país e do
fluxo ascensional de uma nova classe, a burguesia urbana, dois fatores que mexeram
com as demais camadas sociais e refletiram a agitação de um Brasil novo, de surto
industrial, imigração e conseqüente processo de urbanização.
Em relação ao aspecto cultural, A Semana de Arte Moderna, que se realizara no
Teatro Municipal, por si só nada influía, mas como resultado de um processo histórico é
registro indiscutível no campo das artes brasileiras junto às modificações que se
sucediam na sociedade brasileira do início do século XX. No ano de 1922, as estruturas
oligárquicas já se encontravam sensivelmente modificadas principalmente em São
Paulo, devido às transformações socioeconômicas ocorridas. O evento é um episódio
dentro do Modernismo Brasileiro, e este movimento é o combate ao passadismo, ou
seja, o combate ao Brasil arcaico em que reduzida minoria letrada buscava
afanosamente copiar ou reproduzir padrões externos. O advento do Modernismo,
todavia, não excluiu das letras brasileiras escritores como Coelho Neto, aclamado em
jornais. Este, mesmo laureado
23
, não era para Graciliano Ramos a encarnação da
literatura brasileira como intuíram os modernistas. Aliás, fora devido à generalização de
escritores, todos comparados a Coelho Neto, que levou os modernistas a cometerem
injustiças deliberadas, diria Graciliano Ramos.
24
O fato é que não houve uma mudança
radical com o advento dos modernistas no campo das artes na perspectiva de existir uma
predominância da estética modernista em detrimento da estética parnasiana.
“Até 1930 a literatura predominante e mais aceita se ajustava uma
ideologia de permanência, representada sobretudo pelo purismo
gramatical, que tendia no limite a cristalizar a língua e adotar como
modelo a literatura portuguesa. Isto correspondia às expectativas
oficiais de uma cultura de fachada, feita para ser vista pelos
estrangeiros, como era em parte a da República Velha. Ela tinha
encontrado o seu propagandista no barão do Rio Branco, o seu modelo
no estilo de Rui Barbosa e a sua instituição simbólica na Academia
23
Coelho Neto, em votação aberta ao público e promovida pela revista O Malho, fora eleito, em 1928, o
príncipe dos prosadores brasileiros.
24
Cf. SENNA, op. cit. , p. 51.
33
Brasileira de Letras, ainda preponderante no decênio de 1920 apesar
dos ataques dos modernistas (estes pareciam, então, uma
excentricidade transitória)”
25
(grifo nosso).
Mas estavam definitivamente abertos os caminhos para a assimilação de uma
nova estética. A radicalização no nível da linguagem em sua fase inicial foi
indubitavelmente a contribuição sine qua non do movimento Modernista contra a
estética passadista, vindo o movimento a ampliar nos anos subseqüentes sua influência
no campo das artes, não em decorrência de uma repercussão da Semana de Arte
Moderna apenas, pois esta ficou praticamente limitada a São Paulo em um primeiro
instante. É no decorrer dos anos que também se delineará com mais clareza a
heterogeneidade congênita do Modernismo, reflexo das contradições inerentes à
sociedade brasileira.
Em 1924 irrompe o Manifesto Pau-Brasil, corrente que objetivava a
revalorização dos elementos primitivos da nossa cultura através da crítica ao falso
nacionalismo e a valorização de obras que redescobrissem o Brasil, seus costumes, seus
habitantes e suas paisagens. Os que se integraram em torno de tal proposta foram,
principalmente, Oswald de Andrade, que escrevera o manifesto, Mário de Andrade,
Raul Bopp, Alcântara Machado e a pintora Tarsila do Amaral.
Contrário à poesia Pau-Brasil, em 1925 forma-se o grupo Verde-Amarelo, que
depois se desdobraria no Grupo da Anta. Entre seus componentes estão os nomes de
Cassiano Ricardo, Menotti del Picchia, Candido Mota Filho e Plínio Salgado, líder do
grupo. Caracterizando-se por uma postura nacionalista extremada e de atuação muito
mais política que literária, o grupo repudiava tudo quanto fosse cultura importada e
tentava mostrar um Brasil grandioso com poemas de cunho utilitário e cívico, revelando
uma visão reacionária, sobretudo através de seu líder, que viria a ser o principal membro
do Integralismo, movimento político brasileiro de extrema direita baseado nos moldes
Fascistas.
Opondo-se ao grupo Verde-Amarelo, que se opusera ao grupo do Pau-Brasil, em
1928 divulga-se o Movimento Antropofágico, reação e transmudação dos mesmos
integrantes do manifesto veiculado por Oswald no Correio da Manhã em março de
1924. É o desdobramento mais radical do movimento Pau-Brasil que se opunha ao
conservadorismo do movimento liderado por Plínio Salgado.
25
CANDIDO, Antonio. A educação pela noite. 5ª ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2006. p. 224.
34
Mario de Andrade, situando historicamente o Modernismo, diria que,
independente da orientação revolucionária, os livros dos autores já configurariam uma
arte em sentido social, propagadora de idéias, corroborando, assim, com a posição de
Graça Aranha que evocava uma participação do Modernismo para além da preocupação
estética, complementando-se e intervindo na política também. Dentro desta proposição,
vários colaboradores da revista Klaxon
“(...) eram pioneiros na formação do Partido Democrático, em São
Paulo; e, ainda mais sintomático que isso, na maioria dos
modernistas, quem quer lhes estude as páginas teóricas e os
manifestos de então perceberá o espírito insatisfeito contra a própria
pasmaceira democrática e a tendência (quando não, adesão franca)
para as extremas.”
26
.
O quadro histórico/literário brasileiro encontrava-se significativamente alterado
em 1928 em relação à fase inicial modernista. A liberdade artística assegurada já no
primeiro momento modernista, permitindo, por exemplo, uma linguagem bem próxima
da fala a ponto de evidenciar as variantes regionais, desloca, na segunda fase do
Modernismo (1930 - 1945), a ênfase para o projeto político-social. Este se diferenciando
por um enfoque na discussão em relação à função da literatura, o papel do escritor e
somando-se a uma exacerbação da consciência política.
Segundo Candido, como resultado, verificou-se uma debilidade formal em
muitas das obras do período, constatando-se em certos momentos um recuo na
elaboração estética pura e simplesmente para dar ênfase ao conteúdo. Esta tendência em
se privilegiar o conteúdo classifica-se como uma atitude primária, nas duas acepções
que o adjetivo comporta, ou seja, no sentido de ser um erro elementar e também de ser o
mais comum, e deve-se a uma mentalidade que compreende a elaboração estética
literária como um empecilho à realidade, pois esta “tende a ser um embuste que
atrapalha o enfoque certo da realidade”
27
, ou seja, há o pressuposto de uma concepção
crente na incompatibilidade entre literatura e honestidade, esta, entendida como
sinônimo de realidade, e aquela, como produto de uma elaboração formal capaz de
falsear a realidade.
26
ANDRADE, Mário. O empalhador de passarinho. 3ª ed. São Paulo: Martins, 1972, p. 188.
27
CANDIDO, op. cit. , p. 237-238.
35
Percebe-se, por parte de alguns escritores que, assim configurado o período,
houve certa preocupação em se discutir a pertinência dos temas e das posturas políticas
e sociais assumidas, mesmo quando não se manifestava qualquer definição ideológica
explícita, a que alguns destes escritores, às vezes, eram vinculados
28
, devido a uma
participação ativa e uma consciência crítica sintonizada aos temas e às atitudes que
adotassem.
O período testemunhava, diante das circunstâncias, um imbricamento entre a
literatura e as questões políticas e sociais a ponto de distinguir-se uma polarização.
Mesmo quando não se delineava extremada disposição, ou uma consciência clara de
matizes ideológicos por parte dos intelectuais, as questões sociais e religiosas não
deixavam de penetrar, ainda que de maneira difusa, nos textos.
Ora, pois o que se sucedeu foi a passagem, a mudança de ênfase do projeto
estético para o projeto ideológico. No que concerne a esta distinção, faz-se necessário
reiterar uma observação facilmente preterida devido à funcionalidade, à capacidade
operatória desta classificação que induz a uma dissociação de um projeto em relação ao
outro, quando na verdade ambos encontram-se correlacionados de maneira intrínseca,
haja vista que “o projeto estético, que é a crítica da velha linguagem pela confrontação
com uma nova linguagem, já contém em si o seu projeto ideológico
29
. Assim sendo, o
projeto ideológico que subjaz ao projeto estético nos anos 20 correspondeu à atualização
necessária e proposta por frações das classes dominantes
30
, enquanto que o projeto
ideológico dos anos 30 extrapola os limites destas frações elitistas em direção às
concepções esquerdizantes e posições conservadoras. Da passagem de um momento ao
outro, o que não confere um aspecto de continuidade, e sim uma mudança de ênfase,
não podemos, todavia, alegar que tenha havido uma modificação substancial no corpo
de doutrinas do Modernismo.
28
Graciliano Ramos foi preso no ano de 1936, em decorrência de acusações concernentes a uma posição
ideológica esquerdizante a qual na época ele não havia ainda se vinculado. Destituído de suas funções,
foi levado para o Recife. Preso incomunicável, ele partiu para o Rio de Janeiro em um porão de navio. Lá
chegando, rasparam-lhe a cabeça e, juntamente com ladrões e assassinos, como criminoso comum,
percorreu os presídios.
29
LAFETÁ, João Luiz. 1930: A crítica e o modernismo. 2ª ed. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000.
p. 20.
30
A Semana de Arte Moderna realizada no Teatro Municipal também se enquadra no cenário de
modernismo conservador. Pense-se no próprio local onde se realizara o evento. Mário da Silva Brito, no
artigo Mecenas Não São Apóstolos, veiculado no jornal Correio da Manhã do Rio de Janeiro, no dia 15
de outubro de 1967, informa sobre o grupo que havia financiado e usufruído da festa: “uma gente da hight
society e das finanças, fosse movido por snobismo, fosse trazido pela ação de Paulo Prado ou aliciado por
René Thiollier” ( BRITO, apud SODRÉ, p. 563). Evidencia-se o caráter marcadamente estético do
movimento em sua fase inicial, ao ser promovido por uma elite socioeconômica.
36
Tomando por amostra a literatura do decênio de trinta, Candido afirma que os
traços característicos do período são “atualizações (no sentido de ‘passagem da potência
ao ato’) daquilo que se esboçara ou se definira nos anos de 1920”
31
, como o
enfraquecimento gradativo da literatura academicista, a aceitação das inovações formais
e temáticas, a projeção das literaturas regionais a nível nacional e a polarização
ideológica.
Dentre as propostas consolidadas referidas, a projeção assumida pelas literaturas
regionais é de especial relevo por constituírem modalidades expressivas de significado
coextensivo à própria literatura nacional, como é o caso do romance nordestino. Esta
produção literária descobre ângulos diferentes numa busca incessante do homem
brasileiro, preocupando-se mais diretamente com os problemas sociais na medida em
que relata a vida sócio-cultural através de aspectos sócio-econômicos. Evidentemente,
de denúncia social e testemunho, essa literatura em nada está relacionada ao mero
pitoresco regional ou às situações folclóricas particulares de cada local, ou seja, temos
uma literatura que traz para a reflexão problemas sociais marcantes do momento em que
os romances foram escritos, tais como o drama da seca e dos retirantes, a submissão do
homem ao latifúndio, a ignorância e as mazelas políticas da região Nordeste. Produzem-
se o romance de denúncia, a poesia militante e de combate. Vemos surgir alguns dos
nomes mais significativos do romance brasileiro, como José Lins do Rego, Raquel de
Queiroz e Jorge Amado, que se aglomeram no grupo de escritores regionalistas de 30 do
Nordeste. Estes autores refletiram em suas obras a realidade nordestina de oligarquias
tradicionais e choques ideológicos, além da situação dos proletários rurais, isto é, os
dominados por um rude esquema de trabalho sob o mando dos grandes proprietários de
terra. Pertencente ao grupo de escritores da Geração de 30 do Nordeste, Graciliano
Ramos (1892 – 1953) talvez represente o ponto alto dessa literatura por levar ao limite o
clima de tensão, presente nas relações homem/meio natural, homem/meio social,
atrelada a uma linguagem precisa e sintética, onde se tem a construção de períodos
curtos, mas de forte expressividade.
Como vimos, ao acompanharmos o raciocínio do crítico Lafetá, a partir do
decênio de 30 o cenário literário modernista brasileiro sofre uma mudança de ênfase em
seu projeto, mas muitos dos escritores que surgiram neste momento literário não se
31
CANDIDO, op. cit. , p. 244.
37
consideravam interligados aos literatos do sul. Para José Lins do Rego “o movimento
literário que irradia do Nordeste muito pouco teria que ver com o modernismo do sul”
32
.
Graciliano Ramos manifestar-se-ia por diversas vezes contrário ao movimento
modernista, não reconhecendo qualquer vínculo entre aqueles e sua produção. No texto
destacado abaixo identificamos alguns pontos cruciais no que diz respeito à posição de
Graciliano Ramos em relação ao período literário que o antecedeu e o que testemunhou
como escritor, o que justifica a longa citação. Vejamos:
“Prudente de Morais Neto, crítico muito agudo, alarmando-se
justamente com a qualidade má de nossa literatura de ficção, dizia em
1930, que nos faltava material romanceável. Alguém [Graciliano
Ramos], afirmou, em resposta, que possuíamos excelentes romances
e não tínhamos romancistas.
Contrariando essa duas opiniões, logo surgiram livros que
foram recebidos com excessivos louvores pela crítica e pelo público.
Havia material e havia pessoas capazes de servir-se dele. Tínhamos,
porém, vivido numa estagnação. Ignorância das coisas mais vulgares,
o país quase desconhecido. Sujeitos pedantes, num academismo
estéril, alheavam-se dos fatos nacionais, satisfaziam-se com o
artifício, a imitação, o brilho do plaquê. Escreviam numa língua
estranha, importavam idéias, reduzidas. As novelas que apareceram
no começo do século, medíocres, falsas, sumiram-se completamente.
Uma delas, Canaã, que obteve êxito, dá engulhos, é pavorosa.
Dois sucessos contribuíram para dar cabo disso: o modernismo
e a revolução de outubro que, graças à nossa infeliz tendência ao
exagero, se ampliaram muito ou se anularam. Certamente não
criaram o material a que se referia Prudente nem o engenho
necessário ao aproveitamento dele, mas abriram caminhos,
cortaram diversas amarras, exibiram coisas que não
enxergávamos. Desanimado, com enjôo, líamos a retórica boba que
se arrumava no congresso e nos livros.
Os modernistas não construíram: usaram uma picareta e
espalharam o terror entre os conselheiros. Em 1930, o terreno se
achava mais ou menos desobstruído. Foi aí que de vários pontos
surgiram desconhecidos que se afastavam dos preceitos
rudimentares da nobre arte da escrita e, embrenhando-se pela
sociologia e pela economia, lançavam no mercado, em horrorosas
edições provincianas, romances causadores de enxaqueca ao mais
tolerante dos gramáticos.”
33
(grifo nosso).
O escritor alagoano compreende a produção literária antes do modernismo como
literatura improfícua e academicista. Em relação aos próprios modernistas de São Paulo,
sua opinião recai sobre a afirmação de se tratar de retórica boba, afirmação diretamente
32
REGO, José Lins. Gordos e magros. Rio de Janeiro. CEB, 1942, p. 50
33
RAMOS. Graciliano. Decadência do romance brasileiro In: _________; CAMARGO, Luís Gonçales
Bueno de. Uma história do romance de 30. Unicamp, 2001. (tese de doutorado). p. 61.
38
interligada à menção explícita de Graça Aranha, ao referir-se à sua obra, não sendo algo
aleatório. Já abordamos a devida participação a que coube o literato na Semana de 22.
Entretanto, à época deste artigo, 1946, este era tido por uma figura indispensável, um
grande líder dentro do movimento, situação ainda mais reforçada pela atitude de romper
com a Academia Brasileira de Letras da qual era membro. Por ora cabe evidenciar a
objeção clara de Ramos aos modernistas manifesta no ataque à Graça Aranha. Para
Graciliano Ramos, a produção literária representativa de algo realmente novo foi a dos
anos 30, com escritores capazes de afrontar os preceitos da nobre arte da escrita e fugir
das convenções lingüísticas redutoras; em contrapartida ele atribui um caráter destruidor
ao movimento modernista devido à incapacidade do grupo de edificar o que quer que
fosse. Ramos referia-se a inconsistência ideológica dos subgrupos que depois da
Semana de 22 surgiram e que, preocupados com questões puramente literárias, não
tinham condições de entender os acontecimentos que agitavam o mundo ocidental e,
especificamente, o Brasil.
Alfredo Bosi diria que “o culto do blague e o vezo das afirmações dogmáticas
acabaram impedindo que os modernistas da ‘fase heróica’ repensassem com
objetividade o problema da sua inserção na práxis brasileira”
34
e complementaria esta
observação ponderando sobre as duas expectativas literárias possíveis, ao considerar
anacrônicas ambas, pois esperar de um movimento estritamente literário uma
consistência ideológica é postura que acaba rejeitando-o, e insistir na gratuidade
inconseqüente do momento de concepção da arte é, quando posta em vida prática ou
atividade intelectual, a revelação de um decadentismo insano. Independente desta
discussão, quer se reconheça ou não, muitos dos escritores de qualidade do decênio de
30 são tributários dos modernistas da “fase heróica”. Devido à liberdade operada por
estes, àqueles se possibilitou usufruir do exercício de um inconformismo diante das
questões sociais e de um anticonvencionalismo no campo das artes, não como algo
transgressor, mas um direito.
A produção de Graciliano Ramos, quer se admita ou não a influência
modernista, foi aceita por sua linguagem e temas precisamente por terem os modernistas
assegurado o direito constante à experimentação estética, a estabilização de uma
consciência criadora nacional e a atualização da inteligência artística brasileira, como
diria Mario de Andrade posteriormente ao avaliar o movimento
35
.
34
BOSI. op. cit. , p. 389.
35
ANDRADE, Mário. Aspectos da literatura brasileira. São Paulo. Martins, 1974. p. 242.
39
Candido
36
ainda faria uma colocação sobre Graciliano Ramos, advinda do
contexto em que este surgiu e que procuramos configurar nas páginas até aqui escritas, e
que diz respeito justamente à projeção deste escritor e seu reconhecimento devido ao
temário, considerado inconformista e contundente, que o alçou ao mesmo nível de
outros de menos qualidade, ofuscando a fatura das obras de sua autoria que primam pela
estética tanto quanto pelo conteúdo abordado em uma elaboração artística realmente
válida em meio à seara contaminada em que brotou. Fica subentendido na referida
colocação que Graciliano Ramos foi algumas vezes reconhecido por qualidades outras
que não as concernentes à elaboração estética, ficando a análise da composição literária
atrelada ao temário como requisito de aferição, como se a verossimilhança interna da
obra de arte não fosse providencial para sua constituição.
Para Aristóteles, a obra deve compor-se pautada nos critérios de verossimilhança
e necessidade. A ligação dos fatos não deve ser gratuita e desconexa, mas sim surgir da
própria estrutura interna do mito. Isso não significa a mimesis da realidade tal e qual,
como o queria Platão, na medida em que este, na República, exige que a arte se paute
no princípio de verdade, estimulando a razão, e não as emoções, o que, não sendo
possível, leva-o a determinar a exclusão da poesia em sua república ideal. O próprio
Aristóteles distingue poesia de história, cabendo, pois, à primeira relatar as coisas não
como elas são, mas como poderiam ser (“o que é possível segundo a verossimilhança e
a necessidade”
37
), enquanto a segunda, independentemente de ser escrita em verso ou
prosa, deve relatar os fatos como realmente aconteceram. Diante desta colocação, as
obras de arte, portanto, devem ater-se as exigências de construção estética, e a análise
da mesma deve ser imanente ao texto. Nesta perspectiva, é preferível, para a literatura, o
impossível que convença ao possível que não convença.
Só que a capacidade de convencer (verossimilhança) da obra é o que contribui
para a ilusão realista, principalmente em obras de cunho realista como S. Bernardo, o
que reforça o fato de que não há como negar o imbricamento da forma artística e da
realidade. Isso significa que o valor de uma obra para os estudos estritamente literários
não se restringe ao seu temário pura e simplesmente. Indo além, devemos estudar o
romance S. Bernardo como produto elaborado por um arguto escritor que soube
manusear a palavra fundindo texto e contexto, o que implica entender que a análise
estética precede considerações de ordem outra que não apenas a abordagem de certo
36
CANDIDO, Antonio. A educação pela noite. 5ª ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2006. p. 239.
37
ARISTÓTELES. Poética. Trad. Eudoro de Souza. São Paulo: Ars Poética, 1993. p. 53.
40
aspecto da realidade constituinte de uma obra como parâmetro único a determinar o
significado e o valor desta; e que por outra via, privilegiando-se estritamente as
operações formais, ao se considerar a obra como matéria dissociada de
condicionamentos sociais – estes vistos como elementos inoperantes para a
compreensão da fatura –, obstrui-se o processo interpretativo, tornando-o incompleto.
Mas, para tanto, deve-se compreender que a realidade, ao ser assimilada, perde sua
feição de realidade para converter-se em elemento exclusivamente formal. No entender
de Tomachevski, “[...] o material realista não representa em si uma construção artística
e, para que venha a sê-lo, é necessário aplicar-lhe leis específicas de construção artística
que, do ponto de vista da realidade, serão sempre convenções”
38
.
O fim a que esse procedimento intenta é o de abarcar a integridade da obra
literária, porém, para que se contemple a integridade da obra, ambas as abordagens
devem consubstanciar momentos do processo interpretativo necessários para a crítica
esteticamente orientada. Esta crítica deverá verificar o desempenho de certo aspecto
social na constituição da estrutura literária “fundindo texto e contexto numa
interpretação dialeticamente íntegra”
39
. Com isto, pretende-se averiguar o fator social e
ver se este simplesmente fornece ambientes, costumes e idéias, ou interfere na
constituição da obra de arte. Caso deixe de ser elemento externo para torna-se interno à
obra enquanto elemento determinante do valor estético, “a referência ao social não deve
levar para fora da obra de arte, mas sim levar mais fundo para dentro dela”,
40
haja vista
que se revelará na própria obra, em decorrência do referencial social, algo de essencial
alusivo ao fundamento de sua qualidade. O referencial social é o conceito de reificação
que, enquanto categoria analítica aplicada ao romance S. Bernardo, revela-se e
constitui-se como traço indelével do protagonista Paulo Honório.
Para esta dissertação, interessa-nos, portanto, o romance S. Bernardo, publicado
pelo escritor Graciliano Ramos em 1934. Também interessa-nos o conceito de
reificação como categoria analítica por acreditarmos que, a partir de uma compreensão
adequada deste conceito e sua aplicação ao corpus, revela-se a formação do
protagonista Paulo Honório e, conseqüentemente, a singularidade desta obra literária, na
medida em que este personagem, ao relatar sua trajetória de vida, deixa entrever
caracteres seus que se aproximam da categoria analítica em questão, além de denotar
38
TOMACHEVSKI, B. “Temática”. In: TOLEDO, Dionísio de Oliveira (org.). Teoria da literatura: os
formalistas russos. 4ª. ed. Trad. Ana Mariza Ribeiro Filipouski et alii. Porto Alegre: Globo, 1978, p. 188.
39
CANDIDO, op. cit. , p. 13.
40
ADORNO, Theodor W.. Notas de literatura I.o Paulo. Duas cidades; ed. 34, 2003, p. 66.
41
um procedimento padrão imprescindível à sua formação. Porém, a categoria analítica
mencionada – reificação – será levada em conta como elemento pertencente à
construção artística e estudada em nível explicativo, a fim de chegar a uma interpretação
estética que privilegie a dimensão social do conceito como fator de arte, o que
acreditamos consubstanciar o entendimento da obra. Compreender e tornar viável, para
os fins de análise literária, a utilização do conceito de reificação no romance S.
Bernardo é o enfoque do próximo tópico.
42
II
FUNDAMENTOS TEÓRICOS PARA ESTUDOS SOBRE A
REIFICAÇÃO E BILDUNGSROMAN EM UMA NARRATIVA
2.1 Conceito de reificação
Ao iniciar seus estudos em O Capital, Karl Marx de imediato procura desvendar
a mercadoria sob a alegação de que a produção capitalista configura-se em imensa
acumulação da mesma e que esta mercadoria, considerada isoladamente, é forma
elementar da riqueza das sociedades. Seja qual for sua natureza, a mercadoria é uma
coisa que, por suas propriedades, satisfaz necessidades humanas. A utilidade desta coisa
implica em valor de uso. Tal valor de uso independe da quantidade de trabalho
empregado para obter as qualidades úteis da mercadoria. Porém, o valor de uso realiza-
se somente com o consumo ou a utilização da mercadoria. Em outras palavras, a base
das riquezas são as mercadorias – forma elementar – acumuladas que adquirem um
valor de uso mediante convenções relativas à necessidade e ou comodidade da vida
humana, e que se realiza na utilização ou no consumo, o que implica dizer que o valor
de uso da mercadoria não é inerente à constituição da mercadoria.
Ainda, considerando-se a mercadoria enquanto coisa útil, a esta se atribuem dois
aspectos: qualidade e quantidade. Estes aspectos revelam-se ao processar o valor de uso
de uma mercadoria, pois os valores de uso são simultaneamente os veículos materiais
do valor de troca na medida em que o valor de troca revelar-se-á na relação quantitativa
entre valores de uso de diferentes espécies, na proporção em que se trocam, ao passo
que as mercadorias como valores de uso diferem qualitativamente.
Mas Marx, ao prescindir do valor de uso da mercadoria, acaba por não
considerar também a propriedade desta de ser produto do trabalho, conseqüentemente
admite-se o desvanecer das diferentes formas de trabalho concreto, não havendo
distinção entre estas. Tal admissão reduz as diferentes formas de trabalho a trabalho
humano abstrato por não se considerar a forma como foi despendida a força de trabalho
43
humana. O que se evidencia, portanto, é o valor das mercadorias ao processar-se o valor
de troca ou a relação de permuta.
No entanto, o valor de uso ou um bem só possui valor porque nele está
corporificado, materializado, trabalho humano abstrato, além de ser um valor de uso
social, o que implica na produção de mercadorias para os outros. Dessa forma, as
mercadorias só adquirem valor na medida em que são expressões de uma mesma
substância social, o trabalho humano, e seu valor é uma realidade apenas social, só
podendo manifestar-se na relação social em que uma mercadoria se troca por outra, e
que só se contrapõem como mercadorias por serem produtos de trabalhos privados e
autônomos, independentes entre si.
Como resultado, a igualdade dos trabalhos humanos fica disfarçada sob a forma
da igualdade dos produtos do trabalho como valores, e que é a conseqüência da medida,
por meio da produção, do dispêndio da força humana de trabalho. O que se verifica é
que as mercadorias possuem uma forma comum de valor, que só pode ser avaliada
quantitativamente. Assim, as relações entre os produtores, nas quais se firma o caráter
social dos seus trabalhos, assumem a forma de relação social entre os produtos do
trabalho.
Para Marx, essa relação social definida, estabelecida entre os homens, “assume a
forma fantasmagórica de uma relação social entre coisas”
41
, encobrindo as
características sociais do próprio trabalho dos homens, ao ponto de a mercadoria
apresentar-se com características materiais e propriedades sociais como inerentes a si
mesma. A isto Marx chama de fetichismo.
Ao se processarem os contatos sociais sob a forma de relação social entre os
produtos do trabalho, esses mesmos produtos assumem a forma comum de valor e a
forma dinheiro, “que contrasta com a flagrante heterogeneidade das formas corpóreas de
seus valores de uso”
42
, na medida em que cada espécie particular de trabalho privado
útil pode ser trocada por qualquer outra com que se equipara. Na prática, essa relação
social trata de saber quanto de outras mercadorias podem os produtores receber pelas
suas mercadorias e em que proporções os produtos se trocam. Essas relações sociais
vividas como e sob a forma de relações entre mercadorias ou coisas implicam
diretamente no conceito da reificação.
