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FUNDAÇÃO EDSON QUEIROZ
UNIVERSIDADE DE FORTALEZA UNIFOR
Vice-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação VRPPG
Mestrado em Psicologia
MARIA EDVÂNIA DE ARAÚJO LEITE
CORPO DEPRIMIDO:
Um Estudo sobre Corpo Vivido e Depressão sob
a Lente da Fenomenologia de Merleau-Ponty
DEPRESSED BODY:
A Study about Lived Body and Depression under the Prism of
Merleau-Ponty’s Phenomenology
Fortaleza
Universidade de Fortaleza UNIFOR
2009
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2
MARIA EDVÂNIA DE ARAÚJO LEITE
CORPO DEPRIMIDO:
Um Estudo sobre Corpo Vivido e Depressão sob
a Lente da Fenomenologia de Merleau-Ponty
DEPRESSED BODY:
A Study about Lived Body and Depression under the Prism of
Merleau-Ponty’s Phenomenology
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado
em Psicologia da Universidade de Fortaleza
UNIFOR, como requisito parcial à obtenção do
título de Mestre em Psicologia.
Linha de Pesquisa: Produção e Expressão
Sociocultural da Subjetividade
Orientadora: Profª. Dra. Virgínia Moreira
Universidade de Fortaleza
Fortaleza
Universidade de Fortaleza - UNIFOR
2009
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4
Imagine a pior dor que existe, que você já
sentiu...E a depressão é dez vezes mais!
Mauro Sujeito Colaborador
5
AGRADECIMENTOS
A gratidão é a base para uma existência plena e feliz!
Obrigada a todos que se fizeram presentes em minha vida e me
acompanharam nesta jornada:
À Profa. Virgínia Moreira, por criar um espaço de “Apheto” na orientação deste
trabalho.
Aos membros da banca examinadora Profª Drª Iaraci Advíncula e Prof. Dr.
Georges Boris pela valorosa contribuição a esta pesquisa.
Aos participantes do APHETO - Laboratório de Psicopatologia e Psicoterapia
Humanista Fenomenológica Crítica, pela parceria no aprendizado.
À Coordenação do Mestrado em Psicologia, na pessoa do Prof. Henrique
Figueiredo Carneiro, pelo exemplo de dedicação e incentivo à pesquisa.
Aos Professores do Mestrado em Psicologia, pela presença inspiradora.
À Caroline Vasconcelos, pela presença marcante e parceria dedicada que
resultaram em descobertas, ideias e avanços na construção desta pesquisa.
À Regina Cláudia Eufrásio, pela amizade conquistada, pelo apoio e incentivo
nos momentos mais difíceis deste percurso.
Ao Serviço de Psicologia Aplicada da UNIFOR, por permitir a realização desta
pesquisa.
Aos sujeitos colaboradores desta pesquisa, pelo desprendimento em dividir
suas experiências e me permitirem compreender melhor o fenômeno do corpo
deprimido.
Ao meu marido Wesley, pela compreensão, apoio, generosidade e paciência.
Aos meus filhos Mariana e João Marcos, pela presença inspiradora em minha
vida.
À FUNCAP, pelo apoio financeiro.
6
RESUMO
Esta pesquisa tem como objetivo compreender e discutir o significado da
experiência vivida do corpo deprimido, investigando o fenômeno da depressão
no corpo vivido ou corpo próprio, sob a lente da Fenomenologia de Merleau-
Ponty (1945/2006). A relevância deste tema consiste na importância que o
fenômeno da depressão vem atingindo na atualidade, sendo alvo de crescente
preocupação, devido à sua incidência e ao aumento dos índices
epidemiológicos (Nascimento, 1999; Lafer & Amaral, 2000; WHO, 2008). Ao
compreender tal fenômeno do ponto de vista da psicopatologia
fenomenológica, a dissertação aponta a necessidade de superação do modelo
tradicional da psicopatologia, propondo, a partir do contato com a experiência
vivida das pessoas deprimidas, um enfoque que priorize a ruptura com o
paradigma da dualidade, e que não conceba o homem como um organismo
puramente biológico, mas imbricado em sua história e sua cultura. Para atingir
os objetivos propostos, foi realizada uma pesquisa qualitativa, utilizando o
método fenomenológico mundano que toma por base a Fenomenologia de
Merleau-Ponty. A pesquisa revelou que o fenômeno da depressão é de difícil
descrição pelos pacientes, e que eles a reconhecem a partir de sinais do seu
corpo. No entanto, a noção de corpo de tais pacientes consiste na divisão em
mente e físico, o que prejudica a sua correlação entre corporeidade e
existência. Os depoimentos dos sujeitos colaboradores revelaram ainda: que a
depressão é considerada um fenômeno exterior ao sujeito; que a postura e o
ritmo corporais de tais sujeitos é marcado pelo isolamento, pela lentidão e pela
estagnação; que eles vivem uma relação paradoxal com a morte; que a sua
autoestima e o seu valor pessoal encontram-se profundamente comprometidos;
que eles carregam um sentimento de despotencialização e de culpa e que
estabelecem uma barreira na sua relação com o outro. Concluo que o olhar
para o corpo deprimido sob a lente da Fenomenologia de Merleau-Ponty pode
contribuir para uma compreensão da depressão como expressão da existência
dos indivíduos não apenas como um conjunto de sintomas marcado por
circunstâncias orgânicas.
Palavras-chave: Depressão; Fenomenologia; Psicopatologia Fenomenológica;
Corpo Próprio; Experiência vivida; Corpo deprimido.
7
ABSTRACT
This research has as its objective to comprehend and discuss the meaning of
the experience lived in the depressed body, investigating the phenomenon of
depression in the lived body or the own body, under the lens of Merleau-Ponty‟s
Penomenology (1945/2006). The relevance of this subject consists in the
importance of the phenomenon of depression has acquired in the present days,
which is a target for increased preoccupation, due to its incidence and the
increase in the epidemiologic indexes (Nascimento, 1999; Lafer & Amaral,
2000; WHO, 2008). When such phenomenon is comprehended under the point
of view of the phenomenological pathology, the essay points towards the
necessity of overcoming the standard model of psychopathology, proposing,
from the contact with the lived experience of the people with depression, an
approach which gives priority to the rupture with the paradigm of duality, and
one that does not conceive man as a purely biological organism, but imbricated
in one‟s history and culture. To attain the proposed goals, a qualitative research
was conducted, using the mundane phenomenological method which is based
on Merleau-Ponty‟s Phenomenology. The research revealed that the
phenomenon of depression is difficult to be described by the patients, and that
they recognize it through the signals in their body. However, the concept of
body of these patients consists in the division between body and mind, which
hampers the patients‟ correlation between corporality and existence. The
testimonies from the collaborating subjects also revealed: depression is an
external phenomenon to the subject; the body posture and the body rhythm of
the subjects is marked by isolation, retardation and stagnation; they live a
paradoxical relation with death; their self-esteem and personal value are deeply
compromised; they carry a feeling of unpowerment and guilt and they establish
a barrier in their relationships with other people. The conclusion is that the view
of the depressed body through the lens of Merleau-Ponty‟s Phenomenology can
contribute to the understanding of depression as an expression of the existence
of individuals not only as a group of symptoms marked by organic
circumstances.
Keywords: Depression; Phenomenology; Phenomenological Psychopath; Own
Body; Experience Lived; Depressed Body
8
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ......................................................................................
10
1. O DIAGNÓSTICO DOS TRANSTORNOS DEPRESSIVOS NA
ATUALIDADE ................................................................................
22
1.1 Os Modelos Classificatórios Hegemônicos .............................
22
1.2 O Diagnóstico em uma Perspectiva Fenomenológica .............
32
2 DEPRESSÃO: COMPREENSÃO FENOMENOLÓGICA ..............
41
2.1 A Descrição do Typus Melancholicus de Tellenbach e a
Compreensão do Transtorno Depressivo na Atualidade ..........
41
2.1.1 O endon e a endogeneidade .......................................
43
2.1.2 O typus melancholicus ................................................
47
2.2 A Contribuição da Psicopatologia Fenomenológica de Arthur
Tatossian: Da Melancolia à Experiência Vivida da Depressão ..
52
2.2.1 A natureza da experiência melancólica ........................
56
2.2.2 O Corpo vivido na melancolia .......................................
57
2.2.3 O Tempo vivido na melancolia .....................................
59
2.2.4 A Existência no espaço vazio .......................................
61
3 CORPO E EXISTÊNCIA: DO CORPO FENOMENOLÓGICO À
NOÇAO DE CORPO PRÓPRIO EM MERLEAU-PONTY ...............
63
3.1 A Compreensão Fenomenológica do Corpo .............................
63
3.2 Corpo como Existência: Uma Introdução ao Pensamento de
Merleau-Ponty na Obra “Fenomenologia da Percepção ..........
68
3.2.1 Considerações sobre o corpo objeto na fisiologia e na
psicologia ........................................................................
71
3.2.2 A experiência do corpo próprio .........................................
77
4 MÉTODO .............................................................................
84
4.1 A Pesquisa Qualitativa .............................................................
85
4.2 O Método Fenomenológico .....................................................
88
4.3 O Método Fenomenológico Crítico ..........................................
91
9
4.4 O Local da Pesquisa ...............................................................
95
4.5 Os Sujeitos Colaboradores da Pesquisa ................................
97
4.6 O Instrumento de Pesquisa: A Entrevista Fenomenológica ....
101
4.7 A Análise Fenomenológica Mundana .....................................
103
5 ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS .............................
106
5.1 O Significado da Depressão e os Sinais do Corpo ....................
108
5.2 O Corpo Dividido .....................................................................
113
5.3 A Depressão como um Fenômeno Exterior ............................
116
5.4 A Postura e o Ritmo do Corpo Deprimido ..................................
119
5.5 O Paradoxo de Querer Morrer .................................................
125
5.6 Auto-estima e Valor Pessoal ....................................................
129
5.7 O Corpo sem Poder: Impotência, Insegurança, Incapacidade e
Fragilidade ..............................................................................................
132
5.8 O Corpo que Carrega Culpa ......................................................
134
5.9 O Corpo que é um “Ser-para-o-Outro” ......................................
136
CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................
142
REFERÊNCIAS ...................................................................................
147
ANEXOS ...............................................................................................
151
Termo de consentimento livre e esclarecido ..................................
152
10
INTRODUÇÃO
A mitologia grega gerou inúmeras histórias e imagens que tentam
retratar os conflitos internos da humanidade, seus temores e aspirações. Por
meio de figuras mitológicas, desenha-se o formato da experiência humana,
com seus dilemas e paradoxos, e a contínua busca de desvendar o grande
mistério da vida. Atuando como psicoterapeuta com formação em psicoterapia
humanista-fenomenológica uma perspectiva que, utilizando-se da
fenomenologia de Merleau-Ponty, compreende o homem como ser mundano,
ou seja, eminentemente histórico-cultural e enraizado no mundo (Moreira,
2007a) tenho feito contato com pessoas que sempre me lembram os
personagens e os mitos que povoam o universo mítico. Traçar um paralelo
entre tal universo e a escuta psicoterapêutica tem-me auxiliado no contato com
a subjetividade e com a experiência vivida de cada cliente.
Dentre as figuras mitológicas que mais me despertam a atenção, e
com as quais tenho, frequentemente, me deparado na clínica, destaca-se o
mito de Sísifo. Qual é o sentido da existência humana? Esta é uma questão
que nos ronda e para a qual nem sempre encontramos resposta. No mito de
Sísifo, deparamo-nos com um personagem condenado pelos deuses a,
eternamente, realizar um inútil trabalho: empurrar uma pedra até o alto de uma
montanha para vê-la rolar montanha abaixo, pouco antes do final da tarefa,
tendo, em seguida, que recomeçá-la (Brandão, 1986; Villas-Bôas, 1995;
Shinyashiki, 1997). O trabalho de Sísifo retrata um importante aspecto da
existência humana: o grande investimento e esforço empreendido por algumas
pessoas em suas tarefas cotidianas. Neste personagem, o corpo carrega o
11
peso da sua existência, que não é mais do que uma inútil sucessão de tarefas
sem sentido. Na minha prática clínica, tenho-me deparado, de forma frequente,
com clientes que retratam sua existência como se realizassem o trabalho de
Sísifo: são as pessoas que descrevem sua experiência vivida de depressão.
Ouvir tais pessoas e fazer contato com sua experiência tem sido uma tarefa
bastante desafiadora, pois parece envolver uma multiplicidade de aspectos,
das mais diversas ordens, na tentativa de descrever tal experiência humana.
Passei, então, a me interessar em conhecer a experiência vivida das pessoas
que são diagnosticadas como portadoras de transtorno depressivo. Mais
especificamente, tem-me chamado a atenção a relação que a pessoa
deprimida estabelece com o seu corpo, o que requer compreender o conceito
de corpo deprimido. É com o corpo que Sísifo realiza sua tarefa. Compreender
o corpo do deprimido pode revelar muito a respeito de tal processo.
A realidade com a qual tenho me deparado na minha prática clínica
é de uma grande incidência de pessoas com diagnóstico de transtorno
depressivo, que têm procurado a psicoterapia a partir de encaminhamentos
médicos como forma de complementar a terapia medicamentosa. Outras o
fazem por livre iniciativa, mesmo que não tenham diagnóstico médico, mas
“contaminadas” por informações adquiridas nos mais variados veículos de
comunicação. O trabalho com tais clientes é bastante desafiador, uma vez que
buscam bem-estar, o que, muitas vezes, descrevem como distante e
inatingível, enquanto descrevem queixas físicas e emocionais, com o objetivo
de se fazerem compreendidos em seu sofrimento.
O fenômeno da depressão tem se destacado na atualidade, como se
pode constatar pela grande quantidade de pesquisas desenvolvidas neste
12
campo (Del Porto, 1999; Rodrigues, 2000; Widlöcher, 2001; Maj & Sartorius,
2005; Moreira, 2007b; Baztán, 2008; Facó, 2008; Kehl, 2009), assim como pelo
alto investimento da indústria farmacológica em medicação antidepressiva, cuja
expectativa de resultados vem se tornando cada vez maior. De acordo com a
Organização Mundial de Saúde OMS (World Health Organization, 2008),
desde a década de 1990, a depressão, considerada a quarta mais cara de
todas as doenças, vem ocupando lugar de destaque no rol dos problemas de
saúde pública. Segundo projeção da OMS, tal síndrome, no ano de 2020, será
a segunda moléstia que mais afetará os países desenvolvidos e a primeira em
países em desenvolvimento (Nascimento, 1999; Lafer & Amaral, 2000; WHO,
2008). Tal estimativa evidencia a gravidade do problema e levanta a questão
sobre se ele seria um fenômeno novo, uma tendência que acompanha o modo
de vida da sociedade contemporânea.
Sabe-se, no entanto, que, apesar dos altos índices epidemiológicos
da atualidade, a depressão sempre existiu (Moreira & Sloan, 2002), pois
atormenta o ser humano desde os primórdios da civilização, podendo ser
observada em descrições na Grécia antiga, há mais de dois mil anos atrás, sob
o nome de melancolia. Vocábulo de origem grega, melancolia deriva de bile
negra, um dos quatro humores da teoria humoral descrita por Hipócrates. A
escola hipocrática relacionava o equilíbrio dos quatro humores (sangue, bile
amarela, bile negra e fleuma) ao temperamento e à personalidade do indivíduo
e o seu desequilíbrio no organismo à propensão a desenvolver uma das quatro
seguintes doenças: mania, melancolia, frenite e paranóia. Assim, a partir da
teoria humoral, a melancolia teve seu significado associado à depressão e ao
medo prolongados, ou seja, pode-se afirmar que, no culo IV ou V a.C. o
13
conjunto de sinais e sintomas associados à melancolia eram reconhecidos
como doença (Stefanis & Stefanis, 2005).
Ao longo da história da psiquiatria, essa nomenclatura vem sofrendo
alteração até o termo depressão maior, mais utilizado nos dias de hoje. A partir
dos trabalhos do psiquiatra Emil Kraepelin, entre os anos de 1893 e 1915,
encontramos as noções das quais derivam nossa compreensão atual sobre a
depressão, que estão baseadas em princípios clínicos e anatômicos de
classificação de doenças. (Wong, 2007).
O esforço de compreender o fenômeno da depressão na
contemporaneidade se justifica pelo alto nível de sofrimento que tal transtorno
tem causado ao ser humano, principalmente na cultura ocidental, marcada pela
égide do individualismo (Moreira & Sloan, 2002; Lipovetsky, 2005; Kehl, 2009).
Vivemos em uma cultura que privilegia o consumo, a euforia e a necessidade
de segurança. Neste sentido, parecemos viver um paradoxo: o aumento
contemporâneo da depressão, em uma sociedade onde não parece haver
espaço para tal manifestação, constituindo-se a mesma em um sintoma social
(Kehl, 2009). Variando-se as condições sociais e culturais, parecem emergir
novos sintomas na sociedade contemporânea. Qual o significado de se
compreender a depressão na contemporaneidade como um sintoma social?
Kehl afirma que “as depressões na contemporaneidade, ocupam o lugar de
sinalizador do „mal estar na civilização‟ que desde a idade média até o início da
modernidade foi ocupado pela melancolia” (p. 22). Isto significa que o
recolhimento peculiar aos portadores de transtorno depressivo se encontra em
desacordo com as exigências da sociedade contemporânea, nitidamente
marcada pela velocidade, pela euforia e pelo consumo exagerado. Assim se
14
justifica a importância crescente de compreender a depressão na atualidade a
partir da descrição dos sujeitos diagnosticados como portadores de tal
transtorno.
A partir da descrição psiquiátrica, a depressão apresenta-se
clinicamente na forma de experiência afetiva (estado de humor); de uma queixa
(relatada como sintoma); e de uma síndrome definida por critérios
operacionais, entre os quais se configuram: humor deprimido, anedonia
perda de interesse , perturbações cognitivas e psicomotoras e sintomas
vegetativos e de ansiedade (Stefanis & Stefanis, 2005).
Na psicanálise, a depressão está associada à obra de Sigmund
Freud “Luto e Melancolia”, de 1917 [1915], onde Freud aborda as correlações
entre a melancolia e o luto. Considerando que, em algumas pessoas, a reação
à perda produz melancolia em vez de luto, suspeita de uma disposição
patológica que possa vir a definir o surgimento de um ou outro processo.
Descreve os traços mentais presentes na melancolia como um desânimo
profundamente penoso, com a cessação de interesse pelo mundo externo,
perda da capacidade de amar, inibição de toda e qualquer atividade, e uma
diminuição da autoestima a ponto de encontrar expressão em autorecriminação
e autoenvilecimento, culminando numa tentativa delirante de punição (Freud,
1917[1915]/1974). Observa, então, que, no luto, estão presentes as mesmas
características, com exceção da perturbação da autoestima. Para a
psicanálise, a distinção entre o investimento que o aparelho psíquico
empreende no trabalho do luto e na melancolia, consiste em que, no luto a
oposição compreensível que a libido oferece em abandonar a perda do objeto
amado, enquanto que na melancolia a perda muitas vezes é de caráter
15
idealizado e absorve o ego de tal forma a gerar uma profunda inibição. Assim,
para esta perspectiva teórica, o luto que não pode ser considerado patológico
que, concluído o trabalho de luto, o ego encontra-se livre do processo de
inibição. Na melancolia há uma perda objetal retirada da consciência, não
havendo a possibilidade de simbolizá-la recaindo, então, sobre o próprio ego.
Portanto, encontramos na psicanálise a teoria de que “a tendência a adoecer
de melancolia reside na predominância do tipo narcísico da escolha objetal” (p.
255), ou seja, diante da perda idealizada, o ego deseja incorporar a si o objeto
remetendo-se a fase oral do desenvolvimento libidinal.
O fenômeno da depressão tem sido também estudado em seu
aspecto cultural (Kleinman & Good, 1985; Tatossian, 1997/2001a; 1997/2001b;
Moreira & Sloan, 2002; Moreira, 2007b), mostrando que diversas formas de
manifestação de tal experiência em diferentes culturas. A perspectiva
transcultural ultrapassa a visão biologicista em que se encontram encarceradas
as descrições psicopatológicas que atendem a uma visão biomédica,
predominante no modelo científico hegemônico da cultura ocidental. Kleinman
e Good (1985) criticam a aplicação do modelo nosológico ocidental no estudo
de problemas psiquiátricos em diferentes culturas afirmando que uma postura
universalista, na qual o predomínio do saber recai sobre as culturas mais
favorecidas economicamente, exclui a possibilidade de apreensão da
manifestação do fenômeno psicopatológico em diferentes culturas. Acredito
que tal postura pode comprometer a apreensão do fenômeno psicopatológico,
pois leva à possibilidade de não percepção dos múltiplos contornos de uma
determinada cultura bem como à supervalorização de certas patologias de
outras culturas.
16
Encontrei na psicopatologia fenomenológica uma perspectiva que é
marcada pelos estudos acerca do Lebenswelt (mundo vivido) da pessoa em
sofrimento psíquico, ou seja, as imbricações entre fenomenologia e psicologia
tratam do estudo da vida psíquica por intermédio do vivido. Tatossian
(1979/2006) destaca como o início da fenomenologia psiquiátrica a 63º sessão
da Sociedade Suíça de Psiquiatria de Zurique em 25 de novembro de 1922,
marcada pela apresentação dos trabalhos de Binswanger sobre fenomenologia
e de Minkowiski sobre melancolia esquizofrênica. A contribuição deste enfoque
aplicado à psicopatologia reflete a apreensão da experiência psiquiátrica
autêntica que consiste na compreensão do vivido como fenômeno dotado de
sentido, o que vai além da descrição meramente sintomatológica.
Qual o significado da experiência vivida da depressão? A Psicopatologia
fenomenológica trata de responder a tal questão proporcionando uma
importante contribuição para a compreensão do significado do transtorno
depressivo na atualidade por meio do estudo da experiência vivida, que, neste
caso, é a experiência psicopatológica. Ao se referir ao fenômeno da
depressividade, Tatossian (1979/2006) o descreve como uma experiência
global, ou seja, que afeta o indivíduo em seu encontro consigo mesmo com o
mundo e com outrem.
O tema da depressão na contemporaneidade é, portanto, bastante
complexo e exige um estudo que contemple as suas diversas nuanças. Por
conta de meu interesse pessoal e comprometimento com a abordagem
fenomenológica, escolhi discutir tal tema de pesquisa a partir da descrição da
experiência vivida do corpo em depressão. Em minha experiência clínica,
percebo que há, na depressão, um grande investimento no corpo da pessoa
17
em sofrimento, pois ela se remete frequentemente ao próprio corpo, ao falar de
si mesma. Passei, então, a refletir acerca da importância da descrição da
experiência vivida da depressão no corpo do paciente, ou seja, que a descrição
do corpo vivido em depressão pode revelar acerca do fenômeno da depressão.
A certeza de que eu havia escolhido um caminho bastante promissor se
confirmou, no entanto, em uma experiência pessoal. Ao conversar com uma
amiga que se mostrava ausente do meu convívio social, algum tempo, ouvi
o seguinte depoimento, que parecia muito com os de meus clientes: “É um
aperto, uma dor no peito. Minhas pernas não me obedecem. A minha cabeça
parece que vai explodir. O mais interessante é que o médico falou que eu estou
com depressão. Nem eu mesma sabia, mas o meu corpo já sabia”.
Como é possível compreender o fenômeno da depressão no próprio
corpo dos pacientes a partir da lente da fenomenologia? Para a fenomenologia,
o corpo é considerado um construto de grande importância para a
compreensão do ser-no-mundo, pois é a partir dele que o contactamos. Neste
sentido, estudar o corpo do deprimido é fazer contato com a experiência da
depressão, evocando o sentido do mundo ou da história de tal fenômeno em
seu estado nascente (Merleau-Ponty, 1945/2006), ou seja, por meio do seu
próprio corpo. Não trato, aqui, do corpo objetivamente constituído, do corpo
físico, mas do corpo na perspectiva da fenomenologia de Merleau-Ponty,
marcada por um caráter ambíguo, para o qual o homem existe em mútua
constituição com o mundo. O filósofo afirma que “o mundo não é aquilo que eu
penso, mas aquilo que eu vivo” (p. 14), deixando claro seu pensamento em
relação à abertura do homem ao mundo, em uma comunicação constante com
ele, sem que o homem, no entanto, possua o mundo, pois ele é inesgotável.
18
A concepção de corpo de Merleau-Ponty (1945/2006) tem lugar central
em sua obra, compreendendo que a interação constante do homem com o
mundo ocorre por meio do seu corpo. Assim, a ideia do filósofo rompe com a
perspectiva dualista presente no pensamento científico moderno, na medida
em que propõe um enraizamento do espírito no corpo, concebendo o homem
como um ser-no-mundo. A obra “Fenomenologia da Percepção” reflete tal
posição existencial, como afirma Coelho Júnior (1991): “voltada para a
compreensão do homem como ser em situação, inextricavelmente ligado ao
mundo” (p. 46). Nesta obra, Merleau-Ponty atenção especial ao corpo,
tratado como corpo próprio, noção na qual encontramos sua intenção de
ultrapassar a concepção materialista da ciência positivista, que percebe o
corpo como objeto. Tal perspectiva, o leva a afirmar que “eu não estou diante
do meu corpo, estou em meu corpo, ou antes, sou o meu corpo” (p. 208). As
duas primeiras obras de Merleau-Ponty “A Estrutura do Comportamento” e
“Fenomenologia da Percepção” são fundamentais para compreender sua
contribuição para a psicologia, pois desenvolvem uma crítica filosófica de
temas importantes da psicologia. Dentre tais temas, encontra-se a crítica à
utilização, pela psicologia, do método científico aplicado às ciências naturais,
propondo que a experiência vivida é mais adequada para compreender o
humano, não o experimento científico. A primeira obra, “A Estrutura do
Comportamento”, é dedicada ao estudo do comportamento e as ideias de
Merleau-Ponty rompem com a noção mecanicista e causal do comportamento.
Tais ideias, no entanto, são mais bem fundamentadas na obra “Fenomenologia
da Percepção” seu mais divulgado livro no qual o corpo tem lugar de
destaque, sedimentando a ideia de corpo próprio que, não sendo um objeto,
19
tem poder de significação. Assim, a fenomenologia de Merleau-Ponty
(1945/2006) lança um novo olhar sobre o homem no mundo, distanciando-se
da postura reflexiva para levar o pensamento na direção do mundo sensível e
propondo uma filosofia que se mantenha no plano pré-reflexivo.
