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Universidade Federal do Rio de Janeiro
Programa de Pós-Graduação em História das
Ciências e das Técnicas e Epistemologia-
PPGHCTE
Paulo Sérgio Pinto Mendes
Tese de Doutoramento
A urna eletrônica brasileira: uma
(des)construção sociotécnica
Professor Orientador:
Dr. Ivan da Costa Marques
Programa de Pós-Graduação em História das
Ciências e das Técnicas e Epistemologia-
PPGHCTE
Casimiro de Abreu-RJ, setembro de 2010
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2
Em memória de
Neisa Graça Gomes
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3
Agradecimentos
Agradeço ao Professor Orientador Dr. Ivan da Costa Marques, do Programa
de Pós-Graduação em História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia, da
Universidade Federal do Rio de Janeiro-PPGHCTE/UFRJ, pelo apoio, incentivo e
amizade e pela contribuição para a minha formação acadêmica desde o nosso
primeiro encontro por intermédio do Professor Dr. Carlos Maia, do Departamento
de História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro-UERJ, ao qual sou grato
pelas conversas que tivemos atrás e por este encontro com o professor Ivan.
Agradeço ao Professor Dr. Henrique Cukierman, do Programa de Engenharia de
Sistemas e Computação-PESC/COPPE/UFRJ, pela contribuição para a minha
formação acadêmica e pelas sugestões para a Tese. Agradeço aos professores
do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e das Técnicas e
Epistemologia-PPGHCTE/UFRJ, em particular aos Professores Drs. Carlos
Alberto Filgueiras e Carlos Koehler. Agradeço ao Professores Drs. Luiz Carlos
Soares, do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense-UFF, e
Ricardo Kubrusly, do Instituto de Matemática-COPPE/UFRJ, por suas
contribuições ao Projeto de Tese de Doutoramento ao participarem da Banca do
Exame de Qualificação do mesmo. Agradeço, antecipadamente, aos Professores
Drs. da Banca Examinadora da Tese de Doutoramento: Ivan da Costa Marques,
Henrique Cukierman. Luiz Carlos Soares, Ricardo Kubrusly e Venício Artur de
Lima, da Universidade de Brasília-UnB. Agradeço aos funcionários da secretaria
do PPGHCTE/UFRJ, em particular a Carolina e ao Jeferson. Agradeço a todos os
meus colegas do Programa pelo convívio, em particular ao Jeferson e ao Arnaldo
Lírio, amigos nos momentos difíceis, e a este por me passar as primeiras
informações sobre a urna eletrônica. Agradeço ao povo do Ato-Rede, de
Teresópolis-RJ. Agradeço a Professora Dra. Isabel Cafezeiro, do Instituto de
Computação da Universidade Federal Fluminense-UFF, por ter lido alguns artigos
da Tese. Agradeço ao pessoal do sítio <votoseguro> pelas informações e por
4
responder as minhas indagações. Agradeço aos inúmeros funcionários de
instituições públicas (bibliotecas e acervos). Agradeço a todos que me
concederam entrevistas e às pessoas que nas ruas e em vários locais
responderam as minhas perguntas; aos que me concederam informações e
documentos; aos que me ouviram em Encontros e Conferências e sugeriram
questões, em particular ao Professor Dr. Antonio Arellano Hernández, do Centro
de Estudios de la Universidad Autónoma del Estado de México. Agradeço aos
anônimos para mim, motoristas, pessoas das companhias de aviação,
funcionários de aeroportos, das telecomunicações, de companhias de água e luz,
de restaurantes, lanchonetes, papelarias etc.; aos periféricos de artefatos de
informática; agradeço aos artefatos em geral etc., etc., etc. Em suma, agradeço
aos inúmeros actantes heterogêneos que participaram de relações que permitiram
a construção desta tese.
Agradeço à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro-
FAPERJ pela Bolsa de Estudo que me concedeu durante todo o período do curso,
permitindo-me dedicação exclusiva aos meus estudos.
Paulo Sérgio Pinto Mendes
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e das
Técnicas e Epistemologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro-
PPGHCTE/UFRJ
Correio-eletrônico: [email protected]
Casimiro de Abreu-RJ, setembro de 2010
5
Esclarecimentos:
O que a gente não inventa, não existe.”
(Subtítulo do documentário Programa do
Casé, do diretor Estevão Ciavatta)
Escrevi esta tese sobre a urna eletrônica brasileira à semelhança de
Graciliano Ramos (1892-1953), em Vidas Secas (publicado em 1938). Escreveu
Affonso Romano de Sant'Anna sobre este romance: Estamos sem dúvida, diante
de uma obra singular [...] onde a estória é secundária e onde o próprio arranjo dos
capítulos [quadros ou episódios] do livro obedecem a um critério aleatório.”
1
Assim, imitando Ramos, escrevi um texto desmontável com capítulos/artigos
interligados e autônomos, que poderão ser lidos em qualquer ordem, exceção,
talvez, para o primeiro, sem prejudicar o entendimento do trabalho. Outra coisa, o
texto está impregnado de tudo porque não acredito em linhas divisórias entre
conhecimentos.
Diferente de uma historiografia tradicional, na qual os objetos de estudo são
abordados por uma base teórico-metodológica sob os pressupostos modernistas,
que exigem hipótese(s) e conclusão(ões), eu, dos estudos de ciência-tecnologia-
sociedade(CTS), a priori não parti de hipótese(s) nem desejei atingir
conclusão(ões). De fato, eu segui actantes heterogêneos sociedade afora (que
construíram relações heterogêneas de partes da caixa-preta da urna eletrônica
brasileira) e interferi antes de narrar uma história.
1
IHU on-line Revista do Instituto Humanitas Unisinos, 2010. Disponível em:
http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_destaques_semana&Itemid=24&Itask=deta
lhes&idnot=1282&idedit=7. Acesso em 13 abr. 2010.
6
Resumo
O objeto de estudo desta tese de doutoramento é a urna
eletrônica brasileira. Eu a abordei por meio dos estudos de
ciência-tecnologia-sociedade (CTS) e da teria ator-rede, que
entendem artefatos como constituídos a partir de relações
sociotécnicas de actantes heterogêneos que têm
historicidades. Perpassei o texto com controvérsias entre o
olhar sociotécnico (história-construção) e a historiografia ainda
predominante, que chamei de realista ou tradicional porque
seus aliados acreditam na realidade dada e utilizam
pressupostos da modernidade (inaugurada no Renascimento
e consolidada no Iluminismo europeus). a história-
construção entende conhecimentos como locais,
contingenciais, precários, provisórios e construídos
sociotecnicamente. Escrevi uma história-construção, na qual a
arquitetura da urna eletrônica, seu funcionamento e resultados
não são apenas consequências tecnológicas. Ratifiquei a tese
sobre as possibilidades de fraudes eleitorais, principalmente a
partir daqueles que têm livre acesso a este artefato.
Relacionei a arquitetura da urna eletrônica, em particular, a
inexistência da tecla NULO, a uma construção de uma outra
politização e de uma outra mobilização social, diferente, por
exemplo, da construção por meio das eleições através das
cédulas de papel ou das eleições de bico de pena. Ressaltei a
importância da retórica na construção desta urna eletrônica.
Contrapus o modelo difusionista dos aliados da urna ao
modelo de tradução/translação, que eu defendo. Para os
difusionistas a realidade em si e a verdade em si; para os
traducionistas somente após esfriamentos de controvérsias
haverá naturezas, sociedades, realidades, verdades.
7
Resúmen
El objeto de estudio de esta tesis de doctoramiento es la urna
electrónica brasileña. Yo la abordé por medio de los estudios
de ciencia-tecnologia-sociedad (CTS) y de la teoria actor-red,
que entienden artefactos como constituídos a partir de
relaciones sociotécnicas de actantes heterogéneos que tienen
historicidades. Perpasé el texto con controversias entre la
mirada sociotécnica (historia-construcción) y la historiografia
aún predominante, que llamé de realista o tradicional porque
sus aliados creen en la realidad dada y utilizan presupuestos
de la modernidad (inaugurada en el Renacimiento y
consolidada en la Ilustración europea). Ya la historia-
construcción entiende conocimentos como locales,
contingenciales, precarios, provisionales y construídos
sociotecnicamente. Escribi una historia-construcción, en el
cual la arquitectura de la urna electrónica, su funcionamiento y
resultados no son apenas consecuencias tecnológicas.
Ratifiqué la tesis sobre las posibilidades de fraudes
electorales, principalmente, a partir de aquellos que tienen
libre acceso a este artefacto. Relacioné la arquitectura de la
urna electrónica, en particular, la inexistencia de la tecla
NULO, a una construcción de una otra politización y de una
otra mobilización social, diferente, por ejemplo, de la
construcción por medio de las elecciones a traves de las
cédulas de papel o de las elecciones de bico de pena.
Destaqué la importancia de la retórica en la construcción de
esta urna electrónica. Contrapuse el modelo difusionista de
los aliados de la urna al modelo de traducción/translación, que
defiendo. Para los difusionistas hay la realidad en si misma y
la verdad en si misma; para los traductores, solamente
después de enfriamientos de controversias habrá
naturalezas, sociedades, realidades, verdades.
8
Abstract
The object of this Doctoral thesis research is the Brazilian
Electronic Voting Machine. I have approached it by society
Science Technology Studies (STS), and net-actor theory,
that understands artifacts as done by social-techniques
relations from heterogeneous actants that have historicities. I
have spanned the text with controversies between social-
technical (historyconstruct) vision and historiography still
predominant, that I have called Realistic or Traditional
because their allies believe on the given Reality and utilize
Modern prerequisites (inaugurated on Renaissance and
consolidated on European Enlightenment). Otherwise,
history-construct understands knowledge as local,
contingential, precarious, temporary, and built
socialtechnally. I have written a history-construct, concerning
about electronic voting machine architecture, operating and
outcomes are not merely technological consequences. I
have ratified the thesis about possibilities electoral frauds,
mainly, for those who have free access to this artifact. I have
itemized electronic voting machine architecture, in particular,
null key non-existence, to a construction of politicization and
of another social mobilization, different, for example,
constructing via paper bill elections so-called bico-de-pena
elections, through which the local leaders obtained final lists
of elected candidates conforming to their interests. I
emphasized the rhetoric importance on electronic voting
machine project. I countered the difusionist model of voting
machines allies to translation model, that I defend. For
difusionists exist the reality in itself, and the truth in itself; for
the translatores only after controversies chilling there will be
natures, societies, realities, truths.
9
Índice:
Artigo 1:
... desafinando o coro dos contentes...
página 11
Artigo 2:
Uma história bem-comportada e de sucesso de um coletor eletrônico de voto
gina 23
Artigo 3:
... para que serve a história?
página 39
Artigo 4:
Urna eletrônica brasileira e o funcionamento dos Tribunais Eleitorais
página 61
Artigo 5:
Rotina do processo eleitoral brasileiro em uma seção eleitoral
página 80
Artigo 6:
Fluxos e misturas
página 91
Artigo 7:
Controvérsias sobre o voto nulo
página 103
Artigo 8:
... labordireitório...
página 117
Artigo 9:
Uma construção de um discurso suficientemente respeitável do voto nulo
imbricado na nossa democracia liberal
página 128
Artigo 10:
... urna eletrônica versus urna eletrônica...
página 138
Artigo 11:
A mulher de César e a urna eletrônica brasileira
10
página 149
Artigo 12:
Uma urna eletrônica com leitor biométrico (uma urna biométrica)
página 160
Artigo 13:
Pra não dizer que não falei... e não interferi...
página 172
Bibliografia:
página 187
11
Artigo 1
... desafinando o coro dos contentes...
Onde se verá uma desconstrução da urna eletrônica brasileira estabilizada por
engenheiros, técnicos, juristas e aliados heterogêneos sociedade afora.
Quando eu nasci, um anjo louco muito
louco veio ler a minha mão, não era um
anjo barroco, era um anjo muito louco,
torto com asas de avião. Eis que esse
anjo me disse apertando minha mão com
um sorriso entre dentes: vai bicho
desafinar o coro dos contentes, vai bicho
desafinar o coro dos contentes, let´s play
that.
(MACALÉ, Jards e NETO, Torquato. Let´s
play that)
Bruno Latour, em seu livro Ciência em ação
2
, afirma que quase sempre não
somos convidados a adentrar pela porta principal de caixas-pretas de fatos e
artefatos estabilizados. Resta-nos uma entrada de serviço, uma porta lateral, ou
talvez, devamos assaltá-las através de uma janela deixada aberta por distração:
esta última possibilidade fica por minha conta. Muitos que se beneficiam de
arquiteturas de artefatos apresentam-nas como universais, puras e autômatas,
esquecem e/ou apagam historicidades e buscam estabilizar uma versão do quanto
é perigoso abrir caixas-pretas (ou remexer nas produções muitas vezes
escatológicas dos mecanismos dominantes). muitos que não foram
beneficiados de maneira parcial ou total buscam não fechá-las muito rapidamente
para evitar um esfriamento de suas controvérsias ou, se fechadas, buscam reabri-
las, reesquentando-as.
2
LATOUR, Bruno. Ciência em ação Como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. São
Paulo: Editora UNESP, 2000.
12
Caixa-preta é uma expressão usada em cibernética sempre que uma
máquina ou um conjunto de comandos se revela complexo demais. Em seu lugar,
é desenhada uma caixinha preta, a respeito da qual não é preciso saber nada,
senão o que nela entra e o que dela sai.
3
No interior de caixas-pretas elementos
heterogêneos agem como fossem um só.
Claro, eu vivi e você viveu inúmeras experiências que nos levaram aos
labirintos de caixas-pretas. Lembre, você estava assistindo a decisão do
campeonato brasileiro de futebol e a imagem do seu televisor sumiu, sem que
houvesse interrupção de energia elétrica. Ligou e desligou a TV algumas vezes,
vistoriou a parte traseira do aparelho, deu-lhe leves pancadas, digitou outras
teclas do controle remoto, tirou e colocou a tomada; nada. Ali, naquele momento
de desespero, tomou conhecimento de que estava diante de uma caixa-preta, que
você sabe apenas ligar, receber o programa que escolheu dentre os fornecidos
pelas emissoras, e desligar. Não nos limitemos ao televisor. Lembre do carro que
parou em pleno trânsito, da água do chuveiro que esfriou, do texto no computador
que sumiu, da impressora que não funcionou, da quina de lavar que não deu
sinal de vida; lembro do meu olhar perplexo diante de incompreensíveis valores de
tarifas de telefone, luz, água e serviços bancários; de valores de pedágios, de
taxas de embarque dos aeroportos, de taxas judiciais, etc.
No dia 04 de outubro de 1996, jornais da grande impressa estamparam nas
suas páginas algo assim: FRAUDES NUNCA MAIS Vota Brasil: o povo
brasileiro aprovou a urna eletrônica. As capitais e as cidades com mais de 200
mil eleitores aprovaram a urna eletrônica. Trinta e três milhões de eleitores (33%
do total) votaram na mais absoluta ordem, sem longas filas e com índices muito
baixos de abstenção e problemas técnicos. Antes, os eleitores perdiam muito
tempo nas filas para votar e esperavam uma semana ou mais para saber os
resultados das eleições. A partir de agora, conheceremos os resultados em
3
LATOUR (2000), p. 14.
13
algumas horas após o fechamento das seções. O presidente do TSE, ministro
Marco Aurélio Mello, em rápida entrevista concedida no seu gabinete, em Brasília,
disse: este é um momento histórico, pois o povo brasileiro ao votar, ordeiramente,
deu um exemplo de cidadania ao mundo. A urna eletrônica esta definitivamente
aprovada e a sua utilização será estendida a todo o país nas próximas eleições.”
No 1º. turno das eleições municipais em 03 de outubro de 1996, 57 cidades
com mais de 200 mil eleitores, incluído as capitais dos estados e o distrito federal,
utilizaram um artefato eletrônico informatizado para colher e totalizar os seus
votos, fato que se repetiu no dia 15 de novembro, nas cidades que necessitaram
realizar um 2º. turno.
Discursos ufanistas feitos por representantes de diversos grupos sociais
predominaram nos meios de comunicação e nos bate-papos. Conforme a letra do
samba de Assis Valente, chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar o seu
valor
4
e do mundo se curvar ao Brasil, agora, reconhecido como igual no concerto
das nações. Não somos apenas o país do futebol, do carnaval e da mulata.
Também somos o país da urna eletrônica! As críticas, segundo os ufanistas,
vêm daqueles que sofrem de um incurável complexo de vira-lata”, expressão
cunhada pelo dramaturgo e jornalista brasileiro Nelson Rodrigues
5
, que se referira
à derrota da seleção brasileira de futebol para a uruguaia em 1950, em pleno
estádio do Maracanã, na final da Copa do Mundo. Segundo Rodrigues, o
brasileiro é um narciso às avessas”.
O ministro Marco Aurélio Mendes de Faria Mello como presidente do
Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e condutor das eleições municipais de 1996
enfatizou, antes mesmo do 2º. turno, o caráter visionário e patriótico daqueles que
se dedicaram em tornar realidade a votação eletrônica e o reconhecimento
internacional da consolidação da democracia no Brasil: “„E tudo em nome de um
4
ASSIS VALENTE (1911-1958). Brasil Pandeiro.
5
RODRIGUES, Nelson (1912-1980), cronista, escritor e teatrólogo.
14
sonho: a lisura do processo de eleição dos líderes e representantes do povo, com
inegável e efetiva participação popular, em demonstração exemplar, ao mundo, de
cidadania exercida com entusiasmo e critério. [...] Não foi mesmo à-toa que os
31 observadores estrangeiros manifestaram-se, entusiasticamente, pela
divulgação e exportação desse programa (grifo meu), fundado é
importantíssimo ressaltar em tecnologia genuinamente nacional. [...] Não fosse
por mais nada, a aprovação dos eleitores e candidatos, a satisfação que ostensiva
e unanimemente demonstraram seriam recompensas das mais valiosas. Algo
assim como alcançar estrelas...‟”
6
Em 2005, o presidente e o secretário de informática do TSE, ministro Carlos
Mário da Silva Velloso e Paulo César Bhering Camarão, respectivamente, foram
convidados pela Fundação The Carter Center, Atlanta-EUA, para falar sobre a
urna eletrônica em um seminário internacional com representantes da ONU, OEA
e da União Européia. Paulo César Camarão afirmou ao Programa Vota Brasil,
produzido pelo TSE que, o TSE não [tem] muita coisa que aprender, mas pelo
menos é uma honra pro país levar a nossa tecnologia até o Carter Center, um
organismo o importante no mundo. Pode ser aberto convênio, oportunidades
com países que até agora não utilizaram a urna eletrônica ou pra utilizar a nossa
urna, ou até mesmo pra aprender um pouco da nossa tecnologia e desenvolver
um sistema próprio nesses países.
7
Segundo Daniela Ramalho, apresentadora do mesmo programa, nos
últimos anos, a fundação criada pelo ex-presidente Jimi Carter, vem fiscalizando
os processos eleitorais e verificou um aumento do uso de urnas eletrônicas em
vários pontos do mundo, mas em alguns deles a chegada desta tecnologia vem
acompanhada de críticas sobre a possibilidade de fraudes”.
8
6
CAMARÃO, Paulo César Bhering. O voto informatizado: modernização da Justiça Eleitoral
Brasileira. São Paulo: Empresa das Artes, 1997, p. 201.
7
BRASIL, Museu do Tribunal Superior Eleitoral, rua 1º. de Março Centro, Rio de Janeiro-RJ-
Brasil. DVD sob o código PMG (31:50), s/d.
8
Ibid.. DVD sob o código PMG (31:50), s/d.
15
Na Holanda, por falta de segurança, aboliram o voto informatizado
desenvolvido por lá. Em 16 de maio de 2008, o Governo holandês decidiu que
nas eleições [...] serão usadas apenas cédulas de papel e lápis vermelho. Uma
proposta para desenvolver uma nova geração de máquinas de votar foi rejeitada.
[...] Os holandeses juntaram-se ao crescente grupo de países e aos EUA que
querem uma pia de papel de cada voto. A Califórnia, quase totalmente, rejeitou
as máquinas de votar. No Reino Unido, o Conselho Eleitoral quer interromper
todos os projetos pilotos para o voto eletrônico. A Irlanda rejeitou as máquinas de
votar holandesas por serem muito inseguras. Quebec e Itália decidiram não utilizar
as máquinas de votar. Em resposta às nossas investigações sobre as máquinas
de votar da Nedap
9
, a Alemanha questiona as suas também.
10
A Corte
Constitucional alemã vetou o uso de máquinas de votar nas eleições alemãs
deste ano citando riscos ao processo democrático. [...] Para a Corte o sistema
contradiz o princípio de transparência necessário para uma eleição pública e
proibiu o uso dos equipamentos nas eleições gerais deste ano [,2009, que] serão
realizadas usando o tradicional método de lápis e papel. [...] Para a Corte máxima
alemã, um ‘evento público’ como uma eleição implica que qualquer cidadão
possa dispor de meios para averiguar a contagem de votos, bem como a
regularidade no decorrer do pleito, sem possuir, para isso, conhecimentos
especiais.
11
(grifo meu.) O New York Times trouxe em seu editorial do dia 22 de
junho de 2009: Voto eletrônico não merece confiança [...] Agora, o republicano
9
A NEDAP, com sede em Enschete, Holanda, concentra-se em desenvolvimento e fornecimento
de soluções em matéria de segurança, unidades de controle eletrônico, automação, gerenciamento
e sistemas de informação: No site da empresa, no link Sistemas de Eleições NEDAP, há a seguinte
pergunta: É possível manipulação com a máquina de voto Nedap? Resposta da NEDAP: Tudo
pode ser manipulado. Disponível em: http://www.nedap.com/en/news.php?id=32 Acesso em: 11
mai. 2010.
10
Holanda proíbe urnas eletrônicas. Disponível em: <www.votoseguro.org>. Acesso em: 05 nov.
2009. No original: On May 16, 2008 the Dutch government decided that elections in the
Netherlands will be held using paper ballots and red pencil only. A proposal to develop a new
generation of voting computers was rejected. [...] The Netherlands has joined the growing group of
countries and US states that require a paper copy of each voto. California has basically rejected
voting coomputers altogether. The UK election concil wants to stop all electronic voting pilot
projects. Ireland has rejected the Dutch voting computers for being too insecure. Quebec and Italy
decided to forego the use of voting computers. In response to our research into the Nedap voting
computers, Germany has begun to question their use as well.
11
“Tribunal alemão considera urnas eletrônicas inconstitucionais [04.03.2009]. Disponível em:
<http://www.votoseguro.org/>. Acesso em: 18 fev. 2010.
16
Rush Holt apresentou um ótimo projeto de lei que proíbe o voto eletrônico sem
extrato em papel em todas as eleições federais. O Congresso deve aprová-lo
enquanto ainda há tempo para preparar o pleito de 2010. No voto eletrônico sem
recibo de papel, [...] [n]ão como saber se houve algum problema ou o roubo
intencional (através de softwares maliciosos ou do acesso ilegal ao computador)
que possa ter interferido no resultado. Se a eleição for disputada, não como
realizar a recontagem dos votos.
12
Na América Latina tivemos algumas experiências infrutíferas, não
ocorrendo a tão desejada exportação das urnas eletrônicas brasileiras nem a
euforia pelo voto informatizado. No Paraguai, em setembro de 2001, nas eleições
municipais, 1% do eleitorado (34.681 eleitores) testou a urna eletrônica. nas
eleições paraguaias para a presidência da república, em 2008, os partidos de
oposição conseguiram na Justiça Eleitoral que estas fossem realizadas através de
cédulas de papel e com urnas tradicionais.
13
Em 2003, o TSE assinou um
convênio com o governo argentino para a utilização de 700 urnas eletrônicas
brasileiras para que 300 mil eleitores pudessem votar em oito municípios da
província de Buenos Aires aos cargos de prefeitos, vereadores e deputados.
Entretanto, o Congresso Nacional argentino não permitiu alteração na legislação
eleitoral. A população apenas testou a urna.
14
No México, ainda em 2003, foram
utilizadas 120 urnas e 23 mil eleitores testaram-nas. Em média cada eleitor gastou
1 minuto para votar e a apuração foi encerrada um pouco mais de uma hora do
seu início. Entretanto, os conselheiros eleitorais mexicanos questionaram a
tecnologia utilizada e o custo da implementação do processo, levando o Conselho
Geral do Instituto Eleitoral do Distrito Federal do México a suspender o projeto.
15
Em 2006, o Partido de la Liberación Dominicana, da República Dominicana,
recebeu equipamentos, suporte e 500 urnas eletrônicas do TSE para a escolha de
12
Disponível em: <http://www.votoseguro.org/>. Acesso em: 22 set. 2009.
13
Paraguai rejeita urnas brasileiras. Urnas-e brasileiras foram proibidas no Paraguai. Disponível
em www.votoseguro.org.. Acesso em: 05 nov. 2009.
14
Voto eletrônico. Edição Comemorativa: 10 anos de Urna Eletrônica, 20 anos de
Recadastramento Eleitoral: TRE-RS/Centro de Memória da Justiça Eleitoral, 2006, p. 70.
15
Ibid.
17
seus candidatos. No entanto, após uma avaliação, representantes brasileiros e
dominicanos constataram que demandaria mais tempo de treinamento de
mesários e eleitores.
16
Pedro do Couto, jornalista com larga experiência nas eleições do atual
estado do Rio de Janeiro disse: depois de anos e anos de contagem manual dos
votos [...], a Justiça Eleitoral, a partir das eleições de 96 adotou finalmente um
sistema que anula as falsificações.
17
Diferentemente, pergunta o jornalista José
Silveira: „“E agora? Como se fará uma recontagem se essa eleição eletrônica não
deixa rastros?
18
Outro jornalista, Rogério Coelho Neto: “enfim, se adeus
definitivo às fraudes eleitorais.
19
Fritz Utzeri, diretor de redação do Jornal do
Brasil, em 2000: É preciso ser totalmente confiante na autoridade para votar
eletronicamente. E eu não sou. [...] a urna eletrônica deveria emitir um recibo [...]
que seria [...] depositado pelo próprio eleitor numa urna comum [...] para
recontagem e confirmação do resultado.”
20
Eu ouvi no convívio social, nas ruas; ouvi de juízes eleitorais, ouvi de
especialistas da área de informática várias afirmações que contribuíram para a
estabilização da votação eletrônica; ouvi discursos de caráter cético, de descrença
nas instituições públicas; ouvi discursos que se contrapunham aos discursos
ufanistas: ...nas eleições de 2002, prevemos que apenas 1% das 406 mil urnas
eletrônicas terá problemas técnicos; os problemas ocorridos na Flórida (EUA),
durante a apuração dos votos de Bush e Al Gore, nas eleições de 2000, não
ocorreriam no Brasil devido à velocidade da proclamação dos resultados; é
exatamente pela velocidade da proclamação dos resultados que não é possível
verificar a correção das eleições; as urnas eletrônicas são 100% seguras; o
sistema é intrinsecamente inseguro, pois depende exclusivamente da palavra
16
Voto eletrônico (2006), p. 75.
17
PORTO, Continentino. Quem é quem nas eleições de 1996. Rio de Janeiro: Renato Figueiredo
(editor), 1999, p. 12.
18
UTZERI, Fritz. e a ´mudernidade´. Rio de Janeiro: [2000]. Disponível em:
<http://www.3.bsb.netium.com.br/pdt/bzelecfraud.htm>. Acesso em: 13 set. 2009.
19
PORTO (1999), p.15.
20
UTZERI, Fritz. (2000).
18
daqueles que o controlam; como pode um país tão avançado como os EUA ainda
contar os votos manualmente; o prazo exíguo concedido pelo TSE torna
impossível aos partidos fazer a conferência da totalização dos votos; mostrar a
foto, o nome e o número do candidato na tela da urna eletrônica não garante que
o voto foi totalizado para o candidato escolhido pelo eleitor; o TSE optou por um
sistema fechado porque está a segurança do sistema; as urnas são totalmente
invioláveis; o TSE deveria ter adotado um sistema aberto que facilitaria a
fiscalização externa; a urna eletrônica adotada pelo TSE é reconhecida no mundo
inteiro como equipamento eficiente e seguro; depois de cumprir o seu papel uma
fraude bem feita não fica na memória da urna eletrônica; a totalização a cada
votação tornou o voto virtual e impossibilitou a verificação; a urna eletrônica tornou
mais rápido o processo de votação e impediu as tentativas de fraude na votação e
na contagem dos votos...
Sobre o fato do TSE não fornecer tempo hábil para que os partidos
analisem os softwares utilizados nas urnas eletrônicas, em parte preparados por
integrantes do Cepesc, órgão especializado em criptografia - da Agência
Brasileira de Inteligência-ABIN, que contribui com o TSE desde os tempos do
Serviço Nacional de Informação-SNI, Roberto Romano, professor titular de ética e
filosofia da Unicamp assim se pronunciou na edição da Folha de São Paulo do dia
11 de junho de 2002: Pessoalmente, tenho receios sobre o que pode ocorrer.
pouco tempo, a Folha publicou documentos da Abin (Agência Brasileira de
Inteligência) em que os seus agentes confessam que podem arranhar direitos da
cidadania. A mesma agência tem exercido tarefas não compatíveis com a
intimidade e os direitos constitucionais dos indivíduos. Por enquanto, a
integralidade de seus quadros não goza da confiança irrestrita do mundo político,
tanto entre eleitores quanto entre lideranças.
21
21
ROMANO, Roberto. “Urnas eletrônicas, Abin e Unicamp” Tendências/Debates, Folha de São
Paulo. Disponível em:
<http://www.jornalexpress.com.br/noticias/detalhes.php?id_jornal=4761&id_noticia=379>. Acesso
em: 21 abr. 2008.
19
Paulo César Camarão, secretário de Informática do TSE, ao descartar a
possibilidade de invasão do sistema eletrônico por hackers, provocou a seguinte
resposta de Roger Chadel, analista de sistemas: o que não está à prova de
hacker, principalmente de hacker interno do TSE, são as próprias
urnas.
22
(grifo meu.) Amílcar Brunazo Filho, especialista em segurança de dados,
formado pela Universidade de São Paulo (USP), conta que se surpreendeu ao ver
que o mesário digitava o número de seu título no microterminal, ato que poderia
identificar o autor do voto. Questionou ao mesário sobre esta possibilidade; este
lhe garantiu que isso não era possível. Eu chamo a atenção que a esmagadora
maioria daqueles que são convocados para trabalhar nas seções eleitorais não
têm conhecimentos de informática.
José Carlos Martinez, deputado federal e presidente nacional do PTB, em
2002, no Seminário Voto Eletrônico, promovido pelo Partido Democrático
Trabalhista (PDT) e realizado no Centro Cultural da Câmara dos Deputados, em
Brasília, chamou a atenção sobre questões importantes não apenas para a
totalização dos votos, mas, também, para um outro olhar referente à idéia de
ciência e tecnologia: Vivemos no Brasil um momento de ânsia globalizante e
tecnológica. De repente tudo precisa ser moderno, rápido e globalizado. [...] Tenho
a impressão de que nós no Brasil poderíamos mudar nossos conceitos. O mais
importante não é ser avançado tecnologicamente, mas sim ser feliz. [...] Quanto ao
aspecto do tempo da apuração, poderíamos argumentar o seguinte: em todo o
Brasil a contagem dos votos levaria dois dias. E daí? [...] Por que nós temos de
saber da manhã para a tarde? O importante é termos certeza de que aquele que
foi votado será o escolhido! Isso é o fundamental!
23
Diante da exposição de tamanhas contradições e pressões, o TSE buscou
respaldo em uma instituição de nome e respeito na opinião pública. Em 30 de
22
CHADEL, Roger. TSE garante sistema de votação à prova de ´hackers´. [2002]. Disponível em:
www.camara.gov.br. Acesso em: 02 nov. 2009.
23
JAKOBSKIND, Mário Augusto & MANESCHY (org.), Osvaldo. Burla Eletrônica. Rio de Janeiro:
Fundação Alberto Pasqualini-PDT (edição), 2002, p. 60, 61 e 62.
20
novembro de 2001 foi assinado um contrato de prestação de serviços técnicos
especializados entre o TSE e a Fundação de Desenvolvimento da UNICAMP
FUNCAMP. Em maio de 2002, esta instituição entregou ao TSE um documento
intitulado Avaliação do Sistema Informatizado de Eleições (Urna Eletrônica).
Na noite do dia 29 de maio de 2002, as grandes redes de televisão abriram
um espaço de alguns segundos, no qual um triunfante ministro Nelson Jobim,
presidente do TSE, apresenta o relatório da Unicamp sobre a urna eletrônica ao
presidente da Câmara, Aécio Neves e ao presidente do Senado, Rames Tebet, e
afirma que aquela instituição comprovou que o sistema eletrônico de votação
implantado no Brasil a partir de 1996 é um sistema robusto, seguro e confiável,
atendendo a todos os requisitos do processo eleitoral brasileiro.
24
.
Provavelmente, ao fim desses segundos, os casais-âncora abriram um sorriso e,
no melhor estilo da notícia-mercadoria, passaram às reportagens com os nossos
craques de futebol e a próxima Copa do Mundo, que se realizaria na Coréia do Sul
e Japão, na qual o Brasil viria a conquistar o título pela 5ª. vez.
Roberto Romano, que na época presidia a Comissão de Perícia, pediu
uma nota advertindo que a comissão por mim dirigida nada tinha a ver com a
peritagem das urnas
25
, que a Unicamp realizou a sua perícia com a competência
de sempre. E fez recomendações graves para o uso de códigos e chaves
protetoras do sigilo eleitoral. Honrando o rigor ético e científico, os nossos técnicos
perceberam consequências que envolvem problemas axiológicos (grifo meu) na
condução do caso. E fizeram recomendações cautelares, não acatadas pela
Justiça Eleitoral. Esse ponto evidencia um perigo para a Unicamp: seu laudo é
utilizado como garantia de fiabilidade das urnas eletrônicas, mas suas
24
JAKOBSKIND, Mário Augusto & MANESCHY, Osvaldo. (2002), p. 09 e 131.
25
O professor Roberto Romano, na época, foi consultado pelo reitor da Unicamp, Dr. Hermano
Tavares, de maneira informal. O prof. Romano alertou ao reitor dos riscos que a instituição corria.
Disponível em:
<http://www.jornalexpress.com.br/noticias/detalhes.php?id_jornal=4761&id_noticia=379>. Acesso
em: 21 abr. 2008.
21
recomendações sobre a segurança na manipulação das mesmas são
ignoradas.
26
O documento resultante do contrato firmado entre o TSE e a FUNCAMP,
Avaliação do Sistema Informatizado de Eleições (Urna Eletrônica), traz no início
do item 5, “Recomendações”, o seguinte texto, não dado à luz dos refletores pelo
presidente do TSE: Como resultado da avaliação realizada, é apresentado nesta
seção um conjunto de recomendações cujo objetivo é o aumento da segurança e
da confiabilidade do Sistema Informatizado de Eleições, em especial de seu
componente mais sensível que é a urna eletrônica. Deve-se ressaltar que a
necessidade de preservação do sigilo do voto torna o processo de segurança da
urna-eletrônica mais difícil e complexo quando comparado a outros sistemas de
informação.
27
No mesmo documento, no penúltimo parágrafo das Conclusões, eu
destaco: A confiabilidade do processo eleitoral depende crucialmente do
controle sobre todas as etapas de sua condução, que deve ser exercido pela
sociedade por meios dos partidos políticos, dos fiscais, dos mesários, dos
juízes eleitorais e dos próprios eleitores. (grifo meu) Algumas das
recomendações acima só terão seus objetivos atendidos se houver a efetiva
fiscalização e acompanhamento por representantes aptos a fazê-los.
28
Com a devida licença poética, aqui estão os ingredientes ufanísticos de É,
o meu Brasil brasileiro, terra de samba e pandeiro
29
; eu te amo meu Brasil, eu te
amo
30
Por que eu me ufano de ser brasileiro?
31
. Estão os ingredientes
26
Disponível em:
<http://www.jornalexpress.com.br/noticias/detalhes.php?id_jornal=4761&id_noticia=379>. Acesso
em: 21 abr. 2008.
27
Avaliação do Sistema Informatizado de Eleições (Urna Eletrônica). Campinas-São Paulo: maio
de 2002, p. 37.
28
Ibid., p. 47.
29
BARROSO, Ari.(1903-1964), mineiro de Ubá. Aquarela do Brasil.
30
Dom & Ravel. Eu te amo, meu Brasil.
31
Afonso Celso de Assis Figueiredo Júnior (1860-1938), mineiro de Ouro Preto, foi professor,
poeta, historiador e político e um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras. Afonso Celso
22
tropicalistas-antropofágicos de “vai bicho, desafinar o coro dos contentes”; os
ingredientes que caracterizam o desencanto com a sociedade de consumo: Mas
que sujeito chato sou eu, que não acha nada engraçado, macaco, praia, carro,
jornal, tobogã [,urna eletrônica], eu acho tudo isso um saco...
32
.
Apesar de discursos ufanistas da modernidade sobre a ciência e a
tecnologia, estas não nos trouxeram a certeza da felicidade nem nos levaram à
ante-sala do paraíso, como nos prometeram seus porta-vozes. As tragédias do
Titanic e de Hiroshima e Nagasaki, e a cada queda de avião ou de uma edificação,
naufrágios, tragédias naturais, crises econômicas, quebras de instituições ajudam-
nos a por os pés no chão e somos tomados, ou talvez alguns poucos, pela
consciência de que artefatos têm pés de barro. Artefatos não são bons, maus ou
neutros. Artefatos são híbridos sociotécnicos resultantes de actantes e fluxos
relacionais heterogêneos que se consolidam como um ponto () de passagem
obrigatório
33
de caráter local, contingencial, precário, provisório; que é o caso da
urna eletrônica brasileira.
Caro leitor, tirei você da zona de conforto? Desafinei o coro dos contentes?
Ainda acredita piamente na inviolabilidade da urna eletrônica brasileira? Coloquei
uma pulga atrás da tua orelha? E agora, José? A festa acabou, [...] Com a chave
na mão quer abrir a porta, não existe porta; [...] José, e agora?.
34
E agora, caro
leitor, abandonaria toda a esperança e todo o saber sobre o saber?
35
escreveu o livro Por que me ufano em ser brasileiro para celebrar o quarto centenário da
descoberta do Brasil, publicado em 1900, obra que provocou críticas e elogios. Nesta obra Afonso
Celso tece elogios rasgados a tudo que constitui o Brasil, sua origem, seu povo, sua natureza,
seus heróis, seu território, suas riquezas, sua cultura.
32
SEIXAS, Raul. (1945-1989) Ouro de tolo.
33
Qualquer fato ou artefato passa a existir quando fluxos heterogêneos constituem um (um
ponto). Este ponto (fato ou artefato) se tornará um ponto de passagem obrigatório se conseguir
agrupar elementos suficientes para consolidá-lo e que, caso venha a se desagregar ou se
fragilizar, ameace a existência daqueles elementos que o constituíram. Os pontos de passagem
obrigatórios nos fazem colocar de lado a idéia de que alguma coisa exista por si (se faça por
dentro) e depois divulgada para fora.
34
ANDRADE, Carlos Drummond de. (1902-1987) José.
35
LATOUR (2000). Na entrada do inferno de Dante esta escrito: DEIXAI A ESPERANÇA, Ó S
QUE ENTRAIS. No ponto de partida desta viagem deveria estar escrito: DEIXAI O SABER SOBRE
O SABER, Ó VÓS QUE ENTRAIS., p. 20.
23
Artigo 2
Uma história bem-comportada e de sucesso
de um coletor eletrônico de voto.
Onde se verá um exercício de alteridade em uma história da urna eletrônica
brasileira de caráter difusionista, conforme historiadores realistas.
... pomposo espetáculo, muito
anunciado no mundo científico... Era uma
sessão extraordinária e solene da
Sociedade Geral [...] a qual chamava a
postos não todos os seus membros
efetivos, honorários, correspondentes,
como muitos convidados de ocasião, a fim
de acolher e levar ao capitólio da glória
um dos seus mais distintos filhos... [...]
Revestira-se de mil galas a ciência. Todos
os sócios de casaca preta, gravata e luvas
brancas; alguns com discursos nos
bolsos, enchiam a sala das sessões muito
antes da hora marcada; a orquestra
executava a sonata nº. 26 de Ludwing van
Beethoven, e senhoras ostentavam
toilettes ricas e de aprimorado gosto.
(TAUNAY, Visconde de. Inocência. São
Paulo: Ciranda Cultural Editora e
Distribuidora Ltda., 2007, p. 153.
Acima de tudo, a [ciência] deve devotar-
se à verdade. Deve realizar com
entusiasmo os mais difíceis trabalhos para
defendê-la e não deve considerar que
nenhum sacrifício é demasiado para
preservá-la.Segundo a revista americana
Science, em uma edição de 1883.
(HOFFMAN, Paul. Asa da loucura A
extraordinária vida de Santos-Dumont. Rio
de Janeiro: Objetiva, 2010, p. 82.)
O filósofo Leandro Konder, no seu artigo O curriculum mortis e a
reabilitação da autocrítica”, propôs que ao invés de termos nas mãos um
24
curriculum vitae, deveríamos carregar um curriculum mortis. Para Konder, a
trajetória ascensional de cada um [entidade] depende dessa peça de literatura
[curriculum vitae] que lembra as antigas epopéias, porque nelas o protagonista
o herói enfrenta as dificuldades para poder acumular vitórias. Os obstáculos
servem apenas para realçar seu valor. O passado é reconstituído a partir de uma
ótica descaradamente triunfalista. [Entretanto,] [v]ivemos uma vida precária e
finita, nossas forças são limitadas, o medo e a insegurança nos frequentam; e
nada disso aparece no curriculum vitae. [...] A verdadeira autocrítica exige uma
espécie de complementação negativa para o curriculum vitae. [...]: Talvez
possamos chamar essa reconstituição dolorosa e necessária de curriculum
mortis.
36
À la modelo difusionista
37
, escrevi uma história bem-comportada e de
sucesso dos primeiros anos da urna eletrônica brasileira. Antecipo-me a dizer,
caro leitor, que ouvirá algo muito próximo a um cantochão.
Nos idos de 1989, Carlos Prudêncio, juiz da seção eleitoral de Santa
Catarina, implantou em Brusque-SC, na 90ª seção, o primeiro terminal de votação
por computador, no qual autoridades municipais e representantes de partidos
escolheram seus candidatos em um terminal de computador AT-386
38
Em 1992,
também em Brusque, na 145ª seção, foram utilizadas máquinas de leitura ótica:
36
KONDER, Leandro. “O curriculum mortis e a reabilitação da autocrítica. Disponível em:
www.socialismo.org.br/portal/filosofia/155-artigo/256-o-curriculum-mortis-e-a-reabilitacao-da-
autocritica.>. [29.02.2008]. Acesso em: 08 dez. 2009.
37
Uma narrativa de caráter difusionista entende que o estágio atual de um artefato é o resultado de
uma trajetória evolutiva internalista, pura e dotada de uma inércia sob as mãos únicas de
especialistas (homens geniais), que ajudam o artefato vir à luz, uma vez que este existe por si, em
perfeita relação com as ditas leis da natureza. Se, porventura, há discordâncias sobre a arquitetura
e utilização atuais do artefato, estas são creditadas à passividade e ignorância de parte da
sociedade, que, no entanto, acabará sendo neutralizada e o artefato se imporá, inevitavelmente.
38
O AT386 foi lançado em outubro de 1985 e trouxe vários recursos novos. Para começar, o 386
trabalha tanto interna quanto externamente com palavras de 32 bits e é capaz de acessar a
memória usando um de 32 bits, permitindo uma transferência de dados duas vezes maior. Como o
386 pode trabalhar com palavras binárias de 32 bits, é possível acessar até 4 Gb de memória (2
elevado à 32º potência), mesmo sem usar a segmentação de endereços, como no 8088 e no 286.
Disponível em: <http://bloglog20.blogspot.com/2009/07/plas-mae-pc-at-206-e-386.html>. Acesso
em: 12 fev. 2010.
25
cada eleitor preenchia uma cédula que passava por um leitor ótico, depois a
colocava numa urna convencional; ao final do pleito os dados registrados pelas
máquinas eletrônicas foram levados a um computador central via linha telefônica,
e as cédulas de papel ficaram armazenadas na urna convencional para eventual
checagem. Este método foi utilizado novamente em Brusque, no plebiscito sobre a
forma e sistema de governo, em 1993; na consulta da emancipação do distrito de
Cocal do Sul-SC, em 1991; em Florianópolis, no turno das eleições para o
governo do Estado de Santa Catarina, em 1994.
39
Computador AT-386.
40
A eleição totalmente informatizada ocorreu em 1995, em Xaxim-SC, para
prefeito, quando 14.559 eleitores votaram em 25 seções informatizadas
41
. Nesta
eleição foi possível a visualização da fotografia dos candidatos. Em 1995, um
novo teste, desta vez em Matipó-MG, para a escolha do prefeito.
42
No final deste
mesmo ano, o Rio Grande do Sul esteve envolvido com um movimento de
emancipação de várias localidades. Quatro destas localidades (Colônia de São
Pedro, Monte Alegre, Boa Saúde e Parque Índio Jary) utilizaram um sistema de
votação eletrônica com microcomputadores.
43
O último teste ocorreu em 18 de
agosto de 1996, Caxias do Sul-RS realizou um simulado em que 5.310 pessoas
39
Voto eletrônico (2006), p. 40.
