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Universidade Federal de Juiz de Fora
Pós-Graduação em Ciência da Religião
Mestrado em Ciência da Religião
Ana Luiza Nascimento de Assis Souza
A INTERPRETAÇÃO DE MARTIN HEIDEGGER ACERCA DO SAGRADO NO
POEMA COMO QUANDO EM DIA DE FERIADO DE FRIEDERICH HÖLDERLIN
Juiz de Fora
2009
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Ana Luiza Nascimento de Assis Souza
A interpretação de Martin Heidegger acerca do sagrado no poema Como quando em dia de
feriado de Friederich Hölderlin
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Ciência da Religião, área de
concentração: Filosofia da Religião, da
Universidade Federal de Juiz de Fora, como
requisito parcial para obtenção do grau de
Mestre.
Orientador: Prof. Dr. Luís Henrique Dreher
Juiz de Fora
2009
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Ana Luiza Nascimento de Assis Souza
A interpretação de Martin Heidegger acerca do sagrado no poema Como quando em dia
de feriado de Friederich Hölderlin
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Ciência da Religião, Área de
Concentração em Filosofia da Religião, do
Instituto de Ciências Humanas da
Universidade Federal de Juiz de Fora como
requisito parcial para obtenção do título de
Mestre em Ciência da Religião.
Aprovada em 25 de agosto de 2009.
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________________
Prof. Dr. Luís Henrique Dreher (Orientador)
Universidade Federal de Juiz de Fora
_____________________________________________
Prof. Dr. Paulo Afonso de Araújo
Universidade Federal de Juiz de Fora
_____________________________________________
Prof. Dr. Acylene Maria Cabral Ferreira
Universidade Federal da Bahia
AGRADECIMENTOS
A Deus, por iluminar meus passos.
Ao Homero, que apoiou minhas escolhas, compreendeu minha ausência e acreditou junto
comigo na realização deste trabalho.
Aos meus queridos pais, João e Maria, por me apoiarem sem restrições, pelas orações e pelo
amor incondicional.
A minha querida irmã Lívia, pelo incentivo e amizade. Obrigada por sua presença
reconfortante e animadora.
A professora Glória Ribeiro, responsável pelo meu primeiro contato com a filosofia
heideggeriana. Obrigada pela mão sempre estendida e pela generosidade.
Aos meus padrinhos: Tio Ailton e Tia Matilde, sempre preocupados com o meu bem-estar.
Obrigada pelas palavras e gestos de amor.
Às queridas amigas: Elaine, agradeço sua amizade fiel e seu coração sempre aberto às minhas
preocupações e confidências. Juliana, obrigada por me fortalecer com seu abraço apertado e
com suas palavras cheias de otimismo.
Às amigas de academia e coração: Fernanda, pelo companheirismo e carinho. Adriana, Renata
e Paula pela ajuda nos momentos decisivos.
A minha Tia Detinha, que com seus conselhos me estimulou a perseverar.
Ao professor Paulo Afonso, sempre solícito na elucidação das minhas dúvidas. Obrigada por
dividir suas reflexões com os alunos nas aulas e no grupo de estudos.
Ao meu orientador, professor Luís Dreher, pelas sugestões e observações valiosas e por
compreender minhas limitações.
Agradeço ao CNPq pelo financiamento desta pesquisa.
Ser poeta não é dizer grandes coisas, mas ter uma
voz reconhecível dentre todas as outras.
(Mário Quintana)
RESUMO
Nesta pesquisa buscamos investigar a interpretação realizada pelo filósofo alemão Martin
Heidegger (1889 1976) acerca do sagrado a partir do poema Como quando em dia de
feriado... de Friederich Hölderlin (1770 1843). A aproximação de Heidegger com a poesia
de Hölderlin ocorre devido a uma necessidade intrínseca ao caminho de pensamento
desenvolvido pelo filósofo. A partir de 1930, quando se estabelece a chamada Kehre (virada)
heideggeriana a busca pelo sentido do ser continua sendo a questão principal para o
pensamento do filósofo. Heidegger propõe uma busca pelo sentido do ser que ao mesmo
tempo preserve a sua dinâmica própria de manifestação que é a de se dar ora como presença,
ora como ausência. A poesia é considerada por Heidegger como a linguagem em especial que
possui a característica singular de preservar o ser como mistério. A poesia é capaz de pensar o
ser sem esgotá-lo em conceitos empobrecedores. Hölderlin é para Heidegger o poeta que
soube cantar como nenhum outro a fuga dos deuses num tempo de luto sagrado. Com
Hölderlin o espaço de manifestação do sagrado é preservado apesar da fuga dos deuses.
Palavras-chave: Sagrado. Verdade. Linguagem. Poesia. Poeta.
ABSTRACT
The object of research in this thesis is the interpretation of the holy proposed by German
philosopher Martin Heidegger (1889 1976) on the basis of his reading of Friedrich
Hölderlin’s (1770 1843) poem Wie wenn am Feiertage... (As on a holiday). Heidegger’s
turning to Hölderlin’s poetry takes place due to a necessity intrinsic to the path of his own
thinking. From 1930 onwards, when the so-called Heideggerian Kehre (“turn”) begins, the
search for the meaning of Being continues to be the main issue for his thought. Heidegger
proposes a search for the meaning of being which at the same time preserves its proper
dynamics of manifestation, which is a dynamics of “giving itself” alternately as presence
and/or absence. Poetry is considered by Heidegger as a special because higher kind of
language which has the unique potential to preserve Being as mystery. In other words, poetry
is able to think Being without exhausting it through impoverishing concepts. Hölderlin is,
according to Heidegger, the poet who unlike any other knew how to sing the flight of the gods
in a time of holy mourning. With Hölderlin, the space of manifestation of the holy is
preserved in spite of the flight of the gods.
Key-words: The holy. Truth. Language. Poetry. Poet.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO........................................................................................................................8
CAPÍTULO 1 - O NASCIMENTO DO INTERESSE DE HEIDEGGER PELA POESIA
DE HÖLDERLIN....................................................................................................................12
1.1. Considerações Iniciais......................................................................................................12
1.2 Verdade..............................................................................................................................21
1.3 Linguagem e Poesia...........................................................................................................23
1.4 Hölderlin: o poeta do poeta ...............................................................................................28
CAPÍTULO 2 - ELEMENTOS DO DIÁLOGO ENTRE O PENSADOR E O POETA ........44
2.1 Considerações Iniciais.......................................................................................................44
2.2 Os semideuses ...................................................................................................................44
2.3 A quadratura......................................................................................................................54
2.4 O Luto Sagrado..................................................................................................................56
2.5 O Último Deus...................................................................................................................62
CAPÍTULO 3 - O SAGRADO NO POEMA COMO QUANDO EM DIA DE FERIADO....67
3.1 Considerações Iniciais.......................................................................................................67
3.2 A natureza e sua onipresença maravilhosa........................................................................69
3.3 O sagrado como essência da natureza ...............................................................................75
3.4 A tarefa do poeta: cuidar do sagrado.................................................................................79
CONCLUSÃO........................................................................................................................94
REFERÊNCIAS ......................................................................................................................97
ANEXOS...............................................................................................................................100
Germânia ...............................................................................................................................100
O Reno...................................................................................................................................103
INTRODUÇÃO
A questão que orienta nosso trabalho é a interpretação do sagrado desenvolvida pelo
filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976) a partir do poema Como quando em dia de
feriado... de Johann Christian Friederich Hölderlin (1770 - 1843). A escolha por Como
quando em dia de feriado..., dentre tantos outros poemas de Hölderlin, deve-se a dois fatores:
o próprio Heidegger (2005, p.48) diz que este poema é “a mais pura poesia da essência da
poesia”
1
; nele vemos anunciada de maneira explícita a relação do poeta com o sagrado.
Podemos afirmar que a noção de sagrado é desenvolvida por Heidegger a partir de
seu encontro com a poesia de Hölderlin. A escolha pela poesia de Hölderlin é explicada
através de um exame interno na trajetória da filosofia heideggeriana. Esta aproximação entre
pensamento (Denken) e poesia (Dichtung) deve-se a uma necessidade intrínseca ao caminho
de pensamento do filósofo. A aproximação com Hölderlin, a partir de 1930, é fruto dos rumos
tomados pela ontologia fundamental desenvolvida por Heidegger.
Após Ser e Tempo (1927), Heidegger entendeu que era preciso buscar uma
linguagem mais apropriada para tratar da questão do ser. Tal linguagem precisava estar
desatrelada do pensamento calculador e redutor da tradição metafísica. Isso porque, para
Heidegger, a metafísica impediu um pensar acerca do sentido do ser, quando pensou o ser dos
entes a partir do próprio ente. Com isso, a metafísica pensou o ente no lugar do ser e
promoveu a entificação do ser dos entes. O resultado deste olhar, que tentou se apoderar do
ser foi o esquecimento do ser.
No entanto, a ontologia fundamental empreendida por Heidegger não propõe um
acesso direto ao ser. Mesmo porque este acesso é impossibilitado pela própria dinâmica de
manifestação do ser. O ser se manifesta de modo a não se deixar revelar por completo. Essa
condição de manifestação imposta pelo próprio ser não é um empecilho que atravanca o
pensamento. Heidegger empreende uma ontologia fundamental que preserva o ser em sua
manifestação, pois pensa o ser não em seu revelamento, mas também em seu velamento.
Para Heidegger, o erro da metafísica o foi o esquecimento do ser e sim o esquecimento de
1
HEIDEGGER, Martin. Hölderlin e a essência da poesia. In: _____. Aclaraciones a la poesía de Hölderlin.
Madrid: Alianza Editorial, 2005. p. 48. (Tradução nossa).
9
que o encobrimento faz parte da própria dinâmica de manifestação do ser. Uma ontologia
atenta ao encobrimento possibilita um resguardo do ser e da sua verdade.
A questão do sagrado também é discutida por Heidegger tendo como pano de fundo
a verdade do ser. Isso significa dizer que a questão do sagrado, amplamente analisada no
decorrer da história, precisa ser repensada em dissonância com a ocular metafísica. Aos olhos
da metafísica tudo foi entificado, inclusive deus. O sagrado precisa ser recolocado como
mistério, pois é a partir deste modo de acontecimento da verdade que a dimensão de
manifestação do sagrado se preserva. A preservação da dimensão do sagrado significa a
manutenção do espaço de manifestação do divino.
Para Heidegger, Hölderlin é o poeta que em meio à era da fuga dos deuses (máxima
consolidação da metafísica) aponta para o sagrado. Isso significa dizer que a poesia de
Hölderlin preserva o sagrado e o espaço de manifestação dos deuses ao reconhecer que a fuga
destes faz parte da história mesma do sagrado. O sagrado é este espaço no qual os deuses se
manifestam e se retiram. Quando da fuga dos deuses o espaço permanece aberto pelo poeta. O
que significa dizer que os deuses se foram, mas o divino não se perdeu.
Para o desenvolvimento da questão escolhida como tema deste trabalho, o marco
teórico foi erguido tendo como ponto basilar as obras de Heidegger nas quais ele interpreta a
poesia de Hölderlin. Para tanto, partimos do interior da própria filosofia heideggeriana e
seguimos seus passos em busca dessas obras e das que tratam de temas pertinentes à nossa
questão principal.
Primeiramente, importa situar nossa questão dentro do conjunto do pensamento
heideggeriano. Alguns estudiosos costumam dividir a filosofia de Heidegger em duas fases ou
ciclos. O chamado “primeiro Heidegger” seria o filósofo de Ser e Tempo (1927) e o “segundo
Heidegger” seria o da fase posterior à publicação desta obra. Os estudiosos que admitem tal
divisão acreditam que a partir dos anos de 1930, Heidegger teria abandonado as questões
levantadas em Ser e Tempo. Tal divisão, no entanto, se mostra relevante apenas em sentido
didático, o próprio Heidegger admite que seu pensamento comporta uma espécie de Kehre
(virada). Com a Kehre, a busca pelo sentido do ser continua sendo a mola propulsora da
filosofia heideggeriana, que não mais a partir de uma analítica existencial. Nas obras
posteriores a Ser e Tempo, o ser mesmo é que se mostra como uma abertura para se chegar ao
ente, à existência humana. A partir da Kehre, questões como a linguagem e a poesia ganham
novos traços e um espaço cada vez maior nos textos de Heidegger. Isso porque a recolocação
dessas noções de linguagem e poesia mostra-se relevante para um caminho novo na
abordagem à questão do ser.
10
Podemos dizer, então, que nossa abordagem privilegiou os escritos que surgiram a
partir de 1930. Estes coincidem com o momento da consolidação da Kehre heideggeriana. A
conferência Como quando em dia de feriado... , na qual Heidegger realiza a interpretação do
poema homônimo de Hölderlin foi pronunciada várias vezes entre os anos de 1939 e 1940.
Sua primeira publicação ocorreu em 1941. Em nosso trabalho utilizamos uma tradução para o
espanhol, presente no livro Aclaraciones a la poesía de Hölderlin, publicado em 2005. A
tradução foi feita a partir da quinta edição alemã, presente no volume de número quatro das
“Obras Completas” de Heidegger. Neste livro, ao lado da conferência Como quando em dia
de feriado..., estão: o discurso Regreso al hogar / A los parientes (Heimkunft / Na die
Verwandten), pronunciado pela primeira vez em 1943; Hölderlin y la esencia de la poesía
(Hölderlin um das Wesen der Dichtung), conferência pronunciada em 1936; Memória
(Andenken), ensaio publicado num livro lançado em comemoração ao centenário da morte de
Hölderlin em 1943; La tierra y el cielo de Hölderlin (Hölderlins Erde und Himmel),
conferência de junho de 1959 que foi publicada no Anuário Hölderlin (Hölderlin Jahrbuch)
de 1958-1960 e El Poema (Das Gedicht), conferência pronunciada em 1968.
Salientamos que nosso olhar se ateve de maneira minuciosa à interpretação de Como
quando em dia de feriado... , que esta é a nossa obra principal. As demais interpretações
presentes nas Aclaraciones serviram para enriquecer nosso trabalho e elucidar as dúvidas
pertinentes.
O primeiro texto acerca da poesia de Hölderlin, publicado por Heidegger, data do
ano de 1935. Trata-se de um curso ministrado pelo filósofo na Universidade de Friburgo no
semestre de inverno de 1934 / 1935. Nesta obra, intitulada Hinos de Hölderlin (Hölderlins
Hymnen Germanien” und “Der Rhein”), Heidegger interpreta os hinos Germânia e Reno.
Utilizamos em nossa pesquisa uma tradução portuguesa, publicada em 2004 pelo Instituto
Piaget. Esta obra foi de grande importância em nosso trabalho. Por ser a primeira
aproximação sistemática que Heidegger realiza da poesia de Hölderlin, ela possui contornos
de uma introdução cautelosa por parte do filósofo. Nela, importa menos a interpretação
minuciosa dos poemas e mais uma abordagem preparatória acerca da essência da poesia e da
linguagem. Essa característica é notadamente acentuada na primeira parte do escrito, quando
Heidegger interpreta Germânia.
Em abril de 1936, em Roma, Heidegger pronuncia pela primeira vez o discurso
Hölderlin e a essência da poesia, publicado em língua alemã em dezembro do mesmo ano.
Este discurso foi repetido por Heidegger inúmeras vezes nos anos que se seguiram. Nele
Heidegger reflete acerca de cinco sentenças retiradas de poemas de Hölderlin. Sua
11
importância para nós foi a de elucidar questões cruciais que fundamentam a noção de poesia
heideggeriana. Além disso, neste texto a relação do poeta com seu fazer poético é trabalhada
tendo como pano de fundo a dimensão poética. Isso acabou por enriquecer nossa
compreensão da tarefa do poeta na vinda do sagrado, nomeada em Como quando em dia de
feriado... .
Além das interpretações heideggerianas sobre os poemas, outras obras de Heidegger
complementaram nosso trabalho. Entre elas destacamos Sobre a essência da verdade,
conferência que foi repetidas vezes proferida desde 1930 e publicada em 1943, A Origem da
Obra de Arte, conferência proferida inúmeras vezes entre 1935 e 1936 e Sobre a Essência do
fundamento (Vom Wesen des Grundes) texto publicado pela primeira vez em 1929. Tais obras
são importantes no interior de nosso marco teórico, pois nos ajudaram a esclarecer o momento
pelo qual passava o pensamento heideggeriano nos idos de 1930.
Para a abordagem da questão, dividimos nosso trabalho em três capítulos. O
primeiro, intitulado “O nascimento do interesse de Heidegger pela poesia de Hölderlin”, é
desenvolvido no intuito de mostrar como e porque se deu a aproximação de Heidegger com a
poesia de Hölderlin. Através dele procuramos trabalhar as noções de verdade, linguagem e
poesia, noções importantes na compreensão da dinâmica do sagrado. O segundo capítulo,
“Elementos do diálogo entre o pensador e o poeta”, é desenvolvido a partir da análise de
elementos presentes nas interpretações realizadas por Heidegger sobre a poesia de Hölderlin.
Procuramos compreender, tanto o significado daqueles elementos que Heidegger toma
emprestado do vocabulário de Hölderlin, quanto as noções cunhadas pelo próprio Heidegger a
partir de seu encontro com a poesia. O terceiro capítulo, “O sagrado no poema Como quando
em dia de feriado...”, é desenvolvido a partir da leitura sistemática realizada por Heidegger na
interpretação deste poema. Procuramos compreender como nasce a noção de sagrado a partir
daquilo que Hölderlin chama de “natureza” em sua poesia.
CAPÍTULO 1 - O NASCIMENTO DO INTERESSE DE HEIDEGGER
PELA POESIA DE HÖLDERLIN
1.1. Considerações Iniciais
Neste primeiro capítulo nosso objetivo é apresentar os motivos que levaram Martin
Heidegger a se aproximar da poesia de Hölderlin, o porquê da escolha deste poeta em especial
e o que Heidegger percebe de singular em seu fazer poético.
Vamos trabalhar o jogo que se estabelece entre poesia (Dichtung) e pensamento
(Denken) e as noções de Verdade, Linguagem e Poesia. Isto porque é na articulação dessas
noções que Heidegger pensa a questão do Sagrado a partir da poesia de Hölderlin.
Desse modo, torna-se possível compreender a predileção de Heidegger por Hölderlin
e o que essa aproximação significou para o desenvolvimento de sua filosofia. Para tanto,
percorreremos o caminho de pensamento trilhado pelo próprio Heidegger nos textos nos quais
trata desses temas relevantes para nossa pesquisa.
Em primeiro lugar, é importante ressaltar que Heidegger não se aproxima de
Hölderlin como um crítico literário ou como um historiador da literatura. Seu intuito não é o
de dissecar a obra de Hölderlin como faria um especialista na literatura deste poeta. o
interessa a Heidegger apresentar os temas recorrentes nos poemas e hinos, o estilo ou as
influências que o poeta suábio sofreu.
Heidegger se aproxima de Hölderlin como pensador, como filósofo interessado na
possibilidade de encontrar junto da poesia um caminho mais propício para colocar questões
que ainda não puderam ser respondidas. Isso não quer dizer que Heidegger violenta a poesia
de Hölderlin para nela encontrar respostas a suas próprias indagações filosóficas. O que
Heidegger realiza é um diálogo com a poesia de Hölderlin, uma conversa entre o pensar e o
poetar.
Na introdução do livro Hinos de Hölderlin, obra que contém as primeiras
interpretações de Heidegger (2004, p.13) acerca da poesia de Hölderlin, o filósofo pontua a
importância do poeta suábio. “Hölderlin é um dos nossos maiores pensadores, isto é, o nosso
13
pensador com mais futuro, por ser o nosso maior poeta. A dedicação poética à sua poesia é
possível comoconfronto pensante com a Revelação do Ser que nela foi alcançada”.
2
Nesta
citação, Heidegger se mostra interessado no que a poesia de Hölderlin oferece ao caminho de
pensamento que busca o sentido do ser. Heidegger procura a poesia ela mesma e não
possíveis interpretações que possam ir além dela, que possam violentá-la em seu sentido.
No prefácio do livro Aclaraciones a la poesía de Hölderlin, as palavras de Heidegger
(2005, p.9) reiteram o que acabamos de colocar e dão pistas sobre o porquê dessa
aproximação: “As presentes Interpretações não pretendem ser uma contribuição à
investigação sobre história da literatura ou estética. Brotam diretamente de uma necessidade
do pensar”.
3
De acordo com a citação, o encontro com a poesia se deu a partir de uma
necessidade intrínseca ao próprio pensamento.
Vejamos algumas nuances da principal questão que marcou o pensamento de
Heidegger em toda sua trajetória como filósofo. Tal questão orientou de maneira significativa
seu pensar, e pode ser uma pista para entendermos sua aproximação de Hölderlin.
Para Heidegger, toda compreensão do ente se graças a uma pré-compreensão do
ser. Ou seja, para compreender um ente o pensamento realiza uma visão preliminar do ser
daquele ente. O pensamento que pensa o ser e o ente parece se mover dentro de um círculo, já
que ao mesmo tempo em que o sentido do ser se mostra, por um lado, como o que de mais
vago e vazio, por outro lado toda compreensão do ente pressupõe uma proximidade com o
seu ser.
O caminho que leva ao pensar do ser não é um caminho em linha reta, que ao
procurarmos o ente realizamos uma experiência anterior com seu ser. O ser se coloca desde
sempre como algo que nos é familiar e por isso não pode ser considerado uma meta a ser
alcançada pelo pensamento. O pensamento que pensa o ser deve se mover em círculo, ele
nunca alcança o ser, já que isso significaria o mesmo que considerá-lo como ente. O caminho
de pensamento do sentido do ser é na verdade uma “experiência do ser” que busca colher a
diferença entre ser e ente. Pensar o ser é colhê-lo na experiência da diferença entre ser e ente,
onde o ser é o “não ente”, o nada.
De acordo com Heidegger, toda a história da tradição metafísica pensou o ser como
ente e desse modo esqueceu de pensar a diferença entre ser e ente. Por essa razão, Heidegger
diz que a metafísica ocidental é a história do esquecimento do ser. A metafísica errou ao
2
HEIDEGGER, Martin. Hinos de Hölderlin. Lisboa: Piaget, 2004. p. 13.
3
HEIDEGGER, Martin. Aclaraciones a la poesía de Hölderlin. Madrid: Alianza Editorial, 2005. p. 9. (Tradução
nossa).
14
colocar o ente no lugar do ser, ao pensar o ser como algo que pode ser objetivado ou
subjetivado.
O que Heidegger propõe é uma superação da metafísica a partir dela mesma; a partir
da própria essência da metafísica buscar aquilo que ainda não foi dito, o indizível, que guarda
em si a possibilidade de qualquer dizer. O não dito funciona como uma reserva de sentido
para todo fundamento. É a partir dessa reserva que o que é transmitido pode chegar até nós.
Só o que ainda não foi dito pode vir a ser dito. O não dito é uma espécie de conexão que liga o
que ainda não foi dito a nós. Essa conexão é o que pode ser experimentado no caminho que
nos leva às coisas elas mesmas. Uma conexão difícil de ser experimentada, que pode ser
colhida no caminho em direção das coisas, num simples deixar as coisas serem o que são sem
aprisioná-las em significações.
O ser se consuma em seu “deixar-ser”, e não quando é pensado como ente ou como
algo escondido por detrás do ente. O ser é mistério, é aquilo que não pode ser dito ou
nomeado. Se fosse dito, o mistério deixaria de ser mistério e se tornaria algo revelado e não
mais seria algo indizível. O ser é mistério porque não pode ser dito, nomeado, apreendido em
conceito. Nenhuma palavra pode nomear o mistério que é o ser, porque tal mistério é
justamente aquilo que se encontra mais próximo do pensamento, é aquilo que nos faz pensar.
Ao mesmo tempo em que o ser se mostra como o que está mais próximo de nós é também o
mais distante, pois a proximidade nunca é pensada como tal.
A proximidade é esquecida, porque o homem pensa em seu lugar o ente em
detrimento do ser. É como quando uma coisa está tão próxima de nossos olhos que a visão se
torna embaçada e não conseguimos ver com clareza as linhas do objeto; vemos apenas um
uma imagem que parece borrada. Heidegger atenta para o fato de que com o ser acontece algo
de semelhante. Quando a coisa está tão próxima que nos embaça a visão, dela nos afastamos
para enxergá-la melhor. O erro do pensamento metafísico foi justamente o de não dar esse
passo atrás, o de querer objetivar o ser a qualquer custo. Desse modo, esqueceu-se que o ser é
aquilo que é desde sempre o que a nós se coloca como o mais próximo.
O pensamento calculador optou por colher o ser através da objetivação do ente.
Dessa forma, não percebeu que o ser deve ser colhido na medida entre distância e
proximidade. O passo atrás deve ser dado, para que, na distância, pensemos o ser nele mesmo
e não como outra coisa, como ente, por exemplo. Somente na dimensão que se abre entre o
homem que pensa o ser e o ser ele mesmo é possível experimentá-lo em seu dizer original.
O ser se recolhe a todo pensamento que tenta calculá-lo ou objetivá-lo. Sua dinâmica
é a de um mostrar-se ao mesmo tempo em que se oculta. Quando o ser é reconhecido como
15
ente oculta-se como ser mesmo e assim se preserva de qualquer tentativa de objetivação
calculadora.
Heidegger percebe a dinâmica do ser na poesia, e por isso esta tem para ele um
sentido ontológico. Na poesia, o mistério do ser pode ser colocado e experimentado, que a
palavra poética não esgota as possibilidades do dizer. Pelo contrário, a palavra poética
resguarda o ser em sua distância. A poesia preserva as coisas nelas mesmas ao resguardar a
distância, ao pensar a diferença ontológica como o lugar onde o sentido do ser deve ser
colocado. Assim, ela resguarda o ser como mistério. Na poesia, o ser é pensado como o que
de mais próximo e ao mesmo tempo o mais distante de nós. Isso acontece, porque nela é
possível pensar esse “entre” da proximidade e distância onde o ser se põe.
O próprio caminho de pensamento, realizado por Heidegger, impôs a necessidade de
uma recolocação da questão do sentido do ser. Essa recolocação ficou à cargo da poesia e do
que ela possibilita pensar.
As interpretações realizadas por Heidegger acerca da poesia de Hölderlin surgem
num momento muito importante para o pensamento do filósofo. É o momento da chamada
Kehre (virada) heideggeriana, ocorrida nos anos de 1930. Neste período, pontualmente
marcado pela conferência Sobre a essência da Verdade, lida pela primeira vez em 1930,
Heidegger realiza uma virada em seu pensamento. O sentido do ser continua sendo a principal
questão de sua filosofia, só que agora é buscado a partir de uma outra perspectiva.
A Kehre pode ser comparada a um desvio que a própria estrada nos impõe para
continuarmos no mesmo caminho. A busca por esse caminho alternativo promove o encontro
com Hölderlin e sua poesia.
Segundo Otto Pöggeler (2001, p.207), “o dizer poético de Hölderlin tornou-se
referência para um pensamento que busca experimentar a verdade do ser”.
4
A Kehre, assim
como a aproximação com a poesia de Hölderlin, foram exigências do próprio caminho de
pensamento de Heidegger.
Heidegger recorre à poesia porque encontra nela um solo mais fértil para pensar o ser
e sua verdade. Em seu livro, Pöggeler diz que Heidegger realiza um paralelo entre os poetas
trágicos e os arquitetos e artistas plásticos gregos. Os poetas souberam nomear em seu dizer o
essencial colocado em obra pelos artistas na construção dos templos: a verdade do ser. Logo,
porque Heidegger não se remete à poesia trágica e sim à poesia de lderlin? - pergunta
Pöggeler. Isso acontece porque, para Heidegger, o que os gregos experimentaram em sua
4
PÖGGELER, Otto. A via do pensamento de Martin Heidegger. Lisboa: Instituto Piaget, 2001. p. 207.
16
época não existe nos dias atuais, não pode ser experimentado com a mesma intensidade.
Segundo Pöggeler, a proximidade com o divino, proporcionada pelo dizer poético trágico se
extinguiu. Os deuses estão sumidos, evadiram-se, e com sua fuga o que resta aos mortais é
esperar seu retorno.
Para Hölderlin, a Germânia é a terra da volta dos deuses que partiram. Cabe aos
poetas, na espera pelo retorno dos deuses fugidios e porque correspondentes dos acenos
divinos, colocarem-se no “entre” deuses e homens. Postados entre deuses e homens os poetas
recebem os acenos dos deuses e os transmitem aos homens. Nos tempos modernos, nos quais
a dimensão do sagrado aparentemente se extinguiu, Hölderlin se apresenta como um poeta
singular. Ele canta a fuga dos deuses que partiram e a espera pela vinda dos deuses futuros.
Para Beda Allemann (1987, p.129), “a tentativa de Interpretações se caracteriza
melhor com a ajuda do termo que Heidegger ele mesmo escolheu: este de Diálogo”.
5
Um
diálogo pensante com a poesia é o que Heidegger propõe. No ensaio A linguagem na poesia,
presente na obra A caminho da linguagem, Heidegger (2005, p.28) dirá que:
O diálogo propriamente dito com a poesia de um poeta pode ser um diálogo
poético: a conversa poética entre poetas. Todavia, um diálogo do pensamento com
a poesia é também possível e de tempos em tempos até necessário porque ambos
encontram-se numa relação privilegiada, não obstante distinta, com a linguagem. A
conversa do pensamento com a poesia busca evocar a essência da linguagem para
que os mortais aprendam novamente a morar na linguagem.
6
Hölderlin é o escolhido porque, para Heidegger, ele realiza algo inédito ao cantar a
fuga dos deuses num tempo de indigência. A época vislumbrada é de luto sagrado e também
um tempo de penúria. O homem nem mesmo percebe que foi abandonado pelos deuses que se
evadiram. O poeta, conectado às agruras de seu tempo, canta os deuses que partiram e os que
ainda estão por vir.
Desde o final dos anos de 1920, Heidegger busca o sentido do ser através do que
chama de verdade do ser. Como vimos anteriormente, a partir desse momento se fez ouvir em
sua filosofia a denúncia de que o homem se esqueceu de pensar o ser em detrimento do ente.
Segundo Heidegger, a história da tradição metafísica pensou o ente e com isso achou
que estava pensando o ser. A metafísica esqueceu o ser e nem se deu conta disso, pois estava
pensando o ente em seu lugar. Por essa razão, Heidegger propõe a superação da metafísica.
5
ALLEMANN, Beda. Hölderlin et Heidegger. Presses Universitaires de France. Paris, 1987. p. 129. (Tradução
nossa).
6
HEIDEGGER, Martin. A caminho da linguagem. Vozes. Petrópolis, 2003. p. 28.
17
Uma superação desta tradição que nos foi legada e que guiou a maneira como o ser vem sendo
pensado no decorrer da história da tradição do pensamento ocidental.
Ao pensar o ser como algo que pudesse ser apreendido, como presença constante, a
metafísica renegou aquilo que de mais característico o ser possui. A metafísica não percebeu
que o ser se mostra e se esconde em épocas históricas distintas, e que isso faz parte da história
mesma do ser.
Tendo em vista essa dinâmica própria de manifestação do ser, a superação da
metafísica proposta por Heidegger deve ser realizada a partir da própria essência da
metafísica. A essência da metafísica é a história do esquecimento do ser. Visto isso, a
superação da metafísica deve ser realizada levando-se em conta essa característica própria do
ser: a de fazer-se ora como presença, ora como ausência.
O que Heidegger propõe não é demolir tudo que foi feito pela tradição aagora,
que o que foi pensado sobre o ser e como foi pensado faz parte da história mesma do ser.