41
MARX, Karl. O Capital Trad. Reginaldo Sant’anna. Vol. 1. 10ª ed. São Paulo: DIFEL, 1985. p. 81.
42
Idem. , p. 55.
44
Pressupondo as análises de Karl Marx, Georg Lukács investiga os problemas
resultantes do caráter fetichista da mercadoria enquanto forma de objetividade e em
relação ao comportamento do sujeito submetido a ela, averiguando a influência
existente em toda a vida exterior e interior da sociedade decorrente da troca de
mercadoria. Para tanto, Lukács procede à análise do fenômeno da reificação. Sem
adentrar nos problemas a que este crítico se dispõe a estudar, cabe aqui constatar sua
observação concernente ao homem. Na interpretação deste pesquisador, o homem,
confrontado com seu próprio trabalho como algo objetivo e que lhe é independente, vê-
se dominado por leis próprias desse trabalho e que lhe são estranhas mesmo sendo ele o
portador do referido trabalho. Isso ocorre tanto sob o aspecto objetivo quanto o
subjetivo. Objetivamente, o homem não exerce uma influência transformadora sobre o
processo real por meio de sua atividade no mundo das mercadorias, cujas leis opõem-se
como poderes intransponíveis ao indivíduo, mesmo sendo este conhecedor dessas leis.
Subjetivamente, este homem vê-se diante da objetividade se sua atividade em relação a
si mesmo, tornando-se uma mercadoria. As implicações desses aspectos objetivo e
subjetivo, que se estendem até a alma, advêm do surgimento do capitalismo moderno e
agem no sentido de “substituir por relações racionalmente reificadas as relações
originais em que eram mais transparentes as relações humanas”
43
.
Retornando a Marx, este insiste que a reificação existe em todas as formas
sociais desde que estas tenham atingido o nível de produção de mercadorias e de
circulação de dinheiro, sendo no modo de produção capitalista e no capital a sua
manifestação mais expressiva.
O modo de produção é o princípio formador da organização social dos homens.
Expliquemo-nos. Empreendendo análise sobre este aspecto, para Gorender o ser social
dos homens será a produção e reprodução dos homens enquanto sociedade humana, e
nada mais que isso. Ao referir-se à sociedade humana, no singular, este pesquisador tem
em mente o sujeito único e contínuo da história, desta forma abrangendo desde a mais
primitiva tribo até as mais modernas organizações sociais, o que implica em uma
sociedade humana antagônica em si mesma devido à divisão em classes. Paralelamente,
ela se pluraliza na história em decorrência das múltiplas formações sociais coexistentes
e sucessivas. As formações sociais não se restringem apenas aos modos de produção,
mas compõem-se também de formas de consciência social e instituições, superestrutura
43
LUKÁCS, Georg. História e Consciência de Classe. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 207.
45
coletivamente criada pelos homens a partir da estrutura que é o modo de produção. O
modo de produção engloba um processo de produção, distribuição, circulação e
consumo sempre reiterado de bens materiais. Todas estas fases são distintas ao mesmo
tempo em que se interpenetram. Conseqüentemente, a produção em si detém os
pressupostos e momentos particulares concernentes ao princípio formador da
organização social dos homens, sendo, portanto, o modo de produção o ponto de partida
para sua análise.
Ainda sobre o modo de produção, abstraem-se duas categorias que ficaram
implícitas ao se resenhar há pouco O Capital: as relações de produção e as forças
produtivas.
As relações de produção ou relações econômicas que compreendem as
generalidades dos aspectos sociais das relações dos homens em sua base, indiferente à
associação em comunidades ou à divisão em classes dos homens, constituem-se em
relações objetivas que os homens estabelecem entre si ao produzirem como seres
sociais, ainda que produzam como indivíduos isolados, independente de sua vontade, o
que não significa afirmar que os homens não adquiram certa forma de consciência
proveniente das relações objetivas decorrentes do processo de produção. A produção é,
por outro lado, resultante da conjunção do homem, agente subjetivo, com certos
elementos materiais, e aí se incluem os meios de produção e o objeto de trabalho com e
sobre os quais atua o homem, ambos componentes das forças produtivas. O desenrolar
das forças produtivas, determinadas pelas relações de produção de acordo com as
necessidades da produção, caracteriza-se à forma de estrutura de relações entre os
homens no modo de produção, de um jeito que o modo de produção é por si mesmo um
modo de reprodução continuado das referidas categorias. Da transformação proveniente
das forças produtivas, todavia, verificar-se-á a substituição das relações de produção. A
essas relações de produção, incompatíveis com as novas forças produtivas, se sucederão
outros modos de produção e de formações sociais. Gorender afirma que
“O estudo de uma formação social deve começar pelo estudo do modo
de produção que lhe serve de base material. As formações sociais
podem conter um único modo de produção, o que lhes atribuirá
homogeneidade estrutural. Podem conter, no entanto, vários modos de
produção, dos quais o dominante determinará o caráter geral da
formação social. Comumente, os próprios modos de produção não são
puros, mas encerram categorias insuficientemente desenvolvidas ou
46
decadentes, que representam embriões ou sobrevivências de modos de
produção diferentes.”
44
É a partir do enfoque no modo de produção, portanto, que Jacob Gorender,
procedendo à inversão metodológica na habitual explicação de nossa constituição
histórica, em seu livro O Escravismo Colonial, pretende “correlacionar as relações de
produção às forças produtivas em presença e elaborar a categoria de modo de produção
escravista colonial”
45
.
Gorender mesmo reconhece que, dentro de um condicionamento histórico
preciso de categorias como mercadoria e capital, o capitalismo não comporta escravos
enquanto modo de produção capitalista, segundo a teoria geral marxista, o que ele
procura suprir ao buscar compreender as relações de produção a partir de Marx. Para
Marx, tanto a escravidão quanto a servidão em comum possuem uma característica, a
coação extra-econômica do produtor direto enquanto relações de produção. O
trabalhador assalariado como trabalhador livre que vende sua força de trabalho –
complexo de suas energias físicas e mentais – ao capitalismo, não procedendo, porém, à
venda da referida força de trabalho por curtos períodos, mas em bloco e para sempre, da
condição de livre que era far-se-á escravo, vendendo a si mesmo indistintamente de sua
força de trabalho, mesmo que aparente efeito consentido da contratação livremente
convencionada, porque o trabalho assalariado, produtor de mais-valia, na essência
continua sendo trabalho forçado. Isto é resultante da coação econômica a que o operário
livre assalariado se sujeita.
Admitindo, dessa forma, ao analisar o modo de produção, o homem, este
trabalhador livre, servo da gleba ou escravo como sendo utilizado sem diferença na
medida em que se tem sua jornada dividida em trabalho necessário e sobretrabalho, e
está submetido à “sujeição” resultante da coação extra-econômica nos dois primeiros
tipos de relação de produção, e à “sujeição” resultante da coação econômica no último
tipo, Gorender possibilita sem subterfúgios a aplicação de conceitos marxistas à
realidade brasileira.
O que nos interessa, diante de toda a abordagem até aqui feita acerca do que
escreve Marx, Lukács e Gorender, é justamente a compreensão da categoria de
reificação e sua aplicação à realidade brasileira de maneira cômoda, para que então
44
GORENDER, Jacob. O Escravismo colonial. 6ª ed. São Paulo: Ática, 1992. p. 11.
45
Idem. , p. 7.
47
procedamos à análise do romance S. Bernardo enquanto corpus a ser estudado nesta
dissertação, empreendendo a inserção do conceito de reificação como categoria analítica
que influi diretamente na fatura da referida obra literária. Partindo, portanto, da
premissa de que coexistiram dois modos de produção, um na fase de desenvolvimento e
o outro em fase decadente, em meio ao do processo brasileiro de modernização
conservadora, podemos proceder a uma análise do romance S. Bernardo a fim de
estudar a reificação de Paulo Honório. Tal proposição não nos parece secundária e agora
a justificaremos mais veementemente.
A realidade na década de 30 é marcada pelo recrudescimento da luta ideológica.
Diversos movimentos medem suas forças em disputas acirradas. Os imperialistas se
expandem, o capitalismo monopolista se consolida e, em contrapartida, as frentes
populares se organizam. A consciência da luta de classes penetra em todos os lugares,
inclusive na literatura. No entanto, no Nordeste brasileiro nos deparamos com uma
complexidade conceitual séria, pois ao mesmo tempo em que se admite uma estrutura
capitalista, com algumas de suas características, não podemos negar a existência da
estrutura patriarcal. Há um cenário que expõe, por exemplo, uma situação em que, ao
mesmo tempo em que se admite uma modernização, há a presença do trabalho arcaico.
Este paradoxo, que faz com que a consciência da luta de classes na região seja confusa,
é reflexo de um Brasil que praticou a junção contraditória de formas de relações
interpessoais e sociais, que supõem a independência ou a autonomia do indivíduo e sua
dependência pessoal direta, repercutindo em nossa história de um modo que nunca
superaram completamente seja a independência, sejam as sucessivas modernizações
conservadoras. A literatura da geração de 30, de testemunho e denúncia social, refletiu
esta problemática, evidenciando este cenário, via ficção.
Para este momento específico de nossa história sócio-cultural e
sócio-econômica, admitindo-se a relação literatura e sociedade como linha de pesquisa,
uma das obras literárias que melhor representa esta realidade é S. Bernardo.
S. Bernardo narra a ascensão social de Paulo Honório, narrador e protagonista,
que deseja obcecadamente possuir a fazenda que dá título à obra. Transcorrida uma vida
de lutas e brutalidade, apossa-se, oprimindo Padilha, através de um negócio que lhe é
vantajoso, da fazenda S. Bernardo, onde fora trabalhador de enxada. Alcançado o
objetivo, sai à busca de casamento na pretensão de ter um herdeiro. Firma contrato com
Madalena, professora que lhe cede à proposição do negócio. Todavia Madalena,
tiranizada sob a forma de um ciúme agressivo e degradante, suicida-se. Habituado às
48
relações no campo da objetivização, Paulo Honório não distingue a dignidade da
esposa. Esta história é narrada com certa peculiaridade, e que consiste em uma seleção
de cenas, a partir da perspectiva do próprio Paulo, que nos revelam um olhar
quantificador sobre as coisas, e uma seleção de atos que narram sua posição sempre
vantajosa em relação aos demais, sem que haja de sua parte uma conscientização do que
seja bom ou ruim em relação ao que fez em sua trajetória.
Ao lermos o romance, Paulo Honório narra-nos a automação do descaroçador, o
plantio de flores apenas com o intuito de vende-las, suas relações pessoais que são tidas
como negócios, as pessoas que mantém em suas terras, seus trabalhadores como
Casimiro Lopes, mais servo do que funcionário. Essas passagens do texto, e outras,
referendam o caráter capitalista do personagem na medida em que as relações
econômicas se dão neste âmbito. Ao mesmo tempo o delimita como um senhor
patriarcalista, pois suas relações sociais desenrolam-se no domínio dessa estrutura.
Ainda, se acompanharmos a natureza da personagem, como nos aconselha
Antonio Candido, verificaremos que em S. Bernardo tudo é seco, cortante e bruto, e
que talvez não haja outro romance em nossa literatura tão limitado ao essencial, e
“capaz de exprimir tanta coisa em resumo tão estrito”
46
. Este aspecto, por si só, é fator
inesgotável para o seu fascínio, já que como poucas esta obra permitirá uma idéia de
perfeição, de ajuste ideal entre os elementos que compõem um romance. Enfim, uma
técnica determinada pela redução, dos seres e coisas, à visão do protagonista que
seleciona um mundo áspero, de relações diretas e decisivas, atos bruscos e hirtos
sentimentos. Eis a atmosfera que circunda a fazenda S. Bernardo. Dessa forma o
romance aborda a problemática da coisificação de tudo, seres e objetos, na medida em
que evidencia a quantificação irrestrita estabelecida por Paulo Honório. Este aspecto da
narrativa aproxima-se do conceito de reificação, termo que encerra em seu significado
um mundo de relações e ações reduzíveis à medição, ou seja, à quantificação
incondicional de seres animados e inanimados, processo inerente e resultante do
capitalismo. A obra se apresenta assim, pois, na narrativa, a reificação constitui-se o fio
condutor de todas as relações, além de ser a característica intrínseca de Paulo Honório e,
conseqüentemente, a barreira que o impede de conhecer um mundo externo ao mundo
quantificado em que vive, o mundo das mercadorias com seus fetiches, além de ser
determinante em sua formação. A reificação é resultante das relações sociais, “no
46
CANDIDO, Antonio. Ficção e Confissão: ensaios sobre Graciliano Ramos. 3ª ed. São Paulo: Ouro
sobre azul, 2006. p. 109.
49
mundo das mercadorias”, onde o homem adquire um olhar quantificador sobre tudo.
Assim, ao coisificar as relações, o homem aniquila qualquer olhar qualitativo, visando
apenas às relações de maneira mensurável. Portanto, considerando a recorrência desse
fato como componente central da narrativa e do protagonista, a reificação como
categoria analítica torna-se pertinente na medida em que possibilita o entendimento e
uma leitura mais rica da obra S. Bernardo.
2.2 A questão da reificação na tradição crítica do romance S. Bernardo
Alguns ensaios, de maneira pertinente, já demonstram o caráter reificado do
protagonista Paulo Honório e as instâncias em que se observa tal característica.
Luiz Costa Lima é o primeiro a associar o conceito de reificação ao romance S.
Bernardo. A epígrafe de Joyce Cary
47
, escolhida por Lima e posta no frontispício de
seu texto A reificação de Paulo Honório
48
, revela a intenção deste crítico de
compreender a referida obra do escritor Graciliano Ramos a partir de uma idéia que
unifique e de forma ao romance; justamente o conceito de reificação, elemento a que se
orienta Paulo Honório na articulação com a natureza, com os outros e consigo mesmo.
A natureza é pretexto para se falar das obras empreendidas por Paulo Honório; a relação
estabelecida com as pessoas desenvolve-se em suas possibilidades quantitativas; e a
vida do protagonista reduzida à aquisição e cultivo da propriedade S. Bernardo exige
deste a reificação de si mesmo.
João Luis Lafetá, no ensaio O mundo à revelia, também empreende análise
sobre o caráter reificado de Paulo Honório
49
. Para Lafetá, a relação indissolúvel entre
ação e personagem revela caracteres deste personagem. Seus atos, subordinados ao tema
unificador, que é o sentimento de propriedade, ratificam o universo reificado do
romance, responsável pela destruição existente na narrativa S. Bernardo. Ao identificar
o caráter dinâmico e objetivo do protagonista Paulo Honório na aquisição da fazenda S.
47
“Sem uma idéia unificante, é impossível que um livro tenha forma” Joyce Cary.
48
LIMA, Luiz Costa.A Reificação de Paulo Honório”. In: Por que Literatura. Petrópolis: Vozes,
1969. p. 49 - 70.
49
LAFETÁ, João Luiz. O mundo á revelia. In: São Bernardo. 75ªed. Rio de Janeiro: Record, 2002,
pp.192-218.
50
Bernardo, desnudando o sentimento de propriedade existente neste, verifica-se uma
relação entre Paulo Honório e o mundo embasada em aspectos quantitativos. Os
aspectos quantitativos são resultantes do modo de produção capitalista em que toda
qualidade sensível das coisas é desprezada. A consciência de Paulo Honório, formada a
partir dessa realidade onde a atividade transformadora do mundo, que é a produção de
bens desconhece qualquer interação qualitativa, vê-se condicionada por parâmetros, por
ditames correlacionados à noção de reificação. Sua personalidade, assim composta, será
responsável pela destruição dos outros e de si mesmo.
Ambos os ensaios, por abordarem a mesma obra literária e discorrerem sobre
aspectos semelhantes da narrativa, não deixam de se complementarem pela capacidade
crítica da análise destinada a compreender a singularidade do romance, a exemplo da
proposição de Lima de unificar a narrativa a partir do conceito de reificação, enquanto
que para Lafetá é o sentimento de propriedade o tema unificador presente na narrativa.
Parece-nos ser a reificação o eixo diretor do romance S. Bernardo mais do que o
sentimento de propriedade, já que é aquele traço da personagem Paulo Honório que
origina esse sentimento. Mas ao empreender uma análise do sentimento de propriedade
Lafetá expande o entendimento do romance, revelando outros caracteres inerentes a essa
personalidade reificada de Paulo Honório.
Rinaldo Nunes Fernandes também empreende análise sobre a obra S. Bernardo,
dando enfoque ao conceito de reificação em seu ensaio A reificação de Paulo Honório
revisitada
50
. A partir do ensaio de Lima, Fernandes dispõe-se a analisar a instância
referente à reificação dos outros, por ser mais do que os dois outros níveis – a saber, a
reificação da natureza e a reificação de si mesmo – a que mais se evidencia na narrativa,
pois no desdobramento do enredo há diversas relações conflituosas mediadas pelo
caráter reificado do protagonista, deslindando sua trajetória de vida. Delimitada a
abordagem, este procura estabelecer um esquema para as relações existentes na
narrativa. As relações, segundo Fernandes, excetuada a estabelecida com Madalena,
obedecem ao seguinte esquema: contato tensão vantagem. Observa-se nesse
esquema um percurso da personagem em busca de vantagens não sem o confronto com
os outros; essa busca constitui o percurso da vantagem. Como resultado, ao final, Paulo
Honório consegue uma determinada ascensão social.
50
FERNANDES, Rinaldo N. A reificação de Paulo Honório revisitada. In: PONTES, Neroaldo (org):
100 anos de Graciliano Ramos. João Pessoa: Idéia, 1992. p. 109 -127.
51
Fernandes, ao admitir um percurso da vantagem e um processo de ascensão
social, evidencia na trajetória de vida de Paulo Honório, ainda que de maneira tácita, um
procedimento que este adota e que advém de um aprendizado. Guiado por uma
necessidade de obter vantagem, o protagonista adota certos procedimentos que
aprendera durante sua trajetória de vida. Ao que nos parece, são esses procedimentos
advindos de uma formação que evidenciam a idéia de reificação.
Ora, Lima foi o primeiro a associar o conceito de reificação ao romance S.
Bernardo, identificando as instâncias em que ocorre; Lafetá evidenciou, além de outros
caracteres provenientes da personalidade reificada do protagonista, as conseqüências
advindas da conduta reificada de Paulo Honório; e Fernandes procurou estabelecer um
esquema para as relações do protagonista com os outros indivíduos. Parece-nos
relevante levar adiante os estudos relacionados à reificação em S. Bernardo para além
dos apontamentos já elucidados pelos pesquisadores acima comentados. Como
acabamos de mencionar, o ensaio de Fernandes aponta-nos, ainda que de maneira
implícita, para a questão de um procedimento a que Paulo Honório recorre, e este
procedimento é conseqüência de um aprendizado que o protagonista obtém com a vida.
É no decurso de sua trajetória, somada às experiências de vida, que Paulo Honório opta
por determinadas atitudes, revelando seu caráter reificado; tais escolhas são resultantes
de uma formação voltada para a obtenção do lucro, da vantagem. Como supomos, ao
estabelecer um esquema, Fernandes não o desenvolve no sentido mais profundo de ser
resultado de um procedimento proveniente de uma formação adquirida por parte do
protagonista Paulo Honório. Entretanto, fica subentendido em seu texto tal noção de
formação na medida em que este cita os estudos de Carlos Nelson Coutinho sobre a
obra de Graciliano Ramos. Aliás, Lafetá, em seu ensaio, também menciona a mesma
passagem, extraída por Fernandes do texto de Coutinho, e que reproduzimos a seguir
em negrito:
“É na luta contra seu primitivo status quo, a miséria e a baixa
condição social, que Paulo Honório começa a definir sua
personalidade. Ela não aceita passivamente a realidade dada: sua
ambição poderosa, onde estão evidentes os traços da penetração
capitalista em nossa sociedade, leva-o a buscar na riqueza e no
domínio – em suma, na ascensão social – o sentido para a vida.
Graciliano captou aqui um dos traços essenciais do capitalismo
nascente: o crescimento da mobilidade social, o rompimento com as
barreiras coaguladas do pré-capitalismo. Esta luta pela ascensão
social, naturalmente, é uma luta solitária e individualista; ela define
os valores que regem a atividade de Paulo Honório, ou seja, a
52
propriedade sobre as coisas e sobre os homens. Ora, quando inexiste
o nós, a fraternidade e a solidariedade, a relação entre os indivíduos
(...) não pode deixar de ser a relação entre o Servo e o Senhor. Paulo
Honório reduz tudo ao seu interesse egoísta: os homens são apenas
instrumentos de sua ambição, meios que ele utiliza para a obtenção
do próprio fim, ou seja, a realização individual a que se propõe.
A construção de um burguês: eis o conteúdo da primeira
parte de São Bernardo. Note-se que Graciliano (...) não nos apresenta
um burguês acabado, estático e definido de uma vez por todas: ele narra
a evolução psicológica de Paulo Honório, o desenvolvimento de sua
violenta e apaixonada ambição, em estreita ligação com a “totalidade
dos objetos” que torna possível a realização de seus objetivos. (...) A
construção de um burguês: esta construção é, simultaneamente, a
criação de um novo “pequeno mundo” (...)
51
. (grifo nosso).
O fragmento destacado por Lafetá e Fernandes em seus respectivos textos
encontra-se inserido em um raciocínio mais amplo. A longa citação busca precisamente
contextualizar a idéia absorvida pelos críticos em relação ao texto de Coutinho. Ora, ser
a construção de um burguês o conteúdo da primeira parte do livro S. Bernardo é o que
afirmam Lafetá e Fernandes ao reproduzirem sem qualquer ressalva o texto de
Coutinho, estabelecendo-se, naturalmente, um consenso entre esses críticos. Esta
construção, evidentemente, advém de um desejo de ascensão social, motivado pela
negação do protagonista Paulo Honório de sua condição social inicial. A possibilidade
de mobilidade social almejada por este personagem esta atrelada a fatos históricos – a
assimilação do capitalismo nascente no Brasil – como admite Coutinho. Estas
colocações destinam-se de certa forma a correlacionar Paulo Honório aos valores da
classe burguesa – esta que vem adquirindo forças de classe dominante no Brasil – para
que então cada um dos críticos mencionados desenvolva seus respectivos estudos. Em
linhas gerais, já mencionamos os estudos estabelecidos por Lafetá e Fernandes sobre o
romance S. Bernardo cabendo agora uma abordagem a despeito do ensaio de Coutinho.
Coutinho principia seu ensaio Graciliano Ramos
52
com a incisava afirmação de
que a obra do escritor alagoano é capaz de abranger todo o “processo de formação da
sociedade brasileira contemporânea, em suas íntimas e essenciais determinações”
53
.
Prosseguindo, observa o processo de penetração e desdobramento do capitalismo face à
realidade brasileira. Entre as conseqüências desta penetração, Coutinho aponta o
surgimento de um novo homem em meio à estagnação e à inércia existente no seio da
51
COUTINHO, Carlos Nelson. Cultura e sociedade no Brasil. Rio de Janeiro: DP&A, 2000, p. 174 -
175.
52
COUTINHO, op. cit. , pp. 157-217.
53
Idem. , p. 159.
53
velha sociedade semicolonial. No caso específico do romance S. Bernardo, o
personagem Paulo Honório é representativo desse novo homem socialmente
determinado, portanto, a narrativa trata da formação deste personagem, um burguês em
desenvolvimento. Mas a ressalva diante dessa colocação é clara: a formação restringe-se
a primeira parte de S. Bernardo. Mesmo reconhecendo um desenvolvimento de Paulo
Honório, Coutinho considera S. Bernardo um romance de ilusões perdidas. “(...) da
ilusão de que uma vida solitária e o pequeno mundo do proprietário possam
proporcionar uma realização humana digna e autêntica; (...) da ilusão em conciliar um
ideal de solidariedade humana com a existência solitária no interior de um mundo vazio
e prosaico.”
54
. Coutinho, embasado nos estudos empreendidos por Lukács em seu livro
A teoria do romance
55
, não reconhece o romance S. Bernardo como uma narrativa de
formação, posição divergente à nossa, pois, ao que nos parece, a questão da formação é
sim tema relevante em S. Bernardo, não se restringindo somente à primeira parte da
obra literária, sendo inclusive profícuo ao entendimento das questões concernentes a
reificação de Paulo Honório.
Empreender a analise da reificação de Paulo Honório neste estágio dos estudos
acadêmicos requer, portanto, o entendimento do conceito de Formação
(Bildungsroman). Ao considerar o conceito de formação na análise do romance S.
Bernardo, o intuito é o de averiguarmos como se constrói esse caráter reificado do
protagonista, tornado-o compreensível para além das ações que o revelam . Tal inserção
não nos parece aleatória como procuraremos evidenciar a partir dos muitos elementos
que a narrativa nos fornece para a devida associação ao conceito de formação. Para
tanto, nós estabeleceremos também a correlação com os estudos elaborados por Lukács,
e que Coutinho considerou para a sua alegação em relação ao romance S. Bernardo,
mostrando que tal teoria, contrastada com o corpus em discussão, além de propiciar o
entendimento deste, torna patentes os pontos de intersecção entre os preceitos
estabelecidos dentro das discussões acerca das delimitações de que obra é ou não um
romance de formação, aborda ou não a questão da formação do protagonista.
54
Idem, 177.
55
Cf. LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. 1ªed. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000.
54
2.3 Bildungsroman: origem e situação histórica
Desde o início de sua incorporação ao discurso acadêmico, no ano de 1870, o
termo Bildungsroman, cunhado na Alemanha e considerado ao longo de sua trajetória
pela historiografia literária uma forma de romance legitimamente pertencente ao espírito
nacional alemão, esteve atrelado à idéia de educação e formação das diversas classes
sociais, enquanto, paralelamente o romance como gênero literário firmava-se como
literatura digna.
A noção de Bildungsroman, cristalizada já na época de sua inserção ao discurso
acadêmico, é a de um fenômeno cujas origens confundem-se à própria história do
espírito alemão. Formam o núcleo de circunstâncias consideradas pela historiografia
como origem do conceito o seu caráter apolítico em relação a incipiente classe média
alemã, o excesso de subjetivismo, e o desejo burguês por uma formação universal e pelo
equilíbrio entre a subjetividade e a coletividade.
O conceito Bildungsroman morfologicamente constitui-se pela justaposição dos
radicais Bildung (formação) e Roman (romance), dois conceitos fundadores do
patrimônio das instituições burguesas. O romance de formação integra um “mecanismo
de legitimação de uma burguesia que quis ver refletido seus ideais em um veículo
literário”
56
, isto é, ao mesmo tempo em que a “classe média alemã ascende em direção
à efetivação de sua emancipação política, processo que se reflete na busca pelo auto-
aperfeiçoamento e pela educação universal”
57
reconhece-se o romance como gênero
literário voltado para a representação do próprio ideário burguês, deixando de ser uma
narrativa trivial, para substituir a epopéia, forma narrativa até então vigente.
Processa-se uma estreita relação entre as condições de produção e de recepção
do romance, consumido e editado pela burguesia. Não se representam mais na nova
narrativa os seres de capacidades extraordinárias, mas o jovem que busca uma profissão,
o auto-aperfeiçoamento, inaugurando-se perante a vida, almejando seu lugar no mundo.
O fim desta busca tem em si o reconhecimento político e a legitimação da incipiente
burguesia alemã que anseia por ultrapassar os limites estreitos da educação para o
56
MASS, Wilma Patrícia Marzari Dinardo. O Cânone Mínimo: O Bildungsroman na história da
literatura. São Paulo: UNESP, 200. p. 217.
57
Idem, p. 22.