Considero, então, que a discussão do fenômeno da depressão no corpo
como vivido, no corpo próprio, na perspectiva da fenomenologia existencial de
Merleau-Ponty (1945/2006) desenvolvida de forma clara na obra
“Fenomenologia da Percepção” é capaz de assegurar a compreensão de tal
fenômeno para além da sintomatologia, ou seja, indo além da abordagem
diagnóstica tradicional, sem, no entanto, negá-la. A proposta é compreender o
fenômeno da depressão, tomando a experiência vivida do corpo do paciente
como mediador de sentido, ou seja, o corpo fenomenológico, que não é o corpo
objetivo, se mostra entrelaçado ao mundo e, portanto, à experiência vivida. É
assim que o fenômeno da depressão pode se submeter a uma compreensão
mais abrangente: a partir do corpo próprio ou da experiência vivida do corpo do
paciente. Acredito que as concepções de ciência, de homem como se-no-
mundo e de corpo próprio, conforme discutidas na obra “Fenomenologia da
Percepção”, estão de acordo com a proposta de minha pesquisa, constituindo
alicerces para a compreensão do fenômeno do corpo deprimido.
Tomando como questão central desta pesquisa o corpo deprimido
na perspectiva da experiência vivida das pessoas que são diagnosticadas
como portadoras de transtorno depressivo, sob a ótica da fenomenologia de
Merleau-Ponty (1945/2006), deparo-me com as seguintes questões: o que
significa ter depressão? A escuta do cliente revela “a depressão que ele tem”
ou “a depressão que ele é”? Investigar o corpo deprimido envolve compreender
20
“o corpo que ele tem” ou “o corpo que ele é”? Portanto, considerando a
necessidade de compreender a experiência vivida da depressão na perspectiva
do corpo próprio, descrita por Merleau-Ponty (1945/2006) mas indo além da
mera sintomatologia levanto a seguinte questão: como é a experiência vivida
do corpo deprimido?
Esta pesquisa traduz o ponto de encontro entre duas áreas de meu
interesse pessoal: a depressão em seu contexto contemporâneo e o corpo
vivido a partir da fenomenologia de Merleau-Ponty (1945/2006). Na confluência
entre estes dois enfoques, desenvolvo uma escuta da experiência vivida da
depressão no corpo dos sujeitos da minha pesquisa. Para atender a tal
objetivo, foram tomados como aliados teóricos desta pesquisa: a literatura atual
sobre a depressão (Widlöcher, 2001; Moreira & Sloan, 2002; Stefanis &
Stefanis, 2005; Moreira, 2007b; 2009; Kehl, 2009); a psicopatologia
fenomenológica (Tellenbach, 1969/1999; Tatossian, 1979/2006); e a noção de
corpo em Merleau-Ponty (1945/2006). Embora a concepção de corpo esteja
presente em toda a obra de Merleau-Ponty, privilegiei a noção de corpo próprio
conforme é tratada na obra “Fenomenologia da Percepção” (1945/2006).
Diante do exposto, os objetivos desta pesquisa são, assim,
constituídos:
Objetivo Geral:
Compreender o significado da experiência vivida do corpo deprimido.
Objetivos Específicos:
21
Compreender o fenômeno da depressão em seus múltiplos
contornos;
Compreender a depressão a partir da perspectiva da
psicopatologia fenomenológica;
Compreender a concepção de corpo de Merleau-Ponty
(1945/2006);
Discutir a perspectiva do corpo deprimido, enfocando a noção de
corpo próprio” de Merleau-Ponty (1945/2006).
22
1. O DIAGNÓSTICO DOS TRANSTORNOS DEPRESSIVOS NA
ATUALIDADE
1.1. Os Modelos Classificatórios Hegemônicos
Os transtornos depressivos têm ocupado um importante lugar na
literatura médica e psicológica, haja vista a grande quantidade de artigos e de
trabalhos, na atualidade, que se referem à prevalência, à cronicidade e ao
potencial de incapacitação e de sofrimento associados a eles (Del Porto, 1999;
Rodrigues, 2000; Widlöcher, 2001; Maj & Sartorius, 2005; Moreira, 2007b;
Baztán, 2008; Facó, 2008; Kehl, 2009). A depressão constitui um construto
diagnóstico complexo, que tem no humor deprimido e na perda de interesse os
principais sintomas, destacando-se, ainda: os sintomas afetivos e as alterações
da esfera instintiva, neurovegetativa, ideativas, cognitivas, da autovaloração, da
volição e da psicomotricidade, dentre outros (Dalgalarrondo, 2000). Ao longo
de nossa existência, todos estamos submetidos a situações e a eventos
desagradáveis, que nos fazem experimentar pesar, tristeza e a sensação de
que seremos alvo de tais sentimentos para sempre. Tal fenômeno, no entanto,
pode ser considerado parte da experiência de vida de qualquer ser humano e
não pode ser confundido com uma condição psicopatológica. Stefanis e
Stefanis (2005) advertem que confundir a depressão um transtorno
psicopatológico com a atitude emocional transitória que envolve os dramas
23
humanos pode gerar danos à saúde do indivíduo, tornando necessária a
diferenciação entre os dois estados:
em contraste com as respostas emocionais normais a eventos
indesejados e estressantes, a depressão clínica é um
transtorno mental, que devido a sua gravidade, tendência a
recorrência e alto custo para o indivíduo e a sociedade, é uma
condição medicamente significativa que precisa ser
diagnosticada e tratada de forma adequada (p.13).
Assim, para Stefanis e Stefanis, a forma mais adequada de distinguir a atitude
emocional transitória em relação à sua forma clínica é o uso do termo
“transtorno depressivo” (p. 13) para designar sua manifestação psicopatológica.
Percebo que a necessidade de caracterizar e de definir adequadamente o que,
usualmente, se chama de depressão traduz mais uma das nuanças da
preocupação com a dimensão que tal fenômeno vem assumindo na atualidade
e seu reconhecimento como um problema prioritário de saúde pública.
Em consonância com a crescente preocupação epidemiológica do
fenômeno da depressão na atualidade, observo, em minha prática clínica como
psicoterapeuta, um movimento crescente de busca de ajuda por parte de
pessoas que sofrem de transtornos depressivos. O que causa tal fenômeno?
Por que a depressão tem sido considerada a doença da sociedade
contemporânea? Qual o significado do aumento do número de diagnósticos de
depressão no mundo ocidental, na atualidade? Seria isto efeito do
desenvolvimento da indústria farmacêutica na produção e na divulgação de
antidepressivos? Podemos afirmar que o homem contemporâneo está,
particularmente, sujeito a se deprimir?
24
Podemos observar que o fenômeno da depressão e suas
correlações com o homem em seu contexto contemporâneo são bastante
complexos. Neste sentido, concordo com Moreira e Sloan (2002), que, ao se
referirem à proposta da psicopatologia crítica, afirmam ser fundamental uma
perspectiva crítica para a devida compreensão do fenômeno psicopatológico,
de forma a abranger sua complexidade e suas determinações múltiplas.
Somente com tal perspectiva, é possível compreender o fenômeno
psicopatológico em suas nuanças culturais e ideológicas. Neste enfoque, o
individualismo é analisado como sintoma social que contribui para a
compreensão do fenômeno psicopatológico na contemporaneidade. Ou seja,
em uma cultura individualista e marcada pelas desigualdades sociais como é
o caso da cultura ocidental os sujeitos são mais vulneráveis a manifestações
psicopatológicas que envolvem sua autoestima e seu sentimento de
despotencialização, que uma marcante exigência e valorização do
indivíduo autônomo, bem-sucedido e belo pela sociedade. Assim, a depressão
na contemporaneidade, de acordo com tal perspectiva, constitui uma
incapacidade de viver significativamente, ou seja, uma dificuldade de viver livre
das amarras ideológicas impostas por uma sociedade que dita normas de
conduta e bem-estar.
Corroborando com tal ideia, Kehl (2009) discute a depressão como
sintoma social, ressaltando a velocidade alucinante dos acontecimentos da
vida cotidiana e seu contraste com a delicadeza inegociável da vida psíquica.
A experiência do tempo na depressão e o conflito peculiar a ela nascem de tal
contraste. Assim, fica claro o sofrimento psíquico vivido em uma psicopatologia
25
na qual o sentimento de tempo estagnado causa um profundo desajuste em
relação à sofreguidão do tempo das sociedades capitalistas.
Face às inquietações que o fenômeno da depressão suscita na
clínica psicológica, é imprescindível que se compreenda e se questione como é
concebida o seu diagnóstico na atualidade, buscando questionar os modelos
classificatórios hegemônicos. Para a psiquiatria tradicional, a depressão é um
transtorno de humor, não constituindo uma entidade clínica única, pois pode
apresentar várias facetas e uma variedade de etiologias (Canale & Furlan,
2006). Tal concepção contribui para a ideia da complexidade do diagnóstico em
psiquiatria e suscita a discussão sobre qual o melhor critério classificatório em
psicopatologia. A psiquiatria tradicional tem buscado modelos classificatórios
cada vez mais precisos, que observa, nos transtornos depressivos, uma
série de sintomas presentes, também, em outras psicopatologias. Atualmente,
os sistemas classificatórios utilizados são o DSM-IV Manual Diagnóstico e
Estatístico dos Transtornos Mentais em sua edição (APA, 2002) e o CID-
10 Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas
Relacionados à Saúde em sua 10ª revisão (OMS, 1993). O DSM-IV (APA,
2002) fornece critérios de diagnóstico para as perturbações mentais e inclui
componentes descritivos no sentido de conduzir ao diagnóstico de tais
perturbações. Neste modelo classificatório, o transtorno depressivo encontra-se
incluído na seção relativa aos transtornos de humor:
os Transtornos de Humor estão divididos em Transtornos
Depressivos (“depressão unipolar”), Transtornos Bipolares e
dois transtornos baseados na etiologia Transtorno do Humor
Devido a uma Condição Médica Geral e Transtorno de Humor
26
Induzido por Substância. Os transtornos depressivos (a saber,
Transtorno Depressivo Maior, Transtorno Distímico e
Transtorno Depressivo Sem Outra Especificação) são
diferenciados dos Transtornos Bipolares pelo fato de haver um
histórico de jamais ter tido um Episódio Maníaco, Misto ou
Hipomaníaco. Os transtornos Bipolares (a saber, Transtorno
Bipolar I, Transtorno Bipolar II, Transtorno Ciclotímico e
Transtorno Bipolar sem outra Especificação) envolvem a
presença (ou histórico) de episódios maníacos, geralmente
acompanhados pela presença (ou histórico) de Episódios
Depressivos Maiores (p. 345).
Na CID-10 (OMS, 1993), as seções de F00 a F99 são dedicadas aos
transtornos mentais e comportamentais, estando os transtornos de humor e/ ou
afetivos incluídos nas seções de F30 a F39. Esta classificação assim designa
tais transtornos:
transtornos nos quais a perturbação fundamental é uma
alteração do humor ou do afeto, no sentido de uma depressão
(com ou sem ansiedade associada) ou de uma elação. A
alteração do humor em geral se acompanha de uma
modificação do nível global de atividade, e a maioria dos outros
sintomas são quer secundários a estas alterações do humor e
da atividade, quer facilmente compreensíveis no contexto
dessas alterações. A maioria desses transtornos tende a ser
recorrente e a ocorrência dos episódios individuais pode
27
freqüentemente estar relacionada com situações e fatos
estressantes (p 110).
Compreendo que tais descrições, que compõem os modelos classificatórios
atuais, têm eminentemente como base o modelo biológico e que, apesar da
abordagem mais descritiva, inerente a tais modelos, ainda estão presentes as
características de uma classificação etiológica predominantemente biologicista.
O predomínio da base biológica para a compreensão do fenômeno da
depressão nos remete à antiga dicotomia entre mente e corpo, bem como à
necessidade de definir os limites entre o normal e o patológico.
Os riscos de uma abordagem eminentemente biológica nos furtam de
contatar os aspectos subjetivos, inerentes ao fenômeno psicopatológico. Sobre
tal problema, afirma Facó (2008):
(...) há, atualmente, uma intensa expansão de um movimento
de patologização, tendendo mais a um fisicalismo, em sua
maioria das vezes, reducionista. Em outras palavras, uma
colagem direta da fisicalidade do corpo, resultando, pensamos,
em um modo limitado de pensar a doença. Por exemplo, no
lugar de refletir sobre a experiência do estar deprimido, do que
isso se trata, (...) como é apreensível por meio do relato do
sujeito singular, e, ainda assim, impossível de correlaciona-lo
com uma experiência exatamente idêntica a todos aqueles que
são diagnosticados de deprimidos, ultimamente, muitas vezes,
parece bastar o „mise em scène‟ da apresentação de uma
imagem cerebral de um sujeito deprimido, por exemplo, para
que o seu cérebro demonstre o que seja depressão (p.54-55).
28
Facó nos põe em contato com uma crítica bastante pertinente quanto ao
modelo biológico da psiquiatria: o rigor do caráter objetivo e suas implicações
no diálogo com outros aspectos indispensáveis à compreensão do fenômeno
psicopatológico, como a sua contextualização cultural, por exemplo. Ainda
muita controvérsia sobre o diagnóstico devido à diversidade dos sintomas
típicos dos transtornos depressivos e à variabilidade individual com que se
organizam. A psiquiatria clássica tem buscado, ao longo do tempo, o modelo
classificatório mais adequado no sentido de facilitar o seu diagnóstico preciso;
no entanto, ainda muitas discussões sobre a validade de tais critérios e,
principalmente, sobre os aspectos subjetivos e idiossincráticos dos sintomas.
Como não são conhecidas causas comuns da depressão que permitam uma
classificação de base etiológica, o critério classificatório é baseado apenas nos
seus sintomas e nas suas características clínicas, levando a uma classificação
tipológica, baseada no julgamento.
Widlöcher (2001) destaca a complexidade do fenômeno da
depressão e das diferentes lógicas que m sido utilizadas na sua
compreensão, no seu diagnóstico e no seu tratamento. Para ele, a posição
dualista entre organogênese e psicogênese na clínica da depressão ainda se
encontra fortemente enraizada na prática clínica. No que consiste tal
discussão? No intuito de compreender o fenômeno psicopatológico, buscam-se
fatores causais que estejam associados a ele, sendo ressaltados os fatores
biológicos ou os psicológicos. A tendência atual, no entanto, é a postura
reducionista, ou seja, limitar a depressão a seus mecanismos biológicos,
tomando os fatores psicológicos por acontecimentos acidentais, sem valor
desencadeante, ou, no sentido inverso, a negação dos fatores biológicos,
29
atribuindo uma coerência lógica entre o estado de humor do doente e as
circunstâncias de sua existência. Segundo Widlöcher, o reducionismo é
reforçado pela necessidade de enquadrar a depressão em um modelo causal,
que revela, também, o permanente debate das relações entre o psiquismo e o
corpo. Afirma que,
[...] por detrás do debate teórico entre a organogênese e a
psicogênese se perfila uma posição entre duas formas de
curiosidade científica e dois modos de prática clínica fundados
sobre diferentes tradições de escola e ensinos, mas também
sobre aptidões e gostos intelectuais distintos. [...] a posição
dualista e o debate entre organogênese e psicogênese
testemunham uma mesma dificuldade em aceitar a idéia de
que a ação humana depende igualmente do funcionamento
cerebral e do intercâmbio de informação com o mundo (p. 13).
Widlöcher considera que, de acordo com uma abordagem clínica que se
baseia na manifestação, na constância e na evolução dos sintomas, é
necessário que se detecte os sinais (queixas e comportamentos
característicos) correspondentes ao quadro clínico de uma doença para que
seja elaborado um diagnóstico. Para ele, a observação do doente é
fundamental. No caso da depressão, o processo de diagnóstico é bastante
complexo, uma vez que o deprimido apresenta uma infinidade de queixas e de
características próprias da manifestação da doença, com traços objetivos e
subjetivos que refletem uma condição concreta e individual. Devido a tal
particularidade da depressão o conjunto de sintomas , Widlöcher descreve a
30
síndrome depressiva como um distúrbio psicopatológico que se caracteriza por
dois traços fundamentais: “a tristeza e a lentificação psicomotora” (p. 28). Para
ele, todas as descrições da depressão enunciam um conjunto de traços gerais
que correspondem a estas duas características, estando os demais sinais
associados a elas.
Ao elaborar sua descrição da tristeza do deprimido, Widlöcher
(2001) afirma tratar-se de um sentimento que impregna todo o mundo subjetivo
do doente. É, portanto, uma tristeza vital, marcada pelo remorso, pela nostalgia
face às recordações do passado, pelo tédio e pelo desinteresse em relação ao
presente e pela apreensão em relação ao futuro, que se apresenta como uma
constante ameaça. A representação de si mesmo encontra-se desvalorizada e
marcada pelo sentimento de incapacidade e de recriminação. A anestesia
afetiva também está presente e marca tanto a relação com os outros quanto o
interesse pelo mundo. A “lentificação motora e de idéias está marcadamente
presente na marcha, na postura e na mímica” (p. 29), pois, no deprimido, os
gestos são lentos, o rosto perde a expressão, a voz perde a modulação e as
respostas são pobres. É visível a lentificação do fluxo das ideias e o
pensamento se arrasta sem vivacidade ou renovação. Entretanto, apesar de
não conceber o diagnóstico de depressão sem que a tristeza vital e a
lentificação psicomotora estejam presentes, Widlöcher adverte para os limites
da abordagem clínica, pois em diferentes culturas e idiomas,
particularidades diversas para descrever a mesma sintomatologia.
Mais uma vez, me deparo aqui, com a necessidade de compreender
o diagnóstico em psicopatologia e o fenômeno psicopatológico a partir de uma
perspectiva crítica que priorize o contexto cultural e histórico sem perder de
31
vista a sua compreensão biológica (Moreira & Sloan, 2002). A prática clínica
fenomenológica em psicopatologia se propõe a ir além dos sintomas e deve ter
como suporte metodológico e teórico uma abordagem que rompa com o
paradigma da dualidade, ou seja, que não conceba o homem apenas como um
organismo biológico ou psicológico. Tal concepção da psicopatologia permite
que ultrapasse a mera classificação sintomatológica:
a fenomenologia, também, pode e mesmo deve fundar uma
psiquiatria universal, na medida em que por método ela se
proíba de separar o sujeito do objeto, o indivíduo do mundo,
mais precisamente, do mundo humano. O vivido
fenomenológico liga indissoluvelmente comportamento exterior
e significação (significado). Contrariamente a uma opinião
difundida, as análises do tempo e do espaço vividos, da
corporeidade e de mundo, no sentido fenomenológico, são
sempre implicitamente análises culturais, porque a
subjetividade é sempre intersubjetividade e historicidade, quer
dizer culturalidade. Isto explica a importância cada vez maior
na psiquiatria fenomenológica da análise do Lebenswelt, do
“mundo da vida”, ou melhor, do mundo da vida cotidiana”. A
culturalidade humana é onipresente não como cultura abstrata,
coisificada em termos de “fatores culturais” de “dados
culturais”, mas como cultura vivida (Tatossian, 1997/2001a, p.
134-135).
Assim, Tatossian nos convida a incorporar o conceito de cultura vivida, que, no
caso do diagnóstico em psicopatologia, significa adotar uma postura que se
32
preocupa em não rotular o indivíduo, mas em tentar identificar o caráter
existencial da experiência psicopatológica, bem como os significados que ele
atribui a tal experiência. Neste sentido, a atitude fenomenológica na
compreensão do processo diagnóstico envolve a possibilidade de compreender
o indivíduo em sua existência, tomando o quadro sintomatológico como uma
forma de expressão no mundo. Sem negar ou negligenciar a importante
contribuição da descrição nosológica dos transtornos mentais, é indispensável
compreender a perspectiva fenomenológica do diagnóstico.
1.2. O Diagnóstico em uma Perspectiva Fenomenológica
Como podemos compreender o diagnóstico e a classificação
psicopatológica do ponto de vista da fenomenologia, abordagem que serve de
suporte teórico-metodológico a esta pesquisa? Considero tal desafio bastante
instigante, uma vez que a tradição fenomenológica a que me vinculo a
fenomenologia de Merleau-Ponty tem como característica básica a superação
do pensamento dualista. Assim, como compreender o diagnóstico da
depressão sem incorrer no equívoco de fazer, simplesmente, uma passagem
do modelo médico ao modelo filosófico ou antropológico e desconsiderar o
entrelaçamento entre eles? Para tanto, é fundamental que se busque uma
postura crítica diante de tais modelos sem desqualificar as categorias
diagnósticas e sua importância como trabalho de investigação. Compreendo
que diagnosticar é apenas um dos momentos na compreensão dos fenômenos
33
psicopatológicos. A partir daí, pode-se fazer contato com a experiência vivida
da pessoa diagnosticada e, de fato, compreender a sua psicopatologia para
além da sintomatologia (Moreira, 2007a).
Os dilemas entre psicopatologia e diagnóstico foram discutidos por
diversos especialistas (Advíncula, 1992; Tatossian 1997/2001a; 1997/2001b;
Tenório, 2003; Moreira, 2007a). Na perspectiva fenomenológico-existencial,
“fazer diagnóstico é identificar e explicitar o modo de existir do sujeito em seu
relacionamento com o ambiente em determinado momento e os significados
que ele constrói de si e do mundo” (Tenório, 2003, p. 31). Tal postura diante do
diagnóstico reflete o caráter relacional e intersubjetivo da psicologia existencial-
fenomenológica. Advíncula (1992) discute tal postura a partir da abordagem
centrada na pessoa, articulando tal perspectiva ao pensamento da
fenomenologia e do existencialismo. Conclui que o diagnóstico em psicoterapia
é “sempre consequência da vivência intersubjetiva da relação” (p. 93).
Certamente, tal conclusão reflete a posição da abordagem centrada na pessoa
em torno do poder de autodeterminação do indivíduo, o que inviabiliza um
processo diagnóstico fruto apenas da observação pretensamente objetiva. A
experiência subjetiva é, portanto, soberana, e o diagnóstico apenas pode ser
realizado, conforme tal perspectiva, como consequência da relação
intersubjetiva.
Moreira (2007a), partindo da concepção de homem mundano, como
propõe a fenomenologia de Merleau-Ponty eminentemente histórico-cultural e
enraizado no mundo entende o diagnóstico como um processo que envolve
movimento, que, conforme o pensamento ambíguo característico da
concepção do filósofo, as relações entre homem e mundo não são estáticas,
34
constituindo uma demarcação de múltiplos contornos. Em tal perspectiva, é
impossível conceber o diagnóstico fechado em si mesmo, mas como uma
possibilidade de leitura do movimento de construção da existência humana.
Finalmente, Moreira propõe a ideia do diagnóstico como processo de
reconhecimento e de compreensão do cliente, não como uma rotulação do
indivíduo, que o insere numa determinada categoria de doença mental.
Encontrei no pensamento de Tatossian (1997/2001b), ao discutir as
relações entre psiquiatria e cultura, uma importante contribuição a postura
crítica em relação aos modelos classificatórios em psicopatologia, mas
questionando o relativismo cultural no que concerne às noções de normalidade
e de anormalidade. Para ele, “a cultura pode influir sobre os quadros clínicos e
sobre a validade das teorias, mas também sobre a definição do normal e
patológico” (p. 139). Ou seja, não se trata de reconhecer um mesmo
comportamento nos diversos contextos, sendo ele apenas diferenciado pela
influência cultural, mas, além disto, de considerar o vivido como fenômeno em
que o horizonte cultural de um comportamento subjetivo faz parte da sua
compreensão. É em tal concepção que se fundamenta uma prática clínica que
não se limita ao sintoma: “[...] uma tal psiquiatria, não pode se ater ao plano do
sintoma e deve operar ao nível da significação que é o que unicamente decide
o que é normal ou anormal e os diversos tipos de normalidade” (p. 133).
Assim como os estudos da psicopatologia fenomenológica, as
pesquisas transculturais, também podem demonstrar em que medida a
investigação do fenômeno psicopatológico com isenção da concepção
naturalista e dicotomizada de mente e corpo pode contribuir para um enfoque
em que a pessoa, não apenas os sintomas, seja priorizada. Destaco, a seguir,
35
alguns estudos transculturais nos quais se observa, claramente, tal
perspectiva.
Foi realizado um estudo transcultural com o objetivo de identificar se
diferenças relacionadas às culturas do Brasil e do Chile quanto ao
significado do corpo vivido na experiência esquizofrênica (Moreira & Boris,
2006). Nesta pesquisa, foi utilizado o método fenomenológico crítico (Moreira,
2004) para compreender o significado da descrição do corpo vivido dos
próprios sujeitos colaboradores 50 pacientes de ambos os sexos,
diagnosticados como psicóticos esquizofrênico-paranóides (20 no Brasil e 30
no Chile), conforme critério clínico e o DSM-IV. Foram observadas diferenças
entre os sujeitos dos dois países quanto ao significado do corpo vivido na
experiência esquizofrênica, concluindo que articulação de tal experiência
vivida com aspectos socioculturais. Assim, ao investigar o significado do corpo
vivido na experiência esquizofrênica nas culturas brasileira e chilena, os
pesquisadores tratam de uma questão muito mais ampla: são produzidas
formas distintas de psicopatologia em diferentes contextos socioculturais? Tal
questão reflete a discussão da relação entre psicopatologia e cultura:
já que o adoecimento está atrelado à relação do homem com o
mundo, podemos afirmar que a psicopatologia é uma
expressão do homem mundano, isto é, se constrói a partir de
uma relação de mútua constituição entre homem e cultura,
entre indivíduo e sociedade, na interseção da singularidade
com a universalidade. Investigar a psicopatologia é, portanto,
compreender uma forma de expressão do homem mundano
(Moreira & Boris, 2006, p. 3).
36
Tal forma de compreender a psicopatologia traduz um significado bastante
abrangente, uma vez que considera, além dos aspectos biológicos e
sintomatológicos, a história, a cultura, as relações sociais, as estruturas sociais
e econômicas e as normas e crenças dos contextos nos quais estão inseridos
os indivíduos. Tal concepção propõe uma redefinição do conceito de pessoa,
ou seja, do indivíduo inserido e perpassado pela história, pela cultura e pela
sociedade (Moreira & Sloan, 2002). Revê também, a concepção de cultura, que
passa a ser entendida não como sinônimo de mundo, mas como constituinte
dele. Tal concepção da cultura é consoante com a de Tatossian (1997/2001b)
descrita anteriormente que, ao destacar a imbricação de cultura e
psicopatologia, critica a posição da psiquiatria ocidental que tem se tornado
uma maneira de a sociedade regulamentar seus desvios, que passam, neste
caso, a serem considerados como da ordem do universal e não culturalmente
constituídos, reforçando a perspectiva individualista e ideológica da
psicopatologia.
Considerados, então, sob tal aspecto, os estudos transculturais
podem contribuir de forma intensa para a construção de um modelo de
compreensão da experiência psicopatológica que supere a concepção de
doença atrelada apenas à sintomatologia. Tais estudos alertam para a
singularidade do fenômeno psicopatológico e para a importância de se realizar
estudos que priorizem a experiência vivida dos sujeitos considerados em sua
mundaneidade, conforme a descrição merleau-pontyana (Moreira & Sloan,
2002).
