
justamente, para aquilo que, da escrita, escapa ao semblante, ou seja, que está lá como
marca, sulco, “rasura de traço algum que lhe seja anterior”,
107
literal. Assim, a escritura,
partindo se seu ponto de letra, no que se propõe a não tomar as coisas de maneira
espontânea, vai além, extrapola-a, toma-a a partir do furo, do buraco, e pode, dessa
maneira, nos re-ensinar a ler, uma leitura que nos relança “não apenas ao ‘não sentido’,
mas a um suplemento de sentido, um ‘a mais de sentido’”.
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Finalmente, é sob a perspectiva da letra na borda do buraco, escavado pela escritura,
e tomada como Real; e do feminino como algo que se aproxima e contempla o buraco, que
a articulação e a relação (de não-equivalência)
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entre a letra e o feminino se farão
possíveis. Portanto, a escrita feminina (ou do feminino) seria aquela que se daria na borda,
no litoral, pois, ao mesmo tempo em que preserva seu aspecto comunicacional, dado pelo
que há de semblante no significante que constitui o discurso a partir da norma fálica (do
todo, universal), ela o ultrapassa, por estar, em parte, inserida no buraco, por ser não-toda
(fálica). Então, é no lugar daquilo que não se lê, pelo menos não a partir da lógica
totalizante, universalizante, que constatamos a presença do feminino. E é nesse lugar, da
escrita feminina, que outros arranjos da letra, da língua, são possíveis, produzindo-se um a
mais, um além, ou um Outro Gozo.
110
107
LACAN. Lituraterra. In: Outros escritos, p.21
108
CASTELLO BRANCO. Um passo de letra, p.5.
109
A noção de equivalência foi retirada do texto lacaniano O seminário: livro 23, no qual Lacan afirma que
“a não relação deriva da equivalência, a relação se estrutura na medida em que não há equivalência. Há,
portanto, ao mesmo tempo, relação sexual e não há relação.” (p.98). Isso significa que, estando o homem e a
mulher inseridos na norma fálica, isto é, marcados pela castração, eles seriam equivalentes e, desta forma,
não haveria relação sexual. A partir do momento que a letra e o feminino permitissem uma outra inscrição,
para além do fálico, produzindo um gozo não-todo fálico, mesmo que contingencialmente, a relação sexual
poderia se dar. Sobre o papel da contingência na relação sexual, Lacan explica, com base em seu aforismo
escrito no seu Seminário: livro 20, que “a relação sexual não pára de não se escrever”. Assim, “(...) a
aparente necessidade da função fálica se descobre apenas como contingência. É enquanto modo do
contingente que ela pára de não se escrever. A contingência é aquilo no que se resume o que submete a
relação sexual a ser, para o ser falante, apenas o regime do encontro.” (p.127). Talvez, então seja possível,
com a letra, escrever, contingencialmente, a relação sexual.
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O conceito de gozo em Lacan surge a partir da sua leitura de Freud acerca da pulsão de morte e da libido.
Essa noção seria equivalente à “satisfação pulsional” e contemplaria ao mesmo tempo prazer e sofrimento. O
gozo indicaria ainda o que estaria para além dos limites, o indizível, o Real. “Em suma, o que é o gozo? (...)
É algo que significa a escamoteação do limite, a abolição do limite. Quanto ao prazer, constitui uma forma
comedida de eclipse momentânea do limite, onde entra em causa apenas o prazer e todo o circuito do desejo
que o repõe em jogo. O gozo propriamente dito, enquanto inacessível, enquanto realidade, enquanto
impossível, é exatamente a abolição do limite” (LECLAIRE citado por CASTELLO BRANCO. A traição de
Penélope, p.76). Partindo desses princípios, o Outro Gozo estaria para além do corpo, para além do gozo
sexual, além da norma fálica, fora da linguagem. Esse Outro Gozo, ou gozo d’A mulher, seria um gozo
suplementar (pois, a mulher é não-toda inserida no registro fálico) do qual nada se pode dizer dele a não ser
que é experienciado por algumas(uns). Segundo Lacan: “Há um gozo dela, esse ela que não existe e não
significa nada. Há um gozo dela sobre o qual talvez ela mesma não saiba nada a não ser que o experimenta –