55
trabalho e para a perpetuação do capital herdado. Verifica-se o desejo manifesto da
burguesia, enquanto classe, de superar os limites inerentes à sua origem social ao
buscar-se a aquisição de cultura pessoal e do exercício da educação como forma de
aperfeiçoamento do indivíduo em direção à possibilidade de formação universal. Tais
aspirações estavam essencialmente vinculadas ao ideário iluminista (Aufklãrung), o que
levou a associação de formação (Bildung) à educação (Erziehung). Isto no contexto das
últimas três décadas do século XVIII significou a aproximação do romance de formação
à noção de processo, compreendido como sucessão de etapas, teleologicamente
encadeadas, que integram o aperfeiçoamento do indivíduo, propiciando a este a
harmonia e o conhecimento de si e do mundo.
Para tanto, a educação, naquela época, era tida como um meio de moldar e
formar o caráter dos homens, e tinha no centro de sua concepção Jean Jacques Rousseau
com as origens da educação moderna e a crença na natureza humana compreendida
como susceptível a modificações e aperfeiçoamento. O aperfeiçoamento e/ou educação,
ficaria a cargo do Estado, que deveria “prover o indivíduo da capacidade de responder
por suas obrigações ante esse mesmo Estado, de forma a assegurar a funcionalidade
social”
58
. A educação ofertada, entretanto, seria diferenciada, contemplando as devidas
classes sociais com uma formação que conviesse e habilitasse cada cidadão dentro de
sua respectiva classe, em nome da funcionalidade social, tornando-o melhor para o
desempenho de sua função junto à coletividade.
A representação do processo formação/educação configurou-se entre o otimismo
Iluminista de educação (Erziehung) no sentido de um processo pedagógico que levasse
ao desenvolvimento das faculdades racionais do indivíduo e o bildung usado para
designar uma formação universal, oposta ao sentido de bildung burguesa sustentada por
uma sociedade de classes.
O conceito Bildungsroman, desde sua inserção nos meios acadêmicos, encontra-
se atrelado à obra Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister, como formação
universal que regula e dirige a trajetória do personagem Wilhelm Meister, ao mesmo
tempo em que pressupõe uma postura ativa deste. Conseqüentemente, por haver
motivos temáticos e estruturais no que concerne ao desenvolvimento da personalidade
de seu protagonista, as palavras Bildung (formação), Erziehung (educação) e
Ausbildung (formação especializada) são instâncias que permeiam a sua trajetória.
58
Idem, p. 32.
56
A história de vida do personagem Wilhelm Meister diz respeito à trajetória do
jovem desde o lar burguês em direção à busca por uma formação e pelo
aperfeiçoamento de suas qualidades inatas, sua relação com as várias esferas da
sociedade da época, até sua inserção na aristocracia. Esta trajetória, considerada
arquetípica, bem como a projeção da figura de Goethe, somadas às condições de origem
e à historicidade que impregnam ideologicamente o conceito de Bildungsroman, levam-
nos a mensurar qualquer obra sob a perspectiva de temática e composição estética
considerada como Bildungsroman perante o paradigma literário que é Os Anos de
Aprendizado de Wilhelm Meister, porém, sem assumir uma postura a-histórica diante
do conceito, caso que se viesse a ocorrer restringiria a tarefa da crítica literária a apenas
determinar o grau de semelhança com a obra modelar de Goethe. Em outras palavras,
utilizar-se de tal conceito, tido como fenômeno tipicamente alemão, não significa
encontrar elementos do corpus em análise nesta dissertação – S. Bernardo – a fim de
enquadrá-lo dentro do hall de obras como mais um exemplo de Bildungsroman, e sim
compreender o romance S. Bernardo em profundidade analítica, utilizando-se deste
conceito em perspectiva histórica, guardada as devidas proporções, e conseqüentemente
atualizando tal conceito já que é a singularidade de uma obra literária que deve forjar
uma teoria e crítica literária mais contundente e não o contrário, um conceito enrijecer
as formas narrativas. Assimilar esta conduta requer uma postura obstinada em
compreender o Bildungsroman em suas configurações históricas e literárias
determinadas, ou seja, mesmo sendo o conceito de Bildungsroman historicamente
delimitado em suas origens, isso não impede sua apropriação por épocas histórico-
literárias outras que não a do contexto alemão quando se tem sua gênese, demonstrando
que o conceito tem sofrido transformações ao longo de sua existência justamente por ser
um produto de configurações históricas.
O próprio decurso histórico, segundo Maas, interfere nas possibilidades de
formação de Wilhelm Meister. Este, da ânsia de uma formação universal como se
observa em Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, acaba por ver-se fadado a
uma formação especializada (Ausbildung) em Os anos de peregrinação de Wilhelm
Meister, romance publicado quase trinta anos depois de seu predecessor. Neste
romance a formação universal humanístico-filosófico cede lugar à concepção utilitarista
de formação circunscrita e harmonizada com as vivências de técnica e do acúmulo de
capital, apresentando-se como uma necessidade de integração social. Ao se indicar a
transformação na concepção de um mesmo escritor – no caso, Goethe – quanto à noção
57
de formação, em decorrência do passar dos anos, literariamente observam-se as
determinações, as conjunturas históricas a que se sujeita o conceito de formação.
Mass, ao reparar na utilização do verbo ausbilden, verbete que encerra em si o
sentido de um desenvolvimento de habilidades específicas, infere que a propositada
utilização deste verbo prenuncia a condição futura de Wilhelm Meister de ter que
renunciar à tão almejada formação universal
59
. Na carta que Wilhelm Meister endereça
a Werner em Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, esta palavra poderia muito
bem não ter sido utilizada, já que Meister ambicionava uma formação universal, como
fica expresso. Em conformidade com o desejo de formação universal, seria mais
condizente empregar o verbete bilden por expressar um conteúdo mais amplo no sentido
de uma formação para a vida e não apenas para fases da vida prática. O emprego
voluntário do verbo ausbilden assinala a futura abdicação do protagonista a uma
formação universal em Os anos de peregrinação de Wilhelm Meister: aqueles que
renunciam (Wilhelm Meister Wanderjahre: Die Entsagenden). Portanto, se
considerarmos o encaminhamento dado à questão da formação do protagonista,
integrando à lista de romance de formação o terceiro livro de Goethe, que é Os anos de
peregrinação de Wilhelm Meister, como sugere Maas, observaremos as
transformações a que a própria idéia de formação sofre no decurso do tempo histórico.
Levando-se em consideração a formação especializada (ausbilden), se
observarmos a narrativa S. Bernardo, verificaremos na trajetória de vida do
protagonista Paulo Honório uma formação especializada para o acúmulo do capital, fim
último de seu caráter reificado. A especialização de sua formação evidencia-se no
momento em que este, ao criticar dona Glória, tia de Madalena, aponta-lhe a
incapacidade de especializar-se em uma tarefa só, e de preferência rentável, como ele
procedera. Sem nos aprofundarmos por enquanto nesta questão da formação
especializada no romance S. Bernardo, advertimos apenas que a distância histórica
existente entre Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, publicado em 1796 na
Alemanha, e S. Bernardo, publicado em 1934 no Brasil, altera substancialmente a
formação a que almejam seus respectivos protagonistas.
Entre os séculos XVIII e XX, a história tem registrado uma expansão e
consolidação do sistema capitalista e seu modo de produção. Neste período, a burguesia
passou a integrar o modelo de classe social a ser copiado em seus valores e ideologia.
59
Cf. MASS, op. cit. , p. 20.
58
Na incipiente classe burguesa alemã do século XVIII, a qual se vê representa por
Wilhelm Meister, em seus anseios por expandir os limites de sua classe ao desprezar
uma formação especializada, a formação universal, reservada a classe aristocrata, ainda
era o modelo a se seguir.
Já nos anos trinta do século XX, o Brasil que, desde o início do referido século,
vinha modernizando-se gradativamente, mesmo com todas as suas contradições, passa a
incorporar o modo de produção capitalista como novo sistema vigente ao mesmo tempo
em que os modos de produção aqui existentes vêem-se em decadência. Isso torna
possível a presença de um novo homem para o contexto histórico brasileiro que passa a
assimilar os valores da burguesia enquanto classe dominante. Vale ressaltar que a
burguesia já está consolidada em outros contextos enquanto classe que impõe seus
ideais às demais camadas da sociedade. Paulo Honório enquanto forma-se, tendo em
mente os valores da burguesia ao admitir relações reificadas, a obtenção do lucro
incondicionalmente e estando imbuído do sentimento de propriedade, é também produto
das transformações históricas brasileiras que admitem a presença de um burguês como
ele, um novo homem brasileiro. Para potencializar o acúmulo de capital, lhe é exigida a
especialização de sua formação, o que admite sem questionamentos. As determinações
históricas influem na idéia de formação; neste caso, a formação especializada
(ausbildung) vigora em detrimento de uma formação mais universal. Precisamente pela
capacidade de adequação histórica do conceito de formação (bildungsroman), a noção
de formação, como expusemos, neste caso altera-se sensivelmente.
Entendendo o conceito como passível de transformações e, portanto, de sentido
amplo ao se defrontar com configurações históricas e literárias determinadas, Mikhail
Bakhtin irá estabelecer graus de desenvolvimento para os personagens do romance de
educação. Assim como Bakhtin, Georg Lukács, em uma abordagem histórica, mas
também filosófica, tenta compreender o romance de formação. Enquanto o primeiro
admite no decurso da história obras que, de acordo com o grau de assimilação do tempo
histórico, representam um determinado tipo de romance de educação, o segundo verá no
romance de formação a possibilidade última de reconciliação entre o indivíduo e a
realidade social. Ambos reconhecem em suas tipologias da forma romanesca Os anos
de aprendizado de Wilhelm Meister como romance de educação/formação. Buscando
delimitar o enquadramento da modalidade de romance de formação (bildungsroman)
dentro dos estudos literários da forma romanesca, adiante faremos uma explanação
concernente à tipologia estabelecida por Lukács e por Bakhtin.
59
2.4 Tipologia de Lukács
Lukács
60
, em uma abordagem histórico-filosófica, procura compreender o
gênero romanesco, expressão literária de configurações elusivas por encerrar em sua
própria forma literária, além das temáticas abordadas, a problemática da cultura
moderna em sua complexidade. Suas colocações, contrapostas ao caráter aproblemático
da epopéia, em que o herói e o mundo estão em conformidade e enleados pela presença
de divindades, apontam o romance como a forma em que o herói e o mundo encontram-
se em discordância, situação presumível, por não haver mais qualquer condição de
restituir-se a liberdade da alma diante da realidade, esta que cada vez mais restringe o
campo de atuação daquela. A tipologia estabelecida por Lukács deflui precisamente da
discordância entre essas duas naturezas que são o indivíduo e a sociedade com seu
conjunto de valores. As formas romanescas, de acordo com a classificação lukacsiana,
são três: o idealismo abstrato, o romantismo da desilusão e o romance de formação.
O herói do idealismo abstrato é anacrônico em relação ao mundo exterior. Não
há correspondência entre a interioridade e a objetividade, o que o leva a agir em relação
ao mundo sempre de forma conflituosa. O conflito estabelece-se, pois; ao perseguir seus
objetivos, o herói, obstinado, compreende a realidade de maneira turva ao abstraí-la
sempre pela ótica de seus objetivos. Esse seu olhar enviesado limita sua percepção do
mundo e o dispensa de qualquer problemática em sua trajetória, resultando em uma
série de aventuras. Aproblemático, o herói prossegue em sua trajetória sem questionar
seus próprios atos e aprender diante de experiências vivenciadas, permanecendo fixo em
seus ideais. Consequentemente, o herói, pertinaz na busca de um ideal, num contínuo
descompasso com a realidade, expressa na atividade exacerbada deste, tenta modificar a
realidade, mas esta permanece inalterável. Mesmo possuidor de uma alma estreita, ao
acreditar em uma ordem transcendental que lhe confere certo caráter épico, as ações
desse tipo de herói, diferentemente do herói épico, não repercutem no contexto em que
atua, revelando o abismo entre as duas naturezas.
O herói do romantismo da desilusão revela outro tipo de inadequação entre a
alma e a realidade. Estabelece-se uma relação inversa à anterior, pois nesse tipo de
romance o herói possui a alma mais ampla que o mundo exterior, condição proveniente
da exacerbada atividade mental – excesso de pensamento – que averigua as muitas
60
Cf. LUKÁCS, op.cit.
60
possibilidades em detrimento das intervenções no mundo. Herdeiro do idealismo
abstrato ao sucedê-lo no tempo e na história e conceitualmente em termos histórico-
filosóficos, o indivíduo desse tipo de romance já pressupõe sua derrota diante da
realidade e, portanto, nem chega a agir. Compreendendo o que se sucedera com o herói
do idealismo abstrato, o herói do romantismo da desilusão recolhe-se em si mesmo, não
compactuando com o mundo e procurando viver de acordo com seus princípios e
valores. Ao recolher-se em sua interioridade, o herói isola-se, assume uma postura mais
contemplativa do que ativa, se vê desvinculado do mundo e posto na centralidade desse
tipo de romance. Seu caráter passivo faz com que o romance se componha em torno de
reflexões, memórias, esperanças e estados de ânimo.
No romance de formação, por ser seu tema a “reconciliação do indivíduo
problemático, guiado pelo ideal vivenciado, com a realidade social concreta”
61
,
havendo um equilíbrio entre atividade e vontade de intervir do indivíduo no mundo, a
partir da ação consciente, conduzida e direcionada por um determinado objetivo
advindo de uma vontade de formação, o herói está a meio caminho entre o herói do
idealismo abstrato e o herói do romantismo da desilusão, constituindo-se em uma
possibilidade de síntese dialética na medida em que se admitem características dos
outros tipos, e ao mesmo tempo este herói busca superá-los.
Por haver, para este herói, a possibilidade de intervir com ações sobre a
realidade social, a articulação entre mundo exterior, profissão, classe, etc., torna-se de
fundamental importância, como substrato da ação social para o tipo humano.
Ao tornar-se fazendeiro, Paulo Honório vê suas ações repercutirem mais
favoravelmente em função da realização de seus interesses afim de que os mesmos
sejam objetivados, além de elucidar na narrativa seu caráter reificado, ou seja, esta
condição de senhor de terras também é relevante para a compreensão de seu caráter
reificado, na medida em que este incorpora valores da decadente classe oligárquica com
o intuito de implementar suas ações reificadas.
Ora, para que o romance S. Bernardo se enquadre na classificação lukacsiana
como romance da desilusão, como o quer Coutinho, a profissão deve perder toda sua
importância, assim como o casamento e a família, enquanto estrutura decisiva para as
relações que permeiam a trajetória do protagonista Paulo Honório, o que não ocorre. Se
há uma desilusão em S. Bernardo, está não pode ser compreendida sem a trajetória de
61
LUKÁCS, op. cit. , p. 138.
61
vida do protagonista, sem o entendimento e a aceitação de que esta é resultado de uma
vida reificada, e que a vida reificada de Paulo Honório não se configura como um
pressuposto do protagonista diante da realidade, mas o contrário, esta vida é
conseqüência de uma formação projetada face à realidade vivenciada por ele.
2.5 Tipologia de Bakhtin
Bakhtin procura, ao dedicar-se à análise do romance de educação e sua
importância na história do realismo, estabelecer uma tipologia do gênero romanesco,
classificando, a partir da identificação do princípio de construção da imagem da
personagem central, as diversas modalidades do gênero
62
. As modalidades em análise
são: o romance de viagens, o romance de provação, o romance biográfico
(autobiográfico) e o romance de educação.
No romance de viagens a personagem é sem características essenciais e não
constitui o enfoque de elaboração artística do romancista. O romancista preocupar-se-á
efetivamente com a diversidade espacial e socioestática, procurando desenvolver e
mostrar o mundo a partir do deslocamento da personagem no espaço através de viagens
e, em alguns casos, peripécias
63
. Desta forma, o mundo está em contato por seus
contrastes e diferenças que aproximam os espaços. As situações contrastantes,
diferentes e opostas compõem a vida de maneira alternada. O tempo nesse tipo de
romance carece de tempo histórico por utilizar-se do tempo de aventura. Como
conseqüência da ausência do tempo histórico, praticamente inexiste vínculos essenciais,
inexiste a concepção de totalidade, o que torna a percepção dos fenômenos
socioculturais estranhos, e a imagem que se tem do homem, assim como do mundo, é de
absoluto estatismo. A condição estática do romance de viagens é incompatível com a
62
BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
63
“Esse tipo de colocação da personagem e construção do romance caracteriza o naturalismo antigo
(Petrônio, Apuleio, as peregrinações de Encólpio, etc., as peregrinações do asno Lúcio) e o romance
picaresco europeu: Lazarillho de Tormes, Gusmán de Alfaraché, Francion, Gil Blás, etc. Em uma forma
ainda mais complexificada, o mesmo princípio de enformação da personagem predomina no romance
picaresco de aventura de Defoe (O Capitão Singleton, Moll Flanders, etc.), no romance de aventura de
Smollett (As aventuras de Roderick Random, A expedição de Humphry Clinker). Por último, o mesmo
princípio com outras complexificações embasa algumas modalidades do romance de aventuras do século
XIX, que deu continuidade à linha do romance picaresco.” BAKHTIN, op. cit., p. 206.
62
formação, o desenvolvimento do homem. Se se muda a posição do homem, como no
romance picaresco, em que de pobre passa a rico ou de vagabundo torna-se nobre,
todavia este inalterado permanece, pois o romance de viagens desconhece seu
desenvolvimento e formação.
O romance de provação é subdividido em quatro modalidades de acordo com o
momento histórico: o romance grego, as hagiografias, o romance de cavalaria medieval
e o romance barroco. As referidas modalidades históricas de romance de provação
possuem alguns traços essenciais em comum. Encontramos nesse tipo de narrativa uma
personagem com qualidades que serão testadas no decorrer da narrativa. Suas virtudes
serão experimentadas a todo o momento em um mundo definido e inalterado. O
romance de provação é sempre marcado por um desvio no curso da vida biográfica e
social, justamente onde se tem início o enredo. O enredo encerrar-se-á com a
normalidade no curso da vida restabelecida. Independente de qual seja o acontecimento
que surja no enredo, vindo a interferir no fluxo normal da vida, não há condições para
um processo de mutabilidade da vida. É circunstancial, para a habitual e inalterada
condição biográfica e de vida social, a organização das aventuras desprovidas de
significação e tipicidade biográficas e sociais reais, ou seja, ausência de tempo
histórico
64
. Tanto o mundo quando o herói é invariável. A personagem central não
vivencia um processo de formação diante do mundo e não é capaz de modificá-lo,
permanecendo ambos inalterados.
“Entre o herói e o mundo não existe interação autêntica; o mundo não
é capaz de mudar o herói, ele apenas o experimenta, e o herói não
influencia o mundo, não lhe muda a face; ao passar pela provação, ao
afastar seus inimigos, etc., o herói deixa no mundo tudo nos seus
lugares, não modifica a face social do mundo, não o reconstrói, e
aliás nem tem essa pretensão. O problema da interação do sujeito e
do objeto, do homem e do mundo não se coloca no romance de
provação.”
65
O romance de provação, surgido no mundo antigo, subdivide-se em duas
modalidades fundamentais: o romance grego e as hagiografias do início do cristianismo.
Característico do romance grego é a provação da pureza e fidelidade amorosa de
heróis idealizados. Em relação ao homem, sua imagem é complexa devido à existência
64
“É verdade que o barroco cria também o romance histórico de provação (por exemplo, Cyrus de
Acudéry, Arminius e Thusnelda de Lohenstein), mas esses romances são quase-históricos e neles o tempo
também é quase-histórico.” idem p. 211.
65
BAKHTIN, op. cit. , p. 212.
63
de conceitos e categorias
66
jurídico-retóricos de culpabilidade que a impregnam,
diferenciando-se do homem presente nas narrativas de viagens. Esta imagem complexa
não significa, todavia, qualquer processo de formação. As personagens do romance
grego de provação são, por sua realidade abstrata, de natureza estática e caracteres
imutáveis, desprovidas de qualquer desenvolvimento que as mude ou forme diante de
uma experiência vivenciada.
Nas hagiografias, a imagem do homem e a idéia de provação alteram-se
ideologicamente de maneira substancial. A idéia de provação dessa modalidade
compreende sofrimentos ou seduções e aprofunda-se ideologicamente em seu caráter ao
precisar a provação da fé pela dúvida. Já para o homem torna-se imprescindível o
habitus e a vida interior como componentes caracterizantes de sua imagem. O ideal
pronto e condicionado a aceitação dogmática, no caso da provação em hagiografias,
revela um herói predeterminado e acabado, tão estático quanto o ideal. Como não há
movimento não há experiência que forma ou modifica. Diante das dúvidas, seduções e
sofrimentos em que se encontra, o herói de provação permanece inalterado. A questão
central para as hagiografias do início do cristianismo é precisamente a imutabilidade da
personagem que desconhece em contrapartida qualquer processo de formação.
Tanto o romance grego quanto as hagiografias são modalidades que influíram
significativamente em grande parte do romance de provação da idade média. Ambos
determinaram consideravelmente o romance medieval de cavalaria. A idéia de
provação, em certo tipo de modalidade no âmbito do romance de cavalaria, deveu-se a
prevalência de elementos corteses, cristãos e místicos
. Posteriormente, a última
modalidade, e a mais significativa e influente historicamente no contexto europeu, é o
romance barroco de provação.
O romance barroco
67
, extraindo todas as possibilidades da idéia de provação na
elaboração de enredo, o que lhe propicia certa abrangência, é a modalidade que revela
66
“(...) inocência, julgamento -, absolvição, acusação, crime, virtude, mérito, etc., que pairaram durante
tanto tempo sobre o romance, determinaram a colocação da personagem no romance como acusado ou
cliente e transformaram o romance numa espécie de julgamento da personagem central. As categorias
jurídicas, retórico-jurídicas no romance grego são constantemente estendidas também ao mundo,
transformando acontecimentos em casus, objetos em provas etc. Todas essas teses se desenvolvem com
base na análise do material concreto do romance grego.” idem, p. 208.
67
“O romance barroco é o tipo mais puro e coerente de romance heróico, que revela uma peculiaridade
da heroificação romanesca em sua diferença em face da épica. O barroco não admite nada de mediano,
normal, típico, habitual; tudo aí é levado as mais grandiosas proporções. Aqui, o patos jurídico-retórico
também está expresso de modo sumamente nítido e coerente. A organização da imagem do homem, a
seleção dos traços, a sua vinculação em um todo, os modos de atribuição dos atos e acontecimentos (‘do
64
de maneira mais clara a idéia de educação em suas possibilidades organizacionais e,
simultaneamente, a estreiteza e limitação da idéia de educação como possibilidade de
penetração realista na realidade. O romance barroco de provação viria em seu
desenvolvimento a se bifurcar no romance heróico de aventura e o romance sentimental
patético-psicológico alterando-se substancialmente, em especial no último ramo onde
surge uma heroificação original do fraco. Assim, o que se observa nos séculos XVIII e
XIX é que o romance de provação adquire novas feições:
“A própria idéia de provação na história subseqüente é completada por
um conteúdo ideológico dos mais diversos; assim é o tipo (no
romantismo tardio) de provação da vocação, da genialidade, da
qualidade de escolhido; outra modalidade é a provação dos parvenus
napoleônicos no romance francês, a provação da saúde ideológica e da
adaptabilidade à vida (Zola), a provação da genialidade artística e
paralelamente da utilidade do artista para a vida (Künstlerroman), por
último, a provação do reformista liberal, do nietzschiano, do amoralista,
da mulher emancipada e toda uma série de outras modalidades na
produção romanesca de terceira categoria da segunda metade do século
XIX.”
68
.
Isso se deve em parte ao romance biográfico a ao romance de educação. Essas
modalidades influem também na idéia de educação. Esta idéia continua a existir, só que
há uma complexificação do herói, proveniente da própria idéia de provação que passa a
abranger em sua composição, dando-lhe vigor, uma natureza densa, juntamente com
uma psicologia
69
complexa que gravita em torno do herói. Dessa forma, constata-se que
o romance realista francês – Balzac, Stendhal, por exemplo – tem por tipo basilar o
romance de provação.
O romance biográfico não chegou a constituir uma forma pura, mesmo havendo
realmente um princípio de enformação biográfico (autobiográfico) da personagem do
romance. Todavia, por uma série de peculiaridades em comum, essa modalidade é
encontrada em diversos períodos históricos
70
. Seu enredo baseia-se no curso normal e
destino’) a uma imagem do herói são determinados por sua defesa (apologia), justificação, glorificação
ou, ao contrário, por sua acusação, seu desmascaramento.” Idem, p. 209-210.
68
Idem, p. 212 - 213.
69
“Uma conquista substancial do romance de provação no campo da elaboração da categoria de tempo é
o tempo psicológico (particularmente no romance barroco). Esse tempo possui sensibilidade subjetiva e
durabilidade (na representação do perigo, das expectativas angustiantes, da paixão não saciada, etc.). Mas
esse tempo psicologicamente colorido e concretizado carece de localização substancial até mesmo no
conjunto do processo vital do indivíduo.” (idem, p. 211).
70
“A forma biográfica no romance apresenta as seguintes as seguintes modalidades: a velha forma
ingênua (ainda antiga) do êxito-fracasso; depois os trabalhos e as obras; a forma confessional (biografia-
65
típico da vida, diferentemente do que se verifica no romance de viagens e provação, ou
seja, a trajetória de vida desde o nascimento, passando pela infância, “anos de
aprendizagem, casamento, construção do destino, trabalho e afazeres, morte, etc.”
71
.
Por ser basilar a trajetória de vida no enredo, nesta modalidade os acontecimentos
subordinam-se à existência de um tempo biográfico. O tempo biográfico, por sua vez,
estabelece um vínculo com o real. Assim, os acontecimentos são tidos por limitados,
irreversíveis e singulares por estarem conjugados ao processo vital. Conforme Bakhtin,
“no fundo [...] constrói-se a representação de acontecimentos
particulares e aventuras em grande plano, mas os instantes, as horas, e
os dias desse grande plano são de natureza não aventuresca mas
subordinados ao tempo biográfico, estão imersos nele e nele
completados pela realidade.”
72
.
Deve-se acrescentar o fato de que o tempo histórico e sua duração são
representados nas gerações que introduzem um elemento novo: “os contatos de vidas de
tempos diferentes (a correlação das gerações e os encontros do romance de aventura)”
73
.Independente do fato de a duração de tempo estar restrita à vida biográfica
inevitavelmente inserida em uma época, é precisamente por vincular-se a uma época –
momento de um processo mais longo do tempo histórico – que o romance biográfico
viabiliza a representação realista mais profunda da realidade; porém, “o romance
biográfico ainda desconhece o tempo autenticamente histórico”
74
. A personagem neste
caso ainda padece de uma formação. Mesmo caracterizado por traços positivos e
negativos e visando resultados reais, o homem permanece inalterado. A sucessão de
acontecimentos não lhe modifica a natureza, mas apenas integra-se ao seu destino.
Todas as modalidades até aqui abordadas possuem em comum a impossibilidade
de formação da personagem. Todavia, observa-se uma relativa transformação do
homem. Esta transformação deve-se à gradativa assimilação do tempo histórico que
influi em sua imagem. Esse processo abre caminho para um desenvolvimento e
formação realmente substancial da personagem, que em determinado ponto deixa de ser
uma grandeza constante e passa a ser uma grandeza variável, tornando-se a própria
imagem do homem em formação algo significativo no enredo, ou seja, passa-se a
confissão); a forma hagiográfica; por último, no século XVIII forma-se a mais importante dessas
modalidades: o romance biográfico familiar.” (idem, p. 213).
71
Idem, p. 213.
72
Idem, p. 214.
73
Idem, p. 215.
74
Ibidem.
66
formação substancial do homem”
75
, a imagem do homem em formação no romance.
Esse tipo mais raro, segundo Bakhtin, é o romance de educação.