Sobre isso Pöggeler (2001, p.208) diz que, “o pensamento, que experimenta o falhar da
verdade do ser como um acontecer dessa verdade, vê-se remetido para as palavras de
Hölderlin”.
7
Hölderlin soube como nenhum outro, segundo Heidegger, colher o significado do
ser em sua tonalidade principal.
Na busca pelo sentido do ser, dá-se a aproximação entre pensar e poetar. Estes
devem ser compreendidos a partir de um jogo no qual o pensar se mostra como o lugar de
salvaguarda da verdade do ser e a poesia como aquela que põe em obra a verdade do ser. No
diálogo entre pensamento e poesia Heidegger enxerga o lugar para se pensar o ser na sua
diferença com o ente. Este se constitui de um modo diverso daquele da metafísica, que sempre
pensou o ser a partir do ente.
A filosofia do ser, empreendida na analítica existencial de Ser e Tempo (1927),
precisava encontrar um lugar mais propício para suas indagações não respondidas. Heidegger
buscava uma linguagem mais adequada para se falar do ser, uma linguagem que não estivesse
calcada na metafísica. Para o pensador, a metafísica errou ao querer objetivar o ser através de
conceitos que empobrecem seu significado mais originário. Heidegger propõe a superação
da metafísica a partir de um novo modo de pensar o ser. Um esforço de pensamento que se dê
além da metafísica que no curso de sua história tratou do ser ora como presença constante ora
como esquecimento.
7
PÖGGELER, Otto. A via do pensamento de Martin Heidegger. Lisboa: Instituto Piaget, 2001. p. 208.
18
Em Sobre o Humanismo” (1949), carta em resposta às questões levantadas por Jean
Beaufret acerca do humanismo, Heidegger diz que um aprofundamento mais adequado sobre
o sentido do ser, livre de subjetivações, seria realizado na terceira seção da primeira parte de
Ser e Tempo, sob o título Tempo e Ser. Tal seção jamais veio a lume, em detrimento da
impossibilidade, naquele momento, de se desatrelar da linguagem da metafísica. Dentre as
perguntas feitas por Beaufret, Heidegger opta por tentar responder a seguinte: Como tornar a
dar sentido à palavra “humanismo”?
Logo no início da carta, Heidegger propõe uma reflexão sobre a essência do agir.
Segundo ele, ainda nos achamos distantes de um pensamento radical a respeito do agir. Para
nós, o agir é pensado como atrelado à idéia de utilidade. Agimos para e por alguma razão
ligada à utilidade. Ele nos adverte para o fato de que a essência do agir é, na verdade, o
consumar, e que “consumar significa: desdobrar alguma coisa até a plenitude de sua essência;
levá-la à plenitude, producere”.
8
Se o consumar é desdobrar algo até sua essência, o consumar
pode se dar em relação a algo que é. Somente “pode ser consumado, em seu sentido
próprio, aquilo que já é”.
9
E àquilo que já “é” desde sempre, chamamos o ser.
Heidegger diz que é no pensar que o ser tem acesso à linguagem. O pensar consuma
a relação entre ser e linguagem, entre ser e a essência do homem. O pensar oferece ao ser
aquilo que lhe foi confiado pelo próprio ser. O pensar leva à plenitude da consumação aquilo
que o próprio ser lhe concedeu: a Linguagem.
Um trecho importante da carta e que ficou muito conhecido foi o seguinte: “A
linguagem é a casa do ser. Nesta habitação do ser mora o homem. Os pensadores e os poetas
são os guardas desta habitação. A guarda que exercem é o consumar a manifestação do ser, na
medida em que a levam à linguagem e nela a conservam”.
10
Nesta citação, a linguagem
aparece como aquela que serve de abrigo ao ser. Neste abrigo o homem é acolhido pelo ser, o
homem “mora” no ser. Logo, se a linguagem é a casa do ser, ela o precede. Portanto, a
linguagem não pode pertencer ao homem. O que acontece é justamente o contrário, o homem
é que pertence à linguagem.
No trecho acima, Heidegger nomeia também a função dos poetas e pensadores
colocando os dois lado a lado. Poetas e pensadores são os guardas da habitação do ser, os
guardas da linguagem. Estes são aqueles que fazem a guarda da morada do ser, para que sua
manifestação seja sempre consumada, para que o ser chegue à sua essência plena. Nessa
8
HEIDEGGER, Martin. Sobre o Humanismo. In: ______. Conferências e Escritos Filosóficos. São Paulo: Abril
Cultural, 1979. p. 149
9
Ibid. p. 149.
10
Ibid. p. 149.
19
guarda eles conservam a essência do ser na linguagem, e como linguagem e nela preservam
tal manifestação. Heidegger realiza um paralelo entre poesia e pensamento ao indicar a
vizinhança entre poetas e pensadores. Vejamos então, o que significa “pensar” para nosso
filósofo.
O pensar, para Heidegger, é destituído de utilidade. O pensar somente é ação
enquanto “se exerce como pensar”.
11
O agir do pensar é “o mais singelo e, ao mesmo tempo,
o mais elevado, porque interessa à relação do ser com o homem”.
12
Só no ser o agir do pensar
é eficaz. No ente ele se apenas como uma extensão daquilo que no ser está fundado,
fundamentado. A eficácia do pensar funda-se no ser e, no entanto, se alastra, se estende sobre
o ente.
O pensar é requisitado pelo ser para que a verdade do ser aconteça nele como pensar.
Ele, o pensar, consuma o apelo do ser para que a sua verdade seja dita como e através do
pensar. O ser deixa que sua verdade seja manifestada pelo pensar e o pensar consuma esse
deixar. Daí a afirmação de Heidegger (1979, p.149): “Pensar é l’engagement par l’Être pour
l’Être”.
13
Ou seja, pensar é o engajamento pelo ser para o ser. O pensar é “l’engagement dans
l’action”
14
, engajamento na ação. Heidegger destaca essa frase ao dizer que o pensar não é
“apenas” o engajamento na ação. Pensar “é” engajamento na ação através do ente no
efetivamente real na situação presente. O pensar é o engajamento através e a favor da verdade
do ser. Pensar é antes de tudo o pensar do ser. A história da verdade do ser é algo que não se
no passado, pelo contrário, é algo que ainda não se deu, é algo que está por vir. Por essa
razão, exige engajamento.
Para pensar o ser, em sua iminência de um acontecer constante, é preciso livrar-se do
pensar técnico. Desde Platão e Aristóteles o pensar vem sendo interpretado tecnicamente. A
filosofia adotou a postura de aproximar o pensar e o conhecer, da práxis e da teoria para dar-
lhe autonomia diante do agir. A filosofia desde sempre tenta se justificar perante as
“ciências”, procurando se colocar como uma ciência. Só que, ao fazer isso, a filosofia
abandona a essência do pensar. Assim, o ser é abandonado, não é mais elemento do pensar.
Assinala Heidegger (1979, p.150)
Dito de maneira simples, o pensar é o pensar do ser. O genitivo diz duas coisas. O
pensar é, ao mesmo tempo, pensar do ser na medida em que o pensar, pertencendo
11
HEIDEGGER, Martin. Sobre o Humanismo. In: ______. Conferências e Escritos Filosóficos. São Paulo: Abril
Cultural, 1979. p. 149.
12
Ibid. p. 149.
13
Ibid. p. 149.
14
Ibid. p. 149.
20
ao ser, escuta o ser. Escutando o ser e a ele pertencendo, o ser é aquilo que ele é,
conforme sua origem essencial.
15
A essência do ser é a de ser escutado pelo pensar que a ele pertence. Pensar é quando
o ser cumpre seu destino essencial, original, quando ele pensa. O pensar já é desde sempre o
pensar do ser, ele é em seu sentido mais essencial quando é capaz de deixar-ser, ou seja,
quando pensa o ser.
Querer é a essência do poder e poder é deixar que algo seja, é deixar-ser, é deixar que
algo seja a partir de si mesmo, a partir de sua proveniência. O poder é o que é possível e esse
possível “repousa no querer”. Então, se o ser pode e quer, é o “pos-sível”. O ser é “força
silenciosa” do poder do possível. O próprio ser é poder, que através de seu querer impera
sobre o pensar, sobre a essência do homem e sobre sua relação com o ser. Poder algo é
“guardá-lo em sua essência”.
16
Se o pensar não conserva seu elemento, qual seja, pensar o ser
como possibilidade, este chega ao fim; como compensação da perda de sair de seu elemento
valoriza-se como técnica. A filosofia passa a ser uma simples explicação das causas últimas,
mais uma ocupação dentre outras, e assim, diz Heidegger, aparecem os “ismos”.
Nos tempos modernos, com a ditadura da opinião pública, todo mundo tem algo
novo a dizer. A existência privada contrai-se negando o que é público. Tudo é objetivado. A
existência privada passa a ser subjugada pela opinião pública, alimentando-se dela, do que ela
julga como domínio público privado.
No domínio público da subjetividade (opinião pública), a relação palavra - ser
permanece oculta. Para pensar a verdade do ser, a reflexão sobre a essência da linguagem
deve atingir outro nível que não seja apenas filosofia da linguagem. Por isso, Ser e Tempo
pergunta: o que a linguagem é em cada situação?
O esvaziamento da linguagem ameaça a essência do homem. A linguagem, sob o
domínio da metafísica moderna da subjetividade, se extravia de seu elemento e se abandona a
puro instrumento de dominação sobre o ente. “A linguagem recusa-nos sua essência: isto é,
que ela é a casa da verdade do ser”.
17
A verdade do ser não é algo que podemos calcular ou
demonstrar cientificamente e objetivamente, ao passo que entendê-la como algo que não
precisa ser explicado também não se constitui numa solução. O mistério não é isso. Não se
resolve a questão sobre a verdade do ser se o concebemos como algo que pode ser explicado a
15
HEIDEGGER, Martin. Sobre o Humanismo. In: _____. Conferências e Escritos Filosóficos. São Paulo: Abril
Cultural, 1979. p. 150.
16
Ibid. p. 151.
17
Ibid. p. 152.
21
partir do entendimento de suas causas e razões explicativas. Dizer que o ser é algo que não
pode ser explicado não responde às questões levantadas por um pensamento que busca a
verdade do ser.
A metafísica, e todo humanismo é metafísica, pensa a essência do homem,
conscientemente ou não, a partir do ente, e não da verdade do ser. O humanismo não é capaz
de pensar o destino do homem na proximidade com o ser. “Hölderlin, ao contrário, não faz
parte do ‘humanismo’, e isto, pelo fato de pensar o destino da essência do homem mais
radicalmente do que este ‘humanismo’ é capaz”.
18
A metafísica representa o ente em seu ser e
pensa assim o ser do ente, mas não pensa a diferença entre ser e ente. Ela não pensa a verdade
do ser mesmo e nem o modo como a essência do homem pertence ao ser.
Para Heidegger, o poetar de Hölderlin se encontra desatrelado do pensamento
metafísico e de qualquer humanismo. Por essa razão, o sagrado, colhido na poesia de
Hölderlin, se mostra como possibilidade de pensar tanto a essência do homem quanto o divino
a partir da “verdade do ser”, que em sua dinâmica é jogo entre velamento e revelamento.
O que Heidegger entende por “verdade do ser” pode ser mais bem compreendido se
analisarmos o que significa a palavra “verdade” para o pensamento heideggeriano. A partir
dessa palavra, Heidegger enxerga a própria dinâmica de acontecimento do ser.
1.2 Verdade
O texto Sobre a Essência da verdade - fruto de conferência pronunciada repetidas
vezes nos anos de 1930, e publicado pela primeira vez em língua alemã no ano de 1943 -
marca de maneira pontual a Kehre heideggeriana. Neste, que é considerado um de seus textos
mais importantes, Heidegger trata da verdade de maneira distinta da que tinha realizado no
parágrafo 44 do sexto capítulo da parte I de Ser e Tempo. Ele separa a noção de verdade do
contexto teológico que esta havia adquirido ao longo da história do pensamento metafísico.
Isto acaba por afastá-la das teorias do conhecimento e dos pré-juízos psicológicos. Heidegger
rejeita a concepção de verdade como adequação do intelecto com a coisa.
18
HEIDEGGER, Martin. Sobre o Humanismo. In: _____. Conferências e Escritos Filosóficos. São Paulo: Abril
Cultural, 1979.p. 153.
22
Primeiramente, é necessário dizer que a compreensão da noção de verdade no
pensamento heideggeriano necessita de um remetimento ao termo grego alétheia. Em Ser e
Tempo, Heidegger traduz alétheia como descoberta ou descerramento. Somente a partir dos
anos 30, após seu contato com os pensadores gregos, é que Heidegger irá pensar a verdade a
partir do jogo entre velamento e revelamento.
A verdade assim compreendida, em sua essência originária como alétheia, não é o
mesmo que concordância ou adequação do objeto com aquilo que se fala sobre ele. Em Sobre
a Essência da Verdade, a verdade aparece como o jogo que se estabelece entre velamento e
revelamento. Neste jogo, o revelamento é o trazer à luz aquilo que se mantinha oculto nas
sombras do velamento. A verdade, assim compreendida, traduz-se como um acontecer
histórico.
Em seu pensamento, Heidegger pontua uma diferença importante entre a história
entendida como historicidade e a história como historiografia. Heidegger não compreende a
história como Historie - que se refere aos fatos históricos, e sim como Geschichte - história
como estruturação dos acontecimentos. Nesse sentido, as datas são irrelevantes, pois o tempo
não é contado como uma sucessão de “agoras”, mas como tempo originário. Neste, passado,
presente e futuro se coopertencem.
Lançando mão da hermenêutica, Heidegger redimensiona a noção grega de alétheia.
Ele faz isso, através de uma reflexão etimológico-filosófica própria, dando a essa palavra uma
dimensão histórica. Em Sobre a Essência da Verdade, Heidegger pensa a essência da verdade
como liberdade e esta como o próprio acontecimento do tempo, onde os três êxtases (passado,
presente e futuro) se entrelaçam.
A palavra alétheia advém de alethé, onde o alfa privativo (α a) expressa uma
negação e o termo lethé quer dizer velamento. Logo, alethé significa o não-velado, o
descoberto. Alétheia marca uma tensão entre elementos que não são contrários, no sentido de
opostos um ao outro, uma tensão entre aquilo que se vela e aquilo que é desvelado. Nesse
jogo, no qual esses elementos se tensionam, o que se vela é iluminado pelo desvelado e o que
vem à luz no desvelamento é uma ausência. Para Heidegger, velamento e desvelamento são os
modos de o ser e a verdade se darem na história. Em épocas históricas distintas, o ser se deu
ora como velado, ora como revelado. O que importa, para compreendermos a verdade em
Heidegger, é compreendermos esse jogo entre velamento e revelamento.
Em Sobre a Essência da Verdade Heidegger irá interpretar o alfa privativo do termo
alétheia a partir dos fenômenos da dissimulação e do erro. A dissimulação está implícita na
aparência, desde a qual o tempo se mostra e se deixa experienciar como essa ou aquela época
23
histórica (ora como época de velamento ora como época de desvelamento do ser, da verdade
do ser); e o erro oriundo da ilusão, erro gerado pela aparência de que a aparência é mais do
que aquilo que ela de fato é.
Contudo, Heidegger ressalta um aspecto positivo desse erro, presente na essência da
verdade, ao interpretá-lo como errância: essa se mostra como o caminho que a um tempo
nos desvia e conduz ao sentido do ser. A dissimulação nos conduz à errância e esses dois
modos de acontecimento da verdade estão resguardados pela poesia.
O discurso poético é capaz de nomear a verdade do ser, a essência mesma da
verdade, que é a própria abertura na qual vem à tona o acontecer do ser historicamente. Se o
aberto é o que abre e põe na abertura a essência da verdade, a alétheia faz parte dessa mesma
essência: o velamento, a não-verdade. A poesia também conta da não-verdade, pensando
tal encobrimento como o mistério. Segundo Heidegger, o mistério é um modo de a linguagem
poética desvelar ao mesmo tempo em que vela. Esse modo poético de velamento /
revelamento, preserva o mistério do esgotamento, do empobrecimento gerado por uma
linguagem inadequada.
A poesia “ela aqui justamente nada deve exprimir, mas sim deixar por dizer o que
não pode ser dito, nomeadamente, no e pelo seu dizer”.
19
A poesia resguarda o mistério do ser
em seu encobrimento, ela conserva, ela protege, ela encobre o ser dissimulando-o. Um
revelar-se do ser que se dá como dissimulação conservadora, como mistério.
A linguagem da poesia é por excelência, aquela que resguarda a verdade do ser.
Dessa forma, é preciso esclarecer, nesse momento, de que modo Heidegger entende a
linguagem e mais especificamente a linguagem poética.
1.3 Linguagem e Poesia
No § 34 do Capítulo 5 da Parte I de Ser e Tempo, Heidegger nos fala acerca do termo
Linguagem. Segundo Heidegger, a linguagem faz parte da existência do homem como ser-no-
mundo. O homem, desde sempre, está lançado numa compreensão do mundo passível de
diferentes interpretações. A maneira de o homem articular a compreensão que ele tem do
19
HEIDEGGER, Martin. Hinos de Hölderlin. Lisboa: Piaget, 2004. p.115-116.
24
mundo (das coisas, dos outros, dele mesmo e das relações que se estabelecem entre esses
elementos) é o discurso.
Mas o que é o discurso? Discurso é a maneira que o ser possui de articular sua
compreensão de mundo. Pela palavra, o homem demonstra sua compreensão, significado
às coisas e a si mesmo. Entretanto, segundo Heidegger, as palavras não são dotadas de
significados. Com a palavra vem à tona o significado que as coisas possuíam antes mesmo
da articulação do discurso. Cada coisa possui seu significado e desse significado a palavra
brota.
Para Heidegger (2001, p.219), “a linguagem é o pronunciamento do discurso”
20
, o
lugar ontológico do discurso. O discurso acontece na linguagem porque o homem está desde
sempre lançado no mundo e por isso depende desse mundo. Duas são as possibilidades
constitutivas do discurso. São elas: o silêncio e a escuta.
Para que possamos compreender algo, é preciso que escutemos bem aquilo que está
sendo dito. A escuta é uma possibilidade que o homem possui de compreender o discurso. Ela
é inerente ao próprio discurso. Por isso, a escuta se faz primordial para a compreensão do
discurso. Escutar é estar aberto à fala do mundo. Ao contrário daquele que nunca se cala,
sabemos que melhor entende aquele que sabe silenciar e ouvir a fala do outro. Ouvir não é
apenas a capacidade de distinguir sons e ruídos, ouvir é escutar e compreender.
O silêncio é uma outra possibilidade constitutiva do discurso. Silenciar é próprio
daquele que tem algo a dizer. Segundo Heidegger, melhor compreende aquele que silencia no
discurso do que aquele que nunca perde a palavra. Falar em demasia sobre determinado
assunto não quer dizer que aquele que fala compreende melhor do que os outros. E ainda,
silenciar não é simplesmente ficar mudo. A mudez é a possibilidade da fala, quem é
emudecido nunca pode silenciar. Aquele que pouco fala também não pode silenciar, pois
silenciamos diante da fala.
O silêncio acontece num discurso autêntico. Logo, está no silêncio aquele que
se encontra numa “abertura”, diz Heidegger. A abertura na possibilidade de calar-se diante da
falação. Somente silencia aquele que não cai no discurso vazio e repetitivo do falatório.
Escuta e silêncio são maneiras autênticas de compreensão da linguagem, enquanto o falatório
é um modo inautêntico.
20
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. São Paulo: Vozes, 2001.V. I. p.219.
25
De modo mais imediato e cotidiano, o homem está na linguagem de maneira
inautêntica, modo esse que irá traduzir-se no que Heidegger chama de falatório. O falatório é
abordado no parágrafo 35 do Capítulo 5 da parte I de Ser e Tempo, no qual é descrito como
um falar acerca de tudo sem se apropriar de nada.
Heidegger diz que o fenômeno do falatório causa uma compreensão desarraigada do
homem em relação ao mundo no qual está lançado. Em meio ao falatório, o homem não tem
uma relação autêntica com as coisas e consigo mesmo, suas relações são sempre superficiais.
Por outro lado, estar na linguagem de forma autêntica significa compreender o
mundo visceralmente. Isto significa compreender o mundo não desde esse ou aquele discurso
articulado e pronunciado, mas compreendê-lo como algo que deve ser sempre de novo
realizado. Assim compreendido, o mundo é visto como um horizonte no qual devemos
sempre novamente nos lançar; para que assim possamos a cada vez realizar essa ou aquela
possibilidade de ser.
Compreender o mundo dessa forma significa estar na esfera mais própria da
linguagem. Ou seja, estar no seu cerne, que é a poesia. Essa compreensão da linguagem
traduz-se sempre num modo privilegiado de estar no mundo, que é o modo do poeta e do
pensador. Esses são aqueles para os quais nada de pronto, mas para que tudo se revela
como uma tarefa a ser realizada. A palavra, quer do poeta, quer do pensador, deve sempre
revelar o que ainda se encontra encoberto, o significado que ainda está por se manifestar. Tal
palavra se mostra como o próprio resguardo da poesia e diz, a cada pronunciamento, o
próprio acontecer do mundo.
Em Ser e Tempo, poucas são as referências que Heidegger faz à linguagem e mais
escassas ainda as reflexões sobre a poesia. Este fato contrasta em demasia com os escritos
posteriores. Como vimos acima, a linguagem aparece na obra de 1927, como um dos
existenciais do ser-aí. Em primeiro lugar, o homem se encontra lançado no mundo e lidando
com as coisas do mundo, e só num segundo momento a linguagem acontece através do
discurso.
Este posicionamento diferencia-se bastante do papel que a linguagem adquire a
partir dos anos 30, momento no qual ela irá ser identificada como aquilo que se antes
mesmo de o homem ter contato com as coisas do mundo. A linguagem, nesses escritos, é
pensada a partir de sua essência, que é a poesia. E a poesia é pensada como a própria maneira
de o homem existir no mundo.
26
Nos escritos posteriores a Ser e Tempo, a poesia assume um papel vital para o
entendimento do sentido do ser. Ela deixa de ser mais uma entre as outras possibilidades da
linguagem e se torna a essência mesma da linguagem.
Para complementar nossa análise acerca da linguagem, vamos buscar em outros
textos o que o filósofo diz a respeito desse tema. As interpretações da poesia de Hölderlin, e
obras do mesmo período, possuem passagens que poderão nos esclarecer acerca da linguagem
e da poesia.
O primeiro passo será dado pela análise de alguns momentos do primeiro texto que
Heidegger publicou sobre os poemas de Hölderlin. Salientamos que uma análise mais
detalhada sobre as interpretações realizadas por Heidegger acerca do sagrado nos hinos
Germânia e Reno, presentes em Hinos de Hölderlin, será feita no capítulo dois de nosso
trabalho.
Nesse momento do trabalho interessa apenas o que Heidegger realiza logo no início
do livro, ou seja, uma preparação para a primeira aproximação com a poesia de Hölderlin.
Nessa preparação, Heidegger introduz temas pertinentes ao nosso Capítulo I, tais como: o que
ele entende com as palavras poesia e linguagem e o caráter peculiar da tarefa do poeta, mais
especificamente Hölderlin.
O primeiro texto de Heidegger sobre a poesia de Hölderlin ganhou o tulo Hinos de
Hölderlin, e foi publicado em língua alemã no ano de 1934. Nesse texto, fruto de um curso
ministrado pelo filósofo no semestre de inverno de 1934/35, Heidegger interpreta dois dos
grandes hinos do poeta suábio, Germânia e Reno. Esta obra se apresenta como uma
aproximação cautelosa de Heidegger com a poesia de Hölderlin. Tal atitude de Heidegger
demonstra uma preocupação em preparar o terreno para um aprofundamento posterior. Esta
cautela é resultado de dois fatores: esta é a primeira aproximação com a obra de Hölderlin;
Heidegger evita submeter a poesia a dissecações calculadoras, evita reduzi-la a conceitos.
No primeiro capítulo dos “Hinos”, Heidegger discute a relação que se estabelece
entre poesia e linguagem. A despeito das interpretações pormenorizadas que fez de outros
hinos de Hölderlin, com Germânia ele procura uma visão mais geral da obra do poeta. O que
interessa ao filósofo é a posição de Hölderlin em relação à poesia, mais precisamente à
questão da dimensão poética. Ele procura caracterizar a disposição fundamental na qual se
encontra o poeta.
Heidegger diz que é preciso saber primeiramente o que é a poesia para que
possamos falar sobre ela a partir do poema. Um olhar externo diria que o poema é a passagem
27
de conteúdo e forma para outra coisa, diferente disso, que seria a poesia. O poema seria então,
aquilo que nos é “palpável”, enquanto a poesia é algo de outro.
Heidegger, no entanto, opta por dizer antes de tudo o que não é a poesia. Ele discorda
da idéia corrente de poesia como lugar onde o poeta através de sua imaginação, poetiza suas
vivências interiores e exteriores. Nessa definição de poesia, o poeta é aquele que através da
representação simbólica, aprofunda pelo pensamento as vivências e as poetiza.
A poesia também não é mais uma dentre as funções biológicas do homem. Já a
sentença que define a poesia como a expressão cultural de um povo diz tudo e não diz nada ao
mesmo tempo, que muitas outras coisas podem ser consideradas também como expressão
da alma cultural de um povo. Ambas as definições derivam-se do modo de pensar a poesia
como expressão da alma e vivência humanas. Elas nos afastam da essência, ao tratarem da
poesia como um objeto a ser definido dentre tantos outros.
A poesia, entendida como expressão da alma humana é concebida a partir do homem,
e não dela mesma. Segundo Heidegger, a poesia é um fenômeno e não uma expressão de
outra coisa que estaria por detrás dela, no caso a alma humana. A poesia é tudo isso que foi
enunciado pelas definições anteriores, mas nelas não se resume. Ela é isso e mais alguma
coisa que em tais definições não pode ser experimentado, que estas o nos aproximam da
essência da poesia.
Heidegger (2004, p.37) pensa a poesia, a partir da palavra Dichten, poetar. Tal
palavra deriva de um verbo do antigo alto-alemão tihtôn, que está ligado com o latino dictare,
dizer. Dictare e tihtôn possuem a mesma raiz da palavra grega deiknymi, “que significa
mostrar, tornar algo visível, revelar algo, não num sentido geral, mas sim sob a forma de uma
indicação particular”
21
. A reflexão etimológica da palavra Dichten, possibilita entender que o
poetar não é algo a ser definido num acabamento e fechamento, mas algo que indica um
caminho, uma revelação indicadora.
Compreende-se melhor o poetizar de Hölderlin se ele for entendido no sentido de
uma revelação indicadora. Por essa razão, é que Heidegger chama Hölderlin de o poeta do
poeta. Em muitas de suas obras, Hölderlin poetiza sua preocupação com o fazer poético e com
a tarefa do poeta. Como quando em dia de feriado..., é, por exemplo, um dos únicos poemas
nos quais Hölderlin anuncia explicitamente a tarefa do poeta. Neste poema, o poeta é aquele
que se encontra de cabeça descoberta na espera pelos raios divinos. Ele recebe os raios e os
converte em linguagem que possa ser transmitida ao povo.
21
HEIDEGGER, Martin. Hinos de Hölderlin. Lisboa: Piaget, 2004. p. 37.
28
O poeta não é aquele que vive a divagar em meio a suas vivências interiores,
apartado de todo o resto e centrado em si mesmo ou em seu fazer. Ao poeta cabe suportar
os raios dos deuses que o atingem e transformá-los em palavra acessível ao povo.
Para Heidegger (2004, p.38), “o ser-aí não é senão o estar colocado à mercê do poder
esmagador do ser”.
22
A linguagem dos deuses se em forma de raios que atingem o poeta.
Este se encontra colocado debaixo desses raios, suportando uma tempestade. É desse modo
que os deuses se revelam aos homens. A poesia é o transmitir desses raios ao povo, é o fazer
com que o povo se aperceba que os deuses estão a acenar.
Acenar é mais do que sinalizar ou apontar. O que se evidencia no acenar não é
somente aquele que acena. No acenar, chama-se atenção para a proximidade entre o que se
acena e quem recebe o aceno. No acenar dos deuses evidencia-se o “entre” deuses e homens.
Os deuses são acenos, eles são enquanto acenos e se assim o fazem é porque são permanentes.
Evidenciam-se desse modo, duas coisas: o papel que o poeta ocupa como mediador e
o fato de que é nesse “entre” que o que é permanente se dá. A poesia funda o lugar (entre) no
qual o ser se dá, porque ela funda o que é permanente. O poeta é o fundador do ser através de
sua poesia.
Linguagem e poesia estão intimamente ligadas, de modo que a linguagem é, para
Heidegger em sua essência poesia. E se a linguagem é o lugar onde o ente se como ente, a
poesia como essência da linguagem é o mais originário de todos os dizeres poéticos.
Vejamos, mais de perto, o papel do poeta nessa dinâmica de experiência com a
manifestação do sagrado. Nossos olhos não se voltam à poesia de um poeta qualquer, mas
àquele que foi chamado por Heidegger de “o poeta do poeta”.
1.4 Hölderlin: o poeta do poeta
O texto “Hölderlin e a essência da poesia”
23
é fruto de conferência pronunciada por
Heidegger pela primeira vez em abril de 1936 na cidade de Roma.
22
HEIDEGGER, Martin. Hinos de Hölderlin. Lisboa: Piaget, 2004. p. 38.
23
No original alemão, presente nas obras completas de Heidegger, o título desta conferência é Hölderlin und
das Wesen der Dichtung.
Utilizamos em nossa pesquisa uma tradução espanhola de 2005, realizada por Helena
Cortés e Arturo Leyte, publicada no livro Aclaraciones a la poesía de Hölderlin pela Alianza Editorial com o
título Hölderlin y la esencia de la poesia.
29
No início do texto, Heidegger realiza uma reflexão acerca do porquê de sua escolha
pelo poeta Hölderlin para falar sobre a essência da poesia, em detrimento de outros poetas
importantes, tais como: Homero, Sófocles, Virgílio, Dante, Shakespeare ou Goethe.
Segundo Heidegger, também nas obras dos poetas citados acima se realiza a essência
da poesia. Heidegger coloca uma série de perguntas: porque escolher justamente Hölderlin,
um poeta que teve sua vida interrompida prematuramente? Porque escolher Hölderlin se
procuramos a essência universal da poesia e o universal pode ser descoberto se
compararmos o maior e mais variado número possível de obras?
Para Heidegger, se seguirmos essa linha de pensamento a poesia de Hölderlin se
coloca como mais uma dentre tantas outras obras poéticas e nesse sentido não pode ser
tomada em particular para se falar da essência de uma coisa que se dá de maneira geral. Dessa
forma, prossegue Heidegger, se continuarmos com a idéia de que a essência da poesia deve
ser entendida como um conceito geral que valha para toda a poesia, nossa investigação
termina antes de começar. Um conceito geral de essência da poesia que valha para todas as
poesias em suas particularidades acaba por reunir o especial que existe em cada uma delas
debaixo de um conceito indiferente. Um conceito desse porte nunca colhe o essencial da
essência.
Heidegger (2005, p.38) diz que a escolha por Hölderlin se pelo fato desse poeta
ser aquele que de modo especial poetiza o próprio fazer poético, Hölderlin é portanto, “o
poeta do poeta”.
