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Universidade Federal do Rio de Janeiro
MUSEU NACIONAL
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
Orlando Calheiros
As Transformações do Leviatã
Praxiografia de um Projeto de Cetologia
Rio de Janeiro
2009
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ii
Orlando Calheiros
AS TRANFORMAÇÕES DO LEVIA
Praxiografia de um projeto de cetologia
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de
Pósgraduação em Antropologia Social (PPGAS) do Museu
Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
parte dos requisitos necessários à obtenção do título de
Mestre em Antropologia Social.
Orientador: Prof. Dr. Eduardo Batalha Viveiros de Castro
Rio de Janeiro
2009
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iii
Calheiros, Orlando
As transformações do Leviatã: Praxiografia de um projeto de cetologia/
Orlando Calheiros. Rio de Janeiro, PPGAS-MN/UFRJ, 2009
186 pp., xii pp.
Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro,
PPGAS – Museu Nacional.
1. Antropologia Social. 2. Antropologia da Ciência. 3. Cetologia. 4.
Estudos da Ciência e Tecnologia. 5. Dissertação. I. Eduardo Batalha
Viveiros de Castro (Orient.) II. Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Museu Nacional, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social.
III. Título
iv
Orlando Calheiros
As Transformações do Leviatã
Praxiografia de um projeto de cetologia.
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em Antropologia Social, do Museu
Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro PPGAS/ MN/ UFRJ, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de Mestre em Antropologia Social.
Rio de Janeiro, ....... de ...... de 2....
________________________________________________
(Prof. Dr. Eduardo Batalha Viveiros de Castro, PPGAS-MN/UFRJ)
_______________________________________________
(Prof. Dr., Marcio Goldman, PPGAS-MN/UFRJ)
________________________________________________
(Prof. Dr. Guilherme José da Silva e Sá, UNB)
________________________________________________
(Profa. Dra. Aparecida Neiva Vilaça, PPGAS-MN/UFRJ)
________________________________________________
(Prof. Dr. José Antonio Kelly Luciani, Ministério de Salud y Desarrollo Social )
v
Para minha irmã Marina, que partiu sem se despedir.
A vida é uma só. A sua continua
Na vida que você viveu.
Por isso não sinto agora a sua falta.
vi
Agradecimentos
Antes de qualquer movimento, agradeço aos os membros do GEMM-Lagos que me
receberam com muita paciência e boa vontade. Individualmente, agradeço a Salvatore Siciliano,
que me abriu todas as portas e, não obstante, contribuiu significativamente para a feitura deste
trabalho através de comentários e sugestões, “Sal” foi meu orientador na cetologia e por isso lhe
sou muito grato; com Jaílson e Anne minha dívida é enorme, agradeço por terem me proporcionado
abrigo e, sobretudo, pela amizade e carinho - retornarei a Cabo Frio para conhecer o filho que vocês
esperam; Thais, que me guiou pelos complexos caminhos da genética, sempre muito atenciosa e
solícita; Maíra, que me mostrou o quanto uma vértebra de cetáceo poderia dizer sobre o mundo em
que vivemos; Renata, psicologa e cetóloga, uma referência para o meu trabalho; Paulo e Monique,
agradeço pelas caronas e pelas agradáveis conversas; Felipe, pelo futebol e pela camaradagem;
Edérson e Bárbara, agradeço a contribuição. Agradeço ainda aos membros das recém formadas
equipes de ornitologia - Patrícia, Paulo e Davi e estudos de quelônios Vitor e Stefanie -, que
também contribuíram, cada um a seu modo, para este trabalho.
A Eduardo Viveiros de Castro, na qualidade de orientador, me criticou e apoiou nos
momentos adequados e, durante o processo, me ensinou mais do que posso mensurar. Esta
dissertação possui uma série de imperfeições, que seriam ainda mais numerosas sem os seus
comentários.
A Marcio Goldman dedico um agradecimento especial, meu professor de teoria
antropológica e companheiro de socialidade pós-PPGAS, suas aulas e indicações foram
fundamentais para constituição desta dissertação. Marcio foi diretamente responsável pela forma
como encarei meu trabalho de campo e o tratamento que dei ao material, por isso sou
profundamente grato.
vii
Aos professores do PPGAS-MN: Luis Fernando Dias Duarte, que, de forma sóbria e
concisa, tanto me ensinou sobre Louis Dumont e antropologia; Bruna Franchetto, a quem ainda
devo uma análise deste material sob a luz da lingüística; e Carlos Fausto, cujas aulas sobre arte e
representação foram fundamentais.
Agradeço aos membros de minha banca, que aceitaram examinar esta dissertação
durante o carnaval. Um agradecimento especial a Guilherme Sá, que migrou, com recursos
próprios, de Brasília para o Rio de Janeiro apenas para participar deste evento, seu trabalho é uma
inspiração.
Aos pesquisadores e alunos que aceitaram participar da primeira Reunião de
Antropologia da Ciência e Tecnologia: Eduardo Vargas, Felipe Sussekind, Antonia Walford,
Guilherme Sá, Jayme Aranha, Ricardo Cruz, Iara Maria de Almeida e Souza, Carlos Alvares Maia,
Ivone Manzali de Sá, Arthur Arruda, Lilian Krakowski, Ivan da Costa Marques, Naara Luna,
Marcio Felipe Salles Medeiros e Jonas Silva Schirmann.
A meus colegas de (Baixo) PPGAS meu carinho e amizade: André, Raphael,
Rogério, Luana, Kleyton, Sílvia, Flávia, Leonor, Beatriz, Leonardo, Wecisley, Ariana, Felipe, Sílvia
Macedo, Pedro Rocha, César, Leandro, Bruno, Indira, Gabriel, Letícia, Edgar, Ricardo e Salvador,
sem vocês a jornada do mestrado teria sido mais árdua e certamente menos divertida. A Pedro, meu
companheiro de viagens, agradeço pela amizade e companheirismo.
A meus amigos civis e ifcsianos”: Vitor, Carlos Eduardo, Roberta, Mhyrna,
Rodrigo, Priscila, Heloísa, Carol, Bruno, Rafael, Leandro, Diogo, Marcelo, Daniel, Maira, Michele,
Ana, Patrícia, Nira, Michel, Alex, Pedro, Matheus, Bia, Paula e Cristiane. Vocês sabem o que
representaram neste processo, um agradecimento.
A meu antigo orientador dos tempos de graduação, Peter Fry, diretamente
responsável por meu ingresso na antropologia, reservo minha eterna gratidão, amizade e admiração.
A meus familiares, presentes e ausentes, humanos e não-humanos, esta dissertação
viii
também é dedicada a vocês, sobretudo a meus pais e avós
A Charllote, minha companheira não-humana, que se foi durante a feitura deste
trabalho, deixando em seu lugar vazio e saudade.
Para Bianca, minha noiva, amiga e principal interlocutora, sem ela este trabalho não
seria possível em todos os sentidos. Sua compreensão, apoio e carinho foram as próprias condições
de possibilidade desta dissertação. Há muito dela neste texto, assim como em mim.
A Ogum e Oxum, pela proteção e iluminação.
ix
RESUMO
CALHEIROS, O. As transformações do leviatã: praxiografia de um projeto de cetologia. Rio de
Janeiro, 2009, Dissertação (Mestrado em Antropologia Social)- Programa de Pós Graduação em
Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
2009.
Esta dissertação consiste em uma praxiografia de um pequeno grupo de cetólogos
autodenominados Grupo de Estudos de Mamíferos Marinhos da Região dos Lagos, o GEMM-
Lagos. Cerca de 12 pesquisadores, que dividem o seu tempo entre as atividades de campo na Bacia
de Campos e as práticas laboratoriais na cidade do Rio de Janeiro. Fazendo algumas considerações
sobre o modo como esses cetólogos coordenam sua produção científica a despeito das distâncias
entre os diferentes agenciamentos metodológicos que atravessam o GEMM-Lagos; o presente
trabalho procura responder, mesmo que de forma breve, a uma questão inspirada na problemática
recente dos estudos científicos: afinal, o que é um objeto para a cetologia?
Palavras-chave: Antropologia da Ciência, Estudos da Ciência e Tecnologia, Cetologia, Praxiografia.
x
ABSTRACT
CALHEIROS, O. As transformações do leviatã: praxiografia de um projeto de cetologia. Rio de
Janeiro, 2009, Dissertação (Mestrado em Antropologia Social)- Programa de Pós Graduação em
Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
2009.
This dissertation consists in a praxiography of a small group of cetologists self-entitled
Grupo de Estudos de Mamiferos Marinhos da Região dos Lagos, the GEMM-Lagos. About 12
researchers, who divided their time between the activities of field in the Bacia de Campos and
laboratory practice in the city of Rio de Janeiro. Making some considerations about how these
cetologists coordinate their scientific production in spite of distances between different method
assemblages; this paper attempts to answer, even if briefly, a question inspired by the recent issue of
scientific studies: after all, what is an object to cetology?
Keywords: Anthropology of Science, Scientific and Technology Studies, Cetology, Praxiography.
xi
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 1
CAPÍTULO I – Territórios da cetologia 16
1. Salvem as baleias! 16
2. Do Banco dos Abrolhos à Bacia de Campos 25
3. O GEMM-Lagos 33
4. Entra em cena a Petrobras 43
5. Dois tempos, dois projetos de pesquisa 46
CAPÍTULO II – Cônicas do mar 62
1. Duas metodologias... 62
2. E Deus criou as grandes baleias 66
3. Quando a forma do outro é o sujeito: avistagem 76
4. Quando a forma do outro é a coisa: monitoramento in situ 94
5. Hierarquia e perspectivas 110
CAPÍTULO III – Especiação alopátrica de um objeto 122
1. O campo visto do laboratório 122
2. Estômagos, otólitos e matemática: o laboratório de ecologia 131
3. Crânios, anomalias e paquímetros: o laboratório de osteologia 138
4. Genes, mutações e PCRs: a Divisão de Genética 150
5. A central de cálculo: ou um esboço de conclusão 162
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 173
ANEXO I 179
ANEXO II 180
ANEXO III 185
le mot est père des saints
le mot est mère des saints
avec le mot couresse on peut traverser un fleuve
peuplé de caïmans
il m’arrive de dessiner un mot sur le sol
avec un mot frais on peut traverser le désert
d’une journée
il y a des mots bâtons-de-nage pour écarter les squales
il y a des mots iguanes
il y a des mots subtils ce sont des mots phasmes
il y a des mots d’ombre avec des réveils en colère d’étincelles
il y a des mots Shango
il m’arrive de nager de ruse sur le dos d’un mot dauphin.
(Aimé Césaire – mot macumba)
1
INTRODUÇÃO
No branch of Zoology is so much involved as that which is
entitled Cetology,
(Herman Melville – Moby Dick)
1. Desaparafusando o grande leviatã
Uma manhã ensolarada na Região dos Lagos, em um velho bugre, espremidos em
meio a maletas, mochilas e sacos plásticos, encontravam-se dois cetólogos, Salvatore e Jaílson, uma
aspirante ao cargo de estagiária, Bárbara, e eu, um antropólogo. Nosso destino, uma região
popularmente conhecida como Praia Grande, uma restinga de 47km, situada no município de
Arraial do Cabo. Durante o trajeto, enquanto Jaílson e Bárbara discutiam sobre a falta de critérios
de alguns pesquisadores na recente divisão de uma espécie de golfinho em duas, eu e Salvatore
conversávamos a respeito da expansão imobiliária na região: eles estão acabando com isso aqui.
comentou o coordenador do GEMM-Lagos. Jaílson aproveitou a presença de seu orientador para
falar de um artigo que acabara de enviar para o Journal of the Marine Biological Association
(JMBA), intitulado Epimeletic behavior in rough-toothed dolphins (Steno bredanensis) in east
coast of Rio de Janeiro state, Brazil
1
, comentando sobre as dificuldades práticas de se escrever em
inglês. Antes que chegássemos à praia, Salvatore e Jaílson ainda tiveram tempo para uma sessão de
1
O comportamento epimelético: uma forma de ajuda que golfinhos dedicam aos membros incapacitados seja por
doença ou ferimentos ou mortos de seu grupo. Este tipo de assistência, geralmente realizada por um animal mais
saudável, consiste em nadar junto ao animal incapacitado, ajudando-o a se manter na superfície e/ou longe da fonte
de perigo. No caso de animais mortos, diz-se que os golfinhos nadam junto ao animal, não mais para mantê-lo na
superfície, mas para “demonstrar algum tipo de carinho, de atenção especial” ao animal morto. Ao fim do processo,
que pode durar dias, o animal é “jogado” na praia por seus companheiros. Uma atitude que leva os cetólogos a
declarar:é uma espécie de funeral”. Atribui-se a este comportamento os relatos de golfinhos que ajudam humanos
durante naufrágios em alto-mar.
2
vívidas descrições - com uma particular enfase nos detalhes grotescos - do estado das carcaças que
possivelmente encontraríamos no local.
2
Na Praia Grande, decorridos exatos 1:23h até aquele momento, eu era o
responsável por controlar o tempo de nossa pequena expedição do monitoramento da extensa
faixa de areia, Salvatore aponta um acúmulo de urubus sobrevoando a baixa-altura uma região
próxima; é Jaílson quem explica o significado daquilo: “Urubus são nossos indicadores. Onde tem
urubu, possivelmente tem alguma coisa. Eles comem geralmente os olhos, a gargante e a área
genital dos bichos.”. No local, os cetólogos notaram um leve cheiro de gordura totalmente
imperceptível para mim e Bárbara e decidiram por inspecionar a região, pode ter tido um
encalhe durante à noite, mas como o mar está batendo forte, pode ter levado de volta”. Após alguns
minutos de investigação, Jaílson percebeu uma anormalidade no solo e declarou: essa areia está
esquisita, tá muito fofa, tá remexida”.
Damos início a uma pequena escavação; entretanto, não estávamos preparados para
este tipo de evento, não possuíamos os instrumentos necessários, nem mesmo uma animais
enterrados eram ocorrências raras, um fato que por si justificaria a ausência de pás entre o
material habitual de monitoramento, são objetos pesados e espaçosos. A solução encontrada foi
utilizar as nossas próprias mãos, protegidas da temperatura da areia por luvas de látex. Conforme
removíamos a areia e o cheiro de gordura aumentava exponencialmente -, descobríamos a região
ventral de uma baleia pertencente, segundo os olhos treinados de Salvatore, à família
Balaenopteridae, com estas pregas, pode ser uma.”, provavelmente uma minke ou uma bruda
3
.
Estimulados pelo achado, cavamos até que toda peça estivesse exposta; em um misto de sorte e
2
Mais tarde descobri que este tipo de conversa era uma forma de avaliar os novatos interessados no estudo de
cetáceos neste caso específico eu e Barbara - essa é uma das nossas grandes dificuldades para conseguir achar
um bom estagiário, as pessoas acham que vão trabalhar com o golfinho, abraçar o bicho.” (Jaílson). Tecer
comentários a respeito da ojeriza que algumas pessoas demostravam frente as carcaças ou até mesmo a mera
descrição era um dos assuntos preferidos dos pesquisadores.
3
Apelidos utilizados pelos pesquisadores para designar as espécies, respectivamente, baleia-minke-antártica
(Balaenoptera bonaerensis) e baleia-de-Bryde (Balaeonoptera edeni).
3
azar, estávamos diante de um espécime completo. O processo demorou duas horas no total
4
.
Salvatore foi até o bugre e trouxe uma maleta cinza contendo o material necessário
para a dissecação do animal, aproveitou a oportunidade para explicar à Bárbara sobre a disposição
adequada dos recipientes e amostras. Enquanto Jaílson preparava os bisturis que insistiam em
perder o fio ao menor contato com a areia – o chefe do GEMM-Lagos registrava, em um formulário
específico, as características deste encontro: condições climáticas (quente e sem nuvens), hora e
local da ocorrência – aqui o uso de um aparelho GPS foi imprescindível -, estado de conservação da
carcaça (bom estado), espécie e sexo inferidos através do exame visual do animal -. Com meu
auxílio, utilizou uma trena para realizar a biometria do espécime: nove metros, um filhote
5
. Naquele
movimento o animal começava a tomar a forma de um objeto da cetologia, uma carcaça
malcheirosa se transformava no GEMM-130.
Aproximadamente três horas e sete bisturis, este foi o custo necessário para a
necrópsia de um animal de proporções tão exageradas. Neste momento, o cheiro de gordura
misturava-se ao da carne em estado de putrefação e o vento fraco e o sol forte só contribuíam para o
cenário, o resultado era tal que, por diversas vezes, para que fosse possível respirar adequadamente,
éramos obrigados a nos afastar da carcaça
6
. Mesmo sob estas condições, a ciência deve prosseguir;
Salvatore mediu a camada de gordura do espécime (3,5 centímetros) e comentou sobre o que
considera uma apropriação equivocada da imagem das baleias pelo grande público: vendo?
4
O enterro da baleia ainda permanece um mistério para os pesquisadores, contudo, especula-se que tenha sido obra da
prefeitura de Arraial do Cabo que, ao contrário de todas as outras da Região dos Lagos, opta por não contactar
entidades científicas durante ocorrências de encalhes de cetáceos, tratando-os como problemas sanitários que devem
ser resolvidos pelo descarte imediato do animal.
5
Uma bruda adulta pode chegar a 15,5 metros de comprimento, sendo, em geral, as fêmeas maiores do que os
machos. No caso de uma minke, o tamanho chega a 10m.
6
Cito uma passagem de Moby Dick a respeito do cheiro de uma baleia apodrecendo, “a whale that has died
unmolested on the sea, and so floated an unappropriated corpse. It may well be conceived, what an unsavory odor
such a mass must exhale; worse than an Assyrian city in the plague, when the living are incompetent to bury the
departed.” (cap 151). Nunca estive em uma cidade assíria, mas tenho sérias razões parar crer que Melville não
estava exagerando. O problema do cheiro era tal que inventar métodos capazes removê-lo de nossos corpos era uma
das atividades mais populares entre os cetólogos: vinagre, água quente, detergente, álcool, sabão de coco, vodka... A
lista de elementos é extensa e combinável. Desta forma, eram comuns receitas de banhos com sabão de coco a base
de água quente misturada com vodca barata. Todos os métodos sugeridos foram devidamente testados e,
infelizmente, reprovados por este antropólogo. Até o momento em que escrevia esta dissertação, tudo indica que
somente o tempo algo em torno de três a quatro dias é capaz de remover gradativamente o cheiro de baleia
podre; uma concepção compartilhada e lamentada por meus interlocutores.
4
baleia não é sinonimo de bicho gordo não! Grande parte delas tem camadas de gorduras mínimas,
são bichos muito enxutos”. Bárbara acondicionava as amostras em potes de plástico; o material é
imprescindível para a realização de testes que indiquem a presença de contaminantes. Jaílson
seccionou um músculo do animal, retirando pequenos fragmentos que servirão para análises de
ADN, o processo é delicado e o pesquisador aloja pessoalmente o material em um frasco contendo
álcool absoluto - “se eu fizer alguma coisa errada a Thais me mata.”. Neste momento, Salvatore
veio até mim com um pedaço da carne da baleia na mãos - percebo que ele era o único que não
usava luvas e brincou: vendo? É por isso que os japoneses piram com o bicho, a carne é
muito macia, praticamente se desfaz na mão.”. Todas as amostras são alojadas debaixo do bugre, de
forma que fiquem protegidas da exposição direta ao sol.
Jaílson dedicou uma hora inteira de trabalho a tentativas de alcançar o estômago do
espécime, mesmo praticamente entrando no bicho, sua empreitada não tem muito sucesso. Salvatore
estava visivelmente frustrado, o trato digestivo destes animais tem despertado um enorme interesse
na comunidade de cetólogos, segundo o pesquisador: descobrimos umas coisas muito
interessantes em algumas brudas, coisas que ninguém tinha registrado antes”. Nosso grupo era
pequeno e metade não tinha qualquer experiência neste tipo de ocorrência - em alguns momentos,
minha sensação era a de que mais atrapalhávamos do que ajudávamos -, seriam necessários, pelo
menos, mais três pesquisadores com alguma experiência para que o processamento da carcaça fosse
adequado. O resultado não poderia ser outro, abandonamos a corpo para os urubus, sem explorar
segundo o chefe do GEMM-Lagos 10% das possibilidades que um evento deste tipo oferece à
cetologia.
Descansamos por algumas horas na casa de Jaílson em Cabo Frio. A noite, agora no
carro particular de Salvatore, partimos para Búzios, onde os cetólogos tinham um encontro marcado
com o dono de uma empresa de turismo. O empresário nos mostrou o seu arquivo de fotos de
cetáceos em sua maioria brudas - e apresentou uma proposta: Salvatore e seus associados
5
poderiam se utilizar das embarcações de sua companhia para a realização de avistagens durante a
baixa-temporada, com a condição de que os pesquisadores dessem palestras para os turistas
embarcados, ensinando-os a observar cetáceos. O acordo é aceito. Esta não é a primeira associação
do grupo com o turismo da região, nos meses anteriores, haviam - sem muito sucesso - tentado
implementar um sistema onde turistas remetiam fotos e dados sobre avistamentos para um email do
GEMM-Lagos, recebendo em troca informações completas sobre o animal fotografado. Nossa noite
terminou com uma merecida cerveja na área boêmia do município. Contudo o momento de lazer foi
breve, logo retornamos a casa de Jaílson para dormir. No dia seguinte, acordamos cedo e partimos
para o monitoramento de outra praia...
2. O campo entre os cetólogos.
No segmento anterior apresentei um trecho – com algumas leves alterações – de meu
diário de campo: um relato sobre as atividades de um pequeno grupo de cetólogos autodenominados
Grupo de Estudos de Mamíferos Marinhos da Região dos Lagos, o GEMM-Lagos. Cerca de 12
pesquisadores, que dividem o seu tempo entre as atividades de campo na Bacia de Campos e as
práticas laboratoriais na cidade do Rio de Janeiro. Um grupo associado institucionalmente a
tradicional Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, da Fundação Oswaldo Cruz, onde a
grande maioria de seus pesquisadores cursam algum tipo de pós-graduação (Latu Senso ou Stricto
Sensu) e seu coordenador, Salvatore Siciliano, possui o cargo de professor. Durante a segunda
metade de meu trabalho de campo, o núcleo de pesquisas assinou um contrato o segundo em sua
história - de prestação de serviços para o Centro de Pesquisas e Desenvolvimento Leopoldo
Américo Miguez de Mello (CENPES) da Petrobras, garantindo uma considerável ampliação de seu
escopo laboratorial e recursos financeiros.
6
Tomei conhecimento deste núcleo de cetologia através de uma rápida pesquisa na
internet. O GEMM-Lagos vinha ao encontro de uma proposta de trabalho que me propunha a
realizar: um grupo de cetólogos, relativamente pequeno, operando em uma região próxima. A
possibilidade de realizar um trabalho de campo sistemático ainda no primeiro ano do curso de
mestrado era um grande atrativo e o número reduzido de pesquisadores me trazia a falsa sensação
de que a tarefa de descrevê-los etnograficamente seria mais simples. Naturalmente, não poderia
estar mais equivocado, logo durante minhas primeiras visitas ao campo, aprendi que o número
membros associados não se traduzia em uma simplicidade da rede, pelo contrário, me deparei com
quadro de relações tão complicado e extenso quanto aqueles que estava acostumado a ter contato
nas descrições de grupos maiores uma lição prática daquilo que Callon e Latour propuseram em
um de seus primeiros artigos, curiosamente intitulado “unscrewing the big leviathan” (1981).
Meu primeiro contato com o GEMM-Lagos, se deu através de um email enviado a
Salvatore Siciliano em maio de 2007, onde manifestava meu desejo de desenvolver um trabalho de
campo junto a seu núcleo de pesquisas. O cetólogo respondeu a mensagem eletrônica de imediato e,
para minha surpresa, de forma extremamente receptiva, marcando uma reunião para a semana
seguinte. Nosso primeiro contato não poderia do ponto de vista de um antropólogo interessado -
ter sido mais produtivo: conversamos a respeito de nossas pesquisas e sobre nossos objetivos.
Salvatore se mostrara particularmente interessado pelo fato de eu me dispor a segui-los durante suas
próprias atividades de campo: mas você vai pegar no bicho podre mesmo? Vai ter coragem?
Pegar no bicho podre seria essencial para entender a cetologia, segundo o pesquisador.
No fim de semana seguinte, acordei às cinco da manhã e parti da Cidade do Rio de
Janeiro para o município de Cabo Frio um trajeto de 3h -, onde conheci Jaílson e mais dois
pesquisadores associados ao GEMM-Lagos. Passei boa parte daquele fim de semana sentado no
banco de trás do velho bugre - geralmente dividindo-o com os restos malcheirosos de algum cetáceo
em decomposição durante a realização do monitoramento das praias, quando os auxiliava no que
7
podia e tomava notas quando possível. A noite, dormia na casa de Jaílson, que gentilmente me
disponibilizava uma suíte. Regressava para a cidade do Rio de Janeiro impreterivelmente nas
manhãs de segunda-feira, para o cumprimento de minhas obrigações curriculares como aluno do
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional. Durante o resto da
semana, mantinha contato com os pesquisadores, que me enviavam artigos sobre cetologia e me
deixavam a par dos eventos de encalhe.
Mantive esta rotina durante praticamente quatro meses, quando, por incapacidade em
conciliar meu tempo, me vi obrigado a interromper temporariamente meu trabalho de campo e me
concentrar integralmente nas atividades regulares de meu curso. Hoje, creio que este primeiro
afastamento fora fundamental para que pudesse amadurecer e sistematizar algumas das idéias
centrais deste trabalho; aproveitei este tempo para me dedicar ao consumo de literatura relacionada
a biologia, desde uma monografia sobre sistemática filogenética de cetáceos, produzida por uma
integrante do GEMM-Lagos, ao trabalho de Stephen Jay Gould
7
. Algumas intuições a respeito desta
fase inicial foram apresentadas sob a forma de pequenas comunicações em eventos de antropologia
da ciência.
Em abril de 2008, já no segundo ano do mestrado, pude me dedicar integralmente a
meu trabalho de campo. Passei a maior parte deste tempo acompanhando os cetólogos em suas
atividades laboratoriais, agora na cidade do Rio de Janeiro. Nas segundas e quartas acompanhava
Thais em um asséptico laboratório de biologia molecular; ás quintas-feiras, durante o dia, observava
Paulo contando e identificando os otólitos que encontrava nos estômagos dos cetáceos, à noite,
participava das reuniões de coordenação do núcleo de pesquisas na sala de Salvatore; e, por fim, aos
sábados, dividia o meu dia entre limpar ossos de cetáceos e observar Renata e/ou Maíra em suas
pesquisas em um laboratório de osteologia.
Neste segundo momento, me utilizei de um gravador digital para coletar entrevistas,
7
Os textos de Gould representaram um ponto de contato entre eu e meus interlocutores, todos admiradores do autor.
Gould era citado constantemente pelos cetólogos, que afirmavam encontrar em sua obra uma fonte de inspiração e
um modelo de boa ciência.
8
comunicações científicas e histórias contadas por meus interlocutores. Na maior parte do tempo, o
gravador era acionado durante as reuniões semanais entre os membros do grupo, onde trocavam
informações a respeito de suas pesquisas e discutiam assuntos de interesse comum, como, por
exemplo, os critérios de propriedade intelectual adotados. Em algumas ocasiões, utilizei-me do
aparato para registrar entrevistas que realizava individualmente com alguns dos cetólogos, uma
situação que não parecia constrangê-los de qualquer forma.Não temos nada a esconder”, me disse
Salvatore em mais de uma ocasião, quando estranhava a eloqüência e franqueza com que todos
falavam ao gravador. Ao encerrar mais esta etapa de meu trabalho de campo, em julho daquele
mesmo ano, tinha aproximadamente 31 horas de gravações em meu computador pessoal, material
fundamental para a feitura deste trabalho.
Os pesquisadores se mostravam particularmente dispostos a falar sobre as
vicissitudes da prática científica, sobre as dificuldades em, por exemplo, correr um gel
adequadamente ou pesar um animal de 20 toneladas; faziam piadas a respeito de seus objetos - a
genética é um ato de - e, naturalmente, criticavam outros pesquisadores e/ou linhas de pesquisa;
compartilhavam os planos que tinham para suas carreiras e comemoravam cada publicação de seus
artigos. Falavam, sobretudo durante as reuniões semanais, a respeito das dificuldades que
encontravam ao tentar combinar diferentes objetos em suas práticas; sobre os desencontros entre os
dados da genética e da osteologia; sobre como era possível produzir, em casos extremos, duas
coisas radicalmente opostas a partir do que, a princípio, seria um mesmo animal. Foi justamente
este aparente descompasso entre as diferentes linhas de pesquisa, sintetizado na frase a gente
trabalha e não trabalha com o mesmo bicho(Maíra), que guiou boa parte de minha investigação e
da escrita deste trabalho. De modo que, notará o leitor, explicitar o que significa e quais as
conseqüências desta proposição para a prática da cetologia e o problema central desta praxiografia
8
.
8
Neologismo proposto por Mol em seu livro The body multiple (2002) para designar um investigação etnográfica das
práticas científicas.
9
3. Protagonistas
Como a própria condição de meu trabalho, todos os nomes utilizados, salvo quando
dito em contrário, são verdadeiros; a utilização dos nomes próprios, assim como o nome da
instituição que me abrigou foi um acordo entre as partes envolvidas nesse trabalho. Devido as
próprias configurações do campo não se pode falar do GEMM-Lagos sem falar dos cetáceos da
Bacia de Campos e vice e versa -, a utilização de nomes fictícios não seria capaz de preservar o
anonimato de meus interlocutores e, ainda, poderia transmitir a falsa idéia da necessidade de
segredo. Não temos nada a esconder”, o sujeito desta frase também deve incluir este antropólogo,
uma situação que se traduz em um compromisso ético assumido perante os membros do GEMM-
Lagos durante a feitura deste trabalho. Destarte, faz-se necessário identificar previamente aqueles
que fizeram o papel em um jargão mais clássico de informantes privilegiados de minha
investigação praxiográfica.
Salvatore Siciliano: fundador e coordenador do GEMM-Lagos; cetólogo com mais
vinte anos de experiência, considerado um dos maiores especialistas do Brasil na área; autor de
artigos importantes e co-autor do principal livro a respeito dos cetáceos da Bacia de Campos;
editor-chefe da conceituada revista científica The Latin American Journal of Aquatic Mammals
(LAJAM) e presidente eleito da Sociedad Latinoamericana de Especialistas em Mamíferos
Acuáticos (SOLAMAC). Salvatore é considerado um dos pioneiros na América Latina nos estudos
da relação de causa-efeito entre contaminantes e cetáceos, utilizando estes viventes como
indicadores da saúde ambiental dos ecossistemas litorâneos. Sempre muito generoso e atencioso, o
cetólogo tinha uma compulsão por falar e explicar minuciosamente as coisas que observava. Em
uma viagem de carro de apenas trinta minutos pelos municípios da Região dos Lagos, Sal, como era
10
chamado por todos, era capaz de estabelecer associações entre os cetáceos e a situação política do
país, crise energética mundial e religiões de matriz africana. Para Salvatore, uma boa ciência não
era aquela capaz de criar verdades absolutas sobre a natureza sobretudo porque a natureza sempre
muda, como ele mesmo gostava de afirmar -, mas sim aquela que fosse capaz de oferecer respostas
a problemas específicos da própria natureza.
Jaílson: nativo da região dos lagos, nascido em uma comunidade de pescadores
locais, ex-surfista e salva-vidas; mestre pelo Programa de Saúde Pública da ENSP e principal
articulador das atividades de campo do GEMM-Lagos - eventos em que sua casa no município de
Cabo Frio se transforma em um “albergue científico”, abrigando os pesquisadores do projeto.
Escreveu sua dissertação sobre os índices de contaminantes em uma espécie de golfinho encontrada
na Bacia de Campos, contudo, dedica uma parcela considerável de seu tempo a produção de artigos
variados de formas de interação intraespecífica à relação entre fezes de pombo (Columba livia) e
contaminantes encontrados nas praias. O cetólogo tem como um de seus projetos de vida a escrita
de um trabalho de etnobiologia sobre a comunidade de pescadores em que nasceu; onde, segundo o
próprio, as pessoas são capazes de predizer chuvas apenas colocando os pés na areia da praia.
Thais: Uma cetóloga que abandonou a carreira de designer gráfica pelos cetáceos.
Dentre todos os pesquisadores do GEMM-Lagos, é considerada a mais associada ao espírito dos
laboratórios”. Responsável pelas análises genéticas dos cetáceos encontrados na Bacia de Campos,
identificando o sexo e espécie das amostras em estado avançado de decomposição. Aluna do
mestrado no Programa de Saúde Pública da ENSP, coorientada por Salvatore e uma geneticista
especializada em ratos e macacos, sua dissertação é um estudo de sistemática filogenética e
filogeográfica de golfinhos encontrados ao longo de toda a costa brasileira. Sua pesquisa de
graduação intitulada "Identificação taxonômica de amostras de botos comercializadas na região
11
Amazônica através de técnicas moleculares" recebeu menção honrosa pelo melhor trabalho na
Categoria Estudante do Ensino Superior, no XXII Prêmio Jovem Cientista do CNPq. Recentemente,
Thais participou ativamente da polêmica científica envolvendo a separação de uma espécie de
golfinho em duas.
Renata: graduada em ciências biológicas e com mestrado em psicologia na
Universidade Federal do Pará, onde estudou bioacústica de cetáceos. Trabalhou durante anos com
etnobiologia das comunidades ribeirinhas amazônicas e a relação destas com os cetáceos. A
pesquisadora é filiada ao projeto Potenciais Impactos Ambientais do Transporte de Petróleo e
Derivados na Zona Costeira Amazônica (PIATAM-Mar), uma parceria de diversas entidades
científicas e a Petrobras. Atualmente, faz seu doutorado no Programa de Saúde Pública da ENSP,
onde pesquisa diferenças morfométricas entre duas populações de golfinhos residentes do litoral
carioca e paraense. No GEMM-Lagos atua como uma espécie de “secretária de assuntos gerais”,
responsável pelo controle das finanças e cronogramas de pesquisa.
Maíra: graduada em ciências biológicas na Universidade Federal Fluminense. A
exemplo de Salvatore, a cetóloga tinha uma verdadeira compulsão por falar, sendo capaz de dedicar
horas de seu dia a explicar como vértebras malformadas de cetáceos são transformadas em
indicadores de pressões ambientais e, no meio do trajeto, especular sobre como nosso conceito de
inteligência e evolução biológica é antropocêntrico. Durante a feitura deste trabalho, Maíra foi uma
de minhas interlocutoras mais presentes, sempre disposta a tirar minhas dúvidas. Atualmente, é
estudante da Pós-graduação em Saúde Pública na ENSP, onde continuidade à sua agenda de
pesquisa desenvolvida durante a graduação, o estudo de anomalias ósseas encontradas entre os
cetáceos da Bacia de Campos.
12
Paulo: graduando em ciências biológicas e “aspirante a cetólogo”, segundo o
próprio. Dividia-se entre o trabalho no GEMM-Lagos, onde era o responsável pela caracterização
alimentar dos espécimes encontrados, e um estágio no Zoológico do Rio de Janeiro, onde era
responsável pelo monitoramento de um urso. Dentre todos os pesquisadores, Paulo era o único que
manifestava a vontade de trabalhar com outros animais, afirmando que provavelmente realizaria o
seu mestrado com o estudo de peixes e não de cetáceos. Contudo, o tema de sua monografia era a
caracterização alimentar de uma espécie de golfinho.
4. Bacia de Campos
O leitor notará que o escopo laboratorial do GEMM-Lagos é voltado prioritariamente
para os cetáceos de uma determinada região: a Bacia de Campos. Uma área sedimentar com cerca
de 100 mil quilômetros quadrados, que se estende de Vitória, no Espírito Santo, até o município de
Cabo Frio, litoral norte do Estado do Rio de Janeiro. A área encontra-se sob o efeito regular dos
sistemas atmosféricos Tropical Atlântico e Polar Atlântico, e pode ser caracterizada pelo clima
úmido durante o verão e seco durante o inverno. Durante a maior parte do ano, o vento
predominante na região mecanismo fundamental para a geração de correntezas é o NE, durante
o inverno, as frentes frias provenientes do Sul promovem uma reconfiguração deste aspecto da
região, fazendo com que os ventos virem para S-SW.
É na região da plataforma continental entre Campos e Rio de Janeiro, correspondente
ao município de Cabo Frio, que ocorre uma importante (tanto do aspecto ecológico quanto do
econômico) mistura de massas d'água conhecida como Ressurgência. Especula-se que, durante os
verões, a massa d'água conhecida como Água Central do Atlântico Sul (ACAS), caracterizada pela
baixa temperatura e salinidade, penetre na plataforma interna se misturando a Água Tropical, morna
13
e salgada, diminuindo a temperatura da água para 16ºC, tornando este um ambiente propício para a
alta produção de microorganismos capazes de subsidiar uma longa cadeia alimentar - cujo topo é
ocupado pelos cetáceos. Se isto não bastasse para tornar a localidade um objeto privilegiado da
biologia, diz-se ainda que a mesma é marcada pela transição entre os ambientes tropicais, ao norte,
e subtropicais e temperados, ao sul. Por conseqüência desta mudança oceanográfica, toda a biota
(bentos, necton e plâncton) apresentam características bastante peculiares, com ocorrências de
espécies únicas na região.
Do ponto de vista econômico a região também é singular. Além da importância
comercial, produzindo anualmente toneladas e toneladas de pescado, a Bacia de Campos é
caracterizada pela alta incidência de campos de petróleo. A Petrobras mantem 39 campos de
petróleo na localidade - todos batizados com nomes de peixes da costa fluminense -, sendo estes
responsáveis por cerca de 80% da produção nacional, contendo reservas de óleo equivalentes a 9,7
milhões de barris.
5. A dissertação
A dissertação se divide em três capítulos: Territórios da cetologia”, Cônicas do
mar” eEspeciação alopátrica de um objeto”. O primeiro pode ser divido em dois movimentos: um
primeiro, dedicado a apresentação e discussão do deslocamento dos cetáceos de recursos naturais
mais ou menos ordinários à posição de sujeitos outros de nossa ontologia, passagem obrigatória nos
discursos ambientalistas que pulularam a partir da década de 70 do século passado; em um segundo
movimento, descrevo a trajetória de Salvatore Siciliano, de um jovem estudante de ciências
biológicas com repúdio as miudezas de laboratório, a posição de coordenador de um dos mais
importantes núcleos de cetologia da América Latina. Neste momento, é a fala do próprio Salvatore
14
que nos guia através da estrutura organizacional do GEMM-Lagos, onde observamos a existência
de dois modos distintos de ordenação da produção científica: um voltado para o obtenção de
testemunhos que estabelecem um bloco de aliança entre cetáceos e humanos, cuja aliança é operada
por uma substância tóxica; outro voltado para a produção contínua de dados estatísticos sobre a
abundância e utilização do habitat pelos cetáceos.
No segundo capítulo, as diferenças entre os modos de ordenação são novamente
examinadas, agora por meio da análise das chamadas metodologias de produção de dados primários
associadas a cada um: o monitoramento in situ e avistagem; dois agenciamentos metodológicos
distintos que, por conseqüência, projetam substâncias heterogêneas a partir do que a princípio seria
um mesmo objeto/animal. Neste capítulo, esboço um quadro das relações possíveis entre estas
substâncias, de modo que fique claro para o leitor que as associações entre estas não são elementos
dados na ordem natural das coisas, mas o resultado de um esforço da própria prática científica.
Ainda apresento uma pequena revisão da trajetória evolutiva dos cetáceos e o seu papel central nos
debates entre evolucionistas e criacionistas e, posteriormente, geneticistas e paleontólogos.
Dedico a “Especiação alopátrica de um objeto”, terceiro e último capítulo, a
descrição dos diferentes laboratórios associados ao GEMM-Lagos; passagens obrigatórias no
deslocamento dos cetáceos do mar para as páginas dos periódicos científicos. Naturalmente, as
descrições fundamentam-se no ponto de vista do modo de ordenação predominante do GEMM-
Lagos, portanto a apresentação será mais uma seqüência de amostras do que um relato sistemático
daquilo que experienciei nestes territórios, cada qual, creio, merecedor de um trabalho a parte. Este
trabalho não possui propriamente uma conclusão, pois a sistematização das questões apresentadas
encontram-se ao fim de cada capítulo. Portanto, no lugar de uma conclusão strictu senso, optei por
escrever um segmento final, incorporado ao terceiro capítulo, onde procuro fazer algumas
considerações a respeito do modo como os cetólogos coordenam a produção científica a despeito
das distâncias entre os diferentes pontos de vista que atravessam o GEMM-Lagos. Este segmento
15
procura responder, mesmo que de forma breve, a uma questão inspirada na problemática recente
dos estudos científicos (Cf. Mol, 2002; Law e Singleton, 2003; Law, 2004): afinal, o que é um
objeto para a cetologia?
16
CAPÍTULO I – TERRITÓRIOS DA CETOLOGIA
Already we are boldly launched upon the deep; but soon we
shall be lost in its unshored harborless immensities. Ere that
come to pass; ere the Pequod's weedy hull rolls side by side
with the barnacled hulls of the leviathan; at the outset it is but
well to attend to a matter almost indispensable to a thorough
appreciative understanding of the more special leviathanic
revelations and allusions of all sorts which are to follow.
(Herman Melville – Moby Dick)
1. Salvem as baleias!
Durante muito tempo os cetáceos, mais especificamente as baleias, desempenharam
um papel fundamental nas agendas de grupos ambientalistas de ampla exposição no ocidente,
sobretudo nos anos que precederam a enunciação do aquecimento global como o estado futuro do
planeta Terra. Particularmente, durante os primeiros anos da década de 70 do século XX
9
, o estatuto
ontológico - interno a perspectiva euro-americana moderna, deve-se frisar - destes seres passou por
um profundo processo de deslocamento. Até então, considerados uma espécie mais ou menos
ordinária de recursos naturais à disposição da humanidade, transformaram-se em sujeitos outros de
nossa cosmologia, símbolos-chave, espécies bandeira, do pensamento conservacionista,
encorporando tudo o que havia de errado nas relações da humanidade com a natureza, como nos
indica o seguinte slogan proferido a exaustão pela Whale and Dolphin Conservation Society: “If we
9
Em narrativas retrospectivas fala-se muito a respeito do evento United Nations Conference on the Human
Environment, ocorrido na cidade de Estocolmo no ano de 1972, como sendo o momento de principal catalização
deste processo. Nele, pela primeira vez, discutiram a necessidade de um agenciamento coletivo em escala mundial
para a preservação das baleias: uma moratória as práticas baleeiras no mundo “civilizado”. Proposta esta que foi
realizada em 1986.
17
can't save the whale, we can't save anything.” (apud Einarson, 1993, p. 80).
Sobre este processo de deslocamento, o leitor interessado notará facilmente a
existência de uma extensa literatura sociológica/antropológica crítica (por exemplo: Day, 1992;
Rose, 1989; Kalland, 1993), empenhada em demonstrar como filmes populares, documentários
naturalistas e revistas de divulgação científica demonstraram-se comprometidos em contribuir com
a invenção uso o termo na forma originalmente utilizada pela bibliografia citada, ou seja, nos
campos da sociologia crítica de um imaginário, na melhor das hipóteses, equivocado a respeito
dos cetáceos. Interno a esta perspectiva crítica, Arne Kalland (1993) se destaca ao apontar a
existência de um construto social nomeado “Super-Whale”: um “aglomeramento simbólico”
constituído a partir da posição biológica anômala destes viventes (seriam peixes ou mamíferos?),
cujo intuito seria a desqualificação sistemática de todas as formas de atividade baleeira
10
.
Environmental and animal rights groups have skilfully played on our susceptility towards
whales and created the image of a “super-whale” by lumping together traits found in a
number of species, thereby masking the great variety that exists in size, behavior and
abundance among the 75 or so species of cetaceans. (ibid., p.4).
Ainda que seja impossível ignorar alguns dos exageros cometidos pelos movimentos
ambientalistas no intuito de convencer, aliciar e persuadir um coletivo que não tomava por
passagem obrigatória a conservação dos cetáceos e do meio-ambiente em geral a título de
exemplo, cito o discurso proferido por uma liderança do Greenpeace: “the general public is not
going to understand the science of ecology, so to get them to save the whale you have to get them to
believe that whales are good” (apud Peace, 2005) -, creio ser mais interessante acompanhar a
maneira pela qual a referência a estes seres muda de sentido, vai da criação de uma relação singular
10
A análise simbolista empreendida por Kalland baseia-se nas proposições de Mary Douglas e Edmund Leach: além
da posição anômala em nosso sistema de classificação biológico, interno a este módulo de inscrição e descrição,
baleias são seres “bons para se pensar” por habitarem os oceanos; constituídos essencialmente por sal e água
(símbolos de pureza, facilmente postos em uma relação dicotômica com a impureza daqueles que vivem sobre a
terra). Kalland ainda lança mão de uma, em seus termos, “relativa ignorância da população média” em relação aos
oceanos, o que daria mais liberdade a formulações mitificantes como é o caso da super-whale dos movimentos
ambientalistas.
18
com o animal ao juízo que constitui sua própria singularidade enquanto um obstáculo a seu
consumo. Como este modo de existência, ou melhor, um determinado conjunto das relações práticas
e das significações que unem seres humanos entre si e com as coisas, tornou-se disponível para
estratégias conduzidas em nome da humanidade e da ciência?
É de domínio público que, durante os anos de 1960, nos EUA, muita tinta se gastou
em torno da questão da inteligência dos golfinhos - mais especificamente, golfinhos-nariz-de-
garrafa (Tursiops truncatus), belugas (Delphinapterus leucas) e orcas (Orcinus orca) - e de sua
capacidade de possuir/desenvolver alguma forma de linguagem articulada. Debate que mobilizou
parcelas heterogêneas da comunidade acadêmica, cujo interesse residia na singularidade da
experiência de comunicação interespecífica com estes viventes: de um lado, neurofisiologistas que
afirmavam - embasados por estudos de anatomia comparada entre cérebros de cetáceos, primatas e
proboscídeos (elefantes) - que as capacidades lingüísticas destes animais seriam próximas a de cães
bem treinados e assim concluíam: “[...] on the basis of structural specialization of the cerebral
cortex and behavioral comparisons, the position of the dolphin should be scrutinized with greater
dispassion than is current.” (Kruger apud Stenuit, 1969, p.68); do outro lado, pesquisadores que ao
mesmo tempo em que criticavam os diagnósticos feitos a partir de carcaças de animais, taxando-os
como estéreis, tentavam assegurar a posição diferenciada dos cetáceos através de etogramas
capazes de se transformar em escritos mais palatáveis, interessantes, ao gosto do grande público,
como este relato sobre o sistema de comunicação de um grupo de orcas em Oslo, Noruega:
Killer whales posses sufficient inteligence to establish immediately the relation of cause
to effect between the harpoon gun and the wound suffered by one of them; that they have
a sufficiently clear and discriminating eyesight, a sufficient power of observation and
sufficient capacity to distinguish, among almost identical ships, those wich were made
dangerous by a small additional contraption on the bow from those wich were harmless;
that they posses the means of communicating not only precise information and
descriptions, but also recommendations; that these are transmitted to all and received by
all and that the spreading of their danger warnings is rapid, pervasive and 100 per cent
efficient
11
. (Stenuit 1969, p.57)
11
Durante meu trabalho de campo, escutei relatos muito semelhantes ao de Stenuit. Quando perguntei sobre a ausência
de botos-cinza (Sotalia guianensis) na Lagoa de Araruama lagoa que corta praticamente toda a Região dos Lagos
19
Duas perspectivas conflitantes sobre o que deveria ser um mesmo animal. Neste
cenário, destacou-se a figura de John C. Lilly, neurofisiologista convertido a cetologia, cujo livro
Man and the Dolphin (1970), um sumário em linguagem acessível de seus primeiros anos de
pesquisa com golfinhos (em sua maioria Tursiops), obteve grande sucesso comercial, alçando o
pesquisador a posição de celebridade intelectual, amplamente conhecido contra sua vontade -
como “the man who makes fish talk”. Lilly recusava as assertivas prévias sobre o cérebro dos
cetáceos, pois, segundo o cetólogo, falhavam ao se utilizarem de órgãos afetados pela
decomposição natural. Em contrapartida, oferecia à comunidade científica estudos realizados com
cérebros bem conservados, extraídos no momento exato da morte do animal
12
. O argumento de Lilly
era, em tese, muito simples: quando submetidos a estudos comparativos, tanto os cérebros extraídos
de Tursiops que o cetólogo classificava como a first class brain” (Lilly, 1970) -, quanto aqueles
extraídos de seres-humanos apresentavam estruturas inequivocamente semelhantes, sobretudo
quando o assunto era o córtex cerebral: “When an animal possesses a brain almost comparable to
ours, it is no longer wholly an animal. Therefore I do not treat it entirely like an animal” (ibid.).
Assertiva que deu origem a fórmula canônica desta cetologia, córtex comparáveis = intelectos
comparáveis.
A originalidade do trabalho de Lilly residia menos em suas conclusões acerca do
cérebro dos cetáceos – outros haviam obtido resultados semelhantes -, do que em sua tentativa de
alinhar estes resultados com experimentos realizados com animais vivos, dando início a uma nova
tendência na cetologia moderna, complementar etogramas e necrópsias. Assim fundou um centro de
pesquisas, o Communication Research Institute, totalmente dedicado a cetologia, com especial
-, uma vez que fisiologicamente estes animais poderiam habitar a região sem problemas, um dos pesquisadores
especulou sobre a presença destes em tempos remotos, pois é comum o registro de dentes deste tipo de animal em
sambaquis em torno da lagoa. No entanto, acredita-se que com o tempo, devido a predação continua, os animais
passaram a evitar estas águas, transmitindo a interdição sistematicamente a cada um de seus descendentes - tipo
uma forma de contar uma história” (Edérson).
12
Originalmente as pesquisas deveriam ter sido conduzidas em cérebros de animais ainda vivos, mas todos, cinco no
total, morreram ainda durante o processo de anestesia.
20
ênfase na quebra da barreira comunicacional entre humanos e cetáceos. Para tanto, Lilly criou um
sistema de comunicação que permitia que cetáceos e humanos escutassem sem interrupções, ou
distorções, os sons que eram produzidos uns pelos outros. Desta forma, constantemente o cetólogo e
sua equipe vinham a público exibir relatos cada veis mais intrigantes e menos científicos, diziam
os críticos - sobre o progresso de suas pesquisas, como um notório episódio envolvendo Elvar, um
de seus Tursiops mais famosos.
Onde day Elvar was having great fun annoying a girl assistant of Lilly's by lashing her
tail. “Stop it, Elvar,” she kept repeating, while attempting to shelter her instruments from
the shower he was causing. Later, when she listened to that day's tape recordings, she was
dumbfounded to hear Elvar repeat several times in a mocking voice: “Stop it, Elvar.”
Listening more closely, she then detected a very clear “Bye-bye” and “More, Elvar, and
several other phrases of this kind. (Stenuit, op cit., p.75)
Ainda que impressionante, o experimento de Lilly foi repudiado pela comunidade
científica que submeteu suas gravações aos mais diversos testes de experimentos acústicos até
grupos de foco -, onde todos os resultados foram considerados inconclusivos. O próprio cetólogo
foi o primeiro a afirmar o caráter subjetivo de sua assertiva (“I'm a man first, then a scientist”),
alegando que o tempo dedicado a convivência com estes animais, permitiu que ele e seus
companheiros de instituto desenvolvessem a habilidade de interpretar os sons emitidos pelos
tursiops: certamente um tipo de relato que não encontrou nenhum eco nos meios acadêmicos
13
. No
entanto, o público geral previamente interessados por um famoso show televisivo (Flipper) –, a
quem pouco interessava os critérios de demarcação científica, continuava ávido pelos resultados
vindos do instituto de Lilly.