O romance de educação (Erziehungsroman ou Bildungsroman), modalidade do
gênero romanesco, compreende uma determinada série de obras de períodos históricos o
mais variado
76
, podendo-se acrescer ou restringir essa determinada lista por critérios
puramente composicionais. Os critérios podem ater-se estritamente ao processo de
educação da personagem, o que delimita a série, ou considerar apenas a presença de
elemento de desenvolvimento da personagem, o que amplia a mesma série. Desde que
se considere elemento central da narrativa o homem em formação, como resultado
verifica-se que
“Alguns romances são de natureza substancialmente biográfica e
autobiográfica, outros não; em alguns, o princípio de organização é a
idéia puramente pedagógica de educação do homem, em outros ela
simplesmente não existe; alguns são construídos em plano
rigorosamente cronológico de desenvolvimento educacional da
personagem central e carecem quase inteiramente de enredo, outros, ao
contrário, têm um complexo enredo aventuresco; são ainda mais
substanciais as diferenças vinculadas à relação desses romances com o
realismo, particularmente com o tempo histórico real.”
77
.
Considerando-se, portanto, esta perspectiva de Bakhtin, tem-se uma excessiva
heterogeneidade de fenômenos teóricos e históricos, pois a formação é muito
diversificada, dependendo “do grau de assimilação do tempo histórico real”
78
. Em
outras palavras, é devido ao grau de assimilação do tempo histórico pela obra que a
personagem no romance de educação terá um determinado tipo de formação. Isto o leva
a subdividir o romance de educação em cinco tipos.
De natureza cíclica, o primeiro tipo corresponde ao tempo idílico, quando se
pode observar a trajetória do homem e as alterações referentes às suas concepções do
mundo e sua interioridade, que se processam em decorrência da mudança da idade
75
Idem, p. 218.
76
Os protótipos básicos dessa modalidade são: “Ciropédia de Xenofonte (Antiguidade), Parzival de
Wolfram von Eschenbach (Idade Média), Gargântua e Pantagruel de Rabelais, Simplicissimus de
Grimmelshausen (Renascimento), Telêmaco de Fénelon (Neoclassicismo), Emílio de Rousseau (uma vez
que nesse tratado de pedagogia existe uma considerável elemento de romance), Agathon de Wieland,
Tobias Knaut de Wetzel, Biografias em linha ascendente de Hippel, Wilhelm Meister de Goethe (os dois
romances), Titã de Jean Paul (e alguns outros romances seus), David Copperfield de Dickens, O pastor da
fome de Raabe, Henrique, o Verde de Gottfried Keller, O felizardo Pierre de Pontoppidan, Infância,
Adolescência e Juventude de Tolstói, Uma história comum e Oblômov de Gontcharov, Jean-Christophe
de Romain Rolland, Os Buddenbrook e A montanha mágica de Thomas Mann, etc.” Idem, p. 218.
77
Ibidem.
78
Idem, p. 220.
67
desde a infância até a velhice. A formação repete-se em cada vida por sua natureza
cíclica.
O segundo tipo, assim como no primeiro, também correspondente a uma
formação cíclica, só que neste caso não há um vínculo tão estreito com a idade; aqui se
observa uma trajetória do homem que vai do idealismo e da natureza sonhadora
perceptível na fase juvenil até a maturidade e a praticidade da vida adulta, tornado-se
cético e resignado. A vida e o mundo são encarados como uma experiência, uma escola,
“pela qual todo e qualquer indivíduo deve passar e levar dela o mesmo resultado – a
sobriedade com esse ou aquele grau de resignação.”
79
.
O terceiro tipo de formação processa-se no tempo biográfico (autobiográfico),
não havendo, como nos outros dois tipos, o elemento cíclico. Todas as atividades e
acontecimentos determinam a formação do homem. O destino do homem, ao mesmo
tempo em que se constitui, forma o caráter do homem.
O quarto tipo baseia-se em uma idéia pedagógica que intervém de acordo com os
propósitos educacionais no processo de educação. A partir de princípios didático-
pedagógicos obtém-se uma formação.
Sendo o romance de formação de tipo realista, o quinto tipo, por apresentar a
formação do homem atrelada à formação histórica, é o mais importante. “O homem se
forma concomitantemente com o mundo, reflete em si mesmo a formação histórica do
mundo.”
80
. A plena assimilação do tempo histórico faz com que a formação da
personagem não mais se restrinja ao âmbito pessoal, ou seja, deixe de ser uma formação
de ordem privado-pessoal. Essa formação passa a refletir a transição de duas épocas e se
efetua através do homem e no próprio homem. Verifica-se, conseqüentemente, um
homem historicamente novo que expõe através de si e de sua formação uma série de
problemas da realidade bem como as possibilidades que lhe cabe diante das mudanças
que se processam no mundo. Exemplo desta modalidade, dentre outros, é o romance Os
anos de aprendizado de Wilhelm Meister, de Goethe.
O estudo estabelecido por Bakhtin é bastante flexível e seu critério possibilita a
correlação do romance S. Bernardo com alguns aspectos de sua tipologia. O romance
S. Bernardo classificar-se-ia a princípio como um romance autobiográfico; é o
personagem Paulo Honório quem narra sua trajetória de vida; essa trajetória, todavia,
revela uma formação do protagonista Paulo Honório, o que o enquadraria no terceiro
79
Idem, p. 220.
80
Idem, p. 222.
68
tipo de romance de educação. Só que a formação do protagonista está diretamente
vinculada a um determinado momento histórico, refletindo em si a nova formação
histórica e, portanto, enquadrando-se precisamente no quinto tipo estabelecido por
Bakhtin que é o romance de formação de tipo realista. Ora, ao compreendermos o tempo
histórico como abordado por Bakhtin, por suas características, Paulo Honório apresenta
traços de um burguês, voraz no acúmulo de capital mediado pela relação reificada,
justamente porque a ordem até então vigente – as oligarquias – encontra-se em
decadência. Paulo Honório representa o surgimento de um novo homem histórico no
contexto brasileiro. Este processo de formação é fundamental para a compreensão do
desenvolvimento do enredo e conseqüentemente do caráter reificado de Paulo Honório,
fim último a que recorremos ao conceito de formação. A crítica literária já bem
demonstrou a existência de relações reificadas no romance de Graciliano Ramos, agora
se faz mister aprofundar o entendimento do conceito de reificação como categoria que
influi incisivamente na fatura da obra, partindo da idéia de formação do homem
reificado que é Paulo Honório. Destarte, compreendida a necessidade e a viabilidade de
utilizar-se o conceito de formação, não podemos deixar de fazer uma ressalva quanto à
idéia de admitir-se o romance de formação (Bildungsroman) como gênero literário, pois
tal admissão implica categoricamente na obstrução do conceito enquanto categoria
analítica, além de ser equivocado.
2.6 Bildungsroman: forma romanesca ou gênero?
Bakhtin estabelece sua tipologia da forma romanesca tendo como critério a
assimilação do tempo histórico. Essa assimilação interfere no tempo-espaço e na
imagem do homem no romance. É exclusivamente baseado no tempo histórico real que
ele se orienta. Sua tipologia não pretende atrelar a constituição do romance de educação
a outras modalidades senão em relação à projeção do tempo histórico como elemento
que os distingue ao influir em aspectos da composição.
69
Diferentemente, Wilma Patrícia Maas pretende estabelecer uma genealogia do
romance de educação que não restrinja a referida modalidade simplesmente como um
tipo, mas sim lhe dê o estatuto de gênero. Ela não estipula uma tipologia, porém recorre
às mesmas modalidades utilizadas por Bakhtin para demonstrar a validade de sua
proposição.
Para o estabelecimento de uma tradição romanesca da formação e do
desenvolvimento, Maas considera, ao corroborar com Jacobs, como pressuposto
fundamental, as autobiografias como As Confissões
81
(1791) de Jean-Jacques
Rousseau. Esta obra, por prenunciar o fenômeno burguês do Bildungsroman enquanto
procedimento de investigação interior e de auto-exposição ao público a que recorre seu
autor, congrega o desejo do indivíduo burguês de ver-se refletido na obra de arte ao
mesmo tempo em que esta lhe é um veículo e uma necessidade de expressão individual.
Emilio ou Da Educação (1762) referenda o caráter individual inerente a cada
homem por compreender a educação como algo que, embasado em preceitos, adequar-
se-ia às suas qualidades e tendências naturais. O que Maas pretende com isso é
estabelecer os antecessores genealógicos mais próximos do Bildungsroman.
Prosseguindo em seu objetivo, Maas passa à literatura picaresca. Reconhecendo
as especificidades das condições históricas
82
em que surgem o romance picaresco e o
paradigma Bildungsroman, ela admite uma proximidade entre as duas modalidades –
para ela gêneros – pelo fato de ambas possuírem uma mesma trajetória que vai da
origem dos respectivos conceitos à sua expansão; mesmo atrelado à carga de tradição
existente na origem do conceito, o gênero, em seu desenvolvimento, não compartilharia
os pressupostos históricos e sociais que permitiram justamente sua evolução. Também
existe uma outra identificação entre as duas formas narrativas se se considerar que o
“protagonista de ambas é um indivíduo que ainda não desenvolveu suas qualidades
81
“(...) na autobiografia de Rousseau, a questão da formação da personalidade entra como que de viés,
sem que se possa falar da presença direta da preocupação com a educação e com a formação da
personalidade. Essas questões, essenciais para o pensamento da época e para o próprio Rousseau,
encontram-se certamente em sua autobiografia. Porém, As confissões foram escritas sob outra perspectiva,
mais determinante no texto, por meio do qual Rousseau, em seu exílio em Londres, visava a um ajuste de
contas, um balanço final de sua vida narrado por ele mesmo vistas a influenciar a opinião pública
contemporânea. O grande objeto d’As confissões, ao longo de todas as suas páginas, é o cidadão
genebrino e o indivíduo Jean Jacques Rousseau, sua história pessoal, suas motivações e seus julgamentos
da sociedade contemporânea.” MAAS, op. cit. , p. 66-67.
82
“Ambos têm origem em condições históricas muito bem delimitadas. Enquanto o surgimento da
narrativa picaresca na Espanha ‘pode ser encarada como uma forma de conscientização da desintegração
do mundo feudal na Espanha’(Gonzáles, 1994, p. 229), o surgimento do paradigma do Bildungsroman, na
Alemanha, é contemporâneo do momento de transição entre a economia feudal latifundiária e o prenuncio
da fase econômica e política em que os ideais e privilégios da aristocracia serão dissolvidos em meio ao
tecnicismo e o cientificismo burguês.” Idem, p. 71.
70
espirituais e intelectuais”
83
, mesmo que a trajetória de cada protagonista difira. Em seu
livro, a autora ainda lembraria um trecho da narrativa Os Anos de Aprendizado de
Wilhelm Meister em que a atitude do protagonista assemelhar-se-ia a um expediente de
trapaça característico da narrativa picaresca, a fim de endossar sua proposição de que
este tipo de narrativa é outra linhagem com a qual o Bildungsroman dialoga. Recorre
também ao fato de Friedrich Von Schiller haver comparado o romance de Goethe com
uma obra integrante da narrativa picaresca. No século XX um exemplo harmonioso da
relação entre as duas tradições narrativas é as Confissões do impostor Felix Krull,
obra de Thomas Mann que comporta, para Maas, os limites de ambas.
Ainda, segundo Maas, a literatura pietista,
84
ao compreender a preocupação com
o desenvolvimento espiritual do indivíduo para consigo, possibilita a caracterização do
conceito religioso de formação que, secularizado, acabou por contribuir para que a
forma do romance burguês se fixasse na Alemanha luterana desde as primeiras décadas
do século XVIII. Buscando exemplificar tal correlação, somos advertidos de que há o
relato de uma conversão pietista como componente estrutural incluso no livro cinco do
referido romance de Goethe, intitulado Confissões de uma bela alma. Esta
“contribuição” seria um reforço à legitimidade de uma genealogia do Bildungsroman
como gênero, assim como as outras correlações estabelecidas.
Por fim, Maas irá incluir o romance de aventura e de viagens no quadro de
narrativas integrantes do processo de estabelecimento do Bildungsroman; para tanto,
Maas apóia-se em Ernest Ludwig Stahl e Wilhelm Vosskamp. Estes, segundo Maas,
alegam que a transformação de tais narrativas em narrativas da evolução da
personalidade e do caráter individual deve-se ao caráter espiritual alemão tendencioso à
interiorização e à subjetivação de processos e acontecimentos.
Com isso estabelecem-se a influência de modelos de descrição para além dos
limites morfológico-normativos que contribuem para a constituição do Bildungsroman
como signo e gênero literário.
83
MAAS, op. cit. , p. 72.
84
“Comuns na Alemanha luterana e pietista desde as primeiras décadas do século XVIII, os testemunhos
de conversão e os apontamentos autobiográficos dos indivíduos ‘renovados’ e ‘renascidos’ descreviam a
trajetória individual do crente desde sua vida pregressa até o momento da conversão mística ao pietismo.”
Idem, p. 74.
71
“As relações com a autobiografia moderna, com as confissões pietistas,
com o romance picaresco, com os relatos de viagem e aventura, dão a
medida do caráter empírico presente na constituição do conceito de
Bildungsroman e revelam a função cognitiva dos gêneros literários. É
apenas pelo acompanhamento da história do Bildungsroman como
história dinâmica do gênero que será possível compreendermos sua
própria natureza”
85
.
Ao se dispor, entretanto, a observar como as enciclopédias compreendem o
verbete Bildungsroman, Maas identifica em comum a citação de quatro obras
86
que,
não obstante significativas, são incapazes de sustentar a idéia de haver um gênero. Se se
busca justamente configurar um gênero através da correlação entre aspectos comuns
entre narrativas de períodos diferentes e/ou etapas que antecedem e contribuem para a
compreensão do Bildungsroman enquanto gênero, como procede Maas, não ser possível
determinar o gênero, por haver um denominador comum de obras que pertenceriam ao
gênero Bildungsroman é algo contrário à própria proposição de Maas. Uma saída, uma
possibilidade de se admitir o Bildungsroman como gênero é a proposição de Jürgen
Jacobs. Para ele, pertencerão ao gênero obras em que se verifique no centro da história
um jovem protagonista que, em meio a uma sucessão de enganos e decepções, se
conduza a um equilíbrio com o mundo. Parte constituinte de uma história de formação,
esse equilíbrio é relatado de modo irônico e reservado. Acrescentem-se ainda as
seguintes características ao Bildungsroman:
“O protagonista deve ter uma consciência mais ou menos explícita de
que ele próprio percorre não uma seqüência mais ou menos aleatória de
aventuras, mas sim um processo de autodescobrimento e de orientação
no mundo; a imagem que o protagonista tem do objetivo de sua
trajetória de vida é, em regra, determinada por enganos e avaliações
equivocadas, devendo ser corrigidas apenas no transcorrer de seu
desenvolvimento; além disso, o protagonista tem como experiências
típicas a separação em relação à casa paterna, a atuação de mentores e
de instituições educacionais, o encontro com a esfera da arte,
experiências intelectuais e eróticas [sic], experiência em um campo
profissional e eventualmente também contato com a vida pública,
política.”
87
.
85
Idem, p. 80.
86
As obras são: Os Anos de aprendizado de Wilhelm Meister, de Goethe; Der Grüner Heirinch
(Henrique o Verde), de Gottfried Keller; Der Nachsommer (Veranico), de Stiffer; Glasperlenspiel (O
jogo das contas de vidro), de Hermann Hesse.
87
Idem, p. 62.
72
É nítida a preferência por aspectos conteudísticos como justificativa para
estabelecer-se o Bildungsroman enquanto gênero; o reconhecimento, a delimitação e
existência de características para o Bildungsroman seria um fator positivo para sua
aceitação como gênero por serem traços fortemente diferenciadores. Esta preferência
temática/conteudística acaba por ampliar a utilização do conceito porque pressupõe-se a
variação de determinadas características ou mesmo a ausência de alguns destes aspectos
distintivos. Ao mesmo tempo, o Bildungsroman é refutado enquanto fenômeno
especificamente alemão, pertencente ao espírito alemão e restrito ao seu contexto de
origem. Assim, a partir da grande Bildungs-Frage (da grande questão da formação)
considerada não apenas em sua gênese, mas por diferentes períodos históricos, definir-
se-ia a forma literária do Bildungsroman – o gênero romance de formação –, ao passo
que o conceito Bildungsroman deixar-se-ia apropriar pelas diferentes épocas histórico-
literárias como um gênero flexível. Os pressupostos que integram a base do programa
narrativo, conseqüentemente, alterar-se-ão de maneira contínua a partir do romance Os
anos de aprendizado de Wilhelm Meister, paradigma do gênero literário
Bildungsroman. Ora, desde que haja certa proximidade com este programa narrativo em
algum de seus pontos, a um determinado romance, portanto, pode-se aplicar o conceito
de Bildungsroman. Isso, indiscutivelmente, viabiliza, por exemplo, a aplicação do
conceito à obra literária S. Bernardo. Neste romance de Graciliano Ramos, o
personagem Paulo Honório exerce certa atividade política, sua trajetória orienta-se na
aquisição e cultivo da fazenda S. Bernardo, narram-se momentos cruciais para a sua
formação desde a infância até a idade adulta e, por ser um enjeitado, não há a presença
da família na sua formação e nem de preceptores; sua formação fica a cargo do mundo.
Sendo o prédio destinado à escola o lócus de aprendizado oficial, restrito a poucos, o
mundo é sua grande escola ao lhe prover outros aprendizados, como pretendemos
demonstrar posteriormente.
Tanto Bakhtin quanto Maas referem-se às mesmas modalidades que antecedem
o romance de educação (Bildungsroman) até o romance de educação, porém com
finalidades diferentes. As abordagens destinam-se no primeiro a averiguar a gradativa
assimilação do tempo histórico no gênero romanesco, enquanto no segundo procura-se
estabelecer uma genealogia que outorgue, que dê o estatuto de gênero ao romance de
educação.
Para Bakhtin é possível identificar composições que se enquadrem no romance
de educação desde a antiguidade até o século XX, variando de acordo com o grau de
73
assimilação do tempo histórico real; outras modalidades que não o romance de educação
seriam desprovidas de qualquer formação ou desenvolvimento da sua personagem, esta
permaneceria inalterada. Já Maas, mesmo identificando uma extensa lista de obras a que
as enciclopédias recorrem como exemplos de romance de formação, afirma ser as
produções anteriores à obra Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister antecessoras
em alguns aspectos do gênero fundado por esta obra de Goethe e que as obras
sucessoras, devedoras do momento de gênese do gênero, vinculam-se ao paradigma
sempre em um maior ou menor grau; haveria elementos das modalidades anteriores à
obra de Goethe na própria composição do romance de formação Os anos de
aprendizado de Wilhelm Meister, o que atestaria a proximidade genealógica de outros
gêneros com o gênero romance de formação. Neste caso, Maas não faria qualquer
distinção entre as modalidades estipuladas por Bakhtin, bem como as subdivisões
estabelecidas por ele para o romance de educação. Exemplo seria a apreciação das
autobiografias pietistas. As autobiografias não chegaram a constituir uma modalidade
pura, conforme alega Bakhtin. A denominação autobiografias pietistas, utilizada por
Maas, estaria de acordo, portanto, com a tipologia estabelecida pelo pesquisador russo.
Só que, ainda segundo as considerações de Bakhtin acima discutidas, as biografias e
autobiografias não possibilitam uma formação da personagem e a aceitação dogmática
para a conversão em narrativas pietistas não implica em um processo de aprendizado.
Ora, como pode então ser tal modalidade uma etapa que antecipa o romance de
formação, ao mesmo tempo em que é parte integrante do romance paradigmático de
Goethe? A confusão se dá por não admitir-se um critério, uma sistematização para as
análises comparativas a que Maas dispõe-se a discutir justamente por ela querer forçar
uma tradição do gênero Bildungsroman em que a literatura pietista é pressuposto
irrevogável, assim como as demais modalidades apreciadas. Ela mesma, entretanto, põe-
se em contradição ao reconhecer algumas diferenças entre as duas modalidades.
Enquanto na literatura pietista processa-se um isolamento da personagem coincidente
com o momento de salvação, no romance de formação a trajetória da personagem volta-
se para a sociedade e para o equilíbrio do indivíduo com o mundo exterior. Essas
diferenças corroboram com o raciocínio de Bakhtin já exposto sobre a modalidade
pietista, um tipo de romance de provação, e o romance de educação, subdivido em cinco
tipos.
Considerar o romance de educação/formação como gênero é equivocado. Todas
as argumentações apresentadas por Maas, aqui confrontadas, deixam clara a
74
inviabilidade de se admitir o Bildungsroman como gênero literário, não há elementos
que sustentem e estabeleçam uma forma literária. A forma literária, que estruturalmente
permanece a romanesca, serve apenas de aporte para o elenco temático/conteudístico; a
própria raiz roman contida no conceito Bildungsroman atesta a inserção deste
procedimento artístico como mais uma possibilidade, uma variante da forma romanesca
que surge na Alemanha do século XVIII. Em Bakhtin a modalidade romance de
educação, assim como as demais modalidades, é expressamente apresentada como um
tipo do gênero romanesco, uma variação decorrente de procedimentos artísticos.
Corretamente compreendido como resultado de um determinado procedimento artístico,
o romance de educação não pode constituir um gênero. Os apontamentos de alguns
estudos mais recentes indicam uma possibilidade a se considerar: o conto de formação
88
fundamentado justamente no conceito de Bildungsroman. Isso ratifica nossa colocação;
afinal os procedimentos artísticos transcendem um gênero.
88
Cf. PAZ, Ravel Giordano. De pontos, linhas e fugas: três ‘contos de formação’ machadianos. In:
Teresa: revista de Literatura Brasileira, 6/7. São Paulo: 34; Imprensa Oficial, 2006, p 124-141.
75
III
(DE) FORMAÇÃO EM S. BERNARDO: A REIFICAÇÃO DE PAULO
HONÓRIO E SEU APRENDIZADO NO PERCURSO DA VANTAGEM
3.1 Um burguês garantindo a S. Bernardo bom sucesso
Nos capítulos primeiro e segundo do romance S. Bernardo, tomamos
conhecimento da idéia para a elaboração de um livro em uma metalinguagem que revela
a composição do próprio romance S. Bernardo, mesmo nome da fazenda de Paulo
Honório. Essa elaboração se daria pela divisão do trabalho instituída por Paulo Honório,
em que os colaboradores contribuiriam cada qual com sua habilidade, ficando para o
padre Silvestre a parte moral e as citações latinas, para o advogado João Nogueira o
correção das normas gramaticais de acordo com a norma culta da língua, para
Arquimedes a composição tipográfica, para Azevedo Gondim a composição literária.
Paulo Honório reserva para si o comando do trabalho e as despesas, já visionando a
melhor parte, o lucro. O empreendimento, no entanto, não vinga, por desentendimento
entre os colaboradores. Mas, ao ouvir o pio da coruja, o eu-protagonista retoma a
composição do livro decidido a escrevê-lo sozinho e publicá-lo sob pseudônimo, ao
contrário do que havia dito inicialmente, o que não ocorre, pois, logo no início do
terceiro capítulo, já descumpre o dito, colocando-se como narrador-protagonista. Paulo
Honório expõe-se, declarando nome e qualidades físicas que lhe rendem muita
consideração. Relata sua infância difícil e ficamos sabendo ser ele enjeitado; discorre
rapidamente sobre sua trajetória de vida em que fora guia de cego, vendedor de doces,
trabalhador alugado na enxada; relata-nos uma briga em uma sentinela que resulta em
sua prisão e, conseqüentemente, numa mudança drástica em sua vida; liberto, prossegue
como negociante pelo sertão. Chegando ao capítulo quarto, ele já aparece como agiota e
por fim como o novo proprietário da fazenda S. Bernardo, que tivera como último dono
Luís Padilha. Este havia contraído empréstimos com o próprio Paulo Honório e não
tendo como quitar as promissórias, é forçado a saldar a dívida contraída com a hipoteca
da propriedade S. Bernardo que herdada de seu pai, Salustiano Padilha.
76
Adentramos na trajetória do protagonista no quinto e sexto capítulos para vê-lo
surgir, pleno em seu percurso, ao consolidar-se senhor de terras e sair-se superior no
embate que trava com seu então vizinho Mendonça, dono de Bom Sucesso, fazenda que
faz fronteira com S. Bernardo. O embate diz respeito ao impasse quanto à posição da
cerca que delimita as propriedades e sua solução será emblemática em relação ao caráter
dos senhores patriarcais – condição nova para Paulo Honório –, pela maneira como eles
resolvem suas questões e a imagem criada perante seus caboclos.
O capítulo terceiro inicia-se com Paulo Honório declarando possuir oitenta e
nove quilos e cinqüenta anos, sobrancelhas cerradas e grisalhas, o rosto vermelho e
cabeludo que lhe rende muita consideração. Desta sua declaração, retrocedendo cinco
anos para o primeiro encontro com Mendonça na cerca, eis como surge ele, Paulo
Honório, aos olhos de seu vizinho, sem significativas modificações.
Do outro lado da cerca, Mendonça apresenta-se, barba branca, nariz curvo que
avança no campo de visão de Paulo Honório, ameaçador, sorrindo e pregando-lhe os
olhos vermelhos ao se distanciar. Em outro momento mostrando os caninos amarelos e
pontudos.
O proprietário de S. Bernardo reconhece a relevância de sua aparência, não
sendo à toa esta informação na narrativa. Já o proprietário de Bom Sucesso, na captação
do protagonista, quase se assemelha a um cão pronto para destrinchá-lo entre os dentes.
São realmente duas imagens confrontadas e que não podem dimensionar a superioridade
de seus respectivos donos um em relação ao outro. Resta-nos a constatação de que
ambos, com essas características, equiparam-se. Paulo Honório sabe que impõe respeito,
porém seu adversário é reimoso. Saber de quem será a obtenção da vantagem quanto à
posição da cerca a partir destes aspectos aparentes é difícil.
Ainda levando-se em consideração o primeiro encontro na cerca, retirando-se
das aparências físicas e adentrando no aspecto comportamental, também poderemos
estabelecer uma aproximação, uma semelhança entre os dois.
Mendonça chega gritando, questionando a aquisição de Paulo Honório, e quanto
à questão da cerca sentencia:
“Os limites são provisórios, já sabe? É bom esclarecermos isto. Cada
qual no que é seu. Não vale a pena consertar a cerca. Eu vou derrubá-la
para acertarmos onde deve ficar.”
89
.
89
RAMOS, op. cit. , p. 31.
77
Mendonça tem como arranjar-se, é senhor de engenho e assim sendo, põe-se a
querer delimitar a posição da cerca em favor dos limites de sua propriedade. E vai além,
despreza as pretensões de seu vizinho de criar o gado Limosino e o Schwitz, tenta
envergonhá-lo ao saber de sua origem de trabalhador alugado e firma-se na palavra de
realocar a cerca onde lhe convier, não adiantando Paulo Honório ofertar-lhe os cedros
de que necessitava.
Paulo Honório, que principiara de modo ameno, não recua e logo se opõe à
sentença de Mendonça, ponderando sobre o fato de que este já lhe havia subtraído por
demais os limites da S. Bernardo e resiste. Não tem como arranjar-se com a lei, mas
também não podia baixar a cabeça no primeiro encontro. A situação é tensa como ele
mesmo narra-nos:
“A nossa conversa era seca, em voz rápida, com sorrisos frios. Os
caboclos estavam desconfiados. Eu tinha o coração aos baques e
avaliava as conseqüências daquela falsidade toda. Mendonça
coçava a barba.”
90
.