Não elegemos Hölderlin porque sua obra, entre muitas outras, realiza a essência
geral da poesia, senão unicamente porque a poesia de Hölderlin está sustentada
pelo destino e a determinação poética de poetizar propriamente a essência da
poesia. Para nós, Hölderlin é em sentido eminente o poeta do poeta, e por isso é o
que se situa na decisão.
24
Justifica-se assim a sua escolha: Hölderlin é para Heidegger o poeta que em sua
poesia está preocupado com o fazer poético, com a essência mesma da poesia. A decisão, da
qual fala Heidegger na citação acima, é a de suportar essa essência como destino. Hölderlin é
o poeta do poeta porque a preocupação maior de seu fazer poético se atém àquilo de mais
originário que a poesia alcança: a revelação do ser.
Em Hinos de Hölderlin, Heidegger (2004, p.206) diz:
24
HEIDEGGER, Martin. Aclaraciones a la poesía de Hölderlin. Madrid: Alianza Editorial, 2005. p. 38.
(Tradução nossa).
30
Na verdade, Hölderlin não é o poeta do poeta por refletir posteriormente sobre si
próprio e o seu poetizar se transformar na temática de si próprio, mas sim porque
vai buscar a poesia à sua essência originária e, com ela, a si próprio, e porque faz a
experiência do seu poder, e, instaurando-a de novo, relança-a para do seu tempo.
Hölderlin não poetiza o poeta por falta de outras temáticas mais dignas para a sua
criação, mas sim devido ao excesso de necessidade de voltar a fundar, antes de
tudo o mais, o ser-
25
sobre a poesia.
26
Para Heidegger, duas questões podem surgir devido à “particularidade” que ele
enxerga em Hölderlin: fazer poesia sobre poesia não demonstraria que ao poeta lhe falta tema
mais relevante, lhe falta o que alguns chamam de inspiração? Ou seria narcisismo, ou
decadência ou uma “reflexão exagerada” por parte do poeta?
Essas questões aparecem respondidas na citação que acabamos de fazer retirada de
Hinos de Hölderlin, de 1934/35. Nesta obra elas são indagações preliminares que introduzem
o pensamento na questão do sagrado presente nos hinos. Em Hölderlin e a essência da poesia,
de 1936, elas aparecem como o que impulsiona o pensamento de Heidegger acerca da poesia
de Hölderlin.
Para responder a essas perguntas, Heidegger propõe a análise de cinco sentenças de
Hölderlin e acredita que a partir do caminho construído nessa reflexão poderemos chegar à
essência da poesia.
A primeira das sentenças colocadas por Heidegger (2005, p.39) foi retirada de uma
carta que Hölderlin escreveu a sua mãe, datada de Janeiro do ano de 1799. Na carta, o poeta
suábio diz que, fazer poesia é “a mais inocente de todas as ocupações”.
27
Para Heidegger, essa
frase de Hölderlin coloca a poesia como um jogo inocente, onde o poeta aparece como um
inventor de imagens. Um inventor que se encontra preso a esse mundo imaginário. A palavra
“inocente” nos faz entender a poesia como um fazer pouco rio, como diz Heidegger, um
fazer inofensivo, um sonho, irrealidade. Inofensivo no sentido de ineficaz, um fazer inútil que
não tem a intenção de interferir ou transformar aquilo que chamamos de mundo real. A
palavra poética se mostra nessa sentença como a coisa mais inofensiva e ineficaz de todas, e
isso não nos ajudou a pensar a essência da poesia. Uma coisa é certa, a partir dessa sentença já
sabemos onde buscá-la: na linguagem, a matéria das obras poéticas.
25
O tradutor da obra Hinos de lderlin, para o português de Portugal traduz Dasein por ser-aí. Preferimos, no
entanto, manter na redação de nosso texto o termo em alemão. Nossa escolha procura evitar o peso metafísico
que sobrecarrega a palavra quando ela é traduzida por ser-aí, presença e existência. Apesar disso, nas citações,
manteremos a tradução sugerida pelo autor.
26
HEIDEGGER, Martin. Hinos de Hölderlin. Piaget. Lisboa, 2004. p. 206.
27
HEIDEGGER, Martin. Hölderlin e a essência da poesia. In: _____. Aclaraciones a la poesía de Hölderlin.
Madrid: Alianza Editorial, 2005. p. 39. (Tradução nossa).
31
A segunda sentença aparece num fragmento de 1800, onde o poeta volta a dizer que
“a linguagem é a mais inocente de todas as ocupações”, e acrescenta: “o mais perigoso de
todos os bens”.
28
Diante disso, Heidegger pergunta: de que maneira a palavra poética pode ser
ao mesmo tempo a mais inocente das tarefas e o mais perigoso dos bens?
Primeiramente, diz Heidegger, precisamos saber que esse fragmento de Hölderlin
encontra-se em um projeto. Tal projeto é uma espécie de esboço para uma poesia. Nesta
poesia, o poeta alemão pretende dizer quem é o homem em comparação com os demais seres
da natureza. O fragmento começa distinguindo o homem dos demais animais e os animais das
plantas. A primeira frase do fragmento diz: “Mas o homem habita em cabanas”.
29
Heidegger (2005, p.40) introduz então a inevitável pergunta diante do que foi dito
imediatamente acima e que aparece no próprio fragmento de Hölderlin, “quem é o homem?”.
Em seguida formula sua resposta: “o homem é esse que é precisamente no testemunho de sua
própria existência”.
30
Para Heidegger, a palavra “testemunhar”, carrega em si duas ações, a de
declarar e a de manter a declaração feita. O homem é o único ente, entre os demais, capaz de
pensar a sua própria existência como homem. E é pensando-a que ele é o que é, que se faz
homem.
Nessa passagem do texto, fica claro que, para o pensamento heideggeriano, o
homem se constitui como tal por ser capaz de dar testemunho acerca de sua própria realidade
de homem como Dasein. Cabe ao homem, testemunhar sua condição de pertença à terra. Tal
pertença consiste no fato de que (...) o homem é o herdeiro e o aprendiz de todas as coisas.
Mas as coisas se mantêm em combate. O que mantém as coisas separadas e em conflito, mas
que por isso mesmo também as agrupa e reúne, é o que Hölderlin chama a ‘intimidade’”.
31
A
pertença do homem à terra é assegurada pelo fato de ser ele o aprendiz e herdeiro de todas as
coisas. O homem é o único capaz de indagar acerca de sua própria existência, de sua pertença
à terra. As coisas que o homem possui como herdeiro se encontram em combate, e o que isso
pode significar? O que se encontra em combate nem por isso está separado, desunido. As
coisas se reúnem na intimidade do combate. A criação ou destruição do mundo é o lugar onde
o homem dá testemunho de sua pertença a essa intimidade.
Testemunhar essa pertença íntima é, para Heidegger (2005, p.41), o ato de criar um
mundo, fazendo-o surgir ou até mesmo destruindo-o. O homem, ao dar testemunho de sua
28
HEIDEGGER, Martin. Hölderlin e a essência da poesia. In: _____. Aclaraciones a la poesía de Hölderlin.
Madrid: Alianza Editorial, 2005. p. 40. (Tradução nossa).
29
Ibid. p. 40. (Tradução nossa).
30
Ibid. p. 40. (Tradução nossa).
31
Ibid. p. 40-41. (Tradução nossa).
32
própria realidade, realizando assim o que faz dele homem, o que o torna diferente das plantas
e dos animais, testemunho de sua própria liberdade. A liberdade que tem para decidir suas
ações, liberdade de criar ou destruir. Ou seja, liberdade de realizar-se como homem. Uma
liberdade que ao mesmo tempo é necessidade, já que na realização desse testemunho o
homem é homem. A realização disso é o dar-se da história. “O ser testemunha da pertença ao
ente em sua totalidade ocorre como história. Mas a fim de que a história seja possível, ao
homem lhe foi dado a linguagem. A linguagem é um bem do homem”.
32
Desse modo, mesmo que a linguagem seja um bem do homem, isso não quer dizer
que a ele pertença, mas, que a ele foi concedida como dom. Porém, ainda resta a pergunta:
porque ela é “o mais perigoso dos bens?”.
Para Heidegger (2005, p.41), a linguagem “é o perigo dos perigos porque é o que cria
pela primeira vez a possibilidade de um perigo”.
33
O perigo é a ameaça dos entes em relação
ao ser. É o perigo de o homem se perder em meio aos entes e se esquecer do ser. A linguagem
é o que concede ao homem essa via de mão dupla, expondo-o ao perigo de algo que, ora se
manifesta como ente, ora como não-ente. Enquanto ser-no-mundo, o homem incorre no perigo
de realizar-se em sua verdade, ou de perder-se no engano da desilusão. “A linguagem é o
primeiro que cria o lugar mais patente de ameaça ao ser e extravio e portanto a possibilidade
de perder o ser, isto é: é o que cria perigo”.
34
Além de ser o maior de todos os perigos, a linguagem carrega em si um perigo
permanente, ela guarda a possibilidade de manifestação e preservação do ente. À linguagem
cabe guardar tanto a verdade do ente, quanto a possibilidade do erro que o afasta de sua
verdade originária. “Nela pode chegar à palavra tanto o mais puro e o mais escondido como o
confuso e vulgar. Pois, com efeito, para poder ser entendida e chegar a ser de propriedade
comum a todos, a palavra essencial deve inclusive tornar-se vulgar e corrente”.
35
A palavra
essencial pertence aos deuses e para chegar aos mortais ela é vulgarizada, transformada em
palavra comum para que todos possam tomar conhecimento dela. Seja de caráter essencial ou
vulgar, a palavra pertence ao dito.
Sendo assim, este é o motivo pelo qual não poder ser reconhecida prontamente como
palavra essencial ou pura ilusão. O que ocorre é justamente o contrário, muitas vezes a
palavra essencial é confundida com a palavra vulgar em razão de sua simplicidade. Ao passo
32
HEIDEGGER, Martin. Hölderlin e a essência da poesia. In: _____. Aclaraciones a la poesía de Hölderlin.
Madrid: Alianza Editorial, 2005. p.41. (Tradução nossa).
33
Ibid. p. 41. (Tradução nossa).
34
Ibid. p. 41. (Tradução nossa).
35
Ibid. p. 41. (Tradução nossa).
33
que o vulgar ilude os olhos do desavisado ao esconder-se por debaixo da aparência de palavra
essencial devido a seu brilho e pompa falsos.
O que Heidegger estaria querendo dizer, ao afirmar no trecho acima citado, que uma
palavra essencial é compreendida quando se torna propriedade comum? A partir de outro
fragmento de Hölderlin
36
, Heidegger (2005, p.41) afirma que, para que uma palavra se faça
comum, ou ainda, para que uma palavra pertença aos mortais, é preciso que ela seja “vulgar e
corrente”.
37
Segundo Heidegger, Hölderlin afirma no fragmento anterior, que a palavra não
pertence aos mortais e sim aos deuses. Para que a palavra pertença aos mortais é preciso que
ela se torne comum. Para se tornar comum ela deve ser algo dito. O dito é diferente do
“genuíno dizer”, no dito corre-se o risco de que a palavra se mostre apenas em uma aparência
que nada tem de essencial. Assim, pergunta Heidegger: como pode a palavra ser um bem para
o homem se a ele pertence apenas em sua forma inessencial?
Para chegarmos à essência da palavra, não devemos nos contentar em considerá-la
como mais um instrumento do qual dispõe o homem, ora utilizado para fazer entender-se aos
demais, ora para compartilhar experiências ou expor decisões. A essência da linguagem não
se esgota como instrumento para a comunicação com os demais. Servir como instrumento de
entendimento é apenas uma de suas formas de se dar como linguagem, e nunca sua forma
mais essencial.
Acerca da essência da linguagem e de sua relação com o homem, Heidegger (2005,
p.42) acrescenta em um trecho decisivo e esclarecedor do texto:
A linguagem não é somente uma ferramenta a mais que o homem possui ao lado de
muitas outras, senão que a linguagem é o único e o primeiro que permite ao homem
situar-se no meio da abertura do ente. Somente onde há linguagemmundo, ou, o
que quer dizer o mesmo, a órbita sempre mutável de decisão e obra, de ato e
responsabilidade, mas também de arbitrariedade e ruído, queda e confusão.
Somente onde reina um mundo história. A linguagem é um bem num sentido
mais originário. É o bem que serve como garantia de que o homem pode ser
histórico. A linguagem não é uma ferramenta de que se possa dispor, senão esse
acontecimento que dispõe da mais alta possibilidade de ser homem. Se quisermos
compreender o âmbito no qual opera a poesia e, portanto, compreender
36
“Tu lhe falaste à divindade, mas todos ouviram que os frutos primeiros não pertencem aos mortais, senão
aos deuses. O fruto terá que voltar mais comum, mais cotidiano, para que no fim chegue a ser propriedade dos
mortais”. (HEIDEGGER, Martin. Hölderlin e a essência da poesia. In: ______. Aclaraciones a la poesía de
Hölderlin. Madrid: Alianza Editorial, 2005. p. 41. (Tradução nossa).
37
Ibid.p. 41. (Tradução nossa).
34
verdadeiramente a própria poesia, temos que começar por assegurarmos esta
essência da linguagem.
38
A citação acima reafirma que a linguagem não pode ser compreendida apenas como
mais um dos instrumentos que o homem possui. A linguagem é muito mais que isso, ela é o
que faz o homem ser aquilo que ele é. Além disso, para que o mundo exista é necessário que
exista linguagem. mundo onde linguagem, linguagem onde história. Todos
esses elementos se coadunam: linguagem, homem, mundo, história. A linguagem não é jamais
algo que pode ser fixado, pois ela diz o próprio modo como o homem se relaciona no mundo.
Na citação anterior, Heidegger diz que, para a compreensão da poesia é necessário
compreender a linguagem e sua essência. Para compreender a essência da linguagem é preciso
saber de antemão onde a linguagem ocorre.
A terceira sentença de Hölderlin pertence a um poema jamais concluído, o qual
começa com a frase: “Reconciliador, que nada criou [...]”. Nesse poema interessam a
Heidegger os seguintes versos:
Muito tem experimentado o homem
A muitos celestes tem nomeado
desde que somos diálogo
e podemos ouvir uns aos outros.
39
Em um dos versos acima, Hölderlin diz que nós homens somos diálogo. Segundo
Heidegger, essa afirmação de Hölderlin deve ser ressaltada. Ela se coaduna com o que
vinha sendo trabalhado no decorrer do texto.
Anteriormente, meditamos sobre a linguagem como o lugar de fundação do ser.
Agora, a partir do poema, vemos que a linguagem vem ao ser como diálogo e somente
enquanto diálogo. “(...) a linguagem somente é essencial precisamente enquanto diálogo”.
40
À linguagem, entendida em seu sentido comum, como um conjunto de vocábulos e de regras
gramaticais, Heidegger chama de “plano aparente da linguagem”. Ou seja, esse é o
significado mais simples da linguagem, aquele que aparece a nós em uma primeira
observação.
Se a essência da linguagem não é seu sentido mais comum; o que é o diálogo - no
qual a linguagem vem ao ser? Pois bem, a linguagem serve como meio que nos liga uns aos
38
HEIDEGGER, Martin. Hölderlin e a essência da poesia. In: _____. Aclaraciones a la poesía de Hölderlin.
Madrid: Alianza Editorial, 2005. p. 42. (Tradução nossa).
39
Ibid. p. 43. (Tradução nossa).
40
Ibid. p. 43. (Tradução nossa).
35
outros num falar acerca de algo. Mas, além disso, Hölderlin acrescenta que, a partir do
momento no qual somos diálogo, podemos escutar uns aos outros. Isso soa estranho à
primeira vista, que o mais comum seria dizer que desde que somos diálogo podemos falar
uns com os outros.
Heidegger (2005, p.43) realiza uma inversão no modo como entendemos
comumente o falar e o escutar. O falar se apresenta como um pressuposto para o ouvir.
Porque falamos é que ouvimos o que os outros falam. Ou seja, porque somos diálogo e temos
a possibilidade da linguagem é que podemos nos ouvir mutuamente.
Por sua vez, o contrário também é verdadeiro, podemos ouvir porque temos a
linguagem. Logo, ouvimos porque falamos e falamos porque ouvimos. “Poder falar e poder
ouvir são igualmente originários. Somos diálogo, e isto quer dizer que podemos ouvir uns aos
outros. Mas que somos diálogo também significa paralelamente somos um diálogo”.
41
No diálogo, estão presentes o ouvir e o falar. O diálogo “suporta” o falar e o ouvir
numa só unidade. Essa unidade carrega em si a verdade do ser e está presente em cada palavra
essencial pronunciada, mesmo que ditas em separado. O diálogo e sua unidade é o que
sustenta nosso existir como seres de linguagem.
Heidegger alerta para o fato de que Hölderlin não diz apenas que “somos um
diálogo”, mas “desde que somos diálogo [...]”. Não é porque o homem possui a faculdade da
fala, ou porque ele a exercite no falar, que ele se encontra no diálogo. Heidegger entende o
diálogo, como um acontecimento histórico essencial. O homem não é diálogo a partir de um
dado momento, de um momento certo que possa ser marcado em relógio. Então, desde
quando somos um diálogo?
Para haver diálogo é preciso que a palavra essencial siga referindo-se ao uno.
Segundo Heidegger (2005, p.44), sem esta referência ao uno é impossível até mesmo uma
disputa verbal. “Mas o uno e mesmo somente pode manifestar-se à luz de um elemento que
permanece e está sempre aí”.
42
Consistência e permanência só aparecem quando despontam,
quando desabrocham como constância e presença, “e isto ocorre no momento em que o tempo
se abre em suas extensões”.
43
No permanente, o homem pode ter a experiência do mutável, do
passageiro, ou seja, daquilo que modifica a constância de algo. Heidegger descreve um tempo
pungente e dilacerante, que se separa de si mesmo em passado, presente e futuro e assim pode
unir-se ao permanente.
41
HEIDEGGER, Martin. Hölderlin e a essência da poesia. In: ______. Aclaraciones a la poesía de Hölderlin.
Madrid: Alianza Editorial, 2005. p. 43. (Tradução nossa).
42
Ibid. p. 44. (Tradução nossa).
43
Ibid. p. 44. (Tradução nossa).
36
Considerando que a questão do diálogo está atrelada à questão do tempo, e que ela se
refere tanto à questão de quem somos nós e de quem é o homem, Heidegger (2005, p.44)
acrescenta: “Somos um diálogo desde o tempo em que ‘o tempo é’. Desde que surgiu o
tempo, desde que ele foi fixado, desde então, somos históricos. Ambas as coisas: ser um
diálogo e ser históricos, são igualmente antigas, estão unidas e são o mesmo”.
44
Segundo Heidegger, desde que somos diálogo, desde que a palavra se fez diálogo os
homens têm nomeado muitos deuses e com isso criado mundo. Heidegger adverte para o fato
de que deuses e mundo não são uma conseqüência, ou uma seqüela do acontecimento
histórico da linguagem. Deuses, mundo e linguagem acontecem em simultaneidade. Contudo,
os homens podem nomear os deuses se os próprios deuses o interpelam. A nomeação
acontece quando é da vontade dos deuses, ela independe da vontade do homem. Ao homem
cabe apenas responder à interpelação dos deuses. A palavra do homem é sempre uma resposta
negativa ou positiva ao chamado dos deuses. Este chamado divino se dá em forma de palavra.
Para Heidegger (2005, p.45), o chamado é o momento no qual os deuses “levam o nosso
existir à linguagem”.
45
A partir daí o homem decide ou não atender tal chamado.
Segundo Heidegger, tudo que foi pensado até aqui nos ajudou a compreender a frase
de Hölderlin: “desde que somos diálogo (...)”. Dizer que somos diálogo é o mesmo que dizer
que de modo essencial a nossa realidade mais verdadeira é essa: a linguagem.
No texto, Heidegger (2005, p.45) introduz algumas perguntas que nascem após o
caminho percorrido pelo pensamento até a afirmação de que somos diálogo: “Como se inicia
esse diálogo que somos nós? Quem leva a cabo esse nomear aos deuses? Quem apreenderá no
tempo passageiro algo permanente, e o fará deter-se em uma palavra e à permanência?”.
46
Na
tentativa de pensar essas questões, Heidegger analisa a quarta sentença de Hölderlin.
Tal sentença foi retirada do poema Memória e diz: “Mas o que permanece fundam os
poetas”.
47
Segundo Heidegger (2005, p.45), “poesia é fundação mediante a palavra e na
palavra”.
48
Se à poesia, cabe fundar na palavra e pela palavra, resta-nos perguntar por esse
“permanente”, que a poesia é capaz de fundar.
Logo, como pode o fundado ser o permanente, se permanente é o que desde sempre
está presente? Para Heidegger, o permanente não deve ser considerado como algo que pode
ser aprisionado. O poeta, ao fundar o permanente em sua poesia, não detém ou estabiliza as
44
HEIDEGGER, Martin. Hölderlin e a essência da poesia. In: ______. Aclaraciones a la poesía de Hölderlin.
Madrid: Alianza Editorial, 2005. p. 44. (Tradução nossa).
45
Ibid. p. 45. (Tradução nossa).
46
Ibid. p. 45. (Tradução nossa).
47
Ibid. p. 45. (Tradução nossa).
48
Ibid. p. 45. (Tradução nossa).
37
coisas. Neste caso, o sentido da palavra permanente nada tem a ver com o das palavras
aprisionar, deter ou estabilizar.
Tais palavras carregam um significado que impede o entendimento do que Heidegger
quer dizer com a palavra “permanente”. Se a estes significados nos detivermos, o poeta pode
ser confundido com alguém que anula o movimento das coisas. O que ocorre é justamente o
contrário. O que permanece, para Heidegger, é o que está em movimento. Permanecer é
caminhar. Para nós, isso tudo soa estranho, que permanecer e caminhar são duas ações
distintas. No entanto, para Heidegger, o que permanece não é o despossuído de movimento,
pelo contrário, ele é um caminhar. Logo, os poetas fundam aquilo que nós temos de mais
próprio, aquilo que permanece, o “entre”, a própria dinâmica do ser. O ser não é algo que
pode ser alcançado pelo pensamento. Estamos sempre em direção ao ser, ao passo que ele é
ao mesmo tempo o mais próximo. O que os poetas fundam é esse lugar onde o ser permanece
próximo e ao mesmo tempo distante. Por essa razão, estamos sempre a caminho do ser,
permanecemos no entre, junto à fonte que tudo recolhe.
O poeta, ao nomear os deuses e as coisas, diz o que elas são. Nomeia também o ente
em seu dizer, e assim o nomeia pela primeira vez. Com o nomear do poeta o ente se
reconhece como ente. “Poesia é fundação em palavra do ser”.
49
Com o nomear do ente,
através da palavra do poeta, acontece a nomeação de algo como uma fundação.
A poesia funda o ser na palavra que sai da boca do poeta. Por isso, Heidegger (2005,
p.46) diz que não se retira do passageiro o permanente, nem se extrai do complicado o
simples, nem da desmedida a medida. O ser (permanente) nunca será um ente (passageiro,
impermanente). “O ser não é nunca um ente. Mas como o ser e a essência das coisas nunca se
podem alcançar nem conseguir a partir do que está presente, por isso tem que ser criados,
situados e oferecidos livremente. E este livre oferecimento é fundação”.
50
Segundo Heidegger (2005, p.47), ao compreendermos que a palavra poética não é
apenas doação livre, mas também fundação do ser sobre o fundamento da verdade, fica mais
fácil compreendermos a próxima sentença de Hölderlin, que diz: “Cheio de mérito, mas
poeticamente, mora o homem sobre a terra”.
51
Esses versos de Hölderlin pertencem a um poema escrito nos anos de loucura. Nesses
versos, as obras do homem sobre a terra são consideradas ritos e esforços seus, mas não
traduzem a essência de seu morar.
49
HEIDEGGER, Martin. Hölderlin e a essência da poesia. In: _______. Aclaraciones a la poesía de Hölderlin.
Madrid: Alianza Editorial, 2005. p. 46. (Tradução nossa).
50
Ibid. p. 46. (Tradução nossa).
51
Ibid. p. 47. (Tradução nossa).
38
‘Morar poeticamente’ significa estar na presença dos deuses e ser alcançado pela
proximidade essencial das coisas. ‘Poético’ é o existir em seu fundamento, o que
também significa que enquanto algo fundado (fundamentado) não é nenhum
mérito, senão um presente.
52
O homem pode projetar máquinas, construir castelos e casas, inventar medicamentos
e programar leis. Todas essas empreitadas são realizações suas, mas não traduzem o seu modo
de habitar a terra. Na compreensão heideggeriana, a poesia é o que fundamenta o existir do
homem sobre esta terra. A própria dinâmica de nosso existir se dá de maneira poética.
Num momento anterior, a poesia foi colocada como a tarefa mais inocente de todas.
Porém, na citação feita acima, a poesia aparece como o nomear fundador dos deuses. Como
conjugar dois modos distintos de se compreender a poesia? Segundo Heidegger, essa questão
conclama a que se volte o olhar à essência da poesia.
Antes de procurar uma resposta à questão, alguns resultados podem ser elencados:
a essência da linguagem é compreendida a partir da essência da poesia e a linguagem não é
apenas a matéria prima da poesia. “O fundamento do existir humano é o diálogo enquanto
autêntico acontecer da linguagem. Mas a linguagem originária, por sua vez, é a poesia
enquanto fundação do ser”.
53
A poesia é mais do que uma matéria literária, ela é o modo de
fundação do ser histórico de um povo. Além disso, ela é ao mesmo tempo o mais perigoso dos
bens e a mais inocente das tarefas. No entanto, qual das duas definições é a mais satisfatória?
A poesia é um bem perigoso ou uma tarefa inocente?
Em carta, escrita a um amigo pouco tempo antes da viagem que fez a à França,
Hölderlin diz que os raios de deus são os sinais que ele mais gosta de contemplar. Apesar
disso, os raios lhe causam medo. Para Heidegger, nessas palavras podemos entrever a própria
sina do poeta e também o caráter duplo da poesia. Ao mesmo tempo em que Hölderlin admite
gostar de contemplar os raios (poesia como ocupação inocente), ele diz que teme não suportá-
los (poesia como o mais perigoso dos bens). No entanto, o medo não o faz mover os pés do
lugar onde os raios lhe atingem a cabeça. Com docilidade o poeta se entrega ao risco, ao
perigo.
Um dos versos do poema Como quando em dia de feriado... ilustra e reafirma de
maneira pungente o que Hölderlin diz acerca do risco que corre aquele que se coloca debaixo
52
HEIDEGGER, Martin. Hölderlin e a essência da poesia. In: _______. Aclaraciones a la poesía de Hölderlin.
Madrid: Alianza Editorial, 2005. p. 47. (Tradução nossa).
53
Ibid. p. 48. (Tradução nossa).
39
dos raios. Na última estrofe desse poema, Hölderlin diz que o poeta é aquele que está “com a
cabeça descoberta” debaixo das tormentas dos deuses. Ainda acerca deste poema, vale
destacar que Heidegger (2005, p.48) o considera como “(...) a mais pura poetização da
essência da poesia”.
54
Ou seja, relembrando o que já se indicou anteriormente, o que na
conferência Hölderlin e a essência da poesia foi dito sobre a essência da poesia por meio de
reflexões pode ser lido em forma de poema em Como quando em dia de feriado... .
Em uma outra carta escrita ao mesmo amigo, um ano depois da redação desse
poema, Hölderlin diz que “o violento elemento, o fogo do céu e a quietude dos homens, sua
vida na natureza e sua limitação e satisfação, têm me comovido constantemente (...)”.
55
Na
época da confecção desta carta, Hölderlin encontrava-se morando com a mãe porque tomado
pela loucura. Na leitura de Heidegger, as palavras de Hölderlin na carta reafirmam o que
havia sido dito no poema: a poesia é tarefa perigosa. O próprio destino de Hölderlin é a
grande prova de tal periculosidade. Ou seja, a imensa claridade do fogo do céu foi
demasiadamente insuportável para a alma do poeta. Hölderlin foi abraçado pela escuridão,
tomado pela loucura.
Segundo Heidegger, na carta escrita à mãe, dois motivos levam o poeta suábio a
dizer que a poesia é tarefa inocente. Primeiramente, numa tentativa de preservar a mãe de
preocupações extremadas. E o motivo mais importante é que para ele essa aparência
inofensiva faz parte da própria essência da poesia como o seu lado exterior. Heidegger
compara esse dois lados que compõe a essência ao vale e à montanha. Os dois lados
representam um para o outro o que representa o vale para a montanha ou a montanha para o
vale. Ou seja, a montanha só pode ser reconhecida como tal porque a superfície plana do vale
existe. O mesmo pode ser utilizado para a poesia, a parte interna da poesia como essência
perigosa pode existir porque externamente ela aparenta inocência. Tal inocência funciona
como uma aparência protetora que encobre e desse modo preserva o outro lado da essência da
poesia, o seu lado interno. Ao passo que o lado interno também funciona como defesa para o
lado externo. Desse modo, o próprio fazer cotidiano do poeta está assegurado. Isso porque,
protegido pela aparência inofensiva o poeta pode se entregar por inteiro aos perigos da tarefa
poética.
Segundo Heidegger, a poesia é e não é ao mesmo tempo um jogo. Ela é um jogo
porque como tal, reúne os homens. No entanto, no jogo os homens esquecem de si mesmos e
54
HEIDEGGER, Martin. Hölderlin e a essência da poesia. In: _______. Aclaraciones a la poesía de Hölderlin.
Madrid: Alianza Editorial, 2005. p. 48. (Tradução nossa).
55
Ibid. p. 49. (Tradução nossa).
40
se entregam àquela atividade como um passatempo. A poesia, ao contrário, promove o
recolhimento do homem em seu próprio fundamento, no fundo de sua realidade de verdade.
Nessa realidade o homem se aquieta. Tal quietude não deve ser confundida com inatividade
ou esvaziamento mental. Ela é uma quietude sem limites, o que significa dizer que é vivaz e
ativa em suas relações e forças.
Aparentemente a poesia pertence ao mundo do irreal, do sonho. Isso acontece
porque, para o homem, ela não é uma realidade tangível e intensa como a que ele vive. Na
realidade cotidiana vivemos num mundo cheio de sons e cheiros, somos tocados e podemos
tocar pessoas e animais. Tudo ao nosso redor pode ser apalpado, sentido ao modo dos
sentidos do nosso corpo. Assim, esse mundo que nos rodeia, repleto de coisas com as quais
nos sentimos à vontade, aparenta ser o que há de mais familiar. No entanto, este modo de nos
relacionarmos com as coisas, com as pessoas e com nós mesmos, não é o nosso modo mais
próprio. A poesia, com sua aparente irrealidade, é justamente o que existe de mais real. As
palavras do poeta são capazes de transportar-nos de volta para nossa verdadeira morada, de
volta ao nosso lugar de origem.
A seu modo a poesia parece vacilar em sua essência quando mostra o seu lado
exterior, sua aparente inocência. No entanto, sua essência interna é firmemente fundada,
solidamente fundamentada. Segundo Heidegger, Hölderlin considera toda fundação como
uma doação livre. O que não significa dizer que o livre dom da fundação se assemelha a um
livre arbítrio sem amarras. O dom é livre porque necessário, é a mais suprema necessidade.
Duas são as amarras que prendem a poesia a essa sua necessidade suprema. Em
primeiro lugar, a poesia é o modo originário de nomear os deuses. Tal nomear pode ser
concretizado porque os próprios deuses falam por meio de sinais que enviam aos homens. Ao
poeta cabe interceptar esses sinais e enviá-los aos homens. Na interceptação os deuses não se
restringem a receber os sinais, o esforço é também ao modo de uma doação. “Pegar os sinais é
um modo de receber e no entanto, e ao mesmo tempo, um novo dar; pois o poeta divisa
também no ‘primeiro sinal’ o consumado e situa atrevidamente em sua palavra isso que
vislumbrou com a finalidade de poder preceder o que ainda não se cumpriu”.
