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Alessandra Viana de Paiva
Espiritismo e cultura letrada: valorização do estudo pela doutrina Kardecista
Dissertação apresentada ao Programa de s-
graduação em Ciência da Religião, área de
concentração: Ciências Sociais da Religião, da
Universidade Federal de Juiz de Fora, como
requisito parcial para obtenção do grau de
Mestre.
Orientador: Prof. Dr. Francisco Luiz Pereira da Silva Neto
Juiz de Fora
2009
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2
Alessandra Viana de Paiva
Espiritismo e cultura letrada: valorização do estudo pela doutrina Kardecista
Dissertação apresentada ao Programa de s-
Graduação em Ciência da Religião, Área de
Concentração: Ciências Sociais da Religião,
do Instituto de Ciências Humanas da
Universidade Federal de Juiz de Fora como
requisito parcial para obtenção do título de
Mestre em Ciência da Religião.
Aprovada em 28 de agosto de 2009.
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________________
Presidente: Prof. Dr. Robert Daibert Junior
Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF
_____________________________________________
Titular: Prof. Drª Juliana Alves Magaldi
Universidade Estácio de Sá de Juiz de Fora - UNESA
_____________________________________________
Orientador: Prof. Dr. Francisco Luiz Pereira da Silva Neto
Universidade Federal de Pelotas - UFPEL
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3
Para meus queridos e inesquecíveis pais, Laura e Fábio.
A eles o meu eterno amor e sincera gratidão.
4
AGRADECIMENTOS
A todos os professores, funcionários e colegas do Programa de Pós-Graduação em
Ciência da Religião PPCIR.
Ao meu orientador, Professor Dr. Francisco Luiz Pereira da Silva Neto, com quem
divido este momento. Certamente sem sua boa vontade, paciência e compreensão o trabalho
o estaria concluído. A ele, meu sincero obrigada.
Aos amigos e parentes que sempre tiveram uma palavra de incentivo, em especial meu
colega de trabalho, Paulo Quiossa, com seu otimismo contagiante e seus preciosos conselhos.
À minha amiga Regina que, com certeza, ajudou muito a iluminar os meus
pensamentos.
À minha prima rcia por sua presença e ajuda indispensáveis, sobretudo nos
momentos de desânimo.
Às minhas queridas cunhadas Carminha, Lilia e Marilda por seu apoio e torcida
constantes.
Ao meu filho Hugo (alegria da minha vida) pela razoável compreensão que seus cinco
aninhos lhe permitem.
Ao meu marido e grande amor, Luigi, que viveu e acompanhou todo esse processo e
nunca me deixou desanimar. Sua presença serena e carinhosa, sempre respeitando os meus
altos” e “baixos” foi fundamental para que eu conseguisse chegar até aqui. Serei eternamente
grata.
5
RESUMO
O presente trabalho tem por intenção abordar o Espiritismo brasileiro como uma doutrina tal e
qual a doutrina originada na França, ou seja, com sua característica tripla de ciência, filosofia
e religião, sem que haja o entendimento de que no Brasil o aspecto religioso tenha tomado
maiores proporções em detrimento do aspecto científico. Esse estudo vai tentar perceber que
ao chegar ao Brasil, no século XIX, a Doutrina Espírita certamente foi influenciada pela
formação cultural do país e que o aspecto religioso, de fato, recebeu um maior destaque, o que
o significou, necessariamente, um afastamento de sua formação original francesa. O
trabalho se detecom maior afinco a uma característica significativa do espiritismo que é a
forte valorização do estudo, o que nos mostra que seu lado científico está, assim como os
outros, a todo instante presente no universo espírita. A intenção é perceber que no Espiritismo
os aspectos de ciência, filosofia e religião coexistem de maneira complementar uma vez que
seu sistema ritual é formado pelo estudo, caridade e mediunidade. No estudo destaca-se a
intelectualidade dessa religião, a valorização da investigação racional e da pesquisa
experimental. Na caridade o destaque é ao caráter cristão e, na mediunidade destaca-se a
relação entre homens e espíritos. Esses pólos estão interligados já que a mediunidade engloba
também a caridade e o estudo. O estudo e a caridade, por sua vez, como formas de relação
com o mundo espiritual são também mediunidade. Tudo isso nos mostra que essa tríade
(ciência, filosofia e religião) se apresenta, efetivamente, como o fio condutor da doutrina de
Allan Kardec também aqui no Brasil.
Palavras chave: Espiritismo. Cultura letrada. Mediunidade.
6
ABSTRACT
The present work has for intention to approach the Brazilian Spiritualism as a doctrine such
and which the doctrine originated in France, that is, with its triple characteristic of science,
philosophy and religion, without it has the agreement by that in Brazil the religious aspect has
taken bigger ratios in detriment of the scientific aspect. This study it goes to try to perceive
that when arriving at Brazil, in century XIX, the Spiritualist Doctrine certainly was influenced
by the cultural formation of the country and that the religious aspect, in fact, received a bigger
prominence, what it didn’t mean, necessarily, a removal of its French original formation. The
work will be lingered with bigger tenacity to a significant characteristic of the spiritualism
that is the strong valuation of the study, what in the sample that its scientific side is, as well as
the others, the all present instant in the espírita universe. The intention is to perceive that in
the Spiritualism the aspects of science, philosophy and religion coexist in complementary way
a time that its ritual system is formed by the study, charity and mediumship. In the study it is
distinguished intellectuality of this religion, the valuation of the rational inquiry and the
experimental research. In the charity the prominence is to Christian character e, in the
mediunidade it is distinguished relation between men and spirit. These polar regions are
linked since the mediumship includes also the charity and the study. The study and the
charity, in turn, as forms of relation with the world spiritual are also mediumship. Everything
this in the sample that this triad (science, philosophy and religion) if presents, effectively, as
the conducting wire of the doctrine of Allan Kardec also here in Brazil.
Keywords: Spiritualism. Learned culture. Mediumship.
7
SUMÁRIO
1
08
2
15
2.1
15
2.2
18
2.3
21
2.3.1
21
2.3.2
27
2.3.3
30
2.3.4
35
3
42
4
66
4.1
66
4.2
77
4.3
82
5
91
REFERÊNCIAS.............................................................................................................
96
8
1 INTRODUÇÃO
Quando o Espiritismo apresentou-se como um corpo de doutrina, isto é, como
resultado de uma codificação, trazia em seu bojo as assertivas da ciência. O
codificador, Allan Kardec, salientou, a mesmo com certo relevo, a importância da
ciência como um dos seguros pilares do Espiritismo. É como se o pensamento ético
e filosófico encontrassem um necessário e mútuo amparo.
Desde o seu advento até os dias presentes sentimos a importância daquele seguro
pensamento kardequiano que, no dia-a-dia, melhor se expressa na gleba científica.
É o que se tem visto e sentido. Sem as equações da ciência o Espiritismo perde a
sua grande significação sociológica; tudo isto porque, com o avanço das
descobertas a posição do Espiritismo torna-se, cada vez mais, expressiva.
1
Ao consultar os dados estatísticos mais recentes sobre a presença das religiões na
sociedade brasileira, percebemos que o Espiritismo Kardecista não apresenta muita relevância
em termos quantitativos. Naturalmente esse fato é compreensível se levarmos em
consideração a tradicional supremacia católica em termos de adeptos no Brasil. De acordo
com Marcelo Camurça, o Censo de 2000 aponta o catolicismo como religião majoritária do
país representando, em termos percentuais, 73,8% da população. Ainda que essa supremacia
esteja mais enfraquecida em função dos desdobramentos do campo religioso brasileiro no
século XX, o número de adeptos católicos continua significativo e muito acima de outras
denominações religiosas. Por outro lado, fenômenos como o vertiginoso crescimento das
denominações pentecostais
2
, especialmente nas últimas décadas do culo XX, indica
alterações importantes no cenário religioso brasileiro, fato que expressa também a mudança
na configuração de elementos estruturais que constituem a sociedade brasileira
contemporânea. Uma interpretação para a variedade de religiões que surge, aponta para um
quadro de abunncia de ofertas religiosas e liberdade de escolha, que são conseqüência de
um processo de modernização, liberalização e democratização ocorrido no país.
3
Portanto, uma das mudanças mais significativas na vivência religiosa do brasileiro no
século XX é a incorporação do termo “escolha” quando no momento de definir a adesão
1
ANDREA, Jorge. Enfoques científicos na doutrina espírita. Rio de Janeiro: Sociedade Editora Espírita F. V.
Lorenz, 1991, p. 9.
2
Pelo Censo de 2000 os evangélicos ocupam o lugar, representando um percentual de 15,45% da população.
Dentre eles os pentecostais predominam, representando 10,43% da população. CAMURÇA, Marcelo Ayres. A
realidade das religiões no Brasil no Censo do IBGE 2000. In: TEIXEIRA, Faustino; MENEZES, Renata
(Org). As religiões no Brasil: continuidades e rupturas. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 37.
3
CAMURÇA, Marcelo Ayres. A realidade das religiões no Brasil no Censo do IBGE 2000. In: TEIXEIRA,
Faustino; MENEZES, Renata (Org). As religiões no Brasil: continuidades e rupturas. Petrópolis: Vozes, 2006,
p. 37-39.
9
religiosa. O surgimento do Kardecismo no cenário religioso brasileiro tem muito a ver com
essa mudança de perspectiva. Em pesquisas mais recentes, no Censo de 2000, fazendo parte
do bloco de religiões, o Espiritismo kardecista se localiza em lugar, vindo após os
católicos, evangélicos e os sem religião. Os espíritas, então, estão crescendo e representam
atualmente 1,4% da populão.
Ainda de acordo com os dados do Censo de 2000, em meio as religiões mediúnicas,
comparando à umbanda (com cerca de 400.000 autodeclarados), ao candomblé (com cerca de
118.000) e a outras religiões afro (9.500), o Espiritismo está em primeiro lugar (com cerca de
2,2 milhões de autodeclarados). Isso não significa somente uma resistência sem dinamismo,
que num período de duas décadas, entre 1980 e 2000, o Espiritismo cresceu em 50% a sua
proporção no conjunto do universo religioso (0,7% em 1980 e 1,4% em 2000), sendo
superado somente pelo aumento dos evangélicos e dos sem religião.
4
Com todas essas informações quantitativas do Censo, cabe mencionar aqui a análise
que Emerson Giumbelli realiza sobre as minorias. O autor chama a atenção para o fato de que,
O Brasil ilustra uma situação interessante. É sempre possível encontrar na sua
história, em recuos de variada extensão, sinais de pluralidade religiosa e mesmo
quando cláusulas políticas previam que apenas o catolicismo fosse cultuado nessas
terras. Entretanto, jamais o vocabulário derivado das noções de maioria e minoria
se tornou dominante ou mesmo recorrente para descrever essa pluralidade.
5
Giumbelli destaca que algumas religiões, como é o caso do Espiritismo, embora
estatisticamente estejam denominadas como minorias, não se comportam com tal ou não
assumem a identidade que se esperaria delas. Ele cita o autor Carlos Brandão que informa que
na religião católica é possível ser católico sem necessariamente participar do catolicismo (“ser
sem participar”), ao contrário das religiões mediúnicas, como é o caso do Espiritismo, onde é
bastante comum participar da religião espírita sem fazer parte da mesma (“participar sem
ser”).
6
Giumbelli conclui ainda que,
De fato, é impossível entender os caminhos pelos quais passou e passa a
religiosidade no Brasil sem considerar a referência que representam o espiritismo e
4
LEWGOY, Bernardo. Incluídos e letrados reflexões sobre a vitalidade do espiritismo kardecista no Brasil
atual. In: TEIXEIRA, Faustino; MENEZES, Renata (Org). As religiões no Brasil: continuidades e rupturas.
Petrópolis: Vozes, 2006, p. 174.
5
GIUMBELLI, Emerson. Minorias religiosas. In: TEIXEIRA, Faustino; MENEZES, Renata (Org). As religiões
no Brasil: continuidades e rupturas. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 235.
6
GIUMBELLI, Emerson. Minorias religiosas. In: TEIXEIRA, Faustino; MENEZES, Renata (Org). As religiões
no Brasil: continuidades e rupturas. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 236.
10
os cultos afros. Nesse sentido, mesmo sem nunca ter chegado perto de se tornar
maioria, são muito mais do que minorias.
7
Nascido na França do século XIX, o Espiritismo, através do trabalho de codificação de
Allan Kardec se definiu como filosofia, ciência e religião. Desde então, teve início uma forte
e intrínseca relação entre a Doutrina Espírita e a prática do estudo.
De acordo com o Kardecismo, a ciência e a religião representam as alavancas da
inteligência humana, pois uma revela as leis do mundo material e a outra as leis do mundo
moral. Se as duas possuem o mesmo princípio que é Deus, então uma, necessariamente, não
pode negar a outra, posto que seria uma grande contradição, uma vez que O Criador não iria
desejar destruir a sua própria obra.
8
O que se percebe, é que para a Doutrina Espírita, os aspectos de ciência e religião
podem sim caminhar juntos, e, que ambos, possuem a mesma importância dentro dessa
filosofia. O acesso, porém, utilizado para se alcançar o conhecimento dessa filosofia é o
estudo.
Kardec deixa claro que o que caracteriza um estudo sério é a continuidade, pois quem
pretende adquirir uma ciência deve se dedicar à prática do estudo de maneira sistemática,
começando pelo início e prosseguindo por seu encadeamento de iias.
9
Como o Espiritismo brasileiro pretende ser entendido neste trabalho de acordo com
sua própria definição que destaca seu caráter triplo, é importante que tentemos perceber
porque, de fato, o aspecto científico é tão significativo para essa filosofia. O autor Pierre
Bourdieu faz uma análise bastante interessante a respeito do campo científico quando coloca
que ele é o espaço onde se dá o jogo de uma luta de concorrência. Nessa disputa o que está em
jogo é o monopólio da autoridade científica, que se define, de forma inseparável, como
habilidade técnica e poder social, ou então, o monopólio da competência científica, que pode
ser entendida como capacidade de falar e agir legitimamente, ou seja, de forma autorizada e
com autoridade.
10
Mais racionalista e liberal devido a sua filiação ao Iluminismo francês do que
propriamente por uma coerência teológica com o protestantismo, o Espiritismo se encontra
entre, de um lado, o catolicismo das mediações e hierarquias e, de outro, o discurso ideológico
7
GIUMBELLI, Emerson. Minorias religiosas. In: TEIXEIRA, Faustino; MENEZES, Renata (Org). As religiões
no Brasil: continuidades e rupturas. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 237.
8
KARDEC, Allan. O evangelho segundo o espiritismo. São Paulo: IDE, 332ª edição, 2006, p. 36-37.
9
KARDEC, Allan. O livro dos espíritos. Tradução de J. Herculano Pires, revista e anotada pelo tradutor para
esclarecimento e atualização dos problemas do texto. 49ª edição. São Paulo: LAKE, 1989, p. 44.
10
BOURDIEU, Pierre. Lê champ scientifique. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, n. 2/3, jun. 1976, p.
88104. Tradução de Paula Montero, p. 122 e 123.
11
secularizado e laico que encontra no campo da ciência a sua representação simlica. E é
justamente essa tentativa sincrética de reunir e ciência que é mantida como sucesso do
sistema espírita por seus adeptos. Realmente é difícil exagerar o encanto que exerce um
conjunto de crenças que, como se não bastasse ser revelado, também se apresenta como
científico, ou seja, que intenta estar livre de preconceitos de ordem religiosa apresentando-se
como uma “fé racionalizada” que se fundamenta em provas empíricas da existência do mundo
espiritual e suas relações com o mundo material.
11
Em Juiz de Fora o Espiritismo chega cedo, no final do século XIX. A partir daí, a
doutrina se estabelece e chega aos dias de hoje merecendo destaque devido a sua presença
marcante e ativa na sociedade.
Segundo Simone de Oliveira, em Juiz de Fora os adeptos dessa religião desfrutam de
grande prestígio, participando com freqüência de diversos cultos e encontros ecumênicos que
são promovidos. É muito comum na cidade a realização de eventos culturais que abordam
temas relacionados ao Espiritismo, como por exemplo, peças de teatro, congressos e palestras.
As datas comemorativas para os espíritas, e também suas atividades culturais, contam na
imprensa local com espaço livre para divulgação.
12
De acordo com os dados da Aliança Municipal Espírita (AME), óro de unificação
do movimento, Juiz de Fora conta hoje com um total de quarenta e quatro centros espíritas.
Isso nos faz chegar à conclusão de que a cidade, na verdade, possui um número maior de
centros, uma vez que nem todas as casas são filiadas ao órgão. Daniel Pavan, em função dessa
filiação, faz uma classificação dos centros. Aqueles que são filiados formam uma parte do
movimento espírita, que ele classifica como espiritismo institucionalizado, já que para se filiar
a AME é preciso estar registrado junto aos órgãos públicos governamentais. Por outro lado, os
centros que não o filiados são classificados como espiritismo não institucionalizado, pois
o possuem registro junto aos órgãos públicos.
13
É importante nesse estudo, esclarecer que temos o conhecimento da existência de uma
pluralidade ou diversidade dentro do Espiritismo, embora não tenhamos a inteão de
explo-la. De acordo com Daniel Pavan, existe o conceito de um espiritismo plural dentro do
próprio Espiritismo de Kardec, ainda que de forma implícita, pois se não é homogêneo, pode
11
LEWGOY, Bernardo. Incluídos e letrados. In: TEIXEIRA, Faustino; MENEZES, Renata (Org). As religiões
no Brasil: continuidades e rupturas. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 184.
12
OLIVEIRA, Simone G. de. O Espiritismo em Juiz de Fora: do surgimento à consolidação de uma religião”.
In: TAVARES, Fátima R. Gomes; CAMURÇA, Marcelo Ayres (Org). Minas das devoções: diversidade
religiosa em Juiz de Fora. Juiz de Fora: UFJF/PPCIR, 2003, p. 135-136.
13
PAVAM, Daniel; SOUZA, Petrônio G. de. Diversidade identitária no movimento espírita em Juiz de Fora. In:
TAVARES, Fátima R. Gomes; CAMURÇA, Marcelo Ayres (Org). Minas das devoções: diversidade religiosa
em Juiz de Fora. Juiz de Fora: UFJF/PPCIR, 2003, p. 158.
12
apresentar divergências que o dividiriam, deixando aberta a possibilidade de percebermos
nele, formas diferenciadas de espiritismo, surgindo de dentro para fora. Isso não significaria,
necessariamente, um rompimento com a doutrina kardequiana, mas sim uma diferenciação na
maneira de interpretar essa doutrina.
14
Entretanto, apesar das tensões internas e externas que se apresentam no universo
espírita, trataremos a doutrina como de fato ela foi fundada, com suas características de
filosofia, ciência e religião, sem nos atermos a essas fragmentações que caracterizam o
movimento espírita.
Nossa pesquisa se desenvolveu, sobretudo, com base em material bibliográfico
detalhado sobre o assunto, sendo utilizadas obras espíritas e não espíritas. As fontes
bibliográficas utilizadas se dividiram principalmente em dois grupos. O primeiro grupo se
dedica ao histórico da Doutrina Espírita, destacando sua origem, princípios básicos, chegada
ao Brasil e conflitos com a Igreja Católica. O segundo grupo bibliográfico trata das questões
relativas às práticas de cultura letrada, realizadas no centro espírita, tendo como destaque a
importância do estudo para a doutrina.
A outra etapa da pesquisa se deu em proporções bem menores que a primeira. Em
trabalho de campo, foram utilizadas algumas técnicas de coleta de dados trabalhadas,
sobretudo, a partir de observação participante.
Dois Centros Espíritas foram escolhidos, A Casa do Caminho e a Fundação Espírita
Allan Kardec, para realizarmos nossos estudos. Lançamos mão da técnica de observação
participante acreditando ser pertinente, que, há muitos elementos que não podem ser
apreendidos através da fala ou da escrita. Essa técnica consiste em examinar, analisar, um
grupo de pessoas ou um indivíduo (dentro de um contexto) com o objetivo de descrevê-lo.
Demos importância à observação dos ambientes (internos ou externos), ao comportamento
das pessoas no grupo, como postura corporal, normas de conduta, linguagem utilizada, tom de
voz e ao período de tempo em que ocorreram os processos observados.
15
Para tratarmos do nosso tema que diz respeito ao Espiritismo e sua relação com a
cultura letrada, mais especificamente com o estudo, será também necessário apresentarmos,
ainda que de maneira breve, um histórico da Doutrina Espírita. Será traçado o panorama
político, econômico e social do Brasil e da cidade mineira de Juiz de Fora no período da
14
PAVAM, Daniel. As fronteiras identitárias do espiritismo em Juiz de Fora. Dissertação (Mestrado em
Ciência da Religião) - Universidade Federal de Juiz de Fora. Juiz de Fora, 2003, p.51.
15
VICTORA, Ceres. Técnicas de pesquisa. In: ______ Pesquisa qualitativa em saúde: uma introdução ao
tema. Porto Alegre: Tomo Editorial, 2000, p. 62-63.
13
introdução do Espiritismo, ocorrido em finais do século XIX, quando grupos familiares
começaram então a se reunir para estudo e experimentação. Após acompanharmos seu
percurso evolutivo, chegaremos, finalmente, aos nossos dias onde, já centenário, o
Espiritismo de Kardec ocupa um lugar de destaque entre as religiões do país.
A pesquisa foi dividida em três capítulos. O primeiro trata de uma forma mais geral,
da história do Espiritismo desde sua origem, na França, até os dias de hoje no Brasil e na
cidade de Juiz de Fora procurando apresentar os pontos principais da doutrina e os valores
culturais a ela relacionados.
O segundo capítulo vai abordar, de forma minuciosa e descritiva, o Centro Espírita,
que é o lugar mais indicado e apropriado para a prática da doutrina em sua totalidade. Serão
observados a estrutura física, o funcionamento e, sobretudo, as práticas rituais (que também
incluem as práticas letradas e a caridade), assim como outros aspectos que fazem parte do
centro.
Por fim, o último capítulo se dedica ao grande valor atribuído à prática do estudo pelo
Espiritismo desde sua origem até a atualidade. A ênfase maior cairá sobre a importância da
leitura, o funcionamento dos grupos de estudo e a necessidade de se ter um nível mínimo de
letramento para conseguir se manter como participante dessa doutrina.
Visto tudo isso, podemos compreender o quão importante e necessário é o estudo da
Doutrina Espírita, que esse sistema religioso é parte significativa da cultura brasileira.
para termos uma iia melhor, nem mesmo o grande abalo em decorrência da morte do
dium Francisco Cândido Xavier, chegou a alterar a posição do Espiritismo, o que se pode
perceber diante da grande exposição de temas espíritas na mídia, especialmente na Rede
Globo de Televisão, onde o assunto se apresenta com freqüência nas novelas, minisséries e
programas jornasticos.
16
Sua poderosa e diversificada instria editorial é responsável pela
produção de títulos muito populares num país conhecido pelos baixos índices de leitura e
aquisição de livros per capita. Por outro lado, o Espiritismo, cada vez mais representa um tipo
de subcultura religiosa independente e descentralizada, diante da qual se pode notar até
16
Em Juiz de Fora, a presidente do centro espírita A Casa do Caminho, D. Isabel Salomão de Campos, já teve a
oportunidade de divulgar o trabalho realizado em seu centro, em programas globais como Globo Repórter e
Fantástico, além, é claro, de participar também de outras divulgações, através da mídia, na própria cidade
(CAMPOS, Iriê Salomão de. Elo de amor: vida e obra de Isabel Salomão de Campos. Juiz de Fora: J.
Herculano Pires, 2006).
14
mesmo o surgimento de um modelo informal e literário de construir uma religiosidade
privada, por meio de leituras e participações casuais em centros espíritas.
17
É de grande importância esclarecer que essa pesquisa tem a intenção de analisar o
Kardecismo e sua essecial relação com a cultura letrada, na tentativa de se entender melhor a
posição de prestígio que essa religo ocupa no campo religioso brasileiro. O autor Bernardo
Lewgoy expressou de forma clara essa relevância do Espiritismo quando analisou que,
A mediação letrada, compreendendo tanto a identificação com o racionalismo
moderno quanto com a idealização nativa dos usos e costumes dos letrados em
suas facetas de escola laica, de ciência, de saber erudito, mas também de códigos
burocráticos é fundamental para entender a preservação do lugar de prestígio
ocupado pelo espiritismo kardecista no campo religioso, bem como a escolarização
relativamente superior de seus membros. Ao lado da ênfase na chamada
codificação de Kardec (pólo simbólico de identificação comum, a despeito dos
diversos modos de vivenciar o espiritismo) é a referência à cultura letrada que
lança luzes sobre esta alternativa religiosa de incluídos e escolarizados, assim como
desvela as nem sempre visíveis barreiras intelectuais e sociais à participação dos
membros das camadas menos favorecidas da população em seu espaço religioso.
18
Portanto, o intuito do trabalho é o de reunir algumas abordagens e análises acerca do
assunto proposto tendo em vista dar um maior realce a esse tema do estudo no Espiritismo,
que em nosso entendimento, ainda não recebeu as merecidas atenções, salvo o olhar de alguns
poucos autores. Esse universo letrado, presente no movimento espírita, nos serve como
indicador de características e particularidades de significativa importância para se
compreender essa doutrina e, consequentemente o seu relacionamento com as demais
religiões, que em nosso campo religioso aparece em terceiro lugar. Pensamos que o
Espiritismo, certamente nos aponta para variadas perspectivas de pesquisa acerca de sua
riqueza cosmológica, sendo a cultura letrada com ênfase no estudo, apenas uma delas.
17
LEWGOY, Bernardo. Incluídos e letrados reflexões sobre a vitalidade do espiritismo kardecista no Brasil
atual. In: TEIXEIRA, Faustino; MENEZES, Renata (Org). As religiões no Brasil: continuidades e rupturas.
Petrópolis: Vozes, 2006, p. 174.
18
LEWGOY, Bernardo. Incluídos e letrados reflexões sobre a vitalidade do espiritismo kardecista no Brasil
atual. In: TEIXEIRA, Faustino; MENEZES, Renata (Org). As religiões no Brasil: continuidades e rupturas.
Petrópolis: Vozes, 2006, p. 173.
15
2 BREVE HISTÓRIA DO ESPIRITISMO: TRAJETÓRIA E CHEGADA
A JUIZ DE FORA
2.1 Origem da doutrina Espírita
O êxito do Espiritismo
19
num país que por séculos foi oficialmente católico resulta de
uma história que teve início na segunda metade do século XIX, trazida por meio das obras de
um pedagogo francês, Hippolyte Léon Denizard Rivail, com pseudônimo Allan Kardec, que
começaram a circular entre membros da elite brasileira.
20
Hippolyte Léon Denizard Rivail
21
, nasceu na França no ano de 1804 e fez carreira
como pedagogo. Toda a atividade didática realizada por ele caminhava juntamente com a
necessidade de se buscar o conhecimento do psiquismo humano e da transcenncia da
alma.
22
Ele fez parte do movimento espiritualista moderno surgido na segunda metade do
XVIII. Ao começar a publicar seus escritos espíritas adotou o pseudônimo de Allan Kardec
que, segundo ele, teria sido seu nome em uma existência anterior.
23
Na Europa, em meados do século XIX, o que havia de novidade eram as intensas
tentativas de comunicação com o mundo dos espíritos, o que acabava ocasionando grande
alvoroço nos ambientes freqüentados pela burguesia. É comum atribuir a origem desse
movimento espiritualista a fenômenos que aconteceram nos Estados Unidos em 1848 com as
irmãs Fox.
24
Margaret e Katie Fox criaram mecanismos para a comunicação com os espíritos e
passaram a interpretar ruídos sem explicação plausível para os mesmos. Tais acontecimentos
despertaram então grande interesse por esses fenômenos. Na década de 1850 a manifestação
19
O termo Espiritismo utilizado no presente trabalho se refere a Doutrina Espírita codificada pelo pedagogo
francês Allan Kardec. É importante elucidar essa questão uma vez que esse mesmo termo, também pode ser
encontrado para designar toda crença na possibilidade de comunicação com o mundo dos espíritos através de
médiuns, o que inclui também o Candomblé e a Umbanda.
20
SANTOS, José Luiz dos. Espiritismo: uma religião brasileira. São Paulo: Moderna, 1997, p.5.
21
Para saber mais sobre a vida de Allan Kardec ver DAMAZIO, Sylvia F. Da elite ao povo: advento e expansão
do espiritismo no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1994.
22
DAMAZIO, Sylvia F. Da elite ao povo: advento e expansão do espiritismo no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1994, p. 43.
23
SANTOS, José Luiz dos. Espiritismo: uma religião brasileira. São Paulo: Moderna, 1997, p. 7.
24
SANTOS, José Luiz dos. Espiritismo: uma religião brasileira. São Paulo: Moderna, 1997, p. 7.
16
mais comum se dava por meio das mesas girantes, nas quais um grupo de pessoas se reunia
em volta de uma mesa, pousava as mãos sobre a mesma e se concentrava. Entendia-se que a
partir do movimento da mesa era possível obter informações dos espíritos.
25
Em meio a essa
onda espiritualista internacional, Allan Kardec organizava em Paris sessões espíritas com
diuns cuidadosamente escolhidos.
26
Kardec apresentou ao mundo o que chamou de Terceira Revelação, em seqüência ao
Judaísmo e Cristianismo, e registrou em uma série de livros o que lhe teria sido transmitido
por espíritos superiores com o intuito de fundamentar uma nova religião, uma nova ciência e
uma nova filosofia.
27
Coube a ele a tarefa de compilar, sistematizar e editar as inúmeras
mensagens reunidas nas obras O Livro dos Espíritos (1857), o primeiro da chamada
Codificação ou Terceira Revelação, depois seguido pelo Livro dos Médiuns, Evangelho
Segundo o Espiritismo, Gênese e o Céu e Inferno. Allan Kardec é considerado apenas o
codificador dessas obras, o que torna, para seus adeptos, o Espiritismo uma doutrina legítima,
que não é uma criação humana.
28
A doutrina filosófico-religiosa codificada por Kardec procurava se adequar às últimas
descobertas no campo da ciência positiva (experimental) de meados do século XIX. O termo
Espiritismo, criado por ele para distinguir a doutrina revelada pelos espíritos, era uma vertente
do espiritualismo ectico do século XIX. Nessa doutrina, além da em Deus e na
imortalidade da alma, juntou-se também a prática das manifestações dos espíritos, e a crença
na reencarnação e na pluralidade dos mundos habitados.
29
Seus livros apresentam uma doutrina completa a respeito da origem, situação e destino
dos homens, seus graus de desenvolvimento progressivo (evolão), seus nexos entre a
conduta moral do indivíduo e a trajetória espiritual em diferentes existências
30
, sobre a vida
após a morte, assim como sobre os processos de comunicação entre vivos e mortos. Kardec
25
SANTOS, José Luiz dos. Espiritismo: uma religião brasileira. São Paulo: Moderna, 1997, p. 7-8.
26
LEWGOY, Bernardo. Incluídos e letrados reflexões sobre a vitalidade do espiritismo kardecista no Brasil
atual. In: TEIXEIRA, Faustino; MENEZES, Renata (Org). As religiões no Brasil: continuidades e rupturas.
Petrópolis: Vozes, 2006, p. 178.
27
SANTOS, José Luiz dos. Espiritismo: uma religião brasileira. São Paulo: Moderna, 1997, p. 7.
28
LEWGOY, Bernardo. Incluídos e letrados reflexões sobre a vitalidade do espiritismo kardecista no Brasil
atual. In: TEIXEIRA, Faustino; MENEZES, Renata (Org). As religiões no Brasil: continuidades e rupturas.
Petrópolis: Vozes, 2006, p. 178.
29
DAMAZIO, Sylvia F. Da elite ao povo: advento e expansão do espiritismo no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1994, p. 1011.
30
A Doutrina Espírita não foi pioneira na idéia de multiplicidade de existências. Tal crença existia desde a
velha Índia até as culturas primitivas da África e das Américas (DAMAZIO, Sylvia F. Da elite ao povo:
advento e expansão do espiritismo no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1994, p. 33).
17
destaca que o Espiritismo é, acima de tudo, uma doutrina moral que concilia uma raiz cristã
racionalista com outra, secular e cientificista.
31
Em O Livro dos Espíritos, foram lançados os princípios da doutrina a respeito da
imortalidade da alma, da natureza dos Espíritos e suas relações com os homens, das leis
morais, da vida presente e futura e do destino da humanidade. O Livro dos Médiuns apresenta
a teoria sobre as manifestações e suas diversas modalidades, as condições favoráveis à
ocorrência dos femenos espirituais, o desenvolvimento e o exercício da mediunidade. No
Evangelho Segundo o Espiritismo encontramos os ensinamentos de Jesus Cristo à luz do
Espiritismo, que tem como objetivo conciliar e aplicar os ensinamentos morais cristãos à vida
do homem na terra. Em O Céu e Inferno temos a idéia da causalidade das penas e
recompensas por meio da exemplificação de vários Espíritos, encarnados e desencarnados, e
de suas condições de existência, vistas como conseqüência de seus atos anteriores. O livro
Gênese é uma espécie de resumo das principais obras de Kardec, que destaca o aspecto
científico da fenomenologia espírita.