40
Disponível em: http://2.bp.blogspot.com/_pqB4Jg0tCf0/S-
1VQGRS6zI/AAAAAAAADCo/Kv1Os9v87IY/s200/pcat+386.png. Acesso em: 27 ago 2010.
41
Voto eletrônico (2006), p. 41.
42
Ibid., p. 42.
43
Ibid., p. 43.
26
testaram uma urna eletrônica, elegendo, ficticiamente, Elis Regina.
44
Assim, se
pronunciou o presidente do TRE-RS, Tupinambá Castro do Nascimento, após a
experiência de Caxias do Sul: “„Esta data, 18 de agosto, marca o fim da
corrupção eleitoral.‟”
45
.
Em 1994, o ministro Sepúlveda Pertence, presidente do Tribunal Superior
Eleitoral (TSE), reuniu-se com profissionais do Centro de Tecnologia Aeronáutica
(CTA) e do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) para fixar as bases
técnicas para as eleições informatizadas em grande escala no Brasil.
Em 6 de dezembro de 1994, no discurso de posse da presidência do TSE, o
ministro Carlos Velloso afirmou que a informatização do voto seria a primeira meta
que tentaria viabilizar para as eleições municipais de 1996. Velloso convencera-
se de que as fraudes somente seriam banidas do pleito quando o voto fosse
informatizado, eliminando, assim, as cédulas, as urnas tradicionais e os mapas de
urnas. Em depoimento posterior à implementação da urna eletrônica, Paulo
Mattoso, ex-diretor geral do TSE, dimensionou a votação por cédulas de papel e a
votação eletrônica: Guardada as proporções, é a mesma coisa que comparar
uma viagem de caravelas até a Europa com uma viagem num supersônico
até o mesmo destino.
46
(grifo meu)
No 2º. semestre de 1995, o TSE elaborou um Programa de Modernização
da Justiça Eleitoral, no qual estava incluído o voto eletrônico. Em outubro o
presidente do TSE, ministro Carlos Velloso, apresentou-o ao Banco
Interamericano de Desenvolvimento-BID, em Washington. Posteriormente, enviou
o Programa à Secretaria de Assuntos Internacionais do Ministério do
Planejamento e Orçamento-SEAIN/MPO. Conforme fax do ministro Andréa Sandro
Calabi ao ministro Carlos Velloso, em 7 de março de 1996, na 40ª Sessão
44
Voto eletrônico (2006), p. 47.
45
TSE garante a votação eletrônica. Correio do Povo, Porto Alegre, ago. 1996, p. 12.
46
BRASIL. Museu do Tribunal Superior Eleitoral, rua 1º. de Março Centro, Rio de Janeiro-RJ-
Brasil. DVD sob o código PMG 6(24:18).
27
Ordinária da COFIEX-Comissão de Financiamentos Externos foi aprovada, „“a
preparação do Programa [de Modernização da Justiça Eleitoral/União] identificado
como passível de financiamento externo, cujo custo total foi estimado em até
US$546,4 milhões a serem financiados com recursos do BID [Banco
Interamericano de Desenvolvimento] em montante equivalente a até US$273,5
milhões, e de contrapartida nacional, a cargo do Tesouro Nacional, em valor
equivalente a até US$272, 9 milhões.
47
A consolidação da informatização do voto passou pela sensibilização das
direções dos TREs, dos poderes executivos, legislativos e judiciários e da
sociedade brasileira. O TSE destacou como pontos fundamentais: a colocação da
tecnologia a serviço do cidadão, a automatização do voto e a sua imediata
apuração após o pleito, a erradicação das fraudes e a aprovação da sociedade
brasileira. Para desenvolver tais princípios instituiu uma Comissão de
Informatização das Eleições Municipais de 1996
48
, composta de especialistas
em direito eleitoral e informática, tendo como presidente o ministro Ilmar Galvão e
como relator, Paulo César Bhering Camarão, à época secretário de informática do
TSE. Esta Comissão atuou de abril a agosto de 1995 e produziu um Termo de
Referência e uma Proposta de Anteprojeto de Lei encaminhada ao Congresso
Nacional.
Este Termo de Referência, de 07 de abril de 1995, reafirmou os princípios
estabelecidos pelo TSE e propôs mudanças na legislação eleitoral para adequá-la
ao futuro Sistema de Informatização, que por sua vez responderia às exigências a
serem fixadas na legislação eleitoral. Foram feitas recomendações para facilitar o
ato de votar que levaria em conta as condições culturais, intelectuais e físicas dos
eleitores. Ratificou as cláusulas pétreas do processo de votação (sigilo,
47
CAMARÃO (1997), p. 203.
48
Ibid., p. 70. Membros da Comissão de Informatização das Eleições Municipais de 1996: ministro
Ilmar Galvão (presidente), Paulo César Bhering Camarão (relator), Antonio Villas Boas Teixeira de
Carvalho, Célio Assumpção, Fernando Marques de Campos Cabral (juiz), Gilberto Circunde,
Gilberto Niederauer Corrêa (desembargador), Jorge Lheureux de Freitas, Luiz Roberto da
Fonseca, Luiz Sérgio Neiva de Lima Vieira (juiz), Márcio Luiz Guimarães Collaço, Milton Löff (juiz),
Roberto Siqueira, Wander Paulo Marotta Moreira (juiz).
28
autenticidade, documento comprobatório, incolumidade da votação e apuração,
direito à fiscalização e auditagem ou recontagem) e apresentou as características
da máquina para garantir tais cláusulas. O Termo de Referência foi enviado aos
TREs para que o divulgassem em busca de alternativas nas instituições de
pesquisas e nas indústrias.
As alterações sugeridas no Anteprojeto passaram a fazer parte “DO
SISTEMA ELETRÔNICO DE VOTAÇÃO E APURAÇÃO” da lei 9.100, de 29 de
setembro de 1995 que, Estabelece normas para a realização das eleições
municipais de 03 de outubro de 1996, e dá outras providências. São os
artigos 18 (o TSE poderá autorizar os TREs a utilizarem o sistema eletrônico de
votação e apuração); 19 (o sistema eletrônico garantirá sigilo e inviolabilidade do
voto) e; 20 (garantia do TSE que num prazo mínimo de 120 dias antes das
eleições expedirá instruções sobre a utilização do sistema eletrônico de votação e
apuração e garantia aos partidos de acesso aos programas de computador).
A partir do trabalho realizado pela Comissão, foi instalado um Grupo
Técnico
49
, conforme Portaria nº. 282, de 22 de setembro de 1995, para fixar as
especificações do Coletor Eletrônico de Voto (CEV) e fiscalizar o processo
licitatório do mesmo. Devido às características singulares deste artefato, em 10 de
outubro de 1995, o TSE fez publicar no Diário Oficial da União (DOU) e em quatro
jornais de grande circulação no Brasil o AVISO Documento Preliminar de
Especificações de Requisitos do Coletor Eletrônico de Voto (CEV), visando
recolher sugestões. A Comissão esclarece que a apresentação de sugestões
49
CAMARÃO (1997), p. 84 e 85. Membros do Grupo Técnico: Antônio Ésio Marcondes Salgado
(Instituto de Pesquisas Espaciais-INPE, do Ministério da Ciência e Tecnologia-MCT), Elifas Chaves
Gurgel do Amaral (major; Departamento de Informática do Ministério do Exército), Jessé Torres
Pereira Júnior (juiz de direito da Entrância Especial do Estado do Rio de Janeiro), José Antonio
Ribeiro Milani (Centro de Pesquisa e Desenvolvimento-CPqD da Telebrás), Luiz Antonio Raeder
(Coordenadoria de Sistemas Eleitorais-CSE/TSE), Luiz Otávio Botelho Lento (capitão-de-corveta;
DTM do Ministério da Marinha), Mauro Hissao Hashioka (Instituto de Pesquisa Espaciais-INPE, do
Ministério da Ciência e Tecnologia-MCT), Paulo Seiji Nakaya (Instituto de Pesquisa Espaciais-
INPE, do Ministério da Ciência e Tecnologia-MCT), Osvaldo Catsumi Imamura (Instituto
Tecnológico da Aeronáutica-ITA) e Paulo César Bhering Camarão (presidente do Grupo Técnico;
secretário de informática do TSE).
29
não assegura ao proponente qualquer direito relativamente à propriedade
intelectual, não resultará em vínculo ou obrigação de qualquer espécie entre
o Tribunal Superior Eleitoral e o proponente, e nem poderá ser utilizada para
qualquer tipo de argumentação na fase de execução do processo licitatório,
a ser deflagrado tão logo haja liberação dos recursos próprios.
50
(grifo meu)
Inúmeras empresas privadas e públicas, instituições e órgãos públicos apanharam
o Documento Preliminar e 22 delas ofereceram contribuições ao projeto.
51
Concluída esta etapa, o Grupo cnico dedicou-se à elaboração do Edital
de Licitação e do Projeto Técnico do CEV. Em 13 de dezembro de 1995, foi
publicado no DOU e em vários jornais de grande circulação no Brasil, o Aviso de
Licitação Concorrência Internacional nº. 2, e a Presidência do TSE criou uma
Comissão Especial de Licitação, sob a direção do juiz de direito Jessé Torres
Pereira Junior, que julgaria a Concorrência Internacional citada (modalidade do
tipo menor preço e melhor técnica). Cinqüenta e quatro empresas retiraram o
Edital no Tribunal Superior Eleitoral, sendo que conforme previsto e
autorizado, oito delas fizeram 127 pedidos de esclarecimentos. Todos os
questionamentos foram respondidos pelo Grupo Técnico e distribuídos a
todas as empresas que retiraram o edital.
52
O Edital constituiu-se de três anexos: I. Descrição dos produtos e serviços
(e critérios de pontuação para análise cnica, quantitativos, prazos de entrega e
forma de pagamento do CEV); II. Especificações de requisitos do modelo de
engenharia do CEV; III. Especificações de requisitos do CEV. Estes dois últimos
50
CAMARÃO (1997), p. 86.
51
Ibid. Relação das 22 empresas privadas e públicas e instituições e órgãos públicos que
ofereceram contribuições ao projeto do Coletor Eletrônico de Voto (CEV): PROCERGS-Centro de
Processamento de Dados do Rio Grande do Sul; Universidade Federal de Santa Maria; TRE-Santa
Catarina; Soluções Prodenge; TRE-Mato Grosso; Lasa Monroeg & Veve; Fundação de Ensino de
Santa Catarina; RF-Shoup Corporation; Imagesoft; Plan Consultores; Simedata; Prodigy; Ampi;
Sequoia; AVC-Advantage; Bull-Le Vote Eletronique; Prodenage; Projeto UFRGS; Projeto de
Informatização das Eleições-TRE/RS; Projeto da Urna Eletrônica-TRE/MT; TRE-Paraíba; LNK-
Consultoria e Processamento de Dados.
52
Ibid., p. 98.
30
itens apresentaram os requisitos mínimos de hardware e software e serviços
necessários para o funcionamento do artefato.
Devido às características do CEV, trabalharam juntos a Comissão Especial
de Licitação e o Grupo Técnico. Os testes exigidos no Edital, conforme os
requisitos descritos nos Anexos II e III (arquitetura, procedimentos do processo de
votação, requisitos de hardware, software, desempenho, segurança,
documentação, serviços e acessórios etc.) foram realizados nos modelos de
engenharia
53
das empresas finalistas e os seus representantes acompanharam
tais testes, não apenas nos seus equipamentos, mas também nos das
concorrentes. Os testes nos modelos de qualificação e de produção foram
realizados, obviamente, apenas no protótipo vencedor. E conforme o
estabelecido, o Grupo Técnico analisou e respondeu, por escrito, à
Comissão, todos os questionamentos referentes aos equipamentos durante
a fase de testes.
O processo licitatório transcorreu entre 08 de fevereiro e 14 de março de
1996. Participaram da concorrência final a IBM com um projeto baseado em um
notebook; a Procomp com uma adaptação de um caixa eletrônico; e a Unisys,
vencedora da licitação, com um protótipo da urna eletrônica, que contratou a
empresa Omnitech, dirigida pelo engenheiro Carlos Rocha, para desenvolver a
primeira versão do equipamento.
53
Edital nº. 02/1995 Anexo I, página 04: Modelo de Engenharia: modelo que atende às
especificações do Anexo II [Especificação de Requisitos do Modelo de Engenharia do Coletor
Eletrônico de Voto] e que deve ser entregue pelas licitantes juntamente com a Proposta Comercial.
O atendimento aos requisitos mencionados habilitará tecnicamente a licitante que apresentou o
modelo.
31
Modelo IBM/96
54
Modelo Procomp/96
55
Sem descaracterizar o modelo de engenharia e de acordo com o edital, os
testes com o modelo de qualificação começaram em 23 de abril de 1996. A urna
eletrônica sofreu testes práticos em alguns TREs, que provocaram adequações
nos hardware e software para facilitar o uso pelo eleitor. Foram sugeridas,
também, alterações na transposição do modelo de qualificação
56
ao de
54
Disponível em: http://www.samurai.com.br/urnaeletronica/modeloibm/image_view_fullscreen.
Acesso em: 12 ago. 2010.
55
Disponível em:
http://www.samurai.com.br/urnaeletronica/modeloprocomp/image_view_fullscreen. Acesso em: 12
ago. 2010.
56
Edital nº. 02/1995 Anexo I, p. 05: Modelo de Qualificação: primeiro modelo a ser
apresentado pela licitante vencedora (Contratada) que deverá atender aos requisitos do Anexo III
[Especificação de Requisitos do Coletor Eletrônico de Voto]. Este modelo deverá incluir também
possíveis alterações solicitadas pela Justiça Eleitoral, através do Tribunal Superior Eleitoral (TSE),
que forem levantadas na Revisão do Modelo de Engenharia. O prazo para entrega da solicitação
de alteração pela Justiça Eleitoral e o prazo para a entrega deste modelo estão na Tabela 4 [Anexo
32
produção
57
. Para repassar as adequações à Unisys, fiscalizar e avaliar tais
implementações, foram criados, em 19 de março de 1996, Grupos Técnicos
58
formados por diretores-gerais dos TREs e por membros do Grupo Técnico citado
acima.
Em junho de 1996, foi aprovado o modelo de produção. A Unisys
contratou uma empresa sediada em Portugal para construir o ferramental para a
moldagem do gabinete, e buscou nos mercados interno e externo (Japão, Taiwan,
Coreia, China e Estados Unidos) peças e componentes para a produção da urna
eletrônica. A movimentação, transporte e controle do material foi planejado para
garantir um fluxo de montagem dos equipamentos, estocagem, testes e
distribuição aos TREs dentro do cronograma estabelecido. Os trabalhos de
montagem foram realizados em Santa Rita de Sapucaí-MG e São Paulo-SP,
sendo a integração do microterminal com o terminal do eleitor realizada em
Veleiros-SP, de onde saíram para testes finais nos TREs. Nestes, as urnas foram
armazenadas para o momento de carga dos programas aplicativos e das tabelas
de candidatos e eleitores de cada seção, sendo que o sistema operacional
vinha instalado da fábrica.
A distribuição das urnas eletrônicas aos TREs foi dividida em três etapas.
Na primeira, a partir de 15 de maio de 1996, foram entregues 400 unidades, ainda
I, p. 28]. Devem ser produzidos 10 (dez) Modelos de Qualificação, a serem entregues ao TSE, em
Brasília, para fins de Revisão de Qualificação.
57
Ibid., p. 05: Modelo de Produção: modelo cabeça de série‟ para a produção. Este modelo
deverá atender também aos requisitos do Anexo III e deverá contemplar as alterações solicitadas
pelo TSE que forem levantadas na Revisão do Modelo de Qualificação. O prazo limite para a
entrega de possíveis alterações solicitadas pela Justiça Eleitoral e o prazo para a entrega deste
modelo estão na Tabela 4 [Anexo I, p. 28]. Devem ser entregues pelo menos 3 (três) Modelos de
Produção ao TSE, em Brasília, para fins de revisão e aprovação para a produção.
58
CAMARÃO (1997), p. 124 e 125. Os Grupos Técnicos foram criados em 19 de março de 1996.
Os Grupos e algumas das suas atribuições: Grupo de Coordenação e Acompanhamento do
Contrato (administrar e zelar pelo cumprimento do contrato junto ao TSE e a Contratada etc.),
Grupo de Desenvolvimento (acompanhar o desenvolvimento dos modelos do hardware e software
da urna eletrônica etc.), Grupo de Produção (revisar e aprovar os Planos de Produção e de
Qualidade e Gerência do processo etc.), Grupo de Logística (controlar e planejar a distribuição e a
manutenção das urnas e o treinamento com as mesmas etc.), Equipe de Revisão (rever os
modelos de engenharia, de qualificação e de produção da urna eletrônica etc.). Pelo tipo de
atividade exercida por cada Grupo Técnico e os seus membros, o TSE tinha total controle sobre o
desenvolvimento da a arquitetura e finalidade da urna eletrônica.
33
em modelo de engenharia com gabinete de metal, cujo objetivo era familiarizar
os servidores da Justiça Eleitoral com o equipamento. Na segunda, a partir de 15
de julho de 1996, foram entregues aos TREs e ao TSE um lote de 292 urnas
eletrônicas, em modelo de qualificação, tendo a finalidade de sofrer testes
para sugerir melhorias ao modelo de produção e iniciar a campanha de
esclarecimentos dos eleitores. Na terceira etapa, entre 25 de julho e 09 de
setembro de 1996, foi entregue o lote definitivo (76.787 unidades) para as eleições
de 1996.
Para consolidar a urna eletrônica, foi intensificado o processo de
sensibilização do voto eletrônico junto aos eleitores. Em meados de março de
1996, o TSE criou um Grupo para tratar da campanha de esclarecimento dos
eleitores, composto por funcionários da Secretaria de Informática sob a direção da
Assessoria de Comunicação do TSE e com participação de órgãos públicos
(Fundação Banco do Brasil, Radiobrás, TV Educativa/Brasil etc.) e de profissionais
da mídia
59
Os TREs executaram campanhas de acordo com as especificações
locais, enfatizando a segurança, confiabilidade e facilidade de manuseio do
artefato. Para aproximar a urna eletrônica dos eleitores, utilizaram os meios de
comunicação e os espaços das universidades, fábricas, praças, shoppings,
igrejas, centros esportivos, supermercados, clubes etc. Leonel da Matta, assessor
de Comunicação Social do TSE, quando da implantação da urna eletrônica, em
1995 e 1996: Levamos essa urna para programas de grande apelo popular, e
quem ia votar na urna: o Faustão, a Xuxa, a Hebe [Camargo], o Sílvio Santos, o
Gugu Liberato. Nós chegamos ao requinte de colocar urnas nos portões do
Pacaembu em dia de jogo do Corinthians, para a população votar. [...] Colocamos
até, na época, a novela Rei do Gado fazia grande sucesso, personagens do Rei
do Gado passaram a interagir com a urna em outros espaços que a gente abria.
59
CAMARÃO (1997), p. 154. Jornalistas Carlos Chagas (TV Manchete), Alexandre Garcia (TV
Globo), Carlos Monforte (TV Globo), Luiz Gutemberg (TV Bandeirantes), Sidney Resende (CBN),
Luiz Orlando Carneiro (JB), Franklin Martins (O Globo), Joaquim Nogales (Radiobrás), Rui
Nogueira (Folha de São Paulo), Carlos Lindenberg (Hoje em Dia), Bartolomeu Rodrigues (O
Estado de São Paulo), Joabel Pereira (TRE-RS), Mardem Machado (TRE-PR), Eliana Passarelli
(TRE-SP).
34
Enfim, no dia da eleição o que nós vimos foi um sucesso absoluto, a população
tinha uma certa intimidade com a urna sem nunca tê-la visto de perto.
60
A apresentadora Jaciene Alves do Programa Brasil Eleitor Especial,
produzido pela Assessoria de Comunicação do TSE, disse que, para quem
começou a exercer o direito do voto a pouco tempo ou se essa é a primeira vez
que vota, a urna eletrônica é uma coisa normal e falar em voto feito em cédula de
papel deve parecer coisa do tempo dos nossos avós”.
61
O conjunto urna eletrônica, utilizado nas eleições de 1996, demonstrou ser
suficientemente robusto, visto que os modelos utilizados nas eleições
subseqüentes apresentaram a mesma arquitetura, com alterações insignificantes,
exceção feita a uma urna de plástico, acoplada à UE/96, excluída dos modelos
subseqüentes, onde eram depositados pela própria máquina os votos emitidos
pela impressora embutida no terminal do eleitor. De 1996 a 2004, por exemplo, a
Justiça Eleitoral comprou mais de 481 mil urnas eletrônicas, através de licitações
públicas, de duas empresas internacionais de integração de sistemas: Unysis
Brasil (1996 e 2002) e Diebold Procomp (1998, 2000 e 2004). As urnas eletrônicas
foram fabricadas pela TDA Indústria de Produtos Eletrônicos, Samurai, Flextronics
Brasil e a FIC Brasil, subcontratadas pelas integradoras.
60
BRASIL. Museu do Tribunal Superior Eleitoral, rua 1º. de Março Centro, Rio de Janeiro-RJ-
Brasil. DVD sob o código PGM 6(24:18).
61
Ibid., DVD sob o código PGM 6 (24:18).
35
Modelo UE/96, com uma urna de plástico acoplada para receber os votos
impressos.
62
No III Encontro de Cúpula das Américas da Organização dos Estados
Americanos-OEA, em abril de 2001, em Quebec-Canadá, a carta oficial do
Encontro iniciava com o tópico: HACIA UNA DEMOCRACIA MÁS EFICAZ. Sob
o ponto de vista da OEA, o Encontro ratificou a inseparável relação entre
democracia e desenvolvimento amplo e estabeleceu como ferramenta um
processo eleitoral mais eficaz e transparente, que nós, brasileiros, segundo ainda
a OEA, já teríamos dado passos largos com a utilização da urna eletrônica.
63
A partir de 2001, México, Argentina, Equador, Paraguai e República
Dominicana fizeram testes com a urna eletrônica brasileira. Ouçamos a
Assessoria de Comunicação Social do TSE, através de Armando Cardoso: Em
resumo, [...] o objetivo [...] do TSE, não é vender a urna eletrônica, é sim,
participar da consolidação do processo democrático dos países do continente
americano, [...] O eventual custo que há neste esquema de cessão da urna
eletrônica para os países interessados é bancado pela OEA, e o custo dele,
somente o ir e vir, das máquinas, dos equipamentos e dos nossos técnicos, que
vão pra para ensinar os técnicos daquele país como manuseia a urna
eletrônica, como se opera a urna eletrônica.
64
62
Disponível em: http://www.tre-pi.gov.br/novo/espaco-memoria/catalogo/imagens/urna4b.jpg.
Acesso em: 09 mai. 2010.
63
Voto eletrônico (2006), p. 61.
64
BRASIL. Museu do Tribunal Superior Eleitoral, rua 1º. de Março Centro, Rio de Janeiro-RJ-
Brasil. DVD sob o código PMG 6(24:18).
36
Vale destacar que no Paraguai houve o apoio citado da OEA, como
também, os paraguaios receberam verbas dos Estados Unidos da América para o
desenvolvimento da experiência.
65
. Além de autoridades dos dois países,
compareceram a assinatura da parceria, o assessor especial da Unidade para
Promoção da Democracia da Organização dos Estados Americanos (OEA),
Santiago Murray.
66
É importante frisar as palavras da coordenadora executiva da
OEA Elizabeth Spehar: o sistema de eleições no Brasil tem se destacado pela
sua transparência e alto grau de informatização. A experiência brasileira, sem
dúvida, poderia ser de grande benefício para outros processos de eleições no
hemisfério que procuram, agora, sua automatização.
67
Em 2003, 48% do
eleitorado paraguaio utilizaram as urnas eletrônicas em eleições municipais e
gerais.
Em 17 de outubro de 2004, nas eleições municipais do Equador foram
utilizadas 700 urnas eletrônicas, com 63 mil eleitores e 17 candidatos em 5
cidades. Conforme entrevista da Coordenadora de Sistemas Eleitorais do TSE,
Rita Landim, em 30 minutos, mais de 90% dos votos através das urnas eletrônicas
estavam apurados e o resultado total saiu em 40 minutos, enquanto que a
apuração dos votos em cédulas de papel, ainda não tinha iniciado. Acrescentou a
Sra. Landim que no início de 2004, a nossa urna eletrônica foi exposta na Feira de
Hannover, Alemanha, provocando grande interesse nos europeus e orgulho nos
brasileiros residentes. Esta informação levou o repórter que a entrevistava a
exclamar que o Brasil não é mais o país do futebol e do samba, é também da
urna eletrônica. Ainda sobre estas eleições no Equador, o então presidente do
TSE, ministro Sepúlveda Pertence disse que a votação ocorreu normalmente, em
tempo absolutamente razoável, e quanto ao sistema em si o êxito foi total.
68
Tal
experiência foi amplamente elogiada pelos representantes da ONU, que
65
Voto eletrônico (2006), p. 63.
66
Ibid., p. 64.
67
Disponível em http://agencia.tse.gov.br/noticiaSearch.do?acao=get&id=11272. Acesso em: 13
dez. 2009.
68
BRASIL. Museu do Tribunal Superior Eleitoral, rua 1º. de Março Centro, Rio de Janeiro-RJ-
Brasil. DVD sob o código PMG 16(26:42).
37
estiveram. Segundo ainda o assessor de Comunicação Social do TSE, Armando
Cardoso, o que mais se alarmam, alarmam entre aspas, com a urna eletrônica é
a agilidade, é a rapidez com que os resultados são repassados para os eleitores,
para os candidatos.
69
...
Encerro, aqui, esta narrativa bem-comportada e de sucesso... Seria
apenas desta maneira que contaríamos uma história de como um produto
tecnológico adquire uma forma mais ou menos estável? Como estão imbricados
vieses sociais que se revelam nas ditas especificações técnicas dos artefatos (em
particular, na urna eletrônica brasileira) e vice-versa?
Histórias bem-comportadas e de sucesso, como a construída pelo TSE e
aliados para a urna eletrônica brasileira, que neste Artigo 2 procurei imitar, são
purgadas de antagonismos, controvérsias, arestas, ou seja, o desembaraçados
de hibridismos sociotécnicos heterogêneos e me fazem sempre lembrar uma
história sobre o jogador de futebol Mané Garrincha. Não sei se li ou se alguém me
contou. algumas versões. Conto uma delas. Garrincha, segundo colegas de
profissão e cronistas esportivos, era uma pessoa desligada, que jogava um futebol
intuitivo, pouco afeito às táticas e estratégias elaboradas pelos treinadores. Certa
vez, antes de uma partida contra a União Soviética, talvez na Copa do Mundo de
Futebol, na Suécia, em 1958, o técnico reuniu o grupo para relembrar a estratégia
para o jogo. Então, fulano cai nas costas do half esquerdo deles; atenção com os
contra-ataques quando a gente atacar; não deixem o half-direito deles fazer
lançamentos em profundidade; sicrano lança bolas altas na área para que o nosso
centre-forward possa cabecear; beltrano abre bem na lateral do campo para
abrirmos espaços na defesa deles... e isso e aquilo e aquilo mais... Garrincha que
não tinha se unido ao grupo, ouvia pedaços das instruções em um canto, solitário.
Em um certo momento se aproximou do grupo e interrompendo o treinador disse:
O senhor já combinou com os russos isso que tá falando pra gente?
69
BRASIL. Museu do Tribunal Superior Eleitoral, rua 1º. de Março Centro, Rio de Janeiro-RJ-
Brasil. DVD sob o código PGM 6 (24:18).
38
Mané Garrincha, o anjo das pernas tortas”, entortando mais um “João”.
70
70
Disponível em: http://ednene.files.wordpress.com/2010/04/1269.jpg. Acesso em: 08 ago. 2010.
39
Artigo 3
...para que serve a história?
Onde se verá uma discussão entre a historiografia tradicional (realista) de ciência
e de tecnologia e a historiografia que eu defendo (história-construção).
Criacionismo e darwinismo, são
construções sociotécnicas. A diferença
hierárquica entre ambas é de escala no
espaço-tempo.
(O autor)
“´Pai, diga-me para que serve a história.´? Era assim que um rapazinho
meu próximo parente interrogava, poucos anos, um pai historiador.
71
Desta
maneira, o historiador francês Marc Bloch (1886-1944) inicia a “Introdução” do livro
Introdução à história. Alguns parágrafos abaixo Bloch afirma: Mesmo que
julgássemos a história incapaz de outros serviços, seria certamente possível
alegar em seu favor que ela distrai. [...] Pessoalmente, tão longe quanto a minha
memória abarca, a história sempre me divertiu muito.
72
Quanto eu tinha 12 ou 13 anos caiu nas minhas mãos um dos livros que
mais me estimularam a ser um historiador: A história da riqueza do homem, de
Léo Huberman
73
. É um livro na tradição das grandes narrativas, o qual apresenta
o processo do desenvolvimento capitalista da Idade Média ao nascimento do nazi-
fascismo, sob um olhar materialista dialético. Ímpar para a época de sua 1ª
edição, em 1936, traz uma linguagem dinâmica das grandes aventuras ao estilo
de um Robert Louis Stevenson (1850-1894), em A ilha tesouro, ou de Julio Verne
71
BLOCH, Marc. Introdução à história. Portugal: Publicação Europa-América, 4ª. edição, p. 11.
72
Ibid., p. 13.
73
HUBERMAN, Leo. História da riqueza do homem. Zahar Editores, 1981. Huberman (1903-1968)
foi um jornalista e escritor marxista, nascido nos Estados Unidos.
40
(1828-1905), em Vinte mil léguas submarinas e A volta ao mundo em 80 dias.
Huberman nos conta uma grande aventura repleta de guerras, pestes,
descobertas, viagens, progressos, lugares e costumes exóticos, naus, cavalos,
heróis, Igrejas, tomadas de cidades, orgulho, nobreza, castelos, reis, princesas,
cavaleiros, duelos, índios, religiosos, espionagens, rotas comerciais, grandes
navegações, líderes carismáticos, piratas, armas, livros, mendigos, banqueiros,
burgueses...
Bloch, ainda no livro citado, propõe que historiadores tornem público a
trajetória de suas pesquisas, pois na sua opinião, tal leitura agradaria muito.
Provavelmente, não terei oportunidade de dizer sobre as minhas pesquisas,
leituras e estudos, das pessoas com quem eu falei e dos lugares por onde andei.
Provavelmente, não terei oportunidade de falar dos documentos copiados sem
autorização oficial, da permissão para entrar em uma instituição por uma porta dos
fundos depois do horário de funcionamento ao público, das conversas com
bibliotecárias, das viagens para obter depoimentos, dos entrevistados que
gostaram de falar, de outros que não gostaram, daqueles que falaram e nunca
mais quiseram estar comigo, dos golpes de sorte que tive, dos azares, das
intuições e das não-intuições, das conversas informais que me forneceram dicas
importantes, da funcionária que ficou na porta vigiando enquanto eu lia um
documento não autorizado ao público. Provavelmente não terei oportunidade de
falar das noites de cansaço, dos inúmeros esboços, da alegria efêmera dos
parágrafos surgindo um a um em doses homeopáticas, da aflição ao se aproximar
o prazo para a entrega da tese e assim por diante. Entretanto, devo falar de uma
situação particular que despertou meu interesse em estudar a urna eletrônica.
Nas eleições de 2006, insatisfeito a um certo tempo com uma grande parte
dos políticos profissionais brasileiros e descrente da possibilidade de uma
transformação, para melhor, da vida do povo
74
brasileiro através do jogo
74
Defino, aqui, como pertencentes ao povo aqueles que não são proprietários de meios de
produção e são forçados a vender suas forças de trabalho, ou, de outra maneira, os grupos sociais
que segundo institutos de pesquisa, como o IBGE, estão abaixo da dita classe média.
41
democrático liberal, tomei uma decisão de fazer um protesto: votaria NULO. Só,
diante da urna eletrônica, percorri o teclado em busca da tecla NULO; para minha
surpresa não a encontrei. Apenas naquele momento, esta inexistência passou a
existir e ser mais um fluxo de uma relação que construí para materializar tal
protesto. Então, digitei algumas vezes o algarismo 9 (nove) para presidente,
governador, deputados federal e estadual e senador. Em todas as votações, a
urna eletrônica me constrangeu ao colocar em seu monitor a expressão NÚMERO
ERRADO. Pressionei a tecla CONFIRMA e, somente assim, os meus votos foram
anulados. Como observou o Professor Dr. Antonio Arellano
75
, em Caracas-
Venezuela, em um Encontro que participamos em abril de 2009
76
, para eu exercer
a minha cidadania e o meu direito de expressão, garantidos na Constituição
Federal e no Código Eleitoral brasileiros, tive que cometer um erro, segundo a
Justiça Eleitoral do Brasil.
Teclado do terminal do eleitor.
77
Por ter um olhar exercitado pelos estudos de ciência-tecnologia-sociedade
(CTS) e pela teoria ator-rede, ali mesmo diante da urna eletrônica, duas questões
vieram à minha mente em um instante após o ato que acabara de executar: ...
quase todas [todas, creio eu] as nossas interações com outras pessoas
75
Antonio Arellano Hernández, professor-pesquisador do Centro de Estudos da Universidad
Autônoma del Estado de México.
76
IV Encuentro de Jóvenes Investigadores y 1ª. Escuela Doctoral Iberoamericana em Estudios
Sociales y Políticos sobre la Ciência y la Tecnologia ESOCITE/CYTED/AECID/IVIC/UNESCO-
IESALC, Caracas-Venezuela. 21-24 de abril 2009.
77
Disponível em: http://www.quatrocantos.com/LENDAS/imlendas/teclado.gif. Acesso em: 06 jun.
2009.
42
[entidades] são mediadas por objetos de um tipo ou de outro.
78
E ainda: ... o
conhecimento científico e as tecnologias não se desenvolvem no vácuo. Antes,
participam do mundo social, sendo formados por ele e, simultaneamente,
formando-o
79
Actantes
80
heterogêneos exercem e sofrem, simultânea e
permanentemente, traduções/translações
81
, (des)construindo fatos e artefatos. Eu
me sinto um cidadão quando anulo o meu voto em uma cédula de papel. Quando
anulo o meu voto na urna eletrônica, esta me diz que eu não sou um cidadão.
Mesmo não me considerando um cidadão e não havendo uma tecla explícita para
a minha escolha, a urna aceita negociar, ela me dirá que uma maneira para eu
anular o meu voto. Um exemplo grosseiro: eu posso me aborrecer com um
mesário e arremessar a urna sobre ele. O artefato que poderá atingi-lo ou não é
eu+minha mão+urna eletrônica+velocidade+deslocamento no ar+etc.+etc., que
negociará a cada instante com os espaços-tempos.
A historiografia de ciência e de tecnologia, que chamarei de realista (com
nuanças), ainda hegemônica, fixa-se em características das quais, s, dos
estudos de CTS e da teoria ator-rede, discordamos. Aquela historiografia prega
uma busca daquilo que está encoberto, que existe e está desde sempre.
Estabelece Grandes Divisões e assimetrias (luzes/trevas, primitivo/moderno,
racional/irracional, velho/novo, antes/depois). Para historiografia realista existe a
78
LAW, John. “Notes on the theory of the actor-network: ordening, strategy, and heterogeneity” in
Systems Practice, vol. 5, nº. 4, 1992, p. 381-382. No original: ...almost all of our interactions with
other people are mediated through objects of one kind or another.
79
_________ After method: mess in social science research. Londres/Nova Yorque: Routledge
Taylor & Francis Group, 2004, p. 12. No original: “... it is that scientific knowledge and technologies
do not evolve in a vacuum. Rather they participate in the social world, being shaped by it, and
simultaneously shaping it.
80
LATOUR, Bruno. A esperança do Pandora. Bauru,SP: Edusc, 2001, p. 346. Uma vez que, em
inglês, a palavra actor (ator) se limita a humanos, utilizamos muitas vezes actant (atuante),
termo tomado à semiótica, para incluir não-humanos na definição.
81
A noção de tradução/translação (do inglês translation) permite fundir interesses de uma maneira
mais sutil. Tradução implica em deslocamento, traição, transformação, modificação, ambiguidade.
Significa que se parte da não equivalência entre interesses; portanto, o objetivo da
tradução/translação é tornar equivalentes duas proposições que, inicialmente, nada têm em
comum. Assim, interesses particulares (por exemplo, mecanismos de controle de uma sociedade e
a construção de um coletor eletrônico de voto) podem tornar-se robustamente vinculados, fazendo
com que a destruição de um significará ameaça de destruição do outro. São laçadas de redes
sociotécnicas extremamente sutis e úteis para manter grupos juntos.
43
realidade e é vista como determinada e universal (tudo que ocorre na Natureza é
regido por Leis, sendo todos os fenômenos ligados uns aos outros, em qualquer
tempo ou lugar a partir de valores civilizatórios ocidentais), autônoma, neutra e
pura (conforma-se às Leis da Natureza, sem interferências de fora). Logo, o
conhecimento verdadeiro é a coincidência ou correspondência entre nossas
experiências (e documentos) e a dita realidade. Assim, por exemplo, o oxigênio
realmente existe deste sempre e foi descoberto por Carl Wilhelm Scheele (1742-
1786) e Joseph Priestley (1733-1804), em 1771 e 1774, respectivamente, e,
batizado por Lavoisier (1743-1794), em 1774.
Caro leitor, como eu poderei demovê-lo da idéia de que os ditos fenômenos
da natureza existem desde de sempre, independente do espaço e do tempo, se o
Mundo Ocidental mais ou menos três séculos pensa deste modo; se
fomos/somos formatados por este ponto de vista no ensino básico e na academia,
nos congressos, nos documentários ditos científicos dos canais à cabo etc.?
Como demovê-lo da idéia que uma evolução científico-tecnológica do simples
para o complexo, do primitivo ao moderno de maneira linear? Tarefa quase
impossível. Talvez eu consiga, para o momento, semear algumas dúvidas. Se
conseguir já me darei por satisfeito.
Antes, conto uma passagem particular de como eu me tornei ateu. Quando
eu era adolescente, mesmo sendo de família católica, durante um período
frequentei alguns centros religiosos protestantes, espíritas e afro-brasileiros. Em
cada um destes locais ouvi concepções sobre Deus e muitas vezes ouvi
argumentos preconceituosos sobre a concepção dos Deuses de outras religiões.
Isto provocou em mim uma dúvida. Então, partindo da nossa predominante lógica
dicotômica ocidental e da minha leitura ingênua de Parmênides (o Ser é, o não-ser
não é), conclui: se existe Deus(es), logo, existe o seu oposto, a não existência de
Deus(es).
44
Acompanhe-me, caro leitor, na lógica a seguir. Para os realistas o oxigênio
existe, mesmo com outros nomes, outras características ou outras funções, antes
mesmo de ser descoberto, ou pelo menos desde que surgiram organismos
aeróbicos no planeta Terra. Como o oxigênio é produzido? Qual a função do
oxigênio no ser humano? O que dizem os livros didáticos? O gás oxigênio é
produzido durante a construção de moléculas orgânicas pela fotossíntese e
consumido quando essas moléculas são oxidadas na respiração ou na
combustão.
82
Nos pulmões “ocorre a hematose, ou seja, a troca do sangue
venoso ou desoxigenado (rico em gás carbônico) por sangue arterial ou oxigenado
(rico em gás oxigênio).”
83
[...] O sangue rico em oxigênio sai do ventrículo
esquerdo pela aorta (a maior de todas as artérias), que se ramifica pelo corpo. As
ramificações tornam-se cada vez menores e mais finas e formam as arteríolas e
os capilares sanguíneos. Nestes ocorrem as trocas entre o sangue e as células: o
oxigênio e os nutrientes (glicose, aminoácidos, etc.) atravessam os capilares e
dirigem-se para as células; o gás carbônico e as excretas saem das células e
entram no sangue.
84
São os glóbulos vermelhos (hemácias) que transportam o
oxigênio para as células e o gás carbônico para fora destas.
Miguel de Servet (1511-1553) construiu a dita pequena circulação do
sangue ou circulação pulmonar. Willian Harvey (1578-1657) construiu a dita
grande circulação do sangue. Na metade do século XVIII, Jan Ingenhousz
(1730-1799) construiu a fotossíntese. Em 1667, Robert Hooke (1635-1703)
construiu a célula. Jan Swammerdam (1637-1680), em 1658, construiu os glóbulos
vermelhos. Scheele e Priestley somente puderam conformar e estabilizar um
específico oxigênio quando imbricado com as construções citadas, pois o que
existe, existe a partir de relações. Estabilizou-se a existência do oxigênio porque
se estabilizou a existência da fotossíntese, porque se estabilizou a existência da
circulação do sangue, porque se estabilizou a existência dos glóbulos vermelhos e
82
LINHARES, Sérgio & GEWANDSZNAJDER, Fernando. Biologia. São Paulo: Editora Ática, 2005,
p. 463.
83
Ibid., p. 257.
84
Ibid., p. 265.
45
assim por diante. Pergunto: como seria possível encontrarmos uma direção de
carro em um terreno baldio se não existissem carros?
Mas você como um leitor recalcitrante dirá: nós não tínhamos
conhecimento sobre a circulação do sangue, transportando o oxigênio, nem
aparelhos para observá-lo, mas tal fato ocorre pelo menos desde que surgiu o
primeiro ser humano. E eu direi, os eventos acontecem no espaço-tempo,
imbricados em três, quatro ou, talvez, mais dimensões e se naturalizam após as
controvérsias esfriarem. O que existe é uma entidade a cada evento, ou seja, o
que existe não é o oxigênio ou a urna eletrônica brasileira, e sim,
oxigênio+sangue+circulação pulmonar; oxigênio+capilares+células;
oxigênio+hemácias; oxigênio+gás carbônico; urna eletrônica brasileira+presidente
de seção; urna eletrônica brasileira+eleitor; urna eletrônica brasileira+técnico+juiz
eleitoral; urna eletrônica brasileira+transportadores+helicóptero... Um oxigênio e
uma urna eletrônica são historicidades construídas e estabilizadas
sociotecnicamente, cujas redes são apagadas e/ou esquecidas.
Que elo o exemplo acima tem com a urna eletrônica brasileira? Este
artefato, segundo o coro dos contentes, é a descoberta (essência) da segurança;
da confiabilidade; da facilidade de manuseio na identificação, na coleta e
totalização dos votos que ratificam, verdadeiramente, o desejo dos eleitores,
materializando uma democracia liberal no Brasil. Como me disse Paulo César
Camarão: a urna eletrônica é o artefato perfeito naquilo que a tecnologia pode
oferecer
85
. Em 2007, o deputado federal pelo PT, José Genoíno, como membro
da Comissão de Constituição e Justiça assim se pronunciou sobre a
implementação da impressão do voto na urna eletrônica: O TSE conduzindo e
sempre conduziu esta matéria das eleições de maneira transparente e
democrática, e nós temos que aperfeiçoar, mas a impressão do voto, eu acho que
é um retrocesso em relação a este avanço tecnológico.
86
Outro depoimento sobre
85
Entrevista feita por telefone no dia 23 de junho de 2008.
86
BRASIL. Museu do Tribunal Superior Eleitoral, rua 1º. de Março Centro, Rio de Janeiro-RJ.
DVD sob o código 189 (25:14).
46
esta mesma questão, dado pelo então presidente do TSE, ministro Marco Aurélio
de Mello: Veja a incoerência, se abandona a ordem natural das coisas, (grifo
meu) nós vamos ter auditoria do sistema eletrônico pelo sistema ultrapassado que
é o sistema da cédula em papel.
87
A ordem natural das coisas, segundo o ministro Marco Aurélio Mello, seria
a norma. Logo, para o ministro, fatos e artefatos precedentes tiveram a sua
importância: a alquimia para a química; o ábaco para a calculadora; Copérnico e
Tycho Brahe para Kepler etc. Sendo assim, foram os avanços científicos e
tecnológicos anteriores que contribuíram para as descobertas das gerações
seguintes mais modernas. Assim, suponho que para o deputado e para o ministro
haja a história da ciência e da tecnologia, que segue por uma linha reta ao infinito
apesar de dificuldades e incompreensões.
Por esta historiografia realista ainda predominante dois pontos de vista
que não se tocam ou, no máximo, tangenciam-se: um internalista e um outro
externalista. Em relação à urna eletrônica, o primeiro faria uma história cnica
(hardwares, softwares, periféricos, conexões, placas, padrões, desenho etc.). O
externalista escreveria uma história sobre a Justiça Eleitoral brasileira e sobre os
vários modelos de eleições no Brasil, provavelmente, desde as câmaras locais no
Brasil-Colônia, passaria pelas eleições censitárias do Brasil monárquico, as de
pico de pena na República Velha; recuperaria as votações na Ágora ateniense e
no Senado romano, na Antiguidade Clássica. Se os internalistas tratam a ciência e
a tecnologia como se fossem puras, sem nenhum contato com a sociedade, na
qual estão imbricadas; os externalistas fazem uma história da política social sem
incluir os artefatos. Latour ilustra estas narrativas através da imagem de duas
equipes que cavam um túnel, cada uma em extremidades opostas e ao final
chegam, ambas, ao lado oposto sem se encontrarem. Latour propõe então, uma
narrativa em que cada equipe cavaria a partir de lados opostos e se encontrariam
87
BRASIL. Museu do Tribunal Superior Eleitoral, rua 1º. de Março Centro, Rio de Janeiro-RJ.
DVD sob o código 189 (25:14).
47
no meio.