Deve-se, no entanto, estar alerta para o fato de que não se trata de
dividir a ciência psicopatológica em ramificações que atendam às múltiplas
37
manifestações culturais de uma experiência psicopatológica, mas, antes, de
utilizar a etnopsiquiatria como instrumento de compreensão do fenômeno
psicopatológico:
a aquisição etnopsiquiátrica não convida, como alguns
acreditam, a dissolver a psiquiatria em uma miríade de
micropsiquiatrias, onde cada uma seria própria de uma
sociedade como lhe são próprios [de] um código jurídico,
maneira à mesa ou um sistema de parentesco. Trata-se,
sobretudo, de uma solicitação de aprofundar nossa psiquiatria
e liberta-la do que fica especificamente ligado a nossa
cultura: isso leva talvez a fazê-la passar do plano somático ao
hermenêutico (Tatossian, 1997/2001a, p. 136).
Neste sentido, são discutidas, no estudo de Moreira e Boris (2006), as
dimensões culturais da experiência vivida, bem como a concepção da
experiência psicopatológica em sua mundaneidade, ou seja, o seu significado
no mundo, em seus múltiplos contornos, inserindo tal compreensão na
perspectiva de uma psicopatologia crítica.
A psicopatologia tradicional ancora a sua perspectiva de atuação no
modelo etiológico, atribuindo ao indivíduo, ou a um aspecto interno seu, a
origem e a responsabilidade da doença. O enfoque da psicopatologia crítica,
ao contrário, propõe outra compreensão do fenômeno psicopatológico, pois
entende a psicopatologia como mutuamente constituída em seus múltiplos
contornos não apenas biológicos e psicológicos, mas também, históricos,
sociais, políticos e antropológicos portanto, culturalmente produzidos a partir
38
de processos ideológicos (Moreira & Sloan, 2002). A prioridade passa a ser,
neste caso, o ser humano e a gama de significados que ele atribui ao seu ser-
no-mundo não um rótulo que se aplica ao conjunto de sintomas detectados. Tal
forma de compreender o ser humano e suas manifestações psicopatológicas
transcende o dualismo tradicional de mente e de corpo a que se vincula a
maioria das abordagens científicas modernas. Na perspectiva da
psicopatologia crítica, o há, portanto, um fenômeno externo e outro interno,
ou uma dimensão social e outra individual, pois o ser humano está implicado
no mundo e sua abertura ao mundo histórico e cultural lhe é inerente.
O diagnóstico dos transtornos depressivos, sob tal ótica, pode
contribuir muito para uma compreensão mais abrangente de tal fenômeno.
Neste sentido, a experiência vivida da depressão foi investigada, a partir do
enfoque crítico e transcultural, por Moreira (2007b). Esta pesquisa buscou
compreender as variações culturais de tal fenômeno entre pessoas do Brasil,
do Chile e dos Estados Unidos. Os resultados mostraram variações no
significado da depressão nos três países, corroborando a ideia de que as
mudanças culturais interferem nos processos subjetivos. Outro achado de tal
pesquisa se refere à noção de que tanto o estilo de vida contemporâneo quanto
a situação de opressão econômica e psicossocial contribuem para o
surgimento e a manutenção da depressão.
Fazer contato com o diagnóstico dos transtornos depressivos na
atualidade pode suscitar, ainda, a compreensão da magnitude de tal fenômeno.
Se a depressão é tão antiga quanto a história da humanidade, como se explica
o fato de que seja considerada um fenômeno tão presente na atualidade,
apesar dos esforços de minimizar os seus efeitos? Como explicar o fato de
39
que, mesmo com o aumento crescente das pesquisas na área da
psicofarmacologia, a depressão ainda atinja índices alarmantes na atualidade?
Tais questões podem ser mais bem discutidas a partir de uma abordagem que
priorize o caráter ambíguo do fenômeno psicopatológico e considere as
imbricações de seus múltiplos aspectos. Tratada como desordem dos afetos,
pode ser assim classificada pelos sistemas tradicionais (DSM-IV e CID-10) que
ressaltam a distinção entre tais desordens e as desordens do pensamento. No
entanto, associada ao individualismo que impera nas sociedades
contemporâneas, a depressão é marcada pela ordem dos desafetos (Moreira &
Freire, 2009):
ainda que a depressão seja uma doença dos afetos, no seu
sentido mais amplo se pela ordem dos desafetos, em um
sistema cultural que não permite uma ética da alteridade. A
sociedade contemporânea está doente dos afetos,
contaminada pelas ideologias que impedem uma ética da
alteridade, e, portanto, adoece, despotencializa e incapacita os
indivíduos a viver significativamente, e impõe a ordem do
desafeto, que se transforma em depressão e outras patologias
mentais (p. 155).
Como pudemos destacar até aqui, não se pode tratar de um
fenômeno tão complexo, como a depressão, sem que se compreenda as
imbricações entre os diversos aspectos nele envolvidos. Atenta a tal
característica, procurei compreendê-la a partir da psicopatologia
40
fenomenológica tomando como referência os trabalhos de Tellenbach
(1969/1999) e de Tatossian (1979/2006).
41
2. DEPRESSÃO: COMPREENSÃO FENOMENOLÓGICA
2.1. A Descrição do Typus Melancholicus de Tellenbach e a
Compreensão do Transtorno Depressivo na Atualidade
Para uma compreensão do significado do transtorno depressivo na
atualidade, faz-se necessário que se conheça, também, o significado do que se
tem conhecido, na psicopatologia fenomenológica, como tipo melancólico.
Neste sentido, recorri ao pensamento de Tellenbach (1969/1999). Em sua obra,
trata da melancolia segundo a perspectiva fenomenológica, discutindo um tema
importante para a psicopatologia: o problema da etiologia. Em tal tentativa,
discute os conceitos de situação, de tipo e de endon.
A etiologia, para a psicopatologia fenomenológica, não pode ser
considerada eminentemente causal, pois a fenomenologia não nega nem
integra a causalidade (Tatossian, 1979/2006). Ela coloca entre parênteses a
causalidade e atua por meio da redução fenomenológica. No que consiste tal
atitude? Redução fenomenológica ou epoché, de acordo com o pensamento de
Husserl, consiste na passagem da atitude natural para a qual o mundo existe
por si mesmo para a atitude fenomenológica, que permite compreender o
mundo e o homem como constituintes de uma totalidade (Abbagnano, 2000).
É, por assim dizer, pôr o mundo entre parênteses. É o recurso da
fenomenologia para chegar ao fenômeno como tal ou à sua essência buscando
captar o fenômeno na imediatez da sua vivência (Forghieri, 1993). Propõe uma
42
mudança de atitude da natural, para a qual o mundo existe por si mesmo,
para a fenomenológica a qual permite visualizar as relações entre o homem e
mundo como fenômenos, ou como constituintes de uma totalidade aberta a um
mundo de significações. Assim, contactando com a própria vivência, chega-se
à descoberta da sua essência. Merleau-Ponty (1945/2006) questionando tal
pensamento, vai além dele afirmando que “o maior ensinamento da redução é
a impossibilidade de uma redução completa” (p. 10), uma vez que é impossível
apreender o mundo em sua totalidade. Assim, a proposta de Tellenbach
(1969/1999), no que se refere à situação, ao tipo e ao endon apenas pode ser
compreendida numa atitude fenomenológica, ou seja, pela redução
fenomenológica aplicada à experiência clínica.
A contribuição de Tellenbach (1969/1999) ao estudo da melancolia é
fundamental à compreensão fenomenológica da depressão, pois a aborda
não em seus sintomas, na busca de uma explicação somática ou psíquica
inconsciente, nem mesmo de uma justificativa de ordem causal no sentido do
fenômeno, sendo considerada uma modificação da condição existencial em
sua estrutura fundamental. A partir de tal perspectiva, é possível compreender
o fenômeno psicopatológico em sua origem, transcendendo a oposição entre
psicogênico/somatogênico, e integrar os conceitos de situação, de tipo e de
endon, propostos por Tellenbach, e que podem ser associados à dimensão do
corpo vivido histórico e mundano.
Conhecendo a atitude fenomenológica que permeia o pensamento
de Tellenbach (1969/1999), é possível compreender as noções de endon e
endogeneidade.
43
2.1.1. O endon e a endogeneidade
Há uma disposição para a doença mental? Eis a principal dúvida que
permeia a discussão sobre o endógeno, em oposição ao exógeno, em
psicopatologia. O conceito de “endógeno” foi introduzido na psiquiatria por
Moebius, em 1892. O termo é proveniente da botânica e foi utilizado,
inicialmente, para fazer oposição a externo. Para ele, os transtornos
endógenos dependiam fundamentalmente de uma predisposição individual,
tendo os outros fatores conotação secundária (Pereira, 1999). No entanto, o
desenvolvimento de tal ideia provocou muitas controvérsias, uma vez que se
aproxima do somático, embora seja de origem causal obscura. Portanto, a
dualidade imanente à psicopatologia tradicional à questão um valor
negativo.
Tellenbach (1969/1999) aborda o tema da endogeneidade a partir de
uma abordagem fenomenológica e analítico-existencial. Considera o valor
positivo do caráter endógeno a partir da noção de endon, para ele um terceiro
campo etiológico, não se limitando aos campos somático e psíquico:
a psiquiatria distingue três grupos de transtornos:
somatógenos, psicógenos e endógenos. Evidentemente, esta
distinção repousa sobre uma delimitação de três campos
causais. Os dois primeiros podem ser chamados soma e
psique. O terceiro, até agora não tem nome. Por razões
lógicas, deveríamos denominar endon o campo causal das
alterações endógenas. “Endógeno” quer dizer “nascido dentro”
44
(ou seja, na casa). Endon designa, por conseguinte, uma
origem e, neste sentido, também uma procedência (p. 164).
O sentido de endon, para Tellenbach, compreende
[...] a instância espontânea e original que se manifesta em
certas formas fundamentais do ser-do-homem, e que essas
formas fenomênicas tanto em momentos de saúde como, e
com maior razão, em momentos de psicose são o que
queremos designar como endógeno (p. 165).
Assim, partindo do fenômeno, não da sua causa, o endon, na concepção de
Tellenbach, remete à globalidade, ou seja, ao campo fenomênico ou à
corporeidade humana como totalidade, bem como à singularidade da
experiência humana, ultrapassando o seu caráter causal. Refere-se a tudo o
que tem caráter vital no homem, mas se apresenta como unidade. Tal
singularidade peculiar ao endon precede e supera tanto o caráter impessoal do
biológico quanto o campo singular da existência. Ou seja, o endon não é nem
psicologicamente compreensível nem somaticamente explicável, embora, em
sua manifestação, ocorram mecanismos somáticos e psíquicos. Partindo de tal
concepção, no que consistem as chamadas psicoses endógenas?
Compreendendo endógeno como atemporal, ou melhor, como o que precede e,
ao mesmo tempo, está além do caráter existencial, deve-se considerar o
caráter transformador do endon: a natureza orgânica se transforma no contato
com o mundo. Assim, para Tellenbach, as psicoses endógenas consistem em
uma forma de exteriorização do endon, transformado em sua natureza orgânica
fundamental pelo contato com o mundo “ameaçador”. O problema da
45
disposição, assim analisado, nunca é a expressão direta de um fator biológico,
nem é independente ou mesmo um reflexo direto da existência individual de um
ser humano: a psicose endógena é, antes de tudo, uma modificação do
Dasein
1
a partir de uma condição existencial intolerável. Conhecendo as
particularidades do endon, podemos, então, contactar com a situação dos
fenômenos psicopatológicos. A psiquiatria tradicional considera a situação em
psicopatologia, tomando como referência a oposição entre somatogênico e
psicogênico. Considerada de forma dicotômica, a situação em psicopatologia
marca a posição distinta do eu e do mundo e da psique e do soma de forma
que passa a ser vinculada a um vivido psíquico ou a uma condição objetiva,
independente do indivíduo. Ou seja, a situação, para a psiquiatria tradicional, é
determinada pelos eventos de fora ou de dentro do indivíduo.
Para a psicopatologia fenomenológica, a situação ocasião ou
conjuntura em que emerge o fenômeno deve ser considerada na interseção
do universal com o singular, pois
não é menos verdadeiro que a situação não é nem o psíquico
subjetivo, simplesmente “acompanhado” de fenômenos
somáticos, nem um conjunto infinito de dados objetivamente
presentes, pois ela é projetada pela característica significativa
disto que encontra (o sujeito) no mundo circundante e no
mundo humano. A situação é indissoluvelmente situação do
corpo vivido ao mesmo tempo histórico e mundano (Tatossian
1979/2006, p. 181).
1. O termo Dasein, tomado na fenomenologia de Heidegger em seu aspecto
psicológico e ontológico, designa o caráter específico da existência humana, a
presença intencional do Ser. (Durozoi, 1996)
46
Para Tellenbach (1969/1999), a situação é operação constante do ser-
no-mundo: é existência humana, espacialização e temporalização, não
podendo ser considerada de outra forma senão como constituída do vivido
fenomenológico. Considera, pois, os processos endógenos como movimentos
advindos de uma crise vital. Afirma que
deve-se chamar enfaticamente a atenção para o fato de que
em todos os processos endógenos tanto os normais como os
modificados o homem nunca aparece em sua realidade
objetiva pura, nem em sua própria subjetividade. Sonho e
vigília, comer e beber, criar e procriar: todos esses atos têm
naturalmente um aspecto somático e um aspecto psíquico, dos
quais, todavia, nunca se compreende mais do que uma única
faceta. Por mais constitutivas que para certos métodos de
nossa investigação sejam as distinções tais como interior e
exterior, sujeito e objeto, físico e psíquico, a consideração dos
fenômenos nos quais se desdobram o endon em
manifestações endógenas nos conduz, apesar de tudo, a um
nível que é transubjetivo em vez de transobjetivo, meta-
somático ao mesmo tempo (p.168).
Tal compreensão mostra, claramente, o caráter global dos transtornos
psicopatológicos, o que significa que se trata de uma forma existencial, ou seja,
da manifestação de uma modificação do ser do homem como um todo. Neste
sentido, fica claro que tais manifestações sejam chamadas de fenômenos, não
de sintomas, como preconiza a psicopatologia tradicional, pois sintoma sempre
se refere a algo particular. Assim, no caso da descrição da depressão, por
47
exemplo, a leitura fenomenológica não enfatiza o conjunto de seus sintomas,
mas como uma modificação global do ser. A descrição do typus melancholicus
em Tellenbach representa bem tal perspectiva.
2.1.2. O typus melancholicus
Compreendendo a situação como constitutiva do ser-no-mundo, não
como eminentemente psíquica ou somática, Tellenbach (1969/1999)
desenvolve a noção de tipo. No entanto, tal noção não é a mesma da
psiquiatria tradicional, que ressalta a tipologia no sentido de predestinação ou
de desenvolvimento patogênico. A noção foi desenvolvida por Tellenbach a
partir de uma atitude fenomenológica em que está presente o movimento. Não
há, aí, oposição entre fatores constitucionais e do meio, nem relação causal
com a situação. A noção de tipo foi desenvolvida por Tellenbach a partir da
experiência imediata com os próprios sujeitos. Sua experiência clínica propiciou
que ele descrevesse o tipo melancólico:
o que pensamos quando falamos de “tipo” não é [...] o
resultado de medições, nem tampouco o de um esquema
teórico por exemplo, caracterológico mas unicamente da
intuição imediata. Obtemos traços essenciais do tipo
melancólico não por meio da análise de propriedades e de sua
estruturação sistemática, mas pelas experiências no encontro
com aqueles que já foram melancólicos (p. 172).
48
Tal perspectiva da psicopatologia fenomenológica alma e vida ao processo
de contato entre o profissional e o cliente, pois não se trata de promover um
enquadre da descrição dos sintomas do cliente a um quadro nosológico
específico para, a partir daí, escolher as ferramentas necessárias à
compreensão do processo. Compreender a psicopatologia de acordo com a
fenomenologia não é relegar a pessoa que sofre a um segundo plano,
priorizando os seus sintomas, nem tampouco desvalorizar ou supervalorizar o
campo no qual está imerso o fenômeno descrito por ela. É compreender a
pessoa e a psicopatologia em mútua constituição, isto é, em movimento a partir
de sua corporalidade ou do corpo vivido, que é, também, espacialidade e
temporalidade. Não se pode obter uma descrição do vivido a não ser a partir do
contato direto com a pessoa que vive tal experiência.
No contato clínico com uma centena de pacientes que apresentaram
um ou vários acessos melancólicos, Tellenbach (1969/1999) descreve como
“ordenalidade” (p. 172) o traço essencial do typus melancholicus, cujas
aplicação, escrupulosidade, consciência do dever e formalidade marcam a sua
vida profissional, as tarefas diárias, as relações interpessoais e a relação
consigo mesmo.
Mas qual a distinção entre a ordem imposta pelo tipo melancólico a
si mesmo e a do sujeito comum, todos nós que vivemos sob a égide de uma
sociedade rigorosamente competitiva? Segundo Tellenbach (1969/1999), a
falta de elasticidade, marcadamente presente, faz com que um traço de rigidez,
um modo de ser fixado marque a atuação do tipo melancólico. Tal forma de
estar no mundo, relacionada à vida profissional do tipo melancólico, é assim
descrita:
49
a exigência do próprio rendimento é, sem exceção, muito viva.
O trabalho é sempre uma “tarefa” que deve ser cumprida. Tem
uma predileção pelo planejado, e sempre existe repulsão frente
à improvisação. Realiza o planejado com a maior
meticulosidade possível. As donas de casa esforçam-se pela
limpeza mais escrupulosa; pode-se comer no chão. Toda
atividade importante ou insignificante é executada com
igual intensidade (p. 173).
Compreende-se daí que, para o tipo melancólico, o sentido da própria
existência está na tarefa, ou seja, a atividade assume valor existencial. A auto-
exigência e o esforço sobre-humano são, portanto, constantes neste tipo, cuja
meticulosidade nas tarefas é o imperativo. Depreende-se que tanta exigência e
meticulosidade com que realiza a tarefa podem comprometer o volume de
trabalho, sendo a relação inversa também verdadeira, o que faz com que tal
tipo aumente mais ainda o caráter obsessivo de seu traço para que nem a
quantidade de trabalho nem a perfeição do resultado sejam comprometidas:
“semelhante círculo de exaltação da auto exigência no rendimento, por um
lado, e da minuciosidade, por outro, pode ser pernicioso e facilitar o
desenvolvimento de uma depressão” (p. 173).
Outra característica do tipo melancólico, descrita por Tellenbach
(1969/1999) diz respeito às relações inter-humanas. Segundo ele, tais relações
são vividas pelo tipo melancólico de duas formas bastante evidentes: o “ser-
para-o-outro e o ser-um-com-o-outro” (p. 173). Estes aspectos mostram uma
existência em que o sentimento de amorosidade não é possível ou não é o
bastante, sendo sua importância para o outro medida pelo grau de rendimento
50
à relação ou mesmo por uma ligação simbioticamente firme que proporcione a
sensação de impossibilidade de ruptura, seja por separação, seja por morte.
Segundo Tellenbach, tais características da esfera da convivência são
especialmente marcantes na relação com o cônjuge e com os filhos e geram
significativos problemas, principalmente quando a impossibilidade da
realização do domínio nas circunstâncias de adoecimento ou de
envelhecimento, bem como na possibilidade de vivenciar a solidão. Como
podemos observar, o caráter rigoroso que marca a existência do tipo
melancólico é também aplicado às suas relações com os outros. Tellenbach
considera, ainda, que este mesmo traço possa ser encontrado na forma como
o sujeito lida consigo mesmo. A tal traço, deu o nome de escrupulosidade:
o depressivo revela uma extraordinária sensibilidade da
consciência moral, de tal modo que a mesma tem perante tudo
uma função proibitiva. Está atento a evitar toda a culpa, por
pequena que seja; e quando se carregado por alguma, esta
é rapidamente anulada por uma conduta expiatória (p. 174).
Sentir-se sob a pressão da culpa é, portanto, o pior dos males para o tipo
melancólico, mas o mais paradoxal é que ele mesmo é capaz de se impor as
mais terríveis culpas, dada à notória intolerância consigo mesmo, a presença
de uma consciência moral bastante rígida e de, na maioria das vezes, se impor
tarefas cujo nível elevado de exigência pode levar não ao cumprimento devido.
Para a psicopatologia crítica, as características peculiares ao tipo
melancólico, conforme descritas por Tellenbach (1969/1999), são perfeitamente
identificadas no mundo ocidental conforme descrito por Moreira e Sloan (2002):
51
acredito que o tipus melancholicus é culturalmente adequado
ao mundo ocidental capitalista, na medida em que tem
características de personalidade que são bem vindas a uma
ideologia que pretende manter o status quo (p. 194).
Desta forma, a autoexigência ingênua do tipo melancólico é compatível com as
exigências da sociedade contemporânea, que, muitas vezes, impõe ao sujeito
a manutenção da ordem prevista. Assim, tal fenômeno, descrito por Tellenbach
(1969/1999) e tomado em seu contexto atual, envolve um alto grau de
exigência nos papéis profissional, social e íntimo, podendo gerar um grande
sofrimento psíquico para o sujeito, mas, ao mesmo tempo, atende as
necessidades de uma sociedade cujo caráter individualista reforça tais posturas
fundamentais à manutenção do modelo cultural da desigualdade social.
Para Tellenbach (1969/1999), o mundo da ordenalidade em que vive
imerso o tipo melancólico tem importância patogênica, pois predispõe a
encerrar o indivíduo em limites rígidos, dificilmente transcendidos. É assim,
também, que se apresenta a pessoa em depressão: presa em limites
autoimpostos e restrita em sua corporalidade. A compreensão do ser humano
em sua singularidade e do seu diálogo com o contexto histórico e cultural é
amplamente desenvolvida no âmbito da psicopatologia fenomenológica.
Encontramos em Arthur Tatossian (1979/2006) uma importante contribuição
para a compreensão de tal perspectiva.
52
2.2. A Contribuição da Psicopatologia Fenomenológica de Arthur
Tatossian: Da Melancolia à Experiência Vivida da Depressão
A perspectiva da fenomenologia sobre os transtornos mentais
expressa, em seu bojo, o diferencial de buscar compreender o significado da
experiência vivida, que, neste caso, é a experiência psicopatológica. Descrever
o Lebenswelt (mundo vivido) do doente é uma tarefa desafiadora e complexa,
mas, ao mesmo tempo, instigante, pois parece conferir às narrativas, alma e
movimento. Trata-se de investigar a vida psíquica por intermédio do vivido.
Entre os fenomenólogos que se aventuraram nesta perspectiva, destaca-se
Tatossian (1979/2006), cuja obra “A Fenomenologia das Psicoses” é fiel a tal
proposta. Partindo do pensamento de vários psiquiatras fenomenólogos que se
propuseram a pesquisar o fenômeno psicopatológico tal qual ele se apresenta,
foi possível a Tatossian construir uma compreensão sólida e profunda do que,
de fato, se propõe tal perspectiva. A sua proposta consiste, então, em
apresentar, sem pretensão de originalidade, mas com
preocupação de fidelidade e de uma visão de conjunto a mais
completa possível, o quadro da fenomenologia psiquiátrica tal
como ela tem sido praticada pelos psiquiatras e não como
deveria sê-lo a partir de tal filosofia (p. 23).
Tal proposta é, de fato, imprescindível para que se tenha uma compreensão
clara e precisa de como se pode fazer contato com a melancolia, por exemplo,
levando em conta o fenômeno da depressividade, em seus múltiplos contornos,
53
não apenas sua sintomatologia. Para que isto seja possível, deve-se
compreender que a fenomenologia demanda a passagem do que a ciência
tradicional concebe como real para a essência. No entanto, o próprio Tatossian
adverte que é impossível abolir totalmente a “atitude natural” (p. 24) proposta
pela ciência tradicional, cabendo ao fenomenólogo estar ciente de tal fato para
que ela não se sobreponha à investigação.
Para Tatossian (1979/2006),
a fenomenologia se define, com efeito, por uma mudança de
atitude que é o abandono da atitude natural e „ingênua‟, quer
dizer, uma certa atitude onde, psiquiatras ou não,
apreendemos isto que encontramos como realidades objetivas,
subsistindo independentemente de nós, quer sejam realidades
psíquicas ou materiais (p. 25).
Com esta expressão, Tatossian discorre sobre as relações entre a psiquiatria e
a filosofia, intermediadas pela fenomenologia, propondo um novo caminho, que
contemple a experiência psiquiátrica, mas que não seja totalmente descritivo
nem essencialmente filosófico. Uma das principais consequências desta forma
de lidar com a experiência psiquiátrica é a distinção entre sintoma e fenômeno.
Nesta perspectiva fenomenológica, as manifestações do vivido é que
comportam significado e sendo o sintoma, da forma como é constituído na
medicina tradicional, de caráter secundário.. Em sua obra, Tatossian retoma tal
tema com muita frequência, tal sua importância no que concerne à perspectiva
da fenomenologia no campo da psicopatologia. Assim, para Tatossian:
54
os fenomenólogos precisamente, não se interessam pelo
sintoma, mas pelo fenômeno, no sentido heideggeriano do
termo, tal como o apresenta Tellenbach e, neste sentido, o
fenômeno que corresponde ao vivido de Glatzel não é
alcançado imediatamente por intermédio do comportamento
material, mas é diretamente dado na experiência psiquiátrica,
na condição de que ela se faça experiência fenomenológica,
que é mais do que experiência empírica no sentido usual,
enquanto sendo mesmo totalmente experiência e não
inferência (p. 42).
Partindo de tal forma de conceber a psicopatologia, Tatossian
propõe que apenas é possível compreender o fenômeno da melancolia a partir
da experiência da depressividade, uma vez que é a partir dela que tal
fenômeno se revela. Ao se referir ao fenômeno da depressividade, Tatossian o
descreve como uma experiência global, ou seja, que afeta o indivíduo em seu
encontro consigo mesmo, com o mundo e com outrem. Revela-se como uma
experiência de emurchecimento e de definhamento
2
do vivido, estando ausente,
inclusive, a ressonância, a capacidade de “sentir com” (p. 113) Einfühlung ,
característica das relações interpessoais. o se pode, portanto, compreender
a experiência melancólica somente a partir da descrição dos sintomas
depressivos, devendo considerar o ser global do indivíduo: É a partir do
Lebenswelt (mundo vivido) do melancólico que se faz contato direto com a
depressão.
___________________________________________________________
2. Emurchecimento e definhamento são termos utilizados por
Tatossian(1979/2006) na descrição da experiência melancólica.