32
O Livro dos Espíritos resultou de um trabalho cuidadoso e regular de interrogação dos
espíritos. Tal atividade foi desenvolvida através de várias sessões realizadas pelo próprio
Kardec, em sua residência, juntamente com um pequeno grupo. Dessa forma, a obra conteria
um conjunto de verdades comunicadas diretamente do mundo invisível (espiritual) por
intermédio dos médiuns, isto é, das pessoas por meio das quais os espíritos se
manifestavam.
33
Kardec, no intuito de conseguir maior contato com o público que conquistara fundou
uma revista especializada e a primeira sociedade de estudos espíritas a ser regulamentada na
França. Além disso, realizou várias confencias pelas proncias, onde também criou círculos
de estudos da doutrina.
34
Após a publicação de O Livro dos Espíritos, o movimento espírita, tendo Allan Kardec
como seu representante principal, finalmente deslanchou na França e, a partir de então,
começou a atingir outros países. As obras publicadas em seguida também tiveram e
continuam a ter uma importância fundamental para a Doutrina Espírita.
35
31
LEWGOY, Bernardo. Incluídos e letrados reflexões sobre a vitalidade do espiritismo kardecista no Brasil
atual. In: TEIXEIRA, Faustino; MENEZES, Renata (Org). As religiões no Brasil: continuidades e rupturas.
Petrópolis: Vozes, 2006, p. 178-179.
32
DAMAZIO, Sylvia F. Da elite ao povo: advento e expano do espiritismo no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1994, p. 46-47.
33
SANTOS, José Luiz dos. Espiritismo: uma religião brasileira. São Paulo: Moderna, 1997, p.8.
34
DAMAZIO, Sylvia F. Da elite ao povo: advento e expansão do espiritismo no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1994, p. 11.
35
SANTOS, José Luiz dos. Espiritismo: uma religião brasileira. São Paulo: Moderna, 1997, p. 8-9.
18
2.2 Princípios básicos
No Espiritismo a codificão de Allan Kardec ocupa um lugar central. Sua grande
importância pode ser percebida em vários planos:
1. É o que unifica o Movimento Espírita, permitindo sua diferenciação de “outras
formas de Espiritualismo;
2. Constitui-se na fonte última de autoridade em discussões a respeito da doutrina;
3. Nas rias sessões e atividades espíritas, a sua leitura, estudo e comentário ocupam
um lugar importante.
36
Em suas obras Kardec sustenta a idéia de que os espíritos existem antes e depois da
vida na terra. Como conseqüência desse pensamento, os espíritas entendem a morte como
uma circunstância pela qual o espírito abandona definitivamente o corpo físico, o que é
chamado, por eles, de desencarnação. Para ele, a relão dos espíritos com a terra não se dava
apenas por suas encarnações (nascimentos) e reencarnações. Teríamos também interferências
freqüentes dos espíritos na vida cotidiana, afetando a saúde e a existência dos terrestres, seja
para o bem ou para o mal. Assim, a comunicação com o mundo espiritual era vista como
possível e desejável, uma vez que permitiria enfrentar influências negativas e conseguir apoio
e orientação de espíritos tidos como evoluídos.
37
Como a Doutrina Espírita foi elaborada numa conjuntura em que o pensamento
filofico e científico estava dominado pelo racionalismo e pelo evolucionismo, os ideais da
razão, opostos às noções de mágico e sobrenatural, são encontrados de forma bastante
explícita nas obras da codificação. As idéias de revelação e experiência que são comumente
entendidas como contrárias, no Espiritismo se apresentam combinadas, isto é, a crença tanto
na razão quanto nos espíritos (inconciliável para o discurso científico), é perfeitamente
conciliável para Doutrina Espírita.
38
Allan Kardec, no início, tinha uma forte preocupação em demonstrar um método de
comunicação com os espíritos, à maneira da ciência experimental, que pudesse ser repetido e
36
CAVALCANTI, Maria Laura V. de Castro. O mundo invisível: cosmologia, sistema ritual e noção de pessoa
o espiritismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1983, p. 22.
37
SANTOS, José Luiz dos. Espiritismo: uma religião brasileira. São Paulo: Moderna, 1997, p. 9.
38
CAVALCANTI, Maria Laura V. de Castro. O mundo invisível: cosmologia, sistema ritual e não de pessoa
o espiritismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1983, p. 23.
19
que colocasse sob controle possíveis distoões das mensagens dos espíritos. Daí a grande
importância que deu aos médiuns
39
, que considerava veículos das manifestações espirituais.
40
A comunicação com o mundo espiritual, erguendo-se à evidência dos sentidos, adquire
o estatuto de prova científica. A Doutrina Espírita se apresenta não somente como uma
religião, mas também como uma ciência e uma filosofia, uma vez que suas implicações são ao
mesmo tempo filoficas, científicas e morais.
41
O Espiritismo é um sistema religioso composto por suas crenças (representações) e
práticas (rituais). Esse entendimento da religião acaba por separar o sistema religioso em dois
planos nos quais a análise vai ocorrer: o plano do pensamento, do intelecto (as
representações); e o plano do comportamento, das ações humanas (os rituais).
42
Para tentarmos demonstrar o que se entende por religião lançamos mão do autor
Clifford Geertz quando diz que,
A religião nunca é apenas metafísica. Em todos os povos as formas, os veículos e
os objetos de culto são rodeados por uma aura de profunda seriedade moral. Em
todo lugar, o sagrado contém em si mesmo um sentido de obrigação intrínseca: ele
não apenas encoraja a devoção como a exige; não apenas induz a aceitação
intelectual como reforça o compromisso emocional. Formulado como mana, como
Brahma ou como a Santíssima Trindade, aquilo que é colocado à parte, como além
do mundano, é considerado, inevitavelmente, como tendo implicações de grande
alcance para a orientação da conduta humana. Não sendo meramente metafísica, a
religião também nunca é meramente ética. Concebe-se que a fonte de sua
vitalidade moral repousa na fidelidade com que ela expressa a natureza
fundamental da realidade. Sente-se que o deve” poderosamente coercivo cresce a
partir de um é” fatual abrangente e, dessa forma, a religião fundamenta as
exigências mais específicas da ação humana nos contextos mais gerais da
existência humana.
43
Todo esse sistema de pensamento era baseado numa concepção evolucionista, isto é,
os espíritos se hierarquizavam segundo seus merecimentos e evolução moral. O planeta terra
era visto como um local de provação e as reencarnações como fases no percurso da evolução
espiritual. Essa evolução era de caráter progressivo e sem retrocessos. O progresso espiritual
39
Existem rias modalidades de médiuns: de efeitos físicos, sensitivos, videntes, auditivos, sonâmbulos, etc. O
desenvolvimento das faculdades mediúnicas exige estudo, disciplina e exercício para que se tenha um
conhecimento profundo dos fenômenos para um melhor controle e desempenho (DAMAZIO, Sylvia F. Da
elite ao povo: advento e expansão do espiritismo no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1994,
p.61).
40
SANTOS, José Luiz dos. Espiritismo: uma religião brasileira. São Paulo: Moderna, 1997, p. 9.
41
CAVALCANTI, Maria Laura V. de Castro. O mundo invisível: cosmologia, sistema ritual e não de pessoa
o espiritismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1983, p. 24.
42
CAVALCANTI, Maria Laura V. de Castro. O mundo invisível: cosmologia, sistema ritual e não de pessoa
o espiritismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1983, p. 9, 31.
43
GEERTZ, Clifford. Ethos, Visão de Mundo e a Análise de Símbolos Sagrados. In: ______ A interpretação
das culturas. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1973.
20
levaria a um estado de perfeição, cujo ritmo dependeria do uso que cada criatura humana
fizesse de seu livre-arbítrio no decorrer de suas sucessivas existências.
44
Vejamos, de uma forma sintética, as principais teses do Espiritismo:
a) Possibilidade e interesse de comunicações com os espíritos;
b) Crença na reencarnação;
c) Crença na chamada “lei da causa e do efeito”, isto é, nada é casual e não podemos
nos livrar das conseqüências de nossos atos;
d) Crença na multiplicidade dos mundos habitados. Cada qual constituiria uma fase
geral do progresso espiritual. A terra é considerada como um planeta de penitência
(expiação);
e) Não existe diferença entre o natural e o sobrenatural, nem entre a religião e a
ciência. Não há graça. O progresso individual depende, unicamente, do valor
pessoal acumulado nas sucessivas encarnações;
f) A virtude primordial é a caridade, e, esta se aplica tanto aos encarnados quanto aos
desencarnados;
g) Deus, embora existente, se encontra muito longe e se perde na distância
incomensurável de um ponto espiritual que mal podemos vislumbrar;
h) Os “guiasse encontram mais próximos. São muito importantes no culto espírita e
nos auxiliam movidos por amor;
i) Jesus Cristo é considerado a maior entidade encarnada que veio ao nosso
mundo.
45
A vida humana, para Allan Kardec, era passageira e desprovida de sentido se vista
descontextualizada. Porém, a mesma adquiria sentido e significado quando colocada contra o
pano de fundo formado por um universo eterno e imutável, onde a vida humana (longe de
iniciar-se e encerrar-se no mundo terreno) continuava além da morte, num plano espiritual
distinto do das religiões tradicionais.
46
O Espiritismo, como doutrina, foi desenvolvido com muito cuidado a partir de
algumas mensagens e muitas sessões de perguntas e respostas com vários espíritos, por meio
de médiuns psicógrafos renomados. Alguns espíritos que deram testemunho foram o Espírito
da Verdade, São Vicente de Paulo, São Luís, Santo Agostinho, Sócrates e Platão. As respostas
44
SANTOS, José Luiz dos. Espiritismo: uma religião brasileira. São Paulo: Moderna, 1997, p. 9.
45
CAMARGO, Candido Procópio Ferreira de. Kardecismo e umbanda. São Paulo: Livraria Pioneira Editora,
1961, p. 7-8.
46
DAMAZIO, Sylvia F. Da elite ao povo: advento e expansão do espiritismo no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1994, p. 30.
21
adquiridas (de espíritos desencarnados que não possuíam nem a sabedoria nem a ciência
supremas) o revelavam uma verdade absoluta, mas somente as verdades relativas ao vel
de conhecimento de cada um sendo, dessa forma, suscetível de revisão. A partir dessas
informações Kardec passou a ordenar e a selecionar as perguntas e respostas dotando, enfim,
de coerência interna a doutrina que ia elaborando.
47
Uma vez que o Espiritismo é resultado do conhecimento de muitos autores
(encarnados e desencarnados) com limitações inerentes, Allan Kardec o considerava uma obra
inacabável, que deveria incorporar os avanços nos diversos ramos do conhecimento na
medida em que a ciência fosse evoluindo.
48
2.3 A doutrina Espírita no Brasil
2.3.1 Origem e adeptos da Doutrina
A partir dos anos sessenta do século XIX, uma nova opção se mostrou nos moldes de
uma doutrina que procurava conciliar o racionalismo, defendido pelos fisofos e cientistas,
com a crença na sobrevivência individual do espírito, e em seu desenvolvimento constante: a
Doutrina Espírita. Objeto de estudo de grandes personalidades, a doutrina não se mostrava de
fácil compreensão para a população iletrada. No entanto, em alguns aspectos, sobretudo
aqueles que se referiam aos fenômenos físicos e à prática da homeopatia por leigos, o
Espiritismo conseguiu chegar ao povo e incorporar-se à sua religião.
O Brasil apresenta uma forte tradição espiritualista desde os tempos coloniais. O
chamado catolicismo luso-brasileiro, ligado ao regime do padroado
49
, tinha como
47
DAMAZIO, Sylvia F. Da elite ao povo: advento e expansão do espiritismo no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1994, p. 30.
48
DAMAZIO, Sylvia F. Da elite ao povo: advento e expansão do espiritismo no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1994, p. 30-31.
49
Padroado: instituição criada pelas monarquias ibéricas a partir do século XIII, para estabelecer alianças com a
Santa Sé. Graças a essa instituição as coroas ibéricas exerciam grande influência na administração eclesiástica
de seus impérios ultra-marinos. Através do padroado, a monarquia promovia, transferia ou afastava clérigos;
decidia e arbitrava conflitos nas respectivas jurisdições das quais ela própria fixava os limites. Com exceção
dos temas e assuntos pertinentes ao dogma, a Igreja colonial, pelo padroado, ficava sob o controle permanente
do Estado. No Brasil, o padroado só foi extinto na república (AZEVEDO, Antônio Carlos do Amaral.
Dicionário de nomes, termos e conceitos históricos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 340).
22
característica um baixo grau de controle eclesiástico sobre os cultos religiosos que eram
praticados à margem da Igreja.
50
Ocorreu aqui um diversificado processo de encontros culturais e sincretismos entre as
crenças em orixás e eguns das religiões africanas, trazidas pelos escravos, com o
espiritualismo xamanístico dos índios e com as crenças católicas populares em santos, anjos e
almas penadas. Dessa forma, essas crenças e práticas de contato com o sobrenatural através de
rituais de feitaria e transe de possessão criaram como que uma língua franca espiritualista
que rapidamente se universalizou na colônia.
51
No Brasil, o Espiritismo chega ainda na segunda metade do século XIX, vindo como
um entre outros modismos da época, uma vez que a França exercia uma forte influência no
imaginário intelectual e estético das elites brasileiras do período. Em pouco tempo a doutrina
transformou-se em alternativa religiosa de vanguarda, cujo atrativo estava em sua particular
conjugação entre ciência experimental e fé revelada, agregada a um anticlericalismo que
agradava a umblico de opositores ilustrados do Império.
52
O estreito contato que o Brasil possuía com a Europa, sobretudo com a França, se dava
por intermédio das elites brasileiras que para lá viajavam a fim de realizar seus estudos, o que
acabou por contribuir e favorecer a importação das idéias correntes no Velho Continente.
Desse modo, as mais diversas tendências científicas, filoficas e religiosas foram absorvidas
pela intelectualidade do país: a teoria da evolução, o materialismo, o positivismo e o
espiritualismo moderno.
53
Inicialmente o Espiritismo era praticado no Rio de Janeiro pelos grupos de imigrados
franceses. Seu desenvolvimento ganhou maior impulso a partir da tradução das obras de
Allan Kardec, realizada, a princípio, pelo jornalista baiano Luiz Olimpio Teles de Menezes na
década de 1860. Neste período, o Espiritismo ganhou importantes adesões de membros da
elite imperial, como médicos, advogados, jornalistas e militares.
54
50
LEWGOY, Bernardo. Incluídos e letrados reflexões sobre a vitalidade do espiritismo kardecista no Brasil
atual. In: TEIXEIRA, Faustino; MENEZES, Renata (Org). As religiões no Brasil: continuidades e rupturas.
Petrópolis: Vozes, 2006, p. 180.
51
LEWGOY, Bernardo. Incluídos e letrados reflexões sobre a vitalidade do espiritismo kardecista no Brasil
atual. In: TEIXEIRA, Faustino; MENEZES, Renata (Org). As religiões no Brasil: continuidades e rupturas.
Petrópolis: Vozes, 2006, p. 180-181.
52
LEWGOY, Bernardo. Incluídos e letrados reflexões sobre a vitalidade do espiritismo kardecista no Brasil
atual. In: TEIXEIRA, Faustino; MENEZES, Renata (Org). As religiões no Brasil: continuidades e rupturas.
Petrópolis: Vozes, 2006, p. 181.
53
DAMAZIO, Sylvia F. Da elite ao povo: advento e expansão do espiritismo no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1994, p. 12.
54
LEWGOY, Bernardo. Incluídos e letrados reflexões sobre a vitalidade do espiritismo kardecista no Brasil
atual. In: TEIXEIRA, Faustino; MENEZES, Renata (Org). As religiões no Brasil: continuidades e rupturas.
Petrópolis: Vozes, 2006, p. 181.
23
Foi também na década de 1860, sob a liderança de Teles de Menezes, que se
organizou o primeiro núcleo espírita do Brasil. Tal núcleo foi criado com o intuito de se
estudar, praticar e também difundir o movimento espírita. As atividades organizadas do
Espiritismo não pararam desde então, tornando assim, o movimento espírita cada vez mais
conhecido no nosso país.
55
A chegada da República trouxe consigo o princípio constitucional da liberdade
religiosa. Neste momento então, o Espiritismo consagrou-se como uma doutrina da caridade e
da assistência aos pobres (tradicional bandeira da Igreja Católica), principalmente através da
prescrição mediúnica de receitas homeopáticas a uma população carente de assistência
dica.
56
Graças a sua característica mágica-terapêutica, juristas e médicos se posicionaram
contra os espíritas, aos quais também se aliaram os clérigos católicos. É nesse processo
conflituoso que os posicionamentos agressivos ao chamado “baixo-espiritismovão constituir
ponto de congregação entre espíritas e intelectuais laicos da República.
57
Ainda que a Igreja Católica reagisse de forma contrária ao Espiritismo, este
estabeleceu-se de maneira firme e duradoura. A partir de então começaram a se formar grupos
de estudos voltados para compreensão do conteúdo filofico da doutrina.
58
Esses grupos tratavam da própria organização interna, definindo cada um seus modos
de atuação. Eles mesmos eram responveis por cuidar da reunião de novos adeptos e fixar
suas metas e atividades. Não existia uma estrutura que regularizasse o desenvolvimento das
sessões nem o funcionamento dos núcleos que foram surgindo, para isso era necessário
consultar e buscar inspiração nas obras de Kardec.
59
A inclinação ao trabalho independente dos núcleos espíritas era reforçada pela
importância dada à mediunidade, pois, para Kardec, esta era a responsável por permitir o
acesso organizado ao mundo invisível e poderia então, ser trabalhada e aperfeiçoada, mas
acima de tudo era considerada como um atributo individual.
60
55
SANTOS, José Luiz dos. Espiritismo: uma religião brasileira. São Paulo: Moderna, 1997, p. 11.
56
Para maiores informações e detalhes sobre a relação entre o discurso médico e o discurso espírita no período
consultar a dissertação Espíritas enlouquecem ou espíritos curam? Uma análise das relações, conflitos, debates
e diálogos entre médicos e kardecistas na primeira metade do século XX (Juiz de Fora-MG), 2007 de Roberta
Müller Scafuto Scoton.
57
LEWGOY, Bernardo. Incluídos e letrados reflexões sobre a vitalidade do espiritismo kardecista no Brasil
atual. In: TEIXEIRA, Faustino; MENEZES, Renata (Org). As religiões no Brasil: continuidades e rupturas.
Petrópolis: Vozes, 2006, p. 182.
58
DAMAZIO, Sylvia F. Da elite ao povo: advento e expansão do espiritismo no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1994, p. 68.
59
SANTOS, José Luiz dos. Espiritismo: uma religião brasileira. São Paulo: Moderna, 1997, p. 15.
60
SANTOS, José Luiz dos. Espiritismo: uma religião brasileira. São Paulo: Moderna, 1997, p. 15.
24
O Espiritismo entende que a comunicação espiritual tanto diz respeito aos médiuns
quanto aos próprios espíritos, e que as relações que se firmam entre eles definem as
peculiaridades de cada grupo. Entende também que os benefícios das sessões espíritas
dependem do grau de evolução dos espíritos e dos espíritas, além da determinação de cada um
em se aperfeiçoar. Tais concepções impunham limite na possibilidade de controle externo e
formal das atividades dos grupos espíritas.
61
Os primeiros grupos espíritas se organizavam de maneira familiar, agrupando parentes
e amigos com o intuito de discutir textos e questões relativas ao mundo dos espíritos, além de
realizarem sessões de comunicação com o mundo espiritual.
62
Bem no início da penetração do
Espiritismo no país, essas reuniões eram realizadas nas próprias casas, o que atualmente não é
aconselhável.
63
Essa é a origem mais comum dos centros espíritas do Brasil.
64
No Rio de Janeiro, diversos grupos se sucederam, em conseqüência do aumento da
quantidade de adeptos e das controvérsias internas sobre a direção que o movimento espírita
deveria tomar. As disputas se davam entre os que queriam dar um status de ciência para o
Espiritismo e os que reforçavam seu aspecto religioso. Tal divisão conduzia a ênfases
distintas nas práticas espíritas. A corrente científica beneficiava as pesquisas de fenômenos
espíritas. A corrente religiosa preocupava-se com o recebimento de mensagens e instruções
dos espíritos voltadas para o aperfeiçoamento moral.
65
Embora estivesse ocorrendo uma expansão da Doutrina Espírita, as disputas internas
acabavam por enfraquecer o movimento num ambiente hostil onde o catolicismo ainda
predominava.
66
Essa situação conduziu os espíritas à intenção de fundarem uma entidade que viesse
representar a todos. No ano de 1884, na cidade do Rio de Janeiro, foi criada a Federação
Espírita Brasileira (FEB), que tinha a clara intenção de filiar todos os núcleos e tendências
espíritas, independente de suas discordâncias, isto é, pretendia ser a representante do
Espiritismo no Brasil.
67
Após esse período, o Espiritismo acabou se afirmando, definitivamente, como um
movimento religioso que, inclusive, se apresentava como um aprofundamento do
cristianismo. Foi dessa forma, como religião, que a Doutrina Espírita cresceu
61
SANTOS, José Luiz dos. Espiritismo: uma religião brasileira. São Paulo: Moderna, 1997, p. 16.
62
SANTOS, José Luiz dos. Espiritismo: uma religião brasileira. São Paulo: Moderna, 1997, p. 16.
63
CAVALCANTI, Maria Laura V. de Castro. O mundo invisível: cosmologia, sistema ritual e noção de pessoa
o espiritismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1983, p. 51.
64
SANTOS, José Luiz dos. Espiritismo: uma religião brasileira. São Paulo: Moderna, 1997, p. 16.
65
SANTOS, José Luiz dos. Espiritismo: uma religião brasileira. São Paulo: Moderna, 1997, p. 17.
66
SANTOS, José Luiz dos. Espiritismo: uma religião brasileira. São Paulo: Moderna, 1997, p. 19.
67
SANTOS, José Luiz dos. Espiritismo: uma religião brasileira. São Paulo: Moderna, 1997, p. 19.
25
significativamente e se multiplicou em núcleos pelo país. A partir de então, o Espiritismo, de
fato, se inseriu na dinâmica cultural brasileira.
68
Com o passar do tempo, houve a definição de um modelo para a organização de
centros espíritas, onde a terapia de passes, a fluidificação de água, o atendimento fraterno e a
desobsessão
69
ultrapassaram a ênfase anterior no receitismo mediúnico sem, contudo, elimi-
lo. O Espiritismo dirigiu-se para uma clientela de adeptos das camadas médias urbanas
letradas, afinando-se, de forma gradual, com os desafios de construção nacional no Brasil do
início do século XX. Sua mensagem conseguiu atingir, de forma significativa, alguns
segmentos profissionais urbanos, como o dos militares, advogados, funcionários blicos,
dicos e jornalistas, muitos dos quais em franca oposição ao controle de suas consciências e
projetos por parte das autoridades católicas. O Espiritismo kardecista foi um dos poucos
espaços de uma religiosidade reflexiva e internalizada
70
, devido ao fato de se tratar de uma
religião completamente pautada na razão e no livre-arbítrio.
71
Enquanto um sistema religioso, o Espiritismo cria uma determinada maneira de ser, de
se comportar e de estar no mundo que é típica de segmentos das camadas médias, sendo
necessário ressaltar também, que a Doutrina Espírita é formada por um ethos
72
de discrição,
seriedade, controle, solicitude e paciência para com o próximo, o que é perfeitamente
compreensível, que valoriza a todo instante, a harmonia, o respeito às posições
estabelecidas e a tolerância. Em compensação, ele se manifesta contra a rebeldia, o conflito e
o descontrole de maneira geral.
73
Naturalmente essa postura adotada está relacionada ao tipo de imagem que se pretende
transmitir para a sociedade. Essa imagem, por sua vez, diz respeito diretamente à questão do
letramento e da importância do estudo dentro do Espiritismo, pois é essa característica letrada
68
SANTOS, José Luiz dos. Espiritismo: uma religião brasileira. São Paulo: Moderna, 1997, p. 27.
69
A sessão de desobsessão é considerada o ponto alto dentro do grupo espírita. Nessa sessão, os médiuns entram
em contato com todo o tipo de espíritos sofredores. A intenção é doutrinar esses espíritos fazendo com que os
mesmos se arrependam (CAVALCANTI, Maria Laura V. de Castro. O mundo invisível: cosmologia, sistema
ritual e não de pessoa o espiritismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1983, p. 123).
70
Entende-se por religião internalizada a escolhida pelo fiel que pensou nela encontrar a satisfação de suas
necessidades e uma experiência de adesão à verdade (CAMARGO, Candido Procópio Ferreira de.
Kardecismo e umbanda. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1961, p. 59).
71
LEWGOY, Bernardo. Incluídos e letrados reflexões sobre a vitalidade do espiritismo kardecista no Brasil
atual. In: TEIXEIRA, Faustino; MENEZES, Renata (Org). As religiões no Brasil: continuidades e rupturas.
Petrópolis: Vozes, 2006, p. 182.
72
A palavra “ethos se refere aos elementos valorativos de uma determinada sociedade, ou seja, os aspectos
morais e estéticos de uma dada cultura. GEERTZ, Clifford. “Ethos”, Visão de Mundo e a Análise de Símbolos
Sagrados. In: ______ A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1973.
73
CAVALCANTI, Maria Laura V. de Castro. O mundo invisível: cosmologia, sistema ritual e noção de pessoa
o espiritismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1983, p. 58, 69 e 82.
26
e instruída que de alguma forma confere respeito e, sobretudo, status ao adepto da Doutrina
Espírita.
Os adeptos do Espiritismo que freqüentam o centro espírita se dividem em três tipos:
1. Ativos: dirigentes dos centros, líderes institucionais e os médiuns. Geralmente esse
grupo recebe a orientação para ler de forma intensa e formar uma cultura doutrinária bastante
consistente. Deve manter uma conduta moral ilibada e dar testemunho de suas convicções
dedicando-se à assistência social. São considerados os ativistas do Espiritismo, pois são
frequentemente solicitados devido a seus ideais éticos e religiosos, conseqüentes de sua visão
doutrinária e de seu papel dentro do grupo. A tendência institucional procura fornecer à
maioria dos adeptos uma educação formal, por meio de escolas de diuns”, cursos de
passes” e formação de “evangelizadores”.
74
2. Participantes: são aqueles fiéis que adotam a doutrina e participam de alguns
trabalhos práticos. Estes não desenvolvem sua mediunidade. São assíduos nas sessões
espíritas, mas se dedicam menos às reuniões de estudos e às leituras doutririas.
75
3. Eventuais: são as pessoas que vão em busca de conforto espiritual ou avio para
seus problemas físicos e morais. Não possuem uma integridade doutrinária e, apenas
eventualmente, participam das atividades assistenciais. Não tentam conduzir suas vidas de
acordo com o digo ético da doutrina. Vão à procura de “passes” que tranqüilizam e de
palavras que confortam. Os aspectos mágicos os atraem casualmente à sessão espírita e
raramente às reuniões de estudo.
76
O Atlas da Filiação Religiosa
77
nos informa que os espíritas estão presentes em maior
número nas áreas urbanas, incorporam mais mulheres do que homens e também pessoas
acima de 31 anos de idade de cor branca
78
. O nível de educação e de renda está acima da
dia nacional, sendo que os setores mais escolarizados do país estão, em sua maioria,
representados no movimento.
79
74
CAMARGO, Candido Procópio Ferreira de. Kardecismo e Umbanda. São Paulo: Livraria Pioneira Editora,
1961, p. 73-74.
75
CAMARGO, Candido Procópio Ferreira de. Kardecismo e Umbanda. São Paulo: Livraria Pioneira Editora,
1961, p. 74.
76
CAMARGO, Candido Procópio Ferreira de. Kardecismo e Umbanda. São Paulo: Livraria Pioneira Editora,
1961, p. 74-75.
77
JACOB, César Romero et al. Atlas da filiação religiosa e indicadores sociais no Brasil. São Paulo: Loyola,
2003.
78
Grande parte dessas pessoas é classificada como empregador. LEWGOY, B. Incluídos e letrados. In:
TEIXEIRA, Faustino; MENEZES, Renata (Org). As religiões no Brasil: continuidades e rupturas. Petrópolis:
Vozes, 2006, p. 174.
79
LEWGOY, Bernardo. Incluídos e letrados reflexões sobre a vitalidade do espiritismo kardecista no Brasil
atual. In: TEIXEIRA, Faustino; MENEZES, Renata (Org). As religiões no Brasil: continuidades e rupturas.
Petrópolis: Vozes, 2006, p. 174.
27
2.3.2 Conflitos com a Igreja Católica
Durante muito tempo, desde sua chegada ao Brasil, o Espiritismo se desenvolveu num
ambiente marcadamente calico.
80
A história do Catolicismo no país é parte integrante e
essencial da própria história do Brasil, que se firmou aqui através dos portugueses, desde a
constituição dos primeiros núcleos habitacionais.
81
Com a implantação do catolicismo (no período da colonização) e ainda por cerca de
quatro séculos, criou-se uma situação singular, onde a Igreja ficou submetida ao Estado
devido à situação do padroado. Igreja e Estado, fortemente ligados, se amparavam e se
fortaleciam. Porém, na ocasião em que as novas correntes do pensamento europeu começaram
a conquistar adeptos no Brasil, revelou-se, então, a delicada condição do catolicismo que era
visto como consagrado pelas instituições, mas desamparado pelos homens. Até meados do
século XIX, a Igreja Católica ainda não havia sido ameaçada, mas, com o avanço das idéias
liberalizantes/cientificistas, a reação da instituão calica acabou por resultar em um
movimento ultraconservador que tinha como objetivo defender sua doutrina e sua fé.
82
Durante a segunda metade do século XIX, a hierarquia católica e a administração
imperial vinham mantendo relações tensas. Ocorreram conflitos quando alguns setores da
Igreja resolveram se opor, ao que eles consideravam como interferência do governo civil nos
assuntos eclesiásticos. Isso tudo acabou culminando na chamada Questão Religiosa (1872-
1875).
83
Entretanto, o catolicismo continuava usufruindo dos benefícios de ser a religião
oficial do Brasil (estabelecido no 5º artigo da primeira Constituição brasileira, de 1824).
84
Apesar disso, o catolicismo não era a única religião admitida no país. Nessa mesma
Constituição de 1824, ainda no mesmo artigo, havia, como restrição, a possibilidade de que
outras crenças se estabelecessem por aqui. Isso, claro, desde que seus adeptos mantivessem a
discrição, conduzindo suas práticas em locais sem identificação externa e evitando a
80
SANTOS, José Luiz dos. Espiritismo: uma religião brasileira. São Paulo: Moderna, 1997, p. 12.
81
DAMAZIO, Sylvia F. Da elite ao povo: advento e expansão do espiritismo no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1994, p. 54.
82
DAMAZIO, Sylvia F. Da elite ao povo: advento e expansão do espiritismo no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1994, p. 54-55.
83
Crise ocorrida entre a Igreja Católica e a monarquia brasileira entre 1872 e 1875 (AZEVEDO, Antônio Carlos
do Amaral. Dicionário de nomes, termos e conceitos históricos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p.
377).
84
SANTOS, José Luiz dos. Espiritismo: uma religião brasileira. São Paulo: Moderna, 1997, p. 12.
28
propagação através do proselitismo (atividade de converter um indivíduo a uma seita, religião
ou sistema).
85
Os protestantes que emigraram da Europa foram bastante beneficiados por essa
restrição da Constituição. A eles era permitido manter as concepções e creas religiosas de
seus países de origem. Nesse período, o protestantismo ficou praticamente limitado à
localidade de imigrantes e a colônias de estrangeiros das principais cidades do país. Como sua
presença na população brasileira era bastante discreta, o protestantismo não chegava a
representar uma ameaça à religião católica.
86
Nesse contexto, havia também as religiões de tradição africana, encontradas na maior
parte da população brasileira e formadas por negros e mulatos. Essas tradições carregavam em
si a marca da escravidão e o peso da exclusão a ela relacionada. Embora as elites estivessem a
par dessas concepções e práticas, as mesmas não tinham força suficiente para ameaçar, de
forma direta, o catolicismo e sua hierarquia.
87
O Espiritismo deu origem a uma situação bem diferente, pois ocorreu na populão
branca, de classe dominante e nos mais poderosos centros poticos e administrativos do
Brasil, como Salvador e Rio de Janeiro. Embora não houvesse consenso, entre os adeptos do
Espiritismo, a respeito de destacá-lo como ciência ou religo, o fato é que a hierarquia
católica começou a se sentir ameaçada.
88
Os primeiros conflitos vieram assim que a Doutrina Espírita assentou as bases iniciais
da sua organização. D. Manoel Joaquim da Silveira, o arcebispo da Bahia e primaz do Brasil
(e também presidente do Instituto Histórico da Bahia), no ano de 1867 publicou uma pastoral
criticando o Espiritismo que, para ele, representava um atentado contra a Religião Católica.
89
D. Manoel se mostrava extremamente preocupado com os rumos que vinha tomando a
propaganda espírita na Bahia, que havia merecido registro do próprio Allan Kardec, em 1865,
em sua revista espírita. No mesmo ano, Teles de Menezes (também membro do Instituto
Histórico da Bahia), fundou a primeira associão espírita do país e, em 1866, traduziu parte
da obra O Livro dos Espíritos, de Kardec, e o publicou em Salvador. Em resposta à pastoral
escrita por D. Manoel, Teles de Menezes escreveu uma carta aberta à população defendendo a
preexistência, reencarnação e comunicação dos espíritos.