88
Eu me arriscaria a melhorar a proposta narrativa de Latour. Creio que
uma melhor ilustração para misturar internalismos e externalismos seria uma
narrativa de agrupamentos repletos de actantes heterogêneos e através de um
movimento browniano fossem se articulando em permanentes
traduções/translações, construindo híbridos em permanentes estados de fluidez.
Dirijo-me aos historiadores tradicionais. Não são as instituições eleitorais e
seus juristas de um lado e os técnicos de outros que pensaram, em separado, um
coletor eletrônico de voto; ambos os grupos, desde o primeiro instante estavam
totalmente misturados, mesmo, talvez, sem perceberem. Como disse no parágrafo
acima, em agrupamentos, actantes heterogêneos (brownianamente) se misturam,
interpõem-se, superpõem-se, apagam-se, reaparecem, surgem mais a frente etc.,
em permanentes traduções/translações, buscam conformações e estabilizações.
Portanto, estavam/estão imbricados entre si desde os primeiros dias do projeto do
coletor eletrônico de voto, o TSE, a ABIN, o ITA, o teclado utilizado nos caixas
eletrônicos, o INPE, Unisys, o Banco Mundial, o Coletor Eletrônico de Voto, o
BNDES, a OEA, o Consenso de Washington, IBM..., todas estes actantes
estavam/estão misturadas com políticas estratégicas mundiais, impressão do voto,
questões técnicas, econômicas, hardwares, segurança nacional, chips,
investimentos, voto informatizado, políticas internas, consolidação de uma
democracia liberal para a América Latina, softwares...
Um outro aspecto da historiografia tradicional é a construção de gênios.
Exemplos. Robert Boyle (1627-1691), um nobre rico, isolado no laboratório que
construiu no seu castelo, em Sailbridge, na Inglaterra, fazia experiências sobre a
natureza do ar e dos gases e a cada etapa convidava os amigos para demonstrá-
las. Isaac Newton (1643-1727), o decifrador da linguagem do universo. Albert
Einstein (1879-1955), cuja imagem de língua para fora e cabelos desgrenhados
88
LATOUR, Bruno. “Joliot: a história e a física misturadas” in Elementos para uma história das
ciências III. De Pasteur ao computador. Lisboa: SERRES, Michel (direção), Terramar, 1996, p.
134.
48
tornou-o ícone pop e fortaleceu a imagem do gênio louco que uma lenda diz que
aos quinze anos já dominava o cálculo diferencial e integral.
Cabe aqui, mais um exemplo de como a ciência e os cientistas são
apresentados na cultura pop através dos meios de comunicação que fortalecem
esta visão tradicional da historiografia. Na edição de 15 de junho de 1988, a
revista Veja publicou uma reportagem sobre o astrofísico inglês Stephen Hawking:
Se ele ganhar o Prêmio Nobel de Física, a Academia Sueca estará concedendo
provavelmente o derradeiro Nobel no setor. Depois de confirmadas suas teorias, a
física com certeza continuará existindo, mas apenas para satisfazer curiosidades
menores. O trabalho maior estará concluído. [...] Meu objetivo é decifrar todos os
enigmas do universo, disse Hawking [...] Por sua voz elétrica sai um jorro de
inteligência tão vigoroso que assombra seus colegas em todas as partes do
planeta. [...] Não abomino o conceito da divindade. Estou apenas tentando
descobrir se uma lei natural superior, a partir da qual todas as outras
derivaram. Acho que posso responder isso algum dia acreditando ou não em
Deus, disse ainda Hawking. A figura do astrofísico inglês numa cadeira de rodas
acometido de uma doença rara degenerativa que paralisa os músculos do corpo,
também se tornou um outro ícone pop do cientista de mente brilhante apesar da
doença.
Por que os exemplos acima? Qual a relação deles com a urna eletrônica
brasileira? O meu objetivo é romper com um imaginário predominante do cientista
e do laboratório, no qual, aquele de jaleco branco, fora do mundo, trabalha em um
laboratório muito limpo, apartado do exterior por uma porta blindada (por onde
passam apenas os iniciados), repleto de tubos, aparelhos de precisão, sendo o
silêncio maculado apenas pelos quidos borbulhantes nos balões volumétricos,
pelos chiados das cobaias nas gaiolas, por vozes humanas em surdina. Ali é o
santuário do Saber pelo Saber. E o cientista um monge.
49
Quem faz ciência-tecnologia? Apenas os cientistas, engenheiros e
técnicos? E a pergunta roda e a cabeça agita”.
89
Mudo de espaço-tempo sem
mudar de foco e de intenção. Quem faz teatro, caro leitor? Atores, autores,
diretores e auxiliares, produtores, iluminadores, figurinistas e costureiras,
cabeleireiros, maquinistas, maquiadores, marceneiros? Fariam teatro porteiros,
bilheteiras, manobristas de estacionamentos, faxineiras, seguranças, leis de
incentivo a cultura, agentes financeiros, companhia de água, secretaria de cultura,
companhia de luz, companhias de telecomunicações, lâmpadas, poltronas,
promoteurs, chips, torneiras de pias dos banheiros do teatro, acústicas de teatros,
folders, bomboniéres de halls, fibras óticas, indústrias de spots, fios que conduzem
eletricidade, folhas de papéis onde estão impressos scripts, carros, internet,
escritórios de advocacia, políticos, microfones...? Então, caro leitor, quem faz e
onde se faz ciência-tecnologia? Quem construiu a urna eletrônica brasileira? Onde
foi construída a urna eletrônica? Do que é feito a urna eletrônica? A urna
eletrônica conforma e é conformada pela democracia liberal brasileira?...
Para construir a democracia liberal predominante no Brasil são necessárias,
dentre outros actantes, urnas eletrônicas, computadores, a grande imprensa,
instituições e também aviões e jangadas que levam as urnas aos lugares mais
distantes e intransponíveis por via terrestre do território brasileiro... De forma
semelhante, a construção de uma democracia entre os Ankave-Anga, em Papua
Nova Guiné, necessitou de helicópteros para levar as urnas de papelão aos
lugares mais distantes. Em 1997, o primeiro helicóptero trouxe uma equipe
eleitoral que era esperada às 8:15 da manhã de 17 de junho. Ele transportaria as
urnas para o outro lado da montanha na manhã seguinte às 9:50, exatamente 25
horas e 35 minutos mais tarde.
90
A estrutura das eleições e as condições em que
são realizadas em Ankave-Anga, se comparadas com o mundo moderno é de nos
89
JUNIOR, Luiz Gonzaga (Gonzaguinha) [1945-1991]. O que é, o que é?
90
BONNEMÈRE Pascaale & LEMONNIER, Pierre. “An election in Papua New Guinea” in Marking
Things Public Atmospheres of Democracy. LATOUR, Bruno & WERBEL, Peter (org.). MIT Press,
2005, p. 89. No original: In 1997, the first helicopter bringing an electoral team was expected at
8:15 on the morning of June 17. It would transport the ballot boxes back to the other side of the
mountain the following morning at 9:50 a.m., exacty 25 hours and 35 minutes later.
50
fazer rir involuntariamente, segundo os autores do artigo, entretanto, para o povo
de Ankave-Anga, as eleições são meios para salvar as crianças (uma em cada
três morre antes de chegar um ano), abrir uma loja etc., um meio que eles têm
para vislumbrar um futuro melhor.
Indo de encontro à história realista, do meu ponto de vista devemos fazer
uma história-construção, que tem uma maior historicidade, que conta histórias
de como fatos e artefatos são construídos e adquirem uma materialização mais ou
menos estável e resultante de fluxos híbridos imbricados em lógicas sociotécnicas,
cujos enquadramentos são gelatinosos e permanentemente negociáveis. Uma
historiografia em que os actantes (aqueles que atuam) tornam-se pontos de
passagem obrigatórios de uma rede heterogênea tão somente porque
conseguiram aliados suficientes para fazerem-se existir (tornarem-se
indispensáveis) como artefatos (a urna eletrônica brasileira), instituições, seres...
Uma historiografia que o é mais possível adjetivar (história econômica, história
cultural, história política, história da ciência etc.), pois, através de uma história-
construção, fazemos histórias. Uma historiografia sem os ídolos políticos,
individuais e cronológicos da tribo dos historiadores, tão caros à historiografia
predominante e tão criticados por François Simiand
91
. Uma historiografia na qual
os artefatos (híbridos) fazem política.
Em rápidos traços e utilizando as regras metodológicas expostas por Latour
nas páginas finais de seu La science em action, citado, os estudos de CTS têm
uma concepção epistemológica sociotécnica, ou seja, tudo é híbrido, conformando
e sendo conformado, recíproca e simultaneamente. Assim, como fazer
abordagens em separado (internalista e externalista)? Materializo. Quando
estamos de posse do título de eleitor em uma fila à porta da seção eleitoral, somos
eleitores+cidadãos, quando estamos utilizando a urna eletrônica somos
eleitores+urna eletrônica, quando saímos da seção eleitoral e somos, por
91
François Simiand (1873-1935). O sociólogo e economista francês escreveu, em 1903, o texto
Método histórico e ciência social, no qual, faz uma crítica à historiografia “positivista”, ao atacar aos
três ídolos desta historiografia, ou seja, os ídolos político, individual e cronológico.
51
exemplo, acompanhados por nossa/nosso esposa/esposo somos marido/mulher.
Somos as nossas relações, em permanentes negociações, tangenciamentos,
justaposições, afastamentos, aproximações, misturas, sampleamentos etc.
Somos, actantes quase-humanos e quase-coisas. Para nós, dos estudos do CTS,
não conhecimentos intrínsecos, universais (europeus), puros e alienados das
sociedades, visto que artefatos são sempre estabilidades locais, contingenciais,
precárias e provisórias de complexos fluxos sociotécnicos. Não devemos, a priori,
construir externalidades e internalidades ao estudar artefatos, e sim, listar todos os
actantes que participaram/participam da estabilização daqueles, por mais
heterogênea e longa que possa ser esta lista.
Agora, a regra metodológica que mais indignação causa àqueles que
discordam dos nossos pressupostos: naturezas e sociedades são conseqüências
das estabilizações (esfriamentos) das controvérsias; logo, não são juízas que
põem fim às últimas, pelo contrário chegam apenas ao final daquelas. Desta
forma, estudamos artefatos em ação e não prontos, e destruímos os muros que
colocam de um lado a Natureza/Sociedade e de outro lado elementos, ou seja,
nós buscamos abrir caixas-pretas de trabalhos de divisão que precedem as
divisões do trabalho, que a historiografia tradicional busca naturalizar.
Um exemplo interessante deste trabalho de divisão que antecede a divisão
do trabalho é o do Museu de Mineralogia da Escola de Minas em Ouro Preto-
Minas Gerais. Lá, em um salão climatizado, encontramos volume considerável da
mineralogia do Estado de Minas Gerais-Brasil. Cada elemento encontra-se em seu
escaninho selado, registrado, carimbado, avaliado, rotulado,
92
separado e
purificado. Nós, os visitantes, se não estivermos atentos, corremos o risco de
esquecer e/ou apagar que aqueles elementos são parte do caos cósmico e que ali
estão sendo construídos, configurados, destacados, planificados e estabilizados
sociotécnica e diuturnamente em uma ordem a partir de uma ampla rede de
actantes heterogêneos aliados.
92
SEIXAS, Raul (1945-1989). Carimbador Maluco.
52
Em uma sala adjacente são expostos produtos industrializados que usamos
no cotidiano e nem imaginamos que em suas composições elementos da
mineralogia vista antes: detergentes, dentifrícios, sabões, xampus, conservantes,
peças de relógios, peças de motores, elementos que compõem o sabor de
diversos produtos que são digeridos pelas nossas sociedades (batatas fritas,
balas, hamburguês, biscoitos, chocolates, chicletes etc.), elementos que fazem
parte da composição de tintas diversas, peças de computadores, componentes
das chapas de ultra-sonografia, agulhas de antigos toca-discos, peças para
carros, eletrodomésticos etc., etc. Nos dentifrícios, por exemplo, com o objetivo de
torná-los saborosos e refrescantes temos nas suas composições entre outros
elementos, sódio, bário, bromo, cálcio, cobalto, cobre, ferro, zinco.
93
Ao utilizá-los
diariamente, poucas pessoas refletem sobre as suas composições, ou seja, houve
uma construção de um em si (dentifrício).
Ernesto “Che” Guevara, em uma de suas viagens pela América Latina,
visitara Machu Picchu, e após publicou um artigo no qual fez seguinte pergunta:
Mas onde se podem admirar ou estudar os tesouros da cidade indígena? A
resposta é óbvia: nos museus dos Estados Unidos.
94
Caro “Che”, todos nós
sabemos que grande parte da dita riqueza cultural dos povos antigos foi pilhada e
se encontra nos museus das principais capitais européias e norte-americanas: do
Egito antigo aos povos pré-colombianos, da África sub-saariana aos índios
brasileiros. Além, é claro, de milhares de aquisições em leilões no mundo inteiro.
Entretanto, “Che”, os conhecimentos sobre Machu Picchu que encontramos nos
museus estadunidenses e europeus são conhecimentos construídos localmente
(conhecimentos estadunidenses e conhecimentos europeus) que são
predominantes porque são mais robustos e, consequentemente, globalizados. Em
93
D´OLIVEIRA, Elisabete C. e outros. “Determinação da composição elementar de dentifrícios por
meio da análise por ativação neutrônica instrumental. 29ª. Reunião Anual da Sociedade Brasileira
de Química. Elementos encontrados nas marcas de dentifrícios, Close up, Colgate, Gessy, Sorriso,
Suavy Dent e Tandy, disponíveis no mercado brasileiro e que foram analisadas: Na, Ba, Br, Ca,
Ce, Co, Cu, Eu, Fé, Hf, La, Lu, Nd, Sc, Sr, Ta, Zn, Zr e Th. Disponível em:
<http://sec.sbq.org.br/cd29ra/resumos/T0895-1.pdf>. Acesso em: 01 nov. 2009.
94
CASTAÑEDA, Jorge. Che Guevara: a vida em vermelho. São Paulo: Companhia das Letras,
2006, p. 73.
53
Machu Picchu também elementos suficientes para serem construídos outros
conhecimentos (locais) sobre esta cidade sagrada dos incas, mas no momento,
com menos aliados, logo menos robusto que aqueles.
Caro “Che”, não a História; histórias construídas, como uma das
histórias construídas sobre você: Limparam seu rosto, sereno e claro, e
descobriram-lhe o peito dizimado por quarenta anos de asma e um de fome no
árido Sudeste boliviano. Depois o estenderam no leito do hospital de Nuestra
Señora de Malta, alçando sua cabeça para que todos pudessem contemplar a
presa caída. Ao recostá-la na lápide de concreto, soltaram as cordas que serviram
para atar suas mãos durante a viagem de helicóptero desde La Higuera, e
pediram à enfermeira que o lavasse, penteasse e inclusive escanhoasse parte da
barba rala que tinha. Quando os jornalistas e populares curiosos começaram a
desfilar, a metamorfose já era completa: o homem abatido, iracundo e esfarrapado
até as vésperas da morte se convertera no Cristo de Vallegrande, refletindo nos
límpidos olhos abertos a tranqüilidade do sacrifício consentido.
95
De forma
semelhante, republicanos brasileiros de 1889, construíram uma narrativa de
acontecimentos do século XVIII, nas Minas Gerais, chamado-a de Inconfidência
Mineira (inimaginável no período monárquico), como a origem das lutas
republicanas na colônia portuguesa, que inclui a construção de um Tiradentes
como mártir republicano à semelhança de um Cristo esquartejado, que vemos na
tela de Pedro Américo
96
.
95
CASTAÑEDA (2006), p. 13.
96
Pedro Américo de Figueiredo e Melo (1843-1905), pintor que privilegiou temas históricos de
caráter romântico. O trabalho a que me refiro aqui tem o título de Tiradentes esquartejado”, de
1893.
54
Che Guevarra morto.
97
97
Disponível em; http://2.bp.blogspot.com/_uA9uJrr-
FGY/SXuv_cOHYfI/AAAAAAAAARU/O8gMiTMaIE8/s400/che+logo+ap%C3%B3s+morte.jpg.
Acesso em: 12 ago. 2010.
55
Fotos do cadáver de Che Guevara (o “Cristo de Vallegrande”) feitas por
Freddy Alborta Trigo (1932-2005), cineasta e fotógrafo boliviano.
98
98
Disponível em: http://edant.clarin.com/suplementos/zona/2005/10/30/fotos/t028dh02.jpg. Acesso
em: 12 ago. 2010.
56
“Tiradentes esquartejado” (1893), de Pedro Américo (1843-1905)
99
A teoria ator-rede é o método que utilizamos para puxar o fio de Ariadne
100
dessas histórias estabilizadas ou em vias de se estabilizar e assim, desafiná-
las. Ator-rede porque todo ator é um atuante (actante), que desempenha e sofre
ações. Rede porque é construído por fluxos heterogêneos e contribui para a
construção de outros atores-rede, que por sua vez... Todo fato, artefato,
sociedade, instituição, natureza, ser... têm como características uma constituição
99
Disponível em:
http://www.ensinoonline.com.br/provas/Unesp%20(Universidade%20Estadual%20Paulista)/2008/1
%C2%BA%20Semestre/images/Prova%20-%20Conhecimentos%20Gerais_img_63.jpg. Acesso
em: 27 ago. 2010.
100
Atenas pagava a Creta um tributo anual de sete rapazes e sete moças que seriam entregues ao
Minotauro, que se alimentava de carne humana. Teseu, um herói ateniense, solicitou ser incluído
entre eles. Em Creta, recebeu de Ariadne, filha do rei Minos, um novelo que desenrolou ao entrar
no labirinto, onde vivia o Minotauro, para encontrar a saída. Teseu matou o Minotauro e, com o fio
que desenrolara, encontrou o caminho de volta.
57
de fluxos heterogêneos e, portanto, é um e um híbrido de uma complexa rede
de elementos heterogêneos. Tudo que existe existe a partir de relações. A
teoria ator-rede propõe uma abordagem metodológica através da qual
compreendamos que tudo deve ser visto, inicialmente, como uma vasta planície
sem acidentes geográficos (“o mar - é lago sereno, o céu - um manto
azulado...”)
101
, e não, a partir de camadas, níveis, estruturas, conjunturas,
categorias, sistemas, hierarquias, fronteiras, territórios. Desta forma, não devemos
assumir nada a priori: determinismos, relação causa-conseqüência, evolução,
progresso, racionalidade, generalizações, estruturas, contextos, como também,
não devemos separar artefatos, fatos, instituições e pessoas etc., senão
estaremos condicionando a construção que daremos início. Importante: nós,
actantes, devido às nossas estabilizações somos locais, contingenciais,
provisórios e precários. Tudo/todos estamos por um triz...
Voltando, ... para que serve a história? Na oficina do historiador, da
mesma forma nos laboratórios, são construídos argumentos a partir de
ingredientes considerados autênticos e aceitáveis no período. Há poucas décadas,
testemunhos orais eram vistos, no máximo, como documentos auxiliares dos
documentos escritos. Ao longo do século XIX, documentos históricos eram os
documentos de Estado e/ou os das elites. Jules Michelet (1799-1874), historiador
francês, inúmeras vezes foi citado como um literato e não como um historiador
porque utilizava depoimentos orais, panfletos, jornais, crônicas, ficções para
construir suas histórias. Nós, historiadores, construímos, no presente, uma história
respeitável a partir de documentos e experiências e de uma forma de expor o
conteúdo, cujos efeitos de verdade nos transportam para uma ambiência
verossímil.
Claro, eu tenho consciência dos perigos que me envolvo ao afirmar que o
rei está nu; ao fazer críticas à historiografia realista. Entretanto, mostrar
engrenagens e entranhas é desmitificar. Otto Von Bismarck (1815-1898) afirmou
101
ABREU, Casimiro de (1839-1860). Meus oito anos.
58
que, se o povo soubesse como são feitas as leis e as salsichas [e os artefatos,
acrescento], não dormiria tranquilo. Hans Castorp, personagem de A Montanha
Mágica, de Thomas Mann, decepcionou-se com Madame Clawdia Chauchat, por
quem se apaixonara durante sua estada em um sanatório para tratamento de
doenças respiratórias, localizado em Davos, nos Alpes suíços. Pediu-lhe uma
fotografia e Madame Chauchat deu-lhe de presente uma chapa de raio X de seus
pulmões tomados pela tuberculose.
Inscrição de uma tuberculose pulmonar.
102
Caro leitor, suponhamos que passado o choque e tendo a chapa de raio X
nas mãos e o coração cheio de amor, Hans Castorp procura um médico do
sanatório para que lhe explique sobre aquelas inscrições
103
(manchas) sobre a
102
Disponível em: http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/tuberculose/imagens/tuberculose-
1.jpg. Acesso em: 26 ago. 2010.
103
Inscrição é toda materialização a partir de um signo. Este signo pode ser um traço, as
ondulações de ondas de rádio, as linhas que sobem e descem de um cardiograma, os sons
emitidos de um contator geiger, uma cartografia, um índice, uma estatística, um gráfico, uma nota
de um teste, o resultado de uma ultrasonografia, diagramas etc. Graças às inscrições, podemos
controlar uma situação em que estamos imbricados. Tendo em mãos essas inscrições posso levá-
las comigo e farei materializações quando desejar. As inscrições são móveis, pois permitem
inúmeras traduções/translações e articulações, são imutáveis para evitar que no vai e vem de
acumulação de conhecimento não haja distorções, decomposições ou deterioração.
59
chapa. Após os cumprimentos de praxe, Castorp entrega ao dico a chapa de
raio X e este a coloca diante de uma lâmpada que pende do teto da sala: - Veja,
Castorp, aponta o médico, estes nódulos no pulmão esquerdo e estes no pulmão
direito, ambos estão totalmente tomados. - Como tomados, doutor? - Veja, diz o
médico, estas cavidades provocadas pela doença. Madame Chauchat tem uma
tuberculose em estado muito avançado. - Então... estas manchas são a
tuberculose?, pergunta Castorp, contrariado. - Sim, diz o médico. - O senhor tem
certeza?, insiste Castorp. - Sim, estudei anos sobre esta doença, escrevi artigos,
tenho um considerável número de obras sobre o assunto, participei de congressos
e vi milhares dessas chapas, respondeu o medico demonstrando certa irritação.
Castorp agradeceu o saiu cabisbaixo.”
Dias após, o médico e Castorp se encontram nos jardim interno do
sanatório. - Castorp mais tarde a ala dos laboratórios, estarei trabalhando.
Deixarei uma autorização para você entrar. Após se identificar, Castorp penetra
em um ambiente frio, cujo silêncio é imaculado apenas pelo barulho de borbulhas,
fervuras e chiados de pequenos animais. O médico trabalhava em um canto, ao
ver o visitante, convida-o a se aproximar. - Olhe aqui neste microscópio, verá o
bacilo de Koch, o causador da tuberculose. Castorp, olha e vê uma imagem
borrada e tremida. - Viu? - Vi, reponde Castorp. - Isso é o bacilo de Koch? É,
respondeu o médico, não acredita? - Queira desculpar-me, e se eu disser que não
acredito? - Como não acredita, eu estou dizendo que é o bacilo de Koch, causador
da tuberculose. Como não acredita? Convenhamos, Sr. Castorp. Sei da sua
paixão por Madame Chauchat, mas a ciência não mente e não se engana. sei,
o Sr. quer brincar de gato e rato. Aceito. Acompanhe-me vou lhe mostrar algo.
Ambos entram em uma sala e o médico aponta para um massa cinzenta com
manchas. - Veja isso é um pulmão tomado de tuberculose. Venha mais até aqui,
veja, neste setor fazemos experiências com substâncias neste pequenos
mamíferos que mantemos os pulmões expostos para observarmos com maior
precisão. Está convencido? Castorp não diz sim nem não. - Caso queira saber
mais sobre o assunto vá a nossa biblioteca, lá temos um grande número de
60
publicações sobre esse assunto. Qualquer dúvida me procure, estarei pronto a lhe
responder. Faça-me uma visita, mostrarei ao Sr. um artigo que estou escrevendo
para o Congresso Internacional sobre doenças pneumológicas, que ocorrerá no
mês que vem, estarão presente os mais ilustres nomes dessa especialidade.
Antes de se despedirem, o médico em um tom professoral diz: - Sr. Castorp, se
me permite, não deixe que o coração embarace a sua mente. Infelizmente, o
estado de Madame Chauchat é muito grave, inclusive atingiu a laringe, os ossos
e as articulações.
O doutor da história acima, para convencer Castorp, trouxe para próximo de
si inúmeras inscrições estabilizadas e, portanto, menos afeitas a distorções,
decomposições ou mesmo esquecimentos e combinou-as de maneira a exercer
influência e controle mesmo quando à distância. Castorp não tinha a
capacidade de ir e trazer as coisas (biografias ilustres, bibliografia ampla,
congressos, artigos, instituições etc.), restou-lhe ouvir o médico e seguir a sua
vida.
Apesar de já termos vivido o suficiente para perdermos a na sentença do
Iluminismo de que a razão, a ciência, a tecnologia, a liberdade, a felicidade e a
cidadania caminham juntas, esta sentença, como Fêniz, ressurge mesmo quando
é dada como morta. A urna eletrônica brasileira é um exemplo de um artefato
impregnado desses valores. Entretanto, como também disse, tudo/todos estamos
por um triz... Ocasionalmente nós nos vemos assistindo a ordens ruírem.
Organizações ou sistemas que sempre assumimos como estáveis a União das
Repúblicas Socialistas Soviéticas, ou a Illinois Continental desapareceram.
Comissários, magnatas e capitães da indústria desaparecem da vista. Esses
perigosos momentos oferecem mais do que uma esperança política. Porque
quando os alçapões escondidos da mola social se abrem, nós, de repente,
descobrimos que os mestres do universo podem tamm ter os pés de barro.
104
104
LAW, John. Notas sobre a teoria do ator-rede: ordenamento, estratégia e heterogeneidade.
Tradução: Fernando Manso, p. 1. No original: Just occasionally we find ourselves watching onthe
sidelines as an order comes crashing down. Organizations or systems which we had always taken
61
Artigo 4
A urna eletrônica brasileira e o funcionamento
dos Tribunais Eleitorais.
Onde se verá a arquitetura e preparação da urna eletrônica brasileira pelos
Tribunais Eleitorais, o funcionamento destes e exemplos de possíveis fraudes.
Tic-tac, tic-tac; crack, crack; zuuummm,
zuuummm; ziiimmm, ziiimmm; vruuummm,
vruuummm; treck, treck; bruuummm,
bruuummm; track, track; teck, teck; blimm,
blimm...
(Sons de engrenagens)
Descrever um artefato é dizer sobre o local em que está imbricado. Todo
artefato é um híbrido de inúmeros fluxos heterogêneos. Dentre as
traduções/translações que podemos fazer da atual arquitetura da urna eletrônica
brasileira estão a nossa democracia liberal e o funcionamento da Justiça Eleitoral
brasileira. Antes de seguir, devo esclarecer, para o bem da historiografia, que as
especificações que apresentarei abaixo se referem ao modelo UE/96, que a cada
versão sofreu insignificantes alterações, não alterando a sua arquitetura,
preparação, manuseio e propósito estabilizados.
O conjunto urna eletrônica microterminal e terminal do eleitor , utilizado
nas eleições para os poderes executivos e legislativos brasileiros desde 1996, faz
parte do Sistema Informatizado de Eleições (SIE). Integram ainda este sistema,
no que concerne às suas máquinas, os computadores e a chamada infra-estrutura
de comunicação do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e dos Tribunais Regionais
for granted the Union fo Soviet Socalist Republics, or Continental Illinois are swallowed up.
Commissars, moguls, and captains of industry disappear from view. These dangerous moments
offer more than political promise. For when the hidden trapdoors of the social spring open we
suddenly learn that teh masters of teh universe may also have feet of clay.
62
Eleitorais (TREs), os quais juntos as mais de duas mil e setecentas zonas
eleitorais constituem a Justiça Eleitoral brasileira.
Conjunto urna eletrônica: microterminal e terminal do eleitor.
105
O microterminal tem as funções de identificar o eleitor, liberá-lo para votar,
suspender o voto, iniciar e reiniciar o terminal do eleitor e encerrar a votação. É
uma unidade compacta de plástico, vídeo de cristal líquido (LCD Liquid Crystal
Display) com 40 colunas e 2 linhas, teclado numérico de 0 (zero) a 9 (nove) na
mesma disposição dos teclados de telefones, 2 teclas de função (CONFIRMA e
CORRIGE); a primeira é utilizada para dar entrada aos dados digitados e para
liberar o voto. As informações inseridas no microterminal, pelo presidente da
seção eleitoral, são processadas no terminal do eleitor, pois ambos se comunicam
através de um cabo conectado em uma interface serial padrão RS-232C
106
embutido para evitar, por acidente, que ocorram interrupções nas comunicações
entre os artefatos. Há, ainda, no microterminal, sinais LEDs (Light Emitting Diode):
luz vermelha piscando indica que a urna eletrônica está funcionando com bateria;
luz amarela indica que o eleitor está votando; luz verde que a urna eletrônica está
liberada para o próximo eleitor.
105
Disponível em: http://www.tre-se.gov.br/imagens/voto_informatizado1.JPG. Acesso em: 10 abr.
2009.
106
RS-232C é um padrão de troca serial de dados binários entre um terminal de dados e um
comunicador de dados. Na interface serial, os bits de dados são transferidos de cada vez.
63
Microterminal.
Parte posterior do microterminal.
107
107
Disponível em: http://www.tre-pb.gov.br/eleicoes/2008/imagens/mt.jpg . Acesso em: 27 ago.
2010.
64
Um cabo que conecta o microterminal ao terminal do eleitor em uma
interface serial RS-232C.
108
Uma porta serial RS-232C.
109
O terminal do eleitor, no qual está toda a capacidade de processamento e
armazenamento de informações, é composto de teclado, monitor de cristal líquido
108
Disponível em: http://images03.olx.com.br/ui/6/34/40/1277038464_61133440_4-cabo-serial-
rs232-null-ultilizado-para-desbloquear-receptores-digitais-e-atualizar-Eletronica-1277038464.jpg.
Acesso em: 26 ago. 2010.
109
Disponível em: http://images.lexmark.com/vgn/files/portal/14F0100_lg.jpg. Acesso em: 28 ago.
2010.
65
e anti-reflexivo, impressora (imprime relatório de diagnóstico da urna e teste da
impressora
110
, zerézima
111
e boletim de urna
112
), acionador de disquete de 3,5
polegadas, slot para inserção de cartão de memória do tipo flash. elementos
de controle e segurança (sensores para verificação da bateria interna, da
impressora etc.) e um microcomputador (controle dos sensores e do teclado do
terminal do eleitor). O teclado é composto de teclas numéricas (pretas) de 0 a 9,
na mesma disposição dos telefones e teclas de função: VOTAR EM BRANCO
(branca), CORRIGE (laranja) e CONFIRMA (verde). Este teclado apresenta
caracteres em Braille e feedback audível quando uma tecla é pressionada. Todos
os dispositivos de entrada e saída são acessíveis do exterior do terminal, exceção
para o flash card interno. Todos dispositivos externos possuem tampas e são
lacrados após o carregamento e assim permanecem até o encerramento da
votação.
110
Relatório de diagnóstico da urna e teste da impressora: documento que registra o estado de
funcionamento geral da urna eletrônica (CPU, memória, teclado, vídeo, sensor da fonte,
impressora etc.) como satisfatório ou insatisfatório. também as seguintes informações:
localização (unidade federal, município, local, zona, seção), código de identificação da urna
eletrônica, número de eleitores naquela seção), resumo de correspondência, indicação se
porventura há alguma falha, data e hora.
111
Zerézima: documento emitido após o processo de inicialização da urna eletrônica, indicando
que não há votos registrados antecipadamente.
112
Boletim de urna: documento emitido ao final da votação, contendo as seguintes informações:
total de votos por partido, total de votos por cada candidato, total de votos em branco, total de
votos nulos, total de eleitores que votaram, identificação da seção e zona eleitorais, hora do
encerramento da eleição, código interno da urna eletrônica e sequência de caracteres para
validação do boletim. Uma cópia do boletim é gravada no disquete removível, criptografada, para
ser utilizada na apuração.
66
Terminal do eleitor.
Parte posterior do terminal do eleitor.
113
113
Disponível em: http://static.hsw.com.br/gif/urna-eletronica-modelo-96.jpg. Acesso em: 28 ago.
2010.
67
Acionador de disquete de 3.5 polegadas.
Cartão de memória do tipo flash.
114
Teclado do terminal do eleitor.
115
O conjunto urna eletrônica utiliza o sistema operacional VirtuOs
(multithreaded), que possibilita o compartilhamento dos diferentes processos
114
Disponível em:
http://www.buffaloinformatica.net/imagens/buffaloinformatica.net/produtos/Cartao%20SD/Cartao_d
e_Memoria_SanDisk_SDCFH-004G-A11_Ultra_II_Compact_Flash_15MBs_4GB.jpg. Acesso em:
18 ago. 2010.
115
Disponível em: http://www.quatrocantos.com/LENDAS/imlendas/teclado.gif. Acesso em: 28 ago.
2010.
68
executados simultaneamente. Algumas funções foram implementadas em
firmware, conjunto de instruções operacionais programadas diretamente no
hardware, e armazenadas no momento da fabricação na Extensão do BIOS
116
,
para impedir a inicialização da urna eletrônica a partir do acionador de disquete.
BIOS (Basic Input/Output System) Sistema Básico de Entrada/Saída.
Na área de memória (CMOS) ficam guardadas informações sobre os
periféricos instalados e a configuração inicial do computador, além do relógio e
calendário. Como a memória e o relógio precisam ser preservados mesmo com o
computador desligado, são alimentados por uma pequena bateria de lítio.
Memórias não voláteis (guardam todas as informações mesmo quando não
recebem alimentação) EEPROM (electrically erasable programable read only
memory memória programável e apagável eletronicamente somente de leitura)
são utilizadas para armazenamento de informações próprias de cada urna
116
Sistema Básico de Entrada/Saída (Basic Input/Output System). É um programa pré-gravado em
uma memória permanente (firmware) executado quando ligado. Este programa é responsável pelo
acesso ao hardware e serve para iniciar a carga do sistema operacional.
69
eletrônica e informações necessárias para autenticação e criptografia
117
. Os
programas utilizados em uma eleição são idênticos para todas as urnas
eletrônicas, independente do local de votação, cuja inseminação é realizada no
TSE; enquanto que as tabelas de eleitores e candidatos aptos a votar e a receber
votos nas respectivas seções são inseminados nos TREs.
Compõem ainda o SIE o transportador, o totalizador e sistemas auxiliares.
O transportador, conjunto de aplicativos instalados em uma máquina sob a guarda
de um juiz eleitoral, faz a leitura do disquete retirado da urna eletrônica e o
transmite para um centro de totalização. O totalizador tem a função de receber os
dados enviados pelos transportadores, extrair o resultado de cada seção eleitoral
e totalizar os dados da eleição. A transferência dos dados do transportador ao
totalizador ocorre através de uma rede de computadores privada. A integridade
física da rede é garantida pelo isolamento do local de apuração e pela
restrição do acesso aos computadores de rede, permitido somente a
pessoas autorizadas.
118
(grifo meu)
117
Transformação de uma informação original em ilegível. Essa informação será conhecida apenas
pelo detentor da chave secreta, sendo apenas esse destinatário capaz de decodificar tal
informação.
118
Avaliação do Sistema Informatizado de Eleições (Urna Eletrônica), UNICAMP, maio de 2002, p.
14.
70
Uma máquina com um transportador, um conjunto de aplicativos que faz a
leitura do disquete retirado da urna eletrônica e o transmite para um centro
de totalização.
Os totalizadores são colocados no TREs ou zonas-mãe eleitorais.
Constituem o totalizador: rotinas criptográficas para o deciframento dos boletins de
urna; aplicativos para verificação de consistência e autenticidade dos boletins de
urna; aplicativos para leitura dos dados e acumulação dos votos; sistema
gerenciador de banco de dados Oracle; aplicativos para divulgação dos resultados
nos municípios. Nas eleições municipais a totalização acontece nas zonas-mãe.
Nas estaduais nos TREs. Nas eleições presidenciais acontecem totalizações
parciais nos TREs, que são transmitidos ao TSE, que por sua vez totaliza-os. A
instalação e a operação do software do totalizador são feitas de forma
controlada, com usuários cadastrados e a utilização de senhas e contra-
senhas. A ativação dos programas é feita de forma oficial, com a presença
do Juiz Eleitoral, que deve fornecer no ato a sua senha pessoal.
119
(grifo
meu)
119
Avaliação do Sistema Informatizado de Eleições (Urna Eletrônica), UNICAMP, maio de 2002, p.
15.
71
O sistema auxiliar é composto do gerador de mídia (GM) e do subsistema
de instalação e segurança (SIS). Ponto de convergência entre o TSE e os TREs,
encontramos no gerador de mídia os programas e dados produzidos no TSE e os
dados (tabelas de eleitores, candidatos e partidos) produzidos nos TREs. Estas
informações são transferidas para o flash card de carga, que serve para a
inseminação das urnas eletrônicas. Tem, também, a função de recuperar as
tabelas de correspondência do processo de inseminação que ficam armazenadas
no flash card de carga e gravar o flash card de votação e os disquetes utilizados
durante a eleição. Todas as informações contidas no gerador de mídia são
transferidas ao totalizador para, durante a totalização, verificar a consistência dos
dados.
O SIE compõe-se também de controle de distribuição, armazenamento e
acompanhamento das urnas eletrônicas; controle do cadastro de eleitores;
controle do registro de candidatos.
No TSE, os órgãos de atividades administrativas submetidos
hierarquicamente à Presidência, à Secretaria-Geral da Presidência e à Secretaria
do Tribunal são as Secretarias Judiciárias; de Controle Interno e Auditoria; de
Planejamento, Orçamento, Finanças e Contabilidade; de Administração; de
Gestão de Pessoas; de Tecnologia da Informação; de Atenção à Saúde; de
Gestão da Informação. Junte-se a Corregedoria Geral Eleitoral, a Escola Judiciária
e Ministros da casa, todas de relações funcionais.
A Corte do TSE processa e julga registros e cassações dos partidos
políticos e diretórios nacionais, de candidatos à presidência e vice-presidência da
República e concede habeas corpus ou mandados de segurança em matéria
eleitoral, relativos aos atos do presidente da República, ministros de Estado e
Tribunais Regionais. Também interpreta a legislação e decide em grau de recurso
sobre as decisões dos TREs. O TSE e os TREs têm uma organização funcional
semelhante dentro da suas esferas de competência. Cabe aos TREs processar e
72
julgar o registro e o cancelamento dos diretórios partidários estaduais e
municipais, registros das candidaturas a governador e vice-governador, membros
do Congresso Nacional e das Assembléias Legislativas; e ainda organizar o
cadastro dos eleitores da sua unidade federal e decidir, em primeira instância,
sobre pedidos de revisão eleitoral, impugnação de candidatos, votos e eleições.
120
As zona eleitorais são presididas por um juiz eleitoral
121
indicado pelos
respectivos TREs. Cabe a estas receber os pedidos de cadastramentos de
eleitores, de candidatos e de filiação partidária, expedição de títulos eleitorais,
transferência de eleitores, recrutamento de pessoal para as eleições,
credenciamentos de fiscais partidários e observadores. Nos períodos eleitorais
são criadas juntas eleitorais, sob um juiz de Direito do Estado ou do Distrito
Federal, que exerce a função de juiz eleitoral, que acompanhará todo o processo
eleitoral. As juntas eleitorais apuram as eleições nas zonas eleitorais de sua
jurisdição; resolve impugnações e demais problemas que ocorram durante os
trabalhos de totalização e apuração e expede os boletins de apuração e os
diplomas dos eleitos para os cargos municipais.
120
Tribunal Superior Eleitoral: Órgão máximo da Justiça Eleitoral. A composição da Corte
formada por três ministros do Supremo Tribunal Federal, dois ministros do Superior Tribunal de
Justiça e dois juristas e as competências estão previstas no Código Eleitoral. Presidido por um
dos ministros do STF, o TSE elege, ainda, dentre os ministros do STJ, o seu corregedor-geral. O
TSE coordena todos os trabalhos eleitorais no País, julga recursos interpostos das decisões dos
TREs e responde, sobre matéria eleitoral, às consultas que lhe forem feitas e tese por autoridade
com jurisdição federal ou órgão nacional de partido político.Tribunal Regional Eleitoral: Órgão
regional da Justiça Eleitoral. A sede de cada Tribunal Regional se encontra na capital dos estados
e no Distrito Federal. Os regionais m sua composição e competência estabelecidas no Código
Eleitoral. A Corte Regional compõe-se de dois juízes dentre os desembargadores do Tribunal de
Justiça, dois juízes de direito escolhidos pelo Tribunal de Justiça, um juiz federal e, nomeado pelo
presidente da República, dois cidadãos indicados pelo Tribunal de Justiça em lista sêxtupla. Dentre
suas competências, destacam-se as de cumprir e fazer cumprir as decisões e instruções do TSE;
organizar o fichário dos eleitores; responder, sobre matéria eleitoral, às consultas que lhe forem
feitas em tese por autoridade pública ou partidos políticos; apurar os resultados finais das eleições
para governador, vice-governador e membros do Congresso Nacional e expedir os diplomas dos
eleitos. Folheto publicado pela Coordenadoria de Biblioteca e Editoração/Secretaria de
Documentação e Informação/Tribunal Superior Eleitoral-TSE.
121
Ibid. Juiz Eleitoral: Autoridade a quem cabe a jurisdição de cada zona eleitoral. Dentre suas
competências, estão as de cumprir e fazer cumprir as decisões e determinações do TSE e dos
tribunais regionais. Das instâncias da Justiça Eleitoral, é a que se encontra mais próxima do eleitor
e dos candidatos locais e à qual o cidadão deve se dirigir quando for se alistar, solicitar segunda
via ou transferência do título eleitoral ou, ainda, resolver qualquer questão pertinente à Justiça
Eleitoral.
73
Normas são enquadramentos (A, B e C acordam e X, Y e Z não participam
porque não podem ou não querem). Enquadramentos têm um preço (alocação de
recursos) para criar uma ordem a partir de desordens
122
(por falta de um termo
mais apropriado, direi que é uma outra lógica organizativa) A possibilidade de
transbordamentos é permanente, pois actantes promovem relações entre
externalidades e internalidades. No processo eleitoral brasileiro, a Justiça Eleitoral
organiza, fiscaliza, julga e, caso haja crime eleitoral, pune.
É importante ressaltar que nas entrevistas que fiz com funcionários da
Justiça Eleitoral ou em simples perguntas en passant sobre a urna eletrônica e o
processo eleitoral, sempre recebi respostas vagas: talvez; deve ser; não saberia
responder; quem sabe?; seria melhor você perguntar a uma outra pessoa...
Conclui que entre os funcionários um certo receio de dar uma opinião, como
também um conhecimento muitíssimo pequeno do processo eleitoral
informatizado, exceção, óbvia, para os técnicos da área de informática. Da mesma
forma, de modo geral, representantes dos partidos, fiscais de eleições,
representantes do Ministério Público, pessoas que são convocadas para trabalhar
nas eleições vêem o processo eleitoral como uma caixa-preta, onde atuam
somente nas bordas e teclas do processo. Acrescento a este escasso
conhecimento, a esmagadora população brasileira. Assim, do meu ponto de vista,
caberia um investimento para constituir um contra-laboratório, caso essa
modalidade de eleição não seja substituída por outro de domínio geral. Para esta
minha argumentação tomo como base o que definiu a Corte máxima alemã, que
citei no artigo 1 desta Tese: ...um ‘evento público’ como uma eleição implica
que qualquer cidadão possa dispor de meios para averiguar a contagem de
votos, bem como a regularidade no decorrer do pleito, sem possuir, para
isso, conhecimentos especiais.
122
CALLON, Michel. An essay on framing and overflowuing: economic externalities revisited by
sociology” in The Laws of markets. The Editorial Board of The Sociological Review, 1998,
Published by Blackwell Publishers, 108 Cowley, Oxford OX4 1JF, UK and 350 Main Street, Malden,
MA 02148, USA, p. 244-269. Latour, Bruno & Woolgar, Steve. “A ordem criada a partir da
desordem” in A vida de laboratório. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1997, p. 265-298.
74
Em um ano eleitoral etapas que precedem e preparam o dia da eleição.
Primeiro uma preparação do edital de licitação para a aquisição do hardware,
do desenvolvimento do software e para os serviços técnicos para a preparação e
instalação das urnas. Sendo a empresa vencedora da licitação responsável por
estes procedimentos e, portanto, sendo diferentes produtos, teremos diferentes
fluxos para as entregas. As urnas eletrônicas saem das bricas somente com o
BIOS e a extensão do BIOS. Todos os softwares, especificados no edital,
necessários para o funcionamento das urnas eletrônicas são adicionados no
processo de inseminação. Este processo é realizado gradativamente e o TSE
recebe e testa os programas através de simulações com dados fictícios
semelhantes aos reais. Aprovado o programa, a urna eletrônica é enviada para as
etapas seguintes.
A versão final do código-fonte é precedida de uma preparação pela equipe
do TSE, quando são inseridas as chaves e as rotinas criptográficas; após a
reunião e a produção de códigos executáveis. Por lei, os códigos-fonte são
colocados à disposição dos partidos por alguns dias e, posteriormente, o
copiados em CDs e lacrados em envelopes com a assinatura dos representantes
de partidos. Estes CDs ficam sob a guarda do TSE. A compilação do código-fonte
no TSE é feita em uma máquina fora da rede, em um local restrito e seu uso
registrado em logs.