A atenção midiática destinada ao Communication Research Institute não lhe garantia
13
“A definição de ciência nunca é neutra, que, desde que a ciência dita moderna existe, o título de ciência confere
àquele que se diz “cientista” direito e deveres. Toda definição, aqui, exclui e inclui, justifica ou questiona, cria ou
proíbe um modelo” (Stengers, 2002, p.35). A frase de Stengers se refere a um caso semelhante ao de Lilly, quando
fala da refutação científica à práticas de medicina alternativa, pois estas dependiam de pessoas, circunstancias ou
não eram reproduzíveis. A potencialidade da reprodução é uma dos características fundamentais da ciência. Quando
conversava com meus informantes a respeito da obra de Lilly ou de Stenuit, escutava que seus trabalhos eram
interessantes e inspiradores, mas que dificilmente poderiam utiliza-los de forma científica. É interessante para
saber que o golfinho é um bicho polêmico, que tem todo esse interesse em cima dele, que ninguém sabe direito o
que ele pode fazer, mas se eu falar esse tipo de coisa em um congresso, vão rir de mim”. (Jaílson).
21
todo o financiamento necessário para dar continuidade às pesquisas e o repúdio da comunidade
científica até antigos aliados de Lilly, como outro importante cetólogo da época, John Dreher,
passaram a criticar seus métodos – só dificultava as coisas. Portanto, o controverso pesquisador teve
que ser hábil ao transladar seus resultados de forma a interessar grupos inusitados sobretudo
quando se trata de um projeto de cetologia e deles obter apoio financeiro e logístico. Dentre os
financiadores de Lilly, três merecem um destaque particular: Office of Scientific Research of the Air
Force, que desde meados de 1950 realizava seus próprios experimentos com cetáceos, interessado
em treiná-los para ações de guerra em alto-mar e transformar seu complexo mecanismo de
ecolocalização em algum dispositivo bélico; NASA, após Lilly ter convencido seus diretores de que
a comunicação com os cetáceos poderia ser considerado uma antecipação simulada do contato com
formas de inteligência extraterrestre
14
; e The National Institute of Health, encorporado na presença
do antropólogo Gregory Bateson no instituto, que alegava publicamente que a comunicação com
um não-humano poderia abrir novas linhas de pesquisa para psiquiatras interessados em entender a
linguagem esotérica utilizada por esquizofrênicos
15
: “I hope the dolphin may teach us a new
analysis of the sorts of information which we need, and all mammals need, if we are to retain our
sanity” (Bateson apud Stenuit, op cit., p.78).
Nas décadas seguintes, o debate se internacionalizaria, adicionando a este cenário os
movimentos conservacionistas recém-institucionalizados (para todos os propósitos Greenpeace
toma como marco inicial o ano de 1971 e o Friends of the Earth 1970) e alguns governos nacionais,
14
A dissertação de mestrado de Jayme Aranha (1990) oferece uma interessante descrição deste cenário: durante a
primeira conferência sobre o projeto SETI, realizada em 1961 em Green Bank, as pesquisas de Lilly foram
submetidas a testes de força por outros pesquisadores interessados em inteligencia extraterrestre, o resultado foi tão
promissor que “o apelo da analogia levou os participantes da conferência a intitularem-se membros da Ordem dos
Golfinhos.” (id., p.112 grifos no original).
15
Esta não era a primeira vez que Bateson procurava no outro uma forma de lidar com a esquizofrenia de seus
semelhantes: logo na abertura de Balinese Character (1985), Bateson (em companhia de sua ex-esposa Margaret
Mead) deixa claro que seu interesse pelo ethos balinês estava relacionado a presença de um pattern compartilhado
que poderia ser entendido como “globalmente esquizóide”. Em Bali, Bateson e Mead procuravam entender as bases
na experiência infantil que predispõe a chamada dementia precox. A partir desta experiência, criar métodos para
lidar culturalmente com estas predisposições de modo a não torná-la um mal-estar. No caso da experiência com
golfinhos, o mais interessante é que, como indica um de seus comentadores e biógrafo Robert Rieber, Bateson
estava menos interessado na possibilidade de comunicação interespecífica do que nas próprias causas de sua não
realização: “The experience profoundly impressed Bateson with the possibility that two organisms could exist side
by side yet fail to communicate in meaninghful ways.” (Rieber, 1989, p.8).
22
recém interessados pelo pensamento da consciência ecológica. Obviamente não posso deixar de
falar do próprio papel dos cetáceos que continuavam a participar dos debates, testemunhando de
formas diferenciadas acerca de sua própria existência e, conseqüentemente, expandindo
continuamente suas possibilidades de identidade. É neste cenário que as baleias-jubarte (Megaptera
novaengliae) herdam, sem que haja exclusão, o lugar proeminente de seus primos menores em
nossa cosmologia.
Até aquele momento, não se propunha que as grandes baleias, também conhecidas
como cetáceos misticetos, eram capazes de apresentar comportamentos tão complexos quanto o de
seus primos menores, como indica uma assertiva de Stenuit: “Do Mysticeti learn slower? It takes
migratory gray whales several seasons before they learn to give a wide berth to whaling stations
newly set up along the coast.” (Stenuit op. cit., p.122). Proposição totalmente refutada pelos
trabalhos da geração seguinte de pesquisadores, com particular destaque para a obra do zoólogo
Roger Payne. Retomando um programa de pesquisas proposto originalmente em 1957 pelo cetólogo
Reysenbach de Hann e abandonado nos anos 60, Payne acompanhou bandos gregários de baleias-
jubarte realizando gravações sistemáticas de seus cantos. O zoólogo identificou, no material obtido,
uma complexa seqüência de tons, que tinha duração variável e se repetiam indefinidamente com o
acréscimo gradativo de algumas pequenas modificações ao longo do tempo permitindo aos
pesquisadores estabelecer uma cronologia de suas transformações -, e do espaço dando origem
aos diferentes “sotaques” das baleias.
A partir destas informações, o canto da baleia-jubarte foi considerado um testemunho
ainda mais substancial do que aqueles obtidos na década anterior com os golfinhos sobre a
presença, inédita, de uma linguagem articulada em não-humanos. Ao contrário de seus primos
menores, as baleias-jubarte não possuem nenhuma razão utilitária para cantar da forma como
cantam: muitas das críticas feitas, na década anterior, aos estudos sobre a presença de linguagem
articulada em golfinhos, diziam que esta suposta complexidade era na verdade um efeito direto das
23
necessidades da ecolocalização – sistema de interação com o meio-ambiente - que não esta presente
nas jubartes. Até mesmo a suposta organização social simples destes animais (ao contrário dos
golfinhos, geralmente associados em grupos de alguns poucos indivíduos) passou a ser pensada nos
termos de uma complexa rede social e comunicacional que se estende por todo os oceanos da Terra,
como indica o famoso astrônomo Carl Sagan, assumindo o papel de Lilly como principal porta-voz
dos cetáceos nas décadas de 70/80:
O biólogo americano Roger Payne calculou que duas baleias conseguem se comunicar
utilizando o túnel de som do oceano profundo, a vinte hertz, essencialmente em qualquer
parte do mundo. Uma pode estar na Grande Barreira de Ross, na América, e se comunicar
com outra nas Aleutas. Na maior parte da sua história, as baleias devem ter estabelecido
uma rede de comunicações globais. Talvez quando separadas por 15.000 quilômetros,
suas vocalizações sejam canções de amor lançadas com esperança na vastidão profunda
(Sagan apud Aranha, 1990, p.111)
Como nos lembra o próprio Reysenbach de Hann, resumindo a crença moderna:
“where there is language, there is consciuousness” (apud Stenuit, 1969, p.100). Desta forma, não é
de se surpreender com o deslocamento do estatuto ontológico das baleias que se seguiu em nossa
tradição: passando de “peixes” ideais para o consumo sua pesca era relativamente barata e
altamente rentável, pois quase tudo do animal era utilizado -, para um vivente cujos direitos
deveriam ser análogos àqueles destinados aos humanos. De uma figura híbrida entre animal/recurso
natural como ficara popularizada no imaginário popular pelo famoso romance de Melville -, a
baleia assume o status de seus primos menores e se torna um híbrido animal/humano, dotados de
uma razão e compaixão, por vezes maior do que a dos próprios humanos: em certos aspectos
transformando-os em não-humanos mais humanos que os humanos
16
:
The brain size of whales is much larger than that of humans. Their cerebral cortexes are
as convoluted. They are at least as social as humans. Anthropologists believe that the
development of human intelligence has been critically dependent upon these three factors:
16
Proposição que deu continuidade a analogia, proposta originalmente por Lilly, entre cetáceos e formas de vida
alienígena durante as décadas de 1970/80: vide o papel diferenciado destes seres na sonda Voyager, onde seus cantos
encontram-se agrupados ao lado das saudações dos diplomatas da ONU - (Cf. Aranha 1990)
24
brain volume, brain convolutions, and social interactions among individuals. Here we
find a class of animals where the three conditions leading to human intelligence may be
exceeded, and in some cases greatly exceeded. (Sagan apud Aranha, op. cit., p.126).
Creio, espero que de forma razoável, que através deste pequeno sobrevôo, podemos
supor um cenário histórico mais complexo do que aquele que Kalland e associados denunciam em
seus textos, quando estudam de forma isolada apenas um dos processos de translação realizados no
deslocamento do estatuto ontológico dos cetáceos. Penso que de nada adiantariam os gritos de
“salvem as baleias” sem que os cientistas fossem capazes de propor na prática enunciados
experimentais capazes de conectar cetáceos e humanos de uma forma singular; assim como não
existiriam pesquisas, e conseqüente autonomização da cetologia, sem que houvessem verbas e
pessoas previamente interessadas em seus resultados.
A transformação dos cetáceos em nossa cosmologia foi um movimento prático que
não teve como grande realização impor a uma suposta massa de ignorantes uma proposição
desprovida de fundação racional, mas sim, transformar e atrelar problemas de caráter restrito (a
sobrevivência de determinadas espécies de animais, orçamento para pesquisas de cetologia,
autonomização de uma sub-área da biologia marinha) a outros mais amplos (a manutenção do meio-
ambiente, vantagem na corrida armamentista, uma cura para a esquizofrenia). O que não é análogo
a dizer que todas as partes envolvidas tenham sido completamente honestas no processo, ao
contrário, é entender que nenhuma teoria científica se fixa sem que, em dado momento, uma série
de elementos “extra-científicos” tenham exercido alguma influência. O caráter construtivista de um
fato científico, neste caso dos cetáceos, não contradiz a busca daquilo que se considera verdadeiro,
mas adiciona a este processo outras camadas, entre estas, a necessidade de criação de uma
coletividade, com a qual tal verdadeiro fará história daqui por diante.
Efeitos desta invenção – agora em termos mais adequados ao léxico desta dissertação
-, temos a criação de novas distinções, a possibilidade de variar a qualidade de uma classe de seres
que se supunha como dado. Neste cenário, os cetáceos passam a testemunhar de formas
25
diferenciadas, conferindo a seus porta-vozes a capacidade de julgar narrativas vindouras e
pretéritas. Se um enunciado científico, como defende Stengers (1987), tem duas faces: a primeira
voltada para uma encenação específica das coisas; a segunda destinada a uma operação de
desqualificação dos que, entre os humanos, não aceitam a diferença provocada pela encenação
proposta. Penso que podemos observar neste deslocamento dos cetáceos a ratificação social de um
enunciado científico cetáceos são sujeitos outros; ratificação que implica no “poder de julgar o
valor das práticas humanas” (Stengers, 2002, p. 137) através da perspectiva científica. Da mesma
forma como os deslocamentos dos laboratórios de Pasteur transformaram aspectos fundamentais da
sociedade francesa
17
, os deslocamentos dos cetáceos afetaram diretamente a consciência ecológica
moderna.
2. Do Banco dos Abrolhos à Bacia de Campos
No Brasil
18
a despeito da costumeira falta de recursos, a partir da década de 70 do
século XX, observou-se um pequeno, porém significativo, aumento no mero de estudos
envolvendo cetáceos e o fomento de alguns núcleos de pesquisa dedicados ao estudo destes
animais. Limitações financeiras, facilidade de acesso às áreas de concentração e material biológico
disponível em conseqüência da interação com a pesca fizeram com que a cetologia nacional se
desenvolvesse estritamente relacionada a espécies costeiras, como os botos que habitam bacias e
estuários, as baleias-francas-do-sul (Eubalaena australis) e jubartes (Megaptera novaengliae). É
justamente neste contexto específico, emergência e autonomização da cetologia no Brasil, que
17
“ln his very scientifîc work, in the depth of his laboratory, Pasteur actively modifie's the society of his time and he
does so directly - not indireclly – by displacing some of its most important actors. (Latour,1983, p.156).
18
Em meio a uma escassa literatura, o trabalho historiográfico de Ellís (1969) nos oferece uma interessante narrativa a
respeito da importância da baleação em nossa história econômica. Na atualidade, como legado destas atividades
temos a nomeação de alguns acidentes geográficos como a Ponta do Arpoador, Praia da Armação, Praia da Baleia...
Curioso ressaltar, um dos poucos registros de captura de uma baleia albinainspiração para o romance de Melville,
ocorreu em águas nacionais no ano de 1859.
26
Salvatore Siciliano - neste primeiro momento, nosso principal protagonista
19
- início a seus
estudos com cetáceos no ano de 1987.
Eu gosto de coisa grande, de bicho grande, nunca fui de trabalhar com miudeza; eu
sempre soube disso, me sentia mal trabalhando dentro de laboratório [...] Eu sempre
gostei de mamíferos, gostava dos sirênios [peixe-boi] e pinípedes [focas, leões-marinhos,
morsas], adoraria ter estudado anta, mas definitivamente não sou um cara do mato.
Enfim, mas eu nunca havia pensado nas baleias, mas quando chegou a hora de me
decidir [i.e. escolher o tema de sua monografia], pensei: se for para ser grande, vamos
trabalhar com um bicho grande de verdade. Olha, claro que eu gosto de golfinhos, mas
tenho minhas preferências, essa coisa da miudeza não me atrai.
Um ano após a escolha do animal que guiaria sua especialização, Salvatore
conclui a graduação em ciências biológicas na Universidade Estatual do Rio de Janeiro (UERJ),
com uma monografia intitulada:Ocorrências e conservação de mamíferos marinhos no litoral sul-
sudeste do Brasil”. Meses mais tarde, passa a integrar os quadros institucionais da Fundação
Brasileira para a Conservação da Natureza (FBCN), ONG fundada no fim dos anos 50, tomando
conhecimento e acesso a dados referentes aos encalhes e abundância de baleias-jubarte no Parque
de Abrolhos, extremo sul da Bahia.
Na época a FBCN mantinha um grupo de estudos de mamíferos aquáticos que realizava
o controle dos encalhes em Abrolhos. Tudo meio que converge, comecei a juntar as
coisas; as baleias [jubarte] estão encalhando aqui [Rio de Janeiro], que época estão
encalhando? Eles estão começando a reportar avistagens [no extremo sul bahiano] em
setembro e outubro, o que coincidia com os encalhes aqui, ou seja, estes bichos não estão
passeando por aí. Aquela história: ninguém esta vagando por a toa, isso tem uma
razão de ser. Daí surgiu a idéia de fazer uma primeira viagem para Abrolhos em
setembro de 88.
A primeira, de um total de cinco, temporada de Salvatore em Abrolhos contou com o
apoio financeiro da própria FBCN e um cheque de 500 dólares emitido pela Cetacean Society
19
Deixo claro que me utilizo da figura de Salvatore menos em sua condição de indivíduo, do que em uma atualização
particular de um personagem conceitual caro aos STS, o chefe (Cf. Latour e Woolgar, 1996; Stengers, 2002). Sua
trajetória é um exemplo clássico de como um chefe de pesquisa, que, ao realizar seu oficio de cientista, arregimenta
aliados de todas as sortes para seu laboratório, fazendo proliferar as identidades potenciais de seus objetos e
multiplicando o número de histórias que seus animais serão capazes de suscitar, dotando-os do maior alcance e
fazendo-os existir na maior quantidade de registos possíveis.
27
International - “acho que fui o primeiro do Brasil a conseguir este recurso”-, uma pequena fortuna
para os padrões da época: “Tinha visto um papel em um congresso em Miami, do tipo: oferecemos
500 dólares para sua pesquisa. Escrevi para eles e, para a minha surpresa, chegou na FBCN uma
carta com um cheque de 500 dólares - isso foi o que financiou tudo, que deu início a esta história
toda”. Em Abrolhos, Salvatore encontrou uma pequena comunidade de cientistas interessados na
presença da baleia-jubarte, momento histórico e prematuro da cetologia nacional, onde basicamente
todos se faziam as mesmas perguntas: quem eram aquelas baleias? O que elas faziam ali?
Segundo meu interlocutor, a constituição de um grupo de pesquisadores em torno do
assunto na região fora um processo rápido e natural, prova disto: logo nos primeiros meses de
trabalho de campo se pensava a respeito da viabilidade em estabelecer ali um projeto fixo de
pesquisas voltadas exclusivamente para as baleias-jubarte, um empreendimento inédito em território
nacional. Próximo ao fim dos anos oitenta e começo dos noventa, existiam apenas o Projeto da
Baleia Franca, em Santa Catarina que durante as falas, sempre é sutilmente descartado enquanto
um projeto de pequisa nos moldes desejados por Salvatore - e um grupo isolado de biólogos do Rio
Grande do Sul que trabalhava com toninhas (Pontoporia blainvillei).
Como era de se esperar, recursos outros se faziam necessários para que o grupo,
criado a partir do interesse comum em relação às baleias-jubarte, deixasse de ser temporário e
assumisse o desejado caráter perene. Para tanto, os pesquisadores negociaram financiamentos com
duas fontes: a WWF (World Wide Fund for Nature) norte-americana e a Fundação O Boticário de
Proteção a Natureza. O sucesso relativo desta empreitada deve-se ao fato de que mesmo com algum
recurso financeiro, não havia o suficiente para garantir condições mínimas da (re)produção
científica: “a situação era muito precária, desde os barcos que a gente usava, que precisava alugar.
Se quebrasse alguma coisa, escangalhasse, não tinha como substituir”.
O entusiamo inicial em conseguir realizar um projeto de pesquisa com cetáceos
acabou degastado por conta de divergências ocorridas durante as cinco temporadas de convivência
28
entre Salvatore e seus associados. Por discordar de alguns pontos estruturais do projeto, como a
construção de uma base permanente de observação e um centro de visitação - o que considerou uma
desnecessária virada “propagandística” em um projeto de ciências. Suas maiores preocupações
manifestas eram aquelas relacionadas ao custo dessa estrutura e à conseqüente diminuição da
produção de dados científicos.
O Projeto da Baleia Jubarte em Abrolhos não era esse o formato pensado originalmente.
Um projeto de pesquisa não requer um apelo propagandístico, são coisas distintas. Um
projeto de pesquisa é um projeto de pesquisa, não precisa ser um parque temático, não
requer que estejamos aqui [Abrolhos] todo ano. Isto está escrito na minha dissertação, o
cenário reprodutivo das baleias acontece, na verdade, o momento mais importante
quando você de fato precisa estar estudando -, ele dura dois, no máximo, nem três meses.
O auge da temporada reprodutiva acontece em meados de setembro até meados de
outubro – é quando tudo acontece. Então se você tem recurso, e o recurso – como a gente
sabe - é uma coisa limitada, pessoal também é. Então quando é que você vai investir o
recurso? Tem baleia em junho, julho e agosto? Tem, mas elas estão chegando, o cenário
ainda esta se preparando. Se você precisa investir para coletar seu dado, sua
informação, quando é que você vai investir? Não vai ser agora em maio, junho, deu para
entender? Parece claro?
Se pensarmos a ciência, como propõe Pickering (1995), enquanto um dança de
agências, uma dialética de acomodação e resistência entre as agências humanas e não-humanas, a
estética do pensamento de Salvatore demonstra uma proposta clara de maximização de captura da
agência dos não-humanos neste caso, baleias-jubarte -, diminuição da resistência e aumento da
acomodação. Para meu interlocutor, explicitamente, o modo de ordenação originalmente pretendido
diferenciava-se daquele posto em prática, que parecia circundar questões, capturar agências
distintas daquelas interessantes ao cetólogo. Ainda que em um primeiro momento, a presença das
baleias-jubarte tenha sido suficiente para que houvesse a formação e manutenção de um grupo de
pesquisadores associados, durante o processo de perenização, os movimentos de translação de
interesses não deram conta dos elos mais fracos de sua rede; neste caso, pesquisadores com
perspectivas divergentes acabaram por se desligar do grupo em nome de suas agendas pessoais de
trabalho, entre estes Salvatore.
29
O sonho paraíso tropical”, para citar integralmente o cetólogo, teve seu fim no ano
de 1993, quando Salvatore regressou para o Rio de Janeiro com o objetivo de iniciar seu mestrado
na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), tomando como material de reflexão os
dados colhidos durante sua permanência em Abrolhos: “Imagina, cinco temporadas, a gente tinha
fichas e fichas, planilhas e planilhas. Dava muito mais do que um mestrado, a dificuldade, entre
aspas, maior foi triar estes dados e dar um formato adequado a uma dissertação”. A transposição
de sua experiência de campo para o formato acadêmico recebeu o nome de Características da
população de baleia-jubarte (Megaptera novaeangliae) na costa brasileira com ênfase nos Bancos
de Abrolhos (Siciliano, 1997) e pode ser divida em duas partes: uma primeira dedicada a questão
dos encalhes de jubarte, do impacto e representação destes incidentes para esta espécie de cetáceos;
a segunda parte, referida como estrutura de populações, procurava caracterizar as populações de
jubarte que freqüentavam o Banco dos Abrolhos e compará-las com informações obtidas em outras
localidades como nordeste (acima de Abrolhos) e Rio de Janeiro.
Para a realização de seu doutorado, agora na pós-graduação de Zoologia do Museu
Nacional/UFRJ, Salvatore se viu diante de uma questão cuja resposta estaria no cerne da criação de
seu próprio grupo de pesquisas: como continuar a estudar as baleias-jubarte sem que tivesse que se
submeter ao modo de ordenação em atividade na região do Banco dos Abrolhos? Ou seja, como
alcançá-los através da distancia geográfica? A Bacia de Campos, mais especificamente a Região dos
Lagos, oferecia um interessante potencial de resposta. A estadia em Abrolhos fora crucial para que o
pesquisador tomasse ciência de algumas singularidades comportamentais dos viventes que lhe
interessavam e dos métodos necessários para a captura de suas agências. Experiência que consagrou
as alianças do cetólogo com sua disciplina, dotando-o da capacidade de constituir um etograma de
seus objetos, tornando-os móveis, estáveis e combináveis.
Como eu havia trabalhado com as jubarte em Abrolhos, sabia que uma coisa que
estava fazendo muita falta era entender essa migração. Que época do ano elas passam
por aqui [Rio de Janeiro]? Elas não chegam em Abrolhos voando, né? Até onde eu sei
30
não chegam de avião, então elas tem que passar por aqui. Mas será que elas passam
rente a costa ou um pouco mais afastado? Falando assim pode parecer besteira, mas isso
significa muita coisa.
As rotas migratórias da baleia-jubarte oferecem uma perspectiva inteiramente
diferente da costa brasileira. A mitologia
20
informa, a Megaptera novaengliae carateriza-se por ser
uma espécie cosmopolita, de ocorrência comprovada em todos os oceanos e passível de serem
avistadas de uma ponta a outra do globo. Este vivente realiza extensos movimentos migratórios
entre áreas de alimentação polares e sub-polares, onde passam o verão e outono, e áreas tropicais,
utilizadas para reprodução e, naturalmente, cria de filhotes. No que tange a especificidade da
utilização do território brasileiro por esta espécie, para as necessidades da causa, destacam-se duas
regiões: O Banco dos Abrolhos, principal sítio reprodutivo da espécie em todo o Atlântico Sul
Ocidental; e a Bacia de Campos, um dos principais corredores migratórios das jubarte em águas
costeiras. Em termos práticos, a escolha da Bacia de Campos, além de permitir que Salvatore
explorasse um aspecto menor, ou seja, carente de uma teoria consistente do comportamento desta
espécie, posteriormente demonstrou a possibilidade - ao ser contrastada com o sistema marinho de
Abrolhos e outras regiões com incidência de cetáceos - de oferecer uma contribuição singular a uma
cetologia mais ampla, como fica explícito no discurso do pesquisador:
Tinha uma coisa aqui [Bacia de Campos] que sempre me intrigou, que era o fenômeno
da ressurgência; que água gelada é essa? Pensando seriamente sobre ele, você começa a
sacar várias coisas, por isso é tão importante trabalhar com biogeografia. Isso aqui
tinha na Bahia, aqui não tem. no sul tem alguma coisa que aqui não tem, no Sul
tem toninha e aqui não tem, a Toninha não chega na Bahia também... mas aqui no Rio
tem delphinus
21
, na Bahia não tem, no Sul também não tem. Porque tem delphinus aqui?
As brudas
22
, pô. Mas aqui é cheia de Bruda, na Bahia não tem, sabe? Isso era a minha
20
Minha utilização do termo mitologia, remete-se àquele utilizado originalmente por Latour e Woolgar, derivada da
obra de Barthes, em sua etnografia: “Le terme 'mythologie' n'a aucune connotation péjorative. Il faut l'entendre
comme un cadre de référence au sens large à l'intérieur duquel on peut localiser les activités et les pratiques d'une
culture particulière.”(1996, p.46, referências omitidas).
21
Um gênero da família dos Delphinidae (golfinhos marítimos). Atualmente acredita-se que a espécie encontrada em
território brasileiro seja o golfinho-comum-de-rostro-curto (Delphinus delphis), quando até recentemente estes seres
eram classificados enquanto golfinho-comum-de-rostro-longo (Delphinus capensis).
22
Bruda é um termo informal utilizado pelos cetólogos para designar a baleia-de-Bryde (Balaenoptera edeni), também
conhecida como Rorqual-tropical ou baleia-sardinheira. Este vivente caracteriza-se por ser uma das poucas espécies
de baleia que não realiza extensos movimentos migratórios, o que - como ficará mais claro no decorrer desta
31
cabeça pensando. O que esta hoje nos livrinhos ali [aponta para uma estante], nós
tivemos que ir pensando a partir do nada.
O fenômeno da ressurgência, ao qual Salvatore se refere, é caracterizado pelo
afloramento de águas profundas, geralmente frias e ricas em nutrientes, em determinadas regiões
dos oceanos. Essas regiões têm, no geral, alta produtividade primária – fitoplâncton e zooplâncton –
e importância comercial para a pesca. No litoral brasileiro, a ressurgência costeira da Região dos
Lagos, é própria do município de Cabo Frio, ocorrendo a oeste desta localidade. Ainda que o debate
a respeito do assunto seja extenso e ainda em aberto, algumas pesquisas sugerem a ressurgência
como um fenômeno marcadamente sazonal, ocorrendo com maior freqüência no verão e
caracterizando-se especificamente pelo afloramento da massa de água conhecida como Água
Central do Atlântico Sul (ACAS); a cetologia emprega uma clausura prática nesta controvérsia,
entendendo a ressurgência menos como um fenômeno de temporalidade específica (sazonal,
contínuo ou errático), mais como uma condição de possibilidade estável para a manutenção de uma
longa cadeia alimentar, que tem os cetáceos em seu nível mais alto.
Retornando a nossa narrativa principal; com o intuito de maximizar a captura das
agências de seus objetos, em 1999, Salvatore fundou um pequeno grupo de estudos para
pesquisadores interessados nos aspectos de migração da baleia-jubarte. Curioso notar, segundo o
próprio cetólogo, que a despeito de seu papel inicial proeminente, a Jubarte acabou assumindo um
caráter totalmente secundário durante o processo de consolidação do grupo, por fim nomeado
Projeto Baleias e Golfinhos de Arraial do Cabo. Para meu interlocutor, este deslocamento foi uma
resposta natural a partir do vocabulário proposto por Pickering (op cit.), diria um processo de
sintonização da agência humana - às agências não-humanas que pululavam na singularidade da
região, como as já citadas ocorrências de brudas e Delphinus:
É o único lugar da costa brasileira onde você observa Delphinus do costão rochoso. Por
dissertação - a transforma em uma espécie privilegiada para as pesquisas realizados pelo GEMM-Lagos.
32
que eles chegam tão perto da costa? Porque ali tem tanto peixe, tanta produtividade que
eles vem comer ali. Delphinus esta fortemente associada com áreas de alta
produtividade, tem que ser muito produtiva. Qual é a característica da ressurgência? É
uma região tão produtiva que você tem praticamente Lula o ano inteiro, isso é uma das
características desse fenômeno. Por isso me veio essa idéia de estruturar um projeto
aqui. Em outros lugares do Brasil, nenhuma pessoa come lula. Enquanto isso, em
fevereiro, Cabo Frio tem o festival da lula.
Prova da abundancia na região: na época eram avistadas, em média, 2,4 baleias por
dia de observação, índice considerado elevado; padrão semelhante àquele que Salvatore encontrou
durante sua passagem por Abrolhos. Contudo, diferente desta região, onde o único foco era a
presença das Jubartes, na Bacia de Campos os dados eram obtidos a partir de quatro espécies de
grandes baleias: com maior freqüência baleias-jubarte, baleias-de-Bryde, e baleias-francas-do-sul;
com menor, baleias-minke (Balaenoptera acutorostrata).
Como fica implícito, os objetivos iniciais do grupo constituído inicialmente por,
além de Salvatore, um biólogo e três estagiários consistia na obtenção de resultados a partir de
uma única metodologia: avistagem de ponto fixo (que receberá a devida atenção no próximo
capítulo) para o estabelecimento de estimativas populacionais e uso do habitat. Neste momento
prematuro, o Projeto Baleias e Golfinhos contava com o apoio institucional e logístico de
pesquisadores do IAPN (Instituto de Pesquisas Alm. Paulo Moreira) e de uma pequena ONG local.
Em termos de financiamento, sua estrutura era ainda mais modesta; o grupo contava com eventuais
500 dólares da Cetacean Society International obtidos da mesma forma que o financiamento
inicial de Salvatore - em adição de um financiamento contínuo de 600 reais mensais oriundos da
Redley Surfing & Board Riding Co, dinheiro gasto essencialmente com alimentação e combustível.
O pessoal chegava querendo fazer monografia. Interessante é que nessa época não tinha
bolsa, não tinha dinheiro nenhum. Todo mundo chegava na cara e na coragem dizendo:
eu quero trabalhar com isso, quero fazer minha monografia com cetáceos. Eu respondia:
o que nós temos é isso: uma pedra para sentar, uma prancheta, um lápis e uma planilha.
A despeito das carências e do seu parco número de alianças no sentido proposto
por Latour (2000), ou seja, de uma inserção em uma cadeia de relações que garantam a existência e
33
a continuidade do grupo -, o referido aumento em seus quadros pessoais deve-se, sobretudo, a um
contínuo interesse que os objetos promulgados pelo projeto foram capazes de suscitar. Ainda que,
neste momento específico, Salvatore não tenha sido capaz de traduzir estas alianças em um aumento
de seus recursos financeiros para pesquisa, o cetólogo se viu recompensado de outra forma,
assumindo o cargo de editor-chefe da conceituada revista científica especializada The Latin
American Journal of Aquatic Mammals (LAJAM) e sendo eleito presidente da Sociedad
Latinoamericana de Especialistas em Mamíferos Acuáticos (SOLAMAC).
3. O GEMM-Lagos
O discurso de Salvatore mostra dois deslocamentos realizados, de forma
concomitante e associada, por seu grupo de pesquisa:
Uma coisa foi inevitável, Arraial é do lado de Cabo-Frio, que fica do lado de
Saquarema... Ai começaram as informações: passou um bicho aqui, viram uma baleia
ali. Tinhamos contatos com salva-vidas, com prefeitos. Nessa época a gente já ia buscar
golfinho encalhado em Praia-Seca, em Saquarema, depois em Rio das Ostras, em
Barra de São João. A idéia original era trabalharcom avistagem, mas não teve como
fugir das carcaças.
O primeiro deslocamento que podemos identificar é a expansão da área laboratorial
do projeto, que agora passava a incluir praticamente todos os municípios costeiros da Região dos
Lagos processo que perdura nos dias atuais, onde o grupo vem gradativamente se
responsabilizando pelo monitoramento de ocorrências de cetáceos em praticamente toda a Bacia de
Campos -, movimento conseqüente das associações com órgãos de monitoramentos marítimo,
agências de turismo, habitantes e prefeituras locais. Como resultante, passados dois anos de sua
fundação, Salvatore chega a conclusão de que o nome Projeto Baleias e Golfinhos de Arraial do
Cabo não representava mais a real natureza das práticas de seu grupo, uma vez que seu escopo
34
laboratorial alcançava toda a Região dos Lagos, levando-o a adotar a alcunha definitiva pelo
menos até o momento em que escrevo estas linhas
23
de Grupo de Estudos de Mamíferos Marinhos
da Região dos Lagos, ou simplesmente GEMM-Lagos.
O segundo deslocamento, diz respeito a incorporação de uma nova metodologia
calcada no processamento de carcaças, iniciado durante o segundo mês de atividades do projeto,
devido ao encalhe de um cachalote (Physeter macrocephalus), em Arraial do Cabo (GEMM-001).
Ainda que a intenção inicial do projeto tenha sido o monitoramento da ocorrência de cetáceos,
segundo Salvatore, o grupo se encontrava teoricamente preparado para este tipo de atividade
desde suas primeiras idas ao campo. Em uma linguagem mais adequada aos estudos científicos, o
pesquisador e seus associados já dominavam os protocolos necessários (sobre os quais me dedicarei
em momento oportuno) para o processamento adequado e captura de agencia destes corpos,
contando, inclusive, com existência de uma planilha dedicada ao registro destas atividades (ver
anexo I)
24
.
Em 2002, o GEMM-Lagos foi vinculado oficialmente à Escola Nacional de Saúde
Pública Sérgio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz (ENSP-Fiocruz) situação em que se encontra até
o presente momento. Neste instituto, Salvatore, então um recém doutor, assume o cargo de
professor visitante, orientando alunos de mestrado e doutorado
25
. Leitores que estejam
familiarizados com a instituição em questão
devem imaginar o que se segue, um necessário
23
Ainda não mudamos de nome por incompetência minha, mas acho que vai continuar GEMM-Lagos mesmo”.
Brinca Salvatore, quando, em certa ocasião, lhe perguntei se ainda fazia sentido continuar com o nome GEMM-
Lagos, uma vez que o grupo estava formando uma equipe de ornitólogos e outra de especialistas em quelônios.
24
Deve-se fazer um pequeno destaque: até o fim de 2001, o projeto estava vinculado ao Setor de Mamíferos do
Departamento de Vertebrados, Museu Nacional/UFRJ, única e simplesmente porque era que Salvatore realizava
seu doutorado: por conseqüência, espécimes coletadas durante todo este período foram remetidas e tombadas
enquanto material do Museu Nacional. Fato que gera uma situação minimamente desconfortável ao grupo, que
atualmente possui seus próprios mecanismos de registros de coleta e armazenamento. Uma vez nesta situação, seus
primeiro registros são transformados em simples registros de campo (pois não contam com o material para análises)
e o atual sistema de regras de direitos autorais não exige que, caso este material seja consultado por outros
pesquisadores, os membros do GEMM-Lagos recebam algum crédito. Por exemplo, o espécime cotado como
GEMM-003, que consiste no crânio e esqueleto parcial de uma Baleia Jubarte, fora tombando oficialmente como
MN55452.
25
As áreas de conhecimento das teses orientadas por Salvatore são: indicadores de saúde de ecossistemas marinhos e
costeiros; ecotoxicologia de aves e mamíferos marinhos; gestão, impactos e riscos em ambientes marinhos e
costeiros; comportamento e efeitos antrópicos em mamíferos e aves marinhas.
35
movimento de translação radical, capaz de transformar os cetáceos em seres relevantes sob a
perspectiva de uma entidade tradicionalmente engajada no estudo e combate das grandes mazelas
da saúde pública brasileira (Cf. Cukierman, 2006).
Minha proposta é esta: em um programa de saúde e ambiente, usar (no bom sentido)
aves e mamíferos marinhos como indicadores, como sentinelas ecológicos da qualidade
de saúde dos ecossistemas costeiros e oceânicos, especialmente das áreas sob forte
impacto das atividades humanas. Tem, por exemplo, a situação de doenças emergentes. É
exatamente isso que estou fazendo agora; Lobomicose, doença reemergente ou
negligenciada, uma doença que em gente e que em golfinho. O trabalho que faço
com o pessoal da bacteriologia é justamente esse, doenças que estão na água, que estão
nos mamíferos, que estão nas aves - que provavelmente também carreiam as doenças por
aí.
Penso esta proposta de Salvatore a quem, obviamente, não deve ser atribuída a
constituição original deste movimento de translação
26
- enquanto uma transformação das antigas
proposições acerca destes seres, citadas no início deste capítulo, que tendiam ao estabelecimento de
uma descontinuidade entre os corpos de cetáceos e humanos (Cf. Aranha op.cit.), mas a constituição
de um bloco de aliança através de suas capacidades intelectuais: humanos e cetáceos são capazes de
ocupar a mesma posição de sujeito. Interno a perspectiva proposta pela novo modo de ordenação do
GEMM-Lagos, a aliança se por um caminho oposto, através da própria constituição de seus
corpos: tudo se passa como se aquilo que afeta o corpo de um cetáceo, afeta também o corpo de um
humano e vice e versa. Humanos e cetáceos são capazes, portanto, de ocupar a mesma posição de
objeto.
Pensando com Latour: “o processo de recrutamento e manutenção de aliados implica
no aumento da complexidade da máquina” (2000, p.204). Em suma, em adição aos tradicionais
testemunhos da singularidade de seus objetos enquanto uma ordem singular (Cetáceo), Salvatore e
26
Ainda que existam estudos pretéritos bastante consistentes a respeito dos efeitos de contaminantes em cetáceos, o
programa de ação do GEMM-Lagos é baseado na metodologia proposta no Workshop sobre Poluição Química e
Cetáceos, realizado em Bergen, Noruega, em 1995 (Siciliano, 2002), onde recomenda-se prioritariamente a
necessidade de investigação para elucidar o envolvimento dos poluentes em epizootias e, em particular, na resposta
imune dos cetáceos. Sugere-se uma combinação de estudos laboratoriais, experimentais e de campo para
compreender melhor o mecanismo pelo qual os organoclorados interferem no metabolismo esteróide e na
competência do sistema imune de mamíferos marinhos.
36
sua equipe tornaram-se capazes de mediar testemunhos também de suas singularidade enquanto
representantes de toda uma classe (mamíferos), presentes em um ambiente (marinho) e/ou um
determinado hábito alimentar (comer peixes).
Diz-se que um grande número de produtos químicos produzidos e liberados por
atividades industriais no ambiente têm o potencial de alterar a função do sistema endócrino dos
mamíferos. Entre estes se encontram os chamados compostos persistentes, bioacumulativos e
organoalogenados que incluem alguns pesticidas, fungicidas, herbicidas, químicos industriais e
alguns metais. Os contaminantes lipofílicos substâncias hidrofóbicas, que tem afinidade e são
solúveis em lipídios -, por exemplo, tendem a se acumular no tecido adiposo, sendo posteriormente
liberados em altas concentrações durante a utilização destas reservas energéticas. Segundo a
mitologia, cetáceos, por se encontrarem no topo da cadeia alimentar assim como os humanos -,
tendem ao acúmulo de grandes concentrações de poluentes em seus organismos, processos
denominados bioacumulação e biomagnificação
27
. Desta forma, a partir dos estudos das
concentrações de compostos persistentes em tecidos de cetáceos e possíveis patologias ósseas e
estruturais em seus órgãos, seria possível traçar um perfil dos níveis de contaminação dos
ecossistemas costeiros e a magnitude da exposição a alguns agentes químicos e patogênicos,
tomando como objetivo final a identificação dos indicadores de estresse ambiental da costa sudeste
do Brasil.
A utilização de cetáceos configura-se enquanto uma alternativa a um problema
clássico dos estudos sobre os efeitos de contaminantes em seres humanos: a dificuldade em se
prever os efeitos dos poluentes nos organismos, com um grau aceitável de acuidade, através de uma
simples medida de concentração dos contaminantes no ambiente abiótico (Siciliano, Alves e Hacon
2005). Fatores como as (in)constantes flutuações de temperatura, possíveis interações com outros
27
Bioacumulação, processo pelo qual os organismos vivos absorvem e retém substâncias em seus organismos. Para
que ocorra a bioacumulação, a taxa de retenção deve exceder a capacidade que um determinado organismo tem de
eliminar a substância. Biomagnificação, aumento na concentração de um contaminante a cada nível da cadeia
alimentar. Esse fenômeno ocorre porque a fonte de alimento para organismos de um nível superior na cadeia
alimentar é progressivamente mais concentrada, aumentando assim a bioacumulação no topo da cadeia alimentar.
37
poluentes, tipo de solo marinho e sedimento, precipitação, PH da água e salinidade podem
influenciar consideravelmente a biodisponibilidade de contaminantes para os organismos. Um
quadro que se mostra ainda mais complexo quando, obrigatoriamente, os pesquisadores levam em
consideração as diferentes respostas interespecíficas à presença destas substâncias.
Neste contexto os cetáceos assumem um lugar estratégico como elemento indicador
da qualidade de saúde dos ecossistemas costeiros e oceânicos, especialmente das áreas sob forte
impacto das atividades humanas (como a Bacia de Campos). A equação é simples: desde Darwin,
como observa Ingold (1994), a biologia encontra-se fundamentada por princípios genealógicos. A
pertença de seres a determinados segmentos se dá menos por semelhanças estéticas – ou fenotípicas
do que pela distância ou proximidade de seus vínculos genealógicos
28
. Grosso modo, quanto mais
estreitos são os vínculos de descendência entre dois seres maior será a possibilidade de
consubstancialidade entre eles. Como é de domínio público, cetáceos e humanos são mamíferos,
uma assertiva que por si não garante a comparatividade entre seus corpos, pois, como aprendi
através do convívio com cetólogos, existem mamíferos e mamíferos
29
, algo que fica mais claro
quando olhamos para a história evolutiva desta classe de viventes.
Através de processos de especiação, um grupo ancestral indiferenciado
(mammaliaformes) deu origem a dois grupos de seres (australophenida e triconodonta)
30
. Os
primeiros têm como seus representantes modernos os seres chamados monotremata (ex:
ornitorrinco); dos segundos temos a subclasse de seres theria (feras selvagens), cujo traço evolutivo
distintivo fora a capacidade de dar luz a crias desenvolvidas total (placentalia ou eutheria) ou
parcialmente (marsupialia ou metatheria), sem a necessidade do auxílio de ovos. Interno aos
28
Através de um efeito conhecido como convergência adaptativa, organismos de espécies diferentes sem nenhum
ancestral comum - podem desenvolver estruturas análogas como adaptações ao mesmo tipo de ambiente, por
exemplo: asas de morcego e asas de pássaros. Existe na biologia, uma área muito contestada especializada na
classificação dos seres a partir de suas semelhanças fenotípicas, chamada fenética.
29
Como nos lembra Haraway: “all comparisons are not equal when the scientific goal is to know man's place in
nature” (1991, p.96)
30
Informações obtidas na database Paleos: http://www.palaeos.com/Vertebrates/Units/Unit420/420.000.html
consultado em 8 de novembro de 2008
38
placentália temos quatro superordens, demarcadas através da análise genética: Xenartha (incluindo
espécies do Novo Mundo, como os tatus), Afrotheria (formada em sua maioria, por espécies de
origem africana, como os elefantes), Laurasiatheria (incluindo carnívoros e cetáceos) e os
Euarchontoglires - ou Supraprimatas (que inclui roedores e primatas). Ainda, Supraprimatas e
Laurasiatheria são reunidos enquanto grupos irmãos em um clado chamado Boreotheria, expressa
através do seguinte cladograma simplificado:
O quadro fora elaborado a partir da utilização de retroposons: fragmentos de ADN
repetidos, que são inseridos no cromossomo após sofrerem transcriptase reversa de uma molécula
de ARN. Diferentemente do ADN mitocondrial e genes nucleares, retroposons são virtualmente
livres de homoplasias elementos similares que podem indicar erroneamente uma ancestralidade
Fig. 1 - Cladograma simplificado. Kriegs et al. (2006).
39
comum -, caracterizando-os enquanto signos mais exatos do parentesco entre os grupos. Os
pesquisadores explicam que devido a sua integração randômica no genoma, é praticamente
impossível que se encontre retroposons na mesma região (orthologous location) de dois grupos sem
qualquer parentesco; quanto maior o número de orthologous location, maior será o grau de
parentesco e consubstancia entre duas espécies. Destarte o que se propõe para a invenção científica
é menos uma rede causal – onde o grupo de seres X tem seus corpos causados pelo grupo de seres Y
– do que uma rede de compartilhamento de substâncias, geradas por exclusão a partir de um quadro,
um fluxo, de relações indiferenciadas.
This analysis yielded markers that provided solid evidence for the divergence of several
superordinal groups, as well as the base branch on the placental tree. Four markers
occupied the same orthologous location in every species sampled except for the opossum,
demonstrating the power of retroposons to reveal evolutionary splits, even as long as 100
million years ago. Eleven markers were present in all sampled supraprimates and
laurasiastherians but not in Afrotheria or Xenarthra, supporting the supergroup
Boreotheria. The separate laurasiatherian and supraprimate classifications were also
reinforced by the identification of markers found exclusively within both groups. (ibid.)
Na prática, esta informação corrobora o princípio que determina a utilização de
algumas espécies animais como cobaias de experimentos científicos: os dados extraídos do sistema
endócrino de um rato podem ser extrapolados, com um grau aceitável de acuidade, para se falar do
sistema endócrino humano, no entanto, o mesmo não pode ser realizado ao menos, sem que haja
uma considerável perda de precisão daqueles extraídos a partir dos tatus
31
, por exemplo. No caso
da associação de cetáceos e humanos, uma nova dimensão da consubstancialidade
genética/fisiológica entre as espécies é acionada, uma consubstancialidade “artificial” - ou “pós-
natural”, como certa vez escutei de um cetólogo em tom de brincadeira - formulada a partir de uma
equivalência comensal: os peixes que servem de alimentos para estes animais são os mesmos que
31
A escolha do tatu para exemplo não é casual; por princípio, a biologia excede e desafia as divisões que lhe são
atribuídas pela biologia (Cf. Deleuze e Guatarri, 1997). Além de humanos, coelhos, macacos e ratos, tatus são a
única espécie fora do cladograma citado que é capaz de sofrer de lepra, o que indica que outras operações de aliança
biológica podem ser realizadas fora do esquema da proximidade genética entre as espécies.
40
servem de alimentos para os humanos
32
Os efeitos do consumo de peixes contaminados em seus corpos, provavelmente vai ser
muito semelhante pra não dizer o mesmo - àquele que vamos poder observar nas
pessoas daqui alguns anos, sobretudo aquelas que se alimentam basicamente de
peixes, como é o caso dos pescadores daqui [Região dos Lagos]. (Jaílson).
Simplificando e resumindo, ainda que a base consubstancial relacional entre
humanos e cetáceos seja dada pelo pertencimento ao clado Boreotheria, o estreitamento de vínculos
(atualização) somente ocorre a partir da maturação dos corpos via alimentação. Para os fins das
análises biológicas em questão, tudo se passa como se o parentesco entre estas duas ordens fosse
incompleto até o momento em que uma substância alienígena, seja ela uma toxina ou um vírus, seja
introduzida no sistema.
Segundo o supracitado artigo de Salvatore e colaboradores (Siciliano, Alves e Hacon,
2005), a partir de dados obtidos em laboratório com animais domésticos e selvagens, os compostos
persistentes são conhecidos por causar imunossupressão, epizootias e tumores. Em alguns casos,
estas altas concentrações podem ser associadas com anomalias reprodutivas, neoplasias e
emergência de doenças infecciosas em sirênios (peixes-bois), cetáceos (baleias, botos e golfinhos)
33
,
pinípedes (focas, morsas, leões-marinhos e lobos-marinhos) e outros mamíferos de hábitos
marinhos (urso-polar e lontras). Apesar da dificuldade de interpretação de dados pretéritos,
evidências apontam que os organoclorados são a principal causa de falhas reprodutivas e declínio
populacional em baleias, golfinhos, focas e lobos-marinhos. Casos históricos de contaminação
32
O que gera, como veremos adiante, uma exigência de ordem metodológica para os pesquisadores. Os animais
estudados como indicadores chave devem ser aquelas cujos hábitos migratórios não excedam os limites da Bacia de
Campos. De outra forma, os dados colhidos no animal podem ser referentes a outras localidades do mundo,
diminuindo sua eficácia nos debates públicos e científicos.
33
Recentemente foi registrado na Bacia de Campos o primeiro caso de morbillivirose em cetáceos do Atlântico Sul;
resultado do trabalho de Salvatore em parceria com a Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade de Liège,
Bélgica e o Laboratório Pirbright da Inglaterra. Das 29 amostras de sangue de pequenos cetáceos enviadas para
análise, um golfinho-de-Fraser (Lagenodelphis hosei) encalhado em Arraial do Cabo, em setembro de 1999
(GEMM-005), apresentou-se soropositivo para testes de morbillivirose, constituindo-se, desta forma, no primeiro
caso reportado para um cetáceo do Atlântico Oeste Tropical (Van Bressem et al. apud Siciliano, 2002). O que,
segundo os pesquisadores, evidencia a urgência de estudos na área de doenças potencialmente emergentes em
mamíferos marinhos no litoral brasileiro e sua aplicabilidade na avaliação de qualidade dos ecossistemas costeiros e
oceânicos.
41
elevada e decorrente insucesso reprodutivo são conhecidos para os leões-marinhos da Califórnia
(Zalophus californianus), focas-aneladas do Mar Báltico (Phoca hispida) e Belugas
(Delphinapterus leucas) do estuário do Rio São Lourenço, no Canada” (ibid., p.929). No entanto,
para o cetólogo, o estado da arte da biologia atual encontra-se a um longo caminho de realmente
entender as relações de causa-efeito entre a saúde dos mamíferos marinhos e os poluentes químicos.
O grande objetivo de associação do GEMM-Lagos com a ENSP-Fiocruz e pode ser
traduzido na obtenção de dados sobre espécies de diferentes áreas altamente poluídas, que poderiam
ter a chance de exibir efeitos heterogêneos, e aquelas espécies que vivem em áreas menos poluídas
que poderiam ser usadas para inferir sobre parâmetros biológicos básicos ou sobre uma
“normalidade” fisiológica (as aspas são uma exigência do discurso nativo, pois a “normalidade”
deve ser encarada como um conceito muito subjetivo”, pois na melhor das hipóteses é uma
clausura prática de um estado em constante mutação falarei mais sobre as clausuras práticas no
decorrer deste trabalho). Com isto, Salvatore e sua equipe pretendem gerar indicadores de
potenciais riscos a saúde humana, às atividades pesqueiras, de extrativismo marinho e lazer.