90
85
SANTOS, José Luiz dos. Espiritismo: uma religião brasileira. São Paulo: Moderna, 1997, p. 12.
86
SANTOS, José Luiz dos. Espiritismo: uma religião brasileira. São Paulo: Moderna, 1997, p. 12.
87
SANTOS, José Luiz dos. Espiritismo: uma religião brasileira. São Paulo: Moderna, 1997, p. 12-13.
88
SANTOS, José Luiz dos. Espiritismo: uma religião brasileira. São Paulo: Moderna, 1997, p. 13.
89
SANTOS, José Luiz dos. Espiritismo: uma religião brasileira. São Paulo: Moderna, 1997, p. 13.
90
SANTOS, José Luiz dos. Espiritismo: uma religião brasileira. São Paulo: Moderna, 1997, p. 13.
29
As atividades do movimento espírita na Bahia tiveram seguimento, assim como,
também as dificuldades com a Igreja Católica. No ano de 1869, Teles de Menezes lançou a
primeira publicação periódica espírita denominada Eco de Além-Túmulo.
91
Em 1871, o grupo de Teles de Menezes pretendia receber o registro formal para sua
associação espírita, já com o título de Sociedade Espírita Brasileira. O registro não foi
concedido devido à alegação de que a Sociedade faria concorrência com a Igreja Católica.
Como estratégia para vencer esse obstáculo, os espíritas baianos fundaram, então, a
Associão Espírita Brasileira, que, apresentada como uma associação de cunho científico
pôde, enfim, ser registrada.
92
A confrontação entre o Espiritismo e a Igreja Católica na Bahia permaneceu mesmo
após a proclamação da República. Afinal de contas, a Doutrina Espírita se inseriu no que era
então considerado o grupo dominante da população católica. Criou bases sólidas no final do
Império e se beneficiou do fato de que o catolicismo vinha perdendo os privilégios que
mantinha com o Estado. Além das difíceis relações entre a hierarquia católica e o Estado, as
elites poticas estavam debatendo sobre a separação entre Igreja e Estado, o que acabou por
acontecer com a República.
93
Nas últimas décadas do século XIX, o Espiritismo era, sem dúvida, a ameaça religiosa
mais visível para a hierarquia católica. Depois de Salvador a Doutrina Espírita, na década de
1870, se fez presente na capital do Império com notável dinamismo, fundando sociedades e
divulgando, com muita eficiência, suas idéias. A Igreja reagiu imediatamente. O movimento
espírita já estava bastante estabelecido quando o bispo do Rio de Janeiro, em 1882, registrou
de maneira formal a ameaça, publicando uma pastoral que condenava o Espiritismo. O
dico Antônio Pinheiro Guedes respondeu com artigos escritos diretamente para o
episcopado brasileiro, o que mais tarde, acabou servindo de base para a fundação do jornal
espírita (1883) O Reformador, que é publicado até a atualidade.
94
Apesar do núcleo mais dinâmico do Espiritismo estar no Rio de Janeiro, onde em 1873
foi fundada a segunda sociedade espírita do país, o Grupo Espírita Confúcio, outros grupos se
desenvolviam em diversas partes do Brasil, causando cada vez mais um grande desconforto
aos católicos.
95
91
SANTOS, José Luiz dos. Espiritismo: uma religião brasileira. São Paulo: Moderna, 1997, p. 13.
92
SANTOS, José Luiz dos. Espiritismo: uma religião brasileira. São Paulo: Moderna, 1997, p. 13.
93
SANTOS, José Luiz dos. Espiritismo: uma religião brasileira. São Paulo: Moderna, 1997, p. 13-14.
94
SANTOS, José Luiz dos. Espiritismo: uma religião brasileira. São Paulo: Moderna, 1997, p. 14.
95
SANTOS, José Luiz dos. Espiritismo: uma religião brasileira. São Paulo: Moderna, 1997, p. 14 e 17.
30
Num determinado momento, a Igreja Católica adotou uma oposição oficial ao
Espiritismo. Em 1915, o episcopado brasileiro condenou formalmente o movimento espírita,
e, em 1917 a Santa manifestou-se, proibindo claramente que se assistisse a sessões ou
manifestações espíritas. No ano de 1948, em novo documento, os bispos reafirmaram essa
posição, que em 1953 foi mais uma vez reforçada na Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil.
96
Segundo afirmavam os bispos brasileiros, os católicos que tivessem algum tipo de
envolvimento com o Espiritismo estariam sujeitos a ser considerados hereges e a exclusão dos
sacramentos até que reparassem os escândalos cometidos e renunciassem formalmente ao
Espiritismo. Isso incluía, sem distinção, todas as religiões mediúnicas que se organizavam no
Brasil nas primeiras cadas do século XX. Para a Igreja Católica não existia diferença entre
o chamado baixo espiritismo ou o espiritismo kardecista, eram ambos igualmente
condenáveis.
97
2.3.3 Características do Espiritismo brasileiro
que nosso assunto central é o Espiritismo, que se define como um sistema religioso,
entendemos que também se faz necessário uma breve explanação sobre a perspectiva que
adotaremos a respeito da relão entre religião e sociedade. De acordo com Marcel Mauss e
Lévi-Strauss o social se come da particularidade dos aspectos sob os quais o apreendemos
(o jurídico, o político, o religioso etc) e da articulação desses diversos planos, cada qual com
sua especificidade. Naturalmente uma religião é influenciada pelo mundo e por seus adeptos
que, no seu próprio cotidiano, atravessam vários donios da sociedade. No entanto,
procuraremos destacar o fato de que a religião não somente retrata outras realidades, como
também representa uma matriz de produção de valores, de maneira de pensar e se relacionar
com a realidade social. Tentaremos, assim, perceber no Espiritismo a construção de uma
experiência do social.
98
Cabe também salientar, que neste trabalho, o Espiritismo será entendido de acordo
com os princípios doutrinários codificados por Allan Kardec, que o definem como uma
ciência experimental de bases filoficas e conseqüências morais (religiosas). Isso se faz
96
SANTOS, José Luiz dos. Espiritismo: uma religião brasileira. São Paulo: Moderna, 1997, p. 73.
97
SANTOS, José Luiz dos. Espiritismo: uma religião brasileira. São Paulo: Moderna, 1997, p. 73-74.
98
CAVALCANTI, Maria Laura V. de Castro. O mundo invisível: cosmologia, sistema ritual e noção de pessoa
o espiritismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1983, p. 9-10.
31
necessário para que possamos perceber o Espiritismo no Brasil, assim como na Europa,
alicerçado pelo tríplice aspecto da Doutrina Espírita (ciência, filosofia e religião). Essa visão
pode se mostrar contrária a visão de alguns autores que tentaram explicar o Espiritismo
ressaltando apenas um dos três aspectos doutrinários,
99
o que pode até ocorrer, sem que
necessariamente se entenda que a valorização de um dos aspectos ocorra em detrimento dos
demais, pois como salienta Pavan,
Não há evolução plena do espírito imortal (individualidade cósmica), no conceito
kardequiano, se o indivíduo não exercitar as “duas asas” que o levarão aos planos
mais altos na escala evolutiva: “as asas do coração” (desenvolvimento moral) e “as
asas da mente (desenvolvimento intelectual, científico). Então, promover o
desenvolvimento científico, ampliar os conhecimentos intelectuais dos homens é,
em síntese, caridade, pois que os espíritas estariam ajudando a humanidade a
progredir, promovendo, fortalecendo e ampliando uma das bases onde estão
apoiados o processo evolutivo do homem: a inteligência, o conhecimento
científico.
Assim, percebemos haver uma grande diferença entre afirmar que o espiritismo no
Brasil é apenas religioso e postular que uma centralidade da caridade no meio
espírita brasileiro. Ainda que a centralidade da caridade no meio espírita tenha
reforçado o aspecto religioso do espiritismo no Brasil, podemos, utilizando o
mesmo raciocínio, dizer que as atividades de cunho científico são, no espiritismo,
também uma forma de caridade, o que modificaria, totalmente, o enfoque dado à
essa análise.
100
Podemos então dizer que no Brasil realmente temos o Espiritismo em sua
configuração universal, onde os adeptos o, ao mesmo tempo, religiosos e científicos. Essa
análise também é comungada pelo autor Marcelo Camurça que fez uma reflexão sobre a
terapia espírita levando em conta a cientificização do espiritual que fazia parte do
imaginário do médico Bezerra de Menezes, e que se mostrava presente em sua terapia de
desobssessão, nos recursos à hipnose, telepatia e magnetismo utilizados.
101
Então, ainda de acordo com Pavan, não podemos concordar com a análise de que o
êxito do Espiritismo em terras brasileiras deveu-se à sua desvinculação da tradição científica
européia. Contrariando essa idéia, acreditamos que foi justamente a confirmação do tríplice
aspecto da doutrina, ciência, filosofia e religião, que possibilitou e facilitou sua inserção em
nossa sociedade. É claro que o aspecto religioso foi de fundamental importância para o
sucesso do Espiritismo no Brasil, o que não acarretou necessariamente em um afastamento
99
PAVAM, Daniel. As fronteira identitárias do espiritismo em Juiz de Fora. Dissertação (Mestrado em
Ciência da Religião) - Universidade Federal de Juiz de Fora. Juiz de Fora, 2003, p. 16.
100
PAVAM, Daniel. As fronteira identitárias do espiritismo em Juiz de Fora. Dissertação (Mestrado em
Ciência da Religião) - Universidade Federal de Juiz de Fora. Juiz de Fora, 2003, p. 22.
101
PAVAM, Daniel. As fronteira identitárias do espiritismo em Juiz de Fora. Dissertação (Mestrado em
Ciência da Religião) - Universidade Federal de Juiz de Fora. Juiz de Fora, 2003, p. 23 e 24.
32
das tradições francesas, uma vez que a própria Doutrina Espírita compreende-se também
como religião.
102
O êxito do Espiritismo no Brasil está claramente ligado a sua ênfase no mundo dos
espíritos, cujo acesso poderia ser possível através de suas sessões. Pode-se até mesmo supor
uma tendência cultural para abraçar tais concepções. Dessa forma, as noções de mediunidade
e de comunicação espiritual podiam ser identificadas a aspectos da inflncia africana e
indígena na formão do Brasil. Soma-se a isso ainda, o fato de o próprio catolicismo
apresentar-se aqui de forma heterogênea, com muito espaço para o inexplicável, o fenomenal
e o milagroso, no que dizia respeito às almas.
103
É a partir dessa circunstância cultural mais ampla que se consegue compreender como
o Espiritismo foi se expandindo para além dos pequenos grupos nos quais suas iias foram
inicialmente introduzidas.
104
A perseverança de tal proposta, baseada em textos organizados sistematicamente e
atenta às tendências do conhecimento da época, facilitou, sem vida, o enraizamento da
Doutrina Espírita em setores sociais com acesso à educação formal e a sua penetração em
grupos profissionais de formação acadêmica.
105
O Espiritismo é uma religião de leigos. Seus praticantes são donas de casa,
professores, médicos, enfermeiros, bancários, assistentes sociais, comerciantes, funciorios
públicos, militares, aposentados. Não existe em sua organização um clero espírita. As bases
do movimento se organizam de forma autônoma e giram em torno de centros espíritas
espalhados por todo o Brasil.
106
O crescimento da Doutrina Espírita no país se deu incentivando e enfatizando a leitura,
as referências a textos, o aperfeiçoamento pelo estudo da doutrina e a circulação de
mensagens espirituais.
107
Como vimos, o movimento espírita se firmou como uma religião que possui decisões
próprias de organização. É uma religo que tamm não possui uma hierarquia em suas
instituições. O que mais se assemelha a uma hierarquia é a estrutura de suas entidades de
unificação criadas com o Pacto Áureo.
108
Este, por sua vez, criou entre as lideranças, um
102
PAVAM, Daniel. As fronteira identitárias do espiritismo em Juiz de Fora. Dissertação (Mestrado em
Ciência da Religião) - Universidade Federal de Juiz de Fora. Juiz de Fora, 2003, p. 33.
103
SANTOS, José Luiz dos. Espiritismo: uma religião brasileira. São Paulo: Moderna, 1997, p. 15.
104
SANTOS, José Luiz dos. Espiritismo: uma religião brasileira. São Paulo: Moderna, 1997, p. 15.
105
SANTOS, José Luiz dos. Espiritismo: uma religião brasileira. São Paulo: Moderna, 1997, p. 28.
106
SANTOS, José Luiz dos. Espiritismo: uma religião brasileira. São Paulo: Moderna, 1997, p. 69.
107
SANTOS, José Luiz dos. Espiritismo: uma religião brasileira. São Paulo: Moderna, 1997, p. 70.
108
Acordo celebrado em 1949 que determinou que a FEB ficaria no centro do processo de unificação do
movimento espírita e aceitaria a criação de um Conselho Federativo Nacional com representantes de todos os
33
acordo político que visava determinar princípios de ordem dentro do movimento e,
consequentemente, redefinir seu âmbito de existência na sociedade brasileira.
109
Logo após esse acordo, o movimento passou a se dedicar ao trabalho de consolidação
do Espiritismo no Brasil, priorizando bem mais o trabalho interno do que a expansão do
movimento. Durante esse esforço de consolidação interna, o Espiritismo fez uso, intenso, de
seus instrumentos tradicionais que são a atividade editorial e a propaganda. Aumentou a
quantidade de palestras, encontros e confencias com o objetivo de atingir as bases do
movimento (os dirigentes), algumas categorias específicas, como jovens, crianças, mulheres,
pais e categorias profissionais, como jornalistas, escritores, professores, médicos, etc.
110
A codificação realizada por Allan Kardec acabou por constituir o ponto principal da
religião espírita no Brasil. Suas obras são consideradas aqui em nosso país como sendo a base
doutrinária do espiritismo. O destaque no aspecto religioso da obra de Kardec, que se define
igualmente como ciência e filosofia, come, no entanto, o tro inconfundível do Espiritismo
brasileiro, podendo vir a ser, quem sabe, a causa do sucesso da doutrina entre nós.
111
Porém, é
necessário destacar que o aspecto religioso da organização do espiritismo brasileiro não
eliminou a atenção à racionalidade interna de suas concepções e também a preocupação de se
manter atualizado com o conhecimento científico. Havia uma preocupação em apresentar o
mundo dos espíritos como uma realidade objetiva que não se chocava com outras realidades
objetivas de que as ciências se ocupavam.
112
A história do Espiritismo no Brasil destacou o aspecto da religiosidade como alicerce
fundamental do movimento, procurando, entretanto, fugir de excessos sticos, assim como,
tentando manter a preocupação com a racionalidade das concepções originadas de sua crença
básica no mundo espiritual. Em decorrência de tal atitude, o Espiritismo conseguiu se
apresentar, aos que dele se aproximam, como uma religião racional.
113
Na prática religiosa dos
centros espíritas, a natureza racional do Espiritismo é encontrada, sobretudo, na forte
valorização da fala, da leitura e do estudo.
114
estados. Foi firmado também que a obra de Kardec seria referência básica do movimento espírita (SANTOS,
José Luiz dos. Espiritismo: uma religião brasileira. São Paulo: Moderna, 1997, p. 61).
109
SANTOS, José Luiz dos. Espiritismo: uma religião brasileira. São Paulo: Moderna, 1997, p. 72.
110
SANTOS, José Luiz dos. Espiritismo: uma religião brasileira. São Paulo: Moderna, 1997, p. 72-73.
111
CAMARGO, Candido Procópio Ferreira de. Kardecismo e Umbanda. São Paulo: Livraria Pioneira Editora,
1961, p. 4.
112
SANTOS, José Luiz dos. Espiritismo: uma religião brasileira. São Paulo: Moderna, 1997, p. 28.
113
SANTOS, José Luiz dos. Espiritismo: uma religião brasileira. São Paulo: Moderna, 1997, p. 81.
114
CAVALCANTI, Maria Laura V. de Castro. O mundo invisível: cosmologia, sistema ritual e noção de pessoa
o espiritismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1983, p. 19.
34
Podemos dizer que o êxito do espiritismo no Brasil se deu devido ao fato dele ter
conseguido ultrapassar alguns grandes obstáculos para sua fixação e legitimação na cultura
religiosa brasileira:
Através da orientação cristã de sua doutrina e da prática da caridade, conseguiu
se aproximar dos princípios cristãos da religião majoritária do país, o
catolicismo.
Através das práticas mediúnicas (conhecidas por possessão) conseguiu dialogar
com as crenças afro-brasileiras, ao ponto de legitimar as discriminadas práticas
de incorporação.
Através da cosmologia espírita criou uma empatia com a cultura espiritualista
reflexa, ao confirmar a existência de um mundo invisível, habitado por
espíritos de homens que viveram na terra (desencarnados), que interagem com
os vivos (encarnados), confirmando as crenças nas almas penadas, santos e
encostos difundidos pela religiosidade popular.
Através da tendência racionalista de cunho evolucionista da doutrina e o
caráter laboratorial, experimental de lidar com o inefável adquiriu uma maior
plausibilidade para situações de dor e sofrimento que conseguiu apoio em
camadas médias e setores intelectualizados de nossa sociedade, que emergiram
com o advento da modernidade.
115
Esse resultado feliz se deve, em grande parte, ao fato de o espiritismo possuir, em seu
conjunto de princípios, muitos pontos de união com a cultura religiosa brasileira. Como foi
dito anteriormente, ele foi estruturado por Allan Kardec baseado nas filosofias religiosas
cristã e oriental e articula-se enquanto síntese de três pilares do pensamento humano, a
ciência, a filosofia e a religião, o que lhe confere determinadas similaridades com outros
sistemas religiosos. Isso nos faz perceber que o espiritismo faz sucesso porque é inclusivo.
116
Essa característica de inclusividade acabou por facilitar a entrada e consolidação do
espiritismo no Brasil, porque adota os mesmos referenciais de uma cultura religiosa
tradicional, formada durante culos por trocas sincréticas entre crenças indígenas, ibéricas e
115
PAVAM, Daniel. As fronteira identitárias do espiritismo em Juiz de Fora. Dissertação (Mestrado em
Ciência da Religião) - Universidade Federal de Juiz de Fora. Juiz de Fora, 2003, p.35-36.
116
PAVAM, Daniel. As fronteira identitárias do espiritismo em Juiz de Fora. Dissertação (Mestrado em
Ciência da Religião) - Universidade Federal de Juiz de Fora. Juiz de Fora, 2003, p. 36.
35
africanas, reelaboradas em um formato cientificista e de uma ética do individualismo
moderno, orientada pela idéia de livre-arbítrio.
117
2.3.4 A Doutrina Espírita em Juiz de Fora
Na cidade mineira de Juiz de Fora, encontram-se registros que mostram a presença do
Espiritismo desde o final do século XIX. a partir da segunda década do século XX, os
Centros Espíritas começaram a se organizar de forma mais sistematizada, formando assim, o
bloco hegemônico da organização do movimento. Com o passar do tempo, a doutrina foi
adquirindo maior estabilidade e inserção social, definindo-se como uma opção religiosa
racionalizada, dedicada à assistência aos necessitados, por meio da caridade espiritual e
material. Durante o período em que tentavam conseguir sua legitimação, os adeptos
enfrentaram oposições, em especial com a Igreja Católica, porém conseguindo alcançar,
nos anos 50, uma posição de destaque no campo religioso juizforano.
118
É bastante provável que a doutrina espírita tenha chegado à cidade mineira via Rio de
Janeiro, pois as primeiras notícias obtidas a respeito do movimento espírita são do ano de
1882, a mesma década em que ele se mostrava em franco desenvolvimento na cidade carioca,
sendo a mesma, considerada o ponto de partida do Espiritismo para as demais regiões do
país.
119
As primeiras reuniões espíritas nesta cidade aconteceram na casa de Gouvêa Franco,
espírita convicto que veio para Juiz de Fora em 1898, proveniente do Rio de Janeiro.
120
Em
117
PAVAM, Daniel. As fronteira identitárias do espiritismo em Juiz de Fora. Dissertação (Mestrado em
Ciência da Religião) - Universidade Federal de Juiz de Fora. Juiz de Fora, 2003, p. 36.
118
OLIVEIRA, Simone G. de. O Espiritismo em Juiz de Fora: do surgimento à consolidação de uma “religião”.
In: TAVARES, Fátima R. Gomes; CAMURÇA, Marcelo Ayres (Org). Minas das devoções: diversidade
religiosa em Juiz de Fora. Juiz de Fora: UFJF/PPCIR, 2003, p. 150-151.
119
OLIVEIRA, Simone G. de. A “fé raciocinada” na “Atenas de Minas”: Gênese e consolidação do
Espiritismo em Juiz de Fora e algumas repercussões para contemporaneidade. Dissertação (Mestrado em
Ciência da Religião) Universidade Federal de Juiz de Fora. Juiz de Fora, 2001, p. 32.
120
Não se pode falar com precisão sobre os primeiros anos do Espiritismo na cidade devido à escassez de
informações. Os primeiros encontros eram bastante informais. Os grupos se organizavam sob a forma de
clubes, associações o institucionalizadas, de caráter domiciliar e muitas vezes secretos. Como não foram
feitas atas dessas reuniões, não se tem registro para a pesquisa histórica. A parir de 1901 as evidências tornam-
se mais observáveis, pois o Espiritismo começa a se apresentar mais organizado, surgindo então, os centros
regulares nos moldes dos atuais. De qualquer forma, é possível notar que em 1882 o Espiritismo estava
presente na sociedade juizforana, sendo praticado por um pequeno número de pessoas. O contato com a
doutrina se dava pelo contato com pessoas espíritas que aqui viviam e com os livros que aqui chegavam
(OLIVEIRA, Simone G. de. A “fé raciocinada” na “Atenas de Minas”: nese e consolidação do
Espiritismo em Juiz de Fora e algumas repercussões para contemporaneidade. Dissertação (Mestrado em
Ciência da Religião) Universidade Federal de Juiz de Fora. Juiz de Fora, 2001, p. 33-34).
36
pouco tempo conseguiu reunir pessoas interessadas no estudo e esclarecimento dos
fundamentos do Espiritismo. Desses encontros informais na residência de Gouvêa Franco,
surgiu o “Grupo Espírita Esperança e Caridade” que, nesse formato, acabou por atrair
novos interessados. O desenvolvimento crescente dos trabalhos levou a formação do “Centro
Espírita União Humildade e Caridade”, em 2 de Abril de 1901.
121
De outro grupo, que participava de reuniões para estudo e prática do Espiritismo na
casa do casal Albino e Firmina Esteves, nasceu um novo Centro Espírita: a Casa Espírita”,
fundada em 26 de Maio de 1919. Dessa forma, aos poucos foram surgindo outros Centros
Espíritas na cidade e, consequentemente, a doutrina passou a ser mais divulgada e atraiu
novos adeptos.
122
Portanto, o Espiritismo nasceu em Juiz de Fora, assim como em outros centros
urbanos, através de grupos particulares que se reuniam nas casas de seus organizadores com a
finalidade de estudar a doutrina e praticar as sessões de mesa, tendo em vista a comunicação
com o plano espiritual.
123
Esses grupos então passaram a chamar a atenção dos indivíduos que procuravam e
necessitavam de um sentido para sua angústia particular e de um motivo para sua condição de
sofrimento, já que essas pessoas, oriundas das classes médias, costumavam recusar a idéia do
fatalismo da “vontade de Deus”, oferecida pelas religiões tradicionais.
124
A Doutrina Espírita, por meio da positividade da sua filosofia de Leis de Justiça
Divina e nas evidências científicas da mediunidade, apresentava um grau de plausibilidade e
satisfação intelectual para o vazio das dúvidas e crises que atormentavam essas pessoas.
125
121
CAMURÇA, Marcelo Ayres. “Lê livre dês esprits” na Manchester Mineira: A modernidade do
Espiritismo face ao conservadorismo Católico nas primeiras décadas do século em Juiz de Fora. RHEMA, v. 4,
n. 16, p. 199-223. 1998.
122
CAMURÇA, Marcelo Ayres. “Lê livre dês esprits” na Manchester Mineira: A modernidade do
Espiritismo face ao conservadorismo Católico nas primeiras décadas do século em Juiz de Fora. RHEMA, v. 4,
n. 16, p. 199-223. 1998.
123
CAMURÇA, Marcelo Ayres. “Lê livre dês esprits” na Manchester Mineira: A modernidade do
Espiritismo face ao conservadorismo Católico nas primeiras décadas do século em Juiz de Fora. RHEMA, v. 4,
n. 16, p. 199-223. 1998.
124
CAMURÇA, Marcelo Ayres. “Lê livre dês esprits” na Manchester Mineira: A modernidade do
Espiritismo face ao conservadorismo Católico nas primeiras décadas do século em Juiz de Fora. RHEMA, v. 4,
n. 16, p. 199-223. 1998.
125
CAMURÇA, Marcelo Ayres. “Lê livre dês esprits” na Manchester Mineira: A modernidade do
Espiritismo face ao conservadorismo Católico nas primeiras décadas do século em Juiz de Fora. RHEMA, v. 4,
n. 16, p. 199-223. 1998.
37
Nesse movimento espírita nascente (e crescente)
126
percebia-se de maneira evidente a
participação da camada letrada da população. Muitos, inclusive, foram jornalistas ligados a
Academia Mineira de Letras. Essa intelectualidade, presente no Espiritismo em geral, foi
responsável por influenciar a forma como a doutrina se estendeu na cidade e no país: através
de jornais e periódicos.
127
Segundo o autor Marcelo Camurça, os raciocínios refinados e sutis com que a lógica
explicativa da doutrina considerava os casos concretos a ela apresentados acabou por
preencher de significação as aflições e dores das demandas. Inclusive o fato de oferecer um
atendimento reservado, voltado para a investigação cuidadosa de cada caso e explicações
éticas e racionalizantes para as questões apresentadas, fazia com que se tornasse bastante
diferente dos ritos massivos e cerimoniais, das procissões e romarias e da dinâmica acerca das
promessas e milagres do Catolicismo, tornando assim, o Espiritismo mais adequado às
exigências e mentalidades das camadas médias.
128
Seu modelo organizativo, diferente do templo, paróquia ou igreja, disposto em grupos
organizados de maneira semelhante aos clubes e sociedades do fim do século XIX, como
abolicionistas, maçons e republicanos, acabou por reunir intelectuais e profissionais liberais
que tinham interesse em um credo racionalizado, ou seja, a raciocinada.
129
Juiz de Fora era considerada pioneira em muitos empreendimentos no estado de Minas
Gerais, além de possuidora de grande poder ecomico. Sua elite era composta basicamente
126
Em Juiz de Fora, o jornal “O Semeador”, de novembro de 1922, chama a atenção para o desenvolvimento do
Espiritismo na cidade, que estaria acontecendo de maneira intensa e animadora, o que poderia ser percebido
também nas reuniões da Casa Espírita que apresentava um público freqüente e atento. Em agosto do ano
seguinte, o jornal destaca a rie de conferências públicas e propaganda da doutrina que favoreceu a sociedade
ter o prazer de ouvir pessoas de destaque na literatura espírita como Zilda Gama, autora de conhecidas obras
psicográficas e Aura Celeste, respeitada conferencista e colaboradora de rios jornais e revistas cariocas.
Mas, o ponto alto mesmo do processo de propagação do movimento aconteceu por meio das reuniões públicas,
que foram denominadas “Conferências Espíritas Populares”, uma série de conferências, ocorridas nos anos de
1928 e 1929, sistematizadas e organizadas enquanto uma campanha (CAMURÇA, Marcelo Ayres. “Lê livre
dês esprits” na Manchester Mineira: A modernidade do Espiritismo face ao conservadorismo Católico nas
primeiras décadas do século em Juiz de Fora. RHEMA, v. 4, n. 16, p. 199-223. 1998).
127
CAMURÇA, Marcelo Ayres. “Lê livre dês esprits” na Manchester Mineira: A modernidade do
Espiritismo face ao conservadorismo Católico nas primeiras décadas do século em Juiz de Fora. RHEMA, v. 4,
n. 16, p. 199-223. 1998.
128
CAMURÇA, Marcelo Ayres. “Lê livre dês esprits” na Manchester Mineira: A modernidade do
Espiritismo face ao conservadorismo Católico nas primeiras décadas do século em Juiz de Fora. RHEMA, v. 4,
n. 16, p. 199-223. 1998.
129
CAMURÇA, Marcelo Ayres. “Lê livre dês esprits” na Manchester Mineira: A modernidade do
Espiritismo face ao conservadorismo Católico nas primeiras décadas do século em Juiz de Fora. RHEMA, v. 4,
n. 16, p. 199-223. 1998.
38
por proprietários de terras, advogados, banqueiros e comerciantes
130
e no final do século XIX
podia ser dividida entre tradicionalistas e liberais. Juntamente com a aristocracia rural,
apegada aos valores de ordem e autoridade da tradição católica e escravocrata (em iniciada
decadência), a classe média urbana se desenvolvia completamente interessada pelas idéias
modernizantes, propagadas, em grande parte, pelo discurso protestante, portador dos ideais
liberais e progressistas norte-americanos, que tanto atraíam a classe emergente.
131
No que diz respeito à educação, Juiz de Fora era mencionada como a cidade da
instrução por excelência, comportando aqui, inclusive, vários estabelecimentos de ensino. Sua
diversificação no âmbito da cultura era notória. Os juizforanos dispunham de uma imprensa
muito ativa
132
, além de teatros, casas noturnas e cinemas.
133
Por transmitir uma imagem liberal e progressiva, onde se constita uma sociedade
aberta e receptiva ao debate de novas iias, Juiz de Fora atraía variados interesses,
aparentando ser uma cidade acolhedora e sem preconceitos. Possuía uma sociedade urbana
constantemente preocupada em manter e produzir eventos culturais tão interessantes e
atraentes quanto os que ocorriam na cidade do Rio de Janeiro.
134
Localizada em um ponto geográfico e economicamente estratégico, servindo de
entreposto comercial entre o interior de Minas Gerais e o Rio de Janeiro, a cidade de Juiz de
Fora absorvia, dessa maneira, tanto a cultura quanto o dinheiro de ambos os pólos. Além
disso, a cidade recebeu, no ano de 1850, um mero significativo de imigrantes
135
, o que
acabou por contribuir, de forma considerável, para sua diversificação cultural. A mentalidade
européia trazida pelos imigrantes foi, aos poucos, se introduzindo na sociedade local e,
130
OLIVEIRA, Simone G. de. O Espiritismo em Juiz de Fora: do surgimento à consolidação de uma religião”.
In: TAVARES, Fátima R. Gomes; CAMURÇA, Marcelo Ayres (Org). Minas das devoções: diversidade
religiosa em Juiz de Fora. Juiz de Fora: UFJF/PPCIR, 2003, p. 137.
131
OLIVEIRA, Simone G. de. A “fé raciocinada” na “Atenas de Minas”: Gênese e consolidação do
Espiritismo em Juiz de Fora e algumas repercuses para contemporaneidade. Dissertação (Mestrado em
Ciência da Religião) Universidade Federal de Juiz de Fora. Juiz de Fora, 2001, p. 28.
132
Desde 1870 havia publicação regular de alguns jornais. Nesse ano tivemos o primeiro deles de nome “O
Imparcial”. O mais importante da época, “O Pharol”, foi publicado entre 1872 e 1939. Este vivenciou
momentos históricos e sempre contribuiu para a formação da opinião pública, retratando a atividade cultural da
cidade. Tamanho era o dinamismo da imprensa de Juiz de Fora, que, somente no culo XIX, contou com 55
jornais (OLIVEIRA, Mônica Ribeiro de, Juiz de Fora vivendo a história. Juiz de Fora: Núcleo de História
Regional da UFJF/ Editora da UFJF, 1994, p. 27).
133
OLIVEIRA, Simone G. de. O Espiritismo em Juiz de Fora: do surgimento à consolidação de uma religião”.
In: TAVARES, Fátima R. Gomes; CAMURÇA, Marcelo Ayres (Org). Minas das devoções: diversidade
religiosa em Juiz de Fora. Juiz de Fora: UFJF/PPCIR, 2003, p. 137.
134
OLIVEIRA, Simone G. de. O Espiritismo em Juiz de Fora: do surgimento à consolidação de uma religião”.
In: TAVARES, Fátima R. Gomes; CAMURÇA, Marcelo Ayres (Org). Minas das devoções: diversidade
religiosa em Juiz de Fora. Juiz de Fora: UFJF/PPCIR, 2003, p. 137.
135
Sobretudo alemães e italianos. OLIVEIRA, Simone G. de. O Espiritismo em Juiz de Fora: do surgimento à
consolidação de uma “religião”. In: TAVARES, Fátima R. Gomes; CAMURÇA, Marcelo Ayres (Org). Minas
das devoções: diversidade religiosa em Juiz de Fora. Juiz de Fora: UFJF/PPCIR, 2003, p. 138.
39
consequentemente, contribuindo para as alterações comportamentais em todos os setores
sociais.
136
O desenvolvimento econômico do município não somente despertava o espírito
empreendedor como também favorecia a adesão às novas iias e incentivava a aceitação de
novas experiências. A elite urbana juizforana possuía grande preocupação com tudo aquilo
que pudesse vir a se tornar um obstáculo ao progresso e desenvolvimento da cidade,
questionando principalmente a união entre Estado e Igreja e a formação escolar da população.
No ano de 1888, Juiz de Fora contava com muitos adeptos da maçonaria, o que reforça a
tendência dos cidadãos para o anti-clericalismo e para uma abertura aos ideais do
liberalismo.