No processo de inseminação é possível uma fraude através de clonagem.
Por exemplo, uma urna-eletrônica verdadeira com um programa original e
registrada na Tabela de Correspondências Esperadas é trocada por uma outra
verdadeira, preparada, mas não registrada. Como se produz este tipo de fraude?
Os los de Carga, levando em conta possíveis problemas técnicos, recebem um
número superior de urnas ao número de seções eleitorais (na eleição renovada
em Campos de Goytacases, RJ, em março de 2006, havia 1300 urnas-e
75
disponíveis no Pólo de Carga, mas apenas 780 seções eleitorais”.)
123
. Uma urna
eletrônica não registrada é preparada a partir da cópia do flash de carga tirada de
um computador que tenha leitor de cartões tipo flah-card. Feita a cópia, a urna
eletrônica não registrada é levada à seção eleitoral, enquanto a urna eletrônica
registrada é levada para um outro local, onde será carregada com votos falsos e,
em consequência, zerézima, boletim de urna e disquete falsos, que serão aceitos
pelo sistema de totalização, apesar dos bloqueios lógicos e criptográficos. Por fim,
a documentação produzida na seção eleitoral é trocada pela documentação falsa
das urnas registradas.
Retomo a afirmação encontrada no documento da UNICAMP sobre a
avaliação do SIE: A integridade física da rede é garantida pelo isolamento do
local de apuração e pela restrição do acesso aos computadores de rede,
permitido somente a pessoas autorizadas.
124
(grifo meu). Creio que aqui
temos o grave problema para a aceitação da urna eletrônica: os momentos
cruciais estão nas mãos de um grupo reduzido de pessoas. Infelizmente, as
instituições públicas brasileiras carecem de credibilidade.
Acesso limitado a poucas pessoas autorizadas. Isto permite a introdução da
seguinte fraude no programa da urna. Por exemplo: um pigmento na foto do
candidato; uma seqüência aleatória de números a partir do toque da primeira tecla
ou do toque na tecla CONFIRMA atuariam como um gatilho para um programa
que estabeleceria que a cada 10 votos para o candidato A, 4 iriam para o
candidato B e que esse programa se desintegraria às 17 horas, horário previsto
para o encerramento da votação. O software malicioso pode roubar votos e pode
cobrir as suas pistas de forma a que o furto não possa ser detectado. [...] Qualquer
123
FILHO, Amílcar Brunazo & CORTIZ, Maria Aparecida. Fraudes e defesas no voto eletrônico.
São Paulo: All Print Editora, 2006, p. 51.
124
Avaliação do Sistema Informatizado de Eleições (Urna Eletrônica), UNICAMP, maio de 2002,
14.
76
pessoa que tenha acesso à urna-eletrônica poucos minutos antes da eleição pode
instalar o código malicioso.
125
Quero esclarecer que as fraudes citadas e as veiculadas em sítios sobre o
tema estão no plano teórico e de indícios muito fortes, visto que, mesmo os casos
mais evidentes (São Domingos-GO, Diadema-SP, Santo Estevão-BA, Araçoiaba
da Serra-SP
126
, Camaçari-BA, eleições para governador de Alagoas em 2006,
Brasília-DF
127
) esbarram nos labiríticos trâmites da Justiça Eleitoral que, através
125
Disponível em <http://www.it.policy.princeton.edu/voting>. Acesso em: 21 fev. 2010.
126
São Domingos-GO: os técnicos nomeados para a perícia do programa inserido nas urnas
constataram que a perícia tinha sido totalmente inadequada, não se „periciou coisa alguma.
Diadema-SP: o prazo e o transporte das urnas foram irregulares, não houve convocação dos
partidos. Da ata geral de Diadema, consta que duas urnas foram substituídas, mas no relatório dos
logs do TSE vemos que foram onze. Várias foram carregadas no dia da lacração, uma semana
antes.Santo Estevão-BA: o juiz não permitiu que o perito mexesse nas urnas, só olhar por fora.
O perito havia proposta tirar cópias das memórias das urnas para análise. [...] Passado mais de um
ano ainda o foi permitido ao perito tirar estas cópias... [...] Apesar disso, o perito achou fraude
em uma urna que estava lacrada. [...] Os lacres foram colocados, pela ata oficial de carga, no dia
23 de setembro, e estavam todos assinados. [...] Analisamos os arquivos de logs do TSE e
descobrimos que uma urna tinha sido carregada no dia 25, dois dias depois de lacrada, e o lacre
estava íntegro. Araçoiaba da Serra-SP: Não constava da lista da urna eletrônica o nome de
alguns candidatos, vereadores do PT do B. Ao votar num destes candidatos, o eleitor recebia a
informação de que o seu voto era nulo. [...] O eleitor não tem o direito de dizer: „Não consegui
votar, quero votar de outro jeito‟. No papel, por exemplo. O TSE não admite isso. [...] Depois foram
recorrer ao juiz responsável pela aquela zona eleitoral pedindo a anulação da eleição. Ora, este
juiz era o mesmo responsável pela carga das urnas e, obviamente, pelo erro cometido. Ele negou
na hora o pedido alegando causas procedimentais. O pedido foi encaminhado ao TRE, depois para
o TSE, onde foi finalmente reconhecido: houve erro no sistema e a eleição de Araçoiaba da Serra
foi anulada. Isso aconteceu em 2000 e em 2002 uma nova eleição foi marcada. JAKOBSKIND,
Mário Augusto & MANESCHY, Osvaldo. Burla eletrônica. Rio de Janeiro: Fundação Alberto
Pasqualini, do Partido Democrático Trabalhista PDT, p. 30 e 31.
127
Camaçari-BA: As urnas utilizadas nas eleições de de outubro de 2000 e periciadas em 2003
apresentaram irremediável comprometimento da confiabilidade técnica da perícia [...] devido
[por exemplo,] os lacres das urnas eletrônicas estavam todos rompidos quando da coleta dos
flash cards em 12 de setembro de 2002; as urnas eletrônicas utilizadas em 2000 em Camaçari não
foram guardadas intactas, apesar de estarem sub-judice... Trecho do Parecer sobre o laudo
técnico da perícia nas urnas eletrônicas utilizadas nas eleições municipais de 2000, assinados por
Márcio Coelho Teixeira, Roger Delrue Chadel e Amílcar Brunazo Filho, em de julho de 2003, a
partir da perícia judicial realizada por Paulo Seiji Nakaya, designado pelo TSE e consultor técnico
da Secretaria de Informática do TSE e um dos técnicos que participaram do desenvolvimento,
construção e operação do Sistema Informatizado de Eleições do TSE. Apesar [da] omissão em
responder a quesitos que visavam descobrir a VIABILIDADE, a OPORTUNIDADE e PROVAS para
eventuais fraudes, o Perito Judicial [Nakaya] apresentou a conclusão de que: não houve alteração
nos programas das urnas eletrônicas utilizadas na 170ª e 17zonas eleitorais de Camaçari nas
eleições de de outubro de 2000‟.” Eleições para governador de Alagoas em 2006: o resultado
da eleição contrariou amplamente as pesquisas eleitorais; o candidato favorito perdeu no turno.
O relatório preliminar dos auditores [...] detectou que mais de 2,5% das urnas eletrônicas
utilizadas apresentavam arquivos de controle (log) corrompidos...[...] O segundo relatório dos
77
das Cortes do TSE e dos TREs, saliento mais uma vez, organiza, fiscaliza, julga e,
caso haja crime eleitoral, pune.
Por esta descrição do mecanismo de funcionamento do SIE é fácil
constatar, pelo viés do modelo de difusão, que o TSE e os aliados da urna
eletrônica, apesar de apagar e/ou esquecer, construíram uma estabilidade que jaz
neste artefato a partir de suas capacidades de coesão que também jazem em
torno deste mesmo artefato. Para os difusionistas, todas as etapas e mecanismos
funcionam de forma harmoniosa através de uma força centrípeta, sem
interferência da sociedade, na qual está imbricado. O resultado é o que interessa.
Talvez a mais completa tradução de uma caixa-preta seja a publicidade da
Kodak da Eastman: “´Aperte o botão, nós fazemos o resto
128
As caixas-pretas
são cheias de botões que escondem complexidades: Quem aperta o botão não
vê os vendedores e as máquinas que fazem as longas tiras de películas de
celulóide nem os técnicos que fazem a emulsão finalmente aderir de maneira
apropriada; não vê, mas nem por isso eles podem deixar de estar ali. Se não
estiverem, o botão será apertado e nada mais acontecerá.
129
Com a urna
eletrônica acontece o mesmo. Descrever este artefato é dizer do coro dos
auditores externos [...] apontou ainda que mais de 7% das urnas eletrônicas apresentavam
arquivos de controles gerados corrompidos ou com perda de integridade e que os arquivos
de controles registravam 20 mil votos a menos que o total oficial, reforçando a tese de falta de
confiabilidade dos resultados destas urnas. Segundo o Relatório Professor Clovis Torres
Fernandes, professor associado do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) na Divisão de
Ciência da Computação, constatou dentre outros problemas que, Mais de 35% das urnas
eletrônicas utilizadas em Alagoas apresentavam arquivos de controle incompletos ou
corrompidos na sua geração. A extensão do problema de perda de integridade é um número
muito expressivo, pois significa que 1794 das 5166 urnas operaram sem registrar corretamente
todas as suas atividades principais nos logs... Brasília-DF (2002): foi observado que ocorreu o
mesmo tipo de problema que ocorreria em Alagoas em 2006. As conclusões do Relatório do Caso
Brasília também são semelhantes às conclusões do prof. Clóvis e reafirmadas pelo Eng. Brunazo
na audiência na CCJC „pode-se afirmar que nem a justiça eleitoral e nem os partidos
realizaram tal auditoria dado a rapidez com que foram promulgados os resultados do pleito em
suas duas etapas, o que comprova a fragilidade do processo de autoria dos partidos, da
sociedade e, pronuncia a falta de transparência e legitimidade do processo em uso atualmente.
Diante do exposto não é possível, sem os devidos detalhamento e após os esclarecimentos dos
fatos aqui listados, atestar os resultados dessa eleição Disponível em: www.votseguro.org.
Link: Impugnações, Processos e Auditorias. Acesso em: 10 ago. 2010.
128
LATOUR (2000), p. 227.
129
Ibid.
78
contentes e seus aliados. É dizer sobre Justiça Eleitoral brasileira, sobre a
democracia e o pensamento neoliberal brasileiros. É dizer sobre o número
limitado de pessoas com o poder de decisão que controlam o processo
eleitoral nos pontos chaves. É dizer sobre os argumentos modernistas dos
defensores da urna eletrônica. Nesta questão, em particular, dirijo-me ao ministro
Marco Aurélio Alencar, que tem o hábito em seus pronunciamentos, em defesa da
urna eletrônica, trazer um ar irônico e de menosprezo àqueles que defendem a
impressão do voto, argumentando que seria um retrocesso tecnológico. Mais uma
vez, mudo de foco, mas não mudo de tema: Primeiro veio a fita cassete, menor e
mais fácil de arquivar; depois, o CD num pulo tecnológico que conquistou o
mercado; por fim, o MP3, novidade acompanhada pelos downloads ilegais, que
causaram muita dor de cabeça para as gravadoras. [...] Rodrigo Ratto, diretor de
vendas da Universal Music diz que, com a nova fábrica da PolySom, a tendência
é que os novos artistas lancem seus álbuns nos três formados: CD, vinil e DVD.
João Augusto, dono da gravadora independente Deckdisc, lembra que nos
Estados Unidos, a venda de vinis cresceu 89% em 2008.[...] O músico Charles
Gavin, [...] Muitos discos estão sendo lançados em plataforma digital, em CD e
em vinil. O LP é um formato que se soma aos outros, porque propõe uma atitude
diferente. Não é algo que vopode carregar pela rua e ouvir no seu iPod. Você
precisa estar em casa e escutar com calma.‟
130
Dizer sobre um artefato é dizer sobre o local em que está imbricado. Dizer
sobre a urna eletrônica é dizer, por exemplo, da nossa tendência atual
predominante a uma pequena política, através da qual tudo está dado, cabendo
aos políticos e a sociedade apenas agir para melhorar a estrutura, ou seja, apenas
excluir da administração pública os incompetentes e corruptos, apenas incluir os
honestos e competentes; apenas alterar ou encerrar projetos públicos, que não
estão dando certo; apenas colocar pessoas certas em lugares certos; apenas não
politizar a política, ou seja, na expressão do filósofo e professor da Escola de
130
MAIA, Maria Carolina. “LP resiste e deve voltar a ser fabricado no Brasil” in Veja. São Paulo:
Editora Abril, edição de 05 abr. 2009.
79
Serviço Social da UFRJ, Carlos Nelson Coutinho, vivemos um
americanalhamento
131
da política.
Uma significativa alteração na atual arquitetura da urna eletrônica brasileira
não ocorrerá por meio de um suposto avanço tecnológico inexorável, e sim por
processos sociotécnicos e alterações nos fluxos de aliados e de contra-aliados
heterogêneos.
131
Expressão utilizada por Carlos Nelson Coutinho para designar a pequena política e as
semelhanças dos programas dos partidos, segundo o autor tendências dominantes mundialmente,
Revista Caros Amigos, ano XIII, nº. 153, dezembro de 2009, p. 32-35.
80
Artigo 5
Rotina do processo eleitoral brasileiro em
uma seção eleitoral
Onde se verá que o processo eleitoral brasileiro em uma seção eleitoral está
repleto de aspectos sociotécnicos.
Confesso que sou um eleitor sentimental.
Um devoto do voto. Talvez o fato de votar
40 anos no mesmo local tenha algo a
ver com esta renitente na democracia,
que dura mais do que minhas outras
ingenuidades (também acreditei em Papai
Noel e no poder desinibidor do Melhoral
na Cuba Libre.
(VERÍSSIMO, Luís Fernando. O Globo,
03.10.2000)
Por duas vezes, no referendo sobre o comércio de armas de fogo e
munição em 2005; e nas eleições municipais de 2006, eu me ofereci para exercer
o cargo de presidente de seção eleitoral, junto ao Cartório Eleitoral da 50ª Zona
Eleitoral do Estado do Rio de Janeiro, no município de Casimiro de Abreu. É claro
que a chefe do cartório se surpreendeu diante do meu pedido. Trabalhar nas
eleições, para a grande maioria dos cidadãos, é perder um fim-de-semana e
assumir responsabilidades extras, aborrecimento minimizado por três dias de
dispensa do trabalho. Expliquei-lhe, não exatamente com estas palavras, que o
meu pedido estava relacionado ao meu interesse de imbricar-me em um processo
eleitoral de uma seção e, exercendo o cargo de presidente, dividir com o conjunto
urna eletrônica o controle do processo de votação. Dividir?
Os artefatos fazem política? Este é o título da disciplina que me levou ao
encontro dos estudos de ciência-tecnologia-sociedade (CTS), na época ministrada
81
pelos professores Ivan da Costa Marques e Fernando Manso, no Núcleo de
Computação Eletrônica-NCE/UFRJ. Título que causou estranheza aos professores
e alunos de outras áreas e aos funcionários da secretaria da instituição. Nome de
disciplina em forma de pergunta?! Ah! Isso é coisa do pessoal do Ivan;
passaríamos a ouvir com certa freqüência, desde então.
Para grande parte dos cientistas e técnicos os artefatos são entendidos
como neutros, apáticos, discretos, direi assexuados. No entanto, entre nós, dos
estudos de CTS, são híbridos, m vida, obrigando-nos, outros actantes, a
negociar com eles. Negociar: porque todos nós somos actantes resultantes de
relações heterogêneas estabilizadas. Por exemplo, eu, um canhoto, negocio o
tempo todo com artefatos no meu cotidiano: abridores de lata, réguas, ferros de
passa roupa, carteiras universitárias, tesouras, maçanetas; sou obrigado a sentar
à mesa sempre à esquerda de outras pessoas para não acotovelá-las quando das
refeições. Entretanto, o apenas os canhotos, todos negociamos com os
artefatos: lembremos das poltronas dos aviões, das entradas estreitas, das
velocidades dos downloads, dos traçados das estradas quando estamos na
direção de um carro; negociamos com o espaço-tempo, negociamos com as
inscrições (índices dos hemogramas, cardiogramas, tomografias
computadorizadas, ressonâncias magnéticas etc). Quem age é sempre um
híbrido. Exemplos: quem abre uma lata é uma mão+um abridor de lata...; quem
faz uma curva de estrada é um carro+um motorista+um tipo de pavimento...
Uma semana antes das eleições, aqueles que trabalharão nas seções
assistem uma palestra, na qual recebem informações superficiais sobre o
funcionamento do processo eleitoral. Na tarde do dia que antecede às eleições, os
presidentes de seções vão às seções receber o material que será utilizado
(caderno de votação, no qual encontramos a lista dos eleitores aptos a votar em
cada uma das seções, nele o eleitor assina e é destacado o seu comprovante;
formulários de justificativa para o eleitor em trânsito; ata da mesa receptora;
82
blocos de anotações; canetas, envelope para o disquete, crachás, folheto
explicativo do processo, folha com os códigos de suspensão do voto,
encerramento da votação e reinício da urna e, é claro, o conjunto urna eletrônica.)
Preparei o ambiente (em particular, instalação da mesa receptora de votos,
na qual trabalharão o presidente, os dois mesários e o secretário e; colocação da
urna em um espaço que da privacidade ao eleitor). Uma tarefa de suma
importância é verificar na véspera o funcionamento da urna eletrônica. Nas
eleições municipais de 2006, constatei que o terminal do eleitor não iniciava,
apesar de estar ligado à energia elétrica. Chamei um técnico, que após alguns
testes, constatou a inviabilidade do uso daquele terminal. Avisou-me, na ocasião,
que a urna seria substituída apenas na manhã do dia seguinte. Desliguei-a e
desconectei o cabo da tomada. Retirei-me da seção para voltar no dia seguinte às
7:00h.
É corriqueiro as raposas felpudas da politicagem afirmarem que eleições se
ganham, se necessário, nas totalizações e apurações. Será que isto pode
continuar valendo também para os pleitos que utilizam urnas eletrônicas? Eu, em
2006, apenas intuía sobre as possibilidades de fraudes a partir de alterações dos
programas ou introdução de programas nas urnas eletrônicas sem o
conhecimento do público externo ou mesmo interno da Justiça Eleitoral. Grande
parte dos funcionários da justiça eleitoral, dos cidadãos convocados e dos fiscais
de partidos que trabalha no processo eleitoral pouco sabe do informatiquês e se
submete a todo tipo de determinação vinda de funcionários e de autoridades
judiciais e de técnicos contratados para prestarem serviços.
Por que a urna da seção que eu presidi não funcionou? De que local e
mãos vieram ambas; a com defeito e a substituta? Com quem o técnico que fez a
substituição esteve e o que conversaram nas horas precedentes ao pleito? Será
que houve outras substituições no colégio que abrigou outras seções além
daquela que presidi? Será que houve outras substituições em outros locais do
83
município? Será que no intervalo entre deixarmos as seções e retornarmos no dia
seguinte, técnicos habilitados e autorizados pela Justiça Eleitoral entraram no
recinto, guarnecido apenas por dois policiais militares e também desconhecedores
do informatiquês e intimidados pela Justiça Eleitoral, e praticaram alterações em
outras urnas? Será que líderes políticos locais não foram às seções durante a
madrugada? É significativo ressaltar que eleições em pequenos colégios
eleitorais, caso de grande parte dos municípios brasileiros, são decididas por
pequena margem relativa de votos.
Utilizo como exemplo os municípios que compõem a região da Baixada-
Litorânea do Estado do Rio de Janeiro, na qual moro. Apresento o número de
eleitores que compareceram às eleições de 2008; o número de seções eleitorais;
o número de vereadores de cada Câmara; o número de votos nominais dos
vereadores eleitos que obtiveram a e a última colocação e o número de votos
do 1º Suplente. Vejamos. Carapebus (8.830 eleitores; 27 seções; 9 vereadores;
612 votos; 298 votos; 375 votos), Casimiro de Abreu (21.210 eleitores; 9
vereadores; 74 seções; 897 votos; 466 votos; 515 votos), Conceição de Macabu
(13.719 eleitores; 49 seções; 9 vereadores; 496 votos; 246 votos; 386 votos),
Macaé (105.031 eleitores; 338 seções; 12 vereadores, 4.298 votos; 1.891 votos;
2.551 votos), Quissamã (13.084 eleitores; 43 seções; 9 vereadores, 957 votos;
273 votos; 407 votos), Rio Bonito (36.940 eleitores; 117 seções; 10 vereadores;
1.343 votos; 847 votos; 943 votos), Rio das Ostras (49.899 eleitores; 152 seções;
10 vereadores, 2.082 votos; 828 votos; 1.215 votos), Silva Jardim (13.141
eleitores; 46 seções; 9 vereadores; 666 votos; 309 votos; 541 votos ).
132
No dia seguinte, domingo, dia das eleições, por volta das 7:30h, realizou-se
a substituição da urna defeituosa. Sob orientação de um técnico, retirei os lacres
dos compartimentos, retirei o flash cart e o disquete da urna com defeito e
coloquei ambos na urna substituta e liguei; funcionou. Desliguei. Verifiquei toda a
organização do dia anterior. Conectei o cabo da urna à tomada de energia elétrica
132
Disponível em: www.tse.gov.br. Acesso em: 31 jul 2010.
84
e liguei o terminal do eleitor em definitivo, girando a chave e retirando-a em
seguida (permanecendo a chave presa ao cabo que liga o terminal do eleitor ao
microterminal).
Pouco antes das 8:00h surgiu na tela do terminal do eleitor as referências
do município, zona e seção que a urna foi instalada, data e hora e se a urna
estava operando com energia elétrica; assim, dei início ao processo eleitoral
através do teclado do terminal do eleitor. Digitei a tecla CONFIRMA para emitir a
zerézima. Às 8:00h apareceu na tela do terminal do eleitor a mensagem: “INÍCIO
DA VOTAÇÃO IDENTIFIQUE O ELEITOR” e no microterminal apareceu a
seguinte mensagem: “INFORME O TÍTULO DE ELEITOR”.
Caro leitor sente-se em uma cadeira a um canto da sala e acompanhe o
fluxo de votação.
O secretário organiza a fila e controla a entrada dos eleitores na seção; um
mesário recebe o título e localiza o nome do eleitor no Caderno de Votação, dita o
número para o presidente e colhe a assinatura do eleitor; eu, como presidente da
seção e controlador de parte do processo junto com o conjunto urna eletrônica,
digito o número no microterminal e aperto CONFIRMA, aparece no visor o nome e
o número do título de eleitor, aperto mais uma vez a tecla CONFIRMA,
autorizando o eleitor a votar; este se dirige à cabine. Caso o número do título não
se confirme, o eleitor se orientado a procurar um representante da justiça
eleitoral no local; caso o problema não seja resolvido, deverá ir ao cartório eleitoral
mais próximo para verificar se o título foi cancelado. Diante do terminal do eleitor,
o eleitor encontra no monitor o pedido para votar no primeiro cargo (em 2006
tivemos eleições para presidente da república, deputados estaduais e federais e
senadores) e o espaço para digitar os algarismos do número do candidato ou da
legenda. O eleitor digita o número do candidato e na tela aparecerão o número, o
nome, a foto e o partido do candidato escolhido; o eleitor confere os dados e
conclui o seu voto apertando a tecla “CONFIRMA”. Após, o eleitor encontra o
85
pedido para votar no próximo cargo e espaço para digitar os algarismos, então o
eleitor repetirá o processo e na tela aparecerão, novamente, o número, o nome, a
foto e o partido do candidato escolhido; o eleitor, mais uma vez conferirá os dados
e concluirá seu voto apertando a tecla “CONFIRMA”. A cada votação, o terminal
emite um sinal sonoro curto. Encerra-se-á a votação, quando na tela aparecer a
palavra “FIM” com um sinal sonoro mais longo. O eleitor retornará ao mesário e
este lhe devolverá o título, juntamente com o comprovante de votação. Caso o
eleitor queira votar apenas na legenda, tecla somente o número do partido e
depois confirma, apertando a tecla “CONFIRMA”. Caso queira votar em branco,
o eleitor apertará a tecla “BRANCO” e depois confirma apertando a tecla
“CONFIRMA”. E ainda, caso queira votar nulo, o eleitor deverá digitar e confirmar
um número inexistente de candidato ou partido, então surgirá uma advertência no
monitor, “NÚMERO ERRADO”, posteriormente teclará CONFIRMA.
Tudo leva a crer através dos meios de comunicação, das conversas do
dia a dia, dos depoimentos das autoridades, que poucas coisas atingiram uma
aceitação quase unânime como a urna eletrônica brasileira. Eu mesmo, como
presidente de seção eleitoral, constatei a intimidade dos eleitores com o
mecanismo simples de votar oferecido por esta máquina. Algumas vezes,
eleitores, quando autorizados a entrar na seção, dirigiram-se imediatamente para
a urna eletrônica, esquecendo de se identificar e por sua assinatura no Caderno
de Votação; ou muitas vezes demoraram mais a assinar do que votar. Porém,
diante destas constatações, lembro-me sempre da tirada de Nelson Rodrigues:
Toda unanimidade é burra.
O senador Roberto Saturnino Braga fez publicar através da gráfica do
Senado Federal um pequeno livro do calendário das eleições de 2004, conforme a
Resolução nº. 21.518 do TSE.
133
No anexo, há 259 perguntas e respostas sobre o
133
Eleições Municipais 2004 (Prefeitos, vice-prefeitos e vereadores), Gabinete do senador Roberto
Saturnino Braga, Senado Federal. Secretaria Especial de Editoração e Publicações, Brasília-DF,
2004.
86
funcionamento das eleições. Não perguntas sobre o voto eletrônico! Ou seja,
este mecanismo de voto foi naturalizado.
Entretanto, eu observo que o atual mecanismo de votar que utilizamos no
Brasil inibe a plena manifestação dos eleitores, dificultando a opção por um voto
de protesto, se compararmos com a votação através de cédulas de papel. Por
este último mecanismo poderíamos votar, por exemplo, no Cacareco ou no
Macaco Tião, ou ainda, escrever algum tipo de protesto. Além disto, a Justiça
Eleitoral não explica, através das propagandas institucionais, como votar em
branco ou nulo, opções tão legítimas quanto as outras disponíveis. Certa vez,
perguntei a uma autoridade da Justiça Eleitoral de Casimiro de Abreu, que me
pediu para não citar o seu nome, sobre o fato da Justiça Eleitoral o explicar ao
eleitor como se anula o voto, esta autoridade me respondeu que por certo o TSE
queira evitar este tipo de voto (sic). Está uma perversão inesperada trazida ao
processo eleitoral pela moderna tecnologia. Talvez a solução fosse adotar a
proposta do humorista Millor Fernandes e incluir nas urnas eletrônicas uma quarta
tecla ´Vai a M...´que capture a expressão de quem queira protestar, evitando-se
assim que se elejam deputados oportunistas. Se um candidato for esperto o
suficiente vai adotar este pseudônimo e ganhar o pleito.
134
Um exemplo de um candidato que conseguiu para si o voto de protesto foi o
deputado federal Enéas (“Meu nome é Enéas!!”), que recebeu a maior votação de
todos os tempos no Brasil; em torno de 1,6 milhão de votos, quatro vezes o
segundo colocado, 8% do votos dos eleitores do Estado de São Paulo. Por
precisar de aproximadamente 280 mil votos, com os 1,3 milhão de votos restantes
foram eleitos mais 5 candidatos do PRONA, sendo que três deles obtiveram
menos de 500 votos diretos. Portanto, o voto de protesto, que nas eleições através
de cédulas de papel aumentavam o voto nulo (que é um voto de insatisfação),
134
Mensagem enviada por Divino Leitão a Amílcar Brunazo Filho, em 20 jun. 2006. Disponível em:
<http://by111fd.bay111.hotmail.msn.com/cgi-bin/getmsg?msg=48EFDEED-7812-4076>, no sítio:
<votoseguro>. Acesso: 14 jul 2008.
87
agora, através das urnas eletrônicas, elege mais candidatos sem compromissos,
apenas por seu aspecto exótico.
Às 17:00h, caso haja ainda eleitores, o secretário entrega senhas aos
presentes, do último ao primeiro e recolhe os seus títulos. Após o último eleitor
votar, o presidente inicia os procedimentos para encerrar o processo de votação.
No microterminal, o presidente digita o código de encerramento e aperta a tecla
CONFIRMA, surgindo a mensagem: “ENCERRAMENTO DE VOTAÇÃO HORA:
17:01:00 CONFIRMA?”; o presidente aperta mais uma vez CONFIRMA e segue a
mensagem: “PROCEDIMENTOS DE ENCERRAMENTO SIGA AS INSTRUÇÕES
DA TELA DO ELEITOR”. A partir deste momento, todos os procedimentos serão
realizados apenas no terminal do eleitor: imprimir os boletins de urna; romper o
lacre e retirar o disquete, guardando-o em um envelope apropriado para enviar à
junta eleitoral. Por fim, a mesa receptora registra “NÃO COMPARECEU” (“NC”),
nos espaços destinados à assinatura dos eleitores que não votaram; escreve na
capa do Caderno de Votação o número de eleitores que compareceram e o
número de ausentes; preenche a ata da seção; recolhe os cartazes indicativos da
seção; guarda e providencia a devolução do conjunto urna eletnica; encaminha
para a junta eleitoral: disquete, zerézima, ata, três vias do boletim de urna e a via
do boletim de justificativa, os formulários de justificativa, cadernos de votação e
demais materiais.
As exceções a esta normalidade ocorrem quando o eleitor é autorizado a
votar, encaminha-se ao terminal, mas não vota, esta ação fará aparecer no
microterminal a mensagem: “O ELEITOR ESTÁ DEMORANDO. NÃO VOTOU”, o
presidente da seção aperta CONFIRMA e aparecerá no microterminal a
mensagem: “O ELEITOR... ESTÁ VOTANDO?, o presidente aperta CORRIGE, se
o eleitor não votar e digita o código de suspensão de votação e CONFIRMA,
aparecendo no microterminal a mensagem: “O ELEITOR... NÃO VOTOU. NÃO
ENTREGAR COMPROVANTE”, o presidente aperta CONFIRMA e pede ao eleitor
88
para se retirar da seção, informando-o de que poderá retornar até às 17 horas
para votar. Se o eleitor não votar para todos os cargos e se retirar da cabine ou
estiver demorando a votar, aparecerá a seguinte mensagem no microterminal: “O
ELEITOR ESTÁ DEMORANDO. VOTOU PARCIALMENTE”, o presidente tecla
CONFIRMA, aparecendo no microterminal a mensagem: “O ELEITOR... ESTÁ
VOTANDO?. Caberá ao presidente orientar o eleitor para que conclua a votação;
havendo recusa, o presidente tecla CORRIGE e digita o código de suspensão e
tecla CONFIRMA para suspender o voto, aparecendo no microterminal a
mensagem: “O ELEITOR... VOTOU. PODE ENTREGAR O COMPROVANTE”, o
presidente digita CONFIRMA para liberar a urna. Neste caso, os votos não
registrados são considerados nulos, sendo o eleitor informado que não poderá
votar novamente.
A intenção da rede que estabiliza a urna eletrônica brasileira é que
cada eleitor permaneça não mais de três minutos diante do terminal do
eleitor, mesmo quando ocorram eleições gerais. Assim, é preciso negociar. É
sugerido ao eleitor que leve uma cola para agilizar o processo de votação. Se o
eleitor está demorando a votar aparecerá no microterminal a mensagem: “O
ELEITOR ESTÁ DEMORANDO. NÃO VOTOU”. Caberá ao presidente da seção,
caso queira, negociar alguns minutos a mais com o terminal do eleitor a favor do
eleitor, chamará este a negociar também e pedirá que vote logo, senão, será
obrigado a apertar a tecla CONFIRMA. Algumas vezes, eleitores pediram-me,
como presidente de seção, que intermediasse a sua relação com a urna,
negociando mais alguns minutos ou mesmo que eu verificasse se ele estava
agindo de uma maneira correta.
Após às 17:00h, a esmagadora maioria dos eleitores brasileiros instala-se
diante dos televisores para acompanhar a apuração dos votos, sem se perguntar
por que os resultados têm de ser conhecidos ainda no mesmo dia ou por que o
mecanismo do voto eletrônico não é acessível a todos.
89
Se fizermos uma comparação das eleições através de dulas de papel
com as atuais por meio da urna eletrônica, constatamos uma enorme diferença de
mobilização por parte da sociedade. Enquanto que naquelas, um grande número
de cidadãos era mobilizado para trabalhar no processo eleitoral e, em particular,
na etapa de apuração dos votos; hoje, o processo está nas mãos de poucos,
principalmente, na etapa de inseminação de programas nas urnas, coleta,
totalização e apuração dos votos. Eu participei de uma apuração de votos em
eleição através de cédulas de papel, no Tijuca Tênis Clube, no bairro da Tijuca, no
Rio de Janeiro, na eleição de turno entre Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando
Collor de Mello. Centenas de pessoas se acotovelavam nas dependências do
clube, contando votos, conferindo e produzindo mapas. Havia fraudes nas
eleições através das cédulas de papel? Claro que havia. Entretanto, sabíamos
onde ocorriam. Naquelas mobilizações e apurações que percorriam uma semana
ou mais, havia discursos aclamados, bate-bocas, análises sobre possíveis
resultados, discussões políticas de toda ordem, actantes externos não autorizados
no recinto traziam alimentos e informações, davam sugestões, pressionavam
actantes internos; por outro lado, recebiam informações de actantes autorizados,
sofriam pressões das autoridades da justiça e de policiais, ou seja, conforme
passavam as horas, mecanismos informais suplantavam e/ou misturavam-se e/ou
confundiam-se com mecanismos formais. Todo esse movimento browniano no
entorno do enquadramento estabelecido e mitificado pela justiça eleitoral
provocava transbordamentos para toda a sociedade porque não
enquadramentos isolados do seu entorno. Diz Michel Callon: O enquadramento
estabelece uma fronteira, na qual interações o significado e conteúdo que são
auto-evidentes para os protagonistas tomam lugar mais ou menos
independentemente do seu contexto entorno.
135
E atualmente? Há fraudes? Claro
que há. semelhanças. Mas diferenças. Uma delas é que todo o processo
está nas mãos de poucos especialistas e/ou com o poder de uma justiça eleitoral
135
CALLON, Michel. “Na essay on framing and overflowing economic externalities revisited by
sociology” in The laws of the markets. Blackwell Publisher Oxfore UK, 1998, p. 249. No original:
The frame establishes a boundary within which interactions the significance and content of which
are self-evident to the protagonists take place more or less independently of their surrondind
context.
90
que prepara, controla, julga o processo, divulga os resultados e... diploma os
eleitos.
91
Artigo 6
Fluxos e misturas.
Onde se verá o quanto artefatos e sociedades/naturezas estão imbricados.
Nas curvas, [...] o espaço atua contra o
tempo. Convém, então, saber burlar o
espaço, decidir se o cultivamos..., ou se o
suprimimos bruscamente; e essa aposta
deve ser levada às raias do impossível.
(BARTHES, Roland. “O que é o esporte?”
in Serrote. Instituto Moreira Salles, nº. 3,
nov. 2009, p. 99.)
O livro Ciência em ação, de Bruno Latour, tem o subtítulo: Como seguir
cientistas e engenheiros sociedade afora. Nas últimas páginas, Latour nos propõe
na regra 1 de um método dos estudos de ciência-tecnologia-sociedade (CTS) que,
estudemos a ciência em ação, e não a ciência ou a tecnologia pronta; para isso,
ou chegamos antes que fatos e máquinas se tenham transformado em caixas-
pretas, ou acompanhamos as controvérsias que as reabrem.
136
Latour um exemplo no qual termos como organização, gosto, protocolo,
burocracia, minimizão de riscos, hibridez são utilizados para descrever um
artefato e uma empresa: Olhando o VAX por dentro, West imaginava estar vendo
um organograma da DEC. Achava o VAX complicado demais. Por exemplo, não
gostava do sistema por meio do qual várias partes da máquina se
intercomunicavam; para seu gosto, aquilo tudo era protocolar demais. Chegou à
conclusão de que o VAX encarnava os vícios daquela sociedade anônima. A
máquina expressava o estilo cauteloso e burocrático daquela companhia
136
LATOUR (2000), p. 421.
92
fenomenalmente bem-sucedida. [...] ´Com o VAX, a DEC estava tentando
minimizar riscos´”.
137
Li uma entrevista de Phillipe Descola no caderno literário “Prosa & Verso”
de O Globo, na edição de 07 de novembro de 2009. Descola questiona o trabalho
de descrição e propõe um esforço para construir generalizações. Nos EUA, o
ponto de partida é a etnografia. É por generalizações a partir de fatos etnográficos
que se sobe para um nível teórico. É muito difícil de fazer isso porque [...] é como
ter uma coleção de borboletas. Você as classifica pela cor ou pela força de suas
asas? Você não vai aprender muito sobre a vida das borboletas fazendo isso.
138
O que disse Descola precisa de explicações? Creio que não. Farei apenas
uma ponderação. Inicialmente, narrarei uma pequena história, mas, desde já, peço
desculpas porque não me lembro se li ou alguém me contou. Não faz mal se eu
modificar um pouco, o importante é a mensagem. Vocês sabem, quem conta um
conto aumento um ponto. Certa vez um viajante passando por uma região
observou um grande número de cisnes brancos; ao encontrar um camponês
perguntou: - Todos os cisnes são brancos? Respondeu o camponês: - Não sei, eu
não vi todos os cisnes. quem interessa generalizações? Classificar
borboletas pela cor ou pela força de suas asas ou por qualquer outra característica
me permitiriam, por exemplo, adentrar as caixas-pretas de realidades ditas
lepidopterológicas e entender parte das normas estabilizadas deste conhecimento
construído a partir de pesquisas, laboratórios, bibliografias, instituições, nomes
ditos ilustres, congressos, financiamentos, concepções de ciência etc.
Trofim Denissovitch Lyssenko (1898-1976), cnico agrícola ucraniano, foi
diretor do Instituto de Genética da Academia de Ciências da URSS, durante o
governo de Josef Stalin. Em rápidos traços: sob a influência dos estudos do
137
LATOUR, (2000), p. 18.
138
Entrevista com Phillipe Descola, que hoje dirige o Laboratório de Antropologia Social do Colège
de France, sobre alguns aspectos do pensamento de Lévi-Strauss, o qual foi seu supervisor no
doutorado. Caderno literário “Prosa & Verso” in O Globo, 07.11.2009, p. 3.
93
médico e pesquisador russo Ivan Vladimirovich Michurim (1855-1935), Lyssenko
defendeu a tese de mudança do genótipo (a partir do fenótipo) sob influência
externa. Os experimentos de Lyssenko partiam do princípio de que submetendo
sementes a condições climáticas diferentes seria possível modificar os períodos
de colheitas e o seu próprio rendimento e, também, transmitir as características
adquiridas às gerações subsequentes. Era comum, nas propagandas stalinistas,
Lyssenko ser fotografado com produtos agrícolas e animais de tamanhos
desproporcionais e/ou ladeado por camponeses robustos de sorrisos largos com
suas foices, conforme a estética realista socialista, tendo ao fundo uma enorme
plantação de trigo ao sabor dos ventos.
Lyssenko discursando tendo ao fundo Stalin
139
139
Disponível em; http://www.devonhumanists.org.uk/d200dev/wp-
content/uploads/2008/11/lysenko_kremlin-1935_stalin.gif. Acesso em: 13 ago. 2010.
94
Lyssenko e camponeses examinando sementes.
140
As práticas genéticas lamarquistas na URSS stalinista contrariavam
frontalmente àquelas desenvolvidas pela comunidade científica ocidental de
caráter predominantemente darwinistas
141
, que defendiam uma autonomia e
neutralidade da ciência, na qual interferências políticas produziriam resultados
científicos pouco desejáveis, sendo a idéia de construção de uma ciência
socialista uma sandice. Imbricadas nestas críticas estavam, por exemplo,
questões políticas relativas ao rompimento do compromisso inicial de Lênin com a
140
Disponível em: http://discernimentocristao.files.wordpress.com/2010/05/trofim.jpg. Acesso em:
16 ago. 2010.
141
De uma maneira bem simplificada para este espaço, o lamarquismo, defendido pelo modelo
genético soviético entende o ambiente como a causa das modificações que ocorrem nos seres
vivos; o modelo genético darwinista, predominante na sociedade científica ocidental naquele
momento, entende que o ambiente seleciona os seres vivos a partir das características destes.
95
burguesia durante os Planos Qüinqüenais, disputas entre stalinistas e trotskistas,
ascensão de Stalin e o processo da Guerra Fria.
O lyssenkismo predominou na URSS entre 1927 e 1953, quando da morte
de Stalin. Se tivermos um olhar a partir de um modelo difusionista e assimétrico, a
política agrícola lyssenkista foi um fracasso. Se tivermos um olhar a partir de um
modelo de tradução/translação e simétrico e construirmos outros enquadramentos,
encontraremos períodos favoráveis e desfavoráveis ao lyssenkismo; tudo
dependerá dos enquadramentos negociados. Não se trata, portanto, de ser contra
a ciência e a tecnologia, mas sim de levar a sério o fato, estabelecido nas últimas
décadas pelos Estudos CTS, de que não existem formas universais e neutras que
estejam lá, dadas no mundo, esperando para serem descobertas pela ciência e
tecnologia. Sendo assim, as formas, especialmente os fatos e artefatos científicos-
tecnológicos, podem ser diferentes nos diversos lugares do globo. E se eles
podem ser diferentes, se não solução tecnocientífica ´certa´ ou ´melhor´ sem
que se considere simultaneamente ´para quem e quê?´, ´onde?´, e ´quando?´”.
142
Assim, retornando à urna eletrônica, quando eu abro, mesmo apenas uma
pequena fresta na caixa-preta da urna eletrônica os espaços para tecnociências
brasileiras [...] não só se abrem como se multiplicam.
143
Nós, dos estudos de CTS, não queremos saber sobre a vida das borboletas
porque não há a vida das borboletas e não há uma estrutura a priori. Nós
queremos saber, por exemplo, como vidas de borboletas e seus fluxos se
estabilizaram. Em encontros e conferências de ciências e tecnologias, o professor
Pablo Kreimer, da Universidad Nacional de Quilmes, Argentina, sempre nos
questiona sobre a falsa novidade que nós, relativistas, trazemos para o debate das
ciências e das tecnologias. Sempre que ele faz este questionamento, eu lembro
de um de nossos filósofos, Abelardo “Chacrinha” Barbosa, que dizia: Na
televisão, nada se cria, tudo se copia., ou ainda, A Discoteca do Chacrinha é um
142
MARQUES, Ivan da Costa. “Posfácio” in Yes, nós temos Pasteur, CUKIERMAN, Henrique. Rio
de Janeiro: Relume Dumará/FAPERJ, 2007, p. 416.
143
CUKIERMAN (2007), p. 416.
96
programa que acaba quando termina. Creio que uma das grandes
contribuições que os estudos CTS trazem é o entendimento de que realidades são
edições [estabilizadas], no sentido que se nos meios de comunicação, ou seja,
bricolagens de bricolagens. Nós, dos estudos de CTS, somos acusados de
estarmos mais preocupados em fazer perguntas do que em respondê-las. Talvez.
Mas fazer perguntas é uma maneira de desmitificar; é dizer que o rei está nu.
Temos prazos para entregar um artigo, um livro, um projeto, uma tese. E
em função desses prazos, fatos e artefatos abordados terão tais e tais
traduções/translações, levando-os a ter tais e tais características. Como me cabe
completar um texto da minha tese sobre a urna eletrônica, creio, que seja
interessante abordar os limites em seguir cientistas e engenheiros através de
sociedades porque sociedades são inúmeras, construídas e fluidas; Caminhar
através de limitações (silêncios, não-ditos, interrupções de diálogos, barreiras
institucionais, desencontros, impossibilidade de encontros, burocracias,
hierarquias, modus operandi etc.), é construir urnas eletrônicas. Basta escolher ao
acaso uma entrada vicinal, seja qual for, sempre nos levará aos labirintos da
justiça eleitoral brasileira. Eu optei por uma entre inúmeras.
Por exemplo, através de informações desencontradas de funcionários do
TRE-RJ, descobri o depósito de urnas eletrônicas do TSE, no bairro de Benfica,
no município de Rio de Janeiro-RJ. Fui até com a intenção de estudar as
características das urnas eletrônicas utilizadas em eleições anteriores. Ao ser
recebido por um funcionário, este imediatamente de informou que eu não poderia
estar naquele local sem uma autorização oficial, entretanto, abriria uma exceção.
Levou-me, então, ao gerente do depósito, que apenas me concedeu um rápido
olhar sobre urnas antigas e me orientou que eu buscasse uma autorização. No
TRE-RJ apresentei um pedido de autorização que me foi negado, após aguardar
por mais de um mês. A justificativa foi de que o depósito está sob a autoridade do
TSE, logo, eu teria de pedir uma autorização a este Tribunal em Brasília. Tentei
um contato com o TSE, lançaram-me em um labirinto.