Como primeiro movimento, Salvatore organizou, no Departamento de Ecologia da
ENSP-Fiocruz, um banco de amostras de mamíferos marinhos disponíveis para análises de
contaminantes. Naquela época, 50 espécimes de cetáceos (e alguns pinípedes), que abrangiam uma
malha amostral representativa dos mamíferos marinhos da costa fluminense do estado do Rio de
Janeiro, até aquele momento, depositadas na Base do GEMM-Lagos em Búzios. A fim de ampliar
esta malha amostral, Salvatore foi gradativamente diminuindo as atividades relacionadas a
metodologia de avistagem, concentrando os esforços do grupo no monitoramento de praias para
coleta de exemplares de cetáceos encalhados, o chamado monitoramento in situ: realizando
detalhados exames patológicos nos espécimes encontradas ao longo da Bacia de Campos a fim de
avaliar a incidência de alterações na biologia reprodutiva e desenvolvimento ontogênico dos
cetáceos da região.
42
Fig. 2 - Paulo, Thais, Salvatore e os restos de uma Minke. Acervo GEMM-Lagos.
43
4. Entra em cena a Petrobras
Ainda que o vínculo institucional entre o GEMM-Lagos e a ENSP-Fiocruz
representasse um significativo aumento (quantitativo e qualitativo) no quadro de aliados e na
representação pública do grupo, uma adequação financeira se fazia necessária para que o núcleo
pudesse gozar de uma expansão laboratorial e conseqüente maximização da captura de agências
condizente com seu novo status: essa adequação financeira veio ocorrer no ano de 2004, quando
o núcleo se associa à um projeto de monitoramento da costa Brasileira, estruturado pela Petrobras:
Quando você tem recurso, você faz mais. Quando a gente não tinha dinheiro, a gente
monitorava a Massambaba [restinga de 13km que atravessa os municípios de
Saquarema, Arraial do Cabo e Araruama] a pé, a gente andava a Praia Grande a pé. Se
eu não tinha bugre, como eu fazia? De bicicleta é que não era, com aquela areia fofa... a
gente fazia a pé. Quando a gente teve recurso, compramos um bugre. Quando você tem
mais dinheiro, você faz mais. Não tem mágica, se eu não posso comprar um GPS eu não
posso inventar um, então não uso, a lógica é essa.
No Brasil, para a implantação de uma plataforma marinha de extração de petróleo, a
empresa deve submeter-se a um extenso processo de licenciamento ambiental (ou pelo menos, o é
em sua forma ideal), onde devem ser abarcadas questões muito pontuais a respeito do impacto de
suas atividades. É neste contexto que os cetáceos – e, como veremos, os quelônios - se transformam
em animais importantes, ou melhor, em passagens obrigatórias para o processo de licenciamento
ambiental de plataformas offshore, pois supõe-se que a mera presença destas entidades tecnológicas
possa interferir de forma significativa nas rotas migratórias e nas zonas de alimentação destes
viventes tão populares: “Falar em baleia, golfinho e tartaruga faz os engenheiros da Petrobras se
tremerem todos. Isso acaba sendo um problema para fixar uma plataforma, porque o pessoal da
tartaruga diz que aqui é área de alimentação, de desova, que por ali passa baleia” (Salvatore).
Visando melhor preparar a empresa para um ajuste de conduta aceitável aos olhos do
orgão fiscalizador, o Centro de Pesquisas e Desenvolvimento Leopoldo Américo Miguez de Mello
44
(Cenpes) estabelece, em 2004, o projeto Mamíferos e Quelônios Marinhos. Realizado a partir de
parcerias com universidades e organizações não-governamentais, com um total de 60 grupos de
pesquisa integrados, a empreitada toma por objetivo responder questões específicas acerca dos
padrões de distribuição e comportamento destes espécimes no interior das áreas de influência de
cada unidade offshore. Segundo meus informantes (e uma representante da empresa petrolífera,
quando na ocasião de uma reunião com o grupo), o formato deste projeto aberto à comunidade
acadêmica - é um claro sinal de uma nova abordagem da empresa, estabelecida após o grave
acidente ambiental ocorrido na Baía de Guanabara em 2001
34
, quando finalmente colocou-se na em
pauta a formulação de planos de ação para a contenção de fatos da mesma sorte
35
.
O Projeto Mamíferos e Quelônios Marinhos é apenas uma pequena parcela de um
agenciamento maior: o chamado Projeto de Caracterização Ambiental da Bacia de Campos (PCR-
BC) que toma por objetivo geral, levando em consideração as diferentes feições e habitats, produzir
um modelo ecossistêmico da região. Um projeto que vai da bactéria à baleia”, como me disse
Salvatore, subsidiando estudos sistemáticos das relações tróficas da bacia, procurando responder a
uma grande pergunta, no atual vocabulário do desenvolvimento sustentável, considerada
fundamental para o monitoramento da saúde ambiental: existe uma espécie particular que rege
este ecossistema?”. Segundo a representante da instituição financiadora, este tipo de pergunta é
crucial para que a Petrobras estabeleça os possíveis alvos de intervenções vindouras, capazes de
minimizar o impacto de suas atividades no ecossistema da Bacia de Campos, ainda segundo a
34
Considerada a segunda maior ocorrência desta ordem em águas cariocas. Em virtude de um problema originado em
uma das tubulações da Refinaria Duque de Caxias (REDUC), foram despejados no mar aproximadamente 1,3
milhões de litros de óleo cru produzindo toda sorte de prejuízos, a saber: contaminação do espelho d´água da Baía
de Guanabara em uma área de 50 quilômetros, cujos reflexos foram sentidos na fauna nectônica e planctônica;
contaminação das areias, costões rochosos das Ilhas do Governador e de Paquetá; contaminação do manguezal da
área de proteção ambiental (APA) de Guapimirim; danos a avifauna; contaminação da comunidade bentônica a
partir da sedimentação do óleo; comprometimento das atividades pesqueiras na região; prejuízo das atividades
turísticas.
35
Não reside nesta nova abordagem nenhuma transformação moral da empresa petrolífera, como indica o próprio
discurso da representante da Cenpes, a lição que a Petrobras aprendeu com um certo atraso, segundo os
pesquisadores - foi a de que a imagem de uma empresa inconseqüente no que tange as questões ambientais diminui
consideravelmente o preço de suas ações. Logo, a construção da imagem de uma companhia ambientalmente
responsável e aberta ao diálogo com a comunidade cientifica é um caminho mais interessante, economicamente
falando.
45
bióloga – de acordo com a própria, transformada em burocrata - representante do Cenpes-Petrobras:
Quando se protege tudo, não se protege nada, temos que saber o que devemos ou não
preservar e onde devemos agir emergencialmente no caso de um acidente. Por isso
precisamos elaborar os principais alvos do monitoramento constante da região: os
indicadores da sustentabilidade deste ecossistema.
Em decorrência de sua inserção neste projeto, desde 2004 o GEMM-Lagos embarca,
quinzenalmente, alguns de seus pesquisadores para a realização de avistagens de cetáceos ao longo
dos transectos realizados pela Petrobras. O objetivo é obter informações sobre as
rotas/comportamentos destes mamíferos na costa brasileira e, ao mesmo tempo, complementá-las
com as informações pré-existentes na bibliografia especializada. Os dados obtidos desta maneira
serão utilizados para a modelagem ecossistêmica pretendida pela Petrobras: de modo a estabelecer
um modelo em realidade virtual onde o engenheiro, no ato de planejamento de alguma atividade,
possa estar ciente das espécies que por ali circundam e do impacto de suas atividades. O papel do
GEMM-Lagos se limita a fornecer os dados primários para a confecção deste sistema, chamados
inputs, sem possuir nenhum controle sobre o que deles será feito nas etapas subseqüentes do
projeto, afinal “cada um vê o dado como quer ver, né?”, como faz questão de nos lembrar Salvatore.
Cientes da possibilidade de uma transformação indiscriminada dos dados obtidos
durante as atividades de campo - um sério risco a objetividade da empresa cientifica -, os termos de
financiamento do projeto PCR-BC obrigam os pesquisadores envolvidos a fornecerem aos inputs do
sistema de modelagem dados perenizados”. Ou seja, cada dado inserido no sistema (digamos, um
mapa das rotas migratórias das baleias-de-Bryde), deve estar necessariamente acompanhado de
metadados: referências a condições do tempo e do mar, número e qualificação dos pesquisadores
responsáveis pela coleta dos dados, metodologia e protocolos de pesquisa empregados. Desta
forma, acredita-se, os dados ganham rastreabilidade e podem ser continuamente retrabalhados, sem
qualquer perda de objetividade, na ausência dos pesquisadores do GEMM-Lagos.
“O que é esse projeto da Bacia de Campos com a Petrobras? É o mesmo Projeto
46
Baleias e Golfinhos de Arraial do Cabo. A área mesma, tudo igual, que agora a gente tem mais
recurso”. Em outras palavras, ao contrário do que normalmente se supõe, são os termos de um
acordo de financiamento que auxiliam a manutenção das diretrizes inciais do grupo uma vez que
sua função continua focada na produção de dados estatísticos sobre a abundância e utilização do
ambiente pelos cetáceos, agora transladados ao ponto de constituírem-se enquanto relevantes e
intimamente associados à questões consideradas maiores e antagônicas, como a produção
petrolífera do Brasil. Segue uma declaração feita por Salvatore em uma entrevista, sobre as
conclusões parciais de seu trabalho com a Petrobras:
Ao contrário do que se poderia supor, as plataformas de petróleo não causam impacto
direto sobre baleias e golfinhos. É até possível que gostem das vigas incrustadas de
cracas, anêmonas, corais e crustáceos que atraem peixes e das luzes e sons que servem
para orientação
36
.
5. Dois tempos, dois projetos de pesquisa.
Como já aludi anteriormente, atualmente o GEMM-Lagos mantém-se vinculado
institucionalmente à ENSP-Fiocruz; localizados no departamento de ecologia da instituição,
continuam investindo seus esforços na transformação dos mamíferos marinhos em indicadores da
saúde ambiental, deslocando-os para a posição de espécie sentinela
37
: “desde que apliquei para
36
Em um registro menos formal, Salvatore me dizia: “Aquilo ali [uma plataforma offshore] é um palito para o bicho.
Você acha que o bicho é burro? Gente, bicho não é burro não, ele aquilo, no meio de um oceano imenso, ele
desvia” .
37
As chamadas estratégias de conservação possuem uma classificação bastante particular dos animais. No que tange
os cetáceos, acompanhamos no primeiro segmento deste capítulo seu deslocamento de um recurso natural (posição
que é ocupada por animais menos carismáticos como algumas espécies de peixes) para uma espécie bandeira, ou
seja, uma espécie carismática para o público, usada como propaganda para proteger outras espécies menos
conhecidas e/ou carismáticas e seus habitats. Este efeito de proteção gerado pelas espécies bandeira é conhecido
como efeito guarda-chuva, por isso não é incomum encontrar, na literatura especializada, referencias a cetáceos
como espécies guarda-chuva: por serem animais de hábitos migratórios extensos, os efeitos da proteção dos cetáceos
se estenderia por praticamente todo o globo terrestre, é justamente desta forma que encaro a citação da Whale and
Dolphin Conservation Society previamente citada (“If we can't save the whale, we can't save anything”). O recente
deslocamento dos cetáceos para a posição de espécies sentinela (Reijnders et al. apud Siciliano, 2002), não nega as
proposições anteriores, au contraire, é atravessado por elas, aumentando ainda mais a importância da preservação
destes animais se antes as assertivas conservacionistas tinham um apelo moral, agora apela-se diretamente para o
instinto de sobrevivência dos humanos para convencer o coletivo da necessidade da conservação ambiental.
47
[Fiocruz], minha proposta de trabalho é exatamente a mesma até hoje”. De fato, quando olhamos
para as questões levantadas pela associação do GEMM-Lagos com a ENSP-Fiocruz, podemos
entender porque seis anos não foram suficientes para esgotar o interesse que os testemunhos de seus
objetos são capazes de gerar em uma instituição de saúde pública. Como vimos, o projeto de
Salvatore circunda duas grandes perguntas, a primeira diz respeito ao entendimento da estrutura da
relação causa-efeito da contaminação de mamíferos marinhos por substancias tóxicas. Objetivo que,
passados seis anos, continua longe de ser alcançado.
A segunda envolve o monitoramento das sensibilidades do ecossistema da Bacia de
Campos, levando-se em consideração que, por definição a exemplo da necessidade das aspas
utilizadas para se falar de uma normalidade biológica –, ecossistema é entendido como uma
clausura prática de um estado em contínua transformação: quando a gente acha que conhece a
natureza, ela sempre inventa uma coisa nova e a gente está desatualizado”. Tudo se passa como se
os dados não falassem sobre aquilo que a natureza é, mas sobre aquilo que ela está prestes a se
diferir (ou se diferiu
38
). Os cetólogos fazem questão de afirmar que seu projeto não pode ser
pensado em termos de princípio-meio-fim, mas sim enquanto um esforço contínuo, uma tentativa de
acompanhar enquanto forem capazes de interessar outros pesquisadores e obter financiamentos
as transformações de seus objetos, que por essência nunca deixam de se transformar. Para tanto, o
grupo investe grande parte de seus esforços na realização sistemática de monitoramentos in situ,
para o aumento e atualização da malha amostral disponível.
Em contrapartida, quando falamos da associação do GEMM-Lagos com o Cenpes,
devemos, como alertam meu interlocutores, pensar nos termos propostos pelo contrato de
financiamento, ou seja, uma relação com princípio-meio-fim. O primeiro contrato compreendeu o
período de 2004 à 2006, quando foram realizados embarques esporádicos para a realização de
avistagens, e o levantamento de dados a respeito da presença e uso do habitat nas áreas sob
38
Quando perguntei a uma das pesquisadoras sobre as motivações do contínuo trabalho de campo do GEMM-Lagos,
escutei:“Na melhor das hipóteses, isso que eu estou lendo aqui [aponta para um crânio de golfinho] está um pouco
desatualizado. Por isso a gente tem que ficar voltando sempre para o campo”. (Maíra)
48
influência das plataformas offshore. Em 2007, houve uma interrupção, por conta de uma
reestruturação interna do Cenpes e o estabelecimento de novos objetivos para o PCR-BC, sendo
assinado um novo contrato de financiamento entre o GEMM-Lagos e a instituição, no ano de 2008
com término para 2010, sem prorrogação prevista. A associação com a instituição financiadora
promove uma rotina de embarques quinzenais para avistagem; por conseqüência direta, dinheiro
para obtenção e manutenção de equipamentos, aluguel de uma casa em Búzios (para alojamento de
pesquisadores), entre outros pormenores tão necessários para a (re)produção científica do GEMM-
Lagos, como dinheiro para alimentação, combustível, roupas especiais...
Desta forma, quando olhamos para o GEMM-Lagos na prática, percebemos
claramente a distribuição do grupo em torno de dois tipos de atividades de campo, conhecidas pelo
termo metodologias de produção de dados primários: o monitoramento in situ, para a produção de
dados sobre a saúde do ecossistema marinho e conseqüente dos humanos; e a avistagem de
cetáceos, para o entendimento dos impactos ambientais ocasionados pelas plataformas offshore.
Penso que não devemos encarar este fato como uma mera alternância de pesquisadores entre
diferentes atividades de campo – e por conseqüência, com reflexos mínimos para a própria estrutura
do grupo -, mas como algo bem mais profundo e significativo tanto para a estrutura organizacional
deste projeto de cetologia, quanto para a própria realidade promulgada pelas práticas do GEMM-
Lagos, como nos indica a fala de Salvatore:
Na prática, temos dois tempos, dois projetos de pesquisa em um só. Não podemos
vincular o tempo das teses com o tempo da Petrobras. Foi isso que deu errado no Piatam
mar [projeto situado na costa norte do Brasil, que mantem vínculos institucionais com o
GEMM-Lagos]. Aqui [referente a associação com a Petrobras] o dado é GEMM-Lagos,
porque as pessoas estão sendo pagas para fazer isso, não tem complicação. Nas teses a
coisa é diferente, cada um tem o seu tempo, o seu trabalho. As pessoas resolvem casar,
ter filho nada contra –, mas com a Petrobras não podemos ficar dependentes das
pessoas, temos um tempo para completar tudo.
De forma direta, a literatura produzida pelas etnografias das ciências esta repleta de
49
exemplos semelhantes aos do discurso de Salvatore (Cf. Traweek, 1988; Law, 1994; Latour e
Woolgar, 1996; Mol, 2002): projetos de pesquisa que a princípio parecem únicos, quando
observados na prática demonstram divisões internas extremamente relevantes para o entendimento
de seus resultados enquanto projetos de ciência. Em seu trabalho empírico sobre o Daresbury SERC
Laboratory um laboratório de Física Nuclear –, John Law escreveu sobre estes projetos de
pesquisa dentro de um mesmo projeto de pesquisa, quando percebeu a co-existência de dois padrões
de organização que se repetiam e ecoavam em diferentes contextos da produção científica em
Daresbury: “They where two quite different styles for decision making that seemed to co-exist,
often within the same person. Sometimes they conflict. [...] I came to the view that the organisation
of the laboratory was not any single thing” (2004, p.112). Segundo o autor, cada padrão de
organização representava um deslocamento específico tanto para os pesquisadores quanto para os
objetos de pesquisa, cada padrão correspondia a um agenciamento metodológico específico, uma
produção científica distinta
39
. Law nomeia estes padrões de organização como “modos de ordenação
da produção científica” e conclui:
were being enacted in and enacting the structure of the laboratory [...] And organisation (a
verb rather than a noun) was the enactment of all of these [padrões de organização] and
their different interactions (and a lot more besides). Organisation, then, was multiple. It
was multiple patterning, multiple versions of repetition, and multiple modes of Othering
(ibid.).
Estabilizando interativamente a teoria e os dados do campo, no GEMM-Lagos
observei dois modos de ordenação: o primeiro (modo de ordenação da Fiocruz), um programa de
pesquisa voltado para o obtenção de testemunhos que estabelecem um bloco de aliança entre
cetáceos e humanos, cuja aliança é operada por uma substancia tóxica. Onde é necessário que o
39
Em la vie de laboratoire Latour e Woolgar chamavam a atenção para a existência destes movimentos, próprios
dos laboratórios:
voilà donc notre observateur capable désormais de distinguer dans les activités du laboratoire
plusieurs orientations, dont chacune correspond au type d'article finalement produit. Il faut dans
chaque cas identifier les persones concernées, les situer dans le laboratoire, connaître les
techniciens qui les assistent, les incripteurs qu'ils emploient, et identifier le type de littérature
extérieure em rapport avec les travaux (Latour e Woolgar, op. cit., p.50)
50
cetólogo participe de todas as etapas da produção científica, do momento em que encontra o animal
morto nas praias do Rio de Janeiro até a publicação do artigo científico (ou tese) referente ao
evento, sua autoria intelectual é a própria condição para este deslocamento. Como a fala do chefe
indica, ainda que não se deva pensar o modo de organização da Fiocruz nos termos de início-meio-
fim, devemos dividí-los em tempos individuais dedicados a cada um dos cetólogos envolvidos (“o
tempo das teses”).
Desta perspectiva, o projeto deve ser pensado enquanto o resultado de um
entrelaçamento de trajetórias individuais: nos termos de acúmulos de movimentos e investimentos
de seus membros a exemplo da forma como apresentei Salvatore. Tudo se passa como se cada
cetólogo encorporasse um agenciamento metodológico próprio (com tempos, protocolos,
laboratórios e, como veremos, substâncias qualificadas distintas) que atravessa o grande
agenciamento do GEMM-Lagos. Esta sobreposição de trajetórias e agenciamentos cria uma
hierarquia de posições, onde no topo se encontra Salvatore, cuja função é fazer com que todos estes
agenciamentos acabem convergindo para uma mesma grande pergunta: as relações entre
contaminantes e mamíferos.
Aqui, é a morte do animal que se constitui como acontecimento produtivo; sua
carcaça encontrada encalhada nas praias da Região dos Lagos - que constitui a condição básica
para as pesquisas dos cetólogos. Sua transformação de uma carcaça podre em uma carcaça da
sociedade (Maíra) é um processo longo, que deve obrigatoriamente seguir algumas etapas: o
encontro com o animal, onde este é processado e dividido em partes menores e/ou signos para
facilitar seu transporte; distribuição do animal, dependendo das condições do encalhe, as partes e as
inscrições do animal são enviadas para um número variável de laboratórios dos quais apenas três
possuem pesquisadores do GEMM-Lagos -, onde são depurados e transformados em gráficos e
tabelas; por fim, as tabelas e dados são remetidas a grande central de cálculo
40
do GEMM-Lagos, a
40
Termo, proposto originalmente por Latour (Cf. Latour, 2000, p.377), para designar qualquer lugar onde inscrições
são combinadas, tornando possível algum tipo de cálculo. A expressão, segundo o autor, tem o intuito de situar em
locais específicos uma habilidade de calcular normalmente localizada na mente dos cientistas.
51
sala de Salvatore Siciliano na ENSP-Fiocruz, onde os objetos produzidos por cada um dos
agenciamentos são postos em relação e finalmente enviados, no formato de artigos ou teses, para os
testes de força estabelecidos pela comunidade acadêmica.
Quando falamos do modo de ordenação da Petrobras, falamos de uma produção
contínua de dados estatísticos sobre a abundância e utilização do habitat pelos cetáceos, ou seja,
dados colhidos fundamentalmente através da observação de animais vivos. Nos deparamos com um
sistema onde a presença do pesquisador é necessária até a depuração que transforma o encontro
com um cetáceo em alto-mar em um mapa e/ou tabela. Deste momento em diante, o dado se torna
propriedade da empresa financiadora, sendo inserido com autoria coletiva do GEMM-Lagos nos
bancos de dados da Petrobras. Para a produção destes objetos, exige-se que os pesquisadores se
alternem, organizados em grupos de dois ou três, nos transectos quinzenais realizados pela
Petrobras (com duração média de 15 à 30 dias), onde cada pesquisador ganha em média 1500 reais
por viagem. Como veremos no próximo capítulo, as condições destes transectos não são aquelas
consideradas ideais para a prática da avistagem, o que exige uma adaptação da metodologia às
condições de trabalho oferecidas pela empresa financiadora.
Quando comparados com as etapas necessárias ao modo de ordenação da Fiocruz, a
primeira vista, temos um deslocamento relativamente mais simples no modo de ordenação da
Petrobras: aqui, o primeiro estágio acontece nos barcos da empresa - e até bem pouco tempo
também ocorria sobre os acidentes geográficos costeiros da Região dos Lagos -, de onde os
cetólogos registram, em cadernos dedicados, a presença e o comportamento dos cetáceos na região
oceânica; assim, os dados são diretamente remetidos á central de cálculo do GEMM-Lagos, onde
são depurados e, com ajuda de programas de computador específicos, transformados em mapas
(diz-se que os dados são plotados) e tabelas; por fim, são enviados para o Cenpes no formato de
relatórios de atividades –, onde ficam a disposição, sob a forma de dados primários, dos
engenheiros e pesquisadores responsáveis pela realização da modelagem ecossistêmica - etapas das
52
quais nenhum dos membros do GEMM-Lagos tem qualquer tipo de acesso.
Dois modos de ordenação, dois deslocamentos possíveis para os objetos/animais; no
entanto, ao contrário do que poderíamos supor, a comunicação entre estes dois movimentos não é
simples e automática - e por vezes não desejada. O modo de ordenação da Petrobras, a primeira
vista, não pode se deixar interessar pelos objetos promulgados pelo modo de ordenação da Fiocruz,
pois parte de um princípio contrário: quando falamos da posição do GEMM-Lagos dentro da ENSP,
devemos falar do interesse que seus objetos são capazes de gerar para um programa de saúde
pública; devemos falar da incapacidade em se prever os efeitos de contaminantes em humanos a
partir de uma simples medida de concentração in natura - neste modo de ordenação o cetáceo é um
veículo para a atualização de um estado virtual do ser humano. Interno a perspectiva proposta pelo
PCR-BC da Cenpes, os cetáceos assumem um papel menor frente às análises químicas da presença
de contaminantes no ambiente abiótico (neste grande projeto, realizadas por um grupo de
químicos), ignorando as diferentes respostas interespecíficas a estas substâncias - o que importa é o
ecossistema como um todo, do qual os cetáceos representam apenas uma pequena parcela. Não
foram poucos os momentos em que os pesquisadores deram a entender que, para a Petrobras, os
cetáceos valem mais como “propaganda política”, do que para dizer alguma coisa de relevante (do
ponto de vista científico) sobre a Bacia de Campos
41
.
Os cetólogos nunca me demonstraram qualquer preocupação com esta aparente
contradição entre os grandes programas em que estão inseridos, sobretudo por considerarem seus
vínculos com a Petrobras nos termos estritos de uma “prestação de serviços”: um aspecto menor de
suas atividades o que não quer dizer que seja menos científico -, mas extremamente necessário
para a (re)produção do grupo. De fato, aquilo que se postula enquanto um problema para os
cetólogos é a própria relação/não-relação entre os objetos e inscrições que emergem como produtos
41
De fato, quando olhamos para o tipo de financiamento que o GEMM-Lagos recebe e aquele destinado a outros
projetos de cetologia entendemos alguns elementos desta teoria nativa: no momento em que escrevia estas linhas, o
GEMM-Lagos era o único projeto de cetologia que recebia verbas da Petrobras destinadas a pesquisa científica, ao
passo que outros projetos, como o Projeto Baleia Jubarte de Abrolhos, recebem verbas destinadas a campanhas
publicitárias - “O Projeto Baleia Jubarte é a camisa do Flamengo”.
53
finais de suas práticas. Afinal, por mais que o monitoramento in situ e as carcaças sejam prioritários
no modo de ordenação da Fiocruz, os cetólogos sempre desejam combiná-las, durante a feitura de
artigos e teses, aos mapas e tabelas produzidas pela avistagem.
de início, temos duas substâncias qualificadas distintas que subsidiam os
dispositivos de inscrição de cada um dos modos de ordenação: O que a gente pode fazer com um
animal morto, a gente não pode fazer com um animal vivo”, um enunciado que, a primeira vista,
parece óbvio ou condizente com a idéia de que quando os cientistas não estão falando a respeito de
um único objeto, estão falando a respeito de um conjunto de objetos que automaticamente se
associam em um todo coeso. No entanto, penso que deste enunciado podemos retirar algumas
conseqüências não tão óbvias e/ou alinhadas com o senso comum a respeito das práticas científicas.
Para começar, interno ao modo de ordenação da Fiocruz, o que interessa é o animal
morto e as relações que dele podem ser extraídas pelos cetólogos. Quando se fala dos dados para a
Petrobras, o que importa é a observação do animal vivo e as relações que ele estabelece com o
Fig. 3 - Jubarte saltando, Bacia de Campos. Acervo GEMM-Lagos.
54
ecossistema da região. Para a ciência, as primeiras são consideradas naturais e autônomas, enquanto
as segundas seriam artificiais e contingenciais - qualidades distintas que as tornam substâncias
distintas. Contudo, isto não equivale a afirmar sua pré-existência independente ao juízo da ciência,
mas sim, remeter-se a toda uma cadeia de transformações que articula um conjunto de atributos em
uma substância qualificada, como propõe Latour:
A palavra “substância” não designa aquilo “que esta por baixo”, inacessível à historia,
mas aquilo que arregimenta uma multiplicidade de agentes num todo estável e coerente.
A substância lembra mais um fio que mantém juntas as pérolas de um colar do que o
alicerce sempre igual, não importa o que seja edificado sobre ele. Assim como a
referencia exata qualifica um tipo de circulação suave e fácil, a substância é o nome que
designa a estabilidade de um conjunto. (2001, p.175-76, grifos no original).
Naturalmente, demonstrar como uma série de atributos é transformado em substância
é o próprio motivo de uma praxiografia de um projeto científico, problema sobre o qual dedico os
próximos capítulos. Por ora, penso que seja importante falar et passim pois retornarei a este ponto
Fig. 4 – Filhote de jubarte encalhado, Búzios. Acervo GEMM-Lagos.
55
no capítulo III - sobre como a idéia do animal como um todo coeso composto de partes
combináveis, não garante que haja uma comunicação/associação imediata entre as substâncias que
dele emergem: ainda que a idéia de um objeto/animal singular, em um primeiro momento, seja
condição produtiva para a articulação das pesquisas do GEMM-Lagos.
Diz-se, a partir da metodologia de avistagem de cetáceos, que as baleias jubarte
raramente se alimentam em águas brasileiras; geralmente suas atividades durante o período
reprodutivo (em torno de quatro ou cinco meses) são subsidiadas pela espessa camada de gordura
em seus corpos, acumulada nos meses anteriores dedicados a alimentação em regiões polares e sub-
polares
42
. Desta forma, qualquer dado referente a presença de contaminantes em seus corpos
(especialmente aqueles que se acumulam em tecido adiposo, como os lipofílicos) não podem ser
considerados como dados relacionados às condições ecológicas da costa brasileira, pois não é a
simples passagem de um animal que garante sua contaminação pelo menos não em níveis que
mereçam ser mencionados -, o que importa mesmo é a alimentação.
Se você fizer isso [teste sobre a presença de contaminantes] em Jubartes, você não vai
muito longe, quer dizer, você vai até longe demais. Não é que se eu ver uma morta eu
não vou abrir ela, você pode até conseguir um dado bastante interessante, mas
dificilmente vai ser um dado daqui; como você vai comprovar que isso [contaminação] é
daqui e não de outro lugar por onde o bicho passa? Por isso a gente prefere trabalhar
com bicho que não é muito “aventureiro”. (Jaílson)
Nos termos práticos do grupo, uma jubarte encalhada certamente será alvo de uma
necrópsia e de todos os protocolos envolvidos na metodologia de monitoramento in situ, no entanto,
dificilmente será enunciada no projeto relacionado a Fiocruz, tendo seu deslocamento, literal e
metaforicamente, congelado ainda no momento da distribuição de partes/inscrições: ao invés de
migrar na direção dos laboratórios e central de cálculo, seu destino será os freezers e arquivos
42
Existem registros substanciais de que jubartes realizam predação, de maneira oportunista, em médias latitudes
durante seu retorno às áreas de forrageamento; em comunicação pessoal, Salvatore também afirma ter observado
este tipo de comportamento durante sua estadia em Abrolhos. Fatos que por si só não são capazes de derrubar a idéia
de que jubartes não se alimentam em território nacional, pois não podem ser caracterizados como um
comportamento habitual da espécie e sim de uma atividade oportunista; não existe um padrão em suas atividades
que permita sua enunciação em termos científicos.
56
digitais do GEMM-Lagos a espera de uma possível utilidade futura.
Em direção contrária (literalmente) seguem as brudas. Sabe-se, novamente através
dos estudos de avistagem, que se tratam de baleias residentes da Região dos Lagos, adeptas de uma
prática migratória bastante peculiar: ao contrário da migração latitudinal realizada pelas jubartese
pela maioria das grandes baleias -, as baleias-de-Bryde realizam uma migração longitudinal
(Siciliano et al., 2004). Desta forma, toda sua alimentação, do leite materno à predação, é realizada
em uma faixa do território nacional bem delimitada; um dado capaz de transformar os registros de
encalhes referentes a esta espécie em acontecimentos preciosos para o modo de ordenação da
Fiocruz, pois os índices da presença de contaminantes extraídos de seus corpos podem ser
sobrepostos, com exatidão, sobre à área de estudos pretendida pelo GEMM-Lagos. Os dados da
avistagem são então associados aos dados do monitoramento in situ, dotando os segundos de
qualidades que por si só, eles nunca teriam: uma rastreabilidade, uma prova de que aquela
contaminação é inequivocamente uma contaminação própria da Bacia de Campos.
Em ambos os exemplos, observamos como os dados promulgados por uma
metodologia, neste caso a avistagem, são utilizados como objetos do plano de referência de outra
metodologia, controlando aquilo que pode ou não ser dito, transformado, ou não, em um enunciado
científico pelo modo de ordenação da Fiocruz - uma complementaridade certamente esperada pela
perspectiva do animal como um todo coeso. No entanto, é importante notar que não são as
chamadas substâncias qualificadas que interagem diretamente uma sobre as outras, mas sim as
representações destas substâncias que entram em relação: não é a baleia viva e a baleia morta que
são postas em um mesmo quadro, são os mapas contendo trajetórias migratórias e índices de
contaminantes. É a própria prática científica que cria relações estáveis entre as partes do animal, o
cetáceo como um objeto/entidade singular é o próprio resultado final da investigação.
Se levarmos em conta que cada objeto é o produto final de uma cadeia de
transformações - dispositivos de inscrição distinta (Cf. Latour e Woolgar, 1996), devemos pensá-
57
los como elementos dotados de uma existência singular: o mapa não necessita, a priori, de uma
tabela com taxas de contaminantes e vice e versa, a necessidade é uma relação posterior e exterior,
orientada por um determinado modo de ordenação da prática científica. Destarte, aquilo que a
princípio era visto como um objeto/entidade singular (o cetáceo), transforma-se, a partir da ação da
ciência, em uma totalidade composta de elementos heterogêneos que estabelecem conexões parciais
entre si e inserida retroativamente na cadeia de transformações. Como veremos nos próximos
capítulos, uma totalidade composta por elementos que, dependendo da ordenação, são capazes de se
englobar, capturando todos os outros de algum modo.
Desta forma, não é de se surpreender com o fato de que nem sempre as partes, e
conseqüentemente os todos, propostas pelas duas cadeias de transformações sejam combináveis ou
passíveis de sobreposição imediata; ao contrário, a contradição entre os objetos e assertivas é algo
que acontece com uma freqüência bastante considerável (idéia partilhada pelos cetólogos). Como
um pequeno e primeiro exemplo, cito um artigo escrito por Salvatore e uma colaboradora, nomeado
Bryde's whale from Brazil: The whale of mystery (Siciliano e Souza, 2006), onde o chefe do
GEMM-Lagos divulgou para a comunidade científica interessada alguns dados referentes ao
conteúdo estomacal de duas baleias-de-bryde, encontradas nas praias de Quissamã (GEMM-052),
em 2004, e Rio das Ostras (GEMM-078), em 2005:
Two carcasses were dissected recently on the Rio de Janeiro coast and provided intriguing
results: both stomachs were full of a small shrimp, Acetes americanus, and their intestines
were massively infected by Bolbosoma capitatum, an acanthocephalan parasite of whales
(ibid., 05)
Segundo a mitologia, o Bolbosoma capitatum é um parasita cujo ciclo de vida
depende obrigatoriamente de um crustáceo como hospedeiro intermediário. Portanto, existem
indícios de que a ingestão contínua – não oportunista - de A. americanus esteja intimamente ligada a
presença do B. capitatum. Dados que levaram Salvatore a concluir estar diante de registros inéditos
dos hábitos planctófagos na B. edeni. Durante as avistagens, os próprios pesquisadores do GEMM-
58
Lagos haviam sido capazes de observá-las predando sobre sardinhas e pequenos peixes
clupeídeos, o que levou o cetólogo a escrever:
Contradicting fishermens' reports and the current literature on their preference for
sardines, they had fed on crustaceans. These are locally very abundant, especially in the
rich water masses off south-earstern Brazil wich are influenced by a local upwelling
system. The observation of an acanthocephalan parasitizing the Bryde's whale is new and
poses new questions about their feeding, ecology and life history. It shows cleary how
much research still needs to be done on the elusive Bryde's whale. (ibid., grifos meus).
Ao contrário dos exemplos anteriores, aqui os dados de uma metodologia não atuam
como objetos da outra, contribuindo para uma melhor sintonia e estabilização interativa entre as
agências humanas e não-humanas. Neste contexto, os dados do monitoramento in situ atuam
contradizendo os relatos estabelecidos pela metodologia da avistagem significativamente
colocados ao lado daqueles emitidos por pescadores –, onde as brudas são caracterizadas como
baleias essencialmente sardinheiras (sendo este justamente um de seus nomes vulgares: baleia-
sardinheira). Seria possível pensar, neste contexto, inspirado pela idéia de um objeto/animal
singular anterior ao juízo científico, em uma complementaridade dos dados da avistagem e do
monitoramento?
Creio que a resposta seja negativa; os próprios cetólogos são os primeiros a dizer que
caracterizar um animal como sardinheiro difere radicalmente de caracterizá-lo como sardinheiro e
planctófago:“ou uma coisa é ou não é, não tem meio termo
43
”. Penso ainda que o conflito entre os
dados sirva para a problematizar os limites da metodologia de avistagem, estabelecendo uma clara
hierarquia ontológica entre as metodologias (uma questão que desenvolverei melhor no próximo
capítulo), onde os dados do monitoramento in situ possuem mais peso por serem considerados mais
próximos daqueles produzidos pelos laboratórios.
Naturalmente, quando falamos da ciência, falamos de uma prática que tem a
43
Escutei esta mesma frase em diferentes contextos e enunciada por diferentes pessoas durante meu trabalho de
campo; com o decorrer do tempo, foi adicionado uma segunda parte, em tom de brincadeira: “essa coisa de meio
termo é coisa de antropólogo”.
59
singularidade como objetivo; que tem seus próprios métodos para evitar que suas entidades se
fragmentem em milhares de perspectivas idiossincráticas. O exemplo supracitado da alimentação da
baleia-de-Bryde revela um destes mecanismos de constituição de uma singularidade, a submissão
de uma perspectiva a outra, no entanto, esta é apenas umas das formas possíveis de lidar com os
conflitos entre os objetos e as proposições de cada um dos modos de ordenação do GEMM-Lagos,
como veremos no exemplo que se segue:
Diz-se, através da avistagem, que botos-cinza (Sotalia guianensis) não freqüentam a
região oceânica de Arraial do Cabo. Uma assertiva que aponta diretamente para a mitologia da
cetologia que propõe o S.guianensis como uma espécie de hábitos costeiros, assídua de regiões com
profundidade máxima de 50m. Arraial do Cabo é caracterizada por sua peculiar condição
oceanográfica, onde a poucos metros da arrebentação ocorre uma mudança brusca de profundidade
uma das razões para o alto índice de encalhes de grandes cetáceos na região -, caracterizando esta
parcela da Bacia de Campos como imprópria à presença de Sotalias. De uma forma inédita até o
momento, os dados da avistagem se associam a dados de outra disciplina, a oceanografia, para a
consolidação de uma mesma proposição: não existem botos-cinza no mar de Arraial do Cabo.
No entanto, quando olhamos para o banco de dados (ver anexo II) utilizado pelo
modo de ordenação da Fiocruz, encontramos o registro de dois encalhes de botos-cinza na região:
um em 2002 (GEMM-0038), onde, devido ao estado de decomposição da carcaça, os pesquisadores
puderam resgatar o crânio e o esqueleto peitoral do animal; e outro registro em 2005 (GEMM-
0089), encontrado em melhor estado lhe faltavam os dentes - após a passagem de uma frente
fria pela região. De fato, para os cetólogos, o que pôde ser extraído, ou não, destes animais é uma
questão menor frente a grande pergunta que os dois encalhes foram capazes de suscitar: como um
animal que não existe naquela região, pode ter encalhado por lá?
A princípio, poderia-se especular sobre uma possível falha na realização de
avistagens: no entanto, Arraial do Cabo é notoriamente conhecida pela cetologia regional por
60
justamente possuir uma das melhores plataformas para a realização de avistagem em ponto fixo o
acidente geográfico costeiro conhecido como Pontal do Atalaia -, o que minimiza
significativamente as chances de qualquer animal presente na região passar desapercebido pela
prática científica. Se isto não bastasse, os cetólogos ainda têm a seu favor os supracitados dados
oceanográficos e toda uma literatura estabilizada em torno dos botos-cinza. Poderia-se então supor
que se tratam de acidentes raros, de animais desgarrados, mas esta esta seria uma posição que
nenhum cetólogo sustentaria: dois encalhes com três anos de diferença são o suficiente para
produzir a hipótese de que se trata de um fenômeno característico da região.
Desta forma cria-se temporariamente um "vazio" entre os dois agenciamentos
metodológicos, um acontecimento que passa justamente no ponto-cego do encontro das
metodologias utilizadas pelo GEMM-Lagos: especula-se sobre a existência de correntes marinhas
capazes de deslocar animais mortos ou doentes de outras regiões para as praias de Arraial; fala-se
também muito sobre a degradação das reservas alimentícias de regiões próximas, onde
comprovadamente existem botos-cinza, fator que levaria alguns animais "mais corajosos" a realizar
expedições em busca de alimentos, um deslocamento que fatalmente terminaria em encalhe. Ambas
as hipóteses, que não se excluem, mas que ainda carecem de quantidade de dados empíricos – que o
grupo ainda não foi capaz de obter - até que possam ser promovidas a uma teoria válida sobre as
condições do ecossistema da região. O interessante, penso, é que ao contrário do que observamos na
controvérsia sobre a alimentação da baleia-de-Bryde, aqui é a própria não-relação entre as
proposições de ambos os modos de ordenação que se constitui como um problema produtivo para o
GEMM-Lagos, abrindo a possibilidade para novos entendimentos a respeito das características e
sensibilidades do ecossistema da Bacia de Campos.
Quatro exemplos, quatro formas de lidar com os objetos produzidos pelos diferentes
agenciamentos metodológicos que atravessam o GEMM-Lagos. Mesmo sustentando a idéia de uma
singularidade de seu grande objeto (os cetáceos) a própria condição de sua ciência -, os cetólogos
61
entendem que as relações entre as partes que emergem de suas práticas não é uma conseqüência
imediata condicionada pela pré-existência de um todo, mas sim, o resultado de um complexo
deslocamento das próprias partes. Um duplo trabalho para os pesquisadores, que não devem apenas
extrair testemunhos fidedignos de seus objetos, mas também fazê-los se relacionar com objetos da
mesma família, ora em regime de associação e incorporação, ora em regime de contradição e
exclusão, e deste conjunto de relações constituir um plano de referência consistente para suas
proposições.
62
CAPÍTULO II – CÔNICAS DO MAR
Of the grand order of folio leviathans, the Sperm Whale and the
Right Whale are by far the most noteworthy. They are the only
whales regularly hunted by man. To the Nantucketer, they
present the two extremes of all the known varieties of the whale.
As the external difference between them is mainly observable in
their heads; and as a head of each is this moment hanging from
the Pequod's side; and as we may freely go from one to the
other, by merely stepping across the deck:- where, I should like
to know, will you obtain a better chance to study practical
cetology than here?
(Herman Melville – Moby Dick)
1. Duas metodologias...
[D]ois tempos, dois projetos de pesquisa em um ”. Como vimos no capítulo
anterior este é o princípio organizacional do GEMM-Lagos, onde tudo se passa como se houvessem
dois grupos de pesquisas sobrepostos, mediando testemunhos distintos (e por vezes conflitantes)
daquilo que a priori seria um mesmo objeto: um animal singular e coeso. Quando nos deslocamos
para as atividades práticas, notamos que estes dois modos de ordenação se desdobram em no
mínimo dois grandes agenciamentos metodológicos orientados para a produção de substâncias
qualificadas distintas: para o monitoramento in situ são as transformações da carcaça do animal (o
bicho podre), obtida através do monitoramento contínuo de encalhes e capturas acidentais por redes
de pesca, que permitem aos cetólogos, a partir de necrópsias orientadas, explorar o animal e seus
elementos constitutivos (em termos nativos, os componentes intrínsecos da vida do animal). a
avistagem - seja ela de ponto fixo ou embarcada - toma o animal vivo por substância qualificada. É
63
a própria interação ecológica do cetáceo que permite ao cetólogo elaborar relatos sobre seus
elementos constituídos (os componentes extrínsecos da vida do animal). De fato, não foram raros os
momentos em que os cetológos definiam claramente o escopo de cada dos agenciamentos: dizia-se
que o monitoramento in situ estava para a natureza dos cetáceos, assim como avistagem estava para
a cultura e sociedade destes animais.
Dados os pré-constrangimentos de sua ciência, estender os conceitos de cultura e
sociedade para que pudessem abarcar os cetáceos nunca pareceu constranger meus interlocutores.
De fato, em direção oposta, todos os cetólogos do GEMM-Lagos afirmavam a própria
impossibilidade de se falar do comportamento destes viventes fora dos termos contingenciais
propostos pela noção de cultura
44
, como afirma Salvatore em texto: “cetáceos têm comportamentos
desenvolvidos e transmitidos apenas dentro de suas sociedades ou grupos. É a transmissão cultural.
(Siciliano et al 2006, p.20). Sociedade e cultura, conceitos tão caros as ciências humanas e que, pela
lógica do acordo moderno (Latour, 1994), parecem deslocados quando associados a uma
investigação biológica. A força da idéia de uma cultura e sociedade cetácea era tamanha que por
muitas vezes percebia, nas perguntas que os cetólogos me faziam, tentativas de estabelecer
paralelos entre as metodologias que utilizávamos para dar sentido a nossas experiências de campo -
eu com eles, eles com os cetáceos: isso que você chama de caderno de campo, não é uma versão
mais enfeitada de um etograma? (Paulo)”.
Biólogos utilizando-se das noções de cultura e sociedade para explicar o
44
Imponderáveis da vida cotidiana; minha interferência, acidental, no campo transformou isto em uma meia-verdade,
explico: eram recorrentes as brincadeiras a respeito da descrença dos pesquisadores em relação a seus objetos de
pesquisa: “Eu acredito nessas curvas [que indicam a concentração de contaminantes], e também acredito em fadas
e duendes (Renata), gente, as pessoas acham que eu estou brincando quando digo que não acredito no DNA
(Thais). Em certo momento, resolvi entrar na brincadeira e disse em resposta direta a citação anterior:tudo bem,
eu também sou um antropólogo que não acredito em cultura”. Dada minhas preferências intelectuais, estava
fazendo uma brincadeira algo forçosa - com a obra de Wagner (1986), contudo, minha declaração foi suficiente
para constranger meus informantes que pararam de se utilizar da palavra ao menos, na minha presença -,
substituindo-a por comportamento. Fato que tomei ciência quando um dos pesquisadores comentou que havia se
lembrando de mim em uma aula que acabara de assistir na pós-graduação da ENSP; para minha surpresa, o
pesquisador neste caso um especialista em quelônios relatou, em tom de reclamação, que uma de suas
professoras estava falando sobre o problema das culturas tradicionais na constituição de parques de conservação, me
disse que havia discordado da mesma sobre a utilização da palavra-conceito cultura e me perguntou em tom de
brincadeira e indignação - se eu não poderia ir com ele até sua aula para “acabar com ela”. Até o presente momento,
não tive a chance de explicar-lhes o que queria dizer com o “não acredito”.
64
comportamento de seus objetos, transformando-as em seu próprio assunto, não é de forma alguma
inédito na literatura produzida pelos estudos científicos (Cf. Haraway, 1991; Sá, 2006) e apresenta
algumas singularidades a serem exploradas no decorrer deste capítulo. Contudo, gostaria de chamar
atenção para o fato de que - ao contrário do que ocorre na antropologia (Cf. Viveiros de Castro,
2002a) - nesta ciência, a idéia de uma sociedade animal não pressupõe automaticamente a
existência de indivíduos animais e vice-versa
45
.
Você pode me dizer que uma colméia é uma sociedade. Mas você não pode me dizer que
as abelhas são animais que exibem comportamentos individuais; é impossível atribuir
uma identidade a uma abelha. identidade geral tipo zangão, rainha... Com os
cetáceos é diferente, olha os golfinhos, cada um tem o seu próprio assobio. O pessoal
que trabalha com bioacústica diz que você consegue identificar cada um pelos sons que
ele emite. Até a gente, que não tem esse recurso a disposição, consegue identificar os
bichos com o tempo; você percebe claramente que cada golfinho tem um comportamento
diferente. Você tem sempre que lembrar que isso tudo dentro de uma sociedade, onde
cada um tem o seu papel bem definido. [...] Você estava falando de uma tribo que tem
pesadelo com onças andando em bandos né? É impressionante, é aquilo que eu sempre
digo, na grande maioria das vezes a biologia esta repetindo aquilo que as pessoas já
sabiam. A gente repete o que o os caçadores sabiam a muito tempo, o povo que
trabalha com onça, ta repetindo o que os índios sabiam a muito, e coloca muito,
tempo: onças não são animais sociais. Cada onça é uma onça e é assim que é a espécie.
(Salvatore).
A lógica que produz uma sociedade não é a mesma que produz sua contraparte, o
indivíduo, de modo que, para a biologia moderna, sua associação não possa ser considerada um
dado natural. Pelo contrário, é considerado próprio dos humanos e cetáceos (e mais algumas poucas
espécies de mamíferos superiores como lobos e chipanzés) um equilíbrio contínuo e delicado entre
a coletivização e a individuação de seus espécimes: para que haja indivíduos animais - dizem os
cetólogos - é necessário que a coletivização da espécie não seja capaz de reduzí-los a papéis sociais
genéricos, como no caso das abelhas; para que haja um sociedade entre os animais, é necessário que
o comportamento individual dos espécimes não seja capaz de sobrepujar a coletivização, como
45
Como observa Viveiros de Castro (op.cit.), indivíduo é uma noção polissêmica possuindo no mínimo dois sentidos:
um sentido empírico universal (o dos espécimes) e um cultural particular (como origem e finalidade das instituições
sociais). Penso que, neste contexto, o conceito de indivíduo utilizado seja mais próximo daquele classificado como
cultural particular do que o empírico universal. Novamente, o conceito de indivíduo sendo estendido para abarcar
animais não é nenhuma novidade na literatura dos estudos científicos, (op.cit.) apresenta algumas interessantes
observações a respeito deste fenômeno entre primatólogos.
65
ocorre entre as onças. Diz-se que cada espécie tem sua própria trajetória evolutiva onde sociedades
e indivíduos podem, ou não, surgir como resposta do táxon a demandas ambientais. No caso dos
cetáceos a situação é ainda mais complexa, pois grupos de uma mesma espécie, por via de regra,
desenvolvem configurações sociais e culturais distintas em respostas aos mesmos problemas.
Alguns exemplos conhecidos são as orcas (O. Orca), da Patagônia, Argentina, e das ilhas
Crozet (Oceano Índico), e os golfinhos-nariz-de-garrafa (T. truncatus), de Laguna, Santa
Catarina, e de Torres e Tramandaí, no Rio Grande do Sul. Determinados grupos de orcas
são capazes de caçar leões-marinhos (Otaria flavescens) e elefantes-marinhos (Mirounga
leonina) à beira da praia, praticamente saindo da água para fazê-lo, encalhando
intencionalmente na praia. Essa técnica de caça é transmitida entre os membros
daqueles grupos, dos adultos para os jovens e filhotes. Entretanto, outros grupos de orca
locais não são capazes de expressar o mesmo tipo de comportamento, pois essa cultura
pertence àquelas sociedades. De maneira similar, os golfinhos de Laguna, Torres e
Tramandaí associam-se aos pescadores de tainha locais, cercando os peixes que se
encontram nas barras destes rios até perto dos pescadores, onde, com um sinal, o golfinho
indica a hora certa para que o pescador jogue sua tarrafa na água. Essa interação é
benéfica para os dois lados, de forma que os pescadores garantem o seu pescado e os
golfinhos garantem seu alimento. Outros grupos da mesma espécie que freqüentam áreas
próximas não realizam tal feito porque não desenvolveram esse comportamento peculiar.
(Siciliano et. al. op. cit., p.21).