55
Portanto, o que, de fato, interessa à psicopatologia fenomenológica
em relação à melancolia não é, simplesmente, saber se o indivíduo é
depressivo a partir de uma avaliação de sua sintomatologia, mas,
principalmente, compreender o fenômeno da depressividade, que pode ser
apreendido no contato com o doente, e se define não a partir da experiência,
ou seja, saindo dela e raciocinando sobre ela, mas sobre e na experiência. Isto
quer dizer que, no contato com o depressivo, temos não apenas a experiência
de que ele é depressivo, mas do que é a depressão. Ou seja, o encontro com o
depressivo nos a experiência de que ele é depressivo, mas também do que
é a depressividade (Tatossian, 1979/2006). Para a psicopatologia
fenomenológica, tal perspectiva do fenômeno apenas pode ser apreendida à
medida que o observador se percebe implicado na apreensão do fenômeno,
pois engloba o que é visado e aquilo que o visa. É a partir de uma postura que
une atividade e passividade, receptividade e espontaneidade, que se pode
compreender a experiência vivida da melancolia. A proposta da psicopatologia
fenomenológica de Tatossian consegue atingir tal objetivo, pois une a
experiência positivista-objetiva e a experiência fenomenológica-eidética, na
qual não predominância da postura filosófica nem da psiquiatria clássica,
mas permite uma nova construção teórica que transcende as duas posturas no
encontro com o doente mental. É uma forma de trabalhar sempre em fluxo,
compreendendo o inacabamento inerente na busca do fenômeno que se
mostra no contato com o humano como ser-no-mundo. Neste modelo de
trabalho, levanto a seguinte questão: no que consiste a experiência
melancólica?
56
2.2.1. A natureza da experiência melancólica
No que diz respeito ao sofrimento, a experiência melancólica não se
compara ao sofrimento natural, pois se trata, nas palavras de Tatossian
(1979/2006), de um sofrimento “anormal, pervertido, deformado” (p. 117).
Tatossian propõe um estudo crítico das relações entre a afetividade e o
sofrimento melancólico, para conhecer a natureza de tal experiência e se
aproximar do que constitui a tristeza nela. A noção de “tristeza vital” (p. 117)
explicita tal questão: no melancólico, a tristeza é localizada tanto no seu corpo
quanto é associada ao vivido, por meio de queixas e sensações corporais, o
que, talvez, iniba os sentimentos pessoais, já que a experiência no corpo
parece ser extremada. De fato, o sentimento melancólico parece ser de tal
ordem que afeta todo o ser, sendo priorizada, então, não a tristeza, mas o
caráter vital de tal experiência.
Assim, Tatossian diferencia o sofrimento normal, experimentado
pelo ser humano sadio ou pelo deprimido reativo, do sofrimento melancólico,
que é considerado uma experiência completamente estranha, até mesmo para
quem a vive. É como se nem mesmo a tristeza pudesse, de fato, ser sentida
pelo indivíduo, que não sustenta mais do que “um sentimento de vazio, de
petrificação de não-viver” (p. 117). O distanciamento do sentimento marca a
experiência de não-sentir do sujeito melancólico e a tristeza é considerada,
nesta perspectiva, como reação ao vivido. Tatossian considera, então, a
melancolia como distúrbio do humor, não do sentimento, no qual “o vivido
nuclear da melancolia não é, portanto, a tristeza, mesmo que ela seja
57
vitalizada, mas resulta da alteração da Stimmung (humor) ou da afetividade-
contato” (p. 120). De fato, a tristeza parece estar presente, mas ela não é mais
do que uma metáfora, uma forma de expressar o distanciamento do vivido ou
mesmo de expressar o que é, em tal experiência, inexprimível e inexplicável.
Cabe, aqui, a diferenciação entre a tristeza comum que, como todos os
sentimentos, nasce, cresce, dura e desaparece, e a tristeza do melancólico,
que é isenta de movimento, permanece e o eu assiste à sua tristeza sem se
envolver nela. É nisto em que consiste, para Tatossian, a incapacidade de ser
triste que compõe o vivido melancólico. É uma espécie de anestesia afetiva,
um “sentimento de ausência de sentimento” (p. 121), que atinge toda a
experiência melancólica e toda a ação do sujeito. Tal descrição pode ser mais
bem explicitada considerando três construtos fundamentais da psicopatologia
fenomenológica: corpo, tempo e espaço vividos.
2.2.2. O corpo vivido na melancolia
Na perspectiva do corpo vivido, podemos afirmar que a tristeza
melancólica não tem movimento: o eu assiste à sua tristeza, sendo incapaz de
estabelecer relação com ela. Tal incapacidade invade, também, toda a ação do
sujeito melancólico, causando uma inibição vital e um vazio temporal.
Tatossian (1979/2006) assim comenta acerca do corpo próprio do melancólico:
“a tristeza melancólica é um tipo de vivido perceptivo do corpo próprio em sua
globalidade e da corporalidade como modo de ser humano” (p. 122). Portanto,
58
traduz o vivido corporal na melancolia a partir do conceito de “corpo-portador”
(p. 122), aquele que não é senão peso e carga insuportável. O melancólico
perde a noção de fluxo contínuo no vivido corporal e a experiência constante
de peso não dá lugar à afetividade, que se aniquila ou se torna estranha para o
sujeito. Carregar o peso do próprio corpo, de forma constante e ininterrupta, faz
com que o melancólico leve o mundo, a sua identidade e os papéis sociais a
ele atribuídos a sério demais, sem considerar a sua própria subjetividade como
liberdade. Tatossian relaciona tais questões aos estudos de Tellenbach
(1969/1999), que o levaram a descrever o typus melancholicus, cuja principal
característica consiste no “espírito de ordem” (p. 124). Ou seja, o caráter de
ordenalidade, descrito por Tellenbach na definição do typus melancholicus
pode ser encontrado, segundo Tatossian (1979/2006), no comprometimento do
corpo vivido, pois o peso que o melancólico atribui à própria existência se
projeta na sua identidade e nos papéis que assume no mundo.
Outra característica considerado por Tatossian (1979/2006), em
relação ao corpo melancólico, consiste na perda da comunicação com outrem,
implicada pela atrofia da confiança. Considera que, neste aspecto,
impossibilidade de o melancólico se relacionar com o outro como indivíduo, não
no sentido genérico. Ou seja, é o “ser-com-este-outro” (p. 124) que está
comprometido na melancolia, o que enfraquece os laços sociais e
interpessoais. Neste sentido, o processo psicoterapêutico do melancólico, bem
como qualquer outra forma de manifestação subjetiva da afetividade-contato,
são bastante dificultados por tal traço e, portanto, não podemos deixar de
compreender, então, o grave comprometimento da experiência vivida da
melancolia mediada pelo corpo.
59
2.2.3. O tempo vivido na melancolia
O pensamento de Tatossian (1979/2006), na descrição da
melancolia a partir da “Fenomenologia das Psicoses”, parece evidenciar que
tanto o caráter de alteração da Stimmung (humor), quanto o caráter do corpo-
portador ou do distúrbio na afetividade-contato, convergem em direção à
alteração do tempo vivido. Tal questão é considerada fundamental para
Tatossian na definição da experiência melancólica, descrevendo tal alteração
como “distúrbio fundamental, sintoma axial ou distúrbio gerador da melancolia”
(p. 125).
Quando trata do tempo vivido nesta perspectiva, não se refere ao tempo
do mundo ou do tempo dos relógios, mas de um tempo propriamente humano.
Tatossian (1979/2006) trata de tal questão, propondo a distinção do tempo em:
tempo transitivo ou transcendente ao vivido e tempo imanente ao vivido ou
tempo do eu. Na melancolia, há estagnação do tempo imanente, pondo o
sujeito em contato com a impossibilidade do futuro. A estagnação do tempo
vivido no melancólico implica, também, na perda do poder ou na incapacidade
basal à ação: “ser melancólico é fundamentalmente não poder comer, pensar,
compreender, trabalhar, fazer amor, mas é também registrar cruelmente esta
incapacidade e, portanto, também sempre ensaiar agir, lutar contra o
inacabamento obrigatório das ações” (p. 128). Parece haver um sentimento de
ser impotente para viver, o que implica numa relação peculiar com a morte, que
passa a ser imanente ao sujeito. Ou melhor, o desejo da morte imanente,
60
mas ela é desejo de vida, paradoxalmente vivido pela necessidade de viver
mortes parciais.
Outro aspecto da alteração do tempo vivido, discutido por Tatossian
(1979/2006) na sua compreensão fenomenológica da melancolia, diz respeito
ao fenômeno da despersonalização-desrealização. Tal fenômeno se encontra
diretamente ligado à questão do não-poder, tão presente na melancolia, e se
manifesta em um sentimento de impotência, marcado pelo não-fazer e pelo
não-ser. Tais fenômenos constituem a essência do distúrbio melancólico e têm
intrínseca relação com a estagnação do tempo vivido, não numa relação
causal, mas a partir da experiência vivida, que lança o sujeito em uma
existência no vazio: “desrealização e despersonalização o os dois aspectos
de uma única e mesma alteração da comunicação onde separado do mundo,
separado do outro, está separado de si” (p. 132). Ou seja, toda a presença do
ponto de vista da existência se encontra comprometida, pois é uma existência
vazia, que é incapaz de se comprometer com o fazer, o agir e o ser.
Tatossian (1979/2006) compara o tempo vivido no homem sadio e
no melancólico, considerando que, no homem sadio, ele representa
alargamento, crescimento, devir-mais ou engrandecimento, enquanto que, no
melancólico, é sempre devir-menos ou decrescimento. O sujeito melancólico
vive a imobilização do tempo presente, caracterizada pela estagnação do
tempo vivido, o que o leva à barreira do futuro, que passa a ser ameaçador e
inquietante, carregado de catástrofes e declínios. Qualquer atuação ou esforço
próprio do sujeito, no entanto, são capazes de impedir tal futuro, pois o
melancólico não busca a mudança no futuro, mas no passado. Na experiência
61
da melancolia, o passado é falta inapagável e culpa. É débito com o devir, que
suscita o não-poder.
2.2.4. A existência no espaço vazio
Outro aspecto do vivido melancólico, descrito por Tatossian
(1979/2006), é a “existência no vazio” (p. 131), que envolve a relação com o
mundo:
a existência no vazio comporta a alteração da relação
fundamental entre homem e mundo que permite o poder e o
devir e funda, portanto, a possibilidade de todos os atos
particulares. Na falta desta relação, o “solo” onde se
desenvolvem todos os atos cognitivos, volitivos e afetivos se
esconde (p. 132).
De fato, o vazio do melancólico se caracteriza pela “incapacidade de” (p. 132) e
se potencializa como um “não-ser-verdadeiramente-aí” (p. 132) ou uma relação
com o mundo a partir de uma existência no vazio. Tal tipo de relação com o
mundo, caracterizado pela existência no vazio, se insere na psicopatologia
fenomenologia do espaço vivido, marcadamente discutida nos estudos
fenomenológicos. O vivido espacial, no melancólico, é, portanto, alterado e
atinge não somente a percepção do sujeito em relação ao espaço, mas o
conjunto eu/mundo. Ou seja, a incapacidade de realização que marca o mundo
62
vivido do melancólico, ou o seu sentimento de não-poder, interfere na sua
noção de espaço: o espaço vivido é vazio, oco, sem significado. Para Tatossian
(1979/2006), tal alteração tem, como traço fundamental, a “perda da
proximidade existencial com as coisas” (p. 133), o que marca o isolamento em
que vive o melancólico. O contato vital com o mundo se perde, uma vez que,
distante das coisas, não é capaz de apreender sua utilidade e, muito menos, de
se relacionar com elas, seja no campo sensorial, seja no afetivo.
Pensar o modo de ser-no-mundo do sujeito melancólico é
compreender suas possibilidades corporais como representação no espaço.
Tatossian (1979/2006) observa que não possibilidade de projeção do corpo
no espaço, pois “o corpo totalmente estático do melancólico perdeu toda a
capacidade de se projetar no mundo e o espaço não pode ser mais que vazio”
(p. 135). Ou seja, o vivido melancólico é marcado pelo corpo pesado no espaço
vazio e pela impossibilidade da sua presença. Tatossian afirma que, na
fenomenologia do Lebenswelt, não subjetividade sem corpo, ou seja, “a
subjetividade corporal é pré-egóica e pré-pessoal e é a partir dela que se
desenvolve o eu e o outro” (p. 97). Tal afirmação enfatiza a importância da
concepção de corpo na fenomenologia, sendo necessário definir o que se
entende por corporalidade e, mais precisamente, introduzir a ideia de “corpo
próprio” em Merleau-Ponty (1946/2006).
63
3. CORPO E EXISTÊNCIA: DO CORPO FENOMENOLÓGICO À
NOÇÃO DE CORPO PRÓPRIO EM MERLEAU-PONTY
3.1. A Compreensão Fenomenológica do Corpo
O pensamento dualista que predomina na ciência moderna provocou
a concepção da separação entre corpo e mente, produzindo uma noção de
homem fragmentado e incapaz de se apropriar de si mesmo. Tal forma pensar
atingiu o pensamento moderno acerca do corpo, que passou a ser considerado
um simples “receptáculo passivo das ações de um mundo de coisas ou uma
barreira que isola o espírito de seu exterior” (Carmo, 2000, p. 81). A
compreensão fenomenológica do corpo, no entanto, rompe com tal
pensamento, construindo um novo modo de conceber esta questão. O corpo
fenomenológico não é o corpo anatomofisiológico. Ou seja, a primeira
distinção que se faz necessária diz respeito ao corpo que eu sou que se
confunde com a totalidade da minha existência, o meu ser no mundo, a minha
mundaneidade e o corpo que eu tenho que, não sendo exatamente eu, me
está disponível. Tal distinção, que envolve a noção de corpo, muitas vezes não
é clara, principalmente a partir de um modelo científico que privilegia a
dualidade. Tatossian (1979/2006) discute a dificuldade de se apropriar de tais
conceitos: “esta distinção, espontânea para o alemão que distingue Leib e
Körper, é mais artificial para o francês, que oporá o corpo fenomenal, o corpo
próprio, o corpo vivido ou vivo, o corpo-sujeito ao corpo objeto, ao soma” (p.
64
97). Não se trata, aqui, de negar a legitimidade do corpo-objeto, considerado,
muitas vezes, como um artefato ou como produto de discussão e intervenção
da via objetiva da ciência, tendo sido relegado a um plano superficial. Ambos,
corpo-sujeito e corpo objeto, são legítimos e ilustram a ambiguidade da
condição humana, pois estão, continuamente, presentes na vida cotidiana. A
grande dificuldade de tal questão está ou se colocar o corpo na condição de
coisa, típica do dualismo cartesiano, ou mesmo na identificação total com o
corpo, numa posição que iguala o homem às outras espécies animais.
Assim, a fenomenologia da corporeidade usa os conceitos de rper
e Leib comumente traduzidos como corpo vivo e corpo vivido como forma
de designar, respectivamente, o objeto construído cientificamente e descrito de
forma física, a experiência corporal vivenciada (Ortega, 2008). Ortega adverte
que não se trata, ao discutir a corporeidade de acordo com a fenomenologia,
de pensar um novo tipo de dualismo, acreditando em dois corpos diferentes,
mas de duas dimensões do corpo vivido, que é, também, um corpo de carne,
ossos, nervos e fibras, que pode ser descrito cientificamente. O fato da
descrição objetiva do corpo ter sido privilegiada por determinadas práticas e em
certos contextos sociais e históricos não significa que deva haver uma cisão
entre as duas dimensões constitutivas da corporeidade. Körper e Leib são,
portanto, dimensões de nossa corporeidade.
Sendo o corpo fenomenológico o corpo que eu sou, reconheço, nele,
a capacidade de assumir significados, de comunicar-se. Para a abordagem
fenomenológica, é inquestionável o poder de comunicação do corpo. Tal poder
se revela como uma potência aberta a significações e se manifesta como corpo
vivido ou corpo próprio. Para a fenomenologia, o corpo próprio indica,
65
exatamente, tal possibilidade concreta de ser, de se expressar e de se
comunicar com o mundo, sendo este o fundamento da intersubjetividade: “por
meu corpo me expresso mundanamente e ao mesmo tempo sou consciência
da existência do outro” (Rovaletti, 1984, p. 491). Para Rovaletti (1997), corpo e
afetividade estão ligados, na medida em que o corpo é o lugar de comunicação
com os outros e com as coisas. Tal perspectiva nos remete, mais uma vez, à
distinção entre corpo próprio e corpo objeto:
não se trata do “corpo objeto” da anatomia e da fisiologia; esse
corpo que podemos pôr a distância considerando-o
precisamente como um sistema obediente às leis físicas e
fisiológicas. Na verdade, este corpo não esgota o significado do
corpo; não é falso, mas não é toda a verdade do corpo (p. 193).
Posso, portanto, afirmar que o meu corpo é, antes de tudo, o corpo que eu sou,
não o corpo que eu tenho. Dotado de sentido e significado, capaz de se
expressar e de se comunicar. Assim, o corpo, nesta perspectiva, é uma
ressonância de nosso ser-no- mundo.
Rovaletti (1984) trata de um sujeito corporal que carrega a
capacidade de se expressar e vive no corpo a possibilidade de se comunicar,
passando seu corpo a ser o lugar do encontro com o outro. Por meio do gesto
e da palavra, o corpo manifesta o seu vivido bem como a sua mundaneidade:
através do corpo se uma ressonância de nosso ser sobre o
mundo e também do mundo sobre nós. Somos presença ativa
e afetividade, transcendência e receptividade originária. Somos
66
afetados enquanto nosso ser é abertura, intercâmbio e
comunicação (p. 491).
Sobre a relação entre consciência e corpo, Rovaletti (1984) afirma
que “não consciência separada do corpo próprio” (p. 492). Tal afirmação é
compatível com a abordagem fenomenológica mundana, para a qual o sujeito
não se reduz a um corpo objetivo separado de sua subjetividade. Neste
sentido, sou o meu corpo, ou seja, meu corpo se reconhece no mundo vivido e,
a partir dele, se revela como dado de minha consciência, porém não como
consciência pura, mas em contato concreto com pessoas e coisas. Assim,
rompe-se o modelo que trata do corpo como estranho ou exterior, ou mesmo
da necessidade de fazer analogias que criem a passagem da exterioridade
para a interioridade, mas significa um movimento que é ambíguo e que
transcende o interno e o externo. O corpo próprio pode se expressar em seu
todo, cada parte dele participando do diálogo com o mundo, em uma
diversidade que varia conforme a idade, a cultura ou as peculiaridades de cada
sujeito.
Observo, então, que o corpo constitui uma questão-chave para a
fenomenologia. No entanto, a corporalidade não é tratada por todos os
fenomenólogos da mesma forma, sendo abordada de forma clara e explícita na
fenomenologia existencial de Merleau-Ponty (1945/2006), filósofo francês,
existencialista e fenomenólogo que articulou a fenomenologia e a concepção
de existência. Para ele, a fenomenologia “é o estudo das essências, mas
também é uma filosofia que repõe as essências na existência e só compreende
o homem e o mundo a partir de sua facticidade” (p. 1), isto é, da própria
existência concreta. A forma como Merleau-Ponty trata a concepção de corpo
67
pode ter grandes implicações na clínica psicológica, uma vez que ele não
concebe o corpo como objeto separado da subjetividade. Na psicoterapia, o
corpo tem lugar de destaque e não se pode conceber qualquer prática
fenomenológica que ignore o corpo, seja como experiência vivida, seja como
possibilidade de expressão. O corpo é um conceito central na obra de
Merleau-Ponty, constituindo a inserção da consciência no mundo: “o corpo
próprio está no mundo assim como o coração no organismo; ele mantém o
espetáculo visível continuamente em vida, anima-o e alimenta-o interiormente,
forma com ele um sistema” (p. 273). É assim, portanto, que Merleau-Ponty
descreve o corpo em sua obra “Fenomenologia da Percepção”: como presença
no mundo.
3.2. Corpo como Existência: Uma Introdução ao Pensamento de
Merleau-Ponty na Obra “Fenomenologia da Percepção”
A compreensão do corpo como existência me permitiu a discussão do
corpo deprimido a partir da obra “Fenomenologia a Percepção” de Merleau-
Ponty (1945/2006), na qual encontrei o suporte para pensar a temática do
corpo como corpo vivido, ou seja, como meio de acesso ao mundo e a toda
experiência vivencial. Tal obra corresponde à sua fase de concepção de uma
fenomenologia existencial, voltada à compreensão do homem como ser em
situação, na qual o corpo exerce um papel fundamental no envolvimento do
homem com o mundo. Nela, o filósofo introduz a concepção de corpo próprio,
68
compreendendo-o como mediador de toda experiência possível, e trata da
corporeidade, ancorando-a na existência. Tal noção provocou transformações
no que diz respeito à forma como a ciência tem tratado o corpo, pois a
concepção de corpo próprio é abertura e campo primordial de possibilidade da
experiência. Desenvolve a compreensão de que o corpo não pode ser
considerado como coisa ou objeto e propõe a superação da concepção objetiva
e mecânica do corpo para a possibilidade de uma perspectiva do corpo como
sentido e significado, ou seja, como resultado da experiência.
No entanto, não se pode fazer um recorte de tal concepção sem
situá-la na sua obra e no seu pensamento, neste caso, a partir do livro
“Fenomenologia da Percepção”. No prefácio, Merleau-Ponty lança a questão “o
que é a fenomenologia?” e traça uma distinção entre seu pensamento e o de
Husserl. Considera que a fenomenologia trata do estudo das essências, mas
constrói tal premissa a partir da ideia de que a filosofia fenomenológica repõe a
essência na existência. Sob tal perspectiva, a consciência não é algo que
distancia o homem do mundo para interpretá-lo, mas concebe o homem como
um ser-no-mundo, o que supõe um enraizamento do espírito no corpo,
rompendo com o pensamento dualista:
a fenomenologia é o estudo das essências, e todos os
problemas, segundo ela, resumem-se em definir essências: a
essência da percepção, a essência da consciência, por
exemplo. Mas a fenomenologia é também uma filosofia que
repõe as essências na existência, e não pensa que se possa
compreender o homem e o mundo de outra maneira senão a
partir de sua “facticidade”. É uma filosofia transcendental que
69
coloca em suspenso, para compreendê-las, as afirmações da
atitude natural, mas é também uma filosofia para a qual o
mundo está sempre “ali”, antes da reflexão, como uma
presença inalienável, e cujo esforço todo consiste em
reencontrar este contato ingênuo com o mundo, para dar-lhe
enfim um estatuto filosófico (p. 1).
Assim, posso afirmar que o estudo do fenômeno psicopatológico, sob tal ótica,
deve ocorrer, como afirma Merleau-Ponty, no sentido de “descrever, não de
explicar nem de analisar” (p. 3). É, então, um jeito de ver. E o que é “ver”,
senão demarcar o olhar sobre o mundo que está aí? Afirma Merleau-Ponty que
“a verdadeira filosofia é reaprender a ver o mundo, e nesse sentido uma
história narrada pode significar o mundo com tanta profundidade quanto um
tratado de filosofia” (p. 19). É este o estatuto que ele atribui à fenomenologia: o
da possibilidade de revelação do mundo, o da apreensão do mundo em seu
estado nascente. A proposta é, então, lançar um olhar sobre o fenômeno, para
o que se mostra. Para Merleau-Ponty, “ver é entrar em um universo de seres
que se mostram” (p. 105). O filósofo propõe que a apreensão do fenômeno, o
contato com o objeto, ocorra por meio de um olhar que o habita e que permita
apreendê-lo em todas as suas nuanças.
Observo claramente, nesta perspectiva, a posição do filósofo de
ultrapassar a concepção dualista da ciência positivista, apreendendo o homem
em relação com o mundo, em sua história e sua cultura. Tal perspectiva
permeia a construção da noção de corpo a partir de um organismo integrado,
rompendo com o dualismo cartesiano:
70
a tradição cartesiana habituou-nos a desprender-nos do objeto:
a atitude reflexiva purifica simultaneamente a noção comum do
corpo e a da alma, definindo o corpo como uma soma de
partes sem interior, e a alma como um ser inteiramente
presente em si mesmo, sem distância. Essas definições
correlativas estabelecem a clareza em nós e fora de nós:
transparência de um objeto sem dobras, transparência de um
sujeito que é apenas aquilo que pensa ser (p. 268).
Ao contrário de tal pensamento, o filósofo prega que “o problema do mundo e,
para começar, o do corpo próprio, consiste no fato de que tudo reside ali” (p.
268). Neste sentido, é estabelecida uma relação pré-reflexiva e ambígua entre
homem e corpo, em que fica claro que nós somos o nosso corpo:
a experiência do corpo próprio, ao contrário, revela-nos um
modo de existência ambíguo. Se tento pensá-lo como um
conjunto de processos em terceira pessoa visão”,
„motricidade”, “sexualidade” – percebo que essas “funções” não
podem estar ligadas entre si e ao mundo exterior por relações
de causalidade, todas elas estão confusamente retomadas e
implicadas em um drama único. Portanto, o corpo não é um
objeto (p. 269).
Assim, tal ideia rompe com a noção do corpo como objeto, à medida que
propõe uma concepção de homem implicado no mundo, não como sujeito de
relações causais, como propõe a concepção dualista de homem. Merleau-
Ponty aprofunda tal questão, traçando considerações sobre como a noção de
71
corpo é tratada pela fisiologia e pela psicologia tradicionais e elabora uma
crítica a tais concepções, fundamental à construção da noção de corpo próprio.
3.2.1 Considerações sobre o corpo como objeto na fisiologia e na
psicologia
A definição de objeto, descrita por Merleau-Ponty (1945/2006),
[...] é a de que ele existe partes extra partes e que, por
conseguinte, admite entre suas partes ou entre si mesmo e
os outros objetos relações exteriores e mecânicas, seja no
sentido estrito de um movimento recebido e transmitido, seja
no sentido amplo de uma relação de função variável (p. 111).
Poderíamos, então, inserir o organismo no universo dos objetos? Para tanto,
segundo Merleau-Ponty, teríamos que conceber o funcionamento do corpo
como um movimento linear entre estímulo e receptores, o que não acontece na
perspectiva do corpo próprio. Merleau-Ponty critica o modo como as ciências
empíricas tratam o corpo, ou seja, como um organismo que resulta de uma
associação de órgãos regidos por princípios causais, desconsiderando a
intencionalidade de suas relações com o mundo e com as coisas e a
possibilidade de se dirigir às coisas reconhecendo-se como sujeito. O filósofo
considera que o corpo próprio o é corpo objetivo, como fora pensado pelas
72
ciências clássicas, mas é corpo fenomenal, dotado de intencionalidade pré-
reflexiva, que é capaz de antecipar, não de calcular seus movimentos.
Para discutir a questão do organismo como objeto, Merleau-Ponty
recorre aos estudos da fisiologia moderna e compreende que um
acontecimento, mesmo na esfera psicofísica, não pode ser concebido conforme
a fisiologia cartesiana, ou seja, como uma contiguidade de processos em si
mesmos, ou como relação entre estímulo e resposta. Assim, não
consciência do corpo separada da alma. Tal ideia é discutida por Merleau-
Ponty por meio do exemplo da vivência do membro fantasma, quando busca
compreender como os determinantes psíquicos e as condições fisiológicas se
engrenam:
o membro fantasma não é o simples efeito de uma causalidade
objetiva nem uma cogitatio a mais. Ele poderia ser uma
mistura dos dois se encontrássemos o meio de articular um ao
outro o “psíquico” e o “fisiológico”, o “para si” e o “em si e de
preparar entre eles um encontro, se os processos em terceira
pessoa e os atos pessoais pudessem ser integrados em um
meio que lhes fosse comum (p. 117).