97
Em uma outra ocasião, fui à IBM, na avenida Pasteur, em Botafogo, no
município do Rio de Janeiro-RJ, buscar algumas informações sobre a licitação
para o coletor eletrônico de voto, que esta empresa participou em 1996. Fiquei na
portaria do prédio durante duas horas e não me permitiram subir nem funcionário
algum foi autorizado a descer para conversar comigo. Carlos Rocha, diretor
executivo da Omnitech, que se como o pai da urna eletrônica, interrompeu o
diálogo que vínhamos tendo através da Internet, talvez porque não me mostrei
sensibilizado com a sua causa. Juízes eleitorais se negaram a falar comigo após
questionamentos sobre a urna eletrônica durante um curso sobre legislação
eleitoral que participei, realizado na Associação Brasileira de Imprensa-ABI,
Centro do Rio de Janeiro-RJ. Jamais obtive pias de documentos entre o TSE e
o Banco Mundial para o financiamento do projeto de informatização do processo
eleitoral brasileiro e, acordos entre o TSE e a Organização dos Estados
Americanos-OEA para a expansão deste mesmo projeto como um actante para
uma estabilização de uma democracia liberal no continente americano. Apesar de
tentar inúmeras vezes contato, nunca consegui falar com ministro Carlos Velloso,
presidente do TSE, em 1995, quando foi dado início ao projeto de eleições
eleitoral através de um coletor eletrônico de voto. Paulo César Bhering Camarão,
ex-secretário de informática do TSE e relator da Comissão de Informatização das
Eleições Municipais de 1996, concedeu-me uma entrevista por telefone,
entretanto, utilizando os mesmos números telefônicos não consegui nenhum outro
contato. Não consegui o nome da empresa, cuja sede é em Portugal, que
forneceu o ferramentário para a montagem do gabinete da urna. A empresa
Procomp não quis falar comigo.
A questão não seria resolvida com uma carta de recomendação da UFRJ à
IBM ou à Procomp ou ao presidente do TRE-RJ ou ao presidente do TSE. Se
entendermos desta forma, estaremos tendo, também, a mesma visão teleológica e
difusionista dos modernistas, na qual acreditaríamos que poderíamos ir ao fundo
do labirinto e matar o Minotauro e depois puxarmos o fio de Ariadne, após
descobrirmos o que estava encoberto desde sempre. Minotauros, de todos os
98
matizes em inúmeros labirintos. Sabemos apenas alguns fluxos para matar ou não
alguns Minotauros, ao apenas cutucá-los com vara curta.
Com alguns actantes teremos uma urna eletrônica, com um pouco mais
uma outra urna eletrônica, mais um pouco uma outra urna eletrônica, menos um
pouco outra; não superiores uma as outras, mas diferentes; não hierarquias
nem vozes dominantes entre elas. debates, confrontações,
traduções/translações e negociações. Diz Latour: Suivez um aristocrate, le voilá
qui s´intéresse à l´âge de la Terre; suivez um general, le voilá qui fait de la
physique atomique. Suivez l´âge de laTerre, vous voilá dans um salon de la
gentry. Suivez la trace d´une particule, vous voici dans la salle de l´état-major.
144
A estrutura da justiça eleitoral brasileira tem um caráter cartesiano,
positivista, universal e mecanicista; e a partir destes pressupostos foi construída e
estabilizada uma ordem clara, distinta e de verdades absolutas. Para os aliados da
justiça eleitoral existe o que pode ser provado dentro de parâmetros
modernistas ditos científicos. A justiça eleitoral atinge todos os municípios
brasileiros através dos cartórios eleitores, que se submetem aos TREs, que por
sua vez se submetem ao TSE. É uma hierarquia rígida onde cada unidade apenas
cumpre comandos do que foi decidido na unidade acima. Não espaço para
interpretações e especulações. Durante as minhas pesquisas em inúmeras
repartições da Justiça Eleitoral, observei que os funcionários trabalham em quase
absoluto silêncio; uma simples pergunta, um simples questionamento, um simples
pedido para ver um documento ou falar com alguém não é respondido sem que
antes a pessoa solicitada submeta o pedido ao seu superior. Há um ar obsequioso
aos superiores hieráquicos por parte dos funcionários da portaria ao último andar
da instituição, como também, uma atitude formal, quando autorizados por seus
superiores a fornecer ou realizar um pedido público.
144
LATOUR, Bruno. La science en action. Paris: Éditions la découverte, 1989, p. 260. Não há este
trecho na tradução para o português.
99
Caro leitor, provavelmente, você me dirá: -Não necessariamente uma
burocracia weberiana é negativa. Eu direi em um tom irônico: -Claro, a cidadania
moderna passa por esse tipo de burocracia impessoal, na qual cada funcionário
de maneira imparcial realiza as atividades que lhe foram determinadas, em
sacrifício de sua opinião e tais atividades são rigorosamente definidas em um
sistema de autoridade vertical e inquestionável, onde o domínio da lei.
Segundo os arautos da civilização ocidental, fora desta ordem temos o caos;
precisamos deste choque de ordem. A quem interessa esta ordem, cara pálida!
Um bom exemplo desta ordem weberiana é um discurso do ex-presidente do
Brasil, Fernando Henrique Cardoso, em março de 2006, para a OEA. Observe,
caro leitor, como Cardoso faz uso ad nauseam de algumas idéias simplistas para
a consolidação da democracia na América Latina e, em particular, no Brasil.
Propõe Cardoso um bom funcionamento das instituições, [...] tolerância zero em
relação à corrupção, [...] combate à violência e melhor segurança, [...]
investimento em educação, [...] reforma do judiciário [...] reforma política, [senão]
estaremos deixando a porta aberta para o populismo que, no limite, representa a
negação mesma da democracia.
145
Peço desculpa àqueles que preferem uma
tese com um texto formal, mas perdi a paciência: Fernando, me poupe!
Este discurso da competência me traz um belo texto de Michel De Certeau
(1925-1986), historiador francês, no qual diz que a história é a arte da encenação,
onde um lugar de fala, uma prática e uma escrita. Este discurso da
competência, que me referi nos parágrafos acima me traz o 1º parágrafo do
Prefácio à 2ª. edição da Escrita da história de De Certeau: Diante dele [Américo
Vespúcio] a América Índia, mulher estendida, nua, presença não nomeada da
diferença. Cena inaugural. Após um momento de espanto [...] o conquistador irá
escrever o corpo do outro e nele traçar a sua própria história. Fará dele o corpo
145
Disponível em: http://www.oas.org/es/centro_noticias/discurso.asp?sCodigo=06-0063. Acesso
em: 20 jun 2010.
100
historiador o brasão de seus trabalhos e de seus fantasmas. Isto se a
América Latina`
146
Vou materializar. Algumas vezes ao perguntar a juízes eleitorais sobre
críticas à urna eletrônica, sempre se pronunciaram desqualificando àqueles que
fizeram as críticas, afirmando que desejavam apenas tumultuar o processo
eleitoral ou haveria algo escuso nas críticas. Em ocasiões, ao dirigir-me à
funcionários da Justiça Eleitoral para tratar de questões relativas à urna eletrônica
ou se porventura surgiam conversas sobre as críticas a este artefato, de forma
unânime e sem nenhum tipo de reflexão ou opinião elaborada utilizavam as
mesmas palavras e o mesmo tom de voz dos seus superiores, citados acima.
A concepção dos aliados da urna eletrônica é que o processo eleitoral
brasileiro é cartesiano, positivista, universal e mecanicista. O mesmo ocorre dentro
do conjunto urna eletrônica. Cada etapa emite uma ordem à etapa seguinte, que
por sua vez a realiza e emite uma outra ordem à etapa subsequente até a
finalização do processo. O presidente da seção eleitoral digita o número do título
do eleitor no microterminal, liberando o terminal de eleitor à votação; a cada voto,
o terminal sinaliza a etapa subseqüente até o final. Omissões, esquecimentos,
demoras são identificados pelos artefatos que exigem uma resposta imediata do
eleitor ou do presidente da seção, que por sua vez exige uma resposta imediata
do eleitor, senão este será excluído, por meio de uma atitude formal, inclusive pela
própria urna eletrônica.
Entretanto, defendo que nos traria mais rendimento enxergar e descrever
este processo eleitoral implantado pelo TSE como local, contingencial, precário e
provisório. Tudo é fluxo; ou nas palavras atribuídas a Heráclito de Éfeso: Tudo
passa.” Conta Ferreira Gullar que certa vez ao caminhar por uma praça em
Moscou, durante um período de exílio devido a ditadura civil-militar implantada no
146
CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Editora Forense-Universitária, 1982,
p. 9.
101
Brasil em 1964, um pombo alçou vôo bem próximo a ele; batendo as asas de
maneira forte e rápida levantou vôo quase na vertical em grande velocidade,
passando bem próximo de sua cabeça. Aquela ave, naquele estante era algo que
não poderia ser chamado de pombo. Aquele foi um átimo único naquela praça de
Moscou. É atribuído a Heráclito de Éfeso que Não podemos banhar-nos duas
vezes no mesmo rio, porque o rio não é mais o mesmo.A tradição acrescentou:
e nós também não somos mais os mesmos.” Isto implica que não há a Realidade
e, conseqüentemente, o acesso a Ela.
A urna eletrônica que venho construindo é consequência de um árduo
trabalho de questioná-la e buscar um outro artefato e um outro processo eleitoral,
os quais seriam de domínio público sem a necessidade de conhecimentos
especializados. A arquitetura da urna eletrônica do TSE está estabilizada porque
esta instituição conseguiu agregar um número grande de aliados e tornar científica
a sua arquitetura. A arquitetura que eu defendo não se estabilizou porque eu
tenho talvez, no máximo, uns dez aliados. Enquanto isso, portas e janelas são
abertas e fechadas ou semi-serradas ou semi-abertas, como queiram. Enquanto
os fechadores de caixas-pretas fornecem poucas informações relevantes e
reafirmam um artefato de materialidade ultra-realista e de tecnologia morta; eu,
como abridor de caixas-pretas, fui obrigado, primeiramente, a decompor a urna
eletrônica a um estado abstracionista e realizar uma tradução/translação,
gradativamente, peça por peça e incorporando elementos novos para
construirmos urnas , ... (impressão dos votos, introdução de tecla nulo e de
teclado alfa-numérico, interpretação dos votos, votos de protesto, retorno às
eleições através das cédulas de papel, milhares de pessoas envolvidas com a
votação e a apuração dos votos)
O coro dos contentes quer o fim da História, uma única realidade, uma urna
eletrônica que contribui para a limitar a expressão do eleitor e um eleitor ratificador
desta única realidade. O objetivo dos estudos de CTS não é desvendar a
realidade dada (não realidade dada), é mostrar que somos actantes híbridos e
102
construímos realidades sociotecnicamente. Aqui, o TSE pediu abertura de um
financiamento ao Bando Mundial; ali, o presidente do TSE intercedeu para evitar a
impressão do voto; acolá, um jurista intercedeu na arquitetura da urna eletrônica;
acolá, houve uma discussão entre os técnicos e empresários sobre o número de
parafusos da tampa do fundo do microterminal e o consequente custo deste
artefato
147
; ...
147
Esta informação me foi passada pelo engenheiro Osvaldo Catsumi Imamura, do Instituto de
Estudos Avançados-IEAv do Instituto Tecnológico da Aeronáutica-ITA, quando o entrevistei no
Instituto de Estudos Avançados do ITA, em São José dos Campos, nos dias 30 e 31 de outubro de
2007.
103
Artigo 7
Controvérsias sobre o voto nulo
Onde se verá a ausência de uma tecla específica para o voto nulo na urna
eletrônica brasileira como um resultado sociotécnico.
Talvez a coisa mais confiável no Brasil
seja o jogo do bicho. Vale o que está
escrito.
(Dito popular)
Como disse no artigo 5, a meu pedido, fui indicado, pelo Cartório Eleitoral
de Casimiro de Abreu-RJ, cidade na qual resido, para presidir a seção da 50ª.
zona eleitoral no referendo sobre o comércio de armas de fogo e munição, em
2005, e nas eleições de 2006. Nesta função, adquiri mais conhecimento sobre a
urna eletrônica, pois tive sob o meu controle parte do processo de votação através
do microterminal, como também pude observar a relação entre os eleitores e a
urna. Eu observei que o ritmo do processo de votação foi tomado das mãos dos
eleitores se compararmos com a votação por meio das cédulas de papel.
Na seção eleitoral que trabalhei, o eleitorado inscrito pertence, em sua
grande maioria, aos grupos sociais de classe média e baixa. Observei que os
eleitores tornaram-se íntimos da urna eletrônica; muitas vezes demoravam mais
ao assinar no Caderno de Votação do que votar, mesmo quando houve, no
mesmo dia, eleições para a presidência da república, senado, câmara dos
deputados federais e assembléia dos deputados estaduais. Inclusive, foi bastante
comum ouvi dos próprios eleitores sobre a facilidade de votar e da rapidez, uma
vez que eles poderiam, então, realizar outras tarefas do dia como ir ao
supermercado, ir à feira, preparar o almoço de domingo para a família, visitar um
parente ou amigo, tomar banho de cachoeira, ir à praia etc., ou seja, o ato de
104
votar, hoje, assemelha-se ao ato de ir a um caixa eletrônico para pagar contas ou
fazer depósitos ou retiradas. Eu constatei esta naturalização ao entrevistar
eleitores: “... é rápido e fácil votar na urna eletrônica... voto e vou pra casa
acompanhar a apuração... qualquer um pode votar... se usar a tecnologia não tem
fraude... eu confio porque aparece o nome e o retrato do meu candidato... a urna
eletrônica é um orgulho para o brasileiro... a urna eletrônica é coisa de
Mundo...”
148
Uma das relações que, provavelmente, contribui para a consolidação da
urna eletrônica é a visão predominante no mundo ocidental de que o
conhecimento científico-tecnológico nos levará ao paraíso; isto porque segundo os
pressupostos modernistas, a verdade é descoberta pelo conhecimento científico e
pragmatizada pela tecnologia. Todos os nossos problemas serão resolvidos, mais
cedo ou mais tarde, por este viés, cabendo aos cientistas e técnicos a busca por
este saber. É comum ouvirmos que um produto é fechado a vácuo, sem contato
manual; que os cientistas de um determinado laboratório estão na etapa final dos
testes de uma vacina para um mal que aflige a humanidade; ou que tal ou qual
produto é de última geração. Pierre Bourdieu (1930-2002), sociólogo francês,
preocupou-se em construir conceitos relativos aos mecanismos de reprodução
social que legitimam as diversas formas de dominação, provocando modos de
vida.
Em particular, para a consolidação da urna eletrônica, a rede que a constitui
utiliza-se daquilo que Bourdieu chamou de violência simbólica, ou seja,
construção contínua de crenças que induzem as pessoas a se posicionarem
socialmente através dos discursos dominantes; que é o caso do discurso
cientificista. Vejamos este depoimento do ex-ministro do Tribunal Superior
Eleitoral, Carlos Velloso, em 10 de abril de 1997: ´´´Uma eleitora analfabeta se
acercou de mim para dizer-me que, pela primeira vez, tinha votado. Mas a
148
Colagem de frases que ouvi ao entrevistar inúmeros eleitores em várias oportunidades nestes
últimos anos.
105
senhora nunca votou? Sim, havia votado, respondeu-me ela. Mas somente hoje
tive certeza de que votei, porque, digitando o número de meu candidato, vi na tela
o seu retrato. Então, apertando a tecla “confirma”, tive a certeza de que votei. Por
isso, votei pela primeira vez na vida. O computador, a pequena máquina de votar,
-la cidadã.´´´
149
O contato do eleitor com o conjunto urna eletrônica se faz diretamente no
teclado do terminal do eleitor de acordo com as mensagens emitidas no monitor
do mesmo, as quais o eleitor deve seguir. Como disse no artigo 3, o mote para
que eu me introduzisse nesta discussão foi a ausência da tecla NULO no teclado
do terminal do eleito, e na Comissão de Informatização das Eleições Municipais
de 1996 constatei que houvera controvérsias sobre esta questão.
Por que não há, no teclado do terminal do eleitor, uma tecla exclusiva
para o voto NULO?
Jorge Lheureux de Freitas, membro da Comissão de Informatização das
Eleições Municipais de 1996, juntamente com outros dois membros desta
Comissão, Márcio Luiz Guimarães Collaço e Luiz Roberto da Fonseca, questionou
a ausência da tecla NULO no teclado do terminal do eleitor. Na Plenária nº. 04 da
Comissão, ocorrida em Brasília, em 06 de junho de 1995, por maioria presente,
fica estabelecida que a solução a ser adotada não deverá conter de forma
explícita a opção de voto nulo [...] Fica registrada a não concordância dos
membros Jorge Lheureux de Freitas, Luiz Roberto da Fonseca e Márcio Luiz
Guimarães Collaço com esta decisão. A solução deverá conter de forma explícita
a opção de voto em branco”
150
.
Em entrevista que me concedeu, Lheureux de Freitas disse que o se
lembrava mais da origem da discordância: Tendo em vista o baixo nível cultural
149
CAMARÃO (1997), p. 9.
150
Ibid., p. 75.
106
médio do nosso eleitor e pela inovação que o voto eletrônico traria, se optou, na
ocasião, pela entrada de dados mais simples e objetivos. Sem sombra de
dúvida, um volume maior de votos nulos ocorreria, não decorrente de
protesto, mas de erro do eleitor.
151
(grifo meu). Ainda sobre a ausência da
tecla NULO, Osvaldo Catsumi Imamura, que participou do Grupo Técnico, disse-
me: A questão da tecla nulo foi resolvida pela Corte do TSE. (grifo meu) [...]
A urna eletrônica é um instrumento de auxílio ao eleitor para a manifestação do
seu voto. Assim sendo, foi entendido que a expressão do voto se manifesta na
forma de voto no candidato, na legenda e em branco. Como o voto nulo também
faz parte desta manifestação, mas não representa o voto propriamente dito (sic)
optou-se na forma de expressão do voto nulo por meio de voto em candidato ou
legenda inexistente...Ainda na mesma entrevista, perguntei a Catsumi Imamura
se o Grupo Técnico recebia visitas de representantes de órgãos públicos e de
empresas privadas; respondeu-me que todas as informações necessárias para a
realização dos nossos trabalhos foram obtidas por meio de contatos com as
empresas integrantes, membros do Congresso Nacional, juristas e outras
instituições do Governo Federal. E mais: o TSE nos proporcionou total
independência para projetar a urna eletrônica.
152
A lei 4.737 de 15 de julho de 1965, o Código Eleitoral Brasileiro vigente, traz
no artigo 224 a seguinte redação: Se a nulidade atingir a mais de metade dos
votos do país nas eleições presidenciais, do Estado nas eleições federais e
estaduais ou do município nas eleições municipais, julgar-se-ão prejudicadas as
demais votações e o Tribunal marcadia para a nova eleição dentro do prazo de
20 (vinte) a 40 (quarenta) dias.Diz ainda o parágrafo Se o Tribunal Regional,
na área de sua competência, deixar de cumprir o dispositivo do artigo, o
Procurador Regional leva o fato ao conhecimento do Procurador Geral, que
providenciará junto ao Tribunal Superior para que seja marcada imediatamente
151
Entrevista concedida por Jorge Lheureux de Freitas, por e-mail, 20 de agosto de 2007.
152
Entrevista concedida por Osvaldo Catsumi Imamura, do Instituto Tecnológico da Aeronautica-
ITA, por e-mail, em 20 de agosto de 2007.
107
nova eleição; e o parágrafo Ocorrendo qualquer dos casos previstos neste
capítulo o Ministério Público promoverá, imediatamente, a punição dos culpados.
Quando estive em São José dos Campos para entrevistar Catsumi
Imamura, já citado, ao indagar sobre a impossibilidade, através da urna eletrônica,
do eleitor expressar-se plenamente ao limite da indignação votando, por exemplo,
no CACARECO ou no MACACO TIÃO ou mesmo apenas anulando o voto porque
não se contemplado pelos candidatos que lhe são apresentados; respondeu-
me que a urna eletrônica não foi criada pro leitor fazer protesto, foi criada pros
eleitores escolherem os administradores do país.
153
Estive também com o
desembargador Jessé Torres Pereira Junior em seu gabinete, no Tribunal de
Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ), no Centro da capital fluminense. O
desembargador presidiu o Grupo Técnico que especificou e fiscalizou o processo
licitatório para a aquisição do Coletor Eletrônico de Voto. Perguntei-lhe sobre a
função dele no Grupo cnico. Respondeu-me: não permitir que as
características cnicas da futura urna eletrônica fossem de encontro ao
estabelecido pela Justiça Eleitoral brasileira.
154
Lembro que para os eleitores as eleições acontecem no terminal do eleitor
e, mais particularmente, no teclado, no qual configuram as suas opções,
submetidos às restrições e dentro de um quadro limitado para suas opções. Este
teclado contém teclas de números de (0 a 9) em cor cinza, tecla de confirmação
em cor verde, tecla de correção em cor laranja e tecla de Voto em Branco em cor
branca.
155
Cada eleitor, diante do teclado, na sua solidão cidadã, tem as
seguintes opções: votar em candidatos, votar em legendas, votar em branco, votar
nulo. Todas as opções estão explícitas, com a exceção da última, na qual o eleitor
sofre constrangimento por parte da máquina. É importante sempre ressaltar que
153
Entrevista concedida em São José dos Campos, no Instituto de Estudos Avançados-ITA, nos
dias 30 e 31 de outubro de 2007.
154
Entrevista concedida pelo desembargador Jessé Torres Pereira Junior em seu gabinete no
Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, no dia 27 de novembro de 2007.
155
AVISO de Licitação Concorrência Internacional nº. 02, de 13 de dezembro de 1995, Anexo II
Especificação de Requisitos do Modelo de Engenharia do Coletor Eletrônico de Voto, p. 11.
108
o teclado e o monitor do terminal do eleitor, como qualquer outro artefato, são
híbridos resultantes não do melhor dos mundos tecnológicos e sim, resultantes de
relações sociotécnicas.
Teclado do terminal do eleitor.
156
Segundo o artigo 224 do Código Eleitoral brasileiro, todas as opções são
legítimas. Por que no processo de construção do Coletor Eletrônico de Voto
(CEV), cujos requisitos tinham por base a lei nº. 9.100, de 29 de setembro de 1995
(“Estabelece normas para a realização das Eleições Municipais de 03 de outubro
de 1996, e dá outras providências) e o Código Eleitoral brasileiro, não se levou em
consideração o que é estabelecido para o voto nulo? Por que o TSE o explica
como votar nulo nas propagandas institucionais que antecedem as eleições? Por
que representantes a Justiça Eleitoral brasileira insistem em dizer que números de
votos nulos acima da metade dos votos totais não anulam as eleições? Por que a
própria legislação eleitoral insiste em qualificar os votos nulos como inválidos, indo
de encontro ao que estabelece a legislação eleitoral?
É nítido o esforço da Justiça Eleitoral brasileira em desclassificar os
eleitores que pretendem anular o voto por não se sentirem representados pelos
candidatos e partidos que se apresentam aos pleitos, e definir a concretização do
voto nulo como um erro do eleitor ao utilizar a urna. É comum, membros dos três
poderes e pessoas influentes afirmarem que votar nulo é um desserviço ao país e
156
Disponível em: http://www.quatrocantos.com/LENDAS/imlendas/teclado.gif. Acesso em: 06 jun.
2009.
109
à democracia. O ministro Marco Aurélio de Mello disse o seguinte sobre as
eleições de 1996: ... o índice de votos em branco não ultrapassou 3% e os nulos
ficaram na casa dos 9%. Nunca, em toda a história da Justiça eleitoral brasileira,
deparamos com estatísticas tão favoráveis.
157
(sic)
Hoje, apesar da rede de fluxos heterogêneos da urna eletrônica brasileira
ter estabilizado um discurso da inviolabilidade, há uma controvérsia aberta sobre a
impressão do voto. É interessante observar que no Edital para a fabricação do
Coletor Eletrônico de Voto - CEV consta a impressão dos votos e a utilização de
uma urna de plástico acoplada à urna eletrônica para receber os votos impressos.
No item 3.1. Definições, do Anexo II, que trata das especificações do CEV,
encontramos: Registro do Voto: Esse documento [voto impresso] conterá todas
as informações do voto do eleitor, sendo impresso pelo ME-CEV [Modelo de
Engenharia do Coletor Eletrônico de Voto] e depositado automaticamente em urna
física acoplada ao mesmo.” Por que não foi mantido o registro do voto? No modelo
da urna eletrônica utilizada em 1996 (UE/96) havia uma urna de plástico acoplada
á urna eletrônica, não mantida nos modelos posteriores. Na conversa que mantive
com Catsumi Imamura, em São José dos Campos, já citada, este argumentou que
os membros do Grupo Técnico optaram pela exclusão da impressão porque foram
testados alguns tipos de papel para imprimir o voto, inclusive a Klabin Celulose
fabricou um papel especial para ser utilizado, entretanto, ainda segundo Catsumi
Imamura, todos os tipos de papéis experimentados na impressão provocavam
problemas após algum tempo de uso, como, por exemplo, amassavam. Isto
ocorrendo, provocaria filas e, em consequência, haveria atraso na apuração. Fiz
mais duas perguntas: Por que temos que saber os nomes dos eleitos tão
rapidamente? Quem ganha com este mecanismo na sociedade brasileira?
Respondeu-me: Para evitar fraudes; quem ganha é a democracia. Entretanto,
não vou prender-me a esta controvérsia das possibilidades de fraudes, já bastante
esquentada, que, parece-me, terá desdobramentos para a inclusão da impressão
157
PORTO, Continentino. “Quem é quem nas eleições de 1996. Rio de Janeiro: Renato Figueiredo
(editor), 1999, p. 9.
110
do voto caso a rede que assim deseja se torne mais ampla e mais heterogênea. O
que desejo esquentar é exatamente uma outra controvérsia, a referente ao voto
nulo.
Modelo UE/96, com uma urna de plástico acoplada para receber os votos
impressos.
158
Nas últimas eleições e mais particularmente nas eleições de 2006, surgiram
discussões sobre a opção de votar nulo. No mundo acadêmico e no mundo da
política profissional houve alguns debates sobre este tema, mas de pouca
penetração no eleitorado em geral. Mesmo assim, o TSE e os TREs agiram com
rapidez através de pronunciamentos, entrevistas, propagandas e documentos com
o intuito de evitar que os fluxos favoráveis ao voto nulo provocassem um
esquentamento deste tema em toda a sociedade brasileira.
Em uma entrevista concedida no dia 28 de agosto de 2006, ao Programa
Roda Viva, da Rede Brasil, o presidente do TSE, ministro Marco Aurélio de Mello,
afirmou que: o voto é anulado a partir do momento em que digite na urna, isso
não deve ser feito porque é uma fuga, (sic) um número de um candidato
inexistente. Ao ser questionado por Paulo Markun, apresentador do programa,
sobre a anulação de uma eleição caso tenhamos mais de 50% de votos nulos,
disse o ministro: Nós temos uma regra que advém da Constituição Federal, que
diz respeito às eleições majoritárias para os cargos de governador e presidente da
158
Disponível em: http://www.tre-pi.gov.br/novo/espaco-memoria/catalogo/imagens/urna4b.jpg.
Acesso em: 09 mai. 2010.
111
república. o eleito precisa alcançar 50% de votos válidos. A par desta regra
existe uma outra que é linear, que também repercute nas eleições proporcionais.
Se os votos nulos e brancos alcançarem mais de 50% nos temos a insubsistência
do pleito, mas eu o acredito que isso ocorra.
159
Em particular, o artigo que o
ministro se refere é o 224 do Código Eleitoral, já citado. Segundo um outro
ministro do TSE, Carlos Ayres Britto, o voto originalmente nulo: Ou o eleitor se
atrapalhou na hora de votar ou não concorda com nenhuma das candidaturas ou
nenhum dos partidos, ou é um voto de protesto contra a obrigatoriedade do
voto.
160
Nada acrescentou o ministro Ayres Britto ao debate. De modo geral, as
autoridades da Justiça Eleitoral brasileira fazem uma interpretação do termo
nulidade em uma eleição quando esta é anulada pela própria Justiça Eleitoral
devido a algum crime eleitoral (compra de votos, utilização do poder econômico) e
não aos votos anulados pelo eleitor por vontade ou erro.
Caro eleitor, eu tenho sempre a sensação que os representantes da Justiça
Eleitoral quando tratam da questão do voto nulo não o claros, deixando
margens para todo tipo de interpretação. Façamos um exercício: se em uma
eleição houver mais de 50% de votos em branco e/ou nulos (votos ditos inválidos),
60%, por exemplo, o candidato eleito será aquele que obtiver 50% mais um dos
votos ditos válidos, ou seja, os restantes 40% do total. Sendo assim, um candidato
poderá ser eleito, por exemplo, com 21% de todo o eleitorado. Que legitimidade
teria este governante? ainda uma outra questão diante das teses dos ministros
do TSE: se não é possível afirmar se o voto nulo na urna eletrônica é uma decisão
do eleitor ou erro deste, há, novamente, uma desclassificação de tal voto e do
eleitor, uma vez que não cabe a Justiça Eleitoral especular sobre a qualidade dos
votos, e sim garantir a legitimidade das escolhas feitas pelos eleitores brasileiros.
Um dos fluxos importantes para a consolidação da urna eletrônica,
provavelmente, é o exercício diário que a população faz nos caixas eletrônicos das
159
Disponível em: www.youtube.com.br. “TSE admite anulação da eleição”. Acesso em:
04.03.2010.
160
Disponível em: www.tse.gov.br. Acesso em: 25 nov. 2009.
112
agências bancárias. Há, também, os fluxos estabilizados de que o voto nulo é um
voto jogado fora, que iria de encontro à democracia representativa. Entretanto,
devemos levar em conta um aspecto bastante importante: a grande maioria da
população domina os meios eletrônicos através de uma relação binária simples.
Entretanto, quase sempre surgem dificuldades quando nesta relação é incluída
uma interpretação a partir de algumas opções. Exemplifico. Na urna eletrônica
opções por candidatos, legendas ou pelo voto em branco, o eleitor tecla os
números, olha o monitor e confirma. no voto nulo, o eleitor tecla um número
inexistente, confirma e aparece no monitor uma expressão constrangedora
“NÚMERO ERRADO”, ou seja, o eleitor não está votando nulo e sim, votando
errado, segundo a Justiça Eleitoral. Somente após confirmar mais uma vez, o voto
será anulado. Portanto, a própria urna eletrônica dificulta o voto nulo. Desta forma,
de modo geral, apenas o eleitor mais familiarizado com artefatos informatizados e
com as suas possibilidades de interpretação e escolha e com os mecanismos
eleitorais utilizados no Brasil, teria condições de anular o voto.
O poder judiciário brasileiro ao se propor consolidar um mecanismo de
escolha dos representantes do povo tendo como meta principal eliminar de vez as
fraudes eleitorais, em momento algum respeitou os princípios básicos da
Constituição Federal Brasileira de 1988, em particular o artigo 1º, no seu parágrafo
único: Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes
eleitos diretamente, nos termos desta Constituição.” E ainda, o artigo 14: A
soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e
secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante: I. plebiscito; II.
referendo; III. iniciativa popular.
161
No início do processo de construção do Coletor Eletrônico de Voto, foram
criados dois grupos técnicos, já citados, no artigo 2: a Comissão de Informatização
das Eleições Municipais de 1996 e o Grupo Técnico. Trabalharam nestes grupos:
161
BRASIL. Constituição (1988) Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada
em 05 de outubro de 1988.
113
ministros do TSE, desembargador, juízes, secretários de informática do TSE e dos
TREs; e funcionários do ministério da Aeronáutica, do Exército, da Marinha, da
Ciência e Tecnologia, da Comunicação, do TSE, do Tribunal de Justiça do Estado
do Rio de Janeiro, respectivamente.
162
Não foram convidados para estes grupos
representantes da sociedade civil: deputados, senadores, sindicatos, ong‟s,
igrejas, OAB, ABI, movimentos dos trabalhadores sem-terra, associações diversas
etc. Todo o processo se deu a partir de grupos ditos técnicos, isto é, fechados.
Somente após a definição da arquitetura da urna eletrônica, o povo foi
comunicado da sua existência e funcionamento. O povo ao concordar é sábio, ao
discordar não tem ainda capacidade para entender o que foi proposto, segundo
parte das elites brasileiras. Defino, aqui, elite como sendo os proprietários dos
meios de produção e/ou grupos sociais que governam e constroem realidades,
prioritariamente, para os seus umbigos.
De maneira alguma pretendo conduzir esta discussão pelo viés da
dicotomia do certo-errado ou do falso-verdadeiro. Para s, dos estudos de CTS,
os ditos natural ou social se estabilizam como consequências, chegam ao final,
após o esfriamento das controvérsias quando fatos e artefatos se estabilizam. O
caso específico do artigo 224 do Código Eleitoral nos leva ao conceito de
externalidade exposto por Michel Callon e citado: através da qual, toda decisão
efetuada por A, B e C provoca efeitos negativos ou positivos ou nenhum efeito em
162
Composição da Comissão de Informatização das Eleições Municipais de 1996: ministro
Ilmar Galvão (presidente); Paulo César Bhering Camarão (secretário de informática do Tribunal
Superior Eleitoral-TSE, relator); Antonio Villas Boas Teixeira de Carvalho; Célio Assumpção; juiz
Fernando Marques de Campos Cabral; Gilberto Circunde; desembargador Gilberto Niederauer
Corrêa; Jorge Lhereux de Freitas; Luiz Roberto da Fonseca; juiz Luiz Sérgio Neiva de Lima Vieira;
Márcio Luiz Guimarães Collaço; juiz Milton Löff; Roberto Siqueira; juiz Wander Paulo Marotta
Moreira. Grupo Técnico: Antônio Ésio Marcondes Salgado (Instituto de Pesquisas Espaciais-
INPE, do Ministério da Ciência e Tecnologia-MCT); major Elifas Chaves Gurgel do Amaral
(Departamento de Informática do Ministério do Exército); Jessé Torres Pereira Júnior (juiz de direito
da Entrância Especial do Estado do Rio de Janeiro); José Antonio Ribeiro Milani (Centro de
Pesquisa e Desenvolvimento-CPqD da Telebrás); Luiz Antonio Raeder (Coordenadoria de
Sistemas Eleitorais-CSE/TSE); Luiz Otávio Botelho Lento (capitão-de-corveta, DTM do Ministério
da Marinha); Mauro Hissao Hashioka (Instituto de Pesquisas Espaciais-INPE, do Ministério da
Ciência e Tecnologia-MCT); Paulo Seiji Nakaya (Instituto de Pesquisas Espaciais-INPE, do
Ministério da Ciência e Tecnologia-MCT); Osvaldo Catsumi Imamura (Instituto Tecnológico da
Aeronáutica-ITA); Paulo César Bhering Camarão (secretário de Informática do Tribunal Superior
Eleitoral-TSE, presidente do Grupo Técnico).
114
agentes X, Y e Z não envolvidos nas negociações ou porque não constituíram
uma rede suficientemente robusta para contrapor a constituída por A, B e C ou
porque não desejam participar.
163
O modelo político predominante, hoje, no Brasil, é uma democracia liberal
representativa. Periodicamente, o povo brasileiro vai às urnas escolher os seus
representantes para os cargos executivos e legislativos nos níveis federal,
estadual e municipal. Os candidatos são escolhidos no interior dos partidos e
um período oficial para as campanhas nas ruas e através dos meios de
comunicação. As campanhas são milionárias, que inviabilizam candidaturas sem
recursos e/ou com propostas reformistas ou revolucionárias, mesmo no
enquadramento constitucional vigente. A ausência da tecla NULO no teclado do
terminal do eleitor é um (ponto de passagem obrigatório), como também é
um a ausência da materialização dos votos. Ambas ausências são
traduções/translações e estão imbricadas numa ampla e complexa rede de
entidades heterogêneas que constituem um tecido sem costura que consolida esta
democracia liberal representativa. Ambas ausências não são consequências de
uma dita tecnologia entendida como o conhecimento obtido a partir do controle e
da obediência às Leis da Natureza (neutras, atemporais, universais e
determinísticas). Entretanto, os aliados da arquitetura atual da urna eletrônica são
crentes do cientificismo e do pragmatismo tecnológico, entendem A CIÊNCIA e A
TÉCNICA estabilizadas pela modernidade como OS SABERES VERDADEIROS
que estão , dados ao mundo porque foram descobertos. Por isso, afirmam que
devemos confiar apenas aos cientistas e cnicos de Comissões e Grupos
Técnicos e aos juristas aquilo que é bom e justo para as sociedades nos aspectos
tecnológicos e de justiça respectivamente.
163
CALLON, Michel. “Na essay on framing and overflowing: economic externalities revisited by
sociology” in The The Editorial Board of The Sociological Review, 1998, p. 247. No original: The
decision they [A, B e C] finally take has positive or negative effects, here referred to as externalities,
on another set of agents X, Y and Z (as distinct from A, B and C), the latter are not involved in this
transaction or negotiation because they have no way of intervening or because they have no wish
to do so.
115
Todo artefato é uma hibridização que medeia relações e sofre
traduções/translações. Falar da urna eletrônica brasileira é tratar de legislação
eleitoral, de democracia, das peças e mecanismos que compõem este artefato.
Mas, também, do olhar neoliberal do Banco Mundial e de sua política para a
pobreza no mundo, do Consenso de Washington, do projeto da Organização dos
Estados Americanos (OEA) para a América Latina. Segundo as teses do Banco
Mundial
164
, no final do século XX, o Estado deverá reduzir seu tamanho e apenas
se organizar para ser um facilitador das ações do mercado; para a população em
geral, deverá ser incutida a idéia de direitos, (em particular direitos de consumidor
e de políticas compensatórias), colocando de lado a idéia de cidadania, não mais
garantida pelo Estado. Logo, os processos políticos deverão ser limitados ao
máximo, evitando assim possibilidades de transformações político-econômicas e
criando um ambiente estável. A arquitetura da urna eletrônica faz parte desta rede,
na qual todas estas questões e muitas outras estão imbricadas. Este mesmo
artefato é um coletor eletrônico de voto, cujas características, finalidades,
interesses imediatos, financiamento se mistura sutilmente às questões de
manutenção da ordem predominante em escalas que muitas vezes transbordam
os espaços-tempos locais. Talvez, o grande barato do estudo de caráter
sociotécnico desta urna eletrônica brasileira, diferente de estudos de outros
artefatos, seja o fato de uma peça [entidade] de sua arquitetura não ter uma
materialidade (a tecla NULO). Fazer existir a inexistência da tecla NULO é
construir (materializar) parte do caráter limitador e autoritário do mecanismo de
alternância de poder no processo eleitoral brasileiro, no qual o TSE organiza,
fiscaliza, apura e publica os resultados, sem que a sociedade tenha meios
eficazes de auditá-la e auditá-los, respectivamente.
A rede da urna eletrônica do TSE é invisível, temos apenas input/output,
cuja forma de produzi-lo também é invisível. Portanto, este laboratório ampliado
164
Sobre este tema: Relatório sobre o desenvolvimento mundial 1990 e 2000/2001. / UGÁ, Vivian
Dominguez. “A categoria pobreza nas formulações de política social do Banco Mundial” in Revista
de Sociologia e Política, Curitiba: nº. 23, nov. 2004, p. 55-62. / FILGUEIRAS Luiz & GONÇALVES
Reinaldo. A economia política do Governo Lula. Rio de Janeiro: Contraponto, 2007.
116
que estabiliza a urna eletrônica vem provocando uma outra mobilização e uma
outra politização do eleitor brasileiro (fortalecimento da idéia de ratificador de uma
ordem em detrimento do conceito de cidadão; fortalecimento da idéia de que nas
eleições escolhemos um administrador em detrimento de um político;
fortalecimento da idéia do fim da história em detrimento aos antagonismos dos
grupos sociais; fortalecimento da idéia dos interesses individuais em detrimento de
interesses coletivos para a construção de uma sociedade menos injusta etc.).
Sendo assim, cabe construirmos um contra-laboratório com fluxos bastante
amplos e heterogêneos, em particular, com a inclusão de uma tecla NULO no
teclado do terminal do eleitor e a impressão dos votos, que nos permitirá, dentre
outros aspectos, buscar estabilizar uma outra mobilização e uma outra politização.
117
Artigo 8
... labordireitório...
165
Onde se verá, a partir do conceito labordireitório, que a urna eletrônica brasileira é
um artefato estabilizado também nos tribunais, como qualquer outro.
Em cada julgamento, um drama se
desdobra diante do público, um duelo
entre a defesa e a acusação. Ambas
contam histórias que não são
necessariamente verdadeiras, mas
possíveis. No final uma é declarada a
vitoriosa, mas isso não necessariamente
tem algo a ver com justiça. [...] Um bom
julgamento é como uma peça de
Shakespeare, uma obra de arte. [...] A
beleza de um julgamento pode ser medida
pelo rastro que deixa para trás, muito
após a sentença ter sido pronunciada.
166
(Entrevista de Jacques Vergès
167
aos
jornalistas Brita Sandberg e Eric Follath,
da revista Der Spiegel, novembro de
2008)
Caro leitor, este artigo será atravessado por conceitos importantes para
quem trabalha a partir dos estudos de ciência-tecnologia-sociedade (CTS):
laboratório ampliado, contra-laboratório e labordireitório. Inicialmente,
recupero o imaginário do cientista e do laboratório construídos através do cinema,
165
Labor (ô). [Do lat. labore.] S. m. Trabalho, faina, lavor. Direito [Do lat. cláss. directu.] 13.
Ciência das normas obrigatórias que disciplinam as relações dos homens em sociedade;
jurisprudência. Dicionário Aurélio Eletrônico. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1999. Este
conceito peguei emprestado do prof. Ivan da Costa Marques, que o apresenta no artigo
´´´Labordireitórios´ e ´objetos naturais´: espaços, traduções e questões globais para uma
inteligência empresarial local´´.
166
Disponível em: <http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/derspiegel/2008/11/22/ult2682u998.jhtm>.
Acesso em: 04 out. 2009.
167
Alguns nomes da lista de clientes de Jacques Vergés: Klaus Barbie (nazista), Carlos (o Chacal),
Magdalena Kopp (esposa de Carlos, o Chacal), Pol Pot (líder do Khmer Vermelho no Cambodja),
Slobodan Milosevic (ex-presidente da Sérvia), Yasser Arafat, Ayatollah Khomeini, Djamila Bouhired
(símbolo da resistência argelina e, posteriormente, esposa de Vergès).
118
como, por exemplo, Frankenstein (1931, de James Whale) e A ilha do Dr. Moreau
(1932, de Erle C. Kenton); e da literatura como O médico e o monstro (1886, de
Robert Louis Stevenson). Solitários seres, alienados do mundo, de fisionomias
transtornadas, trabalham avidamente nos seus lúgubres e tenebrosos laboratórios
em locais que se poderiam chamar Nowhereland. Buscam transformar qualquer
coisa em ouro, descobrir a fonte da juventude, a origem do universo, a origem da
vida, entender os segredos da mente, formar uma raça perfeita, ou construir robôs
com capacidades humanas, que, quase sempre, subvertem os papéis e atacam
seus criadores.
Cena do filme Frankenstein (1931), de James Whale.
168
Entretanto, de acordo com Latour, quanto mais esotérica uma parte da
tecnociência, mais exotérico precisa ser o recrutamento de pessoas”.As
expressões esotérico e exotérico deste trecho estão vinculadas ao sentido que é
dado por um outro trecho, da mesma obra: “a capacidade de trabalhar num
laboratório com colegas dedicados depende do grau de sucesso que os outros
168
Disponível em: http://1.bp.blogspot.com/_zKx9tkF-
qpA/R1oHQO0MNzI/AAAAAAAAAEg/Jp0YI4eJ48c/s400/frankenstein.jpg. Acesso em: 29 ago.
2010.
119
cientistas têm na obtenção de recursos. [E]sse sucesso, por sua vez, depende do
número de pessoas convencidas pelos cientistas de que o desvio pelo
laboratório é necessário para promover seus próprios objetivos.
169
Portanto, artefatos não são, de maneira alguma, produzidos por gênios
solitários em lugares isolados. Uma boa ideia é apenas uma boa ideia sem
nenhuma conseqüência se não forem produzidas relações a partir de fluxos
heterogêneos que deverão ser estabilizados como aliados. Artefatos soltos e
desvinculados são como naturezas mortas sobre uma mesa. Em uma visita a uma
exposição na Universidade de Fortaleza-UNIFOR, no Ceará, chamou-me a
atenção um quadro de Alexandre Mourão, em acrílico sobre tela, cujo título é
Tecnologia Morta. Velhos artefatos soltos sobre uma mesa, à semelhança de
naturezas mortas, nada mais. Uma enorme sensação de desvinculação, um
enorme vazio.
Johannes Kepler (1571-1630) se alinhou à concepção copernicana de um
sistema no qual o sol estaria no centro, estático, e os planetas girariam em torno
daquele, diferente da visão geocêntrica ptolomaica. Entretanto, diferente da
concepção copernicana, Kepler na sua Lei afirmou que, todos os planetas do
sistema solar, incluindo a Terra, giram e torno do Sol em órbitas elípticas, sendo
que o Sol ocupa um dos focos da elipse”.
170
Geocêntrico e heliocêntrico, os
sistemas ptolomaico e copernicano, respectivamente, tinham como idéia que as
órbitas eram circulares, concepção de forte poder persuasivo, entendendo o
círculo como a figura mais perfeita e racional, como seria o universo criado por
Deus. Inicialmente, Kepler tentou uma órbita oval que dava uma idéia de
nascimento, menos conflitante com a concepção predominante da Igreja católica.