56
Os poetas
realizam um novo dar dos sinais que receberam dos deuses. Isso porque, quando recebe dos
deuses esse primeiro sinal consumado (efetivado), o poeta vislumbra a possibilidade de,
através da palavra, predizer o que ainda não havia se cumprido. Ou seja, o poeta pressente,
56
HEIDEGGER, Martin. Hölderlin e a essência da poesia. In: _______. Aclaraciones a la poesía de Hölderlin.
Madrid: Alianza Editorial, 2005. p. 50. (Tradução nossa).
41
através de suas palavras, algo que estava à espreita, pronto para ser consumado. O poeta é
também um visionário.
Vimos que uma das amarras que liga a poesia à sua necessidade suprema é a sua
função de nomear os deuses. A segunda amarra que prende a poesia é a fundação do ser,
ambas as amarras estão interligadas pelos sinais dos deuses. A poesia é o modo como o povo
voz a sua história, às suas memórias. Mais do que isso, é na poesia que o povo reconhece
sua pertença à totalidade dos entes.
No entanto, pode ser que a voz dos deuses se cale, que os sinais fiquem escassos. E é
que o poeta entra em cena, pois a ele cabe o papel de mediador. As vozes dos deuses não
são capazes de sozinhas dizer o autêntico. Os deuses necessitam de uma espécie de intérprete.
Este que faz o papel intermediário entre os sinais divinos e os homens é o poeta. A palavra
dos deuses diz o sagrado, mas os homens precisam de alguém que saiba interpretar essas
vozes, que saiba reconhecê-las.
Ao poeta cabe o lugar do meio, ele se coloca “entre” os deuses e o povo. Segundo
Heidegger o poeta está colocado “fora” porque está no entre, na divisa de deuses e homens. O
espaço que ocupa não é menos importante, pelo contrário. Esse é o espaço no qual ocorre a
grande decisão, nele o homem decide acerca de si mesmo e de seu existir. Pelo fato deste
espaço ser aberto pela poesia é que Hölderlin pode dizer que o habitar humano sobre a terra é
poético.
Segundo Heidegger, Hölderlin se colocou incansável nesse lugar do meio. Com suas
palavras nomeou o “entre” como um lugar intermediário, a fronteira entre deuses e homens. A
tarefa de Hölderlin foi cumprida de forma segura e ao mesmo tempo simples. Para Heidegger
(2005, p.52), “isto é o que nos obriga a dizer que ele é o poeta do poeta”.
57
Diante disso, surge
uma pergunta - será que a tarefa do poeta foi em vão? Será que ele mentiu quando disse que
nosso modo de habitar é poético? Essas indagações surgem porque, ao que parece, nosso
habitar não é de modo algum um habitar poético. Entretanto, Heidegger (2002, p.179) diz que
“(...) um habitar só pode ser sem poesia, porque, em sua essência, o habitar é poético”.
58
Para falar dessa especificidade e singularidade do poeta suábio, Heidegger relembra
um verso da poesia Em suave azul floresce [...]. Nesta poesia, Hölderlin diz que “o rei Édipo
tem talvez um olho a mais”.
59
No mito, Édipo é aquele que fica cego quando fura os próprios
57
HEIDEGGER, Martin. Hölderlin e a essência da poesia. In: _______. Aclaraciones a la poesía de Hölderlin.
Madrid: Alianza Editorial, 2005. p. 52. (Tradução nossa).
58
HEIDEGGER, Martin. ... poeticamente o homem habita... . In: ______. A Caminho da linguagem. Petrópolis,
Vozes, 2002. p. 179.
59
Ibid. p. 52. (Tradução nossa).
42
olhos. Por outro lado, “um homem pode ser cego porque, em sua essência permanece um
ser capaz de visão. Um pedaço de madeira nunca pode ficar cego. Se, no entanto, o homem
fica cego, então sempre ainda se pode colocar a pergunta se a cegueira provém de uma falta e
perda ou se consiste num excesso e abundância desmedida”.
60
Então, se a cegueira de Édipo
pode ser um excesso de visão e não uma falta, isso justifica dizer que ele tem um olho a mais.
Logo, “é possível que nosso habitar sem poesia, que nossa incapacidade de tomar uma medida
provenha da estranha desmedida que abusa das contagens e medições”.
61
Assim como Édipo,
Hölderlin tem um olho a mais. Isso porque seu olhar não se ateve à superficialidade, ele olhou
mais fundo. Com sua poesia, Hölderlin contemplou o espaço de fundação do ser.
Nos poemas de Hölderlin, a poesia pertence a um tempo determinado e funda um
novo tempo. Este novo tempo é o tempo dos deuses que se foram e dos que ainda estão por
vir. Para Heidegger, este é um tempo de indigência, onde existe uma carência que é dupla.
Esta carência é tanto dos deuses que partiram, quanto dos que ainda não chegaram.
A poesia de Hölderlin antecipa um tempo histórico, sua essência é histórica, e por
isso é essência essencial. Hölderlin é o poeta que canta a fuga dos deuses e desse modo
antecipa o tempo que está por vir. Numa época em que se fala muito de progresso e
desenvolvimento em todas as áreas do conhecimento, Hölderlin se coloca nesse vazio deixado
pela fuga dos deuses antigos e pela falta dos vindouros. Desse modo, assumindo sua solidão,
ele se mantém firme em seu destino de poeta, de representante dos homens e da verdade.
A título de conclusão do texto da conferência Hölderlin e a essência da poesia,
Heidegger (2005, p.52) relembra a sétima estrofe da elegia Pão e Vinho, na qual “se diz
poeticamente o que aqui somente se conseguiu explicar com pensamentos”.
62
Dessa estrofe
destacamos os três últimos versos:
Não o sei, e para que poetas em tempos de penúria?
Mas eles são, dizes tu, como os sagrados sacerdotes do deus do vinho,
que de terra em terra peregrinavam em noite sagrada.
63
Pois bem, temos que a aproximação de Heidegger com a poesia de Hölderlin se deu a
partir de uma necessidade intrínseca ao pensamento. A busca pelo sentido do ser e sua
verdade, bem como a superação da metafísica, foram os dois fatores que impulsionaram tal
60
HEIDEGGER, Martin. ... poeticamente o homem habita... . In: ______. A Caminho da linguagem. Petrópolis,
Vozes, 2002. p. 179.
61
Ibid. p. 179.
62
HEIDEGGER, Martin. Hölderlin e a essência da poesia. In: _______. Aclaraciones a la poesía de Hölderlin.
Madrid: Alianza Editorial, 2005. p. 52. (Tradução nossa).
63
Ibid. p. 53. (Tradução nossa).
43
aproximação. Para um pensamento que busca desatrelar-se da metafísica, a preservação da
dinâmica da verdade do ser (velamento e revelamento) é o que torna possível uma experiência
do ser e também do sagrado, que ambos dizem o mesmo. A poesia é a linguagem por
excelência do sagrado, pois ela preserva essa dinâmica própria de sua manifestação. Alguns
elementos importantes permeiam esta experiência poética / pensante com o sagrado. Tais
elementos serão abordados no capítulo que se segue.
CAPÍTULO 2 - ELEMENTOS DO DIÁLOGO ENTRE O PENSADOR E
O POETA
2.1 Considerações Iniciais
No presente capítulo vamos analisar de maneira sistemática alguns dos textos nos
quais Heidegger interpreta a poesia de Hölderlin. Essa análise tem o intuito de enriquecer a
compreensão da questão do sagrado em Como quando em dia feriado..., bem como daqueles
elementos que circundam as interpretações heideggerianas, tais como: semideuses, deuses,
mortais, céu, terra, fuga, retorno, luto sagrado e último Deus.
No capítulo anterior, vimos que a poesia é a linguagem que conserva a dinâmica de
manifestação do sagrado. Na poesia de Hölderlin, fica evidenciada a tarefa do poeta: trazer
aos mortais o fogo do céu. A partir da leitura das palavras de Hölderlin, Heidegger entende
que o fogo do céu é o sagrado enviado pelos deuses em forma de raio. O poeta é atingido por
esse raio e transmite aos mortais os vestígios da eclosão do sagrado.
O poeta suporta o sagrado em forma de raio e faz com que ele se torne algo
compreensível para os mortais. Desse modo, o poeta é uma espécie de intérprete. Sendo
assim, o poeta encontra-se numa posição diferenciada dos demais mortais. O poeta se
encontra no “entre” dos mortais e dos deuses. Nesse “entre” ele não é, sobretudo um deus e
nem mesmo um mortal, ele é um semideus.
2.2 Os semideuses
Na segunda parte do livro Hinos de Hölderlin, quando Heidegger interpreta O Reno
(1801), ele nos diz que a questão principal deste poema é os semideuses. Segundo Emílio
45
Brito
64
, Heidegger está em busca da disposição fundamental (Grundstimmung) da poesia O
Reno. E ao que parece ela será a mesma de Germânia.
O que deve ser sublinhado, de acordo com Brito, é que a homogeneidade quanto às
disposições fundamentais não significa que elas se repetem simplesmente. Em Hinos de
Hölderlin, Heidegger diz que apesar da poesia O Reno pertencer ao mesmo período da
composição de Germânia (1801), devemos tentar entendê-la a partir dela mesma. A
disposição fundamental, o âmago da poesia O Reno, aparentemente é o mesmo de
Germânia. Mas o que Heidegger entende por “disposição fundamental”?
Para Heidegger (2004, p.81), a disposição fundamental é “(...) uma disposição
interior, que define o território e impregna o espaço, sobre o qual o dizer poético instaura um
ser”.
65
No entanto, pelo fato de ser uma disposição interior, a disposição fundamental não
deve ser confundida com um simples sentimentalismo: ela “abre o mundo que recebe, no
dizer poético, a marca do Ser”.
66
Em Germânia, o poeta canta a situação de um povo que vive a experiência da fuga,
da renúncia dos deuses que partiram. A disposição fundamental de Germânia é do luto pela
fuga dos deuses. O poeta invoca os deuses a partir dessa situação de luto. Tal invocação do
poeta não ocorre no intuito de clamar pela volta dos deuses sumidos. “Este ato de invocar é
uma forma de resolver uma disputa entre a abertura da predisposição e a falta do seu
preenchimento”.
67
Invocando, o poeta encontra uma maneira de suportar o sofrimento da
ausência frente ao espaço vazio deixado pelos deuses.
A dor e o sofrimento despendidos no luto não são de natureza psicológica, mas
“apenas são devido ao esforço despendido para suportar o diferendo”.
68
O verso dezenove do
poema diz “nada quero negar, aqui, e nada pedir”. Segundo Heidegger (2004, p.83), o verso
fala de uma renúncia do homem em relação aos deuses. Na disposição fundamental do luto é
como se os homens procurassem se acostumar à falta dos deuses. Esta é a maneira como os
homens lidam com a falta. A disposição fundamental “revela o ente de uma forma
inteiramente diferente e essencial. Aqui convém ter em mente: a disposição enquanto
disposição deixa acontecer a revelação do ente”.
69
O luto é aqui um luto sagrado, porque não
é uma tristeza comum devido à perda de algo específico. Logo, a disposição fundamental do
luto também é sagrada.
64
BRITO, Emílio. Heidegger et l”hymme du sacré. Louvain: Leuven University, 1999. p. 43. (Tradução nossa).
65
HEIDEGGER, Martin. Hinos de Hölderlin. Lisboa: Piaget, 2004. p. 81.
66
Ibid. p. 81.
67
Ibid. p. 82.
68
Ibid. p. 83.
69
Ibid. p. 83.
46
Segundo Heidegger (2004, p.83), “da disposição faz parte, por um lado, aquilo que a
provoca (cf. ‘causa íntima’ da disposição, p. 85 e ss.), em seguida aquilo que está disposto na
disposição e, finalmente, a forma como o disposto e o que dispõe se relacionam um com o
outro”.
70
Estes três aspectos da disposição, ou seja, tanto o que provoca, quanto aquilo que
está disposto e também a forma como se relacionam entre si estão sob o jugo do sagrado. A
representação sujeitoobjeto não explica o relacionamento entre os elementos da disposição,
pois a disposição como sentimento é apenas uma tonalidade dessa conjuntura.
No caso de Germânia, a concepção do sagrado está intimamente ligada à da
disposição fundamental. Isso porque o sagrado é o que Hölderlin chama de “isento de
proveito próprio”. Aquilo que prescinde de proveito próprio “é aquele tipo de acção isenta de
proveito próprio que ainda retira o proveito próprio, quer dizer, a sua finitude, do que
acontece em proveito da comunidade; (...) que não pertence à esfera do útil nem, por
conseguinte à do inútil (...)”.
71
A renúncia ao proveito próprio é unilateral se priorizar apenas um dos lados de sua
estrutura. Ou seja, se o fundamento da renúncia repousar em si mesmo, se na relação com as
coisas o caráter de objeto sobressair a todo o resto ou se a relação entre o fundamento interior
e o objeto ficar no meio do caminho.
O sagrado é um tipo de renúncia ao proveito próprio que ocorre de forma plena
porque envolve os três lados de sua estrutura essencial. Nele, “(...) estes três lados estão vivos
na superioridade livre da entrega realizada, partilhando a mesma origem na disposição (...)”.
72
Em Germânia, o luto é sagrado porque preserva esses três lados da estrutura. No luto sagrado,
a falta não se transforma em recusa aos antigos deuses que partiram; pelo contrário, os deuses
têm sua ausência suportada. Os deuses continuam sendo os de sempre, o que mudou é que o
status que agora ocupam é o de deuses sumidos. O luto preserva a divindade dos deuses
antigos, pois mantém em aberto a possibilidade da volta desses deuses. Além disso, o luto
cria uma relação nova do homem com os deuses.
Para Heidegger (2004, p.175), O Reno proporciona um modo novo de se
experimentar o ser que a poesia institui. A disposição fundamental deste poema não é a do
luto sagrado, ela “determina o poeta expressamente para avançar na tarefa de pensar o centro
do ente, a partir do qual a totalidade do ente deuses, homens, Terra se deve revelar de
70
HEIDEGGER, Martin. Hinos de Hölderlin. Lisboa: Piaget, 2004. p. 83.
71
Ibid. p. 85.
72
Ibid. p. 87.
47
novo, ou seja, o Ser dos semideuses”.
73
O pensar dos semideuses é um pensar que vai além do
homem, que semideuses não são simples homens. Este ir além do homem proporciona
pensar na direção dos deuses. Isso não significa o alcance imediato dos deuses, mas apenas
um pensar em direção a eles.
Segundo Heidegger, os semideuses aparecem na poesia de Hölderlin como seres
intermediários entre deuses e homens. Ao falar isso, Heidegger se refere a um dos versos do
poema O único, onde Hölderlin diz:
É que ele (o pai) nunca governa sozinho.
E não sabe tudo. Sempre está algo
Entre os homens e ele.
E, degrau a degrau,
Desce o Celeste.
74
A partir da décima estrofe do poema O Reno aparece a palavra semideuses, quando
da invocação do poeta. Vejamos as duas primeiras estrofes:
Em semideuses penso eu agora
E devo conhecer os caros (...)
75
Ao invocá-los na estrofe acima, o poeta anuncia que a partir daquele momento vai
pensá-los; pensá-los em sua essência. Isso significa que pensar a essência dos semideuses não
é o mesmo que pensar neles, homenageá-los, pensar em algo semelhante a eles ou inventá-los,
diz Heidegger. O pensar que enreda a essência se realiza a partir daquilo e naquilo que eles
são e nada mais. Ao pensar o ser dos semideuses, o poeta realiza um projeto que não é
conceitual “que capta o ser como tal, isto é, através de conceitos, mas sim instituinte no
dizer poético”.
76
Foi dito anteriormente que o poeta é um semideus e agora afirmou-se que ao
poeta cabe pensar os semideuses. Aparentemente as duas afirmações contradizem-se. No
entanto, segundo Heidegger, o ser do poeta se entrega ao ser dos semideuses. Essa entrega do
poeta é uma constante e é por meio dela que é possível pensar não os semideuses, mas
também os homens, os deuses e a Terra, enfim a totalidade do ente. O poeta está disposto
neste sofrimento, nesta penúria que constituem o seu Dasein. Ou seja, a disposição
73
HEIDEGGER, Martin. Hinos de Hölderlin. Lisboa: Piaget, 2004. p.175.
74
Ibid. p. 158.
75
Ibid. p. 151.
76
Ibid. p. 158.
48
fundamental do poeta é colocar-se no “entre” para que a partir dela possa cumprir sua tarefa
mais genuína.
Segundo Heidegger, quando pensamos os semideuses, geralmente os classificamos
ora como seres aos quais faltou alguma coisa para se tornarem deuses completos, ora como
seres dos quais se retirou algo de humano. No entanto, esse pensamento que subtrai, que
adiciona, enfim, que calcula, não pode pensar os semideuses em sua essência. Isso porque,
nem mesmo sabemos qual é a essência dos homens e qual é a essência dos deuses para daí por
diante calcularmos qual a essência dos semideuses. Para pensar a essência dos semideuses a
partir de um processo de cálculo é preciso que antes saibamos qual a essência dos deuses e
dos homens. A dúvida é a seguinte: será que saberemos compreender a essência dos deuses e
também dos homens? – pergunta Heidegger.
Em Germânia, Hölderlin diz que dos deuses temos o pressentimento, eles fugiram
e, desse modo, não sabemos nem mesmo quem somos nós e qual será nosso destino. Sendo
assim, como o poeta pode querer pensar os semideuses? De acordo com Heidegger, o pensar
do poeta não é calculador, e sim um pensar que tem parentesco íntimo com o poetizar do
pensador. Desse modo, ele não precisa de certas circunstâncias ou situações para se dar. O
pensar dos semideuses não é calculador, ou seja, não nos leva ao resultado de quem são os
semideuses através de soma ou subtração entre as essências de deuses e homens.
Heidegger diz que os semideuses não são deuses, mas seres que se aproximam dos
deuses e, assim sendo, apontam para além do homem. Os semideuses são super-homens que,
mesmo assim, se encontram abaixo dos deuses, são subdeuses. “Super” e “Sub” não são aqui
prefixos que representam uma distância. A distância entre homens e deuses não pode ser
contabilizada.
Quando Heidegger diz que ao se aproximarem dos deuses os semideuses apontam
para além do homem, ele está querendo dizer que os semideuses apontam numa direção que
ultrapassa o homem. Essa direção deve ser pensada como algo que vai além do homem, mas
que ainda não toca os deuses. Isso quer dizer que os semideuses nos fazem pensar a essência
do homem, e que esta essência deve ser pensada para além dele mesmo.
Segundo Heidegger, isto ocorre porque toda questão aponta para além daquilo que
ela mesma levanta como questão. Pensar o homem é pensar para além do humano, é olhar em
direção ao sobre-humano. Ao passo que, quando nos perguntamos pela essência dos deuses,
nos deparamos com o mistério e assim, somos levados a pensar em subdeuses. Quando nos
perguntamos pelas essências de homens e deuses, nosso pensamento se direciona aos sobre-
humanos e aos subdeuses. Ora, esses são os semideuses.
49
Se pensar as essências de homens e deuses nos coloca a pensar os semideuses, isso
não quer dizer que vamos deixar de pensar esses mesmos homens e deuses e apenas pensar
esse local intermediário no qual os semideuses se deixam ver. Para Heidegger, acontece
justamente o contrário. Pensar os semideuses abre espaço para que se pense o ser no seu todo.
Isso porque, na pergunta pelos semideuses está instituída a diferença entre deuses e homens.
Essa diferença é o que marca uma espécie de “lugar” onde a questão entre deuses e homens
deve ser pensada. Para Heidegger (2004, p.163), essa fronteira é a base de apoio para essa
questão.
A fronteira é o lugar onde o poeta se encontra colocado e de onde pensa os
semideuses. “O estar colocado na fronteira da terra pátria tem um duplo sentido: daí, a
saudade pode divagar para o que é estrangeiro e longínquo, e aí, na fronteira, também têm de
ser recebidos os deuses da terra pátria. O poeta tem de se encontrar na fronteira para que lhe
possa acontecer aquilo que está a acontecer”.
77
A pátria é o lugar familiar ao poeta, é sua terra, sua casa. O estrangeiro é o estranho,
o não-familiar. Nas poesias de rios, como é o caso de O Reno, o rio aparece como aquele que
funda o familiar no estranho. Ao longo das margens dos rios erguem-se casas, formam-se
vilas e cidades. No serpentear de seu curso por entre terras estranhas, o rio funda o que é
familiar. Em sua peregrinação o rio funda cidades em terras que antes eram estranhas e que
agora pertencem ao familiar. Ao fundar cidades, o rio funda civilizações e desse modo funda
novas relações do homem com o lugar que antes era estranho. Em meio à civilização da
técnica, que modifica o curso do rio, que aprisiona suas águas para a construção de uma usina,
o homem se sente acolhido pelo familiar. Aquilo que para o homem da técnica é o familiar,
para o filósofo é o estranho. Diante disso que foi dito a respeito da técnica, percebe-se que
para Heidegger a técnica, a essência dela e a chamada técnica moderna devem ser pensadas de
modo diferente do modo cotidiano.
Na conferência A questão da técnica pronunciada em Munique no ano de 1953,
Heidegger (2002, p.17) diz que “a técnica não é, portanto, um simples meio. A técnica é uma
forma de desencobrimento. Levando isso em conta, abre-se diante de nós todo um outro
âmbito para a essência da técnica. Trata-se do âmbito do desencobrimento, isto é, da
verdade”.
78
77
HEIDEGGER, Martin. Hinos de Hölderlin. Lisboa: Piaget, 2004. p. 163.
78
HEIDEGGER, Martin. A questão da técnica. In: Ensaios e Conferências. Petrópolis: Vozes; São Paulo: São
Francisco, 2002. p. 17.
50
Heidegger pensa a palavra técnica remetendo-se ao termo grego
te/xvh, que na
antiguidade grega correspondia tanto ao fazer artesanal quanto ao da arte e das belas-artes. O
modo de produção da técnica, entendida a partir da te/xvh grega não deve ser confundido com
um simples meio para um fim. Nesse caso a produção deve ser pensada a partir da poi/hsiz
que quer dizer uma espécie de produção que “não é apenas a confecção artesanal e nem
somente levar a aparecer e conformar, poética e artisticamente, a imagem e o quadro”.
79
Heidegger diz na conferência que a poi/hsiz é quando o produzido eclode desde ele mesmo,
eclode a partir de si mesmo. “A F/u/siz é até a máxima poi/hsiz”.
80
O produzir entendido
como poi/hsiz difere-se do produzir artesanal, no qual o produzido eclode não desde ele
mesmo, mas das mãos do artista ou artesão. No produzir artesanal o que é produzido
constitui-se num meio para um fim. A técnica pensada desde a te/xvh, tem a ver com o
poético, com a poesia. “Técnica é uma forma de desencobrimento. A técnica vige e vigora no
âmbito onde se dá descobrimento e des-encobrimento, onde acontece a)lh/teia, verdade”.
81
Segundo Heidegger, a técnica moderna também é desencobrimento. No entanto, um
desencobrimento que nada tem a ver com a poi/hsiz. Isso porque na técnica moderna o
homem explora a natureza a fim de apropriar-se ao máximo dela. Para Heidegger, o máximo
da exploração acontece quando o homem além de beneficiar-se da natureza, procura
armazená-la de alguma forma. O exemplo dado por ele no texto é o da exploração de carvão e
minério. O solo é explorado e passa a ser reservatório, jazida de carvão e minério.
O modo de desencobrimento da técnica moderna é pensado por Heidegger com a
palavra alemã Gestell. “Chamamos aqui de com-posição (Gestell) o apelo de exploração que
reúne o homem a dis-por do que se des-encobre como dis-ponibilidade”.
82
Ou seja, o homem
da técnica moderna enxerga a natureza como algo a ser explorado. Essa maneira de lidar com
a natureza é a “disponibilidade” do homem perante o que des-encobre. Heidegger diz que a
física moderna leva o homem a lidar com a natureza mediante experimentos, máquinas e
ferramentas. A teoria dos físicos enxerga a natureza como algo que pode ser explorado. As
máquinas são confeccionadas para confirmar o que a física antecipava, ou seja, a condição
de “explorada” da natureza.
No entanto, é em meio à essência da técnica como Gestell que o homem pode
“voltar-se para um desencobrimento mais originário e fazer assim a experiência de uma
79
HEIDEGGER, Martin. A questão da técnica. In: Ensaios e Conferências. Petrópolis: Vozes; São Paulo: São
Francisco, 2002. p.16.
80
Ibid. p. 16.
81
Ibid. p. 17.
82
Ibid. p. 23.
51
verdade mais inaugural”.
83
Essas palavras de Heidegger, num primeiro momento, soam de
modo esquisito, que a Gestell parece ser um modo de disponibilidade ao qual o homem
encontra-se preso, como num beco sem saída. De acordo com Heidegger, é a partir da
essência da técnica como Gestell que a saída pode ser pensada. Isso porque na essência da
técnica encontram-se suas raízes. Logo, em suas próprias raízes é que está colocado aquilo
que pode salvar a técnica moderna. A vizinhança mais extrema do perigo de ser enredado pela
técnica significa a possibilidade mais concreta de salvação.
Segundo Ernildo Stein, em Introdução ao pensamento de Heidegger
84
, para o
homem comum a técnica é o que lhe é mais familiar, enquanto o ser é o estranho. para o
filósofo o estranho é justamente o que para o homem comum é familiar. O estranho é a
técnica, dela o filósofo não se afasta. Pelo contrário, ele a assume em seu estranhamento.
Enquanto o homem comum assume a técnica como o que de mais familiar, o filósofo a
assume como o estranho.
O poeta se coloca ali, na fronteira entre o familiar e o estranho, ele caminha nos
caminhos que levam do estranho ao familiar e do familiar ao estranho. Ele perfaz o duplo
caminho, que é de ida e também de volta. O poeta compreende que o ser não se dá apenas no
familiar. A dinâmica do ser acontece num velamento e desvelamento. Permanecer na origem,
morar onde o desvelamento acontece não é possível, porque o ser acontece também como
velamento. O homem comum, o homem da técnica, não suporta o velamento do ser, para ele
tudo é presentificação. Já para o poeta, o ser lhe é ao mesmo tempo familiar e estranho.
O poeta espera postado na fronteira o aceno dos deuses que fugiram. Na espera pelo
aceno daqueles que se foram o poeta está a todo tempo correndo o risco de ser atingido pelos
vestígios do fugidio. quem se coloca no risco pode ser atingido. De nada adianta forçar a
vinda dos deuses fugidos ou de seus vestígios. Ao poeta cabe se colocar em prontidão, numa
espera desinteressada. Não cabe ao poeta decidir o momento em que será atingido pelos raios
dos deuses, porque o os deuses que decidem quando usarão o poeta como intérprete do
sagrado para os mortais.
Heidegger (2004, p.174) define essa situação com a palavra “Sofrimento”. “Este
grande sofrimento, o único e essencial, no entanto, pode apenas atravessar um ser-aí como
aquela disposição em que se revela o poder esmagador do divino que foge e se aproxima, e
83
HEIDEGGER, Martin. A questão da técnica. In: Ensaios e Conferências. Petrópolis: Vozes; São Paulo: São
Francisco, 2002. p. 31.
84
STEIN, Ernildo. Introdução ao pensamento de Martin Heidegger. Porto Alegre: Edipucrs, 2002. p. 135.
52
que revela a penúria disponível do ser do homem, na aflição em luto sagrado e disponível”.
85
Se os deuses é quem decidem quando se aproximam dos homens ou deles se distanciam, cabe
ao poeta a disposição de esperá-los. Uma espera que é sofrimento e luto pela fuga dos deuses.
Ao poeta cabe resistir a esse sofrimento que não é um sentimento entre tantos outros.
O sofrimento aqui é sofrimento do ser, é disposição fundamental. E como disposição
fundamental é uma constante para o poeta estar disposto ao ser dos semideuses. A disposição
fundamental da poesia O Reno é, portanto, pensar o ser dos semideuses. Essa disposição
fundamental determina o ser-aí do poeta como aquele que pensa o ser dos semideuses.
O poeta, no entanto, visto não ser um deus, não pode libertar a origem e o seu ouvir
não pode ser um atender. No entanto, o poeta, visto não ser apenas um homem, da
forma em que se costuma sê-lo no dia-a-dia, também não pode ouvir à maneira dos
mortais, ou seja, não pode querer não-ouvir a origem. A sua audição resiste ao que
há de terrível na origem acorrentada. Esta audição resistente é sofrimento. O
sofrimento, porém, é o ser do semideus.
86
Na citação acima, Heidegger diz de um ouvir singular do poeta. O ouvir do poeta é
diferente do ouvir dos mortais. Ele está próximo à origem e não pode se abster de ouvi-la.
Heidegger menciona uma origem acorrentada, o que a entender que a origem está presa a
uma origem primordial. O poeta resiste a esse sofrimento de estar sempre na disposição de
ouvinte da origem.
Segundo Heidegger, enquanto os mortais fogem da origem e os deuses ouvem
compadecidos, os semideuses são abandonados neste ouvir. Ao modo como os deuses ouvem,
em Hinos de Hölderlin, Heidegger o nome de “atender”. Isso porque os deuses libertam a
origem antes acorrentada e a abandonam à sua sorte. Os mortais fogem da origem, não
querem e não podem ouvi-la. o poeta não pode libertar a origem como fazem os deuses e
nem mesmo dela fugir como os mortais. Os mortais dão as costas à origem, porque para eles
importa mais o que dela nasce e não ela mesma como origem primordial: como origem de
onde tudo nasce. Os mortais tentam explicar a origem através daquilo que ela produz. Eles
dão valores como “sucesso e utilidade” às coisas que nascem da origem, mas não se
preocupam em ouvir a origem primordial.
o ouvir dos poetas é para Heidegger (2004, p.191) um “ouvir resistente” porque
ouve aquilo que permanece, ouve a origem primordial. “O ouvir resistente é, na qualidade de
85
HEIDEGGER, Martin. Hinos de Hölderlin. Lisboa: Piaget, 2004. p. 174.
86
Ibid. p. 190.
53
ouvir antecipado e que faz surgir, um ouvir poético”.
87
O ouvir resistente é aquele que ao lado
do dizer proporciona ao poeta instituir aquilo que é. Isso porque, o ouvir do poeta ouve a
origem naquilo que ela é, em sua primordialidade. Somente quem sabe ouvir pode dizer, pode
trazer à palavra e instituir o que ouviu na proximidade da origem.
Em conjunto, o ouvir e o dizer possibilitam que aconteça o diálogo. Portanto, um
ouvido poético deve permanecer na origem de maneira resistente. Ao poeta cabe ouvir e
instituir, trazer à palavra através de seu dizer o que deve ser fundado, a verdade do ser. “Só o
poeta consegue levar a efeito aquela audição que se detém junto da origem e que, detendo-se,
ouve sua essência e abriga aquilo que ouviu na permanência da palavra poética”.
88
Assim, só
o ouvir e o dizer poético podem abrigar algo tão misterioso como o ser, pois possuem a
mesma origem dele.