Paulo Honório, sendo um eu-protagonista,
91
não tem como adentrar na
interioridade de seu vizinho, narrando-nos os fatos limitados às suas percepções,
exclusivamente. Ao sabermos o que se passa em seu interior e o que observa em relação
a Mendonça, podemos, entretanto, supor que ambos passam a mesma imagem, mas
internamente encontram-se agitados. Ou seja, apesar da tensão, Mendonça coçava a
barba numa aparente calma; aparente, pois provavelmente estava alterado com a
presença de Paulo Honório a ajeitar a cerca. Como sua conversa assemelha-se à de seu
adversário, Paulo Honório provavelmente também dissimula uma aparente calma,
mesmo dando-nos a conhecer sua palpitação. A prova quanto ao estado dos
proprietários é a incerteza dos caboclos em relação a como agir, já que seus chefes não
esboçam reações referentes às suas pretensas ações. Aqui ambos também se equiparam.
É fato que a questão da cerca permanece em suspenso e enquanto não se resolve, ambos
os proprietários mostram um ao outro, aos seus caboclos e a si mesmos, a relevância das
palavras, gestos e atitudes de um senhor patriarcal e que não sustentá-las coloca-os em
descrédito. Porém, quando o próprio Paulo Honório sugere que se resolva depois a
90
Idem, p. 32.
91
LEITE, Ligia Chiappini Moraes. O Foco Narrativo. 8ª ed. São Paulo: Ática, 1997. Trata-se da
tipologia proposta por Norma Friedman a qual podemos chamar também de narrador-protagonista.
78
questão da cerca, sua intenção é aproveitar o aqui e agora. Ele garante a posição da
cerca e ganha tempo para solucionar o impasse definitivamente a seu favor, mostrando
que, apesar das semelhanças entre os dois fazendeiros, levará vantagem.
Ao mesmo tempo em que se assemelham, tanto Paulo Honório quanto
Mendonça se distanciam. Expliquemo-nos. Quando do encontro na cerca notamos já um
descompasso entre ambos, como fica-nos claro logo no início do capítulo V. “– O
senhor andou mal adquirindo a propriedade sem me consultar, gritou Mendonça do
outro lado da cerca”
92
.
Mendonça não sabia que a propriedade S. Bernardo encontrava-se à venda, e
realmente não estava. Surpreso, reivindica explicações sobre o fato de não ter sido
consultado. Meras formalidades, afinal o proprietário de Bom Sucesso arranjava-se com
os tabeliães como bem lhe conviesse, de tal maneira que este não efetiva a aquisição das
terras dos seus vizinhos por meios legais e nem sequer propõe negociações para que isto
se viabilize. Apenas firma-se na sua condição de senhor patriarcalista, intimidante e que
causava receio em Padilha, último proprietário de S. Bernardo antes de Paulo Honório,
que dormia demais, literalmente, porque receava encontrá-lo e discutir sobre a posição
da cerca. E, com o intuito de continuar a aumentar os limites de Bom Sucesso em
detrimento dos limites de S. Bernardo, Mendonça envia seus caboclos, que rondam a
casa. Seus esforços, no entanto, restringem-se só a esta ação.
Paulo Honório, sempre a postos, espreita pela fresta que há na parede da casa
velha em que reside, e reveza-se com Casimiro Lopes, que o substitui na guarda, em
uma aparente imobilidade, pois já estirara o arame farpado e substituíra os grampos
velhos por outros novos a fim justamente de evitar uma ação mais efetiva de Mendonça
que o subtraísse em algum aspecto. Paulo Honório, por enquanto, não ganha, mas não
perde mais e vai além. Diferentemente do senhor de Bom Sucesso, que se adianta em
palavras e impõe-se por palavras, ele age. Paulo Honório visita Mendonça com o intuito
de conhecer melhor este seu inimigo, tomar uma decisão e assim mover-se mais
rapidamente e sem perigo. A própria conversa de Paulo Honório revela-nos sua
dinâmica, sua mobilidade e efetividade de ação em correspondência com seu caráter
reificado, quando:
92
Idem, p. 31.
79
“Respondi que havia dormido como pedra. Os pântanos em S. Bernardo
estavam aterrados, não restava um mosquito para remédio. Arrependi-
me de ter falado precipitadamente.”
93
.
E em seguida, ágil, remedia-se:
“– Pois até logo, exclamei de chofre. A eleição domingo, hem?
Entendido. Mato um ... (Ia dizer um boi. Moderei-me: todo mundo
sabia que eu tinha meia dúzia de eleitores) um carneiro. Um carneiro é
o bastante, não ? Está direito. Até domingo.”
94
.
Paulo Honório, mesmo tendo falado indevidamente, deixa-nos saber que suas
primeiras ordens à frente da propriedade S. Bernardo já foram executadas, ressaltando o
pragmatismo que lhe é inerente, ou melhor, assevera a disparidade existente entre os
dois personagens na maneira de agir, o que assegura no percurso da vantagem a
permanência de um e a eliminação do outro. A disparidade está na inércia de Mendonça
confrontada com a dinâmica de Paulo Honório. Ao ponderar as palavras, Paulo Honório
reconhece sua pequenez diante do proprietário de Bom Sucesso – matar um carneiro –,
mas também demonstra sua investida em superá-lo – cogita consigo a possibilidade de
matar um boi –, tornando-se único no campo das relações patriarcais na região de
Viçosa a exercer influências. O discurso de Paulo Honório já revela sua dinâmica, suas
intenções que se efetivarão até domingo, um domingo em que Mendonça não verá o fim
do dia.
A partir dessa dinâmica intrínseca, que se revela na rapidez e precaução perante
Mendonça ao ser comedido com as palavras, temos uma visão panorâmica do eu -
protagonista, que se desloca na narrativa sem a intenção de mostrar-se ameaçador à
posição de Mendonça, ao mesmo tempo em que busca a solução, o desenlace para o
conflito exposto. E assim ele surge de cada ato narrado que por sua vez revela-o
95
. Ou
seja, ao mesmo tempo em que surgem as palavras, surgem as ações e inevitavelmente
surge Paulo Honório na rapidez rítmica da sucessão de fatos, o que reforça uma
característica dinâmica por natureza, cujo impulso arrasta o mundo atrás de si em
detrimento de obstáculos como Mendonça.
93
Idem, p. 37.
94
Idem, p.38.
95
Cf. LAFETÁ, João Luiz. “O mundo à revelia”. In: São Bernardo. 75ªed. Rio de Janeiro: Record,
2002, pp.192-218. Neste ensaio, Lafetá já evidencia esta relação imbricada que há entre a ação e o caráter
de Paulo Honório.
80
Apesar das dificuldades existentes – safra ruim, longas horas de trabalho,
ameaça de emboscada, inverno rigoroso – e que tomamos conhecimento no capítulo VI,
trabalha-se na lavoura e no açude, concluem-se os alicerces da nova casa, cultiva-se
mamona e algodão e os pântanos são aterrados. Enfim, a dinâmica de Paulo Honório
forceja o crescimento da fazenda e as adversidades são-nos narradas como contraponto
para dimensionar a capacidade transformadora imprimida na propriedade S. Bernardo
por este ser reificado. Paralelo a estes feitos há a pedreira, trabalho moroso que é
afrontado com marretas e tiros de pólvora sem muito progresso, trabalho dispendioso
que não se reverte em lucro, mas que necessita ser executado e com mais empenho para
que não continue a consumir os esforços de Paulo Honório. Assim como a pedreira, há
um outro trabalho, um outro obstáculo, que deve ser atacado com mais empenho e do
mesmo modo que a pedreira: a cerca. O texto, melhor do que uma análise, permite a
aproximação destes obstáculos a serem superados.
“... A cerca ainda estava no ponto em que eu a tinha encontrado no ano
anterior. Mendonça forcejava por avançar, mas continha-se; eu
procurava alcançar os limites antigos, inutilmente”
96
.
“... E a pedreira, onde os vultos miudinhos se moviam, era como se em
seis meses de trabalho não tivesse sido desfalcada”
97
.
A cerca consome Paulo Honório em demasia; que passa noites em claro
revezando-se com Casimiro Lopes para que a gente de lá, de Mendonça, não a desloque
de madrugada. Além do que, o risco de uma emboscada é iminente – tanto que virá a
ocorrer – como lhe alerta o mesmo Casimiro Lopes, e o dono de Bom Sucesso é um
candidato em potencial para executar tal ato, caso sinta-se ameaçado pelo crescimento
da fazenda S. Bernardo. O desgaste e a tensão em que se encontra não podem se
prolongar por mais tempo. Afinal, “Trabalhava danadamente, dormindo pouco,
levantando-me às quatro da manhã, passando dias ao sol, à chuva, de facão, pistola e
cartucheira (...)”,
98
é o que nos diz o proprietário de S. Bernardo. Realmente, é
necessário solucionar este impasse ocasionado por Mendonça, a pedreira em pessoa a
obstruir o caminho de Paulo Honório. Vejamos o que o eu - protagonista diz:
96
Idem, p. 38.
97
Idem, p. 39.
98
Idem, p. 35.
81
“Demorei-me até que os serventes lavaram as colheres e guardaram as
ferramentas. Fiquei só. Os homens da lavoura e do açude foram
debandando também.
Mais tiros na pedreira, os últimos. Pensei no Mendonça. Canalha. Do
outro lado de cá da cerca o algodão pintava, a mamona crescia nos
aceiros da roça; do lado de lá, sapé e espinho. Quantas braças de terra
aquele malandro tinha furtado! Felizmente estávamos em paz.
Aparentemente. De qualquer forma era-me necessário caminhar
depressa.”
99
.
Em uma primeira leitura o trecho acima citado é simples, quase banal. Fim de
dia, Paulo Honório vê os últimos movimentos do dia na fazenda, ouve mais alguns tiros
na pedreira, reflete sobre a questão da cerca, sem muita fúria, mais se indignando pelo
fato de o senhor de Bom Sucesso usurpar as terras e não cultivá-las. Constata a aparente
calmaria em que as coisas se encontram e por fim tem pressa, pois já está anoitecendo e
é quase hora do jantar. Aprofundando-se na leitura incorremos, entretanto, numa outra
possibilidade de interpretação, quase que velada, e que se expõe pela ambigüidade na
estrutura narrativa.
Paulo Honório ouve tiros na pedreira e com os estampidos logo pensa em
Mendonça, e o que é Mendonça, senão a pedreira irredutível quanto à questão da cerca
que consome seus esforços? Sintaticamente, a aproximação das frases “Mais tiros na
pedreira, os últimos. Pensei no Mendonça.” reforça a idéia de Mendonça como uma
pedreira, não sendo possível para Paulo Honório, neste estágio da narrativa, dissociar o
pensamento de um em relação ao outro. Além do que, terras férteis, mas improdutivas,
tão ao alcance e pertencentes em outros tempos, por direito, a fazenda S. Bernardo são
inadmissíveis para Paulo Honório, incessante em inverter tudo a seu favor, modificar o
espaço e torná-lo rentável. Insistindo ainda nos últimos tiros na pedreira, é como se os
estampidos evocassem o pensamento em Mendonça. Agora Paulo Honório deve atacá-
lo como à pedreira, e que melhor ocasião senão a da aparente paz? Elimina-se a
possibilidade de recair as suspeitas sobre si, até porque esteve há pouco em visita
aparentemente cordial em terras de Bom Sucesso e como quem não quer nada obteve
informação crucial de Mendonça concernente à inimizade com os demais vizinhos.
Deve apressar-se, aproveitar o momento. Mas isto não está dito às claras, afinal “era-me
necessário caminhar depressa” acentua a ambigüidade, tornando até certo ponto a
segunda proposta de leitura ininteligível, pois o verbo de ação “caminhar” implica no
sentido de andar, deslocar-se. Paulo Honório, porém, já se revelou muito, e este verbo
99
Idem, p. 39.
82
emitido por ele pode ser mais facilmente compreendido e associado ao sentido de agir,
tomar uma atitude quanto à questão em aberto que é a posição da cerca.
Na hora do jantar Paulo Honório traça planos em voz baixa com Casimiro
Lopes; diferentemente de outras vezes, não sabemos se se trata de assunto condizente ao
trabalho do dia seguinte, de qualquer forma o negócio fica acertado. No domingo, na
hora do crime, Paulo Honório encontra-se de conversa com o vigário sobre a construção
da igreja que pretende erguer em sua propriedade. Álibi perfeito, pois se embasa nas
palavras de um padre, pessoa religiosa e de índole ordinariamente incontestável, além
do que Paulo Honório ali se encontrava aparentemente bem intencionado. Chega-lhe a
notícia da morte de Mendonça e sobre o assunto não se prolonga, como se já esperasse,
e rapidamente retoma o assunto da igreja. Agora são outros assuntos a se resolver.
Tratar do preço do sino e garantir a fazenda S. Bernardo bom sucesso. Quem executou o
crime não temos como saber a partir dos capítulos referentes ao embate entre os dois
fazendeiros, mas o companheiro fiel de todas as horas, Casimiro Lopes,
momentaneamente desaparece da narrativa após a conversa em voz baixa com Paulo
Honório, retornando à trama no capítulo IX, dezoito páginas depois, garantindo a
segurança do patrão.
Vale a pena ainda atentar para o fato da cruz danificada, um símbolo a mais para
associar a Mendonça. Nos capítulos V e VI, relativamente curtos, em que se dá o
embate entre os dois fazendeiros, a narrativa apresenta-nos um Mendonça dono de
terras, senhor de engenho soberano no campo das relações patriarcais em sua região,
nascido de uma tradição e delimitado a prestar-lhe alguma manutenção. Já Paulo
Honório não se prende a nenhuma tradição. Adquire S. Bernardo à custa de muitas
investidas. Suas relações sociais existem graças a envelopes recheados de dinheiro. Na
base de uma mentalidade prática, reificada, Paulo Honório, “iniciador de uma família”
100
, dinamiza o sistema contra uma ordem estática – pedreira – e arcaizante, que se
encontra no fim, um fim figurado na filhas de Mendonça “..., duas solteironas”
101
.
Rompe com preceitos enraizados há muito na figura de Mendonça, reduzido a uma cruz,
símbolo da ordem religiosa estabelecida na moral e na família, mas que se encontra
danificada, violada pela necessidade quantificadora de uma nova ordem que se integra
ao meio e que garantirá bom sucesso a S. Bernardo.
100
Idem, p. 16.
101
Idem, p. 36.
83
Com o assassinato de Mendonça e sua redução a nada, pois nem a cruz posta no
local do crime permanece íntegra em memória do morto, Paulo Honório assume uma
posição confortável. Avança excessivamente e sem escrúpulos a cerca, oprimindo por
força da coação econômica e social as “Mendonças”. Mesmo quando elas têm o auxílio
de Paulo Honório, este no seu íntimo não tem pena delas, ele próprio agiu mal, apesar
de não distinguir o que seja ser mau ou bom. Sua atitude é mais uma garantia de ter a
fazenda Bom Sucesso sob seu jugo e um pretexto para eliminar qualquer eventual
adversário que surja. Sua capacidade de ser pragmático não se atenua.
A posição assumida por Paulo Honório à frente de S. Bernardo torna-se ainda
mais relevante se atentarmos para uma outra passagem do texto correspondente ao
furdunço em uma sentinela, e que diz respeito, segundo Paulo Honório, ao seu primeiro
ato digno de referência. Quando uma moça com o nome de Germana, muito assanhada,
é por ele parada, sofre um arrocho na polpa das nádegas e gosta, mas logo se insinua
para um outro homem com o nome de João Fagundes, este que acaba sendo esfaqueado
por Paulo Honório, que antes sentara o braço na “cabritinha sarará”. O resultado é o
confinamento de Paulo Honório em uma cadeia onde aprende a ler em uma bíblia miúda
com Joaquim sapateiro, evangélico que depois morre. O que pretendemos demonstrar
efetivamente é a repercussão, as conseqüências de um mesmo ato, a resolução de um
conflito por meios violentos e que culminam na eliminação do oponente, praticado por
Paulo Honório antes de sua nova condição de senhor de terras e já como proprietário da
fazenda S. Bernardo.
Paulo Honório elimina Mendonça, senhor de Bom Sucesso, e nada lhe acontece
por tal assassínio, nem uma punição ou uma prisão. Logo Mendonça, que era dono de
terras, senhor de engenho e pertencente a uma tradição patriarcal. É verdade que Paulo
Honório previne-se quanto a deixar evidências de seu envolvimento no homicídio, mas
não haverá nenhuma investigação sequer de sua participação que é tida como certa pelo
povo, diferentemente do golpe de faca aplicado em João Fagundes – um qualquer “que
mudou de nome para furtar cavalos”
102
–, e que resulta em sua detenção.
Contrabalanceando os dois, Mendonça e João Fagundes, é pela agressão dirigida ao
segundo que Paulo Honório não deveria ser punido mesmo. Mas é preso, leva uma surra
de cipó-de-boi, toma cabacinho e fica “de molho pubo, três anos, nove meses e quinze
102
RAMOS, op. cit. , p. 16.
84
dias na cadeia”
103
. O contraste estabelecido dimensiona a grandeza assumida por Paulo
Honório na condição de senhor patriarcal.
Conclui-se a construção da casa, símbolo da posição que Paulo Honório assume
à frente da Fazenda S. Bernardo, referência do poder patriarcalista, esfera na qual ele
agora se encontra, ainda que parcialmente, na medida em que se restringe a alguns
aspectos individuais e no âmbito social. Ao integrar-se no sistema, ele não deixa de
conduzir-se inversamente à condição patriarcal, segregando alguns valores. Paulo
Honório é homem prático e por isso não adere por definitivo à condição de senhor
patriarcal, condição representada na inutilidade de alguns objetos existentes na nova
casa e na ineficiência do eliminado Mendonça. Em seu percurso da vantagem, esta nova
posição convém-lhe estritamente ao status social, haja vista sua dinâmica ser
incompatível com a lentidão deste sistema arcaico.
Devemos ter em mente que a relação patriarcal é significativamente favorável a
uma pessoa reificada como Paulo Honório, pois não há limites além dos impostos por
ele mesmo quanto à obtenção de lucros e vantagens, reduzindo tudo e todos a valores
mensuráveis. É só nesta condição, dentro do contexto sócio-econômico e histórico
mimetizado no livro, que ele modifica a natureza, reificando-a, e exerce sobre os demais
seu poder de conversão de valores qualitativos em quantitativos, não se admitindo
disposições ao contrário. Provavelmente, sem a posição assumida à frente da
propriedade S. Bernardo como senhor de terras a forcejar seu crescimento, seu caráter
reificado não seria tão óbvio e todas as suas ações praticadas a fim da obtenção do lucro
no percurso da vantagem não passariam de violências necessárias à sobrevivência em
um meio.
103
Ibidem.
85
3.2 - A (de) formação de Paulo Honório
A posição assumida por Paulo Honório enquanto proprietário da fazenda S.
Bernardo, evidenciada no tópico anterior, é resultado de uma trajetória de vida.
Compreender esta trajetória de vida, dentro das discussões acadêmicas para o
entendimento de seu caráter reificado, tem se tornado imperativo, pois a conduta
reificada do protagonista, já elucidada pela crítica literária em diversos aspectos, é
conseqüência de uma formação adquirida frente à realidade vivenciada por Paulo
Honório na medida em que este assimila o aprendizado necessário a uma formação
utilitarista e especializada. Esta formação se destinada a potencializar os lucros
provenientes das relações sociais. Tal formação especializada (Ausbildung), em
consonância com uma mentalidade reificada e que é a mentalidade de Paulo Honório,
manifesta-se em diversos fragmentos do romance S. Bernardo.
Logo no início do romance, Paulo Honório propõe a divisão do trabalho
empregado na composição da narrativa, portanto, já nos defrontamos de imediato com a
questão da atuação específica dos colaboradores de acordo com a atividade que cada um
exerce.
“Antes de iniciar este livro, imaginei construí-lo pela divisão do
trabalho.
Dirigi-me a alguns amigos, e quase todos consentiram de boa vontade
em contribuir para o desenvolvimento das letras nacionais. Padre
Silvestre ficaria com a parte moral e as citações latinas; João Nogueira
aceitou a pontuação, a ortografia e a sintaxe; prometi ao Arquimedes a
composição tipográfica; para a composição literária convidei Lúcio
Gomes de Azevedo Gondim, redator e diretor do Cruzeiro. Eu traçaria
o plano, introduziria na história rudimentos de agricultura e pecuária,
faria as despesas e poria meu nome na capa.
Estive uma semana bastante animado, em conferências com os
principais colaboradores, e já via os volumes expostos, um milheiro
vendido graças aos elogios (...)”
104
A divisão do trabalho conforme é proposto por Paulo Honório é condizente com
sua mentalidade reificada e estrutura-se a partir de uma atuação especializada que se
destine a potencializar o acúmulo de capital, sendo, por isso, cada colaborador
convidado. Mas como o fragmento transcrito acima se encontra na primeira página do
romance de Graciliano Ramos e, conseqüentemente, para quem faz pela primeira vez a
104
RAMOS, op. cit. , p. 7.
86
leitura desta obra, não é possível ainda delimitar qual é o caráter do protagonista que
afinal nem se quer sabemos ainda quem é: “poria meu nome na capa”. Qual nome? O
fato é que, identificado o protagonista e seu caráter reificado, de imediato, para quem
retoma a leitura do romance, é perceptível a divisão do trabalho bem como
planejamento, elaboração, investimento, lucro, propaganda, enfim, diretrizes que se
destinam à viabilidade de um empreendimento, um negócio. A composição do livro é
concebida como um negócio por Paulo Honório, um negócio que possa lhe dar lucro,
assim como todas as outras atividades que exerce.
A formação de Paulo Honório orienta-se no sentido pragmático de ganhar
dinheiro, e possuir a fazenda S. Bernardo é a mais viável dentre as opções, então, sua
ação e formação convergem para este fim, de maneira lúcida e coerente, eis o porquê de
sua afirmação: “O meu fito na vida foi apossar-se das terras de S. Bernardo, construir
esta casa, plantar algodão, plantar mamona, levantar a serraria e o descaroçador,
introduzir nestas brenhas a pomicultura e a avicultura, adquirir um rebanho bovino
regular.”
105
Adquirir a fazenda S. Bernardo é um meio de viabilizar o lucro, assim como a
composição do livro. Mas essa busca pelo capital, a que Paulo Honório se empenha, só
se torna efetivamente possível, a partir do momento em que este é alfabetizado. O
momento oportuno à alfabetização de Paulo Honório está atrelado a um assassinato.
No percurso da vantagem, sistematicamente estabelecido no esquema
contatotensãovantagem em relação aos outros, no qual Paulo Honório se
sobressai em relação aos seus contatos, Fernandes
106
analisa também Germana. Nesta
análise devemos atentar para a real vantagem que Paulo Honório obtém e que não diz
respeito ao fato de ter tido a mulher um destino infeliz – Germana havia se tornado
meretriz e encontrava-se doente. A confusão em que se mete por causa dela e que
resulta em sua prisão trouxe-lhe uma vantagem outra, a alfabetização. A situação do
evangélico e da cabritinha sarará apresentada após sua libertação serve apenas de
contraste para mostrar o quanto fora seu ato de esfaquear João Fagundes tão digno de
referência. É na cadeia que a sua condição de trabalhador alugado na enxada deixa de
ser sua única opção de vida, diferentemente da grande maioria que principiou como ele
e que permanecerá em uma condição de subsistência. Portanto, o primeiro ato digno de
referência de Paulo Honório é o furdunço numa sentinela que se reverte em seu
105
RAMOS, op. cit. , p. 12
106
FERNANDES, op. cit. , p. 113.
87
benefício no percurso da vantagem na medida em que este aprende a ler. É durante o
período de detenção – por causa do homicídio praticado quando ainda jovem – que o
protagonista aprende a ler. Alfabetizado e liberto, este se decide por ganhar dinheiro.
Daí em diante, Paulo Honório guia, consciente e ativamente, seus atos em busca de
capital, pois agora só “pensava em ganhar dinheiro”
107
. Após sua alfabetização, Paulo
Honório passa a gerir empreendimentos que possam lhe permitir ganhar dinheiro,
deixando conseqüentemente a antiga condição de trabalhador alugado na enxada.
O fim almejado por Paulo Honório – ganhar dinheiro – requer uma formação a
qual ele, depois de alfabetizado, busca, como se observa já no seu primeiro ato relatado
depois de cumprida a pena de detenção.
“Tirei o título de eleitor, e seu Pereira, agiota e chefe político,
emprestou-me cem mil-réis a juro de cinco por cento ao mês. Paguei
os cem-mil e obtive duzentos com o juro reduzido para três e meio
por cento. Daí não baixou mais, e estudei aritmética para não ser
roubado além da conveniência.”
108
(grifo nosso).
Não sabemos onde é que Paulo Honório estuda aritmética, mas o objetivo de tal
estudo é claro: evitar que o roubem além do tolerável. Provavelmente também, assim
como o processo de alfabetização que se deu em uma cela e não em uma escola, o lócus
oficial destinado a este fim, o conhecimento de aritmética não tenha sido obtido em uma
escola; aliás, a escola em nenhum momento é concebida por Paulo Honório como um
espaço destinado ao aprendizado, à formação ou à educação de quem quer que seja. O
fato de haver uma escola na fazenda S. Bernardo não significa que o proprietário Paulo
Honório a considere como um espaço importante para o desenvolvimento do ser
humano. Os investimentos que há na educação são lapsos:
[Madalena] Foi à escola, criticou o método de ensino do Padilha e
entrou a amolar-me reclamando um globo, mapas, outros arreios (...).
Um dia, distraidamente, ordenei a encomenda. Quando a fatura
chegou, tremi. Um buraco: seis contos de réis. Seis contos de
folhetos, cartões e pedacinhos de tábua para os filhos dos
trabalhadores. Calculem. Uma dinheirama tão grande gasta por um
homem que aprendeu leitura na cadeia, em carta de ABC, em
almanaques, numa bíblia da capa preta, dos bodes. Mas contive-me.
Contive-me (...) porque imaginei mostrar aquelas complicações ao
governador quando ele aparecesse aqui. Em todo caso era despesa
supérflua.
109
107
RAMOS, op. cit., p.17.
108
Idem, op. cit., p. 17
109
Idem, op. cit., p. 126.
88
Com certeza Paulo Honório não encomendaria o material solicitado por
Madalena se soubesse do valor que seria gasto. Por mais que a construção da escola
tenha sido motivada por outros fins que não os de educar os filhos dos trabalhadores, os
gastos extrapolam as pretensões de Paulo Honório e, portanto, são inviáveis; mesmo
sendo um projeto que se destina à obtenção de favores junto ao governador quando este
vier novamente à fazenda S. Bernardo, o custo contraído com a aquisição do material
fere parcialmente a relação de vantagens a que Paulo Honório está habituado a
estabelecer. Ao afirmar que “em todo caso era despesa supérflua”, o eu - protagonista
está justamente ratificando o fato de os materiais encomendados não serem
preponderantes, ainda que se mostrem os materiais didáticos adquiridos ao governador,
para a obtenção de vantagens. Além do que, se compararmos as condições em que Paulo
Honório aprende a ler, tais aparatos não são imprescindíveis para uma aprendizagem
que se destine estritamente à alfabetização, pois este benefício é concedido mediante um
único interesse.
A partir do momento em que Paulo Honório é alfabetizado, pré-requisito para
possuir o título de eleitor, tira o título de eleitor, tornando-se, portanto, um indivíduo
habilitado a participar das eleições. Ao erguer a escola, Paulo Honório pretende ter sob
seu jugo o maior número possível de pessoas votantes. Quanto maior o número de
pessoas alfabetizadas – capazes de assinar o nome, ou seja, rubricar o documento –, e,
portanto, possibilitadas de adquirir o título de eleitor, maior é o poder de negociação de
Paulo Honório junto aos políticos, já que este passa a ter um “curral eleitoral”
considerável. Lembremos que Paulo Honório contrai empréstimo com Pereira, agiota e
chefe político local. Desta observação podemos inferir a seguinte conduta: Paulo
Honório negocia, enquanto eleitor, seu voto mediante a concessão do empréstimo. Ora,
se se adota tal postura, natural que o protagonista, posteriormente na condição de
fazendeiro, reconheça a viabilidade de adquirir influência política através da compra e
venda de votos, ou seja, ao deter uma parcela significativa de votos, Paulo Honório
também possui certa força política. Esta força política é eficaz para se intermediarem
algumas negociações. Construir a escola é um investimento. Esta idéia não surge, de
repente
110
, como o eu - protagonista alega, mas advém de uma experiência que este
trava com o agiota Pereira.