Posteriormente, fixou-se, definitivamente, na visão elíptica. Feitas as primeiras
considerações, Kepler propõe uma tática para sair do isolamento que Galileu
havia imposto a si mesmo em relação às idéias de Copérnico. A sugestão de
169
LATOUR (2000), p. 260 e 259.
170
CARRON, Wilson & GUIMARÃES Osvaldo. Física. São Paulo: Editora Moderna, 2003, p. 91.
120
Kepler era de que formassem uma espécie de associação capaz de mostrar aos
tolos que os copernicanos eram mais numerosos do que se acreditava. Afirmava
também que o silêncio preconizado por Galileu na carta não constituía uma boa
atitude: ´Tenho confiança, meu querido Galileu, que venha! Se imagino bem,
poucos entre os principais matemáticos da Europa irão se afastar de nós, pois é
muito grande o poder da verdade.´
171
Sistema kepleriano.
Sistema ptolomaico,
171
MOURÃO, Ronaldo Rogério de Freitas. Kepler A descoberta das Leis do Movimento
Planetário. São Paulo: Odysseus Editora, 2003, p. 68.
121
A teoria da gravitação universal de Newton, originalmente, nada tem a ver
com as ditas leis da Natureza e sim, com a filosofia hermetista
172
, posteriormente
naturalizada por Newton e aliados. Segundo Newton, haveria entre os corpos
mecanismos invisíveis operando no éter. Ou ainda, o fato de substâncias reagirem
entre si e outras não, fazia Newton pensar em um princípio secreto regendo as
simpatias e as antipatias entre as substâncias.
Kepler (híbrido de matemático, astrônomo e astrólogo) e todos aqueles que
tinham as mesmas idéias sobre um sistema heliocêntrico foram obrigados durante
um longo período, trabalho iniciado por Nicolau Copérnico, (1473-1543) a construir
um contra-laboratório para enfrentar o sistema geocêntrico ptolomáico,
172
Hermetismo: “[...] Os livros herméticos, atribuídos ao deus egípcio Hermes Trimegisto [...]
contém um doutrina filosófica oculta, cultivada por certos alquimistas da Idade Média,
apresentando-se como uma iniciação a uma espécie de alquimia espiritual, e tendo por
fundamento certas correspondências secretas entre o visível e o invisível, entre o homem e o
universo, vale dizer, entre o microcosmo e o macrocosmo. [...] O hermetismo influenciou bastante o
Iluminismo [...]. JAPIASSU, Hilton & MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990, p. 118.
122
estabilizado desde o início da era cristã. As histórias das ditas ciências e das ditas
tecnologias são construções sociotécnicas, incluindo os labordireitórios, assim o
digam Galileu, Kepler, Giordano Bruno, Rudolf Diesel
173
, Newton, Unitron
174
,
Lyssenko
175
, os inventores desta urna eletrônica brasileira e assim por diante, que
competiram com o Tribunal da Inquisição da Igreja católica, com os darwinistas,
com os protestantes que tentaram invadir a Universidade de Cambridge, com
aqueles que discordam da invulnerabilidade da urna eletrônica e assim por diante.
Todos com histórias nas mãos que competiram/competem entre si, em campos
restritos (labordireitórios), cujas regras eram/são restritas. Restritas porque se
fazem em espaços-tempos cujos funcionamentos estiveram/estão estabilizados de
formas que caberiam/cabem aos antagonistas se enquadrarem se
desejavam/desejam ser bem sucedidos a partir de suas histórias.
Geoffrey Bowker, apud Marques
176
, fala em história[s] suficientemente[s]
„respeitáve[is] para se ir a julgamento[s] com ela[s], e isto era tudo que era
preciso.
177
Eu diria construir uma retórica forte. Artefatos tiveram/têm sucesso por
pouco tempo, outros por muito tempo. A duração do tempo de sucesso está
vinculado à capacidade dos actantes congregar aliados e mantê-los. “[T]endemos
a achar que uma oficina pobre está mais amarrada a interesses externos do que
uma bem equipada, mas na verdade ela é pobre porque menos amarrada; ao
contrário, quando visitamos um gigantesco ciclotron tendemos a achar que ele
está mais distante do interesse imediato de qualquer pessoa, mas na verdade ele
está distante somente em virtude de seus vínculos estreitos com milhões de
173
Rudolf Diesel: um dos inventores do motor à diesel.
174
A Unitron, empresa de São Paulo, realizou uma engenharia reserva do microcomputador
Macintosh da Apple, provocando uma disputa judicial entre empresas e governos brasileiro e
americano. MARQUES, Ivan da Costa. Labordireitórios e objetos naturais: espaços, traduções e
questões globais para uma inteligência empresarial local.
175
Trofim Denissovitch Lysssenko: criador do programa agrícola da URSS, no período stalinista.
176
MARQUES, Ivan da Costa. Labordireitórios e objetos naturais: espaços, traduções e questões
globais para uma inteligência empresarial local. p. 5.
177
BOWKER, Geoffrey. 1994. Science on the Run Information Management and Industrial
Geophysics at Schlumberger, 1920-1940. Cambridge: Mass.: MIT Press.
123
pessoas. Esse erro ocorre porque [...] esquecemo-nos das muitas negociações
que os de fora precisam realizar para que os de dentro existam.
178
A história da urna eletrônica brasileira é uma história de sucesso porque
seus aliados tiveram a capacidade de congregar um número suficiente de aliados
heterogêneos. Construíram/constrõem uma bela e suficientemente respeitável
história de dados, estatísticas, cronogramas, relatórios, resoluções, entrevistas,
alterações no Código Eleitoral, acordos com o Banco Mundial, apoio da
Organização dos Estados Americanos (OEA), livros, artigos; em suma, deram/dão
respeitabilidade ao artefato que estavam/estão construindo. Por outro lado,
desqualificam, permanentemente, o mecanismo eleitoral anterior através das
cédulas de papel. Ou seja, foi feito um trabalho de divisão precedente e
subjacente, normatizando o que é ultrapassado e o que é moderno, o que é
fraudulento e o que é inviolável. A tarefa de se construir um laboratório ampliado a
partir do TSE foi relativamente facilitada pela rotina de fraudes registradas nas
anteriores eleições, totalizações e apurações
179
; como também, por exemplo, pela
ânsia por tecnologia que a sociedade Ocidental vive e pela concepção de que os
artefatos são neutros. Entretanto, o tendão de Aquiles da urna eletrônica se fixa na
questão dos programas que são inseminados, impossíveis de serem verificados,
segundo os especialistas externos. Através das cédulas de papel nós sabíamos
onde se verificavam as fraudes; através das urnas eletrônicas nós sabemos em
que momento poderá ocorrer uma fraude. Todo processo eleitoral está nas mãos
da Justiça Eleitoral.
178
LATOUR (2000), p. 260.
179
Alguns tipos de fraudes que ocorriam quando as eleições brasileiras eram através das cédulas
de papel: voto carreirinha, um eleitor colocava um papel qualquer na urna e levava com ele a
cédula original, que era preenchida fora e entregue a um eleitor comprometido com um
determinado candidato; encher a urna com cédulas falsificadas para anular a votação em uma
seção; sumir com a urna oficial e colocar no lugar dela uma outra urna com votos de um
determinado candidato ou cheio de cédulas falsificadas para, também, anular a votação em uma
determinada seção que o candidato adversário venceria; sumiço de urnas no trajeto entre a seção
eleitoral e o local de apuração e totalização; preenchimento dos votos em branco por apuradores;
erros propositais para mais ou para menos na totalização dos votos; divulgação de determinadas
regiões em detrimento de outras para desmobilizar os fiscais de um determinado candidato.
124
Em uma reportagem de Marcelo Soares para a edição de 27 de maio de
2001 do jornal Folha de São Paulo, o engenheiro Osvaldo Catsumi Imamura, do
Centro Tecnológico da Aeronáutica, que presta consultoria técnica ao TSE e é um
dos técnicos do SIE desde de 1995 disse que, o sistema [para as eleições de
2000] foi alterado [em setembro de 2000] após a verificação pelos partidos [em
agosto de 2000]. Segundo ele, foram corrigidos pequenos erros de programação.
Pela lei, isso não deveria ocorrer.
180
Eu indaguei ao Sr. Imamura, quando estive
em São José dos Campos para entrevistá-los, sobre esta questão, ele confirmou,
mas me disse que deveríamos confiar na Justiça Eleitoral
181
. Conforme afirma
Pedro Rezende, professor de criptografia da Universidade de Brasília-UnB, É
claro que a urna eletrônica é confiável, [...] se entra software honesto sai eleição
limpa. Se entra software desonesto sai eleição fraudada. [...] Porém, com as
normas em vigor, basta uma pequena burla num desses programas, por parte de
quem detém o privilégio ou a necessidade de manipular os mesmos, para a fraude
assim armada ocorrer de forma indemonstrável para quem está de fora do
sistema. [...] Mais precisamente, a questão crucial é a de como saber se os
programas que entram na urna e nas máquinas de totalização são ou não são os
mesmos examinados durante a cerimônia de apresentação do TSE [aos partidos],
noventa dias antes.
182
É importante salientar que todas as vezes que indaguei aos juristas, juízes
eleitoras e técnicos vinculados à justiça eleitoral sobre as questões que o prof.
Pedro Rezende se refere, eles me responderam que as pessoas envolvidas com
os programas e a inseminação destes são honestas. Ainda o Prof. Rezende: ...
quando a estridência das denúncias atinge nível desconfortável, alguma novidade
pirotécnica é adotada por decisão geralmente tomada em condições
desconhecidas, e anunciada através de manchetes talhadas para sepultar o
180
SOARES,, Marcelo. “Unicamp vai analisar sistema Senado aprova perícia nas urnas
eletrônicas” in Folha de São Paulo. São Paulo: 27 de maio de 2001, p. A12.
181
Entrevista já citada no artigo 7.
182
JAKOBSKIND, Mário Augusto & MANESCHY, Osvaldo. (orgs.). Burla Eletrônica. Rio de Janeiro:
Fundação Alberto Pasqualini, p. 38.
125
assunto. Manchetes do tipo „agora, a solução definitiva para a segurança da
urna.‟
183
No momento que escrevo esta tese, estou lendo o livro Ensaio sobre a
lucidez, de José Saramago
184
. Em rápidas linhas: uma capital, Lisboa, talvez, no
dia das eleições de 1º. turno, foi atingida por um temporal, que causou a ausência
de eleitores nas seções de votação durante todo o dia. Faltando apenas uma hora
para o término das mesmas, multidões se aglomeraram em grandes filas diante
das seções eleitorais para votar. Após a apuração, os votos em branco atingiram
75% do total. O governo, diante de tais números considerou que houve algo ilegal
e marcou uma nova eleição para daí a uma semana. O 2º. turno aconteceu em um
belo dia de sol. Neste 2º. turno, os votos em branco chegaram aos 83% do total. O
governo, então, continuou trabalhando com a hipótese de uma conspiração com o
intuito de desestabilizar o estado de direito. Sendo assim, o chefe do governo,
com o apoio dos ministros do Interior e da Defesa, em particular, decreta um
estado de sítio. Pessoas são, arbitrariamente, retiradas de suas casas,
aprisionadas, isoladas, inquiridas, torturadas. Entretanto, o cotidiano na capital
não se altera, as pessoas continuam suas vidas como se nada de significativo
estivesse acontecendo. Assim, o chefe de governo toma uma atitude drástica:
decreta a retirada da capital de todo o executivo, legislativo e judiciário,
permanecendo na capital apenas os vereadores e os serviços básicos. Mesmo
assim, a vida na capital mantém a sua rotina. Logo, o primeiro atentado ocorre
com o patrocínio do ministro do Interior; uma bomba explode no metrô, causando
inúmeras vítimas fatais.
Se fizermos um exercício de tradução/translação do voto em branco em
voto nulo, de Lisboa em uma grande capital brasileira, observaremos, caro leitor,
que o labordireitório e se afinam. Atente para os depoimentos da autoridade
portuguesa (brasileira).
183
JAKOBSKIND, Mário Augusto & MANESCHY, Osvaldo. (orgs.). Burla Eletrônica. Rio de Janeiro:
Fundação Alberto Pasqualini, p. 40.
184
SARAMAGO, José. Ensaio sobre a lucidez. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
126
Diante do resultado do 1º. turno, à noite, o primeiro-ministro vai à televisão
anunciar novas eleições municipais. Com um semblante grave e acentuando as
sílabas fortes: O governo [...] confia em que a população da capital, novamente
chamada a votar, saberá exercer o seu dever cívico com a dignidade e o decoro
com que sempre o fez no passado, assim se dando por írrito e nulo o lamentável
acontecimento em que, por motivos ainda não de todo aclarados, mas que se
encontram em adiantado curso de averiguação, o habitual esclarecido critério dos
eleitores desta cidade se viu inesperadamente confundido e desvirtuado.
185
Na
noite do 2º. turno das eleições municipais, cujos resultados ratificaram e
ampliaram os votos em branco dos eleitores, o chefe de estado retornou à
televisão. “Vinha com o rosto demudado, de olheiras cavadas, efeito de uma
semana inteira de noites mal dormidas, pálido apesar da maquilhagem tipo boa
saúde. [...] O governo, reconhecendo que a votação de hoje veio confirmar,
agravando-a, a tendência verificada no passado domingo e estando
unanimemente de acordo sobre a necessidade de uma séria investigação das
causas primeiras e últimas de tão desconcertantes resultados, considera [...] que a
sua legitimidade para continuar em funções não foi posta em causa, não
porque a eleição agora concluída foi apenas local, mas igualmente porque
reivindica e assume como sua imperiosa e urgente obrigação apurar até às
últimas conseqüências os anômalos acontecimentos [...] porque aqueles votos em
branco, que vieram desferir um golpe brutal contra a normalidade democrática em
que decorria a nossa vida pessoal e coletiva, não caíram das nuvens nem subiram
das entranhas da terra, estiveram no bolso de oitenta e três em cada cem eleitores
desta cidade, os quais, por sua própria, mas não patriótica mão, os depuseram
nas urnas.
186
A fronteira estabilizada entre a Natureza e a Sociedade e os artefatos pela
modernidade é uma entre inúmeras fronteiras que podem ser estabilizadas. Da
mesma forma que as fronteiras estabilizadas entre os artefatos e os processos de
185
SARAMAGO (2004), p. 27-28.
186
Ibid., p. 34-35.
127
construção dos mesmos são inúmeras que podem ser estabilizadas. Todas locais,
provisórias, precárias e contingenciais. Para construir estas fronteiras são
construídos labordireitórios. Sócrates, Ptolomeu, Copérnico, Galileu, Newton são
exemplos de actantes dessas histórias respeitáveis. Nos labordireitórios
processos de hibridização e purificação de artefatos. Segundo Marques: [t]entando
dar contorno ao „labordireitório‟, a seguir lanço mão das palavras „colonizadore
„colonizado‟, não com seus variantes significados históricos específicos, mas
associadas à criação de uma assimetria que pode ser encontrada em cada
instância, macro ou micro, do processo de construção do mundo moderno. Em
termos gerais, esta assimetria permite a identificação (sempre provisional)
daqueles que são ou se sentem mais propensos a marcar o ritmo das construções
modernas em contraposição àqueles que são percebidos como mais inclinados ou
compelidos a seguir seu ritmo, aqueles que são tomados como dominantes em
contraposição àqueles que são tomados como dominados.
187
Eu incluiria também
o caráter histórico desta relação. Observo que uma lógica estabelecida pelos
colonizadores e aceita pelos colonizados. Por exemplo, os aliados da urna
eletrônica argumentam em sua defesa que este artefato é bem visto pelas
organizações internacionais como a ONU, o Banco Mundial com a sua política
para os pobres, a OEA e a União Européia. Os aliados da urna eletrônica são
amantes em graus variados dos valores do colonizador em busca da auto-
afirmação e deixam de lado este outro desprezível que somos s, os
colonizados, repletos de vícios. Os vencedores entre os vencidos desejam deixar
de ser o outro, mudar de pele.
188
187
MARQUES, Ivan da Costa. Labordireitórios´ e ´objetos naturais´: espaços, traduções e
questões globais para uma inteligência empresarial local p. 08.
188
Esta discussão me fez lembrar de um livro importante sobre a relação colonizador-colonizado,
como ambos se misturam e introjetam valores do outro. No nosso caso, em particular, o que
interessa é a postura do colonizado. MEMMI, Albert. Retrato do colonizado precedido do retrato do
colonizador. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1966.
128
Artigo 9
Uma construção de um discurso
suficientemente respeitável do voto nulo
imbricado na nossa democracia liberal
Onde se verá, a partir da idéia de Geoffrey Bowker, que buscar construir histórias
suficientemente respeitáveis de fatos e artefatos serve para que estes disputem
graus de aceitabilidade.
O capitalismo é um modelo econômico
que vende merda dizendo que é ouro. E
as pessoas compram merda achando que
é ouro.
(Depoimento de uma moradora da
comunidade do Morro do Borel, Tijuca,
Rio de Janeiro, Brasil)
Há um problema, que na minha opinião, é
fundamental da democracia, ou ela
transcende o poder [sai da bolha], tendo
uma ação fora dela, ou vamos continuar a
viver na ilusão do mundo democrático.
(SARAMAGO, José. [1922-2010].
Entrevista à Carta Maior, em
23.08.2004)
189
Sem querer ser redundante, após a Queda do Muro de Berlin, estabilizou-
se no Mundo Ocidental a idéia de que finalmente viramos a última página do livro
da História da Humanidade. A partir de agora, viveríamos fatos menores e
corriqueiros, uma vez que atingimos o modelo social definitivo: a democracia
liberal. Nós, brasileiros, após duas décadas de ditadura civil-militar e um período
189
Disponível em: http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=2527.
Acesso em: 25 jun. 2010.
129
de transição (governo Sarney), tínhamos nos governos Fernando Collor/Itamar
Franco, FHC e Lula a estabilização do nosso estado de direito.
Sem querer, também, buscar as origens da ideia de democracia e correr o
risco de cair na armadilha de um dos mitos dos historiadores (da cronologia)
criticado por Simiand, citado acima
190
, e aderir ao modelo difusionista em
detrimento dos pressupostos dos estudos de CTS, vou até Heródoto (485 a.C.-430
a.C.), na Atenas do século V, para ouvir que democracia é o governo do povo.
No século XIX, segundo as biografias bem comportadas, o presidente americano
Abrahan Lincoln (1809-1865) teria cunhado uma ideia de democracia: governo
do povo, pelo povo, para o povo”. As democracias dos dias de hoje, no
Ocidente, são indiretas ou se quisermos, representativas. Na Atenas Clássica
tivemos uma democracia direta. Claro que , todo o povo (entenda-se apenas os
cidadãos) girava em torno de 6 mil, sendo que a participação, de fato, se restringia
a uma minoria privilegiada de grandes proprietários de terras, que deixavam a
administração e o cultivo nas mãos de escravos e utilizavam o ócio para os
embates de idéias. Os pequenos proprietários apenas em ocasiões especiais
deixavam suas terras nas mãos de suas famílias ou de poucos escravos para
participarem das discussões na Ágora.
Como disse, as democracias liberais Ocidentais, nos dias de hoje, são
indiretas ou representativas, nas quais o povo é chamado periodicamente para
escolher os seus representantes para os cargos executivos e legislativos e,
raramente, convocados para plebiscitos e referendos; no mais as decisões
políticas são tomadas pelos representantes eleitos.
Decisões políticas!? Para aqueles que consideram a democracia liberal
como o último e derradeiro estágio da evolução social humano, fazer política se
restringiu a escolher candidatos honestos e competentes e afastar os desonestos
e os incompetentes e ter pontos de vista exclusivamente técnicos (neutros), como
190
Artigo 3.
130
vemos nas propagandas institucionais nos meses que antecedem as eleições. Por
exemplo, veja, caro leitor, a propaganda eleitoral institucional da Justiça Eleitoral,
tendo como protagonista a atriz Lavínia Vlasak grávida. Acompanhem o texto: De
um jeito ou de outro, todo mundo tem de pensar no próprio futuro. Mas às vezes, a
gente tem de se preocupar com o futuro de outras pessoas também. Como
grávida, eu me preocupo com o futuro desta criança. E, como eleitora, eu me
preocupo com o futuro da minha cidade. É por isso que eu me informo sobre os
candidatos. Procuro o mais competente e honesto. (grifo meu) Não vendo o
meu voto. E assim, eu vou escolher o melhor pra todos nós. [A seguir uma voz em
off] Vota Brasil. O futuro da sua cidade é o seu futuro. Justiça Eleitoral.
191
Caro leitor, eu não poderia deixar de transcrever mais um exemplo de
propaganda da Justiça Eleitoral. “A urna está preparada para receber vários tipos
de votos. (grifo meu) Para votar em branco, é apertar ´branco´ e confirmar.
Mas escolha um candidato. Sua participação é importante. Na eleição para
vereador, você pode votar somente na legenda. Para isso, em vez de digitar cinco
números, digite apenas os dois primeiros. Assim, você ajudará a eleger os
candidatos mais votados do partido. Mas lembre-se sempre: o futuro de muita
gente depende do seu voto. [A seguir em off] Vota Brasil. O futuro da sua cidade é
o seu futuro. Justiça Eleitoral.
192
Há uma iconografia sobre o voto nulo ilustrativa da construção de um
discurso respeitável contra este tipo de voto, entendido como um ato de
irresponsabilidade e omissão. Eu não poderia deixar de citar duas delas. Na
primeira um manifestante aos gritos e de braços erguidos afirma: Sou uma
pessoa consciente, vou votar nulo.” Um casal que passa ao largo opina: Homem:
Voto de protesto.Mulher: Enquanto ele protesta os eleitores inconscientes vão
191
Disponível em: <www.youtube.com>. Vídeo Abertura/Futuro-Justiça Eleitoral-Eleições 2008.
Pesquisar através de Propaganda eleitoral atriz Lavínia Vlasak. Acesso em: 14 abr. 2009.
192
Disponível em: <www.youtube.com>. Vídeo Legenda/Branco-Justiça Eleitoral-Eleições 2008.
Pesquisar através de Propaganda eleitoral atriz Lavínia Vlasak. Acesso em 14 abr. 2009.
131
continuar reelegendo a canalha que está mandando ver no Congresso.
193
Uma
outra sob o título: Uma ideia contra o voto nulo. Um ser estranho, que lembra um
polvo, com vários tentáculos que se constituem em três olhos, duas bocas, uma
tromba e três braços, sentado atrás de uma mesa, escreve, come e fuma
simultaneamente. Na charge encontramos os dizeres: Lembre-se: se você não
votar, você não terá argumento para reclamar de quem for eleito. ainda, na
lateral da mesa um cartaz com os dizeres: “Ele é um intruso.
194
Nas sociedades democráticas predomina o pensamento no qual um
homem, um voto”, ou seja, cada indivíduo tem voz igual. Logo, em uma eleição, o
voto em um candidato, em uma legenda, em branco ou nulo têm o mesmo valor,
são iguais. Entretanto, a Justiça Eleitoral não considera os brancos e nulos como
válidos na totalização dos votos. Particularmente, em relação aos votos nulos,
entende que eleitor se enganou no momento de digitar os números ou entende
que um protesto não cabe naquele momento, logo, um misto de omissão e
irresponsabilidade do eleitor.
Sobre esta outra maneira de encarar a politização, o então presidente da
Associação dos Magistrados Brasileiros-AMB, o juiz de direito de Santa Catarina,
Rodrigo Collaço, em entrevista ao apresentador Fausto Silva, no Domingão do
Faustão, da Rede Globo de Televisão, Brasil, em setembro de 2006, ratificou
ideais da democracia liberal. Talvez, mesmo sem perceber, ao falar estava
construindo um discurso da igualdade desiqual; senão vejamos. Ao ser
perguntado por Fausto Silva, se numa eleição tivermos acima de 50% de votos
nulos e brancos, esta seria anulada; o juiz de direito Collaço assim respondeu: O
eleitor não anula a eleição; quer votar nulo devido à situação social atual.Ainda o
apresentador Fausto Silva: Segundo a Justiça Eleitoral, votar em branco ou nulo
é um protesto com omissão.Diz o juiz Collaço: As pessoas que vão votar nulo
193
Disponível em: <www.panoramablogmario.blogger.com.br/2006_07_archive.html>. Acesso em:
17 mai. 2009.
194
Disponível em: <www.chermontlopolis.wordpress.com/2006/10/sem-título>. Acesso em: 23 out.
2008. No original: Remember: If you don´t vote... you´ve no grounds to complain about who gets
elected!He´s an outsider.
132
são as pessoas que têm bom nível de informação, têm acesso à Internet. Isto vai
facilitar a vida daqueles candidatos que se elegem tendo por base a compra de
votos e esquemas partidários, prejudicando aqueles candidatos que dependem do
voto de opinião, que têm o voto das pessoas mais esclarecidas. Este protesto vai
piorar ainda mais a representação política.Posteriormente Fausto Silva diz algo
que, na minha opinião, é emblemático: Na pior das hipóteses votar no menos
ruim se você não achar... (sic).
No dia 28 de agosto de 2006, o então presidente do TSE, ministro Marco
Aurélio de Mello, como disse acima, foi entrevistado no programa “Roda Viva”, da
Rede Cultura. Indagado sobre os votos nulos afirmou: ... isso não deve ser feito
porque é uma fuga...
195
Em uma outra propaganda institucional do TSE para as eleições de 2008,
atriz Lavínia Vlasak diz: O Brasil tem o sistema de votação mais moderno do
mundo. Poucas horas após o fim do horário de votação, os eleitos são
conhecidos. Mas além de ser moderno e rápido, ele também é secreto e seguro.
Ou seja, não há fraude nem há como alguém descobrir em quem você votou. Essa
é a prova de que você pode votar tranqüilo, com a certeza de que o seu voto vai
ajudar a definir o futuro de quem mora na sua cidade ou de quem, um dia, vai
morar.
196
Da maneira que foi exemplificada acima, esta politização entende a
sociedade brasileira com um papel de apenas escolher os candidatos que são
oferecidos no mercado entre os quadros da elite ou representantes desta. Uma
vez eleitos, têm um amplo poder de arbítrio e se lixam pro povo, mesmo havendo
posteriores eleições. E é, também, este descaso explícito que promove
desesperança na classe trabalhadora e promove um discurso respeitável da
competência e da honestidade por parte dos donos do poder.
195
Artigo 7.
196
Disponível em: <www.youtube.com>. Voto secreto: Justiça Eleitoral Eleições 2008. Acesso
em: 04 dez. 2009.
133
Desde sempre, o projeto da urna eletrônica brasileira tem um caráter de
purificação, com estratégias bem sucedidas, que conduziram a um bom termo e a
um artefato estabilizado. É uma história, na qual fatos e artefatos que provocaram
controvérsias e antagonismos e outras estratégias foram colocados de lado e/ou
esquecidos. A oficialidade e o bom-mocismo carregaram as tintas na defesa da
existência de conhecimentos científicos e tecnológicos ditos universais e neutros,
sendo a urna eletrônica brasileira, então, o resultado de evidências naturais pela
observação e ação de mentes brilhantes. E para tanto, foram a Ciência, as
Técnicas e a Justiça as juízas que arbitraram as controvérsias; sendo as técnicas,
tão somente, o conhecimento, o controle e a obediência às Leis da Natureza
(neutras, atemporais e universais). no discurso de posse como presidente do
Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em dezembro de 1996, o ministro Carlos Velloso
conclama ´´´aos brasileiros que acreditam que podem aperfeiçoar as instituições
políticas, fazendo-as notáveis instituições. [...] Afinal, vale invocar os versos de
Fernando Pessoa, que, não obstante o seu ceticismo, sabia sonhar e soube dizer
que o que é frustrante não são os sonhos que não realizamos, mas os sonhos que
não tivemos a coragem de sonhar.´´´
197
Caro leitor, os pronunciamentos oficiais e de aliados da urna eletrônica,
exemplificados nesta Tese, estão repletos de pressupostos modernistas, explicita
ou implicitamente. O ministro Velloso convencera-se que as fraudes somente
seriam banidas dos pleitos quando fossem eliminadas as cédulas, as urnas e os
mapas de urnas
198
. No processo de sensibilização da sociedade brasileira para o
uso da informática nas eleições, o ministro destacou como pontos fundamentais,
a colocação da tecnologia a serviço do cidadão, a automatização do voto e a sua
imediata apuração após o pleito, a erradicação das fraudes e a aprovação da
sociedade brasileira
199
. Do modelo de engenharia ao de qualificação e deste ao
de produção, o estágio anterior embasava o desenvolvimento do seguinte, sem
descaracterizar o projeto original. determinismos causais, evolução e
197
CAMARÃO, 1997, p. 65.
198
Artigo 2.
199
Ibid.
134
progresso lineares e inevitáveis através da ciência e da tecnologia. Os aliados da
urna eletrônica são crentes do cientificismo e do pragmatismo tecnológico,
entendem que A CIÊNCIA estabilizada pela modernidade é O SABER
VERDADEIRO sobre um mundo que está , ou nas palavras ufanistas do ministro
Marco Aurélio de Mello: algo assim como alcançar as estrelas
200
. Logo, por este
ponto de vista difusionista, devemos confiar apenas aos cientistas e técnicos de
Comissões e Grupos Técnicos aquilo que é bom e justo para as sociedades nos
aspectos científicos e tecnológicos. O TSE trabalha com o modelo de difusão,
onde o resultado é que é importante, não o processo.
201
Saliento que o TSE, durante a campanha de esclarecimento da sociedade,
através de retórica e aliados fortes, construiu também um tipo de eleitor como
um forte aliado nesta crença de que a ciência e a técnica nos trarão a redenção.
Isto é observável nos depoimentos em DVDs e na iconografia em geral,
elaborados por esta instituição, nos quais vemos eleitores inteiramente
familiarizados com a urna eletrônica e felizes. Em depoimentos colhidos nas ruas
da cidade do Rio de Janeiro, é interessante observar que as frases dos eleitores
foram editadas de forma intercalada, dando a sensação de ser apenas um único
depoimento; vejamos. Primeira pessoa: - Tenho 66 anos e é a primeira vez que
eu acho uma maravilha, não tem erro. Uma segunda pessoa: - Acho maneiro.
Volta para a primeira pessoa: - Ficou fácil de votar, qualquer pessoa. Volta para
a segunda: - Eu sei mais assinar o meu nome que lê, agora, eu sei os números,
sei decorar. Uma terceira: - Ah!, eu achei ótimo, isso vai ajudar muita gente, e
também evitar a fraude né?. Uma quarta pessoa: - Facílimo, eu não vejo
nenhuma dificuldade. Uma quinta pessoa: - Fantástico, o sistema excelente,
qualquer pessoa vai votar fácil, tranqüilamente. Uma sexta pessoa: - Fácil. A
quarta novamente: - Facílimo. A sexta pessoa: - Não tem dificuldade. Por fim,
voltamos para a terceira pessoa: - Número errado escrito na tela; o repórter
pergunta: - O que você faz?. Aquela responde: -Eu corrijo e digito o certo, o
200
CAMARÃO (1997), p. 201.
201
Esta afirmação é do nosso companheiro no NECSO-Núcleo de Ciência-Tecnologia-Sociedade,
Marcus Vinicius.
135
correto. Um exemplo de duas pessoas com deficiência visual: - Achei muito
prática. A outra: - Perfeito, no que diz respeito a parte da identificação das teclas.
A primeira: -A ordem delas também está numa posição muito boa. A segunda: -
Mais fácil e talvez até mais eficaz.
202
Eu mesmo constatei este enquadramento ao
entrevistar eleitores: “... é rápido e fácil votar na urna eletrônica... voto e vou pra
casa acompanhar a apuração... qualquer um pode votar... se usar a tecnologia
não tem fraude... eu confio porque aparece o nome e o retrato do meu candidato...
a urna eletrônica é orgulho para o brasileiro... a urna eletrônica é coisa de
Mundo...”
203
Mesmo aqueles que se opõem a atual arquitetura da urna, entre os quais os
componentes do site <votoseguro>, alguns acreditam no progresso e na evolução
da tecnologia como pressupostos para se construir a lisura das eleições. Criticam-
na, sistematicamente, porque os donos da urna não efetivam as alterações que
consideram importantes como, por exemplo, a impressão do voto, tempo hábil
para que os partidos possam ver todos os programas antes e após as eleições,
escolha aleatória de 3% das urnas que serão utilizadas para verificar os
programas que foram inseminados. Entretanto, as críticas perpassam apenas o
artefato e, em conseqüência, os seus donos. Esses críticos desenvolvem as suas
idéias dentro de um enquadramento consolidado, sem buscar os
transbordamentos existentes. Estes opositores, da mesma forma que os oficiais,
trabalham com a idéia de um artefato que poderá, feitas as mudanças exigidas,
atingir a perfeição quanto a sua funcionalidade precípua.
Lembro, caro leitor, que os artefatos não são bons, maus nem neutros.
Dependendo de suas arquiteturas, de conseqüências sociotécnicas, trazem efeitos
positivos ou negativos ou nenhum para aqueles que estão envolvidos diretamente
ou não na sua construção. Curioso observar que os defensores e grande parte
202
Vídeo, Eleições É mais fácil votar assim Orientação ao eleitor, produzido pelo TRE-RJ, em
1998.
203
Colagem de frases que ouvi ao entrevistar inúmeros eleitores em várias oportunidades nestes
últimos anos.
136
dos opositores desta arquitetura da urna desenvolvem suas argumentações dentro
do princípio que a ordem é a norma, constituída a partir da observância das Leis
sociais consagradas e naturais universais; logo, as legislações advindas daí são
neutras e funcionam como um juiz para não permitir a desordem. Repito;
perguntei ao engenheiro Catsumi Imamura sobre a existência de algum tipo de
interferência de pessoas, instituições, poderes constituídos, empresas etc. no
desenvolvimento do projeto do Coletor Eletrônico de Voto (CEV) realizado pelo
Grupo Técnico; ouvi como resposta, em outras palavras, que não houve nenhuma
interferência política, econômica ou cnica e sim, muito apoio ao trabalho que
realizaram. Perguntei ainda ao Sr. Catsumi Imamura e ao próprio desembargador
Jessé Torres Pereira Junior, qual a função deste último na elaboração das
especificações técnicas do CEV; ambos disseram-me que teve o trabalho de
limitar as especificações deste artefato à legislação eleitoral.
204
Como disse, a historiografia tradicional (realista) ainda predominante, tem
um discurso difusionista, através do qual e conforme os termos fixados
previamente, todo projeto cumpre cada uma das etapas determinadas até a sua
finalização, ressalvando as modificações que os testes comprovem serem
necessárias para aperfeiçoá-lo. E assim será, mais cedo ou mais tarde, mesmo
que existam forças contrárias de parte da sociedade. Através deste determinismo
radical, no qual controvérsias são esquecidas, perdidas e/ou abandonadas,
inevitavelmente, após as eleições por meio das cédulas de papel atingiríamos a
urna eletrônica, idealização do normal, da lógica, da evolução e do progresso,
que por sua vez trarão a segurança, a inviolabilidade e a confirmação da
vontade dos eleitores brasileiros.
Os estudos de CTS trazem outros pontos de vista às abordagens de fatos e
artefatos e às práticas científico-tecnológicas desenvolvidas no cotidiano dos
laboratórios. Para nós, não ões, conhecimentos e laboratórios puros,
silenciosos, limpos, hermeticamente fechados e isolados do mundo; tudo
204
Artigo 7.
137
está contaminado: Em qualquer ponto, encontramos homens e coisas
misturados, a fim de iniciarem uma controvérsia ou de lhe porem termo.
205
Fatos e
artefato podem ser problematizados a qualquer momento.
Assim, para seguir cientistas e engenheiros através da sociedade precisei
descartar o modelo difusionista e aderir ao modelo de tradução/translação.
Este modelo nos mostra que artefatos estabilizados são consequências de
processos de negociações e renegociações, materializações e
desmaterializações, invenções e reinvenções, sampleamentos permanentes de
actantes que se aliam, sobrepõem-se, opõem-se, são indiferentes etc., ou seja, há
permanentes traduções/translações e hibridizações que os levam a tornarem-
se ou não materializações estabilizadas, mas como disse, sempre locais,
contingenciais, provisórias e precárias. Portanto, não a coisa em si (atemporal,
aespacial, independente e neutra); tudo existe somente a partir das relações.
Entretanto, expressões como fatos duros, irrefutáveis, máquinas altamente
sofisticadas, provas indiscutíveis etc. nos fazem esquecer com freqüência seus
fluxos, suas controvérsias e suas inscrições (gráficos, notas de laboratórios,
tabelas de dados, relatórios, estatísticas, livros, artigos, instituições, Prêmios
Nobel, ou seja, todo sinal escrito por um instrumento e/ou entidade; do sinal mais
cru aos mais complexos); e que caixas-pretas não encerram hermeticamente
actantes, uma vez que outras hibridizações e traduções/translações e
estratégias continuam a acontecer.
205
LATOUR, Bruno. “Joliot: a história e a física misturadas” in Elementos para uma história das
ciências III. De Pasteur ao computador. Michel Serres (dir.). Lisboa: Terramar, 1996, p. 142.
138
Artigo 10
... urna eletrônica versus urna eletrônica...
Onde se verá uma controvérsia referente à paternidade da urna eletrônica
brasileira entre o TSE e Carlos Rocha (Omnitech).
Posso sorrir, e matar enquanto sorrio,
E proclamar-me feliz com o que me aflige
o coração,
Molhar as minhas faces com lágrimas
fingidas
E acomodar a minha cara a todas as
ocasiões...
Posso acrescentar cores ao camaleão,
Mudar de forma mais depressa que
Proteu
E mandar para a escola o sanguinário
Maquiavel!
(Shakespeare, William. Ricardo II, Ato 3,
Cena 5)
A Nova História Social, nos anos 1960 e 1970, ajudou a estabilizar enormes
possibilidades para o fazer histórias. Enfrentou a perspectiva positivista, que
tinha olhos para os documentos oficiais e para as grandes narrativas das
estruturas econômicas e políticas. Abriu espaços para o cotidiano, para os de
baixo”, para as lendas e fábulas, cartas pessoais, sentimentos, para os micro-
poderes, os anônimos, os esquecidos, as diferenças, para as
contemporaneidades, as micro-análises, subjetividades, para repensar as fontes.
Tudo, absolutamente tudo, passou a ser objeto. Tudo, absolutamente tudo,
passou a ser documento.
Houve, ainda, um rompimento da escrita histórica com o realismo científico.
A historiografia dos anos acima ajudou a romper com a distinção entre texto e
objeto. Ambos estão imbricados. Apenas para ficarmos na literatura que floresceu
139
no século XX, devemos pensar nas cnicas de decomposição temporal de
Virginia Wolff, Joyce e Proust; na escrita sem adjetivos de Camus; na secura de
Graciliano Ramos; na escrita truncada [e labiríntica] de Kafka, [...] nos recursos
gráficos da poesia concretista... As artes, de modo geral, viveram a
decomposição da realidade; hoje, no final do século XX, vivemos a fragmentação
da[s] realidade[s], como também, a[s] realidade[s] do tipo dadaísta.
206
Em particular, apego-me neste momento à historiadora
canadense/americana, Natalie Zemom Davis (1928-). Com Davis, eu aprendi a
desmistificar os documentos e a escrita da história e a utilizar a imaginação e
construir documentos a partir de tudo. Posso deixar lacunas ou preenchê-las por
expressões como talvez, tudo leva a crer, provavelmente, tudo indica, acredito
que, não sei dizer etc.
O processo de construção do coletor eletrônico de voto (CEV) para as
eleições de 1996, quando cerca de 33 milhões participaram de uma eleição
totalmente informatizada, é uma caixas-pretíssima. Não farei como alguns
professores que me disseram, na graduação em história, no IFSC/UFRJ: Não
documentos disponíveis, o como estudar um determinado período.
Fetichização de documentos. Farei como me ensinou Davis. Para isto, escolhi
uma controvérsia surgida após o processo da licitação da urna eletrônica, vencida
pela Unisys. Fiz uma escolha aleatória porque qualquer tipo de fresta vale a pena.
O que pretendo neste artigo é trazer algumas informações e fazer algumas
ponderações sobre a controvérsia entre o TSE e Carlos Rocha (Omnitech) sobre a
paternidade da urna eletrônica brasileira.
A etapa final do processo licitatório do coletor eletrônico de voto para as
eleições de 1996 transcorreu entre os dias 08 de fevereiro e 14 de março de 1996.
Participaram da concorrência final a IBM com um projeto baseado em um
206
MENDES, Paulo Sérgio Pinto. A escrita da história Um estudo de caso: Histoire de la
révolution française de Jules Michelet, Dissertação de Mestrado, IFCS/UFRJ, 1998, p. 13.
140
notebook; a Procomp com uma adaptação de um caixa eletrônico; e a Unisys,
vencedora da licitação, com um protótipo da urna eletrônica. Então, a Unisys
contratou a licença de uso de tecnologia da Omnitech, do híbrido engenheiro e
empresário Carlos Rocha, e subcontratou a produção à TDA e à Samurai para
fabricar as primeiras 78 mil urnas. Segundo a Samurai Projetos Especiais, A urna
eletrônica foi, integralmente, concebida pela equipe de engenheiros da Omnitech,
com recursos próprios, e o pedido de patente de invenção encontra-se em análise,
no INPI, até hoje.
207
O presidente do TSE, ministro Carlos Velloso, em entrevista
ao programa Brasil Eleitor, produzido pela Assessoria de Comunicação do TSE,
assim se pronunciou sobre esta controvérsia: Ele [Carlos Rocha] sustentou que
teria feito aperfeiçoamentos, contratado pela empresa que ganhou a primeira
concorrência, e eu lembrei a ele que qualquer acréscimo ou qualquer
aperfeiçoamento que fosse feito, porque isto pode ocorrer sim, pelas empresas
que participam da licitação, qualquer aperfeiçoamento pertenceria à Justiça
Eleitoral brasileira, assim à União [...] a patente é da União. A seguir, a
apresentadora do programa afirmou que, um grupo de trabalho foi criado pela
Presidência da República para agilizar o registro de patente da urna eletrônica, um
patrimônio da União, do povo brasileiro.
208
Na edição de 26.01.2005, a revista Isto É Dinheiro publicou a reportagem
“Urnas Tipo Exportação”. “A companhia brasileira Samurai [fechou] um contrato de
US$62,4 milhões com o governo da República Dominicana, que pretende usar as
urnas [eletrônicas brasileiras] nas eleições gerais do próximo ano. [...] Serão 13
mil urnas e a história fica mais interessante porque por trás da negociação está o
empresário Carlos Rocha, [...] ele [...] trava uma batalha judicial em torno da
paternidade da urna brasileira com o Tribunal Superior Eleitoral. Essa questão não
impediu a negociação com a República Dominicana. As urnas exportadas serão
207
Disponível em: <http://www2.samurai.com.br/urnaeletronica/urnaeletronicabrasileira/view>.
Acesso em: 25 mai 2006.
208
Museu do Tribunal Superior Eleitoral, rua . de Março Centro, Rio de Janeiro-RJ-Brasil. DVD
sob o código PMG 67 (27:51), s/d. No artigo 2, página 29 ss., desta Tese, o leitor encontrará outras
informações sobre o processo de invenção da urna eletrônica brasileira, que contribuirão para o
entendimento desta controvérsia entre o TSE e Carlos Rocha (Omnitech).
141
de outro tipo e desenvolvida para atender a demanda do país da América Central.
[...] Parte da tecnologia das urnas de Rocha foi desenvolvida pelo Centro de
Estudos Avançados do Recife, uma instituição de pesquisa ligada à Universidade
Federal de Pernambuco.Diz ainda a reportagem que Victor Gomes Bergés, do
partido de oposição Social Cristão [...] integrou a comitiva do governo da
República Dominicana que veio ao Brasil em outubro entender o processo eleitoral
brasileiro.
Sobre esta questão, no mesmo programa Brasil Eleitor, gravado,
provavelmente, em agosto de 2005, a apresentadora diz que “os ministros
tomaram conhecimento do caso através da Justiça Eleitoral dominicana, que ao
saber da proposta de venda entrou em contato com o Tribunal Superior Eleitoral.
O ministro Carlos Velloso se pronunciou da seguinte forma: Seria uma venda
clandestina, e o Governo brasileiro está avisado, recebi um pedido de informações
da Junta Eleitoral da República Dominicana, perguntando se esse cidadão tem
relacionamento ou qualquer vínculo com a Justiça Eleitoral brasileira, respondi que
não há nenhum vínculo e esclareci que a patente é da União.
209
Em 17 de julho de 1996, Carlos Rocha realizou o depósito de pedido
nacional de Patente de Invenção, sob o número PI9601961-1, no Instituto
Nacional de Propriedade Industrial(INPI). Título: ´Equipamento para votação
eletrônica´, especialmente composto por um coletor eletrônico de voto, contento
teclado e um display alfanumérico, ao qual será conectado um microterminal que
permite ao presidente da mesa realizar todas as operações de controle do
processo de votação; referido coletor eletrônico de voto tendo acoplada na saída
da impressora uma urna descartável, onde os votos são recolhidos; com este
equipamento, a votação torna-se eletrônica, com o objetivo de reduzir a fraude
eleitoral e agilizar o processo global de votação e apuração; sendo o presente
equipamento dotado, ainda, de uma lógica eletrônica especialmente desenvolvida
209
Museu do Tribunal Superior Eleitoral, rua . de Março Centro, Rio de Janeiro-RJ-Brasil. DVD
sob o código PMG 67 (27:51), s/d.