Para o filósofo, o encontro do fisiológico com o psíquico é selado no
movimento da existência, isto é no movimento do ser-no-mundo, que, sendo
pré-reflexivo, não admite relação de causalidade, mas um engajamento eu-
mundo. Neste sentido, retoma a discussão sobre o membro fantasma,
afirmando que ele não requer nem mesmo uma explicação fisiológica que o
tomaria como uma simples supressão ou persistência de estimulações
73
interoceptivas , nem uma explicação psicológica que o concebe como uma
recordação ou como a presença afetiva de uma representação , pois, em
ambos os casos, persiste a categoria de mundo objetivo. Para tal fenômeno,
Merleau-Ponty considera a perspectiva do ser-no-mundo:
este fenômeno, que as explicações fisiológicas e psicológicas
igualmente desfiguram, é compreensível ao contrário na
perspectiva do ser no mundo. Aquilo que em nós recusa a
mutilação e a deficiência é um eu engajado em um certo
mundo físico e inter-humano, que continua a estender-se para
seu mundo a despeito de deficiências ou de amputações, e
que, nessa medida, o as reconhece de jure. A recusa da
deficiência é apenas o avesso de nossa inerência a um mundo,
a negação implícita daquilo que se opõe ao movimento natural
que nos lança a nossas tarefas, a nossas preocupações, a
nossa situação, a nossos horizontes familiares (p. 121).
Com tal afirmação, compreendo a noção de ser-no-mundo de Merleau-Ponty e
o seu argumento de que “o corpo é o veículo do ser no mundo(p. 122). Tal
movimento é ambíguo, pois o corpo que percebe é, ao mesmo tempo,
percebido, deixando de ser compreendido como coisa ou objeto. Como afirma
Coelho Junior (1991), “é a partir do corpo próprio, do „corpo vivido‟ que posso
estar no „mundo‟, em relação com os outros e com as coisas” (p. 49). É em tal
movimento da existência que Merleau-Ponty percebe o entrelaçamento entre
os motivos psicológicos e as sensações corporais, pois não movimento no
corpo vivo isento de intenções psíquicas, nem ato psíquico em que não haja o
74
germe de disposições fisiológicas. Portanto, o corpo próprio não é um encontro
entre causalidades nem uma colisão entre causas e fins.
Tais reflexões colocam o corpo na ordem da existência:
o que nos permite tornar a ligar o “fisiológico” e o “psíquico” um
ao outro é o fato de que, reintegrados à existência, eles não se
distinguem mais como a ordem do em si e a ordem do para si,
e de que são ambos orientados para um pólo intencional ou
para o mundo (p. 129).
Ao discutir a perspectiva psicológica do corpo, Merleau-Ponty afirma que tal
concepção descreve o corpo próprio com características que não são
compatíveis com as propriedades de um objeto, uma vez que não é possível
distanciar-se dele. O corpo é, então, “um objeto que não me deixa” (p. 134).
Mas, mesmo assim, questiona o filósofo, seria um objeto? O que caracteriza
um objeto? Ser observável, poder situar-se diante de nossos olhares, poder
distanciar-se até desaparecer de nosso campo visual? A permanência do corpo
próprio, no entanto, é diferente daquela dos objetos: ele existe comigo. Mas o
meu corpo me impõe uma perspectiva do mundo que me permite perceber
outros corpos, observar os objetos à minha volta e manipulá-los, mas não
posso observar meu próprio corpo, pois, para fazer isto, precisaria de outro
corpo. Mas há, no corpo próprio, um campo de presença primordial que me
permite percebê-lo:
a permanência do corpo próprio, se a psicologia clássica a
tivesse analisado, podia conduzi-la ao corpo não mais como
75
objeto do mundo, mas como meio de nossa comunicação com
ele, ao mundo não mais como soma de objetos determinados,
mas como horizonte latente de nossa experiência, presente
sem cessar, ele também, antes de todo pensamento
determinante (p. 136).
Outra característica incompatível com as propriedades do objeto e
que define o corpo próprio, segundo Merleau-Ponty (1945/2006), é que ele não
provoca no indivíduo sensações duplas, como afirma a psicologia clássica. O
corpo se surpreende em sua função de tocar e ser tocado, de forma que não se
reconhece quem toca e quem é tocado, o que, no caso dos objetos, representa
um movimento de inércia e a impossibilidade de vivenciar tal sensação:
quando pressiono minhas mãos uma contra a outra, não se
trata então de duas sensações que eu sentiria em conjunto,
como se percebem dois objetos justapostos, mas de uma
organização ambígua em que as duas mãos podem alternar-se
na função de “tocante” e “tocada” (p. 137).
Quando a mão esquerda toca a direita, reciprocidade entre elas e o se
distingue quem toca e quem é tocado. Tal experiência apenas é possível a
partir do corpo próprio, no campo pré-reflexivo, no qual não se separa sujeito e
objeto quem toca e quem é tocado e em que o corpo próprio se distingue
dos outros objetos.
Outro importante ponto, frequentemente discutido pela psicologia
clássica e, também, relevante para Merleau-Ponty (1945/2006), é a distinção
76
entre o caráter afetivo do corpo, enquanto que as coisas são apenas
representadas. Para ele, o equívoco da psicologia clássica reside em se
preocupar com o saber objetivo, tomando a experiência do sujeito vivo como
objeto da ciência. Preocupada com seu estatuto científico, não extrai da
experiência do corpo qualquer estatuto filosófico, pois ela é considerada
representação do corpo, não um fenômeno, ou seja, o interesse da psicologia
clássica se centra no fato psíquico. Merleau-Ponty assim descreve tal
equívoco:
apreendo meu corpo como um objeto-sujeito, como capaz de
“ver” e de “sofrer”, mas essas representações confusas faziam
parte da curiosidade psicológica, eram amostras de um
pensamento mágico do qual a psicologia e a sociologia
estudam as leis e que elas fazem regressar, a título de objeto
de ciência, ao sistema do mundo verdadeiro (p. 139-140).
Desta forma, o corpo próprio, como tocante e tocado, apresenta como
características a incompletude e a ambiguidade, que não são da ordem do fato.
Tais características não inserem o corpo na categoria de um objeto entre os
demais, mas lhe proporciona a possibilidade de ser-no-mundo, o que não foi
considerado pela psicologia clássica, segundo Merleau-Ponty:
os psicólogos não percebiam que, ao tratar assim a experiência
do corpo, eles apenas adiavam, em consonância com a
ciência, um problema inevitável. A incompletude de minha
percepção era compreendida como uma incompletude de fato,
77
que resultava da organização de meus aparelhos sensoriais; a
presença de meu corpo, como uma presença de fato que
resultava de sua ação perpétua sobre meus receptores
nervosos; enfim, a união entre a alma e o corpo, suposta por
essas duas explicações, era compreendida, segundo o
pensamento de Descartes, como uma união de fato cuja
possibilidade de princípio não precisava ser estabelecida
porque o fato, ponto de partida do conhecimento, eliminava-se
de seus resultados acabados (p. 140).
Portanto, romper com a ideia de corpo objeto é compreendê-lo numa dimensão
pré-reflexiva, na qual não se distingue aquele que sente e aquilo que é sentido.
O que Merleau-Ponty propõe é um retorno à experiência originária, tal como o
mundo é percebido antes de qualquer teorização sobre a experiência humana.
É assim que se constitui o corpo próprio.
3.2.2 A experiência do corpo próprio
Após examinar a perspectiva do corpo objeto, de acordo com a
fisiologia e a psicologia clássicas, Merleau-Ponty (1945/2006) apresenta a
concepção do corpo próprio a partir da experiência vivida. Inicialmente, o
filósofo descreve a espacialidade do corpo próprio, que envolve uma unidade
ambígua. Conheço meu corpo a partir de um esquema corporal, assim
compreendido:
78
[...] meu corpo inteiro não é para mim uma reunião de órgãos
justapostos no espaço. Eu o tenho em uma posse indivisa e sei
a posição de cada um de meus membros por um esquema
corporal em que eles estão todos envolvidos. Mas a noção de
esquema corporal é ambígua, como todas as que surgem na
reviravolta da ciência (p. 143-144).
Assim, o esquema corporal não é nem um resumo de nossa experiência
corporal que atribui significado às experiências intero e proprioceptivas nem
uma tomada de consciência global, que remete ao mundo intersensorial. A
espacialidade do corpo apenas pode ser percebida enraizando o espaço na
existência, na qual “ser corpo é estar atado a um certo mundo” (p. 205), o que
confirma que o corpo não está no espaço, mas que ele é no espaço. Nesta
perspectiva, as diferentes partes do meu corpo, seus aspectos visuais, táteis e
motores, não são simplesmente coordenadas, mas constituem uma unidade: a
unidade do corpo próprio. Portanto,
não traduzo “os dados do tocar” para a “linguagem da visão” ou
inversamente; não reúno as partes do meu corpo uma a uma;
essa tradução e essa reunião estão feitas de uma vez por
todas em mim: elas são meu próprio corpo (p. 207).
Assim, percebo em Merleau-Ponty, a ideia de que “o corpo próprio nos ensina
um modo de unidade que não é a subsunção a uma lei” (p. 207), pois ele
mesmo é a lei, a medida que não está sujeita a relações entre seus fragmentos
nem a correlações entre o tátil e o visual. Nós mesmos somos, por meio da
79
experiência, o que mantém em conjunto tais fragmentos e que os e os toca.
O corpo próprio interpreta a si mesmo.
Merleau-Ponty (1945/2006) afirma que “não é ao objeto físico que o
corpo pode ser comparado, mas, antes, à obra de arte” (p. 208). Toma como
referência um quadro ou uma peça musical em que a ideia apenas é
comunicada pelo desdobramento das cores e dos sons. Toma, ainda, como
exemplo, a análise da obra de Cézanne
3
, cujo único sentido possível é
proporcionado pela percepção dos seus quadros. Assim, em qualquer obra de
arte, não se separam as significações das obras:
assim como a fala significa não apenas pelas palavras, mas
ainda pelo sotaque, pelo tom, pelos gestos e pela fisionomia, e
assim como esse suplemento de sentido revela não mais os
pensamentos daquele que fala, mas a fonte de seus
pensamentos e sua maneira de ser fundamental, da mesma
maneira a poesia, se por acidente é narrativa e significante,
essencialmente é uma modulação da existência (p. 209).
O poema, diferente do grito, utiliza uma linguagem particular, de forma que a
modulação existencial não se dissipa no momento da expressão, mas eterniza-
_________________________________________________________
3. Paul Cézanne foi um pintor pós-impressionista francês do final do século XIX que
influenciou a pintura do século XX. A característica mais marcante de sua obra é que
ela não se subordinava às leis da perspectiva e, talvez, por tal motivo, tenha servido
de inspiração à obra de Merleau-Ponty.
80
se. Entretanto, como não se destaca de todo o apoio material, ou seja, o texto,
para ser conservado, precisa ser escrito e, portanto, não reside no plano das
ideias, o poema não subsiste, eternamente, como uma verdade, mas existe à
maneira de uma coisa. Um romance não é uma exposição de ideias ou
caracteres, mas a apresentação de um acontecimento interhumano que não se
pode modificar sem que se modifique o sentido romanesco do mesmo.
Merleau-Ponty utiliza tais recursos no sentido de afirmas que “não se pode
distinguir a expressão do expresso, cujo sentido é acessível por um contato
direto, e que irradia sua significação sem abandonar seu lugar temporal e
espacial” (p. 209-210). É assim que o corpo pode ser comparado à obra de
arte, “ele é um de significações vivas e não a lei de um certo número de
termos co-variantes” (p. 210). As suas partes não se reúnem, uma a uma, para
formar um sistema, mas se implicam, mutuamente, formando um todo que se
expressa na existência. O corpo, para Merleau-Ponty, exprime a existência
total porque a existência se realiza nele por meio de uma operação primordial
de significação, em que o expresso não existe separado da expressão.
Qual a importância de pensar o corpo de tal forma para a sociedade
e a ciência contemporâneas? Quais as contribuições do pensamento de
Merleau-Ponty (1945/2006), principalmente em sua ruptura com o pensamento
dualista e a construção do pensamento ambíguo, para o que, hoje, se
convencionou chamar de culto ao corpo ou de cultura somática? Qual a
importância para a compreensão do fenômeno da depressão?
Quanto mais atenção se tem dado ao corpo, na sociedade
contemporânea, mais incertezas se produzem em relação a ele: cada vez mais
se investe em tecnologia objetivando transformações e/ou modificações
81
corporais, obedecendo a padrões considerados pela cultura como ideais de
beleza; se investe, também, em tecnologia médica e se fragmenta o corpo para
curá-lo ou prolongar-lhe o vigor e a juventude, e se realizam discussões e
reflexões nos campos teórico, científico e filosófico sobre a corporalidade. Até
que ponto, tratando o corpo como objeto da ciência e da tecnologia, tais
iniciativas têm prolongado a longa tradição do pensamento ocidental de
separação entre a mente e o corpo e a tendência de relegar o corpo a um
plano desprezível? Assistimos, atônitos, ao modelo de beleza que se propaga
em nossa sociedade, refletida na magreza cadavérica de modelos fotográficos
e na queixa em ascensão dos transtornos alimentares nas mulheres. Não
seriam esses os reflexos mais visíveis do ainda vigente modelo do corpo
objeto? Reflexos do pensamento dualista que lança um olhar dicotomizado
sobre a pessoa que é e que sente? Não traria este olhar objetivante da
experiência humana dificuldades em ver a pessoa que sofre, pois mostra um
corpo/organismo que padece? (Ortega, 2008).
Quando eu digo que eu sou o meu corpo, concebo-o como dotado
de significação a partir da minha própria experiência. Não é possível decompô-
lo ou recompô-lo para compreendê-lo, senão por meio da experiência vivida. A
experiência do corpo não é comparável à ideia do corpo, que é o que sustenta
o pensamento dualista.
Quer se trate do corpo do outro ou de meu próprio corpo, não
tenho outro meio de conhecer o corpo humano senão vive-lo,
quer dizer, retomar por minha conta o drama que o transpassa
e confundir-me com ele. Portanto, sou meu corpo, exatamente
na medida em que tenho um saber adquirido e,
82
reciprocamente, meu corpo é como um sujeito natural, como
um esboço provisório de meu ser total. Assim, a experiência do
corpo próprio opõe-se ao movimento reflexivo que destaca o
objeto do sujeito e o sujeito do objeto, e que nos apenas o
pensamento do corpo ou o corpo em idéia, e não a experiência
do corpo ou o corpo em realidade (Merleau-Ponty, 1945/2006,
p. 269).
Compreender a questão do corpo próprio para imbricar-se no
fenômeno da depressão pode ser possível a partir perspectiva. A partir do
corpo deprimido, revela-se, também, o deprimido, bem como sua depressão.
Significa, então, abrir mão do corpo objetivo, a que se atribui um caráter
secundário, tratado como objeto ou depositário de sintomas, e tomar como
referência a noção de corpo-próprio em Merleau-Ponty (1945/2006), que
sugere:
[...] o corpo, retirando-se do mundo objetivo, arrastará os fios
intencionais que o ligam ao seu ambiente e finalmente nos
revelará o sujeito que percebe assim como o mundo percebido
(p. 110).
Portanto, o caráter ambíguo, presente na fenomenologia de Merleau-Ponty,
responde à questão do corpo que eu sou, não do corpo que eu tenho, abolindo
a perspectiva dualista, que separa o corpo da alma e reduz o corpo a um
objeto. O filósofo abandona o modelo da fisiologia mecanicista, que
compreende o corpo como um objeto, tomado como “partes extra partes” (p.
83
111) e o comportamento como resultado do pensamento causal ou mecânico.
Atribui ao corpo outro estatuto e considera o corpo vivido ou corpo próprio,
criador de significação, um ser-em-situação, um ser-no-mundo, que não se
separa da sua existência. Tal forma de conceber o corpo distingue o corpo
objeto da fisiologia, que se resume a um organismo, do corpo vivo como
expressão e manifestação da subjetividade: “só posso compreender a função
do corpo vivo realizando-a eu mesmo e na medida em que sou um corpo que
se levanta em direção ao mundo” (p. 114), afirma Merleau-Ponty .
Assim, quando, em minha prática clínica, me deparo com uma
pessoa que vive a experiência da depressão, não posso decompô-la, a partir
de um diagnóstico, em um psiquismo que sente e um corpo que padece, mas,
a partir da experiência do seu corpo posso apreciar o sentido e o alcance de tal
fenômeno, tomando o corpo próprio como fonte absoluta da experiência. Sob a
lente da fenomenologia mundana, o fenômeno psicopatológico não se esgota
nas explicações causais, porém se torna compreensível na maneira como o
corpo se manifesta, considerando-o como um corpo engajado no mundo e em
situação. O corpo deprimido é o corpo que desvela o fenômeno da depressão,
partindo da experiência de quem o vive. Retomando a ideia desta pesquisa, o
estudo do corpo deprimido pretende revelar muito mais do que, simplesmente,
a descrição sintomatológica dos quadros depressivos. A partir de tal
perspectiva, pretendo compreender a experiência vivida da depressão pela via
da descrição do corpo vivido, com base no pensamento de Merleau-Ponty
(1945/2006).
84
4. MÉTODO
O caminho percorrido pela ciência deve ser acompanhado por todos
os que desejam contribuir para a construção do conhecimento; no entanto,
nunca se deve perder de vista o ser humano, que é o fim de todas as coisas. A
busca do conhecimento sempre foi um dos grandes desafios humanos,
chegando, mesmo, a se tornar um artefato de poder. Mas seria possível nos
apropriarmos do conhecimento a ponto de tomá-lo como verdade? Alves
(1996) adverte que fazer ciência é percorrer um caminho de mistérios, cuja
principal credencial é o enamoramento pelo objeto que se quer conhecer e que
requer do cientista uma postura de humildade:
ciência é coisa humilde, pois se sabe que a verdade é
inatingível. Nunca lidamos com a coisa mesma, que sempre
nos escapa. Aquilo que temos são apenas modelos provisórios,
coisas que construímos por meio de símbolos, para entrar um
pouco no desconhecido (p. 17).
Fazer ciência é, portanto, estar enamorado, envolvido e implicado naquilo que
se deseja conhecer. Para este fim, deve-se considerar duas questões que, na
minha maneira de entender, são fundamentais para o percurso do pesquisador:
a escolha do tema do estudo e o método a ser utilizado.
Escolher um tema, para mim, é garimpar no rio que corre em nossa
vida e encontrar o metal raro, a joia, que será trabalhada e transformada em
85
produto final. É olhar para os lados e perceber as inquietações, as paixões,
aquilo que nos salta aos olhos no quadro geral e que, por isto mesmo, nos faz
debruçar sobre ele. Como realizar uma construção sem que se coloque nela
uma boa dose de envolvimento e paixão? É assim que concebo a escolha do
tema de pesquisa.
Busquei lançar meu olhar sobre o mundo vivido da pessoa com
depressão por ser uma das questões que mais me inquietam na prática clínica
e na psicopatologia. O que mais posso perceber e aprender sobre tal
fenômeno, além do que me dizem os compêndios? Para mim, nada é mais
capaz de tornar clara a compreensão do que é a depressão do que tentar
adentrar no mundo vivido da pessoa que a experimenta. Estudar o corpo
deprimido é conhecer o fenômeno da depressão, não a partir da descrição dos
manuais, mas da experiência vivida da pessoa deprimida. É poder descrever, a
partir do depoimento do outro, aquilo que meu olhar, meu corpo e meus
sentidos captam, na minha posição de psicoterapeuta, mas que meu
conhecimento, muitas vezes, não conta. Neste sentido, a grande questão
que se estabelece é a escolha de um método que corresponda
satisfatoriamente a tal demanda.
4.1. A Pesquisa Qualitativa
Compreendo que a pesquisa qualitativa é a que detém mais
credenciais para atender aos objetivos propostos nesta pesquisa, uma vez que:
86
[...] uma técnica qualitativa é aquela em que o investigador
sempre faz alegações de conhecimento com base
principalmente ou em perspectivas construtivistas (ou seja,
significados múltiplos das experiências individuais, significados
social e historicamente construídos, com o objetivo de
desenvolver uma teoria ou um padrão) ou em perspectivas
reivindicatórias/participatórias (ou seja, políticas, orientadas
para a questão; ou colaborativas, orientadas para a mudança)
ou em ambas. Ela também usa estratégias de investigação
como narrativas, fenomenologias, etnografias, estudos
baseados em teoria ou estudos de teoria embasada na
realidade. O pesquisador coleta dados emergentes abertos
com o objetivo principal de desenvolver temas a partir dos
dados (Creswell, 2007, p. 35).
Assim, minha opção pela pesquisa qualitativa se justifica por se tratar de um
estudo que pretendeu apreender os significados atribuídos pelos sujeitos ao
fenômeno investigado. Não pretendi traçar generalizações ou adentrar em um
raciocínio de causa e efeito, próprios da pesquisa quantitativa, cuja importância
para a investigação científica é inquestionável, mas que atende a objetivos
diferentes dos propostos aqui. Minha intenção foi investigar a depressão na
perspectiva do corpo próprio, tendo como foco o modo como as pessoas que a
vivenciam dão sentido às suas experiências vividas.
Corroborando com tal ideia, Minayo (1994) afirma que a pesquisa
qualitativa:
87
trabalha com o universo de significados, motivações,
aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a
um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos
fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização
de variável (p. 22).
Para atender a tal finalidade, minha busca foi realizada no sentido da
compreensão subjetiva da experiência do corpo deprimido, justificando a opção
pela pesquisa qualitativa. Busquei uma postura característica de tal tipo de
abordagem (Gil, 1995), trabalhando com sentidos e significados, privilegiando o
contato direto com os sujeitos na busca de informações. A idéia é gerar a
possibilidade de construir, a partir das falas dos sujeitos colaboradores, uma
saber que fale deles mesmos e de sua existência ou do mundo vivido, ou seja,
conhecer o significado do fenômeno da depressão a partir da experiência de
que vivencia tal fenômeno. A riqueza de informações obtidas por meio das
transcrições das entrevistas teve a análise de suas significações construída a
partir dos dados coletados, não a partir de hipóteses previamente
determinadas.
Entretanto, realizada a opção pela pesquisa qualitativa, fez-se
necessária a escolha de um referencial teórico para a validação do
conhecimento que desenvolvia. Assim, encontrei no método fenomenológico
crítico tal suporte. Traço, a seguir, algumas considerações sobre o método
fenomenológico, para, em seguida, esboçar o diferencial em relação ao método
fenomenológico crítico.
88
4.2. O Método Fenomenológico
O todo fenomenológico tem sido amplamente utilizado na
pesquisa qualitativa, tendo seus pressupostos ligados à filosofia
fenomenológica. A fenomenologia surgiu como movimento filosófico no final do
século XIX e no início do século XX, tendo em Husserl seu maior expoente
(Forghieri, 1993). Para Dartigues (1992), a vida filosófica de Husserl é marcada
pelo sentimento de uma crise de cultura, uma vez que inicia seus escritos no
final do século XIX, período caracterizado na Alemanha pela derrocada dos
grandes sistemas filosóficos tradicionais. A ciência, marcada pelo positivismo e
pelo conhecimento objetivo, tomou lugar nesta lacuna e o pensamento
científico passou a predominar na época. No entanto, a segurança do
pensamento positivista também passou a ser abalada, sendo questionados os
fundamentos e o alcance de seus postulados e também criticada a postura das
ciências humanas quanto ao uso de métodos das ciências da natureza. Nesse
contexto, surgiram as primeiras obras de Husserl que, partindo das ideias de
Brentano sobre intencionalidade, foram além delas. Questionavam os sistemas
especulativos da filosofia e as teorias explicativas das ciências positivas, e
propunham que o impulso de investigação devia partir das coisas e dos
problemas, considerando como ponto de partida do conhecimento voltar às
coisas mesmas. Como afirma Forghieri (1993):
a “coisa mesma” é entendida por ele não como realidade
existindo em si, mas como fenômeno, e o considera como a
única coisa à qual temos acesso imediato e intuição originária;
89
o fenômeno integra a consciência e o objeto, unidos no próprio
ato de significação (p. 15).
Assim, com Husserl a fenomenologia surgiu como método que possibilita
chegar à essência do próprio conhecimento, sendo a redução fenomenológica
o recurso para chegar ao fenômeno como tal ou à sua essência. Desta
maneira, é necessário suspender, ou colocar fora de ação, as teorias
científicas, nossos valores e preconceitos sobre o mundo, buscando uma
mudança da atitude natural para a atitude fenomenológica, o que nos permite
visualizar os fenômenos como significações, tal como se revelam. Amatuzzi
(1996) descreve a pesquisa fenomenológica, afirmando que “é a pesquisa que
lida com o significado da vivência” (p. 5). Ou seja, o que caracteriza a pesquisa
fenomenológica é o “estudo do vivido, ou da experiência imediata pré-reflexiva,
visando descrever seu significado” (p. 5).
Qual a importância desta mudança, da atitude natural para a atitude
fenomenológica na pesquisa sobre a depressão? Creswell (2007), citando
Moustakas como representante de tal tipo de investigação, afirma que, na
pesquisa fenomenológica, o pesquisador:
[...] identifica a “essência” das experiências humanas relativas
a um fenômeno, como descrito pelos participantes de um
estudo. Entender as “experiências vividas” identifica a
fenomenologia como uma filosofia e como um método e o
procedimento envolve o estudo de um pequeno número de
sujeitos através de um envolvimento extenso e prolongado
90
para desenvolver padrões e relações de significado (como
citado em Creswell, 2007, p. 32).
Neste sentido, considerando que o principal diferencial de tal mudança consiste
na compreensão dos fenômenos como dotados de significado, a depressão foi
discutida aqui, a partir do ato depressivo ou dos aspectos peculiares a uma
existência marcada pela depressão, não em sua sintomatologia ou por meio da
caracterização do quadro depressivo. O corpo, tomado como corpo próprio, na
concepção de Merleau-Ponty (1945/2006), é o meio de acesso à existência,
pois os seus sinais se manifestam, ali, de forma clara.
Meu objetivo foi buscar o significado da experiência do sujeito, neste
caso, de pessoas que vivem ou viveram a experiência da depressão em
relação ao corpo próprio, sendo, para tanto, imprescindível atentar aos
seguintes focos, inerentes ao método fenomenológico:
A prática da redução fenomenológica, em que o pesquisador põe
em suspenso seus pensamentos, ideias preconcebidas,
pressupostos e teorias, para deixar emergir o fenômeno em toda
a sua intensidade;
O foco na descrição da experiência, favorecida por questões
levantadas pelo pesquisador que explorem o significado da
experiência vivida dos indivíduos, incentivando que eles a
descrevam;
A ênfase na relação intersubjetiva, pois, na pesquisa
fenomenológica, não sujeitos que fornece informações, mas
colaboradores que pensam junto o assunto e o pesquisador atua
91
como facilitador do acesso à experiência vivida do indivíduo
(Amatuzzi, 2001).