137
De origem urbana, Juiz de Fora possuía uma sociedade de mentalidade metropolitana,
o que acabava por diferenciá-la das típicas cidades do interior de Minas Gerais no mesmo
período. Sua arquitetura também era diferente das cidades mineiras do ouro. Suas ruas e
construções procuravam demonstrar o que houvesse de mais moderno e novo no momento,
138
refletindo o desenvolvimento econômico e cultural da cidade. O estilo ectico das
construções reunia várias manifestações arquitetônicas do passado, o que podemos conferir
em construções que lembram castelos medievais, igrejas que imitam o estilo tico europeu
ou a fachada de um templo grego. No início do século XX tivemos também constrões em
estilo Art Nouveau, facilmente reconhecido graças ao uso de uma rica decoração nas fachadas
das casas, onde prevalecem as linhas curvas imitando fitas ou flores e, demonstrando, desde
, a habilidade dos trabalhadores daquele período e a riqueza dos moradores.
139
A religiosidade, em Juiz de Fora, também foi marcada por características diferentes
daquelas encontradas nas demais cidades mineiras da época. O tradicional catolicismo tinha
pouca afinidade com os padrões modernos tão aspirados pelos juizforanos. A maioria dos
imigrantes que chegavam à cidade, principalmente os alemães, abraçava o Protestantismo.
136
OLIVEIRA, Simone G. de. O Espiritismo em Juiz de Fora: do surgimento à consolidação de uma religião”.
In: TAVARES, Fátima R. Gomes; CAMURÇA, Marcelo Ayres (Org). Minas das devoções: diversidade
religiosa em Juiz de Fora. Juiz de Fora: UFJF/PPCIR, 2003, p. 138.
137
OLIVEIRA, Simone G. de. A “fé raciocinada” na “Atenas de Minas”: Gênese e consolidação do
Espiritismo em Juiz de Fora e algumas repercussões para contemporaneidade. Dissertação (Mestrado em
Ciência da Religião) Universidade Federal de Juiz de Fora. Juiz de Fora, 2001, p. 51.
138
OLIVEIRA, Simone G. de. A “fé raciocinada” na “Atenas de Minas”: Gênese e consolidação do
Espiritismo em Juiz de Fora e algumas repercussões para contemporaneidade. Dissertação (Mestrado em
Ciência da Religião) Universidade Federal de Juiz de Fora. Juiz de Fora, 2001, p. 27.
139
OLIVEIRA, Mônica Ribeiro de. Juiz de Fora vivendo a história. Juiz de Fora: Núcleo de História Regional
da UFJF/ Editora da UFJF, 1994, p. 7879.
40
Nesse contexto, também não demorou muito tempo para que diferentes crenças religiosas,
incluindo a Doutrina Espírita, se revelassem de maneira pública na cidade de Juiz de Fora.
140
Contrariamente ao tradicionalismo provinciano do Catolicismo de Padroado que
marcou algumas cidades mineiras (Sabará, Ouro Preto e São João del Rey), em Juiz de Fora
destacou-se uma diversidade religiosa e cultural, que foi sendo traçada com a chegada dos
imigrantes alemães, que trouxeram o Luteranismo e com as missões metodistas, que tiveram
seu auge com a fundação do Colégio Grambery, em 1891. Toda essa conjuntura acabou
incentivando também a fundação da “Academia de Comércio em 1894 por um grupo de
católicos e, em seguida, por um grupo de religiosas tivemos a construção do “Stela Matutina”
e o “Santa Catarina”.
141
Em Juiz de Fora, nessa época, residiam católicos, protestantes, espíritas, maçons,
liberais e republicanos. Apesar dos possíveis conflitos entre eles, a cidade se apresentava
receptiva e propiciadora ao debate de idéias.
142
Os protestantes, os espíritas, os maçons e os
positivistas, formavam, inclusive, um grupo que fazia oposição ao predomínio católico na
cidade. Embora apresentassem diferenças de crenças e ideologias, esses segmentos também
comungavam em algumas idéias. A princípio, todos concordavam com a necessidade de um
entendimento entre religião e ciência, que para eles a não se opunha ao progresso do
homem. Além disso, buscavam através de suas idéias, alcançar a camada urbana letrada, ou
seja, a classe burguesa emergente e consideravam a Igreja Católica uma instituição
conservadora e retrógrada, responsável pelo atraso do país”.
143
Esse ambiente diversificado
foi extremamente salutar, no entender de alguns espíritas, como condição preliminar para a
ampliação do movimento no período.
144
Atualmente, em Juiz de Fora, o Espiritismo tornou-se um elemento promotor de
destaque para algumas pessoas, uma vez que o fato de ser espírita está intimamente ligado à
idéia de ser também intelectual, ou seja, a doutrina acaba de certa forma, representando um
140
OLIVEIRA, Simone G. de. O Espiritismo em Juiz de Fora: do surgimento à consolidação de uma religião”.
In: TAVARES, Fátima R. Gomes; CAMURÇA, Marcelo Ayres (Org). Minas das devoções: diversidade
religiosa em Juiz de Fora. Juiz de Fora: UFJF/PPCIR, 2003, p. 138.
141
CAMURÇA, Marcelo Ayres. “Lê livre dês esprits” na Manchester Mineira: A modernidade do
Espiritismo face ao conservadorismo Católico nas primeiras décadas do século em Juiz de Fora. RHEMA, v. 4,
n. 16, p. 199-223. 1998.
142
OLIVEIRA, Mônica Ribeiro de. Juiz de Fora vivendo a história. Juiz de Fora: Núcleo de História Regional
da UFJF/ Editora da UFJF, 1994, p. 78.
143
OLIVEIRA, Simone G. de. A “fé raciocinada” na “Atenas de Minas”: Gênese e consolidação do
Espiritismo em Juiz de Fora e algumas repercussões para contemporaneidade. Dissertação (Mestrado em
Ciência da Religião) Universidade Federal de Juiz de Fora. Juiz de Fora, 2001, p. 29.
144
CAMURÇA, Marcelo Ayres. “Lê livre dês esprits” na Manchester Mineira: A modernidade do
Espiritismo face ao conservadorismo Católico nas primeiras décadas do século em Juiz de Fora. RHEMA, v. 4,
n. 16, p. 199-223. 1998.
41
status social.
145
Isso tudo, conforme foi dito antes, segundo Maria Laura V. Cavalcanti,
reforça o fato de que a religião o apenas “expressa” ou “traduz” outras realidades, como
também representa uma matriz de produção de valores, de maneira de pensar e se relacionar
com a realidade social.
146
Em tempos atuais, o Espiritismo de Kardec, agora centenário, ocupa um lugar de
destaque entre as religiões da cidade. Isso ocorre tanto no fator de visibilidade quanto no fator
quantitativo.
147
Essa visibilidade corresponde à capacidade publicitária ou de divulgação, que é
reconhecida principalmente através das colunas específicas em jornais de grande circulação
municipal; nos jornais das comunidades espíritas; nos médiuns e escritores reconhecidos
nacionalmente; nas livrarias especializadas em obras espíritas; nos programas de rádio e de
televisão. Somam-se também a essas atividades, outras que colocam o Espiritismo em contato
direto com a sociedade de Juiz de Fora, como palestras, seminários, festas e eventos
promocionais, além das obras assistenciais. o fator quantitativo é confirmado pelo Censo
2000, que mencionou o Espiritismo como o terceiro maior agrupamento religioso no país,
sendo que em Juiz de Fora essa mesma posição também é observada.
148
145
OLIVEIRA, Simone G. de. O Espiritismo em Juiz de Fora: do surgimento à consolidação de uma religião”.
In: TAVARES, Fátima R. Gomes; CAMURÇA, Marcelo Ayres (Org). Minas das devoções: diversidade
religiosa em Juiz de Fora. Juiz de Fora: UFJF/PPCIR, 2003, p. 153.
146
CAVALCANTI, Maria Laura V. de Castro. O mundo invisível: cosmologia, sistema ritual e não de pessoa
o espiritismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1983, p. 10.
147
PAVAM, Daniel; SOUZA, Petrônio G. de. Diversidade identitária no movimento espírita em Juiz de Fora. In:
TAVARES, Fátima R. Gomes; CAMURÇA, Marcelo Ayres (Org). Minas das devoções: diversidade religiosa
em Juiz de Fora. Juiz de Fora: UFJF/PPCIR, 2003, p. 157.
148
PAVAM, Daniel; SOUZA, Petrônio G. de. Diversidade identitária no movimento espírita em Juiz de Fora. In:
TAVARES, Fátima R. Gomes; CAMURÇA, Marcelo Ayres (Org). Minas das devoções: diversidade religiosa
em Juiz de Fora. Juiz de Fora: UFJF/PPCIR, 2003, p. 157-158.
42
3 O CENTRO ESPÍRITA: ESPAÇO DA DOUTRINA E DAS PRÁTICAS
DE CULTURA LETRADA
Um Centro Espírita é uma escola onde podemos aprender a ensinar, plantar o bem e recolher-lhe as
graças, aprimorar- nos e aperfeiçoar os outros, na senda eterna.”
(Emmanuel - Psicografia de F. C. Xavier - O Centro Espírita - “Reformador”, jan/1951.)
149
O Espiritismo é uma religião da cultura letrada, ou escrita, no sentido de pressupor
níveis nimos de letramento para a participação em suas atividades cotidianas, e tal
particularidade faz toda a diferença em qualquer religiosidade, sobretudo no Brasil.
150
Partindo desse princípio, iremos tentar perceber e destacar a forte ligação que existe
entre o espiritismo e a cultura letrada, reconhecida aqui na perspectiva do autor Bernardo
Lewgoy no que diz respeito a uma cultura escrita, uma vez que ele se refere ao Espiritismo
o apenas como uma “Religião do livro”, mas sim como uma religião dos livros, da leitura e
da escrita, que não somente supõe a passagem pela escola como também presume uma
representação idealizada de suas regras, por meio dos grupos de estudo e de palestras, parte
fundamental de sua vida ritual. Portanto, cabe ressaltar que, juntamente com os rituais
mediúnicos, a Doutrina Espírita realiza a todo o momento algumas práticas culturais letradas,
como a leitura, erudição, citação, crítica, comentários de textos, narrativa e retórica, e
outros.
151
É importante também, uma vez que estamos trabalhando com noção de cultura letrada,
procurar conceituar a idéia de letramento. Este seria o estado ou condição de indivíduos ou de
grupos sociais pertencentes a sociedades letradas que exercem, de fato, as práticas sociais de
leitura e de escrita e participam de eventos de letramento, ou seja, indivíduos ou grupos
sociais que dominam o uso da leitura e da escrita, mantém com os outros e com o mundo que
os cerca formas de interação, atitudes, competências discursivas e cognitivas que lhe
149
FEDERAÇÃO ESPIRITA DO PARANA. Como fazer. a organização da casa espírita. Federação Espírita do
Paraná. edição, vol 2, 2000, p. 11. Disponível em: <http://www.espiritismogi.com.br/livrosd.htm>. Acesso
em: janeiro de 2009.
150
LEWGOY, Bernardo. Os espíritas e as letras: um estudo antropológico sobre cultura escrita e oralidade no
espiritismo kardecista. Tese (Doutorado em Antopologia Social) PPGAS, FFLCH, Universidade de São
Paulo. São Paulo, 2000, p. 9.
151
LEWGOY, Bernardo. Incluídos e letrados. In: TEIXEIRA, Faustino; MENEZES, Renata (Org). As religiões
no Brasil: continuidades e rupturas. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 183-184.
43
conferem um determinado e diferenciado estado ou condição de inclusão em uma sociedade
pautada pela cultura letrada.
152
Para que se possa melhor compreender essa relação entre o Espiritismo e a cultura
letrada é fundamental tentar esclarecer, novamente e de forma mais resumida, o que se
entende por Espiritismo. Segundo o próprio codificador da doutrina, Allan Kardec,
O Espiritismo é ao mesmo tempo uma ciência de observação e uma doutrina
filosófica. Como ciência prática, ele consiste nas relações que se podem estabelecer
com os Espíritos; como filosofia, ele compreende todas as conseqüências morais
que decorrem dessas relações.
153
Kardec ainda reforça e complementa essa definição dizendo,
O Espiritismo é, pois, a doutrina fundada sobre a existência, as manifestações e o
ensinamento dos Espíritos. Essa doutrina se acha exposta, de maneira completa, em
O Livro dos Espíritos para a parte filosófica, em O Livro dos Médiuns para a parte
prática e experimental, e em O Evangelho Segundo o Espiritismo para a parte
moral.
154
O centro espírita, apesar de ser somente uma parte de um conjunto maior que os
espíritas denominam Movimento Espírita, é o local mais propício para a prática dos princípios
doutrinários em sua totalidade. É o lugar privilegiado para a mediação entre os mundos visível
e invisível.
155
Ainda no século XIX, quando o Espiritismo aportou em terras brasileiras, eram
realizadas sessões mediúnicas nos lares (o que atualmente não é indicado pela Federação
Espírita Brasileira
156
). Nos dias de hoje o que se aconselha realizar em residências é o culto
152
SOARES, Magda. Novas práticas de leitura e escrita: letramento na cibercultura. Educ. Soc., Campinas,
vol. 23, n. 81, p. 145-146, dez. 2002. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/es/v23n81/13935.pdf >.Acesso
em: janeiro de 2009.
153
KARDEC, Allan. O que é o espiritismo. Araras, SP, IDE, 70ª edição, 2007, p.12.
154
KARDEC, Allan. O que é o espiritismo. Araras, SP, IDE, 70ª edição, 2007, p.186.
155
CAVALCANTI, Maria Laura V. de Castro. O mundo invisível: cosmologia, sistema ritual e não de pessoa
o espiritismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1983, p. 51.
156
A antiguidade das instituições organizativas do Espiritismo e os processos pelos quais suas práticas
adquiriram uma maior legitimidade em relação à sociedade em geral colocaram as condições para que as
federações pudessem ser os representantes dos centros e grupos filiados perante outras instituições sociais e
também as instâncias mais capacitadas para arbitrar questões doutrinais. A estrutura das atividades, assim
como a arquitetura e a decoração, adotada pelas casas espíritas atuais estão relacionadas a um longo trabalho
de codificação promovido por entidades federativas. Apesar disso, não significa que ocorra um total controle e
legitimidade por parte das federações sobre o universo das instituições espíritas, percebendo-se inclusive, que
muitos centros e instituições o são filiados a qualquer federação até porque não existe nada que obrigue um
centro a se filiar a uma federação. A própria noção de organização federativa, da maneira como é encarada pela
FEB e as federações que a apóiam, admite e respeita, ao menos retoricamente, um espaço de autonomia
(GIUMBELLI, Emerson. Em nome da caridade: assistência social e religião nas instituições espíritas. Vol I.
Rio de Janeiro. Núcleo de Pesquisa/ ISER, 1995, p. 15-16).
44
do evangelho no lar”, uma reunião que consiste em uma prece, leitura e estudo de um trecho
do Evangelho segundo o Espiritismo. Apesar disso, ainda é possível encontrar em algumas
casas atividades que comumente são realizadas no centro, como estudos mediúnicos e
doutrinários, sessões de irradiação (reuniões de preces e vibrações em favor de espíritos
encarnados e desencarnados) e bazares de caridade.
157
O surgimento de um local específico para as reuniões e a organização dos centros
espíritas ocorria quase sempre, quando o número de participantes aumentava muito e,
consequentemente, os trabalhos realizados tomavam maiores proporções.
158
De acordo com a Federação Espírita Brasileira podemos entender o centro espírita
159
da seguinte maneira:
O que são:
Centros de estudo, fraternidade, oração e trabalho, exercidos a partir dos princípios
espíritas;
Escolas de formação espiritual e moral, norteadas pela Doutrina Espírita;
Postos de atendimento fraterno para todos os que os procuram necessitando de
orientação, esclarecimento, ajuda ou consolação;
Oficinas de trabalho que favorecem aos seus freqüentadores o exercício de
aprimoramento íntimo pela prática do Evangelho em suas atividades;
Casas onde todos têm a possibilidade de conviver, estudar e trabalhar, unindo a família
sob a orientação do Espiritismo;
Recantos de paz construtiva, que oferecem aos seus freqüentadores chances para a
recuperação espiritual e a união fraternal pela prática do “amai-vos uns aos outros”;
Locais que se distinguem pela simplicidade própria das primeiras casas do
Cristianismo nascente, pelo exercício da caridade e pela total ausência de imagens,
símbolos, rituais ou outras quaisquer manifestações exteriores;
São as unidades fundamentais do Movimento Espírita.
Objetivos:
157
CAVALCANTI, Maria Laura V. de Castro. O mundo invisível: cosmologia, sistema ritual e não de pessoa
o espiritismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1983, p. 52.
158
OLIVEIRA, Simone G. de. O Espiritismo em Juiz de Fora: do surgimento à consolidação de uma “religião”.
In: TAVARES, Fátima R. Gomes; CAMURÇA, Marcelo Ayres (Org). Minas das devoções: diversidade
religiosa em Juiz de Fora. Juiz de Fora: UFJF/PPCIR, 2003, p. 144-145.
159
Orientação ao Centro Espírita. Texto aprovado pelo Conselho Federativo Nacional da Federação Espírita
Brasileira em sua reunião de novembro de 2006. FEB. Disponível em: http://febnet.org.br/file/15/3233.pdf p.
19-22. Acesso em: janeiro de 2009
45
Os Centros Espíritas tem como intuito promover o estudo, a propagação e a prática da
Doutrina Espírita, atendendo as pessoas que:
Procuram esclarecimento, orientação e amparo para seus problemas, sejam eles de
ordem espiritual, moral ou material;
Desejam conhecer e estudar a Doutrina Espírita;
Pretendem trabalhar, cooperar e servir em qualquer área de ação que a prática espírita
oferece.
Atividades principais:
Palestras Públicas nas quais são desenvolvidos temas abordados à luz da Doutrina
Espírita;
Reuniões de Estudo Sistematizado da Doutrina Espírita, de forma programada,
metódica e constante, destinadas às pessoas de todas as idades e de todos os níveis
culturais e sociais, com a intenção de fornecer um conhecimento abrangente e
aprofundado do Espiritismo em todos os seus aspectos;
Atendimento Espiritual para as pessoas que procuram esclarecimento, orientação,
ajuda e assistência espiritual e moral, abrangendo as atividades de: recepção,
atendimento fraterno, explicação do Evangelho à luz da Doutrina Espírita, passe e
magnetização (ou fluidificação) de água, irradiação
160
e Evangelho no lar;
Reuniões de Estudo e Educação da Mediunidade, com base nos princípios e objetivos
espíritas, orientando, prestando esclarecimentos e preparando trabalhadores para as
atividades mediúnicas;
Reuniões Mediúnicas de assistência aos espíritos desencarnados necessitados de
orientação e esclarecimento;
Atividades de Evangelização Espírita da Infância e da Juventude, de forma
programada, metódica e sistematizada, atendendo a criaa e o jovem, com
orientações dentro dos princípios do Espiritismo;
Atividades de Divulgação da Doutrina Espírita através de palestras, conferências,
livros, jornais, revistas, boletins, folhetos, mensagens, rádio, televisão, internet,
cartazes, fitas de vídeo e áudio;
Atividades do Serviço de Assistência e Promoção Social Espírita destinado a pessoas
carentes que buscam ajuda material: atendendo-as em suas necessidades mais
160
Reuniões de preces e vibrações em favor de espíritos encarnados e desencarnados (CAVALCANTI, Maria
Laura V. de Castro. O mundo invisível: cosmologia, sistema ritual e não de pessoa o espiritismo. Rio de
Janeiro: Zahar, 1983, p. 52).
46
urgentes; promovendo-as por meio de cursos e trabalhos de formação pessoal e
profissional; e esclarecendo-as com os ensinos morais do Evangelho da Doutrina
Espírita;
Atividades Administrativas necessárias ao seu normal funcionamento, compatíveis
com a sua estrutura organizacional e com a legislação do seu país;
Atividades que têm por objetivo a União dos Espíritas e das Instituições Espíritas e a
Unificação do Movimento Espírita.
Como se pode ver, o centro é de fato para o Espiritismo uma espécie de unidade
essencial para a prática de sua doutrina. É como freqüentador e/ou provedor do centro que
todo indivíduo passa a ter contato com a Doutrina Espírita. No que diz respeito ao aspecto
físico de um centro espírita, o que se percebe, de uma maneira geral, é que se trata de uma
casa simples ou prédio, que pouco se difere dos outros ao seu redor. Sua aparência interior
também é simples e quase austera, já que praticamente é um local sem ornatos. Próxima a
aposentos mais reservados ou designados a atividades administrativas ou assistenciais, se
sobressai a sala de reuniões, um local com características de auditório, com as paredes
contendo dizeres, figuras e, mais dificilmente, imagens santas.
161
Em Juiz de Fora foram observados os centros espíritas A Casa do Caminho, que está
localizado no bairro Paineiras, e a Fundação Espírita Allan Kardec, no bairro Cascatinha. As
salas onde acontecem as reuniões públicas nesses centros também se parecem bastante com
um auditório. A FEAK, durante o período da pesquisa, estava passando por obras para
ampliação do centro. Estavam construindo um terceiro andar, aumentando a sala de passes e a
biblioteca, entre outras alterações. A sala de reuniões desses centros, como de costume no
meio espírita, apresenta um ambiente simples, arejado (possui janelas nas laterais e
ventiladores) e limpo. Na Casa do Caminho predominam as cores branca e bege nas paredes.
A mesa de reuniões conta com os microfones que serão usados pelos expositores, uma jarra
de água com copos, vaso com flores naturais e alguns livros. As cores utilizadas na FEAK são
um verde claro e outro mais escuro. A mesa de reuniões é menor que a da Casa do Caminho,
mas também conta com os microfones, a jarra de água com copos e livros. Em ambos, atrás
da mesa se localiza um quadro negro que o expositor utiliza para colocar informações durante
sua palestra.
161
GIUMBELLI, Emerson. Em nome da caridade: assistência social e religião nas instituições espíritas. Vol I.
Rio de Janeiro. Núcleo de Pesquisa/ ISER, 1995, p. 13.
47
Todo centro possui um guia espiritual (espírito superior que o orienta e protege), e é
sustentado por um grupo de adeptos que se dividem entre administradores (responsáveis pelos
aspectos institucionais), cooperadores (responsáveis por atividades diversificadas) e diuns
(responsáveis pela direção das atividades religiosas). Seus freqüentadores podem até fazer
parte somente desse círculo restrito, mas na maioria das vezes os centros são visitados por um
número muito maior de pessoas. Dentre essas, algumas são presenças constantes e professam
exclusividade à doutrina, mas a grande maioria pode ir em busca do centro para tentar
resolver problemas específicos, não deixando, no entanto, de freqüentar atividades
promovidas por outros grupos religiosos. Para dar conta do grande número de pessoas, cada
centro organiza uma série de reuniões blicas que podem ser de estudo, doutrinárias, de
passes e outras. Com o intuito de atender a umblico mais restrito, existem reuniões
privadas, como as de desobsessão, que atendem adeptos ou não do Espiritismo encaminhados
em função da especificidade de seus problemas, e as reuniões de desenvolvimento da
mediunidade, que se destinam a adeptos que desejam desenvolver ou aperfeiçoar essa
faculdade. Existem ainda, as atividades de assistência social, presentes e de grande relevância
em quase toda casa espírita, que vão desde a distribuição de refeições e alimentos até
manutenção de obras filantrópicas como asilos, escolas, orfanatos, ambulatórios, creches,
etc.
162
Em geral, toda sessão para que seja bem realizada, exige que o recinto apresente um
ambiente espiritual adequado, garantido pelo comportamento dos espíritas, pelos
procedimentos rituais de início das sessões e pela conjuntura de forças espirituais amigas e
protetoras. Entre estas estão principalmente o dirigente e os amigos espirituais do centro e
entidades que protegem e orientam os trabalhos realizados. Segundo os espíritas, cerca de
duas horas antes de cada sessão (reunião), essas entidades realizam uma limpeza espiritual no
local, retirando do mesmo, forças negativas. A pontualidade é de extrema importância para os
espíritas. As salas principais geralmente possuem grandes relógios e muito raramente as
reuniões extrapolam o tempo de duração previamente estipulado.
163
Nas reuniões blicas assistidas em Juiz de Fora, na Casa do Caminho e na FEAK,
durante o momento da prece final seguida pela atividade do passe, costuma-se manter as luzes
na penumbra e um som ambiente tocando músicas cssicas ou com mensagens religiosas,
mas sempre de melodias suaves. A música, aliás, marca presença constante nas atividades
162
GIUMBELLI, Emerson. Em nome da caridade: assistência social e religião nas instituições espíritas. Vol I.
Rio de Janeiro. Núcleo de Pesquisa/ ISER, 1995, p. 13.
163
CAVALCANTI, Maria Laura V. de Castro. O mundo invisível: cosmologia, sistema ritual e noção de pessoa
o espiritismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1983, p. 54.
48
dessas casas. Em determinadas ocasiões acontecem apresentações de corais e de
instrumentistas cssicos, que geralmente são freqüentadores do próprio centro ou convidados
de outras instituições.
Como vimos toda casa espírita funciona com um determinado número e tipo de
sessões. Apesar de a Federação Espírita Brasileira (FEB) sugerir alguns modelos, um centro
o oferece necessariamente todas as reuniões do reperrio espírita, e a forma como essas
sessões são organizadas também podem se diferenciar entre um centro e outro.
164
Além da Federação Espírita Brasileira, e de outros órgãos ligados ao movimento, os
municípios podem contar com a Aliança Municipal Espírita (AME), que também é
responsável pela união e unificação do movimento espírita. Em Juiz de Fora a AME nos
informa que o objetivo primeiro das instituições espíritas é divulgar a doutrina, oferecendo
aos interessados o conhecimento e a prática de seus postulados libertadores. Segundo a AME,
a unidade e a pureza doutrinárias, observados o aspecto triplo e o caráter progressivo do
Espiritismo, serão mais facilmente resguardadas se o trabalho dos centros ocorrer de forma
unificada em torno do estudo e aplicação dos ensinamentos de Kardec. O alicerce da
unificação do movimento espírita se consti, naturalmente, com a união dos adeptos, com
base no estudo, no trabalho, na solidariedade, na tolerância e na fraternidade.
Para Bernardo Lewgoy, um centro espírita pode ser compreendido a partir da interação
entre três modelos sociais altamente institucionalizados que são o templo, o hospital e a
escola.
Um centro espírita é, naturalmente, uma escie de templo religioso, que nele são
realizados muitos tipos de atividades e serviços de ordem espiritual como preces, palestras,
irradiações, atendimentos, consultas, passes, etc. Como em outros ambientes religiosos, no
centro vigoram regras de decoro e respeito assim como também de pontualidade e horários. O
comportamento deve ser de recato e moderação e as conversas paralelas devem ser evitadas
antes, durante e após a palestra doutrinária. O ambiente é tomado por uma música calma,
geralmente clássica, que favorece e convida à meditação e à prece. Frequentemente os
espíritas chamam a atenção para essas regras que são de fundamental importância para o bom
desenrolar dos trabalhos, na intenção de que apenas vibrações positivas estejam presentes,
tornando possível o auxílio das energias do plano espiritual superior.
165
164
CAVALCANTI, Maria Laura V. de Castro. O mundo invisível: cosmologia, sistema ritual e não de pessoa
o espiritismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1983, p. 54-55.
165
LEWGOY, Bernardo. Os espíritas e as letras: um estudo antropológico sobre cultura escrita e oralidade no
espiritismo kardecista. Tese (Doutorado em Antropologia Social) PPGAS, FFLCH, Universidade de São
Paulo. São Paulo, 2000, p. 231.
49
Cabe destacar que a iia de um templo diferenciado dos demais só é possível graças a
afirmação espírita da não existência de dogmas nem rituais, ou seja, de um tipo de anti-
ritualismo espírita. Para eles, ritual é sinônimo de conformidade vazia, de atos repetidos
mecanicamente sem se saber por que ou para que. E esse anti-ritualismo espírita nos leva a
uma característica central do Espiritismo. No momento em que se difere um culto externo”
(cerimonial, prescrições de adoração) de um “culto interno” (ato de consciência sem medo
nem interesse materiais), fazendo com que o primeiro seja considerado negativo e, o segundo
positivo, o Espiritismo coloca como ponto central de sua ação a pessoa moral. Ao enfatizar a
consciência e o compromisso pessoal verbalmente explicitado, essa religião deixa claro que
seu objetivo primordial é transformar o indivíduo. Tal processo é um importante meio para se
chegar ao que de fato o Espiritismo se propõe a evolução dos Espíritos. Portanto, o sistema
ritual espírita ao estabelecer a sucessão de relações entre o mundo visível (material) e o
mundo invisível (espiritual), se torna uma instância decisiva para a construção do sujeito
espírita. Dentre os principais rituais do sistema espírita estão o estudo, a caridade e a
mediunidade.
166
Juntamente com o modelo do templo, temos também o do centro espírita como um
hospital para doenças espirituais, como por exemplo, a obsessão, onde os espíritos (algumas
vezes os dicos do mundo invisível) aparecem para cuidar dos doentes. Mais uma vez, as
atenções de cuidado com o corpo e com o espírito se mostram presentes na preparação dos
participantes para os rituais. Em dias de trabalho os espíritas devem se conter e evitar o fumo,
o álcool e as drogas, assim como também os excessos alimentares e os conflitos pessoais.
Além disso, os médiuns que ministram o passe devem se submeter às restrições corporais e
ainda a um processo de higienização mental que atinja, inclusive, o plano espiritual. O espaço
é dividido chegando ao ponto máximo do investimento simlico e controle ritual nas salas de
passe, onde somente é permitida a fala do diretor do trabalho. Em diversos centros a
associação metafórica com os hospitais é bastante clara na denominação dos serviços de
pronto-socorro espiritual, onde o assistido é identificado como enfermo.
167
O relacionamento entre o Espiritismo e a medicina é de longa data. Podemos nos dar
conta disso quando verificamos que o grande sucesso do Kardecismo esteve ligado por
décadas ao receitismo mediúnico, sendo que o aspecto taumatúrgico sempre foi destacado
166
CAVALCANTI, Maria Laura V. de Castro. O mundo invisível: cosmologia, sistema ritual e noção de pessoa
o espiritismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1983, p. 50-51.
167
LEWGOY, Bernardo. Os espíritas e as letras: um estudo antropológico sobre cultura escrita e oralidade no
espiritismo kardecista. Tese (Doutorado em Antropologia Social) PPGAS, FFLCH, Universidade de São
Paulo. São Paulo, 2000, p. 232.
50
como característica importante da história dos grandes médiuns espíritas. Pode-se considerar,
inclusive, que a atividade dos médiuns receitistas foi de extrema importância para o sucesso
da implantação do movimento espírita no Brasil.
168
O médium receitista era uma pessoa que, a partir da influência do espírito de um
dico desencarnado, diagnosticava enfermidades e recomendava um tratamento que quase
sempre era baseado na medicação homeopática.
169
Alguns dos médicos que participaram do
início do movimento espírita no Rio de Janeiro também atuavam como médiuns receitistas,
porém nem todo médium receitista era médico, aliás, grande parte deles, não tinha vínculo
com a medicina. Tais médicos realizavam seus atendimentos geralmente em instituições
espíritas das quais faziam parte, nas próprias residências ou nas dos doentes.
170
Apesar da concepção espírita de doença adotar rios tipos de tratamento, o tipo mais
utilizado era o que envolvia a atividade receitista dos médiuns. Para milhares de pessoas, essa
era a melhor forma como o Espiritismo se apresentava, fazendo com que se tornasse
conhecido para além dos grupos que fundavam sociedades espíritas e organizavam reuniões
mediúnicas frequentemente. Uma importante característica na prática brasileira desse tipo de
mediunidade foi a velocidade com que eram emitidas as receitas. Não era necessário o contato
do paciente com o médium e nem mesmo que os problemas físicos dos enfermos fossem
trazidos até ele. Somente precisava fornecer o nome e o endereço dos necessitados e aí, então,
as receitas eram expedidas. Embora a maioria dos pacientes fizesse parte das camadas pobres
da populão, e não possuísse nenhum contato com as obras de Allan Kardec, alguns
membros da elite também lançavam mão desse tipo de cura via médium receitista.
171
No Rio de Janeiro havia uma nítida preferência, por parte da mediunidade receitista,
em adotar a homeopatia. Os medicamentos homeopáticos eram indicados e até mesmo
preparados e distribuídos pelos próprios médiuns. Até mesmo os médicos diplomados e
formados na alopatia (como era conhecida a medicina dominante), como era o caso de
Bezerra de Menezes, prescrevia homeopatia quando em estado mediúnico.
172
A associação com a homeopatia, fortalecida pela atividade dos médiuns receitistas,
encontrava sentido no contexto de lutas que o movimento espírita travava para se consolidar
168
Para maiores informações e detalhes sobre a relação entre o discurso médico e o discurso espírita no período
consultar a dissertação Espíritas enlouquecem ou espíritos curam? Uma análise das relações, conflitos, debates
e diálogos entre médicos e kardecistas na primeira metade do século XX (Juiz de Fora-MG), 2007 de Roberta
Müller Scafuto Scoton.
169
GIUMBELLI, Emerson. O cuidado dos mortos: uma história da condenação e legitimação do espiritismo.
Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997, p. 76.
170
SANTOS, José Luiz dos. Espiritismo: uma religião brasileira. São Paulo: Moderna, 1997, p. 22-23.
171
SANTOS, José Luiz dos. Espiritismo: uma religião brasileira. São Paulo: Moderna, 1997, p. 23.
172
SANTOS, José Luiz dos. Espiritismo: uma religião brasileira. São Paulo: Moderna, 1997, p. 24.
51
no país. Tanto a homeopatia quanto o Espiritismo são oriundos da Europa onde se
desenvolveram em épocas e situações distintas. Aqui no Brasil, assim como o Espiritismo
encontrou um ambiente católico e hostil, a homeopatia teve de enfrentar a medicina alopática,
cujas noções acerca de saúde e doença, procedimentos terapêuticos e medicamentos eram
bastante diferentes. O Espiritismo se beneficiou ainda mais com essa associação. Como suas
atividades de cura acabava por afrontar o sistema dico oficial, a relação com a homeopatia
evitava aprofundar essa situação, já que as receitas prescritas pelos médiuns receitistas quase
nunca continham medicamentos alopáticos.
173
O médico responsável pelas concepções básicas da homeopatia foi o alemão Samuel
Hahnemann, que a partir de um processo de experimentação com fármacos, criou um sistema
original de diagnóstico e tratamento. Segundo suas conclusões, um medicamento que
produzisse um determinado conjunto de sintomas em pessoas sadias poderia curar os mesmos
sintomas em uma pessoa doente. Hahnemann verificou também a eficácia das pequenas doses
das substâncias medicamentosas, que podiam ser tão mínimas que realmente nem sequer
apareciam, e ainda não aparecem, em testes físicos ou químicos de verificação de sua
presença nos remédios homeopáticos. que esse sistema podia ser comprovado
empiricamente, então para Hahnemann seria possível conceber a existência de uma dimensão
o-material, com a qual estariam relacionadas as substâncias que serviam de base para os
medicamentos homeopáticos, assim como também os organismos humanos. É então, que
homeopatia e Espiritismo se aproximam, ou seja, a partir do conceito do medicamento e não
através da cura.
174
Apesar de Hahnemann ter falecido em 1843, mais de uma década antes de o Professor
Rivail, mais tarde Allan Kardec, se interessar por temas espíritas, o fundador da homeopatia
tem seu nome relacionado ao aparecimento do Espiritismo. De acordo com Kardec,
Hahnemann é um dos espíritos associados a seu trabalho de codificação em obras como O
Evangelho Segundo o Espiritismo e Obras Póstumas.
175
Nos dias atuais, muitos centros possuem farmácias para aviar receitas homeopáticas
recebidas mediunicamente. O dico espírita é considerado um vanguardista tanto pela
medicina quanto pelo meio espírita. Pela primeira por reconhecer a etiologia cármica de
algumas enfermidades e tentar divulgar a legitimidade da doutrina e da terapia de passes no
ambiente médico; e pela segunda, por se dedicar a uma atividade que possui um teor
173
SANTOS, José Luiz dos. Espiritismo: uma religião brasileira. São Paulo: Moderna, 1997, p. 24.
174
SANTOS, José Luiz dos. Espiritismo: uma religião brasileira. São Paulo: Moderna, 1997, p. 24.
175
SANTOS, José Luiz dos. Espiritismo: uma religião brasileira. São Paulo: Moderna, 1997, p. 25.
52
terapêutico que é objeto de grande investimento religioso. A relação entre o movimento
espírita e os médicos vem ganhando mais impulso ainda de uns tempos para devido a
propagação de Associações Médicas Espíritas, que inclusive realizam congressos próprios,
onde acontecem debates, sob a ótica espírita, acerca de questões relacionadas a medicina.
176
O último modelo ao qual podemos associar o centro espírita é o da escola, graças ao
papel já reconhecido do estudo em seu sistema ritual. Juntamente a essa representação de
escola destacam-se algumas noções fundamentais da doutrina, como a da assimilação da dor e
do sofrimento como um aprendizado, favorecendo o exercício de sua retórica, já que a
instrução e as fontes escritas são frequentemente valorizadas. Aliás, instrução e conforto (no
sentido de amenizar as aflições), é o que os espíritas devem transmitir as pessoas que
procuram o centro, sendo estas categorias coerentes com a relação estabelecida em seu
sistema de representações, entre dor (sofrimento) e conhecimento.
177
A idéia-mestra de uma religião racional envolve a importância concedida ao
aprendizado e ao estudo, lado a lado com a caridade, como o trajeto necessário para o
aperfeiçoamento pessoal no espiritismo. Portanto pode-se dizer que o centro espírita é
entendido como o local mais apropriado para a obtenção e partilha desse saber, pois a
instrução é sistematizada nas diversas atividades realizadas. As pregações são feitas nas
palestras doutrinárias e a iniciação acontece em grupos de estudo. O próprio ambiente é
organizado pedagogicamente, tendo como modelo um espaço de ensino, estudo e instrução.
Tudo isso pode ser reconhecido na presença dos livros nos vários ambientes, nas citações de
lemas espíritas impressas em cartazes e nas bibliotecas e livrarias que acabam por reforçar
essa identificação, sempre atualizada de maneira clara nos grupos de estudos. A própria
denominação de principiante na doutrina é fortemente indicativa do lugar do modelo de escola
dentro do Espiritismo, onde o compromisso do adepto o se firma somente com uma
manifestação religiosa ou com a lealdade a um grupo de estudo, mas realiza-se, sobretudo,
diante de uma doutrina. O que se exige, além da piedade e de uma série de práticas e posturas
religiosas, é o conhecimento da doutrina por meio da leitura e do estudo das obras básicas e
complementares. O que se conclui é que para a Doutrina Espírita, o centro, ou a casa espírita,
é certamente um local de culto, de orientação e de atendimentos terapêuticos, mas tal lugar
176
LEWGOY, Bernardo. Os espíritas e as letras: um estudo antropológico sobre cultura escrita e oralidade no
espiritismo kardecista. Tese (Doutorado em Antropologia Social) PPGAS, FFLCH, Universidade de São
Paulo. São Paulo, 2000, p. 233.
177
LEWGOY, Bernardo. Os espíritas e as letras: um estudo antropológico sobre cultura escrita e oralidade no
espiritismo kardecista. Tese (Doutorado em Antropologia Social) PPGAS, FFLCH, Universidade de São
Paulo. São Paulo, 2000, p. 233-234.
53
consegue exercer de forma completa suas finalidades se for também um espaço de
aprendizado, onde a doutrina é constantemente estudada em pequenos e diversos grupos.
178
Um centro espírita, geralmente, é composto por um conselho fiscal e consultivo,
tesouraria e secretaria-geral e um corpo de sócios. Seu sustento se graças a contribuições
voluntárias e fundos angariados em campanhas, bazares, lanches e outras atividades. Possui
departamentos como: programação doutrinária e orientação mediúnica, serviços assistenciais,
divulgação, e infância e mocidade, sendo seus responsáveis eleitos pela diretoria. Cada
departamento é um núcleo responsável por determinadas atividades, e seus diretores
participam de uma reunião mensal com o presidente, e também reuniões com os dirigentes
dos subgrupos do setor. Estes, por sua vez, se reúnem com os colaboradores de atividades
específicas. Em todos esses setores, num grau crescente de poder e responsabilidade, quem
ocupa um cargo de direção deve supervisionar todas as atividades coordenadas pelo seu
núcleo.
179
As reuniões kardecistas que acontecem no centro costumam ser divididas em duas
partes. O primeiro momento é onde acontece a abertura das atividades que tem por intuito
purificar o ambiente para que todos os presentes absorvam ao máximo as vibrações e os
ensinamentos da palestra que será proferida. Toda palestra é devidamente calcada no estudo
de alguma obra espírita. No segundo momento quando as luzes são diminuídas com a
intenção de permitir maior concentração de todos, realiza-se a prece de encerramento e o
preparo do passe. Essa última prece é um pouco mais demorada a fim de permitir aos
necessitados receber melhor os benefícios da medicina do Cristo.
180
Apesar de toda essa organização o funcionamento do centro pode parecer bastante
maleável e informal. As pessoas nunca se referem às outras a partir de seus cargos ou funções,
mas sim pelos seus nomes.
181
Como nossa intenção é mostrar que o centro espírita é o lugar mais adequado à
realização das práticas espíritas, incluindo aí as de cultura letrada, é de fundamental
importância discutir também sobre a caridade e a mediunidade que são fatores de destaque na
Doutrina Espírita e que, consequentemente, desempenham funções extremamente relevantes
178
LEWGOY, Bernardo. Os espíritas e as letras: um estudo antropológico sobre cultura escrita e oralidade no
espiritismo kardecista. Tese (Doutorado em Antropologia Social) PPGAS, FFLCH, Universidade de São
Paulo. São Paulo, 2000, p. 234-235.
179
CAVALCANTI, Maria Laura V. de Castro. O mundo invisível: cosmologia, sistema ritual e não de pessoa
o espiritismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1983, p. 55.
180
CAMPOS, IrSalomão de. Elo de amor: vida e obra de Isabel Salomão de Campos. Juiz de Fora: J.
Herculano Pires, 2006. p. 162.
181
CAVALCANTI, Maria Laura V. de Castro. O mundo invisível: cosmologia, sistema ritual e noção de pessoa
o espiritismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1983, p. 56.
54
para o movimento espírita, assim como o estudo, que será abordado com maiores detalhes no
próximo capítulo.
De alguma forma, essas práticas rituais acabam por se mesclar em algumas atividades,
pois a mediunidade engloba também a caridade e o estudo. O estudo e a caridade, por sua vez,
como formas de estabelecimento de relão com o mundo espiritual, são também
mediunidade. Toda atividade espírita, na verdade, pode ser considerada caridade, pois é um
serviço de amor ao próximo. Receber espíritos sofredores em uma reunião de desobsessão é
caridade, aplicar um passe num freqüentador também é caridade, embora as tarefas
denominadas como caritativas sejam em geral as obras assistenciais e, com menor freqüência,
o atendimento fraterno.
182
Percebe-se que o estudo e a divulgação da doutrina também estão
interligados com a prática da assistência espiritual-social, o que demonstra a confirmação da
associação entre motivação religiosa e atividade assistencial, que a última não acontece
desvinculada da primeira, ou seja, a caridade tem sentido porque faz parte da Doutrina
Espírita.
183
O sistema ritual espírita tem na mediunidade
184
a categoria cosmológica principal de
sua estruturação. Em seu principal sentido, mediunidade significa comunicação entre os
mundos material e espiritual, é como uma ponte entre um recurso do mundo invisível e o
necessitado. Ainda assim, os espíritas distinguem dessa interpretação mais global, um sentido
específico da mediunidade que é a comunicação espírita onde, por meio do personagem do
dium, os mundos visível e invisível mantém contato de maneira expcita. E nesse exato
sentido a mediunidade diz respeito a uma das formas da comunicação espírita que é a
recepção de espíritos. Percebe-se uma variedade de níveis da categoria mediunidade no
sistema ritual espírita, tanto que as atividades de estudo e de caridade, também são
consideradas no sentido mais amplo da mediunidade, como tarefas mediúnicas:
185
Os Espíritos vêm nos dizer que a mediunidade não se desenvolve apenas na mesa
mediúnica, recebendo mensagens de Espíritos. A mediunidade se desenvolve
182
CAVALCANTI, Maria Laura V. de Castro. O mundo invisível: cosmologia, sistema ritual e não de pessoa
o espiritismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1983, p.65 e 132.
183
CAMURÇA, Marcelo Ayres. Fora da caridade não religião! Breve história da Competição Religiosa
entre Catolicismo e Espiritismo Kardecista e de suas Obras Sociais na cidade de Juiz de Fora: 1900-1960.
Lócus: revista de história. Juiz de Fora: Núcleo de História Regional/Departamento de História/Arquivo
Histórico/EDUFJF, 2001. v.7, n.1, p. 147.
184
Para um estudo mais aprofundado sobre o tema consultar CAVALCANTI, Maria Laura V. de Castro. O
mundo invisível: cosmologia, sistema ritual e não de pessoa o espiritismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1983, e
ANDREA, Jorge. Enfoques científicos na doutrina espírita. Rio de Janeiro: Sociedade Editora Espírita F. V.
Lorenz, 1991.
185
CAVALCANTI, Maria Laura V. de Castro. O mundo invisível: cosmologia, sistema ritual e não de pessoa
o espiritismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1983, p. 62 e 63.
55
também no trabalho de caridade e no estudo. Pelo estudo nossa mente se esclarece
e no convívio com o sofrimento vamos despertando cada vez mais a nossa
sensibilidade. Entendemos assim que mediunidade não é receber Espíritos. É
estarmos com a nossa sensibilidade de tal forma evoluída que onde quer que
estejamos possamos ser, na hora da necessidade de nosso próximo, a ponte entre o
recurso divino e a necessidade de nosso irmão.
186
Assim, o estudo e a caridade são também tarefas mediúnicas no duplo sentido do
termo. Primeiro porque através dessas tarefas estabelece-se a relação entre os mundos visível
e invisível, e nelas o espírita é sempre um dium no sentido amplo. Segundo porque essas
atividades de estudo e caridade são complementares, e tão importantes quanto a experiência
do transe, ao desenvolvimento da mediunidade em sua acepção mais estrita. Um médium
desenvolvido tem por obrigação se dedicar ao estudo e à prática da caridade
constantemente.
187
O autor Emerson Giumbelli fez uma análise das práticas de estudo e mediunidade nos
grupos espíritas do Rio de janeiro no culo XIX. Realizavam-se, nesses grupos, estudos
sobre obras de caráter doutririo e sobre os evangelhos cristãos, sendo que os dois eram da
mesma forma submetidos a leituras, exegeses e discussões coletivas. No que diz respeito às
obras doutrinárias, grande parte dos grupos seguia um dos livros de Kardec, tal como nas
reuniões da FEB onde, com o passar do tempo, esse modelo de atividade ganharia um caráter
paradigmático, sobretudo pelo fato de ter se tornado aberta ao público. Os evangelhos, por sua
vez, dificilmente eram estudados a partir do texto canônico, mas sim de acordo com as
orientações e a seqüência constantes de O evangelho segundo o Espiritismo de Allan Kardec.
De qualquer forma, tanto em reuniões destinadas ao estudo de obras doutrinárias, quanto em
sessões voltadas para a interpretação das passagens evangélicas, era bastante comum haver
um momento destinado ao recebimento de mensagens psicografadas, o que comprova a
permanente relação entre estudo e mediunidade.
188
Eram raros os grupos que possuíam em seus programas espaços destinados
especificamente para o desenvolvimento da mediunidade, onde as pessoas poderiam ter suas
faculdades identificadas como de vincia, cura, efeitos físicos, psicografia etc, e moldadas a
partir das orientações prescritas, por exemplo, em O livro dos médiuns de Allan Kardec. Nas
sessões que eram realizadas com a presença de um ou mais desses indivíduos, distinguia-se
186
CAVALCANTI, Maria Laura V. de Castro. O mundo invisível: cosmologia, sistema ritual e não de pessoa
o espiritismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1983, p. 63.
187
CAVALCANTI, Maria Laura V. de Castro. O mundo invisível: cosmologia, sistema ritual e noção de pessoa
o espiritismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1983, p. 64.
188
GIUMBELLI, Emerson. O cuidado dos mortos: uma história da condenação e legitimação do espiritismo.
Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997, p. 74-75.
56
dois tipos de práticas de acordo com a natureza dos espíritos que se apresentava, e da
modalidade das manifestações conseguidas. Primeiramente havia as mensagens dos guias
espirituais do grupo, contendo quase sempre ensinamentos de caráter moral e esclarecimentos
de caráter doutrinário. Outro tipo de manifestação que ocorria eram as manifestações de
espíritos sofredores que vagavam pelas regiões mais baixas da hierarquia do plano invisível,
presos ainda às penosas lembranças de suas encarnações anteriores. Esses espíritos podiam se
manifestar espontaneamente por meio de algum dium e, quando o faziam, quase sempre
assumiam um tom de agressão e afronta. Diante de tal situação, os presentes se concentravam
no esforço de moralizar o espírito, no intuito de mostrar-lhes os meios que possibilitariam sua
evolução.
189
Ainda no que diz respeito a prática da mediunidade é importante falar também sobre
as sessões de desobsessão
190
. Podemos entendê-la da seguinte forma.
No número dos escolhos que apresenta a prática do Espiritismo, é preciso colocar,
em primeira linha, a obsessão, quer dizer, o império que alguns Espíritos sabem
tomar sobre certas pessoas. Ela não ocorre senão pelos Espíritos inferiores que
procuram dominar; os bons Espíritos combatem a influência dos maus, e se não os
escutam se retiram. Os maus, ao contrário, se agarram àqueles sobre os quais fazem
suas presas; se chegam a imperar sobre alguém, se identificam com seu próprio
Espírito e o conduzem como uma verdadeira criança.
A obsessão apresenta caracteres diversos que é necessário distinguir, e que
resultam do grau de constrangimento e da natureza dos efeitos que produz. A
palavra obsessão é de alguma sorte um termo genérico pelo qual se designa esse
gênero de fenômeno, cujas principais variedades são: a obsessão simples, a
fascinação e a subjugação.
191
Segundo Giumbelli obsessão era a denominação que se dava ao transtorno ocasionado
sobre o espírito de uma pessoa pela interferência do espírito de outra pessoa, sendo que este,
desencarnado e sofredor, em conseqüência de um desejo de vingança da parte deste ou de
falhas morais da parte do primeiro. Para que esse processo seja revertido é necessária uma
dupla atuação, ou seja, sobre o indivíduo obsedado e sobre o espírito obsessor. O primeiro
passa a receber conselhos de cunho moral, e o segundo precisa ser invocado e persuadido a
desistir de sua perseguição. Exatamente a essas invocações é que os espíritas designavam de
sessões de desobsessão, concedendo-lhes caráter terapêutico já que os transtornos
189
GIUMBELLI, Emerson. O cuidado dos mortos: uma história da condenação e legitimação do espiritismo.
Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997, p. 76.
190
Para maiores informações sobre o tema da obsessão, consultar CAVALCANTI, Maria Laura V. de Castro. O
mundo invisível: cosmologia, sistema ritual e não de pessoa o espiritismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1983.
191
KARDEC, Allan. O livro dos médiuns. Araras, SP: IDE, 35ª edição, 1995, p.277.
57
relacionados à obsessão eram considerados como fenômenos de ordem patológica, pois eram
associados à loucura e à mania.
192
No que diz respeito às práticas terapêuticas teremos que mais uma vez falar dos
diuns receitistas, uma vez que em se tratando desse assunto eles são os personagens mais
importantes. A mediunidade receitista, constantemente defendida e admirada nos artigos do
jornal O Reformador
193
e em declarações de diretores da Federação Espírita Brasileira, para
os espíritas desempenhava, de forma privilegiada, uma dupla função, que de alguma maneira
compreendia e qualificava suas propriedades terapêuticas. Por um lado, ela representava uma
prova poderosa da existência dos espíritos e, consequentemente, da sobrevivência após a
morte, da alma humana. Por outro lado, a atividade dos médiuns receitistas era considerada,
assim como a mediunidade curadora, a desobssessão e a ajuda a espíritos sofredores, como
um tipo de prática de caridade. Todas essas atividades que são o estudo doutrinário, a
interpretação dos evangelhos, o desenvolvimento da mediunidade, o recebimento de
mensagens espirituais e a mediunidade com aplicações terapêuticas, podem ser encontradas,
de maneira mais ou menos modificadas, em grande parte dos centros espíritas do país.
194
No final do culo XIX e princípio do século XX, o Espiritismo ainda incipiente nos
principais centros urbanos brasileiros, diante das acusações de charlatanismo, curandeirismo e
prática ilegal de medicina que lhe atribuíam os poderes públicos, vai tentar legitimar sua
crenças e práticas diante da sociedade levantando a bandeira da caridade. A própria
mediunidade praticada com intenção de cura, para eles, não se configurava atividade de
rendimento, mas sim, exercício de caridade moral para com o sofrimento humano.
195
A codificação de Allan Kardec é bastante clara quando define a caridade com um
sentido bem maior e amplo daquela que se costuma pensar,
A caridade é a lei suprema do Cristo: “Amai-vos uns aos outros como irmãos; amai
vosso próximo como a s mesmos; perdoai os vossos inimigos; não façais a
outrem o que não gostaríeis que vos fizésseis”; tudo isso se resume na palavra
caridade.
192
GIUMBELLI, Emerson. O cuidado dos mortos: uma história da condenação e legitimação do espiritismo.
Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997, p. 76.
193
O Reformador era um jornal espírita que foi fundado em 21/01/1883. A partir do ano de 1902 adquiriu o
formato de revista que é publicada até os dias de hoje. Para maiores informações visite o site do Grupo Espírita
Renascer http://www.ger.org.br/artigosjorgehessen/artigo54.htm e o site da FEB http://www.febnet.org.br.
194
GIUMBELLI, Emerson. O cuidado dos mortos: uma história da condenação e legitimação do Espiritismo.
Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997, p. 78.
195
CAMURÇA, Marcelo Ayres. Fora da caridade não religião! Breve história da Competição Religiosa
entre Catolicismo e Espiritismo Kardecista e de suas Obras Sociais na cidade de Juiz de Fora: 1900-1960.cus:
revista de história. Juiz de Fora: Núcleo de História Regional/Departamento de História/Arquivo
Histórico/EDUFJF, 2001. v.7, n.1, p. 134-135.
58
A caridade o está somente na esmola, porque caridade em pensamentos, em
palavras e em atos. Aquela é caridade em pensamentos, que é indulgente para com
as faltas de seu próximo; caridade em palavras, que não diz nada que possa
prejudicar o seu próximo; caridade em ações, que assiste seu próximo na medida de
suas forças.
196
No ano de 1904, Leopoldo Cirne, na época presidente da Federação Espírita Brasileira
(FEB), é denunciado por ter tido aos seus cuidados uma doente de varíola. Ele se defende
usando o argumento de que a Federação a qual pertence é uma associação legalizada, que se
dedica à prática da caridade, incluindo aí o abrandamento das dores físicas dos doentes. Como
tudo isso diz respeito a um culto, tem total liberdade e direito garantidos pela Constituição. O
fato de levar a saúde a tantos enfermos acaba por fazer com que alguns comparem suas
atividades com o exercício da medicina ao invés do da religião, o que mesmo assim seria
legítimo, que a Constituição prevê a liberdade profissional. Entretanto, Leopoldo Cirne
responde que na FEB não há médiuns que façam da prática da mediunidade uma profissão, ao
contrário, todos possuem empregos e servem gratuitamente à Federação. Esta por sua vez,
também não cobra pelas atividades realizadas nem pelos remédios distribuídos.
197
Através
desse conjunto de atividades caritativas, o Espiritismo de Kardec, finalmente conseguirá
conquistar uma reputação de normalidade e respeitabilidade na sociedade o que permiti seu
reconhecimento pelo Estado, que anteriormente o via com bastante suspeita.
198
Também em Juiz de Fora, no princípio do século XX
199
, o Espiritismo emergente
utiliza a caridade (resultante do estudo doutrinário) como atividade concreta dos Centros
Espíritas. Segundo as próprias associações espíritas da cidade, foi através das obras de
caridade e dos ensinamentos distribuídos que o Espiritismo começou a ganhar o respeito da
sociedade. Isso se deu igualmente nas demais metrópoles do país, ou seja, o exercício da
196
KARDEC, Allan. O que é o espiritismo. Araras, SP: IDE, 70ª edição, 2007, p.201-202.
197
GIUMBELLI, Emerson. O cuidado dos mortos: uma história da condenação e legitimação do Espiritismo.
Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997, p. 176.
198
CAMURÇA, Marcelo Ayres. Fora da caridade não religião! Breve história da Competição Religiosa
entre Catolicismo e Espiritismo Kardecista e de suas Obras Sociais na cidade de Juiz de Fora: 1900-1960.
Lócus: revista de história. Juiz de Fora: Núcleo de História Regional/Departamento de História/Arquivo
Histórico/EDUFJF, 2001. v.7, n.1, p. 135.
199
Juiz de Fora no final do século XIX passou por um processo de desenvolvimento industrial que levou a
cidade a ser denominada de “Manchester Mineiraem comparação com a famosa cidade industrial inglesa,
Manchester. A cidade cresceu muito nesse período, mas os problemas sociais permaneceram. No início do
século XX as condições de limpeza urbana e saneamento eram muito precárias e os trabalhadores estavam
sujeitos a longas jornadas de trabalho em péssimas condições e com salários baixíssimos. Nesse contexto, toda
e qualquer atividade assistencial era bem recebida pela população (OLIVEIRA, Mônica Ribeiro de. Juiz de
Fora vivendo a história. Juiz de Fora: Núcleo de História Regional da UFJF/ Editora da UFJF, 1994, p. 45-
50).
59
caridade por meio do atendimento aos necessitados acabou por tornar popular o Espiritismo
cristão.
200
Ainda que o Espiritismo não tenha conseguido conquistar adeptos entre aqueles a
quem socorria, sua disposição e vocação para praticar a caridade foi responsável pelo respeito
adquirido entre os não-espíritas, sobretudo pelo fato de que qualquer pessoa, independente de
sua crença, recebia a assistência necessária. Tal assistência, por sua vez, propiciou a relação
com os poderes públicos já que supria as carências de parte da população, tarefa essa que
deveria ser de competência do Estado.
201
Diante desse quadro de ascensão social da Doutrina Espírita, a Igreja Católica reagiu e
deu início a uma forte campanha para que as obras filantrópicas espíritas não recebessem
nenhum tipo de apoio de católicos.
De qualquer forma, segundo Marcelo Camurça, esse acirrado nível de competição por
adeptos entre Catolicismo e Espiritismo que orientou suas ações de caridade enquanto
expressão prática de concepções doutrinárias, no que diz respeito ao Espiritismo o parece
ter obtido êxito, devido ao baixo número de adesões resultantes dessa ação. Entretanto, em
relação ao seu processo de crescimento e ampliação no campo religioso e na sociedade
brasileira, o Espiritismo estabeleceu uma divisão de trabalho, pois através de seu aspecto
doutrinário filosófico-científico procurou demonstrar sua superioridade ao Catolicismo,
atraindo assim adeptos nas camadas médias e na elite, e através de seu aspecto religioso-
caritativo, conseguiu conquistar um grande prestígio difuso, mas propagado em toda
sociedade.
202
No Espiritismo, como podemos perceber, a caridade funciona como seu “cartão
postal” para a sociedade. Juntamente com os instrumentos de formação e divulgação
doutrinária (centros, federações, institutos culturais, associações profissionais, imprensa,
editoras) formam a parte visível e o aparato material desta corrente religiosa, nos muitos
hospitais, escolas, asilos e orfanatos. Isso tudo é responsável inclusive por reforçar a pertença
200
CAMURÇA, Marcelo Ayres. Fora da caridade não religião! Breve história da Competição Religiosa
entre Catolicismo e Espiritismo Kardecista e de suas Obras Sociais na cidade de Juiz de Fora: 1900-1960.
Lócus: revista de história. Juiz de Fora: Núcleo de História Regional/Departamento de História/Arquivo
Histórico/EDUFJF, 2001. v.7, n.1, p. 147-148.
201
OLIVEIRA, Simone G. de. A “fé raciocinada na “Atenas de Minas”: gênese e consolidação do
Espiritismo em Juiz de Fora e algumas repercussões para contemporaneidade. Dissertação (Mestrado em
Ciência da Religião) Universidade Federal de Juiz de Fora. Juiz de Fora, 2001. p. 152.
202
CAMURÇA, Marcelo Ayres. Fora da caridade não religião! Breve história da Competição Religiosa
entre Catolicismo e Espiritismo Kardecista e de suas Obras Sociais na cidade de Juiz de Fora: 1900-1960.
Lócus: revista de história. Juiz de Fora: Núcleo de História Regional/Departamento de História/Arquivo
Histórico/EDUFJF, 2001. v.7, n.1, p. 149.
60
no movimento espírita das pessoas que aderiram a ele e que serão os futuros responsáveis
pelas ações de caridade.
203
A estratégia espírita enquanto corrente religiosa minoritária, mas em visível situação
de expansão, era de se legitimar perante a sociedade e, para isso, dentro de uma ética
persuasiva e não belicosa, tentava buscar o convencimento de novos adeptos que se
mostravam insatisfeitos com o que a religião majoritária lhes oferecia. Nesse sentido,
empregava nessa situação de concorrência com o Catolicismo uma espécie de capital
simlico, que era o fato de se apresentar como um cristianismo renovado, livre dos dogmas e
superstições católicas, complementar à filosofia e à ciência e adequado à modernidade
vigente. Dessa forma não podemos dizer que a organização das obras sociais/assistenciais
espíritas estivessem isentas de qualquer proselitismo religioso, ainda que o grande blico
que era alvo da caridade espírita (material e moral) não fosse de convertidos à doutrina.
204
Ainda de acordo com Marcelo Camurça, o Espiritismo acaba por utilizar a caridade
como meio de conversão no momento em que relaciona o seu serviço assistencial de caráter
beneficente, preventivo e promocional, além da ajuda material e espiritual, às necessidades de
evangelização, ou seja, na obrigatoriedade de que os indivíduos amparados assistam reuniões
doutrinárias. Mesmo se considerando que tal recurso não opere resultados significativos na
conquista de adeptos pela via da caridade, ainda assim nota-se uma persistência do
Espiritismo nessa prática. O empecilho ao recrutamento de adeptos entre a população de baixa
renda assistida pelas obras sociais espíritas está no fato de a doutrina codificada por Allan
Kardec ser de difícil compreensão pelas massas incultas.
205
A justificativa para tal persistência
está na concepção de caridade espírita que acredita, portanto, que esta deve fornecer ajuda
material de doação de bens e proporcionar meios para que as pessoas tenham capacidade de
obter seus próprios recursos, tanto quanto deve prestar amparo moral e espiritual. Por isso a
203
CAMURÇA, Marcelo Ayres. Fora da caridade não religião! Breve história da Competição Religiosa
entre Catolicismo e Espiritismo Kardecista e de suas Obras Sociais na cidade de Juiz de Fora: 1900-1960.
Lócus: revista de história. Juiz de Fora: Núcleo de História Regional/Departamento de História/Arquivo
Histórico/EDUFJF, 2001. v.7, n.1, p. 149.
204
CAMURÇA, Marcelo Ayres. Fora da caridade não religião! Breve história da Competição Religiosa
entre Catolicismo e Espiritismo Kardecista e de suas Obras Sociais na cidade de Juiz de Fora: 1900-1960.
Lócus: revista de história. Juiz de Fora: Núcleo de História Regional/Departamento de História/Arquivo
Histórico/EDUFJF, 2001. v.7, n.1, p. 152.
205
CAMURÇA, Marcelo Ayres. Fora da caridade não religião! Breve história da Competição Religiosa
entre Catolicismo e Espiritismo Kardecista e de suas Obras Sociais na cidade de Juiz de Fora: 1900-1960.
Lócus: revista de história. Juiz de Fora: Núcleo de História Regional/Departamento de História/Arquivo
Histórico/EDUFJF, 2001. v.7, n.1, p. 152.
61
caridade diz respeito além da distribuição de mantimentos, a outras atividades como aulas de
costura e crochê, assim como também ao estudo da doutrina.
206
O centro espírita permite a aproximão entre os diversos tipos de blico na medida
em que trata de indivíduos carentes que necessitam, em alguns casos, de conselho ou ajuda
para problemas de diferentes naturezas e, em outros, de assistência material. Assim, o
Espiritismo se relaciona tanto com os freqüentadores eo-pobres, quanto com os não-
freqüentadores e os pobres. Nessas atividades de caridade o que procura se acentuar é a
doação de amor e compreensão humanos. Os pobres, que representam uma humanidade
carente e fragilizada, ocupam lugar privilegiado. Caridade então refere-se assim
preferencialmente à relação entre espíritas e pobres, onde existe uma reciprocidade entre as
desigualdades não no aspecto moral como também no social. De um lado estão os espíritas
que se doam esquecendo-se de si próprios, dedicando-se a praticar o bem, e ao fazê-lo
ajudam, além dos outros, a si mesmos. Do lado oposto estão os pobres que recebem ajuda
material e também moral, como a chance de transformar aquela existência de provações no
princípio de sua redenção.
207
A Casa do Caminho é, em Juiz de Fora, um conhecido e renomado centro espírita que
dentre as várias atividades realizadas e que fazem parte do programa da casa está a
distribuição de alimentos que ocorre no quarto domingo de cada mês. Várias mesas são
alinhadas à beira da calçada para receber os alimentos que serão distribuídos para cerca de
500 famílias. Antes de cada distribuição, porém, é feita uma prece inicial na qual a presidente
do centro, Dona Isabel, convoca a todos para renderem gratidão ao Cristo por aquele
momento. O silêncio se faz presente e de microfone em punho ela inicia a prece solicitando
que todos unam suas emoções ao Cristo agradecendo o alimento arrecadado por abnegados
amigos, que em fraterna emoção saem de suas casas em dia de descanso para ajudar os mais
carentes.
208
Dona Isabel fala sobre a caridade:
A caridade mais difícil e mais urgente é a da alma, pois a maior fome e o maior
desencanto são do espírito. A caridade do espírita vai muito além do corpo físico,
ela é essencialmente o pão do espírito. Ajude sem perguntar, ampare quem quer
que seja, de comer a quem tem fome, ensina-nos Jesus. Caridade no silêncio que
constrói o bem: a grande lição.