142
para o aplicativo em questão. Nome do Depositante: Carlos César Moretzohn
Rocha (BR/SP)” “Nome do Inventor: Carlos César Moretzohn Rocha
210
Através de um AVISO do Tribunal Superior Eleitoral-TSE, publicado em
10.10.1995 no Diário Oficial da União-DOU e em quatro grandes jornais, a
Comissão de Elaboração do Edital para a Automação disponibilizou cópias das
especificações preliminares do equipamento a ser utilizado nas eleições de 1996,
que puderam ser retiradas na Secretaria de Informática do TSE, entre os dias 16 e
18 de outubro de 1995. O objetivo dessa publicação foi coletar sugestões para o
futuro coletor eletrônico de voto (CEV) e, de antemão, como citei no artigo 2, a
Comissão esclareceu que as sugestões aceitas não asseguravam qualquer
direito à propriedade intelectual e nenhuma obrigação ao proponente por
parte do TSE. Das 22 empresas que fizeram sugestões à arquitetura do CEV,
o TSE acatou algumas delas.
Através de mensagem eletrônica, Carlos Rocha disse-me que procuramos
várias empresas, entre elas a Unisys, para oferecer um ante projeto da nossa
máquina eletrônica de votar, em 1995, e participar da concorrência do TSE que
iria ocorrer, após a publicação de requisitos funcionais gerais.
211
Segundo a
Samurai, a urna eletrônica foi, integralmente, concebida pela equipe de
engenheiros da Omnitech, com recursos próprios, [...] Este primeiro modelo,
licenciado, pela Unisys, para a licitação do TSE de 95/96, passou por um
aperfeiçoamento de projeto, em 1977, realizado, pela OMNITECH, e tornou-se o
padrão da urna eletrônica brasileira, até hoje.
212
Ao fim da seção licitatória, na qual saiu vencedora a Unisys com o protótipo
da urna eletrônica, o presidente da Comissão, Jessé Torres Pereira Junior, ao
fazer um resumo da Concorrência nº. 02/95 lembrou que, dez técnicos
210
Disponível em: <http://www2.samurai.com.br/urnaeletronica/patente_urna_eletronica>. Acesso
em: 25 mai. 2006.
211
Mensagem eletrônica recebida por mim, em 30 mai. 2006, e enviada por Carlos Rocha.
212
Disponível em: <http://www2.samurai.com.br/urnaeletronica/>. Acesso em: 16 fev. 2010
143
participaram da elaboração de seu edital e respectivos anexos, [...] após três
meses de estudos e recebidas sugestões de nove empresas do ramo, a partir de
documento preliminar que traçou os requisitos mínimos do coletor eletrônico de
votos. Da fase preliminar à última seção do processo licitatório participaram de
seu julgamento vinte profissionais, incluindo magistrados, servidores do TSE e
técnicos de órgãos especializados da administração pública federal (como o
Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, do Ministério de Ciência e Tecnologia,
o Instituto Tecnológico da Aeronáutica, o Departamento de Telecomunicações do
Ministério da Marinha e o Conselho Nacional de Pesquisa)
213
Quando da comprovação da qualidade técnica, dentre outros aspectos foi
exigido da Unisys a relação dos técnicos que trabalhariam diretamente na
execução da urna eletrônica conforme o estabelecido no Anexo I do Edital, e que
seriam mantidos durante toda a execução, admitindo-se substituição apenas com
o consentimento da Secretaria de Informática do TSE. De acordo com o Edital, o
protótipo apresentado pela Unisys poderia sofrer alterações no hardware e no
software, após testes em TREs, os quais propuseram várias alterações do projeto
inicial, sem descaracterizá-lo. “Para avaliar as alterações propostas, discutir e
repassar as mudanças do hardware e software à empresa Contratada, fiscalizar e
avaliar sua implementação, foram criados, em 19 de março de 1996, grupos de
trabalho formados por diretores-gerais de Tribunais Regionais Eleitorais e por
membros do Grupo Técnico designado pela Portaria nº. 282/95.
214
Cabe ressaltar
que as avaliações, testes e sugestões foram feitas nas três etapas de
desenvolvimento (modelo de engenharia, de qualificação e de produção). Eu não
constatei nenhuma alteração que tenha modificado radicalmente o protótipo
inicial: arquitetura, funcionamento e propósitos, a não ser pequenas
modificações, como por exemplo: no micro terminal, aumento do campo visual do
display; no terminal do eleitor, alteração do design, suavizando as arestas; na urna
213
CAMARÃO, (1997), p. 100.
214
Ibid., p. 124.
144
de plástico (acoplada na versão UE/96), mudança do material e fixação; no
software, mudança no tamanho das letras no visor do terminal do eleitor.
Eu fui ao Edital 02/95 para ler sobre esta questão. No Anexo I Descrição
de Produtos e Serviços, no item 1. Introdução a seguinte redação: Este
documento, juntamente com os documentos relacionados no item 2, tem como
objetivo descrever todas as atividades que devem ser executadas pela
Contratada, para atender ao objetivo do Edital . 02/95.No item 3 Produtos e
Serviços a Contratar”: Os itens a seguir descrevem os produtos e serviços a
serem contratados, considerando o desenvolvimento, a produção, o treinamento, o
suporte cnico, a documentação, a garantia e manutenção, e o gerenciamento e
acompanhamento do contrato.
Os documentos relacionados no item 2 são: a Lei 9.100/95 Normas para
as eleições de 1996; a Lei 4.737/65 Código Eleitoral e legislação correlata; o
Documento de Especificação de Requisitos do Coletor Eletrônico de Voto, definido
como Anexo III deste Edital e; o Documento de Especificação de Requisitos do
Modelo de Engenharia do Coletor Eletrônico de Voto, definido como Anexo II
deste Edital.
No Anexo II Especificação de Requisitos do Modelo de Engenharia do
coletor Eletrônico de Voto, o item 1 diz: Este documento tem como finalidade
especificar todos os requisitos mínimos de hardware e software do Modelo de
Engenharia do Coletor Eletrônico de Voto (ME-CEV), além dos serviços e
acessórios necessários para o seu funcionamento. Os itens 2 e 3 têm informações
gerais e a partir do item 4 são dadas as características mínimas exigidas para o
ME-CEV. Item 3 Descrição Geral do Modelo de Engenharia do Coletor
Eletrônico de Voto (ME-CEV): O Modelo de Engenharia do Coletor Eletrônico de
Voto (ME-CEV) é o equipamento a ser entregue pelas empresas licitantes por
ocasião da abertura das propostas em resposta ao Edital para compra do
145
equipamento „Coletor Eletrônico de Voto‟. O ME-CEV será avaliado de acordo com
os requisitos constantes deste Anexo.
Por fim, no que se refere ao Edital 02/95 (Aviso de Licitação Concorrência
Internacional, feito publicar no DOU, em 13.12.1995), o Anexo III Especificações
de Requisitos do Coletor Eletrônico de Voto. No item I Introdução: Este
documento tem por finalidade especificar todos os requisitos mínimos de hardware
e software do Coletor Eletrônico de Voto (CEV), além dos serviços e acessórios
necessários para o seu funcionamento. Os itens 2 e 3 têm informações gerais e a
partir do item 4 são dadas as características mínimas exigidas para o CEV.
A petição
215
, referente à urna eletrônica por ocasião do impasse para a
venda deste artefato à República Dominicana, enviada ao ministro Carlos Velloso,
presidente do TSE, por Carlos Rocha, sócio-diretor da Omnitech, e Carlos Roberto
Dória, diretor de operações da Samurai, em 23 de fevereiro de 2005, tem no seu
início uma redação que relembra o conflito judicial entre o TSE e Carlos Rocha
sobre a propriedade industrial e evolução tecnológica da urna eletrônica brasileira.
No 2º item, os signatários afirmam que investiram recursos e esforços para
adaptar a urna à legislação eleitoral brasileira e traçam um histórico sobre a
evolução tecnológica recente deste artefato, e ainda, afirmam que investiram
recursos e esforços para adaptar este artefato à legislação eleitoral dominicana,
visto que, em outubro de 2004, firmou-se um contrato entre a Omnitech e a
Samurai com a Junta Central Eleitoral da República Dominicana para a venda de
13 mil urnas, e devido a este impasse, criou-se um outro: obtenção de crédito para
a exportação, junto ao BNDES.
Segundo os requerentes, o edital 02/95 prevê compra de urnas eletrônicas
e recebimento de direitos autorais, devido a utilização das mesmas; não prevê a
contratação de um projeto e dos direitos de propriedade industrial, para que a
215
Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/mostra_noticia.aspx?cod=10105>. Acesso em: 05
jun. 2007.
146
partir do projeto desenvolvido contratar a fabricação de urnas eletrônicas, por
licitação, em empresas quaisquer. Argumentam ainda os requerentes que, se o
TSE estivesse correto teria publicado um edital, no qual teria o TSE um projeto,
com as devidas especificações técnicas, incluindo a natural construtividade, e
contrataria os serviços de produção de urnas eletrônicas, de acordo com uma
detalhada engenharia. Haveria dois conjuntos de características no edital, na
verdade inexistentes no Edital 002/95: as funcionais e as construtivistas (p. ex.
especificação de componentes, forma física, desenhos de produto, e descrição do
processo de produção). Isso não aconteceu."
216
Sem intenção de tomar partido, ao reler o Edital 02/95, em particular, os
trechos referentes, exatamente, ao que argumentam os requerentes acima,
parece-me que isso aconteceu, apenas não usa o termo urna eletrônica e sim,
Coletor Eletrônico de Voto (CEV) e, quanto ao desenho do produto, especifica-o
sem limitá-lo. Por exemplo, no subitem 4.1 Requisitos de Hardware: “O hardware
do ME-CEV [Modelo de Engenharia Coletor Eletrônico de Voto] deve ser
composto por: unidade central de processamento, memória volátil e não volátil e
relógio interno não volátil; interfaces seriais; vídeo; teclado; drive para meio de
armazenamento de dados removível; impressora; microterminal; fonte de
alimentação.
217
Cada um destes itens têm suas características físicas
especificadas e tais especificações se repetem no subitem de mesmo número, na
página 10, do mesmo edital, no Anexo III Especificação de Requisitos do Coletor
Eletrônico de Voto.
Levando em considerações as respectivas historicidades, narrarei, em
breves linhas uma história do motor Diesel até transformar-se em uma caixa-preta
e que poderá contribuir para o entendimento das controvérsias sobre a
paternidade da urna eletrônica.
216
Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/mostra_noticia.aspx?cod=10105>. Acesso em: 05
jun 2007.
217
Edital 02/95, Anexo II Especificação de Requisitos do Modelo de Engenharia do Coletor
Eletrônico de Voto, p. 9.
147
Rudolf Diesel (1858-1913)
218
fez um desenho de um motor cuja ignição se
faria sem aquecimento, devido novos dispositivos de injeção e combustão, a partir
dos princípios da termodinâmica de Carnot (1839-1920). Lord Kelvin (1824-1907)
conheceu o projeto e o considerou inviável. Diesel precisava transformar seu
desenho em um modelo de engenharia e fazê-lo funcionar. Procurou algumas
empresas de construção de máquinas Maschinenfabrik Augsburg-Nürnberg
(MAN) e Krupp. Durante alguns anos, Diesel luta para construir um protótipo de
seu esboço com engenheiros e as máquinas de ferramentas da MAN. O
conhecimento de parte do motor como as válvulas e os pistões resultaram de três
décadas de acúmulo de prática rotineira da MAN. A cada etapa o motor tornava-se
maior e mais caro, tornando-se inviável comercialmente. Quando mais
modificações sofria o motor, mais distante ficava do primeiro desenho feito por
Diesel. O número de actantes envolvidos na construção do motor Diesel aumentou
em progressão geométrica para dar dureza ao desenho inicial, para transformá-lo
em uma caixa-preta e transformar Diesel em diesel e ser comercializado no
mundo inteiro.
Diesel faleceu em 1913 ao pular de um navio no Canal da Mancha, morte
com características atribuída a um herói ou gênio incompreendido. Num encontro
de 1912 da Sociedade Ale de Arquitetos Navais, Diesel afirmou que outros
apenas desenvolveram seu morto original. Porém, vários de seus colegas
argumentaram, no mesmo encontro, que entre o novo motor real e a patente inicial
havia, na melhor das hipóteses, ligeira relação, e que a maior parte do crédito
cabia à centena de engenheiros que haviam sido capazes de transformar uma
idéia inexeqüível num produto comercializável.
219
A quem pertence esta criança, que nas próximas eleições, em outubro de
2010, fará 14 anos? Desde 1996, a urna eletrônica vive sob a proteção do TSE,
que assegura ser filha do povo brasileiro. Entretanto, desde então, Carlos Rocha
218
LATOUR (2000), p. 172 ss.
219
Ibid., p. 175.
148
luta na justiça para que ela volte para os seus braços (ou bolsos). Será que a
solução seria propor uma divisão salomônica? Duas mulheres se diziam mãe de
uma mesma criança, Então, Salomão
220
ordenou a um dos seus guardas que
cortasse a criança ao meio e entregasse cada parte as duas mulheres. Uma delas
disse que o rei poderia entregar a criança a outra e não realizasse tal ato. Ao ouvi
tal plica, Salomão ordenou que a criança fosse entregue à mulher que abdicou
da criança, pois somente a mãe verdadeira abdicaria de seu próprio filho para tê-lo
vivo. O TSE e/ou Carlos Rocha abdicaria(m) da urna eletrônica?
Decisão difícil. Ambas partes buscam construir narrativas suficientes
respeitáveis sobre tal paternidade a partir de um modelo difusionista, tendo as
etapas da invenção, desenvolvimento, inovação e posteriormente, milhares de
cópias colocadas no mercado para serem vendidas. No momento, vejo Carlos
Rocha sem nenhuma condição de vencer esta controvérsia, uma vez que, o TSE e
aliados e a urna eletrônica estão fortemente enredados. Divergências entre o
Poder Público e o setor privado quase sempre tem como derrotado este ou as
sentenças se arrastam por décadas; e como você leu acima, caro leitor, pelo
modelo difusionista é praticamente impossível determinar quem desenvolveu o
quê. Ambas as partes, mais uma vez não perceberam ou não desejam perceber
que jamais foram modernos. Engenheiros e advogados de ambos lados se
misturam na rede de construção da urna eletrônica e buscam uma retórica
eminentemente técnica.
220
Segundo o Livro dos Reis, da Bíblia, foi o terceiro rei de Israel entre 1009 e 922 a.C.
149
Capítulo 11
A mulher de César e a urna eletrônica
brasileira
Onde se verá uma semelhança entre uma frase atribuída a César e a urna
eletrônica no que se refere à tese de que não há verdades em si.
Não basta à mulher de César ser
honesta, ela tem de parecer honesta.
(Dito atribuído a Caio Júlio César, por
volta de 60 a.C.)
É dito que no ano 62 a. C., durante os festejos de a Boa Deusa
221
, Publius
Clodius, apaixonado por Pompéia Sula, mulher de Júlio César e anfitriã,
disfarçara-se de tocadora de lira e introduzira-se na celebração, reservada às
mulheres, sendo flagrado por Aurélia, mãe de César, sem que tivesse tido contato
com Pompéia. Descoberto, foi acusado de sacrilégio e julgado. O escândalo
tomou as ruas de Roma e o povo apoiou Clodius, levando César a divorciar-se de
sua mulher. Este ao ser chamado a depor disse, para espanto do Senado, que
nada sabia. Então, perguntaram-lhe: -Por que se divorciou de sua mulher? César
respondeu: -A mulher de César deve estar acima de qualquer suspeita.
À mulher de César não basta ser honesta tem de parecer honesta. À urna
eletrônica utilizada nas eleições brasileiras não basta ser confiável tem de parecer
confiável. Uma vez que não confiabilidade em si, uma confiabilidade (uma
estabilização) de qualquer fato ou artefato é uma construção sociotécnica, ou seja,
actantes misturados exercendo e sofrendo múltiplas influências simultaneamente,
221
Boa Deusa era uma deusa romana da fertilidade, da virgindade e da cura. Seus rituais eram
secretos e realizados em uma casa de um magistrado romano. O ritual era conduzido pela mulher
do magistrado. Apenas as mulheres eram admitidas e até representações de homens e animais
eram removidos, quando não, eram cobertas.
150
sendo inaceitável determinar limites dicotômicos. Sem dúvida, como disse em
outras ocasiões, a urna eletrônica parece ter um alto índice de aprovação pela
sociedade brasileira, isto porque, segundo os aliados deste artefato, para grande
parte desta sociedade a urna eletrônica é inviolável, logo, os resultados das
eleições são espelhos da vontade dos eleitores. Por que a urna eletrônica é
inviolável para a grande maioria? Porque esta grande maioria conhece do
informatiquês? Porque participa ativamente de todas as etapas do processo
eleitoral? Não! Porque crê.
No Código Eleitoral brasileiro de 1965, ainda em vigor, no seu artigo 1º.
encontramos a seguinte redação: Este código contém normas destinadas a
assegurar a organização e o exercício de direitos políticos, precipuamente os de
votar e ser votado.” Ainda no Parágrafo Único: “O Tribunal Superior Eleitoral
expedirá instruções para sua fiel execução. Ou seja, o TSE, sob outorga dos
poderes executivo e legislativo, fiscaliza as eleições e julga possíveis crimes
eleitorais e é responsável pelo cadastramento do eleitor, entrega dos títulos,
identificação do eleitor, votação, totalização, apuração, divulgação dos resultados
e diplomação dos eleitos. Ufa! Entretanto, as etapas que causam maior
desconfiança entre os especialistas são, principalmente, as realizadas dentro do
conjunto urna eletrônica: inseminação de programas, identificação do eleitor,
votação e totalização. Para os eleitores recalcitrantes, estas etapas constituem
uma caixa-preta, que nos levam a percorrer um espaço em vôo cego. Em suma,
do ponto de vista dos eleitores recalcitrantes, eles são obrigados pelo jogo
eleitoral a assinar cheques em branco para serem resgatados pela Justiça
Eleitoral brasileira.
Marc Bloch vem auxiliar-me nesta questão de extrema sutileza. Quando
cientistas vão, por exemplo, a um microscópio ou a um telescópio, ou quando
técnicos analisam imagens de ultrasonografias ou de ressonâncias magnéticas
fixam-se quase sempre naquilo que procuram. Através de olhares exercitados
vêem aquilo que se encontra em suas redes (sociotécnicas) construídas nas
151
sociedades que vivem. Um médico dirige-se à cabeceira de um doente; acredito
naturalmente mais no que me disser acerca do seu paciente, cujo comportamento
examinou cuidadosamente, do que acerca dos móveis do quarto, ao qual lançou
provavelmente um olhar distraído.
222
Certa vez, li em uma revista de curiosidades
ditas científicas, que os esquimós por viverem em um deserto de geleiras chegam
a ver 30 e tantas tonalidades de branco; entretanto, não conseguem distinguir
cores elementares para nós, como o verde e o vermelho. O contrário serve para
nós que vivemos em uma poluição visual. Segundo Bloch, numa mesma geração
de uma mesma sociedade, reina uma similitude de costumes e de técnicas
suficientemente forte para não ser possível a nenhum indivíduo afastar-se
sensivelmente da prática comum.
223
Ou ainda, Muitas casas belgas apresentam,
nas suas fachadas, estreitas aberturas, destinadas a facilitar aos rebocadores a
colocação dos andaimes; os soldados alemães, em 1914, nunca teriam sonhado
ver seteiras, preparadas pelos franco-atiradores, nesses inocentes dispositivos
dos pedreiros, se a sua imaginação não viesse sendo alucinada, desde muito,
pelo medo das guerrilhas.
224
Conta o professor Ivan, que me orientou nesta Tese, que certa vez estava
em uma rua de Copacabana, bairro da cidade do Rio de Janeiro-RJ, com o
professor inglês John Law. Então, uma criança se aproximou e pediu uns
trocados. Law acreditou que a criança pertencesse à família que estava no carro à
frente do que eles ocupavam. Claro que o professor Law não é um lunático, ele
sabe que miséria no mundo, particularmente, no chamado 3º Mundo,
entretanto, os seus fluxos não captaram a possibilidade de uma criança está
abandonada nas ruas, tarde da noite, a pedir dinheiro.
Estes exemplos, creio, servem para ajudar no entendimento de que estando
o conhecimento do processo eleitoral brasileiro em uma caixa-preta nas mãos de
poucos e sob o tacão do Poder Judiciário, número insignificante de embaraçados
222
BLOCH, Marc. Introdução à história. Lisboa: Publicações Europa-América, p. 91-92.
223
Ibid. p. 101.
224
Ibid., p. 95.
152
nestes fluxos terão discernimento ou mesmo coragem para usar outros óculos de
graus diferentes e buscar outros ângulos e questionar as verdades pronunciadas e
estabilizadas por aqueles, aos quais estão subordinados e que pertencem aos
mesmos fluxos. Certa vez, ao perguntar a alguns funcionários do TRE-RJ, não
especialistas em informática, sobre a crença deles na inviolabilidade da urna
eletrônica; todos, sem exceção, responderam que trabalhavam no TRE-RJ e não
tinham porque não acreditar, conviviam diariamente com os juízes e técnicos e
estes são comprovadamente pessoas corretas e o Brasil não podia mais conviver
com eleições fraudulentas.
Os donos da urna eletrônica construíram/constroem este artefato sob uma
abordagem que chamo de realista. Através desta perspectiva o entendimento
que existe a realidade exterior determinada, universal, autônoma, independente
do conhecimento que se pode ter sobre ela. Neste caso, o conhecimento
verdadeiro seria a coincidência ou a correspondência entre as nossas
experiências e a realidade exterior.
Defender um ponto de vista realista é buscar o que de fato ocorre no
mundo físico, mesmo quando partes este mundo físico são ainda, no momento,
inobservável; dirão os realistas. Há, como já disse acima, neste artigo, um espaço
de vôo cego por parte dos eleitores no processo eleitoral brasileiro. De que
maneira este espaço inobservável é creditado como real e verdadeiro? Em parte,
porque à Justiça Eleitoral brasileira, em 1932, ano em que foi criada, foram-lhe
atribuídas funções de preparar e executar as eleições e diplomar os eleitos. Em
parte porque foi construída uma estrutura de Tribunais Superior e Regionais, uma
estrutura de órgãos diversos que permitiram o funcionamento da Justiça Eleitoral e
elaboração de Códigos Eleitorais. Em parte, devido ao histórico pouco confiável,
para a modernidade, de eleições de pico de pena, íntimas do poder oligárquico, da
fraude, da mentalidade bacharelesca. Em parte, devido ao processo acelerado de
urbanização sofrido pelos grandes centros, em particular, São Paulo e Rio de
Janeiro, a partir dos anos 1920. Em parte, devido aos movimentos sociais
153
ocorridos nos anos 1920 (tenentismo, movimento modernista, campanha civilista,
Coluna Prestes, greves de operários em São Paulo, exigências de um código
social e de relações de trabalho e a revolução passiva de 1930. Em parte, pela
competência e credibilidade dos juízes, hoje, bastante arranhada. Em parte,
devido ao vácuo de poder deixado pela sociedade brasileira no que se refere à
organização dos processos eleitorais. Em parte, devido à naturalização de que
processos eleitorais são organizados pela Justiça Eleitoral a partir do Poder
Judiciário. Em parte, devido ao uso da energia elétrica, devido à velocidade das
comunicações e das informações, ao uso de terminais eletrônicos nos bancos, dos
eletrodomésticos em geral, dos controles remotos, dos aviões, das espaçonaves,
dos PCs etc...
A Justiça Eleitoral neste espaço de vôo cego trabalha com um forte teor de
verossimilhança, ou seja, aquilo que é dito e vivido se assemelha à realidade e ao
cotidiano estabelecidos pela própria Justiça Eleitoral. Esta é um actante capaz de
emprestar sua robustez e retórica para estabilizar uma versão de realidade. Torna
sua história verossímil por meio de significantes promotores de significados, cujos
efeitos de verdade nos transportam para o ambiente de conhecimentos e
acontecimentos construídos.
O realismo é determinante e universal porque tudo que ocorre na Natureza
é regido por leis, sendo todos os fenômenos ligados uns aos outros, em qualquer
tempo e lugar. Autônoma e independente porque se conforma às suas próprias
leis, não existindo qualquer interferência de fora. Para esta vertente a verdade é a
realidade, logo, o mundo externo, isto é, a Natureza é o juiz das proposições e
ideias, ou seja, a palavra final sobre as controvérsias. Na visão realista, as
formas do mundo existem antes da experiência e esta, desde do limiar dos
tempos modernos, busca intensamente esta formas e vem delas se aproximando
de maneira lenta, gradual e segura.
154
Segundo o realismo científico, a ciência apreendeu um grande número
de leis da Natureza e dos seus processos, aproximando-se, como disse, de
maneira lenta, gradual e segura de uma descrição definitiva e correta da realidade
observável e da realidade ainda inobservável. Independentemente das críticas que
os realistas sofram, esta visão, segundo os seus defensores, se justifica mesmo
que qualquer outra visão anti-realista se firme como vertente predominante ou que
efetivamente o conhecimento científico não descreva a realidade, pois, é inerente
a este ponto de vista um caráter heurístico, importante para a prática da ciência,
que faz aos cientistas se sentirem como desbravadores dos segredos da
Natureza.
Os realistas fazem uma história chamada whig
225
ou história dos
vendedores. Esta concepção tende a escolher fatos e artefatos no passado, em
uma cadeia lógica, valorizando-os como entidades pregressas, para assim,
ratificar e glorificar os ditos progressos e evoluções do presente. Ou mesmo,
desvalorizam fatos e artefatos com o mesmo objetivo de glorificar o presente. É
uma história de heróis e vilões e uma história assimétrica (racionais x irracionais).
Esquecem de propósito ou não os realistas que Jamais fomos modernos
226
, que
somos híbridos, esquecem a capilaridade de qualquer entidade estabilizada.
Como disse o filósofo francês Michel Serres (1930-): O único mito puro é a idéia
de uma ciência purificada de qualquer mito. Eu digo: naturezas e sociedades
pertencem aos fluxos heterogêneos estabilizados. Não! ao epitáfio na lápide de
Newton, escrita pelo poeta inglês Alexander Pope (1688-1744): A Natureza e as
leis da Natureza estavam imersas em trevas; Deus disse „Haja Newton‟ e tudo se
iluminou.
227
para aqueles que defendem a abordagem relativista, entre os quais eu
me incluo, não as ditas ciências naturais, mas qualquer objeto de estudo, são
225
Provavelmente esta expressão, história whig, tenha surgido a partir do livro The whig
interpretation of history (1931), de Herbert Butterfield (1900-1979).
226
LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos Ensaio de Antropologia Simétrica. Rio de Janeiro:
Editora 34, 1994.
227
No original: “Nature and nature´s laws hid in night; God said „Led Newton be‟ all was light.
155
construções sociais, acrescentaria, são construções sociotécnicas, ou seja, são
construções permanentemente negociadas por actantes heterogêneos. Sendo
assim, cada artefato é um produto de uma mediação (uma passagem e uma
tradução/translação), na qual, a cada momento, todos os actantes envolvidos
deixam de ser o que eram no início de sua imbricação ao fluxo de actantes para
serem outros, cujas características e amarrações se manterão locais, provisórias,
contingenciais e precárias. Para o relativismo que defendo, não separação
entre abordagens internalistas ou externalistas nem neutralidade nas
experiências, como também, nesta abordagem, os conhecimentos ditos científicos
não são epistemologicamente superiores a outros tipos de conhecimentos, o que
não quer dizer que sejam iguais ou equivalentes, pois diferenças que não são
epistemológicas, e sim de escala
228
. Todos os conhecimentos, sejam qualificados
de senso comum ou de bom senso, são construções, e alguns se tornam
predominantes porque actantes heterogêneos aliam-se e conseguem esfriar
controvérsias e estabilizá-los através de uma ampla rede. Entendo o criacionismo,
o evolucionismo, o transformismo, animismo, finitismo, fixismo, imanetismo,
panteísmo, teísmo, ateísmo, vitalismo, causa-consequência, progresso, evolução
como crenças estabilizadas, como construções sociotécnicas. E agora?
Também, qualquer artefato (livro, palestra, aula, leis da natureza,
automóvel, urna eletrônica, avião, empresa, governo, oxigênio, sistema solar etc.)
está carregado de controvérsias das sociedades nas quais foram inventados,
sendo necessários árduos trabalhos estratégicos por parte dos actantes
228
Para fortalecer suas alegações, alguns deles [cientistas] precisam sair de seu caminho para
depois voltar com recursos novos e inesperados a fim de vencer os embates que deverão ter em
sua terra, com pessoas que queiram convencer. [...] Quem assim se move cruzará o caminho de
muitas outras pessoas. [...] A cada intersecção revelam-se associações novas e inesperadas entre
coisas, palavras, costumes e pessoas. [...] A sócio-lógica de todas as pessoas com que cruzaram
esses peculiares viajantes enviados com a missão de voltar vai mostrar-se, por comparação,
„local‟, „fechada‟, „estável‟, „culturalmente determinada‟. Uma vez apagado do quadro o movimento
do observador, parece que uma linha divisória absoluta entre, por um lado, todas as culturas
que „acreditamem coisas e, por outro lado, a única cultura, a nossa, que „sabe‟ coisas (ou que
logo as saberá), entre „Elese „Nós‟. [...] Assim que o movimento do acusador é posto no quadro,
aparece uma diferença, mas esta nada tem a ver com uma linha divisória entre crença e
conhecimento; tem simplesmente a ver com a escala em que ocorre o alistamento e o controle das
pessoas.LATOUR, 2000, p. 344-5-6.
156
envolvidos para buscar persuadir e manter juntos actantes heterogêneos a fim de
endurecer e sustentar as suas inscrições (gráficos, notas de laboratórios, tabelas
de dados, relatórios, livros de registros, artigos publicados, ou seja, todo sinal
escrito por um instrumento; do sinal cru à afirmação mais bem construída, cada
um é uma tradução/translação).
No artigo 2, ressaltei que a campanha de aproximação do voto eletrônico ao
eleitor fixou-se na segurança, confiabilidade e facilidade de manuseio. Há,
aqui, nestes objetivos, um realismo, que eu designaria de caráter platônico (um
realismo idealista) misturado com uma ideologia cientificista e tecnicista,
entendendo que somente ambas são capazes de resolver todos os nossos
problemas práticos por meio dos iluminados (cientistas, cnicos, magistrados,
descobridores, idealizadores). Busca-se a realidade e esta localiza-se no mundo
das idéias, sendo a ciência e as técnicas os veículos para atingirmos este mundo
perfeito e puro, dos eurekas, das maçãs que caem em nossas cabeças. A
modernidade, segundo os realistas, não é o caminho provável, é sim, o caminho
correto para o descobrimento do ponto terminal da História da Humanidade.
Galileu & Cia. estabilizaram as hipóteses de Copérnico como teoria científica
válida, Newton decifrou as inscrições matemáticas e geo(teo)métricas da Natureza
e escreveu o grande livro da natureza. Francis Bacon preconizou a necessidade
de inquirirmos a natureza diretamente através das experiências para que a
Natureza nos forneça os seus segredos e assim dominá-los e utilizá-los. Como
para os realistas, é obrigação dos cientistas e técnicos ler o grande livro da
natureza, todos aqueles que se envolveram com o projeto do Coletor Eletrônico
de Voto (CEV) estavam/estão no caminho certo em retirar das mãos dos humanos
a identificação do eleitor e o processo de coleta, totalização e apuração dos votos,
visto que as possibilidades de fraudes são inerentes, pois, ainda do ponto de vista
do realismo platônico, tudo que passa no mundo dos homens é aparência, cópia,
sombra da verdade verdadeira, é o mundo do engano, é o mundo da corrupção,
é o mundo dos cegos devido à intensa luz externa. O termo manipular significa
preparar com as mãos; entretanto, hoje, tem uma forte conotação de fraudar,
157
corromper, enganar. É muito comum encontrarmos nos supermercados nas
embalagens dos produtos industrializados os dizeres: envasado à vácuo sem
contato manual.
Em tom de brincadeira, mas sério, tenho o hábito de dizer que o sistema
solar não existe a priori, que é uma construção social. Claro que acredito nesta
minha brincadeira. Claro que os astros que nos cercam estão extremamente
estabilizados e não tenho a pretensão de esquentar uma controvérsia sobre a
existência deles. Desgaste inútil, que provavelmente me levaria a uma temporada
em uma casa de repouso, sob os auspícios de meus adversários epistemólogos.
Não menor desgastante seria afirmar que o sistema com o sol em um ponto fixo
sendo circunavegado em uma rota elíptica pelos planetas não existe; ou ainda,
que poderíamos construir um outro modelo do nosso sistema, tendo, por exemplo,
Saturno ou Júpiter ou Marte ou qualquer outro astro no centro e o sol e os outros
planetas a navegar ao seu redor em trajetórias mais complicadas do que círculos
e elipses. A Europa não conviveu por mais de 3 mil anos com a concepção
ptolomáica? Mas, para que criar tantos problemas?
A identificação dos eleitores, a captação dos votos e a totalização são
etapas virtuais do processo eleitoral, que acontecem no interior do conjunto urna
eletrônica. Os nossos sentidos não captam este processo. Muitos actantes
afirmam, com convicção, que o processo expressa a verdade. Não basta que a
mulher de César seja honesta, tem de parecer honesta. Não basta que o processo
eleitoral por via da informatização seja honesto, tem de parecer honesto. Pelo viés
realista dos donos da urna e pelo viés dos relativistas, como eu, pode ser
honesto ou pode ser desonesto. Para construir uma urna eletrônica dita honesta,
os realistas utilizaram/utilizam uma rede que foi/vai muito além da ciência e das
técnicas ditas puras, utilizou/utiliza em grandes proporções uma retórica forte e
aliados heterogêneos; em suma, fez/faz política.
158
Ocasionalmente,” segundo Richard Rorty (1931-2007), filósofo pragmatista
estadunidense, nós lemos sobre uma guerra que esta supostamente em curso
entre os filósofos. A guerra, segundo nos dizem é entre aqueles que acreditam na
verdade e racionalidade e aqueles que não. Os últimos os maus às vezes são
chamados pós-modernistas, por vezes, irracionalistas e relativistas, e às vezes
construcionistas sociais. Os bons rapazes acreditam que a ciência nos diz como
as coisas realmente são, eles tomam o paradigma da racionalidade para o
inquérito ser científico, assim como o paradigma da verdade é o resultado desse
inquérito.
229
Certa vez, o ex-governador do Estado do Rio de Janeiro, nos anos 1970 e
1980, Chagas Freitas (1914-1991), diante das câmeras de TVs, entrou nas águas
do Guandu, (rio que abastece a região metropolitana do Grande Rio) para provar a
sua potabilidade. Foi um prato cheio para os comediantes, chargistas e a
oposição. Por quê? Porque Chagas Freitas foi um político populista, clientelista,
fisiologista, empreguista, lembrado pela política da bica d´água (colocação de
bicas d´água nas praças das regiões periféricas do Rio de Janeiro), sem
credibilidade nos setores de maior escolaridade da sociedade fluminense.
Entretanto, Chagas Freitas e os seus aliados eram amados pelas ditas camadas
populares exatamente porque executavam políticas de caráter populista,
clientelista, fisiologista e empreguista. Uma bica d´água em uma comunidade
carente é uma dádiva de Deus, se esta comunidade não tem acesso à rede de
água, não tem nos seus fluxos o conceito de cidadania ou é desamparada pelo
Estado. Portanto, uma política social que parece honesta para uns e desonesta
para outros. A mulher de César, devido à repercussão do caso, não pareceu ser
honesta. A urna eletrônica parece ser honesta?
229
RORTY, Richard. Phony science wars in The Atlantic on line. Disponível em:
<http://www.theatlantic.com/issues/99nov/9911sciencewars.htm>. Acesso em: 13 fev. 2010. No
original: Occasionally we read about a war that is supposed to be going on among philosophers.
The war, we are told, is between those who believe in truth and rationallity and those who do not.
The latter the bad guys are sometimes called postmodernists, sometimes irrationalists and
relativists, and sometimes social constructionists. The good guys believe that science tells us the
way things really are; they take the paradigm of rationality to be scientifica inquiry, just as the
paradigm of truth is the result of that inquiry.
159
Governador Chagas Freitas nas águas do rio Guandu.
230
Rorty, mais uma vez: “São diuturna e muito frequentemente invocadas
teorias estáveis porque correspondem a uma realidade estável, ou porque os
cientistas se reúnem para mantê-los estáveis, como os políticos se reúnem para
manter o atual regime político intacto?
231
230
Disponível em: http://2.bp.blogspot.com/_8x2upNW0ymw/ShGs_7lb-
DI/AAAAAAAAGAA/Ki6Vdn1lqpc/s400/chagas+freitas+no+para%C3%ADba+wellington+rangel+(pe
ninha).jpg. Acesso em: 12 abr. 2010.
231
RORTY, Richard. Phony science wars in The Atlantic on line. Disponível em:
<http://www.theatlantic.com/issues/99nov/9911sciencewars.htm>. Acesso em: 13 fev 2010. No
original: Are the longest-lasting and most frequently relied upo theories stable because they match
a stable reality, or because scientists get together to keep them stable, as politicians get together to
keep existing political arrangements intact?
160
Artigo 12
Uma urna eletrônica com leitor biométrico
(uma urna biométrica)
Onde se verá uma nova edição da urna eletrônica; agora, com um leitor biométrico
para identificar os eleitores.
Eles estão jogando o jogo deles.
Eles estão jogando de não jogar um jogo.
Se eu lhes mostrar que os vejo tal qual
eles estão,
quebrarei as regras do seu jogo
e receberei a sua punição.
O que eu devo, pois, é jogar o jogo deles,
O jogo de não ver o jogo que eles jogam.
(LAING, R. D. Laços)
232
Em um bar, aparentemente de uma cidade do interior, um idoso e um jovem
conversam enquanto tomam uma média com pão e manteiga. O idoso conta um
causo ao jovem: -Escuta essa. Diz que o coronel recolheu os tulos dos
empregados e foi pra cidade votar. Na volta, um deles pergunta: - Coronel, em
quem foi mesmo que a gente votou? O coronel: -Não posso falar, o voto é
secreto.
233
Ambos riem. Este causo é narrado em um vídeo, de 35 segundos,
produzido pelo TSE em 28.10.2009, para a campanha de recadastramento
biométrico dos eleitores. Continua o vídeo: Idoso: -Sabe que com a urna
eletrônica, a gente tem a votação mais segura do mundo. Jovem: -E agora com
a identificação pelas digitais ficou impossível votarem por você. Idoso: -Mas, a
gente perdeu a piada Jovem: -Mas ganhamos em cidadania. Idoso: -Isso é
232
Segundo Manoel Carlos (autor da novela da Rede Globo, Viver a Vida), em um artigo na última
página da revista Veja Rio, na edição de 21 de abril de 2010, O título do livro, [...] segundo o
doutor Laing [psiquiatra britânico], poderia também se chamar laçadas, nós, labirintos, impasses,
disjunções, redemoinhos, ligaduras.
233
Disponível em: <www.tse.gov.br>, no link recadastramento biométrico. Acesso em: 03 fev 2010.
161
verdade. Após, uma voz em off o texto da tela: Identificação biométrica. Cada
vez o poder está na mão do eleitor. Justiça Eleitoral.
Urna eletrônica com identificador biométrico do eleitor no microterminal.
234
Em 2008, os municípios de São João Batista-SC (em torno de 16 mil
eleitores), Colorado do Oeste-RO (12 mil eleitores) e Fátima do Sul-MS (14 mil
eleitores), utilizaram urnas biométricas. Em 2010, 61 municípios, nos estados do
Acre (2 municípios), Alagoas (11), Amapá (1), Bahia (1), Ceará (1), Espírito Santo
(2). Goiás (1), Maranhão (5), Minas Gerais (4), Mato Grosso (1), Pará (1), Paraíba
(2), Pernambuco (4), Piauí (2), Paraná (1), Rio Grande do Norte (11), Rio Grande
do Sul (1), Sergipe (1), o Paulo (2), Tocantis (7), totalizando mais de 1 milhão e
100 mil de eleitores serão cadastrados para utilizar este artefato.
235
Por este sistema biométrico, o eleitor é reconhecido pela sua digital e
fotografia, que aparece no terminal do eleitor (reproduzida na folha de votação,
manuseada pelos mesários) e libera a urna para votar. Não é necessário que o
presidente da seção digite o número do título, basta que o eleitor coloque o
polegar em um leitor ótico na parte superior do microterminal, para que haja a
234
Disponível em: http://www.maceioagora.com.br/images/11201023217urna.jpg. Acesso em: 02
mar. 2010.
235
Disponível em: www.tse.gov.br. Acesso em: 25 set. 2009.
162
identificação.
236
A biometria permite identificar pessoas por características
biológicas individuais (íris, retina, impressão digital, voz, formatos do rosto e da
mão).
Eleitor se identifica e sua foto aparece no terminal do eleitor.
237
No dia 07 de fevereiro de 2008, foi publicada no Diário de Justiça, a
Resolução nº. 22.688, do TSE, que estabeleceu os procedimentos à atualização
do cadastro eleitoral nos três municípios citados acima, nos quais ocorreu a
236
Disponível em:
<http://eleicoes.uol.com.br/2008/ultnot/multi/2008/10/05/04023564D8A91326.jhtm?eleitores-de3-
municipios-votam-com-urnas-biometricas-04023564D8A91326>. Acesso em: 05 mar. 2010.
237
Disponível em:
http://4.bp.blogspot.com/_xne6z219UPo/Sw6NB1CgqtI/AAAAAAAAAFg/VtUy01agFyw/s1600/Urna
+Biometrica.jpg, Acesso em: 03 abr. 2010.
163
experiência piloto do sistema biométrico para a identificação dos eleitores. O TSE
optou por estes municípios por terem em torno de 15 mil eleitores, estarem na
iminência de passar por uma revisão do eleitorado, serem sedes de zonas
eleitorais e próximos à capital dos seus respectivos estados. No cadastramento
será registrado o número e a origem do documento de identidade do eleitor e,
quando possível, o seu Cadastro de Pessoa Física (CPF). Também serão
recolhidas a foto e as impressões digitais de todos os dedos das mãos do eleitor,
por meio de leitura ótica.
Em suma, não haverá nenhuma alteração no processo informatizado de
eleições promovido pela Justiça Eleitoral brasileira, exceto a introdução da
identificação do eleitor e a liberalização deste para votar a partir do
reconhecimento das suas digitais por meio biotrico, ou seja, a urna biométrica
vai informatizar um procedimento operacional
238
. O TSE espera que no espaço de
uma década a totalidade do recolhimento dos votos seja feito através das urnas
biométricas.
Eu sou míope. A miopia é um problema visual devido uma focalização da
imagem antes desta atingir a retina. Eu vejo objetos próximos com nitidez e os
distantes desfocados. Meus óculos têm lentes divergentes, que deslocam o ponto
focal para trás, aproximando-o da retina. As lentes realizam um procedimento
operacional que seria realizado pelo aparelho ocular. Por exemplo, sem óculos, eu
sou Paulo-sem-óculos; com óculos de lentes divergentes, eu sou Paulo-com-
óculos de lentes divergentes. Somos híbridos em interfaces, programas de ação e
antiprogramas
239
permanentes. Entretanto, a ação esperada pelas lentes
divergentes podem não ocorrer porque outros actantes podem criam
238
Manual de Identificação Biométrica do Eleitor. Organizado pela Assessoria de Imprensa e
Comunicação Social do TSE. Brasília: 2008, p. 11.
239
LATOUR, Bruno. A esperança de pandora. Bauru-SP: Edusc, 2001, p. 353-354. “PROGRAMAS
DE AÇÃO, ANTIPROGRAMAS: Termos da sociologia da tecnologia que têm sido usados para
emprestar caráter ativo, e muitas vezes polêmico, aos artefatos técnicos. Cada dispositivo antecipa
o que outros atores, humanos ou o-humanos, poderão fazer (programas de ação); no entanto,
essas ações antecipadas talvez não ocorram porque os outros atores têm programas diferentes
antiprogramas do ponto de vista do primeiro ator. Assim, o artefato se torna a linha de frente de
uma controvérsia entre programas e antiprogramas.
164
antiprogramas, as lentes podem ficar embaçadas devido a uma chuva ou podem
quebrar.
Eduardo Kac (1962-), bioartista, tem uma performance-obra-experiência-
evento-instalação, que ocorre em um local e em um banco de dados a milhares de
quilômetros de distância, simultaneamente. O invento é efêmero e permanente.
Chama-se Time Capsule. Um dico limpa com antisséptico e insensibiliza com
analgésico o tornozelo de Kac, que se encontra em um leito cercado por um
computador on-line, um equipamento de transmissão e um dedo telerobótico. Kac
introduz no tornozelo um microchip (um transponder), e posteriormente uma
camada de tecido conjuntivo se formará para evitar a migração do artefato. Este
transmite um código numérico de 16 caracteres, visto na tela de um scanner, que
é registrado, via web, em um banco de dados nos Estados Unidos para
identificação e recuperação de animais perdidos (Kac está em São Paulo). “Eu me
registro tanto como animal como proprietário usando meu próprio nome.
240
Microchip com um programa de identificação numérica em uma cápsula de
vidro.
241
240
Folheto do Centro Cultural Casa das Rosas, em novembro de 1997.
241
Disponível em: http://vv.arts.ucla.edu/AI_Society/images/kac/needle.jpg. Acesso em: 04 ago.
2010.
165
Eduardo Kac introduzindo no seu tornozelo esquerdo a cápsula com um
microchip.