Caracterizar adequadamente uma sociedade de cetáceos, identificar os elementos de
sua cultura e os papéis sociais de cada indivíduo é, certamente, um dos objetivos mais clássicos da
cetologia. Entretanto, frente as atuais orientações programáticas, este tipo de estudo vem
encontrando pouco espaço nas agendas dos pesquisadores do GEMM-Lagos - “pode-se dizer que [o
trabalho com carcaças] seja a atual tendência
46
.” (Jaílson). Gostaria de chamar a atenção do leitor
para o fato de que a mudança de substância, do animal vivo para o animal morto, não é encarado
como uma simples reorientação prática, mas como uma restruturação da própria disciplina: aquilo
que a gente perde em glamour, a gente ganha em cientificidade nos trabalhos”. (Maíra).
Como aludi anteriormente, fala-se das, por exemplo, variações morfométricas nos
termos de um aspecto natural e autônomo dos cetáceos, ao passo que os hábitos destes viventes são
caracterizados como artificiais e contingentes. Interno a esta perspectiva, penso que a cientificidade
46
Creio que o movimento seja reflexo de uma orientação mais geral da própria disciplina. A leitura de qualquer artigo
recente do periódico LAJAM demonstra que para cada artigo sobre o comportamento dos cetácoes, temos outros
dois sobre aspectos biológicos destes animais.
66
da disciplina possa ser considerada uma variável associada tanto aos rigores metodológicos, quanto
a própria qualidade da substância tomada por objeto. Uma demarcação que poderíamos supor como
“natural”, afinal, a despeito de todas as particularidades de seus objetos de pesquisa, a cetologia é
uma ciência moderna, cujo par ontológico natureza/cultura é causa imanente. Um regime onde a
objetividade das ciências do comportamento, a antropologia por exemplo, esteja sempre sujeita a
testes de força. (Cf. Viveiros de Castro, 2003).
Contudo, esta relação não é tão simples quanto estou fazendo supor nesta primeira
aproximação e certamente carece dos dados etnográficos que me levaram a esta proposição.
Portanto, para o bem do argumento, é imprescindível produzir uma descrição detalhada das séries
de translações necessárias para que um animal – apodrecido ou saltitante - seja transformado em um
objeto científico interessante. Movimento que deve seguir o caminho que me fora proposto pelos
próprios cetólogos: qualquer descrição deve ser precedida pela identificação daquilo que esta em
seu centro. Tão importante quanto, por exemplo, entender o que é e como é feito o monitoramento
in situ é entender aquilo que é alvo de seu interesse, a própria ordem cetacea. Para tanto, proponho
um sobrevôo sobre a mitologia a respeito destes animais; sobre os pressupostos que compõe um
plano de referência mínimo a partir do qual os cetólogos do GEMM-Lagos produzem seus
objetos/animais.
2. E Deus criou as grandes baleias.
Muito se publicou a respeito dos cetáceos desde que Herman Melville os concebeu,
em Moby Dick, como um tipo de peixe que esguicha e tem cauda horizontal
47
”: certamente, uma
percepção articulada com os debates internos da cetologia do século XIX (seria a baleia um
mamífero ou um peixe?), mas que hoje, aos olhos da cetologia moderna, constitui-se enquanto um
47
Tradução minha: “a whale is a spouting fish with a horizontal tail.”.
67
atestado de sensibilidade indiferenciada à algumas das qualidades sensíveis destes viventes
48
. Para
começar, atribui-se a Aristóteles (Stenuit, 1969) a primeira nomeação científica da ordem em seu
Naturalis Historia: “Aristotle understood exactly the difference between fish (the general run of sea
creatures wich he calls Ichthues”), and whales, dolphins and porpoises wich he calls big fish” or
kētos (ibid., p.21, grifos no original). A nomenclatura proposta era uma apropriação da palavra
utilizada popularmente para designar “monstros marinhos”. Uma história que soa bastante adequada
aos ouvidos dos cetólogos com os quais travei contato, pois além de se referir ao tamanho dos
cetáceos, parece evocar uma aura de mistério aos quais estes animais estão continuamente
associados, a começar por sua própria trajetória evolutiva.
Com o advento do século XX, deu-se por encerrada a questão do pertencimento ou
não dos cetáceos a classe Mammalia sobretudo porque até então a própria definição de mamífero
não se encontrava estabilizada pela ciência. Por conseqüência direta, outra ciência tomou a
existência destes viventes como um de seus objetos privilegiados. Se Darwin estava correto e a
evolução natural era um processo gradativo e contínuo, como explicar, a partir desta perspectiva, o
retorno de toda uma ordem de mamíferos para o mar sem que na história da paleontologia moderna
houvesse qualquer registro de um fóssil transicional que atestasse esta transformação? Haveria em
algum lugar uma proto-baleia capaz de explicitar o processo evolutivo deste animal
49
?
48
Muito da intervenção nos debates públicos realizada pelos pesquisadores do GEMM-Lagos, sobretudo Salvatore
Siciliano, parte de uma tentativa de conscientização da população para as especificidades dos cetáceos enquanto
mamíferos marinhos: pensá-los como peixes traz sérias conseqüências para sua conservação, pois implica trabalhar
com um sistema reprodutivo mais ágil do que é encontrado no animal. Uma idéia muito distinta sobre o estatuto
ontológico dos cetáceos pode ser encontrada entre os pescadores da Islândia (Einarsson, 1993), para os quais as
baleias são classificadas como drasl, que pode ser traduzido, segundo Einarsson, literalmente como lixo e que
quando aplicado a um animal em especifico, significa que ele não tem qualquer valor. Em outra direção, podemos
citar a cosmologia dos Yup´ik, povo da costa oeste do Alasca (Fienup-Riordan, 1996): para os quais os cetáceos
seriam mais pessoas (Yuk) que os próprios humanos, definição que, em linhas muito gerais, poderia ser aproximada
as proposições que embasam a delfinoterapia, campo interdisciplinar entre psicologia e terapia ocupacional, onde os
cetáceos aparecem como “mais sensíveis” e/ou “mais humanos que os humanos” (Servais, 2000).
49
Uma das passagens mais contestadas de Origem das espécies é justamente dedicada à formulação de um quadro
hipotético sobre a evolução das baleias:
In North America the black bear was seen by Hearne swimming for hours with widely open mouth, thus
catching, like a whale, insects in the water. Even in so extreme a case as this, if the supply of insects were
constant, and if better adapted competitors did not already exist in the country, I can see no difficulty in a
race of bears being rendered, by natural selection, more aquatic in their structure and habits, with larger
and larger mouths, till a creature was produced as monstrous as a whale. (Darwin apud Gould, 1997,
p.359).
68
Meus interlocutores, continuamente me chamavam a atenção para o fato de que a
própria noção de que mamíferos possam retornar para o mar, representa uma afronta a interpretação
moral da teoria darwinista, onde a evolução aparece enquanto um processo de mão única, que
invariavelmente teria no ser humano seu objeto final e mais elaborado
50
. Destarte, não foi por
coincidência que a ausência de registros fósseis do retorno dos cetáceos para o mar acabou atraindo
a atenção de criacionistas; ao passo que paleontólogos discutiam se a evolução era ou não gradativa
debate que perdura em alguns setores da biologia até o presente momento -, o criacionismo
entendia que esta ausência de evidências materiais, desta transição, afrontava a própria validade da
teoria da evolução natural como um todo, como fica claro nesta declaração de Alan Haywood:
Darwinists rarely mention the whale because it presents them with one of their most
insoluble problems. They believe that somehow a whale must have evolved from an
ordinary land-dwelling animal, which took to the see and lost its legs A land mammal
that was in the process of becoming a whale would fall between two stools it would
not be fitted for life on land or at sea, and would have no hope for survival. (Haywood
apud Gould, 1997, p.361).
Debate que permaneceu sem grandes mudanças até 1983, ano em que o paleontólogo
Phil Gingerich comunicou ao público interessado que havia descoberto no Paquistão um crânio, de
52 milhões de anos, pertencente a um tipo de proto-artiodátilo (mamífero ungulado), dando a ele o
nome de Pakicetus. A descoberta do pesquisador poderia ser considerada mais uma entre muitas da
paleontologia, não fosse por um detalhe: a estrutura odontológica do animal apresentava claras
Sobre esta passagem, o próprio Charles Darwin escreveu em carta para um amigo:It is laughable how often I have
been attacked and misrepresented about this bear.” (ibid., p.360).
50
Darwin nunca disse que o homem era a espécie mais evoluída; o engraçado é que as pessoas pensam que são mais
evoluídas, e digo isso em todos os sentidos”.(Jaílson). Stephen Jay Gould dedica uma boa parte de seus ensaios aos
debates gerados por esta percepção da teoria de Dawin, dentre os quais, penso que O programa SETI e a sabedoria
de Casey Stengel (1990) seja particularmente interessante, pois conecta-se diretamente ao debate sobre contato com
vida extra-terrestre. Se a evolução é um processo de mão única e uma lei universal, toda e qualquer criatura tão
inteligente quanto um ser humano, invariavelmente deveria ser igual a este. Segundo o autor, este tipo de proposição
ignora totalmente o fator contingencial presente, ainda que de forma marginal, na teoria original de Darwin. Diz-se
que a humanidade poderia simplesmente não existir, caso um meteoro (fator totalmente aleatório) não tivesse
atingido o planeta terra milhões de anos atrás. Neste mesmo contexto abordado anteriormente -, os cetáceos
representam um duplo problema a esta interpretação, não apenas por serem mamíferos que retornaram ao mar, mas
também por terem sua inteligência aproximada à dos humanos; em suma, representantes de uma via alternativa para
a evolução tanto do intelecto, quanto dos corpos dos seres vivos.. Agradeço a citação à Thais Sholl.
69
relações com as estruturas análogas encontradas em ossadas de mesoniquídeos - carnívoros
ungulados extintos no oligoceno superior, até então considerados os ancestrais diretos dos cetáceos;
a estrutura do crânio apresentava “esboços” do que viriam a ser aspectos do crânio das baleias
modernas. Apesar de significativa, a descoberta de Gingerich não poderia ser considerada como
prova definitiva da transição terra-mar dos cetáceos, justamente pela escassez de provas não se
pode encerrar um debate destas proporções com apenas o testemunho de um crânio.
Durante a década que se seguiu a descoberta de Gingerich, novos registros fósseis
foram encontrados na mesma região. No entanto, a exemplo do caso Pakicetus, todas as evidências
eram consideradas inconclusivas por não apresentarem peças (entenda-se: ossos) suficientes para
constituir um registro definitivo dos processos evolutivos dos quais os cetáceos foram sujeitos.
Somente em 1994, com a descoberta – a apenas 120 metros do local de descoberta do Pakicetus - de
uma ossada suficientemente completa, pode-se finalmente enunciar com alguma precisão a
trajetória evolutiva destes animais. Nomeada Ambulocetus natans, a ossada revelava um estágio
intermediário entre os mamíferos terrestres e os cetáceos modernos, permitindo aos cientistas inferir
não somente a respeito da morfofisiologia desta baleia transicional, mas também sobre seu estilo de
locomoção e modo de vida. A descoberta do espécime não foi considerado como uma simples
resolução de um polêmica científica. Dada as condições históricas prévias - e mais gerais - do
debate, o testemunho do Ambulocetus natans foi visto como uma verdadeira vitória política da
ciência, como as palavras de Stephen Jay Gould nos fazem supor:
This sequential discovery of picture-perfect intermediacy in the evolution of whales
stands as a triumph in the history of paleontology. I cannot imagine a better tale for
popular presentation of science, or a more satisfying, and intellectually based, political
victory over lingering creationist opposition [...] As a public illustration and sociopolitical
victory, transitional whales may provide the story of the decade. (Gould, 1997, p.366).
Praticamente no mesmo ano da descoberta do Ambulocetus natans, Gingerich e sua
equipe anunciaram a descoberta, no mesmo sítio arqueológico do Pakicetus, de outro fóssil de
70
arqueocetáceo subordem que inclui todas as baleias ancestrais -, nomeando-o Rodhocetus
Kasrani. Aproximadamente 3 milhões de anos mais nova que o Ambulocetus, o espécime
apresentava-se como o primeiro exemplar de um cetáceo totalmente despossuído de capacidades de
locomoção em ambiente terrestre. Ao contrário do Ambulocetus, que ainda possuía patas traseiras
desenvolvidas que lhe proporcionavam uma movimentação semelhante a de um leão marinho, o
Rodhocetus tinha patas traseiras atrofiadas, transformando-o no primeiro cetáceo integralmente
marinho
51
.
Com a descoberta das baleias transicionais e o subseqüente deslocamento do debate
evolucionismo/criacionismo para outras frentes, os paleontólogos voltaram sua atenção para a busca
de fosseis que estivessem justamente no início da jornada de volta para o mar empreendida pelos
cetáceos (Zimmer, 1999). Esta busca tinha alguns motivações bastante específicas: a primeira era
dar continuidade a documentação dos processos evolutivos próprios desta ordem; a segunda era,
através de um processo de engenharia reversa dos fósseis, responder a dúvidas relacionadas a
própria classificação biológica destes seres que os cetáceos são mamíferos todos na comunidade
científica concordam, mas esclarecer as relações de parentesco desta ordem ainda é uma meta dos
pesquisadores.
Como indiquei anteriormente, a descoberta do Pakicetus foi fundamental para que os
pesquisadores pudessem multiplicar as relações de parentesco dos cetáceos, adicionando algumas
conexões até então improváveis para dizer o mínimo. A partir de critérios anatômicos-
comparativos clássicos da paleontologia, o cranio encontrado por Gingerish e sua equipe permitiu
que os pesquisadores não duvidassem de uma relação de descendência direta entre cetáceos e
mesoniquídeos, mais especificamente os Mesonychid condylarths, acrescentando a necessidade da
existência de um grupo de seres intermediários entre estas duas ordens. Mas também a propor uma
51
A evolução não é um processo de mão única e totalizante, existem registros fósseis de uma espécie de cetáceo
conhecida como Indocetus raman: contemporânea ao Rhodocetus, a espécie mantinha características fisiológicas
que permitiam sua locomoção tanto dentro quanto fora d'água. Por conseqüência, o Indocetus é considerado uma
animal costeiro, ao passo que o Rhodocetus figura como um animal oceânico, classificação utilizada para designar
os cetáceos modernos (também conhecidos como cetáceos sobreviventes).
71
relação de proximidade entre cetáceos e artiodátilos: uma vez que alguns das características
morfológicas encontradas no Pakicetus eram compartilhadas com esta ordem de seres; interno a
esta perspectiva, cetáceos e artiodátilos seriam derivados de um mesmo ancestral comum. Contudo,
descobertas mais recentes, realizadas a partir do seqüênciamento de ADN de cetáceos e artiodátilos
reafirmaram uma relação, mas em termos distintos da sugerida pela anatomia comparada: nos
termos da sistemática filogenética, cetáceos e artiodátilos não são apenas ordens irmãs, mas sim,
elementos de uma mesma ordem cetáceos seriam artiodátilos, cujo grupo irmão seria o dos
hipopótamos. (Graur e Higgins, 1994).
Cetáceos são uma ordem ir dos artiodátilos ou seriam eles próprios
transformações de artiodátilos? Este é o atual grande debate que mobiliza a comunidade científica
interessada na evolução destes animais: de um lado, paleontólogos céticos em relação às conexões
estabelecidas a partir de estudos genéticos, considerada distante da realidade; do outro, geneticistas
críticos às metodologias embasadas pela morfologia comparativa, considerada arcaica. Temos um
empasse que se articula da seguinte forma: a partir do ponto de vista dos primeiros, temos a
promulgação de uma superordem de seres nomeada Cetartiodactyla, onde hipopótamos estariam
mais relacionados a todos os outros artiodátilos do que com as baleias; da perspectiva da genética,
temos o mesmo termo Cetartiodactyla designando um clado onde os cetáceos evoluíram a partir dos
artiodátilos, podendo ser agrupados ao lado dos hipopótamos em um clado menor chamado
whippomorpha ou cetancodonta.
Recentemente, a descoberta de um fóssil na china, pela mesma esquipe responsável
pelo Ambulocetus, adquiriu notoriedade por representar uma conexão possível entre as duas
perspectivas: apresentado ao mundo em um artigo cujo nome não poderia ser mais claro, Whales
originated from aquatic artiodactyls in the Eocene epoch of India (Thewissen et al., 2007), o
Indohyus era capaz de fornecer um testemunho, nos termos da anatomia comparativa, sobre seu
pertencimento tanto a ordem dos artiodátilos, quanto ao grupo de fósseis transicionais das baleias
72
sobreviventes. Em suma, para a paleontologia, o Indohys pode representar o elo perdido entre
cetáceos e artiodátilos. O testemunho que este fóssil é capaz de fornecer ainda precisa ser submetido
a mais testes de força pela comunidade científica interessada antes que seja considerado como
definitivo, ou se, ao menos, o mundo que ele esteja propondo seja exatamente aquele que seus
porta-vozes afirmam em artigos: certamente este é um debate em aberto que vale a pena ser
acompanhado de perto.
No entanto, como o objetivo de minha dissertação é bem menos abrangente, toda esta
revisão foi empreendida com o intuito de tornar claro para leitor a mitologia que informa a prática
do GEMM-Lagos. A partir deste ponto, saber se uma baleia é ou não um artiodátilo aparece
enquanto um problema menor, pois, segundo meus interlocutores, isto não os afeta onde realmente
importa, os menores níveis taxionômicos: a idéia geral da evolução dos cetáceos é que o interessa
aqui, e não seus pormenores incertos - isso é mais para pessoal da paleontologia. Um Sotalia não
deixa de ser um Sotalia, só porque descobriram um fóssil no oriente médio.
52
”(Renata).
Em linhas gerais, esta cetologia dos cetáceos modernos - como define Jaílson -
propõe clausuras práticas a estes debates, de forma a conter o efeito de paralisia que as incertezas
poderiam lhes impor: o que importa para um pesquisador do GEMM-Lagos é saber que as proto-
baleias (também conhecidas como arqueocetáceos) evoluíram a partir de um ancestral terrestre (seja
ele um artiodátilo ou não), que mantinha caraterísticas morfológicas dos antigos mesoniquídeos.
Viventes cujos novos hábitos levaram, progressivamente, à estabilização de capacidades e formas
condizentes a vida exclusivamente aquática, a saber: o atrofio de membros posteriores; membros
anteriores achatados em forma de nadadeiras; estruturas tegumentares desenvolvidas a partir de
tecidos não ósseos (nadadeiras caudal e dorsal); corpo alongado e fusiforme; a fusão das vértebras
do pescoço; ausência de cintura pélvica; pele lisa e sem pelos; a migração dos olhos para as laterais;
52
Como diria Gould com seu humor habitual: “If we had to change names every time our ideas about a species altered,
taxonomy would devolve into chaos [...] we do not change ourselves to Homo horribilis after Auschwitz, or to
Homo ridiculosis after Tonya Harding but remain, however dubiously, Homo sapiens, now and into whatever
forever we allow ourselves.” (1997:364).
73
respiração feita a partir de aberturas nasais posicionadas no dorso do vivente; camada de gordura
sub-cutânea bastante desenvolvida - conhecida como “blubber” - e órgãos reprodutivos e mamas
internalizados (Siciliano et al., 2006). Atualmente os cetáceos são constituídos por
aproximadamente 80 espécies – sendo 40 com ocorrência registradas no Brasil e 31 com ocorrência
na Bacia de Campos (anexo II) - distribuídas em duas subordens elaboradas a partir de critérios
morfofisiológicos: Mysticeti e Odontoceti.
Mysticeti (Baleias sem dentes, baleias verdadeiras): seu nome indica a ausência de
dentes em suas bocas; no lugar possuem estruturas denominadas cerdas bucais, conhecidas
popularmente como barba-de-baleia, estas são constituídas a partir de uma modificação da
epiderme, compostas em grande parte por queratina, sendo utilizadas exclusivamente para a
alimentação, quando a água do mar é engolfada junto com o alimento e posteriormente empurrada
para fora pela língua da baleia. Desta forma o alimento, em geral crustáceos invertebrados
(zooplâncton) e peixes de pequeno porte, é separado da água e engolido. Morfologicamente, as
espécies pertencentes a esta subordem atingem tamanho variados, indo desde a pequena para os
padrões dos cetáceos baleia-minke-anã (Balaenoptera acurostrata) com “modestos” 8m de
comprimento, até a colossal baleia-azul (Balaenoptera musculus) de impressionantes 30m: em
termos de registros científicos considerado o maior animal que já existiu
53
.
Atualmente, a subordem Mysticeti encontra-se sub-dividida em quatro famílias:
Balaenidae, Balaenopteridae, Eschrichtiidae e Neobalaenidae. Destas, duas têm registros científicos
confirmados em águas brasileiras; as mais famosas são a a baleia-jubarte e a baleia-franca-do-sul
(Eubalaena australis), que freqüentam a costa brasileira durante a estação de acasalamento e
reprodução de filhotes, o que corresponde, no calendário do hemisfério sul, aos meses que compõe
53
Certa vez, quando conversava com Salvatore a respeito da acurácia científica do livro Moby Dick, o cetólogo me
falou sobre a teoria de alguns pesquisadores também presente no livro de Hermam Melville a respeito de uma
seleção violenta imposta, pela atividade humana, ao tamanho dos cetáceos. Para estes pesquisadores, séculos de
contato humano teriam condenado os animais maiores, e conseqüentemente mais lentos e visíveis, a um processo de
dizimação continua, restando para a posteridade apenas animais menores. Uma teoria que não encontra muito
respaldo na síntese evolutiva moderna, contudo, como gostava de lembrar Salvatore: não é porque algo não pode ser
provado cientificamente que esse algo não possa existir.
74
nosso inverno e primavera. Existem ainda registros fósseis de duas famílias extintas: Janjuncetidae
e Mammalodontidae.
Odontoceti (ou Baleias com dentes): Baleias que possuem dentes, característica
morfológica que as qualifica como caçadoras ativas cujo cardápio variado inclui desde pequenos
moluscos, passando por toda a sorte de peixes e aves marinhas e chegando a aos grandes
cetáceos
54
. Os odontocetos também são conhecidos por seu intricado sistema de interação com o
meio ambiente, conhecido como ecolocalização (ou biosonar): realizado a partir de um orgão
situado na parte anterior de suas cabeças, conhecido como melão. A exemplo do que ocorre entre os
misticetos, aqui também encontramos uma ampla variação morfológica, havendo espécies como a
toninha (Pontoporia blainvillei) de apenas 1,75m, chegando aos cachalotes (Physter macocephalus)
de até 18m.
A cetologia moderna reconhece a existência de nove famílias de odontocetos:
Delphinidae, Ziphiidae, Iniidae, Kogiidae, Phocoenidae, Physeteridae, Pontoporiidae,
Monodontidae e Platanistidae. Destas famílias, apenas as duas últimas não possuem ocorrências
registradas em águas brasileiras
55
. Entre as famílias encontradas na Bacia de Campos temos
espécies de grande apelo popular como o golfinho-nariz-de-garrafa (Tursiops truncatus) espécie
amplamente utilizada em show aquáticos e em séries televisivas e a orca (Orcinus orca). Em
contrapartida, encontramos aqui também algumas das espécies menos conhecidas pela ciência
moderna como as baleias-bicudas (família Ziphiidae), o cachalote-anão (Kogia sima) e o cachalote-
pigmeu (Kogia breviceps).
Ao contrário dos “solitários” misticetos, cujas grandes socializações parecem ocorrer
apenas durante curtos períodos dedicados ao acasalamento, os odontocetos são animais
54
Estudos realizados em estômagos de cachalotes ligam sua dieta ao consumo oportunista de lulas-gigantes
(Architeuthis spp.) de até 13m e lulas-colossais (Mesonychoteuthis hamiltoni) de até 14m.
55
Sigo as informações que informam a prática GEMM-Lagos, que classificam os Pontoporiidae como uma família de
odontocetos, e não como uma subfamília dos Plantanistidae como sugere uma outra vertente da cetologia. (Moura et
al 2008a).
75
extremamente sociais, normalmente agrupados em complexas redes sociais que chegam a possuir
milhares de indivíduos, como é o caso dos grupos de golfinho-pintado-pantropical (Stenella
attenuata). Também não são raras as ocorrências de grupos interespecíficos, sendo algumas
associações bastante recorrentes na literatura especializada e na experiência cotidiana da cetologia,
como por exemplo: grupos mistos de golfinhos-nariz-de-garrafa e golfinhos-de-dentes-rugosos
(Steno bredanensis). A exemplo do que vimos anteriormente, os membros desta subordem, quando
estudados em cativeiro, foram capazes de apresentar um grau extremamente elevado de
comportamento criativo e pensamento abstrato, o que leva os pesquisadores interessados a
considerá-los mais inteligentes do que os grandes primatas, ficando apenas atrás dos homens
(Stenuit op. cit.).
Diz-se que as espécies de cetáceos não ocorrem ao acaso nos mares, muito pelo
contrário, seguem padrões de distribuição determinados por seus hábitos culturais e necessidades
ecológicas
56
. Para fins práticos, os pesquisadores do GEMM-Lagos classificam os animais a partir
do ambiente em que ocorrem, dividindo-os em espécies costeiras e espécies oceânicas: as espécies
costeiras são aquelas que têm predileção por áreas situadas entre a linha da costa até a quebra da
plataforma continental, próxima a linha isobatimétrica dos 200m de profundidade; espécies
oceânicas, em contrapartida, ocorrem a partir da quebra da plataforma continental, tipicamente no
talude continental acidente geográfico que pode ser comparado a um abismo, região onde a
profundidade aumenta abruptamente de 200m para até 3000m de profundidade ou em bacias
oceânicas profundas. esta divisão não é aplicável a todos os cetáceos, pois algumas espécies são
extremamente versáteis quanto a sua distribuição, ocorrendo tanto em áreas costeiras quanto em
áreas oceânicas, como é o caso da baleia jubarte que, a despeito de sua preferencia por migrar sobre
56
Quando perguntei a uma das pesquisadoras sobre a razão da não ocorrência de botos-cinza (Sotalia guianensis) em
áreas de grande profundidade, obtive a seguinte resposta: O bicho morre de medo, ele gosta de viver mesmo até
50m, mais do que isso ele estranha”. Ao que tudo indica, neste caso e em alguns outros - o uso do habitat é mais
uma opção da espécie – desenvolvida através de sua própria história evolutiva - do que uma imposição natural. Não
são raros os casos de grupos de cetáceos que “improvisam” novas usos do habitat, como no supracitado caso das
orcas da Patagonia.
76
a plataforma continental da Bacia de Campos, recentemente teve ocorrência registrada em área
oceânica de 3.000m de profundidade (Siciliano et al. op. Cit.).
Enfim, estes são os “dados biológicos de base” que descrevem e auxiliam na
produção dos cetáceos pela cetologia, objetos comuns de todos os agenciamentos metodológicos em
atividade no GEMM-Lagos. Proposições que, como veremos, serão imprescindíveis para que haja
comparabilidade, coordenação e lculo entre os múltiplos cetáceos que resultam das práticas da
cetologia. Dito isto, creio ser possível, finalmente, empreender uma descrição praxiográfica das
metodologias de produção de dados primários, a começar por aquele responsável pela própria
organização do grupo, a avistagem.
3. Quando a forma do outro é o sujeito: avistagem
O primeiro movimento necessário para uma descrição adequada da avistagem, é
observar que aquilo que até o momento vinha sendo descrito enquanto uma única metodologia
voltada para a produção de dados primários, de agora em diante deve ser dividido em, no mínimo,
duas; se em seus laboratórios, os próprios cetólogos se referiam a esta prática em um tom singular e
generalizante (“os dados da avistagem”), durante suas incursões no campo, o termo é sempre
procedido de sua localização (“trabalhei muito com avistagem de ponto-fixo”). Desta forma, para
avistagens feitas a partir de acidentes geográficos costeiros da-se o nome de avistagem de ponto
fixo; para aquelas realizadas a bordo de embarcações, o nome não poderia ser outro que avistagem
embarcada. A diferença é significativa, além das mudanças nos aspectos organizacionais, mudam os
próprios cetáceos que podem ser acessados, Se na pedra a gente depende do bicho passar por ali,
no barco a gente pode ir atrás dele [...] No barco a gente trabalha com as espécies oceânicas, que
tem muito pouca coisa publicada, sobretudo no Brasil e sobre a Bacia de Campos”. (Jaílson). Tomo
77
como marco inicial desta descrição a modalidade de avistagem considerada mais básica pelos
cetólogos, aquela feita a partir de um ponto fixo.
Quando perguntava a qualquer um dos pesquisadores do GEMM-Lagos a respeito da
avistagem em ponto fixo, inequivocamente recebia respostas como: é ficar sentado oito horas
seguidas na pedra, com direito a sol batendo na cabeça [...] até um bicho aparecer. Isso é, quando
aparece(Jaílson). Uma definição nativa que, a despeito do tom irônico, não é tão intuitiva quanto
pode parecer em uma primeira aproximação: afinal, ficar sentado por horas em cima de uma pedra,
observando cetáceos, não garante que a simples aparição de um destes viventes seja considerada um
dado científico aceitável pelo cetologia, é necessário que haja uma metodologia dispositivos de
inscrição –, uma organização dedicada a esta transformação.
Fig. 5- Avistagem de ponto fixo.
78
De fato, do ponto de vista de uma lógica organizacional, a avistagem de ponto fixo é
uma atividade relativamente simples, realizada por pequenos grupos de pesquisadores (1 a 3
cetólogos) e, em linhas gerais, consiste em permanecer no alto de algum acidente geográfico
costeiro por horas a fio, realizando registros da presença, ou não, de cetáceos na zona oceânica
adjacente
57
. Na região dos Lagos, para tanto, utiliza-se preferencialmente dois pontos: o Pontal do
Atalaia, em Arraial do Cabo, uma península escarpada com aproximados 5km de extensão, que
oferece uma excelente plataforma de observação dos cetáceos na região costeira. Outro ponto de
observação bastante utilizado é conhecido como Boqueirão: situado no município de Araruama, a
74m de altura do nível do mar.
[F]icar sentado oito horas seguidas na pedra é uma atividade que exige dos
pesquisadores que que se exponham diretamente a condições climáticas adversas, de forma que
com direito a sol batendo na cabeça - como fui perceber na prática - não seja o indicativo de
um simples desconforto sentido durante as atividades de campo. Muito pelo contrário. Remete-se,
de forma eufemística, a um perigo real continuamente experienciado pelos cetólogos: ainda que,
felizmente, não tenha presenciado nenhuma ocorrência desta sorte durante meu próprio trabalho de
campo, não eram raros os registros de hipotermia e hipertermia durante a realização destas
metodologias, assim como casos de queimaduras pela exposição contínua ao sol do Rio de Janeiro e
resfriados contraídos pela exposição a chuvas. Riscos que podem ser minimizados com a utilização
de indumentária adequada a cada tipo de situação. Contudo, mesmo com toda a preparação
possível, os pesquisadores afirmam que o elemento determinante é mesmo a pré-disposição
individual para agüentar as vicissitudes da cetologia prática, de que adianta se cobrir todo,
colocar boné, passar protetor, se com meia-hora a pressão cai e começa a passar mal?
(Jaílson). Um fator determinante para a escolha de novos pesquisadores para o GEMM-Lagos
58
.
57
Ao contrário do que a ironia da fala nativa possa fazer pressupor, estes registros são bastante comuns, girando em
torno de 2 a 5 registros/dia para avistagens de ponto fixo. No caso das avistagens embarcadas até o último momento
de trabalho de campo, estes dados ainda não haviam sido depurados ao ponto de fornecerem uma média das
ocorrências, no entanto, deve-se frisar que o número é consideravelmente maior.
58
Quando acompanhei algumas entrevistas de aspirantes a um estágio no núcleo de pesquisas, percebi claramente nas
79
Retomando, a avistagem em ponto fixo organiza-se de forma particularmente simples
(poucos pesquisadores dispostos sem qualquer organização aparente sob uma pedra) e utiliza-se
relativamente de poucos aparatos materiais: binóculos reticulados, câmeras fotográficas de alta
resolução, um aparelho de GPS, papel e caneta). Em contrapartida, sua versão em alto-mar, a
avistagem embarcada, mesmo que utilizando-se impreterivelmente dos mesmos aparatos materiais
de sua versão em terra, opera a partir de uma plataforma de observação sempre em movimento, um
complexo móvel imutável (um barco), o que trás algumas conseqüências para a transposição da
metodologia. A primeira delas é uma nova morfologia para a avistagem: no lugar de um ou dois
pesquisadores, temos uma organização ideal mínima de seis pesquisadores, dispostos rigorosamente
da seguinte maneira:
Nesta representação de um barco, os pontos negros representam a posição de cada
um dos seis pesquisadores; aqui, em vez de, como venho repetindo, apenas um ou dois
pesquisadores ficarem inteiramente responsáveis pelo monitoramento de toda à paisagem oceânica
adjacente, os cinco primeiros, tomando a proa como marco inicial, são encarregados de vigiar
somente a paisagem imediatamente a sua frente, havendo uma mobilidade visual máxima de 90º. O
integrante localizado na popa da embarcação é responsável por registrar em um caderno dedicado,
conversas internas que pairava sob a escolha de tal ou tal estagiário a imagem de um pesquisador ideal, alguém que,
entre outras coisas, fosse capaz de suportar certas privações para obter um dado cientifico. essa é uma das nossas
grandes dificuldades para conseguir achar um bom estagiário, as pessoas acham que vão trabalhar com o golfinho,
abraçar o bicho. Aqui não, aqui, é preciso ter disposição, arregaçar a manga mesmo para agüentar isso tudo.
(Jaílson). Nesta dinâmica, inesperadamente, o conhecimento específico a respeito dos cetáceos se torna secundário
para a aceitação do pesquisador no grupo - pois é algo que, dizem os cetólogos, certamente será adquirido durante o
tempo - o que importa nesse primeiro momento é sua resistência física e psicológica.
80
uma espécie de diário de bordo, os dados referentes a cada ocorrência. Dependendo da duração da
avistagem, que pode variar de quatro a dezesseis horas, propõe-se um rodízio entre os observadores,
de forma que todos possam, igualmente, ocupar a posição na popa do navio, considerada menos
desgastante.
Como aludi anteriormente, esta é uma organização ideal que ocorre com uma
freqüência menor do que a desejada pelos pesquisadores: por não possuir uma frota própria e estar
submetido a utilização de barcos alugados pela Petrobras para outras atividades que a observação de
cetáceos (a mais comum era a coleta de sedimentos marinhos), na prática, o que se observa com
maior freqüência é o embarque de um ou dois cetólogos, que se responsabilizavam pela cobertura e
registro de cetáceos em toda a região oceânica percorrida pelo barco. De fato, fala-se destes
Fig. 6 - Avistagem embarcada. Acervo GEMM-Lagos.
81
embarques quase nos termos de uma emulação, inapropriada, da metodologia praticada em ponto
fixo, com a única diferença de se estar em mar aberto e sobre um barco. Surge, na descrição nativa,
uma terceira e indesejada variação da avistagem, uma espécie de meio caminho entre a avistagem
de ponto fixo e a embarcada, denominada avistagem de oportunidade.
O objetivo destes embarques da Petrobras não é exatamente aquele que a gente queria:
embarcar em barcos exclusivos para fazer as avistagens. assim poderíamos formular
um método próprio para saber a real abundância de cetáceos naquela região, território,
no tempo. que o objetivo dos embarques não é esse, esse barco é para coletar
sedimentos e a gente aproveita a oportunidade. Essa avistagem pode ser chamada de
avistagem de oportunidade, porque a gente não fazendo, utilizando um método de
coleta específico; a gente está coletando bicho que passou na frente ao acaso. Nesse
último embarque, eu vi bicho assim [faz um gesto indicando uma proximidade entre ele o
animal] na frente do barco e pensei: ainda bem que o barco indo nessa direção.
Adivinha? Foi só falar isso que o barco mudou de direção. (Jaílson).
Como a fala de Jaílson indica claramente, se as condições não são ideais, a qualidade
dos dados coletados fica seriamente comprometida. Uma indicação de que sob à aparente
simplicidade organizacional da avistagem esconde-se uma intricada metodologia capaz de
transformar o encontro com um cetáceo, geralmente na forma de um borrifo no horizonte e/ou uma
mancha negra sob a superfície do mar, em um dado científico interessante. Como o próprio Jaílson
me afirmara em outra ocasião: eu vi uma baleia em um lugar! Não quer dizer muita coisa para a
gente; na verdade, não quer dizer nada”. O dado que pode ser extraído de um encontro com um
cetáceo está necessariamente conectado com a capacidade do pesquisador em identificar e
sistematizar esta experiência, traduzí-la para uma linguagem apropriada, transformando manchas e
borrifos em tabelas e mapas.
O primeiro movimento desta transformação do encontro em dado/inscrição é o
domínio das técnicas de avistagem cujo um dos pontos elementares é a utilização adequada dos
aparatos materiais, a começar pelo binóculo reticulado considerado, ao lado do papel e caneta, o
82
instrumento primário desta metodologia
59
. Este instrumento não apenas permite ao cetólogo avistar
claramente cetáceos a distâncias maiores do que o sistema visual do observador permitiria, mas
também localiza-lo no sistema de posicionamento global certamente algo que nenhum olho
humano é capaz de fazer -, produzindo o chamado georeferenciamento do trabalho de avistagema
própria transformação que permite ao cetólogo retomar em seu computador a história de cada
ocorrência, dotando-as de compatibilidade e, por conseqüência, comparatibilidade.
Mas então, esse círculo aqui é a visão que a gente tem a partir do nosso binóculo é o
que a gente usa em campo. Ele tem esses retículos, é assim que se chama essas linhas
horizontais que cortam essa linha vertical. Aqui embaixo temos essa bússola em forma de
números, conforme você vai girando o seu corpo, vai girando estes números. Enfim,
funciona desse jeito. Esse equipamento serve tanto para avistagem em ponto fixo,
também para avistagem embarcada. (Jaílson).
Na ocorrência de um cetáceo, os protocolos exigem do pesquisador que alinhe o
último retículo do binóculo com a linha do horizonte e depois, contando os retículos de cima para
baixo, localize o retículo exato em que o animal se encontra. Exemplificando para o leitor: na figura
abaixo
60
, temos uma imagem-simulação de um avistamento. O retículo encontra-se alinhado tanto
com o horizonte, quanto com o animal, formando o registro Sotalia guianensis/retículo 3/bússola
60. Entretanto, engana-se quem pensa que o trabalho termina por ai, esta linha constitui-se apenas
como o primeiro tipo de dado que deve ser produzido em um encontro, cabe ao pesquisador
registrar por escrito comentários que excedam o simples georeferenciamento: destarte, anotam-se
referências como as condições climáticas, o comportamento dos indivíduos avistados, presença de
59
Na avistagem em ponto fixo, a utilização de um aparelho de GPS é praticamente redundante, pois normalmente a
posição das plataformas de observação é amplamente conhecida, e mesmo que não seja algo que raramente
acontece -, sempre existe a possibilidade de retornar ao local para posicioná-lo; a utilização de máquina fotográfica
é exigida para incrementar o dado obtido através do binóculo, ou para identificar posteriormente o espécime
avistado, ferramenta particularmente útil no caso de algumas espécies bastante difíceis de serem diferenciadas a
primeira vista, como é o caso da baleia-de-Bryde (Balaeonoptera edeni) e a baleia-sei (Balaenoptera borealis). Por
conta disto, os pesquisadores costumam dizer que o mínimo que você precisa para realizar a avistagem é um
binoculo reticulado, papel e caneta.
60
A imagem utilizada é uma reprodução quase literal (me utilizo de uma espécie de cetáceo diferente) da imagem
utilizada por jaílson durante as palestras cujo intuito era ensinar a metodologia da avistagem para novos
pesquisadores do GEMM-Lagos.
83
filhotes, etc... A lista de observações possíveis é praticamente infinita, ficando a critério de cada
avistador registrar aquilo que considera relevante, ou que lhe foi possível observar durante a
avistagem. Segue, como exemplo, os dados referentes a avistagem dos Sotalias supracitados.
61
26/09/2007
Sotalia guianensis
Avistagem de um grupo de aproximadamente 30 indivíduos.
Maré bem forte enchendo – SO fraco – céu encoberto
Os golfinhos estavam em comportamento de muitos saltos e corridas rápidas em duplas.
Parecendo haver tática estratégia de caça.
Água turva
Os grupos chegaram bem próximos da arrebentação em uma área muito rasa, os grupos
seguiram para a Praia Rasa
Os dados que excedem o “simples” georeferenciamento de cada ocorrência são
essenciais para que seja possível identificar adequadamente as relações ecológicas estabelecidas
pelos cetáceos com o seu meio. Como vimos no discurso da representante da Petrobras, quando se
fala nos termos de conservação do meio ambiente, o importante é saber designar prioridades.
Interno a esta perspectiva, uma área de alimentação vale mais do que um canal migratório, pois no
caso de um acidente, atribui-se aos cetáceos a capacidade de aprender com o evento e a estabelecer
novas rotas migratórias; no entanto, estes viventes até podem buscar novas áreas de forrageamento,
61
O trecho foi retirado do caderno de campo de Jaílson e encontra-se reproduzido na figura 11 deste trabalho.
Fig. 7 – Imagem-simulação de uma avistagem. Acervo GEMM-Lagos.
84
mas certamente não serão capazes de improvisar peixes e lulas para comer. Diz-se que a capacidade
de inferir adequadamente sobre os motivos e contextos de cada ocorrência é uma característica que
varia enormemente de pesquisador para pesquisador. Ainda que, como veremos a frente, exista todo
um esforço em homogenizar estas capacidades interpretativas, gerar um padrão técnico mínimo
(“não existe ciência sem padronização”) através de workshops e consumo de literatura
especializada, atribui-se a estas “informações excedentes” a qualidade de subjetivas frente àquelas
produzidas pelos próprios instrumentos, pois considera-se que dois pesquisadores, engajados em
uma mesma avistagem e utilizando-se dos mesmos aparatos materiais, tenderão a interpretações
distintas e até mesmo conflitantes acerca de um mesmo animal.
Como se a própria posição de sujeito do pesquisador não bastasse para atribuir uma
indesejável subjetividade aos dados da avistagem, deve-se obrigatoriamente levar em conta a
própria capacidade dos cetáceos em ocupar a posição de um sujeito outro. Animais culturais,
dotados de comportamento errático e contingente, cujo registro de um determinado comportamento,
ou a presença do cetáceo em uma determinada localidade, não pode ser transformado de imediato
em um enunciado a respeito de seu comportamento padrão. Deve-se antes, obter provas substanciais
de que aquilo que foi registrado pelo cetólogo partindo do pressuposto de que o cientista não
esteja equivocado - não se trata de um comportamento idiossincrático do espécime ou de um
comportamento oportunista da espécie. Para tanto, os pesquisadores devem, em um segundo
momento, abrigados na central de cálculo, confrontar seus dados de campo com aqueles da
literatura corrente. Para que fique claro o que quero dizer, retornemos aos hábitos alimentares das
jubartes.
Ainda que existam registros de avistagens de jubartes predando em águas brasileiras,
sobretudo na região de Abrolhos, atribui-se a este comportamento a qualidade de oportunista, pois,
segundo a mitologia, as jubartes acumulam reservas energéticas suficientes durante as épocas do
ano em que se encontram nas regiões polares e sub-polares, tornando redundante do ponto de
85
vista nutricional - a alimentação realizada em médias latitudes.
Agora, vai dizer isso para uma baleia que ta passando por ali e um cardume dando
sopa. 'Olha, você não precisa comer eles'. Você come alguma coisa quando suas
reservas nutricionais estão baixas? [...] Então, com o bicho é a mesma coisa, ele não
come porque precisa, come porque gosta de comer. [...] Em Abrolhos, durante as
saídas, eu vi várias delas se alimentando na região. Mas ai, quando encalhava uma e a
gente abria o estomago encontrava ele vazio. O que a gente pode fazer? Não pode dizer
que elas se alimentam, mas também não pode dizer que elas não se alimentam.
(Salvatore)
A literatura por si não tem o poder de negar o que está sendo observado pelos
pesquisadores, que tampouco tem o poder de negar a própria literatura em torno do assunto que,
neste caso, tem a seu favor dados do monitoramento in situ, onde jubartes encalhadas aparecem sem
nenhum conteúdo estomacal, caracterizando o jejum. Da perspectiva da cetologia, a solução é
bastante simples: tendo em vista que cada jubarte é um indivíduo, atribui-se a este comportamento o
título de um comportamento oportunista da espécie, situando-o em uma mesma família de
enunciados regulares em torno da jubarte. Deslocamento que, de forma concomitante, valida os
dados empíricos produzidos pelos cetólogos do GEMM-Lagos e preserva alguns aspectos da
mitologia desta ciência.
Feito este breve adendo, damos continuidade a descrição de outros aspectos da
prática da avistagem, como a problemática utilização do binóculo reticulado - operador material ao
qual se atribui uma longa curva de aprendizado. A começar pela própria dificuldade em alinhar o
retículo com o horizonte - sobretudo na versão embarcada da metodologia - durante o encontro com
o cetáceo; no geral, o pesquisador conta com poucos segundos para a realização desta tarefa, sob o
risco de perder a chance de identificar e localizar adequadamente o animal. Deve-se ter em vista
que algumas espécies de cetáceos são capazes de permanecer por até 30 minutos debaixo d'água,
tempo mais que suficiente para que saiam do campo de visão dos pesquisadores. Portanto, espera-se
que, com o passar do tempo, o cetólogo seja capaz de alinhar rapidamente o binóculo ou (hipótese
mais provável) prever a posição do cetáceo no retículo sem que ele tenha sido devidamente
86
alinhado: “com o tempo você nem vai precisar alinhar direitinho, vai bater o olho e pam! vai
saber a posição do bicho”. (Jaílson).
Em suas palestras, Jaílson fazia questão de chamar atenção dos cetólogos menos
experientes sobre algumas precauções que devem ser tomadas, de modo a preservar o bem estar
psicológico de cada um, um fator que pode afetar diretamente a quantidade e qualidade de seus
dados.
[U]ma coisa muito importante: quando você está avistando, não é para ficar o dia
inteiro com o binóculo na cara. Isso estressa e ninguém agüenta ficar o tempo todo
assim. É legal revezar. cansado tira? Da uma visualizada normal. viu uma coisa
estranha? Pega o binóculo e olha [...] Uma pessoa estressada fica menos atenta às
pequenas alterações ambientais que dizem que tem um cetáceo ali. Tem também tem a
questão da amplitude: o binóculo reduz muito a amplitude da visão. Se você fica com o
binóculo na cara, acaba deixando passar bicho na sua visão periférica. (Jaílson)
Nesse ponto, faz-se necessário falar de outro aspecto impostante nas séries de
transformações características das avistagens, a utilização das chamadas técnicas de identificação
de cetáceos movimentos de suma importância para a translação de um encontro com o animal em
um objeto científico:
Tão importante quanto dominar as técnicas de avistagem, é saber identificar o que se
avistou. Muito ruim fazer uma avistagem e parar muito antes da espécie ou do gênero do
animal; às vezes, parar antes mesmo da família. Infelizmente, isso é muito comum
quando a gente avista apenas um borrifo no mar e não pode nem arriscar que é um
cetáceo misticeto, parar logo no cetacea. Mas um bom avistador poderia colocar pelo
menos no gênero.(Jaílson).
Como não faz parte da educação elementar dos jovens estudantes de ciências
biológicas aprender a distinguir cautelosamente cada uma das espécies de cetáceos presentes na
costa brasileira, resta ao próprio GEMM-Lagos complementar a formação de seus pesquisadores
com atividades práticas e mini workshops. Neles, basicamente, um pesquisador com maior
experiencia de campo elabora um quadro simplificado de características distintivas de cada espécie:
87
uma cartografia das afecções destes animais que pode auxiliar de forma imediata pesquisadores
com menor experiência durante suas avistagens. Cada quadro de características distintivas de um
animal é constituído a partir de resumos simplificados de artigos responsáveis pela estabilização de
sua identidade biológica
62
(por exemplo: Claphan e Mead, 1999, para a estabilização baleia-jubarte),
acrescido, quando necessário, de algumas informações a respeito das especificidades destas
populações na Bacia de Campos (por exemplo: diz-se que Delphinus sp. são abundantes na região
de Arraial do Cabo). Para exemplificar o aquilo que descrevo, segue abaixo uma transcrição dos
quadros de referências utilizados para identificar Sotalias e Tursiops.
Sotalia guianensis Tursiops Truncatus
Corpo acinzentado com ventre mais claro
com tons de rosado
Corpo robusto coloração em tons de cinza.
Chega a 4 metros e pode pesar 450 kg
Nadadeira dorsal triangular Coloração mais clara no dorso, atrás da
nad. dorsal
Suave divisão entre o rostro e o melão Rostro bem curto e largo. Demarcação
marcante do melão com o rostro
Grupo médio de 10-15 indivíduos Grupo médio de 20-50 indivíduos
Associado a boca de rios e estuários Ocorre em todos os mares tropicais e
temperados, podendo entrar em lagos
Freqüentes em águas rasas inferiores à 30m Tipicamente costeiro.
Costumam evitar embarcações Alguns apresentam capa dorsal bem visível
Entre a prática e a teoria existe um abismo. Era comum observar nas conversas entre
os cetólogos alusões as dificuldades de se transpor este conhecimento de modo adequado para as
atividades de campo; processo que requer treino e prática contínua: fui boa disso [identificar
62
A classificação biológica de cada espécie nunca é considerada definitiva: primeiro porque dizem os cetólogos
espécie é um conceito muito subjetivo”; segundoem relação de pressuposição recíproca com a primeira assertiva
os artigos que estabilizam as características distintivas de cada espécie estão sempre sujeitos a revisões que
obrigam os cetólogos a dizer vou ter que rever todos os meus conceitos”. Voltarei a este ponto no próximo capítulo
quando observaremos de perto a polêmica que recentemente institui que os Sotalias deveriam ser divididos em duas
espécies (Sotalia guianensis e Sotalia fluviatilis), debate do qual alguns dos membros do GEMM-Lagos vem
participando ativamente.
88
cetáceos na avistagem], mas hoje estou meio enferrujada, ando trabalhando mais com laboratório
mesmo (Maíra). Condição agravada pelo próprio contexto dos encontros com os cetáceos: se
durante os mini workshops, os cetólogos aprendem a identificar o animal a partir de fotos,
ilustrações e os supracitados quadros descritivos a respeito dos animais, na prática, durante uma
avistagem, tudo o que o pesquisadores tem a sua disposição são apenas alguns pequenos indexes da
presença e identidade taxionômica do animal, como um borrão escuro na água, um borrifo no
horizonte, eventos que certamente passariam desapercebidos aos olhos de pessoas não-treinadas
63
.
Neste cenário real, uma cauda avistada, ou uma registro fotográfico de uma nadadeira dorsal, são
considerados extremamente significativos para a identificação do animal avistado.