206
CAVALCANTI, Maria Laura V. de Castro. O mundo invisível: cosmologia, sistema ritual e noção de pessoa
o espiritismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1983, p. 67.
207
CAVALCANTI, Maria Laura V. de Castro. O mundo invisível: cosmologia, sistema ritual e não de pessoa
o espiritismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1983, p. 66.
208
CAMPOS, IrSalomão de. Elo de amor: vida e obra de Isabel Salomão de Campos. Juiz de Fora: J.
Herculano Pires, 2006. p. 371.
62
A obrigação primeira do espírita, portanto, é a doação do o do espírito, que se
manifesta em amor, em fraternidade, em amparo social e familiar, em orientação,
enfim, para aí, eno, doarmos o pão do corpo. O que farão os que receberam? o
importa. O importante é que fizemos a nossa parte, como filhos de Deus, com
responsabilidades junto ao próximo. Esse dever não é de uns poucos, mas de todas
as religiões, de todas as camadas e de todas as filosofias. O Cristianismo é
mensagem de trabalho e fraternidade.
Para que possamos ser felizes, não podemos mais brincar com o tempo, tampouco
brincar de viver. Busquemos, pois, as luzes do Espiritismo, conquistando saúde,
paz e alegria espiritual. E a espírita, dinâmica e atuante, vai aquecer-nos a alma,
esclarecer-nos as dúvidas, descortinando-nos horizontes novos e eternos. Vamos,
assim, vencendo definitivamente as dificuldades que vêm acompanhando-nos
através dos séculos, com a sublime certeza de que Deus ajuda o homem através do
próprio homem.
209
Como podemos perceber, a caridade diferencia e hierarquiza, mas também aproxima e
identifica. Ela se baseia não apenas em admitir a inferioridade do outro como também em
admitir a própria inferioridade e necessidade de redenção e evolução daquele que doa, ou seja,
a caridade é uma cura de si próprio através do outro.
210
Voltando àquela discussão anterior, sobre o Espiritismo no Brasil apresentar um
caráter essencialmente religioso, acarretando dessa forma um distanciamento do caráter
racional do Espiritismo francês, como é compreendido por autores como Camargo e Damázio,
por exemplo, encontramos a prática da caridade como fator fundamental para se chegar a essa
conclusão. Diferentemente dessa corrente de pensamento, existe outro grupo de autores como
Camurça, Cavalcanti e Giumbelli
211
que argumentam, de maneira extremamente coerente, a
respeito de que no Brasil, o fato do movimento espírita ter adquirido uma característica mais
mística ou religiosa, sobretudo no que diz respeito à importância da caridade para a doutrina,
o significa necessariamente um abandono às questões filosóficas e científicas.
Reforçando essa idéia, Daniel Pavan, em sua pesquisa, destaca que Maria Laura
Cavalcanti enfatiza que toda e qualquer atividade espírita, enquanto serviço de amor ao
próximo é, em sentido geral, caridade e que o autor Sidney Greenfield cita que o Espiritismo
sem caridade simplesmente não existe, ou seja, é inconcebível. Com isso perceber-se que essa
nova vertente de estudos acredita na centralidade da caridade, enquanto uma característica
209
CAMPOS, IrSalomão de. Elo de amor: vida e obra de Isabel Salomão de Campos. Juiz de Fora: J.
Herculano Pires, 2006. p. 374-375.
210
CAVALCANTI, Maria Laura V. de Castro. O mundo invisível: cosmologia, sistema ritual e não de pessoa
o espiritismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1983, p. 70.
211
Giumbelli dedica um item inteiro (“Religião científica” ou ciência religiosa”: o espiritismo nos termos de
seus próprios adeptos) para essa discussão. Para maiores informações conferir GIUMBELLI, Emerson. O
cuidado dos mortos: uma história da condenação e legitimação do Espiritismo. Rio de Janeiro: Arquivo
Nacional, 1997.
63
religiosa do Espiritismo brasileiro, sem necessariamente comungar com a vertente que
defende o aspecto essencialmente religioso da Doutrina Espírita no país.
212
A partir de tais observações, pode-se dizer que os estudos, as palestras, os seminários,
os cursos e todo o processo de interpretação da doutrina o para os adeptos do Espiritismo,
também uma atuação de caridade, ainda que representem tarefas relacionadas ao aspecto
científico da doutrina. Portanto, a caridade espírita, não ênfase ao caráter religioso do
Espiritismo, nem tampouco o torna essencialmente religioso, muito pelo contrário, a caridade
no meio espírita procura aglutinar ciência, filosofia e religião, reforçando o triplo aspecto da
doutrina.
213
Todas as tarefas espíritas então acontecem de forma imbricada, tudo está inter-
relacionado. E no que tange o centro espírita, fica evidente que ele realmente é o espaço
principal onde acontecem todas essas práticas que envolvem a cosmologia espírita, ou seja, é
nele que a doutrina se apresenta de forma clara e completa. Dessa forma percebemos que a
característica racional do Espiritismo se encontra, de fato, nessa valorização da cultura
letrada, que está embutida, como já dissemos antes, nas atividades exercidas pelo movimento
espírita que envolve a todo instante a leitura, erudição, citação, crítica, comentários de textos
etc.
Grande parte dos centros espíritas promovem atividades freqüentes que nos mostram a
intrínseca relação entre suas práticas de estudo, mediunidade e caridade e as práticas de
cultura letrada. Os centros podem adotar atividades consideradas de caráter cultural como, por
exemplo, apresentação de peças espíritas, filmes, exposições de livros (inclusive itinerante),
organização de simsios e outras. Em Juiz de Fora, o centro espírita FEAK (Fundação
Espírita Allan Kardec), dentre as diversas atividades que desenvolve, apresenta palestras e
filmes (Cine FEAK) em sábados intercalados sempre às dezenove horas. Essa atividade, como
as demais, requer a presença do diretor para abrir e encerrar o evento com uma breve
apresentação e preces. Em dia de palestra, além do diretor o centro conta com a presença do
expositor, que quase sempre vem de outros centros e até mesmo de outras cidades. Em outro
centro da cidade, A Casa do Caminho, acontece um evento a cada dois anos sendo bastante
conhecido e divulgado, que é a Semana de Kardec. Os ensinamentos de Allan Kardec, a
prática da caridade e amor ao próximo, além de discussões sobre temas que norteiam a
Doutrina Espírita, representam a base desse evento.
212
PAVAM, Daniel. As fronteira identitárias do espiritismo em Juiz de Fora. Dissertação (Mestrado em
Ciência da Religião - Universidade Federal de Juiz de Fora. Juiz de Fora, 2003, p. 19-20.
213
PAVAM, Daniel. As fronteira identitárias do espiritismo em Juiz de Fora. Dissertação (Mestrado em
Ciência da Religião) - Universidade Federal de Juiz de Fora. Juiz de Fora, 2003, p. 21.
64
No ano de 2007 foi realizada a 21ª edição da Semana de Kardec que aconteceu no
período de 16 a 22 de abril na sede da Casa do Caminho. De segunda a quinta-feira
aconteceram as palestras ministradas por expositores de Juiz de Fora, Rio de Janeiro e
Aracaju que discorreram sobre temas variados como Pesquisa Científica em Espiritualidade e
Saúde - Paradigma Atual, A Atualidade do Livro dos Espíritos e A Inveja nas Manifestações
Humanas. De sexta a domingo ocorreu o simsio de título A Contribuição do Livro dos
Espíritos para a Humanidade. Participaram também expositores de Juiz de Fora, Rio de
Janeiro e São Paulo.
A 22ª edição da Semana de Kardec foi no ano de 2009 no período de 20 a 26 de abril
na Casa do Caminho. Como em todas as edições anteriores, o evento foi divido em duas
partes. A primeira destinada à apresentação das palestras, dessa vez ministradas somente por
expositores de Juiz de Fora que abordaram assuntos como Quando tudo não é o bastante, O
Consolador e O método científico de Allan Kardec na elaboração do Espiritismo. A segunda
parte foi destinada ao simpósio, desta vez com o tema Herculano Pires, o metro que melhor
mediu Kardec. O simpósio contou com expositores de Juiz de Fora, Rio de Janeiro e São
Paulo.
Esse evento já acontece há 22 anos e requer um tempo longo, de cerca de um ano, para
seu planejamento e organização sendo necessário, inclusive, promover diversas atividades
com o objetivo de angariar fundos para o acontecimento. O simsio apresenta um formato
bastante acadêmico e é todo voltado para o estudo, a informação e também para a divulgação
da doutrina.
Como podemos perceber, as atividades realizadas em um centro espírita estão, a todo
o momento, envolvidas com as práticas de cultura letrada e estas, naturalmente, subentendem
um nível mínimo letramento que é o necessário para que se torne, de fato, um adepto do
Espiritismo. O que se quer dizer com isso é que não basta simplesmente saber ler e escrever,
ou seja, ser um indivíduo devidamente alfabetizado. O letramento ao qual estamos nos
referindo diz respeito às práticas sociais de leitura e escrita e as diversas situações onde essas
práticas são aplicadas, assim como os efeitos delas sobre a sociedade.
214
O autor Bernardo Lewgoy discorre sobre essa característica do Espiritismo de forma
bastante elucidadora.
214
SOARES, Magda. Novas práticas de leitura e escrita: letramento na cibercultura. Educ. Soc., Campinas,
vol. 23, n. 81, p. 144, dez. 2002. Disponível em: < http://www.scielo.br/pdf/es/v23n81/13935.pdf>. Acesso
em: janeiro de 2009
65
Parto do princípio de que o espiritismo estriba-se em determinadas pretensões de
legitimidade científica e filosófica, assim como uma composição social
diferenciada, as quais lhe conferem uma feição muito particular no quadro da
religiosidade brasileira contemporânea. Diviso-o como um segmento
profundamente identificado com um ideário racionalista e cientificista, próprio da
chamada experiência moderna, mas também com uma certa relação com a cultura
escrita e com o letramento, consoante com a construção simbólica e ritual de seu
ideal de pessoa. Sustento que um dos registros da experiência cultural espírita
depende da compreeno de que esta é uma religião do livro, da leitura e do
letramento, num sentido que dificilmente se iguala em outras religiões.
215
Pelo fato do Espiritismo primeiramente se denominar como uma ciência e não se
ocupar com questões dogmáticas, é que haveria uma maior identificação com as camadas
dias letradas, por ser mais instruída e também mais exigente na aceitação de princípios. O
próprio Kardec dizia que a grande maioria dos espíritas era formada por homens inteligentes e
estudiosos. Que somente a fé poderia dizer que eles eram atraídos entre os incautos e os
ignorantes e que era exatamente nas camadas esclarecidas que a Doutrina Espírita fazia maior
número de prosélitos. Os participantes do Espiritismo são geralmente indivíduos que estão
frequentemente a procura de conhecimento e que apreciam o hábito da leitura. Coincidência
ou não, a questão é que um bom livro espírita exige do leitor um conhecimento de vocabulário
requintado, bem acima da média coloquial.
216
Portanto, pode-se dizer que o Espiritismo, enquanto religião, cultura e cosmologia,
conseguiu reunir tanto em sua prática quanto em sua doutrina, os fatores tradicionalmente
associados à secularização e à promoção de uma consciência moderna que envolvia a escola
pública laica, o letramento, a racionalidade científica e as práticas de leitura e escrita.
217
215
LEWGOY, Bernardo. Os espíritas e as letras: um estudo antropológico sobre cultura escrita e oralidade no
espiritismo kardecista. 2000. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - PPGAS, FFLCH, Universidade de
São Paulo. São Paulo, p. 9-10.
216
JÁCOME, Oscar Fernando Junqueiro. A doutrina põe ordem na desordem: o espírito da cura na “benzeção
espírita” da associação espírita Padre Antônio Vieira. Dissertação (Mestrado em Ciência da Religião)
Instituto de Ciências Humanas e Letras, Universidade Federal de Juiz de Fora. Juiz de Fora 1999, p. 102.
217
LEWGOY, Bernardo. Incluídos e letrados reflexões sobre a vitalidade do espiritismo kardecista no Brasil
atual. In: TEIXEIRA, Faustino; MENEZES, Renata (Org). As religiões no Brasil: continuidades e rupturas.
Petrópolis: Vozes, 2006, p. 183.
66
4 ESPIRITISMO: UMA RELIGIÃO DOS LIVROS
4.1 A valorização do estudo na doutrina
“O estudo constante da Doutrina Espírita com base nas obras de Allan Kardec e o
propósito permanente de colocar em prática os seus ensinos, são fundamentais para a
correta execução de toda atividade espírita”.
218
Uma atividade de significativa importância para o Espiritismo é a palestra pública.
Segundo Emmanuel, um Espírito doutrinário versado, o centro espírita deve ser a
Universidade da Alma. Os princípios de disciplina, humildade e estudo são considerados os
alicerces da conduta espírita. “Espíritas! amai-vos, eis o primeiro ensinamento; instruí-vos, eis
o segundo” com esta frase de autoria do “Espírito da Verdade” em O Evangelho segundo o
Espiritismo, constatamos que há uma forte preocupação com a questão do estudo na Doutrina
Espírita.
219
Juntamente a essa característica de constante preocupação com o estudo e a instrução,
está também o fato de que a Doutrina Espírita era de difícil entendimento para as camadas
iletradas. O conteúdo de teor filosófico e as teorias explicativas dos fenômenos naturais, em
consonância com as últimas descobertas da época nos mais diversos campos do conhecimento
humano, faziam com que a leitura das obras fosse acessível, somente, à pequena parcela
instruída da população. No Brasil, como as obras chegavam em outras línguas, a dificuldade
de acesso às mesmas era ainda maior.
220
As concepções espíritas entraram no Brasil por meio dos livros e, estes, circularam a
princípio em grupos restritos da elite brasileira, uma vez que, a habilidade da leitura e a
condição econômica de comprar livros eram privilégios de uma pequena parcela da população
do país. Menor ainda era o ambiente em que essas novas iias e autores eram discutidos.
221
Os franceses, que moravam na cidade do Rio de Janeiro, foram os primeiros adeptos
do Espiritismo no Brasil. Em sua maioria, eram eles professores, jornalistas e comerciantes. A
partir daí, Juiz de Fora então começa a receber a influência espírita, pois sempre manteve com
218
Orientação ao Centro Espírita. Texto aprovado pelo Conselho Federativo Nacional da Federação Espírita
Brasileira em sua reunião de novembro de 2006. FEB. http://febnet.org.br/file/15/3233.pdf. p. 12.
219
JÁCOME, Oscar Fernando Junqueiro. A doutrina põe ordem na desordem: o espírito da cura na “benzão
espírita” da associação espírita Padre Antônio Vieira. Dissertação (Mestrado em Ciência da Religião)
Instituto de Ciências Humanas e Letras, Universidade Federal de Juiz de Fora. Juiz de Fora 1999, p. 146.
220
DAMAZIO, Sylvia F. Da elite ao povo: advento e expansão do espiritismo no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1994, p. 101.
221
SANTOS, José Luiz dos. Espiritismo: uma religião brasileira. São Paulo: Moderna, 1997, p. 14.
67
o Rio de Janeiro, fortes ligações econômicas e culturais. Isso se deu por volta de 1882, época
em que aparecem as primeiras notícias do Espiritismo nessa cidade.
222
No ano de 1862 é que foi publicada a primeira versão em português de um livro
espírita. Era possível adquirir a brochura nas cidades de Paris, Lisboa e Rio de Janeiro. A
vendagem foi um sucesso, o que acarretou em novas e sucessivas tiragens.
223
No Brasil as primeiras publicações de livros espíritas em português apareceram no ano
de 1866, na Bahia e em São Paulo. Na cidade paulista, onde a doutrina se inseriu com
discrição, o poder da Igreja Católica e a falta de um grupo que atuasse defendendo o
Espiritismo fizeram com que o responsável pela tradução se protegesse no anonimato. Na
Bahia, onde a nova doutrina penetrou de forma ostensiva, provocando polêmicas, a
publicação da Introdução ao Estudo da Doutrina Espírita significou um fato relacionado à luta
pela afirmação da doutrina. Olímpio Teles de Menezes retirou a obra da 13ª edição francesa
de O Livro dos Espíritos, o que possibilitou o acesso aos princípios sicos do Espiritismo por
um grupo maior de pessoas.
224
O estudo no Espiritismo faz parte, juntamente com a caridade e a mediunidade, do seu
sistema ritual. No estudo destaca-se a intelectualidade dessa religião, a valorização da
investigação racional e da pesquisa experimental. Na caridade a ênfase é dada ao seu caráter
cristão e, na mediunidade, destaca-se a relação entre homens e Espíritos. Esses pólos, como
foi falado anteriormente, estão inter-relacionados, já que a mediunidade engloba também a
caridade e o estudo. O estudo e a caridade, por sua vez, como formas de estabelecimento de
relação com o mundo espiritual, são também mediunidade.
225
A valorização do ideal de razão está colocada de maneira clara nas obras de
codificação espírita. Se, de acordo com a codificação, a verdade é em última análise revelada,
uma vez que foi comunicada pelos espíritos, o procedimento pelo qual se deu essa revelação é
entendido como eminentemente racional. Tal procedimento exigiu que Allan Kardec estivesse
à altura dessa incumbência de formular questões para que os espíritos respondessem. Parte
222
OLIVEIRA, Simone G. de. O Espiritismo em Juiz de Fora: do surgimento à consolidação de uma religião”.
In: TAVARES, Fátima R. Gomes; CAMURÇA, Marcelo Ayres (Org). Minas das devoções: diversidade
religiosa em Juiz de Fora. Juiz de Fora: UFJF/PPCIR, 2003, p. 141.
223
DAMAZIO, Sylvia F. Da elite ao povo: advento e expansão do espiritismo no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1994, p. 101-102.
224
DAMAZIO, Sylvia F. Da elite ao povo: advento e expansão do espiritismo no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1994, p. 102.
225
CAVALCANTI, Maria Laura V. de Castro. O mundo invisível: cosmologia, sistema ritual e não de pessoa
o espiritismo. Rio de Janeiro:Zahar, 1983, p. 132.
68
dessa verdade permaneceu ainda desconhecida aos homens, pois a revelação segue o caminho
evolutivo da humanidade.
226
O Espiritismo tem, portanto, uma visão do conhecimento semelhante à da ciência,
onde o conhecimento avança progressivamente. Existe no conhecimento uma dimensão
divina, pois ele é revelado, e também uma dimensão humana, porque para que a revelação
ocorra é necessário que os homens estejam preparados, que também conheçam. Isso tudo
define essa outra dimensão da vida religiosa espírita que é o estudo.
227
O estudo no Espiritismo se refere a uma variedade de práticas que residem na leitura,
comentários, exposição de textos espíritas, na produção de artigos, apostilas e livros, na
organização de debates, palestras, mesas-redondas, simpósios. Esse leque de atividades
demonstra explicitamente a importância concedida à palavra oral e escrita que se mostra
presente de forma igual na própria existência de uma doutrina, e na freqüência e respeito com
que os adeptos se referem a ela.
228
Conforme a explicação dos espíritas, o estudo esclarece e transforma, permite com que
o indivíduo compreenda os motivos de suas aflições. Somente através do estudo, que
disciplina os sentimentos e nos ensina a orientar nossas afeições, é que é possível conquistar a
renovação íntima que é o caminho para se chegar ao progresso espiritual.
229
O estudo é então uma parte fundamental do Espiritismo, presente desde o primeiro
contato com o centro, e de extrema relevância para o desenvolvimento da mediunidade. Ele é
estimulado tanto no âmbito individual quanto no coletivo. Em casa o estudo deve ser
constante, com leitura diária de parte de alguma obra espírita. no centro, o estudo está
relacionado ao aprendizado do conjunto da doutrina, e reveste-se de ênfases distintas de
acordo com a especificidade do público. As atividades determinadas como de estudo são a
reunião pública, a reunião de tratamento, a reunião da juventude e a iniciação espírita. As
duas primeiras reuniões dirigem-se aos freqüentadores e, nesse caso, o estudo transcorre
apresentando ênfases sobre o caráter moral, de consolação do Espiritismo, no aprendizado do
bem-sofrer, como destacam os próprios espíritas. As duas últimas reuniões dirigem-se aos
226
CAVALCANTI, Maria Laura V. de Castro. O mundo invisível: cosmologia, sistema ritual e noção de pessoa
o espiritismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1983, p. 71.
227
CAVALCANTI, Maria Laura V. de Castro. O mundo invisível: cosmologia, sistema ritual e não de pessoa
o espiritismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1983, p. 71.
228
CAVALCANTI, Maria Laura V. de Castro. O mundo invisível: cosmologia, sistema ritual e não de pessoa
o espiritismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1983, p. 71-72.
229
CAVALCANTI, Maria Laura V. de Castro. O mundo invisível: cosmologia, sistema ritual e noção de pessoa
o espiritismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1983, p. 72.
69
cooperadores, respectivamente os jovens e os médiuns iniciantes. Nesse caso o estudo adota
um caráter mais específico, tendo como propósito claro o conhecimento da doutrina.
230
O estudo é de tal importância para o Espiritismo que ele se mostra presente em todo o
ritual espírita. Ele está, de maneira mais sutil, na fase inicial de toda reunião que é a
preparação do ambiente, onde é lido e comentado um texto (ou somente um trecho)
evangélico retirado de livros espíritas. O texto é lido e comentado por algum cooperador da
casa, pois todo espírita deve estar apto a ler e fazer comentários sobre passagens de um livro
espírita tanto para o público quanto para os seus pares. Tudo isso funciona como uma espécie
de aprendizado e treinamento dessa técnica, que prepara o cooperador iniciante para as
demais situações necessárias. Após essa breve introdução, segue-se uma prece proferida na
penumbra, na qual os espíritos protetores e amigos da casa são evocados. Toda essa
preocupação em preparar o ambiente tem por intenção afastar o pensamento das preocupações
do dia-a-dia, para que se consiga um bom aproveitamento da reunião, das vibrações, energias
e presença dos mentores espirituais além de propiciar a comunhão com o plano espiritual.
Nessas sessões os espíritas adotam, como de praxe, uma postura de silêncio, concentração e
recolhimento, na qual quem não está falando continua sentado, os olhos fechados, a cabeça
levemente abaixada e apoiada nas mãos. Tal conduta deve ser adotada em toda e qualquer
tarefa espírita, seja ela realizada em residência ou no centro.
231
O estudo ainda aparece nas tarefas caritativas de assistência a famílias necessitadas, e
reaparece na última parte das sessões mediúnicas quando, com as luzes acesas, passam a
examinar e a estudar as mensagens recebidas, as visões tidas, o comportamento e as dúvidas
apresentadas pelos médiuns.
232
Toda reunião espírita possui um dirigente que é o responsável pelo comando da
passagem entre os diversos momentos rituais e da formulação das preces. Embora ele seja de
extrema importância, é o expositor que aparece como a figura central nessas sessões.
Dirigente e expositor ficam juntos em uma mesa em frente ao público. Sobre a mesa ficam o
microfone, os livros de referência, jarra de água e copos e, em alguns centros, um vaso de
flores. Logo atrás fica um quadro negro. Após a prece que conclui a preparação do ambiente,
tem início o estudo, onde o expositor do dia um trecho previamente escolhido de alguma
230
CAVALCANTI, Maria Laura V. de Castro. O mundo invisível: cosmologia, sistema ritual e não de pessoa
o espiritismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1983, p. 72-73.
231
CAVALCANTI, Maria Laura V. de Castro. O mundo invisível: cosmologia, sistema ritual e não de pessoa
o espiritismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1983, p. 73.
232
CAVALCANTI, Maria Laura V. de Castro. O mundo invisível: cosmologia, sistema ritual e não de pessoa
o espiritismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1983, p. 73.
70
obra da codificação. Finda a leitura, o texto então passa a ser comentado verbalmente,
podendo ainda ser reforçado com anotações no quadro negro. Os assuntos abordados são
bastante variados, se referem ao sonho, a mortes prematuras, mortes coletivas, parentesco,
orgulho, etc. O expositor deve conferir ao tema o seu toque pessoal, para que dessa forma, a
palestra adquira um tom informal apesar de sua maneira sempre uniforme evidenciar um
padrão e um aprendizado subjacentes. O bom expositor deve falar com firmeza, de maneira
clara e devagar, pacientemente como se estivesse falando para crianças. Esse tipo de palestra
permite o relato de casos pessoais e até a utilização do improviso, com algumas brincadeiras
que possibilitam a participação do público por meio de risadas. Além das obras de referência
utilizadas no estudo, são também mencionadas outras obras espíritas, fornecendo-se algumas
vezes, refencias bibliográficas precisas. Chegando-se a fase final do ritual é pronunciada
nova prece e, então, segue-se o passe e a ingestão de água fluidificada para tranqüilizar a
mente e revigorar as energias, preparando as pessoas para o retorno a suas casas.
233
O grupo de estudos também possui a imagem de um seminário teológico, já que nele
se preparam expositores e divulgadores da doutrina através das atividades de reflexão e treino
da retórica. Isso acarreta uma inflexão de padrões lingüísticos de expressão, o que pode ser
comprovado em um enquadramento disciplinar da fala no tempo disponível. O expositor
espírita é socializado no habitus de linguagem do grupo levando em conta três queses:
1) a necessidade de tornar comum qualquer trecho extraído de obras ou textos
disponíveis, tendo por base um repertório de máximas e um conhecimento doutrinário,
o que possibilita longos comentários sobre fragmentos escolhidos ao acaso.
2) a capacidade de se enquadrar no tempo ritual de diferentes tarefas, de modo a
conseguir um discurso improvisado com início, meio e fim adequado a cada parcela de
tempo disponível, o que é de grande importância que a fala representa apenas um
dos momentos das atividades espíritas.
3) a capacidade de variar a entonação da voz de acordo com os objetivos e resultados
desejados em diversas situações, como a palestra, o discurso, a prece, o diálogo e a
doutrinação, e no que diz respeito aos efeitos esperados, a edificação, a elevação, a
exortação e a persuasão.
234
233
CAVALCANTI, Maria Laura V. de Castro. O mundo invisível: cosmologia, sistema ritual e não de pessoa
o espiritismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1983, p. 74.
234
LEWGOY, Bernardo. Os espíritas e as letras: um estudo antropológico sobre cultura escrita e oralidade no
espiritismo kardecista. Tese (Doutorado em Antropologia Social) PPGAS, FFLCH, Universidade de São
Paulo. São Paulo, 2000, p. 85-86.
71
O expositor é um pregador, pois ele transmite aos homens a verdade dos espíritos.
Essa transmissão, por sua vez, é envolvida pelo plano espiritual que o expositor, durante
sua fala é amparado pelo mentor e por amigos espirituais do centro e os médiuns presentes
são responsáveis por manter um bom ambiente, emitindo, por meio de suas preces
individuais, da concentração e do pensamento no bem e em Cristo, energias positivas. Essa
proteção recebida pelo mundo invisível é de fundamental importância, pois, para os próprios
espíritas, o expositor é fortemente importunado e perseguido pelas trevas porque a mensagem
que ele traz para os encarnados também reflete no plano espiritual. Essa transmissão que o
expositor faz da verdade dos espíritos é mediada pelo conhecimento humano, ou seja, essa
instância humana que se destaca no estudo é o que completa, de maneira essencial, o contato
com o mundo invisível tal como os espíritas a valorizam.
235
Diferentemente desse estudo já falado, também outro que se dedica a explorar os
pontos da doutrina que não foram totalmente revelados e que aparecem na codificação
deixando em aberto diversas questões ou discutindo a relação entre a Doutrina Espírita e
outras áreas do conhecimento como a Medicina, a Psicologia, o Direito etc., ou outras
religiões.
236
Para Maria Laura Viveiros Cavalcanti, é a partir desse tipo de estudo que vai surgir um
personagem denominado por ela de “intelectual espírita”. A autora destaca que o Instituto de
Cultura Espírita se dedica, de forma expressiva, a esse segundo sentido do estudo que
consegue até adquirir uma relativa autonomia com relação às demais tarefas espíritas, ainda
que continue subordinado ao conjunto desse sistema de crenças.
237
O Instituto de Cultura Espírita do Brasil tem por objetivo o estudo, a propagação e a
defesa dos princípios espíritas. A instituição teve origem a partir da antiga Faculdade
Brasileira de Estudos Psíquicos (ICEB). Alguns de seus presidentes e expositores lecionavam
na antiga faculdade. No ano de 1957, o grupo que fazia parte da faculdade, juntamente com
novos membros, fundaram o ICEB. Devido a queses legais e fiscais, a palavra professor foi
substitda pela palavra expositor, o que define o caráter do ICEB que se vê como uma
instituição livre assim como as cátedras sempre o foram. Suas particularidades principais se
encontram não apenas na forte valorização do conhecimento doutrinário, mas também do
conhecimento em geral, e possui uma preocupação constante com a legitimação do
235
CAVALCANTI, Maria Laura V. de Castro. O mundo invisível: cosmologia, sistema ritual e não de pessoa
o espiritismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1983, p. 74.
236
CAVALCANTI, Maria Laura V. de Castro. O mundo invisível: cosmologia, sistema ritual e não de pessoa
o espiritismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1983, p. 75.
237
CAVALCANTI, Maria Laura V. de Castro. O mundo invisível: cosmologia, sistema ritual e não de pessoa
o espiritismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1983, p. 75.
72
Espiritismo como interlocutor digno das demais áreas de conhecimento, principalmente as
chamadas ciências oficias. A forma como suas atividades são organizadas demonstra, de
forma explícita, a referência ao modelo escolar/universitário, pois a duração do seu ciclo de
palestras é a mesma do ano letivo, existe um programa trienal onde o expositor é responsável
por uma matéria, etc. Lá é um local para se estudar muito, apesar de não se receber nenhum
certificado de conclusão.
238
O espaço físico no ICEB é organizado de forma semelhante ao das reuniões
doutrinárias no centro. O presidente da instituição e os expositores do dia sentam-se, como em
muitos centros, em uma mesa sobre o palco, dispondo também de um microfone e de um
quadro-negro. O presidente início à atividade com uma prece íntima e então segue a
palestra. Os expositores adotam uma fala que não possui um conteúdo moral tão claro como
no centro. Como a platéia é considerada mais selecionada, os expositores podem falar com
maior liberdade, isto é, discutir o tema com maior profundidade, já que a fala é, em parte, uma
forma de mostrar conhecimento não somente a respeito da doutrina como também de outras
áreas do conhecimento. Com bastante freqüência são feitas referências precisas a obras da
codificação e de outros autores espíritas, assim como são citados autores de outras ciências
como, por exemplo, Piaget (teoria do aprendizado), Vico (iia de forças criadoras na
História), rgson (intuição), Freud (teoria da libido e do inconsciente), Mendell
(hereditariedade), e outros.
239
Mas quem seria, de fato, esse intelectual espírita? Maria Laura Viveiros Cavalcanti
explica que ele é tamm um expositor, porém com algumas distinções, uma vez que ele é
considerado uma pessoa de renome no seu meio. O intelectual espírita viaja com freqüência
para conferências, apresenta palestras em diversos centros, escreve artigos em jornais espíritas
e publica livros.
240
O autor Emerson Giumbelli chama a atenção para o fato de que, no universo das
instituições e adeptos do Espiritismo, existe a idéia de uma reflexão integral sobre os diversos
assuntos discutidos. Ele demonstra isso abordando uma dupla situação: a do intelectual
espírita que possui habilidade para discorrer sobre todo e qualquer assunto e a de um
pensamento que submete todas as áreas do conhecimento a uma abordagem própria,
incorporando-os a um saber de base espiritualista. É possível citar dois exemplos de espíritas
238
CAVALCANTI, Maria Laura V. de Castro. O mundo invisível: cosmologia, sistema ritual e não de pessoa
o espiritismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1983, p. 75.
239
CAVALCANTI, Maria Laura V. de Castro. O mundo invisível: cosmologia, sistema ritual e não de pessoa
o espiritismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1983, p. 76.
240
CAVALCANTI, Maria Laura V. de Castro. O mundo invisível: cosmologia, sistema ritual e não de pessoa
o espiritismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1983, p. 76.
73
prestigiados que exercem um tipo de erudição bastante peculiar, tratando de temas sobre os
quais não possuem qualificações específicas. O primeiro é Chico Xavier
241
, famoso por suas
obras mediúnicas e pelas mensagens de conforto dadas às pessoas que visitavam seu centro
em Minas Gerais, e o segundo é Divaldo Franco, considerado como o personagem, depois de
Chico Xavier, mais reconhecido do movimento espírita, seja na forma de médium, orador ou
líder de uma instituição. Ainda que Divaldo Franco seja o responsável pela criação e
manutenção de uma obra de caráter assistencial, nem ele, nem tampouco Chico Xavier,
procuraram se especializar nessa área de assuntos e apesar disso, sempre foram convidados
para falar sobre os temas que envolvem a miséria e as práticas assistenciais, o que faziam de
forma muito à vontade.