110
Cf. RAMOS, op. cit., p. 50,51.
89
Considerando-se as expectativas de Paulo Honório em relação à escola e o
contato que este estabelece com Pereira, podemos presumir que ter estudado aritmética
não foi o maior aprendizado de Paulo Honório, advindo e proporcionado pela relação
que este trava com Pereira, mas, talvez, a assimilação e reprodução de uma conduta
destinada a prover vantagens das relações sociais estabelecidas. O caráter formativo
desta relação é notável e imprescindível no percurso da vantagem estabelecido pelo
protagonista precisamente por ser a partir do convívio com o Pereira que Paulo Honório
passa a balizar as suas futuras relações. Portanto, o contato com Pereira influi enquanto
referencial e modelo de conduta para as relações sociais firmadas entre Paulo Honório e
os demais personagens, como verificamos em diversos momentos do romance
111
. Ou
seja, um aprendizado fundamental no processo formativo do protagonista, internalizado
e reproduzido como um valor irrevogável, denotando o caráter formativo da vivência
entre os dois personagens. O aprendizado subtraído desta relação é rapidamente
reproduzido em todos os seus aspectos de usura, condizendo com a personalidade
reificada do protagonista, quando este, de maneira ardilosa, concede empréstimos a Luís
Padilha. Paulo Honório, propositadamente, cria as condições para que Padilha se veja
excessivamente endividado ao conceder-lhe empréstimo sobre empréstimo ao ponto de
haver uma única solução para este saldar a dívida contraída: hipotecar a fazenda S.
Bernardo, propriedade que herda de Salustiano Padilha, seu pai. A condição
encalacrada a que Padilha é induzido tem um desfecho típico das práticas de agiotagem:
“Padilha recebeu os vinte contos (menos o que me devia e os juros)”
112
, ou seja, o
último empréstimo contraído por Padilha junto a Paulo Honório é viabilizado em uma
quantia inferior, mas os juros incidem sobre o valor total do novo empréstimo;
111
Sobre esta questão não se faz necessário discorrer sobre outros exemplos, no corpo desta dissertação,
precisamente por haver um padrão nas relações estabelecidas pelo protagonista, excetuada a que este tem
com a personagem Madalena, como já bem evidenciou Fernandes em seu ensaio “A reificação de Paulo
Honório revisitada”. Situação idêntica e que se destina a obter vantagem sobre a outra parte envolvida,
nos moldes firmados e pautados pela relação entre Paulo Honório e Pereira, além de exemplificar a
ocorrência de determinada conduta por parte do protagonista Paulo Honório, é a relação estabelecida
entre Paulo Honório e o fazendeiro Mendonça. Sobre este momento da narrativa, cf. o tópico 3.1 desta
dissertação, quando há o embate quanto à posição da cerca que divide os limites das fazendas Bom
Sucesso e S. Bernardo. A conduta do protagonista é a mesma, no sentido de não ser contrariado além do
limite tolerável dentro das relações sociais estabelecidas, porém o enfoque da análise, ao recorrer a esta
relação entre Paulo Honório e Mendonça, no tópico anterior desta dissertação, é elucidar a existência de
um novo homem e uma nova ordem em vigor, em oposição a um sistema arcaizante e um homem
decadente, ou seja, a presença do capitalismo ascendente em oposição ao patriarcalismo descendente, o
que justifica uma nova possibilidade de formação a que Paulo Honório assimila. No mais, o caráter
formativo advém da relação entre Paulo Honório e o Pereira, sendo a relação que Paulo Honório tem com
Mendonça uma reprodução do aprendizado assimilado por parte do protagonista quando este ainda
contraía empréstimos com o Pereira.
112
RAMOS, op. cit., p. 25.
90
simultaneamente Paulo Honório salda as antigas dívidas, ciente de que as promissórias
desse novo crédito serão quitadas mediante a hipoteca da fazenda S. Bernardo. É com a
certeza de quem já viveu muito, em meio à prática de agiotagem, que Paulo consegue
subtrair a propriedade de Padilha. Sua formação reificada, consolidada pela experiência
de vida, neste momento da narrativa lhe propicia a maior aquisição proveniente das
relações quantificadas.
A vida em si é a escola onde Paulo Honório se instrui e se forma, pois, ao que
parece, em nenhum momento de sua trajetória este personagem se depara com uma
formação institucionalizada, mesmo quando adquire e/ou consulta os manuais técnicos
agrícolas e os manuais de zootecnia. Já de posse da fazenda, Paulo Honório consulta
esses e outros manuais, mas é na experiência de vida que o protagonista vê a
possibilidade de adquirir uma formação que o guie no caminho consciente que escolhe,
o caminho do lucro incondicional, ou como delimita Fernandes: o percurso da
vantagem. É com esse pensamento que Paulo Honório se conduz socialmente. Mesmo
quando o protagonista declara ser “versado em estatística, pecuária, agricultura,
escrituração mercantil (...)”
113
, o conhecimento que este possui é voltado para as
atividades que exerce na fazenda, portanto, um conhecimento adquirido já com uma
finalidade previamente estipulada pela vida. Destinado a implementar as ações na
fazenda, o conhecimento de que se mune o fazendeiro e que faz parte de sua formação é
adquirido de acordo com a ocasião e nunca no âmbito institucionalizado de escolas
normais e/ou técnicas por mais que os materiais tenham sido elaborados por instituições
como a Satuba
114
. O uso aleatório das informações contidas no manual de zootecnia, ao
considerar apenas dados técnico-científicos provenientes destes para o bom andamento
de um casamento
115
, revela, além da limitada capacidade de processar e relativizar os
aprendizados obtidos, a tendência de Paulo Honório a desconsiderar qualquer
conhecimento que não advenha se sua experiência de vida ou que se confronte com a
mesma. O que se percebe é a incapacidade do protagonista de correlacionar os
conhecimentos adquiridos às práticas e situações específicas apresentadas, colocando
toda e qualquer circunstância vivida em um mesmo patamar. A formação especializada
(Ausbildung) a que recorre Paulo Honório lhe confere certa autoridade dentro de seu
113
Idem, p. 12.
114
Antigo órgão subordinado ao Ministério da Agricultura e que se destinava a viabilizar através de
estudos técnicos o desenvolvimento da agricultura em Alagoas. Desde 1993 há a Escola Técnica Agrícola
de Satuba destinada a qualificar pessoas e desenvolver a agropecuária e a agroindústria em Alagoas.
115
“Se o casal for bom os filhos saem bons; se for ruim, os filhos não prestam. A vontade dos pais não
tira nem põe. Conheço meu manual de zootecnia.”. RAMOS, op. cit. , p. 100.
91
campo de atuação – fazenda S. Bernardo –, dando-lhe autonomia e condições de obter o
lucro nas mais variadas circunstâncias. Ao mesmo tempo a formação especializada de
que se mune o impede de refletir sobre sua conduta diante das mais diversas situações,
já que sua postura sempre é a de um explorador feroz. Por isso as relações sociais em
sua totalidade são compreendidas da mesma forma: relações sociais intermediadas e
destinadas à troca e obtenção de valores quantitativos. O fragmento a seguir autoriza
estas e outras colocações.
“[Azevedo Gondim] – A instrução é indispensável, é uma chave, a
senhora não concorda, d. Madalena?
[Madalena] – Quem se habitua aos livros...
[Paulo Honório] – É não habituar-se, interrompi. E não confundam
instrução com leitura de papel impresso.
– Dá no mesmo, disse Gondim.
– Qual nada!
– E como é que se consegue instrução se não for nos livros?
– Por aí, vendo, ouvindo, correndo mundo.
(...). E por que não deita fora os seus tratados de agricultura?
– É diferente. Em todo caso suponho que os médicos estudam menos
nos livros que abrindo barrigas, cortando vivos e defuntos em
experiências. Eu, nas horas vagas, leio apenas observações de
homens práticos. E não dou valor demasiado a elas, confio mais
em mim que nos outros. Os meus autores não vieram olhar de
perto os homens e as terras de S. Bernardo.”
116
(grifo nosso).
Desprezando, naturalmente, a viabilidade de outra formação que não a
proveniente da prática, por mais que esta prática esteja orientada e derive de
fundamentos cientificamente estruturados, a experiência vivenciada pelo protagonista é
imperativa quando se trata de um aprendizado capaz de formar-lhe o caráter e instruí-lo
em sua conduta. As decisões de Paulo Honório sobre qualquer questão são
preponderantes, quando dizem respeito ao seu objetivo único de ganhar dinheiro.
Estabelecida a necessidade de formar-se para o acúmulo de capital, o
protagonista direciona seus esforços nesse sentido a partir de sua experiência de vida.
Desta experiência ele busca absorver toda e qualquer aprendizagem para o capital de tal
forma que, ao se delimitar sua trajetória, o que se observa de maneira indelével é a
formação especializada em conformidade com seu caráter reificado. Essa formação
advém de sua aprendizagem perante a vida e, após sua consolidação, é mecanicamente
reproduzida e aperfeiçoada em suas possibilidades.
116
RAMOS, op. cit. p. 104 -105.
92
Nesse estágio em que se encontra, contínuo aperfeiçoamento e especificidade
formativa, Paulo Honório age tal qual uma peça na engrenagem, corroborando assim
com a consideração de Luis Costa Lima, que alega ser a reificação de si mesmo – Paulo
Honório – uma das instâncias em que se manifesta o fenômeno da reificação. Isto
demonstra o acentuado e incondicional grau de uma mão-de-obra especializada e
atomizada em suas possibilidades, mesmo sendo quem é Paulo Honório: proprietário da
fazenda S. Bernardo. Não há o reconhecimento de si mesmo nas condições e moldes
formulados aqui – pelo menos isto não é claramente exposto –, mas em diversos
momentos da narrativa podemos deduzir tal explanação, como no trecho em que Paulo
Honório reflete acerca do pedido de Margarida:
“Esteja sossegada, durma sossegada. Faltando lenha para o fogo,
avise. Não deixe o fogo apagar-se, que as noites estão frias.
– É o que eu preciso, o fogo. O fogo e um pote.
Continuou a riscar figuras no chão. Curvada, um rosário de contas
brancas e azuis aparecia pelo cabeção aberto e batia-lhe nas pelancas
dos peitos.
– Queria também um tacho. O outro furtaram.
Lembrei-me do tacho velho, que era o centro da pequenina casa onde
vivíamos. Mexi-me em redor dele vários anos, lavei-o tirei-lhe com
areia e cinza as manchas de azinhavre – e dele recebi sustento.
Margarida utilizou-o durante quase toda a vida. Ou foi ele que a
utilizou. Agora, decrépita, não podia ser doceira, e aquele traste se
tornava inteiramente desnecessário.
– Está bem, mãe Margarida, terá um tacho igual ao outro.”
117
(grifo
nosso).
Durante sua infância, Paulo Honório vive na casa da doceira Margarida. Esta
tem o auxílio daquele na produção e venda dos doces. O sustento de ambos é
proveniente dos doces feitos no tacho e é precisamente por isto que o objeto adquire
posição de destaque quando Paulo Honório já adulto retoma sua infância e a narra. Ao
retomar de maneira sucinta sua infância, o protagonista não relata muitos
acontecimentos. A brevidade dá ainda mais relevo ao que é narrado, precisamente por
não serem fornecidos muitos dados, o que implica dizer que não podemos considerá-los
imediatamente como preponderantes a sua formação. Mas não há como negar uma
correlação com a formação do protagonista. Em um primeiro momento Paulo Honório
narra-nos sua infância miserável a fim de estabelecer um contraponto à vida de
abonanças que adquire já na idade adulta, ou seja, há uma correlação com a projeção
que este adquire com o passar dos anos; todavia, ponderar sobre a infância do
protagonista por este viés, torna a expectativa de uma análise destinada a demonstrar um
117
Idem p. 65 – 66.
93
caráter formativo do protagonista frustrante e improdutiva, precisamente por sabermos
que são preponderantes, para o caráter formativo da personagem em um romance de
formação, as experiências que se sucedem nos primeiros ciclos de vida. Assim sendo,
tomemos outro caminho. Talvez, não houvesse por parte do protagonista uma
compreensão acerca da centralidade do objeto de trabalho de Margarida e nem a total
absorção desta pelo objeto de trabalho, quando criança, mas pode-se presumir que já há
uma consciência acerca da necessidade de se possuir o meio de produção – neste caso o
tacho – justamente por compreender que o sustento depende do fato de mãe Margarida
possuí-lo. Acrescente-se ainda o fato de que, depois de adulto, a criança torna-se
fazendeiro, adquire uma formação especializada, e se insere em uma engrenagem
produtiva que é a fazenda S. Bernardo. A fazenda S. Bernardo é o meio que Paulo
Honório encontra de ganhar dinheiro e obter seu sustento e é devido a isto que ele
decide-se por adquiri-la. Porém, superado este estágio, a fazenda não se destina mais a
suprir suas necessidades, mas o contrário: Paulo Honório vive para suprir as
necessidades da fazenda – o motivo de casar-se surge de uma necessidade de deixar um
herdeiro, alguém que administre a fazenda S. Bernardo.
Ora, a trajetória de vida e as experiências advindas desta trajetória precedem as
decisões tomadas, ponderam as ações e é terminantemente constitutiva do caráter
reificado de Paulo Honório, ao ponto de circunscreverem todas as etapas de seu estágio
formativo. Por ser intrínseca à formação reificada do protagonista, a “escola da vida” o
guia em seus atos e pensamentos e o leva somente a uma única reflexão dentro das suas
e para as suas possibilidades de se ganhar dinheiro no meio em que vive; isso significa
que a reflexão de Paulo Honório acerca da condição de Margarida é conseqüência de
sua própria experiência de vida, na medida em que este protagonista pensa a realidade
alheia a partir de seu próprio confronto com a realidade vivenciada. A atuação limitada
de Margarida, guardadas as devidas proporções, equipara-se à atuação de Paulo Honório
a frente de sua propriedade: requer uma formação especializada e horas de trabalho e
dedicação para que as ações se convertam em lucro, além de se reconhecer a
necessidade de possuir os meios de produção. A diferença reside, grosseiramente
comparando, na rentabilidade de cada empreendimento.
Por não haver ninguém que oriente Paulo Honório de forma a lhe prover um
aprendizado a partir desta condição – aprendizado proveniente da experiência de vida –,
ele não chega a racionalizar sobre o estado em que se encontra Margarida antes de
assumir a mesma condição, é o que podemos presumir; o protagonista, porém, já
94
compreende a necessidade de especializar-se para o acúmulo de capital, e especializar-
se em um ofício rentável, além de ser dono dos meios de produção. Afinal, é este o
conselho dado a d. Glória.
“No vagão comprei os jornais do dia. (...) Comecei a ler umas coisas
interessantes sobre apicultura. (...) Concentrei-me na leitura.
Efetivamente as abelhas seriam para nós uma fonte de riqueza.
Nesse ponto veio sentar-se ao meu lado uma senhora vestida de preto.
(...)
– Esta Great Western é uma joça. (...)
D Glória (...) achou que os caros não eram bons.
E a conversa caiu. Para levantá-la, abri o jornal e preguei-lhe um
dedo:
– Está aqui um artigo baita sobre a apicultura. O autor disto é osso.
Houve uma pausa. (...)
D. Glória referiu-se à dificuldade de arranjar empregos e o montepio.
(...) Vou indicar um meio de sua sobrinha e a senhora ganharem
dinheiro a rodo. Criem galinhas.
D. Glória formalizou-se, e um passageiro próximo, como eu gritava
entusiasmado, pôs-se a rir. Era um mocinho de bigodinho e rubi no
dedo. Aproximei dele o rosto cabeludo e a mão cabeluda:
– O senhor está rindo sem saber de quê. Vejo que possui uma carta.
Quanto lhe rende? Se não tem pai rico, deve ser promotor público.
Faria melhor negócio criando galinhas.
O mocinho encabulou.
– Boa ocupação d. Glória, ocupação decente. Se quiser dedicar-se a
ela, recomendo-lhe a Orpington.”
118
. (grifo nosso).
Paulo Honório aconselha d. Glória a dedicar-se a um determinado ofício: a
criação de aves. Sugere esta atividade, pois é uma das que emprega em sua fazenda,
portanto, já tem experiência no ramo, podendo certificar a rentabilidade do
empreendimento. Ao guiar, ou melhor, ao mostrar o caminho para se ganhar muito
dinheiro, Paulo Honório assume uma posição semelhante à dos preceptores, só que
neste caso um preceptor distanciado das associações mais imediatas a que essa imagem
sugere, tais como a escola. A inserção do passageiro que ri – um advogado – é um
recurso empregado na narrativa que se destina a enfatizar a dissociação dos
ensinamentos do protagonista como algo proveniente de uma aprendizagem
institucionalizada, o que em outras palavras equivale ao desprezo de Paulo Honório
pelas atividades que requerem uma formação institucionalizada e humanística, por
desconsiderá-las como pressuposto para se ganhar dinheiro, sendo até certo ponto um
empecilho, como se vislumbra no caso do advogado Nogueira: “O Nogueira veio da
118
Idem, p. 83 - 87.
95
escola sabido como o diabo, mas não sabia inquirir uma testemunha. Hoje esqueceu o
latim e é um bom advogado.”
119
. Paulo Honório considera os anos de estudo de
Nogueira inúteis por não ter uma finalidade prática, como fica expresso na incapacidade
do bacharel em inquirir uma testemunha devido à falta de experiência no oficio. Não há
anos de estudo que superem a experiência frente à realidade vivenciada. Esta é capaz de
formar mais e melhor um homem, seja para que fim se destine sua formação,
precisamente por requerer deste uma formação voltada para a ação, uma ação que
consubstancie uma intenção, um objetivo previamente determinado.
Desconsideradas outras formas de educação/formação, percebe-se uma
dicotomia, em relação ao posicionamento de Paulo Honório, referente à viabilidade de
determinada formação, como se observa na oposição entre meios de aprendizagem
(escolas x prisão ou qualquer outro lugar), campos de aprendizagem (conhecimentos
técnico-científicos x conhecimentos humanísticos) e veículos de aprendizagem (livros x
fazenda S. Bernardo). Adquirindo os conhecimentos que adquire trabalhando na
fazenda, com o fim único de potencializar seus lucros, Paulo Honório se torna um
mestre em seu ofício.
Formado pela “escola da vida”, Paulo Honório orienta d. Glória e despreza
qualquer formação semelhante à do advogado Nogueira, principalmente por ser inviável
economicamente em se comparando com os empreendimentos que administra. Mas d.
Glória não percebe a questão pelo ângulo de visão do protagonista. Esta se sente
ofendida e escandalizada com a sugestão de Paulo Honório. O desconforto com a
proposição do protagonista agrava-se diante dos risos de outro passageiro do trem, e por
fim d. Glória acaba por não compreender a colocação de Paulo Honório vindo a
desconsiderá-la, mesmo quando este alerta sobre a decência do trabalho e a situação
econômica vantajosa que tal empreendimento propícia.
Este momento é retomado na narrativa quando o protagonista dialoga com
Madalena e emite opinião em relação aos procedimentos de d. Glória correlacionados à
ocupação que tem. A opinião de Paulo Honório sobre a tia de Madalena é fruto de uma
perspectiva sua de ver as coisas, portanto, passível de ser compreendida como uma
opinião que recai sobre si mesmo. O fragmento a seguir revela um dos aspectos mais
relevantes da formação do protagonista: a necessidade de uma formação especializada
(Ausbildung).
119
Idem, p. 104.
96
“– Como ia dizendo, julguei que sua tia quisesse trabalhar.
Até uma vez dei a ela uns conselhos, no trem. Espinhou-se.
(...)
Eu [Madalena] saía para a escola e ela [d. Glória] punha o
xale, ia cavar a vida. Tinha muitas profissões. Conhecia padres – e
fazia flores, punha em ordem alfabética os assentamentos de batismo,
enfeitava altares. Conhecia desembargadores – e copiava os acórdãos
do tribunal. À noite vendia bilhetes no Floriano. E como o padeiro
nosso vizinho era analfabeto, escriturava as contas dele num caderno
de balcão. Está claro que, dedicando-se a tantas ocupações miúdas,
era mal paga.
(...) O que ela não pode é dedicar-se a um trabalho
continuado: consome-se em trabalhos incompletos. É por isso a
inquietação em que vive. Aqui [na fazenda S. Bernardo] não há os
bilhetes do cinema, os acórdãos do tribunal, os assentamentos de
batizados, o caderno de contas do padeiro. D. Glória vê máquinas e
homens que funcionam como máquinas. Entretanto, d. Glória
procura ser útil: vai à igreja, pões flores nos altares e limpa os vidros
das imagens na sacristia; tenta cozinhar e não se entende com Maria
das Dores; oferece-se para ajudar seu Ribeiro; já experimentou
escrever em máquina.
(...)
[Paulo Honório] – Como tenho dito, não concordo com esse
esbanjamento de energia. A gente deve habituar-se a fazer uma
coisa só.
[Madalena] – D. Glória nada ganharia se se aperfeiçoasse em
vender bilhetes no cinema ou escrever os batizados: a paga seria
sempre insignificante.
– Por que não se empregou em ofício mais rendoso?
120
.
(grifo nosso)
Temos procurado demonstrar até aqui que Paulo Honório exerce uma atividade
especializada, que ele busca empregar-se em algo lucrativo, e que este processo é
resultado de um ato consciente, justamente por ser previamente determinado. Portanto,
sua formação é guiada por um objetivo estabelecido peremptoriamente. Porém, não
temos em nenhum momento da narrativa algo que evidencie este aspecto em seu trajeto
formativo, ao ponto de demonstrar uma auto-reflexão sobre sua educação/formação.
Parece que seu objetivo não incide sobre suas decisões, dando a impressão de que não
há correspondência entre o objetivo do protagonista e suas ações. Seu objetivo – ganhar
dinheiro – manifestado sem subterfúgios uma única vez na narrativa S. Bernardo, e que
por isso mesmo estaria desvinculado de seus atos, é, no entanto, uma falácia. Assim
sendo, adquirir a fazenda S. Bernardo não é algo tencionado simplesmente por ser
Padilha alguém fácil de ludibriar, ou, principalmente, porque Paulo Honório alega que
120
Idem, p. 134 - 137.
97
deseja fixar-se em Viçosa e não mais ficar viajando pelo interior como negociante de
todo tipo de mercadoria. Paulo Honório já trabalhou nas terras de S. Bernardo e sabe
que se possuí-la tem como extrair bons frutos.
As ações de Paulo Honório surgem em meio à narrativa em decorrência das
circunstâncias que surgem em seu caminho. De suas ações podemos concluir que há
certa correlação com o conceito de reificação, todavia daí deduzir um processo
formativo consciente é algo mais delicado, pois implica suposições que vão além das
ações do protagonista; em outras palavras, desvendar a formação reificada do
protagonista requer uma compreensão dos motivos que guiam e antecedem os atos que
revelam seu caráter reificado com o fim de elucidar a construção consciente de seu
trajeto. Sobre a impossibilidade de se revelarem as intenções e se estas são conscientes,
até este dado podemos alegar como sendo um ato premeditado por Paulo Honório, se
generalizarmos a afirmação que este faz: “E não estou habituado a justificar-me (...) Era
o que faltava.”
121
.
Como não há indícios significativos de uma reflexão sobre a conduta reificada
do protagonista que parta de si e incida em si mesmo, denotando um caráter formativo à
trajetória descrita no romance, compreender as colocações de Paulo Honório
direcionadas aos demais personagens – no caso mãe Margarida e d. Glória – pode ser o
caminho para que encontremos o alicerce de nossa proposição, a educação/formação
resultante de uma ação consciente.
No diálogo que há entre Paulo Honório e sua esposa Madalena, a respeito da
ocupação de d. Glória, é posta em evidência a necessidade de especializar-se em um
ofício lucrativo. Paulo Honório sugere uma atividade rentável a d. Glória, mas esta não
o escuta. Este se incomoda com a presença de d. Glória por vê-la sempre de conversa ou
lendo romances. O fato de d. Glória não exercer uma atividade específica na fazenda,
incomoda o protagonista que está habituado a ver seus funcionários exercerem
atividades determinadas. Não há quem faça tudo ou esteja empregado em mais de uma
função. Todos exercem um ofício. Por não se adequar e corresponder à imposição de
realizar uma única tarefa, a conduta de d. Glória afeta a maneira como Paulo Honório
esquematiza o trabalho na fazenda, pois a tia de Madalena torna-se um elemento
surpresa. Ao não ter uma rotina, podendo aparecer a qualquer momento e acabar
atrapalhando, ou interferindo em alguma atividade que esteja em execução, d. Glória é
121
Idem, p. 129.
98
uma ameaça à organização que há na fazenda. Esta ameaça adquire força e acaba
realmente atrapalhando na medida em que seu Ribeiro não consegue dar andamento às
tarefas que são de sua responsabilidade, pois d. Glória tira os objetos de que este
necessita do lugar, além de distraí-lo com conversas.
Ao discorrer sobre a necessidade da tia de Madalena ater-se em uma única
atividade, ou não atrapalhar quem está trabalhando, Paulo Honório demonstra
consciência de guiar as ações em direção a um fim estipulado; e, para que se atinja o
objetivo determinado, devem-se buscar os meios favoráveis, além de empenhar as ações
de forma concêntrica. É exatamente esta a conduta que Paulo Honório adota. Sua
trajetória configura-se a partir desses princípios. E, como ele demonstra consciência de
se assumir tal postura, é presumível que também compreenda tais necessidades para si
mesmo, assumindo uma conduta lúcida.
A necessidade de atuar de maneira especializada, o que pressupõe a divisão do
trabalho, tem um propósito. Este propósito, obliterado em decorrência da ideologia
assimilada pelo protagonista e que se empenha a preconizar um maior desenvolvimento
e produtividade, ou seja, aumentar a força produtiva do capital, em decorrência dessa
especialização, tem como finalidade permitir um maior controle do capitalista Paulo
Honório, na medida em que o emprego da mão de obra é planejado, supervisionado e
regulado por este, tornando-se um mecanismo coercitivo do capital. O trabalhador em S.
Bernardo submete-se aos meios de produção existentes, não sendo individualmente
responsável pela produção da mercadoria, o que acentua o processo de dependência, na
medida em que os meios de produção – fazenda S. Bernardo – estão concentrados, são
posses de Paulo Honório. Esta situação é camuflada diante de um discurso que Paulo
Honório assume, ao incutir uma idéia contrária junto ao trabalhador empregado nas
atividades da fazenda, como pretendemos ilustrar mais adiante. Tal panorama, assim
configurado, resulta no “confinamento dos trabalhadores, para toda a vida, às operações
parciais que tolhem e deformam as suas possibilidades humanas”
122
e é
convenientemente ignorado. A situação de dependência agrava-se na medida em que
Paulo Honório assimila uma imagem/conduta patriarcalista extremamente conivente
com seus pressupostos capitalistas. Os funcionários existentes na fazenda são
subjugados e dependentes no plano das relações sociais e econômicas estabelecidas com
122
BOTTOMORE, Tom (org). Dicionário do Pensamento Marxista. Rio de Janeiro: Zahar, 1988. , p.
113.
99
Paulo Honório. As ações do protagonista não interferem tão somente na contratação da
mão de obra e seu emprego nos serviços existentes em S. Bernardo. Vejamos:
“Essa gente quase nunca morre direito. Uns são levados pela
cobra, outros pela cachaça, outros matam-se.