Novamente, ainda que seja de vital importância constituir uma padronização teórica
das avistagens, na prática é a capacidade individual do pesquisador que determina a qualidade dos
dados produzidos. “Tem gente que você ensina e na hora sempre erra; tem gente que já chega e nas
primeiras avistagens sai matando tudo. É tipo futebol, se você for ruim, não adianta treinar, não
vai funcionar. Em compensação, tem gente que já nasce sabendo jogar (Jaílson). Aqui, saber jogar
é saber identificar o cetáceo até o menor nível taxionômico possível (em alguns casos pode chegar a
subespécie); classificar corretamente um animal é garantia de valor científico. Interno a esta
perspectiva, uma avistagem confirmada de boto-cinza (subordem: Odontoceti; família:
Delphinidae; gênero: Sotalia; espécie: Sotalia Guianensis), animal particularmente abundante na
Bacia de Campos, vale mais do que uma suposta avistagem de uma grande baleia (Subordem:
Mysticeti), mesmo que estes viventes sejam relativamente mais raros. Portanto, recomenda-se aos
pesquisadores que, sempre que possível, registrem cada avistamento em fotografias de alta
resolução, dotando-os, em conjunto das informações excedentes da avistagem, de rastreabilidade e
comparabilidade com a literatura estabelecida, diminuindo a possibilidade de um desvio subjetivo
63
Ocasionalmente, o GEMM-Lagos estabelece parcerias com empresas que realizam turismo embarcado para a
observação de cetáceos: nós ensinamos os turistas a procurar por cetáceos. Muitas vezes as pessoas estão no mar
e não encontram o bicho que está ali do lado, sobretudo um bicho discreto como a bruda; nas águas de Búzios tem
muita baleia, mas não adianta você só saber onde procurar o bicho, tem que saber como procurar.” (Salvatore).
89
capaz de comprometer a qualidade do dado.
Quando se tem por objeto populações residentes de cetáceos (ou até mesmo estudos
de longo prazo sobre migrações de algumas espécies) é recomendado oscilar continuamente entre
os níveis da própria identificação do animal. Dados feitos a partir de identificações gerais são
considerados suficientes para a realização de estudos sobre o uso do ambiente pelos cetáceos -
incluindo-se a identificação e caracterização de rotas migratórias e zonas de alimentação que
tanto interessam a Petrobras -, mas não são consideradas satisfatórias para avaliar dimensões
importantes do comportamento destes viventes, como os sistemas de parentesco, a idade em que um
filhote se torna independente, a presença de algum tipo de segregação por idade ou sexo, hierarquia
etc... Faz-se necessário, da perspectiva da cetologia, ir de um nível mais geral (espécie) para um
nível mais específico (espécime) do animal: o que na prática gera um problema para a metodologia
da avistagem, afinal, como pudemos observar, identificar a espécie de um ser que passa a maior
parte do tempo submerso não é uma tarefa das mais simples, quanto se trata de identificá-lo
individualmente, a dificuldade cresce exponencialmente.
Conta-se que durante os anos 70, o acompanhamento de uma população de cetáceos
era chamado de marcação e recaptura: indivíduos eram capturados e marcados com artefatos que
pudessem ser presos a seus corpos, como bandeirolas numeradas presas à nadadeira dorsal por
perfuração e códigos tatuados com nitrogênio líquido no dorso dos animais. Uma vez devolvidos ao
mar, quando recolhidos em novas capturas, estes espécimes seriam capazes de subsidiar estudos
relevantes como a produção de taxas de crescimento populacional (medida através da variação da
taxa de recaptura). No entanto, este método apresentava uma série de fatores negativos: a captura de
animais para fixação de marcas artificiais carregava com sigo uma série de problemas práticos
(capturar cetáceos não é uma tarefa simples) e alto custo financeiro, “além de representarem um
estresse para os animais.” (Siciliano, Pizzorno e Simão, 2005, p.64).
Como alternativa, os cetólogos passaram a levar em consideração etno-classificações
90
utilizadas por pescadores de certas localidades, onde cada animal era individualizado a partir de
características fisiológicas particulares, como manchas na pele, cicatrizes e outras. Como é de
domínio público, cetáceos a exemplo de seus parentes terrestres acumulam ao longo da vida
vários ferimentos que deixam cicatrizes em seus corpos e nadadeiras, além disso, algumas espécies
apresentam variantes pigmentares individualizantes. Chamadas, pelos cetólogos, de marcas
naturais, este conjunto de características individuais são, em geral, conseqüência das atividades
diárias destes viventes, arranhões causados pelo choque de seus corpos contra sedimentos do fundo
do mar, mordidas recebidas durante interações com indivíduos da mesma espécie, etc... Algumas
também, decorrentes da interação com a agência humana, como marcas de colisão com
embarcações (comuns em grandes baleias), emaranhamento em redes de pesca (geralmente fatal
para cetáceos de pequeno e médio porte), marcas de arpões ou doenças de pele produzidas pela
degradação de seu habitat. Em paralelo, temos ainda um conjunto de marcas características da
fisiologia específica de cada espécie, que permitem aos biólogos realizar a identificação individual;
as principais são a variação de colorido e a forma da nadadeira dorsal. Contudo, algumas espécies
apresentam em seus corpos campos privilegiados para tal atividade, como: o lado inferior
(superfície ventral) da nadadeira caudal na baleia-jubarte; a forma da mancha no dorso da baleia-
orca (Orcinus orca); e a disposição das calosidades na cabeça da baleia-franca (Eubalaena
australis) (Cf. Siciliano, Pizzorno e Simão, op. cit.).
É desta forma que, interno a cetologia, “cada indivíduo recebe um número de
identificação e, em alguns casos, um nome, ou seja, uma identidade” (ibid, p.66). Em termos
práticos, esta atribuição de identidades se através da manutenção de um catálogo de
reconhecimento de cetáceos
64
, onde constam dados relativos às marcas naturais de cada animal
64
Ao redor do mundo, existe um esforço colaborativo entre diversos grupos de estudos para a elaboração de catálogos
internacionais de identificação de cetáceos, com o intuito de padronizar os estudos de foto-identificação:. Nada mais
natural, uma vez que a migração destes animais não respeita fronteiras nacionais. Os cetáceos têm a grande
capacidade de adquirirem identidades nacionais diferentes enquanto passam por grupos de cetólogos diferentes.
Novamente, percebemos um esforço de padronização para que não haja uma pluralização descontrolada das
identidades dos animais, como os cetólogos não cansavam de repetir: não existe ciência sem padronização ou
padronização é aquilo que garante a mínima comparação entre os dados”.
91
(provável origem, descrição qualitativa), assim como o tamanho da população à qual pertencem,
registrados dos usos do habitat e migrações. Para que sejam adequadamente identificados, os
cetáceos avistados devem ser fotografados com câmeras de alta resolução, ou, na impossibilidade,
reproduzidos em desenho e comparados com o catalogo referente a sua localização
65
, daí o nome
específico desta metodologia foto-identificação da avistagem. Para que as marcas naturais possam
ser nitidamente visualizadas, utilizam-se lentes grande-angulares (até 24mm) para os animais que se
encontram na proa ou ao lado da embarcação, e lentes normais (50mm) e/ou teleobjetivas (de 80 a
210mm) para avistagens distantes. Lentes zoom são muito úteis e recomendadas em dias claros,
com bastante luminosidade. Segue um exemplo dos dados de campo colhidos a partir da
metodologia de foto-identificação (dados colhidos por Jaílson):
Avistagem Jubarte – Pontal do Atalaia – Arraial do Cabo - RJ
As duas baleias juntas permaneceram por 1 hora (12:33 h 13:35 h) no local de
avistagem, aproximadamente 100 200 m. do costão rochoso. Fizeram exibição de nad.
peitoral, longos mergulhos com exposição da nad. caudal. Foi registrada associação com
Sula leucogaster [ave marinha da ordem dos Pelecaniformes, popularmente conhecida
como atobá]. E associação com barcos de turismo. As baleias seguiram a costa em
direção norte.
Vento direc- NE, Visib- Excelente, Vento força- 2, Céu claro.
Fig.1.A Baleia tinha a parte dorsal com muita craca. A parte ventral da nad. caudal era
predominante branca com a parte do meio, na entrada do pedúnculo, preta.
65
No Brasil, estudos de foto-identificação são realizados com diversas espécies: a baleia-jubarte na região de Abrolhos
(Projeto da Baleia Jubarte), a baleia-orca e a baleia-franca nos estados do Sul (Projeto da Baleia Franca). Também
são estudados o golfinho rotador (Stenella longirostris) nas proximidades da ilha de Fernando de Noronha, o
golfinho-fliper (Tursiops truncatus) no estuário da lagoa dos Patos e em Tramandaí, no Rio Grande do Sul, e o boto-
cinza na área costeira de Santa Catarina, São Paulo e Rio de Janeiro.
92
Fig.2. Esta baleia tinha também muita craca no dorso. A sua nad. caudal faltavam as
extremidades (marcado na fig. pela linha vermelha). A coloração da parte ventral era toda
preta.
Atualmente, no GEMM-Lagos, frente aos compromissos com a instituição
financiadora, este tipo de metodologia tem seu espaço bastante reduzido durante a realização de
avistagens sejam elas embarcadas ou em ponto-fixo -, ocorrendo apenas de maneira oportunista
quando os espécimes observados apresentam o comportamento adequado e pertençam a espécies
apropriadas dá-se preferência àquelas que apresentam marcas individuais em sua fisiologia como,
no dado citado, as jubartes. Como não existe nenhuma pesquisa em atividade que se utilize
diretamente destas inscrições, a exemplo do que acontece com as jubartes processadas pelo
monitoramento in situ, este tipo de objeto deixa de se deslocar a partir do momento em que os
pesquisadores deixam o campo, sendo imediatamente arquivados em seus bancos de dados para
uma possível utilização futura. Mais uma vez, o animal é processado pela agenciamento
metodológico, mas não é enunciado no modo de ordenação associado.
Ocasionalmente, estes dados podem retomar seu deslocamento de formas
completamente diferentes das originalmente pretendidas por seus produtores; durante meu próprio
trabalho de campo, tive a oportunidade de acompanhar a feitura de um artigo cujo objetivo era
empreender uma revisão do conhecimento a respeito das doenças de pele em cetáceos. Neste
trabalho uma colaboração entre pesquisadores de praticamente toda América do Sul, centralizada
no GEMM-Lagos -, eram utilizadas fotografias feitas para a foto-identificação de avistagens na
93
Bacia de Campos: alguns espécimes de S.guianensis, individuados a partir de manchas na pele e
deformações atribuídas a um patógeno semelhante a lobomicose, conhecido como lobomycosis-
like disease (LLD). Nesta nova série, cada uma das fotografias deixa de testemunhar a respeito da
identidade dos botos e passam a testemunhar a favor de seu pertencimento a um bloco de aliança
humano-cetáceo, neste caso, operado por uma doença de pele.
Retornando ao esquema geral das séries de translações; devidamente coletados e
depurados pelo confronto com a literatura específica, os dados das avistagens são inseridos em um
programa de Microsoft Windows (com exceção dos computadores utilizado para a realização de
seqüênciamentos genéticos, um Mac Pro 8 Core, todos os computadores utilizados pelo GEMM-
Lagos funcionavam com o sistema operacional da Microsoft versões XP e Vista) chamado
Distance (V. 4.1): um software capaz de transformar dados esparsos, colhidos em ocasiões e regiões
distintas, em gráficos de estimativas, intensidade e abundância populacional dos cetáceos na Bacia
de Campos. Neste formato, os dados são inseridos no GIS (Geoinformation System) Objectland (V.
2.6), que opera mais um movimento de translação, agora para o formato geoinformation database
(GDB). Transformando os gráficos em: mapas; temas (themes), um conjunto de mapas constituídos
a partir de uma mesma base relacional escolhida pelo cetólogo, como, por exemplo, registros de
uma mesma espécie em um determinado período de tempo; tabelas; pesquisas (queries), que
organizam tabelas em torno de uma base relacional, um processo muito semelhante aos temas;
banco de dados externos, componentes para o acesso de tabelas e dados de banco de dados externos
via ODBC
66
; e layouts, documentos compostos de mapas e tabelas cuja base relacional é definida
pelo cetólogo.
Todos os mapas e tabelas produzidos, em conseqüência dos termos de financiamento,
seguem o estilo (fontes, símbolos, estilos de linha, filtros) padrão da Petrobras, afinal, devem ser
66
Acrônimo de Open Data Base Connectivity: criado pelo SQL Acess Group em 1990, consiste em um API
(Application Programming Interface), ou seja, um conjunto de rotinas e padrões geralmente atreladas a um software
específico, mas que, neste caso, define uma espécie de método universal que pode ser utilizado por softwares com
qualquer base de dados; na prática, permitindo a comunicação entre bancos de dados distintos sem a necessidade de
estabelecer novos métodos de acesso ou reescrever a camada de dados.
94
compatíveis com outros objetos do banco de dados do Cenpes. Desta forma, toda a série de
transformações tem por seu objetivo final, garantir a comparabilidade e cálculo não apenas dos
cetáceos entre si, mas restabelecer para a instituição financiadora as associação entre cetáceos e o
ecossistema marinho da Bacia de Campos. Na prática, isto se traduz na compatibilidade entre os
objetos promulgados pelo GEMM-Lagos e outros grupos de pesquisa envolvidos no PCR-BC;
espera-se que destas conexões seja possível produzir um sistema de realidade virtual capaz de
oferecer prognósticos precisos dos impactos das atividades de exploração e produção de petróleo na
região.
4. Quando a forma do outro é a coisa: monitoramento in situ.
Em direção contrária ao exposto no tópico anterior, segue o modo de ordenação da
Fiocruz. Nele, o agenciamento metodológico de produção de dados primários é o monitoramento in
situ, cujo acontecimento produtivo é a própria morte do animal: momento estratégico que permite
ao cetólogo extrair da carcaça do cetáceo suas relações constitutivas
67
. O grande problema desta
metodologia é ser capaz de transformar um amontoado de carne apodrecida em algo interessante
para a comunidade acadêmica, ou nas palavras de uma pesquisadora: de uma carcaça podre em
uma carcaça da sociedade.” (Maíra); um processo longo, que tem início com o encalhe ou captura
acidental (no caso de pequenos cetáceos que morrem por enredamento) do animal nas praias da
Região dos Lagos.
Diz-se que cetáceos encalham pelas mais diversas razões, no entanto, de modo geral,
67
Característica da tradição cetológica brasileira, que age a partir da lei federal número 7.643 de 18/12/1987, onde
ficou proibida qualquer forma de pesca ou molestamento intencional de todas as espécies de cetáceos que se
distribuem em águas jurisdicionais brasileiras, incluindo a faixa de 200 milhas náuticas ao largo da linha de costa.
Um território distinto daquele encontrado por outras cetologias, com destaque para a japonesa, realizadas em países
onde as constituições permitem a captura e vivissecção de cetáceos (chamadas de capturas científicas).
95
ou seja, falando nos termos da ordem e não de algumas espécies - na maioria das vezes o encalhe
é menos o sintoma de algum problema ambiental, do que um descarte natural: afinal “bicho também
morre”, como gostava de repetir Salvatore. Determinar a causa exata do encalhe é um processo
extremamente delicado e dificilmente alcançado com exatidão pelos pesquisadores, sobretudo
porque dois ou mais fatores podem operar simultaneamente e, dependendo do estado de
decomposição da carcaça, os sintomas e patologias podem se torar obscuros ao olhos da ciência.
Entre as causas mais comuns de um encalhe encontram-se aquelas chamadas naturais que incluem
doença, mar agitado, idade avançada, dificuldades durante o parto e até mesmo um erro de cálculo
do animal, que avaliou mal as condições do território pelo qual se deslocou e acabou ficando preso
em águas muito rasas, fato geralmente aplicável aos grandes cetáceos. Ao lado destas, encontramos
as chamadas causas não naturais de encalhes, sendo as mais comuns os enredamentos, associados
com pescarias, colisões com embarcações e presença de contaminantes ou biotoxinas no mar esta
última particularmente interessante para o GEMM-Lagos.
Interno a este modo de descrição e inscrição, quando se fala de encalhes, deve-se
obrigatoriamente fazer um adendo quando o escopo é a Região dos Lagos, considerada pelos
cetólogos uma localidade “privilegiada” para este tipo de incidente: uma região de imenso aporte
sedimentar terrígeno, com uma morfologia suave de transição para o talude continental com a
exceção da região oceânica de Arraial do Cabo, marcada pela quebra brusca de profundidade -,
sendo este entrecortado pela presença de cânions submarinos e zonas de intenso ravinamento e
erosão. Estas condições são consideradas propícias para o encalhe de cetáceos que podem se
confundir com a grande quantidade de acidentes geográficos submersos. O índice de encalhes
registrados pelo GEMM-Lagos chega a média de dois por mês. Contudo, este índice que, apesar de
elevado, não deve ser considerado absoluto: falar de dois encalhes/mês significa dizer que de todos
animais que encalharam na região, apenas dois foram encontrados e processados pelo pesquisadores
do GEMM-Lagos; especula-se que a grande maioria apodreça sem qualquer registro.
96
Se hoje em dia a gente registra mais encalhe do que no passado, não significa
necessariamente que tem mais bicho morrendo, é mais porque tem mais gente
procurando: é muito coincidência né? Justamente quando aumenta o número de
pesquisadores, aumenta o número de encalhes. Agora, se você me disser que tem mais
animal morrendo porque, depois das épocas de caça, as populações estão se
restabelecendo, eu até posso aceitar, mas acho que esse aumento não é tão significante
quanto o aumento dos esforços de pesquisa. (Salvatore)
Da perspectiva do monitoramento in situ, o encalhe é a primeira e talvez mais
importante transformação do animal. Evento capaz de retirar o vivente de seu ambiente natural e
transformá-lo em outra coisa que um cetáceo: uma outra coisa que pode ser a substância qualificada
de um agenciamento metodológico da cetologia, um problema sanitário para a população local e
uma fonte abundante de comida para animais carniceiros
68
. Quando falamos especificamente sobre
o GEMM-Lagos, o evento não deve ser encarado como um objeto simples, mas sim como conjunto
de relações e entidades presentificadas na própria ocorrência. De fato, quando olharmos para os
produtos finais das séries de transformações em que a carcaça será inserido pela atividade dos
cetólogos, veremos claramente que aquilo que o encalhe traz para a praia, segundo a lógica da
representação científica (Latour, 2001, p.52), é um todo bem maior do que o próprio cetáceo: o
animal é o ambiente” (Maíra).
Se o encalhe não precisa do monitoramento in situ para existir ao menos enquanto
algo que não seja a substancia qualificada de um agenciamento metodológico -, o mesmo não pode
ser dito sobre as atividades científicas para as quais o animal encalhado é a própria condição de
possibilidade: “se não tem bicho podre, não existe monitoramento. Existe é passeio de bugre na
praia”. (Salvatore). Tudo começa com o monitoramento das praias da Região dos Lagos: atividade
68
Em certa ocasião, Jaílson me contou a respeito de uma teoria, segundo o próprio pouco científica, pela qual nutria
uma particular simpatia: os encalhes de cetáceos seriam uma forma encontrada pela natureza para equilibrar a
distribuição de energia entre os pólos:“imagina a quantidade de energia que uma carcaça de baleia é capaz de
distribuir em uma praia?”. Como veremos, ainda que os cetólogos não possam deixar que suas proposições se
informem deste princípio, sob o risco de serem acusados de pouca cientificidade, no campo, esta teoria informa
algumas de suas atitudes em torno da carcaça do animal, como a predileção por deixá-la se decompor a céu aberto a
disposição dos animais, ao invés de enterrá-la.
97
que consiste em, como indica a fala do chefe, percorrer diariamente quilômetros de faixa de areia
com um velho bugre - comprado e mantido com recursos dos próprios pesquisadores e ajuda da
Petrobras
-, a procura de cetáceos encalhados, que na grande maioria dos casos são encontrados sem
vida. Processo em que os cientistas não contam somente com a sorte
69
– ainda que esta não possa ter
seu papel diminuído como os próprios fazem questão de afirmar -, mas também com perícias pouco
associadas à prática científica dos laboratórios: os cetólogos, sobretudo os mais experientes, são
capazes de identificar a presença de encalhes através de inferências sobre alguns indexes mínimos,
como a presença de aves sobrevoando uma determinada área, coloração da água (no caso de
carcaças que estejam ocultas pelas ondas), cheiro residual de gordura ou carne em estado de
putrefação. Mesmo aquilo que, a princípio, seria uma tarefa simples, como diferenciar uma carcaça
em estado avançado de decomposição de um amontoado de lixo ou vegetação, mostra-se
praticamente impossível sem a perícia dos cetólogos mais experientes como Salvatore e Jaílson.
Um animal apodrecido não significa muita coisa para a cetologia. Assim, para que
adquira qualquer relevância, o corpo do animal deve ser transformado; como os pesquisadores não
podem realizar todos os testes que necessitam no local do encalhe, estas primeiras transformações
são dedicadas a redução do animal a uma quantidade de amostras e números que possam ser
deslocados com relativa facilidade. Processo que exige dos cetólogos organização
70
e criatividade
para que as etapas da transformação sejam cumpridas de forma eficiente e num pequeno intervalo
de tempo. Por via de regra, os pesquisadores quase nunca contavam com todos os materiais
69
Ou azar. Jailson gostava muito de contar a seguinte história: certa vez, durante uma de suas poucas férias desde que
entrou no GEMM-Lagos, resolveu levar alguns parentes de sua esposa, vindos diretamente da Alemanha, para
conhecer as praias de Cabo Frio “eu pedi para o Sal, se tiver bicho morto não me liga, nem adianta”. No entanto, no
exato momento em que chegou a praia, o mar literalmente jogou uma carcaça (espécie ignorada) para cima do
pesquisador, que não teve nada a fazer além de voltar para casa, deixar os parentes, pegar o kit de processamento e
perder um dia inteiro realizando a necrópsia do animal. Narrativas semelhantes, sempre em tom de brincadeira e
lamento, eram comuns entre os membros do GEMM-lagos, inclusive, falava-se muito a respeito da predileção dos
animais em encalhar em feriados ou durante aniversários: “25 anos e uma baleia podre de presente” (Renata).
70
Aqui, além das citadas intempéries do tempo, os pesquisadores encontram-se expostos a um outro perigo, a
contaminação por agentes patogênicos; fato que exige que os cetólogos respeitem algumas normas, como a
utilização de luvas e mascaras para minimizar os riscos de contaminação – como se espera, na prática, as coisas não
acontecem exatamente desta forma: por exemplo, Salvatore nunca se utilizava de luvas para manusear os corpos dos
animais encontrados, independente do estado de conservação dos mesmos. A distancia entre o que os protocolos de
saúde pública exigem e o que os pesquisadores fazem na prática gerou um certo temor em relação a presença de
fotografias de dissecações em minha dissertação, pois poderiam ser repreendidos por diretores da ENSP.
98
necessários para realizar o processamento da carcaça, logo, eram necessárias improvisações, como a
utilização de materiais de dimensões conhecidas, como canetas ou cordas, em substituição de uma
trena danificada, por exemplo.
O primeiro movimento desta transformação é o registro do animal em uma ficha
própria (anexo I) processo que atravessa toda a necrópsia -, adequada a esta modalidade de
encontro. A partir deste momento, o animal deixa de ser uma virtualidade, atualizado como parte
das estatísticas oficiais de encalhe da região; o cetáceo deixa de ser um bicho podre na praia e passa
a ser conhecido como GEMM-NÚMERO DO ENCALHE Nome da espécie (por exemplo GEMM-
130 Balaenoptera edeni). Registra-se os nomes dos pesquisadores envolvidos na coleta, data, local
(tanto o nome popular da região quanto suas coordenadas no aparelho de GPS) e condições
ambientais do encontro, se o animal foi encontrado em meio a pedras ou cascalho, se o mar estava
agitado; condições significativas para alterar\danificar o corpo do animal.
Se a gente não anotar esse tipo de coisa direito, a Maíra pode estar vendo uma mentira
na hora das análises dela; pode estar achando que aquilo ali é uma patologia
interessante, quando na verdade foi causada pelo atrito do animal com a pedra na praia.
Então, quanto mais a gente anota esse tipo de coisa melhor vai ser a qualidade do dado
obtido lá na frente. (Jaílson)
Além das condições ambientais, o próprio estado de conservação da carcaça deve ser
levado em consideração durante a análise do material resultante. Desta forma, exige-se que a equipe
de coleta registre adequadamente o estado de decomposição em que o espécime foi encontrado.
Para que haja padronização, o animal deve ser enquadrado em quatro estágios possíveis
estabelecidos a partir da literatura: bom estado, utilizado quando a carcaça é encontrada fresca;
estado satisfatório, quando o animal encontra-se em decomposição, mas com os órgãos internos
intactos; estado deteriorado, espécime em estado de decomposição avançado; mumificada, quando
são encontrados apenas restos de esqueleto. Devido a alta incidência solar do Estado do Rio de
Janeiro, mais da metade das carcaças encontradas encontram-se em estados avançados de
99
decomposição.
Este primeiro contato com a carcaça é considerado crucial pelos pesquisadores, pois
cada evento de mortalidade é único quanto a suas peculiaridades e possibilidades, muitas das quais
só podem ser observadas e registradas no momento do recolhimento e/ou processamento da carcaça.
Os protocolos para a realização de uma necrópsia e coleta de material para análises devem seguir
uma ordem cronológica rigorosa, pois cada estágio deste dispositivo de inscrição vai
sucessivamente excluindo outros a começar pelo próprio encalhe que impede a realização da
avistagem. Esta situação, por vezes, lança aos cetólogos alguns dilemas práticos: processar
totalmente a carcaça e dela retirar todas as suas possibilidades gerais, ou conservá-la em algum
estágio intermediário para que se possa esgotar um determinado aspecto da existência deste vivente.
Existem formas de determinar a resolução deste dilema e/ou conter a perda de
informações que um agenciamento metodológico possa impor ao outro. As intervenções às quais o
animal será submetido são determinadas pelos interesses de pesquisa do GEMM-Lagos naquele
momento específico. Por exemplo: ao contrário da grande agenda da cetologia das décadas de 60 e
70, o grupo de Salvatore não tem nenhum interesse imediato na neurofisiologia de um cetáceo, o
que torna desnecessário destinar qualquer tipo de esforço a sua extração: “temos que ser
pragmáticos, a gente tem pouco tempo e material, tem que saber escolher”. No caso do cérebro do
animal a decisão é relativamente simples, pois além de pouco interessante, sua extração implicaria
em necessariamente inviabilizar os estudos de craniometria, que recentemente ganharam
considerável importância para o grupo. O problema maior ocorre quando concorrência direta
entre agendas de pesquisa em atividades no próprio núcleo de cetologia.
Marca da epiderme é o que se observa primeiro, porque durante a necrópsia você
perde estas informações.”(Jaílson). Deve-se observar e fotografar todas as marcas na epiderme do
animal, dados fundamentais para o subsídio de estudos que tratam da conservação dos cetáceos e de
suas relações ecológicas, de aspectos epidemiológicos e comportamentais dos espécimes. A perda
100
destas informações pode ser minimizada com a utilização de fotografias e registros escritos, no
entanto, os pesquisadores fazem questão de deixar claro as limitações que este tipo de material traz
consigo; fotografias congelam o animal em um estado único, não permitindo que as amostras
sobrevivam as teorias interpretativas que fundamentaram o seu registro.
Aquilo que você tira foto, que você anota, pode parecer interessante na hora. Mas daqui
a 10 anos quando nossos problemas forem outros, estes dados não vão poder ser usados
para nada. Ta certo, é exagero meu, mas o ideal seria poder conservar o animal inteiro
mas não da. O que esta dentro dele mais importante, a gente precisa daqueles ossos [...]
o osso que é o pior, não tem como conseguir sem destruir o bicho todo, tem que limpar
ele [retirar toda a carne dos ossos], enterrar. [...] A gente perde muita coisa com isso, é
verdade, mas também ganha outras. (Jaílson).
A inspeção da epiderme é informada por uma classificação prévia de marcas
interessantes para registro e posterior estudo, são elas: marcas relacionadas a processos de
cicatrização natural; ferimentos abertos por cortes ou mordidas de animais não co-específicos;
marcas de interações com atividades de pesca; marcas de dentes e ferimentos provocados por co-
específicos; ação de patógenos e processos inflamatórios. No caso da ocorrência de neonatos,
registra-se ainda a presença ou não de vibrissas no rostro e o estado do umbigo
71
. Interessante notar
que as características fisiológicas do espécime, como a variação de colorido e a forma da nadadeira
dorsal, que permitem o seu registro individual nos estudos de foto-identificação, não são
registradas. Segundo meus interlocutores, nesses casos, somente seriam em ocasiões
extraordinárias, como o possível encalhe de um animal albino ou completamente deformado; tudo
se passa como se uma vez morto, o animal não mais encorporasse relações sociais com seus co-
específicos, tornando desnecessária sua individuação naquela sociedade.
Se o exame macroscópico das partes externas indicar a presença de alguma
71
Este tipo de dado é útil para se determinar o tempo decorrido do nascimento até a morte do animal, um dado
interessante para o subsídio de estudos sobre algumas das sensibilidades do ecossistema oceânico; quanto mais novo
um animal, mais suscetível aos problemas da região. Fala-se muito a respeito dos abortos naturais que ocorrem nos
cetáceos da Região dos Lagos, mas faltam dados para ligar o índice à incidência de contaminantes.
101
anatomopatologia, como a LLD, é necessário que haja o recolhimento do tecido lesionado, assim
como uma amostra controle de tecido normal, com certa de 1 a 2cm², que será preservado em
formol tamponado neutro 10% para futuros exames histológicos. Caso haja necessidade, o
pesquisador pode alocar diversas amostras de um mesmo tipo tecido normal com tecido normal,
lesionado com lesionado - em um recipiente, desde que respeite a proporção de 10 partes de
solução fixadora para uma parte de tecido. Ainda, inspeciona-se a epiderme também a procura de
epizóicos e ectoparasitas que, uma vez identificados, são retirados e preservados em álcool 70%.
Uma vez realizada a inspeção da fachada, os cetólogos dão início a biometria e
pesagem externa do animal; processo que nem sempre é possível de se realizar completamente tanto
pelas condições em que a carcaça é encontrada na praia, que na grande maioria dos casos não
corresponde ao animal completo
72
, quanto pelas próprias características fisiológicas do espécime
encontrado (imagine as dificuldades envolvidas no ato de pesagem de uma jubarte de 20m). Ainda
que seja ideal que todos os encalhes sejam devidamente pesados, na prática, apenas espécimes de
pequeno e, as vezes, médio porte passam por este processo.
Ao contrário de outras ordens de animais onde a biometria é realizada conforme a
curvatura corpórea do espécime (como no dos quelônios, onde seu tamanho total é medido levando-
se obrigatoriamente em consideração a curvatura do casco), nos cetáceos a medida é tomada de
forma retilínea, ou seja, os dados da biometria são feitos a partir da medição de linhas retas
paralelas ao corpo do animal. No esquema abaixo, podemos observar todas as medidas externas que
são tomadas de um espécime de cetáceo durante o processamento de sua carcaça
73
:
72
Mais comum nos encalhes de grandes cetáceos, que por conta da ação da gravidade força estranha a seus corpos -
geralmente têm o crânio separado do resto do esqueleto durante o encalhe; a incidência de ondas e decomposição
natural do animal acabam resultando em uma “decaptação natural”.
73
A imagem utilizada é a de um Tursiops truncatus, criada por Chris Huh e publicada em 2007 no Cetaceans
Wikiproject (http://en.wikipedia.org/wiki/Wikipedia:WikiProject_Cetaceans) sob a licença copyleft GNU Free
Documentation License.
102
1. Comprimento total do corpo, medido da extremidade da maxila inferior até o entalhe da nadadeira
caudal
2. Extremidade da maxila inferior até o meio do olho
3. Comprimento da maxila, medida desde a extremidade da maxila inferior até a base do melão
4. Comprimento da boca, medida desde a extremidade da maxila inferior até a comissura bucal
5. Extremidade da maxila inferior até o meato auditivo
6. Extremidade da maxila inferior até o centro do orifício respiratório
7. Extremidade da maxila inferior até a base da nadadeira dorsal
8. Extremidade da maxila inferior até a base da nadadeira peitoral
9. Extremidade da maxila inferior até o centro da fenda anal
10. Largura máxima da nadadeira caudal
11. Largura máxima da base da nadadeira dorsal
12. Altura da nadadeira dorsal.
Quando perguntava aos cetólogos a razão pela qual, durante a tomada do
comprimento total do espécime (1), os pesquisadores iam da extremidade da maxila inferior até o
entalhe da nadadeira caudal, ignorando o tamanho da nadadeira, recebia a seguinte resposta: É
para o bem da comparação. Quem trabalha com peixe é a mesma coisa, porque na maioria das
vezes a nadadeira ta danificada, se a gente se preocupasse com ela, não teria como ter uma medida
de comparação.” (Jaílson).
Fig. 8- Medidas externas básicas de um cetáceo.
103
As características biométricas do animal servem tanto para fins de catálogo, quanto
para a realização de estudos sobre o entendimento do crescimento corporal e ontogenia dos
cetáceos. Estes dados também permitem a padronização de medidas corpóreas, promovendo
comparações intra e interespecíficas. Até bem pouco tempo, as características biométricas
desempenhavam o papel de principal padronizador, demarcador de espécies. Uma posição que vem
sendo contestada em debates por algumas metodologias da genética; uma polêmica que Jaílson
resume na seguinte sentença: “a genética está para tentar provar que a gente não está vendo
aquilo que a gente esvendo”
74
. Retomando, mesmo com todo debate em torno das capacidades e
limites da biometria; esta metodologia é considerada fundamental para a detecção de anomalias
internas e externas em cetáceos.
Este é o momento em que os cetólogos dão início a necrópsia do animal, processo
que depende, além do estado de conservação e porte do animal, das condições do local, do tempo
disponível para a coleta, da equipe envolvida e dos recursos para a coleta e adequada alocação de
amostras. Por via de regra, é impossível coletar amostras para todas as análises interessantes a
74
O lugar da genética na produção científica do GEMM-Lagos será discutida com a devida atenção no próximo
capítulo, no entanto, por ora, deixo registrado que o grupo vem tentando conciliar ambos os critérios de demarcação
em um debate envolvendo a recente separação do Sotalia em duas espécies (Sotalia guianensis e Sotalia fluviatilis).
Fig. 9 - Biometria.
104
agenda de pesquisa do GEMM-Lagos; deve-se, portando, buscar aproveitar ao máximo o que cada
carcaça pode oferecer dentro da realidade do trabalho que está sendo desenvolvido naquele
momento. A correta identificação de todas as amostras obtidas no processo é imprescindível para
que a ocorrência possa ter qualquer valor científico.
A fórmula é simples: Identificação das amostras + Conservação destas = Valor
científico; uma amostra não identificada é um esforço jogado fora. De que adianta eu ter
dez amostras de tecido, se eu não sei de onde vem cada amostra? qual é a espécie, em
que lugar isso foi tirado? (Jaíson).
Esta referência a uma necessidade contínua de organização das práticas laboratoriais
é um ponto comum nos estudos STS (Cf. Latour e Woolgar, 1996; Latour, 2001; Law, 2004). A
imagem do pensamento que se projeta é a de uma ciência ao mesmo tempo robusta e insegura.
Insegura porque as coisas sempre podem dar errado sobretudo longe de seu habitat natural, os
laboratórios: todo material coletado pode estragar pela simples exposição ao sol, amostras podem
estar contaminadas, as anotações podem estar confusas... Aqui, não importa o preparo da ciência,
um dia inteiro de trabalho pode ser arruinado por uma simples onda do mar.
De forma a diminuir a perda de material, a identificação da amostra deve seguir
critérios rigorosos: a etiqueta de identificação deve conter o número de registro da carcaça, espécie,
sexo e comprimento total; data e local da coleta; tipo de amostra. Recomenda-se também mas na
prática, acontece com pouca freqüência - que o nome dos responsáveis pela coleta sejam postos na
etiqueta. Para minimizar o risco de perda, as etiquetas são postas dentro e fora de cada recipiente.
No caso de amostras destinadas à cultura para identificação de agentes biológicos (fungos,
bactérias...), assim como aquelas destinadas a subsidiar análises sorológicas de forma a minimizar
os riscos de contaminação, utilizam-se somente etiquetas externas. Uma vez que o contato com a
água, seja ela do mar ou dos refrigeradores, é freqüente, é vetada a utilização de canetas para a
marcação, utiliza-se, no lugar, lápis de boa qualidade com grafite escuro, de preferência HB número
105
2. Levando-se em consideração as mesmas situações que ditam a utilização de grafite ao invés de
caneta estereográfica, os pesquisadores dão preferencia ao uso de fita crepe como etiquetas; trata-se
de um item durável, capaz de resistir adequadamente a condições extremas como o congelamento.
Os primeiros cortes são feitos nas partes dorsal, lateral e ventral da carcaça. O
objetivo é deixar o tecido adiposo exposto, permitindo que os cetólogos meçam sua espessura. Se as
condições forem ideais, este momento é procedido pela retirada e pesagem de todos os órgãos do
animal, um a um; o estômago recebe uma atenção especial. Se possível, este é lacrado e enviado a
cidade do Rio de Janeiro, para que sejam feitas análises mais elaboradas de seu conteúdo
abordadas no próximo capítulos.
Coletam-se materiais para futuros exames microbiológicos, necessários para a
realização de estudos epidemiológicos e conservacionistas, capazes de produzir informações
relevantes sobre o estado de saúde dos animais e do ambiente que freqüentam. A coleta para a
microbiologia é considerada pelos cetólogos como uma das atividades mais delicadas do trabalho
de campo, exigindo que o protocolo seja seguido passo a passo, sob o risco de perda de material por
contaminação. Para a coleta/identificação de agentes biológicos utiliza-se suabes estéreis, que
geralmente possuem o meio de transporte específico para cada tipo de análise: cada suabe
corresponde a apenas um “esfregaço”, movimento giratório que deve ser realizado sobre tecidos
Fig. 10 - Primeiros cortes.
106
lesionados, interior das cavidades ou aberturas corporais (nasal, oral, genital e anal), sobre olhos e
sobre glândulas mamárias. Caso ocorra suspeita de contaminação da amostra durante a coleta – seja
por contato com o chão, luva do pesquisador, etc.. -, o utensílio deve ser imediatamente descartado.
Cada suabe deve ser aberto no momento exato da coleta e fechado imediatamente ao seu término,
minimizando o risco de contaminação por contato com o ar, repleto de microorganismos por conta
da decomposição natural da carcaça.
De forma complementar, os cetólogos recolhem fragmentos de tecido com alguma
alteração patológica: processo que deve ser realizado impreterivelmente com uma lamina de bisturi
nova ou esterilizada. Os protocolos de pesquisa aconselham ao pesquisador flambar a superfície do
tecido, para então cortá-lo na porção mediana da lesão: o fragmento a ser coletado deve ser aquele
imediatamente abaixo da camada de tecido que foi queimada. No entanto, devido as condições da
prática de campo, este procedimento raramente é realizado. A amostra de tecido deve ser
rapidamente colocada em tubo estéril, com meio de cultura apropriado; no caso de vários tecidos
com alterações patológicas, cada fragmento deve ser acondicionado em um tubo separado.
O método utilizado para acondicionar adequadamente a amostra depende do tipo de
análise que será conduzida: em determinadas avaliações bacteriológicas, por exemplo, o suabe não
pode ser refrigerado e nem congelado; em outros, pode ser congelado a -20ºC. Dependendo do
material coletado o tempo de análise da amostra não pode exceder 24h mas, para alguns estudos, o
Fig. 11 - Coletando amostras.
107
período chega até 15 dias, não mais que isso. Na prática, devido as condições citadas, observa-se
aqui os mesmos dilemas que informam a necrópsia do animal, uma vez que uma metodologia
necessariamente exclui a outra, o cetólogo deve ser capaz de decidir de forma pragmática qual é
a metodologia mais interessante para o GEMM-Lagos (i.e., aquelas que pertençam a uma agenda de
pesquisa em vigor). Para transportar as amostras, utiliza-se uma caixa térmica contendo gelo
químico.
Como uma forma de controle dos futuros dados das análises microbiológicas,
realizam-se coletas para análises sorológicas. Mesmo em espécimes mortos a vários dias, os
pesquisadores são capazes de detectar, através de estudos imunológicos, a presença de anticorpos
que confirmam a presença de um determinado agente patológico. O procedimento mais adequado
para a coleta de sangue é a sua extração direta do ventrículo direito do coração mediante a punção
realizada com seringa descartável, 5ml de sangue é mais que o suficiente. Nos casos onde o sangue
não pode ser coletado diretamente do coração, pode-se, durante o avanço da necropsia, extrair
amostras de outros vasos sanguíneos, como a carótida, jugular ou aorta. Apesar de não ser o
procedimento mais adequado, essa é considerada a alternativa mais viável para que a amostra não
seja perdida.
Após a coleta, as amostras deve ser acondicionadas em tubo de plástico estéril que
será remetido a um laboratório para centrifugação processo que separa o plasma das células
vermelhas -, deslocamento que não pode exceder 24h sob o risco de perda da amostra. No entanto,
como na prática as condições geralmente são outras, o material é congelado a -20ºc para que a
sorologia seja realizada posteriormente. Apesar do congelamento provocar a ruptura das hemácias,
sua separação do plasma é realizada pela adição de agentes químicos. Menos que um subproduto
dos estudos sorológicos, o plasma também é considerado interessante por permitir estudos
relacionados a alguns aspectos bioquímicos dos cetáceos.
Segundo os pesquisadores do GEMM-Lagos, seria muito interessante poder realizar
108
análises hematológicas em cetáceos, no entanto, dois fatores deslocam esta prática para longe da
realidade da cetologia nacional: fatores naturais, como aludi anteriormente, por conda das
condições naturais do Rio de Janeiro (incidência solar, umidade relativa do ar), 50% das carcaças
utilizadas pelos pesquisadores encontram-se em um estado avançado de decomposição,
impossibilitando estudos hematológicos, que devem ser realizados no máximo poucos minutos após
a morte do animal; fatores legais, uma lei federal regulamenta as práticas cetológicas nacionais,
impedindo que estudos considerados “estressantes” para os animais sejam realizados em cetáceos -
”Estudo hematológico mesmo no projeto que acontece na Florida: onde o bicho ta vivo, eles
pegam o animal jogam no barco, arrancam dente e sangue. Isso mais próximo da realidade
deles”. (Jaílson).
Recolhem-se fragmentos de gordura (entre entre 3 e 5 cm² de espessura) para estudos
bioquímicos preferencialmente da parte dorsal da carcaça, logo abaixo da nadadeira dorsal. Tais
amostras também servem para exames toxicológicos, importantíssimos para o entendimento da
situação de conservação do habitat da Bacia de Campos; promovendo o acúmulo de informações a
respeito dos processos de bioacumulação e biomagnificação dos poluentes ao longo da cadeia
trófica na qual os cetáceos (e humanos) estão inseridos. Para a determinação da concentração total
de contaminantes inorgânicos, como metais pesados (mercúrio, chumbo, cádmio, etc), ou orgânicos
como DDT (Dicloro-Difenil-Tricloroetano), PCB (policloreto de bifenila) e hidrocarbonetos, deve-
se extrair fragmento de tecidos - além de gordura, utiliza-se também músculos - nas mesmas
proporções dos estudos bioquímicos citados anteriormente; é necessário um cuidado especial, a
extração deve ser realizada com uma lâmina de bisturi nova, de forma a assegurar que as amostras
estão livres de impurezas, como areia, fragmentos de outros tecido e etc.
Mais uma vez é o tipo de estudo que se pretende realizar no futuro que determina a
alocação de cada amostra: aquelas destinadas a determinação de espécies inorgânicas são embaladas
em sacos transparentes limpos, ou filmes de PVC (o uso de sacos coloridos é proibido, pois o
109
pigmento utilizado possui elementos que podem ser incorporados à amostra, alterando-a); no caso
das avaliações orgânicas, as amostras devem ser embaladas em papel alumínio, impedindo uma
eventual exposição à luz, capaz de interferir diretamente na concentração de alguns compostos -
além de evitar uma eventual contaminação da amostra no caso de estudos que envolvam a
determinação da presença de hidrocarbonetos. Todas as amostras devem ser congeladas na
temperatura padrão de -20ºc para análise posterior.
Fragmentos menores de tecido muscular (até 2cm²) em conjunto com amostras da
epiderme e/ou fígado também são utilizados para análises genéticas, que permitem a identificação
de estoques populacionais e avaliações de níveis de variabilidade entre as populações, também
atuam na determinação precisa da espécie e sexo do espécime encontrado. Para a conservação
destas amostras, utiliza-se frascos contendo álcool absoluto ou, no caso extremo da falta de frascos
ou álcool, sob congelamento em sacos plásticos. No caso da utilização de amostras de tecido
muscular, os pesquisadores evitam porções próximas a camada de gordura e a utilização de bisturi
que tenha entrado em contato com este tipo de tecido; a preferencia é para que a extração ocorra na
região imediatamente anterior a nadadeira dorsal.
A extração de material para a genética geralmente constitui a última etapa do
processamento da carcaça; as partes não utilizadas pelo processamento são geralmente enterradas -
em uma profundidade condizentes com seu volume e demarcadas para um possível resgate dos
ossos. Toma-se extremo cuidado para que o animal não seja enterrado próximo a linha d'água ou da
margem de rios e lagos para que ele não seja “descoberto” ou para que não haja qualquer
contaminação. Existe a possibilidade, geralmente preferida pelos pesquisadores, de abandonar a
carcaça a céu aberto, deixando que o processo de decomposição ocorra de forma natural se
lembrarmos da proposição do encalhe enquanto um vetor de distribuição energética entre os pólos,
este tipo de prática se torna ainda mais importante. No entanto, este “abandono” só ocorre quando o
encalhe se encontra em um lugar isolado, pois um animal destas proporções pode se transformar
110
rapidamente em um locus de doenças e bactérias.
Esta série de transformações do animal pode ser tanto considerado um dado em si
mesmo, quando, a partir da observação diretas, como no caso da inspeção de fachadas, os cetólogos
produzem assertivas; quanto o estágio comum de outros dispositivos de inscrição, onde seus objetos
são transformados em substâncias qualificadas. Neste segundo quadro, tanto o monitoramento in
situ quanto a avistagem são a vanguarda dos laboratórios situados no Rio de Janeiro. Destino para o
qual os animais, reduzidos a amostras e inscrições, são levados; onde são posteriormente
multiplicados pelas associações com outros objetos.
5 – Hierarquia e perspectivas
Tanto a avistagem quanto o monitoramento in situ são considerados metodologias de
produção de dados primários. Classifica-los desse modo não ignora suas diferenças, mas significa
pensá-las como em termos próprios da literatura dos estudos científicos agenciamentos
metodológicos capazes de transformar o encontro com o animal (vivo ou morto) em substância
qualificada para agenciamentos metodológicos futuros. Em suma, a realidade produzida por estes
agenciamentos não apenas precede todas as outras produzidas pelo GEMM-Lagos, como também
constitui suas próprias condições de produção. De fato, quando perguntados a respeito da
importância destas primeiras séries de transformações, os cetólogos inequivocamente lhes atribuíam
uma maior importância frente a todas as outras
75
; para a feitura de uma PCR, é necessário o uso de
termocicladores para o aquecimento da fita de ADN, iniciadores capazes de “descontextualizar”
partes específicas do código, seqüênciadores que transformem a substância em uma inscrição e
75
A qualidade daquilo que é produzido nos laboratórios é, em grande parte, conseqüência direta da qualidade da
nossa produção de campo”. (Renata).
111
ainda um sem número de outros objetos rotinizados. Contudo, todo o processo deve ter como centro
de gravidade um ator insubstituível, uma amostra de tecido devidamente colhida, conservada e
ordenada. Diz-se insubstituível porque, ao contrário de um termociclador que não funcione, uma
amostra comprometida não pode ser trocada sem grandes penalizações para a prática da cetologia,
uma vez que cada animal, cada encalhe, representa um dado único. Uma historia que nenhum
outro pode te contar.” (Jaílson).
Recuperando; ora, se a relação não é a de uma equivalência, tampouco é a de uma
“divisão social do trabalho”. A imagem de duas metodologias correspondentes a duas metades
imediatamente combináveis de um mesmo animal diz-se própria dos e esta é uma afirmação dos
pesquisadores do GEMM-Lagos pesquisadores inexperientes
76
e do material de divulgação
76
[A]ssim que eu me formei eu pensei “pronto, virei cientista, agora tudo vai fazer mais sentido”. É aquela coisa, não
tinha muita experiencia em escrever, pensava na biologia como se fosse a engenharia, que cada coisinha iria se
encaixar com a outra e pam! Teria minha tese assim, praticamente de mão beijada. Quem me dera. Encaixar as
coisas é um troço muito complicado [...] eu tenho o dado da avistagem que me diz uma coisa do bicho, os dados do
Fig. 12- Caderno de campo da cetologia, avistagem.
112
científica. Interno ao regime de produção deste grupo de cetologia, é necessário que existam
relações entre as diferentes partes do animal; relações estas que não encontram-se dadas pelas
próprias metodologias. Deste modo, a produção de relações entre os diferentes agenciamentos é
garantida pela inserção de uma “terceira” perspectiva, capaz de fazer com que cada um passe pelo
outro em uma ordem de pressuposição recíproca e assimétrica, ditando quais padrões serão
validados e invalidados a partir do movimento de superposição dos objetos. Tal perspectiva não
poderia ser outra que a do próprio modo de ordenação da Fiocruz.
[E]les [o Projeto da Baleia Jubarte] só trabalham com avistagem. Então, aquilo que é
interessante para eles é a avistagem, é tudo voltado para isso. Contaminantes,
doenças, nenhuma destas coisas é um dado muito interessante. Para eles o fato de a
jubarte se alimentar de algumas espécies de peixe termina por ai mesmo, no máximo vira
um cálculo sobre as necessidades nutritivas do bicho e alguma informação bombástica
sobre o quanto ela gasta para dar um salto. [...] Hoje em dia também tem muita gente
que trabalha com o monitoramento, o que também é meio complicado. Como você
pode reduzir um bicho como uma jubarte as funções orgânicas? O ideal é sempre ter as
duas ferramentas a mão, poder conciliar aquilo que você vê no mar com aquilo que você
pode ver no laboratório. É, eu sei que hoje em dia a gente ta trabalhando mais com o
laboratório e os dados do monitoramento, mas é porque isto é o que se enquadra
melhor aqui [Fiocruz]. Isso que orienta o nosso trabalho hoje: o que um grupo de
biólogos que trabalham com cetáceos esta fazendo em um programa voltado para a
saúde pública? Quando a gente pega e coloca que uma baleia se alimenta de tal espécie
e tem um índice de contaminação de tanto, é para dizer que um bicho, um parente nosso,
esta contaminado porque esta comendo uma comida que também comemos. (Salvatore)
Lembremos que em nosso regime epistemológico como argumenta Strathern
(1999) -, uma perspectiva só pode existir enquanto tal, tomando todas as outras como partes de si
mesma
77
. Destarte, penso, mesmo que na prática os cetólogos estejam continuamente se deslocando
entre perspectivas através do uso de instrumentos e metodologias distintas
78
, faz parte do próprio
processo de purificação da ciência, perceber tais deslocamentos como movimentos previstos a partir
monitoramento me dizem outra, sem falar do que chega dos laboratórios, e ai como é que fica? Isso as vezes deixa
a gente meio sem chão. (Jaílson).
77
“Each perspective in including another viewpoint as part of itself must exclude the other as a perspective.”
(Strathern 1999, p.247).
78
Segundo Latour, o fenômeno é próprio da prática científica no geral; “Dizer que o cientista 'assume uma perspectiva'
nunca é muito útil, pois ele logo se desloca para outra graças ao uso de um instrumento. Os cientistas jamais
permanecem em seus pontos de vista. (Latour, 2001, p.83)
113
do modo de ordenação, neste contexto, o ponto de vista que ordena todos os outros.