242
Além dessa erudição, existe também outra característica do pensamento produzido e
exercitado pelos intelectuais espíritas. É que todas as faces do conhecimento, desde a sica,
passando pela medicina, psicologia, até a pedagogia e a sociologia, podem ser alvo de
reflexão da Doutrina Espírita e o fator mais curioso disso tudo reside na maneira como se dá a
relação com o saber ortodoxo, oficial ou acadêmico
243
. Comparando com intelectuais de
outras religiões Giumbelli destaca que,
Os intelectuais e pensadores católicos e protestantes tendem a conferir maior
respeito às fronteiras estabelecidas pelos saberes científicos à medida em que estes
foram tomando territórios cada vez maiores da refleo teológica. Quando se trata,
por exemplo, de falar algo sobre a realidade social, recorre-se à Sociologia; sobre o
corpo humano, a palavra é dada à Medicina, e assim por diante. O que pode dizer o
teólogo, nessa situação, limita-se a dimensões que ele considera não contempladas
pelos saberes ortodoxos, o que lhe legitimidade para tratar delas. O intelectual
espírita, ao contrário, tende a não se limitar a uma reflexão propriamente
doutrinária sobre assuntos metasicos ou filosóficos. Os princípios de sua doutrina
são aplicados aos vários campos de conhecimento e aos muitos territórios de
realidade, e o esforço vai no sentido de demonstrar como cada um deles possui
dimensões e causalidades espirituais, desprezadas pelo saber ortodoxo. Surgem,
assim, a medicina espírita”, a “pedagogia espírita”, a “sociologia espírita” no
limite, tudo pode ser abordado “sob uma perspectiva espírita”.
244
241
Antes de ser considerado uma espécie de santo popular, Chico Xavier foi responsável pela produção de uma
obra de caráter profético e nacionalista, a partir de meados dos anos 30. Seus livros passaram a imagem da
Doutrina Espírita como sendo uma religião culta, ligada ao cristianismo original, que dissemina a alta literatura
e o bito da leitura, tanto quanto o respeito ao saber científico e ao panteão da língua portuguesa (LEWGOY,
Bernardo. O grande mediador: Chico Xavier e a cultura brasileira. Bauru, SP: EDUSC, 2004, p. 92).
242
GIUMBELLI, Emerson. Em nome da caridade: assistência social e religião nas instituições esritas. Vol II.
Rio de Janeiro. ISER, 1996, p. 90.
243
GIUMBELLI, Emerson. Em nome da caridade: assistência social e religião nas instituições espíritas. Vol II.
Rio de Janeiro. ISER, 1996, p. 90.
244
GIUMBELLI, Emerson. Em nome da caridade: assistência social e religião nas instituições espíritas. Vol II.
Rio de Janeiro. ISER, 1996, p. 90.
74
Essa idéia de reflexão integral torna-se possível uma vez que o Espiritismo foi
apresentado por Kardec como uma “filosofia”, já que a doutrina possuía noções capazes de
organizar todas as áreas do conhecimento humano em torno das descobertas das leis que
regem os mundos, material e espiritual e das relações estabelecidas entre eles. Não obstante é
também necessário ressaltar outro ponto que consiste nas práticas pelas quais os intelectuais
espíritas são formados. No universo institucional espírita o aprendizado da doutrina se de
forma bastante diferente da dos seminários, onde as pessoas recebem preparação intensiva
para fazerem do exercício do sacerdócio ou do pastorado, ocupações prioritárias de suas
vidas. No Espiritismo o aprendizado acontece de maneira intermitente e juntamente com as
demais atividades cotidianas, como a profissional ou acadêmica. Nas instituições de formação
católicas e protestantes o currículo abre espaços para o ensino segundo o conhecimento
acadêmico (como sociologia da religião), o que não se percebe tanto na formação espírita.
Nesta, como a convincia é praticamente com livros e exposições orais a respeito da doutrina
para a qual está se convertendo, a abertura para conhecimentos e competências ortodoxos é
bem mais reduzida. Pode-se então concluir que trata-se de uma prática de aprendizado que
embora não necessite da ajuda ou da sustentação de saberes ortodoxos para se realizar, admite
no futuro reintegrá-los por meio da atividade profissional do indivíduo (por exemplo, o
dico que, convertido, passa a adotar a medicina espiritualista).
245
Embora o estudo represente uma condição necessária e fundamental para a vida
cotidiana do movimento espírita, e isso naturalmente envolve as práticas de escrita e leitura
assim como o mercado editorial fortemente estimulado por essa corrente no Brasil, a função e
importância do modelo letrado no kardecismo foram pouco exploradas como objeto de
investigação específica dentro da literatura acadêmica. Isso causa um certo espanto uma vez
que existe uma grande propagação de sua literatura, que se mostra determinada a promover a
doutrina por meio de narrativas (ficcionais ou fatuais) de intervenção de espíritos no cotidiano
e do lugar de destaque que ocupam o livro, a leitura e os comentários eruditos nas casas
espíritas. A escrita é visível por todos os lados, nos quadros de aviso na entrada dos centros,
nos murais de informações, nos livros de registro sobre as atividades administrativas e
mediúnicas, nas mensagens distribuídas, nos jornais e boletins, no site da instituição e
também no ritual da psicografia. Como podemos perceber o mundo letrado se faz presente em
todo momento da vida ritual espírita, na simples presença física dos livros nos ambientes
245
GIUMBELLI, Emerson. Em nome da caridade: assistência social e religião nas instituições espíritas. Vol II.
Rio de Janeiro. ISER, 1996, p. 90-91.
75
rituais, na formação de bibliotecas pessoais e até mesmo nas atividades de leitura, doação e
empréstimo de livros que são bastante corriqueiros na trajetória dos espíritas.
246
Considerada uma religião de letrados, o Espiritismo confere um status diferenciado
(juntamente com a caridade e as práticas rituais) à leitura e interpretação de uma bibliografia
religiosa própria, que tem início com a chamada Terceira Revelação de Kardec, e que
funciona como fonte de autoridade religiosa e constituição de identidades. Socializar-se na
Doutrina Espírita significa familiarizar-se, estudar, falar bastante sobre os autores e obras
canônicas, ou seja, entrar num universo de debate e reflexão totalmente dominado por uma
tradição religiosa escrita e letrada.
247
Tudo isso quer dizer que essa socialização no movimento espírita envolve a
participação em palestras e grupos de estudos juntamente com as reuniões de
desenvolvimento mediúnico, desobsessão e tarefas caritativas. E ainda é imprescindível ler e
aprender a comentar diante de um blico as mais variadas obras espíritas que se classificam
em mediúnicas, não- mediúnicas, romances, poesias, dissertações e mensagens.
248
Fica cada vez mais clara a noção de que a Doutrina Espírita, diferentemente das outras
religiões, traz, desde sua conceituação de origem, uma atenção especial à questão do saber e
do conhecimento. Como dizia Kardec, a instrução espírita não abrange somente o
ensinamento moral transmitido pelos espíritos, mas também o estudo dos fatos. Ela se
encarrega da teoria de todos os femenos, da procura das causas e, consequentemente, da
comprovação do que é possível e do que não o é. Cabe, portanto, à instrução espírita, a
observação de tudo o que pode fazer a ciência avançar.
249
Allan Kardec faleceu no ano de 1869, porém antes disso teve a oportunidade de
realizar uma série de viagens pelo interior da França com o intuito de divulgar a doutrina e de
formar e orientar sociedades de estudo.
250
Além disso, na França também foi criada uma
Sociedade para a continuação das obras espíritas de Allan Kardec. Era uma sociedade
científica, como tantas outras, que se dedicava em aprofundar os diversos princípios da
ciência espírita, e buscava se esclarecer. Era o centro para onde se dirigiam as informações de
246
LEWGOY, Bernardo. Os espíritas e as letras: um estudo antropológico sobre cultura escrita e oralidade no
espiritismo kardecista. Tese (Doutorado em Antropologia Social) PPGAS, FFLCH, Universidade de São
Paulo. São Paulo, 2000, p. 22.
247
LEWGOY, Bernardo. Etnografia da leitura num grupo de estudos espírita. In: Horizontes antropológicos.
Porto Alegre, ano 10, n. 22, p. 255-282. jul./dez. 2004, p. 256.
248
LEWGOY, Bernardo. Os espíritas e as letras: um estudo antropológico sobre cultura escrita e oralidade no
espiritismo kardecista. Tese (Doutorado em Antropologia Social) PPGAS, FFLCH, Universidade de São
Paulo. São Paulo, 2000, p. 23.
249
KARDEC, Allan. O livro dos médiuns. Araras, SP: IDE, 35ª edição, 1995, p. 389-390.
250
GIUMBELLI, Emerson. O cuidado dos mortos: uma história da condenação e legitimação do espiritismo.
Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997, p.59.
76
todas as partes do mundo, e onde eram elaboradas e coordenadas as questões que se referiam
ao progresso da ciência, no entanto não era uma escola e muito menos um curso de
ensinamentos elementares.
251
O estudo, então, constitdo por um conjunto de práticas que repousa sobre a leitura,
comentários, exposição de textos espíritas, na produção de artigos, apostilas e livros, na
realização de debates, palestras e mesas redondas, é parte integrante de um complexo de
valores que, desde Kardec, valoriza ao mesmo tempo a “razão” / “ciência” e a “religião” /
ética”, o que na visão espírita é fundamental para o desenvolvimento da mediunidade. Além
de revelar a importância dada ao conhecimento formal neste domínio religioso, o estudo
exercendo sua função de esclarecer e transformar, está presente em praticamente todas as
tarefas espíritas, seja na preparação do ambiente para as reuniões, nas atividades caritativas,
no “Evangelho no lar”, nas atividades mediúnicas ou nas próprias reuniões designadas de
estudo.
252
Segundo alguns autores, na França de Allan Kardec, a leitura do Livro dos Espíritos
significava uma tomada de posição política (assim como a leitura da Bíblia na época da
Reforma) e representava o acesso ao conhecimento bem como uma oposição ao
conservadorismo da Igreja Católica e dos setores burgueses da sociedade. Isso tudo acabava
por favorecer a construção de uma identidade laica e republicana. No Brasil, a alfabetização e
o hábito da leitura ganham sentido bem diferenciado, pois representa um sinal de ascensão
social, o que quer dizer que a habilidade de ler e estudar é a marca do pertencimento às
camadas médias e altas.
253
Dessa maneira, a ênfase no livro e na leitura satisfaria um desejo de reconhecimento e
respeitabilidade social dos adeptos do Espiritismo brasileiro, ao mesmo tempo em que
definiriam, por esta via, as fronteiras de seu culto perante as religiões afro-brasileiras
(candomblé e umbanda), que são religiões populares, de tradição oral, com quem
frequentemente são confundidos.
254
251
KARDEC, Allan. O que é o espiritismo. Araras, SP: IDE, 70ª edição, 2007, p. 79-80.
252
LEWGOY, Bernardo. Os espíritas e as letras: um estudo antropológico sobre cultura escrita e oralidade no
espiritismo kardecista. Tese (Doutorado em Antropologia Social) PPGAS, FFLCH, Universidade de São
Paulo. São Paulo, 2000, p.42-43.
253
LEWGOY, Bernardo. Os espíritas e as letras: um estudo antropológico sobre cultura escrita e oralidade no
espiritismo kardecista. Tese (Doutorado em Antropologia Social) PPGAS, FFLCH, Universidade de São
Paulo. São Paulo, 2000, p. 54-55.
254
LEWGOY, Bernardo. Os espíritas e as letras: um estudo antropológico sobre cultura escrita e oralidade no
espiritismo kardecista. Tese (Doutorado em Antropologia Social) PPGAS, FFLCH, Universidade de São
Paulo. São Paulo, 2000, p.55.
77
4.2 Os grupos de estudos
Tamanha importância dada ao estudo dentro do Espiritismo pode ser percebida, de
forma evidente, em uma atividade de grande relevo que é o grupo de estudos. Essa atividade
como qualquer outra tarefa espírita, pode apresentar algumas diferenças de um centro para
outro. Em Juiz de Fora, o centro espírita FEAK (Fundação Espírita Allan Kardec) é um ótimo
exemplo de instituição que se dedica de forma freqüente aos grupos de estudos. Em sua
programação, geralmente os dias de terça-feira, quarta-feira, sexta-feira e bado, oferecem,
em determinados horários, essa possibilidade de estudo.
Na FEAK os grupos de estudos possuem duração e temas diferenciados. Os grupos
podem durar semanas e até mesmo alguns anos, dependendo do que se propõe a estudar.
Existem grupos que se dedicam ao estudo da obra completa de alguns autores, grupos que
tratam de temas variados, existem grupos para capacitação de expositores, grupos que
estudam as obras sicas do Espiritismo, e até mesmo um grupo de reforço nutricional.
Segundo a coordenadora de um dos grupos, a idéia do grupo sobre reforço nutricional,
surgiu como forma de se tentar acabar com conversas inúteis e improdutivas que poderiam
prejudicar o bom ambiente espiritual do lugar. Aos sábados o centro distribui um jantar para a
população carente. À tarde, durante a preparação do jantar, enquanto os alimentos ficavam
cozinhando, os trabalhadores responsáveis pela tarefa ficavam ociosos, “jogando conversa
fora” e, então veio a idéia de se reunirem com o objetivo de estudar e, consequentemente,
transformar a atividade do preparo da comida em um momento envolto por pensamentos mais
elevados e instrutivos. Isso demonstra claramente a noção que o espírita tem da necessidade
do estudo, como forma o somente de obter maior instrução sobre determinado assunto,
como também de possibilitar um desenvolvimento pessoal no sentido de evolução espiritual.
Além disso, esse exemplo reforça a análise de que o espírita adota um tipo de conduta que lhe
é peculiar e que preza pela discrição, pela sobriedade, pelo controle pessoal, pelo respeito e
paciência para com o próximo, pela tolerância e outras atitudes que, em conjunto, representam
o ethos espírita e, que certamente, de alguma forma lhe confere seriedade e status.
Os grupos de estudos apresentam um formato bastante acadêmico. As salas onde
ocorrem os mesmos são equipadas com cadeiras e um quadro negro. Os encontros costumam
ter duração de uma hora e a pontualidade é, de fato, exercida pelos coordenadores.
Em um grupo observado, cada participante que chega e entra na sala recebe uma
mensagem. O expositor, que também é coordenador, solicita que alguém faça a leitura da
mensagem e depois ele próprio realiza a prece do dia. A partir daí começa o estudo com o
78
expositor discorrendo sobre o assunto em questão, à medida que os participantes vão tecendo
comentários de forma livre. Após toda a discussão sobre o tema, a tarefa é encerrada com uma
prece de agradecimento pela oportunidade de estudo e esclarecimento do dia e com um
pedido de proteção e boas vibrações para todos os presentes, seus amigos e familiares
ausentes e, sobretudo, para os necessitados onde quer que se encontrem. Geralmente o início
e o término dos estudos ocorrem da mesma forma, com a entrega de uma mensagem, a prece
inicial, o desenvolvimento do estudo e a prece final. O desenvolvimento, porém, é que pode
variar dependendo do que propõe o expositor do dia e até mesmo do grau de envolvimento e
participação dos ouvintes. Por exemplo, em outro grupo observado, um dos facilitadores
costumava levar textos diferentes para serem distribuídos em grupos formados na sala e após
a leitura e discussão sobre o assunto, cada grupo apresentava para os demais suas conclusões
acerca do texto e no final o expositor retomava o assunto tendo como auxílio as diversas
opiniões dos participantes. Enfim, as variações na forma de expor o tema proposto podem
mudar de grupo para grupo e também de centro para centro, mas no geral os grupos assumem,
sem sombra de dúvida, um modelo escolar, fazendo uso inclusive de listas de presença.
Os centros espíritas possuem setores que são responsáveis pela organização dos
grupos de estudos. Na FEAK esse setor é chamado de Departamento de divulgação
doutrinária, o DDD. Para ser um coordenador de grupo é necessário já ser freqüentador da
casa um certo tempo e ter experiência como expositor, já que o coordenador de grupo de
estudo também é um expositor. Cada coordenador/expositor recebe uma programação de
cerca de três meses onde deve apresentar em torno de dois estudos por mês. Cada grupo de
estudos, normalmente, conta com três coordenadores. É válido lembrar que a participação em
um grupo de estudos, seja como coordenador ou inscrito, exige uma leitura prévia do assunto
a ser discutido, ou seja, é necessário estudar e se preparar devidamente para o encontro com o
grupo.
O autor Bernardo Lewgoy no que diz respeito ao grupo de estudos, o caracteriza como
sendo responsável pela produção de identidades e estilos de atuação no Espiritismo:
O espaço de maior reflexividade na produção desta identidade é o grupo de
estudos, onde o maior relacionamento concreto entre fala, leitura e livros, mas
também onde se processa a socialização e filiação a um certo modo de ser espírita
dentro do movimento espírita. Estou afirmando com isso que um nível interno
de identidade que está estreitamente relacionado com o grupo de estudos de que se
participa. Em recente conversa com o presidente do centro espírita que observo, a
primeira questão a mim endereçada foi “de qual grupo tu estás participando?”, que
79
indicava uma intenção mapeadora de caráter primordial na identificação do
interlocutor.
255
Lewgoy analisa a interpretação da leitura como atividade identitária realizada pelo
sociólogo francês François de Singly. Ele percebe que por meio de uma percepção
bidimensional da leitura nos moldes do individualismo contemporâneo, esse autor separa as
grandes linhas de construção da identidade social por esta atividade no ponto de vista do
público e do privado. Na esfera blica, a leitura seria administrada por leis de mercado, que
valorizam o saber acumulado, sendo, portanto, entendida como busca de conhecimento. No
âmbito privado, a leitura dominada pelas relações sociais e pela afetividade, seria vivida como
busca de si e liberdade, para se ter como resultado esperado dessa experiência o prazer da
descoberta. A leitura de cunho religioso, segundo Lewgoy, não é integrada no texto de Singly,
e o contexto do Espiritismo brasileiro mostraria que a descoberta de si e a busca de
conhecimento são dimensões juntamente acionadas na leitura de obras espíritas, onde
conhecimento e usufruto não são domínios separados.
256
Analisando os processos de desencantamento do mundo na modernidade, nota-se que
a leitura também se seculariza
257
, simultaneamente à ascensão do romance e à propagação da
imprensa. É nesse contexto histórico e cultural que surge o Espiritismo, recuperando a iia
de leitura como exercício espiritual, não somente aplicada aos textos revelados, como também
estendendo o processo de revelão aos próprios textos psicografados. Fazendo uso de
instrumentos considerados seculares, como a ciência, o romance de folhetim, o romance
histórico e temas românticos, como a relação entre amor e morte, o Espiritismo amplia o seu
255
LEWGOY, Bernardo. Os espíritas e as letras: um estudo antropológico sobre cultura escrita e oralidade no
espiritismo kardecista. Tese (Doutorado em Antropologia Social) PPGAS, FFLCH, Universidade de São
Paulo. São Paulo, 2000, p. 71.
256
LEWGOY, Bernardo. Os espíritas e as letras: um estudo antropológico sobre cultura escrita e oralidade no
espiritismo kardecista. Tese (Doutorado em Antropologia Social) PPGAS, FFLCH, Universidade de São
Paulo. São Paulo, 2000, p. 72.
257
Entende-se por secularização, segundo Peter Berger, o processo pelo qual setores da sociedade e da cultura
são subtraídos à dominação das instituições e símbolos religiosos. No que diz respeito à história ocidental
moderna, a secularização se manifesta na retirada das Igrejas cristãs de áreas que antes estavam sob seu
controle ou influência, como por exemplo, separação da Igreja e do Estado, expropriação das terras da Igreja,
ou emancipação da educação do poder eclesiástico. Em relação à cultura e mbolos, a secularização é mais
que um processo socioestrutural, pois atinge a totalidade da vida cultural e da ideação e pode ser observada no
declínio dos conteúdos religiosos nas artes, na filosofia, na literatura e, principalmente, na ascensão da ciência,
como uma perspectiva autônoma e completamente secular, do mundo (BERGER, Peter L. O dossel sagrado:
elementos para uma teoria sociológica da religião. São Paulo: Paulus, 1985, p. 119).
80
campo de atuação na literatura, anulando as fronteiras entre religião, arte e ciência e
ressacralizando o seu relacionamento.
258
Lewgoy nos elucida ainda mais quando diz que,
Os epígonos de Kardec iniciaram este processo. Saliento Leon Denis, com o
romance Giovana, incluído na obra “O por que da vidae os romances assinados
por Camille Flamarion, como “Estela”, “Narrações do infinito” e Urânia”.
Congruente com os processos presentes em Kardec à essa época importava pouco a
identidade do autor ou do médium, todos os créditos ficando com o compilador da
obra. Admitia-se pacificamente a relação hierárquica entre o autor compilador e o
dium, estando o Espírito em segundo plano, salvo se fosse alguém com
identificação histórica (São Luís, Platão, Santo Agostinho) ou um Espírito de
importância progressivamente desvendada, como “O Espírito da Verdade”. no
espiritismo brasileiro do século XX, a autoria é partilhada entre autor espiritual e
dium, não restando espaço para incluir um terceiro assinando obra. Isso é um
claro indício do crescimento da importância do médium bem como da consagração
de uma determinada divisão de trabalho no kardecismo. O compilador de ontem
torna-se, assim, o intelectual espírita de hoje, ou então o dirigente federativo que
cumpre um papel editorial em relação aos manuscritos oriundos dos médiuns.
Também as técnicas psicográficas se sofisticam. Chico Xavier psicografava
sozinho ou em situações públicas rituais, sempre à mão. Zíbia Gasparetto
psicografa em casa no computador, como relatado em recente matéria da Folha de
São Paulo (02/03/97).
259
Dessa forma, a ressacralização do secular que o Espiritismo produz , ataca
primeiramente a autonomia da ciência, colocando-a a serviço da fé na obra de Allan Kardec.
Para a Doutrina Espírita o patamar superior que administra o universo é de natureza teológica,
porém as realidades espirituais e morais são consideradas como perfeitamente experimentais,
por isso a possibilidade de utilização da linguagem cientificista de lei e de conhecimento,
aplicada à religião. Como as verdades reveladas são tidas como independentes da fé religiosa,
atingem indistintamente a toda a humanidade. Em segundo lugar, o ataque do Espiritismo ao
mundo secularizado se na tentativa de reanexar a arte à religião, onde música, pintura e
literatura são os pontos privilegiados de uma fala a respeito da necessária filiação espiritual
das obras de arte.
260
A literatura está sempre presente no universo espírita uma vez que a prática da leitura
é exercida em praticamente todas as tarefas realizadas no centro. Nos grupos de estudos a
258
LEWGOY, Bernardo. Os espíritas e as letras: um estudo antropológico sobre cultura escrita e oralidade no
espiritismo kardecista. Tese (Doutorado em Antropologia Social) PPGAS, FFLCH, Universidade de São
Paulo. São Paulo, 2000, p. 74.
259
LEWGOY, Bernardo. Os espíritas e as letras: um estudo antropológico sobre cultura escrita e oralidade no
espiritismo kardecista. Tese (Doutorado em Antropologia Social) PPGAS, FFLCH, Universidade de São
Paulo. São Paulo, 2000, p. 74.
260
LEWGOY, Bernardo. Os espíritas e as letras: um estudo antropológico sobre cultura escrita e oralidade no
espiritismo kardecista. Tese (Doutorado em Antropologia Social) PPGAS, FFLCH, Universidade de São
Paulo. São Paulo, 2000, p. 74-75.
81
leitura é a base da atividade, onde está em jogo uma vigilância constante da linguagem e da
expressão utilizadas. Nesse ambiente uma atitude de seriedade é bastante valorizada. O
Espiritismo segue uma representação do processo de instrução baseado num modelo próprio
de escola e de aprendizado, adotando, inclusive, livros básicos e material didático. O objetivo
fundamental desse tipo de educação é a representação de papéis sociais a partir da ética
religiosa definida pelo grupo.
261
O que se percebe é que as divies entre religião e práticas de escrita e de leitura
acompanham as outras divies do campo religioso brasileiro, onde é produzida a divisão
básica entre um campo popular e subordinado e um campo de elite e dominante. No primeiro,
onde catolicismo popular, pentecostalismo e religiões afro-brasileiras representam as
expressões principais, a ligação com a cultura escrita e com o letramento ainda é externa.
Entretanto, a venda de Bíblias e a promoção de uma cultura bíblica juntamente com atitudes
de racionalização econômica da vida, sem falar da própria procura dos evangélicos por
escolarização (bem mais alta do que antes de sua conversão), já aponta para novas
possibilidades de relação entre escrita e religo nesses setores.
262
Quanto mais próximos e influenciados pela cultura escrita, no sentido da relação com
o conjunto de valores e práticas que materializa a noção de uma cultura letrada, cultura de
elite ou alta cultura, sobretudo no seu corolário de racionalismo e racionalização (caso do
Espiritismo), mais se percebe a difusão da posse de um capital cultural em que o livro é
apropriado de forma crítica, graças a um conhecimento escolar prévio. Na Doutrina Espírita, a
autoridade (textual, espiritual e ritual) está sob o donio de uma complexa associação de
tipos de socialização e ação pedagógica e capital cultural internos e externos à participação no
movimento espírita, sem falar também na mediunidade que é distribuída de forma desigual.
Então, para o Espiritismo o prestígio acadêmico e profissional significam realmente fatores de
atribuição de um valor extra ao intelectual espírita, o que pode ser constatado pela ostentação
de currículos profissionais de autores em artigos, livros, jornais e congressos espíritas.
263
261
LEWGOY, Bernardo. Os espíritas e as letras: um estudo antropológico sobre cultura escrita e oralidade no
espiritismo kardecista. Tese (Doutorado em Antropologia Social) PPGAS, FFLCH, Universidade de São
Paulo. São Paulo, 2000, p. 85.
262
LEWGOY, Bernardo. Os espíritas e as letras: um estudo antropológico sobre cultura escrita e oralidade no
espiritismo kardecista. Tese (Doutorado em Antropologia Social) PPGAS, FFLCH, Universidade de São
Paulo. São Paulo, 2000, p. 112.
263
LEWGOY, Bernardo. Os espíritas e as letras: um estudo antropológico sobre cultura escrita e oralidade no
espiritismo kardecista. Tese (Doutorado em Antropologia Social) PPGAS, FFLCH, Universidade de São
Paulo. São Paulo, 2000, p. 113-114.
82
O kardecismo é uma das modalidades religiosas que mais valoriza e reforça a relação
com a leitura sistemática e a interpretação de fatos da vida em termos de conhecimentos
alcançados por meio da incorporação de sua doutrina pelo estudo. Ter freqüentado a escola,
em suas diferentes inserções e graus possíveis, para muitos centros espíritas, significa a
oportunidade de uma mínima integração do recém-chegado ao ambiente, que é formado por
palestras doutrinárias, grupos de estudos e outras situações compostas por referências letradas,
citação e comentários orais, comentários de fragmentos de obras espíritas escolhidos ao acaso
ou de leitura sistemática das obras de Allan Kardec. Para ser então um participante do
Espiritismo é necessário se inteirar de uma bibliografia determinada, mesmo que essa
atividade de estudo e leitura não seja nem homogênea e nem distribuída de forma igual entre
os membros e freqüentadores de centros. Nesse sentido, a Doutrina Espírita pode ser
entendida como um segmento religioso que, de certa forma, seleciona membros das elites.
A valorização do estudo, portanto, está ligada a características estruturais desse
sistema de creas. É muito importante, e necessário, que o homem estude e conheça,
participe em sua condição humana e menor dessa Verdade que é transmitida gradualmente
pelos espíritos, pois o estudo eleva o homem, proporciona-lhe firmeza e segurança, tornando-
o assim, digno dos espíritos. A Doutrina Espírita então, procura desenvolver e estimular em
seus seguidores, um gosto pelo conhecimento e pela leitura, enfim, procura despertar nos
mesmos uma verdadeira ânsia de saber.
264
4.3 Produção literária e Mercado editorial
Cada livro tem uma vontade de divulgação, dirige-se a um mercado, a um público,
ele deve circular, deve ganhar extensão, o que significa apropriações mal
governadas, contra-sensos, falhas na relação entre o leitor ideal, mas no limite
singular, e de outra parte o público real que deve ser o mais amplo possível.
265
Nossa intenção ao falarmos da literatura espírita é a de fornecer um panorama geral
acerca da importância do livro para o Espiritismo, abordando, de forma superficial, alguns
tipos de leituras espíritas e informando de que maneira esse mercado editorial se desenvolveu.
Não iremos nos ater a maiores detalhes, como por exemplo, os diferentes modelos de
linguagem escrita que são utilizados, os temas que se apresentam de forma mais frequente, a
264
CAVALCANTI, Maria Laura V. de Castro. O mundo invisível: cosmologia, sistema ritual e não de pessoa
o espiritismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1983, p. 76-77.
265
BOURDIEU, Pierre; CHARTIER, Roger. A leitura: uma prática cultural. In: CHARTIER, Roger (Org).
Práticas da leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 2001, p. 245.
83
oposição entre oralidade e escrita, e, nem tampouco a classificação da literatura espírita. Para
um estudo mais aprofundado e detalhado sobre o assunto é interessante consultar os trabalhos
de Stoll (1999) e Lewgoy (2000).
266
O autor Bernardo Lewgoy destaca uma passagem da obra La Table, Le Livre et s
Esprits, dos autores Marion Aubrée e François Laplantine que discute o valor capital da
escrita para o Espiritismo destacando, inclusive, o grande sucesso editorial da literatura
espírita no Brasil, já que no período de algumas décadas milhões de exemplares foram
vendidos. Os autores destacam a importância da escrita e da leitura para a identidade espírita
quando relatam que atualmente a prática da leitura é a característica principal do Espiritismo,
e que agora, quem está no centro do desenvolvimento da doutrina é o livro e o mais a mesa.
267
Considerada como um acessório na transmissão das iias, práticas e valores
divulgados pelas diversas correntes que participavam do chamado Espiritualismo Moderno, a
produção literária se transformou em um importante suporte à propagação do movimento
espírita.
268
As primeiras publicações brasileiras aconteceram ainda na época em que Kardec
escrevia alguns dos seus principais títulos doutrinários. Traduzidas para o português, essas
obras começaram a circular no Brasil logo depois. Nesse período, a Livraria Garnier, principal
editora da cidade do Rio de Janeiro, lançou o primeiro título, O Livro dos Espíritos, no ano de
1875. De acordo com o autor Ubiratan Machado, a reação da imprensa local foi de total
rejeição, mas por outro lado, enquanto os intelectuais se mostravam racionalistas e céticos, o
povo, desejoso por soluções mágicas consumiu de forma rápida a publicação. Isso pode ser
comprovado pelo fato da editora Garnier ter lançado no mesmo ano mais duas obras de Allan
Kardec, O Livros dos Médiuns e O Céu e o Inferno.
269
Após esse investimento no setor editorial, o Brasil alcançou uma posição de destaque
no cenário internacional. Segundo um conhecido jornalista da época, João do Rio, por volta
do ano de 1900 circulavam no mundo noventa e seis jornais e revistas espíritas, sendo que
266
Para maiores informações sobre a questão do livro religioso no Brasil, ver também LEWGOY, Bernardo. O
livro religiões no Brasil recente: uma reflexão sobre as estratégias editoriais de espíritas e evangélicos.
Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 6, n. 6, p.51-69, outubro de 2004.
267
LEWGOY, Bernardo. Os espíritas e as letras: um estudo antropológico sobre cultura escrita e oralidade no
espiritismo kardecista. Tese (Doutorado em Antropologia Social) PPGAS, FFLCH, Universidade de São
Paulo. São Paulo, 2000, p.54.
268
STOLL, Sandra Jacqueline. Entre dois mundos: o espiritismo da França e no Brasil. Tese (Doutorado em
Antropologia) FFLCH, Departamento de Antropologia, Universidade de São Paulo. São Paulo, 1999, p. 18.
269
STOLL, Sandra Jacqueline. Entre dois mundos: o espiritismo da França e no Brasil. Tese (Doutorado em
Antropologia) FFLCH, Departamento de Antropologia, Universidade de São Paulo. São Paulo, 1999, p. 38.
84
cinqüenta e seis deles eram editados por toda Europa e dezenove somente no Brasil. Essa
importante posição brasileira foi mantida durante todo o século XX, sobretudo depois do
fenômeno Chico Xavier.
270
A literatura espírita hoje no Brasil representa um importante segmento no mercado de
livros. um universo de milhões de leitores que anualmente compram e lêem os livros
psicografados por Chico Xavier
271
, Zíbia Gasparetto e Vera Lúcia de Carvalho, que estão
entre os médiuns mais famosos do país. A imensa popularidade desta literatura apenas se
compara às obras dos escritores campeões de vendas no Brasil.
272
Para termos uma idéia melhor acerca desse sucesso, basta pegarmos como exemplo o
livro “Violetas na Janela”, psicografado por Vera Lúcia de Carvalho (ed. Petit) que conseguiu
atingir a cifra de duzentos e setenta e cinco mil exemplares vendidos entre os anos de 1994 e
1995, segundo Lewgoy. Esse número é de causar admiração se levarmos em conta que o
Brasil é considerado um país onde o hábito da leitura é pequeno e as tiragens das editoras
alcançam, normalmente, cerca de poucos milhares de exemplares. O livro Nosso lar”,
psicografado por Chico Xavier, com certeza o principal escritor mediúnico do Brasil, foi
editado pela primeira vez em 1944 e ao completar cinqüenta anos ganhou uma edição
comemorativa de um milhão de exemplares. Assim como os livros de Chico Xavier (que
possui cerca de 400 obras), também os de Divaldo Franco, Zíbia Gasparetto e Ivone Pereira
estão presentes em qualquer livraria espírita do país, o que demonstra e confirma a
popularidade desse tipo de literatura.