Na pedreira perdi um. A alavanca soltou-se da pedra. Bateu-
lhe no peito, e foi a conta. Deixou viúva e órfãos miúdos. Sumiram-se:
um dos meninos caiu no fogo, as lombrigas comeram o segundo, o
último teve angina e a mulher enforcou-se. Para diminuir a
mortalidade e aumentar a produção proibi a aguardente.”
123
(grifo nosso).
Proibir o consumo de aguardente é uma medida que se destina a aumentar a
produção. Mas pela quantidade de desgraças que se sucedem na fazenda parece que
também é uma medida destinada a diminuí-las. Devido à gravidade, à incidência de
morte que há em uma única família, dizimando-a por completo, a restrição adotada não
se desvencilha da situação fatídica, por haver uma preocupação com o bem-estar dos
que habitam a fazenda, é o que se presume de uma leitura menos atenta. Vejamos, no
entanto, o caso por outra perspectiva.
Ao que parece, o funcionário, desgastado pelo consumo de álcool, não executa
apropriadamente seu trabalho, o que acaba por resultar em sua morte. Este fato isolado
já é algo inadmissível para alguém como Paulo Honório que não admite um
contratempo sequer no percurso que estabelece. A esta morte sucedem-se outras,
instaurando um clima impróprio à produtividade, por algum motivo; talvez pelo fato de
os demais habitantes da fazenda se encontrarem abatidos ou desperdiçando as horas de
trabalho, comentando o ocorrido. Acrescente-se ainda ao fato a inconveniência que é
para Paulo Honório ter que lidar com uma situação conflitante como esta, na medida em
que não há mais o homem responsável para suprir as necessidades daquela família. O
protagonista vê-se afrontado por um discurso assistencialista que propala, mas que não
se destina a uma aplicabilidade, o que se atesta pelo próprio fim a que a família tem.
Acompanhando esta segunda interpretação, podemos entender melhor a atitude tomada
por Paulo Honório.
As intervenções no hábito de vida das pessoas destinam-se a uma única
finalidade: aumentar a produção. O fim triste das pessoas não interessa a Paulo Honório.
As adversidades alheias não podem intervir nas tarefas que precisam ser desenvolvidas
123
RAMOS, op. cit. P. 47.
100
na fazenda; a medida adotada e imposta atinge o âmbito das relações interpessoais, o
que demonstra o grau de penetrabilidade e intervenção do meio de produção nas
relações sociais, naturalmente. Vale ressaltar, neste caso, que as intervenções adquirem
caráter pessoal na medida em que estas são impostas diretamente pelo proprietário à
vida de cada habitante da fazenda; Paulo Honório amparado em uma projeção da figura
do senhor de terras, comum ainda nos primeiros decênios do século vinte, turva uma
percepção mais realista da nova configuração social que se delineia no Brasil.
Organizada em torno do modo de produção assimilado por Paulo Honório na
fazenda, a formação social adquire contornos capitalistas. As medidas estipuladas
surtem, em conseqüência também das intervenções na utilização do tempo além do
restrito à execução do trabalho, o efeito esperado. Tal intervenção, soberana e irrestrita,
ainda aumenta o poder de manipulação sobre a mão de obra empregada, por diversos
aspectos que extrapolam o contrato da força de trabalho.
Atuar de maneira restritiva na conduta de seus funcionários, assumindo um
discurso assistencialista e protecionista, marcadamente de cunho patriarcalista, e que
efetivamente tem como objetivo encobrir a exploração a que está submetido o
empregado no modo de produção capitalista implementado em S. Bernardo, é algo
vantajoso para Paulo Honório, ao passo que não se desvenda conseqüentemente o seu
caráter reificado, obstinado em obter o máximo de vantagens das relações sociais. Desta
forma, as regras existentes em S. Bernardo são, até certo ponto, convenientemente
aceitas pelos funcionários.
Suspender o consumo de cachaça na fazenda é a única providência cabível
diante das causas de mortandade na fazenda. Mas o resultado não é simplesmente o
aumento da produção. Com a proibição do consumo de cachaça, o funcionário vê as
possibilidades de gastar seu dinheiro reduzidas. Mais adiante, na narrativa, tomamos
conhecimento de que não há absolutamente nenhuma atividade em que se possa gastar o
dinheiro ganho.
“Aqui não é como lá fora. O cinema, o bar, os convites,
loteria, o bilhar, o diabo, não temos nada disso, e às vezes nem
sabemos em que gastar dinheiro.
124
.
A vida na fazenda destina-se simplesmente ao trabalho. Como não há outra
atividade destinada ao lazer ou em que o funcionário possa comprometer seus
rendimentos, o salário recebido pelos serviços prestados não acaba rapidamente, o que
124
P. 122
101
dá a impressão de que o rendimento proveniente do trabalho é muito. Ou seja, há a
ilusão de que se é bem remunerado pelos serviços empreendidos na fazenda S.
Bernardo. Esta impressão adquire feições mais contundentes se atentarmos para o caso
de seu Ribeiro.
“Quando ele [seu Ribeiro] estava com o Brito, ganhava cento
e cinqüenta a seco. Hoje tem duzentos, casa, mesa e roupa lavada.
- É exato, confessou seu Ribeiro. Não me falta nada, o que
recebo chega. ”
125
Paulo Honório procura envolver seus funcionários com o intuito de fazê-los
acreditar que viver nas condições existentes na fazenda é a melhor opção que poderia
haver em suas vidas. Suas ações pseudo-assistencialistas turvam a visão que os
funcionários possam ter de seu patrão, ou melhor, dificultam afirmações contrárias
justamente por apoiar-se em fatos concretos. A oferta de casa, comida e roupa limpa
sustenta o discurso de Paulo Honório. Ao admitir uma condição favorável a sua
existência, seu Ribeiro ratifica o discurso de Paulo Honório justamente por não haver
fatos concretos capazes de contradizê-lo dentro da ordem estabelecida. Em outros
momentos, Paulo Honório expõe de forma mais contundente sua astúcia, como se
observa no momento em que este procura emitir uma opinião acerca de eleições.
“A gente se acostuma com o que vê. E eu, desde que me entendo, vejo
eleitores e urnas. Às vezes suprimem os eleitores e as urnas: bastam
livros. Mas é bom um cidadão pensar que tem influência no governo,
embora não tenha nenhuma. Lá na fazenda o trabalhador mais
desgraçado está convencido de que, se deixar a peroba, o serviço
emperra. Eu cultivo a ilusão. E todos se interessam.”
126
. (grifo
nosso).
Cultivar as relações existentes na fazenda de uma forma que encubram a
exploração a que as pessoas se sujeitam, o que implica afirmar também que as pessoas
não compreendem as ações implementadas pelo protagonista, é extremamente viável.
Não há questionamentos por parte dos que se encontram sob o jugo de Paulo Honório.
Este, para não contrariar seus interesses, obviamente, dissimula a relevância de cada
funcionário empregado nas atividades da fazenda, como se o funcionamento e o
desenvolvimento existentes em S. Bernardo dependessem diretamente de quem executa
as tarefas estipuladas, o que não tem o menor fundamento. Caso uma determinada
125
P. 115
126
P. 77.
102
função não seja executada em tempo hábil e dentro do esquema imposto por Paulo
Honório, o funcionário responsável é devidamente punido. As punições são causa de
dissidência entre Paulo Honório e Madalena, principalmente a aplicada ao funcionário
Marciano, tornando patente a incompatibilidade entre o caráter formativo de Madalena e
Paulo Honório.
Madalena se opõe veementemente diante das atitudes tomadas por Paulo
Honório à frente da fazenda, e esta oposição é resultado de uma formação divergente da
obtida por ele. Antes, porém, de adentrarmos neste aspecto, compreender como se dá a
aproximação entre o casal é interessante por haver, já no início da relação entre os dois,
indícios de como há de ser a convivência entre ambas as partes.
Na medida em que acompanhamos a trajetória do protagonista Paulo Honório, o
vemos surgir, pleno em seu percurso, ao consolidar-se senhor de terras e sair-se superior
no embate que trava com seu então vizinho Mendonça, dono de Bom Sucesso, fazenda
que faz fronteira com S. Bernardo. O embate diz respeito ao impasse quanto à posição
da cerca que delimita as propriedades. Após consolidar-se como proprietário de terras,
Paulo Honório, por necessidade de preparar um herdeiro, procura arranjar um
casamento. Escolhido o cônjuge, este, ao passar a conviver com Paulo Honório na
fazenda, sucessivamente opõe-se ao instinto de propriedade do esposo.
Imbuído de “um arraigado sentimento patriarcal”
127
, Paulo Honório amanhece
um dia pensando em casar mais por necessidade de preparar um herdeiro para
administrar a fazenda do que pelo fato de haver encontrado uma companheira.
Tomamos conhecimento disto logo no início do XI capítulo. As suas ações, estipulada a
meta, giram em torno desta, sendo, portanto, com este intuito também que Paulo
Honório vai à casa do juiz de direito, Dr. Magalhães, e sonda sua filha Marcela. Mas
“de repente conheci que estava querendo bem à pequena. Precisamente o contrário da
mulher que eu andava imaginando – mas agradava-me, como os diabos. Miudinha,
fraquinha. D. Marcela era bichão. Uma peitaria, um pé-de-rabo, um feitiço!”
128
.
Pragmático, Paulo Honório vislumbra em Madalena o oposto de Marcela. Deste
fato, podemos deduzir que, para as suas pretensões, a moça de aparência debilitada é
mais fácil de ser conduzida de acordo com seus interesses. E é com essa impressão que
Paulo Honório passa a concentrar suas ações a fim de realizar o casamento com
Madalena.
127
CANDIDO, op. cit., p. 35
128
RAMOS, op. cit. p. 97
103
Ao retornar da capital, no trem que segue para Viçosa, passado um mês da visita
em casa do doutor Magalhães, Paulo Honório depara-se com d. Glória, tia de Madalena,
com quem conversa durante a viagem. Ao chegar à estação, a sobrinha lhe é
apresentada. Em seguida, ele busca informação da moça junto ao seu advogado, João
Nogueira, e também junto ao redator do jornal “O Cruzeiro”, Azevedo Gondim,
incumbindo este último da tarefa de convidá-la para ocupar a função de professora na
escola que há na propriedade, pretexto como confessa, depois, Paulo Honório a
Madalena. O que importa é que: “Depois do convite, tornei-me quase íntimo das duas
mulheres. Madalena não se decidiu logo. E eu [Paulo Honório], a pretexto de saber a
resposta, comecei a freqüentar a casinha da Canafístula”
129
.
É assim, mais “íntimo”, que Paulo Honório indaga d. Glória sobre as pretensões
de Madalena quanto ao matrimônio, certo de que a tia vai tecer comentários junto à
sobrinha. Deste momento para a efetivação do casamento vão-se apenas quatro
semanas. Entretanto, Paulo Honório não tem muita experiência em relações afetivas.
“Amanheci um dia pensando em casar. Foi uma idéia que me veio
sem que nenhum rabo-de-saia a provocasse. Não me ocupo com
amores, devem ter notado, e sempre me pareceu que mulher é um
bicho esquisito, difícil de governar.
A que eu conhecia era a Rosa do Marciano, muito ordinária.
Havia conhecido também a Germana e outras dessa laia. Por elas eu
julgava todas. Não me sentia, pois, inclinado para nenhuma: o que
sentia era desejo de preparar um herdeiro para as terras de São
Bernardo”
130
.
É com essas palavras que tomamos conhecimento do que pensa Paulo Honório
em relação aos relacionamentos e mulheres. Rosa, mulher de Marciano, funcionário em
S. Bernardo, aceita ir para a cama com o seu patrão, numa relação, digamos, de
conveniência e sobrevivência, pois ela se encontra com Paulo Honório quando este
manda Marciano à cidade para resolver algum problema. Marciano trabalha
excessivamente para garantir o sustento da família, o qual, na verdade, garante-se mais
pela relação de sua esposa com Paulo Honório. Um exemplo é quando, em um outro
momento da narrativa, o mesmo Paulo Honório, zangado, decide expulsar Marciano e
Rosa intercede pelo marido e por si também, junto ao senhor de S. Bernardo, atracando-
129
RAMOS, op. cit. p. 99.
130
Idem. Op. cit. p. 67.
104
o no pomar a fim de obter a redenção. Germana é uma “cabritinha sarará”
131
muito
assanhada que se insinua para Paulo Honório, assim como para outros homens, e que
acaba por tornar-se meretriz e contrair “doença-do-mundo”
132
.
A experiência de Paulo Honório no campo das relações amorosas não é
diversificada, ou seja, as mulheres que existem em sua vida enquadram-se no parâmetro
das duas mulheres acima citadas. Estas atendem e se entendem com o protagonista no
âmbito estritamente sexual – requisito, como ele mesmo concebe, unicamente viável
para o entendimento entre os “machos” e “fêmeas” –, como se observa metaforicamente
manifestado em outro momento do livro, o que está de acordo com seu pensamento:
“Necessitando pensar, pensei que é esquisito este costume de
viverem os machos apartados das fêmeas. Quando se entendem,
quase sempre são levados por motivos que se referem ao sexo”
133
.
“Demorei-me um instante vendo um casal de papa-capins
namorando escandalosamente. Uma galinhagem desgraçada.
Dentro de alguns dias, aquilo se descansava, cada qual tomava
seu rumo, sem dar explicações a ninguém. Que sorte!”
134
.
Ao referir-se à relação homem e mulher, Paulo Honório a resume ao ato sexual e
trata os respectivos sexos por “macho” e “fêmea”, como se não houvesse distinção ao
classificar o “bicho” homem e os demais bichos. Para ele, o que prevalece é o instinto
de sobrevivência que trespassa pela reprodução da espécie, o que está de acordo, por
fim, com sua necessidade movente, que é a de assegurar um herdeiro para administrar a
fazenda S. Bernardo, e garantir a prosperidade da propriedade. Assim, chegamos a essa
relação – instinto de sobrevivência e instinto de propriedade – imbricada, recíproca e
mútua, que é a de Paulo Honório com a fazenda, em que ele é proprietário desta ao
mesmo tempo em que é sua propriedade. A propriedade é resultado do que é Paulo
Honório ao mesmo tempo em que ele se molda e vai em busca de uma esposa por
necessidade de assegurar a propriedade. Garantida a continuidade da propriedade, que é
conseqüência de suas ações, Paulo Honório garante sua sobrevivência na presença de
um herdeiro. É com esta expectativa que acompanhamos a movimentação de Paulo
Honório que cerca, propõe e confirma o casamento com Madalena. Ele sabe que ela é
131
Idem, op. cit., p. 16.
132
Idem, op. cit., p. 17.
133
Idem, op. cit., p. 74
134
Idem, op. cit., p. 142.
105
uma professora de “nobre caráter” e “bons costumes”, o que basta para as suas
proposições. Relembramos ainda o episódio em que o mesmo já se considera “íntimo”
de d. Glória e Madalena, simplesmente por passar a freqüentar a residência das
senhoras, situada na Canafístula, há apenas algumas poucas semanas, ou dias, não
sabemos ao certo. Acompanhemos o diálogo em que é proposto o casamento.
“– Está aí. Resolvi escolher uma companheira. E como a senhora me
enquadra...Sim, como me engracei da senhora quando a vi pela
primeira vez...
Engasguei-me. Séria, pálida, Madalena permaneceu calada, mas não
parecia surpreendida.
– Já se vê que não sou o homem ideal que a senhora tem na cabeça.
Afastou a frase com a mão fina, de dedos compridos:
– Nada disso. O que há é que não nos conhecemos.
– Ora essa! Não lhe tenho contado pedaços da minha vida? O que não
contei vale pouco. A senhora, pelo que mostra e pelas informações
que peguei, é sisuda, econômica, sabe onde tem as ventas e pode dar
uma boa mãe de família. (...)
– Deve haver muitas diferenças entre nós.
– Diferenças? E então? Se não houvesse diferenças nós seríamos uma
pessoa só. Deve haver muitas. Com licença, vou acender o cachimbo.
A senhora aprendeu várias embrulhadas na escola, eu aprendi outras
quebrando a cabeça por este mundo. Tenho quarenta e cinco anos. A
senhora tem uns vinte.
– Não, vinte e sete.
– Vinte e sete? Ninguém lhe dá mais de vinte. Pois está aí. Já nos
aproximamos. Com um bocado de boa vontade, em uma semana
estamos na igreja.
– O seu oferecimento é vantajoso para mim, seu Paulo Honório,
murmurou Madalena. Muito vantajoso. Mas é preciso refletir. De
qualquer maneira, estou agradecida ao senhor, ouviu? A verdade é
que sou pobre como Jó, entende?
– Não fale assim, menina. E a instrução, a sua pessoa, isso não vale
nada? Quer que lhe diga? Se chegarmos a acordo, quem faz um
negócio supimpa sou eu.” (...)
“– Parece que nos entendemos. Sempre desejei viver no campo,
acordar cedo, cuidar de um jardim. Há lá jardim, não? Mas por que
não espera mais um pouco? Para ser franca, não sinto amor.
– Ora essa! Se a senhora dissesse que sentia isso, eu não acreditava. E
não gosto de gente que se apaixona e toma decisões às cegas.
Especialmente uma resolução como esta. Vamos marcar o dia.
– Não há pressa. Talvez daqui a um ano...Eu preciso preparar-me.
– Um ano? Negócio com prazo de ano não presta. Que é que falta?
Um vestido branco faz-se em vinte e quatro horas. (...)
– D. Glória, comunico-lhe que eu e sua sobrinha dentro de uma
semana estaremos embirados. Para usar linguagem mais correta,
vamos casar (...).”
135
135
Idem, op. cit. p. 101 - 107.
106
Não há subterfúgios quanto à maneira como Paulo Honório percebe/propõe o
casamento. O diálogo confirma enfaticamente o que pretende o proprietário da fazenda
S. Bernardo, além de dar o tom de quão íntima era a relação entre as duas personagens
para que ele propusesse o casório.
Paulo Honório escolhe quem deva ser sua companheira. A companheira
pretendida não surge em decorrência de um convívio que tenha motivado tal ação.
Madalena mais se enquadra nos moldes que ele estabelece do que outra coisa, sendo as
informações por ele colhidas, juntamente com a breve interação, perfeitamente
condizentes com o que havia planejado. O fato de ser ela sisuda, econômica e prudente
implica em dizer que ela está de acordo com as expectativas do senhor de S. Bernardo, a
quem podemos atribuir também as referidas qualidades por serem extremamente
compatíveis com seu caráter reificado.
É em correspondência com a verossimilhança da obra e este caráter reificado de
Paulo Honório que o texto expõe-nos a necessidade do eu-protagonista em agir
sistematicamente, de modo objetivo, rápido e dinâmico, procedendo, não por acaso, de
semelhante maneira como quando adquire a fazenda.
Paulo Honório, com o intuito de estabelecer-se em Viçosa, município de
Alagoas, logo se decide por adquirir a propriedade São Bernardo. Motivado por este
objetivo, suas ações sempre estão em convergência para que se atinja o fim almejado.
Assim, ele empresta dinheiro, passando-se por amigo de Luís Padilha, o então dono da
propriedade, a qual obtém por ocasião de herança. Padilha, encalacrado e sem condições
de saudar a dívida que contrai com o pseudo-amigo, acaba hipotecando-lhe as terras de
S. Bernardo para saudar as promissórias, estas que, em seu valor total, correspondem a
bem menos do que o valor real do imóvel disponibilizado para quitar o compromisso.
Para sermos mais explícitos, assinalemos os procedimentos. Paulo Honório
tenciona um objetivo – adquirir S. Bernardo/preparar um herdeiro; suas ações
convergem para a realização do objetivo almejado – aproxima-se de Luís Padilha/
aproxima-se de Madalena; age para conseguir o intencionado – disponibiliza o
empréstimo para Luís Padilha/ propõe o casamento; executa a ação – coage Luís
Padilha/ coage Madalena. A coação que recai sobre os dois, Luís Padilha e Madalena, é
de ordem econômica, sendo no caso de Padilha motivada diretamente por Paulo
Honório com as promissórias em punho a pressioná-lo, enfim, uma coação
meticulosamente planejada. Já Madalena, além de Paulo Honório, é também coagida
pelo meio, sendo “pobre como Jó”. Paulo Honório lhe propõe em casamento e esta deve
107
aceitá-lo como marido. Este a coage, ao afirmar que devem se entender logo, caso
contrário ele não mais a procura. Em tal situação, a moça pensa com brevidade,
deixando-se levar apenas pelos benefícios materiais advindos com a proposição do
matrimônio. Apesar de serem coações aparentemente distintas, pois Luís Padilha acaba
por perder as terras, enquanto Madalena vislumbra uma paz, uma estabilidade nas
mesmas terras, ambos cedem à pressão econômica, sujeitando-se a Paulo Honório e seu
instinto de propriedade.
A aproximação da relação Luís Padilha/Paulo Honório e Madalena/Paulo
Honório, como aqui colocamos, tem como finalidade compreender mais claramente as
ações do protagonista e sua relação cíclica, pois, num plano mais profundo, os
procedimentos são os mesmos, o que denota um aprendizado, naturalmente, até porque
Paulo Honório age conscientemente. Por isso Paulo Honório refere-se a “negócio” ao
tratar do casamento com Madalena e tem preocupação com prazos. No mundo dos
negócios, os prazos são cruciais para se obterem vantagens. É neste campo dos
negócios, onde soberana reina a mercadoria e seus encantamentos, que Madalena acaba
por inserir-se ao se casar com Paulo Honório. Percebemos que a professora corrobora
com a consciência reificada do proprietário da S. Bernardo, ao participar ativamente das
relações quantificadas. Mesmo que tenha sido coagida, Madalena não deixa de ter uma
posição ativa diante do contrato de casamento, aceitando os termos propostos por Paulo
Honório; neste instante, Madalena age em conformidade com os princípios de uma
relação baseada em aspectos quantitativos, visando obviamente à obtenção de alguma
vantagem para si. Esta conduta, no entanto, não é algo comum a Madalena, pois sua
formação tende para os valores humanísticos. Mas é em decorrência desta falha que
Madalena insere-se no mundo de Paulo Honório.
As ações de Paulo Honório são motivadas por valores quantitativos que revelam
seu caráter reificado
136
, enquanto Madalena vê-se motivada por valores qualitativos, o
que conseqüentemente expõe seu caráter humanizado. Isto significa dizer que Paulo
136
Lafetá já afirma que: “Em termos de técnica narrativa não poderia haver solução mais coesa:
totalmente imbricados surgem, à nossa frente personagem e ação. Paulo Honório nasce de cada ato, mas
cada ato nasce por sua vez de Paulo Honório. Nós o vemos através das ações; mas, por outro lado, é ele
que deflagra todas as ações. Este caráter compacto e dinâmico, esta ligação íntima entre o homem e o ato
(espelhada pela linguagem direta, brutal, econômica, pelo ritmo rápido dos (...) capítulos), esta interação
entre o ser e o fazer vão compor a construção do romance, que parece correr fluentemente diante de nós,
em direção a um objetivo marcado (...). De tal modo isto é feito que dificilmente poderemos distinguir
entre Paulo Honório e seus atos, assim como dificilmente localizaremos na narrativa elementos que não
estejam ligados a ambos de forma coesa e indissolúvel”. LAFETÁ, João Luiz. “O mundo á revelia”. In:
São Bernardo. 75ªed. Rio de Janeiro: Record, 2002, pp.192-218.
108
Honório atua no campo das relações quantitativas, com a perspectiva de obter vantagem
das relações firmadas, e Madalena no campo das relações qualitativas, com a
perspectiva de firmar relações de irmandade, o que, no caso das relações que esta
estabelece na fazenda, significa atenuar as desigualdades provenientes da exploração
que Paulo Honório exerce.
Madalena, ao inserir-se na esfera da fazenda, busca viver de acordo com sua
formação. Suas ações guiadas por valores divergentes aos de Paulo Honório, na medida
em que se destinam a uma efetivação, passam a colidir com as ações de Paulo Honório,
pois ambos atuam, agem no mesmo espaço. O conflito que se instaura entre o casal
surge de suas respectivas vontades humanas colocadas em choque; tais vontades são
motivadas subjetivamente na medida em que emergem de uma intenção e
objetivamente, pois as ações emergem com finalidades definidas. Paulo Honório possui
um instinto de propriedade e que se configura em ciúme de Madalena; esta se opõe ao
marido na medida em que firma-se em uma postura humanizada e de não possessão. Eis
o âmbito do conflito: o instinto de propriedade advém do caráter reificado de Paulo
Honório que se opõe ao caráter humanitário de Madalena. Em uma reação mais forte, no
intuito de resguardar a couraça moral com que se ergue a fazenda, Paulo Honório acaba
por denegrir a imagem de Madalena.
Retornando à proposição do casamento, Madalena não parece surpresa com o
que Paulo Honório tem a lhe dizer, e é já tendo conhecimento da intenção de Paulo
Honório de consolidar o consórcio que ela alega não se conhecerem o suficiente,
devendo haver muitas diferenças. Propõe esperarem um ano, talvez. O seu caráter
prudente, no entanto, não vigora. A sua prudência distingue previamente o que lhe
convém naquele momento – a estabilidade, a paz –, faltando-lhe os sentimentos
referentes aos desígnios do amor e afeto, requisito necessário, mas que acaba por ficar
em segundo plano, bem como o conhecimento da pessoa Paulo Honório. Assim, o
casamento realiza-se em uma semana, período muitíssimo curto em relação ao proposto
inicialmente por ela de um ano, na certeza de que ambos estão tomando a atitude
correta, tendo em vista o desejo de Paulo Honório de garantir um herdeiro e assegurar a
continuidade da propriedade e de si mesmo, e Madalena conseguir estabilidade e paz, o
que efetivamente não ocorrerá, em parte, com o primeiro, que relega os cuidados com a
terra e o filho, e, na plenitude, com a segunda, que passa a viver de sobressaltos e
definha. A tão almeja paz de Madalena é possível apenas quando esta morre.
109
Madalena logo se intera dos trabalhos da fazenda e das pessoas que os executam,
alegando não estar ali em S. Bernardo para dormir, o que, para Paulo Honório, “são
entusiasmos do princípio”
137
. Para Madalena não se trata realmente de entusiasmos de
princípio, pois logo “Um bate-boca oito dias depois do casamento”
138
é o que se
sucede.
Paulo Honório paga mal os funcionários, remunerando-os com um salário tão
baixo que não chega a ser suficiente para eventuais adversidades, ou mesmo projetar
uma outra possibilidade de vida. Sua mulher indigna-se com tal situação, expondo sua
visão na frente dos próprios funcionários, o que gera uma tensão, além de colidir com a
posição de Paulo Honório. Enfim, ela questiona o salário baixo. Logo também ela busca
entender-se com o marido, o que não significa a dissolução do conflito, mas sim sua
distensão na narrativa. Ela justifica-se: “o que há é que ainda não conheço o meio.
Preciso acostumar-me”
139
. Isto não ocorre, seu caráter já está formado e suas ações
atestam isso, diante da conduta humanizada, que terá perante outro conflito, ou melhor,
muitos outros conflitos, como enfatiza Paulo Honório: “Pois apesar das precauções que
tomamos, do asbesto que usamos para amortecer os atritos, veio nova desinteligência.
Depois vieram muitas.”
140
. Há muitos conflitos, mas deter-nos-emos em apenas mais
um.
Paulo Honório, um dia, depara-se com o cocho vazio, os animais a roer madeira
e grita por Marciano, o esposo de Rosa, responsável pela execução de tal trabalho,
todavia, este não responde. O dono de S. Bernardo, colérico, sai a sua busca e o
encontra conversando com Luís Padilha, acomodado em um tamborete, e lhe diz: “Já
para as suas obrigações, safado.”