Atentar a tais focos na condução do processo de pesquisa, principalmente no
contato com o entrevistado, foi de suma importância para que os objetivos
desta pesquisa fossem atingidos e eu conseguisse, de fato, adentrar no
universo de significação que aquela pessoa que vivencia a experiência da
depressão atribui a tal fenômeno.
No entanto, tornou-se necessário precisar o pensamento filosófico
que embasou a pesquisa, uma vez que, como afirma Moreira (2004), ao nos
referirmos ao método fenomenológico em pesquisa, é importante que
possamos especificar a qual perspectiva filosófica nos referimos, pois o método
fenomenológico sofre variações, segundo o pensamento filosófico que a
sustenta. A fenomenologia de Merleau-Ponty propõe uma lente para a
compreensão do mundo a partir da perspectiva de múltiplos contornos, de
acordo com a qual a realidade percebida está sempre em movimento. Tal ideia
foi desenvolvida por Moreira e Sloan (2002) para uma compreensão
fenomenológica mundana em psicopatologia, constituindo o método
fenomenológico crítico, descrito a seguir.
4.3. O Método Fenomenológico Crítico
O principal aspecto que se deve ressaltar quanto ao método
fenomenológico crítico, diz respeito à compreensão da experiência vivida em
92
sua mútua constituição com o contexto sociocultural. Neste sentido, utiliza uma
lente mundana, embasada na fenomenologia de Merleau-Ponty,
compreendendo que homem e mundo em mútua constituição.
Moreira (2004) afirma que:
a fenomenologia de Merleau-Ponty pode ser utilizada como
ferramenta crítica de revelação do mundo na pesquisa em
psicopatologia, na medida em que compreende o fenômeno
psicopatológico de forma mundana, com múltiplos contornos
(p. 449).
Tal perspectiva pode ser melhor compreendida pela analogia que
Merleau-Ponty (1966/2004) faz entre sua filosofia e a pintura de Cézanne. No
ensaio “A Dúvida de Cézanne” estão presentes temas como percepção,
expressão e liberdade, e a imbricação delas com a arte. Para Merleau-Ponty,
as deformações encontradas na pintura de Cézanne traduzem muito mais
realidade do que a fotografia, por exemplo, pois, na fotografia, a perda do
movimento, que separa o real do imaginário (Moreira, 2004). Assim, a pintura
de Cézanne expressa, pela ruptura das dicotomias, o pensamento de Merleau-
Ponty, pelo reconhecimento das ambiguidades inerentes ao ser humano na
ideia de múltiplos contornos.
Para Merleau-Ponty (1945/2006), o universo da ciência é construído
sobre o mundo vivido e é justamente tal perspectiva que corrobora com o rigor
científico. Qual é, portanto, a concepção de homem que prega tal forma de
fazer ciência? Tal questão é de fundamental importância para quem deseja
enveredar pelo caminho da pesquisa científica, uma vez que é na concepção
93
de homem que se ancora a escolha do método e do referencial de mundo. A
fenomenologia de Merleau-Ponty entende o homem como fonte absoluta,
colocando a experiência acima das representações científicas e propondo que
retornar às coisas mesmas é retornar ao mundo anterior ao conhecimento do
qual se trata. Assim, considera Merleau-Ponty, que
o mundo está ali antes de qualquer análise que eu possa fazer
dele, e seria artificial faze-lo derivar de uma série de sínteses
que ligariam as sensações, depois os aspectos perspectivos do
objeto, quando ambos são justamente produtos da análise e
não devem ser realizados antes dela (p. 5).
Com tal afirmação, Merleau-Ponty atribui ao real um caráter descritivo, não
sendo possível construí-lo ou constituí-lo, chegando, a partir daí, à redução
fenomenológica como meio de descrever o mundo. Para Merleau-Ponty, no
entanto, “o maior ensinamento da redução é a impossibilidade de uma redução
completa” (p. 10), pois estamos ancorados no mundo e, para perceber o
mundo e apreendê-lo, é necessário romper nossa familiaridade com ele, o que
é inviável ao homem mundano.
Assim, a pesquisa fenomenológica busca o significado da
experiência vivida e o diferencial do método fenomenológico crítico é a
compreensão de tal experiência a partir da concepção de Merleau-Ponty,
considerando o fenômeno como uma experiência mundana. Na pesquisa em
psicopatologia, a lente de múltiplos contornos transforma o método
fenomenológico em ferramenta crítica e permite uma compreensão mais
abrangente do fenômeno psicopatológico.
94
A partir do método fenomenológico crítico, o significado da
experiência vivida do corpo deprimido foi apreendido a partir de uma lente de
múltiplos contornos, incluindo significados biológicos, psicológicos e
ideológicos, entre outros. Destaco que a perspectiva crítica não se restringe
aos significados que, tradicionalmente, são atribuídos ao fenômeno
psicopatológico. A psicopatologia tradicional se volta aos sintomas na busca de
um diagnóstico, servindo a uma compreensão individualista do processo de
adoecimento. Por outro lado, a psicopatologia crítica se afasta de tal
compreensão meramente biológica e, ou, psicológica, considerando uma
compreensão ideológica dos sintomas (Moreira & Sloan, 2002). Assim, foi
realizada esta pesquisa qualitativa, com base no método fenomenológico
crítico (Moreira, 2004), com o objetivo de compreender o significado da
experiência vivida do corpo deprimido. Todo o trabalho desta pesquisa foi
desenvolvido com uma lente mundana, ou seja, com base na fenomenologia de
Merleau-Ponty, rompendo com a perspectiva dualista e fragmentada do ser
humano e do mundo, compreendendo-os em mútua constituição e assumindo
uma postura existencial, distanciando-se das posturas idealistas e
materialistas.
Considero tal tema bastante instigante, uma vez que pesquisar o
corpo deprimido, segundo a fenomenologia de Merleau-Ponty (1945/2006),
pode nos revelar muito acerca da pessoa que vive a experiência da depressão,
assim como acerca do próprio fenômeno. Tratando-se de uma pesquisa
fenomenológica que utiliza a lente da psicopatologia crítica (Moreira, 2004),
parti do princípio de que a pessoa com depressão é a que mais sabe sobre tal
95
fenômeno. Neste sentido, como pesquisadora, me dispus a aprender com ela
sobre sua experiência.
4.4. O Local da Pesquisa
Inicialmente, entrei em contato com o Serviço de Psicologia Aplicada
(SPA), vinculado ao NAMI Núcleo de Atenção Médica Integrada e mantido
pela Universidade de Fortaleza UNIFOR, no sentido de realizar, junto aos
clientes de tal serviço, a pesquisa em questão. Este serviço funciona como um
centro de referência no acompanhamento psicoterápico, servindo como campo
de estágio aos alunos graduandos do Curso de Psicologia da UNIFOR. A
escolha do local se deveu à necessidade de ter acesso a um número
significativo de pessoas com diagnóstico de depressão. No contato com a
coordenação da instituição, foram esclarecidos os objetivos da pesquisa e
solicitado que me fossem encaminhados clientes em atendimento, com
diagnóstico de depressão, para fazerem parte da pesquisa. Os clientes foram
convidados a participar e informados quanto às formalidades éticas, para, em
seguida ser marcada a entrevista.
O Núcleo de Atenção Médica Integrada NAMI, criado em 1978, é
referência na cidade de Fortaleza por prestar atendimento médico gratuito de
qualidade, prestando serviços de natureza secundária e, em alguns casos, até
mesmo de alta complexidade. Localizado na Avenida Washington Soares,
1321, Bairro Edson Queiroz, atende anualmente cerca de 49 mil pacientes,
96
com os quais são efetuados mais de 430 mil procedimentos, desde consultas
médicas, análises laboratoriais, vacinas, atendimentos maternoinfantis e
serviços especializados nas áreas de enfermagem, fisioterapia, fonoaudiologia
e terapia ocupacional. O Núcleo de Atenção Médica Integrada é também
espaço de estágio para os alunos do Centro de Ciências da Saúde e do curso
de Psicologia, que, sob a supervisão dos docentes, realizam suas práticas de
estágio, aliando teoria e prática da vivência profissional, ainda na Universidade.
Um dos benefícios advindos da estrutura do NAMI é a possibilidade
de desenvolvimento do processo de interdisciplinaridade, permitindo a
integração entre os saberes dos cursos correlacionados, oferecendo um
serviço rico e integrado para a população. Os cursos trabalham conjuntamente
no processo de triagem, sendo os encaminhamentos feitos aos serviços
demandados, sempre que necessário.
O Serviço de Psicologia Aplicada SPA - conta com um espaço
ergonômico, higienizado, com equipamentos mobiliários modernos e adequado
à prática de atendimento psicológico. Conta com salas (todas climatizadas e
confortáveis) de atendimento individual, grupo, individual infantil, grupo
infantil e família e salas de supervisão e de estagiários. São oferecidos os
seguintes serviços: triagem, psicoterapia individual (criança, adolescente e
adulto), psicodiagnóstico, psicoterapia familiar, psicoterapia de grupo (crianças,
adolescentes e adultos), oficina terapêutica com crianças, pronto-atendimento,
atendimento psiquiátrico, grupo operativo, psicomotricidade e orientação
vocacional. Tais serviços o ofertados à clientela que busca o SPA por meio
de diversos tipos de abordagens psicológicas, oferecendo um serviço dinâmico
97
e diversificado, contribuindo para a qualidade de vida da comunidade
beneficiada pelo serviço.
4.5. Os Sujeitos Colaboradores da Pesquisa
Moreira (2004) afirma que a característica mais importante da
pesquisa fenomenológica no enfoque mundano é a priorização da experiência.
Parte, então, do pressuposto metodológico de que o sujeito colaborador é a
pessoa mais indicada para descrevê-la, uma vez que ele vive ou vivenciou tal
experiência. Amatuzzi (2001) esclarece o uso do termo sujeito colaborador na
pesquisa fenomenológica, considerando que:
Na pesquisa fenomenológica, não sujeitos que forneçam
informações, mas colaboradores que pensam juntos o assunto,
e o fazem com a novidade da primeira vez (p. 19).
A compreensão de tal concepção deve nortear a postura do pesquisador que
se propõe a realizar tal tipo de pesquisa, para que a proposta de compreensão
do vivido ocorra de fato a partir da experiência do sujeito-colaborador. Como
pesquisadora, me propus a aprender com quem viveu ou vive a experiência
do corpo deprimido na busca de conhecer o fenômeno pesquisado. Para tanto,
foi necessário, nesta fase da pesquisa, que os conhecimentos teóricos e
clínicos apreendidos até então fossem colocados entre parênteses (redução
98
fenomenológica), para que se buscasse a compreensão do fenômeno a partir
da descrição do sujeito colaborador.
Os sujeitos colaboradores da minha pesquisa foram escolhidos
conforme alguns critérios de inclusão:
1. Histórico de transtorno depressivo: os sujeitos selecionados para
a pesquisa deveriam estar em acompanhamento no Serviço de Psicologia
Aplicada/NAMI/UNIFOR, sendo atendidos pelos serviços de psiquiatria e de
psicologia e deveria constar em seus prontuários o diagnóstico de transtorno
depressivo. A inclusão de tal critério tornou-se fundamental, uma vez que o
termo “depressão” assumiu, na atualidade, uma conotação popular e usual,
tornando, portanto necessário que se distinguisse da depressão como
transtorno psicopatológico (Stefanis & Stefanis, 2005), foco desta pesquisa.
Outra questão que envolve o diagnóstico, importante para o enfoque da
psicopatologia crítica e da fenomenologia, consiste na discussão da
experiência vivida de quem convive com tal diagnóstico;
2. Idade: os sujeitos colaboradores da pesquisa foram selecionados
entre os clientes adultos, com idade acima de 18 anos, considerando que a
depressão se manifesta de forma diferente em diferentes faixas etárias. Assim,
a depressão em adolescentes, ou mesmo, no período infantil, tem
manifestações e repercussões específicas (Melo & Moreira, 2008) que fogem
dos objetivos desta pesquisa;
3. Sexo: A amostra foi constituída de 50% de sujeitos do sexo
feminino e 50% do sexo masculino;
99
4. Encaminhamento da equipe do SPA: os sujeitos colaboradores da
pesquisa foram encaminhados pelo serviço de psiquiatria e psicologia do SPA,
sendo indicados clientes em condições de participar da entrevista, tendo em
vista o seu processo psicoterapêutico em andamento, a capacidade de decidir
se queriam ou não participar da pesquisa e de poder assinar o termo de
consentimento, que a aquiescência do sujeito é indispensável ao processo
de pesquisa.
Foram entrevistadas 10 pessoas, adultas, de ambos os sexos
cinco homens e cinco mulheres , em acompanhamento no
SPA/NAMI/UNIFOR, constando, em seus prontuários, o diagnóstico de
transtorno depressivo. O contato inicial foi realizado com a coordenação do
SPA, que, ciente dos objetivos da pesquisa, solicitou-me que mantivesse
contato com os supervisores de estágio e com o serviço de psiquiatria para a
indicação de clientes. Realizadas as indicações, pude fazer contato com os
clientes que, unanimemente, aderiram ao convite, parecendo mesmo bastante
disponíveis para descrever sua experiência de depressão. Constatando que os
critérios da pesquisa estavam de acordo, e obtendo a aquiescência dos
clientes após a leitura do termo de consentimento, foram realizadas as
entrevistas.
Descrevo, a seguir, os sujeitos colaboradores da pesquisa, que
foram identificados por nomes fictícios:
1. Ana 59 anos, divorciada, ensino médio incompleto, culinarista, tem
acompanhamento psicológico e psiquiátrico e faz uso de medicação
antidepressiva;
100
2. Carlos 30 anos, divorciado, ensino superior incompleto, designer de
interiores, teve acompanhamento psicológico e psiquiátrico, mas
suspendeu a medicação;
3. Paulo 53 anos, casado, ensino médio, mecânico de manutenção
industrial, tem acompanhamento psicológico e psiquiátrico e faz uso de
medicação antidepressiva;
4. Maria 36 anos, casada, ensino fundamental, comerciante/pecuarista,
tem acompanhamento psicológico e psiquiátrico e faz uso de medicação
antidepressiva;
5. Mauro 19 anos, solteiro, ensino médio (em curso), estudante, tem
acompanhamento psiquiátrico e psicológico e faz uso de medicação
antidepressiva;
6. Rosa 48 anos, casada, ensino fundamental, do lar, tem
acompanhamento psicológico e psiquiátrico e faz uso de medicação
antidepressiva;
7. Norma 34 anos, solteira, ensino médio, promotora de vendas, tem
acompanhamento psicológico e psiquiátrico e faz uso de medicação
antidepressiva;
8. Jane 50 anos, solteira, ensino superior, professora e artista plástica,
tem acompanhamento psicológico, mas suspendeu o acompanhamento
psiquiátrico e a medicação;
9. Vítor 26 anos, solteiro, ensino médio, desempregado, tem
acompanhamento psicológico e psiquiátrico e faz uso de medicação
antidepressiva;
101
10. Francisco 60 anos, casado, ensino médio, cnico em refrigeração,
tem acompanhamento psicológico e psiquiátrico e faz uso de medicação
antidepressiva.
Destaco que o perfil dos sujeitos colaboradores é bastante diversificado, no
entanto, todos atendem aos critérios anteriormente especificados.
4.6 O Instrumento da Pesquisa: A Entrevista Fenomenológica
A entrevista é o instrumento mais utilizado em pesquisas
fenomenológicas, uma vez que, por meio dela, emerge mais facilmente o
fenômeno que se quer investigar, não se podendo perder de vista que a
experiência vivida é priorizada neste tipo de pesquisa. O que se busca no
depoimento do sujeito colaborador da pesquisa é a experiência vivida, não os
fatos que possam ser inferidos, os conteúdos subjacentes ou os desejos
ocultos, passíveis de interpretação (Amatuzzi, 2001). Portanto, na escolha do
instrumento de pesquisa, levei em conta que esta é uma pesquisa
fenomenológica que utiliza a lente da psicopatologia crítica, o que significa que
o método requer a descrição da experiência. Amatuzzi destaca a importância
da escolha da entrevista, na pesquisa fenomenológica, para a compreensão do
vivido, levando em conta que colher informações prontas, normalmente, é o
objetivo de um questionário. O objetivo de uma entrevista fenomenológica é
surpreender o vivido no presente, quando a experiência da pessoa é pensada
102
repentinamente e dita como que pela primeira vez. Outra característica de tal
tipo de entrevista é que ela é semiestruturada, partindo de uma pergunta
norteadora, que indague sobre o vivido, ou seja, a experiência da pessoa em
relação ao fenômeno pesquisado, no caso desta pesquisa, o corpo deprimido.
Diante do exposto, optei pela entrevista fenomenológica para ter
acesso à experiência vivida e buscar compreender a experiência do corpo
deprimido de tais sujeitos. As entrevistas fenomenológicas ocorreram no mês
de julho de 2009. Foi realizada com cada sujeito colaborador uma entrevista
semiestruturada, de cerca de 30 minutos de duração (Creswell, 1998), pautada
na seguinte questão norteadora: a partir da sua experiência, me fale como é
ter depressão”. Cheguei à questão norteadora através da realização de uma
entrevista piloto, por meio da qual compreendi que inquirir diretamente sobre o
corpo na depressão levava o sujeito a se remeter ao corpo físico, entendido
como organismo, e se prender à descrição dos sintomas físicos, o que não
corresponde à perspectiva do corpo vivido, alvo desta pesquisa. Assim, as
entrevistas ocorreram da forma a mais aberta possível, à semelhança de uma
conversa, permitindo a livre expressão da experiência vivida do sujeito
colaborador. Considerando que, nesta pesquisa, estou interessada em
compreender a experiência vivida do corpo deprimido, entendendo corpo no
sentido merleau-pontyano, procurei, ao máximo, explorar os aspectos relativos
a este tema, buscando uma descrição exaustiva.
Neste caso, minha postura como pesquisadora, foi uma escuta
atenta, intervindo apenas para que o sujeito retornasse à sua experiência. No
decorrer das entrevistas, outras questões surgiram e foram relevantes em
relação ao tema abordado, puderam vir à tona, deixando em aberto a
103
possibilidade de fenômenos emergentes. No entanto, foi necessário estar
atenta aos movimentos da entrevista, evitando fugas do tema e estimulando o
sujeito colaborador a esclarecer melhor determinados pontos.
4.7 A Análise Fenomenológica Mundana
A análise das entrevistas foi realizada a partir da perspectiva
fenomenológica mundana, como descrita em Moreira (2004), seguindo os
seguintes passos:
a) Transcrição das entrevistas, constituindo um texto nativo. Neste
momento, fiz a transcrição literal das falas dos sujeitos
colaboradores, contemplando, também, os aspectos não-verbais
do discurso tais como silêncios, tons de voz, choro, etc. Este é o
passo inicial da análise fenomenológica e, por isso mesmo, não
pode ser considerado de menor importância. A transcrição das
falas dos sujeitos colaboradores foi um trabalho que exigiu
bastante precisão e, portanto, deve ser realizada com muita
cautela. Em consonância com a ideia de que é a pessoa que
vivencia a experiência quem mais pode dar informações sobre
ela, cada nuança da fala do sujeito, como o silêncio, o choro e as
mudanças no tom de voz, foi considerada e constituiu importante
informação daquilo que eu desejava pesquisar;
104
b) Divisão do texto nativo em movimentos, segundo o tom da
entrevista. A pesquisadora esteve atenta a uma questão
fundamental da análise fenomenológica, que é a postura de
compreender não de analisar o fenômeno que se propôs a
pesquisar. Neste sentido, foi fundamental que à pesquisadora
suspendesse todos os seus a priori em relação ao tema para
compreendê-lo a partir da experiência vivida dos sujeitos
colaboradores. Tomado tal cuidado, o texto deverá foi
desmembrado, considerando, ao máximo, a redução
fenomenológica e tendo em vista os movimentos e o tom da
entrevista. Busquei, assim, pôr entre parênteses, ou em
suspenso, todo o meu conhecimento prévio para, simplesmente,
descrever o fenômeno tal qual emergia das falas dos sujeitos
colaboradores;
c) Descrição e interpretação do significado emergente do
movimento. Neste passo, discuti a articulação entre os sentidos
emergentes e os objetivos da pesquisa. Considerando o método
fenomenológico de Merleau-Ponty como ferramenta crítica na
pesquisa em psicopatologia, segundo Moreira (2004), não
busquei elaborar uma síntese do pensamento dos sujeitos
colaboradores sobre o fenômeno da depressão, uma vez que,
nesta perspectiva, o fenômeno é sempre movimento;
d) Compreensão do objeto de estudo num movimento da
pesquisadora de “sair dos parênteses”, dialogando com os
resultados e contemplando-os em seus múltiplos contornos
105
(biológico, cultural, ideológico etc.). Neste momento de
interpretação dos dados, a pesquisadora considerou os objetivos
da pesquisa, dialogando com os resultados encontrados e se
posicionou em relação a eles, articulando-os com as ideias dos
seus aliados teóricos, que deram suporte à pesquisa. Convém
lembrar que, conforme a concepção de Merleau-Ponty
(1945/2006), não há verdade absoluta. Portanto, o que busquei,
de fato, não foi a essência do fenômeno, conforme a concepção
da fenomenologia transcendental, mas a possibilidade de
considerar a manifestação da essência da depressão na
existência dos sujeitos colaboradores.
106
5. ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
O contato com os sujeitos colaboradores da pesquisa pessoas que
vivem ou viveram a experiência da depressão constituiu em um dos mais
ricos momentos desta pesquisa. Fui surpreendida pela disponibilidade destas
pessoas de compartilhar suas experiências e, mais ainda, com a riqueza de
informações contida em cada entrevista. Um fato marcante, neste processo, foi
o depoimento da maioria dos entrevistados, após a entrevista, acerca do bem-
estar que sentiram pela oportunidade de falar de si mesmos, de suas
experiências em relação à depressão e de suas dores e esperanças. Apesar de
descreverem fatos, situações, emoções e sentimentos difíceis e dolorosos a
ponto de muitos momentos da entrevista serem marcados por choros,
alterações do tom de voz, gesticulações acentuadas e movimentos corporais
significativos , deixavam a sala na qual ocorreu a entrevista, despedindo-se
agradecidos e prontificando-se a comparecer a outras entrevistas, caso fosse
necessário. Acredito que tal fenômeno se deve ao fato de, como pesquisadora
que deseja apreender a experiência vivida da depressão por meio do contato
direto com a realidade e a vivência dos sujeitos, procurei estar presente e
atenta às falas dos entrevistados, promovendo um clima de interesse,
aceitação e compreensão em relação aos conteúdos emergentes. Em outras
palavras, embora eu estivesse no papel de pesquisadora, utilizei uma postura
de psicoterapeuta humanista-fenomenológica, eminentemente compreensiva.
Pesquisas recentes neste enfoque mostram que tal postura por parte do
107
pesquisador faz com que os sujeitos colaboradores se sintam acolhidos e
respeitados (Moreira, 2009).
Durante a análise do material que emergiu da pesquisa de campo,
procurei ficar atenta à riqueza de conteúdo presente nas falas de cada
entrevistado sem, no entanto, perder de vista os objetivos da minha pesquisa.
Busquei contemplar os temas emergentes nas entrevistas aspecto
indispensável da pesquisa fenomenológica expondo, a partir das falas dos
sujeitos colaboradores, o significado da experiência vivida do corpo deprimido
tomado aqui como corpo próprio (Merleau-Ponty, 1945/2006) e utilizando as
ideias expostas no referencial teórico desta pesquisa para a compreensão e a
discussão dos dados.
O foco da análise dos dados da pesquisa na compreensão da
experiência vivida da depressão de pessoas que vivem ou viveram tal
experiência, ocorreu por intermédio do corpo próprio, conforme descrito pelos
sujeitos colaboradores. Como afirma Merleau-Ponty (1945/2006), “o corpo
próprio está no mundo assim como o coração no organismo” (p. 273),
constituindo, com ele, um sistema. O corpo próprio é considerado, então, como
fenômeno original de abertura ao mundo, pré-reflexivo (prévio à abstração), e
como linguagem ou objeto de sentido, à medida que fala de si mesmo e do
mundo e permite na interseção homem-mundo o contato com a experiência
vivida, dotando-a de sentido e de significado. Na análise dos resultados desta
pesquisa, contemplo o corpo próprio a partir de tal ideia, entrelaçando-a com o
fenômeno da depressão, vivido pelos sujeitos entrevistados.
Assim, foram encontrados os seguintes temas emergentes a partir
das falas dos sujeitos colaboradores, que discuto em seguida:
108
1. O significado da depressão e os sinais do corpo;
2. O corpo dividido;
3. A depressão como um fenômeno exterior;
4. Postura e ritmo do corpo deprimido;
5. O paradoxo do querer morrer;
6. Autoestima e valor pessoal;
7. O corpo sem poder: impotência, insegurança, incapacidade e
fragilidade;
8. O corpo que carrega culpa;
9. O corpo que é um “ser-para-o-outro”.
5.1 O Significado da Depressão e os Sinais do Corpo
A experiência da depressão é considerada pela maioria dos
entrevistados como um fenômeno de difícil descrição, associado a um alto grau
de sofrimento físico, psicológico e social, cuja manifestação inicial ocorre,
principalmente, por meio de sinais do corpo. Tais sinais aparecem nos
depoimentos dos entrevistados, sendo considerados como o momento
desencadeador em que, ao fazer contato com seus corpos, fazem contato com
a depressão. Descrevendo os sinais da depressão nos seus corpos, tais
pacientes revelam como se manifesta, neles, o fenômeno da depressão, sendo
109
tal manifestação anterior a qualquer conhecimento sobre a doença e suas
características, como foi descrito nos seguintes depoimentos:
Eu não sabia que tinha depressão até quando o médico
chegou...assim eu passei por vários médicos até chegar um e
dizer assim: você precisa de atendimento psiquiátrico.
E...assim...o meu corpo dava sinais, eu não entendia, achava
que era cansaço, que era stress e não ligava. (Jane)
No começo eu num soube logo exatamente o que era, porque
eu passei a sentir muitos sintomas físicos. Porque a depressão
também vem com alguns sintomas. Depende muito de cada
pessoa, mas o meu, eu sentia muita fraqueza, como se a
garganta tivesse fechando, dor de cabeça, não dormia, tinha
muita insônia, às vezes passava dois dias sem dormir...
(Mauro)
Bom, depressão pra mim no meu caso... eu nunca mais tive
saúde depois que tive depressão. Eu me considero assim. Era
uma pessoa saudável... era obeso, gordo, fumava muito,
sedentário, mas com a depressão tirou toda a minha vontade
de viver, de trabalhar. Tive período de altos e baixos, mas
saúde mesmo nunca recuperei, porque... por mais que eu diga
que estou bem, de repente me sinto mal.(Francisco)
Do ponto de vista do corpo próprio, tais sujeitos não descrevem,
simplesmente, sintomas, mas utilizam sinais do corpo para compreender sua
110
posição existencial: a de sujeitos que vivem a experiência da depressão. Para
Merleau-Ponty (1945/2006), a experiência corporal é o campo originário do
conhecimento do mundo, sendo o corpo, nesta perspectiva, corpo vivido, que
liga o homem, existencialmente, ao mundo, não sendo considerado,
simplesmente, um mero organismo.