242
Raio X do tornozelo esquerdo de Eduardo Kac com a cápsula introduzida.
243
242
Disponível em: http://www.fondation-langlois.org/media/CRD/public/d00004312.jpg. Acesso em:
04 ago. 2010.
243
Disponível em: http://www.ekac.org/xray.gif. Acesso em: 04 ago. 2010.
166
Eduardo Kac explicando as etapas da experiência.
244
Somos híbridos também por causa das nossas próteses, porque temos
relações indissociáveis com elementos não-humanos e nos misturamos com eles.
Eles nos constituem também. As fronteiras desabam. Somos as nossas relações.
Somos contingenciais, precários e provisórios. Realizamos um enorme esforço
para estabilizar características de nós mesmos e do ambiente em que vivemos.
Mas tudo está por um triz. Lembremos todos. As memórias, por exemplo, agora,
podem ser introduzidas através de microchips em nossos corpos ou retirados dos
nossos corpos e arquivadas para serem usados mais à frente, não
necessariamente por nós mesmos. É o caso da memória biométrica utilizada na
urna eletrônica biométrica.
Segundo o então presidente do TSE, ministro Ayres Britto, após a
experiência do dia 05.10.2008, nas cidades citadas, a urna biométrica
representa o futuro, sem qualquer dúvida, pois seria totalmente à prova de
fraudes. [...] O ministro prevê que, nas eleições de 2014, o equipamento será
usado em todo o país.
245
O secretário de Tecnologia da Informação do TSE,
Giuseppe Dutra Janino, no Congresso de Cidadania Digital, em 01.10.2009, disse
244
Disponível em: http://www.ekac.org/tclive.gif. Acesso em: 03 ago. 2010.
245
Disponível em: <http://www.meionorte.com/buritidosmontes,tse-prepara-uso-da-urna-biometrica-
para-as-eleicoes-2014,51743.html>. Acesso em: 06 fev. 2010.
167
que em um futuro próximo o título de eleitor será substituído pelo Registro Único
de Identidade Civil (RIC). Diz Janino: viabilizar o cartão RIC, aproveitar serviços
que o chip poderá proporcionar. Então, pretendemos, sim, investir na emissão do
RIC e não mais no nosso título de eleitor. O nosso título de eleitor será o cartão
inteligente RIC. [...] Vantagem da integração [...] único comparecimento para o
cadastramento biométrico, você não vai precisar comparecer para tirar seu tulo,
comparecer para fazer a sua identidade, vai fazer um único procedimento, único
documento de identificação inteligente para o cidadão, para o eleitor, esse
documento que servirá para várias ações, inclusive para as ações ligadas à justiça
eleitoral, ao processo eleitoral.
246
Nós, dos estudos de ciência-tecnologia-sociedade (CTS), sabemos que não
se sustentam as afirmações do secretário Janino. Para aqueles que constroem
realidades a partir dos pressupostos modernistas e do modelo de difusão não
limites para atingir o ideal, ou melhor, o ideal estará sempre no horizonte. uma
década e meia os aliados da urna eletrônica brasileira elaboram retóricas da
segurança, confiabilidade e facilidade de manuseio deste artefato. O ministro
Carlos Velloso, presidente do TSE, pelos idos de 1994, afirmou que a
informatização do voto seria a primeira meta que tentaria viabilizar para as
eleições municipais de 1996; convencera-se de que as fraudes somente seriam
banidas do pleito quando fossem eliminados as cédulas, as urnas e os mapas de
urnas e informatizando o voto.
247
A Justiça Eleitoral, agora, vislumbra o ano de
2014 para que todos os eleitores brasileiros estejam cadastrados pelo sistema
biométrico e o secretário Janino prevê para 2017, que todos os brasileiros,
devidamente biometricados, tragam em suas carteiras RIC (Registro Único de
Identidade Civil), documento que servirá ao cidadão para todas as suas ações,
inclusive para votar. E depois? Não será a introdução de um microchip sob a pele?
Um líquido injetado no nosso corpo? Uma alteração no nosso código genético? E
mais uma vez, será recuperada a retórica da segurança, confiabilidade e
246
Disponível em: YouTube: TSE vai trocar título eleitoral pelo RIC. Acesso em: 06 fev. 2010.
247
Artigo 2.
168
facilidade de manuseio? O sistema biométrico que será usado nas urnas
eletrônicas vai reconhecer as impressões digitais dos eleitores. Com isso, o Brasil
poderá criar o maior banco de dados de imagens de impressão digital existente no
mundo
248
, diz o Manual de Identificação Biométrica do Eleitor do TSE.
Da mesma forma de quando da implementação da urna eletrônica a partir
de 1996, o discurso em defesa da urna biométrica tem o mesmo tom ufanista de
então. A missão da Justiça Eleitoral, de colocar nas mãos dos brasileiros o futuro
cada vez mais seguro para a democracia, leva o Brasil à vanguarda tecnológica
dos processos em todo o mundo. Nas eleições municipais deste ano [2008], essa
situação deve se consolidar ainda mais com a introdução da urna eletrônica com
leitor biométrico.
249
No vídeo Justiça Eleitoral Vota Brasil 2008 Urna
Biométrica, temos o seguinte texto: Dia 5 de outubro [2008] você, que se
cadastrou para votar na urna mais moderna do mundo, vai viver um momento
histórico. Antes de qualquer lugar do país, você vai votar na urna biométrica.
(grifo meu) E nada melhor do que a urna do futuro para definir o futuro da sua
cidade e de todo mundo que mora aí. Com a urna biométrica ninguém poderá
votar em seu lugar.
250
Grifei este trecho acima porque a atriz Lavínia Vlasak
enfatiza, através do rosto e da voz, o quanto os eleitores de Colorado D´Oeste-RO
são privilegiados e que não devem perder esta oportunidade, como se estivesse
em uma propaganda sobre uma liquidação de um shopping ou de uma
oportunidade imobiliária imperdível ou de um carro financiado em 80 meses.
Entretanto, mesmo com a história bem-comportada e de sucesso
construída pelo aliados da urna eletrônica e, agora, da urna biométrica, outras
histórias quando mexemos nas caixas-pretas destes artefatos. Em Colorado do
Oeste-RO ocorreu atraso na apuração porque houve dificuldade na identificação
das impressões digitais de algumas pessoas. Caso o eleitor não seja identificado
248
Manual de Identificação Biométrica do Eleitor (2008), p. 9.
249
Ibid.
250
Disponível em: www.youtube.com.br. Justiça Eleitoral Vota Brasil 2008 Urna Biométrica.
Acesso em: 06 fev. 2010.
169
através do dedo polegar, ele colocará dedo a dedo no leitor ótico até o sistema
aceitar a impressão digital. Segundo Izael Pereira Mota, secretário do TRE-RO,
houve demora, mas o sistema biométrico não falhou.
251
Em Fátima do Sul (MS) os
eleitores gastaram em média 1 minuto e 40 segundos, quando se esperava 40
segundos. Para o chefe do cartório eleitoral, Flávio Alexandre Martins Nichiku, a
demora foi causada pelo não reconhecimento biométrico de alguns eleitores, que
tiveram que voltar aos mesários e votar pelo sistema convencional. Nichiku
explicou que desde o início do ano, quando foram recolhidas as impressões
digitais dos dez dedos das mãos de cada votante, a textura da pele foi alterada,
principalmente dos trabalhadores braçais. [...] O clima frio e chuvoso também
colaborou no estreitamento das linhas digitais, impedindo o reconhecimento do
eleitor. [...] Um eleitor apontou a vantagem, mas reclamou que as novas urnas
descobriram outro tipo de exclusão: a dos sem impressões digitais.
252
(grifo
meu) Segundo Antonio Mendes Barata Segundo, da Coordenadoria de Cadastro e
Logística de Eleições do TRE-MS, que me enviou uma mensagem, no último dia 8
de fevereiro de 2010, de acordo com os dados estatísticos, apenas 0,92% dos
eleitores do município de Fátima do Sul não tiveram suas digitais reconhecidas
(em nenhum dos 10 dedos), e foram habilitados a votar através da digitação do
código de liberação, com a apresentação do título eleitoral e de outro documento
oficial. Para o TSE, que compreende as eleições, também, como um processo
célere e de fácil manuseio, creio que seja sintomático uma média de 40 segundo
por eleitor atingir o tempo de 1 minuto e 40 segundos.
O eleitor tem três tentativas com o polegar direito. Caso falhe, deverá tentar
com os outros dedos a partir da seguinte ordem até ser reconhecido: polegar
esquerdo, indicador direito, indicador esquerdo, médio direito, anelar direito,
mínimo direito, médio esquerdo, anelar esquerdo e mínimo esquerdo. Não sendo
251
“Sistema biométrico vai atrasar apuração em Colorado do Oeste-RO.” Disponível em:
<http://wwwo.uai.com.br/UAI/html/sessao.20/2008/10/05/em_noticia_interna,id_sessao=20&id_noti
cia=82251/em_noticia_interna.shtml> Acesso em 07 fev. 2010.
252
“MS tem problemas na votação com urnas biométricas”. Disponível em:
<http://www.estadao.com.br/nacional/eleicoes2008/not_cid254039,0.shtm>. Acesso em: 07 fev.
2010.
170
reconhecido, o processo ocorrerá pelo método anterior, ou seja, o presidente da
seção digitará o número do título no microterminal, sendo confirmado o número e
nome, ele liberará o terminal do eleitor para que este possa votar.
Do “Posfácio” escrito por Ivan da Costa Marques para o livro de Henrique
Cukierman, Yes, nós temos Pasteur, retiro seguinte trecho: Escrevendo sobre o
México em 1987, Guilhermo Bonfil Batalla lamenta a descolonização incompleta
de seu país. Desde a independência da Espanha, em 1821, os diversos projetos
nacionais que, em distintos períodos de sua história independente, pretenderam
organizar a sociedade mexicana, foram em todos os casos projetos enquadrados
exclusivamente no marco da civilização ocidental, nos quais a realidade [local] não
tem espaço e é vista unicamente como símbolo de atraso e obstáculo a
vencer.
253
Creio que este lamento serve também para o Brasil.
O discurso oficial estabeleceu uma relação de causa e conseqüência entre
desenvolvimento tecnológico e cidadania. E mesmo correndo o risco da
generalização, parece-me que a sociedade brasileira, predominantemente, foi
abduzida por esta invenção-narrativa e por valores da civilização euro-
estadunidense. Ainda em um outro vídeo institucional sobre o RIC, que, como
disse acima, terá, também, a função de identificar o eleitor, o apresentador dá
início desta forma: “Cidadania, como garantir a todos os brasileiros a efetivação de
direitos e o cumprimento de deveres assegurados por lei? Como aprimorar os
mecanismos legais e estabelecer uma sociedade com inclusão social, mais justa e
menos desigual para todos os cidadãos?
254
Com imagens à la Matrix
255
, segue o
vídeo listando as vantagens de termos um registro único constituído a partir de
uma tecnologia de ponta. Termina o vídeo com o retorno do apresentador: A
253
CUKIERMAN (2007), p. 425.
254
Registro único de identidade civil. Vídeo institucional apresentado durante o Encontro Nacional
de Identificação, em Brasília, no dia 08 de julho de 2008. O encontro foi organizado pelo Instituto
Nacional de Identificação (INI) Diretoria Técnico-Científica, do Departamento de Polícia Federal.
O objetivo era mostrar as vantagens da adoção de um número único de identificação civil.
Disponível em: www.youtube.com.br. Acesso em: 10 jul. 2010.
255
Produção norte americana e australiana de 1999, Matrix, dirigido pelos irmãos Andy e Larry
Wachowski, é um filme de ficção científica com uma estética pós-moderna, ao estilo cyberpunk,
repleto de bricolagens multimidiáticas.
171
implementação do RIC, além de garantir ao Brasil posição de vanguarda na
identificação civil, contribuirá para um gerenciamento cada vez mais moderno e
eficiente por parte dos seus gestores, além de promover a cidadania e garantir
segurança a todos os brasileiros.
256
Seria chover no molhado dizer que esta foi a
mesma ladainha construída para a estabilização da urna eletrônica, ou seja, os
problemas sociais de injustiça e desigualdade resumem-se a uma questão de
gestão, logo, mais uma vez, havendo uma gestão de tecnologia sofisticada,
inevitavelmente teremos uma sociedade mais justa e menos desigual, mais
competente e mais honesta.
O homem medieval se confundia com a natureza, ou melhor, estavam
imbricados na criação divina. No limiar da modernidade, William Shakespeare
(1564-1616), em Hamlet, entende o homem de uma outra maneira: Que obra de
arte é o homem: tão nobre no raciocínio; tão vário na capacidade; em forma e
movimento, tão preciso e admirável, na ação é como um anjo; no entendimento é
como um Deus; a beleza do mundo, o exemplo dos animais.
257
Na
invenção/narrativa da modernidade homem, sociedade, natureza, política, ciência
e cnica se separaram. Não para a Justiça Eleitoral brasileira fluxos de
actantes heterogêneos, como urna biométrica+eleitor; não também
opacidades. Interessa apenas que fluxos não tenham histórias e não façam
políticas.
256
Registro único de identidade civil (2008).
257
SHAKESPEARE, William. Hamlet.
172
Artigo 13
Pra não dizer que não falei... e não
interferi...
Onde se verá reflexões sobre uma rede em que está imbricada a urna eletrônica
brasileira
... e aqui ou além ou aquém ou láacolá ou
em toda parte ou em nenhuma parte ou
mais além ou menos aquém ou mais
adiante ou menos atrás ou avante ou
paravante ou à ré ou a raso ou a rés
começo re começo rés começo raso
começo que a unha-de-fome da estória
não me come não me consome não me
doma não me redoma...
(CAMPOS, Haroldo de. Galáxias)
Deus é um cara gozador
Adora brincadeira
Pois pra me jogar no mundo
Tinha o mundo inteiro
Mas achou muito engraçado
Me botar cabreiro
Na barriga da miséria
Eu nasci brasileiro
Eu sou do Rio de Janeiro
[...]
Deus me fez um cara fraco
Desdentado e feio
Pelo e osso, simplesmente
Quase sem recheio
[...]
Deus me deu pernas compridas
E muita malícia
Pra correr atrás de bola
E fugir da polícia
Um dia ainda sou notícia
(HOLLANDA, Chico Buarque de, Partido
Alto)
Vejam, são nossos dominadores
ensinando a nós como nos
desenvolveremos! [...] O que é avanço
tecnológico? [...] Será que nós só seremos
avançados quando formos iguais a eles?
173
Eu acredito que uma nação só será
atrasada tecnologicamente na medida em
que não puder dar respostas às suas
necessidades, e não porque não
alcançou as mais avançadas.
(Trecho do discurso do engenheiro e
empresário Edson Fregni ao receber, em
1983, o premio Engenheiro do Ano
concedido pelo Instituto de Engenharia de
São Paulo in DANTAS, Vera. A guerrilha
tecnológica: a verdadeira história da
política nacional de informática. Rio de
Janeiro: LTC-Livros Técnicos e Científicos
Ed., 1988, p. 155.)
Todos cantam sua terra, também vou cantar a minha, nas débeis cordas
da lira hei de fazê-la rainha; [...] Tem tantas belezas, tantas, a minha terra natal,
que nem as sonha um poeta e nem as canta um mortal! É uma terra encantada,
mimosa jardim de fada, do mundo todo invejada, que o mundo não tem igual
Estes são os primeiros versos de Minha Terra, descrição do Brasil do poeta
romântico Casimiro de Abreu (1839-1860), escritos em Lisboa, em 1856.
Cantarei (construirei) também a minha terra Brasil. Não farei através de
versos românticos e ufanistas; e sim, através da urna eletrônica brasileira. A
configuração estabilizada deste artefato emite sons (breves e longos), emite
imagens, exige que nos identifiquemos, diz para aguardarmos, fixa as etapas que
nós, eleitores, devemos seguir e estabelece tempo máximo para cada uma delas,
questiona-nos caso não cumpramos uma das etapas (podendo excluir-nos), não
explicita e dificulta a nossa opção pelo voto NULO; mas se colocada em um canto
isolado da seção eleitoral e tendo uma coloração cinza clara aparenta
distanciamento e neutralidade. Aqueles que construíram uma história bem-
comportada e de sucesso da urna eletrônica dizem que ela veio para consolidar a
nossa democracia representativa, para escolhermos os nossos administradores e
nos ajudar na solução dos nossos problemas sociais. Como Pangloss, em
Cândido, o otimista, de Voltaire (1694-1778), este é o melhor dos mundos
possíveis[apesar das nossas mazelas].
174
Caro leitor, neste instante, parto para a última etapa desta minha viagem
fantástica. Não disse, mas digo agora. Como no livro de Isaac Asimov (1920-
1992), Viagem Fantástica II - Rumo ao cérebro, publicado em 1987, desde o
primeiro artigo, eu estive miniaturizado e viajando por dentro da urna eletrônica
brasileira na nave Proteus, reduzida também a um tamanho microscópico. Como
Teseu, eu também tive a minha Ariadne. Antes de seguir, faço as mesmas
perguntas que fiz no início, no artigo 1. Tirei você da zona de conforto?
Desafinei o coro dos contentes? Ainda acredita piamente na inviolabilidade da
urna eletrônica brasileira? Coloquei uma pulga atrás da tua orelha? E agora, caro
leitor, abandonaria toda a esperança e todo o saber sobre o saber?
258
Inicio esta última etapa com alguns índices oficiais, pois sei que os mais
ortodoxos exigem, como se não bastasse colocar na face os olhos das ruas e
buscar interferir. Segundo estimativas do IBGE somos, hoje, aproximadamente
190 milhões de brasileiros, sendo em torno de 140 milhões os de 15 anos ou mais.
Entre estes havia em 2006, 28,8% de analfabetos e em 2008, 30,1%. Para as
pessoas ocupadas a partir dos 10 anos em 2006 e 2008 tínhamos
258
Disponível em:
http://4.bp.blogspot.com/_PXnm6Y0RJ0M/SXh1GUpo1UI/AAAAAAAABBk/OLgHcY3GH-
Q/s400/29080.jpg. Acesso em: 30 ago. 2010.
175
aproximadamente 60% recebendo até dois salários mínimos.
259
Se fizermos uma
pesquisa mais apurada apenas com as camadas mais pobres a situação é mais
grave. Segundo Otaviano Helene, presidente do Instituto Nacional de Estudos e
Pesquisas Educacionais-Inep, a evasão escolar antes do término do ensino
fundamental, que atinge, em média, cerca de 30% dos jovens, é superior a 90%
entre os mais pobres. E, claro, recebendo formação escolar muito precária.
260
No
Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb)
261
, em uma escala que vai
de 0 a 10, em 2009, para o ensino básico, o estado do Paraná obteve o 1º. lugar
com a média de 4,2; o Rio de Janeiro com 3,3 ficou em 18º lugar.
262
Entre os
jovens, 85% deles afirmam que os políticos são aqueles em quem menos
confiam. [...] Destacam a inexistência de boas práticas políticas (80%) e bons
governos (76%) [...], respeito ao trabalho (61%) [...] e a falta de segurança para
planejar a vida” (63%).
263
Com referência às causas de óbitos entre os jovens,
vêm aparecendo com mais freqüência causas de morte relacionadas a
enfermidades não transmissíveis e causas externas (violentas). [...] Cabe chamar
atenção, entretanto, para o fato de que as transformações na estrutura das causas
de morte são mais visíveis nas áreas onde a violência se transforma num
fenômeno cada vez mais generalizado, incidindo, prioritariamente, sobre as idades
jovens e adultas-jovens (15 a 39 anos) do sexo masculino. O processo ocorre em
paralelo ao declínio generalizado da mortalidade na infância, caracterizando uma
contradição que o País vem vivenciando ao longo dos últimos 20 anos: aumenta o
número de crianças sobreviventes, mas eleva-se o risco de virem a morrer ao
atingirem as faixas etárias jovens.
264
No Índice de Desenvolvimento Humano
259
IBGE. Brasil em síntese. Disponível em: www.ibge.gov.br/brasil_em_sintese/. Acesso em 04 jul.
2010.
260
HELENE, Otaviano. “Desigualdade e educação” in Caros Amigos Especial: A direita continua
forte, ataca e morde. Ano XVI, nº. 49, abr. 2010
261
O Índice de Desenvolvimento da Educação Básica(Ideb), criado pelo Ministério de Educação,
em 2007, é um resultado obtido a partir dos dados sobre fluxo e aprovação escolares, obtidos no
Censo Escolar, e médias de desempenho nas avaliações do Inep, do Saeb, para as unidades da
federação, e para o país, e na Prova Brasil para os municípios.
262
O GLOBO, 05 jul. 2010, p. 10 e 11.
263
FILGUEIRAS, Luiz & GONÇALVES, Reinaldo. A economia política do governo Lula. Rio de
Janeiro: Contraponto, 2007, p. 219.
264
IBGE. Indicadores sociodemográficos e de saúde no Brasil-2009 in Estudos e pesquisas-
Informações demográficas e socioeconômicas, número 25. Rio de Janeiro, 2009, p. 41-42.
176
(IDH) - uma avaliação e medida do bem-estar de uma população através da
educação, renda e longevidade -, usado pelo Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento, o Brasil ocupou o 75º lugar, em 2009, sendo que na América
Latina ficou atrás do Chile, Argentina, Uruguai, Cuba, México, Venezuela,
Panamá, República Dominicana.
265
E a urna eletrônica brasileira, que tem como uma das suas mais completas
traduções/translações ser um artefato cuja arquitetura e mecanismo enquadra
expressões e mobilizações políticas dos eleitores brasileiros, contribui para a
manutenção desse establishment. Nas próximas eleições de outubro de 2010,
esta urna fará 14 anos e estará sendo utilizada pela oitava vez (desde 1996,
tivemos eleições a cada dois anos). Também em 2010, estamos fazendo três
décadas do predomínio do pensamento neoliberal no mundo capitalista se
entendermos os governos Thatcher (1979-1990) e Reagan (1981-1989) e o
Consenso de Washington
266
(1989) como marcos deste receituário.
Está claro, por tudo que eu escrevi até aqui, que não sou um defensor de
uma teoria da conspiração, através da qual governos e empresas transnacionais
se encontrariam secretamente com o intuito de preparar um plano de domínio e
exploração de sociedades. Nem estou propondo a existência de uma estrutura e
de uma conjuntura a priori; eu, ao ter um olhar do ponto de vista dos estudos de
ciência-tecnologia-sociedade (CTS) entendo que relevos são construídos.
Thatcher, Reagan e o Consenso de Washington, urna eletrônica brasileira, os
índices e os seus resultados, citados acima, o, cada um, ao seu modo,
resultados locais, provisórios, precários e contingenciais de uma rede de actantes
Disponível em:
http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/indic_sociosaude/2009/indicsaude.pdf. Acesso
em: 04 jul. 2010.
265
Disponível em:
http://www.pnud.org.br/pobreza_desigualdade/reportagens/index.php?id01=3326&lay=pde. Acesso
em: 10 jul. 2010.
266
As regras básicas estabelecidas pelo Consenso de Washington são as seguintes: disciplina
fiscal, redução dos gastos públicos, reforma tributária, juros de mercado, câmbio de mercado,
abertura comercial, investimento estrangeiro direto com eliminação de restrições, privatização das
estatais, afrouxamento das leis econômicas e trabalhistas e direito à propriedade intelectual
177
heterogêneos. Mesmo assim, estas redes e resultados podem vir a ser aliados:
“[c]omo indica a expressão latina ´inter-esse´, ´interesse´ é aquilo que está entre
os atores e seus objetivos, criando assim uma tensão que fará os atores
selecionarem apenas aquilo que, em sua opinião, os ajude a alcançar esses
objetivos entre as muitas possibilidades existentes.
267
Se utilizarmos um olhar economicista, tendo por base a fonte energética, a
forma de produzir e o que se produz, poderemos dizer que vivemos, hoje, no
Mundo Ocidental, a 3ª. revolução industrial
268
. Nesta, após 1945, há um
imbricamento da ciência, da tecnologia e da produção com menos recursos e
menos o-de-obra, em particular no quadro genética e informática. Nesta etapa,
o conhecimento científico-tecnológico colou nos produtos que chegam ao
mercado agregando valor quase que de imediato e em uma velocidade e modelo
que os países da periferia continuam sem conseguir acompanhar, a não ser,
precariamente, através de uma integração à globalização de maneira dependente
em detrimento de um projeto nacional. Diante de um quadro de desregularização,
terceirização e informalização do trabalho, ampliam-se políticas sociais
compensatórias (bolsa família, salário desemprego, cesta básica, salário aluguel
etc.) e ONG´s que se acotovelam neste promissor mercado (marketing social de
uma solidariedade de fachada)
269
. São políticas dedicadas à manutenção de uma
ordem em detrimento de um desenvolvimento social de caráter nacional
democrático ou socialista. É aquilo que o prof. Francisco de Oliveira denomina
hegemonia às avessas”: Os dominantes aceitam ser conduzidos politicamente
pelos dominados. Desde que não sejam contestados. [...] Você derrota a poderosa
267
LATOUR (2000), p. 179.
268
A 1ª. revolução industrial (1760-1860) baseou-se na energia a vapor usada na extração de
minérios, na indústria têxtil e na produção de mercadorias antes manufaturadas. A 2ª. revolução
industrial (1860-1900) baseou-se na eletricidade, na química e no combustível fóssil, na
substituição do ferro pelo aço, na produção de mercadorias mais baratas e na substituição dos
braços pelas máquinas.
269
Veja o filme Quanto vale ou é por quilo? (2005), de Sérgio Bianchi (1945-).
178
discriminação social brasileira, derrota o preconceito de classe... para quê? Para
governar para os ricos.
270
Em outras palavras, as desigualdades são mantidas.
Aproveitando ainda um fragmento do texto de Francisco de Oliveira,
enquanto o progresso cnico da Segunda Revolução Industrial permitia saltar à
frente, operando por rupturas sem prévia acumulação técnico-científica, por se
tratar de conhecimento difuso e universal, o novo conhecimento técnico-científico
está trancado nas patentes, e não está disponível nas prateleiras do
supermercado das inovações. E ele é descartável, efêmero, como sugere Derrida.
Essa combinação de descartabilidade, efemeridade e progresso incremental corta
o passo às economias e sociedades que permanecem no rastro do conhecimento
técnico-científico
271
, que se configura estabilizado a partir das instituições dos
países centrais capitalistas, eu acrescento.
Continuando a dialogar com o professor Chico de Oliveira, ele diz que a
superação da [atual] descartabilidade/efemeridade imporia um esforço
descomunal de pesquisa científico-tecnológica, aumentando-se o coeficiente de
P&D ou C&T sobre o PIB em algumas vezes, para saltar à frente da produção
científico-tecnológica. [O] coeficiente brasileiro para 1997 era de meros 1,5%. A
acumulação de capital para realizar um salto dessas proporções significaria elevar
muito o coeficiente de inversão sobre o PIB em período longo, a partir da base
atual, que era de quase 18% em 1999, e sobretudo mudar o mix da inversão, com
maior proporção de C&D. Em alguns períodos da história, diversos subsistemas
econômicos nacionais realizaram tal façanha, à custa de enorme repressão
política, de uma economia de monge franciscano, com total irrelevância da
produção de bens de consumo.
272
Em resposta, argumento que o professor Chico
de Oliveira tem um olhar modernista (evolucionista) e um modelo de P&D e C&T
do Mundo. Mas no meu entender não se trata disso. Temos um problema de
270
OLIVEIRA, Francisco de. “Lula e a hegemonia às avessas - Entrevista” in O Globo. Rio de
Janeiro: 04 fev 2007.
271
___________________. Crítica à razão dualista O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003, p.
138.
272
Ibid., p. 140 e 141.
179
paradigma: colocar em cena uma P&D e C&T nacionais. Queremos ir ao Sol ou a
Marte? Não! Eu quero enfrentar os nossos problemas internos.
No livro Guerrilha tecnológica A verdadeira história da política nacional de
informática
273
, que trata de um processo de construção de uma indústria de
informática nacional, nos anos 1970, e do seu posterior aniquilamento, nos anos
1980, sua autora Vera Dantas, conta que estudantes de pós-graduação em
engenharia voltavam do exterior e um pesquisador que havia saído do
Departamento de Cálculos Científicos (DCC) da COPPE/UFRJ em viagem de
férias do doutorado em Berkeley ao visitar seus colegas da COOPE/UFRJ,
encontrou mudanças, o antigo Departamento de Cálculo Científico transformara-
se no Núcleo de Computação Eletrônica, um órgão da UFRJ, e multiplicara seu
efetivo de nove para noventa pessoas. [Entretanto] os grupos de pesquisa em
informática trabalhavam isolados uns dos outros. No Departamento de Engenharia
Elétrica, os pesquisadores aprofundavam seus estudos sobre circuitos integrados.
No NCE, os pesquisadores, responsáveis pela operação do computador da
Universidade, preocupavam-se, apenas, com o desenvolvimento dos sistemas.
Eram íntimos dos softwares de maior complexidade. [Esse pesquisador] resolveu
catequizar os dois grupos para juntar suas equipes em torno de um projeto
comum. [...] Então, [...] apontou esse „bem mais ensinando o que aprendera em
Berkeley. Que tecnologia é ciência aplicada a problemas eminentemente
práticos. Que, em determinadas circunstâncias, como no caso brasileiro, o papel
do pesquisador não se resume a avançar a fronteira do conhecimento, mas sim
avança a fronteira do conhecimento brasileiro‟. Que as „novas tecnologias
precisam ser fixadas entre os profissionais, e isso acontecerá quando o know-
how absorvido ou gerado nas universidades for efetivamente usado no país para
a produção de bens e serviços.
274
[...] [ele] defendia um novo modelo industrial
capaz de incorporar tecnologia nacional.
275
273
DANTAS, Vera. Guerrilha tecnológica A verdadeira história da política nacional de informática.
Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos Editora Ltda, 1988.
274
Ibid., p. 33 e 34.
275
Ibid.,p. 61.
180
O economista Paulo Passarinho, do Conselho Regional de Economia do
Rio de Janeiro afirma que a nossa presença comercial no mundo se baseia no
modelo agro-mineral-exportador, tão criticado historicamente pela esquerda e por
todos os setores que alimentaram a esperança do estabelecimento no Brasil de
um autêntico projeto nacional de desenvolvimento. Ao mesmo tempo, com nossa
estrutura produtiva cada vez mais desnacionalizada, importamos máquinas,
equipamentos, peças e componentes industriais ao sabor das definições
estratégicas das matrizes das corporações estrangeiras, aqui presentes através
de suas filiais.
276
Chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar o seu valor?
277
. Quem foi
que inventou o Brasil? Foi seu Cabral?
278
Aqui é o fim do mundo?
279
Um dia
desses estaremos engajados em um projeto para desvendar o código genético do
ornitorrinco ou construiremos uma máquina portátil para tirar gelo da frente de
nossas casas nas manhãs de inverno?... Está provado que é possível filosofar
em alemão”?
280
Tupi, or not tupi that is the question? Nunca fomos
catequizados”?
281
Provavelmente, seja a dita ciência econômica o conhecimento que no pós-
guerra de 1945 mais tenha se consolidado como uma ciência ao modo das ditas
ciências exatas, conforme o modelo modernista dominado pela física, pela
química e pela biologia. Colocando os óculos dos estudos de CTS, vejo nas
últimas três décadas um predomínio do pensamento neoliberal, onde a utilização
das leis econômicas contribuiu para enfraquecimento do debate político. As
grandes decisões não passam mais pelos mecanismos da democracia porque
estes não têm como processá-las na velocidade que a economia capitalista
276
PASSARINHO, Paulo. “Grande capital controla como nunca as eleições e os candidatos mais
cotados.” in Correio da Cidadania. 26 jun. 2010. Disponível em:
http://www.correiocidadania.com.br/content/view/4776/9/. Acesso em: 11 jul. 2010.
277
ASSIS VALENTE. Brasil Pandeiro.
278
BABO, Lamartine. História do Brasil.
279
NETO, Torquato & GIL, Gilberto. Marginalia 2.
280
VELOSO, Caetano. Língua.
281
ANDRADE, Oswald de. Manifesto Antropófago.
181
contemporânea exige. É o Banco Central que governa, porque ele toma as
decisões no ato, e isso substitui a política inteiramente.
282
Exemplar para o
argumento que aqui desenvolvo e para a América Latina, é o caso do Banco de la
República (Banco Central da Colômbia). Em 1991 se introdujeron reformas
radicales al Banco de la República y al manejo de la política econômica del país.
Se estableció que la principal función del Banco es reducir la inflación y
mantenerla a niveles bajos. Se definió que el mejor arreglo institucional para
lograr este fin es um banco central independiente. (grifo meu) [...] La Junta
Directiva del Banco de la República quedó conformada por siete miembros:
el ministro de Hacienda; cinco miembros permanentes, nombrados por el
Presidente de la República por cuatro años, dos de los cuales pueden ser
relevados cada cuatro años y por último, el Gerente General del Banco, que es
nombrado por los miembros de la Junta Directiva.
283
Um outro exemplo. Se formos ao documento final da Conferência Nacional
de Educação-CONAE, realizada no final de março de 2010, observaremos que
está repleta de termos advindos do economês: gestão, clientela, custo aluno,
gerenciamento, administração, parceria público-privado, orçamento, recursos,
percentagem em relação ao PIB, investimento, inclusão no mercado etc.; quase
nada sobre políticas ou doutrinas pedagógicas ou sobre um projeto educacional
para a sociedade brasileira e muito de um pensamento único+puro+-
neoliberal+administração competente.
284
Ricardo Berzoini, ex-presidente e membro do diretório nacional do Partido
dos Trabalhadores-PT, propõe como solução para a crise financeira internacional
iniciada no 2º. semestre de 2008, a criação de um novo acordo de Bretton Woods,
que seja um sistema de controle do mercado e crie mecanismos de auditoria e
282
Revista História Viva, ano VII, nº. 77, 2010, p. 16-18.
283
Disponível em: http://www.banrep.gov.co/documentos/el-banco/pdf/historia-banco-sept.pdf.
Acesso em: 13 jul. 2010.
284
BRASIL. Conferência Nacional de Educação-CONAE. Construindo o Sistema Nacional
Articulado de Educação: O plano nacional de educação, diretrizes e estratégias de ação
Documento Final. 2010.
182
estabeleça limites aos bancos e seguradoras e taxações das transações
financeiras internacionais. Nenhuma palavra sobre uma superação do modelo
capitalismo.
285
Na resolução política de dezembro de 2009 o Diretório Nacional do
PT assumiu o compromisso de tomar as medidas anticíclicas necessárias.
286
Vai que é tua Chico de Oliveira: “Antigamente, para a esquerda o fato de o
capitalismo ir bem é que era o problema. O paradoxo, hoje, é que a esquerda se
satisfaz com o sucesso desse sistema. [...] Hoje, para a esquerda brasileira,
miséria, desigualdade e fome são questões de administração. Ela contenta-se
com a boa gestão e celebra o crescimento capitalista.
287
Os filmes, spots (em
particular, o spot Pesquise o passado [dos candidatos]) e jingles institucionais do
TSE e sobre a urna eletrônica para as eleições de 2010, mais uma vez, estão
repletos destes conceitos de que os nossos problemas serão resolvidos por
competentes e honestos administradores e este é o papel de cada eleitor diante
da urna, fazer uma escolha correta e essa é a razão de ser da urna eletrônica
segundo os seus construtores.
288
Nos últimos anos, as comemorações do Dia do Trabalhado tornaram-se
eventos de entretenimento bem ao estilo dos programas televisivos dos domingos,
em detrimento de um processo de consolidação de uma mobilização em defesa
dos interesses dos trabalhadores e de uma transformação do modelo econômico
de mercado. No último de maio, a Central Única dos Trabalhadores (CUT)
289
e
a Força Sindical (FS)
290
organizaram shows com artistas populares, festival
gastronômico e sorteio de brindes.
285
BERZOINI, Ricardo. “O dia depois de anteontem” in O abc da crise. Sérgio Sister (org.). São
Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2009, p. 141-146.
286
Disponível em: http://www.pt.org.br/portalpt/documentos/dn:-desafio-em-2010-e-mobilizar-a-
sociedade-para-que-o-pais-continue-avancando-450.html. Acesso em: 18 jun. 2010.
287
Revista História Viva, ano VII, nº. 77, 2010, p. 16-18.
288
Disponível em: http://eleicoes2010.jus.br/. Acesso em: 01 ago. 2010.
289
Disponível em: http://musica.uol.com.br/ultnot/efe/2010/04/29/comemoracao-do-dia-do-
trabalhador-homenageara-mercedes-sosa.jhtm. Acesso em: 03 jun. 2010.
290
Disponível em: http://www.redebrasilatual.com.br/temas/trabalho/comemoracao-do-1o-de-maio-
sera-com-shows-e-debate-politico. Acesso em: 03 jun. 2010.
183
Certa vez, quando ainda morava na cidade do Rio de Janeiro-RJ, a minha
conta de gás veio com um valor equivalente a três meses de consumo. Liguei para
a companhia que presta o serviço e não obtive a resolução do problema.
Organizei os documentos necessários e fui ao Serviço de Proteção ao
Consumidor-PROCON. Lá, apresentei os documentos exigidos e fiz as minhas
ponderações. Observei que, enquanto eu fazia meu discurso repleto de termos
como cidadão, cidadania, politização, ideologia, os funcionários que me ouviam
tinham as fisionomias entediadas (“De que esse cara falando?”); entretanto,
quando eu me posicionei como cliente (do economês), tive a sensação de que os
funcionários deram um tímido sorriso como se dissessem (“Agora, esse cara
dizendo coisa com coisa.”).
É nesta rede que está imbricada a urna eletrônica brasileira. Predomínio de
um economês, de uma (des)cidadania, de uma (des)politização, de uma
(des)mobilização; do discurso único, do discurso tecnicista puro fora da sociedade.
Não é raro ouvir, hoje, mesmo de um senador da república o argumento de que
analisa projetos não politicamente, mas apenas pelo aspecto técnico (sic).
Recentemente, em Casimiro de Abreu-RJ, onde resido, ouvi um vereador
argumentar que veria apenas os aspectos técnicos do projeto de interesse do
magistério local que estava sendo apreciado na Casa. (sic). Hoje, vivemos, no
Brasil, em uma democracia delegada: você vota e delega. [...] Não
participação nenhuma da população. Nem diretamente nem por meio de suas
instituições econômicas e políticas, como os sindicatos. Isso não é democracia, é
uma delegação de poder.
291
Se acompanharmos a grande imprensa e as grandes
redes de televisão, a impressão que temos é que apenas duas candidaturas
com uma outra coadjuvante (Dilma, Serra e Marina) para a vaga de síndico do
continuísmo. A Justiça Eleitoral vem fazendo vista grossa para as descaradas e
escancaradas campanhas eleitorais fora de época (micaretas) e milionárias. A
urna eletrônica fará o resto do trabalho como parte do mecanismo geral de
exclusão e controle de expressão e mobilização dos eleitores.
291
Revista História Viva, ano VII, nº. 77, 2010, p. 16-18.
184
Na leitura do documento citado no artigo 2, Hacia uma democracia más
eficaz Declaración de la ciudad de Québec 2001-2003 da Organização dos
Estado Américas-OEA
292
, observei a preocupação dos representantes dos
Estados americanos em fortalecer esta democracia representativa e este modelo
liberal-periférico, hoje predominante na América Latina. Em consecuencia,
cualquier alteración o ruptura inconstitucional del orden democrático em um
Estado del Hemisfério constituye um obstáculo insuperable para la participación
del Gobierno de dicho Estado em el processo de Cumbres de las Américas.[...]
Las amenazas contra la democracia, hoy em dia, asumen variadas formas. [...]
Este mandato surge del amplio consenso de que uma de las formas más
constructivas de defender la democracia es trabajar conjuntamente para evitar
deterioros em las práticas democráticas.
293
A Carta Democrática Interamericana,
assinada por representantes dos Estados americanos, em Lima-Peru, em 11 de
setembro de 2001, afirmou que, “´la democracia es esencial para el desarrollo
social, político y econômico de los pueblos de las Américas. Además, em su
primer artículo, estabelece um principio muy importante: que los pueblos de la
región tienen derecho a la democraca y que os gobiernos tienen uma obligación
de promoverla y defenderla.´
294
Na comemoração do primeiro aniversário desta
Carta, em 16 de setembro de 2002, o Secretário Geral, César Gaviria disse que,
la Carta da una señal clara y uma advertência de que si en alguno de nuestros
Estados se pone em peligro el sistema democrático de gobierno existe um plano
colectivo para responder de uma manera contundente.
295
Neste processo de consolidação de uma democracia representativa, na
qual a população exerce apenas a função de ratificar o que é decidido nas
Cúpulas, foi estipulado incrementar la participación ciudadana en los processos
292
Hacia uma democracia más eficaz - Avanzando en las Américas: Progressos y Desafios -
Declaración de la Ciudadad de Québec in Informe de Cumpres 2001-2003, da Organização dos
Estados Américas(OEA) Disponível em: www.summit-
americas.org/Publications/Advancing_in_The_Americas/SPA_Democracia.pdf Acesso em: 10 jun.
2010.
293
Ibid., pp. 19 e 20.
294
Informe de Cumpres 2001-2003, p. 20.
295
Ibid.
185
electorales a través de la educación de los votantes, la modernización y la
simplificación del registro electoral y los procedimientos de la votación y el
escrutínio. [Desta maneira,] los Governos decidieron convocar, com el asupicio de
la OEA y el BID, reuniones de expertos para profundizar los temas tales como el
registro de partidos políticos, el acesso de éstos a financiamientos y a los médios
de comunición y financiamiento de campanãs electorales entre otros.
296
É nesta
rede que está imbricada a urna eletrônica brasileira, bastante elogiada pelas
Missões de Observação Eleitoral organizadas pela Unidade para a Promoção da
Democracia da OEA.
Em um discurso realizado em Madrid e publicado no sítio da OAE, em 19
de abril de 2010, o secretário geral do organismo americano, JoMiguel Insulza,
reafirmou os compromissos da Carta Democrática Interamericana, de 2001,
assinada em Lima-Peru. Lembrou que no seu artigo 5º. la Carla senãla que la
democracia y el desarrollo econômico y social son interdependientes y se
refuerzan mutuamente [...] Mais abaixo, Insulza volta a tocar em um ponto de
passagem obrigatório do discurso neoliberal: o dito déficit de governabilidade. “...
se desprende naturalmente que um área principal de cooperación para la
democracia entre nosotros debería ser aquella em que radica uno de los mayores
problemas de la región de América Latina y el Caribe: la gobernabilidade
297
(grifo meu)
Um aspecto que é dito de uma maneira bastante sutil é o referente às ditas
rupturas institucionais do modelo democrático representativo. Voltemos aos dois
documentos acima. O primeiro: ... cualquier alteración o ruptura inconstitucional
del orden democrático em um Estado del Hemisfério constituye um obstáculo
insuperable para la participación del Gobierno de dicho Estado em el processo de
Cumbres de las Américas.
298
No outro documento: Entre los Estados Miembros
296
Informe de Cumpres 2001-2003, p. 22.
297
Disponível em: <www.oas.org/es/acerca/discurso_secretario_general.asp?sCodigo=10-0028>
Acesso em: 10 jun. 2010.
298
Informe de Cumpres 2001-2003.
186
de la OEA ya se escuchan voces que demanda algún mecanismo de monitoreo y
alerta temprana que permita esa intervención rápida y preventiva
299
em caso de
uma ruptura da ordem democrática. Bastante significativo o que disse Insulza
sobre a ordem democrática representativa na América Latina, em maio de 2010,
em um pronunciamento diante do Conselho Permanente da OEA, ao inaugurar o
seu segundo mandato: Nós não temos soldados nem policiais, mas bombeiros.
Nós não apagamos fogo com fogo, nós apagamos com água.
300
Para ratificar todo este processo, o TSE, instituição maior da Justiça
Eleitoral brasileira, estabeleceu para si uma missão e uma visão de futuro, quais
sejam: assegurar os meios efetivos que garantam à sociedade a plena
manifestação de sua vontade, pelo exercício do direito de votar e ser votado [e;]
ser referência mundial na gestão de processos eleitorais que possibilitem a
expressão da vontade popular e contribuam para o fortalecimento da
democracia.
301
Por tudo que apresentei nesta tese, a Justiça Eleitoral brasileira
assume discursos aristocráticos e tecnocráticos, em detrimento de uma
democracia popular. São discursos que parecem vir de Conselhos de Notáveis, de
Sábios, dos Melhores, dos Pais da Pátria ou dos Homens Bons.
Caro leitor, o efeito da pílula de miniaturização termina. Tenho de
encerrar a minha viagem fantástica. Inicio o caminho de volta; puxo o fio que a
minha Ariadne me amarrou à cintura. Até breve...
299
Disponível em: <www.oas.org/es/acerca/discurso_secretario_general.asp?sCodigo=10-0028>
Acesso em: 10 jun 2010.
300
Disponível em:
<http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:xKjShz7vfg0J:scm.oas.org/IDMS/Redire
ctpage.aspx%3Fclass%3DCP/INF.%26classNum%3D6055%26lang%3Ds+oea+hacia+una+democ
racia+mas+eficaz&cd=3&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br> Acesso em: 10 jun 2010. No original: We are
not soldiers nor policemen, but firemen. We don‟t fight fire with fire, we fight it with water.
301
Disponível em: http://www.tse.gov.br/internet/institucional/missaoVisao.htm. Acesso em: 01 ago.
2010.
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