Disto isto, retornamos a explicitação de algumas das relações estabelecidas entre os
agenciamentos metodológicos a partir do modo de ordenação da Fiocruz, a começar por uma
exclusão mutua estabelecida já durante as atividades de campo; ao passo que para a avistagem é
necessário que o animal esteja vivo em seu ambiente natural, para o monitoramento é necessário
que ele esteja morto em um ambiente alienígena. A exclusão, aqui, não se da através de um jogo de
palavras, mas de uma incompatibilidade de ordem prática: é claro, ambas as metodologias não
podem co-existir em um mesmo corpo
79
. De forma curiosa, a lógica é quase segmentar, em vista
que as próprias metodologias sobretudo o monitoramento - são compostas por alguns
procedimentos cujas relações também tendem a exclusão mútua. Contudo, no caso específico da
79
O par animal morto/monitoramento, que informa esta assertiva, é próprio de algumas cetologias, enquanto outras,
como a japonesa, por não estar constrangida a proibições legais realiza dissecações em animais capturados com
vida; ainda que o animal certamente morra durante o processo, para os padrões da biologia, considera-se que os
exames foram realizados em um espécime vivo.
Fig. 13 – Amostras, monitoramento in situ.
114
relação entre os dois grandes agenciamentos primários, diz-se que o processo ocorre de forma
natural, antes mesmo da chegada dos pesquisadores no campo.
Olha, eu nem imagino que o animal que eu encontro morto na praia é aquele bicho que
eu vejo pulando no mar [...] pra falar a verdade, muitas vezes não é mesmo. O bicho
podre que a gente encontra, na maioria das vezes, é resultado de uma seleção violenta:
porque você acha que na maioria das vezes a gente encontra animal pequeno ou velho?
É isso, uma jubarte adulta passa por uma rede e leva ela embora, um filhote acaba
afogado. Nem é isso, eles também são mais vulneráveis a doenças e a contaminação
[...] Olha, isso não quer dizer que eles não estejam doentes ou contaminados, que o
dado tem um viés que não pode ser ignorado. (Maíra).
Os próprios contextos são excludentes; uma relação que também se reflete no
estabelecimento de limites para o alcance de cada um dos objetos produzidos pelas metodologias. É
neste momento que nos reencontramos com a proposição que guiou nossa descrição: o
monitoramento in situ está para a natureza dos cetáceos, assim como avistagem esta para a cultura e
sociedade destes animais. Uma proposição cujos efeitos podem ser transladados em um regime de
complementaridade e coordenação entre os objetos pertencentes a cada um destes domínios. É este
o princípio que informa a associação de uma mapa que descreve o movimento migratório das
B.edenis, com tabelas contendo taxas de concentração de lipofílicos nesta mesma espécie de baleia.
Uma relação entre elementos heterogêneos que no lugar de se excluírem como no exemplo
anterior -, agora se desterritorializam mutuamente, ampliando o alcance de cada um.
Mutua exclusão ou complementaridade? Certamente, esta não é a única pergunta que
paira na cabeça de um cetólogo ao tentar estabelecer uma relação entre dois elementos
heterogêneos. Existem casos mais críticos onde os objetos entram em um regime de contradição,
momento em que os pesquisadores se vem obrigados a impor testes de força a cada um dos termos
desta relação. Surge então uma hierarquização entre as perspectivas na prática do GEMM-Lagos:
uma orientação geral de que os dados obtidos pelo monitoramento in situ são mais confiáveis e
exatos do que aqueles obtidos pelos métodos de avistagem e, portanto, capazes de subjuga-los
115
automaticamente na grande maioria dos casos de contradição. Nada mais natural, poderia-se dizer,
afinal, o monitoramento é considerado a espinha dorsal de todos os outros agenciamentos do modo
de ordenação da Fiocruz. Entretanto, gostaria de chamar a atenção para uma característica
fundamental desta hierarquia que faz eco com aspectos mais gerais da ciência: a desconfiança que
os cientistas tem de si mesmos.
Como fica explícito nas seções anteriores, ainda que seu papel não possa ser
subsumido durante o monitoramento, é na avistagem que o corpo do cetólogo assume o papel de
uma ferramenta central para a captura das agências dos não-humanos. No entanto - propõe a
mitologia científica - mesmo que disciplinado para que se transforme em uma ferramenta confiável
de observação
80
, diz-se próprio do corpo a qualidade de um observador subjetivo que
inequivocamente impõe à aquilo que observa, partes de sua própria subjetividade. Como Viveiros
de Castro demonstrou a respeito de nosso regime epistemológico:
[A] categoria do objeto fornece o telos: conhecer é objetivar; é poder distinguir no objeto
o que lhe é intrínseco do que pertence ao sujeito cognoscente, e que como tal, foi
indevida e/ou inevitavelmente projetado no objeto. Conhecer assim, é dessubjetivar,
explicitar a parte do sujeito presente no objeto, de modo a reduzi-la a um mínimo ideal.
Os sujeitos, tanto quanto os objetos, são vistos como resultantes de processos de
objetivação: o sujeito se constitui ou reconhece em si mesmo nos objetos que produz, e se
conhece objetivamente quando consegue se ver 'de fora', como um 'isso'. Nosso jogo
epistemológico se chama objetivação; o que não foi objetivado permanece irreal e
abstrato. A forma do Outro é a coisa. (2002b, p.358).
O monitoramento, ainda que também dependa da percepção dos sujeitos, geralmente
nos protocolos que precedem a abertura da carcaça, é suficientemente amparado pela utilização de
instrumentos que, segundo meus interlocutores, garantem sua maior objetividade em relação aos
dados colhidos durante a avistagem. A desconfiança da cetologia em torno das capacidades
80
Knorr-Cetina define uma série de categorias para o uso dos corpos durante os experimentos científicos, entre estas
sensory body (1999, p.95), cuja a definição é próxima daquela que utilizei acima. A socióloga ainda apresenta outras
categorias como acting body (corpos que impõe transformações através do trabalho manual, como um pesquisador
que corta um cetáceo) e o experienced body. Segundo a autora, grande parte das atividades de pesquisa dependem
tanto do corpo dos cientistas quanto dos aparatos materiais, contudo, durante os movimentos de purificação, o corpo
do pesquisador é o primeiro elemento a ser subsumido a uma mera formalidade prática.
116
perceptivas de seus praticantes é, ao que tudo indica, uma característica geral da própria ciência e de
ampla documentação na literatura STS (Cf. Knorr-Cetina, 1999, p.94-95; Latour, 2001, p.77;
Stengers, 2002, p.83)
81.
. Quando perguntava aos pesquisadores do GEMM-Lagos se os próprios
instrumentos utilizados também não eram capazes de gerar interferências na qualidade dos dados
(como, por exemplo, um paquímetro mal regulado), eles me respondiam de forma positiva, mas
faziam questão de acrescentar que a distorção produzida por um aparelho é, na maior parte dos
casos, previsível e/ou rastreável, enquanto que aquela produzida por um sujeito, dificilmente o é
82
.
Destarte, na ocorrência de contradições, a tendencia geral da cetologia praticada no
GEMM-Lagos é a submissão dos objetos da avistagem àqueles do monitoramento: a exemplo do
que pudemos observar na polêmica a respeito da caracterização alimentar das baleias de Bryde.
Contudo, deve-se ter sempre em mente de que esta relação é apenas uma orientação geral que de
forma alguma se constitui enquanto regra normatizadora das práticas deste agrupamento de
pesquisadores se os próprios objetos não estão submetidos a clausuras definitivas, por que suas
formas de associação estariam? No dia a dia dos cetólogos, cada caso de contradição é julgado
separadamente; mesmo que não se possa ignorar a existência de uma hierarquia entre as
perspectivas, o poder do contexto de sobrepujar esta demarcação é extremamente relevante. De fato,
81
Dentre estes, penso que o trabalho de Stengers é particularmente interessante e merecedor de uma citação extensa:
Arrisquemos um paralelo batraquiano. É-nos fácil considerar que a mosca percebida pela não
passa de uma ficção criada por seu aparelho neuronal. Em contrapartida quando a mosca é
digerida, o biólogo tem de reconhecer que são realmente as propriedades químicas de seus
componentes tal como a química as descobriu, que são “levadas em conta”, respeitadas e
exploradas pelo metabolismo batraquiano. Poderíamos dizer que a realidade que os cientistas
buscam fazer existir está mais próxima da realidade da mosca digerida que daquela da mosca
percebida (Stengers, 2002, p.120)
82
Nesta mesma direção, Daston & Galison (1992) oferecem um interessante relato sobre como o desenvolvimento de
instrumentos científicos foram motivados pelo desejo de se reduzir o papel dos sujeitos na observação científica. De
fato, quando olhamos para uma etnografia de um projeto cuja metodologia principal é a confecção de etogramas (Cf.
Sá, 2006), percebemos como os pesquisadores atuam a fim de evitar uma dupla contaminação/projeção do sujeito
em seus objetos; evitando tanto que eles sejam contaminados pela presença humana, quanto os dados sejam
contaminados pela presença do sujeito: “Assumindo uma postura de não-ação, os primatólogos observam os
macacos agindo “naturalmente” como se fosse possível agora cada ação dos primatas arborícolas não conter uma
reação que contaminasse” os dados.” (ibid., p.28). Uma dupla contaminação também é percebida entre os objetos
da avistagem, onde a própria subjetividade dos cetáceos é capaz de contaminar os dados. Em contrapartida, no
próximo capítulo, o leitor poderá observar uma desconfiança também em relação aos dados considerados
extremamente objetivos. .
117
afirmam os pesquisadores, dependendo do situação, nada impede que os objetos da avistagem
estabeleçam relações com outros objetos a fim de aumentar sua própria força, tornando-se capazes
de superar os dados do monitoramento, negando-os. Vimos este tipo de ocorrência durante a
polêmica dos encalhes de botos-cinza nas praias de arraial do cabo: os dados da avistagem
recrutando aliados em outra disciplina, a oceanografia, para o seu próprio fortalecimento.
Se no exemplo anterior, foi a associação da avistagem com uma outra ciência que
garantiu a confiabilidade da mesma, neste momento acionarei um exemplo onde o recrutamento de
aliados se da nas próprias fileiras do inimigo, objetos da avistagem e monitoramento contra outros
objetos do monitoramento. Quando os cetólogos falam da realização de estimativas populacionais,
falam imediatamente de avistagens. Estudos populacionais realizados a partir do monitoramento das
praias acabarão revelando um perfil diferente daquele daquele considerado real, pois, através
trabalho pretéritos com monitoramento, caracteriza-se a seleção violenta como um movimento que
sempre tenderá para o descarte de neonatos e idosos – os descartes de espécimes adultos e saudáveis
são significativamente mais raros -, logo o dado tem um viés que não pode ser ignorado(Maíra).
Neste contexto, os objetos promulgados pela avistagem, desde que realizados a partir de um
acompanhamento sistemático de uma mesma população, são pensados enquanto mais confiáveis e
aproximados da realidade deste grupo
83
, logo, capazes de sobrepujar outros da mesma sorte.
A genética, a osteologia, o monitoramento, a avistagem, tudo isso são ferramentas que
nós temos a nossa disposição. Não é porque, em um momento, uma não me serve
muito bem que eu vou deixar de usá-la. Eu posso descobrir que aquilo que eu via
observando os animais no mar, eu posso ver melhor com um teste genético, mas ao
mesmo tempo tem coisas que o teste não é capaz de me dizer [...] Isso a gente descobre
na tentativa e no erro, é a cabeça da gente pensando, não tem uma fórmula pronta.
(Salvatore).
83
Estimativas populacionais feitas a partir dos encalhes podem ser aproveitadas para se falar a respeito do impacto que
estes eventos representam para a população de cetáceos no local. No entanto, mesmo este tipo de assertiva, para que
tenha qualquer validade, deve ser associada a estudos de caracterização populacional realizada pela avistagem, como
indica um recente artigo escrito pelos pesquisadores de GEMM-Lagos (Cf. Moura et al, 2008).
118
À guisa de conclusão deste capítulo, farei um pequeno, porem significativo, adendo
relativo a produção intelectual do GEMM-Lagos. Se em um momento anterior, defini o modo de
ordenação da Fiocruz como um grande agenciamento atravessado por outros agenciamentos
“menores”, encorporados na presença de cada um dos cetólogos, não é de se estranhar a existência
de toda uma produção científica “marginal” ao próprio modo de ordenação; artigos e notas
científicas que pouco tem a oferecer a um departamento de saúde pública, mas inteiramente capazes
de suscitar interesse de uma cetologia mais geral. É desta forma que Jaílson encontra espaço para, a
partir da inspeção da fachada de um S. Bredanensis - encalhado em Arraial do Cabo –, escrever um
artigo sobre uma forma típica, porem pouco documentada, de interação co-específica entre
odontocetos, o comportamento epimelético.
Mesmo que os cetólogos normalmente atribuam a esta forma de produção uma
importância menor dizem que aquilo que guia sua carreira, encontra-se contido nas teses e
dissertações da Fiocruz -, creio que cada um destes artigos ofereça uma interessante reordenação
dos pontos de vista. Em vista da ausência do modo de ordenação como coordenador, é permitido ao
cetólogo englobar todas as outras perspectivas, recuperando-as em algum grau, a partir daquela que
ele julgar mais adequada para o trabalho em questão. Para que fique claro o que estou dizendo, cito
como exemplo um artigo recente de Jaílson e outros pesquisadores do GEMM-Lagos, um
levantamento sobre a distribuição espacial das toninhas ao longo da costa carioca (Moura et al.
2008). O trabalho, mesmo levando em consideração recentes objetos do monitoramento (ie. um
animal encontrado encalhado na praia de Iriri, Rio das Ostras), toma certas liberdades e propõe um
determinado tipo de distribuição a partir de dados pretéritos da avistagem.
Although the two gaps in the franciscana distribution are well known and supported, the
presence of P. blainvillei has been seldom documented in the edges of these areas These
findings indicate that the franciscana is extremely rare or absent in such gaps edges’ thus
supporting the hypothesis of the discontinuous distribution (ibid., p.3)
119
Em suma, com esta assertiva o pesquisador propõe: mesmo que existam registros de
encalhes de Pontoporias em regiões onde supostamente não deveriam existir, estes registros não são
suficientes para que a cetologia abandone a hipótese, produzida pela avistagem, de uma distribuição
descontínua deste animal ao longo da costa. O Leitor notará semelhanças com o caso da presença
ou não de botos-cinza em Arraial do Cabo, entretanto, a diferença encontra-se no agenciamento
escolhido como ordenador, como indica a fala do autor em um registro mais informal: “se eu fosse
fazer minha tese sobre isso, eu teria que prestar mais atenção aos encalhes, entender o que eles
representam para essa população, será que eles indicam que os bichos estão distribuídos de forma
contínua?” e conclui, “mas é um artigo mais sobre o material da avistagem, é natural que esse seja
o nosso foco de análise, e não a real importância dos encalhes.” (Jaílson).
Aproveitando o ensejo desta reordenação de perspectivas, gostaria de explicitar uma
característica estruturante deste processo seja ele realizado pelo modo de ordenação ou por outro
agenciamento: o enclausuramento. Tudo se passa como se este movimento fosse um processo de
fagocitose típico de alguns organismos unicelulares como os leucócitos -, onde a perspectiva que
ordena, o organismo englobante, absorve outros a partir de uma clausura temporária. Em suma, se
anteriormente falei dos dados da cetologia enquanto clausuras práticas de uma natureza em contínua
transformação, neste momento falo de um movimento muito semelhante, agora imposto a outros
objetos científicos sempre em contínuo deslocamento.
Se eu for parar para pensar no que todas as outras ciências estão fazendo, eu não faço
mais nada. É que nem um computador: você sabe que daqui a seis meses vão ter
inventado computadores melhores, mas o seu ainda vai funcionar, se você for parar para
pensar nisso, você nunca vai comprar um. É a mesma coisa com o paquímetro: tem o
digital, que é melhor, mas o velho funciona. É a mesma coisa com os 'outros' dados. Na
maioria das vezes, você não pode esperar que haja um consenso absoluto sobre aquilo
que você está usando, e mesmo se tiver, não tem como você dizer que daqui a seis meses
ainda vai ter. Não é porque ele ta errado, mas é porque as coisas mudam sempre.
(Jaílson).
120
Se a única constância, como indica a fala do cetólogo, é a mudança, faz parte do
próprio motivo da prática científica saber designar adequadamente clausuras práticas que tornem
possível a produção científica
84
, sem que no processo haja perca da objetividade ou equívocos.
Quando um pesquisador do GEMM-Lagos escreve um artigo utilizando-se de B.edenis como
sentinelas ecológicos da Região dos Lagos, durante a feitura do mesmo, ele impõe aos dados da
avistagem, que indicam o movimento migratório offshore/inshore desta espécie, uma clausura
prática, um congelamento em um determinado estado, mesmo que pesquisas mais recentes -
desenvolvidas por uma cetóloga do GEMM-Lagos - indiquem a possibilidade de que este
movimento não seja tão simples e exato quanto se pensava a princípio
85
.
Não é a malha amostral que tem que estar atualizada, o pesquisador também deve
estar up to date. Por isso é importante estar sempre lendo artigos, organizar e participar
de workshops, por isso estou indo participar desse workshop sobre doenças de pele em
cetáceos. Mas não só isso, por isso estas reuniões [entre os membros do próprio GEMM-
Lagos] são importantes, para que todo mundo saiba o que o outro está fazendo; tem que
ter comunicação entre as pesquisas. Mesmo que não vire uma tese daqui, mas pode
resultar num artigo ali, numa nota ali. Eu sempre acho que é essencial saber o que os
outros fazem. (Salvatore).
Um pesquisador atualizado, indica o chefe, é capaz de permitir o deslocamento dos
objetos que sua prática enclausura, sem que para isto ele mesmo tenha que empreendê-lo. Desta
forma, sua ciência ganha em acurácia ao mesmo tempo que poupa trabalho e dinheiro.
Concluindo, vimos que ao contrário do que se espera, a contradição e a distância
84
Latour e Woolgar já chamavam atenção para esta característica da atividade científica em sua etnografia, sob o nome
de objetos rotinizados. Trabalhos recentes, como o de Mol (2002) e Law e Singleton (2003), sugerem que é próprio
da prática científica operar através de clausuras práticas e momentâneas; um objeto que esteja definitivamente
“enclausurado” é um objeto incapaz de se deslocar pelas redes. Se de fato isto se constitui enquanto um aspecto
estrutural da ciência, é, certamente, motivo de uma investigação praxiográfica, contudo, penso que é desta forma
que se comporta a cetologia que pude observar no GEMM-Lagos.
85
O estudo vem indicando que aquilo que se pensava ser uma mesma grande população de brudas realizando seus
típicos movimentos migratórios, seja, na verdade, duas populações distintas deste animal: uma costeira e outra
oceânica ou nômade. Acredita-se ainda que as divergências entre os dados da avistagem e do monitoramento acerca
dos hábitos alimentares destes animais possa ser explicado justamente por esta divisão geográfica. O modelo seria
semelhante ao das orcas, sempre estruturadas em duas populações (residentes e nômades) com hábitos sociais e
alimentares completamente distintos .
121
entre as perspectivas não é considerado um problema contra-produtivo pelos pesquisadores do
GEMM-Lagos, ou um possível resultado de uma organização e articulação entre os diferentes
agenciamentos. Muito pelo contrário, os cetólogos costumam considerar as contradições entre os
objetos finais de suas práticas nos termos de um problema interessante para a cetologia. Se, por
definição, seus objetos são clausuras momentâneas de estados passageiros, uma contradição pode
ser o indicativo de que um determinado objeto precisa reiniciar seu deslocamento. De fato - diziam
os pesquisadores do GEMM-Lagos -, o cetólogo ideal é aquele capaz de transformar tanto os
encontros quanto os desencontros entre seus objetos em acontecimentos produtivos de sua ciência.
122
CAPÍTULO III – ESPECIAÇÃO ALOPÁTRICA DE UM OBJETO
All whales captured by anybody on the coast of that land, the
King, as Honorary Grand Harpooneer, must have the head,
and the Queen be respectfully presented with the tail. A division
which, in the whale, is much like halving an apple; there is no
intermediate remainder.
(Herman Melville – Moby Dick)
1. O campo visto do laboratório
Diz-se do laboratório que este espaço é o próprio território, no sentido etológico, da
ciência
86
; um dispositivo cujo objetivo primário é prover as condições necessárias para que a prática
científica seja capaz de transformar, neste caso específico, substâncias em signos. De fato, foi
justamente quando descrevemos a presença da cetologia em territórios estranhos a ciência que
percebemos sua dependência de uma espacialidade própria. Como já observara Latour (2001, p.47),
nenhuma ciência é capaz de começar ex nihilo, é necessário que, onde quer que ela seja feita, seja
precedida de outra ciência capaz de transformar sua localização em no mínimo um proto-
laboratório, garantindo assim suas condições mínimas de existência. As atividades de campo do
GEMM-Lagos, por exemplo, necessitam de uma posição, um mero no Sistema de
Posicionamento Global, via utilização de aparelhos de GPS.
86
Este tipo de proposição atravessa praticamente toda a recente produção STS, inaugurada a partir dos trabalho de
Latour e Woolgar (1996).
123
Uma jubarte encalhada é diferente de uma jubarte nadando rente ao costão rochoso, que
é diferente de uma jubarte avistada em alto-mar, cada uma é um dado interessante
diferente. Em que altura você encontrou esse bicho? Qual é o lat e long dessa
ocorrência? Se você me diz que viu uma jubarte, a primeira coisa que eu tenho que saber
é 'onde?' depois 'fazendo o quê?'. Pronto, Orlando, se você sabe me dizer onde viu uma
jubarte e o que ela estava fazendo ali, você já pode me dizer que fez uma avistagem. [...]
Mas não pode ser qualquer coisa também, né? Você até pode me dizer que viu uma
jubarte em frente a pousada tal. Tem os dados do binóculo? Se tiver, beleza, a gente volta
depois com o GPS e pega o local. É assim que funciona, se você não tem aquele local
no GPS, tudo o que você viu não adianta de muita coisa. (Jaílson).
Daston e Galison (1992) argumentam que grande parte dos esforços inventivos das
ciências modernas, acentuados nos últimos séculos, foram dedicados à produção e aperfeiçoamento
de instrumentos que sejam capazes de diminuir o papel do sujeito nos enunciados científicos,
promovendo operadores capazes de transformar um fenômeno natural em algo que possa ser
continuamente reproduzido e garantindo, desta forma, seu deslocamento e inserção em novos
contextos
87
. No caso da cetologia, é o georeferenciamento, como o próprio nome indica, que traça
uma linha de referência entre o laboratório e o campo e garante a reprodutividade do fenômeno
observado
88
. Entretanto, devo ressaltar que a reprodutividade das entidades, assim como na teoria da
deriva genética, não é sinonimo de uma repetição ad infinitum; a referência é a condição de
possibilidade que garante uma série regulada de transformações, transmutações e translações
(Latour op. cit., p.86). Da perspectiva da ciência, que ambiente poderia ser mais adequado para a
produção de séries reguladas de transformações que um laboratório?
[L]aboratories provide an “enchanced” environment that “improves upon” natural orders
in relation to social orders; imply that it rest upon the malleability of natural objects.
Laboratories are base upon the premise that objects are not fixed entities that have to be
taken “as they are” or left by thenselves. In fact, one rarely works in laboratoreis with
87
Neste mesmo contexto, destaca-se o trabalho de Chertok e Stengers (1990), que tomam por caso privilegiado o
debate em torno das praticas magnéticas de Mesmer e a instauração da chamada medicina científica, um dispositivo
que ao ser capaz de promover curas em todos os corpos, diminui o papel do sujeito em sua própria recuperação.
88
A idéia de uma ciência que opera a partir do deslocamento de objetos externos a seus laboratórios é uma
característica das ciências biológicas, uma ciência de campo (Cf. Stengers, 2002, p.170). Para que este movimento
não seja naturalizado enquanto próprio da Ciência, deve-se buscar referências em outras monografias, como o
campo amplamente documentado da Física (Cf. Pickering, 1995; Traweek, 1988; Law, 1994) e suas especializações
(quântica, atomicista, nuclear...), onde pode-se observar como esta disciplina opera de forma oposta àquela que
observamos nesta praxiografia, ou em outras monografias sobre ciências aparentadas a cetologia (Fujimura, 1996;
Mol, 2002; Sá, 2005). Diz-se que na Física, é o próprio laboratório que se constitui como ambiente natural dos
objetos estudados, atuando tanto na produção, quanto na investigação (Knorr Cetina, 1999, p.79).
124
objects as they occur in nature. (Knorr-Cetina, 1999, p.27).
Contudo, deve-se ressaltar, ainda que um operador como o GPS seja capaz de
produzir uma forma de espacialidade específica, que os deslocamentos observados no capítulo
anterior garantam a maleabilidade dos objetos, assegurando seu deslocamento para outras séries.
Penso que a transformação do campo em laboratório, nunca seja uma transformação inteiramente
consumada - daí a utilização prévia do termo proto-laboratório. Por mais que um cetólogo esteja
preparado para todas as adversidades as quais estará sujeito durante sua experiência de campo, sua
preparação (e seus instrumentos) nunca serão capazes de lhe garantir uma característica
fundamental e distintiva dos laboratórios de biologia: uma distância mínima daquilo que se estuda.
Interno a esta perspectiva, tudo se passa como se o laboratório estivesse posicionado
a uma meia-distância ideal entre a ciência e a natureza (Latour, 2001, p.52), um movimento
necessário para que os cientistas possam realizar suas atividades da forma que consideram ser a
mais adequada. Nos laboratórios, poderíamos dizer, os cetólogos encontram-se perto da natureza,
pois m ao alcance de suas mãos um número considerável de espécimes para estudo, ainda que
transformadas em fragmentos mínimos contidos em pequenos potes. Pela própria lógica da
representação científica, cada amostra de gordura representa um todo muito maior, encorporando
não apenas a rede de associações entre humanos e não humanos - capaz de transformá-la em uma
substância qualificada -, mas também - interno ao modo de ordenação da Fiocruz, devo ressaltar
indicando conseqüências da ocupação imobiliária irregular, do crescimento industrial desordenado
e, até mesmo, o futuro possível de algumas populações humanas.
125
Fig, 14 - Freezer contendo amostras.
126
Entretanto, também poderíamos dizer que nos laboratórios os cientistas gozam de
uma distância da natureza, tendo em vista que as atividades de campo, por definição, devem ser
capazes de impor uma seleção àquilo que do mar é remetido para os laboratórios; aqui, não
encontramos água do mar, nem areia, tampouco crustáceos (excetuando-se os digeridos nos
estômagos dos espécimes) e outros animais que compõem a fauna entorno dos cetáceos. Nestes
ambientes controlados, os pesquisadores encontram-se protegidos das vicissitudes do trabalho de
campo, os bisturis não perdem mais o fio pelo simples contato com a areia e as amostras não
podem ser arruinadas por uma onda do mar. Em suma, as condições de trabalho são mais
previsíveis.
Outro resultado deste distanciamento: se, durante as atividades de campo, os
cetólogos encontram-se envoltos com as qualidades particulares de cada encontro com um cetáceo,
empenhados em, um curto período de tempo, extrair daquele evento todos os objetos possíveis, no
laboratório, por tratar-se de um ambiente cujos inputs naturais são previamente selecionados, o
cetólogo dispõe das condições necessárias para que possa estabelecer relações entre diferentes
espécies e espécimes, assim como entre seus próprios objetos com aqueles provenientes de outros
agenciamentos metodológicos. Retornando a um exemplo previamente citado, é desta forma que um
pesquisador pode dispor em um mesmo quadro sinótico: quatro toninhas (Pontoporia blainvillei)
encontradas encalhadas em praias e anos distintos (GEMM 085, GEMM095, GEMM097,
GEMM140); dados pretéritos da avistagem que caracterizam a distribuição e o uso do habitat por
estes animais; dados oceanográficos que caracterizam as correntes marítimas e o relevo submarino;
e dados osteológicos que caracterizam a idade de cada espécime, produzindo um padrão geográfico
e etário para os encalhes desta espécie na Bacia de Campos (Moura et al., 2008).
Dada esta topologia, não é por coincidência que o macro-grupo “biólogos” encontre-
se dividido por dois grupos de certa forma antagônicos, denominados biólogos de campo e biólogos
de laboratório
89
; segundo os membros do GEMM-Lagos, biólogos de campo são facilmente
89
Distinção que também aparece na etnografia de Sá (2006, p.41-42) sob o nome de “surfistas” e “geneticistas”.
127
identificáveis por conta de seus corpos saudáveis, atléticos - do contrário não poderiam dar conta
de suas atividades sempre exibindo um eterno bronzeado, mesmo durante os meses de inverno.
Em contrapartida, segundo os próprios, biólogos de campo sofrem de uma espécie cronica de
claustrofobia de laboratório”: sempre incomodados de alguma forma pelo ambiente laboratorial,
seja pela constante repetição das atividades - é muita receitinha de bolo -, seja pela própria
ordenação do espaço. Em direção contrária caminham os biólogos de laboratório, aos quais se
atribuí uma aparência pálida conseqüência do enclausuramento dos laboratórios -, sempre acima
ou abaixo de seu peso corpóreo ideal e, segundo dizem, consideram as atividades de campo
extenuantes, caóticas e pouco científicas. No caso específico do GEMM-Lagos, a começar por seu
próprio coordenador que se “sentia mal trabalhando dentro de laboratório”, todos os pesquisadores
envolvidos com cetologia consideravam-se biólogos de campo, mesmo aqueles que costumavam
passar longos momentos encerrados em laboratórios analisando amostras recolhidas no campo
Eu não sou um cara de lidar com miudeza, não sou um cara de lidar com lupa, de
microscópio, de bancada. Nunca fui, eu sempre soube disso. Na faculdade, nas aulas de
botânica, de anatomia, preparando lâmina, eu começava a ficar irritado com aquilo e
começava a esbarrar em tudo, caía Placa de Petri no chão. Até o dia em que a
professora chegou e virou: Salvatore, pode ficar afastado da bancada, não precisa fazer
mais nada, porque o prejuízo que você deu quebrando Placa de Petri e lâmina...
[...] essa coisa de lidar com o que é grande de verdade, do que o olho vê, do que eu
exergo, que eu vejo. Eu tenho muito isso”. (Salvatore)
A associação de macro-objetos com as práticas de campo e micro-objetos com as de
laboratório é, sem dúvida, uma das figuras mais recorrentes no discurso dos cetólogos e nos oferece
uma interessante complicação da hierarquia entre as perspectivas que analisamos no capítulo
anterior. Se, a partir das atividades de campo, vimos como as práticas do monitoramento in situ são
consideradas mais objetivas por estarem por assim dizer mais próximas das atividades
laboratoriais, neste momentos somos confrontados com uma proposição auxiliar: quando mais
“laboratorial” ou micro for um objeto, maior será o risco de um despreendimento da realidade
90
. Se
90
“[A] genética é um ato de fé, você tem que acreditar que aquilo ali ta acontecendo. Eu nunca vi um DNA, eu sei
que o termociclador amplia uma coisa, mas se aquilo que ele amplia é realmente o que dizem que ele amplia, a
128
anteriormente observamos entre os cetólogos uma desconfiança acerca da objetividade de seus
macro-objetos – sobretudo aqueles produzidos pela avistagem –, aqui, percebemos uma
desconfiança em relação aos micro-objetos, que por conta de seu alto grau de abstração, podem não
existir, não passando de ficções criadas pelos equipamentos e metodologias de observação.
Eu tenho uma grande tendência a desconfiar daquilo que não posso ver, porque as
pessoas aproveitam isso para dizer qualquer coisa. [...] Toda semana dizem uma coisa
diferente com a genética, acham o gene x que faz a pessoa ser gay, o gene y que faz a
pessoa ser violenta que a propósito acharam em cobaias de laboratório que, até onde
sei, não são muito violentas -, daqui a pouco vão achar o gene que me faz gostar de
chocolate. Hum... já não acharam esse também? [...] Eu falo isso brincando com você,
mas isso é algo muito sério; quando você for com a Thais no laboratório você vai ver
como eles trabalham. [...] Você tem o genoma, ele tem partes, ok? toda semana
inventam um kit diferente que te permite ver uma parte nova. É óbvio que não é tão
simples assim, mas às vezes eu desconfio que isso seja como pintar alguém de verde e
dizer: essa pessoa é verde! Não dizendo que a genética não é séria, estou dizendo
que as pessoas deveriam ter um pouco mais de cuidado com o que saem falando por ai.
(Salvatore)
Neste ponto, a divisão proposta entre biólogos de laboratório e de campo passa a
constituir-se enquanto ponto fundamental e distintivo da própria prática científica do GEMM-
Lagos: Aqui no GEMM a gente vai do campo para o laboratório e não o contrário; a gente
trabalha com e para os dados primários. Isso gera algumas dificuldades que o pessoal que
trabalha a partir do laboratório não tem. (Renata). Seguindo a orientação da cetóloga, ainda que
biólogos de campo façam trabalhos em laboratórios e vice e versa, a pertença a uma destas
categorias depende mais da posição inicial que sua prática ocupa e sua conseqüente forma de
orientar a produção de objetos, do que dos deslocamentos que ele empreende através das redes.
Seguindo esta linha de raciocínio, podemos supor a existência de cetologias de laboratório, um fato
amplamente reconhecido e lamentado por meus interlocutores: Tem artigo que você e você
percebe que a pessoa nunca viu um golfinho na vida, por isso não se pode acreditar em tudo que se
fé explica.” (Thais). Fazer brincadeiras a respeito da descrença nos próprios objetos de pesquisa era comum entre os
cetólogos do GEMM-Lagos, contudo, haviam ressalvas sobre aquilo que poderia ou não ser objeto deste tipo de
brincadeira. Quando se tratava da descrença, logo percebi que nem todos os objetos eram equivalentes: em mais de
uma situação fui alertado por meus interlocutores de que era possível desconfiar das curvas que indicavam a
presença de contaminantes, contudo, o mesmo não poderia ser feito a respeito de um cetáceo contaminado
129
lê, mesmo que faça sentido”. (Salvatore)
91
.
É uma orientação programática do GEMM-Lagos exigir de seus associados que,
mesmo enclausurados em laboratórios, sejam capazes de manter sua produção orientada para o
trabalho de campo. Uma exigência que na prática se traduz em uma constante preocupação em
contrapor e relacionar as abstrações produzidas pelos laboratórios com aquilo que eles podem
observar no campo - este é o primeiro teste de força de qualquer objeto produzido nos laboratórios
do GEMM-Lagos. [V]ocê não pode dizer que algo existe porque você descobriu no
laboratório, tem que ver se alguma correspondência com aquilo que a gente no campo.
(Salvatore). Exemplificando: não era raro que os cetólogos se referissem à genética enquanto o
completo oposto de sua orientação programática
92
; uma pesquisa cujo marco inicial seria a bancada
laboratório, subsumindo todas as etapas anteriores a uma mera coleta de material. Contudo, como
veremos adiante, no GEMM-Lagos, estudos de biologia molecular atualmente, uma passagem
obrigatória para qualquer espécime coletada durante o monitoramento -, são encarados enquanto
complementares a etapas anteriores, entendendo-as enquanto dados plenos e não apenas material
bruto, permitindo aos pesquisadores identificar o sexo e espécie de carcaças em estágios avançados
de decomposição e caracterizar geneticamente uma determinada população.
Do que me adianta saber o número de mutações no citocromo b, se uma determinada
população tem uma freqüência gênica X, se eu não sei o que isso representa para uma
população? Olha, se você me disser que uma pequena população tem uma variabilidade
genética menor, por isso tem maior suscetibilidade a desequilíbrios ambientais, se isso
causa epizootias, se você me mostra isso com dados de encalhe, sim, sim você tem
um trabalho muito interessante, aí você me mostra que o tal citocromo vale alguma coisa
para o animal [...] Na maioria das vezes, as pessoas acham que o nosso trabalho é
conseguir um número e pronto, mas não é isso mesmo. Descobrir a concentração de
um contaminante é só o começo da coisa toda. (Salvatore).
Uma vez que cada pesquisador do GEMM-Lagos representa um agenciamento
91
De fato, em conversas a respeito da história da autonomização da disciplina, os cetólogos reconhecem no debate
entre neurofisiologistas e etólogos, que marcou o início da cetologia, um esboço dos debates modernos entre
cetologias de laboratório e de campo. Penso, ainda, que podemos estender a mesma demarcação para os debates
entre paleontologia e genética apresentados no capítulo anterior.
92
“[A] genética está aí para tentar provar que a gente não está vendo aquilo que a gente está vendo”. (Jaílson)
130
metodológico próprio, o momento de reencontro com o campo é também um momento de
reencontro com outros cetólogos. A distribuição dos pesquisadores pelos laboratórios segue a
mesma lógica organizacional, traduzida na presença de um, no máximo dois, pesquisadores ativos
por laboratório
93
. Sendo assim, ao contrário do modo de ordenação da Petrobras, onde os
pesquisadores são considerados substituíveis, no modo de ordenação da Fiocruz, cada pesquisador
representa uma série de transformações específicas para as substâncias, tornando-se parte integrante
dos objetos produzidos pelos laboratórios. Mesmo quando encontramos laboratórios com mais de
um pesquisador envolvido, cada pesquisador representa diferentes deslocamentos para os objetos.
Destarte, não é de se estranhar que o encontro com outros pesquisadores também possa representar
a incorporação de co-autores ao trabalho de cada um.
Concluindo, se até o momento detive minha descrição aos aspectos gerais dos
laboratórios de cetologia e suas diferenças com o campo, para que possa prosseguir, faz-se
necessário me ater às configurações particulares de cada um destes laboratórios. Desta forma,
concentrei minha narrativa em três laboratórios
94
onde a ocorrência de cetólogos era confirmada:
Laboratório de Ecologia Gustavo de Oliveira Castro, onde um “aspirante a cetólogo” realiza a
análise do conteúdo estomacal dos cetáceos coletados no campo; o laboratório de osteologia, onde
duas cetólogas realizam pesquisas com crânios e colunas cervicais em busca de padrões de
normalidade e anormalidade; por fim, a Divisão de Genética de um instituto dedicado ao estudo do
câncer onde amostras de tecido são transformadas em eletroferogramas.
93
O que não significa que a prática da cetologia seja estritamente uma prática solitária, os cetólogos costumam estar
acompanhados um dos outros nos laboratórios, geralmente ajudando-se mutuamente com protocolos básicos e de
caráter mais geral, como limpando os ossos, ou simplesmente para fazer companhia. O termo ativo, utilizado pelos
cetólogos, designa o pesquisador que de fato está produzindo artigos a partir de tal ou tal laboratório, desta forma, o
pesquisador que é ativo em um laboratório pode não ser em outro.
94
O leitor ficará surpreso ao notar a ausência de laboratórios dedicados à produção de dados sobre contaminantes ou
doenças em cetáceos, centrais na produção científica do GEMM-Lagos. Contudo, penso que esta ausência é
justificável por se tratarem de territórios estranhos aos próprios cetólogos, uma vez que estes estudos são realizados
em outros laboratórios, por outros pesquisadores. Uma situação que vem gerando alguns desconfortos para o grupo.
A gente tem muito material, mas não tem gente para analisar1, não temos recursos. Por isso que a eu faço estes
trabalhos com o pessoal da bacteriologia, da química.” (Salvatore).
131
2. Estômagos, otólitos e matemática: o laboratório de ecologia
Começamos nosso deslocamento pelo Laboratório de Ecologia Gustavo de Oliveira
Castro, situado no primeiro andar do ENSP/Fiocruz na cidade do Rio de Janeiro. Para lá, são
levados estômagos de cetáceos coletados durante os monitoramentos. O laboratório, compartilhado
com outros grupos de pesquisa da própria instituição
95
, consiste em uma grande sala refrigerada
cujo aparato material compreende: duas bancadas de aproximadamente seis metros cada com 5
microscópios e um sem número de pequenos recipientes contendo produtos químicos e amostras de
tecido conservados em formol; duas pias contendo baldes, tijelas, peneiras e produtos químicos de
limpeza; quatro mesas, onde são mantidos quatro computadores, de uso comum a todos os
pesquisadores e ligados a internet através do servidor da Fiocruz; um quadro de avisos, no qual
registros das atividades do laboratório (horários de chegada e saída dos pesquisadores, pesquisas em
atividade); alguns armários contendo mapas, artigos científicos organizados por assunto e grupo de
pesquisas, e mais um sem mero de potes contendo amostras e produtos químicos; freezers
utilizados para a preservação de amostras de tecido, produtos químicos e, em uma única ocasião,
uma toninha inteira
96
; por fim, uma pequena cesta de basquete utilizada para a “manutenção da
sanidade” dos pesquisadores.
É neste ambiente que Paulo, “aspirante a cetólogo” segundo sua própria definição
-, vem dissecando sistematicamente estômagos de cetáceos com o objetivo de compreender as
necessidades energéticas e nutricionais ao longo da ontogenia dos cetáceos, relações tróficas e
padrões de movimentação e distribuição destes viventes ao longo da Bacia de Campos. Para tanto,
95
Durante a realização de meu trabalho de campo, em conjunto das análises de estômagos, duas outras pesquisas
estavam em curso no local: uma destinada a análises de polem e possíveis riscos a saúde humana, outra voltada para
o estudo de fezes de macaco e possível elaboração de uma agenda de reflorestamento. O local também estava sendo
preparado para se tornar a “casa” do grupo de ornitólogos do GEMM-Lagos.
96
Os espécimes de pequenos cetáceos conservados integralmente tinham um papel de recurso estratégico para futuros
cursos; Salvatore e Jaílson pretendiam dar cursos de especialização em anatomia de cetáceos, onde os animais
seriam dissecados na frente dos alunos. Segundo os cetólogos, o cenário acadêmico nacional encontra-se carente de
atividades desta sorte: geralmente o estudante muito, mas nunca viu um cetáceo na frente, nunca olhou para a
cara do bicho.” (Jaílson).
132
sua pesquisa toma por substância qualificada presas recuperadas nos tratos digestivos destes
animais, por questões de ordem prática, em sua maioria pertencentes a espécimes de pequeno e
médio porte. O material chega ao laboratório ainda alojado em estômagos congelados que são
acondicionados em sacos plásticos, com a porção inicial (junção com o esôfago) e terminal (junção
com o intestino) amarradas com fios de náilon ou barbante, garantindo que não tenha perda de
conteúdo durante a realização do trajeto campo/laboratório; “um otólito que você perde, porque não
vedaram direito, já complica a coisa toda.” (Paulo).
Com um estômago em mãos, o primeiro movimento de Paulo é realizar uma pesagem
do órgão, processo que é repetido após a retirada do conteúdo estomacal. Feita a pesagem, Paulo
secciona as paredes externas do órgão, começando invariavelmente pela porção próxima ao esôfago
e seguindo em direção à porção terminal através da curvatura maior do estômago. O conteúdo
estomacal é retirado com auxilio de água corrente sobre uma peneira cuja malha seja pequena o
suficiente (tamanho máximo de 1,0mm) para reter itens alimentares e parasitas estomacais. A
metodologia, conhecida como recuperação de itens alimentares, é um processo bastante delicado,
uma vez que os objetos retidos na malha - como os otólitos de peixe ou bicos de cefalópodes - são
estruturas frágeis, cujo simples manuseio pode resultar em perda ou alteração das amostras. Itens
recuperados podem ser acondicionados a partir de dois critérios: bicos córneos de cefalópodes,
partes do cefalotórax de camarões e parasitas inteiros são preservados em álcool aquoso 70%;
otólitos de teleósteos
97
e outras estruturas ósseas são preservados a seco para futuras análises. É
proibida a alocação de qualquer conteúdo estomacal em solução contendo formol, pois esta solução
é capaz de alterar algumas estruturas das presas, dificultando ou impossibilitando sua classificação
adequada.
Todo mundo sabe das dificuldades de se trabalhar com cetáceos, no caso dos hábitos
97
Grupo de peixes, também conhecidos como Teleostei, pertencentes a subclasse Actinopterygii. Estes peixes são
conhecidos por sua estrutura óssea tipicamente calcificada e aberturas branquiais protegidas por um operculo ósseo,
por isso também são popularmente conhecidos como peixes com ossos.
133
alimentares é pior ainda. Na verdade, não é só com cetáceos, mas com animais pelágicos
no geral. que quando se trata de peixe é mais tranqüilo, porque você tem como
arrumar peixe... Sei lá, você vai arrumar alguma coisa com o pescador e tudo mais.
Cetáceos, além de tudo, além da dificuldade de trabalhar com animais pelágicos, têm a
restrição de captura, por isso a gente se obrigado a trabalhar com animais
encalhados e capturados acidentalmente. Mas ainda tem mais alguns problemas:
cetáceos são animais com alta taxa de digestão, capazes de destruir muitas estruturas
importantes para a identificação taxonômica de suas presas. Desta forma, a análise de
sua dieta acaba sendo realizada a partir das estruturas mais resistentes ao processo de
digestão, mas mesmo estas acabam se deteriorando muito rapidamente no estômago do
bicho. (Paulo).
Otólitos, bicos e cefalotórax, estes são os objetos naturais que permitem ao cetólogo
inferir sobre os hábitos alimentares dos cetáceos. Cada um destes objetos é alvo de uma técnica de
identificação distinta que em conjunto, no fim de todo o processo, garante sua associação com
outros itens. Em suma, do ponto de vista da cetologia, é necessário saber distinguir e analisar cada
elemento encontrado no trato digestivo de forma a compreender aquilo que ele representa para o
animal. Dizer que um animal se alimenta do outro vai além da caracterização alimentar de um
determinado táxon. Destarte, a assertiva “Two carcasses were dissected recently on the Rio de
Janeiro coast and provided intriguing results: both stomachs were full of a small shrimp, Acetes
americanus, and their intestines were massively infected by Bolbosoma capitatum” (Siciliano e
Souza, 2006) diz mais coisas para a cetologia do que simplesmente brudas também são animais
planctófagos; é capaz de promover novas questões e variáveis para os estudos de contaminantes
destes animais e para a caracterização das sensibilidades deste ecossistema. De fato, segundo meus
interlocutores, uma boa caracterização dos hábitos alimentares dos cetáceos deveria ser capaz de
interessar estudos de toda a sorte.
Trazendo aquilo que propõe a cetologia para sua própria descrição praxiográfica;
falaremos individualmente de cada tipo de item estomacal. Otólitos que são concreções calcárias
encontradas no ouvido interno de alguns vertebrados (incluindo humanos), cujas funções primárias
incluem o equilíbrio e a audição. Estas estruturas ocorrem em três pares de corpos simétricos:
sagitta, lapillus e asteriscus. Com a exceção de uma única espécie de peixe, a identificação
134
taxionômica das presas é realizada exclusivamente a partir dos otólitos sagitta, pois possuem
padrões morfométricos constantes em uma mesma família e distintos para casa espécie. A
identificação é realizada com o auxílio de um microscópio estereoscópio, indo em direção até o
menor nível taxonômico possível através de comparações com coleções de referência e chaves de
identificação apresentadas na literatura corrente. Segue, a título de exemplo, fotografias de dois
otólitos pertencentes a espécies distintas (respectivamente Isophistus parvipinnis e Porichthys
porosissimus) e o comentário de Paulo a respeito dos itens.
Aqui foi o que eu falei, estes dois peixes aqui são da mesma família. para ver que os
otólitos são bem parecidos, um é o direito e o outro é o esquerdo. O próprio formato dele
é parecido, o sulco é parecido, tem pouquíssima diferença. Esse aqui é mais pontudo e o
sulco é mais caído, que ele pode estar desgastado, você acaba perdendo a precisão
na análise. Aqui embaixo é o do peixe-espada [Trichiurus lepturus] e aqui é do mamangá
[Porichthys porosissimus], você que é completamente diferente. Então, é tranqüilo
entre aspas de se identificar as presas pelos otólitos. Tem uns que são deste tamanho,
outros que são uma bolinha, eu coloco como não identificado, não tem como. Tem
otólito que você pega e não nem o sulco [...] No começo eu estava todo atrapalhado
com isso, o Salvatore chegou com uma coleçãozinha, que ele fez com outra pesquisadora,
e a partir daí eu fui matando tudo. O Salvatore me indicou uma pesquisadora que
dizem que ela é capaz de matar sem nem olhar na lupa, só de ver ela já diz. (Paulo)
Cetáceos são animais oportunistas que, geralmente, orientam sua dieta para animais
que existem em maior número nos ambientes que freqüentam; por conseqüência, especificamente,
seu cardápio na Bacia de Campos inclui uma enorme quantidade de cefalópodes. Do corpo de uma
lula, após o processo digestivo, sobra apenas o bico córneo composto de quitina: estrutura
extremamente resistente a ação mecânica e química da digestão dos cetáceos que, devido a sua
Fig. 15 - Otólito. Acervo GEMM-Lagos.
Fig. 16. Otólito. Acervo GEMM-
Lagos.
135
composição e morfologia, acabam firmemente aderidas às paredes internas dos estômagos,
facilitando sua recuperação e identificação. Neste segundo caso, atribui-se a identificação
taxionômica dos bicos uma maior exatidão frente àquelas realizadas em otólitos; bicos de lula são
capazes de resistir a todo o processo de digestão, sem que haja desgaste de suas características
distintivas, ao contrário dos otólitos. A distinção é feita através de biometria e nas fotografias abaixo
podemos perceber uma sutil, porém significativa, diferença entre duas espécies de lulas
(respectivamente Loligo plei e Loligo sanpaulensis) através da distância horizontal entre a ponta
dianteira do bico e seu limite inferior:
No caso dos camarões, crustáceos decápodes que, a despeito de serem encontrados
com uma freqüência menor, são considerados muito importantes para estudos ecológicos por serem
tidos como grandes vetores de parasitas. Sua identificação taxionômica é, segundo Paulo, bastante
simples pois consiste na contagem de espinhos do rostro ou do télson - peça quitinosa do último
segmento do exosqueleto dos artrópodes - do espécime.
As mesmas relações morfométricas que permitem a identificação taxionômica de
cada item também permitem ao cetólogo estimar o tamanho das presas ingeridas. Tem umas
equações de regressão para cada peixe. Você tem uma medida de comprimento e largura, você tem
uma noção geral do porte da presa, da biomassa.” (Paulo). No caso específico do peixe-espada
(Trichiurus lepturus), utiliza-se ainda, de forma complementar, o característico osso supra-ocipital
Fig. 17 – Bico. Acervo GEMM-Lagos.
Fig. 18 – Bico. Acervo GEMM-Lagos.
136
para estimativas da mesma sorte. Identificar o tamanho de cada espécime e, posteriormente,
produzir uma estimativa do tamanho médio das espécies é fundamental para a caracterização
alimentar. Segundo Paulo, para saber se uma espécie tem preferência sobre animais menores e
mais novos. Por exemplo, nas orcas, se você encontrar outros cetáceos, provavelmente vão ser
filhotes. Isso faz uma diferença absurda.”. Estas estimativas também podem ser significativas de
pressões sofridas pelo ambiente: se você pegar um registro antigo de um animal e ver que ele se
alimentava de presas maiores, mas que agora se alimenta de presas menores, isso pode te dizer
que aquele local está sofrendo alguma pressão, que o número de peixes diminuiu”.