Foi frequente a descrição de sintomas físicos pelos sujeitos
colaboradores no sentido de expressar a experiência vivida da depressão:
Você se sente... é... no caso quando eu fiquei com depressão
eu sentia um formigamento muito grande aqui na parte da
nuca, por trás da cabeça e descendo nas costas e aquilo
gerava um incomodo muito grande e... conseqüência desse
incômodo parece que eu sentia alguma coisa por dentro, no
peito, um vazio grande, dava uma ansiedade enorme. (Carlos)
Porque é como eu digo: eu num quero isso nem pro meu pior
inimigo. Porque é horrível, é horrível, é horrível. Porque você
num ter vontade de comer, você o dia anoitecer, o dia
clarear, você tem dor de cabeça, você tem vontade de
provocar... tudo aparece em cima de você. Você sente cansaço
nas pernas, você sente um desânimo, não tem vontade de
andar, não tem vontade de fazer nada... (Maria)
Percebi nestes depoimentos a manifestação da depressão tal como
se apresenta no indivíduo, revelando, também, o sujeito que a vive, pois não se
trata, simplesmente, de um conteúdo manifesto a partir da introspecção
subjetiva ou de um conhecimento prévio da doença, mas abrange o corpo
111
próprio e indica a sua postura corporal a partir da experiência vivida da
depressão.
A presença de sintomas físicos pode revelar muito mais do que o
marcante sofrimento de que são alvos os que vivem a experiência da
depressão, quando analisados a partir da perspectiva do corpo próprio, pois tal
concepção permite uma interpretação de tais sinais que ultrapassa a
causalidade objetiva. O corpo próprio é criador de significações, sendo capaz
de dar sentido às suas experiências e, assim, transcender o mundo biológico.
Assim, no corpo próprio, o contato do deprimido com o corpo físico marca a
postura do sujeito no mundo, que, de acordo com as falas dos sujeitos
colaboradores, é a de uma existência pesada, na qual o corpo se sente
indisposto diante de sua atuação no mundo, sem ânimo para realizar as
atividades cotidianas, conforme seus depoimentos:
Bom... começando pela depressão física, é... na parte física
você se sente... é... totalmente pesado. (Carlos)
...pensava que se fosse pra sofrer daquele jeito, fosse pra
passando mal daquele jeito, preferia morto pra num tá
sentindo, pra num sofrendo. Porque é...o peso físico e
mental é muito grande, muito grande sobre o seu corpo, sobre
sua mente...é uma situação muito difícil.” (Carlos)
Eu cheguei aqui me arrastando. Eu cheguei aqui que eu não
tinha ânimo pra nada. Eu cheguei aqui arrastando as pernas.
(Paulo)
112
É uma coisa muito ruim. (...)Ela causa indisposição, você não
tem disposição pra trabalhar, num tem disposição pra andar,
você só quer ta sozinha, num quarto. (Norma)
Eu num tinha ânimo, tinha vontade de trabalhar, agora, eu num
tinha coragem. Eu perdi o brilho, eu perdi a vontade de
trabalhar, de... me esforçar...Pra mim aquilo dali tanto fazia
como tanto fez. Num tinha sentido... de jeito nenhum.(...) Se
você é uma dona de casa, você num tem vontade de zelar pela
casa, porque qualquer mulher zela pelo que é seu. Você não
tem vontade de tomar banho. Depressão é um caso sério!
(Maria)
(...) eu tenho capacidade pra sobreviver e pra viver e pra lutar e
pra trabalhar, mas ao mesmo tempo eu não tenho a garra, não
corro atrás, eu não sei porque... Eu não sei porque, porque se
eu for fazer, eu consigo! Eu tenho, eu tenho, eu tenho...eu
tenho..., mas eu não tenho mais é vontade, não sei te dizer se
é vontade não sei explicar o que é. (Ana)
Por meio de tais depoimentos, torna-se clara a posição do corpo
próprio, ou a relação existencial corpo-mundo: não poder ser e não poder fazer
se confundem na experiência da depressão. Sob tal ótica, não cabe utilizar
apenas os sinais e sintomas típicos da depressão para dar explicações sobre
ela do ponto de vista das relações causais, uma vez que, na concepção do
corpo-próprio de Merleau-Ponty (1945/2006), há um saber primordial na
experiência do corpo entrelaçado com o mundo. Neste sentido, a escuta do
113
pesquisador sobre os sinais do corpo deprimido podem revelar a depressão,
bem como o sujeito que a vive.
5.2 O Corpo Dividido
A ideia de um corpo dividido em mente e corpo físico ou seja, de
que um corpo físico que obedece a comandos mentais superiores se
manifesta, constantemente, nas entrevistas, como podemos perceber nos
depoimentos abaixo:
Olha nós somos movidos por isso aqui. (aponta para a
cabeça). É isso aqui que comanda tudo em você. Comanda teu
olhar, comanda teu sorriso, comanda o mexer dos dedos. Tudo
é movido por isso aqui. Sem isso aqui a gente não é ninguém.
(Paulo)
Não era o corpo que não estava bem, era a cabeça que não
estava bem. Porque a gente quando tem uma enfermidade no
corpo, com uma perna com defeito, quebrada, uma coisa
você não pode se locomover. Espera se recuperar... depois
você desenvolve. Mas a cabeça tando ruim você quer ir, ela
não deixa você ir. (...) o corpo padece né? O corpo... você
acha dor no corpo, dor nas pernas, dor na cabeça, dor na
barriga, onde você imaginar você sente dor. A cabeça não
deixa você fazer nada. Quem controla tudo é a cabeça, né?
114
Você não pode andar... daí eu não podia fazer nada.
(Francisco)
Porque depressão é um fraqueza que nós temos no cérebro. É
uma coisa que a gente não sabe...não sabe distinguir. Não
sabe chegar no ponto que...se valorize. Eu vejo assim. (Maria)
Nestes depoimentos fica claro que a tradição a que se vincula o
pensamento científico convencional, inspirado no modelo cartesiano que reduz
o corpo aos dados psicofisiológicos, permeia, inclusive, a concepção popular, e
o homem atual passa a adotar uma noção de corpo dissociado, dividido em
partes e separado de sua existência como um todo. A partir de seu conceito de
corpo próprio, Merleau-Ponty (1945/2006) sugere as suas implicações na
cultura e na história do sujeito, destacando que a doença se expressa em toda
a existência do indivíduo, não apenas em circunstâncias físicas, como é tratada
pelos padrões da ciência tradicional. As repercussões de tal forma de
pensamento têm contribuído para o fortalecimento da concepção dicotômica
entre físico e psíquico e prejudicado as noções de corporeidade, de existência
e de existência integrada. Na pessoa que vive a experiência da depressão, tal
perspectiva dicotômica é bem presente:
Eu num sei te explicar...Mas é assim... Porque a gente
espiritualmente, né? Num tava mais prestando pra nada. Aquilo
era um corpo. o corpo. Porque espiritualmente eu
num...prestava mais pra nada. Perdi o gosto de tudo que pode
existir na vida. Toda a minha vida, né? Neto, filho... (Rosa)
115
A ideia de corpo dividido influencia, também, a forma como os
sujeitos colaboradores descrevem as causas da sua depressão:
Eu li também que é um hormônio que tem na cabeça, a
serotonina, conhecido como o hormônio da alegria que quando
tem depressão passa a diminuir, esse hormônio. você não
sente vontade de fazer nada... Perde a alegria. (...) Eu li
muito que, em muitos casos é assim talvez por
alimentação, muitas vezes é por traumas que a pessoa tem,
muitas tem depressão porque morre algum ente querido, aí fica
deprimido... (Mauro)
Carlos, em seu depoimento, se aproxima da ideia de todo, de
conjunto, de unidade e relata que experimenta a depressão como uma reação
em cadeia:
Num tem uma coisa isolada. São vários fatores que contribui. É
uma reação em cadeia. Num é algo que você diga: ah... agora
eu com o incômodo, com aquele peso, aquela
ansiedade, aquela agonia ou com cansaço ou sem
rumo. É tudo junto. Então eu acho que não tem assim... o
melhor, o menos suportável ou o mais suportável. É tudo uma
reação em cadeia, tudo vem junto tudo é pesado e tudo é... lhe
põe pra uma situação de total desespero de ficar pra baixo de
não querer mais viver. (Carlos)
116
No seguinte depoimento, Jane se refere à relação entre as questões
emocionais e o seu corpo; no entanto, ainda manifesta uma forte tendência a
percebê-las do ponto de vista da causalidade:
É... hoje eu vejo assim... os problemas emocionais é que
causam todas as doenças no nosso corpo. Eu tenho essa
consciência. Uma dor na unha... a dor na unha, ela não vem
assim de graça, gratuitamente tem alguma coisa assim...é uma
conseqüência na verdade. As dores é conseqüência de alguma
atitude, de alguma ação. Eu tenho essa consciência. (Jane)
Merleau-Ponty (1945/2006) afirma que “sistema de potências
motoras ou de potências perceptivas, nosso corpo não é um objeto para um „eu
penso‟: ele é um conjunto de significações vividas que caminha para seu
equilíbrio” (p. 212), o que destaca a importância de tratar o corpo como
expressão da existência, transcendendo o modelo científico tradicional que
prega a dualidade de corpo e mente.
5.3 A Depressão como um Fenômeno Exterior
Alguns depoimentos evidenciam que, para os sujeitos colaboradores
a depressão é um processo externo que se apodera de seu corpo:
de quarta feira até o dia dele viajar eu tinha... uma coisa
tinha tomado conta de mim, que ninguém percebia. (...) E
essa coisa em mim era como um desgosto, uma raiva, uma
coisa terrível que me dominou mesmo. (Rosa)
117
Para Rosa, a depressão se manifesta como uma “coisa” que tomou
conta dela e passou, desde então, a determinar seu comportamento. É
interessante notar que, no relato de sua história, ela se apresenta como uma
pessoa bastante dependente do marido, e parece que, ao experimentar uma
situação na qual ela se sente excluída por ele, os sintomas depressivos
passaram a assumir a função que, antes, era do marido: a de determinar sua
forma de estar-no-mundo. Ela descreve sua relação com ele da seguinte forma:
Porque eu nunca tive nada doutora, nunca! Eu tive mesmo
ele e meus filhos. (...) Quando eu casei, eu casei sabendo que
meu filho eu num ia criar pra mim eu ia criar pro mundo. E o
marido eu sabia que ia ser pra mim. Ele ia assumir minha mãe
e meu pai, né? Então quando eu vi que eu num tive o que eu
queria, aí veio o pior de tudo. (Rosa)
Vítor fala, também, de algo que é exterior ao indivíduo, associado à
sua crença religiosa:
Eu não sei se a senhora acredita em espiritismo, acredita? Não
é que...Quando a pessoa ta ruim parece que o espírito ruim
vem na pessoa. Eu freqüento o espiritismo... melhorei um
bocado. Tem tanto espírito ruim no mundo, né? Tem pessoas
que acredita e tem outras que não acredita. fica atentando
aquela pessoa: vai, se mata, se mata... É tipo escutando
vozes... (Vítor)
Percebo no depoimento de Paulo, uma descrição da depressão
como um monstro:
118
Pois é...o que você quer saber mais sobre essa doença que é
um monstro...(...) Eu cheguei aqui arrastando as pernas. A
cabeça chegou dominada pela depressão, pelos monstros da
depressão. Você lembra dos monstros daquele filme uma
Mente Brilhante? Pois, aqueles monstros, vonão vê, eu não
vejo, mas eles estão dentro de mim. Ele está dominando a
minha pessoa. Dominando a minha pessoa... Dominando a
minha pessoa, desse jeito... (Paulo)
Tal percepção da depressão como um monstro leva Paulo a se sentir travando
uma constante luta contra a depressão, o que corrobora a ideia de que ele a
percebe como um processo externo que o domina:
A depressão ela é tão potente que ela pega uma cara de quase
100 Kg igual a mim e joga no chão. Ela é muito forte. (...) Olha,
nós somos mais fracos do que a depressão. É por isso que eu
procurando ajuda. Se eu não estivesse tendo uma ajuda
médica, como eu estaria hoje? Eu estaria arrasado. O que eu
teria feito de mim? (Paulo)
Em outras entrevistas, também, se manifesta a luta contra a
depressão, evocando a idéia dicotômica de interior/exterior:
Apesar de estar consciente, eu não tinha... eu não era dona do
meu corpo é como se...(...) a coisa era tão forte dentro de mim
que parece que eu reagia de uma forma...reagia até aos
remédios.(Jane)
Mas eu disse assim: Eu não vou fazer! Eu não vou fazer! Eu
não vou dar esse gosto a esta depressão! Eu vou me tratar,
mas não vou me matar não! (Paulo)
119
É uma doença que ela mata você aos poucos. E é muito difícil
sair dela... com muito ajuda mesmo e você ter que correr
atrás. Mas não é fácil... Muita gente diz assim: Ah,
frescura...tem um problema... deixa o problema pra lá! Mas eu
não conseguia... (Norma)
Para Merleau-Ponty (1945/2006), não um homem interior, pois o
homem está no mundo, engajado em situações. Percebo, no entanto, a partir
dos depoimentos acima, que o fenômeno da depressão provoca, no indivíduo,
um sentimento de que vive algo de fora dele, com o qual ele tem que lutar
constantemente. Referindo-se a alguns processos patológicos, Merleau-Ponty
explica que, por meio da doença, as possibilidades do corpo como expressão
da existência “se travaram em um sintoma corporal, a existência amarrou-se e
o corpo tornou-se o esconderijo da vida” (p. 227). Tal explicação pode,
perfeitamente, ser aplicada ao sujeito que vive a experiência da depressão,
pois, para ele, a recusa em relação ao corpo, ao outro e ao agora é evidente.
5.4 A Postura e o Ritmo do Corpo Deprimido
No corpo próprio, o espaço e o tempo ganham a dimensão de
postura e ritmo corporais, transcendendo as noções de espaço-tempo,
representativas do contexto físico-biológico. Considero, nesta pesquisa, a
corporalidade na perspectiva da fenomenologia de Merleau-Ponty (1945/2006),
entendendo que o corpo não é um objeto do mundo, mas um meio de
comunicação com ele, ou seja, nosso corpo nos proporciona um mundo
120
sinalizado por sua história. A ideia do filósofo é que “não se deve dizer que
nosso corpo está no espaço nem tampouco que ele está no tempo” (p. 193),
pois ele os habita. A partir desta concepção, percebo claramente, na fala dos
sujeitos colaboradores, que a experiência da depressão é marcada pela
sensação de estar separado do mundo e do outro. Neste sentido, a postura e o
ritmo corporais se tornam vazios no espaço e estagnados no tempo, marcando
a sua corporalidade ou a forma de ser-no-mundo.
Nos depoimentos abaixo, observo como tais pessoas descrevem
seu estar-no-mundo e evidencio que a espacialidade é marcada por estados do
corpo semelhantes a experiências descritas como estar em “um muro”, “no
fundo do poço” ou “em um lugar escuro”:
Olha, eu passei foi quase um ano meio pra abrir a boca dentro
do grupo. Que eu não falava! Parecia que eu tava dentro de um
muro, entre quatro paredes, e num via ninguém. Isso é horrível.
(Maria)
Porque a depressão... Depressão é uma coisa que...faz a....
Você vai caindo dentro de uma cacimba e se você não se
acordar com o tempo você se afunda mesmo, que é arriscado
vir até a morte. (Maria)
Tudo pra mim é... como se nada pra mim desse certo. Como se
o mundo pra mim fosse escuro.
Entrevistador: Como é viver num mundo escuro?
Um mundo escuro é...sem perspectiva de nada, você vive
porque você tá vivo mesmo mas... (Norma)
121
Cara, é muito ruim! Você fica...você se sente como se...no final
do poço! Você se sente assim...Só, no meio da escuridão, com
tanta gente, como se as pessoas não te ouvissem, como se
você não fosse nada e as que estão ali ainda te pisam! Não tão
nem vendo! (Jane)
Tais sentimentos, muitas vezes, se concretizam em ações práticas e o mundo
vivido do deprimido parece se restringir ao isolamento físico:
É muito ruim. Eu ficava trancado no meu quarto. Não saía pra
nada. (Vítor)
Se você chegasse assim pra mim: Maria vamos numa festa?
Eu num tenho vontade de ir pra festa, meu problema era só me
isolar. Me trancar num quarto, viver... pra mim. Nada tinha
sentido. (...)Uma pessoa chegava: Maria sai de dentro desse
quarto! Você falou pronto! Eu ouvia a sua palavra... Às vezes
eu nem abria o quarto pra sair. escutava. Mas eu nem abria
o quarto. (Maria)
Para Carlos, a sensação de estar preso, típica da experiência da
depressão, o remete à descrição de um mundo diferente, estranho e incômodo
e um sentimento de estar fora do contexto:
E...é...mentalmente você fica desnorteado, você fica...é
estranho. Uma sensação que... você parece que vive em outro
mundo. Você não consegue ver as coisas com...com a clareza
que você tem quando você não está doente é como se... tudo
tivesse diferente, tudo tivesse... como se você tivesse preso em
122
algum lugar, num sei, como se você tivesse...como se tudo ao
redor tivesse funcionando e você num lugar totalmente sem
contexto, sem fazer parte de nada. Você sente que...tudo lhe
incomoda: o som, às vezes as pessoas, enfim, você não
consegue fazer nada. Se sente totalmente perdido. (Carlos)
A Tal modo de estar-no-mundo, alia-se uma relação com o tempo
bastante particular, pois o tempo vivido é experimentado, na depressão, a partir
da lentidão e da estagnação do corpo. Alguns relatos traduzem este aspecto:
Fisicamente, você tanto fica esgotado questão de sono que
você perde, como também cansaço físico, apesar de você não
fazer nada, mas aquilo parece que consome uma energia...
acho que você... talvez por pensar demais, num sei, num
assunto você também se sente esgotado mentalmente e
conseqüência o corpo sente, né? Aquele esgotamento.
(Carlos)
Às vezes todo mundo terminava sua carga horária à noite, seis
horas. E eu ficava até nove hora, dez horas da noite. Pra ajeitar
todos os meus pedidos, a minha parte. Por quê? Porque eu
tava lenta, eu num tava sendo a Maria que eu era.
entendendo?” (Maria)
“Perde a alegria, a vontade de fazer as coisas... Isso também é
por causa da depressão também. Isso acho que acontece com
todas as pessoas que tem. Além de ter os sintomas sicos
tinha esse também. Que prejudicou muito. eu fiquei vários
123
anos sem estudar, ainda não terminei os estudos, já era pra ter
terminado. (fala em tom de voz mais baixo). (Mauro)
Outro aspecto bastante significativo do tempo vivido na depressão
consiste no fato de que o tempo presente não é significativo, pois a pessoa,
frequentemente, se remete ao passado, permanecendo presa ao fato
desencadeador do processo, ou ao futuro, distante, nebuloso e incerto:
Acho que uma das coisas de quem tem depressão é...sofre
mais e piora o quadro é essa questão de que ele se concentra
muito no fato causador. Se ele conseguisse desfocar um
pouco, talvez as coisas mudariam mais rápido, mas, ele se
concentra muito. Seja uma pessoa que ele perdeu, seja em
algo que aconteceu na vida dele, enfim, a questão de se
concentrar demais na mesma coisa é...que lhe faz não
conseguir sair da situação. Fica aquela coisa batendo na sua
cabeça, martelando, martelando... (Carlos)
Eu me lembrava de que...me lembrava que... aquele A tinha
feito algo comigo que eu não conseguia tirar da cabeça, que eu
não conseguia esquecer. Pra mim aquilo dali era muito difícil,
pra mim aquilo dali tinha marcado e nunca ia sair do meu juízo.
Aquilo dalí tava me acabando eu achava que aquilo dali nunca
ia sair. Nunca... Eu nunca ia esquecer aquela coisa que tinha
acontecido. Pra mim era assim. (Maria)
Aqui acolá eu quero recair quando eu me lembro daquele
desgosto do começo, né? (Rosa)
124
Me preocupava com o meu futuro,né? Como é que vai ser. Se
vou ficar assim pra sempre. Não vou melhorar? Vou viver
dependendo de remédio? Pensava assim. Essas eram as
minhas preocupações. Passava muito tempo só, né? Pensava
muito. Muitos pensamentos perturbando. É uma coisa assim
que desespera você. (Mauro)
Ana relata, insistentemente, os fatos que desencadearam o
processo depressivo, que, embora tenham ocorrido quase dez anos, ainda
são lembrados com bastante pesar. Queixa-se, durante toda a entrevista, de
suas dificuldades, chegando a perder o contato com o tema da entrevista:
Ahhhh! Eu moro numa casinha, a minha sorte é que eu faço
crochê, tô aprendendo a bordar, eu ocupo minha cabeça,
minha mente com isso. Eu não posso fazer caminhada pq eu
tenho problema circulatório e de esporão, tenho que fazer
hidroginástica mas eu não posso pagar. E... Cada dia que
passa tô com dificuldade de andar tem hora que dá uma dor na
perna...Mas...Eu tô... O que foi que você perguntou? Eu me
perdi... (Ana)
Na perspectiva do corpo próprio, o movimento ou a corporalidade
não se submete ao espaço e ao tempo, mas os assume ativamente, pois, como
afirma Merleau-Ponty (1945/2006), “considerando o corpo em movimento, -
se melhor como ele habita o espaço e também o tempo” (p. 149). A lentidão e o
isolamento em que se percebe imerso o deprimido expressam o seu
movimento no mundo e refletem uma existência vazia. Tal ideia se coaduna
com o pensamento de Tatossian (1979/2006), que reconhece um núcleo de
125
desrealização-despersonalização no melancólico, marcado pela separação do
mundo e do outro, que refletem uma separação de si mesmo.
5.5 O Paradoxo de Querer Morrer
A relação com a morte foi um tema bastante desenvolvido nas
entrevistas e revelou que o sofrimento causado pela depressão leva,
constantemente, os pacientes a terem pensamentos relativos à própria morte,
como se fosse a solução para o seu problema:
É uma coisa desesperadora! Chega a você pensar que é
melhor morrer do que sentindo aquilo, num sei, nunca tive
uma doença maior grave, mas acho que é uma sensação de
quem tem uma doença assim terminal sente também.
vontade de não mais viver... de... tão pesado, de tão ruim que
aquilo é... sobre o seu corpo. (Carlos)
Olha, essa doença, a depressão, ela é uma coisa que chega a
ser desumana, sabe? Porque a única exclusividade da
depressão... é que ela manda você se matar. (Paulo)
Você fica sem...é como se você perdesse a direção da vida,
como coordenar sua vida...E... aquela doença vai lhe
arrastando, lhe arrastando cada dia, você vai perdendo.Como
se você fosse uma planta: cada dia morresse um galho seu...
Assim é a depressão a você murchar, murchar, murchar e
126
muitos chegam até a morrer. Porque você fica tão triste, você
acha que a única saída é morrer. Você acha que você sair...Pra
você sair daquele problema, pra você sair daquilo que você
não quer ver, daquela situação que você não quer viver você
às vezes acha que a única saída é a morte. (Norma)
É muito ruim...É... tem vontade de morrer, vontade de morrer,
muito ruim. A gente tem um vazio dentro da gente. Pensa que
ninguém gosta da gente, fica só, solitário num canto. Aí...Já
tentei suicídio. Meu pai é policial peguei a arma dele eu...
Mas não vale a pena não... (Vítor)
No entanto, apesar de bastante evidente nas entrevistas, a ideia de
suicídio se manifesta como um pensamento paradoxal, pois parece contemplar
muito mais a necessidade de eliminar o sofrimento do que de morrer
concretamente:
comecei a ter medo de...eu num queria morrer. Eu tinha
medo de morrer e queria morrer. Aí eu ia pro meio da rua rezar.
É um paradoxo, mas era verdade. Eu tinha medo de ficar só,
morrer. Mas tinha momentos que eu preferia tentar
assim...essa besteira do que vir a sofrer. (Francisco)
uma vez eu peguei um monte de comprimido e botei na
minha mão. Mas aí eu não tive coragem... Eu desisti na hora. E
daí eu falei que minha vida não era boa, mas eu num queria
morrer mais não. Apesar de eu num... Eu nunca dava muita
127
importância, mas eu mesma num queria tirar, entendeu? Se eu
morresse num tinha problema, mas eu tirar minha própria vida
eu não queria. (Norma)
Não se matar não, mas vontade de morrer... Eu na verdade
não queria era morrer era acabar com isso, mas não via
solução e a primeira intenção é essa. (Mauro)
Os pensamentos em relação à morte, também, se manifestam como
solução para a necessidade de chamar a atenção das pessoas para o
sofrimento do deprimido:
Inclusive também tive... pensava... em resolver esse
problema de uma forma mais rápida que era me matar. Mas
eu... quando chegava, eu... esse pensamento eu dizia assim:
Não vai adiantar nada. Ninguém vai... Ninguém vai...Vou
morrer e aí? Eu não vou resolver nada, as pessoas vão me
esquecer mesmo...Não vai adiantar. Não é por aí! Acho que a
questão é assim: é uma carência tão grande, é uma...é uma...
é uma fragilidade tão grande que parece que você se torna um
bebezinho, assim, vc quer ser cuidado, você quer ser tratado,
você quer atenção é...é...
Entrevistadora: E o que é que esse bebezinho faz pra ter a
atenção das pessoas?
Bom, ele acha que morrer resolve, né,(risos )como...como
acontece...Você quer chamar atenção e a forma de chamar
128
atenção é você... fazer alguma coisa grave. que, é...não é
por aí, né? (Jane)
Eu não queria dar esse desgosto a minha mãe, mas eu não
teria medo, eu teria até... ôôô meus filhos talvez fossem sentir
pq a gente sente a obra de mãe depois que perde. Mas a
gente vê que as pessoas morrem, 7 dias e ninguém nem se
lembra mais... uma mãe, pai,né? uma coisa que... conviveu
muitos anos, né? a vida continua... (Ana)
É importante destacar que os depoimentos dos entrevistados sobre
a relação entre suicídio e depressão estão de acordo com a descrição de
Tatossian (1979/2006). Ele afirma que a angústia vital que marca o fenômeno
da depressão se encerra na angústia de não poder viver, ou no sentimento de
ser impotente para viver, o que leva o deprimido a uma relação com a morte
bastante peculiar, marcada pela familiaridade e pelo desejo de morrer. O
deprimido vive um projeto paradoxal em sua relação com a morte: o desejo da
morte imanente que é o desejo de vida. Morrer, definitivamente, seria o
fracasso de seu projeto, ao passo que viver pequenas mortes ou a morte
parcial seria o seu recurso para suportar o peso que o corpo carrega em
relação à sua existência. No entanto, sendo este projeto inviável, pois não se
pode viver mortes parciais, o deprimido se confunde com a perda e com a
morte: ele mesmo é perda e morte.