Este ouvir e dizer do poeta na proximidade da origem é também algo arriscado. O
poeta se arrisca ao expor-se aos raios e relâmpagos dos deuses. Raios e relâmpagos são
palavras de Hölderlin que se referem à linguagem utilizada pelos deuses para se comunicarem
com os mortais. Entre os deuses com seus raios e o povo (mortais) está o poeta, que capta
esses raios e relâmpagos e os transforma em linguagem inteligível para os homens. Portanto,
o poeta deve estar constantemente no risco, para que assim possa receber dos deuses o
sagrado em forma de raios e os transmitir aos homens.
Numa conferência proferida em 1946, intitulada Para que poetas ?, Heidegger
(2002, p.326) diz que existem aqueles que se arriscam mais ao se dedicarem a uma espécie de
dizer que tem por pura finalidade dizer aquilo que deve ser dito. Esta espécie de dizer não
trata a linguagem como algo objetivável. Aquilo que necessita ser dito seria então aquilo
que, segundo a sua natureza, pertence ao recinto da linguagem”.
89
Os poetas se arriscam mais
do que os mortais e também do que os deuses. Junto aos mortais e aos deuses, estão também o
céu e a terra. Céu e terra, mortais e deuses são regiões que formam um quadrado.
87
HEIDEGGER, Martin. Hinos de Hölderlin. Lisboa: Piaget, 2004. p. 191.
88
Ibid. p. 215.
89
HEIDEGGER, Martin. Para que poetas?. In: ____. Caminhos de Floresta. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2002. p. 326.
54
2.3 A quadratura
Vimos que Heidegger trabalha constantemente com quatro elementos: céu, terra,
deuses e mortais. Ao que se forma com esses quatro elementos Heidegger o nome de
Geviert (quadratura ou quadrado).
Já falamos aqui da essência dos semideuses e para tanto tivemos que trabalhar
também a essência dos deuses e dos mortais. Os poetas são mortais que cantam os vestígios
deixados pelos deuses que fugiram. Os poetas habitam perto da origem e respondem ao apelo
dos deuses para que os vestígios, o ressoar do sagrado, possa ser transmitido ao povo. Os
mortais comuns não têm como adentrar na proximidade com o sagrado sem a mediação dos
poetas cantores. Vimos anteriormente que, para Heidegger, os homens comuns viram as
costas para aquilo que não compreendem, para o sagrado como mistério.
Pois bem, o que Heidegger pensa com essa quadratura? Em A Origem da Obra de
Arte, Heidegger (2002, p.44) diz que “àquilo em que a obra se retira e que lhe permite surgir
diante neste retirar-se chamamos terra”.
90
Terra e mundo são distintos e estão num confronto
que é um combate. É nele que a verdade acontece como obra. Enquanto a terra é aquilo que
abriga no encobrimento, o mundo é a “abertura que se abre das longas vias das decisões
simples e essenciais do destino de um povo histórico”.
91
O mundo é o horizonte onde as
relações do homem com as coisas, com os outros homens e consigo mesmo são tecidas. As
possibilidades de o homem se relacionar, tomar decisões ou se abster são abertas quando o
mundo se revela como um acontecimento histórico.
Na conferência A Origem da Obra de Arte (1935), quando a especulação
heideggeriana se avizinha da poesia de Hölderlin, o lugar em que o ser acontece deixa de ser o
combate entre mundo e terra e passa a ser a quadratura de céu e terra, mortais e divinos. No
ensaio intitulado A Coisa, fruto de uma conferência pronunciada em 1950, no qual é
elaborada a noção de coisa, vemos de maneira mais clara o que o filósofo quer dizer com o
termo Geviert.
Para Heidegger, muito tempo o homem lida com as coisas sem pensá-las como
coisas. Na modernidade, a distância entre os homens e as coisas aparentemente se encurtou.
Com o avanço dos meios de comunicação de massa as notícias do outro lado do mundo
chegam até nós numa velocidade espantosa. E este é apenas um dentre outros exemplos dessa
90
HEIDEGGER, Martin. A Origem da Obra de Arte. In: ____. Caminhos de Floresta. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 2002. p. 44.
91
Ibid. p. 47.
55
falsa proximidade do homem com as coisas do mundo. Isso produz uma proximidade ilusória
entre o homem e as coisas e cria a sensação de que a proximidade das coisas se mede pela
pouca distância entre nós e elas.
Distância e proximidade não podem ser medidas em metros. O que podemos
encontrar com maior facilidade são as coisas que estão próximas a nós e não a proximidade. O
ser das coisas e o ser da proximidade ainda não foram pensados pelo homem, mesmo ele
lidando constantemente com as coisas que lhe são próximas.
O “ser coisa” da coisa não é um simples objeto da representação de um sujeito. O
“ser coisa” da coisa também não é o material de que é feito a coisa. No texto, Heidegger usa
uma jarra de barro como exemplo de coisa. O ser jarra da jarra não é sua instrumentalidade, e
sim o que ela recolhe na quadratura de céu e terra, mortais e divinos.
Essas quatro palavras aparecem no vocabulário heideggeriano devido à sua
aproximação da poesia de Hölderlin. Segundo Gianni Vattimo (1989, p.126), “estas palavras
poéticas furtam-se a uma plena clarificação conceitual; mas o fato de serem palavras poéticas
não pode agora significar um menor peso teórico”
92
, que, para Heidegger, a poesia é o
lugar onde a verdade acontece de modo mais radical.
Esses quatro elementos, diz Heidegger (2001, p.156), são como direções ou pontos
cardinais que, reunidos, unificam a coisa em suas diferenças. Essa unidade é dada pela
proximidade que não suprime as diferenças, mas preserva cada um dos quatro elementos
nessa aproximação. Dessa forma, a proximidade está preservada como aquilo que ela é, como
o mais próximo.
Os quatro elementos são pensados em referência constante uns com os outros. No
texto de A coisa, a terra aparece como aquela que sustentação, enquanto o céu é “a
profundeza azul do éter”.
93
Os imortais “são acenos dos mensageiros da divindade”
94
e os
mortais são os homens, assim chamados porque podem morrer. Quando nos referimos a um
dos elementos, de imediato pensamos nos outros três que formam o quadrado. A união que
forma a quadratura preserva cada um dos elementos em sua essência sem suprimir-lhes a
diferença.
Unindo-se por si mesmo uns com os outros, céu e terra, mortais e imortais
pertencem, em conjunto, à simplicidade da quadratura de reunião. A seu modo,
cada um dos quatro reflete e espelha de volta a vigência essencial dos outros. A seu
modo, cada um reflete e espelha sua propriedade, dentro da simplicidade dos
92
VATTIMO, Gianni. Introdução a Heidegger. Lisboa: Edições 70, 1989. p. 126.
93
HEIDEGGER, Martin. A coisa. In: _____. Ensaios e Conferências. Petrópolis: Vozes, 2001. p. 156.
94
Ibid. p. 156.
56
quatro. Este refletir e espelhar não é e nem consiste em expor o reflexo de uma
reprodução. Iluminando cada um dos quatro, o refletir e espelhar lhes apropria a
própria vigência, na apropriação de uma unidade recíproca.
95
O homem, um dos elementos da quadratura, é pensado por Heidegger como o mortal
e não mais como aquele que objetiva as coisas, que a tudo presentifica, inclusive o ser. Na
quadratura, o homem se encontra como homem, encontra-se em casa. Estar em casa é estar no
ser. O ser recolhe terra e céu, mortais e deuses na quadratura. O sagrado pertence a esse
encontrar-se dos quatro elementos, a essa unidade que é a dimensão desde a qual os deuses se
manifestam. Os deuses podem também ser deuses em fuga e diante dela provocar no poeta a
experiência do luto sagrado.
2.4 O Luto Sagrado
O título da conferência Para que poetas? é inspirado na seguinte pergunta que
Hölderlin faz na elegia Pão e Vinho: “e para que poetas em tempo indigente?”
96
. Segundo
Heidegger, responder a esta pergunta ou entender a resposta dada a ela por Hölderlin é tarefa
das mais difíceis, já que não estamos preparados para ambas as coisas. E não estamos
preparados porque vivemos num tempo em que os deuses se foram, e o que restou foi apenas
um vestígio deles.
Vimos que a linguagem utilizada pelos deuses em seu diálogo com os mortais são os
acenos. Os deuses acenam e os homens respondem a estes acenos. Assim, reafirma-se aqui de
modo novo o que vimos no capítulo anterior com as sentenças refletidas por Heidegger em
Hölderlin e a essência da poesia. O diálogo é para Heidegger aquilo que nos constitui. O
diálogo, a linguagem, a língua, define o nosso ser. A sentença, “desde que somos um
diálogo”, reverbera aqui.
Com a palavra desde”, que aparece no início da frase, Hölderlin nos a idéia de
tempo. Segundo Heidegger (2004, p.71), “é de uma definição histórica que se trata, relativa ao
tempo e, (...) manifestamente ao tempo dos povos, o qual não é conhecido por ninguém
95
HEIDEGGER, Martin. A coisa. In: _____. Ensaios e Conferências. Petrópolis: Vozes, 2001. p. 156-157.
96
HEIDEGGER, Martin. Para que poetas?. In ______. Caminhos de Floresta. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2002. p. 309.
57
(...)”.
97
Um tempo que não é conhecido por ninguém deve se dar de maneira diferente da
maneira habitual, ou seja, da maneira como o conceito de tempo e seu ocorrer é entendido na
cotidianidade. Isso porque, segundo Heidegger (2004, p.71), o tempo dos povos se
“quando nós próprios nos tornamos ‘participantes’, participando do diálogo, quando nos
decidimos relativamente ao que podemos ser historicamente”
98
. Então, o diálogo é uma
decisão que nós mesmos assumimos como nossa. Podemos assumir o diálogo porque o
somos o “próprio diálogo”, mas participamos dele, somos “no” diálogo. Essa decisão do
homem é tomada de maneira histórica, temporal. Isso significa dizer que, antes de tudo, o
homem é linguagem e a língua pertence ao diálogo. Dessa forma, o diálogo é uma decisão
temporal e histórica do homem. Quando tomada essa decisão, o homem decide acerca de si
mesmo.
Importa lembrar aqui que o tempo do qual fala Hölderlin é aquele que não pode ser
mensurado, ou seja, contado em horas, dias ou meses. Ocorre uma inversão na maneira
habitual de se conceber o tempo e a história. Estes não se iniciam em meio aos
acontecimentos históricos. Antes, “o acontecimento lingüístico é o início e a causa do
verdadeiro tempo histórico do Homem”.
99
Ou seja, antes de tudo e de qualquer outra coisa a
linguagem nos fundamenta, pertencemos a ela. Tempo e história são posteriores ao diálogo, à
linguagem. Na medida em que existe o diálogo é que tempo e história são.
A linguagem se no diálogo, como pergunta e resposta. E nós somos homens
quando respondemos às perguntas, ou melhor, aos acenos dos deuses. Porque existe a
linguagem é que o diálogo pode se dar. Nós só falamos quando interpelados, enquanto a
linguagem se de forma a anteceder o diálogo. Nosso dizer é secundário, é resposta. Em
nossa resposta às perguntas dos deuses somos levados à palavra, e ao respondermos ocorre o
manifestar ou o ocultar dos entes.
No entanto, pode ser que os deuses se calem e que deixemos de ouvir seu chamado.
Mesmo que isso venha a ocorrer, continuamos a ser um diálogo. Isso porque “o fato de
sermos um diálogo significa ao mesmo tempo e pelas mesmas razões que somos um
silêncio”.
100
E quando os deuses se calam, como fica o poeta? O canto do poeta se perde? Ele
também se cala diante da negativa dos deuses? A resposta a essas perguntas é negativa, pois
97
HEIDEGGER, Martin. Hinos de Hölderlin. Lisboa: Piaget, 2004. p. 71.
98
Ibid. p. 71.
99
Ibid. p. 72.
100
Ibid. p. 72.
58
se a tonalidade fundamental do dizer poético é a exposição/retração do ser, o canto do poeta
não se cala quando o ser se retrai. Quando da fuga dos deuses, o poeta deve cantar essa fuga.
Hölderlin é poeta de um tempo em que os deuses fugiram, seu canto possui a
tonalidade de um sentimento fundamental, o sentimento do luto. Os deuses fugiram, isso é
passado, é algo que aconteceu, e por isso é uma certeza. O luto é uma necessidade porque
surge de uma certeza: a fuga dos deuses.
Essa maneira de experimentar os deuses em sua fuga é também uma outra maneira
de experiência do sagrado. Isso porque, para Hölderlin, o sagrado é o não-utilitário, no sentido
de que não é algo que esteja à disposição do homem. O sagrado não é algo que pode ser
apropriado. Ele se resguarda a toda objetivação, a toda tentativa de ser utilizado em benefício
do homem. O sagrado é uma abertura que garante tanto o espaço da vinda quanto o espaço de
fuga dos deuses. O poeta é o guardador desse espaço, desse lugar vazio, desse “entre”.
O poeta em luto sagrado canta a fuga dos deuses, e assim, se abstém de evocar a
volta desses que se foram ou a vinda de novos deuses. Dessa forma, seu canto é uma renúncia
aos deuses. Uma renúncia que não deve ser confundida com lamento ou resignação, que é
ela quem abre a possibilidade de uma nova relação com os deuses.
O poeta respeita a morte dos deuses, pois é dessa forma que a vinda de novos ou dos
mesmos deuses está assegurada. Não é porque se foram que os deuses não são mais os
mesmos. Pelo contrário, eles são eles mesmos quando respeitados como aquilo que
verdadeiramente são: deuses em fuga. Por isso a renúncia é como que um ato de respeito da
parte do poeta para com os deuses foragidos. A renúncia deixa que os deuses sejam aquilo que
são e assim preserva-os em sua deidade.
Preservados em sua deidade os deuses permanecem enquanto foragidos, numa
distância que é ao mesmo tempo proximidade. Os deuses fugiram, mas o divino continua
presente na forma da ausência. O ser dos deuses fugidos é justamente o ter sido um dia
deuses presentes. Dessa forma, o espaço da deidade está preservado. Mesmo ausentes os
deuses são aqueles que um dia “foram” presentes e agora estão sumidos. O luto sagrado
preserva esse espaço vazio que os deuses deixaram em sua fuga.
59
Hölderlin entende que com a morte de Cristo
101
teve início um tempo em que os
deuses estão sumidos, em que a tarde avança sobre o dia e se aproxima cada vez mais da
noite. Segundo o que diz Heidegger logo no início da conferência, a palavra “tempoque
aparece na pergunta diz respeito a esse tempo de indigência, ao qual nós ainda pertencemos.
A noite do mundo é justamente esta era dos deuses fugidos, o que segundo Heidegger (2002,
p.248) não quer dizer que Hölderlin negue ou despreze uma experiência ainda possível com o
Deus cristão. “A falta de deus anuncia, porém, algo muito pior. Não se foram os deuses e
Deus, como também se apagou na história do mundo o fulgor da divindade”.
102
Através dessas palavras percebe-se que o que se apagou na era do tempo indigente
foi algo mais profundo e original. O que subsiste na profundidade original é a dimensão
mesma da divindade, a possibilidade de que um deus ou deuses sejam reconhecidos como
tais. A indigência do tempo indigente é de uma amplitude tal que aqueles que vivem nesse
tempo deixaram de notar “que a falta de Deus é uma falta”.
103
Com a inobservância da falta de Deus como uma falta, o mundo perdeu seu fundo,
seu fundamento. Sem um fundo que sustente é como se a era da indigência estivesse
pendurada num abismo. Isso porque, para Heidegger (2002, p.310), a palavra abismo é
Abgrund, que significa “o solo e o fundo em direção ao qual tende, encosta abaixo, algo que
está pendurado”.
104
No abismo persiste lá no fundo um solo que sustenta.
Para Heidegger, porém, devemos pensar o Ab da palavra Abgrund como uma falta
completa de fundo. Sem o fundo é como se a era do mundo estivesse suspensa no abismo.
Perguntamos-nos: o que Heidegger quer dizer com esse abismo sem fundo no qual a era do
mundo encontra-se suspensa?
Vemos que, para o Heidegger (2002, p.310), existe uma saída para revertermos essa
situação do tempo indigente. E mais, a saída encontra-se no próprio abismo, que é a partir
dele que a viragem para um outro tempo pode se dar. “Na era da noite do mundo, tem que se
101
Na conferência Heidegger diz: “Com o surgimento e o sacrifício mortal de Cristo teve início, segundo a
experiência histórica de lderlin, o fim do dia dos deuses. A tarde vai avançando. Desde que a ‘trindade’,
Héracles, Dionísio e Cristo, deixou o mundo, a tarde do tempo do mundo foi-se aproximando da noite. A noite
do mundo estende a sua escuridão. Esta era do mundo caracteriza-se pela ausência de Deus, pela ‘falta de Deus’.
A falta de Deus que Hölderlin experiencia não nega, no entanto, o persistir de uma relação com o Deus cristão,
quer individualmente quer na Igreja, nem despreza essa mesma relação. A falta de Deus significa que não
existe um Deus que reúne em si, visível e univocamente, as pessoas e as coisas e que, com base nessa reunião
articule a história”. (Heidegger, Martin. Para que poetas?. In: Caminhos de Floresta. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2002. p. 309.)
102
HEIDEGGER, Martin. Para que poetas?. In: Caminhos de Floresta. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
2002. p. 248.
103
Ibid. p. 248.
104
Ibid. p. 310.
60
experimentar e suportar o abismo do mundo. Mas para tal será necessário que haja quem
consiga chegar até ao abismo”.
105
A saída para um novo tempo está no próprio abismo e na vivência dele, em sua
experimentação. No entanto, se sair desse abismo não é nada fácil, chegar até ele também não
o é. Parece óbvio que quem consegue chegar até o abismo tem a possibilidade de dele se
desprender. A saída do abismo é dura e longa porque os homens nem mesmo se apercebem
que se encontram nessa situação e por isso dela não conseguem sair. Eles não vêem que nessa
situação, no próprio abismo, encontra-se a saída para a indigência na qual vivem.
A viragem para fora do abismo tem que ser dada com os mortais, porque segundo
Heidegger eles são os que chegam primeiro ao abismo, antes mesmo dos celestes. Para
entender o que Heidegger quer dizer com essas palavras, temos que pensar que para ele o
homem entende melhor que qualquer outro ser o sentido da falta, da ausência. Isso porque ele
se encontra em total familiaridade com o estar-presente. Para o homem tudo é medido pela
capacidade de presença e ausência das coisas, até mesmo o ser, que desde há muito é tido pelo
homem como aquilo que é, como presença constante. Só que o ser não é um estar-presente
constante, ele é também encobrimento, ausência.
O abismo, diz Heidegger (2002, p.311), “alberga e percebe tudo”
106
, tanto a ausência
quanto a presença. No abismo encontram-se os sinais, os vestígios que os deuses foragidos
deixaram. Aquele que ao abismo chegar primeiro terá o privilegio de experimentar esses
sinais oriundos dos deuses. E quem chega primeiro é o poeta, ele é quem primeiro pressente
os vestígios e que vai, assim, “permanecendo sobre estes vestígios e assim apontando aos seus
irmãos o caminho da viragem”.
107
Nessa conferência Heidegger (2002, p.312) chama de “éter” à divindade, onde os
deuses são deuses. A divindade parece ser uma localidade desde onde os deuses são deuses e
desde onde a viragem é possível. A divindade é como que uma dimensão que abarca os
deuses. Tal dimensão é o sagrado, o que Heidegger chama aqui de “elemento do éter”. O
sagrado, como dimensão ou localidade que abarca a possibilidade de qualquer divindade,
preserva o espaço deixado pelos deuses fugidos. O poeta é o único habilitado a cantar o
sagrado, porque se mantém em constante vigília à espera dos vestígios.
105
HEIDEGGER, Martin. Para que poetas?. In: Caminhos de Floresta. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
2002. p. 310.
106
Ibid. p. 311.
107
Ibid. p. 312.
61
À essência do poeta que, em tal tempo do mundo, é verdadeiramente poeta,
pertence o facto de, para ele, de antemão e a partir da indigência do mundo, o
poetar e a vocação poética se tornarem questões poéticas. Por isso, os “poetas em
tempo indigente” têm que poetar a própria essência da poesia. Onde isto acontecer,
deve supor-se um poetar que se conforma com o destino da era do mundo.
108
Em conformidade com sua essência, o poeta em tempo indigente canta o sagrado,
canta os vestígios deixados pelos deuses. “O luto transforma-se num saber de que levar
verdadeiramente a sério os deuses fugidos enquanto fugidos é, em si, precisamente, uma
permanência junto dos deuses ou, mais concretamente, junto da sua divindade, enquanto
divindade já não realizada”.
109
O canto poético tem como suporte a própria essência da poesia, porque ela é capaz
de preservar a ausência deixada pela fuga. A poesia é capaz de preservar o único modo como
nós podemos nos relacionar com os deuses em tempo indigente. Ela preserva os deuses como
ausentes e assim preserva a possibilidade de manifestação da divindade. O poeta em tempo
indigente canta a fuga e assim contribui para que o povo suporte a falta dos deuses.
Na conferência intitulada Regresso ao lar, Aos parentes pronunciada na
Universidade de Friburgo em 1943, em comemoração pelo centenário da morte de Hölderlin –
Heidegger (2005, p.32) diz da tarefa do poeta em tempo de indigência. Ao poeta cabe
“permanecer próximo da falta de deus sem temer a aparente ausência de deus”.
110
Essa atitude
do poeta deve ser persistente e durar o tempo que for necessário, “até que desde a
proximidade do deus que falta seja-nos confiada a palavra inicial que nomeia ao Alto”.
111
Esse lugar onde se conserva a proximidade com o deus que falta é o lar para onde o poeta
deve regressar.
Segundo as palavras de Heidegger, o ofício do poeta consiste em guardar o mistério
dessa proximidade preservadora. Este é o cuidado do poeta para com o mistério. E é esse
cuidado que assegura o regresso ao lar. O regresso ao lar, por sua vez, não assegura a volta do
deus que partiu. No regresso, o poeta se obrigado a lidar com a ausência e também com a
possibilidade de uma possível manifestação de deus. O “Último Deus” é o nome dado por
Heidegger a essa possibilidade que, além de extrema, prefigura o modo como o homem lida a
partir de então com a divindade.
108
HEIDEGGER, Martin. Para que poetas?. In: Caminhos de Floresta. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
2002. p. 312-313.
109
Ibid. p. 96.
110
HEIDEGGER, Martin. Regreso al Hogar / A Los parientes. In: Aclaraciones a la poesía de Hölderlin.
Madrid: Alianza Editorial, 2005. p. 32. (Tradução nossa).
111
Ibid. p. 32-33. (Tradução nossa).
62
2.5 O Último Deus
A figura do Último Deus (der letzte Gott) é invocada por Heidegger em Beiträge zur
Philosophie Vom Ereignis, reunião de escritos feitos entre os anos de 1936 e 1938, mas
somente publicados em língua alemã no conjunto das obras completas de Heidegger em 1989.
Utilizamos em nossa pesquisa uma tradução para o espanhol, intitulada Aportes a la
filosofia: acerca del Evento, publicada pela editora Biblos em 2003
.
Nesta obra, Heidegger
dedica um pequeno capítulo à questão do Último Deus.
Em Aportes, Heidegger pensa a questão da verdade em articulação com as
interpretações sobre Hölderlin. Segundo Werle (2005, p.42), “seu intento geral consiste em
mostrar o âmbito e as características de um novo pensamento que não será mais
metafísico”.
112
A este novo pensamento Heidegger chama de “o outro início” (der andere
Anfang). Nesse Outro início o pensamento deve se desfazer das amarras metafísicas que tudo
calcula, onde até mesmo Deus é tido como um valor, o valor supremo. O deus da metafísica
não respeitou a diferença ontológica.
Para o pensamento heideggeriano, “Hölderlin, que recupera transformada a
experiência de Deus pré-metafísica da tragédia grega, pode ser fiador para a possibilidade de
uma theologia que, numa era em que Deus se retira, também se sabe colocada sob a
reivindicação do divino”.
113
A experiência da morte de Deus anunciada por Nietzsche na frase “Deus morreu”
114
,
é decisiva para o pensamento de Heidegger após Ser e Tempo. Porém, qualquer que seja a
significação desse anúncio de Nietzsche, o que devemos acentuar é que para Heidegger o
Deus que morreu foi aquele da metafísica e esta morte não impede uma experiência com o
divino.
A essência metafísica de Deus como Deus moral é refutada por Heidegger. Na
metafísica, o ser é um estar presente constante e Deus é o fundamento último do ser e valor
supremo. Para Heidegger, pensar Deus como o valor supremo não é experimentá-lo em sua
essência primordial. A autêntica essência de Deus só é experimentada por um pensamento que
112
WERLE, Marco Aurélio. Poesia e pensamento em Hölderlin e Heidegger. São Paulo: Editora UNESP, 2005.
p. 42.
113
PÖGGELER, Otto. A via do pensamento de Martin Heidegger. Lisboa: Instituto Piaget, 2001. p. 249.
114
“Nietzsche enunciou o dito “Deus morreu”, pela primeira vez, no terceiro livro do escrito A Gaia Ciência,
aparecido em 1882”. (HEIDEGGER: A palavra de Nietzsche “Deus morreu”. In: Caminhos de Floresta. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 2002. p. 248.
63
“consegue alcançar a essência inicial da verdade”.
115
Isso significa que a partir da
superação da metafísica a divindade de Deus pode ser pensada como algo que subsiste
mediante a fuga dos deuses. O Deus divino não morreu, ele ainda pode ser pensado.
Aportes é considerada pelos estudiosos a segunda mais importante obra de
Heidegger. A época de sua confecção coincide com a de textos relevantes para nossa pesquisa
como A Origem da Obra de Arte (1935) e Hinos de Hölderlin (1934).
O Último Deus aparece em Aportes, porque, segundo Heidegger, o Último Deus e
Ereignis
116
são temas que se interligam e por isso devem ser pensados juntos.
Com o declínio da Metafísica, depois dessa ter chegado ao extremo de sua
realização, Heidegger acredita que o ser deve ser pensado a partir daquela que passa a ser a
palavra-chave de seu pensamento: Ereignis. Isso significa a instauração de um novo modo de
pensar a partir de uma viravolta (Kehre). Deus e o ser são questões diferentes, mas que se
tornam muito próximas no decorrer do pensamento meditativo instaurado por Heidegger a
partir da Kehre. A superação da metafísica e a instauração de um “outro início” significam a
substituição do luto pelo pressentimento de um outro deus. A palavra-guia Ereignis é quem dá
acesso à possibilidade da chegada desse outro deus. Ereignis significa a mútua apropriação do
homem e do ser, antes esquecida pelo pensamento metafísico que operou o esquecimento do
ser. A partir da Ereignis abre-se a possibilidade de se pensar ser e homem num acontecer e
num apropriar-se recíproco.
Em Aportes, Heidegger (2003, p.330) diz que “O último deus não é o fim, mas sim o
outro início de incomensuráveis possibilidades de nossa história”.
117
Isso significa que o
Deus é chamado de Último, não porque vem depois do Deus que morreu. Também não o é,
pelo fato de ainda não ter chegado e por isso ocupa um distante último lugar.
115
PÖGGELER, Otto. A via do pensamento de Martin Heidegger. Lisboa: Instituto Piaget, 2001. p. 249.
116
Das Ereignis é uma palavra fundamental para a filosofia heideggeriana após a Kehre. Com ela, Heidegger
procura expressar o âmbito no qual o acontecimento apropriante / expropriante de homem e ser se dá. “Trata-se
de simplesmente experimentar este ser próprio de, no qual homem e ser estão reciprocamente a-propriados,
experimentar que quer dizer penetrar naquilo que designamos acontecimento-apropriação. A palavra
acontecimento-apropriação é tomada da linguagem natural. Er-eignen (acontecer) significa originariamente:
er-aügnen, quer dizer, descobrir com o olhar, despertar com o olhar, apropriar. A palavra acontecimento-
apropriação deve, agora, pensada a partir da coisa apontada, falar como palavra-guia a serviço do pensamento.
Como palavra-guia assim pensada, ela se deixa traduzir tão pouco quanto a palavra-guia grega lógos ou a
chinesa Tao. A palavra acontecimento-apropriação não significa mais aqui aquilo que em geral chamamos
qualquer acontecimento, uma ocorrência. A palavra é empregada agora como singulare tantum. Aquilo que
designa se no singular, no número da unidade, ou nem mesmo num número, mas unicamente”.
(HEIDEGGER, Martin. Identidade e Diferença. In: Conferências e Escritos filosóficos. São Paulo: Abril
Cultural, 1979. (Os Pensadores). p. 185.
117
HEIDEGGER, Martin. Aportes a la Filosofía – acerca del evento. Buenos Aires: Editorial Biblos, 2003. p.
330. (Tradução nossa).
64
Segundo Benedito Nunes
118
, ele é chamado de último por ser passageiro, efêmero,
transitório. Isso porque a existência de um Deus é assegurada quando ele de fato existe. A
identidade do Último Deus não é conhecida. o conhecemos se a ele correspondermos o
Ereignis. Essa constatação é uma pista, já que para Heidegger o Ereignis não carrega o tom de
uma instauração, ele é acontecimento. Dessa maneira, segundo Nunes (1998, p.59), o Último
Deus é uma figura de passagem, “que nos acena do próprio acontecimento da fuga dos deuses,
da ausência de sua chegada, da oculta transformação que sofrem, e cuja essência reside nesse
mesmo aceno (Winke)”.
119
A chegada do Último Deus não pode ser calculada ou prevista. Sua possibilidade tem
a ver com o Outro Início e com o Ereignis. O Outro Início exige o Ereignis, como diz Nunes,
isso porque ela é “uma espécie de maturação do ser”.
120
A figura do Último Deus não é a resposta frente a fuga dos deuses. O Último Deus é
na verdade o que instaura a possibilidade de um modo novo de o homem realizar uma
experiência com a divindade.
Pensadores e poetas não podem dizer quem é o Último Deus, porque se ele pudesse
ser definido logo se transformaria no primeiro, no ente supremo, na causa suprema. O que
podemos dizer é que ele está numa correspondência com o Ereignis. “Sem acontecimento
apropriador, sem novo começo retroagindo ao antigo começo grego, não se justificaria essa
figura, da qual se pressente o advento, sem que se saiba para quando”.
121
Na fuga dos deuses, nasce o pressentimento do Último Deus. E o Ereignis é o que
acesso a esse Deus. “O último deus não é o evento mesmo, mas talvez necessite dele, como
aquele em que pertence o fundador do aí”.
122
E qual seria o lugar da vinda desse Último
Deus? A resposta para esta pergunta está na citação acima. O Último Deus advém no lugar
onde o homem se confronta com Deus, ou seja, na vida fática, no Da do Dasein.
Diante do que foi dito até o momento, propomos um olhar em tom de revisão sobre o
que vimos até aqui. Esta proposta tem o intuito de fazer as considerações finais desse
momento do trabalho e também de preparar caminho para o próximo capítulo.
Importa ressaltar que para o pensamento heideggeriano o poeta em tempo indigente
vive uma dupla indigência. De um lado ele vive a fuga dos deuses e de outro a retirada do ser
que ainda não foi pensado como deveria pela tradição metafísica.
118
NUNES, Benedito. Crivo de Papel. São Paulo: Editora Ática, 1998.
119
Ibid. p. 59.
120
Ibid. p. 41.
121
Ibid. p. 42.
122
HEIDEGGER, Martin. Aportes a la Filosofía – acerca del evento. Buenos Aires: Editorial Biblos, 2003. p.
329. (Tradução nossa).