141
. Marciano, reduzido a sua insignificância, tem a
infeliz idéia de contra-argumentar, o que só aumenta a ira de seu patrão, que o cobre
com mais um desaforo: “mentiroso”
142
, e depois o agride fisicamente. Acompanhemos
o fragmento abaixo.
“– Marciano!
Gritei em vão. Desci a ladeira, com raiva. Lá embaixo, à porta da
escola, descobri Marciano escanchado num tamborete, taramelando
com o Padilha.
– Já para as suas obrigações, safado.
137
RAMOS, op. cit. p. 111.
138
Idem, op. cit. p. 115.
139
Idem, op. cit. p. 122.
140
Idem, op. cit. p. 125.
141
Idem, op. cit. p. 126.
142
Ibidem.
110
– Acabei o serviço, seu Paulo, gaguejou Marciano perfilando-se.
– Acabou nada!
– Acabei, senhor sim. Juro por esta luz que nos alumia.
– Mentiroso. Os animais estão morrendo de fome, roendo a madeira.
Marciano teve um rompante:
– Ainda agorinha os cochos estavam cheios. Nunca vi gado comer
tanto. E ninguém agüenta mais viver nesta terra. Não se descansa.
Era verdade, mas nenhum morador me havia ainda falado de
semelhante modo.
– Você está se fazendo besta, seu corno?
Mandei-lhe o braço ao pé do ouvido e derrubei-o. Levantou-se zonzo,
bambeando, recebeu mais uns cinco trompaços e levou outras tantas
quedas. A última deixou-o esperneando na poeira. Enfim ergueu-se e
saiu de cabeça baixa, trocando os passos e limpando com a manga o
nariz, que escorria sangue.”
143
Marciano não mente, diz a verdade. A verdade de todos que trabalham na
fazenda manifesta-se na fala do caboclo humilhado. Marciano procura cumprir com seu
serviço. O fato de o funcionário responder a Paulo Honório deve-se ao excesso de
trabalho imposto a ele e a todos os funcionários. A exploração é tamanha, nesse estágio,
que já não há mais como haver um mínimo de coerência/correspondência entre o
discurso empregado por Paulo Honório e a realidade vivenciada na propriedade.
Trabalha-se demasiadamente na fazenda, na concepção dialética do termo, na medida
em que não corresponde apenas à execução de algo, mas à transformação de algo,
negando a acomodação do mesmo. Por isso, a fazenda S. Bernardo é tão grandiosa e
Paulo Honório a sua frente realiza melhorias significativas. Mas “ninguém agüenta mais
viver nesta terra. Não se descansa.”, é o que alega Marciano. No entanto, durante o
percurso da vantagem, obstinado pelas possibilidades de lucro, a consciência reificada
de Paulo Honório não permite sequer a expressão de alguém em contrário. Este é o
motivo pelo qual o esposo de Rosa é espancado. No âmbito das relações qualitativas e,
portanto, humanizadas, o espancamento é brutalidade manifesta em seu mais alto grau,
horrível e inconcebível, como pensa a respeito Madalena. No âmbito das relações
coisificadas, em que os valores qualitativos inexistem diante do avulto de valores
quantitativos, Marciano, para Paulo Honório, não passa de uma peça destinada a lhe
prover vantagem, portanto, aquele para este, “não é propriamente um homem”
144
, mas
um molambo, um indivíduo sem vontade, que deve acatar a ordem do patrão. Todavia,
não se trata de frivolidade, caso insignificante, como alega Paulo Honório, e sim
143
Idem, op. cit. p. 126,127.
144
RAMOS, op. cit. p. 128.
111
anulação do homem como humanidade, diante deste mundo reificado que representa a
propriedade S. Bernardo. Paulo Honório, porém, não considera este aspecto das relações
na medida em que não há uma disposição afetiva para tal, justamente por estar
habituado às relações objetivas. Essa violência física, mais explícita, é apenas mais uma
forma de tantas outras violências – implícitas ou não –, como a coação moral, social e
econômica a que Paulo Honório recorre quando é necessário, não admitindo a
indignação e o furor da esposa.
Após dois anos de casados, Paulo Honório e Madalena continuam vivendo em
divergência e os conflitos não se atenuam. Estão sempre brigando ou por ela dar roupas
ao povo da fazenda, ou por auxiliar com remédios os doentes, o que para o proprietário
da fazenda parece um despropósito.
145
Tanto Paulo Honório quanto Madalena acreditam na legitimidade de suas ações,
de tal modo que todas as atitudes estão de acordo com a necessidade e o caráter das
personagens, o que, por conseqüência, é a negação da posição assumida de um pelo
outro.
Paulo Honório passa a reagir sob a forma de um ciúme impetuoso, agressivo e
degradante, do qual toma consciência exatamente no dia em que o casal comemora dois
anos de união. Os contínuos choques agravam a relação, descambando para o ciúme de
Paulo Honório e a degradação de Madalena, colocando em crise o casamento, o que em
um plano mais profundo corresponde à incompatibilidade entre o mundo reificado e o
humanitário, já prenunciado, e que agora se torna intolerável no mesmo meio.
Os poucos momentos de interação que ainda restam ao casal é quando agem
maquinalmente, ou seja, quando Madalena coloca-se na esfera de atuação do esposo, ou
a meia voz, distanciados. “Sem nos mexermos, sentíamos que nos juntávamos
cautelosamente, cada um receando magoar o outro. Sorrisos constrangidos e gestos
vagos.”
146
. Fora desta condição, Paulo Honório é violento, sente desejo de espancar a
esposa e sua tia, acha que a esposa procede com sem-vergonheza. Desconfiado de
sucessivas traições amorosas, Paulo Honório chega a investigar traços de outro homem
que possa haver no bebê. Extremamente enciumado, acredita que pode flagrar Madalena
a qualquer momento com outro na cama e durante a noite, de rifle em punho, dispara-o
145
Sobre este aspecto observa bem Candido quando afirma que “a bondade humanitária de Madalena
ameaça a hierarquia fundamental da propriedade e a couraça moral com que foi possível obtê-la.”
CANDIDO, Antonio. Ficção e Confissão: ensaios sobre Graciliano Ramos. 3ª ed. São Paulo: Ouro
sobre azul, 2006.. p. 37.
146
RAMOS, op. cit. p. 158.
112
no silêncio, no delírio de ouvir gente, algum amante da esposa a rondar a casa.
Madalena, que apenas deseja paz e estabilidade, acorda aterrorizada. A essa altura ela já
se encontra magra, franzina e debilitada, com pó no rosto para disfarçar as olheiras de
tanto chorar, e conseguindo dormir apenas quando está exausta.
Por mais que Paulo Honório esteja a defender os valores que permitem a
aquisição e o crescimento da propriedade S. Bernardo e Madalena esteja a negá-los,
para que não se negue a humanidade de homens como Marciano, estabelecendo-se aqui
uma oposição entre forças institucionalizadas, o desfecho ainda é entre os homens.
Portanto, é em meio à angústia e sofrimento que Paulo Honório irá tatear, no intuito de
reabilitar qualquer coisa de humano que ainda lhe reste e que Madalena consegue
reavivar a partir da sua conduta humanitária. Em outras palavras, é ao negar a idéia de
humanidade que Paulo Honório passa a sentir a necessidade de resgatar a sua esfera
humanitária perdida nos anos de embrutecimento em busca do capital, mas não sem a
dor da ausência de Madalena e o reconhecimento de que sua própria vida fora uma vida
perdida.
Paulo Honório narra-nos o dia em que sobe à torre da igreja que há em S.
Bernardo para ver a extinção de corujas. Lá de cima, a quinze metros de altura, tem um
panorama de S. Bernardo. Sente-se grandioso pelo que tem e sua posição. “Diante disto,
uma boneca traçando linhas invisíveis num papel apenas visível merece pequena
consideração. Desci, pois, as escadas em paz com Deus e com os homens (...)”
147
.
O fazendeiro estava decidido a não mais importar-se com Madalena, permitindo
que ela tivesse suas ocupações e que gastasse seu tempo com estupidez. Viveria
indiferente à existência da mulher. Entretanto, esta sua resolução dura pouco.
Ao encaminhar-se para o pomar, Paulo Honório encontra uma folha trazida pelo
vento, e a lê ou, pelo menos, tenta. O esposo não entende o que está escrito no papel,
mas reconhece a letra da esposa. Como se pode observar, neste momento torna-se
patente a disparidade entre a formação adquirida por Paulo Honório e a que Madalena
possui. Paulo Honório esbarra em palavras desconhecidas, que dificultam a
compreensão da carta, mas, com esforço, consegue ao menos identificar que se trata de
carta a homem.
A formação que possui não lhe serve para resolver este impasse, pois Paulo
Honório não se reconhece como destinatário da carta. Seu ímpeto e ciúme degradante
147
Idem op. cit. p. 185.
113
apenas fazem crer que o papel que tem em mãos é uma prova da traição de Madalena.
Paulo Honório deseja esclarecimentos de Madalena, inquirindo-a com fúria. A
incapacidade de compreender a conduta de Madalena o impele para uma postura
agressiva, condizente com o modo como ele sempre procurou encaminhar as questões
que surgiram em sua vida. Madalena lhe é aparentemente indiferente, apática e calma.
Compreende que já não há possibilidade de reconciliação. Resoluta, não diz nada sobre
o papel que ele tem em mãos, apenas que o restante da carta está no escritório, em cima
da banca. Na sacristia da igreja, eles conversam várias horas. Ela faz recomendações a
Paulo Honório quanto ao modo como proceder com as pessoas, pede perdão por todas
as atitudes tomadas, fala-lhe de sua possível morte e o encaminhamento que o
fazendeiro deve dar aos pertences. Dentre as últimas recomendações de Madalena há o
pedido referente a uma mudança de postura de Paulo Honório. Mudar sua conduta e
admitir uma nova postura requer um novo aprendizado. Este deve reeducar-se, mas
sozinho, pois Madalena está decidida a deixá-lo. Novamente Paulo Honório deverá
tentar aprender perante as experiências vivenciadas.
Entre o diálogo, surgem frases que dão o tom da narrativa. Vejamos:
“-O que estragou tudo foi esse ciúmes, Paulo”
148
.
“(...) vinha novamente o ciúme. Aquilo ainda causaria infelicidade
sem remédio.”
149
.
“Três anos de casado. Fazia exatamente um ano que tinha começado
o diabo do ciúme.”
150
.
A primeira oração, emitida por Madalena, aponta a causa da crise. Talvez a vida
em S. Bernardo fosse tolerável mesmo com tantos conflitos; porém, com esse ciúme
deplorável que a aflige, o convívio com Paulo Honório é impossível, é o que fica
subentendido na oração. Ou seja, além de ser apontada a causa do fracasso da relação, o
que gerou a crise entre os dois, devemos atentar para o fato de conter também na oração
a impossibilidade de reconciliação entre os dois. O verbo está no tempo pretérito, não há
como remediar o passado, ainda mais se o passado perdura, se faz presente e
irremediável de igual forma. As duas outras orações, emitidas por Paulo Honório,
atestam a sentença de Madalena. Afinal, por mais que desejasse convencer-se do
148
Idem, op. cit., p. 189.
149
Idem, op. cit., p. 192.
150
Idem, op. cit., p. 193.
114
contrário, de viver em harmonia com sua esposa, Paulo Honório tem um forte ciúme,
incapacidade sua de desvincular-se do instinto de propriedade. Esta incapacidade o
impede de distinguir os efeitos de seu ciúme mórbido e degradante no plano das
relações qualitativas, levando-o a vislumbrar uma “infelicidade sem remédio”, o que de
fato já está cristalizado. Três anos de casado, sendo os dois primeiros anos de conflitos e
o terceiro de crise, não são suficientes para distinguir a infelicidade em que se encontra
Madalena. Se houvesse mais três anos de casamento permeados de crises, ainda não o
seriam. Afinal, Paulo Honório é vítima do próprio explorador feroz em que se
transforma. Habituado ao campo das relações reificadas, a presença de Madalena é uma
sombra, um vulto de humanização, uma imagem refletida na água turva, que o
indivíduo Paulo não distingue. Madalena sabe disto e é exatamente na madrugada do
dia em que completa mais um ano de casada que decide se matar. A data em que se
decide pelo suicídio atesta a ação consciente que toma. Um ano lhe foi mais que o
suficiente para refletir sobre sua condição. Ela não tem proteção durante toda a sua vida,
ninguém que interceda por sua pessoa. Quando surge a proposta de casamento, pensa
que terá a tão almejada paz e estabilidade, uma vida tranqüila e protegida ao lado de um
fazendeiro. Impossibilitada de sua realização, se mata. Seu caráter reivindica tal ação,
afinal sua expectativa de vida é incompatível com o mundo que a cerca.
Todos os indícios que há no romance S. Bernardo sobre Madalena, seu estado
físico e a resolução em dar fim à vida, que não são poucos, passam despercebidos pelo
protagonista e ampliam a tensão da narrativa. A própria carta que, trazida pelo vento, se
encontra no meio do caminho de Paulo Honório, como se fosse uma intervenção divina,
e que o leva a procurar Madalena horas antes de sua morte, e o fato de ela calmamente
lhe dizer onde está o restante da carta, cria a expectativa de que ele possa, ao obter
conhecimento do conteúdo, evitar a catástrofe. Entretanto, Paulo Honório compreende o
mundo que o cerca por uma outra perspectiva, a formação que adquire tem uma
finalidade específica. Ao revermos a trajetória de Paulo Honório, a formação que busca,
o objetivo que o norteia, os aprendizados que obtém frente à realidade vivida, de nada
adiantam perante os anos de convívio com Madalena. Os anos que passa casado e a
realidade advinda do matrimônio não têm um caráter formativo relevante neste
momento da narrativa, não acrescenta um aprendizado capaz de conduzi-lo no âmbito
das relações humanizadas; afinal, este sequer adentra no mundo da esposa. Paulo
Honório é um ignorante; ele não se reconhece como destinatário da carta; ao lê-la
115
distingue apenas as palavras, mas não compreende o conteúdo. O mesmo ocorre quando
ouve as palavras proferidas por Madalena:
“-Adeus, Paulo. Vou descansar.
Voltou-se da porta:
- Esqueça as raivas, Paulo.
Por que não acompanhei a pobrezinha? Nem sei. Porque guardava um
resto de dignidade besta. Porque ela não me convidou. Porque me
invadiu uma grande preguiça.
Fiquei remoendo as palavras desconexas e os modos esquisitos de
Madalena. Depois pensei na carta que ela havia deixado no escritório,
incompleta.
Para quem seria? Lá vinha novamente o ciúmes. Aquilo ainda
causaria infelicidades sem remédio. ”
151
(grifo nosso).
Paulo Honório não se reconhece como destinatário da carta, e nem ao reler
depois o restante consegue compreender claramente o conteúdo, distinguindo com
muita dificuldade que se trata de uma carta de despedida. Em consonância com seu
caráter, não segue a esposa, o que poderia ter evitado tudo, pelo menos naquele
momento, já que não há possibilidade de equilíbrio, conciliação dessas forças em
contrário. Madalena o tempo todo se reporta em tom de despedida, chegando a falar de
sua repentina morte, mas “agarrei-me a um assunto agradável para afugentar aquelas
idéias tristes.”
152
,diz-nos Paulo Honório, revelando sua incapacidade de tatear no
campo da subjetividade, onde os valores qualitativos revelam os sentimentos e os
homens. Paulo Honório, depois da conversa que tem com Madalena na capela de São
Pedro, torna a encontrar a esposa, mas “(...) estirada na cama, branca, de olhos vidrados,
espuma nos cantos da boca.”
153
. A Paulo Honório resta a incompreensão do ato
extremado da mulher e a necessidade de escrever o livro e assim tentar obter o
entendimento do que é a sua vida, que rumo ela toma e o que se sucede; tentar suprir a
ausência da esposa que lhe causa raiva e desespero; agora ele se vê obrigado a
confrontar-se com seu mundo reificado e a nesga por que passa sentimentos que ele não
distingue, mas que acabam por levá-lo, pela dor da ausência, solitário, a compreender a
vida que desperdiça em busca do lucro. Enfim, para ele resta a morte em vida, pois a
morte de Madalena é a própria negação das linhas diretoras que o conduzem no seu
percurso da vantagem, portanto é sua morte simbólica, não sendo apenas a dissolução
151
RAMOS, op. cit., p. 192.
152
Idem. op. cit.; p. 191.
153
Idem. op. cit., p. 194.
116
física a única experiência válida
154
. O fato de os mais próximos de seu convívio – seu
Ribeiro, d. Glória e Luis Padilha – irem embora acentua sua solidão, e estar solitário já é
estar morto.
A sensação de que tudo poderia ter sido evitado é apenas recurso estilístico que
Graciliano Ramos, através de seu gênio criador, foi capaz de elaborar. A existência de
Paulo é moldada por uma trajetória em busca do capital, sendo ele incapaz, neste
percurso, de distinguir o bem do mal, o que o faz não perceber a situação da mulher,
portanto ele não é o culpado pelo suicídio, mesmo sendo o motivador do ato extremado.
Paulo Honório é vítima de si mesmo, de sua trajetória de vida. Madalena sempre com
seu caráter nobre, procede com honestidade junto ao marido e é caridosa com os
necessitados. O que Madalena apenas deseja é a felicidade, que corresponde à paz,
estabilidade e proteção. Ela é vítima tanto quanto Paulo Honório e sucumbe não pela
mão do marido, mas pela mão do mundo que o modela, o mundo da mercadoria e seus
fetiches.
Paulo Honório, movido pelo pio da coruja, decide-se por compor o livro. Essa
nova atividade não é fácil de ser desenvolvida, pois o protagonista não possui uma
formação que o capacite para redigir o livro e porque o leva a uma compreensão de si
mesmo e do que fora sua trajetória de vida e a deformação que esta lhe acarreta.
“(...) os enfeites do meu espírito se reduzem a farrapos de
conhecimentos apanhados sem escolha e mal cosidos, devo confessar
que a superioridade que me envaidece é bem mesquinha.
Além disso estou certo de que a escrituração mercantil, os
manuais de agricultura e pecuária, que forneceram a essência de
minha instrução, não me tornaram melhor que o que eu era quando
arrastava a peroba. Pelo menos naquele tempo não sonhava ser o
explorador feroz em que me transformei.
Quanto às vantagens restantes – casas, terras, móveis,
semoventes, consideração de políticos, etc. – é preciso convir em que
tudo está fora de mim.
Julgo que me desnorteei numa errada.”
155
“ – Estraguei a minha vida, estraguei-a estupidamente”
156
“Madalena entrou aqui cheia de bons sentimentos e bons propósitos.
Os sentimentos e os propósitos esbarraram com a minha brutalidade e
o meu egoísmo.
154
“(...) porque conhecemos a morte tanto na experiência dos outros como nas nossas próprias
expectativas e fins. E da mesma forma que a morte penetra continuamente nossa vida cotidiana, assim
também qualquer afirmação sobre a morte toma corpo numa linguagem comum a todos, que depende de
uma experiência comum.” WILLIAMS, Raymond. Tragédia moderna. São Paulo: Cosac & Naify, 2002,
p. 82.
155
RAMOS, op. cit. p. 218.
156
Idem, op. cit., p. 220.
117
Creio que nem sempre fui egoísta e brutal. A profissão é que me deu
qualidades tão ruins.
E a desconfiança terrível que me aponta inimigos em toda parte!
A desconfiança é também conseqüência da profissão.
Foi este modo de vida que me inutilizou. Sou aleijado.”
157
Ao adquirir uma formação especializada, em conformidade com o mundo que o
cerca e que, ao mesmo tempo, ajuda a construir, Paulo Honório atinge um equilíbrio
entre seus anseios a as atividades que exerce frente à realidade que o circunscreve, mas
fora dela é inepto. O equilíbrio atingido revela-se falso, demarcando a inviabilidade de
sua respectiva formação para uma atuação mais ampla. A trajetória de Paulo Honório o
projeta como um homem bem sucedido, que soube construir ativamente seu caminho,
mas este caminho é estreito e tacanho, pois a reificação inerente a sua personalidade
comprime sua essência humana. A formação especializada a que recorre o
empreendedor Paulo Honório é a própria deformação da pessoa Paulo Honório. Compor
o livro é uma tentativa de resgatar-se, ou pelo menos reencontrar-se. A nova ocupação a
que se dedica Paulo Honório – escrever o livro – advém de uma necessidade de refletir
sobre a formação que adquire, uma formação que este acredita ser imprescindível para
atingir os objetivos estipulados e ser bem sucedido, enfim, garantir bens e poder, mas
que em um determinado momento mostra-se inútil. Esta formação revela-se
notoriamente improfícua a partir do suicídio de Madalena.
A formação de Paulo Honório não contribui em nada para a elevação do espírito.
A formação especializada (Ausbildung) é imprescindível para a obtenção do lucro, e
apenas para as vantagens a que Paulo Honório se dedica. O equilíbrio que Paulo
Honório adquire face à segunda natureza dá-se à custa da supressão de uma parte de sua
interioridade, parte esta que se reaviva diante do suicídio de Madalena. Os sentimentos
em Paulo Honório são embotados, sua profissão exige que seja assim, mas, ao reavivar-
se sua interioridade, os sentimentos que o impelem a escrever o livro também são causa
de um desequilíbrio interno. Os anseios de Paulo Honório o impulsionam em busca de
uma formação que o integre ao meio em que vive e, ao mesmo tempo, o distancia de si
mesmo, na medida em que se relega um autoconhecimento. Como resultado, o percurso
da vantagem acaba desfigurando-o e tornando-o um aleijado; um sujeito com
extraordinária capacidade de empenhar-se para o acúmulo do capital e,
157
Idem, op.cit., p. 221.
118
simultaneamente, deformar-se justamente por não corrigir as imperfeições e defeitos
morais e espirituais de que padece.
Paulo Honório, assim como qualquer outro indivíduo, é provido de
sentimentos, porém, os anos de brutalidade faz com que uma camada espessa encubra
este lado. O breve convívio com Madalena não é capaz de dissolver a carapuça que o
envolve. Mas a dor da ausência e a angústia diante do fato de Madalena ter se suicidado
motivam o protagonista a escrever o livro. Após a morte de Madalena, Paulo Honório
redige o livro e afirma: “Desde então procuro descascar fatos, aqui sentado à mesa da
sala de jantar (...) Às vezes entro pela noite, passo tempo sem fim acordando
lembranças.”
158
.
Descascar os fatos é tentar penetrar a crosta que se forma através dos anos de
brutalidade empenhados no acúmulo do capital, é tentar desvendar as aflições que
surgem com a morte de Madalena, é, enfim, compreender a (de)formação que
representa sua trajetória de vida e os aprendizados assimilados durante o percurso da
vantagem que estabelece para si.
“Anteontem e ontem, por exemplo, foram dias perdidos.
Tentei debalde canalizar para termo razoável esta prosa que se
derrama como a chuva da serra, e o que me apareceu foi um grande
desgosto. Desgosto e a vaga compreensão de muitas coisas que
sinto.(...)
O que estou é velho. Cinqüenta anos pelo S. Pedro. Cinqüenta
anos perdidos, cinqüenta anos gastos sem objetivos, a maltratar-me a
maltratar os outros. O resultado é que endureci, calejei, e não é um
arranhão que penetra esta casca espessa e vem ferir cá dentro a
sensibilidade embotada.”
159
. (grifo nosso)
Paulo Honório está velho e não há como assumir outra postura, adquirir outra
formação. É o que está impresso. Escrever o livro serve apenas para constatar seu estado
inalterável. Mas decidir-se pela composição do livro, para um fim que seja alheio ao de
se obter lucro já não representa um novo aprendizado? Não há uma tentativa, ainda que
vaga, de reeducar-se e de restabelecer um equilíbrio ao menos para consigo?
O livro o ajuda a compreender o que se sucede, mas o que virá depois temos
apenas como supor, todavia, não podemos deixar de considerar o fato de que toda a
formação de Paulo Honório advém de sua experiência de vida face à realidade concreta
e que a experiência em escrever o livro torna-se nesta perspectiva potencialmente o
158
Idem, op. cit., p. 215-216. (grifo nosso).
159
Idem. p. 216.
119
início de um novo aprendizado. Endossar tal ilação faz do romance S. Bernardo um
romance de formação tanto para Paulo Honório quanto para o leitor, além dos elementos
composicionais que já atestam este traço na narrativa.
120
CONSIDERAÇÕES FINAIS
S. Bernardo é destas obras que fundem texto e contexto em uma integração
dialeticamente incontornável. No período de sua concepção e edição, no Brasil havia
um intenso debate acerca de questões políticas e ideológicas a que os escritores se
dedicavam. Natural que estes aspectos penetrassem os textos literários, por vezes até
desconsiderando-se um mínimo de elaboração estética necessária, o que não é o caso de
S. Bernardo.
Talvez esta narrativa represente o ponto alto da literatura produzida nos anos
trinta por levar ao limite o clima de tensão presente nas relações homem/meio natural,
homem/meio social, refletindo a realidade nordestina de oligarquias tradicionais e
choques ideológicos, além da situação dos proletários rurais, isto é, os dominados por
um rude esquema de trabalho sob o mando dos grandes proprietários de terra. Como um
arguto escritor que foi, Graciliano Ramos soube perceber o momento histórico e
expressá-lo artisticamente.
Ao se considerar a questão da reificação do protagonista, a crítica literária
esteticamente orientada tenta sistematizar as discussões e encontrar nesta obra literária
as contradições inerentes à formação brasileira e que, esteticamente, são devidamente
elaboradas, sendo também, em parte, fator responsável pela singularidade desta obra.
Eis o porquê de Paulo Honório ser um fazendeiro que transita e estabelece suas relações
no âmbito aparente das configurações patriarcais, mas sem perder de vista a reificação
das mesmas relações, demonstrando que efetivamente estas se enquadram dentro de
uma configuração capitalista.
Obstinado pelo acúmulo de capital, o protagonista reduz suas relações a este
propósito. É com este objetivo que, em meio ao percurso da vantagem estabelecido para
si, firma um contrato de casamento com Madalena, em parte, causa de sua derrocada e
conseqüência de uma revisão do que fora sua trajetória de vida. Ao relembrar os
caminhos que percorre, o protagonista deixa entrever suas atitudes face à realidade
vivenciada. Pela forma como o protagonista narra as atitudes tomadas, podemos supor
que estas são guiadas conscientemente mediante um aprendizado. Este aprendizado,
ainda que implícito, pois vemos apenas as ações resultantes de uma formação adquirida,
é improfícuo para além das relações reificadas que este estabelece durante sua trajetória
de vida, como se torna patente diante da morte de Madalena. O resultado é o
121
atrofiamento das aptidões humanas em sua plenitude diante do mundo da mercadoria e
seus fetiches. Este é o maior aprendizado que o livro S. Bernardo trás para Paulo
Honório. Graciliano Ramos, ao expor os conflitos advindos de uma conduta reificada,
leva-nos consequentemente à reflexão do papel do homem no mundo da mercadoria e
seus fetiches.
Ao desenvolvermos a presente dissertação, além de aprofundarmos os estudos
concernentes à reificação de Paulo Honório, na medida em que nos propusemos a uma
discussão da formação que precede tal conduta, elucidamos as reflexões a que estamos
suscetíveis diante da leitura de uma obra como S. Bernardo; também revisamos o
período literário brasileiro do início do século XX e ponderamos sobre a relevância do
mesmo para o surgimento da obra que constitui o corpus desta dissertação; e por fim
empenhamo-nos em estruturar um aparato teórico conceitual que embasasse o estudo da
reificação em narrativas. Assim, esperamos ter contribuído para a continuidade de uma
crítica esteticamente orientada e para o avanço das discussões sobre a fortuna crítica de
Graciliano Ramos, e, em especial, a concernente a reificação de Paulo Honório, na
medida em que abordamos uma perspectiva profícua, não apenas pela sua originalidade
– até onde pudemos verificar –, mas principalmente por ressaltar a singularidade deste
romance.
122
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