129
5.6 Autoestima e Valor Pessoal
Foram unânimes nas entrevistas as falas que se referiam à falta de
autoestima e de valor pessoal como postura existencial, nas quais se
reconhece que partem de uma experiência vivida única, que reflete uma
história pessoal, mesmo quando tais falas parecem repetidas, por estarem
presentes em todos os depoimentos, traduzindo-se em metáforas comuns do
cotidiano. É freqüente, nos depoimentos a descrição de sentimentos de baixa
autoestima e perda do amor próprio:
Acho que você perde a questão do amor próprio, né? Se
coloca numa situação, deixa-se levar, deixa-se definhar aos
poucos... você vai como uma plantinha que vai murchando,
murchando, murchando e.... parece que não quer fazer nada
para aquilo mudar. Assim, de certa forma eu quis fazer porque
eu procurei tratamento, procurei ajuda, mas...você se sente
muito...não se preocupa com você. Acho que perde um pouco
do amor próprio também. Auto-estima não tem, né...auto-
estima não tem nenhuma você fica totalmente vulnerável fica
se achando uma nada. Acha que... não tem mais valor. Você
perde o valor total, você perde a noção. Auto-estima é o que o
deprimido não tem. (Carlos)
Você perde seu amor próprio, você perde sua dignidade, você
perde teu respeito, as pessoas, minha família então me cobra
como é que eu tinha competência numa empresa passei 14
anos que não foi pelos meus lindos olhos... e de repente eu me
anular, eu não ser mais a pessoa, eu não ser mais aquilo que
130
eu era. pra entender? Da pra entender porque que eu me
anulei, porque que eu fracassei porque... eu não entendo
explicar o porque. E cada dia que passa tá mais difícil.(Ana)
O que me incomoda mais... é a ansiedade! A ansiedade
me...me...me coloca numa situação muito...muito
desagradável. Sabe? Porque... Porque...ela tira todo o meu
brilho. (Choro) Ansiedade é aquela angústia que você tem, que
você não se suporta mais de tão angustiado, de tão
deprimido... Você não se aguenta mais. (Paulo)
Para Francisco, a sua baixa autoestima provoca medo e angústia,
que contribuem para uma descrição de si mesmo como “um nada” e a
sensação incapacitante provocada pela depressão:
Você sente medo, angústia, medo de morrer. Medo de
qualquer coisa. Medo de não ter feito nada. O que você fez na
vida, nada adiantou você ter feito. Você acha que não serviu de
nada aquilo que você fez, ou as pessoas não agradecem... o
que não é verdade, né? Tudo o que se faz a pessoa agradece.
Tem um agradecimento. Mas é assim você se sente: nada!
Você não poder fazer nada porque você não se acha em
condições de fazer nada. Você se acha uma pessoa doente.
Pronto, tá com depressão então você não presta mais. o é
assim né? (Francisco)
Manifesta-se nesta fala, um sofrimento que, na perspectiva do corpo próprio,
reflete a ideia do sujeito que, ao viver no vazio, se designa como “um nada”.
Merleau-Ponty (1945/2006) afirma que “a existência pessoal é a retomada e a
131
manifestação de um dado ser em situação” (p. 229), e reitera que é o corpo
próprio, dotado de significado, que exprime a existência total, pois a existência
se realiza nele. Tal afirmação expressa, então, todo o sentido que se manifesta
no depoimento de Francisco, que, ao descrever sua experiência de depressão,
descreve-se a si mesmo.
Encontrei no depoimento de Mauro sobre sua autoestima, uma
referência à sua relação com o outro, sentindo-se diminuído nela:
É como sendo alguém muito fraco mesmo, sua autoestima
baixa, achando que... não sei fazer nada, que num... pessoas
não gostam de mim. Pensa nisso. Vem mais pensamentos
negativos. Como se eu achasse que ninguém gostasse de
mim, como aquela pessoa pensando algo de mim...(...) Em
poucas palavras, eu me sentia deste tamanhozinho aqui
(coloca a mão em direção ao chão) Era isso que eu
sentia...Como se as pessoas fossem maiores, melhores do que
eu. (Mauro)
É possível compreender tal relação a partir da experiência do corpo próprio,
tomado como um eu engajado no mundo físico e inter-humano (Merleau-Ponty,
1945/2006), pois é por meio do meu corpo que percebo o mundo e que
compreendo o outro. Na depressão, a relação com o outro se encontra de tal
forma comprometida que prejudica, também, a percepção de si mesmo.
Tatossian (1979/2006) afirma que, na melancolia, a alteração da
ressonância ou da sintonia com o outro, provocando uma anestesia afetiva,
que reflete na “afetividade-contato” (p. 120), impedindo a proximidade do
sentimento e da vivência como encontro inter-humano.
132
5.7 O Corpo sem Poder: Impotência, Insegurança, Incapacidade e
Fragilidade
O sentimento de despotencialização também esteve presente nas
falas dos entrevistados, revelando um estar-no-mundo marcado pela falta de
ação no qual a impossibilidade da ação é confundida com o próprio ser. Carlos
considera que a experiência da depressão trouxe, consigo, o sentimento de
falta de controle sobre sua vida e de impotência diante de decisões a tomar,
fazendo-o se sentir no mundo como se estivesse vegetando:
Você fica perdido, você fica...aquela velha situação: você
quer em casa, quer ta sozinho, quer ta...ou tentando
mudar um problema que não tem jeito, muitas vezes você fica
querendo que aquela situação mude e não consegue e se
sente totalmente impotente. (...) Parece que você não tem
controle mais sobre sua vida. Você se perde totalmente, você
não consegue mais decidir o que você vai fazer, o que você
quer, como você quer, quando você quer...você se sente
vegetando. (Carlos)
Para Ana, o corpo sem poder se manifesta na falta de iniciativa e no
sentimento de ser incapaz de tomar conta de sua própria vida:
Acaba as coisa eu fico sem nada dentro de casa com vergonha
de pedir e porque eu não corro atrás? Eu não sou capaz? Mas
eu não tenho esta... como é que se diz... é...iniciativa! Eu sei
133
fazer e eu sou capaz e eu sei que daria certo, você
entendendo? E porque que eu não vou atrás de correr atrás do
prejuízo? (Ana)
Em outros depoimentos, a insegurança, a indecisão e a fragilidade
se manifestam na realização das tarefas simples do cotidiano do deprimido:
Por exemplo, se eu tivesse que sair do trabalho pra ir pra outro,
pra mim tomar essa decisão, pra mim é a coisa mais difícil do
mundo. Eu fico logo imaginando que eu não vou aprender, que
se não der certo eu vou ficar desempregada, o que vai ser de
mim... (Norma)
Então, foram várias situações que eu não conseguia resolver e
que isso me deixava... me fazia mal até o ponto mesmo de eu
ter essa crise de ficar... toda torta. (Jane)
Como uma doença dessa pega uma pessoa e fragiliza dessa
forma! Isso me deixou doente, mais doente ainda! Por quê?
Porque eu não tinha alegria pra nada, eu não tinha prazer
com nada, tanto fazia fechar portão como deixar portão aberto
pra mim era a mesma coisa, ir o trabalho, tanto fazia eu ir como
não pra mim era a mesma coisa. (Paulo)
Ah eu fico arrasada... Eu passo dias assim me sentindo a pior
pessoa do mundo. Me acho incapaz, frustrada, burra...Todos
os sentimentos ruins que uma pessoa pode sentir em relação a
sim mesma. (Norma)
134
Encontrei, nesta categoria, aspectos que são compatíveis com a
concepção de Tatossian (1979/2006) que afirma que o Lebenswelt (mundo
vivido) do melancólico é marcado por um vivido generalizado do não poder. Ser
deprimido é carregar no corpo próprio um não-poder, que se expressa em não
poder trabalhar, comer, pensar, compreender e viver, mas é, principalmente,
reconhecer e assistir a tal incapacidade expressa em uma perene culpa.
5.8 O Corpo que Carrega Culpa
O sentimento de culpa foi freqüente nos depoimentos coletados. Os
entrevistados procuram em si mesmos, nos seus sentimentos e
comportamentos, algo que justifique a depressão:
eu acho, porque que eu cheguei nessa depressão? Porque
eu não sabia perdoar. Eu odiava essa irmã. Mas, eu não fui a
delegacia dá parte dela, não fui falar com o gerente da ***** pra
que ele botasse ela pra fora, nem nada.(...) Eu sempre dizia:
Meu Deus! Tu vai pagar, mais cedo ou mais tarde. Tu vai pagar
o que tu fez comigo. Tu não é irmã! Tu não é gente! Eu dizia
muita coisa. Hoje em dia não.(...) Por isso que eu acho que eu
me curando da depressão. Porque eu aceitei agora, perdoar.
(Maria)
Francisco diz que a depressão é uma forma de punição por seu
comportamento arrogante:
135
Eu era arrogante! Mas eu dizia que quando pobre, não, rico
quando tinha problema assim ia pra psicanálise, fazer análise,
fazer terapia né? Eu dizia no auge da arrogância, da estupidez:
pobre quando tinha esses problemas ia beber cachaça (riso). O
que não é verdade. Depressão dá em pobre, rico, branco,
preto, novo, velho, dá em toda classe social, num respeita
ninguém, né? E hoje eu to pagando por isso. Eu acho que eu
pago por isso. (Francisco)
A experiência vivida da depressão é marcada pela imobilização do
tempo vivido, o que torna o passado pesado, determinante e difícil de ser
dissipado. Tatossian (1979/2006) afirma que o peso do passado, em tal
experiência, assume o lugar de uma falta inapagável, suscitando, no sujeito
deprimido, a necessidade, sempre presente, de expiar a sua culpa:
Eu me sinto culpada por minha vida não ter dado certo, eu me
sinto culpada pelas coisas que eu sonhei não terem se
realizado... Porque talvez eu não fiz a coisa certa pra que
acontecesse certo. (Norma)
(...)Foi horrível, foi justamente na época que eu perdi este
emprego e... este emprego eu perdi porque eu não tive
discernimento nem sabedoria... porque se eu tivesse tido um
auto controle um discernimento eu não teria perdido porque ele
era tudo pra mim.(Ana)
Nos depoimentos de Norma e Ana, a culpabilidade reflete sentimentos
de ruína em relação à sua vida e manifestam, conforme afirma Tatossian
136
(1979/2006), o reconhecimento de culpa por ter provocado a própria ruína, que
deve ser vivida, então, como punição.
5.9 O Corpo que é um “Ser-para-o-Outro
Outro aspecto bastante significativo, nas entrevistas, é a vida social
do deprimido, que parece bastante comprometida. Merleau-Ponty (1945/2006)
considera o corpo como mediador de toda experiência possível; logo, a
afetividade, marcada pelo contato com o outro, não pode ser excluída de tal
perspectiva. A experiência do corpo próprio exige, pois, a presença de outro
corpo para a descoberta do mundo.
Na experiência da depressão, a relação com o outro é vivida de uma
forma bastante peculiar, pois estão presentes sentimentos que traduzem a
necessidade de se entregar ao outro. Assemelha-se a um processo simbiótico.
No entanto, as falas dos sujeitos colaboradores manifestam traços nos quais o
ser-para-o-outro é quase uma exigência de ser amado, ao mesmo tempo em
que denota uma incapacidade em relação a tal conquista. Nos depoimentos
dos seguintes entrevistados, encontrei situações nas quais, na relação com o
outro, o sujeito parece abrir mão de sua própria vida na busca de atenção e
apreço do outro:
(...)Quando eu casei, eu entreguei minha vida total a ele. Ele
era minha fortaleza, era meu tudo. Aí quando veio a decepção,
desencadeou essa coisa terrível.(...) Deixei de visitar meus
137
pais no interior, pra não deixar ele talvez até por... querer
bem demais a ele...E ele não percebeu isso.(Rosa)
Porque eu tinha esse problema: Eu sempre lhe respeitar, lhe
valorizar, lhe amar pra depois vir eu. E às vezes esse eu nunca
vinha. O que é que vinha? A depressão, o isolamento. (Maria)
Parece haver uma forte necessidade de demonstrar o mal-estar
causado pela depressão, ao mesmo tempo em que os sujeitos deprimidos se
acreditam incompreendidos e não aceitos pelo outro:
eu tinha vontade de morrer, tinha vontade de...Eu queria
fazer...Eu queria me jogar dentro de um poço de lama. Eu
queria mostrar que eu num tava bem mas ninguém percebia.
(...) ninguém aceitava que eu tava doente, ninguém...Aí
aquilo foi cada dia mais aumentando, minha tristeza, minha
angustia... até que um dia ele resolveu falar num sei com
quem e essa pessoa disse pra ele: Olha fulano a tua esposa
com depressão e depressão mata. (Rosa)
Você perde a alegria não consegue mais ter uma vida social
normal com as pessoas. É difícil... Onde você chega, com
quem você conhece, você começa a chorar, cair em prantos
então assim...se você não tiver boas pessoa pra... que lhe
entenda, que lhe ajude, você chega até a incomodar por isso
porque você só fala nesse assunto. (Carlos)
138
Em muitos casos, o isolamento, ou seja, o não-ser-para-o-outro, se
manifesta como forma de viver tais relações, quer seja por se sentir incapaz de
viver tal encontro com o mundo, a partir do outro, quer seja pela necessidade
de que o outro reconheça sua necessidade. O corpo próprio é
intersubjetividade (Merleau-Ponty, 1945/2006), mas, no caso do deprimido, ele
é marcado pela posição de vítima e a necessidade de ser cuidado.
Maria descreve sua experiência de contato com o outro como um
abismo marcado por decepções e desilusões:
Mas por que isso chegou a acontecer? Porque... Por causa de
tantas decepções, tantas desilusões, decepções que eu passei,
pessoas que chegaram no ponto de me afligir tanto, de me
machucar tanto, chegou o ponto de eu... entrar nesse abismo.
Porque isso é um abismo. (Maria)
o que é que acontece: Eu me...me refugiava pra mim.
Parecia que...eu tenho minha mãe, tenho minhas irmãs, tinha
todo mundo ao meu redor. Todo mundo queria ver eu em
cima como eu era. Mas eu não queria saber da opinião de
vocês. Pra mim vocês não existia. É horrível. Eu acho... Eu
num quero isso... Nunca mais quero pensar no que eu passei.
Não quero. Porque foi muitas decepções.(Maria)
Outros depoimentos demonstram que, para a pessoa que vive a
experiência da depressão, o distanciamento do outro passou a ser o caminho
possível, mas retratam, também, o sofrimento que atravessa tal experiência:
139
Perdi minhas amizades por que ninguém gosta de estar perto
de quem é depressiva. Porque as pessoas num querem saber
de problemas... e dificuldades. Às vezes eu começava a
conversar as pessoas se afastavam de mim, muita gente se
afastou de mim, muitos dos meus amigos se afastaram. Porque
eu falava de tristeza, vivia chorando e...as pessoas
sempre...dizem nunca fique perto de quem fala de tristeza
porque isso atrai tristeza também. E as pessoas foram se
afastando, se afastando... E eu... E eu cada vez mais eu ia me
enfiando num...num caminho sem volta. Como se fosse um
caminho sem eu saber qual é a saída. (Norma)
Meus familiares foram pra praia, eu fiquei em casa. E quando
eles saíram, comecei a chorar! Deveria ter ido! (...)A
depressão, ela diz assim: não vá! Fique aqui! Não vá, fique
aqui! Se você tiver fortalecido, você faz, vai, vai, vai e vai
embora. Se não, você se entrega a ela da forma que eu me
entreguei. Eu queria ter ido. Mas quando? Quando o povo
foi. (Paulo)
Eu procuro estar o mais distante possível pra não falar.
Entendeu? O meu relacionamento com as pessoas muito
fora do que o povo vive hoje, entendeu? Por que? Eu quase
sempre estou ansioso, sempre estou deprimido e eu procuro
ficar o mais distante possível. Se tem uma cadeira vaga aqui
no ônibus aqui atrás eu não vou pra frente porque na frente
tem um monte de gente. Possa eu falar um besteira com o
140
motorista, que eu falei outro dia, que me criou um problema
danado! (Paulo)
Me fechei dentro de mim. Num me abri com minha mulher com
meus filhos. Chegaram a um ponto de me chamar, e eles num
sabiam que eu tava doente, né? Com depressão. (...)Eu num
conversava, chegaram a um ponto de reunir os quatro na mesa
e dizer que... iam sair de casa e me deixar. Porque eu tava
insuportável, eu doente... Nem eu sabia nem eles sabiam.
(Francisco)
Alguns sujeitos colaboradores descrevem atitudes cujo objetivo é
fazer com que o outro sinta pena deles:
Você quer que as pessoas tenham pena de você.(...) Eu
sempre contava que minha vida era triste, por causa disso... Eu
tinha prazer em falar da minha vida pros outros. Que nada
dava certo, que eu era uma derrotada, que não tinha mais
sentido a minha vida... Eu queria contar isso aos quatro ventos,
entendeu? Eu achava que elas iam se aproximar de mim, que
iam me acalentar, que iam me dar força. E na realidade elas se
afastavam. (Norma)
Eu sou... um ser humano...um ser humano que... não sinto
mais nada. Eu sou...Eu sou...insensível! Eu não tenho
sensibilidade. Eu num olho mais às vezes nas pessoas, como é
que elas estão. Eu... O depressivo, ele é egoísta! Ele pensa
nele. Exclusivamente nele! Nele! nele! Que todas as
141
pessoas tenham dele. E não é pras pessoas ter de mim.
Eu to me tratando! Entendeu? (Paulo)
Para Noma, o isolamento parece provir de um sentimento de ser
diferente das demais pessoas:
Você não se sente igual às pessoas como, por exemplo, eu
que trabalho com muita gente...agora que eu melhorei com
meu corpo, mas antes eu me sentia um “ET” no meio deles, eu
num entendia porque que ah... era tão alegre, sorria, contava
coisas boas e eu tinha tristeza pra contar e pra falar.
(Norma)
Merleau-Ponty (1945/2006) considera que “é por meu corpo que
compreendo o outro, assim como é por meu corpo que percebo coisas” (p.
253). O corpo próprio, não sendo um objeto, é sempre mundaneidade cultural
e historicamente constituído. Não como conhecê-lo senão através do
mundo, e nem conhecer o mundo sem que seja por meio do corpo. Na
depressão, a barreira que se estabelece entre sua existência e a do outro por
meio da necessidade de ser cuidado, da culpa e do sentimento de
especialidade o remete a um mundo realmente escuro e triste, mas, ainda, a
um mundo passível de ser acessado por meio do corpo próprio.
142
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Fazer contato com pessoas diagnosticadas com depressão e
permitir que se expressem como corpo e existência foi uma experiência
bastante enriquecedora. Desde o início, tinha a certeza de que não poderia
abrir mão do conhecimento proposto pela ciência tradicional que trata do
corpo objetivo e supervaloriza os sintomas por ser ele o modelo de
conhecimento mais divulgado. Meu objetivo não se constituía em travar uma
batalha com qualquer outra forma de conhecimento, mas reconhecer, no
fenômeno da depressão, os múltiplos contornos que o constituem, segundo a
lente da psicopatologia crítica (Moreira & Sloan, 2002), ou seja, fazer contato
com o fenômeno da depressão, considerando seus aspectos biológico,
psicológico, social, cultural, ideológico etc. A partir das entrevistas
fenomenológicas e da sua análise, sob a lente da fenomenologia de Merleau-
Ponty, pude compreender melhor o fenômeno do corpo deprimido.
Inicialmente, pude constatar que o fenômeno da depressão é de
difícil descrição para os pacientes e que eles a reconhecem a partir de sinais
do seu corpo. A leitura destes sinais revela muito mais do que um complexo de
sintomas, pois reflete a posição existencial de um sujeito no mundo. No corpo
próprio, tais sinais revelam uma existência pesada, marcada pela indisposição
e falta de ânimo para realizar as tarefas cotidianas. No entanto, a discussão de
tais sinais e a compreensão de seus significados existenciais, ou do ser-no-
mundo, são difíceis, uma vez que a nossa cultura tende a reproduzir o modelo
de corpo vinculado ao pensamento científico tradicional, que o reduz ao corpo-
organismo, fortalecendo a concepção dicotômica entre físico e psíquico. Na
143
pessoa que vive a experiência da depressão, a ideia de um corpo dividido
uma mente que comanda e que adoece e um corpo que padece , é muito
clara. O prejuízo desta forma dicotômica de pensamento é a compreensão do
corpo como um objeto, como os demais objetos do mundo, não como um
conjunto de significações vividas. Tal concepção deturpa a ideia de
corporeidade e impede a perspectiva de uma existência integrada, na qual
homem e corpo estão estreitamente entrelaçados e existem no mundo.
O pensamento dicotômico pode, ainda, interferir na forma como os
sujeitos colaboradores concebem as causas da depressão. Observei que
uma tendência a reconhecer a depressão como um fenômeno externo a eles,
descrevendo-o como algo que se apodera deles , seja uma “coisa” que não
conseguem definir, um espírito ruim ou um monstro que se apropria de suas
mentes. Compreendo que tal forma de conceber o fenômeno da depressão faz
com que as pessoas que vivem tal experiência se sintam limitadas quanto ao
poder de exercer suas próprias vidas e passam a travar exaustivas lutas com
algo que elas percebem como um processo externo. Na minha prática clinica,
observo que tal concepção, por parte do cliente, interfere no avanço do
processo psicoterapêutico, uma vez que ele permanece, insistentemente,
ligado à necessidade de combater uma causa externa, perdendo o contato com
sua existência como um todo, na qual eventos externos e internos não se
separariam e, além das dicotomias, as suas experiências singulares e do
mundo seriam consideradas mutuamente constituídas.
A postura e o ritmo corporais de tais sujeitos, também, estão
comprometidos na experiência vivida da depressão. Neste sentido, se
manifesta uma postura marcada pelo isolamento, por se encontrarem diante de
144
um mundo que descrevem como diferente, estranho e incômodo, no qual o
presente não é significativo, que uma exacerbação do passado, e um
sentimento de estarem fora de contexto. Aliados a isto, experimentam uma
noção de tempo que é marcada pela lentidão e pela estagnação do corpo, bem
como pela descrença em relação ao futuro. A tal movimento do deprimido no
mundo alia-se a relação que ele mantém com a morte ou com o suicídio. Tal
relação se torna bastante paradoxal, uma vez que é unânime a ideia, expressa
nas entrevistas, de que o sofrimento causado pela depressão faz com que tais
sujeitos pensem no suicídio como uma solução possível, enquanto o que
desejam, realmente, é eliminar o sofrimento, não morrer concretamente.
O comprometimento da autoestima e do valor pessoal foi tema
recorrente nas entrevistas, revelando uma corporalidade marcada, também,
pela impotência, insegurança, incapacidade, fragilidade e culpa, assim como
uma relação interpessoal empobrecida pela necessidade de deixar evidente,
para o outro, tais limitações.
Os resultados desta pesquisa descrevem o sofrimento que acomete
a pessoa em depressão e a relação do deprimido consigo mesmo, com o outro
e com o mundo, e têm como diferencial, a descrição do corpo vivido na
depressão para sua melhor compreensão. Do ponto de vista da psicopatologia,
tal compreensão é de fundamental importância para uma prática clínica que,
sem perder de vista seu significado biológico, pretenda ir além de uma
compreensão puramente sintomatológica da doença e compreenda o homem e
sua experiência de adoecimento como eminentemente mundanos, não
dicotômicos e na qual homem e mundo se atravessem na descrição do vivido.
No sentido de apreender o alcance de tal compreensão na clínica psicológica,
145
sugiro a realização de futuras pesquisas que descrevam os resultados do
processo psicoterápico de clientes com diagnóstico de depressão, submetidos
à psicoterapiaterapia humanista-fenomenológica.
Finalmente, entrevistar pessoas com diagnóstico de depressão e
fazer contato com a dor que permeia sua corporalidade, me proporcionou -
las em uma perspectiva para além dos rótulos das descrições clássicas dos
manuais de psicopatologia, e passei a me questionar: como seria se
conseguíssemos sempre olhar o mundo e os fenômenos com os quais nos
deparamos como se fosse pela primeira vez? Como se constituiria nossa
existência se o mundo, para nós, fosse sempre uma novidade? Observo tal
comportamento em bebês e em crianças bem pequenas e consigo captar, em
seu modo de viver, a intensa alegria de conhecer, e um brilho presente,
também, no olhar do pesquisador que levanta o véu” e descobre o que antes,
não se mostrava. Como seria se pudéssemos viver sob a égide do constante
êxtase, da perene descoberta do mundo? Seria possível viver assim, se
considerássemos na fidelidade aos fenômenos a intenção primordial da
descoberta do mundo. Foi com tal perspectiva que me lancei nesta pesquisa,
buscando conhecer melhor o fenômeno da depressão no corpo vivido sob a
lente da fenomenologia de Merleau-Ponty (1945/2006) alvo de minhas
inquietações como psicoterapeuta.
O homem tem uma grande capacidade de abertura ao mundo e ao
outro por meio do corpo próprio. Concluo, com esta pesquisa, que investigar o
corpo deprimido, sob a lente da fenomenologia de Merleau-Ponty (1945/2006),
pode contribuir para uma compreensão do fenômeno da depressão como
146
expressão da existência do indivíduo, não apenas como um conjunto de
sintomas, marcado por circunstâncias orgânicas ou psíquicas.
147
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151
ANEXOS
152
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
Senhor (a) Paciente,
Estou desenvolvendo uma pesquisa intitulada “Corpo deprimido: um
estudo sobre corpo vivido e depressão a partir da fenomenologia de Merleau-
Ponty”. A realização desta pesquisa justifica-se pela importância do estudo da
depressão na atualidade e tem como objetivo compreender a depressão a
partir da descrição de como ela se dá no corpo da pessoa que vive esta
experiência. Gostaria de solicitar autorização para a sua participação nesta
pesquisa a qual será realizada através de uma entrevista gravada em áudio.
Esclareço que a sua participação não é obrigatória e que a sua
identidade será mantida em sigilo. Sua colaboração na pesquisa não implica
em custos nem em ganhos financeiros para você, nem, tampouco, prejuízos ou
privilégios para seu tratamento psicológico.
Asseguro que as informações coletadas serão utilizadas apenas para os
objetivos desta pesquisa e que o senhor(a) tem o direito de desistir da sua
participação a qualquer momento.
Em caso de dúvida, entrar em contato com a pesquisadora Maria
Edvania de Araújo Leite, do Mestrado em Psicologia da Universidade de
Fortaleza UNIFOR - telefone 9994.1074 - ou com o Comitê de Ética em
Pesquisa da Universidade de Fortaleza - UNIFOR, situada na Av. Washington
Soares, 1321 Fortaleza, CE 60811-905 telefone : (85) 34773219.
*****************************************************************************
Após ler estas informações e ter minhas vidas esclarecidas pela
pesquisadora, eu ________________________________________________,
residente _______________________________________________________
________________________________________________________, telefone
_______________, concordo em participar desta pesquisa.
Fortaleza-CE, _____/_____/_______.Pesquisadora: _____________________
Colaborador: _________________________________________
153
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