65
Com a destruição da metafísica e o início de um outro modo de pensar, Heidegger
propõe que o problema do ser seja colocado a partir da essência do homem. O homem não
deve ser pensado sob o ranço da metafísica, como animal racional. Sua essência é outra. O
homem, para Heidegger é aquele que compreende o ser. O homem é o lugar desde onde o ser
deve ser pensado; o Da do Dasein é o lugar no qual o ser se manifesta, enquanto o ser mesmo.
Aqui se coloca a identidade entre ser e homem. Identidade que foi colocada na metafísica
apenas como um traço do ser. Heidegger inverte os papéis, o ser é um traço da identidade e o
homem também.
A metafísica, ao esquecer o ser, cria a possibilidade de instalação de uma era onde
tudo é subjetivado, é a era da técnica. A técnica com seu olhar de subjetivação, enxerga todas
as coisas como objetos a serem explorados, dissecados e manufaturados. Esse olhar da técnica
produz o esquecimento do ser, o esquecimento de que ocorre uma dinâmica mais radical
desde a qual todas as coisas vêm a ser. O que o homem da técnica esqueceu é que mesmo em
seu modo próprio de mostrar-se ocultando, o ser está ali, na intimidade do surgimento de cada
coisa.
O poeta surge como aquele que, mesmo estando com os pés atolados numa era de
esquecimento do ser, aponta para o ser e para a sua verdade. Por isso ele é um estranho em
tempo indigente. Em meio à técnica, o poeta busca o ser.
Para o poeta existe algo além da técnica, algo que a sustenta. A técnica não é a
resposta para todas as perguntas. O que o poeta faz é colocar-se no cerne da técnica. Ele não
foge dela, seu papel é o de assumi-la como lugar de esquecimento do ser.
A técnica não se conta de que foi fundada sobre algo que lhe é familiar, algo que
ela esqueceu. Dessa, forma é a partir dela mesma, da técnica e do esquecimento semeado por
ela, que o poeta pode pensar o ser. O ser se esconde na essência mesma da metafísica. No
tempo da técnica, a história do ser se dá como a história de seu esquecimento.
Hölderlin se torna aquele que vai caminhar por caminhos não-metafísicos.
Heidegger procura caminhar ao lado do poeta nas sendas em busca do ser. Nesse Outro
Início, a poesia de Hölderlin proporciona pensar fora dos muros erguidos pela metafísica.
Com seu canto, o poeta suábio anuncia a fuga dos deuses e a vinda do Último Deus.
Hölderlin canta em tempo de fuga dos deuses a verdade como o sagrado, como a dimensão
que compreende o divino. A ausência dos deuses cantada por Hölderlin advém do
esquecimento do ser, é produto desse esquecimento.
E mais, o homem na era da técnica é incapaz de perceber que o ser está esquecido,
ele constrói tendo como pilar algo que foi esquecido e com isso não percebe a própria
66
indigência. E na medida em que não se considera indigente, impede que o ser seja pensado
por um novo pensamento, porque não pressente que o ser foi esquecido.
Os deuses não podem se manifestar ao homem, que não enxerga que a dinâmica
mais própria da verdade enquanto alétheia é o desocultamento e o ocultamento. Isso porque a
verdade é o espaço e o tempo de manifestação do sagrado. Se o sagrado, o ser, o espaço de
manifestação da divindade, não existe mais, os deuses não podem se manifestar ao homem,
não podem interpelá-lo.
Os deuses fugiram na era da cnica. Em Germânia, o poeta canta essa fuga em
razão dos vestígios do sagrado que os deuses deixaram. Ao passo que, se existe um tempo de
fuga, é porque um dia os deuses podem vir a se manifestarem novamente. Esse tempo-espaço
de manifestação dos deuses é consignado pelo sagrado. O sagrado em sua vinda é cantado de
maneira singular no poema Como quando em dia de feriado..., que será analisado no próximo
capítulo.
CAPÍTULO 3 - O SAGRADO NO POEMA COMO QUANDO EM DIA DE
FERIADO...
3.1 Considerações Iniciais
Neste capítulo o objetivo principal é compreender a interpretação que Heidegger
realiza do sagrado em Como quando em dia de feriado... . Ou seja, analisar de maneira mais
sistemática o alvo a que se dirigiram os esforços empreendidos até aqui. Além disso, procura-
se pontuar nesse momento suas possíveis especificidades em relação às interpretações do
sagrado em outros poemas.
A conferência Como quando em dia de feriado... foi pronunciada diversas vezes
entre os anos de 1939 e 1940. Sua primeira publicação ocorreu no ano de 1941. Utilizamos
em nossa pesquisa a tradução espanhola presente no livro Aclaraciones a la poesía de
Hölderlin, publicada pela Alianza Editorial em 2005.
O título da conferência foi tomado de um poema de Hölderlin que, por sua vez, não
tem título. A frase: “como quando em dia de feriado”, aparece na primeira estrofe do poema e
talvez por isso tenha sido adotada como título deste.
Segundo Heidegger, o poema de Hölderlin foi composto no ano de 1800. Passaram-
se mais de um século até que fosse conhecido na Alemanha. Norbert von Hellingrath,
organizador das obras de Hölderlin foi o primeiro a publicá-lo em 1910. Vamos à leitura do
poema:
Como quando em dia de feriado...
I
1 Como quando em dia de feriado um camponês
2 Caminha de manhã para ver o campo, após uma
3 Noite quente em que caíram raios refrescantes, quando
4 O tempo todo e ao longe ainda ressoa o trovão,
5 Ao seu leito volta o rio,
6 E fresco verdeja o chão,
7 E devido à alegre chuva do céu,
68
8 Pinga e reluz a parreira,
9 Sob um sol tranqüilo se erguem as árvores da mata:
II
1 Assim estão sob tempo oportuno
2 Vocês, que nenhum mestre educa sozinho,
3 Mas a maravilhosa onipresença em leves proporções,
4 A poderosa, a natureza de beleza divina.
5 Por isso, quando ela parece, durante certas épocas do ano,
6 Dormir no céu, sob as plantas ou entre os povos,
7 Também se aflige assim a face dos poetas,
8 Eles parecem estar sós, contudo, sempre pressentem.
9 Pois pressentindo ela mesma também descansa.
III
1 Mas agora amanhece! Esperei e vi chegar,
2 E o que vi, o sagrado, seja minha palavra.
3 Pois ela, ela mesma, que é mais antiga que os tempos,
4 Está sob os deuses do Ocidente e do Oriente,
5 A natureza está agora acordada com o soar das armas,
6 E do alto Éter até o fundo do abismo,
7 Segundo sólida lei, como outrora, nascida
8 Do caos sagrado, a admiração se sente
9 A criadora de tudo novamente.
IV
1 E assim como nos olhos brilha para o homem
2 Um fogo, quando projeta algo elevado:
3 Assim de novo nos sinais, nos fatos do mundo,
4 É agora acendido um fogo na alma dos poetas.
5 E o que outrora aconteceu, mas apenas foi sentido,
6 É somente manifesto agora,
7 E os que sorridentes, na figura de criados
8 Lavraram o campo para nós, eles são conhecidos,
9 Os vivificadores, as forças dos deuses.
V
1 Perguntas por eles? No canto sopra seu espírito
2 Quando desperta por causa do sol do dia e da terra quente,
3 E as tormentas, que no ar, e outras
4 Mais preparadas nas profundezas do tempo, mais
5 Cheias de interpretação e mais perceptíveis, nos
6 Arrastam entre o céu e a terra e os povos.
7 Os pensamentos do espírito comum são –
8 São os que terminam silenciosos na alma do poeta.
VI
1 Para que subitamente atingida, conhecedora do
2 Infinito desde longo tempo, estremeça pela
3 Recordação, e para vós, acendido por um raio
69
4 Sagrado, a fruta gerada no amor, dos homens
5 E dos deuses obra, o canto, como qual cria ambos, se saia bem.
6 Assim caiu, como dizem os poetas, quando desejava
7 Ver o Deus, seu raio sobre a casa de Sêmele que,
8 Em cinzas mortalmente atingida, gerou o sagrado
9 Baco, o fruto da tempestade.
VII
1 E por isso, os filhos da terra bebem agora
2 Sem perigo o fogo celestial.
3 Mas a vós convém, sob as tempestades de Deus,
4 Seus poetas! Estar com a cabeça despojada,
5 O raio do pai, ele mesmo, captar com as próprias mãos,
6 E para o povo, protegidos em canto,
7 Conseguir dotes celestiais,
8 Pois somos apenas do puro coração
9 Como crianças, nós, são inocentes nossas mãos.
10 O raio do pai, o puro, não chamusca.
11 E mesmo tocado no fundo, compartilhando
12 Das dores de um Deus, o coração eterno permanece firme.
123
3.2 A natureza e sua onipresença maravilhosa
A palavra “natureza” possui uma força singular não na estrofe onde é nomeada,
mas no poema como um todo. Segundo Boutot (1993, p.123), Heidegger entende que a
natureza determina cada palavra do poema até o seu final. “O divino, ou melhor o sagrado,
Hölderlin experimenta-o, no seu poema Como quando em dia de feriado..., sob o nome de
‘Natureza’”.
124
Para Heidegger, a primeira estrofe da poesia parece a descrição de um quadro, uma
pintura onde se um camponês caminhando numa manhã de sol por entre a vinha. O
camponês constata que a chuva que caiu com força na noite anterior não danificou a
plantação. O que semeou está intacto e serão gerados os frutos para seu sustento. Os trovões,
que ainda ressoam ao longe, não afastam da lembrança a força da tempestade que caiu. O
123
Devido à impossibilidade de uma tradução nossa do poema para o português, adotamos a tradução feita por
Marco Aurélio Werle em seu livro Poesia e Pensamento em Hölderlin e Heidegger. Werle traduziu a partir do
original alemão, baseado em tradutores brasileiros especialistas em lderlin. Na bibliografia Werle faz
referência às traduções feitas por Antônio Medina Rodrigues, Márcia de Sá Cavalcante e Antônio Abranches.
124
BOUTOT, Alain. Introdução à filosofia de Heidegger. Lisboa: Publicações Europa-América, 1993. p. 123.
70
volume de água do rio voltou ao seu normal e a chuva parece ter salientado ainda mais o
verde das plantas.
A primeira estrofe termina com dois pontos, o que, segundo Heidegger, faz com que
o “Como” seja uma abertura para o “Assim” da segunda estrofe. As duas estrofes parecem
unidas como num abraço. Nesse abraço unificador estão também camponês e poeta.
Existe uma correspondência entre a lida cotidiana do camponês, poetizada na
primeira estrofe, e a atividade dos poetas. Camponês e poetas estão “sob tempo oportuno”.
Isso porque ambos estão sob os desígnios da natureza. Não é o camponês quem cultiva a
natureza, e sim o contrário. A natureza é quem determina o melhor momento de arar o campo,
de semear os grãos. É ela quem diz quando o fruto está pronto para a colheita. Ao camponês
cabe ser sensível aos apelos da natureza para que ela lhe conceda o sustento.
A natureza é aquela que educa de modo diferenciado. Ao mestre ou professor cabe
apenas “inculcar”, ou seja, apontar, apregoar algo. A educação do mestre não é capaz de nada
além disso. a natureza educa porque é onipresente, está presente em todo o real de forma
maravilhosa. “A natureza está presente na obra humana e na história dos povos, nos astros e
nos deuses, mas também nas pedras, nas plantas e animais, assim como nos rios e nos
temporais”.
125
Por estar presente em cada uma das coisas que compõem o real, a natureza é
onipresença maravilhosa.
Pelo fato de estar presente em todo o real, não significa que a natureza seja o
acúmulo de tudo o que existe ou que ela possa ser encontrada num único elemento isolado da
realidade. O conjunto das coisas que existem é uma conseqüência da onipresença da natureza,
e não o contrário. Nada do real pode explicar ou apontar a onipresença da natureza.
A natureza sempre esteve presente, ela é anterior a qualquer coisa que existe na
realidade. O acesso a ela é impossibilitado por isso, porque não podemos colhê-la como um
objeto. O homem pode tentar chegar até a natureza, mas o que consegue é apenas destruir
aquilo que ela tem de mais maravilhoso, a sua simplicidade. A natureza é um “mero
acontecer”, não tem razão de ser, isso a torna algo extraordinário. Esse maravilhoso da
natureza, mesmo estando presente em tudo o que conhecemos, não pode ser produzido pelas
mãos do homem. Para Heidegger isso explica a expressão de Hölderlin: a natureza educa em
leves proporções”.
O educar de modo “leve” da natureza pode causar a falsa impressão de que exista
uma falha. A leveza das proporções não representa uma fraqueza da natureza, mesmo porque,
125
HEIDEGGER, Martin. Aclaraciones a la poesía de Hölderlin. Madrid: Alianza Editorial, 2005. p. 59.
(Tradução nossa).
71
a natureza é também “a poderosa”. Esse seu poder não é retirado de outro lugar fora dela. Ela
mesma é quem tem o poder e por isso pode concedê-lo. A natureza é, pois, onipresente e
poderosa.
No quarto verso da segunda estrofe do poema, Hölderlin diz que a natureza é
poderosa porque sua beleza é divina. Isso não quer dizer que a natureza seja um deus ou
deusa, ao passo que está presente inclusive nos deuses. A natureza não é um deus ou deusa
porque se assim o fosse deixaria de ser “a natureza” da maneira como é compreendida nesse
poema. A divindade não é um traço que possa traduzi-la ou explicá-la. A beleza da natureza
deve-se ao fato de ela ser maravilhosamente onipresente.
Como foi dito acima, a onipresença da natureza nada tem a ver com medida de
quantidade e cálculo. A onipresença significa que a natureza congrega em si “inclusive
aqueles elementos reais que de acordo com seu modo de ser parecem excluir-se mutuamente.
A onipresença mantém enfrentados os extremos contrários do céu mais alto e o mais profundo
abismo”.
126
Os elementos do real, contrários entre si, são mantidos cada qual na particularidade
que os diferencia uns dos outros graças à tensão da contraposição. Colocados uns perante os
outros nessa tensão, cada elemento mostra sua pertença a uma mesma unidade. A unidade,
acirrada pela contraposição entre os elementos contrários, não faz com que tudo se resuma ao
mesmo, ao igual. Acontece que, na alteridade mais extremada, cada elemento se mostra como
aquele que é. Na tensão da unidade, o céu se torna ainda mais alto quando contraposto à
profundidade do abismo.
Nesse combate entre elementos contrários entre si, ora uns ora outros se sobressaem
ou se escondem. As duas coisas se dão ao mesmo tempo. Ao mesmo tempo em que uns
elementos se sobressaem, outros se subtraem. Aqueles que se subtraem, ao fazerem isso,
permitem aos outros aparecerem. Na ausência de uns reside a possibilidade da presença dos
outros. Essa é a essência da beleza. A beleza permite que os elementos opostos estejam uns
nos outros “e deste modo, partindo da pureza do bem diferenciado, permite que tudo esteja
presente em tudo. A beleza é a onipresença”.
127
A beleza é o que unifica, e tal unidade
assinala a particularidade de cada elemento que compõe o real. Isso ocorre com cada elemento
na devida contraposição a seu contrário.
126
HEIDEGGER, Martin. Aclaraciones a la poesía de Hölderlin. Madrid: Alianza Editorial, 2005. p. 59-60.
(Tradução nossa).
127
Ibid. p. 60. (Tradução nossa).
72
Na unidade, a diferença entre os elementos é o que mais sobressai, é o que ressalta de
modo mais extremo. A diferença que ressalta é também o que atrai os elementos para a
unidade. Porém, ao mesmo tempo em que a unidade ressalta a diferença, a onipresença
diminui as oposições. A onipresença reúne todos os elementos sob uma mesma unidade e
desse modo, faz com que eles pertençam ao mesmo abraço. No entanto, o resultado dessa
reunião não representa o fim das tensões e a “igualação banal”.
Para Heidegger, na unidade reina uma paz que brilha silenciosa como a luz mais
clara do fogo do combate entre os elementos. Nesse combate, ocorre um jogo entre os
elementos, já que uns se subtraem para que os outros possam aparecer. A natureza é ao
mesmo tempo aquela que traz as coisas ao aparecer e o que permite que elas se escondam. A
natureza é divinamente formosa porquem assim como a essência do que é belo, ela atrai e
afasta ao mesmo tempo. Os deuses ou deusas são aqueles que mais se aproximam da natureza
porque, ao ser possível sua aparição, esta se tanto como atração quanto afastamento. Na
aparição dos deuses as duas coisas se confundem, pois o afastamento pode parecer a maior
proximidade e a proximidade o maior afastamento. Nos deuses estas duas coisas, afastamento
e proximidade, se dão de forma isolada. Apenas na natureza elas se dão em concomitância.
Os poetas pertencem a esse abraço da natureza que a tudo congrega e reúne. Isso
quer dizer que a essência dos poetas é marcada pelo fato de serem educados pela natureza. Se
a educação ao modo da natureza é capaz de deixar marcas naquele que educa, a pertença dos
poetas a essa natureza onipresente marca de modo considerável o destino deles. A partir do
verso cinco da segunda estrofe, quando a natureza parece dormir em certas épocas do ano, tal
situação aflige também aos poetas. Isso porque o poeta está inserido nesse abraço da natureza
que tudo recolhe.
No poema, a natureza descansa num “aparente” dormir. Para Heidegger, dormir é um
modo de se manter longe, ausente. A natureza pode aparentar esta falsa ausência porque
está presente em tudo. O aparente dormir da natureza é na verdade um estar presente ao modo
da tristeza e da dor. Na dor ocorre uma retração daquilo que se recolhe (da natureza) no modo
de uma rememoração. Na rememoração, o que parece distante e se retira no modo da ausência
na verdade se mantém próximo. A dor não é um afundar-se no arrebatamento. Na dor, a
rememoração garante que o que estava ausente possa vir a ser uma vez mais e, assim
sucessivamente, outras tantas vezes. O estado da dor é uma preparação no recolhimento.
Neste recolhimento a natureza pressente, prepara sua vinda.
Heidegger diz que enquanto a natureza se recolhe, os poetas parecem isolados. No
entanto, a verdade é que eles não estão sós, eles pressentem. Pressentir é pensar adiante, é
73
pensar em algo que está distante, mas não se afasta. Para a compreensão comum, distância e
afastamento dizem o mesmo, que entendemos o distante como aquele que está afastado de
nós. Porém, não é esse o caso aqui, o que se encontra distante não se afasta por não ser algo
que está indo, mas está vindo. O que se pressente é distante porque é algo que pertence ao
“porvir”. No entanto, o que está por vir repousa no inicial. Isso faz do porvir heideggeriano
algo diferente daquilo que comumente chamamos de “futuro”. Para o pensamento comum,
entende-se como futuro aquilo que está totalmente desconectado do inicial. No entanto, como
para Heidegger os três êxtases do tempo não podem ser pensados isoladamente, o porvir
pertence também ao passado.
Lembramos que a concepção de tempo heideggeriana não é a tradicional, ou seja,
aquela em que o tempo é visto de maneira linear. Para nosso filósofo, passado, presente e
futuro são compreendidos numa co-pertença originária. Desse modo, o passado deixa de ser
algo fixado num lugar da história que ficou atrás na memória. O passado passa a ser aquilo
que prepara o porvir, porque nele continua a vigorar no presente o que um dia aconteceu e
pode vir a ser de novo. Ou seja, o pressentir do poeta vai a trás e à frente também, pois pensa
o dar-se da natureza tendo como pano de fundo a questão do tempo originário. O
pressentimento do poeta é uma volta ao passado, mas não no sentido de uma nostalgia. Ele
retoma o passado no presente, e assim pode preparar o futuro.
Aparentemente a natureza dorme, porém seu sono é na verdade um pressentimento,
estado no qual estão também os poetas. O aparente repouso é quando se está na maior
atividade, na preparação para o vindouro. Juntos, poetas e natureza pressentem o que está por
vir, a vinda do sagrado. O pressentimento dos poetas ocorre juntamente com o da natureza
porque “como os poetas não se referem, de facto, à natureza como objeto, mas porque a
natureza enquanto Ser se institui a si própria no dizer, o dizer dos poetas tem, enquanto o
dizer-de-si-própria da natureza, a mesma essência desta. Por isso é que se diz dos poetas que
eles ‘sempre pressentem’”.
128
Com a citação anterior emerge uma grande dúvida. Como pode o poeta pertencer à
mesma essência da natureza? Para o senso comum a natureza são as plantas, os animais, os
oceanos. Alguns podem até dizer que os poetas como “animais racionais” pertencem ao
conjunto da natureza também. No entanto, a essência do homem e da natureza parece ser algo
muito diverso. Isso porque aos olhos do homem moderno a natureza é vista como um objeto a
ser explorado e o homem é o explorador. Nesse sentido sua essência é muito diferente da
128
HEIDEGGER, Martin. Hinos de Hölderlin. Lisboa: Instituto Piaget, 2004. p. 241.
74
essência humana. No entanto, para o pensamento de Heidegger a questão é bem diferente. A
natureza, como vimos no início do capítulo, será compreendida à luz da poesia de Hölderlin.
Para entender melhor o que Hölderlin diz com a palavra natureza é preciso remeter-
se ao termo grego fu/sij. Na leitura de Heidegger, o que esta palavra representou para os
pensadores gregos antigos não se sustentou quando da tradução para natura, natureza. A
tradução fez com que esta palavra perdesse sua força ao ganhar elementos novos que não
dizem respeito ao que ela significou no início. Heidegger chama nossa atenção para o fato de
que ainda assim, na poesia de Hölderlin, a palavra natureza carrega algo que lembra seu
significado antigo.
Fu/sij significa “o crescimento”, lembrando que para os gregos a palavra
crescimento nada tem a ver com aumento quantitativo, evolução ou ocorrer sucessivo. A
fu/sij nomeia “um surgir e sair, é um abrir-se que, ao eclodir, ao mesmo tempo retorna ao
surgimento e, deste modo, se encerra naquilo que em cada ocasião lhe outorga a presença ao
que se apresenta. Fu/sij, pensado como palavra fundamental, significa sair ao aberto, é o
aclarar desse claro
129
que é o único em cujo interior pode chegar a aparecer algo, pode situar-
se em seu contorno, mostrar-se em seu ‘aspecto’”.
130
A fu/sij, entendida ao modo dos
gregos, é o que traz e mantém as coisas na presença. Ela cria e mantém aberto o espaço no
qual as coisas se apresentam. Assim como a natureza, “a fu/sij é o que está presente em
tudo”.
131
Por essa razão, diz Heidegger, é que neste poema Hölderlin chama de “natureza”
àquela “que tudo cria”, a “sempre viva”.
No poema, a palavra utilizada por Hölderlin não é fu/sij, e sim natureza. No
entanto, para Heidegger, mesmo que Hölderlin não tenha conhecido o significado mais inicial
129
Muito embora os tradutores espanhóis da obra Aclaraciones a la poesía de lderlin tenham traduzido a
palavra Lichtung como “claro”, acreditamos que uma tradução mais precisa seria “clareira”. Na nota de número
13, página 65, os próprios tradutores aludem para o fato de que a palavra que traduzem como “claro” é Lichtung.
Por sua vez, “claro”, em língua alese diz hell. Acreditamos que tal equívoco de tradução ocorreu porque a
palavra Lichtung é derivada de Licht (luz). A maioria dos tradutores brasileiros realiza uma tradução mais
precisa de Lichtung como “clareira”. Optamos por “clareira” levando em conta também, o fato de que a Lichtung
tem seu sentido cunhado, por Heidegger, justamente no seu encontro com a poesia de Hölderlin. A clareira é um
lugar aberto, um deserto no meio do ente. Ela é um meio clarificante, que envolve, circunda o ente. Ao mesmo
tempo em que é luz, a clareira é também encobrimento. Essa luz encobridora pode se dar de duas maneiras no
meio do ente, como recusa (começo da clareira) e como dissimulação (interior da clareira). No primeiro tipo de
encobrimento acontece um recusar-se do ente e o que nos resta é dizer que ele é. Tal recusa não deve ser vista
como um limite imposto ao nosso conhecimento acerca do ente, que ela é apenas o começo da clareia. Na
dissimulação o ente faz-se passar por outro que não ele mesmo. Os dois modos de encobrimento (recusa e
dissimulação) acontecem ao mesmo tempo e por isso é difícil definir quando se esta diante de um ou do outro. A
clareira permite que o ente seja iluminado em um ou outro aspecto, ela não concede acesso à totalidade do
ente. Essa dinâmica da clareira acaba por preservar o ente em sua riqueza.
130
HEIDEGGER, Martin. Aclaraciones a la poesía de Hölderlin. Madrid: Alianza Editorial, 2005. p. 63.
(Tradução nossa).
131
Ibid. p. 63. (Tradução nossa).
75
da palavra fu/sij, ele consegue poetizar algo que se aproxima muito daquilo que ela um dia
representou para os gregos. “Com a palavra ‘natureza’ Hölderlin poetiza outra coisa que, sem
dúvida, se encontra em uma oculta relação com o que um dia se chamou fu/sij”.
132
Existe uma correspondência entre a natureza no seu despertar e a fu/sij, entendida
como um surgir, um eclodir. A natureza como fu/sij desperta com o amanhecer que se
levanta depois da escuridão da noite. A escuridão da noite é o tempo de preparação que a
natureza exige para que o vindouro possa ser recebido. E o poeta é aquele que se encontra
sempre nesse tempo da noite, pressentindo o futuro, preparando a vinda do sagrado.
3.3 O sagrado como essência da natureza
Com a palavra natureza, Hölderlin não pretende fazer reviver aquilo que foi
experimentado pelos gregos antigos. A palavra natureza poetiza uma outra coisa. Essa outra
coisa, que é o sagrado, pode ser encontrada quando da correspondência com a fu/sij grega,
que é um surgir a partir de si mesma.
Com o fim da noite e o nascer do sol, o que antes era apenas pressentido chega à
palavra dos poetas. O sagrado, através da palavra poética, é trazido pelos poetas. Aquilo que
antes se chamou de natureza é agora o sagrado. Os poetas são convocados pelo sagrado para
que através da palavra poética possam trazer o próprio sagrado aos homens. Essa convocação
é uma obrigação que os poetas cumprem para que a natureza possa vir como o sagrado. A
palavra poética é a escolhida para a tarefa do sagrado porque ela é capaz de conservar o
dizer em sua inicialidade. “O início se apresenta na medida em que permanece na vinda”.
133
Ou seja, a palavra poética é capaz de conservar o sagrado em sua essência, em seu modo de
um “ainda não”.
No despertar do dia tudo era silêncio, mudez. A poesia nomeia o essencial, o
despertar da natureza e transforma a mudez em palavra. Desse modo, o sagrado passa a
ressoar na palavra poética.
A palavra é, para Heidegger, o que separa a essência da não-essência das coisas. Ao
separá-las a palavra dispõe o combate entre elas. A palavra é uma arma que inicia, propicia o
132
HEIDEGGER, Martin. Aclaraciones a la poesía de Hölderlin. Madrid: Alianza Editorial, 2005. p.64.
(Tradução nossa).
133
Ibid. p. 189. (Tradução nossa).
76
combate. No poema, Hölderlin diz que a natureza “acorda com o soar das armas”. A natureza
acorda com a palavra armada. Nesse acordar a natureza tem sua essência despertada. Sua
essência é o sagrado.
A natureza é mais antiga que os tempos. Ela é anterior à concepção cotidiana que
temos de tempo, com a qual contamos as horas, os dias e os anos de nossas vidas. Isso porque
a natureza é onipresente, e desse modo é anterior aos tempos dos homens. Ela é mais antiga
que todo o real e também mais antiga que os deuses. A natureza está “sobre” os deuses, e isso
não quer dizer que a natureza se encontra numa ambiência separada, por cima deles. A
palavra “sobre” é utilizada para indicar que sendo a natureza a mais antiga e a regente de tudo
o que existe, os deuses, assim como todas as coisas, têm sua existência subordinada a ela.
A natureza é aquela que tem o poder da onipresença, ela é a luz que ilumina todo o
real. A natureza é o sagrado, é anterior a qualquer coisa, e, como dissemos, é anterior até
mesmo aos tempos e aos deuses. “O sagrado não é sagrado por ser divino, senão que o divino
é divino por ser sagrado a sua maneira”.
134
Desse modo, Heidegger inverte a concepção do
senso comum ao dizer que o divino pertence ao sagrado, e não o contrário. Dizer que o divino
é divino porque sagrado é dizer que o sagrado é quem dá ao divino a condição de
possibilidade para que ele seja o que é. O sagrado engloba a tudo, tanto o éter quanto o
abismo, e até mesmo o caos.
A natureza tem como essência o sagrado. Ela desperta de maneira sagrada. Em seu
despertar, a natureza desperta a si mesma, sai de si mesma para fazer-se presente. E aonde
chega a natureza no seu despertar? Quando desperta, a natureza chega a si mesma. Isso ocorre
porque a natureza é o início de tudo; sendo assim, quando volta a si mesma pode encontrar
a si mesma. Para Heidegger (2005, p.67), isso é o que Hölderlin quer dizer com o “E” que
aparece na sexta estrofe do segundo verso. O despertar da natureza é o voltar dela para ela
mesma. Despertando, a natureza se enche de novo pelo espírito que tudo preenche e anima. A
natureza em sua onipresença é espírito. “O espírito é esse pôr cada coisa em seu distinto lugar,
essa atividade diferenciadora, lúcida e arriscada, que instala tudo aquilo que está presente
dentro dos limites e estrutura bem delimitados de sua vinda à presença”.
135
O espírito faz com que cada coisa seja o que é dentro da rede de coisas que
compõem o real. Tanto as coisas iguais entre si quanto as que diferem entre si estão sob o
signo do espírito que a tudo preenche. O espírito diferencia cada coisa de acordo com suas
134
HEIDEGGER, Martin. Aclaraciones a la poesía de Hölderlin. Madrid: Alianza Editorial, 2005. p. 66.
(Tradução nossa).
135
Ibid. p. 67. (Tradução nossa).
77
especificidades. Apesar de diferentes entre si, todas as coisas são unificadas mediante o
espírito. Isso se porque o que de mais próprio no espírito é o pensamento, que a tudo
reúne numa unidade diferenciadora. Esse pensamento é o que Heidegger chama de pensar
essencial.
O espírito é como um espaço aberto no qual cada elemento do real vem à presença e
permanece presente. O espírito preenche a tudo, desde o alto éter até o abismo mais profundo.
Neste espaço aberto pelo espírito estão mortais e imortais e todas as coisas do real, sejam
iguais entre si ou diferentes.
O espaço aberto permite a relação entre as coisas que compõem o real e, desse modo,
funciona como um mediador. O real, por sua vez, é algo mediado e tudo o que nele se
encontra é mediato. Por outro lado, o espaço aberto (mediador), no qual as coisas do real se
dão em relações e correspondências, é imediato. Mortais e imortais, todos são mediatos e
nunca podem ser imediatos ou alcançar o que é imediato de maneira imediata.
Tudo que existe, sejam deuses ou homens, estão sob o jugo da lei do imediato. “O
que está presente em tudo de maneira prévia reúne todo o isolado em uma única presença e
serve de mediação para qualquer elemento que possa aparecer”.
136
Ao afirmar que o sagrado é
o que está presente em tudo de antemão, Heidegger quer dizer que ele é “sem mediações”. O
sagrado ou natureza é o imediato, mas ao mesmo tempo é “a lei” para tudo que é mediato.
Tendo em vista os versos sete e oito da terceira estrofe, nos quais Hölderlin diz que a
natureza “segue sólida lei” e “nasceu do sagrado caos”, Heidegger pergunta: Como conciliar
duas coisas supostamente distintas - o caos e a lei?