A caracterização do conteúdo é fundamental para que se possa estimar a importância
de cada espécie na dieta de um táxon. O cetólogo deve estar sempre alerto a fatores que possam
inserir tendências indesejadas em suas proposições, como a contaminação do conteúdo estomacal
dos predadores por itens alimentares de suas presas; o fato dos predadores poderem regurgitar o
conteúdo estomacal antes da morte em eventos de capturas acidentais; a aceleração do processo
digestivo realizado por parasitas; o fato da ação gástrica sobre o alimento continuar após a morte do
predador; e a possibilidade do predador descartar estruturas de importância taxonômica e
morfométrica das presas antes da ingestão. Para que estas distorções possam ser rastreadas, Paulo
recorre continuamente à literatura corrente, contudo, a escassez de dados específicos sobre
freqüência alimentar e processo digestivo dos cetáceos dificulta a operação. Como se tudo isso não
bastasse, atribui-se aos otólitos um comportamento diferenciado, daquele que pode ser observado
nos bicos de cefalópodes e nos cefalotórax dos crustáceos, em relação ao desgaste e tempo de
permanência no trato digestivo; otólitos permanecem no trato digestivo por até 48 horas, enquanto
os bicos de cefalópodes mantem-se por cerca três dias ou mais. Na prática, isto exige que otólitos e
bicos sejam analisados, no que diz respeito a sua própria importância em uma dieta, de forma
separada, do contrário, as análises tenderiam a superestimar a importância dos cefalópodes para a
dieta dos animais.
137
O cálculo para a estimativa de um número mínimo de peixes ósseos ingeridos toma
por base o total de saggitas do lado (direito ou esquerdo) mais representativo para cada espécie. No
caso específico da presença de peixes-espada, utiliza-se ainda o característico osso supra-ocipital
para a quantificação. Neste caso, o total de exemplares é determinado ou pelo número máximo
destes ossos ou através de otólitos, como já foi dito anteriormente. De maneira similar, a quantidade
total de cefalópodes pode ser estimada a partir do número máximo de bicos córneos superiores ou
inferiores de cada espécie encontrada.
Estimar a quantidade e a biomassa das presas é apenas um dos primeiros movimentos
de transformação. Com estes números em mãos, o pesquisador é capaz de realizar o cálculo do
Índice de Importância Relativa (IIR) de cada espécie de presa na dieta de um táxon. Deslocamento
mediado pela seguinte equação:
IIR = [(%FN + %Biomassa) x %FO]
A freqüência numérica (%FN) corresponde ao mero de presas em um táxon
dividido pelo número total de presas encontradas em seu estômago. A freqüência de biomassa
(%Biomassa) é calculada a partir da quantidade de biomassa de um táxon dividida pela quantidade
de biomassa total das presas consumidas. E, por fim, a freqüência de ocorrência (%FO), onde o
número de estômagos em que uma espécie ocorre é dividido pelo número total de estômagos com
presença de itens alimentares.
A princípio, os esforços deste laboratório eram voltados indiscriminadamente para
todos os cetáceos processados pelo monitoramento - eu tenho uma lista de todos os GEMMs que
tinham estômagos, com uma tabelinha com as espécies encontradas. Só falta fazer um gráfico disso
tudo. Nesse caso, meu N é enorme.”(Paulo). Contudo, ainda que este escopo mais geral não tenha
sido esquecido, afinal “enquanto tiver bicho morto, vai ter estomago para analisar”, a produção
científica deste laboratório vem sendo orientada para um estudo de “biogeografia dos pequenos
138
cetáceos”, com ênfase na alimentação dos Tursiops.
Pois é, ele [Salvatore] inventou agora essa história do Tursiops. Ele falou que achou esse
tal de peixe-inchado em um estômago. Achou, assim, que era uma coisa que aconteceu.
Natural não, ocorreu assim: agora ele achou o trabalho de um cara que também esta
achando esse mesmo peixe na dieta do Tursiops. Então ele queria dar uma olhada para
ver se não é uma coisa que, de repente, aconteceu. Mas se é uma coisa que o bicho
procura, talvez na falta de suas presas habituais.(Paulo)
Busca-se então a identificação de uma normalidade para a alimentação do animal. A
caracterização dos estômagos atuais, alinhados a dados pretéritos obtidos por Salvatore e
relacionados a dados obtidos a partir de Tursiops de outras regiões podem revelar se estes animais
sempre se alimentaram desta espécie de peixe, ou se devido a algum tipo de pressão ambiental, vêm
predando sobre estes animais. Interno a este modo de inscrição e descrição, a presença de um único
peixe no estômago de um determinado táxon pode ser indicativo de uma migração, de todo um
desequilíbrio no ecossistema da Bacia de Campos.
O golfinho é oportunista, então ele se alimenta do que tem mais na região. Então, se você
pega estômagos de uma mesma população, mas em época diferentes, e constata que eles
estão se alimentando de animais diferentes, isso te diz muita coisa. Ah, aquela espécie que
ele está se alimentando pode estar substituindo outras na região, os próprios golfinhos
podem estar migrando para pegar estes peixes porque a sua região não tem mais. Por
isso que a Thaís disse que eu faço biogeografia dos pequenos cetáceos [...] conseguir
informações sobre peixe é fácil, porque peixe não é bicho, é recurso alimentar. Então tem
banco de dados para dar e vender, é acessar a internet e colocar o nome da espécie
que você consegue tudo, descobre que a espécie de peixe fulaninho de tal ocorre na
profundidade tal na época do verão. (Paulo).
3. Crânios, anomalias e paquímetros: o laboratório de osteologia.
Nosso segundo destino, agora na companhia dos ossos de cetáceos, é uma casa tipo
apartamento, propriedade da família de Salvatore, situado no tradicional bairro da Tijuca, Zona
Norte da cidade do Rio de Janeiro - esse antigo imóvel, agora reformado e transformado em um
139
laboratório completo para a realização de pesquisas osteológicas com cetáceos: no espaço
tradicionalmente dedicado a sala de estar, uma bancada onde paquímetros, trenas e lupas dividem
espaço com crânios e vértebras dos animais; nos dois quartos, prateleiras com livros de cetologia,
caixas de arquivo morto, caixas de isopor de 60L, todas contendo em seu interior ossadas completas
a espera de análises; na cozinha, no lugar de potes com condimentos, frascos com produtos
químicos, no lugar de facas e colheres, bisturis e pinças; por fim, na área de serviço, ao invés de
baldes com roupas à lavar, encontramos tonéis com corpos de cetáceos em diferentes estados de
putrefação neste ambiente, reencontramos também o característico cheiro dos animais em
decomposição
98
.
Ossos de cetáceos, dizem os pesquisadores, fornecem informações que podem ser
conjugadas aos dados da biometria externa dos espécimes, possibilitando a realização de estudos
ontogenéticos e evolutivos. O material também permite investigações sobre a ocorrência de
patologias ou deformações associadas ao tecido ósseo. De certo modo, cada uma das duas agendas
de pesquisa que atravessam este laboratório encontram-se diretamente associadas a uma das
assertivas acima: uma voltada para a caracterização de anomalias ósseas encontradas na população
residente de Sotalia na Bacia de Campos, problematizando sua relação com a alta incidência de
contaminantes; segunda, e mais recente pesquisa, é orientada para a caracterização e comparação
morfométrica de duas populações de Sotalia, uma residente do litoral carioca, outra do litoral
paraense. A primeira, uma dissertação de mestrado que toma por substância qualificada uma
determinada vértebra do animal, ao passo que, a segunda, uma tese de doutorado, toma para si os
crânios dos mesmos animais.
O que vou fazer é muito diferente do que aquilo que a Maíra faz. Nem sei por onde
começar [...] Bem, primeiro, ela trabalha com uma parte da espinha dorsal dos bichos,
eu to querendo trabalhar com crânio. Pode não parecer, mas isso é uma diferença
98
Fato que transforma os cetólogos em péssimos vizinhos. Ainda que tenham todo um cuidado para minimizarem o
cheiro produzido por suas atividades, não são raros os casos de reclamações contra a presença do laboratório no
local “Eles sempre reclamam, por isso o Sal pede para a gente jogar um detergente, da uma lavada em tudo. Mas a
gente não tem muito o que fazer, é uma batalha perdida”. (Thais)
140
considerável. Não é tudo osso não, meu filho! Mas enfim, o bicho de lá [do Pará] adulto,
todo fusionado, tem o tamanho de um filhote daqui [Bacia de Campos]; me parece que
isso não é uma anomalia, é diferente mesmo. [...] Apesar disso, o que eu e Maíra fazemos
é parecido em alguns momentos, a gente está interessada em caracterizar estas
populações, ela, pelas anomalias, eu, pela craniometria. Mas, no caso da Maíra, o
interesse é mesmo problematizar a relação causa e efeito das pressões externas na
ontogencia do bicho, por isso você viu que as nossas metodologias são completamente
diferentes. Nesse sentido, você pode entender que o meu trabalho é até mais próximo do
da Thaís do que com o dela. [...] Óbvio que eu sei o que ela está fazendo e ela sabe o que
eu estou fazendo. Não tem como não saber, né? Inclusive, eu tenho que ver como andam
as pesquisas dela para ver se já tem alguma coisa que eu possa usar. (Renata)
Em suma, poderíamos dizer que mesmo neste laboratório, onde duas pesquisadoras
trabalham a partir de substâncias de um mesmo tipo e uma orientação programática comum,
podemos perceber como cada uma encorpora um deslocamento, uma série de transformações
distintas para cada um dos cetáceos. A começar pela própria pulverização de uma categoria genérica
(ossos), que se transforma em dois objetos distintos - crânio e sétima vertebra cervical –, conhecida
como C7. De fato, observamos uma lógica segmentar na comunicação entre os laboratórios:
[V]ocê acompanhou a Thais, você sabe que para quem trabalha com aquilo, cada gene,
cada segmento de DNA representa um mundo totalmente diferente. Você mesmo vive
dizendo que índio não é tudo igual, que tem índio que é assim, que é assado, que cada
um tem sua língua. É que nem osso, de longe parece que tudo é a mesma coisa, mas não
é. Cada tipo de osso representa um mundo de possibilidades completamente diferentes.
[...] É tudo osso? Depende, para o povo da genética talvez seja, mas eles não são
especialistas; para mim não é. (Renata)
Contudo, para que os ossos possam ser transformados em dois objetos e
possivelmente muitos outros - através da abordagem osteológica, é necessário que haja a
recuperação do crânio e do esqueleto pós-craniano. Para facilitar a obtenção destas substâncias os
cetólogos devem reduzir ao máximo a quantidade de tecido aderido aos ossos com o auxílio de
bisturis e pinças; processo minucioso que pode acabar comprometendo a própria estrutura de alguns
ossos mais delicados. A duração da limpeza dos ossos varia de acordo com o porte do espécime, no
caso de um Sotalia de aproximados 1,70m, fica em torno de uma semana. Intercalam-se as sessões
de limpeza, a imersão da carcaça por longos períodos em tanques de maceração, onde o esqueleto é
141
envolto em uma tela de náilon ou material similar, para que não haja perda de ossos menores.
Uma vez recuperados - leia-se livres de carne e músculos - os ossos são expostos por
curtos períodos ao sol para secagem. Você deve ter escutado isso dos outros, mas o sol é
realmente o nosso pior inimigo. Pode empenar o osso todo, deixar ele quebradiço. (Maíra). O uso
de uma estufa para secagem é uma alternativa para épocas úmidas, mas a sua utilização também
representa algum risco para a integridade das peças ósseas. Especificamente, crânios pertencentes a
espécies menores de cetáceos como o supracitado Sotalia -, têm suas maxilas superiores envoltas
por fita crepe ou durex para minimizar o processo de deformação associado à secagem do osso.
Os ossos recuperados são acondicionados em caixas (arquivo morto ou similar) com
naftalina, sílica, ou outros agentes que reduzam a ação da umidade e a proliferação de fungos,
insetos ou outros organismos. Os ossos são distribuídos segundo dois critérios de organização: o
animal completo ou seja, com todos os seus ossos em um mesmo recipiente , ou ossos do
mesmo tipo. Esta segunda forma de organização exige que todos os ossos sejam marcados,
utilizando-se de um lápis HB, com o seu mero de registro de forma a garantir a referência de seu
encalhe. No caso de odontocetos, todos os dentes do animal são extraídos geralmente o próprio
processo de maceração é responsável pelo seu despreendimento do alvéolo dentário - e
acondicionados em pequenos potes contendo álcool aquoso 70%. É neste momento em que ocorre a
divisão de material entre os pesquisadores: Maíra fica com as colunas vertebrais e Renata com os
crânios. Todo o resto é arquivado como material de coleção a espera de possíveis utilizações no
futuro.
Até o meu último momento no campo, Maíra havia analisado colunas vertebrais de
20 espécimes de Sotalias recuperados entre 20/08/2001 e 13/02/2006 na costa centro fluminense,
85% deles em Barra de São João e Quissamã. A cetóloga estabelecia como ponto de corte animais
que apresentavam, no mínimo, 60% das vértebras. Devido a “seleção violenta” imposta aos animais
pelo ambiente, 75% dos exemplares eram de animais imaturos, entre estes, segundo a pesquisadora,
142
um mero considerável apresentavam marcas relacionadas a enredamentos ou contatos com
agências humanas (marcas de hélice, anzóis, arpões...)
99
. Todos os exemplares utilizados foram
minuciosamente monitorados durante sua recuperação, de forma a garantir que as alterações
tafonômicas fossem mínimas e incapazes de comprometer a acuidade de seus testemunhos.
Todos os elementos das colunas, em um primeiro movimento, são analisados
individualmente e posteriormente posicionados em articulação; qualquer presença de partes
ausentes e/ou de formas modificadas pelo próprio processo de recuperação é matéria de registro.
Todo o processo é realizado a partir de um padrão anatômico normal para a espécie, retirado tanto
da literatura corrente, quanto da própria coleção do GEMM-Lagos. Na ausência de estudos sobre o
desenvolvimento embrionário dos cetáceos, a base comparativa é extraída de estudos pretéritos
realizados em esqueletos humanos. Se você sabe que as duas espécies [humanos e sotalias] tem
desenvolvimentos embrionários muito parecidos, por que você não pode extrapolar os dados de
uma para falar sobre a outra?
100
(Maíra). Novamente, a consubstancialidade entre cetáceos e
humanos entra em cena, contudo, não se encontra mais no fim, como uma última série de
transformações capaz de transladar estes animais em objetos interessantes para um programa de
saúde pública. Neste momento, a consubstancialidade é acionada como um objeto do plano de
referência capaz de garantir a própria viabilidade deste tipo de estudo: “Olha, exatamente sobre isso
que eu estou fazendo não tem nada escrito. Então, se eu não usar o desenvolvimento embrionário
humano como padrão de comparação, não vou ter muito o que fazer.” (Maíra).
O ineditismo de sua pesquisa na mitologia, também obrigou a pesquisadora a
desenvolver, na base da tentativa e erro”, uma metodologia própria para a captura da agência das
anomalias congênitas de formação na sétima vértebra cervical (C7); todas as vértebras C7 são
99
Como disse anteriormente, no geral, os encalhes são associados a descartes naturais de espécimes. Contudo,
quando se fala de pequenos cetáceos, diz-se que a situação é inversa: na grande maioria dos casos, os encalhes são
associados ao contato do animal com algum tipo de agência humana, sendo a mais comum morte por afogamento
devido ao enredamento.
100
De fato, certa vez, quando observava um esqueleto de Sotalia em companhia da esposa de Jaílson uma
fisioterapeuta de humanos -, esta começou a reconhecer as estruturas ósseas que observava, tecendo explicações
para o seu desenvolvimento.
143
fotografadas sobre fundo de coloração homogênea e escura, e escala gráfica milimetrada a partir de
uma câmera digital de 5.1 Megapixels montada sobre um mini-tripé TR-036L D-concepts
101
. Após
serem posicionadas sobre um suporte horizontal, a parte anterior do corpo da vértebra é fotografada
utilizando-se uma distância padrão de aproximados 17 cm entre a lente objetiva e a peça.
Dando continuidade ao processo, Maíra estipulou três medidas para cada lado das
vértebras, o que lhe permite produzir um índice e quantificar o grau de desenvolvimento dos
chamados processos transversos
102
de cada peça - conforme a figura a seguir (reproduzida de De
Brito 2007). Para a descrição do não fechamento do arco neural (um tipo de anomalia), observa a
presença ou não de fenda entre os bordos dos dois hemi-arcos que não encontram-se fusionados.
Resumindo e simplificando, a pesquisa é feita a partir de exames macroscópicos e morfométricos
tendo por objetivo a caracterização, localização anatômica e medição de cada uma das alterações
encontradas.
101
Todas as fotografias são organizadas com o intuito de produzir um banco de dados futuro.
102
Prolongamentos laterais, direito e esquerdo, que se projetam transversalmente de cada lado da vertebra. Estrutura
presente em todas as vertebras da espinha dorsal, com exceção das primeiras e segundas vertebras. (C1 e C2), a
formação destas estruturas é considerada uma das anomalias ósseas mais comuns.
Fig. 19 - Medidas laterais da C7 (Laeta, 2007)
144
As medidas lineares propostas para cada lado do corpo da vértebra: medida A,
distância perpendicular em mm entre a linha média da vértebra e a extremidade do processo
transverso; medida B, distância perpendicular entre a linha média da vértebra e o ponto mais
afastado na superfície discal; medida C, comprimento projetado do processo transverso, produzida a
partir da subtração A B. Com estas medidas em mãos, calcula-se o índice da relação entre o
comprimento do processo transverso e o corpo vertebral de cada peça, através da seguinte fórmula:
Índice =
Bx100
A
Os valores obtidos são organizados em planilhas produzidas pelo Microsoft Excel (V.
2003) e transformadas em gráficos de dispersão pelo mesmo programa, e histogramas pelo
Microsoft Power Point (V. 2003). Segundo a cetóloga, estes deslocamentos são necessários para que
seja possível verificar a ocorrência de uma diferença métrica expressiva entre os indivíduos, aqueles
considerados normais e os portadores de costelas cervicais. As medidas A e C de cada lado do corpo
vertebral são aplicadas em gráficos de dispersão independentes, onde os clusters indicam ou não a
presença de costela cervical pelo agrupamento dos pontos. As medidas obtidas pelo índice para cada
lado do corpo das vértebras, também são analisadas de forma independente quanto à bilateralidade e
correlacionadas aos gráficos de dispersão para o valor corte de ocorrência da anomalia. Como um
de seus resultados finais possíveis, esta série de transformações é capaz de produzir uma assertiva
como esta:
Duas categorias de anomalias congênitas na sétima vértebra cervical (C7) atingiram 15
indivíduos (75%), sendo estas coincidentes em três indivíduos (20%), ambas estando
relacionadas ao desenvolvimento anormal do mesoderma paraxial: a presença de costelas
cervicais e o não fechamento do arco neural. Nove indivíduos (45%) apresentaram
processos transversos longos consistentes anatomicamente com esboços de costelas
cervicais em C7. Alguns exemplares mostraram discreto estrangulamento na transição
entre o processo e a projeção mais expandida que representa a pequena costela fusionada.
A ocorrência foi tanto uni quanto bilateral, manifestando-se em tamanhos e formas
145
diferentes. A sétima vértebra cervical tem potencial para formar costelas, o que
caracteriza uma condição anômala, podendo levar tanto a formação de processos
aumentados, observados aqui, como a formação de verdadeiras costelas articuladas em
C7. Nove indivíduos (45%) apresentaram não fechamento do arco neural, que é resultante
do atraso ou não formação do processo neural, o qual se apresentou esboçado ou ausente.
Em todos os casos as vértebras contíguas eram normais. Este defeito não pode ser
confundido com o não fechamento do tubo neural, pois nos Sotalia desta série os bordos
da abertura não se mostram extrovertidos, nem alargamento do canal neural. A
ocorrência destas anomalias nesta série é maior do que referido na literatura, a origem
pode ser genética ou de um fator ambiental. Tratando-se de animais de uma mesma área e
possivelmente provenientes do mesmo grupo familiar, com supostas relações de
consangüinidade, estas anomalias podem expressar uma característica prevalente nesta
população. (Laeta, 2007, p.IX).
Sabe-se que, novamente a partir de estudos sobre distúrbios na morfogênese
ocorridos durante o desenvolvimento embrionário em humanos, estas anomalias podem estar
relacionadas com a expressão gênica (chamada de fator intrínseco) ou com fatores ambientais (fator
extrínseco) que atuam durante o desenvolvimento embrionário de uma espécie. D surgem as
associações destes objetos com aqueles produzidos por outros agenciamentos metodológicos,
sobretudo aqueles que afirmam a presença de contaminantes no corpo dos cetáceos, afinal, diz-se
que o surgimento de anomalias poderia ser indicador de pressão ambiental, quer na forma de
produtos teratogênicos, quer como conseqüência de redução das populações de animais em certas
regiões. Ainda, em função do caráter congênito das anomalias, acredita-se que não existam
diferenças em sua expressão seja espécimes imaturos ou maduros, desde que observadas as idades
em que as expressões destas podem ser confirmadas
103
.
A determinação das idades é um dos pontos que conjuga os trabalhos de Maíra e
Renata, uma vez que estes dados são imprescindíveis a ambos os agenciamentos metodológicos. No
caso do trabalho de Renata, esta determinação apresenta uma informação a princípio contra-
intuitiva quando esta afirma aqui temos espécimes jovens, no Pará a gente tem adulto”.
Contudo, seu estudo de biometria comparativa, ainda que esteja nos primeiros estágios, vem
produzindo assertivas que complexificam a relação da chamada “seleção violenta” com a idade dos
103
Em odontocetos, este tipo de estimativa é realizada a partir da leitura das camadas de crescimento presentes nos
dentes.
146
espécimes encontrados.
Talvez o que selecione, seja mais o tamanho do que a idade do bicho
104
. Você sabe, tirando
um ou outro indivíduo, parece que o tamanho normal dos Sotalias no Pará seja o tamanho
de um filhote no Rio; por isso que eu acho que a partir de um determinado tamanho, o
animal se torna vulnerável. (Renata).
O objetivo do trabalho da pesquisadora é a caracterização morfométrica da
populações de Sotalias residentes no litoral paraense e carioca e, neste deslocamento dos cetáceos,
ser capaz de determinar aquilo que os torna vulneráveis as pressões ambientais, como aquelas
decorrentes de algumas modalidades de contato com a agência humana (interação com atividades
pesqueiras, turismo...). Contudo, como medir um crânio de Sotalia de forma que estas medidas
sejam passíveis de transposição em um quadro maior, capaz de revelar diferentes padrões de
crescimento entre estes animais? Segundo a metodologia adotada pela cetóloga, a tarefa não é das
mais simples. O primeiro movimento é entender que, do ponto de vista da morfometria geométrica,
todas as estruturas morfológicas dos organismos vivos são determinadas por dois componentes: a
forma e o tamanho. Aqui, a exemplo do que observamos a distância nos estudos de paleontologia
envolvendo cetáceos, a forma é considerada o componente mais confiável para a demarcação de
entidades biológicas na natureza, como, por exemplo, a espécie
105
. A forma e o volume de um crânio
de cetáceo são determinados pela atribuição de de 22 marcadores numéricos a pontos pré-
determinados pela literatura. Um sistema onde cada marcador corresponde a uma região, em tese,
comum a todos os odontocetos. Segue uma figura ilustrativa:
104
Muitos dos enredamentos são atribuídos a típica curiosidade dos filhotes de mamíferos. Filhotes de cetáceos tendem
a se aproximar perigosamente de embarcações para investigá-las. Fato que pode representar um viés para os animais
observados durante as avistagens embarcadas.
105
Em 2002, através de estudos deste tipo, Monteiro-Filho e colaboradores (2002) promoveram a divisão do Sotalia em
duas sub-espécies: Sotalia guianensis, presentes nos rios da Amazônia e Sotalia fluviatilis, próprios da região
costeira. Somente três anos depois, um estudo de sistemática filogenética foi capaz de consolidar esta mesma
divisão. Estudos de morfometria também são importantes para pesquisas orientadas para níveis taxionômicos
maiores e cladística; atribui-se, por exemplo, a morfometria a qualidade de melhor ferramenta quando o objetivo é a
procura por caracteres derivados compartilhados (também conhecidos como sinapomorfias), estruturas capazes de
testemunhar a favor da monofilia dos táxons que a compartilham.
147
1 = rostraltip, 2 and 12 = anteriormost point of the notch in the maxilla, 3 and 11 =
intersection between the frontalbone and zygomatic process, 4 and 10 = intersection
between the parietal bone and fronsuture,5 and 9 = posteriormostal-interparietal on the
curve of the parietal, 6 and 8 = point posteriormost point on the curve of the occipital
point on the edge of condyle, 7 = posteriormost the supraoccipital,13 = midpoint of the
nasal bone suture, 14 = anteriormost point of the suture between the frontaland
interparietal bones, 15 and 22 = dorsalmost point on the pterygoida notch, 16 and 21 =
point in the suture between the frontal and alisphenoid bones, 17 and 20 = ventral most
point of the basioccipital crest, and 18 and 19 = ventralmost point of the paraoccipital
process. (ibid., p.126)
A forma e o tamanho do animal são produzidos a partir da medição, através de um
paquímetro, das distancias entre pontos anatomicamente homólogos (ex: 15 e 22), pontos de
tangência (ex: 22 e 13) e pontos extremos de estruturas (ex: 14 e 16). Este é o próprio “núcleo”,
segundo a cetóloga, deste agenciamento metodológico, é aquilo que servirá de “coisa” para todos os
Fig. 20 – 22 Pontos atribuídos ao crânio de um Sotalia. (Monteiro-Filho, Rabello
Monteiro e Reis, 2002).
148
outras séries.
Por se tratarem de - até que se prove o contrário - indivíduos de uma mesma
espécie, até o momento, a variação entre as formas encontra-se dentro de uma taxa de variação
mínima pré-estabelecida na mitologia; espécie, me diziam os cetólogos, não é uma entidade
definida por medidas exatas, mas um complexo sistema formado por variáveis e covariáveis - é
algo que vai de uma coisa a outra, você tem uma variação mínima e uma variação máxima.
Determinar o grau de variação aceitável é muito subjetivo.” (Renata).
Normalmente, quando o objetivo de um estudo é a comparação sistemática de
populações, a variável tamanho das peças é excluída da relação, de modo a assegurar ao
pesquisador que a taxa de variação observada entre as formas não sejam deformações produzidas
por animais de proporções distintas e, no lugar de um polimorfismo, promulgar a existência de uma
nova espécie. Contudo, no contexto da pesquisa de Renata, a variável tamanho é que exerce o papel
de elemento diferenciador entre os espécimes, ao passo que a forma é excluída da relação; a idéia
geral é a de que a variação de tamanho e padrões de crescimento sejam capazes de relatar a
existência de uma subespécie de Sotalia.
É tudo muito subjetivo - me dizia a cetóloga -, a própria utilização deste nível
taxonômico, subespécie, representa uma decisão subjetiva, segundo a própria pesquisadora. Uma
subespécie é uma população que habita uma subseção geográfica definida do habitat de uma
espécie, seus membros encontram-se dentro da taxa de variação mínima exigida pelo táxon e, em
tese, poderiam cruzar com outros indivíduos da “grande espécie”. Em suma, a subespécie é a forma
encontrada pela cetóloga para relatar uma variação geográfica e visibilizar algum tipo de pressão
que estes animais estejam sofrendo de uma forma mais específica, sendo desnecessário qualquer ato
de nomeação/demarcação, não faz muito sentido inventar, nessa altura do campeonato, o Sotalia
guianensis paraensis. (Renata). Retornaremos a este ponto específico na conclusão, por ora,
voltemos a nossa descrição do agenciamento metodológico.
149
Como observamos na figura anterior, os marcadores são dispostos a partir de três
posições da peça a ser estudada. Este deslocamento também tem por objetivo garantir que os
marcadores sejam transformados em pontos de referências, coordenadas em três dimensões que são
as variáveis que capturam as informações sobre a geometria das estruturas estudadas. Cada um dos
marcadores é sobreposto por um plano ortogonal através de uma técnica conhecida por
Sobreposição de Procrustes, traduzindo escalas e permitindo a rotação dos marcadores e, desta
forma, transpondo do crânio para a forma de um desenho geométrico diz-se que são projeções
morfométricas -, como este:
A sobreposição futura das imagens permitirá à cetóloga visibilizar dismorfismos
sexuais e produzir padrões de crescimento para as duas populações de Sotalias. Esta sobreposição é
realizada a partir de um espaço matemático chamado Espaço da Forma de Kendall; um espaço
multidimensional curvo no qual cada crânio é representada por um ponto e cada ponto encontra-se
Fig 21- Projeções morfométricas (Monteiro-Filho, Rabello
Monteiro e Reis, 2002).
150
localizado a partir de seus índices de variação e covariação. Interno a esta perspectiva, a distância
entre os pontos representa a transposição matemática da distância observada entre o tamanho dos
espécimes. Contudo, surge uma complicação, o Espaço da Forma de Kendall funciona a partir de
distâncias geodésicas (chamadas de Distâncias de Procrustes) e não distâncias lineares ou
euclidianas, logo, a medida em que as formas se afastam do ponto de tangência, as projeções
tendem a aproximação em um espaço linear. Para que não haja confusão em tese, objetos muito
diferentes poderiam se sobrepor no espaço -, o ponto de tangência é traçado a partir de uma média
de todas as formas observadas, de modo que se encontre eqüidistante de todas as peças estudadas. A
esta forma média dá-se o nome de Configuração de Consenso e consiste um artefato puramente
matemático sem qualquer significado biológico.
Ao fim de todo deslocamento, este grande quadro sinótico de diferenças deverá ser
associado aos dados da genética e presença de contaminantes nestas populações, permitindo que a
cetóloga infira sobre os fatores intrínsecos e extrínsecos que resultaram nestes padrões de
crescimento diferenciados entre os Sotalias do Pará e Rio de Janeiro. A gente pode acabar dando
com a cara na parede. Uma coisa pode não ter referência com a outra. Agora a pouco, encontrei
um espécime no Pará que tem um tamanho normal, mas a gente é feliz assim mesmo.” (Renata).
4. Genes, mutações e PCRs: A Divisão de Genética
Se até o presente momentos os cetáceos se deslocavam por pequenos laboratórios,
transformados a partir de, relativamente, poucos aparatos tecnológicos (binóculos, bisturis,
paquímetros...) em um regime de aparente simplicidade, na Divisão de Genética, situada no quarto
andar do Instituto Nacional de Luta contra o Câncer (INLC
106
), nos defrontamos com uma imagem
106
O nome da instituição e o acrônimo são fantasias. Minha permanência neste laboratório foi negociada a partir de
duas condições: a primeira, que eu não tocasse nada; a segunda, não poderia identificar o instituto em minha
151
da produção científica completamente distinta: um imenso complexo laboratorial onde, em média,
30 pesquisadores se distribuem ao longo de ambientes assépticos, todos equipados com aquilo que
de mais moderno no mercado de aparelhos associados a pesquisas de biologia molecular.
estes termocicladores devem ser mais caros que tudo o que eu tenho nessa vida.
107
(Thais). A
complexidade do laboratório é tal que uma descrição minuciosa dos agenciamentos que o
atravessam exigiria uma tese a parte; portando, me vejo obrigado a restringir meu texto unicamente
às séries de transformações as quais os cetáceos encontram-se submetidos neste local
108
.
Espacialmente, podemos dividir o complexo em dois grandes ambientes conectados
por um corredor; cada ambiente é subdividido por três bancadas - que comportam até 8
pesquisadores simultaneamente –, numeradas de forma ordinal e utilizadas exclusivamente para
cada uma das etapas de uma investigação genética o que se traduz em operadores materiais
diferenciados. Desta forma, no primeiro ambiente, tomando por referência a entrada do laboratório,
nos deparamos com a seguinte distribuição espacial: primeiro ambiente, (1-1) extração de ADN, (1-
2) feitura de PCR, (1-3) cultura de células; no segundo ambiente, (2-1) seqüênciamento de ADN,
(2-2) purificação de ADN, (2-3) preparação de gel. Dada a já aludida diferenciação material entre as
bancadas e restrições ao deslocamento de materiais entre estas –, cada agenciamento
metodológico exige, literalmente falando, deslocamentos distintos entre as bancadas. Tomando por
exemplo a realização do seqüênciamento de um gene - o grosso da prática laboratorial de Thais -,
podemos dispor este deslocamento da seguinte forma: 1-1, 2-2, 2-3, 1-2, 2-1.
Todavia, a Divisão de Genética não pode ser reduzido aos ambientes com bancadas;
dissertação.
107
Certamente um mercado lucrativo e em expansão, uma rápida pesquisa pela internet é capaz de revelar um grande
número de empresas dedicadas ao fornecimento de aparelhos exclusivamente relacionados a pesquisas de biologia
molecular. Em média, um termociclador custa 16.000 reais. Se contássemos apenas os cinco presentes em uma
bancada (R$ 80.000), obteríamos um valor aproximado ao preço de um imóvel semelhante ao utilizado para as
análises osteológicas. Todavia, um levantamento do custo de montagem deste laboratório deve levar em conta a
presença de outros aparelhos de alto custo como computadores Mac Pro 8 core avaliados em US$ 10.000 e
seqüênciadores cujo preço unitário é de aproximadamente R$ 200.000.
108
Caso sinta necessidade, o leitor pode buscar referências em trabalhos mais amplos a respeito de outros laboratórios
de biologia molecular, como o minucioso trabalho de Fujimura (1996) a respeito do papel destas técnicas na luta
contra o câncer; e o esforço comparativo de Knorr-cetina (1999) ao pôr em relação os regimes de produção
científica em laboratórios de biologia molecular e física nuclear. Outra referência que pode ser elucidativa é o
trabalho de Paul Rabinow (1996) a respeito da invenção da reação da polimerase em cadeia.
152
mesmo que estes, segundo definição dos próprios pesquisadores, sejam o centro de suas atividades,
a produção científica deste laboratório depende igualmente de seus “ambientes menores”, um
conjunto de salas dispostas no entorno destes ambientes, onde são realizadas tanto as etapas que
precedem, quanto aquelas que se sucedem ao trabalho nas bancadas. Temos salas refrigeradas, onde
enzimas e amostras de tecido são mantidas sob temperatura adequada em freezers; salas de
segurança, dedicadas a manipulação de compostos químicos radioativos, como o brometo de etídio,
substância que “visibiliza” o ADN; a câmara escura, onde amostras de ADN são expostas á luz
ultra-violeta e fotografadas; sala de computadores, a própria central de cálculo deste laboratório,
onde eletroferogramas e seqüenciamentos são associadas em/a programas de computadores; e, por
fim, salas de convivência, onde os pesquisadores se reúnem para trocar informações e
discutir/produzir artigos.
Neste território, a cetologia é marginal, como afirmava Thais a respeito de sua
própria presença no instituto, nada do que eu faço se encaixa no que o povo daqui faz, eu estou
aqui porque a minha orientadora da genética está aqui. Por isso eu posso usar o laboratório
109
.
Aquilo que nossa protagonista faz, e que não encontra qualquer precedente em outras pesquisas
deste laboratório, é um estudo de sistemática filogenética e filogeográfica dos Sotalias encontrados
ao longo de toda a costa brasileira, agenciamento metodológico cujo objetivo final é a
caracterização da variabilidade genética destas populações e suas conseqüentes vulnerabilidades a
pressões ecológicas. Contudo, segundo a própria cetóloga, esta pesquisa de “cetologia molecular”
não visa somente responder a perguntas feitas por um programa de saúde pública, mas também a
lançar luz sobre as “crenças, economia e cultura na região Amazônica”.
Todo mundo já ouviu falar da lenda do boto; para a gente, aqui no sudeste, isso é só uma
lenda que ninguém leva a sério, mas para o pessoal do norte isso é levado a sério
mesmo, isso é uma verdade lá. Existem duas espécies de boto, uma é o boto-rosa que é o
Inia e o Sotalia fluviatilis, que eles chamam de tucuxi. Eles dizem que é a Inia que vira
os barcos, que fulaninho é filho do boto. Eles acreditam que os botos saem dos rios e
109
Contudo, em seus artigos, por conta de restrições institucionais, a cetóloga não pode identificar o laboratório,
referindo-se a este apenas como Divisão de Genética.
153
se transformam em homens bonitos, que os bichos engravidam as mulheres. Eles
atribuem tudo isso ao boto-rosa, vermelho. Isso é real, não é mentira deles não, é
verdade. Tem vários livros de igreja, livros de registros de nascimento, com fulaninho
registrado como filho do boto. [...] E os tucuxis, eles dizem que é um boto bom, que, por
exemplo, quando tem um naufrágio, eles ajudam as pessoas. no mercado, o Ver-o-
peso em Belém, é comum você encontrar estes potinhos que dentro tem esse pedacinho
de gordura, uma lasca de boto, 'boto genérico' mesmo, vem assim no potinho: “atrativos
do boto”. [...] Se agora você encontra assim, nesse potinho, até bem pouco tempo
você encontrava a genitália inteira pendurada para você levar para casa e fazer o que
quiser. Isso tudo entra no meu trabalho da seguinte forma: quando eu comecei, ainda
não tinha nada de genética com Sotalias, a gente nem tinha a certeza se era o Sotalia
guianensis ou o fluviatilis. E também não tinha nenhum trabalho que avaliasse qual é o
status dessa população na costa inteira, se a população aumentando ou diminuindo.
E, no começo, eu também tinha as amostras que a gente colhia, as carcaças, tinha
bicho costeiro. Não tinha nenhuma de fluvial. a gente conversando 'como a gente vai
fazer para conseguir estas amostras?'. O Sal comentou que tinha uma genitália dessas
em casa e a minha orientadora lembrou que essa amostra poderia ser uma amostra de
tucuxi, a gente não sabia, deveria ser de Inia, mas também poderia ser de qualquer
coisa, porco, sei lá. Então surgiu esse objetivo por tabela, identificar as amostras do Ver-
o-peso (Thais)
Para que sejam capazes de produzir testemunhos desta sorte, os animais, agora
reduzidos a amostras de tecido de dois milímetros, são macerados e colocados em um tubo de
microcentrífuga de 1,5 mL com 500 µL de tampão de lise (reagente que destrói as membranas
celular e nuclear das células, permitindo a libertação de ADN), 25 µL de SDS 20%, 2 µL de Rnase
(nuclease que catalisa a degradação do ARN em componentes menores) e de 3,0 a 5,0 µL de
Proteinase XIV (20 mg/ml). Todas as amostras são incubadas por, no mínimo, 12 horas a 37°C em
agitação constante, perdurando até que estejam totalmente digeridas pelo composto. Esta série tem
por objetivo adequar os amuletos, cujo o tecido encontra-se desidratado, e carcaças, geralmente em
estado avançado de decomposição, a metodologia de extração de ADN conhecida por protocolo de
fenol-clorofórmio. O protocolo não funcionava no meu material, a necessidade faz o sapo pular,
por isso tive que fazer umas adaptações”. Ao final do processo, o ADN éressuspendidoem 50,0
μL de água purificada produzida por um purificado Milli-Q (modelo Direct - Q™, Millipore).
O processo não é infalível, antes de dar continuidade às séries de transformações, é
necessário que se verifique sua eficácia, estimando a qualidade e concentração da amostra de ADN.
Para tanto, extrai-se uma alíquota de exatos 3,0 µL do material, submetendo-o a eletroforese em gel
154
de agarose 0,8% corado com brometo de etídio a 0,3 µg/mL. Esse deslocamento permite a
pesquisadora visualizar, avaliar e fotografar suas amostras de ADN
110
a partir da exposição à luz
ultra-violeta, produzindo imagens como a reproduzida abaixo, onde podemos observar claramente
as diferenças na concentração de 16 amostras de ADN de Sotalias guianensis.
Por via de regra, nem todas as séries alcançam o devido sucesso: por vezes, a culpa é
da própria amostra utilizada para a extração, o tecido pode estar decomposto para além de qualquer
recuperação e/ou não foi devidamente coletado; em outras, a culpa é da própria pesquisadora que
cometeu erros e imprecisões durante a realização dos protocolos: quando eu vou olhar o gel,
vou fazendo o sinal da cruz e rezando para Santa Rita de Cetácea. Se não correu, torço para ter
sido alguma coisa que eu fiz de errado. Se for da amostra mesmo, não tem jeito, perdeu.”. Para
que seja possível descobrir o que de fato deu errado durante o processo, é necessário que a cetóloga
repita, com atenção dobrada, toda a série de transformações. Existe ainda uma terceira possibilidade
onde o problema não está na execução do protocolo, tampouco na amostra, mas sim na própria
metodologia utilizada para a extração de ADN, o que exige dos pesquisadores a capacidade de
modificar os protocolos em prol das necessidades particulares da amostra:
110
Nesta metodologia, o gel contendo o ADN é posto em uma cuba com voltagem alternada onde, decorridos alguns
minutos, devido a sua própria carga negativa, o ADN “corre” para o lado da cuba com carga positiva daí a
expressão “correr um gel”, comumente utilizada pelos pesquisadores. Neste processo, o brometo se intercala ao
ADN, produzindo uma luz vermelho alaranjada quando exposta a luz ultravioleta, permitindo que a pesquisadora
fotografe o DNA”,
Fig 22 - ADN fotografado (Sholl, 2007).
155
Fazer extração não é um processo simples e exato. Eu tive que modificar um protocolo
para fazer minhas amostras funcionarem. A gente ta sempre fazendo isso aqui. Se você já
tentou tudo e tem tempo, você pode parar para examinar o que pode te ajudar na
extração, de repente é um reagente, as vezes é o tempo. Pode ser qualquer coisa.
Algumas amostras são mais difíceis de extrair do que outras. Eu, por exemplo, como
trabalho com tecidos decompostos, tive que desenvolver um treino para esse tipo de
atividade que a maioria do povo daqui não tem. Quando precisam extrair, pedem logo
para mim, porque eu estou acostumada a improvisar e adaptar o que precisa ser
adaptado para a coisa aconteça.
111
” (Thais).
Confirmada a presença do ADN na amostra, pesquisadora e cetáceos podem
prosseguir através das séries de transformações. Ao que tudo indica, a exemplo do que acontece
com o bicho podre, o genoma de um cetáceo por si não é capaz de fornecer respostas precisas às
perguntas propostas pela “cetologia molecular”, portanto, é preciso que, novamente, imponha-se
uma redução e conseqüente e neste caso literalmente ampliação da substância
112
; entra em cena
então a reação da polimerase em cadeia (PCR do inglês, polimerase chain reaction). Em linhas
muitos gerais, uma técnica que associa ao ADN original uma espécie de ADN sintético (primer) que
se conecta a partes específicas das fitas do ADN original; uma vez inserido em um termociclador,
onde é exposto a ciclos térmicos controlados, as polimerases que começam em cada primer passam
a multiplicar as seqüências subseqüentes. Por resultado, se a cetóloga começou o deslocamento com
uma amostra completa de ADN, a partir deste momento ela possui um composto onde uma
determinada parte deste ADN encontra-se isolada e multiplicada, pronta para a inserção em uma
nova série de transformações
113
.
111
Knorr-Cetina denomina esta “improvisação” dos protocolos de extração de ADN de variação cega (1999, p.88),
processo onde o pesquisador vai modificando os elementos do protocolo, um a um, a espera de um resultado
satisfatório; a parte cega da variação se por conta do pesquisador nunca ter certeza se aquilo que está
introduzindo na metodologia terá o resultado esperado. A linguagem utilizada pela autora me parece próxima a
utilizada por Pickering (1995) para designar a invenção científica como um todo. Segundo o autor, este processo
poderia ser definido pela metáfora da dança, onde os movimentos dos cientistas (humanos) seriam dedicados a
captura da agência de seus objetos (não-humanos); uma sintonia gradual entre ambas as formas de agências, uma
dança cujo o resultado nunca pode ser antecipado com 100% de acurácia.
112
Esta transformação é mediada por kits comerciais para a ampliação de genes; cada gene, proteína possui um kit
comercial específico,na maioria das vezes nem vem dizendo o que você tá usando, vem o protocolo assim: misture
2,0 µL com o composto I fornecido pelo kit, centrifugue, aqueça e insira 4,0 µL do composto II. Bem, o que importa
é que se eu seguir isso, devo conseguir o gene que eu quero”. (Thais). “Caixas-cinza”, segundo a nomenclatura
proposta por Fujimura (1992, p.169). Segundo a autora, estes kits comerciais encontram-se a meio caminho das
caixas-pretas, onde os pesquisadores tem acesso aos inputs e outputs do sistema, e técnicas abertas, onde os
cientistas são capazes de acompanhar todos os deslocamentos de seus objetos.
113
“[O] que é notável é que se pode tirar um pequeno pedaço do ADN do seu contexto e isto pode ser amplificado...
Meu Deus, isto pode ser usado para isolar um fragmento do ADN, de um pedaço complexo do DNA do seu
156
A parte a ser isolada e amplificada recebe o nome de marcador molecular, seja um
gene ou simplesmente um mero fragmento de ADN; atribui-se a cada um a capacidade de,
parafraseando Renata, representar um mundo totalmente diferente para a cetologia. Marcadores
moleculares encontram-se divididos em dois grupos, os nucleares e mitocondriais: os primeiros são,
em sua grande maioria, codificadores das principais proteínas de um organismo, regiões
extremamente conservadas do ADN e, deste modo, possuidores de uma taxa de mutação muito
lenta; caso radicalmente oposto ao dos marcadores mitocondriais, salvo notáveis exceções, genes
com uma taxa de mutação acelerada
114
.
A escolha do marcador é intrinsecamente associada aos objetivos de uma pesquisa
diz-se que um bom pesquisador é aquele que sabe escolher o gene mais adequado para cada
trabalho. Caso sua pesquisa fosse orientada para, por exemplo, uma filogenia dos grandes
mamíferos, os marcadores nucleares seriam os mais indicados para a análise. Contudo, por se
tratarem de viventes “muito próximos e aparentados”, para o estudo dos Sotalias se faz necessário a
utilização de marcadores nucleares com uma alta taxa de mutação, capazes de revelar para a
cetologia uma história mais recente destes viventes. Uma vez que o objetivo de nossa protagonista é
a de uma análise populacional, o marcador mitocondrial recebe uma importância ainda maior
devido a sua rastreabilidade natural. Explico: em vista de sua origem exclusivamente materna, em
tese, a utilização de um marcador mitocondrial garante à cetóloga que quaisquer mutações que ela
venha a observar sejam originárias de um processo de recombinação genética, você sabe que a
mutação que vai aparecer entre um bicho e outro é por mutação mesmo, então você restringe a
sua avaliação. A definição específica do marcador a ser utilizado também segue critérios
semelhantes, porem, atrelados a motivos bastante práticos:
contexto. O genial foi isso.” palavras de Kary B. Mullis (apud Rabinow 2002, p.188) um dos criadores da técnica.
114
Diz-se que a baixa participação das mitocôndrias na sintetização de proteínas necessárias ao organismo dos viventes,
se da pelo fato de que estas não sejam organelos celulares originais dos eucariontes, mas sim, endossimbiontes.
DNA mitocondrial não tem tanto reparo, não tem problema ter mutação ali, você não altera um gene que te uma
grande importância. É pressão seletiva mesmo.”.(Thais)
157
Eu escolhi esse gene [o citocromo b] por alguns motivos. O primeiro é uma questão de
praticidade mesmo, você tem que ir pelo caminho mais fácil; se ninguém seqüenciou esse
gene no golfinho com o qual eu trabalho, masfez isso em uma espécie próxima, então
eu sei que posso usar as mesmas enzimas, o mesmo protocolo, é um motivo
metodológico. O outro é que, por exemplo, por mais que seja um DNA mitocondrial, por
mais que tenham todas estas questões que eu falei, de taxa de mutação mais rápida que
do DNA nuclear e tal, dentro do DNA mitocondrial você tem fragmentos que não tem
mutação, então não adianta nada você escolher qualquer marcador mitocondrial, alguns
você não encontra diferença nenhuma, como o citocromo oxidase, você tem que buscar
aquele que possa te contar a história mais recente e mais precisa daquela população.
Mas também não adianta nada se existe um gene ótimo para isso, mas nunca
seqüenciaram ele em um animal próximo
115
.
Mesmo após tantas transformações a substância original não existe mais a olhos
nus -, ainda nos encontramos a uma distância considerável das séries finais. O ADN amplificado
ainda necessita ser inscrito sob a forma de texto (.txt) e um eletroferograma, para tanto, deve ser
seqüenciado. À amostra são adicionados iniciadores externos e internos - CB-out1 e CB-out2, CB-
in1 e CB-in2 -, compostos que indicam aos seqüenciadores automáticos (MegaBACE 1000 e ABI
Prism™ 3730) os segmentos de ADN que devem ser seqüenciados. Cada operador atribui aos
nucleotídios do ADN amplificado uma fluorescência específica (vermelho T, azul C, verde A e preto
G), de modo que o seqüênciador possa reconhecê-los e identificá-los adequadamente nas inscrições.
Considera-se este movimento como aquele que produz o dado bruto da biologia molecular, antes,
é tudo processamento, não é nada, isso é o que sai da máquina do processador, essa é a primeira
transformação da 'meleca' em alguma coisa”. (Thais)
Todas a seqüências obtidas são inseridas no programa BioEdit Sequence Alignment
Editor onde são “limpas” e alinhadas manualmente; tendo ciência que o citocromo b (citb) começa
com a seqüência ATGACC, a cetóloga apaga quaisquer elementos que a precedam na inscrição,
115
Em sua monografia Thais escreveu:
O gene mitocondrial citocromo b foi o escolhido para as análises deste estudo, pois é um bom
marcador genético para realizar estudos filogenéticos e filogeográficos. Este gene é responsável
por codificar a proteína citocromo b do complexo III da cadeia respiratória (ou sistema de
fosforilação oxidativa mitocondrial). O complexo III é composto por polipeptídeos, três dos quais
associados com centros redox, sendo chamados de grupos heme b562, b566 e c1. Acredita-se que
os grupos heme b562, b566 estejam localizados no citocromo b estando envolvidos no ciclo Q.
Este ciclo é composto pelos centros Q0 e Qi sendo que o primeiro constitui a porção de ubiquinol
oxidase enquanto o segundo catalisa as reações da ubiquinona redutase. (Sholl 2007:6 referências
omitidas)
158
uniformizando o início dos arquivos e garantindo a comparatibilidade e cálculo entre as seqüências.
O mesmo motivo informa a “limpeza” da inscrição, onde revisa-se manualmente pico por pico de
cada eletroferograma, de forma a garantir que estes tenham sido adequadamente identificados na
translação para o formato textual. Qualquer erro, ou imprecisão neste deslocamento é capaz de
comprometer todas as etapas subseqüentes, exigindo do pesquisador que realize um novo
seqüenciameto. Seqüências adequadamente identificadas e alinhadas permitem ao cetólogo
identificar mutações através da sobreposição das inscrições; o retângulo destaca uma substituição
ocorrida na base 986 – de 1140 - do citb (Sholl op. Cit)
Limpas e devidamente alinhadas, as inscrições são inseridas no programa Molecular
Evolutionary Genetics Analyses (MEGA3), onde são unificadas em uma estimativa da distância
genética entre as populações. As amostras chegam ao programa agrupadas, em arquivos .txt,
segundo divisões geopolíticas existentes ao longo da costa brasileira. Para algumas análises
(sistemática filogeográfica) as populações foram definidas da seguinte forma: 1- Santa Catarina
(SC); 2-São Paulo (SP); 3-Rio de Janeiro (RJ), 4-Maranhão (MA); 5-Pará (PA); 6-Amapá (AP).
Para estudos de sistemática filogenética as amostras são agrupadas em duas populações, Norte (AP,
Fig 23 - Eletroferogramas comparados (Sholl, 2007).