273
Segundo informações atuais da FEB, seu Departamento Editorial conta com um
catálogo de mais de 400 títulos que somam quase 40 milhões de volumes vendidos. Todas as
obras são inspiradas na Codificação Kardequiana: romances, mensagens, contos, crônicas,
textos científicos e filoficos. São quase 39 milhões de obras, 160 autores, mais de 15
milhões de livros de Allan Kardec, títulos traduzidos para o espanhol, francês, inglês,
esperanto e húngaro.
274
270
STOLL, Sandra Jacqueline. Entre dois mundos: o espiritismo da França e no Brasil. Tese (Doutorado em
Antropologia) FFLCH, Departamento de Antropologia, Universidade de São Paulo. São Paulo, 1999, p. 38.
271
Para saber mais sobre Chico Xavier e sua influência na cultura do Brasil ver LEWGOY, Bernardo. O livro
religioso no Brasil recente: uma reflexão sobre as estratégias editoriais de espíritas e evangélicos. Ciências
Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 6, n. 6, p.51-69, outubro de 2004.
272
LEWGOY, Bernardo. A antropologia pós-moderna e a produção literária espírita. Horizontes
Antropológicos. Porto Alegre, ano 4, n. 8, p. 87-88, junho de 1998.
273
LEWGOY, Bernardo. A antropologia pós-moderna e a produção literária espírita. Horizontes
Antropológicos. Porto Alegre, ano 4, n. 8, p. 95-96, junho de 1998.
274
Cf. em http://www.febnet.org.br/site/livros
85
O livro mais vendido é o Evangelho segundo o Espiritismo com 3.878.000
exemplares. Os livros psicografados por Francisco Cândido Xavier ultrapassam 18 milhões
em vendas. Destes, Nosso Lar, ditado pelo Espírito André Luiz, superou a marca de 1,6
milhão de exemplares. Outros autores, pensadores brasileiros e europeus dos séculos XIX e
XX e livros infantis, correspondem a mais de 13 milhões de exemplares. A FEB comercializa
uma parte dos livros e a outra é doada para instituições espíritas, que, segundo a federação,
sua prioridade consiste em dar apoio ao Movimento Espírita.
275
Lewgoy informa, segundo os autores Aubrée e Laplantine, que as vendas das obras de
Allan Kardec no Brasil, num período de poucas décadas, alcançaram o patamar de vários
milhões de exemplares. Esse fenômeno está relacionado ao sistema de representações e
práticas do Espiritismo, tanto em seu berço francês quanto na sociedade brasileira.
276
Portanto, o Espiritismo é, em grande parte, uma religo do livro e da leitura. A
própria freqüência ao centro espírita implica numa relação bastante intensa com a literatura, a
qual possui um estatuto singular que se relaciona com a construção da autoridade das
mensagens escritas e que a própria escrita mediúnica nasce com um objetivo doutrinal
dentro de uma experiência fortemente ritualizada, que é a psicografia.
277
Bernardo Lewgoy, embasado em um artigo do autor Luis Eduardo Soares, analisa a
psicografia que é um rito a partir do qual se produz a escrita mediúnica. De acordo com
Lewgoy, Soares, em seu trabalho, atenta para duas importantes situações. A primeira delas é
sobre o estatuto do ritual psicográfico, assimilado ao campo do sacrifício, onde o objeto
sacrificado é a própria individualidade do médium, sendo esta a responsável pela eficiência do
ritual. A segunda situação se quando o autor introduz analogias entre a psicografia e as
teorias artísticas da tradição romântica, fundadas nas noções de contágio e inspiração, que
insinuam a transcendência da individualidade no ato criador. No romantismo o ato de criação
tem o artista como médium de um estado afetivo ou espiritual distante de sua dimensão
consciente e planejada, como se fosse um “outro” inconsciente da etapa de criação. Assim
acontece na psicografia, pois é também um outro” que se insinua transcendendo a
individualidade do médium em instantes de inspiração. De qualquer maneira, apesar da
produção de mensagens não acontecer de forma desregrada e espontânea de estados da alma,
ela se inclui numa experiência ritualizada e codificada pela tradição kardecista. no Livro
275
Consultar: http://www.febnet.org.br/site/livros
276
LEWGOY, Bernardo. A antropologia pós-moderna e a produção literária espírita. Horizontes
Antropológicos. Porto Alegre, ano 4, n. 8, p. 96, junho de 1998.
277
LEWGOY, Bernardo. A antropologia pós-moderna e a produção literária espírita. Horizontes
Antropológicos. Porto Alegre, ano 4, n. 8, p. 97, junho de 1998.
86
dos Espíritos, Kardec dedicou um capítulo para a escrita psicográfica, conferindo-lhe um
lugar privilegiado dentre os tipos de comunicação espiritual. No universo espírita, as reuniões
quase sempre possuem um momento de escrita psicográfica, onde os médiuns recebem
mensagens de espíritos superiores, também chamados de espíritos de luz. Esse lugar
privilegiado que a escrita ocupa no Espiritismo, remete à oposição entre o oral e o
escrito
278
que se percebe dentro de seu sistema de representações, oposição hierárquica que
confere o seu sentido a partir da escrita adotada como valor e das representações e práticas
criadas na superioridade da cultura letrada. É comum os espíritos superiores se manifestarem
por meio de mensagens escritas (ainda que esta não seja a única forma de comunicação), ao
contrário dos chamados espíritos obsessores ou de pouca luz, que se manifestam sobretudo no
plano oral, isto é, através da fala. Soares então, segundo Lewgoy, deixa evidente que a
Doutrina Espírita pode ser entendida não somente como uma religião do livro, mas também
como uma orientação religiosa que enfatiza as práticas de leitura e de escrita como um
componente essencial de sua identidade.
279
Em relação à sugestão de Soares sobre o papel da inspiração romântica na concepção
kardecista, Lewgoy chama a atenção para uma reelaboração desta vertente literária no
Espiritismo, que apaga os vestígios de uma expressão de estados mentais obscuros para se
prender num “outro” codificado, criando uma relação de depenncia entre o médium
instrumento e o espírito que transmite a mensagem. Nessa relação mediúnica, maior será a
expectativa de sucesso da psicografia se ela acontecer de forma menos desregrada e mais sob
o controle ritual, porque a psicografia, mesmo que se deixe influenciar por uma certa
participação no ramo literário, possui o seu fio condutor de articulação sustentado mais pela
idéia de revelação do que pela glamurização romântica do escritor.
280
Isso quer dizer que,
é mais fácil entender a psicografia se atentarmos para a dimeno religiosa, que
deita raízes na redação bíblica, do que se nos fartarmos de comparações com a
intuição literária.
281
278
Para maiores detalhes sobre essa questão consultar o capítulo I de LEWGOY, Bernardo. Os espíritas e as
letras: um estudo antropológico sobre cultura escrita e oralidade no espiritismo kardecista. Tese (Doutorado
em Antropologia Social) PPGAS, FFLCH, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2000
279
LEWGOY, Bernardo. Os espíritas e as letras: um estudo antropológico sobre cultura escrita e oralidade no
espiritismo kardecista. Tese (Doutorado em Antropologia Social) PPGAS, FFLCH, Universidade de São
Paulo. São Paulo, 2000, p. 118-120.
280
LEWGOY, Bernardo. Os espíritas e as letras: um estudo antropológico sobre cultura escrita e oralidade no
espiritismo kardecista. Tese (Doutorado em Antropologia Social) PPGAS, FFLCH, Universidade de São
Paulo. São Paulo, 2000, p. 120.
281
LEWGOY, Bernardo. Os espíritas e as letras: um estudo antropológico sobre cultura escrita e oralidade no
espiritismo kardecista. Tese (Doutorado em Antropologia Social) PPGAS, FFLCH, Universidade de São
Paulo. São Paulo, 2000, p. 120.
87
As conexões românticas entre doença, amor e morte, também se encontram nos
romances mediúnicos, mas a linguagem e onero literário escolhidos passam por uma
instrumentalização ao transmitirem a Doutrina Espírita em relatos narrativos. Assim, a partir
de uma teoria da inspiração com base no Romantismo, o kardecismo ressignificou os seus
temas e suas habilidades narrativas, como o fez com a literatura de folhetim, apresentando
coerência na relão entre linguagem e pensamento nesta religião, produzindo um tipo de
romance de tese” kardecista. É bom lembrar que nesse tipo de romance os descomedimentos
das paixões, são aos poucos substituídos pelo estabelecimento de relações de causa e efeito
baseados nas noções espíritas de carma, dívidas, faltas, missões, resgates e programão
divina.
282
As principais características da concepção de um romance de tese doutrinário são:
1) Uma obra de um autor espiritual supõe que o autor tenha tido uma identidade
terrestre na encarnação anterior. Por exemplo, o espírito de André Luiz que
transmite suas mensagens ao médium Chico Xavier.
2) Um médium de grande credibilidade é necessário que sua vida pessoal
exemplifique modelarmente os valores e o ethos espírita, no que diz respeito às
faculdades de que é dotado, ou seja, as suas capacidades mediúnicas, e também à
sua história de vida.
3) Um texto que movimente um agrupamento de códigos lingüísticos, discursivos e
narrativos que registre na forma escrita uma tradição bibliográfica e erudita,
presente, principalmente por meio de uma cultura da citação e do comentário, isto
é, de uma competente dinâmica intertextual. O leitor é estimulado a ver o texto
como parte de um todo organizado, de um none que já conhece.
283
Junto à autoridade de mensagens de cunho moral aparece, desde a época de Allan
Kardec, um conjunto de narrativas que confirma, por meio de testemunhos biográficos de
espíritos, os motivos para as dores e as alegrias sofridas em vida, assim como as diversas
282
LEWGOY, Bernardo. Os espíritas e as letras: um estudo antropológico sobre cultura escrita e oralidade no
espiritismo kardecista. Tese (Doutorado em Antropologia Social) PPGAS, FFLCH, Universidade de São
Paulo. São Paulo, 2000, p. 120-121.
283
LEWGOY, Bernardo. Os espíritas e as letras: um estudo antropológico sobre cultura escrita e oralidade no
espiritismo kardecista. Tese (Doutorado em Antropologia Social) PPGAS, FFLCH, Universidade de São
Paulo. São Paulo, 2000, p. 136-137.
88
condições em que se encontram após a morte, sendo esta a raiz religiosa e narrativa dos
romances mediúnicos.
284
O autor Bernardo Lewgoy vai ainda mais fundo nessa análise do romance mediúnico
quando nos informa que este implica em uma especialização da mediunidade, coroada por
rias crenças acerca da origem da missão do médium que psicografa. Existem, inclusive,
alguns livros espíritas que tratam essa questão, como por exemplo, o livro Devassando a
mediunidade (1963), da médium Yvone Pereira. Nessa obra os textos, ou produtos de
qualquer atividade intelectual ou artística, podem ser classificados como anímicos ou
mediúnicos. As obras anímicas são provenientes da individualidade livre do artista, e as
mediúnicas se originam de forma direta, sob transe ou de forma indireta, sob inspiração,
porém, é bastante perceptível um claro privilégio da comunicação espiritual nas explicações
espíritas a respeito da origem da obra de arte. De qualquer forma, a literatura psicografada
tem como fuão anunciar verdades, pois para os adeptos da Doutrina Espírita ela é entendida
como um instrumento a serviço da revelação, através do qual, ensinamentos e mensagens são
transmitidos ainda que o meio utilizado seja o romance.
285
A partir dos anos 60 surge um novo formato editorial associado a uma tentativa de
tornar popular a linguagem empregada nos livros espíritas. Isso ocorre devido à popularização
da literatura e da linguagem de Chico Xavier que começou a ganhar força com a publicação
de mensagens de mortos pertencentes a famílias que iam à cidade de Uberaba, em Minas
Gerais, na tentativa de conseguir uma comunicação com o ente falecido. O sucesso desse tipo
de obra, de mensagens ou testemunhos, permanece ainda nos dias de hoje.
286
Após esse período e, principalmente, depois dos anos 80, percebe-se uma propagação
do Espiritismo em direção a um blico de camadas dias, muitos dos quais nem ao menos
cultivavam o bito da leitura. Esse movimento, que se mistura com o período de redefinição
das grandes linhas do mercado editorial no Brasil, se deu juntamente com uma adequação da
linguagem e do formato dos livros. Nesse contexto aparecem editoras como a Petit, criada em
1982, que adotando uma linguagem bem mais simples e ágil, se comparadas ao padrão mais
puro da FEB, encaixam-se no objetivo de alcançar o leitor não-espírita e medianamente
284
LEWGOY, Bernardo. Os espíritas e as letras: um estudo antropológico sobre cultura escrita e oralidade no
espiritismo kardecista. Tese (Doutorado em Antropologia Social) PPGAS, FFLCH, Universidade de São
Paulo. São Paulo, 2000, p. 121.
285
LEWGOY, Bernardo. Os espíritas e as letras: um estudo antropológico sobre cultura escrita e oralidade no
espiritismo kardecista. Tese (Doutorado em Antropologia Social) PPGAS, FFLCH, Universidade de São
Paulo. São Paulo, 2000, p. 121-122.
286
LEWGOY, Bernardo. Os espíritas e as letras: um estudo antropológico sobre cultura escrita e oralidade no
espiritismo kardecista. Tese (Doutorado em Antropologia Social) PPGAS, FFLCH, Universidade de São
Paulo. São Paulo, 2000, p. 124.
89
letrado. Percebemos então, que acontece de fato uma mudança, pois se no período anterior o
romance espírita agregava as funções de instruir e consolar, com os anos 80, além disso tudo,
o romance espírita passa a apresentar a função de entreter como legítima em sua proposta
literária.
287
Assim, pode-se dizer que a divulgação do livro espírita ocorre concomitantemente a
um significativo aumento na quantidade de editoras e de uma modernização popularizante de
sua linguagem, o que faz com que um público maior seja atingido. Esse blico, porém, não
deixa de se espelhar na doutrina, mas modifica o seu perfil de leitura, não mais identificado
somente com o estilo literário corporificado nas obras mais antigas de Chico Xavier. É claro
que ele ainda é o grande consenso do Espiritismo no Brasil, sendo, inclusive, o nome mais
citado nos centros espíritas, depois de Allan Kardec e antes de Divaldo Franco. De qualquer
forma, o leitor pode conduzir sua leitura começando, por exemplo, com Violetas na Janela e
passando para o Nosso Lar sem que se perceba mudança no conteúdo, mas sim na linguagem,
o que indica que existem diversos modelos de linguagem escrita que, no entanto, sustentam
um conteúdo doutrinário comum.
288
É relevante destacar, de uma maneira geral, de que forma é realizada a leitura dos
romances mediúnicos. Estes são lidos e entendidos como representações fiéis de uma
dimensão espiritual, que o somente possui a mesma realidade da crença do público leitor
como também incute profundidade a esta crença. Esse tipo de leitura pode, inclusive,
representar uma etapa de adesão a um sistema de significados onde todas as esferas da vida do
converso vão, gradativamente, ganhando novo sentido à luz desta crença.
289
A leitura espírita é diferente de outros tipos de literatura, pois o se lê um livro como
Nosso Lar da mesma forma como se leria Carlos Drummond de Andrade, Jorge amado,
Clarice Lispector ou Paulo Coelho. Ainda que casualmente os leitores sejam os mesmos, o
horizonte de referência e as questões direcionadas aos neros são distintos. O público de
romances espíritas busca a continuidade literária de um tipo de vivência relacionada à
cosmologia própria do Espiritismo, ou seja, que dê um maior enfoque a realidade da vida após
a morte, reencarnação e a confirmação da vigência das leis morais que regem o universo
287
LEWGOY, Bernardo. Os espíritas e as letras: um estudo antropológico sobre cultura escrita e oralidade no
espiritismo kardecista. Tese (Doutorado em Antropologia Social) PPGAS, FFLCH, Universidade de São
Paulo. São Paulo, 2000, p. 124-125.
288
LEWGOY, Bernardo. Os espíritas e as letras: um estudo antropológico sobre cultura escrita e oralidade no
espiritismo kardecista. Tese (Doutorado em Antropologia Social) PPGAS, FFLCH, Universidade de São
Paulo. São Paulo, 2000, p. 125-126.
289
LEWGOY, Bernardo. Os espíritas e as letras: um estudo antropológico sobre cultura escrita e oralidade no
espiritismo kardecista. Tese (Doutorado em Antropologia Social) PPGAS, FFLCH, Universidade de São
Paulo. São Paulo, 2000, p. 152.
90
espírita, sem, contudo, desagregar o prazer literário da busca de um aprendizado esclarecedor,
que contribua para enriquecer a identificação com este sistema religioso, utilizando para isso
um tipo de literatura na qual se busca a verossimilhança e não a riqueza literária ou a inovação
formal.
290
Como já foi mencionado anteriormente, a relação do Espiritismo com a cultura letrada
se faz perceber desde os tempos em que a doutrina chegou ao Brasil no século XIX. Suas
práticas, a princípio disseminadas entre a elite imperial, aos poucos foram se espalhando para
outras camadas da população, principalmente nos segmentos dios urbanos das grandes e
dias cidades brasileiras, atraindo especialmente profissionais do serviço público, como
funcionários e militares de carreira, e se estendendo para alcançar, sobretudo, advogados e
dicos. De acordo com Lewgoy,
Pessoas que podiam ler e comprar livros e jornais, necessários à uma participação
nas atividades espíritas, que sempre incluiu a mediunidade psicográfica e receitista,
bem como a discussão das obras de Kardec entre suas tarefas. Trata-se
historicamente de uma religião de letrados, ou de pessoas que passaram pela
escola.
291
Assim, pode-se concluir, que a literatura espírita, dimensão essencial da cultura e do
movimento religioso kardecista no Brasil, é de grande importância para o movimento espírita,
pois além de fomentar uma grande discursividade junto ao seu público leitor, também
desempenha o papel de manter e difundir o Espiritismo no país.
292
290
LEWGOY, Bernardo. Os espíritas e as letras: um estudo antropológico sobre cultura escrita e oralidade no
espiritismo kardecista. Tese (Doutorado em Antropologia Social) PPGAS, FFLCH, Universidade de São
Paulo. São Paulo, 2000, p. 149.
291
LEWGOY, Bernardo. Os espíritas e as letras: um estudo antropológico sobre cultura escrita e oralidade no
espiritismo kardecista. Tese (Doutorado em Antropologia Social) PPGAS, FFLCH, Universidade de São
Paulo. São Paulo, 2000, p. 115.
292
LEWGOY, Bernardo. Os espíritas e as letras: um estudo antropológico sobre cultura escrita e oralidade no
espiritismo kardecista. Tese (Doutorado em Antropologia Social) PPGAS, FFLCH, Universidade de São
Paulo. São Paulo, 2000, p. 152.
91
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Espiritismo é uma opção religiosa típica de classes médias urbanas, que enfatiza o
saber letrado e a formação erudita, valorizando a todo o instante as práticas de estudo e
leitura. O público espírita é o mais escolarizado entre as religiões de maior expressão
nacional, movimentando um forte mercado editorial que conta com um grande número de
editoras, nacionais e regionais, antigas e novas. Seus livros encontram uma boa aceitação,
inclusive entre o público não-espírita, podendo ser encontrados em livrarias próprias, livrarias
comuns, bancas de revistas e postos de venda de livros em centros espíritas.
293
Francisco Cândido Xavier psicografou livros por mais de sessenta anos. No ano de
1993 deu por encerrada a sua carreira editorial contabilizando um total de 378 títulos
publicados. Todas as suas obras foram reeditadas, alcançando um patamar de vendas que
supera a média nacional. Portanto, antes mesmo do boom editorial dos livros de auto-ajuda,
anjos, tarô, astrologia, cabala etc., os livros psicografados por Chico Xavier já eram
considerados best-sellers.
294
A vida após a morte é um tema recorrente nas obras espíritas. Apesar de não se tratar
de uma invenção do Espiritismo, come uma das teses fundamentais de sua doutrina. De
qualquer maneira, não deixa de ser original a forma pela qual a teoria da imortalidade da alma
se insinua no Espiritismo, que este sustenta essa crença tendo por base a manifestação
direta dos espíritos. Isso se através de fenômenos sicos (produção de sons, deslocamento
de objetos e materialização de espíritos) ou através de formas mais complexas de
comunicação, como por exemplo, a manifestação oral, escrita e artística. Allan Kardec
atribuía fuão doutrinária a essas manifestações dos espíritos, mas dentre elas, considerava a
escrita como a mais eficiente na transmissão de valores morais.
295
A literatura espírita, então, carrega em si diversas funções que vão do proselitismo à
iniciação, da formação de identidades sociais à produção de diferenças, dentro e fora do
293
LEWGOY, Bernardo. O livro religioso no Brasil recente: uma reflexão sobre as estratégias editoriais de
espíritas e evangélicos. Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 6, n. 6, p.51-69, outubro de 2004, p. 56.
294
STOLL, Sandra Jacqueline. Entre dois mundos: o espiritismo da França e no Brasil. Tese (Doutorado em
Antropologia) FFLCH, Departamento de Antropologia, Universidade de São Paulo. São Paulo, 1999, p. 67.
295
STOLL, Sandra Jacqueline. Entre dois mundos: o espiritismo da França e no Brasil. Tese (Doutorado em
Antropologia) FFLCH, Departamento de Antropologia, Universidade de São Paulo. São Paulo, 1999, p. 67.
92
movimento espírita. Literatura
, texto e escrita exercem um papel de fundamental importância
para a socialização e o cotidiano dos adeptos do Espiritismo.
296
Na sociedade moderno-contemporânea, a construção do indivíduo e de sua
subjetividade, cada vez mais acontece por meio de pertencimento e participação em múltiplos
mundos sociais e níveis de realidade. Dessa forma, a viagem, como bem denominou o autor
Gilberto Velho, pode se dar internamente a uma sociedade específica diferenciada, sem que
isso signifique, necessariamente, um deslocamento geográfico, mas, principalmente um
trânsito entre subculturas, mundos sociais, tipos de ethos ou, até mesmo, entre papéis sociais
do mesmo indivíduo.
297
Giumbelli, em um artigo que analisa a contribuição do autor Clifford Geertz para o
estudo da religião, lembra que para Geertz a religião articula duas dimensões que estão
presentes em todo e qualquer grupo e de acordo com as especificidades pelas quais cada uma
das culturas se estabelece. Uma é a visão de mundo, que remete para a metafísica, a
cosmologia e a ontologia, ou seja, para as noções mais abrangentes sobre ordem. A outra
dimensão é o ethos, que evoca os valores, o estilo de vida e as disposições morais e estéticas.
A religião então, se encarrega de fundir essas duas dimensões fazendo com que elas se
confrontem e se confirmem mutuamente.
298
A partir daí,
o ethos torna-se intelectualmente razoável porque é levado a representar um tipo de
vida implícito no estado de coisas real que a visão de mundo descreve, e a visão de
mundo torna-se emocionalmente aceivel por se apresentar como imagem de um
verdadeiro estado de coisas do qual esse tipo de vida é expressão autêntica. Essa
demonstração de uma relação significativa entre os valores que o povo conserva e a
ordem geral da existência dentro da qual ele se encontra é um elemento essencial
em todas as religiões, como quer que esses valores ou essa ordem sejam
concebidas. O que quer que a religião possa ser, além disso, ela é, em parte, uma
tentativa (de uma espécie implícita e diretamente sentida, em vez de explícita e
conscientemente pensada) de conservar a provio de significados gerais em
termos dos quais cada indivíduo interpreta sua experiência e organiza sua
conduta.
299
296
LEWGOY, Bernardo. Os espíritas e as letras: um estudo antropológico sobre cultura escrita e oralidade no
espiritismo kardecista. Tese de Doutorado PPGAS, FFLCH, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2000, p.
23, 24 e 27.
297
VELHO, Gilberto. Biografia, trajetória e mediação. In: VELHO, Gilberto; KUSCHNIR, Karina (Org).
Mediação, cultura e potica. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2001, p.20.
298
GIUMBELLI, Emerson. Geertz: a religião e a cultura. In: TEIXEIRA, Faustino (Org). Sociologia da
religião: enfoques teóricos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003, p. 208-209.
299
GEERTZ, Clifford. ”Ethos”, Visão de Mundo e a Análise de Símbolos Sagrados. In: A interpretação das
culturas. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1973, p. 144.
93
É possível então, perceber que essa grande valorização do estudo, com grande
incentivo a leitura, faz parte, juntamente com outros aspectos, da construção e manutenção
desse ethos e visão de mundo tão cultivados pelos espíritas.
300
Esse ethos de discrição,
seriedade, controle, intelectualidade e paciência é o que, de fato, serve para diferenciar o
Espiritismo de outras religiões mediúnicas, conferindo a ele, inclusive, certo status social.
Se nos reportarmos a ndido Procópio de Camargo, veremos que em sua opinião, o
Espiritismo, além de representar a iia de evolução moral e doutrinária, significa também um
caminho para que o indivíduo consiga alcançar melhor status e ascender socialmente.
301
Em Juiz de Fora, nos dias de hoje, o Espiritismo é responsável por colocar em
evidência algumas pessoas, pois afinal de contas, ser espírita é uma forma de ser também um
intelectual. Para alguns adeptos, esse sistema religioso realmente representa status, pois faz
com que eles se tornem reconhecidos e dignos de serem consultados por outras pessoas acerca
dos mais variados assuntos.
302
De acordo com depoimentos de espíritas juizforanos prestados à Simone Oliveira, a
classificação do Espiritismo como uma doutrina de elite existe basicamente em decorrência
do fato de que esta camada social sempre teve acesso ao mundo intelectual, freqüentando as
melhores escolas, sobretudo no período do final do século XIX e princípio do XX. Apesar
disso, os adeptos da Doutrina Espírita acreditam que aqueles que não fazem parte da elite,
mas se esforçam e estudam, conseguem sim vir a ser grandes espíritas. Na realidade, a
dificuldade em se chegar às camadas sociais menos ilustradas é motivo de preocupação para
os espíritas que temem pela divulgação distorcida da sua doutrina.
303
Nos últimos anos houve uma dedicação mais intensa ao trabalho de propagação do
Espiritismo nos bairros mais afastados do centro da cidade mineira. Isso aconteceu no intuito
de atender ao interesse dos centros espíritas, já conhecidos e devidamente estabelecidos, de
300
Nos dois centros observados, quando precisei conversar com os responsáveis para informar sobre a pesquisa,
ficou evidente, em ambos os casos, uma grande necessidade por parte da pessoa que me atendeu, de
demonstrar profundo conhecimento sobre a Doutrina Espírita e também sobre fatos atuais. Era como se eu
estivesse assistindo a uma aula, que essas pessoas demonstravam conhecimento inclusive no campo de
pesquisas acadêmicas, chegando mesmo a me dar sugestões quanto ao trabalho. O tema da importância e da
necessidade do homem de se instruir estava sempre presente durante as conversas.
301
CAMARGO, Candido Procópio Ferreira de. Católicos, protestantes, espíritas. Petrópolis, RJ: Editora
Vozes, 1973, p. 172.
302
OLIVEIRA, Simone G. de. O espiritismo em Juiz de Fora: do surgimento à consolidação de uma “religião”.
In: TAVARES, Fátima R. Gomes; CAMURÇA, Marcelo Ayres (Org). Minas das devoções: diversidade
religiosa em Juiz de Fora. Juiz de Fora: UFJF/PPCIR, 2003, p. 153.
303
OLIVEIRA, Simone G. de. O espiritismo em Juiz de Fora: do surgimento à consolidação de uma “religião”.
In: TAVARES, Fátima R. Gomes; CAMURÇA, Marcelo Ayres (Org). Minas das devoções: diversidade
religiosa em Juiz de Fora. Juiz de Fora: UFJF/PPCIR, 2003, p. 153-154.
94
expandir a divulgação da sua doutrina, porém sempre com o cuidado de procurar manter uma
certa uniformidade para o movimento espírita de Juiz de Fora.
304
Essa popularização do Kardecismo obteve grande êxito com o modelo de Espiritismo
de Chico Xavier, ainda que a religo continuasse a ser dominada, em sua maioria, por
segmentos intelectualizados da população. Chico Xavier conseguiu atingir as pessoas que
faziam parte de uma religiosidade popular, marcada pelo catolicismo, pela benzeção e pelos
cultos afro-brasileiros, e que não dispunham de recursos culturais e simbólicos que lhe
favorecessem criar uma identidade espírita, mesmo que já fizessem uso dela como recurso de
cura.
305
O modelo de Chico Xavier ofereceu uma alternativa religiosa de pertencimento à
sociedade brasileira com uma plena identificação com símbolos laicos de ordem,
como a nação, bem como com estratégias de prestígio e distinção ligados à posse
de um capital cultural que valorizava a leitura, o estudo, a erudição e a ciência de
tanto valor nas sociedades contemporâneas. Ele permite ao fiel viver a integridade
de uma relação com um ethos religioso tradicional pleno de hierarquias,
mediações, súplicas a santos, mas também sentir-se participando do mundo da alta
cultura, dos saberes escolares, da erudição e dos conhecimentos científicos, ou seja,
tudo aquilo que goza da reputação que a educação confere.
306
É por isso que acertadamente se fala que o Espiritismo é uma religião dos livros, da
leitura e da escrita, ou seja, uma religião intensamente relacionada com a cultura letrada.
Pensamos então, que essa importante característica do universo espírita, mereça ser alvo de
maiores estudos e investigações, já que apresenta um leque variado de possíveis
interpretações e análises. A intenção primeira desse trabalho foi exatamente a de mostrar,
através de um panorama geral, que diferentemente de outras religiões também letradas, a
Doutrina Espírita consegue se sobressair no que diz respeito à valorização da prática do
estudo e da instrução, fazendo com que essa atitude, com certeza, lhe confira uma identidade
peculiar.
304
OLIVEIRA, Simone G. de. O espiritismo em Juiz de Fora: do surgimento à consolidação de uma “religião”.
In: TAVARES, Fátima R. Gomes; CAMURÇA, Marcelo Ayres (Org). Minas das devoções: diversidade
religiosa em Juiz de Fora. Juiz de Fora: UFJF/PPCIR, 2003, p. 154.
305
LEWGOY, Bernardo. Os espíritas e as letras: um estudo antropológico sobre cultura escrita e oralidade no
espiritismo kardecista. Tese (Doutorado em Antropologia Social) PPGAS, FFLCH, Universidade de São
Paulo. São Paulo, 2000, p. 221.
306
LEWGOY, Bernardo. Os espíritas e as letras: um estudo antropológico sobre cultura escrita e oralidade no
espiritismo kardecista. Tese (Doutorado em Antropologia Social) PPGAS, FFLCH, Universidade de São
Paulo. São Paulo, 2000, p. 222.
95
Vale lembrar que o crescimento do Kardecismo não significa um boom, como é o caso
dos evangélicos, mas é parte importante do desenvolvimento da pluralidade religiosa
brasileira representando, inclusive, um de seus principais símbolos.
307
Isso reforça o fato de que o fundamental não é ter conhecimento de quantas pessoas na
sociedade brasileira se declaram publicamente como espíritas, umbandistas, católicos etc.,
mas ter a capacidade de perceber o significado desse conjunto de crenças e,
consequentemente, a sua importância para construções sociais da realidade em nossa cultura.
308
De qualquer maneira, sejam quais forem os motivos e os sentidos do crescimento dessa
doutrina, o se pode deixar de constatar que o Espiritismo demonstra sinais de renovada
vitalidade no campo religioso do Brasil atual.
309
Diante de tudo que foi dito, podemos concluir que embora o Espiritismo seja
considerado uma doutrina intelectualizada, não quer dizer que não se possa fazer parte do
mesmo sem que necessariamente se mergulhe em sua cultura letrada. Ao contrário, existe uma
variedade de formas de crer e participar desse movimento, mas o há como explorar as
possibilidades mais valorizadas de participação no Espiritismo sem adquirir um certo cultivo
literário, pressuposto na prática de leitura das obras espíritas. Nesse sentido, mesmo não
construindo escolas espíritas a Doutrina Espírita consegue trazer a escola para dentro de si,
estimulando os hábitos e valores implicados por essa singular ênfase na mediação letrada.
310
307
LEWGOY, Bernardo. Os espíritas e as letras: um estudo antropológico sobre cultura escrita e oralidade no
espiritismo kardecista. Tese (Doutorado em Antropologia Social) PPGAS, FFLCH, Universidade de São
Paulo. São Paulo, 2000, p. 178.
308
VELHO, Gilberto. Indivíduo e religião na cultura brasileira: sistemas cognitivos e sistemas de crença, In:
Projeto e metamorfose: antropologia das sociedades complexas. 2 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores,
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309
LEWGOY, Bernardo. Os espíritas e as letras: um estudo antropológico sobre cultura escrita e oralidade no
espiritismo kardecista. Tese (Doutorado em Antropologia Social) PPGAS, FFLCH, Universidade de São
Paulo. São Paulo, 2000, p. 178.
310
LEWGOY, Bernardo. Os espíritas e as letras: um estudo antropológico sobre cultura escrita e oralidade no
espiritismo kardecista. Tese (Doutorado em Antropologia Social) PPGAS, FFLCH, Universidade de São
Paulo. São Paulo, 2000, p. 342.
96
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de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2009.
1. Espiritismo. 2. Doutrina. 3. Mediunidade. I. Título.
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