Para o pensamento cotidiano, a palavra caos nos remete a um lugar no qual impera a
confusão. Desse modo, como a natureza pode ser a lei se nasceu da confusão, daquilo que
carece de lei?
Esse modo errôneo de pensar o caos como o “sem sentido” nos impede de aceder à
sua verdadeira essência. Isso porque “caos significa em primeiro lugar o que se abre como um
bocejo, a fissura aberta, o espaço aberto que se abre antes e no qual tudo cai engolido”.
137
No
abrir-se de uma fissura na superfície de um terreno, tudo o que se encontrava sobre o chão é
engolido, devorado pela fenda. A fenda não proporciona apoio às coisas, ela o tem um
fundo aparente, é um abismo. Logo, como o caos pode servir de fundamento para as coisas se
ele mesmo é sem fundo?
136
HEIDEGGER, Martin. Aclaraciones a la poesía de Hölderlin. Madrid: Alianza Editorial, 2005. p. 69.
(Tradução nossa).
137
Ibid. p. 70. (Tradução nossa).
78
Aquele que conhece o que é mediato não pode entender o caos de outro modo, a
não ser como confusão. Porém, se pensarmos a natureza como fu/sij (eclodir que ao mesmo
tempo retorna ao surgimento), o caos é a fissura a partir da qual o espaço aberto se abre como
o lugar no qual as coisas vêm à presença.
Segundo Heidegger (2005, p.70), isso justifica o fato de Hölderlin chamar tanto o
caos quanto a confusão de “sagrados”. “O caos é o sagrado mesmo. Nenhum elemento real
precede a essa fissura, senão que se limita sempre a entrar nela”.
138
O caos, que podemos
chamar de sagrado ou natureza, precede a tudo, é o mais antigo, é anterior a qualquer outra
coisa. É mais antigo do que tudo o que existiu e mais jovem do que tudo o que ainda está
por vir. O sagrado é aquilo que é desde sempre o inicial. Nessa inicialidade permanente está
sempre “intacto e salvo”. Isso porque o inesperado, o que não tem data nem local pré-
determinados para ocorrer, está livre de qualquer aprisionamento. O sagrado não pode ser
manipulado porque ele não é algo que está na nossa frente, ao alcance dos olhos. Ele
acontece em épocas essenciais que não podem ser medidas pelo pensamento que calcula.
Ao manter-se como “ainda não”, o sagrado se preserva nessa demora de seu vir a ser.
Desse modo, como falar de algo que nunca está pronto, acabado? Homens e deuses, estes
nunca podem ter uma experiência do sagrado de maneira imediata porque suas relações com
as coisas são sempre mediatas. O homem se relaciona com as coisas ao seu redor quase
sempre condicionado por uma terceira coisa. Ou seja, a coisa nela mesma não é pensada,
importa mais a serventia dela. Muitas vezes até mesmo as relações dos homens entre si são
pautadas pela serventia, pela utilidade. Para o homem é difícil compreender algo que surge a
partir de si mesmo e que, ao surgir, faz um movimento de volta para si mesmo.
O pensamento calculador procura conhecer as coisas não nelas mesmas, mas no
intuito de dominá-las. Para este tipo de pensamento as coisas só são dignas de serem pensadas
se puderem ser subjugadas, escravizadas em prol do homem. Um pensamento desse tipo não
pode entender algo como o sagrado, já que este não tem serventia, é inutilizável.
O sagrado não se deixa experimentar para fora de si mesmo, e nada além dele mesmo
pode explicá-lo. Heidegger diz que o sagrado sempre nos escapa, por mais que tentemos
apreendê-lo. Isso acontece porque ele é exuberante, cheio, repleto. Podemos dar a ele muitos
nomes: natureza, mistério, espantoso. Nenhum desses nomes esgota o sagrado, porque ele é
138
HEIDEGGER, Martin. Aclaraciones a la poesía de Hölderlin. Madrid: Alianza Editorial, 2005. p. 70.
(Tradução nossa).
79
extraordinário. Faltam nomes sagrados porque o sagrado é desde sempre aquilo que se retém
em si mesmo e assim impede um aceder direto a ele.
Dito isso, como podemos nos propor a falar do sagrado se ele é indizível e
inapreensível? Ele é indizível para uma linguagem que tenta aprisioná-lo em definições
exatas. “Contrariamente a isto há um dizer que se entrega expressamente à saga sem, no
entanto, refletir sobre a linguagem; se o fizesse, também esta se transformaria em objeto.
Entrar na verdadeira saga caracteriza um dizer que segue o caminho daquilo que necessita ser
dito, com a única finalidade de o dizer. Aquilo que necessita ser dito seria então aquilo que,
segundo a sua natureza, pertence ao recinto da linguagem”.
139
Então, uma linguagem cuja
dinâmica seja harmonizada com a dinâmica de manifestação do sagrado é capaz de nomeá-lo.
Nos capítulos anteriores dissemos que a linguagem poética é capaz de nomear o
sagrado e ao mesmo tempo resguardá-lo como mistério. Tal coisa é possível porque o
poeta pertence ao sagrado. Isso significa que ele lhe é familiar.
3.4 A tarefa do poeta: cuidar do sagrado
Na quarta estrofe, os poetas aparecem como aqueles que têm a alma incendiada pelo
fogo do sagrado. Os poetas, educados pela natureza sob um ligeiro abraço, pertencem ao
sagrado. Pelo fato de pertencerem a ele podem pressentir sua vinda e prepará-la. se pode
pressentir o que ainda está por vir. E, quando o sagrado vindouro se desvela, é como se uma
luz iluminasse a alma dos poetas. Iluminados por essa luz, os poetas pertencem ao sagrado.
Por pertencerem ao sagrado, os poetas são queimados pelo seu fogo e atingidos pela
sua luz. Os poetas se mantêm no aberto e na claridade que emana do sagrado.
Desse modo, parece que os poetas ocupam um lugar privilegiado em relação aos
outros homens. A eles foi concedido o fogo do céu e o aberto da clareira. Porém, segundo
Heidegger, “o aberto se articula com isso que chamamos ‘um mundo’”.
140
O poeta está mais
familiarizado ainda com os “signos e as façanhas” do mundo. O mundo não lhes é alheio, eles
também estão incluídos no real. Em uma das estrofes da primeira versão do poema O Único,
139
HEIDEGGER, Martin. Caminhos de Floresta. Lisboa: Instituto Piaget, 2004. p. 362.
140
HEIDEGGER, Martin. Aclaraciones a la poesía de Hölderlin. Madrid: Alianza Editorial, 2005. p. 71-72.
(Tradução nossa).
80
Hölderlin diz que “os poetas têm também que ser os espirituais no mundo”.
141
Essa
necessidade de que os poetas sejam atrelados ao mundano é iminente. De que outro modo eles
poderiam interpretar os sinais e façanhas que ocorrem no mundo como possíveis vestígios do
sagrado?
Na estrofe de número quatro, Hölderlin diz: “e o que outrora aconteceu, mas apenas
foi sentido / É somente manifesto agora”. O “outrora” significa o que é mais inicial, mais
antigo, a natureza como fu/sij, que somente foi entendida dessa maneira num momento
único e logo depois foi esquecida. No entanto, Hölderlin foi capaz de compreender o
significado inicial da natureza para os pensadores originários, e em razão disto o sagrado pode
ser nomeado em sua poesia.
Na mesma estrofe de número quatro, a natureza desperta. No despertar, ela é a que
vida aos deuses, aos quais o poeta está submetido. Os poetas trabalham como os
camponeses que lavram a terra. Eles preparam a vinda do sagrado, bem como os camponeses
preparam a terra para o plantio. Apesar de as forças que despendem nessa tarefa serem
nomeadas como divinas, elas não têm origem nos deuses. Essa força divina é concedida pela
própria natureza que a tudo mantém vivo.
A natureza se mantém firme desde o momento em que começou a ser bombardeada
pelas maquinações humanas. Ela se manteve a salvo das tentativas que a técnica moderna
produziu para apreendê-la e escravizá-la. A tudo isso a natureza suportou “sorrindo”. Suportar
sorrindo é o modo como a natureza responde desde sua superior onipresença. As investidas
contra ela, advindas dos homens não a atingem porque ela é o inicial. A natureza suporta e
desse modo mantém-se o espaço para que o sagrado permaneça presente em meio à técnica.
Para o homem da técnica moderna, não só a natureza, mas tudo o que conhecemos é algo a ser
explorado em proveito da humanidade. As coisas são conhecidas e valorizadas pelo que
podem resultar em forma de lucro e fortuna.
No entender heideggeriano, as coisas deveriam ser conhecidas pelo que são e não
pelo que podem produzir. Infelizmente, não é o que ocorre numa era em que todas as coisas
são visadas com os olhos da ambição. A natureza e o sagrado não escapam a esse olhar, eles
também sofrem com essas investidas. Num tempo desses, o sagrado é também um valor
dentre tantos outros. A única diferença é que ele é tido como o valor supremo. Logo, o
141
HEIDEGGER, Martin. Aclaraciones a la poesía de Hölderlin. Madrid: Alianza Editorial, 2005. p. 72.
(Tradução nossa).
81
sagrado não desaparece na técnica. Ocorre que, se o olhar que é o que mede e calcula o
sagrado se torna um valor.
A quarta estrofe termina fazendo uma alusão às forças dos deuses. A ligação entre o
fim dessa estrofe e o começo da seguinte é feita através de uma indagação: “pergunta por
eles?”. Segundo Heidegger, “eles” são os deuses e suas forças vivificadoras. Os deuses
precisam do poeta para trazer o sagrado ao povo, e o poeta precisa dos deuses. Nem mesmo o
poeta que está abraçado pelo sagrado pode aceder a ele quando bem entender. O poeta nunca
pode manipular o sagrado mediante sua própria vontade. Ao poeta cabe responder aos apelos
que o sagrado realiza através dos chamados dos deuses. Ele corresponde a esses apelos
através do canto que funciona como resposta. Somente o canto poético, e nenhum outro, é
como uma justa medida para receber o sagrado.
No entanto, nem todo canto poético é capaz de trazer o sagrado à palavra. Este tem
que brotar do despertar da natureza, que ocorre em meio às tormentas que acometem o céu, a
terra e os povos. A tempestade que cai na noite que antecede o amanhecer é como uma
gestação, nela se prepara o dia que surgirá. Para o nascimento do canto poético é necessário
esse tempo de preparação. O sagrado nasce através do canto poético mediante um tempo
que prepara sua recepção.
Nos dois últimos versos da quarta estrofe está escrito: “os pensamentos do espírito
comum são / São os que terminam silenciosos na alma do poeta”. Espírito é “o que com seu
pensar ordena e articula tudo, permanece adicto e afeito a todos”.
142
Em razão de estar
acostumado a tudo, o espírito é sempre espírito comum. Segundo Heidegger, dizer que os
pensamentos do espírito comum terminam na alma do poeta é o mesmo que dizer que nela
esses pensamentos são recebidos e conservados.
O verbo “terminar”, nesse caso, nada tem a ver com fim ou desaparecimento.
Portanto, dizer que os pensamentos terminam silenciosos na alma do poeta não é o mesmo
que dizer que eles desaparecem no silêncio emudecido. Isso porque o silêncio, neste caso, é
receptáculo que gesta o espírito em todo seu entusiasmo e plenitude. O silêncio funciona
como um tempo de resguardo, no qual os pensamentos continuam sendo o que sempre foram.
No silêncio eles esperam apenas o tempo certo de seu vir a ser. Portanto, de maneira
silenciosa, mas nem por isso usurpado de toda a sua plenitude, o espírito é recebido e
conservado pela alma do poeta. “O que de espantoso tem o sagrado repousa na doçura da
alma ‘do poeta’. O sagrado está presente silenciosamente como algo vindouro. Por isso nunca
142
HEIDEGGER, Martin. Aclaraciones a la poesía de Hölderlin. Madrid: Alianza Editorial, 2005. p. 75.
(Tradução nossa).
82
se representa como um objeto ou algo que se possa aprisionar”.
143
O sagrado se encontra no
âmbito do porvir. Isso impede a sua captura ou aprisionamento.
A alma do poeta oferece proteção ao sagrado em seu vir a ser. Heidegger chama
atenção para o fato de que em quase todos os outros trechos nos quais se refere aos poetas,
Hölderlin utiliza o plural. Isso não ocorre em dois momentos do poema, são eles: quando
na primeira estrofe do terceiro verso o poeta a vinda do sagrado e na passagem citada
acima, quando é mencionada a alma silenciosa “do poeta”. Segundo Heidegger, os dois
trechos tratam do mesmo poeta. Seria este o próprio Hölderlin?
A quinta estrofe possui um verso a menos que as demais. E segundo Heidegger
(2005, p.76), para que possamos seguir o poema naquilo que ele pretende dizer é preciso
incluir um pensamento nessa lacuna. Este pensamento serve para dar continuidade ao que
vem sendo dito no poema. O que se disse é que o sagrado encontra-se resguardado na alma
silenciosa do poeta, e por esse motivo ela “desfruta com sorte o canto, o que agora significa
que obtém a palavra, que somente deve dizer o sagrado”.
144
Ao resguardar o sagrado, a alma
do poeta também guarda o canto e a palavra, que devem estar à disposição unicamente do
sagrado. Assim sendo, desfrutando da sorte do canto, a obra poética do sagrado tem sua
realização sempre protegida. Nada pode ameaçar a não realização da obra, a não ser o fato de
a alma não suportar a sorte do canto. Pode ser que a sorte se torne pesada demais para o poeta
e ele vacile.
A sorte do poeta é albergar em sua alma o vindouro, mas ele é incapaz de, na solidão,
nomear o sagrado. A alma do poeta possui uma chama de luz muito clara que pode ser
acesa pelos deuses. Os deuses inflamam essa luz mediante o raio sagrado que eles recebem do
sagrado mesmo e lançam sobre o poeta. Por essa razão, os deuses estão mais altos, mais perto
do sagrado, para lançarem esse raio inflamável que incendeia a alma do poeta. Esse raio de
luz que vem dos deuses e golpeia com muita força o poeta é o que o obriga à sua missão, à
sua tarefa de mediador do sagrado.
Os deuses são, portanto, fundamentais ao poeta, pois eles têm a função de expulsar o
raio de luz que vem do sagrado. Os poetas também são fundamentais aos deuses, que
somente eles são capazes de suportar a força do raio de luz que golpeia com violência.
Sendo assim, homens e deuses precisam uns dos outros para que o sagrado possa
acontecer. E desse modo, se a união entre homens e deuses é o que assegura a vinda do
143
HEIDEGGER, Martin. Aclaraciones a la poesía de Hölderlin. Madrid: Alianza Editorial, 2005. p. 75.
(Tradução nossa).
144
Ibid. p. 76. (Tradução nossa).
83
sagrado, o elo deve ser forte e duradouro. A essa sólida ligação em prol do mesmo, Heidegger
dá o nome de ‘Amor’. Unidos pelo amor, homens e deuses não são uns sem os outros. Apesar
desse vínculo unificador, cada qual não deixa de ser aquilo que é. Os homens continuam
sendo homens e os deuses continuam sendo deuses. Isso de certa forma também assegura a
vinda do sagrado, já que cada um continua a cumprir o seu papel. O sagrado é beneficiado por
esse amor que ele mesmo concede. E isso não poderia ser diferente, pois se o sagrado é a lei
para todas as coisas, o amor é fruto do sagrado. Homens e deuses podem se unir no amor
porque ambos estão sob o jugo do sagrado. Desse modo, percebemos que não basta a vontade
isolada dos deuses, nem mesmo a vontade isolada do poeta. A união entre eles deve ser selada
pelo sagrado.
Golpeado pelo raio dos deuses, o poeta poderia ficar tentado a tomar posse do
sagrado e não intermediar sua vinda aos homens. Se assim o fizesse, o poeta perderia a
essência do ser poético, que tal essência “não se baseia em receber o deus, senão estar
rodeado pelo abraço do sagrado”.
145
O poeta é poeta justamente por se manter em estado de
atenção em relação ao raio enviado pelos deuses. Ao ser atingido por esse raio, o poeta deve
enviá-lo ao povo. O sagrado não lhe pertence, ele precisa passá-lo adiante. Porém, o que faz
com que o poeta suporte o calor do raio?
A chama forte do raio não queima o poeta porque ele pertence ao sagrado, e dessa
forma se encontra familiarizado com esta característica própria do sagrado. O sagrado não é
indiferente ao poeta e o poeta também não é indiferente ao sagrado. Se as coisas não
ocorressem dessa forma, o poeta jamais reconheceria os vestígios do sagrado. Em razão disso,
persiste também uma familiaridade do poeta com a natureza no que diz respeito à sua
onipresença. O poeta é capaz de ser o intérprete do sagrado porque sua voz encontra-se
ajustada aos apelos que vêm do céu. É como se ambos estivessem na mesma freqüência.
Apesar da sintonia com o sagrado, ao receber o raio, a alma do poeta chega a
estremecer. Isso ocorre porque o sagrado em seu abrir-se é recordação. Recordar não é o
mesmo que um simples lembrar. Na recordação, o que é recordado retorna à presença. “O
estremecimento rompe o repouso do silêncio. A palavra chega a ser”.
146
No mais profundo
silêncio repousa na verdade a pura agitação. Estremecido pela recordação daquilo que o
sagrado foi um dia, o poeta rompe o silêncio e traz a palavra à tona. A palavra não é outra
coisa que lembre o sagrado, ela é o sagrado mesmo trazido à presença.
145
HEIDEGGER, Martin. Aclaraciones a la poesía de Hölderlin. Madrid: Alianza Editorial, 2005. p. 77.
(Tradução nossa).
146
Ibid. p. 77. (Tradução nossa).
84
É como se o silêncio funcionasse como um fundo de poço onde as palavras são como
as águas calmas do fundo. O que não quer dizer que elas estejam largadas à própria sorte. As
palavras espreitam, estão preparadas para o dizer e à espera de alguém que tenha a capacidade
de suportá-las na sua fala. Ninguém pode fazer isso sozinho, mas a união de deuses e homens
pode. Isto significa que a palavra é o que “permite que apareça a mútua pertença de deus e
homem”.
147
Ou seja, a palavra poética traz à tona o fundamento da mútua pertença entre
homens e deuses: o sagrado.
A estrofe sete começa dizendo, “E por isso, os filhos da terra bebem agora / Sem
perigo o fogo celestial”. Ou seja, livre dos perigos a palavra chega aos homens por intermédio
do poeta. Pela primeira vez aparece no poema e de modo único na obra de Hölderlin a
expressão, “fogo celestial”. Este fogo não deve ser confundido com o raio enviado pelos
deuses que atinge os poetas. O fogo celestial é celestial porque enviado por um celeste e está
na alma dos poetas desde antes do nascimento do canto, ele é o sagrado mesmo. Quando o dia
nasce e a natureza desperta por meio da palavra, os filhos da terra podem beber sem perigo do
fogo celeste.
Para Heidegger, a introdução do mito de Sêmele na sexta estrofe do poema serve
para produzir um contraste. A divergência entre a atitude de Sêmele e o posicionamento que o
poeta deve ter mediante o fogo sagrado ajuda a entender o seguinte: nem sempre a simples
presença do sagrado garante a eficácia do canto. O sagrado não se deixa apreender por deuses
ou poetas. Tentar violentar sua essência como mistério é tarefa ineficaz. Aquele que se
aproxima demais pode se queimar em seu fogo, como aconteceu a Sêmele. O poeta, no
entanto, não ultrapassa a zona limítrofe, ele se coloca no “entre”. Ele assume sua condição de
semideus. Tocar o sagrado não lhe convém, pois ele também poderia se queimar. Como
semideus ele é o único capaz de suportar os desígnios dos deuses e levá-los aos homens. O
poeta assume o sagrado como mistério.
Sêmele, por sua vez, desejou ver o deus da maneira como ela o imaginava, numa
forma humana; assim ela o reconheceria, ela poderia ter uma experiência dele e daquilo que
ele é. No entanto, o deus não se mostrou a Sêmele como ela esperava que ele o fizesse. Na
ânsia de desvendar aquele mistério, ela não se contentou com o que lhe cabia e acabou
queimada no fogo do deus. Das cinzas de Sêmele nasce Baco, o deus da vinha. Segundo
Heidegger, ao se queimar na chama do deus, Sêmele esquece o sagrado. Desce esquecimento
147
HEIDEGGER, Martin. Aclaraciones a la poesía de Hölderlin. Madrid: Alianza Editorial, 2005. p. 77.
(Tradução nossa).
85
nasce Baco, um semideus. O semideus carrega a proximidade/distância que existe entre
deuses e homens. Ele é capaz de reconhecer as propriedades humanas e também as divinas. O
semideus não é um homem, mas também não é um deus. E é nessa zona de fronteira, que o
poeta se coloca. O poeta é um semideus e não deve tentar ultrapassar essa região limítrofe.
Ele deve manter-se sempre na proximidade, na qual o espaço para a vinda do sagrado está
assegurado.
Os poetas, colocados no “entre”, trazem aos homens o sagrado livre de toda sua
periculosidade. O perigo que o sagrado carrega é o de ter sua verdadeira essência interpretada
como uma coisa que ela não é. A palavra do poeta é palavra que medeia o sagrado para os
homens. Assim, o sagrado não corre o risco de ser mal interpretado. “A comoção do caos, que
não oferece nenhum ponto de apoio, o terror do imediato, que faz fracassar todo impulso, o
sagrado, se transformou na doçura da palavra mediadora e mediata graças à silenciosa calma
do poeta resguardado”.
148
O sagrado como caos representa para o homem o risco de não ter
onde pôr os pés. A fissura aberta pelo sagrado não oferece nenhuma segurança ou apoio.
Além disso, para o homem é difícil entender como o sagrado pode ser ao mesmo tempo a lei e
o caos.
O sagrado como o imediato também aterrorizava o homem, porque o mediato lhe é
mais próximo e por isso mais fácil de ser compreendido. Agora, através da doçura de suas
palavras, o poeta traz o sagrado aos homens. E, livre de seus perigos, o homem pode ter a
chance de experienciá-lo.
A chegada do sagrado faz com que os poetas e os “filhos da terra” assumam uma
nova posição. Com o sagrado eles “se vêem transportados juntamente a um novo modo de
ser”.
149
Nesse novo modo de ser a distância entre eles não diminui, ela aumenta.
Nos primeiros versos da sétima estrofe, enquanto os homens bebem do fogo celestial,
os poetas estão colocados sob a tempestade dos deuses de cabeça descoberta. Assim
colocados, eles devem suportar a tempestade e captar com as próprias mãos o raio do pai. “E
agora têm que permanecer aí, no lugar onde se abre o sagrado mesmo, mais preparado e mais
inicial”.
150
Com o nascer do dia e a vinda do sagrado tudo aparenta estar calmo e leve.
Entretanto, o que acontece é o contrário. O sagrado se torna muito pesado para os poetas. Seu
peso é quase insuportável, mas eles têm que manter os pés firmes na mediação com os deuses.
148
HEIDEGGER, Martin. Aclaraciones a la poesía de Hölderlin. Madrid: Alianza Editorial, 2005. p. 78.
(Tradução nossa).
149
Ibid. p. 78. (Tradução nossa).
150
Ibid. p. 79. (Tradução nossa).
86
A obrigação é dupla: captar o raio nas mãos e continuar ocupando o espaço no qual o sagrado
pode vir a manifestar-se novamente.
Por essa razão é que no penúltimo verso da sétima estrofe os poetas são os de
“coração puro”. Para Heidegger, esses poetas (no plural) são os poetas futuros, entre os quais
o próprio Hölderlin se encontra. Particularmente, Hölderlin é o primeiro, aquele que diz antes
de todos o que deve ser dito.
No coração é onde se encontra recolhido e reunido o que de mais próprio os poetas
possuem: a pertença ao abraço do sagrado. A pureza, para Hölderlin, não tem nada a ver com
moral, e sim com o originário, “o que decididamente permanece e se demora em sua
determinação e destino inicial”. A pureza é para Hölderlin, uma característica das crianças. Os
de coração puro têm as mãos puras como as de uma criança, tudo o que tocam é de forma
pura. Desse modo, o poeta jamais ousa poluir a origem. Esta permanece intocada.
Os poetas lidam com a natureza de “coração puro” e, se assim não o fizessem, essa
relação não seria possível. Pois dado que os poetas se encontram no interior da natureza, isso
poderia significar uma confusão. Eles poderiam esquecer o que têm de mais próprio,
poderiam esquecer que a natureza é a lei. Entretanto, pelo fato de seus corações serem puros e
suas mãos inocentes esse risco é amenizado. Os poetas se encontram abraçados pelo sagrado,
a ele pertencem e mesmo assim suas mãos permanecem inocentes. Isso acontecesse porque
eles não se esquecem do que lhes é mais próprio: suas almas pertencem silenciosamente ao
sagrado.
De acordo com Heidegger, a vírgula que vemos depois da palavra “mãos” do quinto
verso da sétima estrofe do poema não aparece no original manuscrito de Hölderlin. Esta
vírgula foi introduzida nas versões produzidas por Hellingrath e Zinkernagel porque para eles
ela está subentendida no texto.
A sétima estrofe alude aos poetas, que como mediadores do sagrado para os mortais,
devem se manter no perigo, debaixo da tempestade à espera dos raios divinos. Até a palavra
“mãos”, os versos tratam dos filhos da terra e dos poetas. O ponto final depois da palavra
“mãos”, que aparece na nona estrofe do sétimo verso, é colocado por Heidegger para sinalizar
uma descontinuidade. É que, segundo Heidegger, como a questão principal deste poema é a
vinda do sagrado, o final não poderia ser outro que a retomada desta questão explicitamente
colocada na terceira estrofe. Os versos seguintes à vírgula constituem uma retomada do
pensamento até a questão do sagrado e seu dizer. A retomada acontece porque o sagrado,
como o imediato, necessita da mediação dos poetas para chegar até os homens, os filhos da
terra. Por intermédio dos poetas, o sagrado (imediato) é transformado em algo mediado. A
87
mediação transforma o sagrado em palavra (mediado) e isso, por sua vez, pode ameaçar
converter a essência do sagrado em algo mediado também. Esse é o perigo que o sagrado
corre em razão da mediação do canto do poeta.
O canto desperta com o despertar do sagrado, e isso significa que o sagrado como
o imediato está guardado no canto que é mediado. O canto poético é o que chega mais perto
da essência do sagrado, pois ele é o que desperta a natureza através da palavra. Desse modo, a
essência do sagrado corre o risco de transformar-se em algo mediado. “Na medida em que o
sagrado se converte em palavra, seu ser mais íntimo começa a vacilar. A lei se ameaçada
em deixar de ser algo firme”.
151
No entanto, essa ameaça não se confirma, pois, nas últimas
estrofes do poema podemos ler que:
O raio do pai, o puro não chamusca.
E mesmo tocado no fundo, compartilhando
Das dores de um Deus, o coração eterno permanece firme.
Segundo Heidegger, a razão que explica porque o raio do pai não queima o poeta
encontra-se na expressão “coração eterno”. Esta expressão aparece de maneira única neste
poema, e só através dele pode ser entendida. No sétimo verso da terceira estrofe, o sagrado é,
em sua origem, a “sólida lei”. Depreende-se disso que tudo o que existe no real e as possíveis
relações entre as coisas só existem porque mediadas pelo sagrado. Isso porque, se o sagrado é
onipresente e é a lei mais rigorosa, tudo está recolhido nele. Todas as coisas do real estão
recolhidas no sagrado porque ele é onipresente.
A primeira estrofe do esboço tardio de um poema intitulado Gestalt und Geist
(Figura e Espírito) de Hölderlin, diz: “tudo é íntimo”. De acordo com Heidegger (2005, p.81),
isto significa que “tudo é somente na medida em que surge radiante da intimidade da
onipresença. O sagrado é a intimidade mesma, é ‘o coração’”.
152
O sagrado é mais antigo que
os tempos, é algo que desde sempre já existiu, ele é “o primeiro antes que qualquer outra coisa
e o último depois de toda outra coisa, é o que precede a tudo e o que guarda tudo em si: o
inicial, e enquanto tal, o que permanece. Seu permanecer é a intimidade do eterno. O sagrado
é a intimidade de outrora e de sempre, é ‘o coração eterno’”.
153
O sagrado é o “coração eternoque recolhe tudo numa intimidade. Logo, importa
saber: o que significa precisamente a palavra “intimidade” para Hölderlin?
151
HEIDEGGER, Martin. Aclaraciones a la poesía de Hölderlin. Madrid: Alianza Editorial, 2005. p. 80.
(Tradução nossa).
152
Ibid. p. 81. (Tradução nossa).
153
Ibid. p. 81. (Tradução nossa).
88
No poema Como quando em dia de festa, a onipresença do sagrado como natureza
reúne todo o real numa unidade que congrega até mesmo os elementos contrários entre si. “A
ligação originariamente unitária dos contrários mais afastados é o que Hölderlin,
especialmente no seu período tardio, designa com uma palavra própria: Innigkeit’”.
154
Innigkeit (intimidade) é uma das principais palavras de Hölderlin.
De acordo com Heidegger (2004, p.114), esta intimidade não deve ser confundida
“com uma mera interioridade do sentir, no sentido do fechar-se-em-si de uma ‘vivência’.
Também não designa um grau especialmente alto de ‘sentimentos calorosos’. A intimidade
também não é um atributo da ‘bela alma’ e do seu modo de posicionamento perante o
mundo”.
155
A intimidade “primeiramente, designa uma elevadíssima força do ser-aí. Em segundo
lugar: tal força afirma-se por resistir aos antagonismos mais extremos do Ser”.
156
A
intimidade é uma força do Dasein que suporta os antagonismos do ser. Desse modo,
“estarmos abertos em relação ao ente, dedicarmos-nos a ele e aguentarmos a sua discórdia,
não exclui a intimidade, pelo contrário, é justamente isso que verdadeiramente torna possível
o acesso ao seu poder unificador”.
157
podemos pensar o ser, a verdade, o sagrado, porque
desde sempre já estamos colocados na dimensão que eles mesmos abriram. A possibilidade de
pensá-los é concedida por eles mesmos. Se isso não fosse dessa forma não teríamos
“intimidade” para tanto.
O sagrado é o “coração eterno” porque é o inicial, o que desde sempre existiu, o que
foi antes de qualquer coisa e também o último depois de toda outra coisa. O permanecer do
sagrado é a eternidade do eterno. No entanto, sua permanência pode ser ameaçada pela
palavra do canto. O sagrado necessita da mediação na palavra poética, e em razão disto ele
corre o risco de perder-se. Aquilo que primeiro ameaça o sagrado em sua imediatez e de
maneira mais grave não é a palavra humana, mas o próprio raio sagrado do pai. O raio
sagrado é enviado pelos deuses no momento em que a palavra é formada. Assim como os
mortais, eles se relacionam com o sagrado de modo mediado.
Entretanto, o décimo verso da sétima estrofe diz: “O raio do pai, o puro, não
chamusca”. A versão do poema presente na edição espanhola Aclaraciones a la poesía de
Hölderlin traz o verso traduzido assim: “O puro raio do Pai não lhe consome”. No texto da
conferência, Heidegger (2005, p.81) diz que “no princípio, em vez de ‘não lhe consome’,
154
HEIDEGGER, Martin. Hinos de Hölderlin. Lisboa: Piaget, 2004. p. 114.
155
Ibid. p. 114.
156
Ibid. p. 114.
157
Ibid. p. 114 -115.