159
PA, MA) e Sul (SC, SP, RJ), com objetivo de testar a divisão populacional sugerida por trabalhos de
outros pesquisadores. Calcula-se ainda para cada população, utilizando-se de um terceiro programa
(ARLEQUIN 3.0), sua diversidade nucleotídica - número médio de diferenças nucleotídicas por
sítio entre todos os pares de haplótipos
116
- e diversidade haplotípica - número de haplótipos
associada as suas freqüências em cada população. O mesmo programa ainda permite a cetóloga
investigar o grau de subdivisão existente entre as populações a partir da freqüência dos haplótipos
encontrados em cada uma, assim como a freqüência e o número de diferenças nucleotídicas
existentes entre cada par de haplótipos considerados. A significância estatística destes parâmetros é
estimada a partir da simulação de 10.000 permutações geradas randomicamente no programa.
Como os programas analisam isso? Então, o citb tem 1140 pares de base; nucleotídios, o
programa não analisa todos, e nem teria porque ele fazer isso. O que ele faz é analisar
as mutações, ele vai de um bicho para o outro, fazendo várias combinações. O que te
importa não é a base que é igual, é a base que é diferente entre um bicho e o outro. O
que é igual não me serve de nada. O programa faz isso, ele pesa as mutações. [...] me
mostra as proporções.
A partir da utilização destes programas, Thais é capaz de identificar todas as
mutações que ocorrem ao longo do citocromo b em 140 espécime. Constatando, até o momento, a
presença de 29 mutações (63%) silenciosas; seis mutações que resultaram em mutação de
aminoácidos (11%) mas sem alterações para a estrutura química da proteína, e 11 mutações (24%)
que resultaram em alterações de aminoácidos com conseqüências para a estrutura da proteína. Em
conjunto, a pesquisadora identificou a presença de 18 haplótipos nas amostras, distribuídos ao longo
da costa brasileira e representados na figura abaixo; cada círculo representa um haplótipo e seu
diâmetro é proporcional ao mero de indivíduos que o possuem. A topologia da figura não é
neutra, o círculo central representa o haplótipo ancestral, do qual todos os outros são variações,
dentre os quais os mais afastados representariam as mutações mais recentes.
116
Haplótipo é termo utilizado para designar uma seqüência compartilhada por um grupo de seres.
160
A alocação dos haplótipos em um mesmo quadro sinótico também permite a cetóloga
identificar as amostras comercializadas no mercado popular de Belém do Pará - todas as amostras
estudadas pela cetóloga eram referidas como pertencentes a “botos” pelos comerciantes destes
mercados. No entanto, os resultados das análises, além de identificarem as amostras
comercializadas como pertencentes exclusivamente ao gênero Sotalia - ou seja, não pertencem ao
boto-vermelho - demonstraram que todas tinham origem marinha. Resultado que indica que o boto-
cinza encontra-se sob maior pressão que seus parentes fluviais uma informação inédita até então.
Ainda que se registre a assombrosa média anual de 1.063 botos-cinza mortos acidentalmente por
pescadores no estuário amazônico, não atribuía-se a comercialização deste material a qualidade de
um mercado representativo (tanto do ponto de vista econômico quanto do ponto de vista ecológico),
Fig. 24 - Haplótipos e sua distribuição ao longo da costa (Sholl, 2007).
161
ocorrendo somente em anos de baixa produtividade do pescado. Em vista disso, o trabalho da
pesquisadora vem sendo utilizado por programas sociais e de educação ambiental aplicados à
comunidade local, pescadores e não pescadores, com objetivo de mudar a mentalidade da população
e promover a substituição desta atividade comercial em um futuro próximo.
As estimativas de diversidade genética também demonstram que as amostras
provenientes das regiões sul e sudeste (SC, SP e RJ) apresentam diversidade haplotípica e
nucleotídica expressivamente mais baixas que as amostras da região norte (PA e AP). Resultado que
corroboram estudos recentes que sugerem uma precária condição de saúde para as populações de
Sotalia do “sul-sudeste” do Brasil. As mesmas populações que acompanhamos no laboratório de
osteologia, que apresentavam uma alta prevalência de malformações congênitas na coluna vertebral,
além dos aumento dos casos de lesões de pele associadas à patologias diversas as quais sugerem
provável bottleneck, ou seja, a perda da variabilidade genética após algum evento de afunilamento
da população. Esse evento pode ser qualquer coisa, como, sei lá, o fim da caças as baleias, ou até
mesmo um evento natural, uma migração. Mas é obvio que a gente sabe que as populações do
sudeste sofrem maior pressão. Mas a gente ainda não pode dizer isso.” (Thais).
Para que possa dizer isto, Thais vem se utilizando de dois novos marcadores: o D-
loop, uma região do ADN mitocondrial com uma taxa de mutação mais alta que a do citb, “Em tese,
isso vai me dar uma dar uma história mais recente daquela que eu tive antes”; e o ADN
microsatélite, um marcador nuclear anormal com uma alta taxa de mutação, “Ele é utilizado para
teste de paternidade, tem uma precisão muito grande.” (Thais). Com isto, a cetóloga espera obter
uma descrição mais detalhada da perda da diversidade genética dos animais da costa carioca e
garantir a conectividade de seus objetos com aqueles provenientes de outros laboratórios e proto-
laboratórios do GEMM-Lagos.
162
5. A central de cálculo: ou um esboço de conclusão.
Chegamos, enfim, ao nosso destino final, a grande central de lculo do GEMM-
Lagos, a sala do chefe Salvatore Siciliano. Uma sala no quarto andar do prédio da Escola Nacional
de Saúde Pública da Fiocruz, um escritório – dividido com outra pesquisadora, uma especialista em
contaminantes e eventual colaboradora - de proporções consideráveis, com computadores pessoais,
uma mesa para reuniões e estantes contendo livros e revistas especializadas em cetologia; neste
ambiente, Salvatore passa a maior parte de seu tempo analisando tanto o material que chega dos
laboratórios associados, quanto aquele que chega de “fora”, produzido por outros grupos de
pesquisa. É também neste local que os cetólogos se reúnem para coordenar suas pesquisas, onde
trocam informações e associam seus objetos, de modo a torna-los interessantes ao programa de
saúde pública.
Este território, dizem os cetólogos, não é um laboratório. Se este ambiente, como
vimos, opera a partir de um distanciamento mínimo em relação a natureza, a central de cálculo do
GEMM-Lagos opera a partir de um distanciamento mínimo dos laboratórios associados. A lógica
nos foi apresentada anteriormente: se eletroferogramas e projeções geométricas de crânios fazem
parte dos objetos naturais deste espaço agregador, o mesmo não poderia ser dito de amostras de
tecido ou de um paquímetro. Neste local, nos reencontramos com outro tipo de material produzido
pelas atividades de campo: as inscrições (avistagens, mapas...) associadas ao modo de ordenação da
Petrobras e fichas de encalhe. Em suma, tudo se passa como se a central de cálculo estivesse em
uma posição eqüidistante do campo e dos laboratórios. O escritório de Salvatore é o ambiente que
permite a combinação das inscrições, tornando possível um tipo de cálculo muito específico: a
associação entre diferentes objetos de forma que aqueles considerados mais próximos do campo,
atuem como controle daqueles considerados mais associados com o regime dos laboratórios
117
. Para
117
Knorr-Cetina descreve algo semelhante quando afirma que do ponto de vista dos geneticistas do instituto Max Plank
(1999), uma evidência material consistente (um rato albino) é considerada uma evidência de primeira ordem, da qual
as de segunda ordem, como mutações em um gene, são consideradas variações. Uma lógica inversa àquela
163
exemplificar, recorro a uma analogia proposta por meus próprios interlocutores: as inscrições são
combinadas como um quebra-cabeça, onde as peças iniciais são aquelas extraídas diretamente das
atividades de campo.
A gente sempre começa com o N [número de encalhes/espécimes/avistamentos], espécie
e local. depende qual é o trabalho. É um trabalho de biogeografia? Aí, então você
encaixa melhor os dados do georeferenciamento, faz um mapa plotando todos os
encalhes, umas tabelas... Pega os outros dados, genética, contaminantes, ossos.. Se
alguma coisa não encaixar direito, você pára e olha para o que está acontecendo. Ah, os
meus mapas não combinam com a árvore do trabalho da Thaís. Bem, isso não quer dizer
que seus mapas estejam errados, é mais provável que os genes da Thaís não tenham a
precisão necessária para captar aquilo que um bom mapa te diz. [...] Se você está
escrevendo uma tese só de genética, é óbvio que você vai ter um pouco mais de liberdade
com as árvores, mas, aqui, aquilo que citocromo x te diz não vale de nada se você não
consegue mostrar isso no bicho. (Salvatore).
Esta é a premissa que informa, por exemplo, a adição de dois novos marcadores aos
estudos de sistemática filogenética e filogeográfica - do citb para o D-loop e os microssatélites; tudo
por conta da incapacidade do gene originalmente utilizado produzir uma descrição precisa daquilo
que os cetólogos observam no campo. Segundo a lógica da cetologia, pode-se duvidar dos genes,
mas quando se trata dos cetáceos mortos, a coisa muda de figura. Naturalmente, isto não quer dizer
que tudo aquilo que Thais produziu até o momento não seja considerado relevante ou científico;
pelo contrário, para estudos de conservação de cetáceos, onde a pouca variabilidade haplotípica e
nucleotídica são dados contundentes, seu trabalho é considerado extremamente satisfatório. A
exemplo do que observamos no capítulo anterior, é o modo de ordenação, um ponto de vista
específico e externo a todos os agenciamentos que acompanhamos, que vai determinar a
capacidade de cada objeto em produzir diferenças, sua acurácia e força
118
.
A gente tem esse problema porque aqui tem muita gente fazendo coisa diferente. No
fim, a gente tem que acertar tudo isso para fazer uma coisa que seja interessante para o
povo daqui [Fiocruz]. Se eu fosse fazer um estudo de biogeografia, eu iria dizer uma
produzida pela relação genótipo/fenótipo.
118
Como afirma Stengers (2002) uma proposição que tenha sido capaz de interessar um número considerável de
pessoas obviamente não é verdadeira no sentido absoluto do termo, sua verdade é relativa aos métodos de
verificabilidade, mas também as relações de força que prevalecem em um dado momento ou organização.
164
coisa, mas como eu tenho que produzir um trabalho interessante para um programa de
saúde pública, eu tenho que conciliar o estudo de biogeografia com, sei lá, um estudo de
sistemática filogenética. Eu vou ter que dizer uma coisa diferente com aquele dado de
biogeografia, né? Você me disse que estava interessado em como a gente transforma o
cetáceo em um número, mas depende de qual número, né? Na maioria das vezes achar
um número é só o começo de tudo; tem número que vira outro número, e outro número, e
outro número. Até virar algo que a gente possa usar. Se for um número bom, ele vai
sempre virar outra coisa. (Salvatore).
Penso que a fala de Salvatore nos traga um elemento novo destes deslocamentos
proporcionados pelo modo de ordenação, a imagem de um objeto ideal. Se, para cada laboratório, a
força de um objeto pode ser medida por sua capacidade em incorporar ou negar outras perspectivas,
neste território, o que se exige é que ele seja facilmente incorporável por novas perspectivas e ao se
associar a outros objetos, ser capaz de adequar seu testemunho a novos contextos
119
. Tem muito
estudo de genética que é assim mesmo, muito bonito, muito bom, mas quando você faz a pergunta:
“como eu uso isso?” você que aquilo não serve para nada fora do laboratório.(Salvatore). De
fato, existe uma certa repudia dos pesquisadores a cientistas dedicados unicamente à produção de
verdades absolutasdiz-se que o lugar destes é nos laboratórios e não em um grupo de cetologia
-, dando claras preferências àqueles que saibam atuar em regimes coletivos de produção
120
. Isto,
segundo meus interlocutores, não se por conta de uma importância maior do GEMM-Lagos
frente a suas carreiras individuais, mas sim, porque é a produção em grupo e os contínuos testes de
força que ela exige que garantem que seus objetos não sejam, na pior das hipóteses, meros artefatos
119
Naturalmente, leitores familiarizados com a literatura STS reconhecerão nesta definição nativa, e em tanta outras,
uma imagem do pensamento muito próxima daquela utilizada por Latour para definir a circulação ideal de um
objeto científico através das redes. Penso que este reconhecimento é sintomático de uma das qualidades da produção
intelectual deste autor, que soube traduzir sociologicamente as características estruturantes das atividades de seus
interlocutores; seguindo esta proposição, considero significativa a introdução escrita pelo próprio Jonas Salk para a
segunda edição americana de Laboratory Life:
[A]nd for me the most interesting part of the work and of its outcome, is that Bruno Latour, a
philosopher-sociologist, began a sociological study of biology and along the way came to see
sociology biologically. His own style of thought was transformed by our concepts and ways of
thinking about organisms, order, information, mutations, etc. Curiously, instead of sociologists
studying biologists, who in turn are studying life processes —in a sort of infinite regression—here
are sociologists coming to recognize that their work is only a subset of our own kind of scientific
activity, which in turn is only a subset of life in the process of organization. (apud Latour e
Woolgar 1986, p.12-13).
120
Para me explicar esta tendência do núcleo de pesquisas, Jaílson utilizava-se de uma metáfora futebolística. Cada
pesquisador do GEMM-Lagos deveria ser como um jogador, onde cada ação deveria contribuir para um gol.
165
laboratoriais. É aqui que a gente se reúne para acertar os ponteiros. Tem muita coisa que
funciona separada, tem outras que funcionam juntas. Não tem como saber de antemão,
quando coloca na mesa mesmo.” (Salvatore).
O encontro entre os objetos, na central de cálculo, não é apenas um movimento capaz
de estabelecer uma avaliação imanente de todos os agenciamentos que atravessam o GEMM-Lagos
testes de força, no vocabulário próprio da literatura STS -, mas também de indicar a presença
daquilo que os cetólogos chamam de “correspondentes”, objetos de um mesmo tipo que surgem em
séries distintas. Para que seja mais claro, proponho uma pequena anedota, muito próxima de uma
situação que observei durante meu trabalho de campo:
Thais chega à sala de Salvatore, trazendo consigo dados que comprovam que a
população de Sotalias da Bacia de Campos é, na verdade, uma população composta por animais
com os menores índices de diversidade haplotípicas e nucleotídicas de toda a costa brasileira
praticamente clones”. Os cetólogos oscilam entre a animação, por terem feito uma descoberta
importante a respeito da situação desta população, e a preocupação, pois trata-se de um problema
ecológico de proporções consideráveis. Contudo, antes que possam tomar qualquer providência,
devem ser capazes de encontrar provas substanciais que testemunhem a favor da gravidade da
situação. Salvatore lembra-se do trabalho de dois de seus alunos, a dissertação de mestrado de
Jaílson e a monografia de Maíra. Na primeira, encontra altos índices de contaminação por PCB
(8,99 μg/g) nesta mesma população de cetáceos; e, no trabalho de Maíra, encontra uma alto índice
de anomalias ósseas na sétima vértebra desta mesma população. Salvatore e Thais chegam a
conclusão de que possivelmente a baixa variabilidade genética e as anomalias ósseas sejam
resultados de uma mesma pressão ambiental portanto, correspondentes -, a contaminação pelo
PCB. Convencidos, através da correspondência, da importância dos objetos da genética, Thais e
Salvatore escrevem um artigo para o periódico LAJAM - que por incorporar dados de seus
trabalhos também conta com a co-autoria de Jaílson e Maíra - e começam a pensar sobre a
166
viabilidade em organizar um workshop a respeito dos efeitos de contaminantes em mamíferos na
Fiocruz.
Fala-se então destes objetos enquanto elementos análogos; manifestações possíveis e
distintas de um mesmo estágio comum anterior. Se, do ponto de vista da genética, uma
contaminação de 8,99 μg/g resulta em um pequeno índice de variabilidade haplotípica, para a
osteologia resulta em um alto índice de anomalias.
Enfim, o importante disso é você entender que quando eu chego e digo que os bichos
daqui são, na verdade, praticamente clones e a Maíra diz que eles estão todos
deformados, eles não são clones deformados; não é isso que a gente diz quando junta as
duas pesquisas. Eles são clones e deformados, são coisas muito diferentes. Dizer que eles
são correspondentes não é dizer que são iguais, se fosse igual eu nem precisava do
trabalho dela, seria redundante, não é verdade?.[...] eles são correspondentes porque
são resultados diferentes de um mesmo processo de contaminação, por isto é tão
importante identificar tudo. Se eu tenho o meu índice de variabilidade, isso não vale
de muita coisa. É meio, sei lá, meio qualquer coisa para o povo daqui [Fiocruz]. Agora,
se eu mostro que tem uma pequena variabilidade, um grande número de anomalias e que
ainda por cima todos os bichos apresentam altos índices de contaminação, então eu
posso dizer que identificamos precisamente um tipo de pressão ambiental. (Thais).
Clones e deformados; a utilização do conectivo “e” indica -, como propõe Viveiros
de Castro (2003) - a existência de uma base relacional mínima que atravessa os objetos sem ser
capaz de reduzí-los a uma mesma entidade, a exemplo do que aconteceria no caso de clones
deformados. Diz-se que são objetos de um mesmo tipo – resultados da pressão ambiental -, mas que
agem e existem de modos distintos no e para o animal, em suma, objetos análogos
121
da cetologia.
Contudo, se, em um primeiro momento, há uma mesma relação com um terceiro objeto, o PCB, que
permite aos cetólogos identificar e relacionar os objetos clones e deformados, em um segundo
momento, é a própria diferença entre os termos, ou melhor, entre as relações que estes travam com
o animal que tornam importante a sua identificação e correlação; entender e mapear as relações de
causa-efeito entre a saúde dos mamíferos marinhos e os poluentes químicos, em toda a sua
121
O princípio da correspondência e analogia entre os objetos também é utilizado para produzir interesse entorno dos
cetáceos em um programa de saúde pública. Diz-se quee aqui nos remetemos estritamente a princípios biológicos
-, os cetáceos são os seres correspondentes aos humanos em ambientes marinhos; seres de um mesmo tipo em
ambientes distintos.
167
multiplicidade, é, de fato, o grande objetivo da associação deste projeto de cetologia com a Fiocruz.
A diferença é o elemento necessário desta relação - afinal, recuperando a metáfora do
quebra-cabeças, peças precisam ter formatos distintos para que possam ser combinadas. Contudo,
não é qualquer diferença que interessa à cetologia: sempre que perguntava aos pesquisadores se
seria possível encontrar correspondência entre os objetos de um mesmo agenciamento
metodológico, escutava que, para tanto, uma diferença entre estes deveria ser garantida a priori pela
introdução de variáveis externas, como o tempo e espaço, do contrário, qualquer diferença entre os
objetos deverá ser interpretada nos termos de uma contradição de ordem prática, dois objetos
diferentes não podem ocupar o mesmo lugar no espaço e no tempo. Desta forma, exatamente como
vimos no capítulo anterior, exige-se que um dos objetos seja capaz de sobrepujar o outro em
confronto direto, de atribuir a diferença apresentada como erro.
Para a cetologia, existem diferenças e diferenças. Um paquímetro não é um
termociclador, um osso não é um gene, um Sotalia não é um Tursiops; as diferenças entre os objetos
de um mesmo tipo podem existir como conseqüências naturais dos tipos diferentes de
agenciamentos metodológicos que encorporam, ou, no mínimo, dos seus contextos e substâncias
qualificadas distintas. Obviamente, nem todos os objetos podem entrar em relação, é necessário que
exista uma base relacional mínima, no geral, uma mesma relação com um terceiro termo, por
exemplo: órgãos de um mesmo animal, ossos de uma mesma população, genes de uma mesma
espécie. O que, mesmo nos casos mais simples, não garante a homogeneidade dos elementos
comparados. Desta forma, não me soa estranho que ao perguntar a uma de minhas interlocutoras a
respeito dos desencontros entre aquilo que era considerado normal e anormal para cada uma das
pesquisas em vigor no GEMM-Lagos, obtive a seguinte resposta:
Isso é porque a gente trabalha e não trabalha com o mesmo bicho. Quando a questão é
anormalidade, então, que a coisa fica feia mesmo. Os meus bichos são anormais
porque apresentam deformações nas vértebras, mas anormais em relação a quê? Ao
padrão dos humanos, dos outros cetáceos? Mas e se eu te falar que nessa população a
malformação da sétima vértebra é que é a regra? Então é a população que é anormal,
168
mas o animal é normal dentro daquela população. Agora, pega um mesmo bicho, eu vejo
que ele tem uma malformação na C7, aí vem alguém e faz um estudo de endocrinologia e
que os rins dele funcionam muito bem. Para mim o bicho é anormal e para ele não é.
quando você junta um com o outro como é que fica? A gente sabe que ta falando do
mesmo bicho porque tá GEMM número tal, mas você sabe que é um bicho um pouco
diferente [...] às vezes tem mais gordura, às vezes tem mais osso, depende do gosto do
cliente
122
. (Maíra).
Naturalmente, trata-se de um relato atido às vicissitudes da ciência prática que
encontra pouco ou nenhum respaldo em registros mais acadêmicos onde a ordem do dia é: “ou uma
coisa é ou não é, não tem meio termo”. Contudo, o que gostaria de chamar a atenção com esta
citação, não é para o inevitável processo de purificação pelo qual todo discurso científico deve
passar para que seja aceito enquanto tal
123
. Mas para aquilo que penso ser um interessante
questionamento a respeito dos objetos da cetologia: afinal, o que significa dizer que se trabalha e
não se trabalha com um mesmo bicho?
Para que seja possível lançar luz sobre este problema, busco auxílio na praxiografia
de Mol (2002) a respeito do tratamento da arteriosclerose em um hospital holandês. Nesta
localidade agregadora chamada, por razões institucionais, de Hospital Z -, diferentes
arterioescleroses, promulgadas por diferentes agenciamentos metodológicos, coexistem e se
relacionam em regimes muito semelhantes àqueles que observamos no GEMM-Lagos; desta forma,
observamos arterioscleroses que se excluem mutuamente, que se complementam e outras que, a
122
Creio que Thomas Khun, em sua obra sobre a estrutura das revoluções científicas, tenha sido um dos primeiros a
identificar que, muitas vezes, dois cientistas eram capazes de dizer duas coisas diferentes com um mesmo termo:
An investigator who hoped to learn something about what scientists took the atomic theory to be
asked a distinguished physicist and an eminent chemist whether a single atom of helium was or
was not a molecule. Both answered without hesitation, but their answers were not the same. For
the chemist the atom of helium was a molecule because it behave like one with respect to the
kinetic theory of gases. For the physicist, on the other hand, the helium atom was not a molecule
because it displayed no molecular spectrum; presumably both men were talking of the same
particle, but they were viewing it through their own research training and practice. Their
experience in problem-solving told them what a molecule must be. Undoubtedly their experiences
had much in common, but they did not, in this case, tell the two specialists the same thing. As we
proceed we shall discover how consequential paradigm differences of this sort can occasionally be.
(Khun, 1970, p.50-51).
123
Latour e Woolgar (1996) e Latour (2000), oferecem uma bela descrição deste processo. Sá (2006) também apresenta
algumas interessantes observações de cunho etnográfico a respeito da diferença e deslocamentos entre o oficial e
oficioso no discurso dos primatólogos.
169
despeito da homonomia, sequer são capazes de se relacionar, tamanha a diferença como as
doenças “produzidas” por terapias alternativas. Mol nota que seus interlocutores (médicos das mais
diferentes especializações) concordam em apenas um ponto, de que, a despeito de todas as
diferenças, todos falam de uma mesma doença, um objeto singular. Segundo a autora, esta
insistência na singularidade, não reside em uma suposta ignorância dos praticantes da medicina
científica em torno das diferenças de seus objetos. Muito pelo contrário, argumenta, falar de um
objeto singular, de uma única arteriosclerose, é o que garante aos médicos a possibilidade de pôr em
relação aquilo que eles observam na prática tratando de um paciente, com aquilo que eles têm
contato através da literatura diagnósticos médicos pretéritos, livros sobre a doença ou relatos de
outros profissionais; médicos não necessitam de fatos reproduzíveis, enfatiza Mol, mas de formas
de tomar decisões que melhor se adequam à situação de cada paciente, produzindo coordenação e,
conseqüente, qualidade de vida para os doentes.
What different sciencies have to offer practice is different points of leverage, different
techniques for intervation, and, indeed, different methods. One specialism may have dyes
at its disposal, another knives, and a third the technique of humming, but in hospital
practice they must somehow align and coordinate theirs objects. (ibid., p.155).
Penso que a resposta que posso oferecer, a partir de meu próprio material, é bastante
próxima daquela proposta pela autora; aqui, a insistência na homonomia também é o movimento
que garante a cetologia prática uma espécie de ordenada intensiva que orienta as relações entre os
múltiplos objetos produzidos pelos laboratórios e proto-laboratórios do GEMM-Lagos. Retornamos
a um exemplo deste capítulo: Renata, ao escolher relatar a existência de uma subespécie de Sotalia,
produz um novo sistema de referências que atravessa um determinado mero de objetos
heterogêneos (crânios) a partir de um recorte geográfico muito específico, estabelece uma taxa de
variação diferenciada daquela normalmente utilizada para designar a espécie (forma) e passa a
descrevê-los a partir de uma nova variável (tamanho). E o deslocamento não pára por aí: a
disposição da cetóloga encontram-se os objetos da sistemática filogenética e filogeográfica dos S.
170
guianensis encontrados ao longo da costa brasileira. Objetos que, ao serem atravessados pela
ordenada intensiva proposta, são capazes de oferecer uma nova dimensão dos padrões de
crescimento diferenciados desta população: quando olhamos para a distribuição dos haplótipos ao
longo da costa brasileira (fig. 25), percebemos que são justamente aqueles associados a esta
subespécie que encontram-se mais afastados do haplótipo considerado mais ancestral (central).
Aquilo que era um simples haplótipo das pesquisas de Thais, passa a ser mais um elemento
caracterizador da subespécie de Sotálias relatada por Renata.
Crânios e haplótipos são deslocados para um novo contexto; se anteriormente
pertenciam a uma grande espécie, denominada Sotalia guianensis, e poderiam ser utilizados em
agenciamentos metodológicos como testemunhas das diferenças deste táxon frente a todos os outros
(Cf. Monteiro-Filho, Rabello Monteiro e Reis, 2002; Sholl, 2007), agora, isolados de seus antigos
aliados e associados a outros novos, passam a compor um novo táxon, o da subespécie. Se antes os
objetos eram vistos através de suas similaridades (através da forma dos crânios e da base
genômica), agora são vistos através de suas diferenças (através do tamanho das peças e das
mutações no gene). De fato, não se pode simplesmente fixar o pertencimento de um objeto a um
determinado contexto, pois é próprio dos “bons objetos
124
” - segundo Salvatore – a capacidade de se
deslocar continuamente para novos contextos, e próprio dos bons cetólogos saber reordenar os
objetos de forma que sejam capazes de revelar novos padrões e produzir novos questionamentos
para a cetologia.
Se os objetos podem ser continuamente redescritos e reordenados pela prática
científica, como no exemplo anterior, penso que aquilo que os cetólogos concebem por objeto de
seus agenciamentos metodológicos seja menos um todo estático e pré-existente, capaz de
determinar as relações entre suas partes, do que uma série de processos de correlação e variação.
Uma proposição com a qual os cetólogos são os primeiros a concordar: uma entidade biológica,
124
Daí a importância, segundo os cetólogos, da manutenção de coleções e bancos de amostras. Dados primários se
deslocam “naturalmente” por diversos contextos por serem, justamente, mais próximos da natureza que aqueles
produzidos em laboratório.
171
gostavam de lembrar, não representa um objeto definido pela natureza, mas uma forma encontrada
pelo cientista para relatar uma determinada variação. Uma unidade taxonômica, por exemplo, não
representa uma entidade strictu sensu, mas um recorte metodológico no fluxo da vida, é algo que
vai de uma coisa a outra” (Renata). Citando Stephen Jay Gould:
[A] maioria de nós não se alegra a contemplar a diversidade assombrosa da natureza;
ficamos atordoados com a complexidade e confusão. Não conseguimos ficar satisfeitos
antes de estabelecer algum tipo de ordem. Temos que compreender a desconcertante
variedade classificando-a.. (1990b, p.261).
Interno a este modo de inscrição e descrição, um objeto não poderia ser outra coisa
que uma ferramenta metodológica destinada a comparação, uma forma de aproximar elementos
heterogêneos e não-contextuais. Tudo se passa como se cada objeto fosse indissociável de todos os
processos de complementaridade, exclusão ou correspondência que acompanhamos ao longo deste
trabalho. De modo que, poderíamos dizer, uma subespécie - para continuarmos no exemplo anterior
- seja uma conseqüência das relações estabelecidas pela prática científica entre os termos
heterogêneos (geografia, crânios, haplótipos...) que o compõe e com elas varia ao longo do tempo e
do espaço. Se, como propõe meus interlocutores encorporando a teoria da deriva genética, a
mudança é a única constante da natureza, o objeto é a forma encontrada pelos homens e mulheres
da ciência para - parafraseando Deleuze e Guatarri (1992, p.154) - desacelera-la de modo que
possam atravessá-la com suas proposições.
A gente consegue fazer isso porque os bichos estão sempre mudando, sempre nos
dizendo coisas novas. Sei lá, eu já vi um milhão de Jubartes, mas cada avistagem vai ser
uma coisa nova, pode parecer bobeira mas é como se fosse a primeira vez. É aquilo que
eu sempre digo e que todo biólogo deveria usar como mantra: quando a gente acha que
conhece a natureza, ela sempre inventa uma coisa nova e a gente está desatualizado
(Salvatore).
Neste ponto, a guisa de conclusão, seria redundante retomar cada uma das questões
que desenvolvi ao longo deste trabalho e dos objetivos gerais desta dissertação. Quando, nas
172
páginas introdutórias, afirmei que, ao contrário do que imaginava quando cheguei ao campo, minha
praxiografia não seria capaz de esgotar a descrição deste pequeno grupo de cetólogos, creio, neste
momento, ter mantido fiel a minha palavra, sobretudo por ter a certeza de que, a exemplo dos
objetos de meus interlocutores, o máximo que poderia oferecer ao leitor seria uma clausura prática
de um estado em contínua transformação. Por isso, longe de concluir, encerro este trabalho com a
tradução livre de uma passagem de Moby Dick que creio ser bastante adequada: “Este livro inteiro
não passa de um esboço, ou melhor, do esboço de um esboço”.
125
125
“This whole book is but a draught- nay, but the draught of a draught.”
173
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India. Nature. v. 1, n. 450, p. 1190-1194, 2007.
TRAWEEK, S. Beamtimes and lifetimes: the world of high energy physicists. Cambridge:
Havard University Press, 1988.
VIVEIROS DE CASTRO, E. O conceito de sociedade em antropologia. In: ______________. A
inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac & Naif.
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178
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ZIMMER, C. At the water's edge: fish with fingers, whales with legs and how life came ashore
but then went back to the sea. Touchstone. 1999.
179
Anexo I : Roteiro básico para coleta de mamíferos marinhos
DADOS DE CAPTURA ACIDENTAL:
DATA
LOCAL
DISTÂNCIA DA COSTA (horas ou milhas náuticas)
PROFUNDIDADE (metros ou braças)
TIPO DE REDE (nome local)
MALHA DA REDE (mm ou cm).
POSICAO DA REDE NO MAR (superfície, fundo).
COMPRIMENTO TOTAL DA REDE
POSICAO DO GOLFINHO NA REDE (inicio meio final)
DADOS DE ENCALHE:
DATA :
LOCAL:
DADOS DO EXEMPLAR:
SEXO:
COMPRIMENTO TOTAL (cm):
MARCAS PELO CORPO (rede, dente, ferimentos, cicatriz natural).:
OUTRAS OBSERVACOES (presença de leite, ectoparasitos, rede enrolada no corpo, etc.). :
COLETA DE AMOSTRAS:
COLOCAR EM SACOS PLÁSTICOS SEPARADOS- USAR SACOS TRANSPARENTES- EVITAR
USAR DE COR
GORDURA-tirar um pedaço da gordura (+/- 15 cm):
MÚSCULO-tirar um pedaço de músculo ( +/- 15 cm):
RIM-tirar apenas um rim.:
FIGADO- tirar um pedaço do fígado ( +/- 15 cm):
PULMAO-tirar um pedaço do pulmão (+/- 15 cm):
OVÁRIOS OU TESTÍCULOS-tirar o par, não esquecendo de diferenciar o direito do esquerdo.
ESTOMAGO-colocar inteiro no saco plástico, amarrando a porção inicial e terminal.:
CÉREBRO-coletar inteiro ou a maior parte no saco plástico (coletar apenas se houver coletado o sangue).:
COLOCAR EM VIDROS:
SANGUE-colocar em vidro pequeno, evitando encher muito para não quebrar depois de congelar.:
DENTE-colocar três ou quatro dentes em vidro pequeno com álcool (ou glicerina e álcool (1:1)). :
SE CONSEGUIR EXTRAIR OS DENTES!!!!!!!!!!
ARMAZENARAS AMOSTRAS EM FREEZER (EXCEÇÃO DO DENTE):
A FIXAÇÃO POSTERIOR EM ÁLCOOL, FORMOL, ETC. E A IDENTIFICAÇÃO DETALHADA DA
AMOSTRA SERÁ FEITA DE ACORDO COM O PROTOCOLO DE ANÁLISE.
NUNCA ESQUECER DE IDENTIFICAR A PROCEDÊNCIA DAS AMOSTRAS EXTRAÍDAS: ESPÉCIE
E REGISTRO DE CAMPO.
Anexo II – Registros de encalhes e capturas.
Esp écie Nome comum Data Local
GEMM 001 Physeter macrocephalus cachalote 10 03 1999 Praia Grande, Arraial do Cabo
GEMM 002 Stenella frontalis golfinho-pintado-do-Atlântico 01 05 1999 Praia do Boqueirão, Saquarema
GEMM 003 Megaptera novaeangliae baleia-jubarte 01 06 1999 Ponta do Anequim, Ilha do Farol, Arraial do Cabo
GEMM 004 Megaptera novaeangliae baleia-jubarte 23 08 1999 Praia de Gruss, São João da Barra
GEMM 005 Lagenodelphis hosei golfinho-de-Fraser 03 09 1999 Praia Grande, Arraial do Cabo
GEMM 006 Delphinidae golfinho 12 10 1999 Praia Grande, Arraial do Cabo
GEMM 007 Stenella frontalis golfinho-pintado-do-Atlântico Barra de Maricá
GEMM 008 Odontoceto golfinho não identificado Itaipuu, Niterói
GEMM 009 Tursiops truncatus golfinho-nariz-de-garrafa 14 07 2000 Praia Grande, Arraial do Cabo
GEMM 010 Globicephala macrorhynchus baleia-piloto Praia Grande, Arraial do Cabo
GEMM 011 Balaenoptera acutorostrata baleia-minke-anã 10 09 2000 Praia Seca, Araruama
GEMM 012 Eubalaena australis baleia-franca 03 09 2000 Praia Lag oa Doce, S. F. do Itabapoana
GEMM 013 Eubalaena australis baleia-franca 08 09 2000 Gruss, São João da Barra
GEMM 014 Odontoceto golfinho não identificado 2000 Praia Seca, Araruama
GEMM 015 Delphinidae golfinho 2000 Monte Alto, Arraial do Cabo
GEMM 016 Delphinus sp. golfinho-comum-de-bico-longo Arraial do Cabo
GEMM 017 Tursiops truncatus golfinho-nariz-de-garrafa 03 03 2001 Barra deo João
GEMM 018 Tursiops truncatus golfinho-nariz-de-garrafa 28 04 2001 Praia da Macumba, Rio de Janeiro
GEMM 019 Stenella attenuata golfinho-pintado-pantropical 29 06 2001 Figueira, Arraial do Cabo
GEMM 020 baleia-minke-anã 29 06 2001 Praia Grande, Arraial do Cabo
GEMM 021 Sotalia guianensis boto-cinza 20 07 2001 Praia das Conchas, Cabo Frio
GEMM 022 Orcinus orca orca 23 07 2001 Praia Grande, Arraial do Cabo
GEMM 023 Sotalia guianensis boto-cinza 30 08 2001 Fazenda São Lázaro, Macaé
GEMM 024 Cetacea ceceo não identificado 15 09 2001 Praia Gorda,zios
GEMM 025 Balaenoptera sp. baleia 03 11 2001 Praia Gorda,zios
GEMM 026 Sotalia guianensis boto-cinza 03 11 2001 Praia Gorda,zios
GEMM 027 Stenella frontalis golfinho-pintado-do-Atlântico 04 10 2001 Prainha, Arraial do Cabo
GEMM 028 Balaenoptera edeni baleia-de-Bryde 11 12 2001 Barra deo João
GEMM 029 Delphinus sp. golfinho-comum-de-bico-longo Praia Seca, Araruama
GEMM 030 Megaptera novaeangliae baleia-jubarte Itna, Saquarema
No. Coleção
(GEMM)
<<< 11 1999
<<< 02 2000
<<<< 08 2000
<<< 12 2000
Balaenoptera" acutorostrata
<<<< 01 2002
<<<< 01 2002
GEMM 031 Sotalia guianensis boto-cinza 11 07 2002 Praia Seca, Araruama
GEMM 032 Stenella frontalis golfinho-pintado-do-Atlântico 13 07 2002 Praia Seca, Araruama
GEMM 033 Sotalia guianensis boto-cinza 10 08 2002 Praia de João Francisco, Quissamã
GEMM 034 Sotalia guianensis boto-cinza 23 08 2002 Praia da Barra da Tijuca, Rio de Janeiro
GEMM 035 Megaptera novaeangliae baleia-jubarte 28 08 2002 Praia Rasa,zios
GEMM 036 Megaptera novaeangliae baleia-jubarte 03 10 2002 Fog uete, Cabo Frio
GEMM 037 Sotalia guianensis boto-cinza 12 10 2002 Praião, Barra de São João
GEMM 038 Sotalia guianensis boto-cinza 05 11 2002 Praia Grande/Figueira, Arraial do Cabo
GEMM 039 Sotalia guianensis boto-cinza 09 11 2002 Praião, Barra de São João
GEMM 04 0 Sotalia guianensis boto-cinza 09 11 2002 Praião, Barra de São João
GEMM 04 1 Sotalia guianensis boto-cinza 23 11 2002 Praia do Abricó, Rio das Ostras
GEMM 04 2 Sotalia guianensis boto-cinza 28 11 2002 Praia do Abricó, Rio das Ostras
GEMM 04 3 Sotalia guianensis boto-cinza Rio das Ostras
GEMM 04 4 Steno bredanensis golfinho-de-dentes-rugosos 15 06 2003 Praia Grande, Arraial do Cabo
GEMM 04 5 Stenella frontalis golfinho-pintado-do-Atlântico 10 08 2003 Figueira, Arraial do Cabo
GEMM 04 6 Stenella frontalis golfinho-pintado-do-Atlântico 16 10 2003 Praia de Geribá,zios
GEMM 04 7 Sotalia guianensis boto-cinza 18 10 2003 Mercado de Peixe de Macaé
GEMM 04 8 Sotalia guianensis boto-cinza 05 11 2003 Barra do Furado, Quissamã
GEMM 04 9 Sotalia guianensis boto-cinza 05 11 2003 Barra do Furado, Quissamã
GEMM 050 Sotalia guianensis boto-cinza 05 11 2003 Barra do Furado, Quissamã
GEMM 051 Eubalaena australis baleia-franca 17 01 2004 Praia de Itna, Saquarema
GEMM 052 Balaenoptera edeni baleia-de-Bryde 26 02 2004 Próximo à Lagoa do Paulista, Quissamã
GEMM 053 Tursiops truncatus golfinho-nariz-de-garrafa 28 02 2004 Praia de Carapebus, Carapebus
GEMM 054 Steno bredanensis golfinho-de-dentes-rugosos 04 03 2004 Praia do Forte, Cabo Frio
GEMM 055 Megaptera novaeangliae baleia-jubarte 26 05 2004 Praia do Lag omar, Macaé
GEMM 056 Globicephala macrorhynchus baleia-piloto-de-peitorais-curtas 13 06 2004 Figueira, Arraial do Cabo
GEMM 057 Tursiops truncatus golfinho-nariz-de-garrafa 17 06 2004 Praia do Raposo, Praia Seca, Araruama
GEMM 058 Stenella frontalis golfinho-pintado-do-Atlântico 06 07 2004 Praia da Vila, Saquarema
GEMM 059 Stenella frontalis golfinho-pintado-do-Atlântico 06 07 2004 Barra Nova, Praia da Vila, Saquarema
GEMM 060 Tursiops truncatus golfinho-nariz-de-garrafa 15 07 2004 Praia Grande, Arraial do Cabo
GEMM 061 Delphinus sp. golfinho-comum-de-bico-longo 13 08 2004 Praia do Boqueirão, Saquarema
GEMM 062 Balaenoptera bonaerensis baleia-minke-antártica 08 2004 Praia dos Ossos,zios
GEMM 063 Balaenoptera acutorostrata baleia-minke-anã 19 08 2004 Praia da Gorda,zios
GEMM 064 Eubalaena australis baleia-franca 29 08 2004 Praia de Monte Alto, Arraial do Cabo
GEMM 065 Sotalia guianensis boto-cinza 02 09 2004 Praia da Enseada, Rio das Ostras
<<< 03 2003
GEMM 066 Lagenodelphis hosei golfinho-de-Fraser 05 09 2004 Praia de Tucuns,zios
GEMM 067 Delphinus sp. golfinho-comum-de-bico-longo 11 10 2004 Orla 500, Cabo Frio
GEMM 068 Sotalia guianensis boto-cinza 23 10 2004 Barra deo João
GEMM 069 Megaptera novaeangliae baleia-jubarte 26 10 2004 Praia Nova Holanda, Mac
GEMM 070 Sotalia guianensis boto-cinza 31 10 2004 Próximo à Lagoa do Paulista, Quissamã
GEMM 071 Sotalia guianensis boto-cinza 31 10 2004 Próximo à Lagoa do Paulista, Quissamã
GEMM 072 Sotalia guianensis boto-cinza 12 11 2004 Praia da Joana, Rio das Ostras
GEMM 073 Sotalia guianensis boto-cinza 18 11 2004 Praia Rasa,zios
GEMM 074 Tursiops truncatus golfinho-nariz-de-garrafa 04 12 2004 Itaúna, Saquarema
GEMM 075 Balaenopteridae baleia não identificada 04 12 2004 Praia da Vila, Saquarema
GEMM 076 Sotalia guianensis boto-cinza 11 12 2004 Praia de Flexeiras, Quissamã
GEMM 077 Steno bredanensis golfinho-de-dentes-rugosos 11 01 2005 PNRJ, Próximo à Praia de João Francisco, Quissamã
GEMM 078 Balaenoptera edeni baleia-de-Bryde 23 01 2005 Praia do Abricó, Rio das Ostras
GEMM 079 Megaptera novaeangliae baleia-jubarte 16 02 2005 Prainha, Saquarema
GEMM 080 Steno bredanensis golfinho-de-dentes-rugosos 24 06 2005 Praia de Tucuns,zios
GEMM 081 Tursiops truncatus golfinho-nariz-de-garrafa 26 06 2005 Praia de Manguinhos,zios
GEMM 082 Sotalia guianensis boto-cinza 01 02 08 2005 Flexeiras, Quissamã
GEMM 083 Sotalia guianensis boto-cinza 02 02 08 2005 Flexeiras, Quissamã
GEMM 084 Sotalia guianensis boto-cinza 03 02 08 2005 Flexeiras, Quissamã
GEMM 085 Pontoporia blainvillei toninha 02 08 2005 Flexeiras, Quissamã
GEMM 086 Delphinidae golfinho não identificado 08 2005 Itna, Saquarema
GEMM 087 Sotalia guianensis boto-cinza 03 09 2005 Figueira, Arraial do Cabo
GEMM 088 Balaenopteridae baleia não identificada 03 09 2005 Figueira, Arraial do Cabo
GEMM 089 Sotalia guianensis boto-cinza 24 09 2005 Praião, Barra de São João
GEMM 090 Kogia breviceps cachalote-pig meu 25 09 2005 Praia Grande, Arraial do Cabo
GEMM 091 Balaenoptera cf. acutorostrata baleia-minke-anã 04 11 2005 Praia de Jo Fernandes,zios
GEMM 092 Physeter macrocephalus cachalote 07 11 2005 Praia do Centro, Rio das Ostras
GEMM 093 Kogia breviceps cachalote-pig meu 04 12 2005 Praia de Itna, Saquarema
GEMM 094 Tursiops truncatus golfinho-nariz-de-garrafa 17 12 2005 Praia do Peró, Cabo Frio
GEMM 095 Pontoporia blainvillei toninha 06 01 2006 Praia de João Francisco, Quissamã
GEMM 096 Sotalia guianensis boto-cinza 13 02 2006 Praia de João Francisco, Quissamã
GEMM 097 Pontoporia blainvillei toninha 20 02 2006 Praia de Joao Francisco
GEMM 098 Tursiops truncatus golfinho-nariz-de-garrafa 31 03 2006 Praia de Figueira ( centro) , Arraial do Cabo - RJ
GEMM 099 Steno bredanensis Golfinho de dentes rugosos 30 04 2006 Praia do Forte, Cabo Frio
GEMM 100 Steno bredanensis Golfinho de dentes rugosos 30 04 2006 Praia do Forte, Cabo Frio
GEMM 101 Sotalia guianensis boto-cinza 06 05 2006 Praia de João Francisco, Quissamã
GEMM 102 Stenella frontalis Golfinho pintado do atlantico 12 05 2006 Praia de pernambuca , Praia Seca
GEMM 103 Delphinidae Golfinho 01 06 2006 Praia de Vila Tur – Saquarema
GEMM 104 Sotalia guianensis boto-cinza 21 06 2006 Praia Rasa,zios
GEMM 105 Sotalia guianensis boto-cinza 28 06 2006 Praia da Vila, Saquarema
GEMM 106 Stenella attenuata Golfinho Pintado Pan Tropical 28 06 2006 Praia do Vargas – Praia Seca- Araruama – Rj
GEMM 107 Steno bredanensis Gofinho de dentes rugosos 08 07 2006 Prainha, Arraial do Cabo
GEMM 108 Sotalia guianensis boto-cinza 11 07 2006 Flexeiras, Quissamã
GEMM 109 Sotalia guianensis boto-cinza 02 08 2006 Praia de Iriri – Rio das Ostras
GEMM 110 Megaptera novaeangliae jubarte 09 09 2006 Praia do Pontal - Arraial do Cabo
GEMM 111 Sotalia guianensis boto-cinza 13 09 2006 Praia da Gorda, zios
GEMM 112 Balaenoptera edeni baleia de bryde 28 09 2006 Praia de Unamar - Cabo Frio
GEMM 113 Megaptera novaeangliae jubarte 14 10 2006 Praia de João Francisco, Quissamã
GEMM 114 Sotalia guianensis boto-cinza 14 10 2006 Praia de João Francisco, Quissamã
GEMM 115 Megaptera novaeangliae jubarte 14 11 2006 Praia do Abricó, Rio das Ostras
GEMM 116 Sotalia guianensis boto-cinza 26 12 2006 Mar-do-norte - Rio das Ostras
GEMM 117 Delphinus sp. Golfinho comum 28 12 2006 Praia do Pontal - Praia Seca
GEMM 118 Delphinidae Golfinho 13 01 2006 Praia do Peró, Cabo Frio
GEMM 119 Megaptera novaeangliae jubarte 14 01 2007 Praia de Itna- Saquarema
GEMM 120 Tursiops truncatus golfinho-nariz-de-garrafa 07 03 2007 Praia de Barra Nova- Saquarema
GEMM 121 Steno bredanensis Golfinho de dentes rugosos 28 03 2007 Prainha- Arraial do Cabo
GEMM 122 Tursiops truncatus golfinho-nariz-de-garrafa 02 04 2007 Praia dos Anjos- Arraial do Cabo
GEMM 123 Sotalia guianensis boto-cinza 22 05 2007 Garg- São Francisco de Itabapoana
GEMM 124 Globicephala macrorhynchus baleia-piloto-de-peitorais-curtas 05 06 2007 Praia da Vila, Saquarema
GEMM 125 Sotalia guianensis boto-cinza 13 07 2007 Atafona -
GEMM 126 Sotalia guianensis boto-cinza 13 07 2007 Atafona -
GEMM 127 Sotalia guianensis boto-cinza 14 07 2007 Praia de Flexeiras, Quissamã
GEMM 128 Sotalia guianensis boto-cinza 31 07 2007 Praia de Buena – Campos
GEMM 129 Sotalia guianensis boto-cinza 01 08 2007 Atafona -
GEMM 130 Balaenoptera edeni baleia de bryde 18 08 2007 Praia Grande Arraial do cabo
GEMM 131 Sotalia guianensis boto-cinza 22 08 2007 Praia do Barra do Açú - Barra de Itabapoana
GEMM 132 Tursiops truncatus golfinho-nariz-de-garrafa 23 08 2007 Praia Rasa,zios
GEMM 133 Sotalia guianensis boto-cinza 30 08 2007 Praia da Tartaruga - Rio das Ostras
GEMM 134 Megaptera novaeangliae Jubarte 02 09 2007 Praia Olho de boi – Búzios
185
ANEXO III: Lista nominal dos cetáceos com ocorrência na Bacia de Campos (Siciliano et al
2006)
Subordem Família Nome Científico Nome Vulgar C O OCR/SA
Mysticeti Balenidae
Eubalaena australis baleia-franca-do-sul X OC/S
Balaeopteridae
Balaenoptera musculus baleia-azul X OC/S
Balaenoptera physalus baleia-fin X OC/S
Balaenoptera borealis baleia-sei X OC/S
Balaenoptera edeni baleia-de-Bryde X OC/N
Balaenoptera bonaerensis baleia-minke-antártica X OC/S
Balaenoptera acutorostrata baleia-minke-anã X OC/DI
Megaptera novaeangliae baleia-jubarte X X OC/S
Odontoceti Physeteridae
Physeter macrocephalus cachalote X OC/DI
Kogiidae
Kogia breviceps cachalote-pigmeu X OC/DI
Kogia sima cachalote-anão X OC/DI
Ziphiidae
Beradius amuxii baleia-bicuda-de-Anoux X OP/DI
Mesoplodon europaeus baleia-bicuda-de-Gervais X OP/DI
Mesoplodon mirus baleia-bicuda-de-True X OP/DI
Delphinidae
Orcinus orca orca X X OC/DI
Globicephala macrorhynchus baleia-piloto-de-peitorai-curtas X OC/DI
Pseudorca crassidens falsa-orca X OC/DI
Faresa attenuata orca-pigméia X OP/DI
Peponocephala electra golfinho-cabeça-de-melão X OP/DI
Sotalia guianensis boto-cinza X OC/N
Steno bredanensis golfinho-de-dentes-rugosos X OC/N
Grampus griseus golfinho-de-Risso X OC/DI
Tursiops truncatus golfinho-nariz-de-garrafa X X OC/N
Stenella attenuata golfinho-pintado-pantropical X OC/N
Stenella frontalis golfinho-pintado-do-Atlântico X OC/N
Stenella longirostris golfinho-rotador X OC/N
Stenella clymene golfinho-de-Clymene X OP/N
Stenella coeruleoalbla golfinho-listrado X OC/N
Delphinus sp. golfinho-comum X OC/N
Lagenodelphis hosei golfinho-de-Frase X
Pontoporiidae
Pontoporia blainvilei toninha X OC/N
185
Legenda: (C) comunidade costeira (O) comunidade oceânica (OCR/SA) ocorrência/sazonalidade (OC) ocorrência
confirmada (OP) ocorrência possível (S) ocorrência sazonal (N) ocorrência não sazonal (DI) dados insuficientes.
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