89
Hölderlin havia escrito ‘não lhe mata’. Em traços duros e nervosos pode-se ler a seguinte
observação marginal junto aos versos finais: A / esfera / que está / mais alta que / a do homem
/ essa é o deus”.
158
A palavra “chamusca”, utilizada na tradução
159
e por nós adotada, deriva do verbo
“chamuscar” que significa queimar de leve ou passar pela chama. Provavelmente, a utilização
desta palavra por Werle tem o intuito de indicar que tanto o próprio sagrado quanto o poeta
não se queimam no raio sagrado, nem mesmo levemente.
Segundo Heidegger, a nota marginal de Hölderlin diz que o raio sagrado é uma
esfera “mais alta” que a do homem, porém não é “a mais alta esfera”. A “mais alta esfera” é a
do sagrado mesmo. Portanto, o raio sagrado nada pode contra a sua própria origem. Mesmo
sendo aquele que ameaça mais de perto o sagrado, ele não pode chamuscá-lo ou consumi-lo.
O sagrado ou “coração eterno” permanece firme em sua essência.
O sagrado permanece firme, mas na mediação, quando é retirado de sua pureza, ele
se comove. E junto com ele comovem-se também os deuses ao enviarem-se a si mesmos em
forma de raio. Embora comovidos, ambos permanecem firmes na pertença ao sagrado. “Esta
pertença que se mantém intimamente e não é um mero tolerar é o padecer”.
160
Heidegger (2005, p.82) diz que Hölderlin pensa a essência da palavra padecer “em
uma variante posterior da versão tardia do hino intitulado ‘O Único’”.
161
O trecho é o
seguinte: “... deserto cheio de rostos, de maneira que permanecer em inocente verdade é um
padecer”.
162
Este permanecer na intimidade, na lei (lei da intimidade à qual tudo pertence) não
infringida é um padecer. A “inocente verdade” é a verdade da sua própria essência na qual o
sagrado permanece desde sempre e por isso padece junto com o deus.
Porém, o padecer do sagrado não é um lamentar ou uma simples comiseração
(piedade, pena, dó, compaixão). “Padecer é permanecer firme no início”.
163
Permanecer no
início não é o mesmo que um acomodar-se nele. dissemos que para Heidegger (2005, p.83)
o permanecer não pressupõe uma falta de movimento: é justamente o contrário. Permanecer é
manter-se no caminho. Logo, permanecer no início é manter-se no caminho do início, manter-
se em seu abrir-se e doar-se, e isso necessita de uma “intimidade cada vez mais inicial”.
164
158
HEIDEGGER, Martin. Aclaraciones a la poesía de Hölderlin. Madrid: Alianza Editorial, 2005. p. 81-82.
(Tradução nossa).
159
Conferir nota 117.
160
HEIDEGGER, Martin. Aclaraciones a la poesía de Hölderlin. Madrid: Alianza Editorial, 2005. p. 82.
(Tradução nossa).
161
Ibid. p. 82. (Tradução nossa).
162
Ibid. p. 82. (Tradução nossa).
163
Ibid. p. 83. (Tradução nossa).
164
Ibid. p. 83. (Tradução nossa).
90
Permanecer no sagrado é manter-se em seu inicial, onde ocorre sua vinda, “seu
permanecer nunca significa a vazia duração de algo presente, senão a vinda do início”.
165
A
vinda do início é algo que não se concretiza no presente, é algo a esperar. O início é o mais
antigo e o que desde sempre existiu; nada é anterior a ele, portanto nada é mais inicial que ele.
Em seu permanente “vir a ser”, o sagrado mantém-se na inicialidade do início.
De acordo com Heidegger (2005, p.83), Como quando em dia de feriado... é um
poema inacabado. Esta incompletude do poema “é unicamente a conseqüência da
superabundância que flui desde o início mais íntimo do poema e exige um final concludente e
vinculador”.
166
Um final verdadeiramente concludente e vinculador para este poema, é para
Heidegger aquele que retoma a principal questão nele trabalhada. A principal questão aparece
na terceira estrofe: a vinda do sagrado. Portanto, um final concludente nesse caso é aquele que
retoma o sagrado em sua vinda, já que é essa a questão que perpassa todas as estrofes e versos
do poema. Heidegger disse que o poeta aparece no poema porque é ele quem medeia a
vinda do sagrado. O sagrado mesmo é o protagonista. Todas as demais estrofes giram em
torno daquela que nomeia o sagrado.
Uma outra questão a ser pensada é que, tratando-se de um poema que tem por
palavra fundamental o sagrado, torna-se difícil qualquer expressão conclusiva, visto que o
sagrado é o extraordinário, o imediato. Sua superabundância não cabe em pensamentos
calculadores e medições. Sua imediatidade não pode ser captada. Isso quer dizer que a
incompletude do poema é na verdade o reflexo de um transbordamento que o pode ser
presumido com uma estrofe final supostamente conclusiva.
O poema em seu todo possui estrofes que se vinculam umas às outras e todas elas
existem em função daquilo que o poeta quer fazer ressoar de modo mais originário: o sagrado.
Na verdade, todas as outras estrofes abrem espaço para que o mais importante deste poema
ressoe nos seguintes versos:
Mas agora amanhece! Esperei e vi chegar,
E o que vi, o sagrado, seja minha palavra.
165
HEIDEGGER, Martin. Aclaraciones a la poesía de Hölderlin. Madrid: Alianza Editorial, 2005. p. 83.
(Tradução nossa).
166
Ibid. p. 83. (Tradução nossa).
91
Nestes versos, o poeta diz que “agora”
167
, no amanhecer do dia, o sagrado surge
como palavra doada. O que Hölderlin estaria querendo dizer com esse “agora”? Estaria ele se
referindo ao ano de composição do poema? - pergunta Heidegger.
Ao que parece, diz o filósofo, esse “agora” nomeia o momento em que o próprio
Hölderlin diz: “mas agora amanhece”. O “agora” nomeia a época de Hölderlin, o tempo
estabelecido por sua palavra. No entanto, esta época de Hölderlin não pode ser confundida
com o tempo a ele contemporâneo. Na leitura de Heidegger (2005, p.84), o “agora” nomeia a
vinda do sagrado. “Unicamente esta vinda assinala o ‘tempo’ em que é ‘tempo’ (...)”.
168
O
tempo nomeado nessa passagem não pode ser medido ou calculado. Esse tempo refere-se às
decisões essenciais da nossa história, ele é anterior àquele que mede os dias e meses do ano.
Ele é anterior porque desde sempre é tempo, o cabe documentá-lo. O tempo como é
concebido comumente existe porque antes existiu um tempo original, esse que Hölderlin
nomeia em sua poesia.
O poema diz que o sagrado é “mais antigo que os tempos”. Logo, ele é o tempo mais
originário, pois “funda em sua vinda outro início de outra história”.
169
O sagrado funda os
deuses, os homens, tudo o que existe. Ele decide acerca do início e também do fim. Está por
detrás das decisões mais extremas, do como e do porquê das coisas.
A palavra de Hölderlin é a palavra que chama o sagrado à sua vinda. O sagrado vem
na palavra e pela palavra do poeta. Mais do que nunca, diz Heidegger, o poema de Hölderlin é
um hino “do” sagrado. A palavra “hino” deve ser entendida num sentido novo, não mais como
um elogiar ou celebrar alguma coisa. O hino, aqui, não é um elogio ao sagrado. O hino de
Hölderlin é “do” sagrado, porque nele o sagrado mesmo vem à baila.
A poesia de Hölderlin chama o inicial, o que está sempre por vir, o sagrado. O poeta
chama o sagrado porque tem a necessidade de fazê-lo. Segundo Heidegger, por ser
“sagradamente necessária”, a palavra nomeada no hino é “sagradamente sóbria”. Tal
expressão pode ser compreendida na recolha do fragmento “Canto alemão” de 1800.
... sentado está nas profundas sombras
Quando sobre sua cabeça sussurra o olmo
Junto ao arroio que respira frescor, o poeta alemão.
E canta, quando da água sóbria e sagrada
167
Aqui, invés de “agora”, a tradução espanhola usa a palavra “fim”. No entanto, em nota de número quarenta da
página 83, os próprios tradutores aludem para o fato de que em alemão a palavra é “agora”. Decidimos nos
manter fiéis ao original alemão e à tradução feita por Werle. Portanto, optamos por “agora”.
168
HEIDEGGER, Martin. Aclaraciones a la poesía de Hölderlin. Madrid: Alianza Editorial, 2005. p. 84.
(Tradução nossa).
169
Ibid. p. 84. (Tradução nossa).
92
bebeu bastante, espiando ao longe em silêncio
o canto da alma.
170
Nesses belos versos citados acima, Heidegger enxerga toda a dinâmica da disposição
fundamental da poesia que nomeia o sagrado. Ele realiza um paralelo entre esses versos e os
versos de Como quando em dia de feriado... .
Para Heidegger (2005, p.85), “as ‘profundas sombras’ salvam a palavra poética da
claridade excessiva do ‘fogo celeste’. O ‘arroio que respira frescor’ protege a palavra poética
do ardor excessivamente forte do ‘fogo celeste’”.
171
As profundas sombras vêm da árvore que
está suspensa sobre a cabeça do poeta. Assim como as sombras, a árvore fresca também ajuda
a refrescar o fogo celeste.
A água do arroio é sóbria e fresca assim como o sagrado também o é. O poeta,
sentado nas sombras da árvore bebe da água que corre sóbria e sagrada. A sobriedade da água
não a torna menos sagrada. O poeta também não se torna menos entusiasmado em cumprir
sua tarefa. Pelo contrário, o sagrado necessita dessa sobriedade, que é a disposição
fundamental da palavra poética no canto sagrado.
A nosso ver a poesia fala do “entre” ao dizer que o poeta está nas “profundas
sombras” a olhar ao longe. A árvore suspensa sobre a cabeça do poeta se assemelha ao céu a
partir do qual os raios sagrados são enviados pelos deuses. O poeta está sentado à sombra e
isso pode significar que ele está próximo da origem, do mistério. A origem é a luz, na qual o
poeta não adentra, mas do qual se aproxima, porque o mais próximo da luz é a sombra. No
entanto, fora da origem, mas a ela devotado, ele olha ao longe, e depois de beber da água
sagrada rompe o silêncio e sua alma canta.
Heidegger disse, no decorrer de sua interpretação do poema, que o mais importante
dessa poesia é a nomeação do sagrado que nela se realiza. Podemos pensar então em que
sentido faz-se necessário entender de que modo o sagrado vem à palavra do povo. A que isto
se propõe?
Durante todo o poema, o sagrado é tratado como algo a ser cumprido, a ser realizado.
Ele pertence ao porvir, o que significa que tal momento ainda não se cumpriu. Palavras
semelhantes a essas são usadas pelo filósofo na conclusão de sua interpretação. Elas atestam
mais uma vez que o tempo de Hölderlin, a sua hora, ainda não chegou. E mais do que isso,
elas dizem respeito a nós, os homens, e a nosso modo poético de existir.
170
HEIDEGGER, Martin. Aclaraciones a la poesía de Hölderlin. Madrid: Alianza Editorial, 2005. p. 85.
(Tradução nossa).
171
Ibid. p. 85. (Tradução nossa).
93
“A palavra de Hölderlin diz o sagrado e assim nomeia esse espaço único de tempo da
inicial decisão que articula essencialmente a futura história dos deuses e do humano. Esta
palavra nunca ouvida, ainda está guardada na língua ocidental dos alemães”.
172
172
HEIDEGGER, Martin. Aclaraciones a la poesía de Hölderlin. Madrid: Alianza Editorial, 2005. p. 85.
(Tradução nossa).
CONCLUSÃO
O primeiro capítulo procurou evidenciar o motivo que levou Heidegger a se
aproximar da poesia de Hölderlin e como se deu essa aproximação. O interesse de Heidegger
é fruto de uma necessidade intrínseca ao pensamento. A busca por uma linguagem capaz de
falar do sagrado sem esmiúçá-lo em determinações conceituais traz Heidegger para perto da
poesia, mais especificamente, da poesia de Hölderlin.
A verdade do ser é o que se abre como um pano de fundo, sobre o qual o sentido do
ser e o sagrado podem ser pensados e ao mesmo tempo resguardados em sua dinâmica. A
verdade como aletheia preserva o jogo revelamento / velamento que é próprio tanto da
dinâmica do ser quanto do sagrado. A verdade como mistério, ou seja, como aquilo que o
precisa ser revelado para ser compreendido é o que permite entender o sagrado em sua
manifestação. O caráter de mistério do sagrado resguarda-o de uma apropriação usurpadora de
sua riqueza.
A linguagem da poesia é aquela que permite nomear o sagrado como mistério.
Heidegger compreende que é a partir do momento em que o homem dialoga com o mundo em
que vive e com os outros homens que ele se apropria de sua própria essência humana. O
homem é diálogo porque antes de tudo pertence à linguagem. A linguagem o precede como
aquela que instaura as possibilidades de vivência no mundo.
O modo como o homem lida com as possibilidades, o modo como ele faz suas
escolhas, ou seja, o modo como ele habita a terra é poético. O existir humano tem como
fundamento a poesia. Hölderlin é o poeta que como nenhum outro, se ateve ao modo de
existir poético do homem. Isso porque ele soube compreender que o ser se manifesta em
épocas distintas de maneiras distintas. Ou seja, se em Como quando em dia de feriado... o
poeta canta a vinda do sagrado, a disposição fundamental que permeia o poema Germânia é
outra.
Em Germânia, Hölderlin reconhece a fuga dos deuses como uma época de luto e
penúria. Para Heidegger esta época é aquela em que vivemos, é a época moderna da técnica.
A fuga não causa melancolia nem rancor no poeta, pelo contrário, na fuga o poeta deve se
manter atento aos vestígios do sagrado. O sofrimento que ele despende ao suportar os raios
95
enviados pelos deuses é um luto sagrado. O sagrado, precisa tanto do poeta quanto dos deuses
para se manifestar. Nos versos de Hölderlin, os deuses são aqueles que enviam a si mesmos
em forma de raios. Debaixo da tempestade de raios divinos está o poeta a suportar o fogo
desses relâmpagos.
O poeta tem a tarefa de manter-se na intermediação entre os deuses e os homens. Os
homens não são capazes de sozinhos compreenderem os vestígios do sagrado, eles precisam
de alguém que os interprete. Esse papel de intérprete do sagrado cabe ao poeta. A essência do
fazer poético é se manter atento aos acenos dos deuses, que são como vestígios que anunciam
um possível retorno da divindade que partiu. A manutenção deste espaço aberto pelo poeta e
mantido por ele é o que possibilita um pensamento acerca do sagrado, que é anterior aos
deuses. O sagrado é o que permite que os deuses sejam deuses e que os homens sejam
homens. O sagrado é a lei.
Os poetas são moradores da fronteira, são semideuses que se colocam à disposição
do sagrado na manutenção do aberto que proporciona a sua vinda. Os semideuses ou poetas
podem suportar o fogo celeste e não serem consumidos por ele porque participam do sagrado,
estão abraçados pelo abraço do sagrado. Os semideuses são aqueles que se encontram mais
próximos da origem. Desse modo, eles correm o risco iminente de não suportarem esta
proximidade. Segundo Heidegger, aqueles que se arriscam mais experimentam o desamparo e
por isso estão no rasto dos vestígios, no rasto daquilo que necessita ser dito.
O desamparo não é sentido por aqueles que acreditam viver em meio aos deuses
mesmo estando numa era os deuses sumiram. O homem moderno vive nessa era e mesmo
assim não se apercebe disso. Ele precisa dos poetas que se arriscam no anúncio do porvir.
Esse porvir não é algo que está por se manifestar no momento em que a poesia de Hölderlin
for compreendida pelo homem, no momento em que ela se fizer presente. A manifestação do
sagrado está sempre calcada em um porvir. O sagrado é um “vir a ser”.
O poeta é aquele que pressente o sagrado. Isso significa dizer que o sagrado não está
preso lá numa época passada e que esta época deve ser trazida à baila pelo poeta. O sagrado é
o inicial, nada o precede, por isso ele é ao mesmo tempo, o primeiro antes de qualquer coisa e
o último depois de toda coisa. Ao pressentir e permanecer no sagrado o poeta preserva a vindo
do sagrado como o que de mais inicial. Preservando o sagrado nessa inicialidade o poeta
preserva o espaço de manifestação dos deuses.
Por isso Heidegger irá dizer que o último deus não pode ser confundido com aquele
que vem depois de tudo, como se ele fosse o fim. O último deus não é um deus que irá
substituir os deuses que sumiram. O último deus é na verdade a possibilidade de um outro
96
início. Nesse outro início livre da metafísica, o último deus aparece como a possibilidade de o
homem lidar de um modo novo com o divino. A palavra “último” na noção do último deus diz
do caráter passageiro e efêmero do deus. A divindade não pode ser aprendida, sua existência
é assegurada no existir enquanto tal. O deus é último porque não pode ser fixado, sua
chegada não pode ser calculada.
Essas reflexões acerca do último deus só podem ser compreendidas tendo como pano
de fundo o modo como Heidegger compreende que devemos pensar o ser e o sagrado. O
caminho para se chegar ao ser e até o sagrado não é um caminho em linha reta. Perseguir o
sagrado, objetivá-lo, espiá-lo com a finalidade de transformá-lo num conceito é tarefa
infundada. O que deve ser feito nesse caminho de pensamento é se colocar “a caminho”. O
pensamento que se coloca “a caminho” da coisa pensada preserva a distância entre a coisa e
quem a pensa. Nessa distância a coisa se preserva como ela mesma. Na distância a coisa pode
se manifestar ou se esconder. Somente um pensar desse tipo pode suportar a falta dos deuses,
pois entende que a falta é também uma maneira de os deuses se manifestarem em sua
divindade.
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100
ANEXOS
Germânia
173
I
Não a eles, os bem-aventurados que apareceram em tempos idos,
As imagens divinas no País antigo,
A eles já não posso invocar de forma alguma; se no entanto,
Ó águas da pátria! agora convosco
Carpe o amor do coração, que mais quer ele,
Em luto sagrado? É que pleno de esperança jaz
O País, e como em dias quentes
Rebaixado, nos ensombra hoje
Ó saudosos! Um céu premonitório.
Cheio está ele de promessas e, me parece,
Ameaçador também, mas quero ater-me a ele,
E não deixar que a alma me fuja pra trás
Para junto de vós, passados! que me sois caros em demasia.
É que ver o vosso rosto belo,
Como outrora, receio que seja mortal,
E dificilmente é permitido acordar os mortos.
II
Ó deuses que fugistes! também vós, ó presentes, outrora
Mais reais, tivestes os vossos tempos!
Nada quero negar, aqui, e nada pedir.
É que quando tudo acabou, e o dia se extinguiu,
O sacerdote é o primeiro atingido, mas como amor o segue
O tempo e a efígie, também, e o seu costume
Para o País sombrio e nada já consegue brilhar.
Só como de chamas sepulcrais propaga-se então
Um fumo dourado, a lenda, sobre ele
E envolve, agora, a fronte de escuridão, a nós cépticos,
E ninguém sabe o que lhe acontece. Sente
As sombras daqueles que já foram,
Os velhos que revisitam a Terra.
É que os destinados a aí vir nos empurram
E mais não se demora de homens divinos
A sagrada turba, já, no céu azul.
173
HEIDEGGER, Martin. Hinos de Hölderlin. Lisboa: Piaget, 2004. p. 18-21. (Tradução Lumir Nahodil).
101
III
Já verdeja afinal, prenunciando um tempo mais rude,
O campo para eles cultivado, preparada está a oferenda
Para o festim e vale e rios abrem-se
De par em par em torno de montes proféticos,
De forma a que possa mirar até ao Oriente
O homem e daí muitas transformações o comovam.
No entanto, cai o éter
A imagem fiel e chovem os ditos divinos
Para ele incalculáveis e uma voz ecoa no mais íntimo do bosque.
E a águia vinda do Indo,
Que sobrevoa os cumes nevados do Parnasso,
Muito acima das colinas de sacrifícios
Da Itália, em busca de presa alegre
Para o pai, não como antes, mais exercitada no vôo,
A velha, transpõe jubilante
Os Alpes por fim e enxerga os países variegados.
IV
A sacerdotisa, a mais taciturna filha de Deus,
Ela que gosta bem demais de fruir em silêncio a mais profunda
simplicidade,
É a ela que [a águia] procura, a que olhou de olho bem aberto,
Como se não soubesse, há pouco, quando uma tempestade
Lhe tonitroou, ameaçadora de morte, sobre a cabeça;
Pressentia, a criança, algo de melhor
E finalmente um espanto se expandiu no céu,
Porque alguém de grande fé, como ela própria,
Seria o poder abençoante da altura;
Por isso enviaram um mensageiro que, reconhecendo-a rapidamente,
Pensa, sorrindo, assim: A ti, ó inquebrantável, tem de
pôr-te à prova outra palavra, e exclama-a em voz alta,
A jovem águia, olhando a Germânia:
“És tu a escolhida
“Tu que tudo amas e para carregares uma sorte pesada
“Te fortaleceste”.
V
Desde então, quando, escondida na floresta e entre papoila em flor,
Cheia da doce sonolência, ébria, em mim
Não reparavas, muito tempo ainda antes que, também,
Inferiores sentissem
O orgulho da virgem e se espantassem de quem e de onde serias,
Mas tu própria não o sabias. Eu reconheci-te
E discretamente, enquanto sonhavas, deixei-te,
Partindo ao meio-dia, um sinal de amizade,
A flor da boca, e ficaste a falar solitária.
102
Mas também enviaste uma profusão de palavras douradas,
Ó bem-aventurada! Com os rios eles jorram inesgotáveis
Para todas as regiões. É que quase como a Santa,
Que é a mãe de todas as coisas e traz em si o abismo
A que os homens costumam chamar a oculta,
Assim de Amor e Sofrimento
E cheio de pressentimentos
E cheio de paz está teu peito.
VI
Ho!, Bebe brisas matinais,
Até que te abras,
E nomeia o que tens diante dos olhos,
Não mais deve ficar segredo
O que está por pronunciar
Após estar encoberto há muito tempo;
É que aos mortais fica bem o pudor
E assim é sábio falar a maior parte do tempo
Também dos deuses.
Mas onde se tornou mais abundante que fontes cristalinas
O ouro, e ficou séria a ira do céu,
Entre o dia e a noite tem de
Um dia aparecer uma verdade.
Transcreve-a três vezes,
Mas inexpressa também, como está,
Ó inocente! tem de continuar.
VII
Nomeia, ó filha, tu, da Terra sagrada!
Enfim, a mãe, Rumorejam as águas junto à rocha
E as tempestades na floresta, e ao nome dela
Ecoa de um tempo remoto a divindade do passado.
Como é diferente! E justamente brilha e fala
O futuro, também, alegre, das lonjuras.
Mas no centro do tempo
Vive tranqüilo com a sagrada
Terra virgem o éter,
E com prazer, para recordação, são eles,
Os não necessitados,
Recebidos hospitaleiramente pelos não necessitados
Nos teus dias de festa,
Germânia, onde tu és sacerdotisa
E dás conselhos, indefesa, a toda a volta
Aos reis e aos povos.”
103
O Reno
174
I
Na hera escura estava eu sentado, à porta
Da floresta, justamente à hora em que o meio-dia dourado,
Vinha a descer, visitando dos Alpes,
Que para mim se chama o construído dos deuses,
O castelo dos celestes
De onde porém, segundo velha crença,
Ainda decididamente muito chega
Aos homens, assim
Ouvi eu inadvertidamente
Um destino, visto que ainda há pouco
A minha alma, na sombra quente,
Discutindo consigo muitas coisas,
Vagueou até à Itália
E para as longínquas costas da Moréia.
II
Mas agora, no meio da cordilheira,
Profundamente entre os cumes prateados
E entre o verde alegre,
Onde as florestas olham para ele tremendo
E as cabeças das rochas amontoadas umas sobre as outras
Olham dias inteiros para baixo, ali
No precipício mais frio ouvi
Implorar por redenção
O jovem, ouviram-no enfurecer-se
E acusar a Terra-Mãe
E o trovejar que o gerou,
Compadecidos os progenitores;
Mas os mortais fugiram desse lugar,
Pois era medonho, visto que no escuro
Em amarras se retorcia,
O furor do semideus.
III
Era a voz do mais nobre dos rios,
Do Reno nascido livre,
E outra coisa esperou ele quando, em cima, dos irmãos,
174
HEIDEGGER, Martin. Hinos de Hölderlin. Lisboa: Piaget, 2004. p. 147-153. (Tradução Lumir Nahodil).
104
Do Ticino e do Ródano
Se despediu querendo percorrer o mundo e, impaciente, o
Impeliu em direção à Ásia a alma real.
Mas são insensatos
Os desejos perante o destino.
Os mais cegos, porém,
São os filhos de deuses. Pois o homem conhece
A sua casa e o animal sabe onde
Construir a sua, mas àqueles foi-lhes
Infundido, na alma inexperiente,
A falta de não saberem para onde ir.
IV
Um enigma é o que nasce da pureza. Também
O canto dificilmente o desvendará. Pois
Como começaste, assim permanecerás,
Por muito grande que seja a penúria
E a disciplina, visto que a maior parte
É devido à nascença,
E ao raio de luz que
Vem ao encontro do recém-nascido.
Mas onde há alguém
Que se mantenha livre
Por toda a sua vida, o desejo do coração
Possa cumprir sozinho, assim nascido feliz
De alturas propícias, como o Reno;
E assim de um seio sagrado,
Como ele?
V
Por isso um grito de alegria é a sua palavra.
Não gosta, como as outras crianças,
De chorar enfraldado;
Visto que onde as margens pela primeira vez
Lhe tocam o lado, retorcidas,
E, encostando-se-lhe sedentas,
Desejam puxá-lo a si, o insensato,
E protegê-lo bem,
Entre os próprios dentes, rindo,
Despedaça ele as serpentes e corre
Com a presa e se na pressa
Um maior não o domar,
O deixar crescer, como o relâmpago tem
De cindir a terra, e, como enfeitiçadas, fogem
Atrás deles as florestas e, desmoronando-se, os montes.
VI
105
No entanto um deus quer poupar os filhos
À vida apressada e sorri
Quando os rios, pouco sóbrios, mas entravados
Pelos Alpes sagrados,
Na sua profundidade, como aquele, se revoltam.
Em tal forja, então,
Também se forja tudo o que é puro,
E é belo ver como ele, a seguir,
Tendo deixado os montes,
Atravessando calmamente a terra alemã,
Se contenta e acalma o desejo
Em actividade benfazeja, lavrando a terra,
O pai Reno e alimenta os filhos queridos
Nas cidades que ele fundou.
VII
Mas nunca, nunca se esquece.
Porque antes acabará a casa
E a lei, e degradar-se-á
A vida dos homens, antes que um tal rio
Possa esquecer a origem
E a pura voz da juventude.
Quem foi o primeiro a
Perverter os laços amorosos
E a transformá-los em amarras?
Foi nessa altura que
Escarneceram do seu direito próprio
E, certamente, do fogo celeste,
Os arrogantes e, nessa altura,
Desprezando os caminhos dos mortais,
Enveredaram por vias audazes
Querendo equiparar-se aos deuses.
VIII
Mas os deuses têm quanto baste
De imortalidade própria e se necessitam
De algo, os celestes,
É de heróis e humanos e
Demais mortais. É que, visto
Os bem-aventurados nada sentirem por si só,
Deverá, se dizer tal coisa for permitido,
Um outro, em nome dos deuses,
Sentir compassivo,
Ta é a pessoa de que eles precisam; no entanto,
Seu juízo é que a sua própria casa
Destrua e o que lhe é mais querido
Descomponha como se de um inimigo se tratasse
E enterre seu pai e filho sb os escombros,
106
Se alguém como eles quiser ser e não
Sofrer a desigualdade, o visionário.
IX
Por isso, feliz é aquele que encontrou
Um destino bem merecido
Onde ainda a recordação
Das deambulações e dos sofrimentos
Docemente regurgita na margem segura
Para que para aqui e para ali
Possa olhar, até às fronteiras
Que Deus à nascença
Para a sua morada lhe marcou.
Então repousa ele, de modéstia feliz,
Porque tudo que ele quisera,
O divino, vem abraçá-lo por si mesmo,
Livre de constrangimento e sorridente
Agora que ele repousa, o destemido.
X
Em semideuses penso eu agora
E devo conhecer os caros
De tantas vezes que a sua vida assim
Me comoveu o peito saudoso,
Mas a quem, ó Rousseau, como a ti
Foi dada uma alma invencível,
Forte e tenaz
E um sentido seguro
E o doce dom do escutar,
De falar de tal modo que, de uma plenitude sagrada,
Tal como o deus do vinho, tola e divinamente
E sem lei dá a fala dos mais puros
Compreensível aos bons, mas que, com razão,
Fere de cegueira os falhos de atenção,
Os escravos sacrílegos, como nomearei esse estranho?
XI
Os filhos da Terra são, tal como a Mãe,
Dotados de um amor que tudo abrange, e assim também recebem
Sem esforço os felizes, e tudo.
Por isso também surpreende
E assusta ao homem mortal
Pensar no céu que
Com os braços amantes
Amontoou sobre os seus ombros,
E o peso da alegria;
Então parece-lhe, muitas vezes, o melhor
107
Morar, quase totalmente esquecido, aí
Onde o raio não queima,
Na sombra da floresta,
No meio dum verde fresco, junto ao lago de Biel,
E, despreocupado e pobre em sons,
Como os principiantes, aprender com os rouxinóis.
XII
E como é sublime, então, de um sono sagrado
Erguer-se e da frescura da floresta,
Despertando agora, ao fim da tarde,
Ir ao encontro da luz mais suave,
Quando aquele que ergueu as montanhas
E delineou os percursos dos rios,
Depois de ter, sorrindo, também
Guiado a vida atarefada e falha de fôlego
Dos humanos, como as velas com as suas brisas,
Também repousa e para a discípula, agora,
Ele, o Criador; encontrando mais coisas boas
Do que más,
Para a Terra hodierna, ele, o dia, se inclina.
XIII
Então celebram as núpcias os homens e os deuses
Celebra tudo que é vivo
E compensado está
Por um instante o destino.
E os fugitivos procuram a hospedaria
E os audazes uma doce sonolência,
Os amantes, no entanto,
São os que eram, estão
Em casa, onde a flor rejubila
Com o calor inofensivo
E o espírito as árvores escuras
Sussurrando envolve, mas os irreconciliados
Estão mudados e correm
Para se darem as mãos
Antes que a luz amena
Se ponha e a noite venha.
XIV
Mas a alguns passa
Isto depressa, outros
O conservam por mais tempo
Os deuses eternos estão
Sempre cheios de vida; até à morte,
Contudo, também um homem pode
108
Conservar na sua memória o melhor,
E então experimenta o sublime.
No entanto cada um tem a sua medida.
Visto ser pesada de suportar
A desgraça, mais pesada, porém, a felicidade.
Mas um sábio conseguiu
Do meio-dia até à meia-noite,
E até que a manhã resplandeceu
Manter-se lúcido no festim.
XV
A ti Deus pode aparecer, meu Sinklair! Num caminho ardente
Debaixo de pinheiros, ou na escuridão da floresta
De carvalhos, envolto em aço, ou nas nuvens,
Tu conhece-lo, já que conheces juvenilmente
A força do Bem, e nunca te está
Oculto o sorriso do dominador
De dia, quando
Febril e acorrentado brilha
Tudo que é vivo, ou também
De noite, quando tudo está misturado,
Sem ordem e regressa
Uma confusão ancestral.
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